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authorRoger Frank <rfrank@pglaf.org>2025-10-15 02:18:11 -0700
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+Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Cartas de Inglaterra
+
+Author: José Maria Eça de Queirós
+
+Release Date: May 29, 2008 [EBook #25641]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
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+Cartas de Inglaterra
+
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+
+Eça de Queirós
+
+
+Cartas de Inglaterra
+
+
+Porto
+LIVRARIA CHARDRON
+de Lello & Irmão--Editores
+1905
+
+
+
+
+ Obras de EÇA de QUEIROZ
+
+ *O crime do padre amaro.* Quarta edição inteiramente refundida,
+ recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva.
+ 1 grosso volume.................................................. 1$200
+ *Os Maias.* Segunda edição. 2 grossos volumes.................... 2$000
+ *A cidade e as Serras.*.......................................... 800
+ *O Mandarim.* Quarta edição. 1 volume............................ 500
+ *O primo Basilio.* Quarta edição. 1 grosso volume................ 1$000
+ *A Reliquia.* Terceira edição. 1 grosso volume................... 1$000
+ *Contos.* 1 volume............................................... 600
+ *As minas de salomão.* 1 volume.................................. 600
+ *Correspondencia de Fradique Mendes.* 1 volume................... 600
+ *Revista de Portugal.* 4 grossos volumes......................... 12$000
+ *A Illustre Casa de Ramires.* 1 volume........................... 1$000
+ *Prosas Barbaras.* 1 volume...................................... 600
+
+ _No prélo:_
+
+ *Echos de Paris*
+ *S. Christovam* (inedito)
+
+
+Porto--IMPRENSA MODERNA
+
+
+
+
+I
+
+Afghanistan e Irlanda
+
+
+Os inglezes estão experimentando, no seu atribulado imperio da India, a
+verdade d'esse humoristico logar-commum do seculo XVIII: «A Historia é
+uma velhota que se repete sem cessar.»
+
+O Fado ou a Providencia, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu
+os episodios da campanha do Afghanistan em 1847, está fazendo
+simplesmente uma copia servil, revelando assim uma imaginação exhausta.
+
+Em 1847 os inglezes, «por uma razão d'Estado, uma necessidade de
+fronteiras scientificas, a segurança do imperio, uma barreira ao dominio
+russo da Asia...» e outras coisas vagas que os politicos da India rosnam
+sombriamente, retorcendo os bigodes--invadem o Afghanistan, e ahi vão
+aniquilando tribus seculares, desmantelando villas, assolando searas e
+vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do
+serralho um velho emir apavorado; collocam lá outro de raça mais
+submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes;
+e, logo que os correspondentes dos jornaes têm telegraphado a victoria,
+o exercito, acampado á beira dos arroios e nos vergeis de Cabul,
+desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... Assim é exactamente em
+1880.
+
+No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes energicos, Messias
+indigenas, vão percorrendo o territorio, e com grandes nomes de _Patria_
+e de _Religião_, prégam a guerra santa: as tribus reunem-se, as familias
+feudaes correm com os seus troços de cavallaria, principes rivaes
+juntam-se no odio hereditario contra o estrangeiro, o _homem vermelho_,
+e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos
+das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a entrada
+da India... E quando por alli apparecer, emfim, o grosso do exercito
+inglez, á volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se
+espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito secco das
+torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquella massa
+barbara rola-lhe em cima e aniquila-o.
+
+Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do
+exercito refugiam-se n'alguma das cidades da fronteira, que ora é
+Ghasnat ora Candahar: os afghans correm, põem o cerco, cerco lento,
+cerco de vagares orientaes: o general sitiado, que n'essas guerras
+asiaticas póde sempre communicar, telegrapha para o viso-rei da India,
+reclamando com furor _reforços, chá e assucar_! (Isto é textual; foi o
+general Roberts que soltou ha dias este grito de gulodice britannica; o
+inglez, sem chá, bate-se frouxamente.) Então o governo da India,
+gastando milhões de libras, como quem gasta agua, manda a toda a pressa
+fardos disformes de chá reparador, brancas collinas de assucar, e dez ou
+quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos
+transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos,
+rebanhos de cavallos, parques de artilharia, toda uma invasão
+temerosa... Foi assim em 1847, assim é em 1880.
+
+Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras columnas de tropa
+india, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a
+quarenta milhas por hora; d'ahi começa uma marcha assoladora, com
+cincoenta mil camelos de bagagens, telegraphos, machinas hydraulicas, e
+uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornaes. Uma manhã
+avista-se Candahar ou Ghasnat;--e n'um momento, é aniquilado, disperso
+no pó da planicie, o pobre exercito afghan com as suas cimitarras de
+melodrama e as suas veneraveis colubrinas do modelo das que outr'ora
+fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Candahar está livre!
+Hurrah!--Faz-se immediatamente d'isto uma canção patriotica; e a façanha
+é por toda a Inglaterra popularisada n'uma estampa, em que se vê o
+general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com
+vehemencia, no primeiro plano, entre cavallos empinados e granadeiros
+bellos como Apollos, que expiram em attitude nobre! Foi assim em 1847;
+ha-de ser assim em 1880.
+
+No emtanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou
+defendiam a patria ou morriam pela _fronteira scientifica_, lá ficam,
+pasto de corvos--o que, não é, no Afghanistan, uma respeitavel imagem de
+rhetorica: ahi, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas,
+comendo as immundicies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando
+os restos das derrotas.
+
+E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma
+canção patriotica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde
+uma linha de prosa n'uma pagina de chronica...
+
+Consoladora philosophia das guerras!
+
+No emtanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande victoria do
+Afghanistan»--com a certeza de ter de recomeçar d'aqui a dez annos ou
+quinze annos; porque nem póde conquistar e annexar um vasto reino, que é
+grande como a França, nem póde consentir, collados á sua ilharga, uns
+poucos de milhões de homens fanaticos, batalhadores e hostis. A
+«politica» por tanto, é debilital-os periodicamente, com uma invasão
+arruinadora. São as fortes necessidades d'um grande imperio. Antes
+possuir apenas um quintalejo, com uma vacca para o leite e dois pés
+d'alface para as merendas de Verão...
+
+Outra historia melancholica é a da Irlanda. Quem não conhece as queixas
+seculares da Irlanda, da _Verde Erin_, terra de bardos e terra de
+santos, onde uma plebe conquistada, resto nobre de raça celtica,
+esmagada por um feudalismo agrario, vivendo em buracos como os servos
+gothicos, vae desesperadamente disputando á urze, á rocha, ao pantano,
+magras tiras de terra, onde cultiva, em lagrimas a batata? Todo o mundo
+sabe isto--e, desgraçadamente, esta Irlanda de poema e de novella é, em
+parte, verdadeira: além dos poucos districtos onde a agricultura é rica
+como em qualquer dos uberrimos condados inglezes, além de Cork ou
+Belfast, que têm uma industria forte--a Irlanda permanece o _paiz da
+miseria_, bem representada n'essa estampa romantica em que ella está, em
+andrajos, á beira de um charco, com o filhinho nos braços morrendo-lhe
+da falta de leite, e o cão ao lado, tão magro como ella, ladrando em vão
+por soccorro...
+
+Os males da Irlanda, muito antigos, muito complexos, provêm, sobretudo,
+do systema semi-feudal da propriedade.
+
+O povo irlandez é numeroso, exageradamente prolifico (nem a emigração,
+nem a morte, nem as epidemias, alliviam esta ilha muito cheia) e vive
+n'uma terra pobre, de cultura estreita, apenas no seu terço trabalhada:
+os proprietarios, lords inglezes ou escocezes, sempre ausentes das
+terras, não admittindo a despeza d'um schelling para as melhorar, estão
+em Paris, estão em Londres, comendo pecegos em janeiro, e jogando pelos
+clubs o _whist_ a libra o tento: os seus procuradores e agentes,
+creaturas vorazes, sem ligação com o solo nem com a raça, forçados a
+remetter incessantemente dinheiro a SS. SS., interessados em conservar a
+procuradoria, cáem sobre o rendeiro, levantam-lhe a renda, forçam-n'o a
+vendas desastrosas, enlaçam-n'o na uzura, tributam-n'o feudalmente,
+apertam-n'o com desespero como a um limão meio secco, até que elle verta
+n'um gemido o ultimo penny. Se o miseravel este anno, fatigando o
+torrão, sustentando-se de hervas seccas, economisando o lume quando ha
+seis palmos de neve, consegue arrancar de si a somma que S. S., o Lord,
+reclama para offerecer uma esmeralda á loura Fanny ou á pallida
+Clementine, para o anno lá está enleado na divida, sem meios de comprar
+a semente, com uma terra exhausta a seus pés...
+
+Então o procurador, de lei em punho, vem, corre, penhora-o, vende-lhe o
+catre, expulsa-o do casebre, atira-lhe mulher, creancinhas e avós
+entrevados para as pedras do caminho... E ahi vae mais um bando de
+desgraçados engrossar o lamentavel proletariado que povôa a «_verde ilha
+dos bardos_». São milhares, são milhões! Esta população, com o ventre
+vazio, os pés nús sobre a geada, volta-se então para a Inglaterra, a mãe
+Inglaterra, que tem a Lei, que tem a Força, que tem a Responsabilidade:
+a Inglaterra, commovida na sua fibra christã, volta-se para os seus
+economistas, os seus politicos: estes individuos pousam as suas vastas
+frontes nas suas vastas mãos, e arrancam das concavidades da sua
+sabedoria pharisaica esta resposta, a tenebrosa resposta da meia edade
+ás reclamações do soffrimento humano:
+
+--Paciencia! o remedio está no ceu...
+
+A Inglaterra, valendo-se capciosamente do clero catholico da Irlanda, e
+da religiosidade da plebe, para a manter na resignação da miseria,
+acenando-lhe com as promessas côr de ouro da bemaventurança--é um
+salutar espectaculo!
+
+Sejamos, porém, justos: a Inglaterra manda tambem, aos milhões de
+esfomeados, farinha e dois ou tres schellings: e o _Punch_ faz-lhes a
+honra de lhes dedicar pilherias.
+
+De tudo isto que resulta? Que o irlandez, vendo a fome no seu lar, a
+Inglaterra occupada com o dr. Tanner, o _Punch_ muito divertido, e o ceu
+muito longe--faz uma trouxa dos seus andrajos, vae á villa mais proxima,
+apresenta-se ao comité dos _Fenians_ ou á secção de _Mollie Maguire_ e
+diz simplesmente:--_Aqui estou!..._
+
+Estas duas associações secretas são terriveis e completam-se uma pela
+outra. Os _Fenians_, que estiveram um momento desorganizados, mas que
+têm hoje a prosperidade de uma instituição publica, são uma seita
+politica, com o fim claro de conquistar a independencia da Irlanda: o
+seu meio é uma futura insurreição, batalhas á luz do dia, um esforço
+heroico de raça que sacode o estrangeiro.
+
+É evidente, portanto, que a Inglaterra não tem nada a temer d'esta
+associação: uma esquadra no canal de S. Jorge, dez mil homens
+desembarcados, e os _Fenians_ serão, no estylo da canção, _como a herva
+dos campos depois que passou o ceifador_, um estendal de cousas sem
+vida. Mas não é assim com _Mollie Maguire_; esta constitue puramente uma
+conspiração: os seus estatutos, os seus fins, a sua organização, os seus
+chefes, tudo está envolvido n'um mysterio, que é o terror na Irlanda; só
+são claros os seus crimes. Ha um proprietario duro que levantou a renda?
+Uma noite, ou elle ou o seu procurador apparecem á beira de um caminho,
+com duas balas na cabeça. Quem foi? Foi _Mollie Maguire_: foi ninguem,
+foi a Miseria, foi a Irlanda. Ha um senhorio, um agente, que fez uma
+penhora? Á meia noite, a sua casa começa a arder, e é n'um momento uma
+ruina fumegante. Quem foi? _Mollie Maguire_. Houve um burguez
+especulador que comprou o casebre de um proprietario penhorado? No outro
+dia lá está no fundo de uma lagôa, com um pedregulho ao pescoço. Quem
+foi, coitado? _Mollie Maguire_. Todos os dias, n'estes ultimos mezes,
+são assim, dois, tres d'estes crimes--que têm em Inglaterra o nome de
+_agrarios_. Os tribunaes, a policia, já se não fatigam em devassas e em
+autos: para quê? _Mollie Maguire_ é intangivel, _Mollie Maguire_ é
+impessoal.
+
+E se houvesse um magistrado tão desgostoso da vida que quizesse
+descobrir d'onde viera a bala, o pedregulho ou o fogo--teria certamente,
+horas depois, o que tanto parecia desejar: um punhal atravez do peito.
+São verdadeiramente os processos do Nihilismo militante: nem falta a
+esta seita aquella vaga exaltação mystica que complica o Nihilismo. Se
+_Mollie_ (Mollie é o diminutivo de Maria) não é uma divindade, é pelo
+menos uma degeneração fetichista da divindade: é a tenebrosa padroeira
+das desforras da plebe, aquella em quem os desgraçados abandonados de
+Deus, do Deus official, do Deus da Missa, encontram soccorro, amizade,
+força--uma sorte de encarnação feminina do diabo do Sabbath, confidente
+dos servos e dos feiticeiros da meia-noite.
+
+A estas duas associações deve juntar-se uma terceira, legal essa,
+fallando alto nas praças, com jornaes, com taboleta, vivendo sob a
+protecção da Constituição, respeitada da policia, e que se chama a _Liga
+da Terra_. O seu fim é promover, por meio de _meetings_ e
+representações, uma vasta agitação, um impulsivo movimento da opinião,
+que force o parlamento inglez a reformar o systema agrario. Mas é
+realmente uma associação legal? São os seus fins tão honestamente
+moderados, tão estreitamente constitucionaes como se diz? Todo o mundo
+duvida. Na Irlanda, sempre que dois homens se reunem, conspiram: quando
+se sentem quatro, apedrejam logo a policia:--que será então quando
+reconhecerem que são duzentos mil? Além d'isso, as reclamações d'esta
+associação são de um vago singular: nada de pratico, nada de realisavel:
+apenas os velhos gritos sentimentaes da aspiração humanitaria. E, ao
+mesmo tempo, os homens, que a dirigem, são espiritos positivos e
+experimentados. Ha aqui uma contradicção assustadora. Sente-se que os
+chefes d'este movimento, sabendo bem que da Inglaterra nada têm a
+esperar, estão simplesmente, sob as apparencias da legalidade,
+organisando a insurreição. Formular um programma pratico para o
+parlamento votar, seria, na opinião d'elles, ocioso e pueril: as
+declamações verbosas em que se falle muito de _legalidade_, _ordem_,
+_parlamentarismo_ bastam--para illudir a policia... E não é duvidoso
+que, n'um certo momento, _Fenians_, _Mollie Maguire_ e _Liga da Terra_
+formarão um só movimento--o da revolta desesperada.
+
+Este era o estado da Irlanda ha dois mezes, quando se deu o caso
+inesperado do _bill de compensação_. Este projecto de lei apresentado
+pelo ministro Gladstone (parte por um sentimento liberal de justiça,
+parte para agradecer os fortes serviços dos irlandezes nas ultimas
+eleições) não trazia certamente um remate aos males da Irlanda; mas,
+coarctando os abusos dos senhores, difficultando a arbitrariedade das
+«expulsões», modificando a legislação barbara das penhoras, alliviava o
+trabalhador irlandez do ferreo calcanhar feudal que o esmaga. O _bill_
+passou entre os applausos da camara dos communs: mas escuso de
+acrescentar que a camara dos lords, essa augusta e gothica assemblêa de
+senhores semi-feudaes, o regeitou com horror, como obra execravel do
+liberalismo satanico!
+
+Veem d'ahi o resultado: os agitadores da Irlanda, os seus prophetas, os
+seus chefes apossaram-se com enthusiasmo d'esta regeição da camara dos
+lords--e utilisaram-n'a tão habilmente, como Antonio utilisou a tunica
+ensanguentada de Cesar. Foram-n'a mostrando á plebe indignada, por
+campos e aldeias, gritando bem alto: «Aqui está o que fizeram os lords,
+os vossos amos, os vossos exploradores! A primeira proposta justa, em
+bem da Irlanda, que se lhes apresenta, repellem-na! Querem manter-vos na
+servidão, na fome, no opprobrio das velhas edades, no estado da raça
+vendida! Ás armas!»
+
+E desde então a Irlanda prepara-se ardentemente para a insurreição:
+apesar dos cruzeiros que vigiam a costa, todos os dias ha desembarques
+de armas; o dinheiro, os voluntarios affluem da America; pelos campos
+vêm-se grupos de duzentos, trezentos homens, de espingardas ao hombro,
+fazendo exercicios como regimentos em vesperas de campanha; ainda que
+seja agora a epoca das colheitas, a população não está nos campos, está
+nos _meetings_, nos clubs; e os tribunos, os agitadores, prodigalizam-se
+sem repouso. Não falta, decerto, a estes homens nem coragem, nem aquella
+eloquencia pathetica que faz passar nas multidões o _arrepio sagrado_.
+Um d'elles, Redathd, exclamava ha dias:
+
+--Dizem-nos a cada momento: sêde justos, pagae ao lord, pagae ao
+senhorio! E citam-nos a palavra divina d'aquelle que disse: _Dae a Cesar
+o que é de Cesar!_ Houve só um homem, Brutus, que deu a Cesar o que a
+Cesar era devido, um punhal atravez do coração!
+
+Esta brutalidade tem grandeza. Agora imagine-se isto lançado a uma
+multidão opprimida, com os gestos theatraes d'esta raça violenta, de
+noite, n'um d'estes sinistros descampados da Irlanda, que são todos
+rocha e urze, ao clarão d'archotes, dando aquella intermittencia de
+treva e brilho que é como a alma mesma da Irlanda--e veja-se o effeito!
+
+Em Inglaterra, mesmo, os optimistas consideram a insurreição quasi
+inevitavel para os frios do outomno. E o honesto John Bull prepara-se:
+já o ministro do interior está em Dublin, e é eminente a declaração da
+_lei marcial_... N'este ponto, radicaes e conservadores são unanimes: se
+a Irlanda se levanta, que se esmague a Irlanda! Sómente John Bull
+declara que o seu coração ha-de chorar emquanto a sua mão castigar...
+Excellente pae!
+
+O jornal o _Standard_, o veneravel _Standard_, tinha ha dias uma phrase
+adoravel. «Se, como é de temer, a Irlanda vier a esquecer-se do que deve
+a si e á Inglaterra»--exclamava o solemne _Standard_,--«é doloroso
+pensar que no proximo inverno, para manter a integridade do imperio, a
+santidade da lei e a inviolabilidade da propriedade, nós teremos de ir,
+com o coração negro de dôr, mas a espada firme na mão, levar á Irlanda,
+á ilha irmã, á ilha bem amada, uma necessaria exterminação.»
+
+_Exterminação_ é muito: e quero crêr, que está alli, para rematar com
+uma nota grave, uma nota d'orgão, a harmonia do periodo. Mas o
+sentimento é curioso e raro: e seria um espectaculo maravilhoso vêr, no
+proximo inverno, John Bull percorrendo a Irlanda, cheio de ferocidade e
+afogado em ternura, com os olhos a escorrer de lagrimas e a sua bayoneta
+a pingar de sangue...--Ainda as fataes necessidades de um grande
+imperio! Volto ao meu desejo: um quintalejo, uma vacca, dois pés
+d'alface... E um cachimbo--o cachimbo da paz!
+
+
+
+
+II
+
+Ácerca de livros
+
+
+Outubro chegou, e com este mez, em que as folhas cáem, começam aqui a
+apparecer os livros, folhas ás vezes tão ephemeras como as das arvores,
+e não tendo como ellas o encanto do verde, do murmurio e da sombra.
+
+Estamos, com effeito, em plena _Book-Season_, a estação dos livros.
+
+Estes dous mezes, setembro e outubro (e elles merecem-no porque como
+côr, luz, repouso, são os mais simpathicos do anno) têm accumulado em si
+as mais interessantes _seasons_, as _estações_ mais fecundas da vida
+ingleza.
+
+A _London-Season_, a celebre estação de Londres, quando a Aristocracia,
+maior e menor, os _dez mil de cima_, como se dizia antigamente, o
+_folhado_, como se diz agora, recolhe dos parques e palacios do campo
+aos seus palacetes e jardinetes de Londres--passa-se em abril, junho e
+julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e ôca estação de trapos, de luvas
+de vinte botões, de lacaios, de champagne, de batota e de _cotillon_.
+Emquanto que as outras!...
+
+Olhem-me para estas sabias, uteis, viris, solemnes _seasons_, que
+abundam n'estes dourados mezes de setembro e outubro. Isto sim! Aqui
+temos, por exemplo, a _Congress-Season_, a estação dos congressos.
+
+Que espectaculo! Toda a verde superficie da Inglaterra está então, de
+norte a sul, salpicada de manchas negras. São congressos em deliberação.
+Ha-os de metaphysicos e ha-os de cosinheiros.
+
+Aqui, duzentos individuos carrancudos e descontentes elaboram uma nova
+ordem social; além, uma multidão de sabios, acocorados, semanas
+inteiras, em torno de um objecto escuro, não pódem chegar á conclusão se
+é um tijolo vilmente recente ou uma laje da camara nupcial da rainha
+Ginevra; e adiante cavalheiros anafados e luzidios assentam a doutrina
+definitiva da engorda do leitão--esse amor!
+
+Os congressos mais notaveis este anno fôram--o de medicina em Londres, a
+que assistiram _mil e tresentos_ congressistas medicos e cirurgiões dos
+dois mundos e dos dois sexos, e onde se prometteu á humanidade, para
+d'aqui a annos, a suppressão das epidemias pelas vaccinas; o da _British
+Association_, a grande Sociedade das Sciencias (congresso annual
+celebrado este anno em York) em que o presidente, sir John Lubbock, esse
+amavel sabio que tem passado a existencia a estudar as civilizações
+inferiores dos insectos, laboriosas democracias de formigas, deploraveis
+oligarchias de abelhas--occupou-se d'esta vez, dando um balanço á
+sciencia durante os ultimos cincoenta annos, a mostrar algumas das
+estupendas habilidades d'esse outro ephemero insecto, o Homem: e emfim o
+congresso annual da Egreja, celebrado em Newcastle, composto de bispos,
+dignitarios ecclesiasticos, theologos, doutores em divindade, este largo
+clero anglicano, o mais douto e litterario da Europa. N'este, entre
+outros assumptos discutiu-se a _Influencia da Arte na vida e no pensar
+religioso_: mas, quanto a mim, o resultado mais nitido foi o revelar
+incidentalmente que a frequentação dos templos, em Inglaterra, diminue
+de um terço todos os dez annos, ao passo que o espirito de religiosidade
+cresce nas massas, tornando-se assim o sentimento religioso cada dia
+mais desprendido das fórmas caducas e pereciveis das religiões.
+
+N'este momento ha outros congressos--o dos Metallurgistas, o das
+Sciencias Sociaes, o dos Telegraphistas, o Archeologico, o dos
+Gravadores, o dos... emfim, centenares. Até o dos _Browninguistas_. Não
+sabem o que são os _Browninguistas_? Uma vasta associação, tendo por fim
+estudar, commentar, interpretar, venerar, propagar, illustrar, divinisar
+as obras do poeta Browning. Isto, mesmo n'este paiz de arrebatados
+enthusiasmos intellectuais, me parece um pouco forte. Browning é sem
+duvida, com Shelley, Shakspeare e Milton, um dos quatro principes da
+poesia ingleza: mas tem o inconveniente de estar vivo. Elle proprio
+assiste, materialmente, com o seu paletot e o seu guarda chuva, ao
+congresso de que é objecto espiritual e assumpto: e fatalmente, pelo
+effeito mesmo da sua presença, a admiração litteraria tende a tornar-se
+idolatria pessoal, e os _shake hands_ que elle distribue começam
+naturalmente a ser mais apreciados no congresso que os poemas que elle
+escreveu. Por isso mesmo que o divinisam, o amesquinham: não é então o
+grande poeta de Inglaterra, é o idolo particular dos _Browninguistas_,
+deixa assim de ser um espirito fallando a espiritos--para ser apenas um
+manipanso aterrorizando supersticiosos.
+
+Mas, continuando com as _estações_, temos ainda a _Yachting-Season_, a
+estação nautica, das regatas, das viagens em _yacht_. Hoje em Inglaterra
+ter um _yacht_ é, como entre nós montar carruagens, o primeiro dever
+social do rico ou do enriquecido, uma das fórmas mais triviaes do
+conforto luxuoso. Um _yacht_ não é só um frágil e airoso barco de
+cincoenta toneladas e vela branca; póde ser tambem um negro e poderoso
+vapor de duas mil toneladas e sessenta homens de tripulação. N'este
+ultimo caso, em logar de bordejar gentilmente em redor das flôres e das
+relvas da ilha de Wight, ou de ir mergulhar n'essas prodigiosas
+paisagens marinhas do alto Norte da Escossia, vae dar a volta ao mundo,
+carregado de biblias para os pequenos patagonios e de champagne e d'amor
+para as lindas missionarias, vestidas de marinheiras. A vida de _yacht_
+tem os seus costumes especiaes, a sua etiqueta, a sua phraseologia, a
+sua moral propria, e sobretudo a sua litteratura. A litteratura de
+_yacht_ é vasta--William Black, o autor das _Azas Brancas_, do _Nascer
+do Sol_, da _Princeza de Thude_, o seu romancista official: um
+paisagista maravilhoso, de resto, tendo na sua penna todo o vigor do
+pincel d'um Jules Breton.
+
+Temos igualmente n'este mez a _Shooting-Season_, a estação da caça ao
+tiro, que abre no 1.º de setembro com uma solemnidade tal, e no meio de
+um interesse publico tão intenso, tão fremente--que me dá sempre ideia
+do que devia ter sido nas vesperas da Grande Revolução a abertura dos
+Estados Gerais. Peço perdão d'esta abominavel comparação--mas a carne é
+fraca, e eu considero esta estação sublime. É n'ella que se caça o
+_grouse_, e é durante ella que se come o _grouse_. Não sabem o que é o
+_grouse_? É um passaro do tamanho da perdiz, que vive (Deus o abençôe!)
+nos _moors_, ou descampados da Escossia... Agora deixem-me repousar um
+momento, e ficar aqui, n'um extasi manso, pensando no _grouse_, com as
+mãos cruzadas sobre o estomago, o olho enternecido, lambendo o labio...
+Não imaginem que eu sou um guloso. Mas nunca se deve fallar nas coisas
+boas sem veneração. Lord Beaconsfield, esse mestre do bom gosto, deu-nos
+o exemplo quando, tendo mencionado n'um dos seus livros o _ortolan_,
+esse outro delicioso passaro, acrescentou--que o peitinho gordo do
+_ortolan_ é mais delicioso que o seio da mulher, o seu aroma mais
+perturbador que os lilazes, e o sabor da sua febra melhor que o sabor da
+verdade. Póde-se dizer o mesmo do _grouse_.
+
+Continuando, temos a _Burglary-Season_, a estação dos assaltos e roubos
+ás casas. Esta começa tambem em setembro, quando a gente rica sai de
+Londres e deixa os seus palacetes, ou fechados, ou ao cuidado de um
+velho e somnolento guarda-portão. Os salteadores de Londres, corpo
+social tão bem organisado como a propria policia, procede então
+systematicamente, por quadrilhas disciplinadas, usando os mais perfeitos
+meios scientificos no arrombamento e no saque d'essas propriedades
+abarrotadas de cousas ricas...
+
+Temos a _Lecture-Season_, ou estação das conferencias. O seu nome
+explica-a e seria longo detalhar-lhe a organisação. Basta dizer que
+n'esta estação não ha talvez um bairro em Londres (quasi podia dizer uma
+rua), nem uma aldeia no resto do paiz, em que se não veja, cada noite,
+um sujeito, com um copo d'agua, dissertando sobre um assumpto, deante
+d'uma audiencia compacta, attenta, interessada e que toma notas. Os
+assumptos são _tudo_--desde a ideia de Deus até á melhor maneira de
+fabricar graxa. E os conferentes são _todo o mundo_--desde o professor
+Huxley até um qualquer cavalheiro, o senhor Fulano de Tal, que sóbe á
+plataforma a contar as suas impressões de viagem ás ilhas Fidji, ou as
+aptidões curiosas que observou no seu cão...
+
+Ha ainda outras estações que basta enunciar: a _Hunting-Season_, a
+estação da caça á raposa (isto é todo um mundo); a _Cricket-Season_, a
+estação em que se joga o cricket,--e em que se vêm d'estes edificantes
+espectaculos: doze cavalheiros, vindos do fundo da Australia, outros
+doze partindo dos altos da Escossia, e encontrando-se em Londres a jogar
+ao desafio uma tremenda partida que dura tres dias, na presença
+arrebatada de um povo em delirio!
+
+Temos tambem a _Angling-Season_, a estação da pesca á linha, instituição
+nobilissima a que a humanidade deve o salmão e a truta. É o _sport_
+favorito da alta burguezia culta, da magistratura, dos homens de
+sapiencia, d'aquela parte da velha aristocracia sobre que mais pesam as
+responsabilidades do Estado. Todo este mundo, de solemne
+respeitabilidade e de alto ceremonial--pesca á linha. Talvez por isso,
+de todos os _sports_ inglezes, a pesca á linha é um dos que têm
+produzido uma litteratura mais consideravel--tão consideravel que a sua
+bibliografia, a simples enumeração dos seus tratados, occupa um livro de
+duzentas paginas! Ahi observo com respeito a noticia de um ponderoso
+estudo sobre a _Pesca á linha entre os Assyrios_...
+
+Só esta semana a litteratura da pesca á linha nos deu já dois livros,
+segundo as listas: _A carteira de um pescador á linha_, _Pela beira dos
+rios_.
+
+Temos ainda a _Traveling-Season_, a estação das viagens, quando o famoso
+_touriste_ inglez faz a sua apparição no continente. N'esta epoca
+(setembro e outubro) todo o inglez que se respeita (ou que, não podendo
+em sua consciencia respeitar-se, pretende ao menos que o seu visinho o
+respeite) prepara umas dez ou doze malas e parte para os paizes do sol,
+do vinho e da alegria. Os anjos (se o não sonharam, como diz João de
+Deus) devem assistir então, do seu terraço azul, a um espectaculo bem
+divertido: toda a Inglaterra fervilhando no porto de Dover--e d'ahi
+successivamente partirem longos formigueiros de _touriste_, riscando de
+linhas escuras o continente, indo alastrar os valles do Rheno,
+negrejando pela neve dos Alpes acima, serpenteando pelos vergeis da
+Andaluzia, atulhando as cidades da Italia, inundando a França! Tudo isto
+são inglezes. Tudo isto traz um _Guia do Viajante_ debaixo do braço.
+Tudo isto toma notas. Isto ás vezes viaja com a esposa, a cunhada, uma
+amiga da cunhada, uma conhecida d'esta amiga, sete filhos, seis creados,
+dez cães, e outros cães conhecidos d'estes cães; e isto paga por tudo
+isto sem resmungar! Não: não digo bem, resmungando sempre. Esta viagem
+de prazer passa-a quasi sempre o inglez a praguejar (mentalmente--porque
+nem a Biblia nem a respeitabilidade lhe permitem praguejar alto).
+
+A verdade é que o inglez não se diverte no continente; não comprehende
+as linguas; estranha as comidas; tudo o que é estrangeiro, maneiras,
+_toilettes_, modos de pensar, o choca; desconfia que o querem roubar;
+tem a vaga crença de que os lençóes nas camas d'hotel nunca são limpos;
+o vêr os theatros abertos ao domingo e a multidão divertindo-se amargura
+a sua alma christã e puritana; não ousa abrir um livro estrangeiro
+porque suspeita que ha dentro cousas obscenas; se o seu _Guia_ lhe
+affirma que na cathedral de tal ha seis columnas e se elle encontra só
+cinco, fica infeliz toda uma semana e furioso com o paiz que percorre,
+como um homem a quem roubaram uma columna; e se perde uma bengala, se
+não chega a horas ao comboio, fecha-se no hotel um dia inteiro a compôr
+uma carta para o _Times_, em que accusa os paises continentaes de se
+acharem inteiramente n'um estado selvagem e atolados n'uma putrida
+desmoralisação. Emfim o inglez em viagem, é um ser desgraçado. É
+evidente que eu não alludo aqui á numerosa gente de luxo, de gosto, de
+litteratura, de arte: fallo da vasta massa burgueza e commercial. Mas
+mesmo esta encontra uma compensação a todos os seus trabalhos de
+touriste quando, ao recolher a Inglaterra, conta aos seus amigos como
+esteve aqui e além, e trepou ao Monte Branco, e jantou n'uma
+_table-d'-hote_ em Roma e, por Jupiter! fez uma sensação dos diabos,
+elle e as meninas!...
+
+Que mais estações temos ainda? A _Speech-season_, a estação dos
+discursos, quando, nas ferias do parlamento, todos os homens publicos se
+espalham pelo paiz discursando, perante enormes _meetings_, sobre os
+negocios publicos. É uma das feições mais curiosas da vida politica em
+Inglaterra...
+
+Ha outras muitas _estações_ em setembro e outubro, mas não me lembram
+agora. E emfim, para não ser injusto, devo mencionar tambem o Outomno.
+
+
+De todas estas, para mim, naturalmente, a mais interessante é a
+_Book-Season_, a estação dos livros.
+
+Isto não quer dizer que fóra d'esta estação (outubro a março) se não
+publiquem livros em Inglaterra--longe d'isso, Santo Deus! Como não quer
+dizer que fóra da _London-Season_ se não dance, ou fóra da
+_Travelling-Season_ se não viaje. Significa simplesmente que as grandes
+casas editoras de Londres e d'Edimburgo reservam, para as lançar n'esta
+epocha as suas _grandes novidades_. Um livro de Darwin, um estudo de
+Matthew Arnold, um poema de Tennyson, um romance de Georges Meredith
+serão evidentemente guardados para a _estação_. De resto, durante todo o
+anno não s'interrompe, não cessa essa publicidade phenomenal, essa
+vasta, ruidosa, inundante torrente de livros, alastrando-se, fazendo
+pouco a pouco sobre a crosta da terra vegetal do globo, uma outra crosta
+de papel impresso em inglez.
+
+Não sei se é possivel calcular o numero de volumes publicados
+annualmente em Inglaterra. Não me espantaria que se pudessem contar por
+dezenas de milhares. Aqui tenho eu deante de mim, no numero de ontem do
+_Spectator_, a lista dos livros lançados esta semana: NOVENTA E TRES
+OBRAS! E isto é apenas a lista do _Spectator_. Apenas o que se chama
+aqui _Litteratura Geral_. Não se contam as reimpressões; nem as edições
+dos classicos, em todos os formatos, desde o in-folio, que só um
+Hercules póde erguer, até ao volume miniatura, cujo typo reclama
+microscopio, e em todos os preços desde a edição que custa 50 libras,
+até á que custa 50 réis: não se contam as traducções de livros
+estrangeiros, sobretudo as litteraturas da antiguidade: não se conta,
+emfim, essa incessante producção das Universidades, essa outra levada de
+gregos e latinos, de commentarios, de glossarios, de in-folios, que
+lançam de si, aos caixões, as imprensas de Clarendon.
+
+Ha n'esta litteratura geral uma especie de que o inglez não se farta--a
+litteratura de viagens. Já não fallo nos romances: isso não constitue
+hoje uma producção litteraria, é uma fabricação industrial.
+
+Na vida domestica ingleza, a novela tornou-se um objecto de primeira
+necessidade como a flanella ou as fazendas de algodão; e, portanto, toda
+uma população de romancistas se emprega em manufacturar este artigo, por
+grosso, e tão depressa quanto a penna póde escrever, arremessando para o
+mercado as paginas mal seccas no ancioso conflicto da concorrencia.
+
+Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é tambem consideravel, e de
+resto bem explicavel n'uma raça expansiva e peregrinante, com esquadras
+em todos os mares, colonias em todos os continentes, feitorias em todas
+as praias, missionarios entre todos os barbaros, e no fundo d'alma o
+sonho eterno, o sonho amado de refazer o Imperio Romano. Isto produziu
+um outro typo de industrial das lettras--o prosador viajante.
+
+Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado: o
+homem que visitava paizes longinquos, se achava em aventuras
+pittorescas, á volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a penna e
+ia revivendo esses dias n'uma agradavel rememoração de impressões e
+paisagens. Hoje não. Hoje emprehende-se a viagem unicamente para se
+escrever o livro. Abre-se o mappa, escolhe-se um ponto do Universo bem
+selvagem, bem exotico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um
+diccionario. E toda a questão está (como a concorrencia é grande) em
+saber qual é o recanto da terra sobre que ainda se não publicou livro!
+Ou, quando o paiz é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda
+alguma aldeola, algum afastado riacho sobre que se possam produzir
+trezentas paginas de prosa...
+
+Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto do Globo um sujeito de
+capacete de cortiça, lapis na mão, binoculo a tiracollo, não pense que é
+um explorador, um missionario, um sabio colligindo floras raras--é um
+prosador inglez preparando o seu volume.
+
+Nada elucida como um exemplo. Aqui está a lista dos livros de viagens
+publicados em Londres n'estas _duas ultimas semanas_.
+
+É claro que eu não os li, nem sequer os enxerguei. Copio os titulos,
+sómente, da lista de dous jornaes de critica: o _Atheneum_ e a
+_Academy_. Note-se que estes livros são quasi sempre bem estudados: dão
+o traço e a linha que pinta, a paysagem com a sua côr e luz, a cidade
+com o seu movimento e feições; são graphicos e são criticos; têm a
+geographia e têm a observação; e mais ou menos fazem reviver com o
+detalhe caracteristico, o povo visitado, na sua vida domestica, a sua
+religião, a sua agricultura, o seu _sport_, os seus vicios, a sua arte
+se a tem. Calcule-se, pois, a importancia d'esta litteratura, que se
+torna assim um inquerito sagaz, paciente, correcto, feito ao Universo
+inteiro.
+
+Aqui está, com os titulos traduzidos, o que se publicou n'estes quinze
+dias: _A minha jornada a Medina_--_Entre os filhos de Han_--_Nas aguas
+salgadas_--_Longe, nos Pampas_--_Sanctuarios de Piemonte_--_O novo
+Japão_--_Uma visita á Abyssinia_--_Vida no oeste da India_--_Pelo
+Mahakam acima, e pelo Barita abaixo_--_A cavallo pela Asia
+Menor_--_Scenas de Ceylão_--_Atravez de cidades e prados_--_No meu
+Bungaló_--_As terras dos Matabeles_--_Fugindo para o sul_--_Terras do
+sol da meia-noite_--_Peregrinações na Patagonia_--_O Soudan
+egypcio_--_Terra dos Maggiyres_--_Atravez da Siberia_--_Notas do mundo
+do Oeste_--_Caminhos da Palestina_--_Norsk, Lapp e Finn_ (onde será isto
+Santo Deus?!)--_Guerras, peregrinações e ondas_ (que titulo, Deus
+piedoso!)--_A linda Athenas_--_A peninsula do Mar Branco_--_Homens e
+casos da India_--_A bordo do «Rapoza»_--_Sport na Crimêa e
+Caucaso_--_Nove annos de caçadas na Africa_--_Diario de uma preguiçosa
+na Sicilia_--_A leste do Jordão_...
+
+Ainda ha outros, ainda ha muitos--e em quinze dias!
+
+Seria curioso dar parallelamente a lista de poemas, livros de poesias,
+odes, balladas, tragedias, annunciados ou já publicados na primeira
+quinzena da estação; mas não tenho paciencia em revolver todo esse
+lyrismo. Ha uma «grande sensação»: o livro de Dante Rosseti, um dos
+mestres modernos: o resto é apenas um bando amoroso e triste de rouxinóes.
+
+Não menos espessas, nem menos compactas são as listas dos livros de
+Theologia, Controversia, Exegese, etc.,--exhalando de si uma melancholia
+de cemiterio. Em metaphysica ha o costumado sortimento--macisso e vago,
+como diria Herbert Spencer. Em historia, biographia, critica, as listas
+bibliographicas vêm riquissimas... Emfim, ao que parece, é uma
+formidavel e grandiosa _estação de livros_. Aos romances, nem alludo:
+montões, montanhas--e monturos!
+
+Uma pastora meio-selvagem das Ardennes, que nunca vira outro espectaculo
+mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia
+trazida das suas serranias a Pariz, quando no boulevard passava, com a
+tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzella fez-se
+branca como a cêra, e só poude murmurar n'uma beatitude suprema:
+
+--Jesus! tanto homem!
+
+Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridiculo d'esta pastora, e
+balbuciando, com a bocca aberta, como se chegasse tambem das Ardennes:
+
+--Jesus! tanto livro!
+
+Mas não é este grito, como o da pastora, natural?
+
+O beduino do deserto d'Oeste, que, passando a Serrania Lybica, avista
+pela primeira vez, immenso, lento, enchendo um valle, o rio Nilo,
+exclama espantado:
+
+--Allah! tanta agua!
+
+A agua é a sua preoccupação: todas as tristezas das areias que habita
+vêm da falta da agua: mais que ninguem sente as maravilhas que a agua
+produz; e no seu grito ha uma timida reprehensão a Allah! «Tanta agua
+aqui, e tão pouca lá d'onde eu venho!...»
+
+Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor
+astuto.
+
+
+
+
+III
+
+O INVERNO EM LONDRES
+
+
+Eis ahi o inverno. Já todos os dias o encontro, e, agora mesmo, lhe ouço
+fóra, na rua, sob a nevoa tristonha d'esse fim d'outubro, a voz dolente
+e vaga: não é o velho semi-deus de attributos mythologicos, com a barba
+em flocos de neve sobre o manto branco de neve, soprando nos dedos, e o
+classico feixe de lenha a tiracollo: é um rapagão enfarruscado, de
+casquete e chicote em punho, que vae conduzindo uma carroça negra com um
+forte _percheron_ aos varaes, pelo macadam já endurecido da geada, e
+soltando de porta em porta, o seu pregão melancholico: _Coals! coals!_
+(carvão! carvão!)
+
+Estão, pois, findos os dias purpureados do lindo outomno inglez! Nada
+iguala o encanto suavizador e meigo dos meados d'outubro nestes condados
+do Sul. Um passeio, ao meio da tarde, nas pittorescas margens do Severn,
+ou ainda ao longo do Avon, riba que a memoria de Shakspeare torna quasi
+sagrada, ou pelas collinas amaveis de Surrey, é o mais belo, o mais util
+repouso que póde ter o espirito sobresaltado, cançado dos livros, ou do
+duro movimento da vida.
+
+Tem-se aqui alguma coisa d'aquella paz etherea, que os poetas pagãos
+sonhavam nas perspectivas ineffaveis dos Elysios: sómente a natureza
+particular do Norte, as linhas da architectura saxonia, o arranjo das
+culturas, dão a feição romantica e elegiaca que falta á paysagem latina.
+
+Caminha-se n'uma luz ligeira, de um dourado triste, de um enternecimento
+quasi magoado: o verde das relvas sem fim que se pisam, verde repousado
+e adormecido sob as grandes ramagens das arvores seculares e
+aristocraticas, solemnes, isoladas, immoveis n'um recolhimento
+religioso, leva a alma insensivelmente para alguma cousa de muito alto e
+de muito puro: ha um silencio de uma extraordinaria limpidez, como o que
+deve haver por sobre as nuvens, um silencio que não existe na paysagem
+dos climas quentes, onde o labor incessante das seivas muito forte
+parece fazer um vago rumorido, um silencio que pousa no espirito com a
+influencia de uma caricia. E a cada momento são fundos encantadores de
+paysagem, de um vaporisado azul, com alguma torre d'Abbadia coberta de
+heras, que surge d'entre robles, ou uma rica avenida de parques, onde se
+entreveem vestidos claros correndo sobre as relvas, ou a historica
+architectura de um castello, de bandeira feudal na torre, que de repente
+apparece n'uma elevação, com os seus terraços de marmore escuro, os
+grandes prados onde pastam ou repousam os animaes de luxo, os faiscantes
+meandros do rio entre a verdura e sons tristes de trompa, vindos da
+profundidade dos arvoredos...
+
+D'aqui a dias, porém, por collina e valle, só haverá a triste nevoa
+humida que dura mezes, ou a neve redemoinhando ao vento...
+
+Esta monotonia, que começa escurecendo os campos desde novembro, vae
+causar este anno uma innovação excellente nos costumes sociaes da
+Inglaterra. Vae haver, de dezembro a maio, uma _estação d'inverno_ em
+Londres.
+
+Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de maio até aos
+primeiros dias quentes de agosto. O resto do anno, Londres é a cahida
+Palmyra ou a tenebrosa planicie do deserto da Petrêa. Ficam lá, é
+verdade, entre tres a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade
+subalterna, feita de barro villão, sem valor social em Inglaterra: é a
+humanidade que não tem castellos, nem parques de tres legoas, nem o seu
+nome no _Livro d'Ouro_, nem _yachts_ de luxo para bordejar nas costas da
+Escossia; é a humanidade que não tem nas arterias o famoso _sangue
+normando_, esse sangue invejado, mais precioso que o de Christo, cantado
+por todos os poetas da côrte, e que foi importado pelos brutamontes
+cobertos de ferro, e pelludos como féras, que acompanhavam a estas ilhas
+Guilherme da Normandia; é emfim a humanidade que Carlos Stuart, o
+Bem-amado, chamava a _canalha_, e que o grande sacerdote da _Bella
+Helena_, o pobre Offenbac, designava, com tanto criterio, pelo nome de
+_vil multidão_:--é o trabalhador, o artifice, o artista, o professor, o
+philosopho, o operario, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz.
+
+É esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade
+superior, os _dez mil de cima_, como aqui tão pittorescamente se diz,
+partem para os seus castellos, as suas _villas_ á beira mar, ou os seus
+_yachts_.--Londres, apenas habitado pela turba abjecta, torna-se sobre a
+face da terra, como a lamentavel Cacilhas. Nenhum _gentleman_ que se
+respeite e queira manter o seu bom nome social ousaria confessar que
+esteve em Londres em janeiro: correria o risco de ser tomado por um
+tendeiro, ou, peior, por um philosopho, um poeta, um d'esses seres
+rastejantes, vis como o lixo, sem castello e sem matilha de cães, que
+nenhuma _Lady_ quereria ter no seu «rol de visitas».
+
+Se um _gentleman_, tendo negócios instantes em Londres, é forçado a vir
+a este deserto de plebeus, guarda um _incognito_ severo; não chegará
+talvez a pôr barbas postiças; mas só se arrisca pelas ruas no fundo
+escuro de um cupé com os _stores_ descidos, e o paletot rebuçando-lhe a
+face. Todavia uma aventura tão poderosa poucos a ousam!
+
+Pois bem, tudo isto se vae reformar! E este anno será moda passeiar em
+Piccadilly, ou florear de rosa ao peito em Pall-Mall, em pleno janeiro,
+na espessura dos nevoeiros. Esta revolução consideravel foi, como todas
+as fecundas revoluções, tramada, prégada, popularisada pelas mulheres.
+
+Havia longos annos que estes anjos soffriam com impaciencia a
+melancholia da vida do campo, durante o longo inverno saxonio. Ainda,
+nos primeiros tempos, depois de deixar as glorias de Londres e os
+esplendores da _season_, a existencia era toleravel. Havia as regatas
+elegantes de Cowes; ia-se estar uma semana na ilha de Wight; depois
+vinham as festas da abertura da caça; seguia-se a epocha dos _yachts_,
+as viagens ás costas da Noruega, ás Hebbidas, ás praias elegantes da
+Normandia; depois, quando a côrte está na Escossia, vinha a caça do
+veado, os bailes de _gellies_ das montanhas... Emfim, vivia-se.
+
+Mas, com a chegada de dezembro, da neve, uma formidavel lei social, a
+_fashion_, obrigava os _dez mil de cima_ a recolherem-se aos seus
+castellos, á solidão do campo. E ahi começava para as damas o tedio
+memoravel!
+
+Quando se não tem um _chateau_ e parque como os de Inglaterra, póde
+parecer um sonho de paraizo o viver n'essas faustosas residencias, entre
+maravilhas d'arte, accumuladas por gerações, com mobilias de duzentos
+contos, um serviço de sessenta criados, vinte cavallos na cocheira e um
+parque de trez legoas, um parque de romance, para passeiar sobre a neve
+dura quando o ceu brilha claro. Mas a desgraçada dama, desde o seu
+primeiro dente acostumada a tantos explendores, já lhes não encontra
+encanto; uma simples corrida, n'um velho fiacre de Londres, de loja em
+loja, é-lhe cem vezes mais doce.
+
+Depois, a vida do castello é de um vasio pardo e tristonho. Os homens,
+esses, de manhã, teem a caça, os galopes furiosos, devorando prados,
+saltando sebes atraz de uma raposa espavorida, ao grito barbaro de
+_hally-hó!_ Depois á noite, tomado o banho e vestida a casaca, tem o
+grog forte no _fumoir_. Mas as desgraçadas damas? Todas bebem grog--mas
+raras são as que caçam. O dia é-lhes lugubre. Uma burgueza, em
+Inglaterra, tem sempre uma occupação, mesmo nas existencias ricas:
+borda, pinta em porcellana, faz camisas para os pequenos Patagonios,
+ensina a ler os filhos dos caseiros, escreve as suas memorias ou
+corresponde-se com um Theologo sobre pontos difficeis de doutrina. Mas
+um dama das _dez mil_ não faz nada; os seus grandes talentos, a
+_toilette_, a graça de receber, a intriga politica, o brilho da
+conversação, o _chic_ esthetico, cousas em que prima, não lhe servem no
+isolamento relativo do castello, sob as torrentes da chuva. O seu palco
+natural é o salão de Londres. Alli no campo, nas longas galerias onde
+pendem as bandeiras que os seus antepassados tomaram em Azincourt ou
+Poitiers, ou, se os avósinhos nunca invadiram a França, as bandeiras
+compradas no antiquario da esquina, _Mylady_ boceja; ou estendida n'um
+sofá, na sua _robe-de-chambre_ de brocado branco de Genova, com uma
+novella cahida no regaço, olha os flocos de neve empoando os grandes
+carvalhos do parque...
+
+Depois vem a noite. É o peior. Os homens que fizeram talvez cinco legoas
+de galope atraz das rapozas, ou que se estiveram adestrando em jogos
+athleticos, têm somno. De gardenia na casaca e perola negra na camisa,
+estendidos para o fundo do sofá, derreados, meio adormentados pelo
+_Nocturno_ de Chopin que um anjo louro preludia ao fundo da sala, são
+tão inuteis para a _flirtation_, o espirito, a intriga, o amor, como se
+fossem empalhados.
+
+Debalde as pobres damas fizeram uma _toilette_ de duzentas libras:
+debalde resplandecem, ás mil luzes de cêra, os seus hombros de deusas.
+De nada valle. O _gentleman_ anceia por deixar a sala, ir reconfortar-se
+com o seu _brandy and soda_, estirar aquelles membros que a raposa
+cançou, em lençóes bem perfumados e bem _bassinés_, e ressonar forte.
+
+Esta situação era intoleravel.
+
+E os homens mesmo soffriam. Galopar n'um cavallo de preço sobre a terra
+dura da neve, ao ladrar da matilha, por uma manhã de brisa fria--tem
+encanto. Mas póde-se isso comparar á delicia de ir tagarelar para o
+_club_, ter todas as noites trez ou quatro bailes, fazer phrases sobre a
+questão do Oriente, e ceiar com Miss Fanny, n'um quente _boudoir_ de
+veludo, emquanto fóra a plebe patinha na lama de Londres?! Não, não se
+póde comparar.
+
+E por isso veio o momento psychologico, como diz esse illustre homem de
+prosa, o snr. De Bismarck, em que _ladies_ e _lords_ concordaram que o
+inverno no campo era bom para os lobos; e que para pares de Inglaterra,
+Londres era preferivel. E ahi está como se vae ter esta cousa inesperada
+na vida ingleza--_o inverno em Londres_.
+
+E, todavia, Deus sabe que elle não é agradavel, esse inverno de Londres!
+De manhã, ao acordar, tem-se deante da janella uma sombra opaca,
+espessa, parda, arripiadora e sinistra: é necessario fazer a barba, com
+o gaz flammejando; almoça-se com todas as velas do candelabro accesas, e
+a carruagem que nos conduz é precedida de um archote. Ao meio dia esta
+decoração de inverno muda; a sombra perde o tom pardo e, por gradações
+odiosas, ganha um amarello de óca e começa a exalar um vapor fetido.
+Respira-se mal, a roupa toma um pegajoso humido sobre a pelle, os
+edificios que nos cercam apparecem com as linhas vagas e chimericas das
+cidades malditas do Apocalypse, e o estrondo de Londres, este rude,
+tremendo estrepito, que deve lá em cima incommodar a corte do ceu,
+adquire uma tonalidade surda e roncante como um fragor n'um subterraneo.
+
+Depois, á noite, outra mudança: toda esta sombra, este nevoeiro grosso,
+molle gorduroso, desfaz-se em chuva... Em chuva, digo eu? Em lama, em
+lama mal liquida, que escorre, pinga, vem babada de um ceu negro.
+
+O gaz parece côr de sangue; como todo o mundo, para combater esta nevoa
+gelante e mortal, bebe forte e bebe seguido, ha nas ruas um vago vapor
+de alcool, que passa nos halitos: isto excita, irrita, impelle a turba
+ao vicio. O ruido intoleravel das ruas, a pressa da multidão violenta, o
+rude flammejar das vitrinas dão uma acceleração brutal ao sangue, uma
+vibração quasi dolorosa aos nervos; pensa-se com intensidade, caminha-se
+com impeto, deseja-se com furor; a besta humana inflamma-se: quer-se
+alguma coisa de forte e de animal, a lucta, o excesso, a gula, o
+abrasado do _cognac_, a paixão. Londres n'uma noite de inverno, exhala
+violencia e crime. E póde-se affirmar que em cada uma das tipoias, que,
+aos milhares e aos milhares, passam como flechas, n'um relampejar rubro
+de lanternas, vae um cidadão ou uma cidadã commettendo ou preparando-se
+para commetter, com excepção da preguiça, um dos sete peccados mortaes.
+
+De uma coisa se póde ter a certeza: é que não ha de faltar, aos que vão
+fazer o seu inverno a Londres, _assumpto de cavaco_. Além dos livros que
+se annunciam, dos escandalos que não hão-de faltar, das modas que sempre
+se inventam, a politica, só por si, é todo um ramalhete; revolta certa
+na Irlanda; processo por alta traição dos chefes da _Liga da Terra_,
+deputados da Irlanda; nova guerra no Afghanistan, onde Cabul se
+insurreccionou; toda a Africa do Sul em rebellião; complicações
+sinistras do lado do Oriente; desintelligencias estridentes entre os
+radicaes no poder... Emfim, um encanto.
+
+Era em circumstancias identicas que o famoso Granville, o homem das
+_Memorias_, olhando n'um começo de primavera para todos os lados do
+horizonte politico e social, e não vendo (em 1830) senão presagios
+negros de revolta, guerra, crises e perigos para a patria, dizia,
+banhado em jubilo, quasi em extasi:
+
+--Meu Deus, que deliciosas noites se vão passar no Club!
+
+
+
+
+IV
+
+O NATAL
+
+
+O Natal, a grande festa domestica da Inglaterra, foi este anno
+triste--d'essa tristeza particular que offerece, por um dia de calma
+ardente, a praça deserta de uma villa pobre, ou d'essa melancholia que
+infundem umas poucas de cadeiras vazias em torno de um fogão apagado,
+n'uma sala a que se não voltará mais...
+
+O que nos estragou o Natal, não fôram decerto as preoccupações
+politicas, apesar da sua negrura de borrasca. Nem a rebellião do
+Transvaal em que os Boeres debutaram por exterminar o 94 de linha, um
+dos mais experimentados e gloriosos regimentos da Inglaterra e que
+ameaça ensanguentar toda a Africa do Sul n'uma guerra de raças; nem a
+situação da Irlanda, que já não é governada pela Inglaterra, mas pelo
+comité revolucionario da _Liga Agraria_--seriam inquietações
+sufficientes para tirar o sabor tradicional ao _plum-pudding_ do Natal.
+As desgraças publicas nunca impedem que os cidadãos jantem com appetite:
+e miserias da patria, emquanto não são tangiveis e se não apresentam sob
+a fórma flammejante de obuzes rebentando n'uma cidade sitiada, não
+tirarão jámais o somno ao patriota.
+
+Não; o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. Um Natal
+como este que passamos, com um sol de uma pallidez de convalescente,
+deslizando timidamente sobre uma immensa peça de seda azul desbotada, um
+Natal sem neve, um Natal sem casacos de pelles, parece tão insipido e
+tão desconsolado como seria em Portugal a noite de S. João, noite de
+fogueiras e descantes, se houvesse no chão tres palmos de neve e cahisse
+por cima o granizo até de madrugada! Um desapontamento nacional!
+
+Para comprehender bem o encanto da neve d'este famoso Natal inglez,
+basta examinar alguma das pinturas, gravuras ou oleografias que o têm
+popularizado.
+
+O assumpto não varia na paysagem repetida: é sempre a mesma entrada d'um
+parque, de apparencia feudal, por vesperas do Natal, antes da
+meia-noite; o ceu pesado de neve suspensa parece uma gaze suja: e a
+perder de vista tudo está coberto da neve cahida, uma neve branca, fôfa,
+alta, que faz nos campos um grande silencio. Junto á grade do parque,
+uma mulher e duas creanças, atabafadas nos seus farrapos, com lampeões
+na mão, vão cantando as lôas; e ao fundo, entre as ramagens despidas,
+ergue-se o massiço castello, com as janellas flammejando, abrasadas da
+grande luz de dentro e da alegria que as habita.
+
+E toda a poesia do Natal está justamente n'essas janellas resplandecendo
+na noite nevada.
+
+Felizes aquelles para quem essas portas difficeis se abrem. Logo ao
+entrar na ante-camara os tectos, as humbreiras, os espaldares das
+cadeiras, os tropheus de caça, apparecem adornados das verduras do
+Natal, das ramagens sagradas do carvalho celtico; e pelas paredes, em
+lettras douradas ondeiam os disticos tradicionaes--_Merry Christmas!
+Merry Christmas! alegre Natal! alegre Natal!_ E o mesmo grito se repete
+nos _shakehands_ que se dão ao hospede.
+
+Sob a chaminé estala e dança a grande fogueira do Natal: a sua luz rica
+faz parecer de ouro os cabellos louros, e de prata as barbas brancas.
+
+Tudo está enfeitado como n'uma paschoa sagrada: dos retratos dos avós
+pendem ramos de flôres de inverno, as flôres da neve, e todas as pratas
+da casa scintillam sobre os aparadores, n'uma solemnidade patriarchal.
+Dos grandes lustres balança-se o ramo symbolico do _mistletoe_, o ramo
+do amor domestico: e ai das senhoras que um momento pararem sob a sua
+ramagem! Quem assim as surprehender tem direito a beija-las n'um grande
+abraço! Tambem, que voltas sabias, que estrategia complicada, para
+evitar o ramo fatidico! Mas, pobres anjos! ou se enganam ou se assustam,
+e a cada momento é sob o _mistletoe_ um grito, um beijo, dois braços que
+prendem uma cinta fugitiva...
+
+E o piano não se cala n'estas noites! É alguma velha canção ingleza, em
+que se falla de torneios e cavalleiros, ou uma dança da Escossia, que se
+baila com o gentil ceremonial do passado.
+
+E por corredores e salas, as creanças, os bébés, com os cabellos ao
+vento, vestidos de branco e côr de rosa, correm, cantam, riem, vão a
+cada momento espreitar os ponteiros do relogio monumental, porque á
+meia-noite chega Santo Claus, o veneravel Santo Claus, que tem trez mil
+annos de edade e um coração de pomba, e que já a essa hora vem
+caminhando pela neve da estrada, rindo com os seus velhos botões,
+apoiado ao seu cajado, e com os alforges cheios de bonecos. Amavel Santo
+Claus! por um tempo tão frio, n'aquella edade, deixar a cabana de
+algodão que elle habita no paiz da Legenda, e vir por sobre ondas do mar
+e ramagens de florestas trazer a estes bébés o seu Natal!
+
+Tambem, como elles o adoram, o bom Claus! E apenas elle chegar, como
+correrão todos, em triumpho, a puxal-o para o pé do lume, a esfregar-lhe
+as decrepitas mãos regeladas, a offerecer-lhe uma taça de prata cheia de
+hidromel quente--que elle bebe d'um trago, o glutão! Depois abrem-se-lhe
+os alforges. Quantas maravilhas!...
+
+Mas d'estes personagens que apparecem pelas consoadas, o meu predilecto
+é _Father Christmas--o papá Natal_.
+
+Esse, porém, só póde ser admirado em toda a sua gloria, quando se abre a
+sala da ceia: então lá está sobre o seu pedestal, ao centro da meza--que
+lhe põe em torno, com os crystaes e os pratos, um amavel brilho
+d'aureola caseira. Bem vindo, papá Natal! Boas noites, papá Natal!
+
+O respeitavel ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado de
+neve, as mãos escondidas nas largas mangas de frade, o olho maganão e
+jovial, esgarça a bocca n'um riso de felicidade sem fim, e as suas
+enormes barbas de algodão pendem-lhe até aos pés. Todas as creanças o
+querem abraçar, e elle não se recusa, porque é indulgente.
+
+E quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarchal riso se escancara;
+as bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe, e
+alli está, bonacheirão e veneravel, com a importancia de um deus tutelar
+e amado, como a encarnação sacramental da alegria domestica.
+
+E no emtanto fóra, na neve, as pobres creanças cantam as lôas: e com que
+vigor as cantam! É que ellas sabem que não serão esquecidas: e que
+d'aqui a pouco a grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao peso de
+toda a sorte de cousas bôas, peças de carne, empadas, vinho, queijos--e
+mesmo bonecas para os pequenos; porque Santo Claus é um democrata, e, se
+enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo de os vêr
+esvaziados no regaço dos pobres.
+
+Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado. O
+Natal com uma lua côr de manteiga a bater n'uma terra tepida de
+Primavera torna-se apenas uma data no calendario. O lume não tem poesia
+intima; não ha lôas; Santo Claus não vem; o papá Natal parece um boneco
+insipido; não se colhe o _mistletoe_. Não ha mesmo a alegria de abrir a
+janella e pôr no rebordo, dentro d'uma malga, a ceia de migalhas do
+Natal para os pardaes e para os outros passarinhos que tanta fome
+soffrem pelas neves. Emfim, não ha Natal! Foi o que succedeu este anno...
+
+Resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o
+essencial; pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto e se
+se não tiritou toda a noite entre quatro farrapos, é perfeitamente
+indifferente que nos castellos as damas bocejassem.
+
+Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem, como o lume
+do salão chegue a aquecer--quando se considere que lá fóra ha quem
+regele, e quem rilhe, a um canto triste, uma codea de dois dias. É
+justamente n'estas horas de festa intima, quando pára por um momento o
+furioso galope do nosso egoismo--que a alma se abre a sentimentos
+melhores de fraternidade e de sympathia universal, e que a consciencia
+da miseria em que se debatem tantos milhares de creaturas, volta com uma
+amargura maior. Basta então vêr uma pobre creança, pasmada deante da
+_vitrine_ de uma loja, e com os olhos em lagrimas para uma boneca de
+pataco, que ella nunca poderá apertar nos seus miseraveis braços--para
+que se chegue á facil conclusão que isto é um mundo abominavel. D'este
+sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas,
+o egoismo parte á desfilada, ninguem torna a pensar mais nos pobres, a
+não ser alguns revolucionarios endurecidos, dignos do carcere--e a
+miseria continúa a gemer ao seu canto!
+
+Os philosophos affirmam que isto ha-de ser sempre assim: o mais nobre de
+entre elles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando,
+ameaçou-n'os, n'uma palavra immortal, _que teriamos sempre pobres entre
+nós_. Tem-se procurado com revoluções successivas fazer falhar esta
+sinistra profecia--mas as revoluções passam e os pobres ficam.
+
+N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os
+servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque de
+Leicester está retirando annualmente, do trabalho duro que elles fazem,
+_quatrocentos contos de reis de renda_! É verdade que a Irlanda está em
+revolta; é verdade que, se o duque de Leicester se arriscava a visitar o
+seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, quatro lindas balas no
+craneo.
+
+E o resultado? D'aqui a vinte annos os trabalhadores de Leicester
+estarão de novo a soffrer a fome e o frio--e o filho do duque de
+Leicester, duque elle mesmo então, voltará a arrecadar os seus
+quatrocentos contos por anno.
+
+Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter
+um proletariado faminto n'uma burguezia farta; mas surge logo das
+entranhas da sociedade um proletariado peior. Jesus tinha razão: haverá
+sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior
+erro que jámais Deus cometeu.
+
+Aqui estamos sobre este globo ha doze mil annos a girar fastidiosamente
+em torno do Sol e sem adiantar um metro na famosa _estrada do progresso
+e da perfectibilidade_: porque só algum ingenuo de provincia é que ainda
+considera _progresso_ a invenção ociosa d'esses bonecos pueris que se
+chamam machinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas
+e difusas que se denominam _systemas sociaes_.
+
+Nos dois ou trez primeiros mil annos de existencia trepámos a uma certa
+altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo n'uma
+cambalhota secular.
+
+O typo secular e domestico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como uma
+vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito
+que o nosso organismo domestico e social. Já não fallo de gregos e
+romanos: ninguem hoje tem bastante genio para compôr um côro d'Éschylo
+ou uma pagina de Virgilio; como escultura e architectura, somos
+grotescos; nenhum millionario é capaz de jantar como Lucullus;
+agitavam-se em Athenas ou Roma mais ideias superiores n'um só dia do que
+nós inventamos n'um seculo; os nossos exercitos fazem rir, comparados ás
+legiões de Germanicus; não ha nada equiparavel á administração romana; o
+_boulevard_ é uma viella suja ao lado da Via Áppia; nem uma Aspasia
+temos; nunca ninguem tornou a fallar como Demosthenes--e o servo, o
+escravo, essa miseria da Antiguidade, não era mais desgraçado que o
+proletario moderno.
+
+De facto, póde-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu
+veneravel pae--o macaco: excepto em duas coisas temerosas--o soffrimento
+moral e o soffrimento social.
+
+Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inutil: afogal-a n'um
+diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que o levou
+a poupar Noé; se não fôsse o egoismo senil d'esse patriarcha borracho,
+que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje
+gosariamos a felicidade ineffavel de _não sermos_...
+
+
+
+
+V
+
+Litteratura de Natal
+
+
+Uma das cousas encantadoras que nos traz o Natal, são esses lindos
+livros para creanças, que constituem a _litteratura de Natal_.
+
+Não falo desses extraordinarios volumes dourados publicados pelos
+editores francezes, em encadernações decorativas como fachadas de
+cathedraes, que custam uma fortuna; contém um texto que nunca ninguem lê
+e são offerecidos ás creanças, mas realmente servem para obsequiar os
+papás. Os pobres pequenos nada gosam com esses monumentos typographicos;
+apenas se lhes permite vêr de longe as gravuras a aço, sob a
+fiscalização da mamã, que tem medo que se deteriore a encadernação; e o
+resplandecente volume orna d'ahi por deante a jardineira da sala, ao
+lado do candieiro vistoso.
+
+Em Inglaterra existe uma verdadeira litteratura para creanças, que tem
+os seus classicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado,
+editores e genios--em nada inferior á nossa litteratura de homens
+sisudos. Aqui, apenas o bébé começa a soletrar, possue logo os seus
+livros especiaes: são obras adoraveis, que não contém mais de dez ou
+doze paginas, intercaladas de estampas, impressas em typo enorme, e de
+um raro gosto de edição. Ordinariamente o assumpto é uma historia, em
+seis ou sete phrases, e decerto menos complicada e dramatica que _O
+Conde de Monte-Christo_ ou _Nana_; mas emfim tem os seus personagens, o
+seu enredo, a sua moral e a sua catastrophe.
+
+Tal é, para dar um exemplo, a lamentavel tragedia dos _Tres velhos
+sabios de Chester_: eram muitos velhos e muito sabios; e para discutirem
+cousas da sua sabedoria, metteram-se dentro de uma barrica, mas um
+pastor que vinha a correr atráz de uma ovelha, deu um encontrão ao
+tonel, e ficaram de pernas ao ar os tres velhos sabios de Chester!
+
+Como estas ha milhares: a _Cavallgada de João Gilpin_ é uma obra de genio.
+
+Depois, quando o bébé chega aos seus oito ou nove annos,
+proporciona-se-lhe outra litteratura. Os sabios, a barrica, os
+trambulhões, já o não interessariam; vêm então as historias de viagens,
+de caçadas, de naufragios, de destinos fortes, a salutar chronica do
+triumpho, do esforço humano sobre a resistencia da natureza.
+
+Tudo isto é contado n'uma linguagem simples, pura, clara--e provando
+sempre que na vida o exito pertence áqueles que têm energia, disciplina,
+sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espirito da creança para o
+paiz do maravilhoso:--não ha n'estas litteraturas nem fantasmas, nem
+milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se
+para a gente grande. E quando se falla de anjos ou de fadas é de modo
+que a creança, naturalmente, venha a rir-se d'esse lindo sobrenatural, e
+a consideral-o do genero _boneco_, como os seus proprios carneirinhos de
+algodão.
+
+O que se faz ás vezes é animar de uma vida ficticia os companheiros
+inanimados da infancia: as bonecas, os polichinellos, os soldados de
+chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existencia d'uma boneca
+honesta e infeliz: ou os soffrimentos por que passou em campanha, n'uma
+guerra longinqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta litteratura é
+profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a
+creança--mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos
+e miserias atravessaram aquelles seus amigos, os guerreiros de chumbo,
+cujas bayonetas torcidas ella todos os dias endireita com os dedos: e
+assim póde ficar depositado n'um espirito de creança um justo horror da
+guerra.
+
+As lições moraes que se dão d'este modo são innumeraveis, e tanto mais
+fecundas quanto sahem da acção e da existencia dos sêres que ella melhor
+conhece--os seus bonecos.
+
+Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze annos:
+popularisações de sciencias; descripções dramaticas do universo; estudos
+captivantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e
+descobertas; a historia; e, emfim, em livros de imaginação, a vida
+social apresentada de modo que nem uma realidade muito crúa ponha no
+espirito tenro securas de misanthropia, nem uma falsa idealisação
+produza uma sentimentalidade morbida.
+
+É no Natal, principalmente, que esta litteratura floresce. As lojas dos
+livreiros são então um paraizo. Não ha nada mais pittoresco, mais
+original, mais decorativo, que as encadernações inglezas; e as estampas,
+as côres leves e aguadas, offerecem quasi sempre verdadeiras obras
+d'arte, de graça e d'_humour_.
+
+Não sei se no Brazil existe isto. Em Portugal, nem em tal jámais se
+ouviu fallar. Apparece uma ou outra d'essas edições de luxo, de Pariz,
+de que fallei, e que constituem ornatos de sala. A França possue tambem
+uma litteratura infantil tão rica e util como a de Inglaterra: mas essa
+Portugal não a importa: livros para completar a mobilia, sim; para
+educar o espirito, não.
+
+A Belgica, a Hollanda, a Allemanha, prodigalisam estes livros para
+creanças; na Dinamarca, na Suecia, elles são uma gloria da litteratura e
+uma das riquezas do mercado.
+
+Em Portugal, nada.
+
+Eu ás vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres
+creanças. Creio que se lhes dá Filinto Elysio, Garção, ou outro qualquer
+desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação pela
+leitura.
+
+Isto é tanto mais atroz quanto a creança portuguesa é excessivamente
+viva, intelligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portuguezes,
+só começamos a ser idiotas--quando chegamos á edade da razão. Em
+pequenos, temos todos uma pontinha de genio: e estou certo que se
+existisse uma litteratura infantil como a da Suecia ou da Hollanda, para
+citar só paises tão pequenos como o nosso, erguer-se-hia
+consideravelmente entre nós o nivel intellectual.
+
+Em logar d'isso, apenas a luz do entendimento se abre aos nossos filhos,
+sepultamol-a sob grossas camadas de latim! Depois do latim accumulamos a
+rhetorica! Depois da rhetorica atulhamol-a de logica (de logica, Deus
+piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o monumento da camelice!
+
+Pois bem; eu tenho a certeza que uma tal litteratura infantil penetraria
+facilmente nos nossos costumes domesticos e teria uma venda proveitosa.
+Muitas senhoras, intelligentes e pobres, se poderiam empregar em
+escrever essas faceis historias: não é necessario o genio de Zola ou de
+Thackeray para inventar o caso dos _tres velhos sabios de Chester_. Ha
+entre nós artistas, de lapis facil e engraçado, que commentariam bem
+essas aventuras n'um desenho de simples contorno, sem sombras e sem
+relevo, lavado a côres transparentes... E quantos milhares de creanças
+se fariam felizes, com esses bonitos livros--que, para serem populares e
+se poderem despedaçar sem prejuizo, devem custar menos de um tostão!
+
+Eu bem sei que esta ideia de compôr livros para creanças faria rir
+Lisboa inteira. Tambem, não é a Lisboa que eu a offereço. Lisboa não se
+occupa d'estes detalhes.
+
+Lisboa quer cousa superior; quer a bella estrophe lyrica, o rico drama
+em que se morre de paixão ao luar, o _fadinho_ ao piano, o saboroso
+namoro de escada, a endeixa plangente, a bôa facadinha á meia noite, o
+discurso em que se cita o Golgotha, a andaluza de cuia--emfim, tudo o
+que o romantismo portuguez inventou de mais nobre. Educar os seus filhos
+intelligentemente, está decerto abaixo da sua dignidade.
+
+Mas, emfim, se estas linhas animassem ahi no Brazil, ou entre a colonia
+portugueza, um escriptor, um desenhista e um editor, a prepararem alguns
+bons livros, bem engraçados, bem alegres, para os bébés--eu teria feito
+ao imperio um serviço colossal, que não sei como me poderia ser
+recompensado.
+
+Uma bôa fazenda, de rendimento certo, n'uma provincia rica, com casa já
+mobilada e alguns cavallos na cavallariça, não seria talvez de mais. Se
+a gratidão do governo imperial quizesse juntar a isto, para alfinetes,
+um ou dois milhões em ouro, eu não os recusaria. E se me não quizessem
+dar nada, bastar-me-hia então que um só bébé se risse e fôsse alguns
+minutos feliz. Pensando bem--é esta a recompensa que prefiro.
+
+
+
+
+VI
+
+Israelismo
+
+
+As duas grandes «sensações» do mez são incontestavelmente a publicação
+do novo romance de Lord Beaconsfield, _Endymion_, e a agitação na
+Allemanha contra os Judeus. Litterariamente, pois, e socialmente o mez
+pertence aos israelitas. Este extraordinario movimento anti-judaico,
+esta inacreditavel ressurreição das coleras piedosas do seculo XVI é
+vigiada com tanto mais interesse em Inglaterra quanto aqui, como na
+Allemanha, os judeus abundam, influindo na opinião pelos jornaes que
+possuem (entre outros o _Daily Telegraph_, um dos mais importantes do
+reino), dominando o commercio pelas suas casas bancarias e em certos
+momentos mesmo governando o Estado pelo grande homem da sua raça, o seu
+propheta maior, o proprio Lord Beaconsfield. Aqui, decerto, estamos
+longe de vêr desencadear um odio nacional, uma perseguição social contra
+os judeus; mas ha sufficientes symptomas de que o desenvolvimento firme
+d'este Estado israelita dentro do Estado christão começa a impacientar o
+inglez. Não vejo, por exemplo, que o que se está passando na Allemanha,
+apesar de exhalar um odioso cheiro d'auto-de-fé, provoque uma grande
+indignação da imprensa liberal de Londres: e já mesmo um jornal da
+auctoridade do _Spectator_ se vê forçado a attenuar, perante os graves
+protestos da colonia israelita, artigos em que descrevera os judeus como
+uma corporação isolada e egoista, á semelhança das communidades
+catholicas, trabalhando só no mesmo interesse, encerrando-se na força da
+sua tradição e conservando sympathias e tendencias manifestamente hostis
+ás do estado que os tolera. Tudo isto é já desagradavel.
+
+Mas que diremos do movimento na Allemanha? Que em 1880, na sabia e
+tolerante Allemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhauer, com os
+professores Strauss e Hartmann, vivos e trabalhando, se recomece uma
+campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador
+Maximiliano estivesse ainda, do seu acampamento de Padua, decretando a
+destruição da lei Rabbinica e ainda prégasse em Colonia o furioso
+_Grão-de-Pimenta_, geral dos dominicanos--é facto para ficar de bocca
+aberta todo um longo dia de Verão. Porque emfim, sob fórmas civilizadas
+e constitucionaes (petições, _meetings_, artigos de revista, pamphletos,
+interpellações) é realmente a uma perseguição de judeus que vamos
+assistir, das boas, das antigas, das Manuelinas, quando se deitavam á
+mesma fogueira os livros do Rabbino e o proprio Rabbino, exterminando
+assim economicamente, com o mesmo feixe de lenha, a doutrina e o doutor.
