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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 04:49:20 -0700 |
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PEDRO I *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net. Produced from +page images provided by Biblioteca Nacional Digital +(http://bnd.bn.pt). + + + + + + + + + +BIBLIOTHECA DE CLASSICOS PORTUGUEZES + + * * * * * + +Director litterario + +_LUCIANO CORDEIRO_ + + * * * * * + +Proprietario e fundador + +_MELLO D'AZEVEDO_ + + + + +BIBLIOTHECA DE CLASSICOS PORTUGUEZES + +*Director litterario--LUCIANO CORDEIRO* + +_Proprietario e fundador--MELLO D'AZEVEDO_ + + * * * * * + +CHRONICA DE EL-REI D. PEDRO I + +POR + +_Fernão Lopes_ + +ESCRIPTORIO + +_147, Rua dos Retrozeiros, 147_ + +LISBOA + +1895 + + + + +LISBOA + +Impresso na Typ. do «Commercio de Portugal» _35, Rua Ivens, 41_ + +1895 + + + + +*DUAS PALAVRAS* + + +Realisando corajosamente a boa, a piedosa idea de republicar as +chronicas impressas do--Pae da Historia Nacional,--como Herculano +apellidou Fernão Lopes, Mello d'Azevedo, o editor d'esta modesta e +patriotica bibliotheca podera, hoje, ainda! suprir qualquer explicação +prefacial com as palavras do nosso grande historiador moderno, quando ha +mais de meio seculo tracejava o perfil do encantador--«escripvam»--do +bom Rei Dom Duarte: + +--«Tão raros, ou tão pouco lidos andam os antigos escriptores +portuguezes que muitas pessoas ha, não de todo hospedes nas letras, que +apenas de nome os conheçam, _e frequentes vezes nem de nome_.» + +Hoje, ainda!... + +Fernão Lopes é quasi exclusivamente conhecido de nome, e já agora +arejemos toda a nossa idea, mais exactamente toda a nossa observação +positiva e directa: nem de nome o conhece muito litterato gloriosamente +emproado pelas novas camarilhas do elogio mutuo na fama e na faina da +renovação da Historia e da Arte nacional... por estampilha francelha. + +Uma das causas da mingua, a bem dizer, absoluta, de vulgarisação dos +nossos antigos escriptores, dos nossos melhores monumentos litterarios, +da nossa historia, até, indicamol-a já n'outra publicação d'esta +bibliotheca: é o espirito estreitamente, inconsequentemente monopolista +dos eruditos ou dos que se querem dar ares de taes; é a superstição das +reproducções mais ou menos arbitrariamente chamadas fieis, conservadoras +de uma ortographia, de uma disposição typographica até, obsoleta, +indigesta, inacessivel á leitura corrente, á assimilação immediata, +actual, affectiva da multidão. + +Em volta d'esta causa ou concorrendo e emparelhando com ella, muitas +outras se teem accumulado e subsistem, por tal maneira renitentes e +acrescentadas, que póde affirmar-se, como facto incontestavel, que as +palavras doridas de Herculano teem hoje, mais do que quando elle as +escreveu,--ha 56 annos!--uma applicação perfeitamente exacta e justa. + +Conhecia-se mais, muito mais, então, Fernão Lopes, ou qualquer outro dos +nossos antigos escriptores, do que hoje se conhecem e leem. Basta citar +ou vêr o trabalho litterario d'esse tempo, comparando-o com o do nosso. + +Quando eu, e certamente muitos dos leitores, iniciámos a nossa vida +intellectual, lia-se, estudava-se, explicava-se o Camões nas escolas. +Naturalmente, insensivelmente iam penetrando nos nossos corações e nos +nossos cerebros em formação as ideas e os sentimentos de honra, de +intrepidez, de amor da Patria, com tantas outras lições generosas, +estimulantes, grandes, que as bellas estrophes transvasam nos espiritos +sãos e frescos. Lia-se tambem o Freire d'Andrade, um massador de grandes +discursos e de grandes bombardadas rhetoricas, d'accordo, mas que nos +encantava, que nos ensinava muitas cousas interessantes, que nos +enlevava, que nos fazia pensar em grandes cousas: nas terriveis batalhas +da vida, nos sacrificios e nos esforços valentes com que ellas se +vencem. + +Um dia, era eu ainda um rapaselho, apanhei entre os velhos livros de meu +pae:--que sabia de cór o Virgilio, o Camões, e que me recomendava o Tito +Livio, o João de Barros, etc,--apanhei, pois, um volume, que nunca mais +vi, e que era uma edição em 8.° da _Chronica de Dom Pedro_ por Fernão +Lopes, exactamente a que vamos lêr agora. + +Devia ser a edição do Padre Pereira Bayão, do seculo 18.°, inferior á +chamada da Academia sobre a qual é feita a nossa. + +Como eu li sofregamente, deliciosamente, o velho livro! + +Como me soube bem aquella prosa simples, ampla, forte--permittam-me a +expressão;--aquelle _contar_ ingenuo, vivo, e ao mesmo tempo tão +magestoso pela sincera e nobre lealdade do chronista--que não era um +adulador Real, nem um _fingidor_ litterario! + +Chronista! Historiador é que póde francamente chamar-se-lhe. + +Foi a primeira revelação que tive de Fernão Lopes e só desejo que tão +agradavel seja a dos que pela primeira vez travarem agora conhecimento +com elle. + +Poderia dizer que a vão travar simultaneamente com outros escriptores, +de que Fernão Lopes se serviu ou que se serviram d'elle, mas como já +disse n'outra publicação, a nossa _Bibliotheca_ não pôde ainda entrar na +tentativa das edições criticas e por isso estes pequenos prefacios não +devem ensaiar essa feição que os levariam longe. + +Nem mesmo podemos dar do author mais do que uns breves traços dispersos +que aliás se encontram facilmente em publicações muito accessiveis. + +Fernão Lopes nasceu não se sabe onde, ainda no seculo 14.°, parece, como +diz Herculano, que pouco antes ou durante--«a gloriosa revolução de +1380,»--sendo collocado por Dom João I, juncto d'algum ou d'alguns dos +filhos. Em 1418 confiou-lhe o Rei de Boa Memoria, a guarda e +serviço,--constituido então independente,--da--«torre do castello da +cidade de Lisboa,»--a primitiva Torre do Tombo. + +Ali começou a fazer-se entre as--«escripturas»--dos velhos e modernos +tempos, o grande historiador, a quem Dom Duarte por carta de 19 de março +de 1434,--isto é por uma das suas primeiras iniciativas de Rei, +dava--«carrego de poer em caronyca as estorias dos reys que antigamente +em Portugal foram»,--com 6$000 reis de tença annual, uns escassos 60$000 +de hoje. No cargo o confirmou o cavalleiroso Affonso V por Carta de 5 de +junho de 1449. + +Teve uma longa vida Fernão Lopes, sendo em 1455 substituido por Gomes +Eannes de Azurara que, briosamente e sem favor, lhe chama:--homem de +communal (descomunhal) sciencia e authoridade.» + +Fez-se a substituição--«por seu prazimento e por fazer a elle mercê como +é rasom de se dar aos boõs servidores,»--sendo--«já tão velho e fraco +que por si non podia bem servir»--e sobrevivendo ainda, 5 annos, pelo +menos. + +Andaria nos 80. + +É uma complicada questão, a de ter Fernão Lopes escripto outras +chronicas além das que teem logrado chegar, sob o seu nome, até nós, e a +de se terem outros escriptores apropriado, mais ou menos de trabalhos +d'elle. As conhecidas são a de Pedro I que vamos republicar, a de Dom +Fernando, e a de João I. Como diz, justamente, Herculano:--«para a +gloria de Fernão Lopes são monumentos sobejos»--estes tres monumentos. + +Mas que pena que não tenhamos d'elle a historia d'aquelle--«grande +desvayro»--dos amores de Ignez de Castro e que a gentil figura nos +apareça apenas como uma obsessão cruel do extraordinario monarcha que +procurara já distrahir-se um pouco nos braços de Theresa Lourenço, a +bemaventura mãe de Dom João I. + +_L. C_. + + + + +Chronica do senhor rei D. Pedro I oitavo rei de Portugal + + + + +*PROLOGO* + + +Deixados os modos e definições da justiça, que, por desvairadas guisas, +muitos em seus livros escrevem, sómente d'aquella para que o real +poderio foi estabelecido, que é por serem os maus castigados e os bons +viverem em paz, é nossa intenção, n'este prologo, muito curtamente +falar, não como buscador de novas razões, por propria invenção achadas, +mas como ajuntador, em um breve mólho, dos ditos de alguns que nos +aprouveram. Á uma, por espertar os que ouvirem, que entendam parte do +que fala a historia; á outra, por seguirmos inteiramente a ordem do +nosso arrazoado, no primeiro prologo já tangida. + +E porquanto el-rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justiça, de +que a Deus mais praz que cousa boa que o rei possa fazer, segundo os +santos escrevem, e alguns desejam saber que virtude é esta, e pois é +necessaria ao rei, se o é assim ao povo: vós, n'aquelle estilo que o +simplesmente apanhámos, o podeis lêr por esta maneira. + +Justiça é uma virtude, que é chamada toda virtude; assim que qualquer +que é justo, este cumpre toda virtude; porque a justiça, assim como lei +de Deus, defende que não forniques nem sejas gargantão, e isto +guardando, se cumpre a virtude da castidade e da temperança, e assim +podeis entender dos outros vicios e virtudes. + +Esta virtude é mui necessaria ao rei, e isso mesmo aos seus sujeitos, +porque, havendo no rei virtude de justiça, fará leis por que todos vivam +direitamente e em paz, e os seus sujeitos sendo justos, cumprirão as +leis que elle puzer, e cumprindo-as não farão cousa injusta contra +nenhum. E tal virtude, como esta, póde cada um ganhar por obra de bom +entendimento, e ás vezes nascem alguns assim naturalmente a ella +dispostos, que com grande zelo a executam, posto que a alguns vicios +sejam inclinados. + +A razão por que esta virtude é necessaria nos subditos, é por cumprirem +as leis do principe, que sempre devem de ser ordenadas para todo bem, e +quem taes leis cumprir sempre bem obrará, cá as leis são regra do que os +sujeitos hão de fazer, e são chamadas principe não animado, e o rei é +principe animado, porque ellas representam, com vozes mortas, o que o +rei diz por sua voz viva: e porém a justiça é muito necessaria, assim no +povo como no rei, porque sem ella nenhuma cidade nem reino pode estar em +socego. Assim, que o reino, onde todo o povo é mau, não se pode +supportar muito tempo, porque, como a alma supporta o corpo e +partindo-se d'elle, o corpo se perde, assim a justiça supporta os reinos +e partindo-se d'elles perecem de todo. + +Ora, se a virtude da justiça é necessaria ao povo, muito mais o é ao +rei; porque se a lei é regra do que se ha de fazer, muito mais o deve de +ser o rei que a põe e o juiz que a ha de encaminhar, porque a lei é +principe sem alma, como dissemos, e o principe é lei e regra da justiça +com alma. Pois quanto a cousa com alma tem melhoria sobre outra sem +alma, tanto o rei deve ter excellencia sobre as leis: cá o rei deve de +ser de tanta justiça e direito, que cumpridamente dê ás leis a execução; +de outra guisa, mostrar-se-hia seu reino cheio de boas leis e maus +costumes, que era cousa torpe de vêr. Pois duvidar se o rei ha de ser +justiçoso, não é outra cousa senão duvidar se a regra ha de ser direita, +a qual, se em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por +ella fazer. + +Outra razão por que a justiça é muito necessaria ao rei, assim é porque +a justiça não tão sómente aformoseia os reis de virtude corporal, mas +ainda espiritual, pois quanto a formosura do espirito tem avantagem da +do corpo, tanta a justiça no rei é mais necessaria que outra formosura. + +A terceira razão se mostra da perfeição da bondade, porque então dizemos +alguma cousa ser perfeita, quando fazer pode alguma semelhante a si, e +portanto se chama uma cousa boa, quando sua bondade se pode estender a +outros, ao menos, sequer por exemplo, e então se mostra, por pratica, +quanto cada um é bom, quando é posto em senhorio. + +Porém, cumpre aos reis ser justiçosos por a todos seus sujeitos poder +vir bem, e a nenhum o contrario, trabalhando que a justiça seja +guardada, não sómente aos naturaes de seu reino, mas ainda aos de fóra +d'elle, porque, negada a justiça a alguma pessoa, grande injuria é feita +ao principe e a toda sua terra. + +D'esta virtude da justiça, que poucos acha que a queiram por hospeda, +posto que rainha e senhora seja das outras virtudes, segundo diz Tullio, +usou muito el-rei Dom Pedro, segundo vêr podem os que desejam de o +saber, lendo parte de sua historia. + +E pois que elle, com bom desejo, por natural inclinação, refreou os +males, regendo bem seu reino, ainda que outras minguas por elle +passassem, de que penitencia podia fazer, de cuidar é, que houve o +galardão da justiça, cuja folha e fructo é honrada fama n'este mundo e +perduravel folgança no outro. + + + + +*CAPITULO I* + +_Do reinado de el-rei Dom Pedro, oitavo rei de Portugal, e das condições +que n'elle havia_. + + +Morto el-rei D. Affonso, como haveis ouvido, reinou seu filho, o infante +Dom Pedro, havendo então de sua idade trinta e sete annos e um mez e +dezoito dias. E porque dos filhos que houve, e de quem, e por que guisa, +já compridamente havemos falado, não cumpre aqui arrazoar outra vez; mas +das manhas, e condições, e estados de cada um, diremos adiante, muito +brevemente, onde convier falar de seus feitos. + +Este rei Dom Pedro era muito gago, e foi sempre grande caçador e +monteiro, em sendo infante e depois que foi rei, trazendo grande casa de +caçadores e moços de monte e de aves, e cães, de todas maneiras que para +taes jogos eram pertencentes. + +Elle era muito viandeiro, sem ser comedor mais que outro homem, que suas +salas eram de praça em todos logares por onde andava, fartas de vianda, +em grande abastança. + +Elle foi grande criador de fidalgos de linhagem, porque n'aquelle tempo +não se costumava ser vassalo, se não filho e neto ou bisneto de fidalgo +de linhagem; e por usança haviam então a quantia que ora chamam +maravidis, dar-se no berço, logo que o filho do fidalgo nascia, e a +outro nenhum não. + +Este rei accrescentou muito nas quantias dos fidalgos, depois da morte +de el-rei seu padre, cá não embargando que el-rei D. Affonso fosse +comprido de ardimento e muitas bondades, tachavam-no, porém, de ser +escasso, e apertamento de grandeza. E el-rei Dom Pedro era em dar mui +ledo, em tanto, que muitas vezes dizia que lhe afrouxassem a cinta, que +então usavam não mui apertada, porque se lhe alargasse o corpo por mais +espaçosamente poder dar; dizendo que o dia que o rei não dava, não devia +ser havido por rei. + +Era ainda de bom desembargo aos que lhe requeriam bem e mercê, e tal +ordenança tinha n'isto, que nenhum era detido em sua casa por cousa que +lhe requeresse. + +Amava muito de fazer justiça com direito. E assim como quem faz +correição, andava pelo reino, e visitada uma parte não lhe esquecia de +ir vêr a outra, em guisa que poucas vezes acabava um mez em cada logar +de estada. + +Foi muito mantenedor de suas leis e grande executor das sentenças +julgadas, e trabalhava-se quanto, podia das gentes não serem gastadas +por azo de demandas e prolongados pleitos. + +E se a Escriptura affirma que, por o rei não fazer justiça, vem as +tempestades e tribulações sobre o povo, não se póde assim dizer d'este, +cá não achamos, em quanto reinou, que a nenhum perdoasse morte de alguma +pessoa, nem que a merecesse por outra guisa, nem lh'a mudasse em tal +pena por que pudesse escapar a vida. + +A toda gente era galardoador dos serviços que lhe fizessem, e não +sómente dos que faziam a elle, mas dos que haviam feitos a seu padre, e +nunca colheu a nenhum cousa que lhe seu padre desse, mas mantinha-a e +accrescentava n'ella. + +Este rei não quiz casar: depois da morte de Dona Ignez, em sendo +infante, nem depois que reinou, lhe prove receber mulher; mas houve +amigas com que dormiu, e de nenhuma houve filhos, salvo de uma dona, +natural de Galliza, que chamaram Dona Thereza, que pariu um filho que +houve nome Dom João, que foi mestre de Aviz em Portugal e depois rei, +como adiante ouvireis, o qual nasceu em Lisboa onze dias do mez de +abril, ás tres horas depois do meio dia, no primeiro anno do seu +reinado. E mandou o el-rei criar, em quanto foi pequeno, a Lourenço +Martins da Praça, um dos honrados cidadãos d'essa cidade, que morava +junto com a igreja cathedral onde chamam a praça dos Canos, e depois o +deu, que o criasse, a Dom Nuno Freire de Andrade, mestre da Cavallaria +da ordem de Christo. + + + + +*CAPITULO II* + +_Como el rei de Castella mandou pelo corpo da rainha Dona Maria, sua +madre, e da carta que enviou a el-rei de Portugal, seu tio_. + + +N'esta sezão que el rei Dom Pedro começou de reinar, ordenou el-rei de +Castella de enviar pelo corpo da rainha Dona Maria, sua madre, que se +finara em Portugal vivendo ainda el-rei Dom Affonso, seu padre, como em +alguns logares d'este livro faz menção; e fez saber por sua carta a +el-rei Dom Pedro, seu tio, como havia vontade de a trasladar, para a pôr +em Sevilha, na capella dos reis, com el-rei Dom Affonso, seu padre; e +ordenou, para irem com o corpo da rainha, o arcebispo de Sevilha e +outros prelados de seu reino, e dês-ahi mandou diante, para correger +todas as cousas que cumpriam para o corpo ir honradamente, Gomes Peres, +seu dispenseiro mór, ao qual o corpo havia de ser entregue, para ordenar +tudo o que mister fazia á sua trasladacão, para quando os prelados +viessem, que achassem tudo prestes e se partissem logo. + +A el-rei Dom Pedro prouve d'isto muito, e escreveu-lhe que mandasse por +elle, quando por bem tivesse: e el-rei de Castella enviou logo aquelle +seu dispenseiro, e foi-lhe entregue o corpo, na cidade de Evora onde +jazia, para ordenar seus corregimentos, segundo a ordenança que lhe era +dada. E quando o arcebispo, e os outros prelados e gentes vieram pelo +corpo da rainha, trouxeram a el-rei Dom Pedro uma carta de el-rei de +Castella, seu sobrinho, que dizia n'esta guisa. + +«Rei, tio. Nós, el-rei de Castella e de Leão, vos enviamos muito saudar +como aquelle que muito prezamos e para que queriamos tanta vida e saude, +com honra, como para nós mesmo. + +«Rei, fazemos-vos saber que vimos uma carta de crença que nos enviastes +por Martim Vasques e Gonçalo Annes de Beja, vossos vassalos, e +disseram-nos de vossa parte a crença que lhes mandastes. + +«E rei, tio, nossa tenção é de vos amar, e guardar sempre os bons +dividos que comvosco havemos, e fazer sempre por vossa honra como por +nossa mesma. + +«E porquanto a nosso serviço e vosso cumpria haverem de ser declaradas +algumas cousas conteudas nas posturas que entre nós havemos de pôr, +assim sobre casamentos de vossos filhos com nossas filhas, nós falámos +com o dito Martim Vasques e Gonçalo Annes toda nossa tenção, e enviamos +allá sobre isto João Fernandes de Melgarejo, chanceller do nosso sêllo +da puridade, e rogamos-vos que o creaes do que vos da nossa parte +disser. + +«Outro sim enviamos, para trazer o corpo da rainha, nossa madre, para a +enterrar aqui em Sevilha, o arcebispo d'esta cidade e outros prelados de +nossos reinos, e rogamos-vos que essas joias que ella deixou, que as +mandeis dar ao dito João Fernandes, e nós agradecer-vol-o-hemos. Dada, +etc.» + +El-rei Dom Pedro fez outorgar o corpo da rainha Dona Maria, sua irmã, +áquelle embaixador de el-rei de Castella; e foi-lhe feita grande honra, +assim por el-rei, como pelos prelados que por ella vinham. E muito +acompanhada até ao extremo, e d'ahi até á cidade de Sevilha, a saiu +el-rei seu filho a receber com muita clerezia e grandes senhores e +fidalgos que ahi eram com el-rei. E feitas suas exequias mui +honradamente, foi posto o seu corpo na capella dos reis, a cerca de +el-rei Dom Affonso, seu marido, onde ora jaz. + +Sobre os casamentos dos filhos de el-rei Dom Pedro com as filhas de +el-rei de Castella, por que João Fernandes era enviado, foram faladas +muitas cousas com el-rei de Portugal, e não se accordando por então em +algumas d'ellas, depois acertaram todas suas avenças, como adiante +ouvireis. + + + + +*CAPITULO III* + +_Das cartas que o papa, e el-rei da Aragão enviaram a el-rei de Portugal +sobre a morte de el-rei, seu padre_. + + +El-rei Dom Pedro escrevera ao papa, e a el-rei de Aragão, por novas, +quando el-rei Dom Affonso morreu, como seu padre era morto, e elle +alçado por rei em Portugal. + +E tendo cada um cuidado de lhe responder, chegaram lhe n'esta sezão suas +respostas. E a letra do papa dizia assim: + +«Innocencio, bispo, servo dos servos de Deus, ao muito amado, em +Christo, filho Dom Pedro, mui nobre rei de Portugal, saude e apostolical +benção. + +Porquanto, muito amado filho, por tuas letras, e fama, fomos certificado +como o mui claro, de nobre memoria, el-rei Dom Affonso teu padre, se +finou d'este mundo, sua morte foi a nós, e é, mui grande nojo e +tristeza. E não sem razão o devemos ser, quando em nosso coração +cuidamos nas bondades e virtudes de que sua real alteza era muito +ennobrecida, por cuja razão o muito amavamos, desejando-lhe que, entre +todos os principes do mundo, o Senhor o accrescentasse, e estendesse seu +real estado, com prolongamento de bem aventurados dias, nos quaes, +acabando sua honrada velhice, a ti, seu primogenito filho, deixasse o +regimento e successão do reino em firme concordia com teus visinhos. + +E pois assim é que o Senhor Deus, em cuja mão é o poderio de dar a cada +um vida e morte, lhe prouve de piedosamente o levar d'este mundo, nós +pômos fim e acabamento á nossa dôr e tristeza, consolando-nos n'este +Senhor que dá e priva e tolhe, quando quer que lhe praz, no qual havemos +firme esperança que nos altos ceus dará bom galardão e gloria á alma de +el-rei, teu padre, pois, emquanto n'este mundo viveu, se trabalhou de o +servir com bons merecimentos, e lhe aprouve com dignas virtudes. + +E assim, muito amado filho, piedosamente te consolamos, que te consoles +no Senhor Deus, e consideres em tua vontade como succedes no regimento +de teu padre, o qual, por exemplo da vida, se mostrou sempre ser fiel +catholico. + +Porém, requeremos á tua real clareza, que sempre, com firme desejo, +vivas em temor do Senhor Deus, honrando a sua santa igreja, e, sendo +favoravel ás ecclesiasticas pessoas, as mantenhas sempre em seus +direitos e liberdades; e que sejas amador e defensor das viuvas e dos +orfãos, alçando os aggravos aos teus subditos, que lhes não seja feita +injuria; e que, sem recebimento de alguma pessoa, sempre sejas honrador +e amador da justiça, de guisa que, por tuas obras, sejas chamado por +nome de rei que bem rege: e sei certo, se o assim fizeres, que sempre em +teus dias viverás em paz e folgança, havendo Deus em tua ajuda, e a sua +santa igreja te haverá em sua encommenda, sendo prestes para toda a tua +honra e cumprimento de justas petições. Diante em Avinhão, etc.» + +N'outra carta, de el-rei de Aragão, eram conteudas estas razões: + +«Muito alto e mui nobre Dom Pedro, pela graça de Deus, rei de Portugal e +do Algarve: Dom Pedro, por essa mesma graça, rei de Aragão, e de +Valencia, e de Mayorca, e de Sardenha, e de Corsega, e conde de +Barcelona e de Rossilhão, saude, como a rei que temos em logar de irmão, +que muito amamos e prezamos, e de que muito fiamos, e para que queriamos +muita honra e boa ventura, com tanta vida e saude como para nós mesmo. + +«Rei, irmão. Recebemos vossa letra, pela qual nos significastes a morte +do mui alto e mui honrado el-rei Dom Affonso de Portugal, vosso padre, a +que Deus perdoe. E por essa mesma nos fizestes saber que vós, assim como +seu primogenito e herdeiro dos ditos reinos, ereis levantado por rei de +Portugal. Das quaes novas, em verdade, Rei irmão, houvemos desprazer e +prazer juntamente: desprazer da morte do dito rei, o qual sabiamos que +nos amava como seu filho e nós a elle como a nosso muito amado padre; +mas como da morte nenhuma pessoa seja isenta, e o dito rei seja saido da +miseria d'este mundo, doendo-nos d'ella, se por nós alguma cousa pudesse +ser feita, muito prestes eramos de o fazer, porém rogamos a Deus, em +cuja mão é vida e morte de cada um, que receba sua alma com os seus +santos no paraiso, fiando n'elle que o ha feito. Prazer outro sim +houvemos mui grande, Rei irmão, quando soubemos que ereis alçado em rei +de Portugal e do Algarve, pela successão herdeira a vós por direito +pertencente, e crendo saber que, assim como nós tinhamos o dito rei em +conta e logar de padre, assim entendemos de ter a vós em conta de nosso +irmão, e fazer por vós toda cousa que seja honra e prazer vosso, e +proveito de vosso senhorio, esperando certamente, de vós, que fareis +semelhante por nós, e por nossos reinos e terras. + +E porquanto, irmão Rei, segundo é conteudo em vossa letra, vós desejaes +saber o bom estado de nossa pessoa, e da rainha, e de nossos filhos, a +prazer vosso vos significamos que somos todos sãos e em boa disposição +de nossas pessoas, mercês a Deus: rogando-vos, mui caramente, que de +vosso bom estado e real casa, nos certifiqueis por vossa carta, e sêde +certo que nos fareis assignado prazer. D'ante em Saragoça, etc.» + + + + +*CAPITULO IV* + +_Da maneira que el-rei D. Pedro tinha nos desembargos de sua casa_. + + +Pois d'este rei achamos escripto que era muito amado de seu povo, pelo +manter em direito e justiça, dês-ahi boa governança que em seu reino +tinha, bem é que digamos de cada cousa um pouco, por vêrdes parte dos +modos antigos. + +Na ordenança de todos os desembargos, tinha el-rei esta maneira: quantas +petições lhe a elle davam, iam á mão de Gonçalo Vasques de Goes, +escrivão da puridade, e elle as dava a um escrivão, qual lhe prazia, o +qual tinha encargo de as repartir, e dar cada uma aos desembargadores a +que pertenciam; e as petições que eram desembargos de commum curso, +aquelles, por que deviam passar, mandavam logo fazer as cartas a seus +escrivães, de guisa que n'aquelle dia, ou no outro seguinte, eram as +partes desembargadas, e o escrivão que o assim não fazia, perdia a mercê +de el-rei por ello. + +As outras petições, que eram de graça e mercê, que pertenciam á sua +fazenda, fazia-as pôr em ementa a seu escrivão, e este escrevia por sua +mão as petições que assim levava, cujas eram, e de que cousa, e este +escripto ficava na mão do desembargador; e quando as depois desembargava +com el-rei, se achava mais petições postas na ementa, que aquellas que +lhe elle mandara pôr, visto o escripto que em seu poder ficava, por tal +erro perdia a mercê de el-rei; e como aquella ementa era desembargada +com el-rei, diziam os desembargadores a cada uma pessoa a mercê que lhe +el-rei fazia, e mandavam a seus escrivães que lhe fizessem logo as +cartas, e n'esse dia haviam de ser feitas, ou no outro o mais tardar, +sob a pena que dissemos. + +E se ahi havia taes porfiosos que andavam mais após el-rei, afincando-o +com outras petições depois que haviam desembargo de sim ou de não, ou +moravam mais tempo na côrte, se era honrado pagava certa pena de +dinheiro, e se pessoa refece davam-lhe vinte açoutes na praça, e +mandavam-no para casa; e trazia el-rei inculcas que lhe soubessem parte +de taes homens, por se cumprir n'elles sua ordenação. + +Por el-rei não ser annojado de vêr duas vezes as mercês que fazia, uma +por ementa e outra por cartas, e por aquelles que o requeriam haverem +mais toste seu desembargo, fazia-se d'esta guisa: quando el-rei +outorgava algumas mercês a alguem, os que lhe haviam de dar desembargo +escreviam logo na ementa, perante el-rei, a