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+The Project Gutenberg EBook of Os Primeiros Amores de Bocage, by
+José da Silva Mendes Leal
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Os Primeiros Amores de Bocage
+ Comedia em Cinco Actos
+
+Author: José da Silva Mendes Leal
+
+Release Date: March 2, 2007 [EBook #20725]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE ***
+
+
+
+
+Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
+Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net
+
+
+
+
+
+
+
+OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE
+
+COMEDIA EM CINCO ACTOS
+
+POR
+
+JOSÉ DA SILVA MENDES LEAL
+
+(REPRESENTADA PELA PRIMEIRA VEZ NO THEATRO DE D. MARIA II EM 7 DE JUNHO
+DE 1865)
+
+
+LISBOA
+TYPOGRAPHIA UNIVERSAL
+MDCCCLXV
+
+
+
+
+INTRODUCÇÃO
+
+
+Tentando traçar os primeiros lineamentos caracteristicos de um grande
+poeta, esboço a que serve de moldura uma época ainda pouco estudada,
+desejou ao mesmo tempo o auctor compendiar n'esta peça os tres
+principaes generos de comedia--a comedia de enredo, a comedia de
+caracteres, a comedia de costumes.
+
+Dizendo-se que é uma comedia, bem se deprehende que não se coadunam com
+as suas condições os lances violentos, que só pertencem ao drama.
+Desejando-se que em tudo sahisse de feição portugueza, evidente se torna
+que não podia entrar no seu quadro o expediente de inverosimeis
+situações, que o theatro francez offerece com trivial abundancia.
+
+Não é porém a comedia uma biographia. Não podia apparecer n'ella inteira
+a vida do poeta, com todas as modificações que os annos successivamente
+exercem nos espiritos. Por isso não tem por titulo _Bocage_, senão _Os
+primeiros amores de Bocage_; como para dizer--a aurora d'esse homem--um
+homem egualmente singular pela indole e pelo ingenho.
+
+Aquelle homem, com effeito, encheu do seu nome o fim de um seculo e o
+principio de outro. Era elle essencialmente o homem do futuro. A morbida
+inquietação, progressivamente aggravada até ao desvario, vinha-lhe
+naturalmente do estreito ambito de idéas em que o seu talento se
+asphixiava!
+
+Para bem o comprehender cumpre ler-lhe attentamente a anciosa poesia, e
+logo depois fixar a meditação e os olhos nas paredes negras da
+Inquisição, em seu tempo erguidas ainda, e ainda ameaçadoras!
+
+Surgindo entre duas sociedades, uma que o instincto lhe adivinhava,
+outra que em torno d'elle se alluia, foi a sua existencia um indeciso
+protesto e uma turbida agonia. Os desvios dos annos ulteriores,
+precipitando-o tão cedo na sepultura, fizeram-se o triste refugio de uma
+actividade intellectual, convulsa de febre, comprimida de fóra, não bem
+conscia de si. Os seus ultimos desregramentos apparecem-nos hoje como as
+valvulas perigosas por onde se derramou, e brevemente se exhauriu, a
+exhuberancia d'aquella alma
+
+ «...--que sedenta em si não coube!»
+
+A comedia, tomando o poeta nos primeiros annos e nas generosas paixões
+da mocidade, mede-lhe a grandeza do vulto pela grandeza dos impulsos, dá
+aos seus mesmos defeitos a explicação elevada e nobre que só se póde ter
+por verdadeira em tão alto e claro espirito, mas deixa sempre entrever o
+germe fatal das futuras aberrações.
+
+Equivocar-se-ia de todo quem unicamente o quizesse ver segundo a
+tradição que ficou do derradeiro periodo da sua vida, transmittindo-se
+pela bocca dos que só então o conheceram e chegaram aos nossos dias. O
+versista das trovas ao Chrispiniano, á Estanqueira do Loreto, e ao Antão
+Broega, o vate plebeu dos sonetos ao Galina e aos novos árcades, não
+exclue o admiravel poeta de _Leandro e Hero_, de _Areneu e Argira_, do
+_Tritão_ e das Epistolas. A propria mobilidade do seu talento duplica,
+multiplica as variantes d'um caracter, cujo principal distinctivo era a
+excessiva impressionabilidade.
+
+Na comedia, Bocage mostra-se pelas duas faces essenciaes. Está n'isso a
+verdade: o contrario seria grave erro de observação. Ninguem se
+apresenta nas salas como na rua. Quando não houvesse esta distincção
+natural, que é de todos os tempos, bastaria o que a respeito d'elle
+escreveu o viajante Beckford, (que o tratou no tempo em que frequentava
+a casa dos Marialvas) para tornar evidente como o fogoso mancebo, apesar
+das suas singularidades, não podia ter ao despontar da vida desaprendido
+o que recebera da educação paterna, que recordava com desvanecimento da
+origem como provam alguns dos seus versos.
+
+Releu cuidadosamente o auctor os preciosos trabalhos dos srs. Castilhos,
+Rebello da Silva, e Innocencio ácerca de Bocage; compulsou os documentos
+respectivos ao poeta com tanta meudeza, que teve a fortuna de poder
+rectificar a data da sua nomeação de guarda marinha para Goa, que não é
+a de 1782 como se lê na biographia que precede a ultima edição, mas a de
+31 de janeiro de 1786, como authenticamente se vê no proprio documento
+official conservado nos archivos do ministerio da marinha; procurou
+sobre tudo o segredo d'aquelle complexo caracter nos seis volumes que
+encerram a collecção completa dos seus poemas, collecção inteirada pela
+illustrada solicitude e zelo incansavel do nosso primeiro bibliographo,
+o já citado sr. Innocencio.
+
+A variada feição da indole e talento de Bocage, o seu advento, e os
+lances principaes da sua vida, alli com effeito se retratam.
+
+Aos 8 annos improvisava uma quadra, que não poderia ter chegado até nós
+se não fosse logo repetida por apreciada, concluindo-se d'ahi que não
+póde parecer prematura reputação a que elle goza já aos 19:
+
+Fui ver a procissão a S. Francisco,
+A quem o vulgo chama da cidade,
+E supposto o apertão, foi raridade
+Que indo eu em carne não viesse em cisco.
+
+Logo no primeiro soneto da collecção exclama:
+
+Incultas producções _da mocidade_
+Exponho a vossos olhos, oh leitores;
+Vede-as com magoa, vede-as com piedade,
+Que ellas buscam piedade e não louvores;
+
+Ponderae da Fortuna a variedade
+Nos meus _suspiros, lagrimas e amores_;
+Notae dos males seus a immensidade,
+A curta duração dos seus favores;
+
+E se entre _versos mil de sentimento_
+Encontrardes alguns, _cuja apparencia
+Indique festival contentamento_,
+
+Crede, oh mortaes, que foram com violencia
+Escriptos pela mão do Fingimento,
+Cantados pela voz da Dependencia.
+
+Ninguem dirá, em presença d'esta dolorosa confissão, que lhe eram
+extranhos os grandes affectos e os grandes pezares expressos na mais
+alta e culta lingua; ninguem poderá persistir em consideral-o
+exclusivamente homem de botequins e oiteiros, incapaz de outras
+aspirações e outras praticas; ninguem em summa presumirá conhecel-o
+melhor do que elle a si se conhecia.
+
+O soneto 99.^o do Livro I attesta como n'esse privilegiado ingenho se
+revelou cedo a vocação, que cedo tambem o fez presado:
+
+Das faixas infantis despido apenas
+Sentia o sacro fogo arder na mente.
+
+Se o testemunho d'elle não bastasse, removeria quaesquer duvidas o de
+Philinto quando lhe escrevia:
+
+Lendo os teus versos, numeroso Elmano,
+E o não vulgar conceito, e a feliz phrase,
+Disse entre mim: «Depõe, Philinto, a lyra
+ Já velha, já cançada,
+Que _este mancebo_ vem tomar-te os louros.»
+
+Manifesto é pois que a fama não esperou muito para apregoar o nome de
+Bocage, e apregoal-o por voz tão auctorisada como esta, a que o moço
+poeta respondia n'um rapto de enthusiasmo em que se está revelando
+quanto o lisongeava tal suffragio:
+
+Fadou-me o gran Philinto, um vate, um nume!
+Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!
+
+O retrato physico de Bocage acha-se, além de outro inferior, no soneto
+22.^o do Livro IV:
+
+Magro, de olhos azues, carão moreno,
+Bem servido de pés, _meão_ na altura.
+
+O nome que mais frequentemente apparece nas suas queixas amorosas,
+indicando uma preoccupação e predilecção pouco vulgar em homem tão
+variavel, e consequentemente certificando que fôra aquelle o seu mais
+intenso affecto, é justamente o nome de Gertruria. Enlevos,
+desconfiança, zelos, saudades, presagios, alternam-se em impetuosos
+arrebatamentos e sentidos desaffogos nos sonetos 13.^o, 18.^o, 23.^o,
+37.^o e 57.^o do Livro I, e Gertruria é o objecto d'estas persistentes
+recordações. Os sonetos 17.^o e 20.^o provam que, indo em viagem, é
+ainda esta a memoria que lhe enche o espirito. O soneto 58.^o é uma
+despedida a Gertruria na occasião de partir para a India. O soneto 47.^o
+chora a ausencia da patria e de Gertruria. Finalmente o 83.^o, com o
+respectivo mote, é o que o Bocage da comedia no segundo acto improvisa
+sem mudança de uma virgula, e serve nas mãos astutas do commendador, por
+intermedio do officioso mestre Amancio, para dar no 3.^o acto motivo aos
+temporarios arrufos entre a supposta afilhada de D. Filicia e o filho de
+Manuel Simões.
+
+Já portanto se vê que, só desconhecendo-se totalmente as obras do poeta,
+se poderiam julgar destoantes do seu caracter estes amores, estes
+versos, e a feição d'elles, pois que ahi se encontra, n'aquelle periodo
+da sua vida, uma parte da sua propria individualidade com o que é mais
+d'ella, ou antes no que é mais ella!
+
+Seria facil multiplicar infinitamente as citações das poesias que
+authenticam, digamos assim, o caracter e a expressão que lhe deu o
+auctor. Para que? Seria um estudo demasiadamente longo e prolixo; seria
+peior, seria pôr em duvida a licção e criterio dos leitores.
+
+Poderia crer-se apenas um freguez do Izidro e do Nicola o poeta que ao
+partir para Goa soltava esta enternecida e magnifica despedida?
+
+Amigos, patria minha, e lar paterno
+Penates a quem rendo um culto interno!
+ Lacrimosos parentes
+Qu'inda na ausencia me estareis presentes,
+Adeus! Um vivo ardor de nome e fama
+A nova região me atrae, me chama.
+
+Não diz elle as suas arrojadas esperanças e secretas penas n'este
+quarteto tão cheio?
+
+Camões! grande Camões! quão similhante
+Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
+Egual sorte nos fez, perdido o Tejo,
+Arrostar co'o sacrilego gigante!
+
+Não deixa entrever, n'est'outro mavioso trecho, a par d'aquelles
+grandiosos sonhos, a dôr mysteriosa que o impelle e o acompanha?
+
+_Eu parto_; e vou teu nome repetindo
+Por que dê desafogo á magoa dura;
+Meus tristes ais, suspiros de amargura
+_Áquem dos mares_ ficarás ouvindo!
+
+De tudo isto se compõe o Bocage da comedia!
+
+Em torno d'elle, concorrendo a uma acção fundada nos costumes do paiz e
+da época, grupam-se os typos que mais visivelmente representam os
+sentimentos e tendencias coevas. De um lado as antigas tradições,
+_ainda_ na sua grave pureza. De outro lado a degeneração variada, _já_
+mixturando os elementos d'onde surgirá a necessaria transformação. De um
+lado o marquez de Marialva, D. Maria Joanna, Gonçalo Mendo; do outro D.
+Felicia, o Commendador, o Morgado. Ao fundo a burguezia nascente, isto
+é, Manuel Simões e seu filho,--o proprio Manuel Simões concebido e
+desenhado por Garrett na _Sobrinha do Marquez_--quanto possivel guardado
+e acatado como se guardam e acatam as tellas dos mestres--e só
+passageiramente retocado com uma leve tintura de ambição, indispensavel
+para indicar a progressão dos tempos, e os futuros destinos de tal
+classe. Ao redor do todo, o povo em algumas physionomias rapidamente
+esboçadas. Ao longe, como horisonte melancholico, uma idéa do são e
+austero lar provinciano, com seus longes dos costumes patriarchaes e
+fragueiros que lhe eram usual apanagio.
+
+Eis aqui resumido todo o pensamento e toda a economia da composição, que
+depois de experimentar a fortuna do palco, vae agora experimentar a
+fortuna da imprensa--duas temerosas experiencias.
+
+Expondo assim o conjuncto do designio, cujas multiplicadas difficuldades
+calculou, não procura o auctor antecipar as desculpas, mas unicamente
+assentar as responsabilidades.
+
+Se logrou o seu proposito não o dirá elle; decidil-o-ha o publico!
+
+O singular favor com que foi acolhido este ensaio n'um genero pouco
+cultivado no nosso theatro, impõe ao auctor o gratissimo dever de
+exprimir aqui (vedando-lhe o respeito outra menção) o seu profundo
+reconhecimento para com o publico, indulgente e attento, que em todos os
+seus tentames o tem acompanhado como um amigo fiel, ora animando-o com o
+estimulo do applauso, ora advertindo-o com a benevolencia do conselho, e
+que, de certo apreciando a obra mais pela intenção que pela valia,
+recompensou os seus esforços por modo tal que lhe ficará indelevel
+memoria.
+
+Á imprensa agradece tambem a benignidade com que até aqui o tem honrado.
+
+Á direcção do theatro normal testemunha quanto o penhorou a solicita
+cooperação que n'ella encontrou.
+
+Seja-lhe finalmente permittido certificar á graciosa actriz, que fez com
+a estreia da peça o seu beneficio, a sua inteira satisfação pela maneira
+verdadeiramente distincta com que interpretou o seu variado papel e lhe
+venceu as numerosas difficuldades, sendo a maior ter ao lado uma artista
+tão conscienciosa e completa como a sr.^a Delfina, que do esboço
+senhorilmente comico de D. Felicia tirou uma das suas mais acabadas
+creações.
+
+Se a estas, pela primasia devida ao sexo, menciona o auctor em primeiro
+logar, nem por isso esquece que deve egual agradecimento aos mais
+actores, do primeiro até ao ultimo, tendo achado n'elles tamanho zelo,
+que, mesmo graduando-os pela ordem dos meritos bem conhecidos, não
+poderia especialisar um sem offender a boa vontade de todos.
+
+A comedia _Os primeiros amores de Bocage_, se Deus der vida ao auctor,
+será o introito de uma trilogia, que se destina a abranger o mais
+notavel da vida do poeta, e dos curiosos periodos coetaneos da historia
+patria, até aos ultimos momentos d'elle em dezembro de 1805.
+
+Junho 12--1865.
+
+
+
+
+ADVERTENCIA
+
+
+Além dos córtes, effectuados antes da representação, que vão designados
+com cômmas no impresso, a experiencia mostrou a necessidade de novas
+reducções. Como estas reducções tiveram logar depois de completa já a
+impressão dos respectivos actos, vão ellas aqui notadas para facilitar a
+execução da peça em quaesquer theatros.
+
+
+
+
+ACTO II
+
+
+SCENA II
+
+Desde as palavras «estava de pedra e cal que se tinha já livrado»
+(exclusivè) até começar a phrase: «dizem que ha ahi uma tal senhora
+morgada, etc.» supprime-se tudo.
+
+E depois, egual suppressão desde as palavras: «se não póde chegar a um
+rosicler de pedras» (exclusivè) até ao fim da scena.
+
+
+SCENA IV
+
+Suppressão desde as palavras: «elle só bastára para dar a immortalidade
+ao nome portuguez» (exclusivè) até onde Bocage diz: «ouça-me tambem, sr.
+Gonçalo Mendo».
+
+
+
+
+ACTO III
+
+
+SCENA X
+
+Suppressão desde que o Commendador pergunta: «resolveu casar com sua
+prima quanto antes?» (exclusivè) até prender onde o mesmo Commendador
+diz: «chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que importa, etc.»
+
+Á phrase de Gonçalo Mendo, na scena 2.^a do 5.^o acto: «disse-me que ia
+a Setubal despedir-se _dos paes_», phrase que por facil inadvertencia
+escapou na composição e revisão, cumpre substituir est'outra: «disse-me
+que ia a Setubal despedir-se do pae.»
+
+A mãe do poeta não existia já havia nove annos.
+
+
+
+
+PERSONAGENS
+
+
+O Marquez de Marialva, 72 annos Sr. _Rosa_
+
+Manuel Simões, mercador, 69 annos Sr. _Theodorico_
+
+Gonçalo Mendo de Sendim, da casa de Mendel, tenente de dragões de Campo
+Maior, 33 annos Sr. _Tasso_
+
+Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage, cadete do regimento de Setubal,
+19 annos Sr. _Santos_
+
+Bartholomeu Tojo, morgado da Gesteira, 44 annos Sr. _Cezar_
+
+Sebastião de Brito Louzellos, commendador de S. Marcos de Monsarás, 52
+annos Sr. _Izidoro_
+
+Francisco Pedro Simões, filho do Manuel Simões, 26 annos Sr.
+_Coelho_
+
+Um Transeunte Sr. _Corrêa_
+
+Zé da Moita, guarda de montado, 30 annos Sr. _Pinto_
+
+Luiz Manuel, escudeiro, 65 annos Sr. _Moreira_
+
+D. Maria Joanna Galvão Lobo, morgada de Valmoreno, Fresnos e
+Carregueiros, 23 annos Sr.^a _E. Adelaide_
+
+D. Felicia Moutoso de Cerqueira, morgada da Torre da Palma, 48 annos
+ Sr.^a _Delfina_
+
+Maria Gertrudes, sua afilhada, 20 annos Sr.^a _Marianna_
+
+Tia Paschoa do Espirito Santo Sr.^a _Maxima_
+
+Tia Vigencia da Purificação Sr.^a _C. Emilia_
+
+Uma Palmilhadeira. Sr.^a _Maria das Dores_
+
+Compadre Theotonio Alves Sr. _Marcolino_
+
+Compadre Amancio Pires Sr. _Sargedas_
+
+1.^o} { Sr. _Amaro_
+2.^o} POETAS { Sr. _Polla_
+3.^o} { Sr. _Soller_
+
+1.^o} { Sr. _Vencancio_
+ } MANCEBOS {
+2.^o} { Sr. _Christiano_
+
+O alcaide do bairro do Rogio Sr. _J. Antonio_
+
+O tabelião
+
+Um cavalheiro
+
+O Almeirão }
+ } Picadores
+O Gaeta }
+
+Um cego, pregoeiro de impressos Sr. _Farruja_
+
+Um Volantim
+
+Um penitente
+
+
+Um escudeiro do Marquez.--O mouro do Marquez.--O escudeiro de D.
+Felicia.--Povo.--Convidados.--Damas.--Ronda do Alcaide--Criados, etc.
+
+1785 a 1786
+
+
+O COMMENDADOR (_atrás de D. Maria Joanna, do mesmo modo_)
+
+Bem... bem diz Xenophonte!... Nem eu sei o que diz! (_Deixa-se ir meio
+desfallecido sobre outra cadeira á entrada da porta do F._)
+
+(_Silencio geral. Cada um dos tres personagens procura resfolegar e
+reanimar-se_.)
+
+
+D. MARIA JOANNA (_como tornando a si_.) (_Para os dois_)
+
+Que foi isto?... Como foi isto?...
+
+
+MORGADO
+
+Pois não sentiu?--Um tiro... tropel de cavallos...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E desappareceu tudo!... E deixaram-me só!... (_meio reprehensiva_) E o
+primo a fugir!
+
+
+MORGADO (_levantando-se_)
+
+Fugir eu, minha prima!... (_Formalisado_.) Fugir!... Seria a primeira
+vez.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_recobrando gradualmente o bom humor_)
+
+Pois para a primeira não o fazia mal.
+
+
+MORGADO
+
+Avistei esta casaria... Corria para aqui... para me fazer forte... para
+nos fazermos fortes!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Mas corria diante... E eu corri tambem... corri que nem eu sei... corri
+devéras para o poder seguir... E até o commendador correu... Não correu,
+commendador?
+
+
+COMMENDADOR (_gravemente_)
+
+Affirmam boas auctoridades que muitas vezes é prudencia o correr...
+_Pedibus celer_, diz Virgilio com louvor.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_sorrindo_)
+
+Já está mais em si, o commendador... Já não falla como toda a gente.
+
+
+MORGADO (_com extrema volubilidade, que é o seu natural_)
+
+Mas, prima, que havia de fazer um homem só, n'aquelle descampado, contra
+tanta gente!... Agora que venham. Dez, doze, vinte que sejam...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_erguendo-se como escutando_)
+
+Espere...
+
+
+MORGADO (_assustado_)
+
+Que é?
+
+
+COMMENDADOR (_idem, levantando-se e approximando-se á D._)
+
+Que é?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_Applicando o ouvido, aos dois que se lhe reunem em
+grupo turbado_)
+
+Não ouvem?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Tropear de cavallos!...
+
+
+MORGADO (_inquieto e interrogando as saidas com os olhos_)
+
+Não ter aqui a minha espada!...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_com leve ironia_)
+
+Perdeu-a?
+
+
+MORGADO (_mais inquieto_)
+
+Não sei como foi... (_dirigindo-se apressadamente a uma porta lateral_)
+Vou procurar uma arma.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_com terror dirigindo-se a outra_)
+
+Chame gente, primo.
+
+
+COMMENDADOR (_que ficára escutando_)
+
+Vem subindo alguem! (_encaminhando-se desorientado á outra_).
+
+(_No momento em que os tres aterrados procuram debalde atinar com os
+fechos das portas a que se dirigem, apparece ao F. Gonçalo Mendo_)
+
+
+SCENA II
+
+
+OS MESMOS _e_ GONÇALO MENDO
+
+
+GONÇALO
+
+Da parte d'el-rei... nem mais um passo.
+
+
+COMMENDADOR (_apegando-se á umbreira_)
+
+Ai!
+
+
+MORGADO (_idem_)
+
+Jesus!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Desmaiava... se tivesse onde.
+
+
+GONÇALO
+
+Ninguem tente fugir ou esconder-se. Da parte d'el-rei está preso tudo.
+
+
+MORGADO (_esperançado, comsigo, e ainda voltado para a porta_)
+
+Da parte d'el-rei!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_do mesmo modo_)
+
+Havia de jurar que me não é desconhecida esta voz.
+
+
+COMMENDADOR (_voltando dissimuladamente o rosto, e procurando
+reconhecer_)
+
+Da parte d'el-rei!... Então...
+
+
+GONÇALO (_adiantando-se_)
+
+Vamos... Toda a resistencia seria inutil...
+
+
+D. MARIA JOANNA, MORGADO _e_ COMMENDADOR
+
+(_voltando-se simultaneamente_)
+
+O sr. Gonçalo Mendo!
+
+
+GONÇALO (_attonito_)
+
+Que é isto! (_affirmando-se e reconhecendo-os_) Na verdade não sei se
+acredite... A sr.^a D. Maria Joanna Galvão!... O sr. morgado da
+Gésteira!... O sr. commendador Louzellos!... E eu que pensava colher um
+bando de salteadores!... (_a D. Maria Joanna sorrindo_) Não são os
+salteadores?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_recobrando a jovialidade_)
+
+Somos os assaltados. Respondo-lhe por elles.--Agora diga-me antes de
+tudo. Que aventura é esta? Como veiu aqui? Onde estamos? Diga. Foi
+terrivel o susto, mas ainda é maior a curiosidade.
+
+
+GONÇALO
+
+Responderei logo; perguntarei primeiro. Estes senhores pódem auxiliar as
+explicações, e eu completo o meu dever. Vinham de jornada e foram
+atacados alli em baixo, na estrada, ao fundo do valle, entre a ribeira
+d'Aviz e o azinhal grande?
+
+
+COMMENDADOR (_no seu caracter habitual de prolixa gravidade_)
+
+Fomos. Tinhamos jantado em Portalegre, onde mais nos detivemos do que
+deviamos. E não foi por eu não repetir ao morgado, com a auctoridade de
+Cicero: «nos negocios graves são perigosas as demoras.» Jornadas, em boa
+razão, são graves negocios.
+
+
+MORGADO (_no seu caracter de costumada loquacidade_)
+
+A que proposito vinha o tal Cicero, ou o que é, quando eu tinha
+conseguido pôr na meza á prima, em Portalegre... em Portalegre, como se
+estivessemos na côrte!... tudo por diligencias minhas, tudo com receitas
+minhas!... uma ôlha á castelhana, um prato de gallinhas de alfitete,
+outro de coelho á Fernão de Sousa, outro de arteletes de vitella, outro
+de coroa real de folhado francez, sem contar as miudezas... Em jornada
+nem princezas teriam melhor, hade confessar, sr. Gonçalo Mendo... Não,
+que se não fôra a minha consummada pratica n'estas coisas...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Estavamos ha uma hora em Monforte... e provavelmente não nos tinha
+succedido o que nos succedeu.
+
+
+MORGADO (_desconsolado_)
+
+Ah! prima!
+
+
+GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)
+
+Não me queixarei eu do succedido. (_Aos homens_.) Vamos ao caso...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Era já ao pôr do sol e estavamos quasi ao meio do azinhal, a sr.^a D.
+Maria Joanna com a sua aia n'uma liteira, nós dois e dois criados, todos
+a cavallo, um pouco atrás uma azemola com as bagagens mais leves, e um
+moço de pé...
+
+
+MORGADO
+
+Bagagens leves!... Leves serão, mas preciosas!... Mil coisas
+necessarias!... Uma bateria de cosinha de viagem como não ha outra ainda
+em Lisboa... completa... completa... Fôrmas, facas, espatulas, agulhas,
+passadores... Nem na uxaria de Salvaterra!... E tudo precaução minha
+para commodidade da prima, tudo...
+
+
+GONÇALO (_interrompendo_)
+
+Vamos ao caso... vamos ao caso, commendador.
+
+
+COMMENDADOR
+
+A meio do azinhal, pouco mais ou menos, onde a estrada faz um cotovelo e
+se aperta entre os montes, damos de rosto com uns poucos de homens
+armados...
+
+
+MORGADO
+
+Poucos!... Quinze eram pelo menos... vinte talvez... vinte de certo, se
+não eram mais...
+
+
+GONÇALO (_atalhando impaciente_)
+
+O numero pouco importa.
+
+
+MORGADO (_protestando_)
+
+Importa pouco! Para o valor o numero...
+
+
+COMMENDADOR
+
+O numero não é indifferente... Por não ser indiferente se distinguiu em
+singular e plural... Basta ver o que a respeito do numero escreveu
+Prisciano Cesariense... mas n'este caso...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+N'este caso, continúo eu... ou não se acaba.--Parámos. O morgado e o
+commendador vinham ainda um pouco distantes, penso. Os homens fazem
+menção de nos cercar a liteira. A minha aia desmaia. Os liteireiros
+fogem pelo azinhal, e creio que os criados tambem. Emfim achei-me não
+sei como a pé na estrada. N'isto o commendador caiu...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Dei de esporas para acudir, e tropeçou-me o cavallo...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Muito a tempo.
+
+
+MORGADO (_que espreitava a occasião, apoderando-se da palavra_)
+
+No meio d'estes apuros, conservo toda a presença d'espirito... deito á
+carreira, faço parada firme, ponho pé em terra n'um relance, com todos
+os preceitos... os tres tempos velozes em meio circulo seguido...
+levanto o commendador que estava tolhido pela sella... não indago
+mais... a pé mesmo levo da espada, e caio como um raio sobre a malta...
+Ah! que se tenho tempo! Duas voltas, um cambiamento, treta sobre treta,
+talho e revez, e ensinava-lhes o que é o morgado da Gésteira com a
+espada na mão!... A prima veria... Por seu respeito!... Veria... Não
+digo mais!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Veria... estou certa. Mas não vi. Foi pena. Apagou-se o raio antes de
+fulminar!
+
+
+GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)
+
+Depois?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Depois... nem eu sei bem... ouviu-se um galope... um tiro, creio... O
+morgado diz que foi um tiro...
+
+
+MORGADO
+
+Foi... Por signal, com o estrondo os nossos cavallos, que tinhamos
+deixado soltos na estrada, fugiram á desfilada...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Dando exemplo aos cavalleiros. Fugiram os cavallos, fugiram os
+salteadores... se eram salteadores... já tinha fugido o commendador,
+fugiu o primo, e eu, que estava desatinada, confesso, vendo-o fugir...
+segui-o. Debandada geral... Não se ria, sr. Gonçalo Mendo... Segui-o, é
+verdade, a correr, a bom correr, eu mesma, por essas ladeiras acima, por
+entre o matto... E tive folego!... Veja que forças dá o terror, e como
+eguala as condições!... Por fim viemos dar todos aqui. Póde explicar-me
+o enigma?
+
+
+MORGADO
+
+Tive a imprudencia de não trazer armas de fogo. Estava apeado, não
+esperava dois ataques ao mesmo tempo... Mettido assim entre os
+salteadores que nos esperavam, e o outro bando que atirou sobre nós...
+Senti assobiar a bala aos ouvidos.
+
+
+GONÇALO
+
+Admira. Disparei para o ar.
+
+
+MORGADO (_surpreso_)
+
+Disparou!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Então o outro bando era o sr. Gonçalo Mendo!
+
+
+GONÇALO
+
+Eu mesmo. Voltava de Marvão, com duas ordenanças do meu regimento, em
+direcção a Monforte. Ao descer a encosta avistei um ajuntamento na
+estrada... Não podia distinguir bem, porque estava distante ainda, e já
+começava a escurecer o valle com a sombra do arvoredo... Metti a galope,
+e desconfiei que era ataque a passageiros. Disparei então uma das
+pistolas para dar aviso de soccorro, e prevenir alguma ousadia maior.
+Não esperava tão grande resultado. N'um instante desappareceu tudo...
+menos a liteira e a sua aia, minha senhora!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Jesus! é verdade! A minha pobre Anna Maria! Que é feito d'ella?... Com o
+sobresalto, com tudo isto, quasi me tinha já esquecido.
+
+
+GONÇALO
+
+Tornou a si... Acompanha-a um dos meus dragões... Vem ahi já. Nem pode
+acreditar ainda, que esteja viva.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E os ladrões, os criados, os liteireiros...
+
+
+GONÇALO
+
+Dos ladrões, nem vestigios... Parece que se abriu a terra com elles...
+
+
+MORGADO (_que escutava attentamente, comsigo_)
+
+Ainda bem!
+
+
+GONÇALO (_fitando-o_)
+
+Como?
+
+
+MORGADO
+
+Nada, nada... Explica-se tudo perfeitamente. Ainda bem, dizia eu. Ainda
+bem que se explica, está visto.
+
+
+GONÇALO
+
+Os liteireiros e os criados... deixei a outra ordenança incumbida de
+procural-os, e esses de certo não hão de estar longe.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E como veio aqui ter, tanto a proposito?
+
+(_Vae carregando a noite_)
+
+
+GONÇALO
+
+Porque vi que se acoitavam n'esta casaria alguns vultos... e por...
+(_mais baixo_) por destino talvez!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_idem, motejando_)
+
+Como ha dois annos?
+
+
+GONÇALO (_gravemente e com ardor_)
+
+Como sempre!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_afastando a conversação_)
+
+Mas a final, onde estamos? Que havemos de fazer?
+
+
+GONÇALO
+
+Em primeiro logar... procurar luz. É noite quasi. Sr. Morgado da
+Gésteira, a casa tem ares de habitada. Se quizesse...
+
+
+MORGADO
+
+Pois não. Eu chamo. (_Successivamente e a intervallos, ás portas da D._)
+Olé! Oh!... ó de casa. Venha alguem? Está aqui o morgado da Gésteira!...
+Está uma senhora!... Gente de bem, tudo!... (_Silencio absoluto_.) Nem
+viv'alma!
+
+
+GONÇALO
+
+Estarão longe...
+
+
+COMMENDADOR
+
+É singular!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_inquieta_)
+
+Será a propria guarida dos salteadores!
+
+
+GONÇALO
+
+Tem-se visto, mas não é provavel... Vamos, sr. morgado. Veja se acha uma
+luz. Bem reconhece que não posso ir eu. Está aqui uma dama, e agora,
+como militar, respondo pela sua segurança.
+
+
+MORGADO (_irresoluto_)
+
+Assim é, mas... (_sem se atrever a ir_) Commendador, mais vêem dois do
+que um.
+
+
+COMMENDADOR
+
+«Não é a luz dos olhos a que mais vê», como diz...
+
+
+GONÇALO (_instando_)
+
+Então! Cada vez se faz mais escuro, e não sabemos onde estamos.
+
+
+MORGADO (_resolvendo-se_)
+
+Vamos, commendador, antes que seja noite de todo! Por aqui... (_indo á
+E._) Uma varanda... (_indo á D._) d'este lado um corredor... Vamos a
+ver.
+
+(_Saem os dois pela 1.^a porta da D._)
+
+
+SCENA III
+
+
+GONÇALO, _e_ D. MARIA JOANNA
+
+(_Longo silencio como se receiassem quebral-o_)
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Sr. Gonçalo Mendo, é ainda submisso como d'antes jurava?
+
+
+GONÇALO
+
+Nunca faltei a nenhum juramento.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Tornamos a vêr-nos em circumstancias extraordinarias... n'um ermo a bem
+dizer... entre sombras e mysterios... Não lhe permitto uma palavra de
+galanteio ás escuras... Estão entre nós...
+
+
+GONÇALO (_gravemente_)
+
+Estão tres seculos de honra... está a espada de um soldado.--Faz-me a
+injuria de suppôr necessario advertir-m'o?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não. Desculpe. É ainda do sobresalto! Desculpe. Conversemos.--Estava bem
+longe de me encontrar, não? E assim, e aqui muito menos?
+
+
+GONÇALO
+
+Só adivinhando. Suppunha-a ainda em Paris.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Volto de lá. Um mez de jornada, faça idéa! Se não posso aturar o mar!
+
+
+GONÇALO
+
+Um mez!... Entre o commendador e o morgado?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O commendador...
+
+
+GONÇALO
+
+Uma reminiscencia das academias do sr. D. João V... a quem Deus
+perdôe...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ao sr. D. João V?
+
+
+GONÇALO
+
+Não, minha senhora, ás academias.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O morgado...
+
+
+GONÇALO
+
+A casca dos antepassados... que não teve.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Já vejo que os conhece a fundo.
+
+
+GONÇALO (_ponderando dolorosamente_)
+
+Um mez em tal companhia!... A fadiga do caminho é nada ao pé d'isso.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Um mez com o commendador, que o meu contra-parente D. Vicente de Sousa
+Coutinho incumbiu de acompanhar-me, attendendo á sua edade, e que
+emprehendeu render-me á força de erudições... um dia com o morgado, que
+encontrei em Porto de Espada, e que foi esperar-me á raia, não sei se
+por sua conta, se por ordem de minha tia D. Felicia, a quem escrevi de
+Paris.
+
+
+GONÇALO
+
+Ao menos foi só meio supplicio no mez!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ai! o dia do morgado tem valido bem o mez do commendador. Imagine. È um
+nunca acabar de proezas em cavallaria, em... esgrima, em altanaria, em
+monteria e em... gastronomia, como se diz em França. Com o pretexto de
+um parentesco... de que eu não tinha noticia... quer-me captivar pelas
+artes como o commendador pela sciencia.
+
+
+GONÇALO
+
+Concluo d'ahi que tenho n'elles dois... dois... Como direi?...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Rivaes. Póde dizer. Não tem risco.
+
+
+GONÇALO
+
+Em summa, requestam-n'a ambos!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O commendador dês que partimos de Paris... O morgado dês que nos saiu ao
+encontro na fronteira...
+
+
+GONÇALO
+
+Complicando o galanteio... ambulante.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Pelo contrario: simplificando-o. Distraem-se mutuamente, e deixam-me
+respirar. Dois são menos perigosos que um.
+
+
+GONÇALO
+
+E tres?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Menos perigosos que dois. Já lhe esqueceu o promettido? (_Pausa_.) Ambos
+pertendem a minha mão, é verdade... porque n'esta mão, com ser pequena,
+cabe a herança de tres casas.
+
+
+GONÇALO (_simplesmente_)
+
+Não me lembrava!
+
+
+O MORGADO (_fóra_)
+
+Prima! Prima!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ouve? Temos temporal de palavras.
+
+
+SCENA IV
+
+
+OS DITOS, MORGADO _e_ COMMENDADOR
+
+(_Ambos com luzes--Clarea de novo a scena_)
+
+
+MORGADO
+
+Prima. Achámos luz.
+
+
+GONÇALO
+
+Não é difficil verifical-o.
+
+
+MORGADO
+
+E não só achámos luz, fizemos um grande descubrimento. (_Vão pôr as
+luzes no bufete_.)
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não foi o novo mundo?
+
+
+MORGADO
+
+Não foi o novo mundo. Foi um mundo antigo... um canto d'elle... muito
+seu conhecido... A prima mal se podia lembrar. Não o vê de pequenina...
+E eu mesmo... Se não venho por aqui ha bons quinze annos!...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Vamos, acabe. Encontrou gente?
+
+
+MORGADO
+
+Gente! Ninguem. Um deserto.--Quer saber onde estamos?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Porque não começou por ahi? Não vê que estou morta de impaciencia?
+
+
+MORGADO
+
+Deus me livre de a molestar na minima coisa, prima. Quizera antes...
+brigar commigo! Bem sabe que para lhe evitar um dissabor... uma sombra
+d'elle, um... (_Gesto de impaciencia de D. Maria Joanna_.) Já vou,
+prima. Lá vae.--Quer saber onde estamos? Estamos no paço da Torre da
+Palma!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Em casa de minha tia D. Felicia?
+
+
+MORGADO
+
+No seu proprio solar. Não ignorava que era para estes sitios, mas deram
+nova direcção á estrada, e lá em baixo não me occorreu... Depois, quando
+entrámos, com o lusco-fusco...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_maliciosa_)
+
+Com a perturbação...
+
+
+MORGADO
+
+Nem reparei sequer. Agora, entrando por ahi dentro, quiz-me parecer que
+me não era estranho o corredor... tópo uma escada, e dá-me ares de
+conhecida... desço, entro n'uma casa lageada, e cada vez se me afigura
+mais familiar o piso... Procuro, acho vélas, accendo, ólho em redor...
+Era a cosinha... foi um raio de luz...
+
+
+GONÇALO (_sorrindo_)
+
+Pudéra! Na cozinha!
+
+
+MORGADO
+
+Tantas vezes jantei n'esta casa!... Fui eu que dei as receitas de fartes
+e de manjar real á Dorothéa!... Foi alli que ensinei o Fernandes velho a
+fazer perdizes de gigote, quando vinha caçar com seu tio capitão mór...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Memoraveis recordações!... Admira como não reconheceu logo a casa.
