diff options
| -rw-r--r-- | .gitattributes | 3 | ||||
| -rw-r--r-- | 20725-8.txt | 10679 | ||||
| -rw-r--r-- | 20725-8.zip | bin | 0 -> 106290 bytes | |||
| -rw-r--r-- | 20725-page-images.zip | bin | 0 -> 12599541 bytes | |||
| -rw-r--r-- | LICENSE.txt | 11 | ||||
| -rw-r--r-- | README.md | 2 |
6 files changed, 10695 insertions, 0 deletions
diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/20725-8.txt b/20725-8.txt new file mode 100644 index 0000000..9914385 --- /dev/null +++ b/20725-8.txt @@ -0,0 +1,10679 @@ +The Project Gutenberg EBook of Os Primeiros Amores de Bocage, by +José da Silva Mendes Leal + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Os Primeiros Amores de Bocage + Comedia em Cinco Actos + +Author: José da Silva Mendes Leal + +Release Date: March 2, 2007 [EBook #20725] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE *** + + + + +Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online +Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net + + + + + + + +OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE + +COMEDIA EM CINCO ACTOS + +POR + +JOSÉ DA SILVA MENDES LEAL + +(REPRESENTADA PELA PRIMEIRA VEZ NO THEATRO DE D. MARIA II EM 7 DE JUNHO +DE 1865) + + +LISBOA +TYPOGRAPHIA UNIVERSAL +MDCCCLXV + + + + +INTRODUCÇÃO + + +Tentando traçar os primeiros lineamentos caracteristicos de um grande +poeta, esboço a que serve de moldura uma época ainda pouco estudada, +desejou ao mesmo tempo o auctor compendiar n'esta peça os tres +principaes generos de comedia--a comedia de enredo, a comedia de +caracteres, a comedia de costumes. + +Dizendo-se que é uma comedia, bem se deprehende que não se coadunam com +as suas condições os lances violentos, que só pertencem ao drama. +Desejando-se que em tudo sahisse de feição portugueza, evidente se torna +que não podia entrar no seu quadro o expediente de inverosimeis +situações, que o theatro francez offerece com trivial abundancia. + +Não é porém a comedia uma biographia. Não podia apparecer n'ella inteira +a vida do poeta, com todas as modificações que os annos successivamente +exercem nos espiritos. Por isso não tem por titulo _Bocage_, senão _Os +primeiros amores de Bocage_; como para dizer--a aurora d'esse homem--um +homem egualmente singular pela indole e pelo ingenho. + +Aquelle homem, com effeito, encheu do seu nome o fim de um seculo e o +principio de outro. Era elle essencialmente o homem do futuro. A morbida +inquietação, progressivamente aggravada até ao desvario, vinha-lhe +naturalmente do estreito ambito de idéas em que o seu talento se +asphixiava! + +Para bem o comprehender cumpre ler-lhe attentamente a anciosa poesia, e +logo depois fixar a meditação e os olhos nas paredes negras da +Inquisição, em seu tempo erguidas ainda, e ainda ameaçadoras! + +Surgindo entre duas sociedades, uma que o instincto lhe adivinhava, +outra que em torno d'elle se alluia, foi a sua existencia um indeciso +protesto e uma turbida agonia. Os desvios dos annos ulteriores, +precipitando-o tão cedo na sepultura, fizeram-se o triste refugio de uma +actividade intellectual, convulsa de febre, comprimida de fóra, não bem +conscia de si. Os seus ultimos desregramentos apparecem-nos hoje como as +valvulas perigosas por onde se derramou, e brevemente se exhauriu, a +exhuberancia d'aquella alma + + «...--que sedenta em si não coube!» + +A comedia, tomando o poeta nos primeiros annos e nas generosas paixões +da mocidade, mede-lhe a grandeza do vulto pela grandeza dos impulsos, dá +aos seus mesmos defeitos a explicação elevada e nobre que só se póde ter +por verdadeira em tão alto e claro espirito, mas deixa sempre entrever o +germe fatal das futuras aberrações. + +Equivocar-se-ia de todo quem unicamente o quizesse ver segundo a +tradição que ficou do derradeiro periodo da sua vida, transmittindo-se +pela bocca dos que só então o conheceram e chegaram aos nossos dias. O +versista das trovas ao Chrispiniano, á Estanqueira do Loreto, e ao Antão +Broega, o vate plebeu dos sonetos ao Galina e aos novos árcades, não +exclue o admiravel poeta de _Leandro e Hero_, de _Areneu e Argira_, do +_Tritão_ e das Epistolas. A propria mobilidade do seu talento duplica, +multiplica as variantes d'um caracter, cujo principal distinctivo era a +excessiva impressionabilidade. + +Na comedia, Bocage mostra-se pelas duas faces essenciaes. Está n'isso a +verdade: o contrario seria grave erro de observação. Ninguem se +apresenta nas salas como na rua. Quando não houvesse esta distincção +natural, que é de todos os tempos, bastaria o que a respeito d'elle +escreveu o viajante Beckford, (que o tratou no tempo em que frequentava +a casa dos Marialvas) para tornar evidente como o fogoso mancebo, apesar +das suas singularidades, não podia ter ao despontar da vida desaprendido +o que recebera da educação paterna, que recordava com desvanecimento da +origem como provam alguns dos seus versos. + +Releu cuidadosamente o auctor os preciosos trabalhos dos srs. Castilhos, +Rebello da Silva, e Innocencio ácerca de Bocage; compulsou os documentos +respectivos ao poeta com tanta meudeza, que teve a fortuna de poder +rectificar a data da sua nomeação de guarda marinha para Goa, que não é +a de 1782 como se lê na biographia que precede a ultima edição, mas a de +31 de janeiro de 1786, como authenticamente se vê no proprio documento +official conservado nos archivos do ministerio da marinha; procurou +sobre tudo o segredo d'aquelle complexo caracter nos seis volumes que +encerram a collecção completa dos seus poemas, collecção inteirada pela +illustrada solicitude e zelo incansavel do nosso primeiro bibliographo, +o já citado sr. Innocencio. + +A variada feição da indole e talento de Bocage, o seu advento, e os +lances principaes da sua vida, alli com effeito se retratam. + +Aos 8 annos improvisava uma quadra, que não poderia ter chegado até nós +se não fosse logo repetida por apreciada, concluindo-se d'ahi que não +póde parecer prematura reputação a que elle goza já aos 19: + +Fui ver a procissão a S. Francisco, +A quem o vulgo chama da cidade, +E supposto o apertão, foi raridade +Que indo eu em carne não viesse em cisco. + +Logo no primeiro soneto da collecção exclama: + +Incultas producções _da mocidade_ +Exponho a vossos olhos, oh leitores; +Vede-as com magoa, vede-as com piedade, +Que ellas buscam piedade e não louvores; + +Ponderae da Fortuna a variedade +Nos meus _suspiros, lagrimas e amores_; +Notae dos males seus a immensidade, +A curta duração dos seus favores; + +E se entre _versos mil de sentimento_ +Encontrardes alguns, _cuja apparencia +Indique festival contentamento_, + +Crede, oh mortaes, que foram com violencia +Escriptos pela mão do Fingimento, +Cantados pela voz da Dependencia. + +Ninguem dirá, em presença d'esta dolorosa confissão, que lhe eram +extranhos os grandes affectos e os grandes pezares expressos na mais +alta e culta lingua; ninguem poderá persistir em consideral-o +exclusivamente homem de botequins e oiteiros, incapaz de outras +aspirações e outras praticas; ninguem em summa presumirá conhecel-o +melhor do que elle a si se conhecia. + +O soneto 99.^o do Livro I attesta como n'esse privilegiado ingenho se +revelou cedo a vocação, que cedo tambem o fez presado: + +Das faixas infantis despido apenas +Sentia o sacro fogo arder na mente. + +Se o testemunho d'elle não bastasse, removeria quaesquer duvidas o de +Philinto quando lhe escrevia: + +Lendo os teus versos, numeroso Elmano, +E o não vulgar conceito, e a feliz phrase, +Disse entre mim: «Depõe, Philinto, a lyra + Já velha, já cançada, +Que _este mancebo_ vem tomar-te os louros.» + +Manifesto é pois que a fama não esperou muito para apregoar o nome de +Bocage, e apregoal-o por voz tão auctorisada como esta, a que o moço +poeta respondia n'um rapto de enthusiasmo em que se está revelando +quanto o lisongeava tal suffragio: + +Fadou-me o gran Philinto, um vate, um nume! +Zoilos, tremei! Posteridade, és minha! + +O retrato physico de Bocage acha-se, além de outro inferior, no soneto +22.^o do Livro IV: + +Magro, de olhos azues, carão moreno, +Bem servido de pés, _meão_ na altura. + +O nome que mais frequentemente apparece nas suas queixas amorosas, +indicando uma preoccupação e predilecção pouco vulgar em homem tão +variavel, e consequentemente certificando que fôra aquelle o seu mais +intenso affecto, é justamente o nome de Gertruria. Enlevos, +desconfiança, zelos, saudades, presagios, alternam-se em impetuosos +arrebatamentos e sentidos desaffogos nos sonetos 13.^o, 18.^o, 23.^o, +37.^o e 57.^o do Livro I, e Gertruria é o objecto d'estas persistentes +recordações. Os sonetos 17.^o e 20.^o provam que, indo em viagem, é +ainda esta a memoria que lhe enche o espirito. O soneto 58.^o é uma +despedida a Gertruria na occasião de partir para a India. O soneto 47.^o +chora a ausencia da patria e de Gertruria. Finalmente o 83.^o, com o +respectivo mote, é o que o Bocage da comedia no segundo acto improvisa +sem mudança de uma virgula, e serve nas mãos astutas do commendador, por +intermedio do officioso mestre Amancio, para dar no 3.^o acto motivo aos +temporarios arrufos entre a supposta afilhada de D. Filicia e o filho de +Manuel Simões. + +Já portanto se vê que, só desconhecendo-se totalmente as obras do poeta, +se poderiam julgar destoantes do seu caracter estes amores, estes +versos, e a feição d'elles, pois que ahi se encontra, n'aquelle periodo +da sua vida, uma parte da sua propria individualidade com o que é mais +d'ella, ou antes no que é mais ella! + +Seria facil multiplicar infinitamente as citações das poesias que +authenticam, digamos assim, o caracter e a expressão que lhe deu o +auctor. Para que? Seria um estudo demasiadamente longo e prolixo; seria +peior, seria pôr em duvida a licção e criterio dos leitores. + +Poderia crer-se apenas um freguez do Izidro e do Nicola o poeta que ao +partir para Goa soltava esta enternecida e magnifica despedida? + +Amigos, patria minha, e lar paterno +Penates a quem rendo um culto interno! + Lacrimosos parentes +Qu'inda na ausencia me estareis presentes, +Adeus! Um vivo ardor de nome e fama +A nova região me atrae, me chama. + +Não diz elle as suas arrojadas esperanças e secretas penas n'este +quarteto tão cheio? + +Camões! grande Camões! quão similhante +Acho teu fado ao meu quando os cotejo! +Egual sorte nos fez, perdido o Tejo, +Arrostar co'o sacrilego gigante! + +Não deixa entrever, n'est'outro mavioso trecho, a par d'aquelles +grandiosos sonhos, a dôr mysteriosa que o impelle e o acompanha? + +_Eu parto_; e vou teu nome repetindo +Por que dê desafogo á magoa dura; +Meus tristes ais, suspiros de amargura +_Áquem dos mares_ ficarás ouvindo! + +De tudo isto se compõe o Bocage da comedia! + +Em torno d'elle, concorrendo a uma acção fundada nos costumes do paiz e +da época, grupam-se os typos que mais visivelmente representam os +sentimentos e tendencias coevas. De um lado as antigas tradições, +_ainda_ na sua grave pureza. De outro lado a degeneração variada, _já_ +mixturando os elementos d'onde surgirá a necessaria transformação. De um +lado o marquez de Marialva, D. Maria Joanna, Gonçalo Mendo; do outro D. +Felicia, o Commendador, o Morgado. Ao fundo a burguezia nascente, isto +é, Manuel Simões e seu filho,--o proprio Manuel Simões concebido e +desenhado por Garrett na _Sobrinha do Marquez_--quanto possivel guardado +e acatado como se guardam e acatam as tellas dos mestres--e só +passageiramente retocado com uma leve tintura de ambição, indispensavel +para indicar a progressão dos tempos, e os futuros destinos de tal +classe. Ao redor do todo, o povo em algumas physionomias rapidamente +esboçadas. Ao longe, como horisonte melancholico, uma idéa do são e +austero lar provinciano, com seus longes dos costumes patriarchaes e +fragueiros que lhe eram usual apanagio. + +Eis aqui resumido todo o pensamento e toda a economia da composição, que +depois de experimentar a fortuna do palco, vae agora experimentar a +fortuna da imprensa--duas temerosas experiencias. + +Expondo assim o conjuncto do designio, cujas multiplicadas difficuldades +calculou, não procura o auctor antecipar as desculpas, mas unicamente +assentar as responsabilidades. + +Se logrou o seu proposito não o dirá elle; decidil-o-ha o publico! + +O singular favor com que foi acolhido este ensaio n'um genero pouco +cultivado no nosso theatro, impõe ao auctor o gratissimo dever de +exprimir aqui (vedando-lhe o respeito outra menção) o seu profundo +reconhecimento para com o publico, indulgente e attento, que em todos os +seus tentames o tem acompanhado como um amigo fiel, ora animando-o com o +estimulo do applauso, ora advertindo-o com a benevolencia do conselho, e +que, de certo apreciando a obra mais pela intenção que pela valia, +recompensou os seus esforços por modo tal que lhe ficará indelevel +memoria. + +Á imprensa agradece tambem a benignidade com que até aqui o tem honrado. + +Á direcção do theatro normal testemunha quanto o penhorou a solicita +cooperação que n'ella encontrou. + +Seja-lhe finalmente permittido certificar á graciosa actriz, que fez com +a estreia da peça o seu beneficio, a sua inteira satisfação pela maneira +verdadeiramente distincta com que interpretou o seu variado papel e lhe +venceu as numerosas difficuldades, sendo a maior ter ao lado uma artista +tão conscienciosa e completa como a sr.^a Delfina, que do esboço +senhorilmente comico de D. Felicia tirou uma das suas mais acabadas +creações. + +Se a estas, pela primasia devida ao sexo, menciona o auctor em primeiro +logar, nem por isso esquece que deve egual agradecimento aos mais +actores, do primeiro até ao ultimo, tendo achado n'elles tamanho zelo, +que, mesmo graduando-os pela ordem dos meritos bem conhecidos, não +poderia especialisar um sem offender a boa vontade de todos. + +A comedia _Os primeiros amores de Bocage_, se Deus der vida ao auctor, +será o introito de uma trilogia, que se destina a abranger o mais +notavel da vida do poeta, e dos curiosos periodos coetaneos da historia +patria, até aos ultimos momentos d'elle em dezembro de 1805. + +Junho 12--1865. + + + + +ADVERTENCIA + + +Além dos córtes, effectuados antes da representação, que vão designados +com cômmas no impresso, a experiencia mostrou a necessidade de novas +reducções. Como estas reducções tiveram logar depois de completa já a +impressão dos respectivos actos, vão ellas aqui notadas para facilitar a +execução da peça em quaesquer theatros. + + + + +ACTO II + + +SCENA II + +Desde as palavras «estava de pedra e cal que se tinha já livrado» +(exclusivè) até começar a phrase: «dizem que ha ahi uma tal senhora +morgada, etc.» supprime-se tudo. + +E depois, egual suppressão desde as palavras: «se não póde chegar a um +rosicler de pedras» (exclusivè) até ao fim da scena. + + +SCENA IV + +Suppressão desde as palavras: «elle só bastára para dar a immortalidade +ao nome portuguez» (exclusivè) até onde Bocage diz: «ouça-me tambem, sr. +Gonçalo Mendo». + + + + +ACTO III + + +SCENA X + +Suppressão desde que o Commendador pergunta: «resolveu casar com sua +prima quanto antes?» (exclusivè) até prender onde o mesmo Commendador +diz: «chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que importa, etc.» + +Á phrase de Gonçalo Mendo, na scena 2.^a do 5.^o acto: «disse-me que ia +a Setubal despedir-se _dos paes_», phrase que por facil inadvertencia +escapou na composição e revisão, cumpre substituir est'outra: «disse-me +que ia a Setubal despedir-se do pae.» + +A mãe do poeta não existia já havia nove annos. + + + + +PERSONAGENS + + +O Marquez de Marialva, 72 annos Sr. _Rosa_ + +Manuel Simões, mercador, 69 annos Sr. _Theodorico_ + +Gonçalo Mendo de Sendim, da casa de Mendel, tenente de dragões de Campo +Maior, 33 annos Sr. _Tasso_ + +Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage, cadete do regimento de Setubal, +19 annos Sr. _Santos_ + +Bartholomeu Tojo, morgado da Gesteira, 44 annos Sr. _Cezar_ + +Sebastião de Brito Louzellos, commendador de S. Marcos de Monsarás, 52 +annos Sr. _Izidoro_ + +Francisco Pedro Simões, filho do Manuel Simões, 26 annos Sr. +_Coelho_ + +Um Transeunte Sr. _Corrêa_ + +Zé da Moita, guarda de montado, 30 annos Sr. _Pinto_ + +Luiz Manuel, escudeiro, 65 annos Sr. _Moreira_ + +D. Maria Joanna Galvão Lobo, morgada de Valmoreno, Fresnos e +Carregueiros, 23 annos Sr.^a _E. Adelaide_ + +D. Felicia Moutoso de Cerqueira, morgada da Torre da Palma, 48 annos + Sr.^a _Delfina_ + +Maria Gertrudes, sua afilhada, 20 annos Sr.^a _Marianna_ + +Tia Paschoa do Espirito Santo Sr.^a _Maxima_ + +Tia Vigencia da Purificação Sr.^a _C. Emilia_ + +Uma Palmilhadeira. Sr.^a _Maria das Dores_ + +Compadre Theotonio Alves Sr. _Marcolino_ + +Compadre Amancio Pires Sr. _Sargedas_ + +1.^o} { Sr. _Amaro_ +2.^o} POETAS { Sr. _Polla_ +3.^o} { Sr. _Soller_ + +1.^o} { Sr. _Vencancio_ + } MANCEBOS { +2.^o} { Sr. _Christiano_ + +O alcaide do bairro do Rogio Sr. _J. Antonio_ + +O tabelião + +Um cavalheiro + +O Almeirão } + } Picadores +O Gaeta } + +Um cego, pregoeiro de impressos Sr. _Farruja_ + +Um Volantim + +Um penitente + + +Um escudeiro do Marquez.--O mouro do Marquez.--O escudeiro de D. +Felicia.--Povo.--Convidados.--Damas.--Ronda do Alcaide--Criados, etc. + +1785 a 1786 + + +O COMMENDADOR (_atrás de D. Maria Joanna, do mesmo modo_) + +Bem... bem diz Xenophonte!... Nem eu sei o que diz! (_Deixa-se ir meio +desfallecido sobre outra cadeira á entrada da porta do F._) + +(_Silencio geral. Cada um dos tres personagens procura resfolegar e +reanimar-se_.) + + +D. MARIA JOANNA (_como tornando a si_.) (_Para os dois_) + +Que foi isto?... Como foi isto?... + + +MORGADO + +Pois não sentiu?--Um tiro... tropel de cavallos... + + +D. MARIA JOANNA + +E desappareceu tudo!... E deixaram-me só!... (_meio reprehensiva_) E o +primo a fugir! + + +MORGADO (_levantando-se_) + +Fugir eu, minha prima!... (_Formalisado_.) Fugir!... Seria a primeira +vez. + + +D. MARIA JOANNA (_recobrando gradualmente o bom humor_) + +Pois para a primeira não o fazia mal. + + +MORGADO + +Avistei esta casaria... Corria para aqui... para me fazer forte... para +nos fazermos fortes! + + +D. MARIA JOANNA + +Mas corria diante... E eu corri tambem... corri que nem eu sei... corri +devéras para o poder seguir... E até o commendador correu... Não correu, +commendador? + + +COMMENDADOR (_gravemente_) + +Affirmam boas auctoridades que muitas vezes é prudencia o correr... +_Pedibus celer_, diz Virgilio com louvor. + + +D. MARIA JOANNA (_sorrindo_) + +Já está mais em si, o commendador... Já não falla como toda a gente. + + +MORGADO (_com extrema volubilidade, que é o seu natural_) + +Mas, prima, que havia de fazer um homem só, n'aquelle descampado, contra +tanta gente!... Agora que venham. Dez, doze, vinte que sejam... + + +D. MARIA JOANNA (_erguendo-se como escutando_) + +Espere... + + +MORGADO (_assustado_) + +Que é? + + +COMMENDADOR (_idem, levantando-se e approximando-se á D._) + +Que é? + + +D. MARIA JOANNA (_Applicando o ouvido, aos dois que se lhe reunem em +grupo turbado_) + +Não ouvem? + + +COMMENDADOR + +Tropear de cavallos!... + + +MORGADO (_inquieto e interrogando as saidas com os olhos_) + +Não ter aqui a minha espada!... + + +D. MARIA JOANNA (_com leve ironia_) + +Perdeu-a? + + +MORGADO (_mais inquieto_) + +Não sei como foi... (_dirigindo-se apressadamente a uma porta lateral_) +Vou procurar uma arma. + + +D. MARIA JOANNA (_com terror dirigindo-se a outra_) + +Chame gente, primo. + + +COMMENDADOR (_que ficára escutando_) + +Vem subindo alguem! (_encaminhando-se desorientado á outra_). + +(_No momento em que os tres aterrados procuram debalde atinar com os +fechos das portas a que se dirigem, apparece ao F. Gonçalo Mendo_) + + +SCENA II + + +OS MESMOS _e_ GONÇALO MENDO + + +GONÇALO + +Da parte d'el-rei... nem mais um passo. + + +COMMENDADOR (_apegando-se á umbreira_) + +Ai! + + +MORGADO (_idem_) + +Jesus! + + +D. MARIA JOANNA + +Desmaiava... se tivesse onde. + + +GONÇALO + +Ninguem tente fugir ou esconder-se. Da parte d'el-rei está preso tudo. + + +MORGADO (_esperançado, comsigo, e ainda voltado para a porta_) + +Da parte d'el-rei! + + +D. MARIA JOANNA (_do mesmo modo_) + +Havia de jurar que me não é desconhecida esta voz. + + +COMMENDADOR (_voltando dissimuladamente o rosto, e procurando +reconhecer_) + +Da parte d'el-rei!... Então... + + +GONÇALO (_adiantando-se_) + +Vamos... Toda a resistencia seria inutil... + + +D. MARIA JOANNA, MORGADO _e_ COMMENDADOR + +(_voltando-se simultaneamente_) + +O sr. Gonçalo Mendo! + + +GONÇALO (_attonito_) + +Que é isto! (_affirmando-se e reconhecendo-os_) Na verdade não sei se +acredite... A sr.^a D. Maria Joanna Galvão!... O sr. morgado da +Gésteira!... O sr. commendador Louzellos!... E eu que pensava colher um +bando de salteadores!... (_a D. Maria Joanna sorrindo_) Não são os +salteadores? + + +D. MARIA JOANNA (_recobrando a jovialidade_) + +Somos os assaltados. Respondo-lhe por elles.--Agora diga-me antes de +tudo. Que aventura é esta? Como veiu aqui? Onde estamos? Diga. Foi +terrivel o susto, mas ainda é maior a curiosidade. + + +GONÇALO + +Responderei logo; perguntarei primeiro. Estes senhores pódem auxiliar as +explicações, e eu completo o meu dever. Vinham de jornada e foram +atacados alli em baixo, na estrada, ao fundo do valle, entre a ribeira +d'Aviz e o azinhal grande? + + +COMMENDADOR (_no seu caracter habitual de prolixa gravidade_) + +Fomos. Tinhamos jantado em Portalegre, onde mais nos detivemos do que +deviamos. E não foi por eu não repetir ao morgado, com a auctoridade de +Cicero: «nos negocios graves são perigosas as demoras.» Jornadas, em boa +razão, são graves negocios. + + +MORGADO (_no seu caracter de costumada loquacidade_) + +A que proposito vinha o tal Cicero, ou o que é, quando eu tinha +conseguido pôr na meza á prima, em Portalegre... em Portalegre, como se +estivessemos na côrte!... tudo por diligencias minhas, tudo com receitas +minhas!... uma ôlha á castelhana, um prato de gallinhas de alfitete, +outro de coelho á Fernão de Sousa, outro de arteletes de vitella, outro +de coroa real de folhado francez, sem contar as miudezas... Em jornada +nem princezas teriam melhor, hade confessar, sr. Gonçalo Mendo... Não, +que se não fôra a minha consummada pratica n'estas coisas... + + +D. MARIA JOANNA + +Estavamos ha uma hora em Monforte... e provavelmente não nos tinha +succedido o que nos succedeu. + + +MORGADO (_desconsolado_) + +Ah! prima! + + +GONÇALO (_a D. Maria Joanna_) + +Não me queixarei eu do succedido. (_Aos homens_.) Vamos ao caso... + + +COMMENDADOR + +Era já ao pôr do sol e estavamos quasi ao meio do azinhal, a sr.^a D. +Maria Joanna com a sua aia n'uma liteira, nós dois e dois criados, todos +a cavallo, um pouco atrás uma azemola com as bagagens mais leves, e um +moço de pé... + + +MORGADO + +Bagagens leves!... Leves serão, mas preciosas!... Mil coisas +necessarias!... Uma bateria de cosinha de viagem como não ha outra ainda +em Lisboa... completa... completa... Fôrmas, facas, espatulas, agulhas, +passadores... Nem na uxaria de Salvaterra!... E tudo precaução minha +para commodidade da prima, tudo... + + +GONÇALO (_interrompendo_) + +Vamos ao caso... vamos ao caso, commendador. + + +COMMENDADOR + +A meio do azinhal, pouco mais ou menos, onde a estrada faz um cotovelo e +se aperta entre os montes, damos de rosto com uns poucos de homens +armados... + + +MORGADO + +Poucos!... Quinze eram pelo menos... vinte talvez... vinte de certo, se +não eram mais... + + +GONÇALO (_atalhando impaciente_) + +O numero pouco importa. + + +MORGADO (_protestando_) + +Importa pouco! Para o valor o numero... + + +COMMENDADOR + +O numero não é indifferente... Por não ser indiferente se distinguiu em +singular e plural... Basta ver o que a respeito do numero escreveu +Prisciano Cesariense... mas n'este caso... + + +D. MARIA JOANNA + +N'este caso, continúo eu... ou não se acaba.--Parámos. O morgado e o +commendador vinham ainda um pouco distantes, penso. Os homens fazem +menção de nos cercar a liteira. A minha aia desmaia. Os liteireiros +fogem pelo azinhal, e creio que os criados tambem. Emfim achei-me não +sei como a pé na estrada. N'isto o commendador caiu... + + +COMMENDADOR + +Dei de esporas para acudir, e tropeçou-me o cavallo... + + +D. MARIA JOANNA + +Muito a tempo. + + +MORGADO (_que espreitava a occasião, apoderando-se da palavra_) + +No meio d'estes apuros, conservo toda a presença d'espirito... deito á +carreira, faço parada firme, ponho pé em terra n'um relance, com todos +os preceitos... os tres tempos velozes em meio circulo seguido... +levanto o commendador que estava tolhido pela sella... não indago +mais... a pé mesmo levo da espada, e caio como um raio sobre a malta... +Ah! que se tenho tempo! Duas voltas, um cambiamento, treta sobre treta, +talho e revez, e ensinava-lhes o que é o morgado da Gésteira com a +espada na mão!... A prima veria... Por seu respeito!... Veria... Não +digo mais! + + +D. MARIA JOANNA + +Veria... estou certa. Mas não vi. Foi pena. Apagou-se o raio antes de +fulminar! + + +GONÇALO (_a D. Maria Joanna_) + +Depois? + + +D. MARIA JOANNA + +Depois... nem eu sei bem... ouviu-se um galope... um tiro, creio... O +morgado diz que foi um tiro... + + +MORGADO + +Foi... Por signal, com o estrondo os nossos cavallos, que tinhamos +deixado soltos na estrada, fugiram á desfilada... + + +D. MARIA JOANNA + +Dando exemplo aos cavalleiros. Fugiram os cavallos, fugiram os +salteadores... se eram salteadores... já tinha fugido o commendador, +fugiu o primo, e eu, que estava desatinada, confesso, vendo-o fugir... +segui-o. Debandada geral... Não se ria, sr. Gonçalo Mendo... Segui-o, é +verdade, a correr, a bom correr, eu mesma, por essas ladeiras acima, por +entre o matto... E tive folego!... Veja que forças dá o terror, e como +eguala as condições!... Por fim viemos dar todos aqui. Póde explicar-me +o enigma? + + +MORGADO + +Tive a imprudencia de não trazer armas de fogo. Estava apeado, não +esperava dois ataques ao mesmo tempo... Mettido assim entre os +salteadores que nos esperavam, e o outro bando que atirou sobre nós... +Senti assobiar a bala aos ouvidos. + + +GONÇALO + +Admira. Disparei para o ar. + + +MORGADO (_surpreso_) + +Disparou! + + +D. MARIA JOANNA + +Então o outro bando era o sr. Gonçalo Mendo! + + +GONÇALO + +Eu mesmo. Voltava de Marvão, com duas ordenanças do meu regimento, em +direcção a Monforte. Ao descer a encosta avistei um ajuntamento na +estrada... Não podia distinguir bem, porque estava distante ainda, e já +começava a escurecer o valle com a sombra do arvoredo... Metti a galope, +e desconfiei que era ataque a passageiros. Disparei então uma das +pistolas para dar aviso de soccorro, e prevenir alguma ousadia maior. +Não esperava tão grande resultado. N'um instante desappareceu tudo... +menos a liteira e a sua aia, minha senhora! + + +D. MARIA JOANNA + +Jesus! é verdade! A minha pobre Anna Maria! Que é feito d'ella?... Com o +sobresalto, com tudo isto, quasi me tinha já esquecido. + + +GONÇALO + +Tornou a si... Acompanha-a um dos meus dragões... Vem ahi já. Nem pode +acreditar ainda, que esteja viva. + + +D. MARIA JOANNA + +E os ladrões, os criados, os liteireiros... + + +GONÇALO + +Dos ladrões, nem vestigios... Parece que se abriu a terra com elles... + + +MORGADO (_que escutava attentamente, comsigo_) + +Ainda bem! + + +GONÇALO (_fitando-o_) + +Como? + + +MORGADO + +Nada, nada... Explica-se tudo perfeitamente. Ainda bem, dizia eu. Ainda +bem que se explica, está visto. + + +GONÇALO + +Os liteireiros e os criados... deixei a outra ordenança incumbida de +procural-os, e esses de certo não hão de estar longe. + + +D. MARIA JOANNA + +E como veio aqui ter, tanto a proposito? + +(_Vae carregando a noite_) + + +GONÇALO + +Porque vi que se acoitavam n'esta casaria alguns vultos... e por... +(_mais baixo_) por destino talvez! + + +D. MARIA JOANNA (_idem, motejando_) + +Como ha dois annos? + + +GONÇALO (_gravemente e com ardor_) + +Como sempre! + + +D. MARIA JOANNA (_afastando a conversação_) + +Mas a final, onde estamos? Que havemos de fazer? + + +GONÇALO + +Em primeiro logar... procurar luz. É noite quasi. Sr. Morgado da +Gésteira, a casa tem ares de habitada. Se quizesse... + + +MORGADO + +Pois não. Eu chamo. (_Successivamente e a intervallos, ás portas da D._) +Olé! Oh!... ó de casa. Venha alguem? Está aqui o morgado da Gésteira!... +Está uma senhora!... Gente de bem, tudo!... (_Silencio absoluto_.) Nem +viv'alma! + + +GONÇALO + +Estarão longe... + + +COMMENDADOR + +É singular! + + +D. MARIA JOANNA (_inquieta_) + +Será a propria guarida dos salteadores! + + +GONÇALO + +Tem-se visto, mas não é provavel... Vamos, sr. morgado. Veja se acha uma +luz. Bem reconhece que não posso ir eu. Está aqui uma dama, e agora, +como militar, respondo pela sua segurança. + + +MORGADO (_irresoluto_) + +Assim é, mas... (_sem se atrever a ir_) Commendador, mais vêem dois do +que um. + + +COMMENDADOR + +«Não é a luz dos olhos a que mais vê», como diz... + + +GONÇALO (_instando_) + +Então! Cada vez se faz mais escuro, e não sabemos onde estamos. + + +MORGADO (_resolvendo-se_) + +Vamos, commendador, antes que seja noite de todo! Por aqui... (_indo á +E._) Uma varanda... (_indo á D._) d'este lado um corredor... Vamos a +ver. + +(_Saem os dois pela 1.^a porta da D._) + + +SCENA III + + +GONÇALO, _e_ D. MARIA JOANNA + +(_Longo silencio como se receiassem quebral-o_) + + +D. MARIA JOANNA + +Sr. Gonçalo Mendo, é ainda submisso como d'antes jurava? + + +GONÇALO + +Nunca faltei a nenhum juramento. + + +D. MARIA JOANNA + +Tornamos a vêr-nos em circumstancias extraordinarias... n'um ermo a bem +dizer... entre sombras e mysterios... Não lhe permitto uma palavra de +galanteio ás escuras... Estão entre nós... + + +GONÇALO (_gravemente_) + +Estão tres seculos de honra... está a espada de um soldado.--Faz-me a +injuria de suppôr necessario advertir-m'o? + + +D. MARIA JOANNA + +Não. Desculpe. É ainda do sobresalto! Desculpe. Conversemos.--Estava bem +longe de me encontrar, não? E assim, e aqui muito menos? + + +GONÇALO + +Só adivinhando. Suppunha-a ainda em Paris. + + +D. MARIA JOANNA + +Volto de lá. Um mez de jornada, faça idéa! Se não posso aturar o mar! + + +GONÇALO + +Um mez!... Entre o commendador e o morgado? + + +D. MARIA JOANNA + +O commendador... + + +GONÇALO + +Uma reminiscencia das academias do sr. D. João V... a quem Deus +perdôe... + + +D. MARIA JOANNA + +Ao sr. D. João V? + + +GONÇALO + +Não, minha senhora, ás academias. + + +D. MARIA JOANNA + +O morgado... + + +GONÇALO + +A casca dos antepassados... que não teve. + + +D. MARIA JOANNA + +Já vejo que os conhece a fundo. + + +GONÇALO (_ponderando dolorosamente_) + +Um mez em tal companhia!... A fadiga do caminho é nada ao pé d'isso. + + +D. MARIA JOANNA + +Um mez com o commendador, que o meu contra-parente D. Vicente de Sousa +Coutinho incumbiu de acompanhar-me, attendendo á sua edade, e que +emprehendeu render-me á força de erudições... um dia com o morgado, que +encontrei em Porto de Espada, e que foi esperar-me á raia, não sei se +por sua conta, se por ordem de minha tia D. Felicia, a quem escrevi de +Paris. + + +GONÇALO + +Ao menos foi só meio supplicio no mez! + + +D. MARIA JOANNA + +Ai! o dia do morgado tem valido bem o mez do commendador. Imagine. È um +nunca acabar de proezas em cavallaria, em... esgrima, em altanaria, em +monteria e em... gastronomia, como se diz em França. Com o pretexto de +um parentesco... de que eu não tinha noticia... quer-me captivar pelas +artes como o commendador pela sciencia. + + +GONÇALO + +Concluo d'ahi que tenho n'elles dois... dois... Como direi?... + + +D. MARIA JOANNA + +Rivaes. Póde dizer. Não tem risco. + + +GONÇALO + +Em summa, requestam-n'a ambos! + + +D. MARIA JOANNA + +O commendador dês que partimos de Paris... O morgado dês que nos saiu ao +encontro na fronteira... + + +GONÇALO + +Complicando o galanteio... ambulante. + + +D. MARIA JOANNA + +Pelo contrario: simplificando-o. Distraem-se mutuamente, e deixam-me +respirar. Dois são menos perigosos que um. + + +GONÇALO + +E tres? + + +D. MARIA JOANNA + +Menos perigosos que dois. Já lhe esqueceu o promettido? (_Pausa_.) Ambos +pertendem a minha mão, é verdade... porque n'esta mão, com ser pequena, +cabe a herança de tres casas. + + +GONÇALO (_simplesmente_) + +Não me lembrava! + + +O MORGADO (_fóra_) + +Prima! Prima! + + +D. MARIA JOANNA + +Ouve? Temos temporal de palavras. + + +SCENA IV + + +OS DITOS, MORGADO _e_ COMMENDADOR + +(_Ambos com luzes--Clarea de novo a scena_) + + +MORGADO + +Prima. Achámos luz. + + +GONÇALO + +Não é difficil verifical-o. + + +MORGADO + +E não só achámos luz, fizemos um grande descubrimento. (_Vão pôr as +luzes no bufete_.) + + +D. MARIA JOANNA + +Não foi o novo mundo? + + +MORGADO + +Não foi o novo mundo. Foi um mundo antigo... um canto d'elle... muito +seu conhecido... A prima mal se podia lembrar. Não o vê de pequenina... +E eu mesmo... Se não venho por aqui ha bons quinze annos!... + + +D. MARIA JOANNA + +Vamos, acabe. Encontrou gente? + + +MORGADO + +Gente! Ninguem. Um deserto.