maneira como lh'as dava, e +em cada um desembargo punha el-rei seu signal, e o chanceller estava +presente, quando podia, para vêr como as el-rei desembargava. E tanto +que os desembargadores tinham as cartas feitas e assignadas, +mandavam-nas ao chanceller com o rol da ementa que el-rei assignara, por +não pôr duvida em alguma d'ellas, e logo n'esse dia haviam de ser +selladas, ou no outro até ao jantar. + +Se el-rei ia a monte ou á caça, em que durasse mais de quatro dias, por +nenhuns serem detidos por elle, juntavam-se os que tinham as petições +das graças e viam aquillo que cada um pedia, e se lhe parecia que não +era bem de lh'o el-rei fazer, escreviam-lhe pelo meudo por qual razão, e +as que viam que devia outorgar, punham-lhe isso mesmo por quê, e +assignavam todos a ementa, e levava-a um d'elles a el-rei, por lhe dizer +a razão que os movera a fazer ou não cada uma cousa; e d'esta guisa +haviam as gentes bom desembargo, e el-rei era fóra de muito nojo e +afincamento. + +Se alguns concelhos haviam de recadar com elle, mandava-lhe que +enviassem em escripto cerrado e sellado, por um porteiro, tudo o que +mister haviam, e logo lhe el-rei taxava que houvesse por dia quatro +soldos, e mais não, e el-rei, visto o que lhe pediam, livrava-o logo, +sem outra detença, como achava que era direito. E se tal cousa era que +cumpria de esse concelho enviar a elle alguns bons homens, e entendidos, +mandava el-rei que não enviassem mais de um, por fazer o concelho mais +pouca despeza; e mandava que tal como este não houvesse por dia mais que +vinte soldos. + + + + +*CAPITULO V* + +_De algumas cousas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de justiça e +prol de seu povo_. + + +Assim como este rei Dom Pedro era amador de trigosa justiça n'aquelles +que achado era que o mereciam, assim trabalhava que os feitos civeis não +fossem prolongados, guardando a cada um seu direito cumpridamente. + +E porque achou que os procuradores prolongavam os feitos como não +deviam, e davam azo de haver hi maliciosas demandas, e o peior, e muito +de estranhar, que levavam de ambas as partes, ajudando um contra o +outro, mandou que em sua casa, e todo o seu reino, não houvesse +advogados nenhuns; e encommendou aos juizes e ouvidores que não fossem +mais em favor de uma parte que outra; nem se movessem por nenhuma cobiça +a tomar serviços alguns por que a justiça fosse vendida, mas que se +trabalhassem cedo de livrar os feitos, de guisa que brevemente, e com +direito, fossem desembargados, como cumpria. E sabendo que eram a ello +negligentes, que lh'o estranharia nos corpos e haveres, e lhe faria +pagar ás partes toda perda que por ello houvessem. + +Isto assim ordenado, soube el-rei, a cabo de pouco tempo, que um seu +desembargador, de que elle muito fiava, chamado por nome mestre Gonçalo +das Decretaes, levara peita de uma das partes que perante elle andavam a +feito, pela qual julgou e deu sentença. E el-rei, sabendo isto, houve +mui grande pezar, e deitou-o logo fora de sua mercê por sempre, e +degradou elle e os filhos a dez leguas de onde quer que elle fosse: +porém, diziam todos os que isto viram, que aquelle de que elle levara a +peita tinha direito n'aquelle pleito. + +Então ordenou el-rei, e pôz defeza em sua casa e todo seu senhorio, que +nenhum que tivesse poderio de fazer justiça, não filhasse peita nenhuma +dos que houvessem pleitos perante elles; e se lhe fosse provado que a +tomára, que morresse por ello, e perdesse os bens para a corôa do reino. +E se taes juizes e officiaes tomassem serviços de quaesquer outros que +perante elles não houvessem pleitos, que perdessem a sua mercê, salvo se +fosse de homem que não houvesse demanda em todo seu senhorio, que aduz +poderia ser achado. E mandou, ao corregedor da côrte e ouvidores, que +não conhecessem de feitos nenhuns, salvo se fossem entre taes pessoas de +que os juizes das terras não podessem fazer direito, senão quando lhe +viessem por appellação ou aggravo. + +Sabendo, outrosim, el-rei, como alguns, que eram casados, deixavam suas +mulheres e filhos que tinham, e tomavam barregãs, com que áparte faziam +vivenda, e outros taes que com suas mulheres as tinham em casa: mandou, +e pôz por lei, que qualquer casado que com barregã vivesse, ou a tivesse +dentro em sua casa, se fosse fidalgo ou vassalo, que d'elle ou de outrem +tivesse maravidis, que os perdesse, e segundo os estados das pessoas, +assim ordenou as penas do dinheiro e degredo, até mandar que +publicamente, pela terceira vez, elles e ellas por isto fossem +açoutados. E quando diziam a el-rei que se aggravavam muitos de tal +ordenança como esta, respondia elle que assim o entendia por serviço de +Deus e seu, e prol d'elles todos. E esta ordenança mesma, e penas, pôz +nas mulheres que barregãs fossem de clerigos de ordens sacras. + +Elle defendeu e mandou, em Lisboa, que nenhuma mulher de qualquer estado +que fosse, não entrasse dentro no arrabalde dos mouros, de dia nem de +noite, sob pena de ser enforcada. E mandou que qualquer judeu ou mouro, +que depois de sol posto, fosse achado pela cidade, que com pregão +publicamente fosse açoutado por ella. + +Falando el-rei um dia nos feitos da justiça, disse que vontade era, e +fôra sempre de manter os povos de seu reino n'ella, e estremadamente +fazer direito de si mesmo. E porquanto elle sentia que o mór aggravo que +elle e seus filhos, e outros alguns de seu senhorio, faziam aos povos de +sua terra, assim no tomar das viandas por preço mais baixo do que se +vendiam, que porém elle mandava que nenhum de sua casa, nem dos +infantes, nem d'outro nenhum que em sua mercê e reinos vivesse, que +cargo tivesse de tomar aves, que não tomasse gallinhas, nem patos, nem +cabritos, nem leitões, nem outras nenhumas cousas acostumadas de tomar, +salvo compradas á vontade de seu dono; e sobre isto pôz pena de prisão, +e dinheiros, ás honradas pessoas, e aos gallinheiros e pessoas vis, +açoutados pelo logar hu as tomassem, e deitados fóra de sua mercê. + +Mandou mais aos estribeiros seus e de seus filhos, e a todos os de sua +terra, que não mandassem a nenhum logar por palha doada, salvo se a +houvesse de haver de fôro; mas que pelo azemel, que fosse por ella, +mandasse pagar pela carga cavallar de palha, ou de restolho empalhado, +três soldos e pela carga asnal, dois. E o azemel que por ella fosse, e a +d'esta guisa não pagasse, que pela primeira vez fosse açoutado e +talhadas as orelhas, e pela segunda fosse enforcado: e outra tal pena +mandava dar ao lavrador que não empalhasse toda a palha que houvesse. + +E quando lhe diziam que punha mui grandes penas por mui pequenos +excessos, dava resposta dizendo assim, que a pena que os homens mais +receavam era a morte, e que se por esta se não cavidassem de mal fazer, +que ás outras davam passada, e que boa cousa era enforcar um ou dois, +pelos outros todos serem castigados, e que assim o entendia por serviço +de Deus e prol de seu povo. + +Elle corregeu as medidas de pão de todo Portugal, e ordenou outras +cousas por bom paramento e proveito de sua terra, das quaes não fazemos +mais longo processo por não saber quanto prazeriam aos que as ouvissem. + + + + +*CAPITULO VI* + +_Como el-rei mandou degolar dois seus criados, porque roubaram um judeu +e o mataram_. + + +Este rei Dom Pedro, emquanto viveu, usou muito de justiça sem affeição, +tendo tal igualdade em fazer direito, que a nenhum perdoava os erros que +fazia, por criação nem bem querença que com elle houvesse. E se dizem +que aquelle é bem aventurado rei que por si esquadrinha os males e +forças que fazem aos pobres, e bem é este do conto de taes, cá elle era +ledo de os ouvir, e folgava em lhes fazer direito, de guisa que todos +viviam em paz. E era ainda tão zeloso de fazer justiça, especialmente +dos que travessos eram, que perante si os mandava metter a tormento, e +se confessar não queriam, elle se desvestia de seus reaes pannos, e por +sua mão açoutava os malfeitores; e pelo que d'ello muito pasmavam seus +conselheiros e outros alguns, annojava-se de os ouvir, e não o podiam, +quitar d'ello por nenhuma guisa. + +Nenhum feito crime mandava que se desembargasse salvo perante elle, e se +ouvia novas de algum ladrão ou malfeitor, alongado muito d'onde elle +fosse, falava com algum seu de que se fiava, promettendo-lhe mercês por +lh'o ir buscar, e mandava-lhe que não viesse ante elle até que todavia +lh'o trouxesse á mão. E assim lh'os traziam presos do cabo do reino, e +lh'os apresentavam hu quer que estava. E da mesa se levantava, se +chegavam a tempo que elle comesse, por os fazer logo metter a tormento, +e elle mesmo punha n'elles mão quando via que confessar não queriam, +ferindo-os cruelmente até que confessavam. + +A todo logar onde el-rei ia, sempre acharieis prestes com um açoute o +que de tal officio tinha encargo, em guisa que como a el-rei traziam +algum malfeitor, e elle dizia:--chamem-me foão, que traga o +açoute,--logo elle era prestes, sem outra tardança. + +E pois que escrevemos que foi justiçoso, por fazer direito em reger seu +povo, bem é que ouçaes duas ou três cousas, por vêrdes o geito que +n'isto tinha. + +Assim adveiu que pousando elle nos paços de Bellas, que elle fizera, +dois seus escudeiros que gram tempo havia que com elle viviam, sendo +ambos parceiros, houveram conselho que fossem roubar um judeu que pelos +montes andava vendendo especiaria e outras cousas. E foi assim, de +feito, que foram buscar aquella suja préa, e roubaram-no de tudo, e, o +peior d'isto, foi morto por elles. Sua ventura, que lhe foi contraria, +azou de tal guisa que foram logo presos e trazidos a el rei, alli hu +pousava. + +El-rei, como os viu, tomou gram prazer por serem filhados, e começou-os +de perguntar como fôra aquillo. Elles, pensando que longa criação e +serviço que lhe feito haviam, o demovesse a ter algum geito com elles, +não tal como tinha com outras pessoas, começaram de negar, dizendo que +de tal cousa não sabiam parte. + +Elle, que sabia já de que guisa fôra, disse que não haviam por que mais +negar, que ou confessassem como o mataram, senão, que a poder de crueis +açoutes lhe faria dizer a verdade. + +Elles em negando viram que el-rei queria pôr em obra o que lhe por +palavra dizia, confessaram tudo assim como fôra; e el-rei, sorrindo-se, +disse que fizeram bem, que tomar queriam mister de ladrões e matar +homens pelos caminhos, de se ensinarem primeiro nos judeus, e depois +viriam aos christãos. + +E em dizendo estas e outras palavras, passeava perante elles de uma +parte á outra, e parece que lembrando-lhe a criação que n'elles fizera, +e como os queria mandar matar, vinham-lhe as lagrimas aos olhos, por +vezes. Depois, tornava asperamente contra elles, reprehendendo-os muito +do que feito haviam. E assim andou por um grande espaço. + +Os que hi estavam, que aquesto viam, suspeitando mal de suas razões, +afincavam-se muito a pedir mercê por elles, dizendo que por um judeu +astroso não era bem morrerem taes homens, e que bem era de os castigar +por degredo ou outra alguma pena, mas não mostrar contra aquelles que +criara, pelo primeiro erro, tão grande crueza. + +El-rei, ouvindo todos, respondia sempre que dos judeus viriam depois aos +christãos. + +Em fim d'estas e outras razões, mandou que os degolassem. + +E foi assim feito. + + + + +*CAPITULO VII* + +_Como el-rei quizera metter um bispo a tormento porque dormia com uma +mulher casada_. + + +Não sómente usava el-rei de justiça contra aquelles que razão tinha, +assim como leigos e semelhantes pessoas, mas assim ardia o coração +d'elle de fazer justiça dos maus, que não queriam guardar sua +jurisdicção, aos clerigos tambem, de ordens pequenas, como de maiores. E +se lhe pediam que o mandasse entregar a seu vigario, dizia que o +puzessem na forca e que assim o entregassem a Jesus Christo, que era seu +Vigario, que fizesse d'elle direito no outro mundo. E elle por seu corpo +os queria punir e atormentar, assim como quizera fazer a um bispo do +Porto, na maneira que vos contaremos. + +Certo foi, e não o ponhaes em duvida, que el-rei, partindo de entre +Douro e Minho, por vir á cidade do Porto, foi informado que o bispo +d'esse lugar, que então tinha gram fama de fazenda e honra, dormia com +uma mulher de um cidadão, dos bons que havia na dita cidade, e que elle +não era ousado de tornar a ello, com espanto de ameaças de morte que lhe +o bispo mandava pôr. + +El-rei, quando isto ouviu, por saber de que guisa era, não via o dia que +estivesse com elle, para lh'o haver de perguntar. + +E logo, sem muita tardança, depois que chegou ao logar, e houve comido, +mandou dizer ao bispo que fosse ao paço, que o havia mister por cousas +de seu serviço. Falou com seus porteiros, que depois que o bispo +entrasse na camara, lançassem todos fóra do paço, tambem os do bispo +como quaesquer outros, e que ainda que alguns do conselho viessem, que +não deixassem entrar nenhum dentro, mas que lhe dissessem que se fossem +para as pousadas, cá elle tinha de fazer uma cousa em que não queria que +fossem presentes. + +O bispo, como veiu, entrou na camara onde el-rei estava, e os porteiros +fizeram logo ir todos os seus e os outros, em guisa que no paço não +ficou nenhum, e foi livre de toda a gente. + +El-rei, como foi áparte com o bispo, desvestiu-se logo e ficou em uma +saia de escarlata, e por sua mão tirou ao bispo todas as suas +vestiduras, e começou de o requerer que lhe confessasse a verdade +d'aquelle maleficio em que assim era culpado: e em lhe dizendo isto, +tinha na mão um grande açoute para o brandir com elle. + +Os criados do bispo, quando no começo viram que os deitavam fóra, e isso +mesmo os outros todos, e que nenhum não ousava lá de ir, pelo que sabiam +que o bispo fazia, dês ahi juntando a isto a condição de el-rei e a +maneira que em taes feitos tinha, logo suspeitaram que el-rei lhe queria +jogar de algum mau jogo, e foram-se á pressa ao conde velho, e ao mestre +de Christo Dom Nuno Freire, e a outros privados de seu conselho, que +accorressem asinha ao bispo. + +E logo tostemente vieram a el-rei, e não ousaram de entrar na camara, +por a defeza que el-rei tinha posta, se não fôra Gonçalo Vasques de +Goes, seu escrivão da puridade, que disse que queria entrar por lhe +mostrar cartas que sobrevieram de el-rei de Castella a gram pressa. E +por tal azo e fingimento houveram entrada dentro na camara, e acharam +el-rei com o bispo em rasões, da guisa que havemos dito, e não lh'o +podiam já tirar das mãos. E começaram de dizer que fosse sua mercê de +não pôr mão n'elle, cá por tal feito, não lhe guardando sua jurisdicção, +haveria o papa sanha d'elle; demais, que o seu povo lhe chamava algoz, +que por seu corpo justiçava os homens, o que não convinha a elle de +fazer, por muito malfeitores que fossem. + +Com estas e outras rasões, arrefeceu el-rei de sua mui brava sanha, e o +bispo se partiu de ante elle, com semblante triste e turvado coração. + + + + +*CAPITULO VIII* + +_Como el-rei mandou capar um seu escudeiro, porque dormiu com uma mulher +casada_. + + +Era ainda el-rei Dom Pedro muito cioso, assim de mulheres de sua casa, +como de seus officiaes e das outras todas do povo, e fazia grandes +justiças em quaesquer que dormiam com mulheres casadas ou virgens, e +isso mesmo com freiras. + +Onde aqueeceu que em sua casa havia um corregedor da côrte a que +chamavam Lourenço Gonçalves, homem mui entendido e bem razoado cumpridor +de todas as cousas que lhe el-rei mandava fazer, e não corrompido por +nenhuns falsos offerecimentos que trasmudam os juizos dos homens. E +porque o el-rei achava leal e bem verdadeiro, fiava d'elle muito, e +queria-lhe grande bem. + +E era este corregedor muito honrado de sua casa e estado, e muito +praceiro e de boa conversação, e seria então em meia idade. Sua mulher +havia nome Catharina Tosse, briosa, louçã e muito aposta, de graciosas +manhas e bem acostumada. + +Em esta sesão vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo, +e homem de prole, e n'aquelle tempo estremado em assignadas bondades, +grande justador e cavalgador, grande monteiro e caçador, luctador e +travador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons +homens requerem,--chamado por nome Affonso Madeira,--por a qual rasão o +el-rei amava muito e lhe fazia bem gradas mercês. + +Este escudeiro se veiu a namorar de Catharina Tosse, e mal cuidados os +perigos que lhe advir podiam de tal feito, tão ardentemente se lançou a +lhe querer bem, que não podia perder d'ella vista e desejo: assim era +traspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo não concorriam para +lhe fallar como elle queria, e por ter aso de a requerer ameude de seus +deshonestos amores, firmou com o aposentador tão grande amisade que para +onde quer que el-rei partia, ora fosse villa ou qualquer aldeia, sempre +Affonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do +corregedor. E havia já tempo que durava este aposentamento, sempre cerca +um do outro; tendo bom geito e conversação com seu marido, por carecer +de toda suspeita. + +Affonso Madeira tangia e cantava, afóra sua apostura e manhas boas já +recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeição +e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a +acabamento de seus prolongados desejos. + +E porque semelhante feito não é da geração das cousas que se muito +encobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e não houve +d'ello menos sentido que se ella fora sua mulher ou filha. E como quer +que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de +parte toda bemquerença, mandou-o tomar dentro em sua camara, e +mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em mór preço tem: de +guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse corto. E +pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e +viveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de +sua natural morte. + + + + +*CAPITULO IX* + +_Como el-rei mandou queimar a mulher de Affonso André, e de outras +justiças que mandou fazer_. + + +Quem ouviu semelhante justiça, do que el-rei fez na mulher de Affonso +André, mercador honrado, morador em Lisboa, andando justando na rua +nova, como era costume, quando os reis vinham ás cidades, que os +mercadores e cidadãos justavam com os da côrte, por festa? + +Estando el-rei presente, e havendo informação certa que sua mulher lhe +fazia maldade, entendeu que então era tempo de a achar e tomar em tal +obra; e, por inculcas, muito escusamente foi ella tomada com quem a +culpavam, e mandou-a queimar, e degolar a elle. E o marido, continuando +a justa, quando cessou, soube d'isto parte, e foi-se a el-rei por se +queixar do que lhe feito haviam. E el-rei, como o viu, antes que lhe +elle fallasse, pediu-lhe a alviçara do que mandara fazer, dizendo que já +o tinha vingado da aleivosa de sua mulher e do que lhe punha as cornas, +e que melhor sabia elle quem ella era, que elle. + +Que diremos de Maria Roussada, mulher casada com seu marido, que dormira +com ella por força (a que então chamavam roussar), por a qual cousa elle +merecia morte? E tendo já d'ella filhos e filhas, viviam ambos em gram +bemquerença, e ouvindo-a el-rei chamar por tal nome, perguntou por que +lh'o chamavam, e soube da guisa como tudo fôra, e que se avieram que +casassem ambos por tal feito não vir mais á praça: e el-rei, por cumprir +justiça, mandou-o enforcar, e ia a mulher e os filhos carpindo traz +elle. + +Não valeu, estando el-rei em Braga, rogo de quantos com elle andavam, +que pudesse escapar a vida a Alvaro Rodrigues de Grade, um dos bons +escudeiros de entre Douro e Minho, e bem aparentado, porque cortou os +arcos de uma cuba de vinho a um pobre lavrador, que lhe logo el-rei não +mandou cortar a cabeça, tanto que o soube. + +E porque o seu escrivão do thesouro recebeu onze libras e meia sem o +thesoureiro, mandou-o enforcar, que lhe não poude valer o conde, nem +Beatriz Dias, manceba d'el-rei, nem outro nenhum. + +E foram aquelle dia, com estes dois, onze mortos por justiça, entre +ladroes e malfeitores. + +Não fique por dizer de um bom escudeiro, sobrinho de João Lourenco +Bubal, privado d'el-rei e do seu conselho, alcaide mór de Lisboa, o qual +escudeiro vivia em Aviz, honradamente e bem acompanhado. E foi a sua +casa, por mandado do juiz, um porteiro, para o penhorar, e elle, por +cumprir vontade, depenou-lhe a barba e deu-lhe uma punhada. + +O porteiro veiu-se a Abrantes, onde el-rei estava, e contou-lhe tudo +como lhe adviera. El-rei, que o áparte ouvia, como acabou de falar, +começou de dizer contra o corregedor que ahi estava: + +--Accorrei-me aqui, Lourenço Gonçalves, cá um homem me deu uma punhada +no rosto, e me depennou a barba! O corregedor, e os que o ouviram, +ficaram espantados por que o dizia. E mandou á pressa que lh'o +trouxessem preso, e não lhe valesse nenhuma egreja. E foi assim feito, e +trouxeram-lh'o a Abrantes, e alli o mandou degolar, e disse:--Dês que me +este homem deu uma punhada e me depennou a barba, sempre me temi d'elle +que me désse uma cutelada, mas já agora sou seguro que nunca m'a dará! + +Assim, que bem podem dizer d'este rei Dom Pedro, que não saíram em seu +tempo certos os ditos de Solon, philosopho, e d'outros alguns, os quaes +disseram que as leis e justiça eram taes como a teia da aranha, na qual +os mosquitos pequenos, caindo, são retidos e morrem n'ella, e as moscas +grandes e que são mais rijas, jazendo n'ella, rompem-n'a e vão-se: e +assim diziam elles que as leis e justiça se não cumpriam senão nos +pobres, mas os outros que tinham ajuda e accorro, caindo n'ella, rompiam +n'a e escapavam. + +El-rei Dom Pedro era muito pelo contrario, cá nenhum, por rogo nem +poderio, havia de escapar da pena merecida; de guisa que todos receiavam +de passar seu mandado. + + + + +*CAPITULO X* + +_Como el-rei mandava matar o almirante; e da carta que lhe enviou o +duque e commum de Genova, rogando por elle_. + + +El-Rei Dom Pedro queria gram mal a alcoviteiras e feiticeiras, de guisa +que por as justiças que n'ellas fazia, mui poucas usavam de taes +officios. + +E sendo elle na Beira, soube que uma, chamada por nome Helena, +alcovitara ao almirante uma mulher, com que elle dormira, a que diziam +Violante Vasques. E mandou logo el-rei queimar a alcoviteira, e ao +almirante, Lançarote Pessanho, mandava cortar a cabeça. + +E pero os do seu conselho trabalhassem muito por o livrar de sua sanha, +nunca o puderam com elle postar, emtanto que o almirante fugiu, e foi +amorado, e partiu d'elle por longos tempos, perdidas suas contias e todo +seu bem fazer e officio. E não sabendo remedio que sobre isto ter, houve +accordo de mandar pedir ao duque e commum de Genova que escrevessem por +elle a el rei, que fosse sua mercê de lhe perdoar. + +Os genovezes, vendo o recado do almirante, escreveram a el-rei que +perdesse d'elle sanha, e a carta de Gabriel Adorno, duque de Genova, e +dos anciãos do conselho d'essa cidade, dizia n'esta guisa: + +«Principe e senhor mui claro, de grande e real magestade. Esguardada a +benignidade, muitas vezes se tempéra por mansidão o modo e rigor da +justiça, e a piedosa consideração trabalha sempre de renovar as boas +amisades antigas. E se boa cousa é tomar amisades e novas conhecenças, +muito melhor é, segundo diz o sabedor, renovar e conservar as velhas, +dizendo que o amigo novo não é egual nem semelhante ao de longo tempo. +As quaes razões nos fazem haver fiusa na vossa grande alteza, que +graciosamente haja de ouvir nossa humildosa supplicacão, a qual é esta, +que a nós foi notificado como o nobre cavalleiro Dom Lançarote Pessanho, +vosso almirante, filho em outro tempo do nobre barão Dom Manuel +Pessanho, digno de boa memoria, nosso amigo e cidadão, haja caido em +sanha da vossa real magestade, mais por inveja de alguns que d'elle bem +não disseram, que por outras graves maldades que n'elle sejam achadas, +segundo corre a commum fama que por razão bem parece; cá não é de querer +que saia de regra de bons feitos quem é gerado e descende de padres que +sempre foram ennobrecidos por virtuosos e bons costumes. E posto que +errasse em alguma cousa, muito deve vossa discreta mansidão temperar o +rigor da justiça, renovando por nobres beneficios a lealdade dos seus +antecessores: a qual cousa nós esperando da vossa grande alteza, a ella +humildosamente pedimos que, pelo que dito é, e nossos afincados rogos, +tenhaes por bem tornar o dito almirante á graça primeira de seu bom +estado. E por isto vossa real magestade haverá nós e nosso commum +apparelhados, de ledo coração, a todas as cousas que lhe forem +praziveis. Data, etc.» + +Não embargando esta carta, não podiam com el-rei que perdesse sanha do +almirante; porém depois a alguns tempos, lhe perdoou el-rei, e foi +tornado a sua mercê. + + + + +*CAPITULO XI* + +_Das moedas que el-rei Dom Pedro fez, e da valia do oiro e da prata +n'aquelle tempo_. + +Não se podem tão temperadamente dizer os louvoures de alguma pessoa, que +aquelles, cujas linguas sempre têm costume de reprehender, não achem +lugares a elles dispostos, em que ameude bem possam prasmar: e nós, +porque dissemos d'este rei Dom Pedro que era grado e lêdo em dar, e não +dizemos de algumas grandezas que dignas sejam de tanto louvor, poderá +ser que nos prasmaram alguns, dizendo que não historiamos direitamente. +E isto não é por nós bem não vermos que para autoridade de tão grande +gabo não se acham ditos em sua igualdança; mas, por não desviar +d'aquelles louvores que os antigos em suas obras encommendaram, +contamol-o da guisa que o elles disseram. + +Bem achamos que nunca se anojava por lhe pedirem, e que mandava lavrar +até cem marcos de prata, em taças e copas, para dar em janeiras, e +dava-as cada anno, com outras joias, a quem lhe prazia. + +Accrescentou nas contias aos fidalgos e vassalos, como dissemos; cá o +vassallo não havia antes de sua contia mais de setenta e cinco libras, e +el-rei Dom Pedro lhe poz cento, que eram quinze dobras cruzadas, dobras +mouriscas. E por esta contia havia de ter o vassalo cavallo recebondo e +loriga com seu almofre, e á sua morte ficava o cavallo e loriga a +el-rei, de luctuosa, e dava-o el-rei a quem sua mercê era: em guisa que +com aquelle cavallo e armas, posta contia a outro vassalo, ficava sempre +o conto dos vassalos certo, e não minguado. + +No tempo d'este rei, valia o marco da prata de liga dezenove libras, e a +dobra mourisca tres libras e quinze soldos, e o escudo tres libras e +dezesete soldos, e o moutão tres libras e dezenove soldos. + +Este rei Dom Pedro não mudou moeda por cubiça de temporal ganho; mas +lavrou-se em seu tempo mui nobre moeda de oiro e prata sem outra +mistura, a saber, dobras de bom oiro fino, de tamanho peso como as +dobras cruzadas que faziam em Sevilha, que chamavam de Dona Branca. E +estas dobras que el-rei Dom Pedro mandava lavrar, cincoenta d'ellas +faziam um marco: e d'outras que lavravam, mais pequenas, levava o marco, +cento; e de uma parte tinham quinas e da outra figura de homem com +barbas nas faces e corôa na cabeça, assentado em