+
+E é curioso e edificante espectaculo vêr o veneravel professor Virchow,
+erguendo-se no parlamento allemão, a defender os judeus, a sabedoria dos
+livros hebraicos, as synagogas, asylo do pensamento durante os tempos
+barbaros--exactamente como o illustre legista Roenchlin os defendia nas
+perseguições que fecharam o seculo XV!
+
+Mas o mais extraordinario ainda é a attitude do Governo allemão:
+interpellado, forçado a dar a opinião official, a opinião d'estado sobre
+este rancôr obsoleto e repentino da Allemanha contra o judeu, o governo
+declara apenas, com labio escasso e secco, «_que não tenciona por ora
+alterar a legislação relativamente aos israelitas_»! Não faltaria com
+effeito mais que vêr os ministros do imperio, philosophos e professores,
+decretando, á D. Manuel, a expulsão dos judeus, ou restringindo-lhes a
+liberdade civil até os isolar em viellas escuras, fechadas por correntes
+de ferro, como nas judiarias do _Ghuetto_. Mas uma tal declaração não é
+menos ameaçadora. O estado dá a entender apenas que a perseguição não
+ha-de partir da sua iniciativa: não tem, porém, uma palavra para
+condemnar este estranho movimento anti-semitico, que em muitos pontos é
+presentemente organisado pelas suas proprias auctoridades.
+
+Deixa a colonia judaica em presença da irritação da grossa população
+germanica--e lava simplesmente as suas mãos ministeriaes na bacia de
+Poncio Pilatos.
+
+Não affirma sequer que ha-de fazer respeitar as leis que protegem o
+judeu, cidadão do imperio; tem apenas a vaga tenção, vaga como a nuvem
+da manhã, de as não alterar _por ora_!
+
+O resultado d'isto é que n'uma nação em que a sociedade conservadora
+fórma como um largo batalhão, pensando o que lhe manda a «ordem do dia»
+e marchando em disciplina, á voz do coronel,--cada bom allemão, cada
+patriota, vae immediatamente concluir d'esta linguagem ambigua do
+governo que, se a côrte, o estado-maior, os feld-marechaes, o senhor de
+Bismarck, todo esse mundo venerado e obedecido não vêem o odio ao judeu
+com enthusiasmo, não deixam, todavia, de o approvar em seus corações
+christãos... E o novo movimento vae certamente receber, d'aqui, um
+impulso inesperado.
+
+Que digo eu? Já recebeu. Apenas se soube a resposta do ministerio, um
+bando de mancebos, em Leipzig, que se poderiam tomar por frades
+dominicanos mas que eram apenas philosophos estudantes, andaram
+expulsando os judeus das cervejarias, arrancando-lhes assim o direito
+individual mais caro e mais sagrado ao allemão: o direito á cerveja!
+
+Mas d'onde provem este odio ao judeu? A Allemanha não quer, de certo,
+começar de novo a vingar o sangue precioso de Jesus. Ha já tanto tempo
+que essas cousas dolorosas se passaram!... A humanidade christã está
+velha e, portanto, indulgente: em desoito seculos esquece a affronta
+mais funda. E infelizmente hoje já ninguem, ao lêr os episodios da
+Paixão, arranca furiosamente da espada, como Clovis, gritando, com a
+face em pranto:
+
+--Ah, infames! Não estar eu lá com os meus Francos!
+
+Além d'isso, este movimento é organizado pela burguezia, e as classes
+conservadoras da Allemanha são muito juridicas, para não approvarem, no
+segredo do seu pensamento, o supplicio de Jesus. Dada uma sociedade
+antiga e prospera, com a sua religião official, a sua moral official, a
+sua litteratura official, o seu sacerdocio, o seu regimen de
+propriedade, a sua aristocracia e o seu commercio--que se ha-de fazer a
+um inspirado, a um revolucionario, que apparece seguido d'uma plébe
+tumultuosa, prégando a destruição d'essas instituições consagradas á
+fundação de uma nova ordem social sobre a ruina d'elas e, segundo a
+expressão legal, _excitando o odio dos cidadãos contra o Governo_?
+Evidentemente puni-lo.
+
+Pede-o a lei, a ordem, a razão de Estado, a salvação publica e os
+interesses conservadores. É justamente o que a Allemanha, com muita
+razão, faz aos seus socialistas, a Karl Marx e a Bebel. Ora, estes maus
+homens não querem fazer na Allemanha contemporanea uma revolução, de
+certo, mais radical que a que Jesus emprehendeu no mundo semitico. É
+verdade que o Nazareno era um Deus: para nós, certamente, humanidade
+privilegiada, que o soubemos amar e comprehender:--mas em Jerusalem,
+para o doutor do templo, para o escriba da lei, para o mercador do
+bairro de David, para o proprietario das cearas que ondulavam até
+Bethlem, para o centurião severo encarregado da ordem--Jesus era apenas
+um insurrecto.
+
+E se Bismarck estivesse de toga, no pretorio, sobre a cadeira curul de
+Caiphás, teria assignado a sentença fatal tão serenamente como o dito
+Caiphás, certo que n'esse momento salvava a sua patria da anarchia. Os
+conservadores de Jerusalem foram logicos e legaes, como são hoje os de
+Berlim, de S. Petersburgo ou de Vienna: no mundo antigo, como agora,
+havia os mesmos interesses santos a guardar. Que diabo! é indispensavel
+que a sociedade se conserve nas suas largas bases tradicionaes: e
+outr'ora, como hoje, a salvação da ordem é a justificação dos supplicios.
+
+É possivel que este goso, que nós, conservadores, temos hoje, de
+triturar os Messias socialistas, encarcerar os Proudhon, mandar para a
+Siberia os Bakounine, e crivar de multas os Felix Pyat--venha a custar
+caro a nosso netos. Com o andar dos tempos, todo o grande reformador
+social se transforma pouco a pouco em Deus: Zoroastro, Confucio,
+Mahomet, Jesus, são exemplos recentes! As fórmas superiores do
+pensamento têm uma tendencia fatal a tornar-se na futura lei revelada: e
+toda a philosophia termina, nos seus velhos dias, por ser religião.
+Augusto Comte já tem altares em Londres; já se lhe reza. E assim como
+hoje exigimos capellas aos Santos Padres, aos que foram os auctores
+divinos, os nobres criadores do catholicismo, talvez um dia, quando o
+socialismo fôr religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma
+lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon
+de oculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas pelles russas, Karl
+Marx apoiado ao cajado symbolico do pastor d'almas.
+
+Como a civilização caminha para o oeste, isto passar-se-ha ai para o
+seculo XXVIII, na Nova Zelandia ou na Australia, quando nós, por nosso
+turno, fôrmos as velhas raças do Oriente, as nossas linguas idiomas
+mortos, e Pariz e Londres montões de columnas truncadas como hoje
+Palmyra e Babylonia, que o zelandez e o australiano virão visitar, em
+balão, com bilhete de ida e volta... Logicamente, então, como são
+detestados hoje na Allemanha os herdeiros dos que mataram Jesus--só
+haverá repulsão e odio pelos descendentes de nós outros, que estamos
+encarcerando Bakounine ou multando Pyat. E como toda a religião tem um
+periodo de furor e exterminio, esses nossos pobres netos serão
+perseguidos, passarão ao estado de raça maldita e morrerão nos
+supplicios... _C'est raide!_
+
+
+Mas voltemos á Allemanha.
+
+Ainda que o Pedro Ermita d'esta nova crusada constitucional seja um
+sacerdote, o Revd. Streker, capellão e prégador da côrte, é evidente que
+ella não tira a sua força da paixão religiosa. As cinco chagas de Jesus
+nada têm que vêr com estas petições que por toda a parte se assignam,
+pedindo ao governo que não permitta aos judeus adquirirem propriedades,
+que não sejam admittidos aos cargos publicos, e outras extravagancias
+gothicas! O motivo do furor anti-semitico é simplesmente a crescente
+prosperidade da colonia judaica, colonia relativamente pequena, apenas
+composta de 400.000 judeus; mas que pela sua actividade, a sua
+pertinacia, a sua disciplina, está fazendo uma concorrencia triumphante
+á burguezia allemã.
+
+A alta finança e o pequeno commercio estão-lhe igualmente nas mãos: é o
+judeu que empresta aos Estados e aos principes, e é a elle que o pequeno
+proprietario hypoteca as terras. Nas profissões liberais absorve tudo: é
+elle o advogado com mais causas e o medico com mais clientella: se na
+mesma rua ha dois tendeiros, um allemão e outro judeu--o filho da
+Germania ao fim do anno está fallido, o filho d'Israel tem carruagem!
+Isto tornou-se mais frizante depois da guerra: e o bom allemão não póde
+tolerar este espectaculo do judeu engordando, enriquecendo, reluzindo,
+emquanto elle, carregado de louros, tem de emigrar para a America á
+busca de pão.
+
+Mas se a riqueza do judeu o irrita, a ostentação que o judeu faz da sua
+riqueza enlouquece-o de furor. E, n'este ponto, devo dizer que o allemão
+tem razão. A antiga legenda do israelita, magro, esguio, adunco,
+caminhando cosido com a parede, e coando por entre as palpebras um olhar
+turvo e desconfiado--pertence ao passado. O judeu hoje é um gordo. Traz
+a cabeça alta, tem a pança ostentosa e enche a rua. É necessario vêl-os
+em Londres, em Berlim, ou em Vienna: nas menores cousas, entrando em um
+café ou occupando uma cadeira no theatro, têm um ar arrogante e ricaço,
+que escandalisa. A sua pompa espectaculosa de Salomões _parvenús_
+offende o nosso gosto contemporaneo, que é sobrio. Fallam sempre alto,
+como em paiz vencido, e em um restaurante de Londres ou de Berlim nada
+ha mais intoleravel que a gralhada semitica. Cobrem-se de joias, todos
+os arreios das carruagens são de oiro, e amam o luxo grosseiro e
+vistoso. Tudo isto irrita.
+
+Mas o peior ainda, na Allemanha, é o habil plano com que fortificam a
+sua prosperidade e garantem a sua influencia--plano tão habil que tem um
+sabor de conspiração: na Allemanha, o judeu, lentamente, surdamente,
+tem-se apoderado das duas grandes forças sociaes--a Bolsa e Imprensa.
+Quasi todas as grandes casas bancarias da Allemanha, quasi todos os
+grandes jornaes, estão na posse do semita. Assim, torna-se inatacavel.
+De modo que não só expulsa o allemão das profissões liberais, o humilha
+com a sua opulencia rutilante, e o traz dependente pelo capital; mas,
+injuria suprema, pela voz dos seus jornaes, ordena-lhe o que ha-de
+fazer, o que ha-de pensar, como se ha-de governar e com que se ha-de bater!
+
+Tudo isto ainda seria supportavel se o judeu se fundisse com a raça
+indigena. Mas não. O mundo judeu conserva-se isolado, compacto,
+inacessivel e impenetravel. As muralhas formidaveis do templo de
+Salomão, que fôram arrasadas, continuam a pôr em torno d'elle um
+obstaculo de cidadelas. Dentro de Berlim ha uma verdadeira Jerusalem
+inexpugnavel: ahi se refugiam com o seu Deus, o seu livro, os seus
+costumes, o seu Sabbath, a sua lingua, o seu orgulho, a sua seccura,
+gosando o ouro e desprezando o christão. Invadem a sociedade allemã,
+querem lá brilhar e dominar, mas não permittem que o allemão meta sequer
+o bico do sapato dentro da sociedade judaica. Só casam entre si; entre
+si, ajudam-se regiamente, dando-se uns aos outros milhões--mas não
+favoreceriam com um troco um allemão esfomeado; e põem um orgulho, um
+coquetismo insolente em se differençar do resto da nação em tudo, desde
+a maneira de pensar até á maneira de vestir. Naturalmente, um
+exclusivismo tão accentuado é interpretado como hostilidade--e pago com
+odio.
+
+Tudo isto, no emtanto, é a _lucta pela existencia_. O judeu é o mais
+forte, o judeu triumpha. O dever do allemão seria exercer o musculo,
+aguçar o intellecto, esforçar-se, puxar-se para a frente para ser, por
+seu turno, o mais forte. Não o faz: em logar d'isso, volta-se
+miseravelmente, covardemente, para o governo e peticiona, em grandes
+rolos de papel, que seja expulso o judeu dos direitos civis, porque o
+judeu é rico, e porque o judeu é forte.
+
+
+O Governo, esse esfrega as mãos, radiante. Os jornaes inglezes não
+comprehendem a attitude do sr. de Bismarck, approvando tacitamente o
+movimento anti-judaico. É facil de perceber; é um rasgo de genio do
+chanceller. Ou pelo menos uma prova de que lê com proveito a Historia da
+Allemanha.
+
+Na meia idade, todas as vezes que o excesso dos males publicos, a peste
+ou a fome, desesperava as populações; todas as vezes que o homem
+escravisado, esmagado e explorado, mostrava signaes de revolta, a egreja
+e o principe apressavam-se a dizer-lhe: «Bem vemos, tu soffres! Mas a
+culpa é tua. É que o judeu matou Nosso Senhor e tu ainda não castigaste
+sufficientemente o judeu.» A populaça então atirava-se aos judeus:
+degolava, assava, esquartejava, fazia-se uma grande orgia de supplicios;
+depois, saciada, a turba reentrava na tréva da sua miseria a esperar a
+recompensa do Senhor.
+
+Isto nunca falhava. Sempre que a egreja, que a feudalidade, se sentia
+ameaçada por uma plébe desesperada de canga dolorosa--desviava o golpe
+de si e dirigia-o contra o judeu.
+
+Quando a besta popular mostrava sêde de sangue--servia-se á canalha
+sangue israelita.
+
+É justamente o que faz, em proporções civilizadas, o sr. de Bismarck. A
+Allemanha soffre e murmura: a prolongada crise commercial, as más
+colheitas, o excesso de impostos, o pesado serviço militar, a decadencia
+industrial, tudo isto traz a classe media irritada. O povo, que soffre
+mais, tem ao menos a esperança socialista; mas os conservadores começam
+a vêr que os seus males vêm dos seus idolos.
+
+Para o calmar e occupar, o que mais serviria ao chanceller seria uma
+guerra, mas nem sempre se póde inventar uma guerra, e começa a ser grave
+encontrar em campo a França preparada, mais forte que nunca, com os seus
+dois milhões de bons soldados, a sua fabulosa riqueza, riqueza
+inconcebivel, que, como dizia ha dias a _Saturday Review_, é um
+phenomeno inquietador e difficil d'explicar.
+
+Portanto, á falta d'uma guerra, o principe de Bismarck distrahe a
+attenção do allemão esfomeado--apontando-lhe para o judeu enriquecido.
+Não allude naturalmente á morte de Nosso Senhor Jesus Christo. Mas falla
+nos milhões do judeu e no poder da Synagoga. E assim se explica a
+estranha e desastrosa declaração do governo.
+
+
+Da outra «sensação», o romance de Lord Beaconsfield, _Endymion_, não me
+resta, n'esta carta, espaço para rir. Figuram n'elle, sob nomes
+transparentes, Beaconsfield, elle proprio, Napoleão III, o principe de
+Bismarck, o cardeal Manning, os Rothchilds, a imperatriz Eugenia,
+duquezas, lords, marechaes... emfim um ramalhete de flôres, pelo qual o
+editor Longman pagou _cincoenta e quatro contos de reis_ fortes.
+
+Jovens de lettras, meus amigos, ponde vossos olhos n'este exemplo de
+ouro! Sê prudente, mancebo; nunca, ao entrar na carreira litteraria,
+publiques poema ou novella sem a antecipada precaução de ter sido
+durante alguns annos--primeiro ministro de Inglaterra!
+
+
+
+
+VII
+
+A Irlanda e a Liga Agraria
+
+
+É necessario fallar da Irlanda, fallar da _Liga Agraria_, fallar de
+Parnell...
+
+Ha seis mezes que este homem, esta associação, essa ilha inquieta, são o
+cuidado supremo, a preoccupação pungente da Inglaterra e de tudo o que
+em Inglaterra pensa, desde os homens de Estado até aos caricaturistas. E
+dentro em breve o sentimento europeu, o sentimento universal, vae-se
+exaltar pela _questão da Irlanda_, como outr'ora pela _questão da Polonia_.
+
+A questão da Polonia! oh saudosos dias passados! Foi esse um dos meus
+primeiros enthusiasmos! N'esse tempo, ser polaco era synonimo de ser
+heroe: e a fórma mais usual da paixão, n'uma alma de vinte annos, não
+consistia no desejo de se subir ao balcão de Julieta, mas de partir e ir
+tomar as armas pela Polonia. Em Coimbra, sempre que nos reuniamos mais
+de quatro amigos, faziamos logo esse projecto, gritando:--_Viva a
+Polonia!_ Os jornaes transbordavam de poemas á Polonia e de injurias ao
+Urso do Norte! Empenhavam-se batinas e compendios para soccorrer a
+Polonia, em subscripções enthusiasticas. Em beneficio da Polonia eu
+representei muito melodrama em que ora, virgem trahida e vestida de
+branco, soluçava com as minhas tranças soltas--ora, traidor, soltando
+gargalhadas cynicas, cravava um ferro no peito de Condé!
+
+Por fim não eramos mais insensatos do que o povo de Paris em 1848,
+marchando em procissão a reclamar do governo provisorio a libertação da
+Polonia. «Mas é uma guerra com a Russia, é um conflicto europeu!» diziam
+os prudentes. E os enthusiastas respondiam: «Não tem duvida; a França é
+o Messias, é a salvadora dos opprimidos: a França é o Christo das
+nações; sendo necessario, deve morrer por ellas.»
+
+Mas desde 1848 muita agua tem passado sob as pontes, como dizem em
+Paris: e mesmo muito sangue.
+
+Por estes tempos de _opportunismo_ e de _naturalismo_, a pobre Irlanda
+não inspirará jámais o culto piedoso que votamos outr'ora á Polonia.
+
+De resto a Polonia e a Irlanda constituem dois casos differentes. É
+certo, porém, que vistos de longe, atravéz da nevoa lacrimosa da
+sentimentalidade, offerecem similitudes. A Irlanda póde talvez
+considerar-se uma Polonia constitucional: ha aqui como na Polonia uma
+raça opprimida, cujo solo foi dividido entre os grandes vassalos, as
+familias historicas da nação conquistadora, e que desde então tem
+permanecido em servidão agraria. Sómente na Irlanda o arbitrario e os
+abusos, que esta situação origina, são recobertos pelo regimen
+parlamentar de um bello verniz de legalidade: e a Irlanda soffre as
+miserias de um paiz vencido e explorado--mas dentro das fórmas
+constitucionaes.
+
+O irlandez parece-se com o polaco em certos pontos: são ambos
+arrebatados, imprudentes, espirituosos, generosos e poetas. Como o
+Polaco, o irlandez catholico odeia o conquistador, sobretudo por elle
+ser heretico de nacionalidade, misturando com o odio politico o
+conflicto de religião. Como na Polonia, ha na Irlanda a legenda
+patriotica da independencia, das revoltas suffocadas, dos agitadores
+heroicos, legenda que falla á imaginação popular tanto como a mesma
+religião, inspirando eguaes fanatismos, de tal sorte que o irlandez é
+tão devoto dos seus santos como dos seus patriotas; como o polaco
+despreza o russo, assim o irlandez olha o anglo-saxonio como um barbaro
+e um estupido e tem por elle toda a antipatia desdenhosa que uma raça de
+improvisadores póde ter por uma raça de criticos e de analistas. Na
+ordem social, como na ordem domestica, ha entre a Polonia e a Irlanda
+outras curiosas afinidades. A ultima táctica da Irlanda, mesmo, é
+imitada da Polonia: a Irlanda vae apelar para a Europa e é Victor Hugo
+quem fallará em nome dela, n'um manifesto com o titulo de Opressor e
+Oprimido.
+
+Mas a Inglaterra realmente não se parece com a Russia: nem mesmo atravéz
+da nevoa da sensibilidade, atravez da paixão pela causa da Irlanda, o
+mais esclarecido dos liberalismos póde ser confundido com o mais boçal
+dos despotismos. E todavia a Inglaterra, para não perturbar os
+interesses tyrannicos d'um milhar de ricos proprietarios, deixa na
+miseria quatro milhões de homens. Tem todo o territorio irlandez
+occupado militarmente. Apenas um patriota começa a ter influencia na
+Irlanda, prende o patriota. Quando a eloquencia dos deputados irlandezes
+se torna inquietadora, abafa-a, quebrando sem escrupulos uma tradição
+parlamentar de seculos. Vae governar a Irlanda pela _Lei marcial_, como
+qualquer czar. E, para suspender os planos da _Liga Agraria_, viola os
+segredos das cartas.
+
+Esta questão da Irlanda apresenta-se tão complexa, tão confusa como o
+proprio chaos antes da grande façanha de Jehovah. Na Irlanda começa por
+haver tres nações distinctas com interesses contradictorios: os
+irlandezes catholicos, os irlandezes protestantes ou _orangistas_, os
+inglezes e proprietarios escocezes. A questão da propriedade é sem
+duvida a essencial: mas existem outras, a questão religiosa, a questão
+policial, a questão judicial, a questão municipal, etc., etc. E sobre
+cada uma d'estas questões é difficil achar dois irlandezes de accordo.
+Cada aldeia se torna assim um campo de batalha: e, como são eloquentes e
+sarcasticos, o grande fluxo labial, a paixão do epigramma amplificam e
+azedam as dissensões.
+
+Mesmo dentro da egreja catholica, que deveria conservar a tradicção da
+Unidade--tumultua a discordia: o clero parochial está em lucta com os
+dignitarios episcopaes: e é raro que o clero de um condado não divirja,
+de sentimentos e de predica, com o clero do condado visinho. No mundo
+dos patriotas revolucionarios não existe uma harmonia melhor: a _Liga
+Agraria_ não aceita os _Fenians_, e os _Fenians_ abominam as tendencias
+parlamentares dos _Home-rulers_: e dentro mesmo do partido dos
+_Home-rulers_ ha democratas e conservadores. É um numeroso conflicto por
+toda a pobre Irlanda.
+
+Os irlandezes dizem, porém, que se lhes fosse dada a autonomia, horas
+depois de declarada a Republica Irlandeza, todas estas questões se
+resolveriam de per si e o paiz seria como um mar que amansa e fica em
+equilibrio.
+
+Até agora, porém, essa falta de unidade é adduzida justamente como
+evidencia dos perigos que teria essa autonomia.
+
+Os inglezes pensam sinceramente que no momento em que a Irlanda sahisse
+de sob a tutela do bom senso e do saber inglez, no instante que essa
+raça impressionavel, excitada, fanatica e pouco culta fosse abandonada a
+si mesma, começaria uma guerra civil, uma guerra religiosa, differentes
+guerras agrarias, que bem depressa fariam da Verde Erin um montão de
+ruinas n'uma poça de sangue.
+
+Se os irlandezes se não entendem bem sobre os _males da Irlanda_, os
+inglezes comprehendem-se menos ácerca dos _remedios para a Irlanda_. E a
+confusão em que se está provém principalmente da abundancia da
+discussão. Não ha villota, ou mesmo aldeia d'Inglaterra, que não tenha
+um jornal do tamanho da _Gazeta de Noticias_, com oito paginas e typo
+cerrado. E d'alto a baixo esta vastidão de papel, desde que começou a
+agitação da Liga Agraria, é occupada por estudos e artigos sobre a
+Irlanda. Multiplique-se isto pelas tres ou quatro mil gazetas que a
+pobre Inglaterra nutre sobre a sua epiderme: juntem-se-lhe os artigos
+dos Semanarios, dos Quinzenarios, das Revistas e dos Magazines, os
+pamphletos, as brochuras, os ensaios inumeraveis como as estrellas do
+céo, os livros e tratados de toda a sorte, os discursos do parlamento,
+as arengas dos _meetings_, as conferencias, os sermões, as controversias
+publicas, as lições, emfim, toda essa colossal litteratura que nestes
+ultimos mezes tem tomado por assumpto a Irlanda.
+
+E digam-me se, com todo este mundo de informação, de discussão, de
+theorias, de projectos, de systemas, de opiniões, de imaginações,--não é
+natural que o cerebro da Inglaterra esteja, n'esta questão da Irlanda,
+perfeitamente desorganisado. O meu está. Mas n'este cahos mental tenho
+illustres companheiros: o grande Carlyle costumava dizer que a
+sinceridade e a elevação de alguns patriotas irlandezes era a _unica
+coisa nitida e clara_ que elle conseguia distinguir no escuro tumulto da
+confusão irlandeza...
+
+Ha tambem outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora
+da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietaria, os _land-lords_
+indignam-se e reclamam o auxilio da policia ingleza quando os
+trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionaria--comer!
+
+Aqui está, por exemplo, Sua Graça o Duque de Leicester, para não citar
+outros de nomes menos sonoros: os seus rendimentos na Irlanda sobem a
+_quatrocentos contos de reis_--e o infeliz tem ainda uns duzentos contos
+mais das suas propriedades na Inglaterra! Este fidalgo, escuso talvez
+dizel-o, não soffre frio e não passa fome: por outro lado, a população
+de rendeiros que trabalham as suas terras, e que com o seu suor e o seu
+esforço lhe arrancam do sólo este rendimento,--a unica cousa que
+realmente tem é fome e frio. Mas este anno tiveram mais fome e mais frio
+que de costume: e lá foram em farrapos, e com os pés nús sobre a neve,
+supplicar a Sua Graça, o Duque de Leicester, que lhes fizesse uma
+diminuição de dez por cento nas rendas--exageradas, absurdas e
+devoradoras. Sua Graça respondeu (pela bocca dos seus administradores,
+naturalmente: por sua propria bocca um Duque inglez nunca falla senão
+com outro Duque) respondeu que as suas circumstancias não lhe permittem
+essa liberalidade--e que a repetição d'uma tal supplica não podia ser
+tolerada.
+
+E os rendeiros de Sua Graça lá voltaram de cabeça baixa, para o frio e
+para a fome.
+
+Direi de passagem que se o pedido, em logar de ser feito pelos seus
+rendeiros da Irlanda, partisse dos seus rendeiros da Inglaterra, Sua
+Graça apressar-se-hia a satisfazel-o rasgadamente. É porque a Irlanda é
+um paiz conquistado, e, quando o proletario se queixa, a policia fila-o
+pela gola: mas, em Inglaterra, quando o operario inglez ergue a sua voz
+de leão, a policia fica immovel, os Duques empallidecem, e o edificio
+monarchico e feudal treme nas suas bases.
+
+Mas, a proposito de Sua Graça o Duque de Leicester (gozemos o mais tempo
+possivel esta illustre companhia: _quand on prend du Duc on n'en saurait
+trop prendre_) deixem-me dizer-lhes em resumo quaes são as relações
+agrarias entre um proprietario, um _land-lord_, e os seus rendeiros.
+
+
+O sólo, é claro, pertence ao lord. Por que titulo não sei; talvez uma de
+suas avós, n'uma noite que estava mais decotada, attrahisse o
+inconstante olhar do amavel Carlos II, nos saráus galantes da
+Restauração: d'esse olhar provém, acaso, esta bella propriedade. O
+alegre Stuart era tão generoso! tinha-se vivido tão pobremente, tão
+tristemente sob a dictadura puritana do Cromwell!... Depois, se Carlos
+II tinha pouco dinheiro, (o desgraçado recebia uma mesada do rei de
+França!) não lhe faltavam terras na Irlanda. Trez leguas de pastos, ou
+de terreno aravel, por um beijo e os seus acessorios, não é caro para um
+Stuart. E para uma fraca dama ou para seu esposo é um famoso negocio.
+Note-se, por Deus, note-se que eu estou fazendo estas supposições sobre
+um typo de Lord abstracto. Nem toda a minha sympathia pelos
+trabalhadores irlandezes me levaria a suspeitar das purissimas senhoras
+da Casa de Leicester...
+
+Como proprietario do sólo, pois, o Lorde arrenda-o ás familias que de
+geração em geração vivem nas suas terras: o irlandez prende-se ao sólo
+como uma arvore pelas raizes, e muitas vezes prefere morrer a abandonar
+um torrão arido que o não nutre. A emigração irlandeza para a America
+sáe principalmente da população operaria das cidades. Ora, nos
+contractos de renda, o homem de trabalho está absolutamente á mercê do
+senhor da propriedade.
+
+O valor das rendas é puramente arbitrario. Não ha typo de renda, baseado
+sobre a avaliação das terras; existe o que se chama a avaliação de
+Griffith, feita ha mais de trinta annos por o agronomo d'esse nome; mas
+esta avaliação, equitativa e favoravel ao trabalhador, não é jamais
+aceitada pelos proprietarios. N'isto está a origem de todas as miserias
+da Irlanda; as rendas, absurdamente elevadas, absorvem todo o producto
+da terra, e o rendeiro escassamente póde viver, muito menos economizar.
+
+Além do sólo, o proprietario deve fornecer a habitação e os instrumentos
+de trabalho: se na fazenda não existe casa, ou se ella necessita
+reparações, o _land-lord_ dará naturalmente alguma madeira, uma
+mão-cheia de prégos, um molho de colmo, para que o trabalhador erga a
+cabana miseravel, muito inferior, como conforto, aos curraes dos nossos
+gados; e a esta generosidade regia o _land-lord_ juntará talvez um velho
+arado e um ferro de enxada. Mas estes dons são adiantamentos que elle
+sobrecarrega com preços duplos ou triplos do seu valor, e de que se faz
+embolsar por prestações trimestraes.
+
+Não é possivel ser mais grandioso ou mais nobre.
+
+Aqui está, pois, o rendeiro de posse de um tecto, de um terreno e de
+ferramenta. Parece que só lhe resta começar a cultivar.
+
+Assim seria, se não fosse na Irlanda. Mas a natureza, mãe fecunda e
+amante, comporta-se aqui ainda peior que os lords: se a natureza tivesse
+assento na camara dos pares de Inglaterra, não seria mais aspera, mais
+hostil ao pobre e mais avara de si mesma. A natureza, quando não se
+apresenta ao trabalhador irlandez sob o aspecto de sólo pedregoso,
+mostra-se sob o aspecto de pantano.
+
+Offerece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco.
+
+E diz-lhe com a sua ternura de mãe:
+
+--Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistencia?
+
+O pobre irlandez o que preferiria era ir-se embora: mas como por toda a
+parte encontraria um proprietario egual, os mesmos pedregulhos e
+identicos lamaçaes--fica. E é então que se apresenta de novo a
+generosidade do Lord. Sua Graça está pronta (porque Sua Graça é
+compassiva) a escoar o pantano, a desempedrar o sólo, a fazer
+melhoramentos na terra. Sua Graça vae mesmo mais longe: Sua Graça (Deus
+o recompense!) offerece a semente. E mais ainda: Sua Graça (que as
+bençãos do ceu o vistam!) dá os adubos.
+
+E aqui está um rendeiro feliz, que tem a casa, os instrumentos, a
+semente, os adubos... Sómente Sua Graça marca os preços que lhe convém
+aos melhoramentos feitos, á semente e aos adubos: e no fim do anno a
+renda que era originariamente de dez está em vinte e cinco! Como os
+terrenos são pobres, os invernos abominaveis, o pobre rendeiro não póde
+pagar: dirige-se então ao agiota--ou ao Lord mesmo. E desde esse momento
+está n'uma rede de dividas, lettras, colheitas empenhadas, juros
+accumulados, protestos, o demonio--de que jámais se poderá desenredar. O
+resultado é previsto: o Lord (pelo seu agente) penhora-o, apossa-se do
+grão que está nos celleiros, do gado que está nos curraes, do pequeno
+bragal que está na arca, das arrecadas da mulher, das enxergas--e
+expulsa-o da casa e da propriedade--da casa que elle talvez construiu,
+da propriedade que elle com o seu trabalho melhorou! Tal qual como na
+meia edade.
+
+Estas expulsões, que se chamam _evictions_, são o terror irlandez. Que
+ha-de fazer um miseravel com mulher, creanças, ás vezes uma avó
+entrévada, que se vê d'uma hora para a outra no meio de uma estrada, por
+um terrivel inverno, sem um farrapo para se cobrir, sem uma codea de
+pão, sem casa, sem destino e sem esperança? E note-se que isto passa-se
+em regiões como as da Irlanda, pouco habitadas, com um casal de legua em
+legua.
+
+Esta falta de vizinhos torna estas expulsões mais terriveis. Quantas
+milhas a caminhar sob a chuva ou sob a neve, com as creanças chorando de
+fome, os doentes levados n'uma padiola, até que se encontre algum
+rendeiro mais feliz que ainda tem um canto de cabana onde azyle a
+familia errante! Mas por pouco tempo--porque todos são pobres, todos
+estão endividados, todos ameaçados da expulsão...
+
+E durante esse tempo Sua Graça banqueteia-se, bebe _Chateaux Margaux_ de
+6$000 reis a garrafa, caça, etc.--e aluga a fazenda, d'onde expulsou o
+miseravel n.º 1, ao rendeiro n.º 2. Sómente o n.º 2, como a encontra
+melhorada pelo antecedente, paga-a mais cara: e depois de explorado,
+sugado, expremido, durante dois ou trez annos, é expulso--para dar logar
+ao n.º 3. Este infeliz passa pelo mesmo processo de trituração, _et sic
+per omnia_...
+
+E as expulsões são inevitaveis, porque, com a altura absurda das rendas,
+é impossivel que o rendeiro as possa pagar--e viver.
+
+
+Isto, como comprehendem, é apenas um vago contorno da realidade,
+apontada nas suas feições essenciais.
+
+Descendo-se a detalhes--vê-se então uma horrorosa tréva de injustiça e
+miseria.
+
+Mas como pódem taes cousas passar-se no seculo XIX, e ao lado do povo
+inglez?
+
+Como permitte uma nação tão justa a existencia de tanto
+oprobio?--dir-me-hão.
+
+Justamente essa pergunta a fazia Victor Hugo ha dias a Parnell, o chefe
+da _Liga Agraria_, na sua celebre entrevista. E eu responderei com as
+palavras de Parnell.
+
+Taes cousas passam-se no seculo XIX. E o povo inglez não as sabia: pelo
+menos eram-lhe contadas de tal modo que, em logar de piedade, só sentia
+colera.
+
+E isto é exacto. Os males da Irlanda eram conhecidos pela voz dos seus
+agitadores. Mas estes homens, desde O'Connell cometteram sempre o erro
+de misturar as queixas d'um proletariado opprimido ás aspirações
+d'independencia nacional: de sorte que a Inglaterra não attendia á
+reclamação dos trabalhadores pela irritação que lhe causavam as
+exigencias dos patriotas. O povo inglez não póde ouvir fallar em que a
+Irlanda se separe, e se constitua em republica: mas está prompto a
+ordenar que se lhe dê um justo regimen de propriedade.
+
+O erro dos Fenians foi confundir a questão nacional com a questão
+agraria: o rendeiro miseravel apparecia então aos inglezes com o aspecto
+de um rebelde á União; e envolvendo-os ambos no mesmo odio, porque lhes
+suppunha identicas ambições, suffocou sem discernimento, a voz que só
+pedia pão e a voz que reclamava autonomia.
+
+E todavia o povo inglez sentiu sempre instinctivamente que a Irlanda
+soffria. Muitas vezes pediu para ella uma reforma das leis agrarias.
+Era, porém, um pedir vago, sem cohesão: mais a expressão de
+sensibilidades feridas do que a intimação da vontade nacional.
+
+De sorte que os parlamentos, sahidos das classes que têm interesse em
+manter a Irlanda na miseria, contentavam-se em fazer reformas de
+detalhes, reformas insignificantes e imperceptiveis, para dar uma
+satisfação á compaixão ingleza: e o regimen antigo ficava inatacado como
+d'antes. Mas isto bastava para que alguns humanitarios dissessem com um
+suspiro de allivio: «Emfim lá se fez alguma coisa pela Irlanda!» De
+facto não se tinha feito nada.
+
+Era, pois, necessario que a questão da propriedade fôsse separada da
+questão da independencia: que se fizesse um movimento legal dentro da
+constituição, com o fim exclusivo de terminar os abusos dos
+_land-lords_, calando toda a ideia de arrancar a Irlanda ao Reino Unido.
+Então haveria a certeza de que o povo inglez, vendo a questão agraria e
+os seus horrores, isoladamente, no seu relevo proprio, desembaraçada das
+declamações rebeldes e das agitações separatistas--determinasse dar a
+tantos males, e tão antigos, um remedio radical. Foi isto que tentou a
+_Liga Agraria_.
+
+Esta carta é longa: e apresentando esta formidavel entidade--a _Liga
+Agraria_, eu devo fazer como o illustre Ponson du Terrail, quando
+introduzia um novo personagem, o heroe providencial, n'um fim de
+folhetim: deixar a historia das suas façanhas, das suas virtudes e da
+sua belleza, com o interesse suspenso, até ao folhetim seguinte. Não se
+esqueçam que ficamos no momento em que, n'este palco da Historia
+Irlandesa subitamente apparece ao fundo, misteriosa e grave, a _Liga
+Agraria_.
+
+
+
+
+VIII
+
+Lord Beaconsfield
+
+
+I
+
+Recomeçando hoje estas CARTAS DE INGLATERRA--que eu não podia escrever
+de Lisboa, onde estive alguns mezes gozando os ocios de Tityro, _sub
+tegmine fagi_, á sombra d'essa faia constitucional que se chama o
+Gremio--devo memorar, ainda que tarde, a morte de Benjamin Disraeli,
+Lord Beaconsfield, ocorrida no dia 19 de maio, pela madrugada, em
+Londres, na sua casa de Curzon Street. A doença de Lord Beaconsfield,
+uma complicação de gotta, asthma e bronchite, arrastou-se cruel e longa;
+o mal porém foi debelado e Lord Beaconsfield succumbiu realmente á
+fraqueza, á fadiga dos setenta e sete annos e uma existencia tão
+episodica, tão cheia, tão emotiva, que ella ficará como o seu melhor
+romance, bem superior em estylo e interesse a _Tancredo_ ou a _Endymion_.
+
+Desde o primeiro dia, Lord Beaconsfield perdeu logo a esperança de se
+restabelecer; mas passou a encarar a morte como encarára sempre as suas
+derrotas politicas: com uma coragem desdenhosa e fria e um ar de facil
+superioridade. Durante a doença, aos accessos agudos da dôr, respondia
+elle com esses sarcasmos mordentes e rebrilhantes, que tinham sido
+sempre a sua desforra querida perante um adversario mais forte.
+
+No dia 18, á noite, cahiu pouco a pouco n'uma somnolencia comatosa, e
+assim permaneceu até ao romper da manhã; momentos antes de morrer,
+agitou-se, ergueu-se, ainda dilatou o peito, lançou os braços ao
+ar--como costumava fazer nos grandes debates da camara; depois recahiu
+sobre o travesseiro, estendeu as mãos a Lord Rowton e Lord Barrigton,
+seus secretarios, e murmurou debilmente: _Estou vencido!_--E ficou como
+adormecido para sempre. E, considerando que, n'esse momento, toda a
+Inglaterra, o mundo inteiro, esperavam anciosamente noticias d'aquelle
+quarto de Curzon Street, onde expirava o homem que sessenta annos antes
+era um pobre escrevente de cartorio--póde-se dizer que n'esta carreira
+tão feliz a morte mesma foi feliz.
+
+O seu proprio funeral teria agradado á sua imaginação--a certos lados
+delicados da sua imaginação de artista. O testamento que deixou não
+permitiu que se celebrassem funeraes publicos na Abbadia de
+Westminster--disposição estranhavel n'um homem que mais que tudo amou a
+pompa e os grandiosos ceremoniaes; mas não teve tambem o lugubre
+scenario da morte, os crepes, as plumas negras, as tochas, os fumos, as
+caveiras bordadas--tudo isso que deveria ser tão antiphatico ao seu
+luminoso espirito. Foi sepultado no seu querido Castello d'Hughenden, no
+meio das arvores do seu parque, por uma fresca manhã de maio, na capella
+toda ornada de flôres como para uma alegria nupcial; o caminho que lá
+levava ia por entre jasmineiros e rosaes; em vez do dobre dos sinos de
+Westminster teve o gorgeiar das suas aves; e o caixão, seguido pelos
+principes de Inglaterra, por todos os embaixadores, pela aristocracia
+que ella governára--desapparecia sob corôas, ramos e molhos de
+_primroses_, que a rainha Victoria mandára, com estas palavras escriptas
+pela sua mão: «As flôres que elle amava.»
+
+Depois, ao outro dia, em todas as cathedraes da Inglaterra, em cada
+capella rustica, o clero fez do pulpito o elogio de Lord Beaconsfield;
+nas universidades, nos institutos, nas academias, os professores
+commemoraram aquella carreira soberba; pelas platafórmas dos _meetings_,
+nas assembléas commerciais, em qualquer parte onde se juntam homens,
+alguma voz se ergueu a honrar os seus serviços e o seu genio; Lord
+Granville, na camara dos lords, na camara dos communs Gladstone,
+fizeram, em sessão solemne, o seu panegyrico publico; e durante dias,
+toda a imprensa ingleza, a imprensa de todo o mundo civilisado (excepto
+a de Portugal, infelizmente) vieram cheias do seu nome, da commemoração
+dos seus livros, da sua pittoresca historia.
+
+E assim Lord Beaconsfield desappareceu--como fôra o desejo de toda a sua
+vida--n'um rumor de apotheose.
+
+
+E todavia nada parece mais injustificado que uma tal apotheose. Lord
+Beaconsfield, por fim, foi um homem de estado que fez romances. Ora os
+seus romances, como obras d'arte, já começam a apparecer, a esta geração
+de sciencia e d'analyse, tão falsos, tão ficticios como as novellas
+lyrico-religiosas do visconde d'Arlincourt; e como homem d'estado o nome
+de Lord Beaconsfield não fica decerto ligado a nenhum grande progresso
+na sociedade ingleza. Crear o titulo de Imperatriz das Indias para a
+rainha de Inglaterra, roubar Chypre, restaurar certas prerogativas da
+corôa, tramar o _fiasco_ do Afghanistan, não constituem de certos
+titulos para a sua glorificação como reformador social: por outro lado,
+escrever _Tancredo_ ou _Endymion_, não basta para marcar n'uma
+litteratura, que teve contemporaneamente Dickens, Tackeray e Georges Eliot.
+
+Como succede, depois d'isto, que a Inglaterra, paiz tão pratico, tão bem
+equilibrado, se deixe levar em um tal arranque de admiração pelo homem
+que foi a personificação, a encarnação de tudo quanto é contrario ao
+temperamento, ás maneiras, ao gosto inglez? É que Lord Beaconsfield,
+mais que nenhum outro contemporaneo, impressionou a imaginação
+ingleza--e na fria Inglaterra, como sob céos mais calidos, são grandes
+as influencias da imaginação.
+
+Podia-se ás vezes sorrir das suas phantasticas obras d'arte, protestar
+contra as suas theatraes combinações politicas, mas atravéz de protestos
+e sorrisos a sua propria personalidade nunca deixou de maravilhar e de
+fascinar. Qualquer inglez, medianamente educado, a quem se pergunte a
+sua opinião sobre Lord Beaconsfield dirá: _Foi um homem extraordinario!_
+
+Extraordinario--é como elle se nos representa, agora que se vê o
+conjunto da sua existencia, que não parece ter sido um producto natural
+dos factos ou das occasiões, mas uma creação subjectiva da sua propria
+vontade, e como um enredo de romance talhado pela sua penna. Senão
+veja-se. Tendo nascido judeu--tornou-se o chefe de uma aristocracia
+saxonia e normanda, a mais orgulhosa da terra; começando em um obscuro
+circulo litterario e vegetando algum tempo em um cartorio de
+Londres--veiu a ser o mais famoso primeiro ministro de um grande
+imperio; não possuindo senão dividas--bem cedo se tornou o inspirador
+das grandes fortunas territoriais; homem de imaginação, de poesia, de
+phantasia, foi o idolo das classes médias de Inglaterra, as mais
+praticas e utilitarias que jamais dirigiram uma nação commercial; sem
+religião e sem moral, governou um protestantismo que não concebe ordem
+social possivel fóra da sua estreita religião e da sua estreita moral;
+confessando o seu desprezo pela omnipotencia da sciencia moderna--foi o
+grande homem de uma sociedade que quer dar a todo o progresso uma base
+puramente scientifica: emfim, sendo o _menos inglez possivel_, tendo um
+modo de ser e de sentir quasi estrangeiros, dirigiu annos e annos a
+Inglaterra, o paiz mais hostil ao espirito estrangeiro, e que conhecia
+bem que não era comprehendida pelo homem que a governava. Tudo isto
+parece paradoxal--e a existencia de Lord Beaconsfield foi com effeito um
+perpetuo paradoxo em acção. Para realizar tudo isto era necessario que o
+seu genio, por um lado, por outro a sua habilidade, fossem grandes. E
+realmente em dons pessoais nada lhe faltou: prodigiosa finura de
+espirito, uma vontade de aço, uma coragem serena de heroe, uma infinita
+veia sarcastica, um fogo ruidoso de eloquencia, o absoluto conhecimento
+dos homens, a luminosa penetração no fundo dos caracteres e dos
+temperamentos, um poder subtil de persuasão, um irresistivel encanto
+pessoal,--e tudo isto envolvido (como n'uma athmosfera luminosa) por
+alguma coisa de brilhante, de rico, de largo, de imprevisto, que era ou
+fazia o effeito de ser o _seu genio_.
+
+
+Eu por mim começo por admirar a sua propria apparencia. Diz-se que fôra
+formoso como um Apollo--e que isto concorrera muito para os seus
+primeiros triumphos: agora, já tão velho, era apenas pittoresco.
+
+A sua grande testa sobre a qual cahiam aquelles dous extraordinarios
+caracóes parallelos, o seu olhar recolhido e como concentrado em
+pensamentos muito fundos, o nariz de pura raça israelita, a bocca
+descahida na sua eterna curva sarcastica, o beiço inferior muito recurvo
+e muito pendente, e a sua estranha pera de Mephistopheles--constituiam
+uma d'estas physionomias que se sente que vão ficar na galeria da
+historia e que servirão a futuros historiadores para explicar um destino
+e um genio. Em novo, e quando as modas romanticas o permittiam,
+vestia-se de setim e velludo, recobria-se d'um luxo de medalhões e
+joias, as suas proprias calças tinham bordados d'ouro. Agora era mais
+sobrio de _toilette_: usava apenas esses casacos compridos como tunicas,
+a que os homens de origem judaica são particularmente affeiçoados, e o
+seu unico adorno eram os bellos ramos que lhe enchiam o peito. Um
+jornalista francez, n'um dia de crise politica em que Lord Beaconsfield
+devia fazer um discurso decisivo, encontrou-o momentos antes, n'um dos
+salões da camara, occupado a encher d'agua o tubosinho de crystal que
+por traz da botoeira da casaca conservava frescas as suas rosas. Todo o
+homem está n'este traço.
+
+De raça oriental, teve sempre o amor do fausto, das pedrarias, dos ricos
+tecidos, da pompa; os seus romances transbordam de descripções de
+palacios, de festas perante as quaes as mais ricas galas de Salomão são
+como desbotados scenarios de theatro de feira; o seu estylo resente-se
+d'este gosto: é um sumptuoso estofo, com recamos de ouro, cravejado de
+joias, scintillante e espesso, cahindo em belas pregas ao comprido da
+idéa. O dinheiro, o ouro, preoccuparam-n'o sempre, menos pela sua
+influencia social, que pelo mero esplendor da sua amontoação. Os seus
+heroes possuem fortunas tão prodigiosas que seriam impossiveis nas
+condições economicas do mundo moderno; Lothario, o famoso Lothario,
+querendo dar um presente de annos a uma senhora catholica, offerece-lhe
+uma cathedral toda de marmore branco, que elle mandou construir e que
+dedicou á santa do nome d'ella; o seu custo excederia decerto dois mil
+contos fortes. Confessemos que é _chic_. Pois bem; presentes d'estes
+dava-os Lothario todos os dias. O banqueiro Sidonia, uma das mais
+curiosas creações de Lord Beaconsfield, dando ao seu amigo Tancredo uma
+carta de credito para os banqueiros da Syria, redige-a d'este modo:
+«Pague á vista ao portador tanto ouro quanto seria necessario para
+reconstruir os quatro leões de ouro massiço que ornavam a porta direita
+do templo de Salomão.» Tambem muito _chic_.
+
+Estou certo que um dos grandes prazeres de Lord Beaconsfield era poder
+manejar os milhões de Inglaterra. Todos os seus ministerios custaram
+caudalosos rios de dinheiro; gastava o ouro como a agua,--e dava-se ao
+luxo de realisar por si, e á custa do seu paiz, as larguezas epicas do
+seu banqueiro Sidonia. Mesmo quando estava no poder, estava ainda no
+romance.
+
+
+As linhas da sua biographia são conhecidas. Seu pae era um d'estes
+litteratos mediocres e trabalhadores que vão desenterrando e
+colleccionando atravéz de _in-folios_ e bibliothecas casos curiosos e
+archaicos de historia e de litteratura.
+
+Benjamin Disraeli nasceu por isso entre os livros--litteralmente entre
+os livros, porque a casa em que viviam os Disraeli offerecia o espaço de
+uma boceta, e no quarto da creança, entre a accumulação vetusta dos
+calhamaços, havia apenas espaço para uma cadeira e para um berço. O
+velho Disraeli era judeu: mas felizmente para os destinos futuros de seu
+filho rompeu com a synagoga, e todos os Disraeli se fizeram christãos.
+Benjamin tinha então dezessete annos, e o seu padrinho na pia baptismal
+foi um certo Samuel Rogers, notavel por ser ao mesmo tempo um dos mais
+ricos banqueiros da _City_ e um dos poetas mais elegiacos do seu
+tempo--e notavel ainda por não ficar na historia, nem como banqueiro,
+nem como poeta, mas como um requintado _gourmet_, o grande Lucullus de
+Londres, que deu os mais celebres, os mais finos jantares da Europa.
+
+Assim marcado com o rotulo christão, Benjamin Disraeli largou a caminhar
+pela vida fóra, mas foi encalhar bem depressa n'um cartorio de
+tabellião--onde se diz que, durante dous annos, este moço orgulhoso, que
+já então se considerava um semi-deus, redigiu procurações e testamentos.
+Com a mesma penna, porém, ia escrevendo _Vivian Grey_: e da tempestuosa
+sensação que este romance produziu data a sua grande carreira. A obra, á
+parte algumas fugitivas scintillações de um genio ainda desequilibrado,
+é no seu conjunto, ao mesmo tempo pesada e vaga; mas satisfazia os
+gostos escandalosos e intrigantes da sociedade d'então, pondo em scena
+todas as individualidades marcantes de Londres, politicos, _dandies_,
+rainhas da moda, poetas, especuladores.
+
+O melhor resultado de _Vivian Grey_, foi tornar Disraeli Junior (como
+elle então se assignava) o favorito de Lady Blenington e do conde
+d'Orsay, as duas dominantes figuras de Londres d'essa época, e que
+tinham _de sociedade_ o mais selecto, mais intelligente, mais apetecido
+salão de Inglaterra.
+
+Estes dous formavam um typo destinado a reinar. Lady Blenington era uma
+mulher de graciosa e olympica belleza, de uma extrema audacia de
+caracter e de alta energia intellectual. O conde d'Orsay, esse era o
+homem que durante vinte annos governou a moda, o gosto, as maneiras, com
+a mesma indisputada auctoridade com que hoje o principe de Bismarck
+arbitra na Europa.
+
+Usar um modelo de gravata ou admirar um poeta que não tivessem sido
+aprovados pelo conde d'Orsay, seria correr o mesmo risco de uma nação
+que hoje, sem auctorização secreta do principe de Bismarck, organisasse
+uma expedição militar. Lady Blenington, entre outras coisas
+embaraçadoras, tinha uma filha: e o bello d'Orsay, não sei porque, nem
+elle o soube jámais, casou com essa menina. Os noivos vieram viver com
+Lady Blenington; e, bem depressa, entre seu brilhante marido e sua
+resplandecente mãe, a pobre condessa d'Orsay foi como uma pallida
+lampada bruxoleando entre dous astros. Fez então uma cousa sensata e
+espirituosa: apagou-se de todo, desappareceu. E o conde d'Orsay e Lady
+Blenington, livres d'aquella senhora que entristecia, regelava as salas
+com o seu ar honesto e frio, começaram então a scintillar
+tranquillamente, como constellações conjunctas no firmamento social de
+Londres. E Londres curvou-se deante d'esta nova e original situação
+domestica, como se curvava deante de uma nova sobrecasaca do conde
+d'Orsay, ou deante de uma decisão litteraria de Lady Blenington.
+
+Benjamin Disraeli tornou-se bem depressa um dos heroes d'este
+salão--onde desde logo se mostrára com esse ar de tranquilla
+superioridade, de correcto desdem, que foi um dos segredos da sua força.
+Ordinariamente conservava-se calado, apoiado ao marmore da chaminé,
+n'uma pose d'Apollo melancholico, abandonando-se á caricia ambiente dos
+olhares das damas que viam n'elle a encarnação radiante do poetico
+Vivian Grey. As pessoas mais intimas, começando por Lady Blenington, já
+lhe chamavam sempre _Vivian, querido Vivian_. O conde d'Orsay fizera-lhe
+o retrato a sepia--honra que elle dava raramente, e a mais appetecida
+n'esse curioso mundo.
+
+Todos estes triumphos de Disraeli Junior não deixavam de surprehender
+Disraeli Senior. Um dia, dizendo-lhe alguem que seu filho estava
+compondo um romance, em que entravam duques, e toda a sorte de grandes,
+o velho e laborioso litterato exclamou:--Duques, senhores! Mas meu filho
+nunca viu um sequer!
+
+Viu muitos depois, viu-os todos--e governou-os com uma vara de ferro.
+Mas n'esse tempo o bello Disraeli Junior era ainda radical, ou tomára ao
+menos essa attitude. Meditava mesmo a sua _Epopêa da Revolução_, a sua
+unica obra em verso, uma vaga rhapsodia que eu nunca li, mas de que os
+criticos mais benevolos fallam como d'um volume de duzentas paginas, sem
+uma só linha toleravel. E, cousa curiosa, este homem tão fino, tão
+sceptico, tão experiente, nunca perdeu a candura quasi comica de se
+considerar um grande poeta como Virgilio ou como Dante, e a esperança
+phantastica de que as gerações futuras poriam a _Epopêa da Revolução_ ao
+par da _Eneida_, ou da _Divina Comedia_.
+
+Apesar de poeta abominavel e de perfeito dandy--ou talvez por isso
+mesmo--Benjamin Disraeli era reconhecido n'esse tempo como um dos chefes
+do movimento da _Joven Inglaterra_.
+
+A _Joven Inglaterra_ consistia n'um grupo de rapazes, ardentes e
+aristocratas, que se tinham embebido da Revolução atravéz da
+litteratura; fallavam muito da Humanidade e queriam sobretudo um _burgo
+pôdre_ que os nomeasse deputados; cultivavam pelos salões o amor
+platonico, quereriam vêr o povo feliz comtanto que estivessem elles no
+poder para promover essas felicidades, e (traço decisivo das suas
+maneiras e da sua _pose_) quando se escreviam uns aos outros tratavam-se
+por _my darling--meu amor_!
+
+Tinham ainda outros distintivos: usavam o cabello á _nazarena_,
+mostravam a coragem (enorme n'esse tempo) de admirar o odiado Byron, e
+procuravam elevar e aperfeiçoar a arte da cozinha em Inglaterra!
+
+No emtanto, Benjamin Disraeli já estava bem decidido a sacudir o seu
+radicalismo--quando fosse necessario aos interesses da sua careira. E
+essa carreira via-a elle então, apesar de desconhecido e pobre, tão
+claramente triumphante no futuro como se a tivesse deante dos seus olhos
+escripta, parte por parte, n'um programma.
+
+Em pleno reinado dos _tories_, é caracteristica já a sua resposta a Lord
+Melbourne, primeiro-ministro então, que lhe perguntava o que elle
+tencionava fazer.
+
+--Ser eu o primeiro-ministro d'aqui a pouco--respondeu o dandy com as
+suas grandes maneiras á Vivian Grey.
+
+Lord Melbourne viu n'esta resposta uma odiosa e insolente jactancia. E
+assim parecia, quando, tempo depois, Disraeli, já deputado por Wycombe,
+fez o seu primeiro discurso--e o viu suffocado pelas gargalhadas e pelos
+apupos. Como não podia dominar o tumulto, calou-se, dizendo apenas estas
+palavras mais:
+
+--Hoje não me quisestes ouvir. Um dia virá em que eu me farei escutar!
+
+E um dia veio em que não só a camara dos communs, mas a Inglaterra, todo
+o continente, a terra civilizada escutavam com anciedade as palavras que
+iam cahir dos seus labios, e que traziam comsigo a paz ou a guerra na
+Europa.
+
+
+II
+
+A reputação de salão que gozava Lord Beaconsfield, levou algum tempo a
+transformar-se em popularidade; mas a sua popularidade, apenas obtida,
+penetrou rapidamente a enorme massa trabalhadora, e tornou-se em poucos
+annos essa vasta e ressoante nomeada, que fez o seu nome familiar, quasi
+domestico, em toda a parte onde se falla inglez, na mais rude aldeia de
+pescadores de Cornwall, no _bush_ d'Australia, entre os mesmos
+montanhezes barbaros das _Highlands_, e que, quando elle se dirigia ao
+congresso de Berlim, attrahia ás estações do caminho de ferro as
+populações da Allemanha a contemplarem o _grande inglez_. E este
+reconhecimento de gloria constitue um dos phenomenos mais curiosos da
+carreira de Lord Beaconsfield; porque, em geral, não se avalia bem a
+difficuldade portentosa de obter uma fama, mesmo mediocre.
+
+Não ha nada tão illusorio como a extensão de uma celebridade; parece ás
+vezes que uma reputação chega até aos confins de um reino--quando na
+realidade ella escassamente passa das ultimas casas de um bairro.
+
+No momento de sua prodigiosa voga, o velho Alexandre Dumas ficou
+assombrado de que o magistrado de uma villa visinha de Paris, homem
+illustrado, de resto, não soubesse com que letras se escrevia esse
+glorioso nome de Dumas!
+
+E se nós pudessemos reduzir a numeros as proporções das glorias
+contemporaneas, ficariamos aterrados perante a grotesca mesquinhez dos
+resultados. Nós outros jornalistas, criticos, artistas, homens de estudo
+e de curiosidade litteraria, julgamos quasi impossivel que haja alguem
+na Europa que não tenha lido Victor Hugo, ou que, pelo menos, não
+conheça esse nome de syllabas faceis, que ha meio seculo fere, a grande
+estrondo, o ouvido humano; pois bem, póde-se dizer que fóra de França
+apenas cinco mil pessoas talvez terão lido Victor Hugo--e que não
+passará decerto de dez mil o numero de creaturas que lhe saibam o nome,
+incluindo mesmo a vasta massa democratica de que elle é o epico
+official. E já isto constitue um famoso progresso--desde o tempo em que
+Voltaire ambicionava ter _cem leitores_!
+
+A conhecida alegoria da fama, cantando o nome d'um varão com as suas cem
+bocas, applicadas ás suas cem tubas, e voando de um a outro confim do
+universo--é uma das imagens mais descaradamente falsas que nos legou a
+Antiguidade. Esse estrondear das cem tubas morre como um suspiro dentro
+da área humilde d'um corrilho ou d'uma _coterie_: e nada viaja com uma
+lentidão egual á da Fama. Um fardo de fazendas gasta quatro dias a vir
+de Londres a Lisboa--e os nomes de Tennyson, Browning, Swinburne, os
+tres grandes poetas da Inglaterra, e que ha quarenta annos são a sua
+mais pura gloria, ainda cá não chegaram. É verdade que todo o mundo
+necessita flanellas--e nem todo o mundo supporta poesia.
+
+Mas uma celebridade não encontra só difficuldades em transpôr a
+fronteira--acha-as sobretudo e quasi insuperaveis em fixar a atenção da
+grande turba dos seus concidadãos. Principalmente n'um paiz como a
+Inglaterra, em que a aspera lucta pela existencia, a soffrega
+preoccupação do pão diario, o feroz conflicto da concorrencia, não
+permitem esses pachorrentos vagares, os vagares portuguezes ou
+hespanhóes, em que se está de barriga ao sol, prompto a olhar, a admirar
+o menor foguete que estala nos ares.
+
+Em Inglaterra, o duque de Wellington era de certo popular--porque ganhou
+a batalha de Waterloo, e portanto, segundo a crença contemporanea,
+salvára a Inglaterra da invasão. Gladstone é conhecido em cem cidades e
+mil aldeias, porque alliviou a nação dos seus grandes impostos. Mas
+estes fórmam as excepções; as outras celebridades inglesas, ou sejam
+politicos como Lord Salisbury, ou philosophos como Spencer, ou poetas
+como Browning, ou artistas como Herkomer--permanecem profundamente
+ignorados da grande massa do publico. São reputações de salão, de
+academia, de club, de redacção de jornal.
+
+Ora, Lord Beaconsfield realmente nunca fez coisa alguma para se tornar
+popular e sempre lembrado; nunca ligou o seu nome a uma grande
+instituição, a um grande beneficio publico, a uma campanha victoriosa.
+Tudo, ao contrario, n'esta original personalidade parecia destinal-o á
+impopularidade: a sua origem, os seus gestos e habitos anti-inglezes, a
+sua poderosa veia sarcastica, a sua oratoria requintada e subtil, o
+gongorismo metaphysico das suas concepções litterarias, e certos lados
+muito accentuados do seu fundo semitico. E a isto accrescia que, para a
+grande maioria da nação, elle representava um _parvenu_ de auctoridade
+oligarchica, surdamente hostil á ideia de democracia e de soberania
+popular.
+
+A sua assombrosa popularidade parece-me provir de duas causas: a
+primeira é a sua idéa (que inspirou toda a sua politica), de que a
+Inglaterra deveria ser a potencia dominante do mundo, uma especie de
+Imperio Romano, alargando constantemente as suas colonias, apossando-se
+dos continentes barbaros e _britannizando-os_, reinando em todos os
+mercados, decidindo com o peso da sua espada a paz ou a guerra do mundo,
+impondo as suas instituições, a sua lingua, as suas maneiras, a sua
+arte, tendo por sonho um orbe terraqueo que fôsse todo elle um imperio
+Britannico, rolando em rythmo atravez dos espaços.
+
+Este ideal, que tomou o nome de _imperialismo_ nos dias de gloria de
+Lord Beaconsfield, é uma idéa querida a todo o inglez; os mesmos jornaes
+liberais que com tanto furor denunciavam os perigos d'esta politica
+romana, no fundo gozavam uma immensa satisfação de orgulho em
+proclamarem a sua inconveniencia. Havia tanta prosapia britannica em
+conceber um tal Imperio, como em o condemnar, e em dizer, com um ar de
+nobre renunciamento: «Não nos convém a responsabilidade de governar o
+mundo!»
+
+Lord Beaconsfield, sendo a encarnação official d'esta idéa imperial,
+tornou-se naturalmente tão popular como ella. Foi considerado então como
+o instrumento da grandeza exterior da Inglaterra, como o homem que a
+fazia dominante e temida, que mantinha alta e reluzindo terrivelmente
+aos olhos do mundo a espada de John Bull. Gladstone, Bright, a grande
+escola liberal, conhecida pela _escola de Manchester_, era agora
+accusada de ter, com a sua politica de abstenção só occupada de
+melhoramentos materiaes, de finanças, de civilização interna--deixado
+definhar, morrer o prestigio inglez na Europa.
+
+E ai vinha agora aquele extraordinario judeu, apoiado na riqueza, na
+prosperidade interior que lhe tinham legado os liberaes, collocar de
+novo a Inglaterra á frente das nações, fazendo ressoar ao longe e ao
+largo a sua voz de leão...
+
+Todo o paiz andou durante annos inchado com esta grandiosa filaucia, que
+Lord Beaconsfield ia sempre entretendo com os seus discursos bellicosos,
+as ameaças theatraes, as concentrações de frotas, um constante movimento
+de regimentos, invasões aqui e além, a occupação de Chypre, a quasi
+absorpção da propriedade do isthmo de Suez, sempre algum lance brilhante
+em que a Inglaterra apparecia entre os fogos de Bengala da sua
+eloquencia, como a senhora do mundo. E John Bull adorava isto, apesar de
+vêr que a espada da Inglaterra, depois de flammejar um momento nos ares,
+era invariavelmente recolhida á bainha; apesar de comprehender que o
+dinheiro se gastava como a agua das fontes; apesar de sentir que os
+impostos cresciam; apesar de perceber que a Inglaterra estava tomando
+sobre os hombros responsabilidades desproporcionadas com a sua força.
+
+Depois, um dia, o grande senso pratico da Inglaterra viu claramente a
+necessidade de brilhar menos aos olhos do mundo--e de se occupar da
+machina interior, que começava a desarranjar-se: pôz fóra o grandioso
+Beaconsfield, e chamou o pratico Gladstone--o homem que reconstitue as
+finanças, que allivia os impostos, que faz as grandes reformas
+interiores... Mas, apesar de tudo, Beaconsfield ficou como o typo do
+estadista que mais que nenhum outro amou e desejou a grandeza imperial
+da patria.
+
+A esta causa de popularidade deve juntar-se outra--a _reclame_. Nunca um
+estadista teve uma _reclame_ igual, tão continua, em tão vastas
+proporções, tão habil. Os maiores jornaes de Inglaterra, da Allemanha,
+da Austria, mesmo da França, estão (ninguem o ignora) nas mãos dos
+israelitas. Ora o mundo judaico nunca cessou de considerar Lord
+Beaconsfield como um judeu--apesar das gotas d'agua christã que lhe
+tinham molhado a cabeça. Este incidente insignificante nunca impediu
+Lord Beaconsfield de celebrar nas suas obras, de impôr pela sua
+personalidade a superioridade da raça judaica,--e por outro lado nunca
+obstou a que o judaismo europeu lhe prestasse absolutamente o tremendo
+apoio do seu ouro, da sua intriga e da sua publicidade. Em novo, é o
+dinheiro judeu que lhe paga as suas dividas; depois é a influencia
+judaica que lhe dá a sua primeira cadeira no parlamento; é a ascendencia
+judaica que consagra o exito do seu primeiro ministerio; é emfim a
+imprensa nas mãos dos judeus, é o telegrafo nas mãos dos judeus, que
+constantemente o celebraram, o glorificaram como estadista, como orador,
+como escriptor, como heroe, como genio!
+
+
+Como romancista, Lord Beaconsfield nunca escreveu propriamente um
+romance tal como nós modernamente o comprehendemos. Alguns dos seus
+romances são pamphletos em que os personagens constituem argumentos
+vivos, triumphando ou succumbindo, não segundo a logica dos
+temperamentos e as influencias do meio, mas segundo as necessidades da
+controversia ou da these. Outros fórmam verdadeiras allegorias como as
+tem a pintura decorativa nas muralhas dos monumentos publicos. N'um dos
+mais celebres, _Lothair_, ha um mancebo ideal, encarnação do espirito
+inglez, que ama successivamente tres mulheres: uma italiana casada com
+um americano, bella creatura de perfil classico e fórmas de Deusa, que
+representa a Democracia; uma ardente rapariga de cabellos negros e
+revoltos, sempre em extasi, que é a personificação da Egreja Catholica;
+e emfim uma doce e loura donzella, séria, grave e terna, que symboliza o
+Protestantismo. Depois d'hesitar entre estas tres paixões--decide-se,
+como um bom inglez, por casar com o Protestantismo, quero dizer, com a
+loura, conservando um culto vago e secreto pela Democracia, quero dizer,
+pela soberba americana de perfil marmoreo. Moral: a felicidade d'um povo
+está na posse d'uma forte moral christã, alliada a um uso moderado da
+liberdade. Isto dava um excelente e apparatoso _fresco_ na sala d'um
+parlamento. E Lord Beaconsfield accentua os detalhes allegoricos com uma
+tal ingenuidade, que faz por vezes sorrir; assim, por exemplo, a
+americana, isto é, a Democracia, apparece sempre em _soirées_ e festas
+vestida á grega, com uma estrella de brilhantes na fronte, como a cabeça
+da _republica_ nas moedas francezas de cinco francos!
+
+O meio, em que os seus romances se passam, tem quasi sempre um ar
+feerico: tudo são, como disse ha pouco, palacios d'um fabuloso e sombrio
+luxo, festas como as não tiveram os Medicis, fortunas de banqueiros, de
+duques, perante as quaes os Cresus, os Monte-Christos, os Rothchilds,
+todos os ricaços da lenda ou da realidade apparecem como despreziveis
+pelintras.
+
+A linguagem d'estes personagens corresponde ao esplendor das suas
+moradas e ao nebuloso dos seus destinos. _Misses_ de dezoito annos,
+habitando prosaicamente Belgrave Square, fallam aos seus namorados com a
+pompa allegorica do _Cantico dos Canticos_; e quando (o que é frequente)
+dois brilhantes espiritos como Sidonia ou Mrs. Coningsby conversam,
+veem-se, cruzando rapidamente d'um a outro labio, as imagens rutilantes,
+os luminosos conceitos, como se as duas creaturas se estivessem
+recitando um ao outro numeros do _Intermezzo_ ou sonetos de Petrarcha.
+
+Esta linguagem, de resto, convem ás idéas, aos sentimentos, ás aventuras
+que elle atribue aos seus typos principaes; tudo o que é humano e real
+fica absolutamente de fóra d'essas transcendentes creações: fallando
+como poetas, comportam-se naturalmente como chimeras.
+
+O seu mais famoso heroe, Tancredo, vae a Jerusalém e á Syria com este
+fim: _penetrar o mysterio asiatico_. Não percebem? É facil. Sendo
+Jerusalém e as planicies da Syria o unico ponto do Universo em que Deus,
+em tempos, conversou com o homem, em que appareceram os prophetas e os
+Messias, em que das sarças, do murmurio dos rios e do echo dos desertos
+surgiram as Leis Novas, dando á humanidade destinos novos--o moço
+Tancredo parte, para que lá, n'esses logares, Deus lhe falle, um raio de
+luz o divinize, uma religião lhe seja revelada, e tendo partido de
+Londres como simples lord, possa regressar a Regent Street, como Messias
+e regenerador de sociedades!
+
+E (perguntar-me-hão) o que succede a Tancredo na Syria? O que succede a
+todos os personagens de Lord Beaconsfield, que nas primeiras paginas
+partem para sobrehumanos destinos, como os antigos cavalleiros da Tavola
+Redonda: succede-lhe que casa com uma linda e honesta menina, e que tem
+muitos filhos no meio de muita felicidade...
+
+E o _mysterio asiatico_? Parece que o não achou. Mas descobriu coisas
+curiosas e de rara fabula: por exemplo, um povo pagão, onde reina uma
+bella sacerdotisa de Apollo, que celebra ainda hoje nobres cultos
+hellenicos, e que se namora de Tancredo. Mas Tancredo, cavalleiro
+christão, depois de a defender da invasão d'um outro povo, que adora
+idolos infames, foge, foge á desfilada, deixando a classica rainha a
+gemer de amor aos pés da estatua d'Astarte. Depois elle mesmo está para
+ser rei do Libano. Emfim, uma grandiosa e rutilante salsada. E tudo isto
+se passa ahi por 1855, no tempo da Exposição de Paris.
+
+Mas que prodigioso talento, que arte, que amplidão d'imaginação para pôr
+de pé, em todo o seu brilho, este desordenado monumento d'Idealismo!
+
+
+Com effeito, que artista fino e por vezes poderoso!
+
+Apesar d'este abuso do gongorismo na ficção, do vago e ao mesmo tempo do
+amaneirado das suas concepções, d'estes enredos e d'estes personagens
+que por vezes parecem uma mystificação--os seus romances nunca deixam
+d'interessar, direi mesmo, nunca deixam de captivar. Atravessa-os sempre
+um enthusiasmo sincero--em que se sente o amor poetico com que elle
+segue os seus generosos heroes, as suas bellas mulheres, n'esses
+destinos fóra da realidade. Depois a sua fina sensibilidade, o seu
+idealismo um pouco convencional, mas de grande _elan_, os requintes d'um
+gosto supremo--levam-no a dotar os seus personagens, e a acção em que
+elles se movem, de uma tal belleza espiritual, de uma tão alta nobreza
+de costumes, que os olhos enlevam-se, a imaginação namora-se d'esse
+mundo ficticio, d'essa humanidade de poema, onde nada existe de vulgar
+ou de baixo, e onde brilham fórmas maravilhosas e transcendentes do
+pensar, do sentir e do viver.
+
+Isto dá-lhe uma qualidade encantadora: é _luminoso_. Personagens,
+paizagens, interiores, o proprio movimento da aventura--tudo está
+banhado n'uma luz serena e graciosa. Pintando as cousas fóra da verdade
+social, não tendo de lhe apresentar as sombras tristes, exclue dos seus
+vastos quadros tudo o que na vida é duro, brutal, feio, máu,
+estupido--as fórmas varias da baixeza humana.
+
+Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada--e
+mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia,
+batido de uma luz côr de rosa...
+
+
+Tenho insistido n'este lado _não real_ dos livros de Lord Beaconsfield.
+Todavia, um homem d'estes, antigo _dandy_, critico, estadista, habituado
+a governar, observador por necessidade, não podia deixar de ter
+accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade; e essa
+experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas da
+vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações
+symbolicas, de indisciplinada imaginação (_Tancredo_, _Lothair_,
+_Sibyl_) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte, figuras
+de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e côr. São os
+seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus intrigantes, os
+seus homens de lettras, as suas mulheres da moda, os seus lords
+elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural. Londres
+conhecia-os, dava-lhes logo os nomes; e o escandalo d'estes retratos foi
+mesmo uma das grandes causas do successo de Lord Beaconsfield. Mas,
+mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres, e não conhece os
+originaes, estes typos interessam--porque _vivem_.
+
+Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim
+em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente
+poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um
+relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por
+entre o nebuloso de uma mythologia.
+
+São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield só
+elles ficarão lembrados.
+
+
+Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de
+impressões, marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa
+como a de Lord Beaconsfield.
+
+Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações:
+diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que foi
+apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista de
+genio--e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido, soffreu
+em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o rancor da
+parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor: é que todos
+os mediocres o detestavam.
+
+É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre
+fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes
+manifestos das suas idéas de estadista--e fez romance no governo, que
+parecia muitas vezes um _scenario de drama_, sobre o qual elle estava de
+penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a
+Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais
+originaes.
+
+
+Individualmente foi um _feliz_. Tendo, em novo, lançado o plano da sua
+vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o
+plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso, foi
+amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle dizia),
+deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido da sua
+rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo, e findou
+n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente, ditoso?
+Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto, d'um
+pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez!
+
+
+
+
+IX
+
+Os inglezes no Egypto
+
+
+
+
+I
+
+O que resta d'Alexandria.--A estreia d'Arabi Paxá.--Algemas ao café.
+
+
+Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo
+convidativo dos _Guias de viajantes_ como uma rica cidade de 250.000
+habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera,
+tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum _Guia_, porém,
+por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante.
+
+Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas
+e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu
+no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum
+monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio
+mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em honra
+de Diocleciano, conhecida pelo sobrenome singular de _Pilar de Pompeu_,
+e mais longe, estendido n'um areal, um obelisco pharaonico do templo de
+Luxor, que gosava a grotesca alcunha de _Agulha de Cleopatra_. E esta
+mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma
+peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo
+dos comboyos...
+
+Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos,
+antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande
+metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia
+vivendo da pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente
+d'uma vasta praça, a famosa _praça dos Consules_, orgulho de todo o
+Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas
+fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares
+francezes--como um _faubourg_ de Bordéus ou de Marselha transportado
+para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.
+
+A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram
+arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em
+terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor
+brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.
+
+Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, insalubre,
+Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se
+apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se
+ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes,
+as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr'ora
+deuses, ainda hoje aves sagradas...
+
+Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes,
+de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de
+fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras
+fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus
+centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus
+mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta
+de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de Liverpool,
+onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lança ao hombro,
+embaraçavam a passagem dos _tramways_ americanos, onde os _sheiks_, de
+turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as
+caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de
+libré--Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de
+uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete,
+como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo.
+
+Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo,
+Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas.
+
+Do bairro europeu, da famosa _praça dos Consules_, dos hoteis, dos
+bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta
+apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede
+enegrecida que se vae alluindo.
+
+Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.
+
+Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, em
+presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de
+Jehovah--uma d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da
+Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta
+do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma
+chaga viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o
+almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando
+com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os
+seus canhões de oitenta toneladas.