+
+
+MORGADO (_machinalmente_)
+
+Com a perturbação... (_emendando-se_) com o escuro, quero dizer... E era
+tão novo ainda n'aquelle tempo!--Não se lembra de seu tio João, de
+Carregueiros? Parece-me estar vendo ainda o sr. capitão mór, João
+Alvares Lobo, sempre sisudo, e sempre triste... triste como a noite!...
+Tudo por quê? Por não deixar filho varão para herdeiro, (_a D. Maria
+Joanna_) e por causa da paixão de sua tia D. Felicia pelos donaires...
+Nunca se viram dois genios mais oppostos... Elle todo monteador e
+fragueiro; ella toda côrte e mimos!... Teimava o capitão-mór em
+eternizar, na Torre da Palma, os costumes do tempo em que era castello
+fronteiro a casa. A sr.^a morgada D. Felicia não tinha senão um fito...
+ser açafata no Paço.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E já é?
+
+
+GONÇALO
+
+Espera ainda ser. Ha treze annos que espera.
+
+
+MORGADO
+
+Na filha unica via o capitão-mór a continuação provavel da indole de sua
+mulher, e a ruina dos proprios intentos.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Tenho idéa de ouvir dizer que por isso se apartaram.
+
+
+MORGADO
+
+Por isso, certamente. Foi ella viver na côrte como desejava. Elle
+deixou-se ficar, não consentindo que sua tia levasse a filha...
+provavelmente para a criar a seu modo... Ficou pois... Mas como
+ficou!... Esta casa um ermo, elle uma sombra.--Levou-o mais cedo á
+sepultura aquelle desgosto!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E a pequenina?
+
+
+MORGADO
+
+Tinha dezoito mezes apenas. Tratava d'ella aqui a Joaquina Simôa, filha
+de um matteiro de Carregueiros, que havia dois annos casára com o Luiz
+Manuel, o escudeiro da Torre da Palma... A creança morreu, e seu tio
+pouco mais durou... Ha bons quinze annos isto... dezeseis talvez!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E dezesete porque não? Apezar de mais moço, meu pae havia casado muito
+antes de meu tio João. Tinha eu os meus seis annos feitos por esse
+tempo, e lembra-me bem de ouvir contar. Foi por morte do tio João e da
+filha herdeira, que as casas de Fresnos e Carregueiros passaram para meu
+pae, na qualidade de immediato successor. Não é isto?
+
+
+MORGADO
+
+É. Vivia ainda seu irmão Nuno Alvares, quando morreu o capitão-mór. Ao
+menos acabou persuadido de que as terras dos seus iam a herdeiro varão,
+como tanto desejava.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Deus tinha disposto d'outro modo. Meu irmão Nuno morreu ainda menino
+tambem.--O morgado não é menos forte em genealogias... patrimoniaes...
+do que em esgrima, e no resto.--Minha tia D. Felicia nunca mais voltou
+aqui? Fui cedo para Lisboa, casei aos quinze annos, e parti logo com meu
+marido para a embaixada de Vienna d'Austria, onde elle era secretario.
+Desejo informações.
+
+
+MORGADO
+
+Sua prima? Não voltou. A côrte é o seu encanto, e esta casa só lhe
+lembrava desgostos. Haverá dez annos mandou ir para a sua companhia a
+pequena da Simôa, que é sua afilhada. Tem o mesmo nome que tinha a
+filha, e nasceu pelo mesmo tempo... Recordações... saudades
+provavelmente.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E a Joaquina Simôa? E o Luiz Manuel? Tenho ainda uns longes d'elles.
+
+
+MORGADO
+
+Ficaram por feitores da casa.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E não apparecem, essas reliquias de outro tempo?... Procure-m'as,
+commendador... procure-as morgado... Ah!... (_como achando uma idéa_)
+Estarão ellas encantadas? Querem vêr que estão!... Desencantem-m'as.
+
+
+MORGADO
+
+Se não mudaram os costumes, foram ao terço a Vayamonte, e não tardam.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Sabemos onde estamos, e estamos em morada da familia... Não é pouco, mas
+não é tudo. Agora que fazemos? Monforte fica ainda longe?
+
+
+GONÇALO
+
+Meia legoa, o muito.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não me fio n'estas meias legoas.--Visto que nos podemos julgar a
+salvo... (_a Gonçalo_.) Podemos?
+
+
+GONÇALO
+
+Sempre o julguei.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Acho-me um pouco moída das carreiras que dei atraz do morgado; e não sei
+se é do susto, se do ar, se da jornada, sinto uma fraqueza que... que
+está solicitando com empenho a intervenção e o soccorro da famosa
+ucharia... (_para o morgado_) Não seria occasião de experimentar alguma
+das receitas?... Qualquer coisa.
+
+
+MORGADO
+
+Preveni tudo... Vem tudo nas bagagens, muito bem acondicionado...
+Servir-lhe-hei duas ades estilladas, frias, que são um primor, e um
+queijo de presunto, que verá... sem contar um prato de broas d'ovos que
+tinha de reserva.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ouviu já fallar no supplicio de Tantalo, morgado?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Tantalo, rei da Lydia, filho de Jupiter e de Plotis.
+
+
+MORGADO (_sériamente_)
+
+Não conheço o sujeito, mas tratarei de fazer o seu conhecimento, se é
+pessoa de bem.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não é preciso.--Tantalo ardia em sede, e fugia-lhe a agua que via
+proxima; devorava-o a fome, e retiravam-se d'elle os fructos que tinha á
+vista... Assim estamos nós... Tão boas coisas nas bagagens, e as
+bagagens por montes e valles!
+
+
+GONÇALO (_que parecia escutar_)
+
+Perdoe! (_Continua a applicar o ouvido_.)
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Novidade?
+
+
+GONÇALO (_saindo precipitadamente_)
+
+Volto já.
+
+
+SCENA V
+
+
+OS DITOS _menos_ GONÇALO
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Mais inquietações ainda!
+
+
+COMMENDADOR (_turbado_)
+
+Não agoiro nada bom... Ouço rumor se me não engano...
+
+
+MORGADO
+
+Não tem a gente um momento de socego. (_comsigo_) Dar-se-ha caso que
+devéras... (_alto_) Isto está como nunca... Anda tudo minado de
+malfeitores!
+
+
+COMMENDADOR (_com o ouvido attento_)
+
+Que ha rumor lá fóra, ha!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Assim é que me tranquillisam!
+
+
+SCENA VI
+
+
+OS DITOS _e_ GONÇALO
+
+
+D. MARIA JOANNA (_assustada_)
+
+Que foi?
+
+
+GONÇALO
+
+São as suas bagagens. Não é caso de consternar, creio.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_meio enleiada ainda_)
+
+De certo não.
+
+
+GONÇALO
+
+Teve alguma coisa?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não tive...--Tive... tive os terrores chronicos do morgado e do
+commendador.
+
+
+MORGADO (_protestando_)
+
+Terrores! Cuidados pela prima.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_aos dois_)
+
+Hão de acabar por me tornar convulsa.
+
+
+GONÇALO
+
+Chegou a sua aia, voltaram os liteireiros, e appareceu o criado do sr.
+morgado. Não falta senão o do sr. commendador.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Esse não me dá cuidado. É dos sitios.
+
+
+GONÇALO
+
+Tantalo tem férias?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Tem.--A minha Anna Maria?
+
+
+GONÇALO
+
+Entrou para os quartos inferiores.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Já agora aqui pernoitamos, commendador!
+
+
+COMMENDADOR
+
+É o mais prudente, se o sr. Gonçalo Mendo nos assegura...
+
+
+GONÇALO
+
+Basta que esteja em Monforte de madrugada. Eu e as minhas ordenanças
+ficamos de guarda a esta casa.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O Luiz Manuel não póde tardar. Sempre ha de haver modo de não ficarmos
+peior do que em Monforte.
+
+
+MORGADO
+
+Ha, pois não... Hade haver onde a prima se accommode como cumpre. Nós...
+
+
+GONÇALO
+
+Nós em qualquer parte e de qualquer maneira.
+
+
+MORGADO
+
+Como homens de guerra.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Que poeira trago... reparo agora!--Commendador... minha prima havia de
+ter um quarto de toucar... Quer dizer à Anna Maria que suba e procure.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Procurarei eu mesmo (_galanteando_). Pretende Tibullo...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_atalhando_)
+
+Ai! o morgado que faz que não vae acudir ás ades... ás ades... Como é?
+
+
+MORGADO
+
+Estilladas, prima, estilladas... Vou. Já vou. Deus me livre de entregar
+coisas d'estas a lacaios nem mochillas... Vou no mesmo instante.
+
+
+COMMENDADOR (_indo para sair pela D., e mirando desconfiado Gonçalo
+Mendo_)
+
+Dar-se-ha caso que...--Póde lá ser...--Um soldado!
+
+
+MORGADO (_idem, á porta do F_.)
+
+Querem vêr que...--Ora... um filho segundo!
+
+
+SCENA VII
+
+
+D. MARIA JOANNA _e_ GONÇALO
+
+
+D. MARIA JOANNA (_que tem ido sentar se na cadeira junto ao bufete,
+acompanhada de Gonçalo, que fica de pé_)
+
+Não está cançado, sr. Gonçalo Mendo?
+
+
+GONÇALO
+
+De quê?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Estou eu... creio que estou.
+
+
+GONÇALO
+
+Com um mez de jornadas!...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não é das jornadas.
+
+
+GONÇALO
+
+Será dos companheiros?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Será.--Continuemos a conversar em quanto elles não veem, os
+companheiros.
+
+
+GONÇALO
+
+A respeito de quê?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Do que lhe parecer.
+
+
+GONÇALO
+
+Sem restricção?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_indicando_)
+
+Agora temos luzes.--Diga-me alguma coisa de Lisboa. Hade estar
+informado.
+
+
+GONÇALO
+
+Sahi de lá ha quinze dias, e volto antes de oito. Vim á provincia em
+commissão apenas. Estou ás ordens do conde de Aveiras.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_distrahidamente_)
+
+Que se faz? que se diz?
+
+
+GONÇALO (_encostando-se-lhe ao espaldar da cadeira_)
+
+Hade-se dizer em breve que possue Lisboa a perola das formosas e
+discretas... que já Paris admirava, e agora fica invejando.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Cumprimentos!
+
+
+GONÇALO
+
+Bem sei que a enfadam já por continuados.--Cumprimentos não, prophecias.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+É moço para propheta... e ninguem o é na sua terra.
+
+
+GONÇALO
+
+O que se faz?... Deixe-me vêr... (_como recordando-se_) Não se faz nada.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Pois nada?
+
+
+GONÇALO
+
+O mesmo sempre.--A rainha, minha sr.^a, vae a Salvaterra, e sae ás suas
+devoções. De tempos em tempos opera em Queluz. Fóra d'isso a nau de
+viagem de anno a anno, e... e acabou-se. É assim depois que morreu o
+marquez de Pombal. Ao principio ainda se entretinham em ter medo d'elle,
+mesmo depois de desterrado. Agora até essa distracção falta.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ai! sr. Gonçalo Mendo, desculpe. Está ali uma cadeira convidando-o... e
+ahi um logar a esperal-o. (_Indica o lado opposto do bufete. Gonçalo vae
+buscar a cadeira, e senta-se no ponto designado_.) Não lhe parece que
+estaremos melhor?--São ainda moda os abadeçados?
+
+
+GONÇALO
+
+Uma vez por outra. Agora estão em voga as assembléas.--Como lhe hade
+parecer tudo isto semsabor!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_sériamente_)
+
+Engana-se. Sempre são ares nossos. Não sabe que me trazem saudades?
+
+
+GONÇALO (_com intenção_)
+
+De...?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_accentuando_)
+
+Da patria.
+
+
+GONÇALO
+
+E sentimento digno de tal dama. Mas depois sempre se hade lembrar d'esse
+Paris, que era já tão seu.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O Paris que viu ha dois annos vae de dia para dia degenerando... Os
+requebros são curtidos em philosophia... as canções tem um sabor de
+finanças... Que distracção para damas!...
+
+
+GONÇALO
+
+Amortalharam então a galanteria franceza com a Dubarry?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Que está dizendo! Seria leval-a de caixão á cova. A galanteria
+sobrevive; mas agora tem por figurino a sensibilidade... e anda de braço
+dado com uma coisa nova, que veiu ha pouco de Inglaterra, e que se
+chama... (_recordando-se_) chama-se?... (_occorrendo-lhe_) philantropia.
+Sabe o que é?
+
+
+GONÇALO
+
+Um nome que trescalla a grego. Hade sabel-o o commendador.--Acredita na
+sensibilidade de figurino?
+
+
+D MARIA JOANNA
+
+Não; nem na philantropia de apparato.
+
+
+GONÇALO
+
+N'isso se occupam agora os francezes!... Substituiram isso aos
+madrigaes?... Pois não ganharam na troca. Estou tentado a preferir-lhes
+as nossas formalidades ronceiras... a nossa rustiquez e lhaneza... Por
+fim de contas, são coisas de casa... e muito de bom tem algumas.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Prefiro-as eu. Por isso vim.
+
+
+GONÇALO
+
+E bem haja que veiu! (_admirando-a_) Vem, ainda mais formosa do que era
+ha dois annos, quando fui levar officios de gabinete á embaixada de
+Paris... Lembra-se?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Tinha-se levantado o cerco de Gibraltar!
+
+
+GONÇALO
+
+Só isso lhe lembra?... Vem prendada de todos os primores do espirito, de
+todas as graças da beleza, e não consente...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_detendo-lhe a palavra com o gesto_)
+
+Escute! Cuidei que era já o commendador... Quer ver se o commendador com
+effeito achou o quarto?...
+
+
+GONÇALO (_Ergue-se vivamente_. _Pausa_. _Contemplando-a_.)
+
+É cruel! (_Nova pausa_. _Com visivel despeito_.) Vou procurar o
+commendador. (_Encaminha-se á D._)
+
+
+D. MARIA JOANNA (_levantando-se como por effeito de reflexão_)
+
+Não. Espere. O commendador era capaz de pensar que não posso passar
+cinco minutos sem a sua presença.
+
+
+GONÇALO (_voltando esperançado_)
+
+Dispensa-a então... por óra?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Por mais um instante. (_Vae sentar-se no canapé_.)
+
+
+GONÇALO (_defronte, de costas para o bufete, fitando-a_)
+
+Porque me obriga a dissimular commigo mesmo? Porque me força a estes
+colloquios frivolos? É isto para nós? Não sabe que só a bocca lhe
+responde, porque tenho a alma e o sentido n'outra coisa?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_depois de pausa_)
+
+Tem razão. É-lhe absolutamente indispensavel fallar-me do que já me
+disse ha dois annos em Paris? Pois fallemos... Fallemos.--Dei-lhe então
+esperanças?
+
+
+GONÇALO
+
+Nenhumas, é verdade.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Dei-as a alguem?
+
+
+GONÇALO
+
+Rodeam-n'a as homenagens como a soberana... é agradavel. Sorri a
+todos... mas fica a todos insensivel... tambem sei!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Insensivel!... Uma pedra, porque não?... Um gelo dos Alpes, vamos...
+Diga, diga... Se não o diz, pensa-o.--Somos insensiveis para estes
+senhores, nós outras, quando não nos declaramos humildemente rendidas
+apenas se dignam dar-nos um signal de preferencia... Nascemos para seu
+desenfado... «Sorri a todos»!... Vejam! Uma causa crime, completa só
+n'esta phrase: «sorri a todos»! Olhem o attentado! Queriam que
+chorassemos sempre? Queriam que _os_ chorassemos!... E quando
+choramos... Nem eu digo!--Sentenciado a pena ultima, o nosso sorriso.
+Sentenciado porquê?... Não sabem que nas mulheres o sorriso anda perto
+das lagrimas!... Deixem-nos ao menos esse raio de luz entre chuveiros...
+como o sol de inverno.
+
+
+GONÇALO
+
+Poderia responder-lhe que mais commodo do que ter amor é deixar-se
+amar... Mas não digo... não me queixo... nada peço. Está na sua mão não
+preferir ninguem?... Não o está impedir que lhe queiram... mesmo sem
+esperança. Porque não serei eu d'esses?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O sr. Gonçalo Mendo!...--Sente-se ahi. Vamos, sente-se. Quero
+confessal-o.
+
+
+GONÇALO
+
+E dá-me a penitencia antecipada!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Verei depois a que merece... segundo o arrependimento.
+
+
+GONÇALO (_com esperança, fazendo menção de ajoelhar_)
+
+As culpas dizem-se de joelhos.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_vivamente_)
+
+Sente-se. Os culpados começam por obedecer. Isso. Vamos a saber:
+(_solemnemente_) é verdade que por occasião da sua ida a Paris desafiou
+em Versailles um capitão dos guardas francezes, e o deixou tres mezes de
+cama com uma estocada?
+
+
+GONÇALO
+
+É verdade. Foi para lhe provar que as parisienses não eram as primeiras
+entre todas as damas, como elle pertendia.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E porque não seriam?
+
+
+GONÇALO
+
+Tinha cá as minhas razões.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Boas razões haviam de ser. Como se estiveramos ainda no tempo dos
+Magriços!
+
+
+GONÇALO
+
+Os Magriços em Portugal são de todos os tempos.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+É verdade que o anno passado, quando se festejou o casamento do sr.
+infante D. João com a sr.^a infanta D. Carlota, n'uma corrida de touros
+no paço da Murteira, saiu ao terreiro de espada na mão, e a pé, sem mais
+capa nem defesa, chamou a si o animal furioso, e matou-o de um golpe, só
+para que elle não pozesse os pés n'um lenço, que da varanda havia caido
+a uma dama?
+
+
+GONÇALO
+
+É verdade. A dama tinha sessenta annos.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_incredula e motejando_)
+
+Sessenta annos!
+
+
+GONÇALO
+
+Mas chamava-se D. Mencia Jorge, e o lenço tinha bordado um _M_ e um
+_J_... as suas iniciaes.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_lisonjeada_)
+
+Ah! (_Pausa_.) Mais...
+
+
+GONÇALO
+
+Mais ainda? Devo agradecer a curiosidade, que se informou... ou a
+informou... com tanta miudeza a meu respeito?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Deve responder.--É verdade que um dia, amotinando-se o regimento de
+Meklemburgo... servia então lá... o tenente-coronel... um allemão,
+creio... ficou só, ameaçado dos soldados enfurecidos? É verdade que
+unicamente um alferes se atreveu a collocar-se ao lado do commandante,
+com tal resolução e bizarria, que o exemplo envergonhou os sublevados, e
+a firmeza do official salvou a vida ao tenente-coronel?
+
+
+GONÇALO
+
+É verdade. O alferes cumpriu o seu dever, nada mais.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Mas dizem que n'esse dever lhe serviram de estimulo os olhos azues da
+irmã do tenente-coronel. Será assim?
+
+
+GONÇALO
+
+É. Foi. Ha quantos annos?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Eu sei!...
+
+
+GONÇALO
+
+Ha seis. (_a D Maria Joanna_.) Não a conhecia ainda.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ahi está... «Não a conhecia ainda!» O estribilho costumado. É como
+todos.
+
+
+GONÇALO
+
+Pouco mais ou menos. Se imagina uma especie differente... Sou um simples
+mortal, confesso humildemente.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+É... é todo verduras e temeridades... Por uns olhos affrontar um
+regimento!... Por uma palavra provocar os melhores espadas de França!...
+Por um lenço arriscar-se a ficar nas armas de uma fera!... Póde lá
+dispôr da sua mão, um homem assim?... Para trazer sempre a mulher em
+vesperas de viuvez!
+
+
+GONÇALO (_encantado_)
+
+Oh! se isso fosse uma esperança!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Deus me defenda.--Quando me começavam a florir os annos, casaram-me com
+um homem... que já ia desfolhando os seus. Deixei patria e familia aos
+dezoito. Achei-me viuva aos vinte. Acolhendo-me a casa de minha prima,
+na nossa embaixada em Paris, senti sinceramente a falta do companheiro e
+protector. Mas d'esta alliança... da primavera com o inverno... podem
+ter-me ficado memorias que me façam desejar novo captiveiro?
+
+
+GONÇALO
+
+Não o captiveiro, mas a compensação.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Quem m'a assegura?
+
+
+GONÇALO
+
+Quem? A constancia.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Que diria a isso a allemã?
+
+
+GONÇALO
+
+Ama-se devéras uma só vez. Quer-me crer? Amo-a assim eu. Digo-lh'o
+singelamente, chãmente, cá de dentro, á moda da minha provincia, como um
+verdadeiro transmontano.... Deixe-me desabafar. Esta vez, e
+acabou-se.--Não sei que pense, não sei se espere... Unicamente sei que
+não posso deixar de...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ia repetir.
+
+
+GONÇALO
+
+Tem razão. Para quê?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Interrompe a confissão?
+
+
+GONÇALO
+
+Visto que me não absolve... (_interrogando D. Maria com os olhos;
+silencio d'esta_.) Vou ter com o commendador.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_que deitára os olhos para dentro debruçando-se no
+canapè_)
+
+Não é preciso; elle ahi vem.
+
+
+SCENA VIII
+
+
+OS DITOS _e o_ COMMENDADOR
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Então achou?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Está remediado. Não é um _boudoir_, como lá diziamos em França, mas póde
+passar. Eu mesmo ajudei a pôr tudo em ordem.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O sr. Gonçalo Mendo permitte?
+
+
+GONÇALO (_inclinando-se_)
+
+Minha senhora!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Escuso dizer-lhe que ceia comnosco... Desculpa de certo o incommodo que
+lhe tenho dado, e preciso agradecer-lhe a companhia que me tem feito.
+(_ao commendador_) Ha luzes no corredor?
+
+
+COMMENDADOR (_galanteando_)
+
+Tudo prevenido, como quem sabe o que n'estes pontos convém. Marcial, que
+tão bem conheceu os gyneceus de Roma, dá a respeito dos adornos
+femininos informações preciosas.--Acompanho-a?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_relanceando os olhos a Gonçalo_)
+
+Obrigada. (_ao commendador_) Quer ir ver se descarregaram as bagagens, e
+mandar-me ao quarto as minhas malas?
+
+
+GONÇALO (_vendo o commendador hesitar_)
+
+Aproveito a occasião para fazer accommodar as ordenanças.
+
+(_Gonçalo dirige-se ao fundo_. _D. Maria Joanna á D. O morgado apparece
+á porta d'entrada do F._)
+
+
+SCENA IX
+
+
+OS DITOS _e o_ MORGADO
+
+
+MORGADO (_ainda fóra da porta, mas á vista do espectador, como reparando
+e fallando para dentro_)
+
+Levantem o animal... Puxa-lhe a arreata, Jacintho... Tirem-lhe o resto
+da carga... Fortes alarves!... (_Entra_.)
+
+
+D. MARIA JOANNA (_que parou á porta da D_.)
+
+Que mais temos, sr. morgado?
+
+
+GONÇALO
+
+Deixaram deitar-se a azemola... Um instante que eu falte!... Mas não tem
+duvida já... Arrecadaram-se os comestiveis. (_voltando ao F. a
+observar_) Lá está a mula a espojar-se... Levantem-n'a, levantem-n'a.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Commendador, as minhas malas! Acuda ás minhas malas! Cá as vou esperar,
+e não tardo. (_Sae pela D._)
+
+
+SCENA X
+
+
+OS DITOS _menos_ D. MARIA JOANNA
+
+
+COMMENDADOR (_ao morgado_)
+
+Sr. morgado, as malas?
+
+
+MORGADO (_a Gonçalo_)
+
+Sr. tenente, as malas?
+
+
+GONÇALO
+
+Cada qual no seu officio! (_Sae_.)
+
+
+SCENA XI
+
+
+OS DITOS _menos_ GONÇALO
+
+
+MORGADO
+
+Então, commendador, as malas da prima. Eu não posso servir para tudo!
+
+
+COMMENDADOR (_tomando o seu partido_)
+
+Bem dizia Socrates, atheniense, «que a mulher é como o altar»: nunca
+está bastante ornada (_para sahir_) E com razão a definia o famoso Julio
+Cesar Scaligero, de Verona... (_Sae_.)
+
+
+MORGADO (_seguindo-o_)
+
+Muito melhor canta o nosso rifão «com a mulher e o dinheiro, não zombes
+companheiro.»
+
+
+SCENA XII
+
+
+MORGADO _só_ (_voltando_)
+
+Bem te percebo, meu feixe de maximas velhas e sentenças occas!... Bom
+signal é que de mim te receies... Pressentes que te foge a presa... E
+não ha 48 horas ainda!... O que fará d'aqui a dias... Pudéra! similhante
+deposito de latins e de catarros, ao pé d'um homem da minha tempera,
+moço ainda, bem posto, prendado e cavalleiro!... (_esfregando as mãos_)
+Está certa, Bartholomeu Tojo, morgado da Gésteira... está caida. Pódes
+ir encommendando sege á boleia... Sege de côrte e sege de campo!... A
+fallar a verdade vem a tempo... era tempo. Iam-se já os últimos torrões!
+(_esfregando as mãos_) O que é ter artes e astucias!...
+
+
+SCENA XIII
+
+
+MORGADO _e_ ZÉ DA MOITA
+
+
+ZÉ (_deitando a cabeça pela porta da E. em voz baixa e cauteloso_)
+
+Sr. morgado... Pschiu!... eh! sr. morgado!
+
+
+MORGADO (_assustado_)
+
+Que é? (_voltando-se e dando por elle_) Tu, homen! (_inquieto_) Que
+queres?
+
+
+Zé (_entrando_)
+
+Está só?
+
+
+MORGADO
+
+Não vês? Vae-te, que póde vir gente. Como vieste aqui parar?
+
+
+ZÉ
+
+_Ê sê_ as trilhas de cór e salteado. Vinha em sua _précura_.
+
+
+MORGADO
+
+Porquê? Para quê?
+
+
+ZÉ
+
+Ê que lá a rapaziada está levada de quantos démos ha. O Manuel da
+Brazia, o Domingos Picanço, o Chico d'Alter, o João Gallego, o Timotheo
+d'Alcaraviça... aquillo é todos á uma.
+
+
+MORGADO
+
+Deixou-se apanhar algum?
+
+
+ZÉ
+
+_Q'al_! Bem alma tinham para isso os cavallarias, que não sabem caminho
+nem _carrêra_. A gente _mettemo-nos_ pelo azinhal dentro... pés para que
+te quero... Fossem lá pôr mais a vista em cima a nenhum. D'ali a um
+credo estava tudo junto no barranco de baixo, ao fundo da Fonte da
+Fornalha, ahi ao pé da azinhaga da herdade.
+
+
+MORGADO (_inquieto_)
+
+Pois sim, mas que me queres?
+
+
+ZÉ
+
+Como eu é que _les fallê_ por conta do sr. morgado...
+
+
+MORGADO
+
+Avia-te. Não te dei já o que ajustámos? Quantos eram?
+
+
+ZÉ
+
+Eram sete... commigo oito.
+
+
+MORGADO
+
+Dei-te uma moeda. Um cruzado novo para cada um, e dois para ti. O resto
+para beberem.
+
+
+ZÉ
+
+Ai! senhor!... Se os ouvisse!
+
+
+MORGADO
+
+Não estão contentes?
+
+
+ZÉ
+
+Contentes! Ficaram derramados!... Andam na mente que os _enganê_... que
+não era uma _brincadêra_, como o sr. morgado me disse... que foi uma
+fidalga que nós fizemos cara de assaltar na estrada... que dá brado o
+caso e que se mettem n'isso as justiças... que o sr. morgado o que
+queria era fazer de pimpão sem perigo, á custa dos rapazes... que pódem
+ficar agora todos mettidos em trabalhos... e que torna e que deixa...
+Ih! Jesus!... um dia de juizo!
+
+
+MORGADO
+
+Por esta não esperava eu!
+
+
+ZÉ
+
+_P'ra_ mais ajuda, um dos criados foi-se direito a Vayamonte, e achou lá
+o sr. juiz ouvidor com uma escolta do regimento de Setubal...
+_Contou-le_ tudo pelos modos... e os rapazes dizem que o melhor é ir
+pedir perdão, porque a final elles não teem culpa, e o sr. morgado ha-de
+contar a verdade.
+
+
+MORGADO (_atterrado_)
+
+Pelo amor de Deus, homem. Vae ter com elles... Anda, depressa, vae.
+(_comsigo_) Que não diria minha prima!... (_a Zé_) Para que haviam de
+fazer tal? Ninguem os conheceu.
+
+
+ZÉ
+
+Pois sim! Não ha quem os accommode. Como _pesquê_ que os senhores tinham
+_botado_ para aqui, lá _assoceguê_ a gente _dizendo-le_ que esperassem
+todos um nada, que vinha fallar com o sr. morgado.
+
+
+MORGADO
+
+Mas se te veem aqui!...
+
+
+ZÉ
+
+Não tem _duveda_. _Ê_ conheço o feitor, e já fui guarda cá da casa. O
+Timotheo d'Alcaraviça é que está mais perro. Tem lá a sua _aquella_ que
+ninguem _le_ põe o pé adiante, (_elevando a voz_) e como o sr. morgado
+quiz assim fazer pouco da rapaziada...
+
+
+MORGADO (_afflicto_)
+
+Mais baixo. Que precisão tens tu de gritar?
+
+
+ZÉ
+
+Bem _sê_ que não era a valer... Se fosse... ai... se fosse!... Mas um
+_home_ é um _home_, e...
+
+
+MORGADO (_inquieto_)
+
+Está bom, está bom... Se lhes désse mais?...
+
+
+ZÉ (_coçando a orelha_)
+
+_Ê sê_!... tão bravos como estão!... Talvez se accommodassem pedindo
+eu... talvez.--Mais quanto?
+
+
+MORGADO (_com esforço_)
+
+Uma peça.
+
+
+ZÉ
+
+Uma peça! Quanto faz uma peça?
+
+
+MORGADO (_ponderando_)
+
+Quinze cruzados novos menos oito tostões.
+
+
+ZÉ
+
+Quinze?... (_comsigo, contando pelos dedos_) menos... (_resolutamente_)
+Tem-n'a ahi?...
+
+
+MORGADO (_mostrando-lh'a_)
+
+Aqui está.
+
+
+ZÉ (_fazendo-lhe cara_)
+
+Em oiro?
+
+
+MORGADO
+
+Se não tenho troco!
+
+
+ZÉ
+
+Tem a gente de ir trocal-a a Evora, que lá na villa, se nos vêem com
+isto, são capazes de pegar logo a desconfiar...
+
+
+MORGADO (_perdendo a cabeça_)
+
+Então como ha de ser?
+
+
+ZÉ (_tocando-lhe familiarmente com o cotovelo_)
+
+Ó sr. morgado, a fidalga tem uns olhos!... Ella sempre vale as duas
+loiras! (_elevando a voz_) Se vem a saber que foi tudo fingido...
+hein?...
+
+
+MORGADO
+
+Cala-te! (_fitando-o_) Com que então... (_comsigo_.) A final o assaltado
+sou eu. (_Alto_) Aqui tens duas peças. (_Dá-lhe as duas_.)
+
+
+ZÉ (_respeitosamente_)
+
+Não manda mais nada o sr. morgado?
+
+
+MORGADO
+
+A casa do feitor é para esse lado. Olha não te encontre.
+
+
+ZÉ
+
+É o mesmo. Não desconfia, já _le_ disse. Até mais ver! (_sae_)
+
+
+MORGADO
+
+Vae com Deus! (_depois de o vêr sair_) Os demonios te levem, tratante!
+
+
+ZÉ (_tornando a deitar a cabeça_)
+
+Chamou?
+
+
+MORGADO (_impaciente_)
+
+Vae com Deus! vae com Deus! (_Zé sae definitivamente_.)
+
+
+SCENA XIV
+
+
+MORGADO
+
+Que tal é a lição! O susto que me pregaram os cavallarias... cuidar que
+andava tudo por ahi cheio de salteadores deveras... e ainda mais
+esta!... Calam-se, agora calam-se: é o seu interesse... O que o
+desalmado quiz foi... E gabem-me a singeleza dos rusticos!... Tomára que
+succedesse uma d'estas aos srs. poetas de Lisboa, que não fazem senão
+deitar lôas á innocencia pastoril... Que remedio! O que lá vae lá vae...
+E foram-se as peças!... E o que não rirão á minha custa, os malandrins,
+quando as beberem!...--Por fim de contas vale a pena... Se vale... Vale
+a pena de tudo...
+
+
+SCENA XV
+
+
+MORGADO, _e_ LUIZ MANUEL (_da E_)
+
+
+MORGADO (_vendo-o_)
+
+Outro!... (_reparando_) Um retrato do tempo d'el-rei D. Pedro!...
+(_conhecendo-o_) Ai! o Luiz Manuel.
+
+
+LUIZ MANUEL (_Trajo do tempo de D. João V, tristeza profunda, sisudez
+inalteravel_.)
+
+Bem vindo seja á casa da Torre da Palma, o sr. morgado da Gesteira. Que
+estava aqui me disse um guarda do monte, que topei agora como nos
+tornavamos do terço. Já não è isto o que era, porque a sr.^a morgada...
+«gota a gota o mar se esgota», e quem em maio relva, fica sem pão nem
+herva.» Mas... ella é senhora do que é seu!... E eu venho só a dizer a
+Sua Mercê que, se bem «onde senhores empobrecem, criados padecem», tudo
+o que ha na casa e na quintan está ás ordens do sr. morgado, e mais da
+fidalga companhia que traz, a julgar pelo arruido que por ahi vae.
+
+
+MORGADO
+
+Boa companhia trago com efeito. Como no tempo do sr. capitão-mór!
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Como no tempo do sr. capitão-mór, que Deus haja!... Isso já lá vae, e
+não volta... Não volta... Nem conhecia o sr. morgado, se me não
+avisam... Que annos ha! E como assim nos enterramos n'este ermo!...
+Tanto faz. Como o outro que diz: «ainda que nos não fallemos, bem nos
+queremos.»--O sr. morgado precisa alguma coisa?
+
+
+MORGADO
+
+Já por ahi procurámos e dispozemos do que encontrámos... São ainda
+necessarias roupas, talheres...
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Ha de apparecer tudo... Tudo?... tudo o que resta. Fizeram bem em se ir
+logo servindo... Haviam de achar as chaves nas portas... Era o costume
+antigo, bem sabe.
+
+
+MORGADO
+
+Achámos. Extranhei até... Estando aqui sós...
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Não tem perigo. Pouco ha já que fechar e arrecadar. Vasios quasi, os
+taleigos que andavam de cogulo... a bem dizer no fundo, as arcas d'antes
+a arrebentar de fartas. Não será como então, que melhor se podia dizer:
+«em casa cheia depressa se faz a ceia.» Mas o que ha, o que houver... É
+a vontade da sr.^a morgada... decerto ha de ser. Com ir ahi tudo por
+agua baixo... que nem sei já se virei a cerrar os olhos n'esta casa onde
+nasci... ella a final sempre é quem é... (_como para atravessar para a
+D._) Vou dar ordem a... (_parando de repente e com tom consternado_.)
+Queria, sr. morgado, mas não posso... Queria pôr a alma e a vida no que
+me cumpre, já que a Torre da Palma está sem amos... Eu bem conheço que
+«hospedes em casa dia santo é»... mas... mas... Estou velho, faltam-me
+as forças! «Uma coisa se deseja e outra é bem que seja.»
+
+
+MORGADO
+
+Tem alguma coisa, Luiz Manuel?
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Eu não, sr. morgado. É a minha Simôa... Isto de viver assim vinte annos
+juntos, deita raizes cá dentro!...
+
+
+MORGADO
+
+Pois... que lhe succedeu?
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Mal acabou o terço, a minha Simôa foi á sacristia buscar um papel, que
+pelos modos tinha encommendado ao nosso padre cura do Vayamonte... Eu
+estava á porta á espera... Mal vinha a sair, entra-me a tremer, a tremer
+toda, a torcer-se como um vime, e a revirar os olhos, e a sumir-se-lhe a
+falla, e sem se poder ter!... Aquillo não é senão olhado que lhe
+deram!... Foi preciso trazel-a em braços, e lá ficou em baixo na cama...
+(_lembrando-se de subito_) Ai! Jesus! esta cabeça como está com tanta
+coisa de repente!... Então não me esquecia?... Quando o moço passou por
+nós, e nos advertiu que estava cá o sr. morgado da Gesteira, tornou
+assim mais a si a minha Simôa, e disse... (_como recordando_) Queira
+Deus que me lembre... Foi isto: «É parente da sr.^a morgada... pede-lhe
+que venha ver-me, pede-lhe Luiz... Tral-o hoje aqui a Providencia!» Foi
+isto, foi!
+
+
+MORGADO
+
+E não m'o dizia? Vamos já. (_comsigo_) Porque será?
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Pois o sr. morgado quer?... Aquillo é tresvario do mal!
+
+
+MORGADO
+
+Sua mulher assim!... Vamos. (_comsigo_.) Para que será?
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Como o outro que diz: «o pequeno mal espanta, o grande amansa.» Deixei
+gente com ella. A obrigação primeiro. E a obrigação era...
+
+
+MORGADO
+
+Dispenso-o eu d'ella... Vamos, vamos. Depois se tratará do mais.
+
+
+LUIZ MANUEL
+
+Agora é o sr. morgado quem manda. (_Sae_. _O morgado vae a seguil-o,
+entra Gonçalo e Bocage_.)
+
+
+GONÇALO (_da porta_)
+
+Sr. morgado.
+
+
+MORGADO (_saindo vivamente_)
+
+Já volto. Volto já!
+
+
+SCENA XVI
+
+
+GONÇALO, _e_ BOGAGE
+
+
+BOCAGE
+
+Quem é?
+
+
+GONÇALO
+
+Uma singularidade, emparelhada com outra que hade ver logo.--Não o
+esperava aqui, sr. Bocage. Vem mesmo por ordem do Ouvidor?
+
+
+BOCAGE
+
+Mesmo por ordem do Ouvidor. Faz trez semanas que me aquartelei em
+Monforte, n'um destacamento do meu regimento. Esta manhã o sr. Juiz
+Ouvidor de Villa Viçosa, que está em correição na villa, saiu a
+Vayamonte, e trouxe comsigo uma escolta em que eu vim. Ha pouco chega lá
+um homem todo esboforido... Um criado ouvi que era... D'ahi a um
+instante o sr. Ouvidor manda-me chamar em pessoa, e envia-me com quatro
+soldados aqui, para proteger não sei que fidalga que vem de jornada... O
+encargo póde ser lisongeiro, mas confesso que o dava a todos os demonios
+quando deitei por esses fraguedos abaixo. Agora, encontrando-o, meu
+tenente, dou-me por pago de tudo... Informei-me, e disseram-me que se
+tinham recolhido n'esta casa os viajantes. (_reparando_) Que casa santo
+Deus!... Dá-me ares de ter escapado ao diluvio... Pois a mobilia!... Da
+arca de Noé a trouxeram para aqui, certamente!... E aquelle canapé...