uma cadeira, com uma +espada na mão direita, e havia letras ao redor, por latim, que em +linguagem diziam: _Pedro, rei de Portugal e do Algarve_, e da outra +parte: _Deus, ajuda-me e faze-me excellente vencedor sobre meus +inimigos_. E a maior dobra d'estas valia quatro libras e dois soldos, e +a mais pequena quarenta e um soldo. + +Lavravam outra moeda de prata, que chamavam tornezes, que sessenta e +cinco faziam um marco, de liga e peso dos reaes d'el-rei Dom Pedro de +Castella, e outro tornez faziam, mais pequeno, de que o marco levava +cento e trinta, e de um cabo tinha quinas, e do outro cabeça de homem +com barbas grandes e corôa n'ella, e as letras, de ambas as partes, eram +taes como as das dobras, e valia o tornez grande sete soldos e o pequeno +tres soldos e meio, e chamavam a estas moedas dobra e meia dobra, e +tornez e meio tornez. + +A outra moeda miuda eram dinheiros affonsins, da liga e valor que fizera +el-rei Dom Affonso seu padre. + +E com estas moedas era o reino rico e abastado, e posto em grande +abundancia. E os reis faziam grandes thesouros do que lhes sobejava de +suas rendas, e, para os fazer e accrescentar n'elles, tinham esta +maneira. + + + + +*CAPITULO XII* + +_Da maneira que os reis tinham para fazer thesouros, e accrescentar +n'elles_. + + +Já vós ouvistes bem quanto os réis antigos fizeram por encurtar nas +despezas suas e do reino, pondo ordenações em si e nos seus, por terem +thesouros e serem abastados. Porque sendo o povo rico, diziam elles que +o rei era rico, e o rei que thesouro tinha, sempre era prestes para +defender seu reino e fazer guerra quando lhe cumprisse, sem aggravo e +damno de seu povo, dizendo que nenhum era tão seguro de paz que pudesse +carecer de fortuna não esperada. + +E para encaminharem de fazer thesouro, tinham todos esta maneira: em +cada um anno eram os reis certificados, pelos védores de sua fazenda, +das despezas todas que feitas haviam, assim em embaixadas como em todas +as outras coisas, que lhe necessariamente convinham fazer, e diziam-lhe +o que além d'isto sobejava de suas rendas e direitos, assim em dinheiros +como em quaesquer coisas, e logo era ordenado que se comprasse d'elles +certo oiro e prata para se pôr no castello de Lisboa, em uma torre, que +para isto fôra feita, que chamavam a torre albarrã. + +Esta torre era mui forte, e não foi porém acabada. Estava em cima da +porta do castelo, e alli punham o mais do thesouro que os reis juntavam +em oiro e prata e moedas, e tinham as chaves d'ella, um guardião de São +Francisco, e outra o prior de São Domingos, e a terceira um beneficiado +da Sé d'essa cidade. + +E para juntarem este oiro e prata, tinham este modo: em todas as cidades +e villas do reino que para isto eram azadas, tinham os reis seus +cambadores, que compravam prata e oiro áquelles que o vender queriam, o +qual não havia de comprar outrem senão elles, e acabado o anno, trazia +cada um quanto comprara áquelles lugares onde havia de ser posto em +thesouro: e haviam estes cambadores certa cousa de cada peça de oiro que +compravam, e o que sobejava em moeda punham-no isso mesmo em deposito. + +Outra torre havia no castello de Santarem, em que outrosim estava mui +gran thesouro de moeda e d'outras cousas, em tamanha quantidade, que +ante a pontavam fortemente por não cair com o muito haver que n'ella +punham. + +E d'esta guisa estava no Porto, e em Coimbra, e n'outros lugares. + +E posto alli, em cada um anno aquelle oiro, e prata, e moedas que assim +ficavam, e que os reis mandavam comprar, quando o rei vinha a morrer, e +prégavam d'elle e dos bens que fizera, dizendo como o reinara tantos +annos e mantivera em direito e justiça, contavam-lhe mais por grande +bondade, e louvando-o muito, diziam:--este rei, em tantos annos que +reinou, poz nas torres do thesouro tanto oiro, e prata, e moedas. E +quanto cada um rei n'ellas punha, tanto lh'o contavam por muito mór +bondade. + +El-rei Dom Pedro, como reinou, pareceu a alguns que não tinha sentido de +ordenar que accrescentassem no thesouro, que os antigos com grande +cuidado começaram de guardar. E vendo isto um seu privado, que chamavam +João Esteves, houve-o por grande mal, e propoz de lh'o dizer, e fallando +el-rei com elle uma vez, em coisas de sabor, disse elle a el-rei em esta +guisa:--Senhor, a mim parece, se vossa mercê fosse, que seria bem de +proverdes vossa fazenda, e vêr o que se dispender póde, e, do que +sobejar, encaminhardes como accrescenteis alguma cousa nos thesouros que +vos ficaram de vosso padre e de vossos avós, para fazerdes o que os +outros reis fizeram, e para terdes que dispender mais abundosamente se +vos alguma necessidade viesse á mão, cá muito mais com vossa honra +dispendereis vós accrescentando no thesouro que tendes, que gastar o que +os outros reis deixaram, sem pôr n'elle nenhuma coisa. + +A estas e outras razões respondeu el-rei que dizia bem, e que lhe +puzesse em escripto quanto era o que renderiam seus direitos, e a +despeza que se d'ello fazia. A poucos dias trouxe o privado, em +escripto, tudo aquillo que lhe el-rei dissera, e visto por ambos +apartadamente, acharam que tiradas as despezas que os reis em costume +tinham de fazer, que sómente no seu thesouro de Lisboa podia cada anno +pôr na torre do castello até quinze mil dobras. + +E ordenou logo, como se puzesse cada anno, em oiro, e prata, e moedas, +tudo o que sobejasse de suas rendas, nos lugares acostumados onde os +reis punham seu haver; porém que dizia el-rei que não fazia pouco quem +guardava o thesouro que lhe ficava de outrem e se mantinha nos direitos +que havia de seu reino, sem fazendo aggravo ao povo, nem lhe tomando do +seu nenhuma coisa. E ficaram todos por sua morte a el-rei Dom Fernando, +seu filho, que os depois gastou como lhe prouve, segundo adiante +ouvireis. + + + + +*CAPITULO XIII* + +_Por que guisa el-rei Dom Pedro de Castella começou de juntar thesouro_. + + +Por outra maneira juntou el-rei Dom Pedro de Castella mui grão thesouro, +sem mudar moeda, nem lançar peitas ao povo: e vêde de que guisa foi, +posto que fallemos dos feitos alheios. + +Assim, adverti que el-rei Dom Pedro estando na aldeia de Morales, que é +uma legua de Toro, jogava um dia os dados com alguns de seus +cavalleiros, e tinha-lhe um seu reposteiro-mór, a cerca d'elle, uns +huchotes pequenos com alguma prata e dobras, que seria por todo até +vinte mil: el-rei disse que aquelle era todo seu thesouro, e que mais +não tinha. + +Aquelle dia, logo á noite, estando el-rei em sua camara, Dom Samuel +Levi, seu thesoureiro-mór, lhe disse:--Senhor, hoje foi vossa mercê +dizer, perante aquelles que aqui estavam, que vós não tinheis mais +thesouro que vinte mil dobras, de que jogaveis, e com que tomaveis +sabor. E isto, senhor, entendo que o dissestes contra mim, por me +avergonhar, pois que sou vosso thesoureiro-mór, e não ponho melhor +recado em vossa fazenda. Porém, senhor, vós sabeis bem que, posto que +fosse eu vosso thesoureiro depois que vós reinastes até ora, que póde +haver uns sete annos, sempre em vosso reino houve taes boliços por os +quaes os recadadores de vossas rendas se atreveram a fazer coisas que +não deviam, por guisa que eu não pude tomar d'ello conta socegadamente +como era razão; mas ora se vossa mercê fôr de me mandardes entregar dois +castellos, quaes eu disser, eu vos quero pôr n'elles, antes de muito +tempo, thesouro com que bem possaes dizer que mais tendes juntas de +vinte mil dobras. + +A el-rei prouve muito d'isto, e foram lhe entregues o alcaçar de +Torjillo e o de Fita. Dom Samuel poz logo alli homens de que se fiava, e +mandou cartas por todo o reino, a todos os que foram e eram recadadores +das rendas de el-rei, des que elle começara de reinar até então, que +viessem logo dar conta; e tomava-lh'a d'esta guisa. Por el-rei eram +livrados a um cavalleiro, ou outro qualquer, certos mil maravedis de seu +poimento, ou d'outra maneira, e Dom Samuel fazia vir perante si todos +aquelles a que alguns dinheiros foram desembargados por aquelle a que +tomava conta, e dava a cada um juramento, aos Evangelhos, quantos +dinheiros receberam d'aquelle recadador por cada uma vez, e quantos lhe +deixara por haver d'elle desembargo e não ser detido, e aquelle a que +taes dinheiros foram livrados dizia que não houvera mais de tantos, e +que os outros lhe déra, de peita, pelo desembargar, porque lhe faziam +entender que d'outra guisa não poderia haver pagamento. + +Então, se o recadador não mostrasse lugar certo onde lhe todo fôra +pagado, mandava Dom Samuel que a metade de quanto assim levara fosse +para o thesouro d'el-rei, e a metade para aquelle que recebera tal +engano. + +E todos os que taes livramentos houveram, eram mui contentes de dizer a +verdade, por cobrar o que tinham perdido. E elle juntou, por esta guisa, +antes de um anno, n'aquelles castellos, tão grande thesouro, que era +estranha cousa de vêr. + +E este foi o começo do mui grão thesouro que el-rei Dom Pedro depois +teve junto, segundo adiante contaremos. + + + + +*CAPITULO XIV* + +_Como el-rei fez conde e armou cavalleiro João Affonso Tello, e da grão +festa que lhe fez_. + + +Em tres coisas assignadamente achamos, pela mór parte, que el-rei Dom +Pedro de Portugal gastava seu tempo, a saber: em fazer justiça e +desembargos do reino, e em monte e caça de que era mui querençoso, e em +danças e festas segundo aquelle tempo, em que tomava grande sabor, que +adur é agora para ser crido. E estas danças era a som de umas longas que +então usavam, sem curando de outro instrumento posto que o hi houvesse: +e se alguma vez lh'o queriam tanger, logo se enfadava d'elle e dizia que +o dessem ao démo, e que lhe chamassem os trombeiros. + +Ora deixemos os jogos e festas que el-rei ordenava por desenfadamento, +nas quaes, de dia e de noite, andava dançando por mui grande espaço; mas +vêde se era bem saboroso jogo. Vinha el-rei em bateis de Almada para +Lisboa, e saiam-no a receber os cidadãos, e todos os dos misteres, com +danças e trebelhos, segundo então usavam, e elle saia dos bateis, e +mettia-se na dança com elles, e assim ia até ao paço. + +Paraementes se foi bom sabor. Jazia el-rei em Lisboa uma noite na cama, +e não lhe vinha somno para dormir, e fez levantar os mocos e quantos +dormiam no paço, e mandou chamar João Matheus e Lourenço Palos, que +trouxessem as trombas de prata, e fez accender tochas, e metteu-se pela +villa em dança com os outros. As gentes que dormiam, saiam ás janellas, +a vêr que festa era aquella, ou por que se fazia, e quando viram +d'aquella guisa el-rei, tomaram prazer de o vêr assim lêdo. E andou +el-rei assim grão parte da noite, e tornou-se ao paço em dança, e pediu +vinho e fructa, e lancou-se a dormir. + +E não curando mais falar de taes jogos: ordenou el-rei de fazer conde e +armar cavalleiro João Affonso Tello, irmão de Martim Affonso Tello, e +fez-lhe a mór honra, em sua festa, que até áquelle tempo fora visto que +rei nenhum fizesse a semelhante pessoa; cá el-rei mandou lavrar +seiscentas arrobas de cêra, de que fizeram cinco mil cirios e tochas, e +vieram de termo de Lisboa, onde el-rei então estava, cinco mil homens +das vintenas para terem os ditos cirios. E quando o conde houve de velar +suas armas, no mosteiro de São Domingos d'essa cidade, ordenou el-rei +que dês aquelle mosteiro até aos seus paços, que é assaz grande espaço, +estivessem quedos aquelles homens todos, cada um com seu cirio accesso, +que davam todos mui grande lume, e el-rei, com muitos fidalgos e +cavalleiros, andavam por entre elles dançando e tomando sabor, e assim +dispenderam grão parte da noite. + +Em outro dia, estavam mui grandes tendas armadas no rocio, a cerca +d'aquelle mosteiro, em que havia grandes montes de pão cosido, e, assáz +de tinas cheias de vinho, e logo prestes por que bebessem, e fòra +estavam ao fogo vaccas inteiras em espetos a assar, e quantos comer +queriam d'aquella vianda, tinham-na muito prestes, e a nenhum não era +vedada. E assim estiveram sempre em quanto durou a festa, na qual foram +armados outros cavalleiros, cujos nomes não curamos dizer. + + + + +*CAPITULO XV* + +_Das avenças que el-rei de Castella e el-rei Dom Pedro de Portugal +firmaram entre si, e como lhe el-rei de Portugal prometteu de fazer +ajuda contra Aragão_. + + +Escrevem alguns louvando este rei Dom Pedro, dizendo que reinou em paz +em quanto viveu, e fortuna não fez sem-razão de encaminhar o começo, e +meio, e fim de seu mando, de viver em socego e folgada paz; cá elle, por +morte de el-rei seu padre, achou o reino sem nenhuma briga por que +houvesse de haver contenda com nenhum rei da Espanha, nem de outra +provincia mais alongada. + +Dês ahi, como elle reinou, mandou logo Ayres Gomes da Silva e Gonçalo +Annes de Beja, a el-rei de Castella, seu sobrinho, com recado, e de +Castella veiu a elle, da parte de el-rei Dom Pedro, um cavalleiro, que +chamavam Fernão Lopez de Estuñega. E tratou-se então, entre os reis, que +fossem ambos verdadeiros e leaes amigos, e firmaram d'aquella vez suas +amisades. + +Depois d'isto, a cabo de um anno, estando el-rei Dom Pedro em Evora, +chegaram mensageiros de el-rei de Castella, a saber, Dom Samuel Levi, +seu thesoureiro-mór, e Garcia Guterrez Tello, alguazil mór de Sevilha, e +Gomes Fernandez de Soria, seu alcaide, e trataram, entre os reis ambos, +muito mais perfeitas amisades que antes. E foi mais ordenado, entre +elles, que o infante Dom Fernando, seu primogenito filho, e herdeiro em +Portugal, casasse com Dona Beatriz, filha do dito rei de Castella, e que +se fizessem os desposorios, por seus procuradores, dês fevereiro meiado +seguinte até ao primeiro dia de março que vinha, e as bodas logo no +postumeiro dia de abril, e que el-rei de Castella desse á dita sua +filha, em casamento, outro tanto haver quanto el-rei Dom Affonso de +Portugal dera, com sua filha Dona Maria, a el-rei Dom Affonso seu padre, +e que el-rei de Portugal desse á dita Dona Beatriz, em arrhas e doação, +outro tanto quanto seu padre, el-rei Dom Affonso, déra a Dona Constança, +quando com elle casára, e mais, que casasse Dona Constança, filha do +dito rei Dom Pedro de Castella, com o infante Dom João, e a outra filha, +que chamavam Dona Izabel, casasse com o infante Dom Diniz, e que os +desposorios e casamentos d'estes fossem acabados d'ahi a seis annos, e +que el-rei de Castella desse taes lugares a cada uma d'ellas, de que +houvessem de renda noventa mil maravedis, e el-rei de Portugal, a cada +um dos infantes, lugares que lhe rendessem cada anno dez mil libras de +portuguezes; e que el-rei de Castella fosse seu amigo, e imigo de imigo, +e que se ajudassem um ao outro por mar e por terra, cada vez que +requerido fosse, e que el-rei de Castella não fizesse paz com el-rei de +Aragão, contra quem lhe elle então requeria ajuda, sem lh'o fazer saber +primeiro, nem com outro nenhum rei e senhor. + +Onde sabei, que esta ajuda, que el rei de Castella então pediu a el-rei +Dom Pedro de Portugal, fôra já antes pedida por elle a el-rei Dom +Affonso, seu padre, quando este rei Dom Pedro de Castella começou a +guerra contra el-rei Dom Pedro de Aragão, que foi no postumeiro anno do +reinado do dito rei Dom Affonso, segundo adiante vereis; a qual ajuda +havia de ser gentes de cavallo por terra, e certas galés pelo mar. + +El-rei Dom Affonso respondeu a seu neto, que elle sabia bem e era certo +das posturas e firmidões que foram feitas entre el-rei Dom Diniz, seu +padre, e el-rei Dom Fernando, seu avó, e el-rei Dom Jayme de Aragão, as +quaes todos tres firmaram por si e por todos seus successores, e havido +accordo com todos os bons da casa de Portugal, que para ello foram +juntos em conselho, achou el-rei Dom Affonso que lhe não podia fazer a +dita ajuda, com aguisada razão: e vista tal resposta por el rei de +Castella, cessou de lh'a mais requerer. + +Morto el-rei Dom Affonso de Portugal, e começando de reinar este rei Dom +Pedro, seu filho, enviou-lhe o dito rei de Castella rogar que lhe +quizesse fazer ajuda por mar e por terra em aquella guerra que então +havia contra el-rei de Aragão; cá isso mesmo tinha elle em vontade de +fazer a elle quando lhe cumpridoiro fosse. + +El-rei de Portugal respondeu a isto, que bem certo devia elle de ser dos +bons e grandes dividos que sempre houvera entre os reis de Portugal e de +Aragão, pelos quaes elle com razão aguisada poderia ser bem escusado de +fazer nem dizer cousa que a elle e a sua terra fosse prejuizo, mórmente, +que entre el-rei Dom Affonso, seu padre, e el-rei Dom Pedro de Aragão, +que então era, foram firmadas posturas e amisades para se amarem e +ajudarem, especialmente contra el-rei Dom Affonso, padre d'elle rei de +Castella, e que isso mesmo fôra já a elle tratado, por vezes, depois que +entre elles recrescera aquella discordia; mas, que não embargando estas +rasões todas, que entendia que entre elles ambos havia tantos e tão bons +dividos, e assim aguisadas rasões, por que cada um d'elles devia fazer, +por honra e prol do outro, toda coisa que pudesse, e que elle assim o +entendia de fazer, tambem em aquelle mister que então havia, como em +todos os outros. E que para accrescentar na amisade e dividos que ambos +haviam, que lhe prazia de o ajudar n'aquella guerra, que começada tinha, +mas porquanto, a Deus graças, elle era abastante de muitas gentes, muito +mais que el-rei de Aragão, e parte de suas galés eram perdidas, que +melhor podia escusar a ajuda por terra que a do mar: e como quer que lhe +esta mais custosa fosse, que lhe prazia de o ajudar com dez galés +grossas, pagas por trez mezes, as quaes lhe faria bem prestes quando +lh'as mandasse requerer. + +E foi assim de feito, que lhe fez ajuda por mar duas vezes, e duas por +terra, de bons cavalleiros e bem corregidos, durando por longos tempos +grande guerra, e muito crua, entre el-rei Dom Pedro de Castella e el-rei +Dom Pedro de Aragão. + +Mas porque alguns, ouvindo aquisto, desejarão saber que guerra foi esta, +ou porque se começou e durou tanto tempo, e nós falar d'isto podiamos +bem escusar, por taes coisas serem feitos de Castella e não de Portugal, +pero, não embargando isto, por satisfazer ao desejo d'estes, dês ahi +porque nos parece que não havendo alguma noticia das crueldades e obras +d'este rei Dom Pedro de Castella não podem bem vir em conhecimento, qual +foi a razão porque elle depois fugiu de seu reino e se vinha a Portugal +buscar ajuda e accorro, e como depois de sua morte muitos lugares de +Castella se deram a el-rei Dom Fernando, e tomaram voz por elle: porém +faremos de tudo um breve falamento, começando primeiro nas cousas que +advieram em começo de seu reinado, vivendo ainda el-rei Dom Affonso de +Portugal, seu avô, com as outras que se seguiram depois que reinou +el-rei Dom Pedro, seu tio, das quaes nos parece que se em outro lugar +melhor contar não podem que todas aqui juntamente, entremettendo seus +feitos com a guerra, e primeiro, das cousas que fez antes que a +começasse, por saberdes tudo, em certo, de que guisa foi. + + + + +*CAPITULO XVI* + +_De algumas pessoas que el-rei D. Pedro de Castella mandou matar, e como +casou com a rainha Dona Branca e a deixou_. + + +Segundo testemunho de alguns, que seus feitos d'este rei de Castella +escreveram, elle foi muito cumpridor de toda cousa que lhe sua natural e +desordenada vontade requeria: em tanto que dizendo nós, pelo miudo, tudo +o que feiamente se poderia ouvir de seus feitos, caíriamos em +reprehensão, que não eramos escasso de contar os males alheios, mormente +taes que são pregoeiros de má e vergonhosa fama, porém muito menos +d'aquelles que achamos escriptos, dos principaes diremos, e mais não. + +Este rei foi muito arredado das manhas e condições que aos bons reis +cumpre de haver, cá elle dizem que foi mui luxurioso, de guisa que +quaesquer mulheres que lhe bem pareciam, posto que filhas-d'algo e +mulheres de cavalleiros fossem, e isso mesmo donas de ordem ou de outro +estado que não guardava mais umas que outras. Era muito cubiçoso do +alheio por má e desordenada maneira, e não queria homem em seu conselho, +salvo que lhe louvasse sua razão e quanto fazia. Matou muitas honradas +pessoas, d'ellas sem razão por lhe darem bom conselho, e outras sem +porque, e por ligeiras suspeitas, em tanto que muitos bons se afastavam +d'elle muito anojados, por temor da morte: cá nenhum não era com elle +seguro, posto que o bem servisse, e lhe elle muita mercê e honra +fizesse. E deixados os achaques que a cada um punha por os matar, +sómente, em breve, das mortes digamos, e mais não. + +No segundo anno de seu reinado foi morta D. Leonor Nunez de Gusman, +manceba que fôra de el-rei seu padre, e madre do conde Dom Henrique, que +depois foi rei; e posto que alguns digam que foi por mandado da rainha +Dona Maria, sua madre, certo é que ella não mandaria fazer tal cousa sem +consentimento de el-rei seu filho. E deu el-rei a sua madre todos os +bens de Leonor Nunez. + +Mandou el-rei matar Garcia Lasso da Veiga, um grande fidalgo de Gastella +e muito aparentado de genros e parentes e amigos, por suspeita que +d'elle houve. + +Mandou matar tres homens bons da cidade de Burgos, a saber, Pero +Fernandez de Medina, e João Fernandez, escrivão, e Affonso Garcia de +Camargo. + +Idem, cercou Dom Affonso Fernandez Coronel, na villa de Aguilar, e +entrou-o por força, e mandou-o matar, e Pero Coronel seu sobrinho, e +João Gonçalvez d'Eça, e Pero Dias de Quesada, e Rodrigo Annes de Beema, +e João Affonso Carrilho, mui bom cavalleiro. + +Mandou el-rei pedir a el-rei de França que lhe desse por mulher uma das +filhas do duque de Bourbon seu primo, e de seis filhas que elle tinha, +escolheram os mensageiros uma, que chamavam Dona Branca, moça de 18 +annos e bem formosa, e receberam-na em seu nome. E como el-rei Dom Pedro +isto soube, mandou que lh'a trouxessem logo, e enviou el-rei de França +com ella o visconde de Cardona e outros grandes cavalleiros de sua +terra, que lh'a trouxeram mui honradamente; e deu-lhe com ella mui grão +casamento em oiro e prata e outras riquezas, e foram então feitas as +dobras que chamaram de Dona Branca, e os reaes de Castella de el-rei Dom +Pedro. + +E emquanto os mensageiros foram tratar este casamento, tomou elle por +manceba Maria de Padilha, que andava por donzella em casa de Dona Isabel +de Menezes, filha de Dom Tello de Menezes, mulher de Dom João Affonso de +Albuquerque, que a criava. E tal vontade poz el-rei n'ella, que já não +curava de casar com Dona Branca quando veiu, tendo já da outra uma filha +que chamavam Dona Beatriz. + +E por conselho de Dom João Affonso de Albuquerque, pero muito contra +vontade d'el-rei, ordenou de fazer suas bôdas em Valhadolid, e foram +feitas uma segunda feira. E logo á terça seguinte, como el-rei comeu, a +cabo de uma hora, deixou sua mulher, que não valeu rogo nem lagrimas da +rainha Dona Maria sua madre, nem da rainha de Aragão sua tia, que o +pudessem ter que se não partisse, e levou tal andar que foi essa noite +dormir á aldeia de Pajares, que são dezeseis leguas de Valhadolid, e em +outro dia chegou a Montalban, onde estava Dona Maria de Padilha. E tinha +el-rei, quando partiu, e alguns dos que com elle iam, mulas em certos +lugares, pero não chegaram com elle mais de tres; e foi por isto grande +alvoroço entre os senhores e fidalgos do reino que alli eram, e alguns +foram logo partidos d'el-rei. + +Depois, por afincado conselho, tornou el-rei a Valhadolid e esteve com +sua mulher dois dias, e nunca mais puderam com elle que alli +assocegasse; e partiu-se e nunca a mais quiz vêr. E o visconde e +cavalleiros, que com ella vieram, se partiram sem mais falar a el-rei. + +Sendo viva esta rainha Dona Branca, não havendo mais de um anno que +el-rei com ella casara, pareceu-lhe bem Dona Joanna de Castro, filha de +Dom Pedro de Castro, que chamaram da Guerra, mulher que fôra de Dom +Dïego de Alfaro, e commetteu-lhe por outrem que casasse com elle. E ella +não querendo, porque el-rei era casado, disse elle que tinha razões por +que o não era: e mandou aos bispos de Avila e de Salamanca que +pronunciassem que podia casar. E elles, com medo, disseram-no assim, e +foram recebidos na villa de Qualhar, dentro na igreja, solemnemente, +pelo bispo de Salamanca que os recebeu ambos. Em o outro dia partiu +el-rei d'alli, e nunca mais viu esta Dona Joanna: e ella chamou-se +sempre rainha, pero não prazia a el-rei d'ello. + +A rainha Dona Maria tomou comsigo sua nora e foi-se para Outerdesilhas, +e dês-ahi mandou-a el-rei levar guardada a Revollo, que a não visse sua +madre nem outro nenhum, e depois a teve presa em Medina-Sidonia e alli a +mandou matar, sendo então a rainha com idade de vinte e cinco annos, +muito sisuda e bem acostumada. + +E elle teve ordenado de mandar matar Alvaro Gonçalves Mourão, e Dom +Alvaro Perez de Castro, irmão de Dona Ignez, madre de Dom João e de Dom +Diniz, filhos de el-rei Dom Pedro de Portugal, sendo então infante; e +foram percebidos por Dona Maria de Padilha, que lh'o mandou dizer, e +assim escaparam de morte. + +Mandou matar em Medina del Campo, um dia pela festa, em seu paço, Pero +Rodriguez de Vilhegas, adiantado mór de Castella, e Sancho Rodriguez de +Rojas; e foi morto um escudeiro de Pero Rodriguez. + +Mandou matar, em Toledo, vinte e dois homens bons, do commum, porque +foram em conselho de se alçar a cidade de Toledo, por não matarem n'ella +a rainha Dona Branca, segundo todos d'aquella vez cuidaram, entre os +quaes mandava matar um ourives velho de oitenta annos; e um seu filho de +dezoito annos, tendo-o para o matar, disse a el-rei que lhe pedia por +mercê que antes mandasse matar a elle que seu padre, e el-rei mandou-o +assim fazer: pero mais prouvera a todos que el-rei não mandara matar nem +um nem outro. + +E mandou matar quatro cavalleiros bons d'essa cidade, a saber, Gonçalo +Mendes, e Lopo de Vellasco, e Tello Gonçalves Palomeque, e Lopo +Rodrigues, seu irmão. + +Quando entrou a villa de Toro, onde estava a rainha sua madre, saiu a +rainha a elle, do alcaçar, por seu mandado, e mandou matar Dom Pero +Esteves, que se chamava mestre de Calatrava, alli onde vinha junto com +ella, e Rui Gonçalves de Castanheda que a trazia de braço, e Affonso +Telles Giron, e Martim Affonso Tello, todos quatro a redor da rainha. E +ella, quando os viu matar, tão a cerca de si, caiu em terra como morta, +e levantaram-na, bradando e maldizendo seu filho, e a poucos dias lhe +pediu que a mandasse a Portugal para el-rei seu padre, e assim o fez: e +ahi morreu depois, segundo tendes ouvido. + +Mandou el-rei mais matar Gomes Manrique de Hornamella, e outros; e +ordenou um torneio em Outerdesilhas, de cincoenta por cincoenta, por +matar n'elle o mestre de São Thiago Dom Fradarique, seu irmão, que era +no torneio. E el-rei não quiz descobrir este segredo a outrem, e porem +não se fez aquelle dia. + + + + +*CAPITULO XVII* + +_Como se começou o desvairo entre el-rei Dom Pedro de Castella e o conde +Dom Henrique, seu irmão, o qual foi aso porque se o conde foi fóra do +reino_. + + +Pois havemos de fazer menção, ao