--Quer saber onde estamos? + + +D. MARIA JOANNA + +Porque não começou por ahi? Não vê que estou morta de impaciencia? + + +MORGADO + +Deus me livre de a molestar na minima coisa, prima. Quizera antes... +brigar commigo! Bem sabe que para lhe evitar um dissabor... uma sombra +d'elle, um... (_Gesto de impaciencia de D. Maria Joanna_.) Já vou, +prima. Lá vae.--Quer saber onde estamos? Estamos no paço da Torre da +Palma! + + +D. MARIA JOANNA + +Em casa de minha tia D. Felicia? + + +MORGADO + +No seu proprio solar. Não ignorava que era para estes sitios, mas deram +nova direcção á estrada, e lá em baixo não me occorreu... Depois, quando +entrámos, com o lusco-fusco... + + +D. MARIA JOANNA (_maliciosa_) + +Com a perturbação... + + +MORGADO + +Nem reparei sequer. Agora, entrando por ahi dentro, quiz-me parecer que +me não era estranho o corredor... tópo uma escada, e dá-me ares de +conhecida... desço, entro n'uma casa lageada, e cada vez se me afigura +mais familiar o piso... Procuro, acho vélas, accendo, ólho em redor... +Era a cosinha... foi um raio de luz... + + +GONÇALO (_sorrindo_) + +Pudéra! Na cozinha! + + +MORGADO + +Tantas vezes jantei n'esta casa!... Fui eu que dei as receitas de fartes +e de manjar real á Dorothéa!... Foi alli que ensinei o Fernandes velho a +fazer perdizes de gigote, quando vinha caçar com seu tio capitão mór... + + +D. MARIA JOANNA + +Memoraveis recordações!... Admira como não reconheceu logo a casa. + + +MORGADO (_machinalmente_) + +Com a perturbação... (_emendando-se_) com o escuro, quero dizer... E era +tão novo ainda n'aquelle tempo!--Não se lembra de seu tio João, de +Carregueiros? Parece-me estar vendo ainda o sr. capitão mór, João +Alvares Lobo, sempre sisudo, e sempre triste... triste como a noite!... +Tudo por quê? Por não deixar filho varão para herdeiro, (_a D. Maria +Joanna_) e por causa da paixão de sua tia D. Felicia pelos donaires... +Nunca se viram dois genios mais oppostos... Elle todo monteador e +fragueiro; ella toda côrte e mimos!... Teimava o capitão-mór em +eternizar, na Torre da Palma, os costumes do tempo em que era castello +fronteiro a casa. A sr.^a morgada D. Felicia não tinha senão um fito... +ser açafata no Paço. + + +D. MARIA JOANNA + +E já é? + + +GONÇALO + +Espera ainda ser. Ha treze annos que espera. + + +MORGADO + +Na filha unica via o capitão-mór a continuação provavel da indole de sua +mulher, e a ruina dos proprios intentos. + + +D. MARIA JOANNA + +Tenho idéa de ouvir dizer que por isso se apartaram. + + +MORGADO + +Por isso, certamente. Foi ella viver na côrte como desejava. Elle +deixou-se ficar, não consentindo que sua tia levasse a filha... +provavelmente para a criar a seu modo... Ficou pois... Mas como +ficou!... Esta casa um ermo, elle uma sombra.--Levou-o mais cedo á +sepultura aquelle desgosto! + + +D. MARIA JOANNA + +E a pequenina? + + +MORGADO + +Tinha dezoito mezes apenas. Tratava d'ella aqui a Joaquina Simôa, filha +de um matteiro de Carregueiros, que havia dois annos casára com o Luiz +Manuel, o escudeiro da Torre da Palma... A creança morreu, e seu tio +pouco mais durou... Ha bons quinze annos isto... dezeseis talvez! + + +D. MARIA JOANNA + +E dezesete porque não? Apezar de mais moço, meu pae havia casado muito +antes de meu tio João. Tinha eu os meus seis annos feitos por esse +tempo, e lembra-me bem de ouvir contar. Foi por morte do tio João e da +filha herdeira, que as casas de Fresnos e Carregueiros passaram para meu +pae, na qualidade de immediato successor. Não é isto? + + +MORGADO + +É. Vivia ainda seu irmão Nuno Alvares, quando morreu o capitão-mór. Ao +menos acabou persuadido de que as terras dos seus iam a herdeiro varão, +como tanto desejava. + + +D. MARIA JOANNA + +Deus tinha disposto d'outro modo. Meu irmão Nuno morreu ainda menino +tambem.--O morgado não é menos forte em genealogias... patrimoniaes... +do que em esgrima, e no resto.--Minha tia D. Felicia nunca mais voltou +aqui? Fui cedo para Lisboa, casei aos quinze annos, e parti logo com meu +marido para a embaixada de Vienna d'Austria, onde elle era secretario. +Desejo informações. + + +MORGADO + +Sua prima? Não voltou. A côrte é o seu encanto, e esta casa só lhe +lembrava desgostos. Haverá dez annos mandou ir para a sua companhia a +pequena da Simôa, que é sua afilhada. Tem o mesmo nome que tinha a +filha, e nasceu pelo mesmo tempo... Recordações... saudades +provavelmente. + + +D. MARIA JOANNA + +E a Joaquina Simôa? E o Luiz Manuel? Tenho ainda uns longes d'elles. + + +MORGADO + +Ficaram por feitores da casa. + + +D. MARIA JOANNA + +E não apparecem, essas reliquias de outro tempo?... Procure-m'as, +commendador... procure-as morgado... Ah!... (_como achando uma idéa_) +Estarão ellas encantadas? Querem vêr que estão!... Desencantem-m'as. + + +MORGADO + +Se não mudaram os costumes, foram ao terço a Vayamonte, e não tardam. + + +D. MARIA JOANNA + +Sabemos onde estamos, e estamos em morada da familia... Não é pouco, mas +não é tudo. Agora que fazemos? Monforte fica ainda longe? + + +GONÇALO + +Meia legoa, o muito. + + +D. MARIA JOANNA + +Não me fio n'estas meias legoas.--Visto que nos podemos julgar a +salvo... (_a Gonçalo_.) Podemos? + + +GONÇALO + +Sempre o julguei. + + +D. MARIA JOANNA + +Acho-me um pouco moída das carreiras que dei atraz do morgado; e não sei +se é do susto, se do ar, se da jornada, sinto uma fraqueza que... que +está solicitando com empenho a intervenção e o soccorro da famosa +ucharia... (_para o morgado_) Não seria occasião de experimentar alguma +das receitas?... Qualquer coisa. + + +MORGADO + +Preveni tudo... Vem tudo nas bagagens, muito bem acondicionado... +Servir-lhe-hei duas ades estilladas, frias, que são um primor, e um +queijo de presunto, que verá... sem contar um prato de broas d'ovos que +tinha de reserva. + + +D. MARIA JOANNA + +Ouviu já fallar no supplicio de Tantalo, morgado? + + +COMMENDADOR + +Tantalo, rei da Lydia, filho de Jupiter e de Plotis. + + +MORGADO (_sériamente_) + +Não conheço o sujeito, mas tratarei de fazer o seu conhecimento, se é +pessoa de bem. + + +D. MARIA JOANNA + +Não é preciso.--Tantalo ardia em sede, e fugia-lhe a agua que via +proxima; devorava-o a fome, e retiravam-se d'elle os fructos que tinha á +vista... Assim estamos nós... Tão boas coisas nas bagagens, e as +bagagens por montes e valles! + + +GONÇALO (_que parecia escutar_) + +Perdoe! (_Continua a applicar o ouvido_.) + + +D. MARIA JOANNA + +Novidade? + + +GONÇALO (_saindo precipitadamente_) + +Volto já. + + +SCENA V + + +OS DITOS _menos_ GONÇALO + + +D. MARIA JOANNA + +Mais inquietações ainda! + + +COMMENDADOR (_turbado_) + +Não agoiro nada bom... Ouço rumor se me não engano... + + +MORGADO + +Não tem a gente um momento de socego. (_comsigo_) Dar-se-ha caso que +devéras... (_alto_) Isto está como nunca... Anda tudo minado de +malfeitores! + + +COMMENDADOR (_com o ouvido attento_) + +Que ha rumor lá fóra, ha! + + +D. MARIA JOANNA + +Assim é que me tranquillisam! + + +SCENA VI + + +OS DITOS _e_ GONÇALO + + +D. MARIA JOANNA (_assustada_) + +Que foi? + + +GONÇALO + +São as suas bagagens. Não é caso de consternar, creio. + + +D. MARIA JOANNA (_meio enleiada ainda_) + +De certo não. + + +GONÇALO + +Teve alguma coisa? + + +D. MARIA JOANNA + +Não tive...--Tive... tive os terrores chronicos do morgado e do +commendador. + + +MORGADO (_protestando_) + +Terrores! Cuidados pela prima. + + +D. MARIA JOANNA (_aos dois_) + +Hão de acabar por me tornar convulsa. + + +GONÇALO + +Chegou a sua aia, voltaram os liteireiros, e appareceu o criado do sr. +morgado. Não falta senão o do sr. commendador. + + +COMMENDADOR + +Esse não me dá cuidado. É dos sitios. + + +GONÇALO + +Tantalo tem férias? + + +D. MARIA JOANNA + +Tem.--A minha Anna Maria? + + +GONÇALO + +Entrou para os quartos inferiores. + + +D. MARIA JOANNA + +Já agora aqui pernoitamos, commendador! + + +COMMENDADOR + +É o mais prudente, se o sr. Gonçalo Mendo nos assegura... + + +GONÇALO + +Basta que esteja em Monforte de madrugada. Eu e as minhas ordenanças +ficamos de guarda a esta casa. + + +D. MARIA JOANNA + +O Luiz Manuel não póde tardar. Sempre ha de haver modo de não ficarmos +peior do que em Monforte. + + +MORGADO + +Ha, pois não... Hade haver onde a prima se accommode como cumpre. Nós... + + +GONÇALO + +Nós em qualquer parte e de qualquer maneira. + + +MORGADO + +Como homens de guerra. + + +D. MARIA JOANNA + +Que poeira trago... reparo agora!--Commendador... minha prima havia de +ter um quarto de toucar... Quer dizer à Anna Maria que suba e procure. + + +COMMENDADOR + +Procurarei eu mesmo (_galanteando_). Pretende Tibullo... + + +D. MARIA JOANNA (_atalhando_) + +Ai! o morgado que faz que não vae acudir ás ades... ás ades... Como é? + + +MORGADO + +Estilladas, prima, estilladas... Vou. Já vou. Deus me livre de entregar +coisas d'estas a lacaios nem mochillas... Vou no mesmo instante. + + +COMMENDADOR (_indo para sair pela D., e mirando desconfiado Gonçalo +Mendo_) + +Dar-se-ha caso que...--Póde lá ser...--Um soldado! + + +MORGADO (_idem, á porta do F_.) + +Querem vêr que...--Ora... um filho segundo! + + +SCENA VII + + +D. MARIA JOANNA _e_ GONÇALO + + +D. MARIA JOANNA (_que tem ido sentar se na cadeira junto ao bufete, +acompanhada de Gonçalo, que fica de pé_) + +Não está cançado, sr. Gonçalo Mendo? + + +GONÇALO + +De quê? + + +D. MARIA JOANNA + +Estou eu... creio que estou. + + +GONÇALO + +Com um mez de jornadas!... + + +D. MARIA JOANNA + +Não é das jornadas. + + +GONÇALO + +Será dos companheiros? + + +D. MARIA JOANNA + +Será.--Continuemos a conversar em quanto elles não veem, os +companheiros. + + +GONÇALO + +A respeito de quê? + + +D. MARIA JOANNA + +Do que lhe parecer. + + +GONÇALO + +Sem restricção? + + +D. MARIA JOANNA (_indicando_) + +Agora temos luzes.--Diga-me alguma coisa de Lisboa. Hade estar +informado. + + +GONÇALO + +Sahi de lá ha quinze dias, e volto antes de oito. Vim á provincia em +commissão apenas. Estou ás ordens do conde de Aveiras. + + +D. MARIA JOANNA (_distrahidamente_) + +Que se faz? que se diz? + + +GONÇALO (_encostando-se-lhe ao espaldar da cadeira_) + +Hade-se dizer em breve que possue Lisboa a perola das formosas e +discretas... que já Paris admirava, e agora fica invejando. + + +D. MARIA JOANNA + +Cumprimentos! + + +GONÇALO + +Bem sei que a enfadam já por continuados.--Cumprimentos não, prophecias. + + +D. MARIA JOANNA + +É moço para propheta... e ninguem o é na sua terra. + + +GONÇALO + +O que se faz?... Deixe-me vêr... (_como recordando-se_) Não se faz nada. + + +D. MARIA JOANNA + +Pois nada? + + +GONÇALO + +O mesmo sempre.--A rainha, minha sr.^a, vae a Salvaterra, e sae ás suas +devoções. De tempos em tempos opera em Queluz. Fóra d'isso a nau de +viagem de anno a anno, e... e acabou-se. É assim depois que morreu o +marquez de Pombal. Ao principio ainda se entretinham em ter medo d'elle, +mesmo depois de desterrado. Agora até essa distracção falta. + + +D. MARIA JOANNA + +Ai! sr. Gonçalo Mendo, desculpe. Está ali uma cadeira convidando-o... e +ahi um logar a esperal-o. (_Indica o lado opposto do bufete. Gonçalo vae +buscar a cadeira, e senta-se no ponto designado_.) Não lhe parece que +estaremos melhor?--São ainda moda os abadeçados? + + +GONÇALO + +Uma vez por outra. Agora estão em voga as assembléas.--Como lhe hade +parecer tudo isto semsabor! + + +D. MARIA JOANNA (_sériamente_) + +Engana-se. Sempre são ares nossos. Não sabe que me trazem saudades? + + +GONÇALO (_com intenção_) + +De...? + + +D. MARIA JOANNA (_accentuando_) + +Da patria. + + +GONÇALO + +E sentimento digno de tal dama. Mas depois sempre se hade lembrar d'esse +Paris, que era já tão seu. + + +D. MARIA JOANNA + +O Paris que viu ha dois annos vae de dia para dia degenerando... Os +requebros são curtidos em philosophia... as canções tem um sabor de +finanças... Que distracção para damas!... + + +GONÇALO + +Amortalharam então a galanteria franceza com a Dubarry? + + +D. MARIA JOANNA + +Que está dizendo! Seria leval-a de caixão á cova. A galanteria +sobrevive; mas agora tem por figurino a sensibilidade... e anda de braço +dado com uma coisa nova, que veiu ha pouco de Inglaterra, e que se +chama... (_recordando-se_) chama-se?... (_occorrendo-lhe_) philantropia. +Sabe o que é? + + +GONÇALO + +Um nome que trescalla a grego. Hade sabel-o o commendador.--Acredita na +sensibilidade de figurino? + + +D MARIA JOANNA + +Não; nem na philantropia de apparato. + + +GONÇALO + +N'isso se occupam agora os francezes!... Substituiram isso aos +madrigaes?... Pois não ganharam na troca. Estou tentado a preferir-lhes +as nossas formalidades ronceiras... a nossa rustiquez e lhaneza... Por +fim de contas, são coisas de casa... e muito de bom tem algumas. + + +D. MARIA JOANNA + +Prefiro-as eu. Por isso vim. + + +GONÇALO + +E bem haja que veiu! (_admirando-a_) Vem, ainda mais formosa do que era +ha dois annos, quando fui levar officios de gabinete á embaixada de +Paris... Lembra-se? + + +D. MARIA JOANNA + +Tinha-se levantado o cerco de Gibraltar! + + +GONÇALO + +Só isso lhe lembra?... Vem prendada de todos os primores do espirito, de +todas as graças da beleza, e não consente... + + +D. MARIA JOANNA (_detendo-lhe a palavra com o gesto_) + +Escute! Cuidei que era já o commendador... Quer ver se o commendador com +effeito achou o quarto?... + + +GONÇALO (_Ergue-se vivamente_. _Pausa_. _Contemplando-a_.) + +É cruel! (_Nova pausa_. _Com visivel despeito_.) Vou procurar o +commendador. (_Encaminha-se á D._) + + +D. MARIA JOANNA (_levantando-se como por effeito de reflexão_) + +Não. Espere. O commendador era capaz de pensar que não posso passar +cinco minutos sem a sua presença. + + +GONÇALO (_voltando esperançado_) + +Dispensa-a então... por óra? + + +D. MARIA JOANNA + +Por mais um instante. (_Vae sentar-se no canapé_.) + + +GONÇALO (_defronte, de costas para o bufete, fitando-a_) + +Porque me obriga a dissimular commigo mesmo? Porque me força a estes +colloquios frivolos? É isto para nós? Não sabe que só a bocca lhe +responde, porque tenho a alma e o sentido n'outra coisa? + + +D. MARIA JOANNA (_depois de pausa_) + +Tem razão. É-lhe absolutamente indispensavel fallar-me do que já me +disse ha dois annos em Paris? Pois fallemos... Fallemos.--Dei-lhe então +esperanças? + + +GONÇALO + +Nenhumas, é verdade. + + +D. MARIA JOANNA + +Dei-as a alguem? + + +GONÇALO + +Rodeam-n'a as homenagens como a soberana... é agradavel. Sorri a +todos... mas fica a todos insensivel... tambem sei! + + +D. MARIA JOANNA + +Insensivel!... Uma pedra, porque não?... Um gelo dos Alpes, vamos... +Diga, diga... Se não o diz, pensa-o.--Somos insensiveis para estes +senhores, nós outras, quando não nos declaramos humildemente rendidas +apenas se dignam dar-nos um signal de preferencia... Nascemos para seu +desenfado... «Sorri a todos»!... Vejam! Uma causa crime, completa só +n'esta phrase: «sorri a todos»! Olhem o attentado! Queriam que +chorassemos sempre? Queriam que _os_ chorassemos!... E quando +choramos... Nem eu digo!--Sentenciado a pena ultima, o nosso sorriso. +Sentenciado porquê?... Não sabem que nas mulheres o sorriso anda perto +das lagrimas!... Deixem-nos ao menos esse raio de luz entre chuveiros... +como o sol de inverno. + + +GONÇALO + +Poderia responder-lhe que mais commodo do que ter amor é deixar-se +amar... Mas não digo... não me queixo... nada peço. Está na sua mão não +preferir ninguem?... Não o está impedir que lhe queiram... mesmo sem +esperança. Porque não serei eu d'esses? + + +D. MARIA JOANNA + +O sr. Gonçalo Mendo!...--Sente-se ahi. Vamos, sente-se. Quero +confessal-o. + + +GONÇALO + +E dá-me a penitencia antecipada! + + +D. MARIA JOANNA + +Verei depois a que merece... segundo o arrependimento. + + +GONÇALO (_com esperança, fazendo menção de ajoelhar_) + +As culpas dizem-se de joelhos. + + +D. MARIA JOANNA (_vivamente_) + +Sente-se. Os culpados começam por obedecer. Isso. Vamos a saber: +(_solemnemente_) é verdade que por occasião da sua ida a Paris desafiou +em Versailles um capitão dos guardas francezes, e o deixou tres mezes de +cama com uma estocada? + + +GONÇALO + +É verdade. Foi para lhe provar que as parisienses não eram as primeiras +entre todas as damas, como elle pertendia. + + +D. MARIA JOANNA + +E porque não seriam? + + +GONÇALO + +Tinha cá as minhas razões. + + +D. MARIA JOANNA + +Boas razões haviam de ser. Como se estiveramos ainda no tempo dos +Magriços! + + +GONÇALO + +Os Magriços em Portugal são de todos os tempos. + + +D. MARIA JOANNA + +É verdade que o anno passado, quando se festejou o casamento do sr. +infante D. João com a sr.^a infanta D. Carlota, n'uma corrida de touros +no paço da Murteira, saiu ao terreiro de espada na mão, e a pé, sem mais +capa nem defesa, chamou a si o animal furioso, e matou-o de um golpe, só +para que elle não pozesse os pés n'um lenço, que da varanda havia caido +a uma dama? + + +GONÇALO + +É verdade. A dama tinha sessenta annos. + + +D. MARIA JOANNA (_incredula e motejando_) + +Sessenta annos! + + +GONÇALO + +Mas chamava-se D. Mencia Jorge, e o lenço tinha bordado um _M_ e um +_J_... as suas iniciaes. + + +D. MARIA JOANNA (_lisonjeada_) + +Ah! (_Pausa_.) Mais... + + +GONÇALO + +Mais ainda? Devo agradecer a curiosidade, que se informou... ou a +informou... com tanta miudeza a meu respeito? + + +D. MARIA JOANNA + +Deve responder.--É verdade que um dia, amotinando-se o regimento de +Meklemburgo... servia então lá... o tenente-coronel... um allemão, +creio... ficou só, ameaçado dos soldados enfurecidos? É verdade que +unicamente um alferes se atreveu a collocar-se ao lado do commandante, +com tal resolução e bizarria, que o exemplo envergonhou os sublevados, e +a firmeza do official salvou a vida ao tenente-coronel? + + +GONÇALO + +É verdade. O alferes cumpriu o seu dever, nada mais. + + +D. MARIA JOANNA + +Mas dizem que n'esse dever lhe serviram de estimulo os olhos azues da +irmã do tenente-coronel. Será assim? + + +GONÇALO + +É. Foi. Ha quantos annos? + + +D. MARIA JOANNA + +Eu sei!... + + +GONÇALO + +Ha seis. (_a D Maria Joanna_.) Não a conhecia ainda. + + +D. MARIA JOANNA + +Ahi está... «Não a conhecia ainda!» O estribilho costumado. É como +todos. + + +GONÇALO + +Pouco mais ou menos. Se imagina uma especie differente... Sou um simples +mortal, confesso humildemente. + + +D. MARIA JOANNA + +É... é todo verduras e temeridades... Por uns olhos affrontar um +regimento!... Por uma palavra provocar os melhores espadas de França!... +Por um lenço arriscar-se a ficar nas armas de uma fera!... Póde lá +dispôr da sua mão, um homem assim?... Para trazer sempre a mulher em +vesperas de viuvez! + + +GONÇALO (_encantado_) + +Oh! se isso fosse uma esperança! + + +D. MARIA JOANNA + +Deus me defenda.--Quando me começavam a florir os annos, casaram-me com +um homem... que já ia desfolhando os seus. Deixei patria e familia aos +dezoito. Achei-me viuva aos vinte. Acolhendo-me a casa de minha prima, +na nossa embaixada em Paris, senti sinceramente a falta do companheiro e +protector. Mas d'esta alliança... da primavera com o inverno... podem +ter-me ficado memorias que me façam desejar novo captiveiro? + + +GONÇALO + +Não o captiveiro, mas a compensação. + + +D. MARIA JOANNA + +Quem m'a assegura? + + +GONÇALO + +Quem? A constancia. + + +D. MARIA JOANNA + +Que diria a isso a allemã? + + +GONÇALO + +Ama-se devéras uma só vez. Quer-me crer? Amo-a assim eu. Digo-lh'o +singelamente, chãmente, cá de dentro, á moda da minha provincia, como um +verdadeiro transmontano.... Deixe-me desabafar. Esta vez, e +acabou-se.--Não sei que pense, não sei se espere... Unicamente sei que +não posso deixar de... + + +D. MARIA JOANNA + +Ia repetir. + + +GONÇALO + +Tem razão. Para quê? + + +D. MARIA JOANNA + +Interrompe a confissão? + + +GONÇALO + +Visto que me não absolve... (_interrogando D. Maria com os olhos; +silencio d'esta_.) Vou ter com o commendador. + + +D. MARIA JOANNA (_que deitára os olhos para dentro debruçando-se no +canapè_) + +Não é preciso; elle ahi vem. + + +SCENA VIII + + +OS DITOS _e o_ COMMENDADOR + + +D. MARIA JOANNA + +Então achou? + + +COMMENDADOR + +Está remediado. Não é um _boudoir_, como lá diziamos em França, mas póde +passar. Eu mesmo ajudei a pôr tudo em ordem. + + +D. MARIA JOANNA + +O sr. Gonçalo Mendo permitte? + + +GONÇALO (_inclinando-se_) + +Minha senhora! + + +D. MARIA JOANNA + +Escuso dizer-lhe que ceia comnosco... Desculpa de certo o incommodo que +lhe tenho dado, e preciso agradecer-lhe a companhia que me tem feito. +(_ao commendador_) Ha luzes no corredor? + + +COMMENDADOR (_galanteando_) + +Tudo prevenido, como quem sabe o que n'estes pontos convém. Marcial, que +tão bem conheceu os gyneceus de Roma, dá a respeito dos adornos +femininos informações preciosas.--Acompanho-a? + + +D. MARIA JOANNA (_relanceando os olhos a Gonçalo_) + +Obrigada. (_ao commendador_) Quer ir ver se descarregaram as bagagens, e +mandar-me ao quarto as minhas malas? + + +GONÇALO (_vendo o commendador hesitar_) + +Aproveito a occasião para fazer accommodar as ordenanças. + +(_Gonçalo dirige-se ao fundo_. _D. Maria Joanna á D. O morgado apparece +á porta d'entrada do F._) + + +SCENA IX + + +OS DITOS _e o_ MORGADO + + +MORGADO (_ainda fóra da porta, mas á vista do espectador, como reparando +e fallando para dentro_) + +Levantem o animal... Puxa-lhe a arreata, Jacintho... Tirem-lhe o resto +da carga... Fortes alarves!... (_Entra_.) + + +D. MARIA JOANNA (_que parou á porta da D_.) + +Que mais temos, sr. morgado? + + +GONÇALO + +Deixaram deitar-se a azemola... Um instante que eu falte!... Mas não tem +duvida já... Arrecadaram-se os comestiveis. (_voltando ao F. a +observar_) Lá está a mula a espojar-se... Levantem-n'a, levantem-n'a. + + +D. MARIA JOANNA + +Commendador, as minhas malas! Acuda ás minhas malas! Cá as vou esperar, +e não tardo. (_Sae pela D._) + + +SCENA X + + +OS DITOS _menos_ D. MARIA JOANNA + + +COMMENDADOR (_ao morgado_) + +Sr. morgado, as malas? + + +MORGADO (_a Gonçalo_) + +Sr. tenente, as malas? + + +GONÇALO + +Cada qual no seu officio! (_Sae_.) + + +SCENA XI + + +OS DITOS _menos_ GONÇALO + + +MORGADO + +Então, commendador, as malas da prima. Eu não posso servir para tudo! + + +COMMENDADOR (_tomando o seu partido_) + +Bem dizia Socrates, atheniense, «que a mulher é como o altar»: nunca +está bastante ornada (_para sahir_) E com razão a definia o famoso Julio +Cesar Scaligero, de Verona... (_Sae_.) + + +MORGADO (_seguindo-o_) + +Muito melhor canta o nosso rifão «com a mulher e o dinheiro, não zombes +companheiro.» + + +SCENA XII + + +MORGADO _só_ (_voltando_) + +Bem te percebo, meu feixe de maximas velhas e sentenças occas!... Bom +signal é que de mim te receies... Pressentes que te foge a presa... E +não ha 48 horas ainda!... O que fará d'aqui a dias... Pudéra! similhante +deposito de latins e de catarros, ao pé d'um homem da minha tempera, +moço ainda, bem posto, prendado e cavalleiro!... (_esfregando as mãos_) +Está certa, Bartholomeu Tojo, morgado da Gésteira... está caida. Pódes +ir encommendando sege á boleia... Sege de côrte e sege de campo!... A +fallar a verdade vem a tempo... era tempo. Iam-se já os últimos torrões! +(_esfregando as mãos_) O que é ter artes e astucias!... + + +SCENA XIII + + +MORGADO _e_ ZÉ DA MOITA + + +ZÉ (_deitando a cabeça pela porta da E. em voz baixa e cauteloso_) + +Sr. morgado... Pschiu!... eh! sr. morgado! + + +MORGADO (_assustado_) + +Que é? (_voltando-se e dando por elle_) Tu, homen! (_inquieto_) Que +queres? + + +Zé (_entrando_) + +Está só? + + +MORGADO + +Não vês? Vae-te, que póde vir gente. Como vieste aqui parar? + + +ZÉ + +_Ê sê_ as trilhas de cór e salteado. Vinha em sua _précura_. + + +MORGADO + +Porquê? Para quê? + + +ZÉ + +Ê que lá a rapaziada está levada de quantos démos ha. O Manuel da +Brazia, o Domingos Picanço, o Chico d'Alter, o João Gallego, o Timotheo +d'Alcaraviça... aquillo é todos á uma. + + +MORGADO + +Deixou-se apanhar algum? + + +ZÉ + +_Q'al_! Bem alma tinham para isso os cavallarias, que não sabem caminho +nem _carrêra_. A gente _mettemo-nos_ pelo azinhal dentro... pés para que +te quero... Fossem lá pôr mais a vista em cima a nenhum. D'ali a um +credo estava tudo junto no barranco de baixo, ao fundo da Fonte da +Fornalha, ahi ao pé da azinhaga da herdade. + + +MORGADO (_inquieto_) + +Pois sim, mas que me queres? + + +ZÉ + +Como eu é que _les fallê_ por conta do sr. morgado... + + +MORGADO + +Avia-te. Não te dei já o que ajustámos? Quantos eram? + + +ZÉ + +Eram sete... commigo oito. + + +MORGADO + +Dei-te uma moeda. Um cruzado novo para cada um, e dois para ti. O resto +para beberem. + + +ZÉ + +Ai! senhor!... Se os ouvisse! + + +MORGADO + +Não estão contentes? + + +ZÉ + +Contentes! Ficaram derramados!... Andam na mente que os _enganê_... que +não era uma _brincadêra_, como o sr. morgado me disse... que foi uma +fidalga que nós fizemos cara de assaltar na estrada... que dá brado o +caso e que se mettem n'isso as justiças... que o sr. morgado o que +queria era fazer de pimpão sem perigo, á custa dos rapazes... que pódem +ficar agora todos mettidos em trabalhos... e que torna e que deixa... +Ih! Jesus!... um dia de juizo! + + +MORGADO + +Por esta não esperava eu! + + +ZÉ + +_P'ra_ mais ajuda, um dos criados foi-se direito a Vayamonte, e achou lá +o sr. juiz ouvidor com uma escolta do regimento de Setubal... +_Contou-le_ tudo pelos modos... e os rapazes dizem que o melhor é ir +pedir perdão, porque a final elles não teem culpa, e o sr. morgado ha-de +contar a verdade. + + +MORGADO (_atterrado_) + +Pelo amor de Deus, homem. Vae ter com elles... Anda, depressa, vae. +(_comsigo_) Que não diria minha prima!... (_a Zé_) Para que haviam de +fazer tal? Ninguem os conheceu. + + +ZÉ + +Pois sim! Não ha quem os accommode. Como _pesquê_ que os senhores tinham +_botado_ para aqui, lá _assoceguê_ a gente _dizendo-le_ que esperassem +todos um nada, que vinha fallar com o sr. morgado. + + +MORGADO + +Mas se te veem aqui!... + + +ZÉ + +Não tem _duveda_. _Ê_ conheço o feitor, e já fui guarda cá da casa. O +Timotheo d'Alcaraviça é que está mais perro. Tem lá a sua _aquella_ que +ninguem _le_ põe o pé adiante, (_elevando a voz_) e como o sr. morgado +quiz assim fazer pouco da rapaziada... + + +MORGADO (_afflicto_) + +Mais baixo. Que precisão tens tu de gritar? + + +ZÉ + +Bem _sê_ que não era a valer... Se fosse... ai... se fosse!... Mas um +_home_ é um _home_, e... + + +MORGADO (_inquieto_) + +Está bom, está bom... Se lhes désse mais?... + + +ZÉ (_coçando a orelha_) + +_Ê sê_!... tão bravos como estão!... Talvez se accommodassem pedindo +eu... talvez.--Mais quanto? + + +MORGADO (_com esforço_) + +Uma peça. + + +ZÉ + +Uma peça! Quanto faz uma peça? + + +MORGADO (_ponderando_) + +Quinze cruzados novos menos oito tostões. + + +ZÉ + +Quinze?... (_comsigo, contando pelos dedos_) menos... (_resolutamente_) +Tem-n'a ahi?... + + +MORGADO (_mostrando-lh'a_) + +Aqui está. + + +ZÉ (_fazendo-lhe cara_) + +Em oiro? + + +MORGADO + +Se não tenho troco! + + +ZÉ + +Tem a gente de ir trocal-a a Evora, que lá na villa, se nos vêem com +isto, são capazes de pegar logo a desconfiar... + + +MORGADO (_perdendo a cabeça_) + +Então como ha de ser? + + +ZÉ (_tocando-lhe familiarmente com o cotovelo_) + +Ó sr. morgado, a fidalga tem uns olhos!... Ella sempre vale as duas +loiras! (_elevando a voz_) Se vem a saber que foi tudo fingido... +hein?... + + +MORGADO + +Cala-te! (_fitando-o_) Com que então... (_comsigo_.) A final o assaltado +sou eu. (_Alto_) Aqui tens duas peças. (_Dá-lhe as duas_.) + + +ZÉ (_respeitosamente_) + +Não manda mais nada o sr. morgado? + + +MORGADO + +A casa do feitor é para esse lado. Olha não te encontre. + + +ZÉ + +É o mesmo. Não desconfia, já _le_ disse. Até mais ver! (_sae_) + + +MORGADO + +Vae com Deus! (_depois de o vêr sair_) Os demonios te levem, tratante! + + +ZÉ (_tornando a deitar a cabeça_) + +Chamou? + + +MORGADO (_impaciente_) + +Vae com Deus! vae com Deus! (_Zé sae definitivamente_.) + + +SCENA XIV + + +MORGADO + +Que tal é a lição! O susto que me pregaram os cavallarias... cuidar que +andava tudo por ahi cheio de salteadores deveras... e ainda mais +esta!... Calam-se, agora calam-se: é o seu interesse... O que o +desalmado quiz foi... E gabem-me a singeleza dos rusticos!... Tomára que +succedesse uma d'estas aos srs. poetas de Lisboa, que não fazem senão +deitar lôas á innocencia pastoril... Que remedio! O que lá vae lá vae... +E foram-se as peças!... E o que não rirão á minha custa, os malandrins, +quando as beberem!...--Por fim de contas vale a pena... Se vale... Vale +a pena de tudo... + + +SCENA XV + + +MORGADO, _e_ LUIZ MANUEL (_da E_) + + +MORGADO (_vendo-o_) + +Outro!... (_reparando_) Um retrato do tempo d'el-rei D. Pedro!... +(_conhecendo-o_) Ai! o Luiz Manuel. + + +LUIZ MANUEL (_Trajo do tempo de D. João V, tristeza profunda, sisudez +inalteravel_.) + +Bem vindo seja á casa da Torre da Palma, o sr. morgado da Gesteira. Que +estava aqui me disse um guarda do monte, que topei agora como nos +tornavamos do terço. Já não è isto o que era, porque a sr.^a morgada... +«gota a gota o mar se esgota», e quem em maio relva, fica sem pão nem +herva.» Mas... ella é senhora do que é seu!... E eu venho só a dizer a +Sua Mercê que, se bem «onde senhores empobrecem, criados padecem», tudo +o que ha na casa e na quintan está ás ordens do sr. morgado, e mais da +fidalga companhia que traz, a julgar pelo arruido que por ahi vae. + + +MORGADO + +Boa companhia trago com efeito. Como no tempo do sr. capitão-mór! + + +LUIZ MANUEL + +Como no tempo do sr. capitão-mór, que Deus haja!... Isso já lá vae, e +não volta... Não volta... Nem conhecia o sr. morgado, se me não +avisam... Que annos ha! E como assim nos enterramos n'este ermo!... +Tanto faz. Como o outro que diz: «ainda que nos não fallemos, bem nos +queremos.»--O sr. morgado precisa alguma coisa? + + +MORGADO + +Já por ahi procurámos e dispozemos do que encontrámos... São ainda +necessarias roupas, talheres... + + +LUIZ MANUEL + +Ha de apparecer tudo... Tudo?... tudo o que resta. Fizeram bem em se ir +logo servindo... Haviam de achar as chaves nas portas... Era o costume +antigo, bem sabe. + + +MORGADO + +Achámos. Extranhei até... Estando aqui sós... + + +LUIZ MANUEL + +Não tem perigo. Pouco ha já que fechar e arrecadar. Vasios quasi, os +taleigos que andavam de cogulo... a bem dizer no fundo, as arcas d'antes +a arrebentar de fartas. Não será como então, que melhor se podia dizer: +«em casa cheia depressa se faz a ceia.» Mas o que ha, o que houver... É +a vontade da sr.^a morgada... decerto ha de ser. Com ir ahi tudo por +agua baixo... que nem sei já se virei a cerrar os olhos n'esta casa onde +nasci... ella a final sempre é quem é... (_como para atravessar para a +D._) Vou dar ordem a... (_parando de repente e com tom consternado_.) +Queria, sr. morgado, mas não posso... Queria pôr a alma e a vida no que +me cumpre, já que a Torre da Palma está sem amos... Eu bem conheço que +«hospedes em casa dia santo é»... mas... mas... Estou velho, faltam-me +as forças! «Uma coisa se deseja e outra é bem que seja.» + + +MORGADO + +Tem alguma coisa, Luiz Manuel? + + +LUIZ MANUEL + +Eu não, sr. morgado. É a minha Simôa... Isto de viver assim vinte annos +juntos, deita raizes cá dentro!... + + +MORGADO + +Pois... que lhe succedeu? + + +LUIZ MANUEL + +Mal acabou o terço, a minha Simôa foi á sacristia buscar um papel, que +pelos modos tinha encommendado ao nosso padre cura do Vayamonte... Eu +estava á porta á espera... Mal vinha a sair, entra-me a tremer, a tremer +toda, a torcer-se como um vime, e a revirar os olhos, e a sumir-se-lhe a +falla, e sem se poder ter!... Aquillo não é senão olhado que lhe +deram!... Foi preciso trazel-a em braços, e lá ficou em baixo na cama... +(_lembrando-se de subito_) Ai! Jesus! esta cabeça como está com tanta +coisa de repente!... Então não me esquecia?... Quando o moço passou por +nós, e nos advertiu que estava cá o sr. morgado da Gesteira, tornou +assim mais a si a minha Simôa, e disse... (_como recordando_) Queira +Deus que me lembre... Foi isto: «É parente da sr.