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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Cartas de Inglaterra + +Author: José Maria Eça de Queirós + +Release Date: May 29, 2008 [EBook #25641] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + + +Cartas de Inglaterra + + + + +Eça de Queirós + + +Cartas de Inglaterra + + +Porto +LIVRARIA CHARDRON +de Lello & Irmão--Editores +1905 + + + + + Obras de EÇA de QUEIROZ + + *O crime do padre amaro.* Quarta edição inteiramente refundida, + recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva. + 1 grosso volume.................................................. 1$200 + *Os Maias.* Segunda edição. 2 grossos volumes.................... 2$000 + *A cidade e as Serras.*.......................................... 800 + *O Mandarim.* Quarta edição. 1 volume............................ 500 + *O primo Basilio.* Quarta edição. 1 grosso volume................ 1$000 + *A Reliquia.* Terceira edição. 1 grosso volume................... 1$000 + *Contos.* 1 volume............................................... 600 + *As minas de salomão.* 1 volume.................................. 600 + *Correspondencia de Fradique Mendes.* 1 volume................... 600 + *Revista de Portugal.* 4 grossos volumes......................... 12$000 + *A Illustre Casa de Ramires.* 1 volume........................... 1$000 + *Prosas Barbaras.* 1 volume...................................... 600 + + _No prélo:_ + + *Echos de Paris* + *S. Christovam* (inedito) + + +Porto--IMPRENSA MODERNA + + + + +I + +Afghanistan e Irlanda + + +Os inglezes estão experimentando, no seu atribulado imperio da India, a +verdade d'esse humoristico logar-commum do seculo XVIII: «A Historia é +uma velhota que se repete sem cessar.» + +O Fado ou a Providencia, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu +os episodios da campanha do Afghanistan em 1847, está fazendo +simplesmente uma copia servil, revelando assim uma imaginação exhausta. + +Em 1847 os inglezes, «por uma razão d'Estado, uma necessidade de +fronteiras scientificas, a segurança do imperio, uma barreira ao dominio +russo da Asia...» e outras coisas vagas que os politicos da India rosnam +sombriamente, retorcendo os bigodes--invadem o Afghanistan, e ahi vão +aniquilando tribus seculares, desmantelando villas, assolando searas e +vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do +serralho um velho emir apavorado; collocam lá outro de raça mais +submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; +e, logo que os correspondentes dos jornaes têm telegraphado a victoria, +o exercito, acampado á beira dos arroios e nos vergeis de Cabul, +desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... Assim é exactamente em +1880. + +No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes energicos, Messias +indigenas, vão percorrendo o territorio, e com grandes nomes de _Patria_ +e de _Religião_, prégam a guerra santa: as tribus reunem-se, as familias +feudaes correm com os seus troços de cavallaria, principes rivaes +juntam-se no odio hereditario contra o estrangeiro, o _homem vermelho_, +e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos +das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a entrada +da India... E quando por alli apparecer, emfim, o grosso do exercito +inglez, á volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se +espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito secco das +torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquella massa +barbara rola-lhe em cima e aniquila-o. + +Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do +exercito refugiam-se n'alguma das cidades da fronteira, que ora é +Ghasnat ora Candahar: os afghans correm, põem o cerco, cerco lento, +cerco de vagares orientaes: o general sitiado, que n'essas guerras +asiaticas póde sempre communicar, telegrapha para o viso-rei da India, +reclamando com furor _reforços, chá e assucar_! (Isto é textual; foi o +general Roberts que soltou ha dias este grito de gulodice britannica; o +inglez, sem chá, bate-se frouxamente.) Então o governo da India, +gastando milhões de libras, como quem gasta agua, manda a toda a pressa +fardos disformes de chá reparador, brancas collinas de assucar, e dez ou +quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos +transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, +rebanhos de cavallos, parques de artilharia, toda uma invasão +temerosa... Foi assim em 1847, assim é em 1880. + +Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras columnas de tropa +india, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a +quarenta milhas por hora; d'ahi começa uma marcha assoladora, com +cincoenta mil camelos de bagagens, telegraphos, machinas hydraulicas, e +uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornaes. Uma manhã +avista-se Candahar ou Ghasnat;--e n'um momento, é aniquilado, disperso +no pó da planicie, o pobre exercito afghan com as suas cimitarras de +melodrama e as suas veneraveis colubrinas do modelo das que outr'ora +fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Candahar está livre! +Hurrah!--Faz-se immediatamente d'isto uma canção patriotica; e a façanha +é por toda a Inglaterra popularisada n'uma estampa, em que se vê o +general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com +vehemencia, no primeiro plano, entre cavallos empinados e granadeiros +bellos como Apollos, que expiram em attitude nobre! Foi assim em 1847; +ha-de ser assim em 1880. + +No emtanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou +defendiam a patria ou morriam pela _fronteira scientifica_, lá ficam, +pasto de corvos--o que, não é, no Afghanistan, uma respeitavel imagem de +rhetorica: ahi, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, +comendo as immundicies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando +os restos das derrotas. + +E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma +canção patriotica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde +uma linha de prosa n'uma pagina de chronica... + +Consoladora philosophia das guerras! + +No emtanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande victoria do +Afghanistan»--com a certeza de ter de recomeçar d'aqui a dez annos ou +quinze annos; porque nem póde conquistar e annexar um vasto reino, que é +grande como a França, nem póde consentir, collados á sua ilharga, uns +poucos de milhões de homens fanaticos, batalhadores e hostis. A +«politica» por tanto, é debilital-os periodicamente, com uma invasão +arruinadora. São as fortes necessidades d'um grande imperio. Antes +possuir apenas um quintalejo, com uma vacca para o leite e dois pés +d'alface para as merendas de Verão... + +Outra historia melancholica é a da Irlanda. Quem não conhece as queixas +seculares da Irlanda, da _Verde Erin_, terra de bardos e terra de +santos, onde uma plebe conquistada, resto nobre de raça celtica, +esmagada por um feudalismo agrario, vivendo em buracos como os servos +gothicos, vae desesperadamente disputando á urze, á rocha, ao pantano, +magras tiras de terra, onde cultiva, em lagrimas a batata? Todo o mundo +sabe isto--e, desgraçadamente, esta Irlanda de poema e de novella é, em +parte, verdadeira: além dos poucos districtos onde a agricultura é rica +como em qualquer dos uberrimos condados inglezes, além de Cork ou +Belfast, que têm uma industria forte--a Irlanda permanece o _paiz da +miseria_, bem representada n'essa estampa romantica em que ella está, em +andrajos, á beira de um charco, com o filhinho nos braços morrendo-lhe +da falta de leite, e o cão ao lado, tão magro como ella, ladrando em vão +por soccorro... + +Os males da Irlanda, muito antigos, muito complexos, provêm, sobretudo, +do systema semi-feudal da propriedade. + +O povo irlandez é numeroso, exageradamente prolifico (nem a emigração, +nem a morte, nem as epidemias, alliviam esta ilha muito cheia) e vive +n'uma terra pobre, de cultura estreita, apenas no seu terço trabalhada: +os proprietarios, lords inglezes ou escocezes, sempre ausentes das +terras, não admittindo a despeza d'um schelling para as melhorar, estão +em Paris, estão em Londres, comendo pecegos em janeiro, e jogando pelos +clubs o _whist_ a libra o tento: os seus procuradores e agentes, +creaturas vorazes, sem ligação com o solo nem com a raça, forçados a +remetter incessantemente dinheiro a SS. SS., interessados em conservar a +procuradoria, cáem sobre o rendeiro, levantam-lhe a renda, forçam-n'o a +vendas desastrosas, enlaçam-n'o na uzura, tributam-n'o feudalmente, +apertam-n'o com desespero como a um limão meio secco, até que elle verta +n'um gemido o ultimo penny. Se o miseravel este anno, fatigando o +torrão, sustentando-se de hervas seccas, economisando o lume quando ha +seis palmos de neve, consegue arrancar de si a somma que S. S., o Lord, +reclama para offerecer uma esmeralda á loura Fanny ou á pallida +Clementine, para o anno lá está enleado na divida, sem meios de comprar +a semente, com uma terra exhausta a seus pés... + +Então o procurador, de lei em punho, vem, corre, penhora-o, vende-lhe o +catre, expulsa-o do casebre, atira-lhe mulher, creancinhas e avós +entrevados para as pedras do caminho... E ahi vae mais um bando de +desgraçados engrossar o lamentavel proletariado que povôa a «_verde ilha +dos bardos_». São milhares, são milhões! Esta população, com o ventre +vazio, os pés nús sobre a geada, volta-se então para a Inglaterra, a mãe +Inglaterra, que tem a Lei, que tem a Força, que tem a Responsabilidade: +a Inglaterra, commovida na sua fibra christã, volta-se para os seus +economistas, os seus politicos: estes individuos pousam as suas vastas +frontes nas suas vastas mãos, e arrancam das concavidades da sua +sabedoria pharisaica esta resposta, a tenebrosa resposta da meia edade +ás reclamações do soffrimento humano: + +--Paciencia! o remedio está no ceu... + +A Inglaterra, valendo-se capciosamente do clero catholico da Irlanda, e +da religiosidade da plebe, para a manter na resignação da miseria, +acenando-lhe com as promessas côr de ouro da bemaventurança--é um +salutar espectaculo! + +Sejamos, porém, justos: a Inglaterra manda tambem, aos milhões de +esfomeados, farinha e dois ou tres schellings: e o _Punch_ faz-lhes a +honra de lhes dedicar pilherias. + +De tudo isto que resulta? Que o irlandez, vendo a fome no seu lar, a +Inglaterra occupada com o dr. Tanner, o _Punch_ muito divertido, e o ceu +muito longe--faz uma trouxa dos seus andrajos, vae á villa mais proxima, +apresenta-se ao comité dos _Fenians_ ou á secção de _Mollie Maguire_ e +diz simplesmente:--_Aqui estou!..._ + +Estas duas associações secretas são terriveis e completam-se uma pela +outra. Os _Fenians_, que estiveram um momento desorganizados, mas que +têm hoje a prosperidade de uma instituição publica, são uma seita +politica, com o fim claro de conquistar a independencia da Irlanda: o +seu meio é uma futura insurreição, batalhas á luz do dia, um esforço +heroico de raça que sacode o estrangeiro. + +É evidente, portanto, que a Inglaterra não tem nada a temer d'esta +associação: uma esquadra no canal de S. Jorge, dez mil homens +desembarcados, e os _Fenians_ serão, no estylo da canção, _como a herva +dos campos depois que passou o ceifador_, um estendal de cousas sem +vida. Mas não é assim com _Mollie Maguire_; esta constitue puramente uma +conspiração: os seus estatutos, os seus fins, a sua organização, os seus +chefes, tudo está envolvido n'um mysterio, que é o terror na Irlanda; só +são claros os seus crimes. Ha um proprietario duro que levantou a renda? +Uma noite, ou elle ou o seu procurador apparecem á beira de um caminho, +com duas balas na cabeça. Quem foi? Foi _Mollie Maguire_: foi ninguem, +foi a Miseria, foi a Irlanda. Ha um senhorio, um agente, que fez uma +penhora? Á meia noite, a sua casa começa a arder, e é n'um momento uma +ruina fumegante. Quem foi? _Mollie Maguire_. Houve um burguez +especulador que comprou o casebre de um proprietario penhorado? No outro +dia lá está no fundo de uma lagôa, com um pedregulho ao pescoço. Quem +foi, coitado? _Mollie Maguire_. Todos os dias, n'estes ultimos mezes, +são assim, dois, tres d'estes crimes--que têm em Inglaterra o nome de +_agrarios_. Os tribunaes, a policia, já se não fatigam em devassas e em +autos: para quê? _Mollie Maguire_ é intangivel, _Mollie Maguire_ é +impessoal. + +E se houvesse um magistrado tão desgostoso da vida que quizesse +descobrir d'onde viera a bala, o pedregulho ou o fogo--teria certamente, +horas depois, o que tanto parecia desejar: um punhal atravez do peito. +São verdadeiramente os processos do Nihilismo militante: nem falta a +esta seita aquella vaga exaltação mystica que complica o Nihilismo. Se +_Mollie_ (Mollie é o diminutivo de Maria) não é uma divindade, é pelo +menos uma degeneração fetichista da divindade: é a tenebrosa padroeira +das desforras da plebe, aquella em quem os desgraçados abandonados de +Deus, do Deus official, do Deus da Missa, encontram soccorro, amizade, +força--uma sorte de encarnação feminina do diabo do Sabbath, confidente +dos servos e dos feiticeiros da meia-noite. + +A estas duas associações deve juntar-se uma terceira, legal essa, +fallando alto nas praças, com jornaes, com taboleta, vivendo sob a +protecção da Constituição, respeitada da policia, e que se chama a _Liga +da Terra_. O seu fim é promover, por meio de _meetings_ e +representações, uma vasta agitação, um impulsivo movimento da opinião, +que force o parlamento inglez a reformar o systema agrario. Mas é +realmente uma associação legal? São os seus fins tão honestamente +moderados, tão estreitamente constitucionaes como se diz? Todo o mundo +duvida. Na Irlanda, sempre que dois homens se reunem, conspiram: quando +se sentem quatro, apedrejam logo a policia:--que será então quando +reconhecerem que são duzentos mil? Além d'isso, as reclamações d'esta +associação são de um vago singular: nada de pratico, nada de realisavel: +apenas os velhos gritos sentimentaes da aspiração humanitaria. E, ao +mesmo tempo, os homens, que a dirigem, são espiritos positivos e +experimentados. Ha aqui uma contradicção assustadora. Sente-se que os +chefes d'este movimento, sabendo bem que da Inglaterra nada têm a +esperar, estão simplesmente, sob as apparencias da legalidade, +organisando a insurreição. Formular um programma pratico para o +parlamento votar, seria, na opinião d'elles, ocioso e pueril: as +declamações verbosas em que se falle muito de _legalidade_, _ordem_, +_parlamentarismo_ bastam--para illudir a policia... E não é duvidoso +que, n'um certo momento, _Fenians_, _Mollie Maguire_ e _Liga da Terra_ +formarão um só movimento--o da revolta desesperada. + +Este era o estado da Irlanda ha dois mezes, quando se deu o caso +inesperado do _bill de compensação_. Este projecto de lei apresentado +pelo ministro Gladstone (parte por um sentimento liberal de justiça, +parte para agradecer os fortes serviços dos irlandezes nas ultimas +eleições) não trazia certamente um remate aos males da Irlanda; mas, +coarctando os abusos dos senhores, difficultando a arbitrariedade das +«expulsões», modificando a legislação barbara das penhoras, alliviava o +trabalhador irlandez do ferreo calcanhar feudal que o esmaga. O _bill_ +passou entre os applausos da camara dos communs: mas escuso de +acrescentar que a camara dos lords, essa augusta e gothica assemblêa de +senhores semi-feudaes, o regeitou com horror, como obra execravel do +liberalismo satanico! + +Veem d'ahi o resultado: os agitadores da Irlanda, os seus prophetas, os +seus chefes apossaram-se com enthusiasmo d'esta regeição da camara dos +lords--e utilisaram-n'a tão habilmente, como Antonio utilisou a tunica +ensanguentada de Cesar. Foram-n'a mostrando á plebe indignada, por +campos e aldeias, gritando bem alto: «Aqui está o que fizeram os lords, +os vossos amos, os vossos exploradores! A primeira proposta justa, em +bem da Irlanda, que se lhes apresenta, repellem-na! Querem manter-vos na +servidão, na fome, no opprobrio das velhas edades, no estado da raça +vendida! Ás armas!» + +E desde então a Irlanda prepara-se ardentemente para a insurreição: +apesar dos cruzeiros que vigiam a costa, todos os dias ha desembarques +de armas; o dinheiro, os voluntarios affluem da America; pelos campos +vêm-se grupos de duzentos, trezentos homens, de espingardas ao hombro, +fazendo exercicios como regimentos em vesperas de campanha; ainda que +seja agora a epoca das colheitas, a população não está nos campos, está +nos _meetings_, nos clubs; e os tribunos, os agitadores, prodigalizam-se +sem repouso. Não falta, decerto, a estes homens nem coragem, nem aquella +eloquencia pathetica que faz passar nas multidões o _arrepio sagrado_. +Um d'elles, Redathd, exclamava ha dias: + +--Dizem-nos a cada momento: sêde justos, pagae ao lord, pagae ao +senhorio! E citam-nos a palavra divina d'aquelle que disse: _Dae a Cesar +o que é de Cesar!_ Houve só um homem, Brutus, que deu a Cesar o que a +Cesar era devido, um punhal atravez do coração! + +Esta brutalidade tem grandeza. Agora imagine-se isto lançado a uma +multidão opprimida, com os gestos theatraes d'esta raça violenta, de +noite, n'um d'estes sinistros descampados da Irlanda, que são todos +rocha e urze, ao clarão d'archotes, dando aquella intermittencia de +treva e brilho que é como a alma mesma da Irlanda--e veja-se o effeito! + +Em Inglaterra, mesmo, os optimistas consideram a insurreição quasi +inevitavel para os frios do outomno. E o honesto John Bull prepara-se: +já o ministro do interior está em Dublin, e é eminente a declaração da +_lei marcial_... N'este ponto, radicaes e conservadores são unanimes: se +a Irlanda se levanta, que se esmague a Irlanda! Sómente John Bull +declara que o seu coração ha-de chorar emquanto a sua mão castigar... +Excellente pae! + +O jornal o _Standard_, o veneravel _Standard_, tinha ha dias uma phrase +adoravel. «Se, como é de temer, a Irlanda vier a esquecer-se do que deve +a si e á Inglaterra»--exclamava o solemne _Standard_,--«é doloroso +pensar que no proximo inverno, para manter a integridade do imperio, a +santidade da lei e a inviolabilidade da propriedade, nós teremos de ir, +com o coração negro de dôr, mas a espada firme na mão, levar á Irlanda, +á ilha irmã, á ilha bem amada, uma necessaria exterminação.» + +_Exterminação_ é muito: e quero crêr, que está alli, para rematar com +uma nota grave, uma nota d'orgão, a harmonia do periodo. Mas o +sentimento é curioso e raro: e seria um espectaculo maravilhoso vêr, no +proximo inverno, John Bull percorrendo a Irlanda, cheio de ferocidade e +afogado em ternura, com os olhos a escorrer de lagrimas e a sua bayoneta +a pingar de sangue...--Ainda as fataes necessidades de um grande +imperio! Volto ao meu desejo: um quintalejo, uma vacca, dois pés +d'alface... E um cachimbo--o cachimbo da paz! + + + + +II + +Ácerca de livros + + +Outubro chegou, e com este mez, em que as folhas cáem, começam aqui a +apparecer os livros, folhas ás vezes tão ephemeras como as das arvores, +e não tendo como ellas o encanto do verde, do murmurio e da sombra. + +Estamos, com effeito, em plena _Book-Season_, a estação dos livros. + +Estes dous mezes, setembro e outubro (e elles merecem-no porque como +côr, luz, repouso, são os mais simpathicos do anno) têm accumulado em si +as mais interessantes _seasons_, as _estações_ mais fecundas da vida +ingleza. + +A _London-Season_, a celebre estação de Londres, quando a Aristocracia, +maior e menor, os _dez mil de cima_, como se dizia antigamente, o +_folhado_, como se diz agora, recolhe dos parques e palacios do campo +aos seus palacetes e jardinetes de Londres--passa-se em abril, junho e +julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e ôca estação de trapos, de luvas +de vinte botões, de lacaios, de champagne, de batota e de _cotillon_. +Emquanto que as outras!... + +Olhem-me para estas sabias, uteis, viris, solemnes _seasons_, que +abundam n'estes dourados mezes de setembro e outubro. Isto sim! Aqui +temos, por exemplo, a _Congress-Season_, a estação dos congressos. + +Que espectaculo! Toda a verde superficie da Inglaterra está então, de +norte a sul, salpicada de manchas negras. São congressos em deliberação. +Ha-os de metaphysicos e ha-os de cosinheiros. + +Aqui, duzentos individuos carrancudos e descontentes elaboram uma nova +ordem social; além, uma multidão de sabios, acocorados, semanas +inteiras, em torno de um objecto escuro, não pódem chegar á conclusão se +é um tijolo vilmente recente ou uma laje da camara nupcial da rainha +Ginevra; e adiante cavalheiros anafados e luzidios assentam a doutrina +definitiva da engorda do leitão--esse amor! + +Os congressos mais notaveis este anno fôram--o de medicina em Londres, a +que assistiram _mil e tresentos_ congressistas medicos e cirurgiões dos +dois mundos e dos dois sexos, e onde se prometteu á humanidade, para +d'aqui a annos, a suppressão das epidemias pelas vaccinas; o da _British +Association_, a grande Sociedade das Sciencias (congresso annual +celebrado este anno em York) em que o presidente, sir John Lubbock, esse +amavel sabio que tem passado a existencia a estudar as civilizações +inferiores dos insectos, laboriosas democracias de formigas, deploraveis +oligarchias de abelhas--occupou-se d'esta vez, dando um balanço á +sciencia durante os ultimos cincoenta annos, a mostrar algumas das +estupendas habilidades d'esse outro ephemero insecto, o Homem: e emfim o +congresso annual da Egreja, celebrado em Newcastle, composto de bispos, +dignitarios ecclesiasticos, theologos, doutores em divindade, este largo +clero anglicano, o mais douto e litterario da Europa. N'este, entre +outros assumptos discutiu-se a _Influencia da Arte na vida e no pensar +religioso_: mas, quanto a mim, o resultado mais nitido foi o revelar +incidentalmente que a frequentação dos templos, em Inglaterra, diminue +de um terço todos os dez annos, ao passo que o espirito de religiosidade +cresce nas massas, tornando-se assim o sentimento religioso cada dia +mais desprendido das fórmas caducas e pereciveis das religiões. + +N'este momento ha outros congressos--o dos Metallurgistas, o das +Sciencias Sociaes, o dos Telegraphistas, o Archeologico, o dos +Gravadores, o dos... emfim, centenares. Até o dos _Browninguistas_. Não +sabem o que são os _Browninguistas_? Uma vasta associação, tendo por fim +estudar, commentar, interpretar, venerar, propagar, illustrar, divinisar +as obras do poeta Browning. Isto, mesmo n'este paiz de arrebatados +enthusiasmos intellectuais, me parece um pouco forte. Browning é sem +duvida, com Shelley, Shakspeare e Milton, um dos quatro principes da +poesia ingleza: mas tem o inconveniente de estar vivo. Elle proprio +assiste, materialmente, com o seu paletot e o seu guarda chuva, ao +congresso de que é objecto espiritual e assumpto: e fatalmente, pelo +effeito mesmo da sua presença, a admiração litteraria tende a tornar-se +idolatria pessoal, e os _shake hands_ que elle distribue começam +naturalmente a ser mais apreciados no congresso que os poemas que elle +escreveu. Por isso mesmo que o divinisam, o amesquinham: não é então o +grande poeta de Inglaterra, é o idolo particular dos _Browninguistas_, +deixa assim de ser um espirito fallando a espiritos--para ser apenas um +manipanso aterrorizando supersticiosos. + +Mas, continuando com as _estações_, temos ainda a _Yachting-Season_, a +estação nautica, das regatas, das viagens em _yacht_. Hoje em Inglaterra +ter um _yacht_ é, como entre nós montar carruagens, o primeiro dever +social do rico ou do enriquecido, uma das fórmas mais triviaes do +conforto luxuoso. Um _yacht_ não é só um frágil e airoso barco de +cincoenta toneladas e vela branca; póde ser tambem um negro e poderoso +vapor de duas mil toneladas e sessenta homens de tripulação. N'este +ultimo caso, em logar de bordejar gentilmente em redor das flôres e das +relvas da ilha de Wight, ou de ir mergulhar n'essas prodigiosas +paisagens marinhas do alto Norte da Escossia, vae dar a volta ao mundo, +carregado de biblias para os pequenos patagonios e de champagne e d'amor +para as lindas missionarias, vestidas de marinheiras. A vida de _yacht_ +tem os seus costumes especiaes, a sua etiqueta, a sua phraseologia, a +sua moral propria, e sobretudo a sua litteratura. A litteratura de +_yacht_ é vasta--William Black, o autor das _Azas Brancas_, do _Nascer +do Sol_, da _Princeza de Thude_, o seu romancista official: um +paisagista maravilhoso, de resto, tendo na sua penna todo o vigor do +pincel d'um Jules Breton. + +Temos igualmente n'este mez a _Shooting-Season_, a estação da caça ao +tiro, que abre no 1.º de setembro com uma solemnidade tal, e no meio de +um interesse publico tão intenso, tão fremente--que me dá sempre ideia +do que devia ter sido nas vesperas da Grande Revolução a abertura dos +Estados Gerais. Peço perdão d'esta abominavel comparação--mas a carne é +fraca, e eu considero esta estação sublime. É n'ella que se caça o +_grouse_, e é durante ella que se come o _grouse_. Não sabem o que é o +_grouse_? É um passaro do tamanho da perdiz, que vive (Deus o abençôe!) +nos _moors_, ou descampados da Escossia... Agora deixem-me repousar um +momento, e ficar aqui, n'um extasi manso, pensando no _grouse_, com as +mãos cruzadas sobre o estomago, o olho enternecido, lambendo o labio... +Não imaginem que eu sou um guloso. Mas nunca se deve fallar nas coisas +boas sem veneração. Lord Beaconsfield, esse mestre do bom gosto, deu-nos +o exemplo quando, tendo mencionado n'um dos seus livros o _ortolan_, +esse outro delicioso passaro, acrescentou--que o peitinho gordo do +_ortolan_ é mais delicioso que o seio da mulher, o seu aroma mais +perturbador que os lilazes, e o sabor da sua febra melhor que o sabor da +verdade. Póde-se dizer o mesmo do _grouse_. + +Continuando, temos a _Burglary-Season_, a estação dos assaltos e roubos +ás casas. Esta começa tambem em setembro, quando a gente rica sai de +Londres e deixa os seus palacetes, ou fechados, ou ao cuidado de um +velho e somnolento guarda-portão. Os salteadores de Londres, corpo +social tão bem organisado como a propria policia, procede então +systematicamente, por quadrilhas disciplinadas, usando os mais perfeitos +meios scientificos no arrombamento e no saque d'essas propriedades +abarrotadas de cousas ricas... + +Temos a _Lecture-Season_, ou estação das conferencias. O seu nome +explica-a e seria longo detalhar-lhe a organisação. Basta dizer que +n'esta estação não ha talvez um bairro em Londres (quasi podia dizer uma +rua), nem uma aldeia no resto do paiz, em que se não veja, cada noite, +um sujeito, com um copo d'agua, dissertando sobre um assumpto, deante +d'uma audiencia compacta, attenta, interessada e que toma notas. Os +assumptos são _tudo_--desde a ideia de Deus até á melhor maneira de +fabricar graxa. E os conferentes são _todo o mundo_--desde o professor +Huxley até um qualquer cavalheiro, o senhor Fulano de Tal, que sóbe á +plataforma a contar as suas impressões de viagem ás ilhas Fidji, ou as +aptidões curiosas que observou no seu cão... + +Ha ainda outras estações que basta enunciar: a _Hunting-Season_, a +estação da caça á raposa (isto é todo um mundo); a _Cricket-Season_, a +estação em que se joga o cricket,--e em que se vêm d'estes edificantes +espectaculos: doze cavalheiros, vindos do fundo da Australia, outros +doze partindo dos altos da Escossia, e encontrando-se em Londres a jogar +ao desafio uma tremenda partida que dura tres dias, na presença +arrebatada de um povo em delirio! + +Temos tambem a _Angling-Season_, a estação da pesca á linha, instituição +nobilissima a que a humanidade deve o salmão e a truta. É o _sport_ +favorito da alta burguezia culta, da magistratura, dos homens de +sapiencia, d'aquela parte da velha aristocracia sobre que mais pesam as +responsabilidades do Estado. Todo este mundo, de solemne +respeitabilidade e de alto ceremonial--pesca á linha. Talvez por isso, +de todos os _sports_ inglezes, a pesca á linha é um dos que têm +produzido uma litteratura mais consideravel--tão consideravel que a sua +bibliografia, a simples enumeração dos seus tratados, occupa um livro de +duzentas paginas! Ahi observo com respeito a noticia de um ponderoso +estudo sobre a _Pesca á linha entre os Assyrios_... + +Só esta semana a litteratura da pesca á linha nos deu já dois livros, +segundo as listas: _A carteira de um pescador á linha_, _Pela beira dos +rios_. + +Temos ainda a _Traveling-Season_, a estação das viagens, quando o famoso +_touriste_ inglez faz a sua apparição no continente. N'esta epoca +(setembro e outubro) todo o inglez que se respeita (ou que, não podendo +em sua consciencia respeitar-se, pretende ao menos que o seu visinho o +respeite) prepara umas dez ou doze malas e parte para os paizes do sol, +do vinho e da alegria. Os anjos (se o não sonharam, como diz João de +Deus) devem assistir então, do seu terraço azul, a um espectaculo bem +divertido: toda a Inglaterra fervilhando no porto de Dover--e d'ahi +successivamente partirem longos formigueiros de _touriste_, riscando de +linhas escuras o continente, indo alastrar os valles do Rheno, +negrejando pela neve dos Alpes acima, serpenteando pelos vergeis da +Andaluzia, atulhando as cidades da Italia, inundando a França! Tudo isto +são inglezes. Tudo isto traz um _Guia do Viajante_ debaixo do braço. +Tudo isto toma notas. Isto ás vezes viaja com a esposa, a cunhada, uma +amiga da cunhada, uma conhecida d'esta amiga, sete filhos, seis creados, +dez cães, e outros cães conhecidos d'estes cães; e isto paga por tudo +isto sem resmungar! Não: não digo bem, resmungando sempre. Esta viagem +de prazer passa-a quasi sempre o inglez a praguejar (mentalmente--porque +nem a Biblia nem a respeitabilidade lhe permitem praguejar alto). + +A verdade é que o inglez não se diverte no continente; não comprehende +as linguas; estranha as comidas; tudo o que é estrangeiro, maneiras, +_toilettes_, modos de pensar, o choca; desconfia que o querem roubar; +tem a vaga crença de que os lençóes nas camas d'hotel nunca são limpos; +o vêr os theatros abertos ao domingo e a multidão divertindo-se amargura +a sua alma christã e puritana; não ousa abrir um livro estrangeiro +porque suspeita que ha dentro cousas obscenas; se o seu _Guia_ lhe +affirma que na cathedral de tal ha seis columnas e se elle encontra só +cinco, fica infeliz toda uma semana e furioso com o paiz que percorre, +como um homem a quem roubaram uma columna; e se perde uma bengala, se +não chega a horas ao comboio, fecha-se no hotel um dia inteiro a compôr +uma carta para o _Times_, em que accusa os paises continentaes de se +acharem inteiramente n'um estado selvagem e atolados n'uma putrida +desmoralisação. Emfim o inglez em viagem, é um ser desgraçado. É +evidente que eu não alludo aqui á numerosa gente de luxo, de gosto, de +litteratura, de arte: fallo da vasta massa burgueza e commercial. Mas +mesmo esta encontra uma compensação a todos os seus trabalhos de +touriste quando, ao recolher a Inglaterra, conta aos seus amigos como +esteve aqui e além, e trepou ao Monte Branco, e jantou n'uma +_table-d'-hote_ em Roma e, por Jupiter! fez uma sensação dos diabos, +elle e as meninas!... + +Que mais estações temos ainda? A _Speech-season_, a estação dos +discursos, quando, nas ferias do parlamento, todos os homens publicos se +espalham pelo paiz discursando, perante enormes _meetings_, sobre os +negocios publicos. É uma das feições mais curiosas da vida politica em +Inglaterra... + +Ha outras muitas _estações_ em setembro e outubro, mas não me lembram +agora. E emfim, para não ser injusto, devo mencionar tambem o Outomno. + + +De todas estas, para mim, naturalmente, a mais interessante é a +_Book-Season_, a estação dos livros. + +Isto não quer dizer que fóra d'esta estação (outubro a março) se não +publiquem livros em Inglaterra--longe d'isso, Santo Deus! Como não quer +dizer que fóra da _London-Season_ se não dance, ou fóra da +_Travelling-Season_ se não viaje. Significa simplesmente que as grandes +casas editoras de Londres e d'Edimburgo reservam, para as lançar n'esta +epocha as suas _grandes novidades_. Um livro de Darwin, um estudo de +Matthew Arnold, um poema de Tennyson, um romance de Georges Meredith +serão evidentemente guardados para a _estação_. De resto, durante todo o +anno não s'interrompe, não cessa essa publicidade phenomenal, essa +vasta, ruidosa, inundante torrente de livros, alastrando-se, fazendo +pouco a pouco sobre a crosta da terra vegetal do globo, uma outra crosta +de papel impresso em inglez. + +Não sei se é possivel calcular o numero de volumes publicados +annualmente em Inglaterra. Não me espantaria que se pudessem contar por +dezenas de milhares. Aqui tenho eu deante de mim, no numero de ontem do +_Spectator_, a lista dos livros lançados esta semana: NOVENTA E TRES +OBRAS! E isto é apenas a lista do _Spectator_. Apenas o que se chama +aqui _Litteratura Geral_. Não se contam as reimpressões; nem as edições +dos classicos, em todos os formatos, desde o in-folio, que só um +Hercules póde erguer, até ao volume miniatura, cujo typo reclama +microscopio, e em todos os preços desde a edição que custa 50 libras, +até á que custa 50 réis: não se contam as traducções de livros +estrangeiros, sobretudo as litteraturas da antiguidade: não se conta, +emfim, essa incessante producção das Universidades, essa outra levada de +gregos e latinos, de commentarios, de glossarios, de in-folios, que +lançam de si, aos caixões, as imprensas de Clarendon. + +Ha n'esta litteratura geral uma especie de que o inglez não se farta--a +litteratura de viagens. Já não fallo nos romances: isso não constitue +hoje uma producção litteraria, é uma fabricação industrial. + +Na vida domestica ingleza, a novela tornou-se um objecto de primeira +necessidade como a flanella ou as fazendas de algodão; e, portanto, toda +uma população de romancistas se emprega em manufacturar este artigo, por +grosso, e tão depressa quanto a penna póde escrever, arremessando para o +mercado as paginas mal seccas no ancioso conflicto da concorrencia. + +Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é tambem consideravel, e de +resto bem explicavel n'uma raça expansiva e peregrinante, com esquadras +em todos os mares, colonias em todos os continentes, feitorias em todas +as praias, missionarios entre todos os barbaros, e no fundo d'alma o +sonho eterno, o sonho amado de refazer o Imperio Romano. Isto produziu +um outro typo de industrial das lettras--o prosador viajante. + +Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado: o +homem que visitava paizes longinquos, se achava em aventuras +pittorescas, á volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a penna e +ia revivendo esses dias n'uma agradavel rememoração de impressões e +paisagens. Hoje não. Hoje emprehende-se a viagem unicamente para se +escrever o livro. Abre-se o mappa, escolhe-se um ponto do Universo bem +selvagem, bem exotico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um +diccionario. E toda a questão está (como a concorrencia é grande) em +saber qual é o recanto da terra sobre que ainda se não publicou livro! +Ou, quando o paiz é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda +alguma aldeola, algum afastado riacho sobre que se possam produzir +trezentas paginas de prosa... + +Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto do Globo um sujeito de +capacete de cortiça, lapis na mão, binoculo a tiracollo, não pense que é +um explorador, um missionario, um sabio colligindo floras raras--é um +prosador inglez preparando o seu volume. + +Nada elucida como um exemplo. Aqui está a lista dos livros de viagens +publicados em Londres n'estas _duas ultimas semanas_. + +É claro que eu não os li, nem sequer os enxerguei. Copio os titulos, +sómente, da lista de dous jornaes de critica: o _Atheneum_ e a +_Academy_. Note-se que estes livros são quasi sempre bem estudados: dão +o traço e a linha que pinta, a paysagem com a sua côr e luz, a cidade +com o seu movimento e feições; são graphicos e são criticos; têm a +geographia e têm a observação; e mais ou menos fazem reviver com o +detalhe caracteristico, o povo visitado, na sua vida domestica, a sua +religião, a sua agricultura, o seu _sport_, os seus vicios, a sua arte +se a tem. Calcule-se, pois, a importancia d'esta litteratura, que se +torna assim um inquerito sagaz, paciente, correcto, feito ao Universo +inteiro. + +Aqui está, com os titulos traduzidos, o que se publicou n'estes quinze +dias: _A minha jornada a Medina_--_Entre os filhos de Han_--_Nas aguas +salgadas_--_Longe, nos Pampas_--_Sanctuarios de Piemonte_--_O novo +Japão_--_Uma visita á Abyssinia_--_Vida no oeste da India_--_Pelo +Mahakam acima, e pelo Barita abaixo_--_A cavallo pela Asia +Menor_--_Scenas de Ceylão_--_Atravez de cidades e prados_--_No meu +Bungaló_--_As terras dos Matabeles_--_Fugindo para o sul_--_Terras do +sol da meia-noite_--_Peregrinações na Patagonia_--_O Soudan +egypcio_--_Terra dos Maggiyres_--_Atravez da Siberia_--_Notas do mundo +do Oeste_--_Caminhos da Palestina_--_Norsk, Lapp e Finn_ (onde será isto +Santo Deus?!)--_Guerras, peregrinações e ondas_ (que titulo, Deus +piedoso!)--_A linda Athenas_--_A peninsula do Mar Branco_--_Homens e +casos da India_--_A bordo do «Rapoza»_--_Sport na Crimêa e +Caucaso_--_Nove annos de caçadas na Africa_--_Diario de uma preguiçosa +na Sicilia_--_A leste do Jordão_... + +Ainda ha outros, ainda ha muitos--e em quinze dias! + +Seria curioso dar parallelamente a lista de poemas, livros de poesias, +odes, balladas, tragedias, annunciados ou já publicados na primeira +quinzena da estação; mas não tenho paciencia em revolver todo esse +lyrismo. Ha uma «grande sensação»: o livro de Dante Rosseti, um dos +mestres modernos: o resto é apenas um bando amoroso e triste de rouxinóes. + +Não menos espessas, nem menos compactas são as listas dos livros de +Theologia, Controversia, Exegese, etc.,--exhalando de si uma melancholia +de cemiterio. Em metaphysica ha o costumado sortimento--macisso e vago, +como diria Herbert Spencer. Em historia, biographia, critica, as listas +bibliographicas vêm riquissimas... Emfim, ao que parece, é uma +formidavel e grandiosa _estação de livros_. Aos romances, nem alludo: +montões, montanhas--e monturos! + +Uma pastora meio-selvagem das Ardennes, que nunca vira outro espectaculo +mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia +trazida das suas serranias a Pariz, quando no boulevard passava, com a +tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzella fez-se +branca como a cêra, e só poude murmurar n'uma beatitude suprema: + +--Jesus! tanto homem! + +Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridiculo d'esta pastora, e +balbuciando, com a bocca aberta, como se chegasse tambem das Ardennes: + +--Jesus! tanto livro! + +Mas não é este grito, como o da pastora, natural? + +O beduino do deserto d'Oeste, que, passando a Serrania Lybica, avista +pela primeira vez, immenso, lento, enchendo um valle, o rio Nilo, +exclama espantado: + +--Allah! tanta agua! + +A agua é a sua preoccupação: todas as tristezas das areias que habita +vêm da falta da agua: mais que ninguem sente as maravilhas que a agua +produz; e no seu grito ha uma timida reprehensão a Allah! «Tanta agua +aqui, e tão pouca lá d'onde eu venho!...» + +Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor +astuto. + + + + +III + +O INVERNO EM LONDRES + + +Eis ahi o inverno. Já todos os dias o encontro, e, agora mesmo, lhe ouço +fóra, na rua, sob a nevoa tristonha d'esse fim d'outubro, a voz dolente +e vaga: não é o velho semi-deus de attributos mythologicos, com a barba +em flocos de neve sobre o manto branco de neve, soprando nos dedos, e o +classico feixe de lenha a tiracollo: é um rapagão enfarruscado, de +casquete e chicote em punho, que vae conduzindo uma carroça negra com um +forte _percheron_ aos varaes, pelo macadam já endurecido da geada, e +soltando de porta em porta, o seu pregão melancholico: _Coals! coals!_ +(carvão! carvão!) + +Estão, pois, findos os dias purpureados do lindo outomno inglez! Nada +iguala o encanto suavizador e meigo dos meados d'outubro nestes condados +do Sul. Um passeio, ao meio da tarde, nas pittorescas margens do Severn, +ou ainda ao longo do Avon, riba que a memoria de Shakspeare torna quasi +sagrada, ou pelas collinas amaveis de Surrey, é o mais belo, o mais util +repouso que póde ter o espirito sobresaltado, cançado dos livros, ou do +duro movimento da vida. + +Tem-se aqui alguma coisa d'aquella paz etherea, que os poetas pagãos +sonhavam nas perspectivas ineffaveis dos Elysios: sómente a natureza +particular do Norte, as linhas da architectura saxonia, o arranjo das +culturas, dão a feição romantica e elegiaca que falta á paysagem latina. + +Caminha-se n'uma luz ligeira, de um dourado triste, de um enternecimento +quasi magoado: o verde das relvas sem fim que se pisam, verde repousado +e adormecido sob as grandes ramagens das arvores seculares e +aristocraticas, solemnes, isoladas, immoveis n'um recolhimento +religioso, leva a alma insensivelmente para alguma cousa de muito alto e +de muito puro: ha um silencio de uma extraordinaria limpidez, como o que +deve haver por sobre as nuvens, um silencio que não existe na paysagem +dos climas quentes, onde o labor incessante das seivas muito forte +parece fazer um vago rumorido, um silencio que pousa no espirito com a +influencia de uma caricia. E a cada momento são fundos encantadores de +paysagem, de um vaporisado azul, com alguma torre d'Abbadia coberta de +heras, que surge d'entre robles, ou uma rica avenida de parques, onde se +entreveem vestidos claros correndo sobre as relvas, ou a historica +architectura de um castello, de bandeira feudal na torre, que de repente +apparece n'uma elevação, com os seus terraços de marmore escuro, os +grandes prados onde pastam ou repousam os animaes de luxo, os faiscantes +meandros do rio entre a verdura e sons tristes de trompa, vindos da +profundidade dos arvoredos... + +D'aqui a dias, porém, por collina e valle, só haverá a triste nevoa +humida que dura mezes, ou a neve redemoinhando ao vento... + +Esta monotonia, que começa escurecendo os campos desde novembro, vae +causar este anno uma innovação excellente nos costumes sociaes da +Inglaterra. Vae haver, de dezembro a maio, uma _estação d'inverno_ em +Londres. + +Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de maio até aos +primeiros dias quentes de agosto. O resto do anno, Londres é a cahida +Palmyra ou a tenebrosa planicie do deserto da Petrêa. Ficam lá, é +verdade, entre tres a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade +subalterna, feita de barro villão, sem valor social em Inglaterra: é a +humanidade que não tem castellos, nem parques de tres legoas, nem o seu +nome no _Livro d'Ouro_, nem _yachts_ de luxo para bordejar nas costas da +Escossia; é a humanidade que não tem nas arterias o famoso _sangue +normando_, esse sangue invejado, mais precioso que o de Christo, cantado +por todos os poetas da côrte, e que foi importado pelos brutamontes +cobertos de ferro, e pelludos como féras, que acompanhavam a estas ilhas +Guilherme da Normandia; é emfim a humanidade que Carlos Stuart, o +Bem-amado, chamava a _canalha_, e que o grande sacerdote da _Bella +Helena_, o pobre Offenbac, designava, com tanto criterio, pelo nome de +_vil multidão_:--é o trabalhador, o artifice, o artista, o professor, o +philosopho, o operario, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz. + +É esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade +superior, os _dez mil de cima_, como aqui tão pittorescamente se diz, +partem para os seus castellos, as suas _villas_ á beira mar, ou os seus +_yachts_.--Londres, apenas habitado pela turba abjecta, torna-se sobre a +face da terra, como a lamentavel Cacilhas. Nenhum _gentleman_ que se +respeite e queira manter o seu bom nome social ousaria confessar que +esteve em Londres em janeiro: correria o risco de ser tomado por um +tendeiro, ou, peior, por um philosopho, um poeta, um d'esses seres +rastejantes, vis como o lixo, sem castello e sem matilha de cães, que +nenhuma _Lady_ quereria ter no seu «rol de visitas». + +Se um _gentleman_, tendo negócios instantes em Londres, é forçado a vir +a este deserto de plebeus, guarda um _incognito_ severo; não chegará +talvez a pôr barbas postiças; mas só se arrisca pelas ruas no fundo +escuro de um cupé com os _stores_ descidos, e o paletot rebuçando-lhe a +face. Todavia uma aventura tão poderosa poucos a ousam! + +Pois bem, tudo isto se vae reformar! E este anno será moda passeiar em +Piccadilly, ou florear de rosa ao peito em Pall-Mall, em pleno janeiro, +na espessura dos nevoeiros. Esta revolução consideravel foi, como todas +as fecundas revoluções, tramada, prégada, popularisada pelas mulheres. + +Havia longos annos que estes anjos soffriam com impaciencia a +melancholia da vida do campo, durante o longo inverno saxonio. Ainda, +nos primeiros tempos, depois de deixar as glorias de Londres e os +esplendores da _season_, a existencia era toleravel. Havia as regatas +elegantes de Cowes; ia-se estar uma semana na ilha de Wight; depois +vinham as festas da abertura da caça; seguia-se a epocha dos _yachts_, +as viagens ás costas da Noruega, ás Hebbidas, ás praias elegantes da +Normandia; depois, quando a côrte está na Escossia, vinha a caça do +veado, os bailes de _gellies_ das montanhas... Emfim, vivia-se. + +Mas, com a chegada de dezembro, da neve, uma formidavel lei social, a +_fashion_, obrigava os _dez mil de cima_ a recolherem-se aos seus +castellos, á solidão do campo. E ahi começava para as damas o tedio +memoravel! + +Quando se não tem um _chateau_ e parque como os de Inglaterra, póde +parecer um sonho de paraizo o viver n'essas faustosas residencias, entre +maravilhas d'arte, accumuladas por gerações, com mobilias de duzentos +contos, um serviço de sessenta criados, vinte cavallos na cocheira e um +parque de trez legoas, um parque de romance, para passeiar sobre a neve +dura quando o ceu brilha claro. Mas a desgraçada dama, desde o seu +primeiro dente acostumada a tantos explendores, já lhes não encontra +encanto; uma simples corrida, n'um velho fiacre de Londres, de loja em +loja, é-lhe cem vezes mais doce. + +Depois, a vida do castello é de um vasio pardo e tristonho. Os homens, +esses, de manhã, teem a caça, os galopes furiosos, devorando prados, +saltando sebes atraz de uma raposa espavorida, ao grito barbaro de +_hally-hó!_ Depois á noite, tomado o banho e vestida a casaca, tem o +grog forte no _fumoir_. Mas as desgraçadas damas? Todas bebem grog--mas +raras são as que caçam. O dia é-lhes lugubre. Uma burgueza, em +Inglaterra, tem sempre uma occupação, mesmo nas existencias ricas: +borda, pinta em porcellana, faz camisas para os pequenos Patagonios, +ensina a ler os filhos dos caseiros, escreve as suas memorias ou +corresponde-se com um Theologo sobre pontos difficeis de doutrina. Mas +um dama das _dez mil_ não faz nada; os seus grandes talentos, a +_toilette_, a graça de receber, a intriga politica, o brilho da +conversação, o _chic_ esthetico, cousas em que prima, não lhe servem no +isolamento relativo do castello, sob as torrentes da chuva. O seu palco +natural é o salão de Londres. Alli no campo, nas longas galerias onde +pendem as bandeiras que os seus antepassados tomaram em Azincourt ou +Poitiers, ou, se os avósinhos nunca invadiram a França, as bandeiras +compradas no antiquario da esquina, _Mylady_ boceja; ou estendida n'um +sofá, na sua _robe-de-chambre_ de brocado branco de Genova, com uma +novella cahida no regaço, olha os flocos de neve empoando os grandes +carvalhos do parque... + +Depois vem a noite. É o peior. Os homens que fizeram talvez cinco legoas +de galope atraz das rapozas, ou que se estiveram adestrando em jogos +athleticos, têm somno. De gardenia na casaca e perola negra na camisa, +estendidos para o fundo do sofá, derreados, meio adormentados pelo +_Nocturno_ de Chopin que um anjo louro preludia ao fundo da sala, são +tão inuteis para a _flirtation_, o espirito, a intriga, o amor, como se +fossem empalhados. + +Debalde as pobres damas fizeram uma _toilette_ de duzentas libras: +debalde resplandecem, ás mil luzes de cêra, os seus hombros de deusas. +De nada valle. O _gentleman_ anceia por deixar a sala, ir reconfortar-se +com o seu _brandy and soda_, estirar aquelles membros que a raposa +cançou, em lençóes bem perfumados e bem _bassinés_, e ressonar forte. + +Esta situação era intoleravel. + +E os homens mesmo soffriam. Galopar n'um cavallo de preço sobre a terra +dura da neve, ao ladrar da matilha, por uma manhã de brisa fria--tem +encanto. Mas póde-se isso comparar á delicia de ir tagarelar para o +_club_, ter todas as noites trez ou quatro bailes, fazer phrases sobre a +questão do Oriente, e ceiar com Miss Fanny, n'um quente _boudoir_ de +veludo, emquanto fóra a plebe patinha na lama de Londres?! Não, não se +póde comparar. + +E por isso veio o momento psychologico, como diz esse illustre homem de +prosa, o snr. De Bismarck, em que _ladies_ e _lords_ concordaram que o +inverno no campo era bom para os lobos; e que para pares de Inglaterra, +Londres era preferivel. E ahi está como se vae ter esta cousa inesperada +na vida ingleza--_o inverno em Londres_. + +E, todavia, Deus sabe que elle não é agradavel, esse inverno de Londres! +De manhã, ao acordar, tem-se deante da janella uma sombra opaca, +espessa, parda, arripiadora e sinistra: é necessario fazer a barba, com +o gaz flammejando; almoça-se com todas as velas do candelabro accesas, e +a carruagem que nos conduz é precedida de um archote. Ao meio dia esta +decoração de inverno muda; a sombra perde o tom pardo e, por gradações +odiosas, ganha um amarello de óca e começa a exalar um vapor fetido. +Respira-se mal, a roupa toma um pegajoso humido sobre a pelle, os +edificios que nos cercam apparecem com as linhas vagas e chimericas das +cidades malditas do Apocalypse, e o estrondo de Londres, este rude, +tremendo estrepito, que deve lá em cima incommodar a corte do ceu, +adquire uma tonalidade surda e roncante como um fragor n'um subterraneo. + +Depois, á noite, outra mudança: toda esta sombra, este nevoeiro grosso, +molle gorduroso, desfaz-se em chuva... Em chuva, digo eu? Em lama, em +lama mal liquida, que escorre, pinga, vem babada de um ceu negro. + +O gaz parece côr de sangue; como todo o mundo, para combater esta nevoa +gelante e mortal, bebe forte e bebe seguido, ha nas ruas um vago vapor +de alcool, que passa nos halitos: isto excita, irrita, impelle a turba +ao vicio. O ruido intoleravel das ruas, a pressa da multidão violenta, o +rude flammejar das vitrinas dão uma acceleração brutal ao sangue, uma +vibração quasi dolorosa aos nervos; pensa-se com intensidade, caminha-se +com impeto, deseja-se com furor; a besta humana inflamma-se: quer-se +alguma coisa de forte e de animal, a lucta, o excesso, a gula, o +abrasado do _cognac_, a paixão. Londres n'uma noite de inverno, exhala +violencia e crime. E póde-se affirmar que em cada uma das tipoias, que, +aos milhares e aos milhares, passam como flechas, n'um relampejar rubro +de lanternas, vae um cidadão ou uma cidadã commettendo ou preparando-se +para commetter, com excepção da preguiça, um dos sete peccados mortaes. + +De uma coisa se póde ter a certeza: é que não ha de faltar, aos que vão +fazer o seu inverno a Londres, _assumpto de cavaco_. Além dos livros que +se annunciam, dos escandalos que não hão-de faltar, das modas que sempre +se inventam, a politica, só por si, é todo um ramalhete; revolta certa +na Irlanda; processo por alta traição dos chefes da _Liga da Terra_, +deputados da Irlanda; nova guerra no Afghanistan, onde Cabul se +insurreccionou; toda a Africa do Sul em rebellião; complicações +sinistras do lado do Oriente; desintelligencias estridentes entre os +radicaes no poder... Emfim, um encanto. + +Era em circumstancias identicas que o famoso Granville, o homem das +_Memorias_, olhando n'um começo de primavera para todos os lados do +horizonte politico e social, e não vendo (em 1830) senão presagios +negros de revolta, guerra, crises e perigos para a patria, dizia, +banhado em jubilo, quasi em extasi: + +--Meu Deus, que deliciosas noites se vão passar no Club! + + + + +IV + +O NATAL + + +O Natal, a grande festa domestica da Inglaterra, foi este anno +triste--d'essa tristeza particular que offerece, por um dia de calma +ardente, a praça deserta de uma villa pobre, ou d'essa melancholia que +infundem umas poucas de cadeiras vazias em torno de um fogão apagado, +n'uma sala a que se não voltará mais... + +O que nos estragou o Natal, não fôram decerto as preoccupações +politicas, apesar da sua negrura de borrasca. Nem a rebellião do +Transvaal em que os Boeres debutaram por exterminar o 94 de linha, um +dos mais experimentados e gloriosos regimentos da Inglaterra e que +ameaça ensanguentar toda a Africa do Sul n'uma guerra de raças; nem a +situação da Irlanda, que já não é governada pela Inglaterra, mas pelo +comité revolucionario da _Liga Agraria_--seriam inquietações +sufficientes para tirar o sabor tradicional ao _plum-pudding_ do Natal. +As desgraças publicas nunca impedem que os cidadãos jantem com appetite: +e miserias da patria, emquanto não são tangiveis e se não apresentam sob +a fórma flammejante de obuzes rebentando n'uma cidade sitiada, não +tirarão jámais o somno ao patriota. + +Não; o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. Um Natal +como este que passamos, com um sol de uma pallidez de convalescente, +deslizando timidamente sobre uma immensa peça de seda azul desbotada, um +Natal sem neve, um Natal sem casacos de pelles, parece tão insipido e +tão desconsolado como seria em Portugal a noite de S. João, noite de +fogueiras e descantes, se houvesse no chão tres palmos de neve e cahisse +por cima o granizo até de madrugada! Um desapontamento nacional! + +Para comprehender bem o encanto da neve d'este famoso Natal inglez, +basta examinar alguma das pinturas, gravuras ou oleografias que o têm +popularizado. + +O assumpto não varia na paysagem repetida: é sempre a mesma entrada d'um +parque, de apparencia feudal, por vesperas do Natal, antes da +meia-noite; o ceu pesado de neve suspensa parece uma gaze suja: e a +perder de vista tudo está coberto da neve cahida, uma neve branca, fôfa, +alta, que faz nos campos um grande silencio. Junto á grade do parque, +uma mulher e duas creanças, atabafadas nos seus farrapos, com lampeões +na mão, vão cantando as lôas; e ao fundo, entre as ramagens despidas, +ergue-se o massiço castello, com as janellas flammejando, abrasadas da +grande luz de dentro e da alegria que as habita. + +E toda a poesia do Natal está justamente n'essas janellas resplandecendo +na noite nevada. + +Felizes aquelles para quem essas portas difficeis se abrem. Logo ao +entrar na ante-camara os tectos, as humbreiras, os espaldares das +cadeiras, os tropheus de caça, apparecem adornados das verduras do +Natal, das ramagens sagradas do carvalho celtico; e pelas paredes, em +lettras douradas ondeiam os disticos tradicionaes--_Merry Christmas! +Merry Christmas! alegre Natal! alegre Natal!_ E o mesmo grito se repete +nos _shakehands_ que se dão ao hospede. + +Sob a chaminé estala e dança a grande fogueira do Natal: a sua luz rica +faz parecer de ouro os cabellos louros, e de prata as barbas brancas. + +Tudo está enfeitado como n'uma paschoa sagrada: dos retratos dos avós +pendem ramos de flôres de inverno, as flôres da neve, e todas as pratas +da casa scintillam sobre os aparadores, n'uma solemnidade patriarchal. +Dos grandes lustres balança-se o ramo symbolico do _mistletoe_, o ramo +do amor domestico: e ai das senhoras que um momento pararem sob a sua +ramagem! Quem assim as surprehender tem direito a beija-las n'um grande +abraço! Tambem, que voltas sabias, que estrategia complicada, para +evitar o ramo fatidico! Mas, pobres anjos! ou se enganam ou se assustam, +e a cada momento é sob o _mistletoe_ um grito, um beijo, dois braços que +prendem uma cinta fugitiva... + +E o piano não se cala n'estas noites! É alguma velha canção ingleza, em +que se falla de torneios e cavalleiros, ou uma dança da Escossia, que se +baila com o gentil ceremonial do passado. + +E por corredores e salas, as creanças, os bébés, com os cabellos ao +vento, vestidos de branco e côr de rosa, correm, cantam, riem, vão a +cada momento espreitar os ponteiros do relogio monumental, porque á +meia-noite chega Santo Claus, o veneravel Santo Claus, que tem trez mil +annos de edade e um coração de pomba, e que já a essa hora vem +caminhando pela neve da estrada, rindo com os seus velhos botões, +apoiado ao seu cajado, e com os alforges cheios de bonecos. Amavel Santo +Claus! por um tempo tão frio, n'aquella edade, deixar a cabana de +algodão que elle habita no paiz da Legenda, e vir por sobre ondas do mar +e ramagens de florestas trazer a estes bébés o seu Natal! + +Tambem, como elles o adoram, o bom Claus! E apenas elle chegar, como +correrão todos, em triumpho, a puxal-o para o pé do lume, a esfregar-lhe +as decrepitas mãos regeladas, a offerecer-lhe uma taça de prata cheia de +hidromel quente--que elle bebe d'um trago, o glutão! Depois abrem-se-lhe +os alforges. Quantas maravilhas!... + +Mas d'estes personagens que apparecem pelas consoadas, o meu predilecto +é _Father Christmas--o papá Natal_. + +Esse, porém, só póde ser admirado em toda a sua gloria, quando se abre a +sala da ceia: então lá está sobre o seu pedestal, ao centro da meza--que +lhe põe em torno, com os crystaes e os pratos, um amavel brilho +d'aureola caseira. Bem vindo, papá Natal! Boas noites, papá Natal! + +O respeitavel ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado de +neve, as mãos escondidas nas largas mangas de frade, o olho maganão e +jovial, esgarça a bocca n'um riso de felicidade sem fim, e as suas +enormes barbas de algodão pendem-lhe até aos pés. Todas as creanças o +querem abraçar, e elle não se recusa, porque é indulgente. + +E quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarchal riso se escancara; +as bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe, e +alli está, bonacheirão e veneravel, com a importancia de um deus tutelar +e amado, como a encarnação sacramental da alegria domestica. + +E no emtanto fóra, na neve, as pobres creanças cantam as lôas: e com que +vigor as cantam! É que ellas sabem que não serão esquecidas: e que +d'aqui a pouco a grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao peso de +toda a sorte de cousas bôas, peças de carne, empadas, vinho, queijos--e +mesmo bonecas para os pequenos; porque Santo Claus é um democrata, e, se +enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo de os vêr +esvaziados no regaço dos pobres. + +Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado. O +Natal com uma lua côr de manteiga a bater n'uma terra tepida de +Primavera torna-se apenas uma data no calendario. O lume não tem poesia +intima; não ha lôas; Santo Claus não vem; o papá Natal parece um boneco +insipido; não se colhe o _mistletoe_. Não ha mesmo a alegria de abrir a +janella e pôr no rebordo, dentro d'uma malga, a ceia de migalhas do +Natal para os pardaes e para os outros passarinhos que tanta fome +soffrem pelas neves. Emfim, não ha Natal! Foi o que succedeu este anno... + +Resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o +essencial; pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto e se +se não tiritou toda a noite entre quatro farrapos, é perfeitamente +indifferente que nos castellos as damas bocejassem. + +Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem, como o lume +do salão chegue a aquecer--quando se considere que lá fóra ha quem +regele, e quem rilhe, a um canto triste, uma codea de dois dias. É +justamente n'estas horas de festa intima, quando pára por um momento o +furioso galope do nosso egoismo--que a alma se abre a sentimentos +melhores de fraternidade e de sympathia universal, e que a consciencia +da miseria em que se debatem tantos milhares de creaturas, volta com uma +amargura maior. Basta então vêr uma pobre creança, pasmada deante da +_vitrine_ de uma loja, e com os olhos em lagrimas para uma boneca de +pataco, que ella nunca poderá apertar nos seus miseraveis braços--para +que se chegue á facil conclusão que isto é um mundo abominavel. D'este +sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, +o egoismo parte á desfilada, ninguem torna a pensar mais nos pobres, a +não ser alguns revolucionarios endurecidos, dignos do carcere--e a +miseria continúa a gemer ao seu canto! + +Os philosophos affirmam que isto ha-de ser sempre assim: o mais nobre de +entre elles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, +ameaçou-n'os, n'uma palavra immortal, _que teriamos sempre pobres entre +nós_. Tem-se procurado com revoluções successivas fazer falhar esta +sinistra profecia--mas as revoluções passam e os pobres ficam. + +N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os +servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque de +Leicester está retirando annualmente, do trabalho duro que elles fazem, +_quatrocentos contos de reis de renda_! É verdade que a Irlanda está em +revolta; é verdade que, se o duque de Leicester se arriscava a visitar o +seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, quatro lindas balas no +craneo. + +E o resultado? D'aqui a vinte annos os trabalhadores de Leicester +estarão de novo a soffrer a fome e o frio--e o filho do duque de +Leicester, duque elle mesmo então, voltará a arrecadar os seus +quatrocentos contos por anno. + +Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter +um proletariado faminto n'uma burguezia farta; mas surge logo das +entranhas da sociedade um proletariado peior. Jesus tinha razão: haverá +sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior +erro que jámais Deus cometeu. + +Aqui estamos sobre este globo ha doze mil annos a girar fastidiosamente +em torno do Sol e sem adiantar um metro na famosa _estrada do progresso +e da perfectibilidade_: porque só algum ingenuo de provincia é que ainda +considera _progresso_ a invenção ociosa d'esses bonecos pueris que se +chamam machinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas +e difusas que se denominam _systemas sociaes_. + +Nos dois ou trez primeiros mil annos de existencia trepámos a uma certa +altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo n'uma +cambalhota secular. + +O typo secular e domestico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como uma +vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito +que o nosso organismo domestico e social. Já não fallo de gregos e +romanos: ninguem hoje tem bastante genio para compôr um côro d'Éschylo +ou uma pagina de Virgilio; como escultura e architectura, somos +grotescos; nenhum millionario é capaz de jantar como Lucullus; +agitavam-se em Athenas ou Roma mais ideias superiores n'um só dia do que +nós inventamos n'um seculo; os nossos exercitos fazem rir, comparados ás +legiões de Germanicus; não ha nada equiparavel á administração romana; o +_boulevard_ é uma viella suja ao lado da Via Áppia; nem uma Aspasia +temos; nunca ninguem tornou a fallar como Demosthenes--e o servo, o +escravo, essa miseria da Antiguidade, não era mais desgraçado que o +proletario moderno. + +De facto, póde-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu +veneravel pae--o macaco: excepto em duas coisas temerosas--o soffrimento +moral e o soffrimento social. + +Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inutil: afogal-a n'um +diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que o levou +a poupar Noé; se não fôsse o egoismo senil d'esse patriarcha borracho, +que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje +gosariamos a felicidade ineffavel de _não sermos_... + + + + +V + +Litteratura de Natal + + +Uma das cousas encantadoras que nos traz o Natal, são esses lindos +livros para creanças, que constituem a _litteratura de Natal_. + +Não falo desses extraordinarios volumes dourados publicados pelos +editores francezes, em encadernações decorativas como fachadas de +cathedraes, que custam uma fortuna; contém um texto que nunca ninguem lê +e são offerecidos ás creanças, mas realmente servem para obsequiar os +papás. Os pobres pequenos nada gosam com esses monumentos typographicos; +apenas se lhes permite vêr de longe as gravuras a aço, sob a +fiscalização da mamã, que tem medo que se deteriore a encadernação; e o +resplandecente volume orna d'ahi por deante a jardineira da sala, ao +lado do candieiro vistoso. + +Em Inglaterra existe uma verdadeira litteratura para creanças, que tem +os seus classicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, +editores e genios--em nada inferior á nossa litteratura de homens +sisudos. Aqui, apenas o bébé começa a soletrar, possue logo os seus +livros especiaes: são obras adoraveis, que não contém mais de dez ou +doze paginas, intercaladas de estampas, impressas em typo enorme, e de +um raro gosto de edição. Ordinariamente o assumpto é uma historia, em +seis ou sete phrases, e decerto menos complicada e dramatica que _O +Conde de Monte-Christo_ ou _Nana_; mas emfim tem os seus personagens, o +seu enredo, a sua moral e a sua catastrophe. + +Tal é, para dar um exemplo, a lamentavel tragedia dos _Tres velhos +sabios de Chester_: eram muitos velhos e muito sabios; e para discutirem +cousas da sua sabedoria, metteram-se dentro de uma barrica, mas um +pastor que vinha a correr atráz de uma ovelha, deu um encontrão ao +tonel, e ficaram de pernas ao ar os tres velhos sabios de Chester! + +Como estas ha milhares: a _Cavallgada de João Gilpin_ é uma obra de genio. + +Depois, quando o bébé chega aos seus oito ou nove annos, +proporciona-se-lhe outra litteratura. Os sabios, a barrica, os +trambulhões, já o não interessariam; vêm então as historias de viagens, +de caçadas, de naufragios, de destinos fortes, a salutar chronica do +triumpho, do esforço humano sobre a resistencia da natureza. + +Tudo isto é contado n'uma linguagem simples, pura, clara--e provando +sempre que na vida o exito pertence áqueles que têm energia, disciplina, +sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espirito da creança para o +paiz do maravilhoso:--não ha n'estas litteraturas nem fantasmas, nem +milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se +para a gente grande. E quando se falla de anjos ou de fadas é de modo +que a creança, naturalmente, venha a rir-se d'esse lindo sobrenatural, e +a consideral-o do genero _boneco_, como os seus proprios carneirinhos de +algodão. + +O que se faz ás vezes é animar de uma vida ficticia os companheiros +inanimados da infancia: as bonecas, os polichinellos, os soldados de +chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existencia d'uma boneca +honesta e infeliz: ou os soffrimentos por que passou em campanha, n'uma +guerra longinqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta litteratura é +profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a +creança--mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos +e miserias atravessaram aquelles seus amigos, os guerreiros de chumbo, +cujas bayonetas torcidas ella todos os dias endireita com os dedos: e +assim póde ficar depositado n'um espirito de creança um justo horror da +guerra. + +As lições moraes que se dão d'este modo são innumeraveis, e tanto mais +fecundas quanto sahem da acção e da existencia dos sêres que ella melhor +conhece--os seus bonecos. + +Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze annos: +popularisações de sciencias; descripções dramaticas do universo; estudos +captivantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e +descobertas; a historia; e, emfim, em livros de imaginação, a vida +social apresentada de modo que nem uma realidade muito crúa ponha no +espirito tenro securas de misanthropia, nem uma falsa idealisação +produza uma sentimentalidade morbida. + +É no Natal, principalmente, que esta litteratura floresce. As lojas dos +livreiros são então um paraizo. Não ha nada mais pittoresco, mais +original, mais decorativo, que as encadernações inglezas; e as estampas, +as côres leves e aguadas, offerecem quasi sempre verdadeiras obras +d'arte, de graça e d'_humour_. + +Não sei se no Brazil existe isto. Em Portugal, nem em tal jámais se +ouviu fallar. Apparece uma ou outra d'essas edições de luxo, de Pariz, +de que fallei, e que constituem ornatos de sala. A França possue tambem +uma litteratura infantil tão rica e util como a de Inglaterra: mas essa +Portugal não a importa: livros para completar a mobilia, sim; para +educar o espirito, não. + +A Belgica, a Hollanda, a Allemanha, prodigalisam estes livros para +creanças; na Dinamarca, na Suecia, elles são uma gloria da litteratura e +uma das riquezas do mercado. + +Em Portugal, nada. + +Eu ás vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres +creanças. Creio que se lhes dá Filinto Elysio, Garção, ou outro qualquer +desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação pela +leitura. + +Isto é tanto mais atroz quanto a creança portuguesa é excessivamente +viva, intelligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portuguezes, +só começamos a ser idiotas--quando chegamos á edade da razão. Em +pequenos, temos todos uma pontinha de genio: e estou certo que se +existisse uma litteratura infantil como a da Suecia ou da Hollanda, para +citar só paises tão pequenos como o nosso, erguer-se-hia +consideravelmente entre nós o nivel intellectual. + +Em logar d'isso, apenas a luz do entendimento se abre aos nossos filhos, +sepultamol-a sob grossas camadas de latim! Depois do latim accumulamos a +rhetorica! Depois da rhetorica atulhamol-a de logica (de logica, Deus +piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o monumento da camelice! + +Pois bem; eu tenho a certeza que uma tal litteratura infantil penetraria +facilmente nos nossos costumes domesticos e teria uma venda proveitosa. +Muitas senhoras, intelligentes e pobres, se poderiam empregar em +escrever essas faceis historias: não é necessario o genio de Zola ou de +Thackeray para inventar o caso dos _tres velhos sabios de Chester_. Ha +entre nós artistas, de lapis facil e engraçado, que commentariam bem +essas aventuras n'um desenho de simples contorno, sem sombras e sem +relevo, lavado a côres transparentes... E quantos milhares de creanças +se fariam felizes, com esses bonitos livros--que, para serem populares e +se poderem despedaçar sem prejuizo, devem custar menos de um tostão! + +Eu bem sei que esta