diante, da guerra e grande desvairo que +depois houve entre o conde Dom Henrique e el-rei Dom Pedro, seu irmão, +necessario é que contemos primeiro como se começou sua desavença e de +que guisa se elle partiu do reino: e isto, antes que entremos na guerra +de Castella com el-rei de Aragão, em cuja ajuda elle depois veiu. + +Onde sabei que morto el-rei Dom Affonso sobre o cerco de Gibraltar, que +foi na era de mil e trezentos e oitenta e oito annos, no mez de março, e +tomando todos por seu rei o infante Dom Pedro seu primogenito filho, +sendo então em idade de quinze annos, e estando na cidade de +Sevilha,--partiram do arrayal com o corpo de el-rei, para o virem +soterrar a Castella, muitos dos senhores e fidalgos que eram alli com +elle, assim como o infante Dom Fernando, filho de el-rei de Aragão, +marquez de Tortosa, sobrinho do dito rei Dom Affonso, filho da rainha +Dona Leonor sua irmã, e Dom Henrique conde de Trastamara, e Dom +Fradarique mestre de São Thiago, seu irmão, filhos de Leonor Nunez, e do +dito rei Dom Affonso, e Dom João Affonso de Albuquerque, e outros +senhores, e mestres, e ricos-homens. E passando o corpo de el-rei +perante a villa de Medina Sidonia, que era de Leonor Nunez, ella se foi +dentro ao lugar; porquanto Affonso Fernandez Coronel, que a tinha por +ella, lhe disse que a não queria mais ter. E foi por esta entrada, que +Leonor Nunez fez n'aquelle logar, mui grande murmurio entre os senhores +e cavalleiros que levavam o corpo d'el-rei, cuidando que ella se punha +alli em esforço dos filhos e parentes seus, que alli vinham. + +E Dom João Affonso de Albuquerque, quando viu aquella ficada que os +filhos e parentes de Leonor Nunez faziam com ella n'aquelle logar, que +era bem forte, tratou com alguns que o conde Dom Henrique e Dom +Fradarique seu irmão, estivessem n'aquella villa como presos. E soube-o +Leonor Nunez, e tomou mui grão medo. E trataram com ella, segurando-a +Dom João Nunez de Lara que tinha sua filha esposada com Dom Tello, seu +filho d'ella, cuidando ella que tal segurança fosse firme. + +E saiu-se do logar ella e seus filhos, e Dom Pedro Ponce de Leon, e Dom +Fernão Perez Ponce seu irmão, mestre de Alcantara, e Dom Alvaro Perez de +Guzman, e outros seus parentes, e houveram todos accordo de se apartar +de el-rei, receando-se muito de irem a Sevilha, onde el-rei Dom Pedro +estava, e serem presos. E logo n'esse dia que partiram de Medina, se +foram a Moram, que é uma villa e castello bem forte a cerca de terra de +mouros, e não segurando ainda de estar alli, foram-se para Aljazira, que +tinha Dom Pero Ponce, e Dom Fradarique se tornou para a terra da ordem +de São Thiago. + +A rainha Dona Maria, com seu filho el-rei Dom Pedro e todos os que eram +em Sevilha, saíram fóra da cidade receber o corpo de el-rei, e foi-lhe +feito mui honradamente tudo aquillo que cumpria, e soterrado na egreja +de Santa Maria, na capella dos Reis. + +El-rei D. Pedro, sabendo a partida de seus irmãos e dos outros fidalgos, +e como estavam em Aljazira, mandou saber secretariamente que maneira +tinham, e achou que se apoderavam do logar o mais que podiam; e mandou +lá galés armadas, e Guterre Fernandez de Toledo por capitão: e o conde +D. Henrique, e os outros vendo que lhes não cumpria estar alli, +tornaram-se para Moram, onde estava Dom Fernão Rodriguez Ponce. + +Em isto foi-se Dona Leonor Nunez a Sevilha, e posta de parte a segurança +que lhe feita tinha, mandou-a el-rei guardar mui bem no alcaçar, e +trataram depois, por parte de el-rei, com o conde Dom Henrique, e com os +outros senhores, de guisa que se vieram todos a Sevilha para el-rei. E o +conde ia vêr cada dia sua madre, com a qual estava Dona Joanna, filha de +Dom João Manuel, sua esposa. E houveram accordo, a madre com o filho, +que houvesse ajuntamento com sua esposa, por se não desfazer o casamento +segundo rugiam; e fel-o assim, e pezou d'isto muito a el-rei, e á rainha +sua madre, e a outros muitos, e por isto defendeu el-rei que a não fosse +nenhum mais vêr: e levaram-na d'alli para Carmona, e o conde Dom +Henrique fugiu para as Asturias, por quanto lhe disseram que o mandava +el-rei prender. Depois foi levada Dona Leonor, sua mãe, a Talavera, e +alli a mandou matar a rainha Dona Maria por Affonso Fernandez de Olmedo, +seu escrivão, como já tendes ouvido. + +O conde Dom Henrique estando nas Asturias, ouviu como el-rei mandara +matar sua madre, e depois Garcia Lasso, adiantado de Castella, e não +ousou de estar alli, e foi-se a Portugal para el-rei Dom Affonso: e +quando el-rei Dom Pedro fez vistas com seu avô em Cidade Rodrigo, como +dissemos, rogou el-rei Dom Affonso a seu neto que perdoasse ao conde, e +elle perdoou-lhe, e tornou-se o conde para as Asturias, cá não ousou de +se ir para el-rei. + +E elle nas Asturias, soube el-rei como abastecia Gijon, e foi-se lá, e +cercou o lugar, onde estava sua mulher Dona Joanna, cá elle não se +atreveu de o esperar alli, e foi-se em tanto a uma montanha mui forte +que dizem Montojo, e os de Gijon pleitearam com el-rei que perdoasse ao +conde, e a el-rei prouve, e tornou-se. + +E quando el-rei houve de fazer suas bôdas em Valhadolid com Dona Branca, +segundo contámos, chegou o conde Dom Henrique e Dom Tello seu irmão, e +trazia o conde seiscentos homens de cavallo e mil e quinhentos de pé; e +sendo em Cijalles, duas leguas d'onde el-rei estava, mandou-lhe dizer +que não ousaria de entrar na villa, salvo com toda sua gente, porquanto +se receava de alguns que eram na côrte. E el-rei mandou-o segurar: não +se fiaram do seguro, e houveram de pelejar com el-rei, que sahiu a +elles. Depois, foram de accordo com elle, e ficaram em sua mercê. + +Casou el-rei com Dona Branca, e deixou-a em outro dia, e foi-se para +Dona Maria de Padilha. E d'essa idéia foi desavindo d'elle Dom João +Affonso de Albuquerque que governava a casa d'el-rei. E tratou-se depois +que Dom João Affonso estivesse em Portugal, se quizesse, e que seus +castellos e bens, que havia em Castella, fossem seguros: prometteu-lh'o +el-rei assim, e depois que Dom João Affonso foi em Portugal, cercou-lhe +el-rei Medelin, e cobrou-o, e fel-o derribar, e depois cercou +Albuquerque, e não o podendo tomar, partiu-se d'alli, e deixou por +fronteiros, em Badalhouce, o conde Dom Henrique e o mestre de São Thiago +Dom Fradarique, seu irmão. + +Partido el-rei d'alli, enviou o conde seu recado a Dom João Affonso, que +fossem todos trez amigos, e entrassem por Castella, e a elle prouve +muito, e firmaram seu preito de ser assim; e houveram Dom Fernando de +Castro em sua ajuda, que estava em Galliza, e começaram de entrar por +Castella, fazendo n'ella grande estrago. + +N'isto mandou el-rei Dom Pedro João Affonso de Henestrosa, seu +camareiro-mór, a Arevalo onde estava a rainha Dona Branca, sua mulher, +que a trouxesse ao alcançar de Toledo, e elle trazendo-a pela cidade, +disse ella que queria ir primeiro fazer oração á igreja de Santa Maria, +e dês-que foi dentro na igreja, não quiz mais sahir d'ella, receando-se +de ser morta ou presa. João Affonso não se atreveu de a fazer sahir da +igreja contra sua vontade, e tornou-se para el-rei. Os moradores de +Toledo falando sobre isto, houveram piedade da rainha, e accordaram de a +não deixar prender nem matar n'aquella cidade, e determinaram de pôr por +ella os corpos, e quanto haviam. E mandaram primeiro por Dom Fradarique +mestre de São Thiago, e colheram-no dentro com suas companhas, e mais +enviaram suas cartas ao conde Dom Henrique, e a Dom João Affonso +d'Abuquerque, e a Dom Fernando de Castro, fazendo-lhe saber sua +intenção; e tiveram com Toledo, por parte da rainha, a cidade de +Cardona, e Cuenca, e o bispado de Jaen e Talavera. Que cumpre dizer +mais: os infantes Dom Fernando e Dom João, primos d'el-rei, e muitos +senhores e cavalleiros, se partiram d'elle por ajudar a tenção dos +outros, em guisa que não ficaram com el-rei mais de seiscentos de +cavallo. E todos aquelles senhores lhe mandavam dizer que prestes eram +para o servir e fazer seu mandado, com tanto que tomasse sua mulher, e +vivesse com ella e não regesse o reino pelos parentes de Dona Maria de +Padilha, nem os fizesse seus privados: e el-rei não quiz cair em tal +preitesia. + +N'isto adoeceu Dom João Affonso de Albuquerque, e el-rei mandou +encobertamente tratar com o physico, que pensava d'elle, que lhe faria +mercês e que lhe desse com que morresse; e elle fel-o assim, segundo +depois foi sabido; e os vassalos de Dom João Affonso prometteram de não +enterrar o seu corpo até que esta demanda fosse acabada, e elle assim o +mandou em seu testamento. E quando aquelles senhores ordenavam conselho +sobre aquillo que lhes convinha fazer, falava em lugar de Dom João +Affonso, Ruy Dias Cabeça-de-Vacca, que fôra seu mordomo-mór. E eram as +gentes d'estes senhores todos até cinco mil de cavallo, e muita gente de +pé. + +Acima vendo el-rei como perdia as gentes por esta guisa, houve conselho +de se pôr em poder d'elles, na villa de Toro, e alli partiram elles logo +os officios do reino e da casa d'el-rei entre si, de guisa que a el-rei +não prouve; e então foram enterrar o corpo de Dom João Affonso, tendo +que sua demanda era já acabada. + +El-rei sentindo-se como preso, segundo a maneira que com elle tinham, +fingiu que queria ir á caça, e uma grande manhã cavalgou, e foi-se para +Segovia, e foram-se os infantes para el-rei por suas preitesias, e +começou-se de desfazer a companhia que se antes juntara. E o conde Dom +Henrique, e Dom Tello e Dom Fradarique, seus irmãos, ficaram a uma +parte, e seriam por todos até mil e duzentos de cavallo, e muitos homens +de pé. E houveram entrada em Toledo, e foi el-rei á cidade, e cobrou-a, +e elles deixaram-na, e foram-se. + +Depois lhes enviou rogar a rainha Dona Maria que se fossem para Toro, +onde ella estava, receando-se del-rei, seu filho; e foram-se allá, e +chegou ahi el-rei com suas gentes, e pelejaram nas barreiras, e não +poude el-rei ahi assocegar por mingua d'agua, e partiu-se d'ahi. + +E depois que se el-rei foi, partiu-se o conde Dom Henrique para Galliza, +uns diziam que para se ajuntar com Dom Fernando de Castro, outros +affirmavam que o fazia o conde por não ser cercado. E quizera el-rei +partir empoz elle, e depois houve em conselho de tomar primeiro a villa +de Toro; e cercou-a outra vez, e tratou com Dom Fradarique, seu irmão, e +do conde Dom Henrique, que ficava na villa por guarda, que se fosse para +elle: e elle fel-o assim. E em outro dia cobrou el-rei a villa, por uma +porta que lhe deram, e prendeu Dona Joanna, mulher do conde Dom +Henrique, e fez matar alguns do lugar, e mais aquelles cavalleiros que +foram mortos acerca da rainha sua madre, como dissemos. + +Quando o conde Dom Henrique soube como el-rei cobrara a villa de Toro, e +matara aquelles cavalleiros que tinha por sua parte, e que o mestre Dom +Fradarique, seu irmão, era já com el-rei de accordo, entendeu que lhe +não cumpria mais aporfiar na guerra, nem estar mais tempo no reino e +preitejou com el-rei, que lhe desse cartas de seguro para se ir para +França: e a el-rei prouve disto, e deu-lh'as. + +E soube o conde como el-rei mandara ao infante Dom João e a Diego Perez +Sarmento seu adiantado-mor, e a todos os outros cavalleiros e officiaes +das comarcas por onde elle cuidava que o conde fosse, que lhe tivessem o +caminho e o matassem; assim como depois matou todos os senhores e homens +de estado que foram na companhia da demanda que se levantou contra elle +por razão da rainha Dona Branca. + +E o conde partiu de Galliza, e foi pelas Asturias, por quanto por +aquella comarca não havia mandamento d'el-rei, pensando elle pouco que +fosse por alli, e passou trigosamente, e foi-se pela Biscaia, onde +estava Dom Tello seu irmão, e d'ahi se passou por mar á Rochella, onde +achou el-rei de França, que havia guerra com os inglezes, e tomou d'elle +soldo. + +E d'esta guisa foi sua desavença com el-rei Dom Pedro seu irmão, e +partida do reino de Castella, durando n'estas desavenças, todas que +ouvistes n'este capitulo, passados de sete annos. + + + + +*CAPITULO XVIII* + +_Como e por qual aso se começou a guerra entre Castella e Aragão_. + + +Andando em sete annos que el-rei Dom Pedro de Castella reinava, na era +de mil e trezentos e noventa e quatro, estando el-rei em Sevilha, mandou +armar uma galé para ir folgar e vêr a pescaria que faziam nas covas das +almadravas. E foi em uma galé a São Lucas de Barrameda, e achou ahi, no +porto, dez galés de catalães e um lenho de que era capitão um cavalleiro +aragonez, que diziam Mosse Frances de Emperellores, as quaes iam, por +mandado de el-rei de Aragão, em ajuda de el-rei de França contra el-rei +de Inglaterra. + +E entrando elle capitão n'aquelle porto por tomar refresco, achou ahi +dois baixeis de plazentinos carregados de azeites, que iam para +Alexandria, e tomou os, dizendo que eram navios de genovezes, com que os +catalães haviam guerra então. + +El-rei lhe mandou dizer que pois aquelles baixeis estavam em seu porto, +que os não quizesse tomar, ao menos por sua honra d'elle, pois estava de +presente. E elle respondeu que aquellas gentes eram inimigos d'el-rei +d'Aragão, e que os podia tomar de boa guerra. E el-rei lhe mandou dizer, +outra vez, que fosse certo, se os deixar não quizesse, que mandaria +prender em Sevilha todos os mercadores catalães que ahi eram, e +tomar-lhes todos seus bens. + +O capitão das galés por tudo isto não o quiz fazer, e vendeu logo alli +os baixeis por setecentas dobras, e foi-se seu caminho, sem mais falar a +el-rei. + +E el-rei houve d'isto grande melancolia, e não sem razão, mas a vingança +foi desarrazoada; porque assim como de pequena faisca se accende grande +fogo, achando coisa disposta em que obre, assim el-rei Dom Pedro com +destemperada sanha, por tomar d'aquillo vingança, moveu crua guerra +contra Aragão, de sangue e fogo, por muitos annos, como ora brevemente +ouvireis; cá elle mandou logo prender em Sevilha todos os mercadores +catalães que ahi eram, e escrever lhes todos seus bens, e outro dia +partiu-se á pressa por terra, e fel-os todos pôr em cadeias, e vender +quanto lhes acharam. + +E mandou logo a el-rei de Aragão fazer-lhe queixume de Mosse Frances, da +pouca honra e cortezia que n'elle achara, mandando-lh'o rogar por duas +vezes, e que porém lhe requeria que lh'o entregasse para d'elle haver +emenda, e anadiu mais que tirasse uma commenda que dera a Dom Pedro +Moniz de Godoi, que era homem a que bem não queria, e se estas cousas +fazer não quizesse, que fosse certo que lhe faria guerra. + +E el-rei de Aragão deu sua resposta, que lhe pesava do nojo que a el-rei +fôra feito, e que como aquelle cavalleiro tornasse para seu reino, que +elle o ouviria e faria justiça, de guisa que el-rei de Castella fosse +contente; e que a commenda que havia dada a Dom Pedro Moniz, pois a +el-rei não prazia d'ello, que cataria outra cousa de que lhe fizesse +mercê, mas que até que al lhe désse, que lh'a não podia tirar sem grande +sua mingua. + +O mensageiro, que bem sabia a vontade de el-rei Dom Pedro, não foi +contente d'esta resposta, e desafiou o logo, e seu reino. + +El-rei de Aragão disse que el-rei de Castella não havia justa razão para +fazer isto, e que o deixava em juizo de Deus, e mandou logo aperceber +sua terra. + + + + +*CAPITULO XIX* + +_Como el-rei de Castella entrou por Aragão e das cousas que fez n'este +anno_. + + +El-rei de Castella, emquanto mandou a Aragão o recado que haveis ouvido, +antes que a resposta de lá viesse, com desejo de tomar vingança, mandou +á pressa armar sete galés e seis naus; e metteu-se el-rei n'ellas, +cuidando de achar na costa de Portugal aquelle cavalleiro, e chegou até +Tavira, e soube que era passado, e tornou-se para Sevilha; e mandou +el-rei as galés á ilha de Iviça, e começou-se a guerra por todas as +partes. + +N'isto começou-se a era de mil trezentos e noventa e cinco, em cuja +sesão morreu el-rei Dom Affonso de Portugal, a que este rei Dom Pedro, +seu neto, mandara pedir ajuda para esta guerra, segundo antes havemos +contado; e vendo el-rei de Aragão a não boa maneira que el-rei de +Castella com elle queria ter, fel-o saber ao conde Dom Henrique e a +alguns cavalleiros castelhanos que andavam em França por medo de el-rei +Dom Pedro, e o conde com elles vieram-se para elle, e el-rei os recebeu +mui bem e deu ao conde certos castellos em que tivesse suas gentes, e +soldo para oitocentos de cavallo. + +El-rei de Castella, como isto soube, partiu de Sevilha e entrou por +Aragão, e tomou alguns castellos, e tornou-se para Deça, uma sua villa +na fronteira de Aragão; e acendia-se a guerra cada vez mais. + +E alli chegou a elle o cardeal Dom Guilhem, legado do papa Innocencio, +para pôr avença entre elles, e não podendo fazer que cessasse a guerra +de todo, por as cousas mui graves de outorgar que el-rei Dom Pedro +requeria a el-rei de Aragão, fez entanto uma tregua de quinze dias, os +quaes durando, tomou el-rei Dom Pedro a cidade de Taraçona. E o cardeal +se aggravou contra el-rei, dizendo que emquanto elle fôra falar a el-rei +de Aragão, durando ainda os dias da tregoa, tomara elle aquella cidade, +e el-rei dizendo que já eram passados, e o cardeal dizendo que não, +ficou o lugar por el-rei bem fornecido de gentes. + +E d'esta segunda vez que el-rei entrou em Aragão e tomou a cidade de +Taraçona, se vieram para elle muitas gentes de seus reinos e alguns +inglezes, em guisa que eram sete mil de cavallo e dois mil ginetes e +muita gente de pé. + +E vendo o cardeal que não podia entre os reis tratar firme paz, ordenou +que houvessem tregua por um anno, e foi apregoada uma segunda-feira, dez +dias de maio d'esta era, e el-rei veiu-se então a Sevilha por mandar +fazer galés, e encaminhar de fazer armada no anno seguinte, tanto que as +treguas fossem saidas. + +N'este comenos, durando a tregua, tratou Pero Carrilho, que vivia com o +conde Dom Henrique, suas avenças com el-rei Dom Pedro, que o herdasse em +seu reino e que se viria para elle; e a el-rei prouve, e fel-o assim. E +Pero Carrilho, desde que segurou por alguns dias, guisou como pudesse +levar a condessa Dona Joanna, que estivera presa desde que el-rei tomara +a villa de Toro, para o conde seu marido, e foi assim de feito que a +levou. + +E d'esta guisa cobrou o conde sua mulher, e pesou muito a el-rei Dom +Pedro quando soube que a assim levaram. + + + + +*CAPITULO XX* + +_Como el-rei Dom Pedro fez matar o mestre de São Thiago Dom Fradarique, +seu irmão, no alcaçar de Sevilha_. + + +Se dizem que o que faz nojo a outrem escreve o que faz no pó, e o +injuriado em pedra marmore, bem se cumpriu isto em el-rei Dom Pedro; cá +elle movido por sobejo queixume contra seus irmãos e outros do reino, +por aso da tenção que tomaram em favor da rainha Dona Branca e contra os +parentes de Dona Maria de Padilha, segundo ouvistes (que já em tempo +havia mais de trez annos, andando então a era em mil e trezentos e +noventa e seis,) ordenou em Sevilha, alli onde estava, de matar o mestre +de São Thiago Dom Fradarique, seu irmão, e mandou-o chamar onde vinha da +guerra que fôra tomar a villa de Jumilha, que é no reino de Murcia, por +lhe fazer serviço. + +E no dia que o mestre havia de chegar á cidade, chamou el-rei em sua +camara o infante Dom João, seu primo, e tomou-lhe juramento sobre a Cruz +e os Evangelhos, e descobriu-lhe como o queria matar, rogando-lhe que o +ajudasse a fazer tal obra, e ter-lh'o-hia em serviço, e como fosse +morto, que logo entendia de ir a Biscaia matar o outro irmão Dom Tello, +e dar-lhe a elle as suas terras. O infante Dom João respondeu que lhe +tinha em grande mercê querer fiar d'elle seus segredos, e que lhe prazia +muito do que tinha ordenado, e era contente de o fazer assim. + +N'isto chegou Dom Fradarique, antes de comer, uma terça-feira, vinte e +nove dias de maio, e como chegou de caminho foi logo vêr el-rei, que +estava no alcaçar da cidade jogando as tabolas, e beijou-lhe a mão e +muitos cavalleiros com elle. E el-rei o recebeu mui bem, mostrando-lhe +boa vontade, e perguntou-lhe d'onde partira, e que pousadas tinha. O +mestre disse que partira de Santilhana, que são d'alli cinco leguas, e +que as pousadas cuidava que seriam boas. E el-rei, porque entraram +muitos com o mestre, disse que se fosse aposentar, e depois se viria +para elle. + +O mestre partiu-se, e foi vêr Dona Maria de Padilha e as sobrinhas, que +estavam em outra parte dos paços, e d'alli se veiu ao curral onde +deixara as bestas, e não achou ahi nenhuma, cá assim fora mandado aos +porteiros. + +O mestre não sabendo se tornasse a el-rei, ou que fizesse, disse-lhe um +seu cavalleiro, suspeitando mal de tal feito, que se saisse pelo postigo +do curral, que estava aberto, cá lhe não minguaria besta se fosse fóra. +Elle cuidando se o faria, vieram-lhe dizer que o chamava el-rei, e elle +começou de tornar para el-rei, pero espantado, receando-se muito. E como +ia entrando pelas portas dos paços e das camaras, assim ia cada vez mais +desacompanhado, em guisa que quando chegou onde el-rei estava, não ia +com elle salvo o mestre de Calatrava. E estiveram á porta ambos, e não +lhes abriram; e pero lhe todas estas cousas apresentavam mensagem de +morte, vendo-se sem culpa, tomava já em si quanto de esforço. + +N'isto abriram o postigo do paço onde el-rei estava, e el-rei disse a +Pero Lopez de Padilha, seu bésteiro-mór, que prendesse o +mestre.--Senhor, disse elle,--qual d'elles?--O mestre de São +Thiago,--disse el-rei. E elle travou d'elle, dizendo:--Sêde preso! + +O mestre ficou espantado, e quando ouviu outra vez que el-rei dizia aos +bésteiros da maça que o matassem, desenvolveu-se de Pero Lopez, que o +tinha preso, e houve-se no curral; e quiz tirar a espada que tinha na +cinta, e foi sua ventura que não poude, por aso do tabardo que tinha +vestido, e andando muito rijo de uma parte á outra, não o podiam ferir +os bésteiros com as maças, até que o houveram de ferir, e caiu em terra +morto. + +El-rei, quando viu o mestre jazer em terra, saiu pelo alcaçar cuidando +achar alguns dos seus para os matar, e não os achou, cá eram fugidos e +escondidos. E achou no paço onde estava Dona Maria de Padilha, Sancho +Diaz de Vilhegas, camareiro-mór do mestre, que se acolhera alli quando +ouviu dizer que o matavam, e tomou Dona Beatriz, filha de el-rei, nos +braços, cuidando por ella escapar da morte, e el-rei fez-lh'a tirar das +mãos, e deu-lhe com uma brocha que trazia, e matou-o. E tornou-se onde +jazia o mestre, e achou que não era bem morto, e fel-o matar a um seu +moço da camara: d'ahi, foi-se assentar a comer. + +E mandou logo n'esse dia, pelo reino, que matassem estas pessoas, a +saber: em Cordova, a Pero Cabrera, um cavalleiro que ahi morava, e um +jurado que diziam Fernando Affonso de Gachete; e mandou matar Dom Lopo +Sanchez de Vendano, commendador-mór de Castella; e mataram, em +Salamanca, Affonso Jofre Tenorio; e em Toro, Affonso Perez Fermosilhe; e +mataram, em Mora, Gonçalo Mendez de Toledo. E estes dizia el-rei que +mandava matar porque foram da parte da rainha Dona Branca; e pero lhes +el-rei havia já perdoado, não curando do que promettera, mandou a todos +cortar as cabeças. + + + + +*CAPITULO XXI* + +_Como el-rei partiu de Sevilha por tomar Dom Tello, seu irmão, para o +matar; e como matou o infante Dom João, seu primo_. + + +Estando el-rei ainda comendo, mandou chamar logo o infante Dom João, seu +primo, e disse-lhe em segredo como, tanto que comesse, queria partir +para Biscaia, por ir matar Dom Tello, seu irmão, e que se fosse com +elle, e dar-lhe-ia o senhorio d'aquella terra. + +O infante, não embargando que estivesse casado com Dona Isabel, irmã da +mulher do conde Dom Tello, prouve-lhe muito com taes novas, e beijou as +mãos a el-rei por ello, cuidando pouco no que lhe elle tinha ordenado: e +el rei partiu logo, e o infante com elle, e foi em sete dias em Aguilar +do Campo, onde Dom Tello estava. + +E Dom Tello andava aquelle dia ao monte, e um seu escudeiro, quando viu +el-rei foi-lh'o logo dizer, tossemente. E elle fugiu á pressa, e chegou +a Bermeto uma sua villa ribeira do mar, e entrou em pinaças de +pescadores, e foi-se para Bayona de Inglaterra. + +El-rei, cuidando de o tomar, seguiu o caminho por onde elle fôra, e +aquelle dia que Dom Tello chegou a Bermeo e entrou no mar, esse dia +chegou el-rei, e entrou em outros navios, cuidando de o alcançar. O mar +era um pouco buliçoso, e el-rei anojou-se, e deixou de o seguir porque +ia mui longe, e tornou-se em terra, e prendeu Dona Joanna, sua mulher. + +O infante Dom João, quando viu Dom Tello por esta guisa partido, disse a +el-rei que bem sabia sua mercê como lhe dissera em Sevilha que queria +matar Dom Tello, e dar-lhe a terra de Biscaia, que era sua, e que pois +Dom Tello era fóra do reino sem sua graça, que fosse sua mercê de lh'a +dar como lhe promettera. E el-rei disse que mandaria aos biscainhos que +se ajuntassem, como haviam de costume, e que elle iria lá, e lhe +mandaria que o tomassem por senhor. E o infante, com leda esperança de +cobrar a terra, lhe beijou as mãos por isto, tendo-lh'o em grande mercê. + +Os biscainhos indo para se ajuntar onde haviam de costume, falou el-rei +com os maiores d'elles, dizendo-lhes em segredo que respondessem, quando +elle propuzesse para dar a terra a Dom João, que não queriam outro +senhor salvo el-rei; e elles disseram que assim o fariam. + +Elles juntos, bem dez mil, propoz el-rei muitas razões por parte do +infante seu primo, como a terra de Biscaia lhe pertencia por direito, +por aso do casamento de sua mulher, e que lhes rogava e mandava que o +tomassem por senhor: elles responderam que nunca tomariam outro senhor +salvo el-rei de Castella, e que nenhum lhes fallasse em outra cousa. E +el-rei disse então ao infante, que bem via as vontades d'aquelles +homens, que o não queriam haver por senhor, porém, que elle iria a +Bilbao, e que ainda tornaria outra vez a falar com elles que o tomassem +por senhor. O infante começou de entender que isto era encoberta que el +rei fazia, e teve-se por mal contente. + +El-rei em Bilbao, mandou em outro dia chamar o infante, e elle veiu, e +entrou só na camara, e ficaram dois seus á porta; e os que sabiam parte +de sua morte começaram de joguetear com elle, por lhe tomarem um pequeno +cutello que trazia, e assim o fizeram; e Martim Lopez, camareiro-mór de +el-rei, abraçou-se então com o infante, e um bésteiro deu-lhe com uma +maça na cabeça, e dês-ahi outros, e caiu o infante morto: e foi isto uma +terça-feira, havendo quinze dias que o mestre Dom Fradarique fôra morto +em Sevilha. E el-rei mandou-o deitar na rua por uma janella da casa onde +pousava, e disse aos biscainhos que estavam ahi juntos:--Vêdes ahi o +vosso senhor de Biscaia, que vos demandava por seus? + +Isto feito, mandou logo el-rei João Fernandes de Hinestrosa que se fosse +a Roa, onde estavam a rainha de Aragão, sua tia, madre do dito infante, +e Dona Isabel, sua mulher, e que as prendesse ambas, não sabendo parte a +madre do filho, nem a mulher do marido. E