^a morgada... pede-lhe +que venha ver-me, pede-lhe Luiz... Tral-o hoje aqui a Providencia!» Foi +isto, foi! + + +MORGADO + +E não m'o dizia? Vamos já. (_comsigo_) Porque será? + + +LUIZ MANUEL + +Pois o sr. morgado quer?... Aquillo é tresvario do mal! + + +MORGADO + +Sua mulher assim!... Vamos. (_comsigo_.) Para que será? + + +LUIZ MANUEL + +Como o outro que diz: «o pequeno mal espanta, o grande amansa.» Deixei +gente com ella. A obrigação primeiro. E a obrigação era... + + +MORGADO + +Dispenso-o eu d'ella... Vamos, vamos. Depois se tratará do mais. + + +LUIZ MANUEL + +Agora é o sr. morgado quem manda. (_Sae_. _O morgado vae a seguil-o, +entra Gonçalo e Bocage_.) + + +GONÇALO (_da porta_) + +Sr. morgado. + + +MORGADO (_saindo vivamente_) + +Já volto. Volto já! + + +SCENA XVI + + +GONÇALO, _e_ BOGAGE + + +BOCAGE + +Quem é? + + +GONÇALO + +Uma singularidade, emparelhada com outra que hade ver logo.--Não o +esperava aqui, sr. Bocage. Vem mesmo por ordem do Ouvidor? + + +BOCAGE + +Mesmo por ordem do Ouvidor. Faz trez semanas que me aquartelei em +Monforte, n'um destacamento do meu regimento. Esta manhã o sr. Juiz +Ouvidor de Villa Viçosa, que está em correição na villa, saiu a +Vayamonte, e trouxe comsigo uma escolta em que eu vim. Ha pouco chega lá +um homem todo esboforido... Um criado ouvi que era... D'ahi a um +instante o sr. Ouvidor manda-me chamar em pessoa, e envia-me com quatro +soldados aqui, para proteger não sei que fidalga que vem de jornada... O +encargo póde ser lisongeiro, mas confesso que o dava a todos os demonios +quando deitei por esses fraguedos abaixo. Agora, encontrando-o, meu +tenente, dou-me por pago de tudo... Informei-me, e disseram-me que se +tinham recolhido n'esta casa os viajantes. (_reparando_) Que casa santo +Deus!... Dá-me ares de ter escapado ao diluvio... Pois a mobilia!... Da +arca de Noé a trouxeram para aqui, certamente!... E aquelle canapé... +Que canapé!... Um canapé? Um monumento!... + +«Quando a velha antiguidade +Dentro n'esta sala entrou, +Disse áquelle canapé: +Sua benção, meu avô!» + + +GONÇALO + +Bravo, sr. Bocage. Não se lhe estanca a veia por estes desertos do +Alemtejo. O mesmo sempre! + + +BOCAGE + +O mesmo diz? Estou a ponto de cair em melancolia... britanica. Mulher +que se alberga n'uma habitação d'estas é por força como ella. Uma mumia, +não? Uma curiosidade archeologica... uma contemporanea das pyramides... +Não me diga quantos annos tem. + + +GONÇALO + +Vinte e tres annos, viuva, todos os dotes do espirito, todas as graças +da formosura, todos os primores de duas côrtes. + + +BOCAGE + +Tudo isso! Aqui?... Aqui!... + + +GONÇALO + +De passagem. + + +BOCAGE + +Não diga mais, meu tenente. Quer-me fazer apaixonar, ou está já +apaixonado. + + +GONÇALO + +Isso estão quantos a vêem. + + +BOCAGE + +Severa ou jovial? + + +GONÇALO + +Um porte que infunde respeito, uma afabilidade esmaltada de sorrisos. +Não ha temeridade que se lhe atreva, nem isenção que lhe resista. + + +BOCAGE + +Esse enthusiasmo faz-me tremer! Uma perfeição! + + +GONÇALO + +Um enigma. + + +BOCAGE + +Enigma ou mulher, o mesmo é. + + +GONÇALO (_olhando para dentro_) + +Eil-a! + + +BOCAGE + +O enigma. + + +GONÇALO + +A perfeição. + + +SCENA XVII + + +OS DITOS, D. MARIA JOANNA _e o_ COMMENDADOR + + +GONÇALO + +Se dá licença, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão, apresento-lhe o sr. +Manuel Maria Barbosa de Bocage, cadete do regimento de Setubal, que lhe +traz recado do sr. Juiz Ouvidor de Villa Viçosa. + + +D. MARIA JOANNA + +O sr. Juiz Ouvidor teve noticia de nós, e digna-se pensar em mim! + + +BOCAGE + +Dever é de todo o homem proteger as damas. Mais ainda quando o homem é +magistrado. Mais ainda quando as damas são de tal qualidade.--Por sua +ordem e em seu nome venho. Infelizmente não chego a tempo de ser util. + + +D. MARIA JOANNA + +Se não é já necessario auxilio, o sr. cadete vem sempre a tempo de +receber os meus agradecimentos, e os do sr. commendador de Monsarás... +(_Os homens inclinam-se, cumprimentando-se_) que me acompanha... para os +transmittir á estremada cortezia do sr. Juiz Ouvidor.--Está aqui ha +muito? + + +BOCAGE + +Ha um instante. Os meus soldados esperam as ordens de v. s.^a + + +D. MARIA JOANNA + +Soldados! Mais? Temos uma guarnição completa. Coitados! Mande-os +descançar. + + +BOCAGE + +Estão já descançando. + + +D. MARIA JOANNA + +N'esse caso, o sr. cadete demora-se tambem. + + +BOCAGE (_inclinando-se_) + +Mandaram-me ficar ás ordens! (_baixo, a Gonçalo_.) Tinha rasão. +Gentilissima! + + +GONÇALO (_a Bocage, do mesmo modo_) + +Inflammado já? (_alto_.) Apresentei-lhe o militar, permitta-me agora que +lhe apresente o poeta... O sr. Bocage é conhecido, e já apreciado, pelo +seu estro brilhante... um estro que se revelou desde a infancia... Nem +só em França se frequenta o Parnaso. Aqui tem um moço que nasceu poeta. + + +BOCAGE + +Como outros nascem vesgos ou tartamudos.--Talvez seja assim, se a +amizade do sr. tenente o não cega, ou me não favorece... mas talvez +tambem a segunda apresentação prejudique a primeira. + + +D. MARIA JOANNA + +Porque? As armas e as musas não são inimigas, que eu saiba. + + +COMMENDADOR + +Horacio esteve na batalha de Philipes, o Suetonio foi escriptor e +guerreiro! Ainda que Pittaco, um dos sete sabios da Grecia, dizia «os +validos de Marte são a injustiça e a violencia» não deixou o grande +Plutarcho de escrever «que os Lacedemonios pintavam Pallas armada» posto +serem uma só Pallas e Minerva. + + +BOCAGE (_contemplando-o abysmado, a Gonçalo em voz baixa_) + +Este quem é? + + +GONÇALO (_idem_) + +A outra singularidade! + + +BOCAGE + +Que pena ter estudado! Forte asno se perdeu ali! + + +D. MARIA JOANNA + +«N'uma das mãos a pena, n'outra a espada,» diz, creio eu, o nosso +Camões, poeta e soldado tambem. + + +BOCAGE + +Ahi está um _tambem_ capaz de inventar orgulho no mais modesto... se o +não tomasse á conta de exageração obsequiosa. (_a Gonçalo, baixo_) +Venus, disfarçada em viajante! + + +D. MARIA JOANNA + +Exageração! Em que? Por ler vivido fóra da patria não lhe desaprendi a +lingua, nem lhe desestimo as glorias. + + +BOCAGE (_lisongeado_) + +D'essas glorias não participo eu, como obscuro ainda. + + +GONÇALO + +Não tanto, sr. Bocage! + + +D. MARIA JOANNA + +_Ainda_? Não ha n'essa palavra a consciencia do que é? a confiança no +que será? As musas não deixam muito tempo sem gloria os seus +predilectos. + + +BOCAGE + +Sabe se sou d'esses? + + +D. MARIA JOANNA + +Adivinho-o. Deixa-me vaticinar-lh'o? + + +BOCAGE (_com enthusiasmo_) + +Bastaria o vaticinio para inflammar o estro. + + +D. MARIA JOANNA + +Deveria provar-me que tenho razão. Em França estima-se a poesia, e eu +venho sequiosa da nossa. Era dar-me as boas vindas. + + +GONÇALO + +Ninguem melhor do que o sr. Bocage. É não só poeta, mas improvisador. + + +D. MARIA JOANNA + +Como em Italia. + + +GONÇALO + +Ainda ha pouco... + + +BOCAGE (_atalhando-o_) + +Por quem é! (_a D. Maria Joanna_) Vem de França, v. s.^a? + + +D. MARIA JOANNA + +De Paris. + + +BOCAGE + +Francez era meu avô; com as musas francezas me creou minha mãe... Somos +quasi conhecidos. + + +D. MARIA JOANNA + +Bocage!... Não me é novo o appellido. Não tem em França parentes? + + +BOCAGE + +Tenho. Uma segunda tia materna... Bocage tambem por seu marido. + + +D. MARIA JOANNA + +Já sei. A sr.^a D. Marianna, auctora do poema da _Columbiada_... coroada +ha annos em Ferney pelas proprias mãos de Voltaire... E queixa-se de lhe +faltar a gloria! + + +BOGAGE + +Agora não me queixo. Ainda que não seja minha essa gloria, é meu o +proveito d'ella. + + +COMENDADOR (_que tem disfarçado alguns signaes d'impaciencia, murmurando +comsigo_) + +Coroada por Voltaire!... Boa prenda hade ser!... + + +BOCAGE (_que não ouviu bem, mas que lhe notou o gesto, a Gonçalo_) + +Antipathiso formalmente com a singularidade! + + +D. MARIA JOANNA + +A poesia é hereditaria nos seus, já vejo. + + +GONÇALO + +De ambos os lados. Seu pae o dr. José Luiz Soares de Barbosa adorna a +toga com a lyra, e é um dos discipulos mais estimados de Souto-Mayor. + + +BOCAGE (_sorrindo_) + +É doença de familia, não o nego. Doença chronica, e por isso incuravel. + + +D. MARIA JOANNA + +Em França diz-se: _noblesse oblige_. A poesia, que é nobreza tambem, +está a obrigal-o. + + +BOCAGE (_exaltando-se progressivamente_) + +A poesia... A poesia é a lingua dos deuses, e a historia do mundo. É o +raio omnipotente de Jupiter, e o carro fulgurante de Apollo. N'ella, em +todos os tempos, teem cantado os homens as suas alegrias, teem chorado +as suas dores, teem perpetuado os seus feitos, teem immortalisado as +suas catastrophes. N'ella começou a balbuciar a humanidade; n'ella +fundou os monumentos que desafiam os seculos. A poesia é a expressão do +que ha mais intimo no coração e mais celestial no pensamento; é +magnificencia e harmonia; é arrebatamento e seducção; esplendor pela +fórma, delicia pelo som. É resumo de quantas artes levantam o homem ao +Olympo; sentimento para a alma, idéa para o espirito, imagem para os +olhos, musica para o ouvido, enlevo para todos os sentidos! Seria a +poesia a unica lingua digna de saudal-a, minha senhora, se a mais +completa poesia não fosse a propria formosura. (_recrescendo_) Deve ser +a poesia... + + +COMMENDADOR (_que durante esta falla passeou ao F. indo á janella_) + +Não quer que lhe feche esta janella, sr.^a D. Maria Joanna? Estão frias +as noites, e o ar por aqui traspassa. Dos ares montesinhos, diz o +insigne Columella... + + +D. MARIA JOANNA (_atalhando-o impaciente e reprehensiva_) + +Commendador! + +(_O commendador approxima-se tirando a caixa de rapé_.) + + +BOCAGE (_reprimindo um gesto furioso e como continuando_) + +Mas a poesia, como dama, tem os seus dias, tem os seus momentos, tem os +seus caprichos. É rainha, e não serva. Impéra, não obedece. Se vae +arremessada no vôo, se a fazem colher as azas e baixar á terra (_fitando +o commendador_)... para tropeçar na impudencia, ou no ridiculo... faz-se +allegoria, faz-se apologo; é epigramma, é satyra; fustiga, flagella, +punge, dilacera, fulmina... e segue, a sorrir desdenhosa, deixando +atascada no seu lodaçal immundo a sandice enfatuada e grosseira!... + + +COMMENDADOR (_sorrindo dubiamente e saboreando a pitada_) + +Hypotypóse arrojada! Já Democrito, philosopho da Thracia, dizia... o que +quer que seja similhante... ao divino Hypocrates, natural da ilha de +Cós! (_Bocage vae para replicar arrebatado_. _Entra o morgado_.) + + +SCENA XVIII + + +OS DITOS _e o_ MORGADO + + +MORGADO (_com um papel na mão, que esconde apenas vê os que estão em +scena_) + +Grande novidade, prima! Grande novidade! + + +GONÇALO (_que observou tudo_) + +Diversão a tempo. + + +D. MARIA JOANNA (_ao morgado_) + +Como as do costume? + + +MORGADO + +A mulher do Luiz Manuel que está muito mal! Perdeu já a falla. + + +D. MARIA JOANNA + +Tão mal a pobre Simôa!... Commendador, sr. Gonçalo Mendo, venham, +venham. + + +MORGADO + +Póde ir logo, prima. A sua refeição hade estar prompta! + + +D. MARIA JOANNA + +Quando me diz que temos ahi uma creatura em perigo! Enlouqueceu? (_aos +outros_) Vamos... (_como lembrando-se, e detendo-se_) Sr. cadete... +qualquer dos seus soldados póde ir buscar o cirurgião á villa. + + +GONÇALO + +Que monte a cavallo um dos dragões: irá mais depressa. + + +D. MARIA JOANNA + +Vamos, venham. (_Sae, e o commendador pela E._) + + +BOCAGE (_baixo, apressado e a Gonçalo_.) + +Uma nympha! uma deusa! Estou doido por ella. Tem só um defeito... + + +GONÇALO (_indicando o commendador_) + +A singularidade? + + +BOCAGE + +A asnidade, digo eu. (_Sae pelo F._--_Gonçalo segue D. Maria Joanna_). + + +SCENA XIX + + +MORGADO _só, pouco depois o_ COMMENDADOR + + +MORGADO (_vendo-os sair, desconfiado_) + +Um cadete agora! É o quartel general aqui... (_olhando em redor_) +Tardava-me já ver-me só... (_tirando o papel e examinando-o_) +Fechado!... sem direcção!... E com que ancia e mysterio a Simôa me +segredou... «isto á sr.^a morgada... sem falta!...» Que pena perder os +sentidos!... Que será? Pois que não tem direcção... (_lançando novamente +os olhos em redor_) facil é sabel-o. (_Abre, lê attentamente, e acaba +com um grito de admiração_) Oh!... (_passeiando e meditando_) Quem tal +havia de dizer? (_pára como resolvendo de repente_) Não ha que pensar... +Agora posso ir encommendando a sege... (_assoma á porta da E. o +commendador, sem que o morgado o presinta_) Com um segredo d'estes!... + + +COMMENDADOR + +Que segredo, sr. morgado? + + +MORGADO (_sobresaltado, e guardando apressadamente o papel_) + +Segredo!... (_serenando, ironicamente_) Um segredo meu, sr. commendador. + + +COMMENDADOR (_com o habitual sorriso entre fatuo e maligno_) + +Segredos, só debaixo da terra... como faziam os romanos! + +(_Cae o panno_) + + +FIM DO PRIMEIRO ACTO + + + + +ACTO II + + +Ao fundo a frente e esquina d'um quarteirão da rua Augusta, tomadas da +extremidade de uma travessa, cujos edificios estão ainda em obras. +Janellas praticaveis em dois andares. A entrada do predio pela +travessa.--Renques de marcos de pedra guarnecendo os passeios.--Toldo +cubrindo a rua.--As janellas, ornadas de armações de damasco, e +preparadas para illuminação. Cubertores de seda e colxas da India nos +parapeitos.--O chão areiado; espadanas e murta. Faltam ainda os +lampiões. + +Fins da tarde. Pouca animação. Alguns transeuntes apenas. + + +SCENA I + + +BOCAGE (_á paizana, encostado á esquina da direita, com os olhos n'uma +das janellas da rua Augusta_.)--COMPADRE THEOTONIO _e_ COMPADRE AMANCIO +(_que veem de lados oppostos_.) + +(_Durante esta scena e a seguinte,_ BOCAGE _dá algumas voltas, +apparecendo e desapparecendo, mas sempre tornando ao mesmo logar e á +mesma observação_.) + + +COMPADRE AMANCIO (_topando-se com o outro_) + +Aonde vae com tanta pressa, compadre Theotonio! + + +COMPADRE THEOTONIO + +Ao _presepio_ da Mouraria. Quero ver se apanho ainda o Manuel Gonçalves +da Ribeira das Naus. + + +COMPADRE AMANCIO + +Trabalha hoje com os arames? + + +COMPADRE THEOTONIO + +Entra no fim. Porquê? Não vou a tempo? + + +COMPADRE AMANCIO + +Se vae! O Manuel Gonçalves tem sua graça... principalmente na scena do +diluvio, quando se queixa que perdeu o pente de derrubar. + + +COMPADRE THEOTONIO + +Pois quando ardem as estopadas! As pulhas que elle deita aos +demonios!... Tem pilhas de graça!--Deixe-me ir que se faz tarde, e já +agora a de seis está destinada (_partindo_). + + +COMPADRE AMANCIO (_detendo-o_) + +Que eu, cá para mim, como o Tortinho da Sé, apesar de velho, é que não +ha... Nem o Antonio Antunes, do Bairro-Alto. Saca as palavras assim com +um tremor do buxo, o maldito, que é a gente espojar-se!--Deus o leve, +compadre. Até á noite na loja. + + +COMPADRE THEOTONIO + +Não fecha hoje? + + +COMPADRE AMANCIO + +Lá mais tarde. É dia de muito freguez de fóra, não tem mãos a medir os +rapazes, e para alguma barba, assim mais tal, preciso servir eu. Bem +sabe a roda que tenho.--Chego alli abaixo á Arcada, a comprar os Autos +da Maria Parda para o serão das pequenas, e volto já. + + +COMPADRE THEOTONIO + +Vá com Deus, compadre Amancio, e até logo. (_Separam-se e sahem, +compadre Theotonio para a E., compadre Amancio para a D._--_Entram logo +tia Paschoa, e tia Vicencia vindo juntas da E._) + + +SCENA II + + +TIA PASCHOA, TIA VIGENCIA _e_ BOCAGE + + +TIA VICENCIA + +Ih! Jesus, Deus Menino! Ainda por aqui arrastadinha, tia Paschoa! O seu +homem ainda no Limoeiro! Quer creia, quer não, estava de pedra e cal que +se tinha ja livrado. Uma pessoa estabelecida! com loja aberta!... + + +TIA PASCHOA + +E mestre d'officio!... Um mestre de torno, que ninguem lhe leva as +tampas!... É isto, que vê, tia Vicencia... Debaixo dos pés se levantam +os trabalhos... Que a culpa não é d'elle... + + +TIA VICENCIA + +Isso sempre eu disse... Pobre homem!... Não fui logo lá quando sube, +porque da rua dos Remedios á Esperança sempre é um estirão. Aquillo com +a labotação do padejo, é vir uns dias por outros ao Terreiro, e não ha +tempo para mais. + + +TIA PASCHOA + +Pois eu não sei!--Tudo intrigas do Alcaide! + + +TIA VICENCIA + +Sim? Ora vejam! E então como foi? + + +TIA PASCHOA + +O Alcaide tem uma sobrinha na rua do Lambaz... Sobrinha, vamos... +sobrinha ou o que quer que é, que se eu tivesse má lingua... + + +TIA VICENCIA + +Sim, sim, não sabe a gente o que são sobrinhas d'essas!... Que mundo, +ai! que mundo, tia Paschoa! + + +TIA PASCHOA + +Uma sobrinha toda peralta!... Sempre como em dia de cirio ou de +festa!... Quer na rua, quer em easa, capotilho de durante e bajú de +escumilha, um palmito mesmo!... Sobrinha, pois não!... Vá que fosse +sobrinha... Estava a ir-nos todos os dias à loja, que até já eu não +andava contente, Deus me perdôe... Tudo era encommendar continhas, +botõesinhos, coquilhos, cabos de chapeus... um nunca acabar. Mas coisa +de pagar, qual! Tanto encommendou, e tanto faltou, que o meu Francisco +por fim deixou de lhe fazer obra, e quiz obrigal-a a pagar por +justiça... Justiça, está bom!... Ella tinha o pae Alcaide... pae ou tio, +que eu sei lá o que lhe é... Foi-n'os a casa toda assanhada... palavra +puxa palavra... Emfim, deram-n'os uma força por injuria, e agora o +veràs... Eu bem dizia ao meu homem: «ó Francisco, deixa... deixa. Não +apertes com a moça.» «Agoa vertida nem toda é colhida.» Mas, nada. +Pensam que só elles teem juizo, estes senhores homens! Teimou, teimou, e +aqui está. Vae já para um mez que dura este fadario. Sempre com o +mantinho aos hombros!... E Deus sabe o que durará!... E tudo em casa a +derreter-se... Os meus cordões e arrecadas, foi tempo... Dois tóros de +buxo, que elle tinha comprado pelo S. Miguel... sem um nó, que eram +mesmo uma perfeição... e haviam de render bons vintens... já lá vão por +dez réis de nada... Até uma grosa de piões, que estavam para a Senhora +do Cabo... hade crer, tia Vicencia?... a quinze réis cada um, que a bem +dizer mais custou o ferrão!... E ainda se não fosse o mestre José +Gomes... Deus lh'o pague!... Sabe? O mestre José Gomes, cerieiro ás +Trinas, que é juiz do povo!... Se não fosse elle nem resquicios havia já +da loja. Agora venho eu do Terreirinho das Olarias, de casa do escrivão, +e vou para o Poço dos Negros, a ver se fallo ao sr. juiz do crime do +Mocambo. + + +TIA VICENCIA + +Até hoje! Cuidei que andava a ver as ruas! + + +TIA PASCHOA + +A ver as ruas, eu! Ai, santo Antonio e almas! Não faço senão correr de +Herodes para Pilatos... E é duas peças a um, quatro moedas a outro... +Que os leve a todos trezentos... Jesus, santo nome de Jesus! Nossa +Senhora do Livramento me perdôe, que nem eu sei o que ia a dizer... +Cruzes, inimigo!... Mas Paschoa do Espirito Santo não seja eu, se o +Alcaide, e a beberrona da tal sobrinha, m'o não pagam mais duro que +ossos... Pesquei hontem cá uma coisa... O que eu queria era fallar ao +sr. Juiz... Dizem que ha ahi uma tal sr.^a morgada, de lá de cima... uma +sr.^a D. Felicia, que dá assembléa todas as semanas, aonde vae o sr. +Juiz... + + +TIA VICENCIA + +Sei eu quem é... Móra ás Portas da Cruz... É minha fregueza, e por +signal que me deve bons vintens. Vou lá muita vez. + + +TIA PASCHOA + +Vae? Se me arranjasse modos de fallar á morgada, para ver se ella +pedia... + + +TIA VICENCIA + +Isso é fácil. Mas quer que lhe diga?... Se deseja que o Juiz lhe dê +audiencia, e depressa, vá á Esteireira... aquella que representa no +Salitre... passe por casa da madama Charles, e leve-lhe uma peça de +esguião... se não póde chegar a um rosicler de pedras. + + +TIA PASCHOA + +Ai! Senhor!... Coisas que custam os olhos da cara!... + + +TIA VICENCIA + +Então é deitar o coração á larga... Deus ainda está onde estava, e atraz +do tempo, tempo vem. Eu cá nas minhas afflicções pego-me com a Senhora +da Purificação, rainha madrinha, que ainda me não faltou. Agora mesmo +lhe vou levar á Boa Hora uma quarta de cera, que comprei alli em cima no +Soccorro... + + +TIA PASCHOA (_dispondo-se a acompanhal-a_) + +Vamos para a mesma banda. + + +TIA VICENCIA + +Eu da Boa-Hora tenho de ir á botica das Portas de Santo Antão, que se +vende lá uma agoa... + + +TIA PASCHOA + +Tambem tenho de tornar ao Terreirinho. Em quanto fica na egreja, chego +eu acima e volto por lá.--Teve novidade em casa? + + +TIA VICENCIA + +Tive a minha _Guiteria_ com umas terçãs, que não havia tirar-lh'as do +corpo... Estava-me a enthisicar, a enthisicar todos os dias... na +espinha mesmo... Assim Deus purifique a minha alma, em como não foi se +não mal que lhe deu a Brites do Forno... Conhece? + + +TIA PASCHOA + +Pois não conheço. Não fosse ella atravessada! O tição!... E então +porquê? + + +TIA VICENCIA + +Contos largos. Vamos andando. (_Saindo juntas ao passo que entra da D. +um transeunte_.) E a respeito da sobrinha do Alcaide, não me disse...? + + +TIA PASCHOA + +Paga-m'as todas, com certeza. O caso é fallar ao Juiz. Hontem ao +escurecer, tinham dado trindades no convento, vinha eu... +(_desapparecem_.) + + +SCENA III + + +BOCAGE, _e o_ TRANSEUNTE + + +TRANSEUNTE (_embuçado, observando, descendo a Bocage, que está de novo +parado á esquina, e batendo-lhe no hombro_) + +Elmano, a lyra divina +Por que razão emmudece? + + +BOCAGE (_voltando attonito, mas acudindo logo_) + +Porque mais cala no mundo +Quem mais o mundo conhece! + + +TRANSEUNTE + +Que tens n'esse mundo achado +Que mais assombro te faça? + + +BOCAGE + +Um poeta com ventura, +Um tratante com desgraça. + +(_Entra da E. Gonçalo Mendo, de fumo no braço, e pára ao F. +observando_.) + + +TRANSEUNTE + +Bem respondido, sr. Bocage. + + +BOCAGE + +Bem perguntado, sr. Tolentino. + +(_Nicolau Tolentino aperta-lhe a mão, e segue para a D. saindo_.) + + +SCENA IV + + +BOCAGE, GONÇALO MENDO + + +GONÇALO + +Quizera que tivesse mais testemunhas o encontro e o improviso. + + +BOCAGE (_chegando-se_) + +Para que?... Riam... mofavam. Dois poetas que se cumprimentam em verso! + + +GONÇALO + +Effectivamente não são vulgares os cumprimentos entre poetas... e consta +que não é prodigo d'elles o sr. Bocage. + + +BOCAGE + +Não sou, porque não me inclino senão ao merito verdadeiro e superior. A +este qualquer póde inclinar-se. Raramente nos encontramos; fallamo-n'os +ainda menos; mas admiro-o e respeito-o. + + +GONÇALO + +Desejara tambem que lhe ouvissem essas palavras. + + +BOCAGE + +Porquê? + + +GONÇALO + +Porque sou seu amigo. Correm por ahi, de mão em mão, copias d'alguns +improvisos satyricos... seus decerto...--Deixa-me fallar-lhe com +franqueza? + + +BOCAGE + +Tão custoso é o que me quer dizer! + + +GONÇALO + +A verdade amarga. + + +BOCAGE + +Trava menos na bocca da amizade, e eu creio na sua. + + +GONÇALO + +Encontro-o em occasião grave para mim. Talvez d'ahi venham estes desejos +de o prevenir e aconselhar. + + +BOCAGE + +Ainda agora reparo. De luto? + + +GONÇALO + +Achei em Lisboa a noticia do fallecimento de meu irmão. + + +BOCAGE + +Sinto!... (_apertando-lhe a mão_.) Sinto-o.--Cheguei tambem ha oito dias +do Alemtejo com licença. Não sabia ainda... + + +GONÇALO + +Tornou-se-me obrigação a sisudeza.--Tem um grande talento, sr. Bocage; +não lhe faltam protecções... Empregando esse talento em proveito da +patria, será grande em pouco, e dar-lhe-ha grandeza. Se tão altos dotes +recebeu de Deus, foi para honra da sua terra. Dedicar-lh'os é dever; +esperdiçal-os é sacrilegio. O engenho, o saber, o estro são instrumentos +que valem segundo o uso que d'elles se faz. Não ha gloria maior quando +bem dirigidos; não ha mais pesada responsabilidade quando mal +aproveitados. + + +BOCAGE (_um pouco resentido_) + +Porque me diz isso? Estou em crer que tenho aos pés um abysmo. + + +GONÇALO + +E tem talvez. As suas frechas epigrammaticas promovem-lhe odios tenazes +e profundos. Quanto mais agudas forem, e mais acertarem no alvo, mais +inimigos lhe hão de suscitar. E os perigosos não são os que lhe +respondem como podem; são os que na perfidia dissimulam a vindicta; são +os que no sorriso affectado encobrem a vaidade ulcerada, e o rancor que +não perdôa. + + +BOCAGE + +Quer então que desça a humilhar-me em dissimulação egual? Quer que abata +aos pés do vicio dourado, ou da ignorancia presumida, esses dons em que +me falla? Quer que envileça a lyra fazendo-a servir aos festins dos +poderosos, como accessorio apettitoso, ou como adorno comprado? + + +GONÇALO + +Quem lhe diz tal! Supõe-me capaz de lhe aconselhar baixezas? Consagre a +lyra á patria, como os egregios poetas de todos os tempos, como Homero, +como Virgilio, como o Dante, como Camões... como o nosso grande +Camões... tão grande e tão nosso, que se tudo em Portugal acabasse, elle +só bastara para dar a immortalidade ao nome portuguez!... Faça-o que +pode. São largos trabalhos esses, são cruas batalhas tambem. No arduo +trilho achará egualmente diante de si o erro, o vicio, a vulgaridade, a +ignorancia!... mais ainda, a mediocridade!... peior ainda, a inveja! +Terá de cingir o corpo como os peregrinos, terá de affrontar o martyrio +como os apostolos. Não lhe faltarão obstaculos nem dissabores. Não lhe +faltarão perigos nem trabalhos. Não lhe faltará a luta, a luta acerba, +continua, ardente... Mas ao cabo está a gloria, a verdadeira gloria, a +gloria infallivel ainda que tardia.--Hade seduzil-o esta! + + +BOGAGE + +E não será ainda servir a patria castigar os ridiculos? Não faltam ahi +tambem em compensação de qualquer desgosto, os applausos para impellir, +para embriagar, para exaltar, para inspirar a musa... E a minha musa... +que lhe hei de fazer, sr. tenente?... a minha musa é toda isenções e +aventuras. Não consente sujeição. + + +GONÇALO + +Os ridiculos d'estes! os applausos d'aquelles! Que applausos e que +ridiculos? Não valerão tanto uns como outros? É para mais o seu engenho +do que para servir de desafogo a rivalidades pequenas. E diga-me: tem +certeza de ser sempre justo? Não o entristecem muitas vezes esses +ruidosos applausos em recintos frequentados de ociosos? Não vê que +muitos glorificam nos seus versos, menos a claridade que os illumina, do +que o raio que vae ferir um émulo, ou um superior? «[1]Não vê que +arrastando na ignominia os seus competidores, a si mesmo se apouca? Não +repara que d'esse modo só favorece os baixos instinctos dos detractores +sem alma?» É para isso a musa e a lyra? Applaudem-n'o! Applaudem. Mas +como? Mas porquê? Mas quem? Ólhe em torno de si e medite. Applaudem-n'o +enthusiasmos que depois o nauseam, applaudem-n'o paixões que depois o +envergonham. O epigramma cortante, a hypérbole sarcastica, a imagem +insultuosa, despertam na sua presença um delirio interessado, que lhe +deixa após o vacuo e o pejo. Compare esse applauso suspeito com outros +menos estrepitosos, mas selectos, que já lhe tem grangeado obras mais +altas e mais dignas. Recorde a satisfação que lhe fica na consciencia, +quando arremessa o vôo ás regiões luminosas onde fita os +astros!--Falla-lhe pela minha bocca a sympathia, e a experiencia. Somos +camaradas; sou seu amigo, repito-lhe... sou ainda mais amigo d'esta +terra, de que deve ser, de que póde ser ornamento e brazão... e que o +precisa, creia... que precisa de todos os grandes esforços para a +levantar da ameaçadora decadencia.--Está nas primeiras impressões e nos +primeiros annos. Tem aberta a carreira das armas. Com o seu nascimento, +com a sua capacidade, com a instrucção e o estudo... qualquer outra que +prefira se lhe póde abrir. É por isto, é para isto que o importuno... +Nicolau Tolentino é official de secretaria... Manuel de Figueiredo +tambem... Ahi em dois poetas!... + + +BOCAGE (_interrompendo arrebatado_) + +Manuel de Figueiredo, poeta!... Um moralista seccante, que se julga +innovador por imitar de longe os antigos!... O Tolentino, sim... esse ha +de ficar para a posteridade!... (_Pausa, longa reflexão_. _Gonçalo +observa-o attentamente_. _Levanta depois o rosto e continúa com +progressiva exaltação_.) Ouça-me tambem, sr. Gonçalo Mendo. Verá que +avalio os seus affectuosos conselhos... E se alguma vez lhe disserem que +Bocage é uma indole pertinaz e intractavel, poderá affirmar como a +austeridade e a razão o acharam docil.--Oiça-me. Não é novo para mim o +que me diz... + + +GONÇALO + +Ahi verá! + + +BOCAGE + +Tem-m'o repetido a meudo a consciencia. + +Oh! não mais que momentos inebria +O sordido clamor da turba sordida!... + +Perdoe, involuntariamente se me formulou em, verso a idéa. + + +GONÇALO + +Prodigiosa faculdade! E quer desbaratal-a? + + +BOCAGE (_proseguindo_) + +Não pense que estimo a plebe das admirações... tanto como admiro as +magras rimas de ôccos versejadores!... No meio das mais estimulantes +palestras, quando é maior o alarido e a matinada, quando egualmente +espumam os copos e os labios, quando se condensa o vapor que tolda a +casa e o cérebro, quando os motejos se crusam como settas, e os +paradoxos refervem como vagas, que de vezes não fico eu mudo, absorto, +sem escutar, sem perceber, sem discernir o que tenho diante!... É que se +me desprende a alma para cima!... Tenho os olhos e o espirito nos +espaços radiantes, d'onde se encara o infinito e o futuro!... Ouço o +hymno triumphal na bocca dos povos reconhecidos!... Enfeixo nos braços +as palmas das nações!... Cinjo na fronte os louros perpetuos!... Vejo as +edades curvadas aos pés d'um monumento coroado de perennes +resplendores!... Esta e só esta é a gloria, digo... esta e só esta... +eterna primavera, eterna aurora... eterna recompensa! + + +GONÇALO (_enthusiasmado_) + +E quem tal sabe conceber não ha de saber realisal-o! + + +BOCAGE (_tristemente, estendendo-lhe a mão_) + +Dê-me que o mundo se povoe de juizos como o seu, de almas como a sua... +e será possivel, e será facil... Como elle é, não sei se algum dia terei +força para tanto... Por ora, não... Resgate a minha franqueza a minha +fragilidade... O menor abalo que d'esse extasi me atire á realidade, mal +acerto com a vista na nullidade soberba, na villeza prospera, na +abjecção remunerada, na astucia triumphante, na hypocrisia +omnipotente... n'esse ascoroso acervo das miserias humanas... todo se me +revolve o coração... e sae-me pela bocca em strophes irritadas, que a +amargura envenena, que a indignação inflamma! Quero, e não posso, conter +esta furia, represar esta onda, que se entumece, e trasborda com o +temporal de dentro!... Depois... Nenhuma fraqueza lhe dissimulo... +Depois, as palmas, os bravos, as acclamações, o frémito das turbas, que +pendem da minha voz e a minha voz avassalla, todo este rumor contagioso +e irresistivel... é novo excitante á febre, é maior alimento ao +incendio, que lavra, que lavra, que se desata em labaredas accumulando +as cinzas... que investe ao acaso... que devora quanto encontra... que +hade acabar por me devorar tambem! + + +GONÇALO + +Veia exuberante! Seiva excessiva! Torrente impetuosa!--Os annos o +corrigirão. + + +BOCAGE + +Não sei... Nasci assim. Acho-me assim ao entrar no mundo. Corrige-se +isto? + + +GONÇALO + +Quando se não corrige, mata. E o sr. Bocage ha de viver.--Desculpe se o +turbei nas suas contemplações... Não pude resistir... posto saber o fito +d'ellas. + + +BOCAGE (_sorrindo_) + +Das minhas contemplações de agora? Duvido (_passeiando com Gonçalo_). + + +GONÇALO + +Quer que o vá perguntar ao honrado mercador Manuel Simões, que móra +n'aquelle primeiro andar, para onde entrou haverá uma hora, com a sua +interessante afilhada a sr.^a morgada D. Felicia? Bem se vê que está +todo no seu enlevo... Tem por mysterio o que se passa nas ruas!... +Presumo que não anda ahi por causa da morgada velha... (_Bocage +protesta_) Logo vi.--E a viuva, diga-me? Quando ha quinze dias nos +encontrámos na Torre da Palma parecia meio apaixonado. + + +BOCAGE + +Apaixonado de todo. + + +GONÇALO + +Que fez então a essa paixão subita? + + +BOCAGE (_gracejando_) + +Foi como veio... subitamente. «Vê que não está na minha mão dissimular, +e aproveita-se.» + + +GONÇALO + +«Se pensa...» + + +BOCAGE + +«Não: desculpe.