+Que canapé!... Um canapé? Um monumento!...
+
+«Quando a velha antiguidade
+Dentro n'esta sala entrou,
+Disse áquelle canapé:
+Sua benção, meu avô!»
+
+
+GONÇALO
+
+Bravo, sr. Bocage. Não se lhe estanca a veia por estes desertos do
+Alemtejo. O mesmo sempre!
+
+
+BOCAGE
+
+O mesmo diz? Estou a ponto de cair em melancolia... britanica. Mulher
+que se alberga n'uma habitação d'estas é por força como ella. Uma mumia,
+não? Uma curiosidade archeologica... uma contemporanea das pyramides...
+Não me diga quantos annos tem.
+
+
+GONÇALO
+
+Vinte e tres annos, viuva, todos os dotes do espirito, todas as graças
+da formosura, todos os primores de duas côrtes.
+
+
+BOCAGE
+
+Tudo isso! Aqui?... Aqui!...
+
+
+GONÇALO
+
+De passagem.
+
+
+BOCAGE
+
+Não diga mais, meu tenente. Quer-me fazer apaixonar, ou está já
+apaixonado.
+
+
+GONÇALO
+
+Isso estão quantos a vêem.
+
+
+BOCAGE
+
+Severa ou jovial?
+
+
+GONÇALO
+
+Um porte que infunde respeito, uma afabilidade esmaltada de sorrisos.
+Não ha temeridade que se lhe atreva, nem isenção que lhe resista.
+
+
+BOCAGE
+
+Esse enthusiasmo faz-me tremer! Uma perfeição!
+
+
+GONÇALO
+
+Um enigma.
+
+
+BOCAGE
+
+Enigma ou mulher, o mesmo é.
+
+
+GONÇALO (_olhando para dentro_)
+
+Eil-a!
+
+
+BOCAGE
+
+O enigma.
+
+
+GONÇALO
+
+A perfeição.
+
+
+SCENA XVII
+
+
+OS DITOS, D. MARIA JOANNA _e o_ COMMENDADOR
+
+
+GONÇALO
+
+Se dá licença, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão, apresento-lhe o sr.
+Manuel Maria Barbosa de Bocage, cadete do regimento de Setubal, que lhe
+traz recado do sr. Juiz Ouvidor de Villa Viçosa.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O sr. Juiz Ouvidor teve noticia de nós, e digna-se pensar em mim!
+
+
+BOCAGE
+
+Dever é de todo o homem proteger as damas. Mais ainda quando o homem é
+magistrado. Mais ainda quando as damas são de tal qualidade.--Por sua
+ordem e em seu nome venho. Infelizmente não chego a tempo de ser util.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Se não é já necessario auxilio, o sr. cadete vem sempre a tempo de
+receber os meus agradecimentos, e os do sr. commendador de Monsarás...
+(_Os homens inclinam-se, cumprimentando-se_) que me acompanha... para os
+transmittir á estremada cortezia do sr. Juiz Ouvidor.--Está aqui ha
+muito?
+
+
+BOCAGE
+
+Ha um instante. Os meus soldados esperam as ordens de v. s.^a
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Soldados! Mais? Temos uma guarnição completa. Coitados! Mande-os
+descançar.
+
+
+BOCAGE
+
+Estão já descançando.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+N'esse caso, o sr. cadete demora-se tambem.
+
+
+BOCAGE (_inclinando-se_)
+
+Mandaram-me ficar ás ordens! (_baixo, a Gonçalo_.) Tinha rasão.
+Gentilissima!
+
+
+GONÇALO (_a Bocage, do mesmo modo_)
+
+Inflammado já? (_alto_.) Apresentei-lhe o militar, permitta-me agora que
+lhe apresente o poeta... O sr. Bocage é conhecido, e já apreciado, pelo
+seu estro brilhante... um estro que se revelou desde a infancia... Nem
+só em França se frequenta o Parnaso. Aqui tem um moço que nasceu poeta.
+
+
+BOCAGE
+
+Como outros nascem vesgos ou tartamudos.--Talvez seja assim, se a
+amizade do sr. tenente o não cega, ou me não favorece... mas talvez
+tambem a segunda apresentação prejudique a primeira.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Porque? As armas e as musas não são inimigas, que eu saiba.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Horacio esteve na batalha de Philipes, o Suetonio foi escriptor e
+guerreiro! Ainda que Pittaco, um dos sete sabios da Grecia, dizia «os
+validos de Marte são a injustiça e a violencia» não deixou o grande
+Plutarcho de escrever «que os Lacedemonios pintavam Pallas armada» posto
+serem uma só Pallas e Minerva.
+
+
+BOCAGE (_contemplando-o abysmado, a Gonçalo em voz baixa_)
+
+Este quem é?
+
+
+GONÇALO (_idem_)
+
+A outra singularidade!
+
+
+BOCAGE
+
+Que pena ter estudado! Forte asno se perdeu ali!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+«N'uma das mãos a pena, n'outra a espada,» diz, creio eu, o nosso
+Camões, poeta e soldado tambem.
+
+
+BOCAGE
+
+Ahi está um _tambem_ capaz de inventar orgulho no mais modesto... se o
+não tomasse á conta de exageração obsequiosa. (_a Gonçalo, baixo_)
+Venus, disfarçada em viajante!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Exageração! Em que? Por ler vivido fóra da patria não lhe desaprendi a
+lingua, nem lhe desestimo as glorias.
+
+
+BOCAGE (_lisongeado_)
+
+D'essas glorias não participo eu, como obscuro ainda.
+
+
+GONÇALO
+
+Não tanto, sr. Bocage!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+_Ainda_? Não ha n'essa palavra a consciencia do que é? a confiança no
+que será? As musas não deixam muito tempo sem gloria os seus
+predilectos.
+
+
+BOCAGE
+
+Sabe se sou d'esses?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Adivinho-o. Deixa-me vaticinar-lh'o?
+
+
+BOCAGE (_com enthusiasmo_)
+
+Bastaria o vaticinio para inflammar o estro.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Deveria provar-me que tenho razão. Em França estima-se a poesia, e eu
+venho sequiosa da nossa. Era dar-me as boas vindas.
+
+
+GONÇALO
+
+Ninguem melhor do que o sr. Bocage. É não só poeta, mas improvisador.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Como em Italia.
+
+
+GONÇALO
+
+Ainda ha pouco...
+
+
+BOCAGE (_atalhando-o_)
+
+Por quem é! (_a D. Maria Joanna_) Vem de França, v. s.^a?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+De Paris.
+
+
+BOCAGE
+
+Francez era meu avô; com as musas francezas me creou minha mãe... Somos
+quasi conhecidos.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Bocage!... Não me é novo o appellido. Não tem em França parentes?
+
+
+BOCAGE
+
+Tenho. Uma segunda tia materna... Bocage tambem por seu marido.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Já sei. A sr.^a D. Marianna, auctora do poema da _Columbiada_... coroada
+ha annos em Ferney pelas proprias mãos de Voltaire... E queixa-se de lhe
+faltar a gloria!
+
+
+BOGAGE
+
+Agora não me queixo. Ainda que não seja minha essa gloria, é meu o
+proveito d'ella.
+
+
+COMENDADOR (_que tem disfarçado alguns signaes d'impaciencia, murmurando
+comsigo_)
+
+Coroada por Voltaire!... Boa prenda hade ser!...
+
+
+BOCAGE (_que não ouviu bem, mas que lhe notou o gesto, a Gonçalo_)
+
+Antipathiso formalmente com a singularidade!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+A poesia é hereditaria nos seus, já vejo.
+
+
+GONÇALO
+
+De ambos os lados. Seu pae o dr. José Luiz Soares de Barbosa adorna a
+toga com a lyra, e é um dos discipulos mais estimados de Souto-Mayor.
+
+
+BOCAGE (_sorrindo_)
+
+É doença de familia, não o nego. Doença chronica, e por isso incuravel.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Em França diz-se: _noblesse oblige_. A poesia, que é nobreza tambem,
+está a obrigal-o.
+
+
+BOCAGE (_exaltando-se progressivamente_)
+
+A poesia... A poesia é a lingua dos deuses, e a historia do mundo. É o
+raio omnipotente de Jupiter, e o carro fulgurante de Apollo. N'ella, em
+todos os tempos, teem cantado os homens as suas alegrias, teem chorado
+as suas dores, teem perpetuado os seus feitos, teem immortalisado as
+suas catastrophes. N'ella começou a balbuciar a humanidade; n'ella
+fundou os monumentos que desafiam os seculos. A poesia é a expressão do
+que ha mais intimo no coração e mais celestial no pensamento; é
+magnificencia e harmonia; é arrebatamento e seducção; esplendor pela
+fórma, delicia pelo som. É resumo de quantas artes levantam o homem ao
+Olympo; sentimento para a alma, idéa para o espirito, imagem para os
+olhos, musica para o ouvido, enlevo para todos os sentidos! Seria a
+poesia a unica lingua digna de saudal-a, minha senhora, se a mais
+completa poesia não fosse a propria formosura. (_recrescendo_) Deve ser
+a poesia...
+
+
+COMMENDADOR (_que durante esta falla passeou ao F. indo á janella_)
+
+Não quer que lhe feche esta janella, sr.^a D. Maria Joanna? Estão frias
+as noites, e o ar por aqui traspassa. Dos ares montesinhos, diz o
+insigne Columella...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_atalhando-o impaciente e reprehensiva_)
+
+Commendador!
+
+(_O commendador approxima-se tirando a caixa de rapé_.)
+
+
+BOCAGE (_reprimindo um gesto furioso e como continuando_)
+
+Mas a poesia, como dama, tem os seus dias, tem os seus momentos, tem os
+seus caprichos. É rainha, e não serva. Impéra, não obedece. Se vae
+arremessada no vôo, se a fazem colher as azas e baixar á terra (_fitando
+o commendador_)... para tropeçar na impudencia, ou no ridiculo... faz-se
+allegoria, faz-se apologo; é epigramma, é satyra; fustiga, flagella,
+punge, dilacera, fulmina... e segue, a sorrir desdenhosa, deixando
+atascada no seu lodaçal immundo a sandice enfatuada e grosseira!...
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo dubiamente e saboreando a pitada_)
+
+Hypotypóse arrojada! Já Democrito, philosopho da Thracia, dizia... o que
+quer que seja similhante... ao divino Hypocrates, natural da ilha de
+Cós! (_Bocage vae para replicar arrebatado_. _Entra o morgado_.)
+
+
+SCENA XVIII
+
+
+OS DITOS _e o_ MORGADO
+
+
+MORGADO (_com um papel na mão, que esconde apenas vê os que estão em
+scena_)
+
+Grande novidade, prima! Grande novidade!
+
+
+GONÇALO (_que observou tudo_)
+
+Diversão a tempo.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_ao morgado_)
+
+Como as do costume?
+
+
+MORGADO
+
+A mulher do Luiz Manuel que está muito mal! Perdeu já a falla.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Tão mal a pobre Simôa!... Commendador, sr. Gonçalo Mendo, venham,
+venham.
+
+
+MORGADO
+
+Póde ir logo, prima. A sua refeição hade estar prompta!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Quando me diz que temos ahi uma creatura em perigo! Enlouqueceu? (_aos
+outros_) Vamos... (_como lembrando-se, e detendo-se_) Sr. cadete...
+qualquer dos seus soldados póde ir buscar o cirurgião á villa.
+
+
+GONÇALO
+
+Que monte a cavallo um dos dragões: irá mais depressa.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Vamos, venham. (_Sae, e o commendador pela E._)
+
+
+BOCAGE (_baixo, apressado e a Gonçalo_.)
+
+Uma nympha! uma deusa! Estou doido por ella. Tem só um defeito...
+
+
+GONÇALO (_indicando o commendador_)
+
+A singularidade?
+
+
+BOCAGE
+
+A asnidade, digo eu. (_Sae pelo F._--_Gonçalo segue D. Maria Joanna_).
+
+
+SCENA XIX
+
+
+MORGADO _só, pouco depois o_ COMMENDADOR
+
+
+MORGADO (_vendo-os sair, desconfiado_)
+
+Um cadete agora! É o quartel general aqui... (_olhando em redor_)
+Tardava-me já ver-me só... (_tirando o papel e examinando-o_)
+Fechado!... sem direcção!... E com que ancia e mysterio a Simôa me
+segredou... «isto á sr.^a morgada... sem falta!...» Que pena perder os
+sentidos!... Que será? Pois que não tem direcção... (_lançando novamente
+os olhos em redor_) facil é sabel-o. (_Abre, lê attentamente, e acaba
+com um grito de admiração_) Oh!... (_passeiando e meditando_) Quem tal
+havia de dizer? (_pára como resolvendo de repente_) Não ha que pensar...
+Agora posso ir encommendando a sege... (_assoma á porta da E. o
+commendador, sem que o morgado o presinta_) Com um segredo d'estes!...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Que segredo, sr. morgado?
+
+
+MORGADO (_sobresaltado, e guardando apressadamente o papel_)
+
+Segredo!... (_serenando, ironicamente_) Um segredo meu, sr. commendador.
+
+
+COMMENDADOR (_com o habitual sorriso entre fatuo e maligno_)
+
+Segredos, só debaixo da terra... como faziam os romanos!
+
+(_Cae o panno_)
+
+
+FIM DO PRIMEIRO ACTO
+
+
+
+
+ACTO II
+
+
+Ao fundo a frente e esquina d'um quarteirão da rua Augusta, tomadas da
+extremidade de uma travessa, cujos edificios estão ainda em obras.
+Janellas praticaveis em dois andares. A entrada do predio pela
+travessa.--Renques de marcos de pedra guarnecendo os passeios.--Toldo
+cubrindo a rua.--As janellas, ornadas de armações de damasco, e
+preparadas para illuminação. Cubertores de seda e colxas da India nos
+parapeitos.--O chão areiado; espadanas e murta. Faltam ainda os
+lampiões.
+
+Fins da tarde. Pouca animação. Alguns transeuntes apenas.
+
+
+SCENA I
+
+
+BOCAGE (_á paizana, encostado á esquina da direita, com os olhos n'uma
+das janellas da rua Augusta_.)--COMPADRE THEOTONIO _e_ COMPADRE AMANCIO
+(_que veem de lados oppostos_.)
+
+(_Durante esta scena e a seguinte,_ BOCAGE _dá algumas voltas,
+apparecendo e desapparecendo, mas sempre tornando ao mesmo logar e á
+mesma observação_.)
+
+
+COMPADRE AMANCIO (_topando-se com o outro_)
+
+Aonde vae com tanta pressa, compadre Theotonio!
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Ao _presepio_ da Mouraria. Quero ver se apanho ainda o Manuel Gonçalves
+da Ribeira das Naus.
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Trabalha hoje com os arames?
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Entra no fim. Porquê? Não vou a tempo?
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Se vae! O Manuel Gonçalves tem sua graça... principalmente na scena do
+diluvio, quando se queixa que perdeu o pente de derrubar.
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Pois quando ardem as estopadas! As pulhas que elle deita aos
+demonios!... Tem pilhas de graça!--Deixe-me ir que se faz tarde, e já
+agora a de seis está destinada (_partindo_).
+
+
+COMPADRE AMANCIO (_detendo-o_)
+
+Que eu, cá para mim, como o Tortinho da Sé, apesar de velho, é que não
+ha... Nem o Antonio Antunes, do Bairro-Alto. Saca as palavras assim com
+um tremor do buxo, o maldito, que é a gente espojar-se!--Deus o leve,
+compadre. Até á noite na loja.
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Não fecha hoje?
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Lá mais tarde. É dia de muito freguez de fóra, não tem mãos a medir os
+rapazes, e para alguma barba, assim mais tal, preciso servir eu. Bem
+sabe a roda que tenho.--Chego alli abaixo á Arcada, a comprar os Autos
+da Maria Parda para o serão das pequenas, e volto já.
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Vá com Deus, compadre Amancio, e até logo. (_Separam-se e sahem,
+compadre Theotonio para a E., compadre Amancio para a D._--_Entram logo
+tia Paschoa, e tia Vicencia vindo juntas da E._)
+
+
+SCENA II
+
+
+TIA PASCHOA, TIA VIGENCIA _e_ BOCAGE
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Ih! Jesus, Deus Menino! Ainda por aqui arrastadinha, tia Paschoa! O seu
+homem ainda no Limoeiro! Quer creia, quer não, estava de pedra e cal que
+se tinha ja livrado. Uma pessoa estabelecida! com loja aberta!...
+
+
+TIA PASCHOA
+
+E mestre d'officio!... Um mestre de torno, que ninguem lhe leva as
+tampas!... É isto, que vê, tia Vicencia... Debaixo dos pés se levantam
+os trabalhos... Que a culpa não é d'elle...
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Isso sempre eu disse... Pobre homem!... Não fui logo lá quando sube,
+porque da rua dos Remedios á Esperança sempre é um estirão. Aquillo com
+a labotação do padejo, é vir uns dias por outros ao Terreiro, e não ha
+tempo para mais.
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Pois eu não sei!--Tudo intrigas do Alcaide!
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Sim? Ora vejam! E então como foi?
+
+
+TIA PASCHOA
+
+O Alcaide tem uma sobrinha na rua do Lambaz... Sobrinha, vamos...
+sobrinha ou o que quer que é, que se eu tivesse má lingua...
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Sim, sim, não sabe a gente o que são sobrinhas d'essas!... Que mundo,
+ai! que mundo, tia Paschoa!
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Uma sobrinha toda peralta!... Sempre como em dia de cirio ou de
+festa!... Quer na rua, quer em easa, capotilho de durante e bajú de
+escumilha, um palmito mesmo!... Sobrinha, pois não!... Vá que fosse
+sobrinha... Estava a ir-nos todos os dias à loja, que até já eu não
+andava contente, Deus me perdôe... Tudo era encommendar continhas,
+botõesinhos, coquilhos, cabos de chapeus... um nunca acabar. Mas coisa
+de pagar, qual! Tanto encommendou, e tanto faltou, que o meu Francisco
+por fim deixou de lhe fazer obra, e quiz obrigal-a a pagar por
+justiça... Justiça, está bom!... Ella tinha o pae Alcaide... pae ou tio,
+que eu sei lá o que lhe é... Foi-n'os a casa toda assanhada... palavra
+puxa palavra... Emfim, deram-n'os uma força por injuria, e agora o
+veràs... Eu bem dizia ao meu homem: «ó Francisco, deixa... deixa. Não
+apertes com a moça.» «Agoa vertida nem toda é colhida.» Mas, nada.
+Pensam que só elles teem juizo, estes senhores homens! Teimou, teimou, e
+aqui está. Vae já para um mez que dura este fadario. Sempre com o
+mantinho aos hombros!... E Deus sabe o que durará!... E tudo em casa a
+derreter-se... Os meus cordões e arrecadas, foi tempo... Dois tóros de
+buxo, que elle tinha comprado pelo S. Miguel... sem um nó, que eram
+mesmo uma perfeição... e haviam de render bons vintens... já lá vão por
+dez réis de nada... Até uma grosa de piões, que estavam para a Senhora
+do Cabo... hade crer, tia Vicencia?... a quinze réis cada um, que a bem
+dizer mais custou o ferrão!... E ainda se não fosse o mestre José
+Gomes... Deus lh'o pague!... Sabe? O mestre José Gomes, cerieiro ás
+Trinas, que é juiz do povo!... Se não fosse elle nem resquicios havia já
+da loja. Agora venho eu do Terreirinho das Olarias, de casa do escrivão,
+e vou para o Poço dos Negros, a ver se fallo ao sr. juiz do crime do
+Mocambo.
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Até hoje! Cuidei que andava a ver as ruas!
+
+
+TIA PASCHOA
+
+A ver as ruas, eu! Ai, santo Antonio e almas! Não faço senão correr de
+Herodes para Pilatos... E é duas peças a um, quatro moedas a outro...
+Que os leve a todos trezentos... Jesus, santo nome de Jesus! Nossa
+Senhora do Livramento me perdôe, que nem eu sei o que ia a dizer...
+Cruzes, inimigo!... Mas Paschoa do Espirito Santo não seja eu, se o
+Alcaide, e a beberrona da tal sobrinha, m'o não pagam mais duro que
+ossos... Pesquei hontem cá uma coisa... O que eu queria era fallar ao
+sr. Juiz... Dizem que ha ahi uma tal sr.^a morgada, de lá de cima... uma
+sr.^a D. Felicia, que dá assembléa todas as semanas, aonde vae o sr.
+Juiz...
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Sei eu quem é... Móra ás Portas da Cruz... É minha fregueza, e por
+signal que me deve bons vintens. Vou lá muita vez.
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Vae? Se me arranjasse modos de fallar á morgada, para ver se ella
+pedia...
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Isso é fácil. Mas quer que lhe diga?... Se deseja que o Juiz lhe dê
+audiencia, e depressa, vá á Esteireira... aquella que representa no
+Salitre... passe por casa da madama Charles, e leve-lhe uma peça de
+esguião... se não póde chegar a um rosicler de pedras.
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Ai! Senhor!... Coisas que custam os olhos da cara!...
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Então é deitar o coração á larga... Deus ainda está onde estava, e atraz
+do tempo, tempo vem. Eu cá nas minhas afflicções pego-me com a Senhora
+da Purificação, rainha madrinha, que ainda me não faltou. Agora mesmo
+lhe vou levar á Boa Hora uma quarta de cera, que comprei alli em cima no
+Soccorro...
+
+
+TIA PASCHOA (_dispondo-se a acompanhal-a_)
+
+Vamos para a mesma banda.
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Eu da Boa-Hora tenho de ir á botica das Portas de Santo Antão, que se
+vende lá uma agoa...
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Tambem tenho de tornar ao Terreirinho. Em quanto fica na egreja, chego
+eu acima e volto por lá.--Teve novidade em casa?
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Tive a minha _Guiteria_ com umas terçãs, que não havia tirar-lh'as do
+corpo... Estava-me a enthisicar, a enthisicar todos os dias... na
+espinha mesmo... Assim Deus purifique a minha alma, em como não foi se
+não mal que lhe deu a Brites do Forno... Conhece?
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Pois não conheço. Não fosse ella atravessada! O tição!... E então
+porquê?
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Contos largos. Vamos andando. (_Saindo juntas ao passo que entra da D.
+um transeunte_.) E a respeito da sobrinha do Alcaide, não me disse...?
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Paga-m'as todas, com certeza. O caso é fallar ao Juiz. Hontem ao
+escurecer, tinham dado trindades no convento, vinha eu...
+(_desapparecem_.)
+
+
+SCENA III
+
+
+BOCAGE, _e o_ TRANSEUNTE
+
+
+TRANSEUNTE (_embuçado, observando, descendo a Bocage, que está de novo
+parado á esquina, e batendo-lhe no hombro_)
+
+Elmano, a lyra divina
+Por que razão emmudece?
+
+
+BOCAGE (_voltando attonito, mas acudindo logo_)
+
+Porque mais cala no mundo
+Quem mais o mundo conhece!
+
+
+TRANSEUNTE
+
+Que tens n'esse mundo achado
+Que mais assombro te faça?
+
+
+BOCAGE
+
+Um poeta com ventura,
+Um tratante com desgraça.
+
+(_Entra da E. Gonçalo Mendo, de fumo no braço, e pára ao F.
+observando_.)
+
+
+TRANSEUNTE
+
+Bem respondido, sr. Bocage.
+
+
+BOCAGE
+
+Bem perguntado, sr. Tolentino.
+
+(_Nicolau Tolentino aperta-lhe a mão, e segue para a D. saindo_.)
+
+
+SCENA IV
+
+
+BOCAGE, GONÇALO MENDO
+
+
+GONÇALO
+
+Quizera que tivesse mais testemunhas o encontro e o improviso.
+
+
+BOCAGE (_chegando-se_)
+
+Para que?... Riam... mofavam. Dois poetas que se cumprimentam em verso!
+
+
+GONÇALO
+
+Effectivamente não são vulgares os cumprimentos entre poetas... e consta
+que não é prodigo d'elles o sr. Bocage.
+
+
+BOCAGE
+
+Não sou, porque não me inclino senão ao merito verdadeiro e superior. A
+este qualquer póde inclinar-se. Raramente nos encontramos; fallamo-n'os
+ainda menos; mas admiro-o e respeito-o.
+
+
+GONÇALO
+
+Desejara tambem que lhe ouvissem essas palavras.
+
+
+BOCAGE
+
+Porquê?
+
+
+GONÇALO
+
+Porque sou seu amigo. Correm por ahi, de mão em mão, copias d'alguns
+improvisos satyricos... seus decerto...--Deixa-me fallar-lhe com
+franqueza?
+
+
+BOCAGE
+
+Tão custoso é o que me quer dizer!
+
+
+GONÇALO
+
+A verdade amarga.
+
+
+BOCAGE
+
+Trava menos na bocca da amizade, e eu creio na sua.
+
+
+GONÇALO
+
+Encontro-o em occasião grave para mim. Talvez d'ahi venham estes desejos
+de o prevenir e aconselhar.
+
+
+BOCAGE
+
+Ainda agora reparo. De luto?
+
+
+GONÇALO
+
+Achei em Lisboa a noticia do fallecimento de meu irmão.
+
+
+BOCAGE
+
+Sinto!... (_apertando-lhe a mão_.) Sinto-o.--Cheguei tambem ha oito dias
+do Alemtejo com licença. Não sabia ainda...
+
+
+GONÇALO
+
+Tornou-se-me obrigação a sisudeza.--Tem um grande talento, sr. Bocage;
+não lhe faltam protecções... Empregando esse talento em proveito da
+patria, será grande em pouco, e dar-lhe-ha grandeza. Se tão altos dotes
+recebeu de Deus, foi para honra da sua terra. Dedicar-lh'os é dever;
+esperdiçal-os é sacrilegio. O engenho, o saber, o estro são instrumentos
+que valem segundo o uso que d'elles se faz. Não ha gloria maior quando
+bem dirigidos; não ha mais pesada responsabilidade quando mal
+aproveitados.
+
+
+BOCAGE (_um pouco resentido_)
+
+Porque me diz isso? Estou em crer que tenho aos pés um abysmo.
+
+
+GONÇALO
+
+E tem talvez. As suas frechas epigrammaticas promovem-lhe odios tenazes
+e profundos. Quanto mais agudas forem, e mais acertarem no alvo, mais
+inimigos lhe hão de suscitar. E os perigosos não são os que lhe
+respondem como podem; são os que na perfidia dissimulam a vindicta; são
+os que no sorriso affectado encobrem a vaidade ulcerada, e o rancor que
+não perdôa.
+
+
+BOCAGE
+
+Quer então que desça a humilhar-me em dissimulação egual? Quer que abata
+aos pés do vicio dourado, ou da ignorancia presumida, esses dons em que
+me falla? Quer que envileça a lyra fazendo-a servir aos festins dos
+poderosos, como accessorio apettitoso, ou como adorno comprado?
+
+
+GONÇALO
+
+Quem lhe diz tal! Supõe-me capaz de lhe aconselhar baixezas? Consagre a
+lyra á patria, como os egregios poetas de todos os tempos, como Homero,
+como Virgilio, como o Dante, como Camões... como o nosso grande
+Camões... tão grande e tão nosso, que se tudo em Portugal acabasse, elle
+só bastara para dar a immortalidade ao nome portuguez!... Faça-o que
+pode. São largos trabalhos esses, são cruas batalhas tambem. No arduo
+trilho achará egualmente diante de si o erro, o vicio, a vulgaridade, a
+ignorancia!... mais ainda, a mediocridade!... peior ainda, a inveja!
+Terá de cingir o corpo como os peregrinos, terá de affrontar o martyrio
+como os apostolos. Não lhe faltarão obstaculos nem dissabores. Não lhe
+faltarão perigos nem trabalhos. Não lhe faltará a luta, a luta acerba,
+continua, ardente... Mas ao cabo está a gloria, a verdadeira gloria, a
+gloria infallivel ainda que tardia.--Hade seduzil-o esta!
+
+
+BOGAGE
+
+E não será ainda servir a patria castigar os ridiculos? Não faltam ahi
+tambem em compensação de qualquer desgosto, os applausos para impellir,
+para embriagar, para exaltar, para inspirar a musa... E a minha musa...
+que lhe hei de fazer, sr. tenente?... a minha musa é toda isenções e
+aventuras. Não consente sujeição.
+
+
+GONÇALO
+
+Os ridiculos d'estes! os applausos d'aquelles! Que applausos e que
+ridiculos? Não valerão tanto uns como outros? É para mais o seu engenho
+do que para servir de desafogo a rivalidades pequenas. E diga-me: tem
+certeza de ser sempre justo? Não o entristecem muitas vezes esses
+ruidosos applausos em recintos frequentados de ociosos? Não vê que
+muitos glorificam nos seus versos, menos a claridade que os illumina, do
+que o raio que vae ferir um émulo, ou um superior? «[1]Não vê que
+arrastando na ignominia os seus competidores, a si mesmo se apouca? Não
+repara que d'esse modo só favorece os baixos instinctos dos detractores
+sem alma?» É para isso a musa e a lyra? Applaudem-n'o! Applaudem. Mas
+como? Mas porquê? Mas quem? Ólhe em torno de si e medite. Applaudem-n'o
+enthusiasmos que depois o nauseam, applaudem-n'o paixões que depois o
+envergonham. O epigramma cortante, a hypérbole sarcastica, a imagem
+insultuosa, despertam na sua presença um delirio interessado, que lhe
+deixa após o vacuo e o pejo. Compare esse applauso suspeito com outros
+menos estrepitosos, mas selectos, que já lhe tem grangeado obras mais
+altas e mais dignas. Recorde a satisfação que lhe fica na consciencia,
+quando arremessa o vôo ás regiões luminosas onde fita os
+astros!--Falla-lhe pela minha bocca a sympathia, e a experiencia. Somos
+camaradas; sou seu amigo, repito-lhe... sou ainda mais amigo d'esta
+terra, de que deve ser, de que póde ser ornamento e brazão... e que o
+precisa, creia... que precisa de todos os grandes esforços para a
+levantar da ameaçadora decadencia.--Está nas primeiras impressões e nos
+primeiros annos. Tem aberta a carreira das armas. Com o seu nascimento,
+com a sua capacidade, com a instrucção e o estudo... qualquer outra que
+prefira se lhe póde abrir. É por isto, é para isto que o importuno...
+Nicolau Tolentino é official de secretaria... Manuel de Figueiredo
+tambem... Ahi em dois poetas!...
+
+
+BOCAGE (_interrompendo arrebatado_)
+
+Manuel de Figueiredo, poeta!... Um moralista seccante, que se julga
+innovador por imitar de longe os antigos!... O Tolentino, sim... esse ha
+de ficar para a posteridade!... (_Pausa, longa reflexão_. _Gonçalo
+observa-o attentamente_. _Levanta depois o rosto e continúa com
+progressiva exaltação_.) Ouça-me tambem, sr. Gonçalo Mendo. Verá que
+avalio os seus affectuosos conselhos... E se alguma vez lhe disserem que
+Bocage é uma indole pertinaz e intractavel, poderá affirmar como a
+austeridade e a razão o acharam docil.--Oiça-me. Não é novo para mim o
+que me diz...
+
+
+GONÇALO
+
+Ahi verá!
+
+
+BOCAGE
+
+Tem-m'o repetido a meudo a consciencia.
+
+Oh! não mais que momentos inebria
+O sordido clamor da turba sordida!...
+
+Perdoe, involuntariamente se me formulou em, verso a idéa.
+
+
+GONÇALO
+
+Prodigiosa faculdade! E quer desbaratal-a?
+
+
+BOCAGE (_proseguindo_)
+
+Não pense que estimo a plebe das admirações... tanto como admiro as
+magras rimas de ôccos versejadores!... No meio das mais estimulantes
+palestras, quando é maior o alarido e a matinada, quando egualmente
+espumam os copos e os labios, quando se condensa o vapor que tolda a
+casa e o cérebro, quando os motejos se crusam como settas, e os
+paradoxos refervem como vagas, que de vezes não fico eu mudo, absorto,
+sem escutar, sem perceber, sem discernir o que tenho diante!... É que se
+me desprende a alma para cima!... Tenho os olhos e o espirito nos
+espaços radiantes, d'onde se encara o infinito e o futuro!... Ouço o
+hymno triumphal na bocca dos povos reconhecidos!... Enfeixo nos braços
+as palmas das nações!... Cinjo na fronte os louros perpetuos!... Vejo as
+edades curvadas aos pés d'um monumento coroado de perennes
+resplendores!... Esta e só esta é a gloria, digo... esta e só esta...
+eterna primavera, eterna aurora... eterna recompensa!
+
+
+GONÇALO (_enthusiasmado_)
+
+E quem tal sabe conceber não ha de saber realisal-o!
+
+
+BOCAGE (_tristemente, estendendo-lhe a mão_)
+
+Dê-me que o mundo se povoe de juizos como o seu, de almas como a sua...
+e será possivel, e será facil... Como elle é, não sei se algum dia terei
+força para tanto... Por ora, não... Resgate a minha franqueza a minha
+fragilidade... O menor abalo que d'esse extasi me atire á realidade, mal
+acerto com a vista na nullidade soberba, na villeza prospera, na
+abjecção remunerada, na astucia triumphante, na hypocrisia
+omnipotente... n'esse ascoroso acervo das miserias humanas... todo se me
+revolve o coração... e sae-me pela bocca em strophes irritadas, que a
+amargura envenena, que a indignação inflamma! Quero, e não posso, conter
+esta furia, represar esta onda, que se entumece, e trasborda com o
+temporal de dentro!... Depois... Nenhuma fraqueza lhe dissimulo...
+Depois, as palmas, os bravos, as acclamações, o frémito das turbas, que
+pendem da minha voz e a minha voz avassalla, todo este rumor contagioso
+e irresistivel... é novo excitante á febre, é maior alimento ao
+incendio, que lavra, que lavra, que se desata em labaredas accumulando
+as cinzas... que investe ao acaso... que devora quanto encontra... que
+hade acabar por me devorar tambem!
+
+
+GONÇALO
+
+Veia exuberante! Seiva excessiva! Torrente impetuosa!--Os annos o
+corrigirão.
+
+
+BOCAGE
+
+Não sei... Nasci assim. Acho-me assim ao entrar no mundo. Corrige-se
+isto?
+
+
+GONÇALO
+
+Quando se não corrige, mata. E o sr. Bocage ha de viver.--Desculpe se o
+turbei nas suas contemplações... Não pude resistir... posto saber o fito
+d'ellas.
+
+
+BOCAGE (_sorrindo_)
+
+Das minhas contemplações de agora? Duvido (_passeiando com Gonçalo_).
+
+
+GONÇALO
+
+Quer que o vá perguntar ao honrado mercador Manuel Simões, que móra
+n'aquelle primeiro andar, para onde entrou haverá uma hora, com a sua
+interessante afilhada a sr.^a morgada D. Felicia? Bem se vê que está
+todo no seu enlevo... Tem por mysterio o que se passa nas ruas!...
+Presumo que não anda ahi por causa da morgada velha... (_Bocage
+protesta_) Logo vi.--E a viuva, diga-me? Quando ha quinze dias nos
+encontrámos na Torre da Palma parecia meio apaixonado.
+
+
+BOCAGE
+
+Apaixonado de todo.
+
+
+GONÇALO
+
+Que fez então a essa paixão subita?
+
+
+BOCAGE (_gracejando_)
+
+Foi como veio... subitamente. «Vê que não está na minha mão dissimular,
+e aproveita-se.»
+
+
+GONÇALO
+
+«Se pensa...»
+
+
+BOCAGE
+
+«Não: desculpe.--Sei que não é curiosidade indiscreta. E a quem melhor
+podia abrir o coração? Como hei de eu dizer-lh'o? A viuva é cheia de
+attractivos... merece todas as adorações... (_malicioso_) Não é esta a
+sua opinião, sr. tenente?»
+
+
+GONÇALO
+
+«Ainda que o seja? Pouco vem ao caso.»
+
+
+BOCAGE
+
+«Reservas commigo! Vamos, confidencia por confidencia. Confesse que não
+deita luto pela morte da minha paixão da Torre da Palma.»
+
+
+GONÇALO (_sériamente_)
+
+«A sr.^a D. Maria Joanna Galvão nunca me deu direito para me offender de
+qualquer preferencia sua.»
+
+
+BOCAGE
+
+«Podia não se offender, e custar-lhe. E não seria da minha parte loucura
+constituir-me rival do unico amigo verdadeiro que ainda encontrei?...
+(_Movimento de Gonçalo_.) Oh! não, não cuide que lhe quero forçar os
+segredos... não pense que foi generosidade...» Já que me obriga,
+digo-lhe tudo. Peço-lhe só que não seja severo. Ou venha dos annos ou do
+temperamento, o amor em mim é egual á musa, compraz-se no improviso.
+Rebenta em chammas, mas a chamma fulge e esvae-se como relampago...
+Depois... outra fraqueza ainda... é tão superior ás damas que tenho
+conhecido, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão!... tão superior pela graça
+senhoril, pelo tracto do mundo e cultura do espirito!... (_Pausa_.)
+Encontrei-a, logo que cheguei, n'uma assembléa, em casa de sua tia D.
+Felicia onde me apresentaram... Ferviam os motes, e eu calado. Passei
+quasi todo o tempo escutando-a e reflectindo.
+
+
+GONÇALO
+
+Foi um estudo então?
+
+
+BOCAGE
+
+Um exame de consciencia. Intimida aquella distincção, subjuga aquella
+formosura, ordena respeitos aquella voz. Revoltou-se-me o coração contra
+similhante imperio... Se abomino todo o captiveiro!... Estava alli
+tambem, como esquecida, uma flor modesta, a afilhada da sr.^a D.
+Felicia. Com ser mimosa sua, era visivel a inferioridade da condição.
+Como, porquê, não sei... Para essa me voou a alma... Admira-se?.... Não
+posso supportar a idéa da dependencia, nem sequer em amor. Á dama
+opulenta e festejada que podia dar o pobre cadete, o poeta noviço? Ainda
+que me correspondesse... esmola seria a sua mesma preferencia. Com a
+donzella humilde succede o contrario... é ella a favorecida, e eu o
+generoso.--Prefiro estes amores... não tolero outros!
+
+
+GONÇALO (_olhando para a E._)
+
+Tem muito empenho em se encontrar com o mercador?
+
+
+BOCACE
+
+Porquê?
+
+
+GONÇALO
+
+Porque se não tem, podemos ir aqui de roda dar uma volta até á esquina
+da Inquisição, e tornar depois.