foram presas em um dia, e +el-rei chegou no outro, e fez-lhes tomar quando tinham, e mandou-as +presas a Castro Exariz; e d'alli partiu-se, e veiu-se a Burgos, onde +esteve uns oito dias, e alli lhe trouxeram as cabeças d'aquelles que +ouvistes que mandara matar pelo reino, quando o mestre Dom Fradarique +foi morto. + + + + +*CAPITULO XXII* + +_Como foi quebrada a tregua de um anno que havia entre os reis, e como +el-rei Dom Pedro juntou armada por fazer guerra a Aragão_. + + +Nós não dissemos a morte do mestre Dom Fradarique e do infante Dom João, +da guisa que ora ouvistes, por nos prazer contar crueldades, mas +puzemol-as um pouco assim compridas, mais que dos outros, porque eram +notaveis pessoas, e vêrdes o geito que el-rei teve em os matar. + +Onde sabei, que por este aso não embargando que ainda durasse a tregua +de um anno, que o cardeal puzera entre el-rei Dom Pedro e el-rei de +Aragão, que tanto que o conde Dom Henrique soube como Dom Fradarique, +seu irmão, era morto, e isso mesmo disseram ao infante Dom Fernando, +marquez de Tortosa, da morte do infante Dom João, seu irmão, juntaram +logo suas gentes, e entraram por Castella. E o conde entrou por terra de +Soria, e chegou á villa de Seiron, e a rombou, e combateu o castello e +alcaçar cuidando de o tomar, e tornou-se para Aragão; e o infante Dom +Fernando entrou pelo reino de Murcia, e fez muito damno n'aquella terra. + +El-rei soube isto em Valhadolid, e pôz logo fronteiros contra Aragão, e +veiu-se a Sevilha, e fez armar á pressa doze galés; e em as armando, +chegaram seis galés de genovezes, que então haviam guerra com os +catalães, e prouve muito a el-rei com ellas, e tomou-as a soldo, dando +por mez a cada uma mil dobras cruzadas. E com estas dezoite galés chegou +a uma villa, que chamam Guadamar, que era do infante Dom Fernando, e fez +el-rei uma manhã, que eram dezesete dias de agosto, sair muita gente de +todas as galés para combater a villa, e pero fosse bem cercada, tomou-a +por força, e acolheram-se muitos ao castello. + +E estando o combatendo, á hora do meio dia, alçou-se um vento mui forte, +que é travessia n'aquella terra, e como as galés estavam sem gente, deu +com todas a travez á costa, que não escaparam mais de duas que jaziam +dentro no mar, uma d'el-rei e outra dos genovezes. E ás dezeseis mandou +el-rei pôr o fogo, porque se não podiam reparar: e dos remos, e outros +apparelhos, não se salvou senão mui pouco, que pozeram em uma nau de +Laredo, que ahi estava. E houve el-rei, e os patrões dos galés, bestas +em que partiram d'alli, das gentes de Guterre Gomez de Toledo, que +chegara ahi, elle e outros, com seiscentos de cavallo; e foi-se el-rei +mui triste com este acontecimento, e todos os das galés de pé com elle, +mui nojosos. + +E chegou el-rei a Murcia, e foram-se os genovezes para sua terra em +navios de Cartagena, e el-rei mandou logo a Sevilha que fizessem á +pressa galés. E em oito mezes foram feitas doze galés novas, e reparadas +quinze d'outras que estavam nas tercenas; e fez fazer muitas armas e +grande almazem, e mandou perceber todos os navios do reino que não +fretassem para nenhuma parte. + +E partiu el-rei de Murcia, e foi-se á fronteira de Aragão, e ganhou +alguns castellos, e tornou-se para Sevilha: e foi esta a quarta vez que +el-rei Dom Pedre entrou em Aragão. + + + + +*CAPITULO XXIII* + +_Como veiu o cardeal de Bolonha para fazer paz entre el-rei de Castella +e el-rei de Aragão, e os não poude pôr de accordo_. + + +Estando el-rei Dom Pedro assim em Sevilha, soube como Dom Guilhem, +cardeal de Bolonha, era na villa de Almaçan, por tratar paz entre elle e +el-rei de Aragão. E fez saber o cardeal a el-rei se lhe prazia de ir a +Sevilha, onde elle estava, ou se aguardaria alli por elle, havendo de ir +para aquella comarca. + +E el-rei era já partido de Sevilha para a fronteira de Aragão, quando +lhe chegou este recado em Villa Real, e disse que lhe prazia muito com +sua vinda, e que o aguardasse n'aquella villa, cá elle ia direitamente +para ella. E foi assim que chegou ahi el-rei a poucos dias, e falou o +cardeal a el-rei, presentes os do seu conselho, tudo o que lhe o papa +enviava dizer, assim do nojo que tomava pela guerra em que eram elle e +el-rei de Aragão, como do grão prazer que haveria se os visse postos em +paz. + +El-rei respondeu que a guerra que elle havia com el-rei de Aragão era +muito por sua culpa, e contou ao cardeal o que lhe adviera com o capitão +de suas galés na foz de Barrameda de San Lucar, como já ouvistes, e como +fizera saber tudo a el-rei de Aragão, e que nunca quizera tornar a ello +como devia, e demais, que mandara a França por todos seus inimigos, para +lhe fazer com elles guerra. + +O cardeal disse que queria ir falar a el-rei de Aragão sobre isto, e +el-rei disse que lhe prazia, e que de boamente haveria com elle paz, +fazendo el-rei de Aragão estas cousas: primeiramente, que lhe entregasse +aquelle cavalleiro, para d'elle fazer justiça onde elle quizesse, e que +lançasse fóra do reino o infante Dom Fernando, marquez de Tortosa, seu +irmão, e mais D. Henrique, conde de Trastamara, e todos os outros que +vieram em ajuda da guerra, e que lhe desse os castellos de Oriola e +Alicante, e outros logares que foram de Castella antigamente, e mais +pelas despezas que fizera na guerra lhe tornasse quinhentos mil florins. + +O cardeal, pero lhe isto parecessem cousas desarrazoadas, disse que lhe +prazia de tomar cargo de ir falar a el-rei de Aragão sobre ello; e +chegou a Aragão e contou a el-rei, por miudo, todas as cousas que lhe +el-rei dissera. + +El-rei de Aragão respondeu, dizendo assim:--Cardeal amigo, bem vêdes vós +que se elle houvesse vontade de haver comigo paz, que me não demandaria +taes cousas como me envia requerer; cá o cavalleiro não é direito que +lh'o entregue para o matar, pois não fez por quê; mas isto quero fazer, +mande-o accusar por direito, e se for achado que merece morte, eu lh'o +quero entregar preso, que o mande matar em seu reino. Ao que diz que +envie eu fóra de meu reino Dom Henrique, Dom Tello, e Dom Sancho, seus +irmãos, pois são seus inimigos, digo que me praz, se ficar com elle de +accordo, mas desterrar fóra do reino o infante Dom Fernando, meu +legitimo irmão, isto me parece estranho de pedir. Os logares que me +requere que lhe entregue, não tenho razão por quê, cá foram julgados a +este reino por sentença de el-rei Dom Diniz de Portugal, e pelo infante +Dom João de Castella, presentes muitos fidalgos de seu reino, e elle e +eu temos cartas de como foram partidos. As despezas que fez na guerra +não sou tido de lhe pagar, cá se não começou por minha vontade, antes me +pezou muito, e peza, de haver entre mim e elle tal desvairo; mas tanto +lhe farei, se houvermos paz, que havendo elle guerra com el-rei de +Granada ou de Bellamarin, que o quero ajudar seis annos com dez galés +armadas á minha custa quatro mezes cumpridos, e se mouros passarem, e +lhe convier pôr a praça, que o ajude com meu corpo e gentes, e ser com +elle no dia da batalha. De outra guisa, dizei que lhe requeiro, da parte +de Deus, que me não queira fazer guerra, pois justa razão não tem, e se +o de outra guisa fizer, deixo tudo na ordenança e justiça de Deus. + +Tornou o cardeal a el-rei de Castella, e contou-lhe isto que ouvistes, e +el-rei começou-se de queixar, dizendo que el-rei de Aragão não prezava a +guerra, nem se queria chegar para haver avença com elle, mas que d'esta +vez provaria cada um para quanto era, porém, por elle entender que lhe +prazia de haver paz, que elle se partia das outras cousas que demandava, +e que lhe desse os cinco logares que lhe requeria, e que lançasse de seu +reino seus irmãos e as gentes que eram com elles. + +O cardeal foi d'isto mui lêdo, tendo que pois se el-rei D. Pedro descia +do que á primeira dissera, que poderia aproveitar n'este tratamento, e +foi-se a Calatayud, onde el-rei de Aragão estava, e contou-lhe como +el-rei, por bem de paz, requeria sómente estas duas cousas. + +El-rei de Aragão houve accordo com os do seu conselho, e disse que as +gentes todas lançaria fóra mas que nenhuma villa nem castello não +entendia de dar de seu reino, e que el-rei de Castella devia ser bem +contente da primeira resposta. + +Quando o cardeal tornou com este recado, foi el-rei Dom Pedro mui +sanhudo, dizendo que tudo eram razões, pelo estorvar da armada que fazer +queria, e porém disse ao cardeal que lhe perdoasse, cá não entendia de +falar mais n'isto, mas continuar sua guerra o mais que pudesse. Ao +cardeal pezou muito de tal resposta, e não podendo mais fazer, cessou de +falar em ello. + +El-rei Dom Pedro mui sanhudo, por tomar logo alguma vingança, passou por +sentença contra o infante Dom Fernando, seu primo, e contra o conde Dom +Henrique, e outros cavalleiros muitos, por a qual razão os perdeu então +de todo ponto, e o peior d'isto: mandou matar a rainha Dona Leonor, sua +tia, madre do dito infante Dom Fernando, e Dona Joanna de Lara, mulher +de Dom Tello, seu irmão; nas quaes cousas cumpriu sua vontade, e não fez +muito de seu serviço. E depois que mandou fazer estas e outras cousas, +pôz seus fronteiros contra Aragão, e partiu de Almaçan, e veiu-se a +Sevilha. + + + + +*CAPITULO XXIV* + +_Como el-rei de Castella enviou pedir ajuda de galés a el-rei de +Portugal, e como partiu com sua frota por fazer guerra a Aragão_. + + +Sendo el-rei de Castella em tal desaccordo com el-rei de Aragão, e tendo +vontade de fazer grande armada contra seu reino em este anno de mil e +trezentos e noventa e sete, pero assaz de frota tivesse, assim de naus +como de galés, não foi d'isto ainda contente, e mandou dizer a el-rei de +Portugal, seu tio, por João Fernandez de Hinestrosa, seu camareiro-mór, +que lhe rogava que as dez galés, que lhe promettidas havia de dar em +ajuda contra Aragão, que as mandasse fazer prestes, cá lhe eram muito +cumpridoras. + +A el-rei prouve muito d'ello, e mandou logo armar de boas gentes dez +galés e uma galeota, e o seu almirante Misser Lançarote em ellas. + +El-rei como soube que as dez galés de Portugal eram prestes, partiu de +Sevilha no mez de abril meiado, com toda sua armada junta, a qual eram +oitenta naus de castello d'avante, e vinte e oito galés suas, e duas +galeotas e quatro lenhos, e mais tres galés d'el-rei de Granada, que lhe +enviara em ajuda a seu requerimento. + +E esteve el-rei em Aljazira quinze dias, aguardando pelas galés de +Portugal, e quando viu que não vinham, partiu para Cartagena, e alli +esperou todas suas naus; e foi sobre Guadamar, e tomou a villa e o +castello, e d'alli foi pela costa, combatendo alguns logares que tomar +não poude, e chegou ao rio de Ebro, a cerca de Tortosa, cidade de +Aragão, e alli chegaram as dez galés de Portugal, que lhe el-rei seu tio +enviava em ajuda. E prouve muito a el-rei com ellas, e a todos os da +frota, e tinha el-rei então, por todas, quarenta e uma galés, afóra as +fustas pequenas. + +E partiu el-rei d'alli com toda armada e chegou a Barcelona, uma vespera +de paschoa, onde estava el-rei de Aragão; e achou doze galés armadas, e +não as poude tomar, cá se puzeram todas a travez, junto com a cidade, e +d'alli as defendiam com muita bésteria e trons. + +E esteve el-rei ante Barcelona, com toda sua frota, tres dias, e d'alli +se foi á ilha de Iviça, e cercou uma boa villa que ha assim nome; e +tendo-a afincada com engenhos e bastidas, soube como el-rei de Aragão +tinha armadas quarenta galés com que estava na ilha de Mayorca, e queria +pelejar com elle. + +E el-rei de Castella, como isto soube, disse que lhe não cumpria estar +mais em terra, nem curar de cerco d'aquelle logar, pois todo o feito da +guerra havia de haver fim por aquella batalha, em que os reis haviam de +ser por seus corpos. E fez logo recolher toda sua gente á frota, e +metteu-se el-rei n'uma grande galé, que fôra dos mouros, que passava +quarenta cavallos sob sota, e mandou fazer n'ella tres castellos de +madeira, um na pôpa e outro na prôa, e um na metade, e pôz n'ella cento +e sessenta homens d'armas e cento e vinte bésteiros. E partiu el-rei, de +Iviça, com toda sua frota, e veiu-se a um logar que dizem Calpe, e alli +ancoraram as naus e galés a cerca de terra, traz uma alta penha que ahi +ha, de guisa que se não podiam ver, salvo de perto. + +As galés de Aragão appareceram d'alli á vella até duas leguas, pouco +mais ou menos, dentro no mar, e eram quarenta sem outros navios, e não +vinha el-rei n'ellas, cá os seus não quizeram, e ficou em Mayorca. Ellas +não haviam vista da frota de Castella, por aso d'aquella grande penha +que as amparava; e vinham todas á vella, n'esta ordenança: em meio +d'ellas eram duas galés grossas, com castellos feitos de que pelejassem, +e n'uma vinha o conde de Cardona, e n'outra Dom Bernardo de Cabrera, +almirante de Aragão; e duas galés de guarda vinham diante por grão +espaço das outras; e muitas gentes de pé e de cavallo, por terra, para +as ajudarem se mister fizesse. + +As duas galés, que vinham diante, como houveram vista das naus e frota +de Castella, calaram as vellas e tomaram os remos; as outras todas, como +isto viram, fizeram logo por aquella guisa por se ordenarem á sua +vontade; e sabendo parte das naus que ahi eram, de que houveram mui +grande receio, não as ousaram de attender no mar, e logo essa tarde, á +hora de vespera, se metteram todas no rio de Denia. + +El-rei Dom Pedro fez logo fazer todos os seus prestes, cuidando outro +dia de haver batalha; e o mar era tão sem vento que se não podia +aproveitar das naus; e havido seu conselho, em que eram desvairados +accordos, determinou que pois a armada dos imigos jazia em tal rio, que +por sua estreitura não podia pelejar com elles, que se fossem entanto +para Alicante, por vêr se quereriam depois pelejar. + +E el-rei como d'alli partiu com a sua frota, e as galés de Aragão +vieram-se lançar em Calpe, onde a frota de Castella jazera primeiro. + + + + +*CAPITULO XXV* + +_Como se partiu o almirante de Portugal com as dez galés, e como el-rei +Dom Pedro desarmou a frota; e de outras cousas_. + + +Havendo seis dias que el-rei de Castella estava em Alicante, e vendo que +a armada de Aragão não apparecia, partiu d'aquelle logar e veiu-se para +Cartagena. E alli disse o almirante de Portugal a el-rei, que seu +senhor, el-rei de Portugal, lhe mandára que estivesse com aquellas suas +dez galés tres mezes, onde quer que o elle mandasse, e que pois os tres +mezes eram já passados, que não ousaria mais de estar alli, nem passaria +mandado de seu senhor. + +El-rei Dom Pedro, quando isto ouviu, pezou-lhe muito, cá não quizera que +tão asinha partira, e não podendo fazer que se tivesse alli mais, +deu-lhe licença que se fosse. + +E como se as galés de Portugal partiram, accordou el-rei de deixar a +frota e ir-se por terra para Castella, e mandou as galés todas a +Sevilha, e deu logar ás náus que se partissem, e elle veiu-se para +Outerdesilhas, onde estava Dona Maria de Padilha, madre de seus filhos. + +As galés de Aragão, como souberam que el-rei de Castella desarmara a +frota, desarmaram elles trinta galés suas, e deixaram dez que andassem +pelo mar, por fazer damno a alguns navios de Portugal ou de Castella: e +foi assim que o fizeram a alguns, mas poucos porém, e em pequenos +navios. + +N'esta sesão, no mez de setembro, o conde Dom Henrique, e Dom Tello, seu +irmão, e alguns fidalgos e cavalleiros de Aragão até oitocentos de +cavallo, entraram por Castella por terra de Agreda, e Dom Fernando de +Castro e João Fernandez de Hinestrosa, e outros, que estavam na +fronteira da comarca de Almaçan, com uns mil e quinhentos de cavallo, +sairam a elles. E foi de tal guisa que pelejaram a cerca de Moncayo. E +foi vencido Dom Fernando de Castro, e morto João Fernandez de +Hinestrosa, e outros bons fidalgos, e preso Inigo Lopez de Orosco, e +outros. + +A el-rei Dom Pedro pezou d'isto muito, e seus inimigos cobraram grande +esforço; e mandou n'este anno matar em Carmona, onde estavam presos, Dom +João e Dom Pedro, seus irmãos, filhos d'el-rei Dom Affonso seu padre, e +de Dona Leonor Nunez de Guzman: era Dom Pedro de quartoze annos, e Dom +João de dezenove, moços innocentes que nunca lhe mal mereceram. + +E por aso d'estas mortes, e outras muitas que tendes ouvido, era el-rei +Dom Pedro tão mal quisto de todos, e havendo d'elle tamanho medo, que +por ligeira cousa se partiam d'elle, e se iam a Aragão para o conde Dom +Henrique. Assim como fez Diego Perez Sarmento, e Pero Fernandez de +Velasco, e outros, com muitas gentes que comsigo levaram; em tanto, que +o conde disse a el-rei de Aragão que se quizesse ordenar uma boa +companhia de gente, que elle entraria com elles por Castella, e que +entendia de não achar quem lhe puzesse a praça: e quizera el-rei, de +boamente, que se fizera, mas que levara o infante Dom Fernando, seu +irmão, a capitania d'elles, e o conde Dom Henrique não quiz, e por tanto +se não fez d'aquella vezada. + + + + +*CAPITULO XXVI* + +_Como o cardeal de Bolonha quizera tratar paz entre os reis e não poude, +e como as gentes d'el-rei Dom Pedro pelejaram com o conde e o +desbarataram_. + + +Tendo o cardeal de Bolonha, que andava em Aragão por avir estes reis, +como el-rei Dom Pedro havia perdida parte de sua gente n'aquella batalha +que houvera o conde Dom Henrique com Dom Fernando de Castro, e como se +alguns cavalleiros partiam d'elle, e se iam para Aragão, teve que, por +estas e outras razões, elle se chegaria a alguma boa avença para haver +paz com el-rei de Aragão, e fez saber a ambos os reis se lhes prazeria +de falar mais n'isto, e outorgou cada um que sim. + +O cardeal se veiu então para Tudella, que é do reino de Navarra, e +chegou ahi Guterre Fernandez de Toledo por procurador d'el-rei de +Castella, e Dom Bernardo de Cabrera, procurador d'el-rei de Aragão, e +estiveram por dias, e não se avieram. + +El-rei Dom Pedro, como isto soube, partiu de Sevilha para Leon, por +quanto lhe disseram que o conde Dom Henrique, e Dom Tello, e outros +senhores de Aragão, se juntavam para entrar por Castella; e d'alli +partiu, e veiu a Valhadolid, sabendo como já eram entradas aquellas +gentes em seu reino, e mataram os judeus de Najara e d'outros logares, e +roubavam as judiarias. E o conde chegou a Pancorvo e assocegou ahi +alguns dias, e depois se partiu para Najara, e el-rei foi allá com seu +poder, e pousou em um logar que chamam Acofra. + +E alli chegou a elle um clerigo de missa, natural de São Domingos da +Calçada, e contou-lhe que São Domingos lhe dissera, em sonhos, que +viesse a elle e lhe dissessé que fosse certo que não se guardando do +conde Dom Henrique, que elle o havia de matar por sua mão. E el-rei +cuidou que o clerigo lh'o dizia por induzimento, pero o clerigo dizia +que não, e mandou-o queimar ante si. + +E partiu el-rei uma sexta-feira para Najara, onde o conde estava, e elle +era fóra da villa com oitocentos de cavallo e dois mil homens de pé. E +mandara pôr o conde, ante a villa, n'um outeiro, uma tenda e um pendão; +e os d'el-rei que iam diante pelejaram com o conde e venceram-no, e +tomaram a tenda e o pendão, e morreram ahi parte dos seus. E partiu-se +el-rei, á tarde, para Acofra, onde tinha seu arrayal. + +E em outro dia, vindo para combater Najára, onde ficara o conde, achou +no caminho um escudeiro que vinha fazendo pranto por um seu tio que lhe +mataram, e el-rei houve-o por forte signal e não quiz lá ir, e tornou-se +para São Domingos da Calçada. + +E d'ahi a dois dias lhe disseram que era partido o conde para Aragão, +levando caminho de Navarra, e quizera-o el-rei seguir, e o cardeal lhe +conselhou que o não fizesse, cá assaz abundava deixarem-lhe suas villas +e irem-se. E el-rei mandou aos seus que estivessem quedos, e d'aquelle +logar ordenou seus fronteiros para os logares onde cumpria, e veiu-se +para Sevilha. + +Elle alli soube como um cavalleiro de Aragão, que chamavam Mateo +Mercedi, andava no mar com quatro galés fazendo damno a castelhanos e a +portuguezes, e fez armar cinco galés, e mandou n'ellas um seu bésteiro, +que diziam Zorzo, natural de Tartaria, que fosse em busca d'aquelle +corsario; e foi assim que o achou na costa da Berberia, onde pelejou com +elle, e desbaratou-o e trouxe as galés e elle preso a Sevilha: e el-rei +mandou-o matar, e muitos dos que vinham com elle. + +Mas ora deixemos el-rei em Sevilha, matando e prendendo quaes vos depois +contaremos, e digamos algumas outras cousas que este anno aconteceram em +Portugal, que nos parece que é bem que saibaes. + + + + +*CAPITULO XXVII* + +_Como el-rei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Ignez que fora sua +mulher recebida, e da maneira que em ello teve_. + + +Já tendes ouvido compridamente, onde falamos da morte de D. Ignez, a +razão por que a el-rei Dom Affonso matou, e o grande desvairo que entre +elle e este rei Dom Pedro, sendo então infante, houve por este aso. Ora, +assim é, que emquanto Dona Ignez foi viva, nem depois da morte d'ella +emquanto el-rei seu padre viveu, nem depois que elle reinou até este +presente tempo, nunca el-rei Dom Pedro a nomeou por sua mulher; antes +dizem que muitas vezes lhe enviava el-rei Dom Affonso perguntar se a +recebera, e honral-a-ia como sua mulher, e elle respondia sempre que a +não recebera, nem o era. + +E pousando el-rei, n'esta sesão, no logar de Cantanhede, no mez de +junho, havendo já uns quatro annos que reinava, tendo ordenado de a +publicar por mulher, estando ante elle Dom João Affonso conde de +Barcellos, seu mordomo-mór, e Vasco Martins de Sousa, seu chanceller, e +mestre Affonso das leis e João Esteves, privados, e Martim Vasques, +senhor de Goes, e Gonçalo Mendes de Vasconcellos, e João Mendes, seu +irmão, e Alvaro Pereira, e Gonçalo Pereira, e Diego Gomes, e Vasco Gomes +de Abreu, e outros muitos que dizer não curamos, fez el-rei chamar um +tabellião, e presentes todos, jurou aos Evangelhos, por elle +corporalmente tangidos, que sendo elle infante, vivendo ainda el-rei seu +padre, que estando elle em Bragança, podia haver uns sete annos, pouco +mais ou menos, não se accordando do dia e mez, que elle recebera por sua +mulher lidima, por palavras de presente, como manda a santa igreja, Dona +Ignez de Castro, filha que foi de D. Pedro Fernandez de Castro, e que +essa Dona Ignez recebera a elle por seu marido, por semelhaveis +palavras, e que depois do dito recebimento a tivera sempre por sua +mulher, até ao tempo de sua morte, vivendo ambos de commum, e fazendo-se +maridança qual deviam. + +E disse então el-rei Dom Pedro, que porquanto este recebimento não fôra +exemplado nem claramente sabido a todos os de seu senhorio, em vida do +dito seu padre, por temor e receio que d'elle havia, que porém elle, por +descarregar sua consciencia e dizer verdade, e não ser duvida a alguns, +que do dito recebimento tinham não boa suspeita se fôra assim ou não: +que elle dava de si fé e testemunho de verdade, que assim se passara de +feito como dito havia, e mandou áquelle tabellião, que presente estava, +que désse d'ello instrumentos a quaesquer pessoas que lh'os requeressem. +E por então não se fez mais. + + + + +*CAPITULO XXVIII* + +_Do testemunho que alguns deram no casamento de Dona Ignez, e das razões +que sobre ello propoz o conde Dom João Affonso_. + + +Passados trez dias que isto foi, chegaram a Coimbra Dom João Affonso +conde de Barcellos, e Vasco Martins de Sousa, e mestre Affonso das leis, +e no paço onde então liam de decretaes, sendo o estudo n'essa cidade, +presente um tabellião, chamaram duas testemunhas, a saber, Dom Gil, que +então era bispo da Guarda, e Estevam Lobato, criado d'el-rei, aos quaes +disseram que, por juramento dos Evangelhos, dissessem a verdade do que +sabiam em feito do casamento d'el-rei Dom Pedro com Dona Ignez. E +perguntado cada um per si áparte, o bispo disse primeiramente, que +andando elle com o dito senhor, e sendo então deão da Guarda, que +n'aquelle tempo, sendo el-rei infante, e Dona Ignez com elle, pousavam +na villa de Bragança, e que esse senhor o mandara chamar um dia á sua +camara, sendo Dona Ignez presente, e que lhe dissera que a queria +receber por sua mulher, e que logo, sem mais detença, o dito senhor +puzera a mão nas suas d'elle, e isso mesmo a dita Dona Ignez, e que os +recebera ambos por palavras de presente, como manda a santa igreja de +Roma, e que os vira viver de commum até á morte d'essa Dona Ignez; e que +isto poderia haver sete annos, pouco mais ou menos, mas que não se +accordava do dia e mez em que fôra: e d'este feito não disse mais. + +Semelhavelmente foi perguntado Estevam Lobato, e disse que sendo el-rei +infante e pousando em Bragança, que o mandara chamar á sua camara, e que +lhe dissera que o mandara chamar porque sua vontade era de receber Dona +Ignez, que presente estava, e que queria que fosse d'ello testemunha: e +que o deão da Guarda, que já ahi estava, e outrem não, tomara o dito +senhor por uma mão e ella por outra, e que então os recebera ambos por +aquellas palavras que se costumam dizer em taes desposorios, e que os +vira viver juntamente até ao tempo da morte d'ella; e que isto fôra em +um primeiro dia de janeiro, podia haver sete annos, pouco mais ou menos. + +Tanto que estes foram perguntados e escripto seu dito, segundo ouvistes, +fizeram logo juntar, que para isto já estavam presentes, Dom Lourenço, +bispo de Lisboa, e Dom Affonso, bispo do Porto, e Dom João, bispo de +Vizeu, e Dom Affonso, prior de Santa Cruz d'esse logar, e todos os +fidalgos antes nomeados, com outros muitos que não dizemos, e os +vigarios, e clerezia, e muito outro povo assim ecclesiastico como +secular, que se para isto alli juntou. E feito silencio, a bem escutar, +começou a dizer o conde Dom João Affonso: + +Amigos, deveis de saber que el-rei, nosso senhor que ora é, sendo +infante, passa já de uns sete annos, estando então na villa de Bragança, +sendo el-rei Dom Affonso, seu padre, vivo, recebeu por sua mulher +lidima, por palavras de presente, Dona Ignez de Castro, filha que foi de +Dom Pedro Fernandez de Castro, e ella isso mesmo recebeu a elle, e +sempre a o dito senhor teve depois por sua mulher, fazendo-se maridança +um ao outro, qual deviam, até ao tempo da sua morte. E porquanto estes +recebimentos e casamento não foi exemplado a todos os do reino em vida +do dito rei Dom Affonso, por medo e receio que seu filho d'elle havia, +casando de tal guisa sem seu mandado e consentimento, porém agora +el-rei, nosso senhor, por desencarregar sua alma e dizer verdade e não +ser duvida a alguns que d'este casamento parte não sabiam se fôra assim +ou não, fez juramento sobre os santos Evangelhos e deu de si fé e +testemunho de verdade, que foi d'esta guisa que o eu digo, segundo +vereis por um instrumento que d'isto tem feito Gonçalo Peres, tabellião, +que aqui está; e mais vereis o dito do bispo da Guarda e de Estevam +Lobato, que aqui estão, que foram presentes no dito casamento. + +Então lhe fez cumpridamente lêr todo o testemunho que ambos sobre ello +deram. + +«E porque vontade d'el-rei, nosso senhor (disse elle) é que