+
+Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos
+nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se têm
+arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,--aos nomes de
+Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor,
+e de Ben-Amon, o sanguinario--o nome de Sr. William Gladstone, o
+humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da
+democracia christã. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do
+snr. Gladstone não é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de
+Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d'essa cidade
+finmente dada ás letras o molestára n'um epigramma--por outro lado esta
+brusca aggressão de uma frota de doze couraçados, cidadellas de ferro
+fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortificações de
+Mehemet-Ali, este bombardeamento d'uma cidade egypcia, estando a
+Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica
+primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia
+n'isto:--ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar
+fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui a _politica imperial
+d'Inglaterra_, ou _os interesses da Inglaterra no Oriente_, póde levar
+um ministro christão a repetir os crimes d'um pirata mussulmano, e o
+snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos
+como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro
+d'Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não
+partilhar a cumplicidade d'esta brutal destruição d'uma cidade
+inoffensiva, deu a sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos
+de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de
+oposição...
+
+
+Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, é
+de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, as
+unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil
+legoas do Egypto e das suas desgraças.
+
+No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour
+achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e
+tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão do
+almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões
+accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos
+ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de
+camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o
+Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias
+financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns
+_coupons_,--a França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os
+interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os
+srs. Coloin e Blegniéres, ambos com funcções de secretarios de fazenda
+no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e
+applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa divida
+egypcia!
+
+De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na
+realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados.
+No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous
+burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o
+Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas
+altas civilisações do Occidente representavam simplesmente a usura armada.
+
+Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam
+alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção
+estrangeira--porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva
+declarara-se _coacto_. Todos os que conhecem a historia contemporanea de
+Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que
+significa esta deliciosa phrase: _El-rei está coacto!_ Isto quer dizer
+que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda
+que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem
+impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição
+de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...
+
+Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga
+n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se
+desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos cidadãos, então
+El-rei _declara-se coacto_, e pede a um rei visinho, mais forte e menos
+atarantado, que lhe mande uma divisão, a _restabelecer a ordem_--isto é
+a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d'autoridade regia,
+dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje,
+realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é
+ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes.
+
+O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um
+_pronunciamento_ planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á
+moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso
+Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do
+_salamalek_, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba
+da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo
+Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas
+puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para
+bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma mudança
+de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre o _amor
+da nação, a felicidade dos subditos_, que o ceremonial indica nas
+occasiões d'atrapalhação regia e pareceu tão satisfeito com o interesse,
+que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que
+os recompensou á maneira oriental--convidando-os a um banquete. Em torno
+da festiva mesa a cordealidade foi grande, o _champagne_ espumou contra
+as prescripções do Alcorão, e entre o sabor das truffas e o aroma dos
+ramos, o futuro do Egypto appareceu côr de rosa... O café foi servido
+nos jardins: e quando d'um lado entravam os escudeiros com os licores,
+do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas,
+levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza,
+foram conduzidos ás palhas do carcere.
+
+Não ha nada mais delicioso--nem mais turco.
+
+A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a
+energia de Sua Alteza!
+
+
+
+
+II
+
+A desforra de Arabi.--Reformadores e coroneis.--O programma
+fellah.--A conferencia de Constantinopla.--A confusão do
+Grão-Turco.--As esquadras.
+
+
+O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho.
+
+Ao abrir o seu _Times_ ou o seu _Journal des Débats_ (porque este
+principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses dous
+ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado
+energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande
+Mehemet-Ali, vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem
+nos seus estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das
+potencias.
+
+Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas--doze mil homens
+com dezoito peças d'artilharia--supplicando que Sua Alteza soltasse
+Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta razão,
+honrosa para a logica árabe: que, approvando o exercito as reformas de
+Arabi-Bey, entendia que elle as executaria muito mais confortavelmente
+sentado na poltrona de ministro da guerra do que estirado nas palhas do
+carcere.
+
+O Khediva, que acabava talvez de saborear no _Times_ mais uma
+glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre
+respeitara Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:--e
+Arabi-Pachá passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes...
+
+Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão
+ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como os
+foguetes que estalam n'esse dia--e de que ordinariamente, como dos
+foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados a
+isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, que
+as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que o não
+viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha.
+
+Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto
+natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e
+desnecessaria ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso
+_principios de oitenta e nove ineditos_ nos sarcophagos dos Pharaós.
+Não, de certo. Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse
+uma Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o
+começo de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto
+governando-se a si mesmo, um _Egypto para os Egypcios_--não uma raça
+escrava enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio
+franco para os esfomeados europeus.
+
+A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador--era o ser
+elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas tristes
+aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam ao comprido
+do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs--a peior que existe
+sobre a terra--elle, mais que ninguem, tinha direito a erguer-se em nome
+dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, Arabi era um soldado
+que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições do Alto Egypto e
+nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo o orgulho da farda,
+e todo o pedantismo do sabre, não só repassado de militarismo, mas
+enfrascado em militança--e, portanto, prompto, desde que a sua voz
+resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções do exercito... Elle
+representava, por origem e por profissão, as duas grandes classes do
+povo egypcio--o soldado e o fellah;--e desde o momento em que entre os
+egoistas, os voluptuosos, os escravos e os interesseiros, elle pareceu
+ser o unico homem no Egypto que se arriscava, de bom grado, pelas suas
+ideias, ao exilio e á enxovia,--tornou-se bem depressa, e naturalmente,
+chefe do _partido popular_ que queria as grandes reformas nacionaes, e
+pela mesma occasião caudilho do _partido militar_, que só appetecia
+vantagens de classe. Assim, em Arabi, o patriotismo confundia-se
+infelizmente com a insubordinação.
+
+Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de idéas
+largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador,
+as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official
+revoltado. Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas
+tivessem egual valor na obra da regeneração do Egypto--que elle pedia
+uma constituição parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para
+os coroneis seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que
+desejavam a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde
+sahiam grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas
+pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do povo,
+e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado de
+patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento.
+
+Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso
+moderno espirito europeu; mas Arabi é um egypcio; e no Egypto, onde o
+povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer das nossas plebes,
+é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, e onde o exercito
+constitue a classe culta--a obra de progresso tem necessariamente de ser
+feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se sabe isto--ou, antes,
+finge-se que não se sabe. As exigencias da tarimba puzeram na sombra as
+reclamações da cabana--e Arabi perdeu na Europa a auctoridade que podia
+ter como chefe dos fellahs por fallar de espada na mão, d'entre um
+quadrado de soldados...
+
+De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do
+antigo typo, que apenas leu um livro--o Alcorão. Mas, como homem, possue
+qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não ousam
+negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. E como
+patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente muito
+egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e soffria de
+vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como outr'ora pelos
+gafanhotos;--mas esses limitavam-se a curvar tristemente os hombros,
+invocando o nome de Allah.
+
+Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, não
+póde attender a tudo, e que, portanto, se resolveu a tirar a espada em
+nome do fellah, contra a oppressão colligada dos pachás turcos e dos
+agiotas christãos.
+
+Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição?
+
+Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do
+Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como
+consequencia d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos
+dinheiros publicos, que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte
+para o harem do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as
+cohortes cerradas de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande
+parte, para pagar os _coupons_ de divida em Pariz e Londres, ficando tão
+pouco para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se
+não dava soldo ao exercito!
+
+Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido
+perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela sua
+honra:--sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem
+installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do
+imposto, para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para
+satisfazer a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o
+fellah, que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de
+recorrer ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se
+officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia
+secretamente o agiota!...
+
+Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com a
+situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas.
+Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros
+estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. O
+desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para os
+estrangeiros, que, sob o nome de _tribunaes mixtos_, distribuem duas
+justiças--uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. Emfim,
+esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem dados
+exclusivamente a estrangeiros--e que se não pagassem annualmente, como
+se pagavam, mais de _trez mil contos_ de bom dinheiro egypcio, a
+francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas as
+repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado como
+aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston,
+foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois
+de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha visto
+o seu regimento e _ainda mesmo não tinha uniforme_!
+
+Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de Arabi, e não se imagina
+facilmente a apopletica indignação que ellas causaram á França
+republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma féra. Na
+Bolsa de Pariz, no _Stock-exchange_ de Londres, onde os fundos egypcios
+tinham descido, pedia-se com energia a suppressão immediata d'esse
+iniquo aventureiro.
+
+Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas
+pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa.
+
+As potencias occidentaes _trocaram as suas vistas_, segundo a hedionda
+phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto _estava em anarchia_. O
+Khediva, esse já se declarara _coacto_, e urgia _descoactar_ rapidamente
+esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. A Inglaterra e a França,
+pois, (paizes que dizem ter interesses superiores no Egypto) mandaram as
+suas esquadras ás aguas de Alexandria, para aterrar Arabi. Póde-se
+perguntar até que ponto seis couraçados, sem tropas de desembarque e
+ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar um ministro da guerra,
+seguro no Cairo, a dez horas de caminho de ferro, cercado de vinte mil
+homens de tropas regulares, apoiado por quatro milhões de população
+fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, e sanctificado pela
+approvação religiosa dos Ulemas...
+
+Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, como o
+_Times_, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma insensatez. Em
+todo o caso fez-se--e acompanhada de um documento, um papelucho
+diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, parecia arrancado
+a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, apresentado
+gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava o Khediva a
+que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para além das
+cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, as suas
+honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, amigos,
+toda a folia de um _vaudeville_? De um lado o Khediva abandonado, em
+palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado na equivoca
+fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; do outro
+lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e as mesquitas. E
+a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para a Nubia este Arabi!
+Conheceis cousa alguma que mais reclame a _verve_ do chorado Offenbach?
+Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre dentes que o papelucho
+era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr o resultado: Arabi encolheu
+os hombros, adjudicou-se mais o ministerio da marinha, e substituiu
+alguns dos outros ministros, antigos familiares do Khediva, por homens
+seus, gente de nervo e de arranque.
+
+Perante esta resposta dada ao seu _ultimatum_, a Europa ficou, se me é
+licito este dizer irreverente--_de orelha murcha_. E então tomou a
+decisão das grandes crises; delegou diplomatas que se sentaram em torno
+de uma mesa de panno verde, e enterraram pensativamente a cabeça entre
+os punhos. Chamou-se a isto a _Conferencia de Constantinopla_. O seu
+fim, todo louvavel, era _resolver a questão do Egypto_.
+
+E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou de
+existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; o
+general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto é
+terra britannica--e ella ainda lá está, a resolver!
+
+Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta
+auctoridade! Ainda lá está...
+
+Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa de
+panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!...
+
+Depois de reunida a _Conferencia_, a Europa, naturalmente, lembrou-se
+que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo
+ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem nos
+seus agitados dominios.
+
+Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia.
+
+É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia hesita. Por um lado, os
+Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, armam marinha,
+cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por outro lado, pagam
+tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem de pachá a
+sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao chefe do Islam,
+como o presente que o rei catholico de Hespanha manda todos os annos ao
+papa? É uma prestação annual da tremenda somma, porque Mehemet-Ali e
+depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a sua independencia? É
+simplesmente um _pourboire_?... Seja como fôr, o tributo existe--e,
+fundado n'elle, a Europa appellou para o Sultão. Arabi, bom crente,
+devia venerar o Sultão; o Sultão, bom pae, podia exterminar Arabi. E
+aqui começa a famosa comedia das vacillações do Sultão.
+
+Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o sob o
+pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca, um
+pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali,
+quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos
+califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no
+Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo este
+caso, os _ulemas_ da mesquita d'El-Azhar, o grande centro religioso e o
+grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona do Oriente,
+possuindo no mundo mussulmano uma auctoridade igual á de um Concilio no
+mundo catholico,--tinham declarado que se o Sultão, em nome da Europa
+christã, pegasse em armas contra gente mahometana, tornava-se _ipso
+facto_ apostata, e _ipso facto_ perdia o califado. Por um lado tambem o
+Sultão, tendo, ao que se diz, recebido de Arabi promessas de depor o
+Khediva e proclamar em seu logar Helim-Pachá, que é em Constantinopla o
+conselheiro e o favorito do serralho--conspirava com Arabi contra o
+Khediva; mas por outro lado, tinha noticia das intelligencias de Arabi
+com o scherif de Meca, que, sendo o descendente directo de Mahomet,
+possue mais que o Sultão direitos ao califado, e é n'esta santa
+pretensão apoiado por todas as tribus da Arabia; e, receiando assim que
+Arabi se tornasse o auctor de um scisma no islamismo, o Sultão procurava
+minar-lhe a influencia crescente--e conspirava com o Khediva contra
+Arabi. Por um lado ainda, uma vaga revolução constitucional em paiz
+mussulmano era odiosa ao Sultão; mas, por outro, a maneira como Arabi,
+alma d'esse movimento, estava tratando d'alto parte da Europa colligada,
+lisongeava profundamente o seu coração turco. Emfim, este miserando
+chefe dos crentes não sabia onde havia de dar com a sua cabeça
+imperial... Não se pense, por este dizer ligeiro, que eu não respeito o
+Sultão: Abdul-Hamid não é um califa do antigo typo, embrutecido pelo uso
+de tres mil mulheres,--mas, segundo a expressão do principe de Bismarck,
+«um dos espiritos mais finos da Europa». Ora, o principe de Bismarck é
+um entendedor; ainda que, a meu vêr, duas cousas estragam esta famosa
+finura: primeira o ser excessiva, de modo que Abdul-Hamid, a maior parte
+das vezes, tropeça e fica enredado na engenhosa complicação dos seus
+proprios fios; depois o estar ao serviço, não de idéas praticas, mas de
+fantasias mysticas, como a que se lhe attribue de renovar, na ordem
+espiritual e em seu proveito, o imperio prophetico de Mahomet.
+
+Emfim, instado pela Europa a intervir no Egypto, e não querendo que a
+Europa interviesse, porque isso seria a perda do seu pingue tributo
+annual, o Sultão decidiu-se a enviar Dervich-Pachá, uma velha raposa
+podre de manhas, com a missão de fazer reentrar Arabi no aprisco dos
+humildes. Mas apenas Dervich-Pachá começava esta operação, eis que o
+Sultão inquieto, vendo Arabi e o scherif de Meca de mãos dadas sobre o
+tumulo do Propheta, remette a Arabi a grande ordem do Medjidieh, a mais
+nobre condecoração turca, o favor supremo que póde cahir das mãos do
+califa, acompanhada de uma florida carta de amizade e d'uma esplendida
+placa de diamantes.
+
+Isto tudo dá a medida da confusão do Grão-Turco.
+
+Arabi, assim glorificado pelo califa, resplandeceu aos olhos do mundo
+mussulmano com um prestigio maior; Dervich-Pachá, um instante aturdido,
+redobrou de duplicidade:--e foi então entre Dervich, e Arabi, e o
+Khediva, e o Sultão, e as potencias, e os consules, e os pachás, e os
+coroneis, uma intriga tão emaranhada que eu prefiriria fazer-lhes um
+resumo lucido dos vinte e cinco volumes das _Façanhas de Rocambole_, do
+que penetrar na espessura inextricavel d'este embroglio
+turco-europeu--uma d'essas intrigas fastidiosas que devem enervar, fazer
+chorar de séca e de fadiga a Providencia, se ella, como affirmam
+philosophos que estão na sua intimidade, é obrigada a observar
+minuciosamente todos os successos humanos! Quanto o homem com a sua
+tolice deve, por vezes, fazer bocejar Deus!
+
+Durante estes successos, emquanto a Europa chafurdava no atoleiro
+diplomatico, as duas esquadras de França e de Inglaterra, lá continuavam
+deante de Alexandria _manifestando_. Do romper do sol ao occaso,
+immoveis nas aguas calmas, com as camisolas da marujada seccando nas
+vergas, alli estavam _manifestando_...
+
+Os officiaes repousavam de vez em quando d'esta rigida attitude de
+_manifestação_ arranjando um _pic-nic_ em terra, indo fazer um _robber_
+de _whist_ ao club inglez, ou organisando, sob as sombras dos jardins de
+Ramleh, honestas partidas de _cricket_.
+
+
+
+
+III
+
+Episodio oriental.--Mussulmanos e christãos.--Uma estrumeira
+social.--Opiniões de mesa redonda.--Os funccionarios europeus do
+Cairo.--As dividas d'Ismail-Pachá.--O dia 11 de junho.
+
+
+Achando-se as cousas assim, amanheceu o dia 11 de junho, que d'ora em
+deante na historia--n'esse curto instante de notoriedade humana, que
+emphaticamente se chama a _historia_--será conhecido por este
+gallicismo: _o massacre de Alexandria_.
+
+O primeiro episodio oriental que eu vi, ao desembarcar ha doze annos em
+Alexandria, foi este: no caes da alfandega, faiscante sob a luz torrida,
+um empregado europeu--europeu pelo typo, pela sobrecasaca, sobretudo
+pelo bonnet agaloado--estava arrancando a pelle das costas d'um arabe,
+com aquelle chicote de nervo d'hippopotamo, que lá chamam _courbach_, e
+que é no Egypto o symbolo official da auctoridade.
+
+Em redor, sem que esse espectaculo parecesse desusado ou escandaloso,
+alguns arabes transportavam fardos; outros empregados agaloados, de
+chicote na mão, davam ordens por entre o fumo do cigarro...
+
+Saciado ou cançado, o homem do _courbach_, que era um magrisella, atirou
+um derradeiro pontapé á anatomia posterior do arabe--como quem, ao fim
+d'um periodo escripto com _verve_, assenta vivamente o seu ponto
+final--e, voltando-se para o meu companheiro e para mim, offereceu-nos,
+de bonnet na mão, os seus respeitosos serviços. Era um italiano, e
+encantador. A esse tempo o arabe (como quasi todos os fellahs, um
+soberbo homem de formas esculpturaes) depois de se ter sacudido como um
+Terra-Nova ao sahir d'agua, fôra-se agachar a um canto, com os olhos
+luzentes como braza, mas quieto e fatalista, pensando de certo que Allah
+é grande nos céos e necessario na terra o _courbach_ do estrangeiro.
+
+Quando, no dia 11 de junho, eu li esses telegrammas, repassados de
+panico, em que se annunciava á Europa que a população arabe massacrava
+os europeus nas ruas da Alexandria,--não sei porque revi logo o cáes da
+alfandega, o italiano serviçal de bonnet agaloado, o _courbach_
+estalando nas costas escuras do arabe. Isto não é trazido como
+allegoria, para dizer que as relações dos europeus e dos egypcios se
+reduziam a estas duas attitudes--um braço com manga de panno fino
+erguendo o _courbach_, e um dorso semi-nú esperando a sova: muito menos
+quero insinuar que o massacre do dia 11 foi a tardia vingança d'estas
+brutalidades burocraticas...
+
+O Egypto não é a Serra Leoa; e o crescente ainda não anda tão de rastos
+que consinta em ser systematicamente espancado pela cruz. Mas a verdade
+é que no Egypto um qualquer empregado europeu da alfandega, das docas,
+ou dos caminhos de ferro, que não ousaria erguer a mão para um carrejão
+europeu,--retalha a pelle d'um egypcio, tão naturalmente e com tanta
+indifferença como se sacode uma mosca importuna.
+
+É que o europeu d'Alexandria considerava o fellah egypcio como um sêr de
+raça infima, incivilisavel, mero animal de trabalho, pouco differente do
+gado; e se tivesse o estylo de La Bruyère, descrevel-o-hia como La
+Bruyère descrevia os aldeãos do tempo de Luiz XIV, «vultos escuros,
+curvados sobre a terra e tendo a vaga apparencia de seres humanos...»
+
+N'estas condições de desprezo, usa-se facilmente o _courbach_ e
+invariavelmente a insolencia...
+
+E note-se que o europeu não tinha muito mais respeito pelo egypcio das
+classes superiores ou cultas. Qualquer amanuense de consulado julgaria
+da sua dignidade d'europeu não ceder o passo ao mais velho e nobre
+scheik, senhor de dez tribus e descendente do propheta; e o mais
+insignificante empregado dos telegraphos, leitor do _Figaro_, não
+nutriria senão desdem pelos sabios doutores da Universidade d'El-Azhar,
+que não vão ao café ler o _Figaro_, e pouco sabem de telegraphia.
+
+Mas este absurdo desprezo por uma nobre raça, a quem a civilisação tanto
+deve, não se manifestava só entre os europeus de Alexandria, colonia de
+alluvião, formada pelos detritos das populações do Mediterraneo: não
+ouvimos nós ainda ha dias o proprio snr. Gambetta declarar das alturas
+da tribuna da camara franceza, esse Sinai da burguezia, que o povo
+egypcio só podia ser governado a chicote?...
+
+A complicada abundancia da nossa civilisação material, as nossas
+machinas, os nossos telephones, a nossa luz electrica, tem-nos tornado
+intoleravelmente pedantes: estamos promptos a declarar desprezivel uma
+raça, desde que ella não sabe fabricar pianos de Erard; e se ha algures
+um povo que não possua como nós o talento de compor operas comicas,
+consideramol-o _ipso-facto_ votado para sempre á escravidão...
+
+Por outro lado, os egypcios olhavam para o europeu como para a ultima e
+mais terrivel praga do Egypto, uma outra invasão de gafanhotos,
+descendo--não do céo, onde ruge a colera de Jehovah, mas dos paquetes do
+Mediterraneo, com a sua chapeleira na mão--a alastrar, devorar as
+riquezas do valle do Nilo. E este prejuizo não é especial ás classes
+incultas: o pachá mais bem informado, educado em França, lendo como nós
+a _Revista dos Dous Mundos_, nunca reconhecerá o que o Egypto deve á
+energia, á sciencia, ao capital europeu; para elle, como para o ultimo
+burriqueiro das praças do Cairo, o europeu é mais que o intruso--é o
+_intrujão_.
+
+O arabe de modo nenhum se julga inferior a nós; as nossas industrias, as
+nossas invenções não o deslumbram; e estou mesmo que, do calmo repouso
+dos seus harens, o grande ruido que nós fazemos sobre a terra, lhe
+parece uma vã agitação. Elle sente por nós o pasmo misturado de desdém
+que póde sentir um philosopho, vendo trabalhar um pelotiqueiro. O
+pensador diz comsigo que não é capaz de equilibrar uma espingarda sobre
+o nariz, e lamenta-o; mas consola-se reflectindo que o saltimbanco não é
+susceptivel de ligar duas idéas. Assim, o mussulmano admira um momento o
+nosso gaz, os nossos apparelhos, os nossos realejos, todo o nosso genio
+mecanico; depois cofia a barba, sorri, e pensa comsigo: «Tudo aquillo
+prova paciencia e engenho, mas eu tenho dentro em mim alguma cousa de
+melhor, e superior mesmo ao vapor e á electricidade--é a perfeição moral
+que me dá a lei de Mahomet.»
+
+De resto, nós o sabemos pelas xacaras da nossa mocidade, sempre o
+crescente detestou a cruz; e póde-se imaginar quaes são os seus
+sentimentos, agora que a cruz, em logar de o combater como paladino, o
+explora como agiota.
+
+Se em cidades como Damasco ou Beyrouth o europeu _touriste_ inoffensivo,
+que passa com a bolsa aberta, excita olhares e murmurios de odio,
+sómente porque tudo n'elle é differente, desde os dogmas da sua religião
+até á fórma do seu chapéo--calcule-se o que se dá em cidades como
+Alexandria e como Tunis, onde o europeu não é _touriste_ amavel que
+distribue gorgetas, mas o agenciador soffrego que vem instalar-se alli
+como em terra que conquistasse para arredondar depressa um peculio, sob
+a bandeira do seu consul.
+
+Accrescente-se que no Egypto o europeu apparecia aos olhos do arabe com
+o caracter odioso de um privilegiado.
+
+Uma cousa parecia intoleravel--é que o europeu empolgasse todos os
+logares, todos, desde as gordas sinecuras até os diminutos empregos de
+cem francos por mez.
+
+Vagava um obscuro posto de carteiro ou de telegraphista--e concorriam,
+de um lado um arabe honesto e activo, do outro um sacripanta de
+nacionalidade grega ou malteza. A quem se dava o emprego? Ao sacripanta.
+
+Este systema, fecundo a principio, quando o Egypto era uma barbara
+provincia turca, e os europeus chamados eram homens de saber especial e
+de integridade, começou no tempo de Mehemet-Ali, que tentava fazer uma
+nação sobre as ruinas do velho pachalato, e que convidava para essa obra
+a sciencia e o capital europeu: continuou depois com Said-Pachá, esse
+delicioso _bon-vivant_, tão francez que passava os dias a fazer
+_calembourgs_, e que não admittiria em torno de si, e nas repartições do
+estado, senão cavalheiros capazes de apreciar o _Charivari_; mas a
+grande invasão de empregados europeus consumou-se no tempo de
+Ismail-Pachá,--que acceitava tudo o que vinha da Europa, os
+especialistas e os vadios, os que traziam uma idéa e os que só traziam
+dividas...
+
+O Egypto renovou então a velha lenda do El-Dorado. Quem em Pariz, ou em
+Londres, ou em Roma, se via filado pelos credores, com a derradeira
+sobrecasaca a coçar-se nos cotovellos, e sem poder voltar ao seu _club_,
+por dever dez francos ao porteiro, obtinha de um diplomata ou de um
+principe uma carta de recommendação para o Khediva e tomava o paquete de
+Alexandria.
+
+Lá, nos primeiros dias, tinha o hotel pago por Sua Alteza--ao fim do mez
+emprego dado por Sua Alteza. Qualquer cousa: se era um velho tenor de
+sala, já sem voz, nomeava-se coronel de cavallaria; se era um militar
+desacreditado, despachava-se inspector das escolas. Quem não podia
+alcançar uma carta para o Khediva, ia rojar-se aos pés do consul. Quem
+não ousava apresentar-se ao consul, empregava as influencias
+transversaes do paço, as mais poderosas--os eunucos, os cosinheiros, as
+dançarinas... O emprego vinha, facil e pingue. E o fellah pagava toda a
+malta.
+
+Mas o peior ainda eram os funccionarios superiores, que as potencias
+installavam no interior da administração egypcia--tão ciumentas umas das
+outras, que, se, por exemplo, a França conseguia accommodar um francez
+na directoria geral das finanças, logo a Inglaterra, para contrabalançar
+essa parcella de influencia, empurrava um inglez para dentro do
+estado-maior da marinha; e por seu turno a Italia, já desconfiada,
+mettia á força um filhote de Roma na direcção da instrucção publica.
+Alguns d'estes cavalheiros tinham de certo habilidades de especialistas;
+mas a sua abundancia mesmo enredava o movimento da machina
+administrativa. Está hoje provado que o Khediva, cedendo a estas
+pressões, era obrigado a ter _seis empregados para fazer o simples
+trabalho de um_! Todo este mundo formava um estado no estado.
+
+Nas suas repartições de finança, nos seus tribunaes, nos seus estados
+maiores, nas suas commissões, em todos os recantos da sua administração,
+o Egypto só via faces estrangeiras, só escutava linguas estrangeiras, só
+sentia interesses estrangeiros; e o dinheiro egypcio mantinha esta
+cohorte, que só estava alli para annullar a influencia egypcia. E eram
+ao menos uteis?... O consul-geral dos Estados Unidos conta, n'um livro
+recente sobre o Egypto, que jantara um dia no Cairo com seis empregados
+superiores, todos estrangeiros, cujos ordenados sommados subiam
+annualmente a perto de _cem contos_! Nas suas repartições, a
+correspondencia, a escripturação, a contabilidade, tudo era feito em
+lingua arabe: _e nenhum d'elles sabia o arabe_!
+
+
+Não havia talvez sobre a terra peior população que a de Alexandria. Essa
+cidade, que fôra outr'ora o refugio do saber e do luxo do oriente,
+tornara-se nos nossos dias, sob o Khediva Ismail-Pachá, o barril de lixo
+da Europa meridional. Todo o refugo humano da Grecia, das ilhas do
+Archipelago, da Italia, da Sicilia, de Marselha (e Deus sabe quanto
+estas bellas paragens classicas abundam em meliantes!) se esvasiava
+instinctivamente sobre Alexandria, alastrava-a, tornava-a sob o seu
+bello céo azul-ferrete uma fetida estrumeira social.
+
+Bastava atravessar uma rua, para comprehender o conjuncto dos costumes.
+
+A cada esquina, um _café-cantante_ atulhado d'uma malta enxovalhada, que
+berra, cachimba, emborca aguardente, emquanto sobre o tablado, por traz
+da ribalta, uma matrona despeitorada e caiada vae rouquejando um
+estribilho obsceno... De dez em dez casas um lupanar, separado apenas da
+rua por uma simples cortina... Por toda a parte o jogo: um sacripanta
+traz uma pequena roleta, um banco, e no meio da rua installa a batota;
+em redor apinham-se logo outros sacripantas, e d'ahi a momentos a
+policia tem de acudir, porque corre sangue...
+
+O viajante de gosto e de educação tinha de fugir bem depressa d'esta
+atmosphera, refugiar-se n'algum quieto café mussulmano, á beira d'agua
+tranquilla. Ahi ao menos só havia arabes que fumavam gravemente o seu
+_chibouk_, fallavam entre si com pollidez, comportavam-se com dignidade.
+
+Ah! estou d'aqui a vêr a primeira mesa redonda a que me sentei em
+Alexandria!
+
+Era presidida por um grego de pelle livida, de suissas reluzentes como
+verniz de sapatos, com um grilhão de ouro sobre o collete denotado e
+brilhantes, talvez verdadeiros, n'uma camisa de oito dias! Que intrujão!
+que bandido! Como aquillo rolara por todas as trapaças, todos os
+deboches do littoral levantino! O bom era ouvil-o fallar do Egypto como
+de um paiz conquistado, terra de ilotas que tinha obrigação de o vestir,
+de o calçar, de lhe encher a bolsa a elle, e aos outros que o applaudiam
+em torno da mesa redonda, todos europeus, agenciadores, empregadotes,
+simples vadios, todos de grilhões de ouro no relogio, de collarinho
+decotado, o carão resudando vicio, o fallar parlapatão, galãs de
+espelunca...
+
+--_L'arabe, monsieur_, dizia-me este equivoco personagem, n'um francez
+do Pireu, _ce n'est qu'une infecte canaille_!
+
+O infecto canalha eras tu, livido grego!
+
+É evidente que o que tornou Arabi mais popular no Egypto, foi a sua
+hostilidade aos estrangeiros. _O Egypto para os egypcios!_ Esta phrase,
+todo um programma, calou fundo no animo do povo inteiro.
+
+O Egypto para os egypcios--não para os empregados estrangeiros, nem para
+os agiotas estrangeiros...
+
+Ah! esta questão dos credores! A famosa questão da divida egypcia! Em
+que gastou Ismail-Pachá esses centenares de milhões que a Europa lhe
+emprestou, e que o pobre fellah está pagando? Em primeiro logar, na
+realisação de uma idéa economica--o converter o Egypto, que é um paiz
+agricola, n'uma nação industrial. O Egypto produzia o assucar--porque o
+não refinaria? Possuia o algodão--porque o não teceria? E ahi começou, á
+força de milhões, a cobrir as margens do Nilo d'essas colossaes
+fabricas, de que hoje só restam ruinas;--ruinas de ferro enferrujado e
+de madeira podre, tão miseraveis e tão tristes, ao lado das bellas
+ruinas graniticas dos templos pharaonicos, representando, como ellas, a
+servidão de um povo, mas, pela sua fealdade, não podendo ao menos
+servir, como ellas, nem para assumpto de uma aquarella...
+
+A outra causa da ruina do Khediva foi a sua prodigalidade. Quem não
+conhece essa lenda illustre? Quem se não lembra das festas do canal de
+Suez? Ahi cada verba se contou por milhões. Dois milhões para a
+illuminação do Cairo. Quatro milhões para o banquete de Ismailia.
+Despezas com os dois mil convidados durante quinze dias no Cairo e no
+Canal--setenta milhões!... Para o champagne bebido n'essas semanas de
+bambocha--dous milhões! O fellah pagava.
+
+Eh! E eu que estou aqui a fallar--tambem o bebi, esse champagne que era
+no fundo o suor do fellah espumante e assucarado! Tambem eu fui hospede
+de Ismail-Pachá, á custa do fellah! Tambem eu... Calemo-nos, cubramos a
+fronte de cinzas, imploremos o perdão do fellah!
+
+
+O resultado d'estas fantasias industriaes, d'estes luxos de Salomão, foi
+que o Egypto se achou devendo á Europa centenares de milhões, por que
+pagava um juro de _sete por cento_, e, como burgueza prudente que zela
+os seus interesses, a Europa tinha pouco a pouco tomado conta da
+administração do Egypto...
+
+Quando Arabi quiz modificar este systema, que convertia o povo egypcio
+n'uma horda de servos trabalhando para os financeiros de Pariz e
+Londres--as esquadras de França e Inglaterra appareceram logo, pedindo o
+desterro de Arabi, e o licenceamento do exercito, que era o instrumento
+e a força do partido nacional. Os arabes viram n'isto um odioso abuso da
+força, a Inglaterra e a França querendo manter á bala os interesses dos
+possuidores dos titulos da divida egypcia e os privilegios dos intrusos.
+
+Desde esse momento Arabi tornou-se um libertador; e o Khediva, que as
+esquadras vinham proteger contra Arabi, passou a ser o renegado, o traidor.
+
+Esta era a situação no dia 11 de junho. Alexandria tornara-se uma
+fornalha de excitação. Nas mesquitas prégava-se com furor a cruzada
+contra o christão: nos bazares fallava-se do estrangeiro como do cão
+maldito, da ave de rapina, peior que o gafanhoto que devora a seara nos
+campos ferteis do Nilo; e, ou fôsse o fanatismo que despertasse, ou
+fôsse a miseria que se queria vingar--todo o bom mussulmano se armava.
+
+N'estas circumstancias, de uma chufa de botequim póde nascer uma guerra
+de raças. E, pouco mais ou menos, assim succedeu. Na manhã do dia 11, na
+rua das Irmãs, uma das mais ricas do bairro europeu, um inglez, por um
+velho habito, deu chicotadas n'um arabe; mas, contra todas as tradições,
+o arabe replicou com uma cacetada. O inglez fez fogo com um revólver.
+D'ahi a pouco o conflicto entre europeus e arabes, em pleno furor,
+tumultuava por todo o bairro... Isto durou cinco horas--até que, por
+ordens telegraphadas do Cairo, a tropa, até ahi neutral, acalmou as
+ruas. E o resultado, bem inesperado, mas comprehensivel, desde que se
+sabe que os arabes só tinham cacetes e que os europeus tinham
+carabinas--foi este: perto de cem europeus mortos, mais de trezentos
+arabes dizimados. Os jornaes têm chamado a isto o _massacre dos
+christãos_: eu não quero ser por modo algum desagradavel aos meus irmãos
+em Christo, mas lembro respeitosamente que isto se chame a _matança dos
+mussulmanos_.
+
+
+
+
+IV
+
+A fuga dos europeus.--O grande sonho inglez.--O «casus belli».--A
+vespera do bombardeamento.
+
+
+Esta _matança de christãos_--para continuarmos a dar-lhe a sua alcunha
+diplomatica--puxou bruscamente a attenção do mundo que lê jornaes para o
+Egypto, e por isso devem ahi ter presentes e vivos--sem que se torne
+necessario o rememoral-os, detalhe a detalhe--todos os episodios que
+n'uma semana se desencadearam uns sobre os outros, com uma barafunda de
+melodrama: a indignação excessiva e tumultuosa da Europa, excitada pelo
+clamor e pelos gritos da imprensa ingleza; o desordenado panico que se
+apossou dos europeus residentes no Egypto; e o facto, estranho mesmo
+n'essa terra de classicos exodos, de uma colonia de mais de _cem mil_
+almas abandonando de repente o solo, onde, desde gerações se
+estabelecera, deixando occupações, interesses, empregos, casa e fazenda,
+precipitando-se apavorada para os caes de embarque, apinhando-se em
+paquetes, em navios de carga, em barcaças, em qualquer cousa que pudesse
+fluctuar na agua, e fugir da terra funesta, pagando a peso de ouro o
+direito de se agachar n'um buraco de porão; a maneira magistral como a
+Inglaterra, pelos officiaes da sua armada, organisou e policiou esta
+nova fuga dos hebreus; emfim, a chegada a Alexandria do Khediva, que
+perdera toda a auctoridade no Cairo, e colhia a opportunidade de vir
+abrigar os restos esfrangalhados da sua realeza sob os canhões do
+almirante Seymour.
+
+Arabi-pachá, que se tornára, de facto, dictador, correu tambem a
+Alexandria--e o seu primeiro passo foi estabelecer tribunaes marciaes,
+para julgarem os _massacradores_ do dia 11.
+
+Note-se que se não tratava, nem por sombras, de punir os europeus que
+tinham mandado _tresentos_ mussulmanos d'esta terra de miserias para o
+paraiso de Allah; mas sómente os mussulmanos suspeitos de terem posto
+mãos violentas sobre christãos. Ainda assim, os jornaes inglezes
+bradaram logo que não se podia ter confiança na justiça, na
+imparcialidade dos magistrados egypcios, tão hostis ao estrangeiro como
+á populaça--e que taes julgamentos não passavam d'uma farça, onde os
+réus, que se mostravam um momento á Europa carregados de ferros
+postiços, eram depois, por traz dos bastidores, acclamados como bons
+patriotas.
+
+Arabi-pachá propoz então que esses tribunaes se compuzessem de juizes
+arabes e de officiaes inglezes. Isto indicava um desejo vivo, quasi uma
+sofreguidão de justiça. E, com effeito, se o partido nacional agora todo
+poderoso, se não mostrasse severo--corria o perigo de passar por
+cumplice; e se as suas refórmas tinham já inspirado tanta antipathia á
+Europa--o que seria se a elle se pudessem plausivelmente attribuir taes
+attentados?
+
+De resto, para um mussulmano orthodoxo e fino como Arabi, toda a
+violencia contra o estrangeiro, contra o hospede, constitue a mais negra
+violação da lei santa. Arabi era sincero. Mas a Inglaterra não acceitou
+as suas propostas...
+
+A Inglaterra não acceitou. A Inglaterra estava armada a bordo dos seus
+couraçados. E, todavia, mais que nenhuma outra nação ella soffrera com
+os tumultos d'Alexandria: o seu consul, brutalmente espancado, achava-se
+á morte; alguns dos officiaes da esquadra tinham recebido no uniforme,
+que é o orgulho da Grã-Bretanha, a lama e as pedradas da populaça
+egypcia; a maior parte dos europeus assassinados eram de nacionalidade
+ingleza; contra a Inglaterra se prégara a guerra nas mesquitas, nos
+bazares, e até sob a tenda beduina...
+
+Mas a Inglaterra, generosa e paternal, queria esquecer essas injurias.
+Pudera!
+
+É que não lhe convinha reconhecer as atrocidades do dia 11 como um mero
+e casual episodio de fanatismo mussulmano, a que algumas grilhetas e
+algumas cordas de forca poriam definitivamente termo; nem lhe convinha
+descer dos seus couraçados unicamente para ir a um tribunal ajudar a
+sentenciar dez ou doze facinoras.
+
+O que á Inglaterra convinha, era attribuir a este conflicto local a
+magnitude de uma anarchia nacional, e offerecer ou impor o seu
+prestimo--não para castigar os tumultos de um bairro, mas para pacificar
+todo um paiz em desordem. E assim ella rejubilava com a chegada d'esse
+dia tão appetecido, tão pacientemente esperado desde o começo do seculo,
+tão anciosamente espiado desde a abertura do canal de Suez, em que teria
+emfim um pretexto para assentar na terra do Egypto o seu pé de ferro,
+essa enorme pata anglo-saxonia, que, uma vez pousada sobre territorio
+alheio, seja um rochedo como Gibraltar, uma ponta de areia como Aden,
+uma ilha como Malta, ou todo um mundo como a India--nenhuma força humana
+póde jámais arredar ou mover.
+
+Já se não tratava de libertar o Khediva coacto, de defender as
+algibeiras dos portadores do emprestimo egypcio. Um interessse mais
+alto, ligado com os destinos do Imperio, levantava-se, dominava tudo.
+
+_O Egypto estava em anarchia_: logo competia á Inglaterra, paladino da
+civilisação, restabelecer lá a ordem, impedil-o de recahir no estado
+barbaro.
+
+_O Egypto estava em anarchia_: logo competia á Inglaterra, como grande
+potencia oriental, defender essa parte preciosa da terra egypcia--o
+canal de Suez, e evitar que elle cahisse nas mãos de Arabi ou de outro
+dictador mussulmano, hostil aos beneficios da civilisação.
+
+É o que pouco mais ou menos respondia a Inglaterra, e bem alto, para que
+o mundo ouvisse--quando Arabi-pachá lhe propoz uma alliança judicial
+para punir o crime mussulmano do dia 11.
+
+--Não, dizia John Bull, não se trata do dia 11! Esqueçamos o dia 11.
+Esqueçamol-o, como se elle fosse apenas o dia 7. A questão é outra. _O
+Egypto está em anarchia._ É necessario salvar a civilisação!
+
+E estas nobres palavras significavam, despidas dos seus atavios
+humanitarios, que a Inglaterra, sob o pretexto de pacificar o Egypto,
+desembarcaria em Alexandria, occuparia por motivo de operações militares
+Port-Said e Suez, as duas portas do canal, e depois--depois nunca mais,
+n'esses pontos estrategicos do caminho da India, se arriaria a bandeira
+ingleza!
+
+E, feito isto, ficava realisado o grande sonho britannico:--posse
+absoluta da estrada das Indias; John Bull fazendo sentinella a todas as
+portas succesivas que conduzem ao seu imperio do Oriente: á entrada do
+Mediterraneo, Gibraltrar e o seu rochedo inexpugnavel; no Mediterraneo,
+Malta e Chypre, duas ilhas, dois collossaes depositos de guerra: á
+entrada do canal, Port-Said; ao fim do canal e á bocca do Mar Vermelho,
+Suez; á beira do Golfo Persico, Aden; e d'ahi por deante as suas
+esquadras varrendo os mares...
+
+Deante d'esta esplendida opportunidade se achou a Inglaterra, depois das
+carnificinas de Alexandria; e, tendo logo declarado _officialmente_ o
+Egypto em anarchia, sem perda de um momento, começou a armar-se.
+
+E, no meio de tudo isto--a Europa? Oh! a Inglaterra convidava, com
+bellos ademanes de desinteresse, a Europa a partilhar com ella a honra
+de pacificar o Egypto! Mas sabia bem que nenhuma das potencias moveria
+um soldado: nem mesmo a França, que tinha uma frota na bahia de
+Alexandria e collaborára nas manifestações platonicas; a França,
+governada por uma democracia burgueza que enriquece, e tornada toda ella
+uma vasta casa de negocio, não quereria por cousa alguma perturbar
+aquella paz tepida e doce em que amadurece o Milhão.
+
+Além disso, as potencias já tinham resalvado a sua dignidade,
+sentando-se em torno da mesa verde da conferencia, á beira das aguas
+luminosas do Bosphoro, meditando com a cabeça entre os punhos a solução
+da questão egypcia. E, emquanto ao resto, estavam-se observando, armadas
+até os dentes, desconfiadas, ciumentas, odiando-se, mas immobilisadas
+reciprocamente pela propria magnitude dos seus armamentos.
+
+A França receia a Allemanha; a Turquia teme a Russia; a Austria está
+contida por ambas; a Italia necessita a benevolencia de todas; e cada
+uma por seu turno treme do snr. de Bismarck, o hediondo papão, o Jupiter
+trovejante do Olympo diplomatico, que, no seu retiro de Varzin,
+torturado por toda a sorte de males, passa parte do tempo sob a
+influencia da morphina...
+
+De resto, que todas appeteciam os despojos do Egypto, só o póde duvidar
+quem ignore os instinctos de pilhagem, de gatunice, de pirataria, que
+alberga sempre a alma d'um povo civilisado; mas nenhuma das potencias é,
+como a Inglaterra, uma ilha cercada d'um mar agitado, onde se move a
+maior frota da terra; e, apertadas no estreito continente, hombro contra
+hombro e espada contra espada, nenhuma dellas ousaria dar um passo para
+o lado do Egypto, com receio que o vizinho lhe saltasse ás guellas.
+Limitavam-se, por isso, cheias de rancor, a trocar phrases de
+diplomatica doçura, sentadas á mesa da _conferencia_.
+
+Quando, deante d'uma casa fechada, os que lhe appetecem as riquezas,
+discutem, de penna na mão, a melhor maneira de lá entrar--a vantagem
+pertence toda áquelle que, em logar d'uma penna, se muniu d'um machado e
+atira de subito a primeira machadada á porta. Foi o que fez a
+Inglaterra. Emquanto os outros faziam planos _pro-forma_ em cima d'uma
+carteira--ella fez fogo sobre Alexandria.
+
+Sómente não se póde atacar uma cidade inoffensiva sem um pretexto. E a
+Inglaterra foi, á falta de outro melhor, forçada a apresentar um tão
+máu, que, como dizia a _Associação dos Positivistas Inglezes_, no seu
+protesto contra a invasão do Egypto, a sua puerilidade só consegue
+augmentar a sua immoralidade.
+
+Perante os armamentos da Inglaterra, Arabi-pachá, se lhe não
+comprehendia as intenções espoliadoras, devia pelo menos concluir que
+era contra elle, contra o partido que elle dirigia, e contra as idéas
+que elle encarnava, que a Inglaterra se estava preparando; e, muito
+naturalmente, na espectativa de um ataque, organisou a sua defesa,
+artilhando os fortes de Alexandria, e erguendo baterias novas pela costa.
+
+Foi contra isto que a Inglaterra protestou; e foi d'isto que fez um
+_casus belli_--declarando que, se as obras dos fortes não cessassem,
+ella destruiria os fortes!... Sem estar em guerra com o Egypto, ella
+considerava-se no direito de reunir deante de Alexandria uma frota
+ameaçadora; mas não admittia que as auctoridades de Alexandria
+concertassem sequer as brechas das velhas fortificações de Mehemet-Ali!
+
+E que explicações estupendas o snr. Gladstone dava á Europa para
+justificar o _casus belli_! As baterias que Arabi ergue (dizia elle), os
+novos canhões que monta, _põem em perigo os couraçados inglezes_! E os
+couraçados não punham em perigo os fortes? Mas ao lado da esquadra
+ingleza estavam navios de guerra francezes, allemães, italianos, gregos,
+austriacos--tão expostos ás balas de Arabi como os que hasteavam o
+pavilhão britannico: e esses não se julgavam _em perigo_!
+
+Que diria a Inglaterra se o commandante de algum dos couraçados
+francezes ou allemães, que por vezes vêm ancorar nas aguas de Portsmouth
+ou de Southampton--mandasse de repente prohibir ao governador de uma
+d'essas praças a continuação das obras de defesa que ahi se vão
+incessantemente aperfeiçoando, sob o pretexto de que taes baterias
+_poderiam fazer mal_ ao navio de seu commando?... Com tal precedente, os
+almirantes inglezes, que honram frequentemente o humilde porto de Lisboa
+com a presença dos seus pavilhões--estariam auctorisados a exigir a
+destruição da torre de S. Julião, do Bugio e de Belém! Dir-se-hia que
+não é de prever que o portuguez, pacato e bonacheirão, faça fogo--muito
+menos sobre couraçados inglezes. De accordo. Mas que ganharia
+Arabi-pachá em mandar de surpreza algumas balas á esquadra ingleza--e
+portanto ás outras que estavam no mesmo ancoradouro--senão o attrahir
+sobre si, e o seu partido, e o seu paiz, a pavorosa vingança da Europa
+inteira, injuriada em todos os seus pavilhões?
+
+Arabi fez uma cousa fina: cedeu, promettendo interromper os trabalhos de
+defesa. E a Inglaterra ficou desapontada. Esta submissão de Arabi
+desmanchava o seu engenhoso plano.
+
+Alguns jornaes mais cynicos e impacientes chegavam a aconselhar que se
+não respeitasse a palavra d'um vil mussulmano--e que se fosse
+_bombardeando_! O trabalho então da frota foi vigiar incessantemente as
+fortificações, na esperança de descobrir algum sapador, d'enxada ao
+hombro, que desmentisse a promessa d'Arabi. De noite, os couraçados
+projectavam sobre a costa longos e vivos raios de luz electrica,
+movendo-os lentamente ao longo das baterias, pesquizando anciosamente os
+menores recantos, procurando o mais leve vestigio de trabalho--fosse
+elle um cesto de pedras esquecido; e assim foi que uma noite--noite
+venturosa para o governo do snr. Gladstone!--a esquadra descobriu dois
+soldados limpando um velho canhão! Que allivio para a Inglaterra!
+Immediatamente o almirante Seymour mandou este _ultimatum_ a
+Toulba-pachá, governador da cidade:--dentro em vinte e quatro horas os
+fortes deveriam ser entregues ás tropas inglezas, ou toda a linha de
+couraçados abriria fogo sobre Alexandria. A isto, realmente, só se póde
+responder a grande palavra de Cambronne em Waterloo.
+
+Lamento que Arabi a não dissesse: era a segunda vez na historia que John
+Bull a receberia em plena face.
+
+A vespera do bombardeamento foi dramatica. O almirante Seymour fez sahir
+da bahia todos os navios mercantes; e, depois, com a usual etiqueta,
+convidou os navios de guerra de outras nações a fazerem-se ao largo,
+levando para fóra da linha de fogo a neutralidade das suas bandeiras.
+Essa longa procissão de couraçados de toda a Europa, deixando lentamente
+as aguas da Alexandria, para que a Inglaterra pudesse livremente
+commetter o seu attentado--é descripta pelos correspondentes inglezes
+como cheia de solemnidade e de ceremonial. As salvas succediam-se; uns
+aos outros cortejavam-se os pavilhões dos almirantes. Os ultimos a sahir
+foram os navios francezes, os alliados na _manifestação_, que, honra
+lhes seja, não quizeram ser alliados no crime:--e a tricolor afastou-se
+tambem, saudada pelo almirante Seymour, entre os _hurrahs_ de despedida
+da marinhagem e o estridor da _Marselhesa_. A tarde estava bella; tudo
+era luz na bahia; os minaretes d'Alexandria branquejavam no azul...
+Magnifico espectaculo, sem duvida:--sómente que pensariam d'elle os
+milhares de pobres arabes, de mulheres e de creanças, que o contemplavam
+das alturas da cidade, e sobre os quaes ia cahir no dia seguinte bala,
+metralha e bomba?
+
+Por fim, a noite desceu e estrellou-se; á beira da agua calma luziam as
+luzes d'Alexandria; tudo ficou em silencio na bahia.
+
+Estavam a sós, frente a frente, sob a paz dos ceus, uma grande esquadra
+ingleza e a cidade inoffensiva que ella, na madrugada seguinte, para
+satisfazer a sofreguidão mercantil de um povo de lojistas, ia friamente
+arrasar.
+
+
+
+
+V
+
+Depois do bombardeamento.--Os incendios.--As responsabilidades.--Uma
+Alexandria ingleza.--A invasão.--A attitude da Europa.
+
+
+O almirante Seymour, dias antes, tinha declarado que em duas breves
+horas desmantelaria os fortes de Alexandria. Ao cabo, porém, de nove
+compridas horas ainda não fizera calar as baterias egypcias; e ainda
+justamente uma bomba vinha escavacar a camara do commandante do
+_Inflexivel_.
+
+Sir Beauchamp Seymour reconheceu, nos seus despachos para o almirantado,
+«que os melhores artilheiros da Europa se poderiam orgulhar de uma tão
+bella resistencia». Mas nem coragem, nem reductos, nem muralhas de
+granito prevalecem contra esses negros monstros que desfeiam os mares--o
+_Monarcha_, o _Alexandra_, o _Soberbo_, o _Sultão_, o _Invencivel_, o
+_Minotauro_, e tantos outros que lá estavam, movediços castellos de
+ferro, servidos pelas forças combinadas do vapor, da hydraulica, da
+electricidade, devastadores como um cataclysmo e exactos como uma sciencia.
+
+Pobres fortalezas de Mehemet-Ali! Foi a velha fabula da panella de barro
+contra que tombou a panella de bronze. Ao anoitecer, eram apenas montões
+de ruinas fumegando em silencio...
+
+Estava consummada a façanha! Na bahia, agora, tudo cahira n'uma grande
+paz; a noite descera calma e escura; os enormes couraçados repousavam;
+da cidade vencida não vinha o menor ruido; só n'um ponto de terra o
+palacio de Rasel-tin ardia ao abandono. Foi então que o eloquente
+correspondente do _Standard_ telegrahou para o seu jornal esta phrase
+que merece fama:--_A situação não póde ser mais satisfactoria!_
+
+Pelo meio da noite, porém, da parte de Alexandria, onde ficava a _Praça
+dos Consules_, começou a erguer-se um vasto clarão. Alli, evidentemente,
+havia um incendio. Mas como? Porque?
+
+O almirante Seymour lavaria d'ahi as suas mãos--se tivesse a bordo a
+bacia de Poncio Pilatos. Elle concentrára escrupulosamente o seu fogo
+sobre os fortes: uma ou outra bomba poderia ter cahido nos bairros
+arabes--e nada mais legitimo, nem de mais salutar terror; mas a parte
+européa de Alexandria fôra poupada... E todavia, era lá que o incendio
+se estendia avermelhando, aquecendo o ceu; e de outros pontos visinhos
+iam subindo na noite altas labaredas. Diabo! A situação já não era tão
+satisfactoria...
+
+Ao outro dia houve um tempo muito nublado, com um mar muito forte. Os
+couraçados, por precaução, fizeram-se ao largo. Quando, horas depois,
+vieram retomar as suas posições de combate, Alexandria, deante d'elles,
+ardia toda como uma monstruosa fogueira. Positivammente, não era nada
+satisfactoria a situação!
+
+Não era. Arabi-pachá abandonára Alexandria, levando o grosso do
+exercito. E a população mussulmana, enfurecida por nove horas de
+bombardeamento, sem policia para a conter, com os _ulemas_ a excital-a,
+tomada da cobiça da pilhagem, e inflammada pela furia das represalias,
+correra aos bairros europeus,--e incendiou, saqueou, matou, destruiu;
+matou pela raiva de matar, porque até pobres cavallos de carruagem
+appareceram esquartejados; destruiu pela raiva de destruir, porque se
+acharam nas ruas, aos pedaços, vestidos de senhoras, relogios de sala e
+oculos de theatro...
+
+Ferocidades de fanatismo, que se arremessa n'uma vingança indiscriminada
+sobre tudo o que lhe represente a raça, os costumes, as idéas que elle
+odeia--sobre os homens e sobre os espelhos. Isto não se dá só em paiz
+mussulmano. Sempre que os parizienses invadiam as Tulherias, rasgavam á
+ponta de sabre o setim das poltronas...
+
+Collocou-se a população de Alexandria, por taes excessos, fóra da
+humanidade? Os inglezes dizem que sim; eu digo que nós teriamos feito o
+mesmo, nós europeus, christãos e podres de civilisação. Se, quando os
+allemães estavam bombardeando Pariz--os parizienses vissem no centro da
+sua cidade um bairro exclusivamente allemão, compacto, monumental,
+luxuoso, erguido pelo dinheiro que o allemão ganhára a explorar a
+França,--resistiriam os parizienses, os mais civilisados dos mortaes, a
+besuntal-o de petroleo e fazel-o flammejar por uma bella noite de inverno?
+
+A resposta é facil, lembrando-nos que, quando por seu turno o snr.
+Thiers, esse homunculo de estado, bombardeou Pariz, os parizienses
+apressaram-se a destruir o palacete do snr. Thiers.
+
+Foi Arabi que ordenou o incendio de Alexandria? Não, evidentemente.
+Arabi não é um patriota selvagem, do typo d'esse Rostopchin que queimou
+Moscou: é um fellah fino e sagaz, que sabe que na Europa, na Inglaterra
+sobretudo, onde affectamos todos uma sensibilidade humanitaria, nada
+desacredita mais que uma fria crueldade. Basta observar a attitude
+polida, quasi paternal que elle toma com os prisioneiros inglezes--o
+guarda-marinha Chair, por exemplo.
+
+Quando este official foi levado ao acampamento arabe, Arabi disse-lhe
+logo, depois d'um _shake-hands_.
+
+--Escreva a sua mãe, conte-lhe que está entre mãos leaes, e tire-a
+d'inquietações...
+
+Isto era de certo sincero--mas sobre tudo habil: e uma tal palavra voou
+direita ao coração de todas as mães inglezas. Desde os conflictos
+d'Alexandria, o empenho d'Arabi tem sido proteger os europeus que ainda
+restam nas villas do interior. Os _cadis_ que não evitaram o massacre
+dos empregados do caminho de ferro do Delta, foram decapitados. A elle
+se deve a tranquillidade do Cairo, onde existe uma enorme massa de
+propriedades e riquezas européas. Que ganharia Arabi em destruir esta
+prospera cidade egypcia, no começo da campanha e com o seu exercito
+intacto? Apenas a fama d'um monstro boçal.
+
+Á Inglaterra cabe a responsabilidade da catastrophe. As bombas do
+almirante talvez, com effeito, não tivessem arrasado mais que alguns
+casebres arabes; mas á imprevidencia do governo se deve a ruina
+d'Alexandria.
+
+Desde o meiado de junho, o mais experiente, mais auctorisado dos seus
+agentes diplomaticos, o snr. E. Malet, consul geral do Egypto, não
+cessou de bradar--que se o bombardeamento era inevitavel, Sir Beauchamp
+Seymour devia ter tropas de desembarque, para occupar a cidade, apenas
+os fortes fossem destruidos, e impedir assim que, no caso provavel de
+Arabi se retirar para o interior, ella ficasse á mercê d'uma plebe
+semi-barbara...
+
+Nada d'isto se fez.
+
+Sir Beauchamp Seymour bombardeou, arrasou, repelliu virtualmente
+d'Alexandria a Arabi, a unica força que continha uma populaça de cem mil
+fanaticos--e, depois, ficou a bordo do seu couraçado, vendo
+tranquillamente arder, deante de si, uma das mais ricas cidades do
+Mediterraneo.
+
+Por outro lado, a quem aproveitava o incendio? Á Inglaterra. O pretexto
+de que os fortes _punham em perigo os couraçados britannicos_, só a
+auctorisava, perante os escrupulos da Europa, a destruir os fortes, não
+a occupar a cidade. Agora, porém, que ella estava em chammas, abandonada
+á anarchia, á pilhagem, ao ataque das hordas beduinas que corriam do
+deserto--agora ella tinha o direito--mais, ella tinha o dever!--de
+desembarcar e ir salvar de uma total aniquilação tanta riqueza, tão
+esplendido centro de commercio!...
+
+Generosa Inglaterra! E desembarcou logo, aquartelou tropa, plantou
+bandeira. Tinha deante de si um monte de ruinas, e em poucos dias foi
+dando fórma a uma Alexandria nova, já com feição ingleza e administrada
+á ingleza.
+
+Os incendios foram dominados; as ruas desentulhadas; estabeleceu-se uma
+policia terrivel, que executava summariamente os ladrões e os
+incendiarios; abasteceu-se a cidade: a alfandega reabriu as portas; em
+substituição das lojas destruidas, armaram-se barracões de venda; o
+machinismo judicial foi posto em movimento; reparou-se a fabrica do gaz,
+a cidade foi reilluminada; os bancos voltaram a funccionar.
+
+E, como era necessaria uma auctoridade, em nome de quem se reorganisasse
+a vida municipal, os inglezes, que apenas estão alli (diziam elles) como
+um corpo de policia, foram buscar o Khediva a uma casa dos arredores,
+onde elle se refugiara durante o bombardeamento, e installaram-n'o
+solemnemente no palacio de Ras-el-tin, palacio meio ardido, onde elle é
+uma auctoridade meio morta!...
+
+
+Desde este momento, a situação tornou-se muito definida, muito simples.
+Os inglezes possuiam, governavam Alexandria, tão naturalmente como se
+ella estivesse situada no condado de Yorkshire; e de fronte
+d'Alexandria, n'essa especie de isthmo arenoso que a liga á terra do
+Delta, estava Arabi n'um acampamento entrincheirado, governando d'ahi
+todo o valle do Nilo e o deserto até o mar. Os inglezes recebiam
+incessantes reforços de casa e da India. Arabi chamava á guerra contra
+os inglezes todo o povo fellah. A Inglaterra preparava uma invasão.
+Arabi organisava uma grande defesa nacional. Nada mais claro. A questão
+é entre a Inglaterra, procurando estabelecer um protectorado sobre o
+Egypto, arrancar-lhe as cidades estrategicas que dominam o canal, e
+Arabi-pachá, um patriota, que quer o Egypto para os egypcios, que receia
+a protecção do estrangeiro como a peior desgraça de um paiz fraco, e que
+entende que, pelo facto de que Alexandria, Port-Saïd e Suez se acham
+desgraçadamente no caminho da India, não é motivo para que se tornem
+guarnições inglezas. E dos dous lados, grande enthusiasmo.
+
+Em Londres, onde acabou a _season_ e começa a monotonia das praias de
+banhos, o partir para conquistar o Egypto passou a considerar-se uma
+feliz aventura. Se o ministerio da guerra o consentisse--toda a mocidade
+de ouro, ou apenas de latão dourado, se alistaria, porque é do mais
+requintado _chic_ ir dar cabo de Arabi!
+
+O duque de Connaugth, um dos filhos de S. M. a Rainha, faz parte da
+expedição, e o duque de Teck, seu cunhado, não sendo militar, partiu,
+diz-se, como simples empregado do correio. Os officiaes dos regimentos
+de guardas, essa pura nata da aristocracia e flôr da finança, tiveram a
+ventura de vêr os seus luxuosos regimentos, de ornamentação monarchica,
+expedidos para o Egypto; sómente este natural prazer foi em parte
+estragado pela severidade do ministerio da guerra, que, como se tratava
+de uma campanha e não de um torneio, não consentiu que esses
+gentis-homens fôssem seguidos por equipagens, creados de librés, tendas
+de luxo e caixas de vinho de Champagne.
+
+Um d'estes officiaes exprimiu alto a sua indignação, porque o
+estado-maior só lhe consente tres cavallos de sella, dous creados de
+quarto e cinco malas de bagagem!
+
+Por outro lado, ao comprido do Nilo toda a população fellah se declarou
+por Arabi; como por elle se declararam as classes lettradas, as
+mesquitas, os _ulemas_, os _coptas_, os proprios principes parentes do
+Khediva. Os _mudirs_, governadores de provincias, pagam-lhe a elle os
+impostos. Os _scheiks_ do deserto mandam-lhe a sua cavallaria.
+
+E este ardor é tanto maior, quanto Arabi-pachá foi de ha muito
+prophetisado; já a sua inesperada entrada no governo se considerou um
+advento divino; e este rebelde (como outros rebeldes que tão
+gloriosamente fizeram o seu caminho na terra e no ceu) é Messias!
+
+Uma antiga prophecia mussulmana annuncia que no seculo decimo terceiro
+da Hegira nascerá á beira de um grande rio um homem de raça vil, por
+nome Ahmet, que se revoltará, e restaurará o esplendor do Islam; ora, os
+arabes estão no século XIII da Hegira, e Arabi, cujo nome é Ahmet, cuja
+origem é _fellahina_, tendo nascido n'uma aldêa á margem do Nilo,
+revoltou-se contra o seu califa. Assim, elle reune o duplo prestigio de
+um Spartacus e de um Christo.
+
+Concentrada a questão entre uma poderosa nação invasora e um patriota
+que defende o seu solo--a Europa tomou logo a sua tradicional attitude:
+isto é, murmurou algumas palavras de branda admoestação, e depois recuou
+para longe, a observar como um braço forte sabe usar da sua força, a
+estudar como se consuma a espoliação de um fraco.
+
+Nos ultimos quinze annos a Prussia roubou a Dinamarca, e depois foi pela
+Allemanha saqueando reinos e grãos ducados; em seguida, desmembrou a
+França; mais tarde a Russia espatifou a Turquia; ha dous annos,
+subitamente, a Republica Franceza cahiu sobre Tunis, e empolgou esse
+desventurado estado barbaresco. Em cada um d'estes casos a Europa
+comportou-se como um coro das operas d'antiga escola, quando membrudo
+barytono, ahi pelo quarto acto, erguia o ferro sobre o tenor gentil e
+magrizela: o côro adeanta-se, modula uma larga phrase, agita os braços
+em cadencia, faz o commentario amargo da acção, brada talvez:
+_suspendei_! Depois, afastando-se em grande compostura, deixa á bocca da
+scena o tyranno barbudo sondando tranquillamente com a ponta da lamina o
+interior do galã...
+
+
+Não fallemos mais na Europa. Não ha, nunca houve _Europa_, no sentido
+que esta palavra tem em diplomacia. Ha hoje apenas um grande pinhal de
+Azambuja, onde rondam meliantes cobertos de ferro, que se odeiam uns aos
+outros, tremem uns dos outros, e, por um accordo tacito, permittem que
+cada um por seu turno se adeante--e assalte algum pobre diabo que vegeta
+ou trabalha ao canto de seu cerrado. Nas largas e bem traçadas estradas
+do Direito Internacional, allumiadas por Ortolan e outros lumes,
+rouba-se de carabina alta, e rompem a cada momento brados de povos
+assassinados. A Europa, como os campos de corridas em Inglaterra, devia
+estar coberta d'estes avisos em lettras gordas: _Beware of
+pick-pockets!_ Cautela com os salteadores.
+
+A pequena propriedade politica tende a acabar. Toda a terra vae em breve
+reunir-se nas mãos de quatro ou cinco grandes proprietarios... Hontem,
+era Tunis--porque a França necessita proteger a fronteira da Argelia.
+Hoje, é o Egypto--porque a Inglaterra precisa assegurar o caminho da
+India. Amanhã, será a Hollanda--porque a Allemanha não póde viver sem
+colonias. Depois, a Servia--por motivos que a seu tempo a Austria dirá.
+Mais tarde, a Rumania--porque a Russia é forte. Depois a Belgica--porque
+sim. Depois...
+
+Este assumpto é lugubre. Voltemos ao valle do Nilo!
+
+
+
+
+VI
+
+Situação dos exercitos.--O Nilo, a secca, os areaes.--Os perigos de
+um «Jehad».--O septicismo mussulmano.--O mundo ingleza-se.--Filaucias
+de John Bull.
+
+
+ Postos estão frente a frente
+ Os dois valorosos campos...
+
+Esta melancolica chacara que, se bem me recordo, chora as desgraças de
+Alcacer-Kibir--serve para pintar graphicamente a situação estrategica de
+inglezes e egypcios, desde que se abriu a campanha.
+
+Para comprehenderem bem, imaginem um grande A. O triangulo interno da
+lettra é o Delta--essa terra amada dos deuses, tão rica, que ella, só
+por si, outr'ora alimentou o imperio romano; ao alto da lettra, na
+ponta, está o Cairo--de sorte que um poeta persa poude dizer gentilmente
+que o Delta é um leque verde fechando sobre um botão de diamante, que se
+chama o Cairo. Á base da perna direita do A fica Alexandria, e ahi
+permanece uma parte do exercito inglez, defendido pelas fortificações de
+Ramleh--e tendo deante de si, a tiro de peça, o grande campo
+entrincheirado de Arabi-pachá, que se chama Kraf-Daonar, contendo 18 mil
+egypcios, enormes parques de artilharia, e fechando a marcha pelo Delta.
+A outra parte do exercito inglez, commandada pelo proprio general em
+chefe Sir Garnet Wolseley, dirigiu-se por mar á base da perna esquerda
+do A, que é, pouco mais ou menos, Ismailia, e d'ahi subiu por essa linha
+até Kassassine, onde parou e se fortificou; achando-se igualmente a
+pouca distancia, outro enorme campo entrincheirado, onde Arabi tem
+quinze mil homens, que se chama Tel-el-Kebir. E estes quatro campos,
+postos frente a frente, e observando-se, constituem até hoje a guerra do
+Egypto.
+
+Para chegar, pois, ao Cairo, seu objectivo militar e politico, Sir
+Garnet precisa tomar as posições egypcias de Kraf-Daonar, se quizer ir
+pelo Delta--e as de Tel-el-Kebir, se tentar avançar pelo deserto.
+
+Até hoje os quatro campos limitam-se a trocar entre si, em certas
+escaramuças, algumas languidas balas. Os jornaes de Londres,
+naturalmente, noticiam estes tiroteios de vanguarda com um tremendo
+apparato de lettras de palmo, mappas lithographados e largos rufos de
+prosa--fazendo maior alarido do que se tivesse sido pelejada de novo a
+batalha de Waterloo; mas isto é simplesmente para promover a venda do
+numero.
+
+Os egypcios, entrincheirados, em seus campos contam com poderosos
+alliados: do lado do Delta confiam no Nilo, o velho e bondoso Nilo, que
+não poderá deixar de ser fiel áquelles que ha seculos nutre, e que,
+dentro em pouco, inundando as terras do Delta; e ajudado pelos
+engenheiros d'Arabi, que certamente obstruirão os canaes, terá
+convertido n'um immenso estendal de lamas inatravessaveis esse caminho
+do Cairo, o mais favoravel para os inglezes, pois seria como marchar
+n'uma rica e infindavel granja, entre pomares, jardins, frescuras e
+celleiros cheios... Do lado do deserto, os egypcios contam com o sol,
+com a secca e com a areia. Póde-se imaginar o que soffrerão essas tropas
+do frio Norte, marchando em areaes abrasados n'uma reverberação de luz
+que estonteia, sob um calor tão torrido, que o _metal dos estribos
+cresta os botins_, e tendo para beber só agua barrenta, que é necessario
+ferver primeiro! Já as insolações, as dysenterias, a nostalgia, dizimam
+os regimentos--e como o commissariado inglez, sempre mau, encontra aqui
+difficuldades de transporte, as tropas de S. M. a Rainha Victoria _já
+tem soffrido fome_! Ah! custa caro o caminho das Indias!
+
+Além d'estes alliados que elle possue na natureza, Arabi espera ainda
+nas tribus beduinas, e n'essas hordas errantes d'arabes a cavallo que
+estão chegando do lado de Tripoli a combater o _cão estrangeiro_, e que,
+se diz, constituem um reforço de trinta mil homens...
+
+Por seu lado, os inglezes contam apenas comsigo. E isto não é pouco.
+Como diz a sua celebre canção de guerra--_elles têm os navios, têm o
+dinheiro, e têm os homens_. Têm tambem essas magnificas tropas indias,
+que riem do sol, da secca, e das areias d'Africa. E isto levou Sir
+Garnet a declarar que a campanha estaria finda no dia 15 de setembro. É
+verdade que nós estamos a 7 de setembro, e elle, entrincheirado em
+Kassassine, tendo deante de si a barreira formidavel de Tel-el-Kebir,
+ainda está pedindo reforços. Mas isto prova só que esse raio de guerra,
+tendo habitos differentes dos de Cesar, _chegou, viu, e reflectiu_.
+Demos-lhe mais um mez; demos-lhe tres largamente; o certo será que ao
+fim d'este anno, Arabi, os seus campos, o seu exercito, a sua bella
+aspiração a uma nacionalidade egypcia, tudo isso se terá esvaido--como
+se esvae uma nuvem n'esse secco céo africano.
+
+Os inglezes poderão soffrer revezes, perder milhares d'homens, gastar
+milhões de libras; mas, tendo uma vez compromettida a honra da sua
+bandeira, com um fim d'engrandecimento imperial, não embainharão a
+espada antes de ter installado na cidadella do velho Cairo, ao som do
+_God save the Queen_, um governador inglez.
+
+Evidentemente o snr. Gladstone falla apenas de _restabelecer a ordem e
+restaurar o Khediva_. Meras locuções diplomaticas. O _Times_, que é o
+verbo d'Inglaterra, esse falla, sem rebuço, em _protectorado_. E ha
+muitos inglezes, ainda menos reservados que o _Times_, que dizem redonda
+e seccamente--_conquista_.
+
+Mesmo quando o snr. Gladstone, que é a seu modo um democrata dentro dos
+limites do Evangelho, e o seu illustre collega Lord Granville, que é um
+jurista e um diplomata, quizessem, em respeito ao liberalismo, á Europa,
+ao direito internacional e a outras cousas vagas, deixar o Egypto
+reorganisar-se a si mesmo--sahindo elles de lá com as mãos vasias,
+depois de terem supprimido Arabi e o seu turbulento partido--a
+Inglaterra inteira, em massa, protestaria contra este philosophico
+desinteresse...
+
+Ha alguem ahi assaz ingenuo para suppôr que John Bull, essa torre de
+senso pratico, consentiria em que se lhe dizime o exercito, em que se
+lhe gaste o dinheiro como elle gasta a agua das fontes, em que se lhe
+augmente o _income-tax_--só para que o Khediva, esse amavel moço,
+continue a fumar o _narghilé_ do poder sob as sombras dos jardins de
+Choubra? John Bull não ficará satisfeito senão com este resultado
+macisso e duradouro--um _Egypto inglez_, tendo dentro do seu territorio,
+como um corredor de casa particular, o canal de Suez, caminho das
+Indias. Um ministerio que, depois de ter enterrado nos areaes da Africa
+milhões de libras e milhares de vidas, não lhe der isto--receberá no
+mesmo instante, na parte posterior da sua individualidade, o bico da
+bota de John.
+
+Mas se Arabi, derrotado, conseguir levar o Scherife de Méca a proclamar
+contra a Inglaterra um _jehad_--que é uma guerra santa, uma crusada, um
+levantamento em massa do mundo mussulmano?
+
+Bons espiritos, em Inglaterra, dizem ser este um grande perigo--pois que
+só na India ha cincoenta milhões de mahometanos. Eu não creio, porém,
+que haja aqui motivo para John Bull empallidecer. E lamento-o! Porque é
+d'um bello pittoresco essa idéa d'um _jehad_ com o seu ceremonial--o
+Scherife de Méca desenrolando o estandarte verde de Mahomet, os doutores
+do Islam assignando todos o _fetva_ fatal, e logo, de cada canto da Asia
+e d'Africa, a torrente dos crentes precipitando-se em nome de Allah!
+Bello motivo d'ode--a que não corresponde nenhuma realidade...
+
+Em primeiro logar, nunca se fez! O crescente tem sido muitas vezes
+humilhado pela cruz, o Islam tem recebido na face a mão da Europa
+christã, o Califa tem fallado repetidamente em proclamar um _jehad_--e
+todavia o estandarte do Propheta continuou enrolado nos sacrarios de
+Méca. E a minha opinião é que se elle fôsse um dia desenrolado--haveria
+apenas um pedaço de panno verde mais, fluctuando ao vento do ceu.
+
+E querem que lhes diga porque? Porque penso que os mussulmanos estão a
+esta hora tão scepticos como nós outros, os christãos. Nas areias do
+deserto, como nas nossas praças allumiadas a gaz--já não será facil
+encontrar mil homens de boa vontade, que peguem em armas em nome do seu
+Deus.
+
+De certo todo o bom mussulmano, a certas horas do dia, se orienta para o
+lado de Méca e se prostra nas reverencias rituaes: pura questão de
+educação, de boas maneiras, de habito, como nós outros tiramos o chapéu
+ao passar por um calvario de aldeia. Ou então, superstição vaga, vago
+terror nervoso, como o de certos philosophos e positivistas das minhas
+relações, que sempre, ao saltar da cama, fazem o signal da cruz.
+
+Dentro do Alcorão vê-se já o caso melancolico de uma lei divina ir
+cahindo em desuso. O Sultão recebe a jantar os embaixadores, e bebe com
+elles _champagne_: a policia do Cairo prende os santos _derviches_
+vagabundos, e já não é respeitado o jejum do Ramazan.
+
+Como o nosso Evangelho, a palavra de Mahomet vae-se tornando objecto de
+poesia, de commentario, de controversia. Ha Renans no Islam; e o verbo
+divino, uma vez analysado, deixa de inspirar a fé que leva á morte.
+
+O mundo mussulmano está no seu seculo decimo-terceiro, na sua plena meia
+edade, e certamente ha muito beduino sob a tenda, tão crente, tão
+penetrado de Mahomet, como aquelles corações simples, que, ainda ha
+pouco no deserto dos nossos claustros, choravam ao ler a paixão de
+Jesus; mas não creio que mesmo esses patriarchas deixassem os seus
+oasis, os seus rebanhos, os seus harens, para virem gratuitamente, sem
+outro pret a não ser o sorriso das houris nos jardins do Paraizo,
+supportar o fogo dos canhões Krupp. E emquanto ás classes cultas de
+Constantinopla, do Cairo, de Smyrna, de Tunis, essas acreditam tanto na
+promessa das houris, como nós outros, aqui em Regent-Street, nas palmas
+verdes da Bemaventurança e no côro dos Serafins...
+
+Por todo o universo a religião desapparece das almas; e apenas lá fica
+essa vaga religiosidade, feita em parte do abalo que deu ao nosso
+coração uma tão longa sujeição ao sobrenatural, em parte do confuso
+terror que impera n'este grande universo que nos cerca, tão simples e
+tão mal comprehendido. N'este estado negativo, de passividade na duvida,
+não se gera facilmente um impulso d'acção forte. Um _jehad_ no Islam é
+tão impraticavel--como uma cruzada no Christianismo. Pedro Ermita hoje
+iria acabar na policia correcional, por perturbador da ordem publica e
+das relações internacionaes; e os fanaticos que, ainda hoje, ás portas
+das mesquitas do Cairo, bradam contra o _touriste_ estrangeiro as
+injurias aconselhadas pela boa doutrina, são immediatamente levados para
+a enxovia, por _fazerem alarido nas ruas_!