--Sei que não é curiosidade indiscreta. E a quem melhor +podia abrir o coração? Como hei de eu dizer-lh'o? A viuva é cheia de +attractivos... merece todas as adorações... (_malicioso_) Não é esta a +sua opinião, sr. tenente?» + + +GONÇALO + +«Ainda que o seja? Pouco vem ao caso.» + + +BOCAGE + +«Reservas commigo! Vamos, confidencia por confidencia. Confesse que não +deita luto pela morte da minha paixão da Torre da Palma.» + + +GONÇALO (_sériamente_) + +«A sr.^a D. Maria Joanna Galvão nunca me deu direito para me offender de +qualquer preferencia sua.» + + +BOCAGE + +«Podia não se offender, e custar-lhe. E não seria da minha parte loucura +constituir-me rival do unico amigo verdadeiro que ainda encontrei?... +(_Movimento de Gonçalo_.) Oh! não, não cuide que lhe quero forçar os +segredos... não pense que foi generosidade...» Já que me obriga, +digo-lhe tudo. Peço-lhe só que não seja severo. Ou venha dos annos ou do +temperamento, o amor em mim é egual á musa, compraz-se no improviso. +Rebenta em chammas, mas a chamma fulge e esvae-se como relampago... +Depois... outra fraqueza ainda... é tão superior ás damas que tenho +conhecido, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão!... tão superior pela graça +senhoril, pelo tracto do mundo e cultura do espirito!... (_Pausa_.) +Encontrei-a, logo que cheguei, n'uma assembléa, em casa de sua tia D. +Felicia onde me apresentaram... Ferviam os motes, e eu calado. Passei +quasi todo o tempo escutando-a e reflectindo. + + +GONÇALO + +Foi um estudo então? + + +BOCAGE + +Um exame de consciencia. Intimida aquella distincção, subjuga aquella +formosura, ordena respeitos aquella voz. Revoltou-se-me o coração contra +similhante imperio... Se abomino todo o captiveiro!... Estava alli +tambem, como esquecida, uma flor modesta, a afilhada da sr.^a D. +Felicia. Com ser mimosa sua, era visivel a inferioridade da condição. +Como, porquê, não sei... Para essa me voou a alma... Admira-se?.... Não +posso supportar a idéa da dependencia, nem sequer em amor. Á dama +opulenta e festejada que podia dar o pobre cadete, o poeta noviço? Ainda +que me correspondesse... esmola seria a sua mesma preferencia. Com a +donzella humilde succede o contrario... é ella a favorecida, e eu o +generoso.--Prefiro estes amores... não tolero outros! + + +GONÇALO (_olhando para a E._) + +Tem muito empenho em se encontrar com o mercador? + + +BOCACE + +Porquê? + + +GONÇALO + +Porque se não tem, podemos ir aqui de roda dar uma volta até á esquina +da Inquisição, e tornar depois. + + +BOCAGE (_olhando tambem_) + +É elle, e não sei quem mais. (_a Gonçalo_) Com todo o gosto... +(_indicando a janella_) Como vê, as minhas contemplações não eram bem +succedidas... não tinham ainda objecto. + + +GONÇALO (_andando_) + +Logo terão. As estrellas levantam-se com a noite! + + +BOCAGE (_saindo com elle pela D., ao passo que entram da E. Manuel +Simões e Francisco_) + +Invade tambem os dominios da poesia, o sr. tenente! (_Saem_.) + + +SCENA V + + +MANUEL SIMÕES _e_ FRANCISCO PEDRO SIMÕES + + +MANUEL SIMÕES + +Que espantos que não vae agora fazer a sr.^a Monica!... Se nem me +lembrou dizer-lhe nada!... + + +FRANCISCO + +E está boa a minha tia Monica? + + +MANUEL + +Toda em cuidados pelo seu menino, pelo seu Francisquinho, que has de ser +sempre para ella o Francisquinho, como ha vinte e trez annos, quando o +Sebastião foi para a Bahia, e tu ficaste tanto monta no berço... As +raparigas e a caixeirada não te chamam já senão o sr. doutor... Ella... +sim!... Nem annos nem Coimbras lhe persuadem que o seu Benjamim está um +homem... (_revendo-se n'elle_) e d'aqui a pouco um sr. doutor devéras... +não é assim? + + +FRANCISCO + +Este anno ainda, espero. + + +MANUEL + +Mas vê lá, rapaz... Não te sirva de atrazo esta vinda a Lisboa! Jornadas +para cá, jornadas para lá... sempre é tempo perdido!... + + +FRANCISCO + +Sendo por poucos dias... + + +MANUEL + +Será. Pois que!... Não pensei n'isto quando te escrevi.--Recebeste a +minha carta a tempo? Recebeste, está visto. Pui-te esperar á estalagem, +por me parecer que não faltavas... mas como não respondeste... + + +FRANCISCO + +Mandei logo buscar os machos, e puz-me a caminho. A resposta era +obedecer. Que novidade foi esta, pae? + + +MANUEL + +Estava tremendo não chegasses... (_em voz baixa_) Vem esta noite cá teu +padrinho. + + +FRANCISCO + +O sr. marquez!... a nossa casa! + + +MANUEL + +Á nossa propria casa. Será o primeiro marquez que vem a casa de teu pae? + + +FRANCISCO + +É verdade... o sr. marquez de Pombal era tambem padrinho de meu irmão, e +tenho-lhe ouvido que... + + +MANUEL + +Que me visitava em pessoa, elle mesmo... (_olhando em redor_) o grande +marquez... E não foi só isso... De vez em quando mandava-me parar a sege +á porta da loja... (_esquecendo-se_) É que tambem não torna cá homem +como aquelle... (_caindo em si e olhando em volta_) que este não é +somenos, em certas coisas! Vem, vem hoje... Podia lá deixar de lhe ter +cá o afilhado! Vem hoje... hoje, em vespera de Corpo de Deus, faze idéa! +E toda a gente pelas janellas!... E o que se hade fallar no +arruamento!... E o que ahi não virá de encommendas!--Já mandei buscar +mais um caixeiro. + + +FRANCISCO + +Que não seja como o Zé Braga ou o Zeferino... Lembram-me ainda. + + +MANUEL + +O Zé Braga estabeleceu-se na terra... e vamos, tem queda para o +negocio... É nosso correspondente. + + +FRANCISCO + +Ah! + + +MANUEL + +O peralvilho do Zeferino... esse lá foi para esses Brazis... Não sae +d'alli coisa de geito, verão... Confundia-me sempre o lemiste com os +droguetes, e o panno jardo com as baetas!... Deu em fazer de faceira... +já de chapeu á Anastacia... sempre em touros e presepios... Só lhe +faltavam os polvilhos. Deixal-o. Cá me tenho remediado com outros dois +novos, e marçanos não faltam.--Ai! nós aqui a fallar, a fallar, e lá em +casa tudo cheio de gente!... A Monica estou que perde a cabeça!... Não +me lembrava com o gosto de te ver, e de te fazer beijar a mão ao sr. +marquez... que elle sempre hade puxar por ti!--Anda, rapaz, vamos... +vamos!... (_em acto de partir_.) + + +FRANCISCO + +Tudo cheio de gente lá em casa! É novidade... E quem está? Não me hei de +apresentar n'este trajo de jornada, se são pessoas de respeito. + + +MANUEL (_voltando_) + +Tens razão. Não vieras tu de Coimbra!... Com isto sempre me embalaram: +«ou armas ou letras.» Quem está?... Has-de ir mudar de fato primeiro, +has-de. Estão pessoas de consideração, e espero mais. Verás... Sujeitos +de peso e de porte, que me honram com a sua amizade... (_comsigo_) e +precisam do meu dinheiro... Pois n'um dia d'estes, e vindo cá teu +padrinho!... Está a sr.^a morgada D. Felicia, que essa é já conhecimento +velho... está... + + +FRANCISCO (_alvoroçado, vivamente_) + +E a afilhada? + + +MANUEL + +E a afilhada... bem sabes que nunca a larga... Está a afilhada, e vem +tambem uma sobrinha, que chegou de França ha dias! + + +FRANCISCO (_em acto de partir_) + +E nós aqui a perdermos tempo. + + +MANUEL (_detendo-o_) + +Espera, espera. Que fogo te deu mal te fallei na morgada! Dar-se-ha +caso... (_severo_.) Francisco? + + +FRANCISCO (_timidamente_) + +Meu pae. + + +MANUEL + +Esse alvoroço não é natural! + + +FRANCISCO (_como acima_) + +Está fazendo falta de certo, pae. + + +MANUEL + +Já vamos. (_Comsigo_.) A morgada não póde ser... a sobrinha não a viu +ainda... Querem ver... (_com inteireza_) Sr. Francisco Pedro, forma-se +este anno. D'aqui a tempos será juiz de fóra, desembargador, quem +sabe?... Conversei já a seu respeito com o meu amigo João Pires... +Conhece? O sr. João Pires, á Magdalena, que traz dois navios para a +India, e tem uma filha que não anda por assembléas, mas leva quarenta +mil cruzados de dote.--Quando pensar em casar, é a noiva que lhe convém. + + +FRANCISCO (_consternado_) + +Oh! meu pae! Por quem é não disponha assim do meu coração! + + +MANUEL + +Do seu coração! A que proposito vem o seu coração? Quer dizer que olhou +para a afilhada da sr.^a D. Felicia? Ignora que é filha d'uma criada? + + +FRANCISCO + +Mas educada com tanta estimação! O amor não mede distancias. + + +MANUEL + +Ensinaram-lhe isso em Coimbra?... Não o tirasse eu do balcão!... +Felizmente seu pae não dorme. Perca d'ahi o sentido. Já lhe disse o que +lhe convinha. Escusa de se cançar... não costumo repetir as coisas duas +vezes! + + +FRANCISCO + +Não me permitte uma supplica ao menos? + + +MANUEL + +Com tanto que seja breve. + + +FRANCISCO + +Morro por ella... (_hesita_). + + +MANUEL + +Se me não diz mais... + + +FRANCISCO + +E dei-lhe palavra de casamento. + + +MANUEL + +Deu-lhe palavra... (_furioso_) Porquê? Para quê?... Sem me consultar... +sem consultar seu pae!... sem saber se lhe fazia transtorno!... Viu-se +já!... (_fitando-o_) Estes rapazes!... (_mais brando_) Com que então +deste-lhe palavra? (_Gesto affirmativo de Francisco_.) Pois se lh'a +déste, cumpre-a.--Um Simões nunca faltou a ella! + + +FRANCISCO (_transportado_) + +Consente!... Consente?... Como lhe hei de agradecer, meu pae! + + +MANUEL + +Não é o que eu queria, e custa-me... Não te mandei a Coimbra para te +empregar na filha d'uma criada!... Mas na nossa casa a palavra é +escriptura. Pagamos á vista... sempre, e tudo: é o nosso brazão! + + +SCENA VI + + +OS DITOS _e o_ MORGADO + + +MORGADO + +Ora até que o encontrei, sr. Manuel Simões. Procurei-o hontem, antes de +hontem, esta manhã... + + +MANUEL (_interrompendo-o seccamente_) + +Sei, sei... Bem sei. + + +MORGADO + +Se me désse licença logo... + + +MANUEL + +Tenho gente em casa, tenho muita gente... Hade-me dar licença.--Vamos, +Francisco, vamos. + + +SCENA VII + + +MORGADO _pouco depois o_ COMMENDADOR + + +MORGADO (_desesperado e ameaçador_) + +Se fôra da nobreza... e se não fôra a necessidade!... + + +COMMENDADOR (_que tem entrado_) + +Que é isso, sr. Morgado? Quem o fez agastar? + +(_Durante esta scena os creados acendem de dentro as illuminações das +janellas_.) + + +MORGADO + +Quem hade ser? Esta gente de negocio que na verdade... + + +COMMENDADOR + +Não tem uso do mundo, é sabido... cança-se de dar dinheiro, e nem sempre +se lembra das jerarchias!... Que quer? Na opinião de Cicero o dinheiro +faz todos eguaes... e lá resa o nosso rifão: «negro è o carvoeiro, +branco é o seu dinheiro!!» + + +MORGADO + +Mas quem lhe diz... + + +COMMENDADOR + +Que precisa de dinheiro? O sr. Morgado precisa sempre... Que o mercador +lh'o recusa? Encontro Manuel Simões, e acho-o enfadado. Não é preciso +ser astrologo para adivinhar. Excellentes astrologos são os olhos... que +sabem ver. Bem o disse o poeta Manilio, e melhor o explica Julio Firmico +Materno, contemporaneo de Constantino Magno, nos oito livros que +escreveu sobre o assumpto. + + +MORGADO (_meio aborrecido_) + +Oito? Admiro-lhe a paxorra.--Mas, vamos, sr. Commendador... Estão já +accendendo as luminarias. D'aqui a pouco enche-se ahi tudo de +gente.--Que noticias?--Sabe que morreu Salvador Teixeira, o irmão mais +velho de Gonçalo Mendo? Ficou senhor da casa agora o tenente, e... + + +COMMENDADOR + +E... receia o competidor. + + +MORGADO + +Receial-o! Porquê? Em quê? Um homem como eu não teme nenhum rival... +Minha prima é senhora de gosto e de juizo... E em ultimo caso tenho modo +infallivel de supplantar o tenente... (_intencionalmente_) ou qualquer +outro. + + +COMMENDADOR (_sorrindo_) + +Infallivel! + + +MORGADO + +Infallivel. + + +COMMENDADOR + +Contra qualquer? + + +MORGADO + +Contra qualquer. + + +COMMENDADOR + +No dizer de Plinio poucas coisas se pódem julgar infalliveis.--Tem +estado com sua prima? + + +MORGADO + +Todos os dias.--Ainda antes de hontem em casa da morgada da Torre da +Palma... ainda hontem a ver correr parelhas e alcanzias em Campolide. + + +COMMENDADOR + +Então para que pergunta noticias? + + +MORGADO + +Para saber o que se diz.--Posso contar com a sua amizade? + + +COMMENDADOR + +Como eu com a sua.--Amizade de obras mais do que de palavras, como a +quer Tito Livio. + + +MORGADO + +Tambem... commigo póde o commendador contar para a vida e para a morte. +O braço e a espada do morgado da Gesteira estão sempre ao seu dispor. + + +COMMENDADOR + +Deseja saber o que ha? + + +MORGADO + +Não se me dava... para afugentar de vez o primeiro que se atreva a +galantear abertamente minha prima. + + +COMMENDADOR (_malicioso_) + +Terá que fazer.--Veja o que Propercio diz da sua Cynthia... Póde fazer +calar os requebros dos pintasilgos á aurora? + + +MORGADO + +Pintasilgos, diz bem. Principalmente o cadetinho... o tal sr. poeta de +loas, ou das duzias... Ia-me saindo das medidas na casa da Torre da +Palma. Se não fosse a morte quasi repentina de Simôa!... Já o encontrei +por ahi e não o perco de vista. Não que minha prima possa olhar para +similhantes figuras... + + +COMMENDADOR + +Eu sei, morgado. Elle é de boa gente, e as damas... Emfim a respeito +d'esse, descance... Traz o Sentido n'outra parte. + + +MORGADO (_avidamente_) + +Em quem? + + +COMMENDADOR + +Ainda não reparou?... Na afilhada de D. Felicia. + + +MORGADO (_desdenhoso_) + +Ah!... (_como reflectindo_.) Mas o filho do mercador? É correspondido, e +está ahi. + + +COMMENDADOR (_sorrindo_) + +Era correspondido... Verá como os dois se arrufam, como o poeta fica e é +acceito, como... Isso corre por minha conta. + + +MORGADO + +Por conta do commendador! (_desconfiado_.) E com que interesse? + + +COMMENDADOR + +Interesse? Nenhum... Amizade... Desejo de lhe ser util... Não queria +afugentar os galanteadores de sua prima?... Para isso vale mais a +astucia do que a força, creia. O mestre das rhetoricas ensinava a +Herennio «que a verdadeira prudencia era a sagacidade,» e como diz +Cornelio Nepote, «mais poude a destreza de Themistocles do que as armas +da Grecia.» + + +MORGADO (_pensativo_) + +Não é fóra de rasão... ainda que nada d'isso vale uma recarga a tempo +como a ensina o alferes Theotonio Rodrigues, ou uma flanconada como as +queria o grande Montenegro. (_mirando-o de revez_) Com que o poeta +desistiu já de minha prima? + + +COMMENDADOR (_sorrindo, e do mesmo modo_) + +Respondo-lhe por elle. + + +MORGADO + +O tenente, esse... + + +COMMENDADOR + +Faz-se desistir. + + +MORGADO (_como acima_) + +E depois? + + +COMMENDADOR + +Depois... não ha rivaes que affrontem o sr. morgado. (_Cresce o numero +dos passeiantes_.--_Ruido dentro_.) Ahi vem já o rancho dos poetas. +Conhece-se pela algazarra. + +(_Principiam a apparecer ás janellas algumas senhoras de gala, e +toucadas_.) + + +MORGADO (_olhando para as janellas_) + +Já as _madamas_ começam tambem a apparecer. + + +COMMENDADOR + +Vou n'um instante a casa do mercador para lhe fazer a vontade. Volto +logo. + + +MORGADO + +Encontra lá minha prima. + + +COMMENDADOR + +E não vem? + + +MORGADO (_despeitado_) + +O sr. Manuel Simões não me fez a honra de me convidar. + + +COMMENDADOR + +Que dissabor lhe ha de ser ter sua prima alli e ficar de fóra! Que quer? +Diogenes, de Synope, comparava as riquezas ás plantas... que nascem em +despenhadeiros! (_Sae tomando á esquina ao F._) + +(_Entram logo Bocage, 1.^o e 2.^o poetas, companheiros, e Gonçalo Mendo, +da E._) + + +SCENA VIII + + +BOCAGE, GONÇALO MENDO, 1.^o _e_ 2.^o POETAS + + +GONÇALO (_a Bocage, despedindo-se e indicando as janellas de Manuel +Simões_) + +Boa sorte e propicios amores!... Da inspiração não lhe fallo: nunca lhe +falta, e hoje menos lhe faltará. + + +BOCAGE (_meio desconfiado_) + +Já não quiz entrar commigo um instante no Nicola, e agora deixa-me! + + +GONÇALO + +É noite de festas, e está ainda mal fechada a sepultura de meu irmão! + + +BOCAGE (_caindo em si_) + +Tem rasão. + + +MORGADO (_chegando-se_) + +Sube o desgosto que teve, sr. tenente Gonçalo Mendo... Muitos +parabens... (_corrigindo-se_) dou-lhe os sentimentos, quero dizer... Seu +irmão, tambem era doente... Quantos annos tinha?... Boa casa!... É uma +boa casa, a casa de Mendél, dizem todos. E de mais a mais com os coutos +de Sandim!... Deixou uma grande casa!... O sr. Gonçalo Mendo +naturalmente larga a vida militar.--Com uma casa d'aquellas! + + +GONÇALO (_com inteireza_) + +«Sr. morgado da Gesteira, a minha familia foi sempre uma familia de +soldados. Alli cumprir a lei e servir a patria não é especulação, é +preceito. Se meu irmão por fraco e enfermo não poude satisfazer a +obrigação, por elle a satisfazia eu. Hoje, que me falta, essa obrigação +fez-se duplicada: é a d'elle e a minha!»--Creio que o sr. Bartholmeu +Tojo não vê no vinculo senão a renda. A mim ensinaram-me de pequeno a só +considerar no patrimonio dos meus, como coisas superiores, o dever e o +nome!--Adeus sr. Bocage! (_Sae_.) + + +MORGADO + +E então! Dês que está senhor da casa parece que traz el-rei na barriga! + + +BOCAGE (_fitando-o_) + +Engana-se. Tem o coração no seu logar... e não succede o mesmo a todos. + +(_Signaes de approvação nos circumstantes_.) + + +MORGADO (_ameaçador_) + +Isso entende-se commigo? + + +BOCAGE (_com obsequioso sarcasmo_) + +De nenhum modo: era suppor-lhe coração! + +(_Riso nos circumstantes_.) + + +MORGADO (_com satisfação_) + +Logo vi que se não podia entender commigo. + +(_retira-se magestosamente, e sae pela E._) + + +SCENA IX + +BOCAGE 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, 1.^o _e_ 2.^o MANCEBOS, +DAMAS, POVO + +(_Vão-se povoando mais e mais as janellas; augmenta na rua a +concorrencia_.) + + +1.^o MANCEBO + +Sr. Bocage, sr. Bocage! + + +BOCAGE (_ainda agastado da altercação com o morgado_) + +Que é? + + +1.^o MANCEBO + +Fez-me o favor de limar aquellas decimas, que lhe entreguei o outro dia? + + +BOCAGE + +Pois não! + + +1.^o MANCEBO + +Queria ver se as recitava esta noite... Tem-n'as ahi? + + +BOCAGE + +O que? + + +1.^o MANCEBO + +As minhas decimas. + + +BOCAGE + +Como hei de ter, se nada sobrou d'ellas. + + +1.^o MANCEBO (_pasmado_) + +Não sobrou nada? + + +BOCAGE + +Absolutamente nada. Ficou-me tudo na lima! + +(_Riso nos circumstantes; o 1.^o mancebo mette-se na turba corrido_.) + + +2.^o MANCEBO + +Sr. Bocage, um obsequio? + + +BOCAGE + +Que temos? + + +2.^o MANCEBO + +Faz annos, depois d'amanhã, um tio que eu tenho... + + +BOCAGE + +A novidade seria fazer annos um tio que não tivesse. + + +2.^o MANCEBO + +Compuz dois sonetos... + + +BOCAGE + +Dois d'uma assentada! Já vejo. Monta um Pegaso manhoso que lhe desandou +uma parelha de... + + +2.^o MANCEBO (_ingenuamente_) + +Isso. Estão aqui os sonetos. Só lhe peço que me diga qual é o melhor... +para o offerecer ao tio... + + +BOCAGE + +Ao sr. seu tio... que vocemecê tem.--Deixe ver. (_2.^o mancebo +entrega-lhe um papel de dois que tem na mão_.--_Bocage chega-se á luz +das luminarias, e lê attentamente_. _Em quanto lê, o 2.^o mancebo +responde aos poetas que parecem divertir-se com elle_. _Depois de ler, +restituindo-lhe o papel e em tom decidido_.) Leve-lhe o outro. + + +2.^o MANCEBO + +O outro! Mas ainda não viu o outro. + + +BOCAGE + +É o mesmo... leve. + + +2.^o MANCEBO + +Porquê? + + +BOCAGE + +Porque não póde ser peior do que esse. + +(_Riso dos circiumstantes; o 2.^o mancebo sae tambem corrido_.) + + +SCENA X + + +BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, DAMAS, POVO + + +2.^o POETA + +Está de veia hoje, o nosso cadete. + + +BOCAGE + +Menos isso.--O cadete ficou onde ficou a farda. Aqui está só o poeta. + + +1.^o POETA (_ao 2.^o_) + +Condemnado como reu de lesa Arcadia. O Bocage tem razão. Será cadete no +regimento; entre os pastores do Pindo é Elmano, o esperançoso Elmano, +como tu és Alcino, como eu sou Lereno. A propósito, falta-nos Albano. + +(_Bocage parece cair em profunda meditação_.) + + +2.^o POETA + +Foi jantar a casa d'algum fidalgo. É o seu costume. Mas vem de certo. +Disse-me que vinha.--Agora nego que fosse reu de lesa Arcadia tratando +Elmano pelo grau militar. + + +1.^o POETA + +Como provas essa? + + +2.^o POETA + +Muito facilmente. Qual é n'este caso o distinctivo do vale e do soldado? +Uma estrella. O mesmo em ambos. Cada qual tem a sua. Logo... +(_declamando_) + +O Appollo, e o Marte que zellas, +Não se afastam grande espaço: +Tem um a estrella no braço, +Outro o braço nas estrellas! + + +1.^o POETA + +Fóra o seiscentisto. Sempre te achei queda para os conceitos alambicados +e antitheses retorcidas! Essa vem na _Phenix renascida_, ou nos +_Desmaios de Maio_, aposto!--Bocage... (_reparando e tomando-lhe o +braço_.) Bocage!... Em que pensas?... Que fizeste á picante jovialidade +tão bem estreada, e que tanto promettia para esta noite? + + +BOCAGE (_como despertando_) + +Que?... Eu?... (_comprehendendo_.) Ah!... Jovialidade lhe chamas? Não +era, não. Era raiva, era furia, era... + + +1.^o POETA + +Contra uns pobres rapazes! Deixa versejar a vadiagem. Cançará depressa. +Não vale a indignação. + + +BOCAGE + +Isso dizem todos, e d'isso sobra forças á mediocridade e a vilania, que +são gemeas. Uns pobres rapazes! Hoje nescias vaidades apenas... ámanhã +calumniadores invejosos!... Deixae-os medrar, deixae; e queixae-vos +depois dos damnos que vos fizerem! E ha peiores ainda... Peiores e mais +nocivos são os desalmados, que nem adivinham a alma, e d'esse aleijão +moral fazem a bitola de todos os caracteres!... Que me hão de apparecer +por toda a parte vilezas!... Não reparem, amigos... São restos da cólera +em que me deixou esse homem, que até na morte vê o interesse sem lhe ver +as lagrimas!... Quando estas ignominias me surgem diante, sou como +aquelle tyranno antigo, que desejava um só corpo á humanidade, para a +degollar d'um golpe!... Quizera tel-as tambem todas congregadas e +encorporadas debaixo da mão, para lhes arrancar a mascara hypocrita, +para as retalhar com o látego justiceiro, para apresental-as como são, +hediondas e infames, perante a sociedade que illudem ou +pervertem.--Desculpem a rajada. Vamos ao que importa. (_olhando para as +janellas do mercador, ainda desertas_) Ficamos aqui? + + +1.^o POETA + +Alcino tem uma Anarda alli n'um segundo andar do quarteirão immediato, e +ella provavelmente traz-lhe mote preparado. Queres vir? + + +BOCAGE (_com os olhos nas janellas_) + +Com tanto que voltemos depressa! + + +2.^o POETA + +Percebo. Temos tambem por cá pastora! Uma Armia, uma Isbella, uma +Anfrisa? + + +BOCAGE + +Melhor do que isso. Uma esperança! + +(_Gritos, tumulto fóra á E._) + + +2.^o POETA + +Ha novidade, ao que parece. + +(_Grande tumulto á E. fóra_. _Gritos_: Aqui d'el-rei! Agarra! _O povo +afllue áquelle lado_.) + + +BOCAGE + +É desordem? + + +1.^o POETA + +O costumado. + + +VOZES (_no povo_) + +Arreda! arreda! + +(_Reflue tudo sobre a D._--_Bocage, á frente dos companheiros, impellido +pela turba, acha-se na extremidade D. quando entra, correndo d'este +lado, Alcaide, e a ronda de quadrilheiros e paisanos_.) + + +SCENA XI + + +ALCAIDE, BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, MORGADO (_que entra +esboforido da E._) DAMAS, POVO. + + +ALCAIDE (_topando Bocage, e pondo-lhe uma pistola aos peitos_) + +Da parte da ronda--quem é? d'onde vem? para onde vae? + + +BOCACE (_serenamente_) + +Sou o poeta Bocage, +Venho ha pouco do Nicola, +E vou para o outro mundo +Se me dispara a pistola! + + +POETAS _e_ COMPANHEIROS + +Bravo! Bravo, Bocage! + + +ALCAIDE (_deixando-o_) + +Ah! é o Bocage! Que foi então? Quem gritou? + + +MORGADO + +Foi um chibante de cigarro que deu tres facadas n'um moço das +carvoarias, que ia cantando a _Fôfa_ alli para a banda da Bitesga!... +Ah! que se o apanho a geito!... (_esquiva-se para a D. logo que o +Alcaide interroga_.) + + +ALCAIDE + +Quem fallou para ahi?... (_á ronda_) Depressa, anda... Venham as +lanternas, que nas travessas está escuro como breu. (_Os paisanos +adiantam-se com as lanternas, mostrando certa repugnancia_.) Mais +depressa... (_aos quadrilheiros_) Para a frente vocês. (_Estes obedecem +com promptidão, e passam velozmente para a E._--_O Alcaide continua para +este lado como fallando a um dos quadrilheiros que passou_.) Ó Gaiola, +bota cordão lá para diante... agarra tudo!... O sr. Corregedor do Crime +mora ahi para cima; elle que os joeire!... Vá, vá. + +(_Os grupos abrem vivamente passagem ao Alcaide e aos mais da ronda, que +saem apressados pela E._) + + +SCENA XII + + +OS DITOS, _menos o_ ALCAIDE _e_ RONDA, _depois_ UM CEGO (_que vende +impressos_) + +(_Apenas o Alcaide sae, ouve-se tambor e gaita de folles para a D._--_O +povo grupa-se para esse lado_.) + + +2.^o POETA + +Cirio agora, querem vêr! + + +1.^o POETA (_observando_) + +Não. São os foliões do Espirito Santo com a bandeira, e o ermitão da +Senhora do Monte com o Embrechado. Metteram-se para a outra travessa. + + +BOCAGE + +Por isso estão todos nas janellas dos lados. + + +2.^o POETA + +Com similhante inferneira, bem se ha de poetar agora. + + +O CEGO (_passando ao F. e apregoando em cantilena_) + +Comprae, meninas comprae, +Por dez réis, ou meio tostão, +_O Testamento da Velha_ +_Ind'antes da serração_; +Ou as obras afamadas, +Que ninguem comprou em vão, +Da Chrystaleira de Coimbra, +Coisa de satisfação. + + +BOCAGE (_rindo e como terminando a trova do cego_) + +Temos rival pela prôa: +Vá, ao outro quarteirão + + +1.^o e 2.^o POETAS (_galhofeiros_) + +Vá, vamos. (_Saem os tres_.) + + +SCENA XIII + + +O CEGO, _logo depois_ TIA VICENCIA. _e_ TIA PASCHOA, _logo depois_ +COMPADRE THEOTONIO _e_ COMPADRE AMANCIO. (_Movimento_. _Homens +apregoando caramello_. _Pretas apregoando alcomonia, etc_.) + + +CEGO + +Comprae, meninas, comprae, +Por dez réis ou meio tostão... + +(_Perde-se-lhe a voz na distancia_.) + + +TIA VICENCIA + +Bem lh'o cantava eu, tia Paschoa! Qual juiz, nem meio juiz! Não lhe poem +a vista em cima! A Esteireira é que é de desengano. Que eu não lhe digo +isto para me esquivar... Se quer que peça á morgada, appareça ámanhã... +ámanhã não, é dia de festa... appareça depois de ámanhã, e lá iremos... +Verá que me não diz que não... + + +TIA PASCHOA + +Vou... Sempre vou... Se por ahi se arranja o negocio é uma boa dóse que +poupo, e para quero está já tão arrastado... + + +COMPADRE AMANCIO (_entre as dez e as onze, capote a um lado, entrando +com compadre Theotonio_) + +Safa!... Cuidei que me filavam tambem! + + +TIA PASCHOA + +Se não se fizer nada, então tomo o seu conselho, e vou á Esteireira... +Por fim de contas são conhecimentos que se tomam... Ah! meu rico Santo +Antonio! sou capaz de vender a camisa do corpo só para metter pelo chão +abaixo aquelles marotos que nos desgraçaram... (_Saem pela E. +conversando_.) + + +SCENA XIV + + +COMPADRE THEOTONIO, COMPADRE AMANCIO (_observando para a E._) _pouco +depois_ MORGADO _e_ COMMENDADOR. _Grupos rareados_. + + +COMPADRE THEOTONIO (_tambem com um grão na aza, mas dando-lhe para +taciturno, e preoccupado, e servindo-se com frequencia de um cheirador +de simonte_) + +Prenderam o homem? + + +COMPADRE AMANCIO + +A ronda vae apanhando a torto e a direito, mas o homem, sim! Metteu-se +para a rua das Hortas, salta n'um pulo a S. Roque, e de lá á Cotovia... +Depois... boas noites... (_puxando, endireitando o capote, e mirando-o_) +Por um triz se não vae d'esta feita, o meu cobre-miseria! E o seu não +ficou tambem pouco derreado, compadre Theotonio! + + +COMPADRE THEOTONIO + +Leve a fortuna os apertões, compadre Amancio. + + +COMPADRE AMANCIO + +Olhe se não vae na ronda o mestre Joaquim da Ferraria... (_olhando em +redor_) Está isto por aqui só ainda! (_Ouvem-se fóra á D. palmos e +applausos_.) Que é? (_Vae vêr_) Ah! são os poetas que andam pelo outro +quarteirão... Vamos até lá, compadre?... Quero dar o meu voto a respeito +do Bocage, que ainda não ouvi... Tem-me ido já umas poucas de vezes +barbear-se á loja, e dizem que na versaria põe tudo a uma banda! + + +COMPADRE THEOTONIO + +Cá por mim... o José Daniel! + + +COMPADRE AMANCIO + +Não digo que não, mas vista faz fé. Vem? + +(_Entram da D. o morgado e o commendador_. _Formam dois grupos +distinctos_.) + + +COMMENDADOR + +Onde ia tão assustado? Não me via? + + +MORGADO + +Assustado eu!... Ia desesperado... O tal sr. cadete, o tal sr. poeta!... + + +COMMENDADOR + +Disse-lhe alguma? + + +MORGADO + +A tanto não se atrevia elle... Ainda agora o fiz eu tornar atraz... Os +modos... os modos é que me dão a perros... Tomára achar azo de lhe +pregar uma boa vaia, ahi diante de toda a gente. + + +COMMENDADOR + +Havia de lhe doer... mas isso é antes desforra de mulher que de homem... +A verdadeira vingança quer-se mais segura. No conceito de Seneca toda a +soberba é injuria, e Plauto ensina como as injurias se pagam... (_Ficam +conversando_.) + + +COMPADRE AMANCIO (_do outro lado_) + +Não se mexe d'ahi, compadre? Parece-me jarra! Largue o cheirador, que é +capaz de lhe subir o simonte ao miolo. Se não está para ouvir os poetas, +venha até ao Talaveiras, que tem uma pinga do velho... + + +COMPADRE THEOTONIO + +Cá por mim, o Petinga. + + +COMPADRE AMANCIO + +Não sae d'isto! Ó compadre Theotonio, você por mais que me digam já fez +hoje mais de uma estação!... (_Ouve-se campainha á E._) Será a +Misericordia? (_Indo verificar_) Ora o que ha de ser! + + +COMPADRE THEOTONIO + +O que é? + + +COMPADRE AMANCIO + +É o Bernardo atafoneiro, que vem ahi todo vestido de hollandilhas, com +bordão de gancho e lanterna pendurada, a pedir para o Senhor Jesus dos +Afflictos... Conheço-o pelo roliço. Aquillo faz dinheiro de tudo! +Rendem-lhe mais as penitencias que o officio, e ainda em cima aluga a +preta para andar a vender pelas ruas. + +(_Atravessa ao F. o penitente, como está descripto tocando a espaços a +campainha; traz á cinta um mealheiro_. _Dão-lhe esmola_.) + + +COMPADRE THEOTONIO (_elevando a voz_) + +Ora se ha um birbas assim! + + +COMPADRE ANASTACIO (_impondo-lhe silencio_) + +Mais devagar, compadre, mais devagar, que o Bernardo é familiar do Santo +Oficio... como alguns fidalgos! + + +MORGADO (_do outro lado, ao commendador olhando para a janella dum 2.^o +andar_) + +Lá está uma palmilhadeira do meu conhecimento, no 2.^o andar, mesmo por +cima da casa do mercador... (_depois de reflectir, como achando_) Ah! + + +COMMENDADOR (_ironico_) + +Teve alguma lembrança feliz? + + +MORGADO + +Tive. (_olhando para a D._) Cá vem o rancho outra vez! (_D. Felicia e D. +Maria Joanna apparecem a uma das janellas do 1.^o andar da esquina_. +_Maria Gertrudes a outra_. _Enchem-se as janellas_.--_Affluem +suecessivamente os grupos_.) Verá Verá que vergonhaça!... Digam que não +sei varar um gamo, nem pegar n'uma espada, nem determinar uma mesa, se o +poeta não fica hoje corrido!... (_Sae precipitadamente pela D. dobrando +a esquina_. _O commendador vê-o sair, encolhe os hombros +desdenhosamente, e mette-se por entre os grupos_. _Compadre Theotonio e +compadre Amancio giram na turba_. _Entra Bocage e os poetas_. _O grupo +d'estes fica sobresaindo_.) + + +SCENA XIV + + +BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, COMMENDADOR, COMPADRE +AMANCIO, COMPADRE THEOTONIO, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA _e_ MARIA +GERTRUDES, (_nas janellas_) DAMAS, POVO.--(_Grande animação_) + + +1.^o POETA + +Oh! agora está já tudo pelas janellas. Vamos, quem rompe? + + +BOCAGE + +Eu não... Logo. + + +2.^o POETA + +Rompo eu. (_para as janellas_) Mote... Venha mote, minhas senhoras! + +(_Grupam-se todos curiosamente para ouvir_.) + + +D. FELICIA + +Essas peraltas de agora, +Eu não sei d'onde lhes vem. + + +2.^o POETA (_repetindo_) + +Essas peraltas de agora... +Eu não sei d'onde lhes vem. + +(_Fica por momentos pensativo_.) + + +BOCAGE (_ao 1.^o poeta_) + +Foi a morgada que deu o mote? + + +1.^o POETA + +Foi. (_ao 2.^o Poeta_.) Glosa-lh'o ao geito, se queres que te applauda, +a tartaruga! + + +2.^o POETA + +Deixa. (_batendo as palmas_) Lá vae: + +Cambrayas, sedas, matizes; +Vermelhas capas bem fartas +Forradas de pelles martas; +Bons vestidos de paizes; +Filós, rendas, pertiguizes; +Sécias tudo, e a toda a hora; +Sempre em visitas por fóra; +Conhecendo toda a gente: +Eis-aqui, succintamente, +«Essas peraltas de agora;» + + +1.^o POETA (_interrompendo_) + +Bravo! + + +D. FELICIA (_applaudindo_) + +Bravo! Bravo! + + +BOCAGE (_de parte ao 1.^o poeta_) + +Não é glosa: é rol da roupa! + + +2.^o POETA (_continuando_) + +No dia cinco e seis vezes +Correm, sem que isto as affronte, +Dos perfumes do _Le-Conte_ +Ás lojas dos genovezes; +Não faltam nos entremezes; +De casa, nem um vintem; +Trazem fiado o que tem +E na roca não põem mão: +Ou é milagre, ou então +«Eu não sei d'onde lhes vem!» + + +D. FELICIA (_debruçando-se encantada e applaudindo_) + +Bravo!... Lindo!... Bravissimo... Uma suspensão!... uma suspensão! + +(_Alguns applausos nos quaes se distingue Mestre Amancio_.) + + +2.