isto não +seja mais encoberto, antes lhe praz que o saibam todos, por ser arredada +grande duvida que sobre ello adiante poderia recrescer, porém me mandou +que vos notificasse tudo isto, por tirar suspeita de vossos corações, e +ser a todos claramente sabido. Mas porque não embargando tudo o que eu +disse, e vos ora aqui foi lido e declarado, alguns poderão dizer que +tudo isto não bastava se ahi dispensação não houve, por o grão divido +que entre elles havia, sendo ella sobrinha d'el-rei nosso senhor, filha +de seu primo coirmão, porém me mandou que vos certificasse de tudo, e +vos mostrasse esta bulla que houve em sendo infante, em que o papa +dispensou com elle, que pudesse casar com toda mulher, posto que lhe +chegada fosse em parentesco, tanto e mais como Dona Ignez era a elle». + +Então publicaram perante todos uma letra do papa João XXII, que dizia em +esta guisa: + +«João, bispo, servo dos servos de Deus. Ao muito amado, em Christo, +filho infante Dom Pedro, primogenito do muito amado, em Christo nosso +filho mui claro rei de Portugal e do Algarve Affonso, saude e +apostolical benção. Se o rigor dos santos canones põe defeza e +interdicto sobre a copula do matrimonial ajuntamento, querendo que se +não faça entre aquelles que por algum divido de parentesco são +conjunctos, por guarda da publica honestidade; aquelle porém que é ás +vezes bispo de Roma, de poderio absoluto, em lugar de Deus dispensando, +pode por especial graça pôr temperança sobre tal rigor. E porém nós, +demovido ácerca de tua pessoa com especial favor, por algumas razões, de +que ao diante esperamos paz e folgança n'esses reinos, querendo +condescender a tuas preces e de el-rei Dom Affonso, teu padre, que por +suas letras por ti a nós humildosamente supplicou, para casares com +qualquer nobre mulher, devota á santa igreja de Roma, ainda que por +linha transversa de uma parte no segundo grau e d'outra no terceiro, +sejaes dividos e parentes, e isso mesmo ainda, que por razão de outras +duas linhas collateraes, seja embargo de parentesco ou cunhadia entre +vós no quarto grau, licitamente por matrimonio vos podeis ajuntar: nós, +por apostolica auctoridade, de especial graça, tudo tiramos e removemos, +dispensando comtigo e com aquella com que assim casares, de nosso +apostolico poderio, que a geração que de vós ambos nascer ser legitima +sem outro impedimento. Porém, nenhum homem seja ousado presumpçosamente +contra esta nossa dispensasão ir, de outra guisa seja certo na ira e +sanha do todo poderoso Deus, e dos bem aventurados São Pedro e São +Paulo, apostolos, incorrer. D'ante em Avinhão, duodecimo Kalendas de +março, do nosso pontificado anno nono.» + +Acabada de lêr assim esta letra, disse então o conde, presente elles +todos, que elle por guarda e em nome dos infantes Dom João, e Dom Diniz, +e Dona Beatriz, filhos que eram dos ditos senhores, queria tomar sendos +instrumentos para cada um d'elles, e requereu ao tabellião que assim +lh'os desse. + +Partiram-se então todos para as pousadas, não minguando a cada um +razões, que fossem entre si falando sobre esta historia. + + + + +*CAPITULO XXIX* + +_Razões contra isto, de alguns que ahi estavam, duvidando muito neste +casamento_. + + +Acabadas razões que ouvistes, ditas, presentes letrados e outro muito +povo, aquelles que, de chão e simples entender eram, não esquadrinhando +bem o tecimento de taes cousas, ligeiramente lhe deram fé, outorgando +ser verdade tudo aquillo que alli ouviram. Outros, mais subtis de +entender, letrados e bem discretos, que os termos de tal feito mui +delgado investigaram, buscando se aquillo que ouviam podia ser verdade, +ou pelo contrario, não receberam isto em seus entendimentos +parecendo-lhe de tudo ser muito contra razão. Cá porque o crêr da cousa +ouvida está na razão e não na vontade, porende o prudente homem que tal +cousa ouve, que sua razão não quer conceber, logo se maravilha, +duvidando muito. E porém, foram assaz, dos que alli estiveram, de tal +historia não mui contentes, vendo que aquillo que lhe fôra proposto +nenhum alicerce tinha de razão. E se alguns perguntar quizerem por que +taes presumiam ser tudo fingido, as razões d'elles, que nos bem claras +parecem, sejam resposta á sua pergunta, dizendo os que tinham a parte +contraria, contra aquelles que defendiam ser tudo verdade, suas razões, +n'esta maneira. + +Não quizeram consentir os antigos que nenhum razoado homem, sendo em sua +saude e inteiro siso, se pudesse d'elle tanto assenhorear o +esquecimento, que toda a cousa notavel passada, sempre d'ella não +houvesse relembrança. + +Allegando, aquelle claro lume da philosophia, Aristoteles, em um breve +tratado que d'isto compoz, o porque de todas causas presentes, ou que +são por vir, não cumpre haver nenhuma memoria; ergo, das causas +passadas, que já aconteceram, era necessaria a relembrança: dizendo que +a memoria é dita, quando a imagem vista, ou ouvida, de alguma causa do +homem, é sempre presente na virtude memorativa, e reminiscencia é, +quando alguma causa, feita ou ouvida, saiu da virtude memorativa e +depois torna a lembrar, por vêr outra semelhante causa. + +Assim como, se eu casei, ou me foi feita uma gram mercê, ou fui chamado +a um gram conselho em um dia de paschoa ou janeiro, ou outro dia +assignado do anno, e depois me vem a esquecer, não o tendo sempre +presente na memoria:--vendo depois outra bôda, ou alguma das causas que +me advieram, em semelhante dia, lembrar-me-ha então que casei em dia de +paschoa, ou outra qualquer cousa que me adveiu, se vejo alguma cousa +semelhante, ou m'a perguntarem. Porque convém que me lembre o dia e a +cousa, posto que me esqueça o conto dos annos ou dos dias em que foi. Ou +diziam que tornava ainda a lembrar por outra contraria maneira, assim +como, se eu casei em dia de paschoa e depois de alguns annos morreu-me a +mulher em outro dia tal,--ou houve gram prazer em dia de natal, e depois +gram nojo em semelhante dia,--necesario é que me lembre o prazer +primeiro, posto que me o conto dos dias esqueça, porque é cousa que não +causa disposição na memoria. Porém, o dia assignado em que me tal cousa +adveiu, nunca se tira, de todo o ponto, que depois não torne a lembrar +cumpridamente, porque tal dia é da essencia da relembrança, e o processo +do tempo, não. E porém, não é cousa que possa ser, estando homem em sua +saude, que lhe cousa notavel esqueça, posto que lhe o conto dos dias +esqueça, que é transitorio, e não da essencia do lembramento. + +Pois como pode cahir em entendimento de homem, diziam elles, que um +casamento tão notavel como este, e que tantas razões tinha para ser +lembrado, houvesse, em tão pequeno espaço, de esquecer, assim áquelle +que o fez, como os que foram presentes, não lhe lembrando o dia nem o +mez? + +Certamente, buscada a verdade d'este feito, a razão n'isto não consente; +cá, deixadas as razões, que ahi havia, para se el-rei lembrar bem quando +fôra, assim como a tomada de Dona Ignez e o grande desvairo que por tal +azo houve com seu padre, dês-ahi o grande tempo que tardou antes que o +fizesse, e a gram deliberação com que se moveu a o fazer, e o segredo em +que o poz áquelles que dizem que foram presentes; deixando tudo isto, +sómente por ser feito em dia de janeiro que é primeiro dia do anno, +segundo disse Estevão Lobato, demais, festa tão assignada no paço do +infante e por todo o reino, isto só era bastante assaz para ser lembrado +o dia em que a recebera, posto que longo processo de annos houvesse. + +Outra razão notavam ainda a tudo o que ouviram parecer fingido, dizendo +que, se el-rei dava em seu testemunho que, com temor e receio de seu +padre, não ousara descobrir este casamento em sua vida d'elle, quem lhe +tolhera, depois que el-rei morreu, que o logo não notificara, sendo em +seu livre poder, pois lhe tanto prazia de ser sabido? + +E mais diziam, que este feito queria parecer semelhante a el-rei Dom +Pedro de Castella, que posto que, elle mandasse matar Dona Branca, sua +mulher, em quanto Dona Maria de Padilha foi viva, que elle tinha por sua +manceba, nunca lhe nenhum ouviu dizer que ella fosse sua mulher, e +depois que ella morreu, em umas côrtes que fez em Sevilha, alli +declarou, perante todos, que primeiro casára com ella que com Dona +Branca, nomeando quatro testemunhas que foram presentes, os quaes por +juramento certificaram logo que assim fôra como elle dizia, e desde +então mandou elle que lhe chamassem rainha, posto que já fosse morta, e +aos filhos infantes; e fez logo a todos fazer menagem, a um filho que +d'ella houvera, que chamavam Dom Affonso, que o tomassem por rei depoz +sua morte. + +E porém diziam os que estas e outras razões secretamente entre si +falavam, que a verdade não busca cantos, muito encoberta andava em taes +feitos. Assim que, porque o entender é disposto sempre para obedecer á +razão, muitos que então isto ouviram deixaram de crer o que antes criam, +e pegaram-se a este arrazoado; mas nós, que não por determinar se foi +assim ou não, como elles disseram, mas sómente por ajuntar em breve o +que os antigos notaram em escripto, puzemos aqui parte de seu arrazoado, +deixamos cargo, ao que isto lêr, que d'estas opiniões escolha qual +quizer. + + + + +*CAPITULO XXX* + +_Como os reis de Portugal e de Castella fizeram entre si avença, que +entregassem, um ao outro, alguns que andavam seguros em seus reinos_. + + +Porque o fructo principal da alma, que é a verdade, pela qual todas as +cousas estão em sua firmeza,--e ella ha de ser clara, e não fingida, +mórmente nos reis e senhores, em que mais resplandece qualquer virtude +ou é feio o seu contrario,--houveram as gentes por mui grão mal, um +muito de aborrecer escambo que este anno entre os reis de Portugal e +Castella foi feito: em tanto que, posto que escripto achemos, de el-rei +de Portugal, que a toda a gente era mantenedor de verdade, nossa tenção +é não o louvar mais, pois contra seu juramento foi consentidor em tão +feia cousa como esta. + +Onde assim adveiu, segundo dissemos, que na morte de Dona Ignez, que +el-rei Dom Affonso pae de el-rei Dom Pedro de Portugal, sendo então +infante, mandou matar em Coimbra, foram mui culpados pelo infante, Diogo +Lopes Pacheco, e Pero Coelho, e Alvaro Gonçalves, seu meirinho-mór, e +outros muitos que elle culpou; mas assignadamente contra estes tres teve +o infante mui grande rancura. E fallando verdade, Alvaro Gonçalves e +Pero Coelho eram n'isto assaz de culpados, mas Diogo Lopes, não, porque +muitas vezes mandara perceber o infante, por Gonçalo Vasques, seu +privado, que guardasse aquella mulher da sanha d'el-rei seu padre. + +Pero, depois de tudo isto, foi el-rei de accordo com o infante seu +filho, e perdoou o infante a estes e a outros em que suspeitava, e isso +mesmo perdoou el-rei, aos do infante, todo o queixume que d'elles havia, +e foram, sobre isto, grandes juramentos e promessas feitas, como +cumpridamente tendes ouvido: e viviam assim seguros, Diogo Lopes e os +outros, no reino, em quanto el-rei Dom Affonso viveu. + +E sendo el-rei doente, em Lisboa, da dôr de que se então finou, fez +chamar Diogo Lopes Pacheco e outros, e disse-lhe que elle sabia bem que +o infante Dom Pedro, seu filho, lhe tinha má vontade, não embargando as +juras e perdão que fizera, da guisa que elles bem sabiam; e que, +porquanto se elle sentia mais chegado á morte que á vida, que lhes +cumpria, de se pôrem em salvo fóra do reino, porque elle não estava já +em tempo de os poder defender d'elle, se lhe algum nojo quizesse fazer. +E elles se partiram logo de Lisboa, e se foram para Castella, andando +então o infante Dom Pedro ao monte, além do Tejo, em uma ribeira que +chamam de Canha, que são oito leguas da cidade: e el-rei de Castella os +recebeu de bom geito, e haviam d'elle bem fazer, e mercê, vivendo em seu +reino seguros e sem receio. + +E depois que o infante Dom Pedro reinou, deu sentença de traição contra +elles, dizendo que fizeram contra elle, e contra seu estado, cousas que +não deviam de fazer; e deu os bens de Pero Coelho a Vasco Martins de +Sousa, rico-homem, e seu chanceller-mór, e os de Alvaro Gonçalves e +Diogo Lopes a outras pessoas, como lhe prouve. E fez el-rei, em alguns +d'estes bens, tantas e taes bemfeitorias, e outras repartio em tantas +partes, que depois que elle morresse nunca os mais podessem haver +aquelles cujos foram, nem tirar áquelles a que os assim dava. + +Semelhavelmente, fugiram de Castella, n'esta sesão, com temor de el-rei, +que os mandava matar, Dom Pedro Nunez de Guzman, adeantado-mór da terra +de Leão, e Mem Rodrigues Tenorio, e Fernão Godiel de Toledo, e Fernão +Sanchez Calderon, e viviam em Portugal, na mercê de el-rei Dom Pedro, +crendo não receber damno, tambem os portuguezes como os castelhanos, +porque razoada fé lhes dera ousado acoutamento nas fraldas da segurança, +a qual--não bem guardada pelos reis--fizeram calladamente uma tal +avença, que el-rei de Portugal entregasse presos, a el-rei de Castella, +os fidalgos que em seu reino viviam, e que elle, outrosim, lhe +entregaria Diogo Lopes Pacheco, e os outros ambos que em Castella +andavam. E ordenaram que fossem todos presos em um dia, por que a prisão +de uns não fosse avisamento dos outros, e que aquelles que levassem +presos os castelhanos até ao extremo do reino, recebessem os portuguezes +que trouxessem de Castella. + + + + +*CAPITULO XXXI* + +_Como Diogo Lopes Pacheco escapou de ser preso, e foram entregues os +outros, e logo mortos cruelmente_. + + +Feito aquelle tracto d'esta maneira, foram em Portugal presos os +fidalgos que dissemos. + +E n'aquelle dia que o recado de el-rei de Castella chegou ao lugar, onde +Diogo Lopes e os outros estavam, para haverem de ser presos, aconteceu +que essa manhã muito cedo fôra Diogo Lopes á caça dos perdigões. E +presos Pero Coelho e Alvaro Gonçalves, quando foram buscar Diogo Lopes, +acharam que não era no logar, e que se fôra pela manhã á caça. + +Cerraram então as portas da villa, que nenhum lhe levasse recado para o +perceber, e attendiam-no assim, estando para o tomar á vinda. + +Um pobre manco, que sempre em sua casa havia esmola quando Diogo Lopes +comia, e com quem algumas vezes jogueteava, viu estas cousas como se +passaram, e cuidou de o avisar no caminho antes que chegasse ao logar, e +soube escusadamente contra qual parte Diogo Lopes fôra, e chegou ás +guardas da porta que o deixassem sair fôra, e elles, de tal homem +nenhuma cousa suspeitando, abrindo a porta o deixaram ir. + +Andou elle, quanto poude, por onde entendeu que Diogo Lopes viria, e +achou-o já vir com seus escudeiros, mui desegurado das novas que lhe +elle levava. E dizendo o pobre a Diogo Lopes que lhe queria falar, +quizera-se elle escusar de o ouvir, como quem pouco suspeitava que lhe +trazia tal recado. + +Afincando-se o pobre que o ouvisse, contou-lhe então áparte como uma +guarda de el-rei de Castella, com muitas gentes, chegaram a seu paço +para o prender, depois que os outros foram presos, e isso mesmo de que +guisa as portas eram guardadas, por que nenhum saisse para o avisar. + +Diogo Lopes, como isto ouviu, bem lhe deu a vontade o que era, e medo de +morte o fez torvar todo, e pôr em grão pensamento. + +E o pobre lhe disse, quando o assim viu:--Crê-de-me de conselho, e +ser-vos-ha proveitoso: apartae-vos dos vossos, e vamos a um valle não +longe d'aqui, e alli vos direi a maneira como vos ponhaes em salvo. + +Então disse Diogo Lopes aos seus que andassem por alli a perto caçando, +cá elle só queria ir com aquelle pobre a um valle, onde lhe dizia que +havia muitos perdigões. + +Fizeram-no assim, e foram-se ambos áquelle logar, e alli lhe disse o +pobre, se escapar queria, que vestisse os seus saios rotos, e assim, de +pé, andasse quanto podesse até á entrada que ia para Aragão, e que com +os primeiros almocreves que achasse, se mettesse de soldada, e assim, +com elles de volta, andasse seu caminho, e por esta guisa, ou em um +habito de frade, se o depois haver pudesse, se puzesse em salvo no reino +de Aragão, cá por força havia de ser buscado pela terra. + +Diogo Lopes tornou seu conselho, e foi-se de pé, d'aquella maneira, e o +pobre não tornou logo para a villa. Os seus aguardaram por mui grande +espaço; e vendo que não vinha, foram-no buscar contra onde elle fôra: e +andando em sua busca, acharam a besta andar só, e cuidaram que caira +d'ella, ou lhe fugira, e buscaram-no com maior cuidado. + +Foi a detença, em isto, tão grande, que se fazia já muito tarde, e vendo +como o achar não podiam, levaram a besta e foram-se ao lugar, não +sabendo que cuidassem em tal feito. E quando chegaram, e viram de que +guisa o aguardavam, e souberam da prisão dos outros, ficaram mui +espantados, e logo cuidaram que era fugido: e perguntados por elle, +disseram que caçando só, se perdera d'elles, e que buscando-o acharam a +besta e não a elle, e que n'aquillo foram detidos até áquellas horas, e +que não sabiam que cuidassem, senão que jazia em algum logar morto. Os +que cuidado tinham de o prender, foram-no buscar por desvairadas partes. +E do que lhe adveiu no caminho, e como passou por Aragão, e se foi a +França para o conde Dom Henrique, e de que guisa lhe fez roubar os +campos de Avinhão, e de outras cousas que lhe advieram, não curamos de +dizer mais, por não sair fóra de proposito. + +Quando el-rei de Castella soube que Diogo Lopes não fôra tomado, houve +grão queixume e não poude mais fazer: então enviou Alvaro Gonçalves e +Pero Coelho, bem presos e arrecadados, a el-rei de Portugal, seu tio, +segundo era ordenado entres elles. E quando chegaram ao extremo, acharam +ahi Mem Rodriguez Tenorio, e os outros castelhanos, que lhe el-rei Dom +Pedro enviava. E alli dizia depois Diogo Lopes, falando n'esta historia, +que se fizera o troco de burros por burros. + +E foram levados a Sevilha, onde el-rei então estava, aquelles fidalgos +que já nomeámos, e alli os mandou el-rei matar a todos. + +A Portugal foram trazidos Alvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a +Santarem, onde el-rei era. El-rei, com prazer de sua vinda, porém mal +magoado porque Diogo Lopes fugira, os saiu fóra a receber, e, sanha +cruel, sem piedade os fez por sua mão metter a tormento, querendo que +lhe confessassem quaes foram na morte de Dona Ignez culpados, e que era +que seu padre tratava contra elle, quando andavam desavindos por azo da +morte d'ella. E nenhum d'elles respondeu a taes perguntas cousa que a +el-rei prouvesse. + +E el-rei, com queixume, dizem que deu um açoute no rosto a Pero Coelho, +e elle se soltou então contra el-rei em deshonestas e feias palavras, +chamando-lhe traidor, á fé perjuro, algoz e carniceiro dos homens. E +el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre, e azeite para o +coelho, enfadou-se d'elles, e mandou-os matar. + +A maneira de sua morte, sendo dita pelo miudo, seria mui estranha e crua +de contar, cá mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a +Alvaro Gonçalves pelas espaduas. E quaes palavras houve e aquelle que +lh'o tirava, que tal officio havia pouco em costume, seria bem dorida +cousa de ouvir. Emfim, mandou-os queimar. E tudo feito ante os paços +onde elle pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer. + +Muito perdeu el-rei de sua boa fama por tal escambo como este, o qual +foi havido, em Portugal e em Castella, por mui grande mal, dizendo todos +os bons que o ouviam, que os reis erravam mui muito indo contra suas +verdades, pois que estes cavalleiros estavam, sobre segurança, acoutados +em seus reinos. + + + + +*CAPITULO XXXII* + +_De algumas cousas que el-rei Dom Pedro de Castella mandou fazer, e como +fez paz com el-rei de Aragão entrando em seu reino_. + + +Nós deixámos, antes d'isto, el-rei Dom Pedro de Castella em Sevilha, +prendendo e matando como lhe vinha á vontade, e contámos a morte de +alguns que depois matou, com outras cousas que se, em Portugal, em esta +sesão passaram, no anno de trezentos e noventa e oito. + +E depois que se fez aquelle feio escambo dos cavalleiros de um reino ao +outro, segundo ouvistes em seu logar, mandou el-rei Dom Pedro matar de +mui cruel morte Dom Pero Nunez de Guzman, adiantado-mór da terra de +Leão, que era um d'elles; e mandou matar Guterre Fernandez de Toledo, +seu reposteiro-mór, e trouxeram-lhe a cabeça d'elle. E Gomez Carrilho, +filho de Pero Rodriguez Carrilho, indo mui ledo em uma galé, em que +el-rei fingiu que o mandava para lhe entregarem a villa de Aljazira, +para estar ahi por fronteiro, e o patrão cortou-lhe a cabeça, que mandou +a el-rei, e deitou-lhe o corpo ao mar, e foi presa a mulher e os filhos +d'este Gomez Carrilho. + +E mandou matar um cavalleiro de Castella, que chamavam Diego Guterrez de +Ceballos. E deitou fóra do reino Dom Vasco, arcebispo de Toledo, depois +que matou seu irmão Guterre Fernandez, e mandou-lhe tomar quanto tinha, +que sómente um livro não levou comsigo, nem outra roupa senão a que +tinha vestida, e foi-se para Portugal, e morreu em Coimbra. + +Mandou prender Dom Samuel Levi, seu thesoureiro-mór, e grão privado do +seu conselho, e quantos parentes tinha pelo reino, em um dia; e tomou a +elle, e aos outros todos, quanta riqueza lhe achou, e foram-lhe dados +grandes tormentos, e nas taracenas de Sevilha preso morreu. + +Em este anno, cuidou el-rei Dom Pedro haver guerra com el-rei Vermelho +de Granada, que diziam que tinha a parte de el-rei de Aragão. Este rei +Vermelho lançara rei Mafoma fóra do reino, mas logo fez preitesia com +el-rei Dom Pedro, que o não turvasse com el-rei Mafoma seu inimigo, pero +que houvesse el-rei gram sanha d'elle, porque lhe em tal tempo quizera +fazer guerra. + +E isto assocegado, no mez de janeiro de tresentos e noventa e nove, +foi-se el-rei a Almançan, com muitas companhas que comsigo levava, para +entrar no reino de Aragão. E foram d'esta vez em sua ajuda seiscentos +portuguezes, e ia por capitão d'elles o mestre de Aviz, Dom Martim de +Avelal, bom fidalgo e muito honrado, e de que se todos tiveram por +contentes. E ganhou el-rei de Castella, em Aragão, d'esta vez, alguns +logares. + +E o cardeal de Bolonha, legado do papa, falou com el-rei que desse logar +a se não espargir tanto sangue como estava prestes, cá el-rei de Aragão, +com todo seu poder, estava disposto para pelejar com el-rei de Castella, +cá via que por guerra guerreada não podia igualar com elle. + +E tinha el-rei de Castella, então, seis mil de cavallo e muita gente de +pé. E receiando-se de el-rei Vermelho de Granada, que lhe diziam que +tinha feito liga com el-rei de Aragão para lhe fazer guerra, se mais +durasse aquella contenda, pela qual se desencaminharam muito seus +feitos, fez paz com el-rei de Aragão, fingida e contra sua vontade; e +foi que el-rei de Aragão enviasse fóra do reino o conde Dom Henrique, e +Dom Tello, e Dom Sancho, seus irmãos, e os cavalleiros e escudeiros de +Castella que com elles estavam em Aragão,--e que el-rei de Castella lhe +tornasse todos os logares que lhe tomados tinha de seu reino, e d'ahi em +diante fossem amigos. E foram d'isto feitas escripturas, e apregoada a +paz no arrayal, e prouve d'isto muito a quantos alli eram, porque a +guerra que faziam era muito contra sua vontade. + + + + +*CAPITULO XXXIII* + +_De algumas entradas que el-rei este anno fez no reino de Granada, e +como el-rei Vermelho se veiu pôr em seu poder, cuidando de ser seguro, e +el-rei o mandou matar_. + + +Como el-rei veiu de Aragão e chegou a Sevilha, juntou suas gentes por +fazer guerra a el-rei Vermelho de Granada, dizendo que queria ajudar +el-rei Mafoma, e que por seu azo fizera paz com Aragão contra sua +vontade. + +E veiu-se para elle el-rei Mafoma, com quatrocentos de cavallo, e entrou +em companha de el-rei. E chegou el-rei a Antequera e não a poude tomar, +e tornou-se, e mandou entrar os seus na veiga de Granada, que eram seis +mil de cavallo, e venceram os christãos duas pelejas, e foram dos mouros +mortos e captivos, e foi preso o mestre de Calatrava, e Sancho Perez +d'Ayala, e outros. + +E cuidando el-rei Vermelho que faria prazer a el-rei Dom Pedro, fez +grande gasalhado ao mestre e aos outros, cuidando de amansar a vontade +de el-rei; e soltou o mestre, e alguns cavalleiros dos outros, e deu-lhe +de suas joias, e enviou-os a el-rei. + +Elle agradeceu-lhe mui pouco tão grande presente, mas a poucos dias fez +outra entrada, e ganhou quatro logares de mouros, e pôz recado em elles, +e tornou-se a Sevilha. + +Os mouros combateram um d'estes logares, que chamam Sagra, e furando o +muro e entrando-o por força, preitejou-se Fernão del Gadilho, que o +tinha, e foi posto em salvo, e veiu-se para el-rei: e el-rei mandou-o +matar. + +E deu el-rei volta, outra vez, em Granada, e ganhou outros logares, e +tornou-se a Sevilha. + +Os mouros aggravaram-se todos, dizendo a el-rei Vermelho que, por a +contenda que elle havia com el-rei Mafoma, entrára já el-rei trez vezes +na terra, e que se perdia o reino de Granada. + +El-rei houve d'isto receio, e vendo que não podia levar adiante aquillo +que começara, houve conselho de se vir pôr em poder e mercê d'el-rei de +Castella, e que el-rei, dês que o visse, haveria piedade d'elle, e teria +com elle alguma boa maneira. E partiu logo de Granada, com quatro centos +de cavallo e duzentos de pé, e chegaram ao alcaçar de Sevilha, onde +el-rei estava, e fizeram-lhe grandes referencias, e el-rei os recebeu +mui bem. + +Então lhe fallou um mouro por el-rei de Granada, dizendo entre outras +cousas, que bem se poderia defender de el-rei Mafoma, que era seu +contrario, mas d'elle, que era seu rei e senhor, não se podia defender, +e que, havido conselho sobre isto, o melhor accordo que achara era +pôr-se em seu poder e mercê, á qual pedia que tomasse aquelle feito em +sua mão, e que o punha em seu juizo, e que, se sua vontade era de outra +guisa, fosse sua mercê de mandar pôr, elle e os seus, além mar em terra +de mouros. + +El-rei respondeu ao mouro que lhe prazia muito da vinda de el-rei e dos +seus, e que, sobre a contenda d'el-rei Mafoma, elle teria em ello boa +maneira como se livrasse. + +El-rei Vermelho, e os outros fizeram por isto grão reverencia a el-rei, +tendo que seu feito estava bem, e foram-se mui alegres para as pousadas +que lhe el-rei mandou dar na judiaria da cidade. + +A cubiça, que é raiz de todo mal, fez logo saber a el-rei como el-rei +Vermelho trazia muito haver, em aljofar e pedras e joias, e houve grão +desejo de cobrar tudo. E mandou ao mestre de São Thiago que o convidasse +n'outro dia para a ceia, e os maiores honrados que com elle vinham: e +foram cear com elle até cincoenta. + +Acabada a ceia, estando seguros e nenhum ainda levantado, chegou Martim +Lopez, com homens armados, e prendeu el-rei e todos os outros. E foi +logo buscado el-rei, e acharam-lhe tres pedras balaches mui nobres e mui +grandes, e acharam a um mouro pequeno, em um correio, setecentas e +trinta pedras balaches, e a um seu pagem cincoenta grãos de aljofar, +grossos como avelãs esburgadas, e a outro moço, tanto aljofar, grado +como hervanços, em que poderia haver uma oitava de alqueire, e aos +outros, a quem achavam aljofar, a quem pedras, e tudo levaram a el-rei. + +E n'essa hora foram outros homens de armas á judiaria, e prenderam todos +os outros mouros; e todas as dobras e joias, que lhe acharam, tudo +levaram a el-rei. + +E foi el-rei levado preso, e todos os seus á taracena, e d'ahi a dois +dias foi tirado a um campo, que dizem Tablada, elle e trinta e sete +cavalleiros mouros, e alli os mandou el-rei matar todos. E foi el-rei +Dom Pedro o primeiro que deu uma lançada a el-rei Vermelho, que estava +em cima de um asno, vestido em uma saia de escarlata, e disse:--Toma, +porque me fizeste fazer má preitesia com el-rei de Aragão.