+
+Mahomet, nas suas mesquitas, Christo, nas nossas capellas, vão
+singularmente envelhecendo; o nosso Messias vae-se cobrindo pouco a
+pouco do pó que levanta o forte arado da razão, lavrando um mundo novo;
+e o propheta do Islam, tendo perdido a força da sua unidade, subdividido
+em mil prophetas menores que presidem a mil seitas differentes, mal póde
+resistir á lenta avançada da civilisação occidental. E com Christo e
+Mahomet, que eram os principios militantes e vivos das suas religiões,
+desapparece o que n'essas religiões havia de vivo e de militante. Resta
+Deus, resta Allah. Sublimes abstracções, incapazes de inspirar amor ou
+heroismo.
+
+O que mais faz amar a Divindade é a quantidade de humanidade que ella
+encerra. Clovis batia-se por Jesus, que tinha um peito de homem como o
+d'elle, e n'esse peito humano cinco chagas abertas; Soliman morreria
+feliz por Mahomet, que era como elle um guerreiro, e como elle amava a
+belleza.
+
+Mas quem se vae bater por Deus, por Allah, essas entidades tão vastas
+que enchem todo o ceu, e tão pequenas que não bastam a satisfazer o
+nosso coração, que nos são subalternas, porque são feitas á nossa
+imagem, e são no fundo a nossa propria alma alargada até ao infinito com
+todas as suas fraquezas?!
+
+De resto, é possivel que eu esteja aqui attribuindo a fortes corações de
+Meca e do deserto os scepticismos litterarios de _Pall-Mall_ e do
+_Boulevard de la Madeleine_. Que sabemos nós do que se passa dentro do
+Islam? Tão pouco como os lettrados da mesquita d'El-Azhar sabem o que
+por cá vae dentro do nosso confuso catholicismo.
+
+
+Mas, mesmo que se effectuasse um _jehad_, seria apenas motivo para a
+Inglaterra gastar mais alguns milhões e sacrificar mais alguns
+regimentos. Nem o Alcorão, nem o famoso estandarte verde, nem o proprio
+Mahomet, que voltasse á terra a desfraldal-o, impediriam que John Bull
+se estabeleça no Egypto...
+
+Já lá está, nunca mais de lá sahirá!
+
+Estão em toda a parte, esses inglezes! O seculo XIX vae findando, e tudo
+em torno de nós parece monotono e sombrio--porque o mundo se vae
+tornando inglez. Por mais desconhecida e inedita nos mappas que seja a
+aldeola onde se penetre, por mais perdido que se ache n'um obscuro
+recanto do Universo o regato ao longo do qual se caminhe--encontra-se
+sempre um inglez, um vestigio de vida ingleza!
+
+Sempre um inglez! Inteiramente inglez, tal qual como sahiu da
+Inglaterra, impermeavel ás civilisações alheias, atravessando religiões,
+habitos, artes culinarias differentes, sem que se modifique n'um só
+ponto, n'uma só prega, n'uma só linha o seu prototypo britannico.
+Hirtos, escarpados, talhados a pique, como as suas costas do mar, ahi
+vão querendo encontrar por toda a parte o que deixaram em Regent-Street,
+e esperando Pale-Ale e _roast-beef_ no deserto da Petrea; vestindo no
+alto dos montes sobrecasaca preta ao domingo, em respeito á egreja
+protestante, e escandalisados que os indigenas não façam o mesmo;
+recebendo nos confins do mundo o seu _Times_ ou o seu _Standard_, e
+formando a sua opinião, não pelo que vêm ou ouvem ao redor de si, mas
+pelo artigo escripto em Londres; impellindo sempre os passos para a
+frente, mas com a alma voltada sempre para traz, para o _home_;
+abominando tudo o que não é inglez, e pensando que as outras raças só
+podem ser felizes possuindo as instituições, os habitos, as maneiras que
+os fazem a elles felizes na sua ilha do Norte!
+
+Estranha gente, para quem é fóra de duvida que ninguem póde ser moral
+sem ler a Biblia, ser forte sem jogar o _cricket_, e ser _gentleman_ sem
+ser inglez!
+
+E é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se
+_desinglezam_. Ha raças fluidas, como a franceza, a allemã, que, sem
+perderem os seus caracteres intrinsecos, tomam ao menos exteriormente a
+forma da civilisação que momentaneamente as contêm. O francez no
+interior da Africa adora sem repugnancia o _manipanço_, e na China usa
+rabicho. O inglez cahe sobre as idéas e as maneiras dos outros, como uma
+massa de granito na agua: e alli fica pesando, com a sua Biblia, os seus
+_clubs_, os seus _sports_, os seus prejuizos, a sua etiqueta, o seu
+egoismo--tornando-se na circulação da vida alheia um encommodativo tropeço.
+
+É por isso que, nos paizes onde vive ha seculos, é elle ainda o
+_estrangeiro_.
+
+Em toda a parte onde domine e impere, todo o seu esforço consiste em
+reduzir as civilisações estranhas ao typo da sua civilisação
+anglo-saxonia. O mal não é grande quando elles operam sobre a Zululandia
+e sobre a Cafraria, n'essas vastidões da Terra Negra, onde o selvagem e
+a sua cubata mal se distinguem das hervas e das rochas, e são meros
+accessorios da paizagem: ahi encontram apenas uma materia bruta, onde
+nenhuma anterior fórma de belleza original se estraga, quando elles a
+refundem para a fazer á sua imagem. Vestir o desventurado rei negro
+Cetewayo, como elles agora fizeram, de coronel de infanteria, obrigar os
+chefes dos Basutos a saber de cór os nomes da familia real ingleza, são
+talvez actos de feroz despotismo, mas não deterioram nenhuma primitiva
+originalidade de linha ou de idéa. Para Cetewayo, que andava nú, uma
+fardeta, mesmo de infantaria, não faz senão vestil-o; e é indifferente
+que dentro do craneo dos Basutos haja só formulas de invocação ao
+_manipanço_, ou tambem nomes de principes da casa d'Hanover.
+
+Mas quando elles trabalham sobre antigas civilisações como a da India,
+onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em que uma
+grande raça pôz toda a originalidade do seu genio--então a politica
+anglo-saxonia repete pouco mais ou menos o attentado sacrilego de quem
+desmantellasse um templo buddhico, bello como um sonho de Buddha, para
+lhe dar na sua reconstrução as linhas hediondas do _Stock Exchange_ de
+Londres; ou ainda de quem se fôsse ao marmore divino da Venus de Milo, e
+tentasse, á força bruta de martello e cinzel, dar-lhe o feitio, as
+suissas e a sobrecasaca de lord Palmerston! A expansão do inglez para o
+Oriente, seu objectivo imperial, seria toleravel, mesmo aos nervos de um
+artista--se elle se contentasse em levar para lá os seus tecidos, as
+suas machinas, os seus telegraphos, os seus railways, deixando depois
+que essas raças usassem esse colossal material de civilisação em se
+desenvolverem no sentido do seu genio e do seu temperamento. Que por
+todos os modos se forneça á santa cidade de Hydrabad gazometros e
+illuminação--mas, por Deus! que se não mettam á força bicos de gaz
+dentro dos seus templos, se isso offende os seus ritos e repugna ao seu
+gosto! Que a India, por exemplo, seja coberta de caminhos de ferro,
+fornecidos pelos industriaes de Northumberland e pagos pelo
+indio--excellente! Mas ao menos que as aldêas onde elles passam, essas
+aldêas que os mesmos inglezes descrevem como pequenos paraizos de paz,
+de trabalhos simples, de costumes doces, de frugalidade, de frescura, de
+belleza moral, não sejam tornadas tão tristes como as tristes parochias
+de Yorkshire, introduzindo-se logo lá o _policeman_, o deposito de
+cerveja, a capella protestante de tijolo, o livreiro de Biblias, o
+vendedor de _gin_, a fumaraça de uma fabrica, a prostituição e a
+_workhouse_!...
+
+Mas deixemos isto. É facil maldizer da Inglaterra. Basta abrir os livros
+dos seus grandes homens, desde Thackeray, o artista, que com um tão frio
+rancor lhe fez a satyra sangrenta, até Carlisle, o philosopho, que
+passou a existencia a fulminal-a com uma tumultuosa colera de propheta...
+
+Da Inglaterra póde-se dizer que--ao contrario da generosa França--as
+suas virtudes só a ella aproveitam e os seus vicios contaminam o mundo.
+
+É á Inglaterra que se deve o egoismo crescente que nos vae petrificando
+o coração--esse egoismo tão particularmente inglez, que faz com que em
+Hyde-Park, no seu centro de luxo, trezentas pessoas, em torno de um
+lago, vejam uma pobre criança afogar-se, sem que nenhuma se encommode a
+tirar o charuto da bocca para lhe estender uma taboa! É á Inglaterra que
+devemos esta crescente hypocrisia que invade o mundo, e que faz com que
+em Londres, nos cartazes que annunciam as peças de Sardou ou Dumas, se
+ajunte esta estupenda declaração: _adaptada ás justas exigencias da
+moralidade ingleza_;--emquanto que, na rua, por baixo d'esses mesmos
+cartazes, rola, sem cessar, a mais vil torrente que o mundo viu de
+bebados e de prostitutas!
+
+Mas deixemos as maculas da Inglaterra: a lista é longa;--quero só
+alludir a um outro abominavel defeito que ella sempre teve, e que agora
+desenvolveu em proporções intoleraveis:--a sua espantosa filaucia, a sua
+ruidosa basofia, o seu tremendo ar _mata-sete_!
+
+É sobretudo n'este momento, desde o começo da guerra do Egypto, que os
+que, como eu, amam a Inglaterra, soffrem de lhe vêr estes extravagantes
+modos de valentão de romance picaresco. Os telegrammas que os
+correspondentes dos jornaes enviam das operações da guerra, sobretudo os
+commentarios dos proprios jornaes, seriam lamentavelmente grotescos, se
+não fossem odiosamente impertinentes. Os francezes (que não são
+modestos) puzeram trinta mil allemães fóra de combate na batalha de
+Gravellote, e todavia não fizeram a decima parte do alarido, da
+gloriola, do espalhafato com que os inglezes celebravam a escaramuça de
+Ramleh, onde os egypcios perderam _quarenta e tantos homens_! Parece
+faltar-lhes o sentimento da proporção das cousas. Um correspondente do
+_Daily News_ annunciava, ha dias, como um feito heroico, digno de ir á
+posteridade, o terem alguns soldados em marcha dado um pedaço de pão de
+munição a um arabe que morria de fome á beira de um caminho! Era espanto
+de encontrar dentro de peitos inglezes um resto de piedade humana? Não.
+Queria provar que nenhum exercito no mundo faz a guerra com uma tão
+profunda clemencia!
+
+Ou celebrem o aspecto physico dos regimentos ou a afinação das bandas de
+musica, a pontaria dos artilheiros ou a fórma dos capacetes, os talentos
+do Estado Maior ou a excellencia da bolacha de munição, vem logo em
+lettras gordas, a phrase tola--_o que ha de melhor no mundo_!
+
+Faz uma vedeta ingleza fogo sobre uma vedeta egypcia e depois recolhe á
+trincheira? Logo este facto é declarado _tão nobre pelo heroismo como
+habil pela prudencia_!
+
+Os córos que se entoam em torno do general Wolseley, pertencem á pura
+farça.
+
+Eu quero crêr que elle é um grande homem--ainda que por ora nada mais
+fez que debandar uma pobre horda de negros armados de flechas que
+vegetavam junto a não sei que rio d'Africa; mas que se póde pensar
+quando se lê, no _World_ e em outros papeis, que elle é o _maior general
+do seculo_? Onde vive um certo Moltke? Quando existiu um chamado Napoleão?
+
+O melhor, mais bem feito, mais importante jornal de Londres, a _Pall
+Mall Gazette_, envergonhado de tudo isto, explica, com a sua usual
+habilidade, que estas fanfarronadas não são destinadas á Europa, mas ao
+Egypto «para levantar o moral das tropas!» Têm pois esses regimentos em
+campanha nos areaes da Africa, diante d'um inimigo formidavel, vagares
+para ler as gazetas? Recebe cada soldado raso, com o seu rancho da
+manhã, um numero do _Times_? A respeitavel _Pall Mall_ blaguêa. Para
+animar, recompensar as tropas, lá estão as proclamações dos generaes.
+Ahi, sim, a emphase deve correr em torrentes: e quando um desgraçado
+homem depois de ter marchado todo um dia, com fome, com sêde, com os pés
+em sangue na areia e um ceu de fogo nas costas, volta á noite ao
+acampamento, estendido n'uma maca com duas balas no corpo--não é muito
+que se lhe diga que elle é o primeiro soldado do mundo!
+
+É também «para levantar o moral das tropas» que o _Times_ e o
+_Spectator_, fallam, de mão na cinta, e suissa ao vento, de «impor á
+Europa a vontade da Inglaterra?»
+
+Não; é mera fanfarronada.
+
+E não é só nos jornaes. Entre-se n'um club, n'um restaurante,
+converse-se com um conhecido, entre duas chavenas de chá--e vem logo a
+mesma jactancia de roncador: «Vamos dar cabo de tudo. Temos dinheiro a
+rodo. Cá, ao pulso inglez, nada resiste... E se o mundo respinga,
+quebram-se-lhe as ventas!...»
+
+A Inglaterra perdeu as suas boas maneiras.
+
+É forte, de certo--mas falla da sua força com a brutalidade de um
+Hercules de feira que esbogalha os olhos e mostra os musculos; é rica,
+de certo--mas falla do seu dinheiro com a grosseria d'um ricaço que
+abarrota fazendo tinir as libras na algibeira...
+
+Onde está a famosa _self-possession_ da Inglaterra, a sua tranquilla
+dignidade? John Bull tornou-se Ferrabraz. Ora uma muito velha banalidade
+ensina-nos que não ha verdadeira força sem serenidade e que sem modestia
+não ha verdadeira grandeza.
+
+
+
+
+X
+
+O BRASIL E PORTUGAL
+
+
+Os jornaes inglezes d'esta semana têm-se occupado prolixamente do
+Brazil. Um correspondente do _Times_, encarregado por esta potencia de
+ir fazer pelo continente americano uma «vistoria social» definitiva
+deu-nos agora, em artigos repletos e massiços, o resultado do seu anno
+de jornadas e de estudos.
+
+O ultimo artigo é dedicado ao Brazil: eu, que nunca visitei o imperio,
+não tenho naturalmente auctoridade para apreciar essas revelações
+(porque o correspondente toma a attitude de um revelador) sobre a
+religião, a cultura, os productos, o commercio, a emigração, o caracter
+nacional, o nivel de educação, a situação dos portuguezes, a dynastia, a
+Constituição, a republica, _et de omni re braziliensi_ e não posso
+transcrevel-as tambem porque ellas enchem, no _Times_, vasto como é,
+mais espaço que o proprio Brazil occupa no territorio da America do Sul.
+Esse artigo excitou o interesse e os commentarios da _Pall-Mall Gazette_
+e de outros jornaes, e ahi se rompeu a fallar do Brazil com sympathia,
+com curiosidade, com essas admirações ingenuas pela sua rutilante flora,
+esse pasmo quasi assustado pela sua vastidão, que decerto tiveram nossos
+avós, quando o bom Pedro Alvares Cabral, largando a procurar o Preste
+João, voltou com a rara nova das terras entrevistas do Brazil...
+
+Devendo mostrar-lhes a opinião presente da Inglaterra sobre o Brazil,
+d'esses artigos floridos, escolho o do _Times_, annotando e glosando o
+trabalho do seu enviado. (É d'este modo respeitoso que se deve fallar
+sempre de um correspondente do _Times_).
+
+Começa, pois, o grande jornal da _City_ por dizer--«que a descripção do
+vasto Imperio do Brazil com que foi fechada a serie das _cartas sobre o
+continente americano_, deve ter feito transbordar o sentimento de
+admiração pelo explendor, etc...» Seguem-se aqui naturalmente vinte
+linhas de extasi. É, em prosa, a aria do 4.º acto da _Africana_: Vasco
+da Gama, de olhos humidos e coração suspenso no enlevo de tanta flôr
+prodigiosa, de tão raros cantos d'aves raras...
+
+Depois vem o espanto classico pela extensão do Imperio: «Só o simples
+tamanho de um tal dominio (exclama) na mão de uma diminuta parcella da
+humanidade é já em si um facto sufficientemente impressionador!»
+
+E todavia esta admiração do _Times_ pelo gigante é misturada a um certo
+patrocinio familiar, de ser superior,--que é a attitude ordinaria da
+Inglaterra e da imprensa ingleza para com as nações que não têm duzentos
+couraçados, um Shakspeare, um _Bank of England_, e a instituição do
+_roast-beef_... N'este caso do Brazil, o tom de protecção é raiado de
+sympathia...
+
+Depois o artigo rompe de novo n'um hymno: «A Natureza no Brazil não
+necessita do auxilio do homem para se encher de abundancias e se cobrir
+de adornos!... Para seu proprio prazer planta, ella mesma, luxuriantes
+parques! E não ha recanto selvagem que não faça envergonhar as mais
+ricas estufas da Europa...» Isto é decerto exacto: mas o _Times_,
+receiando que os seus leitores viessem a suppor que a natureza do Brazil
+está de tal modo repleta, tão indigestamente attestada, que não
+permitte, que se recusa com furor a receber no seu ventre empanturrado
+uma semente mais sequer--apressa-se a tranquillisal-os: «Mas (diz este
+sabio jornal judiciosamente) ainda que a Natureza dispense bem todo o
+trabalho do homem, que outros solos menos generosos requerem para se
+abrir em flôres e fructos,--_não o repelle todavia_». Isto socega os
+nossos animos: ficamos assim certos que nenhum fazendeiro, nos distantes
+cafesaes, ao atirar á terra, a _terra mãe_, com a enxadada fecundadora a
+semente inicial, corre o risco atroz de ser por ella atacado á pedrada
+ou a golpes de bananeira... Nem outra cousa se podia esperar da doce e
+pacifica Ceres.
+
+Tendo assim floreado, de penacho oratorio ao vento, o _Times_ investe
+com as ideias praticas. E começa por declarar, que, segundo o copioso
+relatorio do seu correspondente, «o que surprehende na America do Sul
+(se exceptuarmos aquella tira de terra que constitui a Republica do
+Chili, e alguns bocados da costa do enorme imperio do Brazil) é a
+grandeza de tais recursos comparada á desapontadora magreza dos
+resultados». Seria facil responder com a escassez da população. O
+_Times_ de resto sabe-o bem, porque nos falla logo d'essa população nas
+republicas hespanholas, mas não a acha escassa; o que a acha é torpe!...
+A pintura que nos dá do Perú, Bolivia, Equador e consortes é ferina e
+negra: «Essa gente vive n'uma indolencia vil, que não é incompativel com
+muita arrogancia e muita exagerada vaidade! D'esse torpor só rompe, por
+accesso de frenesi politico. Todo o trabalho ai emprehendido para fazer
+produzir a natureza é dos estrangeiros: os naturaes limitam-se a
+invejal-os, a detestal-os por os verem utilisar opportunidades que elles
+mesmo não se quizeram baixar a usar!» Isto é cruel: não sei se é justo:
+mas entre estas linhas palpita todo o rancor de um inglez possuidor de
+maus titulos peruanos. «E se o nosso correspondente (continua o artigo)
+offerece de alto o Brazil á nossa admiração, não é em absoluto, é
+relativamente, em contraste com os paizes que quasi o egualam em
+vantagens materiaes, como o Perú e o Rio da Prata, mas onde a discordia
+intestina devora e destroe todo o progresso nascido da actividade
+estrangeira. O Brazil é portuguez e não hespanhol: e isto explica tudo.
+O seu sangue europeu vem d'aquella parte da Peninsula Iberica em que a
+tradicção é a da liberdade triumphante, e nunca supprimida.» O _Times_
+aqui abandona-se com excesso ás exigencias rythmicas da phrase: parece
+imaginar que desde a batalha de Ourique temos vindo caminhando n'uma
+larga e luminosa estrada de ininterrompida democracia!...
+
+Mas, emfim, continúa: «Quando o Brazil quebrou os seus laços coloniaes
+não tinha a esquecer feias memorias de tyrannia e rapacidade; nem teve
+de supprimir genericamente todos os vestigios de um máu passado.» Com
+effeito; pobres de nós! nunca fômos de certo para o Brazil senão amos
+amaveis e timoratos.
+
+Estavamos para com elle n'aquella melancolica situação de um velho
+fidalgo, solteirão arrasado, desdentado e tropego, que treme e se baba
+deante de uma governanta bonita e forte. Nós verdadeiramente é que
+eramos a colonia: e era com atrozes sustos do coração que, entre uma
+_Salvè Rainha_ e um _Lausperenne_, estendiamos para lá a mão á esmola...
+
+O _Times_ prossegue: «Ainda que independente, o Brazil ficou portuguez
+de nacionalidade e semi-europeu de espirito. Pelo simples facto de se
+sentir portuguez, o povo brazileiro teve, e conserva, o instincto do
+grande dever que lhe incumbe: tirar o partido mais nobre da sua nobre
+herança... Sejam quaes tenham sido os erros de Portugal, não se póde
+dizer que se tenha jámais contentado com o mero numero das suas
+possessões, sem curar de lhes extrahir os proventos...» O _Times_ aqui
+dormita, como o secular Homero.
+
+E justamente o que nos preoccupa, o que nos agrada, o que nos consola é
+contemplar _simplesmente o numero_ das nossas possessões: pôr-lhes o
+dedo em cima, aqui e além, no mappa; dizer com voz de papo, _ore
+rotundo_: «Temos oito; temos nove: somos uma nação colonial, somos um
+povo maritimo!...» Emquanto a _extrahir-lhes os proventos_, na phrase
+judiciosa do _Times_, d'esses detalhes miseraveis não cura o pretor, nem
+os netos de Affonso de Albuquerque!... Mas prossegue o _Times_: «O
+imperio colonial de Portugal talvez tenha sido outr'ora caracterisado
+por desfortuna--quasi nunca por estagnação.» _Talvez_ é bom: com o
+imperio do Oriente no nosso passado, que é um dos mais feios monumentos
+de ignominia de todas as edades... Continuemos.
+
+«Da origem d'onde o Brazil deriva a sua actividade, deriva tambem (o que
+não é menos importante) o respeito pela opinião da Europa. O vadio das
+ruas de Lima, de Caracas ou de Buenos-Ayres nutre um soberano desprezo
+pelos juizos que a Europa possa formar das suas tragi-comedias
+politicas... Não tem consciencia de cousa alguma, a não ser do seu
+_sangue castelhano_... Sente decerto o inconveniente de ser expulso do
+credito e das bolsas da Europa... Mas avalia esta circumstancia apenas
+pelos embaraços momentaneos que ella lhe traz. O financeiro brazileiro,
+porem, esse presta uma tão respeitosa attenção ao _temperamento_ das
+bolsas de Pariz e Londres, como ao da mesma praça do Rio de Janeiro...»
+
+O _Times_ vê n'este symptoma a consideração que o Brazil tem pela
+opinião da Europa.
+
+Mas, onde o _Times_ se engana é quando pretende que o Brazil deve ao seu
+sangue portuguez esta bella qualidade de obedecer aos juizos do mundo
+civilisado. Não ha paiz no universo, onde se despreze mais, creio eu, o
+julgamento da Europa, que em Portugal: n'esse ponto somos como o vadio
+das ruas de Caracas, que o _Times_ tão pittorescamente nos apresenta:
+porque eu chamo desdenhar a opinião da Europa não fazer nada para lhe
+merecer o respeito. Com effeito, o juizo que de Badajoz para cá se faz
+de Portugal, não nos é favoravel, nós sabemol-o bem--e não nos
+inquietamos! Não fallo aqui de Portugal como Estado politico. Sob esse
+aspecto gosamos uma razoavel veneração. Com effeito, nós não trazemos á
+Europa complicações importunas; mantemos dentro da fronteira uma ordem
+sufficiente: a nossa administração é correctamente liberal; satisfazemos
+com honra os nossos compromissos financeiros.
+
+Somos o que se póde dizer um _povo de bem_, um _povo bôa pessoa_. E a
+nação vista de fóra e de longe, tem aquelle ar honesto de uma pacata
+casa de provincia, silenciosa e caiada, onde se presente uma familia
+commedida, temente a Deus, de bem com o regedor, e com as economias
+dentro de uma meia... A Europa reconhece isto: e todavia olha para nós
+com um desdem manifesto. Porque? Porque nos considera uma nação de
+mediocres: digamos francamente a dura palavra--porque nos considera uma
+_raça de estupidos_. Este mesmo _Times_, este oraculo augusto, já
+escreveu que Portugal era, intellectualmente, tão caduco, tão casmurro,
+tão fossil, que se tornára um paiz bom para se lhe passar muito ao
+largo, e _atirar-lhe pedras_ (textual).
+
+
+O _Daily Telegraph_ já discutiu em artigo de fundo este problema: Se
+seria possivel sondar a espessura da ignorancia luzitana! Taes
+observações, além de descortezes, são decerto perversas. Mas a verdade é
+que n'uma epocha tão intellectual, tão critica, tão scientifica como a
+nossa, não se ganha a admiração universal, ou se seja nação ou
+individuo, só com ter proposito nas ruas, pagar lealmente ao padeiro, e
+obedecer, de fronte curva, aos editaes do governo civil. São qualidades
+excellentes, mas insufficientes. Requer-se mais: requer-se a forte
+cultura, a fecunda elevação de espirito, a fina educação do gosto, a
+base scientifica e a ponta de ideal que em França, na Inglaterra, na
+Allemanha, inspiram na ordem intellectual a triumphante marcha para a
+frente; e nas nações de faculdades menos creadoras, na pequena Hollanda
+ou na pequena Suecia, produzem esse conjunto eminente de sabias
+instituições que são, na ordem social, a realização das fórmas
+superiores do pensamento.
+
+Dir-me-hão que eu sou absurdo ao ponto de querer que haja um Dante em
+cada parochia, e de exigir que os Voltaires nasçam com a profusão dos
+tortulhos. Bom Deus, não! Eu não reclamo que o paiz escreva livros, ou
+que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão
+escriptos, e que se interessasse pelas artes que já estão creadas. A sua
+esterilidade assusta-me menos que o seu indifferentismo. O doloroso
+espectaculo é vêl-o jazer no marasmo, sem vida intellectual, alheio a
+toda a ideia nova, hostil a toda a originalidade, crasso e mazorro,
+amuado ao seu canto, com os pés ao sol, o cigarro nos dedos e a bocca ás
+moscas... É isto o que punge.
+
+E o curioso é que o paiz tem a consciencia muito nitida d'este torpor
+mortal, e do descredito universal que elle lhe attrahe. Para fazer
+vibrar a fibra nacional, por occasião do centenario de Camões, o grito
+que se utilizou foi este:--Mostremos ao mundo que ainda vivemos! que
+ainda temos uma litteratura!
+
+E o paiz sentiu asperamente a necessidade de affirmar alto, á Europa,
+que ainda lhe restava um vago clarão dentro do craneo. E o que fez?
+Encheu as varandas de bandeirolas, e rebentou de jubilo a pelle dos
+tambores. Feito o que--estendeu-se de ventre ao sol, cobriu a face com o
+lenço de rapé, e recomeçou a sésta eterna. D'onde eu concluo que
+Portugal, recusando-se ao menor passo nas lettras e na sciencia para
+merecer o respeito da Europa intelligente, mostra, á maneira do vadio de
+Caracas, o despreso mais soberano pelas opiniões da civilização. Se o
+Brazil, pois, tem essa qualidade eminente de se interessar pelo que diz
+o mundo culto, deve-o ás excellencias da sua natureza, de modo nenhum ao
+seu sangue portuguez: como portuguez, o que era logico que fizesse era
+voltar as costas á Europa, puxando mais para as orelhas o cabeção do
+capote...
+
+Mas, retrocedendo ao artigo do _Times_, a conclusão da sua primeira
+parte é que «em riqueza e aptidões o Brazil leva gloriosamente a palma
+ás outras nacionalidades da America do Sul». Todavia, o _Times_ observa
+no Brazil circumstancias desconsoladoras: «Doze milhões de homens estão
+perdidos n'um estado maior que toda a Europa: a receita publica, que é
+de doze milhões de libras esterlinas, é muitos milhões inferior á da
+Hollanda e á da Belgica: com uma linha de costa de quatro mil milhas de
+comprimento, e com pontos de uma largura de duas mil e seiscentas
+milhas, o Brazil exporta em valor de generos a quarta parte menos que o
+diminuto reino da Belgica.»
+
+O _Times_, todavia, tem a generosidade de admittir que nem a densidade
+de população, nem o total das receitas, nem a cifra das exportações
+constituem a felicidade de um povo e a sua grandeza moral. A Suissa, que
+tem dois milhões de habitantes e justamente os mesmos dois milhões de
+libras de receita, vive em condições de prosperidade, de liberdade, de
+civilisação, de intellectualidade bem superiores á tenebrosa Russia com
+os seus oitenta milhões de libras de receita, e os mesmos oitenta
+milhões em homens. «Todavia, continúa o _Times_, se a escassez da
+população, de rendimento e de commercio, não collocam o Brazil n'um
+estado de adversidade, são uma prova que faltam a esse povo algumas das
+qualidades que fazem a grandeza das nações. Que os colonisadores
+portuguezes, apenas apoiados pelo pequeno throno portuguez, tivessem
+feito da metade do novo mundo, que lhes concedeu o papa Alexandre, mais
+que os colonisadores hespanhoes que tiravam a sua força da grande nação
+de Hespanha, é uma cousa que prova a favor do sangue portuguez comparado
+com o sangue castelhano, andaluz ou aragonez. Mas que as conquistas
+feitas no Brazil á natureza sejam tão insignificantes, e tão vastos os
+espaços que permanecem não só inconquistados mas desamparados--indica
+que são analogos os defeitos da colonia hespanhola e da colonia
+portugueza...»
+
+O resto do artigo é mais serio; e eu devo transcrevel-o sem interrupção.
+«O Brazileiro não é, como o peruano ou boliviano, altivo de mais, ou
+preguiçoso de mais para se dignar reparar nos meios de riqueza e de
+grandeza tão prodigamente espalhados em torno de si. Não; o brazileiro
+tem energia sufficiente para ambicionar e para calcular. A sua attenção
+está fixa nas ferteis regiões do interior. Desejaria bem vêr a rede dos
+seus rios navegaveis cobertos de barcos e vapores. Succede mesmo que,
+nos pontos mais ricos da costa, o habitante queixa-se que uma excessiva
+porção dos impostos com que é sobrecarregado vae ser gasta em collossaes
+trabalhos emprehendidos em vantagem de remotas e incultas regiões que
+nunca ou, ao menos, só d'aqui a longos annos, poderão aproveitar com
+elles. Mas, em todo o caso, o Brazil sente em si força sufficiente para
+dar ao seu vasto territorio os beneficios de uma sabia administração.»
+
+O _Times_ aqui tem um pequeno periodo, alludindo á nobre ambição que têm
+os brazileiros de fazer tudo por si mesmos, vendo com aborrecimento as
+grandes obras entregues á pericia estrangeira, e preferindo os esforços
+da sciencia e do talento nacionaes, ainda mesmo quando elles falham,
+custando ao paiz milhões perdidos... Depois prossegue:
+
+«Mas emquanto o brazileiro se mostra assim, em theorias politicas e
+administrativas, ancioso por fomentar elle mesmo, por elle mesmo fazer
+todas as obras dos seus cinco milhões de milhas quadradas--ás suas mãos
+repugna o agarrar o cabo da enxada, ou tomar a rabiça do arado, que é
+justamente o serviço que a natureza reclama d'elle. N'um continente, que
+depois de tres seculos e meio continúa a ser um torrão novo, a grandeza
+das Republicas ou dos Imperios depende exclusivamente do trabalho manual.
+
+«Italianos, allemães, negros, têm sido, estão sendo importados para
+fazerem o trabalho duro que repugna aos senhores do solo. Mas,
+inaclimatados, em certos districtos, elles nunca poderiam labutar como
+os naturaes dos tropicos. Nem mesmo nas provincias mais temperadas do
+Imperio jámais os immigrantes trabalharão resolutamente--até que o
+exemplo lhes seja dado pela população indigena, senhora da terra. O
+brazileiro ou tem de trabalhar por suas mãos, ou então largar a rica
+herança que é incompetente para administrar. Á maneira que o tempo se
+adianta, vae-se tornando uma positiva certeza que todos os grandes
+recursos da America do Sul entrarão no patrimonio da humanidade.»
+
+O _Times_ aqui embrulha-se. Prefiro explicar a sua ideia, a traduzir-lhe
+a complicada prosa; quer elle dizer que o dia se approxima em que a
+civilisação não poderá consentir que tão ricos solos, como os dos
+Estados do Sul da America, permaneçam estereis e inuteis, e que, se os
+possuidores actuaes são incapazes de os fazer valer e produzir, para
+maior felicidade do homem, deverão então entregal-os a mãos mais fortes
+e mais habeis. É o systema de expropriação por utilidade de civilização.
+Theoria favorita da Inglaterra e de todas as nações de rapina...
+
+
+Continúa depois o artigo, com ferocidade: «No Perú, na Bolivia, no
+Paraguay, no Equador, em Venezuela... em outros mais, os actuaes
+occupadores do solo terão gradualmente de desapparecer e descer áquella
+condição inferior, que o seu fraco temperamento lhes marca como destino.
+(Nunca se escreveu nada tão ferino!) O povo brazileiro, porém, tem
+qualidades excellentes e a Inglaterra não chegará promptamente á
+conclusão de que elle tem de partilhar a sorte de seus febris ou
+casmurros visinhos... Mas, dadas as condições do seu solo, o Brazil
+mesmo tem a escolher entre um semelhante futuro ou então o trabalho, o
+duro esforço pessoal, contra o qual até agora se tem rebellado. Se o seu
+destino tivesse levado os brazileiros a outro canto do continente, nem
+tão largo, nem tão bello, poder-se-hia permittir-lhes que passassem a
+existencia n'uma grande somnolencia. Mas ao brazileiro está confiada a
+decima quinta parte da superficie do globo: essa decima quinta parte é,
+toda ella, um thesouro de belleza, riquezas e felicidades possiveis; e
+de tal responsavel--o brazileiro tem de subir ou de cahir!»
+
+E com esta palavra, á Gambetta, termino. Já se alonga muito esta carta
+para que eu a sobrecarregue de comentarios á prosa do _Times_. No seu
+conjuncto é um juizo sympathico. O _Times_, sendo, por assim dizer, a
+consciencia escripta da classe media da Inglaterra, a mais rica, a mais
+forte, a mais solida da Europa, tem uma auctoridade formidavel; e
+escrevendo para o Brazil, eu não podia deixar de recolher as suas
+palavras--que devem ser naturalmente a expressão do que a classe media
+da Inglaterra pensa ou vae pensar algum tempo do Brazil. Porque a prosa
+do _Times_ é a matéria-prima de que se faz em Inglaterra o estofo da
+opinião.
+
+E reparando agora que, por vezes n'estas linhas, fui menos reverente com
+o _Times_--murmuro, baixo e contricto, um _peccavi_...
+
+
+
+
+XI
+
+A festa das creanças
+
+
+A mais engraçada festa das creanças de que me lembro, foi em Inglaterra,
+na casa de campo dos meus amigos Birds, no paiz de Cornwall. Era uma
+mascarada reproduzindo em miniatura a côrte de el-rei Arthur e dos
+cavaleiros da Tavola Redonda. E o que tornava interessante a
+ressurreição d'este mundo heroico e gentil, popularizado por Tennyson, é
+que nós estavamos alli justamente na região de Cornwall, onde viviam,
+entre saráus e batalhas, Arthur, a sua rainha Guinevra e os doze
+valentes da Tavola. A pouca distancia do parque dos Birds, n'uma collina
+coberta de carvalheiras, a tradição colloca os paços de Arthur e a
+maravilhosa e sombria cidade de Caerleon. O rio em que pescavam trutas
+era o velho Usk. Nas suas frescas margens erguera-se outr'ora o
+mosteiro, onde o irmão de Percival, uma noite, da janella da sua cella,
+viu passar n'uma nuvem côr de rosa, entre aromas de junquilhos, o vaso
+do Santo Graal cheio de sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. E das
+varandas da sala de jantar, podiam avistar-se em dias claros, lá ao
+longe, na costa, e entre as rochas, as ruinas d'esse castello de
+Tintagil, que apparece em todas as balladas do rei Arthur, negro e
+triste junto ao mar de Cornwall.
+
+A côrte começou a reunir-se cedo, á hora do lunch, no grande salão
+branco, sobre o jardim. Era o filho dos Birds quem esplendidamente
+recebia, vestido de rei Arthur. O primeiro personagem da lenda que
+chegou, acompanhado pela sua governante, foi o feiticeiro Merlino, um
+adoravel bébé, gordo e embezerrado com a corôa de hera, uns cabellos
+louros e umas enormes barbas propheticas enchendo-lhe a bochecha côr de
+rosa. Depois, seguidos das mamãs, vieram entrando todos os outros
+figurões da romantica chronica, cavalleiros de cinco annos armados e
+emplumados, mongesinhos nedios, bispos quasi de mama com os seus baculos
+nos braços, bardos rabugentos, mesteirais vestidos de seda, e fadas mais
+lindas que as fadas. As tres rainhas mysticas do Walhalla chegaram por
+ultimo, gravesinhas, todas tres pela mão, cobertas de véos negros,
+escoltadas por um grande lacaio empoado.
+
+Pouco a pouco o salão ficou animado como o velho Caerleon n'uma manhã de
+torneio. O pequeno Bird, de Rei Arthur, com seu manto bordado d'ouro, os
+cabellos frisados sahindo em anneis de sob a corôa carregada de pedras,
+passeava magestoso, entre os seus irmãos de armas. Uma senhora,
+encantada, quiz dar-lhe um beijo. Elle repeliu-a asperamente, como teria
+feito o casto Rei Arthur. Mais orgulhoso do que elle, só o bravo
+Lancelote do Lago, a quem tinham pintado um buço, e que revestido de
+armas negras, com uma longa pluma escarlate ondeando-lhe desde o elmo
+até ás esporas d'ouro, não tirava a mão da espada. E o que parecia
+ensoberbece-lo mais era a sua faxa de gaze branca, passada sobre a
+couraça, e feita em rigida obediencia á epopéa, d'um véo da rainha
+Guinevra. Essa era a grande belleza do saráu, a rainha Guinevra, uma
+irlandezasinha com as duas tranças negras e os olhos verdes como os
+prados d'Erin. Séria e fria, envolta na pesada capa de setim azul,
+conservava-se no meio de um sofá, immovel, com um sorriso que lhe punha
+uma covinha no queixo, indifferente aos madrigaes, insensivel ás proezas
+dos cavalleiros, e sempre de olhos baixos, ou por ella os bardos firam
+as harpas, ou por ella se batam os vassalos junto ao mar de Cornwall.
+
+Um escudeiro annunciou o lunch, tocando uma buzina de prata, tal qual
+como no Caerleon. E pelo corredor, aos pares, toda a côrte seguiu á sala
+de jantar o rei Arthur, que levava pela mão, com uma graça solemne, a
+linda rainha Guinevra. Depois, mas não sem alguma confusão, em que
+necessariamente as mamãs tiveram de ser energicas com os cavalleiros,
+ficou completa a Tavola Redonda, ornada de baixellas e flôres. E nada
+faltava do que mandam as poeticas chronicas.
+
+Ao fundo da mesa, na sua cadeira esculpida pelos Genios, lá se achava o
+velho feiticeiro Merlino, a quem a governante, para elle comer com
+limpeza a sua sopa, tirára as barbas propheticas. Não havia um javali
+assado sobre um prato de ouro. Apenas um modesto _roast-beef_. Mas o rei
+Arthur levantava o seu copo d'agua, misturada de uma gota de Bordeus,
+com a nobreza com que o outro, ha tantos centos de annos e n'aquella
+mesma collina, erguia a taça de hydromel em dias de victoria. De resto a
+sala, com o seu tecto de carvalho lavrado, tinha o severo apparato
+d'outras éras e através da janella lá estavam, como nos versos da _Morte
+d'Arthur_, as ruinas do Castello de Tintagil, negro e triste junto do
+mar de Cornwall.
+
+A Côrte mostrava tanto apetite como á volta de uma batida aos lobos nos
+bosques, que avisinham o Usk. Até as fadas devoravam. Sir Galahad, esse
+que possuia a força de mil, porque o seu coração era virgem, já por duas
+vezes reclamára _pudding_ de batatas, batendo furiosamente com o garfo
+sobre o seu murrião de prata, posto ao lado da mesa entre os crystaes.
+
+Fôra preciso, por causa da sua magnifica tunica de setim verde, atar um
+guardanapo ao pescoço do cavalleiro Bors, essa radiante flôr de bravura
+christã. No meio de toda a alegria o forte Percival, incommodado com a
+sua armadura, permanecia manso e corado com o ar de estar pensando (como
+o outro Percival) em se recolher ao mosteiro de Wik. Depois, de repente
+e inexplicavelmente, rolou abaixo da cadeira, entornando todo o molho
+nos joelhos do intrigante Modred, o mais violento cavalleiro da Tavola.
+
+Modred despropositou e arrepelou os cabellos d'ouro de Percival. A tia
+do heróe acudiu assustada, e então, como o famoso Lancelote do Lago se
+estava tornando turbulento, foi arrancado da Tavola Redonda
+ignominiosamente, nos braços d'um escudeiro, aos berros.
+
+Depois do lunch, a côrte de el-rei Arthur voltou ao saráu a regozijar-se
+com danças. Saráu delicioso! Havia dois monges extraordinarios, de
+bureis brancos, tão pequenos e tão tropegos que as senhoras tinham de os
+segurar pelos braços nas quadrilhas e que queriam constantemente dançar,
+mais joviaes que os cavalleiros, promptos a atirar-se sempre aos
+bracinhos das camponezas toucadas de flôres.
+
+O puro Sir Galahad, já sem broquel e sem murrião, galopava doidamente
+com uma ligeira fada, chegada n'essa manhã da Bretanha, das florestas de
+Broceliande. Um bardo, com a corôa de folhas de carvalho enterrada até
+aos olhos, chorava por ter perdido a sua harpa. Havia tambem um principe
+do Mar do Norte, um castellão de Erin e o bravo cavalleiro Bors, que se
+tinham refugiado a um canto, por detraz d'um sophá, onde sentados no
+chão continuavam na sua divertida merenda com bolos, dando gritos,
+quando as senhoras queriam pôr cobro áquella gula tão impropria de
+paladinos christãos.
+
+No corredor o pae Bird teve de suster um rechonchudo abbade, que
+arregaçava as vestes sacerdotaes e ia, furioso, sovar o intrigante
+cavalleiro Modred. E não foi possivel realizar a parte mais picante da
+lenda, fazendo com que Lancelote do Lago cortejasse Guinevra. O bravo
+Lancelote (bem differente do outro) parecia de coração duro e sem gosto
+pelo sorrir das damas. Terminou mesmo por ter uma hedionda perrice, e
+cahiu nos joelhos da mamã, com duas grossas lagrimas nas pestanas e a
+sua bella penna escarlate cahida no chão, como n'uma tarde de derrota.
+
+Cedo os bébés começaram a estar cançados. Eu mesmo, no meio da festa,
+tive de levar ao collo o veneravel bispo de Blackburn com a sua mitra e
+com o seu rico baculo. Os seus doces olhinhos azues fechavam-se de
+somno. Deitei-o no sophá, junto da mais pequenina das rainhas do
+Walhalla, que já alli dormia sob o véo negro, com os cabellos d'ouro
+soltos e o lyrio do Paraiso entre as mãosinhas cruzadas...
+
+E o santo bispo candidamente adormeceu ao lado da mystica rainha.
+
+
+
+
+XII
+
+Uma partida feita ao «Times»
+
+
+É ao mesmo tempo lamentavel e piccaresco o caso succedido ao _Times_.
+Este nobre in-folio diario, que inspira orgulho a todo o inglez
+sinceramente patriota, e que aos olhos respeitosos do estrangeiro
+apparece como uma das mais fortes columnas da sociedade ingleza, como a
+propria consciencia da Inglaterra posta em lettra redonda; este augusto
+periodico que nunca, desde a sua fundação, citou o nome d'um collega,
+nem jámais se abaixou a uma controversia, pelas mesmas razões de
+inflexivel etiqueta que vedariam a Luis XIV argumentar com Colbert; esta
+austera gazeta que preferiria despedaçar as suas magnificas machinas a
+consentir que ellas imprimissem um _bon-mot_, uma pilheria, uma linda
+bagatella ou uma jovial anecdota; este papel tão pudico que evita o nome
+de Zola, como uma indecencia--o _Times_, emfim, o venerando _Times_, foi
+ultimamente victima de uma d'essas _partidas_, como nós dizemos,
+_facecias em acção_, como dizem os Americanos, que são ao mesmo tempo
+nefandas e patuscas, que nos abrazam a face de indignação e nos arrancam
+aos labios um sorriso, que nos fazem vituperar publicamente o farçante e
+saborear secretamente a farça, como se vissemos um rabo de papel pregado
+ao manto d'el-rei, ou sobre os cabellos em caracoes da imagem do Senhor
+dos Passos--um chapéu alto.
+
+Todas as pessoas que teem folheado esses vastos lençóes de materia
+impressa que constituem um numero do _Times_, sabem que a quinta pagina
+é ordinariamente destinada á publicação dos discursos pronunciados por
+homens eminentes da politica, da litteratura, da sciencia, da arte, em
+_meetings_, comicios, banquetes, inaugurações, _conversazioni_, em todos
+esses ajuntamentos de _ladies and gentlemen_ onde a Inglaterra dá vazão
+ao seu tumultuoso fluxo labial!... O _Times_ é famoso por estas
+reproducções. Não são resumos, nem extractos: são as arengas, palavra a
+palavra, especialmente tachygraphadas para o _Times_ por um pessoal
+experimentado, com as interrupções correctamente transladadas, os
+murmurios religiosamente marcados, sem que lhes falte um _meus
+senhores!_, sem que ficasse perdido um _oh!_ ou um _ah!_ e revistas,
+esmiuçadas, zeladas como se tivessem cahido dos labios de Socrates ou de
+Christo prégando outro Evangelho.
+
+Este simples serviço custa por anno ao _Times_ milhares de libras--mas
+dá-lhe a vantagem de ser elle a acta official do verbo publico da
+Inglaterra. Todos os jornaes da Europa assim o reconhecem: quando se
+discute um discurso do Sr. Gladstone, uma conferencia do professor
+Huxley ou uma predica do arcebispo de Canterbury, tem-se presente, como
+texto sagrado, o texto do _Times_. Um orador póde negar a incorrecção de
+um adjectivo, a violencia de uma apostrophe, quando a apostrophe ou o
+adjectivo tenham apparecido nos resumos rapidos de outro jornal: nunca,
+quando hajam apparecido nas columnas infalliveis do _Times_. Sabe-se a
+despeza, o desvelo, a minuciosidade, empregada para obter a exactidão--e
+essa exactidão nunca é contestada.
+
+Quando o Sr. Gladstone, na campanha eleitoral da Escocia, soltou essa
+famosa invectiva contra o imperio dos Hapsburgos,--o protesto cortez do
+embaixador d'Austria era fundado em citações do _Times_. Um orador que,
+querendo deixar um monumento solido da sua arte, publique os seus
+discursos em volumes--collige-os do texto seguro do _Times_. O _Times_
+tem aqui o valor d'uma reproducção photographica. Insisto n'isto, para
+tornar mais vivo o horror da facecia.
+
+Ha semanas Sir William Harcourt, o ministro do interior, fez um discurso
+em Manchester, discurso consideravel, muito annunciado, muito esperado,
+tocando todas as questões que inquietam agora a Inglaterra, a anarchia
+da Irlanda, o tratado de commercio com a França, a intervenção no
+Egypto, a criação do Governo Municipal de Londres, outras coisas graves
+ainda.
+
+Esta arenga, tachygraphada pelo pessoal do _Times_ em Manchester,
+telegraphada para os escriptorios do _Times_ em Londres, foi composta,
+lida pelos revisores, revista pelo secretario de Sir William Harcourt,
+verificada, comprovada, relida ainda, e, emfim definitivamente
+installada na sua pagina... E aqui se colloca a facecia.
+
+Mas é necessario primeiro, para maior indignação e maior goso, conhecer
+Sir William Harcourt. De todos os membros do ministerio Gladstone, Sir
+William é o mais austero. Já a sua apparencia intimida: grosso,
+membrudo, de hombros compactos, com a face imperiosa, pallida, rapada,
+Sir William tem as linhas solemnes e marmoreas do busto de um Cesar.
+
+E dentro d'esta fórma romana habita um espirito rigido de doutrinario:
+liberal (em comparação com o marquez de Salisbury, que é quadradamente
+feudal), Sir William representa no Governo a tradicção, a formula
+_whig_. É o contrapeso conservador d'este ministerio radical: está alli
+como um bloco de granito constitucional para impedir que os outros
+ministros, Chamberlain, Sir Charles Dilke, os discipulos de Stuart Mill,
+se adiantem muito pela grande estrada da Revolução: e tem por isso essa
+ampla solemnidade de maneiras, essa cadencia pomposa de expressão, de
+quem se honra em guardar as coisas supremas--a corôa, a egreja, a
+aristocracia territorial, os privilegios, a integridade do imperio... É
+um solemne. Mesmo abotoado n'um paletot, parece embrulhado n'uma toga. É
+moroso, massudo, incapaz de sorrir, tem essa especie de magestade
+official que faz lembrar ao mesmo tempo Guizot e um elephante.
+
+E quando a gente o contempla no parlamento, grave, rispido, vestido de
+negro--não o póde conceber nas attitudes triviaes da vida, fumando um
+cigarro n'um sophá, com uma perna por cima da outra, muito menos de
+joelhos, com uma linda mão de mulher entre as suas, murmurando coisas
+ternas e tontas...
+
+E é isto que torna atroz e deliciosa a facecia... O discurso solemne
+d'este solemne estadista estava, pois, paginado, pronto para passar ás
+machinas, quando aproveitando um momento em que a policia interior dos
+escriptorios do _Times_ casualmente afrouxára de vigilancia, _alguem_,
+um monstro, um scelerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso,
+arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substitue-as por outras, compostas de
+ante-mão, perfida e habilmente compostas! E que linhas! meu Deus! como
+posso eu, conservando-me casto, explical-as aos leitores da _Gazeta de
+Noticias_?
+
+
+Essas linhas intercaladas no severo discurso do severo ministro eram
+(tremo de dizel-o) eram linhas eroticas! Era um grito convulsivo de
+desordenada lubricidade; era o ruido d'uma besta agitada por todas as
+furias de Venus; era como esse rouco e secco bramar dos veados, nos
+bosques, sob a calma do estio; era a balbuciação ebria dos Faunos da
+fabula, do deus Priappo, dos Satyros caprinos que vagueavam pelos
+pendores sagrados do monte Olympo, ululando, trincando a brancura dos
+lyrios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes
+de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras nymphas
+das aguas... Era tudo isto, e era ainda mais.
+
+E, para requinte de facecia, isto não destoava, não chocava, apparecendo
+bruscamente e sem ligação, como um monturo immundo entre roseas flôres
+de rhetorica. Não: tinha sido _encaixado_ com uma habilidade diabolica.
+Sir William Harcourt estava accusando os conservadores de affectarem uma
+patriotica melancolia em presença dos suppostos perigos, que sob o
+regimen liberal correm os grandes principios da ordem monarchica, a
+integridade mesma da Inglaterra. E aqui perguntava-lhes, naturalmente
+n'um natural movimento de oratoria: «Porque são esses gemidos? Porque é
+essa exageração de tristeza publica? Decerto a questão da Irlanda e a do
+Egypto são graves: mas o governo de Sua Magestade sabe que as soluções
+proveitosas e gloriosas não tardarão... Nós estamos tranquillos. Eu, por
+mim, sinto-me na disposição de quem, depois de cumprir um dever
+official, tem para o recompensar o sorriso sereno e approvador da
+consciencia, etc., etc.»
+
+E justamente aqui as linhas perversas entravam naturalmente traçadas,
+desenvolvendo mais esta affirmação de contentamento intimo, mostrando a
+exuberancia de espirito d'um ministro galhofeiro, que, em presença do
+glorioso estado da cousa publica, admitte que o regosijo da nação tome a
+fórma excentrica mas justificavel, de uma tremenda bambochata, de um
+regabofe de estalar tudo... Sir William prosseguia (comprehendem bem que
+eu dou só expressões aproximativas e atenuadas; traduzir á lettra o que
+appareceu publicado no _Times_ seria arruinar para sempre os creditos da
+_Gazeta de Noticias_) Sir William prosseguia: «Eu, por mim, estou
+contente. Acho-me até capaz de uma bella folia! Porque não nos daremos
+com effeito a uma rica patuscada, com vinhaça e mulherinhas? Oh, as
+mulherinhas! Senhoras que me escutaes, arremessae chapéus e vestidos, e
+toca a pandegar e a bater um rico batuque!... _Evohé!_ Viva o deboche!
+Olé, _champanhe_! Abracemo-nos, deliremos!...» Isto é só para dar ideia:
+o que se lia no _Times_ tinha outra crueza d'expressão, outro arranque
+d'orgia!...
+
+Imaginem o effeito ao outro dia, quando milhares de numeros do _Times_,
+contendo esta abominação, penetraram n'esses recatados interiores
+inglezes, onde (segundo aqui dizem) habita o typo superior da familia
+christã. O _Times_, o mais caro dos jornaes, é a folha querida da
+aristocracia, da alta burguezia, da grande finança. Não se comprehende
+um _gentleman_ inglez, do padrão classico, sem ter logo pela manhã
+percorrido conscienciosamente o seu _Times_: é como o coração mesmo da
+Inglaterra, que elle sente um momento entre as mãos e onde verifica cada
+dia, com orgulho, um accrescimo de força, uma pulsação maior de
+vitalidade. Ordinariamente é ao almoço que se lê o _Times_: e n'essa
+manhã, vendo-se na quarta pagina, em lettras grossas, O DISCURSO DE SIR
+WILLIAM HARCOURT EM MANCHESTER, corria-se naturalmente a elle com
+curiosidade, já pelo interesse nacional, já pela sympathia que inspira
+Sir William, o seu nome historico, a solida pureza dos seus principios,
+a sua alta posição...
+
+Imaginem-se então as scenas! Aqui é uma velha e devota duqueza, cheia de
+enthusiasmo pelas questões sociaes, que se aconchega na sua rica
+poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratoria de Sir
+William--e que de repente estaca, encara o _Times_, limpa as lunetas,
+imaginando ter lido mal, torna a percorrer o periodo, passa a mão
+tremula pela face, procura anciosamente o seu frasco de saes, volta
+ainda a verificar se a não enleia uma allucinação, e, arremessando emfim
+para longe a gazeta immunda, sae da sala a passos offendidos, pensando
+comsigo que são esses os resultado de um seculo de democracia, de
+materialismo e de libertinagem!
+
+Além é um casal de noivos, que, aninhados no mesmo sophá ao pé do fogão,
+com os braços entrelaçados, precorrem o _Times_, menos para saber da
+questão no Egypto, do que para ler o _compte-rendu_ de outros casamentos
+elegantes ou as noticias de Paris, onde tencionam ir findar a sua lua de
+mel; mas encontram o discurso de Sir William, dão-lhe um olhar
+distrahido, quando de repente lhes salta d'entre as linhas o jorro
+immundo das apostrophes eroticas!
+
+N'outra casa é uma fresca e loura creaturinha de desoito primaveras,
+puro lyrio domestico, que faz a leitura do _Times_ a um velho tio
+general, tolhido de gotta, reliquia veneranda das guerras peninsulares;
+o velho escuta, pouco attento á politica do dia que detesta, mas muito
+ao encanto d'aquella voz d'oiro ao seu lado; de repente, porém, o pobre
+anjo gagueja, pára, faz-se da côr d'uma rosa, treme, a sua vergonha é
+tal que lhe saltam as lagrimas dos olhos, e foge, deixando o immundo
+_Times_ nas mãos do general assombrado:--ou então, caso peior, a doce
+rapariga, na sua candura de flôr d'estufa, não comprehende, imagina que
+_aquillo é politica_, continua a ler com a sua voz d'oiro,--e o
+veneravel tio ouve de repente sahir dos labios de botão de rosa, feitos
+só para murmurar o que ha de mais casto na musica de Weber, um enxurro
+torpe de babugens lubricas.
+
+É medonho! E uma feição curiosa do incidente é que este negro attentado
+só foi descoberto nos escriptorios do _Times_ ás onze horas da manhã:
+isto é, quando o jornal já estava distribuido em Londres, levado pelos
+trens de madrugada para toda a provincia, e pela mala de Dover para toda
+a Europa! A administração do _Times_ telegraphou logo a todos os seus
+agentes no mundo, para suspender a distribuição _e comprar por todo o
+preço_ os torpes numeros já espalhados.
+
+Só estes telegrammas custaram perto de _dois contos de reis_. Mas o
+melhor é que apenas se soube a historia da catastrophe, e que o _Times_
+comprava por todo o preço o numero maldito--esse numero tornou-se logo
+um valor, um papel de credito, base de especulação, com cotações no
+mercado, eguaes, se não superiores, aos fundos de muita nação
+civilisada. Eu sei d'um restaurante que toma regularmente quatro numeros
+do _Times_--e que vendeu os seus exemplares immundos a duas libras cada um.
+
+Realizaram-se, porém, ganhos maiores. O _Times_ não regateia, paga. E
+até hoje diz-se que em comprar essa fatal edição tem gasto já perto de
+_quarenta contos_.
+
+O autor da facecia ainda se não descobriu. É sem duvida, um monstro, e
+seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunaes
+inglezes o demoliriam, se elle apparecesse. Mas, por outro lado,
+considerando que quarenta contos são apenas um somma minima para a
+fortuna do _Times_, e que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a
+sua empolada _pruderie_ a sustar, como obscena, a menção sequer dos
+livros de Zola e de outros realistas,--eu não posso deixar de pensar,
+com laivos de regosijo, que a Providencia tem armas obliquas e terriveis!
+
+Nunca, decerto, desde a invenção da imprensa, aconteceu um jornal
+publicar, na sua melhor pagina, em letras salientes, doze linhas
+immundas de desbragada obscenidade; e ser o _Times_, o primeiro que o
+fez, o _Times_, o mais pesado, mais moroso, mais solemne, mais
+pedagogico, mais reverente de todos os jornaes que têm existido desde a
+invenção da imprensa--é, digam o que disserem, divertido.
+
+E, terminando, peço ás almas caritativas e justas uma bôa risada á custa
+do _Times_.
+
+
+
+
+ INDICE
+
+ Pag.
+ Afghanistan e Irlanda............. 1
+ Ácerca de livros.................. 15
+ O inverno em Londres.............. 33
+ O Natal........................... 45
+ Litteratura de Natal.............. 55
+ Israelismo........................ 63
+ A Irlanda e a Liga Agraria........ 77
+ Lord Beaconsfield................. 95
+ Os inglezes no Egypto............. 125
+ O Brasil e Portugal............... 207
+ A festa das creanças.............. 223
+ Uma partida feita ao _Times_...... 231
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA ***
+
+***** This file should be named 25641-8.txt or 25641-8.zip *****
+This and all associated files of various formats will be found in:
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+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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+redistribution.
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+1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
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+agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
+located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
+copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
+works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
+are removed. Of course, we hope that you will support the Project
+Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
+freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
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+keeping this work in the same format with its attached full Project
+Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.
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+what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in
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+before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
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+through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
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+
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+with the permission of the copyright holder, your use and distribution
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+terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked
+to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
+permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
+
+1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
+License terms from this work, or any files containing a part of this
+work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
+
+1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
+electronic work, or any part of this electronic work, without
+prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
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+
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+compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
+word processing or hypertext form. However, if you provide access to or
+distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
+"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
+posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
+you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
+copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
+request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
+form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
+License as specified in paragraph 1.E.1.
+
+1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
+performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
+unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
+
+1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
+access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
+that
+
+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
+ prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
+
+- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
+ you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
+ does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
+ License. You must require such a user to return or
+ destroy all copies of the works possessed in a physical medium
+ and discontinue all use of and all access to other copies of
+ Project Gutenberg-tm works.
+
+- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
+ electronic work is discovered and reported to you within 90 days
+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
+1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
+effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
+public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
+collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
+works, and the medium on which they may be stored, may contain
+"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
+corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
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+computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
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+of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
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+Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
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+fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
+LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
+PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
+TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
+LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
+INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
+DAMAGE.
+
+1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
+defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
+receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
+written explanation to the person you received the work from. If you
+received the work on a physical medium, you must return the medium with
+your written explanation. The person or entity that provided you with
+the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
+refund. If you received the work electronically, the person or entity
+providing it to you may choose to give you a second opportunity to
+receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
+
+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
+WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
+WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
+
+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
+1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
+providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd">
+<html>
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+<title>Cartas de Inglaterra</title>
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+<pre>
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+Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Cartas de Inglaterra
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+Author: José Maria Eça de Queirós
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+Release Date: May 29, 2008 [EBook #25641]
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA ***
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+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+<br>
+<br>
+<h2>Cartas de Inglaterra</h2>
+<br>
+<br>
+<div class="capa">
+<h2>Eça de Queirós</h2>
+<br>
+<br>
+<h1>Cartas de Inglaterra</h1>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<p><img src="images/lello1.png" border="0" width="75px" alt="Logotipo Lello & Irmão"></p>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<P>Porto
+<BR>
+LIVRARIA CHARDRON
+<BR>
+<small class="small-caps">de Lello &amp; Irmão&mdash;Editores</small>
+<BR>
+1905
+</div>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<div style="font-size: 0.8em;">
+<h3>Obras de EÇA de QUEIROZ</h3>
+
+<table width="90%" align="center" cellspacing="2">
+<tr><td>
+<b>O crime do padre amaro.</b> Quarta
+edição inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e
+na acção da edição primitiva. 1 grosso volume</td><td align="right">1$200</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>Os Maias.</b> Segunda edição. 2 grossos
+volumes</td><td align="right"> 2$000</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>A cidade e as Serras.</b></td><td align="right"> 800</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>O Mandarim.</b> Quarta edição. 1 volume</td><td align="right"> 500</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>O primo Basilio.</b> Quarta edição. 1 grosso volume</td><td align="right"> 1$000</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>A Reliquia.</b> Terceira edição. 1 grosso volume</td><td align="right"> 1$000</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>Contos.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>As minas de salomão.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>Correspondencia de Fradique Mendes.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>Revista de Portugal.</b> 4 grossos volumes</td><td align="right"> 12$000</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>A Illustre Casa de Ramires.</b> 1 volume</td><td align="right"> 1$000</td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>Prosas Barbaras.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr>
+
+<tr><td>&nbsp;</td><td align="right"></td></tr>
+
+<tr><td>
+<i>No prélo:</i></td><td align="right"></td></tr>
+
+<tr><td>&nbsp;</td><td align="right"></td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>Echos de Paris</b></td><td align="right"></td></tr>
+
+<tr><td>
+<b>S. Christovam</b> (inedito)</td><td align="right"></td></tr>
+</table>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<p class="centrado">Porto&mdash;IMPRENSA MODERNA
+</div>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<div id="indice">
+<h2>INDICE</h2>
+<table width="90%" cellspacing="1" align="center">
+<tr><td>&nbsp;</td><td width="4em" align="right">Pag.</td>
+<tr><td>Afghanistan e Irlanda</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_1">1</a></td>
+<tr><td>Ácerca de livros</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_15">15</a></td>
+<tr><td>O inverno em Londres</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_33">33</a></td>
+<tr><td>O Natal</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_45">45</a></td>
+<tr><td>Litteratura de Natal</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_55">55</a></td>
+<tr><td>Israelismo</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_63">63</a></td>
+<tr><td>A Irlanda e a Liga Agraria</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_77">77</a></td>
+<tr><td>Lord Beaconsfield</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_95">95</a></td>
+<tr><td>Os inglezes no Egypto</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_125">125</a></td>
+<tr><td>O Brasil e Portugal</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_207">207</a></td>
+<tr><td>A festa das creanças</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_223">223</a></td>
+<tr><td>Uma partida feita ao <i>Times</i></td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_231">231</a></td>
+</table>
+<p style="border: dotted 1px gray; font-size: 0.7em; color: gray;">Nota do transcritor: no livro impresso o índice encontra-se no fim da obra!</p>
+</div>
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+<div id="corpo">
+<span class="pagenum"><a name="pag_1">[1]</a></span>
+<H1><A NAME="SECTION00100000000000000000">
+I
+<BR>
+Afghanistan e Irlanda</A>
+</H1>
+
+<P>
+Os inglezes estão experimentando, no seu atribulado imperio da India,
+a verdade d'esse humoristico logar-commum do seculo XVIII: «A Historia
+é uma velhota que se repete sem cessar.»
+
+<P>
+O Fado ou a Providencia, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu
+os episodios da campanha do Afghanistan em 1847, está fazendo simplesmente
+uma copia servil, revelando assim uma imaginação exhausta.
+
+<P>
+Em 1847 os inglezes, «por uma razão d'Estado, uma necessidade de fronteiras
+scientificas, a segurança do imperio, uma barreira ao dominio russo
+da Asia...» e outras coisas vagas que os politicos da India rosnam
+sombriamente, retorcendo os bigodes&mdash;invadem o Afghanistan, e ahi
+vão aniquilando <span class="pagenum"><a name="pag_2">[2]</a></span> tribus seculares, desmantelando villas,
+assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de
+Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; collocam lá outro
+de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas
+e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornaes têm telegraphado
+a victoria, o exercito, acampado á beira dos arroios e nos vergeis
+de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... Assim é
+exactamente em 1880.
+
+<P>
+No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes energicos, Messias
+indigenas, vão percorrendo o territorio, e com grandes nomes de <i>Patria</i>
+e de <i>Religião</i>, prégam a guerra santa: as tribus reunem-se,
+as familias feudaes correm com os seus troços de cavallaria, principes
+rivaes juntam-se no odio hereditario contra o estrangeiro, o <i>homem
+vermelho</i>, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento
+nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho,
+a entrada da India... E quando por alli apparecer, emfim, o grosso
+do exercito inglez, á volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se
+espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito secco das
+torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquella massa
+barbara rola-lhe em cima e aniquila-o.
+
+<P>
+Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então <span class="pagenum"><a name="pag_3">[3]</a></span> os restos debandados
+do exercito refugiam-se n'alguma das cidades da fronteira, que ora
+é Ghasnat ora Candahar: os afghans correm, põem o cerco, cerco lento,
+cerco de vagares orientaes: o general sitiado, que n'essas guerras
+asiaticas póde sempre communicar, telegrapha para o viso-rei da India,
+reclamando com furor <i>reforços, chá e assucar</i>! (Isto é textual;
+foi o general Roberts que soltou ha dias este grito de gulodice britannica;
+o inglez, sem chá, bate-se frouxamente.) Então o governo da India,
+gastando milhões de libras, como quem gasta agua, manda a toda a pressa
+fardos disformes de chá reparador, brancas collinas de assucar, e
+dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos
+transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos,
+rebanhos de cavallos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa...
+Foi assim em 1847, assim é em 1880.
+
+<P>
+Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras columnas de tropa
+india, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta
+milhas por hora; d'ahi começa uma marcha assoladora, com cincoenta
+mil camelos de bagagens, telegraphos, machinas hydraulicas, e uma
+cavalgada eloquente de correspondentes de jornaes. Uma manhã avista-se
+Candahar ou Ghasnat;&mdash;e n'um momento, é aniquilado, disperso no pó
+da planicie, o pobre <span class="pagenum"><a name="pag_4">[4]</a></span> exercito afghan com as suas cimitarras
+de melodrama e as suas veneraveis colubrinas do modelo das que outr'ora
+fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Candahar está livre! Hurrah!&mdash;Faz-se
+immediatamente d'isto uma canção patriotica; e a façanha é por toda
+a Inglaterra popularisada n'uma estampa, em que se vê o general libertador
+e o general sitiado apertando-se a mão com vehemencia, no primeiro
+plano, entre cavallos empinados e granadeiros bellos como Apollos,
+que expiram em attitude nobre! Foi assim em 1847; ha-de ser assim
+em 1880.
+
+<P>
+No emtanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam
+a patria ou morriam pela <i>fronteira scientifica</i>, lá ficam, pasto
+de corvos&mdash;o que, não é, no Afghanistan, uma respeitavel imagem de
+rhetorica: ahi, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das
+ruas, comendo as immundicies, e em campos de batalha purificam o ar,
+devorando os restos das derrotas.
+
+<P>
+E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma
+canção patriotica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde
+uma linha de prosa n'uma pagina de chronica...
+
+<P>
+Consoladora philosophia das guerras!
+
+<P>
+No emtanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande victoria do
+Afghanistan»&mdash;com a certeza <span class="pagenum"><a name="pag_5">[5]</a></span> de ter de recomeçar d'aqui
+a dez annos ou quinze annos; porque nem póde conquistar e annexar
+um vasto reino, que é grande como a França, nem póde consentir, collados
+á sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanaticos, batalhadores
+e hostis. A «politica» por tanto, é debilital-os periodicamente, com
+uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades d'um grande imperio.
+Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vacca para o leite e dois
+pés d'alface para as merendas de Verão...
+
+<P>
+Outra historia melancholica é a da Irlanda. Quem não conhece as queixas
+seculares da Irlanda, da <i>Verde Erin</i>, terra de bardos e terra
+de santos, onde uma plebe conquistada, resto nobre de raça celtica,
+esmagada por um feudalismo agrario, vivendo em buracos como os servos
+gothicos, vae desesperadamente disputando á urze, á rocha, ao pantano,
+magras tiras de terra, onde cultiva, em lagrimas a batata? Todo o
+mundo sabe isto&mdash;e, desgraçadamente, esta Irlanda de poema e de novella
+é, em parte, verdadeira: além dos poucos districtos onde a agricultura
+é rica como em qualquer dos uberrimos condados inglezes, além de Cork
+ou Belfast, que têm uma industria forte&mdash;a Irlanda permanece o <i>paiz
+da miseria</i>, bem representada n'essa estampa romantica em que ella
+está, em andrajos, á beira de um charco, com o filhinho nos <span class="pagenum"><a name="pag_6">[6]</a></span>braços morrendo-lhe da falta de leite, e o cão ao lado, tão magro
+como ella, ladrando em vão por soccorro...
+
+<P>
+Os males da Irlanda, muito antigos, muito complexos, provêm, sobretudo,
+do systema semi-feudal da propriedade.
+
+<P>
+O povo irlandez é numeroso, exageradamente prolifico (nem a emigração,
+nem a morte, nem as epidemias, alliviam esta ilha muito cheia) e vive
+n'uma terra pobre, de cultura estreita, apenas no seu terço trabalhada:
+os proprietarios, lords inglezes ou escocezes, sempre ausentes das
+terras, não admittindo a despeza d'um schelling para as melhorar,
+estão em Paris, estão em Londres, comendo pecegos em janeiro, e jogando
+pelos clubs o <i>whist</i> a libra o tento: os seus procuradores e
+agentes, creaturas vorazes, sem ligação com o solo nem com a raça,
+forçados a remetter incessantemente dinheiro a SS. SS., interessados
+em conservar a procuradoria, cáem sobre o rendeiro, levantam-lhe a
+renda, forçam-n'o a vendas desastrosas, enlaçam-n'o na uzura, tributam-n'o
+feudalmente, apertam-n'o com desespero como a um limão meio secco,
+até que elle verta n'um gemido o ultimo penny. Se o miseravel este
+anno, fatigando o torrão, sustentando-se de hervas seccas, economisando
+o lume quando ha seis palmos de neve, consegue arrancar de si a somma
+<span class="pagenum"><a name="pag_7">[7]</a></span> que S. S., o Lord, reclama para offerecer uma esmeralda
+á loura Fanny ou á pallida Clementine, para o anno lá está enleado
+na divida, sem meios de comprar a semente, com uma terra exhausta
+a seus pés...
+
+<P>
+Então o procurador, de lei em punho, vem, corre, penhora-o, vende-lhe
+o catre, expulsa-o do casebre, atira-lhe mulher, creancinhas e avós
+entrevados para as pedras do caminho... E ahi vae mais um bando de
+desgraçados engrossar o lamentavel proletariado que povôa a «<i>verde
+ilha dos bardos</i>». São milhares, são milhões! Esta população, com
+o ventre vazio, os pés nús sobre a geada, volta-se então para a Inglaterra,
+a mãe Inglaterra, que tem a Lei, que tem a Força, que tem a Responsabilidade:
+a Inglaterra, commovida na sua fibra christã, volta-se para os seus
+economistas, os seus politicos: estes individuos pousam as suas vastas
+frontes nas suas vastas mãos, e arrancam das concavidades da sua sabedoria
+pharisaica esta resposta, a tenebrosa resposta da meia edade ás reclamações
+do soffrimento humano:
+
+<P>
+&mdash;Paciencia! o remedio está no ceu...
+
+<P>
+A Inglaterra, valendo-se capciosamente do clero catholico da Irlanda,
+e da religiosidade da plebe, para a manter na resignação da miseria,
+acenando-lhe com as promessas côr de ouro da bemaventurança&mdash;é um
+salutar espectaculo!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_8">[8]</a></span>Sejamos, porém, justos: a Inglaterra manda tambem, aos milhões
+de esfomeados, farinha e dois ou tres schellings: e o <i>Punch</i>
+faz-lhes a honra de lhes dedicar pilherias.
+
+<P>
+De tudo isto que resulta? Que o irlandez, vendo a fome no seu lar,
+a Inglaterra occupada com o dr. Tanner, o <i>Punch</i> muito divertido,
+e o ceu muito longe&mdash;faz uma trouxa dos seus andrajos, vae á villa
+mais proxima, apresenta-se ao comité dos <i>Fenians</i> ou á secção
+de <i>Mollie Maguire</i> e diz simplesmente:&mdash;<i>Aqui estou!...</i>
+
+<P>
+Estas duas associações secretas são terriveis e completam-se uma pela
+outra. Os <i>Fenians</i>, que estiveram um momento desorganizados,
+mas que têm hoje a prosperidade de uma instituição publica, são uma
+seita politica, com o fim claro de conquistar a independencia da Irlanda:
+o seu meio é uma futura insurreição, batalhas á luz do dia, um esforço
+heroico de raça que sacode o estrangeiro.
+
+<P>
+É evidente, portanto, que a Inglaterra não tem nada a temer d'esta
+associação: uma esquadra no canal de S. Jorge, dez mil homens desembarcados,
+e os <i>Fenians</i> serão, no estylo da canção, <i>como a herva
+dos campos depois que passou o ceifador</i>, um estendal de cousas sem
+vida. Mas não é assim com <i>Mollie Maguire</i>; esta constitue puramente
+uma conspiração: os seus estatutos, os seus fins, a sua organização,
+<span class="pagenum"><a name="pag_9">[9]</a></span> os seus chefes, tudo está envolvido n'um mysterio, que
+é o terror na Irlanda; só são claros os seus crimes. Ha um proprietario
+duro que levantou a renda? Uma noite, ou elle ou o seu procurador
+apparecem á beira de um caminho, com duas balas na cabeça. Quem foi?
+Foi <i>Mollie Maguire</i>: foi ninguem, foi a Miseria, foi a Irlanda.
+Ha um senhorio, um agente, que fez uma penhora? Á meia noite, a sua
+casa começa a arder, e é n'um momento uma ruina fumegante. Quem foi?
+<i>Mollie Maguire</i>. Houve um burguez especulador que comprou o
+casebre de um proprietario penhorado? No outro dia lá está no fundo
+de uma lagôa, com um pedregulho ao pescoço. Quem foi, coitado? <i>Mollie
+Maguire</i>. Todos os dias, n'estes ultimos mezes, são assim, dois, tres
+d'estes crimes&mdash;que têm em Inglaterra o nome de <i>agrarios</i>.
+Os tribunaes, a policia, já se não fatigam em devassas e em autos:
+para quê? <i>Mollie Maguire</i> é intangivel, <i>Mollie Maguire</i>
+é impessoal.
+
+<P>
+E se houvesse um magistrado tão desgostoso da vida que quizesse descobrir
+d'onde viera a bala, o pedregulho ou o fogo&mdash;teria certamente, horas
+depois, o que tanto parecia desejar: um punhal atravez do peito. São
+verdadeiramente os processos do Nihilismo militante: nem falta a esta
+seita aquella vaga exaltação mystica que complica o Nihilismo. Se
+<i>Mollie</i> (Mollie é o diminutivo de Maria) não é <span class="pagenum"><a name="pag_10">[10]</a></span> uma
+divindade, é pelo menos uma degeneração fetichista da divindade: é
+a tenebrosa padroeira das desforras da plebe, aquella em quem os desgraçados
+abandonados de Deus, do Deus official, do Deus da Missa, encontram
+soccorro, amizade, força&mdash;uma sorte de encarnação feminina do diabo
+do Sabbath, confidente dos servos e dos feiticeiros da meia-noite.
