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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 04:51:27 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Frei Luiz de Sousa + +Author: Almeida Garrett + +Release Date: January 23, 2006 [EBook #17591] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FREI LUIZ DE SOUSA *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + +[Figura: EDUARDO BRAZÃO, interprete principal de «Frei Luiz de Souza»] + + + + +ALMEIDA GARRETT + +FREI LUIZ DE SOUSA + +DRAMA + +_Representado, a primeira vez, em Lisboa, por uma sociedade particular, +no theatro de quinta do Pinheiro em quatro de Julho de_ MDCCCXLIII + + +ESCRIPTORIO DE PUBLICAÇÕES DE FERREIRA DOS SANTOS + +Rua de Santa Catharina, 231 + +PORTO + + + + +Imprensa Commercial--Rua da Conceição, 29 a 37 + + + + + +PESSOAS + + +MANUEL (FREI LUIZ) DE SOUSA +DONA MAGDALENA DE VILHENA +DONA MARIA DE NORONHA +FREI JORGE-COUTINHO +O ROMEIRO +TELMO-PAES +O PRIOR DE BEMFICA +O IRMÃO CONVERSO +MIRANDA +O ARCEBISPO DE LISBOA +DOROTHEA + +CÔRO DE FRADES DE SAN'DOMINGOS + +Clerigos do arcebispo, frades, criados, etc. + +Logar da scena--Almada. + + + + +ACTO PRIMEIRO + + +_Camera antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegancia portugueza +dos principios do seculo dezasette: porcelanas, xarões, sedas, flores, +etc. No fundo duas grandes janellas rasgadas, dando para um eirado que +olha sôbre o Tejo e de donde se ve toda Lisboa: entre as janellas o +retratto, em corpo inteiro, de um cavalleiro môço vestido de preto com a +cruz branca de noviço de S. João de Jerusalem.--Defronte e para a bôcca +da scena um bufete pequeno coberto de ricco panno de velludo verde +franjado de prata; sôbre o bufete alguns livros, obras de tapeçaria +meias-feitas, e um vaso da China de collo alto, com flores. Algumas +cadeiras antigas, tamboretes razos, contadores. Da direita do +espectador, porta de communicação para o interior da casa, outra da +esquerda para o exterior.--É no fim da tarde_. + + +SCENA I + +MAGDALENA so, sentada junto á banca, os pés sôbre uma grande almofada, +um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sôbre elle, como quem +descahiu da leitura na meditação. + + +*Magdalena*, _repettindo machinalmente e de vagar o que acaba de ler_. + + «N'aquelle ingano d'alma ledo e cego + Que a fortuna não deixa durar muito...» + +Com paz e alegria d'alma... um ingano, um ingano de poucos instantes que +seja... deve de ser a felicidade suprema n'este mundo.--E que importa +que o não deixe durar muito a fortuna? Viveu-se, póde-se morrer. Mas +eu!... (_pausa_) Oh! que o não saiba elle ao menos, que não suspeite o +estado em que eu vivo... este medo, estes continuos terrores que ainda +me não deixaram gozar um so momento de toda a immensa felicidade que me +dava o seu amor.--Oh que amor, que felicidade... que desgraça a minha! +(_Torna a descahir em profunda meditação: silencio breve_.) + + +SCENA II + +MAGDALENA, TELMO-PAES + + +*Telmo*, _chegando aopé de Magdalena que o não sentiu entrar_. A minha +senhora está a ler?... + +*Magdalena*, _despertando_. Ah! sois vós, Telmo... Não, ja não leio: ha +pouca luz de dia ja; confundia-me a vista.--E é um bonito livro este! o +teu valido, aquelle nosso livro, Telmo. + +*Telmo*, _deitando-lhe os olhos_. Oh, oh! Livro para damas--e para +cavalleiros... e para todos: um livro que serve para todos; como não ha +outro, tirante o respeito devido ao da Palavra de Deus! Mas esse não +tenho eu a consolação de ler, que não sei latim como meu senhor... quero +dizer, como o senhor Manuel de Sousa-Coutinho--que lá isso!... acabado +escholar é elle. E assim foi seu pae antes d'elle, que muito bem o +conheci: grande homem! Muitas lettras e de muito galante prática--e não +somenos as outras partes de cavalleiro: uma gravidade!... Ja não ha +d'aquella gente.--Mas, minha senhora, isto de a Palavra de Deus estar +assim n'outra lingua, n'uma lingua que a gente... que toda a gente não +intende!... confesso-vos que aquelle mercador inglez da rua-Nova, que +aqui vem ás vezes, tem-me ditto suas cousas que me quadram... E Deus me +perdoe! que eu creio que o homem é hereje d'esta seita nova d'Allemanha +ou d'Inglaterra. Será? + +*Magdalena*. Olhae, Telmo; eu não vos quero dar conselhos: bem sabeis +que desde o tempo que... que... + +*Telmo*. Que ja lá vai, que era outro tempo. + +*Magdalena*. Pois sim... (_suspira_) Eu era uma criança; pouco maior era +que Maria. + +*Telmo*. Não, a senhora D. Maria ja é mais alta. + +*Magdalena*. É verdade, tem crescido de mais, e derepente n'estes dois +mezes ultimos... + +*Telmo*. Então! Tem treze annos feitos, é quasi uma senhora, está uma +senhora... (_áparte_) Uma senhora aquella... pobre menina! + +*Magdalena*, _com as lagrymas nos olhos_. Es muito amigo d'ella, Telmo? + +*Telmo*. Se sou! Um anjo como aquelle... uma viveza, um espirito!... e +então que coração! + +*Magdalena*. Filha da minha alma! (_pausa:--mudando de tom_) Mas olha, +meu Telmo, tórno a dizer-t'o: eu não sei como heide fazer para te dar +conselhos. Conheci-te de tam criança, de quando casei a... a... a +primeira vez--costumei-me a olhar para ti com tal respeito: ja então +eras o que hoje es, o escudeiro valido, o familiar quasi parente, o +amigo velho e provado de teus amos. + +*Telmo*, _internecido_. Não digaes mais, senhora, não me lembreis de +tudo o que eu era. + +*Magdalena*, _quasi offendida_. Porquê? não es hoje o mesmo, ou mais +ainda, se é possivel? Quitaram-te alguma coisa da confiança, do +respeito--do amor e carinho a que estava costumado o aio fiel de meu +senhor D. João de Portugal, que Deus tenha em glória? + +*Telmo*, _áparte_. Terá... + +*Magdalena*. O amigo e camarada antigo de seu pae? + +*Telmo*. Não, minha senhora, não, por certo. + +*Magdalena*. Então?... + +*Telmo*. Nada. Continuae, dizei, minha senhora. + +*Magdalena*. Pois está bem.--Digo que mal sei dar-vos conselhos, e não +queria dar-vos ordens... Mas, meu amigo, tu tomáste--e com muito gôsto +meu e de seu pae, um ascendente no espirito de Maria... tal que não +ouve, não cre, não sabe senão o que lhe dizes. Quasi que es tu a sua +donna, a sua aia de criação.--Parece-me... eu sei... não falles com ella +d'esse modo, n'essas coisas... + +*Telmo*. O quê? No que me disse o inglez, sôbre a sagrada Escriptura que +elles lá teem em sua lingua, e que?... + +*Magdalena*. Sim... n'isso decerto... e em tantas outras coisas tam +altas, tam fóra de sua edade, e muitas do seu sexo tambem, que aquella +criança está sempre a querer saber, a perguntar.--É a minha unica filha: +não tenho... nunca tivemos outra... e, além de tudo o mais, bem ves que +não é uma criança... muito... muito forte. + +*Telmo*. É... delgadinha, é. Hade inrijar. É tê-la por aqui, fóra +d'aquelles ares apestados de Lisboa; e deixae, que se hade pôr outra. + +*Magdalena*. Filha do meu coração! + +*Telmo*. E do meu.--Pois não se lembra, minha senhora, que ao principio, +era uma criança que eu não podia...--é a verdade, não a podia ver: ja +sabereis porquê... mas vê-la, era ver... Deus me perdoe!... nem eu +sei...--E d'ahi começou-me a crescer, a olhar para mim com aquelles +olhos... a fazer-me taes meiguices, e a fazer-se-me um anjo tal de +formosura e de bondade, que--vêdes-me aqui agora que lhe quero mais do +que seu pae. + +*Magdalena*, _surrindo_. Isso agora!... + +*Telmo*. Do que vós. + +*Magdalena*, _rindo_. Ora, meu Telmo! + +*Telmo*. Mais, muito mais. E veremos: tenho ca uma coisa que me diz que +antes de muito se hade ver quem é que quer mais á nossa menina n'esta +casa. + +*Magdalena*, _assustada_. Está bom; não entremos com os teus agouros e +prophecias do costume: são sempre de aterrar... Deixemo'-nos de +futuros... + +*Telmo*. Deixemos, que não são bons. + +*Magdalena*. E de passados tambem... + +*Telmo*. Tambem. + +*Magdalena*. E vamos ao que importa agora.--Maria tem uma +comprehensão... + +*Telmo*. Comprehende tudo! + +*Magdalena*. Mais do que convem. + +*Telmo*. Ás vezes. + +*Magdalena*. É preciso moderá-la. + +*Telmo*. É o que eu faço. + +*Magdalena*. Não lhe dizer... + +*Telmo*. Não lhe digo nada que não possa, que não deva saber uma +donzella honesta e digna de melhor... de melhor. + +*Magdalena*. Melhor quê? + +*Telmo*. De nascer em melhor estado.--Quizestes ouvi-lo... está ditto. + +*Magdalena*. Oh Telmo! Deus te perdoe o mal que me fazes. (_Desata a +chorar_.) + +*Telmo*, _ajoelhando e beijando-lhe a mão_. Senhora... senhora D. +Magdalena, minha ama, minha senhora... castigae-me... mandae-me ja +castigar, mandae-me cortar ésta lingua pêrra que não toma insino.--Oh +senhora, senhora!... é vossa filha, é a filha do senhor Manuel de +Sousa-Coutinho, fidalgo de tanto primor, e de tam boa linhagem como os +que se teem por melhores n'este reino, em toda Hespanha... A senhora D. +Maria... a minha querida D. Maria é sangue de Vilhenas e de Sousas; não +precisa mais nada, mais nada, minha senhora, para ser... para ser... + +*Magdalena*. Calae-vos, calae-vos, pelas dores de Jesus Christo, homem. + +*Telmo*, _soluçando_. Minha ricca senhora!... + +*Magdalena*, _inchuga os olhos, e toma uma attitude grave e firme_. +Levantae-vos, Telmo, e ouvi-me. (_Telmo levânta-se_) Ouvi-me com +attenção. É a primeira e será a última vez que vos fallo d'este modo e +em tal assumpto.--Vós fostes o aio e amigo de meu senhor... de meu +primeiro marido, o senhor D. João de Portugal; tinheis sido o +companheiro de trabalho e de glória de seu illustre pae, aquelle nobre +conde de Vimioso, que eu de tamanhinha me acostumei a reverenciar como +pae. Entrei depois n'essa familia de tanto respeito; achei-vos parte +d'ella, e quasi que vos tomei a mesma amizade que aos outros... +chegastes a alcançar um podêr no meu espirito, quasi maior...--decerto, +maior--que nenhum d'elles. O que sabeis da vida e do mundo, o que tendes +adquirido na conversação dos homens e dos livros--porêm, mais que tudo, +o que de vosso coração fui vendo e admirando cada vez mais--me fizeram +ter-vos n'uma conta, deixar-vos tomar, intregar-vos eu mesma tal +auctoridade n'esta casa e sôbre minha pessoa... que outros poderão +estranhar... + +*Telmo*. Emendae-o, senhora. + +*Magdalena*. Não, Telmo, não preciso nem quero emendá-lo.--Mas agora +deixae-me fallar.--Depois que fiquei so, depois d'aquella funesta +jornada de Africa que me deixou viuva, orphan e sem ninguem... sem +ninguem, e n'uma edade... com dezasette annos!--em vós, Telmo, em vós +so, achei o carinho e protecção, o amparo que eu precisava. Ficastes-me +em logar de pae: e eu... salvo n'uma coisa!--tenho sido para vós, +tenho-vos obedecido como filha. + +*Telmo*. Oh minha senhora, minha senhora! mas essa coisa em que vos +apartastes dos meus conselhos... + +*Magdalena*. Para essa houve podêr maior que as minhas fôrças... D. João +ficou n'aquella batalha com seu pae, com a flor da nossa gente. (_Signal +de impaciencia em Telmo_) Sabeis como chorei a sua perda, como respeitei +a sua memoria, como durante sette annos, incredula a tantas provas e +testimunhos de sua morte, o fiz procurar por essas costas de Berberia, +por todas as sejanas de Fez e Marrocos, por todos quantos aduares de +Alarves ahi houve... Cabedaes e valimentos, tudo se impregou; +gastaram-se grossas quantias; os embaixadores de Portugal e Castella +tiveram ordens apertadas de o buscar por toda a parte; aos padres da +Redempção, a quanto religioso ou mercador podia penetrar n'aquellas +terras, a todos se incommendava o seguir a pista do mais leve indício +que podésse desmentir, pôr em dúvida ao menos, aquella notícia que logo +viera com as primeiras novas da batalha de Alcacer. Tudo foi inutil; e a +ninguem mais ficou resto de dúvida... + +*Telmo*. Senão a mim. + +*Magdalena*. Dúvida de fiel servidor, esperança de leal amigo, meu bom +Telmo! que diz com vosso coração, mas que tem atormentado o meu...--E +então sem nenhum fundamento, sem o mais leve indício... Pois dizei-me em +consciencia, dizei-m'o de uma vez, claro e desinganado: a que se apéga +ésta vossa credulidade de sette... e hoje mais quatorze... vinte e um +annos? + +*Telmo*, _gravemente_. Ás palavras, ás formaes palavras d'aquella carta +escripta na propria madrugada do dia da batalha, e entregue a Frei Jorge +que vo-la trouxe.--«Vivo ou morto»--resava ella--vivo ou morto... Não me +esqueceu uma lettra d'aquellas palavras; e eu sei que homem era meu amo +para as escrever em vão:--«Vivo ou morto, Magdalena, heide ver-vos pelo +menos ainda uma vez n'este mundo.»--Não era assim que dizia? + +*Magdalena*, _aterrada_. Era. + +*Telmo*. Vivo não veiu... inda mal!--E morto... a sua alma, a sua +figura... + +*Magdalena*, _possuida de grande terror_. Jesus, homem! + +*Telmo*. Não vos appareceu, decerto. + +*Magdalena*. Não: credo! + +*Telmo*, _mysterioso_. Bem sei que não. Queria-vos muito; e a sua +primeira visita, como de razão, seria para minha senhora. Mas não se ia +sem apparecer tambem ao seu aio velho. + +*Magdalena*. Valha-me Deus, Telmo! Conheço que desarrazoaes, e comtudo +as vossas palavras mettem-me um medo... Não me façaes mais desgraçada. + +*Telmo*. Desgraçada! Porquê? não sois feliz na companhia do homem que +amaes, nos braços do homem a quem sempre quizestes mais sôbre +todos?