--E o mouro +respondeu por sua aravia, dizendo:--Pequena cavalgada fizestes. + +E enviou el-rei Dom Pedro a cabeça de el-rei Vermelho, e dos outros +trinta e sete, a el-rei Mafoma de Granada, e elle enviou-lhe alguns +captivos. + +E posto que el-rei Dom Pedro dissesse muitas razões a colorar este +feito, por mostrar que o fizera sem encargo de sua consciencia, todos os +seus o tiveram por mui grão mal, e lhes prouvera muito de não ser assim. + + + + +*CAPITULO XXXIV* + +_Das avenças que el-rei de Castella fez com el-rei de Aragão, entrando +em seu reino, e como as depois não quiz guardar_. + + +El-rei Dom Pedro, que vontade tinha de tornar outra vez á guerra de +Aragão, dizendo que a paz que fizera fôra contra sua vontade, por receio +de el-rei Vermelho, fez liga com el-rei de Navarra, que fossem amigos e +se ajudassem, e mandou aos seus que se percebessem: e nenhum não pensava +que fosse contra Aragão, com que havia paz. + +E encobertamente, antes que o el-rei soubesse, por lhe tomar algumas +villas, em tanto entrou em Aragão, e tomou logo seis castellos, e cercou +a villa de Calatayud. E tendo o cerco sobre ella, ganhou treze castellos +d'essa comarca. + +El-rei de Aragão, que estava em cabo de seu reino, quando isto soube, +ficou espantado, e mandou a Provença, onde andava o conde D. Henrique e +seus irmãos e os outros fidalgos de Castella desterrados do reino, +fazendo guerra, que o viessem ajudar, e que lhes daria grandes soldos e +os herdadaria em seu reino. + +Em tanto foi assim afincada a villa de Calatayud, que a tomou el-rei Dom +Pedro por preitesia, e deixou recado em ella, e tornou-se a Sevilha. + +E receiando-se d'el-rei de França, por a morte da rainha Dona Branca sua +mulher, que mandara matar, fez então sua mui firme amisade com el-rei +Duarte de Inglaterra, e com o principe de Galles, seu filho, que se +ajudassem contra quaesquer outros. E entrou logo em Aragão, e chegou a +Calatayud, que estava já por elle, e ganhou por ahi derredor sete +logares. + +E quando entrou por força Carinana, mandou matar quantos no logar havia, +que não ficou sómente um. E a razão por que dizem que os assim mandou +todos matar, foi porque elle tendo-a cercada e não a podendo tomar, +alçou o cerco de sobre ella, e os da villa, quando os viram assim +partir, começaram de bradar do muro dizendo seus doestos e maldições, +cada um como lhe prazia; e el-rei teve d'isto grande melancolia, e +mandou tornar suas gentes sobre o logar, e tão rijamente lhe deu o +combate que a entrou logo por força; e por isto mandou fazer aquella +grande mortandade. + +E cercou mais a cidade de Tarraçona e tomou-a. E tendo-a cercada, chegou +o mestre de São Thiago de Portugal, Dom Gil Fernandes de Carvalho, com +quinhentos cavalleiros e escudeiros mui bem guisados, em sua ajuda, que +lhe enviára el-rei Dom Pedro, seu tio. Entre os quaes ia Martim Vasques +de de Goes, e Gonçalo Mendes de Vasconcellos, e Martim Affonso de Mello, +e Alvaro Gonçalves de Moura, e Nuno Viegas, o velho, e Rui Vasques +Ribeiro, e outros muitos e bons fidalgos. + +E d'alli partiu el-rei, e tomou Turiel e onze logares outros, e tomou +mais a cidade de Segorbe, e a villa de Monvedro, e veiu-se á cidade de +Valencia. E havendo uns oito dias que el-rei estava sobre ella, soube +que el-rei de Aragão e o infante Dom Fernando, seu irmão, e o conde Dom +Henrique, e Dom Tello, e Dom Sancho, e as outras gentes por que el-rei +de Aragão mandara, eram todos juntos para vir pelejar com elle, e que +seriam trez mil de cavallo. + +El-rei Dom Pedro, que vontade não havia de pelejar com elles, partiu-se +de Valencia, e foi-se para Monvedro. E el-rei de Aragão chegou até duas +leguas do logar, e poz sua batalha e não achou com quem pelejar, e +tornou-se. E da ribeira de Monvedro viu el-rei Dom Pedro levar quatro +galés suas a seis de Aragão, que as tomaram, e pesou-lhe muito d'ello. + +Alli se começaram de tratar avenças entre os reis de Aragão e de +Castella, a saber, que casasse el-rei Dom Pedro com Dona Joanna, filha +de el-rei de Aragão, e Dom João, primogenito de Aragão com Dona Beatriz, +filha de el-rei Dom Pedro, e isto com certas condições. E alli onde se +juntaram para firmar as avenças, foi requerido el-rei Dom Pedro, e disse +que se não achava n'aquella preitesia, e que o não requeressem mais, e +d'alli se veiu para Sevilha. + +E dizia el-rei Dom Pedro que, n'estes tractos, fôra fallado +secretamente, que pois elle casava com filha de el-rei de Aragão, e +tomava com elle tal divido, que matasse ou prendesse primeiro o infante +Dom Fernando, seu irmão, e o conde Dom Henrique, que eram seus inimigos, +e que pois o não fizera, que não curava de suas preitesias. + +E bem parece isto ser verdade, porque el-rei de Aragão, a poucos dias, +mandava prender, depois que comeu, o infante Dom Fernando, seu irmão, +que tivera convidado esse dia, porque diziam que se queria ir, com as +gentes que tinha, para a guerra de França. E porque se não deu á prisão, +foi logo morto, e Luiz Manuel, e Diogo Perez Sarmento com elle. E todos +os do reino lh'o tiveram a mui grão mal, por ser seu irmão, e mui nobre +senhor como era. + +E depois fez fala el-rei de Aragão com el-rei de Navarra, que matassem o +conde Dom Henrique, e fingiram que falassem em um castello todos tres +sobre outra cousa. E porque Dom João Ramires d'Arellano, camareiro de +el-rei de Aragão, que o conde escolhera que tivesse o castello emquanto +elles fallassem, não quiz consentir em ser feita tal morte, escapou o +conde aquelle dia de não ser morto. + + + + +*CAPITULO XXXV* + +_Como el-rei Dom Pedro entrou outra vez em Aragão, com sua frota de naus +e galés, e das cousas que alli fez_. + + +Partiu el-rei outra vez de Sevilha, em começo do anno de quatro centos e +dois, aos quinze annos do seu reinado, e entrou em Aragão pelo reino de +Valencia, e ganhou Alicante e outros logares. E chegando a cerca de +Burriana, viu galés, e outros navios, que traziam mantimento a Valencia, +de que estava mui minguada, e tornou-se do caminho por lhes dar torva, e +poz seu arrayal onde chamam o Grao, na ribeira do mar, que é meia legua +da cidade, e esperava cada dia sua frota, e galés de Portugal que lhe +haviam de vir em ajuda, e todas estavam já em Cartagena, não havendo +tempo com que partir. + +El-rei Dom Pedro, não sabendo novas de el-rei de Aragão, chegou um +escudeiro a elle, e disse que el-rei de Aragão e o conde Dom Henrique, +com todos os outros senhores e gentes, que poderiam ser tres mil de +cavallo, afóra muitos homens de pé, vinham mui encobertamente por +pelejar com elle, antes que d'alli partisse; e que vinham pelo mar, a +geito d'elles, doze galés e outros navios com mantimentos, e que tres +noites havia que não faziam fogo, por não serem descobertos, e que ao +outro dia seriam com elle. + +El-rei, ouvindo isto, partiu logo d'alli e foi-se a Monvedro, que eram +quatro leguas. Outro dia, grande manhã, chegou el-rei de Aragão, e +pousaram todos entre Monvedro e o mar, uma legua da villa, e suas galés +e naves a cerca, e foi acorrida a cidade por mar e por terra. E a cabo +de doze dias chegou a frota de el-rei de Castella, que eram vinte galés +suas e quarenta naus, e dez galés de Portugal, que lhe enviava seu tio +em ajuda. + +A frota de Aragão, quando viu a de Castella, houve receio, e metteu-se +no rio de Culhera. El-rei Dom Pedro entrou logo na frota, e foi-se pôr +na bôca do rio, cuidando tomar as galés de Aragão. E estando alli, +começou de ventar o levante, que é travessia n'aquelle logar, e +mostrando o mar sua grande braveza, cuidaram todos que quebrassem suas +galés em terra: e el-rei de Aragão, com todas suas gentes, aguardavam em +terra por ellas, crendo todavia, por o vento que se esforçava cada vez +mais, que de todo ponto eram perdidas. E a galé de el-rei perdera já +tres calabres com suas ancoras, e sobre o quarto estava seu feito. Ao +sol posto cessou a tormenta, e foi el-rei em mui grão perigo, e partiu +d'alli deixando seus fronteiros, e tornou-se para Castella. + +El-rei de Aragão cercou Monvedro e não o poude tomar, e partiu d'alli, e +foi-se andar por seu reino em tanto. + +E deu outra vez volta el-rei de Castella, e partiu de Sevilha, e entrou +por Aragão, e tomou alguns logares. E os da villa de Orihuela, cuidando +de ser cercados, fizeram-no saber a el-rei de Aragão, e veiu logo com +seu poder, a duas leguas de onde el-rei de Castella estava, e +abasteceu-a de viandas de que era minguada. + +E el-rei Dom Pedro não quiz pelejar com elle, mas esteve alguns dias por +aquella terra, e tornou-se para Sevilha, e achou novas como as suas +galés, que andavam pelo mar, tomaram cinco galés de Aragão, e foi-se +logo a Cartagena, onde estavam, e mandou matar toda a gente d'ellas, que +não escapou sómente um, salvo os que sabiam fazer remos, porque os houve +mister. + +D'alli partiu el-rei Dom Pedro para Murcia, sabendo como el-rei de +Aragão cercara Monvedro, e foi cercar a villa de Orihuela que dissemos, +e ganhou a villa e o castello, e tornou-se para Sevilha. Os de Monvedro, +afincados do cerco e sendo minguados muito de viandas, requeriam muito a +mercê de el-rei que lhes accorresse; e el-rei, porque lhes não podia +accorrer senão por batalha, não era ousado de o fazer, cá elle não +queria pelejar com el-rei de Aragão, receiando-se dos seus, de que muito +não fiava. E porém buscava outras maneiras de guerra e não por batalha, +cá el-rei Dom Pedro por muitos que mandara matar, e pelos do reino que +sabia que eram d'elle mal contentes e o desamavam, não se atrevia a pôr +o campo. + +Os de Monvedro minguados de viandas, em guisa que já comiam as bestas e +ratos, deram a el-rei de Aragão o logar por preitesia. E eram dentro, +para o defender seiscentos homens de armas, afóra peões e bésteiros, e +os mais d'elles ficaram com o conde Dom Henrique, por grande receio que +haviam de el-rei, não embargando o accorrimento que d'elle haver não +puderam. + + + + +*CAPITULO XXXVI* + +_Como o conde Dom Henrique entrou por Castella com muitas companhas, e +foi alçado por rei; e como el-rei Dom Pedro mandou desamparar todos os +logares que em Aragão tinha filhados_. + + +Monvedro ganhado por el-rei de Aragão, foi-se para Barcelona, e vieram +alli alguns capitães das companhias por que elle mandava, e firmaram com +elle de ser alli no fevereiro seguinte, para entrar em Castella com o +conde Dom Henrique. El-rei Dom Pedro soube d'isto parte e foi-se a +Burgos, onde mandára juntar suas gentes. Entanto aquelle e os capitães +das companhias, eram juntos, e partiram de Saragoça para entrar em +Castella. + +E vinham ahi capitães de Aragão, a saber, o conde de Denia, e Dom +Filippe de Castro, e outros cavalleiros; e de França, Mosse Beltrão de +Claquin, e o conde das Marchas, e o sr. de Bain, e o marechal de +Andemar, marechal de França, e outros cavalleiros. E de Inglaterra, +Mosse Boitro de Carvabai, Mosse Estacio, e Mosse Martim de Gorimai, e +Mosse Guilhem Allinante, e Mosse João de Obrens, e muitos outros +cavalleiros e homens de armas de Inglaterra, e de Guiana, e de Gasconha, +e d'outras nações. + +E chegaram todos á viila de Alfaro, e não curaram d'ella, e foram outro +dia a Calahorra, cidade não forte, e preitejaram-se os do logar com o +conde, e acolheram-no dentro com aquellas gentes, as quaes alli foram +certificadas como el-rei Dom Pedro estava em Burgos, e que não havia +vontade de pelejar com elles. E houveram accordo, dizendo ao conde Dom +Henrique que pois tanta boa gente era contente de o aguardar em esta +cavalgada, que se chamasse rei de Castella. + +E elle, á primeira, começou-se de escusar de o fazer; dês-ahi, como é +doce cousa reinar, antes de muitas palavras outorgou que lhe prazia, e +foi alçado então por rei: e pediram-lhe, os que com elle vinham, grandes +mercês e officios no reino, e elle mui de grado lhe outorgava tudo, +dando o que ganhado tinha, e promettendo o que era por ganhar; cá em tal +tempo assim lhe cumpria de o fazer. E foi isto no anno de mil e +quatrocentos e quatro. + +Partiu d'alli el-rei Dom Henrique caminho de Burgos, onde era el-rei Dom +Pedro, e chegou a Navarrete, o qual se lhe deu nem ousando de esperar +combate, e foi combatida Briviesca, e tomou-a. + +El-rei Dom Pedro, sabendo tudo isto, sabbado de Ramos, bem pela manhã, +mandou matar João Fernandez de Tovar, por queixume que houve de seu +irmão, e, sem dizer cousa nenhuma aos seus, cavalgou por se partir logo. +E vieram a elle os maiores da cidade, dizendo que os não deixasse, cá o +conde era oito leguas d'alli: e não prestando nenhuma cousa suas razões, +quitou-lhe a menagem, e partiu-se logo, e foram com elle alguns +cavalleiros, e seiscentos mouros de cavallo, que andavam na guerra em +sua ajuda, que lhe dava el-rei de Granada. E muitos dos seus ficaram em +Burgos, a que prazia de tudo isto, e quem se d'elle partia não ousava de +tornar mais a elle. + +E aquelle dia que el-rei d'alli partiu, mandou suas cartas a todos os +que por elle tinham as fortalezas que em Aragão ganhara, que as +desamparassem, e destruissem se pudessem, e se viessem para elle. E +elles fizeram-no assim, mas muitos d'elles se foram para el-rei Dom +Henrique, e aqui cessou então de todo a guerra de Aragão, a qual ia em +onze annos que durava. + +Certamente perdera-se o reino de Aragão todo, se fortuna tão cedo não +abreviara os annos da vida d'este rei Dom Pedro, cá onze vezes que elle +em Aragão fez entrada, ganhou cincoenta e dois logares aqui contidos, +afóra outros muitos que aqui não são nomeados. E chegou el-rei Dom Pedro +a Toledo, e poz recado na cidade, e d'ahi partiu para Sevilha. + +Os de Burgos, vendo que se não poderiam defender de el-rei Dom Henrique, +mandaram-lhe seus recados e receberam-no na cidade, e coroou-se alli por +rei, e vieram a elle muitos procuradores das villas e cidades do reino, +e receberam-no por senhor, em guisa que do dia da coroação a vinte e +cinco dias, foi todo o reino a seu mandado: e elle recebia todos +graciosamente, e a nenhum era negado cousa que pedisse. E deu el-rei Dom +Henrique alli muitas terras áquelles senhores e cavalleiros que vinham +com elle, assim estrangeiros como seus naturaes, e mandou a Aragão por +sua mulher e filhos, e foi recebida honradamente. + +D'alli partiu e veiu-se a Toledo, e foi na cidade grande revolta se o +receberiam ou não, porque a uns prazia que o recebessem, outros eram de +todo em contrario; pero finalmente houveram accordo de o acolher em +ella, e foi recebido com grande prazer. + + + + +*CAPITULO XXXVII* + +_Como el-rei Dom Pedro de Castella enviara uma sua filha a Portugal, e +como elle partiu de Sevilha com temor que houve dos da cidade_. + + +El-rei Dom Pedro estando em Sevilha, soube novas d'estas cousas todas, e +posto em grão pensamento, accordou com os seus de enviar pedir ajuda a +el-rei de Portugal, seu tio. E por lhe dar mór cargo de se mover a lhe +fazer tal ajuda, enviou-lhe dizer que bem sabia como era posto casamento +da infante Dona Beatriz, sua filha, com o infante Dom Fernando seu +primogenito filho, e que porém lhe mandava a dita infante e toda a +quantia do haver que era posto de lhe dar ao tempo do casamento, e que +essa Dona Beatriz ficasse herdeira dos reinos de Castella, e de Leão. E +mandou-a logo de Sevilha, e com ella Martim Lopez de Trujillo, um homem +de que elle muito fiava, e mais certa quantia de dobras que deixara a +esta infante Dona Maria de Padilha, sua madre, com joias, e aljofar, e +outras cousas. + +E partida Dona Beatriz de Sevilha para Portugal houve el-rei Dom Pedro +novas como el-rei Dom Henrique caminhava de Toledo para Sevilha, e +accordou de enviar pelo thesouro que tinha no castello de Almodovar, que +era todo em moedas de prata e de oiro, e fez armar uma galé em que o +poz, com todo o haver que tinha na cidade, e entregou a galé a Martim +Yanhez, seu thesoureiro, e mandou-lhe que se fosse a Tavira, villa de +Portugal no reino do Algarve, e que alli attendesse a galé, até que elle +fosse. E tambem mandou carregar muitas azemolas de seus thesouros, e +levou comsigo mui grande haver de oiro, e pedras, e aljofar assim do que +tomara a el-rei Vermelho e aos seus, como de outro muito que tinha +junto, e isso mesmo da prata toda a que poude levar. + +E el-rei estando assim para partir de Sevilha, disseram-lhe como os da +cidade se alvoroçavam contra elle, e o queriam roubar alli onde estava: +e com grão temor que houve, partiu-se logo para Portugal. E levou +comsigo Dona Constança, e Dona Isabel, suas filhas, cá Dona Beatriz, a +maior, havia já mandada, como dissemos. E iam com el-rei Dom Pedro, +Martim Lopes de Cordova, mestre d'Alcantara, e Diogo Gomes de Catanheda, +e Pero Fernandez Cabeça-de-vacca, e outros. + +E segundo alguns escrevem, como el-rei partiu de Sevilha, taes ahi +houve, dos que iam com as azemolas do haver, que vendo como el-rei fugia +do reino por aquella guisa, se tornavam para a cidade com o que levavam, +e outras saiam do logar e lhe roubaram parte d'aquelle haver. E Misser +Gil Boca-negra, seu almirante, que era genovez, armou em Sevilha uma +galé e outros navios, e foi tomar a galé do haver, em que ia Martim +Yanhez para Tavira, no rio Guadalquivir, cá ainda não era mais arredado. +E era o haver, que ia em ella, trinta e seis quintaes de oiro, e outras +muitas joias, de que el-rei Dom Henrique depois houve a maior parte. + + + + +*CAPITULO XXXVIII* + +_De como el-rei Dom Pedro de Castella fez saber a seu tio que era em seu +reino, e como se el-rei escusou de o vêr, e lhe fazer ajuda_. + + +El Rei de Portugal, em esta sesão, pousava nos paços de Vallada, que são +a cerca de uma villa que chamam Santarem, e era isto no mez de maio. E +quando el-rei Dom Pedro, mandou sua filha Dona Beatriz, como anteagora +ouvistes, para casar com o infante D. Fernando, por azo de haver melhor +ajuda de el-rei seu tio, soaram primeiro novas em Vallada, onde pousava +el-rei, que el-rei de Castella lhe mandava duas suas filhas, que estavam +já nas Alcaçovas, que são d'alli vinte leguas; mas não sabiam dizer +certamente porque as mandava a el-rei, nem em que intenção. El-rei de +Portugal, que parte não sabia que el-rei seu sobrinho era em tal pressa +posto, cuidando que as infantes vinham por outra maneira, porém que não +era mais que aquella uma, mandava correger casas e camaras em seus +paços, em que ellas bem podessem pousar. + +El-rei de Castella partiu de seu reino, e tão trigoso andar poz no +caminho, sem se detendo em nenhum logar, que antes que sua filha +chegasse onde el-rei de Portugal estava, a achou elle no caminho em que +vinha. E chegou el-rei Dom Pedro a Serpa, e d'alli a Beja, e dês-ahi a +Coruche, que eram vinte e uma leguas d'onde el-rei seu tio estava, e +d'alli lhe fez saber como vinha, e a ajuda e accorrimento que lhe d'elle +cumpria, e isso mesmo o casamento de sua filha com o infante Dom +Fernando, seu filho. + +El-rei de Portugal, como isto soube, teve bem assaz em que cuidar, e +mandou-lhe dizer que não fosse mais adiante, mas que estivesse alli até +que visse seu recado. E mandou chamar o infante Dom Fernando seu filho, +que não era ahi, e com elle e com seus privados houve conselho sobre +este feito, e foi falado por alguns que o visse e acolhesse em seu +reino, e que o ajudasse a cobrar sua terra. Dês-ahi, cuidando bem +n'isto, acharam que o não podia el-rei fazer sem grandes trabalhos, e +gasto, e mui grão damno de seu reino, e, o peior de tudo, não ter +nenhumas azadas razões como tal feito podesse vir a acabamento, quejando +cumpria, porque, el-rei Dom Henrique, seu irmão, tinha já toda Castella +a seu mandar, salvo alguns logares, tão poucos, de que não era de fazer +conta; e com isto haviam lhe grande odio todos os do reino, assim +grandes como pequenos. De guisa que bem era de cuidar quanto todos +fariam por cobrar em elle; pois quem houvesse de lançar fóra de Castella +el-rei Dom Henrique e todos os da sua parte, assim por batalha como por +guerra guerreada, grão poderio lhe convinha ter, e, não se fazendo +segundo seu desejo, ficava ao depois em grande homisio e guerra com +elle. Recebel-o outrosim em seu reino, e não trabalhar de o ajudar, +era-lhe grande vergonha e prasmo; dês-ahi, vendo-o e falando-lhe, não se +poderia escusar d'elle. + +Porém accordaram que o mais são conselho era que o não visse elle nem o +infante seu filho, buscando algumas rasões coloradas por que parecesse +que direitamente se escusava. + +Então foi a Coruche o conde Dom João Affonso Tello, onde el-rei de +Castella estava esperando a resposta de seu tio, cuidando de ser +aposentado em Santarem, e disse-lhe como el-rei vira seu recado, e +soubera parte da sua vinda de que guisa era, e que elle de boa mente o +recebera em seu reino e o ajudara a cobrar sua terra, como era razão e +direito, mas que por então não estava em ponto de o poder fazer como +cumpria, porque d'aquellas vezes que lhe elle fizera ajuda, assim por +mar como por terra, os fidalgos de seu reino vieram d'elle e de suas +gentes mui mal contentes e escandalisados; e que vinham em sua companha +taes, com que alguns houveram razões, e que era por força haver entre +elles grandes bandos e arruidos, o que a serviço d'ambos pouco cumpria. +Além d'isto, que sabia bem como o infante Dom Fernando, seu filho, era +sobrinho da rainha Dona Joanna, que então novamente entrara em Castella, +irmã de sua madre Dona Constança, filha de Dom João Manuel, e que não +entendia de postar com elle que lhe muito prouvesse de tal ajuda. E foi +assim certamente, segundo alguns escrevem, que o infante deu grão torva, +porém razoada, em este feito. Com estas e outras razões escusou o conde +el-rei seu senhor, que elle áquelle tempo o não podia vêr, nem lhe fazer +mais ajuda da que feita havia; e despediu-se d'elle, e foi-se para a +pousada. + + + + +*CAPITULO XXXIX* + +_Como el-rei de Castlla partiu de Coruche, e se foi de Portugal; e quaes +enviaram em sua companha_. + + +Não embargando as razões que dissemos, e outras muitas que faladas foram +entre el-rei de Castella e o conde sobre o feito de seu negocio, bem +entendeu el-rei Dom Pedro que o fim de todos seus ditos era não haver +el-rei seu tio vontade de lhe dar acolhimento em seu reino, nem lhe +fazer ajuda por nenhuma guisa: e houve d'isto tão grande queixume, que +não poude com sua vontade que o logo não desse a entender por algum +modo. + +E depois que o conde com elle falou, e se despediu e se foi para a +pousada, ficou el-rei triste e melancolioso, e com torvado gesto tomou +dobras, que tinha na mão, e deitou-as por cima de um alpendre das casas +onde pousava. Um cavalleiro de sua companha, vendo isto que el-rei +fazia, disse-lhe, como sorrindo, por que deitara assim aquellas dobras, +cá melhor fôra dal-as a alguns dos seus, a que prestassem; e el-rei lhe +respondeu dizendo: «não cureis d'isso, cá quem as semeia as virá depois +colher»; dando a entender, se seus annos tão poucos não foram, que elle +lhe fizera de bom talante guerra, por não achar então em elle ajuda nem +acolhimento nenhum. E houve seu accordo de se ir a Albuquerque e deixar +ahi as filhas e todas suas cargas; e chegando ao logar não o quizeram em +elle acolher, antes se lançaram dentro alguns dos que iam em sua +companha. + +E el-rei, vendo como seus feitos iam cada vez peior, mandou dizer a +el-rei de Portugal, seu tio, que pois lhe outra ajuda fazer não queria, +que lhe enviasse carta de seguro, por que podesse passar por seu reino: +e isto fazia elle temendo-se do infante Dom Fernando de Portugal, por +ser sobrinho da mulher de el-rei Dom Henrique, como dissemos. + +A el-rei de Portugal prouve muito, e enviou a elle o conde de Barcellos, +que ouvistes, e Alvaro Peres de Castro, que se fossem com elle pelo +reino, e o puzessem em salvo em Galliza. E elles se foram por elle, e +começaram de andar seu caminho, e quando chegaram á Guarda, segundo +alguns contam, disseram elles alli a el-rei que se queriam tornar e não +podiam ir mais com elle, porquanto se receiavam do infante Dom Fernando, +que os enviara ameaçar por irem assim em sua companha, e que el-rei lhes +deu então seis mil dobras, e duas cintas de prata, e dois estoques, que +se fossem com elle até Galliza. E se assim adveio por esta guisa, isto +foi fingido que elles disseram, cá o infante não tinha razão de lhes tal +cousa mandar dizer, pois, com seu accordo, fôra ordenado em conselho que +o acompanhassem até fóra do reino. E dizem que chegaram com elle até +Lamego, e mais não. E á partida lhe furtou o conde uma filha de el-rei +Dom Henrique, seu irmão, que el-rei levava presa comsigo, de idade de +quatorze annos, que chamavam Dona Leonor dos leões, porque el-rei Dom +Pedro, por queixume que de seu padre havia, sendo esta moça em poder de +sua ama, nada de mui poucos mezes, com grão crueldade a mandou tomar, e, +esfaimados os leões que criava antes por um dia, no curral onde andavam +mandou que lh'a lançassem em camisa, e foi assim feito como elle mandou. +E os leões vieram, e chegaram-se a ella, e prouve a Deus que lhe não +fizeram nenhum nojo, mas assim como se d'ella houvessem piedade, se +chegavam a ella sem lhe fazerem outro mal. Foi isto dito a el-rei por +alguns seus, e mandou-a el-rei tirar d'alli, e entregar áquelles que a +criavam, e poz-se porém em ella tal guarda, que nunca seu padre a poude +haver. E levava-a el-rei então comsigo, e o conde a trouxe a el-rei de +Portugal, e depois foi entregue a el-rei Dom Henrique, seu padre. + + + + +*CAPITULO XL* + +_Como el-rei Dom Pedro chegou a Galliza, e matou o arcebispo de São +Thiago, e se foi para Inglaterra_. + + +Partiu de Lamego el-rei de Castella, assaz desamparado e com mui pouca +gente, cá não iam com elle mais que até duzentos de cavallo, e chegou a +Monte-rei, uma villa de Galliza, e d'alli escreveu a Logronho, e a +Soria, e a Samora, que tinham sua voz, que se esforçassem, cá elle lhes +accorreria. + +E fez saber a el-rei de Navarra, e ao principe de Galles, como era em +Galliza, e queria saber que esforço tinha em elles, e esperou alli o +arcebispo de São Thiago, e Dom Fernando de Castro, seu alferes-mór e +adiantado em terra de Leão e das Asturias, o qual antes d'isto viera a +Galliza por seu mandado, e falou com todos os prelados, e cavalleiros, e +escudeiros, e cidades, e villas, e fortalezas, de guisa que todos +tiveram sua voz. + +E estiveram tres somanas, havendo conselho se