+
+<P>
+A estas duas associações deve juntar-se uma terceira, legal essa,
+fallando alto nas praças, com jornaes, com taboleta, vivendo sob a
+protecção da Constituição, respeitada da policia, e que se chama a
+<i>Liga da Terra</i>. O seu fim é promover, por meio de <i>meetings</i>
+e representações, uma vasta agitação, um impulsivo movimento da opinião,
+que force o parlamento inglez a reformar o systema agrario. Mas é
+realmente uma associação legal? São os seus fins tão honestamente
+moderados, tão estreitamente constitucionaes como se diz? Todo o mundo
+duvida. Na Irlanda, sempre que dois homens se reunem, conspiram: quando
+se sentem quatro, apedrejam logo a policia:&mdash;que será então quando
+reconhecerem que são duzentos mil? Além d'isso, as reclamações d'esta
+associação são de um vago singular: nada de pratico, nada de realisavel:
+apenas os velhos gritos sentimentaes da aspiração humanitaria. E,
+ao mesmo tempo, os homens, que a dirigem, são espiritos positivos
+e experimentados. Ha aqui uma contradicção assustadora. <span class="pagenum"><a name="pag_11">[11]</a></span>Sente-se que os chefes d'este movimento, sabendo bem que da Inglaterra
+nada têm a esperar, estão simplesmente, sob as apparencias da legalidade,
+organisando a insurreição. Formular um programma pratico para o parlamento
+votar, seria, na opinião d'elles, ocioso e pueril: as declamações
+verbosas em que se falle muito de <i>legalidade</i>, <i>ordem</i>,
+<i>parlamentarismo</i> bastam&mdash;para illudir a policia... E não é
+duvidoso que, n'um certo momento, <i>Fenians</i>, <i>Mollie Maguire</i>
+e <i>Liga da Terra</i> formarão um só movimento&mdash;o da revolta desesperada.
+
+<P>
+Este era o estado da Irlanda ha dois mezes, quando se deu o caso inesperado
+do <i>bill de compensação</i>. Este projecto de lei apresentado pelo
+ministro Gladstone (parte por um sentimento liberal de justiça, parte
+para agradecer os fortes serviços dos irlandezes nas ultimas eleições)
+não trazia certamente um remate aos males da Irlanda; mas, coarctando
+os abusos dos senhores, difficultando a arbitrariedade das «expulsões»,
+modificando a legislação barbara das penhoras, alliviava o trabalhador
+irlandez do ferreo calcanhar feudal que o esmaga. O <i>bill</i> passou
+entre os applausos da camara dos communs: mas escuso de acrescentar
+que a camara dos lords, essa augusta e gothica assemblêa de senhores
+semi-feudaes, o regeitou com horror, como obra execravel do liberalismo
+satanico!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_12">[12]</a></span>Veem d'ahi o resultado: os agitadores da Irlanda, os seus
+prophetas, os seus chefes apossaram-se com enthusiasmo d'esta regeição
+da camara dos lords&mdash;e utilisaram-n'a tão habilmente, como Antonio
+utilisou a tunica ensanguentada de Cesar. Foram-n'a mostrando á plebe
+indignada, por campos e aldeias, gritando bem alto: «Aqui está o que
+fizeram os lords, os vossos amos, os vossos exploradores! A primeira
+proposta justa, em bem da Irlanda, que se lhes apresenta, repellem-na!
+Querem manter-vos na servidão, na fome, no opprobrio das velhas edades,
+no estado da raça vendida! Ás armas!»
+
+<P>
+E desde então a Irlanda prepara-se ardentemente para a insurreição:
+apesar dos cruzeiros que vigiam a costa, todos os dias ha desembarques
+de armas; o dinheiro, os voluntarios affluem da America; pelos campos
+vêm-se grupos de duzentos, trezentos homens, de espingardas ao hombro,
+fazendo exercicios como regimentos em vesperas de campanha; ainda
+que seja agora a epoca das colheitas, a população não está nos campos,
+está nos <i>meetings</i>, nos clubs; e os tribunos, os agitadores,
+prodigalizam-se sem repouso. Não falta, decerto, a estes homens nem
+coragem, nem aquella eloquencia pathetica que faz passar nas multidões
+o <i>arrepio sagrado</i>. Um d'elles, Redathd, exclamava ha dias:
+
+<P>
+&mdash;Dizem-nos a cada momento: sêde justos, pagae <span class="pagenum"><a name="pag_13">[13]</a></span> ao lord,
+pagae ao senhorio! E citam-nos a palavra divina d'aquelle que disse:
+<i>Dae a Cesar o que é de Cesar!</i> Houve só um homem, Brutus, que
+deu a Cesar o que a Cesar era devido, um punhal atravez do coração!
+
+<P>
+Esta brutalidade tem grandeza. Agora imagine-se isto lançado a uma
+multidão opprimida, com os gestos theatraes d'esta raça violenta,
+de noite, n'um d'estes sinistros descampados da Irlanda, que são todos
+rocha e urze, ao clarão d'archotes, dando aquella intermittencia de
+treva e brilho que é como a alma mesma da Irlanda&mdash;e veja-se o effeito!
+
+<P>
+Em Inglaterra, mesmo, os optimistas consideram a insurreição quasi
+inevitavel para os frios do outomno. E o honesto John Bull prepara-se:
+já o ministro do interior está em Dublin, e é eminente a declaração
+da <i>lei marcial</i>... N'este ponto, radicaes e conservadores são
+unanimes: se a Irlanda se levanta, que se esmague a Irlanda! Sómente
+John Bull declara que o seu coração ha-de chorar emquanto a sua mão
+castigar... Excellente pae!
+
+<P>
+O jornal o <i>Standard</i>, o veneravel <i>Standard</i>, tinha ha
+dias uma phrase adoravel. «Se, como é de temer, a Irlanda vier a esquecer-se
+do que deve a si e á Inglaterra»&mdash;exclamava o solemne <i>Standard</i>,&mdash;«é
+doloroso pensar que no proximo inverno, para manter a integridade
+do imperio, a santidade da <span class="pagenum"><a name="pag_14">[14]</a></span> lei e a inviolabilidade da
+propriedade, nós teremos de ir, com o coração negro de dôr, mas a
+espada firme na mão, levar á Irlanda, á ilha irmã, á ilha bem amada,
+uma necessaria exterminação.»
+
+<P>
+<i>Exterminação</i> é muito: e quero crêr, que está alli, para rematar
+com uma nota grave, uma nota d'orgão, a harmonia do periodo. Mas o
+sentimento é curioso e raro: e seria um espectaculo maravilhoso vêr,
+no proximo inverno, John Bull percorrendo a Irlanda, cheio de ferocidade
+e afogado em ternura, com os olhos a escorrer de lagrimas e a sua
+bayoneta a pingar de sangue... &mdash;Ainda as fataes necessidades de
+um grande imperio! Volto ao meu desejo: um quintalejo, uma vacca,
+dois pés d'alface... E um cachimbo&mdash;o cachimbo da paz!
+
+<P>
+
+<span class="pagenum"><a name="pag_15">[15]</a></span>
+<H1><A NAME="SECTION00200000000000000000">
+II
+<BR>Ácerca de livros</A>
+</H1>
+
+<P>
+Outubro chegou, e com este mez, em que as folhas cáem, começam aqui
+a apparecer os livros, folhas ás vezes tão ephemeras como as das arvores,
+e não tendo como ellas o encanto do verde, do murmurio e da sombra.
+
+<P>
+Estamos, com effeito, em plena <i>Book-Season</i>, a estação dos livros.
+
+<P>
+Estes dous mezes, setembro e outubro (e elles merecem-no porque como
+côr, luz, repouso, são os mais simpathicos do anno) têm accumulado
+em si as mais interessantes <i>seasons</i>, as <i>estações</i> mais
+fecundas da vida ingleza.
+
+<P>
+A <i>London-Season</i>, a celebre estação de Londres, quando a Aristocracia,
+maior e menor, os <i>dez mil de cima</i>, como se dizia antigamente,
+o <i>folhado</i>, como <span class="pagenum"><a name="pag_16">[16]</a></span> se diz agora, recolhe dos parques
+e palacios do campo aos seus palacetes e jardinetes de Londres&mdash;passa-se
+em abril, junho e julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e ôca estação
+de trapos, de luvas de vinte botões, de lacaios, de champagne, de
+batota e de <i>cotillon</i>. Emquanto que as outras!...
+
+<P>
+Olhem-me para estas sabias, uteis, viris, solemnes <i>seasons</i>,
+que abundam n'estes dourados mezes de setembro e outubro. Isto sim!
+Aqui temos, por exemplo, a <i>Congress-Season</i>, a estação dos congressos.
+
+<P>
+Que espectaculo! Toda a verde superficie da Inglaterra está então,
+de norte a sul, salpicada de manchas negras. São congressos em deliberação.
+Ha-os de metaphysicos e ha-os de cosinheiros.
+
+<P>
+Aqui, duzentos individuos carrancudos e descontentes elaboram uma
+nova ordem social; além, uma multidão de sabios, acocorados, semanas
+inteiras, em torno de um objecto escuro, não pódem chegar á conclusão
+se é um tijolo vilmente recente ou uma laje da camara nupcial da rainha
+Ginevra; e adiante cavalheiros anafados e luzidios assentam a doutrina
+definitiva da engorda do leitão&mdash;esse amor!
+
+<P>
+Os congressos mais notaveis este anno fôram&mdash;o de medicina em Londres,
+a que assistiram <i>mil e tresentos</i> congressistas medicos e cirurgiões
+dos dois mundos e dos dois sexos, e onde se prometteu <span class="pagenum"><a name="pag_17">[17]</a></span>á humanidade, para d'aqui a annos, a suppressão das epidemias pelas
+vaccinas; o da <i>British Association</i>, a grande Sociedade das
+Sciencias (congresso annual celebrado este anno em York) em que o
+presidente, sir John Lubbock, esse amavel sabio que tem passado a
+existencia a estudar as civilizações inferiores dos insectos, laboriosas
+democracias de formigas, deploraveis oligarchias de abelhas&mdash;occupou-se
+d'esta vez, dando um balanço á sciencia durante os ultimos cincoenta
+annos, a mostrar algumas das estupendas habilidades d'esse outro ephemero
+insecto, o Homem: e emfim o congresso annual da Egreja, celebrado
+em Newcastle, composto de bispos, dignitarios ecclesiasticos, theologos,
+doutores em divindade, este largo clero anglicano, o mais douto e
+litterario da Europa. N'este, entre outros assumptos discutiu-se a
+<i>Influencia da Arte na vida e no pensar religioso</i>: mas, quanto
+a mim, o resultado mais nitido foi o revelar incidentalmente que a
+frequentação dos templos, em Inglaterra, diminue de um terço todos
+os dez annos, ao passo que o espirito de religiosidade cresce nas
+massas, tornando-se assim o sentimento religioso cada dia mais desprendido
+das fórmas caducas e pereciveis das religiões.
+
+<P>
+N'este momento ha outros congressos&mdash;o dos Metallurgistas, o das
+Sciencias Sociaes, o dos Telegraphistas, o Archeologico, o dos Gravadores,
+o <span class="pagenum"><a name="pag_18">[18]</a></span> dos... emfim, centenares. Até o dos <i>Browninguistas</i>.
+Não sabem o que são os <i>Browninguistas</i>? Uma vasta associação,
+tendo por fim estudar, commentar, interpretar, venerar, propagar,
+illustrar, divinisar as obras do poeta Browning. Isto, mesmo n'este
+paiz de arrebatados enthusiasmos intellectuais, me parece um pouco
+forte. Browning é sem duvida, com Shelley, Shakspeare e Milton, um
+dos quatro principes da poesia ingleza: mas tem o inconveniente de
+estar vivo. Elle proprio assiste, materialmente, com o seu paletot
+e o seu guarda chuva, ao congresso de que é objecto espiritual e assumpto:
+e fatalmente, pelo effeito mesmo da sua presença, a admiração litteraria
+tende a tornar-se idolatria pessoal, e os <i>shake hands</i> que elle
+distribue começam naturalmente a ser mais apreciados no congresso
+que os poemas que elle escreveu. Por isso mesmo que o divinisam, o
+amesquinham: não é então o grande poeta de Inglaterra, é o idolo particular
+dos <i>Browninguistas</i>, deixa assim de ser um espirito fallando
+a espiritos&mdash;para ser apenas um manipanso aterrorizando supersticiosos.
+
+<P>
+Mas, continuando com as <i>estações</i>, temos ainda a <i>Yachting-Season</i>,
+a estação nautica, das regatas, das viagens em <i>yacht</i>. Hoje
+em Inglaterra ter um <i>yacht</i> é, como entre nós montar carruagens,
+o primeiro dever social do rico ou do enriquecido, uma das fórmas
+mais triviaes do conforto luxuoso. Um <i>yacht</i> não é só <span class="pagenum"><a name="pag_19">[19]</a></span>um frágil e airoso barco de cincoenta toneladas e vela branca; póde
+ser tambem um negro e poderoso vapor de duas mil toneladas e sessenta
+homens de tripulação. N'este ultimo caso, em logar de bordejar gentilmente
+em redor das flôres e das relvas da ilha de Wight, ou de ir mergulhar
+n'essas prodigiosas paisagens marinhas do alto Norte da Escossia,
+vae dar a volta ao mundo, carregado de biblias para os pequenos patagonios
+e de champagne e d'amor para as lindas missionarias, vestidas de marinheiras.
+A vida de <i>yacht</i> tem os seus costumes especiaes, a sua etiqueta,
+a sua phraseologia, a sua moral propria, e sobretudo a sua litteratura.
+A litteratura de <i>yacht</i> é vasta&mdash;William Black, o autor das
+<i>Azas Brancas</i>, do <i>Nascer do Sol</i>, da <i>Princeza de
+Thude</i>, o seu romancista official: um paisagista maravilhoso, de resto,
+tendo na sua penna todo o vigor do pincel d'um Jules Breton.
+
+<P>
+Temos igualmente n'este mez a <i>Shooting-Season</i>, a estação da
+caça ao tiro, que abre no 1.º de setembro com uma solemnidade tal,
+e no meio de um interesse publico tão intenso, tão fremente&mdash;que
+me dá sempre ideia do que devia ter sido nas vesperas da Grande Revolução
+a abertura dos Estados Gerais. Peço perdão d'esta abominavel comparação&mdash;mas
+a carne é fraca, e eu considero esta estação sublime. É n'ella
+que se caça o <i>grouse</i>, e é durante <span class="pagenum"><a name="pag_20">[20]</a></span> ella que se come
+o <i>grouse</i>. Não sabem o que é o <i>grouse</i>? É um passaro do
+tamanho da perdiz, que vive (Deus o abençôe!) nos <i>moors</i>, ou
+descampados da Escossia... Agora deixem-me repousar um momento, e
+ficar aqui, n'um extasi manso, pensando no <i>grouse</i>, com as mãos
+cruzadas sobre o estomago, o olho enternecido, lambendo o labio...
+Não imaginem que eu sou um guloso. Mas nunca se deve fallar nas coisas
+boas sem veneração. Lord Beaconsfield, esse mestre do bom gosto, deu-nos
+o exemplo quando, tendo mencionado n'um dos seus livros o <i>ortolan</i>,
+esse outro delicioso passaro, acrescentou&mdash;que o peitinho gordo do
+<i>ortolan</i> é mais delicioso que o seio da mulher, o seu aroma
+mais perturbador que os lilazes, e o sabor da sua febra melhor que
+o sabor da verdade. Póde-se dizer o mesmo do <i>grouse</i>.
+
+<P>
+Continuando, temos a <i>Burglary-Season</i>, a estação dos assaltos
+e roubos ás casas. Esta começa tambem em setembro, quando a gente
+rica sai de Londres e deixa os seus palacetes, ou fechados, ou ao
+cuidado de um velho e somnolento guarda-portão. Os salteadores de
+Londres, corpo social tão bem organisado como a propria policia, procede
+então systematicamente, por quadrilhas disciplinadas, usando os mais
+perfeitos meios scientificos no arrombamento e no saque d'essas propriedades
+abarrotadas de cousas ricas...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_21">[21]</a></span>Temos a <i>Lecture-Season</i>, ou estação das conferencias.
+O seu nome explica-a e seria longo detalhar-lhe a organisação. Basta
+dizer que n'esta estação não ha talvez um bairro em Londres (quasi
+podia dizer uma rua), nem uma aldeia no resto do paiz, em que se não
+veja, cada noite, um sujeito, com um copo d'agua, dissertando sobre
+um assumpto, deante d'uma audiencia compacta, attenta, interessada
+e que toma notas. Os assumptos são <i>tudo</i>&mdash;desde a ideia de
+Deus até á melhor maneira de fabricar graxa. E os conferentes são
+<i>todo o mundo</i>&mdash;desde o professor Huxley até um qualquer cavalheiro,
+o senhor Fulano de Tal, que sóbe á plataforma a contar as suas impressões
+de viagem ás ilhas Fidji, ou as aptidões curiosas que observou no
+seu cão...
+
+<P>
+Ha ainda outras estações que basta enunciar: a <i>Hunting-Season</i>,
+a estação da caça á raposa (isto é todo um mundo); a <i>Cricket-Season</i>,
+a estação em que se joga o cricket,&mdash;e em que se vêm d'estes edificantes
+espectaculos: doze cavalheiros, vindos do fundo da Australia, outros
+doze partindo dos altos da Escossia, e encontrando-se em Londres a
+jogar ao desafio uma tremenda partida que dura tres dias, na presença
+arrebatada de um povo em delirio!
+
+<P>
+Temos tambem a <i>Angling-Season</i>, a estação da pesca á linha,
+instituição nobilissima a que a humanidade deve o salmão e a truta.
+É o <i>sport</i> favorito <span class="pagenum"><a name="pag_22">[22]</a></span> da alta burguezia culta, da
+magistratura, dos homens de sapiencia, d'aquela parte da velha aristocracia
+sobre que mais pesam as responsabilidades do Estado. Todo este mundo,
+de solemne respeitabilidade e de alto ceremonial&mdash;pesca á linha.
+Talvez por isso, de todos os <i>sports</i> inglezes, a pesca á linha
+é um dos que têm produzido uma litteratura mais consideravel&mdash;tão
+consideravel que a sua bibliografia, a simples enumeração dos seus
+tratados, occupa um livro de duzentas paginas! Ahi observo com respeito
+a noticia de um ponderoso estudo sobre a <i>Pesca á linha entre
+os Assyrios</i>...
+
+<P>
+Só esta semana a litteratura da pesca á linha nos deu já dois livros,
+segundo as listas: <i>A carteira de um pescador á linha</i>, <i>Pela
+beira dos rios</i>.
+
+<P>
+Temos ainda a <i>Traveling-Season</i>, a estação das viagens, quando
+o famoso <i>touriste</i> inglez faz a sua apparição no continente.
+N'esta epoca (setembro e outubro) todo o inglez que se respeita (ou
+que, não podendo em sua consciencia respeitar-se, pretende ao menos
+que o seu visinho o respeite) prepara umas dez ou doze malas e parte
+para os paizes do sol, do vinho e da alegria. Os anjos (se o não sonharam,
+como diz João de Deus) devem assistir então, do seu terraço azul,
+a um espectaculo bem divertido: toda a Inglaterra fervilhando no porto
+de Dover&mdash;e d'ahi successivamente partirem longos formigueiros de
+<i>touriste</i>, <span class="pagenum"><a name="pag_23">[23]</a></span> riscando de linhas escuras o continente,
+indo alastrar os valles do Rheno, negrejando pela neve dos Alpes acima,
+serpenteando pelos vergeis da Andaluzia, atulhando as cidades da Italia,
+inundando a França! Tudo isto são inglezes. Tudo isto traz um <i>Guia
+do Viajante</i> debaixo do braço. Tudo isto toma notas. Isto ás vezes
+viaja com a esposa, a cunhada, uma amiga da cunhada, uma conhecida
+d'esta amiga, sete filhos, seis creados, dez cães, e outros cães conhecidos
+d'estes cães; e isto paga por tudo isto sem resmungar! Não: não digo
+bem, resmungando sempre. Esta viagem de prazer passa-a quasi sempre
+o inglez a praguejar (mentalmente&mdash;porque nem a Biblia nem a respeitabilidade
+lhe permitem praguejar alto).
+
+<P>
+A verdade é que o inglez não se diverte no continente; não comprehende
+as linguas; estranha as comidas; tudo o que é estrangeiro, maneiras,
+<i>toilettes</i>, modos de pensar, o choca; desconfia que o querem
+roubar; tem a vaga crença de que os lençóes nas camas d'hotel nunca
+são limpos; o vêr os theatros abertos ao domingo e a multidão divertindo-se
+amargura a sua alma christã e puritana; não ousa abrir um livro estrangeiro
+porque suspeita que ha dentro cousas obscenas; se o seu <i>Guia</i>
+lhe affirma que na cathedral de tal ha seis columnas e se elle encontra
+só cinco, fica infeliz toda uma semana e furioso <span class="pagenum"><a name="pag_24">[24]</a></span> com o
+paiz que percorre, como um homem a quem roubaram uma columna; e se
+perde uma bengala, se não chega a horas ao comboio, fecha-se no hotel
+um dia inteiro a compôr uma carta para o <i>Times</i>, em que accusa
+os paises continentaes de se acharem inteiramente n'um estado selvagem
+e atolados n'uma putrida desmoralisação. Emfim o inglez em viagem,
+é um ser desgraçado. É evidente que eu não alludo aqui á numerosa
+gente de luxo, de gosto, de litteratura, de arte: fallo da vasta massa
+burgueza e commercial. Mas mesmo esta encontra uma compensação a todos
+os seus trabalhos de touriste quando, ao recolher a Inglaterra, conta
+aos seus amigos como esteve aqui e além, e trepou ao Monte Branco,
+e jantou n'uma <i>table-d'-hote</i> em Roma e, por Jupiter! fez uma
+sensação dos diabos, elle e as meninas!...
+
+<P>
+Que mais estações temos ainda? A <i>Speech-season</i>, a estação dos
+discursos, quando, nas ferias do parlamento, todos os homens publicos
+se espalham pelo paiz discursando, perante enormes <i>meetings</i>,
+sobre os negocios publicos. É uma das feições mais curiosas da vida
+politica em Inglaterra...
+
+<P>
+Ha outras muitas <i>estações</i> em setembro e outubro, mas não me
+lembram agora. E emfim, para não ser injusto, devo mencionar tambem
+o Outomno.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_25">[25]</a></span>&nbsp;
+
+<P>
+De todas estas, para mim, naturalmente, a mais interessante é a <i>Book-Season</i>,
+a estação dos livros.
+
+<P>
+Isto não quer dizer que fóra d'esta estação (outubro a março) se não
+publiquem livros em Inglaterra&mdash;longe d'isso, Santo Deus! Como não
+quer dizer que fóra da <i>London-Season</i> se não dance, ou fóra
+da <i>Travelling-Season</i> se não viaje. Significa simplesmente que
+as grandes casas editoras de Londres e d'Edimburgo reservam, para
+as lançar n'esta epocha as suas <i>grandes novidades</i>. Um livro
+de Darwin, um estudo de Matthew Arnold, um poema de Tennyson, um romance
+de Georges Meredith serão evidentemente guardados para a <i>estação</i>.
+De resto, durante todo o anno não s'interrompe, não cessa essa publicidade
+phenomenal, essa vasta, ruidosa, inundante torrente de livros, alastrando-se,
+fazendo pouco a pouco sobre a crosta da terra vegetal do globo, uma
+outra crosta de papel impresso em inglez.
+
+<P>
+Não sei se é possivel calcular o numero de volumes publicados annualmente
+em Inglaterra. Não me espantaria que se pudessem contar por dezenas
+de milhares. Aqui tenho eu deante de mim, no numero de ontem do <i>Spectator</i>,
+a lista dos livros lançados esta semana: <SMALL>NOVENTA E TRES OBRAS</SMALL>!
+E isto é apenas a lista do <i>Spectator</i>. Apenas o que se chama
+<span class="pagenum"><a name="pag_26">[26]</a></span> aqui <i>Litteratura Geral</i>. Não se contam as reimpressões;
+nem as edições dos classicos, em todos os formatos, desde o in-folio,
+que só um Hercules póde erguer, até ao volume miniatura, cujo typo
+reclama microscopio, e em todos os preços desde a edição que custa
+50 libras, até á que custa 50 réis: não se contam as traducções de
+livros estrangeiros, sobretudo as litteraturas da antiguidade: não
+se conta, emfim, essa incessante producção das Universidades, essa
+outra levada de gregos e latinos, de commentarios, de glossarios,
+de in-folios, que lançam de si, aos caixões, as imprensas de Clarendon.
+
+<P>
+Ha n'esta litteratura geral uma especie de que o inglez não se farta&mdash;a
+litteratura de viagens. Já não fallo nos romances: isso não constitue
+hoje uma producção litteraria, é uma fabricação industrial.
+
+<P>
+Na vida domestica ingleza, a novela tornou-se um objecto de primeira
+necessidade como a flanella ou as fazendas de algodão; e, portanto,
+toda uma população de romancistas se emprega em manufacturar este
+artigo, por grosso, e tão depressa quanto a penna póde escrever, arremessando
+para o mercado as paginas mal seccas no ancioso conflicto da concorrencia.
+
+<P>
+Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é tambem consideravel,
+e de resto bem explicavel n'uma raça expansiva e peregrinante, com
+esquadras <span class="pagenum"><a name="pag_27">[27]</a></span> em todos os mares, colonias em todos os continentes,
+feitorias em todas as praias, missionarios entre todos os barbaros,
+e no fundo d'alma o sonho eterno, o sonho amado de refazer o Imperio
+Romano. Isto produziu um outro typo de industrial das lettras&mdash;o
+prosador viajante.
+
+<P>
+Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado:
+o homem que visitava paizes longinquos, se achava em aventuras pittorescas,
+á volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a penna e ia revivendo
+esses dias n'uma agradavel rememoração de impressões e paisagens.
+Hoje não. Hoje emprehende-se a viagem unicamente para se escrever
+o livro. Abre-se o mappa, escolhe-se um ponto do Universo bem selvagem,
+bem exotico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um diccionario.
+E toda a questão está (como a concorrencia é grande) em saber qual
+é o recanto da terra sobre que ainda se não publicou livro! Ou, quando
+o paiz é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda alguma aldeola,
+algum afastado riacho sobre que se possam produzir trezentas paginas
+de prosa...
+
+<P>
+Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto do Globo um sujeito
+de capacete de cortiça, lapis na mão, binoculo a tiracollo, não pense
+que é um explorador, um missionario, um sabio colligindo floras <span class="pagenum"><a name="pag_28">[28]</a></span>raras&mdash;é um prosador inglez preparando o seu volume.
+
+<P>
+Nada elucida como um exemplo. Aqui está a lista dos livros de viagens
+publicados em Londres n'estas <i>duas ultimas semanas</i>.
+
+<P>
+É claro que eu não os li, nem sequer os enxerguei. Copio os titulos,
+sómente, da lista de dous jornaes de critica: o <i>Atheneum</i> e
+a <i>Academy</i>. Note-se que estes livros são quasi sempre bem estudados:
+dão o traço e a linha que pinta, a paysagem com a sua côr e luz, a
+cidade com o seu movimento e feições; são graphicos e são criticos;
+têm a geographia e têm a observação; e mais ou menos fazem reviver
+com o detalhe caracteristico, o povo visitado, na sua vida domestica,
+a sua religião, a sua agricultura, o seu <i>sport</i>, os seus vicios,
+a sua arte se a tem. Calcule-se, pois, a importancia d'esta litteratura,
+que se torna assim um inquerito sagaz, paciente, correcto, feito ao
+Universo inteiro.
+
+<P>
+Aqui está, com os titulos traduzidos, o que se publicou n'estes quinze
+dias: <i>A minha jornada a Medina</i>&mdash;<i>Entre os filhos de Han</i>&mdash;<i>Nas
+aguas salgadas</i>&mdash;<i>Longe, nos Pampas</i>&mdash;<i>Sanctuarios de
+Piemonte</i>&mdash;<i>O novo Japão</i>&mdash;<i>Uma visita á Abyssinia</i>&mdash;<i>Vida
+no oeste da India</i>&mdash;<i>Pelo Mahakam acima, e pelo Barita abaixo</i>&mdash;<i>A
+cavallo pela Asia Menor</i>&mdash;<i>Scenas de Ceylão</i>&mdash;<i>Atravez
+de cidades e prados</i>&mdash; <span class="pagenum"><a name="pag_29">[29]</a></span> <i>No meu Bungaló</i>&mdash;<i>As
+terras dos Matabeles</i>&mdash;<i>Fugindo para o sul</i>&mdash;<i>Terras do
+sol da meia-noite</i>&mdash;<i>Peregrinações na Patagonia</i>&mdash;<i>O
+Soudan egypcio</i>&mdash;<i>Terra dos Maggiyres</i>&mdash;<i>Atravez da Siberia</i>&mdash;<i>Notas
+do mundo do Oeste</i>&mdash;<i>Caminhos da Palestina</i>&mdash;<i>Norsk, Lapp
+e Finn</i> (onde será isto Santo Deus?!)&mdash;<i>Guerras, peregrinações
+e ondas</i> (que titulo, Deus piedoso!)&mdash;<i>A linda Athenas</i>&mdash;<i>A
+peninsula do Mar Branco</i>&mdash;<i>Homens e casos da India</i>&mdash;<i>A
+bordo do «Rapoza»</i>&mdash;<i>Sport na Crimêa e Caucaso</i>&mdash;<i>Nove
+annos de caçadas na Africa</i>&mdash;<i>Diario de uma preguiçosa na Sicilia</i>&mdash;<i>A
+leste do Jordão</i>...
+
+<P>
+Ainda ha outros, ainda ha muitos&mdash;e em quinze dias!
+
+<P>
+Seria curioso dar parallelamente a lista de poemas, livros de poesias,
+odes, balladas, tragedias, annunciados ou já publicados na primeira
+quinzena da estação; mas não tenho paciencia em revolver todo esse
+lyrismo. Ha uma «grande sensação»: o livro de Dante Rosseti, um dos
+mestres modernos: o resto é apenas um bando amoroso e triste de rouxinóes.
+
+<P>
+Não menos espessas, nem menos compactas são as listas dos livros de
+Theologia, Controversia, Exegese, etc.,&mdash;exhalando de si uma melancholia
+de cemiterio. Em metaphysica ha o costumado sortimento&mdash;macisso e
+vago, como diria Herbert Spencer. <span class="pagenum"><a name="pag_30">[30]</a></span> Em historia, biographia,
+critica, as listas bibliographicas vêm riquissimas... Emfim, ao que
+parece, é uma formidavel e grandiosa <i>estação de livros</i>. Aos
+romances, nem alludo: montões, montanhas&mdash;e monturos!
+
+<P>
+Uma pastora meio-selvagem das Ardennes, que nunca vira outro espectaculo
+mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia
+trazida das suas serranias a Pariz, quando no boulevard passava, com
+a tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzella fez-se
+branca como a cêra, e só poude murmurar n'uma beatitude suprema:
+
+<P>
+&mdash;Jesus! tanto homem!
+
+<P>
+Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridiculo d'esta pastora, e balbuciando,
+com a bocca aberta, como se chegasse tambem das Ardennes:
+
+<P>
+&mdash;Jesus! tanto livro!
+
+<P>
+Mas não é este grito, como o da pastora, natural?
+
+<P>
+O beduino do deserto d'Oeste, que, passando a Serrania Lybica, avista
+pela primeira vez, immenso, lento, enchendo um valle, o rio Nilo,
+exclama espantado:
+
+<P>
+&mdash;Allah! tanta agua!
+
+<P>
+A agua é a sua preoccupação: todas as tristezas das areias que habita
+vêm da falta da agua: mais <span class="pagenum"><a name="pag_31">[31]</a></span> que ninguem sente as maravilhas
+que a agua produz; e no seu grito ha uma timida reprehensão a Allah!
+«Tanta agua aqui, e tão pouca lá d'onde eu venho!...»
+
+<P>
+Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor
+astuto.
+<span class="pagenum"><a name="pag_32">[32]</a></span>
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_33">[33]</a></span>
+<H1><A NAME="SECTION00300000000000000000">
+III
+<BR>
+O INVERNO EM LONDRES</A>
+</H1>
+
+<P>
+Eis ahi o inverno. Já todos os dias o encontro, e, agora mesmo, lhe
+ouço fóra, na rua, sob a nevoa tristonha d'esse fim d'outubro, a voz
+dolente e vaga: não é o velho semi-deus de attributos mythologicos,
+com a barba em flocos de neve sobre o manto branco de neve, soprando
+nos dedos, e o classico feixe de lenha a tiracollo: é um rapagão enfarruscado,
+de casquete e chicote em punho, que vae conduzindo uma carroça negra
+com um forte <i>percheron</i> aos varaes, pelo macadam já endurecido
+da geada, e soltando de porta em porta, o seu pregão melancholico:
+<i>Coals! coals!</i> (carvão! carvão!)
+
+<P>
+Estão, pois, findos os dias purpureados do lindo outomno inglez! Nada
+iguala o encanto suavizador e meigo dos meados d'outubro nestes condados
+do <span class="pagenum"><a name="pag_34">[34]</a></span> Sul. Um passeio, ao meio da tarde, nas pittorescas
+margens do Severn, ou ainda ao longo do Avon, riba que a memoria de
+Shakspeare torna quasi sagrada, ou pelas collinas amaveis de Surrey,
+é o mais belo, o mais util repouso que póde ter o espirito sobresaltado,
+cançado dos livros, ou do duro movimento da vida.
+
+<P>
+Tem-se aqui alguma coisa d'aquella paz etherea, que os poetas pagãos
+sonhavam nas perspectivas ineffaveis dos Elysios: sómente a natureza
+particular do Norte, as linhas da architectura saxonia, o arranjo
+das culturas, dão a feição romantica e elegiaca que falta á paysagem
+latina.
+
+<P>
+Caminha-se n'uma luz ligeira, de um dourado triste, de um enternecimento
+quasi magoado: o verde das relvas sem fim que se pisam, verde repousado
+e adormecido sob as grandes ramagens das arvores seculares e aristocraticas,
+solemnes, isoladas, immoveis n'um recolhimento religioso, leva a alma
+insensivelmente para alguma cousa de muito alto e de muito puro: ha
+um silencio de uma extraordinaria limpidez, como o que deve haver
+por sobre as nuvens, um silencio que não existe na paysagem dos climas
+quentes, onde o labor incessante das seivas muito forte parece fazer
+um vago rumorido, um silencio que pousa no espirito com a influencia
+de uma caricia. E a cada momento são fundos encantadores <span class="pagenum"><a name="pag_35">[35]</a></span>de paysagem, de um vaporisado azul, com alguma torre d'Abbadia coberta
+de heras, que surge d'entre robles, ou uma rica avenida de parques,
+onde se entreveem vestidos claros correndo sobre as relvas, ou a historica
+architectura de um castello, de bandeira feudal na torre, que de repente
+apparece n'uma elevação, com os seus terraços de marmore escuro, os
+grandes prados onde pastam ou repousam os animaes de luxo, os faiscantes
+meandros do rio entre a verdura e sons tristes de trompa, vindos da
+profundidade dos arvoredos...
+
+<P>
+D'aqui a dias, porém, por collina e valle, só haverá a triste nevoa
+humida que dura mezes, ou a neve redemoinhando ao vento...
+
+<P>
+Esta monotonia, que começa escurecendo os campos desde novembro, vae
+causar este anno uma innovação excellente nos costumes sociaes da
+Inglaterra. Vae haver, de dezembro a maio, uma <i>estação d'inverno</i>
+em Londres.
+
+<P>
+Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de maio até aos
+primeiros dias quentes de agosto. O resto do anno, Londres é a cahida
+Palmyra ou a tenebrosa planicie do deserto da Petrêa. Ficam lá, é
+verdade, entre tres a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade
+subalterna, feita de barro villão, sem valor social em Inglaterra:
+é a humanidade que não tem castellos, nem parques <span class="pagenum"><a name="pag_36">[36]</a></span> de tres
+legoas, nem o seu nome no <i>Livro d'Ouro</i>, nem <i>yachts</i> de
+luxo para bordejar nas costas da Escossia; é a humanidade que não
+tem nas arterias o famoso <i>sangue normando</i>, esse sangue invejado,
+mais precioso que o de Christo, cantado por todos os poetas da côrte,
+e que foi importado pelos brutamontes cobertos de ferro, e pelludos
+como féras, que acompanhavam a estas ilhas Guilherme da Normandia;
+é emfim a humanidade que Carlos Stuart, o Bem-amado, chamava a <i>canalha</i>,
+e que o grande sacerdote da <i>Bella Helena</i>, o pobre Offenbac,
+designava, com tanto criterio, pelo nome de <i>vil multidão</i>:&mdash;é
+o trabalhador, o artifice, o artista, o professor, o philosopho, o
+operario, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz.
+
+<P>
+É esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade
+superior, os <i>dez mil de cima</i>, como aqui tão pittorescamente
+se diz, partem para os seus castellos, as suas <i>villas</i> á beira
+mar, ou os seus <i>yachts</i>.&mdash;Londres, apenas habitado pela turba
+abjecta, torna-se sobre a face da terra, como a lamentavel Cacilhas.
+Nenhum <i>gentleman</i> que se respeite e queira manter o seu bom
+nome social ousaria confessar que esteve em Londres em janeiro: correria
+o risco de ser tomado por um tendeiro, ou, peior, por um philosopho,
+um poeta, um d'esses seres rastejantes, vis como o lixo, sem castello
+e sem <span class="pagenum"><a name="pag_37">[37]</a></span> matilha de cães, que nenhuma <i>Lady</i> quereria
+ter no seu «rol de visitas».
+
+<P>
+Se um <i>gentleman</i>, tendo negócios instantes em Londres, é forçado
+a vir a este deserto de plebeus, guarda um <i>incognito</i> severo;
+não chegará talvez a pôr barbas postiças; mas só se arrisca pelas
+ruas no fundo escuro de um cupé com os <i>stores</i> descidos, e o
+paletot rebuçando-lhe a face. Todavia uma aventura tão poderosa poucos
+a ousam!
+
+<P>
+Pois bem, tudo isto se vae reformar! E este anno será moda passeiar
+em Piccadilly, ou florear de rosa ao peito em Pall-Mall, em pleno
+janeiro, na espessura dos nevoeiros. Esta revolução consideravel foi,
+como todas as fecundas revoluções, tramada, prégada, popularisada
+pelas mulheres.
+
+<P>
+Havia longos annos que estes anjos soffriam com impaciencia a melancholia
+da vida do campo, durante o longo inverno saxonio. Ainda, nos primeiros
+tempos, depois de deixar as glorias de Londres e os esplendores da
+<i>season</i>, a existencia era toleravel. Havia as regatas elegantes
+de Cowes; ia-se estar uma semana na ilha de Wight; depois vinham as
+festas da abertura da caça; seguia-se a epocha dos <i>yachts</i>,
+as viagens ás costas da Noruega, ás Hebbidas, ás praias elegantes
+da Normandia; depois, quando a côrte está na Escossia, vinha a caça
+do veado, os bailes de <i>gellies</i> das montanhas... Emfim, vivia-se.
+<span class="pagenum"><a name="pag_38">[38]</a></span>
+<P>
+Mas, com a chegada de dezembro, da neve, uma formidavel lei social,
+a <i>fashion</i>, obrigava os <i>dez mil de cima</i> a recolherem-se
+aos seus castellos, á solidão do campo. E ahi começava para as damas
+o tedio memoravel!
+
+<P>
+Quando se não tem um <i>chateau</i> e parque como os de Inglaterra,
+póde parecer um sonho de paraizo o viver n'essas faustosas residencias,
+entre maravilhas d'arte, accumuladas por gerações, com mobilias de
+duzentos contos, um serviço de sessenta criados, vinte cavallos na
+cocheira e um parque de trez legoas, um parque de romance, para passeiar
+sobre a neve dura quando o ceu brilha claro. Mas a desgraçada dama,
+desde o seu primeiro dente acostumada a tantos explendores, já lhes
+não encontra encanto; uma simples corrida, n'um velho fiacre de Londres,
+de loja em loja, é-lhe cem vezes mais doce.
+
+<P>
+Depois, a vida do castello é de um vasio pardo e tristonho. Os homens,
+esses, de manhã, teem a caça, os galopes furiosos, devorando prados,
+saltando sebes atraz de uma raposa espavorida, ao grito barbaro de
+<i>hally-hó!</i> Depois á noite, tomado o banho e vestida a casaca,
+tem o grog forte no <i>fumoir</i>. Mas as desgraçadas damas? Todas
+bebem grog&mdash;mas raras são as que caçam. O dia é-lhes lugubre. Uma
+burgueza, em Inglaterra, tem sempre uma occupação, mesmo nas existencias
+ricas: borda, pinta em porcellana, <span class="pagenum"><a name="pag_39">[39]</a></span> faz camisas para os
+pequenos Patagonios, ensina a ler os filhos dos caseiros, escreve
+as suas memorias ou corresponde-se com um Theologo sobre pontos difficeis
+de doutrina. Mas um dama das <i>dez mil</i> não faz nada; os seus
+grandes talentos, a <i>toilette</i>, a graça de receber, a intriga
+politica, o brilho da conversação, o <i>chic</i> esthetico, cousas
+em que prima, não lhe servem no isolamento relativo do castello, sob
+as torrentes da chuva. O seu palco natural é o salão de Londres. Alli
+no campo, nas longas galerias onde pendem as bandeiras que os seus
+antepassados tomaram em Azincourt ou Poitiers, ou, se os avósinhos
+nunca invadiram a França, as bandeiras compradas no antiquario da
+esquina, <i>Mylady</i> boceja; ou estendida n'um sofá, na sua <i>robe-de-chambre</i>
+de brocado branco de Genova, com uma novella cahida no regaço, olha
+os flocos de neve empoando os grandes carvalhos do parque...
+
+<P>
+Depois vem a noite. É o peior. Os homens que fizeram talvez cinco
+legoas de galope atraz das rapozas, ou que se estiveram adestrando
+em jogos athleticos, têm somno. De gardenia na casaca e perola negra
+na camisa, estendidos para o fundo do sofá, derreados, meio adormentados
+pelo <i>Nocturno</i> de Chopin que um anjo louro preludia ao fundo
+da sala, são tão inuteis para a <i>flirtation</i>, o espirito, a intriga,
+o amor, como se fossem empalhados. <span class="pagenum"><a name="pag_39">[39]</a></span>
+<P>
+Debalde as pobres damas fizeram uma <i>toilette</i> de duzentas libras:
+debalde resplandecem, ás mil luzes de cêra, os seus hombros de deusas.
+De nada valle. O <i>gentleman</i> anceia por deixar a sala, ir reconfortar-se
+com o seu <i>brandy and soda</i>, estirar aquelles membros que a raposa
+cançou, em lençóes bem perfumados e bem <i>bassinés</i>, e ressonar
+forte.
+
+<P>
+Esta situação era intoleravel.
+
+<P>
+E os homens mesmo soffriam. Galopar n'um cavallo de preço sobre a
+terra dura da neve, ao ladrar da matilha, por uma manhã de brisa fria&mdash;tem
+encanto. Mas póde-se isso comparar á delicia de ir tagarelar para
+o <i>club</i>, ter todas as noites trez ou quatro bailes, fazer phrases
+sobre a questão do Oriente, e ceiar com Miss Fanny, n'um quente <i>boudoir</i>
+de veludo, emquanto fóra a plebe patinha na lama de Londres?! Não,
+não se póde comparar.
+
+<P>
+E por isso veio o momento psychologico, como diz esse illustre homem
+de prosa, o snr. De Bismarck, em que <i>ladies</i> e <i>lords</i>
+concordaram que o inverno no campo era bom para os lobos; e que para
+pares de Inglaterra, Londres era preferivel. E ahi está como se vae
+ter esta cousa inesperada na vida ingleza&mdash;<i>o inverno em Londres</i>.
+
+<P>
+E, todavia, Deus sabe que elle não é agradavel, esse inverno de Londres!
+De manhã, ao acordar, tem-se deante da janella uma sombra opaca, espessa,
+parda, <span class="pagenum"><a name="pag_41">[41]</a></span> arripiadora e sinistra: é necessario fazer a barba,
+com o gaz flammejando; almoça-se com todas as velas do candelabro
+accesas, e a carruagem que nos conduz é precedida de um archote. Ao
+meio dia esta decoração de inverno muda; a sombra perde o tom pardo
+e, por gradações odiosas, ganha um amarello de óca e começa a exalar
+um vapor fetido. Respira-se mal, a roupa toma um pegajoso humido sobre
+a pelle, os edificios que nos cercam apparecem com as linhas vagas
+e chimericas das cidades malditas do Apocalypse, e o estrondo de Londres,
+este rude, tremendo estrepito, que deve lá em cima incommodar a corte
+do ceu, adquire uma tonalidade surda e roncante como um fragor n'um
+subterraneo.
+
+<P>
+Depois, á noite, outra mudança: toda esta sombra, este nevoeiro grosso,
+molle gorduroso, desfaz-se em chuva... Em chuva, digo eu? Em lama,
+em lama mal liquida, que escorre, pinga, vem babada de um ceu negro.
+
+<P>
+O gaz parece côr de sangue; como todo o mundo, para combater esta
+nevoa gelante e mortal, bebe forte e bebe seguido, ha nas ruas um
+vago vapor de alcool, que passa nos halitos: isto excita, irrita,
+impelle a turba ao vicio. O ruido intoleravel das ruas, a pressa da
+multidão violenta, o rude flammejar das vitrinas dão uma acceleração
+brutal ao sangue, uma vibração quasi dolorosa aos nervos; pensa-se
+<span class="pagenum"><a name="pag_42">[42]</a></span> com intensidade, caminha-se com impeto, deseja-se com
+furor; a besta humana inflamma-se: quer-se alguma coisa de forte e
+de animal, a lucta, o excesso, a gula, o abrasado do <i>cognac</i>,
+a paixão. Londres n'uma noite de inverno, exhala violencia e crime.
+E póde-se affirmar que em cada uma das tipoias, que, aos milhares
+e aos milhares, passam como flechas, n'um relampejar rubro de lanternas,
+vae um cidadão ou uma cidadã commettendo ou preparando-se para commetter,
+com excepção da preguiça, um dos sete peccados mortaes.
+
+<P>
+De uma coisa se póde ter a certeza: é que não ha de faltar, aos que
+vão fazer o seu inverno a Londres, <i>assumpto de cavaco</i>. Além
+dos livros que se annunciam, dos escandalos que não hão-de faltar,
+das modas que sempre se inventam, a politica, só por si, é todo um
+ramalhete; revolta certa na Irlanda; processo por alta traição dos
+chefes da <i>Liga da Terra</i>, deputados da Irlanda; nova guerra
+no Afghanistan, onde Cabul se insurreccionou; toda a Africa do Sul
+em rebellião; complicações sinistras do lado do Oriente; desintelligencias
+estridentes entre os radicaes no poder... Emfim, um encanto.
+
+<P>
+Era em circumstancias identicas que o famoso Granville, o homem das
+<i>Memorias</i>, olhando n'um começo de primavera para todos os lados
+do horizonte politico e social, e não vendo (em 1830) senão <span class="pagenum"><a name="pag_43">[43]</a></span>presagios negros de revolta, guerra, crises e perigos para a patria,
+dizia, banhado em jubilo, quasi em extasi:
+
+<P>
+&mdash;Meu Deus, que deliciosas noites se vão passar no Club!
+<span class="pagenum"><a name="pag_44">[44]</a></span>
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_45">[45]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION00400000000000000000">
+IV
+<BR>
+O NATAL</A>
+</H1>
+
+<P>
+O Natal, a grande festa domestica da Inglaterra, foi este anno triste&mdash;d'essa
+tristeza particular que offerece, por um dia de calma ardente, a praça
+deserta de uma villa pobre, ou d'essa melancholia que infundem umas
+poucas de cadeiras vazias em torno de um fogão apagado, n'uma sala
+a que se não voltará mais...
+
+<P>
+O que nos estragou o Natal, não fôram decerto as preoccupações politicas,
+apesar da sua negrura de borrasca. Nem a rebellião do Transvaal em
+que os Boeres debutaram por exterminar o 94 de linha, um dos mais
+experimentados e gloriosos regimentos da Inglaterra e que ameaça ensanguentar
+toda a Africa do Sul n'uma guerra de raças; nem a situação da Irlanda,
+que já não é governada pela Inglaterra, <span class="pagenum"><a name="pag_46">[46]</a></span> mas pelo comité
+revolucionario da <i>Liga Agraria</i>&mdash;seriam inquietações sufficientes
+para tirar o sabor tradicional ao <i>plum-pudding</i> do Natal. As
+desgraças publicas nunca impedem que os cidadãos jantem com appetite:
+e miserias da patria, emquanto não são tangiveis e se não apresentam
+sob a fórma flammejante de obuzes rebentando n'uma cidade sitiada,
+não tirarão jámais o somno ao patriota.
+
+<P>
+Não; o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. Um Natal
+como este que passamos, com um sol de uma pallidez de convalescente,
+deslizando timidamente sobre uma immensa peça de seda azul desbotada,
+um Natal sem neve, um Natal sem casacos de pelles, parece tão insipido
+e tão desconsolado como seria em Portugal a noite de S. João, noite
+de fogueiras e descantes, se houvesse no chão tres palmos de neve
+e cahisse por cima o granizo até de madrugada! Um desapontamento nacional!
+
+<P>
+Para comprehender bem o encanto da neve d'este famoso Natal inglez,
+basta examinar alguma das pinturas, gravuras ou oleografias que o
+têm popularizado.
+
+<P>
+O assumpto não varia na paysagem repetida: é sempre a mesma entrada
+d'um parque, de apparencia feudal, por vesperas do Natal, antes da
+meia-noite; o ceu pesado de neve suspensa parece uma gaze suja: e
+a perder de vista tudo está coberto da <span class="pagenum"><a name="pag_47">[47]</a></span> neve cahida, uma
+neve branca, fôfa, alta, que faz nos campos um grande silencio. Junto
+á grade do parque, uma mulher e duas creanças, atabafadas nos seus
+farrapos, com lampeões na mão, vão cantando as lôas; e ao fundo, entre
+as ramagens despidas, ergue-se o massiço castello, com as janellas
+flammejando, abrasadas da grande luz de dentro e da alegria que as
+habita.
+
+<P>
+E toda a poesia do Natal está justamente n'essas janellas resplandecendo
+na noite nevada.
+
+<P>
+Felizes aquelles para quem essas portas difficeis se abrem. Logo ao
+entrar na ante-camara os tectos, as humbreiras, os espaldares das
+cadeiras, os tropheus de caça, apparecem adornados das verduras do
+Natal, das ramagens sagradas do carvalho celtico; e pelas paredes,
+em lettras douradas ondeiam os disticos tradicionaes&mdash;<i>Merry
+Christmas! Merry Christmas! alegre Natal! alegre Natal!</i> E o mesmo
+grito se repete nos <i>shakehands</i> que se dão ao hospede.
+
+<P>
+Sob a chaminé estala e dança a grande fogueira do Natal: a sua luz
+rica faz parecer de ouro os cabellos louros, e de prata as barbas
+brancas.
+
+<P>
+Tudo está enfeitado como n'uma paschoa sagrada: dos retratos dos avós
+pendem ramos de flôres de inverno, as flôres da neve, e todas as pratas
+da casa scintillam sobre os aparadores, n'uma solemnidade patriarchal.
+Dos grandes lustres balança-se o <span class="pagenum"><a name="pag_48">[48]</a></span> ramo symbolico do <i>mistletoe</i>,
+o ramo do amor domestico: e ai das senhoras que um momento pararem
+sob a sua ramagem! Quem assim as surprehender tem direito a beija-las
+n'um grande abraço! Tambem, que voltas sabias, que estrategia complicada,
+para evitar o ramo fatidico! Mas, pobres anjos! ou se enganam ou se
+assustam, e a cada momento é sob o <i>mistletoe</i> um grito, um beijo,
+dois braços que prendem uma cinta fugitiva...
+
+<P>
+E o piano não se cala n'estas noites! É alguma velha canção ingleza,
+em que se falla de torneios e cavalleiros, ou uma dança da Escossia,
+que se baila com o gentil ceremonial do passado.
+
+<P>
+E por corredores e salas, as creanças, os bébés, com os cabellos ao
+vento, vestidos de branco e côr de rosa, correm, cantam, riem, vão
+a cada momento espreitar os ponteiros do relogio monumental, porque
+á meia-noite chega Santo Claus, o veneravel Santo Claus, que tem trez
+mil annos de edade e um coração de pomba, e que já a essa hora vem
+caminhando pela neve da estrada, rindo com os seus velhos botões,
+apoiado ao seu cajado, e com os alforges cheios de bonecos. Amavel
+Santo Claus! por um tempo tão frio, n'aquella edade, deixar a cabana
+de algodão que elle habita no paiz da Legenda, e vir por sobre ondas
+do mar e ramagens de florestas trazer a estes bébés o seu Natal!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_49">[49]</a></span>Tambem, como elles o adoram, o bom Claus! E apenas elle
+chegar, como correrão todos, em triumpho, a puxal-o para o pé do lume,
+a esfregar-lhe as decrepitas mãos regeladas, a offerecer-lhe uma taça
+de prata cheia de hidromel quente&mdash;que elle bebe d'um trago, o glutão!
+Depois abrem-se-lhe os alforges. Quantas maravilhas!...
+
+<P>
+Mas d'estes personagens que apparecem pelas consoadas, o meu predilecto
+é <i>Father Christmas&mdash;o papá Natal</i>.
+
+<P>
+Esse, porém, só póde ser admirado em toda a sua gloria, quando se
+abre a sala da ceia: então lá está sobre o seu pedestal, ao centro
+da meza&mdash;que lhe põe em torno, com os crystaes e os pratos, um amavel
+brilho d'aureola caseira. Bem vindo, papá Natal! Boas noites, papá
+Natal!
+
+<P>
+O respeitavel ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado
+de neve, as mãos escondidas nas largas mangas de frade, o olho maganão
+e jovial, esgarça a bocca n'um riso de felicidade sem fim, e as suas
+enormes barbas de algodão pendem-lhe até aos pés. Todas as creanças
+o querem abraçar, e elle não se recusa, porque é indulgente.
+
+<P>
+E quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarchal riso se escancara;
+as bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe,
+e alli está, bonacheirão e veneravel, com a importancia de <span class="pagenum"><a name="pag_50">[50]</a></span>um deus tutelar e amado, como a encarnação sacramental da alegria
+domestica.
+
+<P>
+E no emtanto fóra, na neve, as pobres creanças cantam as lôas: e com
+que vigor as cantam! É que ellas sabem que não serão esquecidas: e
+que d'aqui a pouco a grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao
+peso de toda a sorte de cousas bôas, peças de carne, empadas, vinho,
+queijos&mdash;e mesmo bonecas para os pequenos; porque Santo Claus é um
+democrata, e, se enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo
+de os vêr esvaziados no regaço dos pobres.
+
+<P>
+Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado.
+O Natal com uma lua côr de manteiga a bater n'uma terra tepida de
+Primavera torna-se apenas uma data no calendario. O lume não tem poesia
+intima; não ha lôas; Santo Claus não vem; o papá Natal parece um boneco
+insipido; não se colhe o <i>mistletoe</i>. Não ha mesmo a alegria
+de abrir a janella e pôr no rebordo, dentro d'uma malga, a ceia de
+migalhas do Natal para os pardaes e para os outros passarinhos que
+tanta fome soffrem pelas neves. Emfim, não ha Natal! Foi o que succedeu
+este anno...
+
+<P>
+Resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o
+essencial; pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto
+e se se não <span class="pagenum"><a name="pag_51">[51]</a></span> tiritou toda a noite entre quatro farrapos,
+é perfeitamente indifferente que nos castellos as damas bocejassem.
+
+<P>
+Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem, como o
+lume do salão chegue a aquecer&mdash;quando se considere que lá fóra ha
+quem regele, e quem rilhe, a um canto triste, uma codea de dois dias.
+É justamente n'estas horas de festa intima, quando pára por um momento
+o furioso galope do nosso egoismo&mdash;que a alma se abre a sentimentos
+melhores de fraternidade e de sympathia universal, e que a consciencia
+da miseria em que se debatem tantos milhares de creaturas, volta com
+uma amargura maior. Basta então vêr uma pobre creança, pasmada deante
+da <i>vitrine</i> de uma loja, e com os olhos em lagrimas para uma
+boneca de pataco, que ella nunca poderá apertar nos seus miseraveis
+braços&mdash;para que se chegue á facil conclusão que isto é um mundo
+abominavel. D'este sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas,
+findas as consoadas, o egoismo parte á desfilada, ninguem torna a
+pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionarios endurecidos,
+dignos do carcere&mdash;e a miseria continúa a gemer ao seu canto!
+
+<P>
+Os philosophos affirmam que isto ha-de ser sempre assim: o mais nobre
+de entre elles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando,
+ameaçou-n'os, <span class="pagenum"><a name="pag_52">[52]</a></span> n'uma palavra immortal, <i>que teriamos
+sempre pobres entre nós</i>. Tem-se procurado com revoluções successivas
+fazer falhar esta sinistra profecia&mdash;mas as revoluções passam e os
+pobres ficam.
+
+<P>
+N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes
+os servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque
+de Leicester está retirando annualmente, do trabalho duro que elles
+fazem, <i>quatrocentos contos de reis de renda</i>! É verdade que
+a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque de Leicester
+se arriscava a visitar o seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar,
+quatro lindas balas no craneo.
+
+<P>
+E o resultado? D'aqui a vinte annos os trabalhadores de Leicester
+estarão de novo a soffrer a fome e o frio&mdash;e o filho do duque de
+Leicester, duque elle mesmo então, voltará a arrecadar os seus quatrocentos
+contos por anno.
+
+<P>
+Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter
+um proletariado faminto n'uma burguezia farta; mas surge logo das
+entranhas da sociedade um proletariado peior. Jesus tinha razão: haverá
+sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior
+erro que jámais Deus cometeu.
+
+<P>
+Aqui estamos sobre este globo ha doze mil annos a girar fastidiosamente
+em torno do Sol e sem <span class="pagenum"><a name="pag_53">[53]</a></span> adiantar um metro na famosa <i>estrada
+do progresso e da perfectibilidade</i>: porque só algum ingenuo de provincia
+é que ainda considera <i>progresso</i> a invenção ociosa d'esses bonecos
+pueris que se chamam machinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas
+prosas laboriosas e difusas que se denominam <i>systemas sociaes</i>.
+
+<P>
+Nos dois ou trez primeiros mil annos de existencia trepámos a uma
+certa altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo
+n'uma cambalhota secular.
+
+<P>
+O typo secular e domestico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como
+uma vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito
+que o nosso organismo domestico e social. Já não fallo de gregos e
+romanos: ninguem hoje tem bastante genio para compôr um côro d'Éschylo
+ou uma pagina de Virgilio; como escultura e architectura, somos grotescos;
+nenhum millionario é capaz de jantar como Lucullus; agitavam-se em
+Athenas ou Roma mais ideias superiores n'um só dia do que nós inventamos
+n'um seculo; os nossos exercitos fazem rir, comparados ás legiões
+de Germanicus; não ha nada equiparavel á administração romana; o <i>boulevard</i>
+é uma viella suja ao lado da Via Áppia; nem uma Aspasia temos; nunca
+ninguem tornou a fallar como Demosthenes&mdash;e o servo, o escravo, essa
+miseria <span class="pagenum"><a name="pag_54">[54]</a></span> da Antiguidade, não era mais desgraçado que o
+proletario moderno.
+
+<P>
+De facto, póde-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu veneravel
+pae&mdash;o macaco: excepto em duas coisas temerosas&mdash;o soffrimento moral
+e o soffrimento social.
+
+<P>
+Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inutil: afogal-a
+n'um diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que
+o levou a poupar Noé; se não fôsse o egoismo senil d'esse patriarcha
+borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós
+hoje gosariamos a felicidade ineffavel de <i>não sermos</i>...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_55">[55]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION00500000000000000000">
+V
+<BR>
+Litteratura de Natal</A>
+</H1>
+
+<P>
+Uma das cousas encantadoras que nos traz o Natal, são esses lindos
+livros para creanças, que constituem a <i>litteratura de Natal</i>.
+
+<P>
+Não falo desses extraordinarios volumes dourados publicados pelos
+editores francezes, em encadernações decorativas como fachadas de
+cathedraes, que custam uma fortuna; contém um texto que nunca ninguem
+lê e são offerecidos ás creanças, mas realmente servem para obsequiar
+os papás. Os pobres pequenos nada gosam com esses monumentos typographicos;
+apenas se lhes permite vêr de longe as gravuras a aço, sob a fiscalização
+da mamã, que tem medo que se deteriore a encadernação; e o resplandecente
+volume orna d'ahi por deante a jardineira da sala, ao lado do candieiro
+vistoso.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_56">[56]</a></span>Em Inglaterra existe uma verdadeira litteratura para creanças,
+que tem os seus classicos e os seus inovadores, um movimento e um
+mercado, editores e genios&mdash;em nada inferior á nossa litteratura
+de homens sisudos. Aqui, apenas o bébé começa a soletrar, possue logo
+os seus livros especiaes: são obras adoraveis, que não contém mais
+de dez ou doze paginas, intercaladas de estampas, impressas em typo
+enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assumpto é
+uma historia, em seis ou sete phrases, e decerto menos complicada
+e dramatica que <i>O Conde de Monte-Christo</i> ou <i>Nana</i>; mas
+emfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catastrophe.
+
+<P>
+Tal é, para dar um exemplo, a lamentavel tragedia dos <i>Tres velhos
+sabios de Chester</i>: eram muitos velhos e muito sabios; e para discutirem
+cousas da sua sabedoria, metteram-se dentro de uma barrica, mas um
+pastor que vinha a correr atráz de uma ovelha, deu um encontrão ao
+tonel, e ficaram de pernas ao ar os tres velhos sabios de Chester!
+
+<P>
+Como estas ha milhares: a <i>Cavallgada de João Gilpin</i> é uma obra
+de genio.
+
+<P>
+Depois, quando o bébé chega aos seus oito ou nove annos, proporciona-se-lhe
+outra litteratura. Os sabios, a barrica, os trambulhões, já o não
+interessariam; vêm então as historias de viagens, de caçadas, <span class="pagenum"><a name="pag_57">[57]</a></span>de naufragios, de destinos fortes, a salutar chronica do triumpho,
+do esforço humano sobre a resistencia da natureza.
+
+<P>
+Tudo isto é contado n'uma linguagem simples, pura, clara&mdash;e provando
+sempre que na vida o exito pertence áqueles que têm energia, disciplina,
+sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espirito da creança para
+o paiz do maravilhoso:&mdash;não ha n'estas litteraturas nem fantasmas,
+nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se
+para a gente grande. E quando se falla de anjos ou de fadas é de modo
+que a creança, naturalmente, venha a rir-se d'esse lindo sobrenatural,
+e a consideral-o do genero <i>boneco</i>, como os seus proprios carneirinhos
+de algodão.
+
+<P>
+O que se faz ás vezes é animar de uma vida ficticia os companheiros
+inanimados da infancia: as bonecas, os polichinellos, os soldados
+de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existencia d'uma
+boneca honesta e infeliz: ou os soffrimentos por que passou em campanha,
+n'uma guerra longinqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta litteratura
+é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez
+a creança&mdash;mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos
+e miserias atravessaram aquelles seus amigos, os guerreiros de chumbo,
+cujas bayonetas torcidas <span class="pagenum"><a name="pag_58">[58]</a></span> ella todos os dias endireita
+com os dedos: e assim póde ficar depositado n'um espirito de creança
+um justo horror da guerra.
+
+<P>
+As lições moraes que se dão d'este modo são innumeraveis, e tanto
+mais fecundas quanto sahem da acção e da existencia dos sêres que
+ella melhor conhece&mdash;os seus bonecos.
+
+<P>
+Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze annos:
+popularisações de sciencias; descripções dramaticas do universo; estudos
+captivantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas;
+a historia; e, emfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada
+de modo que nem uma realidade muito crúa ponha no espirito tenro securas
+de misanthropia, nem uma falsa idealisação produza uma sentimentalidade
+morbida.
+
+<P>
+É no Natal, principalmente, que esta litteratura floresce. As lojas
+dos livreiros são então um paraizo. Não ha nada mais pittoresco, mais
+original, mais decorativo, que as encadernações inglezas; e as estampas,
+as côres leves e aguadas, offerecem quasi sempre verdadeiras obras
+d'arte, de graça e d'<i>humour</i>.
+
+<P>
+Não sei se no Brazil existe isto. Em Portugal, nem em tal jámais se
+ouviu fallar. Apparece uma ou outra d'essas edições de luxo, de Pariz,
+de que fallei, e que constituem ornatos de sala. A França <span class="pagenum"><a name="pag_59">[59]</a></span>possue tambem uma litteratura infantil tão rica e util como a de Inglaterra:
+mas essa Portugal não a importa: livros para completar a mobilia,
+sim; para educar o espirito, não.
+
+<P>
+A Belgica, a Hollanda, a Allemanha, prodigalisam estes livros para
+creanças; na Dinamarca, na Suecia, elles são uma gloria da litteratura
+e uma das riquezas do mercado.
+
+<P>
+Em Portugal, nada.
+
+<P>
+Eu ás vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres
+creanças. Creio que se lhes dá Filinto Elysio, Garção, ou outro qualquer
+desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação
+pela leitura.
+
+<P>
+Isto é tanto mais atroz quanto a creança portuguesa é excessivamente
+viva, intelligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portuguezes,
+só começamos a ser idiotas&mdash;quando chegamos á edade da razão. Em
+pequenos, temos todos uma pontinha de genio: e estou certo que se
+existisse uma litteratura infantil como a da Suecia ou da Hollanda,
+para citar só paises tão pequenos como o nosso, erguer-se-hia consideravelmente
+entre nós o nivel intellectual.
+
+<P>
+Em logar d'isso, apenas a luz do entendimento se abre aos nossos filhos,
+sepultamol-a sob grossas camadas de latim! Depois do latim accumulamos
+a <span class="pagenum"><a name="pag_60">[60]</a></span> rhetorica! Depois da rhetorica atulhamol-a de logica
+(de logica, Deus piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o
+monumento da camelice!
+
+<P>
+Pois bem; eu tenho a certeza que uma tal litteratura infantil penetraria
+facilmente nos nossos costumes domesticos e teria uma venda proveitosa.
+Muitas senhoras, intelligentes e pobres, se poderiam empregar em escrever
+essas faceis historias: não é necessario o genio de Zola ou de Thackeray
+para inventar o caso dos <i>tres velhos sabios de Chester</i>. Ha
+entre nós artistas, de lapis facil e engraçado, que commentariam bem
+essas aventuras n'um desenho de simples contorno, sem sombras e sem
+relevo, lavado a côres transparentes... E quantos milhares de creanças
+se fariam felizes, com esses bonitos livros&mdash;que, para serem populares
+e se poderem despedaçar sem prejuizo, devem custar menos de um tostão!
+
+<P>
+Eu bem sei que esta ideia de compôr livros para creanças faria rir
+Lisboa inteira. Tambem, não é a Lisboa que eu a offereço. Lisboa não
+se occupa d'estes detalhes.
+
+<P>
+Lisboa quer cousa superior; quer a bella estrophe lyrica, o rico drama
+em que se morre de paixão ao luar, o <i>fadinho</i> ao piano, o saboroso
+namoro de escada, a endeixa plangente, a bôa facadinha á meia noite,
+o discurso em que se cita o Golgotha, a andaluza <span class="pagenum"><a name="pag_61">[61]</a></span> de cuia&mdash;emfim,
+tudo o que o romantismo portuguez inventou de mais nobre. Educar os
+seus filhos intelligentemente, está decerto abaixo da sua dignidade.
+
+<P>
+Mas, emfim, se estas linhas animassem ahi no Brazil, ou entre a colonia
+portugueza, um escriptor, um desenhista e um editor, a prepararem
+alguns bons livros, bem engraçados, bem alegres, para os bébés&mdash;eu
+teria feito ao imperio um serviço colossal, que não sei como me poderia
+ser recompensado.
+
+<P>
+Uma bôa fazenda, de rendimento certo, n'uma provincia rica, com casa
+já mobilada e alguns cavallos na cavallariça, não seria talvez de
+mais. Se a gratidão do governo imperial quizesse juntar a isto, para
+alfinetes, um ou dois milhões em ouro, eu não os recusaria. E se me
+não quizessem dar nada, bastar-me-hia então que um só bébé se risse
+e fôsse alguns minutos feliz. Pensando bem&mdash;é esta a recompensa que
+prefiro.
+<span class="pagenum"><a name="pag_62">[62]</a></span>
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_63">[63]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION00600000000000000000">
+VI
+<BR>
+Israelismo</A>
+</H1>
+
+<P>
+As duas grandes «sensações» do mez são incontestavelmente a publicação
+do novo romance de Lord Beaconsfield, <i>Endymion</i>, e a agitação
+na Allemanha contra os Judeus. Litterariamente, pois, e socialmente
+o mez pertence aos israelitas. Este extraordinario movimento anti-judaico,
+esta inacreditavel ressurreição das coleras piedosas do seculo XVI
+é vigiada com tanto mais interesse em Inglaterra quanto aqui, como
+na Allemanha, os judeus abundam, influindo na opinião pelos jornaes
+que possuem (entre outros o <i>Daily Telegraph</i>, um dos mais importantes
+do reino), dominando o commercio pelas suas casas bancarias e em certos
+momentos mesmo governando o Estado pelo grande homem da sua raça,
+o seu propheta maior, o proprio Lord Beaconsfield. Aqui, decerto,
+<span class="pagenum"><a name="pag_64">[64]</a></span> estamos longe de vêr desencadear um odio nacional, uma
+perseguição social contra os judeus; mas ha sufficientes symptomas
+de que o desenvolvimento firme d'este Estado israelita dentro do Estado
+christão começa a impacientar o inglez. Não vejo, por exemplo, que
+o que se está passando na Allemanha, apesar de exhalar um odioso cheiro
+d'auto-de-fé, provoque uma grande indignação da imprensa liberal de
+Londres: e já mesmo um jornal da auctoridade do <i>Spectator</i> se
+vê forçado a attenuar, perante os graves protestos da colonia israelita,
+artigos em que descrevera os judeus como uma corporação isolada e
+egoista, á semelhança das communidades catholicas, trabalhando só
+no mesmo interesse, encerrando-se na força da sua tradição e conservando
+sympathias e tendencias manifestamente hostis ás do estado que os
+tolera. Tudo isto é já desagradavel.
+
+<P>
+Mas que diremos do movimento na Allemanha? Que em 1880, na sabia e
+tolerante Allemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhauer, com
+os professores Strauss e Hartmann, vivos e trabalhando, se recomece
+uma campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador
+Maximiliano estivesse ainda, do seu acampamento de Padua, decretando
+a destruição da lei Rabbinica e ainda prégasse em Colonia o furioso
+<i>Grão-de-Pimenta</i>, geral dos dominicanos&mdash;é facto para ficar
+de bocca aberta <span class="pagenum"><a name="pag_65">[65]</a></span> todo um longo dia de Verão. Porque emfim,
+sob fórmas civilizadas e constitucionaes (petições, <i>meetings</i>,
+artigos de revista, pamphletos, interpellações) é realmente a uma
+perseguição de judeus que vamos assistir, das boas, das antigas, das
+Manuelinas, quando se deitavam á mesma fogueira os livros do Rabbino
+e o proprio Rabbino, exterminando assim economicamente, com o mesmo
+feixe de lenha, a doutrina e o doutor.
+
+<P>
+E é curioso e edificante espectaculo vêr o veneravel professor Virchow,
+erguendo-se no parlamento allemão, a defender os judeus, a sabedoria
+dos livros hebraicos, as synagogas, asylo do pensamento durante os
+tempos barbaros&mdash;exactamente como o illustre legista Roenchlin os
+defendia nas perseguições que fecharam o seculo XV!
+
+<P>
+Mas o mais extraordinario ainda é a attitude do Governo allemão: interpellado,
+forçado a dar a opinião official, a opinião d'estado sobre este rancôr
+obsoleto e repentino da Allemanha contra o judeu, o governo declara
+apenas, com labio escasso e secco, «<i>que não tenciona por ora
+alterar a legislação relativamente aos israelitas</i>»! Não faltaria
+com effeito mais que vêr os ministros do imperio, philosophos e professores,
+decretando, á D. Manuel, a expulsão dos judeus, ou restringindo-lhes
+a liberdade civil até os isolar em viellas escuras, fechadas por correntes
+de <span class="pagenum"><a name="pag_66">[66]</a></span> ferro, como nas judiarias do <i>Ghuetto</i>. Mas uma
+tal declaração não é menos ameaçadora. O estado dá a entender apenas
+que a perseguição não ha-de partir da sua iniciativa: não tem, porém,
+uma palavra para condemnar este estranho movimento anti-semitico,
+que em muitos pontos é presentemente organisado pelas suas proprias
+auctoridades.
+
+<P>
+Deixa a colonia judaica em presença da irritação da grossa população
+germanica&mdash;e lava simplesmente as suas mãos ministeriaes na bacia
+de Poncio Pilatos.
+
+<P>
+Não affirma sequer que ha-de fazer respeitar as leis que protegem
+o judeu, cidadão do imperio; tem apenas a vaga tenção, vaga como a
+nuvem da manhã, de as não alterar <i>por ora</i>!
+
+<P>
+O resultado d'isto é que n'uma nação em que a sociedade conservadora
+fórma como um largo batalhão, pensando o que lhe manda a «ordem do
+dia» e marchando em disciplina, á voz do coronel,&mdash;cada bom allemão,
+cada patriota, vae immediatamente concluir d'esta linguagem ambigua
+do governo que, se a côrte, o estado-maior, os feld-marechaes, o senhor
+de Bismarck, todo esse mundo venerado e obedecido não vêem o odio
+ao judeu com enthusiasmo, não deixam, todavia, de o approvar em seus
+corações christãos... E o novo movimento vae certamente receber, d'aqui,
+um impulso inesperado.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_67">[67]</a></span>Que digo eu? Já recebeu. Apenas se soube a resposta do
+ministerio, um bando de mancebos, em Leipzig, que se poderiam tomar
+por frades dominicanos mas que eram apenas philosophos estudantes,
+andaram expulsando os judeus das cervejarias, arrancando-lhes assim
+o direito individual mais caro e mais sagrado ao allemão: o direito
+á cerveja!
+
+<P>
+Mas d'onde provem este odio ao judeu? A Allemanha não quer, de certo,
+começar de novo a vingar o sangue precioso de Jesus. Ha já tanto tempo
+que essas cousas dolorosas se passaram!... A humanidade christã está
+velha e, portanto, indulgente: em desoito seculos esquece a affronta
+mais funda. E infelizmente hoje já ninguem, ao lêr os episodios da
+Paixão, arranca furiosamente da espada, como Clovis, gritando, com
+a face em pranto:
+
+<P>
+&mdash;Ah, infames! Não estar eu lá com os meus Francos!
+
+<P>
+Além d'isso, este movimento é organizado pela burguezia, e as classes
+conservadoras da Allemanha são muito juridicas, para não approvarem,
+no segredo do seu pensamento, o supplicio de Jesus. Dada uma sociedade
+antiga e prospera, com a sua religião official, a sua moral official,
+a sua litteratura official, o seu sacerdocio, o seu regimen de propriedade,
+a sua aristocracia e o seu commercio&mdash;que se ha-de fazer a um inspirado,
+a um revolucionario, que apparece <span class="pagenum"><a name="pag_68">[68]</a></span> seguido d'uma plébe
+tumultuosa, prégando a destruição d'essas instituições consagradas
+á fundação de uma nova ordem social sobre a ruina d'elas e, segundo
+a expressão legal, <i>excitando o odio dos cidadãos contra o Governo</i>?
+Evidentemente puni-lo.
+
+<P>
+Pede-o a lei, a ordem, a razão de Estado, a salvação publica e os
+interesses conservadores. É justamente o que a Allemanha, com muita
+razão, faz aos seus socialistas, a Karl Marx e a Bebel. Ora, estes
+maus homens não querem fazer na Allemanha contemporanea uma revolução,
+de certo, mais radical que a que Jesus emprehendeu no mundo semitico.
+É verdade que o Nazareno era um Deus: para nós, certamente, humanidade
+privilegiada, que o soubemos amar e comprehender:&mdash;mas em Jerusalem,
+para o doutor do templo, para o escriba da lei, para o mercador do
+bairro de David, para o proprietario das cearas que ondulavam até
+Bethlem, para o centurião severo encarregado da ordem&mdash;Jesus era
+apenas um insurrecto.
+
+<P>
+E se Bismarck estivesse de toga, no pretorio, sobre a cadeira curul
+de Caiphás, teria assignado a sentença fatal tão serenamente como
+o dito Caiphás, certo que n'esse momento salvava a sua patria da anarchia.
+Os conservadores de Jerusalem foram logicos e legaes, como são hoje
+os de Berlim, de S. Petersburgo ou de Vienna: no mundo antigo, <span class="pagenum"><a name="pag_69">[69]</a></span>como agora, havia os mesmos interesses santos a guardar. Que diabo!