^o POETA (_a Bocage rindo_) + +Que tal? + + +BOCAGE + +Um trocadilho de Luiz de Gongora! + + +COMPADRE AMANCIO (_como consultando Compadre Theotonio_) + +Então? + + +COMPADRE THEOTONIO (_cheirando_) + +Percebeu, compadre? + + +COMPADRE AMANCIO + +Isso é seca, homem! Se percebesse, porque havia de applaudir? + + +VOZES (_no povo, que, olhando á E., se afasta como para dar logar_) + +Olha! Olha! É o volantim do nosso Marquez. + + +COMPADRE AMANCIO + +O volantim do Marquez... De qual Marquez?... (_olhando_) Ai! é o do sr. +Marquez de Marialva! (_o volantim, passa, e dirige-se rapidamente á casa +da D., que dobra_.) Lá vae... Como elle vae!... (_a onda do povo +dirige-se para aquelle lado, como para observar_. _Compadre Amancio +precede-a_.) Aonde irá? (_Olhando para fora_. _Attonito_.) A casa do +mercador Manuel Simões!... Vae... Entrou... (_Voltando ao Compadre_.) +Compadre Theotonio, compadre. Grande novidade!... Querem ver que o +Marquez vem a casa do Manuel Simões!... (_observando_) Vem... Lá estão +já os caixeiros com as tochas á porta, e o patrão no patim! + + +COMPADRE THEOTONIO + +Nós que temos com isso? + + +SCENA XV + + +OS DITOS _e_ MORGADO (_que se aproxima procurando o Commendador_) + + +2.^o POETA + +É feliz este Manuel Simões! Compadre do Marquez de Marialva!... e já o +foi do outro... Por isso lhe chove a freguezia, que está podre de +rico... (_a Compadre Theotonio_.) + + +COMPADRE THEOTONIO (_a Compadre Amancio_) + +O Marquez de Pombal é que era o nosso! + + +COMPADRE AMANCIO (_baixo e vivamente_) + +Cale-se! Quer que nos mettam na inquisição? + + +1.^o POETA (_ao segundo_) + +Não ha nada como negociar! + + +2.^o POETA + +O mau da poesia é não se medir aos covados. + + +BOCAGE + +Estás enganado. N'esse ponto a poesia é como as fazendas da loja. +Medidos se querem tambem os versos... e quem peior os mede mais lucro +tira. + + +COMPADRE AMANCIO + +Ahi vem o sr. Marquez de Marialva... ahi vem... Traz comsigo o Almeirão +e o Gaeta. Olhe, compadre, o Gaeta, que em mettendo o rojão, deita +sempre abaixo o toiro! + + +COMPADRE THEOTONIO + +Cá por mim... o Fava-Secca! + + +COMPADRE AMANCIO + +Deixou a sege na travessa, para não atropellar ninguem... Elle sempre é +bom de lei!... Viva o nosso Marquez, que é pae do povo! + +(_Entra o Marquez, 3.^o Poeta, o Gaeta, o Almeirão, sequito de picadores +e escudeiros_.) + + +VOZES + +Viva! + + +SCENA XVI + + +OS DITOS, _o_ MARQUEZ, 3.^o POETA _e sequito_ + + +MARQUEZ + +Obrigado! Obrigado! (_a um dos picadores_) Toma cuidado, Gaeta. O teu +cardão tem um gavarro no pé esquerdo. Sente-se do casco ao bater na +calçada. Está em principio ainda, mas se lhe não acodes, vae-se-te o +animal, e é pena! (_aos poetas_) Então, tem-se poetado muito?... +(_Olhando para as senhoras, que lhe fazem mesura_.) Com taes musas, +muito e bem decerto (_a outro picador_). Almeirão, anda-me com tento no +tordilho. É um cavallo fino, mas tem pouca escola ainda. Tira pela mão, +e não ganhou união nos movimentos. Para praça não está capaz. (_olhando +de novo para as janellas_) Oh! lá vejo a Morgada da Torre da Palma, e +mais a sobrinha que veiu de França. (_Cumprimenta-as_. _Aos poetas_) É +formosa, e dizem que não menos discreta... (_a Bocage_) Oh!... Manuel +Maria... Está em Lisboa com licença, sabia já... D'esta vez ainda não +foi ver-me a Belem. + + +BOCAGE + +V. Ex.^a estava em Salvaterra. + + +MARQUEZ + +Cheguei esta tarde, é verdade. Quero-o lá um dia cedo... Aqui lhes trago +reforço. (_indicando o 3.^o poeta_) Foi esperar-me ao desembarque! + + +2.^o POETA + +Tardava-nos o nosso pastor Albano! + + +MARQUEZ + +Ahi está já o meu compadre Manuel Simões. Hãode me dar licença.--Manuel +Maria, espero ter o gosto de ouvil-o hoje. (_Sae com o sequito para o F. +acompanhado do grupo dos poetas_.--_As senhoras das janellas do mercador +desapparecem momentaneamente_.) + + +SCENA XVIII + + +OS DITOS _menos_ MARQUEZ _e sequito_ + + +VOZES + +Viva o nosso Marquez! Viva! + + +MORGADO (_de parte ao Commendador_) + +Verá agora a camisa de onze varas em que eu metti o poeta! + + +COMMENDADOR + +Quem! o sr. Morgado? Hade permittir que duvide. + + +MORGADO (_impondo-lhe silencio_) + +Pschiu!--Verá! + +(_O grupo dos poetas volta alvoroçado_.) + + +3.^o POETA (_para as janellas_) + +Mote, minhas senhoras.--Venha mote! + + +A PALMILHADEIRA (_no 2.^o andar_) + +Sr. Bocage, sr. Bocage! + + +BOCAGE (_levantando a cabeça_) + +Quem me honra? + + +PALMILHADEIRA + +«O meu amor foi para a India!» + + +1.^o POETA + +India!--Mais parece peça que mote! + + +MORGADO (_ao Commendador esfregando as mãos_) + +Olhe como ficou embuchado! + + +BOCAGE (_comsigo, surprehendendo-lhe o movimento_) + +Já vejo d'onde vem a chufa. (_aos poetas_) Será peça, mas se é, tenho +pena de quem a quiz pregar. Seja quem for, é ainda mais asno que +tratante. + + +3.^o POETA + +A rima é difficil. + + +BOCAGE (_desdenhosamente_) + +Difficil! Com dois verbos que remedeiam.--Guindar, findar; guinde-a +finde-a. (_fitando o grupo do Morgado e do Commendador_) Nem sabem +inventar difficuldades! (_Dá-lhes as costas e passa adiante_.) + + +PALMILHADEIRA + +Sr. Bocage: «O meu amor foi para a India.» + + +BOCAGE (_voltando a cabeça_) + +Sim? Pois quando vier... dê-lhe muitas saudades. (_Segue_.) + +(_Riso_. _Applauso_.) + + +COMMENDADOR (_ao Morgado_) + +Não lhe dizia eu? + +(_As senhoras voltam ás janellas do mercador_.) + + +3.^o POETA + +Mote, minhas senhoras... Mote. + + +D. MARIA JOANNA + +«Ás ondas se lançou Ero formosa!» + +(_Bocage aproxima-se; o 3.^o poeta fica meditando momentos_.) + + +2.^o POETA + +O mote é conceituoso. + + +BOCAGE + +É. Dá um banho de mar á formosura! + + +3.^o POETA (_batendo as palmas_) + +«Ás ondas se lançou Ero formosa!» + +Cançada de esperar o terno amante, +Ero infeliz ao ceu se pranteava, +E como que o futuro adivinhava, +Aqui e alli corria delirante; + +Da aurora em tanto a face radiante, +Nos mares pouco a pouco se espelhava, +E á frouxa luz ao longe se avistava +Sobre ellas um cadaver fluctuante: + +A triste vacilava suspirando +Nos braços da incerteza suspeitosa, +Até que emfim se vae desenganando: + +Então, desesperada e lacrimosa, +Do caro esposo os manes invocando. +«Ás ondas se lançou Ero formosa!» + +(_Alguns applausos_.) + + +2.^o POETA + +Bravo, Albano!... Descriptivo e sonoro! + + +1.^o POETA (_a Bocage_) + +Correcto, não? + + +BOCAGE + +Correcto, mas frio. Não admira. Uma paixão que vae por agua abaixo! + + +2.^o POETA + +Mote. Venha mote. + + +MARIA GERTRUDES + +«Os roubos que me fez a má ventura!» + + +BOCAGE (_vivamente aos poetas_) + +Este para mim. (_repetindo immediatamente_) + +«Os roubos que me fez a má ventura!» + +Eu deliro, Gertruria, eu desespero +No inferno de incertezas e temores, +Eu da morte as angustias e os terrores +Por ti mil vezes sem morrer tolero! + +Pelo céo, por teus olhos te assevero +Que ferve esta alma em candidos amores: +Longe a riqueza, e os seus vãos favores, +Quero o teu coração, mais nada quero. + + +VOZES (_diversas_) + +Bravo! Bravo! + + +BOCAGE (_continuando arrebatado_) + +Ah! não sejas tambem qual é commigo +A cega divindade, a sorte dura, +A varia deusa, que me nega abrigo! + +Tudo perdi; mas valha-me a ternura; +Amor me valha, e pague-me comtigo +«Os roubos que me fez a má ventura!» + +(_Grande explosão de applausos_.) + + +2.^o E 3.^o POETAS + +Bravo! bravo, Bocage. + + +1.^o POETA + +Inimitavel! + + +3.^o POETA + +Uma copia! + + +DIFFERENTES VOZES (_em torno de Bocage_) + +Uma copia! uma copia. + + +COMMENDADOR (_junto a Compadre Amancio_) + +Gertruria! Gertrudes!--Dava uma moeda de oiro só por uma copia d'este +soneto. + + +COMPADRE AMANCIO + +Uma moeda!... É devéras? + + +COMMENDADOR + +Devéras. + + +COMPADRE AMANCIO + +Aonde lh'a heide levar? (_Commendador diz-lh'o ao ouvido_.--_Misturam-se +os grupos, continuando todos a felicitar Bocage_.) + + +MORGADO (_ao Commendador_) + +Quer dar uma moeda de ouro por uma copia d'aquillo! Para quê? + + +COMMENDADOR + +O sr. Morgado tem os seus segredos... Eu tenho os meus! + + +1.^o POETA (_a Bocage_) + +Está aqui um amigo que nos convida a todos para o Izidro á meia noite. + + +BOCAGE (_rindo_) + +Vem a proposito a ceia... para servir de jantar! + +(_Ouvem-se á E. os clarins e tambores dos pretos, que logo se afastam_.) + + +VOZES + +As charamellas! As charamellas! + +(_Corre tudo á E._--_N'este movimento Bocage fica um pouco isolado_. +_Compadre Amancio aproveita a occasião e aproxima-se-lhe_.) + + +COMPADRE AMANCIO (_tomando-o de parte_) + +Sr. Bocage! + + +BOCAGE (_satisfeito do triumpho_) + +Tambem por cá, mestre? + + +COMPADRE AMANCIO + +Venho aqui pedir-lhe um favor, que é quasi uma esmola... O sr. Bocage +bem me podia remediar a minha necessidade! + + +BOCAGE + +Diga, mestre! + + +COMPADRE AMANCIO + +Um ginja quer copia d'aquelles versos que recitou ainda agora, e dá por +ella uma moeda d'ouro... (_instando_) Podiamos repartir ao meio... + + +BOCAGE (_atalhando_) + +Fique-se ahi, ou estraga o negocio.--Ámanhã lhe dou a copia... se me +lembrar ainda. E guarde para si o que lhe offereceram. O sr. mestre póde +vender barbas e sonetos, se quizer... (_Compadre Amancio desfaz-se em +agradecimentos_.) A lyra de Bocage ninguem a paga! + +(_Repiques, foguetes ao longe_. _Afflue o povo_. _Está a festa no auge +da animação_.) + + +OS POETAS + +Mote, mote... Minhas senhoras, venha mote! + +(_Cae o panno_) + + +FIM DO SEGUNDO ACTO + + + + +ACTO III + +*Em janeiro de 1786* + + +Sala em casa de Manuel Simões. Mobilia dos meiados do seculo +XVIII.--Porta ao _F._--Á _D._, no 1.^o plano, porta do escriptorio; no +2.^o plano, porta que leva ao interior da casa.--Á _E._ janellas de +sacada. + + +SCENA I + + +D. FELICIA, D. MARIA JOANNA _e_ MARIA GERTRUDES + +(_em trajo de passeio_) + + +D. FELICIA (_a D. Maria Joanna_) + +Pois muito bem, sobrinha. Truxe já o meu escudeiro de +proposito.--Aproveito a occasião para ir á festa de S. Domingos. Préga +hoje o Padre Mestre fr. Joaquim do Rosario... Sabe? o Padre Mestre fr. +Joaquim, que vae ás nossas assembléas, e canta á viola franceza «_De +saudades morrerei_,» com tantos requebros, que é mesmo uma suspensão? + + +D. MARIA JOANNA + +Sei. Póde ir descançada á sua festa.--Provavelmente preciso demorar-me +com o sr. Manuel Simões, visto que em resulado de conselho seu lhe +entreguei por uns mezes, como precisava, a administração da minha casa. + + +D. FELICIA + +Não se arrependa. Honrado até alli. Depois que elle me administra... por +obsequio, já se vê... é outra coisa. A minha pena é não lhe ter pedido +ha mais tempo. Sermões não faltam, é verdade... o dinheiro espremido, +que nem que fosse d'elle... mas prompto sempre, e incapaz de arredar um +fio! + + +D. MARIA JOANNA + +Acredito.--Tinha necessidade de descanço. Passei o verão no campo, e +nada examinei ainda... Parece-me que é tempo.--Já lhe mandou recado? + + +D. FELICIA + +Está lá em baixo nos armazens. Não tarda.--E foi só por isso que +veiu?... Ai! sobrinha! não faz idéa que mal me sinto dos meus hystericos +vendo tratar com tanto afinco d'essas coisas uma pessoa da sua edade, e +no seu caso... com tantos vinculos... com... + + +D. MARIA JOANNA + +Por isso mesmo! + + +D. FELICIA + +Emfim, a sobrinha gosta de se entreter em negocios!... Cá por mim... +_abrenuntio_!... Negocios, deixo-os a quem toca. Não são para senhoras +da nossa jerarchia!... (_movimento de D. Maria Joanna_) Não digo nada, +não digo nada... A sobrinha é senhora das sua acções.--É uma conferencia +então? E hade ser longa! + + +D. MARIA JOANNA + +Não se apresse, minha tia. Tem tempo para tudo, já vê. + + +D. FELICIA + +Deixo-lhe a afilhada para a acompanhar. Venho logo buscal-a, e de +caminho darei tambem duas palavras ao sr. Manuel Simões. + + +D. MARIA JOANNA (_sorrindo-se e ameigando-a_) + +E dizia que era inimiga de negocios! + + +D. FELICIA + +Jesus! Deus me defenda!... Ai! eu, são duas palavras só. Até logo. +(_para sair, e voltando á afilhada_.) È verdade, Maria Gertrudes. +Trazes-me ahi a minha agua da Rainha d'Hungria? + + +MARIA GERTRUDES (_dando-lhe um pequeno frasco_) + +Aqui está, madrinha! + + +D. FELICIA (_recebendo-o, cheirando-o, e depois arrecadando-o_) + +Não posso andar sem isto... por causa dos hystericos... Até logo, +sobrinha. + + +SCENA II + + +D. MARIA JOANNA _e_ MARIA GERTRUDES + + +D. MARIA JOANNA (_voltando, e olhando meio impaciente para as portas da +D._) + +Demora-se!... (_pausa_.) Está triste, Maria? + + +MARIA GERTRUDES + +Eu, minha senhora! Triste! Porque? + + +D. MARIA JOANNA + +Não tem razão, decerto. Minha tia não a póde trazer mais estimada, e +merece-lh'o. + + +MARIA GERTRUDES + +A minha rica madrinha! Não sei como lhe hei de agradecer a creação que +me deu... e o muito que me quer!... + + +D. MARIA JOANNA + +Querendo lhe tambem, como faz.--Vamos, d'ahi não procede o mal. Do que +de ordinario mais inquieta na sua edade menos ainda.--Se não me engano, +está em Lisboa um certo cadete... já poeta de fama... cada dia de maior +fama, que... É certo? + + +MARIA GERTRUDES (_atalhando, envergonhada_) + +Oh! minha senhora! + + +D. MARIA JOANNA + +Então que tem? Uma inclinação não está mal... Em se não faltando ao +recato!... E elle mostra-se respeitoso, que é sempre bom indicio... +Todos os casamentos por ahi principiam, e estou que não quer +professar.--Que lhe diz o coração? + + +MARIA GERTRUDES (_olhando receiosa em redor_) + +Nunca fallei n'isto, nem a minha madrinha! + + +D. MARIA JOANNA + +Pudéra! Fallo-lhe eu, porque tambem lhe sou afeiçoada. Provavelmente não +se entendia tão bem com minha tia. + + +MARIA GERTRUDES + +O coração... Nem, eu sei.--O sr. Bocage diz-me coisas como ninguem... +(_inadvertidamente_) mas o outro... + + +D. MARIA JOANNA + +Ah!... Ah! temos outro!... + + +MARIA GERTRUDES (_toda balbuciante_) + +Eu disse outro? (_animando-se_.) Disse. Disse, porque é verdade... +(_acudindo_.) A culpa não é minha! + + +D. MARIA JOANNA + +Está visto. Pois nós temos culpa nunca d'essas... complicações!--E o +outro? + + +MARIA GERTRUDES (_quasi chorando_) + +Foi um ingrato! Não posso, não devo mais lembrar-me d'elle... + + +D. MARIA JOANNA + +Então d'ahi estamos desenganadas. Naturalmente fica preferido o poeta. + + +MARIA GERTRUDES (_hesitando_) + +Ai! agora fica... (_mais decidida_.) Fica... mas... + + +D. MARIA JOANNA + +Mas?... Suspeito d'esse _mas_. + + +MARIA GERTRUDES (_meio impaciente_) + +Tomára quem me ensinasse como se conhece um amor verdadeiro. (_achando +uma idéa_.) Ah!... A sr.^a D. Maria Joanna hade saber... É viuva, +sabe... Diz-m'o? + + +D. MARIA JOANNA + +Eu!... (_enleiada_.) Devia saber, devia... mas... (_comsigo_.) Aqui +estou eu tambem a cair nos _mas_... + + +MANUEL SIMÕES (_dentro_) + +Ainda agora m'o dizem! + + +D. MARIA JOANNA (_comsigo_) + +Vem muito a proposito o sr. Manuel Simões. + + +SCENA III + + +AS DITAS, MANUEL SIMÕES (_da porta, 2.^o plano, á D._) + + +MANUEL SIMÕES + +Que vergonha!... que vergonha para esta casa!... + + +D. MARIA JOANNA + +Que é isso, sr. Manuel Simões? + + +MANUEL SIMÕES + +Fazerem esperar tanto tempo s. s.^a!... N'este instante me deram o +recado, aquelles brutos... Que hade dizer?... Hade dizer que nem sei +tratar com pessoas de condição, eu, Manuel Simões, que toda a minha +vida... com bem o digamos... fui favorecido da grandeza!... eu, um +compadre de dois marquezes!... (_corrigindo-se_) De dois... de um, que o +outro... + + +D. MARIA JOANNA + +O outro já lá vae.--Não se afflija com isso. Esperei, mas não me +enfastiei. E bem era que esperasse, que o negocio é meu... + + +MANUEL SIMÕES + +Negocios!--É verdade... a sr.^a morgada? Em seu nome me levaram o +recado. + + +D. MARIA JOANNA + +Vim com ella. Foi á festa a S. Domingos. Volta logo. + + +MANUEL SIMÕES (_admirado_) + +Negocios! V. S.^a! Commigo! + + +D. MARIA JOANNA + +Pois não me tomou a administração? + + +MANUEL SIMÕES + +Por pouco tempo, disse-lh'o logo... Estou já tão sobrecarregado!... +Depois, estas administrações... afastam-me do meu giro. + + +D. MARIA JOANNA + +Justamente. Ahi verá se precisamos fallar. Para não o incommodar mais, e +tomar a direcção da casa, preciso examinar, preciso esclarecer-me... e +agora ninguem melhor do que o sr. Manuel Simões. + + +MANUEL SIMÕES (_attonito_) + +Ah! + + +D. MARIA JOANNA + +Admira-se? + + +MANUEL SIMÕES + +Admiro, porque não é o costume. Admiro, mas approvo. Quando quererá sua +tia D. Felicia fazer o mesmo, ou pelo menos ouvir-me? Pois devia... +devia, que se continua como vae, não sei como hade ser... Por mais que +lhe peça, por mais que lhe diga, nada. Não quer saber senão de +dinheiro... Como se o dinheiro se cavasse!... Quando lhe fallo em +contas, dão-lhe os seus hystericos, e... acabou-se, não é possivel.--Os +papeis estão todos em ordem no meu escriptorio (_indica a porta +respectiva_). Não é casa costumada a donaires, mas se não a assusta... + + +D. MARIA JOANNA (_dirigindo-se á porta indicada_) + +Pois a que vim eu? + + +MANUEL SIMÕES (_reparando em Maria Gertrudes e com certo affecto_) + +Ai! a menina Maria Gertrudes! Já aqui lhe mando minha irmã Monica para +lhe fazer companhia. + + +MARIA GERTRUDES + +Não é preciso... Vou eu mesmo procural-a, se me dá licença. + + +MANUEL SIMÕES (_como acima_) + +Bem sabe que é de casa! (_encaminha-se ao escriptorio.--Como +lembrando-se de repente_) Oh!... (_Novamente ás senhoras_) Permittem? +(_indo á porta da D., 2.^o plano_) Levem lá para baixo essas peças de +saragoça, que hão de ir ámanhã para Abrantes... e arêjem-me as baetas, +não se esqueçam... (_voltando_) Isto, se eu não determinar tudo!... +(_inclinando-se e esperando á porta do escriptorio que D. Maria Joanna +passe_.--_Sae D. Maria Joanna e Manuel Simões_.) + + +SCENA IV + + +MARIA GERTRUDES, _pouco depois_ FRANCISCO + + +MARIA GERTRUDES + +Hade ser grande a demora e a espera. (_indo á janella_) Não são como as +nossas estas ruas da baixa. É um borburinho de gente sempre! (_Chega-se +á janella_.--_Entra Francisco do F. Vê-a e não póde reprimir um +movimento de involuntario alvoroço_.) + + +FRANCISCO + +Ah! + + +MARIA GERTRUDES (_voltando vivamente, vendo-o_) + +Ah! + + +FRANCISCO (_constrangido_) + +Desculpe... Não a esperava aqui... Já me retiro. + + +MARIA GERTRUDES (_do mesmo modo_) + +Póde ter que fazer... Sou eu que vou procurar sua tia. + +(_Dão alguns passos; elle dirigindo-se ao F.; ella passando á +D._--_Quando vão a affastar-se, param e voltam-se quasi +simultaneamente_.) + + +FRANCISCO (_com vivacidade_) + +Chamou? + + +MARIA GERTRUDES (_de olhos no chão_) + +Chamou? + + +FRANCISCO (_depois de pausa_) + +Nada. + + +MARIA GERTRUDES (_idem_) + +Nada. + + +FRANCISCO + +Adeus, menina Gertrudes! + + +MARIA GERTRUDES + +Adeus, sr. doutor. + +(_A ponto de retirar-se, ella pela D., 2.^o plano, elle pelo F., +Francisco torna atraz_) + + +FRANCISCO + +Quer-me ouvir um instante? + + +MARIA GERTRUDES + +O sr. doutor está em sua casa! (_de olhos baixos_.) + + +FRANCISCO (_picado_) + +Ah! é só por isso? E porque me não chama Francisco como d'antes? + + +MARIA GERTRUDES + +Um doutor, já formado!--E porque me trata por menina? Não era o seu +costume. + + +FRANCISCO + +São preceitos do seu poeta? + + +MARIA GERTRUDES + +Receia que o vão dizer á sua apaixonada? + + +FRANCISCO + +Uma apaixonada, eu! + + +MARIA GERTRUDES (_com impeto_) + +Hade negar que teve o outro dia uma briga por causa da Esteireira que +representa no Salitre? + + +FRANCISCO + +Ia passando... É mulher... Insultavam-n'a... defendi-a. + + +MARIA GERTRUDES (_com ressentida ironia_) + +Deu agora em defender todas as mulheres! até mulheres que representam no +theatro!... E o que ella lhe está obrigada... E o que falla no +senhor!... no sr. Doutor!... E o que... + + +FRANCISCO + +Mas se lhe digo... + + +MARIA GERTRUDES (_atalhando_) + +Não negue... sei tudo... Contou-me tudo a mulher de um torneiro, que tem +o marido na cadêa, e vae lá ás vezes ás Portas da Cruz, fallar á +madrinha para peditorios... (_elle quer atalhar; ella não o deixa_.) +Conhece tambem a tal creatura, a mulher do torneiro... ouviu-lh'o mesmo +da sua bocca... (_como acima_) Veja se é verdade, ou não! + + +FRANCISCO (_desesperado_) + +Pois é verdade... será verdade... Porque não hei de estar apaixonado de +uma comica, se a menina não vê senão o seu novo arrojado. + + +MARIA GERTRUDES (_quasi chorando_) + +Ólhe? Confessa! + + +FRANCISCO + +Nem se atreve a dizer que não! + + +MARIA GERTRUDES + +Depois do que me tinha promettido! + + +FRANCISCO + +Depois do que me tinha protestado!--E eu que voltei ainda tão descançado +para Coimbra, depois d'aquella vespera do Corpo de Deus o anno +passado!... Estava entretido a responder a meu padrinho quando por alli +andavam os poetas a versar... Nem dei por cousa nenhuma... Parti logo no +dia seguinte de madrugada, e demorei-me depois até me doutorar... Andava +cego... Mas apenas cheguei ultimamente a Lisboa, tive logo quem me +abrisse os olhos. + + +MARIA GERTRUDES (_vivamente_) + +Quem? + + +FRANCISCO + +Quem? É verdade, já vê.--Quem? Uma pessoa de porte e de respeito... uma +pessoa que não mente!... (_mostrando um papel_) Lembra-se do soneto que +fez o Bocage ao mote que lhe deu n'essa noite? (_lendo_.) + +«Eu deliro, Gertruria, eu desespero.» + +Gertruria, Gertrudes! É evidente. (_lendo_) + +«Pelo ceu, por teus olhos te assevero +Que ferve est'alma em candidos amores.» + +Ferve-lhe a alma em amores... Escreve-se isto!... Querem-n'o mais claro? + + +MARIA GERTRUDES (_picada_) + +Porque me não hade o sr. Bocage fazer versos, se o sr. Doutor tem a sua +apaixonada! + + +FRANCISCO + +Outra vez a apaixonada! Sim? Não tem mais que me dizer? (_suffocado_) +Pois eu estava morto por encontral-a em liberdade, para lhe declarar... +que está tudo acabado... + + +MARIA GERTRUDES + +Isso esperava eu!... + + +FRANCISCO (_continuando_) + +E para lhe jurar, por alma de quem Deus tem, que haja o que houver... + + +MARIA GERTRUDES + +Não jure, sr. Doutor, não se cance... Não é preciso... (_com dignidade_) +Sua tia está lá dentro, não? Sou pobre, sou humilde, mas não obrigo +ninguem. Faço-lhe a vontade. (_Sae_.) + + +SCENA V + + +FRANCISCO, _só_ + +Viu-se nunca uma coisa assim! Ainda em cima! É ella que me faz a +vontade!... (_passeiando agitado_.) Quem me havia de dizer?... Com +aquelles modos innocentes... Ah! mulheres, mulheres! O que são as +mulheres!... Que heide agora fazer? Queria-lhe mais que á vida, mas +humilhar-me, não... Embarco... é o verdadeiro... Embarco... vou para +longe. Tomára eu uma vida em que nem ouvisse fallar de mulheres... Meu +pae não consente de certo... Ah!... Meu padrinho... Vou hoje mesmo +fallar a meu padrinho para que me alcance... + + +SCENA VI + + +FRANCISCO _e_ MANUEL SIMÕES + + +MANUEL SIMÕES (_á porta do escriptorio_) + +Falta a escriptura do arrendamento da Carvoíça. Tenho-a na carteira do +armazem... Trago-a já. + + +FRANCISCO (_correndo ao pae_) + +Meu pae, quer-me ouvir. + + +MANUEL SIMÕES (_complacente_) + +Ai! é o sr. doutor... Deixa-me que estou com pressa. + + +FRANCISCO + +São duas palavras. Pensei melhor. Escusa de fallar á sr.^a D. Felicia... +Não caso já com a afilhada. + + +MANUEL SIMÕES (_indignado e attonito_) + +Que é isto! Então assim se fazem e se desfazem essas coisas! «Dei-lhe +palavra!... Já não caso!...» Assim zomba de seu pae, sr. Francisco +Pedro!... Cuida que por ter o grau, já não sou quem sou?... +Desembargador do paço que fosses, não consentia que me faltasses ao +respeito... Já não casas!... Agora?... Depois de te formares, que era só +o que faltava!... Tinha que ver!... Costumei me a considerar a pequena +como filha!... E não sabes tambem que já dei uns longes á morgada?... +(_Entra o commendador_.) Queres que passe por um catavento n'aquella +casa, que por fim de contas é uma casa honrada!... Pensasses antes.--O +dito, dito: casas... Queiras ou não queiras, has de casar! + + +SCENA VII + + +OS DITOS _e o_ COMMENDADOR + + +COMMENDADOR (_intervindo a Manuel Simões_) + +Faça a vontade a seu filho. (_a Francisco_) Descance que não casa. + + +MANUEL SIMÕES (_furioso_) + +Quem diz que não casa?... (_vendo o commendador, e moderando-se_.) Ah! é +o sr. commendador... Se fosse outro!... Isto são coisas de familia... V. +s.^a não sabe... + + +COMMENDADOR + +Sei... e hade chegar-se á razão. + + +MANUEL SIMÕES + +Pois eu na minha casa, não posso... + + +COMMENDADOR (_tomando-o de parte_.--_Francisco affasta-se_) + +O padre Ignacio deseja que se não faça este casamento. + + +MANUEL SIMÕES (_respeitosamente_) + +O padre Ignacio! + + +COMMENDADOR + +Bem sabe o que lhe deve, e o que deve aos padres da Companhia!... O +irmão Simões não quer desobedecer decerto... e fazia mal se +desobedecesse, que o nome acabou, mas o poder hoje revive! + + +MANUEL SIMÕES (_fitando-o aterrado_) + +O sr. commendador tambem é?... (_o commendador faz-lhe signal de +silencio: a meia voz_.) Os padres sabem que nunca desobedeço... Mas que +interesse pódem ter... + + +COMMENDADOR + +Não é preciso que o saiba. + + +MANUEL SIMÕES + +E quem me assegura... + + +COMMENDADOR + +Que o não engano? Veja este bilhete. (_dá-lh'o_.) + + +MANUEL SIMÕES (_lendo_) + +«Faça quanto lhe disser o sr. commendador de Monsarás.--Padre Ignacio!» +(_resignado_.) Não casará. + + +COMMENDADOR + +Agradeça a seu pae, que por minha intercessão lhe faz o gosto. + + +MANUEL SIMÕES (_comsigo_) + +Com esta gente nem pae se póde ser!... + + +FRANCISCO (_humilde e tristemente_) + +Meu pae... + + +MANUEL SIMÕES + +Está bom, está bom... O sr. commendador deseja mais alguma coisa? + + +COMMENDADOR + +Tenho ainda que lhe fallar a respeito do negocio de um amigo meu, que +hade aqui vir ter commigo.--Está occupado agora? + + +MANUEL SIMÕES + +Estava ajustando umas contas, e confesso que muito desejo concluir. + + +COMMENDADOR + +Conclua, conclua. Não tenho pressa, e o meu amigo ainda não chegou. +Esperarei, se m'o permitte. + + +MANUEL SIMÕES + +Está em sua casa. Dando-me licença, vou acabar. (_comsigo_.) E o tempo +que já tenho perdido!... (_como occorrendo-lhe_.) Olha, Francisco... Vae +lá abaixo ao armazem... abre a carteira... aqui tens a chave... +(_dá-lha_) hasde achar ao canto da direita um masso pequeno, atado com +um nastro encarnado. Manda-m'o aqui ao escriptorio, e a chave tambem... +Pódem vir de roda para não incommodar o sr. commendador e o seu amigo, +se já tiver chegado. (_Francisco sae_. _Para o commendador_.) Aproveito +o obsequio, e abreviarei o que poder. + + +SCENA VIII + + +COMMENDADOR _só, pouco depois_ MORGADO + + +COMMENDADOR (_saboreando uma pitada_) + +Bem diziam os escriptores da gentilidade: estavam fóra de si os deuses +quando inventaram o homem, e mal recobraram o tino desataram a rir pondo +os olhos na sua obra. Tudo n'elle é vão. _Vana mortalitas_, como lhe +chamava Plinio, o Historiador. Movem-se por um fio... (_sentando-se_) +Tudo está em saber-lho atar. (_Entra o morgado esboforido e derreado_.) +Chega a proposito, morgado... ia-me tardando... Que é isso?... Teve +alguma coisa?... Aposto que fez das suas... Não quer domar esse +genio!... + + +MORGADO (_lisongeàdo_) + +Não posso. Muitas vezes quero ter mão em mim... mas qual... todo eu sou +fogo. + + +COMMENDADOR + +Deixe, deixe. «Casarás, amansarás!»--Foi briga, pendencia, rixa, +desafio?... Pois nem pensando em sua prima, deixa descançar a espada! +Quer ser como Lucio Licinio Dentato, que oito vezes em repto singular +saiu vencedor á vista de dois exercitos?... + + +MORGADO (_mais lisongeado_) + +Cada vez o vejo mais: o commendador é um amigo devéras... um amigo como +ha poucos... + + +COMMENDADOR (_sorrindo_) + +Ainda agora dá por isso!--Homem, é boa a fama de valente para captivar +as damas, mas nem tanto que assuste. Brigou? + + +MORGADO + +Nada. (_com fatua arrogancia_.) Não acho já quem queira. + + +COMMENDADOR (_comsigo_) + +_Miles gloriosus_! + + +MORGADO + +Quê? + + +COMMENDADOR + +Estou morto por saber o que teve... que o morgado não vinha no seu +natural. + + +MORGADO + +Que havia de ser?--Esta manhã, para matar o tempo, fui até á feira das +cavalgaduras... alli pela banda do nascente do passeio... Bem sabe o meu +fraco. Estava na barraca dos juizes, segundo o costume... Tudo +entendedores de mão cheia... Não sei como se passou o tempo... o caso é +que deram dez horas... Era a hora a que tinhamos ajustado o nosso +encontro aqui... Despedi-me á pressa... instaram-me que ficasse... Se +elles não pódem passar sem mim! Foi preciso dizer-lhes que tinha que +fazer na baixa, e era tarde já... O Domingos Sanches... aquelle +polvorista rico... Decerto conhece... (_gesto negativo do commendador_.) +Ora, não conhece outra coisa!... O Domingos Sanches quiz por força que +viesse no seu lasão... um lasão melado... bonito animal... mas de maus +signaes... gazio dos olhos, e bebendo em branco... «Não és boa peça, +não,» disse eu logo commigo... «esperem que vão ver o que é o morgado da +Gesteira a cavallo!...» (_enthusiasmando-se_.) Estava tudo attento... +Monto... como eu costumo montar... O cavallo, apenas me sente, começa a +defender-se, e a negar-se... Eu aperto-lhe as esporas... Elle atira dois +saltos encabritados... Eu cozo-me com a sella... Elle furta-me o +corpo... + + +COMMENDADOR (_depois de breve pausa_) + +E depois? + + +MORGADO + +Depois... caí! + + +COMMENDADOR (_erguendo-se, sem poder suster o riso_) + +Caiu?... Cuidei... Caiu!... + + +MORGADO (_mais enthusiasmado_) + +Mas como eu cai!... com todos os preceitos... Ficou tudo pasmado! + + +COMMENDADOR + +Creio, creio... E o cavallo? + + +MORGADO + +Fugiu.--Para não perder tempo, vim ás carreiras... Ahi tem a razão da +demora. + + +COMMENDADOR + +Bem empregada foi, visto que lhe proporcionou triumpho +similhante.--Tacito conta que Julio Cesar, o fundador do imperio, tambem +caiu d'um cavallo... Provavelmente caiu assim. + + +MORGADO + +Favores, favores.--E a respeito do meu negocio? Fallou já a Manuel +Simões? + + +COMMENDADOR + +A respeito do seu negocio ainda não. Está ajustando umas contas, não +tarda. E primeiro temos nós que fallar, porque emfim... (_Sussurro na +rua_.--_applicando o ouvido_.) Espere. Não ouve? + + +MORGADO + +Oiço. Parecem gritos de agarra! (_Chegam ambos á janella do 2.^o plano, +e debruçam-se para ver_.) + + +SCENA IX + + +OS DITOS, MANUEL SIMÕES, _e_ D. MARIA JOANNA (_á porta do escriptorio_) + + +MANUEL SIMÕES + +Enganou-se o Francisco. Não era aquelle o arrendamento... (_vae a +avançar, e detem-se vendo os dois_) Ai! que já me não lembrava. + + +D. MARIA JOANNA (_rapidamente_) + +É o commendador Louzéllos, e o morgado da Gesteira? + + +MANUEL SIMÕES + +São. + + +D. MARIA JOANNA + +Quizera esquivar-me ás suas importunidades. + + +MANUEL SIMÕES + +Não a viram. Póde esperar no escriptorio... O peior é que talvez tenha +de me demorar um pouco. São horas de enfardar as fazendas, e... + + +D. MARIA JOANNA + +Vá, vá... Não tenho pressa. Espero. + + +MORGADO (_attento para fóra_) + +Vê o que é? + + +COMMENDADOR + +São os rapazes a correr... Ah! agora... É um cavallo solto... e é +lasão... Será o tal? + + +MORGADO (_affirmando-se_) + +É, é! + + +MANUEL SIMÕES (_rapidamente a Maria Joanna_) + +Se lhes não quer fallar... + + +D. MARIA JOANNA (_fechando a porta_) + +Até logo. (_fecha vivamente a porta_.) + + +SCENA X + + +OS DITOS, _menos_ D. MARIA JOANNA + + +MORGADO + +E como elle se leva! Não o apanham, não.--Já se não vê. + + +COMMENDADOR (_voltando tambem e rindo_) + +Em vez de vir o Morgado atraz do cavallo, veiu o cavallo atraz do +Morgado. (_vendo Manuel Simões_) Ah! Sr. Manuel Simões! Acabou já as +suas contas? + + +MANUEL SIMÕES + +Ainda não. São horas de carregar as fazendas que hão de embarcar ao meio +dia, e se eu não assisto... Não tendo v. s.^a coisa de maior urgencia... +Na minha vida não se póde perder um instante!... + + +COMMENDADOR + +Já lhe disse que o não quero estorvar.