+
+
+BOCAGE (_olhando tambem_)
+
+É elle, e não sei quem mais. (_a Gonçalo_) Com todo o gosto...
+(_indicando a janella_) Como vê, as minhas contemplações não eram bem
+succedidas... não tinham ainda objecto.
+
+
+GONÇALO (_andando_)
+
+Logo terão. As estrellas levantam-se com a noite!
+
+
+BOCAGE (_saindo com elle pela D., ao passo que entram da E. Manuel
+Simões e Francisco_)
+
+Invade tambem os dominios da poesia, o sr. tenente! (_Saem_.)
+
+
+SCENA V
+
+
+MANUEL SIMÕES _e_ FRANCISCO PEDRO SIMÕES
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Que espantos que não vae agora fazer a sr.^a Monica!... Se nem me
+lembrou dizer-lhe nada!...
+
+
+FRANCISCO
+
+E está boa a minha tia Monica?
+
+
+MANUEL
+
+Toda em cuidados pelo seu menino, pelo seu Francisquinho, que has de ser
+sempre para ella o Francisquinho, como ha vinte e trez annos, quando o
+Sebastião foi para a Bahia, e tu ficaste tanto monta no berço... As
+raparigas e a caixeirada não te chamam já senão o sr. doutor... Ella...
+sim!... Nem annos nem Coimbras lhe persuadem que o seu Benjamim está um
+homem... (_revendo-se n'elle_) e d'aqui a pouco um sr. doutor devéras...
+não é assim?
+
+
+FRANCISCO
+
+Este anno ainda, espero.
+
+
+MANUEL
+
+Mas vê lá, rapaz... Não te sirva de atrazo esta vinda a Lisboa! Jornadas
+para cá, jornadas para lá... sempre é tempo perdido!...
+
+
+FRANCISCO
+
+Sendo por poucos dias...
+
+
+MANUEL
+
+Será. Pois que!... Não pensei n'isto quando te escrevi.--Recebeste a
+minha carta a tempo? Recebeste, está visto. Pui-te esperar á estalagem,
+por me parecer que não faltavas... mas como não respondeste...
+
+
+FRANCISCO
+
+Mandei logo buscar os machos, e puz-me a caminho. A resposta era
+obedecer. Que novidade foi esta, pae?
+
+
+MANUEL
+
+Estava tremendo não chegasses... (_em voz baixa_) Vem esta noite cá teu
+padrinho.
+
+
+FRANCISCO
+
+O sr. marquez!... a nossa casa!
+
+
+MANUEL
+
+Á nossa propria casa. Será o primeiro marquez que vem a casa de teu pae?
+
+
+FRANCISCO
+
+É verdade... o sr. marquez de Pombal era tambem padrinho de meu irmão, e
+tenho-lhe ouvido que...
+
+
+MANUEL
+
+Que me visitava em pessoa, elle mesmo... (_olhando em redor_) o grande
+marquez... E não foi só isso... De vez em quando mandava-me parar a sege
+á porta da loja... (_esquecendo-se_) É que tambem não torna cá homem
+como aquelle... (_caindo em si e olhando em volta_) que este não é
+somenos, em certas coisas! Vem, vem hoje... Podia lá deixar de lhe ter
+cá o afilhado! Vem hoje... hoje, em vespera de Corpo de Deus, faze idéa!
+E toda a gente pelas janellas!... E o que se hade fallar no
+arruamento!... E o que ahi não virá de encommendas!--Já mandei buscar
+mais um caixeiro.
+
+
+FRANCISCO
+
+Que não seja como o Zé Braga ou o Zeferino... Lembram-me ainda.
+
+
+MANUEL
+
+O Zé Braga estabeleceu-se na terra... e vamos, tem queda para o
+negocio... É nosso correspondente.
+
+
+FRANCISCO
+
+Ah!
+
+
+MANUEL
+
+O peralvilho do Zeferino... esse lá foi para esses Brazis... Não sae
+d'alli coisa de geito, verão... Confundia-me sempre o lemiste com os
+droguetes, e o panno jardo com as baetas!... Deu em fazer de faceira...
+já de chapeu á Anastacia... sempre em touros e presepios... Só lhe
+faltavam os polvilhos. Deixal-o. Cá me tenho remediado com outros dois
+novos, e marçanos não faltam.--Ai! nós aqui a fallar, a fallar, e lá em
+casa tudo cheio de gente!... A Monica estou que perde a cabeça!... Não
+me lembrava com o gosto de te ver, e de te fazer beijar a mão ao sr.
+marquez... que elle sempre hade puxar por ti!--Anda, rapaz, vamos...
+vamos!... (_em acto de partir_.)
+
+
+FRANCISCO
+
+Tudo cheio de gente lá em casa! É novidade... E quem está? Não me hei de
+apresentar n'este trajo de jornada, se são pessoas de respeito.
+
+
+MANUEL (_voltando_)
+
+Tens razão. Não vieras tu de Coimbra!... Com isto sempre me embalaram:
+«ou armas ou letras.» Quem está?... Has-de ir mudar de fato primeiro,
+has-de. Estão pessoas de consideração, e espero mais. Verás... Sujeitos
+de peso e de porte, que me honram com a sua amizade... (_comsigo_) e
+precisam do meu dinheiro... Pois n'um dia d'estes, e vindo cá teu
+padrinho!... Está a sr.^a morgada D. Felicia, que essa é já conhecimento
+velho... está...
+
+
+FRANCISCO (_alvoroçado, vivamente_)
+
+E a afilhada?
+
+
+MANUEL
+
+E a afilhada... bem sabes que nunca a larga... Está a afilhada, e vem
+tambem uma sobrinha, que chegou de França ha dias!
+
+
+FRANCISCO (_em acto de partir_)
+
+E nós aqui a perdermos tempo.
+
+
+MANUEL (_detendo-o_)
+
+Espera, espera. Que fogo te deu mal te fallei na morgada! Dar-se-ha
+caso... (_severo_.) Francisco?
+
+
+FRANCISCO (_timidamente_)
+
+Meu pae.
+
+
+MANUEL
+
+Esse alvoroço não é natural!
+
+
+FRANCISCO (_como acima_)
+
+Está fazendo falta de certo, pae.
+
+
+MANUEL
+
+Já vamos. (_Comsigo_.) A morgada não póde ser... a sobrinha não a viu
+ainda... Querem ver... (_com inteireza_) Sr. Francisco Pedro, forma-se
+este anno. D'aqui a tempos será juiz de fóra, desembargador, quem
+sabe?... Conversei já a seu respeito com o meu amigo João Pires...
+Conhece? O sr. João Pires, á Magdalena, que traz dois navios para a
+India, e tem uma filha que não anda por assembléas, mas leva quarenta
+mil cruzados de dote.--Quando pensar em casar, é a noiva que lhe convém.
+
+
+FRANCISCO (_consternado_)
+
+Oh! meu pae! Por quem é não disponha assim do meu coração!
+
+
+MANUEL
+
+Do seu coração! A que proposito vem o seu coração? Quer dizer que olhou
+para a afilhada da sr.^a D. Felicia? Ignora que é filha d'uma criada?
+
+
+FRANCISCO
+
+Mas educada com tanta estimação! O amor não mede distancias.
+
+
+MANUEL
+
+Ensinaram-lhe isso em Coimbra?... Não o tirasse eu do balcão!...
+Felizmente seu pae não dorme. Perca d'ahi o sentido. Já lhe disse o que
+lhe convinha. Escusa de se cançar... não costumo repetir as coisas duas
+vezes!
+
+
+FRANCISCO
+
+Não me permitte uma supplica ao menos?
+
+
+MANUEL
+
+Com tanto que seja breve.
+
+
+FRANCISCO
+
+Morro por ella... (_hesita_).
+
+
+MANUEL
+
+Se me não diz mais...
+
+
+FRANCISCO
+
+E dei-lhe palavra de casamento.
+
+
+MANUEL
+
+Deu-lhe palavra... (_furioso_) Porquê? Para quê?... Sem me consultar...
+sem consultar seu pae!... sem saber se lhe fazia transtorno!... Viu-se
+já!... (_fitando-o_) Estes rapazes!... (_mais brando_) Com que então
+deste-lhe palavra? (_Gesto affirmativo de Francisco_.) Pois se lh'a
+déste, cumpre-a.--Um Simões nunca faltou a ella!
+
+
+FRANCISCO (_transportado_)
+
+Consente!... Consente?... Como lhe hei de agradecer, meu pae!
+
+
+MANUEL
+
+Não é o que eu queria, e custa-me... Não te mandei a Coimbra para te
+empregar na filha d'uma criada!... Mas na nossa casa a palavra é
+escriptura. Pagamos á vista... sempre, e tudo: é o nosso brazão!
+
+
+SCENA VI
+
+
+OS DITOS _e o_ MORGADO
+
+
+MORGADO
+
+Ora até que o encontrei, sr. Manuel Simões. Procurei-o hontem, antes de
+hontem, esta manhã...
+
+
+MANUEL (_interrompendo-o seccamente_)
+
+Sei, sei... Bem sei.
+
+
+MORGADO
+
+Se me désse licença logo...
+
+
+MANUEL
+
+Tenho gente em casa, tenho muita gente... Hade-me dar licença.--Vamos,
+Francisco, vamos.
+
+
+SCENA VII
+
+
+MORGADO _pouco depois o_ COMMENDADOR
+
+
+MORGADO (_desesperado e ameaçador_)
+
+Se fôra da nobreza... e se não fôra a necessidade!...
+
+
+COMMENDADOR (_que tem entrado_)
+
+Que é isso, sr. Morgado? Quem o fez agastar?
+
+(_Durante esta scena os creados acendem de dentro as illuminações das
+janellas_.)
+
+
+MORGADO
+
+Quem hade ser? Esta gente de negocio que na verdade...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Não tem uso do mundo, é sabido... cança-se de dar dinheiro, e nem sempre
+se lembra das jerarchias!... Que quer? Na opinião de Cicero o dinheiro
+faz todos eguaes... e lá resa o nosso rifão: «negro è o carvoeiro,
+branco é o seu dinheiro!!»
+
+
+MORGADO
+
+Mas quem lhe diz...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Que precisa de dinheiro? O sr. Morgado precisa sempre... Que o mercador
+lh'o recusa? Encontro Manuel Simões, e acho-o enfadado. Não é preciso
+ser astrologo para adivinhar. Excellentes astrologos são os olhos... que
+sabem ver. Bem o disse o poeta Manilio, e melhor o explica Julio Firmico
+Materno, contemporaneo de Constantino Magno, nos oito livros que
+escreveu sobre o assumpto.
+
+
+MORGADO (_meio aborrecido_)
+
+Oito? Admiro-lhe a paxorra.--Mas, vamos, sr. Commendador... Estão já
+accendendo as luminarias. D'aqui a pouco enche-se ahi tudo de
+gente.--Que noticias?--Sabe que morreu Salvador Teixeira, o irmão mais
+velho de Gonçalo Mendo? Ficou senhor da casa agora o tenente, e...
+
+
+COMMENDADOR
+
+E... receia o competidor.
+
+
+MORGADO
+
+Receial-o! Porquê? Em quê? Um homem como eu não teme nenhum rival...
+Minha prima é senhora de gosto e de juizo... E em ultimo caso tenho modo
+infallivel de supplantar o tenente... (_intencionalmente_) ou qualquer
+outro.
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo_)
+
+Infallivel!
+
+
+MORGADO
+
+Infallivel.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Contra qualquer?
+
+
+MORGADO
+
+Contra qualquer.
+
+
+COMMENDADOR
+
+No dizer de Plinio poucas coisas se pódem julgar infalliveis.--Tem
+estado com sua prima?
+
+
+MORGADO
+
+Todos os dias.--Ainda antes de hontem em casa da morgada da Torre da
+Palma... ainda hontem a ver correr parelhas e alcanzias em Campolide.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Então para que pergunta noticias?
+
+
+MORGADO
+
+Para saber o que se diz.--Posso contar com a sua amizade?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Como eu com a sua.--Amizade de obras mais do que de palavras, como a
+quer Tito Livio.
+
+
+MORGADO
+
+Tambem... commigo póde o commendador contar para a vida e para a morte.
+O braço e a espada do morgado da Gesteira estão sempre ao seu dispor.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Deseja saber o que ha?
+
+
+MORGADO
+
+Não se me dava... para afugentar de vez o primeiro que se atreva a
+galantear abertamente minha prima.
+
+
+COMMENDADOR (_malicioso_)
+
+Terá que fazer.--Veja o que Propercio diz da sua Cynthia... Póde fazer
+calar os requebros dos pintasilgos á aurora?
+
+
+MORGADO
+
+Pintasilgos, diz bem. Principalmente o cadetinho... o tal sr. poeta de
+loas, ou das duzias... Ia-me saindo das medidas na casa da Torre da
+Palma. Se não fosse a morte quasi repentina de Simôa!... Já o encontrei
+por ahi e não o perco de vista. Não que minha prima possa olhar para
+similhantes figuras...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Eu sei, morgado. Elle é de boa gente, e as damas... Emfim a respeito
+d'esse, descance... Traz o Sentido n'outra parte.
+
+
+MORGADO (_avidamente_)
+
+Em quem?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Ainda não reparou?... Na afilhada de D. Felicia.
+
+
+MORGADO (_desdenhoso_)
+
+Ah!... (_como reflectindo_.) Mas o filho do mercador? É correspondido, e
+está ahi.
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo_)
+
+Era correspondido... Verá como os dois se arrufam, como o poeta fica e é
+acceito, como... Isso corre por minha conta.
+
+
+MORGADO
+
+Por conta do commendador! (_desconfiado_.) E com que interesse?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Interesse? Nenhum... Amizade... Desejo de lhe ser util... Não queria
+afugentar os galanteadores de sua prima?... Para isso vale mais a
+astucia do que a força, creia. O mestre das rhetoricas ensinava a
+Herennio «que a verdadeira prudencia era a sagacidade,» e como diz
+Cornelio Nepote, «mais poude a destreza de Themistocles do que as armas
+da Grecia.»
+
+
+MORGADO (_pensativo_)
+
+Não é fóra de rasão... ainda que nada d'isso vale uma recarga a tempo
+como a ensina o alferes Theotonio Rodrigues, ou uma flanconada como as
+queria o grande Montenegro. (_mirando-o de revez_) Com que o poeta
+desistiu já de minha prima?
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo, e do mesmo modo_)
+
+Respondo-lhe por elle.
+
+
+MORGADO
+
+O tenente, esse...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Faz-se desistir.
+
+
+MORGADO (_como acima_)
+
+E depois?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Depois... não ha rivaes que affrontem o sr. morgado. (_Cresce o numero
+dos passeiantes_.--_Ruido dentro_.) Ahi vem já o rancho dos poetas.
+Conhece-se pela algazarra.
+
+(_Principiam a apparecer ás janellas algumas senhoras de gala, e
+toucadas_.)
+
+
+MORGADO (_olhando para as janellas_)
+
+Já as _madamas_ começam tambem a apparecer.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Vou n'um instante a casa do mercador para lhe fazer a vontade. Volto
+logo.
+
+
+MORGADO
+
+Encontra lá minha prima.
+
+
+COMMENDADOR
+
+E não vem?
+
+
+MORGADO (_despeitado_)
+
+O sr. Manuel Simões não me fez a honra de me convidar.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Que dissabor lhe ha de ser ter sua prima alli e ficar de fóra! Que quer?
+Diogenes, de Synope, comparava as riquezas ás plantas... que nascem em
+despenhadeiros! (_Sae tomando á esquina ao F._)
+
+(_Entram logo Bocage, 1.^o e 2.^o poetas, companheiros, e Gonçalo Mendo,
+da E._)
+
+
+SCENA VIII
+
+
+BOCAGE, GONÇALO MENDO, 1.^o _e_ 2.^o POETAS
+
+
+GONÇALO (_a Bocage, despedindo-se e indicando as janellas de Manuel
+Simões_)
+
+Boa sorte e propicios amores!... Da inspiração não lhe fallo: nunca lhe
+falta, e hoje menos lhe faltará.
+
+
+BOCAGE (_meio desconfiado_)
+
+Já não quiz entrar commigo um instante no Nicola, e agora deixa-me!
+
+
+GONÇALO
+
+É noite de festas, e está ainda mal fechada a sepultura de meu irmão!
+
+
+BOCAGE (_caindo em si_)
+
+Tem rasão.
+
+
+MORGADO (_chegando-se_)
+
+Sube o desgosto que teve, sr. tenente Gonçalo Mendo... Muitos
+parabens... (_corrigindo-se_) dou-lhe os sentimentos, quero dizer... Seu
+irmão, tambem era doente... Quantos annos tinha?... Boa casa!... É uma
+boa casa, a casa de Mendél, dizem todos. E de mais a mais com os coutos
+de Sandim!... Deixou uma grande casa!... O sr. Gonçalo Mendo
+naturalmente larga a vida militar.--Com uma casa d'aquellas!
+
+
+GONÇALO (_com inteireza_)
+
+«Sr. morgado da Gesteira, a minha familia foi sempre uma familia de
+soldados. Alli cumprir a lei e servir a patria não é especulação, é
+preceito. Se meu irmão por fraco e enfermo não poude satisfazer a
+obrigação, por elle a satisfazia eu. Hoje, que me falta, essa obrigação
+fez-se duplicada: é a d'elle e a minha!»--Creio que o sr. Bartholmeu
+Tojo não vê no vinculo senão a renda. A mim ensinaram-me de pequeno a só
+considerar no patrimonio dos meus, como coisas superiores, o dever e o
+nome!--Adeus sr. Bocage! (_Sae_.)
+
+
+MORGADO
+
+E então! Dês que está senhor da casa parece que traz el-rei na barriga!
+
+
+BOCAGE (_fitando-o_)
+
+Engana-se. Tem o coração no seu logar... e não succede o mesmo a todos.
+
+(_Signaes de approvação nos circumstantes_.)
+
+
+MORGADO (_ameaçador_)
+
+Isso entende-se commigo?
+
+
+BOCAGE (_com obsequioso sarcasmo_)
+
+De nenhum modo: era suppor-lhe coração!
+
+(_Riso nos circumstantes_.)
+
+
+MORGADO (_com satisfação_)
+
+Logo vi que se não podia entender commigo.
+
+(_retira-se magestosamente, e sae pela E._)
+
+
+SCENA IX
+
+BOCAGE 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, 1.^o _e_ 2.^o MANCEBOS,
+DAMAS, POVO
+
+(_Vão-se povoando mais e mais as janellas; augmenta na rua a
+concorrencia_.)
+
+
+1.^o MANCEBO
+
+Sr. Bocage, sr. Bocage!
+
+
+BOCAGE (_ainda agastado da altercação com o morgado_)
+
+Que é?
+
+
+1.^o MANCEBO
+
+Fez-me o favor de limar aquellas decimas, que lhe entreguei o outro dia?
+
+
+BOCAGE
+
+Pois não!
+
+
+1.^o MANCEBO
+
+Queria ver se as recitava esta noite... Tem-n'as ahi?
+
+
+BOCAGE
+
+O que?
+
+
+1.^o MANCEBO
+
+As minhas decimas.
+
+
+BOCAGE
+
+Como hei de ter, se nada sobrou d'ellas.
+
+
+1.^o MANCEBO (_pasmado_)
+
+Não sobrou nada?
+
+
+BOCAGE
+
+Absolutamente nada. Ficou-me tudo na lima!
+
+(_Riso nos circumstantes; o 1.^o mancebo mette-se na turba corrido_.)
+
+
+2.^o MANCEBO
+
+Sr. Bocage, um obsequio?
+
+
+BOCAGE
+
+Que temos?
+
+
+2.^o MANCEBO
+
+Faz annos, depois d'amanhã, um tio que eu tenho...
+
+
+BOCAGE
+
+A novidade seria fazer annos um tio que não tivesse.
+
+
+2.^o MANCEBO
+
+Compuz dois sonetos...
+
+
+BOCAGE
+
+Dois d'uma assentada! Já vejo. Monta um Pegaso manhoso que lhe desandou
+uma parelha de...
+
+
+2.^o MANCEBO (_ingenuamente_)
+
+Isso. Estão aqui os sonetos. Só lhe peço que me diga qual é o melhor...
+para o offerecer ao tio...
+
+
+BOCAGE
+
+Ao sr. seu tio... que vocemecê tem.--Deixe ver. (_2.^o mancebo
+entrega-lhe um papel de dois que tem na mão_.--_Bocage chega-se á luz
+das luminarias, e lê attentamente_. _Em quanto lê, o 2.^o mancebo
+responde aos poetas que parecem divertir-se com elle_. _Depois de ler,
+restituindo-lhe o papel e em tom decidido_.) Leve-lhe o outro.
+
+
+2.^o MANCEBO
+
+O outro! Mas ainda não viu o outro.
+
+
+BOCAGE
+
+É o mesmo... leve.
+
+
+2.^o MANCEBO
+
+Porquê?
+
+
+BOCAGE
+
+Porque não póde ser peior do que esse.
+
+(_Riso dos circiumstantes; o 2.^o mancebo sae tambem corrido_.)
+
+
+SCENA X
+
+
+BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, DAMAS, POVO
+
+
+2.^o POETA
+
+Está de veia hoje, o nosso cadete.
+
+
+BOCAGE
+
+Menos isso.--O cadete ficou onde ficou a farda. Aqui está só o poeta.
+
+
+1.^o POETA (_ao 2.^o_)
+
+Condemnado como reu de lesa Arcadia. O Bocage tem razão. Será cadete no
+regimento; entre os pastores do Pindo é Elmano, o esperançoso Elmano,
+como tu és Alcino, como eu sou Lereno. A propósito, falta-nos Albano.
+
+(_Bocage parece cair em profunda meditação_.)
+
+
+2.^o POETA
+
+Foi jantar a casa d'algum fidalgo. É o seu costume. Mas vem de certo.
+Disse-me que vinha.--Agora nego que fosse reu de lesa Arcadia tratando
+Elmano pelo grau militar.
+
+
+1.^o POETA
+
+Como provas essa?
+
+
+2.^o POETA
+
+Muito facilmente. Qual é n'este caso o distinctivo do vale e do soldado?
+Uma estrella. O mesmo em ambos. Cada qual tem a sua. Logo...
+(_declamando_)
+
+O Appollo, e o Marte que zellas,
+Não se afastam grande espaço:
+Tem um a estrella no braço,
+Outro o braço nas estrellas!
+
+
+1.^o POETA
+
+Fóra o seiscentisto. Sempre te achei queda para os conceitos alambicados
+e antitheses retorcidas! Essa vem na _Phenix renascida_, ou nos
+_Desmaios de Maio_, aposto!--Bocage... (_reparando e tomando-lhe o
+braço_.) Bocage!... Em que pensas?... Que fizeste á picante jovialidade
+tão bem estreada, e que tanto promettia para esta noite?
+
+
+BOCAGE (_como despertando_)
+
+Que?... Eu?... (_comprehendendo_.) Ah!... Jovialidade lhe chamas? Não
+era, não. Era raiva, era furia, era...
+
+
+1.^o POETA
+
+Contra uns pobres rapazes! Deixa versejar a vadiagem. Cançará depressa.
+Não vale a indignação.
+
+
+BOCAGE
+
+Isso dizem todos, e d'isso sobra forças á mediocridade e a vilania, que
+são gemeas. Uns pobres rapazes! Hoje nescias vaidades apenas... ámanhã
+calumniadores invejosos!... Deixae-os medrar, deixae; e queixae-vos
+depois dos damnos que vos fizerem! E ha peiores ainda... Peiores e mais
+nocivos são os desalmados, que nem adivinham a alma, e d'esse aleijão
+moral fazem a bitola de todos os caracteres!... Que me hão de apparecer
+por toda a parte vilezas!... Não reparem, amigos... São restos da cólera
+em que me deixou esse homem, que até na morte vê o interesse sem lhe ver
+as lagrimas!... Quando estas ignominias me surgem diante, sou como
+aquelle tyranno antigo, que desejava um só corpo á humanidade, para a
+degollar d'um golpe!... Quizera tel-as tambem todas congregadas e
+encorporadas debaixo da mão, para lhes arrancar a mascara hypocrita,
+para as retalhar com o látego justiceiro, para apresental-as como são,
+hediondas e infames, perante a sociedade que illudem ou
+pervertem.--Desculpem a rajada. Vamos ao que importa. (_olhando para as
+janellas do mercador, ainda desertas_) Ficamos aqui?
+
+
+1.^o POETA
+
+Alcino tem uma Anarda alli n'um segundo andar do quarteirão immediato, e
+ella provavelmente traz-lhe mote preparado. Queres vir?
+
+
+BOCAGE (_com os olhos nas janellas_)
+
+Com tanto que voltemos depressa!
+
+
+2.^o POETA
+
+Percebo. Temos tambem por cá pastora! Uma Armia, uma Isbella, uma
+Anfrisa?
+
+
+BOCAGE
+
+Melhor do que isso. Uma esperança!
+
+(_Gritos, tumulto fóra á E._)
+
+
+2.^o POETA
+
+Ha novidade, ao que parece.
+
+(_Grande tumulto á E. fóra_. _Gritos_: Aqui d'el-rei! Agarra! _O povo
+afllue áquelle lado_.)
+
+
+BOCAGE
+
+É desordem?
+
+
+1.^o POETA
+
+O costumado.
+
+
+VOZES (_no povo_)
+
+Arreda! arreda!
+
+(_Reflue tudo sobre a D._--_Bocage, á frente dos companheiros, impellido
+pela turba, acha-se na extremidade D. quando entra, correndo d'este
+lado, Alcaide, e a ronda de quadrilheiros e paisanos_.)
+
+
+SCENA XI
+
+
+ALCAIDE, BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, MORGADO (_que entra
+esboforido da E._) DAMAS, POVO.
+
+
+ALCAIDE (_topando Bocage, e pondo-lhe uma pistola aos peitos_)
+
+Da parte da ronda--quem é? d'onde vem? para onde vae?
+
+
+BOCACE (_serenamente_)
+
+Sou o poeta Bocage,
+Venho ha pouco do Nicola,
+E vou para o outro mundo
+Se me dispara a pistola!
+
+
+POETAS _e_ COMPANHEIROS
+
+Bravo! Bravo, Bocage!
+
+
+ALCAIDE (_deixando-o_)
+
+Ah! é o Bocage! Que foi então? Quem gritou?
+
+
+MORGADO
+
+Foi um chibante de cigarro que deu tres facadas n'um moço das
+carvoarias, que ia cantando a _Fôfa_ alli para a banda da Bitesga!...
+Ah! que se o apanho a geito!... (_esquiva-se para a D. logo que o
+Alcaide interroga_.)
+
+
+ALCAIDE
+
+Quem fallou para ahi?... (_á ronda_) Depressa, anda... Venham as
+lanternas, que nas travessas está escuro como breu. (_Os paisanos
+adiantam-se com as lanternas, mostrando certa repugnancia_.) Mais
+depressa... (_aos quadrilheiros_) Para a frente vocês. (_Estes obedecem
+com promptidão, e passam velozmente para a E._--_O Alcaide continua para
+este lado como fallando a um dos quadrilheiros que passou_.) Ó Gaiola,
+bota cordão lá para diante... agarra tudo!... O sr. Corregedor do Crime
+mora ahi para cima; elle que os joeire!... Vá, vá.
+
+(_Os grupos abrem vivamente passagem ao Alcaide e aos mais da ronda, que
+saem apressados pela E._)
+
+
+SCENA XII
+
+
+OS DITOS, _menos o_ ALCAIDE _e_ RONDA, _depois_ UM CEGO (_que vende
+impressos_)
+
+(_Apenas o Alcaide sae, ouve-se tambor e gaita de folles para a D._--_O
+povo grupa-se para esse lado_.)
+
+
+2.^o POETA
+
+Cirio agora, querem vêr!
+
+
+1.^o POETA (_observando_)
+
+Não. São os foliões do Espirito Santo com a bandeira, e o ermitão da
+Senhora do Monte com o Embrechado. Metteram-se para a outra travessa.
+
+
+BOCAGE
+
+Por isso estão todos nas janellas dos lados.
+
+
+2.^o POETA
+
+Com similhante inferneira, bem se ha de poetar agora.
+
+
+O CEGO (_passando ao F. e apregoando em cantilena_)
+
+Comprae, meninas comprae,
+Por dez réis, ou meio tostão,
+_O Testamento da Velha_
+_Ind'antes da serração_;
+Ou as obras afamadas,
+Que ninguem comprou em vão,
+Da Chrystaleira de Coimbra,
+Coisa de satisfação.
+
+
+BOCAGE (_rindo e como terminando a trova do cego_)
+
+Temos rival pela prôa:
+Vá, ao outro quarteirão
+
+
+1.^o e 2.^o POETAS (_galhofeiros_)
+
+Vá, vamos. (_Saem os tres_.)
+
+
+SCENA XIII
+
+
+O CEGO, _logo depois_ TIA VICENCIA. _e_ TIA PASCHOA, _logo depois_
+COMPADRE THEOTONIO _e_ COMPADRE AMANCIO. (_Movimento_. _Homens
+apregoando caramello_. _Pretas apregoando alcomonia, etc_.)
+
+
+CEGO
+
+Comprae, meninas, comprae,
+Por dez réis ou meio tostão...
+
+(_Perde-se-lhe a voz na distancia_.)
+
+
+TIA VICENCIA
+
+Bem lh'o cantava eu, tia Paschoa! Qual juiz, nem meio juiz! Não lhe poem
+a vista em cima! A Esteireira é que é de desengano. Que eu não lhe digo
+isto para me esquivar... Se quer que peça á morgada, appareça ámanhã...
+ámanhã não, é dia de festa... appareça depois de ámanhã, e lá iremos...
+Verá que me não diz que não...
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Vou... Sempre vou... Se por ahi se arranja o negocio é uma boa dóse que
+poupo, e para quero está já tão arrastado...
+
+
+COMPADRE AMANCIO (_entre as dez e as onze, capote a um lado, entrando
+com compadre Theotonio_)
+
+Safa!... Cuidei que me filavam tambem!
+
+
+TIA PASCHOA
+
+Se não se fizer nada, então tomo o seu conselho, e vou á Esteireira...
+Por fim de contas são conhecimentos que se tomam... Ah! meu rico Santo
+Antonio! sou capaz de vender a camisa do corpo só para metter pelo chão
+abaixo aquelles marotos que nos desgraçaram... (_Saem pela E.
+conversando_.)
+
+
+SCENA XIV
+
+
+COMPADRE THEOTONIO, COMPADRE AMANCIO (_observando para a E._) _pouco
+depois_ MORGADO _e_ COMMENDADOR. _Grupos rareados_.
+
+
+COMPADRE THEOTONIO (_tambem com um grão na aza, mas dando-lhe para
+taciturno, e preoccupado, e servindo-se com frequencia de um cheirador
+de simonte_)
+
+Prenderam o homem?
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+A ronda vae apanhando a torto e a direito, mas o homem, sim! Metteu-se
+para a rua das Hortas, salta n'um pulo a S. Roque, e de lá á Cotovia...
+Depois... boas noites... (_puxando, endireitando o capote, e mirando-o_)
+Por um triz se não vae d'esta feita, o meu cobre-miseria! E o seu não
+ficou tambem pouco derreado, compadre Theotonio!
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Leve a fortuna os apertões, compadre Amancio.
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Olhe se não vae na ronda o mestre Joaquim da Ferraria... (_olhando em
+redor_) Está isto por aqui só ainda! (_Ouvem-se fóra á D. palmos e
+applausos_.) Que é? (_Vae vêr_) Ah! são os poetas que andam pelo outro
+quarteirão... Vamos até lá, compadre?... Quero dar o meu voto a respeito
+do Bocage, que ainda não ouvi... Tem-me ido já umas poucas de vezes
+barbear-se á loja, e dizem que na versaria põe tudo a uma banda!
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Cá por mim... o José Daniel!
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Não digo que não, mas vista faz fé. Vem?
+
+(_Entram da D. o morgado e o commendador_. _Formam dois grupos
+distinctos_.)
+
+
+COMMENDADOR
+
+Onde ia tão assustado? Não me via?
+
+
+MORGADO
+
+Assustado eu!... Ia desesperado... O tal sr. cadete, o tal sr. poeta!...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Disse-lhe alguma?
+
+
+MORGADO
+
+A tanto não se atrevia elle... Ainda agora o fiz eu tornar atraz... Os
+modos... os modos é que me dão a perros... Tomára achar azo de lhe
+pregar uma boa vaia, ahi diante de toda a gente.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Havia de lhe doer... mas isso é antes desforra de mulher que de homem...
+A verdadeira vingança quer-se mais segura. No conceito de Seneca toda a
+soberba é injuria, e Plauto ensina como as injurias se pagam... (_Ficam
+conversando_.)
+
+
+COMPADRE AMANCIO (_do outro lado_)
+
+Não se mexe d'ahi, compadre? Parece-me jarra! Largue o cheirador, que é
+capaz de lhe subir o simonte ao miolo. Se não está para ouvir os poetas,
+venha até ao Talaveiras, que tem uma pinga do velho...
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Cá por mim, o Petinga.
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Não sae d'isto! Ó compadre Theotonio, você por mais que me digam já fez
+hoje mais de uma estação!... (_Ouve-se campainha á E._) Será a
+Misericordia? (_Indo verificar_) Ora o que ha de ser!
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+O que é?
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+É o Bernardo atafoneiro, que vem ahi todo vestido de hollandilhas, com
+bordão de gancho e lanterna pendurada, a pedir para o Senhor Jesus dos
+Afflictos... Conheço-o pelo roliço. Aquillo faz dinheiro de tudo!
+Rendem-lhe mais as penitencias que o officio, e ainda em cima aluga a
+preta para andar a vender pelas ruas.
+
+(_Atravessa ao F. o penitente, como está descripto tocando a espaços a
+campainha; traz á cinta um mealheiro_. _Dão-lhe esmola_.)
+
+
+COMPADRE THEOTONIO (_elevando a voz_)
+
+Ora se ha um birbas assim!
+
+
+COMPADRE ANASTACIO (_impondo-lhe silencio_)
+
+Mais devagar, compadre, mais devagar, que o Bernardo é familiar do Santo
+Oficio... como alguns fidalgos!
+
+
+MORGADO (_do outro lado, ao commendador olhando para a janella dum 2.^o
+andar_)
+
+Lá está uma palmilhadeira do meu conhecimento, no 2.^o andar, mesmo por
+cima da casa do mercador... (_depois de reflectir, como achando_) Ah!
+
+
+COMMENDADOR (_ironico_)
+
+Teve alguma lembrança feliz?
+
+
+MORGADO
+
+Tive. (_olhando para a D._) Cá vem o rancho outra vez! (_D. Felicia e D.
+Maria Joanna apparecem a uma das janellas do 1.^o andar da esquina_.
+_Maria Gertrudes a outra_. _Enchem-se as janellas_.--_Affluem
+suecessivamente os grupos_.) Verá Verá que vergonhaça!... Digam que não
+sei varar um gamo, nem pegar n'uma espada, nem determinar uma mesa, se o
+poeta não fica hoje corrido!... (_Sae precipitadamente pela D. dobrando
+a esquina_. _O commendador vê-o sair, encolhe os hombros
+desdenhosamente, e mette-se por entre os grupos_. _Compadre Theotonio e
+compadre Amancio giram na turba_. _Entra Bocage e os poetas_. _O grupo
+d'estes fica sobresaindo_.)
+
+
+SCENA XIV
+
+
+BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, COMMENDADOR, COMPADRE
+AMANCIO, COMPADRE THEOTONIO, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA _e_ MARIA
+GERTRUDES, (_nas janellas_) DAMAS, POVO.--(_Grande animação_)
+
+
+1.^o POETA
+
+Oh! agora está já tudo pelas janellas. Vamos, quem rompe?
+
+
+BOCAGE
+
+Eu não... Logo.
+
+
+2.^o POETA
+
+Rompo eu. (_para as janellas_) Mote... Venha mote, minhas senhoras!
+
+(_Grupam-se todos curiosamente para ouvir_.)
+
+
+D. FELICIA
+
+Essas peraltas de agora,
+Eu não sei d'onde lhes vem.
+
+
+2.^o POETA (_repetindo_)
+
+Essas peraltas de agora...
+Eu não sei d'onde lhes vem.
+
+(_Fica por momentos pensativo_.)
+
+
+BOCAGE (_ao 1.^o poeta_)
+
+Foi a morgada que deu o mote?
+
+
+1.^o POETA
+
+Foi. (_ao 2.^o Poeta_.) Glosa-lh'o ao geito, se queres que te applauda,
+a tartaruga!
+
+
+2.^o POETA
+
+Deixa. (_batendo as palmas_) Lá vae:
+
+Cambrayas, sedas, matizes;
+Vermelhas capas bem fartas
+Forradas de pelles martas;
+Bons vestidos de paizes;
+Filós, rendas, pertiguizes;
+Sécias tudo, e a toda a hora;
+Sempre em visitas por fóra;
+Conhecendo toda a gente:
+Eis-aqui, succintamente,
+«Essas peraltas de agora;»
+
+
+1.^o POETA (_interrompendo_)
+
+Bravo!
+
+
+D. FELICIA (_applaudindo_)
+
+Bravo! Bravo!
+
+
+BOCAGE (_de parte ao 1.^o poeta_)
+
+Não é glosa: é rol da roupa!
+
+
+2.^o POETA (_continuando_)
+
+No dia cinco e seis vezes
+Correm, sem que isto as affronte,
+Dos perfumes do _Le-Conte_
+Ás lojas dos genovezes;
+Não faltam nos entremezes;
+De casa, nem um vintem;
+Trazem fiado o que tem
+E na roca não põem mão:
+Ou é milagre, ou então
+«Eu não sei d'onde lhes vem!»
+
+
+D. FELICIA (_debruçando-se encantada e applaudindo_)
+
+Bravo!... Lindo!... Bravissimo... Uma suspensão!... uma suspensão!
+
+(_Alguns applausos nos quaes se distingue Mestre Amancio_.)
+
+
+2.^o POETA (_a Bocage rindo_)
+
+Que tal?
+
+
+BOCAGE
+
+Um trocadilho de Luiz de Gongora!
+
+
+COMPADRE AMANCIO (_como consultando Compadre Theotonio_)
+
+Então?
+
+
+COMPADRE THEOTONIO (_cheirando_)
+
+Percebeu, compadre?
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Isso é seca, homem! Se percebesse, porque havia de applaudir?
+
+
+VOZES (_no povo, que, olhando á E., se afasta como para dar logar_)
+
+Olha! Olha! É o volantim do nosso Marquez.
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+O volantim do Marquez... De qual Marquez?... (_olhando_) Ai! é o do sr.