--Que o pobre de meu amo... respeito, devoção, lealdade, tudo lhe +tivestes, como tam nobre e honrada senhora que sois... mas amor! + +*Magdalena*. Não está em nós da-lo, nem quitá-lo, amigo. + +*Telmo*. Assim é. Mas os ciumes que meu amo não teve nunca--bem sabeis +que têmpera d'alma era aquella--tenho-os eu... aqui está a verdade nua e +crua... tenho-os eu por elle: não posso, não posso ver... e desejo, +quero, forcejo por me acostumar... mas não posso. Manuel de Sousa... o +senhor Manuel de Sousa-Coutinho é guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom +portuguez... mas--mas não é, nunca hade ser, aquelle espelho de +cavallaria e gentilleza, aquella flor dos bons... Ah meu nobre amo, meu +sancto amo! + +*Magdalena*. Pois sim, tereis razão... tendes razão, será tudo como +dizeis. Mas reflecti, que haveis cabedal de intelligencia para +muito:--eu resolvi-me por fim a casar com Manuel de Sousa; foi do +apprazimento geral de nossas familias, da propria familia de meu +primeiro marido, que bem sabeis quanto me estima; vivemos (_com +affectação_) seguros, em paz e felizes... ha quatorze annos. Temos ésta +filha, ésta querida Maria que é todo o gôsto e ância da nossa vida. +Abençoou-nos Deus na formosura, no ingenho, nos dotes admiraveis +d'aquelle anjo... E tu, tu, meu Telmo, que es tam seu, que chegas a +pretender ter-lhe mais amor que nós mesmos... + +*Telmo*. Não, não tenho! + +*Magdalena*. Pois tens: melhor.--E es tu que andas, continuamente e +quasi por accinte, a sustentar essa chymera, a levantar esse phantasma, +cuja sombra, a mais remota, bastaria para innodoar a pureza d'aquella +innocente, para condemnar a eterna deshonra a mãe e a filha... (_Telmo +dá signaes de grande agitação_) Ora dize: ja pensastes bem no mal que +estás fazendo?--Eu bem sei que a ninguem n'este mundo, senão a mim, +fallas em taes coisas... fallas assim como hoje temos fallado... mas as +tuas palavras mysteriosas, as tuas allusões frequentes a esse desgraçado +rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quiz +acreditar que morrêsse, por quem ainda espera em sua leal +incredulidade!--esses continuos agouros em que andas sempre de uma +desgraça que está imminente sôbre a nossa familia... não ves que estás +excitando com tudo isso a curiosidade d'aquella criança, aguçando-lhe o +espirito--ja tam perspicaz!--a imaginar, a descobrir... quem sabe se a +accreditar n'essa prodigiosa desgraça em que tu mesmo... tu mesmo... +sim, não cres devéras? Não cres, mas achas não sei que doloroso prazer +em ter sempre viva e suspensa essa dúvida fatal. E então considera, ve: +se um terror similhante chega a entrar n'aquella alma, quem lh'o hade +tirar nunca mais?... O que hade ser d'ella e de nós?--Não a perdes, não +a mattas... não me mattas a minha filha? + +*Telmo*, _em grande agitação durante a falla precedente, fica pensativo +e aterrado: falla depois como para si_. É verdade que sim! A morte era +certa.--E não hade morrer: não, não, não, tres vezes não. (_Para +Magdalena_) Á fe de escudeiro honrado, senhora D. Magdalena, a minha +bôcca não se abre mais; e o meu espirito hade... hade fechar-se +tambem... (_Á parte_) Não é possivel, mas eu heide salvar o meu anjo do +ceu! (_Alto para Magdalena_) Está ditto, minha senhora. + +*Magdalena*. Ora Deus t'o pague,--Hoje é o último dia de nossa vida que +se falla em tal. + +*Telmo*. O último. + +*Magdalena*. Ora pois, ide, ide ver o que ella faz: (_levantando-se_) +que não esteja a ler ainda, a estudar sempre. (_Telmo vae a sahir_) E +olhae: chegae-me depois alli a San'Paulo, ou mandae, se não podeis... + +*Telmo*. Ao convento dos Dominicos? Pois não posso!... quatro passadas. + +*Magdalena*. E dizei a meu cunhado, a Frei Jorge-Coutinho, que me está +dando cuidado a demora de meu marido em Lisboa; que me prometteu de vir +antes de véspera, e não veiu; que é quasi noite, e que ja não estou +contente com a tardança. (_Chega á varanda, e olha para o rio_) O ar +está sereno, o mar tam quieto, e a tarde tam linda!... quasi que não ha +vento, é uma viração que affaga... Oh e quantas faluas navegando tam +garridas por esse Tejo! Talvez n'alguma d'ellas--n'aquella tam +bonita--venha Manuel de Sousa.--Mas n'este tempo não ha que fiar no +Tejo, d'um instante para o outro levanta-se uma nortada... e então aqui +o pontal de Cacilhas!--Que elle é tam bom mareante... Ora, um cavalleiro +de Malta! (_olha para o retratto com amor_) Não é isso o que me dá maior +cuidado. Mas em Lisboa ainda ha peste, ainda não estão limpos os ares... +E ess'outros ares que por ahi correm d'estas alterações públicas, +d'estas malquerenças entre castelhanos e portuguezes! Aquelle character +inflexivel de Manuel de Sousa traz-me n'um susto contínuo.--Vai, vai a +Frei Jorge, que diga se sabe alguma coisa, que me assocegue, se podér. + + +SCENA III + +MAGDALENA, TELMO, MARIA + + +*Maria*, _entrando com umas flores na mão, incôntra-se com Telmo, e o +faz tornar para a scena_. Bonito! Eu ha mais de meia hora no eirado +passeando--e sentada a olhar para o rio a ver as faluas e os bergantins +que andam para baixo e para cima--e ja abhorrecida de esperar... e o +senhor Telmo, aqui pôsto a conversar com minha mãe, sem se importar de +mim!--Que é do romance que me promettestes? não é o da batalha, não é o +que diz: + + Postos estão, frente a frente, + Os dois valorosos campos; + +é o outro, é o da ilha incoberta onde está elrei D. Sebastião, que não +morreu e que hade vir um dia de névoa muito cerrada... Que elle não +morreu; não é assim, minha mãe? + +*Magdalena*. Minha querida filha, tu dizes coisas? Pois não tens ouvido, +a teu tio Frei Jorge e a teu tio Lopo de Sousa, contar tantas vezes como +aquillo foi? O povo coitado imagina essas chymeras para se consolar na +desgraça. + +*Maria*. Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: elles que andam +tam crentes n'isto, alguma coisa hade ser. Mas ora o que me dá que +pensar é ver que, tirado aqui o meu bom velho Telmo, (_chêga-se toda +para elle, acarinhando-o_) ninguem n'esta casa gosta de ouvir fallar em +que escapásse o nosso bravo rei, o nosso sancto rei D. Sebastião.--Meu +pae, que é tam bom portuguez, que não póde soffrer estes castelhanos, e +que até ás vezes dizem que é demais o que elle faz e o que elle falla... +em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião... ninguem +tal hade dizer, mas põe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo +e carrancudo: parece que o vinha affrontar, se voltásse, o pobre do +rei.--Ó minha mãe, pois elle não é por D. Filippe; não é, não? + +*Magdalena*. Minha querida Maria, que tu hasde estar sempre a imaginar +n'essas coisas que são tam pouco para a tua edade! Isso é o que nos +afflige, a teu pae e a mim; queria-te ver mais alegre, folgar mais, e +com coisas menos... + +*Maria*. Então, minha mãe, então!--Veem, veem?... tambem minha mãe não +gosta. Oh! essa ainda é peor, que se afflige, chora... ella ahi está a +chorar... ella ahi está a chorar... (_vai-se abraçar com a mãe que +chora_) Minha querida mãe, ora pois então!--Vai-te embora, Telmo, +vai-te: não quero mais fallar, nem ouvir fallar de tal batalha, nem de +taes histórias, nem de coisa nenhuma d'essas.--Minha querida mãe! + +*Telmo*. E é assim: não se falla mais n'isso. E eu vou-me embora. (_Á +parte, indo-se depois de lhe tomar as mãos_) Que febre que ella tem +hoje, meu Deus! queimam-lhe as mãos... e aquellas rosetas nas faces... +Se o perceberá a pobre da mãe! + + +SCENA IV + +MAGDALENA, MARIA + + +*Maria*. Quereis vós saber, mãe, uma tristeza muito grande que eu +tenho?--A mãe ja não chora, não? ja se não infada commigo? + +*Magdalena*. Não me infado comtigo nunca, filha; e nunca me affliges, +querida. O que tenho é o cuidado que me dás, é o receio de que... + +*Maria*. Pois ahi está a minha tristeza: é esse cuidado em que vos vejo +andar sempre por minha causa. Eu não tenho nada; e tenho saude, olhae +que tenho muita saude. + +*Magdalena*. Tens, filha... se Deus quizer, hasde ter; e hasde viver +muitos annos para consolação e amparo de teus paes que tanto te querem. + +*Maria*. Pois olhae: passo noites inteiras em claro a lidar n'isto, e a +lembrar-me de quantas palavras vos tenho ouvido, e a meu pae... e a +recordar-me da mais pequena acção e gesto,--e a pensar em tudo, a ver se +descubro o que isto é--o porque tendo-me tanto amor... que, oh isso +nunca houve decerto filha querida como eu!... + +*Magdalena*. Não, Maria. + +*Maria*. Pois sim; tendo-me tanto amor, que nunca houve outro egual, +estaes sempre n'um sobresalto commigo?... + +*Magdalena*. Pois se te estremecêmos? + +*Maria*. Não é isso, não é isso: é que vos tenho lido nos olhos... Oh, +que eu leio nos olhos, leio, leio!... e nas estrêllas do ceu tambem--e +sei coisas... + +*Magdalena*. Que estás a dizer, filha, que estás a dizer? que desvarios! +Uma menina do teu juizo, temente a Deus... não te quero ouvir fallar +assim.--Ora vamos: anda ca, Maria, conta-me do teu jardim, das tuas +flores. Que flores tens tu agora? O que são éstas? (_pegando nas que +ella traz na mão_) + +*Maria*, _abrindo a mão e deixando-as cahir no regaço da mãe_. Murchou +tudo... tudo estragado da calma... Éstas são papoulas que fazem dormir, +colhi-as para as metter debaixo do meu cabeçal ésta noite; quero-a +dormir de um somno, não quero sonhar, que me faz ver coisas... lindas ás +vezes, mas tam extraordinarias e confusas... + +*Magdalena*. Sonhar, sonhas tu acordada, filha! Que, olha, Maria, +imaginar é sonhar: e Deus pôs-nos n'este mundo para velar e +trabalhar--com o pensamento sempre n'elle sim, mas sem nos extranharmos +a éstas coisas da vida que nos cercam, a éstas necessidades que nos +impõe o estado, a condicção em que nascêmos. Ves tu, Maria: tu es a +nossa unica filha, todas as esperanças de teu pae são em ti... + +*Maria*. E não lh'as posso realizar, bem sei.--Mas que heide eu fazer? +eu estudo, leio... + +*Magdalena*. Les demais, cânças-te, não te distraes como as outras +donzellas da tua edade, não es... + +*Maria*. O que eu sou... só eu o sei, minha mãe... E não sei, não: não +sei nada, senão que o que devia ser não sou...--Oh! porque não havia de +eu ter um irmão que fosse um galhardo e valente mancebo, capaz de +commandar os terços de meu pae, de pegar n'uma lança d'aquellas com que +os nossos avós corriam a India, levando adeante de si Turcos e Gentios! +um bello moço que fosse o retratto proprio d'aquelle gentil cavalleiro +de Malta que alli está. (_Apontando para o retratto_) Como elle era +bonito meu pae! Como lhe ficava bem o preto!... e aquella cruz tam alva +em cima! Paraque deixou elle o hábito, minha mãe, porque não ficou +n'aquella sancta religião, a vogar em suas nobres galeras, por esses +máres, e a affugentar os infieis deante da bandeira da Cruz? + +*Magdalena*. Oh filha, filha!... (_Mortificada_) porque não foi vontade +de Deus: tinha de ser d'outro modo.--Tomára eu agora que elle chegásse +de Lisboa! Comeffeito é muito tardar... valha-me Deus! + + +SCENA V + +JORGE, MAGDALENA, MARIA + + +*Jorge*. Ora seja Deus n'esta casa! + +(Maria beija-lhe o escapulario e depois a mão; Magdalena somente o +escapulario.) + +*Magdalena*. Sejaes bem vindo, meu irmão! + +*Maria*. Boas tardes, tio Jorge! + +*Jorge*. Minha senhora mana!--A bençam de Deus te cubra, filha!--Tambem +estou desassocegado como vós, mana Magdalena: mas não vos afflijaes, +espero que não hade ser nada.--É certo que tive umas notícias de +Lisboa... + +*Magdalena*, _assustada_. Pois que é, que foi? + +*Jorge*. Nada, não vos assusteis; mas é bom que estejaes prevenida, por +isso vo-lo digo. Os governadores querem sair da cidade... é um capricho +verdadeiro... Depois de aturarem mettidos alli dentro toda a fôrça da +peste, agora que ella está, se póde dizer, acabada, que são rarissimos +os casos, é que por fôrça querem mudar de ares. + +*Magdalena*. Pois coitados!... + +*Maria*. Coitado do povo!--Que mais valem as vidas d'elles? Em pestes e +desgraças assim, eu intendia, se governásse, que o serviço de Deus e do +rei me mandava ficar, até á última, onde a miseria fosse mais e o perigo +maior, para attender com remedio e amparo aos necessitados.--Pois, rei +não quer dizer pae commum de todos? + +*Jorge*. A minha donzella Theodora!--Assim é, filha; mas o mundo é +d'outro modo: que lhe faremos? + +*Maria*. Emendá-lo. + +*Jorge*, _para Magdalena, baixo_. Sabeis que mais? Tenho medo d'esta +criança. + +*Magdalena*, _do mesmo modo_. Tambem eu. + +*Jorge*, _alto_. Mas emfim, resolveram sahir: e sabereis mais que, para +côrte e «buen-retiro» dos nossos cinco reis, os senhores governadores de +Portugal por D. Filippe de Castella que Deus guarde, foi escolhida ésta +nossa boa villa d'Almada, que o deveu á fama de suas aguas sadias, ares +lavados e graciosa vista. + +*Magdalena*. Deixá-los vir. + +*Jorge*. Assim é: que remedio! Mas ouvi o resto. O nosso pobre convento +de San'Paulo tem de hospedar o senhor arcebispo D. Miguel de Castro, +presidente do govêrno.--Bom prelado é elle; e, se não fosse que nos tira +do humilde socêgo de nossa vida, por vir como senhor e principe +secular... o mais, paciencia. Peior é o vosso caso... + +*Magdalena*. O meu! + +*Jorge*. O vosso e de Manuel de Sousa: porque os outros quatro +governadores--e aqui está o que me mandaram dizer em muito segrêdo de +Lisboa--dizem que querem vir para ésta casa, e pôr aqui aposentadoria. + +*Maria*, _com vivacidade_. Fechâmos-lhes as portas. Mettêmos a nossa +gente dentro--o terço de meu pae tem mais de seiscentos homens--e +defendêmo'-nos. Pois não é uma tyrannia?...--E hade ser bonito!... +Tomára eu ver seja o que for que se pareça com uma batalha! + +*Jorge*. Louquinha! + +*Magdalena*. Mas que mal fizemos nós ao conde de Sabugal e aos outros +governadores, para nos fazerem esse desacato? Não ha por ahi outras +casas; e elles não sabem que n'esta ha senhoras, uma familia... e que +estou eu aqui?... + +*Maria*, _que esteve com o ouvido inclinado para a janella_. É a voz de +meu pae! Meu pae que chegou. + +*Magdalena*, _sobresaltada_. Não oiço nada. + +*Jorge*. Nem eu, Maria. + +*Maria*. Pois oiço eu muito claro. É meu pae que ahi vem... e vem +affrontado! + + +SCENA VI + +JORGE, MAGDALENA, MARIA, MIRANDA + + +*Miranda*. Meu senhor chegou: vi agora d'aquelle alto entrar um +bergantim que é por fôrça o nosso. Estaveis com cuidado; e era para +isso, que ja vai a cerrar-se a noite... Vim trazer-vos depressa a +notícia. + +*Magdalena*. Obrigada, Miranda.