--Sei o que é a lida de uma casa, +no ponto a que chegou a sua... (_intencionalmente_) Vamos, que lhe não +tem corrido mal... Passei ainda agora pela loja, e vi a azafama que por +lá ia... Uma fileira de carros á porta, e um deitar abaixo de fazendas +das prateleiras, que era um terramoto! + + +MANUEL SIMÕES (_cobrindo o rosto com as mãos_) + +Um terramoto!... Jesus! Santo nome de Jesus, sr. Commendador! Pelo amor +de Deus, não diga essa palavra diante de mim! Já lá vão trinta annos, e +ainda me parece ver as torres da Sé a dançar!... E a minha casa!... E a +minha pobre mulher, a primeira, que alli ficou!... E toda essa ira de +Deus!... (_benzendo-se_) Em nome do Padre, do Filho, e do Espirito +Santo!... Todo eu me arripio ainda. + + +COMMENDADOR + +Tem razão... não direi mais... Mas o que lá vae, lá vae! E dê graça a +Deus (_intencionalmente_) pelas boas protecções que tem tido! + + +MORGADO (_cumprimentando obsequiosamente_) + +Sr. Manuel Simões! + + +MANUEL SIMÕES (_seccamente_) + +Viva, sr. Morgado! (_ao Commendador_) É o amigo que esperava? + + +COMMENDADOR + +Em pessoa. + + +MANUEL SIMÕES (_ao Commendador_) + +D'aqui a meia hora, o mais, estou ás suas ordens. + + +COMMENDADOR + +Não se apresse... Temos tempo. + + +SCENA X + + +MORGADO _e_ COMMENDADOR + + +MORGADO + +Vê como elle me trata? Oh! que se não fosse... + + +COMMENDADOR + +Quando estiver de posse da casa de Carregueiros, faça-lhe o mesmo. + + +MORGADO + +Oh! isso!... E ha-de ser quanto antes. Estou resolvido a acabar de vez +com estas incertezas e duvidas de minha prima. Tenho o remedio na mão. + + +COMMENDADOR (_com o seu sorriso_) + +Tem?... (_indo examinar a porta do F. e a da D., 2.^o plano, e depois +voltando_.) Ninguem na casa de fóra, nem no corredor... Estamos sós e á +vontade... Podemos conversar um pedaço.--Com quê... resolveu casar com +sua prima quanto antes? Faz muito bem. Casar, e casar rico, era já +conselho de Plauto. _Nubere in divitias_! + + +MORGADO + +Faço muito bem? É devéras a sua opinião, Commendador? + + +COMMENDADOR + +Pois porque não há de ser? + + +MORGADO + +Quer que lhe diga uma coisa? + + +COMMENDADOR + +Diga. + + +MORGADO + +Andei muito tempo desconfiado... Loucuras minhas, agora vejo!... Uma +pessoa prudente e de juizo, como o commendador?... + + +COMMENDADOR + +Diga sempre. De que andou desconfiado? + + +MORGADO + +Tinha-me querido parecer que se inclinava a galantear tambem minha +prima. + + +COMMENDADOR (_tranquillamente_) + +Não se enganou. + + +MORGADO (_sobresaltado_) + +Não me enganei? + + +COMMENDADOR + +Socegue. Passou-me isso pela cabeça na jornada em que a acompanhei de +Paris... Mas reflecti depois.--Socegue. Já lá vae.--Escreveu-me um +antigo conhecimento de Santa Clara. + + +MORGADO (_malicioso_) + +Ah! chegaram-lhe lembranças dos doces e da grade! + + +COMMENDADOR + +Reflecti... dês que o encontrei. + + +MORGADO (_lisongeado_) + +Dês que me encontrou? + + +COMMENDADOR + +E principalmente quando o conheci a fundo. Cada vez tenho por mais +seguro que ninguem convem tanto a sua prima... nem a mim. + + +MORGADO (_admirado_) + +Nem ao Commendador? + + +COMMENDADOR + +Reflecti muito.--Sua prima está ainda no calor da mocidade, não lhe +ficaram as melhores impressões do primeiro matrimonio, e ha-de querer +indemnisar-se... O segundo marido leva grande responsabilidade e grandes +trabalhos!... Eu, o que preciso é descanço... Mesa substancial, o meu +copo do Porto velho, os meus livros... e uma boa sege á bolea. A doirada +mediania, de que falla Horacio Flacco, o Venusino.--N'isto assentei... e +veja como o tenho ajudado. + + +MORGADO (_convencido_) + +Assim é, assim é. Realmente, não sei como lhe hei de pagar tantas +obrigações! + + +COMMENDADOR (_sorrindo_) + +Ah! isso não lhe dê cuidado.--O Bocage não o affronta já: está todo +captivo da afilhada de D. Felicia... E a afilhada de D. Felicia... não +lh'o prognostiquei?... deu já de mão ao filho do mercador. O tenente, de +um momento para o outro... D'esse depois se tratará, sendo preciso.--Bem +vê como lhe abro praça, e o deixo só em campo tornando-lhe facil a +victoria. (_vae sentar-se á E._) + + +MORGADO (_recuando com uma especie de terror_) + +E tudo por amizade! + + +COMMENDADOR + +A amizade é o meu fraco. Chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que +importa. (_O morgado senta-se-lhe ao pé_.) Manuel Simões não parece +muito disposto a dar-lhe ao cincoenta moedas de que me disse precisava +infallivelmente. + + +MORGADO + +E preciso. Que faria eu diante de minha prima sem real? + + +COMMENDADOR (_preparando a caixa para tomar uma pitada_) + +Mau era na verdade... Mas a Gésteira, que nunca chegou para muito, já +não dá para mais... As vinte moedas, qne lhe arranjei o anno passado, +foram-se n'um instante á banca, e ao loto de Génova... Manuel Simões +sabe tudo isto perfeitamente, vê-o afogado n'um diluvio de hypothecas, e +não é homem que deite o seu dinheiro pela janella fóra... +(_offerecendo-lhe a caixa_) Toma? + + +MORGADO (_erguendo-se consternado_) + +Mas então como ha de ser? Se me mandou vir aqui só para me dizer +isso!... + + +COMMENDADOR + +Hade ter as cincoenta moedas; abono-o eu. + + +MORGADO (_sentando se e abraçando-o_) + +Isto é que é um amigo. + + +COMMENDADOR (_saboreando a pitada_) + +Que rendimento terá a sr.^a D. Maria Joanna? Já averiguou?... Hade ter +averiguado. + + +MORGADO + +Só da casa de Val-Moreno, que recebeu pela mãe, anda por cinco mil +cruzados. + + +COMMENDADOR (_offerecendo-lhe tabaco_) + +Serve-se? (_Morgado tira machinalmente uma pitada_.) É isso.--Quanto aos +vinculos de Fresnos e Carregueiros... que lhe tocaram por parte do pae, +e que o pae tinha herdado de seu irmão o Capitão-mór, marido de D. +Felicia, que morreu sem filhos... quanto aos vinculos de Fresnos e de +Carregueiros, deve andar cada um para mais ainda... principalmente o de +Carregueiros. + + +MORGADO + +Não tem menos de quinze a dezeseis mil cruzados ao todo. Mas a que +proposito... + + +COMMENDADOR + +Calculos necessarios. Vinte moedas em junho passado, cincoenta agora, +fazem setenta... que o morgado vem a dever-me. + + +MORGADO (_como protestando_) + +Devo, devo... Heide dever, e heide pagar... juro-lhe. Juro por... pela +cruz da minha espada. + + +COMMENDADOR + +Se podesse jurar por outra coisa! + + +MORGADO (_offendido_) + +Duvída? + + +COMMENDADOR + +Ha viver e morrer.--Homem, a commenda, bem sabe, apenas me chega para +viver com decencia... e parcimonia.--Suetonio, e outros auctores, louvam +a parcimonia como virtude; mas Terencio tem que a dureza da vida não é +para gente adiantada... e eu sou da opinião de Terencio!--O morgado não +ha-de querer que perca assim setenta moedas! + + +MORGADO (_desconfiado_) + +Deseja alguma segurança? + + +COMMENDADOR (_saboreando a pitada_) + +Quasi nada. O morgado faz-me uma escriptura de divida de trinta mil +cruzados!... e sou eu que lhe hei-de pôr a data! + + +MORGADO (_erguendo-se de subito e exclamando furioso_) + +Trinta mil cruzados! Dois annos de rendimento da casa de minha prima!... + + +COMMENDADOR (_tranquillamente_) + +Não grite.--Ólhe se estivesse ahi alguem perto? + + +MORGADO (_contendo mais a indignação_) + +Trinta mil cruzados para pagar setenta moedas! + + +COMMENDADOR + +Quem lhe diz isso? Para deitar sege, e ter honradamente as commodidades +que me faltam.--Oiça, e entre na razão. Desistindo de aspirar á mão de +sua prima, renuncio áquella riqueza toda. Não tem valor isto? E faço +mais; trabalho para desafogal-o de rivaes perigosos... perigosos, +podemos dizel-o entre nós. Não merecerão estes serviços trinta mil +cruzados? Contou bem. São dois annos do rendimento de sua prima. Póde +pagar em quatro. Fica-lhe ainda metade. Veja quem lh'o fazia por +menos.--Não recuse, ou ponho-lhe quarenta por condição. + + +MORGADO + +Por condição? + + +COMMENDADOR + +Por condição. E hei-de obtel-a.--Ha condições de muitas especies. No +codigo de Justiniano, e nos cincoenta livros dos Pandectas, que lhe +servem de commentario... + + +MORIGADO (_atalhando-o desesperado_) + +Quaes Pandectas nem qual Justiniano! Esse pinhal de auctores e de +latins, é um pinhal da Azambuja. (_passeiando agitado_) Trinta mil +cruzados!... Nada, não me deixo roubar... Tão tolo era eu que assinasse +similhante escriptura!... Poem-me condições!... a mim!... Sempre quero +vêr!... + + +COMMENDADOR (_cruzando a perna tranquillamente e tirando um papel do +bolso_) + +Hade ver. + + +MORGADO + +Poem-me condições!... E d'essas!... É muito caro o seu auxilio, +commendador. Dispenso-o. Tenho outro modo de convencer minha prima, mais +seguro e mais barato. + + +COMMENDADOR + +Mais barato, duvido. + + +MORGADO + +Verá. + + +COMMENDADOR + +O seu famoso segredo? + + +MORGADO + +Verá. + + +COMMENDADOR (_socegadamente_) + +Pois então experimente. (_O morgado pára e fita-o_.) Vá dizer a sua +prima: «Prima, tenho aqui uma declaração, que me entregou nos ultimos +momentos a Simôa da Torre da Palma...» É provavel que a traga no +bolso... (_O morgado leva vivamente a mão ao bolso, como para verificar +se lá está o papel indicado_.) Traz, descance!... + + +MORGADO (_mais tranquillo_) + +Conjecturas para pescar verdades... O ardil é velho. + + +COMMENDADOR + +Quer saber o que diz a declaração? (_desdobra o papel que tem na mão_. +_Estão ambos attentissimos um para o outro_. _Descerra-se mansamente a +porta do escriptorio, e D. Maria Joanna apparece alli, a rapidos +intervallos, observando_.) + + +SCENA XII + + +OS DITOS _e_ D. MARIA JOANNA (_meia occulta_) + + +COMMENDADOR (_lendo_) + +--«Por temor de Deus, e amor da verdade, eu Joaquina Simôa, familiar da +casa da Torre da Palma, tendo presentimento de que me chegará breve a +hora de dar contas, e não querendo condemnar a minha alma, declaro o +seguinte, que n'esta hora confirmo com juramento aos Santos Evangelhos, +em presença do reverendo padre cura de Vayamonte, e por sua exhortação e +conselho...» (_O morgado, primeiro attonito, depois aterrado, tem tirado +do bolso a outra declaração, como para comparar com o que ouve, e +parecendo duvidar ainda_.) É exactamente isto? + + +MORGADO + +Ou o commendador tem parte com Satanaz... ou é verdade o que dizem! + + +COMMENDADOR (_negligentemente_) + +Então que dizem? + + +MORGADO + +Dizem que é um jesuita... dos que não trazem roupeta. + + +COMMENDADOR (_severamente_) + +Sr. morgado, não repita levianamente as maledicencias do vulgo, que se +póde arrepender!--Quer verificar o resto da declaração? Conta n'ella a +Simôa:--como estando já separada do marido a morgada da Torre da Palma, +a filha della Simôa adoecéra;--como o capitão mór, em casa de quem a +mesma Simôa nascêra e se criára, a reduzira a prometter-lhe que, se a +creança morresse, lhe substituiria a filha d'elle e de D. Felicia, e +faria passar por morta a herdeira, tudo isto para que os bens de +Carregueiros passassem a varão;--como o escudeiro Luiz Manuel fôra +mandado administrar uma herdade da casa ao pé de Olivença, até á morte +do Capitão-mór, para que nem elle soubesse do segredo, de que a mulher +ficava unica depositaria;--finalmente como a Simôa, levada das +obrigações que devia á casa do Capitão-mór, tivera a fraqueza de ceder, +e criára como sua a filha de D. Felicia, até que esta a mandou buscar já +crescida cuidando ser a afilhada.--Está tudo claramente explicado, e +devidamente datado e assignado. + + +MORGADO (_subjugado_) + +Essa declaração passou das mãos da Simôa ás minhas... nunca a mostrei... +nunca a larguei... Como é possível sem ser por artes sobrenaturaes... + + +COMMENDADOR + +Tem innocencias!--Dei uma volta a Vayamonte. O cura é... É meu amigo. +Não me podia negar a minuta do papel que elle mesmo escrevêra. +(_sentando-se de novo_) Como iamos dizendo... O morgado vae a sua +prima... mostra-lhe esse documento, e diz-lhe: «a supposta afilhada de +sua tia D. Felicia é sua prima direita, e herdeira da casa de seu tio +Capitão-mór. Este papel e este segredo valem dois terços da sua riqueza. +É a unica prova. Se quizer que tal prova desappareça, case commigo. Nada +tenho de Adonis; sou um tanto nescio; fallador insoffrivel e farfante +rematado.» (_Movimento do morgado_) É tudo isto, é, morgado... e mais +alguma coisa. (_Como se proseguisse o discurso do morgado_.) +«Mas,--continuará,--rasgando este papel é como se lhe trouxesse em dote +os vinculos de Fresnos e de Carregueiros.» O argumento conclue. Entra na +ordem d'aquelles a que Cicero chamava: _argumento premente_. Ora como o +tenente Gonçalo Mendo não é ainda coisa certa, e como ninguem perde de +vontade dez mil cruzados de renda, sua prima fecha os olhos, +convence-se, e o morgado casa. Com isso conta, e faz bem em contar. Nada +mais solido, mais engenhoso e brilhante. Que pena, se apparecesse esta +minuta, e pela data se visse que o sr. morgado tem ha oito mezes em seu +poder a declaração, sem a entregar!... Era deitar tudo a +perder!--Verdade, verdade; não vale quarenta mil cruzados? + + +MORGADO + +Quarenta agora!...Trinta!...Tinha dito trinta!... + + +COMMENDADOR (_abrindo a caixa_) + +Tinha? Enganei-me. Quem se não engana? Lucio Floro, da nobre familia dos +Anneanos, conta que um engano decidiu uma batalha, e Seneca chama-lhe +_allucinatio_ para mostrar a perturbação mental que o determina +(_voltando-se mesmo sentado, inclinando-se sobre a esquerda, como para +evitar que a pitada que vae sorver lhe macule a tira_.) Foram quarenta, +nem menos um real... E se hesita... + + +MORGADO (_acudindo_) + +Não hesito... Assigno-lhe a escriptura. + + +D. MARIA JOANNA (_que se adiantára sem que os dois, absorvidos na +conversação a presentissem, apresentando-se entre ambos com jovial +placidez_) + +E eu sirvo de testemunha! + + +COMMENDADOR (_erguendo-se sobresaltado_) + +A sr.^a D. Maria Joanna Galvão aqui! + + +D. MARIA JOANNA (_com o mesmo modo prazenteiro_) + +Porquê? Não sou interessada? + + +MORGADO (_enleiado_) + +A prima, naturalmente, não sabe ainda... + + +D. MARIA JOANNA (_atalhando como transfigurada, com grave altivez o +severa dignidade_) + +Sei... Sei que o sr. morgado da Gésteira me entrega immediatamente esse +papel... e o sr. commendador esse tambem! + + +SCENA XIII + + +OS DITOS, BOCAGE _e_ GONÇALO MENDO, (_apparecendo ao F. e detendo-se a +observar_) + + +MORGADO + +Ha de perdoar, prima. Este papel foi-me confiado. + + +D. MARIA JOANNA (_como acima_) + +De que modo correspondeu á confiança?--Esse papel é o allivio d'uma +saudade, a consolação de uma familia, a restituição d'um patrimonio... +Esse papel é a consciencia e o dever. Tem direito de o conservar nas +suas mãos? + + +COMMENDADOR (_de parte ao morgado_) + +Não ceda. Se fica ella com a prova, fica o morgado sem o casamento! + + +D. MARIA JOANNA (_sem os perder de vista_) + +Sr. commendador, não se envileça mais... nem faça envilecer mais o sr. +morgado! A cegueira de um homem, que já não vive, privou sua propria +filha do nome e dos bens que lhe pertenciam... O temor da hora extrema +corrigiu essa injustiça... (_crescendo em indignação_) Sobre este erro, +que é para chorar, sobre este remorso, que devia ser sagrado, ajusta-se +um pacto infame... (_Movimento dos dois_.) Infame, repito!... Um +mercadeja a honra, outro a consciencia!... Um sacrifica a natureza, +outro o decóro!... Isso tudo que é senão valor para traficar, fazenda +para vender?... Que importa a filha desherdada? Que importa a mulher +offendida? A mulher ha-de calar-se e consentir. É o seu interesse... +Pensaram isso?... Pensaram, e nem lhes passou pelo rosto o pejo de o +pensarem! É o mal das indoles corrompidas não admittirem sequer a +existencia de corações sãos e inteiros, para quem a satisfação do dever +seja a primeira riqueza! Fizeram-me o ultrage de me julgar por si. Não o +podiam imaginar maior!--Sr. morgado, esse papel!... Sr. commendador, +esse papel! + + +MORGADO + +Se outra pessoa que não fosse a prima se atrevesse a dizer-me +similhantes coisas!... + +(_Bocage quer adiantar se; Gonçalo detem-n'o_.) + + +COMMENDADOR + +Estes papeis pertencem-n'os! + + +D. MARIA JOANNA (_mais exaltada_) + +É a minha tia que pertencem. Sou eu que lh'os quero entregar!... Sou eu +que devo entregar-lh'os!... Não me obriguem a... + + +GONÇALO (_adiantando-se e interpondo-se com respeitosa serenidade_) + +Perdôe, sr.^a D. Maria Joanna Galvão... Uma senhora da sua qualidade não +póde entender-se com estes senhores. + + +BOCAGE (_com ironia mal dissimulada_) + +Estes senhores vão pôr já nas suas mãos os papeis que lhes não +pertencem. + + +GONÇALO (_com terrivel frieza, crescendo contra o morgado, que recua na +sua presença_) + +O sr. morgado não ha-de querer desattender sua prima!--O papel? + + +BOCAGE (_do mesmo modo ao commendador_) + +O sr. commendador de certo não falta ao respeito a uma dama.--O papel? + +(_O Morgado e o Commendador, tranzidos e suffocados, entregam os papeis +aos homens que teem diante_.) + + +GONÇALO (_entregando reverentemente o papel a D. Maria Joanna_) + +Aqui está. + + +BOCAGE (_idem_) + +Aqui está. + + +SCENA XIV + + +OS DITOS _e_ D. FELICIA, _entrando do F. pelo braço de_ MANUEL SIMÕES, +_que vem sem chapeu_ + + +MANUEL SIMÕES + +Isto é coisa que se creia! Obrigar-me a sair assim pela rua fóra, eu, um +compadre dos dois marquezes! + + +D. FELICIA + +Queria que entrasse pelos armazens, ou désse o braço ao escudeiro? Viu-o +na loja... chamei-o para me acompanhar. Vinha com o meu hysterico, e já +não podia... + + +D. MARIA JOANNA (_correndo a ella e atirando-se-lhe ao pescoço_) + +Minha tia! minha tia! Mal sabe... + + +D. FELICIA + +Credo, sobrinha! Olhe que me desmancha o penteado. Isso são modos de uma +senhora?--A afilhada não está na sua companhia? + + +MANUEL SIMÕES + +Está lá dentro com a mana Monica. + + +D. MARIA JOANNA (_alvoroçada_) + +A sua... a minha... (_dando-lhe o braço do outro lado e levando-a +comsigo_.) Venha, venha, que a espera uma grande alegria. + + +D. FELICIA (_toda turbada_) + +Que dia de juizo é este!--Não me largue o braço que não estou boa, sr. +Manuel Simões. + +(_Saem pela porta do 2.^o plano da D._--_D. Maria Joanna puxando por D. +Felicia, D. Felicia puxando por Manuel Simões_.) + + +SCENA XV + + +BOCAGE, GONÇALO, COMMENDADOR _e_ MORGADO + +(_Pausa em que os quatro se medem reciprocamente_.) + + +GONÇALO (_rindo, para Bocage_) + +Conhece alguma coisa mais horrenda do que o sr. morgado quando se faz +amarello? + + +BOCAGE + +Conheço: é o sr. commendador quando se faz verde. + + +MORGADO + +Oh! que se eu me não contivesse... Mas contenho-me. + + +COMMENDADOR (_com o seu sorriso_) + +Motejos sempre, sr. Bocage! Plinio, o moço, celebra como coisa de muito +apreço a graça das palavras! + + +BOCAGE (_a Gonçalo_) + +Está mais verde ainda... Foi a peçonha que se lhe derramou! + + +MORGADO + +Oh! que se eu me não contivesse!... + + +GONÇALO + +Já disse isso! + + +BOCAGE + +Que lhe parece, sr. Gonçalo Mendo! Acabamos com esta raça damninha? +(_indo á janella_.) A altura é soffrivel. Dêmos um exemplo.--Deitemos +_isto_ á rua. (_indica os dois_.) Limpamos a cidade. + +(_Morgado recua aterrado_.) + + +COMMENDADOR (_sorrindo mais_) + +Tem graça o sr. Bocage, tem muita graça! + + +GONÇALO (_fitando o commendador_) + +É a praga de todos os tempos!... Deixe... Espera-os a publica justiça, +que hade chegar... Em gente d'essa não põem mão homens de bem. As +viboras esmagam-se com o pé! (_Indicando-lhes a porta, com um gesto a +que os dois logo obedecem_.) Temos que fallar com o dono da casa! + +(_Cae o pano_) + + +FIM DO TERCEIRO ACTO + + + + +ACTO IV + + +Em casa da morgada D. Felicia, ás Portas da Cruz.--Sala de visitas dando +para outra.--Ao F. a porta que abre sobre esta.--Á E. a porta da +ante-sala, fechada com reposteiro de pano azul, orlado de amarello, com +as armas da casa ao meio.--Á D. duas portas. Para o F., á E. da porta de +communicação com a outra sala, um bufete com tinteiro, etc.--_Trumeaux_, +cadeiras o canapés; a mobilia branca e dourada de meias canas. + + +SCENA I + + +(_Ao levantar do panno, um grupo de homens á porta do F. como vendo e +admirando o que se passa na outra sala.--Ouve-se n'esta uma rebeca +terminando o minuete da côrte.--Apenas acaba, muitas palmas em que toma +parte o grupo da porta. Logo depois entram os personagens da scena +seguinte, e a sala toma o aspecto de uma reunião ou assembléa do +tempo.--As damas vêem successivamente sentar-se na ordem adiante +designada.--Os homens ficam pela maior parte em pé diversamente +grupados_.) + + +SCENA II + + +D. FELICIA _pelo braço do_ COMMENDADOR; _successivamente_ D. MARIA +JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MORGADO, GONÇALO MENDO, DAMAS _e_ +CAVALHEIROS CONVIDADOS + + +D. FELICIA (_para fóra_) + +Não o faz melhor o proprio Dupré!... Admiravel!... Divino!... Uma +suspensão!... (_ao commendador_.) Ninguem dança o minuete da côrte como +o sr. Thomaz Xavier... Uma gravidade... um garbo!... Viu, aquelle +rasgado das cortezias? + + +COMMENDADOR + +E a sr.^a D. Angelica?... Uma magestade... um donaire! + + +D. FELICIA. + +É o par mais completo!... (_procurando com os olhos em redor_.) +Maria?... A minha filha?... + + +MARIA GERTRUDES + +Estou aqui, minha mãe! + + +D. FELICIA (_sentando-se_) + +Isso... Bem ao pé de mim, filha. (_ao commendador_) Não repare... Não me +canço de repetir este nome de filha... Tinha-o quasi desaprendido!... +Ainda o não creio... Ainda me parece tudo um sonho... Foi milagre, sr. +commendador, não foi? + + +COMMENDADOR + +Com razão symbolisaram os doutos e discretos o maternal affecto na ave +chamada pelicano, figurando-a o dar-se a morte para dar vida aos filhos. +(_continúa como conversando_.) + + +GONÇALO (_dando o braço a D. Maria Joanna_) + +Se sua tia soubesse com quem desafoga aquelles enlevos! + + +D. MARIA JOANNA + +E para que o ha de saber? Mais lhe vale ignorar sempre similhantes +vilanias. (_sentando-se_.) Foi meu cumplice no cumprimento do dever. +Seja-o no segredo d'essas iniquidades.--É dever tambem. + + +GONÇALO + +A que não me obrigará com a perspectiva de tal +cumplicidade?--Cumplice!... Mediu bem a palavra? + + +D. MARIA JOANNA (_graciosamente_) + +Medi. (_continuam conversando_.) + +(_Entra Francisco, como procurando alguem. Vê D. Maria Gertrudes, e vae +tristemente encostar-se ao trumeau fronteiro_.) + + +SCENA III + + +OS DITOS _e_ FRANCISCO + + +D. FELICIA (_beijando D. Maria_) + +A minha filha!... Bem parecia que me adivinhava o coração!... (_vendo +Francisco_.) Sr. dr. Francisco Pedro, seu pae está na roda do +_isque_?... Estas modas novas de Inglaterra fazem os homens bem pouco +sociaveis! + + +FRANCISCO (_com melancolica resignação_) + +Não, minha senhora... Não é homem de modas, meu pae.--Creio que o vi ao +pé do padre procurador de S. Vicente. + + +D. FELICIA + +Ai! se elle se fica a ouvir as historias que o sr. D. frei Caetano conta +ás meninas, não sae de lá tão depressa... (_abanando-se_.) Porque não +nos tem apparecido, sr. morgado da Gesteira? + +(_Acham-se todos dispostos como segue: D. Felicia n'um canapé á E., +tendo ao lado D. Maria Gertrudes em cadeira.--N'outro canapé, defronte, +D. Maria Joanna, e Gonçalo Mendo proximo, em pé.--O Commendador, que +passou á extremidade D., sentado conversando com uma dama. Junto d'este +o morgado em pé.--Do mesmo lado, encostado ao trumeau, Francisco Pedro +extatico para D. Maria Gertrudes, que não ousa levantar os olhos para +elle_.) + + +MORGADO + +Não tenho tido mãos a medir, sr.^a D. Felicia, não tenho tido mãos a +medir... Fui passar quatro dias ao pé da Arrabida... Não me deixava um +amigo, homem poderoso, que tenho para aquelles sitios... Tudo por causa +d'uma caçada de javardos... Sem mim não se podia fazer... Fui eu que +dispuz os emprazadores. Fui eu que dirigi os couteiros. Fui eu que fiz +chapear os cavallos por causa dos estrépes, e metter-lhes as çapatilhas +e peitoraes de matto como é indispensavel. Fui eu que determinei a +_calcada_... Finalmente, bateram-se duas moitas, e trouxemos nem menos +de seis rezes grandes, uma cerva, dois vareiros e trez javardos... Só eu +á minha parte, a tiro e á faca, matei sete. + + +COMMENDADOR (_sorrindo_) + +Trouxeram seis, e matou sete! + + +MORGADO + +É verdade. Perdeu-se um bique enorme... Sumiu-se no brejo que não foi +possivel achal-o. + + +COMMENDADOR + +Fez tudo o morgado. E os outros caçadores? + + +MORGADO (_ao commendador_) + +Admiraram. (_a D. Felicia_) Antes de hontem passei a tarde n'uma +academia de espada... (_ao commendador_) em casa de mestre Estevão da +rua das Hortas... (_á companhia_) Ia lá um genovez de quem se diziam +maravilhas. E com effeito é homem desembaraçado na arte. Tirou a melhor +de quantos contenderam. Eu estava alli a vêr, e não queria assim sem +mais nem menos entrar em assalto com um estrangeiro, que não sabe a +gente quem é... Mas os amigos, que me tinham levado alli... +provavelmente já de proposito... começam a dizer-me: «Sr. morgado, isto +é uma vergonha para o reino!... Sr. morgado, só v. s.^a póde +desaffrontar a nação!... Sr. morgado, isto são pontos d'honra!...» +Atacaram-me pelo meu fraco... Não pude resistir... (_fazendo menção de +despir_) Largo o josésinho... pego na espada... colloco-me no recto... +Ao terceiro passe, o genovez tira-me de quarta a fundo... Paro de forte +contra forte!... Faço um prendimento rapido... Estava desarmado o homem! +(_Gonçalo sorri_.) Não é por me gabar: confessou elle mesmo que nunca +vira pulso tão rijo, nem uma agilidade assim! + + +GONÇALO (_com obsequiosidade ironica_) + +Estava em boas mãos... a honra nacional! + + +MORGADO (_seccamente_) + +Favores! (_continuando_.) Hontem fui a uma corrida de pombos a Carnide. +(_negligentemente_) Não enfiei senão cinco. Deram-me para correr um +cavallo quasi serril... E era á gineta, que se fosse á brida!... Hoje +estava convidado para jantar em casa d'um desembargador da Casa da +Supplicação, meu amigo de tu. Chegou-lhe um cosinheiro de França, que +faz na perfeição a sopa de natas e as tortas de espargos.--O meu amigo, +sabendo como sou entendedor, fazia empenho no meu voto.--É tambem tarde +de opera na Rua dos Condes. Representam uma coisa italiana que se +chama... que se chama... + + +COMMENDADOR + +_Il Mercato di Malmantile_... Uma opera nova. + + +MORGADO + +Creio que sim. A estas primeiras representações nunca falto. + + +D. FELICIA + +E não foi? Um peralta de quarto voto, como o sr. morgado! + + +MORGADO + +Não fui... só para não faltar aqui logo no principio, e vir aos pés da +sr.^a morgada! + + +D. FELICIA + +Já vejo que me queixei sem razão. Uma pessoa como o sr. morgado nunca é +senhora de si. (_ao commendador_.) E que tal é a opera? + + +COMMENDADOR + +Não são para mim similhantes futilidades. Em coisas de theatro só acho +sabor aos gregos e romanos.--Sabia o titulo da opera nova, porque o vi +na _Gazeta_ de terça feira. Aqui a trago eu. (_tira do bolso uma folha +impressa, em papel pardo, em quarto pequeno_.) + + +D. MARIA JOANNA + +A opera nova? + + +COMMENDADOR + +Não, minha senhora... a _Gazeta_. Já se sabe a razão por que o eleitor +de Saxonia toma parte tão activa na liga germanica. Eu prophetisei-o +sempre! + + +D. FELICIA + +Não gosta do nosso theatro? Não tem razão. Queria que visse aquella peça +intitulada... _As lagrimas da bellesa são as armas que mais vencem_... +que se representou o anno passado no Bairro Alto... Faz chorar as +pedras... E já não é o que era, aquella casa. Viu, sobrinha? + + +D. MARIA JOANNA (_que conversava com Gonçalo_) + +Não vi, minha tia. + + +D. FELICIA + +Em França tambem ha theatros e peças bonitas? Se hade haver! Tem +gracioso em todas, como cá? E magicas? + + +D. MARIA JOANNA + +Ha de tudo, e com abundancia.--Para mim nunca achei auctor que me +deleitasse como um chamado Molière. Não é dos modernos, nem está agora +em voga; mas escreveu comedias, que ainda não li outras de egual +verdade... duas sobre tudo... o _Tartufo_... Não conhece o _Tartufo_ sr. +commendador? + + +COMMENDADOR (_um pouco turbado_) + +Não conheço senão os antigos... Terencio, Plauto, Aristóphanes... + + +D. MARIA JOANNA + +Que pena! Pois é excellente comedia o _Tartufo_... E acho tambem um +sainete particular ao _Importuno_... O sr. morgado da Gesteira devia dar +uns annos de folga á monteria, ou á esgrima, ou á gastronomia, e +aprender o francez... só para ler o _Importuno_!... Estou que havia de +gostar. + + +(D. FELICIA _que a ouvia admirada_) + +Vês, filha, que de coisas se sabem lá por fóra? + + +MORGADO (_a D. Maria Joanna_) + +Os homens da minha condição não perdem o seu tempo com... + + +D. MARIA JOANNA (_atalhando ironicamente_) + +Com um insignificante como Molière. Acho-lhe razão. + + +D. FELICIA + +Em operas, vi eu já o que se póde ver. Quem assistiu em Queluz á opera +da Galathea!... Eram os annos do principe D. José, e estavam para se +ajustar as pazes com a Hespanha... Quem assistiu a uma coisa +d'aquellas... + + +D. MARIA JOANNA + +Ah! esteve no theatro da côrte? + + +D. FELICIA (_hesitando um pouco_) + +Estive... alguma coisa de longe... Não era onde devia estar... mas +estive... Alcancei entrada pelo sr. marquez de Marialva, que esse sabe +dar estimação a quem a merece... Estive... Por signal fui achar entre as +açafatas a mulher d'aquelle da alfandega... que se não sabe d'onde lhe +veiu o dom... Não tem senão um criado d'almofada... e quando lhe vão +visitas, chama pelo nome e sobrenome o criado de porta abaixo, que não +ha outro na casa, para figurar de escudeiro... Estava lá, estava alli, +ella, em quanto pessoas que sempre se trataram á lei da nobreza... +Açafata aquillo!... Não foi senão por empenho do Estacio, o bobo do +paço, algum dia que teve a fortuna de fazer rir Suas Magestades... +Aquillo açafata!... Ai!... Ai!... Maria, filha... a agua de Melissa... +depressa!... + + +D. MARIA JOANNA E D. MARIA GERTRUDES (_erguendo-se como para +socorrel-a_) + +Tem alguma coisa? + + +D. FELICIA + +Não é nada... o meu hysterico!... + + +D. MARIA JOANNA (_ameigando-a_) + +Passou?... Passou... (_voltando a sentar-se_.) E a Galathea? + + +D. FELICIA + +Isso sim!--A Galathéa, de Metastario, com musica do Antonio da Silva... +a orchestra dirigida pelo João Cordeiro... tudo professores da real +capella!... Pois os cantores!... Vindos de Italia de proposito... o +Romanini, o Violani... o Violani principalmente... Umas volatas... uns +gorgeios... uma... uma suspensão!... Não espero tornar a ouvir cantar +assim... E depois o baile d'Alberti!--E as pessoas reaes!... E toda +aquella côrte... Não se via senão sedas, veludos e oiro!... E que +tellas, que pinturas, que lustres!... Theatro aquelle! Opera aquillo!... +o mais... + + +SCENA IV + + +(_Entra um escudeiro velho e dirige-se respeitosamente a D. Felicia_.) + + +D. FELICIA + +Que quer, João Rodrigues? (_a D. Maria Gertrudes_)--São já sete horas? + + +D. MARIA GERTRUDES (_distraida, e sem levantar os olhos_) + +São.--Hão de ser. + + +D. FELICIA (_vivamente_) + +Que tens?... Triste agora! + + +D. MARIA GERTRUDES (_constrangendo-se_) + +Triste, eu?--Nunca estive tão alegre!... + +(_O escudeiro diz algumas palavras em voz baixa a D. Felicia_.) + + +D. FELICIA (_ao escudeiro_) + +Já sei, já sei. Ponha a banca e as urnas na outra sala. (_Levanta-se, e +todos_. _Aos circumstantes_.) São horas do nosso chá. (_indo a uma das +damas presentes_.) A menina Escolastica hade-nos cantar depois aquella +modinha brazileira com primeiras e segundas... tão linda, tão linda... +uma suspensão mesmo!... Aquella... Recorda-se?... (_achando_.) Ah! «_Os +Melindres da Sinhá_!» Canta, riquinha, sim? + + +D. MARIA JOANNA (_a Gonçalo_) + +Se não estiver com a rouquidão do costume. + + +GONÇALO + +Está decerto, em quanto não chegar o seu tudo. + + +D FELICIA (_a outra_) + +A sr.^a D. Euphrasia das Neves faz a segunda e o sr. D. frei Caetano +acompanha-as ao cravo... (_a uma dama_.) Alli onde o vê, o meu cravo foi +o primeiro cravo de martellos que veiu a Lisboa... já depois da guerra +de 62, creio... Mandou-o vir Sua Alteza o sr. conde de Lippe, que era +grande tocador, e muito divertido, (_a Gonçalo Mendo_.) Lembra-se da +guerra de 62?... + + +GONÇALO + +Uma guerra que não passou do principio? + + +D. FELICIA + +Desculpe... Não póde lembrar-se... Tive um primo nos reaes +voluntarios... foi morrer á India. A proposito, o nosso cadete? O seu +amigo Bocage demora-se... Estou vendo que nos falta hoje!... Logo hoje +que não veiu outro, e estão cá tantas pessoas para o ouvir!... + + +GONÇALO + +Não falta. (_em voz baixa_) Mas pelo amor de Deus, sr.