+Marquez de Marialva! (_o volantim, passa, e dirige-se rapidamente á casa
+da D., que dobra_.) Lá vae... Como elle vae!... (_a onda do povo
+dirige-se para aquelle lado, como para observar_. _Compadre Amancio
+precede-a_.) Aonde irá? (_Olhando para fora_. _Attonito_.) A casa do
+mercador Manuel Simões!... Vae... Entrou... (_Voltando ao Compadre_.)
+Compadre Theotonio, compadre. Grande novidade!... Querem ver que o
+Marquez vem a casa do Manuel Simões!... (_observando_) Vem... Lá estão
+já os caixeiros com as tochas á porta, e o patrão no patim!
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Nós que temos com isso?
+
+
+SCENA XV
+
+
+OS DITOS _e_ MORGADO (_que se aproxima procurando o Commendador_)
+
+
+2.^o POETA
+
+É feliz este Manuel Simões! Compadre do Marquez de Marialva!... e já o
+foi do outro... Por isso lhe chove a freguezia, que está podre de
+rico... (_a Compadre Theotonio_.)
+
+
+COMPADRE THEOTONIO (_a Compadre Amancio_)
+
+O Marquez de Pombal é que era o nosso!
+
+
+COMPADRE AMANCIO (_baixo e vivamente_)
+
+Cale-se! Quer que nos mettam na inquisição?
+
+
+1.^o POETA (_ao segundo_)
+
+Não ha nada como negociar!
+
+
+2.^o POETA
+
+O mau da poesia é não se medir aos covados.
+
+
+BOCAGE
+
+Estás enganado. N'esse ponto a poesia é como as fazendas da loja.
+Medidos se querem tambem os versos... e quem peior os mede mais lucro
+tira.
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Ahi vem o sr. Marquez de Marialva... ahi vem... Traz comsigo o Almeirão
+e o Gaeta. Olhe, compadre, o Gaeta, que em mettendo o rojão, deita
+sempre abaixo o toiro!
+
+
+COMPADRE THEOTONIO
+
+Cá por mim... o Fava-Secca!
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Deixou a sege na travessa, para não atropellar ninguem... Elle sempre é
+bom de lei!... Viva o nosso Marquez, que é pae do povo!
+
+(_Entra o Marquez, 3.^o Poeta, o Gaeta, o Almeirão, sequito de picadores
+e escudeiros_.)
+
+
+VOZES
+
+Viva!
+
+
+SCENA XVI
+
+
+OS DITOS, _o_ MARQUEZ, 3.^o POETA _e sequito_
+
+
+MARQUEZ
+
+Obrigado! Obrigado! (_a um dos picadores_) Toma cuidado, Gaeta. O teu
+cardão tem um gavarro no pé esquerdo. Sente-se do casco ao bater na
+calçada. Está em principio ainda, mas se lhe não acodes, vae-se-te o
+animal, e é pena! (_aos poetas_) Então, tem-se poetado muito?...
+(_Olhando para as senhoras, que lhe fazem mesura_.) Com taes musas,
+muito e bem decerto (_a outro picador_). Almeirão, anda-me com tento no
+tordilho. É um cavallo fino, mas tem pouca escola ainda. Tira pela mão,
+e não ganhou união nos movimentos. Para praça não está capaz. (_olhando
+de novo para as janellas_) Oh! lá vejo a Morgada da Torre da Palma, e
+mais a sobrinha que veiu de França. (_Cumprimenta-as_. _Aos poetas_) É
+formosa, e dizem que não menos discreta... (_a Bocage_) Oh!... Manuel
+Maria... Está em Lisboa com licença, sabia já... D'esta vez ainda não
+foi ver-me a Belem.
+
+
+BOCAGE
+
+V. Ex.^a estava em Salvaterra.
+
+
+MARQUEZ
+
+Cheguei esta tarde, é verdade. Quero-o lá um dia cedo... Aqui lhes trago
+reforço. (_indicando o 3.^o poeta_) Foi esperar-me ao desembarque!
+
+
+2.^o POETA
+
+Tardava-nos o nosso pastor Albano!
+
+
+MARQUEZ
+
+Ahi está já o meu compadre Manuel Simões. Hãode me dar licença.--Manuel
+Maria, espero ter o gosto de ouvil-o hoje. (_Sae com o sequito para o F.
+acompanhado do grupo dos poetas_.--_As senhoras das janellas do mercador
+desapparecem momentaneamente_.)
+
+
+SCENA XVIII
+
+
+OS DITOS _menos_ MARQUEZ _e sequito_
+
+
+VOZES
+
+Viva o nosso Marquez! Viva!
+
+
+MORGADO (_de parte ao Commendador_)
+
+Verá agora a camisa de onze varas em que eu metti o poeta!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Quem! o sr. Morgado? Hade permittir que duvide.
+
+
+MORGADO (_impondo-lhe silencio_)
+
+Pschiu!--Verá!
+
+(_O grupo dos poetas volta alvoroçado_.)
+
+
+3.^o POETA (_para as janellas_)
+
+Mote, minhas senhoras.--Venha mote!
+
+
+A PALMILHADEIRA (_no 2.^o andar_)
+
+Sr. Bocage, sr. Bocage!
+
+
+BOCAGE (_levantando a cabeça_)
+
+Quem me honra?
+
+
+PALMILHADEIRA
+
+«O meu amor foi para a India!»
+
+
+1.^o POETA
+
+India!--Mais parece peça que mote!
+
+
+MORGADO (_ao Commendador esfregando as mãos_)
+
+Olhe como ficou embuchado!
+
+
+BOCAGE (_comsigo, surprehendendo-lhe o movimento_)
+
+Já vejo d'onde vem a chufa. (_aos poetas_) Será peça, mas se é, tenho
+pena de quem a quiz pregar. Seja quem for, é ainda mais asno que
+tratante.
+
+
+3.^o POETA
+
+A rima é difficil.
+
+
+BOCAGE (_desdenhosamente_)
+
+Difficil! Com dois verbos que remedeiam.--Guindar, findar; guinde-a
+finde-a. (_fitando o grupo do Morgado e do Commendador_) Nem sabem
+inventar difficuldades! (_Dá-lhes as costas e passa adiante_.)
+
+
+PALMILHADEIRA
+
+Sr. Bocage: «O meu amor foi para a India.»
+
+
+BOCAGE (_voltando a cabeça_)
+
+Sim? Pois quando vier... dê-lhe muitas saudades. (_Segue_.)
+
+(_Riso_. _Applauso_.)
+
+
+COMMENDADOR (_ao Morgado_)
+
+Não lhe dizia eu?
+
+(_As senhoras voltam ás janellas do mercador_.)
+
+
+3.^o POETA
+
+Mote, minhas senhoras... Mote.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+«Ás ondas se lançou Ero formosa!»
+
+(_Bocage aproxima-se; o 3.^o poeta fica meditando momentos_.)
+
+
+2.^o POETA
+
+O mote é conceituoso.
+
+
+BOCAGE
+
+É. Dá um banho de mar á formosura!
+
+
+3.^o POETA (_batendo as palmas_)
+
+«Ás ondas se lançou Ero formosa!»
+
+Cançada de esperar o terno amante,
+Ero infeliz ao ceu se pranteava,
+E como que o futuro adivinhava,
+Aqui e alli corria delirante;
+
+Da aurora em tanto a face radiante,
+Nos mares pouco a pouco se espelhava,
+E á frouxa luz ao longe se avistava
+Sobre ellas um cadaver fluctuante:
+
+A triste vacilava suspirando
+Nos braços da incerteza suspeitosa,
+Até que emfim se vae desenganando:
+
+Então, desesperada e lacrimosa,
+Do caro esposo os manes invocando.
+«Ás ondas se lançou Ero formosa!»
+
+(_Alguns applausos_.)
+
+
+2.^o POETA
+
+Bravo, Albano!... Descriptivo e sonoro!
+
+
+1.^o POETA (_a Bocage_)
+
+Correcto, não?
+
+
+BOCAGE
+
+Correcto, mas frio. Não admira. Uma paixão que vae por agua abaixo!
+
+
+2.^o POETA
+
+Mote. Venha mote.
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+«Os roubos que me fez a má ventura!»
+
+
+BOCAGE (_vivamente aos poetas_)
+
+Este para mim. (_repetindo immediatamente_)
+
+«Os roubos que me fez a má ventura!»
+
+Eu deliro, Gertruria, eu desespero
+No inferno de incertezas e temores,
+Eu da morte as angustias e os terrores
+Por ti mil vezes sem morrer tolero!
+
+Pelo céo, por teus olhos te assevero
+Que ferve esta alma em candidos amores:
+Longe a riqueza, e os seus vãos favores,
+Quero o teu coração, mais nada quero.
+
+
+VOZES (_diversas_)
+
+Bravo! Bravo!
+
+
+BOCAGE (_continuando arrebatado_)
+
+Ah! não sejas tambem qual é commigo
+A cega divindade, a sorte dura,
+A varia deusa, que me nega abrigo!
+
+Tudo perdi; mas valha-me a ternura;
+Amor me valha, e pague-me comtigo
+«Os roubos que me fez a má ventura!»
+
+(_Grande explosão de applausos_.)
+
+
+2.^o E 3.^o POETAS
+
+Bravo! bravo, Bocage.
+
+
+1.^o POETA
+
+Inimitavel!
+
+
+3.^o POETA
+
+Uma copia!
+
+
+DIFFERENTES VOZES (_em torno de Bocage_)
+
+Uma copia! uma copia.
+
+
+COMMENDADOR (_junto a Compadre Amancio_)
+
+Gertruria! Gertrudes!--Dava uma moeda de oiro só por uma copia d'este
+soneto.
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Uma moeda!... É devéras?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Devéras.
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Aonde lh'a heide levar? (_Commendador diz-lh'o ao ouvido_.--_Misturam-se
+os grupos, continuando todos a felicitar Bocage_.)
+
+
+MORGADO (_ao Commendador_)
+
+Quer dar uma moeda de ouro por uma copia d'aquillo! Para quê?
+
+
+COMMENDADOR
+
+O sr. Morgado tem os seus segredos... Eu tenho os meus!
+
+
+1.^o POETA (_a Bocage_)
+
+Está aqui um amigo que nos convida a todos para o Izidro á meia noite.
+
+
+BOCAGE (_rindo_)
+
+Vem a proposito a ceia... para servir de jantar!
+
+(_Ouvem-se á E. os clarins e tambores dos pretos, que logo se afastam_.)
+
+
+VOZES
+
+As charamellas! As charamellas!
+
+(_Corre tudo á E._--_N'este movimento Bocage fica um pouco isolado_.
+_Compadre Amancio aproveita a occasião e aproxima-se-lhe_.)
+
+
+COMPADRE AMANCIO (_tomando-o de parte_)
+
+Sr. Bocage!
+
+
+BOCAGE (_satisfeito do triumpho_)
+
+Tambem por cá, mestre?
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Venho aqui pedir-lhe um favor, que é quasi uma esmola... O sr. Bocage
+bem me podia remediar a minha necessidade!
+
+
+BOCAGE
+
+Diga, mestre!
+
+
+COMPADRE AMANCIO
+
+Um ginja quer copia d'aquelles versos que recitou ainda agora, e dá por
+ella uma moeda d'ouro... (_instando_) Podiamos repartir ao meio...
+
+
+BOCAGE (_atalhando_)
+
+Fique-se ahi, ou estraga o negocio.--Ámanhã lhe dou a copia... se me
+lembrar ainda. E guarde para si o que lhe offereceram. O sr. mestre póde
+vender barbas e sonetos, se quizer... (_Compadre Amancio desfaz-se em
+agradecimentos_.) A lyra de Bocage ninguem a paga!
+
+(_Repiques, foguetes ao longe_. _Afflue o povo_. _Está a festa no auge
+da animação_.)
+
+
+OS POETAS
+
+Mote, mote... Minhas senhoras, venha mote!
+
+(_Cae o panno_)
+
+
+FIM DO SEGUNDO ACTO
+
+
+
+
+ACTO III
+
+*Em janeiro de 1786*
+
+
+Sala em casa de Manuel Simões. Mobilia dos meiados do seculo
+XVIII.--Porta ao _F._--Á _D._, no 1.^o plano, porta do escriptorio; no
+2.^o plano, porta que leva ao interior da casa.--Á _E._ janellas de
+sacada.
+
+
+SCENA I
+
+
+D. FELICIA, D. MARIA JOANNA _e_ MARIA GERTRUDES
+
+(_em trajo de passeio_)
+
+
+D. FELICIA (_a D. Maria Joanna_)
+
+Pois muito bem, sobrinha. Truxe já o meu escudeiro de
+proposito.--Aproveito a occasião para ir á festa de S. Domingos. Préga
+hoje o Padre Mestre fr. Joaquim do Rosario... Sabe? o Padre Mestre fr.
+Joaquim, que vae ás nossas assembléas, e canta á viola franceza «_De
+saudades morrerei_,» com tantos requebros, que é mesmo uma suspensão?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Sei. Póde ir descançada á sua festa.--Provavelmente preciso demorar-me
+com o sr. Manuel Simões, visto que em resulado de conselho seu lhe
+entreguei por uns mezes, como precisava, a administração da minha casa.
+
+
+D. FELICIA
+
+Não se arrependa. Honrado até alli. Depois que elle me administra... por
+obsequio, já se vê... é outra coisa. A minha pena é não lhe ter pedido
+ha mais tempo. Sermões não faltam, é verdade... o dinheiro espremido,
+que nem que fosse d'elle... mas prompto sempre, e incapaz de arredar um
+fio!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Acredito.--Tinha necessidade de descanço. Passei o verão no campo, e
+nada examinei ainda... Parece-me que é tempo.--Já lhe mandou recado?
+
+
+D. FELICIA
+
+Está lá em baixo nos armazens. Não tarda.--E foi só por isso que
+veiu?... Ai! sobrinha! não faz idéa que mal me sinto dos meus hystericos
+vendo tratar com tanto afinco d'essas coisas uma pessoa da sua edade, e
+no seu caso... com tantos vinculos... com...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Por isso mesmo!
+
+
+D. FELICIA
+
+Emfim, a sobrinha gosta de se entreter em negocios!... Cá por mim...
+_abrenuntio_!... Negocios, deixo-os a quem toca. Não são para senhoras
+da nossa jerarchia!... (_movimento de D. Maria Joanna_) Não digo nada,
+não digo nada... A sobrinha é senhora das sua acções.--É uma conferencia
+então? E hade ser longa!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não se apresse, minha tia. Tem tempo para tudo, já vê.
+
+
+D. FELICIA
+
+Deixo-lhe a afilhada para a acompanhar. Venho logo buscal-a, e de
+caminho darei tambem duas palavras ao sr. Manuel Simões.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_sorrindo-se e ameigando-a_)
+
+E dizia que era inimiga de negocios!
+
+
+D. FELICIA
+
+Jesus! Deus me defenda!... Ai! eu, são duas palavras só. Até logo.
+(_para sair, e voltando á afilhada_.) È verdade, Maria Gertrudes.
+Trazes-me ahi a minha agua da Rainha d'Hungria?
+
+
+MARIA GERTRUDES (_dando-lhe um pequeno frasco_)
+
+Aqui está, madrinha!
+
+
+D. FELICIA (_recebendo-o, cheirando-o, e depois arrecadando-o_)
+
+Não posso andar sem isto... por causa dos hystericos... Até logo,
+sobrinha.
+
+
+SCENA II
+
+
+D. MARIA JOANNA _e_ MARIA GERTRUDES
+
+
+D. MARIA JOANNA (_voltando, e olhando meio impaciente para as portas da
+D._)
+
+Demora-se!... (_pausa_.) Está triste, Maria?
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Eu, minha senhora! Triste! Porque?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não tem razão, decerto. Minha tia não a póde trazer mais estimada, e
+merece-lh'o.
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+A minha rica madrinha! Não sei como lhe hei de agradecer a creação que
+me deu... e o muito que me quer!...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Querendo lhe tambem, como faz.--Vamos, d'ahi não procede o mal. Do que
+de ordinario mais inquieta na sua edade menos ainda.--Se não me engano,
+está em Lisboa um certo cadete... já poeta de fama... cada dia de maior
+fama, que... É certo?
+
+
+MARIA GERTRUDES (_atalhando, envergonhada_)
+
+Oh! minha senhora!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Então que tem? Uma inclinação não está mal... Em se não faltando ao
+recato!... E elle mostra-se respeitoso, que é sempre bom indicio...
+Todos os casamentos por ahi principiam, e estou que não quer
+professar.--Que lhe diz o coração?
+
+
+MARIA GERTRUDES (_olhando receiosa em redor_)
+
+Nunca fallei n'isto, nem a minha madrinha!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Pudéra! Fallo-lhe eu, porque tambem lhe sou afeiçoada. Provavelmente não
+se entendia tão bem com minha tia.
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+O coração... Nem, eu sei.--O sr. Bocage diz-me coisas como ninguem...
+(_inadvertidamente_) mas o outro...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ah!... Ah! temos outro!...
+
+
+MARIA GERTRUDES (_toda balbuciante_)
+
+Eu disse outro? (_animando-se_.) Disse. Disse, porque é verdade...
+(_acudindo_.) A culpa não é minha!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Está visto. Pois nós temos culpa nunca d'essas... complicações!--E o
+outro?
+
+
+MARIA GERTRUDES (_quasi chorando_)
+
+Foi um ingrato! Não posso, não devo mais lembrar-me d'elle...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Então d'ahi estamos desenganadas. Naturalmente fica preferido o poeta.
+
+
+MARIA GERTRUDES (_hesitando_)
+
+Ai! agora fica... (_mais decidida_.) Fica... mas...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Mas?... Suspeito d'esse _mas_.
+
+
+MARIA GERTRUDES (_meio impaciente_)
+
+Tomára quem me ensinasse como se conhece um amor verdadeiro. (_achando
+uma idéa_.) Ah!... A sr.^a D. Maria Joanna hade saber... É viuva,
+sabe... Diz-m'o?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Eu!... (_enleiada_.) Devia saber, devia... mas... (_comsigo_.) Aqui
+estou eu tambem a cair nos _mas_...
+
+
+MANUEL SIMÕES (_dentro_)
+
+Ainda agora m'o dizem!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_comsigo_)
+
+Vem muito a proposito o sr. Manuel Simões.
+
+
+SCENA III
+
+
+AS DITAS, MANUEL SIMÕES (_da porta, 2.^o plano, á D._)
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Que vergonha!... que vergonha para esta casa!...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Que é isso, sr. Manuel Simões?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Fazerem esperar tanto tempo s. s.^a!... N'este instante me deram o
+recado, aquelles brutos... Que hade dizer?... Hade dizer que nem sei
+tratar com pessoas de condição, eu, Manuel Simões, que toda a minha
+vida... com bem o digamos... fui favorecido da grandeza!... eu, um
+compadre de dois marquezes!... (_corrigindo-se_) De dois... de um, que o
+outro...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O outro já lá vae.--Não se afflija com isso. Esperei, mas não me
+enfastiei. E bem era que esperasse, que o negocio é meu...
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Negocios!--É verdade... a sr.^a morgada? Em seu nome me levaram o
+recado.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Vim com ella. Foi á festa a S. Domingos. Volta logo.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_admirado_)
+
+Negocios! V. S.^a! Commigo!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Pois não me tomou a administração?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Por pouco tempo, disse-lh'o logo... Estou já tão sobrecarregado!...
+Depois, estas administrações... afastam-me do meu giro.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Justamente. Ahi verá se precisamos fallar. Para não o incommodar mais, e
+tomar a direcção da casa, preciso examinar, preciso esclarecer-me... e
+agora ninguem melhor do que o sr. Manuel Simões.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_attonito_)
+
+Ah!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Admira-se?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Admiro, porque não é o costume. Admiro, mas approvo. Quando quererá sua
+tia D. Felicia fazer o mesmo, ou pelo menos ouvir-me? Pois devia...
+devia, que se continua como vae, não sei como hade ser... Por mais que
+lhe peça, por mais que lhe diga, nada. Não quer saber senão de
+dinheiro... Como se o dinheiro se cavasse!... Quando lhe fallo em
+contas, dão-lhe os seus hystericos, e... acabou-se, não é possivel.--Os
+papeis estão todos em ordem no meu escriptorio (_indica a porta
+respectiva_). Não é casa costumada a donaires, mas se não a assusta...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_dirigindo-se á porta indicada_)
+
+Pois a que vim eu?
+
+
+MANUEL SIMÕES (_reparando em Maria Gertrudes e com certo affecto_)
+
+Ai! a menina Maria Gertrudes! Já aqui lhe mando minha irmã Monica para
+lhe fazer companhia.
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Não é preciso... Vou eu mesmo procural-a, se me dá licença.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_como acima_)
+
+Bem sabe que é de casa! (_encaminha-se ao escriptorio.--Como
+lembrando-se de repente_) Oh!... (_Novamente ás senhoras_) Permittem?
+(_indo á porta da D., 2.^o plano_) Levem lá para baixo essas peças de
+saragoça, que hão de ir ámanhã para Abrantes... e arêjem-me as baetas,
+não se esqueçam... (_voltando_) Isto, se eu não determinar tudo!...
+(_inclinando-se e esperando á porta do escriptorio que D. Maria Joanna
+passe_.--_Sae D. Maria Joanna e Manuel Simões_.)
+
+
+SCENA IV
+
+
+MARIA GERTRUDES, _pouco depois_ FRANCISCO
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Hade ser grande a demora e a espera. (_indo á janella_) Não são como as
+nossas estas ruas da baixa. É um borburinho de gente sempre! (_Chega-se
+á janella_.--_Entra Francisco do F. Vê-a e não póde reprimir um
+movimento de involuntario alvoroço_.)
+
+
+FRANCISCO
+
+Ah!
+
+
+MARIA GERTRUDES (_voltando vivamente, vendo-o_)
+
+Ah!
+
+
+FRANCISCO (_constrangido_)
+
+Desculpe... Não a esperava aqui... Já me retiro.
+
+
+MARIA GERTRUDES (_do mesmo modo_)
+
+Póde ter que fazer... Sou eu que vou procurar sua tia.
+
+(_Dão alguns passos; elle dirigindo-se ao F.; ella passando á
+D._--_Quando vão a affastar-se, param e voltam-se quasi
+simultaneamente_.)
+
+
+FRANCISCO (_com vivacidade_)
+
+Chamou?
+
+
+MARIA GERTRUDES (_de olhos no chão_)
+
+Chamou?
+
+
+FRANCISCO (_depois de pausa_)
+
+Nada.
+
+
+MARIA GERTRUDES (_idem_)
+
+Nada.
+
+
+FRANCISCO
+
+Adeus, menina Gertrudes!
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Adeus, sr. doutor.
+
+(_A ponto de retirar-se, ella pela D., 2.^o plano, elle pelo F.,
+Francisco torna atraz_)
+
+
+FRANCISCO
+
+Quer-me ouvir um instante?
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+O sr. doutor está em sua casa! (_de olhos baixos_.)
+
+
+FRANCISCO (_picado_)
+
+Ah! é só por isso? E porque me não chama Francisco como d'antes?
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Um doutor, já formado!--E porque me trata por menina? Não era o seu
+costume.
+
+
+FRANCISCO
+
+São preceitos do seu poeta?
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Receia que o vão dizer á sua apaixonada?
+
+
+FRANCISCO
+
+Uma apaixonada, eu!
+
+
+MARIA GERTRUDES (_com impeto_)
+
+Hade negar que teve o outro dia uma briga por causa da Esteireira que
+representa no Salitre?
+
+
+FRANCISCO
+
+Ia passando... É mulher... Insultavam-n'a... defendi-a.
+
+
+MARIA GERTRUDES (_com ressentida ironia_)
+
+Deu agora em defender todas as mulheres! até mulheres que representam no
+theatro!... E o que ella lhe está obrigada... E o que falla no
+senhor!... no sr. Doutor!... E o que...
+
+
+FRANCISCO
+
+Mas se lhe digo...
+
+
+MARIA GERTRUDES (_atalhando_)
+
+Não negue... sei tudo... Contou-me tudo a mulher de um torneiro, que tem
+o marido na cadêa, e vae lá ás vezes ás Portas da Cruz, fallar á
+madrinha para peditorios... (_elle quer atalhar; ella não o deixa_.)
+Conhece tambem a tal creatura, a mulher do torneiro... ouviu-lh'o mesmo
+da sua bocca... (_como acima_) Veja se é verdade, ou não!
+
+
+FRANCISCO (_desesperado_)
+
+Pois é verdade... será verdade... Porque não hei de estar apaixonado de
+uma comica, se a menina não vê senão o seu novo arrojado.
+
+
+MARIA GERTRUDES (_quasi chorando_)
+
+Ólhe? Confessa!
+
+
+FRANCISCO
+
+Nem se atreve a dizer que não!
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Depois do que me tinha promettido!
+
+
+FRANCISCO
+
+Depois do que me tinha protestado!--E eu que voltei ainda tão descançado
+para Coimbra, depois d'aquella vespera do Corpo de Deus o anno
+passado!... Estava entretido a responder a meu padrinho quando por alli
+andavam os poetas a versar... Nem dei por cousa nenhuma... Parti logo no
+dia seguinte de madrugada, e demorei-me depois até me doutorar... Andava
+cego... Mas apenas cheguei ultimamente a Lisboa, tive logo quem me
+abrisse os olhos.
+
+
+MARIA GERTRUDES (_vivamente_)
+
+Quem?
+
+
+FRANCISCO
+
+Quem? É verdade, já vê.--Quem? Uma pessoa de porte e de respeito... uma
+pessoa que não mente!... (_mostrando um papel_) Lembra-se do soneto que
+fez o Bocage ao mote que lhe deu n'essa noite? (_lendo_.)
+
+«Eu deliro, Gertruria, eu desespero.»
+
+Gertruria, Gertrudes! É evidente. (_lendo_)
+
+«Pelo ceu, por teus olhos te assevero
+Que ferve est'alma em candidos amores.»
+
+Ferve-lhe a alma em amores... Escreve-se isto!... Querem-n'o mais claro?
+
+
+MARIA GERTRUDES (_picada_)
+
+Porque me não hade o sr. Bocage fazer versos, se o sr. Doutor tem a sua
+apaixonada!
+
+
+FRANCISCO
+
+Outra vez a apaixonada! Sim? Não tem mais que me dizer? (_suffocado_)
+Pois eu estava morto por encontral-a em liberdade, para lhe declarar...
+que está tudo acabado...
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Isso esperava eu!...
+
+
+FRANCISCO (_continuando_)
+
+E para lhe jurar, por alma de quem Deus tem, que haja o que houver...
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Não jure, sr. Doutor, não se cance... Não é preciso... (_com dignidade_)
+Sua tia está lá dentro, não? Sou pobre, sou humilde, mas não obrigo
+ninguem. Faço-lhe a vontade. (_Sae_.)
+
+
+SCENA V
+
+
+FRANCISCO, _só_
+
+Viu-se nunca uma coisa assim! Ainda em cima! É ella que me faz a
+vontade!... (_passeiando agitado_.) Quem me havia de dizer?... Com
+aquelles modos innocentes... Ah! mulheres, mulheres! O que são as
+mulheres!... Que heide agora fazer? Queria-lhe mais que á vida, mas
+humilhar-me, não... Embarco... é o verdadeiro... Embarco... vou para
+longe. Tomára eu uma vida em que nem ouvisse fallar de mulheres... Meu
+pae não consente de certo... Ah!... Meu padrinho... Vou hoje mesmo
+fallar a meu padrinho para que me alcance...
+
+
+SCENA VI
+
+
+FRANCISCO _e_ MANUEL SIMÕES
+
+
+MANUEL SIMÕES (_á porta do escriptorio_)
+
+Falta a escriptura do arrendamento da Carvoíça. Tenho-a na carteira do
+armazem... Trago-a já.
+
+
+FRANCISCO (_correndo ao pae_)
+
+Meu pae, quer-me ouvir.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_complacente_)
+
+Ai! é o sr. doutor... Deixa-me que estou com pressa.
+
+
+FRANCISCO
+
+São duas palavras. Pensei melhor. Escusa de fallar á sr.^a D. Felicia...
+Não caso já com a afilhada.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_indignado e attonito_)
+
+Que é isto! Então assim se fazem e se desfazem essas coisas! «Dei-lhe
+palavra!... Já não caso!...» Assim zomba de seu pae, sr. Francisco
+Pedro!... Cuida que por ter o grau, já não sou quem sou?...
+Desembargador do paço que fosses, não consentia que me faltasses ao
+respeito... Já não casas!... Agora?... Depois de te formares, que era só
+o que faltava!... Tinha que ver!... Costumei me a considerar a pequena
+como filha!... E não sabes tambem que já dei uns longes á morgada?...
+(_Entra o commendador_.) Queres que passe por um catavento n'aquella
+casa, que por fim de contas é uma casa honrada!... Pensasses antes.--O
+dito, dito: casas... Queiras ou não queiras, has de casar!
+
+
+SCENA VII
+
+
+OS DITOS _e o_ COMMENDADOR
+
+
+COMMENDADOR (_intervindo a Manuel Simões_)
+
+Faça a vontade a seu filho. (_a Francisco_) Descance que não casa.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_furioso_)
+
+Quem diz que não casa?... (_vendo o commendador, e moderando-se_.) Ah! é
+o sr. commendador... Se fosse outro!... Isto são coisas de familia... V.
+s.^a não sabe...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Sei... e hade chegar-se á razão.
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Pois eu na minha casa, não posso...
+
+
+COMMENDADOR (_tomando-o de parte_.--_Francisco affasta-se_)
+
+O padre Ignacio deseja que se não faça este casamento.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_respeitosamente_)
+
+O padre Ignacio!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Bem sabe o que lhe deve, e o que deve aos padres da Companhia!... O
+irmão Simões não quer desobedecer decerto... e fazia mal se
+desobedecesse, que o nome acabou, mas o poder hoje revive!
+
+
+MANUEL SIMÕES (_fitando-o aterrado_)
+
+O sr. commendador tambem é?... (_o commendador faz-lhe signal de
+silencio: a meia voz_.) Os padres sabem que nunca desobedeço... Mas que
+interesse pódem ter...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Não é preciso que o saiba.
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+E quem me assegura...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Que o não engano? Veja este bilhete. (_dá-lh'o_.)
+
+
+MANUEL SIMÕES (_lendo_)
+
+«Faça quanto lhe disser o sr. commendador de Monsarás.--Padre Ignacio!»
+(_resignado_.) Não casará.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Agradeça a seu pae, que por minha intercessão lhe faz o gosto.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_comsigo_)
+
+Com esta gente nem pae se póde ser!...
+
+
+FRANCISCO (_humilde e tristemente_)
+
+Meu pae...
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Está bom, está bom... O sr. commendador deseja mais alguma coisa?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Tenho ainda que lhe fallar a respeito do negocio de um amigo meu, que
+hade aqui vir ter commigo.--Está occupado agora?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Estava ajustando umas contas, e confesso que muito desejo concluir.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Conclua, conclua. Não tenho pressa, e o meu amigo ainda não chegou.
+Esperarei, se m'o permitte.
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Está em sua casa. Dando-me licença, vou acabar. (_comsigo_.) E o tempo
+que já tenho perdido!... (_como occorrendo-lhe_.) Olha, Francisco... Vae
+lá abaixo ao armazem... abre a carteira... aqui tens a chave...
+(_dá-lha_) hasde achar ao canto da direita um masso pequeno, atado com
+um nastro encarnado. Manda-m'o aqui ao escriptorio, e a chave tambem...
+Pódem vir de roda para não incommodar o sr. commendador e o seu amigo,
+se já tiver chegado. (_Francisco sae_. _Para o commendador_.) Aproveito
+o obsequio, e abreviarei o que poder.
+
+
+SCENA VIII
+
+
+COMMENDADOR _só, pouco depois_ MORGADO
+
+
+COMMENDADOR (_saboreando uma pitada_)
+
+Bem diziam os escriptores da gentilidade: estavam fóra de si os deuses
+quando inventaram o homem, e mal recobraram o tino desataram a rir pondo
+os olhos na sua obra. Tudo n'elle é vão. _Vana mortalitas_, como lhe
+chamava Plinio, o Historiador. Movem-se por um fio... (_sentando-se_)
+Tudo está em saber-lho atar. (_Entra o morgado esboforido e derreado_.)
+Chega a proposito, morgado... ia-me tardando... Que é isso?... Teve
+alguma coisa?... Aposto que fez das suas... Não quer domar esse
+genio!...
+
+
+MORGADO (_lisongeàdo_)
+
+Não posso. Muitas vezes quero ter mão em mim... mas qual... todo eu sou
+fogo.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Deixe, deixe. «Casarás, amansarás!»--Foi briga, pendencia, rixa,
+desafio?... Pois nem pensando em sua prima, deixa descançar a espada!
+Quer ser como Lucio Licinio Dentato, que oito vezes em repto singular
+saiu vencedor á vista de dois exercitos?...
+
+
+MORGADO (_mais lisongeado_)
+
+Cada vez o vejo mais: o commendador é um amigo devéras... um amigo como
+ha poucos...
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo_)
+
+Ainda agora dá por isso!--Homem, é boa a fama de valente para captivar
+as damas, mas nem tanto que assuste. Brigou?
+
+
+MORGADO
+
+Nada. (_com fatua arrogancia_.) Não acho já quem queira.
+
+
+COMMENDADOR (_comsigo_)
+
+_Miles gloriosus_!
+
+
+MORGADO
+
+Quê?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Estou morto por saber o que teve... que o morgado não vinha no seu
+natural.
+
+
+MORGADO
+
+Que havia de ser?--Esta manhã, para matar o tempo, fui até á feira das
+cavalgaduras... alli pela banda do nascente do passeio... Bem sabe o meu
+fraco. Estava na barraca dos juizes, segundo o costume... Tudo
+entendedores de mão cheia... Não sei como se passou o tempo... o caso é
+que deram dez horas... Era a hora a que tinhamos ajustado o nosso
+encontro aqui... Despedi-me á pressa... instaram-me que ficasse... Se
+elles não pódem passar sem mim! Foi preciso dizer-lhes que tinha que
+fazer na baixa, e era tarde já... O Domingos Sanches... aquelle
+polvorista rico... Decerto conhece... (_gesto negativo do commendador_.)
+Ora, não conhece outra coisa!... O Domingos Sanches quiz por força que
+viesse no seu lasão... um lasão melado... bonito animal... mas de maus
+signaes... gazio dos olhos, e bebendo em branco... «Não és boa peça,
+não,» disse eu logo commigo... «esperem que vão ver o que é o morgado da
+Gesteira a cavallo!...» (_enthusiasmando-se_.) Estava tudo attento...
+Monto... como eu costumo montar... O cavallo, apenas me sente, começa a
+defender-se, e a negar-se... Eu aperto-lhe as esporas... Elle atira dois
+saltos encabritados... Eu cozo-me com a sella... Elle furta-me o
+corpo...
+
+
+COMMENDADOR (_depois de breve pausa_)
+
+E depois?
+
+
+MORGADO
+
+Depois... caí!
+
+
+COMMENDADOR (_erguendo-se, sem poder suster o riso_)
+
+Caiu?... Cuidei... Caiu!...
+
+
+MORGADO (_mais enthusiasmado_)
+
+Mas como eu cai!... com todos os preceitos... Ficou tudo pasmado!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Creio, creio... E o cavallo?
+
+
+MORGADO
+
+Fugiu.--Para não perder tempo, vim ás carreiras... Ahi tem a razão da
+demora.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Bem empregada foi, visto que lhe proporcionou triumpho
+similhante.--Tacito conta que Julio Cesar, o fundador do imperio, tambem
+caiu d'um cavallo... Provavelmente caiu assim.
+
+
+MORGADO
+
+Favores, favores.--E a respeito do meu negocio? Fallou já a Manuel
+Simões?
+
+
+COMMENDADOR
+
+A respeito do seu negocio ainda não. Está ajustando umas contas, não
+tarda. E primeiro temos nós que fallar, porque emfim... (_Sussurro na
+rua_.--_applicando o ouvido_.) Espere. Não ouve?
+
+
+MORGADO
+
+Oiço. Parecem gritos de agarra! (_Chegam ambos á janella do 2.^o plano,
+e debruçam-se para ver_.)
+
+
+SCENA IX
+
+
+OS DITOS, MANUEL SIMÕES, _e_ D. MARIA JOANNA (_á porta do escriptorio_)
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Enganou-se o Francisco. Não era aquelle o arrendamento... (_vae a
+avançar, e detem-se vendo os dois_) Ai! que já me não lembrava.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_rapidamente_)
+
+É o commendador Louzéllos, e o morgado da Gesteira?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+São.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Quizera esquivar-me ás suas importunidades.
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Não a viram. Póde esperar no escriptorio... O peior é que talvez tenha
+de me demorar um pouco. São horas de enfardar as fazendas, e...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Vá, vá... Não tenho pressa. Espero.
+
+
+MORGADO (_attento para fóra_)
+
+Vê o que é?
+
+
+COMMENDADOR
+
+São os rapazes a correr... Ah! agora... É um cavallo solto... e é
+lasão... Será o tal?
+
+
+MORGADO (_affirmando-se_)
+
+É, é!
+
+
+MANUEL SIMÕES (_rapidamente a Maria Joanna_)
+
+Se lhes não quer fallar...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_fechando a porta_)
+
+Até logo. (_fecha vivamente a porta_.)
+
+
+SCENA X
+
+
+OS DITOS, _menos_ D. MARIA JOANNA
+
+
+MORGADO
+
+E como elle se leva! Não o apanham, não.--Já se não vê.
+
+
+COMMENDADOR (_voltando tambem e rindo_)
+
+Em vez de vir o Morgado atraz do cavallo, veiu o cavallo atraz do
+Morgado. (_vendo Manuel Simões_) Ah! Sr. Manuel Simões! Acabou já as
+suas contas?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Ainda não. São horas de carregar as fazendas que hão de embarcar ao meio
+dia, e se eu não assisto... Não tendo v. s.^a coisa de maior urgencia...
+Na minha vida não se póde perder um instante!...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Já lhe disse que o não quero estorvar.--Sei o que é a lida de uma casa,
+no ponto a que chegou a sua... (_intencionalmente_) Vamos, que lhe não
+tem corrido mal... Passei ainda agora pela loja, e vi a azafama que por
+lá ia... Uma fileira de carros á porta, e um deitar abaixo de fazendas
+das prateleiras, que era um terramoto!
+
+
+MANUEL SIMÕES (_cobrindo o rosto com as mãos_)
+
+Um terramoto!... Jesus! Santo nome de Jesus, sr. Commendador! Pelo amor
+de Deus, não diga essa palavra diante de mim! Já lá vão trinta annos, e
+ainda me parece ver as torres da Sé a dançar!... E a minha casa!... E a
+minha pobre mulher, a primeira, que alli ficou!... E toda essa ira de
+Deus!... (_benzendo-se_) Em nome do Padre, do Filho, e do Espirito
+Santo!... Todo eu me arripio ainda.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Tem razão... não direi mais... Mas o que lá vae, lá vae! E dê graça a
+Deus (_intencionalmente_) pelas boas protecções que tem tido!