ideia de compôr livros para creanças faria rir +Lisboa inteira. Tambem, não é a Lisboa que eu a offereço. Lisboa não se +occupa d'estes detalhes. + +Lisboa quer cousa superior; quer a bella estrophe lyrica, o rico drama +em que se morre de paixão ao luar, o _fadinho_ ao piano, o saboroso +namoro de escada, a endeixa plangente, a bôa facadinha á meia noite, o +discurso em que se cita o Golgotha, a andaluza de cuia--emfim, tudo o +que o romantismo portuguez inventou de mais nobre. Educar os seus filhos +intelligentemente, está decerto abaixo da sua dignidade. + +Mas, emfim, se estas linhas animassem ahi no Brazil, ou entre a colonia +portugueza, um escriptor, um desenhista e um editor, a prepararem alguns +bons livros, bem engraçados, bem alegres, para os bébés--eu teria feito +ao imperio um serviço colossal, que não sei como me poderia ser +recompensado. + +Uma bôa fazenda, de rendimento certo, n'uma provincia rica, com casa já +mobilada e alguns cavallos na cavallariça, não seria talvez de mais. Se +a gratidão do governo imperial quizesse juntar a isto, para alfinetes, +um ou dois milhões em ouro, eu não os recusaria. E se me não quizessem +dar nada, bastar-me-hia então que um só bébé se risse e fôsse alguns +minutos feliz. Pensando bem--é esta a recompensa que prefiro. + + + + +VI + +Israelismo + + +As duas grandes «sensações» do mez são incontestavelmente a publicação +do novo romance de Lord Beaconsfield, _Endymion_, e a agitação na +Allemanha contra os Judeus. Litterariamente, pois, e socialmente o mez +pertence aos israelitas. Este extraordinario movimento anti-judaico, +esta inacreditavel ressurreição das coleras piedosas do seculo XVI é +vigiada com tanto mais interesse em Inglaterra quanto aqui, como na +Allemanha, os judeus abundam, influindo na opinião pelos jornaes que +possuem (entre outros o _Daily Telegraph_, um dos mais importantes do +reino), dominando o commercio pelas suas casas bancarias e em certos +momentos mesmo governando o Estado pelo grande homem da sua raça, o seu +propheta maior, o proprio Lord Beaconsfield. Aqui, decerto, estamos +longe de vêr desencadear um odio nacional, uma perseguição social contra +os judeus; mas ha sufficientes symptomas de que o desenvolvimento firme +d'este Estado israelita dentro do Estado christão começa a impacientar o +inglez. Não vejo, por exemplo, que o que se está passando na Allemanha, +apesar de exhalar um odioso cheiro d'auto-de-fé, provoque uma grande +indignação da imprensa liberal de Londres: e já mesmo um jornal da +auctoridade do _Spectator_ se vê forçado a attenuar, perante os graves +protestos da colonia israelita, artigos em que descrevera os judeus como +uma corporação isolada e egoista, á semelhança das communidades +catholicas, trabalhando só no mesmo interesse, encerrando-se na força da +sua tradição e conservando sympathias e tendencias manifestamente hostis +ás do estado que os tolera. Tudo isto é já desagradavel. + +Mas que diremos do movimento na Allemanha? Que em 1880, na sabia e +tolerante Allemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhauer, com os +professores Strauss e Hartmann, vivos e trabalhando, se recomece uma +campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador +Maximiliano estivesse ainda, do seu acampamento de Padua, decretando a +destruição da lei Rabbinica e ainda prégasse em Colonia o furioso +_Grão-de-Pimenta_, geral dos dominicanos--é facto para ficar de bocca +aberta todo um longo dia de Verão. Porque emfim, sob fórmas civilizadas +e constitucionaes (petições, _meetings_, artigos de revista, pamphletos, +interpellações) é realmente a uma perseguição de judeus que vamos +assistir, das boas, das antigas, das Manuelinas, quando se deitavam á +mesma fogueira os livros do Rabbino e o proprio Rabbino, exterminando +assim economicamente, com o mesmo feixe de lenha, a doutrina e o doutor. + +E é curioso e edificante espectaculo vêr o veneravel professor Virchow, +erguendo-se no parlamento allemão, a defender os judeus, a sabedoria dos +livros hebraicos, as synagogas, asylo do pensamento durante os tempos +barbaros--exactamente como o illustre legista Roenchlin os defendia nas +perseguições que fecharam o seculo XV! + +Mas o mais extraordinario ainda é a attitude do Governo allemão: +interpellado, forçado a dar a opinião official, a opinião d'estado sobre +este rancôr obsoleto e repentino da Allemanha contra o judeu, o governo +declara apenas, com labio escasso e secco, «_que não tenciona por ora +alterar a legislação relativamente aos israelitas_»! Não faltaria com +effeito mais que vêr os ministros do imperio, philosophos e professores, +decretando, á D. Manuel, a expulsão dos judeus, ou restringindo-lhes a +liberdade civil até os isolar em viellas escuras, fechadas por correntes +de ferro, como nas judiarias do _Ghuetto_. Mas uma tal declaração não é +menos ameaçadora. O estado dá a entender apenas que a perseguição não +ha-de partir da sua iniciativa: não tem, porém, uma palavra para +condemnar este estranho movimento anti-semitico, que em muitos pontos é +presentemente organisado pelas suas proprias auctoridades. + +Deixa a colonia judaica em presença da irritação da grossa população +germanica--e lava simplesmente as suas mãos ministeriaes na bacia de +Poncio Pilatos. + +Não affirma sequer que ha-de fazer respeitar as leis que protegem o +judeu, cidadão do imperio; tem apenas a vaga tenção, vaga como a nuvem +da manhã, de as não alterar _por ora_! + +O resultado d'isto é que n'uma nação em que a sociedade conservadora +fórma como um largo batalhão, pensando o que lhe manda a «ordem do dia» +e marchando em disciplina, á voz do coronel,--cada bom allemão, cada +patriota, vae immediatamente concluir d'esta linguagem ambigua do +governo que, se a côrte, o estado-maior, os feld-marechaes, o senhor de +Bismarck, todo esse mundo venerado e obedecido não vêem o odio ao judeu +com enthusiasmo, não deixam, todavia, de o approvar em seus corações +christãos... E o novo movimento vae certamente receber, d'aqui, um +impulso inesperado. + +Que digo eu? Já recebeu. Apenas se soube a resposta do ministerio, um +bando de mancebos, em Leipzig, que se poderiam tomar por frades +dominicanos mas que eram apenas philosophos estudantes, andaram +expulsando os judeus das cervejarias, arrancando-lhes assim o direito +individual mais caro e mais sagrado ao allemão: o direito á cerveja! + +Mas d'onde provem este odio ao judeu? A Allemanha não quer, de certo, +começar de novo a vingar o sangue precioso de Jesus. Ha já tanto tempo +que essas cousas dolorosas se passaram!... A humanidade christã está +velha e, portanto, indulgente: em desoito seculos esquece a affronta +mais funda. E infelizmente hoje já ninguem, ao lêr os episodios da +Paixão, arranca furiosamente da espada, como Clovis, gritando, com a +face em pranto: + +--Ah, infames! Não estar eu lá com os meus Francos! + +Além d'isso, este movimento é organizado pela burguezia, e as classes +conservadoras da Allemanha são muito juridicas, para não approvarem, no +segredo do seu pensamento, o supplicio de Jesus. Dada uma sociedade +antiga e prospera, com a sua religião official, a sua moral official, a +sua litteratura official, o seu sacerdocio, o seu regimen de +propriedade, a sua aristocracia e o seu commercio--que se ha-de fazer a +um inspirado, a um revolucionario, que apparece seguido d'uma plébe +tumultuosa, prégando a destruição d'essas instituições consagradas á +fundação de uma nova ordem social sobre a ruina d'elas e, segundo a +expressão legal, _excitando o odio dos cidadãos contra o Governo_? +Evidentemente puni-lo. + +Pede-o a lei, a ordem, a razão de Estado, a salvação publica e os +interesses conservadores. É justamente o que a Allemanha, com muita +razão, faz aos seus socialistas, a Karl Marx e a Bebel. Ora, estes maus +homens não querem fazer na Allemanha contemporanea uma revolução, de +certo, mais radical que a que Jesus emprehendeu no mundo semitico. É +verdade que o Nazareno era um Deus: para nós, certamente, humanidade +privilegiada, que o soubemos amar e comprehender:--mas em Jerusalem, +para o doutor do templo, para o escriba da lei, para o mercador do +bairro de David, para o proprietario das cearas que ondulavam até +Bethlem, para o centurião severo encarregado da ordem--Jesus era apenas +um insurrecto. + +E se Bismarck estivesse de toga, no pretorio, sobre a cadeira curul de +Caiphás, teria assignado a sentença fatal tão serenamente como o dito +Caiphás, certo que n'esse momento salvava a sua patria da anarchia. Os +conservadores de Jerusalem foram logicos e legaes, como são hoje os de +Berlim, de S. Petersburgo ou de Vienna: no mundo antigo, como agora, +havia os mesmos interesses santos a guardar. Que diabo! é indispensavel +que a sociedade se conserve nas suas largas bases tradicionaes: e +outr'ora, como hoje, a salvação da ordem é a justificação dos supplicios. + +É possivel que este goso, que nós, conservadores, temos hoje, de +triturar os Messias socialistas, encarcerar os Proudhon, mandar para a +Siberia os Bakounine, e crivar de multas os Felix Pyat--venha a custar +caro a nosso netos. Com o andar dos tempos, todo o grande reformador +social se transforma pouco a pouco em Deus: Zoroastro, Confucio, +Mahomet, Jesus, são exemplos recentes! As fórmas superiores do +pensamento têm uma tendencia fatal a tornar-se na futura lei revelada: e +toda a philosophia termina, nos seus velhos dias, por ser religião. +Augusto Comte já tem altares em Londres; já se lhe reza. E assim como +hoje exigimos capellas aos Santos Padres, aos que foram os auctores +divinos, os nobres criadores do catholicismo, talvez um dia, quando o +socialismo fôr religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma +lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon +de oculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas pelles russas, Karl +Marx apoiado ao cajado symbolico do pastor d'almas. + +Como a civilização caminha para o oeste, isto passar-se-ha ai para o +seculo XXVIII, na Nova Zelandia ou na Australia, quando nós, por nosso +turno, fôrmos as velhas raças do Oriente, as nossas linguas idiomas +mortos, e Pariz e Londres montões de columnas truncadas como hoje +Palmyra e Babylonia, que o zelandez e o australiano virão visitar, em +balão, com bilhete de ida e volta... Logicamente, então, como são +detestados hoje na Allemanha os herdeiros dos que mataram Jesus--só +haverá repulsão e odio pelos descendentes de nós outros, que estamos +encarcerando Bakounine ou multando Pyat. E como toda a religião tem um +periodo de furor e exterminio, esses nossos pobres netos serão +perseguidos, passarão ao estado de raça maldita e morrerão nos +supplicios... _C'est raide!_ + + +Mas voltemos á Allemanha. + +Ainda que o Pedro Ermita d'esta nova crusada constitucional seja um +sacerdote, o Revd. Streker, capellão e prégador da côrte, é evidente que +ella não tira a sua força da paixão religiosa. As cinco chagas de Jesus +nada têm que vêr com estas petições que por toda a parte se assignam, +pedindo ao governo que não permitta aos judeus adquirirem propriedades, +que não sejam admittidos aos cargos publicos, e outras extravagancias +gothicas! O motivo do furor anti-semitico é simplesmente a crescente +prosperidade da colonia judaica, colonia relativamente pequena, apenas +composta de 400.000 judeus; mas que pela sua actividade, a sua +pertinacia, a sua disciplina, está fazendo uma concorrencia triumphante +á burguezia allemã. + +A alta finança e o pequeno commercio estão-lhe igualmente nas mãos: é o +judeu que empresta aos Estados e aos principes, e é a elle que o pequeno +proprietario hypoteca as terras. Nas profissões liberais absorve tudo: é +elle o advogado com mais causas e o medico com mais clientella: se na +mesma rua ha dois tendeiros, um allemão e outro judeu--o filho da +Germania ao fim do anno está fallido, o filho d'Israel tem carruagem! +Isto tornou-se mais frizante depois da guerra: e o bom allemão não póde +tolerar este espectaculo do judeu engordando, enriquecendo, reluzindo, +emquanto elle, carregado de louros, tem de emigrar para a America á +busca de pão. + +Mas se a riqueza do judeu o irrita, a ostentação que o judeu faz da sua +riqueza enlouquece-o de furor. E, n'este ponto, devo dizer que o allemão +tem razão. A antiga legenda do israelita, magro, esguio, adunco, +caminhando cosido com a parede, e coando por entre as palpebras um olhar +turvo e desconfiado--pertence ao passado. O judeu hoje é um gordo. Traz +a cabeça alta, tem a pança ostentosa e enche a rua. É necessario vêl-os +em Londres, em Berlim, ou em Vienna: nas menores cousas, entrando em um +café ou occupando uma cadeira no theatro, têm um ar arrogante e ricaço, +que escandalisa. A sua pompa espectaculosa de Salomões _parvenús_ +offende o nosso gosto contemporaneo, que é sobrio. Fallam sempre alto, +como em paiz vencido, e em um restaurante de Londres ou de Berlim nada +ha mais intoleravel que a gralhada semitica. Cobrem-se de joias, todos +os arreios das carruagens são de oiro, e amam o luxo grosseiro e +vistoso. Tudo isto irrita. + +Mas o peior ainda, na Allemanha, é o habil plano com que fortificam a +sua prosperidade e garantem a sua influencia--plano tão habil que tem um +sabor de conspiração: na Allemanha, o judeu, lentamente, surdamente, +tem-se apoderado das duas grandes forças sociaes--a Bolsa e Imprensa. +Quasi todas as grandes casas bancarias da Allemanha, quasi todos os +grandes jornaes, estão na posse do semita. Assim, torna-se inatacavel. +De modo que não só expulsa o allemão das profissões liberais, o humilha +com a sua opulencia rutilante, e o traz dependente pelo capital; mas, +injuria suprema, pela voz dos seus jornaes, ordena-lhe o que ha-de +fazer, o que ha-de pensar, como se ha-de governar e com que se ha-de bater! + +Tudo isto ainda seria supportavel se o judeu se fundisse com a raça +indigena. Mas não. O mundo judeu conserva-se isolado, compacto, +inacessivel e impenetravel. As muralhas formidaveis do templo de +Salomão, que fôram arrasadas, continuam a pôr em torno d'elle um +obstaculo de cidadelas. Dentro de Berlim ha uma verdadeira Jerusalem +inexpugnavel: ahi se refugiam com o seu Deus, o seu livro, os seus +costumes, o seu Sabbath, a sua lingua, o seu orgulho, a sua seccura, +gosando o ouro e desprezando o christão. Invadem a sociedade allemã, +querem lá brilhar e dominar, mas não permittem que o allemão meta sequer +o bico do sapato dentro da sociedade judaica. Só casam entre si; entre +si, ajudam-se regiamente, dando-se uns aos outros milhões--mas não +favoreceriam com um troco um allemão esfomeado; e põem um orgulho, um +coquetismo insolente em se differençar do resto da nação em tudo, desde +a maneira de pensar até á maneira de vestir. Naturalmente, um +exclusivismo tão accentuado é interpretado como hostilidade--e pago com +odio. + +Tudo isto, no emtanto, é a _lucta pela existencia_. O judeu é o mais +forte, o judeu triumpha. O dever do allemão seria exercer o musculo, +aguçar o intellecto, esforçar-se, puxar-se para a frente para ser, por +seu turno, o mais forte. Não o faz: em logar d'isso, volta-se +miseravelmente, covardemente, para o governo e peticiona, em grandes +rolos de papel, que seja expulso o judeu dos direitos civis, porque o +judeu é rico, e porque o judeu é forte. + + +O Governo, esse esfrega as mãos, radiante. Os jornaes inglezes não +comprehendem a attitude do sr. de Bismarck, approvando tacitamente o +movimento anti-judaico. É facil de perceber; é um rasgo de genio do +chanceller. Ou pelo menos uma prova de que lê com proveito a Historia da +Allemanha. + +Na meia idade, todas as vezes que o excesso dos males publicos, a peste +ou a fome, desesperava as populações; todas as vezes que o homem +escravisado, esmagado e explorado, mostrava signaes de revolta, a egreja +e o principe apressavam-se a dizer-lhe: «Bem vemos, tu soffres! Mas a +culpa é tua. É que o judeu matou Nosso Senhor e tu ainda não castigaste +sufficientemente o judeu.» A populaça então atirava-se aos judeus: +degolava, assava, esquartejava, fazia-se uma grande orgia de supplicios; +depois, saciada, a turba reentrava na tréva da sua miseria a esperar a +recompensa do Senhor. + +Isto nunca falhava. Sempre que a egreja, que a feudalidade, se sentia +ameaçada por uma plébe desesperada de canga dolorosa--desviava o golpe +de si e dirigia-o contra o judeu. + +Quando a besta popular mostrava sêde de sangue--servia-se á canalha +sangue israelita. + +É justamente o que faz, em proporções civilizadas, o sr. de Bismarck. A +Allemanha soffre e murmura: a prolongada crise commercial, as más +colheitas, o excesso de impostos, o pesado serviço militar, a decadencia +industrial, tudo isto traz a classe media irritada. O povo, que soffre +mais, tem ao menos a esperança socialista; mas os conservadores começam +a vêr que os seus males vêm dos seus idolos. + +Para o calmar e occupar, o que mais serviria ao chanceller seria uma +guerra, mas nem sempre se póde inventar uma guerra, e começa a ser grave +encontrar em campo a França preparada, mais forte que nunca, com os seus +dois milhões de bons soldados, a sua fabulosa riqueza, riqueza +inconcebivel, que, como dizia ha dias a _Saturday Review_, é um +phenomeno inquietador e difficil d'explicar. + +Portanto, á falta d'uma guerra, o principe de Bismarck distrahe a +attenção do allemão esfomeado--apontando-lhe para o judeu enriquecido. +Não allude naturalmente á morte de Nosso Senhor Jesus Christo. Mas falla +nos milhões do judeu e no poder da Synagoga. E assim se explica a +estranha e desastrosa declaração do governo. + + +Da outra «sensação», o romance de Lord Beaconsfield, _Endymion_, não me +resta, n'esta carta, espaço para rir. Figuram n'elle, sob nomes +transparentes, Beaconsfield, elle proprio, Napoleão III, o principe de +Bismarck, o cardeal Manning, os Rothchilds, a imperatriz Eugenia, +duquezas, lords, marechaes... emfim um ramalhete de flôres, pelo qual o +editor Longman pagou _cincoenta e quatro contos de reis_ fortes. + +Jovens de lettras, meus amigos, ponde vossos olhos n'este exemplo de +ouro! Sê prudente, mancebo; nunca, ao entrar na carreira litteraria, +publiques poema ou novella sem a antecipada precaução de ter sido +durante alguns annos--primeiro ministro de Inglaterra! + + + + +VII + +A Irlanda e a Liga Agraria + + +É necessario fallar da Irlanda, fallar da _Liga Agraria_, fallar de +Parnell... + +Ha seis mezes que este homem, esta associação, essa ilha inquieta, são o +cuidado supremo, a preoccupação pungente da Inglaterra e de tudo o que +em Inglaterra pensa, desde os homens de Estado até aos caricaturistas. E +dentro em breve o sentimento europeu, o sentimento universal, vae-se +exaltar pela _questão da Irlanda_, como outr'ora pela _questão da Polonia_. + +A questão da Polonia! oh saudosos dias passados! Foi esse um dos meus +primeiros enthusiasmos! N'esse tempo, ser polaco era synonimo de ser +heroe: e a fórma mais usual da paixão, n'uma alma de vinte annos, não +consistia no desejo de se subir ao balcão de Julieta, mas de partir e ir +tomar as armas pela Polonia. Em Coimbra, sempre que nos reuniamos mais +de quatro amigos, faziamos logo esse projecto, gritando:--_Viva a +Polonia!_ Os jornaes transbordavam de poemas á Polonia e de injurias ao +Urso do Norte! Empenhavam-se batinas e compendios para soccorrer a +Polonia, em subscripções enthusiasticas. Em beneficio da Polonia eu +representei muito melodrama em que ora, virgem trahida e vestida de +branco, soluçava com as minhas tranças soltas--ora, traidor, soltando +gargalhadas cynicas, cravava um ferro no peito de Condé! + +Por fim não eramos mais insensatos do que o povo de Paris em 1848, +marchando em procissão a reclamar do governo provisorio a libertação da +Polonia. «Mas é uma guerra com a Russia, é um conflicto europeu!» diziam +os prudentes. E os enthusiastas respondiam: «Não tem duvida; a França é +o Messias, é a salvadora dos opprimidos: a França é o Christo das +nações; sendo necessario, deve morrer por ellas.» + +Mas desde 1848 muita agua tem passado sob as pontes, como dizem em +Paris: e mesmo muito sangue. + +Por estes tempos de _opportunismo_ e de _naturalismo_, a pobre Irlanda +não inspirará jámais o culto piedoso que votamos outr'ora á Polonia. + +De resto a Polonia e a Irlanda constituem dois casos differentes. É +certo, porém, que vistos de longe, atravéz da nevoa lacrimosa da +sentimentalidade, offerecem similitudes. A Irlanda póde talvez +considerar-se uma Polonia constitucional: ha aqui como na Polonia uma +raça opprimida, cujo solo foi dividido entre os grandes vassalos, as +familias historicas da nação conquistadora, e que desde então tem +permanecido em servidão agraria. Sómente na Irlanda o arbitrario e os +abusos, que esta situação origina, são recobertos pelo regimen +parlamentar de um bello verniz de legalidade: e a Irlanda soffre as +miserias de um paiz vencido e explorado--mas dentro das fórmas +constitucionaes. + +O irlandez parece-se com o polaco em certos pontos: são ambos +arrebatados, imprudentes, espirituosos, generosos e poetas. Como o +Polaco, o irlandez catholico odeia o conquistador, sobretudo por elle +ser heretico de nacionalidade, misturando com o odio politico o +conflicto de religião. Como na Polonia, ha na Irlanda a legenda +patriotica da independencia, das revoltas suffocadas, dos agitadores +heroicos, legenda que falla á imaginação popular tanto como a mesma +religião, inspirando eguaes fanatismos, de tal sorte que o irlandez é +tão devoto dos seus santos como dos seus patriotas; como o polaco +despreza o russo, assim o irlandez olha o anglo-saxonio como um barbaro +e um estupido e tem por elle toda a antipatia desdenhosa que uma raça de +improvisadores póde ter por uma raça de criticos e de analistas. Na +ordem social, como na ordem domestica, ha entre a Polonia e a Irlanda +outras curiosas afinidades. A ultima táctica da Irlanda, mesmo, é +imitada da Polonia: a Irlanda vae apelar para a Europa e é Victor Hugo +quem fallará em nome dela, n'um manifesto com o titulo de Opressor e +Oprimido. + +Mas a Inglaterra realmente não se parece com a Russia: nem mesmo atravéz +da nevoa da sensibilidade, atravez da paixão pela causa da Irlanda, o +mais esclarecido dos liberalismos póde ser confundido com o mais boçal +dos despotismos. E todavia a Inglaterra, para não perturbar os +interesses tyrannicos d'um milhar de ricos proprietarios, deixa na +miseria quatro milhões de homens. Tem todo o territorio irlandez +occupado militarmente. Apenas um patriota começa a ter influencia na +Irlanda, prende o patriota. Quando a eloquencia dos deputados irlandezes +se torna inquietadora, abafa-a, quebrando sem escrupulos uma tradição +parlamentar de seculos. Vae governar a Irlanda pela _Lei marcial_, como +qualquer czar. E, para suspender os planos da _Liga Agraria_, viola os +segredos das cartas. + +Esta questão da Irlanda apresenta-se tão complexa, tão confusa como o +proprio chaos antes da grande façanha de Jehovah. Na Irlanda começa por +haver tres nações distinctas com interesses contradictorios: os +irlandezes catholicos, os irlandezes protestantes ou _orangistas_, os +inglezes e proprietarios escocezes. A questão da propriedade é sem +duvida a essencial: mas existem outras, a questão religiosa, a questão +policial, a questão judicial, a questão municipal, etc., etc. E sobre +cada uma d'estas questões é difficil achar dois irlandezes de accordo. +Cada aldeia se torna assim um campo de batalha: e, como são eloquentes e +sarcasticos, o grande fluxo labial, a paixão do epigramma amplificam e +azedam as dissensões. + +Mesmo dentro da egreja catholica, que deveria conservar a tradicção da +Unidade--tumultua a discordia: o clero parochial está em lucta com os +dignitarios episcopaes: e é raro que o clero de um condado não divirja, +de sentimentos e de predica, com o clero do condado visinho. No mundo +dos patriotas revolucionarios não existe uma harmonia melhor: a _Liga +Agraria_ não aceita os _Fenians_, e os _Fenians_ abominam as tendencias +parlamentares dos _Home-rulers_: e dentro mesmo do partido dos +_Home-rulers_ ha democratas e conservadores. É um numeroso conflicto por +toda a pobre Irlanda. + +Os irlandezes dizem, porém, que se lhes fosse dada a autonomia, horas +depois de declarada a Republica Irlandeza, todas estas questões se +resolveriam de per si e o paiz seria como um mar que amansa e fica em +equilibrio. + +Até agora, porém, essa falta de unidade é adduzida justamente como +evidencia dos perigos que teria essa autonomia. + +Os inglezes pensam sinceramente que no momento em que a Irlanda sahisse +de sob a tutela do bom senso e do saber inglez, no instante que essa +raça impressionavel, excitada, fanatica e pouco culta fosse abandonada a +si mesma, começaria uma guerra civil, uma guerra religiosa, differentes +guerras agrarias, que bem depressa fariam da Verde Erin um montão de +ruinas n'uma poça de sangue. + +Se os irlandezes se não entendem bem sobre os _males da Irlanda_, os +inglezes comprehendem-se menos ácerca dos _remedios para a Irlanda_. E a +confusão em que se está provém principalmente da abundancia da +discussão. Não ha villota, ou mesmo aldeia d'Inglaterra, que não tenha +um jornal do tamanho da _Gazeta de Noticias_, com oito paginas e typo +cerrado. E d'alto a baixo esta vastidão de papel, desde que começou a +agitação da Liga Agraria, é occupada por estudos e artigos sobre a +Irlanda. Multiplique-se isto pelas tres ou quatro mil gazetas que a +pobre Inglaterra nutre sobre a sua epiderme: juntem-se-lhe os artigos +dos Semanarios, dos Quinzenarios, das Revistas e dos Magazines, os +pamphletos, as brochuras, os ensaios inumeraveis como as estrellas do +céo, os livros e tratados de toda a sorte, os discursos do parlamento, +as arengas dos _meetings_, as conferencias, os sermões, as controversias +publicas, as lições, emfim, toda essa colossal litteratura que nestes +ultimos mezes tem tomado por assumpto a Irlanda. + +E digam-me se, com todo este mundo de informação, de discussão, de +theorias, de projectos, de systemas, de opiniões, de imaginações,--não é +natural que o cerebro da Inglaterra esteja, n'esta questão da Irlanda, +perfeitamente desorganisado. O meu está. Mas n'este cahos mental tenho +illustres companheiros: o grande Carlyle costumava dizer que a +sinceridade e a elevação de alguns patriotas irlandezes era a _unica +coisa nitida e clara_ que elle conseguia distinguir no escuro tumulto da +confusão irlandeza... + +Ha tambem outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora +da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietaria, os _land-lords_ +indignam-se e reclamam o auxilio da policia ingleza quando os +trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionaria--comer! + +Aqui está, por exemplo, Sua Graça o Duque de Leicester, para não citar +outros de nomes menos sonoros: os seus rendimentos na Irlanda sobem a +_quatrocentos contos de reis_--e o infeliz tem ainda uns duzentos contos +mais das suas propriedades na Inglaterra! Este fidalgo, escuso talvez +dizel-o, não soffre frio e não passa fome: por outro lado, a população +de rendeiros que trabalham as suas terras, e que com o seu suor e o seu +esforço lhe arrancam do sólo este rendimento,--a unica cousa que +realmente tem é fome e frio. Mas este anno tiveram mais fome e mais frio +que de costume: e lá foram em farrapos, e com os pés nús sobre a neve, +supplicar a Sua Graça, o Duque de Leicester, que lhes fizesse uma +diminuição de dez por cento nas rendas--exageradas, absurdas e +devoradoras. Sua Graça respondeu (pela bocca dos seus administradores, +naturalmente: por sua propria bocca um Duque inglez nunca falla senão +com outro Duque) respondeu que as suas circumstancias não lhe permittem +essa liberalidade--e que a repetição d'uma tal supplica não podia ser +tolerada. + +E os rendeiros de Sua Graça lá voltaram de cabeça baixa, para o frio e +para a fome. + +Direi de passagem que se o pedido, em logar de ser feito pelos seus +rendeiros da Irlanda, partisse dos seus rendeiros da Inglaterra, Sua +Graça apressar-se-hia a satisfazel-o rasgadamente. É porque a Irlanda é +um paiz conquistado, e, quando o proletario se queixa, a policia fila-o +pela gola: mas, em Inglaterra, quando o operario inglez ergue a sua voz +de leão, a policia fica immovel, os Duques empallidecem, e o edificio +monarchico e feudal treme nas suas bases. + +Mas, a proposito de Sua Graça o Duque de Leicester (gozemos o mais tempo +possivel esta illustre companhia: _quand on prend du Duc on n'en saurait +trop prendre_) deixem-me dizer-lhes em resumo quaes são as relações +agrarias entre um proprietario, um _land-lord_, e os seus rendeiros. + + +O sólo, é claro, pertence ao lord. Por que titulo não sei; talvez uma de +suas avós, n'uma noite que estava mais decotada, attrahisse o +inconstante olhar do amavel Carlos II, nos saráus galantes da +Restauração: d'esse olhar provém, acaso, esta bella propriedade. O +alegre Stuart era tão generoso! tinha-se vivido tão pobremente, tão +tristemente sob a dictadura puritana do Cromwell!... Depois, se Carlos +II tinha pouco dinheiro, (o desgraçado recebia uma mesada do rei de +França!) não lhe faltavam terras na Irlanda. Trez leguas de pastos, ou +de terreno aravel, por um beijo e os seus acessorios, não é caro para um +Stuart. E para uma fraca dama ou para seu esposo é um famoso negocio. +Note-se, por Deus, note-se que eu estou fazendo estas supposições sobre +um typo de Lord abstracto. Nem toda a minha sympathia pelos +trabalhadores irlandezes me levaria a suspeitar das purissimas senhoras +da Casa de Leicester... + +Como proprietario do sólo, pois, o Lorde arrenda-o ás familias que de +geração em geração vivem nas suas terras: o irlandez prende-se ao sólo +como uma arvore pelas raizes, e muitas vezes prefere morrer a abandonar +um torrão arido que o não nutre. A emigração irlandeza para a America +sáe principalmente da população operaria das cidades. Ora, nos +contractos de renda, o homem de trabalho está absolutamente á mercê do +senhor da propriedade. + +O valor das rendas é puramente arbitrario. Não ha typo de renda, baseado +sobre a avaliação das terras; existe o que se chama a avaliação de +Griffith, feita ha mais de trinta annos por o agronomo d'esse nome; mas +esta avaliação, equitativa e favoravel ao trabalhador, não é jamais +aceitada pelos proprietarios. N'isto está a origem de todas as miserias +da Irlanda; as rendas, absurdamente elevadas, absorvem todo o producto +da terra, e o rendeiro escassamente póde viver, muito menos economizar. + +Além do sólo, o proprietario deve fornecer a habitação e os instrumentos +de trabalho: se na fazenda não existe casa, ou se ella necessita +reparações, o _land-lord_ dará naturalmente alguma madeira, uma +mão-cheia de prégos, um molho de colmo, para que o trabalhador erga a +cabana miseravel, muito inferior, como conforto, aos curraes dos nossos +gados; e a esta generosidade regia o _land-lord_ juntará talvez um velho +arado e um ferro de enxada. Mas estes dons são adiantamentos que elle +sobrecarrega com preços duplos ou triplos do seu valor, e de que se faz +embolsar por prestações trimestraes. + +Não é possivel ser mais grandioso ou mais nobre. + +Aqui está, pois, o rendeiro de posse de um tecto, de um terreno e de +ferramenta. Parece que só lhe resta começar a cultivar. + +Assim seria, se não fosse na Irlanda. Mas a natureza, mãe fecunda e +amante, comporta-se aqui ainda peior que os lords: se a natureza tivesse +assento na camara dos pares de Inglaterra, não seria mais aspera, mais +hostil ao pobre e mais avara de si mesma. A natureza, quando não se +apresenta ao trabalhador irlandez sob o aspecto de sólo pedregoso, +mostra-se sob o aspecto de pantano. + +Offerece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco. + +E diz-lhe com a sua ternura de mãe: + +--Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistencia? + +O pobre irlandez o que preferiria era ir-se embora: mas como por toda a +parte encontraria um proprietario egual, os mesmos pedregulhos e +identicos lamaçaes--fica. E é então que se apresenta de novo a +generosidade do Lord. Sua Graça está pronta (porque Sua Graça é +compassiva) a escoar o pantano, a desempedrar o sólo, a fazer +melhoramentos na terra. Sua Graça vae mesmo mais longe: Sua Graça (Deus +o recompense!) offerece a semente. E mais ainda: Sua Graça (que as +bençãos do ceu o vistam!) dá os adubos. + +E aqui está um rendeiro feliz, que tem a casa, os instrumentos, a +semente, os adubos... Sómente Sua Graça marca os preços que lhe convém +aos melhoramentos feitos, á semente e aos adubos: e no fim do anno a +renda que era originariamente de dez está em vinte e cinco! Como os +terrenos são pobres, os invernos abominaveis, o pobre rendeiro não póde +pagar: dirige-se então ao agiota--ou ao Lord mesmo. E desde esse momento +está n'uma rede de dividas, lettras, colheitas empenhadas, juros +accumulados, protestos, o demonio--de que jámais se poderá desenredar. O +resultado é previsto: o Lord (pelo seu agente) penhora-o, apossa-se do +grão que está nos celleiros, do gado que está nos curraes, do pequeno +bragal que está na arca, das arrecadas da mulher, das enxergas--e +expulsa-o da casa e da propriedade--da casa que elle talvez construiu, +da propriedade que elle com o seu trabalho melhorou! Tal qual como na +meia edade. + +Estas expulsões, que se chamam _evictions_, são o terror irlandez. Que +ha-de fazer um miseravel com mulher, creanças, ás vezes uma avó +entrévada, que se vê d'uma hora para a outra no meio de uma estrada, por +um terrivel inverno, sem um farrapo para se cobrir, sem uma codea de +pão, sem casa, sem destino e sem esperança? E note-se que isto passa-se +em regiões como as da Irlanda, pouco habitadas, com um casal de legua em +legua. + +Esta falta de vizinhos torna estas expulsões mais terriveis. Quantas +milhas a caminhar sob a chuva ou sob a neve, com as creanças chorando de +fome, os doentes levados n'uma padiola, até que se encontre algum +rendeiro mais feliz que ainda tem um canto de cabana onde azyle a +familia errante! Mas por pouco tempo--porque todos são pobres, todos +estão endividados, todos ameaçados da expulsão... + +E durante esse tempo Sua Graça banqueteia-se, bebe _Chateaux Margaux_ de +6$000 reis a garrafa, caça, etc.--e aluga a fazenda, d'onde expulsou o +miseravel n.º 1, ao rendeiro n.º 2. Sómente o n.º 2, como a encontra +melhorada pelo antecedente, paga-a mais cara: e depois de explorado, +sugado, expremido, durante dois ou trez annos, é expulso--para dar logar +ao n.º 3. Este infeliz passa pelo mesmo processo de trituração, _et sic +per omnia_... + +E as expulsões são inevitaveis, porque, com a altura absurda das rendas, +é impossivel que o rendeiro as possa pagar--e viver. + + +Isto, como comprehendem, é apenas um vago contorno da realidade, +apontada nas suas feições essenciais. + +Descendo-se a detalhes--vê-se então uma horrorosa tréva de injustiça e +miseria. + +Mas como pódem taes cousas passar-se no seculo XIX, e ao lado do povo +inglez? + +Como permitte uma nação tão justa a existencia de tanto +oprobio?--dir-me-hão. + +Justamente essa pergunta a fazia Victor Hugo ha dias a Parnell, o chefe +da _Liga Agraria_, na sua celebre entrevista. E eu responderei com as +palavras de Parnell. + +Taes cousas passam-se no seculo XIX. E o povo inglez não as sabia: pelo +menos eram-lhe contadas de tal modo que, em logar de piedade, só sentia +colera. + +E isto é exacto. Os males da Irlanda eram conhecidos pela voz dos seus +agitadores. Mas estes homens, desde O'Connell cometteram sempre o erro +de misturar as queixas d'um proletariado opprimido ás aspirações +d'independencia nacional: de sorte que a Inglaterra não attendia á +reclamação dos trabalhadores pela irritação que lhe causavam as +exigencias dos patriotas. O povo inglez não póde ouvir fallar em que a +Irlanda se separe, e se constitua em republica: mas está prompto a +ordenar que se lhe dê um justo regimen de propriedade. + +O erro dos Fenians foi confundir a questão nacional com a questão +agraria: o rendeiro miseravel apparecia então aos inglezes com o aspecto +de um rebelde á União; e envolvendo-os ambos no mesmo odio, porque lhes +suppunha identicas ambições, suffocou sem discernimento, a voz que só +pedia pão e a voz que reclamava autonomia. + +E todavia o povo inglez sentiu sempre instinctivamente que a Irlanda +soffria. Muitas vezes pediu para ella uma reforma das leis agrarias. +Era, porém, um pedir vago, sem cohesão: mais a expressão de +sensibilidades feridas do que a intimação da vontade nacional. + +De sorte que os parlamentos, sahidos das classes que têm interesse em +manter a Irlanda na miseria, contentavam-se em fazer reformas de +detalhes, reformas insignificantes e imperceptiveis, para dar uma +satisfação á compaixão ingleza: e o regimen antigo ficava inatacado como +d'antes. Mas isto bastava para que alguns humanitarios dissessem com um +suspiro de allivio: «Emfim lá se fez alguma coisa pela Irlanda!» De +facto não se tinha feito nada. + +Era, pois, necessario que a questão da propriedade fôsse separada da +questão da independencia: que se fizesse um movimento legal dentro da +constituição, com o fim exclusivo de terminar os abusos dos +_land-lords_, calando toda a ideia de arrancar a Irlanda ao Reino Unido. +Então haveria a certeza de que o povo inglez, vendo a questão agraria e +os seus horrores, isoladamente, no seu relevo proprio, desembaraçada das +declamações rebeldes e das agitações separatistas--determinasse dar a +tantos males, e tão antigos, um remedio radical. Foi isto que tentou a +_Liga Agraria_. + +Esta carta é longa: e apresentando esta formidavel entidade--a _Liga +Agraria_, eu devo fazer como o illustre Ponson du Terrail, quando +introduzia um novo personagem, o heroe providencial, n'um fim de +folhetim: deixar a historia das suas façanhas, das suas virtudes e da +sua belleza, com o interesse suspenso, até ao folhetim seguinte. Não se +esqueçam que ficamos no momento em que, n'este palco da Historia +Irlandesa subitamente apparece ao fundo, misteriosa e grave, a _Liga +Agraria_. + + + + +VIII + +Lord Beaconsfield + + +I + +Recomeçando hoje estas CARTAS DE INGLATERRA--que eu não podia escrever +de Lisboa, onde estive alguns mezes gozando os ocios de Tityro, _sub +tegmine fagi_, á sombra d'essa faia constitucional que se chama o +Gremio--devo memorar, ainda que tarde, a morte de Benjamin Disraeli, +Lord Beaconsfield, ocorrida no dia 19 de maio, pela madrugada, em +Londres, na sua casa de Curzon Street. A doença de Lord Beaconsfield, +uma complicação de gotta, asthma e bronchite, arrastou-se cruel e longa; +o mal porém foi debelado e Lord Beaconsfield succumbiu realmente á +fraqueza, á fadiga dos setenta e sete annos e uma existencia tão +episodica, tão cheia, tão emotiva, que ella ficará como o seu melhor +romance, bem superior em estylo e interesse a _Tancredo_ ou a _Endymion_. + +Desde o primeiro dia, Lord Beaconsfield perdeu logo a esperança de se +restabelecer; mas passou a encarar a morte como encarára sempre as suas +derrotas politicas: com uma coragem desdenhosa e fria e um ar de facil +superioridade. Durante a doença, aos accessos agudos da dôr, respondia +elle com esses sarcasmos mordentes e rebrilhantes, que tinham sido +sempre a sua desforra querida perante um adversario mais forte. + +No dia 18, á noite, cahiu pouco a pouco n'uma somnolencia comatosa, e +assim permaneceu até ao romper da manhã; momentos antes de morrer, +agitou-se, ergueu-se, ainda dilatou o peito, lançou os braços ao +ar--como costumava fazer nos grandes debates da camara; depois recahiu +sobre o travesseiro, estendeu as mãos a Lord Rowton e Lord Barrigton, +seus secretarios, e murmurou debilmente: _Estou vencido!_--E ficou como +adormecido para sempre. E, considerando que, n'esse momento, toda a +Inglaterra, o mundo inteiro, esperavam anciosamente noticias d'aquelle +quarto de Curzon Street, onde expirava o homem que sessenta annos antes +era um pobre escrevente de cartorio--póde-se dizer que n'esta carreira +tão feliz a morte mesma foi feliz. + +O seu proprio funeral teria agradado á sua imaginação--a certos lados +delicados da sua imaginação de artista. O testamento que deixou não +permitiu que se celebrassem funeraes publicos na Abbadia de +Westminster--disposição estranhavel n'um homem que mais que tudo amou a +pompa e os grandiosos ceremoniaes; mas não teve tambem o lugubre +scenario da morte, os crepes, as plumas negras, as tochas, os fumos, as +caveiras bordadas--tudo isso que deveria ser tão antiphatico ao seu +luminoso espirito. Foi sepultado no seu querido Castello d'Hughenden, no +meio das arvores do seu parque, por uma fresca manhã de maio, na capella +toda ornada de flôres como para uma alegria nupcial; o caminho que lá +levava ia por entre jasmineiros e rosaes; em vez do dobre dos sinos de +Westminster teve o gorgeiar das suas aves; e o caixão, seguido pelos +principes de Inglaterra, por todos os embaixadores, pela aristocracia +que ella governára--desapparecia sob corôas, ramos e molhos de +_primroses_, que a rainha Victoria mandára, com estas palavras escriptas +pela sua mão: «As flôres que elle amava.» + +Depois, ao outro dia, em todas as cathedraes da Inglaterra, em cada +capella rustica, o clero fez do pulpito o elogio de Lord Beaconsfield; +nas universidades, nos institutos, nas academias, os professores +commemoraram aquella carreira soberba; pelas platafórmas dos _meetings_, +nas assembléas commerciais, em qualquer parte onde se juntam homens, +alguma voz se ergueu a honrar os seus serviços e o seu genio; Lord +Granville, na camara dos lords, na camara dos communs Gladstone, +fizeram, em sessão solemne, o seu panegyrico publico; e durante dias, +toda a imprensa ingleza, a imprensa de todo o mundo civilisado (excepto +a de Portugal, infelizmente) vieram cheias do seu nome, da commemoração +dos seus livros, da sua pittoresca historia. + +E assim Lord Beaconsfield desappareceu--como fôra o desejo de toda a sua +vida--n'um rumor de apotheose. + + +E todavia nada parece mais injustificado que uma tal apotheose. Lord +Beaconsfield, por fim, foi um homem de estado que fez romances. Ora os +seus romances, como obras d'arte, já começam a apparecer, a esta geração +de sciencia e d'analyse, tão falsos, tão ficticios como as novellas +lyrico-religiosas do visconde d'Arlincourt; e como homem d'estado o nome +de Lord Beaconsfield não fica decerto ligado a nenhum grande progresso +na sociedade ingleza. Crear o titulo de Imperatriz das Indias para a +rainha de Inglaterra, roubar Chypre, restaurar certas prerogativas da +corôa, tramar o _fiasco_ do Afghanistan, não constituem de certos +titulos para a sua glorificação como reformador social: por outro lado, +escrever _Tancredo_ ou _Endymion_, não basta para marcar n'uma +litteratura, que teve contemporaneamente Dickens, Tackeray e Georges Eliot. + +Como succede, depois d'isto, que a Inglaterra, paiz tão pratico, tão bem +equilibrado, se deixe levar em um tal arranque de admiração pelo homem +que foi a personificação, a encarnação de tudo quanto é contrario ao +temperamento, ás maneiras, ao gosto inglez? É que Lord Beaconsfield, +mais que nenhum outro contemporaneo, impressionou a imaginação +ingleza--e na fria Inglaterra, como sob céos mais calidos, são grandes +as influencias da imaginação. + +Podia-se ás vezes sorrir das suas phantasticas obras d'arte, protestar +contra as suas theatraes combinações politicas, mas atravéz de protestos +e sorrisos a sua propria personalidade nunca deixou de maravilhar e de +fascinar. Qualquer inglez, medianamente educado, a quem se pergunte a +sua opinião sobre Lord Beaconsfield dirá: _Foi um homem extraordinario!_ + +Extraordinario--é como elle se nos representa, agora que se vê o +conjunto da sua existencia, que não parece ter sido um producto natural +dos factos ou das occasiões, mas uma creação subjectiva da sua propria +vontade, e como um enredo de romance talhado pela sua penna. Senão +veja-se. Tendo nascido judeu--tornou-se o chefe de uma aristocracia +saxonia e normanda, a mais orgulhosa da terra; começando em um obscuro +circulo litterario e vegetando algum tempo em um cartorio de +Londres--veiu a ser o mais famoso primeiro ministro de um grande +imperio; não possuindo senão dividas--bem cedo se tornou o inspirador +das grandes fortunas territoriais; homem de imaginação, de poesia, de +phantasia, foi o idolo das classes médias de Inglaterra, as mais +praticas e utilitarias que jamais dirigiram uma nação commercial; sem +religião e sem moral, governou um protestantismo que não concebe ordem +social possivel fóra da sua estreita religião e da sua estreita moral; +confessando o seu desprezo pela omnipotencia da sciencia moderna--foi o +grande homem de uma sociedade que quer dar a todo o progresso uma base +puramente scientifica: emfim, sendo o _menos inglez possivel_, tendo um +modo de ser e de sentir quasi estrangeiros, dirigiu annos e annos a +Inglaterra, o paiz mais hostil ao espirito estrangeiro, e que conhecia +bem que não era comprehendida pelo homem que a governava. Tudo isto +parece paradoxal--e a existencia de Lord Beaconsfield foi com effeito um +perpetuo paradoxo em acção. Para realizar tudo isto era necessario que o +seu genio, por um lado, por outro a sua habilidade, fossem grandes. E +realmente em dons pessoais nada lhe faltou: prodigiosa finura de +espirito, uma vontade de aço, uma coragem serena de heroe, uma infinita +veia sarcastica, um fogo ruidoso de eloquencia, o absoluto conhecimento +dos homens, a luminosa penetração no fundo dos caracteres e dos +temperamentos, um poder subtil de persuasão, um irresistivel encanto +pessoal,--e tudo isto envolvido (como n'uma athmosfera luminosa) por +alguma coisa de brilhante, de rico, de largo, de imprevisto, que era ou +fazia o effeito de ser o _seu genio_. + + +Eu por mim começo por admirar a sua propria apparencia. Diz-se que fôra +formoso como um Apollo--e que isto concorrera muito para os seus +primeiros triumphos: agora, já tão velho, era apenas pittoresco. + +A sua grande testa sobre a qual cahiam aquelles dous extraordinarios +caracóes parallelos, o seu olhar recolhido e como concentrado em +pensamentos muito fundos, o nariz de pura raça israelita, a bocca +descahida na sua eterna curva sarcastica, o beiço inferior muito recurvo +e muito pendente, e a sua estranha pera de Mephistopheles--constituiam +uma d'estas physionomias que se sente que vão ficar na galeria da +historia e que servirão a futuros historiadores para explicar um destino +e um genio. Em novo, e quando as modas romanticas o permittiam, +vestia-se de setim e velludo, recobria-se d'um luxo de medalhões e +joias, as suas proprias calças tinham bordados d'ouro. Agora era mais +sobrio de _toilette_: usava apenas esses casacos compridos como tunicas, +a que os homens de origem judaica são particularmente affeiçoados, e o +seu unico adorno eram os bellos ramos que lhe enchiam o peito. Um +jornalista francez, n'um dia de crise politica em que Lord Beaconsfield +devia fazer um discurso decisivo, encontrou-o momentos antes, n'um dos +salões da camara, occupado a encher d'agua o tubosinho de crystal que +por traz da botoeira da casaca conservava frescas as suas rosas. Todo o +homem está n'este traço. + +De raça oriental, teve sempre o amor do fausto, das pedrarias, dos ricos +tecidos, da pompa; os seus romances transbordam de descripções de +palacios, de festas perante as quaes as mais ricas galas de Salomão são +como desbotados scenarios de theatro de feira; o seu estylo resente-se +d'este gosto: é um sumptuoso estofo, com recamos de ouro, cravejado de +joias, scintillante e espesso, cahindo em belas pregas ao comprido da +idéa. O dinheiro, o ouro, preoccuparam-n'o sempre, menos pela sua +influencia social, que pelo mero esplendor da sua amontoação. Os seus +heroes possuem fortunas tão prodigiosas que seriam impossiveis nas +condições economicas do mundo moderno; Lothario, o famoso Lothario, +querendo dar um presente de annos a uma senhora catholica, offerece-lhe +uma cathedral toda de marmore branco, que elle mandou construir e que +dedicou á santa do nome d'ella; o seu custo excederia decerto dois mil +contos fortes. Confessemos que é _chic_. Pois bem; presentes d'estes +dava-os Lothario todos os dias. O banqueiro Sidonia, uma das mais +curiosas creações de Lord Beaconsfield, dando ao seu amigo Tancredo uma +carta de credito para os banqueiros da Syria, redige-a d'este modo: +«Pague á vista ao portador tanto ouro quanto seria necessario para +reconstruir os quatro leões de ouro massiço que ornavam a porta direita +do templo de Salomão.» Tambem muito _chic_. + +Estou certo que um dos grandes prazeres de Lord Beaconsfield era poder +manejar os milhões de Inglaterra. Todos os seus ministerios custaram +caudalosos rios de dinheiro; gastava o ouro como a agua,--e dava-se ao +luxo de realisar por si, e á custa do seu paiz, as larguezas epicas do +seu banqueiro Sidonia. Mesmo quando estava no poder, estava ainda no +romance. + + +As linhas da sua biographia são conhecidas. Seu pae era um d'estes +litteratos mediocres e trabalhadores que vão desenterrando e +colleccionando atravéz de _in-folios_ e bibliothecas casos curiosos e +archaicos de historia e de litteratura. + +Benjamin Disraeli nasceu por isso entre os livros--litteralmente entre +os livros, porque a casa em que viviam os Disraeli offerecia o espaço de +uma boceta, e no quarto da creança, entre a accumulação vetusta dos +calhamaços, havia apenas espaço para uma cadeira e para um berço. O +velho Disraeli era judeu: mas felizmente para os destinos futuros de seu +filho rompeu com a synagoga, e todos os Disraeli se fizeram christãos. +Benjamin tinha então dezessete annos, e o seu padrinho na pia baptismal +foi um certo Samuel Rogers, notavel por ser ao mesmo tempo um dos mais +ricos banqueiros da _City_ e um dos poetas mais elegiacos do seu +tempo--e notavel ainda por não ficar na historia, nem como banqueiro, +nem como poeta, mas como um requintado _gourmet_, o grande Lucullus de +Londres, que deu os mais celebres, os mais finos jantares da Europa. + +Assim marcado com o rotulo christão, Benjamin Disraeli largou a caminhar +pela vida fóra, mas foi encalhar bem depressa n'um cartorio de +tabellião--onde se diz que, durante dous annos, este moço orgulhoso, que +já então se considerava um semi-deus, redigiu procurações e testamentos. +Com a mesma penna, porém, ia escrevendo _Vivian Grey_: e da tempestuosa +sensação que este romance produziu data a sua grande carreira. A obra, á +parte algumas fugitivas scintillações de um genio ainda desequilibrado, +é no seu conjunto, ao mesmo tempo pesada e vaga; mas satisfazia os +gostos escandalosos e intrigantes da sociedade d'então, pondo em scena +todas as individualidades marcantes de Londres, politicos, _dandies_, +rainhas da moda, poetas, especuladores. + +O melhor resultado de _Vivian Grey_, foi tornar Disraeli Junior (como +elle então se assignava) o favorito de Lady Blenington e do conde +d'Orsay, as duas dominantes figuras de Londres d'essa época, e que +tinham _de sociedade_ o mais selecto, mais intelligente, mais apetecido +salão de Inglaterra. + +Estes dous formavam um typo destinado a reinar. Lady Blenington era uma +mulher de graciosa e olympica belleza, de uma extrema audacia de +caracter e de alta energia intellectual. O conde d'Orsay, esse era o +homem que durante vinte annos governou a moda, o gosto, as maneiras, com +a mesma indisputada auctoridade com que hoje o principe de Bismarck +arbitra na Europa. + +Usar um modelo de gravata ou admirar um poeta que não tivessem sido +aprovados pelo conde d'Orsay, seria correr o mesmo risco de uma nação +que hoje, sem auctorização secreta do principe de Bismarck, organisasse +uma expedição militar. Lady Blenington, entre outras coisas +embaraçadoras, tinha uma filha: e o bello d'Orsay, não sei porque, nem +elle o soube jámais, casou com essa menina. Os noivos vieram viver com +Lady Blenington; e, bem depressa, entre seu brilhante marido e sua +resplandecente mãe, a pobre condessa d'Orsay foi como uma pallida +lampada bruxoleando entre dous astros. Fez então uma cousa sensata e +espirituosa: apagou-se de todo, desappareceu. E o conde d'Orsay e Lady +Blenington, livres d'aquella senhora que entristecia, regelava as salas +com o seu ar honesto e frio, começaram então a scintillar +tranquillamente, como constellações conjunctas no firmamento social de +Londres. E Londres curvou-se deante d'esta nova e original situação +domestica, como se curvava deante de uma nova sobrecasaca do conde +d'Orsay, ou deante de uma decisão litteraria de Lady Blenington. + +Benjamin Disraeli tornou-se bem depressa um dos heroes d'este +salão--onde desde logo se mostrára com esse ar de tranquilla +superioridade, de correcto desdem, que foi um dos segredos da sua força. +Ordinariamente conservava-se calado, apoiado ao marmore da chaminé, +n'uma pose d'Apollo melancholico, abandonando-se á caricia ambiente dos +olhares das damas que viam n'elle a encarnação radiante do poetico +Vivian Grey. As pessoas mais intimas, começando por Lady Blenington, já +lhe chamavam sempre _Vivian, querido Vivian_. O conde d'Orsay fizera-lhe +o retrato a sepia--honra que elle dava raramente, e a mais appetecida +n'esse curioso mundo. + +Todos estes triumphos de Disraeli Junior não deixavam de surprehender +Disraeli Senior. Um dia, dizendo-lhe alguem que seu filho estava +compondo um romance, em que entravam duques, e toda a sorte de grandes, +o velho e laborioso litterato exclamou:--Duques, senhores! Mas meu filho +nunca viu um sequer! + +Viu muitos depois, viu-os todos--e governou-os com uma vara de ferro. +Mas n'esse tempo o bello Disraeli Junior era ainda radical, ou tomára ao +menos essa attitude. Meditava mesmo a sua _Epopêa da Revolução_, a sua +unica obra em verso, uma vaga rhapsodia que eu nunca li, mas de que os +criticos mais benevolos fallam como d'um volume de duzentas paginas, sem +uma só linha toleravel. E, cousa curiosa, este homem tão fino, tão +sceptico, tão experiente, nunca perdeu a candura quasi comica de se +considerar um grande poeta como Virgilio ou como Dante, e a esperança +phantastica de que as gerações futuras poriam a _Epopêa da Revolução_ ao +par da _Eneida_, ou da _Divina Comedia_. + +Apesar de poeta abominavel e de perfeito dandy--ou talvez por isso +mesmo--Benjamin Disraeli era reconhecido n'esse tempo como um dos chefes +do movimento da _Joven Inglaterra_. + +A _Joven Inglaterra_ consistia n'um grupo de rapazes, ardentes e +aristocratas, que se tinham embebido da Revolução atravéz da +litteratura; fallavam muito da Humanidade e queriam sobretudo um _burgo +pôdre_ que os nomeasse deputados; cultivavam pelos salões o amor +platonico, quereriam vêr o povo feliz comtanto que estivessem elles no +poder para promover essas felicidades, e (traço decisivo das suas +maneiras e da sua _pose_) quando se escreviam uns aos outros tratavam-se +por _my darling--meu amor_! + +Tinham ainda outros distintivos: usavam o cabello á _nazarena_, +mostravam a coragem (enorme n'esse tempo) de admirar o odiado Byron, e +procuravam elevar e aperfeiçoar a arte da cozinha em Inglaterra! + +No emtanto, Benjamin Disraeli já estava bem decidido a sacudir o seu +radicalismo--quando fosse necessario aos interesses da sua careira. E +essa carreira via-a elle então, apesar de desconhecido e pobre, tão +claramente triumphante no futuro como se a tivesse deante dos seus olhos +escripta, parte por parte, n'um programma. + +Em pleno reinado dos _tories_, é caracteristica já a sua resposta a Lord +Melbourne, primeiro-ministro então, que lhe perguntava o que elle +tencionava fazer. + +--Ser eu o primeiro-ministro d'aqui a pouco--respondeu o dandy com as +suas grandes maneiras á Vivian Grey. + +Lord Melbourne viu n'esta resposta uma odiosa e insolente jactancia. E +assim parecia, quando, tempo depois, Disraeli, já deputado por Wycombe, +fez o seu primeiro discurso--e o viu suffocado pelas gargalhadas e pelos +apupos. Como não podia dominar o tumulto, calou-se, dizendo apenas estas +palavras mais: + +--Hoje não me quisestes ouvir. Um dia virá em que eu me farei escutar! + +E um dia veio em que não só a camara dos communs, mas a Inglaterra, todo +o continente, a terra civilizada escutavam com anciedade as palavras que +iam cahir dos seus labios, e que traziam comsigo a paz ou a guerra na +Europa. + + +II + +A reputação de salão que gozava Lord Beaconsfield, levou algum tempo a +transformar-se em popularidade; mas a sua popularidade, apenas obtida, +penetrou rapidamente a enorme massa trabalhadora, e tornou-se em poucos +annos essa vasta e ressoante nomeada, que fez o seu nome familiar, quasi +domestico, em toda a parte onde se falla inglez, na mais rude aldeia de +pescadores de Cornwall, no _bush_ d'Australia, entre os mesmos +montanhezes barbaros das _Highlands_, e que, quando elle se dirigia ao +congresso de Berlim, attrahia ás estações do caminho de ferro as +populações da Allemanha a contemplarem o _grande inglez_. E este +reconhecimento de gloria constitue um dos phenomenos mais curiosos da +carreira de Lord Beaconsfield; porque, em geral, não se avalia bem a +difficuldade portentosa de obter uma fama, mesmo mediocre. + +Não ha nada tão illusorio como a extensão de uma celebridade; parece ás +vezes que uma reputação chega até aos confins de um reino--quando na +realidade ella escassamente passa das ultimas casas de um bairro. + +No momento de sua prodigiosa voga, o velho Alexandre Dumas ficou +assombrado de que o magistrado de uma villa visinha de Paris, homem +illustrado, de resto, não soubesse com que letras se escrevia esse +glorioso nome de Dumas! + +E se nós pudessemos reduzir a numeros as proporções das glorias +contemporaneas, ficariamos aterrados perante a grotesca mesquinhez dos +resultados. Nós outros jornalistas, criticos, artistas, homens de estudo +e de curiosidade litteraria, julgamos quasi impossivel que haja alguem +na Europa que não tenha lido Victor Hugo, ou que, pelo menos, não +conheça esse nome de syllabas faceis, que ha meio seculo fere, a grande +estrondo, o ouvido humano; pois bem, póde-se dizer que fóra de França +apenas cinco mil pessoas talvez terão lido Victor Hugo--e que não +passará decerto de dez mil o numero de creaturas que lhe saibam o nome, +incluindo mesmo a vasta massa democratica de que elle é o epico +official. E já isto constitue um famoso progresso--desde o tempo em que +Voltaire ambicionava ter _cem leitores_! + +A conhecida alegoria da fama, cantando o nome d'um varão com as suas cem +bocas, applicadas ás suas cem tubas, e voando de um a outro confim do +universo--é uma das imagens mais descaradamente falsas que nos legou a +Antiguidade. Esse estrondear das cem tubas morre como um suspiro dentro +da área humilde d'um corrilho ou d'uma _coterie_: e nada viaja com uma +lentidão egual á da Fama. Um fardo de fazendas gasta quatro dias a vir +de Londres a Lisboa--e os nomes de Tennyson, Browning, Swinburne, os +tres grandes poetas da Inglaterra, e que ha quarenta annos são a sua +mais pura gloria, ainda cá não chegaram. É verdade que todo o mundo +necessita flanellas--e nem todo o mundo supporta poesia. + +Mas uma celebridade não encontra só difficuldades em transpôr a +fronteira--acha-as sobretudo e quasi insuperaveis em fixar a atenção da +grande turba dos seus concidadãos. Principalmente n'um paiz como a +Inglaterra, em que a aspera lucta pela existencia, a soffrega +preoccupação do pão diario, o feroz conflicto da concorrencia, não +permitem esses pachorrentos vagares, os vagares portuguezes ou +hespanhóes, em que se está de barriga ao sol, prompto a olhar, a admirar +o menor foguete que estala nos ares. + +Em Inglaterra, o duque de Wellington era de certo popular--porque ganhou +a batalha de Waterloo, e portanto, segundo a crença contemporanea, +salvára a Inglaterra da invasão. Gladstone é conhecido em cem cidades e +mil aldeias, porque alliviou a nação dos seus grandes impostos. Mas +estes fórmam as excepções; as outras celebridades inglesas, ou sejam +politicos como Lord Salisbury, ou philosophos como Spencer, ou poetas +como Browning, ou artistas como Herkomer--permanecem profundamente +ignorados da grande massa do publico. São reputações de salão, de +academia, de club, de redacção de jornal. + +Ora, Lord Beaconsfield realmente nunca fez coisa alguma para se tornar +popular e sempre lembrado; nunca ligou o seu nome a uma grande +instituição, a um grande beneficio publico, a uma campanha victoriosa. +Tudo, ao contrario, n'esta original personalidade parecia destinal-o á +impopularidade: a sua origem, os seus gestos e habitos anti-inglezes, a +sua poderosa veia sarcastica, a sua oratoria requintada e subtil, o +gongorismo metaphysico das suas concepções litterarias, e certos lados +muito accentuados do seu fundo semitico. E a isto accrescia que, para a +grande maioria da nação, elle representava um _parvenu_ de auctoridade +oligarchica, surdamente hostil á ideia de democracia e de soberania +popular. + +A sua assombrosa popularidade parece-me provir de duas causas: a +primeira é a sua idéa (que inspirou toda a sua politica), de que a +Inglaterra deveria ser a potencia dominante do mundo, uma especie de +Imperio Romano, alargando constantemente as suas colonias, apossando-se +dos continentes barbaros e _britannizando-os_, reinando em todos os +mercados, decidindo com o peso da sua espada a paz ou a guerra do mundo, +impondo as suas instituições, a sua lingua, as suas maneiras, a sua +arte, tendo por sonho um orbe terraqueo que fôsse todo elle um imperio +Britannico, rolando em rythmo atravez dos espaços. + +Este ideal, que tomou o nome de _imperialismo_ nos dias de gloria de +Lord Beaconsfield, é uma idéa querida a todo o inglez; os mesmos jornaes +liberais que com tanto furor denunciavam os perigos d'esta politica +romana, no fundo gozavam uma immensa satisfação de orgulho em +proclamarem a sua inconveniencia. Havia tanta prosapia britannica em +conceber um tal Imperio, como em o condemnar, e em dizer, com um ar de +nobre renunciamento: «Não nos convém a responsabilidade de governar o +mundo!» + +Lord Beaconsfield, sendo a encarnação official d'esta idéa imperial, +tornou-se naturalmente tão popular como ella. Foi considerado então como +o instrumento da grandeza exterior da Inglaterra, como o homem que a +fazia dominante e temida, que mantinha alta e reluzindo terrivelmente +aos olhos do mundo a espada de John Bull. Gladstone, Bright, a grande +escola liberal, conhecida pela _escola de Manchester_, era agora +accusada de ter, com a sua politica de abstenção só occupada de +melhoramentos materiaes, de finanças, de civilização interna--deixado +definhar, morrer o prestigio inglez na Europa. + +E ai vinha agora aquele extraordinario judeu, apoiado na riqueza, na +prosperidade interior que lhe tinham legado os liberaes, collocar de +novo a Inglaterra á frente das nações, fazendo ressoar ao longe e ao +largo a sua voz de leão... + +Todo o paiz andou durante annos inchado com esta grandiosa filaucia, que +Lord Beaconsfield ia sempre entretendo com os seus discursos bellicosos, +as ameaças theatraes, as concentrações de frotas, um constante movimento +de regimentos, invasões aqui e além, a occupação de Chypre, a quasi +absorpção da propriedade do isthmo de Suez, sempre algum lance brilhante +em que a Inglaterra apparecia entre os fogos de Bengala da sua +eloquencia, como a senhora do mundo. E John Bull adorava isto, apesar de +vêr que a espada da Inglaterra, depois de flammejar um momento nos ares, +era invariavelmente recolhida á bainha; apesar de comprehender que o +dinheiro se gastava como a agua das fontes; apesar de sentir que os +impostos cresciam; apesar de perceber que a Inglaterra estava tomando +sobre os hombros responsabilidades desproporcionadas com a sua força. + +Depois, um dia, o grande senso pratico da Inglaterra viu claramente a +necessidade de brilhar menos aos olhos do mundo--e de se occupar da +machina interior, que começava a desarranjar-se: pôz fóra o grandioso +Beaconsfield, e chamou o pratico Gladstone--o homem que reconstitue as +finanças, que allivia os impostos, que faz as grandes reformas +interiores... Mas, apesar de tudo, Beaconsfield ficou como o typo do +estadista que mais que nenhum outro amou e desejou a grandeza imperial +da patria. + +A esta causa de popularidade deve juntar-se outra--a _reclame_. Nunca um +estadista teve uma _reclame_ igual, tão continua, em tão vastas +proporções, tão habil. Os maiores jornaes de Inglaterra, da Allemanha, +da Austria, mesmo da França, estão (ninguem o ignora) nas mãos dos +israelitas. Ora o mundo judaico nunca cessou de considerar Lord +Beaconsfield como um judeu--apesar das gotas d'agua christã que lhe +tinham molhado a cabeça. Este incidente insignificante nunca impediu +Lord Beaconsfield de celebrar nas suas obras, de impôr pela sua +personalidade a superioridade da raça judaica,--e por outro lado nunca +obstou a que o judaismo europeu lhe prestasse absolutamente o tremendo +apoio do seu ouro, da sua intriga e da sua publicidade. Em novo, é o +dinheiro judeu que lhe paga as suas dividas; depois é a influencia +judaica que lhe dá a sua primeira cadeira no parlamento; é a ascendencia +judaica que consagra o exito do seu primeiro ministerio; é emfim a +imprensa nas mãos dos judeus, é o telegrafo nas mãos dos judeus, que +constantemente o celebraram, o glorificaram como estadista, como orador, +como escriptor, como heroe, como genio! + + +Como romancista, Lord Beaconsfield nunca escreveu propriamente um +romance tal como nós modernamente o comprehendemos. Alguns dos seus +romances são pamphletos em que os personagens constituem argumentos +vivos, triumphando ou succumbindo, não segundo a logica dos +temperamentos e as influencias do meio, mas segundo as necessidades da +controversia ou da these. Outros fórmam verdadeiras allegorias como as +tem a pintura decorativa nas muralhas dos monumentos publicos. N'um dos +mais celebres, _Lothair_, ha um mancebo ideal, encarnação do espirito +inglez, que ama successivamente tres mulheres: uma italiana casada com +um americano, bella creatura de perfil classico e fórmas de Deusa, que +representa a Democracia; uma ardente rapariga de cabellos negros e +revoltos, sempre em extasi, que é a personificação da Egreja Catholica; +e emfim uma doce e loura donzella, séria, grave e terna, que symboliza o +Protestantismo. Depois d'hesitar entre estas tres paixões--decide-se, +como um bom inglez, por casar com o Protestantismo, quero dizer, com a +loura, conservando um culto vago e secreto pela Democracia, quero dizer, +pela soberba americana de perfil marmoreo. Moral: a felicidade d'um povo +está na posse d'uma forte moral christã, alliada a um uso moderado da +liberdade. Isto dava um excelente e apparatoso _fresco_ na sala d'um +parlamento. E Lord Beaconsfield accentua os detalhes allegoricos com uma +tal ingenuidade, que faz por vezes sorrir; assim, por exemplo, a +americana, isto é, a Democracia, apparece sempre em _soirées_ e festas +vestida á grega, com uma estrella de brilhantes na fronte, como a cabeça +da _republica_ nas moedas francezas de cinco francos! + +O meio, em que os seus romances se passam, tem quasi sempre um ar +feerico: tudo são, como disse ha pouco, palacios d'um fabuloso e sombrio +luxo, festas como as não tiveram os Medicis, fortunas de banqueiros, de +duques, perante as quaes os Cresus, os Monte-Christos, os Rothchilds, +todos os ricaços da lenda ou da realidade apparecem como despreziveis +pelintras. + +A linguagem d'estes personagens corresponde ao esplendor das suas +moradas e ao nebuloso dos seus destinos. _Misses_ de dezoito annos, +habitando prosaicamente Belgrave Square, fallam aos seus namorados com a +pompa allegorica do _Cantico dos Canticos_; e quando (o que é frequente) +dois brilhantes espiritos como Sidonia ou Mrs. Coningsby conversam, +veem-se, cruzando rapidamente d'um a outro labio, as imagens rutilantes, +os luminosos conceitos, como se as duas creaturas se estivessem +recitando um ao outro numeros do _Intermezzo_ ou sonetos de Petrarcha. + +Esta linguagem, de resto, convem ás idéas, aos sentimentos, ás aventuras +que elle atribue aos seus typos principaes; tudo o que é humano e real +fica absolutamente de fóra d'essas transcendentes creações: fallando +como poetas, comportam-se naturalmente como chimeras. + +O seu mais famoso heroe, Tancredo, vae a Jerusalém e á Syria com este +fim: _penetrar o mysterio asiatico_. Não percebem? É facil. Sendo +Jerusalém e as planicies da Syria o unico ponto do Universo em que Deus, +em tempos, conversou com o homem, em que appareceram os prophetas e os +Messias, em que das sarças, do murmurio dos rios e do echo dos desertos +surgiram as Leis Novas, dando á humanidade destinos novos--o moço +Tancredo parte, para que lá, n'esses logares, Deus lhe falle, um raio de +luz o divinize, uma religião lhe seja revelada, e tendo partido de +Londres como simples lord, possa regressar a Regent Street, como Messias +e regenerador de sociedades! + +E (perguntar-me-hão) o que succede a Tancredo na Syria? O que succede a +todos os personagens de Lord Beaconsfield, que nas primeiras paginas +partem para sobrehumanos destinos, como os antigos cavalleiros da Tavola +Redonda: succede-lhe que casa com uma linda e honesta menina, e que tem +muitos filhos no meio de muita felicidade... + +E o _mysterio asiatico_? Parece que o não achou. Mas descobriu coisas +curiosas e de rara fabula: por exemplo, um povo pagão, onde reina uma +bella sacerdotisa de Apollo, que celebra ainda hoje nobres cultos +hellenicos, e que se namora de Tancredo. Mas Tancredo, cavalleiro +christão, depois de a defender da invasão d'um outro povo, que adora +idolos infames, foge, foge á desfilada, deixando a classica rainha a +gemer de amor aos pés da estatua d'Astarte. Depois elle mesmo está para +ser rei do Libano. Emfim, uma grandiosa e rutilante salsada. E tudo isto +se passa ahi por 1855, no tempo da Exposição de Paris. + +Mas que prodigioso talento, que arte, que amplidão d'imaginação para pôr +de pé, em todo o seu brilho, este desordenado monumento d'Idealismo! + + +Com effeito, que artista fino e por vezes poderoso! + +Apesar d'este abuso do gongorismo na ficção, do vago e ao mesmo tempo do +amaneirado das suas concepções, d'estes enredos e d'estes personagens +que por vezes parecem uma mystificação--os seus romances nunca deixam +d'interessar, direi mesmo, nunca deixam de captivar. Atravessa-os sempre +um enthusiasmo sincero--em que se sente o amor poetico com que elle +segue os seus generosos heroes, as suas bellas mulheres, n'esses +destinos fóra da realidade. Depois a sua fina sensibilidade, o seu +idealismo um pouco convencional, mas de grande _elan_, os requintes d'um +gosto supremo--levam-no a dotar os seus personagens, e a acção em que +elles se movem, de uma tal belleza espiritual, de uma tão alta nobreza +de costumes, que os olhos enlevam-se, a imaginação namora-se d'esse +mundo ficticio, d'essa humanidade de poema, onde nada existe de vulgar +ou de baixo, e onde brilham fórmas maravilhosas e transcendentes do +pensar, do sentir e do viver. + +Isto dá-lhe uma qualidade encantadora: é _luminoso_. Personagens, +paizagens, interiores, o proprio movimento da aventura--tudo está +banhado n'uma luz serena e graciosa. Pintando as cousas fóra da verdade +social, não tendo de lhe apresentar as sombras tristes, exclue dos seus +vastos quadros tudo o que na vida é duro, brutal, feio, máu, +estupido--as fórmas varias da baixeza humana. + +Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada--e +mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia, +batido de uma luz côr de rosa... + + +Tenho insistido n'este lado _não real_ dos livros de Lord Beaconsfield. +Todavia, um homem d'estes, antigo _dandy_, critico, estadista, habituado +a governar, observador por necessidade, não podia deixar de ter +accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade; e essa +experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas da +vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações +symbolicas, de indisciplinada imaginação (_Tancredo_, _Lothair_, +_Sibyl_) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte, figuras +de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e côr. São os +seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus intrigantes, os +seus homens de lettras, as suas mulheres da moda, os seus lords +elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural. Londres +conhecia-os, dava-lhes logo os nomes; e o escandalo d'estes retratos foi +mesmo uma das grandes causas do successo de Lord Beaconsfield. Mas, +mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres, e não conhece os +originaes, estes typos interessam--porque _vivem_. + +Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim +em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente +poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um +relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por +entre o nebuloso de uma mythologia. + +São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield só +elles ficarão lembrados. + + +Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de +impressões, marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa +como a de Lord Beaconsfield. + +Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações: +diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que foi +apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista de +genio--e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido, soffreu +em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o rancor da +parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor: é que todos +os mediocres o detestavam. + +É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre +fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes +manifestos das suas idéas de estadista--e fez romance no governo, que +parecia muitas vezes um _scenario de drama_, sobre o qual elle estava de +penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a +Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais +originaes. + + +Individualmente foi um _feliz_. Tendo, em novo, lançado o plano da sua +vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o +plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso, foi +amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle dizia), +deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido da sua +rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo, e findou +n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente, ditoso? +Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto, d'um +pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez! + + + + +IX + +Os inglezes no Egypto + + + + +I + +O que resta d'Alexandria.