--É extraordinaria ésta criança; ve e +ouve em taes distâncias... + +(Maria tem sahido para o eirado, mas volta logo depois.) + +*Jorge*. É verdade. (_Á parte_) Terrivel signal n'aquelles annos e com +aquella compleição! + + +SCENA VII + +JORGE, MAGDALENA, MARIA, MIRANDA, MANUEL DE SOUSA _entrando com varios +criados que o seguem--alguns com brandões accesos.--É noite fechada_. + + +*Manuel*, _parando juncto da porta, para os criados_. Façam o que lhes +disse. Ja, sem mais detença! Não apaguem esses brandões; incostem-n'os +ahi fóra no patim. E tudo o mais que eu mandei.--(_Vindo ao proscenio_) +Magdalena! Minha querida filha, minha Maria! (_Abraça-as_) Jorge, ainda +bem que aqui estás, preciso de ti: bem sei que é tarde e que são horas +conventuaes; mas eu irei depois comtigo dizer a «mea culpa» e o +«peccavi» ao nosso bom prior.--Miranda, vinde ca. (_Vai com elle á porta +da esquerda, depois ás do eirado, e dá-lhe algumas ordens baixo_.) + +*Magdalena*. Que tens tu? nunca entraste em casa assim. Tens coisa que +te dá cuidado... e não m'o dizes? O que é? + +*Manuel*. É que... Senta-te, Magdalena; aqui aopé de mim, Maria; Jorge, +sentemo'-nos que estou cançado. (_Sentam-se todos_) Pois agora sabei as +novidades, que seriam extranhas se não fosse o tempo em que vivêmos. +(_Pausa_) É preciso sahir ja d'esta casa, Magdalena. + +*Maria*. Ah! inda bem, meu pae! + +*Manuel*. Inda mal! mas não ha outro remedio. Sahiremos ésta noite +mesma. Ja dei ordens a toda a familia: Teimo foi avisar as tuas aias do +que haviam de fazer, e lá anda pelas cameras velando n'esse cuidado. +Sempre é bom que vas dar um relance d'olhos ao que por lá se faz: eu +tambem irei por minha parte.--Mas temos tempo: isto são oito horas, á +meia noite vão quatro; d'aqui lá o pouco que me importa salvar estará +salvo... e elles não virão antes da manhan. + +*Magdalena*. Então sempre é verdade que Luiz de Moura e os outros +governadores?... + +*Manuel*. Luiz de Moura é um villão ruim, faz como quem é: o arcebispo +é... o que os outros querem que elle seja. Mas o conde de Sabugal, o +conde de Sancta-Cruz, que deviam olhar por quem são, e que tomaram este +incargo odioso... e vil, de opprimir os seus naturaes em nome de um rei +extrangeiro!... Oh que gente, que fidalgos portuguezes!... Heide-lhes +dar uma licção, a elles, e a este escravo d'este povo que os soffre, +como não levam tyrannos ha muito tempo n'esta terra. + +*Maria*. O meu nobre pae! Oh, o meu querido pae! Sim, sim, mostrae-lhes +quem sois e o que vale um portuguez dos verdadeiros. + +*Magdalena*. Meu adorado espôso, não te deites a perder, não te +arrebates. Que farás tu contra esses poderosos? Elles ja te querem tam +mal pelo mais que tu vales que elles, pelo teu saber--que esses grandes +fingem que desprezam... mas não é assim, o que elles teem é inveja!--O +que fará, se lhes deres pretexto para se vingarem da affronta em que os +traz a superioridade do teu merito!--Manuel, meu espôso, Manuel de +Sousa, pelo nosso amor... + +*Jorge*. Tua mulher tem razão. Prudencia, e lembra-te de tua filha. + +*Manuel*. Lembro-me de tudo, deixa estar.--Não te inquietes, Magdalena: +elles querem vir para aqui ámanhan de manhan; e nós forçosamente havemos +de sahir antes d'elles entrarem. Por isso é preciso ja. + +*Magdalena*. Mas para onde iremos nós, derepente, a éstas horas? + +*Manuel*. Para a unica parte para onde podêmos ir: a casa não é minha... +mas é tua, Magdalena. + +*Magdalena*. Qual?... a que foi?... a que péga com San'Paulo?... Jesus +me valha! + +*Jorge*. E fazem muito bem: a casa é larga e está em bom reparo, tem +ainda quasi tudo de trastes e paramentos necessarios: pouco tereis que +levar comvosco.--E então para mim, para os nossos padres todos que +alegria! Ficâmos quasi debaixo dos mesmos telhados.--Sabeis que tendes +alli tribuna para a capella da Senhora da Piedade, que é a mais devota e +a mais bella de toda a egreja... Ficâmos como vivendo junctos. + +*Maria*. Tomára-me eu ja lá. (_Levânta-se pulando_.) + +*Manuel*. E são horas, vamos a isto. (_Levantando-se_.) + +*Magdalena*, _vindo para elle_. Ouve, escuta, que tenho que te dizer; +por quem es, ouve: não haverá algum outro modo? + +*Manuel*. Qual, senhora, e que lhe heide eu fazer? Lembrae vós, vêde se +achaes. + +*Magdalena*. Aquella casa... eu não tenho ânimo... Olhae: eu preciso de +fallar a sos comvosco.--Frei Jorge, ide com Maria ahi para dentro; tenho +que dizer a vosso irmão. + +*Maria*. Tio, venha, quero ver se me accommodam os meus livrinhos; +(_confidencialmente_) e os meus papeis, que eu tambem tenho papeis: +deixae que lá na outra casa vos heide mostrar... Mas segrêdo? + +*Jorge*. Tontinha! + + +SCENA VIII + +MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA + + +*Manuel*. _passeia agitado de um lado para o outro da scena, com as mãos +cruzadas detrás das costas, e parando derepente_: Hade saber-se no mundo +que ainda ha um portuguez em Portugal. + +*Magdalena*. Que tens tu, dize, que tens tu? + +*Manuel*. Tenho que não heide soffrer ésta affronta... e que é preciso +sahir d'esta casa, senhora. + +*Magdalena*. Pois sahiremos, sim: eu nunca me oppuz ao teu querer, nunca +soube que coisa era ter outra vontade differente da tua; estou prompta a +obedecer-te sempre, cegamente, em tudo. Mas, oh! espôso da minha alma... +para aquella casa não, não me leves para aquella casa. (_Deitando-lhe os +braços ao pescoço_.) + +*Manuel*. Ora tu não eras costumada a ter caprichos! Não temos outra +para onde ir: e a éstas horas, n'este appêrto... Mudaremos depois, se +quizeres... mas não lhe vejo remedio agora.--E a casa que tem? Porque +foi de teu primeiro marido! é por mim que tens essa repugnancia? Eu +estimei e respeitei sempre a D. João de Portugal; honro a sua memória, +por ti, por elle e por mim; e não tenho na consciencia por que receie +abrigar-me debaixo dos mesmos tectos que o cobriram.--Viveste alli com +elle? Eu não tenho ciumes de um passado que me não pertencia. E o +presente, esse é meu, meu so, todo meu, querida Magdalena... Não +fallêmos mais n'isso; é preciso partir, e ja. + +*Magdalena*. Mas é que tu não sabes... eu não sou melindrosa nem de +invenções: em tudo o mais sou mulher, e muito mulher, querido; n'isso +não... mas tu não sabes a violencia, o constrangimento d'alma, o terror +com que eu penso em ter de entrar n'aquella casa. Parece-me que é voltar +ao podêr d'elle, que é tirar-me dos teus braços, que o vou incontrar +alli...--oh perdoa, perdoa-me, não me sái ésta idea da cabeça...--que +vou achar alli a sombra despeitosa de D. João que me está ameaçando com +uma espada de dous gumes... que a atravessa no meio de nós, entre mim e +ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre...--Que queres...? +bem sei que é loucura; mas a idea de tornar a morar alli, de viver alli +comtigo e com Maria, não posso com ella. Sei de certo que vou ser +infeliz, que vou morrer n'aquella casa funesta, que não estou alli tres +dias, tres horas sem que todas as calamidades do mundo venham sôbre +nós.--Meu esposo, Manuel, marido da minha alma, pelo nosso amor t'o +peço, pela nossa filha... vamos seja para onde for, para a cabana de +algum pobre pescador d'esses contornos, mas para alli não, oh! não. + +*Manuel*. Em verdade nunca te vi assim; nunca pensei que tivesses a +fraqueza de accreditar em agouros. Não ha senão um temor justo, +Magdalena, é o temor de Deus; não ha espectros que nos possam apparecer +senão os das más acções que fazemos. Que tens tu na consciencia que t'os +faça temer? O teu coração e as tuas mãos estão puras: para os que andam +deante de Deus, a terra não tem sustos, nem o inferno pavores que se +lhes attrevam. Rezaremos por alma de D. João de Portugal n'essa devota +capella que é parte da sua casa; e não hajas mêdo que nos venha +perseguir n'este mundo aquella sancta alma que está no ceu, e que em tam +sancta batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou martyr ás +mãos dos infieis.--Vamos, D. Magdalena de Vilhena, lembrae-vos de quem +sois e de quem vindes, senhora... e não me tires, querida mulher, com +vans chymeras de crianças, a tranquillidade do espirito e a fôrça do +coração, que as preciso inteiras n'esta hora. + +*Magdalena*. Pois que vais tu fazer? + +*Manuel*. Vou, ja te disse, vou dar uma licção aos nossos tyrannos que +lhes hade lembrar, vou dar um exemplo a este povo que o hade allumiar... + + +SCENA IX + +MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, TELMO, MIRANDA e outros criados, _entrando +apressadamente_. + + +*Telmo*. Senhor, desimbarcaram agora grande comitiva de fidalgos, +escudeiros e soldados que veem de Lisboa e sobem a incosta para a villa. +O arcebispo não é decerto, ja ca está ha muito no convento: diz-se por +ahi... + +*Manuel*. Que são os governadores? (_Telmo faz um signal affirmativo_.) +Quizeram-me inganar, e appressam-se a vir hoje... parece que +adivinharam... Mas não me colheram desapercebido. (_Chama á porta da +esquerda_) Jorge, Maria! (_Volta para a scena_) Magdalena, ja, ja sem +mais demora. + + +SCENA X + +MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, TELMO, MIRANDA e os outros criados; JORGE e +MARIA _entrando_. + + +*Manuel*. Jorge, acompanha éstas damas. Telmo, ide, ide com +ellas.--(_Para os outros criados_) Partiu ja tudo, as arcas, os meus +cavallos, armas e tudo o mais? + +*Miranda*. Quasi tudo foi ja; o pouco que falta está prompto e sahirá +n'um instante... pela porta detrás, se quereis. + +*Manuel*. Bom; que sáia. (_A um signal de Miranda sahem dois criados_.) +Magdalena, Maria, não vos quero ver aqui mais. Ja, ide; serei comvosco +em pouco tempo. + + +SCENA XI + +MANUEL DE SOUSA, MIRANDA e os outros criados. + + +*Manuel*. Meu pae morreu desastrosamente cahindo sôbre a sua propria +espada; quem sabe se eu morrerei nas chammas ateadas por minhas mãos? +Seja. Mas fique-se aprendendo em Portugal como um homem de honra e +coração, por mais poderosa que seja a tyrannia, sempre lhe póde +resistir, em perdendo o amor a coisas tam vis e precarias como são esses +haveres que duas faiscas destroem n'um momento... como é ésta vida +miseravel que um sôpro póde apagar em menos tempo ainda! (_Arrebata duas +tochas das mãos dos criados, corre á porta da esquerda, atira com uma +para dentro: e ve-se atear logo uma lavareda immensa. Vai ao fundo, +atira a outra tocha; e succede o mesmo. Ouve-se alarido de fóra_.) + + +SCENA XII + +MANUEL-DE-SOUSA e criados: MAGDALENA, MARIA, TELMO E JORGE _accudindo_. + + +*Magdalena*. Que fazes?... que fizeste?--Que é isto, oh meu Deus! + +*Manuel*, _tranquillamente_. Illumino a minha casa para receber os muito +poderosos e excelentes senhores governadores d'estes reinos. Suas +excellencias podem vir quando quizerem. + +*Magdalena*. Meu Deus, meu Deus!... Ai, e o retratto de meu marido!... +Salvem-me aquelle retratto. + +(_Miranda e outro criado vão para tirar o painel; uma columna de fogo +salta nas tapeçarias e os afugenta_.) + +*Manuel*. Parti, parti. As materias inflammaveis que eu tinha disposto +vão-se ateando com espantosa velocidade. Fugi. + +*Magdadena*, _cingindo-se ao braço do marido_. Sim, sim, fujamos. + +*Maria*, _tomando-o do outro braço_. Meu pae, nós não fugimos sem vós. + +(_Redobram os gritos de fóra, ouve-se rebate de sinos; cai o panno_.) + + + + +ACTO SEGUNDO + + +_É no palacio que fôra de D. João de Portugal, em Almada: salão antigo +de gôsto melancholico e pesado, com grandes retrattos de familia, muitos +de corpo inteiro, bispos, donnas, cavalleiros, monges; estão em logar +mais conspicuo, no fundo, o d'elrei D, Sebastião, o de Camões e o de D. +João de Portugal. Portas do lado direito para o exterior, do esquerdo +para o interior, cobertas de reposteiros com as armas dos condes de +Vimioso. São as antigas da casa de Bragança, uma aspa vermelha sôbre +campo de prata com cinco escudos do reino, um no meio e os quatro nos +quatros extremos da aspa; em cada braço e entre os dois escudos uma cruz +floreteada, tudo do modo que trazem actualmente os duques de Cadaval; +sôbre o escudo coroa de conde. No fundo um reposteiro muito maior e com +as mesmas armas cobre as portadas da tribuna que deita sôbre a capella +da Senhora da Piedade na egreja de San'Paulo dos dominicos d'Almada_. + + +SCENA I + +MARIA e TELMO + + +*Maria*, _sahindo pela porta da esquerda e trazendo pela mão a Telmo, +que parece vir de pouca vontade_. Vinde, não façaes bulha, que minha mãe +ainda dorme. Aqui, aqui n'esta sala é que quero conversar. E não teimes, +Telmo, que fiz tenção e acabou-se. + +*Telmo*. Menina!... + +*Maria*. «Menina e môça me levaram de casa de meu pae:» é o principio +d'aquelle livro tam bonito que minha mãe diz que não intende: intendo-o +eu.--Mas aqui não ha menina nem môça; e vós, senhor Telmo-Paes, meu fiel +escudeiro, «faredes o que mandado vos é.»--E não me repliques, que então +altercâmos, faz-se bulha, e acorda minha mãe, que é o que eu não quero. +Coitada! Ha oito dias que aqui estamos n'esta casa, e é a primeira noite +que dorme com socêgo. Aquelle palacio a arder, aquelle povo a gritar, o +rebate dos sinos, aquella scena toda... oh! tam grandiosa e sublime, que +a mim me encheu de maravilha, que foi um espectaculo como nunca vi outro +de egual majestade!... á minha pobre mãe atterrou-a, não se lhe tira dos +olhos: vai a fechá-los para dormir, e diz que ve aquellas chammas +innoveladas em fummo a rodear-lhe a casa, a crescer para o ar, e a +devorar tudo com furia infernal... O retratto de meu pae, aquelle do +quarto de lavor tam seu favorito, em que elle estava tam gentil homem, +vestido de cavalleiro de Malta com a sua cruz branca no peito--aquelle +retratto não se póde consolar de que lh'o não salvassem, que se +queimásse alli. Ves tu? ella que não cria em agouros, que sempre me +estava a reprehender pelas minhas scismas, agora não lhe sái da cabeça +que a perda do retratto é prognostico fatal de outra perda maior que +está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de +separar de meu pae.