+
+
+MORGADO (_cumprimentando obsequiosamente_)
+
+Sr. Manuel Simões!
+
+
+MANUEL SIMÕES (_seccamente_)
+
+Viva, sr. Morgado! (_ao Commendador_) É o amigo que esperava?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Em pessoa.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_ao Commendador_)
+
+D'aqui a meia hora, o mais, estou ás suas ordens.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Não se apresse... Temos tempo.
+
+
+SCENA X
+
+
+MORGADO _e_ COMMENDADOR
+
+
+MORGADO
+
+Vê como elle me trata? Oh! que se não fosse...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Quando estiver de posse da casa de Carregueiros, faça-lhe o mesmo.
+
+
+MORGADO
+
+Oh! isso!... E ha-de ser quanto antes. Estou resolvido a acabar de vez
+com estas incertezas e duvidas de minha prima. Tenho o remedio na mão.
+
+
+COMMENDADOR (_com o seu sorriso_)
+
+Tem?... (_indo examinar a porta do F. e a da D., 2.^o plano, e depois
+voltando_.) Ninguem na casa de fóra, nem no corredor... Estamos sós e á
+vontade... Podemos conversar um pedaço.--Com quê... resolveu casar com
+sua prima quanto antes? Faz muito bem. Casar, e casar rico, era já
+conselho de Plauto. _Nubere in divitias_!
+
+
+MORGADO
+
+Faço muito bem? É devéras a sua opinião, Commendador?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Pois porque não há de ser?
+
+
+MORGADO
+
+Quer que lhe diga uma coisa?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Diga.
+
+
+MORGADO
+
+Andei muito tempo desconfiado... Loucuras minhas, agora vejo!... Uma
+pessoa prudente e de juizo, como o commendador?...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Diga sempre. De que andou desconfiado?
+
+
+MORGADO
+
+Tinha-me querido parecer que se inclinava a galantear tambem minha
+prima.
+
+
+COMMENDADOR (_tranquillamente_)
+
+Não se enganou.
+
+
+MORGADO (_sobresaltado_)
+
+Não me enganei?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Socegue. Passou-me isso pela cabeça na jornada em que a acompanhei de
+Paris... Mas reflecti depois.--Socegue. Já lá vae.--Escreveu-me um
+antigo conhecimento de Santa Clara.
+
+
+MORGADO (_malicioso_)
+
+Ah! chegaram-lhe lembranças dos doces e da grade!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Reflecti... dês que o encontrei.
+
+
+MORGADO (_lisongeado_)
+
+Dês que me encontrou?
+
+
+COMMENDADOR
+
+E principalmente quando o conheci a fundo. Cada vez tenho por mais
+seguro que ninguem convem tanto a sua prima... nem a mim.
+
+
+MORGADO (_admirado_)
+
+Nem ao Commendador?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Reflecti muito.--Sua prima está ainda no calor da mocidade, não lhe
+ficaram as melhores impressões do primeiro matrimonio, e ha-de querer
+indemnisar-se... O segundo marido leva grande responsabilidade e grandes
+trabalhos!... Eu, o que preciso é descanço... Mesa substancial, o meu
+copo do Porto velho, os meus livros... e uma boa sege á bolea. A doirada
+mediania, de que falla Horacio Flacco, o Venusino.--N'isto assentei... e
+veja como o tenho ajudado.
+
+
+MORGADO (_convencido_)
+
+Assim é, assim é. Realmente, não sei como lhe hei de pagar tantas
+obrigações!
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo_)
+
+Ah! isso não lhe dê cuidado.--O Bocage não o affronta já: está todo
+captivo da afilhada de D. Felicia... E a afilhada de D. Felicia... não
+lh'o prognostiquei?... deu já de mão ao filho do mercador. O tenente, de
+um momento para o outro... D'esse depois se tratará, sendo preciso.--Bem
+vê como lhe abro praça, e o deixo só em campo tornando-lhe facil a
+victoria. (_vae sentar-se á E._)
+
+
+MORGADO (_recuando com uma especie de terror_)
+
+E tudo por amizade!
+
+
+COMMENDADOR
+
+A amizade é o meu fraco. Chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que
+importa. (_O morgado senta-se-lhe ao pé_.) Manuel Simões não parece
+muito disposto a dar-lhe ao cincoenta moedas de que me disse precisava
+infallivelmente.
+
+
+MORGADO
+
+E preciso. Que faria eu diante de minha prima sem real?
+
+
+COMMENDADOR (_preparando a caixa para tomar uma pitada_)
+
+Mau era na verdade... Mas a Gésteira, que nunca chegou para muito, já
+não dá para mais... As vinte moedas, qne lhe arranjei o anno passado,
+foram-se n'um instante á banca, e ao loto de Génova... Manuel Simões
+sabe tudo isto perfeitamente, vê-o afogado n'um diluvio de hypothecas, e
+não é homem que deite o seu dinheiro pela janella fóra...
+(_offerecendo-lhe a caixa_) Toma?
+
+
+MORGADO (_erguendo-se consternado_)
+
+Mas então como ha de ser? Se me mandou vir aqui só para me dizer
+isso!...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Hade ter as cincoenta moedas; abono-o eu.
+
+
+MORGADO (_sentando se e abraçando-o_)
+
+Isto é que é um amigo.
+
+
+COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)
+
+Que rendimento terá a sr.^a D. Maria Joanna? Já averiguou?... Hade ter
+averiguado.
+
+
+MORGADO
+
+Só da casa de Val-Moreno, que recebeu pela mãe, anda por cinco mil
+cruzados.
+
+
+COMMENDADOR (_offerecendo-lhe tabaco_)
+
+Serve-se? (_Morgado tira machinalmente uma pitada_.) É isso.--Quanto aos
+vinculos de Fresnos e Carregueiros... que lhe tocaram por parte do pae,
+e que o pae tinha herdado de seu irmão o Capitão-mór, marido de D.
+Felicia, que morreu sem filhos... quanto aos vinculos de Fresnos e de
+Carregueiros, deve andar cada um para mais ainda... principalmente o de
+Carregueiros.
+
+
+MORGADO
+
+Não tem menos de quinze a dezeseis mil cruzados ao todo. Mas a que
+proposito...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Calculos necessarios. Vinte moedas em junho passado, cincoenta agora,
+fazem setenta... que o morgado vem a dever-me.
+
+
+MORGADO (_como protestando_)
+
+Devo, devo... Heide dever, e heide pagar... juro-lhe. Juro por... pela
+cruz da minha espada.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Se podesse jurar por outra coisa!
+
+
+MORGADO (_offendido_)
+
+Duvída?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Ha viver e morrer.--Homem, a commenda, bem sabe, apenas me chega para
+viver com decencia... e parcimonia.--Suetonio, e outros auctores, louvam
+a parcimonia como virtude; mas Terencio tem que a dureza da vida não é
+para gente adiantada... e eu sou da opinião de Terencio!--O morgado não
+ha-de querer que perca assim setenta moedas!
+
+
+MORGADO (_desconfiado_)
+
+Deseja alguma segurança?
+
+
+COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)
+
+Quasi nada. O morgado faz-me uma escriptura de divida de trinta mil
+cruzados!... e sou eu que lhe hei-de pôr a data!
+
+
+MORGADO (_erguendo-se de subito e exclamando furioso_)
+
+Trinta mil cruzados! Dois annos de rendimento da casa de minha prima!...
+
+
+COMMENDADOR (_tranquillamente_)
+
+Não grite.--Ólhe se estivesse ahi alguem perto?
+
+
+MORGADO (_contendo mais a indignação_)
+
+Trinta mil cruzados para pagar setenta moedas!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Quem lhe diz isso? Para deitar sege, e ter honradamente as commodidades
+que me faltam.--Oiça, e entre na razão. Desistindo de aspirar á mão de
+sua prima, renuncio áquella riqueza toda. Não tem valor isto? E faço
+mais; trabalho para desafogal-o de rivaes perigosos... perigosos,
+podemos dizel-o entre nós. Não merecerão estes serviços trinta mil
+cruzados? Contou bem. São dois annos do rendimento de sua prima. Póde
+pagar em quatro. Fica-lhe ainda metade. Veja quem lh'o fazia por
+menos.--Não recuse, ou ponho-lhe quarenta por condição.
+
+
+MORGADO
+
+Por condição?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Por condição. E hei-de obtel-a.--Ha condições de muitas especies. No
+codigo de Justiniano, e nos cincoenta livros dos Pandectas, que lhe
+servem de commentario...
+
+
+MORIGADO (_atalhando-o desesperado_)
+
+Quaes Pandectas nem qual Justiniano! Esse pinhal de auctores e de
+latins, é um pinhal da Azambuja. (_passeiando agitado_) Trinta mil
+cruzados!... Nada, não me deixo roubar... Tão tolo era eu que assinasse
+similhante escriptura!... Poem-me condições!... a mim!... Sempre quero
+vêr!...
+
+
+COMMENDADOR (_cruzando a perna tranquillamente e tirando um papel do
+bolso_)
+
+Hade ver.
+
+
+MORGADO
+
+Poem-me condições!... E d'essas!... É muito caro o seu auxilio,
+commendador. Dispenso-o. Tenho outro modo de convencer minha prima, mais
+seguro e mais barato.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Mais barato, duvido.
+
+
+MORGADO
+
+Verá.
+
+
+COMMENDADOR
+
+O seu famoso segredo?
+
+
+MORGADO
+
+Verá.
+
+
+COMMENDADOR (_socegadamente_)
+
+Pois então experimente. (_O morgado pára e fita-o_.) Vá dizer a sua
+prima: «Prima, tenho aqui uma declaração, que me entregou nos ultimos
+momentos a Simôa da Torre da Palma...» É provavel que a traga no
+bolso... (_O morgado leva vivamente a mão ao bolso, como para verificar
+se lá está o papel indicado_.) Traz, descance!...
+
+
+MORGADO (_mais tranquillo_)
+
+Conjecturas para pescar verdades... O ardil é velho.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Quer saber o que diz a declaração? (_desdobra o papel que tem na mão_.
+_Estão ambos attentissimos um para o outro_. _Descerra-se mansamente a
+porta do escriptorio, e D. Maria Joanna apparece alli, a rapidos
+intervallos, observando_.)
+
+
+SCENA XII
+
+
+OS DITOS _e_ D. MARIA JOANNA (_meia occulta_)
+
+
+COMMENDADOR (_lendo_)
+
+--«Por temor de Deus, e amor da verdade, eu Joaquina Simôa, familiar da
+casa da Torre da Palma, tendo presentimento de que me chegará breve a
+hora de dar contas, e não querendo condemnar a minha alma, declaro o
+seguinte, que n'esta hora confirmo com juramento aos Santos Evangelhos,
+em presença do reverendo padre cura de Vayamonte, e por sua exhortação e
+conselho...» (_O morgado, primeiro attonito, depois aterrado, tem tirado
+do bolso a outra declaração, como para comparar com o que ouve, e
+parecendo duvidar ainda_.) É exactamente isto?
+
+
+MORGADO
+
+Ou o commendador tem parte com Satanaz... ou é verdade o que dizem!
+
+
+COMMENDADOR (_negligentemente_)
+
+Então que dizem?
+
+
+MORGADO
+
+Dizem que é um jesuita... dos que não trazem roupeta.
+
+
+COMMENDADOR (_severamente_)
+
+Sr. morgado, não repita levianamente as maledicencias do vulgo, que se
+póde arrepender!--Quer verificar o resto da declaração? Conta n'ella a
+Simôa:--como estando já separada do marido a morgada da Torre da Palma,
+a filha della Simôa adoecéra;--como o capitão mór, em casa de quem a
+mesma Simôa nascêra e se criára, a reduzira a prometter-lhe que, se a
+creança morresse, lhe substituiria a filha d'elle e de D. Felicia, e
+faria passar por morta a herdeira, tudo isto para que os bens de
+Carregueiros passassem a varão;--como o escudeiro Luiz Manuel fôra
+mandado administrar uma herdade da casa ao pé de Olivença, até á morte
+do Capitão-mór, para que nem elle soubesse do segredo, de que a mulher
+ficava unica depositaria;--finalmente como a Simôa, levada das
+obrigações que devia á casa do Capitão-mór, tivera a fraqueza de ceder,
+e criára como sua a filha de D. Felicia, até que esta a mandou buscar já
+crescida cuidando ser a afilhada.--Está tudo claramente explicado, e
+devidamente datado e assignado.
+
+
+MORGADO (_subjugado_)
+
+Essa declaração passou das mãos da Simôa ás minhas... nunca a mostrei...
+nunca a larguei... Como é possível sem ser por artes sobrenaturaes...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Tem innocencias!--Dei uma volta a Vayamonte. O cura é... É meu amigo.
+Não me podia negar a minuta do papel que elle mesmo escrevêra.
+(_sentando-se de novo_) Como iamos dizendo... O morgado vae a sua
+prima... mostra-lhe esse documento, e diz-lhe: «a supposta afilhada de
+sua tia D. Felicia é sua prima direita, e herdeira da casa de seu tio
+Capitão-mór. Este papel e este segredo valem dois terços da sua riqueza.
+É a unica prova. Se quizer que tal prova desappareça, case commigo. Nada
+tenho de Adonis; sou um tanto nescio; fallador insoffrivel e farfante
+rematado.» (_Movimento do morgado_) É tudo isto, é, morgado... e mais
+alguma coisa. (_Como se proseguisse o discurso do morgado_.)
+«Mas,--continuará,--rasgando este papel é como se lhe trouxesse em dote
+os vinculos de Fresnos e de Carregueiros.» O argumento conclue. Entra na
+ordem d'aquelles a que Cicero chamava: _argumento premente_. Ora como o
+tenente Gonçalo Mendo não é ainda coisa certa, e como ninguem perde de
+vontade dez mil cruzados de renda, sua prima fecha os olhos,
+convence-se, e o morgado casa. Com isso conta, e faz bem em contar. Nada
+mais solido, mais engenhoso e brilhante. Que pena, se apparecesse esta
+minuta, e pela data se visse que o sr. morgado tem ha oito mezes em seu
+poder a declaração, sem a entregar!... Era deitar tudo a
+perder!--Verdade, verdade; não vale quarenta mil cruzados?
+
+
+MORGADO
+
+Quarenta agora!...Trinta!...Tinha dito trinta!...
+
+
+COMMENDADOR (_abrindo a caixa_)
+
+Tinha? Enganei-me. Quem se não engana? Lucio Floro, da nobre familia dos
+Anneanos, conta que um engano decidiu uma batalha, e Seneca chama-lhe
+_allucinatio_ para mostrar a perturbação mental que o determina
+(_voltando-se mesmo sentado, inclinando-se sobre a esquerda, como para
+evitar que a pitada que vae sorver lhe macule a tira_.) Foram quarenta,
+nem menos um real... E se hesita...
+
+
+MORGADO (_acudindo_)
+
+Não hesito... Assigno-lhe a escriptura.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_que se adiantára sem que os dois, absorvidos na
+conversação a presentissem, apresentando-se entre ambos com jovial
+placidez_)
+
+E eu sirvo de testemunha!
+
+
+COMMENDADOR (_erguendo-se sobresaltado_)
+
+A sr.^a D. Maria Joanna Galvão aqui!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_com o mesmo modo prazenteiro_)
+
+Porquê? Não sou interessada?
+
+
+MORGADO (_enleiado_)
+
+A prima, naturalmente, não sabe ainda...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_atalhando como transfigurada, com grave altivez o
+severa dignidade_)
+
+Sei... Sei que o sr. morgado da Gésteira me entrega immediatamente esse
+papel... e o sr. commendador esse tambem!
+
+
+SCENA XIII
+
+
+OS DITOS, BOCAGE _e_ GONÇALO MENDO, (_apparecendo ao F. e detendo-se a
+observar_)
+
+
+MORGADO
+
+Ha de perdoar, prima. Este papel foi-me confiado.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_como acima_)
+
+De que modo correspondeu á confiança?--Esse papel é o allivio d'uma
+saudade, a consolação de uma familia, a restituição d'um patrimonio...
+Esse papel é a consciencia e o dever. Tem direito de o conservar nas
+suas mãos?
+
+
+COMMENDADOR (_de parte ao morgado_)
+
+Não ceda. Se fica ella com a prova, fica o morgado sem o casamento!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_sem os perder de vista_)
+
+Sr. commendador, não se envileça mais... nem faça envilecer mais o sr.
+morgado! A cegueira de um homem, que já não vive, privou sua propria
+filha do nome e dos bens que lhe pertenciam... O temor da hora extrema
+corrigiu essa injustiça... (_crescendo em indignação_) Sobre este erro,
+que é para chorar, sobre este remorso, que devia ser sagrado, ajusta-se
+um pacto infame... (_Movimento dos dois_.) Infame, repito!... Um
+mercadeja a honra, outro a consciencia!... Um sacrifica a natureza,
+outro o decóro!... Isso tudo que é senão valor para traficar, fazenda
+para vender?... Que importa a filha desherdada? Que importa a mulher
+offendida? A mulher ha-de calar-se e consentir. É o seu interesse...
+Pensaram isso?... Pensaram, e nem lhes passou pelo rosto o pejo de o
+pensarem! É o mal das indoles corrompidas não admittirem sequer a
+existencia de corações sãos e inteiros, para quem a satisfação do dever
+seja a primeira riqueza! Fizeram-me o ultrage de me julgar por si. Não o
+podiam imaginar maior!--Sr. morgado, esse papel!... Sr. commendador,
+esse papel!
+
+
+MORGADO
+
+Se outra pessoa que não fosse a prima se atrevesse a dizer-me
+similhantes coisas!...
+
+(_Bocage quer adiantar se; Gonçalo detem-n'o_.)
+
+
+COMMENDADOR
+
+Estes papeis pertencem-n'os!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_mais exaltada_)
+
+É a minha tia que pertencem. Sou eu que lh'os quero entregar!... Sou eu
+que devo entregar-lh'os!... Não me obriguem a...
+
+
+GONÇALO (_adiantando-se e interpondo-se com respeitosa serenidade_)
+
+Perdôe, sr.^a D. Maria Joanna Galvão... Uma senhora da sua qualidade não
+póde entender-se com estes senhores.
+
+
+BOCAGE (_com ironia mal dissimulada_)
+
+Estes senhores vão pôr já nas suas mãos os papeis que lhes não
+pertencem.
+
+
+GONÇALO (_com terrivel frieza, crescendo contra o morgado, que recua na
+sua presença_)
+
+O sr. morgado não ha-de querer desattender sua prima!--O papel?
+
+
+BOCAGE (_do mesmo modo ao commendador_)
+
+O sr. commendador de certo não falta ao respeito a uma dama.--O papel?
+
+(_O Morgado e o Commendador, tranzidos e suffocados, entregam os papeis
+aos homens que teem diante_.)
+
+
+GONÇALO (_entregando reverentemente o papel a D. Maria Joanna_)
+
+Aqui está.
+
+
+BOCAGE (_idem_)
+
+Aqui está.
+
+
+SCENA XIV
+
+
+OS DITOS _e_ D. FELICIA, _entrando do F. pelo braço de_ MANUEL SIMÕES,
+_que vem sem chapeu_
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Isto é coisa que se creia! Obrigar-me a sair assim pela rua fóra, eu, um
+compadre dos dois marquezes!
+
+
+D. FELICIA
+
+Queria que entrasse pelos armazens, ou désse o braço ao escudeiro? Viu-o
+na loja... chamei-o para me acompanhar. Vinha com o meu hysterico, e já
+não podia...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_correndo a ella e atirando-se-lhe ao pescoço_)
+
+Minha tia! minha tia! Mal sabe...
+
+
+D. FELICIA
+
+Credo, sobrinha! Olhe que me desmancha o penteado. Isso são modos de uma
+senhora?--A afilhada não está na sua companhia?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Está lá dentro com a mana Monica.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_alvoroçada_)
+
+A sua... a minha... (_dando-lhe o braço do outro lado e levando-a
+comsigo_.) Venha, venha, que a espera uma grande alegria.
+
+
+D. FELICIA (_toda turbada_)
+
+Que dia de juizo é este!--Não me largue o braço que não estou boa, sr.
+Manuel Simões.
+
+(_Saem pela porta do 2.^o plano da D._--_D. Maria Joanna puxando por D.
+Felicia, D. Felicia puxando por Manuel Simões_.)
+
+
+SCENA XV
+
+
+BOCAGE, GONÇALO, COMMENDADOR _e_ MORGADO
+
+(_Pausa em que os quatro se medem reciprocamente_.)
+
+
+GONÇALO (_rindo, para Bocage_)
+
+Conhece alguma coisa mais horrenda do que o sr. morgado quando se faz
+amarello?
+
+
+BOCAGE
+
+Conheço: é o sr. commendador quando se faz verde.
+
+
+MORGADO
+
+Oh! que se eu me não contivesse... Mas contenho-me.
+
+
+COMMENDADOR (_com o seu sorriso_)
+
+Motejos sempre, sr. Bocage! Plinio, o moço, celebra como coisa de muito
+apreço a graça das palavras!
+
+
+BOCAGE (_a Gonçalo_)
+
+Está mais verde ainda... Foi a peçonha que se lhe derramou!
+
+
+MORGADO
+
+Oh! que se eu me não contivesse!...
+
+
+GONÇALO
+
+Já disse isso!
+
+
+BOCAGE
+
+Que lhe parece, sr. Gonçalo Mendo! Acabamos com esta raça damninha?
+(_indo á janella_.) A altura é soffrivel. Dêmos um exemplo.--Deitemos
+_isto_ á rua. (_indica os dois_.) Limpamos a cidade.
+
+(_Morgado recua aterrado_.)
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo mais_)
+
+Tem graça o sr. Bocage, tem muita graça!
+
+
+GONÇALO (_fitando o commendador_)
+
+É a praga de todos os tempos!... Deixe... Espera-os a publica justiça,
+que hade chegar... Em gente d'essa não põem mão homens de bem. As
+viboras esmagam-se com o pé! (_Indicando-lhes a porta, com um gesto a
+que os dois logo obedecem_.) Temos que fallar com o dono da casa!
+
+(_Cae o pano_)
+
+
+FIM DO TERCEIRO ACTO
+
+
+
+
+ACTO IV
+
+
+Em casa da morgada D. Felicia, ás Portas da Cruz.--Sala de visitas dando
+para outra.--Ao F. a porta que abre sobre esta.--Á E. a porta da
+ante-sala, fechada com reposteiro de pano azul, orlado de amarello, com
+as armas da casa ao meio.--Á D. duas portas. Para o F., á E. da porta de
+communicação com a outra sala, um bufete com tinteiro, etc.--_Trumeaux_,
+cadeiras o canapés; a mobilia branca e dourada de meias canas.
+
+
+SCENA I
+
+
+(_Ao levantar do panno, um grupo de homens á porta do F. como vendo e
+admirando o que se passa na outra sala.--Ouve-se n'esta uma rebeca
+terminando o minuete da côrte.--Apenas acaba, muitas palmas em que toma
+parte o grupo da porta. Logo depois entram os personagens da scena
+seguinte, e a sala toma o aspecto de uma reunião ou assembléa do
+tempo.--As damas vêem successivamente sentar-se na ordem adiante
+designada.--Os homens ficam pela maior parte em pé diversamente
+grupados_.)
+
+
+SCENA II
+
+
+D. FELICIA _pelo braço do_ COMMENDADOR; _successivamente_ D. MARIA
+JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MORGADO, GONÇALO MENDO, DAMAS _e_
+CAVALHEIROS CONVIDADOS
+
+
+D. FELICIA (_para fóra_)
+
+Não o faz melhor o proprio Dupré!... Admiravel!... Divino!... Uma
+suspensão!... (_ao commendador_.) Ninguem dança o minuete da côrte como
+o sr. Thomaz Xavier... Uma gravidade... um garbo!... Viu, aquelle
+rasgado das cortezias?
+
+
+COMMENDADOR
+
+E a sr.^a D. Angelica?... Uma magestade... um donaire!
+
+
+D. FELICIA.
+
+É o par mais completo!... (_procurando com os olhos em redor_.)
+Maria?... A minha filha?...
+
+
+MARIA GERTRUDES
+
+Estou aqui, minha mãe!
+
+
+D. FELICIA (_sentando-se_)
+
+Isso... Bem ao pé de mim, filha. (_ao commendador_) Não repare... Não me
+canço de repetir este nome de filha... Tinha-o quasi desaprendido!...
+Ainda o não creio... Ainda me parece tudo um sonho... Foi milagre, sr.
+commendador, não foi?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Com razão symbolisaram os doutos e discretos o maternal affecto na ave
+chamada pelicano, figurando-a o dar-se a morte para dar vida aos filhos.
+(_continúa como conversando_.)
+
+
+GONÇALO (_dando o braço a D. Maria Joanna_)
+
+Se sua tia soubesse com quem desafoga aquelles enlevos!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+E para que o ha de saber? Mais lhe vale ignorar sempre similhantes
+vilanias. (_sentando-se_.) Foi meu cumplice no cumprimento do dever.
+Seja-o no segredo d'essas iniquidades.--É dever tambem.
+
+
+GONÇALO
+
+A que não me obrigará com a perspectiva de tal
+cumplicidade?--Cumplice!... Mediu bem a palavra?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_graciosamente_)
+
+Medi. (_continuam conversando_.)
+
+(_Entra Francisco, como procurando alguem. Vê D. Maria Gertrudes, e vae
+tristemente encostar-se ao trumeau fronteiro_.)
+
+
+SCENA III
+
+
+OS DITOS _e_ FRANCISCO
+
+
+D. FELICIA (_beijando D. Maria_)
+
+A minha filha!... Bem parecia que me adivinhava o coração!... (_vendo
+Francisco_.) Sr. dr. Francisco Pedro, seu pae está na roda do
+_isque_?... Estas modas novas de Inglaterra fazem os homens bem pouco
+sociaveis!
+
+
+FRANCISCO (_com melancolica resignação_)
+
+Não, minha senhora... Não é homem de modas, meu pae.--Creio que o vi ao
+pé do padre procurador de S. Vicente.
+
+
+D. FELICIA
+
+Ai! se elle se fica a ouvir as historias que o sr. D. frei Caetano conta
+ás meninas, não sae de lá tão depressa... (_abanando-se_.) Porque não
+nos tem apparecido, sr. morgado da Gesteira?
+
+(_Acham-se todos dispostos como segue: D. Felicia n'um canapé á E.,
+tendo ao lado D. Maria Gertrudes em cadeira.--N'outro canapé, defronte,
+D. Maria Joanna, e Gonçalo Mendo proximo, em pé.--O Commendador, que
+passou á extremidade D., sentado conversando com uma dama. Junto d'este
+o morgado em pé.--Do mesmo lado, encostado ao trumeau, Francisco Pedro
+extatico para D. Maria Gertrudes, que não ousa levantar os olhos para
+elle_.)
+
+
+MORGADO
+
+Não tenho tido mãos a medir, sr.^a D. Felicia, não tenho tido mãos a
+medir... Fui passar quatro dias ao pé da Arrabida... Não me deixava um
+amigo, homem poderoso, que tenho para aquelles sitios... Tudo por causa
+d'uma caçada de javardos... Sem mim não se podia fazer... Fui eu que
+dispuz os emprazadores. Fui eu que dirigi os couteiros. Fui eu que fiz
+chapear os cavallos por causa dos estrépes, e metter-lhes as çapatilhas
+e peitoraes de matto como é indispensavel. Fui eu que determinei a
+_calcada_... Finalmente, bateram-se duas moitas, e trouxemos nem menos
+de seis rezes grandes, uma cerva, dois vareiros e trez javardos... Só eu
+á minha parte, a tiro e á faca, matei sete.
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo_)
+
+Trouxeram seis, e matou sete!
+
+
+MORGADO
+
+É verdade. Perdeu-se um bique enorme... Sumiu-se no brejo que não foi
+possivel achal-o.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Fez tudo o morgado. E os outros caçadores?
+
+
+MORGADO (_ao commendador_)
+
+Admiraram. (_a D. Felicia_) Antes de hontem passei a tarde n'uma
+academia de espada... (_ao commendador_) em casa de mestre Estevão da
+rua das Hortas... (_á companhia_) Ia lá um genovez de quem se diziam
+maravilhas. E com effeito é homem desembaraçado na arte. Tirou a melhor
+de quantos contenderam. Eu estava alli a vêr, e não queria assim sem
+mais nem menos entrar em assalto com um estrangeiro, que não sabe a
+gente quem é... Mas os amigos, que me tinham levado alli...
+provavelmente já de proposito... começam a dizer-me: «Sr. morgado, isto
+é uma vergonha para o reino!... Sr. morgado, só v. s.^a póde
+desaffrontar a nação!... Sr. morgado, isto são pontos d'honra!...»
+Atacaram-me pelo meu fraco... Não pude resistir... (_fazendo menção de
+despir_) Largo o josésinho... pego na espada... colloco-me no recto...
+Ao terceiro passe, o genovez tira-me de quarta a fundo... Paro de forte
+contra forte!... Faço um prendimento rapido... Estava desarmado o homem!
+(_Gonçalo sorri_.) Não é por me gabar: confessou elle mesmo que nunca
+vira pulso tão rijo, nem uma agilidade assim!
+
+
+GONÇALO (_com obsequiosidade ironica_)
+
+Estava em boas mãos... a honra nacional!
+
+
+MORGADO (_seccamente_)
+
+Favores! (_continuando_.) Hontem fui a uma corrida de pombos a Carnide.
+(_negligentemente_) Não enfiei senão cinco. Deram-me para correr um
+cavallo quasi serril... E era á gineta, que se fosse á brida!... Hoje
+estava convidado para jantar em casa d'um desembargador da Casa da
+Supplicação, meu amigo de tu. Chegou-lhe um cosinheiro de França, que
+faz na perfeição a sopa de natas e as tortas de espargos.--O meu amigo,
+sabendo como sou entendedor, fazia empenho no meu voto.--É tambem tarde
+de opera na Rua dos Condes. Representam uma coisa italiana que se
+chama... que se chama...
+
+
+COMMENDADOR
+
+_Il Mercato di Malmantile_... Uma opera nova.
+
+
+MORGADO
+
+Creio que sim. A estas primeiras representações nunca falto.
+
+
+D. FELICIA
+
+E não foi? Um peralta de quarto voto, como o sr. morgado!
+
+
+MORGADO
+
+Não fui... só para não faltar aqui logo no principio, e vir aos pés da
+sr.^a morgada!
+
+
+D. FELICIA
+
+Já vejo que me queixei sem razão. Uma pessoa como o sr. morgado nunca é
+senhora de si. (_ao commendador_.) E que tal é a opera?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Não são para mim similhantes futilidades. Em coisas de theatro só acho
+sabor aos gregos e romanos.--Sabia o titulo da opera nova, porque o vi
+na _Gazeta_ de terça feira. Aqui a trago eu. (_tira do bolso uma folha
+impressa, em papel pardo, em quarto pequeno_.)
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+A opera nova?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Não, minha senhora... a _Gazeta_. Já se sabe a razão por que o eleitor
+de Saxonia toma parte tão activa na liga germanica. Eu prophetisei-o
+sempre!
+
+
+D. FELICIA
+
+Não gosta do nosso theatro? Não tem razão. Queria que visse aquella peça
+intitulada... _As lagrimas da bellesa são as armas que mais vencem_...
+que se representou o anno passado no Bairro Alto... Faz chorar as
+pedras... E já não é o que era, aquella casa. Viu, sobrinha?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_que conversava com Gonçalo_)
+
+Não vi, minha tia.
+
+
+D. FELICIA
+
+Em França tambem ha theatros e peças bonitas? Se hade haver! Tem
+gracioso em todas, como cá? E magicas?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ha de tudo, e com abundancia.--Para mim nunca achei auctor que me
+deleitasse como um chamado Molière. Não é dos modernos, nem está agora
+em voga; mas escreveu comedias, que ainda não li outras de egual
+verdade... duas sobre tudo... o _Tartufo_... Não conhece o _Tartufo_ sr.
+commendador?
+
+
+COMMENDADOR (_um pouco turbado_)
+
+Não conheço senão os antigos... Terencio, Plauto, Aristóphanes...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Que pena! Pois é excellente comedia o _Tartufo_... E acho tambem um
+sainete particular ao _Importuno_... O sr. morgado da Gesteira devia dar
+uns annos de folga á monteria, ou á esgrima, ou á gastronomia, e
+aprender o francez... só para ler o _Importuno_!... Estou que havia de
+gostar.
+
+
+(D. FELICIA _que a ouvia admirada_)
+
+Vês, filha, que de coisas se sabem lá por fóra?
+
+
+MORGADO (_a D. Maria Joanna_)
+
+Os homens da minha condição não perdem o seu tempo com...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_atalhando ironicamente_)
+
+Com um insignificante como Molière. Acho-lhe razão.
+
+
+D. FELICIA
+
+Em operas, vi eu já o que se póde ver. Quem assistiu em Queluz á opera
+da Galathea!... Eram os annos do principe D. José, e estavam para se
+ajustar as pazes com a Hespanha... Quem assistiu a uma coisa
+d'aquellas...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ah! esteve no theatro da côrte?
+
+
+D. FELICIA (_hesitando um pouco_)
+
+Estive... alguma coisa de longe... Não era onde devia estar... mas
+estive... Alcancei entrada pelo sr. marquez de Marialva, que esse sabe
+dar estimação a quem a merece... Estive... Por signal fui achar entre as
+açafatas a mulher d'aquelle da alfandega... que se não sabe d'onde lhe
+veiu o dom... Não tem senão um criado d'almofada... e quando lhe vão
+visitas, chama pelo nome e sobrenome o criado de porta abaixo, que não
+ha outro na casa, para figurar de escudeiro... Estava lá, estava alli,
+ella, em quanto pessoas que sempre se trataram á lei da nobreza...
+Açafata aquillo!... Não foi senão por empenho do Estacio, o bobo do
+paço, algum dia que teve a fortuna de fazer rir Suas Magestades...
+Aquillo açafata!... Ai!... Ai!... Maria, filha... a agua de Melissa...
+depressa!...
+
+
+D. MARIA JOANNA E D. MARIA GERTRUDES (_erguendo-se como para
+socorrel-a_)
+
+Tem alguma coisa?
+
+
+D. FELICIA
+
+Não é nada... o meu hysterico!...
+
+
+D. MARIA JOANNA (_ameigando-a_)
+
+Passou?... Passou... (_voltando a sentar-se_.) E a Galathea?
+
+
+D. FELICIA
+
+Isso sim!--A Galathéa, de Metastario, com musica do Antonio da Silva...
+a orchestra dirigida pelo João Cordeiro... tudo professores da real
+capella!... Pois os cantores!... Vindos de Italia de proposito... o
+Romanini, o Violani... o Violani principalmente... Umas volatas... uns
+gorgeios... uma... uma suspensão!... Não espero tornar a ouvir cantar
+assim... E depois o baile d'Alberti!--E as pessoas reaes!... E toda
+aquella côrte... Não se via senão sedas, veludos e oiro!... E que
+tellas, que pinturas, que lustres!... Theatro aquelle! Opera aquillo!...
+o mais...
+
+
+SCENA IV
+
+
+(_Entra um escudeiro velho e dirige-se respeitosamente a D. Felicia_.)
+
+
+D. FELICIA
+
+Que quer, João Rodrigues? (_a D. Maria Gertrudes_)--São já sete horas?
+
+
+D. MARIA GERTRUDES (_distraida, e sem levantar os olhos_)
+
+São.--Hão de ser.
+
+
+D. FELICIA (_vivamente_)
+
+Que tens?... Triste agora!
+
+
+D. MARIA GERTRUDES (_constrangendo-se_)
+
+Triste, eu?--Nunca estive tão alegre!...
+
+(_O escudeiro diz algumas palavras em voz baixa a D. Felicia_.)
+
+
+D. FELICIA (_ao escudeiro_)
+
+Já sei, já sei. Ponha a banca e as urnas na outra sala. (_Levanta-se, e
+todos_. _Aos circumstantes_.) São horas do nosso chá. (_indo a uma das
+damas presentes_.) A menina Escolastica hade-nos cantar depois aquella
+modinha brazileira com primeiras e segundas... tão linda, tão linda...
+uma suspensão mesmo!... Aquella... Recorda-se?... (_achando_.) Ah! «_Os
+Melindres da Sinhá_!» Canta, riquinha, sim?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_a Gonçalo_)
+
+Se não estiver com a rouquidão do costume.
+
+
+GONÇALO
+
+Está decerto, em quanto não chegar o seu tudo.
+
+
+D FELICIA (_a outra_)
+
+A sr.^a D. Euphrasia das Neves faz a segunda e o sr. D. frei Caetano
+acompanha-as ao cravo... (_a uma dama_.) Alli onde o vê, o meu cravo foi
+o primeiro cravo de martellos que veiu a Lisboa... já depois da guerra
+de 62, creio... Mandou-o vir Sua Alteza o sr. conde de Lippe, que era
+grande tocador, e muito divertido, (_a Gonçalo Mendo_.) Lembra-se da
+guerra de 62?...
+
+
+GONÇALO
+
+Uma guerra que não passou do principio?
+
+
+D. FELICIA
+
+Desculpe... Não póde lembrar-se... Tive um primo nos reaes
+voluntarios... foi morrer á India. A proposito, o nosso cadete? O seu
+amigo Bocage demora-se... Estou vendo que nos falta hoje!... Logo hoje
+que não veiu outro, e estão cá tantas pessoas para o ouvir!...
+
+
+GONÇALO
+
+Não falta. (_em voz baixa_) Mas pelo amor de Deus, sr.^a morgada, não
+lhe diga isso...
+
+
+D. FELICIA
+
+Isso o quê?
+
+
+GONÇALO
+
+Que lhe faz falta por não ter outro. É capaz de se declarar mudo... se
+não fizer peior!
+
+
+D. FELICIA
+
+Sempre lhe digo que tem um tal genio, o cadetinho!
+
+
+GONÇALO
+
+Desculpe-o. Não é poeta como os outros.
+
+
+D. FELICIA
+
+Fazem-se sempre assim. Em ganhando fama!... (_como em confidencia ao
+commendador, que veiu dar-lhe o braço_) É a novidade, que eu cá para mim
+acho mais chiste ao padre Braz... e mesmo ao Caldas.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Pois tem dúvida!--Chamarem áquillo poeta!...
+
+
+D. FELICIA
+
+Ai! nem tanto!... (_Saem_.)
+
+(_Vão saindo todos_. _Fica em ultimo logar Gonçalo Mendo com D. Maria
+Joanna pelo braço_.)
+
+
+GONÇALO (_em quanto os outros saem_)
+
+Que me diz ás nossas assembléas? Francamente, lembra-se com pena do seu
+Paris?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Pensa que não há ridiculos tambem? Não tenho pena! Vaidades? Ólhe a
+lucta de Marmontel e do abbade Arnaud por causa de Gluck e do Orlando.