--A estreia d'Arabi Paxá.--Algemas ao café. + + +Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo +convidativo dos _Guias de viajantes_ como uma rica cidade de 250.000 +habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera, +tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum _Guia_, porém, +por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante. + +Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas +e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu +no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum +monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio +mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em honra +de Diocleciano, conhecida pelo sobrenome singular de _Pilar de Pompeu_, +e mais longe, estendido n'um areal, um obelisco pharaonico do templo de +Luxor, que gosava a grotesca alcunha de _Agulha de Cleopatra_. E esta +mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma +peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo +dos comboyos... + +Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos, +antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande +metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia +vivendo da pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente +d'uma vasta praça, a famosa _praça dos Consules_, orgulho de todo o +Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas +fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares +francezes--como um _faubourg_ de Bordéus ou de Marselha transportado +para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras. + +A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram +arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em +terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor +brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar. + +Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, insalubre, +Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se +apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se +ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes, +as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr'ora +deuses, ainda hoje aves sagradas... + +Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes, +de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de +fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras +fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus +centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus +mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta +de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de Liverpool, +onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lança ao hombro, +embaraçavam a passagem dos _tramways_ americanos, onde os _sheiks_, de +turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as +caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de +libré--Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de +uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete, +como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo. + +Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo, +Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas. + +Do bairro europeu, da famosa _praça dos Consules_, dos hoteis, dos +bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta +apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede +enegrecida que se vae alluindo. + +Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir. + +Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, em +presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de +Jehovah--uma d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da +Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta +do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma +chaga viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o +almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando +com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os +seus canhões de oitenta toneladas. + +Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos +nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se têm +arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,--aos nomes de +Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor, +e de Ben-Amon, o sanguinario--o nome de Sr. William Gladstone, o +humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da +democracia christã. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do +snr. Gladstone não é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de +Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d'essa cidade +finmente dada ás letras o molestára n'um epigramma--por outro lado esta +brusca aggressão de uma frota de doze couraçados, cidadellas de ferro +fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortificações de +Mehemet-Ali, este bombardeamento d'uma cidade egypcia, estando a +Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica +primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia +n'isto:--ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar +fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui a _politica imperial +d'Inglaterra_, ou _os interesses da Inglaterra no Oriente_, póde levar +um ministro christão a repetir os crimes d'um pirata mussulmano, e o +snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos +como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro +d'Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não +partilhar a cumplicidade d'esta brutal destruição d'uma cidade +inoffensiva, deu a sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos +de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de +oposição... + + +Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, é +de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, as +unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil +legoas do Egypto e das suas desgraças. + +No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour +achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e +tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão do +almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões +accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos +ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de +camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o +Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias +financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns +_coupons_,--a França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os +interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os +srs. Coloin e Blegniéres, ambos com funcções de secretarios de fazenda +no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e +applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa divida +egypcia! + +De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na +realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados. +No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous +burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o +Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas +altas civilisações do Occidente representavam simplesmente a usura armada. + +Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam +alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção +estrangeira--porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva +declarara-se _coacto_. Todos os que conhecem a historia contemporanea de +Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que +significa esta deliciosa phrase: _El-rei está coacto!_ Isto quer dizer +que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda +que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem +impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição +de auctoridade regia e augmento de liberdade publica... + +Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga +n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se +desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos cidadãos, então +El-rei _declara-se coacto_, e pede a um rei visinho, mais forte e menos +atarantado, que lhe mande uma divisão, a _restabelecer a ordem_--isto é +a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d'autoridade regia, +dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje, +realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é +ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes. + +O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um +_pronunciamento_ planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á +moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso +Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do +_salamalek_, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba +da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo +Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas +puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para +bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma mudança +de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre o _amor +da nação, a felicidade dos subditos_, que o ceremonial indica nas +occasiões d'atrapalhação regia e pareceu tão satisfeito com o interesse, +que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que +os recompensou á maneira oriental--convidando-os a um banquete. Em torno +da festiva mesa a cordealidade foi grande, o _champagne_ espumou contra +as prescripções do Alcorão, e entre o sabor das truffas e o aroma dos +ramos, o futuro do Egypto appareceu côr de rosa... O café foi servido +nos jardins: e quando d'um lado entravam os escudeiros com os licores, +do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas, +levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza, +foram conduzidos ás palhas do carcere. + +Não ha nada mais delicioso--nem mais turco. + +A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a +energia de Sua Alteza! + + + + +II + +A desforra de Arabi.--Reformadores e coroneis.--O programma +fellah.--A conferencia de Constantinopla.--A confusão do +Grão-Turco.--As esquadras. + + +O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho. + +Ao abrir o seu _Times_ ou o seu _Journal des Débats_ (porque este +principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses dous +ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado +energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande +Mehemet-Ali, vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem +nos seus estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das +potencias. + +Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas--doze mil homens +com dezoito peças d'artilharia--supplicando que Sua Alteza soltasse +Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta razão, +honrosa para a logica árabe: que, approvando o exercito as reformas de +Arabi-Bey, entendia que elle as executaria muito mais confortavelmente +sentado na poltrona de ministro da guerra do que estirado nas palhas do +carcere. + +O Khediva, que acabava talvez de saborear no _Times_ mais uma +glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre +respeitara Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:--e +Arabi-Pachá passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes... + +Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão +ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como os +foguetes que estalam n'esse dia--e de que ordinariamente, como dos +foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados a +isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, que +as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que o não +viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha. + +Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto +natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e +desnecessaria ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso +_principios de oitenta e nove ineditos_ nos sarcophagos dos Pharaós. +Não, de certo. Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse +uma Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o +começo de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto +governando-se a si mesmo, um _Egypto para os Egypcios_--não uma raça +escrava enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio +franco para os esfomeados europeus. + +A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador--era o ser +elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas tristes +aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam ao comprido +do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs--a peior que existe +sobre a terra--elle, mais que ninguem, tinha direito a erguer-se em nome +dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, Arabi era um soldado +que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições do Alto Egypto e +nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo o orgulho da farda, +e todo o pedantismo do sabre, não só repassado de militarismo, mas +enfrascado em militança--e, portanto, prompto, desde que a sua voz +resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções do exercito... Elle +representava, por origem e por profissão, as duas grandes classes do +povo egypcio--o soldado e o fellah;--e desde o momento em que entre os +egoistas, os voluptuosos, os escravos e os interesseiros, elle pareceu +ser o unico homem no Egypto que se arriscava, de bom grado, pelas suas +ideias, ao exilio e á enxovia,--tornou-se bem depressa, e naturalmente, +chefe do _partido popular_ que queria as grandes reformas nacionaes, e +pela mesma occasião caudilho do _partido militar_, que só appetecia +vantagens de classe. Assim, em Arabi, o patriotismo confundia-se +infelizmente com a insubordinação. + +Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de idéas +largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador, +as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official +revoltado. Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas +tivessem egual valor na obra da regeneração do Egypto--que elle pedia +uma constituição parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para +os coroneis seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que +desejavam a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde +sahiam grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas +pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do povo, +e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado de +patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento. + +Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso +moderno espirito europeu; mas Arabi é um egypcio; e no Egypto, onde o +povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer das nossas plebes, +é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, e onde o exercito +constitue a classe culta--a obra de progresso tem necessariamente de ser +feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se sabe isto--ou, antes, +finge-se que não se sabe. As exigencias da tarimba puzeram na sombra as +reclamações da cabana--e Arabi perdeu na Europa a auctoridade que podia +ter como chefe dos fellahs por fallar de espada na mão, d'entre um +quadrado de soldados... + +De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do +antigo typo, que apenas leu um livro--o Alcorão. Mas, como homem, possue +qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não ousam +negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. E como +patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente muito +egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e soffria de +vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como outr'ora pelos +gafanhotos;--mas esses limitavam-se a curvar tristemente os hombros, +invocando o nome de Allah. + +Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, não +póde attender a tudo, e que, portanto, se resolveu a tirar a espada em +nome do fellah, contra a oppressão colligada dos pachás turcos e dos +agiotas christãos. + +Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição? + +Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do +Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como +consequencia d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos +dinheiros publicos, que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte +para o harem do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as +cohortes cerradas de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande +parte, para pagar os _coupons_ de divida em Pariz e Londres, ficando tão +pouco para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se +não dava soldo ao exercito! + +Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido +perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela sua +honra:--sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem +installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do +imposto, para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para +satisfazer a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o +fellah, que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de +recorrer ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se +officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia +secretamente o agiota!... + +Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com a +situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas. +Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros +estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. O +desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para os +estrangeiros, que, sob o nome de _tribunaes mixtos_, distribuem duas +justiças--uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. Emfim, +esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem dados +exclusivamente a estrangeiros--e que se não pagassem annualmente, como +se pagavam, mais de _trez mil contos_ de bom dinheiro egypcio, a +francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas as +repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado como +aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston, +foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois +de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha visto +o seu regimento e _ainda mesmo não tinha uniforme_! + +Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de Arabi, e não se imagina +facilmente a apopletica indignação que ellas causaram á França +republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma féra. Na +Bolsa de Pariz, no _Stock-exchange_ de Londres, onde os fundos egypcios +tinham descido, pedia-se com energia a suppressão immediata d'esse +iniquo aventureiro. + +Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas +pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa. + +As potencias occidentaes _trocaram as suas vistas_, segundo a hedionda +phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto _estava em anarchia_. O +Khediva, esse já se declarara _coacto_, e urgia _descoactar_ rapidamente +esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. A Inglaterra e a França, +pois, (paizes que dizem ter interesses superiores no Egypto) mandaram as +suas esquadras ás aguas de Alexandria, para aterrar Arabi. Póde-se +perguntar até que ponto seis couraçados, sem tropas de desembarque e +ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar um ministro da guerra, +seguro no Cairo, a dez horas de caminho de ferro, cercado de vinte mil +homens de tropas regulares, apoiado por quatro milhões de população +fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, e sanctificado pela +approvação religiosa dos Ulemas... + +Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, como o +_Times_, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma insensatez. Em +todo o caso fez-se--e acompanhada de um documento, um papelucho +diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, parecia arrancado +a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, apresentado +gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava o Khediva a +que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para além das +cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, as suas +honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, amigos, +toda a folia de um _vaudeville_? De um lado o Khediva abandonado, em +palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado na equivoca +fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; do outro +lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e as mesquitas. E +a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para a Nubia este Arabi! +Conheceis cousa alguma que mais reclame a _verve_ do chorado Offenbach? +Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre dentes que o papelucho +era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr o resultado: Arabi encolheu +os hombros, adjudicou-se mais o ministerio da marinha, e substituiu +alguns dos outros ministros, antigos familiares do Khediva, por homens +seus, gente de nervo e de arranque. + +Perante esta resposta dada ao seu _ultimatum_, a Europa ficou, se me é +licito este dizer irreverente--_de orelha murcha_. E então tomou a +decisão das grandes crises; delegou diplomatas que se sentaram em torno +de uma mesa de panno verde, e enterraram pensativamente a cabeça entre +os punhos. Chamou-se a isto a _Conferencia de Constantinopla_. O seu +fim, todo louvavel, era _resolver a questão do Egypto_. + +E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou de +existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; o +general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto é +terra britannica--e ella ainda lá está, a resolver! + +Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta +auctoridade! Ainda lá está... + +Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa de +panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!... + +Depois de reunida a _Conferencia_, a Europa, naturalmente, lembrou-se +que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo +ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem nos +seus agitados dominios. + +Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia. + +É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia hesita. Por um lado, os +Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, armam marinha, +cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por outro lado, pagam +tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem de pachá a +sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao chefe do Islam, +como o presente que o rei catholico de Hespanha manda todos os annos ao +papa? É uma prestação annual da tremenda somma, porque Mehemet-Ali e +depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a sua independencia? É +simplesmente um _pourboire_?... Seja como fôr, o tributo existe--e, +fundado n'elle, a Europa appellou para o Sultão. Arabi, bom crente, +devia venerar o Sultão; o Sultão, bom pae, podia exterminar Arabi. E +aqui começa a famosa comedia das vacillações do Sultão. + +Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o sob o +pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca, um +pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali, +quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos +califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no +Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo este +caso, os _ulemas_ da mesquita d'El-Azhar, o grande centro religioso e o +grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona do Oriente, +possuindo no mundo mussulmano uma auctoridade igual á de um Concilio no +mundo catholico,--tinham declarado que se o Sultão, em nome da Europa +christã, pegasse em armas contra gente mahometana, tornava-se _ipso +facto_ apostata, e _ipso facto_ perdia o califado. Por um lado tambem o +Sultão, tendo, ao que se diz, recebido de Arabi promessas de depor o +Khediva e proclamar em seu logar Helim-Pachá, que é em Constantinopla o +conselheiro e o favorito do serralho--conspirava com Arabi contra o +Khediva; mas por outro lado, tinha noticia das intelligencias de Arabi +com o scherif de Meca, que, sendo o descendente directo de Mahomet, +possue mais que o Sultão direitos ao califado, e é n'esta santa +pretensão apoiado por todas as tribus da Arabia; e, receiando assim que +Arabi se tornasse o auctor de um scisma no islamismo, o Sultão procurava +minar-lhe a influencia crescente--e conspirava com o Khediva contra +Arabi. Por um lado ainda, uma vaga revolução constitucional em paiz +mussulmano era odiosa ao Sultão; mas, por outro, a maneira como Arabi, +alma d'esse movimento, estava tratando d'alto parte da Europa colligada, +lisongeava profundamente o seu coração turco. Emfim, este miserando +chefe dos crentes não sabia onde havia de dar com a sua cabeça +imperial... Não se pense, por este dizer ligeiro, que eu não respeito o +Sultão: Abdul-Hamid não é um califa do antigo typo, embrutecido pelo uso +de tres mil mulheres,--mas, segundo a expressão do principe de Bismarck, +«um dos espiritos mais finos da Europa». Ora, o principe de Bismarck é +um entendedor; ainda que, a meu vêr, duas cousas estragam esta famosa +finura: primeira o ser excessiva, de modo que Abdul-Hamid, a maior parte +das vezes, tropeça e fica enredado na engenhosa complicação dos seus +proprios fios; depois o estar ao serviço, não de idéas praticas, mas de +fantasias mysticas, como a que se lhe attribue de renovar, na ordem +espiritual e em seu proveito, o imperio prophetico de Mahomet. + +Emfim, instado pela Europa a intervir no Egypto, e não querendo que a +Europa interviesse, porque isso seria a perda do seu pingue tributo +annual, o Sultão decidiu-se a enviar Dervich-Pachá, uma velha raposa +podre de manhas, com a missão de fazer reentrar Arabi no aprisco dos +humildes. Mas apenas Dervich-Pachá começava esta operação, eis que o +Sultão inquieto, vendo Arabi e o scherif de Meca de mãos dadas sobre o +tumulo do Propheta, remette a Arabi a grande ordem do Medjidieh, a mais +nobre condecoração turca, o favor supremo que póde cahir das mãos do +califa, acompanhada de uma florida carta de amizade e d'uma esplendida +placa de diamantes. + +Isto tudo dá a medida da confusão do Grão-Turco. + +Arabi, assim glorificado pelo califa, resplandeceu aos olhos do mundo +mussulmano com um prestigio maior; Dervich-Pachá, um instante aturdido, +redobrou de duplicidade:--e foi então entre Dervich, e Arabi, e o +Khediva, e o Sultão, e as potencias, e os consules, e os pachás, e os +coroneis, uma intriga tão emaranhada que eu prefiriria fazer-lhes um +resumo lucido dos vinte e cinco volumes das _Façanhas de Rocambole_, do +que penetrar na espessura inextricavel d'este embroglio +turco-europeu--uma d'essas intrigas fastidiosas que devem enervar, fazer +chorar de séca e de fadiga a Providencia, se ella, como affirmam +philosophos que estão na sua intimidade, é obrigada a observar +minuciosamente todos os successos humanos! Quanto o homem com a sua +tolice deve, por vezes, fazer bocejar Deus! + +Durante estes successos, emquanto a Europa chafurdava no atoleiro +diplomatico, as duas esquadras de França e de Inglaterra, lá continuavam +deante de Alexandria _manifestando_. Do romper do sol ao occaso, +immoveis nas aguas calmas, com as camisolas da marujada seccando nas +vergas, alli estavam _manifestando_... + +Os officiaes repousavam de vez em quando d'esta rigida attitude de +_manifestação_ arranjando um _pic-nic_ em terra, indo fazer um _robber_ +de _whist_ ao club inglez, ou organisando, sob as sombras dos jardins de +Ramleh, honestas partidas de _cricket_. + + + + +III + +Episodio oriental.--Mussulmanos e christãos.--Uma estrumeira +social.--Opiniões de mesa redonda.--Os funccionarios europeus do +Cairo.--As dividas d'Ismail-Pachá.--O dia 11 de junho. + + +Achando-se as cousas assim, amanheceu o dia 11 de junho, que d'ora em +deante na historia--n'esse curto instante de notoriedade humana, que +emphaticamente se chama a _historia_--será conhecido por este +gallicismo: _o massacre de Alexandria_. + +O primeiro episodio oriental que eu vi, ao desembarcar ha doze annos em +Alexandria, foi este: no caes da alfandega, faiscante sob a luz torrida, +um empregado europeu--europeu pelo typo, pela sobrecasaca, sobretudo +pelo bonnet agaloado--estava arrancando a pelle das costas d'um arabe, +com aquelle chicote de nervo d'hippopotamo, que lá chamam _courbach_, e +que é no Egypto o symbolo official da auctoridade. + +Em redor, sem que esse espectaculo parecesse desusado ou escandaloso, +alguns arabes transportavam fardos; outros empregados agaloados, de +chicote na mão, davam ordens por entre o fumo do cigarro... + +Saciado ou cançado, o homem do _courbach_, que era um magrisella, atirou +um derradeiro pontapé á anatomia posterior do arabe--como quem, ao fim +d'um periodo escripto com _verve_, assenta vivamente o seu ponto +final--e, voltando-se para o meu companheiro e para mim, offereceu-nos, +de bonnet na mão, os seus respeitosos serviços. Era um italiano, e +encantador. A esse tempo o arabe (como quasi todos os fellahs, um +soberbo homem de formas esculpturaes) depois de se ter sacudido como um +Terra-Nova ao sahir d'agua, fôra-se agachar a um canto, com os olhos +luzentes como braza, mas quieto e fatalista, pensando de certo que Allah +é grande nos céos e necessario na terra o _courbach_ do estrangeiro. + +Quando, no dia 11 de junho, eu li esses telegrammas, repassados de +panico, em que se annunciava á Europa que a população arabe massacrava +os europeus nas ruas da Alexandria,--não sei porque revi logo o cáes da +alfandega, o italiano serviçal de bonnet agaloado, o _courbach_ +estalando nas costas escuras do arabe. Isto não é trazido como +allegoria, para dizer que as relações dos europeus e dos egypcios se +reduziam a estas duas attitudes--um braço com manga de panno fino +erguendo o _courbach_, e um dorso semi-nú esperando a sova: muito menos +quero insinuar que o massacre do dia 11 foi a tardia vingança d'estas +brutalidades burocraticas... + +O Egypto não é a Serra Leoa; e o crescente ainda não anda tão de rastos +que consinta em ser systematicamente espancado pela cruz. Mas a verdade +é que no Egypto um qualquer empregado europeu da alfandega, das docas, +ou dos caminhos de ferro, que não ousaria erguer a mão para um carrejão +europeu,--retalha a pelle d'um egypcio, tão naturalmente e com tanta +indifferença como se sacode uma mosca importuna. + +É que o europeu d'Alexandria considerava o fellah egypcio como um sêr de +raça infima, incivilisavel, mero animal de trabalho, pouco differente do +gado; e se tivesse o estylo de La Bruyère, descrevel-o-hia como La +Bruyère descrevia os aldeãos do tempo de Luiz XIV, «vultos escuros, +curvados sobre a terra e tendo a vaga apparencia de seres humanos...» + +N'estas condições de desprezo, usa-se facilmente o _courbach_ e +invariavelmente a insolencia... + +E note-se que o europeu não tinha muito mais respeito pelo egypcio das +classes superiores ou cultas. Qualquer amanuense de consulado julgaria +da sua dignidade d'europeu não ceder o passo ao mais velho e nobre +scheik, senhor de dez tribus e descendente do propheta; e o mais +insignificante empregado dos telegraphos, leitor do _Figaro_, não +nutriria senão desdem pelos sabios doutores da Universidade d'El-Azhar, +que não vão ao café ler o _Figaro_, e pouco sabem de telegraphia. + +Mas este absurdo desprezo por uma nobre raça, a quem a civilisação tanto +deve, não se manifestava só entre os europeus de Alexandria, colonia de +alluvião, formada pelos detritos das populações do Mediterraneo: não +ouvimos nós ainda ha dias o proprio snr. Gambetta declarar das alturas +da tribuna da camara franceza, esse Sinai da burguezia, que o povo +egypcio só podia ser governado a chicote?... + +A complicada abundancia da nossa civilisação material, as nossas +machinas, os nossos telephones, a nossa luz electrica, tem-nos tornado +intoleravelmente pedantes: estamos promptos a declarar desprezivel uma +raça, desde que ella não sabe fabricar pianos de Erard; e se ha algures +um povo que não possua como nós o talento de compor operas comicas, +consideramol-o _ipso-facto_ votado para sempre á escravidão... + +Por outro lado, os egypcios olhavam para o europeu como para a ultima e +mais terrivel praga do Egypto, uma outra invasão de gafanhotos, +descendo--não do céo, onde ruge a colera de Jehovah, mas dos paquetes do +Mediterraneo, com a sua chapeleira na mão--a alastrar, devorar as +riquezas do valle do Nilo. E este prejuizo não é especial ás classes +incultas: o pachá mais bem informado, educado em França, lendo como nós +a _Revista dos Dous Mundos_, nunca reconhecerá o que o Egypto deve á +energia, á sciencia, ao capital europeu; para elle, como para o ultimo +burriqueiro das praças do Cairo, o europeu é mais que o intruso--é o +_intrujão_. + +O arabe de modo nenhum se julga inferior a nós; as nossas industrias, as +nossas invenções não o deslumbram; e estou mesmo que, do calmo repouso +dos seus harens, o grande ruido que nós fazemos sobre a terra, lhe +parece uma vã agitação. Elle sente por nós o pasmo misturado de desdém +que póde sentir um philosopho, vendo trabalhar um pelotiqueiro. O +pensador diz comsigo que não é capaz de equilibrar uma espingarda sobre +o nariz, e lamenta-o; mas consola-se reflectindo que o saltimbanco não é +susceptivel de ligar duas idéas. Assim, o mussulmano admira um momento o +nosso gaz, os nossos apparelhos, os nossos realejos, todo o nosso genio +mecanico; depois cofia a barba, sorri, e pensa comsigo: «Tudo aquillo +prova paciencia e engenho, mas eu tenho dentro em mim alguma cousa de +melhor, e superior mesmo ao vapor e á electricidade--é a perfeição moral +que me dá a lei de Mahomet.» + +De resto, nós o sabemos pelas xacaras da nossa mocidade, sempre o +crescente detestou a cruz; e póde-se imaginar quaes são os seus +sentimentos, agora que a cruz, em logar de o combater como paladino, o +explora como agiota. + +Se em cidades como Damasco ou Beyrouth o europeu _touriste_ inoffensivo, +que passa com a bolsa aberta, excita olhares e murmurios de odio, +sómente porque tudo n'elle é differente, desde os dogmas da sua religião +até á fórma do seu chapéo--calcule-se o que se dá em cidades como +Alexandria e como Tunis, onde o europeu não é _touriste_ amavel que +distribue gorgetas, mas o agenciador soffrego que vem instalar-se alli +como em terra que conquistasse para arredondar depressa um peculio, sob +a bandeira do seu consul. + +Accrescente-se que no Egypto o europeu apparecia aos olhos do arabe com +o caracter odioso de um privilegiado. + +Uma cousa parecia intoleravel--é que o europeu empolgasse todos os +logares, todos, desde as gordas sinecuras até os diminutos empregos de +cem francos por mez. + +Vagava um obscuro posto de carteiro ou de telegraphista--e concorriam, +de um lado um arabe honesto e activo, do outro um sacripanta de +nacionalidade grega ou malteza. A quem se dava o emprego? Ao sacripanta. + +Este systema, fecundo a principio, quando o Egypto era uma barbara +provincia turca, e os europeus chamados eram homens de saber especial e +de integridade, começou no tempo de Mehemet-Ali, que tentava fazer uma +nação sobre as ruinas do velho pachalato, e que convidava para essa obra +a sciencia e o capital europeu: continuou depois com Said-Pachá, esse +delicioso _bon-vivant_, tão francez que passava os dias a fazer +_calembourgs_, e que não admittiria em torno de si, e nas repartições do +estado, senão cavalheiros capazes de apreciar o _Charivari_; mas a +grande invasão de empregados europeus consumou-se no tempo de +Ismail-Pachá,--que acceitava tudo o que vinha da Europa, os +especialistas e os vadios, os que traziam uma idéa e os que só traziam +dividas... + +O Egypto renovou então a velha lenda do El-Dorado. Quem em Pariz, ou em +Londres, ou em Roma, se via filado pelos credores, com a derradeira +sobrecasaca a coçar-se nos cotovellos, e sem poder voltar ao seu _club_, +por dever dez francos ao porteiro, obtinha de um diplomata ou de um +principe uma carta de recommendação para o Khediva e tomava o paquete de +Alexandria. + +Lá, nos primeiros dias, tinha o hotel pago por Sua Alteza--ao fim do mez +emprego dado por Sua Alteza. Qualquer cousa: se era um velho tenor de +sala, já sem voz, nomeava-se coronel de cavallaria; se era um militar +desacreditado, despachava-se inspector das escolas. Quem não podia +alcançar uma carta para o Khediva, ia rojar-se aos pés do consul. Quem +não ousava apresentar-se ao consul, empregava as influencias +transversaes do paço, as mais poderosas--os eunucos, os cosinheiros, as +dançarinas... O emprego vinha, facil e pingue. E o fellah pagava toda a +malta. + +Mas o peior ainda eram os funccionarios superiores, que as potencias +installavam no interior da administração egypcia--tão ciumentas umas das +outras, que, se, por exemplo, a França conseguia accommodar um francez +na directoria geral das finanças, logo a Inglaterra, para contrabalançar +essa parcella de influencia, empurrava um inglez para dentro do +estado-maior da marinha; e por seu turno a Italia, já desconfiada, +mettia á força um filhote de Roma na direcção da instrucção publica. +Alguns d'estes cavalheiros tinham de certo habilidades de especialistas; +mas a sua abundancia mesmo enredava o movimento da machina +administrativa. Está hoje provado que o Khediva, cedendo a estas +pressões, era obrigado a ter _seis empregados para fazer o simples +trabalho de um_! Todo este mundo formava um estado no estado. + +Nas suas repartições de finança, nos seus tribunaes, nos seus estados +maiores, nas suas commissões, em todos os recantos da sua administração, +o Egypto só via faces estrangeiras, só escutava linguas estrangeiras, só +sentia interesses estrangeiros; e o dinheiro egypcio mantinha esta +cohorte, que só estava alli para annullar a influencia egypcia. E eram +ao menos uteis?... O consul-geral dos Estados Unidos conta, n'um livro +recente sobre o Egypto, que jantara um dia no Cairo com seis empregados +superiores, todos estrangeiros, cujos ordenados sommados subiam +annualmente a perto de _cem contos_! Nas suas repartições, a +correspondencia, a escripturação, a contabilidade, tudo era feito em +lingua arabe: _e nenhum d'elles sabia o arabe_! + + +Não havia talvez sobre a terra peior população que a de Alexandria. Essa +cidade, que fôra outr'ora o refugio do saber e do luxo do oriente, +tornara-se nos nossos dias, sob o Khediva Ismail-Pachá, o barril de lixo +da Europa meridional. Todo o refugo humano da Grecia, das ilhas do +Archipelago, da Italia, da Sicilia, de Marselha (e Deus sabe quanto +estas bellas paragens classicas abundam em meliantes!) se esvasiava +instinctivamente sobre Alexandria, alastrava-a, tornava-a sob o seu +bello céo azul-ferrete uma fetida estrumeira social. + +Bastava atravessar uma rua, para comprehender o conjuncto dos costumes. + +A cada esquina, um _café-cantante_ atulhado d'uma malta enxovalhada, que +berra, cachimba, emborca aguardente, emquanto sobre o tablado, por traz +da ribalta, uma matrona despeitorada e caiada vae rouquejando um +estribilho obsceno... De dez em dez casas um lupanar, separado apenas da +rua por uma simples cortina... Por toda a parte o jogo: um sacripanta +traz uma pequena roleta, um banco, e no meio da rua installa a batota; +em redor apinham-se logo outros sacripantas, e d'ahi a momentos a +policia tem de acudir, porque corre sangue... + +O viajante de gosto e de educação tinha de fugir bem depressa d'esta +atmosphera, refugiar-se n'algum quieto café mussulmano, á beira d'agua +tranquilla. Ahi ao menos só havia arabes que fumavam gravemente o seu +_chibouk_, fallavam entre si com pollidez, comportavam-se com dignidade. + +Ah! estou d'aqui a vêr a primeira mesa redonda a que me sentei em +Alexandria! + +Era presidida por um grego de pelle livida, de suissas reluzentes como +verniz de sapatos, com um grilhão de ouro sobre o collete denotado e +brilhantes, talvez verdadeiros, n'uma camisa de oito dias! Que intrujão! +que bandido! Como aquillo rolara por todas as trapaças, todos os +deboches do littoral levantino! O bom era ouvil-o fallar do Egypto como +de um paiz conquistado, terra de ilotas que tinha obrigação de o vestir, +de o calçar, de lhe encher a bolsa a elle, e aos outros que o applaudiam +em torno da mesa redonda, todos europeus, agenciadores, empregadotes, +simples vadios, todos de grilhões de ouro no relogio, de collarinho +decotado, o carão resudando vicio, o fallar parlapatão, galãs de +espelunca... + +--_L'arabe, monsieur_, dizia-me este equivoco personagem, n'um francez +do Pireu, _ce n'est qu'une infecte canaille_! + +O infecto canalha eras tu, livido grego! + +É evidente que o que tornou Arabi mais popular no Egypto, foi a sua +hostilidade aos estrangeiros. _O Egypto para os egypcios!_ Esta phrase, +todo um programma, calou fundo no animo do povo inteiro. + +O Egypto para os egypcios--não para os empregados estrangeiros, nem para +os agiotas estrangeiros... + +Ah! esta questão dos credores! A famosa questão da divida egypcia! Em +que gastou Ismail-Pachá esses centenares de milhões que a Europa lhe +emprestou, e que o pobre fellah está pagando? Em primeiro logar, na +realisação de uma idéa economica--o converter o Egypto, que é um paiz +agricola, n'uma nação industrial. O Egypto produzia o assucar--porque o +não refinaria? Possuia o algodão--porque o não teceria? E ahi começou, á +força de milhões, a cobrir as margens do Nilo d'essas colossaes +fabricas, de que hoje só restam ruinas;--ruinas de ferro enferrujado e +de madeira podre, tão miseraveis e tão tristes, ao lado das bellas +ruinas graniticas dos templos pharaonicos, representando, como ellas, a +servidão de um povo, mas, pela sua fealdade, não podendo ao menos +servir, como ellas, nem para assumpto de uma aquarella... + +A outra causa da ruina do Khediva foi a sua prodigalidade. Quem não +conhece essa lenda illustre? Quem se não lembra das festas do canal de +Suez? Ahi cada verba se contou por milhões. Dois milhões para a +illuminação do Cairo. Quatro milhões para o banquete de Ismailia. +Despezas com os dois mil convidados durante quinze dias no Cairo e no +Canal--setenta milhões!... Para o champagne bebido n'essas semanas de +bambocha--dous milhões! O fellah pagava. + +Eh! E eu que estou aqui a fallar--tambem o bebi, esse champagne que era +no fundo o suor do fellah espumante e assucarado! Tambem eu fui hospede +de Ismail-Pachá, á custa do fellah! Tambem eu... Calemo-nos, cubramos a +fronte de cinzas, imploremos o perdão do fellah! + + +O resultado d'estas fantasias industriaes, d'estes luxos de Salomão, foi +que o Egypto se achou devendo á Europa centenares de milhões, por que +pagava um juro de _sete por cento_, e, como burgueza prudente que zela +os seus interesses, a Europa tinha pouco a pouco tomado conta da +administração do Egypto... + +Quando Arabi quiz modificar este systema, que convertia o povo egypcio +n'uma horda de servos trabalhando para os financeiros de Pariz e +Londres--as esquadras de França e Inglaterra appareceram logo, pedindo o +desterro de Arabi, e o licenceamento do exercito, que era o instrumento +e a força do partido nacional. Os arabes viram n'isto um odioso abuso da +força, a Inglaterra e a França querendo manter á bala os interesses dos +possuidores dos titulos da divida egypcia e os privilegios dos intrusos. + +Desde esse momento Arabi tornou-se um libertador; e o Khediva, que as +esquadras vinham proteger contra Arabi, passou a ser o renegado, o traidor. + +Esta era a situação no dia 11 de junho. Alexandria tornara-se uma +fornalha de excitação. Nas mesquitas prégava-se com furor a cruzada +contra o christão: nos bazares fallava-se do estrangeiro como do cão +maldito, da ave de rapina, peior que o gafanhoto que devora a seara nos +campos ferteis do Nilo; e, ou fôsse o fanatismo que despertasse, ou +fôsse a miseria que se queria vingar--todo o bom mussulmano se armava. + +N'estas circumstancias, de uma chufa de botequim póde nascer uma guerra +de raças. E, pouco mais ou menos, assim succedeu. Na manhã do dia 11, na +rua das Irmãs, uma das mais ricas do bairro europeu, um inglez, por um +velho habito, deu chicotadas n'um arabe; mas, contra todas as tradições, +o arabe replicou com uma cacetada. O inglez fez fogo com um revólver. +D'ahi a pouco o conflicto entre europeus e arabes, em pleno furor, +tumultuava por todo o bairro... Isto durou cinco horas--até que, por +ordens telegraphadas do Cairo, a tropa, até ahi neutral, acalmou as +ruas. E o resultado, bem inesperado, mas comprehensivel, desde que se +sabe que os arabes só tinham cacetes e que os europeus tinham +carabinas--foi este: perto de cem europeus mortos, mais de trezentos +arabes dizimados. Os jornaes têm chamado a isto o _massacre dos +christãos_: eu não quero ser por modo algum desagradavel aos meus irmãos +em Christo, mas lembro respeitosamente que isto se chame a _matança dos +mussulmanos_. + + + + +IV + +A fuga dos europeus.--O grande sonho inglez.--O «casus belli».--A +vespera do bombardeamento. + + +Esta _matança de christãos_--para continuarmos a dar-lhe a sua alcunha +diplomatica--puxou bruscamente a attenção do mundo que lê jornaes para o +Egypto, e por isso devem ahi ter presentes e vivos--sem que se torne +necessario o rememoral-os, detalhe a detalhe--todos os episodios que +n'uma semana se desencadearam uns sobre os outros, com uma barafunda de +melodrama: a indignação excessiva e tumultuosa da Europa, excitada pelo +clamor e pelos gritos da imprensa ingleza; o desordenado panico que se +apossou dos europeus residentes no Egypto; e o facto, estranho mesmo +n'essa terra de classicos exodos, de uma colonia de mais de _cem mil_ +almas abandonando de repente o solo, onde, desde gerações se +estabelecera, deixando occupações, interesses, empregos, casa e fazenda, +precipitando-se apavorada para os caes de embarque, apinhando-se em +paquetes, em navios de carga, em barcaças, em qualquer cousa que pudesse +fluctuar na agua, e fugir da terra funesta, pagando a peso de ouro o +direito de se agachar n'um buraco de porão; a maneira magistral como a +Inglaterra, pelos officiaes da sua armada, organisou e policiou esta +nova fuga dos hebreus; emfim, a chegada a Alexandria do Khediva, que +perdera toda a auctoridade no Cairo, e colhia a opportunidade de vir +abrigar os restos esfrangalhados da sua realeza sob os canhões do +almirante Seymour. + +Arabi-pachá, que se tornára, de facto, dictador, correu tambem a +Alexandria--e o seu primeiro passo foi estabelecer tribunaes marciaes, +para julgarem os _massacradores_ do dia 11. + +Note-se que se não tratava, nem por sombras, de punir os europeus que +tinham mandado _tresentos_ mussulmanos d'esta terra de miserias para o +paraiso de Allah; mas sómente os mussulmanos suspeitos de terem posto +mãos violentas sobre christãos. Ainda assim, os jornaes inglezes +bradaram logo que não se podia ter confiança na justiça, na +imparcialidade dos magistrados egypcios, tão hostis ao estrangeiro como +á populaça--e que taes julgamentos não passavam d'uma farça, onde os +réus, que se mostravam um momento á Europa carregados de ferros +postiços, eram depois, por traz dos bastidores, acclamados como bons +patriotas. + +Arabi-pachá propoz então que esses tribunaes se compuzessem de juizes +arabes e de officiaes inglezes. Isto indicava um desejo vivo, quasi uma +sofreguidão de justiça. E, com effeito, se o partido nacional agora todo +poderoso, se não mostrasse severo--corria o perigo de passar por +cumplice; e se as suas refórmas tinham já inspirado tanta antipathia á +Europa--o que seria se a elle se pudessem plausivelmente attribuir taes +attentados? + +De resto, para um mussulmano orthodoxo e fino como Arabi, toda a +violencia contra o estrangeiro, contra o hospede, constitue a mais negra +violação da lei santa. Arabi era sincero. Mas a Inglaterra não acceitou +as suas propostas... + +A Inglaterra não acceitou. A Inglaterra estava armada a bordo dos seus +couraçados. E, todavia, mais que nenhuma outra nação ella soffrera com +os tumultos d'Alexandria: o seu consul, brutalmente espancado, achava-se +á morte; alguns dos officiaes da esquadra tinham recebido no uniforme, +que é o orgulho da Grã-Bretanha, a lama e as pedradas da populaça +egypcia; a maior parte dos europeus assassinados eram de nacionalidade +ingleza; contra a Inglaterra se prégara a guerra nas mesquitas, nos +bazares, e até sob a tenda beduina... + +Mas a Inglaterra, generosa e paternal, queria esquecer essas injurias. +Pudera! + +É que não lhe convinha reconhecer as atrocidades do dia 11 como um mero +e casual episodio de fanatismo mussulmano, a que algumas grilhetas e +algumas cordas de forca poriam definitivamente termo; nem lhe convinha +descer dos seus couraçados unicamente para ir a um tribunal ajudar a +sentenciar dez ou doze facinoras. + +O que á Inglaterra convinha, era attribuir a este conflicto local a +magnitude de uma anarchia nacional, e offerecer ou impor o seu +prestimo--não para castigar os tumultos de um bairro, mas para pacificar +todo um paiz em desordem. E assim ella rejubilava com a chegada d'esse +dia tão appetecido, tão pacientemente esperado desde o começo do seculo, +tão anciosamente espiado desde a abertura do canal de Suez, em que teria +emfim um pretexto para assentar na terra do Egypto o seu pé de ferro, +essa enorme pata anglo-saxonia, que, uma vez pousada sobre territorio +alheio, seja um rochedo como Gibraltar, uma ponta de areia como Aden, +uma ilha como Malta, ou todo um mundo como a India--nenhuma força humana +póde jámais arredar ou mover. + +Já se não tratava de libertar o Khediva coacto, de defender as +algibeiras dos portadores do emprestimo egypcio. Um interessse mais +alto, ligado com os destinos do Imperio, levantava-se, dominava tudo. + +_O Egypto estava em anarchia_: logo competia á Inglaterra, paladino da +civilisação, restabelecer lá a ordem, impedil-o de recahir no estado +barbaro. + +_O Egypto estava em anarchia_: logo competia á Inglaterra, como grande +potencia oriental, defender essa parte preciosa da terra egypcia--o +canal de Suez, e evitar que elle cahisse nas mãos de Arabi ou de outro +dictador mussulmano, hostil aos beneficios da civilisação. + +É o que pouco mais ou menos respondia a Inglaterra, e bem alto, para que +o mundo ouvisse--quando Arabi-pachá lhe propoz uma alliança judicial +para punir o crime mussulmano do dia 11. + +--Não, dizia John Bull, não se trata do dia 11! Esqueçamos o dia 11. +Esqueçamol-o, como se elle fosse apenas o dia 7. A questão é outra. _O +Egypto está em anarchia._ É necessario salvar a civilisação! + +E estas nobres palavras significavam, despidas dos seus atavios +humanitarios, que a Inglaterra, sob o pretexto de pacificar o Egypto, +desembarcaria em Alexandria, occuparia por motivo de operações militares +Port-Said e Suez, as duas portas do canal, e depois--depois nunca mais, +n'esses pontos estrategicos do caminho da India, se arriaria a bandeira +ingleza! + +E, feito isto, ficava realisado o grande sonho britannico:--posse +absoluta da estrada das Indias; John Bull fazendo sentinella a todas as +portas succesivas que conduzem ao seu imperio do Oriente: á entrada do +Mediterraneo, Gibraltrar e o seu rochedo inexpugnavel; no Mediterraneo, +Malta e Chypre, duas ilhas, dois collossaes depositos de guerra: á +entrada do canal, Port-Said; ao fim do canal e á bocca do Mar Vermelho, +Suez; á beira do Golfo Persico, Aden; e d'ahi por deante as suas +esquadras varrendo os mares... + +Deante d'esta esplendida opportunidade se achou a Inglaterra, depois das +carnificinas de Alexandria; e, tendo logo declarado _officialmente_ o +Egypto em anarchia, sem perda de um momento, começou a armar-se. + +E, no meio de tudo isto--a Europa? Oh! a Inglaterra convidava, com +bellos ademanes de desinteresse, a Europa a partilhar com ella a honra +de pacificar o Egypto! Mas sabia bem que nenhuma das potencias moveria +um soldado: nem mesmo a França, que tinha uma frota na bahia de +Alexandria e collaborára nas manifestações platonicas; a França, +governada por uma democracia burgueza que enriquece, e tornada toda ella +uma vasta casa de negocio, não quereria por cousa alguma perturbar +aquella paz tepida e doce em que amadurece o Milhão. + +Além disso, as potencias já tinham resalvado a sua dignidade, +sentando-se em torno da mesa verde da conferencia, á beira das aguas +luminosas do Bosphoro, meditando com a cabeça entre os punhos a solução +da questão egypcia. E, emquanto ao resto, estavam-se observando, armadas +até os dentes, desconfiadas, ciumentas, odiando-se, mas immobilisadas +reciprocamente pela propria magnitude dos seus armamentos. + +A França receia a Allemanha; a Turquia teme a Russia; a Austria está +contida por ambas; a Italia necessita a benevolencia de todas; e cada +uma por seu turno treme do snr. de Bismarck, o hediondo papão, o Jupiter +trovejante do Olympo diplomatico, que, no seu retiro de Varzin, +torturado por toda a sorte de males, passa parte do tempo sob a +influencia da morphina... + +De resto, que todas appeteciam os despojos do Egypto, só o póde duvidar +quem ignore os instinctos de pilhagem, de gatunice, de pirataria, que +alberga sempre a alma d'um povo civilisado; mas nenhuma das potencias é, +como a Inglaterra, uma ilha cercada d'um mar agitado, onde se move a +maior frota da terra; e, apertadas no estreito continente, hombro contra +hombro e espada contra espada, nenhuma dellas ousaria dar um passo para +o lado do Egypto, com receio que o vizinho lhe saltasse ás guellas. +Limitavam-se, por isso, cheias de rancor, a trocar phrases de +diplomatica doçura, sentadas á mesa da _conferencia_. + +Quando, deante d'uma casa fechada, os que lhe appetecem as riquezas, +discutem, de penna na mão, a melhor maneira de lá entrar--a vantagem +pertence toda áquelle que, em logar d'uma penna, se muniu d'um machado e +atira de subito a primeira machadada á porta. Foi o que fez a +Inglaterra. Emquanto os outros faziam planos _pro-forma_ em cima d'uma +carteira--ella fez fogo sobre Alexandria. + +Sómente não se póde atacar uma cidade inoffensiva sem um pretexto. E a +Inglaterra foi, á falta de outro melhor, forçada a apresentar um tão +máu, que, como dizia a _Associação dos Positivistas Inglezes_, no seu +protesto contra a invasão do Egypto, a sua puerilidade só consegue +augmentar a sua immoralidade. + +Perante os armamentos da Inglaterra, Arabi-pachá, se lhe não +comprehendia as intenções espoliadoras, devia pelo menos concluir que +era contra elle, contra o partido que elle dirigia, e contra as idéas +que elle encarnava, que a Inglaterra se estava preparando; e, muito +naturalmente, na espectativa de um ataque, organisou a sua defesa, +artilhando os fortes de Alexandria, e erguendo baterias novas pela costa. + +Foi contra isto que a Inglaterra protestou; e foi d'isto que fez um +_casus belli_--declarando que, se as obras dos fortes não cessassem, +ella destruiria os fortes!... Sem estar em guerra com o Egypto, ella +considerava-se no direito de reunir deante de Alexandria uma frota +ameaçadora; mas não admittia que as auctoridades de Alexandria +concertassem sequer as brechas das velhas fortificações de Mehemet-Ali! + +E que explicações estupendas o snr. Gladstone dava á Europa para +justificar o _casus belli_! As baterias que Arabi ergue (dizia elle), os +novos canhões que monta, _põem em perigo os couraçados inglezes_! E os +couraçados não punham em perigo os fortes? Mas ao lado da esquadra +ingleza estavam navios de guerra francezes, allemães, italianos, gregos, +austriacos--tão expostos ás balas de Arabi como os que hasteavam o +pavilhão britannico: e esses não se julgavam _em perigo_! + +Que diria a Inglaterra se o commandante de algum dos couraçados +francezes ou allemães, que por vezes vêm ancorar nas aguas de Portsmouth +ou de Southampton--mandasse de repente prohibir ao governador de uma +d'essas praças a continuação das obras de defesa que ahi se vão +incessantemente aperfeiçoando, sob o pretexto de que taes baterias +_poderiam fazer mal_ ao navio de seu commando?... Com tal precedente, os +almirantes inglezes, que honram frequentemente o humilde porto de Lisboa +com a presença dos seus pavilhões--estariam auctorisados a exigir a +destruição da torre de S. Julião, do Bugio e de Belém! Dir-se-hia que +não é de prever que o portuguez, pacato e bonacheirão, faça fogo--muito +menos sobre couraçados inglezes. De accordo. Mas que ganharia +Arabi-pachá em mandar de surpreza algumas balas á esquadra ingleza--e +portanto ás outras que estavam no mesmo ancoradouro--senão o attrahir +sobre si, e o seu partido, e o seu paiz, a pavorosa vingança da Europa +inteira, injuriada em todos os seus pavilhões? + +Arabi fez uma cousa fina: cedeu, promettendo interromper os trabalhos de +defesa. E a Inglaterra ficou desapontada. Esta submissão de Arabi +desmanchava o seu engenhoso plano. + +Alguns jornaes mais cynicos e impacientes chegavam a aconselhar que se +não respeitasse a palavra d'um vil mussulmano--e que se fosse +_bombardeando_! O trabalho então da frota foi vigiar incessantemente as +fortificações, na esperança de descobrir algum sapador, d'enxada ao +hombro, que desmentisse a promessa d'Arabi. De noite, os couraçados +projectavam sobre a costa longos e vivos raios de luz electrica, +movendo-os lentamente ao longo das baterias, pesquizando anciosamente os +menores recantos, procurando o mais leve vestigio de trabalho--fosse +elle um cesto de pedras esquecido; e assim foi que uma noite--noite +venturosa para o governo do snr. Gladstone!--a esquadra descobriu dois +soldados limpando um velho canhão! Que allivio para a Inglaterra! +Immediatamente o almirante Seymour mandou este _ultimatum_ a +Toulba-pachá, governador da cidade:--dentro em vinte e quatro horas os +fortes deveriam ser entregues ás tropas inglezas, ou toda a linha de +couraçados abriria fogo sobre Alexandria. A isto, realmente, só se póde +responder a grande palavra de Cambronne em Waterloo. + +Lamento que Arabi a não dissesse: era a segunda vez na historia que John +Bull a receberia em plena face. + +A vespera do bombardeamento foi dramatica. O almirante Seymour fez sahir +da bahia todos os navios mercantes; e, depois, com a usual etiqueta, +convidou os navios de guerra de outras nações a fazerem-se ao largo, +levando para fóra da linha de fogo a neutralidade das suas bandeiras. +Essa longa procissão de couraçados de toda a Europa, deixando lentamente +as aguas da Alexandria, para que a Inglaterra pudesse livremente +commetter o seu attentado--é descripta pelos correspondentes inglezes +como cheia de solemnidade e de ceremonial. As salvas succediam-se; uns +aos outros cortejavam-se os pavilhões dos almirantes. Os ultimos a sahir +foram os navios francezes, os alliados na _manifestação_, que, honra +lhes seja, não quizeram ser alliados no crime:--e a tricolor afastou-se +tambem, saudada pelo almirante Seymour, entre os _hurrahs_ de despedida +da marinhagem e o estridor da _Marselhesa_. A tarde estava bella; tudo +era luz na bahia; os minaretes d'Alexandria branquejavam no azul... +Magnifico espectaculo, sem duvida:--sómente que pensariam d'elle os +milhares de pobres arabes, de mulheres e de creanças, que o contemplavam +das alturas da cidade, e sobre os quaes ia cahir no dia seguinte bala, +metralha e bomba? + +Por fim, a noite desceu e estrellou-se; á beira da agua calma luziam as +luzes d'Alexandria; tudo ficou em silencio na bahia. + +Estavam a sós, frente a frente, sob a paz dos ceus, uma grande esquadra +ingleza e a cidade inoffensiva que ella, na madrugada seguinte, para +satisfazer a sofreguidão mercantil de um povo de lojistas, ia friamente +arrasar. + + + + +V + +Depois do bombardeamento.--Os incendios.--As responsabilidades.--Uma +Alexandria ingleza.--A invasão.--A attitude da Europa. + + +O almirante Seymour, dias antes, tinha declarado que em duas breves +horas desmantelaria os fortes de Alexandria. Ao cabo, porém, de nove +compridas horas ainda não fizera calar as baterias egypcias; e ainda +justamente uma bomba vinha escavacar a camara do commandante do +_Inflexivel_. + +Sir Beauchamp Seymour reconheceu, nos seus despachos para o almirantado, +«que os melhores artilheiros da Europa se poderiam orgulhar de uma tão +bella resistencia». Mas nem coragem, nem reductos, nem muralhas de +granito prevalecem contra esses negros monstros que desfeiam os mares--o +_Monarcha_, o _Alexandra_, o _Soberbo_, o _Sultão_, o _Invencivel_, o +_Minotauro_, e tantos outros que lá estavam, movediços castellos de +ferro, servidos pelas forças combinadas do vapor, da hydraulica, da +electricidade, devastadores como um cataclysmo e exactos como uma sciencia. + +Pobres fortalezas de Mehemet-Ali! Foi a velha fabula da panella de barro +contra que tombou a panella de bronze. Ao anoitecer, eram apenas montões +de ruinas fumegando em silencio... + +Estava consummada a façanha! Na bahia, agora, tudo cahira n'uma grande +paz; a noite descera calma e escura; os enormes couraçados repousavam; +da cidade vencida não vinha o menor ruido; só n'um ponto de terra o +palacio de Rasel-tin ardia ao abandono. Foi então que o eloquente +correspondente do _Standard_ telegrahou para o seu jornal esta phrase +que merece fama:--_A situação não póde ser mais satisfactoria!_ + +Pelo meio da noite, porém, da parte de Alexandria, onde ficava a _Praça +dos Consules_, começou a erguer-se um vasto clarão. Alli, evidentemente, +havia um incendio. Mas como? Porque? + +O almirante Seymour lavaria d'ahi as suas mãos--se tivesse a bordo a +bacia de Poncio Pilatos. Elle concentrára escrupulosamente o seu fogo +sobre os fortes: uma ou outra bomba poderia ter cahido nos bairros +arabes--e nada mais legitimo, nem de mais salutar terror; mas a parte +européa de Alexandria fôra poupada... E todavia, era lá que o incendio +se estendia avermelhando, aquecendo o ceu; e de outros pontos visinhos +iam subindo na noite altas labaredas. Diabo! A situação já não era tão +satisfactoria... + +Ao outro dia houve um tempo muito nublado, com um mar muito forte. Os +couraçados, por precaução, fizeram-se ao largo. Quando, horas depois, +vieram retomar as suas posições de combate, Alexandria, deante d'elles, +ardia toda como uma monstruosa fogueira. Positivammente, não era nada +satisfactoria a situação! + +Não era. Arabi-pachá abandonára Alexandria, levando o grosso do +exercito. E a população mussulmana, enfurecida por nove horas de +bombardeamento, sem policia para a conter, com os _ulemas_ a excital-a, +tomada da cobiça da pilhagem, e inflammada pela furia das represalias, +correra aos bairros europeus,--e incendiou, saqueou, matou, destruiu; +matou pela raiva de matar, porque até pobres cavallos de carruagem +appareceram esquartejados; destruiu pela raiva de destruir, porque se +acharam nas ruas, aos pedaços, vestidos de senhoras, relogios de sala e +oculos de theatro... + +Ferocidades de fanatismo, que se arremessa n'uma vingança indiscriminada +sobre tudo o que lhe represente a raça, os costumes, as idéas que elle +odeia--sobre os homens e sobre os espelhos. Isto não se dá só em paiz +mussulmano. Sempre que os parizienses invadiam as Tulherias, rasgavam á +ponta de sabre o setim das poltronas... + +Collocou-se a população de Alexandria, por taes excessos, fóra da +humanidade? Os inglezes dizem que sim; eu digo que nós teriamos feito o +mesmo, nós europeus, christãos e podres de civilisação. Se, quando os +allemães estavam bombardeando Pariz--os parizienses vissem no centro da +sua cidade um bairro exclusivamente allemão, compacto, monumental, +luxuoso, erguido pelo dinheiro que o allemão ganhára a explorar a +França,--resistiriam os parizienses, os mais civilisados dos mortaes, a +besuntal-o de petroleo e fazel-o flammejar por uma bella noite de inverno? + +A resposta é facil, lembrando-nos que, quando por seu turno o snr. +Thiers, esse homunculo de estado, bombardeou Pariz, os parizienses +apressaram-se a destruir o palacete do snr. Thiers. + +Foi Arabi que ordenou o incendio de Alexandria? Não, evidentemente. +Arabi não é um patriota selvagem, do typo d'esse Rostopchin que queimou +Moscou: é um fellah fino e sagaz, que sabe que na Europa, na Inglaterra +sobretudo, onde affectamos todos uma sensibilidade humanitaria, nada +desacredita mais que uma fria crueldade. Basta observar a attitude +polida, quasi paternal que elle toma com os prisioneiros inglezes--o +guarda-marinha Chair, por exemplo. + +Quando este official foi levado ao acampamento arabe, Arabi disse-lhe +logo, depois d'um _shake-hands_. + +--Escreva a sua mãe, conte-lhe que está entre mãos leaes, e tire-a +d'inquietações... + +Isto era de certo sincero--mas sobre tudo habil: e uma tal palavra voou +direita ao coração de todas as mães inglezas. Desde os conflictos +d'Alexandria, o empenho d'Arabi tem sido proteger os europeus que ainda +restam nas villas do interior. Os _cadis_ que não evitaram o massacre +dos empregados do caminho de ferro do Delta, foram decapitados. A elle +se deve a tranquillidade do Cairo, onde existe uma enorme massa de +propriedades e riquezas européas. Que ganharia Arabi em destruir esta +prospera cidade egypcia, no começo da campanha e com o seu exercito +intacto? Apenas a fama d'um monstro boçal. + +Á Inglaterra cabe a responsabilidade da catastrophe. As bombas do +almirante talvez, com effeito, não tivessem arrasado mais que alguns +casebres arabes; mas á imprevidencia do governo se deve a ruina +d'Alexandria. + +Desde o meiado de junho, o mais experiente, mais auctorisado dos seus +agentes diplomaticos, o snr. E. Malet, consul geral do Egypto, não +cessou de bradar--que se o bombardeamento era inevitavel, Sir Beauchamp +Seymour devia ter tropas de desembarque, para occupar a cidade, apenas +os fortes fossem destruidos, e impedir assim que, no caso provavel de +Arabi se retirar para o interior, ella ficasse á mercê d'uma plebe +semi-barbara... + +Nada d'isto se fez. + +Sir Beauchamp Seymour bombardeou, arrasou, repelliu virtualmente +d'Alexandria a Arabi, a unica força que continha uma populaça de cem mil +fanaticos--e, depois, ficou a bordo do seu couraçado, vendo +tranquillamente arder, deante de si, uma das mais ricas cidades do +Mediterraneo. + +Por outro lado, a quem aproveitava o incendio? Á Inglaterra. O pretexto +de que os fortes _punham em perigo os couraçados britannicos_, só a +auctorisava, perante os escrupulos da Europa, a destruir os fortes, não +a occupar a cidade. Agora, porém, que ella estava em chammas, abandonada +á anarchia, á pilhagem, ao ataque das hordas beduinas que corriam do +deserto--agora ella tinha o direito--mais, ella tinha o dever!