--E eu agora é que faço de forte e assizada, que +zombo de agouros e de sinnas... para a animar, coitada!... que aqui +entre nós, Telmo, nunca tive tanta fe n'elles. Creio, oh se creio! que +são avisos que Deus nos manda para nos preparar.--E ha... oh! ha grande +desgraça a cahir sôbre meu pae... decerto! e sôbre minha mãe tambem, que +é o mesmo. + +*Telmo*, _disfarçando o terror de que está tomado_. Não digaes isso... +Deus hade fazê-lo por melhor, que lh'o merecem ambos. (_Cobrando ânimo e +exaltando-se_) Vosso pae, D. Maria, é um portuguez ás direitas. Eu +sempre o tive em boa conta; mas agora, depois que lhe vi fazer aquella +acção,--que o vi, com aquella alma de portuguez velho, deitar a mão ás +tochas, e lançar elle mesmo o fogo á sua propria casa; queimar e +destruir n'uma hora tanto do seu haver, tanta coisa de seu gôsto, para +dar um exemplo de liberdade, uma licção tremenda a estes nossos +tyrannos... oh minha querida filha, aquillo é um homem. A minha vida que +elle queira é sua. E a minha pena, toda a minha pena é que o não +conheci, que o não estimei sempre no que elle valia. + +*Maria*, _com as lagrymas nos olhos, e tomando-lhe as mãos_. Meu Telmo, +meu bom Telmo!... É uma glória ser filha de tal pae: não é? dize. + +*Telmo*. Sim é: Deus o defenda! + +*Maria*. Deus o defenda! amen.--E elles, os tyrannos governadores ainda +estarão muito contra meu pae? Ja soubeste hoje alguma coisa, das +diligências do tio Frei Jorge? + +*Telmo*. Ja, sim. Vão-se desvanecendo--ainda bem!--os agouros de vossa +mãe... hãode sahir falsos de todo. O arcebispo, o conde de Sabugal, e os +outros, ja vosso tio os trouxe á razão, ja os moderou. Miguel de Moura é +que ainda está renitente; mas hade-lhe passar. Por estes dias fica tudo +socegado. Ja o estava se elle quizesse dizer que o fogo tinha pegado por +acaso. Mas ainda bem que o não quiz fazer; era desculpar com a villania +de uma mentira o generoso crime por que o perseguem. + +*Maria*. Meu nobre pae!--Mas quando hade elle sahir d'aquelle omizio? +Passar os dias retirado n'essa quinta tam triste d'além do Alfeite, e +não podêr vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que +perigo! + +*Telmo*. Perigo nenhum; todos o sabem e fecham os olhos. Agora é so +conservar as apparencias ahi mais uns dias, e depois fica tudo como +d'antes. + +*Maria*. Ficará, póde ser, Deus queira que seja!--Mas tenho ca uma coisa +que me diz que aquella tristeza de minha mãe, aquelle susto, aquelle +terror em que está--e que ella disfarça com tanto trabalho na presença +de meu pae (tambem a mim m'o queria incobrir, mas agora ja não póde, +coitada!) aquillo é presentimento de desgraça grande...--Oh! mas é +verdade... vinde ca: (_Leva-o deante dos tres retrattos que estão no +fundo; e apontando para o de D. João_) de quem é este retratto aqui, +Telmo? + +*Telmo*, _olha, e víra a cara de repente_. Esse é... hade ser... é um da +familia, d'estes senhores da casa de Vimioso que aqui estão tantos. + +*Maria*, _ameaçando-o com o dedo_. Tu não dizes a verdade, Telmo. + +*Telmo*, _quasi offendido_. Eu nunca menti, senhora D. Maria de Noronha. + +*Maria*. Mas não diz a verdade toda o senhor Telmo-Paes; que é quasi o +mesmo. + +*Telmo*. O mesmo!... Disse-vos o que sei, e o que é verdade; é um +cavalleiro da familia de meu outro amo que Deus... que Deus tenha em bom +logar. + +*Maria*. E não tem nome o cavalleiro? + +*Telmo*, _imbaraçado_. Hade ter: mas eu é que... + +*Maria*, _como quem lhe vai tapar a bôcca_. Agora é que tu ias mentir de +todo... cala-te.--Não sei para que são estes mysterios: cuidam que eu +heide ser sempre criança!--Na noite que viemos para ésta casa, no meio +de toda aquella desordem, eu e minha mãe entrámos por aqui dentro sos e +viemos ter a ésta sala. Estava alli um brandão acceso, incostado a uma +d'essas cadeiras que tinham pôsto no meio da casa; dava todo o clarão da +luz n'aquelle retratto... Minha mãe, que me trazia pela mão, põe +derepente os olhos n'elle, e dá um grito, oh meu Deus!... ficou tam +perdida de susto, ou não sei de quê, que me ia cahindo em cima. +Pergunto-lhe o que é; não me respondeu: arrebata da tocha, e leva-me com +uma fôrça... com uma pressa a correr por essas casas, que parecia que +vinha alguma coisa má atrás de nós.--Ficou n'aquelle estado em que a +temos visto ha oito dias, e não lhe quiz fallar mais em tal. Mas este +retratto que ella não nomeia nunca de quem é, e so diz assim ás vezes: +«O outro, o outro...» este retratto, e o de meu pae que se queimou, são +duas imagens que lhe não sahem do pensamento. + +*Telmo*, _com anciedade_. E ésta noite ainda lidou muito n'isso? + +*Maria*. Não; desde hontem pela tarde, que ca esteve o tio Frei Jorge e +a animou com muitas palavras de consolação e de esperança em Deus, e que +lhe disse do que contava abrandar os governadores, minha mãe ficou +outra; passou-lhe de todo, ao menos até agora.--Mas então, vamos, tu não +me dizes do retratto? Olha: (_designando o d'elrei D. Sebastião_) +aquelle do meio, bem sabes se o conhecerei: é o do meu querido e amado +rei D. Sebastião. Que majestade! que testa aquella tam austera, mesmo +d'um rei môço e sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou ao serio o +cargo de reinar, e jurou que hade ingrandecer e cobrir de glória o seu +reino! Elle alli está... E pensar que havia de morrer ás mãos de mouros, +no meio de um deserto, que n'uma hora se havia de apagar toda a ousadia +reflectida que está n'aquelles olhos rasgados, no apertar d'aquella +bôcca!... Não póde ser, não póde ser. Deus não podia consentir em tal. + +*Telmo*. Que Deus te ouvisse, anjo do ceu! + +*Maria*. Pois não ha prophecias que o dizem? Ha, e eu creio n'ellas. E +tambem creio n'aquell'outro que alli está; (_indica o retratto de +Camões_) aquelle teu amigo com quem tu andáste lá pela India, n'essa +terra de prodigios e bizarrias, por onde elle ia... como é? ah, sim... + +«N[~u]a mão sempre a espada e n'outra a penna...» + +*Telmo*. Oh! o meu Luiz, coitado! bem lh'o pagaram. Era um rapaz, mais +moço do que eu, muito mais... e quando o vi a última vez... foi no +alpendre de San'Domingos em Lisboa--parece-me que o estou a ver--tam mal +trajado, tam incolhido... elle que era tam desimbaraçado e galan... e +então velho! velho alquebrado,--com aquelle ôlho que valia por dois, mas +tam summido e incovado ja, que eu disse commigo: «Ruim terra te comerá +cedo, corpo da maior alma que deitou Portugal!»--E dei-lhe um abraço... +foi o último... Elle pareceu ouvir o que me estava dizendo o pensamento +ca por dentro, e disse-me: «Adeus, Telmo! San'Telmo seja commigo n'este +cabo da navegação... que ja vejo terra, amigo»--e apontou para uma cova +que alli se estava a abrir.--Os frades resavam o officio dos mortos na +egreja... Elle entrou para lá, e eu fui-me embora. D'ahi a um mez, +vieram-me aqui dizer: «Lá foi Luiz de Camões n'um lençol para +Sant'Anna.» E ninguem mais fallou n'elle. + +*Maria*. Ninguem mais!... Pois não tem aquelle livro que é para dar +memória aos mais esquecidos? + +*Telmo*. O livro sim: acceitaram-n'o como o tributo de um escravo. Estes +riccos, estes grandes, opprimem e desprezam tudo o que não são as suas +vaidades, tomaram o livro como uma coisa que lhes fizesse um servo seu e +para honra d'elles. O servo, acabada a obra, deixaram-n'o morrer ao +desamparo sem lhe importar com isso... Quem sabe se folgaram? podia +pedir-lhes uma esmolla--escusavam de se incommodar a dizer que não. + +*Maria*, _com enthusiasmo_. Está no ceu.--Que o ceu fez-se para os bons +e para os infelizes, para os que ja ca da terra o adivinharam!--Este lia +nos mysterios de Deus; as suas palavras são de propheta. Não te lembras +o que lá diz do nosso rei D. Sebastião?... como havia de elle então +morrer? Não morreu. (_Mudando de tom_) Mas o outro, o outro... quem é +est'outro, Telmo? Aquelle aspecto tam triste, aquella expressão de +melancholia tam profunda... aquellas barbas tam negras e cerradas... e +aquella mão que descança na espada como quem não tem outro arrimo, nem +outro amor n'esta vida... + +*Telmo*, _deixando-se surprehender_. Pois tinha, oh se tinha... + +(Maria olha para Telmo, como quem comprehendeu, depois torna a fixar a +vista no retratto; e ambos ficam deante d'elle como fascinados. No +entretanto e ás últimas palavras de Maria, um homem imbuçado com o +chapeu sôbre os olhos levanta o reposteiro da direita e vem, pé ante pé, +approximando-se dos dois que o não sentem.) + + +SCENA II + +MARIA, TELMO e MANUEL DE SOUSA + + +*Manuel*. Aquelle era D. João de Portugal, um honrado fidalgo, e um +valente cavalleiro. + +*Maria*, _respondendo sem observar quem lhe falla_. Bem m'o dizia o +coração! + +*Manuel*, _desimbuçando-se e tirando o chapeu com muito affecto_. Que te +dizia o coração, minha filha? + +*Maria*, _reconhecendo-o_. Oh meu pae, meu querido pae! ja me não diz +mais nada o coração senão isto. (_Lânça-se-lhe nos braços e beija-o na +face muitas vezes_.)--Ainda bem que viestes.--Mas de dia!... não tendes +receio, não ha perigo ja? + +*Manuel*. Perigo, pouco. Hontem á noite não pude vir; e hoje não tive +paciencia para aguardar todo o dia: vim bem coberto com ésta capa... + +*Telmo*. Não ha perigo nenhum, meu senhor; podeis estar á vontade e sem +receio. Ésta madrugada muito cedo estive no convento, e sei pelo senhor +Frei Jorge que está, se póde dizer, tudo concluido. + +*Manuel*. Pois ainda bem, Maria. E tua mãe, tua mãe, filha? + +*Maria*. Desde hontem está outra... + +*Manuel*, _em acção de partir_. Vamos a vê-la. + +*Maria*, _retendo-o_. Não, que dorme ainda. + +*Manuel*. Dorme? Oh, então melhor.--Sentêmo'-nos aqui filha, e +conversêmos. (_Toma-lhe as mãos; sentam-se_) Tens as mãos tam quentes! +(_Beija-a na testa_) E ésta testa, ésta testa!... escalda.--Se isto está +sempre a ferver! Valha-te Deus, Maria! Eu não quero que tu penses. + +*Maria*. Então que heide eu fazer? + +*Manuel*. Folgar, rir, brincar, tanger na harpa, correr nos campos, +apanhar as flores...--E Telmo que te não conte mais histórias, que te +não insine mais trovas e soláos. Poetas e trovadores padecem todos da +cabeça... e é um mal que se péga. + +*Maria*. Então para que fazeis vós como elles?... eu bem sei que fazeis. + +*Manuel*, _surrindo_. Se tu sabes tudo! Maria, minha Maria. +(_Amimando-a_) Mas não sabías ainda agora de quem era aquelle +retratto... + +*Maria*. Sabía. + +*Manuel*. Ah! você sabía e estava fingindo? + +*Maria*, _gravemente_. Fingir não, meu pae. A verdade... é que eu sabía +de um saber ca de dentro; ninguem m'o tinha ditto; e eu queria ficar +certa. + +*Manuel*. Então adivinhas, feiticeira. (_Beija-a na testa_)--Telmo, ide +ver se chamaes meu irmão: dizei-lhe que estou aqui. + + +SCENA III + +MANUEL DE SOUSA e MARIA + + +*Manuel*. Ora ouve ca, filha. Tu tens uma grande propensão para achar +maravilhas e mysterios nas coisas mais naturaes e singellas. E Deus +intregou tudo á nossa razão, menos os segredos de sua natureza +ineffavel, os de seu amor, e de sua justiça e misericordia para +comnosco. Esses são os pontos sublimes e incomprehensiveis da nossa fe! +Esses creem-se: tudo o mais examína-se.--Mas vamos: (_surrindo_) não +dirão que sou da Ordem dos Prégadores? Hade ser d'estas paredes, é +uncção da casa: que isto é quasi um convento aqui, Maria... Para frades +de San'Domingos não nos falta senão o hábito... + +*Maria*. Que não faz o monge... + +*Manuel*. Assim é, querida filha! Sem hábito, sem escapulario nem +corrêa, por baixo do setim e do velludo, o cilicio póde andar tam +appertado sôbre as carnes, o coração tam contricto no peito... a +morte--e a vida que vem depois d'ella--tam deante dos olhos sempre, como +na cella mais estreita e com o burel mais grosseiro cingido. Mas emfim, +chega-te aos bons... sempre é meio caminho andado. Eu estou +contentissimo de virmos para ésta casa--quasi que nem ja me pêza da +outra. Tenho aqui meu irmão Jorge e todos estes bons padres de +San'Domingos como de portas a dentro.--Ainda não viste d'aqui a egreja? +(_Levanta o reposteiro do fundo, e chegam ambos á tribuna_) É uma devota +capella ésta. E todo o templo tam grave! dá consolação vê-lo. Deus nos +deixe gosar em paz de tam boa visinhança. (_Tornam para o meio da +casa_.) + +*Maria*, _que parou deante do retratto de D. João de Portugal, vólta-se +derepente para o pae_. Meu pae, este retratto é parecido? + +*Manuel*. Muito; é raro ver tam perfeita similhança: o ar, os ademanes, +tudo. O pintor copiou fielmente quanto viu. Mas não podia ver, nem lhe +cabiam na télla, as nobres qualidades d'alma, a grandeza e valentia de +coração,--e a fortaleza d'aquella vontade serena mais indomavel, que +nunca foi vista mudar. Tua mãe ainda hoje estremece so de o ouvir +nomear; era um respeito... era quasi um temor sancto que lhe tinha. + +*Maria*. E lá ficou n'aquella fatal batalha!... + +*Manuel*. Ficou.--Tens muita pena, Maria? + +*Maria*. Tenho. + +*Manuel*. Mas se elle vivêsse... não existias tu agora, não te tinha eu +aqui nos meus braços. + +*Maria*, _escondendo a cabeça no seio de seu pae_. Ai meu pae! + + +SCENA IV + +MARIA, MANUEL DE SOUSA, JORGE + + +*Jorge*. Ora alviçaras, minha dona sobrinha! venha-me ja abraçar, +senhora D. Maria. (_Maria beija-lhe o escapulario; e depois abraçam-se_) +Inda bem que vieste, meu irmão! Está tudo feito: os governadores deixam +cahir o caso em esquecimento; Miguel de Moura ja cedeu.