+Vicios? Ólhe o processo do cardeal de Rohan o anno passado, a prisão da
+condessa de la Mothe, e as negras machinações de Cagliostro!... Se visse
+o que de lá me escrevem!
+
+
+GONÇALO
+
+Devéras; não lhe dão saudades?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_gentilmente_)
+
+Cada vez menos.
+
+
+GONÇALO (_transportado_)
+
+Oh!... Quando poderei eu ter esperanças?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_como acima_)
+
+Não começou já?
+
+
+SCENA V
+
+
+OS DITOS, BOCAGE (_da E._)
+
+
+GONÇALO (_vendo Bocage_)
+
+Ah!... Ahi chega o nosso poeta. Permitte-me que lhe falle em quanto vão
+ao seu chá? (_conduzindo-a á porta da outra sala_.)
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Permitto que vá da minha parte agradecer-lhe.
+
+
+SCENA VI
+
+
+GONÇALO _e_ BOCAGE
+
+
+BOCAGE
+
+Pelo que vejo parece-me que lhe posso dar os parabens.--Pois dou, e de
+todo o coração. É mais do que formosa a sr.^a D. Maria Joanna... é mais
+do que discreta... é uma alma grande, d'essas que é fortuna encontrar.
+Como ella se despojou facilmente e alegremente da maior parte dos bens,
+que desde pequena tinha como seus!
+
+
+GONÇALO
+
+É o menos, isso. Era dever: bastava. Tem raras qualidades em tudo... por
+isso a adorava já de longe...
+
+
+BOCAGE
+
+Ah! confessa?
+
+
+GONÇALO
+
+Posso confessal-o... agora.
+
+
+BOCAGE
+
+Porque a adora... de perto. Foram então a proposito os parabens!
+
+
+GONÇALO
+
+Os parabens, ainda não.
+
+
+BOCAGE
+
+Mas não podem tardar.
+
+
+GONÇALO
+
+Mais caso de parabens é o seu. A transformação da menina da casa
+engrandece o objecto das suas predilecções. Em vez da humilde afilhada,
+pobre e dependente, acha uma boa familia e uma rica herdeira!
+
+
+BOCAGE (_despedidamente_)
+
+Por causa d'isso estive para não vir!
+
+
+GONÇALO
+
+Porquê? Não lhe tem já amor? Bem me dizia então...
+
+
+BOCAGE
+
+Dizia mal... O que lhe dizia não se entendia com esta!... Não lhe tenho
+já amor? Tenho. E bem devéras, e bem de dentro... De certo o primeiro da
+minha vida... e... quem sabe?... talvez o ultimo! Mas o que provocou
+este amor desappareceu. Foi-se o que lh'o fazia grato, o que m'o fazia
+generoso. Foi-se-lhe com a condição, foi-se-lhe com a orphandade.
+
+
+GONÇALO
+
+Se tem esse modo de encarar as coisas...
+
+
+BOCAGE
+
+Poucos me hão-de entender. Poucos me entendem com effeito. Mas
+entende-me o sr. Gonçalo Mendo... Sei já que entende.--Rica! Rica? E eu
+que lhe levo em troca?... Dirão que lhe procuro a riqueza!... Dirão que
+fiz do affecto um pretexto, do carinho um degrau, da paixão uma
+usura!... «A poesia áquelle serviu», repetirá contente por ahi a turba
+vilan dos malevolos e dos zoilos... Arrendou-a por contrato... poz a
+lyra a juros... vende mais caro o coração que as obras.»--Dirão isto,
+dirão... e Deus sabe o que mais... E o grande numero crê... e não poucos
+applaudem...--Vender-me, eu!... Eu, Bocage!... Vender o coração! vender
+a musa!... esta musa indomita e indomavel!... Oh! basta que o suspeitem!
+
+
+GONÇALO (_calorosamente_)
+
+Pois a taes considerações sacrifica a felicidade? Pois...
+
+
+BOCAGE
+
+A felicidade?... Seria... Aqui presinto que era... Mas o orgulho a
+sublevar-se-me de continuo!--Resistiria a felicidade a similhante
+procella?--Podia a donzellinha modesta ser a estrella pollar do poeta
+sem graus nem haveres... Podia em quanto era o infortunio... Deixou de
+ser a constellação melancholica das noites saudosas; fez-se o astro
+d'oiro dos dias refulgentes!... Era... era a felicidade no amor casto,
+no puro enlevo... Veiu a fatalidade, e levantou em seu logar o idolo das
+multidões.--Esse não póde ser o idolo de Bocage!
+
+
+GONÇALO
+
+Tudo exagera... tudo leva ao extremo. É de condição distincta. Casando
+com a herdeira, póde desafogadamente cultivar o talento, aproveitar o
+estro, e servir a patria... O que recebe em fortuna, paga-o em gloria!
+
+
+BOCAGE
+
+Bocage casar! Casar eu!... Curvar o collo a esse jugo!... roxear os
+pulsos com esses grilhões! Sujeitar-me a esse perenne captiveiro!...
+Eu!... Que mal me conhece!--É pouco para mim o ar e o espaço... Toda a
+idéa de sujeição me opprime como as grades de um carcere... Alexandre de
+Macedonia, no auge do poder, visitou em Corintho o philosopho que da
+miseria extrema fazia officio e gala.--«Pede sem receio. Que queres de
+mim?» disse o grande conquistador.--«Que te affastes d'ahi, para me não
+tirar o sol,» respondeu o festivo indigente. Tenho alguma coisa do
+espirito d'esse philosopho... Acima de todas as venturas ponho uma... a
+verdadeira, a maior, a superior, a unica... a minha independencia!
+
+
+GONÇALO (_severamente_)
+
+Que quer então fazer? Desvalida ou abastada, a menina da Torre da Palma
+é uma flor de candura.--Quer-lhe inutilisar sem fito os breves annos
+juvenis?... Quer-lhe immolar a mocidade?... A quê?... Ainda ha pouco
+estava ahi um pobre moço, penando por ella que fazia dó... penando uma
+paixão sincera e sem egoismo. Sabe quaes são os intentos d'esse mancebo?
+Deixar o lar e a patria... só para não vêl-a indifferente!...
+
+
+BOCAGE (_arrebatado_)
+
+Quem é?
+
+
+GONÇALO
+
+Conhece-o já... É o filho de Manuel Simões, que se doutorou
+ultimamente.--É um rapaz honrado... é rico tambem... e começa uma
+carreira estimada. Podia fazel-a feliz... e fazia de certo. Com que
+direito a priva se não póde compensal-a? Julgaria elle destino invejavel
+o que o sr. Bocage reputa insupportavel prisão!
+
+
+BOCAGE (_pensativo_)
+
+E ella?
+
+
+GONÇALO
+
+Ella, a pobre innocente, sabe lá!--Diga-me, o que quer fazer?
+
+
+BOCAGE (_pensativo_)
+
+Não sei. (_reparando para dentro_) É o morgado da Gesteira, e o
+commendador de Monsarás, que vejo na outra sala?
+
+
+GONÇALO
+
+São.
+
+
+BOCAGE
+
+Aqui? ambos!
+
+
+GONÇALO
+
+Ambos.--A sr.^a D. Maria Joanna deseja formalmente que se não falle do
+que se passou com elles em casa do mercador. E tem rasão. Impõe-lhe este
+dever a delicadeza. Não podemos publicar a parte vergonhosa, que tiveram
+no caso, sem dar occasião a divulgarem elles a fraqueza do
+capitão-mór.--Isso quer evitar a sr.^a D. Maria Joanna por attenção á
+memoria de seu tio. Calando nós, calam-se forçosamente os dois. Que
+estamos todos na resolução de nos calar, já o Commendador percebeu, e
+d'ahi tiram ambos a audacia.--Comprehende agora o nobre silencio da
+sr.^a D. Maria Joanna, e a presença do Commendador e do Morgado?
+
+
+BOCAGE
+
+Comprehendo o silencio: não comprehendo a impudencia. Esses homens não
+teem sentimentos!
+
+
+GONÇALO
+
+Se tivessem sentimentos não faziam o que fazem. Eil-os ahi.
+
+
+BOCAGE
+
+Vamo-n'os então, nós. Custa-me a conter.
+
+
+SCENA VII
+
+
+OS DITOS, COMMENDADOR _e_ MORGADO
+
+(_Gonçalo e Bocage vão a sair_. _Os dois veem entrando_.
+_Encontram-se_.)
+
+
+COMMENDADOR (_indo prazenteiramente a Bocage, e offerecendo-lhe a mão_)
+
+Oh! sr. Bocage! Como vae?
+
+
+BOCAGE (_sem lhe dar a mão, passando_)
+
+Vou para diante! (_Sae com Gonçalo para a outra sala_.)
+
+
+SCENA VIII
+
+
+COMMENDADOR _e o_ MORGADO
+
+
+COMMENDADOR (_tirando a caixa e encolhendo os hombros_)
+
+Mocidade imprudente!
+
+
+MORGADO
+
+Vê, commendador? Não temesse eu que fallassem, e saberiam...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Não fallam. Se o podessem fazer, já o tinham feito.
+
+
+MORGADO
+
+O que lhe invejo é o socego.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Claudiano diz: «O espirito do sabio é similhante ao cume do Olympo; fica
+tão superior aos ventos e ás nuvens, que nunca as tempestades o
+inquietam.»
+
+
+MORGADO
+
+Mas eu que não sou sabio... nem tenho pena... aqui estou agora...
+(_olhando em redor_) Ninguem nos ouve... Aqui estou agora sem dinheiro,
+sem casamento, e sem esperanças.
+
+
+COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)
+
+Sem esperanças!... Porquê?--Sua prima tem ainda a casa de Val-moreo.
+Cinco mil cruzados de renda, creio que me disse... Não é o mesmo,
+seguramente... um terço apenas do que era... mas nas suas circumstancias
+actuaes... Pela minha parte sou justo. (_olhando em redor, em voz
+baixa_) A escriptura de divida, não será já de trinta, será de dez mil
+cruzados. Dispenso a sege.
+
+
+MORGADO
+
+Pois teima ainda! Não se desenganou com o desastre do outro dia?
+
+
+COMMENDADOR
+
+O outro dia... veja o que tirou das suas duvidas e espalhafatos!
+Quintilliano tem por vergonha desesperar do possivel. Eu nunca me
+desengano em quanto vejo remedio.
+
+
+MORGADO
+
+Remedio! Mas que remedio? Não vê como o tenente anda todo derretido para
+minha prima? Não vê como ella o attende? E agora, de mais a mais, que
+está senhor de uma boa casa.
+
+
+COMMENDADOR
+
+Extranho-o. Pois é possivel imaginar que póde alguem competir com o
+Morgado?
+
+
+MORGADO
+
+Não digo isso...
+
+
+COMMENDADOR
+
+O tenente fica por minha conta. Tenho que lhe pagar uma divida... e ao
+Bocage tambem. Nós sabemos esperar... e nada esquecemos. Não ha inimigo
+peior do que o inimigo que espera e não se espera. _Inexpectatus
+hostis_, lhe chama Ovidio, Sulmonense.--Sua prima está já casada,
+porventura?
+
+
+MORGADO
+
+Mas aquelle ajuste que ella ouviu! a impressão que lhe ficou!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Empregue tambem pela sua parte algum esforço. Não sejam tudo vozes
+vãs.--Se estivesse no seu logar, d'isso mesmo faria um merecimento mais.
+Attribua-me toda a culpa. Indigne-se bem contra mim: não tem duvida.
+Diga-lhe que foi a desesperação, o amor, o desejo de alcançar a sua mão.
+As damas raramente deixam de se convencer d'isso. Affirme-lhe que vive
+no meio de um incendio... como a salamandra... Ainda que Gesnéro
+assevera que a cinza de salamandra é remedio soberano, e d'ahi se deva
+concluir que mal poderá viver no fogo o que se reduz a cinzas... Em fim
+pinte-lhe ao vivo as chammas em que se abraza... (_enfastiado_) Isso é
+com o Morgado, não é commigo.--Convem-lhe ou não lhe convem ainda o
+casamento?
+
+
+MORGADO
+
+Se convem! O que eu não sei é como se ha de agora estorvar o tenente!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Sei eu (_olhando para dentro_). Acabou o chá. Ahi vem todos outra vez.
+(_Vae ao F. dar o braço a D. Felicia para a conduzir para o seu logar_)
+
+
+SCENA IX
+
+
+OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, BOCAGE,
+GONÇALO, FRANCISCO _e_ CONVIDADOS
+
+
+D. FELICIA
+
+Que pena ter enrouquecido a menina Escholastica! Tambem, havia de ir
+logo sentar-se ao pé do corredor... Não foi senão o ar da porta com o
+calor do chá... (_á Dama_) Quer a sua pelicia, minha joia? (_gesto
+negativo_) Tomára que ouvissem!... Canta as modinhas brazileiras como
+ninguem... Tem uma graça n'aquelles tons menores!... É mesmo...
+
+
+COMMENDADOR (_atalhando_)
+
+Uma suspensão.--E é, na verdade, é.
+
+
+GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)
+
+Não lhe dizia eu? Faltou-lhe o seu _tudo_.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Faltando-lhe... tudo, como havia de ter voz!
+
+
+GONÇALO
+
+São os namorados mais extremosos! Ella, sangrou-se ha tempos. Elle, foi
+logo procurar o cirurgião, e deu-lhe cinco moedas pela lanceta!
+
+
+D. FELICIA
+
+Felizmente veio o sr. Bocage. Não imagina como estamos impacientes por
+ouvil-o. (_Sentam-se_. _Tomam todos os seus anteriores logares_.
+_Unicamente D. Maria Gertrudes passa á E. de sua mãe_. _Bocage fica em
+pé junto a D. Felicia na extremidade E. e o Commendador em pé ao lado do
+Morgado, defronte_.) Aqui é melhor, não? O padre procurador não acaba
+com as suas historias!...
+
+
+BOCAGE
+
+Pedi já desculpa, sr.^a morgada. Fui passar o dia ao Lumiar. Na volta
+demorei-me mais do que desejava no Campo Pequeno. Ha toiros ámanhã.
+
+
+GONÇALO
+
+No Campo Pequeno? Tinham-me dado idéas. É cavalleiro o Manuel dos
+Santos, não?
+
+
+BOCAGE
+
+É. E o Romão a pé.
+
+
+MORGADO (_intromettendo-se_)
+
+Tem disposições o Manuel dos Santos. Chama bem á estribeira; mas não tem
+pulso para o rojão, e á espada é fraco. O Romão com as farpas não vae
+mal. Se um dia me resolver...
+
+
+BOCAGE (_cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna_)
+
+A sr.^a D. Maria Joanna vae?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_que estava entretida_)
+
+Como, sr. Bocage? (_percebendo_) Não vou. Confesso que não é dos
+divertimentos mais do meu gosto.
+
+
+D. FELICIA
+
+Ouvi que se não correm touros em França. Naturalmente hão de dizer mal
+de nós por isso.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Nem todos. Ao conde de Saint-Germain, que os tinha visto em Hespanha no
+tempo de Filippe V, ouvi eu que era apaixonadissimo.
+
+
+BOCAGE
+
+No tempo de Filippe V! Quantos annos tem hoje esse conde de
+Saint-Germain, e quantos tinha quando esteve em Hespanha?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Esteve em Hespanha e percorreu o mundo. O conde de Saint-Germain é um
+viajante como não ha outro. Beijou a mão a Francisco I na vespera da
+batalha de Pavia; conheceu El-Rei D. Sebastião quando se preparava a
+expedição d'Africa; e teve em Cuba amisade com Fernando Cortez antes de
+este ir conquistar o Mexico.
+
+
+BOCAGE (_rindo_)
+
+Parece tão convencida! Ninguem dirá que está gracejando.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Mas não estou.
+
+
+BOCAGE (_rindo_)
+
+Ha então em França Mathusalens ainda? Julgava perdida a especie.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Um Mathusalem! Na apparencia não. Quem o vir dirá que tem a edade do sr.
+Morgado, pouco mais ou menos... (_maliciosa_) antes para menos que para
+mais.
+
+
+MORGADO
+
+E conheceu El-Rei D. Sebastião! Essa agora!...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Diz elle. Pergunte ao sr. Commendador, que o viu na embaixada, e lhe
+fallou nas salas do meu contra-parente D. Vicente de Sousa. É verdade,
+sr. Commendador?
+
+
+COMMENDADOR
+
+É verdade. E viu-o toda a gente em Paris. O conde affirma que possue o
+elixir da immortalidade. Só assim.--O grande Raymundo Lullio refere...
+
+
+BOCAGE (_cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna_)
+
+E os parisienses acreditam isso?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Acreditam.
+
+
+BOCAGE
+
+Fallem-me então na credulidade portugueza.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Duvidaram ao principio. Agora vão-lh'o negar! O conde sabia os segredos
+de todos... Não admira, tendo vivido e viajado tanto!... Está lá, ainda
+creio... Se acaso se lembra de dar uma volta por Lisboa... Ha de ser
+incommodo, um homem que está senhor dos segredos de toda a gente... Não
+lhe parece, sr. Morgado?
+
+
+MORGADO (_balbuciante_)
+
+Por mim...
+
+
+D. FELICIA
+
+Coisas de estrangeiros! Eu, se tal visse, tinha o meu hysterico, por
+força. Nome da Benta Hora! Credo!
+
+
+BOCAGE
+
+E eu quizera encontral-o, para satisfazer uma curiosidade. Desejava
+perguntar-lhe... visto que tanto andou e tanto sabe... se alguma vez,
+nas suas longas peregrinações, encontrou figurão mais sem pejo... do que
+dois sujeitos do meu conhecimento.
+
+
+COMMENDADOR (_baixo ao Morgado_)
+
+Estão apostados a molestal-o. Não succumba.
+
+
+MORGADO (_idem_)
+
+Vae vêr. Deixe... Deixe que vae vêr.
+
+
+D. FELICIA (_a Bocage_)
+
+Queria encontral-o? Não diga isso.--N'estas conversas se vae o tempo, e
+nada se faz.--Sr. Bocage... Um improviso dos seus... Quem dá mote?... Dê
+mote, sobrinha!
+
+
+MORGADO
+
+Versos a motes quem quer faz... Não tenho eu querido, senão... Versos a
+motes!... Sempre ouvi dizer que era o _A B C_... e está claro que é
+(_sem achar saída_), porque os versos com os motes e os motes com os
+versos... ou para fallar mais claro, os versos sem os motes e os motes
+sem os versos...
+
+
+COMMENDADOR (_sugerindo-lhe indirectamente a idéa_)
+
+O mote com effeito é uma sentença, que serve de assumpto, e põe a
+caminho o engenho. O principal está feito. O mais é ajustar palavras e
+combinar as rimas. Com algum exercicio não é difficil!
+
+
+BOCAGE (_medindo-os admirado e retraido_)
+
+Ah!
+
+
+COMMENDADOR (_continuando_)
+
+Mote querem alguns que venha do latim _motus_, que significa movimento.
+E bem se póde ter que assim é, porque do mote em verdade nasce o impulso
+que faz mover o estro...
+
+
+MORGADO (_atalhando_)
+
+É o que eu queria dizer. O mote vem a ser tudo... Mais por aqui, mais
+por alli, é tudo o mote.--O mote é o assumpto; não havendo mote não ha
+assumpto; e ahi é que está! (_satisfeito de si e com extrema
+volubilidade_) Fazer versos sem assumpto não é para qualquer: tem de se
+tirar tudo da cabeça, assim de repente, do pé para a mão, sem mais nem
+mais. Tambem não sei porque se ha de pedir mote. Quando uma pessoa monta
+a cavallo não precisa de mote para fazer os piafés, e as curvetas, e as
+balotadas, e as garupadas; nem tão pouco se dá mote quando qualquer
+mette mão á espada, e entra a executar batiduras, ligamentos,
+juntamentos, cambiamentos, tentamentos, e esquivamentos. Eis ahi. Isto é
+que eu queria... Chegar um homem, não esperar por mais, nem esfregar a
+testa, nem pôr os olhos em alvo, bater as palmas e logo alli, zás...
+como quem deita um foguete de sete respostas!...
+
+
+BOCAGE (_atalhando e batendo as palmas_)
+
+Lá vae!
+
+
+COMMENDADOR (_sorrindo_)
+
+Sem assumpto?
+
+
+BOCAGE
+
+Está ahi defronte, o assumpto.
+
+Famosa geração de falladores
+Consta que foi, Morgado, a origem tua,
+Que nem todos os cães, ladrando á lua,
+Tiveram que fazer com teus maiores:
+
+Um a lingua ensinou dos palradores;
+Outro, o motu continuo achou na sua;
+Outro, além de encovar toda uma rua,
+Açaimou n'uma junta a cem doutores:
+
+Teu avô, santanario venerando,
+Soube mais orações que mil beatas,
+Com reza impertinente os ceus zangando:
+
+Teu pae foi um trovão de pataratas:
+Teu tio, o bacharel, morreu fallando;
+Tu, fallando sem tom, não morres--*matas*!
+
+
+TODOS (_applaudindo_)
+
+Bravo! bravo!
+
+
+MORGADO (_engasgado de raiva_)
+
+Sr. Bocage!... Sr. Bocage!...
+
+
+BOCAGE (_fitando-o serenamente_)
+
+Que é?...
+
+
+COMMENDADOR (_com o seu sorriso, ao Morgado_)
+
+Agasta-se? De quê? Não tem rasão... São facecias innocentes, e muito
+graciosas na verdade!... (_Gonçalo passa disfarçadamente para o lado de
+Bocage_) Mais picantes ainda as fez Juvenal!... Se fosse verdadeiramente
+improviso, era deveras um primor... E não digo que não seja... Mas é
+facil trazer estas coisas estudadas já... (_Bocage estremece de
+indignação ante a contradictoria perfidia_.--_Gonçalo que lhe está ao pé
+detem-o_.)
+
+
+GONÇALO (_baixo_)
+
+Querem fazel-o sair de si. Com algum fito é. Modere-se.
+
+
+COMMENDADOR (_observando_)
+
+Depois, os conceitos naturalmente andam preparados com antecedencia.
+
+
+BOCAGE (_sem poder ter-se, batendo as palmas_)
+
+Lá vae!--Sr. Commendador, permitta-me descrever-lhe um certo
+individuo... do nosso conhecimento... á moda de Juvenal!
+
+Do Sena, que foi ver por seu desdouro,
+Um pedante voltou, de escassa fama,
+Que os livros cata, os cartapacios ama,
+E n'elles julga os annos um thesouro:
+
+Traz laivos de francez, arranha o mouro,
+Sabe que Deus em turco _Allah_ se chama,
+Que no grego alphabeto o _G_ é _gamma_,
+Que _taurus_ em latim quer dizer touro:
+
+Tem de velhos canhenhos chocho extracto;
+Abocanha talentos que não gosa;
+Se rosna, prega unhadas como um gato:
+
+Achareis na pintura rigorosa
+Um fofo sabichão, posto em retrato,
+Que é nada em verso, quasi nada é prosa!
+
+(_Impressão de assombramento_. _Ninguem ousa applaudir_. _Segredam todos
+mutuamente_.)
+
+
+COMMENDADOR (_parecendo satisfeitissimo_)
+
+Muito bem, muito bem, sr. Bocage. Esse sim. A isso é que se chama
+responder _apposité_. (_O escudeiro, vem apressadamente a D. Felicia, e
+falla-lhe em voz baixa_) Retrato lhe chama, não? Vê-se que é: ha de
+mostrar-me o original. Mas cuidado, não o saiba elle!...
+
+
+D. FELICIA (_ao escudeiro_)
+
+Que me diz! (_erguendo-se alvoroçada_) Meus senhores, o sr. marquez de
+Marialva está ahi. (_levantam-se todos_.)
+
+
+SCENA IX
+
+
+OS DITOS _e_ MANUEL SIMÕES
+
+
+MANUEL SIMÕES (_alvoroçado_)
+
+O meu compadre! Está ahi o meu compadre? (_a Francisco_.) Olha que é o
+teu padrinho, Francisco.
+
+
+D. FELICIA
+
+Valha-me Deus! Sem estar nada prevenido... Mande abrir já o portão, João
+Rodrigues. (_O escudeiro sae vivamente para a E._) Querem fazer-me o
+favor de me acompanhar?...
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Vamos esperal-o todos!
+
+
+D. FELICIA
+
+Vamos receber sua excellencia.
+
+(_Saem todos_. _Fica só o morgado passeiando agitado, e o commendador
+observando-o_.)
+
+
+SCENA X
+
+
+COMMENDADOR _e_ MORGADO
+
+
+MORGADO (_depois de os ver sair_)
+
+Ter a confiança de me tratar por tu!... D'esta vez faço uma fallada!...
+Ambos... hão de ser ambos!... Fizeram bem em aproveitar a occasião de se
+esgueirar.... Não podia já conter-me!... E agora...
+
+
+COMMENDADOR (_tomando-lhe o braço_)
+
+Deixe-se d'isso.
+
+
+MORGADO (_forcejando para se desembaraçar, e mais agitado_)
+
+Não me sustenha, commendador, não me sustenha!
+
+
+COMMENDADOR (_largando-o_)
+
+Aonde quer ir?
+
+
+MORGADO
+
+Aonde quero ir? Boa pergunta! Aonde quero ir!... (_forcejando como
+antes_.) Não me sustenha... (_vendo que o não sustem, e hesitando_.)
+Quê?... (_em grandes passos_.) Não me sustenha... Quero dizer,
+sustenha-me, sustenha-me, senão vou fazer uma grande desgraça!...
+
+
+COMMENDADOR
+
+Accommode-se. Não ouviu quem vem ahi?
+
+
+MORGADO (_estacando transido_.)
+
+São elles?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Não, homem. Não sabe que é o marquez?
+
+
+MORGADO
+
+Não são elles? (_recomeçando as bravatas_.) Podéra! Olhem se nos
+apparecem agora! Olhe lá se voltam senão no meio de toda essa gente!...
+Cobardes!
+
+
+COMMENDADOR
+
+Esteja quieto. Estamos aqui sós... e já nos conhecemos!
+
+
+MORGADO
+
+Então isto hade ficar assim?--Não é senão o tenente que mette a caminho
+o Bocage para nos chasquear. Não o viu ha pouco ir ter com elle?--Isto
+hade ficar assim!...
+
+
+COMMENDADOR (_com o seu sorriso_)
+
+Não lhe disse já que não... Andam a semear!... Deixe, que hão de
+colher!... Ouve? O marquez subiu já. Vamos tambem. (_Dirigem-se á porta
+da E._. _Entra o escudeiro, corre o reposteiro, e colloca-se á
+humbreira_. _Os dois tomam tambem de uma e outra parte logar á
+porta_.--_Entra o marquez, ao lado de D. Felicia, e seguido de toda a
+companhia anterior_.)
+
+
+SCENA XI
+
+
+MARQUEZ, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MANUEL SIMÕES,
+FRANCISCO, GONÇALO, BOCAGE, COMMENDADOR, MORGADO _e_ CONVIDADOS
+
+
+MARQUEZ
+
+Se soubesse que vinha incommodal-a, sr.^a morgada...
+
+
+D. FELICIA
+
+Incommodar-nos, v. ex.^a! Estava bem longe de esperar tamanha honra, e
+por isso...
+
+
+MARQUEZ
+
+Cheguei ha pouco de Cintra, e achei em Belem uma carta de Martinho de
+Mello, que me obrigou a vir logo aqui.--Passei por sua casa, Simões...
+Disseram lá ao meu volantim, que tinha ido com seu filho de visita á
+sr.^a morgada.--(_a D. Felicia_.) Vim assim mesmo, com as minhas
+saragoças... Não esperava encontrar tão luzida companhia.--Como é caso
+de pressa não queria perder a occasião.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_sem perceber_)
+
+V. ex.^a dignou-se passar por minha casa... é negocio de pressa...
+
+
+MARQUEZ
+
+Um negocio com o meu afilhado... Onde está elle?
+
+
+FRANCISCO (_apresentando-se respeitoso_)
+
+Meu padrinho!
+
+
+MARQUEZ (_em confidencia_)
+
+Teu pae sempre o hade saber... e mais vale que seja agora, diante de
+mim. (_alto_.) A nau de viagem sae para a semana. Já vês que se não póde
+perder tempo.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_attonito_)
+
+A nau de viagem... o Francisco!...
+
+
+D. FELICIA.
+
+O sr. marquez de pé! (_offerecendo-lhe o canapé_.) Sr. marquez...
+
+
+MARQUEZ
+
+Não me demoro... (_indicando a cadeira junto ao bufete_.) Prefiro
+aquella cadeira. Está alli um tinteiro, e hade ser preciso... (_a
+Francisco_.) Fui eu mesmo fallar a Martinho de Mello. Achei-o em boa
+occasião. Serviu-me logo, sem objecções... que é raridade. Pediu-me só
+que lhe mandasse o nome por escripto... Não sei como... as minhas
+distracções do costume... passou-me de todo. Agora, á volta de Cintra,
+recebo uma carta d'elle, e dentro o decreto já assignado, dizendo-me que
+fôra expedido com o nome em branco para não causar atrazo, vista a
+proximidade da partida... Venho remediar o esquecimento. (_Dirige-se á
+cadeira indicada, e senta-se_. _Sentam-se as damas_.)
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Mas, meu senhor... V. ex.^a foi fallar ao ministro da marinha? Por causa
+de meu filho?... Traz-lhe um decreto!... Sou pae, sr. marquez... não se
+hade estranhar... Um decreto de quê?
+
+
+MARQUEZ
+
+De guarda marinha para Gôa.
+
+
+MANUEL SIMÕES (_atterrado_)
+
+Guarda marinha!... Para Gôa!... quando eu pensava... quando esperava...
+E pediu meu filho similhante coisa a v. ex.^a... pediu-lh'o sem me dizer
+nada!
+
+
+MARQUEZ
+
+Ponderei-lhe isso mesmo... aconselhei-o... Deu-me razões que me
+convenceram. Entendo que faz bem... As viagens são distracções
+poderosas... são convenientes á mocidade... Voltará quando fôr tempo...
+e espero que será breve... Se lhe não convier a vida do mar, dará
+baixa... Agora é bem que vá.--Simões seu filho está formado, não se lhe
+póde oppôr... Dê-lhe o seu consentimento. Peço-lhe que dê, e digo-lhe
+que o deve dar... (_a Francisco_.) Aprompta-te quanto antes. Embarcas
+para a semana.
+
+
+D. MARIA GERTRUDES (_sem poder já, levando a mão ao coração_.)
+
+Ai! Jesus!
+
+
+D. FELICIA
+
+Que tens... que tens, Maria?... (_vendo-a debulhada em lagrimas_.) Ai! a
+minha filha... A agua de Melissa... a agua da Rainha d'Hungria!...
+(_acodem todas as damas a soccorrel-a_.) Não repare v. ex.^a, sr.
+marquez... é minha filha!
+
+
+MARQUEZ (_erguendo-se_)
+
+Sei... sei já... É coisa de cuidado?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não é nada. Um pequeno espasmo. Passa já.
+
+
+GONÇALO (_de parte a Bocage, indicando D. Maria Gertrudes_)
+
+Vê?
+
+(_Bocage contempla-a meditativo_.)
+
+
+D. MARIA GERTRUDES (_com esforço_)
+
+Não foi nada... Um affrontamento.
+
+
+FELICIA
+
+O melhor é recolheres-te ao teu quarto. Queres?
+
+
+D. MARIA GERTRUDES (_vivamente_)
+
+Não, não, minha mãe... Não é nada.
+
+(_Retomam todos os seus logares_. _O marquez senta-se de novo_.)
+
+
+MARQUEZ (_a Manuel Simões_)
+
+Então, Manuel Simões, consente?
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Que remedio... É desejo d'elle... e v. ex.^a approva.
+
+
+MARQUEZ (_tirando o decreto, desdobrando-o sobre a meza, e tomando a
+penna_.)
+
+Vamos... é pôr o nome, e podemos dar os parabens ao novo guarda marinha.
+
+(_Bocage passa lentamente por detraz de todos dirigindo-se ao bufete_.)
+
+
+MANUEL SIMÕES (_tristemente, ao filho_)
+
+Sempre cuidei que te acharia ao pé de mim... para me fechar os olhos.
+
+
+FRANCISCO (_lançando-se-lhe commovido nos braços_)
+
+Meu pae!
+
+
+MARQUEZ (_acabando de ler o decreto_)
+
+«Samora Correia, em 31 de janeiro de 1786. Com a rubrica de Sua
+Magestade.»--Está em ordem. (_Sem levantar os olhos_.) O nome todo?
+
+
+BOCAGE (_atraz do marquez_)
+
+Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage!
+
+(_Espanto nos circunstantes_.)
+
+
+MARQUEZ (_erguendo attonito o rosto, e depondo a a penna_)
+
+Quê?
+
+
+BOCAGE (_mostrando Francisco nos braços do pae_)
+
+Será elle que deva partir?
+
+
+MARQUEZ
+
+Mas sabe porque o meu afilhado quer embarcar?
+
+
+BOCAGE
+
+V. ex.^a deseja-o feliz?... Deseja... é o seu coração, e o seu costume.
+Permitta-me que faça por um momento as suas vezes, e verá... (_indo ao
+grupo do pae e do filho_.) Desculpe, sr. Manuel Simões. (_tomando
+Francisco pela mão, em voz baixa_.) Não viu já que o ama? (_indo a D.
+Maria Gertrudes, em voz baixa e rapida, indicando-lhe Francisco_.)
+Quer-lhe como ninguem. (_alto a D. Felicia_.) Sr.^a morgada da Torre da
+Palma, estou auctorisado a pedir a mão de sua filha para o sr. dr.
+Francisco Pedro Simões. (_Attenção geral_.)
+
+
+D. FELICIA (_assombrada_)
+
+A mão de minha filha... Se não fosse o respeito do sr. marquez, tinha o
+meu hystérico!... A mão de minha filha!... D'esse modo!... tão de
+repente!... (_depois de breve pausa_) O sr. Manuel Simões é um homem
+honrado; estimo-o; sou-lhe obrigada, não nego... mas... mas elle bem
+sabe que a nossa jerarchia... (_O marquez ergue-se_. _Erguem-se todos_.)
+
+
+MARQUEZ (_intervindo_)
+
+Perdoe, sr.^a morgada... O meu afilhado segue uma profissão nobre...
+Doutorou-se... poderá em breve alcançar algum despacho de Juiz de
+fóra... Como seu padrinho tenho obrigação de lhe dar um presente de
+noivado. (_baixo_) Fallei já á rainha, minha senhora, a respeito da
+sr.^a D. Felicia.--O presente que destino ao meu afilhado é um alvará de
+açafata para sua sogra.
+
+
+D. FELICIA (_encantada_)
+
+Ai! sr. marquez! Devéras? Filha, filha, a minha agua da rainha
+d'Hungria!...
+
+
+MANUEL SIMÕES (_baixo ao commendador em tom supplicante_)
+
+Sr. commendador, posso dizer que sim ao casamento?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Embarca o Bocage? (_Gesto affirmativo de Manuel Simões_) Póde.
+
+
+MARQUEZ (_proseguindo a D. Felicia, mais baixo_)
+
+Depois, Manuel Simões dá ao doutor quarenta mil cruzados. Excellente
+occasião de restaurar a Torre da Palma, que o precisa. (_a Manuel
+Simões_) Não dá quarenta mil cruzados a seu filho, Simões?
+
+
+MANUEL SIMÕES (_no auge de alegria_)
+
+Não, meu senhor. Dou sessenta.
+
+
+MARQUEZ (_baixo a D. Felicia_)
+
+Por causa de sua filha, queria o meu afilhado embarcar! (_indicando
+Francisco e D. Maria Gertrudes_.) E veja... Terá coração para fazer dois
+desgraçados? (_alto_.) A sr.^a morgada diz que sim.
+
+
+FELICIA
+
+Basta ser vontade do sr. marquez. (_comsigo_) Açafata do paço!
+
+
+MARQUEZ (_que passou a Bocage, em jovial confidencia_)
+
+Acertou, sr. Manuel Maria.
+
+
+BOCAGE
+
+Então ganhei o meu decreto.
+
+
+MARQUEZ
+
+Insiste?
+
+
+BOCAGE
+
+Espero só que v. ex.^a me faça a honra de escrever o meu nome.
+
+
+MARQUEZ (_indo sentar-se ao bufete_)
+
+Veja bem. Pensou?
+
+
+BOCAGE
+
+Pensei. Meu pae deixou-me a vocação livre. O mar é a minha vocação.
+(_dolorosamente_) Se tivesse aqui um affecto, se podesse haver esperança
+que me prendesse... Não tenho. Não ha. E é justo. (_com profunda
+amargura_) Nós os poetas cantamos tanto o amor, que o amor todo nos vôa
+no canto!
+
+
+MORGADO (_baixo ao commendador_)
+
+Que lhe parece? Vae para Goa..
+
+
+COMMENDADOR
+
+Em Goa temos gente tambem.
+
+
+MORGADO
+
+E se voltar?
+
+
+COMMENDADOR
+
+Está cá o Santo Officio.
+
+
+MARQUEZ (_dispondo-se a escrever_)
+
+Repita-me o nome por inteiro... Bem sabe a triste memoria que tenho...
+Está a tempo ainda. Considere.
+
+
+BOCAGE (_decidido_)
+
+Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage. (_Marquez escreve lentamente_)
+Meu avô, Gil de Bocage, foi coronel do mar. Herdei talvez a inclinação
+com o sangue.
+
+
+FRANCISCO (_indo a Bocage_)
+
+Não o conhecia ainda... (_intencionalmente_) Ninguem agora o admira
+mais.
+
+
+GONÇALO (_apertando-lhe a mão_)
+
+Regosije-se. Felicito-o. É uma nobre acção.
+
+
+BOCAGE
+
+Começo outra vida, rude vida de ancias e trabalhos, mas vida explendida
+de alvoroços e promessas. (_inebriando-se das proprias palavras_) Oh!
+quem me déra já nas solidões do oceano, entre os dois abysmos, para não
+ver mais do que o eterno lampadario dos astros, para não ouvir mais do
+que o magestoso hymno das vagas!... (_como vendo o que repete_) Ondeante
+á pôpa a bandeira que recorda as margens distantes... a melancolia da
+saudade!... Diante de mim os horisontes infinitos... a incerteza do
+futuro!... Aos meus pés a voragem tumultuosa... a advertencia dos
+desenganos!... E além... lá bem ao longe, a nossa India... a India que
+démos de presente ao mundo!... o recesso dos mysterios... a terra dos
+prodigios... crivada dos nossos padrões, povoada das nossas memorias,
+cheia ainda do nosso passado, repetindo de todos os angulos a
+maravilhosa historia que os povos decoraram em todas as linguas!... além
+as grandes recordações dos grandes feitos... os grandes éccos dos
+grandes nomes... as grandes imagens das grandes edades!... além emfim a
+perenne e inflammada visão, que acima da escuridão dos tempos e do luto
+das catastrophes, como um pharol no meio das trevas, ergue rutilante do
+berço do sol a gloria da patria!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_fervorosamente_)
+
+Tem a India inspirado os nossos grandes poetas! Começou já a inspiral-o!