--de +desembarcar e ir salvar de uma total aniquilação tanta riqueza, tão +esplendido centro de commercio!... + +Generosa Inglaterra! E desembarcou logo, aquartelou tropa, plantou +bandeira. Tinha deante de si um monte de ruinas, e em poucos dias foi +dando fórma a uma Alexandria nova, já com feição ingleza e administrada +á ingleza. + +Os incendios foram dominados; as ruas desentulhadas; estabeleceu-se uma +policia terrivel, que executava summariamente os ladrões e os +incendiarios; abasteceu-se a cidade: a alfandega reabriu as portas; em +substituição das lojas destruidas, armaram-se barracões de venda; o +machinismo judicial foi posto em movimento; reparou-se a fabrica do gaz, +a cidade foi reilluminada; os bancos voltaram a funccionar. + +E, como era necessaria uma auctoridade, em nome de quem se reorganisasse +a vida municipal, os inglezes, que apenas estão alli (diziam elles) como +um corpo de policia, foram buscar o Khediva a uma casa dos arredores, +onde elle se refugiara durante o bombardeamento, e installaram-n'o +solemnemente no palacio de Ras-el-tin, palacio meio ardido, onde elle é +uma auctoridade meio morta!... + + +Desde este momento, a situação tornou-se muito definida, muito simples. +Os inglezes possuiam, governavam Alexandria, tão naturalmente como se +ella estivesse situada no condado de Yorkshire; e de fronte +d'Alexandria, n'essa especie de isthmo arenoso que a liga á terra do +Delta, estava Arabi n'um acampamento entrincheirado, governando d'ahi +todo o valle do Nilo e o deserto até o mar. Os inglezes recebiam +incessantes reforços de casa e da India. Arabi chamava á guerra contra +os inglezes todo o povo fellah. A Inglaterra preparava uma invasão. +Arabi organisava uma grande defesa nacional. Nada mais claro. A questão +é entre a Inglaterra, procurando estabelecer um protectorado sobre o +Egypto, arrancar-lhe as cidades estrategicas que dominam o canal, e +Arabi-pachá, um patriota, que quer o Egypto para os egypcios, que receia +a protecção do estrangeiro como a peior desgraça de um paiz fraco, e que +entende que, pelo facto de que Alexandria, Port-Saïd e Suez se acham +desgraçadamente no caminho da India, não é motivo para que se tornem +guarnições inglezas. E dos dous lados, grande enthusiasmo. + +Em Londres, onde acabou a _season_ e começa a monotonia das praias de +banhos, o partir para conquistar o Egypto passou a considerar-se uma +feliz aventura. Se o ministerio da guerra o consentisse--toda a mocidade +de ouro, ou apenas de latão dourado, se alistaria, porque é do mais +requintado _chic_ ir dar cabo de Arabi! + +O duque de Connaugth, um dos filhos de S. M. a Rainha, faz parte da +expedição, e o duque de Teck, seu cunhado, não sendo militar, partiu, +diz-se, como simples empregado do correio. Os officiaes dos regimentos +de guardas, essa pura nata da aristocracia e flôr da finança, tiveram a +ventura de vêr os seus luxuosos regimentos, de ornamentação monarchica, +expedidos para o Egypto; sómente este natural prazer foi em parte +estragado pela severidade do ministerio da guerra, que, como se tratava +de uma campanha e não de um torneio, não consentiu que esses +gentis-homens fôssem seguidos por equipagens, creados de librés, tendas +de luxo e caixas de vinho de Champagne. + +Um d'estes officiaes exprimiu alto a sua indignação, porque o +estado-maior só lhe consente tres cavallos de sella, dous creados de +quarto e cinco malas de bagagem! + +Por outro lado, ao comprido do Nilo toda a população fellah se declarou +por Arabi; como por elle se declararam as classes lettradas, as +mesquitas, os _ulemas_, os _coptas_, os proprios principes parentes do +Khediva. Os _mudirs_, governadores de provincias, pagam-lhe a elle os +impostos. Os _scheiks_ do deserto mandam-lhe a sua cavallaria. + +E este ardor é tanto maior, quanto Arabi-pachá foi de ha muito +prophetisado; já a sua inesperada entrada no governo se considerou um +advento divino; e este rebelde (como outros rebeldes que tão +gloriosamente fizeram o seu caminho na terra e no ceu) é Messias! + +Uma antiga prophecia mussulmana annuncia que no seculo decimo terceiro +da Hegira nascerá á beira de um grande rio um homem de raça vil, por +nome Ahmet, que se revoltará, e restaurará o esplendor do Islam; ora, os +arabes estão no século XIII da Hegira, e Arabi, cujo nome é Ahmet, cuja +origem é _fellahina_, tendo nascido n'uma aldêa á margem do Nilo, +revoltou-se contra o seu califa. Assim, elle reune o duplo prestigio de +um Spartacus e de um Christo. + +Concentrada a questão entre uma poderosa nação invasora e um patriota +que defende o seu solo--a Europa tomou logo a sua tradicional attitude: +isto é, murmurou algumas palavras de branda admoestação, e depois recuou +para longe, a observar como um braço forte sabe usar da sua força, a +estudar como se consuma a espoliação de um fraco. + +Nos ultimos quinze annos a Prussia roubou a Dinamarca, e depois foi pela +Allemanha saqueando reinos e grãos ducados; em seguida, desmembrou a +França; mais tarde a Russia espatifou a Turquia; ha dous annos, +subitamente, a Republica Franceza cahiu sobre Tunis, e empolgou esse +desventurado estado barbaresco. Em cada um d'estes casos a Europa +comportou-se como um coro das operas d'antiga escola, quando membrudo +barytono, ahi pelo quarto acto, erguia o ferro sobre o tenor gentil e +magrizela: o côro adeanta-se, modula uma larga phrase, agita os braços +em cadencia, faz o commentario amargo da acção, brada talvez: +_suspendei_! Depois, afastando-se em grande compostura, deixa á bocca da +scena o tyranno barbudo sondando tranquillamente com a ponta da lamina o +interior do galã... + + +Não fallemos mais na Europa. Não ha, nunca houve _Europa_, no sentido +que esta palavra tem em diplomacia. Ha hoje apenas um grande pinhal de +Azambuja, onde rondam meliantes cobertos de ferro, que se odeiam uns aos +outros, tremem uns dos outros, e, por um accordo tacito, permittem que +cada um por seu turno se adeante--e assalte algum pobre diabo que vegeta +ou trabalha ao canto de seu cerrado. Nas largas e bem traçadas estradas +do Direito Internacional, allumiadas por Ortolan e outros lumes, +rouba-se de carabina alta, e rompem a cada momento brados de povos +assassinados. A Europa, como os campos de corridas em Inglaterra, devia +estar coberta d'estes avisos em lettras gordas: _Beware of +pick-pockets!_ Cautela com os salteadores. + +A pequena propriedade politica tende a acabar. Toda a terra vae em breve +reunir-se nas mãos de quatro ou cinco grandes proprietarios... Hontem, +era Tunis--porque a França necessita proteger a fronteira da Argelia. +Hoje, é o Egypto--porque a Inglaterra precisa assegurar o caminho da +India. Amanhã, será a Hollanda--porque a Allemanha não póde viver sem +colonias. Depois, a Servia--por motivos que a seu tempo a Austria dirá. +Mais tarde, a Rumania--porque a Russia é forte. Depois a Belgica--porque +sim. Depois... + +Este assumpto é lugubre. Voltemos ao valle do Nilo! + + + + +VI + +Situação dos exercitos.--O Nilo, a secca, os areaes.--Os perigos de +um «Jehad».--O septicismo mussulmano.--O mundo ingleza-se.--Filaucias +de John Bull. + + + Postos estão frente a frente + Os dois valorosos campos... + +Esta melancolica chacara que, se bem me recordo, chora as desgraças de +Alcacer-Kibir--serve para pintar graphicamente a situação estrategica de +inglezes e egypcios, desde que se abriu a campanha. + +Para comprehenderem bem, imaginem um grande A. O triangulo interno da +lettra é o Delta--essa terra amada dos deuses, tão rica, que ella, só +por si, outr'ora alimentou o imperio romano; ao alto da lettra, na +ponta, está o Cairo--de sorte que um poeta persa poude dizer gentilmente +que o Delta é um leque verde fechando sobre um botão de diamante, que se +chama o Cairo. Á base da perna direita do A fica Alexandria, e ahi +permanece uma parte do exercito inglez, defendido pelas fortificações de +Ramleh--e tendo deante de si, a tiro de peça, o grande campo +entrincheirado de Arabi-pachá, que se chama Kraf-Daonar, contendo 18 mil +egypcios, enormes parques de artilharia, e fechando a marcha pelo Delta. +A outra parte do exercito inglez, commandada pelo proprio general em +chefe Sir Garnet Wolseley, dirigiu-se por mar á base da perna esquerda +do A, que é, pouco mais ou menos, Ismailia, e d'ahi subiu por essa linha +até Kassassine, onde parou e se fortificou; achando-se igualmente a +pouca distancia, outro enorme campo entrincheirado, onde Arabi tem +quinze mil homens, que se chama Tel-el-Kebir. E estes quatro campos, +postos frente a frente, e observando-se, constituem até hoje a guerra do +Egypto. + +Para chegar, pois, ao Cairo, seu objectivo militar e politico, Sir +Garnet precisa tomar as posições egypcias de Kraf-Daonar, se quizer ir +pelo Delta--e as de Tel-el-Kebir, se tentar avançar pelo deserto. + +Até hoje os quatro campos limitam-se a trocar entre si, em certas +escaramuças, algumas languidas balas. Os jornaes de Londres, +naturalmente, noticiam estes tiroteios de vanguarda com um tremendo +apparato de lettras de palmo, mappas lithographados e largos rufos de +prosa--fazendo maior alarido do que se tivesse sido pelejada de novo a +batalha de Waterloo; mas isto é simplesmente para promover a venda do +numero. + +Os egypcios, entrincheirados, em seus campos contam com poderosos +alliados: do lado do Delta confiam no Nilo, o velho e bondoso Nilo, que +não poderá deixar de ser fiel áquelles que ha seculos nutre, e que, +dentro em pouco, inundando as terras do Delta; e ajudado pelos +engenheiros d'Arabi, que certamente obstruirão os canaes, terá +convertido n'um immenso estendal de lamas inatravessaveis esse caminho +do Cairo, o mais favoravel para os inglezes, pois seria como marchar +n'uma rica e infindavel granja, entre pomares, jardins, frescuras e +celleiros cheios... Do lado do deserto, os egypcios contam com o sol, +com a secca e com a areia. Póde-se imaginar o que soffrerão essas tropas +do frio Norte, marchando em areaes abrasados n'uma reverberação de luz +que estonteia, sob um calor tão torrido, que o _metal dos estribos +cresta os botins_, e tendo para beber só agua barrenta, que é necessario +ferver primeiro! Já as insolações, as dysenterias, a nostalgia, dizimam +os regimentos--e como o commissariado inglez, sempre mau, encontra aqui +difficuldades de transporte, as tropas de S. M. a Rainha Victoria _já +tem soffrido fome_! Ah! custa caro o caminho das Indias! + +Além d'estes alliados que elle possue na natureza, Arabi espera ainda +nas tribus beduinas, e n'essas hordas errantes d'arabes a cavallo que +estão chegando do lado de Tripoli a combater o _cão estrangeiro_, e que, +se diz, constituem um reforço de trinta mil homens... + +Por seu lado, os inglezes contam apenas comsigo. E isto não é pouco. +Como diz a sua celebre canção de guerra--_elles têm os navios, têm o +dinheiro, e têm os homens_. Têm tambem essas magnificas tropas indias, +que riem do sol, da secca, e das areias d'Africa. E isto levou Sir +Garnet a declarar que a campanha estaria finda no dia 15 de setembro. É +verdade que nós estamos a 7 de setembro, e elle, entrincheirado em +Kassassine, tendo deante de si a barreira formidavel de Tel-el-Kebir, +ainda está pedindo reforços. Mas isto prova só que esse raio de guerra, +tendo habitos differentes dos de Cesar, _chegou, viu, e reflectiu_. +Demos-lhe mais um mez; demos-lhe tres largamente; o certo será que ao +fim d'este anno, Arabi, os seus campos, o seu exercito, a sua bella +aspiração a uma nacionalidade egypcia, tudo isso se terá esvaido--como +se esvae uma nuvem n'esse secco céo africano. + +Os inglezes poderão soffrer revezes, perder milhares d'homens, gastar +milhões de libras; mas, tendo uma vez compromettida a honra da sua +bandeira, com um fim d'engrandecimento imperial, não embainharão a +espada antes de ter installado na cidadella do velho Cairo, ao som do +_God save the Queen_, um governador inglez. + +Evidentemente o snr. Gladstone falla apenas de _restabelecer a ordem e +restaurar o Khediva_. Meras locuções diplomaticas. O _Times_, que é o +verbo d'Inglaterra, esse falla, sem rebuço, em _protectorado_. E ha +muitos inglezes, ainda menos reservados que o _Times_, que dizem redonda +e seccamente--_conquista_. + +Mesmo quando o snr. Gladstone, que é a seu modo um democrata dentro dos +limites do Evangelho, e o seu illustre collega Lord Granville, que é um +jurista e um diplomata, quizessem, em respeito ao liberalismo, á Europa, +ao direito internacional e a outras cousas vagas, deixar o Egypto +reorganisar-se a si mesmo--sahindo elles de lá com as mãos vasias, +depois de terem supprimido Arabi e o seu turbulento partido--a +Inglaterra inteira, em massa, protestaria contra este philosophico +desinteresse... + +Ha alguem ahi assaz ingenuo para suppôr que John Bull, essa torre de +senso pratico, consentiria em que se lhe dizime o exercito, em que se +lhe gaste o dinheiro como elle gasta a agua das fontes, em que se lhe +augmente o _income-tax_--só para que o Khediva, esse amavel moço, +continue a fumar o _narghilé_ do poder sob as sombras dos jardins de +Choubra? John Bull não ficará satisfeito senão com este resultado +macisso e duradouro--um _Egypto inglez_, tendo dentro do seu territorio, +como um corredor de casa particular, o canal de Suez, caminho das +Indias. Um ministerio que, depois de ter enterrado nos areaes da Africa +milhões de libras e milhares de vidas, não lhe der isto--receberá no +mesmo instante, na parte posterior da sua individualidade, o bico da +bota de John. + +Mas se Arabi, derrotado, conseguir levar o Scherife de Méca a proclamar +contra a Inglaterra um _jehad_--que é uma guerra santa, uma crusada, um +levantamento em massa do mundo mussulmano? + +Bons espiritos, em Inglaterra, dizem ser este um grande perigo--pois que +só na India ha cincoenta milhões de mahometanos. Eu não creio, porém, +que haja aqui motivo para John Bull empallidecer. E lamento-o! Porque é +d'um bello pittoresco essa idéa d'um _jehad_ com o seu ceremonial--o +Scherife de Méca desenrolando o estandarte verde de Mahomet, os doutores +do Islam assignando todos o _fetva_ fatal, e logo, de cada canto da Asia +e d'Africa, a torrente dos crentes precipitando-se em nome de Allah! +Bello motivo d'ode--a que não corresponde nenhuma realidade... + +Em primeiro logar, nunca se fez! O crescente tem sido muitas vezes +humilhado pela cruz, o Islam tem recebido na face a mão da Europa +christã, o Califa tem fallado repetidamente em proclamar um _jehad_--e +todavia o estandarte do Propheta continuou enrolado nos sacrarios de +Méca. E a minha opinião é que se elle fôsse um dia desenrolado--haveria +apenas um pedaço de panno verde mais, fluctuando ao vento do ceu. + +E querem que lhes diga porque? Porque penso que os mussulmanos estão a +esta hora tão scepticos como nós outros, os christãos. Nas areias do +deserto, como nas nossas praças allumiadas a gaz--já não será facil +encontrar mil homens de boa vontade, que peguem em armas em nome do seu +Deus. + +De certo todo o bom mussulmano, a certas horas do dia, se orienta para o +lado de Méca e se prostra nas reverencias rituaes: pura questão de +educação, de boas maneiras, de habito, como nós outros tiramos o chapéu +ao passar por um calvario de aldeia. Ou então, superstição vaga, vago +terror nervoso, como o de certos philosophos e positivistas das minhas +relações, que sempre, ao saltar da cama, fazem o signal da cruz. + +Dentro do Alcorão vê-se já o caso melancolico de uma lei divina ir +cahindo em desuso. O Sultão recebe a jantar os embaixadores, e bebe com +elles _champagne_: a policia do Cairo prende os santos _derviches_ +vagabundos, e já não é respeitado o jejum do Ramazan. + +Como o nosso Evangelho, a palavra de Mahomet vae-se tornando objecto de +poesia, de commentario, de controversia. Ha Renans no Islam; e o verbo +divino, uma vez analysado, deixa de inspirar a fé que leva á morte. + +O mundo mussulmano está no seu seculo decimo-terceiro, na sua plena meia +edade, e certamente ha muito beduino sob a tenda, tão crente, tão +penetrado de Mahomet, como aquelles corações simples, que, ainda ha +pouco no deserto dos nossos claustros, choravam ao ler a paixão de +Jesus; mas não creio que mesmo esses patriarchas deixassem os seus +oasis, os seus rebanhos, os seus harens, para virem gratuitamente, sem +outro pret a não ser o sorriso das houris nos jardins do Paraizo, +supportar o fogo dos canhões Krupp. E emquanto ás classes cultas de +Constantinopla, do Cairo, de Smyrna, de Tunis, essas acreditam tanto na +promessa das houris, como nós outros, aqui em Regent-Street, nas palmas +verdes da Bemaventurança e no côro dos Serafins... + +Por todo o universo a religião desapparece das almas; e apenas lá fica +essa vaga religiosidade, feita em parte do abalo que deu ao nosso +coração uma tão longa sujeição ao sobrenatural, em parte do confuso +terror que impera n'este grande universo que nos cerca, tão simples e +tão mal comprehendido. N'este estado negativo, de passividade na duvida, +não se gera facilmente um impulso d'acção forte. Um _jehad_ no Islam é +tão impraticavel--como uma cruzada no Christianismo. Pedro Ermita hoje +iria acabar na policia correcional, por perturbador da ordem publica e +das relações internacionaes; e os fanaticos que, ainda hoje, ás portas +das mesquitas do Cairo, bradam contra o _touriste_ estrangeiro as +injurias aconselhadas pela boa doutrina, são immediatamente levados para +a enxovia, por _fazerem alarido nas ruas_! + +Mahomet, nas suas mesquitas, Christo, nas nossas capellas, vão +singularmente envelhecendo; o nosso Messias vae-se cobrindo pouco a +pouco do pó que levanta o forte arado da razão, lavrando um mundo novo; +e o propheta do Islam, tendo perdido a força da sua unidade, subdividido +em mil prophetas menores que presidem a mil seitas differentes, mal póde +resistir á lenta avançada da civilisação occidental. E com Christo e +Mahomet, que eram os principios militantes e vivos das suas religiões, +desapparece o que n'essas religiões havia de vivo e de militante. Resta +Deus, resta Allah. Sublimes abstracções, incapazes de inspirar amor ou +heroismo. + +O que mais faz amar a Divindade é a quantidade de humanidade que ella +encerra. Clovis batia-se por Jesus, que tinha um peito de homem como o +d'elle, e n'esse peito humano cinco chagas abertas; Soliman morreria +feliz por Mahomet, que era como elle um guerreiro, e como elle amava a +belleza. + +Mas quem se vae bater por Deus, por Allah, essas entidades tão vastas +que enchem todo o ceu, e tão pequenas que não bastam a satisfazer o +nosso coração, que nos são subalternas, porque são feitas á nossa +imagem, e são no fundo a nossa propria alma alargada até ao infinito com +todas as suas fraquezas?! + +De resto, é possivel que eu esteja aqui attribuindo a fortes corações de +Meca e do deserto os scepticismos litterarios de _Pall-Mall_ e do +_Boulevard de la Madeleine_. Que sabemos nós do que se passa dentro do +Islam? Tão pouco como os lettrados da mesquita d'El-Azhar sabem o que +por cá vae dentro do nosso confuso catholicismo. + + +Mas, mesmo que se effectuasse um _jehad_, seria apenas motivo para a +Inglaterra gastar mais alguns milhões e sacrificar mais alguns +regimentos. Nem o Alcorão, nem o famoso estandarte verde, nem o proprio +Mahomet, que voltasse á terra a desfraldal-o, impediriam que John Bull +se estabeleça no Egypto... + +Já lá está, nunca mais de lá sahirá! + +Estão em toda a parte, esses inglezes! O seculo XIX vae findando, e tudo +em torno de nós parece monotono e sombrio--porque o mundo se vae +tornando inglez. Por mais desconhecida e inedita nos mappas que seja a +aldeola onde se penetre, por mais perdido que se ache n'um obscuro +recanto do Universo o regato ao longo do qual se caminhe--encontra-se +sempre um inglez, um vestigio de vida ingleza! + +Sempre um inglez! Inteiramente inglez, tal qual como sahiu da +Inglaterra, impermeavel ás civilisações alheias, atravessando religiões, +habitos, artes culinarias differentes, sem que se modifique n'um só +ponto, n'uma só prega, n'uma só linha o seu prototypo britannico. +Hirtos, escarpados, talhados a pique, como as suas costas do mar, ahi +vão querendo encontrar por toda a parte o que deixaram em Regent-Street, +e esperando Pale-Ale e _roast-beef_ no deserto da Petrea; vestindo no +alto dos montes sobrecasaca preta ao domingo, em respeito á egreja +protestante, e escandalisados que os indigenas não façam o mesmo; +recebendo nos confins do mundo o seu _Times_ ou o seu _Standard_, e +formando a sua opinião, não pelo que vêm ou ouvem ao redor de si, mas +pelo artigo escripto em Londres; impellindo sempre os passos para a +frente, mas com a alma voltada sempre para traz, para o _home_; +abominando tudo o que não é inglez, e pensando que as outras raças só +podem ser felizes possuindo as instituições, os habitos, as maneiras que +os fazem a elles felizes na sua ilha do Norte! + +Estranha gente, para quem é fóra de duvida que ninguem póde ser moral +sem ler a Biblia, ser forte sem jogar o _cricket_, e ser _gentleman_ sem +ser inglez! + +E é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se +_desinglezam_. Ha raças fluidas, como a franceza, a allemã, que, sem +perderem os seus caracteres intrinsecos, tomam ao menos exteriormente a +forma da civilisação que momentaneamente as contêm. O francez no +interior da Africa adora sem repugnancia o _manipanço_, e na China usa +rabicho. O inglez cahe sobre as idéas e as maneiras dos outros, como uma +massa de granito na agua: e alli fica pesando, com a sua Biblia, os seus +_clubs_, os seus _sports_, os seus prejuizos, a sua etiqueta, o seu +egoismo--tornando-se na circulação da vida alheia um encommodativo tropeço. + +É por isso que, nos paizes onde vive ha seculos, é elle ainda o +_estrangeiro_. + +Em toda a parte onde domine e impere, todo o seu esforço consiste em +reduzir as civilisações estranhas ao typo da sua civilisação +anglo-saxonia. O mal não é grande quando elles operam sobre a Zululandia +e sobre a Cafraria, n'essas vastidões da Terra Negra, onde o selvagem e +a sua cubata mal se distinguem das hervas e das rochas, e são meros +accessorios da paizagem: ahi encontram apenas uma materia bruta, onde +nenhuma anterior fórma de belleza original se estraga, quando elles a +refundem para a fazer á sua imagem. Vestir o desventurado rei negro +Cetewayo, como elles agora fizeram, de coronel de infanteria, obrigar os +chefes dos Basutos a saber de cór os nomes da familia real ingleza, são +talvez actos de feroz despotismo, mas não deterioram nenhuma primitiva +originalidade de linha ou de idéa. Para Cetewayo, que andava nú, uma +fardeta, mesmo de infantaria, não faz senão vestil-o; e é indifferente +que dentro do craneo dos Basutos haja só formulas de invocação ao +_manipanço_, ou tambem nomes de principes da casa d'Hanover. + +Mas quando elles trabalham sobre antigas civilisações como a da India, +onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em que uma +grande raça pôz toda a originalidade do seu genio--então a politica +anglo-saxonia repete pouco mais ou menos o attentado sacrilego de quem +desmantellasse um templo buddhico, bello como um sonho de Buddha, para +lhe dar na sua reconstrução as linhas hediondas do _Stock Exchange_ de +Londres; ou ainda de quem se fôsse ao marmore divino da Venus de Milo, e +tentasse, á força bruta de martello e cinzel, dar-lhe o feitio, as +suissas e a sobrecasaca de lord Palmerston! A expansão do inglez para o +Oriente, seu objectivo imperial, seria toleravel, mesmo aos nervos de um +artista--se elle se contentasse em levar para lá os seus tecidos, as +suas machinas, os seus telegraphos, os seus railways, deixando depois +que essas raças usassem esse colossal material de civilisação em se +desenvolverem no sentido do seu genio e do seu temperamento. Que por +todos os modos se forneça á santa cidade de Hydrabad gazometros e +illuminação--mas, por Deus! que se não mettam á força bicos de gaz +dentro dos seus templos, se isso offende os seus ritos e repugna ao seu +gosto! Que a India, por exemplo, seja coberta de caminhos de ferro, +fornecidos pelos industriaes de Northumberland e pagos pelo +indio--excellente! Mas ao menos que as aldêas onde elles passam, essas +aldêas que os mesmos inglezes descrevem como pequenos paraizos de paz, +de trabalhos simples, de costumes doces, de frugalidade, de frescura, de +belleza moral, não sejam tornadas tão tristes como as tristes parochias +de Yorkshire, introduzindo-se logo lá o _policeman_, o deposito de +cerveja, a capella protestante de tijolo, o livreiro de Biblias, o +vendedor de _gin_, a fumaraça de uma fabrica, a prostituição e a +_workhouse_!... + +Mas deixemos isto. É facil maldizer da Inglaterra. Basta abrir os livros +dos seus grandes homens, desde Thackeray, o artista, que com um tão frio +rancor lhe fez a satyra sangrenta, até Carlisle, o philosopho, que +passou a existencia a fulminal-a com uma tumultuosa colera de propheta... + +Da Inglaterra póde-se dizer que--ao contrario da generosa França--as +suas virtudes só a ella aproveitam e os seus vicios contaminam o mundo. + +É á Inglaterra que se deve o egoismo crescente que nos vae petrificando +o coração--esse egoismo tão particularmente inglez, que faz com que em +Hyde-Park, no seu centro de luxo, trezentas pessoas, em torno de um +lago, vejam uma pobre criança afogar-se, sem que nenhuma se encommode a +tirar o charuto da bocca para lhe estender uma taboa! É á Inglaterra que +devemos esta crescente hypocrisia que invade o mundo, e que faz com que +em Londres, nos cartazes que annunciam as peças de Sardou ou Dumas, se +ajunte esta estupenda declaração: _adaptada ás justas exigencias da +moralidade ingleza_;--emquanto que, na rua, por baixo d'esses mesmos +cartazes, rola, sem cessar, a mais vil torrente que o mundo viu de +bebados e de prostitutas! + +Mas deixemos as maculas da Inglaterra: a lista é longa;--quero só +alludir a um outro abominavel defeito que ella sempre teve, e que agora +desenvolveu em proporções intoleraveis:--a sua espantosa filaucia, a sua +ruidosa basofia, o seu tremendo ar _mata-sete_! + +É sobretudo n'este momento, desde o começo da guerra do Egypto, que os +que, como eu, amam a Inglaterra, soffrem de lhe vêr estes extravagantes +modos de valentão de romance picaresco. Os telegrammas que os +correspondentes dos jornaes enviam das operações da guerra, sobretudo os +commentarios dos proprios jornaes, seriam lamentavelmente grotescos, se +não fossem odiosamente impertinentes. Os francezes (que não são +modestos) puzeram trinta mil allemães fóra de combate na batalha de +Gravellote, e todavia não fizeram a decima parte do alarido, da +gloriola, do espalhafato com que os inglezes celebravam a escaramuça de +Ramleh, onde os egypcios perderam _quarenta e tantos homens_! Parece +faltar-lhes o sentimento da proporção das cousas. Um correspondente do +_Daily News_ annunciava, ha dias, como um feito heroico, digno de ir á +posteridade, o terem alguns soldados em marcha dado um pedaço de pão de +munição a um arabe que morria de fome á beira de um caminho! Era espanto +de encontrar dentro de peitos inglezes um resto de piedade humana? Não. +Queria provar que nenhum exercito no mundo faz a guerra com uma tão +profunda clemencia! + +Ou celebrem o aspecto physico dos regimentos ou a afinação das bandas de +musica, a pontaria dos artilheiros ou a fórma dos capacetes, os talentos +do Estado Maior ou a excellencia da bolacha de munição, vem logo em +lettras gordas, a phrase tola--_o que ha de melhor no mundo_! + +Faz uma vedeta ingleza fogo sobre uma vedeta egypcia e depois recolhe á +trincheira? Logo este facto é declarado _tão nobre pelo heroismo como +habil pela prudencia_! + +Os córos que se entoam em torno do general Wolseley, pertencem á pura +farça. + +Eu quero crêr que elle é um grande homem--ainda que por ora nada mais +fez que debandar uma pobre horda de negros armados de flechas que +vegetavam junto a não sei que rio d'Africa; mas que se póde pensar +quando se lê, no _World_ e em outros papeis, que elle é o _maior general +do seculo_? Onde vive um certo Moltke? Quando existiu um chamado Napoleão? + +O melhor, mais bem feito, mais importante jornal de Londres, a _Pall +Mall Gazette_, envergonhado de tudo isto, explica, com a sua usual +habilidade, que estas fanfarronadas não são destinadas á Europa, mas ao +Egypto «para levantar o moral das tropas!» Têm pois esses regimentos em +campanha nos areaes da Africa, diante d'um inimigo formidavel, vagares +para ler as gazetas? Recebe cada soldado raso, com o seu rancho da +manhã, um numero do _Times_? A respeitavel _Pall Mall_ blaguêa. Para +animar, recompensar as tropas, lá estão as proclamações dos generaes. +Ahi, sim, a emphase deve correr em torrentes: e quando um desgraçado +homem depois de ter marchado todo um dia, com fome, com sêde, com os pés +em sangue na areia e um ceu de fogo nas costas, volta á noite ao +acampamento, estendido n'uma maca com duas balas no corpo--não é muito +que se lhe diga que elle é o primeiro soldado do mundo! + +É também «para levantar o moral das tropas» que o _Times_ e o +_Spectator_, fallam, de mão na cinta, e suissa ao vento, de «impor á +Europa a vontade da Inglaterra?» + +Não; é mera fanfarronada. + +E não é só nos jornaes. Entre-se n'um club, n'um restaurante, +converse-se com um conhecido, entre duas chavenas de chá--e vem logo a +mesma jactancia de roncador: «Vamos dar cabo de tudo. Temos dinheiro a +rodo. Cá, ao pulso inglez, nada resiste... E se o mundo respinga, +quebram-se-lhe as ventas!...» + +A Inglaterra perdeu as suas boas maneiras. + +É forte, de certo--mas falla da sua força com a brutalidade de um +Hercules de feira que esbogalha os olhos e mostra os musculos; é rica, +de certo--mas falla do seu dinheiro com a grosseria d'um ricaço que +abarrota fazendo tinir as libras na algibeira... + +Onde está a famosa _self-possession_ da Inglaterra, a sua tranquilla +dignidade? John Bull tornou-se Ferrabraz. Ora uma muito velha banalidade +ensina-nos que não ha verdadeira força sem serenidade e que sem modestia +não ha verdadeira grandeza. + + + + +X + +O BRASIL E PORTUGAL + + +Os jornaes inglezes d'esta semana têm-se occupado prolixamente do +Brazil. Um correspondente do _Times_, encarregado por esta potencia de +ir fazer pelo continente americano uma «vistoria social» definitiva +deu-nos agora, em artigos repletos e massiços, o resultado do seu anno +de jornadas e de estudos. + +O ultimo artigo é dedicado ao Brazil: eu, que nunca visitei o imperio, +não tenho naturalmente auctoridade para apreciar essas revelações +(porque o correspondente toma a attitude de um revelador) sobre a +religião, a cultura, os productos, o commercio, a emigração, o caracter +nacional, o nivel de educação, a situação dos portuguezes, a dynastia, a +Constituição, a republica, _et de omni re braziliensi_ e não posso +transcrevel-as tambem porque ellas enchem, no _Times_, vasto como é, +mais espaço que o proprio Brazil occupa no territorio da America do Sul. +Esse artigo excitou o interesse e os commentarios da _Pall-Mall Gazette_ +e de outros jornaes, e ahi se rompeu a fallar do Brazil com sympathia, +com curiosidade, com essas admirações ingenuas pela sua rutilante flora, +esse pasmo quasi assustado pela sua vastidão, que decerto tiveram nossos +avós, quando o bom Pedro Alvares Cabral, largando a procurar o Preste +João, voltou com a rara nova das terras entrevistas do Brazil... + +Devendo mostrar-lhes a opinião presente da Inglaterra sobre o Brazil, +d'esses artigos floridos, escolho o do _Times_, annotando e glosando o +trabalho do seu enviado. (É d'este modo respeitoso que se deve fallar +sempre de um correspondente do _Times_). + +Começa, pois, o grande jornal da _City_ por dizer--«que a descripção do +vasto Imperio do Brazil com que foi fechada a serie das _cartas sobre o +continente americano_, deve ter feito transbordar o sentimento de +admiração pelo explendor, etc...» Seguem-se aqui naturalmente vinte +linhas de extasi. É, em prosa, a aria do 4.º acto da _Africana_: Vasco +da Gama, de olhos humidos e coração suspenso no enlevo de tanta flôr +prodigiosa, de tão raros cantos d'aves raras... + +Depois vem o espanto classico pela extensão do Imperio: «Só o simples +tamanho de um tal dominio (exclama) na mão de uma diminuta parcella da +humanidade é já em si um facto sufficientemente impressionador!» + +E todavia esta admiração do _Times_ pelo gigante é misturada a um certo +patrocinio familiar, de ser superior,--que é a attitude ordinaria da +Inglaterra e da imprensa ingleza para com as nações que não têm duzentos +couraçados, um Shakspeare, um _Bank of England_, e a instituição do +_roast-beef_... N'este caso do Brazil, o tom de protecção é raiado de +sympathia... + +Depois o artigo rompe de novo n'um hymno: «A Natureza no Brazil não +necessita do auxilio do homem para se encher de abundancias e se cobrir +de adornos!... Para seu proprio prazer planta, ella mesma, luxuriantes +parques! E não ha recanto selvagem que não faça envergonhar as mais +ricas estufas da Europa...» Isto é decerto exacto: mas o _Times_, +receiando que os seus leitores viessem a suppor que a natureza do Brazil +está de tal modo repleta, tão indigestamente attestada, que não +permitte, que se recusa com furor a receber no seu ventre empanturrado +uma semente mais sequer--apressa-se a tranquillisal-os: «Mas (diz este +sabio jornal judiciosamente) ainda que a Natureza dispense bem todo o +trabalho do homem, que outros solos menos generosos requerem para se +abrir em flôres e fructos,--_não o repelle todavia_». Isto socega os +nossos animos: ficamos assim certos que nenhum fazendeiro, nos distantes +cafesaes, ao atirar á terra, a _terra mãe_, com a enxadada fecundadora a +semente inicial, corre o risco atroz de ser por ella atacado á pedrada +ou a golpes de bananeira... Nem outra cousa se podia esperar da doce e +pacifica Ceres. + +Tendo assim floreado, de penacho oratorio ao vento, o _Times_ investe +com as ideias praticas. E começa por declarar, que, segundo o copioso +relatorio do seu correspondente, «o que surprehende na America do Sul +(se exceptuarmos aquella tira de terra que constitui a Republica do +Chili, e alguns bocados da costa do enorme imperio do Brazil) é a +grandeza de tais recursos comparada á desapontadora magreza dos +resultados». Seria facil responder com a escassez da população. O +_Times_ de resto sabe-o bem, porque nos falla logo d'essa população nas +republicas hespanholas, mas não a acha escassa; o que a acha é torpe!... +A pintura que nos dá do Perú, Bolivia, Equador e consortes é ferina e +negra: «Essa gente vive n'uma indolencia vil, que não é incompativel com +muita arrogancia e muita exagerada vaidade! D'esse torpor só rompe, por +accesso de frenesi politico. Todo o trabalho ai emprehendido para fazer +produzir a natureza é dos estrangeiros: os naturaes limitam-se a +invejal-os, a detestal-os por os verem utilisar opportunidades que elles +mesmo não se quizeram baixar a usar!» Isto é cruel: não sei se é justo: +mas entre estas linhas palpita todo o rancor de um inglez possuidor de +maus titulos peruanos. «E se o nosso correspondente (continua o artigo) +offerece de alto o Brazil á nossa admiração, não é em absoluto, é +relativamente, em contraste com os paizes que quasi o egualam em +vantagens materiaes, como o Perú e o Rio da Prata, mas onde a discordia +intestina devora e destroe todo o progresso nascido da actividade +estrangeira. O Brazil é portuguez e não hespanhol: e isto explica tudo. +O seu sangue europeu vem d'aquella parte da Peninsula Iberica em que a +tradicção é a da liberdade triumphante, e nunca supprimida.» O _Times_ +aqui abandona-se com excesso ás exigencias rythmicas da phrase: parece +imaginar que desde a batalha de Ourique temos vindo caminhando n'uma +larga e luminosa estrada de ininterrompida democracia!... + +Mas, emfim, continúa: «Quando o Brazil quebrou os seus laços coloniaes +não tinha a esquecer feias memorias de tyrannia e rapacidade; nem teve +de supprimir genericamente todos os vestigios de um máu passado.» Com +effeito; pobres de nós! nunca fômos de certo para o Brazil senão amos +amaveis e timoratos. + +Estavamos para com elle n'aquella melancolica situação de um velho +fidalgo, solteirão arrasado, desdentado e tropego, que treme e se baba +deante de uma governanta bonita e forte. Nós verdadeiramente é que +eramos a colonia: e era com atrozes sustos do coração que, entre uma +_Salvè Rainha_ e um _Lausperenne_, estendiamos para lá a mão á esmola... + +O _Times_ prossegue: «Ainda que independente, o Brazil ficou portuguez +de nacionalidade e semi-europeu de espirito. Pelo simples facto de se +sentir portuguez, o povo brazileiro teve, e conserva, o instincto do +grande dever que lhe incumbe: tirar o partido mais nobre da sua nobre +herança... Sejam quaes tenham sido os erros de Portugal, não se póde +dizer que se tenha jámais contentado com o mero numero das suas +possessões, sem curar de lhes extrahir os proventos...» O _Times_ aqui +dormita, como o secular Homero. + +E justamente o que nos preoccupa, o que nos agrada, o que nos consola é +contemplar _simplesmente o numero_ das nossas possessões: pôr-lhes o +dedo em cima, aqui e além, no mappa; dizer com voz de papo, _ore +rotundo_: «Temos oito; temos nove: somos uma nação colonial, somos um +povo maritimo!...» Emquanto a _extrahir-lhes os proventos_, na phrase +judiciosa do _Times_, d'esses detalhes miseraveis não cura o pretor, nem +os netos de Affonso de Albuquerque!... Mas prossegue o _Times_: «O +imperio colonial de Portugal talvez tenha sido outr'ora caracterisado +por desfortuna--quasi nunca por estagnação.» _Talvez_ é bom: com o +imperio do Oriente no nosso passado, que é um dos mais feios monumentos +de ignominia de todas as edades... Continuemos. + +«Da origem d'onde o Brazil deriva a sua actividade, deriva tambem (o que +não é menos importante) o respeito pela opinião da Europa. O vadio das +ruas de Lima, de Caracas ou de Buenos-Ayres nutre um soberano desprezo +pelos juizos que a Europa possa formar das suas tragi-comedias +politicas... Não tem consciencia de cousa alguma, a não ser do seu +_sangue castelhano_... Sente decerto o inconveniente de ser expulso do +credito e das bolsas da Europa... Mas avalia esta circumstancia apenas +pelos embaraços momentaneos que ella lhe traz. O financeiro brazileiro, +porem, esse presta uma tão respeitosa attenção ao _temperamento_ das +bolsas de Pariz e Londres, como ao da mesma praça do Rio de Janeiro...» + +O _Times_ vê n'este symptoma a consideração que o Brazil tem pela +opinião da Europa. + +Mas, onde o _Times_ se engana é quando pretende que o Brazil deve ao seu +sangue portuguez esta bella qualidade de obedecer aos juizos do mundo +civilisado. Não ha paiz no universo, onde se despreze mais, creio eu, o +julgamento da Europa, que em Portugal: n'esse ponto somos como o vadio +das ruas de Caracas, que o _Times_ tão pittorescamente nos apresenta: +porque eu chamo desdenhar a opinião da Europa não fazer nada para lhe +merecer o respeito. Com effeito, o juizo que de Badajoz para cá se faz +de Portugal, não nos é favoravel, nós sabemol-o bem--e não nos +inquietamos! Não fallo aqui de Portugal como Estado politico. Sob esse +aspecto gosamos uma razoavel veneração. Com effeito, nós não trazemos á +Europa complicações importunas; mantemos dentro da fronteira uma ordem +sufficiente: a nossa administração é correctamente liberal; satisfazemos +com honra os nossos compromissos financeiros. + +Somos o que se póde dizer um _povo de bem_, um _povo bôa pessoa_. E a +nação vista de fóra e de longe, tem aquelle ar honesto de uma pacata +casa de provincia, silenciosa e caiada, onde se presente uma familia +commedida, temente a Deus, de bem com o regedor, e com as economias +dentro de uma meia... A Europa reconhece isto: e todavia olha para nós +com um desdem manifesto. Porque? Porque nos considera uma nação de +mediocres: digamos francamente a dura palavra--porque nos considera uma +_raça de estupidos_. Este mesmo _Times_, este oraculo augusto, já +escreveu que Portugal era, intellectualmente, tão caduco, tão casmurro, +tão fossil, que se tornára um paiz bom para se lhe passar muito ao +largo, e _atirar-lhe pedras_ (textual). + + +O _Daily Telegraph_ já discutiu em artigo de fundo este problema: Se +seria possivel sondar a espessura da ignorancia luzitana! Taes +observações, além de descortezes, são decerto perversas. Mas a verdade é +que n'uma epocha tão intellectual, tão critica, tão scientifica como a +nossa, não se ganha a admiração universal, ou se seja nação ou +individuo, só com ter proposito nas ruas, pagar lealmente ao padeiro, e +obedecer, de fronte curva, aos editaes do governo civil. São qualidades +excellentes, mas insufficientes. Requer-se mais: requer-se a forte +cultura, a fecunda elevação de espirito, a fina educação do gosto, a +base scientifica e a ponta de ideal que em França, na Inglaterra, na +Allemanha, inspiram na ordem intellectual a triumphante marcha para a +frente; e nas nações de faculdades menos creadoras, na pequena Hollanda +ou na pequena Suecia, produzem esse conjunto eminente de sabias +instituições que são, na ordem social, a realização das fórmas +superiores do pensamento. + +Dir-me-hão que eu sou absurdo ao ponto de querer que haja um Dante em +cada parochia, e de exigir que os Voltaires nasçam com a profusão dos +tortulhos. Bom Deus, não! Eu não reclamo que o paiz escreva livros, ou +que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão +escriptos, e que se interessasse pelas artes que já estão creadas. A sua +esterilidade assusta-me menos que o seu indifferentismo. O doloroso +espectaculo é vêl-o jazer no marasmo, sem vida intellectual, alheio a +toda a ideia nova, hostil a toda a originalidade, crasso e mazorro, +amuado ao seu canto, com os pés ao sol, o cigarro nos dedos e a bocca ás +moscas... É isto o que punge. + +E o curioso é que o paiz tem a consciencia muito nitida d'este torpor +mortal, e do descredito universal que elle lhe attrahe. Para fazer +vibrar a fibra nacional, por occasião do centenario de Camões, o grito +que se utilizou foi este:--Mostremos ao mundo que ainda vivemos! que +ainda temos uma litteratura! + +E o paiz sentiu asperamente a necessidade de affirmar alto, á Europa, +que ainda lhe restava um vago clarão dentro do craneo. E o que fez? +Encheu as varandas de bandeirolas, e rebentou de jubilo a pelle dos +tambores. Feito o que--estendeu-se de ventre ao sol, cobriu a face com o +lenço de rapé, e recomeçou a sésta eterna. D'onde eu concluo que +Portugal, recusando-se ao menor passo nas lettras e na sciencia para +merecer o respeito da Europa intelligente, mostra, á maneira do vadio de +Caracas, o despreso mais soberano pelas opiniões da civilização. Se o +Brazil, pois, tem essa qualidade eminente de se interessar pelo que diz +o mundo culto, deve-o ás excellencias da sua natureza, de modo nenhum ao +seu sangue portuguez: como portuguez, o que era logico que fizesse era +voltar as costas á Europa, puxando mais para as orelhas o cabeção do +capote... + +Mas, retrocedendo ao artigo do _Times_, a conclusão da sua primeira +parte é que «em riqueza e aptidões o Brazil leva gloriosamente a palma +ás outras nacionalidades da America do Sul». Todavia, o _Times_ observa +no Brazil circumstancias desconsoladoras: «Doze milhões de homens estão +perdidos n'um estado maior que toda a Europa: a receita publica, que é +de doze milhões de libras esterlinas, é muitos milhões inferior á da +Hollanda e á da Belgica: com uma linha de costa de quatro mil milhas de +comprimento, e com pontos de uma largura de duas mil e seiscentas +milhas, o Brazil exporta em valor de generos a quarta parte menos que o +diminuto reino da Belgica.» + +O _Times_, todavia, tem a generosidade de admittir que nem a densidade +de população, nem o total das receitas, nem a cifra das exportações +constituem a felicidade de um povo e a sua grandeza moral. A Suissa, que +tem dois milhões de habitantes e justamente os mesmos dois milhões de +libras de receita, vive em condições de prosperidade, de liberdade, de +civilisação, de intellectualidade bem superiores á tenebrosa Russia com +os seus oitenta milhões de libras de receita, e os mesmos oitenta +milhões em homens. «Todavia, continúa o _Times_, se a escassez da +população, de rendimento e de commercio, não collocam o Brazil n'um +estado de adversidade, são uma prova que faltam a esse povo algumas das +qualidades que fazem a grandeza das nações. Que os colonisadores +portuguezes, apenas apoiados pelo pequeno throno portuguez, tivessem +feito da metade do novo mundo, que lhes concedeu o papa Alexandre, mais +que os colonisadores hespanhoes que tiravam a sua força da grande nação +de Hespanha, é uma cousa que prova a favor do sangue portuguez comparado +com o sangue castelhano, andaluz ou aragonez. Mas que as conquistas +feitas no Brazil á natureza sejam tão insignificantes, e tão vastos os +espaços que permanecem não só inconquistados mas desamparados--indica +que são analogos os defeitos da colonia hespanhola e da colonia +portugueza...» + +O resto do artigo é mais serio; e eu devo transcrevel-o sem interrupção. +«O Brazileiro não é, como o peruano ou boliviano, altivo de mais, ou +preguiçoso de mais para se dignar reparar nos meios de riqueza e de +grandeza tão prodigamente espalhados em torno de si. Não; o brazileiro +tem energia sufficiente para ambicionar e para calcular. A sua attenção +está fixa nas ferteis regiões do interior. Desejaria bem vêr a rede dos +seus rios navegaveis cobertos de barcos e vapores. Succede mesmo que, +nos pontos mais ricos da costa, o habitante queixa-se que uma excessiva +porção dos impostos com que é sobrecarregado vae ser gasta em collossaes +trabalhos emprehendidos em vantagem de remotas e incultas regiões que +nunca ou, ao menos, só d'aqui a longos annos, poderão aproveitar com +elles. Mas, em todo o caso, o Brazil sente em si força sufficiente para +dar ao seu vasto territorio os beneficios de uma sabia administração.» + +O _Times_ aqui tem um pequeno periodo, alludindo á nobre ambição que têm +os brazileiros de fazer tudo por si mesmos, vendo com aborrecimento as +grandes obras entregues á pericia estrangeira, e preferindo os esforços +da sciencia e do talento nacionaes, ainda mesmo quando elles falham, +custando ao paiz milhões perdidos... Depois prossegue: + +«Mas emquanto o brazileiro se mostra assim, em theorias politicas e +administrativas, ancioso por fomentar elle mesmo, por elle mesmo fazer +todas as obras dos seus cinco milhões de milhas quadradas--ás suas mãos +repugna o agarrar o cabo da enxada, ou tomar a rabiça do arado, que é +justamente o serviço que a natureza reclama d'elle. N'um continente, que +depois de tres seculos e meio continúa a ser um torrão novo, a grandeza +das Republicas ou dos Imperios depende exclusivamente do trabalho manual. + +«Italianos, allemães, negros, têm sido, estão sendo importados para +fazerem o trabalho duro que repugna aos senhores do solo. Mas, +inaclimatados, em certos districtos, elles nunca poderiam labutar como +os naturaes dos tropicos. Nem mesmo nas provincias mais temperadas do +Imperio jámais os immigrantes trabalharão resolutamente--até que o +exemplo lhes seja dado pela população indigena, senhora da terra. O +brazileiro ou tem de trabalhar por suas mãos, ou então largar a rica +herança que é incompetente para administrar. Á maneira que o tempo se +adianta, vae-se tornando uma positiva certeza que todos os grandes +recursos da America do Sul entrarão no patrimonio da humanidade.» + +O _Times_ aqui embrulha-se. Prefiro explicar a sua ideia, a traduzir-lhe +a complicada prosa; quer elle dizer que o dia se approxima em que a +civilisação não poderá consentir que tão ricos solos, como os dos +Estados do Sul da America, permaneçam estereis e inuteis, e que, se os +possuidores actuaes são incapazes de os fazer valer e produzir, para +maior felicidade do homem, deverão então entregal-os a mãos mais fortes +e mais habeis. É o systema de expropriação por utilidade de civilização. +Theoria favorita da Inglaterra e de todas as nações de rapina... + + +Continúa depois o artigo, com ferocidade: «No Perú, na Bolivia, no +Paraguay, no Equador, em Venezuela... em outros mais, os actuaes +occupadores do solo terão gradualmente de desapparecer e descer áquella +condição inferior, que o seu fraco temperamento lhes marca como destino. +(Nunca se escreveu nada tão ferino!) O povo brazileiro, porém, tem +qualidades excellentes e a Inglaterra não chegará promptamente á +conclusão de que elle tem de partilhar a sorte de seus febris ou +casmurros visinhos... Mas, dadas as condições do seu solo, o Brazil +mesmo tem a escolher entre um semelhante futuro ou então o trabalho, o +duro esforço pessoal, contra o qual até agora se tem rebellado. Se o seu +destino tivesse levado os brazileiros a outro canto do continente, nem +tão largo, nem tão bello, poder-se-hia permittir-lhes que passassem a +existencia n'uma grande somnolencia. Mas ao brazileiro está confiada a +decima quinta parte da superficie do globo: essa decima quinta parte é, +toda ella, um thesouro de belleza, riquezas e felicidades possiveis; e +de tal responsavel--o brazileiro tem de subir ou de cahir!» + +E com esta palavra, á Gambetta, termino. Já se alonga muito esta carta +para que eu a sobrecarregue de comentarios á prosa do _Times_. No seu +conjuncto é um juizo sympathico. O _Times_, sendo, por assim dizer, a +consciencia escripta da classe media da Inglaterra, a mais rica, a mais +forte, a mais solida da Europa, tem uma auctoridade formidavel; e +escrevendo para o Brazil, eu não podia deixar de recolher as suas +palavras--que devem ser naturalmente a expressão do que a classe media +da Inglaterra pensa ou vae pensar algum tempo do Brazil. Porque a prosa +do _Times_ é a matéria-prima de que se faz em Inglaterra o estofo da +opinião. + +E reparando agora que, por vezes n'estas linhas, fui menos reverente com +o _Times_--murmuro, baixo e contricto, um _peccavi_... + + + + +XI + +A festa das creanças + + +A mais engraçada festa das creanças de que me lembro, foi em Inglaterra, +na casa de campo dos meus amigos Birds, no paiz de Cornwall. Era uma +mascarada reproduzindo em miniatura a côrte de el-rei Arthur e dos +cavaleiros da Tavola Redonda. E o que tornava interessante a +ressurreição d'este mundo heroico e gentil, popularizado por Tennyson, é +que nós estavamos alli justamente na região de Cornwall, onde viviam, +entre saráus e batalhas, Arthur, a sua rainha Guinevra e os doze +valentes da Tavola. A pouca distancia do parque dos Birds, n'uma collina +coberta de carvalheiras, a tradição colloca os paços de Arthur e a +maravilhosa e sombria cidade de Caerleon. O rio em que pescavam trutas +era o velho Usk. Nas suas frescas margens erguera-se outr'ora o +mosteiro, onde o irmão de Percival, uma noite, da janella da sua cella, +viu passar n'uma nuvem côr de rosa, entre aromas de junquilhos, o vaso +do Santo Graal cheio de sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. E das +varandas da sala de jantar, podiam avistar-se em dias claros, lá ao +longe, na costa, e entre as rochas, as ruinas d'esse castello de +Tintagil, que apparece em todas as balladas do rei Arthur, negro e +triste junto ao mar de Cornwall. + +A côrte começou a reunir-se cedo, á hora do lunch, no grande salão +branco, sobre o jardim. Era o filho dos Birds quem esplendidamente +recebia, vestido de rei Arthur. O primeiro personagem da lenda que +chegou, acompanhado pela sua governante, foi o feiticeiro Merlino, um +adoravel bébé, gordo e embezerrado com a corôa de hera, uns cabellos +louros e umas enormes barbas propheticas enchendo-lhe a bochecha côr de +rosa. Depois, seguidos das mamãs, vieram entrando todos os outros +figurões da romantica chronica, cavalleiros de cinco annos armados e +emplumados, mongesinhos nedios, bispos quasi de mama com os seus baculos +nos braços, bardos rabugentos, mesteirais vestidos de seda, e fadas mais +lindas que as fadas. As tres rainhas mysticas do Walhalla chegaram por +ultimo, gravesinhas, todas tres pela mão, cobertas de véos negros, +escoltadas por um grande lacaio empoado. + +Pouco a pouco o salão ficou animado como o velho Caerleon n'uma manhã de +torneio. O pequeno Bird, de Rei Arthur, com seu manto bordado d'ouro, os +cabellos frisados sahindo em anneis de sob a corôa carregada de pedras, +passeava magestoso, entre os seus irmãos de armas. Uma senhora, +encantada, quiz dar-lhe um beijo. Elle repeliu-a asperamente, como teria +feito o casto Rei Arthur. Mais orgulhoso do que elle, só o bravo +Lancelote do Lago, a quem tinham pintado um buço, e que revestido de +armas negras, com uma longa pluma escarlate ondeando-lhe desde o elmo +até ás esporas d'ouro, não tirava a mão da espada. E o que parecia +ensoberbece-lo mais era a sua faxa de gaze branca, passada sobre a +couraça, e feita em rigida obediencia á epopéa, d'um véo da rainha +Guinevra. Essa era a grande belleza do saráu, a rainha Guinevra, uma +irlandezasinha com as duas tranças negras e os olhos verdes como os +prados d'Erin. Séria e fria, envolta na pesada capa de setim azul, +conservava-se no meio de um sofá, immovel, com um sorriso que lhe punha +uma covinha no queixo, indifferente aos madrigaes, insensivel ás proezas +dos cavalleiros, e sempre de olhos baixos, ou por ella os bardos firam +as harpas, ou por ella se batam os vassalos junto ao mar de Cornwall. + +Um escudeiro annunciou o lunch, tocando uma buzina de prata, tal qual +como no Caerleon. E pelo corredor, aos pares, toda a côrte seguiu á sala +de jantar o rei Arthur, que levava pela mão, com uma graça solemne, a +linda rainha Guinevra. Depois, mas não sem alguma confusão, em que +necessariamente as mamãs tiveram de ser energicas com os cavalleiros, +ficou completa a Tavola Redonda, ornada de baixellas e flôres. E nada +faltava do que mandam as poeticas chronicas. + +Ao fundo da mesa, na sua cadeira esculpida pelos Genios, lá se achava o +velho feiticeiro Merlino, a quem a governante, para elle comer com +limpeza a sua sopa, tirára as barbas propheticas. Não havia um javali +assado sobre um prato de ouro. Apenas um modesto _roast-beef_. Mas o rei +Arthur levantava o seu copo d'agua, misturada de uma gota de Bordeus, +com a nobreza com que o outro, ha tantos centos de annos e n'aquella +mesma collina, erguia a taça de hydromel em dias de victoria. De resto a +sala, com o seu tecto de carvalho lavrado, tinha o severo apparato +d'outras éras e através da janella lá estavam, como nos versos da _Morte +d'Arthur_, as ruinas do Castello de Tintagil, negro e triste junto do +mar de Cornwall. + +A Côrte mostrava tanto apetite como á volta de uma batida aos lobos nos +bosques, que avisinham o Usk. Até as fadas devoravam. Sir Galahad, esse +que possuia a força de mil, porque o seu coração era virgem, já por duas +vezes reclamára _pudding_ de batatas, batendo furiosamente com o garfo +sobre o seu murrião de prata, posto ao lado da mesa entre os crystaes. + +Fôra preciso, por causa da sua magnifica tunica de setim verde, atar um +guardanapo ao pescoço do cavalleiro Bors, essa radiante flôr de bravura +christã. No meio de toda a alegria o forte Percival, incommodado com a +sua armadura, permanecia manso e corado com o ar de estar pensando (como +o outro Percival) em se recolher ao mosteiro de Wik. Depois, de repente +e inexplicavelmente, rolou abaixo da cadeira, entornando todo o molho +nos joelhos do intrigante Modred, o mais violento cavalleiro da Tavola. + +Modred despropositou e arrepelou os cabellos d'ouro de Percival. A tia +do heróe acudiu assustada, e então, como o famoso Lancelote do Lago se +estava tornando turbulento, foi arrancado da Tavola Redonda +ignominiosamente, nos braços d'um escudeiro, aos berros. + +Depois do lunch, a côrte de el-rei Arthur voltou ao saráu a regozijar-se +com danças. Saráu delicioso! Havia dois monges extraordinarios, de +bureis brancos, tão pequenos e tão tropegos que as senhoras tinham de os +segurar pelos braços nas quadrilhas e que queriam constantemente dançar, +mais joviaes que os cavalleiros, promptos a atirar-se sempre aos +bracinhos das camponezas toucadas de flôres. + +O puro Sir Galahad, já sem broquel e sem murrião, galopava doidamente +com uma ligeira fada, chegada n'essa manhã da Bretanha, das florestas de +Broceliande. Um bardo, com a corôa de folhas de carvalho enterrada até +aos olhos, chorava por ter perdido a sua harpa. Havia tambem um principe +do Mar do Norte, um castellão de Erin e o bravo cavalleiro Bors, que se +tinham refugiado a um canto, por detraz d'um sophá, onde sentados no +chão continuavam na sua divertida merenda com bolos, dando gritos, +quando as senhoras queriam pôr cobro áquella gula tão impropria de +paladinos christãos. + +No corredor o pae Bird teve de suster um rechonchudo abbade, que +arregaçava as vestes sacerdotaes e ia, furioso, sovar o intrigante +cavalleiro Modred. E não foi possivel realizar a parte mais picante da +lenda, fazendo com que Lancelote do Lago cortejasse Guinevra. O bravo +Lancelote (bem differente do outro) parecia de coração duro e sem gosto +pelo sorrir das damas. Terminou mesmo por ter uma hedionda perrice, e +cahiu nos joelhos da mamã, com duas grossas lagrimas nas pestanas e a +sua bella penna escarlate cahida no chão, como n'uma tarde de derrota. + +Cedo os bébés começaram a estar cançados. Eu mesmo, no meio da festa, +tive de levar ao collo o veneravel bispo de Blackburn com a sua mitra e +com o seu rico baculo. Os seus doces olhinhos azues fechavam-se de +somno. Deitei-o no sophá, junto da mais pequenina das rainhas do +Walhalla, que já alli dormia sob o véo negro, com os cabellos d'ouro +soltos e o lyrio do Paraiso entre as mãosinhas cruzadas... + +E o santo bispo candidamente adormeceu ao lado da mystica rainha. + + + + +XII + +Uma partida feita ao «Times» + + +É ao mesmo tempo lamentavel e piccaresco o caso succedido ao _Times_. +Este nobre in-folio diario, que inspira orgulho a todo o inglez +sinceramente patriota, e que aos olhos respeitosos do estrangeiro +apparece como uma das mais fortes columnas da sociedade ingleza, como a +propria consciencia da Inglaterra posta em lettra redonda; este augusto +periodico que nunca, desde a sua fundação, citou o nome d'um collega, +nem jámais se abaixou a uma controversia, pelas mesmas razões de +inflexivel etiqueta que vedariam a Luis XIV argumentar com Colbert; esta +austera gazeta que preferiria despedaçar as suas magnificas machinas a +consentir que ellas imprimissem um _bon-mot_, uma pilheria, uma linda +bagatella ou uma jovial anecdota; este papel tão pudico que evita o nome +de Zola, como uma indecencia--o _Times_, emfim, o venerando _Times_, foi +ultimamente victima de uma d'essas _partidas_, como nós dizemos, +_facecias em acção_, como dizem os Americanos, que são ao mesmo tempo +nefandas e patuscas, que nos abrazam a face de indignação e nos arrancam +aos labios um sorriso, que nos fazem vituperar publicamente o farçante e +saborear secretamente a farça, como se vissemos um rabo de papel pregado +ao manto d'el-rei, ou sobre os cabellos em caracoes da imagem do Senhor +dos Passos--um chapéu alto. + +Todas as pessoas que teem folheado esses vastos lençóes de materia +impressa que constituem um numero do _Times_, sabem que a quinta pagina +é ordinariamente destinada á publicação dos discursos pronunciados por +homens eminentes da politica, da litteratura, da sciencia, da arte, em +_meetings_, comicios, banquetes, inaugurações, _conversazioni_, em todos +esses ajuntamentos de _ladies and gentlemen_ onde a Inglaterra dá vazão +ao seu tumultuoso fluxo labial!... O _Times_ é famoso por estas +reproducções. Não são resumos, nem extractos: são as arengas, palavra a +palavra, especialmente tachygraphadas para o _Times_ por um pessoal +experimentado, com as interrupções correctamente transladadas, os +murmurios religiosamente marcados, sem que lhes falte um _meus +senhores!_, sem que ficasse perdido um _oh!_ ou um _ah!_ e revistas, +esmiuçadas, zeladas como se tivessem cahido dos labios de Socrates ou de +Christo prégando outro Evangelho. + +Este simples serviço custa por anno ao _Times_ milhares de libras--mas +dá-lhe a vantagem de ser elle a acta official do verbo publico da +Inglaterra. Todos os jornaes da Europa assim o reconhecem: quando se +discute um discurso do Sr. Gladstone, uma conferencia do professor +Huxley ou uma predica do arcebispo de Canterbury, tem-se presente, como +texto sagrado, o texto do _Times_. Um orador póde negar a incorrecção de +um adjectivo, a violencia de uma apostrophe, quando a apostrophe ou o +adjectivo tenham apparecido nos resumos rapidos de outro jornal: nunca, +quando hajam apparecido nas columnas infalliveis do _Times_. Sabe-se a +despeza, o desvelo, a minuciosidade, empregada para obter a exactidão--e +essa exactidão nunca é contestada. + +Quando o Sr. Gladstone, na campanha eleitoral da Escocia, soltou essa +famosa invectiva contra o imperio dos Hapsburgos,--o protesto cortez do +embaixador d'Austria era fundado em citações do _Times_. Um orador que, +querendo deixar um monumento solido da sua arte, publique os seus +discursos em volumes--collige-os do texto seguro do _Times_. O _Times_ +tem aqui o valor d'uma reproducção photographica. Insisto n'isto, para +tornar mais vivo o horror da facecia. + +Ha semanas Sir William Harcourt, o ministro do interior, fez um discurso +em Manchester, discurso consideravel, muito annunciado, muito esperado, +tocando todas as questões que inquietam agora a Inglaterra, a anarchia +da Irlanda, o tratado de commercio com a França, a intervenção no +Egypto, a criação do Governo Municipal de Londres, outras coisas graves +ainda. + +Esta arenga, tachygraphada pelo pessoal do _Times_ em Manchester, +telegraphada para os escriptorios do _Times_ em Londres, foi composta, +lida pelos revisores, revista pelo secretario de Sir William Harcourt, +verificada, comprovada, relida ainda, e, emfim definitivamente +installada na sua pagina... E aqui se colloca a facecia. + +Mas é necessario primeiro, para maior indignação e maior goso, conhecer +Sir William Harcourt. De todos os membros do ministerio Gladstone, Sir +William é o mais austero. Já a sua apparencia intimida: grosso, +membrudo, de hombros compactos, com a face imperiosa, pallida, rapada, +Sir William tem as linhas solemnes e marmoreas do busto de um Cesar. + +E dentro d'esta fórma romana habita um espirito rigido de doutrinario: +liberal (em comparação com o marquez de Salisbury, que é quadradamente +feudal), Sir William representa no Governo a tradicção, a formula +_whig_. É o contrapeso conservador d'este ministerio radical: está alli +como um bloco de granito constitucional para impedir que os outros +ministros, Chamberlain, Sir Charles Dilke, os discipulos de Stuart Mill, +se adiantem muito pela grande estrada da Revolução: e tem por isso essa +ampla solemnidade de maneiras, essa cadencia pomposa de expressão, de +quem se honra em guardar as coisas supremas--a corôa, a egreja, a +aristocracia territorial, os privilegios, a integridade do imperio... É +um solemne. Mesmo abotoado n'um paletot, parece embrulhado n'uma toga. É +moroso, massudo, incapaz de sorrir, tem essa especie de magestade +official que faz lembrar ao mesmo tempo Guizot e um elephante. + +E quando a gente o contempla no parlamento, grave, rispido, vestido de +negro--não o póde conceber nas attitudes triviaes da vida, fumando um +cigarro n'um sophá, com uma perna por cima da outra, muito menos de +joelhos, com uma linda mão de mulher entre as suas, murmurando coisas +ternas e tontas... + +E é isto que torna atroz e deliciosa a facecia... O discurso solemne +d'este solemne estadista estava, pois, paginado, pronto para passar ás +machinas, quando aproveitando um momento em que a policia interior dos +escriptorios do _Times_ casualmente afrouxára de vigilancia, _alguem_, +um monstro, um scelerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, +arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substitue-as por outras, compostas de +ante-mão, perfida e habilmente compostas! E que linhas! meu Deus! como +posso eu, conservando-me casto, explical-as aos leitores da _Gazeta de +Noticias_? + + +Essas linhas intercaladas no severo discurso do severo ministro eram +(tremo de dizel-o) eram linhas eroticas! Era um grito convulsivo de +desordenada lubricidade; era o ruido d'uma besta agitada por todas as +furias de Venus; era como esse rouco e secco bramar dos veados, nos +bosques, sob a calma do estio; era a balbuciação ebria dos Faunos da +fabula, do deus Priappo, dos Satyros caprinos que vagueavam pelos +pendores sagrados do monte Olympo, ululando, trincando a brancura dos +lyrios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes +de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras nymphas +das aguas... Era tudo isto, e era ainda mais. + +E, para requinte de facecia, isto não destoava, não chocava, apparecendo +bruscamente e sem ligação, como um monturo immundo entre roseas flôres +de rhetorica. Não: tinha sido _encaixado_ com uma habilidade diabolica. +Sir William Harcourt estava accusando os conservadores de affectarem uma +patriotica melancolia em presença dos suppostos perigos, que sob o +regimen liberal correm os grandes principios da ordem monarchica, a +integridade mesma da Inglaterra. E aqui perguntava-lhes, naturalmente +n'um natural movimento de oratoria: «Porque são esses gemidos? Porque é +essa exageração de tristeza publica? Decerto a questão da Irlanda e a do +Egypto são graves: mas o governo de Sua Magestade sabe que as soluções +proveitosas e gloriosas não tardarão... Nós estamos tranquillos. Eu, por +mim, sinto-me na disposição de quem, depois de cumprir um dever +official, tem para o recompensar o sorriso sereno e approvador da +consciencia, etc., etc.» + +E justamente aqui as linhas perversas entravam naturalmente traçadas, +desenvolvendo mais esta affirmação de contentamento intimo, mostrando a +exuberancia de espirito d'um ministro galhofeiro, que, em presença do +glorioso estado da cousa publica, admitte que o regosijo da nação tome a +fórma excentrica mas justificavel, de uma tremenda bambochata, de um +regabofe de estalar tudo... Sir William prosseguia (comprehendem bem que +eu dou só expressões aproximativas e atenuadas; traduzir á lettra o que +appareceu publicado no _Times_ seria arruinar para sempre os creditos da +_Gazeta de Noticias_) Sir William prosseguia: «Eu, por mim, estou +contente. Acho-me até capaz de uma bella folia! Porque não nos daremos +com effeito a uma rica patuscada, com vinhaça e mulherinhas? Oh, as +mulherinhas! Senhoras que me escutaes, arremessae chapéus e vestidos, e +toca a pandegar e a bater um rico batuque!... _Evohé!_ Viva o deboche! +Olé, _champanhe_! Abracemo-nos, deliremos!...» Isto é só para dar ideia: +o que se lia no _Times_ tinha outra crueza d'expressão, outro arranque +d'orgia!... + +Imaginem o effeito ao outro dia, quando milhares de numeros do _Times_, +contendo esta abominação, penetraram n'esses recatados interiores +inglezes, onde (segundo aqui dizem) habita o typo superior da familia +christã. O _Times_, o mais caro dos jornaes, é a folha querida da +aristocracia, da alta burguezia, da grande finança. Não se comprehende +um _gentleman_ inglez, do padrão classico, sem ter logo pela manhã +percorrido conscienciosamente o seu _Times_: é como o coração mesmo da +Inglaterra, que elle sente um momento entre as mãos e onde verifica cada +dia, com orgulho, um accrescimo de força, uma pulsação maior de +vitalidade. Ordinariamente é ao almoço que se lê o _Times_: e n'essa +manhã, vendo-se na quarta pagina, em lettras grossas, O DISCURSO DE SIR +WILLIAM HARCOURT EM MANCHESTER, corria-se naturalmente a elle com +curiosidade, já pelo interesse nacional, já pela sympathia que inspira +Sir William, o seu nome historico, a solida pureza dos seus principios, +a sua alta posição... + +Imaginem-se então as scenas! Aqui é uma velha e devota duqueza, cheia de +enthusiasmo pelas questões sociaes, que se aconchega na sua rica +poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratoria de Sir +William--e que de repente estaca, encara o _Times_, limpa as lunetas, +imaginando ter lido mal, torna a percorrer o periodo, passa a mão +tremula pela face, procura anciosamente o seu frasco de saes, volta +ainda a verificar se a não enleia uma allucinação, e, arremessando emfim +para longe a gazeta immunda, sae da sala a passos offendidos, pensando +comsigo que são esses os resultado de um seculo de democracia, de +materialismo e de libertinagem! + +Além é um casal de noivos, que, aninhados no mesmo sophá ao pé do fogão, +com os braços entrelaçados, precorrem o _Times_, menos para saber da +questão no Egypto, do que para ler o _compte-rendu_ de outros casamentos +elegantes ou as noticias de Paris, onde tencionam ir findar a sua lua de +mel; mas encontram o discurso de Sir William, dão-lhe um olhar +distrahido, quando de repente lhes salta d'entre as linhas o jorro +immundo das apostrophes eroticas! + +N'outra casa é uma fresca e loura creaturinha de desoito primaveras, +puro lyrio domestico, que faz a leitura do _Times_ a um velho tio +general, tolhido de gotta, reliquia veneranda das guerras peninsulares; +o velho escuta, pouco attento á politica do dia que detesta, mas muito +ao encanto d'aquella voz d'oiro ao seu lado; de repente, porém, o pobre +anjo gagueja, pára, faz-se da côr d'uma rosa, treme, a sua vergonha é +tal que lhe saltam as lagrimas dos olhos, e foge, deixando o immundo +_Times_ nas mãos do general assombrado:--ou então, caso peior, a doce +rapariga, na sua candura de flôr d'estufa, não comprehende, imagina que +_aquillo é politica_, continua a ler com a sua voz d'oiro,--e o +veneravel tio ouve de repente sahir dos labios de botão de rosa, feitos +só para murmurar o que ha de mais casto na musica de Weber, um enxurro +torpe de babugens lubricas. + +É medonho! E uma feição curiosa do incidente é que este negro attentado +só foi descoberto nos escriptorios do _Times_ ás onze horas da manhã: +isto é, quando o jornal já estava distribuido em Londres, levado pelos +trens de madrugada para toda a provincia, e pela mala de Dover para toda +a Europa! A administração do _Times_ telegraphou logo a todos os seus +agentes no mundo, para suspender a distribuição _e comprar por todo o +preço_ os torpes numeros já espalhados. + +Só estes telegrammas custaram perto de _dois contos de reis_. Mas o +melhor é que apenas se soube a historia da catastrophe, e que o _Times_ +comprava por todo o preço o numero maldito--esse numero tornou-se logo +um valor, um papel de credito, base de especulação, com cotações no +mercado, eguaes, se não superiores, aos fundos de muita nação +civilisada. Eu sei d'um restaurante que toma regularmente quatro numeros +do _Times_--e que vendeu os seus exemplares immundos a duas libras cada um. + +Realizaram-se, porém, ganhos maiores. O _Times_ não regateia, paga. E +até hoje diz-se que em comprar essa fatal edição tem gasto já perto de +_quarenta contos_. + +O autor da facecia ainda se não descobriu. É sem duvida, um monstro, e +seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunaes +inglezes o demoliriam, se elle apparecesse. Mas, por outro lado, +considerando que quarenta contos são apenas um somma minima para a +fortuna do _Times_, e que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a +sua empolada _pruderie_ a sustar, como obscena, a menção sequer dos +livros de Zola e de outros realistas,--eu não posso deixar de pensar, +com laivos de regosijo, que a Providencia tem armas obliquas e terriveis! + +Nunca, decerto, desde a invenção da imprensa, aconteceu um jornal +publicar, na sua melhor pagina, em letras salientes, doze linhas +immundas de desbragada obscenidade; e ser o _Times_, o primeiro que o +fez, o _Times_, o mais pesado, mais moroso, mais solemne, mais +pedagogico, mais reverente de todos os jornaes que têm existido desde a +invenção da imprensa--é, digam o que disserem, divertido. + +E, terminando, peço ás almas caritativas e justas uma bôa risada á custa +do _Times_. + + + + + INDICE + + Pag. + Afghanistan e Irlanda............. 