+é indispensavel que a sociedade se conserve nas suas largas bases
+tradicionaes: e outr'ora, como hoje, a salvação da ordem é a justificação
+dos supplicios.
+
+<P>
+É possivel que este goso, que nós, conservadores, temos hoje, de triturar
+os Messias socialistas, encarcerar os Proudhon, mandar para a Siberia
+os Bakounine, e crivar de multas os Felix Pyat&mdash;venha a custar caro
+a nosso netos. Com o andar dos tempos, todo o grande reformador social
+se transforma pouco a pouco em Deus: Zoroastro, Confucio, Mahomet,
+Jesus, são exemplos recentes! As fórmas superiores do pensamento têm
+uma tendencia fatal a tornar-se na futura lei revelada: e toda a philosophia
+termina, nos seus velhos dias, por ser religião. Augusto Comte já
+tem altares em Londres; já se lhe reza. E assim como hoje exigimos
+capellas aos Santos Padres, aos que foram os auctores divinos, os
+nobres criadores do catholicismo, talvez um dia, quando o socialismo
+fôr religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamparina
+na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon de
+oculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas pelles russas, Karl
+Marx apoiado ao cajado symbolico do pastor d'almas.
+
+<P>
+Como a civilização caminha para o oeste, isto <span class="pagenum"><a name="pag_70">[70]</a></span> passar-se-ha
+ai para o seculo XXVIII, na Nova Zelandia ou na Australia, quando
+nós, por nosso turno, fôrmos as velhas raças do Oriente, as nossas
+linguas idiomas mortos, e Pariz e Londres montões de columnas truncadas
+como hoje Palmyra e Babylonia, que o zelandez e o australiano virão
+visitar, em balão, com bilhete de ida e volta... Logicamente, então,
+como são detestados hoje na Allemanha os herdeiros dos que mataram
+Jesus&mdash;só haverá repulsão e odio pelos descendentes de nós outros,
+que estamos encarcerando Bakounine ou multando Pyat. E como toda a
+religião tem um periodo de furor e exterminio, esses nossos pobres
+netos serão perseguidos, passarão ao estado de raça maldita e morrerão
+nos supplicios... <i>C'est raide!</i>
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Mas voltemos á Allemanha.
+
+<P>
+Ainda que o Pedro Ermita d'esta nova crusada constitucional seja um
+sacerdote, o Revd. Streker, capellão e prégador da côrte, é evidente
+que ella não tira a sua força da paixão religiosa. As cinco chagas
+de Jesus nada têm que vêr com estas petições que por toda a parte
+se assignam, pedindo ao governo que não permitta aos judeus adquirirem
+propriedades, que não sejam admittidos aos cargos publicos, e outras
+extravagancias gothicas! O motivo <span class="pagenum"><a name="pag_71">[71]</a></span> do furor anti-semitico
+é simplesmente a crescente prosperidade da colonia judaica, colonia
+relativamente pequena, apenas composta de 400.000 judeus; mas que
+pela sua actividade, a sua pertinacia, a sua disciplina, está fazendo
+uma concorrencia triumphante á burguezia allemã.
+
+<P>
+A alta finança e o pequeno commercio estão-lhe igualmente nas mãos:
+é o judeu que empresta aos Estados e aos principes, e é a elle que
+o pequeno proprietario hypoteca as terras. Nas profissões liberais
+absorve tudo: é elle o advogado com mais causas e o medico com mais
+clientella: se na mesma rua ha dois tendeiros, um allemão e outro
+judeu&mdash;o filho da Germania ao fim do anno está fallido, o filho d'Israel
+tem carruagem! Isto tornou-se mais frizante depois da guerra: e o
+bom allemão não póde tolerar este espectaculo do judeu engordando,
+enriquecendo, reluzindo, emquanto elle, carregado de louros, tem de
+emigrar para a America á busca de pão.
+
+<P>
+Mas se a riqueza do judeu o irrita, a ostentação que o judeu faz da
+sua riqueza enlouquece-o de furor. E, n'este ponto, devo dizer que
+o allemão tem razão. A antiga legenda do israelita, magro, esguio,
+adunco, caminhando cosido com a parede, e coando por entre as palpebras
+um olhar turvo e desconfiado&mdash;pertence ao passado. O judeu hoje é
+um <span class="pagenum"><a name="pag_72">[72]</a></span> gordo. Traz a cabeça alta, tem a pança ostentosa e
+enche a rua. É necessario vêl-os em Londres, em Berlim, ou em Vienna:
+nas menores cousas, entrando em um café ou occupando uma cadeira no
+theatro, têm um ar arrogante e ricaço, que escandalisa. A sua pompa
+espectaculosa de Salomões <i>parvenús</i> offende o nosso gosto contemporaneo,
+que é sobrio. Fallam sempre alto, como em paiz vencido, e em um restaurante
+de Londres ou de Berlim nada ha mais intoleravel que a gralhada semitica.
+Cobrem-se de joias, todos os arreios das carruagens são de oiro, e
+amam o luxo grosseiro e vistoso. Tudo isto irrita.
+
+<P>
+Mas o peior ainda, na Allemanha, é o habil plano com que fortificam
+a sua prosperidade e garantem a sua influencia&mdash;plano tão habil que
+tem um sabor de conspiração: na Allemanha, o judeu, lentamente, surdamente,
+tem-se apoderado das duas grandes forças sociaes&mdash;a Bolsa e Imprensa.
+Quasi todas as grandes casas bancarias da Allemanha, quasi todos os
+grandes jornaes, estão na posse do semita. Assim, torna-se inatacavel.
+De modo que não só expulsa o allemão das profissões liberais, o humilha
+com a sua opulencia rutilante, e o traz dependente pelo capital; mas,
+injuria suprema, pela voz dos seus jornaes, ordena-lhe o que ha-de
+fazer, o que ha-de pensar, como se ha-de governar e com que se ha-de
+bater!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_73">[73]</a></span>Tudo isto ainda seria supportavel se o judeu se fundisse
+com a raça indigena. Mas não. O mundo judeu conserva-se isolado, compacto,
+inacessivel e impenetravel. As muralhas formidaveis do templo de Salomão,
+que fôram arrasadas, continuam a pôr em torno d'elle um obstaculo
+de cidadelas. Dentro de Berlim ha uma verdadeira Jerusalem inexpugnavel:
+ahi se refugiam com o seu Deus, o seu livro, os seus costumes, o seu
+Sabbath, a sua lingua, o seu orgulho, a sua seccura, gosando o ouro
+e desprezando o christão. Invadem a sociedade allemã, querem lá brilhar
+e dominar, mas não permittem que o allemão meta sequer o bico do sapato
+dentro da sociedade judaica. Só casam entre si; entre si, ajudam-se
+regiamente, dando-se uns aos outros milhões&mdash;mas não favoreceriam
+com um troco um allemão esfomeado; e põem um orgulho, um coquetismo
+insolente em se differençar do resto da nação em tudo, desde a maneira
+de pensar até á maneira de vestir. Naturalmente, um exclusivismo tão
+accentuado é interpretado como hostilidade&mdash;e pago com odio.
+
+<P>
+Tudo isto, no emtanto, é a <i>lucta pela existencia</i>. O judeu é
+o mais forte, o judeu triumpha. O dever do allemão seria exercer o
+musculo, aguçar o intellecto, esforçar-se, puxar-se para a frente
+para ser, por seu turno, o mais forte. Não o faz: em logar d'isso,
+volta-se miseravelmente, covardemente, <span class="pagenum"><a name="pag_74">[74]</a></span> para o governo
+e peticiona, em grandes rolos de papel, que seja expulso o judeu dos
+direitos civis, porque o judeu é rico, e porque o judeu é forte.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+O Governo, esse esfrega as mãos, radiante. Os jornaes inglezes não
+comprehendem a attitude do sr. de Bismarck, approvando tacitamente
+o movimento anti-judaico. É facil de perceber; é um rasgo de genio
+do chanceller. Ou pelo menos uma prova de que lê com proveito a Historia
+da Allemanha.
+
+<P>
+Na meia idade, todas as vezes que o excesso dos males publicos, a
+peste ou a fome, desesperava as populações; todas as vezes que o homem
+escravisado, esmagado e explorado, mostrava signaes de revolta, a
+egreja e o principe apressavam-se a dizer-lhe: «Bem vemos, tu soffres!
+Mas a culpa é tua. É que o judeu matou Nosso Senhor e tu ainda não
+castigaste sufficientemente o judeu.» A populaça então atirava-se
+aos judeus: degolava, assava, esquartejava, fazia-se uma grande orgia
+de supplicios; depois, saciada, a turba reentrava na tréva da sua
+miseria a esperar a recompensa do Senhor.
+
+<P>
+Isto nunca falhava. Sempre que a egreja, que a feudalidade, se sentia
+ameaçada por uma plébe desesperada de canga dolorosa&mdash;desviava
+o golpe de si e dirigia-o contra o judeu.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_75">[75]</a></span>Quando a besta popular mostrava sêde de sangue&mdash;servia-se
+á canalha sangue israelita.
+
+<P>
+É justamente o que faz, em proporções civilizadas, o sr. de Bismarck.
+A Allemanha soffre e murmura: a prolongada crise commercial, as más
+colheitas, o excesso de impostos, o pesado serviço militar, a decadencia
+industrial, tudo isto traz a classe media irritada. O povo, que soffre
+mais, tem ao menos a esperança socialista; mas os conservadores começam
+a vêr que os seus males vêm dos seus idolos.
+
+<P>
+Para o calmar e occupar, o que mais serviria ao chanceller seria uma
+guerra, mas nem sempre se póde inventar uma guerra, e começa a ser
+grave encontrar em campo a França preparada, mais forte que nunca,
+com os seus dois milhões de bons soldados, a sua fabulosa riqueza,
+riqueza inconcebivel, que, como dizia ha dias a <i>Saturday Review</i>,
+é um phenomeno inquietador e difficil d'explicar.
+
+<P>
+Portanto, á falta d'uma guerra, o principe de Bismarck distrahe a
+attenção do allemão esfomeado&mdash;apontando-lhe para o judeu enriquecido.
+Não allude naturalmente á morte de Nosso Senhor Jesus Christo. Mas
+falla nos milhões do judeu e no poder da Synagoga. E assim se explica
+a estranha e desastrosa declaração do governo.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_76">[76]</a></span>&nbsp;
+
+<P>
+Da outra «sensação», o romance de Lord Beaconsfield, <i>Endymion</i>,
+não me resta, n'esta carta, espaço para rir. Figuram n'elle, sob nomes
+transparentes, Beaconsfield, elle proprio, Napoleão III, o principe
+de Bismarck, o cardeal Manning, os Rothchilds, a imperatriz Eugenia,
+duquezas, lords, marechaes... emfim um ramalhete de flôres, pelo qual
+o editor Longman pagou <i>cincoenta e quatro contos de reis</i> fortes.
+
+<P>
+Jovens de lettras, meus amigos, ponde vossos olhos n'este exemplo
+de ouro! Sê prudente, mancebo; nunca, ao entrar na carreira litteraria,
+publiques poema ou novella sem a antecipada precaução de ter sido
+durante alguns annos&mdash;primeiro ministro de Inglaterra!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_77">[77]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION00700000000000000000">
+VII
+<BR>
+A Irlanda e a Liga Agraria</A>
+</H1>
+
+<P>
+É necessario fallar da Irlanda, fallar da <i>Liga Agraria</i>, fallar
+de Parnell...
+
+<P>
+Ha seis mezes que este homem, esta associação, essa ilha inquieta,
+são o cuidado supremo, a preoccupação pungente da Inglaterra e de
+tudo o que em Inglaterra pensa, desde os homens de Estado até aos
+caricaturistas. E dentro em breve o sentimento europeu, o sentimento
+universal, vae-se exaltar pela <i>questão da Irlanda</i>, como outr'ora
+pela <i>questão da Polonia</i>.
+
+<P>
+A questão da Polonia! oh saudosos dias passados! Foi esse um dos meus
+primeiros enthusiasmos! N'esse tempo, ser polaco era synonimo de ser
+heroe: e a fórma mais usual da paixão, n'uma alma de vinte annos,
+não consistia no desejo de se subir ao balcão de Julieta, mas de partir
+e ir tomar as armas pela Polonia.<span class="pagenum"><a name="pag_78">[78]</a></span> Em Coimbra, sempre que
+nos reuniamos mais de quatro amigos, faziamos logo esse projecto,
+gritando: &mdash;<i>Viva a Polonia!</i> Os jornaes transbordavam de poemas
+á Polonia e de injurias ao Urso do Norte! Empenhavam-se batinas e
+compendios para soccorrer a Polonia, em subscripções enthusiasticas.
+Em beneficio da Polonia eu representei muito melodrama em que ora,
+virgem trahida e vestida de branco, soluçava com as minhas tranças
+soltas&mdash;ora, traidor, soltando gargalhadas cynicas, cravava um ferro
+no peito de Condé!
+
+<P>
+Por fim não eramos mais insensatos do que o povo de Paris em 1848,
+marchando em procissão a reclamar do governo provisorio a libertação
+da Polonia. «Mas é uma guerra com a Russia, é um conflicto europeu!»
+diziam os prudentes. E os enthusiastas respondiam: «Não tem duvida;
+a França é o Messias, é a salvadora dos opprimidos: a França é o Christo
+das nações; sendo necessario, deve morrer por ellas.»
+
+<P>
+Mas desde 1848 muita agua tem passado sob as pontes, como dizem em
+Paris: e mesmo muito sangue.
+
+<P>
+Por estes tempos de <i>opportunismo</i> e de <i>naturalismo</i>, a
+pobre Irlanda não inspirará jámais o culto piedoso que votamos outr'ora
+á Polonia.
+
+<P>
+De resto a Polonia e a Irlanda constituem dois <span class="pagenum"><a name="pag_79">[79]</a></span> casos differentes.
+É certo, porém, que vistos de longe, atravéz da nevoa lacrimosa da
+sentimentalidade, offerecem similitudes. A Irlanda póde talvez considerar-se
+uma Polonia constitucional: ha aqui como na Polonia uma raça opprimida,
+cujo solo foi dividido entre os grandes vassalos, as familias historicas
+da nação conquistadora, e que desde então tem permanecido em servidão
+agraria. Sómente na Irlanda o arbitrario e os abusos, que esta situação
+origina, são recobertos pelo regimen parlamentar de um bello verniz
+de legalidade: e a Irlanda soffre as miserias de um paiz vencido e
+explorado&mdash;mas dentro das fórmas constitucionaes.
+
+<P>
+O irlandez parece-se com o polaco em certos pontos: são ambos arrebatados,
+imprudentes, espirituosos, generosos e poetas. Como o Polaco, o irlandez
+catholico odeia o conquistador, sobretudo por elle ser heretico de
+nacionalidade, misturando com o odio politico o conflicto de religião.
+Como na Polonia, ha na Irlanda a legenda patriotica da independencia,
+das revoltas suffocadas, dos agitadores heroicos, legenda que falla
+á imaginação popular tanto como a mesma religião, inspirando eguaes
+fanatismos, de tal sorte que o irlandez é tão devoto dos seus santos
+como dos seus patriotas; como o polaco despreza o russo, assim o irlandez
+olha o anglo-saxonio como um barbaro e um estupido e tem por <span class="pagenum"><a name="pag_80">[80]</a></span>elle toda a antipatia desdenhosa que uma raça de improvisadores póde
+ter por uma raça de criticos e de analistas. Na ordem social, como
+na ordem domestica, ha entre a Polonia e a Irlanda outras curiosas
+afinidades. A ultima táctica da Irlanda, mesmo, é imitada da Polonia:
+a Irlanda vae apelar para a Europa e é Victor Hugo quem fallará em
+nome dela, n'um manifesto com o titulo de Opressor e Oprimido.
+
+<P>
+Mas a Inglaterra realmente não se parece com a Russia: nem mesmo atravéz
+da nevoa da sensibilidade, atravez da paixão pela causa da Irlanda,
+o mais esclarecido dos liberalismos póde ser confundido com o mais
+boçal dos despotismos. E todavia a Inglaterra, para não perturbar
+os interesses tyrannicos d'um milhar de ricos proprietarios, deixa
+na miseria quatro milhões de homens. Tem todo o territorio irlandez
+occupado militarmente. Apenas um patriota começa a ter influencia
+na Irlanda, prende o patriota. Quando a eloquencia dos deputados irlandezes
+se torna inquietadora, abafa-a, quebrando sem escrupulos uma tradição
+parlamentar de seculos. Vae governar a Irlanda pela <i>Lei marcial</i>,
+como qualquer czar. E, para suspender os planos da <i>Liga Agraria</i>,
+viola os segredos das cartas.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_81">[81]</a></span>Esta questão da Irlanda apresenta-se tão complexa, tão
+confusa como o proprio chaos antes da grande façanha de Jehovah. Na
+Irlanda começa por haver tres nações distinctas com interesses contradictorios:
+os irlandezes catholicos, os irlandezes protestantes ou <i>orangistas</i>,
+os inglezes e proprietarios escocezes. A questão da propriedade é
+sem duvida a essencial: mas existem outras, a questão religiosa, a
+questão policial, a questão judicial, a questão municipal, etc., etc.
+E sobre cada uma d'estas questões é difficil achar dois irlandezes
+de accordo. Cada aldeia se torna assim um campo de batalha: e, como
+são eloquentes e sarcasticos, o grande fluxo labial, a paixão do epigramma
+amplificam e azedam as dissensões.
+
+<P>
+Mesmo dentro da egreja catholica, que deveria conservar a tradicção
+da Unidade&mdash;tumultua a discordia: o clero parochial está em lucta
+com os dignitarios episcopaes: e é raro que o clero de um condado
+não divirja, de sentimentos e de predica, com o clero do condado visinho.
+No mundo dos patriotas revolucionarios não existe uma harmonia melhor:
+a <i>Liga Agraria</i> não aceita os <i>Fenians</i>, e os <i>Fenians</i>
+abominam as tendencias parlamentares dos <i>Home-rulers</i>: e dentro
+mesmo do partido dos <i>Home-rulers</i> ha <span class="pagenum"><a name="pag_82">[82]</a></span> democratas
+e conservadores. É um numeroso conflicto por toda a pobre Irlanda.
+
+<P>
+Os irlandezes dizem, porém, que se lhes fosse dada a autonomia, horas
+depois de declarada a Republica Irlandeza, todas estas questões se
+resolveriam de per si e o paiz seria como um mar que amansa e fica
+em equilibrio.
+
+<P>
+Até agora, porém, essa falta de unidade é adduzida justamente como
+evidencia dos perigos que teria essa autonomia.
+
+<P>
+Os inglezes pensam sinceramente que no momento em que a Irlanda sahisse
+de sob a tutela do bom senso e do saber inglez, no instante que essa
+raça impressionavel, excitada, fanatica e pouco culta fosse abandonada
+a si mesma, começaria uma guerra civil, uma guerra religiosa, differentes
+guerras agrarias, que bem depressa fariam da Verde Erin um montão
+de ruinas n'uma poça de sangue.
+
+<P>
+Se os irlandezes se não entendem bem sobre os <i>males da Irlanda</i>,
+os inglezes comprehendem-se menos ácerca dos <i>remedios para a
+Irlanda</i>. E a confusão em que se está provém principalmente da abundancia
+da discussão. Não ha villota, ou mesmo aldeia d'Inglaterra, que não
+tenha um jornal do tamanho da <i>Gazeta de Noticias</i>, com oito
+paginas e typo cerrado. E d'alto a baixo esta vastidão de papel, desde
+que começou a agitação da Liga Agraria, é <span class="pagenum"><a name="pag_83">[83]</a></span> occupada por
+estudos e artigos sobre a Irlanda. Multiplique-se isto pelas tres
+ou quatro mil gazetas que a pobre Inglaterra nutre sobre a sua epiderme:
+juntem-se-lhe os artigos dos Semanarios, dos Quinzenarios, das Revistas
+e dos Magazines, os pamphletos, as brochuras, os ensaios inumeraveis
+como as estrellas do céo, os livros e tratados de toda a sorte, os
+discursos do parlamento, as arengas dos <i>meetings</i>, as conferencias,
+os sermões, as controversias publicas, as lições, emfim, toda essa
+colossal litteratura que nestes ultimos mezes tem tomado por assumpto
+a Irlanda.
+
+<P>
+E digam-me se, com todo este mundo de informação, de discussão, de
+theorias, de projectos, de systemas, de opiniões, de imaginações,&mdash;não
+é natural que o cerebro da Inglaterra esteja, n'esta questão da Irlanda,
+perfeitamente desorganisado. O meu está. Mas n'este cahos mental tenho
+illustres companheiros: o grande Carlyle costumava dizer que a sinceridade
+e a elevação de alguns patriotas irlandezes era a <i>unica coisa
+nitida e clara</i> que elle conseguia distinguir no escuro tumulto da
+confusão irlandeza...
+
+<P>
+Ha tambem outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora
+da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietaria, os <i>land-lords</i>
+indignam-se e reclamam o auxilio da policia ingleza <span class="pagenum"><a name="pag_84">[84]</a></span> quando
+os trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionaria&mdash;comer!
+
+<P>
+Aqui está, por exemplo, Sua Graça o Duque de Leicester, para não citar
+outros de nomes menos sonoros: os seus rendimentos na Irlanda sobem
+a <i>quatrocentos contos de reis</i>&mdash;e o infeliz tem ainda uns duzentos
+contos mais das suas propriedades na Inglaterra! Este fidalgo, escuso
+talvez dizel-o, não soffre frio e não passa fome: por outro lado,
+a população de rendeiros que trabalham as suas terras, e que com o
+seu suor e o seu esforço lhe arrancam do sólo este rendimento,&mdash;a
+unica cousa que realmente tem é fome e frio. Mas este anno tiveram
+mais fome e mais frio que de costume: e lá foram em farrapos, e com
+os pés nús sobre a neve, supplicar a Sua Graça, o Duque de Leicester,
+que lhes fizesse uma diminuição de dez por cento nas rendas&mdash;exageradas,
+absurdas e devoradoras. Sua Graça respondeu (pela bocca dos seus administradores,
+naturalmente: por sua propria bocca um Duque inglez nunca falla senão
+com outro Duque) respondeu que as suas circumstancias não lhe permittem
+essa liberalidade&mdash;e que a repetição d'uma tal supplica não podia
+ser tolerada.
+
+<P>
+E os rendeiros de Sua Graça lá voltaram de cabeça baixa, para o frio
+e para a fome.
+
+<P>
+Direi de passagem que se o pedido, em logar <span class="pagenum"><a name="pag_85">[85]</a></span> de ser feito
+pelos seus rendeiros da Irlanda, partisse dos seus rendeiros da Inglaterra,
+Sua Graça apressar-se-hia a satisfazel-o rasgadamente. É porque a
+Irlanda é um paiz conquistado, e, quando o proletario se queixa, a
+policia fila-o pela gola: mas, em Inglaterra, quando o operario inglez
+ergue a sua voz de leão, a policia fica immovel, os Duques empallidecem,
+e o edificio monarchico e feudal treme nas suas bases.
+
+<P>
+Mas, a proposito de Sua Graça o Duque de Leicester (gozemos o mais
+tempo possivel esta illustre companhia: <i>quand on prend du Duc
+on n'en saurait trop prendre</i>) deixem-me dizer-lhes em resumo quaes
+são as relações agrarias entre um proprietario, um <i>land-lord</i>,
+e os seus rendeiros.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+O sólo, é claro, pertence ao lord. Por que titulo não sei; talvez
+uma de suas avós, n'uma noite que estava mais decotada, attrahisse
+o inconstante olhar do amavel Carlos II, nos saráus galantes da Restauração:
+d'esse olhar provém, acaso, esta bella propriedade. O alegre Stuart
+era tão generoso! tinha-se vivido tão pobremente, tão tristemente
+sob a dictadura puritana do Cromwell!... Depois, se Carlos II tinha
+pouco dinheiro, (o desgraçado recebia uma <span class="pagenum"><a name="pag_86">[86]</a></span> mesada do rei
+de França!) não lhe faltavam terras na Irlanda. Trez leguas de pastos,
+ou de terreno aravel, por um beijo e os seus acessorios, não é caro
+para um Stuart. E para uma fraca dama ou para seu esposo é um famoso
+negocio. Note-se, por Deus, note-se que eu estou fazendo estas supposições
+sobre um typo de Lord abstracto. Nem toda a minha sympathia pelos
+trabalhadores irlandezes me levaria a suspeitar das purissimas senhoras
+da Casa de Leicester...
+
+<P>
+Como proprietario do sólo, pois, o Lorde arrenda-o ás familias que
+de geração em geração vivem nas suas terras: o irlandez prende-se
+ao sólo como uma arvore pelas raizes, e muitas vezes prefere morrer
+a abandonar um torrão arido que o não nutre. A emigração irlandeza
+para a America sáe principalmente da população operaria das cidades.
+Ora, nos contractos de renda, o homem de trabalho está absolutamente
+á mercê do senhor da propriedade.
+
+<P>
+O valor das rendas é puramente arbitrario. Não ha typo de renda, baseado
+sobre a avaliação das terras; existe o que se chama a avaliação de
+Griffith, feita ha mais de trinta annos por o agronomo d'esse nome;
+mas esta avaliação, equitativa e favoravel ao trabalhador, não é jamais
+aceitada pelos proprietarios. N'isto está a origem de todas as miserias
+<span class="pagenum"><a name="pag_87">[87]</a></span> da Irlanda; as rendas, absurdamente elevadas, absorvem
+todo o producto da terra, e o rendeiro escassamente póde viver, muito
+menos economizar.
+
+<P>
+Além do sólo, o proprietario deve fornecer a habitação e os instrumentos
+de trabalho: se na fazenda não existe casa, ou se ella necessita reparações,
+o <i>land-lord</i> dará naturalmente alguma madeira, uma mão-cheia
+de prégos, um molho de colmo, para que o trabalhador erga a cabana
+miseravel, muito inferior, como conforto, aos curraes dos nossos gados;
+e a esta generosidade regia o <i>land-lord</i> juntará talvez um velho
+arado e um ferro de enxada. Mas estes dons são adiantamentos que elle
+sobrecarrega com preços duplos ou triplos do seu valor, e de que se
+faz embolsar por prestações trimestraes.
+
+<P>
+Não é possivel ser mais grandioso ou mais nobre.
+
+<P>
+Aqui está, pois, o rendeiro de posse de um tecto, de um terreno e
+de ferramenta. Parece que só lhe resta começar a cultivar.
+
+<P>
+Assim seria, se não fosse na Irlanda. Mas a natureza, mãe fecunda
+e amante, comporta-se aqui ainda peior que os lords: se a natureza
+tivesse assento na camara dos pares de Inglaterra, não seria mais
+aspera, mais hostil ao pobre e mais avara de si mesma. A natureza,
+quando não se apresenta ao <span class="pagenum"><a name="pag_88">[88]</a></span> trabalhador irlandez sob o
+aspecto de sólo pedregoso, mostra-se sob o aspecto de pantano.
+
+<P>
+Offerece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco.
+
+<P>
+E diz-lhe com a sua ternura de mãe:
+
+<P>
+&mdash;Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistencia?
+
+<P>
+O pobre irlandez o que preferiria era ir-se embora: mas como por toda
+a parte encontraria um proprietario egual, os mesmos pedregulhos e
+identicos lamaçaes&mdash;fica. E é então que se apresenta de novo a generosidade
+do Lord. Sua Graça está pronta (porque Sua Graça é compassiva) a escoar
+o pantano, a desempedrar o sólo, a fazer melhoramentos na terra. Sua
+Graça vae mesmo mais longe: Sua Graça (Deus o recompense!) offerece
+a semente. E mais ainda: Sua Graça (que as bençãos do ceu o vistam!)
+dá os adubos.
+
+<P>
+E aqui está um rendeiro feliz, que tem a casa, os instrumentos, a
+semente, os adubos... Sómente Sua Graça marca os preços que lhe convém
+aos melhoramentos feitos, á semente e aos adubos: e no fim do anno
+a renda que era originariamente de dez está em vinte e cinco! Como
+os terrenos são pobres, os invernos abominaveis, o pobre rendeiro
+não póde pagar: dirige-se então ao agiota&mdash;ou ao Lord mesmo. E desde
+esse momento está n'uma rede de dividas, <span class="pagenum"><a name="pag_89">[89]</a></span> lettras, colheitas
+empenhadas, juros accumulados, protestos, o demonio&mdash;de que jámais
+se poderá desenredar. O resultado é previsto: o Lord (pelo seu agente)
+penhora-o, apossa-se do grão que está nos celleiros, do gado que está
+nos curraes, do pequeno bragal que está na arca, das arrecadas da
+mulher, das enxergas&mdash;e expulsa-o da casa e da propriedade&mdash;da casa
+que elle talvez construiu, da propriedade que elle com o seu trabalho
+melhorou! Tal qual como na meia edade.
+
+<P>
+Estas expulsões, que se chamam <i>evictions</i>, são o terror irlandez.
+Que ha-de fazer um miseravel com mulher, creanças, ás vezes uma avó
+entrévada, que se vê d'uma hora para a outra no meio de uma estrada,
+por um terrivel inverno, sem um farrapo para se cobrir, sem uma codea
+de pão, sem casa, sem destino e sem esperança? E note-se que isto
+passa-se em regiões como as da Irlanda, pouco habitadas, com um casal
+de legua em legua.
+
+<P>
+Esta falta de vizinhos torna estas expulsões mais terriveis. Quantas
+milhas a caminhar sob a chuva ou sob a neve, com as creanças chorando
+de fome, os doentes levados n'uma padiola, até que se encontre algum
+rendeiro mais feliz que ainda tem um canto de cabana onde azyle a
+familia errante! Mas por pouco tempo&mdash;porque todos são pobres, todos
+estão endividados, todos ameaçados da expulsão...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_90">[90]</a></span>E durante esse tempo Sua Graça banqueteia-se, bebe <i>Chateaux
+Margaux</i> de 6$000 reis a garrafa, caça, etc.&mdash;e aluga a fazenda,
+d'onde expulsou o miseravel n.º 1, ao rendeiro n.º 2. Sómente o n.º
+2, como a encontra melhorada pelo antecedente, paga-a mais cara: e
+depois de explorado, sugado, expremido, durante dois ou trez annos,
+é expulso&mdash;para dar logar ao n.º 3. Este infeliz passa pelo mesmo
+processo de trituração, <i>et sic per omnia</i>...
+
+<P>
+E as expulsões são inevitaveis, porque, com a altura absurda das rendas,
+é impossivel que o rendeiro as possa pagar&mdash;e viver.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Isto, como comprehendem, é apenas um vago contorno da realidade, apontada
+nas suas feições essenciais.
+
+<P>
+Descendo-se a detalhes&mdash;vê-se então uma horrorosa tréva de injustiça
+e miseria.
+
+<P>
+Mas como pódem taes cousas passar-se no seculo XIX, e ao lado do povo
+inglez?
+
+<P>
+Como permitte uma nação tão justa a existencia de tanto oprobio?&mdash;dir-me-hão.
+
+<P>
+Justamente essa pergunta a fazia Victor Hugo ha dias a Parnell, o
+chefe da <i>Liga Agraria</i>, na sua <span class="pagenum"><a name="pag_91">[91]</a></span> celebre entrevista.
+E eu responderei com as palavras de Parnell.
+
+<P>
+Taes cousas passam-se no seculo XIX. E o povo inglez não as sabia:
+pelo menos eram-lhe contadas de tal modo que, em logar de piedade,
+só sentia colera.
+
+<P>
+E isto é exacto. Os males da Irlanda eram conhecidos pela voz dos
+seus agitadores. Mas estes homens, desde O'Connell cometteram sempre
+o erro de misturar as queixas d'um proletariado opprimido ás aspirações
+d'independencia nacional: de sorte que a Inglaterra não attendia á
+reclamação dos trabalhadores pela irritação que lhe causavam as exigencias
+dos patriotas. O povo inglez não póde ouvir fallar em que a Irlanda
+se separe, e se constitua em republica: mas está prompto a ordenar
+que se lhe dê um justo regimen de propriedade.
+
+<P>
+O erro dos Fenians foi confundir a questão nacional com a questão
+agraria: o rendeiro miseravel apparecia então aos inglezes com o aspecto
+de um rebelde á União; e envolvendo-os ambos no mesmo odio, porque
+lhes suppunha identicas ambições, suffocou sem discernimento, a voz
+que só pedia pão e a voz que reclamava autonomia.
+
+<P>
+E todavia o povo inglez sentiu sempre instinctivamente que a Irlanda
+soffria. Muitas vezes pediu para ella uma reforma das leis agrarias.
+Era, porém, <span class="pagenum"><a name="pag_92">[92]</a></span> um pedir vago, sem cohesão: mais a expressão
+de sensibilidades feridas do que a intimação da vontade nacional.
+
+<P>
+De sorte que os parlamentos, sahidos das classes que têm interesse
+em manter a Irlanda na miseria, contentavam-se em fazer reformas de
+detalhes, reformas insignificantes e imperceptiveis, para dar uma
+satisfação á compaixão ingleza: e o regimen antigo ficava inatacado
+como d'antes. Mas isto bastava para que alguns humanitarios dissessem
+com um suspiro de allivio: «Emfim lá se fez alguma coisa pela Irlanda!»
+De facto não se tinha feito nada.
+
+<P>
+Era, pois, necessario que a questão da propriedade fôsse separada
+da questão da independencia: que se fizesse um movimento legal dentro
+da constituição, com o fim exclusivo de terminar os abusos dos <i>land-lords</i>,
+calando toda a ideia de arrancar a Irlanda ao Reino Unido. Então haveria
+a certeza de que o povo inglez, vendo a questão agraria e os seus
+horrores, isoladamente, no seu relevo proprio, desembaraçada das declamações
+rebeldes e das agitações separatistas&mdash;determinasse dar a tantos
+males, e tão antigos, um remedio radical. Foi isto que tentou a <i>Liga
+Agraria</i>.
+
+<P>
+Esta carta é longa: e apresentando esta formidavel entidade&mdash;a <i>Liga
+Agraria</i>, eu devo fazer como o illustre Ponson du Terrail, quando
+introduzia um <span class="pagenum"><a name="pag_93">[93]</a></span> novo personagem, o heroe providencial, n'um
+fim de folhetim: deixar a historia das suas façanhas, das suas virtudes
+e da sua belleza, com o interesse suspenso, até ao folhetim seguinte.
+Não se esqueçam que ficamos no momento em que, n'este palco da Historia
+Irlandesa subitamente apparece ao fundo, misteriosa e grave, a <i>Liga
+Agraria</i>.
+<span class="pagenum"><a name="pag_94">[94]</a></span>
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_95">[95]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION00800000000000000000">
+VIII
+<BR>
+Lord Beaconsfield</A>
+</H1>
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00810000000000000000">
+I</A>
+</H2>
+
+<P>
+Recomeçando hoje estas C<SMALL>ARTAS DE </SMALL>I<SMALL>NGLATERRA</SMALL>&mdash;que eu não podia
+escrever de Lisboa, onde estive alguns mezes gozando os ocios de Tityro,
+<i>sub tegmine fagi</i>, á sombra d'essa faia constitucional que se
+chama o Gremio&mdash;devo memorar, ainda que tarde, a morte de Benjamin
+Disraeli, Lord Beaconsfield, ocorrida no dia 19 de maio, pela madrugada,
+em Londres, na sua casa de Curzon Street. A doença de Lord Beaconsfield,
+uma complicação de gotta, asthma e bronchite, arrastou-se cruel e
+longa; o mal porém foi debelado e Lord Beaconsfield succumbiu realmente
+á fraqueza, á fadiga dos setenta e sete annos e uma existencia tão
+episodica, tão cheia, tão emotiva, que ella ficará como o seu melhor
+romance, bem superior em estylo e interesse a <i>Tancredo</i> ou a
+<i>Endymion</i>.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_96">[96]</a></span>Desde o primeiro dia, Lord Beaconsfield perdeu logo a esperança
+de se restabelecer; mas passou a encarar a morte como encarára sempre
+as suas derrotas politicas: com uma coragem desdenhosa e fria e um
+ar de facil superioridade. Durante a doença, aos accessos agudos da
+dôr, respondia elle com esses sarcasmos mordentes e rebrilhantes,
+que tinham sido sempre a sua desforra querida perante um adversario
+mais forte.
+
+<P>
+No dia 18, á noite, cahiu pouco a pouco n'uma somnolencia comatosa,
+e assim permaneceu até ao romper da manhã; momentos antes de morrer,
+agitou-se, ergueu-se, ainda dilatou o peito, lançou os braços ao ar&mdash;como
+costumava fazer nos grandes debates da camara; depois recahiu sobre
+o travesseiro, estendeu as mãos a Lord Rowton e Lord Barrigton, seus
+secretarios, e murmurou debilmente: <i>Estou vencido!</i>&mdash;E ficou
+como adormecido para sempre. E, considerando que, n'esse momento,
+toda a Inglaterra, o mundo inteiro, esperavam anciosamente noticias
+d'aquelle quarto de Curzon Street, onde expirava o homem que sessenta
+annos antes era um pobre escrevente de cartorio&mdash;póde-se dizer que
+n'esta carreira tão feliz a morte mesma foi feliz.
+
+<P>
+O seu proprio funeral teria agradado á sua imaginação&mdash;a certos lados
+delicados da sua imaginação de artista. O testamento que deixou não
+permitiu <span class="pagenum"><a name="pag_97">[97]</a></span> que se celebrassem funeraes publicos na Abbadia
+de Westminster&mdash;disposição estranhavel n'um homem que mais que tudo
+amou a pompa e os grandiosos ceremoniaes; mas não teve tambem o lugubre
+scenario da morte, os crepes, as plumas negras, as tochas, os fumos,
+as caveiras bordadas&mdash;tudo isso que deveria ser tão antiphatico ao
+seu luminoso espirito. Foi sepultado no seu querido Castello d'Hughenden,
+no meio das arvores do seu parque, por uma fresca manhã de maio, na
+capella toda ornada de flôres como para uma alegria nupcial; o caminho
+que lá levava ia por entre jasmineiros e rosaes; em vez do dobre dos
+sinos de Westminster teve o gorgeiar das suas aves; e o caixão, seguido
+pelos principes de Inglaterra, por todos os embaixadores, pela aristocracia
+que ella governára&mdash;desapparecia sob corôas, ramos e molhos de <i>primroses</i>,
+que a rainha Victoria mandára, com estas palavras escriptas pela sua
+mão: «As flôres que elle amava.»
+
+<P>
+Depois, ao outro dia, em todas as cathedraes da Inglaterra, em cada
+capella rustica, o clero fez do pulpito o elogio de Lord Beaconsfield;
+nas universidades, nos institutos, nas academias, os professores commemoraram
+aquella carreira soberba; pelas platafórmas dos <i>meetings</i>, nas
+assembléas commerciais, em qualquer parte onde se juntam homens, alguma
+voz se ergueu a honrar os seus serviços e o seu genio; <span class="pagenum"><a name="pag_98">[98]</a></span>Lord Granville, na camara dos lords, na camara dos communs Gladstone,
+fizeram, em sessão solemne, o seu panegyrico publico; e durante dias,
+toda a imprensa ingleza, a imprensa de todo o mundo civilisado (excepto
+a de Portugal, infelizmente) vieram cheias do seu nome, da commemoração
+dos seus livros, da sua pittoresca historia.
+
+<P>
+E assim Lord Beaconsfield desappareceu&mdash;como fôra o desejo de toda
+a sua vida&mdash;n'um rumor de apotheose.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+E todavia nada parece mais injustificado que uma tal apotheose. Lord
+Beaconsfield, por fim, foi um homem de estado que fez romances. Ora
+os seus romances, como obras d'arte, já começam a apparecer, a esta
+geração de sciencia e d'analyse, tão falsos, tão ficticios como as
+novellas lyrico-religiosas do visconde d'Arlincourt; e como homem
+d'estado o nome de Lord Beaconsfield não fica decerto ligado a nenhum
+grande progresso na sociedade ingleza. Crear o titulo de Imperatriz
+das Indias para a rainha de Inglaterra, roubar Chypre, restaurar certas
+prerogativas da corôa, tramar o <i>fiasco</i> do Afghanistan, não
+constituem de certos titulos para a sua glorificação como reformador
+social: por outro lado, escrever <span class="pagenum"><a name="pag_99">[99]</a></span> <i>Tancredo</i> ou <i>Endymion</i>,
+não basta para marcar n'uma litteratura, que teve contemporaneamente
+Dickens, Tackeray e Georges Eliot.
+
+<P>
+Como succede, depois d'isto, que a Inglaterra, paiz tão pratico, tão
+bem equilibrado, se deixe levar em um tal arranque de admiração pelo
+homem que foi a personificação, a encarnação de tudo quanto é contrario
+ao temperamento, ás maneiras, ao gosto inglez? É que Lord Beaconsfield,
+mais que nenhum outro contemporaneo, impressionou a imaginação ingleza&mdash;e
+na fria Inglaterra, como sob céos mais calidos, são grandes as influencias
+da imaginação.
+
+<P>
+Podia-se ás vezes sorrir das suas phantasticas obras d'arte, protestar
+contra as suas theatraes combinações politicas, mas atravéz de protestos
+e sorrisos a sua propria personalidade nunca deixou de maravilhar
+e de fascinar. Qualquer inglez, medianamente educado, a quem se pergunte
+a sua opinião sobre Lord Beaconsfield dirá: <i>Foi um homem extraordinario!</i>
+
+<P>
+Extraordinario&mdash;é como elle se nos representa, agora que se vê o
+conjunto da sua existencia, que não parece ter sido um producto natural
+dos factos ou das occasiões, mas uma creação subjectiva da sua propria
+vontade, e como um enredo de romance talhado pela sua penna. Senão
+veja-se. Tendo nascido judeu&mdash;tornou-se o chefe de uma aristocracia
+saxonia <span class="pagenum"><a name="pag_100">[100]</a></span> e normanda, a mais orgulhosa da terra; começando
+em um obscuro circulo litterario e vegetando algum tempo em um cartorio
+de Londres&mdash;veiu a ser o mais famoso primeiro ministro de um grande
+imperio; não possuindo senão dividas&mdash;bem cedo se tornou o inspirador
+das grandes fortunas territoriais; homem de imaginação, de poesia,
+de phantasia, foi o idolo das classes médias de Inglaterra, as mais
+praticas e utilitarias que jamais dirigiram uma nação commercial;
+sem religião e sem moral, governou um protestantismo que não concebe
+ordem social possivel fóra da sua estreita religião e da sua estreita
+moral; confessando o seu desprezo pela omnipotencia da sciencia moderna&mdash;foi
+o grande homem de uma sociedade que quer dar a todo o progresso uma
+base puramente scientifica: emfim, sendo o <i>menos inglez possivel</i>,
+tendo um modo de ser e de sentir quasi estrangeiros, dirigiu annos
+e annos a Inglaterra, o paiz mais hostil ao espirito estrangeiro,
+e que conhecia bem que não era comprehendida pelo homem que a governava.
+Tudo isto parece paradoxal&mdash;e a existencia de Lord Beaconsfield foi
+com effeito um perpetuo paradoxo em acção. Para realizar tudo isto
+era necessario que o seu genio, por um lado, por outro a sua habilidade,
+fossem grandes. E realmente em dons pessoais nada lhe faltou: prodigiosa
+finura de espirito, uma vontade de aço, uma <span class="pagenum"><a name="pag_101">[101]</a></span> coragem serena
+de heroe, uma infinita veia sarcastica, um fogo ruidoso de eloquencia,
+o absoluto conhecimento dos homens, a luminosa penetração no fundo
+dos caracteres e dos temperamentos, um poder subtil de persuasão,
+um irresistivel encanto pessoal,&mdash;e tudo isto envolvido (como n'uma
+athmosfera luminosa) por alguma coisa de brilhante, de rico, de largo,
+de imprevisto, que era ou fazia o effeito de ser o <i>seu genio</i>.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Eu por mim começo por admirar a sua propria apparencia. Diz-se que
+fôra formoso como um Apollo&mdash;e que isto concorrera muito para os
+seus primeiros triumphos: agora, já tão velho, era apenas pittoresco.
+
+<P>
+A sua grande testa sobre a qual cahiam aquelles dous extraordinarios
+caracóes parallelos, o seu olhar recolhido e como concentrado em pensamentos
+muito fundos, o nariz de pura raça israelita, a bocca descahida na
+sua eterna curva sarcastica, o beiço inferior muito recurvo e muito
+pendente, e a sua estranha pera de Mephistopheles&mdash;constituiam uma
+d'estas physionomias que se sente que vão ficar na galeria da historia
+e que servirão a futuros historiadores para explicar um destino e
+um genio. Em <span class="pagenum"><a name="pag_102">[102]</a></span> novo, e quando as modas romanticas o permittiam,
+vestia-se de setim e velludo, recobria-se d'um luxo de medalhões e
+joias, as suas proprias calças tinham bordados d'ouro. Agora era mais
+sobrio de <i>toilette</i>: usava apenas esses casacos compridos como
+tunicas, a que os homens de origem judaica são particularmente affeiçoados,
+e o seu unico adorno eram os bellos ramos que lhe enchiam o peito.
+Um jornalista francez, n'um dia de crise politica em que Lord Beaconsfield
+devia fazer um discurso decisivo, encontrou-o momentos antes, n'um
+dos salões da camara, occupado a encher d'agua o tubosinho de crystal
+que por traz da botoeira da casaca conservava frescas as suas rosas.
+Todo o homem está n'este traço.
+
+<P>
+De raça oriental, teve sempre o amor do fausto, das pedrarias, dos
+ricos tecidos, da pompa; os seus romances transbordam de descripções
+de palacios, de festas perante as quaes as mais ricas galas de Salomão
+são como desbotados scenarios de theatro de feira; o seu estylo resente-se
+d'este gosto: é um sumptuoso estofo, com recamos de ouro, cravejado
+de joias, scintillante e espesso, cahindo em belas pregas ao comprido
+da idéa. O dinheiro, o ouro, preoccuparam-n'o sempre, menos pela sua
+influencia social, que pelo mero esplendor da sua amontoação. Os seus
+heroes possuem fortunas tão prodigiosas que seriam impossiveis nas
+condições economicas do <span class="pagenum"><a name="pag_103">[103]</a></span> mundo moderno; Lothario, o famoso
+Lothario, querendo dar um presente de annos a uma senhora catholica,
+offerece-lhe uma cathedral toda de marmore branco, que elle mandou
+construir e que dedicou á santa do nome d'ella; o seu custo excederia
+decerto dois mil contos fortes. Confessemos que é <i>chic</i>. Pois
+bem; presentes d'estes dava-os Lothario todos os dias. O banqueiro
+Sidonia, uma das mais curiosas creações de Lord Beaconsfield, dando
+ao seu amigo Tancredo uma carta de credito para os banqueiros da Syria,
+redige-a d'este modo: «Pague á vista ao portador tanto ouro quanto
+seria necessario para reconstruir os quatro leões de ouro massiço
+que ornavam a porta direita do templo de Salomão.» Tambem muito <i>chic</i>.
+
+<P>
+Estou certo que um dos grandes prazeres de Lord Beaconsfield era poder
+manejar os milhões de Inglaterra. Todos os seus ministerios custaram
+caudalosos rios de dinheiro; gastava o ouro como a agua,&mdash;e dava-se
+ao luxo de realisar por si, e á custa do seu paiz, as larguezas epicas
+do seu banqueiro Sidonia. Mesmo quando estava no poder, estava ainda
+no romance.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+As linhas da sua biographia são conhecidas. Seu pae era um d'estes
+litteratos mediocres e trabalhadores <span class="pagenum"><a name="pag_104">[104]</a></span> que vão desenterrando
+e colleccionando atravéz de <i>in-folios</i> e bibliothecas casos
+curiosos e archaicos de historia e de litteratura.
+
+<P>
+Benjamin Disraeli nasceu por isso entre os livros&mdash;litteralmente
+entre os livros, porque a casa em que viviam os Disraeli offerecia
+o espaço de uma boceta, e no quarto da creança, entre a accumulação
+vetusta dos calhamaços, havia apenas espaço para uma cadeira e para
+um berço. O velho Disraeli era judeu: mas felizmente para os destinos
+futuros de seu filho rompeu com a synagoga, e todos os Disraeli se
+fizeram christãos. Benjamin tinha então dezessete annos, e o seu padrinho
+na pia baptismal foi um certo Samuel Rogers, notavel por ser ao mesmo
+tempo um dos mais ricos banqueiros da <i>City</i> e um dos poetas
+mais elegiacos do seu tempo&mdash;e notavel ainda por não ficar na historia,
+nem como banqueiro, nem como poeta, mas como um requintado <i>gourmet</i>,
+o grande Lucullus de Londres, que deu os mais celebres, os mais finos
+jantares da Europa.
+
+<P>
+Assim marcado com o rotulo christão, Benjamin Disraeli largou a caminhar
+pela vida fóra, mas foi encalhar bem depressa n'um cartorio de tabellião&mdash;onde
+se diz que, durante dous annos, este moço orgulhoso, que já então
+se considerava um semi-deus, redigiu procurações e testamentos. Com
+a mesma penna, porém, ia escrevendo <i>Vivian Grey</i>: e da tempestuosa
+<span class="pagenum"><a name="pag_105">[105]</a></span> sensação que este romance produziu data a sua grande
+carreira. A obra, á parte algumas fugitivas scintillações de um genio
+ainda desequilibrado, é no seu conjunto, ao mesmo tempo pesada e vaga;
+mas satisfazia os gostos escandalosos e intrigantes da sociedade d'então,
+pondo em scena todas as individualidades marcantes de Londres, politicos,
+<i>dandies</i>, rainhas da moda, poetas, especuladores.
+
+<P>
+O melhor resultado de <i>Vivian Grey</i>, foi tornar Disraeli Junior
+(como elle então se assignava) o favorito de Lady Blenington e do
+conde d'Orsay, as duas dominantes figuras de Londres d'essa época,
+e que tinham <i>de sociedade</i> o mais selecto, mais intelligente,
+mais apetecido salão de Inglaterra.
+
+<P>
+Estes dous formavam um typo destinado a reinar. Lady Blenington era
+uma mulher de graciosa e olympica belleza, de uma extrema audacia
+de caracter e de alta energia intellectual. O conde d'Orsay, esse
+era o homem que durante vinte annos governou a moda, o gosto, as maneiras,
+com a mesma indisputada auctoridade com que hoje o principe de Bismarck
+arbitra na Europa.
+
+<P>
+Usar um modelo de gravata ou admirar um poeta que não tivessem sido
+aprovados pelo conde d'Orsay, seria correr o mesmo risco de uma nação
+que hoje, sem auctorização secreta do principe de <span class="pagenum"><a name="pag_106">[106]</a></span> Bismarck,
+organisasse uma expedição militar. Lady Blenington, entre outras coisas
+embaraçadoras, tinha uma filha: e o bello d'Orsay, não sei porque,
+nem elle o soube jámais, casou com essa menina. Os noivos vieram viver
+com Lady Blenington; e, bem depressa, entre seu brilhante marido e
+sua resplandecente mãe, a pobre condessa d'Orsay foi como uma pallida
+lampada bruxoleando entre dous astros. Fez então uma cousa sensata
+e espirituosa: apagou-se de todo, desappareceu. E o conde d'Orsay
+e Lady Blenington, livres d'aquella senhora que entristecia, regelava
+as salas com o seu ar honesto e frio, começaram então a scintillar
+tranquillamente, como constellações conjunctas no firmamento social
+de Londres. E Londres curvou-se deante d'esta nova e original situação
+domestica, como se curvava deante de uma nova sobrecasaca do conde
+d'Orsay, ou deante de uma decisão litteraria de Lady Blenington.
+
+<P>
+Benjamin Disraeli tornou-se bem depressa um dos heroes d'este salão&mdash;onde
+desde logo se mostrára com esse ar de tranquilla superioridade, de
+correcto desdem, que foi um dos segredos da sua força. Ordinariamente
+conservava-se calado, apoiado ao marmore da chaminé, n'uma pose d'Apollo
+melancholico, abandonando-se á caricia ambiente dos olhares das damas
+que viam n'elle a encarnação radiante do poetico Vivian Grey. As pessoas
+mais intimas, <span class="pagenum"><a name="pag_107">[107]</a></span> começando por Lady Blenington, já lhe chamavam
+sempre <i>Vivian, querido Vivian</i>. O conde d'Orsay fizera-lhe o
+retrato a sepia&mdash;honra que elle dava raramente, e a mais appetecida
+n'esse curioso mundo.
+
+<P>
+Todos estes triumphos de Disraeli Junior não deixavam de surprehender
+Disraeli Senior. Um dia, dizendo-lhe alguem que seu filho estava compondo
+um romance, em que entravam duques, e toda a sorte de grandes, o velho
+e laborioso litterato exclamou:&mdash;Duques, senhores! Mas meu filho
+nunca viu um sequer!
+
+<P>
+Viu muitos depois, viu-os todos&mdash;e governou-os com uma vara de ferro.
+Mas n'esse tempo o bello Disraeli Junior era ainda radical, ou tomára
+ao menos essa attitude. Meditava mesmo a sua <i>Epopêa da Revolução</i>,
+a sua unica obra em verso, uma vaga rhapsodia que eu nunca li, mas
+de que os criticos mais benevolos fallam como d'um volume de duzentas
+paginas, sem uma só linha toleravel. E, cousa curiosa, este homem
+tão fino, tão sceptico, tão experiente, nunca perdeu a candura quasi
+comica de se considerar um grande poeta como Virgilio ou como Dante,
+e a esperança phantastica de que as gerações futuras poriam a <i>Epopêa
+da Revolução</i> ao par da <i>Eneida</i>, ou da <i>Divina Comedia</i>.
+
+<P>
+Apesar de poeta abominavel e de perfeito dandy&mdash;ou <span class="pagenum"><a name="pag_108">[108]</a></span> talvez
+por isso mesmo&mdash;Benjamin Disraeli era reconhecido n'esse tempo como
+um dos chefes do movimento da <i>Joven Inglaterra</i>.
+
+<P>
+A <i>Joven Inglaterra</i> consistia n'um grupo de rapazes, ardentes
+e aristocratas, que se tinham embebido da Revolução atravéz da litteratura;
+fallavam muito da Humanidade e queriam sobretudo um <i>burgo pôdre</i>
+que os nomeasse deputados; cultivavam pelos salões o amor platonico,
+quereriam vêr o povo feliz comtanto que estivessem elles no poder
+para promover essas felicidades, e (traço decisivo das suas maneiras
+e da sua <i>pose</i>) quando se escreviam uns aos outros tratavam-se
+por <i>my darling&mdash;meu amor</i>!
+
+<P>
+Tinham ainda outros distintivos: usavam o cabello á <i>nazarena</i>,
+mostravam a coragem (enorme n'esse tempo) de admirar o odiado Byron,
+e procuravam elevar e aperfeiçoar a arte da cozinha em Inglaterra!
+
+<P>
+No emtanto, Benjamin Disraeli já estava bem decidido a sacudir o seu
+radicalismo&mdash;quando fosse necessario aos interesses da sua careira.
+E essa carreira via-a elle então, apesar de desconhecido e pobre,
+tão claramente triumphante no futuro como se a tivesse deante dos
+seus olhos escripta, parte por parte, n'um programma.
+
+<P>
+Em pleno reinado dos <i>tories</i>, é caracteristica já a sua resposta
+a Lord Melbourne, primeiro-ministro <span class="pagenum"><a name="pag_109">[109]</a></span> então, que lhe perguntava
+o que elle tencionava fazer.
+
+<P>
+&mdash;Ser eu o primeiro-ministro d'aqui a pouco&mdash;respondeu o dandy com
+as suas grandes maneiras á Vivian Grey.
+
+<P>
+Lord Melbourne viu n'esta resposta uma odiosa e insolente jactancia.
+E assim parecia, quando, tempo depois, Disraeli, já deputado por Wycombe,
+fez o seu primeiro discurso&mdash;e o viu suffocado pelas gargalhadas
+e pelos apupos. Como não podia dominar o tumulto, calou-se, dizendo
+apenas estas palavras mais:
+
+<P>
+&mdash;Hoje não me quisestes ouvir. Um dia virá em que eu me farei escutar!
+
+<P>
+E um dia veio em que não só a camara dos communs, mas a Inglaterra,
+todo o continente, a terra civilizada escutavam com anciedade as palavras
+que iam cahir dos seus labios, e que traziam comsigo a paz ou a guerra
+na Europa.
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00820000000000000000">
+II</A>
+</H2>
+
+<P>
+A reputação de salão que gozava Lord Beaconsfield, levou algum tempo
+a transformar-se em popularidade; mas a sua popularidade, apenas obtida,
+penetrou rapidamente a enorme massa trabalhadora, e tornou-se em poucos
+annos essa vasta e ressoante nomeada, que fez o seu nome familiar,
+quasi domestico, em toda a parte onde se falla inglez, na mais rude
+aldeia de pescadores de Cornwall, no <i>bush</i> d'Australia, entre
+os mesmos montanhezes barbaros das <i>Highlands</i>, e que, quando
+elle se dirigia ao congresso de Berlim, attrahia ás estações do caminho
+de ferro as populações da Allemanha a contemplarem o <i>grande
+inglez</i>. E este reconhecimento de gloria constitue um dos phenomenos
+mais curiosos da carreira de Lord Beaconsfield; porque, em geral,
+não se avalia bem a difficuldade portentosa de obter uma fama, mesmo
+mediocre.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_111">[111]</a></span>Não ha nada tão illusorio como a extensão de uma celebridade;
+parece ás vezes que uma reputação chega até aos confins de um reino&mdash;quando
+na realidade ella escassamente passa das ultimas casas de um bairro.
+
+<P>
+No momento de sua prodigiosa voga, o velho Alexandre Dumas ficou assombrado
+de que o magistrado de uma villa visinha de Paris, homem illustrado,
+de resto, não soubesse com que letras se escrevia esse glorioso nome
+de Dumas!
+
+<P>
+E se nós pudessemos reduzir a numeros as proporções das glorias contemporaneas,
+ficariamos aterrados perante a grotesca mesquinhez dos resultados.
+Nós outros jornalistas, criticos, artistas, homens de estudo e de
+curiosidade litteraria, julgamos quasi impossivel que haja alguem
+na Europa que não tenha lido Victor Hugo, ou que, pelo menos, não
+conheça esse nome de syllabas faceis, que ha meio seculo fere, a grande
+estrondo, o ouvido humano; pois bem, póde-se dizer que fóra de França
+apenas cinco mil pessoas talvez terão lido Victor Hugo&mdash;e que não
+passará decerto de dez mil o numero de creaturas que lhe saibam o
+nome, incluindo mesmo a vasta massa democratica de que elle é o epico
+official. E já isto constitue um famoso progresso&mdash;desde o tempo
+em que Voltaire ambicionava ter <i>cem leitores</i>!
+
+<P>
+A conhecida alegoria da fama, cantando o nome <span class="pagenum"><a name="pag_112">[112]</a></span> d'um varão
+com as suas cem bocas, applicadas ás suas cem tubas, e voando de um
+a outro confim do universo&mdash;é uma das imagens mais descaradamente
+falsas que nos legou a Antiguidade. Esse estrondear das cem tubas
+morre como um suspiro dentro da área humilde d'um corrilho ou d'uma
+<i>coterie</i>: e nada viaja com uma lentidão egual á da Fama. Um
+fardo de fazendas gasta quatro dias a vir de Londres a Lisboa&mdash;e
+os nomes de Tennyson, Browning, Swinburne, os tres grandes poetas
+da Inglaterra, e que ha quarenta annos são a sua mais pura gloria,
+ainda cá não chegaram. É verdade que todo o mundo necessita flanellas&mdash;e
+nem todo o mundo supporta poesia.
+
+<P>
+Mas uma celebridade não encontra só difficuldades em transpôr a fronteira&mdash;acha-as
+sobretudo e quasi insuperaveis em fixar a atenção da grande turba
+dos seus concidadãos. Principalmente n'um paiz como a Inglaterra,
+em que a aspera lucta pela existencia, a soffrega preoccupação do
+pão diario, o feroz conflicto da concorrencia, não permitem esses
+pachorrentos vagares, os vagares portuguezes ou hespanhóes, em que
+se está de barriga ao sol, prompto a olhar, a admirar o menor foguete
+que estala nos ares.
+
+<P>
+Em Inglaterra, o duque de Wellington era de certo popular&mdash;porque
+ganhou a batalha de Waterloo,<span class="pagenum"><a name="pag_113">[113]</a></span> e portanto, segundo a crença
+contemporanea, salvára a Inglaterra da invasão. Gladstone é conhecido
+em cem cidades e mil aldeias, porque alliviou a nação dos seus grandes
+impostos. Mas estes fórmam as excepções; as outras celebridades inglesas,
+ou sejam politicos como Lord Salisbury, ou philosophos como Spencer,
+ou poetas como Browning, ou artistas como Herkomer&mdash;permanecem profundamente
+ignorados da grande massa do publico. São reputações de salão, de
+academia, de club, de redacção de jornal.
+
+<P>
+Ora, Lord Beaconsfield realmente nunca fez coisa alguma para se tornar
+popular e sempre lembrado; nunca ligou o seu nome a uma grande instituição,
+a um grande beneficio publico, a uma campanha victoriosa. Tudo, ao
+contrario, n'esta original personalidade parecia destinal-o á impopularidade:
+a sua origem, os seus gestos e habitos anti-inglezes, a sua poderosa
+veia sarcastica, a sua oratoria requintada e subtil, o gongorismo
+metaphysico das suas concepções litterarias, e certos lados muito
+accentuados do seu fundo semitico. E a isto accrescia que, para a
+grande maioria da nação, elle representava um <i>parvenu</i> de auctoridade
+oligarchica, surdamente hostil á ideia de democracia e de soberania
+popular.
+
+<P>
+A sua assombrosa popularidade parece-me provir de duas causas: a primeira
+é a sua idéa (que <span class="pagenum"><a name="pag_114">[114]</a></span> inspirou toda a sua politica), de que
+a Inglaterra deveria ser a potencia dominante do mundo, uma especie
+de Imperio Romano, alargando constantemente as suas colonias, apossando-se
+dos continentes barbaros e <i>britannizando-os</i>, reinando em todos
+os mercados, decidindo com o peso da sua espada a paz ou a guerra
+do mundo, impondo as suas instituições, a sua lingua, as suas maneiras,
+a sua arte, tendo por sonho um orbe terraqueo que fôsse todo elle
+um imperio Britannico, rolando em rythmo atravez dos espaços.
+
+<P>
+Este ideal, que tomou o nome de <i>imperialismo</i> nos dias de gloria
+de Lord Beaconsfield, é uma idéa querida a todo o inglez; os mesmos
+jornaes liberais que com tanto furor denunciavam os perigos d'esta
+politica romana, no fundo gozavam uma immensa satisfação de orgulho
+em proclamarem a sua inconveniencia. Havia tanta prosapia britannica
+em conceber um tal Imperio, como em o condemnar, e em dizer, com um
+ar de nobre renunciamento: «Não nos convém a responsabilidade de governar
+o mundo!»
+
+<P>
+Lord Beaconsfield, sendo a encarnação official d'esta idéa imperial,
+tornou-se naturalmente tão popular como ella. Foi considerado então
+como o instrumento da grandeza exterior da Inglaterra, como o homem
+que a fazia dominante e temida, que mantinha <span class="pagenum"><a name="pag_115">[115]</a></span> alta e reluzindo
+terrivelmente aos olhos do mundo a espada de John Bull. Gladstone,
+Bright, a grande escola liberal, conhecida pela <i>escola de Manchester</i>,
+era agora accusada de ter, com a sua politica de abstenção só occupada
+de melhoramentos materiaes, de finanças, de civilização interna&mdash;deixado
+definhar, morrer o prestigio inglez na Europa.
+
+<P>
+E ai vinha agora aquele extraordinario judeu, apoiado na riqueza,
+na prosperidade interior que lhe tinham legado os liberaes, collocar
+de novo a Inglaterra á frente das nações, fazendo ressoar ao longe
+e ao largo a sua voz de leão...
+
+<P>
+Todo o paiz andou durante annos inchado com esta grandiosa filaucia,
+que Lord Beaconsfield ia sempre entretendo com os seus discursos bellicosos,
+as ameaças theatraes, as concentrações de frotas, um constante movimento
+de regimentos, invasões aqui e além, a occupação de Chypre, a quasi
+absorpção da propriedade do isthmo de Suez, sempre algum lance brilhante
+em que a Inglaterra apparecia entre os fogos de Bengala da sua eloquencia,
+como a senhora do mundo. E John Bull adorava isto, apesar de vêr que
+a espada da Inglaterra, depois de flammejar um momento nos ares, era
+invariavelmente recolhida á bainha; apesar de comprehender que o dinheiro
+se gastava como a agua das fontes; apesar de sentir que os impostos
+cresciam; apesar <span class="pagenum"><a name="pag_116">[116]</a></span> de perceber que a Inglaterra estava
+tomando sobre os hombros responsabilidades desproporcionadas com a
+sua força.
+
+<P>
+Depois, um dia, o grande senso pratico da Inglaterra viu claramente
+a necessidade de brilhar menos aos olhos do mundo&mdash;e de se occupar
+da machina interior, que começava a desarranjar-se: pôz fóra o grandioso
+Beaconsfield, e chamou o pratico Gladstone&mdash;o homem que reconstitue
+as finanças, que allivia os impostos, que faz as grandes reformas
+interiores... Mas, apesar de tudo, Beaconsfield ficou como o typo
+do estadista que mais que nenhum outro amou e desejou a grandeza imperial
+da patria.
+
+<P>
+A esta causa de popularidade deve juntar-se outra&mdash;a <i>reclame</i>.
+Nunca um estadista teve uma <i>reclame</i> igual, tão continua, em
+tão vastas proporções, tão habil. Os maiores jornaes de Inglaterra,
+da Allemanha, da Austria, mesmo da França, estão (ninguem o ignora)
+nas mãos dos israelitas. Ora o mundo judaico nunca cessou de considerar
+Lord Beaconsfield como um judeu&mdash;apesar das gotas d'agua christã
+que lhe tinham molhado a cabeça. Este incidente insignificante nunca
+impediu Lord Beaconsfield de celebrar nas suas obras, de impôr pela
+sua personalidade a superioridade da raça judaica,&mdash;e por outro lado
+nunca obstou a que o judaismo europeu lhe prestasse absolutamente
+o tremendo apoio do <span class="pagenum"><a name="pag_117">[117]</a></span> seu ouro, da sua intriga e da sua
+publicidade. Em novo, é o dinheiro judeu que lhe paga as suas dividas;
+depois é a influencia judaica que lhe dá a sua primeira cadeira no
+parlamento; é a ascendencia judaica que consagra o exito do seu primeiro
+ministerio; é emfim a imprensa nas mãos dos judeus, é o telegrafo
+nas mãos dos judeus, que constantemente o celebraram, o glorificaram
+como estadista, como orador, como escriptor, como heroe, como genio!
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Como romancista, Lord Beaconsfield nunca escreveu propriamente um
+romance tal como nós modernamente o comprehendemos. Alguns dos seus
+romances são pamphletos em que os personagens constituem argumentos
+vivos, triumphando ou succumbindo, não segundo a logica dos temperamentos
+e as influencias do meio, mas segundo as necessidades da controversia
+ou da these. Outros fórmam verdadeiras allegorias como as tem a pintura
+decorativa nas muralhas dos monumentos publicos. N'um dos mais celebres,
+<i>Lothair</i>, ha um mancebo ideal, encarnação do espirito inglez,
+que ama successivamente tres mulheres: uma italiana casada com um
+americano, bella creatura de perfil classico e fórmas de Deusa, que
+representa a Democracia; uma ardente rapariga de cabellos negros e
+revoltos, <span class="pagenum"><a name="pag_118">[118]</a></span> sempre em extasi, que é a personificação da
+Egreja Catholica; e emfim uma doce e loura donzella, séria, grave
+e terna, que symboliza o Protestantismo. Depois d'hesitar entre estas
+tres paixões&mdash;decide-se, como um bom inglez, por casar com o Protestantismo,
+quero dizer, com a loura, conservando um culto vago e secreto pela
+Democracia, quero dizer, pela soberba americana de perfil marmoreo.
+Moral: a felicidade d'um povo está na posse d'uma forte moral christã,
+alliada a um uso moderado da liberdade. Isto dava um excelente e apparatoso
+<i>fresco</i> na sala d'um parlamento. E Lord Beaconsfield accentua
+os detalhes allegoricos com uma tal ingenuidade, que faz por vezes
+sorrir; assim, por exemplo, a americana, isto é, a Democracia, apparece
+sempre em <i>soirées</i> e festas vestida á grega, com uma estrella
+de brilhantes na fronte, como a cabeça da <i>republica</i> nas moedas
+francezas de cinco francos!
+
+<P>
+O meio, em que os seus romances se passam, tem quasi sempre um ar
+feerico: tudo são, como disse ha pouco, palacios d'um fabuloso e sombrio
+luxo, festas como as não tiveram os Medicis, fortunas de banqueiros,
+de duques, perante as quaes os Cresus, os Monte-Christos, os Rothchilds,
+todos os ricaços da lenda ou da realidade apparecem como despreziveis
+pelintras.
+
+<P>
+A linguagem d'estes personagens corresponde <span class="pagenum"><a name="pag_119">[119]</a></span> ao esplendor
+das suas moradas e ao nebuloso dos seus destinos. <i>Misses</i> de
+dezoito annos, habitando prosaicamente Belgrave Square, fallam aos
+seus namorados com a pompa allegorica do <i>Cantico dos Canticos</i>;
+e quando (o que é frequente) dois brilhantes espiritos como Sidonia
+ou Mrs. Coningsby conversam, veem-se, cruzando rapidamente d'um a
+outro labio, as imagens rutilantes, os luminosos conceitos, como se
+as duas creaturas se estivessem recitando um ao outro numeros do <i>Intermezzo</i>
+ou sonetos de Petrarcha.
+
+<P>
+Esta linguagem, de resto, convem ás idéas, aos sentimentos, ás aventuras
+que elle atribue aos seus typos principaes; tudo o que é humano e
+real fica absolutamente de fóra d'essas transcendentes creações: fallando
+como poetas, comportam-se naturalmente como chimeras.
+
+<P>
+O seu mais famoso heroe, Tancredo, vae a Jerusalém e á Syria com este
+fim: <i>penetrar o mysterio asiatico</i>. Não percebem? É facil. Sendo
+Jerusalém e as planicies da Syria o unico ponto do Universo em que
+Deus, em tempos, conversou com o homem, em que appareceram os prophetas
+e os Messias, em que das sarças, do murmurio dos rios e do echo dos
+desertos surgiram as Leis Novas, dando á humanidade destinos novos&mdash;o
+moço Tancredo parte, para que lá, n'esses logares, Deus lhe falle,
+um raio de <span class="pagenum"><a name="pag_120">[120]</a></span> luz o divinize, uma religião lhe seja revelada,
+e tendo partido de Londres como simples lord, possa regressar a Regent
+Street, como Messias e regenerador de sociedades!
+
+<P>
+E (perguntar-me-hão) o que succede a Tancredo na Syria? O que succede
+a todos os personagens de Lord Beaconsfield, que nas primeiras paginas
+partem para sobrehumanos destinos, como os antigos cavalleiros da
+Tavola Redonda: succede-lhe que casa com uma linda e honesta menina,
+e que tem muitos filhos no meio de muita felicidade...
+
+<P>
+E o <i>mysterio asiatico</i>? Parece que o não achou. Mas descobriu
+coisas curiosas e de rara fabula: por exemplo, um povo pagão, onde
+reina uma bella sacerdotisa de Apollo, que celebra ainda hoje nobres
+cultos hellenicos, e que se namora de Tancredo. Mas Tancredo, cavalleiro
+christão, depois de a defender da invasão d'um outro povo, que adora
+idolos infames, foge, foge á desfilada, deixando a classica rainha
+a gemer de amor aos pés da estatua d'Astarte. Depois elle mesmo está
+para ser rei do Libano. Emfim, uma grandiosa e rutilante salsada.
+E tudo isto se passa ahi por 1855, no tempo da Exposição de Paris.
+
+<P>
+Mas que prodigioso talento, que arte, que amplidão d'imaginação
+para pôr de pé, em todo o seu brilho, este desordenado monumento d'Idealismo!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_121">[121]</a></span>&nbsp;
+
+<P>
+Com effeito, que artista fino e por vezes poderoso!
+
+<P>
+Apesar d'este abuso do gongorismo na ficção, do vago e ao mesmo tempo
+do amaneirado das suas concepções, d'estes enredos e d'estes personagens
+que por vezes parecem uma mystificação&mdash;os seus romances nunca
+deixam d'interessar, direi mesmo, nunca deixam de captivar. Atravessa-os
+sempre um enthusiasmo sincero&mdash;em que se sente o amor poetico com
+que elle segue os seus generosos heroes, as suas bellas mulheres,
+n'esses destinos fóra da realidade. Depois a sua fina sensibilidade,
+o seu idealismo um pouco convencional, mas de grande <i>elan</i>,
+os requintes d'um gosto supremo&mdash;levam-no a dotar os seus personagens,
+e a acção em que elles se movem, de uma tal belleza espiritual, de
+uma tão alta nobreza de costumes, que os olhos enlevam-se, a imaginação
+namora-se d'esse mundo ficticio, d'essa humanidade de poema, onde
+nada existe de vulgar ou de baixo, e onde brilham fórmas maravilhosas
+e transcendentes do pensar, do sentir e do viver.
+
+<P>
+Isto dá-lhe uma qualidade encantadora: é <i>luminoso</i>. Personagens,
+paizagens, interiores, o proprio movimento da aventura&mdash;tudo está
+banhado n'uma luz serena e graciosa. Pintando as cousas fóra da <span class="pagenum"><a name="pag_122">[122]</a></span>verdade social, não tendo de lhe apresentar as sombras tristes, exclue
+dos seus vastos quadros tudo o que na vida é duro, brutal, feio, máu,
+estupido&mdash;as fórmas varias da baixeza humana.
+
+<P>
+Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada&mdash;e
+mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia,
+batido de uma luz côr de rosa...
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Tenho insistido n'este lado <i>não real</i> dos livros de Lord Beaconsfield.
+Todavia, um homem d'estes, antigo <i>dandy</i>, critico, estadista,
+habituado a governar, observador por necessidade, não podia deixar
+de ter accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade;
+e essa experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas
+da vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações
+symbolicas, de indisciplinada imaginação (<i>Tancredo</i>, <i>Lothair</i>,
+<i>Sibyl</i>) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte,
+figuras de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e
+côr. São os seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus
+intrigantes, os seus homens de lettras, as suas mulheres da moda,
+os seus lords elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural.
+Londres conhecia-os, dava-lhes logo os <span class="pagenum"><a name="pag_123">[123]</a></span> nomes; e o escandalo
+d'estes retratos foi mesmo uma das grandes causas do successo de Lord
+Beaconsfield. Mas, mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres,
+e não conhece os originaes, estes typos interessam&mdash;porque <i>vivem</i>.
+
+<P>
+Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim
+em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente
+poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um
+relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por
+entre o nebuloso de uma mythologia.
+
+<P>
+São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield
+só elles ficarão lembrados.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de impressões,
+marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa como a
+de Lord Beaconsfield.
+
+<P>
+Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações:
+diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que
+foi apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista
+de genio&mdash;e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido,
+soffreu em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o <span class="pagenum"><a name="pag_124">[124]</a></span>rancor da parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor:
+é que todos os mediocres o detestavam.
+
+<P>
+É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre
+fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes manifestos
+das suas idéas de estadista&mdash;e fez romance no governo, que parecia
+muitas vezes um <i>scenario de drama</i>, sobre o qual elle estava
+de penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a
+Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais
+originaes.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Individualmente foi um <i>feliz</i>. Tendo, em novo, lançado o plano
+da sua vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o
+plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso,
+foi amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle
+dizia), deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido
+da sua rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo,
+e findou n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente,
+ditoso? Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto,
+d'um pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_125">[125]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION00900000000000000000">
+IX
+<BR>
+Os inglezes no Egypto</A>
+</H1>
+
+<P>
+
+<H2><A NAME="SECTION00910000000000000000">
+I</A>
+</H2>
+
+<P>
+
+<H4><A NAME="SECTION00911000000000000000">
+O que resta d'Alexandria.&mdash;A estreia d'Arabi Paxá.&mdash;Algemas ao
+café.</A>
+</H4>
+
+<P>
+Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo
+convidativo dos <i>Guias de viajantes</i> como uma rica cidade de
+250.000 habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora,
+prospera, tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum
+<i>Guia</i>, porém, por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe
+interessante.
+
+<P>
+Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas
+e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu
+no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum
+monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio
+mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em
+honra de Diocleciano, conhecida <span class="pagenum"><a name="pag_126">[126]</a></span> pelo sobrenome singular
+de <i>Pilar de Pompeu</i>, e mais longe, estendido n'um areal, um
+obelisco pharaonico do templo de Luxor, que gosava a grotesca alcunha
+de <i>Agulha de Cleopatra</i>. E esta mesma reliquia está agora em
+Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma peanha de bronze, allumiada
+pela luz electrica, aturdida pelo estrondo dos comboyos...