+
+
+MARQUEZ (_erguendo-se e dando-lhe o decreto_)
+
+Aqui tem sr. guarda marinha. (_a D. Felicia_) Está tudo justo, não? As
+escripturas do casamento assignam-se em Belem d'hoje a oito dias!
+
+
+D. FELICIA
+
+Pois v. ex.^a quer fazer tamanha fineza a minha filha!...
+
+
+MANUEL SIMÕES (_promptamente_)
+
+Que honra!... Que honra para o afilhado!...
+
+
+MARQUEZ
+
+Justo é que sejam testemunhas todos os que presenciaram este feliz
+accordo. Ficam prevenidos. (_inclinando-se_) Terei occasião de dizer á
+sr.^a D. Maria Joanna Galvão o muito que a estimo e respeito. (_D. Maria
+Joanna faz mesura_.--_O marquez dirige-se á porta da E._--_Dispõem se
+todos a seguil-o_.) Sr.^a morgada, dispenso etiquetas... não consinto...
+
+
+D. FELICIA
+
+Seria privar-nos da maior satisfação!
+
+
+MARQUEZ (_a Bocage_)
+
+Não nos falte, Manuel Maria. Quero vêl-o com o seu novo uniforme! (_Sae
+com D. Felicia_.--_Acompanham-n'o todos_. _Ficam successivamente em
+ultimo logar, Francisco que dá o braço a D. Maria Gertrudes, Gonçalo ao
+lado de D. Maria Joanna, o commendador e o morgado da parte opposta,
+Bocage_.)
+
+
+SCENA XIII
+
+
+OS DITOS, _menos_ MARQUEZ, D. FELICIA _e os_ CONVIDADOS
+
+
+GONÇALO (_a D. Maria Joanna, indicando D. Maria Gertrudes_)
+
+Não lhe diz nada a vista d'aquelle par?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Diz-me que preciso um protector... e que já o aceitei!
+
+
+GONÇALO (_transportado_)
+
+É definitivamente uma esperança?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_dando-lhe a mão_)
+
+É mais... é uma certeza.
+
+(_O morgado mostra ao commendador esta acção_.--_D. Maria Joanna
+esquiva-se como envergonhada, e mette-se no sequito_.)
+
+
+MORGADO (_consternado ao commendador_)
+
+Viu?
+
+
+COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)
+
+Vi... Não estão ainda casados.
+
+
+GONÇALO (_que seguiu um instante D. Maria Joanna, volta a Bocage, e
+mostra-lhe D. Maria Gertrudes e Francisco que de embevecidos se deixaram
+ficar atraz de todos_.)
+
+Repare... O amor e a mocidade, coroados pela ventura!... Alli tem o seu
+melhor poema!
+
+
+BOCAGE
+
+Creio que sim... (_dolorosamente_) porque nenhum ainda me custou tanto!
+
+(_Cae o panno_)
+
+
+FIM DO QUARTO ACTO
+
+
+
+
+ACTO V
+
+
+*No palacio dos Marialvas, em Belem*
+
+Sala forrada de damasco, severamente sumptuosa, abrindo sobre um
+terrasso que dá para o Tejo. Em perspectiva os montes da
+Outra-Banda.--Explendido dia de inverno. Amplas colguduras de seda.
+Cadeiras de damasco egual ao do forro da casa. Altos contadores
+marchetados, cobertos de preciosas curiosidades. Á _D._ a mesa preparada
+para a assignatura das escripturas. Portas á _D._ e _E._
+
+
+SCENA I
+
+
+GONÇALO, (_esperando_) _o_ MARQUEZ, _um_ CAVALHEIRO, _um_ MOURO
+
+(_O Cavalheiro, que mostra mais de trinta annos, entra da D., de botas e
+esporas, seguido do Mouro_. _Este vestido a uso marroquino, botas
+escarlates, zorame, etc_. _O mouro traz-lhe a vara de marmelleiro_. _Ao
+mesmo tempo entra do F. o Marquez_. _O Mouro fica immovel onde está_. _O
+Cavalheiro vae com profundo acatamento ao Marquez, ajoelha e beija-lhe a
+mão_.)
+
+
+MARQUEZ (_com magestosa simplicidade_)
+
+Deus o abençoe, D. José! Já sei que o murzello começa a executar
+soffrivelmente a lição dos quatro circulos para a esquerda... É preciso
+trabalhal-o... É rijo dos rins, convem-lhe o trote avançado. Está ainda
+desigual dos travadouros.--Póde recolher-se agora aos seus quartos,
+filho... Hade precisar descanço... Oiça... recommende ao Mouro que vá
+ver como atam o murzello... e se lhe estendem bem as coberturas.--Se
+quizer escrever para Cintra a suas irmãs, e ao Marquez D. Diogo, tenha
+tudo prompto. Ámanhã de madrugada partimos para Samora. Acompanha-n'os o
+conde de Villa-Verde. (_O Cavalheiro sae_. _O Mouro segue-o_.)
+
+
+SCENA II
+
+
+O MARQUEZ, GONÇALO
+
+
+MARQUEZ (_comsigo_)
+
+Estes rapazes precisam dirigidos! (_vendo Gonçalo, que se conserva
+respeitosamente de parte, e indo a elle_) Desculpe que o não via. Chegou
+ha muito?
+
+
+GONÇALO
+
+Entrei ha pouco, sr. Marquez.
+
+
+MARQUEZ
+
+Tenho pena de o não ter apresentado a meu filho.
+
+
+GONÇALO
+
+Tive já a honra de fallar ao sr. D. José de Menezes! Encontrei-o varias
+vezes no quartel de Lippe e na academia de Antonio Diniz.
+
+
+MARQUEZ
+
+Ah! conhecia-o?... Não lhe dá ares do Conde dos Arcos, que tão
+desgraçadamente... (_suffoca-se, e desvia o rosto para limpar
+escondidamente as lagrimas; pequena pausa; mais senhor de si_) É
+tristeza que me não deixa, e é paixão que nunca me hade passar! Não
+posso ver qualquer dos meus filhos que me não lembre aquella
+fatalidade!... Ha quem murmure de me não ter deixado d'estes
+exercicios... Não pensam que assim se fazem homens para as armas, e
+soldados para a patria... Na minha casa os costumes transmittem-se
+intactos como a honra. Deixal-os murmurar.
+
+
+GONÇALO
+
+Quem se atreveria a murmurar do venerando patriarcha dos Marialvas, tão
+respeitado e tão querido na côrte e no povo!
+
+
+MARQUEZ
+
+Deixal-os. Não sei que façam mais do que nós; com as suas modas de
+hoje!--Deixal-os, e deixemos tambem o que não vem para aqui.--O dia é de
+alegrias, e creio que tem bom quinhão n'ellas. Cumprimentei já a sr.^a
+D. Maria Joanna Galvão. Uma dama completa. Não podia escolher melhor...
+nem ella tambem. Supponho não ser indiscreto.
+
+
+GONÇALO
+
+A sr.^a D. Maria Joanna já me permittiu confessar francamente o que era
+ha muito a minha secreta esperança, o que hoje se me fez inapreciavel
+realidade.
+
+
+MARQUEZ
+
+Estimo... estimo-o devéras.--Uma dama prendada, um valente soldado...
+boas familias... elevados sentimentos... Vae tudo de accordo.--É assim
+que se perpetuam as casas honradas... Hade, prevenir-me quando fôr o
+casamento.--Não andará longe, não?--É festa de que tambem me não
+dispenso. O regosijo dos velhos é casar os moços... (_com os olhos no
+terrasso_) A sua familia nova já ahi anda... O meu afilhado, esse
+madrugou, como é natural... Estão todos, creio... É cedo... ainda me não
+deram parte de ter chegado o tabellião.--E o nosso poeta?... o nosso
+novo guarda-marinha?... Vem de certo.
+
+
+GONÇALO
+
+Não o tenho visto. Disse-me que ia a Setubal despedir-se dos paes.
+
+
+MARQUEZ
+
+Voltou ha tres dias... D'onde procederia aquella resolução repentina!...
+
+
+GONÇALO
+
+Do mais generoso impulso!
+
+
+MARQUEZ
+
+Quiz-me parecer...--Que logo de cabeça! Vae em tudo aos extremos.--Ou
+hade subir muito alto, ou fazer-se muito infeliz!
+
+
+GONÇALO
+
+O mesmo diz a sr.^a D. Maria Joanna.
+
+
+MARQUEZ
+
+É ella que o Hade saber avaliar!... Do espirito e do coração da sua...
+da sua noiva... vamos, póde-se já dizer.
+
+
+GONÇALO
+
+Póde.
+
+
+MARQUEZ
+
+Do seu espirito e coração tinha ouvido muito Hontem porém fui ainda mais
+informado. Esteve aqui o Juiz do Civel da Côrte, que se não cançou de me
+gabar a nobreza e desinteresse que provou com a restituição dos vinculos
+á prima. Ella mesma desfez todas as difficuldades... e com tal zelo, com
+tal contentamento!... A proposito, deu-me tambem a entender coisas um
+pouco desagradaveis a respeito do Morgado da Gésteira, e do Commendador
+de Monsarás... Quasi que me arrependi de lhes ter aberto as minhas
+portas... Sabe se com effeito...
+
+
+GONÇALO (_constrangido, e volvendo os olhos com frequencia para o
+terrasso_)
+
+Que heide eu saber, sr. Marquez?
+
+
+MARQUEZ (_reparando_)
+
+Fiz a pergunta sem reflexão. Contaram-me tambem que se mostram seus
+inimigos declarados... e os homens como o sr. Gonçalo Mendo nunca fallam
+de um inimigo pelas costas... Essa mesma resposta confirma o que me
+disseram... Que o Morgado, fraco inimigo póde ser... Mais de temer é o
+Commendador... (_movimento de Gonçalo_) de acautelar, quero dizer... tem
+relações que... (_notando como elle olha para o terrasso_) Não o
+preoccupam agora os inimigos, vejo... e tem razão... (_sorrindo_) Hade
+querer cumprimentar as senhoras. Na minha edade já se esquecem
+facilmente essas impaciencias.
+
+
+GONÇALO
+
+Sr. Marquez!... Não pense v. ex.^a...
+
+
+MARQUEZ (_festivamente_)
+
+Não pensava, não pensava... Acompanho-o tambem.
+
+(_Vae a sair; D. Maria Joanna vem a entrar, seguida do Morgado, que se
+retira logo vendo o Marquez e Gonçalo_.)
+
+
+SCENA III
+
+
+OS DITOS, D. MARIA JOANNA
+
+
+MARQUEZ (_inclinando-se affavelmente_)
+
+Minha senhora! Não lhe queira mal pela demora. O culpado fui eu:
+faltei-lhe a seu respeito. (_reparando para fóra_) É sua tia que está
+alli?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+É, sr. Marquez,--encantada do palacio, da vista, do dia, do Tejo... e
+principalmente de v. ex.^a!...
+
+
+MARQUEZ
+
+E eu que tão mal lhe pago, que ainda quasi lhe não fiz as honras da
+casa, nem lhe cumpri a palavra. (_Desapparece no terrasso_. _D. Maria
+Joanna vae a seguil-o_. _Gonçalo detem-a_.)
+
+
+SCENA IV
+
+
+GONÇALO, D. MARIA JOANNA
+
+
+GONÇALO
+
+Esquivava-se ao Morgado, pareceu-me. Esse homem atreve-se ainda a
+perseguil-a?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O Morgado?... O Morgado não póde perseguir ninguem! Cuido que tentava
+não sei que justificação... Nem eu percebi... Andava passeiando no
+terrasso. Ao passar, ouvi a sua voz aqui: entrei... para o não ouvir, a
+elle.
+
+
+GONÇALO (_contendo a colera_)
+
+Tenho agora direitos sagrados. Se o Morgado ousou...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ousou... evaporar-se apenas o viu. Ora, vamos... é homem que inquiete
+alguem, o Morgado?... Começa a fazer de marido cioso?... Previno-o de
+uma coisa... tenho horror aos ciosos! (_gracejando_) Se não póde
+conter-se, estamos a tempo ainda!...
+
+
+GONÇALO
+
+Não me contive eu tres annos... padecendo a ausencia... sem uma palavra
+de esperança ou de conforto... vendo-a repartir sem differença graças
+que só para mim cubiçava, agrados pelos quaes dera a vida?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não verão o avarento!... Ahi está o que estes senhores querem... e ahi
+está porque eu fugia de prender-me!... Se não fazemos differença nos
+agrados, um côro de suspiros, uma circular de queixumes... todos a mesma
+coisa... Apenas temos a fraqueza de mostrar uma preferencia, o
+favorecido converte-se em tyranno, e pede-nos conta... até dos sorrisos
+passados.--Bem me dizia em Paris o cavalheiro de Florian... um moço de
+gosto e saber.
+
+
+GONÇALO
+
+Que lhe dizia?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Que para uma dama era inestimavel presente de Deus a mocidade e a
+independencia.
+
+
+GONÇALO (_picado_)
+
+Ah!... (_tristemente_) Repito-lhe então as suas mesmas
+palavras:--estamos a tempo ainda!...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Eil-o ahi já todo serio e enfadado! Valha-me Deus!... não vê que estou
+gracejando?--A independencia... a nossa independencia!... Muito é para
+invejar, na verdade!... Parece á primeira vista que nos festejam e nos
+adoram. Examinando bem... não ha mais duro captiveiro do que similhante
+liberdade... Os galanteadores são sentinellas, os lisongeiros
+espias.--Não foi tão vigiada a nympha da fabula. Ao menos os cem olhos
+de Argos fecharam-se uma hora...
+
+
+GONÇALO (_sorrindo_)
+
+E não foi preciso mais!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Malicioso! (_em tom mais jovial_) Estes Argos interesseiros não os
+fecham nem de dia nem de noite. Não sei como fazem, que se fortalecem da
+vigilia, como os outros do repouso. Para qualquer lado que nos voltemos,
+lá estão elles com os madrigaes assestados. Cada protesto de respeito é
+uma atalaya dissimulada. Cada cumprimento é uma bayoneta posta ao peito
+para nos tomar o passo... E que severa inquisição!... Se olhamos, é
+leviandade; se rimos, inconstancia; se nos desviamos, desdem... se
+baixamos os olhos, é disfarce; se choramos, é fingimento; se estamos
+sisudas, é reserva... Até se nos encerramos, nos poem á porta a
+suspeita!... As mesmas illusões de uns, se fazem nos outros furibundas
+indignações. Suffoca-n'os um circulo insuperavel de cortezias
+insidiosas, de reverencias desconfiadas, e de homenagens hostis...
+(_seriamente_) e quando menos o pensamos, achamo-n'os envolvidas pela
+astucia, pela cubiça, pela perfidia... não poucas vezes pela
+calumnia!--Eis aqui a nossa independencia!... (_no tom anterior_) O
+cavalheiro de Florian ainda não conhecia o mundo!
+
+
+GONÇALO (_gracejando tambem_)
+
+Dês de quando faz essa idéa da independencia feminina?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_gravemente_)
+
+Dês que uma protecção opportuna me libertou d'esse ambito oppressivo...
+cheio de laços e de perigos... e me fez respirar os ares limpos e sãos
+de um nobre e generoso affecto!... (_com gentileza_) Não sei se
+vacillava ainda... (_dando-lhe a mão com meiga dignidade_) Sei que
+d'esse instante para diante não vacillei mais.
+
+
+GONÇALO (_beijando-lhe a mão, e conservando-lh'a nas suas_)
+
+Desculpa um momento de irreflexão?
+
+
+D. MARIA JOANNA (_esquecendo a mão nas de Gonçalo_)
+
+Ninguem é perfeito n'este mundo.
+
+
+SCENA V
+
+
+OS DITOS, _e_ BOCAGE _da D_.
+
+(_Bocage entrando, vendo-os, e detendo-se_.)
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Ah!... O sr. Bocage? (_retira vivamente a mão_.)
+
+
+BOCAGE
+
+O anão da casa encaminhou-me para aqui. Se sou importuno... (_como para
+sair por onde entrou_.)
+
+
+GONÇALO (_indo a Bocage e detendo-o_)
+
+Era esperado, e desejado... venha. (_descendo com elle_) Ninguem
+aceitaria com mais satisfação para confidente dos meus alvoroços.
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Não é já o sr. Bocage da nossa intimidade? Não me esqueceu ainda!
+
+
+BOCAGE (_com forçada jovialidade_)
+
+Filho de Marte e de Venus pintaram o Amor. É indispensavel corrigir a
+mythologia... O Amor, de menino fez-se homem; de azougado cordato; de
+despido composto; de vendado attento... abjurou por fim a gentilidade, e
+até de pagão se converteu a bom catholico... para santamente unir e
+abençoar, como o pediam os seus merecimentos, um novo Marte e uma Venus
+melhor!
+
+
+GONÇALO (_fitando-o_)
+
+Porque violenta o espirito?... Esse tom festivo tem o que quer que seja
+de febril... não vem do coração.
+
+
+BOCAGE (_naturalmente_)
+
+Não vem, não; diz bem. No coração... tenho uma tristeza profunda... uma
+dôr que eu desconhecia.
+
+
+GONÇALO (_apertando-lhe a mão_)
+
+Comprehendo. Sente agora o sacrificio!
+
+
+BOCAGE
+
+Não a merecia!... Deus não quiz!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Arrepende-se?
+
+
+BOCAGE
+
+Não, minha senhora, não me arrependo. Fiz o que devia fazer...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+O que poucos saberiam fazer tão bem!
+
+
+BOCAGE
+
+Mas a impressão não se apaga assim!... (_a Gonçalo_) Confessei-lhe a
+minha natural inconstancia... Conhecia mal esta grave e sincera
+affeição, que podia emendar-me... que outro me tornaria talvez!... Que
+lhe heide fazer? Bem certo é, que só se dá valor ao bem quando se
+perde!...
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Hade encontrar um coração que o aprecie... Com o seu merito!... A
+felicidadade, que hoje cuida perdida, facil lhe será restaural-a.
+
+
+BOCAGE
+
+Duvido, minha senhora. Ama-se uma só vez assim... quando se ama. Está em
+mim mesmo, está na minha indole, o germe do infortunio. Se o podia
+atalhar alguma coisa, era isto... (_resignando-se_) Enfim não estava
+para mim!... (_abatido_) A imprudencia foi prometter que viria aqui
+hoje... Vinte vezes tive tentações de voltar para traz... Faltava-me o
+animo!
+
+
+GONÇALO
+
+Isso não. Tempera-se a alma nos lances difficeis. E na vida que vae
+seguir é preciso ter coração para tudo.
+
+
+BOCAGE (_recobrando impetuosamente a resolução_)
+
+É.--Isso pensei; por isso vim... e verá!--Era fraqueza: não lhe quiz
+ceder. Seria encetar mal uma carreira, em que o sacrificio é condição de
+todas as horas, em que o esforço é necessidade de todos os momentos!
+N'estas procellas d'alma quero dispor-me para as tempestades temerosas
+que resolvem os céos e os mares. O espirito sacudido de embates
+angustiosos, que em si mesmo lutou e venceu, está preparado para se não
+assombrar nem desmaiar, quando os horisontes se condensam... e os ventos
+se desencadeiam... e os abysmos se rasgam... e a crista das vagas,
+empinadas como serras, se cruza com a fita do raio, livido como
+espectro... quando os silvos do vendaval na enxarcia parecem ais de
+agonisante... quando, n'esse tumulto, n'esse horror, n'esse cahos, o
+baixel que o valor sustenta, que a intelligencia dirige, que salva a
+pericia, range até ás profundezas com o stertor do moribundo!...
+Attrae-me, convida-me a perspectiva... E quasi me esqueço do mais... e
+todo me ufano revendo-me n'este uniforme, que significa a honra o dever,
+o patriotismo, a abnegação... contemplando aquelle glorioso estandarte,
+que se já não varre as aguas como conquistador, se já não as senhoreia
+como soberano, hade no mundo ser sempre venerado por acções egregias...
+hade em Portugal ser sempre saudado de legitimas esperanças!
+
+
+GONÇALO
+
+Com esses sentimentos, sr. Bocage, não ha magoa que não se console...
+não ha grandeza a que se não aspire!
+
+
+BOCAGE
+
+Os sentimentos... São, sim... estes são, estes devem ser.--(_comsigo_)
+Mas o que faz d'elles muitas vezes o destino!
+
+
+GONÇALO (_olhando para o terrasso_)
+
+O marquez dirige-se para aqui, se não me engano.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_olhando_)
+
+Veem todos.
+
+
+BOCAGE (_idem_)
+
+O commendador e o morgado são os primeiros! (_a Gonçalo_) Teem-me feito,
+pagar bem caro o peccado das más companhias, estes heroes.
+
+
+SCENA VI
+
+
+OS DITOS, COMMENDADOR _e_ MORGADO
+
+
+MORGADO (_ao commendador_)
+
+O que eu vejo, commendador, é que está tudo perdido!
+
+
+COMMENDADOR (_ao morgado_)
+
+Socegue.--A tempo chega quem sabe dispôr as coisas. «Hoje por vós,
+amanhã por nós.» Affirma Cicero que um dia basta para pôr termo aos
+triumphos.
+
+
+BOCAGE (_a Gonçalo_)
+
+Aves de ruim agouro!
+
+
+GONÇALO
+
+Que hão de agourar-nos agora?
+
+
+SCENA VII
+
+
+OS DITOS, MARQUEZ, (_entrando sem dar attencção ao commendador e
+morgado, que se inclinam_)--_Depois_ Um ESCUDEIRO, _de habito de
+Christo_
+
+
+MARQUEZ
+
+Vão sendo horas. (_a D. Maria Joanna_) Manuel Simões não cabe em si de
+contente, e sua tia anda nos ares. (_vendo o escudeiro_) Creio que
+chegou o tabellião. (_O escudeiro dirige-se respeitosamente ao marquez,
+e diz-lhe algumas palavras em voz baixa_.) Está ahi com effeito. (_ao
+escudeiro_) Mande entrar, e mande pôr as cadeiras.
+
+
+SCENA VIII
+
+
+OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA GERTRUDES, FRANCISCO, MANUEL SIMÕES _e_
+CONVIDADOS
+
+
+D. FELICIA (_vendo Gonçalo, jovialmente_)
+
+O sobrinho não tem pressa de cumprimentar a sua tia nova?... Não lhe
+chega o tempo, já vejo... Era bem feito que me oppozesse agora!
+
+
+GONÇALO
+
+Para nos cobrir de tristeza!
+
+
+D. FELICIA
+
+Ai! não... não quero vêr ninguem triste... Sabe?... O sr. marquez!...
+Oh! grande marquez!... O sr. marquez entregou-me já o alvará de
+açafata.--Que dia!--que dia para a familia, sobrinha!... Estou curada
+dos meus hystericos!
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Parabens, minha tia!
+
+
+MANUEL SIMÕES (_impaciente, ao marquez, mas sem nunca esquecer o usual
+acatamento_)
+
+O tabellião traz já as escripturas promptas, meu senhor.--É só assignar.
+
+
+MARQUEZ
+
+Ler e assignar.--Vejam como vem guapo o nosso guarda marinha!... (_a
+Bocage_) Quando levanta ferro a nau?
+
+
+BOCAGE
+
+Amanhã, sr. marquez.
+
+
+MARQUEZ (_aos circumstantes_)
+
+E de uniforme grande, em honra do dia. Não lh'o agradece, Manuel Simões?
+
+
+FRANCISCO
+
+Sou eu... (_indicando D. Maria Gertrudes_) somos nós dois... que
+principalmente lhe devemos agradecer. (_indo a Bocage_) Se os votos
+d'uma gratidão profunda pódem ser-lhe aceitos... asseguro-lhe que não os
+ha mais ardentes e sinceros.
+
+
+D. MARIA GERTRUDES
+
+Hão de acompanhal-o sempre as nossas orações!
+
+
+BOCAGE (_commovido_)
+
+As orações dos anjos são para os infelizes... (_com esforço_) e eu...
+sou apenas um desterrado voluntario!
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Ahi vem o tabellião.--(_comsigo_) Meu filho doutor!... minha sogra
+açafata!... a minha nora morgada!... por compadre um marquez!--Está-me a
+cair o habito de Christo!...
+
+
+SCENA IX
+
+
+OS DITOS, O ESCUDEIRO _precedendo_ O TABELLIÃO, _e seis ou oito criados_
+
+(_O tabellião entra fazendo reverencia a todos, e inclina-se
+profundamente diante do marquez; sob indicação do escudeiro toma o seu
+logar á meza em pé, e desenrola as escripturas._--_Os criados chegam ao
+marquez uma cadeira d'espaldas, e collocam em torno da meza mais algumas
+cadeiras communs. O marquez e as damas sentam-se. O escudeiro fica á
+frente dos criados, fazendo parede ao F._)
+
+
+MARQUEZ (_sentado, ao tabellião_)
+
+Póde começar a leitura. (_O tabellião dispõe-se a ler_.)
+
+
+MANUEL SIMÕES
+
+Ainda o não posso crêr!
+
+
+GONÇALO (_por detraz da cadeira de D. Maria Joanna, que fica na
+extremidade_)
+
+Chegará tambem brevemente o nosso dia!
+
+
+SCENA X
+
+
+OS DITOS _e_ UM PAGEM
+
+(_O pagem entra apressadamente com uma bandeja de prata, e em cima um
+officio; dirige-se ao marquez, ao qual apresenta a bandeja com um joelho
+em terra_.)
+
+
+MARQUEZ (_vendo o pagem, ao tabellião_)
+
+Queira esperar. (_recebendo o officio_) O que será? (_O pagem retira-se
+para o lado_.) É para o sr. Gonçalo Mendo... traz o sello da secretaria
+de estado... Provavelmente não o achou em casa o correio, e disseram-lhe
+que estava aqui. (_O pagem vae receber o officio da mão do marquez,
+leva-o a Gonçalo Mendo, e sae_.)
+
+
+GONÇALO
+
+Para mim... Da secretaria?--(_recebe o officio, abre, e lê, com visivel
+gitacão_.)
+
+
+COMMENDADOR (_de parte, ao morgado, tirando a caixa_)
+
+Quer apostar que se não faz o casamento de sua prima!
+
+(_O marquez observa-os_. _Bocage não tira os olhos d'elles_.)
+
+
+MARQUEZ (_inquieto_)
+
+Que é?
+
+
+GONÇALO (_consternado_)
+
+A nomeação de capitão de Sofála... e ordem terminante de partir na nau
+de viagem, que sae amanhã!
+
+
+D. MARIA JOANNA (_erguendo-se com um grito angustioso_)
+
+Jesus! (_Soccorrem-n'a D. Felicia e D. Maria Gertrudes_.--_Erguem-se
+todos, e affluem em roda de Gonçalo_. _Mostras de pezar na familia_. _O
+morgado não póde conter o alvoroço_. _Bocage continúa a observar os
+dois, refreado unicamente pelo respeito da casa_.)
+
+
+MARQUEZ (_admirado_)
+
+Tinha requerido?
+
+
+GONÇALO
+
+Eu, sr. marquez!--N'esta occasião!...
+
+
+COMMENDADOR (_saboreando a pitada hypocritamente_)
+
+Que transtorno!... No livro 5.^o da Eneida ha...
+
+
+BOCAGE (_prorompendo_)
+
+Sei eu... vejo eu d'onde vem o tiro...
+
+
+GONÇALO (_dolorosamente_)
+
+Acertaram-m'o no coração!... (_Breve pausa_.--_A Bocage, com animo
+inteiro_) Somos companheiros de viagem.
+
+(_D. Maria Joanna soluça, com o lenço nos olhos, nos braços de D.
+Felicia, e sua prima_.)
+
+
+BOCAGE (_impetuosamente_)
+
+Não póde ser... não deve ser... O ministro foi enganado!
+
+
+MANUEL SIMÕES (_insinuando_)
+
+Uma palavra que o sr. marquez diga a Sua Magestade!...
+
+
+MARQUEZ
+
+Parto d'aqui a um instante para Samora. Vou fallar á rainha, minha
+senhora. Ha tempo ainda.--Não embarca, sr. Gonçalo Mendo. (_ao
+escudeiro_) Que apromptem o meu escaler. (_O escudeiro vae a sair, e
+detem-se á voz de Gonçalo_.)
+
+
+GONÇALO
+
+Peço perdão, sr. marquez: embarco.--Sei o que v. ex.^a póde... mas sei
+tambem o que devo.--(_grave e solemne_) Quando ultimamente fui tomar
+posse do meu solar de Mendel, aonde não voltara dês que entrei no
+collegio dos Nobres, a primeira coisa que me deu nos olhos, na sala de
+respeito, foi a longa fileira dos retratos de meus avós... um morto na
+defeza de Ceuta... outro espedaçado nos bastiões de Diu... outro
+mal-ferido na batalha de Montes Claros!... Todos com o arnez no peito e
+a espada no cinto... todos soldados desde Aljubarrota!... Parei a
+contemplal-os na vasta quadra, triste e deserta, que novamente a morte
+visitava.--Do alto das sombrias paredes pareciam dizer-me aquelles
+vultos severos: «por servir a patria, e para servir a patria, nos foi
+dado o patrimonio que te deixamos, com as obrigações do nosso nome, com
+as tradicções do nosso sangue. De ferro eram os nossos corações, como
+eram de ferro as nossas armaduras... nunca tremeram nos riscos mais
+affrontosos... nunca vacillaram nos mais apertados transes!... Esta
+immaculada austeridade nos fez estimados e honrados... Tal é o deposito
+de virtudes hereditarias que te confiamos... Recebe-o para o transmittir
+como o recebes.»--Isto julguei ouvir... isto se me gravou n'alma.--Podia
+esquecel-o agora?
+
+
+BOCAGE
+
+Mas essa nomeação foi solicitada pela perfidia... essa ordem...
+
+
+GONÇALO (_atalhando_)
+
+É da patria. Não a examino; obedeço-lhe. Foi o que prometti quando jurei
+bandeiras.--O primeiro predicado militar é a obediencia: o valor é
+apenas o segundo. (_vehemente_) O soldado que se nega a obedecer é como
+um desertor em dia de batalha,--atraiçôa egualmente o juramento! Ninguem
+ousaria aconselhar-m'o... ninguem espera tal de mim! (_D. Maria Joanna
+alça o rosto, e escuta-o attenta, enxugando os olhos_.)
+
+
+BOCAGE
+
+Não, o esquecimento do dever ninguem lh'o poderia aconselhar... Mas o
+estado que vae tomar, mas a familia que lhe abre os braços, não lhe dita
+deveres tambem?
+
+
+GONÇALO
+
+A patria é a familia das familias!--Se uma veneranda mãe chama por seus
+filhos em nome da honra commum, qual póde recusar-se? com que pretexto
+hade eximir-se?--Os affectos de familia! Quem é o desamparado que não
+tem alguma familia? Se essa razão prevalece, ninguem servirá. Mais que
+para qualquer, para nós, os que seguimos a profissão das armas, e a
+patria mãe rigida e imperiosa, mas amada sobre tudo. Ainda mais sua do
+que nossa é aquella honra que entregaram á nossa guarda. Que filho
+consente que a honra de sua mãe possa entrar em duvida?--Sr. Bocage, o
+pundonor do soldado não exige menos que a isenção do poeta. Um passo
+para ficar... (_com os olhos no Commendador e Morgado_) e não faltará
+quem diga que eu... eu, um militar, um portuguez, um neto de
+veteranos!... recuei diante dos perigos do clima, ou da azagaya dos
+cafres... A calumnia é a espada da hypocrisia... não tem outra. Haviam
+de dizel-o. (_com resolução enthusiasta_) Não o dirão... Podem os meus
+inimigos triumphar com o meu supplicio; não triumpharão com as minhas
+fraquezas. Ninguem dirá nunca de Gonçalo Mendo, que o viu hesitar... nem
+diante da catastrophe subita das mais justas esperanças!
+
+
+BOCAGE (_desesperado_)
+
+Não tenho palavras que o convençam? (_indicando-lhe D. Maria Joanna_)
+Veja se resiste áquelle rosto, áquella dôr, ás supplicas alli
+estampadas, á voz e ás lagrimas que mais do que eu o persuadirão.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_descendo, triste e gravemente_)
+
+O que existe no mundo mais santo do que o amor puro de duas almas, que
+uma da outra vivem, que uma para a outra só querem viver? Ha distancia
+que lhes desate os laços? (_crescendo em vehemente sensibilidade_)
+Haverá golpe que lhes corte os vinculos? Não lhes são communs as
+alegrias? Não lhes são communs as penas? Não lhes é tudo commum? Póde
+alguem separal-as em sentimentos, quando foi o sentimento que as uniu,
+que das duas fez uma, quer para viver, quer para pensar, quer para
+soffrer? (_Pausa_. _Com ponderativa energia_.) É a mulher de um soldado
+a companheira de todos os seus perigos, de todos os seus trabalhos... e
+de todos os seus deveres. A gloria d'elle é unico desvelo, unico fito,
+unico enlevo d'ella. A obediencia, que é n'elle empenho, n'ella é
+culto... Cumpre que seja em ambos a resolução egualmente heroica. Se não
+póde acompanhal-o nos dias de batalha... póde esconder-lhe o pranto nos
+dias de provação!... (_Pausa meditativa_. _Com subito e convulso
+esforço_.) Vá, sr. Gonçalo Mendo... vá que eu espero-o!
+
+
+GONÇALO
+
+Não, sr.^a D. Maria Joanna. Admiro a nobreza do seu animo... para mais
+sentir o que n'elle perco... mas o sacrificio da sua mocidade pesaria
+eternamente sobre a minha consciencia.--Restituo-lhe a palavra que me
+deu. É livre.
+
+
+D. MARIA JOANNA (_solemne e decidida_)
+
+Sr. Gonçalo Mendo, se na sua familia o juramento é timbre que a tudo
+sobreleva, na minha casa dão-se juntamente o coração e a palavra, e a
+palavra só deixa de obrigar quando o coração deixa de bater. Póde
+julgar-se livre; eu não. Se tiveramos tempo de consagrar a nossa
+alliança, podia negar-me o favor de acompanhal-o? Se estivessemos já
+unidos á face do altar, teria acaso direito de dizer-me: «restituo-lhe a
+palavra e a liberdade?» Considero-me ligada perante Deus: só Deus me
+póde desligar. Ámanhã recolho-me ao convento de Santos. Unicamente a sua
+mão me abrirá aquellas grades!
+
+
+GONÇALO
+
+Quem se não deixará vencer?--Á volta irei dedicar-lhe esta vida, que já
+toda lhe pertence. Hade permittil-o Deus!
+
+
+MARQUEZ (_intervindo_)
+
+Fizeram todos o seu dever. Tenho tambem um para cumprir... (_para o
+Commendador e Morgado_) Ás pessoas, que eu protejo, nem o proprio
+Marquez de Pombal se atreveu nunca! (_fulminando-os de desdem_) Sr.
+Morgado da Gésteira, precisa sair de Lisboa e tornar quanto antes para a
+sua terra... (_O Morgado fica attonito_.--_Com intimativa_.)
+Precisa.--Hade ter disposições que fazer. Não o quero demorar... (_O
+Morgado percebe e encaminha-se todo encolhido e confuso á porta da D._)
+Espere... o seu amigo Commendador deseja acompanhal-o.--Sr. Commendador,
+é provavel que a Meza da Consciencia lhe queira tomar contas do modo por
+que tem cumprido os encargos da sua commenda. (_O Commendador, que ao
+principio ouvia altivo, resigna-se tambem o segue o Morgado_.)
+
+
+SCENA ULTIMA
+
+
+OS DITOS, _menos_ COMMENDADOR _e_ MORGADO
+
+
+BOCAGE (_vendo-os sair_)
+
+A vilania e a jactancia... a cobiça e a hypocrisia!... Ahi estão os
+homens, ahi estão os vicios, que me ensopam a satyra em fel... que me
+inflammam de raios a musa!... Bem o prevejo, bem o presinto...
+Contribuirão elles para me abreviar a vida... pagar-lhes-hei eu com a
+immortalidade do ridiculo!...
+
+
+MARQUEZ
+
+Guarde para mais a lyra, Manuel Maria. Não vê como os castiga o despreso
+da gente de bem?--(_a Gonçalo_) Hade voltar... e hade voltar breve.
+
+
+D. FELICIA (_consolada_)
+
+Hade... hade... que m'o diz o coração!
+
+
+MANUEL SIMÕES (_sempre impaciente_)
+
+Ainda bem! (_ao Marquez insinuante e respeitoso_) Então agora... as
+escripturas...
+
+
+MARQUEZ
+
+Podem ler-se e assignar-se.
+
+(_O Tabellião torna a pegar nas escripturas_. _O Marquez, D. Felicia e
+Manuel Simões voltam aos seus logares, mas sem se sentarem_.--_Francisco
+e D. Maria Gertrudes estão á E.; Gonçalo e D. Maria Joanna á D.; Bocage
+na extremidade da D._)
+
+
+FRANCISCO (_a D. Maria Gertrudes_)
+
+Finalmente... vou firmar a minha ventura!
+
+
+GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)
+
+Ao menos... levo a esperança!
+
+
+BOCAGE (_pensativo e com os olhos nos dois pares_)
+
+E a mim... (_comsigo, dolorosamente, em quanto D. Maria Joanna que o
+observa, se lhe aproxima com Gonçalo Mendo, cuja attenção chama pelo
+gesto_) a mim... que me fica?
+
+
+D. MARIA JOANNA
+
+Fica-lhe... a posteridade!
+
+(_cae o panno_)
+
+
+FIM
+
+ * * * * *
+
+A propriedade d'esta peça no imperio do Brazil pertence a Francisco
+Pereira da Cunha Novaes.
+
+Rio de Janeiro, 1865.
+
+
+
+
+*Notas:*
+
+[1] Este periodo, e os seguintes, marcados com commas, supprimem-se na
+representação para abreviar as respectivas scenas.
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Os Primeiros Amores de Bocage, by
+José da Silva Mendes Leal
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE ***
+
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+Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
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+will be renamed.
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+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
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+set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
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+works. See paragraph 1.E below.
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+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
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+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
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+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
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+Literary Archive Foundation
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+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
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+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
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+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
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+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
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+any statements concerning tax treatment of donations received from
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+works.
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+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
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+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
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+
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+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
diff --git a/README.md b/README.md
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index 0000000..cf25e78
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+++ b/README.md
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+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #20725 (https://www.gutenberg.org/ebooks/20725)