1 + Ácerca de livros.................. 15 + O inverno em Londres.............. 33 + O Natal........................... 45 + Litteratura de Natal.............. 55 + Israelismo........................ 63 + A Irlanda e a Liga Agraria........ 77 + Lord Beaconsfield................. 95 + Os inglezes no Egypto............. 125 + O Brasil e Portugal............... 207 + A festa das creanças.............. 223 + Uma partida feita ao _Times_...... 231 + + + + + +End of Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA *** + +***** This file should be named 25641-8.txt or 25641-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/5/6/4/25641/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Cartas de Inglaterra + +Author: José Maria Eça de Queirós + +Release Date: May 29, 2008 [EBook #25641] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + +</pre> + +<br> +<br> +<h2>Cartas de Inglaterra</h2> +<br> +<br> +<div class="capa"> +<h2>Eça de Queirós</h2> +<br> +<br> +<h1>Cartas de Inglaterra</h1> +<br> +<br> +<br> +<br> +<p><img src="images/lello1.png" border="0" width="75px" alt="Logotipo Lello & Irmão"></p> +<br> +<br> +<br> +<br> +<P>Porto +<BR> +LIVRARIA CHARDRON +<BR> +<small class="small-caps">de Lello & Irmão—Editores</small> +<BR> +1905 +</div> +<br> +<br> +<br> +<br> +<div style="font-size: 0.8em;"> +<h3>Obras de EÇA de QUEIROZ</h3> + +<table width="90%" align="center" cellspacing="2"> +<tr><td> +<b>O crime do padre amaro.</b> Quarta +edição inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e +na acção da edição primitiva. 1 grosso volume</td><td align="right">1$200</td></tr> + +<tr><td> +<b>Os Maias.</b> Segunda edição. 2 grossos +volumes</td><td align="right"> 2$000</td></tr> + +<tr><td> +<b>A cidade e as Serras.</b></td><td align="right"> 800</td></tr> + +<tr><td> +<b>O Mandarim.</b> Quarta edição. 1 volume</td><td align="right"> 500</td></tr> + +<tr><td> +<b>O primo Basilio.</b> Quarta edição. 1 grosso volume</td><td align="right"> 1$000</td></tr> + +<tr><td> +<b>A Reliquia.</b> Terceira edição. 1 grosso volume</td><td align="right"> 1$000</td></tr> + +<tr><td> +<b>Contos.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr> + +<tr><td> +<b>As minas de salomão.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr> + +<tr><td> +<b>Correspondencia de Fradique Mendes.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr> + +<tr><td> +<b>Revista de Portugal.</b> 4 grossos volumes</td><td align="right"> 12$000</td></tr> + +<tr><td> +<b>A Illustre Casa de Ramires.</b> 1 volume</td><td align="right"> 1$000</td></tr> + +<tr><td> +<b>Prosas Barbaras.</b> 1 volume</td><td align="right"> 600</td></tr> + +<tr><td> </td><td align="right"></td></tr> + +<tr><td> +<i>No prélo:</i></td><td align="right"></td></tr> + +<tr><td> </td><td align="right"></td></tr> + +<tr><td> +<b>Echos de Paris</b></td><td align="right"></td></tr> + +<tr><td> +<b>S. Christovam</b> (inedito)</td><td align="right"></td></tr> +</table> +<br> +<br> +<br> +<br> +<p class="centrado">Porto—IMPRENSA MODERNA +</div> +<br> +<br> +<br> +<br> +<div id="indice"> +<h2>INDICE</h2> +<table width="90%" cellspacing="1" align="center"> +<tr><td> </td><td width="4em" align="right">Pag.</td> +<tr><td>Afghanistan e Irlanda</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_1">1</a></td> +<tr><td>Ácerca de livros</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_15">15</a></td> +<tr><td>O inverno em Londres</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_33">33</a></td> +<tr><td>O Natal</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_45">45</a></td> +<tr><td>Litteratura de Natal</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_55">55</a></td> +<tr><td>Israelismo</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_63">63</a></td> +<tr><td>A Irlanda e a Liga Agraria</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_77">77</a></td> +<tr><td>Lord Beaconsfield</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_95">95</a></td> +<tr><td>Os inglezes no Egypto</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_125">125</a></td> +<tr><td>O Brasil e Portugal</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_207">207</a></td> +<tr><td>A festa das creanças</td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_223">223</a></td> +<tr><td>Uma partida feita ao <i>Times</i></td><td width="4em" align="right"><a href="#pag_231">231</a></td> +</table> +<p style="border: dotted 1px gray; font-size: 0.7em; color: gray;">Nota do transcritor: no livro impresso o índice encontra-se no fim da obra!</p> +</div> +<br> +<br> +<br> +<br> +<div id="corpo"> +<span class="pagenum"><a name="pag_1">[1]</a></span> +<H1><A NAME="SECTION00100000000000000000"> +I +<BR> +Afghanistan e Irlanda</A> +</H1> + +<P> +Os inglezes estão experimentando, no seu atribulado imperio da India, +a verdade d'esse humoristico logar-commum do seculo XVIII: «A Historia +é uma velhota que se repete sem cessar.» + +<P> +O Fado ou a Providencia, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu +os episodios da campanha do Afghanistan em 1847, está fazendo simplesmente +uma copia servil, revelando assim uma imaginação exhausta. + +<P> +Em 1847 os inglezes, «por uma razão d'Estado, uma necessidade de fronteiras +scientificas, a segurança do imperio, uma barreira ao dominio russo +da Asia...» e outras coisas vagas que os politicos da India rosnam +sombriamente, retorcendo os bigodes—invadem o Afghanistan, e ahi +vão aniquilando <span class="pagenum"><a name="pag_2">[2]</a></span> tribus seculares, desmantelando villas, +assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de +Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; collocam lá outro +de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas +e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornaes têm telegraphado +a victoria, o exercito, acampado á beira dos arroios e nos vergeis +de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... Assim é +exactamente em 1880. + +<P> +No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes energicos, Messias +indigenas, vão percorrendo o territorio, e com grandes nomes de <i>Patria</i> +e de <i>Religião</i>, prégam a guerra santa: as tribus reunem-se, +as familias feudaes correm com os seus troços de cavallaria, principes +rivaes juntam-se no odio hereditario contra o estrangeiro, o <i>homem +vermelho</i>, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento +nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, +a entrada da India... E quando por alli apparecer, emfim, o grosso +do exercito inglez, á volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se +espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito secco das +torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquella massa +barbara rola-lhe em cima e aniquila-o. + +<P> +Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então <span class="pagenum"><a name="pag_3">[3]</a></span> os restos debandados +do exercito refugiam-se n'alguma das cidades da fronteira, que ora +é Ghasnat ora Candahar: os afghans correm, põem o cerco, cerco lento, +cerco de vagares orientaes: o general sitiado, que n'essas guerras +asiaticas póde sempre communicar, telegrapha para o viso-rei da India, +reclamando com furor <i>reforços, chá e assucar</i>! (Isto é textual; +foi o general Roberts que soltou ha dias este grito de gulodice britannica; +o inglez, sem chá, bate-se frouxamente.) Então o governo da India, +gastando milhões de libras, como quem gasta agua, manda a toda a pressa +fardos disformes de chá reparador, brancas collinas de assucar, e +dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos +transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, +rebanhos de cavallos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa... +Foi assim em 1847, assim é em 1880. + +<P> +Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras columnas de tropa +india, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta +milhas por hora; d'ahi começa uma marcha assoladora, com cincoenta +mil camelos de bagagens, telegraphos, machinas hydraulicas, e uma +cavalgada eloquente de correspondentes de jornaes. Uma manhã avista-se +Candahar ou Ghasnat;—e n'um momento, é aniquilado, disperso no pó +da planicie, o pobre <span class="pagenum"><a name="pag_4">[4]</a></span> exercito afghan com as suas cimitarras +de melodrama e as suas veneraveis colubrinas do modelo das que outr'ora +fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Candahar está livre! Hurrah!—Faz-se +immediatamente d'isto uma canção patriotica; e a façanha é por toda +a Inglaterra popularisada n'uma estampa, em que se vê o general libertador +e o general sitiado apertando-se a mão com vehemencia, no primeiro +plano, entre cavallos empinados e granadeiros bellos como Apollos, +que expiram em attitude nobre! Foi assim em 1847; ha-de ser assim +em 1880. + +<P> +No emtanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam +a patria ou morriam pela <i>fronteira scientifica</i>, lá ficam, pasto +de corvos—o que, não é, no Afghanistan, uma respeitavel imagem de +rhetorica: ahi, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das +ruas, comendo as immundicies, e em campos de batalha purificam o ar, +devorando os restos das derrotas. + +<P> +E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma +canção patriotica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde +uma linha de prosa n'uma pagina de chronica... + +<P> +Consoladora philosophia das guerras! + +<P> +No emtanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande victoria do +Afghanistan»—com a certeza <span class="pagenum"><a name="pag_5">[5]</a></span> de ter de recomeçar d'aqui +a dez annos ou quinze annos; porque nem póde conquistar e annexar +um vasto reino, que é grande como a França, nem póde consentir, collados +á sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanaticos, batalhadores +e hostis. A «politica» por tanto, é debilital-os periodicamente, com +uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades d'um grande imperio. +Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vacca para o leite e dois +pés d'alface para as merendas de Verão... + +<P> +Outra historia melancholica é a da Irlanda. Quem não conhece as queixas +seculares da Irlanda, da <i>Verde Erin</i>, terra de bardos e terra +de santos, onde uma plebe conquistada, resto nobre de raça celtica, +esmagada por um feudalismo agrario, vivendo em buracos como os servos +gothicos, vae desesperadamente disputando á urze, á rocha, ao pantano, +magras tiras de terra, onde cultiva, em lagrimas a batata? Todo o +mundo sabe isto—e, desgraçadamente, esta Irlanda de poema e de novella +é, em parte, verdadeira: além dos poucos districtos onde a agricultura +é rica como em qualquer dos uberrimos condados inglezes, além de Cork +ou Belfast, que têm uma industria forte—a Irlanda permanece o <i>paiz +da miseria</i>, bem representada n'essa estampa romantica em que ella +está, em andrajos, á beira de um charco, com o filhinho nos <span class="pagenum"><a name="pag_6">[6]</a></span>braços morrendo-lhe da falta de leite, e o cão ao lado, tão magro +como ella, ladrando em vão por soccorro... + +<P> +Os males da Irlanda, muito antigos, muito complexos, provêm, sobretudo, +do systema semi-feudal da propriedade. + +<P> +O povo irlandez é numeroso, exageradamente prolifico (nem a emigração, +nem a morte, nem as epidemias, alliviam esta ilha muito cheia) e vive +n'uma terra pobre, de cultura estreita, apenas no seu terço trabalhada: +os proprietarios, lords inglezes ou escocezes, sempre ausentes das +terras, não admittindo a despeza d'um schelling para as melhorar, +estão em Paris, estão em Londres, comendo pecegos em janeiro, e jogando +pelos clubs o <i>whist</i> a libra o tento: os seus procuradores e +agentes, creaturas vorazes, sem ligação com o solo nem com a raça, +forçados a remetter incessantemente dinheiro a SS. SS., interessados +em conservar a procuradoria, cáem sobre o rendeiro, levantam-lhe a +renda, forçam-n'o a vendas desastrosas, enlaçam-n'o na uzura, tributam-n'o +feudalmente, apertam-n'o com desespero como a um limão meio secco, +até que elle verta n'um gemido o ultimo penny. Se o miseravel este +anno, fatigando o torrão, sustentando-se de hervas seccas, economisando +o lume quando ha seis palmos de neve, consegue arrancar de si a somma +<span class="pagenum"><a name="pag_7">[7]</a></span> que S. S., o Lord, reclama para offerecer uma esmeralda +á loura Fanny ou á pallida Clementine, para o anno lá está enleado +na divida, sem meios de comprar a semente, com uma terra exhausta +a seus pés... + +<P> +Então o procurador, de lei em punho, vem, corre, penhora-o, vende-lhe +o catre, expulsa-o do casebre, atira-lhe mulher, creancinhas e avós +entrevados para as pedras do caminho... E ahi vae mais um bando de +desgraçados engrossar o lamentavel proletariado que povôa a «<i>verde +ilha dos bardos</i>». São milhares, são milhões! Esta população, com +o ventre vazio, os pés nús sobre a geada, volta-se então para a Inglaterra, +a mãe Inglaterra, que tem a Lei, que tem a Força, que tem a Responsabilidade: +a Inglaterra, commovida na sua fibra christã, volta-se para os seus +economistas, os seus politicos: estes individuos pousam as suas vastas +frontes nas suas vastas mãos, e arrancam das concavidades da sua sabedoria +pharisaica esta resposta, a tenebrosa resposta da meia edade ás reclamações +do soffrimento humano: + +<P> +—Paciencia! o remedio está no ceu... + +<P> +A Inglaterra, valendo-se capciosamente do clero catholico da Irlanda, +e da religiosidade da plebe, para a manter na resignação da miseria, +acenando-lhe com as promessas côr de ouro da bemaventurança—é um +salutar espectaculo! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_8">[8]</a></span>Sejamos, porém, justos: a Inglaterra manda tambem, aos milhões +de esfomeados, farinha e dois ou tres schellings: e o <i>Punch</i> +faz-lhes a honra de lhes dedicar pilherias. + +<P> +De tudo isto que resulta? Que o irlandez, vendo a fome no seu lar, +a Inglaterra occupada com o dr. Tanner, o <i>Punch</i> muito divertido, +e o ceu muito longe—faz uma trouxa dos seus andrajos, vae á villa +mais proxima, apresenta-se ao comité dos <i>Fenians</i> ou á secção +de <i>Mollie Maguire</i> e diz simplesmente:—<i>Aqui estou!...</i> + +<P> +Estas duas associações secretas são terriveis e completam-se uma pela +outra. Os <i>Fenians</i>, que estiveram um momento desorganizados, +mas que têm hoje a prosperidade de uma instituição publica, são uma +seita politica, com o fim claro de conquistar a independencia da Irlanda: +o seu meio é uma futura insurreição, batalhas á luz do dia, um esforço +heroico de raça que sacode o estrangeiro. + +<P> +É evidente, portanto, que a Inglaterra não tem nada a temer d'esta +associação: uma esquadra no canal de S. Jorge, dez mil homens desembarcados, +e os <i>Fenians</i> serão, no estylo da canção, <i>como a herva +dos campos depois que passou o ceifador</i>, um estendal de cousas sem +vida. Mas não é assim com <i>Mollie Maguire</i>; esta constitue puramente +uma conspiração: os seus estatutos, os seus fins, a sua organização, +<span class="pagenum"><a name="pag_9">[9]</a></span> os seus chefes, tudo está envolvido n'um mysterio, que +é o terror na Irlanda; só são claros os seus crimes. Ha um proprietario +duro que levantou a renda? Uma noite, ou elle ou o seu procurador +apparecem á beira de um caminho, com duas balas na cabeça. Quem foi? +Foi <i>Mollie Maguire</i>: foi ninguem, foi a Miseria, foi a Irlanda. +Ha um senhorio, um agente, que fez uma penhora? Á meia noite, a sua +casa começa a arder, e é n'um momento uma ruina fumegante. Quem foi? +<i>Mollie Maguire</i>. Houve um burguez especulador que comprou o +casebre de um proprietario penhorado? No outro dia lá está no fundo +de uma lagôa, com um pedregulho ao pescoço. Quem foi, coitado? <i>Mollie +Maguire</i>. Todos os dias, n'estes ultimos mezes, são assim, dois, tres +d'estes crimes—que têm em Inglaterra o nome de <i>agrarios</i>. +Os tribunaes, a policia, já se não fatigam em devassas e em autos: +para quê? <i>Mollie Maguire</i> é intangivel, <i>Mollie Maguire</i> +é impessoal. + +<P> +E se houvesse um magistrado tão desgostoso da vida que quizesse descobrir +d'onde viera a bala, o pedregulho ou o fogo—teria certamente, horas +depois, o que tanto parecia desejar: um punhal atravez do peito. São +verdadeiramente os processos do Nihilismo militante: nem falta a esta +seita aquella vaga exaltação mystica que complica o Nihilismo. Se +<i>Mollie</i> (Mollie é o diminutivo de Maria) não é <span class="pagenum"><a name="pag_10">[10]</a></span> uma +divindade, é pelo menos uma degeneração fetichista da divindade: é +a tenebrosa padroeira das desforras da plebe, aquella em quem os desgraçados +abandonados de Deus, do Deus official, do Deus da Missa, encontram +soccorro, amizade, força—uma sorte de encarnação feminina do diabo +do Sabbath, confidente dos servos e dos feiticeiros da meia-noite. + +<P> +A estas duas associações deve juntar-se uma terceira, legal essa, +fallando alto nas praças, com jornaes, com taboleta, vivendo sob a +protecção da Constituição, respeitada da policia, e que se chama a +<i>Liga da Terra</i>. O seu fim é promover, por meio de <i>meetings</i> +e representações, uma vasta agitação, um impulsivo movimento da opinião, +que force o parlamento inglez a reformar o systema agrario. Mas é +realmente uma associação legal? São os seus fins tão honestamente +moderados, tão estreitamente constitucionaes como se diz? Todo o mundo +duvida. Na Irlanda, sempre que dois homens se reunem, conspiram: quando +se sentem quatro, apedrejam logo a policia:—que será então quando +reconhecerem que são duzentos mil? Além d'isso, as reclamações d'esta +associação são de um vago singular: nada de pratico, nada de realisavel: +apenas os velhos gritos sentimentaes da aspiração humanitaria. E, +ao mesmo tempo, os homens, que a dirigem, são espiritos positivos +e experimentados. Ha aqui uma contradicção assustadora. <span class="pagenum"><a name="pag_11">[11]</a></span>Sente-se que os chefes d'este movimento, sabendo bem que da Inglaterra +nada têm a esperar, estão simplesmente, sob as apparencias da legalidade, +organisando a insurreição. Formular um programma pratico para o parlamento +votar, seria, na opinião d'elles, ocioso e pueril: as declamações +verbosas em que se falle muito de <i>legalidade</i>, <i>ordem</i>, +<i>parlamentarismo</i> bastam—para illudir a policia... E não é +duvidoso que, n'um certo momento, <i>Fenians</i>, <i>Mollie Maguire</i> +e <i>Liga da Terra</i> formarão um só movimento—o da revolta desesperada. + +<P> +Este era o estado da Irlanda ha dois mezes, quando se deu o caso inesperado +do <i>bill de compensação</i>. Este projecto de lei apresentado pelo +ministro Gladstone (parte por um sentimento liberal de justiça, parte +para agradecer os fortes serviços dos irlandezes nas ultimas eleições) +não trazia certamente um remate aos males da Irlanda; mas, coarctando +os abusos dos senhores, difficultando a arbitrariedade das «expulsões», +modificando a legislação barbara das penhoras, alliviava o trabalhador +irlandez do ferreo calcanhar feudal que o esmaga. O <i>bill</i> passou +entre os applausos da camara dos communs: mas escuso de acrescentar +que a camara dos lords, essa augusta e gothica assemblêa de senhores +semi-feudaes, o regeitou com horror, como obra execravel do liberalismo +satanico! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_12">[12]</a></span>Veem d'ahi o resultado: os agitadores da Irlanda, os seus +prophetas, os seus chefes apossaram-se com enthusiasmo d'esta regeição +da camara dos lords—e utilisaram-n'a tão habilmente, como Antonio +utilisou a tunica ensanguentada de Cesar. Foram-n'a mostrando á plebe +indignada, por campos e aldeias, gritando bem alto: «Aqui está o que +fizeram os lords, os vossos amos, os vossos exploradores! A primeira +proposta justa, em bem da Irlanda, que se lhes apresenta, repellem-na! +Querem manter-vos na servidão, na fome, no opprobrio das velhas edades, +no estado da raça vendida! Ás armas!» + +<P> +E desde então a Irlanda prepara-se ardentemente para a insurreição: +apesar dos cruzeiros que vigiam a costa, todos os dias ha desembarques +de armas; o dinheiro, os voluntarios affluem da America; pelos campos +vêm-se grupos de duzentos, trezentos homens, de espingardas ao hombro, +fazendo exercicios como regimentos em vesperas de campanha; ainda +que seja agora a epoca das colheitas, a população não está nos campos, +está nos <i>meetings</i>, nos clubs; e os tribunos, os agitadores, +prodigalizam-se sem repouso. Não falta, decerto, a estes homens nem +coragem, nem aquella eloquencia pathetica que faz passar nas multidões +o <i>arrepio sagrado</i>. Um d'elles, Redathd, exclamava ha dias: + +<P> +—Dizem-nos a cada momento: sêde justos, pagae <span class="pagenum"><a name="pag_13">[13]</a></span> ao lord, +pagae ao senhorio! E citam-nos a palavra divina d'aquelle que disse: +<i>Dae a Cesar o que é de Cesar!</i> Houve só um homem, Brutus, que +deu a Cesar o que a Cesar era devido, um punhal atravez do coração! + +<P> +Esta brutalidade tem grandeza. Agora imagine-se isto lançado a uma +multidão opprimida, com os gestos theatraes d'esta raça violenta, +de noite, n'um d'estes sinistros descampados da Irlanda, que são todos +rocha e urze, ao clarão d'archotes, dando aquella intermittencia de +treva e brilho que é como a alma mesma da Irlanda—e veja-se o effeito! + +<P> +Em Inglaterra, mesmo, os optimistas consideram a insurreição quasi +inevitavel para os frios do outomno. E o honesto John Bull prepara-se: +já o ministro do interior está em Dublin, e é eminente a declaração +da <i>lei marcial</i>... N'este ponto, radicaes e conservadores são +unanimes: se a Irlanda se levanta, que se esmague a Irlanda! Sómente +John Bull declara que o seu coração ha-de chorar emquanto a sua mão +castigar... Excellente pae! + +<P> +O jornal o <i>Standard</i>, o veneravel <i>Standard</i>, tinha ha +dias uma phrase adoravel. «Se, como é de temer, a Irlanda vier a esquecer-se +do que deve a si e á Inglaterra»—exclamava o solemne <i>Standard</i>,—«é +doloroso pensar que no proximo inverno, para manter a integridade +do imperio, a santidade da <span class="pagenum"><a name="pag_14">[14]</a></span> lei e a inviolabilidade da +propriedade, nós teremos de ir, com o coração negro de dôr, mas a +espada firme na mão, levar á Irlanda, á ilha irmã, á ilha bem amada, +uma necessaria exterminação.» + +<P> +<i>Exterminação</i> é muito: e quero crêr, que está alli, para rematar +com uma nota grave, uma nota d'orgão, a harmonia do periodo. Mas o +sentimento é curioso e raro: e seria um espectaculo maravilhoso vêr, +no proximo inverno, John Bull percorrendo a Irlanda, cheio de ferocidade +e afogado em ternura, com os olhos a escorrer de lagrimas e a sua +bayoneta a pingar de sangue... —Ainda as fataes necessidades de +um grande imperio! Volto ao meu desejo: um quintalejo, uma vacca, +dois pés d'alface... E um cachimbo—o cachimbo da paz! + +<P> + +<span class="pagenum"><a name="pag_15">[15]</a></span> +<H1><A NAME="SECTION00200000000000000000"> +II +<BR>Ácerca de livros</A> +</H1> + +<P> +Outubro chegou, e com este mez, em que as folhas cáem, começam aqui +a apparecer os livros, folhas ás vezes tão ephemeras como as das arvores, +e não tendo como ellas o encanto do verde, do murmurio e da sombra. + +<P> +Estamos, com effeito, em plena <i>Book-Season</i>, a estação dos livros. + +<P> +Estes dous mezes, setembro e outubro (e elles merecem-no porque como +côr, luz, repouso, são os mais simpathicos do anno) têm accumulado +em si as mais interessantes <i>seasons</i>, as <i>estações</i> mais +fecundas da vida ingleza. + +<P> +A <i>London-Season</i>, a celebre estação de Londres, quando a Aristocracia, +maior e menor, os <i>dez mil de cima</i>, como se dizia antigamente, +o <i>folhado</i>, como <span class="pagenum"><a name="pag_16">[16]</a></span> se diz agora, recolhe dos parques +e palacios do campo aos seus palacetes e jardinetes de Londres—passa-se +em abril, junho e julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e ôca estação +de trapos, de luvas de vinte botões, de lacaios, de champagne, de +batota e de <i>cotillon</i>. Emquanto que as outras!... + +<P> +Olhem-me para estas sabias, uteis, viris, solemnes <i>seasons</i>, +que abundam n'estes dourados mezes de setembro e outubro. Isto sim! +Aqui temos, por exemplo, a <i>Congress-Season</i>, a estação dos congressos. + +<P> +Que espectaculo! Toda a verde superficie da Inglaterra está então, +de norte a sul, salpicada de manchas negras. São congressos em deliberação. +Ha-os de metaphysicos e ha-os de cosinheiros. + +<P> +Aqui, duzentos individuos carrancudos e descontentes elaboram uma +nova ordem social; além, uma multidão de sabios, acocorados, semanas +inteiras, em torno de um objecto escuro, não pódem chegar á conclusão +se é um tijolo vilmente recente ou uma laje da camara nupcial da rainha +Ginevra; e adiante cavalheiros anafados e luzidios assentam a doutrina +definitiva da engorda do leitão—esse amor! + +<P> +Os congressos mais notaveis este anno fôram—o de medicina em Londres, +a que assistiram <i>mil e tresentos</i> congressistas medicos e cirurgiões +dos dois mundos e dos dois sexos, e onde se prometteu <span class="pagenum"><a name="pag_17">[17]</a></span>á humanidade, para d'aqui a annos, a suppressão das epidemias pelas +vaccinas; o da <i>British Association</i>, a grande Sociedade das +Sciencias (congresso annual celebrado este anno em York) em que o +presidente, sir John Lubbock, esse amavel sabio que tem passado a +existencia a estudar as civilizações inferiores dos insectos, laboriosas +democracias de formigas, deploraveis oligarchias de abelhas—occupou-se +d'esta vez, dando um balanço á sciencia durante os ultimos cincoenta +annos, a mostrar algumas das estupendas habilidades d'esse outro ephemero +insecto, o Homem: e emfim o congresso annual da Egreja, celebrado +em Newcastle, composto de bispos, dignitarios ecclesiasticos, theologos, +doutores em divindade, este largo clero anglicano, o mais douto e +litterario da Europa. N'este, entre outros assumptos discutiu-se a +<i>Influencia da Arte na vida e no pensar religioso</i>: mas, quanto +a mim, o resultado mais nitido foi o revelar incidentalmente que a +frequentação dos templos, em Inglaterra, diminue de um terço todos +os dez annos, ao passo que o espirito de religiosidade cresce nas +massas, tornando-se assim o sentimento religioso cada dia mais desprendido +das fórmas caducas e pereciveis das religiões. + +<P> +N'este momento ha outros congressos—o dos Metallurgistas, o das +Sciencias Sociaes, o dos Telegraphistas, o Archeologico, o dos Gravadores, +o <span class="pagenum"><a name="pag_18">[18]</a></span> dos... emfim, centenares. Até o dos <i>Browninguistas</i>. +Não sabem o que são os <i>Browninguistas</i>? Uma vasta associação, +tendo por fim estudar, commentar, interpretar, venerar, propagar, +illustrar, divinisar as obras do poeta Browning. Isto, mesmo n'este +paiz de arrebatados enthusiasmos intellectuais, me parece um pouco +forte. Browning é sem duvida, com Shelley, Shakspeare e Milton, um +dos quatro principes da poesia ingleza: mas tem o inconveniente de +estar vivo. Elle proprio assiste, materialmente, com o seu paletot +e o seu guarda chuva, ao congresso de que é objecto espiritual e assumpto: +e fatalmente, pelo effeito mesmo da sua presença, a admiração litteraria +tende a tornar-se idolatria pessoal, e os <i>shake hands</i> que elle +distribue começam naturalmente a ser mais apreciados no congresso +que os poemas que elle escreveu. Por isso mesmo que o divinisam, o +amesquinham: não é então o grande poeta de Inglaterra, é o idolo particular +dos <i>Browninguistas</i>, deixa assim de ser um espirito fallando +a espiritos—para ser apenas um manipanso aterrorizando supersticiosos. + +<P> +Mas, continuando com as <i>estações</i>, temos ainda a <i>Yachting-Season</i>, +a estação nautica, das regatas, das viagens em <i>yacht</i>. Hoje +em Inglaterra ter um <i>yacht</i> é, como entre nós montar carruagens, +o primeiro dever social do rico ou do enriquecido, uma das fórmas +mais triviaes do conforto luxuoso. Um <i>yacht</i> não é só <span class="pagenum"><a name="pag_19">[19]</a></span>um frágil e airoso barco de cincoenta toneladas e vela branca; póde +ser tambem um negro e poderoso vapor de duas mil toneladas e sessenta +homens de tripulação. N'este ultimo caso, em logar de bordejar gentilmente +em redor das flôres e das relvas da ilha de Wight, ou de ir mergulhar +n'essas prodigiosas paisagens marinhas do alto Norte da Escossia, +vae dar a volta ao mundo, carregado de biblias para os pequenos patagonios +e de champagne e d'amor para as lindas missionarias, vestidas de marinheiras. +A vida de <i>yacht</i> tem os seus costumes especiaes, a sua etiqueta, +a sua phraseologia, a sua moral propria, e sobretudo a sua litteratura. +A litteratura de <i>yacht</i> é vasta—William Black, o autor das +<i>Azas Brancas</i>, do <i>Nascer do Sol</i>, da <i>Princeza de +Thude</i>, o seu romancista official: um paisagista maravilhoso, de resto, +tendo na sua penna todo o vigor do pincel d'um Jules Breton. + +<P> +Temos igualmente n'este mez a <i>Shooting-Season</i>, a estação da +caça ao tiro, que abre no 1.º de setembro com uma solemnidade tal, +e no meio de um interesse publico tão intenso, tão fremente—que +me dá sempre ideia do que devia ter sido nas vesperas da Grande Revolução +a abertura dos Estados Gerais. Peço perdão d'esta abominavel comparação—mas +a carne é fraca, e eu considero esta estação sublime. É n'ella +que se caça o <i>grouse</i>, e é durante <span class="pagenum"><a name="pag_20">[20]</a></span> ella que se come +o <i>grouse</i>. Não sabem o que é o <i>grouse</i>? É um passaro do +tamanho da perdiz, que vive (Deus o abençôe!) nos <i>moors</i>, ou +descampados da Escossia... Agora deixem-me repousar um momento, e +ficar aqui, n'um extasi manso, pensando no <i>grouse</i>, com as mãos +cruzadas sobre o estomago, o olho enternecido, lambendo o labio... +Não imaginem que eu sou um guloso. Mas nunca se deve fallar nas coisas +boas sem veneração. Lord Beaconsfield, esse mestre do bom gosto, deu-nos +o exemplo quando, tendo mencionado n'um dos seus livros o <i>ortolan</i>, +esse outro delicioso passaro, acrescentou—que o peitinho gordo do +<i>ortolan</i> é mais delicioso que o seio da mulher, o seu aroma +mais perturbador que os lilazes, e o sabor da sua febra melhor que +o sabor da verdade. Póde-se dizer o mesmo do <i>grouse</i>. + +<P> +Continuando, temos a <i>Burglary-Season</i>, a estação dos assaltos +e roubos ás casas. Esta começa tambem em setembro, quando a gente +rica sai de Londres e deixa os seus palacetes, ou fechados, ou ao +cuidado de um velho e somnolento guarda-portão. Os salteadores de +Londres, corpo social tão bem organisado como a propria policia, procede +então systematicamente, por quadrilhas disciplinadas, usando os mais +perfeitos meios scientificos no arrombamento e no saque d'essas propriedades +abarrotadas de cousas ricas... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_21">[21]</a></span>Temos a <i>Lecture-Season</i>, ou estação das conferencias. +O seu nome explica-a e seria longo detalhar-lhe a organisação. Basta +dizer que n'esta estação não ha talvez um bairro em Londres (quasi +podia dizer uma rua), nem uma aldeia no resto do paiz, em que se não +veja, cada noite, um sujeito, com um copo d'agua, dissertando sobre +um assumpto, deante d'uma audiencia compacta, attenta, interessada +e que toma notas. Os assumptos são <i>tudo</i>—desde a ideia de +Deus até á melhor maneira de fabricar graxa. E os conferentes são +<i>todo o mundo</i>—desde o professor Huxley até um qualquer cavalheiro, +o senhor Fulano de Tal, que sóbe á plataforma a contar as suas impressões +de viagem ás ilhas Fidji, ou as aptidões curiosas que observou no +seu cão... + +<P> +Ha ainda outras estações que basta enunciar: a <i>Hunting-Season</i>, +a estação da caça á raposa (isto é todo um mundo); a <i>Cricket-Season</i>, +a estação em que se joga o cricket,—e em que se vêm d'estes edificantes +espectaculos: doze cavalheiros, vindos do fundo da Australia, outros +doze partindo dos altos da Escossia, e encontrando-se em Londres a +jogar ao desafio uma tremenda partida que dura tres dias, na presença +arrebatada de um povo em delirio! + +<P> +Temos tambem a <i>Angling-Season</i>, a estação da pesca á linha, +instituição nobilissima a que a humanidade deve o salmão e a truta. +É o <i>sport</i> favorito <span class="pagenum"><a name="pag_22">[22]</a></span> da alta burguezia culta, da +magistratura, dos homens de sapiencia, d'aquela parte da velha aristocracia +sobre que mais pesam as responsabilidades do Estado. Todo este mundo, +de solemne respeitabilidade e de alto ceremonial—pesca á linha. +Talvez por isso, de todos os <i>sports</i> inglezes, a pesca á linha +é um dos que têm produzido uma litteratura mais consideravel—tão +consideravel que a sua bibliografia, a simples enumeração dos seus +tratados, occupa um livro de duzentas paginas! Ahi observo com respeito +a noticia de um ponderoso estudo sobre a <i>Pesca á linha entre +os Assyrios</i>... + +<P> +Só esta semana a litteratura da pesca á linha nos deu já dois livros, +segundo as listas: <i>A carteira de um pescador á linha</i>, <i>Pela +beira dos rios</i>. + +<P> +Temos ainda a <i>Traveling-Season</i>, a estação das viagens, quando +o famoso <i>touriste</i> inglez faz a sua apparição no continente. +N'esta epoca (setembro e outubro) todo o inglez que se respeita (ou +que, não podendo em sua consciencia respeitar-se, pretende ao menos +que o seu visinho o respeite) prepara umas dez ou doze malas e parte +para os paizes do sol, do vinho e da alegria. Os anjos (se o não sonharam, +como diz João de Deus) devem assistir então, do seu terraço azul, +a um espectaculo bem divertido: toda a Inglaterra fervilhando no porto +de Dover—e d'ahi successivamente partirem longos formigueiros de +<i>touriste</i>, <span class="pagenum"><a name="pag_23">[23]</a></span> riscando de linhas escuras o continente, +indo alastrar os valles do Rheno, negrejando pela neve dos Alpes acima, +serpenteando pelos vergeis da Andaluzia, atulhando as cidades da Italia, +inundando a França! Tudo isto são inglezes. Tudo isto traz um <i>Guia +do Viajante</i> debaixo do braço. Tudo isto toma notas. Isto ás vezes +viaja com a esposa, a cunhada, uma amiga da cunhada, uma conhecida +d'esta amiga, sete filhos, seis creados, dez cães, e outros cães conhecidos +d'estes cães; e isto paga por tudo isto sem resmungar! Não: não digo +bem, resmungando sempre. Esta viagem de prazer passa-a quasi sempre +o inglez a praguejar (mentalmente—porque nem a Biblia nem a respeitabilidade +lhe permitem praguejar alto). + +<P> +A verdade é que o inglez não se diverte no continente; não comprehende +as linguas; estranha as comidas; tudo o que é estrangeiro, maneiras, +<i>toilettes</i>, modos de pensar, o choca; desconfia que o querem +roubar; tem a vaga crença de que os lençóes nas camas d'hotel nunca +são limpos; o vêr os theatros abertos ao domingo e a multidão divertindo-se +amargura a sua alma christã e puritana; não ousa abrir um livro estrangeiro +porque suspeita que ha dentro cousas obscenas; se o seu <i>Guia</i> +lhe affirma que na cathedral de tal ha seis columnas e se elle encontra +só cinco, fica infeliz toda uma semana e furioso <span class="pagenum"><a name="pag_24">[24]</a></span> com o +paiz que percorre, como um homem a quem roubaram uma columna; e se +perde uma bengala, se não chega a horas ao comboio, fecha-se no hotel +um dia inteiro a compôr uma carta para o <i>Times</i>, em que accusa +os paises continentaes de se acharem inteiramente n'um estado selvagem +e atolados n'uma putrida desmoralisação. Emfim o inglez em viagem, +é um ser desgraçado. É evidente que eu não alludo aqui á numerosa +gente de luxo, de gosto, de litteratura, de arte: fallo da vasta massa +burgueza e commercial. Mas mesmo esta encontra uma compensação a todos +os seus trabalhos de touriste quando, ao recolher a Inglaterra, conta +aos seus amigos como esteve aqui e além, e trepou ao Monte Branco, +e jantou n'uma <i>table-d'-hote</i> em Roma e, por Jupiter! fez uma +sensação dos diabos, elle e as meninas!... + +<P> +Que mais estações temos ainda? A <i>Speech-season</i>, a estação dos +discursos, quando, nas ferias do parlamento, todos os homens publicos +se espalham pelo paiz discursando, perante enormes <i>meetings</i>, +sobre os negocios publicos. É uma das feições mais curiosas da vida +politica em Inglaterra... + +<P> +Ha outras muitas <i>estações</i> em setembro e outubro, mas não me +lembram agora. E emfim, para não ser injusto, devo mencionar tambem +o Outomno. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_25">[25]</a></span> + +<P> +De todas estas, para mim, naturalmente, a mais interessante é a <i>Book-Season</i>, +a estação dos livros. + +<P> +Isto não quer dizer que fóra d'esta estação (outubro a março) se não +publiquem livros em Inglaterra—longe d'isso, Santo Deus! Como não +quer dizer que fóra da <i>London-Season</i> se não dance, ou fóra +da <i>Travelling-Season</i> se não viaje. Significa simplesmente que +as grandes casas editoras de Londres e d'Edimburgo reservam, para +as lançar n'esta epocha as suas <i>grandes novidades</i>. Um livro +de Darwin, um estudo de Matthew Arnold, um poema de Tennyson, um romance +de Georges Meredith serão evidentemente guardados para a <i>estação</i>. +De resto, durante todo o anno não s'interrompe, não cessa essa publicidade +phenomenal, essa vasta, ruidosa, inundante torrente de livros, alastrando-se, +fazendo pouco a pouco sobre a crosta da terra vegetal do globo, uma +outra crosta de papel impresso em inglez. + +<P> +Não sei se é possivel calcular o numero de volumes publicados annualmente +em Inglaterra. Não me espantaria que se pudessem contar por dezenas +de milhares. Aqui tenho eu deante de mim, no numero de ontem do <i>Spectator</i>, +a lista dos livros lançados esta semana: <SMALL>NOVENTA E TRES OBRAS</SMALL>! +E isto é apenas a lista do <i>Spectator</i>. Apenas o que se chama +<span class="pagenum"><a name="pag_26">[26]</a></span> aqui <i>Litteratura Geral</i>. Não se contam as reimpressões; +nem as edições dos classicos, em todos os formatos, desde o in-folio, +que só um Hercules póde erguer, até ao volume miniatura, cujo typo +reclama microscopio, e em todos os preços desde a edição que custa +50 libras, até á que custa 50 réis: não se contam as traducções de +livros estrangeiros, sobretudo as litteraturas da antiguidade: não +se conta, emfim, essa incessante producção das Universidades, essa +outra levada de gregos e latinos, de commentarios, de glossarios, +de in-folios, que lançam de si, aos caixões, as imprensas de Clarendon. + +<P> +Ha n'esta litteratura geral uma especie de que o inglez não se farta—a +litteratura de viagens. Já não fallo nos romances: isso não constitue +hoje uma producção litteraria, é uma fabricação industrial. + +<P> +Na vida domestica ingleza, a novela tornou-se um objecto de primeira +necessidade como a flanella ou as fazendas de algodão; e, portanto, +toda uma população de romancistas se emprega em manufacturar este +artigo, por grosso, e tão depressa quanto a penna póde escrever, arremessando +para o mercado as paginas mal seccas no ancioso conflicto da concorrencia. + +<P> +Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é tambem consideravel, +e de resto bem explicavel n'uma raça expansiva e peregrinante, com +esquadras <span class="pagenum"><a name="pag_27">[27]</a></span> em todos os mares, colonias em todos os continentes, +feitorias em todas as praias, missionarios entre todos os barbaros, +e no fundo d'alma o sonho eterno, o sonho amado de refazer o Imperio +Romano. Isto produziu um outro typo de industrial das lettras—o +prosador viajante. + +<P> +Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado: +o homem que visitava paizes longinquos, se achava em aventuras pittorescas, +á volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a penna e ia revivendo +esses dias n'uma agradavel rememoração de impressões e paisagens. +Hoje não. Hoje emprehende-se a viagem unicamente para se escrever +o livro. Abre-se o mappa, escolhe-se um ponto do Universo bem selvagem, +bem exotico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um diccionario. +E toda a questão está (como a concorrencia é grande) em saber qual +é o recanto da terra sobre que ainda se não publicou livro! Ou, quando +o paiz é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda alguma aldeola, +algum afastado riacho sobre que se possam produzir trezentas paginas +de prosa... + +<P> +Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto do Globo um sujeito +de capacete de cortiça, lapis na mão, binoculo a tiracollo, não pense +que é um explorador, um missionario, um sabio colligindo floras <span class="pagenum"><a name="pag_28">[28]</a></span>raras—é um prosador inglez preparando o seu volume. + +<P> +Nada elucida como um exemplo. Aqui está a lista dos livros de viagens +publicados em Londres n'estas <i>duas ultimas semanas</i>. + +<P> +É claro que eu não os li, nem sequer os enxerguei. Copio os titulos, +sómente, da lista de dous jornaes de critica: o <i>Atheneum</i> e +a <i>Academy</i>. Note-se que estes livros são quasi sempre bem estudados: +dão o traço e a linha que pinta, a paysagem com a sua côr e luz, a +cidade com o seu movimento e feições; são graphicos e são criticos; +têm a geographia e têm a observação; e mais ou menos fazem reviver +com o detalhe caracteristico, o povo visitado, na sua vida domestica, +a sua religião, a sua agricultura, o seu <i>sport</i>, os seus vicios, +a sua arte se a tem. Calcule-se, pois, a importancia d'esta litteratura, +que se torna assim um inquerito sagaz, paciente, correcto, feito ao +Universo inteiro. + +<P> +Aqui está, com os titulos traduzidos, o que se publicou n'estes quinze +dias: <i>A minha jornada a Medina</i>—<i>Entre os filhos de Han</i>—<i>Nas +aguas salgadas</i>—<i>Longe, nos Pampas</i>—<i>Sanctuarios de +Piemonte</i>—<i>O novo Japão</i>—<i>Uma visita á Abyssinia</i>—<i>Vida +no oeste da India</i>—<i>Pelo Mahakam acima, e pelo Barita abaixo</i>—<i>A +cavallo pela Asia Menor</i>—<i>Scenas de Ceylão</i>—<i>Atravez +de cidades e prados</i>— <span class="pagenum"><a name="pag_29">[29]</a></span> <i>No meu Bungaló</i>—<i>As +terras dos Matabeles</i>—<i>Fugindo para o sul</i>—<i>Terras do +sol da meia-noite</i>—<i>Peregrinações na Patagonia</i>—<i>O +Soudan egypcio</i>—<i>Terra dos Maggiyres</i>—<i>Atravez da Siberia</i>—<i>Notas +do mundo do Oeste</i>—<i>Caminhos da Palestina</i>—<i>Norsk, Lapp +e Finn</i> (onde será isto Santo Deus?!)—<i>Guerras, peregrinações +e ondas</i> (que titulo, Deus piedoso!)—<i>A linda Athenas</i>—<i>A +peninsula do Mar Branco</i>—<i>Homens e casos da India</i>—<i>A +bordo do «Rapoza»</i>—<i>Sport na Crimêa e Caucaso</i>—<i>Nove +annos de caçadas na Africa</i>—<i>Diario de uma preguiçosa na Sicilia</i>—<i>A +leste do Jordão</i>... + +<P> +Ainda ha outros, ainda ha muitos—e em quinze dias! + +<P> +Seria curioso dar parallelamente a lista de poemas, livros de poesias, +odes, balladas, tragedias, annunciados ou já publicados na primeira +quinzena da estação; mas não tenho paciencia em revolver todo esse +lyrismo. Ha uma «grande sensação»: o livro de Dante Rosseti, um dos +mestres modernos: o resto é apenas um bando amoroso e triste de rouxinóes. + +<P> +Não menos espessas, nem menos compactas são as listas dos livros de +Theologia, Controversia, Exegese, etc.,—exhalando de si uma melancholia +de cemiterio. Em metaphysica ha o costumado sortimento—macisso e +vago, como diria Herbert Spencer. <span class="pagenum"><a name="pag_30">[30]</a></span> Em historia, biographia, +critica, as listas bibliographicas vêm riquissimas... Emfim, ao que +parece, é uma formidavel e grandiosa <i>estação de livros</i>. Aos +romances, nem alludo: montões, montanhas—e monturos! + +<P> +Uma pastora meio-selvagem das Ardennes, que nunca vira outro espectaculo +mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia +trazida das suas serranias a Pariz, quando no boulevard passava, com +a tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzella fez-se +branca como a cêra, e só poude murmurar n'uma beatitude suprema: + +<P> +—Jesus! tanto homem! + +<P> +Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridiculo d'esta pastora, e balbuciando, +com a bocca aberta, como se chegasse tambem das Ardennes: + +<P> +—Jesus! tanto livro! + +<P> +Mas não é este grito, como o da pastora, natural? + +<P> +O beduino do deserto d'Oeste, que, passando a Serrania Lybica, avista +pela primeira vez, immenso, lento, enchendo um valle, o rio Nilo, +exclama espantado: + +<P> +—Allah! tanta agua! + +<P> +A agua é a sua preoccupação: todas as tristezas das areias que habita +vêm da falta da agua: mais <span class="pagenum"><a name="pag_31">[31]</a></span> que ninguem sente as maravilhas +que a agua produz; e no seu grito ha uma timida reprehensão a Allah! +«Tanta agua aqui, e tão pouca lá d'onde eu venho!...» + +<P> +Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor +astuto. +<span class="pagenum"><a name="pag_32">[32]</a></span> + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_33">[33]</a></span> +<H1><A NAME="SECTION00300000000000000000"> +III +<BR> +O INVERNO EM LONDRES</A> +</H1> + +<P> +Eis ahi o inverno. Já todos os dias o encontro, e, agora mesmo, lhe +ouço fóra, na rua, sob a nevoa tristonha d'esse fim d'outubro, a voz +dolente e vaga: não é o velho semi-deus de attributos mythologicos, +com a barba em flocos de neve sobre o manto branco de neve, soprando +nos dedos, e o classico feixe de lenha a tiracollo: é um rapagão enfarruscado, +de casquete e chicote em punho, que vae conduzindo uma carroça negra +com um forte <i>percheron</i> aos varaes, pelo macadam já endurecido +da geada, e soltando de porta em porta, o seu pregão melancholico: +<i>Coals! coals!</i> (carvão! carvão!) + +<P> +Estão, pois, findos os dias purpureados do lindo outomno inglez! Nada +iguala o encanto suavizador e meigo dos meados d'outubro nestes condados +do <span class="pagenum"><a name="pag_34">[34]</a></span> Sul. Um passeio, ao meio da tarde, nas pittorescas +margens do Severn, ou ainda ao longo do Avon, riba que a memoria de +Shakspeare torna quasi sagrada, ou pelas collinas amaveis de Surrey, +é o mais belo, o mais util repouso que póde ter o espirito sobresaltado, +cançado dos livros, ou do duro movimento da vida. + +<P> +Tem-se aqui alguma coisa d'aquella paz etherea, que os poetas pagãos +sonhavam nas perspectivas ineffaveis dos Elysios: sómente a natureza +particular do Norte, as linhas da architectura saxonia, o arranjo +das culturas, dão a feição romantica e elegiaca que falta á paysagem +latina. + +<P> +Caminha-se n'uma luz ligeira, de um dourado triste, de um enternecimento +quasi magoado: o verde das relvas sem fim que se pisam, verde repousado +e adormecido sob as grandes ramagens das arvores seculares e aristocraticas, +solemnes, isoladas, immoveis n'um recolhimento religioso, leva a alma +insensivelmente para alguma cousa de muito alto e de muito puro: ha +um silencio de uma extraordinaria limpidez, como o que deve haver +por sobre as nuvens, um silencio que não existe na paysagem dos climas +quentes, onde o labor incessante das seivas muito forte parece fazer +um vago rumorido, um silencio que pousa no espirito com a influencia +de uma caricia. E a cada momento são fundos encantadores <span class="pagenum"><a name="pag_35">[35]</a></span>de paysagem, de um vaporisado azul, com alguma torre d'Abbadia coberta +de heras, que surge d'entre robles, ou uma rica avenida de parques, +onde se entreveem vestidos claros correndo sobre as relvas, ou a historica +architectura de um castello, de bandeira feudal na torre, que de repente +apparece n'uma elevação, com os seus terraços de marmore escuro, os +grandes prados onde pastam ou repousam os animaes de luxo, os faiscantes +meandros do rio entre a verdura e sons tristes de trompa, vindos da +profundidade dos arvoredos... + +<P> +D'aqui a dias, porém, por collina e valle, só haverá a triste nevoa +humida que dura mezes, ou a neve redemoinhando ao vento... + +<P> +Esta monotonia, que começa escurecendo os campos desde novembro, vae +causar este anno uma innovação excellente nos costumes sociaes da +Inglaterra. Vae haver, de dezembro a maio, uma <i>estação d'inverno</i> +em Londres. + +<P> +Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de maio até aos +primeiros dias quentes de agosto. O resto do anno, Londres é a cahida +Palmyra ou a tenebrosa planicie do deserto da Petrêa. Ficam lá, é +verdade, entre tres a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade +subalterna, feita de barro villão, sem valor social em Inglaterra: +é a humanidade que não tem castellos, nem parques <span class="pagenum"><a name="pag_36">[36]</a></span> de tres +legoas, nem o seu nome no <i>Livro d'Ouro</i>, nem <i>yachts</i> de +luxo para bordejar nas costas da Escossia; é a humanidade que não +tem nas arterias o famoso <i>sangue normando</i>, esse sangue invejado, +mais precioso que o de Christo, cantado por todos os poetas da côrte, +e que foi importado pelos brutamontes cobertos de ferro, e pelludos +como féras, que acompanhavam a estas ilhas Guilherme da Normandia; +é emfim a humanidade que Carlos Stuart, o Bem-amado, chamava a <i>canalha</i>, +e que o grande sacerdote da <i>Bella Helena</i>, o pobre Offenbac, +designava, com tanto criterio, pelo nome de <i>vil multidão</i>:—é +o trabalhador, o artifice, o artista, o professor, o philosopho, o +operario, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz. + +<P> +É esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade +superior, os <i>dez mil de cima</i>, como aqui tão pittorescamente +se diz, partem para os seus castellos, as suas <i>villas</i> á beira +mar, ou os seus <i>yachts</i>.—Londres, apenas habitado pela turba +abjecta, torna-se sobre a face da terra, como a lamentavel Cacilhas. +Nenhum <i>gentleman</i> que se respeite e queira manter o seu bom +nome social ousaria confessar que esteve em Londres em janeiro: correria +o risco de ser tomado por um tendeiro, ou, peior, por um philosopho, +um poeta, um d'esses seres rastejantes, vis como o lixo, sem castello +e sem <span class="pagenum"><a name="pag_37">[37]</a></span> matilha de cães, que nenhuma <i>Lady</i> quereria +ter no seu «rol de visitas». + +<P> +Se um <i>gentleman</i>, tendo negócios instantes em Londres, é forçado +a vir a este deserto de plebeus, guarda um <i>incognito</i> severo; +não chegará talvez a pôr barbas postiças; mas só se arrisca pelas +ruas no fundo escuro de um cupé com os <i>stores</i> descidos, e o +paletot rebuçando-lhe a face. Todavia uma aventura tão poderosa poucos +a ousam! + +<P> +Pois bem, tudo isto se vae reformar! E este anno será moda passeiar +em Piccadilly, ou florear de rosa ao peito em Pall-Mall, em pleno +janeiro, na espessura dos nevoeiros. Esta revolução consideravel foi, +como todas as fecundas revoluções, tramada, prégada, popularisada +pelas mulheres. + +<P> +Havia longos annos que estes anjos soffriam com impaciencia a melancholia +da vida do campo, durante o longo inverno saxonio. Ainda, nos primeiros +tempos, depois de deixar as glorias de Londres e os esplendores da +<i>season</i>, a existencia era toleravel. Havia as regatas elegantes +de Cowes; ia-se estar uma semana na ilha de Wight; depois vinham as +festas da abertura da caça; seguia-se a epocha dos <i>yachts</i>, +as viagens ás costas da Noruega, ás Hebbidas, ás praias elegantes +da Normandia; depois, quando a côrte está na Escossia, vinha a caça +do veado, os bailes de <i>gellies</i> das montanhas... Emfim, vivia-se. +<span class="pagenum"><a name="pag_38">[38]</a></span> +<P> +Mas, com a chegada de dezembro, da neve, uma formidavel lei social, +a <i>fashion</i>, obrigava os <i>dez mil de cima</i> a recolherem-se +aos seus castellos, á solidão do campo. E ahi começava para as damas +o tedio memoravel! + +<P> +Quando se não tem um <i>chateau</i> e parque como os de Inglaterra, +póde parecer um sonho de paraizo o viver n'essas faustosas residencias, +entre maravilhas d'arte, accumuladas por gerações, com mobilias de +duzentos contos, um serviço de sessenta criados, vinte cavallos na +cocheira e um parque de trez legoas, um parque de romance, para passeiar +sobre a neve dura quando o ceu brilha claro. Mas a desgraçada dama, +desde o seu primeiro dente acostumada a tantos explendores, já lhes +não encontra encanto; uma simples corrida, n'um velho fiacre de Londres, +de loja em loja, é-lhe cem vezes mais doce. + +<P> +Depois, a vida do castello é de um vasio pardo e tristonho. Os homens, +esses, de manhã, teem a caça, os galopes furiosos, devorando prados, +saltando sebes atraz de uma raposa espavorida, ao grito barbaro de +<i>hally-hó!</i> Depois á noite, tomado o banho e vestida a casaca, +tem o grog forte no <i>fumoir</i>. Mas as desgraçadas damas? Todas +bebem grog—mas raras são as que caçam. O dia é-lhes lugubre. Uma +burgueza, em Inglaterra, tem sempre uma occupação, mesmo nas existencias +ricas: borda, pinta em porcellana, <span class="pagenum"><a name="pag_39">[39]</a></span> faz camisas para os +pequenos Patagonios, ensina a ler os filhos dos caseiros, escreve +as suas memorias ou corresponde-se com um Theologo sobre pontos difficeis +de doutrina. Mas um dama das <i>dez mil</i> não faz nada; os seus +grandes talentos, a <i>toilette</i>, a graça de receber, a intriga +politica, o brilho da conversação, o <i>chic</i> esthetico, cousas +em que prima, não lhe servem no isolamento relativo do castello, sob +as torrentes da chuva. O seu palco natural é o salão de Londres. Alli +no campo, nas longas galerias onde pendem as bandeiras que os seus +antepassados tomaram em Azincourt ou Poitiers, ou, se os avósinhos +nunca invadiram a França, as bandeiras compradas no antiquario da +esquina, <i>Mylady</i> boceja; ou estendida n'um sofá, na sua <i>robe-de-chambre</i> +de brocado branco de Genova, com uma novella cahida no regaço, olha +os flocos de neve empoando os grandes carvalhos do parque... + +<P> +Depois vem a noite. É o peior. Os homens que fizeram talvez cinco +legoas de galope atraz das rapozas, ou que se estiveram adestrando +em jogos athleticos, têm somno. De gardenia na casaca e perola negra +na camisa, estendidos para o fundo do sofá, derreados, meio adormentados +pelo <i>Nocturno</i> de Chopin que um anjo louro preludia ao fundo +da sala, são tão inuteis para a <i>flirtation</i>, o espirito, a intriga, +o amor, como se fossem empalhados. <span class="pagenum"><a name="pag_39">[39]</a></span> +<P> +Debalde as pobres damas fizeram uma <i>toilette</i> de duzentas libras: +debalde resplandecem, ás mil luzes de cêra, os seus hombros de deusas. +De nada valle. O <i>gentleman</i> anceia por deixar a sala, ir reconfortar-se +com o seu <i>brandy and soda</i>, estirar aquelles membros que a raposa +cançou, em lençóes bem perfumados e bem <i>bassinés</i>, e ressonar +forte. + +<P> +Esta situação era intoleravel. + +<P> +E os homens mesmo soffriam. Galopar n'um cavallo de preço sobre a +terra dura da neve, ao ladrar da matilha, por uma manhã de brisa fria—tem +encanto. Mas póde-se isso comparar á delicia de ir tagarelar para +o <i>club</i>, ter todas as noites trez ou quatro bailes, fazer phrases +sobre a questão do Oriente, e ceiar com Miss Fanny, n'um quente <i>boudoir</i> +de veludo, emquanto fóra a plebe patinha na lama de Londres?! Não, +não se póde comparar. + +<P> +E por isso veio o momento psychologico, como diz esse illustre homem +de prosa, o snr. De Bismarck, em que <i>ladies</i> e <i>lords</i> +concordaram que o inverno no campo era bom para os lobos; e que para +pares de Inglaterra, Londres era preferivel. E ahi está como se vae +ter esta cousa inesperada na vida ingleza—<i>o inverno em Londres</i>. + +<P> +E, todavia, Deus sabe que elle não é agradavel, esse inverno de Londres! +De manhã, ao acordar, tem-se deante da janella uma sombra opaca, espessa, +parda, <span class="pagenum"><a name="pag_41">[41]</a></span> arripiadora e sinistra: é necessario fazer a barba, +com o gaz flammejando; almoça-se com todas as velas do candelabro +accesas, e a carruagem que nos conduz é precedida de um archote. Ao +meio dia esta decoração de inverno muda; a sombra perde o tom pardo +e, por gradações odiosas, ganha um amarello de óca e começa a exalar +um vapor fetido. Respira-se mal, a roupa toma um pegajoso humido sobre +a pelle, os edificios que nos cercam apparecem com as linhas vagas +e chimericas das cidades malditas do Apocalypse, e o estrondo de Londres, +este rude, tremendo estrepito, que deve lá em cima incommodar a corte +do ceu, adquire uma tonalidade surda e roncante como um fragor n'um +subterraneo. + +<P> +Depois, á noite, outra mudança: toda esta sombra, este nevoeiro grosso, +molle gorduroso, desfaz-se em chuva... Em chuva, digo eu? Em lama, +em lama mal liquida, que escorre, pinga, vem babada de um ceu negro. + +<P> +O gaz parece côr de sangue; como todo o mundo, para combater esta +nevoa gelante e mortal, bebe forte e bebe seguido, ha nas ruas um +vago vapor de alcool, que passa nos halitos: isto excita, irrita, +impelle a turba ao vicio. O ruido intoleravel das ruas, a pressa da +multidão violenta, o rude flammejar das vitrinas dão uma acceleração +brutal ao sangue, uma vibração quasi dolorosa aos nervos; pensa-se +<span class="pagenum"><a name="pag_42">[42]</a></span> com intensidade, caminha-se com impeto, deseja-se com +furor; a besta humana inflamma-se: quer-se alguma coisa de forte e +de animal, a lucta, o excesso, a gula, o abrasado do <i>cognac</i>, +a paixão. Londres n'uma noite de inverno, exhala violencia e crime. +E póde-se affirmar que em cada uma das tipoias, que, aos milhares +e aos milhares, passam como flechas, n'um relampejar rubro de lanternas, +vae um cidadão ou uma cidadã commettendo ou preparando-se para commetter, +com excepção da preguiça, um dos sete peccados mortaes. + +<P> +De uma coisa se póde ter a certeza: é que não ha de faltar, aos que +vão fazer o seu inverno a Londres, <i>assumpto de cavaco</i>. Além +dos livros que se annunciam, dos escandalos que não hão-de faltar, +das modas que sempre se inventam, a politica, só por si, é todo um +ramalhete; revolta certa na Irlanda; processo por alta traição dos +chefes da <i>Liga da Terra</i>, deputados da Irlanda; nova guerra +no Afghanistan, onde Cabul se insurreccionou; toda a Africa do Sul +em rebellião; complicações sinistras do lado do Oriente; desintelligencias +estridentes entre os radicaes no poder... Emfim, um encanto. + +<P> +Era em circumstancias identicas que o famoso Granville, o homem das +<i>Memorias</i>, olhando n'um começo de primavera para todos os lados +do horizonte politico e social, e não vendo (em 1830) senão <span class="pagenum"><a name="pag_43">[43]</a></span>presagios negros de revolta, guerra, crises e perigos para a patria, +dizia, banhado em jubilo, quasi em extasi: + +<P> +—Meu Deus, que deliciosas noites se vão passar no Club! +<span class="pagenum"><a name="pag_44">[44]</a></span> + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_45">[45]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION00400000000000000000"> +IV +<BR> +O NATAL</A> +</H1> + +<P> +O Natal, a grande festa domestica da Inglaterra, foi este anno triste—d'essa +tristeza particular que offerece, por um dia de calma ardente, a praça +deserta de uma villa pobre, ou d'essa melancholia que infundem umas +poucas de cadeiras vazias em torno de um fogão apagado, n'uma sala +a que se não voltará mais... + +<P> +O que nos estragou o Natal, não fôram decerto as preoccupações politicas, +apesar da sua negrura de borrasca. Nem a rebellião do Transvaal em +que os Boeres debutaram por exterminar o 94 de linha, um dos mais +experimentados e gloriosos regimentos da Inglaterra e que ameaça ensanguentar +toda a Africa do Sul n'uma guerra de raças; nem a situação da Irlanda, +que já não é governada pela Inglaterra, <span class="pagenum"><a name="pag_46">[46]</a></span> mas pelo comité +revolucionario da <i>Liga Agraria</i>—seriam inquietações sufficientes +para tirar o sabor tradicional ao <i>plum-pudding</i> do Natal. As +desgraças publicas nunca impedem que os cidadãos jantem com appetite: +e miserias da patria, emquanto não são tangiveis e se não apresentam +sob a fórma flammejante de obuzes rebentando n'uma cidade sitiada, +não tirarão jámais o somno ao patriota. + +<P> +Não; o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. Um Natal +como este que passamos, com um sol de uma pallidez de convalescente, +deslizando timidamente sobre uma immensa peça de seda azul desbotada, +um Natal sem neve, um Natal sem casacos de pelles, parece tão insipido +e tão desconsolado como seria em Portugal a noite de S. João, noite +de fogueiras e descantes, se houvesse no chão tres palmos de neve +e cahisse por cima o granizo até de madrugada! Um desapontamento nacional! + +<P> +Para comprehender bem o encanto da neve d'este famoso Natal inglez, +basta examinar alguma das pinturas, gravuras ou oleografias que o +têm popularizado. + +<P> +O assumpto não varia na paysagem repetida: é sempre a mesma entrada +d'um parque, de apparencia feudal, por vesperas do Natal, antes da +meia-noite; o ceu pesado de neve suspensa parece uma gaze suja: e +a perder de vista tudo está coberto da <span class="pagenum"><a name="pag_47">[47]</a></span> neve cahida, uma +neve branca, fôfa, alta, que faz nos campos um grande silencio. Junto +á grade do parque, uma mulher e duas creanças, atabafadas nos seus +farrapos, com lampeões na mão, vão cantando as lôas; e ao fundo, entre +as ramagens despidas, ergue-se o massiço castello, com as janellas +flammejando, abrasadas da grande luz de dentro e da alegria que as +habita. + +<P> +E toda a poesia do Natal está justamente n'essas janellas resplandecendo +na noite nevada. + +<P> +Felizes aquelles para quem essas portas difficeis se abrem. Logo ao +entrar na ante-camara os tectos, as humbreiras, os espaldares das +cadeiras, os tropheus de caça, apparecem adornados das verduras do +Natal, das ramagens sagradas do carvalho celtico; e pelas paredes, +em lettras douradas ondeiam os disticos tradicionaes—<i>Merry +Christmas! Merry Christmas! alegre Natal! alegre Natal!</i> E o mesmo +grito se repete nos <i>shakehands</i> que se dão ao hospede. + +<P> +Sob a chaminé estala e dança a grande fogueira do Natal: a sua luz +rica faz parecer de ouro os cabellos louros, e de prata as barbas +brancas. + +<P> +Tudo está enfeitado como n'uma paschoa sagrada: dos retratos dos avós +pendem ramos de flôres de inverno, as flôres da neve, e todas as pratas +da casa scintillam sobre os aparadores, n'uma solemnidade patriarchal. +Dos grandes lustres balança-se o <span class="pagenum"><a name="pag_48">[48]</a></span> ramo symbolico do <i>mistletoe</i>, +o ramo do amor domestico: e ai das senhoras que um momento pararem +sob a sua ramagem! Quem assim as surprehender tem direito a beija-las +n'um grande abraço! Tambem, que voltas sabias, que estrategia complicada, +para evitar o ramo fatidico! Mas, pobres anjos! ou se enganam ou se +assustam, e a cada momento é sob o <i>mistletoe</i> um grito, um beijo, +dois braços que prendem uma cinta fugitiva... + +<P> +E o piano não se cala n'estas noites! É alguma velha canção ingleza, +em que se falla de torneios e cavalleiros, ou uma dança da Escossia, +que se baila com o gentil ceremonial do passado. + +<P> +E por corredores e salas, as creanças, os bébés, com os cabellos ao +vento, vestidos de branco e côr de rosa, correm, cantam, riem, vão +a cada momento espreitar os ponteiros do relogio monumental, porque +á meia-noite chega Santo Claus, o veneravel Santo Claus, que tem trez +mil annos de edade e um coração de pomba, e que já a essa hora vem +caminhando pela neve da estrada, rindo com os seus velhos botões, +apoiado ao seu cajado, e com os alforges cheios de bonecos. Amavel +Santo Claus! por um tempo tão frio, n'aquella edade, deixar a cabana +de algodão que elle habita no paiz da Legenda, e vir por sobre ondas +do mar e ramagens de florestas trazer a estes bébés o seu Natal! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_49">[49]</a></span>Tambem, como elles o adoram, o bom Claus! E apenas elle +chegar, como correrão todos, em triumpho, a puxal-o para o pé do lume, +a esfregar-lhe as decrepitas mãos regeladas, a offerecer-lhe uma taça +de prata cheia de hidromel quente—que elle bebe d'um trago, o glutão! +Depois abrem-se-lhe os alforges. Quantas maravilhas!... + +<P> +Mas d'estes personagens que apparecem pelas consoadas, o meu predilecto +é <i>Father Christmas—o papá Natal</i>. + +<P> +Esse, porém, só póde ser admirado em toda a sua gloria, quando se +abre a sala da ceia: então lá está sobre o seu pedestal, ao centro +da meza—que lhe põe em torno, com os crystaes e os pratos, um amavel +brilho d'aureola caseira. Bem vindo, papá Natal! Boas noites, papá +Natal! + +<P> +O respeitavel ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado +de neve, as mãos escondidas nas largas mangas de frade, o olho maganão +e jovial, esgarça a bocca n'um riso de felicidade sem fim, e as suas +enormes barbas de algodão pendem-lhe até aos pés. Todas as creanças +o querem abraçar, e elle não se recusa, porque é indulgente. + +<P> +E quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarchal riso se escancara; +as bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe, +e alli está, bonacheirão e veneravel, com a importancia de <span class="pagenum"><a name="pag_50">[50]</a></span>um deus tutelar e amado, como a encarnação sacramental da alegria +domestica. + +<P> +E no emtanto fóra, na neve, as pobres creanças cantam as lôas: e com +que vigor as cantam! É que ellas sabem que não serão esquecidas: e +que d'aqui a pouco a grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao +peso de toda a sorte de cousas bôas, peças de carne, empadas, vinho, +queijos—e mesmo bonecas para os pequenos; porque Santo Claus é um +democrata, e, se enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo +de os vêr esvaziados no regaço dos pobres. + +<P> +Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado. +O Natal com uma lua côr de manteiga a bater n'uma terra tepida de +Primavera torna-se apenas uma data no calendario. O lume não tem poesia +intima; não ha lôas; Santo Claus não vem; o papá Natal parece um boneco +insipido; não se colhe o <i>mistletoe</i>. Não ha mesmo a alegria +de abrir a janella e pôr no rebordo, dentro d'uma malga, a ceia de +migalhas do Natal para os pardaes e para os outros passarinhos que +tanta fome soffrem pelas neves. Emfim, não ha Natal! Foi o que succedeu +este anno... + +<P> +Resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o +essencial; pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto +e se se não <span class="pagenum"><a name="pag_51">[51]</a></span> tiritou toda a noite entre quatro farrapos, +é perfeitamente indifferente que nos castellos as damas bocejassem. + +<P> +Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem, como o +lume do salão chegue a aquecer—quando se considere que lá fóra ha +quem regele, e quem rilhe, a um canto triste, uma codea de dois dias. +É justamente n'estas horas de festa intima, quando pára por um momento +o furioso galope do nosso egoismo—que a alma se abre a sentimentos +melhores de fraternidade e de sympathia universal, e que a consciencia +da miseria em que se debatem tantos milhares de creaturas, volta com +uma amargura maior. Basta então vêr uma pobre creança, pasmada deante +da <i>vitrine</i> de uma loja, e com os olhos em lagrimas para uma +boneca de pataco, que ella nunca poderá apertar nos seus miseraveis +braços—para que se chegue á facil conclusão que isto é um mundo +abominavel. D'este sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, +findas as consoadas, o egoismo parte á desfilada, ninguem torna a +pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionarios endurecidos, +dignos do carcere—e a miseria continúa a gemer ao seu canto! + +<P> +Os philosophos affirmam que isto ha-de ser sempre assim: o mais nobre +de entre elles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, +ameaçou-n'os, <span class="pagenum"><a name="pag_52">[52]</a></span> n'uma palavra immortal, <i>que teriamos +sempre pobres entre nós</i>. Tem-se procurado com revoluções successivas +fazer falhar esta sinistra profecia—mas as revoluções passam e os +pobres ficam. + +<P> +N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes +os servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque +de Leicester está retirando annualmente, do trabalho duro que elles +fazem, <i>quatrocentos contos de reis de renda</i>! É verdade que +a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque de Leicester +se arriscava a visitar o seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, +quatro lindas balas no craneo. + +<P> +E o resultado? D'aqui a vinte annos os trabalhadores de Leicester +estarão de novo a soffrer a fome e o frio—e o filho do duque de +Leicester, duque elle mesmo então, voltará a arrecadar os seus quatrocentos +contos por anno. + +<P> +Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter +um proletariado faminto n'uma burguezia farta; mas surge logo das +entranhas da sociedade um proletariado peior. Jesus tinha razão: haverá +sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior +erro que jámais Deus cometeu. + +<P> +Aqui estamos sobre este globo ha doze mil annos a girar fastidiosamente +em torno do Sol e sem <span class="pagenum"><a name="pag_53">[53]</a></span> adiantar um metro na famosa <i>estrada +do progresso e da perfectibilidade</i>: porque só algum ingenuo de provincia +é que ainda considera <i>progresso</i> a invenção ociosa d'esses bonecos +pueris que se chamam machinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas +prosas laboriosas e difusas que se denominam <i>systemas sociaes</i>. + +<P> +Nos dois ou trez primeiros mil annos de existencia trepámos a uma +certa altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo +n'uma cambalhota secular. + +<P> +O typo secular e domestico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como +uma vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito +que o nosso organismo domestico e social. Já não fallo de gregos e +romanos: ninguem hoje tem bastante genio para compôr um côro d'Éschylo +ou uma pagina de Virgilio; como escultura e architectura, somos grotescos; +nenhum millionario é capaz de jantar como Lucullus; agitavam-se em +Athenas ou Roma mais ideias superiores n'um só dia do que nós inventamos +n'um seculo; os nossos exercitos fazem rir, comparados ás legiões +de Germanicus; não ha nada equiparavel á administração romana; o <i>boulevard</i> +é uma viella suja ao lado da Via Áppia; nem uma Aspasia temos; nunca +ninguem tornou a fallar como Demosthenes—e o servo, o escravo, essa +miseria <span class="pagenum"><a name="pag_54">[54]</a></span> da Antiguidade, não era mais desgraçado que o +proletario moderno. + +<P> +De facto, póde-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu veneravel +pae—o macaco: excepto em duas coisas temerosas—o soffrimento moral +e o soffrimento social. + +<P> +Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inutil: afogal-a +n'um diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que +o levou a poupar Noé; se não fôsse o egoismo senil d'esse patriarcha +borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós +hoje gosariamos a felicidade ineffavel de <i>não sermos</i>... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_55">[55]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION00500000000000000000"> +V +<BR> +Litteratura de Natal</A> +</H1> + +<P> +Uma das cousas encantadoras que nos traz o Natal, são esses lindos +livros para creanças, que constituem a <i>litteratura de Natal</i>. + +<P> +Não falo desses extraordinarios volumes dourados publicados pelos +editores francezes, em encadernações decorativas como fachadas de +cathedraes, que custam uma fortuna; contém um texto que nunca ninguem +lê e são offerecidos ás creanças, mas realmente servem para obsequiar +os papás. Os pobres pequenos nada gosam com esses monumentos typographicos; +apenas se lhes permite vêr de longe as gravuras a aço, sob a fiscalização +da mamã, que tem medo que se deteriore a encadernação; e o resplandecente +volume orna d'ahi por deante a jardineira da sala, ao lado do candieiro +vistoso. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_56">[56]</a></span>Em Inglaterra existe uma verdadeira litteratura para creanças, +que tem os seus classicos e os seus inovadores, um movimento e um +mercado, editores e genios—em nada inferior á nossa litteratura +de homens sisudos. Aqui, apenas o bébé começa a soletrar, possue logo +os seus livros especiaes: são obras adoraveis, que não contém mais +de dez ou doze paginas, intercaladas de estampas, impressas em typo +enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assumpto é +uma historia, em seis ou sete phrases, e decerto menos complicada +e dramatica que <i>O Conde de Monte-Christo</i> ou <i>Nana</i>; mas +emfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catastrophe. + +<P> +Tal é, para dar um exemplo, a lamentavel tragedia dos <i>Tres velhos +sabios de Chester</i>: eram muitos velhos e muito sabios; e para discutirem +cousas da sua sabedoria, metteram-se dentro de uma barrica, mas um +pastor que vinha a correr atráz de uma ovelha, deu um encontrão ao +tonel, e ficaram de pernas ao ar os tres velhos sabios de Chester! + +<P> +Como estas ha milhares: a <i>Cavallgada de João Gilpin</i> é uma obra +de genio. + +<P> +Depois, quando o bébé chega aos seus oito ou nove annos, proporciona-se-lhe +outra litteratura. Os sabios, a barrica, os trambulhões, já o não +interessariam; vêm então as historias de viagens, de caçadas, <span class="pagenum"><a name="pag_57">[57]</a></span>de naufragios, de destinos fortes, a salutar chronica do triumpho, +do esforço humano sobre a resistencia da natureza. + +<P> +Tudo isto é contado n'uma linguagem simples, pura, clara—e provando +sempre que na vida o exito pertence áqueles que têm energia, disciplina, +sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espirito da creança para +o paiz do maravilhoso:—não ha n'estas litteraturas nem fantasmas, +nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se +para a gente grande. E quando se falla de anjos ou de fadas é de modo +que a creança, naturalmente, venha a rir-se d'esse lindo sobrenatural, +e a consideral-o do genero <i>boneco</i>, como os seus proprios carneirinhos +de algodão. + +<P> +O que se faz ás vezes é animar de uma vida ficticia os companheiros +inanimados da infancia: as bonecas, os polichinellos, os soldados +de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existencia d'uma +boneca honesta e infeliz: ou os soffrimentos por que passou em campanha, +n'uma guerra longinqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta litteratura +é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez +a creança—mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos +e miserias atravessaram aquelles seus amigos, os guerreiros de chumbo, +cujas bayonetas torcidas <span class="pagenum"><a name="pag_58">[58]</a></span> ella todos os dias endireita +com os dedos: e assim póde ficar depositado n'um espirito de creança +um justo horror da guerra. + +<P> +As lições moraes que se dão d'este modo são innumeraveis, e tanto +mais fecundas quanto sahem da acção e da existencia dos sêres que +ella melhor conhece—os seus bonecos. + +<P> +Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze annos: +popularisações de sciencias; descripções dramaticas do universo; estudos +captivantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; +a historia; e, emfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada +de modo que nem uma realidade muito crúa ponha no espirito tenro securas +de misanthropia, nem uma falsa idealisação produza uma sentimentalidade +morbida. + +<P> +É no Natal, principalmente, que esta litteratura floresce. As lojas +dos livreiros são então um paraizo. Não ha nada mais pittoresco, mais +original, mais decorativo, que as encadernações inglezas; e as estampas, +as côres leves e aguadas, offerecem quasi sempre verdadeiras obras +d'arte, de graça e d'<i>humour</i>. + +<P> +Não sei se no Brazil existe isto. Em Portugal, nem em tal jámais se +ouviu fallar. Apparece uma ou outra d'essas edições de luxo, de Pariz, +de que fallei, e que constituem ornatos de sala. A França <span class="pagenum"><a name="pag_59">[59]</a></span>possue tambem uma litteratura infantil tão rica e util como a de Inglaterra: +mas essa Portugal não a importa: livros para completar a mobilia, +sim; para educar o espirito, não. + +<P> +A Belgica, a Hollanda, a Allemanha, prodigalisam estes livros para +creanças; na Dinamarca, na Suecia, elles são uma gloria da litteratura +e uma das riquezas do mercado. + +<P> +Em Portugal, nada. + +<P> +Eu ás vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres +creanças. Creio que se lhes dá Filinto Elysio, Garção, ou outro qualquer +desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação +pela leitura. + +<P> +Isto é tanto mais atroz quanto a creança portuguesa é excessivamente +viva, intelligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portuguezes, +só começamos a ser idiotas—quando chegamos á edade da razão. Em +pequenos, temos todos uma pontinha de genio: e estou certo que se +existisse uma litteratura infantil como a da Suecia ou da Hollanda, +para citar só paises tão pequenos como o nosso, erguer-se-hia consideravelmente +entre nós o nivel intellectual. + +<P> +Em logar d'isso, apenas a luz do entendimento se abre aos nossos filhos, +sepultamol-a sob grossas camadas de latim! Depois do latim accumulamos +a <span class="pagenum"><a name="pag_60">[60]</a></span> rhetorica! Depois da rhetorica atulhamol-a de logica +(de logica, Deus piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o +monumento da camelice! + +<P> +Pois bem; eu tenho a certeza que uma tal litteratura infantil penetraria +facilmente nos nossos costumes domesticos e teria uma venda proveitosa. +Muitas senhoras, intelligentes e pobres, se poderiam empregar em escrever +essas faceis historias: não é necessario o genio de Zola ou de Thackeray +para inventar o caso dos <i>tres velhos sabios de Chester</i>. Ha +entre nós artistas, de lapis facil e engraçado, que commentariam bem +essas aventuras n'um desenho de simples contorno, sem sombras e sem +relevo, lavado a côres transparentes... E quantos milhares de creanças +se fariam felizes, com esses bonitos livros—que, para serem populares +e se poderem despedaçar sem prejuizo, devem custar menos de um tostão! + +<P> +Eu bem sei que esta ideia de compôr livros para creanças faria rir +Lisboa inteira. Tambem, não é a Lisboa que eu a offereço. Lisboa não +se occupa d'estes detalhes. + +<P> +Lisboa quer cousa superior; quer a bella estrophe lyrica, o rico drama +em que se morre de paixão ao luar, o <i>fadinho</i> ao piano, o saboroso +namoro de escada, a endeixa plangente, a bôa facadinha á meia noite, +o discurso em que se cita o Golgotha, a andaluza <span class="pagenum"><a name="pag_61">[61]</a></span> de cuia—emfim, +tudo o que o romantismo portuguez inventou de mais nobre. Educar os +seus filhos intelligentemente, está decerto abaixo da sua dignidade. + +<P> +Mas, emfim, se estas linhas animassem ahi no Brazil, ou entre a colonia +portugueza, um escriptor, um desenhista e um editor, a prepararem +alguns bons livros, bem engraçados, bem alegres, para os bébés—eu +teria feito ao imperio um serviço colossal, que não sei como me poderia +ser recompensado. + +<P> +Uma bôa fazenda, de rendimento certo, n'uma provincia rica, com casa +já mobilada e alguns cavallos na cavallariça, não seria talvez de +mais. Se a gratidão do governo imperial quizesse juntar a isto, para +alfinetes, um ou dois milhões em ouro, eu não os recusaria. E se me +não quizessem dar nada, bastar-me-hia então que um só bébé se risse +e fôsse alguns minutos feliz. Pensando bem—é esta a recompensa que +prefiro. +<span class="pagenum"><a name="pag_62">[62]</a></span> + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_63">[63]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION00600000000000000000"> +VI +<BR> +Israelismo</A> +</H1> + +<P> +As duas grandes «sensações» do mez são incontestavelmente a publicação +do novo romance de Lord Beaconsfield, <i>Endymion</i>, e a agitação +na Allemanha contra os Judeus. Litterariamente, pois, e socialmente +o mez pertence aos israelitas. Este extraordinario movimento anti-judaico, +esta inacreditavel ressurreição das coleras piedosas do seculo XVI +é vigiada com tanto mais interesse em Inglaterra quanto aqui, como +na Allemanha, os judeus abundam, influindo na opinião pelos jornaes +que possuem (entre outros o <i>Daily Telegraph</i>, um dos mais importantes +do reino), dominando o commercio pelas suas casas bancarias e em certos +momentos mesmo governando o Estado pelo grande homem da sua raça, +o seu propheta maior, o proprio Lord Beaconsfield. Aqui, decerto, +<span class="pagenum"><a name="pag_64">[64]</a></span> estamos longe de vêr desencadear um odio nacional, uma +perseguição social contra os judeus; mas ha sufficientes symptomas +de que o desenvolvimento firme d'este Estado israelita dentro do Estado +christão começa a impacientar o inglez. Não vejo, por exemplo, que +o que se está passando na Allemanha, apesar de exhalar um odioso cheiro +d'auto-de-fé, provoque uma grande indignação da imprensa liberal de +Londres: e já mesmo um jornal da auctoridade do <i>Spectator</i> se +vê forçado a attenuar, perante os graves protestos da colonia israelita, +artigos em que descrevera os judeus como uma corporação isolada e +egoista, á semelhança das communidades catholicas, trabalhando só +no mesmo interesse, encerrando-se na força da sua tradição e conservando +sympathias e tendencias manifestamente hostis ás do estado que os +tolera. Tudo isto é já desagradavel. + +<P> +Mas que diremos do movimento na Allemanha? Que em 1880, na sabia e +tolerante Allemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhauer, com +os professores Strauss e Hartmann, vivos e trabalhando, se recomece +uma campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador +Maximiliano estivesse ainda, do seu acampamento de Padua, decretando +a destruição da lei Rabbinica e ainda prégasse em Colonia o furioso +<i>Grão-de-Pimenta</i>, geral dos dominicanos—é facto para ficar +de bocca aberta <span class="pagenum"><a name="pag_65">[65]</a></span> todo um longo dia de Verão. Porque emfim, +sob fórmas civilizadas e constitucionaes (petições, <i>meetings</i>, +artigos de revista, pamphletos, interpellações) é realmente a uma +perseguição de judeus que vamos assistir, das boas, das antigas, das +Manuelinas, quando se deitavam á mesma fogueira os livros do Rabbino +e o proprio Rabbino, exterminando assim economicamente, com o mesmo +feixe de lenha, a doutrina e o doutor. + +<P> +E é curioso e edificante espectaculo vêr o veneravel professor Virchow, +erguendo-se no parlamento allemão, a defender os judeus, a sabedoria +dos livros hebraicos, as synagogas, asylo do pensamento durante os +tempos barbaros—exactamente como o illustre legista Roenchlin os +defendia nas perseguições que fecharam o seculo XV! + +<P> +Mas o mais extraordinario ainda é a attitude do Governo allemão: interpellado, +forçado a dar a opinião official, a opinião d'estado sobre este rancôr +obsoleto e repentino da Allemanha contra o judeu, o governo declara +apenas, com labio escasso e secco, «<i>que não tenciona por ora +alterar a legislação relativamente aos israelitas</i>»! Não faltaria +com effeito mais que vêr os ministros do imperio, philosophos e professores, +decretando, á D. Manuel, a expulsão dos judeus, ou restringindo-lhes +a liberdade civil até os isolar em viellas escuras, fechadas por correntes +de <span class="pagenum"><a name="pag_66">[66]</a></span> ferro, como nas judiarias do <i>Ghuetto</i>. Mas uma +tal declaração não é menos ameaçadora. O estado dá a entender apenas +que a perseguição não ha-de partir da sua iniciativa: não tem, porém, +uma palavra para condemnar este estranho movimento anti-semitico, +que em muitos pontos é presentemente organisado pelas suas proprias +auctoridades. + +<P> +Deixa a colonia judaica em presença da irritação da grossa população +germanica—e lava simplesmente as suas mãos ministeriaes na bacia +de Poncio Pilatos. + +<P> +Não affirma sequer que ha-de fazer respeitar as leis que protegem +o judeu, cidadão do imperio; tem apenas a vaga tenção, vaga como a +nuvem da manhã, de as não alterar <i>por ora</i>! + +<P> +O resultado d'isto é que n'uma nação em que a sociedade conservadora +fórma como um largo batalhão, pensando o que lhe manda a «ordem do +dia» e marchando em disciplina, á voz do coronel,—cada bom allemão, +cada patriota, vae immediatamente concluir d'esta linguagem ambigua +do governo que, se a côrte, o estado-maior, os feld-marechaes, o senhor +de Bismarck, todo esse mundo venerado e obedecido não vêem o odio +ao judeu com enthusiasmo, não deixam, todavia, de o approvar em seus +corações christãos... E o novo movimento vae certamente receber, d'aqui, +um impulso inesperado. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_67">[67]</a></span>Que digo eu? Já recebeu. Apenas se soube a resposta do +ministerio, um bando de mancebos, em Leipzig, que se poderiam tomar +por frades dominicanos mas que eram apenas philosophos estudantes, +andaram expulsando os judeus das cervejarias, arrancando-lhes assim +o direito individual mais caro e mais sagrado ao allemão: o direito +á cerveja! + +<P> +Mas d'onde provem este odio ao judeu? A Allemanha não quer, de certo, +começar de novo a vingar o sangue precioso de Jesus. Ha já tanto tempo +que essas cousas dolorosas se passaram!... A humanidade christã está +velha e, portanto, indulgente: em desoito seculos esquece a affronta +mais funda. E infelizmente hoje já ninguem, ao lêr os episodios da +Paixão, arranca furiosamente da espada, como Clovis, gritando, com +a face em pranto: + +<P> +—Ah, infames! Não estar eu lá com os meus Francos! + +<P> +Além d'isso, este movimento é organizado pela burguezia, e as classes +conservadoras da Allemanha são muito juridicas, para não approvarem, +no segredo do seu pensamento, o supplicio de Jesus. Dada uma sociedade +antiga e prospera, com a sua religião official, a sua moral official, +a sua litteratura official, o seu sacerdocio, o seu regimen de propriedade, +a sua aristocracia e o seu commercio—que se ha-de fazer a um inspirado, +a um revolucionario, que apparece <span class="pagenum"><a name="pag_68">[68]</a></span> seguido d'uma plébe +tumultuosa, prégando a destruição d'essas instituições consagradas +á fundação de uma nova ordem social sobre a ruina d'elas e, segundo +a expressão legal, <i>excitando o odio dos cidadãos contra o Governo</i>? +Evidentemente puni-lo. + +<P> +Pede-o a lei, a ordem, a razão de Estado, a salvação publica e os +interesses conservadores. É justamente o que a Allemanha, com muita +razão, faz aos seus socialistas, a Karl Marx e a Bebel. Ora, estes +maus homens não querem fazer na Allemanha contemporanea uma revolução, +de certo, mais radical que a que Jesus emprehendeu no mundo semitico. +É verdade que o Nazareno era um Deus: para nós, certamente, humanidade +privilegiada, que o soubemos amar e comprehender:—mas em Jerusalem, +para o doutor do templo, para o escriba da lei, para o mercador do +bairro de David, para o proprietario das cearas que ondulavam até +Bethlem, para o centurião severo encarregado da ordem—Jesus era +apenas um insurrecto. + +<P> +E se Bismarck estivesse de toga, no pretorio, sobre a cadeira curul +de Caiphás, teria assignado a sentença fatal tão serenamente como +o dito Caiphás, certo que n'esse momento salvava a sua patria da anarchia. +Os conservadores de Jerusalem foram logicos e legaes, como são hoje +os de Berlim, de S. Petersburgo ou de Vienna: no mundo antigo, <span class="pagenum"><a name="pag_69">[69]</a></span>como agora, havia os mesmos interesses santos a guardar. Que diabo! +é indispensavel que a sociedade se conserve nas suas largas bases +tradicionaes: e outr'ora, como hoje, a salvação da ordem é a justificação +dos supplicios. + +<P> +É possivel que este goso, que nós, conservadores, temos hoje, de triturar +os Messias socialistas, encarcerar os Proudhon, mandar para a Siberia +os Bakounine, e crivar de multas os Felix Pyat—venha a custar caro +a nosso netos. Com o andar dos tempos, todo o grande reformador social +se transforma pouco a pouco em Deus: Zoroastro, Confucio, Mahomet, +Jesus, são exemplos recentes! As fórmas superiores do pensamento têm +uma tendencia fatal a tornar-se na futura lei revelada: e toda a philosophia +termina, nos seus velhos dias, por ser religião. Augusto Comte já +tem altares em Londres; já se lhe reza. E assim como hoje exigimos +capellas aos Santos Padres, aos que foram os auctores divinos, os +nobres criadores do catholicismo, talvez um dia, quando o socialismo +fôr religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamparina +na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon de +oculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas pelles russas, Karl +Marx apoiado ao cajado symbolico do pastor d'almas. + +<P> +Como a civilização caminha para o oeste, isto <span class="pagenum"><a name="pag_70">[70]</a></span> passar-se-ha +ai para o seculo XXVIII, na Nova Zelandia ou na Australia, quando +nós, por nosso turno, fôrmos as velhas raças do Oriente, as nossas +linguas idiomas mortos, e Pariz e Londres montões de columnas truncadas +como hoje Palmyra e Babylonia, que o zelandez e o australiano virão +visitar, em balão, com bilhete de ida e volta... Logicamente, então, +como são detestados hoje na Allemanha os herdeiros dos que mataram +Jesus—só haverá repulsão e odio pelos descendentes de nós outros, +que estamos encarcerando Bakounine ou multando Pyat. E como toda a +religião tem um periodo de furor e exterminio, esses nossos pobres +netos serão perseguidos, passarão ao estado de raça maldita e morrerão +nos supplicios... <i>C'est raide!</i> + +<P> + + +<P> +Mas voltemos á Allemanha. + +<P> +Ainda que o Pedro Ermita d'esta nova crusada constitucional seja um +sacerdote, o Revd. Streker, capellão e prégador da côrte, é evidente +que ella não tira a sua força da paixão religiosa. As cinco chagas +de Jesus nada têm que vêr com estas petições que por toda a parte +se assignam, pedindo ao governo que não permitta aos judeus adquirirem +propriedades, que não sejam admittidos aos cargos publicos, e outras +extravagancias gothicas! O motivo <span class="pagenum"><a name="pag_71">[71]</a></span> do furor anti-semitico +é simplesmente a crescente prosperidade da colonia judaica, colonia +relativamente pequena, apenas composta de 400.000 judeus; mas que +pela sua actividade, a sua pertinacia, a sua disciplina, está fazendo +uma concorrencia triumphante á burguezia allemã. + +<P> +A alta finança e o pequeno commercio estão-lhe igualmente nas mãos: +é o judeu que empresta aos Estados e aos principes, e é a elle que +o pequeno proprietario hypoteca as terras. Nas profissões liberais +absorve tudo: é elle o advogado com mais causas e o medico com mais +clientella: se na mesma rua ha dois tendeiros, um allemão e outro +judeu—o filho da Germania ao fim do anno está fallido, o filho d'Israel +tem carruagem! Isto tornou-se mais frizante depois da guerra: e o +bom allemão não póde tolerar este espectaculo do judeu engordando, +enriquecendo, reluzindo, emquanto elle, carregado de louros, tem de +emigrar para a America á busca de pão. + +<P> +Mas se a riqueza do judeu o irrita, a ostentação que o judeu faz da +sua riqueza enlouquece-o de furor. E, n'este ponto, devo dizer que +o allemão tem razão. A antiga legenda do israelita, magro, esguio, +adunco, caminhando cosido com a parede, e coando por entre as palpebras +um olhar turvo e desconfiado—pertence ao passado. O judeu hoje é +um <span class="pagenum"><a name="pag_72">[72]</a></span> gordo. Traz a cabeça alta, tem a pança ostentosa e +enche a rua. É necessario vêl-os em Londres, em Berlim, ou em Vienna: +nas menores cousas, entrando em um café ou occupando uma cadeira no +theatro, têm um ar arrogante e ricaço, que escandalisa. A sua pompa +espectaculosa de Salomões <i>parvenús</i> offende o nosso gosto contemporaneo, +que é sobrio. Fallam sempre alto, como em paiz vencido, e em um restaurante +de Londres ou de Berlim nada ha mais intoleravel que a gralhada semitica. +Cobrem-se de joias, todos os arreios das carruagens são de oiro, e +amam o luxo grosseiro e vistoso. Tudo isto irrita. + +<P> +Mas o peior ainda, na Allemanha, é o habil plano com que fortificam +a sua prosperidade e garantem a sua influencia—plano tão habil que +tem um sabor de conspiração: na Allemanha, o judeu, lentamente, surdamente, +tem-se apoderado das duas grandes forças sociaes—a Bolsa e Imprensa. +Quasi todas as grandes casas bancarias da Allemanha, quasi todos os +grandes jornaes, estão na posse do semita. Assim, torna-se inatacavel. +De modo que não só expulsa o allemão das profissões liberais, o humilha +com a sua opulencia rutilante, e o traz dependente pelo capital; mas, +injuria suprema, pela voz dos seus jornaes, ordena-lhe o que ha-de +fazer, o que ha-de pensar, como se ha-de governar e com que se ha-de +bater! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_73">[73]</a></span>Tudo isto ainda seria supportavel se o judeu se fundisse +com a raça indigena. Mas não. O mundo judeu conserva-se isolado, compacto, +inacessivel e impenetravel. As muralhas formidaveis do templo de Salomão, +que fôram arrasadas, continuam a pôr em torno d'elle um obstaculo +de cidadelas. Dentro de Berlim ha uma verdadeira Jerusalem inexpugnavel: +ahi se refugiam com o seu Deus, o seu livro, os seus costumes, o seu +Sabbath, a sua lingua, o seu orgulho, a sua seccura, gosando o ouro +e desprezando o christão. Invadem a sociedade allemã, querem lá brilhar +e dominar, mas não permittem que o allemão meta sequer o bico do sapato +dentro da sociedade judaica. Só casam entre si; entre si, ajudam-se +regiamente, dando-se uns aos outros milhões—mas não favoreceriam +com um troco um allemão esfomeado; e põem um orgulho, um coquetismo +insolente em se differençar do resto da nação em tudo, desde a maneira +de pensar até á maneira de vestir. Naturalmente, um exclusivismo tão +accentuado é interpretado como hostilidade—e pago com odio. + +<P> +Tudo isto, no emtanto, é a <i>lucta pela existencia</i>. O judeu é +o mais forte, o judeu triumpha. O dever do allemão seria exercer o +musculo, aguçar o intellecto, esforçar-se, puxar-se para a frente +para ser, por seu turno, o mais forte. Não o faz: em logar d'isso, +volta-se miseravelmente, covardemente, <span class="pagenum"><a name="pag_74">[74]</a></span> para o governo +e peticiona, em grandes rolos de papel, que seja expulso o judeu dos +direitos civis, porque o judeu é rico, e porque o judeu é forte. + +<P> + + +<P> +O Governo, esse esfrega as mãos, radiante. Os jornaes inglezes não +comprehendem a attitude do sr. de Bismarck, approvando tacitamente +o movimento anti-judaico. É facil de perceber; é um rasgo de genio +do chanceller. Ou pelo menos uma prova de que lê com proveito a Historia +da Allemanha. + +<P> +Na meia idade, todas as vezes que o excesso dos males publicos, a +peste ou a fome, desesperava as populações; todas as vezes que o homem +escravisado, esmagado e explorado, mostrava signaes de revolta, a +egreja e o principe apressavam-se a dizer-lhe: «Bem vemos, tu soffres! +Mas a culpa é tua. É que o judeu matou Nosso Senhor e tu ainda não +castigaste sufficientemente o judeu.» A populaça então atirava-se +aos judeus: degolava, assava, esquartejava, fazia-se uma grande orgia +de supplicios; depois, saciada, a turba reentrava na tréva da sua +miseria a esperar a recompensa do Senhor. + +<P> +Isto nunca falhava. Sempre que a egreja, que a feudalidade, se sentia +ameaçada por uma plébe desesperada de canga dolorosa—desviava +o golpe de si e dirigia-o contra o judeu. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_75">[75]</a></span>Quando a besta popular mostrava sêde de sangue—servia-se +á canalha sangue israelita. + +<P> +É justamente o que faz, em proporções civilizadas, o sr. de Bismarck. +A Allemanha soffre e murmura: a prolongada crise commercial, as más +colheitas, o excesso de impostos, o pesado serviço militar, a decadencia +industrial, tudo isto traz a classe media irritada. O povo, que soffre +mais, tem ao menos a esperança socialista; mas os conservadores começam +a vêr que os seus males vêm dos seus idolos. + +<P> +Para o calmar e occupar, o que mais serviria ao chanceller seria uma +guerra, mas nem sempre se póde inventar uma guerra, e começa a ser +grave encontrar em campo a França preparada, mais forte que nunca, +com os seus dois milhões de bons soldados, a sua fabulosa riqueza, +riqueza inconcebivel, que, como dizia ha dias a <i>Saturday Review</i>, +é um phenomeno inquietador e difficil d'explicar. + +<P> +Portanto, á falta d'uma guerra, o principe de Bismarck distrahe a +attenção do allemão esfomeado—apontando-lhe para o judeu enriquecido. +Não allude naturalmente á morte de Nosso Senhor Jesus Christo. Mas +falla nos milhões do judeu e no poder da Synagoga. E assim se explica +a estranha e desastrosa declaração do governo. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_76">[76]</a></span> + +<P> +Da outra «sensação», o romance de Lord Beaconsfield, <i>Endymion</i>, +não me resta, n'esta carta, espaço para rir. Figuram n'elle, sob nomes +transparentes, Beaconsfield, elle proprio, Napoleão III, o principe +de Bismarck, o cardeal Manning, os Rothchilds, a imperatriz Eugenia, +duquezas, lords, marechaes... emfim um ramalhete de flôres, pelo qual +o editor Longman pagou <i>cincoenta e quatro contos de reis</i> fortes. + +<P> +Jovens de lettras, meus amigos, ponde vossos olhos n'este exemplo +de ouro! Sê prudente, mancebo; nunca, ao entrar na carreira litteraria, +publiques poema ou novella sem a antecipada precaução de ter sido +durante alguns annos—primeiro ministro de Inglaterra! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_77">[77]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION00700000000000000000"> +VII +<BR> +A Irlanda e a Liga Agraria</A> +</H1> + +<P> +É necessario fallar da Irlanda, fallar da <i>Liga Agraria</i>, fallar +de Parnell... + +<P> +Ha seis mezes que este homem, esta associação, essa ilha inquieta, +são o cuidado supremo, a preoccupação pungente da Inglaterra e de +tudo o que em Inglaterra pensa, desde os homens de Estado até aos +caricaturistas. E dentro em breve o sentimento europeu, o sentimento +universal, vae-se exaltar pela <i>questão da Irlanda</i>, como outr'ora +pela <i>questão da Polonia</i>. + +<P> +A questão da Polonia! oh saudosos dias passados! Foi esse um dos meus +primeiros enthusiasmos! N'esse tempo, ser polaco era synonimo de ser +heroe: e a fórma mais usual da paixão, n'uma alma de vinte annos, +não consistia no desejo de se subir ao balcão de Julieta, mas de partir +e ir tomar as armas pela Polonia.<span class="pagenum"><a name="pag_78">[78]</a></span> Em Coimbra, sempre que +nos reuniamos mais de quatro amigos, faziamos logo esse projecto, +gritando: —<i>Viva a Polonia!</i> Os jornaes transbordavam de poemas +á Polonia e de injurias ao Urso do Norte! Empenhavam-se batinas e +compendios para soccorrer a Polonia, em subscripções enthusiasticas. +Em beneficio da Polonia eu representei muito melodrama em que ora, +virgem trahida e vestida de branco, soluçava com as minhas tranças +soltas—ora, traidor, soltando gargalhadas cynicas, cravava um ferro +no peito de Condé! + +<P> +Por fim não eramos mais insensatos do que o povo de Paris em 1848, +marchando em procissão a reclamar do governo provisorio a libertação +da Polonia. «Mas é uma guerra com a Russia, é um conflicto europeu!» +diziam os prudentes. E os enthusiastas respondiam: «Não tem duvida; +a França é o Messias, é a salvadora dos opprimidos: a França é o Christo +das nações; sendo necessario, deve morrer por ellas.» + +<P> +Mas desde 1848 muita agua tem passado sob as pontes, como dizem em +Paris: e mesmo muito sangue. + +<P> +Por estes tempos de <i>opportunismo</i> e de <i>naturalismo</i>, a +pobre Irlanda não inspirará jámais o culto piedoso que votamos outr'ora +á Polonia. + +<P> +De resto a Polonia e a Irlanda constituem dois <span class="pagenum"><a name="pag_79">[79]</a></span> casos differentes. +É certo, porém, que vistos de longe, atravéz da nevoa lacrimosa da +sentimentalidade, offerecem similitudes. A Irlanda póde talvez considerar-se +uma Polonia constitucional: ha aqui como na Polonia uma raça opprimida, +cujo solo foi dividido entre os grandes vassalos, as familias historicas +da nação conquistadora, e que desde então tem permanecido em servidão +agraria. Sómente na Irlanda o arbitrario e os abusos, que esta situação +origina, são recobertos pelo regimen parlamentar de um bello verniz +de legalidade: e a Irlanda soffre as miserias de um paiz vencido e +explorado—mas dentro das fórmas constitucionaes. + +<P> +O irlandez parece-se com o polaco em certos pontos: são ambos arrebatados, +imprudentes, espirituosos, generosos e poetas. Como o Polaco, o irlandez +catholico odeia o conquistador, sobretudo por elle ser heretico de +nacionalidade, misturando com o odio politico o conflicto de religião. +Como na Polonia, ha na Irlanda a legenda patriotica da independencia, +das revoltas suffocadas, dos agitadores heroicos, legenda que falla +á imaginação popular tanto como a mesma religião, inspirando eguaes +fanatismos, de tal sorte que o irlandez é tão devoto dos seus santos +como dos seus patriotas; como o polaco despreza o russo, assim o irlandez +olha o anglo-saxonio como um barbaro e um estupido e tem por <span class="pagenum"><a name="pag_80">[80]</a></span>elle toda a antipatia desdenhosa que uma raça de improvisadores póde +ter por uma raça de criticos e de analistas. Na ordem social, como +na ordem domestica, ha entre a Polonia e a Irlanda outras curiosas +afinidades. A ultima táctica da Irlanda, mesmo, é imitada da Polonia: +a Irlanda vae apelar para a Europa e é Victor Hugo quem fallará em +nome dela, n'um manifesto com o titulo de Opressor e Oprimido. + +<P> +Mas a Inglaterra realmente não se parece com a Russia: nem mesmo atravéz +da nevoa da sensibilidade, atravez da paixão pela causa da Irlanda, +o mais esclarecido dos liberalismos póde ser confundido com o mais +boçal dos despotismos. E todavia a Inglaterra, para não perturbar +os interesses tyrannicos d'um milhar de ricos proprietarios, deixa +na miseria quatro milhões de homens. Tem todo o territorio irlandez +occupado militarmente. Apenas um patriota começa a ter influencia +na Irlanda, prende o patriota. Quando a eloquencia dos deputados irlandezes +se torna inquietadora, abafa-a, quebrando sem escrupulos uma tradição +parlamentar de seculos. Vae governar a Irlanda pela <i>Lei marcial</i>, +como qualquer czar. E, para suspender os planos da <i>Liga Agraria</i>, +viola os segredos das cartas. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_81">[81]</a></span>Esta questão da Irlanda apresenta-se tão complexa, tão +confusa como o proprio chaos antes da grande façanha de Jehovah. Na +Irlanda começa por haver tres nações distinctas com interesses contradictorios: +os irlandezes catholicos, os irlandezes protestantes ou <i>orangistas</i>, +os inglezes e proprietarios escocezes. A questão da propriedade é +sem duvida a essencial: mas existem outras, a questão religiosa, a +questão policial, a questão judicial, a questão municipal, etc., etc. +E sobre cada uma d'estas questões é difficil achar dois irlandezes +de accordo. Cada aldeia se torna assim um campo de batalha: e, como +são eloquentes e sarcasticos, o grande fluxo labial, a paixão do epigramma +amplificam e azedam as dissensões. + +<P> +Mesmo dentro da egreja catholica, que deveria conservar a tradicção +da Unidade—tumultua a discordia: o clero parochial está em lucta +com os dignitarios episcopaes: e é raro que o clero de um condado +não divirja, de sentimentos e de predica, com o clero do condado visinho. +No mundo dos patriotas revolucionarios não existe uma harmonia melhor: +a <i>Liga Agraria</i> não aceita os <i>Fenians</i>, e os <i>Fenians</i> +abominam as tendencias parlamentares dos <i>Home-rulers</i>: e dentro +mesmo do partido dos <i>Home-rulers</i> ha <span class="pagenum"><a name="pag_82">[82]</a></span> democratas +e conservadores. É um numeroso conflicto por toda a pobre Irlanda. + +<P> +Os irlandezes dizem, porém, que se lhes fosse dada a autonomia, horas +depois de declarada a Republica Irlandeza, todas estas questões se +resolveriam de per si e o paiz seria como um mar que amansa e fica +em equilibrio. + +<P> +Até agora, porém, essa falta de unidade é adduzida justamente como +evidencia dos perigos que teria essa autonomia. + +<P> +Os inglezes pensam sinceramente que no momento em que a Irlanda sahisse +de sob a tutela do bom senso e do saber inglez, no instante que essa +raça impressionavel, excitada, fanatica e pouco culta fosse abandonada +a si mesma, começaria uma guerra civil, uma guerra religiosa, differentes +guerras agrarias, que bem depressa fariam da Verde Erin um montão +de ruinas n'uma poça de sangue. + +<P> +Se os irlandezes se não entendem bem sobre os <i>males da Irlanda</i>, +os inglezes comprehendem-se menos ácerca dos <i>remedios para a +Irlanda</i>. E a confusão em que se está provém principalmente da abundancia +da discussão. Não ha villota, ou mesmo aldeia d'Inglaterra, que não +tenha um jornal do tamanho da <i>Gazeta de Noticias</i>, com oito +paginas e typo cerrado. E d'alto a baixo esta vastidão de papel, desde +que começou a agitação da Liga Agraria, é <span class="pagenum"><a name="pag_83">[83]</a></span> occupada por +estudos e artigos sobre a Irlanda. Multiplique-se isto pelas tres +ou quatro mil gazetas que a pobre Inglaterra nutre sobre a sua epiderme: +juntem-se-lhe os artigos dos Semanarios, dos Quinzenarios, das Revistas +e dos Magazines, os pamphletos, as brochuras, os ensaios inumeraveis +como as estrellas do céo, os livros e tratados de toda a sorte, os +discursos do parlamento, as arengas dos <i>meetings</i>, as conferencias, +os sermões, as controversias publicas, as lições, emfim, toda essa +colossal litteratura que nestes ultimos mezes tem tomado por assumpto +a Irlanda. + +<P> +E digam-me se, com todo este mundo de informação, de discussão, de +theorias, de projectos, de systemas, de opiniões, de imaginações,—não +é natural que o cerebro da Inglaterra esteja, n'esta questão da Irlanda, +perfeitamente desorganisado. O meu está. Mas n'este cahos mental tenho +illustres companheiros: o grande Carlyle costumava dizer que a sinceridade +e a elevação de alguns patriotas irlandezes era a <i>unica coisa +nitida e clara</i> que elle conseguia distinguir no escuro tumulto da +confusão irlandeza... + +<P> +Ha tambem outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora +da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietaria, os <i>land-lords</i> +indignam-se e reclamam o auxilio da policia ingleza <span class="pagenum"><a name="pag_84">[84]</a></span> quando +os trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionaria—comer! + +<P> +Aqui está, por exemplo, Sua Graça o Duque de Leicester, para não citar +outros de nomes menos sonoros: os seus rendimentos na Irlanda sobem +a <i>quatrocentos contos de reis</i>—e o infeliz tem ainda uns duzentos +contos mais das suas propriedades na Inglaterra! Este fidalgo, escuso +talvez dizel-o, não soffre frio e não passa fome: por outro lado, +a população de rendeiros que trabalham as suas terras, e que com o +seu suor e o seu esforço lhe arrancam do sólo este rendimento,—a +unica cousa que realmente tem é fome e frio. Mas este anno tiveram +mais fome e mais frio que de costume: e lá foram em farrapos, e com +os pés nús sobre a neve, supplicar a Sua Graça, o Duque de Leicester, +que lhes fizesse uma diminuição de dez por cento nas rendas—exageradas, +absurdas e devoradoras. Sua Graça respondeu (pela bocca dos seus administradores, +naturalmente: por sua propria bocca um Duque inglez nunca falla senão +com outro Duque) respondeu que as suas circumstancias não lhe permittem +essa liberalidade—e que a repetição d'uma tal supplica não podia +ser tolerada. + +<P> +E os rendeiros de Sua Graça lá voltaram de cabeça baixa, para o frio +e para a fome. + +<P> +Direi de passagem que se o pedido, em logar <span class="pagenum"><a name="pag_85">[85]</a></span> de ser feito +pelos seus rendeiros da Irlanda, partisse dos seus rendeiros da Inglaterra, +Sua Graça apressar-se-hia a satisfazel-o rasgadamente. É porque a +Irlanda é um paiz conquistado, e, quando o proletario se queixa, a +policia fila-o pela gola: mas, em Inglaterra, quando o operario inglez +ergue a sua voz de leão, a policia fica immovel, os Duques empallidecem, +e o edificio monarchico e feudal treme nas suas bases. + +<P> +Mas, a proposito de Sua Graça o Duque de Leicester (gozemos o mais +tempo possivel esta illustre companhia: <i>quand on prend du Duc +on n'en saurait trop prendre</i>) deixem-me dizer-lhes em resumo quaes +são as relações agrarias entre um proprietario, um <i>land-lord</i>, +e os seus rendeiros. + +<P> + + +<P> +O sólo, é claro, pertence ao lord. Por que titulo não sei; talvez +uma de suas avós, n'uma noite que estava mais decotada, attrahisse +o inconstante olhar do amavel Carlos II, nos saráus galantes da Restauração: +d'esse olhar provém, acaso, esta bella propriedade. O alegre Stuart +era tão generoso! tinha-se vivido tão pobremente, tão tristemente +sob a dictadura puritana do Cromwell!... Depois, se Carlos II tinha +pouco dinheiro, (o desgraçado recebia uma <span class="pagenum"><a name="pag_86">[86]</a></span> mesada do rei +de França!) não lhe faltavam terras na Irlanda. Trez leguas de pastos, +ou de terreno aravel, por um beijo e os seus acessorios, não é caro +para um Stuart. E para uma fraca dama ou para seu esposo é um famoso +negocio. Note-se, por Deus, note-se que eu estou fazendo estas supposições +sobre um typo de Lord abstracto. Nem toda a minha sympathia pelos +trabalhadores irlandezes me levaria a suspeitar das purissimas senhoras +da Casa de Leicester... + +<P> +Como proprietario do sólo, pois, o Lorde arrenda-o ás familias que +de geração em geração vivem nas suas terras: o irlandez prende-se +ao sólo como uma arvore pelas raizes, e muitas vezes prefere morrer +a abandonar um torrão arido que o não nutre. A emigração irlandeza +para a America sáe principalmente da população operaria das cidades. +Ora, nos contractos de renda, o homem de trabalho está absolutamente +á mercê do senhor da propriedade. + +<P> +O valor das rendas é puramente arbitrario. Não ha typo de renda, baseado +sobre a avaliação das terras; existe o que se chama a avaliação de +Griffith, feita ha mais de trinta annos por o agronomo d'esse nome; +mas esta avaliação, equitativa e favoravel ao trabalhador, não é jamais +aceitada pelos proprietarios. N'isto está a origem de todas as miserias +<span class="pagenum"><a name="pag_87">[87]</a></span> da Irlanda; as rendas, absurdamente elevadas, absorvem +todo o producto da terra, e o rendeiro escassamente póde viver, muito +menos economizar. + +<P> +Além do sólo, o proprietario deve fornecer a habitação e os instrumentos +de trabalho: se na fazenda não existe casa, ou se ella necessita reparações, +o <i>land-lord</i> dará naturalmente alguma madeira, uma mão-cheia +de prégos, um molho de colmo, para que o trabalhador erga a cabana +miseravel, muito inferior, como conforto, aos curraes dos nossos gados; +e a esta generosidade regia o <i>land-lord</i> juntará talvez um velho +arado e um ferro de enxada. Mas estes dons são adiantamentos que elle +sobrecarrega com preços duplos ou triplos do seu valor, e de que se +faz embolsar por prestações trimestraes. + +<P> +Não é possivel ser mais grandioso ou mais nobre. + +<P> +Aqui está, pois, o rendeiro de posse de um tecto, de um terreno e +de ferramenta. Parece que só lhe resta começar a cultivar. + +<P> +Assim seria, se não fosse na Irlanda. Mas a natureza, mãe fecunda +e amante, comporta-se aqui ainda peior que os lords: se a natureza +tivesse assento na camara dos pares de Inglaterra, não seria mais +aspera, mais hostil ao pobre e mais avara de si mesma. A natureza, +quando não se apresenta ao <span class="pagenum"><a name="pag_88">[88]</a></span> trabalhador irlandez sob o +aspecto de sólo pedregoso, mostra-se sob o aspecto de pantano. + +<P> +Offerece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco. + +<P> +E diz-lhe com a sua ternura de mãe: + +<P> +—Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistencia? + +<P> +O pobre irlandez o que preferiria era ir-se embora: mas como por toda +a parte encontraria um proprietario egual, os mesmos pedregulhos e +identicos lamaçaes—fica. E é então que se apresenta de novo a generosidade +do Lord. Sua Graça está pronta (porque Sua Graça é compassiva) a escoar +o pantano, a desempedrar o sólo, a fazer melhoramentos na terra. Sua +Graça vae mesmo mais longe: Sua Graça (Deus o recompense!) offerece +a semente. E mais ainda: Sua Graça (que as bençãos do ceu o vistam!) +dá os adubos. + +<P> +E aqui está um rendeiro feliz, que tem a casa, os instrumentos, a +semente, os adubos... Sómente Sua Graça marca os preços que lhe convém +aos melhoramentos feitos, á semente e aos adubos: e no fim do anno +a renda que era originariamente de dez está em vinte e cinco! Como +os terrenos são pobres, os invernos abominaveis, o pobre rendeiro +não póde pagar: dirige-se então ao agiota—ou ao Lord mesmo. E desde +esse momento está n'uma rede de dividas, <span class="pagenum"><a name="pag_89">[89]</a></span> lettras, colheitas +empenhadas, juros accumulados, protestos, o demonio—de que jámais +se poderá desenredar. O resultado é previsto: o Lord (pelo seu agente) +penhora-o, apossa-se do grão que está nos celleiros, do gado que está +nos curraes, do pequeno bragal que está na arca, das arrecadas da +mulher, das enxergas—e expulsa-o da casa e da propriedade—da casa +que elle talvez construiu, da propriedade que elle com o seu trabalho +melhorou! Tal qual como na meia edade. + +<P> +Estas expulsões, que se chamam <i>evictions</i>, são o terror irlandez. +Que ha-de fazer um miseravel com mulher, creanças, ás vezes uma avó +entrévada, que se vê d'uma hora para a outra no meio de uma estrada, +por um terrivel inverno, sem um farrapo para se cobrir, sem uma codea +de pão, sem casa, sem destino e sem esperança? E note-se que isto +passa-se em regiões como as da Irlanda, pouco habitadas, com um casal +de legua em legua. + +<P> +Esta falta de vizinhos torna estas expulsões mais terriveis. Quantas +milhas a caminhar sob a chuva ou sob a neve, com as creanças chorando +de fome, os doentes levados n'uma padiola, até que se encontre algum +rendeiro mais feliz que ainda tem um canto de cabana onde azyle a +familia errante! Mas por pouco tempo—porque todos são pobres, todos +estão endividados, todos ameaçados da expulsão... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_90">[90]</a></span>E durante esse tempo Sua Graça banqueteia-se, bebe <i>Chateaux +Margaux</i> de 6$000 reis a garrafa, caça, etc.—e aluga a fazenda, +d'onde expulsou o miseravel n.º 1, ao rendeiro n.º 2. Sómente o n.º +2, como a encontra melhorada pelo antecedente, paga-a mais cara: e +depois de explorado, sugado, expremido, durante dois ou trez annos, +é expulso—para dar logar ao n.º 3. Este infeliz passa pelo mesmo +processo de trituração, <i>et sic per omnia</i>... + +<P> +E as expulsões são inevitaveis, porque, com a altura absurda das rendas, +é impossivel que o rendeiro as possa pagar—e viver. + +<P> + + +<P> +Isto, como comprehendem, é apenas um vago contorno da realidade, apontada +nas suas feições essenciais. + +<P> +Descendo-se a detalhes—vê-se então uma horrorosa tréva de injustiça +e miseria. + +<P> +Mas como pódem taes cousas passar-se no seculo XIX, e ao lado do povo +inglez? + +<P> +Como permitte uma nação tão justa a existencia de tanto oprobio?—dir-me-hão. + +<P> +Justamente essa pergunta a fazia Victor Hugo ha dias a Parnell, o +chefe da <i>Liga Agraria</i>, na sua <span class="pagenum"><a name="pag_91">[91]</a></span> celebre entrevista. +E eu responderei com as palavras de Parnell. + +<P> +Taes cousas passam-se no seculo XIX. E o povo inglez não as sabia: +pelo menos eram-lhe contadas de tal modo que, em logar de piedade, +só sentia colera. + +<P> +E isto é exacto. Os males da Irlanda eram conhecidos pela voz dos +seus agitadores. Mas estes homens, desde O'Connell cometteram sempre +o erro de misturar as queixas d'um proletariado opprimido ás aspirações +d'independencia nacional: de sorte que a Inglaterra não attendia á +reclamação dos trabalhadores pela irritação que lhe causavam as exigencias +dos patriotas. O povo inglez não póde ouvir fallar em que a Irlanda +se separe, e se constitua em republica: mas está prompto a ordenar +que se lhe dê um justo regimen de propriedade. + +<P> +O erro dos Fenians foi confundir a questão nacional com a questão +agraria: o rendeiro miseravel apparecia então aos inglezes com o aspecto +de um rebelde á União; e envolvendo-os ambos no mesmo odio, porque +lhes suppunha identicas ambições, suffocou sem discernimento, a voz +que só pedia pão e a voz que reclamava autonomia. + +<P> +E todavia o povo inglez sentiu sempre instinctivamente que a Irlanda +soffria. Muitas vezes pediu para ella uma reforma das leis agrarias. +Era, porém, <span class="pagenum"><a name="pag_92">[92]</a></span> um pedir vago, sem cohesão: mais a expressão +de sensibilidades feridas do que a intimação da vontade nacional. + +<P> +De sorte que os parlamentos, sahidos das classes que têm interesse +em manter a Irlanda na miseria, contentavam-se em fazer reformas de +detalhes, reformas insignificantes e imperceptiveis, para dar uma +satisfação á compaixão ingleza: e o regimen antigo ficava inatacado +como d'antes. Mas isto bastava para que alguns humanitarios dissessem +com um suspiro de allivio: «Emfim lá se fez alguma coisa pela Irlanda!» +De facto não se tinha feito nada. + +<P> +Era, pois, necessario que a questão da propriedade fôsse separada +da questão da independencia: que se fizesse um movimento legal dentro +da constituição, com o fim exclusivo de terminar os abusos dos <i>land-lords</i>, +calando toda a ideia de arrancar a Irlanda ao Reino Unido. Então haveria +a certeza de que o povo inglez, vendo a questão agraria e os seus +horrores, isoladamente, no seu relevo proprio, desembaraçada das declamações +rebeldes e das agitações separatistas—determinasse dar a tantos +males, e tão antigos, um remedio radical. Foi isto que tentou a <i>Liga +Agraria</i>. + +<P> +Esta carta é longa: e apresentando esta formidavel entidade—a <i>Liga +Agraria</i>, eu devo fazer como o illustre Ponson du Terrail, quando +introduzia um <span class="pagenum"><a name="pag_93">[93]</a></span> novo personagem, o heroe providencial, n'um +fim de folhetim: deixar a historia das suas façanhas, das suas virtudes +e da sua belleza, com o interesse suspenso, até ao folhetim seguinte. +Não se esqueçam que ficamos no momento em que, n'este palco da Historia +Irlandesa subitamente apparece ao fundo, misteriosa e grave, a <i>Liga +Agraria</i>. +<span class="pagenum"><a name="pag_94">[94]</a></span> + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_95">[95]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION00800000000000000000"> +VIII +<BR> +Lord Beaconsfield</A> +</H1> + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00810000000000000000"> +I</A> +</H2> + +<P> +Recomeçando hoje estas C<SMALL>ARTAS DE </SMALL>I<SMALL>NGLATERRA</SMALL>—que eu não podia +escrever de Lisboa, onde estive alguns mezes gozando os ocios de Tityro, +<i>sub tegmine fagi</i>, á sombra d'essa faia constitucional que se +chama o Gremio—devo memorar, ainda que tarde, a morte de Benjamin +Disraeli, Lord Beaconsfield, ocorrida no dia 19 de maio, pela madrugada, +em Londres, na sua casa de Curzon Street. A doença de Lord Beaconsfield, +uma complicação de gotta, asthma e bronchite, arrastou-se cruel e +longa; o mal porém foi debelado e Lord Beaconsfield succumbiu realmente +á fraqueza, á fadiga dos setenta e sete annos e uma existencia tão +episodica, tão cheia, tão emotiva, que ella ficará como o seu melhor +romance, bem superior em estylo e interesse a <i>Tancredo</i> ou a +<i>Endymion</i>. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_96">[96]</a></span>Desde o primeiro dia, Lord Beaconsfield perdeu logo a esperança +de se restabelecer; mas passou a encarar a morte como encarára sempre +as suas derrotas politicas: com uma coragem desdenhosa e fria e um +ar de facil superioridade. Durante a doença, aos accessos agudos da +dôr, respondia elle com esses sarcasmos mordentes e rebrilhantes, +que tinham sido sempre a sua desforra querida perante um adversario +mais forte. + +<P> +No dia 18, á noite, cahiu pouco a pouco n'uma somnolencia comatosa, +e assim permaneceu até ao romper da manhã; momentos antes de morrer, +agitou-se, ergueu-se, ainda dilatou o peito, lançou os braços ao ar—como +costumava fazer nos grandes debates da camara; depois recahiu sobre +o travesseiro, estendeu as mãos a Lord Rowton e Lord Barrigton, seus +secretarios, e murmurou debilmente: <i>Estou vencido!</i>—E ficou +como adormecido para sempre. E, considerando que, n'esse momento, +toda a Inglaterra, o mundo inteiro, esperavam anciosamente noticias +d'aquelle quarto de Curzon Street, onde expirava o homem que sessenta +annos antes era um pobre escrevente de cartorio—póde-se dizer que +n'esta carreira tão feliz a morte mesma foi feliz. + +<P> +O seu proprio funeral teria agradado á sua imaginação—a certos lados +delicados da sua imaginação de artista. O testamento que deixou não +permitiu <span class="pagenum"><a name="pag_97">[97]</a></span> que se celebrassem funeraes publicos na Abbadia +de Westminster—disposição estranhavel n'um homem que mais que tudo +amou a pompa e os grandiosos ceremoniaes; mas não teve tambem o lugubre +scenario da morte, os crepes, as plumas negras, as tochas, os fumos, +as caveiras bordadas—tudo isso que deveria ser tão antiphatico ao +seu luminoso espirito. Foi sepultado no seu querido Castello d'Hughenden, +no meio das arvores do seu parque, por uma fresca manhã de maio, na +capella toda ornada de flôres como para uma alegria nupcial; o caminho +que lá levava ia por entre jasmineiros e rosaes; em vez do dobre dos +sinos de Westminster teve o gorgeiar das suas aves; e o caixão, seguido +pelos principes de Inglaterra, por todos os embaixadores, pela aristocracia +que ella governára—desapparecia sob corôas, ramos e molhos de <i>primroses</i>, +que a rainha Victoria mandára, com estas palavras escriptas pela sua +mão: «As flôres que elle amava.» + +<P> +Depois, ao outro dia, em todas as cathedraes da Inglaterra, em cada +capella rustica, o clero fez do pulpito o elogio de Lord Beaconsfield; +nas universidades, nos institutos, nas academias, os professores commemoraram +aquella carreira soberba; pelas platafórmas dos <i>meetings</i>, nas +assembléas commerciais, em qualquer parte onde se juntam homens, alguma +voz se ergueu a honrar os seus serviços e o seu genio; <span class="pagenum"><a name="pag_98">[98]</a></span>Lord Granville, na camara dos lords, na camara dos communs Gladstone, +fizeram, em sessão solemne, o seu panegyrico publico; e durante dias, +toda a imprensa ingleza, a imprensa de todo o mundo civilisado (excepto +a de Portugal, infelizmente) vieram cheias do seu nome, da commemoração +dos seus livros, da sua pittoresca historia. + +<P> +E assim Lord Beaconsfield desappareceu—como fôra o desejo de toda +a sua vida—n'um rumor de apotheose. + +<P> + + +<P> +E todavia nada parece mais injustificado que uma tal apotheose. Lord +Beaconsfield, por fim, foi um homem de estado que fez romances. Ora +os seus romances, como obras d'arte, já começam a apparecer, a esta +geração de sciencia e d'analyse, tão falsos, tão ficticios como as +novellas lyrico-religiosas do visconde d'Arlincourt; e como homem +d'estado o nome de Lord Beaconsfield não fica decerto ligado a nenhum +grande progresso na sociedade ingleza. Crear o titulo de Imperatriz +das Indias para a rainha de Inglaterra, roubar Chypre, restaurar certas +prerogativas da corôa, tramar o <i>fiasco</i> do Afghanistan, não +constituem de certos titulos para a sua glorificação como reformador +social: por outro lado, escrever <span class="pagenum"><a name="pag_99">[99]</a></span> <i>Tancredo</i> ou <i>Endymion</i>, +não basta para marcar n'uma litteratura, que teve contemporaneamente +Dickens, Tackeray e Georges Eliot. + +<P> +Como succede, depois d'isto, que a Inglaterra, paiz tão pratico, tão +bem equilibrado, se deixe levar em um tal arranque de admiração pelo +homem que foi a personificação, a encarnação de tudo quanto é contrario +ao temperamento, ás maneiras, ao gosto inglez? É que Lord Beaconsfield, +mais que nenhum outro contemporaneo, impressionou a imaginação ingleza—e +na fria Inglaterra, como sob céos mais calidos, são grandes as influencias +da imaginação. + +<P> +Podia-se ás vezes sorrir das suas phantasticas obras d'arte, protestar +contra as suas theatraes combinações politicas, mas atravéz de protestos +e sorrisos a sua propria personalidade nunca deixou de maravilhar +e de fascinar. Qualquer inglez, medianamente educado, a quem se pergunte +a sua opinião sobre Lord Beaconsfield dirá: <i>Foi um homem extraordinario!</i> + +<P> +Extraordinario—é como elle se nos representa, agora que se vê o +conjunto da sua existencia, que não parece ter sido um producto natural +dos factos ou das occasiões, mas uma creação subjectiva da sua propria +vontade, e como um enredo de romance talhado pela sua penna. Senão +veja-se. Tendo nascido judeu—tornou-se o chefe de uma aristocracia +saxonia <span class="pagenum"><a name="pag_100">[100]</a></span> e normanda, a mais orgulhosa da terra; começando +em um obscuro circulo litterario e vegetando algum tempo em um cartorio +de Londres—veiu a ser o mais famoso primeiro ministro de um grande +imperio; não possuindo senão dividas—bem cedo se tornou o inspirador +das grandes fortunas territoriais; homem de imaginação, de poesia, +de phantasia, foi o idolo das classes médias de Inglaterra, as mais +praticas e utilitarias que jamais dirigiram uma nação commercial; +sem religião e sem moral, governou um protestantismo que não concebe +ordem social possivel fóra da sua estreita religião e da sua estreita +moral; confessando o seu desprezo pela omnipotencia da sciencia moderna—foi +o grande homem de uma sociedade que quer dar a todo o progresso uma +base puramente scientifica: emfim, sendo o <i>menos inglez possivel</i>, +tendo um modo de ser e de sentir quasi estrangeiros, dirigiu annos +e annos a Inglaterra, o paiz mais hostil ao espirito estrangeiro, +e que conhecia bem que não era comprehendida pelo homem que a governava. +Tudo isto parece paradoxal—e a existencia de Lord Beaconsfield foi +com effeito um perpetuo paradoxo em acção. Para realizar tudo isto +era necessario que o seu genio, por um lado, por outro a sua habilidade, +fossem grandes. E realmente em dons pessoais nada lhe faltou: prodigiosa +finura de espirito, uma vontade de aço, uma <span class="pagenum"><a name="pag_101">[101]</a></span> coragem serena +de heroe, uma infinita veia sarcastica, um fogo ruidoso de eloquencia, +o absoluto conhecimento dos homens, a luminosa penetração no fundo +dos caracteres e dos temperamentos, um poder subtil de persuasão, +um irresistivel encanto pessoal,—e tudo isto envolvido (como n'uma +athmosfera luminosa) por alguma coisa de brilhante, de rico, de largo, +de imprevisto, que era ou fazia o effeito de ser o <i>seu genio</i>. + +<P> + + +<P> +Eu por mim começo por admirar a sua propria apparencia. Diz-se que +fôra formoso como um Apollo—e que isto concorrera muito para os +seus primeiros triumphos: agora, já tão velho, era apenas pittoresco. + +<P> +A sua grande testa sobre a qual cahiam aquelles dous extraordinarios +caracóes parallelos, o seu olhar recolhido e como concentrado em pensamentos +muito fundos, o nariz de pura raça israelita, a bocca descahida na +sua eterna curva sarcastica, o beiço inferior muito recurvo e muito +pendente, e a sua estranha pera de Mephistopheles—constituiam uma +d'estas physionomias que se sente que vão ficar na galeria da historia +e que servirão a futuros historiadores para explicar um destino e +um genio. Em <span class="pagenum"><a name="pag_102">[102]</a></span> novo, e quando as modas romanticas o permittiam, +vestia-se de setim e velludo, recobria-se d'um luxo de medalhões e +joias, as suas proprias calças tinham bordados d'ouro. Agora era mais +sobrio de <i>toilette</i>: usava apenas esses casacos compridos como +tunicas, a que os homens de origem judaica são particularmente affeiçoados, +e o seu unico adorno eram os bellos ramos que lhe enchiam o peito. +Um jornalista francez, n'um dia de crise politica em que Lord Beaconsfield +devia fazer um discurso decisivo, encontrou-o momentos antes, n'um +dos salões da camara, occupado a encher d'agua o tubosinho de crystal +que por traz da botoeira da casaca conservava frescas as suas rosas. +Todo o homem está n'este traço. + +<P> +De raça oriental, teve sempre o amor do fausto, das pedrarias, dos +ricos tecidos, da pompa; os seus romances transbordam de descripções +de palacios, de festas perante as quaes as mais ricas galas de Salomão +são como desbotados scenarios de theatro de feira; o seu estylo resente-se +d'este gosto: é um sumptuoso estofo, com recamos de ouro, cravejado +de joias, scintillante e espesso, cahindo em belas pregas ao comprido +da idéa. O dinheiro, o ouro, preoccuparam-n'o sempre, menos pela sua +influencia social, que pelo mero esplendor da sua amontoação. Os seus +heroes possuem fortunas tão prodigiosas que seriam impossiveis nas +condições economicas do <span class="pagenum"><a name="pag_103">[103]</a></span> mundo moderno; Lothario, o famoso +Lothario, querendo dar um presente de annos a uma senhora catholica, +offerece-lhe uma cathedral toda de marmore branco, que elle mandou +construir e que dedicou á santa do nome d'ella; o seu custo excederia +decerto dois mil contos fortes. Confessemos que é <i>chic</i>. Pois +bem; presentes d'estes dava-os Lothario todos os dias. O banqueiro +Sidonia, uma das mais curiosas creações de Lord Beaconsfield, dando +ao seu amigo Tancredo uma carta de credito para os banqueiros da Syria, +redige-a d'este modo: «Pague á vista ao portador tanto ouro quanto +seria necessario para reconstruir os quatro leões de ouro massiço +que ornavam a porta direita do templo de Salomão.» Tambem muito <i>chic</i>. + +<P> +Estou certo que um dos grandes prazeres de Lord Beaconsfield era poder +manejar os milhões de Inglaterra. Todos os seus ministerios custaram +caudalosos rios de dinheiro; gastava o ouro como a agua,—e dava-se +ao luxo de realisar por si, e á custa do seu paiz, as larguezas epicas +do seu banqueiro Sidonia. Mesmo quando estava no poder, estava ainda +no romance. + +<P> + + +<P> +As linhas da sua biographia são conhecidas. Seu pae era um d'estes +litteratos mediocres e trabalhadores <span class="pagenum"><a name="pag_104">[104]</a></span> que vão desenterrando +e colleccionando atravéz de <i>in-folios</i> e bibliothecas casos +curiosos e archaicos de historia e de litteratura. + +<P> +Benjamin Disraeli nasceu por isso entre os livros—litteralmente +entre os livros, porque a casa em que viviam os Disraeli offerecia +o espaço de uma boceta, e no quarto da creança, entre a accumulação +vetusta dos calhamaços, havia apenas espaço para uma cadeira e para +um berço. O velho Disraeli era judeu: mas felizmente para os destinos +futuros de seu filho rompeu com a synagoga, e todos os Disraeli se +fizeram christãos. Benjamin tinha então dezessete annos, e o seu padrinho +na pia baptismal foi um certo Samuel Rogers, notavel por ser ao mesmo +tempo um dos mais ricos banqueiros da <i>City</i> e um dos poetas +mais elegiacos do seu tempo—e notavel ainda por não ficar na historia, +nem como banqueiro, nem como poeta, mas como um requintado <i>gourmet</i>, +o grande Lucullus de Londres, que deu os mais celebres, os mais finos +jantares da Europa. + +<P> +Assim marcado com o rotulo christão, Benjamin Disraeli largou a caminhar +pela vida fóra, mas foi encalhar bem depressa n'um cartorio de tabellião—onde +se diz que, durante dous annos, este moço orgulhoso, que já então +se considerava um semi-deus, redigiu procurações e testamentos. Com +a mesma penna, porém, ia escrevendo <i>Vivian Grey</i>: e da tempestuosa +<span class="pagenum"><a name="pag_105">[105]</a></span> sensação que este romance produziu data a sua grande +carreira. A obra, á parte algumas fugitivas scintillações de um genio +ainda desequilibrado, é no seu conjunto, ao mesmo tempo pesada e vaga; +mas satisfazia os gostos escandalosos e intrigantes da sociedade d'então, +pondo em scena todas as individualidades marcantes de Londres, politicos, +<i>dandies</i>, rainhas da moda, poetas, especuladores. + +<P> +O melhor resultado de <i>Vivian Grey</i>, foi tornar Disraeli Junior +(como elle então se assignava) o favorito de Lady Blenington e do +conde d'Orsay, as duas dominantes figuras de Londres d'essa época, +e que tinham <i>de sociedade</i> o mais selecto, mais intelligente, +mais apetecido salão de Inglaterra. + +<P> +Estes dous formavam um typo destinado a reinar. Lady Blenington era +uma mulher de graciosa e olympica belleza, de uma extrema audacia +de caracter e de alta energia intellectual. O conde d'Orsay, esse +era o homem que durante vinte annos governou a moda, o gosto, as maneiras, +com a mesma indisputada auctoridade com que hoje o principe de Bismarck +arbitra na Europa. + +<P> +Usar um modelo de gravata ou admirar um poeta que não tivessem sido +aprovados pelo conde d'Orsay, seria correr o mesmo risco de uma nação +que hoje, sem auctorização secreta do principe de <span class="pagenum"><a name="pag_106">[106]</a></span> Bismarck, +organisasse uma expedição militar. Lady Blenington, entre outras coisas +embaraçadoras, tinha uma filha: e o bello d'Orsay, não sei porque, +nem elle o soube jámais, casou com essa menina. Os noivos vieram viver +com Lady Blenington; e, bem depressa, entre seu brilhante marido e +sua resplandecente mãe, a pobre condessa d'Orsay foi como uma pallida +lampada bruxoleando entre dous astros. Fez então uma cousa sensata +e espirituosa: apagou-se de todo, desappareceu. E o conde d'Orsay +e Lady Blenington, livres d'aquella senhora que entristecia, regelava +as salas com o seu ar honesto e frio, começaram então a scintillar +tranquillamente, como constellações conjunctas no firmamento social +de Londres. E Londres curvou-se deante d'esta nova e original situação +domestica, como se curvava deante de uma nova sobrecasaca do conde +d'Orsay, ou deante de uma decisão litteraria de Lady Blenington. + +<P> +Benjamin Disraeli tornou-se bem depressa um dos heroes d'este salão—onde +desde logo se mostrára com esse ar de tranquilla superioridade, de +correcto desdem, que foi um dos segredos da sua força. Ordinariamente +conservava-se calado, apoiado ao marmore da chaminé, n'uma pose d'Apollo +melancholico, abandonando-se á caricia ambiente dos olhares das damas +que viam n'elle a encarnação radiante do poetico Vivian Grey. As pessoas +mais intimas, <span class="pagenum"><a name="pag_107">[107]</a></span> começando por Lady Blenington, já lhe chamavam +sempre <i>Vivian, querido Vivian</i>. O conde d'Orsay fizera-lhe o +retrato a sepia—honra que elle dava raramente, e a mais appetecida +n'esse curioso mundo. + +<P> +Todos estes triumphos de Disraeli Junior não deixavam de surprehender +Disraeli Senior. Um dia, dizendo-lhe alguem que seu filho estava compondo +um romance, em que entravam duques, e toda a sorte de grandes, o velho +e laborioso litterato exclamou:—Duques, senhores! Mas meu filho +nunca viu um sequer! + +<P> +Viu muitos depois, viu-os todos—e governou-os com uma vara de ferro. +Mas n'esse tempo o bello Disraeli Junior era ainda radical, ou tomára +ao menos essa attitude. Meditava mesmo a sua <i>Epopêa da Revolução</i>, +a sua unica obra em verso, uma vaga rhapsodia que eu nunca li, mas +de que os criticos mais benevolos fallam como d'um volume de duzentas +paginas, sem uma só linha toleravel. E, cousa curiosa, este homem +tão fino, tão sceptico, tão experiente, nunca perdeu a candura quasi +comica de se considerar um grande poeta como Virgilio ou como Dante, +e a esperança phantastica de que as gerações futuras poriam a <i>Epopêa +da Revolução</i> ao par da <i>Eneida</i>, ou da <i>Divina Comedia</i>. + +<P> +Apesar de poeta abominavel e de perfeito dandy—ou <span class="pagenum"><a name="pag_108">[108]</a></span> talvez +por isso mesmo—Benjamin Disraeli era reconhecido n'esse tempo como +um dos chefes do movimento da <i>Joven Inglaterra</i>. + +<P> +A <i>Joven Inglaterra</i> consistia n'um grupo de rapazes, ardentes +e aristocratas, que se tinham embebido da Revolução atravéz da litteratura; +fallavam muito da Humanidade e queriam sobretudo um <i>burgo pôdre</i> +que os nomeasse deputados; cultivavam pelos salões o amor platonico, +quereriam vêr o povo feliz comtanto que estivessem elles no poder +para promover essas felicidades, e (traço decisivo das suas maneiras +e da sua <i>pose</i>) quando se escreviam uns aos outros tratavam-se +por <i>my darling—meu amor</i>! + +<P> +Tinham ainda outros distintivos: usavam o cabello á <i>nazarena</i>, +mostravam a coragem (enorme n'esse tempo) de admirar o odiado Byron, +e procuravam elevar e aperfeiçoar a arte da cozinha em Inglaterra! + +<P> +No emtanto, Benjamin Disraeli já estava bem decidido a sacudir o seu +radicalismo—quando fosse necessario aos interesses da sua careira. +E essa carreira via-a elle então, apesar de desconhecido e pobre, +tão claramente triumphante no futuro como se a tivesse deante dos +seus olhos escripta, parte por parte, n'um programma. + +<P> +Em pleno reinado dos <i>tories</i>, é caracteristica já a sua resposta +a Lord Melbourne, primeiro-ministro <span class="pagenum"><a name="pag_109">[109]</a></span> então, que lhe perguntava +o que elle tencionava fazer. + +<P> +—Ser eu o primeiro-ministro d'aqui a pouco—respondeu o dandy com +as suas grandes maneiras á Vivian Grey. + +<P> +Lord Melbourne viu n'esta resposta uma odiosa e insolente jactancia. +E assim parecia, quando, tempo depois, Disraeli, já deputado por Wycombe, +fez o seu primeiro discurso—e o viu suffocado pelas gargalhadas +e pelos apupos. Como não podia dominar o tumulto, calou-se, dizendo +apenas estas palavras mais: + +<P> +—Hoje não me quisestes ouvir. Um dia virá em que eu me farei escutar! + +<P> +E um dia veio em que não só a camara dos communs, mas a Inglaterra, +todo o continente, a terra civilizada escutavam com anciedade as palavras +que iam cahir dos seus labios, e que traziam comsigo a paz ou a guerra +na Europa. + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00820000000000000000"> +II</A> +</H2> + +<P> +A reputação de salão que gozava Lord Beaconsfield, levou algum tempo +a transformar-se em popularidade; mas a sua popularidade, apenas obtida, +penetrou rapidamente a enorme massa trabalhadora, e tornou-se em poucos +annos essa vasta e ressoante nomeada, que fez o seu nome familiar, +quasi domestico, em toda a parte onde se falla inglez, na mais rude +aldeia de pescadores de Cornwall, no <i>bush</i> d'Australia, entre +os mesmos montanhezes barbaros das <i>Highlands</i>, e que, quando +elle se dirigia ao congresso de Berlim, attrahia ás estações do caminho +de ferro as populações da Allemanha a contemplarem o <i>grande +inglez</i>. E este reconhecimento de gloria constitue um dos phenomenos +mais curiosos da carreira de Lord Beaconsfield; porque, em geral, +não se avalia bem a difficuldade portentosa de obter uma fama, mesmo +mediocre. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_111">[111]</a></span>Não ha nada tão illusorio como a extensão de uma celebridade; +parece ás vezes que uma reputação chega até aos confins de um reino—quando +na realidade ella escassamente passa das ultimas casas de um bairro. + +<P> +No momento de sua prodigiosa voga, o velho Alexandre Dumas ficou assombrado +de que o magistrado de uma villa visinha de Paris, homem illustrado, +de resto, não soubesse com que letras se escrevia esse glorioso nome +de Dumas! + +<P> +E se nós pudessemos reduzir a numeros as proporções das glorias contemporaneas, +ficariamos aterrados perante a grotesca mesquinhez dos resultados. +Nós outros jornalistas, criticos, artistas, homens de estudo e de +curiosidade litteraria, julgamos quasi impossivel que haja alguem +na Europa que não tenha lido Victor Hugo, ou que, pelo menos, não +conheça esse nome de syllabas faceis, que ha meio seculo fere, a grande +estrondo, o ouvido humano; pois bem, póde-se dizer que fóra de França +apenas cinco mil pessoas talvez terão lido Victor Hugo—e que não +passará decerto de dez mil o numero de creaturas que lhe saibam o +nome, incluindo mesmo a vasta massa democratica de que elle é o epico +official. E já isto constitue um famoso progresso—desde o tempo +em que Voltaire ambicionava ter <i>cem leitores</i>! + +<P> +A conhecida alegoria da fama, cantando o nome <span class="pagenum"><a name="pag_112">[112]</a></span> d'um varão +com as suas cem bocas, applicadas ás suas cem tubas, e voando de um +a outro confim do universo—é uma das imagens mais descaradamente +falsas que nos legou a Antiguidade. Esse estrondear das cem tubas +morre como um suspiro dentro da área humilde d'um corrilho ou d'uma +<i>coterie</i>: e nada viaja com uma lentidão egual á da Fama. Um +fardo de fazendas gasta quatro dias a vir de Londres a Lisboa—e +os nomes de Tennyson, Browning, Swinburne, os tres grandes poetas +da Inglaterra, e que ha quarenta annos são a sua mais pura gloria, +ainda cá não chegaram. É verdade que todo o mundo necessita flanellas—e +nem todo o mundo supporta poesia. + +<P> +Mas uma celebridade não encontra só difficuldades em transpôr a fronteira—acha-as +sobretudo e quasi insuperaveis em fixar a atenção da grande turba +dos seus concidadãos. Principalmente n'um paiz como a Inglaterra, +em que a aspera lucta pela existencia, a soffrega preoccupação do +pão diario, o feroz conflicto da concorrencia, não permitem esses +pachorrentos vagares, os vagares portuguezes ou hespanhóes, em que +se está de barriga ao sol, prompto a olhar, a admirar o menor foguete +que estala nos ares. + +<P> +Em Inglaterra, o duque de Wellington era de certo popular—porque +ganhou a batalha de Waterloo,<span class="pagenum"><a name="pag_113">[113]</a></span> e portanto, segundo a crença +contemporanea, salvára a Inglaterra da invasão. Gladstone é conhecido +em cem cidades e mil aldeias, porque alliviou a nação dos seus grandes +impostos. Mas estes fórmam as excepções; as outras celebridades inglesas, +ou sejam politicos como Lord Salisbury, ou philosophos como Spencer, +ou poetas como Browning, ou artistas como Herkomer—permanecem profundamente +ignorados da grande massa do publico. São reputações de salão, de +academia, de club, de redacção de jornal. + +<P> +Ora, Lord Beaconsfield realmente nunca fez coisa alguma para se tornar +popular e sempre lembrado; nunca ligou o seu nome a uma grande instituição, +a um grande beneficio publico, a uma campanha victoriosa. Tudo, ao +contrario, n'esta original personalidade parecia destinal-o á impopularidade: +a sua origem, os seus gestos e habitos anti-inglezes, a sua poderosa +veia sarcastica, a sua oratoria requintada e subtil, o gongorismo +metaphysico das suas concepções litterarias, e certos lados muito +accentuados do seu fundo semitico. E a isto accrescia que, para a +grande maioria da nação, elle representava um <i>parvenu</i> de auctoridade +oligarchica, surdamente hostil á ideia de democracia e de soberania +popular. + +<P> +A sua assombrosa popularidade parece-me provir de duas causas: a primeira +é a sua idéa (que <span class="pagenum"><a name="pag_114">[114]</a></span> inspirou toda a sua politica), de que +a Inglaterra deveria ser a potencia dominante do mundo, uma especie +de Imperio Romano, alargando constantemente as suas colonias, apossando-se +dos continentes barbaros e <i>britannizando-os</i>, reinando em todos +os mercados, decidindo com o peso da sua espada a paz ou a guerra +do mundo, impondo as suas instituições, a sua lingua, as suas maneiras, +a sua arte, tendo por sonho um orbe terraqueo que fôsse todo elle +um imperio Britannico, rolando em rythmo atravez dos espaços. + +<P> +Este ideal, que tomou o nome de <i>imperialismo</i> nos dias de gloria +de Lord Beaconsfield, é uma idéa querida a todo o inglez; os mesmos +jornaes liberais que com tanto furor denunciavam os perigos d'esta +politica romana, no fundo gozavam uma immensa satisfação de orgulho +em proclamarem a sua inconveniencia. Havia tanta prosapia britannica +em conceber um tal Imperio, como em o condemnar, e em dizer, com um +ar de nobre renunciamento: «Não nos convém a responsabilidade de governar +o mundo!» + +<P> +Lord Beaconsfield, sendo a encarnação official d'esta idéa imperial, +tornou-se naturalmente tão popular como ella. Foi considerado então +como o instrumento da grandeza exterior da Inglaterra, como o homem +que a fazia dominante e temida, que mantinha <span class="pagenum"><a name="pag_115">[115]</a></span> alta e reluzindo +terrivelmente aos olhos do mundo a espada de John Bull. Gladstone, +Bright, a grande escola liberal, conhecida pela <i>escola de Manchester</i>, +era agora accusada de ter, com a sua politica de abstenção só occupada +de melhoramentos materiaes, de finanças, de civilização interna—deixado +definhar, morrer o prestigio inglez na Europa. + +<P> +E ai vinha agora aquele extraordinario judeu, apoiado na riqueza, +na prosperidade interior que lhe tinham legado os liberaes, collocar +de novo a Inglaterra á frente das nações, fazendo ressoar ao longe +e ao largo a sua voz de leão... + +<P> +Todo o paiz andou durante annos inchado com esta grandiosa filaucia, +que Lord Beaconsfield ia sempre entretendo com os seus discursos bellicosos, +as ameaças theatraes, as concentrações de frotas, um constante movimento +de regimentos, invasões aqui e além, a occupação de Chypre, a quasi +absorpção da propriedade do isthmo de Suez, sempre algum lance brilhante +em que a Inglaterra apparecia entre os fogos de Bengala da sua eloquencia, +como a senhora do mundo. E John Bull adorava isto, apesar de vêr que +a espada da Inglaterra, depois de flammejar um momento nos ares, era +invariavelmente recolhida á bainha; apesar de comprehender que o dinheiro +se gastava como a agua das fontes; apesar de sentir que os impostos +cresciam; apesar <span class="pagenum"><a name="pag_116">[116]</a></span> de perceber que a Inglaterra estava +tomando sobre os hombros responsabilidades desproporcionadas com a +sua força. + +<P> +Depois, um dia, o grande senso pratico da Inglaterra viu claramente +a necessidade de brilhar menos aos olhos do mundo—e de se occupar +da machina interior, que começava a desarranjar-se: pôz fóra o grandioso +Beaconsfield, e chamou o pratico Gladstone—o homem que reconstitue +as finanças, que allivia os impostos, que faz as grandes reformas +interiores... Mas, apesar de tudo, Beaconsfield ficou como o typo +do estadista que mais que nenhum outro amou e desejou a grandeza imperial +da patria. + +<P> +A esta causa de popularidade deve juntar-se outra—a <i>reclame</i>. +Nunca um estadista teve uma <i>reclame</i> igual, tão continua, em +tão vastas proporções, tão habil. Os maiores jornaes de Inglaterra, +da Allemanha, da Austria, mesmo da França, estão (ninguem o ignora) +nas mãos dos israelitas. Ora o mundo judaico nunca cessou de considerar +Lord Beaconsfield como um judeu—apesar das gotas d'agua christã +que lhe tinham molhado a cabeça. Este incidente insignificante nunca +impediu Lord Beaconsfield de celebrar nas suas obras, de impôr pela +sua personalidade a superioridade da raça judaica,—e por outro lado +nunca obstou a que o judaismo europeu lhe prestasse absolutamente +o tremendo apoio do <span class="pagenum"><a name="pag_117">[117]</a></span> seu ouro, da sua intriga e da sua +publicidade. Em novo, é o dinheiro judeu que lhe paga as suas dividas; +depois é a influencia judaica que lhe dá a sua primeira cadeira no +parlamento; é a ascendencia judaica que consagra o exito do seu primeiro +ministerio; é emfim a imprensa nas mãos dos judeus, é o telegrafo +nas mãos dos judeus, que constantemente o celebraram, o glorificaram +como estadista, como orador, como escriptor, como heroe, como genio! + +<P> + + +<P> +Como romancista, Lord Beaconsfield nunca escreveu propriamente um +romance tal como nós modernamente o comprehendemos. Alguns dos seus +romances são pamphletos em que os personagens constituem argumentos +vivos, triumphando ou succumbindo, não segundo a logica dos temperamentos +e as influencias do meio, mas segundo as necessidades da controversia +ou da these. Outros fórmam verdadeiras allegorias como as tem a pintura +decorativa nas muralhas dos monumentos publicos. N'um dos mais celebres, +<i>Lothair</i>, ha um mancebo ideal, encarnação do espirito inglez, +que ama successivamente tres mulheres: uma italiana casada com um +americano, bella creatura de perfil classico e fórmas de Deusa, que +representa a Democracia; uma ardente rapariga de cabellos negros e +revoltos, <span class="pagenum"><a name="pag_118">[118]</a></span> sempre em extasi, que é a personificação da +Egreja Catholica; e emfim uma doce e loura donzella, séria, grave +e terna, que symboliza o Protestantismo. Depois d'hesitar entre estas +tres paixões—decide-se, como um bom inglez, por casar com o Protestantismo, +quero dizer, com a loura, conservando um culto vago e secreto pela +Democracia, quero dizer, pela soberba americana de perfil marmoreo. +Moral: a felicidade d'um povo está na posse d'uma forte moral christã, +alliada a um uso moderado da liberdade. Isto dava um excelente e apparatoso +<i>fresco</i> na sala d'um parlamento. E Lord Beaconsfield accentua +os detalhes allegoricos com uma tal ingenuidade, que faz por vezes +sorrir; assim, por exemplo, a americana, isto é, a Democracia, apparece +sempre em <i>soirées</i> e festas vestida á grega, com uma estrella +de brilhantes na fronte, como a cabeça da <i>republica</i> nas moedas +francezas de cinco francos! + +<P> +O meio, em que os seus romances se passam, tem quasi sempre um ar +feerico: tudo são, como disse ha pouco, palacios d'um fabuloso e sombrio +luxo, festas como as não tiveram os Medicis, fortunas de banqueiros, +de duques, perante as quaes os Cresus, os Monte-Christos, os Rothchilds, +todos os ricaços da lenda ou da realidade apparecem como despreziveis +pelintras. + +<P> +A linguagem d'estes personagens corresponde <span class="pagenum"><a name="pag_119">[119]</a></span> ao esplendor +das suas moradas e ao nebuloso dos seus destinos. <i>Misses</i> de +dezoito annos, habitando prosaicamente Belgrave Square, fallam aos +seus namorados com a pompa allegorica do <i>Cantico dos Canticos</i>; +e quando (o que é frequente) dois brilhantes espiritos como Sidonia +ou Mrs. Coningsby conversam, veem-se, cruzando rapidamente d'um a +outro labio, as imagens rutilantes, os luminosos conceitos, como se +as duas creaturas se estivessem recitando um ao outro numeros do <i>Intermezzo</i> +ou sonetos de Petrarcha. + +<P> +Esta linguagem, de resto, convem ás idéas, aos sentimentos, ás aventuras +que elle atribue aos seus typos principaes; tudo o que é humano e +real fica absolutamente de fóra d'essas transcendentes creações: fallando +como poetas, comportam-se naturalmente como chimeras. + +<P> +O seu mais famoso heroe, Tancredo, vae a Jerusalém e á Syria com este +fim: <i>penetrar o mysterio asiatico</i>. Não percebem? É facil. Sendo +Jerusalém e as planicies da Syria o unico ponto do Universo em que +Deus, em tempos, conversou com o homem, em que appareceram os prophetas +e os Messias, em que das sarças, do murmurio dos rios e do echo dos +desertos surgiram as Leis Novas, dando á humanidade destinos novos—o +moço Tancredo parte, para que lá, n'esses logares, Deus lhe falle, +um raio de <span class="pagenum"><a name="pag_120">[120]</a></span> luz o divinize, uma religião lhe seja revelada, +e tendo partido de Londres como simples lord, possa regressar a Regent +Street, como Messias e regenerador de sociedades! + +<P> +E (perguntar-me-hão) o que succede a Tancredo na Syria? O que succede +a todos os personagens de Lord Beaconsfield, que nas primeiras paginas +partem para sobrehumanos destinos, como os antigos cavalleiros da +Tavola Redonda: succede-lhe que casa com uma linda e honesta menina, +e que tem muitos filhos no meio de muita felicidade... + +<P> +E o <i>mysterio asiatico</i>? Parece que o não achou. Mas descobriu +coisas curiosas e de rara fabula: por exemplo, um povo pagão, onde +reina uma bella sacerdotisa de Apollo, que celebra ainda hoje nobres +cultos hellenicos, e que se namora de Tancredo. Mas Tancredo, cavalleiro +christão, depois de a defender da invasão d'um outro povo, que adora +idolos infames, foge, foge á desfilada, deixando a classica rainha +a gemer de amor aos pés da estatua d'Astarte. Depois elle mesmo está +para ser rei do Libano. Emfim, uma grandiosa e rutilante salsada. +E tudo isto se passa ahi por 1855, no tempo da Exposição de Paris. + +<P> +Mas que prodigioso talento, que arte, que amplidão d'imaginação +para pôr de pé, em todo o seu brilho, este desordenado monumento d'Idealismo! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_121">[121]</a></span> + +<P> +Com effeito, que artista fino e por vezes poderoso! + +<P> +Apesar d'este abuso do gongorismo na ficção, do vago e ao mesmo tempo +do amaneirado das suas concepções, d'estes enredos e d'estes personagens +que por vezes parecem uma mystificação—os seus romances nunca +deixam d'interessar, direi mesmo, nunca deixam de captivar. Atravessa-os +sempre um enthusiasmo sincero—em que se sente o amor poetico com +que elle segue os seus generosos heroes, as suas bellas mulheres, +n'esses destinos fóra da realidade. Depois a sua fina sensibilidade, +o seu idealismo um pouco convencional, mas de grande <i>elan</i>, +os requintes d'um gosto supremo—levam-no a dotar os seus personagens, +e a acção em que elles se movem, de uma tal belleza espiritual, de +uma tão alta nobreza de costumes, que os olhos enlevam-se, a imaginação +namora-se d'esse mundo ficticio, d'essa humanidade de poema, onde +nada existe de vulgar ou de baixo, e onde brilham fórmas maravilhosas +e transcendentes do pensar, do sentir e do viver. + +<P> +Isto dá-lhe uma qualidade encantadora: é <i>luminoso</i>. Personagens, +paizagens, interiores, o proprio movimento da aventura—tudo está +banhado n'uma luz serena e graciosa. Pintando as cousas fóra da <span class="pagenum"><a name="pag_122">[122]</a></span>verdade social, não tendo de lhe apresentar as sombras tristes, exclue +dos seus vastos quadros tudo o que na vida é duro, brutal, feio, máu, +estupido—as fórmas varias da baixeza humana. + +<P> +Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada—e +mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia, +batido de uma luz côr de rosa... + +<P> + + +<P> +Tenho insistido n'este lado <i>não real</i> dos livros de Lord Beaconsfield. +Todavia, um homem d'estes, antigo <i>dandy</i>, critico, estadista, +habituado a governar, observador por necessidade, não podia deixar +de ter accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade; +e essa experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas +da vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações +symbolicas, de indisciplinada imaginação (<i>Tancredo</i>, <i>Lothair</i>, +<i>Sibyl</i>) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte, +figuras de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e +côr. São os seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus +intrigantes, os seus homens de lettras, as suas mulheres da moda, +os seus lords elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural. +Londres conhecia-os, dava-lhes logo os <span class="pagenum"><a name="pag_123">[123]</a></span> nomes; e o escandalo +d'estes retratos foi mesmo uma das grandes causas do successo de Lord +Beaconsfield. Mas, mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres, +e não conhece os originaes, estes typos interessam—porque <i>vivem</i>. + +<P> +Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim +em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente +poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um +relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por +entre o nebuloso de uma mythologia. + +<P> +São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield +só elles ficarão lembrados. + +<P> + + +<P> +Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de impressões, +marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa como a +de Lord Beaconsfield. + +<P> +Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações: +diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que +foi apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista +de genio—e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido, +soffreu em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o <span class="pagenum"><a name="pag_124">[124]</a></span>rancor da parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor: +é que todos os mediocres o detestavam. + +<P> +É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre +fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes manifestos +das suas idéas de estadista—e fez romance no governo, que parecia +muitas vezes um <i>scenario de drama</i>, sobre o qual elle estava +de penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a +Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais +originaes. + +<P> + + +<P> +Individualmente foi um <i>feliz</i>. Tendo, em novo, lançado o plano +da sua vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o +plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso, +foi amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle +dizia), deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido +da sua rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo, +e findou n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente, +ditoso? Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto, +d'um pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_125">[125]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION00900000000000000000"> +IX +<BR> +Os inglezes no Egypto</A> +</H1> + +<P> + +<H2><A NAME="SECTION00910000000000000000"> +I</A> +</H2> + +<P> + +<H4><A NAME="SECTION00911000000000000000"> +O que resta d'Alexandria.—A estreia d'Arabi Paxá.—Algemas ao +café.</A> +</H4> + +<P> +Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo +convidativo dos <i>Guias de viajantes</i> como uma rica cidade de +250.000 habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, +prospera, tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum +<i>Guia</i>, porém, por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe +interessante. + +<P> +Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas +e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu +no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum +monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio +mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em +honra de Diocleciano, conhecida <span class="pagenum"><a name="pag_126">[126]</a></span> pelo sobrenome singular +de <i>Pilar de Pompeu</i>, e mais longe, estendido n'um areal, um +obelisco pharaonico do templo de Luxor, que gosava a grotesca alcunha +de <i>Agulha de Cleopatra</i>. E esta mesma reliquia está agora em +Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma peanha de bronze, allumiada +pela luz electrica, aturdida pelo estrondo dos comboyos... + +<P> +Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos, +antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande metropole +que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia vivendo da +pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente d'uma +vasta praça, a famosa <i>praça dos Consules</i>, orgulho de todo o +Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas +fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares +francezes—como um <i>faubourg</i> de Bordéus ou de Marselha transportado +para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras. + +<P> +A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram +arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando +em terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que +a menor brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar. + +<P> +Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, <span class="pagenum"><a name="pag_127">[127]</a></span>insalubre, Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, +e depressa se apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava +a estação, e se ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, +ao longo dos canaes, as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes +do Egypto, outr'ora deuses, ainda hoje aves sagradas... + +<P> +Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes, +de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios +de fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras +fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus +centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os +seus mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de +fardeta de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de +Liverpool, onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de +lança ao hombro, embaraçavam a passagem dos <i>tramways</i> americanos, +onde os <i>sheiks</i>, de turbante verde, trotando no seu burro branco, +se cruzavam com as caleches francezas dos negociantes, governadas +por cocheiros de libré—Alexandria realizava o mais completo typo +que o mundo possuia de uma cidade levantina, e não fazia má figura, +sob o seu céo azul ferrete, como a capital commercial do Egypto e +uma Liverpool do Mediterraneo. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_128">[128]</a></span>Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora +em que escrevo, Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas. + +<P> +Do bairro europeu, da famosa <i>praça dos Consules</i>, dos hoteis, +dos bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, +resta apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede +enegrecida que se vae alluindo. + +<P> +Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir. + +<P> +Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, +em presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de Jehovah—uma +d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da Biblia, quando +o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta do peccado, +corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma chaga +viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o +almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando +com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, +os seus canhões de oitenta toneladas. + +<P> +Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar +aos nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se +têm arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,—aos +nomes de Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o <span class="pagenum"><a name="pag_129">[129]</a></span> santo, de +Diocleciano, o perseguidor, e de Ben-Amon, o sanguinario—o nome +de Sr. William Gladstone, o humanitario, o paladino das nacionalidades +tyrannizadas, o apostolo da democracia christã. Mas se por um lado, +evidentemente, a politica do snr. Gladstone não é um producto de pura +ferocidade pessoal, como a de Caracalla, que fez arrasar Alexandria, +porque um poeta d'essa cidade finmente dada ás letras o molestára +n'um epigramma—por outro lado esta brusca aggressão de uma frota +de doze couraçados, cidadellas de ferro fluctuando sobre as aguas, +contra as decrepitas fortificações de Mehemet-Ali, este bombardeamento +d'uma cidade egypcia, estando a Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se +singularmente com a politica primitiva do califa Omar ou dos imperadores +persas, que consistia n'isto:—ser forte, cahir sobre o fraco, destruir +vida e empolgar fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui +a <i>politica imperial d'Inglaterra</i>, ou <i>os interesses da +Inglaterra no Oriente</i>, póde levar um ministro christão a repetir +os crimes d'um pirata mussulmano, e o snr. Gladstone, que é quasi +um santo, a comportar-se pouco mais ou menos como Ben-Amon, que era +inteiramente um monstro. Antes não ser ministro d'Inglaterra! E foi +o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não partilhar a cumplicidade +d'esta brutal destruição d'uma cidade inoffensiva, deu a <span class="pagenum"><a name="pag_130">[130]</a></span>sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos de cincoenta +annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de oposição... + +<P> + + +<P> +Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, +é de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, +as unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a +tres mil legoas do Egypto e das suas desgraças. + +<P> +No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour +achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, +e tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão +do almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões +accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos +ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, +de camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, +tendo o Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias +financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns <i>coupons</i>,—a +França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os interesses dos +seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os srs. Coloin +e Blegniéres, ambos <span class="pagenum"><a name="pag_131">[131]</a></span> com funcções de secretarios de fazenda +no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a +e applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa +divida egypcia! + +<P> +De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na +realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados. +No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous burguezes, +Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o Egypto, um +dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas altas civilisações +do Occidente representavam simplesmente a usura armada. + +<P> +Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam +alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção +estrangeira—porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva declarara-se +<i>coacto</i>. Todos os que conhecem a historia contemporanea de Portugal +e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que significa +esta deliciosa phrase: <i>El-rei está coacto!</i> Isto quer dizer +que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda +que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e +vem impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição +de auctoridade regia e augmento de liberdade publica... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_132">[132]</a></span>Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos +fieis, enverga n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar +o seu povo: se desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos +cidadãos, então El-rei <i>declara-se coacto</i>, e pede a um rei visinho, +mais forte e menos atarantado, que lhe mande uma divisão, a <i>restabelecer +a ordem</i>—isto é a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta +d'autoridade regia, dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. +Isto hoje, realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao +que parece, é ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos +nacionaes. + +<P> +O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um +<i>pronunciamento</i> planeado, á maneira hespanhola, mas posto em +scena á moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso +Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois +do <i>salamalek</i>, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente +a aba da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica +de Santo Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, +algumas puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, +para bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma +mudança de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases +sobre <span class="pagenum"><a name="pag_133">[133]</a></span> o <i>amor da nação, a felicidade dos subditos</i>, +que o ceremonial indica nas occasiões d'atrapalhação regia e pareceu +tão satisfeito com o interesse, que aquelles officiaes tomavam pela +prosperidade do valle do Nilo, que os recompensou á maneira oriental—convidando-os +a um banquete. Em torno da festiva mesa a cordealidade foi grande, +o <i>champagne</i> espumou contra as prescripções do Alcorão, e entre +o sabor das truffas e o aroma dos ramos, o futuro do Egypto appareceu +côr de rosa... O café foi servido nos jardins: e quando d'um lado +entravam os escudeiros com os licores, do outro surgiram beleguins +com algemas. Arabi e os seus camaradas, levando ainda na bocca o ultimo +charuto que lhes offerecera Sua Alteza, foram conduzidos ás palhas +do carcere. + +<P> +Não ha nada mais delicioso—nem mais turco. + +<P> +A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a +energia de Sua Alteza! + +<P> + +<span class="pagenum"><a name="pag_134">[134]</a></span> + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_135">[135]</a></span> +<H2><a name="SECTION00920000000000000000"></a> +<BR> +II +</H2> + +<P> + +<H4><A NAME="SECTION00921000000000000000"> +A desforra de Arabi.—Reformadores e coroneis.—O +programma fellah.—A conferencia de Constantinopla.—A confusão +do Grão-Turco.—As esquadras.</A> +</H4> + +<P> +O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho. + +<P> +Ao abrir o seu <i>Times</i> ou o seu <i>Journal des Débats</i> (porque +este principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses +dous ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado +energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande Mehemet-Ali, +vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem nos seus +estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das potencias. + +<P> +Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas—doze mil +homens com dezoito peças d'artilharia—supplicando que Sua Alteza +soltasse Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta +razão, honrosa para a logica árabe: que, <span class="pagenum"><a name="pag_136">[136]</a></span> approvando o +exercito as reformas de Arabi-Bey, entendia que elle as executaria +muito mais confortavelmente sentado na poltrona de ministro da guerra +do que estirado nas palhas do carcere. + +<P> +O Khediva, que acabava talvez de saborear no <i>Times</i> mais uma +glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre respeitara +Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:—e Arabi-Pachá +passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes... + +<P> +Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão +ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como +os foguetes que estalam n'esse dia—e de que ordinariamente, como +dos foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados +a isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, +que as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que +o não viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha. + +<P> +Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto +natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e desnecessaria +ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso <i>principios +de oitenta e nove ineditos</i> nos sarcophagos dos Pharaós. Não, de certo. +Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse uma <span class="pagenum"><a name="pag_137">[137]</a></span>Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o começo +de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto governando-se +a si mesmo, um <i>Egypto para os Egypcios</i>—não uma raça escrava +enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio franco +para os esfomeados europeus. + +<P> +A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador—era +o ser elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas +tristes aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam +ao comprido do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs—a +peior que existe sobre a terra—elle, mais que ninguem, tinha direito +a erguer-se em nome dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, +Arabi era um soldado que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições +do Alto Egypto e nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo +o orgulho da farda, e todo o pedantismo do sabre, não só repassado +de militarismo, mas enfrascado em militança—e, portanto, prompto, +desde que a sua voz resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções +do exercito... Elle representava, por origem e por profissão, as duas +grandes classes do povo egypcio—o soldado e o fellah;—e desde +o momento em que entre os egoistas, os voluptuosos, os escravos e +os interesseiros, elle pareceu <span class="pagenum"><a name="pag_138">[138]</a></span> ser o unico homem no Egypto +que se arriscava, de bom grado, pelas suas ideias, ao exilio e á enxovia,—tornou-se +bem depressa, e naturalmente, chefe do <i>partido popular</i> que +queria as grandes reformas nacionaes, e pela mesma occasião caudilho +do <i>partido militar</i>, que só appetecia vantagens de classe. Assim, +em Arabi, o patriotismo confundia-se infelizmente com a insubordinação. + +<P> +Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de +idéas largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador, +as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official revoltado. +Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas tivessem egual +valor na obra da regeneração do Egypto—que elle pedia uma constituição +parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para os coroneis +seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que desejavam +a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde sahiam +grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas +pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do +povo, e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado +de patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento. + +<P> +Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso +moderno espirito europeu;<span class="pagenum"><a name="pag_139">[139]</a></span> mas Arabi é um egypcio; e no +Egypto, onde o povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer +das nossas plebes, é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, +e onde o exercito constitue a classe culta—a obra de progresso tem +necessariamente de ser feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se +sabe isto—ou, antes, finge-se que não se sabe. As exigencias da +tarimba puzeram na sombra as reclamações da cabana—e Arabi perdeu +na Europa a auctoridade que podia ter como chefe dos fellahs por fallar +de espada na mão, d'entre um quadrado de soldados... + +<P> +De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do +antigo typo, que apenas leu um livro—o Alcorão. Mas, como homem, +possue qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não +ousam negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. +E como patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente +muito egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e +soffria de vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como +outr'ora pelos gafanhotos;—mas esses limitavam-se a curvar tristemente +os hombros, invocando o nome de Allah. + +<P> +Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, +não póde attender a tudo, e <span class="pagenum"><a name="pag_140">[140]</a></span> que, portanto, se resolveu +a tirar a espada em nome do fellah, contra a oppressão colligada dos +pachás turcos e dos agiotas christãos. + +<P> +Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição? + +<P> +Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do +Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como consequencia +d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos dinheiros publicos, +que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte para o harem +do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as cohortes cerradas +de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande parte, para pagar +os <i>coupons</i> de divida em Pariz e Londres, ficando tão pouco +para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se não +dava soldo ao exercito! + +<P> +Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido +perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela +sua honra:—sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem +installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do imposto, +para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para satisfazer +a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o fellah, +que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de recorrer +<span class="pagenum"><a name="pag_141">[141]</a></span> ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se +officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia secretamente +o agiota!... + +<P> +Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com +a situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas. +Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros +estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. +O desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para +os estrangeiros, que, sob o nome de <i>tribunaes mixtos</i>, distribuem +duas justiças—uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. +Emfim, esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem +dados exclusivamente a estrangeiros—e que se não pagassem annualmente, +como se pagavam, mais de <i>trez mil contos</i> de bom dinheiro egypcio, +a francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas +as repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado +como aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston, +foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois +de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha +visto o seu regimento e <i>ainda mesmo não tinha uniforme</i>! + +<P> +Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de <span class="pagenum"><a name="pag_142">[142]</a></span> Arabi, +e não se imagina facilmente a apopletica indignação que ellas causaram +á França republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma +féra. Na Bolsa de Pariz, no <i>Stock-exchange</i> de Londres, onde +os fundos egypcios tinham descido, pedia-se com energia a suppressão +immediata d'esse iniquo aventureiro. + +<P> +Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas +pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa. + +<P> +As potencias occidentaes <i>trocaram as suas vistas</i>, segundo a +hedionda phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto <i>estava +em anarchia</i>. O Khediva, esse já se declarara <i>coacto</i>, e urgia +<i>descoactar</i> rapidamente esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. +A Inglaterra e a França, pois, (paizes que dizem ter interesses superiores +no Egypto) mandaram as suas esquadras ás aguas de Alexandria, para +aterrar Arabi. Póde-se perguntar até que ponto seis couraçados, sem +tropas de desembarque e ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar +um ministro da guerra, seguro no Cairo, a dez horas de caminho de +ferro, cercado de vinte mil homens de tropas regulares, apoiado por +quatro milhões de população fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, +e sanctificado pela approvação religiosa dos Ulemas... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_143">[143]</a></span>Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, +como o <i>Times</i>, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma +insensatez. Em todo o caso fez-se—e acompanhada de um documento, +um papelucho diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, +parecia arrancado a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, +apresentado gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava +o Khediva a que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para +além das cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, +as suas honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, +amigos, toda a folia de um <i>vaudeville</i>? De um lado o Khediva +abandonado, em palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado +na equivoca fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; +do outro lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e +as mesquitas. E a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para +a Nubia este Arabi! Conheceis cousa alguma que mais reclame a <i>verve</i> +do chorado Offenbach? Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre +dentes que o papelucho era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr +o resultado: Arabi encolheu os hombros, adjudicou-se mais o ministerio +da marinha, e substituiu alguns dos outros ministros, antigos familiares +do Khediva, por homens seus, gente de nervo e de arranque. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_144">[144]</a></span>Perante esta resposta dada ao seu <i>ultimatum</i>, a +Europa ficou, se me é licito este dizer irreverente—<i>de orelha +murcha</i>. E então tomou a decisão das grandes crises; delegou diplomatas +que se sentaram em torno de uma mesa de panno verde, e enterraram +pensativamente a cabeça entre os punhos. Chamou-se a isto a <i>Conferencia +de Constantinopla</i>. O seu fim, todo louvavel, era <i>resolver a +questão do Egypto</i>. + +<P> +E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou +de existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; +o general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto +é terra britannica—e ella ainda lá está, a resolver! + +<P> +Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta +auctoridade! Ainda lá está... + +<P> +Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa +de panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!... + +<P> +Depois de reunida a <i>Conferencia</i>, a Europa, naturalmente, lembrou-se +que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo +ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem +nos seus agitados dominios. + +<P> +Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia. + +<P> +É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia <span class="pagenum"><a name="pag_145">[145]</a></span> hesita. +Por um lado, os Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, +armam marinha, cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por +outro lado, pagam tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem +de pachá a sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao +chefe do Islam, como o presente que o rei catholico de Hespanha manda +todos os annos ao papa? É uma prestação annual da tremenda somma, +porque Mehemet-Ali e depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a +sua independencia? É simplesmente um <i>pourboire</i>?... Seja como +fôr, o tributo existe—e, fundado n'elle, a Europa appellou para +o Sultão. Arabi, bom crente, devia venerar o Sultão; o Sultão, bom +pae, podia exterminar Arabi. E aqui começa a famosa comedia das vacillações +do Sultão. + +<P> +Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o +sob o pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca, +um pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali, +quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos +califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no +Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo +este caso, os <i>ulemas</i> da mesquita d'El-Azhar, o grande centro +religioso e o grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona +do <span class="pagenum"><a name="pag_146">[146]</a></span> Oriente, possuindo no mundo mussulmano uma auctoridade +igual á de um Concilio no mundo catholico,—tinham declarado que +se o Sultão, em nome da Europa christã, pegasse em armas contra gente +mahometana, tornava-se <i>ipso facto</i> apostata, e <i>ipso facto</i> +perdia o califado. Por um lado tambem o Sultão, tendo, ao que se diz, +recebido de Arabi promessas de depor o Khediva e proclamar em seu +logar Helim-Pachá, que é em Constantinopla o conselheiro e o favorito +do serralho—conspirava com Arabi contra o Khediva; mas por outro +lado, tinha noticia das intelligencias de Arabi com o scherif de Meca, +que, sendo o descendente directo de Mahomet, possue mais que o Sultão +direitos ao califado, e é n'esta santa pretensão apoiado por todas +as tribus da Arabia; e, receiando assim que Arabi se tornasse o auctor +de um scisma no islamismo, o Sultão procurava minar-lhe a influencia +crescente—e conspirava com o Khediva contra Arabi. Por um lado ainda, +uma vaga revolução constitucional em paiz mussulmano era odiosa ao +Sultão; mas, por outro, a maneira como Arabi, alma d'esse movimento, +estava tratando d'alto parte da Europa colligada, lisongeava profundamente +o seu coração turco. Emfim, este miserando chefe dos crentes não sabia +onde havia de dar com a sua cabeça imperial... Não se pense, por este +dizer ligeiro, que eu não respeito o Sultão: <span class="pagenum"><a name="pag_147">[147]</a></span> Abdul-Hamid +não é um califa do antigo typo, embrutecido pelo uso de tres mil mulheres,—mas, +segundo a expressão do principe de Bismarck, «um dos espiritos mais +finos da Europa». Ora, o principe de Bismarck é um entendedor; ainda +que, a meu vêr, duas cousas estragam esta famosa finura: primeira +o ser excessiva, de modo que Abdul-Hamid, a maior parte das vezes, +tropeça e fica enredado na engenhosa complicação dos seus proprios +fios; depois o estar ao serviço, não de idéas praticas, mas de fantasias +mysticas, como a que se lhe attribue de renovar, na ordem espiritual +e em seu proveito, o imperio prophetico de Mahomet. + +<P> +Emfim, instado pela Europa a intervir no Egypto, e não querendo que +a Europa interviesse, porque isso seria a perda do seu pingue tributo +annual, o Sultão decidiu-se a enviar Dervich-Pachá, uma velha raposa +podre de manhas, com a missão de fazer reentrar Arabi no aprisco dos +humildes. Mas apenas Dervich-Pachá começava esta operação, eis que +o Sultão inquieto, vendo Arabi e o scherif de Meca de mãos dadas sobre +o tumulo do Propheta, remette a Arabi a grande ordem do Medjidieh, +a mais nobre condecoração turca, o favor supremo que póde cahir das +mãos do califa, acompanhada de uma florida carta de amizade e d'uma +esplendida placa de diamantes. + +<P> +Isto tudo dá a medida da confusão do Grão-Turco. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_148">[148]</a></span>Arabi, assim glorificado pelo califa, resplandeceu aos +olhos do mundo mussulmano com um prestigio maior; Dervich-Pachá, um +instante aturdido, redobrou de duplicidade:—e foi então entre Dervich, +e Arabi, e o Khediva, e o Sultão, e as potencias, e os consules, e +os pachás, e os coroneis, uma intriga tão emaranhada que eu prefiriria +fazer-lhes um resumo lucido dos vinte e cinco volumes das <i>Façanhas +de Rocambole</i>, do que penetrar na espessura inextricavel d'este embroglio +turco-europeu—uma d'essas intrigas fastidiosas que devem enervar, +fazer chorar de séca e de fadiga a Providencia, se ella, como affirmam +philosophos que estão na sua intimidade, é obrigada a observar minuciosamente +todos os successos humanos! Quanto o homem com a sua tolice deve, +por vezes, fazer bocejar Deus! + +<P> +Durante estes successos, emquanto a Europa chafurdava no atoleiro +diplomatico, as duas esquadras de França e de Inglaterra, lá continuavam +deante de Alexandria <i>manifestando</i>. Do romper do sol ao occaso, +immoveis nas aguas calmas, com as camisolas da marujada seccando nas +vergas, alli estavam <i>manifestando</i>... + +<P> +Os officiaes repousavam de vez em quando d'esta rigida attitude de +<i>manifestação</i> arranjando um <i>pic-nic</i> em terra, indo fazer +um <i>robber</i> de <i>whist</i> ao club inglez, ou organisando, sob +as sombras dos jardins de Ramleh, honestas partidas de <i>cricket</i>. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_149">[149]</a></span> + +<H2><A NAME="SECTION00930000000000000000"> +III</A> +</H2> + +<P> + +<H4><A NAME="SECTION00931000000000000000"> +Episodio oriental.—Mussulmanos e christãos.—Uma +estrumeira social.—Opiniões de mesa redonda.—Os funccionarios +europeus do Cairo.—As dividas d'Ismail-Pachá.—O dia 11 de junho.</A> +</H4> + +<P> +Achando-se as cousas assim, amanheceu o dia 11 de junho, que d'ora +em deante na historia—n'esse curto instante de notoriedade humana, +que emphaticamente se chama a <i>historia</i>—será conhecido por +este gallicismo: <i>o massacre de Alexandria</i>. + +<P> +O primeiro episodio oriental que eu vi, ao desembarcar ha doze annos +em Alexandria, foi este: no caes da alfandega, faiscante sob a luz +torrida, um empregado europeu—europeu pelo typo, pela sobrecasaca, +sobretudo pelo bonnet agaloado—estava arrancando a pelle das costas +d'um arabe, com aquelle chicote de nervo d'hippopotamo, que lá chamam +<i>courbach</i>, e que é no Egypto o symbolo official da auctoridade. + +<P> +Em redor, sem que esse espectaculo parecesse desusado ou escandaloso, +alguns arabes transportavam <span class="pagenum"><a name="pag_150">[150]</a></span> fardos; outros empregados +agaloados, de chicote na mão, davam ordens por entre o fumo do cigarro... + +<P> +Saciado ou cançado, o homem do <i>courbach</i>, que era um magrisella, +atirou um derradeiro pontapé á anatomia posterior do arabe—como +quem, ao fim d'um periodo escripto com <i>verve</i>, assenta vivamente +o seu ponto final—e, voltando-se para o meu companheiro e para mim, +offereceu-nos, de bonnet na mão, os seus respeitosos serviços. Era +um italiano, e encantador. A esse tempo o arabe (como quasi todos +os fellahs, um soberbo homem de formas esculpturaes) depois de se +ter sacudido como um Terra-Nova ao sahir d'agua, fôra-se agachar a +um canto, com os olhos luzentes como braza, mas quieto e fatalista, +pensando de certo que Allah é grande nos céos e necessario na terra +o <i>courbach</i> do estrangeiro. + +<P> +Quando, no dia 11 de junho, eu li esses telegrammas, repassados de +panico, em que se annunciava á Europa que a população arabe massacrava +os europeus nas ruas da Alexandria,—não sei porque revi logo o cáes +da alfandega, o italiano serviçal de bonnet agaloado, o <i>courbach</i> +estalando nas costas escuras do arabe. Isto não é trazido como allegoria, +para dizer que as relações dos europeus e dos egypcios se reduziam +a estas duas attitudes—um <span class="pagenum"><a name="pag_151">[151]</a></span> braço com manga de panno +fino erguendo o <i>courbach</i>, e um dorso semi-nú esperando a sova: +muito menos quero insinuar que o massacre do dia 11 foi a tardia vingança +d'estas brutalidades burocraticas... + +<P> +O Egypto não é a Serra Leoa; e o crescente ainda não anda tão de rastos +que consinta em ser systematicamente espancado pela cruz. Mas a verdade +é que no Egypto um qualquer empregado europeu da alfandega, das docas, +ou dos caminhos de ferro, que não ousaria erguer a mão para um carrejão +europeu,—retalha a pelle d'um egypcio, tão naturalmente e com tanta +indifferença como se sacode uma mosca importuna. + +<P> +É que o europeu d'Alexandria considerava o fellah egypcio como um +sêr de raça infima, incivilisavel, mero animal de trabalho, pouco +differente do gado; e se tivesse o estylo de La Bruyère, descrevel-o-hia +como La Bruyère descrevia os aldeãos do tempo de Luiz XIV, «vultos +escuros, curvados sobre a terra e tendo a vaga apparencia de seres +humanos...» + +<P> +N'estas condições de desprezo, usa-se facilmente o <i>courbach</i> +e invariavelmente a insolencia... + +<P> +E note-se que o europeu não tinha muito mais respeito pelo egypcio +das classes superiores ou cultas. Qualquer amanuense de consulado +julgaria da <span class="pagenum"><a name="pag_152">[152]</a></span> sua dignidade d'europeu não ceder o passo +ao mais velho e nobre scheik, senhor de dez tribus e descendente do +propheta; e o mais insignificante empregado dos telegraphos, leitor +do <i>Figaro</i>, não nutriria senão desdem pelos sabios doutores +da Universidade d'El-Azhar, que não vão ao café ler o <i>Figaro</i>, +e pouco sabem de telegraphia. + +<P> +Mas este absurdo desprezo por uma nobre raça, a quem a civilisação +tanto deve, não se manifestava só entre os europeus de Alexandria, +colonia de alluvião, formada pelos detritos das populações do Mediterraneo: +não ouvimos nós ainda ha dias o proprio snr. Gambetta declarar das +alturas da tribuna da camara franceza, esse Sinai da burguezia, que +o povo egypcio só podia ser governado a chicote?... + +<P> +A complicada abundancia da nossa civilisação material, as nossas machinas, +os nossos telephones, a nossa luz electrica, tem-nos tornado intoleravelmente +pedantes: estamos promptos a declarar desprezivel uma raça, desde +que ella não sabe fabricar pianos de Erard; e se ha algures um povo +que não possua como nós o talento de compor operas comicas, consideramol-o +<i>ipso-facto</i> votado para sempre á escravidão... + +<P> +Por outro lado, os egypcios olhavam para o europeu como para a ultima +e mais terrivel praga do <span class="pagenum"><a name="pag_153">[153]</a></span> Egypto, uma outra invasão de +gafanhotos, descendo—não do céo, onde ruge a colera de Jehovah, +mas dos paquetes do Mediterraneo, com a sua chapeleira na mão—a +alastrar, devorar as riquezas do valle do Nilo. E este prejuizo não +é especial ás classes incultas: o pachá mais bem informado, educado +em França, lendo como nós a <i>Revista dos Dous Mundos</i>, nunca +reconhecerá o que o Egypto deve á energia, á sciencia, ao capital +europeu; para elle, como para o ultimo burriqueiro das praças do Cairo, +o europeu é mais que o intruso—é o <i>intrujão</i>. + +<P> +O arabe de modo nenhum se julga inferior a nós; as nossas industrias, +as nossas invenções não o deslumbram; e estou mesmo que, do calmo +repouso dos seus harens, o grande ruido que nós fazemos sobre a terra, +lhe parece uma vã agitação. Elle sente por nós o pasmo misturado de +desdém que póde sentir um philosopho, vendo trabalhar um pelotiqueiro. +O pensador diz comsigo que não é capaz de equilibrar uma espingarda +sobre o nariz, e lamenta-o; mas consola-se reflectindo que o saltimbanco +não é susceptivel de ligar duas idéas. Assim, o mussulmano admira +um momento o nosso gaz, os nossos apparelhos, os nossos realejos, +todo o nosso genio mecanico; depois cofia a barba, sorri, e pensa +comsigo: «Tudo aquillo prova paciencia e engenho, mas eu tenho dentro +em mim alguma cousa de melhor, <span class="pagenum"><a name="pag_154">[154]</a></span> e superior mesmo ao vapor +e á electricidade—é a perfeição moral que me dá a lei de Mahomet.» + +<P> +De resto, nós o sabemos pelas xacaras da nossa mocidade, sempre o +crescente detestou a cruz; e póde-se imaginar quaes são os seus sentimentos, +agora que a cruz, em logar de o combater como paladino, o explora +como agiota. + +<P> +Se em cidades como Damasco ou Beyrouth o europeu <i>touriste</i> inoffensivo, +que passa com a bolsa aberta, excita olhares e murmurios de odio, +sómente porque tudo n'elle é differente, desde os dogmas da sua religião +até á fórma do seu chapéo—calcule-se o que se dá em cidades como +Alexandria e como Tunis, onde o europeu não é <i>touriste</i> amavel +que distribue gorgetas, mas o agenciador soffrego que vem instalar-se +alli como em terra que conquistasse para arredondar depressa um peculio, +sob a bandeira do seu consul. + +<P> +Accrescente-se que no Egypto o europeu apparecia aos olhos do arabe +com o caracter odioso de um privilegiado. + +<P> +Uma cousa parecia intoleravel—é que o europeu empolgasse todos os +logares, todos, desde as gordas sinecuras até os diminutos empregos +de cem francos por mez. + +<P> +Vagava um obscuro posto de carteiro ou de telegraphista—e concorriam, +de um lado um arabe <span class="pagenum"><a name="pag_155">[155]</a></span> honesto e activo, do outro um sacripanta +de nacionalidade grega ou malteza. A quem se dava o emprego? Ao sacripanta. + +<P> +Este systema, fecundo a principio, quando o Egypto era uma barbara +provincia turca, e os europeus chamados eram homens de saber especial +e de integridade, começou no tempo de Mehemet-Ali, que tentava +fazer uma nação sobre as ruinas do velho pachalato, e que convidava +para essa obra a sciencia e o capital europeu: continuou depois com +Said-Pachá, esse delicioso <i>bon-vivant</i>, tão francez que passava +os dias a fazer <i>calembourgs</i>, e que não admittiria em torno +de si, e nas repartições do estado, senão cavalheiros capazes de apreciar +o <i>Charivari</i>; mas a grande invasão de empregados europeus consumou-se +no tempo de Ismail-Pachá,—que acceitava tudo o que vinha da Europa, +os especialistas e os vadios, os que traziam uma idéa e os que só +traziam dividas... + +<P> +O Egypto renovou então a velha lenda do El-Dorado. Quem em Pariz, +ou em Londres, ou em Roma, se via filado pelos credores, com a derradeira +sobrecasaca a coçar-se nos cotovellos, e sem poder voltar ao seu <i>club</i>, +por dever dez francos ao porteiro, obtinha de um diplomata ou de um +principe uma carta de recommendação para o Khediva e tomava o paquete +de Alexandria. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_156">[156]</a></span>Lá, nos primeiros dias, tinha o hotel pago por Sua Alteza—ao +fim do mez emprego dado por Sua Alteza. Qualquer cousa: se era um +velho tenor de sala, já sem voz, nomeava-se coronel de cavallaria; +se era um militar desacreditado, despachava-se inspector das escolas. +Quem não podia alcançar uma carta para o Khediva, ia rojar-se aos +pés do consul. Quem não ousava apresentar-se ao consul, empregava +as influencias transversaes do paço, as mais poderosas—os eunucos, +os cosinheiros, as dançarinas... O emprego vinha, facil e pingue. +E o fellah pagava toda a malta. + +<P> +Mas o peior ainda eram os funccionarios superiores, que as potencias +installavam no interior da administração egypcia—tão ciumentas umas +das outras, que, se, por exemplo, a França conseguia accommodar um +francez na directoria geral das finanças, logo a Inglaterra, para +contrabalançar essa parcella de influencia, empurrava um inglez para +dentro do estado-maior da marinha; e por seu turno a Italia, já desconfiada, +mettia á força um filhote de Roma na direcção da instrucção publica. +Alguns d'estes cavalheiros tinham de certo habilidades de especialistas; +mas a sua abundancia mesmo enredava o movimento da machina administrativa. +Está hoje provado que o Khediva, cedendo a estas pressões, era obrigado +a ter <i>seis empregados para fazer o simples trabalho de um</i>! +<span class="pagenum"><a name="pag_157">[157]</a></span> Todo este mundo formava um estado no estado. + +<P> +Nas suas repartições de finança, nos seus tribunaes, nos seus estados +maiores, nas suas commissões, em todos os recantos da sua administração, +o Egypto só via faces estrangeiras, só escutava linguas estrangeiras, +só sentia interesses estrangeiros; e o dinheiro egypcio mantinha esta +cohorte, que só estava alli para annullar a influencia egypcia. E +eram ao menos uteis?... O consul-geral dos Estados Unidos conta, n'um +livro recente sobre o Egypto, que jantara um dia no Cairo com seis +empregados superiores, todos estrangeiros, cujos ordenados sommados +subiam annualmente a perto de <i>cem contos</i>! Nas suas repartições, +a correspondencia, a escripturação, a contabilidade, tudo era feito +em lingua arabe: <i>e nenhum d'elles sabia o arabe</i>! + +<P> + + +<P> +Não havia talvez sobre a terra peior população que a de Alexandria. +Essa cidade, que fôra outr'ora o refugio do saber e do luxo do oriente, +tornara-se nos nossos dias, sob o Khediva Ismail-Pachá, o barril de +lixo da Europa meridional. Todo o refugo humano da Grecia, das ilhas +do Archipelago, da Italia, da Sicilia, de Marselha (e Deus sabe quanto +estas <span class="pagenum"><a name="pag_158">[158]</a></span> bellas paragens classicas abundam em meliantes!) +se esvasiava instinctivamente sobre Alexandria, alastrava-a, tornava-a +sob o seu bello céo azul-ferrete uma fetida estrumeira social. + +<P> +Bastava atravessar uma rua, para comprehender o conjuncto dos costumes. + +<P> +A cada esquina, um <i>café-cantante</i> atulhado d'uma malta enxovalhada, +que berra, cachimba, emborca aguardente, emquanto sobre o tablado, +por traz da ribalta, uma matrona despeitorada e caiada vae rouquejando +um estribilho obsceno... De dez em dez casas um lupanar, separado +apenas da rua por uma simples cortina... Por toda a parte o jogo: +um sacripanta traz uma pequena roleta, um banco, e no meio da rua +installa a batota; em redor apinham-se logo outros sacripantas, e +d'ahi a momentos a policia tem de acudir, porque corre sangue... + +<P> +O viajante de gosto e de educação tinha de fugir bem depressa d'esta +atmosphera, refugiar-se n'algum quieto café mussulmano, á beira d'agua +tranquilla. Ahi ao menos só havia arabes que fumavam gravemente o +seu <i>chibouk</i>, fallavam entre si com pollidez, comportavam-se +com dignidade. + +<P> +Ah! estou d'aqui a vêr a primeira mesa redonda a que me sentei em +Alexandria! + +<P> +Era presidida por um grego de pelle livida, de suissas reluzentes +como verniz de sapatos, com um <span class="pagenum"><a name="pag_159">[159]</a></span> grilhão de ouro sobre +o collete denotado e brilhantes, talvez verdadeiros, n'uma camisa +de oito dias! Que intrujão! que bandido! Como aquillo rolara por todas +as trapaças, todos os deboches do littoral levantino! O bom era ouvil-o +fallar do Egypto como de um paiz conquistado, terra de ilotas que +tinha obrigação de o vestir, de o calçar, de lhe encher a bolsa a +elle, e aos outros que o applaudiam em torno da mesa redonda, todos +europeus, agenciadores, empregadotes, simples vadios, todos de grilhões +de ouro no relogio, de collarinho decotado, o carão resudando vicio, +o fallar parlapatão, galãs de espelunca... + +<P> +—<i>L'arabe, monsieur</i>, dizia-me este equivoco personagem, n'um +francez do Pireu, <i>ce n'est qu'une infecte canaille</i>! + +<P> +O infecto canalha eras tu, livido grego! + +<P> +É evidente que o que tornou Arabi mais popular no Egypto, foi a sua +hostilidade aos estrangeiros. <i>O Egypto para os egypcios!</i> Esta +phrase, todo um programma, calou fundo no animo do povo inteiro. + +<P> +O Egypto para os egypcios—não para os empregados estrangeiros, nem +para os agiotas estrangeiros... + +<P> +Ah! esta questão dos credores! A famosa questão da divida egypcia! +Em que gastou Ismail-Pachá esses centenares de milhões que a Europa +lhe emprestou, <span class="pagenum"><a name="pag_160">[160]</a></span> e que o pobre fellah está pagando? Em +primeiro logar, na realisação de uma idéa economica—o converter +o Egypto, que é um paiz agricola, n'uma nação industrial. O Egypto +produzia o assucar—porque o não refinaria? Possuia o algodão—porque +o não teceria? E ahi começou, á força de milhões, a cobrir as margens +do Nilo d'essas colossaes fabricas, de que hoje só restam ruinas;—ruinas +de ferro enferrujado e de madeira podre, tão miseraveis e tão tristes, +ao lado das bellas ruinas graniticas dos templos pharaonicos, representando, +como ellas, a servidão de um povo, mas, pela sua fealdade, não podendo +ao menos servir, como ellas, nem para assumpto de uma aquarella... + +<P> +A outra causa da ruina do Khediva foi a sua prodigalidade. Quem não +conhece essa lenda illustre? Quem se não lembra das festas do canal +de Suez? Ahi cada verba se contou por milhões. Dois milhões para a +illuminação do Cairo. Quatro milhões para o banquete de Ismailia. +Despezas com os dois mil convidados durante quinze dias no Cairo e +no Canal—setenta milhões!... Para o champagne bebido n'essas semanas +de bambocha—dous milhões! O fellah pagava. + +<P> +Eh! E eu que estou aqui a fallar—tambem o bebi, esse champagne que +era no fundo o suor do fellah espumante e assucarado! Tambem eu fui +hospede <span class="pagenum"><a name="pag_161">[161]</a></span> de Ismail-Pachá, á custa do fellah! Tambem eu... +Calemo-nos, cubramos a fronte de cinzas, imploremos o perdão do fellah! + +<P> + + +<P> +O resultado d'estas fantasias industriaes, d'estes luxos de Salomão, +foi que o Egypto se achou devendo á Europa centenares de milhões, +por que pagava um juro de <i>sete por cento</i>, e, como burgueza +prudente que zela os seus interesses, a Europa tinha pouco a pouco +tomado conta da administração do Egypto... + +<P> +Quando Arabi quiz modificar este systema, que convertia o povo egypcio +n'uma horda de servos trabalhando para os financeiros de Pariz e Londres—as +esquadras de França e Inglaterra appareceram logo, pedindo o desterro +de Arabi, e o licenceamento do exercito, que era o instrumento e a +força do partido nacional. Os arabes viram n'isto um odioso abuso +da força, a Inglaterra e a França querendo manter á bala os interesses +dos possuidores dos titulos da divida egypcia e os privilegios dos +intrusos. + +<P> +Desde esse momento Arabi tornou-se um libertador; e o Khediva, que +as esquadras vinham proteger contra Arabi, passou a ser o renegado, +o traidor. + +<P> +Esta era a situação no dia 11 de junho. Alexandria tornara-se uma +fornalha de excitação. Nas mesquitas prégava-se com furor a cruzada +contra o <span class="pagenum"><a name="pag_162">[162]</a></span> christão: nos bazares fallava-se do estrangeiro +como do cão maldito, da ave de rapina, peior que o gafanhoto que devora +a seara nos campos ferteis do Nilo; e, ou fôsse o fanatismo que despertasse, +ou fôsse a miseria que se queria vingar—todo o bom mussulmano se +armava. + +<P> +N'estas circumstancias, de uma chufa de botequim póde nascer uma guerra +de raças. E, pouco mais ou menos, assim succedeu. Na manhã do dia +11, na rua das Irmãs, uma das mais ricas do bairro europeu, um inglez, +por um velho habito, deu chicotadas n'um arabe; mas, contra todas +as tradições, o arabe replicou com uma cacetada. O inglez fez fogo +com um revólver. D'ahi a pouco o conflicto entre europeus e arabes, +em pleno furor, tumultuava por todo o bairro... Isto durou cinco horas—até +que, por ordens telegraphadas do Cairo, a tropa, até ahi neutral, +acalmou as ruas. E o resultado, bem inesperado, mas comprehensivel, +desde que se sabe que os arabes só tinham cacetes e que os europeus +tinham carabinas—foi este: perto de cem europeus mortos, mais de +trezentos arabes dizimados. Os jornaes têm chamado a isto o <i>massacre +dos christãos</i>: eu não quero ser por modo algum desagradavel aos meus +irmãos em Christo, mas lembro respeitosamente que isto se chame a +<i>matança dos mussulmanos</i>. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_163">[163]</a></span> +<H2><a name="SECTION00940000000000000000"></a> +<BR> +IV +</H2> + +<P> + +<H4><A NAME="SECTION00941000000000000000"> +A fuga dos europeus.—O grande sonho inglez.—O «casus +belli».—A vespera do bombardeamento.