+
+<P>
+Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos,
+antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande metropole
+que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia vivendo da
+pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente d'uma
+vasta praça, a famosa <i>praça dos Consules</i>, orgulho de todo o
+Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas
+fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares
+francezes&mdash;como um <i>faubourg</i> de Bordéus ou de Marselha transportado
+para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.
+
+<P>
+A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram
+arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando
+em terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que
+a menor brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.
+
+<P>
+Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, <span class="pagenum"><a name="pag_127">[127]</a></span>insalubre, Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia,
+e depressa se apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava
+a estação, e se ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta,
+ao longo dos canaes, as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes
+do Egypto, outr'ora deuses, ainda hoje aves sagradas...
+
+<P>
+Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes,
+de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios
+de fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras
+fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus
+centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os
+seus mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de
+fardeta de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de
+Liverpool, onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de
+lança ao hombro, embaraçavam a passagem dos <i>tramways</i> americanos,
+onde os <i>sheiks</i>, de turbante verde, trotando no seu burro branco,
+se cruzavam com as caleches francezas dos negociantes, governadas
+por cocheiros de libré&mdash;Alexandria realizava o mais completo typo
+que o mundo possuia de uma cidade levantina, e não fazia má figura,
+sob o seu céo azul ferrete, como a capital commercial do Egypto e
+uma Liverpool do Mediterraneo.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_128">[128]</a></span>Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora
+em que escrevo, Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas.
+
+<P>
+Do bairro europeu, da famosa <i>praça dos Consules</i>, dos hoteis,
+dos bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares,
+resta apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede
+enegrecida que se vae alluindo.
+
+<P>
+Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.
+
+<P>
+Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar,
+em presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de Jehovah&mdash;uma
+d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da Biblia, quando
+o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta do peccado,
+corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma chaga
+viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o
+almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando
+com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone,
+os seus canhões de oitenta toneladas.
+
+<P>
+Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar
+aos nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se
+têm arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,&mdash;aos
+nomes de Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o <span class="pagenum"><a name="pag_129">[129]</a></span> santo, de
+Diocleciano, o perseguidor, e de Ben-Amon, o sanguinario&mdash;o nome
+de Sr. William Gladstone, o humanitario, o paladino das nacionalidades
+tyrannizadas, o apostolo da democracia christã. Mas se por um lado,
+evidentemente, a politica do snr. Gladstone não é um producto de pura
+ferocidade pessoal, como a de Caracalla, que fez arrasar Alexandria,
+porque um poeta d'essa cidade finmente dada ás letras o molestára
+n'um epigramma&mdash;por outro lado esta brusca aggressão de uma frota
+de doze couraçados, cidadellas de ferro fluctuando sobre as aguas,
+contra as decrepitas fortificações de Mehemet-Ali, este bombardeamento
+d'uma cidade egypcia, estando a Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se
+singularmente com a politica primitiva do califa Omar ou dos imperadores
+persas, que consistia n'isto:&mdash;ser forte, cahir sobre o fraco, destruir
+vida e empolgar fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui
+a <i>politica imperial d'Inglaterra</i>, ou <i>os interesses da
+Inglaterra no Oriente</i>, póde levar um ministro christão a repetir
+os crimes d'um pirata mussulmano, e o snr. Gladstone, que é quasi
+um santo, a comportar-se pouco mais ou menos como Ben-Amon, que era
+inteiramente um monstro. Antes não ser ministro d'Inglaterra! E foi
+o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não partilhar a cumplicidade
+d'esta brutal destruição d'uma cidade inoffensiva, deu a <span class="pagenum"><a name="pag_130">[130]</a></span>sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos de cincoenta
+annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de oposição...
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria,
+é de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes,
+as unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a
+tres mil legoas do Egypto e das suas desgraças.
+
+<P>
+No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour
+achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota,
+e tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão
+do almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões
+accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos
+ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando,
+de camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que,
+tendo o Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias
+financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns <i>coupons</i>,&mdash;a
+França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os interesses dos
+seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os srs. Coloin
+e Blegniéres, ambos <span class="pagenum"><a name="pag_131">[131]</a></span> com funcções de secretarios de fazenda
+no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a
+e applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa
+divida egypcia!
+
+<P>
+De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na
+realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados.
+No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous burguezes,
+Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o Egypto, um
+dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas altas civilisações
+do Occidente representavam simplesmente a usura armada.
+
+<P>
+Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam
+alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção
+estrangeira&mdash;porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva declarara-se
+<i>coacto</i>. Todos os que conhecem a historia contemporanea de Portugal
+e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que significa
+esta deliciosa phrase: <i>El-rei está coacto!</i> Isto quer dizer
+que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda
+que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e
+vem impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição
+de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_132">[132]</a></span>Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos
+fieis, enverga n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar
+o seu povo: se desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos
+cidadãos, então El-rei <i>declara-se coacto</i>, e pede a um rei visinho,
+mais forte e menos atarantado, que lhe mande uma divisão, a <i>restabelecer
+a ordem</i>&mdash;isto é a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta
+d'autoridade regia, dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica.
+Isto hoje, realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao
+que parece, é ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos
+nacionaes.
+
+<P>
+O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um
+<i>pronunciamento</i> planeado, á maneira hespanhola, mas posto em
+scena á moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso
+Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois
+do <i>salamalek</i>, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente
+a aba da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica
+de Santo Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas,
+algumas puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas,
+para bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma
+mudança de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases
+sobre <span class="pagenum"><a name="pag_133">[133]</a></span> o <i>amor da nação, a felicidade dos subditos</i>,
+que o ceremonial indica nas occasiões d'atrapalhação regia e pareceu
+tão satisfeito com o interesse, que aquelles officiaes tomavam pela
+prosperidade do valle do Nilo, que os recompensou á maneira oriental&mdash;convidando-os
+a um banquete. Em torno da festiva mesa a cordealidade foi grande,
+o <i>champagne</i> espumou contra as prescripções do Alcorão, e entre
+o sabor das truffas e o aroma dos ramos, o futuro do Egypto appareceu
+côr de rosa... O café foi servido nos jardins: e quando d'um lado
+entravam os escudeiros com os licores, do outro surgiram beleguins
+com algemas. Arabi e os seus camaradas, levando ainda na bocca o ultimo
+charuto que lhes offerecera Sua Alteza, foram conduzidos ás palhas
+do carcere.
+
+<P>
+Não ha nada mais delicioso&mdash;nem mais turco.
+
+<P>
+A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a
+energia de Sua Alteza!
+
+<P>
+
+<span class="pagenum"><a name="pag_134">[134]</a></span>
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_135">[135]</a></span>
+<H2><a name="SECTION00920000000000000000"></a>
+<BR>
+II
+</H2>
+
+<P>
+
+<H4><A NAME="SECTION00921000000000000000">
+A desforra de Arabi.&mdash;Reformadores e coroneis.&mdash;O
+programma fellah.&mdash;A conferencia de Constantinopla.&mdash;A confusão
+do Grão-Turco.&mdash;As esquadras.</A>
+</H4>
+
+<P>
+O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho.
+
+<P>
+Ao abrir o seu <i>Times</i> ou o seu <i>Journal des Débats</i> (porque
+este principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses
+dous ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado
+energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande Mehemet-Ali,
+vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem nos seus
+estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das potencias.
+
+<P>
+Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas&mdash;doze mil
+homens com dezoito peças d'artilharia&mdash;supplicando que Sua Alteza
+soltasse Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta
+razão, honrosa para a logica árabe: que, <span class="pagenum"><a name="pag_136">[136]</a></span> approvando o
+exercito as reformas de Arabi-Bey, entendia que elle as executaria
+muito mais confortavelmente sentado na poltrona de ministro da guerra
+do que estirado nas palhas do carcere.
+
+<P>
+O Khediva, que acabava talvez de saborear no <i>Times</i> mais uma
+glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre respeitara
+Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:&mdash;e Arabi-Pachá
+passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes...
+
+<P>
+Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão
+ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como
+os foguetes que estalam n'esse dia&mdash;e de que ordinariamente, como
+dos foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados
+a isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva,
+que as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que
+o não viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha.
+
+<P>
+Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto
+natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e desnecessaria
+ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso <i>principios
+de oitenta e nove ineditos</i> nos sarcophagos dos Pharaós. Não, de certo.
+Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse uma <span class="pagenum"><a name="pag_137">[137]</a></span>Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o começo
+de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto governando-se
+a si mesmo, um <i>Egypto para os Egypcios</i>&mdash;não uma raça escrava
+enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio franco
+para os esfomeados europeus.
+
+<P>
+A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador&mdash;era
+o ser elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas
+tristes aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam
+ao comprido do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs&mdash;a
+peior que existe sobre a terra&mdash;elle, mais que ninguem, tinha direito
+a erguer-se em nome dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo,
+Arabi era um soldado que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições
+do Alto Egypto e nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo
+o orgulho da farda, e todo o pedantismo do sabre, não só repassado
+de militarismo, mas enfrascado em militança&mdash;e, portanto, prompto,
+desde que a sua voz resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções
+do exercito... Elle representava, por origem e por profissão, as duas
+grandes classes do povo egypcio&mdash;o soldado e o fellah;&mdash;e desde
+o momento em que entre os egoistas, os voluptuosos, os escravos e
+os interesseiros, elle pareceu <span class="pagenum"><a name="pag_138">[138]</a></span> ser o unico homem no Egypto
+que se arriscava, de bom grado, pelas suas ideias, ao exilio e á enxovia,&mdash;tornou-se
+bem depressa, e naturalmente, chefe do <i>partido popular</i> que
+queria as grandes reformas nacionaes, e pela mesma occasião caudilho
+do <i>partido militar</i>, que só appetecia vantagens de classe. Assim,
+em Arabi, o patriotismo confundia-se infelizmente com a insubordinação.
+
+<P>
+Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de
+idéas largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador,
+as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official revoltado.
+Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas tivessem egual
+valor na obra da regeneração do Egypto&mdash;que elle pedia uma constituição
+parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para os coroneis
+seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que desejavam
+a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde sahiam
+grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas
+pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do
+povo, e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado
+de patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento.
+
+<P>
+Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso
+moderno espirito europeu;<span class="pagenum"><a name="pag_139">[139]</a></span> mas Arabi é um egypcio; e no
+Egypto, onde o povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer
+das nossas plebes, é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos,
+e onde o exercito constitue a classe culta&mdash;a obra de progresso tem
+necessariamente de ser feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se
+sabe isto&mdash;ou, antes, finge-se que não se sabe. As exigencias da
+tarimba puzeram na sombra as reclamações da cabana&mdash;e Arabi perdeu
+na Europa a auctoridade que podia ter como chefe dos fellahs por fallar
+de espada na mão, d'entre um quadrado de soldados...
+
+<P>
+De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do
+antigo typo, que apenas leu um livro&mdash;o Alcorão. Mas, como homem,
+possue qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não
+ousam negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente.
+E como patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente
+muito egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e
+soffria de vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como
+outr'ora pelos gafanhotos;&mdash;mas esses limitavam-se a curvar tristemente
+os hombros, invocando o nome de Allah.
+
+<P>
+Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte,
+não póde attender a tudo, e <span class="pagenum"><a name="pag_140">[140]</a></span> que, portanto, se resolveu
+a tirar a espada em nome do fellah, contra a oppressão colligada dos
+pachás turcos e dos agiotas christãos.
+
+<P>
+Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição?
+
+<P>
+Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do
+Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como consequencia
+d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos dinheiros publicos,
+que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte para o harem
+do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as cohortes cerradas
+de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande parte, para pagar
+os <i>coupons</i> de divida em Pariz e Londres, ficando tão pouco
+para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se não
+dava soldo ao exercito!
+
+<P>
+Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido
+perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela
+sua honra:&mdash;sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem
+installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do imposto,
+para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para satisfazer
+a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o fellah,
+que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de recorrer
+<span class="pagenum"><a name="pag_141">[141]</a></span> ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se
+officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia secretamente
+o agiota!...
+
+<P>
+Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com
+a situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas.
+Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros
+estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto.
+O desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para
+os estrangeiros, que, sob o nome de <i>tribunaes mixtos</i>, distribuem
+duas justiças&mdash;uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe.
+Emfim, esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem
+dados exclusivamente a estrangeiros&mdash;e que se não pagassem annualmente,
+como se pagavam, mais de <i>trez mil contos</i> de bom dinheiro egypcio,
+a francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas
+as repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado
+como aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston,
+foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois
+de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha
+visto o seu regimento e <i>ainda mesmo não tinha uniforme</i>!
+
+<P>
+Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de <span class="pagenum"><a name="pag_142">[142]</a></span> Arabi,
+e não se imagina facilmente a apopletica indignação que ellas causaram
+á França republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma
+féra. Na Bolsa de Pariz, no <i>Stock-exchange</i> de Londres, onde
+os fundos egypcios tinham descido, pedia-se com energia a suppressão
+immediata d'esse iniquo aventureiro.
+
+<P>
+Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas
+pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa.
+
+<P>
+As potencias occidentaes <i>trocaram as suas vistas</i>, segundo a
+hedionda phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto <i>estava
+em anarchia</i>. O Khediva, esse já se declarara <i>coacto</i>, e urgia
+<i>descoactar</i> rapidamente esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro.
+A Inglaterra e a França, pois, (paizes que dizem ter interesses superiores
+no Egypto) mandaram as suas esquadras ás aguas de Alexandria, para
+aterrar Arabi. Póde-se perguntar até que ponto seis couraçados, sem
+tropas de desembarque e ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar
+um ministro da guerra, seguro no Cairo, a dez horas de caminho de
+ferro, cercado de vinte mil homens de tropas regulares, apoiado por
+quatro milhões de população fellah, alliado aos grandes chefes beduinos,
+e sanctificado pela approvação religiosa dos Ulemas...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_143">[143]</a></span>Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação,
+como o <i>Times</i>, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma
+insensatez. Em todo o caso fez-se&mdash;e acompanhada de um documento,
+um papelucho diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo,
+parecia arrancado a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto,
+apresentado gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava
+o Khediva a que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para
+além das cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo,
+as suas honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui,
+amigos, toda a folia de um <i>vaudeville</i>? De um lado o Khediva
+abandonado, em palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado
+na equivoca fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos;
+do outro lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e
+as mesquitas. E a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para
+a Nubia este Arabi! Conheceis cousa alguma que mais reclame a <i>verve</i>
+do chorado Offenbach? Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre
+dentes que o papelucho era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr
+o resultado: Arabi encolheu os hombros, adjudicou-se mais o ministerio
+da marinha, e substituiu alguns dos outros ministros, antigos familiares
+do Khediva, por homens seus, gente de nervo e de arranque.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_144">[144]</a></span>Perante esta resposta dada ao seu <i>ultimatum</i>, a
+Europa ficou, se me é licito este dizer irreverente&mdash;<i>de orelha
+murcha</i>. E então tomou a decisão das grandes crises; delegou diplomatas
+que se sentaram em torno de uma mesa de panno verde, e enterraram
+pensativamente a cabeça entre os punhos. Chamou-se a isto a <i>Conferencia
+de Constantinopla</i>. O seu fim, todo louvavel, era <i>resolver a
+questão do Egypto</i>.
+
+<P>
+E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou
+de existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas;
+o general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto
+é terra britannica&mdash;e ella ainda lá está, a resolver!
+
+<P>
+Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta
+auctoridade! Ainda lá está...
+
+<P>
+Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa
+de panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!...
+
+<P>
+Depois de reunida a <i>Conferencia</i>, a Europa, naturalmente, lembrou-se
+que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo
+ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem
+nos seus agitados dominios.
+
+<P>
+Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia.
+
+<P>
+É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia <span class="pagenum"><a name="pag_145">[145]</a></span> hesita.
+Por um lado, os Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito,
+armam marinha, cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por
+outro lado, pagam tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem
+de pachá a sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao
+chefe do Islam, como o presente que o rei catholico de Hespanha manda
+todos os annos ao papa? É uma prestação annual da tremenda somma,
+porque Mehemet-Ali e depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a
+sua independencia? É simplesmente um <i>pourboire</i>?... Seja como
+fôr, o tributo existe&mdash;e, fundado n'elle, a Europa appellou para
+o Sultão. Arabi, bom crente, devia venerar o Sultão; o Sultão, bom
+pae, podia exterminar Arabi. E aqui começa a famosa comedia das vacillações
+do Sultão.
+
+<P>
+Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o
+sob o pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca,
+um pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali,
+quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos
+califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no
+Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo
+este caso, os <i>ulemas</i> da mesquita d'El-Azhar, o grande centro
+religioso e o grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona
+do <span class="pagenum"><a name="pag_146">[146]</a></span> Oriente, possuindo no mundo mussulmano uma auctoridade
+igual á de um Concilio no mundo catholico,&mdash;tinham declarado que
+se o Sultão, em nome da Europa christã, pegasse em armas contra gente
+mahometana, tornava-se <i>ipso facto</i> apostata, e <i>ipso facto</i>
+perdia o califado. Por um lado tambem o Sultão, tendo, ao que se diz,
+recebido de Arabi promessas de depor o Khediva e proclamar em seu
+logar Helim-Pachá, que é em Constantinopla o conselheiro e o favorito
+do serralho&mdash;conspirava com Arabi contra o Khediva; mas por outro
+lado, tinha noticia das intelligencias de Arabi com o scherif de Meca,
+que, sendo o descendente directo de Mahomet, possue mais que o Sultão
+direitos ao califado, e é n'esta santa pretensão apoiado por todas
+as tribus da Arabia; e, receiando assim que Arabi se tornasse o auctor
+de um scisma no islamismo, o Sultão procurava minar-lhe a influencia
+crescente&mdash;e conspirava com o Khediva contra Arabi. Por um lado ainda,
+uma vaga revolução constitucional em paiz mussulmano era odiosa ao
+Sultão; mas, por outro, a maneira como Arabi, alma d'esse movimento,
+estava tratando d'alto parte da Europa colligada, lisongeava profundamente
+o seu coração turco. Emfim, este miserando chefe dos crentes não sabia
+onde havia de dar com a sua cabeça imperial... Não se pense, por este
+dizer ligeiro, que eu não respeito o Sultão: <span class="pagenum"><a name="pag_147">[147]</a></span> Abdul-Hamid
+não é um califa do antigo typo, embrutecido pelo uso de tres mil mulheres,&mdash;mas,
+segundo a expressão do principe de Bismarck, «um dos espiritos mais
+finos da Europa». Ora, o principe de Bismarck é um entendedor; ainda
+que, a meu vêr, duas cousas estragam esta famosa finura: primeira
+o ser excessiva, de modo que Abdul-Hamid, a maior parte das vezes,
+tropeça e fica enredado na engenhosa complicação dos seus proprios
+fios; depois o estar ao serviço, não de idéas praticas, mas de fantasias
+mysticas, como a que se lhe attribue de renovar, na ordem espiritual
+e em seu proveito, o imperio prophetico de Mahomet.
+
+<P>
+Emfim, instado pela Europa a intervir no Egypto, e não querendo que
+a Europa interviesse, porque isso seria a perda do seu pingue tributo
+annual, o Sultão decidiu-se a enviar Dervich-Pachá, uma velha raposa
+podre de manhas, com a missão de fazer reentrar Arabi no aprisco dos
+humildes. Mas apenas Dervich-Pachá começava esta operação, eis que
+o Sultão inquieto, vendo Arabi e o scherif de Meca de mãos dadas sobre
+o tumulo do Propheta, remette a Arabi a grande ordem do Medjidieh,
+a mais nobre condecoração turca, o favor supremo que póde cahir das
+mãos do califa, acompanhada de uma florida carta de amizade e d'uma
+esplendida placa de diamantes.
+
+<P>
+Isto tudo dá a medida da confusão do Grão-Turco.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_148">[148]</a></span>Arabi, assim glorificado pelo califa, resplandeceu aos
+olhos do mundo mussulmano com um prestigio maior; Dervich-Pachá, um
+instante aturdido, redobrou de duplicidade:&mdash;e foi então entre Dervich,
+e Arabi, e o Khediva, e o Sultão, e as potencias, e os consules, e
+os pachás, e os coroneis, uma intriga tão emaranhada que eu prefiriria
+fazer-lhes um resumo lucido dos vinte e cinco volumes das <i>Façanhas
+de Rocambole</i>, do que penetrar na espessura inextricavel d'este embroglio
+turco-europeu&mdash;uma d'essas intrigas fastidiosas que devem enervar,
+fazer chorar de séca e de fadiga a Providencia, se ella, como affirmam
+philosophos que estão na sua intimidade, é obrigada a observar minuciosamente
+todos os successos humanos! Quanto o homem com a sua tolice deve,
+por vezes, fazer bocejar Deus!
+
+<P>
+Durante estes successos, emquanto a Europa chafurdava no atoleiro
+diplomatico, as duas esquadras de França e de Inglaterra, lá continuavam
+deante de Alexandria <i>manifestando</i>. Do romper do sol ao occaso,
+immoveis nas aguas calmas, com as camisolas da marujada seccando nas
+vergas, alli estavam <i>manifestando</i>...
+
+<P>
+Os officiaes repousavam de vez em quando d'esta rigida attitude de
+<i>manifestação</i> arranjando um <i>pic-nic</i> em terra, indo fazer
+um <i>robber</i> de <i>whist</i> ao club inglez, ou organisando, sob
+as sombras dos jardins de Ramleh, honestas partidas de <i>cricket</i>.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_149">[149]</a></span>
+
+<H2><A NAME="SECTION00930000000000000000">
+III</A>
+</H2>
+
+<P>
+
+<H4><A NAME="SECTION00931000000000000000">
+Episodio oriental.&mdash;Mussulmanos e christãos.&mdash;Uma
+estrumeira social.&mdash;Opiniões de mesa redonda.&mdash;Os funccionarios
+europeus do Cairo.&mdash;As dividas d'Ismail-Pachá.&mdash;O dia 11 de junho.</A>
+</H4>
+
+<P>
+Achando-se as cousas assim, amanheceu o dia 11 de junho, que d'ora
+em deante na historia&mdash;n'esse curto instante de notoriedade humana,
+que emphaticamente se chama a <i>historia</i>&mdash;será conhecido por
+este gallicismo: <i>o massacre de Alexandria</i>.
+
+<P>
+O primeiro episodio oriental que eu vi, ao desembarcar ha doze annos
+em Alexandria, foi este: no caes da alfandega, faiscante sob a luz
+torrida, um empregado europeu&mdash;europeu pelo typo, pela sobrecasaca,
+sobretudo pelo bonnet agaloado&mdash;estava arrancando a pelle das costas
+d'um arabe, com aquelle chicote de nervo d'hippopotamo, que lá chamam
+<i>courbach</i>, e que é no Egypto o symbolo official da auctoridade.
+
+<P>
+Em redor, sem que esse espectaculo parecesse desusado ou escandaloso,
+alguns arabes transportavam <span class="pagenum"><a name="pag_150">[150]</a></span> fardos; outros empregados
+agaloados, de chicote na mão, davam ordens por entre o fumo do cigarro...
+
+<P>
+Saciado ou cançado, o homem do <i>courbach</i>, que era um magrisella,
+atirou um derradeiro pontapé á anatomia posterior do arabe&mdash;como
+quem, ao fim d'um periodo escripto com <i>verve</i>, assenta vivamente
+o seu ponto final&mdash;e, voltando-se para o meu companheiro e para mim,
+offereceu-nos, de bonnet na mão, os seus respeitosos serviços. Era
+um italiano, e encantador. A esse tempo o arabe (como quasi todos
+os fellahs, um soberbo homem de formas esculpturaes) depois de se
+ter sacudido como um Terra-Nova ao sahir d'agua, fôra-se agachar a
+um canto, com os olhos luzentes como braza, mas quieto e fatalista,
+pensando de certo que Allah é grande nos céos e necessario na terra
+o <i>courbach</i> do estrangeiro.
+
+<P>
+Quando, no dia 11 de junho, eu li esses telegrammas, repassados de
+panico, em que se annunciava á Europa que a população arabe massacrava
+os europeus nas ruas da Alexandria,&mdash;não sei porque revi logo o cáes
+da alfandega, o italiano serviçal de bonnet agaloado, o <i>courbach</i>
+estalando nas costas escuras do arabe. Isto não é trazido como allegoria,
+para dizer que as relações dos europeus e dos egypcios se reduziam
+a estas duas attitudes&mdash;um <span class="pagenum"><a name="pag_151">[151]</a></span> braço com manga de panno
+fino erguendo o <i>courbach</i>, e um dorso semi-nú esperando a sova:
+muito menos quero insinuar que o massacre do dia 11 foi a tardia vingança
+d'estas brutalidades burocraticas...
+
+<P>
+O Egypto não é a Serra Leoa; e o crescente ainda não anda tão de rastos
+que consinta em ser systematicamente espancado pela cruz. Mas a verdade
+é que no Egypto um qualquer empregado europeu da alfandega, das docas,
+ou dos caminhos de ferro, que não ousaria erguer a mão para um carrejão
+europeu,&mdash;retalha a pelle d'um egypcio, tão naturalmente e com tanta
+indifferença como se sacode uma mosca importuna.
+
+<P>
+É que o europeu d'Alexandria considerava o fellah egypcio como um
+sêr de raça infima, incivilisavel, mero animal de trabalho, pouco
+differente do gado; e se tivesse o estylo de La Bruyère, descrevel-o-hia
+como La Bruyère descrevia os aldeãos do tempo de Luiz XIV, «vultos
+escuros, curvados sobre a terra e tendo a vaga apparencia de seres
+humanos...»
+
+<P>
+N'estas condições de desprezo, usa-se facilmente o <i>courbach</i>
+e invariavelmente a insolencia...
+
+<P>
+E note-se que o europeu não tinha muito mais respeito pelo egypcio
+das classes superiores ou cultas. Qualquer amanuense de consulado
+julgaria da <span class="pagenum"><a name="pag_152">[152]</a></span> sua dignidade d'europeu não ceder o passo
+ao mais velho e nobre scheik, senhor de dez tribus e descendente do
+propheta; e o mais insignificante empregado dos telegraphos, leitor
+do <i>Figaro</i>, não nutriria senão desdem pelos sabios doutores
+da Universidade d'El-Azhar, que não vão ao café ler o <i>Figaro</i>,
+e pouco sabem de telegraphia.
+
+<P>
+Mas este absurdo desprezo por uma nobre raça, a quem a civilisação
+tanto deve, não se manifestava só entre os europeus de Alexandria,
+colonia de alluvião, formada pelos detritos das populações do Mediterraneo:
+não ouvimos nós ainda ha dias o proprio snr. Gambetta declarar das
+alturas da tribuna da camara franceza, esse Sinai da burguezia, que
+o povo egypcio só podia ser governado a chicote?...
+
+<P>
+A complicada abundancia da nossa civilisação material, as nossas machinas,
+os nossos telephones, a nossa luz electrica, tem-nos tornado intoleravelmente
+pedantes: estamos promptos a declarar desprezivel uma raça, desde
+que ella não sabe fabricar pianos de Erard; e se ha algures um povo
+que não possua como nós o talento de compor operas comicas, consideramol-o
+<i>ipso-facto</i> votado para sempre á escravidão...
+
+<P>
+Por outro lado, os egypcios olhavam para o europeu como para a ultima
+e mais terrivel praga do <span class="pagenum"><a name="pag_153">[153]</a></span> Egypto, uma outra invasão de
+gafanhotos, descendo&mdash;não do céo, onde ruge a colera de Jehovah,
+mas dos paquetes do Mediterraneo, com a sua chapeleira na mão&mdash;a
+alastrar, devorar as riquezas do valle do Nilo. E este prejuizo não
+é especial ás classes incultas: o pachá mais bem informado, educado
+em França, lendo como nós a <i>Revista dos Dous Mundos</i>, nunca
+reconhecerá o que o Egypto deve á energia, á sciencia, ao capital
+europeu; para elle, como para o ultimo burriqueiro das praças do Cairo,
+o europeu é mais que o intruso&mdash;é o <i>intrujão</i>.
+
+<P>
+O arabe de modo nenhum se julga inferior a nós; as nossas industrias,
+as nossas invenções não o deslumbram; e estou mesmo que, do calmo
+repouso dos seus harens, o grande ruido que nós fazemos sobre a terra,
+lhe parece uma vã agitação. Elle sente por nós o pasmo misturado de
+desdém que póde sentir um philosopho, vendo trabalhar um pelotiqueiro.
+O pensador diz comsigo que não é capaz de equilibrar uma espingarda
+sobre o nariz, e lamenta-o; mas consola-se reflectindo que o saltimbanco
+não é susceptivel de ligar duas idéas. Assim, o mussulmano admira
+um momento o nosso gaz, os nossos apparelhos, os nossos realejos,
+todo o nosso genio mecanico; depois cofia a barba, sorri, e pensa
+comsigo: «Tudo aquillo prova paciencia e engenho, mas eu tenho dentro
+em mim alguma cousa de melhor, <span class="pagenum"><a name="pag_154">[154]</a></span> e superior mesmo ao vapor
+e á electricidade&mdash;é a perfeição moral que me dá a lei de Mahomet.»
+
+<P>
+De resto, nós o sabemos pelas xacaras da nossa mocidade, sempre o
+crescente detestou a cruz; e póde-se imaginar quaes são os seus sentimentos,
+agora que a cruz, em logar de o combater como paladino, o explora
+como agiota.
+
+<P>
+Se em cidades como Damasco ou Beyrouth o europeu <i>touriste</i> inoffensivo,
+que passa com a bolsa aberta, excita olhares e murmurios de odio,
+sómente porque tudo n'elle é differente, desde os dogmas da sua religião
+até á fórma do seu chapéo&mdash;calcule-se o que se dá em cidades como
+Alexandria e como Tunis, onde o europeu não é <i>touriste</i> amavel
+que distribue gorgetas, mas o agenciador soffrego que vem instalar-se
+alli como em terra que conquistasse para arredondar depressa um peculio,
+sob a bandeira do seu consul.
+
+<P>
+Accrescente-se que no Egypto o europeu apparecia aos olhos do arabe
+com o caracter odioso de um privilegiado.
+
+<P>
+Uma cousa parecia intoleravel&mdash;é que o europeu empolgasse todos os
+logares, todos, desde as gordas sinecuras até os diminutos empregos
+de cem francos por mez.
+
+<P>
+Vagava um obscuro posto de carteiro ou de telegraphista&mdash;e concorriam,
+de um lado um arabe <span class="pagenum"><a name="pag_155">[155]</a></span> honesto e activo, do outro um sacripanta
+de nacionalidade grega ou malteza. A quem se dava o emprego? Ao sacripanta.
+
+<P>
+Este systema, fecundo a principio, quando o Egypto era uma barbara
+provincia turca, e os europeus chamados eram homens de saber especial
+e de integridade, começou no tempo de Mehemet-Ali, que tentava
+fazer uma nação sobre as ruinas do velho pachalato, e que convidava
+para essa obra a sciencia e o capital europeu: continuou depois com
+Said-Pachá, esse delicioso <i>bon-vivant</i>, tão francez que passava
+os dias a fazer <i>calembourgs</i>, e que não admittiria em torno
+de si, e nas repartições do estado, senão cavalheiros capazes de apreciar
+o <i>Charivari</i>; mas a grande invasão de empregados europeus consumou-se
+no tempo de Ismail-Pachá,&mdash;que acceitava tudo o que vinha da Europa,
+os especialistas e os vadios, os que traziam uma idéa e os que só
+traziam dividas...
+
+<P>
+O Egypto renovou então a velha lenda do El-Dorado. Quem em Pariz,
+ou em Londres, ou em Roma, se via filado pelos credores, com a derradeira
+sobrecasaca a coçar-se nos cotovellos, e sem poder voltar ao seu <i>club</i>,
+por dever dez francos ao porteiro, obtinha de um diplomata ou de um
+principe uma carta de recommendação para o Khediva e tomava o paquete
+de Alexandria.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_156">[156]</a></span>Lá, nos primeiros dias, tinha o hotel pago por Sua Alteza&mdash;ao
+fim do mez emprego dado por Sua Alteza. Qualquer cousa: se era um
+velho tenor de sala, já sem voz, nomeava-se coronel de cavallaria;
+se era um militar desacreditado, despachava-se inspector das escolas.
+Quem não podia alcançar uma carta para o Khediva, ia rojar-se aos
+pés do consul. Quem não ousava apresentar-se ao consul, empregava
+as influencias transversaes do paço, as mais poderosas&mdash;os eunucos,
+os cosinheiros, as dançarinas... O emprego vinha, facil e pingue.
+E o fellah pagava toda a malta.
+
+<P>
+Mas o peior ainda eram os funccionarios superiores, que as potencias
+installavam no interior da administração egypcia&mdash;tão ciumentas umas
+das outras, que, se, por exemplo, a França conseguia accommodar um
+francez na directoria geral das finanças, logo a Inglaterra, para
+contrabalançar essa parcella de influencia, empurrava um inglez para
+dentro do estado-maior da marinha; e por seu turno a Italia, já desconfiada,
+mettia á força um filhote de Roma na direcção da instrucção publica.
+Alguns d'estes cavalheiros tinham de certo habilidades de especialistas;
+mas a sua abundancia mesmo enredava o movimento da machina administrativa.
+Está hoje provado que o Khediva, cedendo a estas pressões, era obrigado
+a ter <i>seis empregados para fazer o simples trabalho de um</i>!
+<span class="pagenum"><a name="pag_157">[157]</a></span> Todo este mundo formava um estado no estado.
+
+<P>
+Nas suas repartições de finança, nos seus tribunaes, nos seus estados
+maiores, nas suas commissões, em todos os recantos da sua administração,
+o Egypto só via faces estrangeiras, só escutava linguas estrangeiras,
+só sentia interesses estrangeiros; e o dinheiro egypcio mantinha esta
+cohorte, que só estava alli para annullar a influencia egypcia. E
+eram ao menos uteis?... O consul-geral dos Estados Unidos conta, n'um
+livro recente sobre o Egypto, que jantara um dia no Cairo com seis
+empregados superiores, todos estrangeiros, cujos ordenados sommados
+subiam annualmente a perto de <i>cem contos</i>! Nas suas repartições,
+a correspondencia, a escripturação, a contabilidade, tudo era feito
+em lingua arabe: <i>e nenhum d'elles sabia o arabe</i>!
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Não havia talvez sobre a terra peior população que a de Alexandria.
+Essa cidade, que fôra outr'ora o refugio do saber e do luxo do oriente,
+tornara-se nos nossos dias, sob o Khediva Ismail-Pachá, o barril de
+lixo da Europa meridional. Todo o refugo humano da Grecia, das ilhas
+do Archipelago, da Italia, da Sicilia, de Marselha (e Deus sabe quanto
+estas <span class="pagenum"><a name="pag_158">[158]</a></span> bellas paragens classicas abundam em meliantes!)
+se esvasiava instinctivamente sobre Alexandria, alastrava-a, tornava-a
+sob o seu bello céo azul-ferrete uma fetida estrumeira social.
+
+<P>
+Bastava atravessar uma rua, para comprehender o conjuncto dos costumes.
+
+<P>
+A cada esquina, um <i>café-cantante</i> atulhado d'uma malta enxovalhada,
+que berra, cachimba, emborca aguardente, emquanto sobre o tablado,
+por traz da ribalta, uma matrona despeitorada e caiada vae rouquejando
+um estribilho obsceno... De dez em dez casas um lupanar, separado
+apenas da rua por uma simples cortina... Por toda a parte o jogo:
+um sacripanta traz uma pequena roleta, um banco, e no meio da rua
+installa a batota; em redor apinham-se logo outros sacripantas, e
+d'ahi a momentos a policia tem de acudir, porque corre sangue...
+
+<P>
+O viajante de gosto e de educação tinha de fugir bem depressa d'esta
+atmosphera, refugiar-se n'algum quieto café mussulmano, á beira d'agua
+tranquilla. Ahi ao menos só havia arabes que fumavam gravemente o
+seu <i>chibouk</i>, fallavam entre si com pollidez, comportavam-se
+com dignidade.
+
+<P>
+Ah! estou d'aqui a vêr a primeira mesa redonda a que me sentei em
+Alexandria!
+
+<P>
+Era presidida por um grego de pelle livida, de suissas reluzentes
+como verniz de sapatos, com um <span class="pagenum"><a name="pag_159">[159]</a></span> grilhão de ouro sobre
+o collete denotado e brilhantes, talvez verdadeiros, n'uma camisa
+de oito dias! Que intrujão! que bandido! Como aquillo rolara por todas
+as trapaças, todos os deboches do littoral levantino! O bom era ouvil-o
+fallar do Egypto como de um paiz conquistado, terra de ilotas que
+tinha obrigação de o vestir, de o calçar, de lhe encher a bolsa a
+elle, e aos outros que o applaudiam em torno da mesa redonda, todos
+europeus, agenciadores, empregadotes, simples vadios, todos de grilhões
+de ouro no relogio, de collarinho decotado, o carão resudando vicio,
+o fallar parlapatão, galãs de espelunca...
+
+<P>
+&mdash;<i>L'arabe, monsieur</i>, dizia-me este equivoco personagem, n'um
+francez do Pireu, <i>ce n'est qu'une infecte canaille</i>!
+
+<P>
+O infecto canalha eras tu, livido grego!
+
+<P>
+É evidente que o que tornou Arabi mais popular no Egypto, foi a sua
+hostilidade aos estrangeiros. <i>O Egypto para os egypcios!</i> Esta
+phrase, todo um programma, calou fundo no animo do povo inteiro.
+
+<P>
+O Egypto para os egypcios&mdash;não para os empregados estrangeiros, nem
+para os agiotas estrangeiros...
+
+<P>
+Ah! esta questão dos credores! A famosa questão da divida egypcia!
+Em que gastou Ismail-Pachá esses centenares de milhões que a Europa
+lhe emprestou, <span class="pagenum"><a name="pag_160">[160]</a></span> e que o pobre fellah está pagando? Em
+primeiro logar, na realisação de uma idéa economica&mdash;o converter
+o Egypto, que é um paiz agricola, n'uma nação industrial. O Egypto
+produzia o assucar&mdash;porque o não refinaria? Possuia o algodão&mdash;porque
+o não teceria? E ahi começou, á força de milhões, a cobrir as margens
+do Nilo d'essas colossaes fabricas, de que hoje só restam ruinas;&mdash;ruinas
+de ferro enferrujado e de madeira podre, tão miseraveis e tão tristes,
+ao lado das bellas ruinas graniticas dos templos pharaonicos, representando,
+como ellas, a servidão de um povo, mas, pela sua fealdade, não podendo
+ao menos servir, como ellas, nem para assumpto de uma aquarella...
+
+<P>
+A outra causa da ruina do Khediva foi a sua prodigalidade. Quem não
+conhece essa lenda illustre? Quem se não lembra das festas do canal
+de Suez? Ahi cada verba se contou por milhões. Dois milhões para a
+illuminação do Cairo. Quatro milhões para o banquete de Ismailia.
+Despezas com os dois mil convidados durante quinze dias no Cairo e
+no Canal&mdash;setenta milhões!... Para o champagne bebido n'essas semanas
+de bambocha&mdash;dous milhões! O fellah pagava.
+
+<P>
+Eh! E eu que estou aqui a fallar&mdash;tambem o bebi, esse champagne que
+era no fundo o suor do fellah espumante e assucarado! Tambem eu fui
+hospede <span class="pagenum"><a name="pag_161">[161]</a></span> de Ismail-Pachá, á custa do fellah! Tambem eu...
+Calemo-nos, cubramos a fronte de cinzas, imploremos o perdão do fellah!
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+O resultado d'estas fantasias industriaes, d'estes luxos de Salomão,
+foi que o Egypto se achou devendo á Europa centenares de milhões,
+por que pagava um juro de <i>sete por cento</i>, e, como burgueza
+prudente que zela os seus interesses, a Europa tinha pouco a pouco
+tomado conta da administração do Egypto...
+
+<P>
+Quando Arabi quiz modificar este systema, que convertia o povo egypcio
+n'uma horda de servos trabalhando para os financeiros de Pariz e Londres&mdash;as
+esquadras de França e Inglaterra appareceram logo, pedindo o desterro
+de Arabi, e o licenceamento do exercito, que era o instrumento e a
+força do partido nacional. Os arabes viram n'isto um odioso abuso
+da força, a Inglaterra e a França querendo manter á bala os interesses
+dos possuidores dos titulos da divida egypcia e os privilegios dos
+intrusos.
+
+<P>
+Desde esse momento Arabi tornou-se um libertador; e o Khediva, que
+as esquadras vinham proteger contra Arabi, passou a ser o renegado,
+o traidor.
+
+<P>
+Esta era a situação no dia 11 de junho. Alexandria tornara-se uma
+fornalha de excitação. Nas mesquitas prégava-se com furor a cruzada
+contra o <span class="pagenum"><a name="pag_162">[162]</a></span> christão: nos bazares fallava-se do estrangeiro
+como do cão maldito, da ave de rapina, peior que o gafanhoto que devora
+a seara nos campos ferteis do Nilo; e, ou fôsse o fanatismo que despertasse,
+ou fôsse a miseria que se queria vingar&mdash;todo o bom mussulmano se
+armava.
+
+<P>
+N'estas circumstancias, de uma chufa de botequim póde nascer uma guerra
+de raças. E, pouco mais ou menos, assim succedeu. Na manhã do dia
+11, na rua das Irmãs, uma das mais ricas do bairro europeu, um inglez,
+por um velho habito, deu chicotadas n'um arabe; mas, contra todas
+as tradições, o arabe replicou com uma cacetada. O inglez fez fogo
+com um revólver. D'ahi a pouco o conflicto entre europeus e arabes,
+em pleno furor, tumultuava por todo o bairro... Isto durou cinco horas&mdash;até
+que, por ordens telegraphadas do Cairo, a tropa, até ahi neutral,
+acalmou as ruas. E o resultado, bem inesperado, mas comprehensivel,
+desde que se sabe que os arabes só tinham cacetes e que os europeus
+tinham carabinas&mdash;foi este: perto de cem europeus mortos, mais de
+trezentos arabes dizimados. Os jornaes têm chamado a isto o <i>massacre
+dos christãos</i>: eu não quero ser por modo algum desagradavel aos meus
+irmãos em Christo, mas lembro respeitosamente que isto se chame a
+<i>matança dos mussulmanos</i>.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_163">[163]</a></span>
+<H2><a name="SECTION00940000000000000000"></a>
+<BR>
+IV
+</H2>
+
+<P>
+
+<H4><A NAME="SECTION00941000000000000000">
+A fuga dos europeus.&mdash;O grande sonho inglez.&mdash;O «casus
+belli».&mdash;A vespera do bombardeamento.</A>
+</H4>
+
+<P>
+Esta <i>matança de christãos</i>&mdash;para continuarmos a dar-lhe a sua
+alcunha diplomatica&mdash;puxou bruscamente a attenção do mundo que lê
+jornaes para o Egypto, e por isso devem ahi ter presentes e vivos&mdash;sem
+que se torne necessario o rememoral-os, detalhe a detalhe&mdash;todos
+os episodios que n'uma semana se desencadearam uns sobre os outros,
+com uma barafunda de melodrama: a indignação excessiva e tumultuosa
+da Europa, excitada pelo clamor e pelos gritos da imprensa ingleza;
+o desordenado panico que se apossou dos europeus residentes no Egypto;
+e o facto, estranho mesmo n'essa terra de classicos exodos, de uma
+colonia de mais de <i>cem mil</i> almas abandonando de repente o solo,
+onde, desde gerações se estabelecera, deixando occupações, interesses,
+empregos, casa e fazenda, precipitando-se <span class="pagenum"><a name="pag_164">[164]</a></span> apavorada para
+os caes de embarque, apinhando-se em paquetes, em navios de carga,
+em barcaças, em qualquer cousa que pudesse fluctuar na agua, e fugir
+da terra funesta, pagando a peso de ouro o direito de se agachar n'um
+buraco de porão; a maneira magistral como a Inglaterra, pelos officiaes
+da sua armada, organisou e policiou esta nova fuga dos hebreus; emfim,
+a chegada a Alexandria do Khediva, que perdera toda a auctoridade
+no Cairo, e colhia a opportunidade de vir abrigar os restos esfrangalhados
+da sua realeza sob os canhões do almirante Seymour.
+
+<P>
+Arabi-pachá, que se tornára, de facto, dictador, correu tambem a Alexandria&mdash;e
+o seu primeiro passo foi estabelecer tribunaes marciaes, para julgarem
+os <i>massacradores</i> do dia 11.
+
+<P>
+Note-se que se não tratava, nem por sombras, de punir os europeus
+que tinham mandado <i>tresentos</i> mussulmanos d'esta terra de miserias
+para o paraiso de Allah; mas sómente os mussulmanos suspeitos de terem
+posto mãos violentas sobre christãos. Ainda assim, os jornaes inglezes
+bradaram logo que não se podia ter confiança na justiça, na imparcialidade
+dos magistrados egypcios, tão hostis ao estrangeiro como á populaça&mdash;e
+que taes julgamentos não passavam d'uma farça, onde os réus, que se
+mostravam um momento á Europa carregados de ferros postiços, <span class="pagenum"><a name="pag_165">[165]</a></span>eram depois, por traz dos bastidores, acclamados como bons patriotas.
+
+<P>
+Arabi-pachá propoz então que esses tribunaes se compuzessem de juizes
+arabes e de officiaes inglezes. Isto indicava um desejo vivo, quasi
+uma sofreguidão de justiça. E, com effeito, se o partido nacional
+agora todo poderoso, se não mostrasse severo&mdash;corria o perigo de
+passar por cumplice; e se as suas refórmas tinham já inspirado tanta
+antipathia á Europa&mdash;o que seria se a elle se pudessem plausivelmente
+attribuir taes attentados?
+
+<P>
+De resto, para um mussulmano orthodoxo e fino como Arabi, toda a violencia
+contra o estrangeiro, contra o hospede, constitue a mais negra violação
+da lei santa. Arabi era sincero. Mas a Inglaterra não acceitou as
+suas propostas...
+
+<P>
+A Inglaterra não acceitou. A Inglaterra estava armada a bordo dos
+seus couraçados. E, todavia, mais que nenhuma outra nação ella soffrera
+com os tumultos d'Alexandria: o seu consul, brutalmente espancado,
+achava-se á morte; alguns dos officiaes da esquadra tinham recebido
+no uniforme, que é o orgulho da Grã-Bretanha, a lama e as pedradas
+da populaça egypcia; a maior parte dos europeus assassinados eram
+de nacionalidade ingleza; contra a Inglaterra se prégara a guerra
+nas mesquitas, nos bazares, e até sob a tenda beduina...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_166">[166]</a></span>Mas a Inglaterra, generosa e paternal, queria esquecer
+essas injurias. Pudera!
+
+<P>
+É que não lhe convinha reconhecer as atrocidades do dia 11 como um
+mero e casual episodio de fanatismo mussulmano, a que algumas grilhetas
+e algumas cordas de forca poriam definitivamente termo; nem lhe convinha
+descer dos seus couraçados unicamente para ir a um tribunal ajudar
+a sentenciar dez ou doze facinoras.
+
+<P>
+O que á Inglaterra convinha, era attribuir a este conflicto local
+a magnitude de uma anarchia nacional, e offerecer ou impor o seu prestimo&mdash;não
+para castigar os tumultos de um bairro, mas para pacificar todo um
+paiz em desordem. E assim ella rejubilava com a chegada d'esse dia
+tão appetecido, tão pacientemente esperado desde o começo do seculo,
+tão anciosamente espiado desde a abertura do canal de Suez, em que
+teria emfim um pretexto para assentar na terra do Egypto o seu pé
+de ferro, essa enorme pata anglo-saxonia, que, uma vez pousada sobre
+territorio alheio, seja um rochedo como Gibraltar, uma ponta de areia
+como Aden, uma ilha como Malta, ou todo um mundo como a India&mdash;nenhuma
+força humana póde jámais arredar ou mover.
+
+<P>
+Já se não tratava de libertar o Khediva coacto, de defender as algibeiras
+dos portadores do emprestimo egypcio. Um interessse mais alto, ligado
+<span class="pagenum"><a name="pag_167">[167]</a></span> com os destinos do Imperio, levantava-se, dominava tudo.
+
+<P>
+<i>O Egypto estava em anarchia</i>: logo competia á Inglaterra, paladino
+da civilisação, restabelecer lá a ordem, impedil-o de recahir no estado
+barbaro.
+
+<P>
+<i>O Egypto estava em anarchia</i>: logo competia á Inglaterra, como
+grande potencia oriental, defender essa parte preciosa da terra egypcia&mdash;o
+canal de Suez, e evitar que elle cahisse nas mãos de Arabi ou de outro
+dictador mussulmano, hostil aos beneficios da civilisação.
+
+<P>
+É o que pouco mais ou menos respondia a Inglaterra, e bem alto, para
+que o mundo ouvisse&mdash;quando Arabi-pachá lhe propoz uma alliança judicial
+para punir o crime mussulmano do dia 11.
+
+<P>
+&mdash;Não, dizia John Bull, não se trata do dia 11! Esqueçamos o dia
+11. Esqueçamol-o, como se elle fosse apenas o dia 7. A questão é outra.
+<i>O Egypto está em anarchia.</i> É necessario salvar a civilisação!
+
+<P>
+E estas nobres palavras significavam, despidas dos seus atavios humanitarios,
+que a Inglaterra, sob o pretexto de pacificar o Egypto, desembarcaria
+em Alexandria, occuparia por motivo de operações militares Port-Said
+e Suez, as duas portas do canal, e depois&mdash;depois nunca mais, n'esses
+pontos estrategicos do caminho da India, se arriaria a bandeira ingleza!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_168">[168]</a></span>E, feito isto, ficava realisado o grande sonho britannico:&mdash;posse
+absoluta da estrada das Indias; John Bull fazendo sentinella a todas
+as portas succesivas que conduzem ao seu imperio do Oriente: á entrada
+do Mediterraneo, Gibraltrar e o seu rochedo inexpugnavel; no Mediterraneo,
+Malta e Chypre, duas ilhas, dois collossaes depositos de guerra: á
+entrada do canal, Port-Said; ao fim do canal e á bocca do Mar Vermelho,
+Suez; á beira do Golfo Persico, Aden; e d'ahi por deante as suas esquadras
+varrendo os mares...
+
+<P>
+Deante d'esta esplendida opportunidade se achou a Inglaterra, depois
+das carnificinas de Alexandria; e, tendo logo declarado <i>officialmente</i>
+o Egypto em anarchia, sem perda de um momento, começou a armar-se.
+
+<P>
+E, no meio de tudo isto&mdash;a Europa? Oh! a Inglaterra convidava, com
+bellos ademanes de desinteresse, a Europa a partilhar com ella a honra
+de pacificar o Egypto! Mas sabia bem que nenhuma das potencias moveria
+um soldado: nem mesmo a França, que tinha uma frota na bahia de Alexandria
+e collaborára nas manifestações platonicas; a França, governada por
+uma democracia burgueza que enriquece, e tornada toda ella uma vasta
+casa de negocio, não quereria por cousa alguma perturbar aquella paz
+tepida e doce em que amadurece o Milhão.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_169">[169]</a></span>Além disso, as potencias já tinham resalvado a sua dignidade,
+sentando-se em torno da mesa verde da conferencia, á beira das aguas
+luminosas do Bosphoro, meditando com a cabeça entre os punhos a solução
+da questão egypcia. E, emquanto ao resto, estavam-se observando, armadas
+até os dentes, desconfiadas, ciumentas, odiando-se, mas immobilisadas
+reciprocamente pela propria magnitude dos seus armamentos.
+
+<P>
+A França receia a Allemanha; a Turquia teme a Russia; a Austria está
+contida por ambas; a Italia necessita a benevolencia de todas; e cada
+uma por seu turno treme do snr. de Bismarck, o hediondo papão, o Jupiter
+trovejante do Olympo diplomatico, que, no seu retiro de Varzin, torturado
+por toda a sorte de males, passa parte do tempo sob a influencia da
+morphina...
+
+<P>
+De resto, que todas appeteciam os despojos do Egypto, só o póde duvidar
+quem ignore os instinctos de pilhagem, de gatunice, de pirataria,
+que alberga sempre a alma d'um povo civilisado; mas nenhuma das potencias
+é, como a Inglaterra, uma ilha cercada d'um mar agitado, onde se move
+a maior frota da terra; e, apertadas no estreito continente, hombro
+contra hombro e espada contra espada, nenhuma dellas ousaria dar um
+passo para o lado do Egypto, com receio que o vizinho lhe saltasse
+ás <span class="pagenum"><a name="pag_170">[170]</a></span> guellas. Limitavam-se, por isso, cheias de rancor,
+a trocar phrases de diplomatica doçura, sentadas á mesa da <i>conferencia</i>.
+
+<P>
+Quando, deante d'uma casa fechada, os que lhe appetecem as riquezas,
+discutem, de penna na mão, a melhor maneira de lá entrar&mdash;a vantagem
+pertence toda áquelle que, em logar d'uma penna, se muniu d'um machado
+e atira de subito a primeira machadada á porta. Foi o que fez a Inglaterra.
+Emquanto os outros faziam planos <i>pro-forma</i> em cima d'uma carteira&mdash;ella
+fez fogo sobre Alexandria.
+
+<P>
+Sómente não se póde atacar uma cidade inoffensiva sem um pretexto.
+E a Inglaterra foi, á falta de outro melhor, forçada a apresentar
+um tão máu, que, como dizia a <i>Associação dos Positivistas Inglezes</i>,
+no seu protesto contra a invasão do Egypto, a sua puerilidade só consegue
+augmentar a sua immoralidade.
+
+<P>
+Perante os armamentos da Inglaterra, Arabi-pachá, se lhe não comprehendia
+as intenções espoliadoras, devia pelo menos concluir que era contra
+elle, contra o partido que elle dirigia, e contra as idéas que elle
+encarnava, que a Inglaterra se estava preparando; e, muito naturalmente,
+na espectativa de um ataque, organisou a sua defesa, artilhando os
+fortes de Alexandria, e erguendo baterias novas pela costa.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_171">[171]</a></span>Foi contra isto que a Inglaterra protestou; e foi d'isto
+que fez um <i>casus belli</i>&mdash;declarando que, se as obras dos fortes
+não cessassem, ella destruiria os fortes!... Sem estar em guerra com
+o Egypto, ella considerava-se no direito de reunir deante de Alexandria
+uma frota ameaçadora; mas não admittia que as auctoridades de Alexandria
+concertassem sequer as brechas das velhas fortificações de Mehemet-Ali!
+
+<P>
+E que explicações estupendas o snr. Gladstone dava á Europa para justificar
+o <i>casus belli</i>! As baterias que Arabi ergue (dizia elle), os
+novos canhões que monta, <i>põem em perigo os couraçados inglezes</i>!
+E os couraçados não punham em perigo os fortes? Mas ao lado da esquadra
+ingleza estavam navios de guerra francezes, allemães, italianos, gregos,
+austriacos&mdash;tão expostos ás balas de Arabi como os que hasteavam
+o pavilhão britannico: e esses não se julgavam <i>em perigo</i>!
+
+<P>
+Que diria a Inglaterra se o commandante de algum dos couraçados francezes
+ou allemães, que por vezes vêm ancorar nas aguas de Portsmouth ou
+de Southampton&mdash;mandasse de repente prohibir ao governador de uma
+d'essas praças a continuação das obras de defesa que ahi se vão incessantemente
+aperfeiçoando, sob o pretexto de que taes baterias <i>poderiam
+fazer mal</i> ao navio de seu commando?... Com <span class="pagenum"><a name="pag_172">[172]</a></span> tal precedente,
+os almirantes inglezes, que honram frequentemente o humilde porto
+de Lisboa com a presença dos seus pavilhões&mdash;estariam auctorisados
+a exigir a destruição da torre de S. Julião, do Bugio e de Belém!
+Dir-se-hia que não é de prever que o portuguez, pacato e bonacheirão,
+faça fogo&mdash;muito menos sobre couraçados inglezes. De accordo. Mas
+que ganharia Arabi-pachá em mandar de surpreza algumas balas á esquadra
+ingleza&mdash;e portanto ás outras que estavam no mesmo ancoradouro&mdash;senão
+o attrahir sobre si, e o seu partido, e o seu paiz, a pavorosa vingança
+da Europa inteira, injuriada em todos os seus pavilhões?
+
+<P>
+Arabi fez uma cousa fina: cedeu, promettendo interromper os trabalhos
+de defesa. E a Inglaterra ficou desapontada. Esta submissão de Arabi
+desmanchava o seu engenhoso plano.
+
+<P>
+Alguns jornaes mais cynicos e impacientes chegavam a aconselhar que
+se não respeitasse a palavra d'um vil mussulmano&mdash;e que se fosse
+<i>bombardeando</i>! O trabalho então da frota foi vigiar incessantemente
+as fortificações, na esperança de descobrir algum sapador, d'enxada
+ao hombro, que desmentisse a promessa d'Arabi. De noite, os couraçados
+projectavam sobre a costa longos e vivos raios de luz electrica, movendo-os
+lentamente ao longo das baterias, pesquizando anciosamente os menores
+recantos, <span class="pagenum"><a name="pag_173">[173]</a></span> procurando o mais leve vestigio de trabalho&mdash;fosse
+elle um cesto de pedras esquecido; e assim foi que uma noite&mdash;noite
+venturosa para o governo do snr. Gladstone!&mdash;a esquadra descobriu
+dois soldados limpando um velho canhão! Que allivio para a Inglaterra!
+Immediatamente o almirante Seymour mandou este <i>ultimatum</i> a
+Toulba-pachá, governador da cidade:&mdash;dentro em vinte e quatro horas
+os fortes deveriam ser entregues ás tropas inglezas, ou toda a linha
+de couraçados abriria fogo sobre Alexandria. A isto, realmente, só
+se póde responder a grande palavra de Cambronne em Waterloo.
+
+<P>
+Lamento que Arabi a não dissesse: era a segunda vez na historia que
+John Bull a receberia em plena face.
+
+<P>
+A vespera do bombardeamento foi dramatica. O almirante Seymour fez
+sahir da bahia todos os navios mercantes; e, depois, com a usual etiqueta,
+convidou os navios de guerra de outras nações a fazerem-se ao largo,
+levando para fóra da linha de fogo a neutralidade das suas bandeiras.
+Essa longa procissão de couraçados de toda a Europa, deixando lentamente
+as aguas da Alexandria, para que a Inglaterra pudesse livremente commetter
+o seu attentado&mdash;é descripta pelos correspondentes inglezes como
+cheia de solemnidade e de ceremonial. As salvas succediam-se; uns
+aos outros cortejavam-se os <span class="pagenum"><a name="pag_174">[174]</a></span> pavilhões dos almirantes.
+Os ultimos a sahir foram os navios francezes, os alliados na <i>manifestação</i>,
+que, honra lhes seja, não quizeram ser alliados no crime:&mdash;e a tricolor
+afastou-se tambem, saudada pelo almirante Seymour, entre os <i>hurrahs</i>
+de despedida da marinhagem e o estridor da <i>Marselhesa</i>. A tarde
+estava bella; tudo era luz na bahia; os minaretes d'Alexandria branquejavam
+no azul... Magnifico espectaculo, sem duvida:&mdash;sómente que pensariam
+d'elle os milhares de pobres arabes, de mulheres e de creanças, que
+o contemplavam das alturas da cidade, e sobre os quaes ia cahir no
+dia seguinte bala, metralha e bomba?
+
+<P>
+Por fim, a noite desceu e estrellou-se; á beira da agua calma luziam
+as luzes d'Alexandria; tudo ficou em silencio na bahia.
+
+<P>
+Estavam a sós, frente a frente, sob a paz dos ceus, uma grande esquadra
+ingleza e a cidade inoffensiva que ella, na madrugada seguinte, para
+satisfazer a sofreguidão mercantil de um povo de lojistas, ia friamente
+arrasar.
+
+<P>
+
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_175">[175]</a></span>
+<H2><a name="SECTION00950000000000000000"></a>
+<BR>
+V
+</H2>
+
+<P>
+
+<H4><A NAME="SECTION00951000000000000000">
+Depois do bombardeamento.&mdash;Os incendios.&mdash;As responsabilidades.&mdash;Uma
+Alexandria ingleza.&mdash;A invasão.&mdash;A attitude da Europa.</A>
+</H4>
+
+<P>
+O almirante Seymour, dias antes, tinha declarado que em duas breves
+horas desmantelaria os fortes de Alexandria. Ao cabo, porém, de nove
+compridas horas ainda não fizera calar as baterias egypcias; e ainda
+justamente uma bomba vinha escavacar a camara do commandante do <i>Inflexivel</i>.
+
+<P>
+Sir Beauchamp Seymour reconheceu, nos seus despachos para o almirantado,
+«que os melhores artilheiros da Europa se poderiam orgulhar de uma
+tão bella resistencia». Mas nem coragem, nem reductos, nem muralhas
+de granito prevalecem contra esses negros monstros que desfeiam os
+mares&mdash;o <i>Monarcha</i>, o <i>Alexandra</i>, o <i>Soberbo</i>, o
+<i>Sultão</i>, o <i>Invencivel</i>, o <i>Minotauro</i>, e tantos outros
+que lá estavam, movediços castellos de ferro, servidos pelas forças
+combinadas do vapor, da hydraulica, da electricidade, <span class="pagenum"><a name="pag_176">[176]</a></span>devastadores como um cataclysmo e exactos como uma sciencia.
+
+<P>
+Pobres fortalezas de Mehemet-Ali! Foi a velha fabula da panella de
+barro contra que tombou a panella de bronze. Ao anoitecer, eram apenas
+montões de ruinas fumegando em silencio...
+
+<P>
+Estava consummada a façanha! Na bahia, agora, tudo cahira n'uma grande
+paz; a noite descera calma e escura; os enormes couraçados repousavam;
+da cidade vencida não vinha o menor ruido; só n'um ponto de terra
+o palacio de Rasel-tin ardia ao abandono. Foi então que o eloquente
+correspondente do <i>Standard</i> telegrahou para o seu jornal esta
+phrase que merece fama:&mdash;<i>A situação não póde ser mais satisfactoria!</i>
+
+<P>
+Pelo meio da noite, porém, da parte de Alexandria, onde ficava a <i>Praça
+dos Consules</i>, começou a erguer-se um vasto clarão. Alli, evidentemente,
+havia um incendio. Mas como? Porque?
+
+<P>
+O almirante Seymour lavaria d'ahi as suas mãos&mdash;se tivesse a bordo
+a bacia de Poncio Pilatos. Elle concentrára escrupulosamente o seu
+fogo sobre os fortes: uma ou outra bomba poderia ter cahido nos bairros
+arabes&mdash;e nada mais legitimo, nem de mais salutar terror; mas a parte
+européa de Alexandria fôra poupada... E todavia, era lá que o incendio
+se estendia avermelhando, aquecendo o ceu; e de <span class="pagenum"><a name="pag_177">[177]</a></span> outros
+pontos visinhos iam subindo na noite altas labaredas. Diabo! A situação
+já não era tão satisfactoria...
+
+<P>
+Ao outro dia houve um tempo muito nublado, com um mar muito forte.
+Os couraçados, por precaução, fizeram-se ao largo. Quando, horas depois,
+vieram retomar as suas posições de combate, Alexandria, deante d'elles,
+ardia toda como uma monstruosa fogueira. Positivammente, não era nada
+satisfactoria a situação!
+
+<P>
+Não era. Arabi-pachá abandonára Alexandria, levando o grosso do
+exercito. E a população mussulmana, enfurecida por nove horas de bombardeamento,
+sem policia para a conter, com os <i>ulemas</i> a excital-a, tomada
+da cobiça da pilhagem, e inflammada pela furia das represalias, correra
+aos bairros europeus,&mdash;e incendiou, saqueou, matou, destruiu; matou
+pela raiva de matar, porque até pobres cavallos de carruagem appareceram
+esquartejados; destruiu pela raiva de destruir, porque se acharam
+nas ruas, aos pedaços, vestidos de senhoras, relogios de sala e oculos
+de theatro...
+
+<P>
+Ferocidades de fanatismo, que se arremessa n'uma vingança indiscriminada
+sobre tudo o que lhe represente a raça, os costumes, as idéas que
+elle odeia&mdash;sobre os homens e sobre os espelhos. Isto não se dá só
+em paiz mussulmano. Sempre que os <span class="pagenum"><a name="pag_178">[178]</a></span> parizienses invadiam
+as Tulherias, rasgavam á ponta de sabre o setim das poltronas...
+
+<P>
+Collocou-se a população de Alexandria, por taes excessos, fóra da
+humanidade? Os inglezes dizem que sim; eu digo que nós teriamos feito
+o mesmo, nós europeus, christãos e podres de civilisação. Se, quando
+os allemães estavam bombardeando Pariz&mdash;os parizienses vissem no
+centro da sua cidade um bairro exclusivamente allemão, compacto, monumental,
+luxuoso, erguido pelo dinheiro que o allemão ganhára a explorar a
+França,&mdash;resistiriam os parizienses, os mais civilisados dos mortaes,
+a besuntal-o de petroleo e fazel-o flammejar por uma bella noite de
+inverno?
+
+<P>
+A resposta é facil, lembrando-nos que, quando por seu turno o snr.
+Thiers, esse homunculo de estado, bombardeou Pariz, os parizienses
+apressaram-se a destruir o palacete do snr. Thiers.
+
+<P>
+Foi Arabi que ordenou o incendio de Alexandria? Não, evidentemente.
+Arabi não é um patriota selvagem, do typo d'esse Rostopchin que queimou
+Moscou: é um fellah fino e sagaz, que sabe que na Europa, na Inglaterra
+sobretudo, onde affectamos todos uma sensibilidade humanitaria, nada
+desacredita mais que uma fria crueldade. Basta observar a attitude
+polida, quasi paternal que elle toma com os prisioneiros inglezes&mdash;o
+guarda-marinha Chair, por exemplo.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_179">[179]</a></span>Quando este official foi levado ao acampamento arabe,
+Arabi disse-lhe logo, depois d'um <i>shake-hands</i>.
+
+<P>
+&mdash;Escreva a sua mãe, conte-lhe que está entre mãos leaes, e tire-a
+d'inquietações...
+
+<P>
+Isto era de certo sincero&mdash;mas sobre tudo habil: e uma tal palavra
+voou direita ao coração de todas as mães inglezas. Desde os conflictos
+d'Alexandria, o empenho d'Arabi tem sido proteger os europeus que
+ainda restam nas villas do interior. Os <i>cadis</i> que não evitaram
+o massacre dos empregados do caminho de ferro do Delta, foram decapitados.
+A elle se deve a tranquillidade do Cairo, onde existe uma enorme massa
+de propriedades e riquezas européas. Que ganharia Arabi em destruir
+esta prospera cidade egypcia, no começo da campanha e com o seu exercito
+intacto? Apenas a fama d'um monstro boçal.
+
+<P>
+Á Inglaterra cabe a responsabilidade da catastrophe. As bombas do
+almirante talvez, com effeito, não tivessem arrasado mais que alguns
+casebres arabes; mas á imprevidencia do governo se deve a ruina d'Alexandria.
+
+<P>
+Desde o meiado de junho, o mais experiente, mais auctorisado dos seus
+agentes diplomaticos, o snr. E. Malet, consul geral do Egypto, não
+cessou de bradar&mdash;que se o bombardeamento era inevitavel, Sir Beauchamp
+Seymour devia ter tropas de desembarque, <span class="pagenum"><a name="pag_180">[180]</a></span> para occupar
+a cidade, apenas os fortes fossem destruidos, e impedir assim que,
+no caso provavel de Arabi se retirar para o interior, ella ficasse
+á mercê d'uma plebe semi-barbara...
+
+<P>
+Nada d'isto se fez.
+
+<P>
+Sir Beauchamp Seymour bombardeou, arrasou, repelliu virtualmente d'Alexandria
+a Arabi, a unica força que continha uma populaça de cem mil fanaticos&mdash;e,
+depois, ficou a bordo do seu couraçado, vendo tranquillamente arder,
+deante de si, uma das mais ricas cidades do Mediterraneo.
+
+<P>
+Por outro lado, a quem aproveitava o incendio? Á Inglaterra. O pretexto
+de que os fortes <i>punham em perigo os couraçados britannicos</i>,
+só a auctorisava, perante os escrupulos da Europa, a destruir os fortes,
+não a occupar a cidade. Agora, porém, que ella estava em chammas,
+abandonada á anarchia, á pilhagem, ao ataque das hordas beduinas que
+corriam do deserto&mdash;agora ella tinha o direito&mdash;mais, ella tinha
+o dever!&mdash;de desembarcar e ir salvar de uma total aniquilação tanta
+riqueza, tão esplendido centro de commercio!...
+
+<P>
+Generosa Inglaterra! E desembarcou logo, aquartelou tropa, plantou
+bandeira. Tinha deante de si um monte de ruinas, e em poucos dias
+foi dando fórma a uma Alexandria nova, já com feição ingleza e administrada
+á ingleza.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_181">[181]</a></span>Os incendios foram dominados; as ruas desentulhadas; estabeleceu-se
+uma policia terrivel, que executava summariamente os ladrões e os
+incendiarios; abasteceu-se a cidade: a alfandega reabriu as portas;
+em substituição das lojas destruidas, armaram-se barracões de venda;
+o machinismo judicial foi posto em movimento; reparou-se a fabrica
+do gaz, a cidade foi reilluminada; os bancos voltaram a funccionar.
+
+<P>
+E, como era necessaria uma auctoridade, em nome de quem se reorganisasse
+a vida municipal, os inglezes, que apenas estão alli (diziam elles)
+como um corpo de policia, foram buscar o Khediva a uma casa dos arredores,
+onde elle se refugiara durante o bombardeamento, e installaram-n'o
+solemnemente no palacio de Ras-el-tin, palacio meio ardido, onde elle
+é uma auctoridade meio morta!...
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Desde este momento, a situação tornou-se muito definida, muito simples.
+Os inglezes possuiam, governavam Alexandria, tão naturalmente como
+se ella estivesse situada no condado de Yorkshire; e de fronte d'Alexandria,
+n'essa especie de isthmo arenoso que a liga á terra do Delta, estava
+Arabi n'um acampamento entrincheirado, governando d'ahi todo o valle
+do Nilo e o deserto até o mar. Os inglezes <span class="pagenum"><a name="pag_182">[182]</a></span> recebiam incessantes
+reforços de casa e da India. Arabi chamava á guerra contra os inglezes
+todo o povo fellah. A Inglaterra preparava uma invasão. Arabi organisava
+uma grande defesa nacional. Nada mais claro. A questão é entre a Inglaterra,
+procurando estabelecer um protectorado sobre o Egypto, arrancar-lhe
+as cidades estrategicas que dominam o canal, e Arabi-pachá, um patriota,
+que quer o Egypto para os egypcios, que receia a protecção do estrangeiro
+como a peior desgraça de um paiz fraco, e que entende que, pelo facto
+de que Alexandria, Port-Saïd e Suez se acham desgraçadamente no caminho
+da India, não é motivo para que se tornem guarnições inglezas. E dos
+dous lados, grande enthusiasmo.
+
+<P>
+Em Londres, onde acabou a <i>season</i> e começa a monotonia das praias
+de banhos, o partir para conquistar o Egypto passou a considerar-se
+uma feliz aventura. Se o ministerio da guerra o consentisse&mdash;toda
+a mocidade de ouro, ou apenas de latão dourado, se alistaria, porque
+é do mais requintado <i>chic</i> ir dar cabo de Arabi!
+
+<P>
+O duque de Connaugth, um dos filhos de S. M. a Rainha, faz parte da
+expedição, e o duque de Teck, seu cunhado, não sendo militar, partiu,
+diz-se, como simples empregado do correio. Os officiaes dos regimentos
+de guardas, essa pura nata da aristocracia e flôr da finança, tiveram
+a ventura de vêr os seus <span class="pagenum"><a name="pag_183">[183]</a></span> luxuosos regimentos, de ornamentação
+monarchica, expedidos para o Egypto; sómente este natural prazer foi
+em parte estragado pela severidade do ministerio da guerra, que, como
+se tratava de uma campanha e não de um torneio, não consentiu que
+esses gentis-homens fôssem seguidos por equipagens, creados de librés,
+tendas de luxo e caixas de vinho de Champagne.
+
+<P>
+Um d'estes officiaes exprimiu alto a sua indignação, porque o estado-maior
+só lhe consente tres cavallos de sella, dous creados de quarto e cinco
+malas de bagagem!
+
+<P>
+Por outro lado, ao comprido do Nilo toda a população fellah se declarou
+por Arabi; como por elle se declararam as classes lettradas, as mesquitas,
+os <i>ulemas</i>, os <i>coptas</i>, os proprios principes parentes
+do Khediva. Os <i>mudirs</i>, governadores de provincias, pagam-lhe
+a elle os impostos. Os <i>scheiks</i> do deserto mandam-lhe a sua
+cavallaria.
+
+<P>
+E este ardor é tanto maior, quanto Arabi-pachá foi de ha muito prophetisado;
+já a sua inesperada entrada no governo se considerou um advento divino;
+e este rebelde (como outros rebeldes que tão gloriosamente fizeram
+o seu caminho na terra e no ceu) é Messias!
+
+<P>
+Uma antiga prophecia mussulmana annuncia que no seculo decimo terceiro
+da Hegira nascerá á beira <span class="pagenum"><a name="pag_184">[184]</a></span> de um grande rio um homem de
+raça vil, por nome Ahmet, que se revoltará, e restaurará o esplendor
+do Islam; ora, os arabes estão no século XIII da Hegira, e Arabi,
+cujo nome é Ahmet, cuja origem é <i>fellahina</i>, tendo nascido n'uma
+aldêa á margem do Nilo, revoltou-se contra o seu califa. Assim, elle
+reune o duplo prestigio de um Spartacus e de um Christo.
+
+<P>
+Concentrada a questão entre uma poderosa nação invasora e um patriota
+que defende o seu solo&mdash;a Europa tomou logo a sua tradicional attitude:
+isto é, murmurou algumas palavras de branda admoestação, e depois
+recuou para longe, a observar como um braço forte sabe usar da sua
+força, a estudar como se consuma a espoliação de um fraco.
+
+<P>
+Nos ultimos quinze annos a Prussia roubou a Dinamarca, e depois foi
+pela Allemanha saqueando reinos e grãos ducados; em seguida, desmembrou
+a França; mais tarde a Russia espatifou a Turquia; ha dous annos,
+subitamente, a Republica Franceza cahiu sobre Tunis, e empolgou esse
+desventurado estado barbaresco. Em cada um d'estes casos a Europa
+comportou-se como um coro das operas d'antiga escola, quando membrudo
+barytono, ahi pelo quarto acto, erguia o ferro sobre o tenor gentil
+e magrizela: o côro adeanta-se, modula uma larga phrase, agita os
+braços em cadencia, faz o commentario <span class="pagenum"><a name="pag_185">[185]</a></span> amargo da acção,
+brada talvez: <i>suspendei</i>! Depois, afastando-se em grande compostura,
+deixa á bocca da scena o tyranno barbudo sondando tranquillamente
+com a ponta da lamina o interior do galã...
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Não fallemos mais na Europa. Não ha, nunca houve <i>Europa</i>, no
+sentido que esta palavra tem em diplomacia. Ha hoje apenas um grande
+pinhal de Azambuja, onde rondam meliantes cobertos de ferro, que se
+odeiam uns aos outros, tremem uns dos outros, e, por um accordo tacito,
+permittem que cada um por seu turno se adeante&mdash;e assalte algum pobre
+diabo que vegeta ou trabalha ao canto de seu cerrado. Nas largas e
+bem traçadas estradas do Direito Internacional, allumiadas por Ortolan
+e outros lumes, rouba-se de carabina alta, e rompem a cada momento
+brados de povos assassinados. A Europa, como os campos de corridas
+em Inglaterra, devia estar coberta d'estes avisos em lettras gordas:
+<i>Beware of pick-pockets!</i> Cautela com os salteadores.
+
+<P>
+A pequena propriedade politica tende a acabar. Toda a terra vae em
+breve reunir-se nas mãos de quatro ou cinco grandes proprietarios...
+Hontem, era Tunis&mdash;porque a França necessita proteger a fronteira
+da Argelia. Hoje, é o Egypto&mdash;porque <span class="pagenum"><a name="pag_186">[186]</a></span> a Inglaterra precisa
+assegurar o caminho da India. Amanhã, será a Hollanda&mdash;porque a Allemanha
+não póde viver sem colonias. Depois, a Servia&mdash;por motivos que a
+seu tempo a Austria dirá. Mais tarde, a Rumania&mdash;porque a Russia
+é forte. Depois a Belgica&mdash;porque sim. Depois...