^a morgada, não +lhe diga isso... + + +D. FELICIA + +Isso o quê? + + +GONÇALO + +Que lhe faz falta por não ter outro. É capaz de se declarar mudo... se +não fizer peior! + + +D. FELICIA + +Sempre lhe digo que tem um tal genio, o cadetinho! + + +GONÇALO + +Desculpe-o. Não é poeta como os outros. + + +D. FELICIA + +Fazem-se sempre assim. Em ganhando fama!... (_como em confidencia ao +commendador, que veiu dar-lhe o braço_) É a novidade, que eu cá para mim +acho mais chiste ao padre Braz... e mesmo ao Caldas. + + +COMMENDADOR + +Pois tem dúvida!--Chamarem áquillo poeta!... + + +D. FELICIA + +Ai! nem tanto!... (_Saem_.) + +(_Vão saindo todos_. _Fica em ultimo logar Gonçalo Mendo com D. Maria +Joanna pelo braço_.) + + +GONÇALO (_em quanto os outros saem_) + +Que me diz ás nossas assembléas? Francamente, lembra-se com pena do seu +Paris? + + +D. MARIA JOANNA + +Pensa que não há ridiculos tambem? Não tenho pena! Vaidades? Ólhe a +lucta de Marmontel e do abbade Arnaud por causa de Gluck e do Orlando. +Vicios? Ólhe o processo do cardeal de Rohan o anno passado, a prisão da +condessa de la Mothe, e as negras machinações de Cagliostro!... Se visse +o que de lá me escrevem! + + +GONÇALO + +Devéras; não lhe dão saudades? + + +D. MARIA JOANNA (_gentilmente_) + +Cada vez menos. + + +GONÇALO (_transportado_) + +Oh!... Quando poderei eu ter esperanças? + + +D. MARIA JOANNA (_como acima_) + +Não começou já? + + +SCENA V + + +OS DITOS, BOCAGE (_da E._) + + +GONÇALO (_vendo Bocage_) + +Ah!... Ahi chega o nosso poeta. Permitte-me que lhe falle em quanto vão +ao seu chá? (_conduzindo-a á porta da outra sala_.) + + +D. MARIA JOANNA + +Permitto que vá da minha parte agradecer-lhe. + + +SCENA VI + + +GONÇALO _e_ BOCAGE + + +BOCAGE + +Pelo que vejo parece-me que lhe posso dar os parabens.--Pois dou, e de +todo o coração. É mais do que formosa a sr.^a D. Maria Joanna... é mais +do que discreta... é uma alma grande, d'essas que é fortuna encontrar. +Como ella se despojou facilmente e alegremente da maior parte dos bens, +que desde pequena tinha como seus! + + +GONÇALO + +É o menos, isso. Era dever: bastava. Tem raras qualidades em tudo... por +isso a adorava já de longe... + + +BOCAGE + +Ah! confessa? + + +GONÇALO + +Posso confessal-o... agora. + + +BOCAGE + +Porque a adora... de perto. Foram então a proposito os parabens! + + +GONÇALO + +Os parabens, ainda não. + + +BOCAGE + +Mas não podem tardar. + + +GONÇALO + +Mais caso de parabens é o seu. A transformação da menina da casa +engrandece o objecto das suas predilecções. Em vez da humilde afilhada, +pobre e dependente, acha uma boa familia e uma rica herdeira! + + +BOCAGE (_despedidamente_) + +Por causa d'isso estive para não vir! + + +GONÇALO + +Porquê? Não lhe tem já amor? Bem me dizia então... + + +BOCAGE + +Dizia mal... O que lhe dizia não se entendia com esta!... Não lhe tenho +já amor? Tenho. E bem devéras, e bem de dentro... De certo o primeiro da +minha vida... e... quem sabe?... talvez o ultimo! Mas o que provocou +este amor desappareceu. Foi-se o que lh'o fazia grato, o que m'o fazia +generoso. Foi-se-lhe com a condição, foi-se-lhe com a orphandade. + + +GONÇALO + +Se tem esse modo de encarar as coisas... + + +BOCAGE + +Poucos me hão-de entender. Poucos me entendem com effeito. Mas +entende-me o sr. Gonçalo Mendo... Sei já que entende.--Rica! Rica? E eu +que lhe levo em troca?... Dirão que lhe procuro a riqueza!... Dirão que +fiz do affecto um pretexto, do carinho um degrau, da paixão uma +usura!... «A poesia áquelle serviu», repetirá contente por ahi a turba +vilan dos malevolos e dos zoilos... Arrendou-a por contrato... poz a +lyra a juros... vende mais caro o coração que as obras.»--Dirão isto, +dirão... e Deus sabe o que mais... E o grande numero crê... e não poucos +applaudem...--Vender-me, eu!... Eu, Bocage!... Vender o coração! vender +a musa!... esta musa indomita e indomavel!... Oh! basta que o suspeitem! + + +GONÇALO (_calorosamente_) + +Pois a taes considerações sacrifica a felicidade? Pois... + + +BOCAGE + +A felicidade?... Seria... Aqui presinto que era... Mas o orgulho a +sublevar-se-me de continuo!--Resistiria a felicidade a similhante +procella?--Podia a donzellinha modesta ser a estrella pollar do poeta +sem graus nem haveres... Podia em quanto era o infortunio... Deixou de +ser a constellação melancholica das noites saudosas; fez-se o astro +d'oiro dos dias refulgentes!... Era... era a felicidade no amor casto, +no puro enlevo... Veiu a fatalidade, e levantou em seu logar o idolo das +multidões.--Esse não póde ser o idolo de Bocage! + + +GONÇALO + +Tudo exagera... tudo leva ao extremo. É de condição distincta. Casando +com a herdeira, póde desafogadamente cultivar o talento, aproveitar o +estro, e servir a patria... O que recebe em fortuna, paga-o em gloria! + + +BOCAGE + +Bocage casar! Casar eu!... Curvar o collo a esse jugo!... roxear os +pulsos com esses grilhões! Sujeitar-me a esse perenne captiveiro!... +Eu!... Que mal me conhece!--É pouco para mim o ar e o espaço... Toda a +idéa de sujeição me opprime como as grades de um carcere... Alexandre de +Macedonia, no auge do poder, visitou em Corintho o philosopho que da +miseria extrema fazia officio e gala.--«Pede sem receio. Que queres de +mim?» disse o grande conquistador.--«Que te affastes d'ahi, para me não +tirar o sol,» respondeu o festivo indigente. Tenho alguma coisa do +espirito d'esse philosopho... Acima de todas as venturas ponho uma... a +verdadeira, a maior, a superior, a unica... a minha independencia! + + +GONÇALO (_severamente_) + +Que quer então fazer? Desvalida ou abastada, a menina da Torre da Palma +é uma flor de candura.--Quer-lhe inutilisar sem fito os breves annos +juvenis?... Quer-lhe immolar a mocidade?... A quê?... Ainda ha pouco +estava ahi um pobre moço, penando por ella que fazia dó... penando uma +paixão sincera e sem egoismo. Sabe quaes são os intentos d'esse mancebo? +Deixar o lar e a patria... só para não vêl-a indifferente!... + + +BOCAGE (_arrebatado_) + +Quem é? + + +GONÇALO + +Conhece-o já... É o filho de Manuel Simões, que se doutorou +ultimamente.--É um rapaz honrado... é rico tambem... e começa uma +carreira estimada. Podia fazel-a feliz... e fazia de certo. Com que +direito a priva se não póde compensal-a? Julgaria elle destino invejavel +o que o sr. Bocage reputa insupportavel prisão! + + +BOCAGE (_pensativo_) + +E ella? + + +GONÇALO + +Ella, a pobre innocente, sabe lá!--Diga-me, o que quer fazer? + + +BOCAGE (_pensativo_) + +Não sei. (_reparando para dentro_) É o morgado da Gesteira, e o +commendador de Monsarás, que vejo na outra sala? + + +GONÇALO + +São. + + +BOCAGE + +Aqui? ambos! + + +GONÇALO + +Ambos.--A sr.^a D. Maria Joanna deseja formalmente que se não falle do +que se passou com elles em casa do mercador. E tem rasão. Impõe-lhe este +dever a delicadeza. Não podemos publicar a parte vergonhosa, que tiveram +no caso, sem dar occasião a divulgarem elles a fraqueza do +capitão-mór.--Isso quer evitar a sr.^a D. Maria Joanna por attenção á +memoria de seu tio. Calando nós, calam-se forçosamente os dois. Que +estamos todos na resolução de nos calar, já o Commendador percebeu, e +d'ahi tiram ambos a audacia.--Comprehende agora o nobre silencio da +sr.^a D. Maria Joanna, e a presença do Commendador e do Morgado? + + +BOCAGE + +Comprehendo o silencio: não comprehendo a impudencia. Esses homens não +teem sentimentos! + + +GONÇALO + +Se tivessem sentimentos não faziam o que fazem. Eil-os ahi. + + +BOCAGE + +Vamo-n'os então, nós. Custa-me a conter. + + +SCENA VII + + +OS DITOS, COMMENDADOR _e_ MORGADO + +(_Gonçalo e Bocage vão a sair_. _Os dois veem entrando_. +_Encontram-se_.) + + +COMMENDADOR (_indo prazenteiramente a Bocage, e offerecendo-lhe a mão_) + +Oh! sr. Bocage! Como vae? + + +BOCAGE (_sem lhe dar a mão, passando_) + +Vou para diante! (_Sae com Gonçalo para a outra sala_.) + + +SCENA VIII + + +COMMENDADOR _e o_ MORGADO + + +COMMENDADOR (_tirando a caixa e encolhendo os hombros_) + +Mocidade imprudente! + + +MORGADO + +Vê, commendador? Não temesse eu que fallassem, e saberiam... + + +COMMENDADOR + +Não fallam. Se o podessem fazer, já o tinham feito. + + +MORGADO + +O que lhe invejo é o socego. + + +COMMENDADOR + +Claudiano diz: «O espirito do sabio é similhante ao cume do Olympo; fica +tão superior aos ventos e ás nuvens, que nunca as tempestades o +inquietam.» + + +MORGADO + +Mas eu que não sou sabio... nem tenho pena... aqui estou agora... +(_olhando em redor_) Ninguem nos ouve... Aqui estou agora sem dinheiro, +sem casamento, e sem esperanças. + + +COMMENDADOR (_saboreando a pitada_) + +Sem esperanças!... Porquê?--Sua prima tem ainda a casa de Val-moreo. +Cinco mil cruzados de renda, creio que me disse... Não é o mesmo, +seguramente... um terço apenas do que era... mas nas suas circumstancias +actuaes... Pela minha parte sou justo. (_olhando em redor, em voz +baixa_) A escriptura de divida, não será já de trinta, será de dez mil +cruzados. Dispenso a sege. + + +MORGADO + +Pois teima ainda! Não se desenganou com o desastre do outro dia? + + +COMMENDADOR + +O outro dia... veja o que tirou das suas duvidas e espalhafatos! +Quintilliano tem por vergonha desesperar do possivel. Eu nunca me +desengano em quanto vejo remedio. + + +MORGADO + +Remedio! Mas que remedio? Não vê como o tenente anda todo derretido para +minha prima? Não vê como ella o attende? E agora, de mais a mais, que +está senhor de uma boa casa. + + +COMMENDADOR + +Extranho-o. Pois é possivel imaginar que póde alguem competir com o +Morgado? + + +MORGADO + +Não digo isso... + + +COMMENDADOR + +O tenente fica por minha conta. Tenho que lhe pagar uma divida... e ao +Bocage tambem. Nós sabemos esperar... e nada esquecemos. Não ha inimigo +peior do que o inimigo que espera e não se espera. _Inexpectatus +hostis_, lhe chama Ovidio, Sulmonense.--Sua prima está já casada, +porventura? + + +MORGADO + +Mas aquelle ajuste que ella ouviu! a impressão que lhe ficou! + + +COMMENDADOR + +Empregue tambem pela sua parte algum esforço. Não sejam tudo vozes +vãs.--Se estivesse no seu logar, d'isso mesmo faria um merecimento mais. +Attribua-me toda a culpa. Indigne-se bem contra mim: não tem duvida. +Diga-lhe que foi a desesperação, o amor, o desejo de alcançar a sua mão. +As damas raramente deixam de se convencer d'isso. Affirme-lhe que vive +no meio de um incendio... como a salamandra... Ainda que Gesnéro +assevera que a cinza de salamandra é remedio soberano, e d'ahi se deva +concluir que mal poderá viver no fogo o que se reduz a cinzas... Em fim +pinte-lhe ao vivo as chammas em que se abraza... (_enfastiado_) Isso é +com o Morgado, não é commigo.--Convem-lhe ou não lhe convem ainda o +casamento? + + +MORGADO + +Se convem! O que eu não sei é como se ha de agora estorvar o tenente! + + +COMMENDADOR + +Sei eu (_olhando para dentro_). Acabou o chá. Ahi vem todos outra vez. +(_Vae ao F. dar o braço a D. Felicia para a conduzir para o seu logar_) + + +SCENA IX + + +OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, BOCAGE, +GONÇALO, FRANCISCO _e_ CONVIDADOS + + +D. FELICIA + +Que pena ter enrouquecido a menina Escholastica! Tambem, havia de ir +logo sentar-se ao pé do corredor... Não foi senão o ar da porta com o +calor do chá... (_á Dama_) Quer a sua pelicia, minha joia? (_gesto +negativo_) Tomára que ouvissem!... Canta as modinhas brazileiras como +ninguem... Tem uma graça n'aquelles tons menores!... É mesmo... + + +COMMENDADOR (_atalhando_) + +Uma suspensão.--E é, na verdade, é. + + +GONÇALO (_a D. Maria Joanna_) + +Não lhe dizia eu? Faltou-lhe o seu _tudo_. + + +D. MARIA JOANNA + +Faltando-lhe... tudo, como havia de ter voz! + + +GONÇALO + +São os namorados mais extremosos! Ella, sangrou-se ha tempos. Elle, foi +logo procurar o cirurgião, e deu-lhe cinco moedas pela lanceta! + + +D. FELICIA + +Felizmente veio o sr. Bocage. Não imagina como estamos impacientes por +ouvil-o. (_Sentam-se_. _Tomam todos os seus anteriores logares_. +_Unicamente D. Maria Gertrudes passa á E. de sua mãe_. _Bocage fica em +pé junto a D. Felicia na extremidade E. e o Commendador em pé ao lado do +Morgado, defronte_.) Aqui é melhor, não? O padre procurador não acaba +com as suas historias!... + + +BOCAGE + +Pedi já desculpa, sr.^a morgada. Fui passar o dia ao Lumiar. Na volta +demorei-me mais do que desejava no Campo Pequeno. Ha toiros ámanhã. + + +GONÇALO + +No Campo Pequeno? Tinham-me dado idéas. É cavalleiro o Manuel dos +Santos, não? + + +BOCAGE + +É. E o Romão a pé. + + +MORGADO (_intromettendo-se_) + +Tem disposições o Manuel dos Santos. Chama bem á estribeira; mas não tem +pulso para o rojão, e á espada é fraco. O Romão com as farpas não vae +mal. Se um dia me resolver... + + +BOCAGE (_cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna_) + +A sr.^a D. Maria Joanna vae? + + +D. MARIA JOANNA (_que estava entretida_) + +Como, sr. Bocage? (_percebendo_) Não vou. Confesso que não é dos +divertimentos mais do meu gosto. + + +D. FELICIA + +Ouvi que se não correm touros em França. Naturalmente hão de dizer mal +de nós por isso. + + +D. MARIA JOANNA + +Nem todos. Ao conde de Saint-Germain, que os tinha visto em Hespanha no +tempo de Filippe V, ouvi eu que era apaixonadissimo. + + +BOCAGE + +No tempo de Filippe V! Quantos annos tem hoje esse conde de +Saint-Germain, e quantos tinha quando esteve em Hespanha? + + +D. MARIA JOANNA + +Esteve em Hespanha e percorreu o mundo. O conde de Saint-Germain é um +viajante como não ha outro. Beijou a mão a Francisco I na vespera da +batalha de Pavia; conheceu El-Rei D. Sebastião quando se preparava a +expedição d'Africa; e teve em Cuba amisade com Fernando Cortez antes de +este ir conquistar o Mexico. + + +BOCAGE (_rindo_) + +Parece tão convencida! Ninguem dirá que está gracejando. + + +D. MARIA JOANNA + +Mas não estou. + + +BOCAGE (_rindo_) + +Ha então em França Mathusalens ainda? Julgava perdida a especie. + + +D. MARIA JOANNA + +Um Mathusalem! Na apparencia não. Quem o vir dirá que tem a edade do sr. +Morgado, pouco mais ou menos... (_maliciosa_) antes para menos que para +mais. + + +MORGADO + +E conheceu El-Rei D. Sebastião! Essa agora!... + + +D. MARIA JOANNA + +Diz elle. Pergunte ao sr. Commendador, que o viu na embaixada, e lhe +fallou nas salas do meu contra-parente D. Vicente de Sousa. É verdade, +sr. Commendador? + + +COMMENDADOR + +É verdade. E viu-o toda a gente em Paris. O conde affirma que possue o +elixir da immortalidade. Só assim.--O grande Raymundo Lullio refere... + + +BOCAGE (_cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna_) + +E os parisienses acreditam isso? + + +D. MARIA JOANNA + +Acreditam. + + +BOCAGE + +Fallem-me então na credulidade portugueza. + + +D. MARIA JOANNA + +Duvidaram ao principio. Agora vão-lh'o negar! O conde sabia os segredos +de todos... Não admira, tendo vivido e viajado tanto!... Está lá, ainda +creio... Se acaso se lembra de dar uma volta por Lisboa... Ha de ser +incommodo, um homem que está senhor dos segredos de toda a gente... Não +lhe parece, sr. Morgado? + + +MORGADO (_balbuciante_) + +Por mim... + + +D. FELICIA + +Coisas de estrangeiros! Eu, se tal visse, tinha o meu hysterico, por +força. Nome da Benta Hora! Credo! + + +BOCAGE + +E eu quizera encontral-o, para satisfazer uma curiosidade. Desejava +perguntar-lhe... visto que tanto andou e tanto sabe... se alguma vez, +nas suas longas peregrinações, encontrou figurão mais sem pejo... do que +dois sujeitos do meu conhecimento. + + +COMMENDADOR (_baixo ao Morgado_) + +Estão apostados a molestal-o. Não succumba. + + +MORGADO (_idem_) + +Vae vêr. Deixe... Deixe que vae vêr. + + +D. FELICIA (_a Bocage_) + +Queria encontral-o? Não diga isso.--N'estas conversas se vae o tempo, e +nada se faz.--Sr. Bocage... Um improviso dos seus... Quem dá mote?... Dê +mote, sobrinha! + + +MORGADO + +Versos a motes quem quer faz... Não tenho eu querido, senão... Versos a +motes!... Sempre ouvi dizer que era o _A B C_... e está claro que é +(_sem achar saída_), porque os versos com os motes e os motes com os +versos... ou para fallar mais claro, os versos sem os motes e os motes +sem os versos... + + +COMMENDADOR (_sugerindo-lhe indirectamente a idéa_) + +O mote com effeito é uma sentença, que serve de assumpto, e põe a +caminho o engenho. O principal está feito. O mais é ajustar palavras e +combinar as rimas. Com algum exercicio não é difficil! + + +BOCAGE (_medindo-os admirado e retraido_) + +Ah! + + +COMMENDADOR (_continuando_) + +Mote querem alguns que venha do latim _motus_, que significa movimento. +E bem se póde ter que assim é, porque do mote em verdade nasce o impulso +que faz mover o estro... + + +MORGADO (_atalhando_) + +É o que eu queria dizer. O mote vem a ser tudo... Mais por aqui, mais +por alli, é tudo o mote.--O mote é o assumpto; não havendo mote não ha +assumpto; e ahi é que está! (_satisfeito de si e com extrema +volubilidade_) Fazer versos sem assumpto não é para qualquer: tem de se +tirar tudo da cabeça, assim de repente, do pé para a mão, sem mais nem +mais. Tambem não sei porque se ha de pedir mote. Quando uma pessoa monta +a cavallo não precisa de mote para fazer os piafés, e as curvetas, e as +balotadas, e as garupadas; nem tão pouco se dá mote quando qualquer +mette mão á espada, e entra a executar batiduras, ligamentos, +juntamentos, cambiamentos, tentamentos, e esquivamentos. Eis ahi. Isto é +que eu queria... Chegar um homem, não esperar por mais, nem esfregar a +testa, nem pôr os olhos em alvo, bater as palmas e logo alli, zás... +como quem deita um foguete de sete respostas!... + + +BOCAGE (_atalhando e batendo as palmas_) + +Lá vae! + + +COMMENDADOR (_sorrindo_) + +Sem assumpto? + + +BOCAGE + +Está ahi defronte, o assumpto. + +Famosa geração de falladores +Consta que foi, Morgado, a origem tua, +Que nem todos os cães, ladrando á lua, +Tiveram que fazer com teus maiores: + +Um a lingua ensinou dos palradores; +Outro, o motu continuo achou na sua; +Outro, além de encovar toda uma rua, +Açaimou n'uma junta a cem doutores: + +Teu avô, santanario venerando, +Soube mais orações que mil beatas, +Com reza impertinente os ceus zangando: + +Teu pae foi um trovão de pataratas: +Teu tio, o bacharel, morreu fallando; +Tu, fallando sem tom, não morres--*matas*! + + +TODOS (_applaudindo_) + +Bravo! bravo! + + +MORGADO (_engasgado de raiva_) + +Sr. Bocage!... Sr. Bocage!... + + +BOCAGE (_fitando-o serenamente_) + +Que é?... + + +COMMENDADOR (_com o seu sorriso, ao Morgado_) + +Agasta-se? De quê? Não tem rasão... São facecias innocentes, e muito +graciosas na verdade!... (_Gonçalo passa disfarçadamente para o lado de +Bocage_) Mais picantes ainda as fez Juvenal!... Se fosse verdadeiramente +improviso, era deveras um primor... E não digo que não seja... Mas é +facil trazer estas coisas estudadas já... (_Bocage estremece de +indignação ante a contradictoria perfidia_.--_Gonçalo que lhe está ao pé +detem-o_.) + + +GONÇALO (_baixo_) + +Querem fazel-o sair de si. Com algum fito é. Modere-se. + + +COMMENDADOR (_observando_) + +Depois, os conceitos naturalmente andam preparados com antecedencia. + + +BOCAGE (_sem poder ter-se, batendo as palmas_) + +Lá vae!--Sr. Commendador, permitta-me descrever-lhe um certo +individuo... do nosso conhecimento... á moda de Juvenal! + +Do Sena, que foi ver por seu desdouro, +Um pedante voltou, de escassa fama, +Que os livros cata, os cartapacios ama, +E n'elles julga os annos um thesouro: + +Traz laivos de francez, arranha o mouro, +Sabe que Deus em turco _Allah_ se chama, +Que no grego alphabeto o _G_ é _gamma_, +Que _taurus_ em latim quer dizer touro: + +Tem de velhos canhenhos chocho extracto; +Abocanha talentos que não gosa; +Se rosna, prega unhadas como um gato: + +Achareis na pintura rigorosa +Um fofo sabichão, posto em retrato, +Que é nada em verso, quasi nada é prosa! + +(_Impressão de assombramento_. _Ninguem ousa applaudir_. _Segredam todos +mutuamente_.) + + +COMMENDADOR (_parecendo satisfeitissimo_) + +Muito bem, muito bem, sr. Bocage. Esse sim. A isso é que se chama +responder _apposité_. (_O escudeiro, vem apressadamente a D. Felicia, e +falla-lhe em voz baixa_) Retrato lhe chama, não? Vê-se que é: ha de +mostrar-me o original. Mas cuidado, não o saiba elle!... + + +D. FELICIA (_ao escudeiro_) + +Que me diz! (_erguendo-se alvoroçada_) Meus senhores, o sr. marquez de +Marialva está ahi. (_levantam-se todos_.) + + +SCENA IX + + +OS DITOS _e_ MANUEL SIMÕES + + +MANUEL SIMÕES (_alvoroçado_) + +O meu compadre! Está ahi o meu compadre? (_a Francisco_.) Olha que é o +teu padrinho, Francisco. + + +D. FELICIA + +Valha-me Deus! Sem estar nada prevenido... Mande abrir já o portão, João +Rodrigues. (_O escudeiro sae vivamente para a E._) Querem fazer-me o +favor de me acompanhar?... + + +MANUEL SIMÕES + +Vamos esperal-o todos! + + +D. FELICIA + +Vamos receber sua excellencia. + +(_Saem todos_. _Fica só o morgado passeiando agitado, e o commendador +observando-o_.) + + +SCENA X + + +COMMENDADOR _e_ MORGADO + + +MORGADO (_depois de os ver sair_) + +Ter a confiança de me tratar por tu!... D'esta vez faço uma fallada!... +Ambos... hão de ser ambos!... Fizeram bem em aproveitar a occasião de se +esgueirar.... Não podia já conter-me!... E agora... + + +COMMENDADOR (_tomando-lhe o braço_) + +Deixe-se d'isso. + + +MORGADO (_forcejando para se desembaraçar, e mais agitado_) + +Não me sustenha, commendador, não me sustenha! + + +COMMENDADOR (_largando-o_) + +Aonde quer ir? + + +MORGADO + +Aonde quero ir? Boa pergunta! Aonde quero ir!... (_forcejando como +antes_.) Não me sustenha... (_vendo que o não sustem, e hesitando_.) +Quê?... (_em grandes passos_.) Não me sustenha... Quero dizer, +sustenha-me, sustenha-me, senão vou fazer uma grande desgraça!... + + +COMMENDADOR + +Accommode-se. Não ouviu quem vem ahi? + + +MORGADO (_estacando transido_.) + +São elles? + + +COMMENDADOR + +Não, homem. Não sabe que é o marquez? + + +MORGADO + +Não são elles? (_recomeçando as bravatas_.) Podéra! Olhem se nos +apparecem agora! Olhe lá se voltam senão no meio de toda essa gente!... +Cobardes! + + +COMMENDADOR + +Esteja quieto. Estamos aqui sós... e já nos conhecemos! + + +MORGADO + +Então isto hade ficar assim?--Não é senão o tenente que mette a caminho +o Bocage para nos chasquear. Não o viu ha pouco ir ter com elle?--Isto +hade ficar assim!... + + +COMMENDADOR (_com o seu sorriso_) + +Não lhe disse já que não... Andam a semear!... Deixe, que hão de +colher!... Ouve? O marquez subiu já. Vamos tambem. (_Dirigem-se á porta +da E._. _Entra o escudeiro, corre o reposteiro, e colloca-se á +humbreira_. _Os dois tomam tambem de uma e outra parte logar á +porta_.--_Entra o marquez, ao lado de D. Felicia, e seguido de toda a +companhia anterior_.) + + +SCENA XI + + +MARQUEZ, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MANUEL SIMÕES, +FRANCISCO, GONÇALO, BOCAGE, COMMENDADOR, MORGADO _e_ CONVIDADOS + + +MARQUEZ + +Se soubesse que vinha incommodal-a, sr.^a morgada... + + +D. FELICIA + +Incommodar-nos, v. ex.^a! Estava bem longe de esperar tamanha honra, e +por isso... + + +MARQUEZ + +Cheguei ha pouco de Cintra, e achei em Belem uma carta de Martinho de +Mello, que me obrigou a vir logo aqui.--Passei por sua casa, Simões... +Disseram lá ao meu volantim, que tinha ido com seu filho de visita á +sr.^a morgada.--(_a D. Felicia_.) Vim assim mesmo, com as minhas +saragoças... Não esperava encontrar tão luzida companhia.--Como é caso +de pressa não queria perder a occasião. + + +MANUEL SIMÕES (_sem perceber_) + +V. ex.^a dignou-se passar por minha casa... é negocio de pressa... + + +MARQUEZ + +Um negocio com o meu afilhado... Onde está elle? + + +FRANCISCO (_apresentando-se respeitoso_) + +Meu padrinho! + + +MARQUEZ (_em confidencia_) + +Teu pae sempre o hade saber... e mais vale que seja agora, diante de +mim. (_alto_.) A nau de viagem sae para a semana. Já vês que se não póde +perder tempo. + + +MANUEL SIMÕES (_attonito_) + +A nau de viagem... o Francisco!... + + +D. FELICIA. + +O sr. marquez de pé! (_offerecendo-lhe o canapé_.) Sr. marquez... + + +MARQUEZ + +Não me demoro... (_indicando a cadeira junto ao bufete_.) Prefiro +aquella cadeira. Está alli um tinteiro, e hade ser preciso... (_a +Francisco_.) Fui eu mesmo fallar a Martinho de Mello. Achei-o em boa +occasião. Serviu-me logo, sem objecções... que é raridade. Pediu-me só +que lhe mandasse o nome por escripto... Não sei como... as minhas +distracções do costume... passou-me de todo. Agora, á volta de Cintra, +recebo uma carta d'elle, e dentro o decreto já assignado, dizendo-me que +fôra expedido com o nome em branco para não causar atrazo, vista a +proximidade da partida... Venho remediar o esquecimento. (_Dirige-se á +cadeira indicada, e senta-se_. _Sentam-se as damas_.) + + +MANUEL SIMÕES + +Mas, meu senhor... V. ex.^a foi fallar ao ministro da marinha? Por causa +de meu filho?... Traz-lhe um decreto!... Sou pae, sr. marquez... não se +hade estranhar... Um decreto de quê? + + +MARQUEZ + +De guarda marinha para Gôa. + + +MANUEL SIMÕES (_atterrado_) + +Guarda marinha!... Para Gôa!... quando eu pensava... quando esperava... +E pediu meu filho similhante coisa a v. ex.^a... pediu-lh'o sem me dizer +nada! + + +MARQUEZ + +Ponderei-lhe isso mesmo... aconselhei-o... Deu-me razões que me +convenceram. Entendo que faz bem... As viagens são distracções +poderosas... são convenientes á mocidade... Voltará quando fôr tempo... +e espero que será breve... Se lhe não convier a vida do mar, dará +baixa... Agora é bem que vá.--Simões seu filho está formado, não se lhe +póde oppôr... Dê-lhe o seu consentimento. Peço-lhe que dê, e digo-lhe +que o deve dar... (_a Francisco_.) Aprompta-te quanto antes. Embarcas +para a semana. + + +D. MARIA GERTRUDES (_sem poder já, levando a mão ao coração_.) + +Ai! Jesus! + + +D. FELICIA + +Que tens... que tens, Maria?... (_vendo-a debulhada em lagrimas_.) Ai! a +minha filha... A agua de Melissa... a agua da Rainha d'Hungria!... +(_acodem todas as damas a soccorrel-a_.) Não repare v. ex.^a, sr. +marquez... é minha filha! + + +MARQUEZ (_erguendo-se_) + +Sei... sei já... É coisa de cuidado? + + +D. MARIA JOANNA + +Não é nada. Um pequeno espasmo. Passa já. + + +GONÇALO (_de parte a Bocage, indicando D. Maria Gertrudes_) + +Vê? + +(_Bocage contempla-a meditativo_.) + + +D. MARIA GERTRUDES (_com esforço_) + +Não foi nada... Um affrontamento. + + +FELICIA + +O melhor é recolheres-te ao teu quarto. Queres? + + +D. MARIA GERTRUDES (_vivamente_) + +Não, não, minha mãe... Não é nada. + +(_Retomam todos os seus logares_. _O marquez senta-se de novo_.) + + +MARQUEZ (_a Manuel Simões_) + +Então, Manuel Simões, consente? + + +MANUEL SIMÕES + +Que remedio... É desejo d'elle... e v. ex.^a approva. + + +MARQUEZ (_tirando o decreto, desdobrando-o sobre a meza, e tomando a +penna_.) + +Vamos... é pôr o nome, e podemos dar os parabens ao novo guarda marinha. + +(_Bocage passa lentamente por detraz de todos dirigindo-se ao bufete_.) + + +MANUEL SIMÕES (_tristemente, ao filho_) + +Sempre cuidei que te acharia ao pé de mim... para me fechar os olhos. + + +FRANCISCO (_lançando-se-lhe commovido nos braços_) + +Meu pae! + + +MARQUEZ (_acabando de ler o decreto_) + +«Samora Correia, em 31 de janeiro de 1786. Com a rubrica de Sua +Magestade.»--Está em ordem. (_Sem levantar os olhos_.) O nome todo? + + +BOCAGE (_atraz do marquez_) + +Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage! + +(_Espanto nos circunstantes_.) + + +MARQUEZ (_erguendo attonito o rosto, e depondo a a penna_) + +Quê? + + +BOCAGE (_mostrando Francisco nos braços do pae_) + +Será elle que deva partir? + + +MARQUEZ + +Mas sabe porque o meu afilhado quer embarcar? + + +BOCAGE + +V. ex.^a deseja-o feliz?... Deseja... é o seu coração, e o seu costume. +Permitta-me que faça por um momento as suas vezes, e verá... (_indo ao +grupo do pae e do filho_.) Desculpe, sr. Manuel Simões. (_tomando +Francisco pela mão, em voz baixa_.) Não viu já que o ama? (_indo a D. +Maria Gertrudes, em voz baixa e rapida, indicando-lhe Francisco_.) +Quer-lhe como ninguem. (_alto a D. Felicia_.) Sr.^a morgada da Torre da +Palma, estou auctorisado a pedir a mão de sua filha para o sr. dr. +Francisco Pedro Simões. (_Attenção geral_.) + + +D. FELICIA (_assombrada_) + +A mão de minha filha... Se não fosse o respeito do sr. marquez, tinha o +meu hystérico!... A mão de minha filha!... D'esse modo!... tão de +repente!... (_depois de breve pausa_) O sr. Manuel Simões é um homem +honrado; estimo-o; sou-lhe obrigada, não nego... mas... mas elle bem +sabe que a nossa jerarchia... (_O marquez ergue-se_. _Erguem-se todos_.) + + +MARQUEZ (_intervindo_) + +Perdoe, sr.^a morgada... O meu afilhado segue uma profissão nobre... +Doutorou-se... poderá em breve alcançar algum despacho de Juiz de +fóra... Como seu padrinho tenho obrigação de lhe dar um presente de +noivado. (_baixo_) Fallei já á rainha, minha senhora, a respeito da +sr.^a D. Felicia.--O presente que destino ao meu afilhado é um alvará de +açafata para sua sogra. + + +D. FELICIA (_encantada_) + +Ai! sr. marquez! Devéras? Filha, filha, a minha agua da rainha +d'Hungria!... + + +MANUEL SIMÕES (_baixo ao commendador em tom supplicante_) + +Sr. commendador, posso dizer que sim ao casamento? + + +COMMENDADOR + +Embarca o Bocage? (_Gesto affirmativo de Manuel Simões_) Póde. + + +MARQUEZ (_proseguindo a D. Felicia, mais baixo_) + +Depois, Manuel Simões dá ao doutor quarenta mil cruzados. Excellente +occasião de restaurar a Torre da Palma, que o precisa. (_a Manuel +Simões_) Não dá quarenta mil cruzados a seu filho, Simões? + + +MANUEL SIMÕES (_no auge de alegria_) + +Não, meu senhor. Dou sessenta. + + +MARQUEZ (_baixo a D. Felicia_) + +Por causa de sua filha, queria o meu afilhado embarcar! (_indicando +Francisco e D. Maria Gertrudes_.) E veja... Terá coração para fazer dois +desgraçados? (_alto_.) A sr.^a morgada diz que sim. + + +FELICIA + +Basta ser vontade do sr. marquez. (_comsigo_) Açafata do paço! + + +MARQUEZ (_que passou a Bocage, em jovial confidencia_) + +Acertou, sr. Manuel Maria. + + +BOCAGE + +Então ganhei o meu decreto. + + +MARQUEZ + +Insiste? + + +BOCAGE + +Espero só que v. ex.^a me faça a honra de escrever o meu nome. + + +MARQUEZ (_indo sentar-se ao bufete_) + +Veja bem. Pensou? + + +BOCAGE + +Pensei. Meu pae deixou-me a vocação livre. O mar é a minha vocação. +(_dolorosamente_) Se tivesse aqui um affecto, se podesse haver esperança +que me prendesse... Não tenho. Não ha. E é justo. (_com profunda +amargura_) Nós os poetas cantamos tanto o amor, que o amor todo nos vôa +no canto! + + +MORGADO (_baixo ao commendador_) + +Que lhe parece? Vae para Goa.. + + +COMMENDADOR + +Em Goa temos gente tambem. + + +MORGADO + +E se voltar? + + +COMMENDADOR + +Está cá o Santo Officio. + + +MARQUEZ (_dispondo-se a escrever_) + +Repita-me o nome por inteiro... Bem sabe a triste memoria que tenho... +Está a tempo ainda. Considere. + + +BOCAGE (_decidido_) + +Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage. (_Marquez escreve lentamente_) +Meu avô, Gil de Bocage, foi coronel do mar. Herdei talvez a inclinação +com o sangue. + + +FRANCISCO (_indo a Bocage_) + +Não o conhecia ainda... (_intencionalmente_) Ninguem agora o admira +mais. + + +GONÇALO (_apertando-lhe a mão_) + +Regosije-se. Felicito-o. É uma nobre acção. + + +BOCAGE + +Começo outra vida, rude vida de ancias e trabalhos, mas vida explendida +de alvoroços e promessas. (_inebriando-se das proprias palavras_) Oh! +quem me déra já nas solidões do oceano, entre os dois abysmos, para não +ver mais do que o eterno lampadario dos astros, para não ouvir mais do +que o magestoso hymno das vagas!... (_como vendo o que repete_) Ondeante +á pôpa a bandeira que recorda as margens distantes... a melancolia da +saudade!... Diante de mim os horisontes infinitos... a incerteza do +futuro!... Aos meus pés a voragem tumultuosa... a advertencia dos +desenganos!... E além... lá bem ao longe, a nossa India... a India que +démos de presente ao mundo!... o recesso dos mysterios... a terra dos +prodigios... crivada dos nossos padrões, povoada das nossas memorias, +cheia ainda do nosso passado, repetindo de todos os angulos a +maravilhosa historia que os povos decoraram em todas as linguas!... além +as grandes recordações dos grandes feitos... os grandes éccos dos +grandes nomes... as grandes imagens das grandes edades!... além emfim a +perenne e inflammada visão, que acima da escuridão dos tempos e do luto +das catastrophes, como um pharol no meio das trevas, ergue rutilante do +berço do sol a gloria da patria! + + +D. MARIA JOANNA (_fervorosamente_) + +Tem a India inspirado os nossos grandes poetas! Começou já a inspiral-o! + + +MARQUEZ (_erguendo-se e dando-lhe o decreto_) + +Aqui tem sr. guarda marinha. (_a D. Felicia_) Está tudo justo, não? As +escripturas do casamento assignam-se em Belem d'hoje a oito dias! + + +D. FELICIA + +Pois v. ex.