--O arcebispo foi +hontem a Lisboa e volta ésta tarde. Vamos eu e mais quatro religiosos +nossos buscá-lo para o acompanhar, e tu hasde vir comnosco para lhe +agradecer; que não teve parte no aggravo que te fizeram, e foi quem +acabou com os outros que se não resentissem da offensa ou do que lhes +prouve tomar como tal... deixêmos isso. Volta para o convento e quasi +que vem ser teu hóspede: é preciso fazer-lhe cumprimento, que no-lo +merece. + +*Manuel*. Se elle vem so, sem os outros... + +*Jorge*. So, so: os outros estão por essas quintas d'áquem do Tejo. E +nós não chegâmos aqui senão lá por noite. + +*Manuel*. Se intendes que posso ir... + +*Jorge*. Pódes e deves. + +*Manuel*. Vou decerto.--E até eu preciso de ir a Lisboa: tenho negócio +de importancia no Sacramento, no vosso convento novo de freiras abaixo +de San'Vicente; necessito fallar com a abbadessa. + +*Maria*. Oh meu pae, meu querido pae, levae-me, por quem sois, comvosco. +Eu queria ver a tia Joanna de Castro; é o maior gôsto que posso ter +n'esta vida. Quero ver aquelle rosto... De mim não se hade tapar... + +*Manuel*. E tua mãe? + +*Maria*. Minha mãe dá licença, dá. Ella ja está boa... oh, e em vos +vendo fica boa de todo, e eu vou. + +*Manuel*. E os ares maus de Lisboa? + +*Jorge*. Isso ja acabou de todo: nem signal de peste.--Mas emfim a +prudencia... + +*Maria*. A mim não se me péga nada.--Meu querido pae, vamos, vamos. + +*Manuel*. Veremos o que diz tua mãe, e como ella está. + + +SCENA V + +MARIA, MANUEL DE SOUSA, JORGE; MAGDALENA _entrando_ + + +*Magdalena*, _correndo a abraçar Manuel de Sousa_. Estou boa ja, não +tenho nada, espôso da minha alma, todo o meu mal era susto; era terror +de te perder. + +*Manuel*. Querida Magdalena! + +*Magdalena*. Agora estou boa: Telmo ja me disse tudo, e curou-me com a +boa nova.--Maria, Deus lembrou-se de nós: ouviu as tuas orações, filha, +que as minhas... (_Vai a recahir na sua tristeza_.) + +*Jorge*. Ora pois, mana, ora pois!... Louvado seja Elle por tudo. E haja +alegria! Que era sermos desagradecidos para com o Senhor, que nos valeu, +mostrar-se hoje alguem triste n'esta casa. + +*Magdalena*, _fazendo por se alegrar_. Triste porquê? As tristezas +acabaram. (_Para Manuel de Sousa_) Tu ficas aqui ja de vez. Não me +deixas mais, não sais d'aopé de mim?--Agora, olha, estes primeiros dias +ao menos, hasde-me aturar, hasde-me fazer companhia. Preciso muito, +querido. + +*Manuel*. Pois sim, Magdalena, sim; farei quanto quizeres. + +*Magdalena*. É que eu estou boa... boa de todo; mas tenho uma... + +*Manuel*. Uma imaginação que te atormenta. Havemos de castigá-la, ainda +que não seja senão para dar exemplo a certa donzella que nos está +ouvindo e que precisa... precisa muito.--Pois olha: hoje é +sexta-feira... + +*Magdalena*. Sexta-feira! (_aterrada_) ai que é sexta-feira! + +*Manuel*. Para mim tem sido sempre o dia mais bem estreado de toda a +semana. + +*Magdalena*. Sim! + +*Manuel*. É o dia da paixão de Christo, Magdalena. + +*Magdalena*, _cahindo em si_. Tens razão. + +*Manuel*. É hoje sexta-feira: e d'aqui a oito... vamos--d'aqui a quinze +dias bem contados, não saio de casa. Estás contente? + +*Magdalena*. Meu espôso, meu marido, meu querido Manuel! + +*Manuel*. E tu, Maria? + +*Maria*, _amuada_. Eu não. + +*Manuel*, _para Magdalena_. Queres tu saber por que é aquelle amúo? É +que eu precisava de ir hoje a Lisboa... + +*Magdalena*. A Lisboa... hoje! + +*Manuel*. Sim: e não posso deixar de ir. Sabes que por fins d'esta minha +pendencia com os governadores, eu fiquei em dívida--quem sabe se da +vida? Miguel de Moura e esses meus degenerados parentes eram capazes de +tudo!--Mas o certo é que fiquei em muita dívida ao arcebispo. Elle volta +hoje aqui para o convento; e meu irmão, que vai com outros religiosos +para o acompanharem, intende que eu tambem devo ir. Bem ves que não ha +remedio. + +*Magdalena*. Logo hoje!... Este dia de hoje é o peior... se fosse +ámanhan, se fosse passado hoje!... E quando estarás de volta? + +*Jorge*. Estamos aqui sem falta á bôcca da noite. + +*Magdalena*, _fazendo por se resignar_. Paciencia: ao menos valha-nos +isso. Não me deixam aqui so outra noite... ésta noite, particularmente, +não fico so... + +*Manuel*. Não, socega, não; estou aqui ao anoitecer. E nunca mais saio +d'aopé de ti. E não serão quinze dias; vinte, os que tu quizeres. + +*Maria*. Então vou, meu pae, vou?--Minha mãe dá licença, dá? + +*Magdalena*. Vais aonde, filha? que dizes tu? + +*Maria*. Com meu pae que tem de ir ao Sacramento, de caminho.--E bem +sabeis, querida mãe, o que eu ando ha tanto tempo para ir áquelle +convento para conhecer a tia D. Joanna... + +*Jorge*. Soror Joanna: assim é que se chama agora. + +*Maria*. É verdade. E andam-me a prometter, ha um anno, que me hãode +levar lá... D'esta vez hãode-m'o cumprir... não é assim, minha mãe? +(_acarinhando-a_) minha querida mãesinha!--Sim, sim, dizei ja que sim. + +*Magdalena*, _abraçada com a filha_. Oh Maria, Maria... tambem tu me +queres deixar!--tambem tu me desamparas... e hoje! + +*Maria*. Venho logo, minha mãe, venho logo.--Olhae: e não tenhaes +cuidado commigo: vai meu pae, vai o tio Jorge,--levo a minha aia, a +Dorothea... E, é verdade, o meu fiel escudeiro hade ir tambem, o meu +Telmo. + +*Magdalena*. E tua mãe, filha, deixa-la aqui so, a morrer de tristeza? +(_áparte_) e de medo! + +*Manuel*. Tua mãe tem razão: não hade ser assim, hoje não póde ser. +(_Maria fica triste e desconsolada_.) + +*Jorge*.--Ora pois; eu ja disse que não queria ver hoje ninguem triste +n'esta casa.--Venha ca a minha donzella dolorida, (_pegando-lhe pela +mão_) e faça aqui muitas festas ao tio frade, que eu fico a fazer +companhia a sua mãe. E vá, vá satisfazer essa louvavel curiosidade que +tem de ir ver aquella sancta freirinha que tanto deixou para deixar o +mundo e se ir interrar n'um claustro. Vá, e venha... melhor de coração, +não póde ser--que tu es boa como as que são boas, minha Maria--Mas +quero-te mais fria de cabeça: ouves? + +*Maria*, _áparte_. Fria!... quando ella estiver ôca!--_(Alto)_ Vou-me +apromptar, minha mãe? + +*Magdalena*, _sem vontade_. Se teu pae quer... + +*Manuel*. Dou licença: vai. (_Maria sái a correr_.) + + +SCENA VI + +MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, JORGE + + +*Manuel*. É preciso deixá-la espairecer, mudar de logar, distrahir-se: +aquelle sangue está em chammas, arde sôbre si e consomme-se, a não o +deixarem correr á vontade.--Hade vir melhor: verás. + +*Magdalena*. Deus o queira!--Telmo que vá com ella; não o quero ca. + +*Manuel*. Porquê? + +*Magdalena*. Porque... Maria... Maria não está bem sem elle--e elle +tambem... em estando sem Maria--que é a sua segunda vida, diz o pobre do +velho,--sabes? Ja treslê muito... já está muito... e entra-me com +scismas que... + +*Manuel*. Está, está muito velho, coitado! Pois que vá: melhor é. + + +SCENA VII + +MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, JORGE; MARIA _entrando com_ TELMO e DOROTHEA + + +*Maria*. Então vamos, meu pae. + +*Manuel*. Pois vamos. + +*Jorge*. E são horas; vão. Á Ribeira é um pedaço de rio; e até ás sette, +o mais, tu precisas de estar de volta á porta da Oira, que é onde irão +ter os nossos padres á espera do arcebispo.--Eu ca me desculparei com o +prior. Vão. + +_Maria_. Minha mãe! (_abraçando-a_) Então, se choraes assim, não vou. + +*Manuel*. Nem eu, Magdalena. Ora pois! Eu nunca te vi assim. + +*Magdalena*. Porque nunca assim estive...--Vão, vão... adeus!--Adeus, +espôso do meu coração!--Maria, minha filha, toma sentido no ar, não te +resfries. E o sol... não sáias debaixo do tôldo no bergantim. Telmo, não +te tires d'aopé d'ella.--Dá-me outro abraço, filha.--Dorothea, levaes +tudo? (_Examina uma bolsa grande de damasco que Dorothea leva no braço_) +Póde haver qualquer coisa, molhar-se, ter frio para a tarde... (_tendo +examinado a bolsa_) Vai tudo: bem!--(_Baixo a Dorothea_) Não me apartes +os olhos d'ella, Dorothea. Ouve. (_Falla baixo a Dorothea, que lhe +responde baixo tambem; depois diz alto_) Está bom. + +*Manuel*. Não tenhas cuidado; vamos todos com ella. (_Abraçam-se outra +vez; Maria sái appressadamente, e para a mãe não ver que vai suffocada +com chôro_.) + + +SCENA VIII + +MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, JORGE + + +*Magdalena*, _seguindo com os olhos a filha e respondendo a Manuel de +Sousa_. Cuidados!... eu não tenho ja cuidados. Tenho este medo, este +horror de ficar so... de vir a achar-me so no mundo... + +*Manuel*. Magdalena! + +*Magdalena*. Que queres? não está na minha mão.--Mas tu tens razão de te +infadar com as minhas impertinencias. Não fallêmos mais n'isso. Vai. +Adeus!--Outro abraço. Adeus! + +*Manuel*. Oh querida mulher minha, parece que vou eu agora imbarcar n'um +galeão para a India... Ora vamos: ao anoitecer, antes da noite, aqui +estou.--E Jesus!... Olha a condessa de Vimioso, ésta Joanna de Castro +que a nossa Maria tanto deseja conhecer... olha se ella faria esses +prantos quando disse o último adeus ao marido... + +*Magdalena*. Bemditta ella seja! Deu-lhe Deus muita fôrça, muita +virtude. Mas não lh'a invejo, não sou capaz de chegar a essas +perfeições. + +*Jorge*. É perfeição verdadeira; é a do Evangelho: Deixa tudo e +segue-me. + +*Magdalena*. Vivos ambos... sem offensa um do outro, querendo-se, +estimando-se... e separar-se cada um para sua cova! Verem-se com a +mortalha ja vestida--e... vivos, sãos... depois de tantos annos de +amor... e convivencia... condemnarem-se a morrer longe um do outro--sos, +sos!--E quem sabe se n'essa tremenda hora... arrependidos! + +*Jorge*. Não o permittirá Deus assim... oh, não. Que horrivel coisa +seria! + +*Manuel*. Não permitte, não.--Mas não pensêmos mais n'elles: estão +intregues a Deus... (_pausa_) E que temos nós com isso? A nossa situação +é tam differente... (_pausa_) Em todas nos póde Elle abençoar.--Adeus, +Magdalena, adeus! até logo. Maria ja lá vai no caes a ésta hora... +adeus! Jorge, não a deixes. (_Abraçam-se; Magdalena vai até fóra da +porta com elle_.) + + +SCENA IX + +JORGE _so_ + + +Eu faço por estar alegre, e queria vê-los contentes a elles... mas não +sei ja que diga do estado em que vejo minha cunhada, a filha... até meu +irmão o desconheço! A todos parece que o coração lhes adivinha +desgraça... E eu quasi que tambem ja se me péga o mal. Deus seja +comnosco! + + +SCENA X + +JORGE, MAGDALENA + + +*Magdalena*, _fallando ao bastidor_. Vai, ouves, Miranda? Vai e deixa-te +lá estar até veres chegar o bergantim; e quando desimbarcarem, vem-me +dizer para eu ficar descançada. (_Vem para a scena_) Não ha vento, e o +dia está lindo. Ao menos não tenho sustos com a viagem. Mas a volta... +quem sabe? o tempo muda tam depressa... + +*Jorge*. Não, hoje não tem perigo. + +*Magdalena*. Hoje... hoje! Pois hoje é o dia da minha vida que mais +tenho receado... que ainda temo que não acabe sem muito grande +desgraça... É um dia fatal para mim: faz hoje annos que... que casei a +primeira vez--faz annos que se perdeu elrei D. Sebastião--e faz annos +tambem que... vi pela primeira vez a Manuel de Sousa. + +*Jorge*. Pois contaes essa entre as infelicidades da vossa vida? + +*Magdalena*. Conto. Este amor--que hoje está sanctificado e bemditto no +ceu, porque Manuel de Sousa é meu marido--começou com um crime, porque +eu amei-o assim que o vi... e quando o vi--hoje, hoje... foi em tal dia +como hoje!--D. João de Portugal ainda era vivo. O peccado estava-me no +coração; a bôcca não o disse... os olhos não sei o que fizeram: mas +dentro d'alma eu ja não tinha outra imagem senão a do amante... ja não +guardava a meu marido, a meu bom... a meu generoso marido... senão a +grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quasi que mais deve a si +do que ao espôso. Permittiu Deus... quem sabe se para me tentar?... que +n'aquella funesta batalha de Alcacer, entre tantos, ficásse tambem D. +João... + + +SCENA XI + +MAGDALENA, JORGE, MIRANDA + + +*Miranda*, _appressado_. Senhora... minha senhora! + +*Magdalena*, _sobresaltada_. Quem vos chamou, que quereis?--Ah! es tu, +Miranda. Como assim! ja chegaram?... Não póde ser. + +*Miranda*. Não, minha senhora: ainda agora irão passando o pontal. Mas +não é isso... + +*Magdalena*. Então que é? Não vos disse eu que não viesseis d'alli antes +de os ver chegar? + +*Miranda*. Para lá torno já, minha senhora: ha tempo de sobejo.--Mas +venho trazer-vos recado... um estranho recado, por minha fe. + +*Magdalena*. Dizei ja, que me estaes a assustar. + +*Miranda*. Para tanto não é; nem coisa séria, antes quasi para rir. É um +pobre velho peregrino, um d'estes romeiros que aqui estão sempre a +passar, que veem das bandas d'Hespanha... + +*Magdalena*. Um captivo... um remido? + +*Miranda*. Não, senhora, não trás a cruz, nem é: é um romeiro--algum +d'estes que vão a Sant'Iago: mas diz elle que vem de Roma e dos +Sanctos-Logares. + +*Magdalena*. Pois, coitado! virá. Agasalhae-o; e deem-lhe o que +precisar. + +*Miranda*. É que elle diz que vem da Terra-Sancta, e... + +*Magdalena*. E porque não virá?--Ide, ide, e fazei-o accommodar ja.--É +velho? + +*Miranda*. Muito velho e com umas barbas!... Nunca vi tam formosas +barbas de velho, e tam alvas.--Mas, senhora, diz elle que vem da +Palestina e que vos trás recado... + +*Magdalena*. A mim! + +*Miranda*. A vós; e que por fôrça vos hade ver e fallar. + +*Magdalena*. Ide vê-lo, Frei Jorge. Ingano hade ser: mas ide ver o pobre +do velho. + +*Miranda*. É escusado, minha senhora: o recado que trás, diz que a +outrem o não dará senão a vós, e que muito vos importa sabê-lo. + +*Jorge*. Eu sei o que é: alguma reliquia dos Sanctos-Logares--se elle +comeffeito de lá vem!