+
+<P>
+Este assumpto é lugubre. Voltemos ao valle do Nilo!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_187">[187]</a></span>
+<H2><A name="SECTION00960000000000000000"></a>
+<BR>
+VI
+</H2>
+
+<P>
+
+<H4><A NAME="SECTION00961000000000000000">
+Situação dos exercitos.&mdash;O Nilo, a secca, os areaes.&mdash;Os
+perigos de um «Jehad».&mdash;O septicismo mussulmano.&mdash;O mundo ingleza-se.&mdash;Filaucias
+de John Bull.</A>
+</H4>
+
+<P>
+<BLOCKQUOTE>
+Postos estão frente a frente
+<BR>
+Os dois valorosos campos...
+
+</BLOCKQUOTE>
+Esta melancolica chacara que, se bem me recordo, chora as desgraças
+de Alcacer-Kibir&mdash;serve para pintar graphicamente a situação estrategica
+de inglezes e egypcios, desde que se abriu a campanha.
+
+<P>
+Para comprehenderem bem, imaginem um grande A. O triangulo interno
+da lettra é o Delta&mdash;essa terra amada dos deuses, tão rica, que ella,
+só por si, outr'ora alimentou o imperio romano; ao alto da lettra,
+na ponta, está o Cairo&mdash;de sorte que um poeta persa poude dizer gentilmente
+que o Delta é um leque verde fechando sobre um botão de diamante,
+que se chama o Cairo. Á base da perna direita do A fica Alexandria,
+e ahi permanece uma <span class="pagenum"><a name="pag_188">[188]</a></span> parte do exercito inglez, defendido
+pelas fortificações de Ramleh&mdash;e tendo deante de si, a tiro de peça,
+o grande campo entrincheirado de Arabi-pachá, que se chama Kraf-Daonar,
+contendo 18 mil egypcios, enormes parques de artilharia, e fechando
+a marcha pelo Delta. A outra parte do exercito inglez, commandada
+pelo proprio general em chefe Sir Garnet Wolseley, dirigiu-se por
+mar á base da perna esquerda do A, que é, pouco mais ou menos, Ismailia,
+e d'ahi subiu por essa linha até Kassassine, onde parou e se fortificou;
+achando-se igualmente a pouca distancia, outro enorme campo entrincheirado,
+onde Arabi tem quinze mil homens, que se chama Tel-el-Kebir. E estes
+quatro campos, postos frente a frente, e observando-se, constituem
+até hoje a guerra do Egypto.
+
+<P>
+Para chegar, pois, ao Cairo, seu objectivo militar e politico, Sir
+Garnet precisa tomar as posições egypcias de Kraf-Daonar, se quizer
+ir pelo Delta&mdash;e as de Tel-el-Kebir, se tentar avançar pelo deserto.
+
+<P>
+Até hoje os quatro campos limitam-se a trocar entre si, em certas
+escaramuças, algumas languidas balas. Os jornaes de Londres, naturalmente,
+noticiam estes tiroteios de vanguarda com um tremendo apparato de
+lettras de palmo, mappas lithographados e largos rufos de prosa&mdash;fazendo
+maior alarido do que se tivesse sido pelejada de novo a batalha de
+<span class="pagenum"><a name="pag_189">[189]</a></span> Waterloo; mas isto é simplesmente para promover a venda
+do numero.
+
+<P>
+Os egypcios, entrincheirados, em seus campos contam com poderosos
+alliados: do lado do Delta confiam no Nilo, o velho e bondoso Nilo,
+que não poderá deixar de ser fiel áquelles que ha seculos nutre, e
+que, dentro em pouco, inundando as terras do Delta; e ajudado pelos
+engenheiros d'Arabi, que certamente obstruirão os canaes, terá convertido
+n'um immenso estendal de lamas inatravessaveis esse caminho do Cairo,
+o mais favoravel para os inglezes, pois seria como marchar n'uma rica
+e infindavel granja, entre pomares, jardins, frescuras e celleiros
+cheios... Do lado do deserto, os egypcios contam com o sol, com a
+secca e com a areia. Póde-se imaginar o que soffrerão essas tropas
+do frio Norte, marchando em areaes abrasados n'uma reverberação de
+luz que estonteia, sob um calor tão torrido, que o <i>metal dos
+estribos cresta os botins</i>, e tendo para beber só agua barrenta, que
+é necessario ferver primeiro! Já as insolações, as dysenterias, a
+nostalgia, dizimam os regimentos&mdash;e como o commissariado inglez,
+sempre mau, encontra aqui difficuldades de transporte, as tropas de
+S. M. a Rainha Victoria <i>já tem soffrido fome</i>! Ah! custa caro
+o caminho das Indias!
+
+<P>
+Além d'estes alliados que elle possue na natureza, <span class="pagenum"><a name="pag_190">[190]</a></span> Arabi
+espera ainda nas tribus beduinas, e n'essas hordas errantes d'arabes
+a cavallo que estão chegando do lado de Tripoli a combater o <i>cão
+estrangeiro</i>, e que, se diz, constituem um reforço de trinta mil homens...
+
+<P>
+Por seu lado, os inglezes contam apenas comsigo. E isto não é pouco.
+Como diz a sua celebre canção de guerra&mdash;<i>elles têm os navios,
+têm o dinheiro, e têm os homens</i>. Têm tambem essas magnificas tropas
+indias, que riem do sol, da secca, e das areias d'Africa. E isto levou
+Sir Garnet a declarar que a campanha estaria finda no dia 15 de setembro.
+É verdade que nós estamos a 7 de setembro, e elle, entrincheirado
+em Kassassine, tendo deante de si a barreira formidavel de Tel-el-Kebir,
+ainda está pedindo reforços. Mas isto prova só que esse raio de guerra,
+tendo habitos differentes dos de Cesar, <i>chegou, viu, e reflectiu</i>.
+Demos-lhe mais um mez; demos-lhe tres largamente; o certo será que
+ao fim d'este anno, Arabi, os seus campos, o seu exercito, a sua bella
+aspiração a uma nacionalidade egypcia, tudo isso se terá esvaido&mdash;como
+se esvae uma nuvem n'esse secco céo africano.
+
+<P>
+Os inglezes poderão soffrer revezes, perder milhares d'homens, gastar
+milhões de libras; mas, tendo uma vez compromettida a honra da sua
+bandeira, com um fim d'engrandecimento imperial, não <span class="pagenum"><a name="pag_191">[191]</a></span>embainharão a espada antes de ter installado na cidadella do velho
+Cairo, ao som do <i>God save the Queen</i>, um governador inglez.
+
+<P>
+Evidentemente o snr. Gladstone falla apenas de <i>restabelecer
+a ordem e restaurar o Khediva</i>. Meras locuções diplomaticas. O <i>Times</i>,
+que é o verbo d'Inglaterra, esse falla, sem rebuço, em <i>protectorado</i>.
+E ha muitos inglezes, ainda menos reservados que o <i>Times</i>, que
+dizem redonda e seccamente&mdash;<i>conquista</i>.
+
+<P>
+Mesmo quando o snr. Gladstone, que é a seu modo um democrata dentro
+dos limites do Evangelho, e o seu illustre collega Lord Granville,
+que é um jurista e um diplomata, quizessem, em respeito ao liberalismo,
+á Europa, ao direito internacional e a outras cousas vagas, deixar
+o Egypto reorganisar-se a si mesmo&mdash;sahindo elles de lá com as mãos
+vasias, depois de terem supprimido Arabi e o seu turbulento partido&mdash;a
+Inglaterra inteira, em massa, protestaria contra este philosophico
+desinteresse...
+
+<P>
+Ha alguem ahi assaz ingenuo para suppôr que John Bull, essa torre
+de senso pratico, consentiria em que se lhe dizime o exercito, em
+que se lhe gaste o dinheiro como elle gasta a agua das fontes, em
+que se lhe augmente o <i>income-tax</i>&mdash;só para que o Khediva, esse
+amavel moço, continue a fumar o <i>narghilé</i> do poder sob as sombras
+dos jardins de Choubra? John Bull não ficará satisfeito senão com
+este <span class="pagenum"><a name="pag_192">[192]</a></span> resultado macisso e duradouro&mdash;um <i>Egypto
+inglez</i>, tendo dentro do seu territorio, como um corredor de casa
+particular, o canal de Suez, caminho das Indias. Um ministerio que,
+depois de ter enterrado nos areaes da Africa milhões de libras e milhares
+de vidas, não lhe der isto&mdash;receberá no mesmo instante, na parte
+posterior da sua individualidade, o bico da bota de John.
+
+<P>
+Mas se Arabi, derrotado, conseguir levar o Scherife de Méca a proclamar
+contra a Inglaterra um <i>jehad</i>&mdash;que é uma guerra santa, uma
+crusada, um levantamento em massa do mundo mussulmano?
+
+<P>
+Bons espiritos, em Inglaterra, dizem ser este um grande perigo&mdash;pois
+que só na India ha cincoenta milhões de mahometanos. Eu não creio,
+porém, que haja aqui motivo para John Bull empallidecer. E lamento-o!
+Porque é d'um bello pittoresco essa idéa d'um <i>jehad</i> com o seu
+ceremonial&mdash;o Scherife de Méca desenrolando o estandarte verde de
+Mahomet, os doutores do Islam assignando todos o <i>fetva</i> fatal,
+e logo, de cada canto da Asia e d'Africa, a torrente dos crentes precipitando-se
+em nome de Allah! Bello motivo d'ode&mdash;a que não corresponde nenhuma
+realidade...
+
+<P>
+Em primeiro logar, nunca se fez! O crescente tem sido muitas vezes
+humilhado pela cruz, o Islam tem recebido na face a mão da Europa
+christã, o <span class="pagenum"><a name="pag_193">[193]</a></span> Califa tem fallado repetidamente em proclamar
+um <i>jehad</i>&mdash;e todavia o estandarte do Propheta continuou enrolado
+nos sacrarios de Méca. E a minha opinião é que se elle fôsse um dia
+desenrolado&mdash;haveria apenas um pedaço de panno verde mais, fluctuando
+ao vento do ceu.
+
+<P>
+E querem que lhes diga porque? Porque penso que os mussulmanos estão
+a esta hora tão scepticos como nós outros, os christãos. Nas areias
+do deserto, como nas nossas praças allumiadas a gaz&mdash;já não será
+facil encontrar mil homens de boa vontade, que peguem em armas em
+nome do seu Deus.
+
+<P>
+De certo todo o bom mussulmano, a certas horas do dia, se orienta
+para o lado de Méca e se prostra nas reverencias rituaes: pura questão
+de educação, de boas maneiras, de habito, como nós outros tiramos
+o chapéu ao passar por um calvario de aldeia. Ou então, superstição
+vaga, vago terror nervoso, como o de certos philosophos e positivistas
+das minhas relações, que sempre, ao saltar da cama, fazem o signal
+da cruz.
+
+<P>
+Dentro do Alcorão vê-se já o caso melancolico de uma lei divina ir
+cahindo em desuso. O Sultão recebe a jantar os embaixadores, e bebe
+com elles <i>champagne</i>: a policia do Cairo prende os santos <i>derviches</i>
+vagabundos, e já não é respeitado o jejum do Ramazan.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_194">[194]</a></span>Como o nosso Evangelho, a palavra de Mahomet vae-se tornando
+objecto de poesia, de commentario, de controversia. Ha Renans no Islam;
+e o verbo divino, uma vez analysado, deixa de inspirar a fé que leva
+á morte.
+
+<P>
+O mundo mussulmano está no seu seculo decimo-terceiro, na sua plena
+meia edade, e certamente ha muito beduino sob a tenda, tão crente,
+tão penetrado de Mahomet, como aquelles corações simples, que, ainda
+ha pouco no deserto dos nossos claustros, choravam ao ler a paixão
+de Jesus; mas não creio que mesmo esses patriarchas deixassem os seus
+oasis, os seus rebanhos, os seus harens, para virem gratuitamente,
+sem outro pret a não ser o sorriso das houris nos jardins do Paraizo,
+supportar o fogo dos canhões Krupp. E emquanto ás classes cultas de
+Constantinopla, do Cairo, de Smyrna, de Tunis, essas acreditam tanto
+na promessa das houris, como nós outros, aqui em Regent-Street, nas
+palmas verdes da Bemaventurança e no côro dos Serafins...
+
+<P>
+Por todo o universo a religião desapparece das almas; e apenas lá
+fica essa vaga religiosidade, feita em parte do abalo que deu ao nosso
+coração uma tão longa sujeição ao sobrenatural, em parte do confuso
+terror que impera n'este grande universo que nos cerca, tão simples
+e tão mal comprehendido. N'este estado negativo, de passividade na
+duvida, não <span class="pagenum"><a name="pag_195">[195]</a></span> se gera facilmente um impulso d'acção forte.
+Um <i>jehad</i> no Islam é tão impraticavel&mdash;como uma cruzada no
+Christianismo. Pedro Ermita hoje iria acabar na policia correcional,
+por perturbador da ordem publica e das relações internacionaes; e
+os fanaticos que, ainda hoje, ás portas das mesquitas do Cairo, bradam
+contra o <i>touriste</i> estrangeiro as injurias aconselhadas pela
+boa doutrina, são immediatamente levados para a enxovia, por <i>fazerem
+alarido nas ruas</i>!
+
+<P>
+Mahomet, nas suas mesquitas, Christo, nas nossas capellas, vão singularmente
+envelhecendo; o nosso Messias vae-se cobrindo pouco a pouco do pó
+que levanta o forte arado da razão, lavrando um mundo novo; e o propheta
+do Islam, tendo perdido a força da sua unidade, subdividido em mil
+prophetas menores que presidem a mil seitas differentes, mal póde
+resistir á lenta avançada da civilisação occidental. E com Christo
+e Mahomet, que eram os principios militantes e vivos das suas religiões,
+desapparece o que n'essas religiões havia de vivo e de militante.
+Resta Deus, resta Allah. Sublimes abstracções, incapazes de inspirar
+amor ou heroismo.
+
+<P>
+O que mais faz amar a Divindade é a quantidade de humanidade que ella
+encerra. Clovis batia-se por Jesus, que tinha um peito de homem como
+o d'elle, e n'esse peito humano cinco chagas abertas; Soliman <span class="pagenum"><a name="pag_196">[196]</a></span>morreria feliz por Mahomet, que era como elle um guerreiro, e como
+elle amava a belleza.
+
+<P>
+Mas quem se vae bater por Deus, por Allah, essas entidades tão vastas
+que enchem todo o ceu, e tão pequenas que não bastam a satisfazer
+o nosso coração, que nos são subalternas, porque são feitas á nossa
+imagem, e são no fundo a nossa propria alma alargada até ao infinito
+com todas as suas fraquezas?!
+
+<P>
+De resto, é possivel que eu esteja aqui attribuindo a fortes corações
+de Meca e do deserto os scepticismos litterarios de <i>Pall-Mall</i>
+e do <i>Boulevard de la Madeleine</i>. Que sabemos nós do que se passa
+dentro do Islam? Tão pouco como os lettrados da mesquita d'El-Azhar
+sabem o que por cá vae dentro do nosso confuso catholicismo.
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Mas, mesmo que se effectuasse um <i>jehad</i>, seria apenas motivo
+para a Inglaterra gastar mais alguns milhões e sacrificar mais alguns
+regimentos. Nem o Alcorão, nem o famoso estandarte verde, nem o proprio
+Mahomet, que voltasse á terra a desfraldal-o, impediriam que John
+Bull se estabeleça no Egypto...
+
+<P>
+Já lá está, nunca mais de lá sahirá!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_197">[197]</a></span>Estão em toda a parte, esses inglezes! O seculo XIX vae
+findando, e tudo em torno de nós parece monotono e sombrio&mdash;porque
+o mundo se vae tornando inglez. Por mais desconhecida e inedita nos
+mappas que seja a aldeola onde se penetre, por mais perdido que se
+ache n'um obscuro recanto do Universo o regato ao longo do qual se
+caminhe&mdash;encontra-se sempre um inglez, um vestigio de vida ingleza!
+
+<P>
+Sempre um inglez! Inteiramente inglez, tal qual como sahiu da Inglaterra,
+impermeavel ás civilisações alheias, atravessando religiões, habitos,
+artes culinarias differentes, sem que se modifique n'um só ponto,
+n'uma só prega, n'uma só linha o seu prototypo britannico. Hirtos,
+escarpados, talhados a pique, como as suas costas do mar, ahi vão
+querendo encontrar por toda a parte o que deixaram em Regent-Street,
+e esperando Pale-Ale e <i>roast-beef</i> no deserto da Petrea; vestindo
+no alto dos montes sobrecasaca preta ao domingo, em respeito á egreja
+protestante, e escandalisados que os indigenas não façam o mesmo;
+recebendo nos confins do mundo o seu <i>Times</i> ou o seu <i>Standard</i>,
+e formando a sua opinião, não pelo que vêm ou ouvem ao redor de si,
+mas pelo artigo escripto em Londres; impellindo sempre os passos para
+a frente, mas com a alma voltada sempre para traz, para o <i>home</i>;
+abominando tudo o que <span class="pagenum"><a name="pag_198">[198]</a></span> não é inglez, e pensando que as
+outras raças só podem ser felizes possuindo as instituições, os habitos,
+as maneiras que os fazem a elles felizes na sua ilha do Norte!
+
+<P>
+Estranha gente, para quem é fóra de duvida que ninguem póde ser moral
+sem ler a Biblia, ser forte sem jogar o <i>cricket</i>, e ser <i>gentleman</i>
+sem ser inglez!
+
+<P>
+E é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se <i>desinglezam</i>.
+Ha raças fluidas, como a franceza, a allemã, que, sem perderem os
+seus caracteres intrinsecos, tomam ao menos exteriormente a forma
+da civilisação que momentaneamente as contêm. O francez no interior
+da Africa adora sem repugnancia o <i>manipanço</i>, e na China usa
+rabicho. O inglez cahe sobre as idéas e as maneiras dos outros, como
+uma massa de granito na agua: e alli fica pesando, com a sua Biblia,
+os seus <i>clubs</i>, os seus <i>sports</i>, os seus prejuizos, a
+sua etiqueta, o seu egoismo&mdash;tornando-se na circulação da vida alheia
+um encommodativo tropeço.
+
+<P>
+É por isso que, nos paizes onde vive ha seculos, é elle ainda o <i>estrangeiro</i>.
+
+<P>
+Em toda a parte onde domine e impere, todo o seu esforço consiste
+em reduzir as civilisações estranhas ao typo da sua civilisação anglo-saxonia.
+O mal não é grande quando elles operam sobre a Zululandia e sobre
+a Cafraria, n'essas vastidões <span class="pagenum"><a name="pag_199">[199]</a></span> da Terra Negra, onde o
+selvagem e a sua cubata mal se distinguem das hervas e das rochas,
+e são meros accessorios da paizagem: ahi encontram apenas uma materia
+bruta, onde nenhuma anterior fórma de belleza original se estraga,
+quando elles a refundem para a fazer á sua imagem. Vestir o desventurado
+rei negro Cetewayo, como elles agora fizeram, de coronel de infanteria,
+obrigar os chefes dos Basutos a saber de cór os nomes da familia real
+ingleza, são talvez actos de feroz despotismo, mas não deterioram
+nenhuma primitiva originalidade de linha ou de idéa. Para Cetewayo,
+que andava nú, uma fardeta, mesmo de infantaria, não faz senão vestil-o;
+e é indifferente que dentro do craneo dos Basutos haja só formulas
+de invocação ao <i>manipanço</i>, ou tambem nomes de principes da
+casa d'Hanover.
+
+<P>
+Mas quando elles trabalham sobre antigas civilisações como a da India,
+onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em que uma
+grande raça pôz toda a originalidade do seu genio&mdash;então a politica
+anglo-saxonia repete pouco mais ou menos o attentado sacrilego de
+quem desmantellasse um templo buddhico, bello como um sonho de Buddha,
+para lhe dar na sua reconstrução as linhas hediondas do <i>Stock
+Exchange</i> de Londres; ou ainda de quem se fôsse ao marmore divino
+da Venus de Milo, e tentasse, á força bruta de martello e cinzel,
+dar-lhe o <span class="pagenum"><a name="pag_200">[200]</a></span> feitio, as suissas e a sobrecasaca de lord
+Palmerston! A expansão do inglez para o Oriente, seu objectivo imperial,
+seria toleravel, mesmo aos nervos de um artista&mdash;se elle se contentasse
+em levar para lá os seus tecidos, as suas machinas, os seus telegraphos,
+os seus railways, deixando depois que essas raças usassem esse colossal
+material de civilisação em se desenvolverem no sentido do seu genio
+e do seu temperamento. Que por todos os modos se forneça á santa cidade
+de Hydrabad gazometros e illuminação&mdash;mas, por Deus! que se não mettam
+á força bicos de gaz dentro dos seus templos, se isso offende os seus
+ritos e repugna ao seu gosto! Que a India, por exemplo, seja coberta
+de caminhos de ferro, fornecidos pelos industriaes de Northumberland
+e pagos pelo indio&mdash;excellente! Mas ao menos que as aldêas onde elles
+passam, essas aldêas que os mesmos inglezes descrevem como pequenos
+paraizos de paz, de trabalhos simples, de costumes doces, de frugalidade,
+de frescura, de belleza moral, não sejam tornadas tão tristes como
+as tristes parochias de Yorkshire, introduzindo-se logo lá o <i>policeman</i>,
+o deposito de cerveja, a capella protestante de tijolo, o livreiro
+de Biblias, o vendedor de <i>gin</i>, a fumaraça de uma fabrica, a
+prostituição e a <i>workhouse</i>!...
+
+<P>
+Mas deixemos isto. É facil maldizer da Inglaterra. <span class="pagenum"><a name="pag_201">[201]</a></span> Basta
+abrir os livros dos seus grandes homens, desde Thackeray, o artista,
+que com um tão frio rancor lhe fez a satyra sangrenta, até Carlisle,
+o philosopho, que passou a existencia a fulminal-a com uma tumultuosa
+colera de propheta...
+
+<P>
+Da Inglaterra póde-se dizer que&mdash;ao contrario da generosa França&mdash;as
+suas virtudes só a ella aproveitam e os seus vicios contaminam o mundo.
+
+<P>
+É á Inglaterra que se deve o egoismo crescente que nos vae petrificando
+o coração&mdash;esse egoismo tão particularmente inglez, que faz com que
+em Hyde-Park, no seu centro de luxo, trezentas pessoas, em torno de
+um lago, vejam uma pobre criança afogar-se, sem que nenhuma se encommode
+a tirar o charuto da bocca para lhe estender uma taboa! É á Inglaterra
+que devemos esta crescente hypocrisia que invade o mundo, e que faz
+com que em Londres, nos cartazes que annunciam as peças de Sardou
+ou Dumas, se ajunte esta estupenda declaração: <i>adaptada ás justas
+exigencias da moralidade ingleza</i>;&mdash;emquanto que, na rua, por baixo
+d'esses mesmos cartazes, rola, sem cessar, a mais vil torrente que
+o mundo viu de bebados e de prostitutas!
+
+<P>
+Mas deixemos as maculas da Inglaterra: a lista é longa;&mdash;quero só
+alludir a um outro abominavel defeito que ella sempre teve, e que
+agora desenvolveu <span class="pagenum"><a name="pag_202">[202]</a></span> em proporções intoleraveis:&mdash;a sua
+espantosa filaucia, a sua ruidosa basofia, o seu tremendo ar <i>mata-sete</i>!
+
+<P>
+É sobretudo n'este momento, desde o começo da guerra do Egypto, que
+os que, como eu, amam a Inglaterra, soffrem de lhe vêr estes extravagantes
+modos de valentão de romance picaresco. Os telegrammas que os correspondentes
+dos jornaes enviam das operações da guerra, sobretudo os commentarios
+dos proprios jornaes, seriam lamentavelmente grotescos, se não fossem
+odiosamente impertinentes. Os francezes (que não são modestos) puzeram
+trinta mil allemães fóra de combate na batalha de Gravellote, e todavia
+não fizeram a decima parte do alarido, da gloriola, do espalhafato
+com que os inglezes celebravam a escaramuça de Ramleh, onde os egypcios
+perderam <i>quarenta e tantos homens</i>! Parece faltar-lhes o sentimento
+da proporção das cousas. Um correspondente do <i>Daily News</i> annunciava,
+ha dias, como um feito heroico, digno de ir á posteridade, o terem
+alguns soldados em marcha dado um pedaço de pão de munição a um arabe
+que morria de fome á beira de um caminho! Era espanto de encontrar
+dentro de peitos inglezes um resto de piedade humana? Não. Queria
+provar que nenhum exercito no mundo faz a guerra com uma tão profunda
+clemencia!
+
+<P>
+Ou celebrem o aspecto physico dos regimentos <span class="pagenum"><a name="pag_203">[203]</a></span> ou a afinação
+das bandas de musica, a pontaria dos artilheiros ou a fórma dos capacetes,
+os talentos do Estado Maior ou a excellencia da bolacha de munição,
+vem logo em lettras gordas, a phrase tola&mdash;<i>o que ha de melhor
+no mundo</i>!
+
+<P>
+Faz uma vedeta ingleza fogo sobre uma vedeta egypcia e depois recolhe
+á trincheira? Logo este facto é declarado <i>tão nobre pelo heroismo
+como habil pela prudencia</i>!
+
+<P>
+Os córos que se entoam em torno do general Wolseley, pertencem á pura
+farça.
+
+<P>
+Eu quero crêr que elle é um grande homem&mdash;ainda que por ora nada
+mais fez que debandar uma pobre horda de negros armados de flechas
+que vegetavam junto a não sei que rio d'Africa; mas que se póde pensar
+quando se lê, no <i>World</i> e em outros papeis, que elle é o <i>maior
+general do seculo</i>? Onde vive um certo Moltke? Quando existiu um chamado
+Napoleão?
+
+<P>
+O melhor, mais bem feito, mais importante jornal de Londres, a <i>Pall
+Mall Gazette</i>, envergonhado de tudo isto, explica, com a sua usual
+habilidade, que estas fanfarronadas não são destinadas á Europa, mas
+ao Egypto «para levantar o moral das tropas!» Têm pois esses regimentos
+em campanha nos areaes da Africa, diante d'um inimigo formidavel,
+vagares para ler as gazetas? Recebe cada soldado <span class="pagenum"><a name="pag_204">[204]</a></span> raso,
+com o seu rancho da manhã, um numero do <i>Times</i>? A respeitavel
+<i>Pall Mall</i> blaguêa. Para animar, recompensar as tropas, lá estão
+as proclamações dos generaes. Ahi, sim, a emphase deve correr em torrentes:
+e quando um desgraçado homem depois de ter marchado todo um dia, com
+fome, com sêde, com os pés em sangue na areia e um ceu de fogo nas
+costas, volta á noite ao acampamento, estendido n'uma maca com duas
+balas no corpo&mdash;não é muito que se lhe diga que elle é o primeiro
+soldado do mundo!
+
+<P>
+É também «para levantar o moral das tropas» que o <i>Times</i> e o
+<i>Spectator</i>, fallam, de mão na cinta, e suissa ao vento, de «impor
+á Europa a vontade da Inglaterra?»
+
+<P>
+Não; é mera fanfarronada.
+
+<P>
+E não é só nos jornaes. Entre-se n'um club, n'um restaurante, converse-se
+com um conhecido, entre duas chavenas de chá&mdash;e vem logo a mesma
+jactancia de roncador: «Vamos dar cabo de tudo. Temos dinheiro a rodo.
+Cá, ao pulso inglez, nada resiste... E se o mundo respinga, quebram-se-lhe
+as ventas!...»
+
+<P>
+A Inglaterra perdeu as suas boas maneiras.
+
+<P>
+É forte, de certo&mdash;mas falla da sua força com a brutalidade de um
+Hercules de feira que esbogalha os olhos e mostra os musculos; é rica,
+de certo&mdash;mas <span class="pagenum"><a name="pag_205">[205]</a></span> falla do seu dinheiro com a grosseria
+d'um ricaço que abarrota fazendo tinir as libras na algibeira...
+
+<P>
+Onde está a famosa <i>self-possession</i> da Inglaterra, a sua tranquilla
+dignidade? John Bull tornou-se Ferrabraz. Ora uma muito velha banalidade
+ensina-nos que não ha verdadeira força sem serenidade e que sem modestia
+não ha verdadeira grandeza.
+<span class="pagenum"><a name="pag_206">[206]</a></span>
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_207">[207]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION001000000000000000000">
+X
+<BR>
+O BRASIL E PORTUGAL</A>
+</H1>
+
+<P>
+Os jornaes inglezes d'esta semana têm-se occupado prolixamente do
+Brazil. Um correspondente do <i>Times</i>, encarregado por esta potencia
+de ir fazer pelo continente americano uma «vistoria social» definitiva
+deu-nos agora, em artigos repletos e massiços, o resultado do seu
+anno de jornadas e de estudos.
+
+<P>
+O ultimo artigo é dedicado ao Brazil: eu, que nunca visitei o imperio,
+não tenho naturalmente auctoridade para apreciar essas revelações
+(porque o correspondente toma a attitude de um revelador) sobre a
+religião, a cultura, os productos, o commercio, a emigração, o caracter
+nacional, o nivel de educação, a situação dos portuguezes, a dynastia,
+a Constituição, a republica, <i>et de omni re braziliensi</i> e não
+<span class="pagenum"><a name="pag_208">[208]</a></span> posso transcrevel-as tambem porque ellas enchem, no <i>Times</i>,
+vasto como é, mais espaço que o proprio Brazil occupa no territorio
+da America do Sul. Esse artigo excitou o interesse e os commentarios
+da <i>Pall-Mall Gazette</i> e de outros jornaes, e ahi se rompeu a
+fallar do Brazil com sympathia, com curiosidade, com essas admirações
+ingenuas pela sua rutilante flora, esse pasmo quasi assustado pela
+sua vastidão, que decerto tiveram nossos avós, quando o bom Pedro
+Alvares Cabral, largando a procurar o Preste João, voltou com a rara
+nova das terras entrevistas do Brazil...
+
+<P>
+Devendo mostrar-lhes a opinião presente da Inglaterra sobre o Brazil,
+d'esses artigos floridos, escolho o do <i>Times</i>, annotando e glosando
+o trabalho do seu enviado. (É d'este modo respeitoso que se deve fallar
+sempre de um correspondente do <i>Times</i>).
+
+<P>
+Começa, pois, o grande jornal da <i>City</i> por dizer&mdash;«que a descripção
+do vasto Imperio do Brazil com que foi fechada a serie das <i>cartas
+sobre o continente americano</i>, deve ter feito transbordar o sentimento
+de admiração pelo explendor, etc...» Seguem-se aqui naturalmente vinte
+linhas de extasi. É, em prosa, a aria do 4.º acto da <i>Africana</i>:
+Vasco da Gama, de olhos humidos e coração suspenso no enlevo de tanta
+flôr prodigiosa, de tão raros cantos d'aves raras...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_209">[209]</a></span>Depois vem o espanto classico pela extensão do Imperio:
+«Só o simples tamanho de um tal dominio (exclama) na mão de uma diminuta
+parcella da humanidade é já em si um facto sufficientemente impressionador!»
+
+<P>
+E todavia esta admiração do <i>Times</i> pelo gigante é misturada
+a um certo patrocinio familiar, de ser superior,&mdash;que é a attitude
+ordinaria da Inglaterra e da imprensa ingleza para com as nações que
+não têm duzentos couraçados, um Shakspeare, um <i>Bank of England</i>,
+e a instituição do <i>roast-beef</i>... N'este caso do Brazil, o tom
+de protecção é raiado de sympathia...
+
+<P>
+Depois o artigo rompe de novo n'um hymno: «A Natureza no Brazil não
+necessita do auxilio do homem para se encher de abundancias e se cobrir
+de adornos!... Para seu proprio prazer planta, ella mesma, luxuriantes
+parques! E não ha recanto selvagem que não faça envergonhar as mais
+ricas estufas da Europa...» Isto é decerto exacto: mas o <i>Times</i>,
+receiando que os seus leitores viessem a suppor que a natureza do
+Brazil está de tal modo repleta, tão indigestamente attestada, que
+não permitte, que se recusa com furor a receber no seu ventre empanturrado
+uma semente mais sequer&mdash;apressa-se a tranquillisal-os: «Mas (diz
+este sabio jornal judiciosamente) ainda que a Natureza dispense bem
+todo o trabalho <span class="pagenum"><a name="pag_210">[210]</a></span> do homem, que outros solos menos generosos
+requerem para se abrir em flôres e fructos,&mdash;<i>não o repelle
+todavia</i>». Isto socega os nossos animos: ficamos assim certos que
+nenhum fazendeiro, nos distantes cafesaes, ao atirar á terra, a <i>terra
+mãe</i>, com a enxadada fecundadora a semente inicial, corre o risco
+atroz de ser por ella atacado á pedrada ou a golpes de bananeira...
+Nem outra cousa se podia esperar da doce e pacifica Ceres.
+
+<P>
+Tendo assim floreado, de penacho oratorio ao vento, o <i>Times</i>
+investe com as ideias praticas. E começa por declarar, que, segundo
+o copioso relatorio do seu correspondente, «o que surprehende na America
+do Sul (se exceptuarmos aquella tira de terra que constitui a Republica
+do Chili, e alguns bocados da costa do enorme imperio do Brazil) é
+a grandeza de tais recursos comparada á desapontadora magreza dos
+resultados». Seria facil responder com a escassez da população. O
+<i>Times</i> de resto sabe-o bem, porque nos falla logo d'essa população
+nas republicas hespanholas, mas não a acha escassa; o que a acha é
+torpe!... A pintura que nos dá do Perú, Bolivia, Equador e consortes
+é ferina e negra: «Essa gente vive n'uma indolencia vil, que não é
+incompativel com muita arrogancia e muita exagerada vaidade! D'esse
+torpor só rompe, por accesso de frenesi politico. Todo o trabalho
+ai emprehendido <span class="pagenum"><a name="pag_211">[211]</a></span> para fazer produzir a natureza é dos
+estrangeiros: os naturaes limitam-se a invejal-os, a detestal-os por
+os verem utilisar opportunidades que elles mesmo não se quizeram baixar
+a usar!» Isto é cruel: não sei se é justo: mas entre estas linhas
+palpita todo o rancor de um inglez possuidor de maus titulos peruanos.
+«E se o nosso correspondente (continua o artigo) offerece de alto
+o Brazil á nossa admiração, não é em absoluto, é relativamente, em
+contraste com os paizes que quasi o egualam em vantagens materiaes,
+como o Perú e o Rio da Prata, mas onde a discordia intestina devora
+e destroe todo o progresso nascido da actividade estrangeira. O Brazil
+é portuguez e não hespanhol: e isto explica tudo. O seu sangue europeu
+vem d'aquella parte da Peninsula Iberica em que a tradicção é a da
+liberdade triumphante, e nunca supprimida.» O <i>Times</i> aqui abandona-se
+com excesso ás exigencias rythmicas da phrase: parece imaginar que
+desde a batalha de Ourique temos vindo caminhando n'uma larga e luminosa
+estrada de ininterrompida democracia!...
+
+<P>
+Mas, emfim, continúa: «Quando o Brazil quebrou os seus laços coloniaes
+não tinha a esquecer feias memorias de tyrannia e rapacidade; nem
+teve de supprimir genericamente todos os vestigios de um máu passado.»
+Com effeito; pobres de nós! nunca <span class="pagenum"><a name="pag_212">[212]</a></span> fômos de certo para
+o Brazil senão amos amaveis e timoratos.
+
+<P>
+Estavamos para com elle n'aquella melancolica situação de um velho
+fidalgo, solteirão arrasado, desdentado e tropego, que treme e se
+baba deante de uma governanta bonita e forte. Nós verdadeiramente
+é que eramos a colonia: e era com atrozes sustos do coração que, entre
+uma <i>Salvè Rainha</i> e um <i>Lausperenne</i>, estendiamos para
+lá a mão á esmola...
+
+<P>
+O <i>Times</i> prossegue: «Ainda que independente, o Brazil ficou
+portuguez de nacionalidade e semi-europeu de espirito. Pelo simples
+facto de se sentir portuguez, o povo brazileiro teve, e conserva,
+o instincto do grande dever que lhe incumbe: tirar o partido mais
+nobre da sua nobre herança... Sejam quaes tenham sido os erros de
+Portugal, não se póde dizer que se tenha jámais contentado com o mero
+numero das suas possessões, sem curar de lhes extrahir os proventos...»
+O <i>Times</i> aqui dormita, como o secular Homero.
+
+<P>
+E justamente o que nos preoccupa, o que nos agrada, o que nos consola
+é contemplar <i>simplesmente o numero</i> das nossas possessões: pôr-lhes
+o dedo em cima, aqui e além, no mappa; dizer com voz de papo, <i>ore
+rotundo</i>: «Temos oito; temos nove: somos uma nação colonial, somos
+um povo maritimo!...» Emquanto <span class="pagenum"><a name="pag_213">[213]</a></span> a <i>extrahir-lhes
+os proventos</i>, na phrase judiciosa do <i>Times</i>, d'esses detalhes
+miseraveis não cura o pretor, nem os netos de Affonso de Albuquerque!...
+Mas prossegue o <i>Times</i>: «O imperio colonial de Portugal talvez
+tenha sido outr'ora caracterisado por desfortuna&mdash;quasi nunca por
+estagnação.» <i>Talvez</i> é bom: com o imperio do Oriente no nosso
+passado, que é um dos mais feios monumentos de ignominia de todas
+as edades... Continuemos.
+
+<P>
+«Da origem d'onde o Brazil deriva a sua actividade, deriva tambem
+(o que não é menos importante) o respeito pela opinião da Europa.
+O vadio das ruas de Lima, de Caracas ou de Buenos-Ayres nutre um soberano
+desprezo pelos juizos que a Europa possa formar das suas tragi-comedias
+politicas... Não tem consciencia de cousa alguma, a não ser do seu
+<i>sangue castelhano</i>... Sente decerto o inconveniente de ser expulso
+do credito e das bolsas da Europa... Mas avalia esta circumstancia
+apenas pelos embaraços momentaneos que ella lhe traz. O financeiro
+brazileiro, porem, esse presta uma tão respeitosa attenção ao <i>temperamento</i>
+das bolsas de Pariz e Londres, como ao da mesma praça do Rio de Janeiro...»
+
+<P>
+O <i>Times</i> vê n'este symptoma a consideração que o Brazil tem
+pela opinião da Europa.
+
+<P>
+Mas, onde o <i>Times</i> se engana é quando pretende <span class="pagenum"><a name="pag_214">[214]</a></span>que o Brazil deve ao seu sangue portuguez esta bella qualidade de
+obedecer aos juizos do mundo civilisado. Não ha paiz no universo,
+onde se despreze mais, creio eu, o julgamento da Europa, que em Portugal:
+n'esse ponto somos como o vadio das ruas de Caracas, que o <i>Times</i>
+tão pittorescamente nos apresenta: porque eu chamo desdenhar a opinião
+da Europa não fazer nada para lhe merecer o respeito. Com effeito,
+o juizo que de Badajoz para cá se faz de Portugal, não nos é favoravel,
+nós sabemol-o bem&mdash;e não nos inquietamos! Não fallo aqui de Portugal
+como Estado politico. Sob esse aspecto gosamos uma razoavel veneração.
+Com effeito, nós não trazemos á Europa complicações importunas; mantemos
+dentro da fronteira uma ordem sufficiente: a nossa administração é
+correctamente liberal; satisfazemos com honra os nossos compromissos
+financeiros.
+
+<P>
+Somos o que se póde dizer um <i>povo de bem</i>, um <i>povo bôa
+pessoa</i>. E a nação vista de fóra e de longe, tem aquelle ar honesto
+de uma pacata casa de provincia, silenciosa e caiada, onde se presente
+uma familia commedida, temente a Deus, de bem com o regedor, e com
+as economias dentro de uma meia... A Europa reconhece isto: e todavia
+olha para nós com um desdem manifesto. Porque? Porque nos considera
+uma nação de mediocres: digamos francamente a dura palavra&mdash;porque
+nos considera <span class="pagenum"><a name="pag_215">[215]</a></span> uma <i>raça de estupidos</i>. Este mesmo
+<i>Times</i>, este oraculo augusto, já escreveu que Portugal era,
+intellectualmente, tão caduco, tão casmurro, tão fossil, que se tornára
+um paiz bom para se lhe passar muito ao largo, e <i>atirar-lhe
+pedras</i> (textual).
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+O <i>Daily Telegraph</i> já discutiu em artigo de fundo este problema:
+Se seria possivel sondar a espessura da ignorancia luzitana! Taes
+observações, além de descortezes, são decerto perversas. Mas a verdade
+é que n'uma epocha tão intellectual, tão critica, tão scientifica
+como a nossa, não se ganha a admiração universal, ou se seja nação
+ou individuo, só com ter proposito nas ruas, pagar lealmente ao padeiro,
+e obedecer, de fronte curva, aos editaes do governo civil. São qualidades
+excellentes, mas insufficientes. Requer-se mais: requer-se a forte
+cultura, a fecunda elevação de espirito, a fina educação do gosto,
+a base scientifica e a ponta de ideal que em França, na Inglaterra,
+na Allemanha, inspiram na ordem intellectual a triumphante marcha
+para a frente; e nas nações de faculdades menos creadoras, na pequena
+Hollanda ou na pequena Suecia, produzem esse conjunto eminente de
+sabias instituições que são, na ordem social, a realização das fórmas
+superiores do pensamento.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_216">[216]</a></span>Dir-me-hão que eu sou absurdo ao ponto de querer que haja
+um Dante em cada parochia, e de exigir que os Voltaires nasçam com
+a profusão dos tortulhos. Bom Deus, não! Eu não reclamo que o paiz
+escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros
+que já estão escriptos, e que se interessasse pelas artes que já estão
+creadas. A sua esterilidade assusta-me menos que o seu indifferentismo.
+O doloroso espectaculo é vêl-o jazer no marasmo, sem vida intellectual,
+alheio a toda a ideia nova, hostil a toda a originalidade, crasso
+e mazorro, amuado ao seu canto, com os pés ao sol, o cigarro nos dedos
+e a bocca ás moscas... É isto o que punge.
+
+<P>
+E o curioso é que o paiz tem a consciencia muito nitida d'este torpor
+mortal, e do descredito universal que elle lhe attrahe. Para fazer
+vibrar a fibra nacional, por occasião do centenario de Camões, o grito
+que se utilizou foi este:&mdash;Mostremos ao mundo que ainda vivemos!
+que ainda temos uma litteratura!
+
+<P>
+E o paiz sentiu asperamente a necessidade de affirmar alto, á Europa,
+que ainda lhe restava um vago clarão dentro do craneo. E o que fez?
+Encheu as varandas de bandeirolas, e rebentou de jubilo a pelle dos
+tambores. Feito o que&mdash;estendeu-se de ventre ao sol, cobriu a face
+com o lenço de rapé, e <span class="pagenum"><a name="pag_217">[217]</a></span> recomeçou a sésta eterna. D'onde
+eu concluo que Portugal, recusando-se ao menor passo nas lettras e
+na sciencia para merecer o respeito da Europa intelligente, mostra,
+á maneira do vadio de Caracas, o despreso mais soberano pelas opiniões
+da civilização. Se o Brazil, pois, tem essa qualidade eminente de
+se interessar pelo que diz o mundo culto, deve-o ás excellencias da
+sua natureza, de modo nenhum ao seu sangue portuguez: como portuguez,
+o que era logico que fizesse era voltar as costas á Europa, puxando
+mais para as orelhas o cabeção do capote...
+
+<P>
+Mas, retrocedendo ao artigo do <i>Times</i>, a conclusão da sua primeira
+parte é que «em riqueza e aptidões o Brazil leva gloriosamente a palma
+ás outras nacionalidades da America do Sul». Todavia, o <i>Times</i>
+observa no Brazil circumstancias desconsoladoras: «Doze milhões de
+homens estão perdidos n'um estado maior que toda a Europa: a receita
+publica, que é de doze milhões de libras esterlinas, é muitos milhões
+inferior á da Hollanda e á da Belgica: com uma linha de costa de quatro
+mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de duas mil
+e seiscentas milhas, o Brazil exporta em valor de generos a quarta
+parte menos que o diminuto reino da Belgica.»
+
+<P>
+O <i>Times</i>, todavia, tem a generosidade de admittir que nem a
+densidade de população, nem o total <span class="pagenum"><a name="pag_218">[218]</a></span> das receitas, nem
+a cifra das exportações constituem a felicidade de um povo e a sua
+grandeza moral. A Suissa, que tem dois milhões de habitantes e justamente
+os mesmos dois milhões de libras de receita, vive em condições de
+prosperidade, de liberdade, de civilisação, de intellectualidade bem
+superiores á tenebrosa Russia com os seus oitenta milhões de libras
+de receita, e os mesmos oitenta milhões em homens. «Todavia, continúa
+o <i>Times</i>, se a escassez da população, de rendimento e de commercio,
+não collocam o Brazil n'um estado de adversidade, são uma prova que
+faltam a esse povo algumas das qualidades que fazem a grandeza das
+nações. Que os colonisadores portuguezes, apenas apoiados pelo pequeno
+throno portuguez, tivessem feito da metade do novo mundo, que lhes
+concedeu o papa Alexandre, mais que os colonisadores hespanhoes que
+tiravam a sua força da grande nação de Hespanha, é uma cousa que prova
+a favor do sangue portuguez comparado com o sangue castelhano, andaluz
+ou aragonez. Mas que as conquistas feitas no Brazil á natureza sejam
+tão insignificantes, e tão vastos os espaços que permanecem não só
+inconquistados mas desamparados&mdash;indica que são analogos os defeitos
+da colonia hespanhola e da colonia portugueza...»
+
+<P>
+O resto do artigo é mais serio; e eu devo transcrevel-o sem interrupção.
+«O Brazileiro não é, como <span class="pagenum"><a name="pag_219">[219]</a></span> o peruano ou boliviano, altivo
+de mais, ou preguiçoso de mais para se dignar reparar nos meios de
+riqueza e de grandeza tão prodigamente espalhados em torno de si.
+Não; o brazileiro tem energia sufficiente para ambicionar e para calcular.
+A sua attenção está fixa nas ferteis regiões do interior. Desejaria
+bem vêr a rede dos seus rios navegaveis cobertos de barcos e vapores.
+Succede mesmo que, nos pontos mais ricos da costa, o habitante queixa-se
+que uma excessiva porção dos impostos com que é sobrecarregado vae
+ser gasta em collossaes trabalhos emprehendidos em vantagem de remotas
+e incultas regiões que nunca ou, ao menos, só d'aqui a longos annos,
+poderão aproveitar com elles. Mas, em todo o caso, o Brazil sente
+em si força sufficiente para dar ao seu vasto territorio os beneficios
+de uma sabia administração.»
+
+<P>
+O <i>Times</i> aqui tem um pequeno periodo, alludindo á nobre ambição
+que têm os brazileiros de fazer tudo por si mesmos, vendo com aborrecimento
+as grandes obras entregues á pericia estrangeira, e preferindo os
+esforços da sciencia e do talento nacionaes, ainda mesmo quando elles
+falham, custando ao paiz milhões perdidos... Depois prossegue:
+
+<P>
+«Mas emquanto o brazileiro se mostra assim, em theorias politicas
+e administrativas, ancioso por fomentar elle mesmo, por elle mesmo
+fazer todas as <span class="pagenum"><a name="pag_220">[220]</a></span> obras dos seus cinco milhões de milhas
+quadradas&mdash;ás suas mãos repugna o agarrar o cabo da enxada, ou tomar
+a rabiça do arado, que é justamente o serviço que a natureza reclama
+d'elle. N'um continente, que depois de tres seculos e meio continúa
+a ser um torrão novo, a grandeza das Republicas ou dos Imperios depende
+exclusivamente do trabalho manual.
+
+<P>
+«Italianos, allemães, negros, têm sido, estão sendo importados para
+fazerem o trabalho duro que repugna aos senhores do solo. Mas, inaclimatados,
+em certos districtos, elles nunca poderiam labutar como os naturaes
+dos tropicos. Nem mesmo nas provincias mais temperadas do Imperio
+jámais os immigrantes trabalharão resolutamente&mdash;até que o exemplo
+lhes seja dado pela população indigena, senhora da terra. O brazileiro
+ou tem de trabalhar por suas mãos, ou então largar a rica herança
+que é incompetente para administrar. Á maneira que o tempo se adianta,
+vae-se tornando uma positiva certeza que todos os grandes recursos
+da America do Sul entrarão no patrimonio da humanidade.»
+
+<P>
+O <i>Times</i> aqui embrulha-se. Prefiro explicar a sua ideia, a traduzir-lhe
+a complicada prosa; quer elle dizer que o dia se approxima em que
+a civilisação não poderá consentir que tão ricos solos, como os dos
+Estados do Sul da America, permaneçam estereis e inuteis, e que, se
+os possuidores actuaes são <span class="pagenum"><a name="pag_221">[221]</a></span> incapazes de os fazer valer
+e produzir, para maior felicidade do homem, deverão então entregal-os
+a mãos mais fortes e mais habeis. É o systema de expropriação por
+utilidade de civilização. Theoria favorita da Inglaterra e de todas
+as nações de rapina...
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Continúa depois o artigo, com ferocidade: «No Perú, na Bolivia, no
+Paraguay, no Equador, em Venezuela... em outros mais, os actuaes occupadores
+do solo terão gradualmente de desapparecer e descer áquella condição
+inferior, que o seu fraco temperamento lhes marca como destino. (Nunca
+se escreveu nada tão ferino!) O povo brazileiro, porém, tem qualidades
+excellentes e a Inglaterra não chegará promptamente á conclusão de
+que elle tem de partilhar a sorte de seus febris ou casmurros visinhos...
+Mas, dadas as condições do seu solo, o Brazil mesmo tem a escolher
+entre um semelhante futuro ou então o trabalho, o duro esforço pessoal,
+contra o qual até agora se tem rebellado. Se o seu destino tivesse
+levado os brazileiros a outro canto do continente, nem tão largo,
+nem tão bello, poder-se-hia permittir-lhes que passassem a existencia
+n'uma grande somnolencia. Mas ao brazileiro está confiada a decima
+quinta parte da superficie do globo: essa decima quinta parte é, toda
+ella, um thesouro <span class="pagenum"><a name="pag_222">[222]</a></span> de belleza, riquezas e felicidades
+possiveis; e de tal responsavel&mdash;o brazileiro tem de subir ou de
+cahir!»
+
+<P>
+E com esta palavra, á Gambetta, termino. Já se alonga muito esta carta
+para que eu a sobrecarregue de comentarios á prosa do <i>Times</i>.
+No seu conjuncto é um juizo sympathico. O <i>Times</i>, sendo, por
+assim dizer, a consciencia escripta da classe media da Inglaterra,
+a mais rica, a mais forte, a mais solida da Europa, tem uma auctoridade
+formidavel; e escrevendo para o Brazil, eu não podia deixar de recolher
+as suas palavras&mdash;que devem ser naturalmente a expressão do que a
+classe media da Inglaterra pensa ou vae pensar algum tempo do Brazil.
+Porque a prosa do <i>Times</i> é a matéria-prima de que se faz em
+Inglaterra o estofo da opinião.
+
+<P>
+E reparando agora que, por vezes n'estas linhas, fui menos reverente
+com o <i>Times</i>&mdash;murmuro, baixo e contricto, um <i>peccavi</i>...
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_223">[223]</a></span>
+
+<H1><A NAME="SECTION001100000000000000000">
+XI
+<BR>
+A festa das creanças</A>
+</H1>
+
+<P>
+A mais engraçada festa das creanças de que me lembro, foi em Inglaterra,
+na casa de campo dos meus amigos Birds, no paiz de Cornwall. Era uma
+mascarada reproduzindo em miniatura a côrte de el-rei Arthur e dos
+cavaleiros da Tavola Redonda. E o que tornava interessante a ressurreição
+d'este mundo heroico e gentil, popularizado por Tennyson, é que nós
+estavamos alli justamente na região de Cornwall, onde viviam, entre
+saráus e batalhas, Arthur, a sua rainha Guinevra e os doze valentes
+da Tavola. A pouca distancia do parque dos Birds, n'uma collina coberta
+de carvalheiras, a tradição colloca os paços de Arthur e a maravilhosa
+e sombria cidade de Caerleon. O rio em que pescavam trutas era o velho
+Usk. Nas suas frescas margens erguera-se <span class="pagenum"><a name="pag_224">[224]</a></span> outr'ora o mosteiro,
+onde o irmão de Percival, uma noite, da janella da sua cella, viu
+passar n'uma nuvem côr de rosa, entre aromas de junquilhos, o vaso
+do Santo Graal cheio de sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. E das
+varandas da sala de jantar, podiam avistar-se em dias claros, lá ao
+longe, na costa, e entre as rochas, as ruinas d'esse castello de Tintagil,
+que apparece em todas as balladas do rei Arthur, negro e triste junto
+ao mar de Cornwall.
+
+<P>
+A côrte começou a reunir-se cedo, á hora do lunch, no grande salão
+branco, sobre o jardim. Era o filho dos Birds quem esplendidamente
+recebia, vestido de rei Arthur. O primeiro personagem da lenda que
+chegou, acompanhado pela sua governante, foi o feiticeiro Merlino,
+um adoravel bébé, gordo e embezerrado com a corôa de hera, uns cabellos
+louros e umas enormes barbas propheticas enchendo-lhe a bochecha côr
+de rosa. Depois, seguidos das mamãs, vieram entrando todos os outros
+figurões da romantica chronica, cavalleiros de cinco annos armados
+e emplumados, mongesinhos nedios, bispos quasi de mama com os seus
+baculos nos braços, bardos rabugentos, mesteirais vestidos de seda,
+e fadas mais lindas que as fadas. As tres rainhas mysticas do Walhalla
+chegaram por ultimo, gravesinhas, todas tres pela mão, cobertas de
+véos negros, escoltadas por um grande lacaio empoado.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_225">[225]</a></span>Pouco a pouco o salão ficou animado como o velho Caerleon
+n'uma manhã de torneio. O pequeno Bird, de Rei Arthur, com seu manto
+bordado d'ouro, os cabellos frisados sahindo em anneis de sob a corôa
+carregada de pedras, passeava magestoso, entre os seus irmãos de armas.
+Uma senhora, encantada, quiz dar-lhe um beijo. Elle repeliu-a asperamente,
+como teria feito o casto Rei Arthur. Mais orgulhoso do que elle, só
+o bravo Lancelote do Lago, a quem tinham pintado um buço, e que revestido
+de armas negras, com uma longa pluma escarlate ondeando-lhe desde
+o elmo até ás esporas d'ouro, não tirava a mão da espada. E o que
+parecia ensoberbece-lo mais era a sua faxa de gaze branca, passada
+sobre a couraça, e feita em rigida obediencia á epopéa, d'um véo da
+rainha Guinevra. Essa era a grande belleza do saráu, a rainha Guinevra,
+uma irlandezasinha com as duas tranças negras e os olhos verdes como
+os prados d'Erin. Séria e fria, envolta na pesada capa de setim azul,
+conservava-se no meio de um sofá, immovel, com um sorriso que lhe
+punha uma covinha no queixo, indifferente aos madrigaes, insensivel
+ás proezas dos cavalleiros, e sempre de olhos baixos, ou por ella
+os bardos firam as harpas, ou por ella se batam os vassalos junto
+ao mar de Cornwall.
+
+<P>
+Um escudeiro annunciou o lunch, tocando uma buzina de prata, tal qual
+como no Caerleon. E pelo <span class="pagenum"><a name="pag_226">[226]</a></span> corredor, aos pares, toda a
+côrte seguiu á sala de jantar o rei Arthur, que levava pela mão, com
+uma graça solemne, a linda rainha Guinevra. Depois, mas não sem alguma
+confusão, em que necessariamente as mamãs tiveram de ser energicas
+com os cavalleiros, ficou completa a Tavola Redonda, ornada de baixellas
+e flôres. E nada faltava do que mandam as poeticas chronicas.
+
+<P>
+Ao fundo da mesa, na sua cadeira esculpida pelos Genios, lá se achava
+o velho feiticeiro Merlino, a quem a governante, para elle comer com
+limpeza a sua sopa, tirára as barbas propheticas. Não havia um javali
+assado sobre um prato de ouro. Apenas um modesto <i>roast-beef</i>.
+Mas o rei Arthur levantava o seu copo d'agua, misturada de uma gota
+de Bordeus, com a nobreza com que o outro, ha tantos centos de annos
+e n'aquella mesma collina, erguia a taça de hydromel em dias de victoria.
+De resto a sala, com o seu tecto de carvalho lavrado, tinha o severo
+apparato d'outras éras e através da janella lá estavam, como nos versos
+da <i>Morte d'Arthur</i>, as ruinas do Castello de Tintagil, negro
+e triste junto do mar de Cornwall.
+
+<P>
+A Côrte mostrava tanto apetite como á volta de uma batida aos lobos
+nos bosques, que avisinham o Usk. Até as fadas devoravam. Sir Galahad,
+esse que possuia a força de mil, porque o seu coração era <span class="pagenum"><a name="pag_227">[227]</a></span>virgem, já por duas vezes reclamára <i>pudding</i> de batatas, batendo
+furiosamente com o garfo sobre o seu murrião de prata, posto ao lado
+da mesa entre os crystaes.
+
+<P>
+Fôra preciso, por causa da sua magnifica tunica de setim verde, atar
+um guardanapo ao pescoço do cavalleiro Bors, essa radiante flôr de
+bravura christã. No meio de toda a alegria o forte Percival, incommodado
+com a sua armadura, permanecia manso e corado com o ar de estar pensando
+(como o outro Percival) em se recolher ao mosteiro de Wik. Depois,
+de repente e inexplicavelmente, rolou abaixo da cadeira, entornando
+todo o molho nos joelhos do intrigante Modred, o mais violento cavalleiro
+da Tavola.
+
+<P>
+Modred despropositou e arrepelou os cabellos d'ouro de Percival. A
+tia do heróe acudiu assustada, e então, como o famoso Lancelote do
+Lago se estava tornando turbulento, foi arrancado da Tavola Redonda
+ignominiosamente, nos braços d'um escudeiro, aos berros.
+
+<P>
+Depois do lunch, a côrte de el-rei Arthur voltou ao saráu a regozijar-se
+com danças. Saráu delicioso! Havia dois monges extraordinarios, de
+bureis brancos, tão pequenos e tão tropegos que as senhoras tinham
+de os segurar pelos braços nas quadrilhas e que queriam constantemente
+dançar, mais joviaes que <span class="pagenum"><a name="pag_228">[228]</a></span> os cavalleiros, promptos a atirar-se
+sempre aos bracinhos das camponezas toucadas de flôres.
+
+<P>
+O puro Sir Galahad, já sem broquel e sem murrião, galopava doidamente
+com uma ligeira fada, chegada n'essa manhã da Bretanha, das florestas
+de Broceliande. Um bardo, com a corôa de folhas de carvalho enterrada
+até aos olhos, chorava por ter perdido a sua harpa. Havia tambem um
+principe do Mar do Norte, um castellão de Erin e o bravo cavalleiro
+Bors, que se tinham refugiado a um canto, por detraz d'um sophá, onde
+sentados no chão continuavam na sua divertida merenda com bolos, dando
+gritos, quando as senhoras queriam pôr cobro áquella gula tão impropria
+de paladinos christãos.
+
+<P>
+No corredor o pae Bird teve de suster um rechonchudo abbade, que arregaçava
+as vestes sacerdotaes e ia, furioso, sovar o intrigante cavalleiro
+Modred. E não foi possivel realizar a parte mais picante da lenda,
+fazendo com que Lancelote do Lago cortejasse Guinevra. O bravo Lancelote
+(bem differente do outro) parecia de coração duro e sem gosto pelo
+sorrir das damas. Terminou mesmo por ter uma hedionda perrice, e cahiu
+nos joelhos da mamã, com duas grossas lagrimas nas pestanas e a sua
+bella penna escarlate cahida no chão, como n'uma tarde de derrota.
+
+<P>
+Cedo os bébés começaram a estar cançados. Eu <span class="pagenum"><a name="pag_229">[229]</a></span> mesmo, no
+meio da festa, tive de levar ao collo o veneravel bispo de Blackburn
+com a sua mitra e com o seu rico baculo. Os seus doces olhinhos azues
+fechavam-se de somno. Deitei-o no sophá, junto da mais pequenina das
+rainhas do Walhalla, que já alli dormia sob o véo negro, com os cabellos
+d'ouro soltos e o lyrio do Paraiso entre as mãosinhas cruzadas...
+
+<P>
+E o santo bispo candidamente adormeceu ao lado da mystica rainha.
+<span class="pagenum"><a name="pag_230">[230]</a></span>
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_231">[231]</a></span>
+<H1><a name="SECTION001200000000000000000"></a>
+<BR>
+XII
+<BR>
+Uma partida feita ao «Times»
+</H1>
+
+<P>
+É ao mesmo tempo lamentavel e piccaresco o caso succedido ao <i>Times</i>.
+Este nobre in-folio diario, que inspira orgulho a todo o inglez sinceramente
+patriota, e que aos olhos respeitosos do estrangeiro apparece como
+uma das mais fortes columnas da sociedade ingleza, como a propria
+consciencia da Inglaterra posta em lettra redonda; este augusto periodico
+que nunca, desde a sua fundação, citou o nome d'um collega, nem jámais
+se abaixou a uma controversia, pelas mesmas razões de inflexivel etiqueta
+que vedariam a Luis XIV argumentar com Colbert; esta austera gazeta
+que preferiria despedaçar as suas magnificas machinas a consentir
+que ellas imprimissem um <i>bon-mot</i>, uma pilheria, uma linda bagatella
+ou uma jovial anecdota; este papel tão pudico que <span class="pagenum"><a name="pag_232">[232]</a></span> evita
+o nome de Zola, como uma indecencia&mdash;o <i>Times</i>, emfim, o venerando
+<i>Times</i>, foi ultimamente victima de uma d'essas <i>partidas</i>,
+como nós dizemos, <i>facecias em acção</i>, como dizem os Americanos,
+que são ao mesmo tempo nefandas e patuscas, que nos abrazam a face
+de indignação e nos arrancam aos labios um sorriso, que nos fazem
+vituperar publicamente o farçante e saborear secretamente a farça,
+como se vissemos um rabo de papel pregado ao manto d'el-rei, ou sobre
+os cabellos em caracoes da imagem do Senhor dos Passos&mdash;um chapéu
+alto.
+
+<P>
+Todas as pessoas que teem folheado esses vastos lençóes de materia
+impressa que constituem um numero do <i>Times</i>, sabem que a quinta
+pagina é ordinariamente destinada á publicação dos discursos pronunciados
+por homens eminentes da politica, da litteratura, da sciencia, da
+arte, em <i>meetings</i>, comicios, banquetes, inaugurações, <i>conversazioni</i>,
+em todos esses ajuntamentos de <i>ladies and gentlemen</i> onde a
+Inglaterra dá vazão ao seu tumultuoso fluxo labial!... O <i>Times</i>
+é famoso por estas reproducções. Não são resumos, nem extractos: são
+as arengas, palavra a palavra, especialmente tachygraphadas para o
+<i>Times</i> por um pessoal experimentado, com as interrupções correctamente
+transladadas, os murmurios religiosamente marcados, sem que lhes falte
+um <i>meus senhores!</i>,<span class="pagenum"><a name="pag_233">[233]</a></span> sem que ficasse perdido um <i>oh!</i>
+ou um <i>ah!</i> e revistas, esmiuçadas, zeladas como se tivessem
+cahido dos labios de Socrates ou de Christo prégando outro Evangelho.
+
+<P>
+Este simples serviço custa por anno ao <i>Times</i> milhares de libras&mdash;mas
+dá-lhe a vantagem de ser elle a acta official do verbo publico da
+Inglaterra. Todos os jornaes da Europa assim o reconhecem: quando
+se discute um discurso do Sr. Gladstone, uma conferencia do professor
+Huxley ou uma predica do arcebispo de Canterbury, tem-se presente,
+como texto sagrado, o texto do <i>Times</i>. Um orador póde negar
+a incorrecção de um adjectivo, a violencia de uma apostrophe, quando
+a apostrophe ou o adjectivo tenham apparecido nos resumos rapidos
+de outro jornal: nunca, quando hajam apparecido nas columnas infalliveis
+do <i>Times</i>. Sabe-se a despeza, o desvelo, a minuciosidade, empregada
+para obter a exactidão&mdash;e essa exactidão nunca é contestada.
+
+<P>
+Quando o Sr. Gladstone, na campanha eleitoral da Escocia, soltou essa
+famosa invectiva contra o imperio dos Hapsburgos,&mdash;o protesto cortez
+do embaixador d'Austria era fundado em citações do <i>Times</i>. Um
+orador que, querendo deixar um monumento solido da sua arte, publique
+os seus discursos em volumes&mdash;collige-os do texto seguro do <i>Times</i>.
+O <i>Times</i> tem aqui o valor d'uma reproducção photographica. <span class="pagenum"><a name="pag_234">[234]</a></span>Insisto n'isto, para tornar mais vivo o horror da facecia.
+
+<P>
+Ha semanas Sir William Harcourt, o ministro do interior, fez um discurso
+em Manchester, discurso consideravel, muito annunciado, muito esperado,
+tocando todas as questões que inquietam agora a Inglaterra, a anarchia
+da Irlanda, o tratado de commercio com a França, a intervenção no
+Egypto, a criação do Governo Municipal de Londres, outras coisas graves
+ainda.
+
+<P>
+Esta arenga, tachygraphada pelo pessoal do <i>Times</i> em Manchester,
+telegraphada para os escriptorios do <i>Times</i> em Londres, foi
+composta, lida pelos revisores, revista pelo secretario de Sir William
+Harcourt, verificada, comprovada, relida ainda, e, emfim definitivamente
+installada na sua pagina... E aqui se colloca a facecia.
+
+<P>
+Mas é necessario primeiro, para maior indignação e maior goso, conhecer
+Sir William Harcourt. De todos os membros do ministerio Gladstone,
+Sir William é o mais austero. Já a sua apparencia intimida: grosso,
+membrudo, de hombros compactos, com a face imperiosa, pallida, rapada,
+Sir William tem as linhas solemnes e marmoreas do busto de um Cesar.
+
+<P>
+E dentro d'esta fórma romana habita um espirito rigido de doutrinario:
+liberal (em comparação <span class="pagenum"><a name="pag_235">[235]</a></span> com o marquez de Salisbury, que
+é quadradamente feudal), Sir William representa no Governo a tradicção,
+a formula <i>whig</i>. É o contrapeso conservador d'este ministerio
+radical: está alli como um bloco de granito constitucional para impedir
+que os outros ministros, Chamberlain, Sir Charles Dilke, os discipulos
+de Stuart Mill, se adiantem muito pela grande estrada da Revolução:
+e tem por isso essa ampla solemnidade de maneiras, essa cadencia pomposa
+de expressão, de quem se honra em guardar as coisas supremas&mdash;a corôa,
+a egreja, a aristocracia territorial, os privilegios, a integridade
+do imperio... É um solemne. Mesmo abotoado n'um paletot, parece embrulhado
+n'uma toga. É moroso, massudo, incapaz de sorrir, tem essa especie
+de magestade official que faz lembrar ao mesmo tempo Guizot e um elephante.
+
+<P>
+E quando a gente o contempla no parlamento, grave, rispido, vestido
+de negro&mdash;não o póde conceber nas attitudes triviaes da vida, fumando
+um cigarro n'um sophá, com uma perna por cima da outra, muito menos
+de joelhos, com uma linda mão de mulher entre as suas, murmurando
+coisas ternas e tontas...
+
+<P>
+E é isto que torna atroz e deliciosa a facecia... O discurso solemne
+d'este solemne estadista estava, pois, paginado, pronto para passar
+ás machinas,<span class="pagenum"><a name="pag_236">[236]</a></span> quando aproveitando um momento em que a policia
+interior dos escriptorios do <i>Times</i> casualmente afrouxára de
+vigilancia, <i>alguem</i>, um monstro, um scelerado, subtilmente,
+pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substitue-as
+por outras, compostas de ante-mão, perfida e habilmente compostas!
+E que linhas! meu Deus! como posso eu, conservando-me casto, explical-as
+aos leitores da <i>Gazeta de Noticias</i>?
+
+<P>
+&nbsp;
+
+<P>
+Essas linhas intercaladas no severo discurso do severo ministro eram
+(tremo de dizel-o) eram linhas eroticas! Era um grito convulsivo de
+desordenada lubricidade; era o ruido d'uma besta agitada por todas
+as furias de Venus; era como esse rouco e secco bramar dos veados,
+nos bosques, sob a calma do estio; era a balbuciação ebria dos Faunos
+da fabula, do deus Priappo, dos Satyros caprinos que vagueavam pelos
+pendores sagrados do monte Olympo, ululando, trincando a brancura
+dos lyrios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos
+ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras
+nymphas das aguas... Era tudo isto, e era ainda mais.
+
+<P>
+E, para requinte de facecia, isto não destoava, não chocava, apparecendo
+bruscamente e sem ligação,<span class="pagenum"><a name="pag_237">[237]</a></span> como um monturo immundo entre
+roseas flôres de rhetorica. Não: tinha sido <i>encaixado</i> com uma
+habilidade diabolica. Sir William Harcourt estava accusando os conservadores
+de affectarem uma patriotica melancolia em presença dos suppostos
+perigos, que sob o regimen liberal correm os grandes principios da
+ordem monarchica, a integridade mesma da Inglaterra. E aqui perguntava-lhes,
+naturalmente n'um natural movimento de oratoria: «Porque são esses
+gemidos? Porque é essa exageração de tristeza publica? Decerto a questão
+da Irlanda e a do Egypto são graves: mas o governo de Sua Magestade
+sabe que as soluções proveitosas e gloriosas não tardarão... Nós estamos
+tranquillos. Eu, por mim, sinto-me na disposição de quem, depois de
+cumprir um dever official, tem para o recompensar o sorriso sereno
+e approvador da consciencia, etc., etc.»
+
+<P>
+E justamente aqui as linhas perversas entravam naturalmente traçadas,
+desenvolvendo mais esta affirmação de contentamento intimo, mostrando
+a exuberancia de espirito d'um ministro galhofeiro, que, em presença
+do glorioso estado da cousa publica, admitte que o regosijo da nação
+tome a fórma excentrica mas justificavel, de uma tremenda bambochata,
+de um regabofe de estalar tudo... Sir William prosseguia (comprehendem
+bem que eu dou só expressões aproximativas e atenuadas; traduzir á
+<span class="pagenum"><a name="pag_238">[238]</a></span> lettra o que appareceu publicado no <i>Times</i> seria
+arruinar para sempre os creditos da <i>Gazeta de Noticias</i>) Sir
+William prosseguia: «Eu, por mim, estou contente. Acho-me até capaz
+de uma bella folia! Porque não nos daremos com effeito a uma rica
+patuscada, com vinhaça e mulherinhas? Oh, as mulherinhas! Senhoras
+que me escutaes, arremessae chapéus e vestidos, e toca a pandegar
+e a bater um rico batuque!... <i>Evohé!</i> Viva o deboche! Olé, <i>champanhe</i>!
+Abracemo-nos, deliremos!...» Isto é só para dar ideia: o que se lia
+no <i>Times</i> tinha outra crueza d'expressão, outro arranque d'orgia!...
+
+<P>
+Imaginem o effeito ao outro dia, quando milhares de numeros do <i>Times</i>,
+contendo esta abominação, penetraram n'esses recatados interiores
+inglezes, onde (segundo aqui dizem) habita o typo superior da familia
+christã. O <i>Times</i>, o mais caro dos jornaes, é a folha querida
+da aristocracia, da alta burguezia, da grande finança. Não se comprehende
+um <i>gentleman</i> inglez, do padrão classico, sem ter logo pela
+manhã percorrido conscienciosamente o seu <i>Times</i>: é como o coração
+mesmo da Inglaterra, que elle sente um momento entre as mãos e onde
+verifica cada dia, com orgulho, um accrescimo de força, uma pulsação
+maior de vitalidade. Ordinariamente é ao almoço que se lê o <i>Times</i>:
+e n'essa manhã, vendo-se na quarta pagina, em lettras grossas, O
+D<SMALL>ISCURSO DE </SMALL>S<SMALL>IR </SMALL>W<SMALL>ILLIAM </SMALL><span class="pagenum"><a name="pag_239">[239]</a></span> H<SMALL>ARCOURT EM </SMALL>M<SMALL>ANCHESTER</SMALL>, corria-se
+naturalmente a elle com curiosidade, já pelo interesse nacional, já
+pela sympathia que inspira Sir William, o seu nome historico, a solida
+pureza dos seus principios, a sua alta posição...
+
+<P>
+Imaginem-se então as scenas! Aqui é uma velha e devota duqueza, cheia
+de enthusiasmo pelas questões sociaes, que se aconchega na sua rica
+poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratoria de Sir
+William&mdash;e que de repente estaca, encara o <i>Times</i>, limpa as
+lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o periodo, passa
+a mão tremula pela face, procura anciosamente o seu frasco de saes,
+volta ainda a verificar se a não enleia uma allucinação, e, arremessando
+emfim para longe a gazeta immunda, sae da sala a passos offendidos,
+pensando comsigo que são esses os resultado de um seculo de democracia,
+de materialismo e de libertinagem!
+
+<P>
+Além é um casal de noivos, que, aninhados no mesmo sophá ao pé do
+fogão, com os braços entrelaçados, precorrem o <i>Times</i>, menos
+para saber da questão no Egypto, do que para ler o <i>compte-rendu</i>
+de outros casamentos elegantes ou as noticias de Paris, onde tencionam
+ir findar a sua lua de mel; mas encontram o discurso de Sir William,
+dão-lhe um olhar distrahido, quando de repente lhes salta d'entre
+as linhas o jorro immundo das apostrophes eroticas!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_240">[240]</a></span>N'outra casa é uma fresca e loura creaturinha de desoito
+primaveras, puro lyrio domestico, que faz a leitura do <i>Times</i>
+a um velho tio general, tolhido de gotta, reliquia veneranda das guerras
+peninsulares; o velho escuta, pouco attento á politica do dia que
+detesta, mas muito ao encanto d'aquella voz d'oiro ao seu lado; de
+repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se da côr d'uma rosa,
+treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lagrimas dos olhos,
+e foge, deixando o immundo <i>Times</i> nas mãos do general assombrado:&mdash;ou
+então, caso peior, a doce rapariga, na sua candura de flôr d'estufa,
+não comprehende, imagina que <i>aquillo é politica</i>, continua a
+ler com a sua voz d'oiro,&mdash;e o veneravel tio ouve de repente sahir
+dos labios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que ha de mais
+casto na musica de Weber, um enxurro torpe de babugens lubricas.
+
+<P>
+É medonho! E uma feição curiosa do incidente é que este negro attentado
+só foi descoberto nos escriptorios do <i>Times</i> ás onze horas da
+manhã: isto é, quando o jornal já estava distribuido em Londres, levado
+pelos trens de madrugada para toda a provincia, e pela mala de Dover
+para toda a Europa! A administração do <i>Times</i> telegraphou logo
+a todos os seus agentes no mundo, para suspender a distribuição <i>e
+comprar por todo o preço</i> os torpes numeros já espalhados.
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_241">[241]</a></span>Só estes telegrammas custaram perto de <i>dois contos
+de reis</i>. Mas o melhor é que apenas se soube a historia da catastrophe,
+e que o <i>Times</i> comprava por todo o preço o numero maldito&mdash;esse
+numero tornou-se logo um valor, um papel de credito, base de especulação,
+com cotações no mercado, eguaes, se não superiores, aos fundos de
+muita nação civilisada. Eu sei d'um restaurante que toma regularmente
+quatro numeros do <i>Times</i>&mdash;e que vendeu os seus exemplares immundos
+a duas libras cada um.
+
+<P>
+Realizaram-se, porém, ganhos maiores. O <i>Times</i> não regateia,
+paga. E até hoje diz-se que em comprar essa fatal edição tem gasto
+já perto de <i>quarenta contos</i>.
+
+<P>
+O autor da facecia ainda se não descobriu. É sem duvida, um monstro,
+e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunaes
+inglezes o demoliriam, se elle apparecesse. Mas, por outro lado, considerando
+que quarenta contos são apenas um somma minima para a fortuna do <i>Times</i>,
+e que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada <i>pruderie</i>
+a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros
+realistas,&mdash;eu não posso deixar de pensar, com laivos de regosijo,
+que a Providencia tem armas obliquas e terriveis!
+
+<P>
+<span class="pagenum"><a name="pag_242">[242]</a></span>Nunca, decerto, desde a invenção da imprensa, aconteceu
+um jornal publicar, na sua melhor pagina, em letras salientes, doze
+linhas immundas de desbragada obscenidade; e ser o <i>Times</i>, o
+primeiro que o fez, o <i>Times</i>, o mais pesado, mais moroso, mais
+solemne, mais pedagogico, mais reverente de todos os jornaes que têm
+existido desde a invenção da imprensa&mdash;é, digam o que disserem, divertido.
+
+<P>
+E, terminando, peço ás almas caritativas e justas uma bôa risada á
+custa do <i>Times</i>.
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA ***
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+works. See paragraph 1.E below.
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+
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
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+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
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+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
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+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
+
+</BODY>
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
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+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
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+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
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