^a quer fazer tamanha fineza a minha filha!... + + +MANUEL SIMÕES (_promptamente_) + +Que honra!... Que honra para o afilhado!... + + +MARQUEZ + +Justo é que sejam testemunhas todos os que presenciaram este feliz +accordo. Ficam prevenidos. (_inclinando-se_) Terei occasião de dizer á +sr.^a D. Maria Joanna Galvão o muito que a estimo e respeito. (_D. Maria +Joanna faz mesura_.--_O marquez dirige-se á porta da E._--_Dispõem se +todos a seguil-o_.) Sr.^a morgada, dispenso etiquetas... não consinto... + + +D. FELICIA + +Seria privar-nos da maior satisfação! + + +MARQUEZ (_a Bocage_) + +Não nos falte, Manuel Maria. Quero vêl-o com o seu novo uniforme! (_Sae +com D. Felicia_.--_Acompanham-n'o todos_. _Ficam successivamente em +ultimo logar, Francisco que dá o braço a D. Maria Gertrudes, Gonçalo ao +lado de D. Maria Joanna, o commendador e o morgado da parte opposta, +Bocage_.) + + +SCENA XIII + + +OS DITOS, _menos_ MARQUEZ, D. FELICIA _e os_ CONVIDADOS + + +GONÇALO (_a D. Maria Joanna, indicando D. Maria Gertrudes_) + +Não lhe diz nada a vista d'aquelle par? + + +D. MARIA JOANNA + +Diz-me que preciso um protector... e que já o aceitei! + + +GONÇALO (_transportado_) + +É definitivamente uma esperança? + + +D. MARIA JOANNA (_dando-lhe a mão_) + +É mais... é uma certeza. + +(_O morgado mostra ao commendador esta acção_.--_D. Maria Joanna +esquiva-se como envergonhada, e mette-se no sequito_.) + + +MORGADO (_consternado ao commendador_) + +Viu? + + +COMMENDADOR (_saboreando a pitada_) + +Vi... Não estão ainda casados. + + +GONÇALO (_que seguiu um instante D. Maria Joanna, volta a Bocage, e +mostra-lhe D. Maria Gertrudes e Francisco que de embevecidos se deixaram +ficar atraz de todos_.) + +Repare... O amor e a mocidade, coroados pela ventura!... Alli tem o seu +melhor poema! + + +BOCAGE + +Creio que sim... (_dolorosamente_) porque nenhum ainda me custou tanto! + +(_Cae o panno_) + + +FIM DO QUARTO ACTO + + + + +ACTO V + + +*No palacio dos Marialvas, em Belem* + +Sala forrada de damasco, severamente sumptuosa, abrindo sobre um +terrasso que dá para o Tejo. Em perspectiva os montes da +Outra-Banda.--Explendido dia de inverno. Amplas colguduras de seda. +Cadeiras de damasco egual ao do forro da casa. Altos contadores +marchetados, cobertos de preciosas curiosidades. Á _D._ a mesa preparada +para a assignatura das escripturas. Portas á _D._ e _E._ + + +SCENA I + + +GONÇALO, (_esperando_) _o_ MARQUEZ, _um_ CAVALHEIRO, _um_ MOURO + +(_O Cavalheiro, que mostra mais de trinta annos, entra da D., de botas e +esporas, seguido do Mouro_. _Este vestido a uso marroquino, botas +escarlates, zorame, etc_. _O mouro traz-lhe a vara de marmelleiro_. _Ao +mesmo tempo entra do F. o Marquez_. _O Mouro fica immovel onde está_. _O +Cavalheiro vae com profundo acatamento ao Marquez, ajoelha e beija-lhe a +mão_.) + + +MARQUEZ (_com magestosa simplicidade_) + +Deus o abençoe, D. José! Já sei que o murzello começa a executar +soffrivelmente a lição dos quatro circulos para a esquerda... É preciso +trabalhal-o... É rijo dos rins, convem-lhe o trote avançado. Está ainda +desigual dos travadouros.--Póde recolher-se agora aos seus quartos, +filho... Hade precisar descanço... Oiça... recommende ao Mouro que vá +ver como atam o murzello... e se lhe estendem bem as coberturas.--Se +quizer escrever para Cintra a suas irmãs, e ao Marquez D. Diogo, tenha +tudo prompto. Ámanhã de madrugada partimos para Samora. Acompanha-n'os o +conde de Villa-Verde. (_O Cavalheiro sae_. _O Mouro segue-o_.) + + +SCENA II + + +O MARQUEZ, GONÇALO + + +MARQUEZ (_comsigo_) + +Estes rapazes precisam dirigidos! (_vendo Gonçalo, que se conserva +respeitosamente de parte, e indo a elle_) Desculpe que o não via. Chegou +ha muito? + + +GONÇALO + +Entrei ha pouco, sr. Marquez. + + +MARQUEZ + +Tenho pena de o não ter apresentado a meu filho. + + +GONÇALO + +Tive já a honra de fallar ao sr. D. José de Menezes! Encontrei-o varias +vezes no quartel de Lippe e na academia de Antonio Diniz. + + +MARQUEZ + +Ah! conhecia-o?... Não lhe dá ares do Conde dos Arcos, que tão +desgraçadamente... (_suffoca-se, e desvia o rosto para limpar +escondidamente as lagrimas; pequena pausa; mais senhor de si_) É +tristeza que me não deixa, e é paixão que nunca me hade passar! Não +posso ver qualquer dos meus filhos que me não lembre aquella +fatalidade!... Ha quem murmure de me não ter deixado d'estes +exercicios... Não pensam que assim se fazem homens para as armas, e +soldados para a patria... Na minha casa os costumes transmittem-se +intactos como a honra. Deixal-os murmurar. + + +GONÇALO + +Quem se atreveria a murmurar do venerando patriarcha dos Marialvas, tão +respeitado e tão querido na côrte e no povo! + + +MARQUEZ + +Deixal-os. Não sei que façam mais do que nós; com as suas modas de +hoje!--Deixal-os, e deixemos tambem o que não vem para aqui.--O dia é de +alegrias, e creio que tem bom quinhão n'ellas. Cumprimentei já a sr.^a +D. Maria Joanna Galvão. Uma dama completa. Não podia escolher melhor... +nem ella tambem. Supponho não ser indiscreto. + + +GONÇALO + +A sr.^a D. Maria Joanna já me permittiu confessar francamente o que era +ha muito a minha secreta esperança, o que hoje se me fez inapreciavel +realidade. + + +MARQUEZ + +Estimo... estimo-o devéras.--Uma dama prendada, um valente soldado... +boas familias... elevados sentimentos... Vae tudo de accordo.--É assim +que se perpetuam as casas honradas... Hade, prevenir-me quando fôr o +casamento.--Não andará longe, não?--É festa de que tambem me não +dispenso. O regosijo dos velhos é casar os moços... (_com os olhos no +terrasso_) A sua familia nova já ahi anda... O meu afilhado, esse +madrugou, como é natural... Estão todos, creio... É cedo... ainda me não +deram parte de ter chegado o tabellião.--E o nosso poeta?... o nosso +novo guarda-marinha?... Vem de certo. + + +GONÇALO + +Não o tenho visto. Disse-me que ia a Setubal despedir-se dos paes. + + +MARQUEZ + +Voltou ha tres dias... D'onde procederia aquella resolução repentina!... + + +GONÇALO + +Do mais generoso impulso! + + +MARQUEZ + +Quiz-me parecer...--Que logo de cabeça! Vae em tudo aos extremos.--Ou +hade subir muito alto, ou fazer-se muito infeliz! + + +GONÇALO + +O mesmo diz a sr.^a D. Maria Joanna. + + +MARQUEZ + +É ella que o Hade saber avaliar!... Do espirito e do coração da sua... +da sua noiva... vamos, póde-se já dizer. + + +GONÇALO + +Póde. + + +MARQUEZ + +Do seu espirito e coração tinha ouvido muito Hontem porém fui ainda mais +informado. Esteve aqui o Juiz do Civel da Côrte, que se não cançou de me +gabar a nobreza e desinteresse que provou com a restituição dos vinculos +á prima. Ella mesma desfez todas as difficuldades... e com tal zelo, com +tal contentamento!... A proposito, deu-me tambem a entender coisas um +pouco desagradaveis a respeito do Morgado da Gésteira, e do Commendador +de Monsarás... Quasi que me arrependi de lhes ter aberto as minhas +portas... Sabe se com effeito... + + +GONÇALO (_constrangido, e volvendo os olhos com frequencia para o +terrasso_) + +Que heide eu saber, sr. Marquez? + + +MARQUEZ (_reparando_) + +Fiz a pergunta sem reflexão. Contaram-me tambem que se mostram seus +inimigos declarados... e os homens como o sr. Gonçalo Mendo nunca fallam +de um inimigo pelas costas... Essa mesma resposta confirma o que me +disseram... Que o Morgado, fraco inimigo póde ser... Mais de temer é o +Commendador... (_movimento de Gonçalo_) de acautelar, quero dizer... tem +relações que... (_notando como elle olha para o terrasso_) Não o +preoccupam agora os inimigos, vejo... e tem razão... (_sorrindo_) Hade +querer cumprimentar as senhoras. Na minha edade já se esquecem +facilmente essas impaciencias. + + +GONÇALO + +Sr. Marquez!... Não pense v. ex.^a... + + +MARQUEZ (_festivamente_) + +Não pensava, não pensava... Acompanho-o tambem. + +(_Vae a sair; D. Maria Joanna vem a entrar, seguida do Morgado, que se +retira logo vendo o Marquez e Gonçalo_.) + + +SCENA III + + +OS DITOS, D. MARIA JOANNA + + +MARQUEZ (_inclinando-se affavelmente_) + +Minha senhora! Não lhe queira mal pela demora. O culpado fui eu: +faltei-lhe a seu respeito. (_reparando para fóra_) É sua tia que está +alli? + + +D. MARIA JOANNA + +É, sr. Marquez,--encantada do palacio, da vista, do dia, do Tejo... e +principalmente de v. ex.^a!... + + +MARQUEZ + +E eu que tão mal lhe pago, que ainda quasi lhe não fiz as honras da +casa, nem lhe cumpri a palavra. (_Desapparece no terrasso_. _D. Maria +Joanna vae a seguil-o_. _Gonçalo detem-a_.) + + +SCENA IV + + +GONÇALO, D. MARIA JOANNA + + +GONÇALO + +Esquivava-se ao Morgado, pareceu-me. Esse homem atreve-se ainda a +perseguil-a? + + +D. MARIA JOANNA + +O Morgado?... O Morgado não póde perseguir ninguem! Cuido que tentava +não sei que justificação... Nem eu percebi... Andava passeiando no +terrasso. Ao passar, ouvi a sua voz aqui: entrei... para o não ouvir, a +elle. + + +GONÇALO (_contendo a colera_) + +Tenho agora direitos sagrados. Se o Morgado ousou... + + +D. MARIA JOANNA + +Ousou... evaporar-se apenas o viu. Ora, vamos... é homem que inquiete +alguem, o Morgado?... Começa a fazer de marido cioso?... Previno-o de +uma coisa... tenho horror aos ciosos! (_gracejando_) Se não póde +conter-se, estamos a tempo ainda!... + + +GONÇALO + +Não me contive eu tres annos... padecendo a ausencia... sem uma palavra +de esperança ou de conforto... vendo-a repartir sem differença graças +que só para mim cubiçava, agrados pelos quaes dera a vida? + + +D. MARIA JOANNA + +Não verão o avarento!... Ahi está o que estes senhores querem... e ahi +está porque eu fugia de prender-me!... Se não fazemos differença nos +agrados, um côro de suspiros, uma circular de queixumes... todos a mesma +coisa... Apenas temos a fraqueza de mostrar uma preferencia, o +favorecido converte-se em tyranno, e pede-nos conta... até dos sorrisos +passados.--Bem me dizia em Paris o cavalheiro de Florian... um moço de +gosto e saber. + + +GONÇALO + +Que lhe dizia? + + +D. MARIA JOANNA + +Que para uma dama era inestimavel presente de Deus a mocidade e a +independencia. + + +GONÇALO (_picado_) + +Ah!... (_tristemente_) Repito-lhe então as suas mesmas +palavras:--estamos a tempo ainda!... + + +D. MARIA JOANNA + +Eil-o ahi já todo serio e enfadado! Valha-me Deus!... não vê que estou +gracejando?--A independencia... a nossa independencia!... Muito é para +invejar, na verdade!... Parece á primeira vista que nos festejam e nos +adoram. Examinando bem... não ha mais duro captiveiro do que similhante +liberdade... Os galanteadores são sentinellas, os lisongeiros +espias.--Não foi tão vigiada a nympha da fabula. Ao menos os cem olhos +de Argos fecharam-se uma hora... + + +GONÇALO (_sorrindo_) + +E não foi preciso mais! + + +D. MARIA JOANNA + +Malicioso! (_em tom mais jovial_) Estes Argos interesseiros não os +fecham nem de dia nem de noite. Não sei como fazem, que se fortalecem da +vigilia, como os outros do repouso. Para qualquer lado que nos voltemos, +lá estão elles com os madrigaes assestados. Cada protesto de respeito é +uma atalaya dissimulada. Cada cumprimento é uma bayoneta posta ao peito +para nos tomar o passo... E que severa inquisição!... Se olhamos, é +leviandade; se rimos, inconstancia; se nos desviamos, desdem... se +baixamos os olhos, é disfarce; se choramos, é fingimento; se estamos +sisudas, é reserva... Até se nos encerramos, nos poem á porta a +suspeita!... As mesmas illusões de uns, se fazem nos outros furibundas +indignações. Suffoca-n'os um circulo insuperavel de cortezias +insidiosas, de reverencias desconfiadas, e de homenagens hostis... +(_seriamente_) e quando menos o pensamos, achamo-n'os envolvidas pela +astucia, pela cubiça, pela perfidia... não poucas vezes pela +calumnia!--Eis aqui a nossa independencia!... (_no tom anterior_) O +cavalheiro de Florian ainda não conhecia o mundo! + + +GONÇALO (_gracejando tambem_) + +Dês de quando faz essa idéa da independencia feminina? + + +D. MARIA JOANNA (_gravemente_) + +Dês que uma protecção opportuna me libertou d'esse ambito oppressivo... +cheio de laços e de perigos... e me fez respirar os ares limpos e sãos +de um nobre e generoso affecto!... (_com gentileza_) Não sei se +vacillava ainda... (_dando-lhe a mão com meiga dignidade_) Sei que +d'esse instante para diante não vacillei mais. + + +GONÇALO (_beijando-lhe a mão, e conservando-lh'a nas suas_) + +Desculpa um momento de irreflexão? + + +D. MARIA JOANNA (_esquecendo a mão nas de Gonçalo_) + +Ninguem é perfeito n'este mundo. + + +SCENA V + + +OS DITOS, _e_ BOCAGE _da D_. + +(_Bocage entrando, vendo-os, e detendo-se_.) + + +D. MARIA JOANNA + +Ah!... O sr. Bocage? (_retira vivamente a mão_.) + + +BOCAGE + +O anão da casa encaminhou-me para aqui. Se sou importuno... (_como para +sair por onde entrou_.) + + +GONÇALO (_indo a Bocage e detendo-o_) + +Era esperado, e desejado... venha. (_descendo com elle_) Ninguem +aceitaria com mais satisfação para confidente dos meus alvoroços. + + +D. MARIA JOANNA + +Não é já o sr. Bocage da nossa intimidade? Não me esqueceu ainda! + + +BOCAGE (_com forçada jovialidade_) + +Filho de Marte e de Venus pintaram o Amor. É indispensavel corrigir a +mythologia... O Amor, de menino fez-se homem; de azougado cordato; de +despido composto; de vendado attento... abjurou por fim a gentilidade, e +até de pagão se converteu a bom catholico... para santamente unir e +abençoar, como o pediam os seus merecimentos, um novo Marte e uma Venus +melhor! + + +GONÇALO (_fitando-o_) + +Porque violenta o espirito?... Esse tom festivo tem o que quer que seja +de febril... não vem do coração. + + +BOCAGE (_naturalmente_) + +Não vem, não; diz bem. No coração... tenho uma tristeza profunda... uma +dôr que eu desconhecia. + + +GONÇALO (_apertando-lhe a mão_) + +Comprehendo. Sente agora o sacrificio! + + +BOCAGE + +Não a merecia!... Deus não quiz! + + +D. MARIA JOANNA + +Arrepende-se? + + +BOCAGE + +Não, minha senhora, não me arrependo. Fiz o que devia fazer... + + +D. MARIA JOANNA + +O que poucos saberiam fazer tão bem! + + +BOCAGE + +Mas a impressão não se apaga assim!... (_a Gonçalo_) Confessei-lhe a +minha natural inconstancia... Conhecia mal esta grave e sincera +affeição, que podia emendar-me... que outro me tornaria talvez!... Que +lhe heide fazer? Bem certo é, que só se dá valor ao bem quando se +perde!... + + +D. MARIA JOANNA + +Hade encontrar um coração que o aprecie... Com o seu merito!... A +felicidadade, que hoje cuida perdida, facil lhe será restaural-a. + + +BOCAGE + +Duvido, minha senhora. Ama-se uma só vez assim... quando se ama. Está em +mim mesmo, está na minha indole, o germe do infortunio. Se o podia +atalhar alguma coisa, era isto... (_resignando-se_) Enfim não estava +para mim!... (_abatido_) A imprudencia foi prometter que viria aqui +hoje... Vinte vezes tive tentações de voltar para traz... Faltava-me o +animo! + + +GONÇALO + +Isso não. Tempera-se a alma nos lances difficeis. E na vida que vae +seguir é preciso ter coração para tudo. + + +BOCAGE (_recobrando impetuosamente a resolução_) + +É.--Isso pensei; por isso vim... e verá!--Era fraqueza: não lhe quiz +ceder. Seria encetar mal uma carreira, em que o sacrificio é condição de +todas as horas, em que o esforço é necessidade de todos os momentos! +N'estas procellas d'alma quero dispor-me para as tempestades temerosas +que resolvem os céos e os mares. O espirito sacudido de embates +angustiosos, que em si mesmo lutou e venceu, está preparado para se não +assombrar nem desmaiar, quando os horisontes se condensam... e os ventos +se desencadeiam... e os abysmos se rasgam... e a crista das vagas, +empinadas como serras, se cruza com a fita do raio, livido como +espectro... quando os silvos do vendaval na enxarcia parecem ais de +agonisante... quando, n'esse tumulto, n'esse horror, n'esse cahos, o +baixel que o valor sustenta, que a intelligencia dirige, que salva a +pericia, range até ás profundezas com o stertor do moribundo!... +Attrae-me, convida-me a perspectiva... E quasi me esqueço do mais... e +todo me ufano revendo-me n'este uniforme, que significa a honra o dever, +o patriotismo, a abnegação... contemplando aquelle glorioso estandarte, +que se já não varre as aguas como conquistador, se já não as senhoreia +como soberano, hade no mundo ser sempre venerado por acções egregias... +hade em Portugal ser sempre saudado de legitimas esperanças! + + +GONÇALO + +Com esses sentimentos, sr. Bocage, não ha magoa que não se console... +não ha grandeza a que se não aspire! + + +BOCAGE + +Os sentimentos... São, sim... estes são, estes devem ser.--(_comsigo_) +Mas o que faz d'elles muitas vezes o destino! + + +GONÇALO (_olhando para o terrasso_) + +O marquez dirige-se para aqui, se não me engano. + + +D. MARIA JOANNA (_olhando_) + +Veem todos. + + +BOCAGE (_idem_) + +O commendador e o morgado são os primeiros! (_a Gonçalo_) Teem-me feito, +pagar bem caro o peccado das más companhias, estes heroes. + + +SCENA VI + + +OS DITOS, COMMENDADOR _e_ MORGADO + + +MORGADO (_ao commendador_) + +O que eu vejo, commendador, é que está tudo perdido! + + +COMMENDADOR (_ao morgado_) + +Socegue.--A tempo chega quem sabe dispôr as coisas. «Hoje por vós, +amanhã por nós.» Affirma Cicero que um dia basta para pôr termo aos +triumphos. + + +BOCAGE (_a Gonçalo_) + +Aves de ruim agouro! + + +GONÇALO + +Que hão de agourar-nos agora? + + +SCENA VII + + +OS DITOS, MARQUEZ, (_entrando sem dar attencção ao commendador e +morgado, que se inclinam_)--_Depois_ Um ESCUDEIRO, _de habito de +Christo_ + + +MARQUEZ + +Vão sendo horas. (_a D. Maria Joanna_) Manuel Simões não cabe em si de +contente, e sua tia anda nos ares. (_vendo o escudeiro_) Creio que +chegou o tabellião. (_O escudeiro dirige-se respeitosamente ao marquez, +e diz-lhe algumas palavras em voz baixa_.) Está ahi com effeito. (_ao +escudeiro_) Mande entrar, e mande pôr as cadeiras. + + +SCENA VIII + + +OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA GERTRUDES, FRANCISCO, MANUEL SIMÕES _e_ +CONVIDADOS + + +D. FELICIA (_vendo Gonçalo, jovialmente_) + +O sobrinho não tem pressa de cumprimentar a sua tia nova?... Não lhe +chega o tempo, já vejo... Era bem feito que me oppozesse agora! + + +GONÇALO + +Para nos cobrir de tristeza! + + +D. FELICIA + +Ai! não... não quero vêr ninguem triste... Sabe?... O sr. marquez!... +Oh! grande marquez!... O sr. marquez entregou-me já o alvará de +açafata.--Que dia!--que dia para a familia, sobrinha!... Estou curada +dos meus hystericos! + + +D. MARIA JOANNA + +Parabens, minha tia! + + +MANUEL SIMÕES (_impaciente, ao marquez, mas sem nunca esquecer o usual +acatamento_) + +O tabellião traz já as escripturas promptas, meu senhor.--É só assignar. + + +MARQUEZ + +Ler e assignar.--Vejam como vem guapo o nosso guarda marinha!... (_a +Bocage_) Quando levanta ferro a nau? + + +BOCAGE + +Amanhã, sr. marquez. + + +MARQUEZ (_aos circumstantes_) + +E de uniforme grande, em honra do dia. Não lh'o agradece, Manuel Simões? + + +FRANCISCO + +Sou eu... (_indicando D. Maria Gertrudes_) somos nós dois... que +principalmente lhe devemos agradecer. (_indo a Bocage_) Se os votos +d'uma gratidão profunda pódem ser-lhe aceitos... asseguro-lhe que não os +ha mais ardentes e sinceros. + + +D. MARIA GERTRUDES + +Hão de acompanhal-o sempre as nossas orações! + + +BOCAGE (_commovido_) + +As orações dos anjos são para os infelizes... (_com esforço_) e eu... +sou apenas um desterrado voluntario! + + +MANUEL SIMÕES + +Ahi vem o tabellião.--(_comsigo_) Meu filho doutor!... minha sogra +açafata!... a minha nora morgada!... por compadre um marquez!--Está-me a +cair o habito de Christo!... + + +SCENA IX + + +OS DITOS, O ESCUDEIRO _precedendo_ O TABELLIÃO, _e seis ou oito criados_ + +(_O tabellião entra fazendo reverencia a todos, e inclina-se +profundamente diante do marquez; sob indicação do escudeiro toma o seu +logar á meza em pé, e desenrola as escripturas._--_Os criados chegam ao +marquez uma cadeira d'espaldas, e collocam em torno da meza mais algumas +cadeiras communs. O marquez e as damas sentam-se. O escudeiro fica á +frente dos criados, fazendo parede ao F._) + + +MARQUEZ (_sentado, ao tabellião_) + +Póde começar a leitura. (_O tabellião dispõe-se a ler_.) + + +MANUEL SIMÕES + +Ainda o não posso crêr! + + +GONÇALO (_por detraz da cadeira de D. Maria Joanna, que fica na +extremidade_) + +Chegará tambem brevemente o nosso dia! + + +SCENA X + + +OS DITOS _e_ UM PAGEM + +(_O pagem entra apressadamente com uma bandeja de prata, e em cima um +officio; dirige-se ao marquez, ao qual apresenta a bandeja com um joelho +em terra_.) + + +MARQUEZ (_vendo o pagem, ao tabellião_) + +Queira esperar. (_recebendo o officio_) O que será? (_O pagem retira-se +para o lado_.) É para o sr. Gonçalo Mendo... traz o sello da secretaria +de estado... Provavelmente não o achou em casa o correio, e disseram-lhe +que estava aqui. (_O pagem vae receber o officio da mão do marquez, +leva-o a Gonçalo Mendo, e sae_.) + + +GONÇALO + +Para mim... Da secretaria?--(_recebe o officio, abre, e lê, com visivel +gitacão_.) + + +COMMENDADOR (_de parte, ao morgado, tirando a caixa_) + +Quer apostar que se não faz o casamento de sua prima! + +(_O marquez observa-os_. _Bocage não tira os olhos d'elles_.) + + +MARQUEZ (_inquieto_) + +Que é? + + +GONÇALO (_consternado_) + +A nomeação de capitão de Sofála... e ordem terminante de partir na nau +de viagem, que sae amanhã! + + +D. MARIA JOANNA (_erguendo-se com um grito angustioso_) + +Jesus! (_Soccorrem-n'a D. Felicia e D. Maria Gertrudes_.--_Erguem-se +todos, e affluem em roda de Gonçalo_. _Mostras de pezar na familia_. _O +morgado não póde conter o alvoroço_. _Bocage continúa a observar os +dois, refreado unicamente pelo respeito da casa_.) + + +MARQUEZ (_admirado_) + +Tinha requerido? + + +GONÇALO + +Eu, sr. marquez!--N'esta occasião!... + + +COMMENDADOR (_saboreando a pitada hypocritamente_) + +Que transtorno!... No livro 5.^o da Eneida ha... + + +BOCAGE (_prorompendo_) + +Sei eu... vejo eu d'onde vem o tiro... + + +GONÇALO (_dolorosamente_) + +Acertaram-m'o no coração!... (_Breve pausa_.--_A Bocage, com animo +inteiro_) Somos companheiros de viagem. + +(_D. Maria Joanna soluça, com o lenço nos olhos, nos braços de D. +Felicia, e sua prima_.) + + +BOCAGE (_impetuosamente_) + +Não póde ser... não deve ser... O ministro foi enganado! + + +MANUEL SIMÕES (_insinuando_) + +Uma palavra que o sr. marquez diga a Sua Magestade!... + + +MARQUEZ + +Parto d'aqui a um instante para Samora. Vou fallar á rainha, minha +senhora. Ha tempo ainda.--Não embarca, sr. Gonçalo Mendo. (_ao +escudeiro_) Que apromptem o meu escaler. (_O escudeiro vae a sair, e +detem-se á voz de Gonçalo_.) + + +GONÇALO + +Peço perdão, sr. marquez: embarco.--Sei o que v. ex.^a póde... mas sei +tambem o que devo.--(_grave e solemne_) Quando ultimamente fui tomar +posse do meu solar de Mendel, aonde não voltara dês que entrei no +collegio dos Nobres, a primeira coisa que me deu nos olhos, na sala de +respeito, foi a longa fileira dos retratos de meus avós... um morto na +defeza de Ceuta... outro espedaçado nos bastiões de Diu... outro +mal-ferido na batalha de Montes Claros!... Todos com o arnez no peito e +a espada no cinto... todos soldados desde Aljubarrota!... Parei a +contemplal-os na vasta quadra, triste e deserta, que novamente a morte +visitava.--Do alto das sombrias paredes pareciam dizer-me aquelles +vultos severos: «por servir a patria, e para servir a patria, nos foi +dado o patrimonio que te deixamos, com as obrigações do nosso nome, com +as tradicções do nosso sangue. De ferro eram os nossos corações, como +eram de ferro as nossas armaduras... nunca tremeram nos riscos mais +affrontosos... nunca vacillaram nos mais apertados transes!... Esta +immaculada austeridade nos fez estimados e honrados... Tal é o deposito +de virtudes hereditarias que te confiamos... Recebe-o para o transmittir +como o recebes.»--Isto julguei ouvir... isto se me gravou n'alma.--Podia +esquecel-o agora? + + +BOCAGE + +Mas essa nomeação foi solicitada pela perfidia... essa ordem... + + +GONÇALO (_atalhando_) + +É da patria. Não a examino; obedeço-lhe. Foi o que prometti quando jurei +bandeiras.--O primeiro predicado militar é a obediencia: o valor é +apenas o segundo. (_vehemente_) O soldado que se nega a obedecer é como +um desertor em dia de batalha,--atraiçôa egualmente o juramento! Ninguem +ousaria aconselhar-m'o... ninguem espera tal de mim! (_D. Maria Joanna +alça o rosto, e escuta-o attenta, enxugando os olhos_.) + + +BOCAGE + +Não, o esquecimento do dever ninguem lh'o poderia aconselhar... Mas o +estado que vae tomar, mas a familia que lhe abre os braços, não lhe dita +deveres tambem? + + +GONÇALO + +A patria é a familia das familias!--Se uma veneranda mãe chama por seus +filhos em nome da honra commum, qual póde recusar-se? com que pretexto +hade eximir-se?--Os affectos de familia! Quem é o desamparado que não +tem alguma familia? Se essa razão prevalece, ninguem servirá. Mais que +para qualquer, para nós, os que seguimos a profissão das armas, e a +patria mãe rigida e imperiosa, mas amada sobre tudo. Ainda mais sua do +que nossa é aquella honra que entregaram á nossa guarda. Que filho +consente que a honra de sua mãe possa entrar em duvida?--Sr. Bocage, o +pundonor do soldado não exige menos que a isenção do poeta. Um passo +para ficar... (_com os olhos no Commendador e Morgado_) e não faltará +quem diga que eu... eu, um militar, um portuguez, um neto de +veteranos!... recuei diante dos perigos do clima, ou da azagaya dos +cafres... A calumnia é a espada da hypocrisia... não tem outra. Haviam +de dizel-o. (_com resolução enthusiasta_) Não o dirão... Podem os meus +inimigos triumphar com o meu supplicio; não triumpharão com as minhas +fraquezas. Ninguem dirá nunca de Gonçalo Mendo, que o viu hesitar... nem +diante da catastrophe subita das mais justas esperanças! + + +BOCAGE (_desesperado_) + +Não tenho palavras que o convençam? (_indicando-lhe D. Maria Joanna_) +Veja se resiste áquelle rosto, áquella dôr, ás supplicas alli +estampadas, á voz e ás lagrimas que mais do que eu o persuadirão. + + +D. MARIA JOANNA (_descendo, triste e gravemente_) + +O que existe no mundo mais santo do que o amor puro de duas almas, que +uma da outra vivem, que uma para a outra só querem viver? Ha distancia +que lhes desate os laços? (_crescendo em vehemente sensibilidade_) +Haverá golpe que lhes corte os vinculos? Não lhes são communs as +alegrias? Não lhes são communs as penas? Não lhes é tudo commum? Póde +alguem separal-as em sentimentos, quando foi o sentimento que as uniu, +que das duas fez uma, quer para viver, quer para pensar, quer para +soffrer? (_Pausa_. _Com ponderativa energia_.) É a mulher de um soldado +a companheira de todos os seus perigos, de todos os seus trabalhos... e +de todos os seus deveres. A gloria d'elle é unico desvelo, unico fito, +unico enlevo d'ella. A obediencia, que é n'elle empenho, n'ella é +culto... Cumpre que seja em ambos a resolução egualmente heroica. Se não +póde acompanhal-o nos dias de batalha... póde esconder-lhe o pranto nos +dias de provação!... (_Pausa meditativa_. _Com subito e convulso +esforço_.) Vá, sr. Gonçalo Mendo... vá que eu espero-o! + + +GONÇALO + +Não, sr.^a D. Maria Joanna. Admiro a nobreza do seu animo... para mais +sentir o que n'elle perco... mas o sacrificio da sua mocidade pesaria +eternamente sobre a minha consciencia.--Restituo-lhe a palavra que me +deu. É livre. + + +D. MARIA JOANNA (_solemne e decidida_) + +Sr. Gonçalo Mendo, se na sua familia o juramento é timbre que a tudo +sobreleva, na minha casa dão-se juntamente o coração e a palavra, e a +palavra só deixa de obrigar quando o coração deixa de bater. Póde +julgar-se livre; eu não. Se tiveramos tempo de consagrar a nossa +alliança, podia negar-me o favor de acompanhal-o? Se estivessemos já +unidos á face do altar, teria acaso direito de dizer-me: «restituo-lhe a +palavra e a liberdade?» Considero-me ligada perante Deus: só Deus me +póde desligar. Ámanhã recolho-me ao convento de Santos. Unicamente a sua +mão me abrirá aquellas grades! + + +GONÇALO + +Quem se não deixará vencer?--Á volta irei dedicar-lhe esta vida, que já +toda lhe pertence. Hade permittil-o Deus! + + +MARQUEZ (_intervindo_) + +Fizeram todos o seu dever. Tenho tambem um para cumprir... (_para o +Commendador e Morgado_) Ás pessoas, que eu protejo, nem o proprio +Marquez de Pombal se atreveu nunca! (_fulminando-os de desdem_) Sr. +Morgado da Gésteira, precisa sair de Lisboa e tornar quanto antes para a +sua terra... (_O Morgado fica attonito_.--_Com intimativa_.) +Precisa.--Hade ter disposições que fazer. Não o quero demorar... (_O +Morgado percebe e encaminha-se todo encolhido e confuso á porta da D._) +Espere... o seu amigo Commendador deseja acompanhal-o.--Sr. Commendador, +é provavel que a Meza da Consciencia lhe queira tomar contas do modo por +que tem cumprido os encargos da sua commenda. (_O Commendador, que ao +principio ouvia altivo, resigna-se tambem o segue o Morgado_.) + + +SCENA ULTIMA + + +OS DITOS, _menos_ COMMENDADOR _e_ MORGADO + + +BOCAGE (_vendo-os sair_) + +A vilania e a jactancia... a cobiça e a hypocrisia!... Ahi estão os +homens, ahi estão os vicios, que me ensopam a satyra em fel... que me +inflammam de raios a musa!... Bem o prevejo, bem o presinto... +Contribuirão elles para me abreviar a vida... pagar-lhes-hei eu com a +immortalidade do ridiculo!... + + +MARQUEZ + +Guarde para mais a lyra, Manuel Maria. Não vê como os castiga o despreso +da gente de bem?--(_a Gonçalo_) Hade voltar... e hade voltar breve. + + +D. FELICIA (_consolada_) + +Hade... hade... que m'o diz o coração! + + +MANUEL SIMÕES (_sempre impaciente_) + +Ainda bem! (_ao Marquez insinuante e respeitoso_) Então agora... as +escripturas... + + +MARQUEZ + +Podem ler-se e assignar-se. + +(_O Tabellião torna a pegar nas escripturas_. _O Marquez, D. Felicia e +Manuel Simões voltam aos seus logares, mas sem se sentarem_.--_Francisco +e D. Maria Gertrudes estão á E.; Gonçalo e D. Maria Joanna á D.; Bocage +na extremidade da D._) + + +FRANCISCO (_a D. Maria Gertrudes_) + +Finalmente... vou firmar a minha ventura! + + +GONÇALO (_a D. Maria Joanna_) + +Ao menos... levo a esperança! + + +BOCAGE (_pensativo e com os olhos nos dois pares_) + +E a mim... (_comsigo, dolorosamente, em quanto D. Maria Joanna que o +observa, se lhe aproxima com Gonçalo Mendo, cuja attenção chama pelo +gesto_) a mim... que me fica? + + +D. MARIA JOANNA + +Fica-lhe... a posteridade! + +(_cae o panno_) + + +FIM + + * * * * * + +A propriedade d'esta peça no imperio do Brazil pertence a Francisco +Pereira da Cunha Novaes. + +Rio de Janeiro, 1865. + + + + +*Notas:* + +[1] Este periodo, e os seguintes, marcados com commas, supprimem-se na +representação para abreviar as respectivas scenas. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Os Primeiros Amores de Bocage, by +José da Silva Mendes Leal + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE *** + +***** This file should be named 20725-8.txt or 20725-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/0/7/2/20725/ + +Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online +Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/20725-8.zip b/20725-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..ae9ec57 --- /dev/null +++ b/20725-8.zip diff --git a/20725-page-images.zip b/20725-page-images.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..f14a313 --- /dev/null +++ b/20725-page-images.zip diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize +this eBook outside of the United States should confirm copyright +status under the laws that apply to them. diff --git a/README.md b/README.md new file mode 100644 index 0000000..cf25e78 --- /dev/null +++ b/README.md @@ -0,0 +1,2 @@ +Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for +eBook #20725 (https://www.gutenberg.org/ebooks/20725) |