--que o bom do velho vos quer dar... como taes +coisas se dão a pessoas da vossa qualidade... a trôco de uma esmolla +avultada. É o que elle hade querer; é o costume. + +*Magdalena*. Pois venha embora o romeiro! E trazei-m'o aqui, trazei. + + +SCENA XII + +MAGDALENA, JORGE + + +*Jorge*. Que é precisa muita cautella com estes peregrinos! A vieira no +chapeu e o bordão na mão, ás vezes não são mais que negaças para armar á +charidade dos fieis. E n'estes tempos revoltos... + + +SCENA XIII + +MAGDALENA, JORGE e MIRANDA _que volta com o_ ROMEIRO + + +*Miranda*, _da porta_. Aqui está o romeiro. + +*Magdalena*. Que entre. E vós, Miranda, tornae para onde vos mandei; ide +ja, e fazei como vos disse. + +*Jorge*, _chegando á porta da direita_. Entrae, irmão, entrae. (_O +romeiro entra de vagar_.) Ésta é a senhora D. Magdalena de Vilhena.--E' +ésta a fidalga a quem desejaes fallar? + +*Romeiro*. A mesma. + +(A um signal de Frei Jorge, Miranda retíra-se.) + + +SCENA XIV + +MAGDALENA, JORGE, ROMEIRO + + +*Jorge*. Sois portuguez? + +*Romeiro*. Como os melhores, espero em Deus. + +*Jorge*. E vindes?... + +*Romeiro*. Do Sancto-Sepulchro de Jesus Christo. + +*Jorge*. E visitastes todos os Sanctos-Logares? + +*Romeiro*. Não os visitei; morei lá vinte annos cumpridos. + +*Magdalena*. Sancta vida levastes, bom romeiro. + +*Romeiro*. Oxalá!--Padeci muita fome, e não soffri com paciencia: +deram-me muitos trattos, e nem sempre os levei com os olhos n'Aquelle +que alli tinha padecido tanto por mim... Queria rezar, e meditar os +mysterios da Sagrada Paixão que alli se obrou... e as paixões mundanas, +e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne, travavam-me do +coração e do espirito, que os não deixava estar com Deus, nem n'aquella +terra que é toda sua.--Oh! eu não merecia estar onde estive: bem vêdes +que não soube morrer lá. + +*Jorge*. Pois bem: Deus quiz trazer-vos á terra de vossos paes; e quando +for sua vontade, ireis morrer socegado nos braços de vossos filhos. + +*Romeiro*. Eu não tenho filhos, padre. + +*Jorge*. No seio da vossa familia... + +*Romeiro*. A minha familia... Já não tenho familia. + +*Magdalena*. Sempre ha parentes, amigos... + +*Romeiro*. Parentes!... Os mais chegados, os que eu me importava +achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ella; +hão de jurar que me não conhecem. + +*Magdalena*. Haverá tam má gente... e tam vil que tal faça? + +*Romeiro*. Necessidade póde muito.--Deus lh'o perdoará se podér! + +*Magdalena*. Não façaes juizos temerarios, bom romeiro. + +*Romeiro*. Não faço.--De parentes, ja sei mais do que queria: amigos, +tenho um; com esse, conto. + +*Jorge*. Ja não sois tam infeliz. + +*Magdalena*. E o que eu podér fazer-vos, todo o amparo e gasalhado que +podér dar-vos, contae commigo, bom velho, e com meu marido, que hade +folgar de vos proteger... + +*Romeiro*. Eu ja vos pedi alguma coisa, senhora? + +*Magdalena*. Pois perdoae, se vos offendi, amigo. + +*Romeiro*. Não ha offensa verdadeira senão as que se fazem a +Deus.--Pedi-lhe vós perdão a Elle, que vos não faltará de quê. + +*Magdalena*. Não, irmão, não decerto. E Elle terá compaixão de mim. + +*Romeiro*. Terá... + +*Jorge*, _cortando a conversação_. Bom velho, dissestes trazer um recado +a ésta dama: dae-lh'o ja, que havereis mister de ir descançar... + +*Romeiro*, _surrindo amargamente_. Quereis lembrar-me que estou abusando +da paciencia com que me teem ouvido? Fizestes bem, padre: eu ia-me +esquecendo... talvez me esquecesse de todo da mensagem a que vim... +estou tam velho e mudado do que fui! + +*Magdalena*. Deixae, deixae, não importa; eu folgo de vos ouvir: +dir-me-heis vosso recado quando quizerdes... logo, ámanhan... + +*Romeiro*. Hoje hade ser. Ha tres dias que não durmo nem descanço, nem +pousei ésta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar +aqui hoje, para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que +morrêsse depois; porque jurei... faz hoje um anno... quando me +libertaram, dei juramento sôbre a pedra sancta do Sepulchro de +Christo... + +*Magdalena*. Pois ereis captivo em Jerusalem? + +*Romeiro*. Era: não vos disse que vivi lá vinte annos? + +*Magdalena*. Sim, mas... + +*Romeiro*. Mas o juramento que dei foi que, antes de um anno cumprido, +estaria deante de vós e vos diria da parte de quem me mandou... + +*Magdalena*, _aterrada_. E quem vos mandou, homem? + +*Romeiro*. Um homem foi,--e um honrado homem... a quem unicamente devi a +liberdade... a _ninguem_ mais. Jurei fazer-lhe a vontade, e vim. + +*Magdalena*. Como se chama? + +*Romeiro*. O seu nome nem o da sua gente nunca o disse a ninguem no +captiveiro. + +*Magdalena*. Mas emfim, dizei vós... + +*Romeiro*. As suas palavras, trago-as escriptas no coração com as +lagrymas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me cahiram +n'estas mãos, que me correram por éstas faces. Ninguem o consolava senão +eu... e Deus! Vêde se me esqueceriam as suas palavras. + +*Jorge*. Homem, acabae. + +*Romeiro*. Agora acabo; soffrei, que elle tambem soffreu muito.--Aqui +estão as suas palavras: «Ide a D. Magdalena de Vilhena, e dizei-lhe que +um homem que muito bem lhe quiz... aqui está vivo... por seu mal... e +d'aqui não pôde sahir nem mandar-lhe novas suas de ha vinte annos que o +trouxeram captivo.» + +*Magdalena*, _na maior anciedade_. Deus tenha misericordia de mim!--E +esse homem, esse homem... Jesus! esse homem era... esse homem tinha +sido... levaram-n'o ahi de donde!... de Africa? + +*Romeiro*. Levaram. + +*Magdalena*. Captivo?... + +*Romeiro*. Sim. + +*Magdalena*. Portuguez?... captivo da batalha de?... + +*Romeiro*. De Alcacer-Kebir. + +*Magdalena*, _espavorida_. Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra +debaixo dos meus pés?... que não cahem éstas paredes, que me não +sepultam ja aqui?... + +*Jorge*. Callae-vos, D. Magdalena: a misericordia de Deus é infinita; +esperae. Eu duvido, eu não creio... éstas não são coisas para se crerem +de leve. (_Reflecte, e logo como por uma idea que lhe acccudiu +derepente_) Oh! inspiração divina... (_Chegando ao romeiro_) Conheceis +bem esse homem, romeiro: não é assim? + +*Romeiro*. Como a mim mesmo. + +*Jorge*. Se o vireis... ainda que fôra n'outros trajes... com menos +annos--pintado, digamos--conhece-lo-heis? + +*Romeiro*. Como se me visse a mim mesmo n'um espelho. + +*Jorge*. Procurae n'estes retrattos, e dizei-me se algum d'elles póde +ser. + +*Romeiro*, _sem procurar, e apontando logo para o retratto de D. João_. +É aquelle. + +*Magdalena*, _com um grito espantoso_. Minha filha, minha filha, minha +filha!... (_em tom cavo e profundo_) Estou... estás... perdidas, +deshonradas... infames! (_Com outro grito do coração_) Oh minha filha, +minha filha!... (_Foge espavorida e n'este gritar_.) + + +SCENA XV + +JORGE e o ROMEIRO, que seguiu Magdalena com os olhos, e está alçado no +meio da casa com aspecto severo e tremendo. + + +*Jorge*. Romeiro, romeiro! quem es tu? + +*Romeiro*, _apontando com o bordão para o retratto de D. João de +Portugal_. Ninguem. + +(Frei Jorge cái prostrado no chão, com os braços estendidos, deante da +tribuna. O panno desce lentamente.) + + + + +ACTO TERCEIRO + + +_Parte baixa ao palacio de D. João de Portugal, communicando, pela porta +á esquerda do espectador, com a capella da Senhora-da-Piedade na egreja +de San'Paulo dos Dominicos d'Almada: é um casarão vasto sem ornato +algum. Arrumadas ás paredes, em diversos pontos, escadas, tocheiras, +cruzes, ciriaes e outras alfaias e guizamentos d'egreja de uso +conhecido. A um lado um esquife dos que usam as confrarias; do outro uma +grande cruz negra de tábua com o letreiro J. N. R. J., e toalha +pendente, como se usa nas cerimonias da semana-sancta. Mais para a scena +uma banca velha com dois ou tres tamboretes; a um lado uma tocheira +baixa com tocha accesa e ja bastante gasta; sôbre a mesa um castiçal de +chumbo, de credencia, baixo e com vela accesa tambem,--e um hábito +completo de religioso dominico, tunica, escapulario, rosario, cinto, +etc. No fundo, porta que dá para as officinas e aposentos que occupam o +resto dos baixos do palacio.--É alta noite_. + + +SCENA I + +MANUEL DE SOUSA, _sentado n'um tamborete, aopé da mesa, o rosto +inclinado sôbre o peito, os braços cahidos e em completa prostração +d'espirito e de corpo; n'um tamborete do outro lado_ JORGE, _meio +incostado para a mesa, com as mãos postas, e os olhos pregados no +irmão_. + +*Manuel*. Oh minha filha, minha filha! (_Silencio longo_) Desgraçada +filha, que ficas orphan!... orphan de pae e mãe... (_pausa_)... e de +familia e de nome, que tudo perdêste hoje... (_Levânta-se com violenta +afflição_) A desgraçada nunca os teve!--Oh Jorge, que ésta lembrança é +que me matta, que me desespera! (_Appertando a mão do irmão, que se +levantou após d'elle e o está consolando do gesto_.) É o castigo +terrivel do meu êrro... se foi êrro... crime sei que não foi. E sabe-o +Deus, Jorge, e castigou-me assim, meu irmão! + +*Jorge*. Paciencia, paciencia: os seus juizos são imperscrutaveis. +(_Acalma e faz sentar o irmão: tornam a ficar ambos como estavam_.) + +*Manuel*. Mas eu em que mereci ser feito o homem mais infeliz da terra, +pôsto de alvo á irrisão e ao discursar do vulgo?... Manuel de +Sousa-Coutinho, o filho de Lopo de Sousa-Coutinho, o filho do nosso pae, +Jorge! + +*Jorge*. Tu chámas-te o homem mais infeliz da terra... Ja te esquecêste +que ainda está vivo aquelle... + +*Manuel*, _cahindo em si_. É verdade. (_Pausa; e depois como quem se +desdiz_) Mas não é, nem tanto: padeceu mais, padeceu mais longamente, e +bebeu até ás fezes o calix das amarguras humanas... (_Levantando a voz_) +Mas fui eu, eu que lh'o preparei, eu que lh'o dei a beber, pelas mãos... +innocentes mãos!... d'essa infeliz que arrastei na minha quéda, que +lancei n'esse abysmo de vergonha, a quem cobri as faces--as faces puras, +e que não tinham córado d'outro pejo senão do da virtude e do recato... +cobri-lh'as de um veo d'infamia que nem a morte hade levantar, porque +lhe fica, perpétuo e para sempre, lançado sôbre o tumulo a cobrir-lhe a +memória de sombras... de manchas que se não lavam!--Fui eu o auctor de +tudo isto, o auctor da minha desgraça e da sua deshonra d'elles... +Sei-o, conheço-o; e não sou mais infeliz que nenhum? + +*Jorge*. Ve a palavra que disseste: «deshonra»: lembra-te d'ella e de +ti, e considera, se podes pleitear miserias com esse homem a quem Deus +não quiz accudir com a morte antes de conhecer ess'outra agonia +maior.--Elle não tem... + +*Manuel*. Elle não tem uma filha como eu, desgraçado... (_pausa_)--uma +filha bella, pura, adorada, sôbre cuja cabeça--oh! porque não é na +minha!--vai cahir toda essa deshonra, toda a ignominia, todo o opprobrio +que a injustiça do mundo, não sei porquê, me não quer lançar no rosto a +mim, para pôr tudo na testa branca e pura de um anjo que não tem outra +culpa senão a da origem que eu lhe dei. + +*Jorge*. Não é assim, meu irmão; não te cegues com a dor, não te faças +mais infeliz do que es. Ja não es pouco, meu pobre Manuel, meu querido +irmão! e Deus hade levar em conta essas amarguras. Ja que te não póde +apartar o calix dos beiços, o que tu padeces, hade ser descontado +n'ella, hade resgatar a culpa... + +*Manuel*. Resgate! sim, para o ceu: n'esse confio eu... mas o mundo?... + +*Jorge*. Deixa o mundo e as suas vaidades. + +*Manuel*. Estão deixadas todas. Mas este coração é de carne. + +*Jorge*. Deus, Deus será o pae de tua filha. + +*Manuel*. Olha, Jorge: queres que te diga o que sei decerto, e que devia +ser consolação... mas não é, que eu sou homem, não sou anjo, meu +irmão--devia ser consolação, e é desespêro, é a coroa d'espinhos de toda +ésta paixão que estou passando... é que a minha filha... Maria... a +filha do meu amor--a filha do meu peccado, se Deus quer que seja +peccado--não vive, não resiste, não sobrevive a ésta affronta. + +(Desata a soluçar, cái com os cotovelos fixos na mesa e as mãos +appertadas no rosto: fica n'esta posição por longo tempo. Ouve-se de +quando em quando um soluço comprimido. Frei Jorge está em pé, detrás +d'elle, amparando-o com seu corpo, e os olhos postos no ceu.) + +*Jorge*, _chamando timidamente_. Manuel! + +*Manuel*. Que me queres, irmão? + +*Jorge*, _animando-o_. Ella não está tam mal; já lá estive hoje... + +*Manuel*. Estiveste?... oh! conta-me, conta-me; eu não tenho... não tive +ainda ânimo de a ir ver. + +*Jorge*. Haverá duas horas que entrei na sua camera, e estive aopé do +leito. Dormia, e mais socegada da respiração. O accesso de febre, que a +tomou quando chegámos de Lisboa e que viu a mãe n'aquelle +estado,--parecia declinar... quebrar-se mais alguma coisa. Dorothea, e +Telmo... pobre velho coitado!... estavam aopé d'ella, cada um de seu +lado... disseram-me que não tinha tornado a... a... + +*Manuel*. A lançar sangue?... Se ella deitou o do coração!... não tem +mais. N'aquelle corpo tam franzino, tam delgado, que mais sangue hade +haver?--Quando hontem a arranquei d'aopé da mãe e a levava nos braços, +não m'o lançou todo ás golfadas aqui no peito? (_Mostra um lenço branco +todo manchado de sangue_) Não o tenho aqui... o sangue... o sangue da +minha víctima?... que é o sangue das minhas veias... que é o sangue da +minha alma--é o sangue da minha querida filha! (_Beija o lenço muitas +vezes_) Oh meu Deus, meu Deus! eu queria pedir-te que a levasses ja... e +não tenho ânimo. Eu devia acceitar por mercê de tuas misericordias que +chamasses aquelle anjo para junto dos teus, antes que o mundo, este +mundo infame e sem commiseração, lhe cuspisse na cara com a desgraça do +seu nascimento.