era melhor ir-se a Samora, +e d'ahi caminho de Logronho, pois el-rei Dom Henrique, com suas +companhas, estava em Sevilha; ou ir-se a Bayona de Inglaterra catar seus +accorros com o principe de Galles. E teve-se el-rei antes ao conselho da +ida de Inglaterra, que tornar outra vez a seu reino, porque tão pouco se +fiava nos que tinham voz por elle, como nos outros que não eram da sua +parte. + +E partiu de Monte-rei, e foi ter o São João a São Thiago de Galliza, e +alli houve accordo com os seus de matar o arcebispo, e tomar-lhe as +fortalezas. E onde Dom Sueiro vinha seguro, a seu mandado, dia de São +Pedro, que lhe mandara el-rei dizer que viesse ao conselho, entrando +pela cidade foi morto á porta da igreja de São Thiago, por Fernão Perez +Turrichão, e Gonçalo Gomez Gallinhato, e dois cavalleiros que lhe mal +queriam, a que el-rei mandara que o matassem, e mataram mais Pero +Alvarez, deão de São Thiago, homem mui letrado e bem sisudo, e el-rei o +olhava de cima da igreja, como se tudo isto fazia. E tomou el-rei quanto +haver o arcebispo tinha no castello da rocha, e deu as fortalezas a Dom +Fernando de Castro, e fel-o conde de Trastamara, e de Lemos, e de +Sarria, d'onde soía ser conde el-rei Dom Henrique, para elle e para +todos seus herdeiros lidimamente nascidos. + +E Dom Alvaro Perez, seu irmão, e André Sanchez de Gres, que vinham vêr +el-rei, quando souberam a morte do arcebispo, tornaram-se para suas +terras com medo, e tomaram voz d'el-rei Dom Henrique. + +El-rei partiu d'alli, e foi-se para a Corunha, e n'aquelle logar lhe +chegou recado do principe de Galles, que se fosse para o senhorio de +Inglaterra, e que elle lhe ajudaria a cobrar o reino. E partiu el-rei da +Corunha, e levou comsigo vinte e duas naus, e uma galé, e uma carraca, e +deixou Dom Fernando de Castro em Galliza, e commetteu-lhe todo seu +poderio, e el-rei ia na carraca com suas filhas todas tres, e o thesouro +todo que comsigo levava, que eram trinta e seis mil dobras em oiro +amoedado, porque todo o outro thesouro deixara na galé que Martim Yanhez +havia de levar a Tavira, e levava muitas joias de oiro, e de aljofar, e +de pedras de grão valor. E passou o mar, e chegou a Bayona, onde ia +corregendo seus feitos, de que mais por ora dizer não queremos. + + + + +*CAPITULO XLI* + +_Como el-rei Dom Henrique chegou a Sevilha, e da alliança que fez com +el-rei de Portugal_. + + +El-rei Dom Henrique partiu de Toledo, sabendo tudo o que adviera a +el-rei Dom Pedro em Sevilha, e isso mesmo em Portugal, e como se fôra +depois a Galliza. E chegou a Cordova, onde o receberam com grão prazer, +e d'ahi levou caminho de Sevilha, sabendo que tinha voz por elle, onde +foi recebido com tão grão festa que, pero el-rei chegou pela manhã a +cerca do logar, passava de meio dia quando entrou em seu paço. + +E partiu el-rei com os seus, e com aquellas companhas que com elle +vinham, em guisa que todos foram mui contentes, e mandou-os para suas +terras; pero ficaram com elle Mosse Beltrão de Claquin, e outros +senhores, com alguns inglezes e bretões, que eram todos companhias, até +mil e quinhentas lanças. + +E esteve el-rei em Sevilha quatro mezes, e antes que d'alli partisse, +escreveu a el-rei Dom Pedro de Portugal, como queria haver paz e amisade +com elle, e que elle enviaria taes, ao extremo, de que fiava por seus +procuradores, para tratarem avença entre elles, e que el-rei Dom Pedro +mandasse ahi outros, que com seus feitos fossem concordados. + +E foi assim de feito, que enviou el-rei Dom Henrique Dom João, bispo de +Badalhouce, e Diego Gomez de Toledo, cavalleiro, e el-rei de Portugal +enviou Dom João, bispo de Evora, e Dom Alvaro Gonçalves, prior do +Hospital; e juntaram-se todos na ribeira de Caya, no extremo dos reinos. + +E alli trataram, pelos ditos reis, que fossem fieis amigos um do outro, +e houvessem paz e concordia, e que el-rei de Castella trabalhasse, a +todo seu poder, que el-rei de Aragão fosse amigo de el-rei de Portugal +pela guisa que o elle era, e que el-rei de Aragão deixasse vir para +Portugal a infanta Dona Maria, filha do dito rei Dom Pedro, mulher que +fôra do infante Dom Fernando, marquez de Tortosa, com todo o seu, ou +viver na terra qual ella antes quizesse; e louvaram e approvaram as +avenças que em outro tempo foram feitas em Agreda, entre el rei Dom +Fernando e el-rei Dom Diniz, seus avós. + +Outrosim, Mafamede, rei de Granada, tratou logo amisade com el-rei Dom +Henrique, e ficou por seu amigo. + +E partiu el-rei de Sevilha, e foi-se a Galliza, e cercou em Lugo Dom +Fernando de Castro, que tinha voz de el-rei Dom Pedro, e não o poude +tomar, e preitejou com el-rei, que se lhe el-rei Dom Pedro não +accorresse até cinco mezes, que deixasse o reino e lhe entregasse todas +as fortalezas, e se quizesse ficar em sua mercê, que lhe desse a villa +de Castro Exarez, d'onde sua linhagem se chamava de Castro, e elle +conde, depois que lh'a el-rei Dom Pedro dera, e que em este tempo não se +fizesse guerra de uma parte á outra, a qual cousa lhe Dom Fernando mui +mal teve. + +A el-rei Dom Henrique prouve d'isto, e tornou-se para Burgos, e alli +ordenou côrtes, nas quaes foram juntos os maiores do reino; e certos da +vinda que el-rei Dom Pedro queria fazer, lhe foi promettida ajuda para +despeza da guerra, e offerecidos os corpos a seu serviço, como bem podia +vêr. E el-rei, em tanto, mandava por gentes que lhe cada dia vinha, com +que partia grandemente, e lhe fazia muita honra. E porque dos feitos +d'estes reis ambos, mais não adveiu em tempo de el-rei Dom Pedro de +Portugal, cessaremos de mais dizer d'elles, e em quanto elles juntam +suas gentes para a batalha que depois ouvireis, contaremos nós outras +cousas, segundo requer a ordenança d'esta obra. Mas antes que as +digamos, ouvi isto que achamos escripto, a saber, que féria quinta, +vinte e dois dias do mez de outubro d'esta presente era de Cesar de mil +e quatrocentos e quatro annos, foi feito um movimento no céo, desde a +meia noite para adiante, o qual foi por esta guisa: correram todas as +estrellas do levante para o poente, e depois que todas foram juntas, +começaram de correr umas cá e outras lá; dês-ahi deixaram-se estalar do +céo tantas e tão espessas, que, depois que foram baixas no ar, pareciam +grandes fogueiras, e que o céo e o ar ardia, e que a terra queria arder; +e o céo parecia partido por muitas partes alli onde estrellas não +estavam; e não havia homem que isto visse, que não fosse fortemente +espantado; e era tamanho o medo, que quantos isto viam todos cuidavam de +serem mortos, durando isto por mui grande espaço. E isto escrevemos por +não haverdes por nova cousa quando outra tal acontecer, dês-ahi por +relembrança das maravilhas que Deus faz. + + + + +*CAPITULO XLII* + +_Como el-rei de Portugal enviou seus embaixadores a casa do principe de +Galles, por se desculpar do que el-rei Dom Pedro dizia_. + + +A grão melancolia que levou el-rei Dom Pedro de Castella do mau +gasalhado que em Portugal achara, lhe fez que ás vezes não podia, em +falando, que o não desse a entender com sanha, e algumas horas, estando +com o principe, presente muitos, fazia queixume do mau acolhimento que +achara em seu tio el-rei de Portugal, esperando d'elle receber o +contrario, dizendo que o não havia tanto pelo seu, como das infantes +suas filhas, as quaes lhe devera de agasalhar e receber em sua +encommenda: e fallando em ello muito largamente, mostrava com isto +geitos e semblante que de o vingar tinha grão desejo. + +E foi isto assim falado, e por taes palavras, que não minguou quem o +escrevesse a el-rei de Portugal, o qual, conhecendo sua preversa +condição, e prevendo o que advir podia, ordenou de se enviar desculpar +presente o principe, mostrando que a culpa não fôra em elle, assim em +seu recebimento, como em agasalhar suas filhas; e mandou allá o bispo de +Evora, e Gomez Lourenço do Avelal, os quaes chegaram a Gasconha, onde +el-rei e o principe por então estavam. + +Elles alli, ordenou o principe o dia e hora para dizerem sua embaixada, +a qual, proposta ante elle, sendo el-rei presente, começaram de contar +pelo miudo tudo o que em Portugal diziam alguns de que se ei-rei Dom +Pedro agravava, fazendo queixume de el-rei seu tio, e que elles eram +alli vindos para o mostrarem sem culpa, como a sua mercê bem podia vêr. + +El-rei de Castella respondeu a isto dizendo, que assim era como elles +diziam, que elle se sentia por mui agravado d'elle, pelo não receber em +seu reino e lhe dar acolhimento como era razão, sendo seu tio, irmão de +sua madre, e que mór melancolia havia não dar gasalhado ás infantes suas +filhas, que da aspereza que contra elle mostrara, porque se as el-rei +seu tio tomara e lh'as tivera em sua terra guardadas, com alguns haveres +que elle levava, onde era certo que estariam seguras, que elle ficara +desempachado d'ellas, e então tornara a recobrar seu reino. Dizendo que +muitos se alçaram contra elle, que o não fizeram se o viram presente, +mas pelo empacho que tinha, das filhas, que lhe conviera de fugir com +ellas, não tendo logar seguro onde as deixasse; porque áquelle tempo que +as deixar quizera em algum castello de sua terra, em nenhum havia tanta +fiusa por que ousasse de o fazer. + +Sobre isto correram tantas palavras entre el-rei Dom Pedro e os +embaixadores, até que pediram por mercê, ao principe, que fizesse +pergunta a el-rei, se áquelle tempo que elle escrevera a seu tio que era +em seu reino, se lhe fizera saber por sua carta que lhe queria deixar +suas filhas e o thesouro que comsigo trazia, segundo elle arrazoava +presente elle. E o principe lh'o perguntou então, e elle disse que não +ementara nenhuma cousa das filhas, nem do haver que levava comsigo. + +--Pois, disse o principe, nem vosso tio não era adivinho do que vós +tinheis na vontade. + +Então fizeram recontamento ao principe das ajudas que de Portugal +recebera, assim por mar como por terra, e como todos os senhores e +fidalgos, que allá foram, vieram d'elle e dos seus mui mal contentes e +escandalisados, e que esta fôra uma das razões por que o el-rei seu tio +não quizera ter em sua terra, por se não levantarem, entre uns e os +outros, bandos, e arruidos, e mortes. + +Arrazoaram tanto até que se enfadaram, e o principe, conhecendo de +razão, disse que o não havia por culpado como antes; e na parte da nau e +haveres, que lhe el-rei de Portugal enviava dizer que em Inglaterra eram +retidos contra razão, que elle os faria logo desembargar, como seu amigo +que era e queria ser. E assim o fez de feito, que em breves dias foram +despachados. + + + + +*CAPITULO XLIII* + +_Como Dom João, filho de el-rei Dom Pedro de Portugal, foi feito mestre +de Aviz_. + + +Vós ouvistes, no primeiro capitulo d'esta historia, como depois da morte +de Dona Ignez, ei-rei sendo infante, nunca mais quiz casar, nem depois +que reinou quiz receber mulher, mas houve um filho de uma dona, a que +chamaram Dom João. D'este moço deu el-rei cargo a Dom Nuno Freire, +mestre de Christus, que o criava e tinha em seu poder, e que criando-o +elle assim, sendo em idade até sete annos, veiu-se a finar o mestre de +Aviz, Dom Martim do Avelal. + +O mestre de Christus, como isto soube, foi-se logo a el-rei Dom Pedro, +que então pousava na Chamusca, e pediu-lhe aquelle mestrado para o dito +seu filho, que levava em sua companha, e el-rei foi mui ledo do +requerimento, e muito mais ledo de lh'o outorgar. + +Então tomou o moço o mestre nos braços, e tendo-o em elles, lhe cingiu +el-rei a espada e o armou cavalleiro, e beijou-o na boca, lançando-lhe a +benção, dizendo que Deus o accrescentasse de bem em melhor, e lhe desse +tanta honra em feitos de cavallaria, como déra a seus avós: a qual +benção foi em elle bem cumprida, como adiante ouvireis. + +E disse então el-rei contra o mestre: + +--Tenha este moço isto por agora, cá sei que mais alto ha de montar, se +este é o meu filho João de que me a mim algumas vezes falaram, como quer +que eu queira antes que se cumprisse no infante Dom João, meu filho, que +n'elle; cá a mim disseram que eu tenho um filho João, que ha de montar +muito alto, e por que o reino de Portugal ha de haver mui grande honra. +E porque eu não sei qual d'estes Joões ha de ser, nem o podem saber em +certo, eu azarei como sempre acompanhem ambos estes meus filhos, pois +que ambos são de um nome, e escolha Deus um d'elles para isto, qual sua +mercê fôr. Como quer que muito me suspeita a vontade que este ha de ser, +e outro nenhum não, porque eu sonhava uma noite o mais estranho sonho +que vós vistes: a mim parecia, em dormindo, que eu via todo Portugal +arder em fogo, de guisa que todo o reino parecia uma fogueira, e estando +assim espantado vendo tal cousa, vinha este meu filho João, com uma vara +na mão, e com ella apagava aquelle fogo todo. E eu contei isto a alguns +que razão teem de entender em taes cousas, e disseram-me que não podia +ser, salvo que alguns grandes feitos lhe haviam de sair de entre as +mãos. + +Ora, assim adveiu depois, como dizemos, que, isto feito, tornou-se o +mestre de Christus para a villa, e mandou seu recado aos commendadores +da ordem de Aviz, que viessem logo alli, por haver de falar com elles +cousas que eram de serviço de Deus e prol de sua ordem (e isto fazia o +dito mestre porquanto a ordem de Aviz e a de Christus são ambas da ordem +de São Bento), os quaes, por suas cartas e requerimento, vieram logo +áquelle logar. + +O mestre falou então com o commendador-mór, e com Fernão Soares, e Vasco +Peres, todo o que era vontade de el-rei, dês-ahi entrou com elles em +cabido, segundo costume de sua ordem, e o commendador propoz ao mestre, +em nome seu e dos commendadores, dizendo que elle bem sabia como seu +senhor, o mestre de Aviz Dom Martim do Avelal, era finado, e que elles +não tinham mestre que os houvesse de reger como cumpria a serviço de +Deus, segundo sua ordem mandava, nem entendiam de eleger outro, senão +aquelle que lhes elle desse; e que pois elle era de sua regra e o fazer +podia, que lhe pediam por mercê, que por serviço de Deus e bem da dita +ordem, lhes desse mestre que os houvesse de reger segundo sua regra +mandava. + +O mestre respondeu que diziam mui bem, como bons cavalleiros e bem +sisudos, e porque elle era tido de fazer e requerer toda causa que fosse +serviço de Deus e prol de sua ordem, que porém queria tomar cargo de +lhes dar mestre que os houvesse de reger segundo sua regra mandava, e +que para ser seu mestre lhes dava Dom João, filho de el-rei Dom Pedro, +que elle criava, que entendia que era tal senhor que os regeria como +cumpria a serviço de Deus e prol de sua ordem. + +O commendador-mór, e os outros disseram então, que lhe tinham em grande +mercê de lhes dar tão honrado senhor por seu mestre: e logo o dito Dom +João foi chamado, e foram-lhe tirados os vestidos seculares, e lançado o +habito da ordem de Aviz, e como lhe foi vestido, o commendador-mór e os +outros lhe beijaram o mão por seu mestre e senhor. E isto assim feito, +foi elle levado para a ordem de Aviz, de onde era mestre, e alli se +criou alguns annos, até que começou de florescer em manhas, e bondades, +e autos de cavallaria, segundo a historia adiante dirá, contando cada +umas em seu logar. + +E se alguns quizerem dizer que os poucos annos de sua idade e não +legitima nascença embargavam de não poder ser mestre, a taes se responde +que o Papa dispensou com elle, que posto que provido fosse antes do +tempo, e nado de não legitimo matrimonio, que seus bons costumes e +honroso proveito que d'elle vinha á ordem, corrigia tudo isto, e que o +confirmava em elle. + + + + +*CAPITULO XLIV* + +_Como foi trasladada Dona Ignez para o mosteiro de Alcobaça, e da morte +d'el-rei Dom Pedro_. + + +Porque semelhante amor, qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Ignez, +raramente é achado em alguma pessoa, porém disseram os antigos que +nenhum é tão verdadeiramente achado, como aquelle cuja morte não tira da +memoria o grande espaço do tempo. E se algum disser que muitos foram já, +que tanto e mais que elle amaram, assim como Adriana, e Dido, e outras +que não nomeamos, segundo se lê em suas epistolas, responde-se que não +falamos em amores compostos, os quaes alguns autores abastados de +eloquencia, e florescentes em bem ditar, ordenaram segundo lhes prouve, +dizendo em nome de taes pessoas razões que nunca nenhuma d'ellas cuidou; +mas falamos d'aquelles amores que se contam e lêem nas historias, que +seu fundamento teem sobre verdade. + +Esse verdadeiro amor houve el-rei Dom Pedro a Dona Ignez, como se d'ella +namorou sendo casado e ainda infante, de guisa que, pero d'ella no +começo perdesse vista e fala, sendo alongado, como ouvistes, que é o +principal azo de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar recados, +como em seu logar tendes ouvido. Quanto depois trabalhou pela haver, e o +que fez por sua morte, e quaes justiças n'aquelles que em ella foram +culpados, indo contra seu juramento, bem é testemunho do que nós +dizemos. + +E sendo lembrado de lhe honrar seus ossos, pois lhe já mais fazer não +podia, mandou fazer um moimento de alva pedra, todo mui subtilmente +obrado, pondo elevada sobre a campa de cima a imagem d'ella, com corôa +na cabeça, como se fôra rainha. E este moimento mandou pôr no mosteiro +de Alcobaça, não á entrada, onde jazem os reis, mas dentro na egreja, á +mão direita, a cerca da capella-mór. + +E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde +jazia, o mais honradamente que se fazer pode, cá ella vinha em umas +andas, muito bem corrigidas para tal tempo, as quaes traziam grandes +cavalleiros, acompanhadas de grandes fidalgos, e muita outra gente, e +donas, e donzellas e muita clerezia. + +Pelo caminho estavam muitos homens com cirios nas mãos, de tal guisa +ordenados, que sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre +cirios accesos; e assim chegaram até ao dito mosteiro, que eram d'alli +dezesete leguas, onde com muitas missas e grão solemnidade foi posto seu +corpo n'aquelle moimento. E foi esta a mais honrada trasladação que até +áquelle tempo em Portugal fôra vista. + +Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal moimento, e tambem obrado, +para si, e fêl-o pôr a cerca do seu d'ella, para quando acontecesse de +morrer o deitarem n'elle. + +E estando el-rei em Estremoz, adoeceu de sua postremeira dôr, e jazendo +doente, lembrou-se como, depois da morte de Alvaro Gonçalves e Pero +Coelho, elle fôra certo que Diogo Lopes Pacheco não fôra em culpa da +morte de Dona Ignez, e perdoou-lhe todo queixume que d'elle havia, e +mandou que lhe entregassem todos seus bens: e assim o fez depois el-rei +Dom Fernando, seu filho, que lh'os mandou entregar todos, e lhe alçou a +sentença, que el-rei seu padre contra elle passára, quanto com direito +poude. + +E mandou el-rei em seu testamento, que lhe tivessem em cada um anno, +para sempre, no dito mosteiro, seis capellães que cantassem por elle +cada dia uma missa officiada, e sairem sobre ella com cruz e agua benta. +E el-rei Dom Fernando, seu filho, por se isto melhor cumprir, e se +cantarem as ditas missas, deu depois ao dito mosteiro, em doação por +sempre, o logar que chamam as Paredes, termo de Leiria, com todas as +rendas e senhorio que n'elle havia. + +E deixou el-rei Dom Pedro, em seu testamento, certos legados, a saber: á +infante Dona Beatriz, sua filha, para casamento, cem mil libras; e ao +infante Dom João, seu filho, vinte mil libras; e ao infante Dom Diniz, +outras vinte mil; e assim a outras pessoas. + +E morreu el-rei Dom Pedro uma segunda-feira de madrugada, dezoito dias +de janeiro da era de mil e quatrocentos e cinco annos, havendo dez annos +e sete mezes e vinte dias, que reinava, e quarenta e sete annos e nove +mezes e oito dias de sua idade. E mandou-se levar áquelle mosteiro que +dissemos, e lançar em seu moimento, que está junto com o de Dona Ignez. + +E porquanto o infante Dom Fernando, seu primogenito filho, não era então +ahi, foi el-rei detido e não levado logo, até que o infante veiu; e á +quarta-feira foi posto no moimento. + +E diziam as gentes, que taes dez annos nunca houve em Portugal, como +estes que reinára el-rei Dom Pedro. + + * * * * * + +Fim da Chronica de El-rei D. Pedro I + + + + +*INDEX* + + +Duas palavras + +Chronica do Senhor Rei D. Pedro I, oitavo Rei de Portugal, Prologo + +Capitulo I--Do reinado de el-rei Dom Pedro, oitavo rei de Portugal, e +das condições que n'elle havia. + +Capitulo II--Como el-rei de Castella mandou pelo corpo da rainha Dona +Maria, sua madre, e da carta que enviou a el-rei de Portugal, seu tio. + +Capitulo III--Das cartas que o papa, e el-rei de Aragão enviaram a +el-rei de Portugal sobre a morte de el-rei, seu padre. + +Capitulo IV--Da maneira que el-rei Dom Pedro tinha nos desembargos de +sua casa. + +Capitulo V--De algumas cousas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de +justiça e prol de seu povo. + +Capitulo VI--Como el-rei mandou degolar dois seus criados, porque +roubaram um judeu e o mataram. + +Capitulo VII--Como el-rei quizera metter um bispo a tormento, porque +dormia com uma mulher casada. + +Capitulo VIII--Como el-rei mandou capar um seu escudeiro, porque dormiu +com uma mulher casada. + +Capitulo IX--Como el-rei mandou queimar a mulher de Affonso André, e de +outras justiças que mandou fazer. + +Capitulo X--Como el-rei mandava matar o almirante; e da carta que lhe +enviou o duque e commum de Genova, rogando por elle. + +Capitulo XI--Das moedas que el-rei Dom Pedro fez, e da valia do oiro e +da prata n'aquelle tempo. + +Capitulo XII--Da maneira que os reis tinham para fazer thesouros, e +accrescentar n'elles. + +Capitulo XIII--Por que guisa el-rei Dom Pedro de Castella começou de +juntar thesouro. + +Capitulo XIV--Como el-rei fez conde e armou cavalleiro João Affonso +Tello, e da grão festa que lhe fez. + +Capitulo XV--Das avenças que el-rei de Castella e el-rei Dom Pedro de +Portugal firmaram entre si, e como lhe el-rei de Portugal prometteu de +fazer ajuda contra Aragão. + +Capitulo XVI--De algumas pessoas que el-rei Dom Pedro de Castella mandou +matar, e como casou com a rainha Dona Branca e a deixou. + +Capitulo XVII--Como se começou o desvairo entre el-rei Dom Pedro de +Castella e o conde Dom Henrique, seu irmão, o qual foi aso porque se o +conde foi fóra do reino. + +Capitulo XVIII--Como e por qual aso se começou a guerra entre Castella e +Aragão. + +Capitulo XIX--Como el-rei de Castella entrou por Aragão e das cousas que +fez n'este anno. + +Capitulo XX--Como el-rei Dom Pedro fez matar o mestre de São Thiago Dom +Fradarique, seu irmão, no alcaçar de Sevilha. + +Capitulo XXI--Como el-rei partiu de Sevilha por tomar Dom Tello, seu +irmão, para o matar; e como matou o infante Dom João, seu primo. + +Capitulo XXII--Como foi quebrada a tregua de um anno que havia entre os +reis, e como el-rei Dom Pedro juntou armada por fazer guerra a Aragão. + +Capitulo XXIII--Como veiu o cardeal de Bolonha para fazer paz entre +el-rei de Castella e el-rei de Aragão, e os não poude pôr de accordo. + +Capitulo XXIV--Como el-rei de Castella enviou pedir ajuda de galés a +el-rei de Portugal, e como partiu com sua frota por fazer guerra a +Aragão. + +Capitulo XXV--Como se partiu o almirante de Portugal com as dez galés, e +como el-rei Dom Pedro desarmou a frota; e de outras cousas. + +Capitulo XXVI--Como o cardeal de Bolonha quizera tratar paz entre os +reis e não poude, e como as gentes d'el-rei Dom Pedro pelejaram com o +conde e o desbarataram. + +Capitulo XXVII--Como el-rei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Ignez +que fora sua mulher recebida, e da maneira que em ello teve. + +Capitulo XXVIII--Do testemunho que alguns deram no casamento de Dona +Ignez, e das razões que sobre ello propoz o conde Dom João Affonso. + +Capitulo XXIX--Razões contra isto, de alguns que ahi estavam, duvidando +muito n'este casamento. + +Capitulo XXX--Como os reis de Portugal e de Castella fizeram entre si +avença, que entregassem, um ao outro, alguns que andavam seguros em seus +reinos. + +Capitulo XXXI--Como Diogo Lopes Pacheco escapou de ser preso, e foram +entregues os outros, e logo mortos cruelmente. + +Capitulo XXXII--De algumas cousas que el-rei Dom Pedro de Castella +mandou fazer, e como fez paz com el-rei de Aragão entrando em seu reino. + +Capitulo XXXIII--De algumas entradas que el-rei este anno fez no reino +de Granada, e como el-rei Vermelho se veiu pôr em seu poder, cuidando de +ser seguro, e el-rei o mandou matar. + +Capitulo XXXIV--Das avenças que el-rei de Castella fez com el-rei de +Aragão, entrando em seu reino, e como as depois não quiz guardar. + +Capitulo XXXV--Como el-rei Dom Pedro entrou outra vez em Aragão, com sua +frota de naus e galés, e das cousas que alli fez. + +Capitulo XXXVI--Como o conde Dom Henrique entrou por Castella com muitas +companhas, e foi alçado por rei; e como el-rei Dom Pedro mandou +desamparar todos os logares que em Aragão tinha filhados. + +Capitulo XXXVII--Como el-rei Dom Pedro de Castella enviava uma sua filha +a Portugal, e como elle partiu de Sevilha com temor que houve dos da +cidade. + +Capitulo XXXVIII--De como el-rei Dom Pedro de Castella fez saber a seu +tio que era em seu reino, e como se el-rei escusou de o vêr, e lhe fazer +ajuda. + +Capitulo XXXIX--Como el-rei de Castella partiu de Coruche, e se foi de +Portugal; e quaes enviaram em sua companha. + +Capitulo XL--Como el-rei Dom Pedro chegou a Galliza, e matou o arcebispo +de São Thiago, e se foi para Inglaterra. + +Capitulo XLI--Como el-rei Dom Henrique chegou a Sevilha, e da alliança +que fez com el-rei de Portugal. + +Capitulo XLII--Como el-rei de Portugal enviou seus embaixadores a casa +do principe de Galles, por se desculpar do que el-rei Dom Pedro dizia. + +Capitulo XLIII--Como Dom João, filho de el-rei Dom Pedro de Portugal, +foi feito mestre de Aviz. + +Capitulo XLIV--Como foi trasladada Dona Ignez para o mosteiro de +Alcobaça, e da morte d'el-rei Dom Pedro. + + + + + +End of Project Gutenberg's Chronica de el-rei D. Pedro I, by Fernão Lopes + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CHRONICA DE EL-REI D. PEDRO I *** + +***** This file should be named 16633-8.txt or 16633-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/1/6/6/3/16633/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net. Produced from +page images provided by Biblioteca Nacional Digital +(http://bnd.bn.pt). + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + +*** END: FULL LICENSE *** + diff --git a/16633-8.zip b/16633-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..3487761 --- /dev/null +++ b/16633-8.zip diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize +this eBook outside of the United States should confirm copyright +status under the laws that apply to them. diff --git a/README.md b/README.md new file mode 100644 index 0000000..acef02e --- /dev/null +++ b/README.md @@ -0,0 +1,2 @@ +Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for +eBook #16633 (https://www.gutenberg.org/ebooks/16633) |