--Devia, devia... e não posso, não quero, não sei, não +tenho ânimo, não tenho coração. Peço-te vida, meu Deus (_ajoelha e põe +as mãos_) peço-te vida, vida, vida... para ella, vida para a minha +filha!... saude, vida para a minha querida filha!... e morra eu de +vergonha, se é preciso; cubra-me o escarneo do mundo, deshonre-me o +opprobrio dos homens, tape-me a sepultura uma loisa de ignominia, um +epitaphio que fique a bradar por essas eras deshonra e infamia sôbre +mim!... Oh meu Deus, meu Deus! (_Cái de bruços no chão... Passado algum +tempo, Frei Jorge se chega para elle, levanta-o quasi a pêso, e o torna +a assentar_.) + +*Jorge*. Manuel, meu bom Manuel, Deus sabe melhor o que nos convem a +todos: põe nas suas mãos esse pobre coração, põe-n'o resignado e +contricto, meu irmão, e Elle fará o que em sua misericordia sabe que é +melhor. + +*Manuel*, _com vehemencia e medo_. Então desinganas-me... desinganas-me +ja?... é isso que queres dizer? Falla, homem: não ha que esperar?... não +ha que esperar d'alli, não é assim? dize: morre, morre?... +(_desanimado_) Tambem fico sem filha! + +*Jorge*. Não disse tal. Por charidade comtigo, meu irmão, não imagines +tal. Eu disse-te a verdade: Maria pareceu-me menos opprimida; dormia... + +*Manuel*, _variando_. Se Deus quizera que não acordásse! + +*Jorge*. Valha-me Deus! + +*Manuel*. Para mim aqui está ésta mortalha: (_tocando no hábito_) morri +hoje... vou amortalhar-me logo; e adeus tudo o que era mundo para mim! +Mas minha filha não era do mundo... não era, Jorge; tu bem sabes que não +era: foi um anjo que veiu do ceu para me acompanhar na peregrinação da +terra, e que me apontava sempre, a cada passo da vida, para a eterna +pousada d'onde viera e onde me conduzia... Separou-nos o archanjo das +desgraças, o ministro das iras do Senhor que derramou sôbre mim o vaso +cheio das lagrymas, e a taça rasa das amarguras ardentes de sua +cholera... (_Cahindo de tom_) Vou com ésta mortalha para a sepultura... +e, viva ou morta, ca deixo a minha filha no meio dos homens que a não +conheceram, que a não hãode conhecer nunca, porque ella não era d'este +mundo nem para elle... (_Pausa_)--Torna lá, Jorge, vai vê-la outra vez, +vai e vem-me dizer; que eu ainda não posso... mas heide ir, oh! heide ir +vê-la e beijá-la antes de descer á cova... Tu não queres, não podes +querer... + +*Jorge*. Havemos de ir... quando estiveres mais socegado... havemos de +ir ambos: descança, hasde vê-la.--Mas isto inda é cedo. + +*Manuel*. Que horas serão? + +*Jorge*. Quatro, quatro e meia. (_Vai á porta da esquerda e volta_) São +cinco horas, pelo alvor da manhan que ja dá nos vidros da egreja. D'aqui +a pouco iremos; mas socega. + +*Manuel*. E a outra... a outra desgraçada, meu irmão? + +*Jorge*. Está--imagina por ti--está como não podia deixar de estar: mas +a confiança em Deus póde muito: vai-se conformando. O Senhor fará o +resto.--Eu tenho fe n'este escapulario (_tocando no hábito em cima da +mesa_) para ti e para ella. Foi uma resolução digna de vós, foi uma +inspiração divina que os allumiou a ambos. Deixa estar; ainda póde haver +dias felizes para quem soube consagrar a Deus as suas desgraças. + +*Manuel*. E isso está tudo prompto? Eu não soffro n'estes hábitos, eu +não aturo, com estes vestidos de vivo, a luz d'esse dia que vem a +nascer. + +*Jorge*. Está tudo concluido. O arcebispo mostrou-se bom e piedoso +prelado n'esta occasião: e é um sancto homem, é. O arcebispo ja expediu +todas as licenças e mais papeis necessarios. Coitado! o pobre do velho +velou quasi toda a noite com o seu vigario para que não faltásse nada +desde o romper do dia. Mandou-se ao provincial, e pela sua parte e pela +nossa tudo está corrente. Frei João de Portugal, que é o prior de +Bemfica, e tambem vigario do Sacramento, sabes, chegou haverá duas +horas, noite fechada ainda, e ca está: é quem te hade lançar o hábito, a +ti e a Dona... a minha irman.--Depois ireis, segundo o vosso desejo, um +para Bemfica, outro para o Sacramento. + +*Manuel*. Tu es um bom irmão, Jorge: (_apperta-lhe a mão_) Deus t'o hade +pagar. (_Pausa_) Eu não me atrevo... tenho repugnancia... mas é forçoso +perguntar-te por alguem mais. Onde está _elle_... e o que fará!... + +*Jorge*. Bem sei, não digas mais: o romeiro. Está na minha cella, e de +lá não hade sahir--que foi ajustado entre nós--senão quando... quando eu +lh'o disser. Descança: não verá ninguem, nem será visto de nenhum +d'aquelles que o não devem ver. Demais, o segrêdo de seu nome verdadeiro +está entre mim e ti--além do arcebispo, a quem foi indispensavel +communicá-lo para evitar todas as formalidades e delongas que aliás +havia de haver n'uma separação d'esta ordem.--Ainda ha outra pessoa com +quem lhe prometti--não pude deixar de prometter, porque sem isso não +queria elle entrar em accôrdo algum--com quem lhe prometti que havia de +fallar hoje e antes de mais nada. + +*Manuel*. Quem? será possivel?... Pois esse homem quer ter a crueldade +de rasgar, fevra a fevra, os pedaços d'aquelle coração ja partido?--Não +tem intranhas esse homem: sempre assim foi, duro, desapiedado como a sua +espada.--É D. Magdalena que elle quer ver?... + +*Jorge*. Não, homem; é o seu aio velho, é Telmo-Paes. Como lh'o havia de +eu recusar? + +*Manuel*. De nenhum modo: fizeste bem; eu é que sou injusto. Mas o que +eu padeço é tanto e tal!...--Vamos; eu ainda me não intendo bem claro +com ésta desgraça: dize-me, falla-me a verdade: minha mulher...--minha +mulher! com que bôcca pronuncio eu ainda éstas palavras!--D. Magdalena o +que sabe? + +*Jorge*. O que lhe disse o romeiro n'aquella fatal sala dos retrattos... +o que ja te contei. Sabe que D. João está vivo, mas não sabe aonde; +suppõe-no na Palestina talvez; é onde o deve suppor pelas palavras que +ouviu. + +*Manuel*. Então não conhece, como eu, toda a extensão, toda a +indubitavel verdade da nossa desgraça. Ainda bem! talvez possa duvidar, +consolar-se com alguma esperança de incerteza. + +*Jorge*. Hontem de tarde não; mas ésta noite começava a raiar-lhe no +espirito alguma falsa luz d'essa van esperança. Deus lh'a deixe, se é +para bem seu. + +*Manuel*. Porque não hade deixar? Não é ja desgraçada bastante?--E +Maria, a pobre Maria!... Essa confio no Senhor que não saiba, ao menos +por ora... + +*Jorge*. Não sabe. E ninguem lh'o disse, nem dirá. Não sabe senão o que +viu: a mãe quasi nas agonias da morte. Mas o motivo, so se ella o +adivinhar.--Tenho medo que o faça... + +*Manuel*. Tambem eu. + +*Jorge*. Deus será comnosco e com ella!--Mas não: Telmo não lhe diz nada +por certo; eu já lhe asseverei--e accreditou-me--que a mãe estava +melhor, que tu ias logo vê-la... E assim espero que, até lá por meio +dia, a possamos conservar em completa ignorancia de tudo. Depois +ir-se-lhe-ha dizendo, pouco a pouco, até onde for inevitavel. E Deus... +Deus accudirá. + +*Manuel*. Minha pobre filha, minha querida filha! + + +SCENA II + +JORGE, MANUEL DE SOUSA, TELMO + + +*Telmo*, _batendo de fóra á porta do fundo_. Acordou. + +*Manuel*, _sobresaltado_. É a voz de Telmo? + +*Jorge*. É. (_Indo abrir a porta_) Entrae, Telmo. + +*Telmo*. Acordou. + +*Jorge*. E como está? + +*Telmo*. Melhor, muito melhor, parece outra. Está muito abatida, isso +sim; muito fraca, a voz lenta, mas os olhos serenos, animados como +d'antes e sem aquelle fusilar de hontem. Perguntou por vós... ambos. + +*Manuel*. E pela mãe? + +*Telmo*. Não: nunca mais fallou n'ella. + +*Manuel*. Oh filha, filha!... + +*Jorge*. Iremos vê-la. (_péga na mão do irmão_) Tu promettes-me?... + +*Manuel*. Prometto. + +*Jorge*. Vamos.--(_Chamando a Telmo para a bôcca da scena_) Ouvi, Telmo: +lembraes-vos do que vos disse ésta manhan? + +*Telmo*. Não me heide lembrar? + +*Jorge*. Ficae aqui. Em nós sahindo, puchae aquella corda que vai dar á +sineta da sachristia: virá um irmão converso; dizei-lhe o vosso nome, +elle ir-se-ha sem mais palavra, e vós esperae. Fechae logo ésta porta +por dentro, e não abraes senão á minha voz. Intendestes? + +*Telmo*. Ide descançado. + + +SCENA III + +TELMO, _depois o_ IRMÃO CONVERSO + + +*Telmo* _vai para deitar a mão á corda, pára suspenso algum tempo, e +depois_: Vamos: isto hade ser. (_Ouve-se tocar longe uma sineta: Telmo +fica pensativo, e com o braço alevantado e immovel_.) + +*Converso*. Quem sois? + +*Telmo*, _estremecendo_. Telmo-Paes. + +(O converso faz venia e vai-se.) + + +SCENA IV + + +*Telmo* _so_. Virou-se-me a alma toda com isto: não sou ja o mesmo +homem. Tinha um presentimento do que havia de acontecer... parecia-me +que não podia deixar de succeder... e cuidei que o desejava em quanto +não veiu.--Veiu, e fiquei mais aterrado, mais confuso que ninguem!--Meu +honrado amo, o filho do meu nobre senhor está vivo... o filho que eu +criei n'estes braços... vou saber novas certas d'elle--no fim de vinte +annos de o julgarem todos perdido--e eu, eu que sempre esperei, que +sempre suspirei pela sua vinda...--era um milagre que eu esperava sem o +crer! Eu agora tremo... É que o amor d'est'outra filha, d'esta última +filha, é maior, e venceu... venceu, apagou o outro. Perdoe-me Deus, se é +peccado. Mas que peccado hade haver com aquelle anjo?--Se me ella +viverá, se escapará d'esta crise terrivel!--Meu Deus, meu Deus! +(_ajoelha_) levae o velho que já não presta para nada, levae-o por quem +sois! (_Apparece o romeiro á porta da esquerda, e vem lentamente +approximando-se de Telmo que não dá por elle_.) Contentae-vos com este +pobre sacrificio da minha vida, Senhor, e não me tomeis dos braços o +innocentinho que eu criei para vós, Senhor, para vós... mas ainda não, +não m'o leveis ainda. Já padeceu muito, já traspassaram bastantes dores +aquella alma: esperae-lhe com a da morte algum tempo! + + +SCENA V + +TELMO _e o_ ROMEIRO + + +*Romeiro*. Que não oiça Deus o teu rôgo! + +*Telmo*, _sobresaltado_. Que voz!--Ah! é o romeiro.--Que me não oiça +Deus! porquê? + +*Romeiro*. Não pedias tu por teu desgraçado amo, pelo Filho que criáste? + +*Telmo*, _áparte_. Já não sei pedir senão pela outra. (_Alto_) E que +pedisse por elle, ou por outrem, porque me não hade ouvir Deus, se lhe +peço a vida de um innocente? + +*Romeiro*. E quem te disse que elle o era? + +*Telmo*. Ésta voz... ésta voz!--Romeiro, quem es tu? + +*Romeiro*, _tirando o chapéu e alevantando o cabello dos olhos_. +Ninguem, Telmo, ninguem, se nem ja tu me conheces. + +*Telmo*, _deitando-se-lhe ás mãos para lh'as beijar_. Meu amo, meu +senhor... sois vós?--sois, sois.--D. João de Portugal, oh, sois vós, +senhor? + +*Romeiro*. Teu filho ja não? + +*Telmo*. Meu filho!... Oh! é o meu filho todo; a voz, o rosto... Só +estas barbas, este cabello não... Mais branco ja que o meu, senhor! + +*Romeiro*. São vinte annos de captiveiro e miseria, de saudades, de +âncias que por aqui passaram. Para a cabeça bastou uma noite como a que +veiu depois da batalha d'Alcacer; a barba, acabaram de a curar o sol da +Palestina e as aguas do Jordão. + +*Telmo*. Por tam longe andastes? + +*Romeiro*. E por tam longe eu morrêra!--Mas não quiz Deus assim. + +*Telmo*. Seja feita a sua vontade. + +*Romeiro*. Pêza-te? + +*Telmo*. Oh, senhor! + +*Romeiro*. Pêza-te? + +*Telmo*. Hade-me pezar da vossa vida? (_Á parte_) Meu Deus! Parece-me +que menti... + +*Romeiro*. E porque não, se ja me pêza a mim d'ella, se tanto me pêza +ella a mim?--Amigo, ouve... Tu es meu amigo? + +*Telmo*. Não sou? + +*Romeiro*. Es: bem sei. E comtudo, vinte annos d'ausencia, e de +conversação de novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!...--Mas tu +es meu amigo. E se tu o não fôras, quem o sería? + +*Telmo*. Senhor! + +*Romeiro*. Eu não quiz acabar com isto, não quiz pôr em effeito a minha +última resolução sem fallar comtigo, sem ouvir da tua bôcca... + +*Telmo*. O que quereis que vos diga, senhor?--Eu... + +*Romeiro*. Tu, bem sei que duvidaste sempre da minha morte, que não +quizeste ceder a nenhuma evidência; não me admirou de ti, meu Telmo. Mas +tambem não posso--Deus me ouve--não posso criminar ninguem porque o +accreditásse: as provas eram de convencer todo o ânimo; so lhe podia +resistir o coração. E aqui... coração que fosse meu... não havia outro. + +*Telmo*. Sois injusto. + +*Romeiro*. Bem sei o que queres dizer.--E é verdade isso? é verdade que +por toda a parte me procuraram, que por toda a parte... ella mandou +mensageiros, dinheiro? + +*Telmo*. Como é certo estar Deus no ceu, como é verdade ser aquella a +mais honrada e virtuosa dama que tem Portugal. + +*Romeiro*. Basta: vai dizer-lhe que o peregrino era um impostor, que +desappareceu, que ninguem mais houve novas d'elle; que tudo isto foi vil +e grosseiro imbuste dos inimigos de... dos inimigos d'esse homem-que +ella ama... E que socegue, que seja feliz.--Telmo, adeus! + +*Telmo*. E eu heide mentir, senhor, eu heide renegar de vós, como ruim +villão que não sou? + +*Romeiro*. Hasde, porque eu te mando. + +*Telmo*, _em grande anciedade_. Senhor, senhor, não tenteis a fidelidade +do vosso servo. É que vós não sabeis... D. João, meu senhor, meu amo, +meu filho, vós não sabeis... + +*Romeiro*. O quê? + +*Telmo*. Que ha aqui um anjo... uma outra filha minha, senhor, que eu +também criei... + +*Romeiro*. E a quem já queres mais que a mim: dize a verdade. + +*Telmo*. Não m'o pergunteis. + +*Romeiro*. Nem é preciso. Assim devia de ser. Tambem tu!--Tiraram-me +tudo. (_Pausa_)--E teem um filho elles?...--Eu não...--E mais, +imagino... Oh passaram hoje peior noite do que eu. Que lh'o leve Deus em +conta e lhes perdoe como eu perdoei ja.--Telmo, vai fazer o que te +mandei. + +*Telmo*. Meu Deus, meu Deus! que heide eu fazer? + +*Romeiro*. O que te ordena teu amo.--Telmo, dá-me um abraço. +(_Abraçam-se_) Adeus, adeus até... + +*Telmo*. Até quando, senhor? + +*Romeiro*. Até ao dia de juizo... + +*Teimo*. Pois vós?... + +*Romeiro*. Eu...--Vai, saberás de mim quando for tempo. Agora é preciso +remediar o mal feito. Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel. E +para quê?--D. João de Portugal morreu no dia em que sua mulher disse que +elle morrêra. Sua mulher honrada e virtuosa, sua mulher que elle +amava... oh Telmo, Telmo, com que amor a amava eu! Sua mulher que elle +ja não póde amar sem deshonra e vergonha!... Na hora em que ella +accreditou na minha morte, n'essa hora morri. Com a mão que deu a outro +riscou-me do número dos vivos. D. João de Portugal não hade deshonrar a +sua viuva. Não: vai; ditto por ti terá dobrada fôrça: dize-lhe que +fallaste com o romeiro, que o examináste, que o convencêste de falso e +de impostor... dize o que quizeres, mas salva-a a ella da vergonha, e ao +meu nome da affronta. De mim ja não ha senão esse nome, ainda honrado; a +memória d'elle que fique sem mancha.--Está em tuas mãos, Telmo, +intrego-te mais que a minha vida. Queres faltar-me agora? + +*Telmo*. Não, meu senhor: a resolução é nobre e digna de vós. Mas póde +ella approveitar ainda? + +*Romeiro*. Porque não? + +*Telmo*. Eu sei!--Talvez... + + +SCENA VI + +ROMEIRO, TELMO; _e_ MAGDALENA _de fóra á porta do fundo_. + + +*Magdalena*. Espôso, espôso! abri-me, por quem sois. Bem sei que aqui +estaes: abri. + +*Romeiro*. É ella que me chama. Sancto Deus! Magdalena que chama por +mim... + +*Telmo*. Por vós! + +*Romeiro*. Pois por quem?... não lhe ouvis gritar:--«Espôso, espôso?» + +*Magdalena*. Marido da minha alma, pelo nosso amor te peço, pelos doces +nomes que me déste, pelas memórias da nossa felicidade antiga, pelas +saudades de tanto amor e tanta ventura, oh! não me negues este último +favor. + +*Romeiro*. Que incanto, que seducção! Como lhe heide resistir! + +*Magdalena*. Meu marido, meu amor, meu Manuel! + +*Romeiro*. Ah!... E eu tam cego que ja tomava para mim!...--Ceu e +inferno! abra-se ésta porta...(_investe para a porta com impeto; mas +pára derepente_) Não: o que é ditto, é ditto. (_Vai precipitadamente á +corda da sineta, toca com violencia; apparece o mesmo irmão converso, e +a um signal do romeiro ambos desapparecem pela porta da esquerda_.) + + +SCENA VII + +TELMO, MAGDALENA; _depois_ JORGE _e_ MANUEL DE SOUSA + + +*Magdalena*, _ainda de fóra_. Jorge, meu irmão, Frei Jorge, vós estaes +ahi, que eu bem sei; abri-me por charidade, deixae-me, dizer uma unica +palavra a meu... a vosso irmão:--e não vos importuno mais, e farei tudo +o que de mim quereis, e... (_Ouve-se do mesmo lado ruido de passos +appressados, e logo a voz de Frei Jorge_.) + +*Jorge*, _de fóra_. Telmo, Telmo, abri se podeis... abri ja. + +*Telmo*, _abrindo a porta_. Aqui estou eu so. + +*Magdalena*, _entrando desgrenhada e fóra de si, procurando, com os +olhos, todos os recantos da casa_. Estaveis aqui so, Telmo! E elle para +onde foi? + +*Telmo*. Elle quem, senhora? + +*Jorge*, _vindo á frente_. Telmo estava aqui aguardando por mim, e com +ordem de não abrir a ninguem em quanto eu não viesse. + +*Magdalena*. Aqui havia duas vozes que fallavam: distinctamente as ouvi. + +*Telmo*, _aterrado_. Ouvistes? + +*Magdalena*. Sim, ouvi. Onde está elle, Telmo? onde está meu marido... +Manuel de Sousa? + +*Manuel*, _que tem estado no fundo, em quanto Magdalena, sem o ver, se +adiantára para a scena, vem agora á frente_. Esse homem está aqui, +senhora; que lhe quereis? + +*Magdalena*. Oh que ar, que tom, que modo esse com que me fallas!... + +*Manoel*, _internecendo-se_. Magdalena... (_Cahindo em si e gravemente_) +Senhora, como quereis que vos falle, que quereis que vos diga?--Não está +tudo ditto entre nós? + +*Magdalena*. Tudo! quem sabe? Eu parece-me que não. Olha: eu sei?... mas +não dariamos nós, com demasiada precipitação, uma fe tam cega, uma +crença tam implicita a essas mysteriosas palavras de um romeiro, um +vagabundo... um homem emfim que ninguem conhece? Pois dize... + +*Telmo*, _áparte a Jorge_. Tenho que vos dizer, ouvi. (_Conversam ambos +áparte_.) + +*Manuel*. Oh Magdalena, Magdalena! não tenho mais nada que te +dizer.--Crê-me, que t'o juro na presença de Deus: a nossa união, o nosso +amor é impossivel. + +*Jorge*, _continuando a conversação com Telmo, e levantando a voz com +aspereza_. É impossivel j'agora...--e sempre o devia ser. + +*Magdalena*, _virando-se para Jorge_. Tambem tu, Jorge! + +*Jorge*, _virando-se para ella_. Eu fallava com Telmo, minha +irman.--(_Para Telmo_) Ide Telmo, ide onde vos disse, que sois mais +preciso lá. (_Falla-lhe ao ouvido; depois alto_) Não m'a deixes um +instante, ao menos até passar a hora fatal. + +(Telmo sái com repugnancia, e rodeando para ver se chega aopé de +Magdalena. Jorge, que o percebe, faz-lhe um signal imperioso; elle +recúa, e finalmente se retira pelo fundo.) + + +SCENA VIII + +MAGDALENA, MANUEL DE SOUSA, JORGE + + +*Magdalena*. Jorge, meu irmão, meu bom Jorge, vós, que sois tam prudente +e reflectido, não dais nenhum pêso ás minhas dúvidas? + +*Jorge*. Tomára eu ser tam feliz que podésse, querida irman. + +*Magdalena*. Pois intendeis?... + +*Manuel*. Magdalena... senhora! Todas éstas coisas são ja indignas de +nós.--Até hontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, +estava na boa fe e seguridade de nossas consciencias. Essa acabou. Para +nós ja não ha senão éstas mortalhas, (_tomando os habitos de cima da +banca_) e a sepultura d'um claustro.--A resolução que tomámos é a unica +possivel; e ja não ha que voltar atrás... Ainda hontem fallavamos dos +condes de Vimioso... Quem nos diria... oh incomprehensiveis mysterios de +Deus!... Ánimo, e ponhamos os olhos n'aquella cruz!--Pela última vez, +Magdalena... pela derradeira vez n'este mundo, querida... (_Vai para a +abraçar e recúa_) Adeus, adeus! (_Foge precipitadamente pela porta da +esquerda_.) + + +SCENA IX + +MAGDALENA, JORGE, _côro dos frades dentro_. + + +*Magdalena*. Ouve, espera; uma so, uma so palavra: Manuel de Sousa!... +(_Toca o orgam dentro_.) + +*Côro*, _dentro_. De profundis clamavi ad te, Domine; Domine, exaudi +vocem meam. + +*Magdalena*, _indo abraçar-se, com a cruz_. Oh Deus, Senhor meu! pois +ja, ja? nem mais um instante, meu Deus?--Cruz do meu Redemptor, oh cruz +preciosa, refúgio d'infelizes, ampara-me tu, que me abandonaram todos +n'este mundo, e ja não posso com as minhas desgraças... e estou feita um +espectaculo de dor e d'espanto para o ceu e para a terra!--Tomae, +Senhor, tomae tudo...--A minha filha também?... Oh! a minha filha, a +minha filha... tambem essa vos dou, meu Deus.--E agora, que mais quereis +de mim, Senhor? (_Toca o orgam outra vez_.) + +*Côro*, _dentro_. Fiant aures tuæ intendentes; in vocem deprecationis +meæ. + +*Jorge*. Vinde, minha irman, é a voz do Senhor que vos chama. Vai +começar a sancta cerimonia. + +*Magdalena*, _inchugando as lagrymas e com resolução_. Elle foi? + +*Jorge*. Foi sim, minha irman. + +*Magdalena*, _levantando-se_. E eu vou. (_Sahem ambos pela porta do +fundo_.) + + +SCENA X + +_Corre o panno do fundo, e apparece a egreja de San'Paulo: os frades +sentados no côro. Em pé juncto ao altar-mór, o_ PRIOR DE BEMFICA. _Sôbre +o altar dois escapularios dominicanos_. MANUEL DE SOUSA _de joelhos com +o hábito de noviço vestido, á direita do Prior. O_ ARCEBISPO _de +capa-magna e barrete no seu throno, rodeado dos seus clerigos em +sobrepelizes. Pouco depois entra_ JORGE _acompanhando_ MAGDALENA _tambem +ja vestida de noviça e que vai ajoelhar á esquerda do Prior.--Toca o +orgam_. + + +*Côro*. Si iniquitates observaveris, Domine; Domine, quis sustinebit? + +*Prior*, _tomando os escapularios de cima do altar_. Manuel de +Sousa-Coutinho, irmão Luiz de Sousa, pois em tudo quizestes despir o +homem velho, abandonando tambem ao mundo o nome que n'elle +tinheis!--Soror Magdalena! Vós ambos, que ja fostes nobres senhores no +mundo, e aqui estais prostrados no pó da terra, n'esse humilde hábito de +pobres noviços; que deixastes tudo, até vos deixar a vós mesmos... +filhos de Jesus Christo, e agora de nosso padre San'Domingos, recebei +com este bento escapulario... + + +SCENA XI + +O PRIOR DE BEMFICA, _o_ ARCEBISPO, MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, etc. +MARIA, _que entra precipitadamente pela egreja em estado de completa +alienação; traz umas roupas brancas, desalinhadas e cahidas, os cabellos +soltos, o rosto macerado, mas inflammado com as rosetas ethicas, os +olhos desvairados; pára um momento, reconhece os pais e vai direita a +elles.--Espanto geral: a cerimonia interrômpe-se_. + + +*Maria*. Meu pae, meu pae, minha mãe! levantae-vos, vinde. (_Toma-os +pelas mãos; elles obedecem machinalmente, veem ao meio da scena: +confusão geral_.) + +*Magdalena*. Maria! minha filha! + +*Manuel*. Filha, filha!... Oh, minha filha!... (_Abraçam-se ambos +n'ella_.) + +*Maria*, _separando-se com elles da outra gente, e trazendo-os para a +bôcca da scena_. Esperae: aqui não morre ninguem sem mim. Que quereis +fazer? Que cerimonias são éstas? Que Deus é esse que está n'esse altar, +e quer roubar o pae e a mãe a sua filha?--(_Para os circumstantes_) Vós +quem sois, espectros fataes?... quereis-m'os tirar dos meus braços?... +Esta é a minha mãe, este é o meu pae... Que me importa a mim com o +outro? Que morrêsse ou não, que esteja com os mortos ou com os +vivos--que se fique na cova ou que resuscite agora para me mattar?... +Matte-me, matte-me, se quer, mas deixe-me este pae, ésta mãe, que são +meus.--Não ha mais do que vir ao meio de uma familia e dizer: «Vós não +sois marido e mulher?... e ésta filha do vosso amor, ésta filha criada +ao collo de tantas meiguices, de tanta ternura, ésta filha é...»--Mãe, +mãe, eu bem o sabia... nunca t'o disse, mas sabia-o: tinha-m'o ditto +aquelle anjo terrivel que me apparecia todas as noites para me não +deixar dormir... aquelle anjo que descia com uma espada de chammas na +mão, e a atravessava entre mim e ti, que me arrancava dos teus braços +quando eu adormecia n'elles... que me fazia chorar quando meu pae ia +beijar-me no teu collo.--Mãe, mãe, tu não hasde morrer sem mim... Pae, +dá ca um panno da tua mortalha... dá ca, eu quero morrer antes que elle +venha: (_incolhendo-se no hábito do pae_) quero-me esconder aqui, antes +que venha esse homem do outro mundo dizer-me na minha cara e na +tua--aqui deante de toda ésta gente: «Essa filha é a filha do crime e do +peccado!...» Não sou; dize, meu pae, não sou... dize a essa gente toda, +dize que não sou. (_Vai para Magdalena_) Pobre mãe! tu não podes... +coitada!... não tens ánimo...--nunca mentiste?... Pois mente agora para +salvar a honra de tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pae. + +*Magdalena*. Misericordia, meu Deus! + +*Maria*. Não queres? Tu tambem não, pae?--Não querem. E eu heide morrer +assim... e elle vem ahi... + + +SCENA XII + +MARIA, MAGDALENA, MANUEL; o ROMEIRO e TELMO _que apparecem no fundo da +scena sahindo detrás do altar-mór_. + + +*Romeiro*, _para Telmo_. Vai, vai; ve se ainda é tempo: salva-os, +salva-os, que ainda podes... (_Telmo dá alguns passos para deante_.) + +*Maria*, _apontando para o romeiro_. É aquella voz, é elle, é elle.--Já +não é tempo... Minha mãe, meu pae, cobri-me bem éstas faces, que morro +de vergonha... (_Esconde o rosto no seio da mãe_) morro, morro... de +vergonha... (_Cái e fica morta no chão. Manuel de Sousa e Magdalena +prostram-se ao pé do cadaver da filha_.) + +*Manuel*, _depois de algum espaço, levânta-se de joelhos_. Minha irman, +rezemos por alma... incommendemos a nossa alma a este anjo que Deus +levou para si.--Padre prior, podeis-me lançar aqui o escapulario? + +*Prior*, _indo buscar os escapularios ao altar-mór e tornando_. Meus +irmãos, Deus afflige n'este mundo áquelles que ama. A coroa de glória +não se dá senão no céu. + +(_Toca o orgam; e cái o panno_.) + + + + +FREI LUIZ DE SOUSA + + +Depois do brilhantissimo livro «Viagens na minha terra», de que os +maiores escriptores, como Rebello da Silva, Castilho, Gomes d'Amorim, +Theophilo Braga, etc., disseram ser um monumento immorredouro da +litteratura portugueza, a melhor obra de Garrett é, sem contestação, o +«Frei Luiz de Sousa». Vegezzi Ruscalla, na revista «Cornelia» de +Florença, diz, a pag. 180, que Portugal tem no auctor do «Frei Luiz de +Sousa» o seu Goethe, o seu Byron, o seu Lamartine e o seu Manzoni, +ajuntando: «Questo drama é un vero capolavoro». A. P. Lopes de Mendonça +(«Memorias da litteratura contemporanea», Lisboa 1855) escreveu: +«...talvez pareçam demasiadamente singelos os dados d'esta funebre +tragedia, e todavia cremos que a litteratura moderna não possue +monumentos de mais superior e acabado molde...» Th. Braga («Questões de +litteratura e arte portugueza», Lisboa 1882, pag. 384) chama-lhe +_tragedia unica, e sem rival nas litteraturas modernas_. Rebello da +Silva acha que as scenas do terceiro acto do «Frei Luiz de Sousa» são as +mais tragicas que conhece, e o quarto acto é o maior esforço dramatico +de que tem noticia. + +«Frei Luiz de Sousa» tem tres traducções francezas; está tambem vertido +em hespanhol, italiano, inglez e allemão. Foi representado em Paris. +Muito se tem escripto sobre a grandiosa tragedia, sendo a ultima +producção--_«Frei Luiz de Sousa» de Garrett_--Notas com um prefacio de +Th. Braga, por Joaquim d'Araujo. + + + + + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Frei Luiz de Sousa, by Almeida Garrett + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FREI LUIZ DE SOUSA *** + +***** This file should be named 17591-8.txt or 17591-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/1/7/5/9/17591/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Donations are accepted in a number of other +ways including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. 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