</A> +</H4> + +<P> +Esta <i>matança de christãos</i>—para continuarmos a dar-lhe a sua +alcunha diplomatica—puxou bruscamente a attenção do mundo que lê +jornaes para o Egypto, e por isso devem ahi ter presentes e vivos—sem +que se torne necessario o rememoral-os, detalhe a detalhe—todos +os episodios que n'uma semana se desencadearam uns sobre os outros, +com uma barafunda de melodrama: a indignação excessiva e tumultuosa +da Europa, excitada pelo clamor e pelos gritos da imprensa ingleza; +o desordenado panico que se apossou dos europeus residentes no Egypto; +e o facto, estranho mesmo n'essa terra de classicos exodos, de uma +colonia de mais de <i>cem mil</i> almas abandonando de repente o solo, +onde, desde gerações se estabelecera, deixando occupações, interesses, +empregos, casa e fazenda, precipitando-se <span class="pagenum"><a name="pag_164">[164]</a></span> apavorada para +os caes de embarque, apinhando-se em paquetes, em navios de carga, +em barcaças, em qualquer cousa que pudesse fluctuar na agua, e fugir +da terra funesta, pagando a peso de ouro o direito de se agachar n'um +buraco de porão; a maneira magistral como a Inglaterra, pelos officiaes +da sua armada, organisou e policiou esta nova fuga dos hebreus; emfim, +a chegada a Alexandria do Khediva, que perdera toda a auctoridade +no Cairo, e colhia a opportunidade de vir abrigar os restos esfrangalhados +da sua realeza sob os canhões do almirante Seymour. + +<P> +Arabi-pachá, que se tornára, de facto, dictador, correu tambem a Alexandria—e +o seu primeiro passo foi estabelecer tribunaes marciaes, para julgarem +os <i>massacradores</i> do dia 11. + +<P> +Note-se que se não tratava, nem por sombras, de punir os europeus +que tinham mandado <i>tresentos</i> mussulmanos d'esta terra de miserias +para o paraiso de Allah; mas sómente os mussulmanos suspeitos de terem +posto mãos violentas sobre christãos. Ainda assim, os jornaes inglezes +bradaram logo que não se podia ter confiança na justiça, na imparcialidade +dos magistrados egypcios, tão hostis ao estrangeiro como á populaça—e +que taes julgamentos não passavam d'uma farça, onde os réus, que se +mostravam um momento á Europa carregados de ferros postiços, <span class="pagenum"><a name="pag_165">[165]</a></span>eram depois, por traz dos bastidores, acclamados como bons patriotas. + +<P> +Arabi-pachá propoz então que esses tribunaes se compuzessem de juizes +arabes e de officiaes inglezes. Isto indicava um desejo vivo, quasi +uma sofreguidão de justiça. E, com effeito, se o partido nacional +agora todo poderoso, se não mostrasse severo—corria o perigo de +passar por cumplice; e se as suas refórmas tinham já inspirado tanta +antipathia á Europa—o que seria se a elle se pudessem plausivelmente +attribuir taes attentados? + +<P> +De resto, para um mussulmano orthodoxo e fino como Arabi, toda a violencia +contra o estrangeiro, contra o hospede, constitue a mais negra violação +da lei santa. Arabi era sincero. Mas a Inglaterra não acceitou as +suas propostas... + +<P> +A Inglaterra não acceitou. A Inglaterra estava armada a bordo dos +seus couraçados. E, todavia, mais que nenhuma outra nação ella soffrera +com os tumultos d'Alexandria: o seu consul, brutalmente espancado, +achava-se á morte; alguns dos officiaes da esquadra tinham recebido +no uniforme, que é o orgulho da Grã-Bretanha, a lama e as pedradas +da populaça egypcia; a maior parte dos europeus assassinados eram +de nacionalidade ingleza; contra a Inglaterra se prégara a guerra +nas mesquitas, nos bazares, e até sob a tenda beduina... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_166">[166]</a></span>Mas a Inglaterra, generosa e paternal, queria esquecer +essas injurias. Pudera! + +<P> +É que não lhe convinha reconhecer as atrocidades do dia 11 como um +mero e casual episodio de fanatismo mussulmano, a que algumas grilhetas +e algumas cordas de forca poriam definitivamente termo; nem lhe convinha +descer dos seus couraçados unicamente para ir a um tribunal ajudar +a sentenciar dez ou doze facinoras. + +<P> +O que á Inglaterra convinha, era attribuir a este conflicto local +a magnitude de uma anarchia nacional, e offerecer ou impor o seu prestimo—não +para castigar os tumultos de um bairro, mas para pacificar todo um +paiz em desordem. E assim ella rejubilava com a chegada d'esse dia +tão appetecido, tão pacientemente esperado desde o começo do seculo, +tão anciosamente espiado desde a abertura do canal de Suez, em que +teria emfim um pretexto para assentar na terra do Egypto o seu pé +de ferro, essa enorme pata anglo-saxonia, que, uma vez pousada sobre +territorio alheio, seja um rochedo como Gibraltar, uma ponta de areia +como Aden, uma ilha como Malta, ou todo um mundo como a India—nenhuma +força humana póde jámais arredar ou mover. + +<P> +Já se não tratava de libertar o Khediva coacto, de defender as algibeiras +dos portadores do emprestimo egypcio. Um interessse mais alto, ligado +<span class="pagenum"><a name="pag_167">[167]</a></span> com os destinos do Imperio, levantava-se, dominava tudo. + +<P> +<i>O Egypto estava em anarchia</i>: logo competia á Inglaterra, paladino +da civilisação, restabelecer lá a ordem, impedil-o de recahir no estado +barbaro. + +<P> +<i>O Egypto estava em anarchia</i>: logo competia á Inglaterra, como +grande potencia oriental, defender essa parte preciosa da terra egypcia—o +canal de Suez, e evitar que elle cahisse nas mãos de Arabi ou de outro +dictador mussulmano, hostil aos beneficios da civilisação. + +<P> +É o que pouco mais ou menos respondia a Inglaterra, e bem alto, para +que o mundo ouvisse—quando Arabi-pachá lhe propoz uma alliança judicial +para punir o crime mussulmano do dia 11. + +<P> +—Não, dizia John Bull, não se trata do dia 11! Esqueçamos o dia +11. Esqueçamol-o, como se elle fosse apenas o dia 7. A questão é outra. +<i>O Egypto está em anarchia.</i> É necessario salvar a civilisação! + +<P> +E estas nobres palavras significavam, despidas dos seus atavios humanitarios, +que a Inglaterra, sob o pretexto de pacificar o Egypto, desembarcaria +em Alexandria, occuparia por motivo de operações militares Port-Said +e Suez, as duas portas do canal, e depois—depois nunca mais, n'esses +pontos estrategicos do caminho da India, se arriaria a bandeira ingleza! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_168">[168]</a></span>E, feito isto, ficava realisado o grande sonho britannico:—posse +absoluta da estrada das Indias; John Bull fazendo sentinella a todas +as portas succesivas que conduzem ao seu imperio do Oriente: á entrada +do Mediterraneo, Gibraltrar e o seu rochedo inexpugnavel; no Mediterraneo, +Malta e Chypre, duas ilhas, dois collossaes depositos de guerra: á +entrada do canal, Port-Said; ao fim do canal e á bocca do Mar Vermelho, +Suez; á beira do Golfo Persico, Aden; e d'ahi por deante as suas esquadras +varrendo os mares... + +<P> +Deante d'esta esplendida opportunidade se achou a Inglaterra, depois +das carnificinas de Alexandria; e, tendo logo declarado <i>officialmente</i> +o Egypto em anarchia, sem perda de um momento, começou a armar-se. + +<P> +E, no meio de tudo isto—a Europa? Oh! a Inglaterra convidava, com +bellos ademanes de desinteresse, a Europa a partilhar com ella a honra +de pacificar o Egypto! Mas sabia bem que nenhuma das potencias moveria +um soldado: nem mesmo a França, que tinha uma frota na bahia de Alexandria +e collaborára nas manifestações platonicas; a França, governada por +uma democracia burgueza que enriquece, e tornada toda ella uma vasta +casa de negocio, não quereria por cousa alguma perturbar aquella paz +tepida e doce em que amadurece o Milhão. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_169">[169]</a></span>Além disso, as potencias já tinham resalvado a sua dignidade, +sentando-se em torno da mesa verde da conferencia, á beira das aguas +luminosas do Bosphoro, meditando com a cabeça entre os punhos a solução +da questão egypcia. E, emquanto ao resto, estavam-se observando, armadas +até os dentes, desconfiadas, ciumentas, odiando-se, mas immobilisadas +reciprocamente pela propria magnitude dos seus armamentos. + +<P> +A França receia a Allemanha; a Turquia teme a Russia; a Austria está +contida por ambas; a Italia necessita a benevolencia de todas; e cada +uma por seu turno treme do snr. de Bismarck, o hediondo papão, o Jupiter +trovejante do Olympo diplomatico, que, no seu retiro de Varzin, torturado +por toda a sorte de males, passa parte do tempo sob a influencia da +morphina... + +<P> +De resto, que todas appeteciam os despojos do Egypto, só o póde duvidar +quem ignore os instinctos de pilhagem, de gatunice, de pirataria, +que alberga sempre a alma d'um povo civilisado; mas nenhuma das potencias +é, como a Inglaterra, uma ilha cercada d'um mar agitado, onde se move +a maior frota da terra; e, apertadas no estreito continente, hombro +contra hombro e espada contra espada, nenhuma dellas ousaria dar um +passo para o lado do Egypto, com receio que o vizinho lhe saltasse +ás <span class="pagenum"><a name="pag_170">[170]</a></span> guellas. Limitavam-se, por isso, cheias de rancor, +a trocar phrases de diplomatica doçura, sentadas á mesa da <i>conferencia</i>. + +<P> +Quando, deante d'uma casa fechada, os que lhe appetecem as riquezas, +discutem, de penna na mão, a melhor maneira de lá entrar—a vantagem +pertence toda áquelle que, em logar d'uma penna, se muniu d'um machado +e atira de subito a primeira machadada á porta. Foi o que fez a Inglaterra. +Emquanto os outros faziam planos <i>pro-forma</i> em cima d'uma carteira—ella +fez fogo sobre Alexandria. + +<P> +Sómente não se póde atacar uma cidade inoffensiva sem um pretexto. +E a Inglaterra foi, á falta de outro melhor, forçada a apresentar +um tão máu, que, como dizia a <i>Associação dos Positivistas Inglezes</i>, +no seu protesto contra a invasão do Egypto, a sua puerilidade só consegue +augmentar a sua immoralidade. + +<P> +Perante os armamentos da Inglaterra, Arabi-pachá, se lhe não comprehendia +as intenções espoliadoras, devia pelo menos concluir que era contra +elle, contra o partido que elle dirigia, e contra as idéas que elle +encarnava, que a Inglaterra se estava preparando; e, muito naturalmente, +na espectativa de um ataque, organisou a sua defesa, artilhando os +fortes de Alexandria, e erguendo baterias novas pela costa. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_171">[171]</a></span>Foi contra isto que a Inglaterra protestou; e foi d'isto +que fez um <i>casus belli</i>—declarando que, se as obras dos fortes +não cessassem, ella destruiria os fortes!... Sem estar em guerra com +o Egypto, ella considerava-se no direito de reunir deante de Alexandria +uma frota ameaçadora; mas não admittia que as auctoridades de Alexandria +concertassem sequer as brechas das velhas fortificações de Mehemet-Ali! + +<P> +E que explicações estupendas o snr. Gladstone dava á Europa para justificar +o <i>casus belli</i>! As baterias que Arabi ergue (dizia elle), os +novos canhões que monta, <i>põem em perigo os couraçados inglezes</i>! +E os couraçados não punham em perigo os fortes? Mas ao lado da esquadra +ingleza estavam navios de guerra francezes, allemães, italianos, gregos, +austriacos—tão expostos ás balas de Arabi como os que hasteavam +o pavilhão britannico: e esses não se julgavam <i>em perigo</i>! + +<P> +Que diria a Inglaterra se o commandante de algum dos couraçados francezes +ou allemães, que por vezes vêm ancorar nas aguas de Portsmouth ou +de Southampton—mandasse de repente prohibir ao governador de uma +d'essas praças a continuação das obras de defesa que ahi se vão incessantemente +aperfeiçoando, sob o pretexto de que taes baterias <i>poderiam +fazer mal</i> ao navio de seu commando?... Com <span class="pagenum"><a name="pag_172">[172]</a></span> tal precedente, +os almirantes inglezes, que honram frequentemente o humilde porto +de Lisboa com a presença dos seus pavilhões—estariam auctorisados +a exigir a destruição da torre de S. Julião, do Bugio e de Belém! +Dir-se-hia que não é de prever que o portuguez, pacato e bonacheirão, +faça fogo—muito menos sobre couraçados inglezes. De accordo. Mas +que ganharia Arabi-pachá em mandar de surpreza algumas balas á esquadra +ingleza—e portanto ás outras que estavam no mesmo ancoradouro—senão +o attrahir sobre si, e o seu partido, e o seu paiz, a pavorosa vingança +da Europa inteira, injuriada em todos os seus pavilhões? + +<P> +Arabi fez uma cousa fina: cedeu, promettendo interromper os trabalhos +de defesa. E a Inglaterra ficou desapontada. Esta submissão de Arabi +desmanchava o seu engenhoso plano. + +<P> +Alguns jornaes mais cynicos e impacientes chegavam a aconselhar que +se não respeitasse a palavra d'um vil mussulmano—e que se fosse +<i>bombardeando</i>! O trabalho então da frota foi vigiar incessantemente +as fortificações, na esperança de descobrir algum sapador, d'enxada +ao hombro, que desmentisse a promessa d'Arabi. De noite, os couraçados +projectavam sobre a costa longos e vivos raios de luz electrica, movendo-os +lentamente ao longo das baterias, pesquizando anciosamente os menores +recantos, <span class="pagenum"><a name="pag_173">[173]</a></span> procurando o mais leve vestigio de trabalho—fosse +elle um cesto de pedras esquecido; e assim foi que uma noite—noite +venturosa para o governo do snr. Gladstone!—a esquadra descobriu +dois soldados limpando um velho canhão! Que allivio para a Inglaterra! +Immediatamente o almirante Seymour mandou este <i>ultimatum</i> a +Toulba-pachá, governador da cidade:—dentro em vinte e quatro horas +os fortes deveriam ser entregues ás tropas inglezas, ou toda a linha +de couraçados abriria fogo sobre Alexandria. A isto, realmente, só +se póde responder a grande palavra de Cambronne em Waterloo. + +<P> +Lamento que Arabi a não dissesse: era a segunda vez na historia que +John Bull a receberia em plena face. + +<P> +A vespera do bombardeamento foi dramatica. O almirante Seymour fez +sahir da bahia todos os navios mercantes; e, depois, com a usual etiqueta, +convidou os navios de guerra de outras nações a fazerem-se ao largo, +levando para fóra da linha de fogo a neutralidade das suas bandeiras. +Essa longa procissão de couraçados de toda a Europa, deixando lentamente +as aguas da Alexandria, para que a Inglaterra pudesse livremente commetter +o seu attentado—é descripta pelos correspondentes inglezes como +cheia de solemnidade e de ceremonial. As salvas succediam-se; uns +aos outros cortejavam-se os <span class="pagenum"><a name="pag_174">[174]</a></span> pavilhões dos almirantes. +Os ultimos a sahir foram os navios francezes, os alliados na <i>manifestação</i>, +que, honra lhes seja, não quizeram ser alliados no crime:—e a tricolor +afastou-se tambem, saudada pelo almirante Seymour, entre os <i>hurrahs</i> +de despedida da marinhagem e o estridor da <i>Marselhesa</i>. A tarde +estava bella; tudo era luz na bahia; os minaretes d'Alexandria branquejavam +no azul... Magnifico espectaculo, sem duvida:—sómente que pensariam +d'elle os milhares de pobres arabes, de mulheres e de creanças, que +o contemplavam das alturas da cidade, e sobre os quaes ia cahir no +dia seguinte bala, metralha e bomba? + +<P> +Por fim, a noite desceu e estrellou-se; á beira da agua calma luziam +as luzes d'Alexandria; tudo ficou em silencio na bahia. + +<P> +Estavam a sós, frente a frente, sob a paz dos ceus, uma grande esquadra +ingleza e a cidade inoffensiva que ella, na madrugada seguinte, para +satisfazer a sofreguidão mercantil de um povo de lojistas, ia friamente +arrasar. + +<P> + + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_175">[175]</a></span> +<H2><a name="SECTION00950000000000000000"></a> +<BR> +V +</H2> + +<P> + +<H4><A NAME="SECTION00951000000000000000"> +Depois do bombardeamento.—Os incendios.—As responsabilidades.—Uma +Alexandria ingleza.—A invasão.—A attitude da Europa.</A> +</H4> + +<P> +O almirante Seymour, dias antes, tinha declarado que em duas breves +horas desmantelaria os fortes de Alexandria. Ao cabo, porém, de nove +compridas horas ainda não fizera calar as baterias egypcias; e ainda +justamente uma bomba vinha escavacar a camara do commandante do <i>Inflexivel</i>. + +<P> +Sir Beauchamp Seymour reconheceu, nos seus despachos para o almirantado, +«que os melhores artilheiros da Europa se poderiam orgulhar de uma +tão bella resistencia». Mas nem coragem, nem reductos, nem muralhas +de granito prevalecem contra esses negros monstros que desfeiam os +mares—o <i>Monarcha</i>, o <i>Alexandra</i>, o <i>Soberbo</i>, o +<i>Sultão</i>, o <i>Invencivel</i>, o <i>Minotauro</i>, e tantos outros +que lá estavam, movediços castellos de ferro, servidos pelas forças +combinadas do vapor, da hydraulica, da electricidade, <span class="pagenum"><a name="pag_176">[176]</a></span>devastadores como um cataclysmo e exactos como uma sciencia. + +<P> +Pobres fortalezas de Mehemet-Ali! Foi a velha fabula da panella de +barro contra que tombou a panella de bronze. Ao anoitecer, eram apenas +montões de ruinas fumegando em silencio... + +<P> +Estava consummada a façanha! Na bahia, agora, tudo cahira n'uma grande +paz; a noite descera calma e escura; os enormes couraçados repousavam; +da cidade vencida não vinha o menor ruido; só n'um ponto de terra +o palacio de Rasel-tin ardia ao abandono. Foi então que o eloquente +correspondente do <i>Standard</i> telegrahou para o seu jornal esta +phrase que merece fama:—<i>A situação não póde ser mais satisfactoria!</i> + +<P> +Pelo meio da noite, porém, da parte de Alexandria, onde ficava a <i>Praça +dos Consules</i>, começou a erguer-se um vasto clarão. Alli, evidentemente, +havia um incendio. Mas como? Porque? + +<P> +O almirante Seymour lavaria d'ahi as suas mãos—se tivesse a bordo +a bacia de Poncio Pilatos. Elle concentrára escrupulosamente o seu +fogo sobre os fortes: uma ou outra bomba poderia ter cahido nos bairros +arabes—e nada mais legitimo, nem de mais salutar terror; mas a parte +européa de Alexandria fôra poupada... E todavia, era lá que o incendio +se estendia avermelhando, aquecendo o ceu; e de <span class="pagenum"><a name="pag_177">[177]</a></span> outros +pontos visinhos iam subindo na noite altas labaredas. Diabo! A situação +já não era tão satisfactoria... + +<P> +Ao outro dia houve um tempo muito nublado, com um mar muito forte. +Os couraçados, por precaução, fizeram-se ao largo. Quando, horas depois, +vieram retomar as suas posições de combate, Alexandria, deante d'elles, +ardia toda como uma monstruosa fogueira. Positivammente, não era nada +satisfactoria a situação! + +<P> +Não era. Arabi-pachá abandonára Alexandria, levando o grosso do +exercito. E a população mussulmana, enfurecida por nove horas de bombardeamento, +sem policia para a conter, com os <i>ulemas</i> a excital-a, tomada +da cobiça da pilhagem, e inflammada pela furia das represalias, correra +aos bairros europeus,—e incendiou, saqueou, matou, destruiu; matou +pela raiva de matar, porque até pobres cavallos de carruagem appareceram +esquartejados; destruiu pela raiva de destruir, porque se acharam +nas ruas, aos pedaços, vestidos de senhoras, relogios de sala e oculos +de theatro... + +<P> +Ferocidades de fanatismo, que se arremessa n'uma vingança indiscriminada +sobre tudo o que lhe represente a raça, os costumes, as idéas que +elle odeia—sobre os homens e sobre os espelhos. Isto não se dá só +em paiz mussulmano. Sempre que os <span class="pagenum"><a name="pag_178">[178]</a></span> parizienses invadiam +as Tulherias, rasgavam á ponta de sabre o setim das poltronas... + +<P> +Collocou-se a população de Alexandria, por taes excessos, fóra da +humanidade? Os inglezes dizem que sim; eu digo que nós teriamos feito +o mesmo, nós europeus, christãos e podres de civilisação. Se, quando +os allemães estavam bombardeando Pariz—os parizienses vissem no +centro da sua cidade um bairro exclusivamente allemão, compacto, monumental, +luxuoso, erguido pelo dinheiro que o allemão ganhára a explorar a +França,—resistiriam os parizienses, os mais civilisados dos mortaes, +a besuntal-o de petroleo e fazel-o flammejar por uma bella noite de +inverno? + +<P> +A resposta é facil, lembrando-nos que, quando por seu turno o snr. +Thiers, esse homunculo de estado, bombardeou Pariz, os parizienses +apressaram-se a destruir o palacete do snr. Thiers. + +<P> +Foi Arabi que ordenou o incendio de Alexandria? Não, evidentemente. +Arabi não é um patriota selvagem, do typo d'esse Rostopchin que queimou +Moscou: é um fellah fino e sagaz, que sabe que na Europa, na Inglaterra +sobretudo, onde affectamos todos uma sensibilidade humanitaria, nada +desacredita mais que uma fria crueldade. Basta observar a attitude +polida, quasi paternal que elle toma com os prisioneiros inglezes—o +guarda-marinha Chair, por exemplo. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_179">[179]</a></span>Quando este official foi levado ao acampamento arabe, +Arabi disse-lhe logo, depois d'um <i>shake-hands</i>. + +<P> +—Escreva a sua mãe, conte-lhe que está entre mãos leaes, e tire-a +d'inquietações... + +<P> +Isto era de certo sincero—mas sobre tudo habil: e uma tal palavra +voou direita ao coração de todas as mães inglezas. Desde os conflictos +d'Alexandria, o empenho d'Arabi tem sido proteger os europeus que +ainda restam nas villas do interior. Os <i>cadis</i> que não evitaram +o massacre dos empregados do caminho de ferro do Delta, foram decapitados. +A elle se deve a tranquillidade do Cairo, onde existe uma enorme massa +de propriedades e riquezas européas. Que ganharia Arabi em destruir +esta prospera cidade egypcia, no começo da campanha e com o seu exercito +intacto? Apenas a fama d'um monstro boçal. + +<P> +Á Inglaterra cabe a responsabilidade da catastrophe. As bombas do +almirante talvez, com effeito, não tivessem arrasado mais que alguns +casebres arabes; mas á imprevidencia do governo se deve a ruina d'Alexandria. + +<P> +Desde o meiado de junho, o mais experiente, mais auctorisado dos seus +agentes diplomaticos, o snr. E. Malet, consul geral do Egypto, não +cessou de bradar—que se o bombardeamento era inevitavel, Sir Beauchamp +Seymour devia ter tropas de desembarque, <span class="pagenum"><a name="pag_180">[180]</a></span> para occupar +a cidade, apenas os fortes fossem destruidos, e impedir assim que, +no caso provavel de Arabi se retirar para o interior, ella ficasse +á mercê d'uma plebe semi-barbara... + +<P> +Nada d'isto se fez. + +<P> +Sir Beauchamp Seymour bombardeou, arrasou, repelliu virtualmente d'Alexandria +a Arabi, a unica força que continha uma populaça de cem mil fanaticos—e, +depois, ficou a bordo do seu couraçado, vendo tranquillamente arder, +deante de si, uma das mais ricas cidades do Mediterraneo. + +<P> +Por outro lado, a quem aproveitava o incendio? Á Inglaterra. O pretexto +de que os fortes <i>punham em perigo os couraçados britannicos</i>, +só a auctorisava, perante os escrupulos da Europa, a destruir os fortes, +não a occupar a cidade. Agora, porém, que ella estava em chammas, +abandonada á anarchia, á pilhagem, ao ataque das hordas beduinas que +corriam do deserto—agora ella tinha o direito—mais, ella tinha +o dever!—de desembarcar e ir salvar de uma total aniquilação tanta +riqueza, tão esplendido centro de commercio!... + +<P> +Generosa Inglaterra! E desembarcou logo, aquartelou tropa, plantou +bandeira. Tinha deante de si um monte de ruinas, e em poucos dias +foi dando fórma a uma Alexandria nova, já com feição ingleza e administrada +á ingleza. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_181">[181]</a></span>Os incendios foram dominados; as ruas desentulhadas; estabeleceu-se +uma policia terrivel, que executava summariamente os ladrões e os +incendiarios; abasteceu-se a cidade: a alfandega reabriu as portas; +em substituição das lojas destruidas, armaram-se barracões de venda; +o machinismo judicial foi posto em movimento; reparou-se a fabrica +do gaz, a cidade foi reilluminada; os bancos voltaram a funccionar. + +<P> +E, como era necessaria uma auctoridade, em nome de quem se reorganisasse +a vida municipal, os inglezes, que apenas estão alli (diziam elles) +como um corpo de policia, foram buscar o Khediva a uma casa dos arredores, +onde elle se refugiara durante o bombardeamento, e installaram-n'o +solemnemente no palacio de Ras-el-tin, palacio meio ardido, onde elle +é uma auctoridade meio morta!... + +<P> + + +<P> +Desde este momento, a situação tornou-se muito definida, muito simples. +Os inglezes possuiam, governavam Alexandria, tão naturalmente como +se ella estivesse situada no condado de Yorkshire; e de fronte d'Alexandria, +n'essa especie de isthmo arenoso que a liga á terra do Delta, estava +Arabi n'um acampamento entrincheirado, governando d'ahi todo o valle +do Nilo e o deserto até o mar. Os inglezes <span class="pagenum"><a name="pag_182">[182]</a></span> recebiam incessantes +reforços de casa e da India. Arabi chamava á guerra contra os inglezes +todo o povo fellah. A Inglaterra preparava uma invasão. Arabi organisava +uma grande defesa nacional. Nada mais claro. A questão é entre a Inglaterra, +procurando estabelecer um protectorado sobre o Egypto, arrancar-lhe +as cidades estrategicas que dominam o canal, e Arabi-pachá, um patriota, +que quer o Egypto para os egypcios, que receia a protecção do estrangeiro +como a peior desgraça de um paiz fraco, e que entende que, pelo facto +de que Alexandria, Port-Saïd e Suez se acham desgraçadamente no caminho +da India, não é motivo para que se tornem guarnições inglezas. E dos +dous lados, grande enthusiasmo. + +<P> +Em Londres, onde acabou a <i>season</i> e começa a monotonia das praias +de banhos, o partir para conquistar o Egypto passou a considerar-se +uma feliz aventura. Se o ministerio da guerra o consentisse—toda +a mocidade de ouro, ou apenas de latão dourado, se alistaria, porque +é do mais requintado <i>chic</i> ir dar cabo de Arabi! + +<P> +O duque de Connaugth, um dos filhos de S. M. a Rainha, faz parte da +expedição, e o duque de Teck, seu cunhado, não sendo militar, partiu, +diz-se, como simples empregado do correio. Os officiaes dos regimentos +de guardas, essa pura nata da aristocracia e flôr da finança, tiveram +a ventura de vêr os seus <span class="pagenum"><a name="pag_183">[183]</a></span> luxuosos regimentos, de ornamentação +monarchica, expedidos para o Egypto; sómente este natural prazer foi +em parte estragado pela severidade do ministerio da guerra, que, como +se tratava de uma campanha e não de um torneio, não consentiu que +esses gentis-homens fôssem seguidos por equipagens, creados de librés, +tendas de luxo e caixas de vinho de Champagne. + +<P> +Um d'estes officiaes exprimiu alto a sua indignação, porque o estado-maior +só lhe consente tres cavallos de sella, dous creados de quarto e cinco +malas de bagagem! + +<P> +Por outro lado, ao comprido do Nilo toda a população fellah se declarou +por Arabi; como por elle se declararam as classes lettradas, as mesquitas, +os <i>ulemas</i>, os <i>coptas</i>, os proprios principes parentes +do Khediva. Os <i>mudirs</i>, governadores de provincias, pagam-lhe +a elle os impostos. Os <i>scheiks</i> do deserto mandam-lhe a sua +cavallaria. + +<P> +E este ardor é tanto maior, quanto Arabi-pachá foi de ha muito prophetisado; +já a sua inesperada entrada no governo se considerou um advento divino; +e este rebelde (como outros rebeldes que tão gloriosamente fizeram +o seu caminho na terra e no ceu) é Messias! + +<P> +Uma antiga prophecia mussulmana annuncia que no seculo decimo terceiro +da Hegira nascerá á beira <span class="pagenum"><a name="pag_184">[184]</a></span> de um grande rio um homem de +raça vil, por nome Ahmet, que se revoltará, e restaurará o esplendor +do Islam; ora, os arabes estão no século XIII da Hegira, e Arabi, +cujo nome é Ahmet, cuja origem é <i>fellahina</i>, tendo nascido n'uma +aldêa á margem do Nilo, revoltou-se contra o seu califa. Assim, elle +reune o duplo prestigio de um Spartacus e de um Christo. + +<P> +Concentrada a questão entre uma poderosa nação invasora e um patriota +que defende o seu solo—a Europa tomou logo a sua tradicional attitude: +isto é, murmurou algumas palavras de branda admoestação, e depois +recuou para longe, a observar como um braço forte sabe usar da sua +força, a estudar como se consuma a espoliação de um fraco. + +<P> +Nos ultimos quinze annos a Prussia roubou a Dinamarca, e depois foi +pela Allemanha saqueando reinos e grãos ducados; em seguida, desmembrou +a França; mais tarde a Russia espatifou a Turquia; ha dous annos, +subitamente, a Republica Franceza cahiu sobre Tunis, e empolgou esse +desventurado estado barbaresco. Em cada um d'estes casos a Europa +comportou-se como um coro das operas d'antiga escola, quando membrudo +barytono, ahi pelo quarto acto, erguia o ferro sobre o tenor gentil +e magrizela: o côro adeanta-se, modula uma larga phrase, agita os +braços em cadencia, faz o commentario <span class="pagenum"><a name="pag_185">[185]</a></span> amargo da acção, +brada talvez: <i>suspendei</i>! Depois, afastando-se em grande compostura, +deixa á bocca da scena o tyranno barbudo sondando tranquillamente +com a ponta da lamina o interior do galã... + +<P> + + +<P> +Não fallemos mais na Europa. Não ha, nunca houve <i>Europa</i>, no +sentido que esta palavra tem em diplomacia. Ha hoje apenas um grande +pinhal de Azambuja, onde rondam meliantes cobertos de ferro, que se +odeiam uns aos outros, tremem uns dos outros, e, por um accordo tacito, +permittem que cada um por seu turno se adeante—e assalte algum pobre +diabo que vegeta ou trabalha ao canto de seu cerrado. Nas largas e +bem traçadas estradas do Direito Internacional, allumiadas por Ortolan +e outros lumes, rouba-se de carabina alta, e rompem a cada momento +brados de povos assassinados. A Europa, como os campos de corridas +em Inglaterra, devia estar coberta d'estes avisos em lettras gordas: +<i>Beware of pick-pockets!</i> Cautela com os salteadores. + +<P> +A pequena propriedade politica tende a acabar. Toda a terra vae em +breve reunir-se nas mãos de quatro ou cinco grandes proprietarios... +Hontem, era Tunis—porque a França necessita proteger a fronteira +da Argelia. Hoje, é o Egypto—porque <span class="pagenum"><a name="pag_186">[186]</a></span> a Inglaterra precisa +assegurar o caminho da India. Amanhã, será a Hollanda—porque a Allemanha +não póde viver sem colonias. Depois, a Servia—por motivos que a +seu tempo a Austria dirá. Mais tarde, a Rumania—porque a Russia +é forte. Depois a Belgica—porque sim. Depois... + +<P> +Este assumpto é lugubre. Voltemos ao valle do Nilo! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_187">[187]</a></span> +<H2><A name="SECTION00960000000000000000"></a> +<BR> +VI +</H2> + +<P> + +<H4><A NAME="SECTION00961000000000000000"> +Situação dos exercitos.—O Nilo, a secca, os areaes.—Os +perigos de um «Jehad».—O septicismo mussulmano.—O mundo ingleza-se.—Filaucias +de John Bull.</A> +</H4> + +<P> +<BLOCKQUOTE> +Postos estão frente a frente +<BR> +Os dois valorosos campos... + +</BLOCKQUOTE> +Esta melancolica chacara que, se bem me recordo, chora as desgraças +de Alcacer-Kibir—serve para pintar graphicamente a situação estrategica +de inglezes e egypcios, desde que se abriu a campanha. + +<P> +Para comprehenderem bem, imaginem um grande A. O triangulo interno +da lettra é o Delta—essa terra amada dos deuses, tão rica, que ella, +só por si, outr'ora alimentou o imperio romano; ao alto da lettra, +na ponta, está o Cairo—de sorte que um poeta persa poude dizer gentilmente +que o Delta é um leque verde fechando sobre um botão de diamante, +que se chama o Cairo. Á base da perna direita do A fica Alexandria, +e ahi permanece uma <span class="pagenum"><a name="pag_188">[188]</a></span> parte do exercito inglez, defendido +pelas fortificações de Ramleh—e tendo deante de si, a tiro de peça, +o grande campo entrincheirado de Arabi-pachá, que se chama Kraf-Daonar, +contendo 18 mil egypcios, enormes parques de artilharia, e fechando +a marcha pelo Delta. A outra parte do exercito inglez, commandada +pelo proprio general em chefe Sir Garnet Wolseley, dirigiu-se por +mar á base da perna esquerda do A, que é, pouco mais ou menos, Ismailia, +e d'ahi subiu por essa linha até Kassassine, onde parou e se fortificou; +achando-se igualmente a pouca distancia, outro enorme campo entrincheirado, +onde Arabi tem quinze mil homens, que se chama Tel-el-Kebir. E estes +quatro campos, postos frente a frente, e observando-se, constituem +até hoje a guerra do Egypto. + +<P> +Para chegar, pois, ao Cairo, seu objectivo militar e politico, Sir +Garnet precisa tomar as posições egypcias de Kraf-Daonar, se quizer +ir pelo Delta—e as de Tel-el-Kebir, se tentar avançar pelo deserto. + +<P> +Até hoje os quatro campos limitam-se a trocar entre si, em certas +escaramuças, algumas languidas balas. Os jornaes de Londres, naturalmente, +noticiam estes tiroteios de vanguarda com um tremendo apparato de +lettras de palmo, mappas lithographados e largos rufos de prosa—fazendo +maior alarido do que se tivesse sido pelejada de novo a batalha de +<span class="pagenum"><a name="pag_189">[189]</a></span> Waterloo; mas isto é simplesmente para promover a venda +do numero. + +<P> +Os egypcios, entrincheirados, em seus campos contam com poderosos +alliados: do lado do Delta confiam no Nilo, o velho e bondoso Nilo, +que não poderá deixar de ser fiel áquelles que ha seculos nutre, e +que, dentro em pouco, inundando as terras do Delta; e ajudado pelos +engenheiros d'Arabi, que certamente obstruirão os canaes, terá convertido +n'um immenso estendal de lamas inatravessaveis esse caminho do Cairo, +o mais favoravel para os inglezes, pois seria como marchar n'uma rica +e infindavel granja, entre pomares, jardins, frescuras e celleiros +cheios... Do lado do deserto, os egypcios contam com o sol, com a +secca e com a areia. Póde-se imaginar o que soffrerão essas tropas +do frio Norte, marchando em areaes abrasados n'uma reverberação de +luz que estonteia, sob um calor tão torrido, que o <i>metal dos +estribos cresta os botins</i>, e tendo para beber só agua barrenta, que +é necessario ferver primeiro! Já as insolações, as dysenterias, a +nostalgia, dizimam os regimentos—e como o commissariado inglez, +sempre mau, encontra aqui difficuldades de transporte, as tropas de +S. M. a Rainha Victoria <i>já tem soffrido fome</i>! Ah! custa caro +o caminho das Indias! + +<P> +Além d'estes alliados que elle possue na natureza, <span class="pagenum"><a name="pag_190">[190]</a></span> Arabi +espera ainda nas tribus beduinas, e n'essas hordas errantes d'arabes +a cavallo que estão chegando do lado de Tripoli a combater o <i>cão +estrangeiro</i>, e que, se diz, constituem um reforço de trinta mil homens... + +<P> +Por seu lado, os inglezes contam apenas comsigo. E isto não é pouco. +Como diz a sua celebre canção de guerra—<i>elles têm os navios, +têm o dinheiro, e têm os homens</i>. Têm tambem essas magnificas tropas +indias, que riem do sol, da secca, e das areias d'Africa. E isto levou +Sir Garnet a declarar que a campanha estaria finda no dia 15 de setembro. +É verdade que nós estamos a 7 de setembro, e elle, entrincheirado +em Kassassine, tendo deante de si a barreira formidavel de Tel-el-Kebir, +ainda está pedindo reforços. Mas isto prova só que esse raio de guerra, +tendo habitos differentes dos de Cesar, <i>chegou, viu, e reflectiu</i>. +Demos-lhe mais um mez; demos-lhe tres largamente; o certo será que +ao fim d'este anno, Arabi, os seus campos, o seu exercito, a sua bella +aspiração a uma nacionalidade egypcia, tudo isso se terá esvaido—como +se esvae uma nuvem n'esse secco céo africano. + +<P> +Os inglezes poderão soffrer revezes, perder milhares d'homens, gastar +milhões de libras; mas, tendo uma vez compromettida a honra da sua +bandeira, com um fim d'engrandecimento imperial, não <span class="pagenum"><a name="pag_191">[191]</a></span>embainharão a espada antes de ter installado na cidadella do velho +Cairo, ao som do <i>God save the Queen</i>, um governador inglez. + +<P> +Evidentemente o snr. Gladstone falla apenas de <i>restabelecer +a ordem e restaurar o Khediva</i>. Meras locuções diplomaticas. O <i>Times</i>, +que é o verbo d'Inglaterra, esse falla, sem rebuço, em <i>protectorado</i>. +E ha muitos inglezes, ainda menos reservados que o <i>Times</i>, que +dizem redonda e seccamente—<i>conquista</i>. + +<P> +Mesmo quando o snr. Gladstone, que é a seu modo um democrata dentro +dos limites do Evangelho, e o seu illustre collega Lord Granville, +que é um jurista e um diplomata, quizessem, em respeito ao liberalismo, +á Europa, ao direito internacional e a outras cousas vagas, deixar +o Egypto reorganisar-se a si mesmo—sahindo elles de lá com as mãos +vasias, depois de terem supprimido Arabi e o seu turbulento partido—a +Inglaterra inteira, em massa, protestaria contra este philosophico +desinteresse... + +<P> +Ha alguem ahi assaz ingenuo para suppôr que John Bull, essa torre +de senso pratico, consentiria em que se lhe dizime o exercito, em +que se lhe gaste o dinheiro como elle gasta a agua das fontes, em +que se lhe augmente o <i>income-tax</i>—só para que o Khediva, esse +amavel moço, continue a fumar o <i>narghilé</i> do poder sob as sombras +dos jardins de Choubra? John Bull não ficará satisfeito senão com +este <span class="pagenum"><a name="pag_192">[192]</a></span> resultado macisso e duradouro—um <i>Egypto +inglez</i>, tendo dentro do seu territorio, como um corredor de casa +particular, o canal de Suez, caminho das Indias. Um ministerio que, +depois de ter enterrado nos areaes da Africa milhões de libras e milhares +de vidas, não lhe der isto—receberá no mesmo instante, na parte +posterior da sua individualidade, o bico da bota de John. + +<P> +Mas se Arabi, derrotado, conseguir levar o Scherife de Méca a proclamar +contra a Inglaterra um <i>jehad</i>—que é uma guerra santa, uma +crusada, um levantamento em massa do mundo mussulmano? + +<P> +Bons espiritos, em Inglaterra, dizem ser este um grande perigo—pois +que só na India ha cincoenta milhões de mahometanos. Eu não creio, +porém, que haja aqui motivo para John Bull empallidecer. E lamento-o! +Porque é d'um bello pittoresco essa idéa d'um <i>jehad</i> com o seu +ceremonial—o Scherife de Méca desenrolando o estandarte verde de +Mahomet, os doutores do Islam assignando todos o <i>fetva</i> fatal, +e logo, de cada canto da Asia e d'Africa, a torrente dos crentes precipitando-se +em nome de Allah! Bello motivo d'ode—a que não corresponde nenhuma +realidade... + +<P> +Em primeiro logar, nunca se fez! O crescente tem sido muitas vezes +humilhado pela cruz, o Islam tem recebido na face a mão da Europa +christã, o <span class="pagenum"><a name="pag_193">[193]</a></span> Califa tem fallado repetidamente em proclamar +um <i>jehad</i>—e todavia o estandarte do Propheta continuou enrolado +nos sacrarios de Méca. E a minha opinião é que se elle fôsse um dia +desenrolado—haveria apenas um pedaço de panno verde mais, fluctuando +ao vento do ceu. + +<P> +E querem que lhes diga porque? Porque penso que os mussulmanos estão +a esta hora tão scepticos como nós outros, os christãos. Nas areias +do deserto, como nas nossas praças allumiadas a gaz—já não será +facil encontrar mil homens de boa vontade, que peguem em armas em +nome do seu Deus. + +<P> +De certo todo o bom mussulmano, a certas horas do dia, se orienta +para o lado de Méca e se prostra nas reverencias rituaes: pura questão +de educação, de boas maneiras, de habito, como nós outros tiramos +o chapéu ao passar por um calvario de aldeia. Ou então, superstição +vaga, vago terror nervoso, como o de certos philosophos e positivistas +das minhas relações, que sempre, ao saltar da cama, fazem o signal +da cruz. + +<P> +Dentro do Alcorão vê-se já o caso melancolico de uma lei divina ir +cahindo em desuso. O Sultão recebe a jantar os embaixadores, e bebe +com elles <i>champagne</i>: a policia do Cairo prende os santos <i>derviches</i> +vagabundos, e já não é respeitado o jejum do Ramazan. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_194">[194]</a></span>Como o nosso Evangelho, a palavra de Mahomet vae-se tornando +objecto de poesia, de commentario, de controversia. Ha Renans no Islam; +e o verbo divino, uma vez analysado, deixa de inspirar a fé que leva +á morte. + +<P> +O mundo mussulmano está no seu seculo decimo-terceiro, na sua plena +meia edade, e certamente ha muito beduino sob a tenda, tão crente, +tão penetrado de Mahomet, como aquelles corações simples, que, ainda +ha pouco no deserto dos nossos claustros, choravam ao ler a paixão +de Jesus; mas não creio que mesmo esses patriarchas deixassem os seus +oasis, os seus rebanhos, os seus harens, para virem gratuitamente, +sem outro pret a não ser o sorriso das houris nos jardins do Paraizo, +supportar o fogo dos canhões Krupp. E emquanto ás classes cultas de +Constantinopla, do Cairo, de Smyrna, de Tunis, essas acreditam tanto +na promessa das houris, como nós outros, aqui em Regent-Street, nas +palmas verdes da Bemaventurança e no côro dos Serafins... + +<P> +Por todo o universo a religião desapparece das almas; e apenas lá +fica essa vaga religiosidade, feita em parte do abalo que deu ao nosso +coração uma tão longa sujeição ao sobrenatural, em parte do confuso +terror que impera n'este grande universo que nos cerca, tão simples +e tão mal comprehendido. N'este estado negativo, de passividade na +duvida, não <span class="pagenum"><a name="pag_195">[195]</a></span> se gera facilmente um impulso d'acção forte. +Um <i>jehad</i> no Islam é tão impraticavel—como uma cruzada no +Christianismo. Pedro Ermita hoje iria acabar na policia correcional, +por perturbador da ordem publica e das relações internacionaes; e +os fanaticos que, ainda hoje, ás portas das mesquitas do Cairo, bradam +contra o <i>touriste</i> estrangeiro as injurias aconselhadas pela +boa doutrina, são immediatamente levados para a enxovia, por <i>fazerem +alarido nas ruas</i>! + +<P> +Mahomet, nas suas mesquitas, Christo, nas nossas capellas, vão singularmente +envelhecendo; o nosso Messias vae-se cobrindo pouco a pouco do pó +que levanta o forte arado da razão, lavrando um mundo novo; e o propheta +do Islam, tendo perdido a força da sua unidade, subdividido em mil +prophetas menores que presidem a mil seitas differentes, mal póde +resistir á lenta avançada da civilisação occidental. E com Christo +e Mahomet, que eram os principios militantes e vivos das suas religiões, +desapparece o que n'essas religiões havia de vivo e de militante. +Resta Deus, resta Allah. Sublimes abstracções, incapazes de inspirar +amor ou heroismo. + +<P> +O que mais faz amar a Divindade é a quantidade de humanidade que ella +encerra. Clovis batia-se por Jesus, que tinha um peito de homem como +o d'elle, e n'esse peito humano cinco chagas abertas; Soliman <span class="pagenum"><a name="pag_196">[196]</a></span>morreria feliz por Mahomet, que era como elle um guerreiro, e como +elle amava a belleza. + +<P> +Mas quem se vae bater por Deus, por Allah, essas entidades tão vastas +que enchem todo o ceu, e tão pequenas que não bastam a satisfazer +o nosso coração, que nos são subalternas, porque são feitas á nossa +imagem, e são no fundo a nossa propria alma alargada até ao infinito +com todas as suas fraquezas?! + +<P> +De resto, é possivel que eu esteja aqui attribuindo a fortes corações +de Meca e do deserto os scepticismos litterarios de <i>Pall-Mall</i> +e do <i>Boulevard de la Madeleine</i>. Que sabemos nós do que se passa +dentro do Islam? Tão pouco como os lettrados da mesquita d'El-Azhar +sabem o que por cá vae dentro do nosso confuso catholicismo. + +<P> + + +<P> +Mas, mesmo que se effectuasse um <i>jehad</i>, seria apenas motivo +para a Inglaterra gastar mais alguns milhões e sacrificar mais alguns +regimentos. Nem o Alcorão, nem o famoso estandarte verde, nem o proprio +Mahomet, que voltasse á terra a desfraldal-o, impediriam que John +Bull se estabeleça no Egypto... + +<P> +Já lá está, nunca mais de lá sahirá! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_197">[197]</a></span>Estão em toda a parte, esses inglezes! O seculo XIX vae +findando, e tudo em torno de nós parece monotono e sombrio—porque +o mundo se vae tornando inglez. Por mais desconhecida e inedita nos +mappas que seja a aldeola onde se penetre, por mais perdido que se +ache n'um obscuro recanto do Universo o regato ao longo do qual se +caminhe—encontra-se sempre um inglez, um vestigio de vida ingleza! + +<P> +Sempre um inglez! Inteiramente inglez, tal qual como sahiu da Inglaterra, +impermeavel ás civilisações alheias, atravessando religiões, habitos, +artes culinarias differentes, sem que se modifique n'um só ponto, +n'uma só prega, n'uma só linha o seu prototypo britannico. Hirtos, +escarpados, talhados a pique, como as suas costas do mar, ahi vão +querendo encontrar por toda a parte o que deixaram em Regent-Street, +e esperando Pale-Ale e <i>roast-beef</i> no deserto da Petrea; vestindo +no alto dos montes sobrecasaca preta ao domingo, em respeito á egreja +protestante, e escandalisados que os indigenas não façam o mesmo; +recebendo nos confins do mundo o seu <i>Times</i> ou o seu <i>Standard</i>, +e formando a sua opinião, não pelo que vêm ou ouvem ao redor de si, +mas pelo artigo escripto em Londres; impellindo sempre os passos para +a frente, mas com a alma voltada sempre para traz, para o <i>home</i>; +abominando tudo o que <span class="pagenum"><a name="pag_198">[198]</a></span> não é inglez, e pensando que as +outras raças só podem ser felizes possuindo as instituições, os habitos, +as maneiras que os fazem a elles felizes na sua ilha do Norte! + +<P> +Estranha gente, para quem é fóra de duvida que ninguem póde ser moral +sem ler a Biblia, ser forte sem jogar o <i>cricket</i>, e ser <i>gentleman</i> +sem ser inglez! + +<P> +E é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se <i>desinglezam</i>. +Ha raças fluidas, como a franceza, a allemã, que, sem perderem os +seus caracteres intrinsecos, tomam ao menos exteriormente a forma +da civilisação que momentaneamente as contêm. O francez no interior +da Africa adora sem repugnancia o <i>manipanço</i>, e na China usa +rabicho. O inglez cahe sobre as idéas e as maneiras dos outros, como +uma massa de granito na agua: e alli fica pesando, com a sua Biblia, +os seus <i>clubs</i>, os seus <i>sports</i>, os seus prejuizos, a +sua etiqueta, o seu egoismo—tornando-se na circulação da vida alheia +um encommodativo tropeço. + +<P> +É por isso que, nos paizes onde vive ha seculos, é elle ainda o <i>estrangeiro</i>. + +<P> +Em toda a parte onde domine e impere, todo o seu esforço consiste +em reduzir as civilisações estranhas ao typo da sua civilisação anglo-saxonia. +O mal não é grande quando elles operam sobre a Zululandia e sobre +a Cafraria, n'essas vastidões <span class="pagenum"><a name="pag_199">[199]</a></span> da Terra Negra, onde o +selvagem e a sua cubata mal se distinguem das hervas e das rochas, +e são meros accessorios da paizagem: ahi encontram apenas uma materia +bruta, onde nenhuma anterior fórma de belleza original se estraga, +quando elles a refundem para a fazer á sua imagem. Vestir o desventurado +rei negro Cetewayo, como elles agora fizeram, de coronel de infanteria, +obrigar os chefes dos Basutos a saber de cór os nomes da familia real +ingleza, são talvez actos de feroz despotismo, mas não deterioram +nenhuma primitiva originalidade de linha ou de idéa. Para Cetewayo, +que andava nú, uma fardeta, mesmo de infantaria, não faz senão vestil-o; +e é indifferente que dentro do craneo dos Basutos haja só formulas +de invocação ao <i>manipanço</i>, ou tambem nomes de principes da +casa d'Hanover. + +<P> +Mas quando elles trabalham sobre antigas civilisações como a da India, +onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em que uma +grande raça pôz toda a originalidade do seu genio—então a politica +anglo-saxonia repete pouco mais ou menos o attentado sacrilego de +quem desmantellasse um templo buddhico, bello como um sonho de Buddha, +para lhe dar na sua reconstrução as linhas hediondas do <i>Stock +Exchange</i> de Londres; ou ainda de quem se fôsse ao marmore divino +da Venus de Milo, e tentasse, á força bruta de martello e cinzel, +dar-lhe o <span class="pagenum"><a name="pag_200">[200]</a></span> feitio, as suissas e a sobrecasaca de lord +Palmerston! A expansão do inglez para o Oriente, seu objectivo imperial, +seria toleravel, mesmo aos nervos de um artista—se elle se contentasse +em levar para lá os seus tecidos, as suas machinas, os seus telegraphos, +os seus railways, deixando depois que essas raças usassem esse colossal +material de civilisação em se desenvolverem no sentido do seu genio +e do seu temperamento. Que por todos os modos se forneça á santa cidade +de Hydrabad gazometros e illuminação—mas, por Deus! que se não mettam +á força bicos de gaz dentro dos seus templos, se isso offende os seus +ritos e repugna ao seu gosto! Que a India, por exemplo, seja coberta +de caminhos de ferro, fornecidos pelos industriaes de Northumberland +e pagos pelo indio—excellente! Mas ao menos que as aldêas onde elles +passam, essas aldêas que os mesmos inglezes descrevem como pequenos +paraizos de paz, de trabalhos simples, de costumes doces, de frugalidade, +de frescura, de belleza moral, não sejam tornadas tão tristes como +as tristes parochias de Yorkshire, introduzindo-se logo lá o <i>policeman</i>, +o deposito de cerveja, a capella protestante de tijolo, o livreiro +de Biblias, o vendedor de <i>gin</i>, a fumaraça de uma fabrica, a +prostituição e a <i>workhouse</i>!... + +<P> +Mas deixemos isto. É facil maldizer da Inglaterra. <span class="pagenum"><a name="pag_201">[201]</a></span> Basta +abrir os livros dos seus grandes homens, desde Thackeray, o artista, +que com um tão frio rancor lhe fez a satyra sangrenta, até Carlisle, +o philosopho, que passou a existencia a fulminal-a com uma tumultuosa +colera de propheta... + +<P> +Da Inglaterra póde-se dizer que—ao contrario da generosa França—as +suas virtudes só a ella aproveitam e os seus vicios contaminam o mundo. + +<P> +É á Inglaterra que se deve o egoismo crescente que nos vae petrificando +o coração—esse egoismo tão particularmente inglez, que faz com que +em Hyde-Park, no seu centro de luxo, trezentas pessoas, em torno de +um lago, vejam uma pobre criança afogar-se, sem que nenhuma se encommode +a tirar o charuto da bocca para lhe estender uma taboa! É á Inglaterra +que devemos esta crescente hypocrisia que invade o mundo, e que faz +com que em Londres, nos cartazes que annunciam as peças de Sardou +ou Dumas, se ajunte esta estupenda declaração: <i>adaptada ás justas +exigencias da moralidade ingleza</i>;—emquanto que, na rua, por baixo +d'esses mesmos cartazes, rola, sem cessar, a mais vil torrente que +o mundo viu de bebados e de prostitutas! + +<P> +Mas deixemos as maculas da Inglaterra: a lista é longa;—quero só +alludir a um outro abominavel defeito que ella sempre teve, e que +agora desenvolveu <span class="pagenum"><a name="pag_202">[202]</a></span> em proporções intoleraveis:—a sua +espantosa filaucia, a sua ruidosa basofia, o seu tremendo ar <i>mata-sete</i>! + +<P> +É sobretudo n'este momento, desde o começo da guerra do Egypto, que +os que, como eu, amam a Inglaterra, soffrem de lhe vêr estes extravagantes +modos de valentão de romance picaresco. Os telegrammas que os correspondentes +dos jornaes enviam das operações da guerra, sobretudo os commentarios +dos proprios jornaes, seriam lamentavelmente grotescos, se não fossem +odiosamente impertinentes. Os francezes (que não são modestos) puzeram +trinta mil allemães fóra de combate na batalha de Gravellote, e todavia +não fizeram a decima parte do alarido, da gloriola, do espalhafato +com que os inglezes celebravam a escaramuça de Ramleh, onde os egypcios +perderam <i>quarenta e tantos homens</i>! Parece faltar-lhes o sentimento +da proporção das cousas. Um correspondente do <i>Daily News</i> annunciava, +ha dias, como um feito heroico, digno de ir á posteridade, o terem +alguns soldados em marcha dado um pedaço de pão de munição a um arabe +que morria de fome á beira de um caminho! Era espanto de encontrar +dentro de peitos inglezes um resto de piedade humana? Não. Queria +provar que nenhum exercito no mundo faz a guerra com uma tão profunda +clemencia! + +<P> +Ou celebrem o aspecto physico dos regimentos <span class="pagenum"><a name="pag_203">[203]</a></span> ou a afinação +das bandas de musica, a pontaria dos artilheiros ou a fórma dos capacetes, +os talentos do Estado Maior ou a excellencia da bolacha de munição, +vem logo em lettras gordas, a phrase tola—<i>o que ha de melhor +no mundo</i>! + +<P> +Faz uma vedeta ingleza fogo sobre uma vedeta egypcia e depois recolhe +á trincheira? Logo este facto é declarado <i>tão nobre pelo heroismo +como habil pela prudencia</i>! + +<P> +Os córos que se entoam em torno do general Wolseley, pertencem á pura +farça. + +<P> +Eu quero crêr que elle é um grande homem—ainda que por ora nada +mais fez que debandar uma pobre horda de negros armados de flechas +que vegetavam junto a não sei que rio d'Africa; mas que se póde pensar +quando se lê, no <i>World</i> e em outros papeis, que elle é o <i>maior +general do seculo</i>? Onde vive um certo Moltke? Quando existiu um chamado +Napoleão? + +<P> +O melhor, mais bem feito, mais importante jornal de Londres, a <i>Pall +Mall Gazette</i>, envergonhado de tudo isto, explica, com a sua usual +habilidade, que estas fanfarronadas não são destinadas á Europa, mas +ao Egypto «para levantar o moral das tropas!» Têm pois esses regimentos +em campanha nos areaes da Africa, diante d'um inimigo formidavel, +vagares para ler as gazetas? Recebe cada soldado <span class="pagenum"><a name="pag_204">[204]</a></span> raso, +com o seu rancho da manhã, um numero do <i>Times</i>? A respeitavel +<i>Pall Mall</i> blaguêa. Para animar, recompensar as tropas, lá estão +as proclamações dos generaes. Ahi, sim, a emphase deve correr em torrentes: +e quando um desgraçado homem depois de ter marchado todo um dia, com +fome, com sêde, com os pés em sangue na areia e um ceu de fogo nas +costas, volta á noite ao acampamento, estendido n'uma maca com duas +balas no corpo—não é muito que se lhe diga que elle é o primeiro +soldado do mundo! + +<P> +É também «para levantar o moral das tropas» que o <i>Times</i> e o +<i>Spectator</i>, fallam, de mão na cinta, e suissa ao vento, de «impor +á Europa a vontade da Inglaterra?» + +<P> +Não; é mera fanfarronada. + +<P> +E não é só nos jornaes. Entre-se n'um club, n'um restaurante, converse-se +com um conhecido, entre duas chavenas de chá—e vem logo a mesma +jactancia de roncador: «Vamos dar cabo de tudo. Temos dinheiro a rodo. +Cá, ao pulso inglez, nada resiste... E se o mundo respinga, quebram-se-lhe +as ventas!...» + +<P> +A Inglaterra perdeu as suas boas maneiras. + +<P> +É forte, de certo—mas falla da sua força com a brutalidade de um +Hercules de feira que esbogalha os olhos e mostra os musculos; é rica, +de certo—mas <span class="pagenum"><a name="pag_205">[205]</a></span> falla do seu dinheiro com a grosseria +d'um ricaço que abarrota fazendo tinir as libras na algibeira... + +<P> +Onde está a famosa <i>self-possession</i> da Inglaterra, a sua tranquilla +dignidade? John Bull tornou-se Ferrabraz. Ora uma muito velha banalidade +ensina-nos que não ha verdadeira força sem serenidade e que sem modestia +não ha verdadeira grandeza. +<span class="pagenum"><a name="pag_206">[206]</a></span> + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_207">[207]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION001000000000000000000"> +X +<BR> +O BRASIL E PORTUGAL</A> +</H1> + +<P> +Os jornaes inglezes d'esta semana têm-se occupado prolixamente do +Brazil. Um correspondente do <i>Times</i>, encarregado por esta potencia +de ir fazer pelo continente americano uma «vistoria social» definitiva +deu-nos agora, em artigos repletos e massiços, o resultado do seu +anno de jornadas e de estudos. + +<P> +O ultimo artigo é dedicado ao Brazil: eu, que nunca visitei o imperio, +não tenho naturalmente auctoridade para apreciar essas revelações +(porque o correspondente toma a attitude de um revelador) sobre a +religião, a cultura, os productos, o commercio, a emigração, o caracter +nacional, o nivel de educação, a situação dos portuguezes, a dynastia, +a Constituição, a republica, <i>et de omni re braziliensi</i> e não +<span class="pagenum"><a name="pag_208">[208]</a></span> posso transcrevel-as tambem porque ellas enchem, no <i>Times</i>, +vasto como é, mais espaço que o proprio Brazil occupa no territorio +da America do Sul. Esse artigo excitou o interesse e os commentarios +da <i>Pall-Mall Gazette</i> e de outros jornaes, e ahi se rompeu a +fallar do Brazil com sympathia, com curiosidade, com essas admirações +ingenuas pela sua rutilante flora, esse pasmo quasi assustado pela +sua vastidão, que decerto tiveram nossos avós, quando o bom Pedro +Alvares Cabral, largando a procurar o Preste João, voltou com a rara +nova das terras entrevistas do Brazil... + +<P> +Devendo mostrar-lhes a opinião presente da Inglaterra sobre o Brazil, +d'esses artigos floridos, escolho o do <i>Times</i>, annotando e glosando +o trabalho do seu enviado. (É d'este modo respeitoso que se deve fallar +sempre de um correspondente do <i>Times</i>). + +<P> +Começa, pois, o grande jornal da <i>City</i> por dizer—«que a descripção +do vasto Imperio do Brazil com que foi fechada a serie das <i>cartas +sobre o continente americano</i>, deve ter feito transbordar o sentimento +de admiração pelo explendor, etc...» Seguem-se aqui naturalmente vinte +linhas de extasi. É, em prosa, a aria do 4.º acto da <i>Africana</i>: +Vasco da Gama, de olhos humidos e coração suspenso no enlevo de tanta +flôr prodigiosa, de tão raros cantos d'aves raras... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_209">[209]</a></span>Depois vem o espanto classico pela extensão do Imperio: +«Só o simples tamanho de um tal dominio (exclama) na mão de uma diminuta +parcella da humanidade é já em si um facto sufficientemente impressionador!» + +<P> +E todavia esta admiração do <i>Times</i> pelo gigante é misturada +a um certo patrocinio familiar, de ser superior,—que é a attitude +ordinaria da Inglaterra e da imprensa ingleza para com as nações que +não têm duzentos couraçados, um Shakspeare, um <i>Bank of England</i>, +e a instituição do <i>roast-beef</i>... N'este caso do Brazil, o tom +de protecção é raiado de sympathia... + +<P> +Depois o artigo rompe de novo n'um hymno: «A Natureza no Brazil não +necessita do auxilio do homem para se encher de abundancias e se cobrir +de adornos!... Para seu proprio prazer planta, ella mesma, luxuriantes +parques! E não ha recanto selvagem que não faça envergonhar as mais +ricas estufas da Europa...» Isto é decerto exacto: mas o <i>Times</i>, +receiando que os seus leitores viessem a suppor que a natureza do +Brazil está de tal modo repleta, tão indigestamente attestada, que +não permitte, que se recusa com furor a receber no seu ventre empanturrado +uma semente mais sequer—apressa-se a tranquillisal-os: «Mas (diz +este sabio jornal judiciosamente) ainda que a Natureza dispense bem +todo o trabalho <span class="pagenum"><a name="pag_210">[210]</a></span> do homem, que outros solos menos generosos +requerem para se abrir em flôres e fructos,—<i>não o repelle +todavia</i>». Isto socega os nossos animos: ficamos assim certos que +nenhum fazendeiro, nos distantes cafesaes, ao atirar á terra, a <i>terra +mãe</i>, com a enxadada fecundadora a semente inicial, corre o risco +atroz de ser por ella atacado á pedrada ou a golpes de bananeira... +Nem outra cousa se podia esperar da doce e pacifica Ceres. + +<P> +Tendo assim floreado, de penacho oratorio ao vento, o <i>Times</i> +investe com as ideias praticas. E começa por declarar, que, segundo +o copioso relatorio do seu correspondente, «o que surprehende na America +do Sul (se exceptuarmos aquella tira de terra que constitui a Republica +do Chili, e alguns bocados da costa do enorme imperio do Brazil) é +a grandeza de tais recursos comparada á desapontadora magreza dos +resultados». Seria facil responder com a escassez da população. O +<i>Times</i> de resto sabe-o bem, porque nos falla logo d'essa população +nas republicas hespanholas, mas não a acha escassa; o que a acha é +torpe!... A pintura que nos dá do Perú, Bolivia, Equador e consortes +é ferina e negra: «Essa gente vive n'uma indolencia vil, que não é +incompativel com muita arrogancia e muita exagerada vaidade! D'esse +torpor só rompe, por accesso de frenesi politico. Todo o trabalho +ai emprehendido <span class="pagenum"><a name="pag_211">[211]</a></span> para fazer produzir a natureza é dos +estrangeiros: os naturaes limitam-se a invejal-os, a detestal-os por +os verem utilisar opportunidades que elles mesmo não se quizeram baixar +a usar!» Isto é cruel: não sei se é justo: mas entre estas linhas +palpita todo o rancor de um inglez possuidor de maus titulos peruanos. +«E se o nosso correspondente (continua o artigo) offerece de alto +o Brazil á nossa admiração, não é em absoluto, é relativamente, em +contraste com os paizes que quasi o egualam em vantagens materiaes, +como o Perú e o Rio da Prata, mas onde a discordia intestina devora +e destroe todo o progresso nascido da actividade estrangeira. O Brazil +é portuguez e não hespanhol: e isto explica tudo. O seu sangue europeu +vem d'aquella parte da Peninsula Iberica em que a tradicção é a da +liberdade triumphante, e nunca supprimida.» O <i>Times</i> aqui abandona-se +com excesso ás exigencias rythmicas da phrase: parece imaginar que +desde a batalha de Ourique temos vindo caminhando n'uma larga e luminosa +estrada de ininterrompida democracia!... + +<P> +Mas, emfim, continúa: «Quando o Brazil quebrou os seus laços coloniaes +não tinha a esquecer feias memorias de tyrannia e rapacidade; nem +teve de supprimir genericamente todos os vestigios de um máu passado.» +Com effeito; pobres de nós! nunca <span class="pagenum"><a name="pag_212">[212]</a></span> fômos de certo para +o Brazil senão amos amaveis e timoratos. + +<P> +Estavamos para com elle n'aquella melancolica situação de um velho +fidalgo, solteirão arrasado, desdentado e tropego, que treme e se +baba deante de uma governanta bonita e forte. Nós verdadeiramente +é que eramos a colonia: e era com atrozes sustos do coração que, entre +uma <i>Salvè Rainha</i> e um <i>Lausperenne</i>, estendiamos para +lá a mão á esmola... + +<P> +O <i>Times</i> prossegue: «Ainda que independente, o Brazil ficou +portuguez de nacionalidade e semi-europeu de espirito. Pelo simples +facto de se sentir portuguez, o povo brazileiro teve, e conserva, +o instincto do grande dever que lhe incumbe: tirar o partido mais +nobre da sua nobre herança... Sejam quaes tenham sido os erros de +Portugal, não se póde dizer que se tenha jámais contentado com o mero +numero das suas possessões, sem curar de lhes extrahir os proventos...» +O <i>Times</i> aqui dormita, como o secular Homero. + +<P> +E justamente o que nos preoccupa, o que nos agrada, o que nos consola +é contemplar <i>simplesmente o numero</i> das nossas possessões: pôr-lhes +o dedo em cima, aqui e além, no mappa; dizer com voz de papo, <i>ore +rotundo</i>: «Temos oito; temos nove: somos uma nação colonial, somos +um povo maritimo!...» Emquanto <span class="pagenum"><a name="pag_213">[213]</a></span> a <i>extrahir-lhes +os proventos</i>, na phrase judiciosa do <i>Times</i>, d'esses detalhes +miseraveis não cura o pretor, nem os netos de Affonso de Albuquerque!... +Mas prossegue o <i>Times</i>: «O imperio colonial de Portugal talvez +tenha sido outr'ora caracterisado por desfortuna—quasi nunca por +estagnação.» <i>Talvez</i> é bom: com o imperio do Oriente no nosso +passado, que é um dos mais feios monumentos de ignominia de todas +as edades... Continuemos. + +<P> +«Da origem d'onde o Brazil deriva a sua actividade, deriva tambem +(o que não é menos importante) o respeito pela opinião da Europa. +O vadio das ruas de Lima, de Caracas ou de Buenos-Ayres nutre um soberano +desprezo pelos juizos que a Europa possa formar das suas tragi-comedias +politicas... Não tem consciencia de cousa alguma, a não ser do seu +<i>sangue castelhano</i>... Sente decerto o inconveniente de ser expulso +do credito e das bolsas da Europa... Mas avalia esta circumstancia +apenas pelos embaraços momentaneos que ella lhe traz. O financeiro +brazileiro, porem, esse presta uma tão respeitosa attenção ao <i>temperamento</i> +das bolsas de Pariz e Londres, como ao da mesma praça do Rio de Janeiro...» + +<P> +O <i>Times</i> vê n'este symptoma a consideração que o Brazil tem +pela opinião da Europa. + +<P> +Mas, onde o <i>Times</i> se engana é quando pretende <span class="pagenum"><a name="pag_214">[214]</a></span>que o Brazil deve ao seu sangue portuguez esta bella qualidade de +obedecer aos juizos do mundo civilisado. Não ha paiz no universo, +onde se despreze mais, creio eu, o julgamento da Europa, que em Portugal: +n'esse ponto somos como o vadio das ruas de Caracas, que o <i>Times</i> +tão pittorescamente nos apresenta: porque eu chamo desdenhar a opinião +da Europa não fazer nada para lhe merecer o respeito. Com effeito, +o juizo que de Badajoz para cá se faz de Portugal, não nos é favoravel, +nós sabemol-o bem—e não nos inquietamos! Não fallo aqui de Portugal +como Estado politico. Sob esse aspecto gosamos uma razoavel veneração. +Com effeito, nós não trazemos á Europa complicações importunas; mantemos +dentro da fronteira uma ordem sufficiente: a nossa administração é +correctamente liberal; satisfazemos com honra os nossos compromissos +financeiros. + +<P> +Somos o que se póde dizer um <i>povo de bem</i>, um <i>povo bôa +pessoa</i>. E a nação vista de fóra e de longe, tem aquelle ar honesto +de uma pacata casa de provincia, silenciosa e caiada, onde se presente +uma familia commedida, temente a Deus, de bem com o regedor, e com +as economias dentro de uma meia... A Europa reconhece isto: e todavia +olha para nós com um desdem manifesto. Porque? Porque nos considera +uma nação de mediocres: digamos francamente a dura palavra—porque +nos considera <span class="pagenum"><a name="pag_215">[215]</a></span> uma <i>raça de estupidos</i>. Este mesmo +<i>Times</i>, este oraculo augusto, já escreveu que Portugal era, +intellectualmente, tão caduco, tão casmurro, tão fossil, que se tornára +um paiz bom para se lhe passar muito ao largo, e <i>atirar-lhe +pedras</i> (textual). + +<P> + + +<P> +O <i>Daily Telegraph</i> já discutiu em artigo de fundo este problema: +Se seria possivel sondar a espessura da ignorancia luzitana! Taes +observações, além de descortezes, são decerto perversas. Mas a verdade +é que n'uma epocha tão intellectual, tão critica, tão scientifica +como a nossa, não se ganha a admiração universal, ou se seja nação +ou individuo, só com ter proposito nas ruas, pagar lealmente ao padeiro, +e obedecer, de fronte curva, aos editaes do governo civil. São qualidades +excellentes, mas insufficientes. Requer-se mais: requer-se a forte +cultura, a fecunda elevação de espirito, a fina educação do gosto, +a base scientifica e a ponta de ideal que em França, na Inglaterra, +na Allemanha, inspiram na ordem intellectual a triumphante marcha +para a frente; e nas nações de faculdades menos creadoras, na pequena +Hollanda ou na pequena Suecia, produzem esse conjunto eminente de +sabias instituições que são, na ordem social, a realização das fórmas +superiores do pensamento. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_216">[216]</a></span>Dir-me-hão que eu sou absurdo ao ponto de querer que haja +um Dante em cada parochia, e de exigir que os Voltaires nasçam com +a profusão dos tortulhos. Bom Deus, não! Eu não reclamo que o paiz +escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros +que já estão escriptos, e que se interessasse pelas artes que já estão +creadas. A sua esterilidade assusta-me menos que o seu indifferentismo. +O doloroso espectaculo é vêl-o jazer no marasmo, sem vida intellectual, +alheio a toda a ideia nova, hostil a toda a originalidade, crasso +e mazorro, amuado ao seu canto, com os pés ao sol, o cigarro nos dedos +e a bocca ás moscas... É isto o que punge. + +<P> +E o curioso é que o paiz tem a consciencia muito nitida d'este torpor +mortal, e do descredito universal que elle lhe attrahe. Para fazer +vibrar a fibra nacional, por occasião do centenario de Camões, o grito +que se utilizou foi este:—Mostremos ao mundo que ainda vivemos! +que ainda temos uma litteratura! + +<P> +E o paiz sentiu asperamente a necessidade de affirmar alto, á Europa, +que ainda lhe restava um vago clarão dentro do craneo. E o que fez? +Encheu as varandas de bandeirolas, e rebentou de jubilo a pelle dos +tambores. Feito o que—estendeu-se de ventre ao sol, cobriu a face +com o lenço de rapé, e <span class="pagenum"><a name="pag_217">[217]</a></span> recomeçou a sésta eterna. D'onde +eu concluo que Portugal, recusando-se ao menor passo nas lettras e +na sciencia para merecer o respeito da Europa intelligente, mostra, +á maneira do vadio de Caracas, o despreso mais soberano pelas opiniões +da civilização. Se o Brazil, pois, tem essa qualidade eminente de +se interessar pelo que diz o mundo culto, deve-o ás excellencias da +sua natureza, de modo nenhum ao seu sangue portuguez: como portuguez, +o que era logico que fizesse era voltar as costas á Europa, puxando +mais para as orelhas o cabeção do capote... + +<P> +Mas, retrocedendo ao artigo do <i>Times</i>, a conclusão da sua primeira +parte é que «em riqueza e aptidões o Brazil leva gloriosamente a palma +ás outras nacionalidades da America do Sul». Todavia, o <i>Times</i> +observa no Brazil circumstancias desconsoladoras: «Doze milhões de +homens estão perdidos n'um estado maior que toda a Europa: a receita +publica, que é de doze milhões de libras esterlinas, é muitos milhões +inferior á da Hollanda e á da Belgica: com uma linha de costa de quatro +mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de duas mil +e seiscentas milhas, o Brazil exporta em valor de generos a quarta +parte menos que o diminuto reino da Belgica.» + +<P> +O <i>Times</i>, todavia, tem a generosidade de admittir que nem a +densidade de população, nem o total <span class="pagenum"><a name="pag_218">[218]</a></span> das receitas, nem +a cifra das exportações constituem a felicidade de um povo e a sua +grandeza moral. A Suissa, que tem dois milhões de habitantes e justamente +os mesmos dois milhões de libras de receita, vive em condições de +prosperidade, de liberdade, de civilisação, de intellectualidade bem +superiores á tenebrosa Russia com os seus oitenta milhões de libras +de receita, e os mesmos oitenta milhões em homens. «Todavia, continúa +o <i>Times</i>, se a escassez da população, de rendimento e de commercio, +não collocam o Brazil n'um estado de adversidade, são uma prova que +faltam a esse povo algumas das qualidades que fazem a grandeza das +nações. Que os colonisadores portuguezes, apenas apoiados pelo pequeno +throno portuguez, tivessem feito da metade do novo mundo, que lhes +concedeu o papa Alexandre, mais que os colonisadores hespanhoes que +tiravam a sua força da grande nação de Hespanha, é uma cousa que prova +a favor do sangue portuguez comparado com o sangue castelhano, andaluz +ou aragonez. Mas que as conquistas feitas no Brazil á natureza sejam +tão insignificantes, e tão vastos os espaços que permanecem não só +inconquistados mas desamparados—indica que são analogos os defeitos +da colonia hespanhola e da colonia portugueza...» + +<P> +O resto do artigo é mais serio; e eu devo transcrevel-o sem interrupção. +«O Brazileiro não é, como <span class="pagenum"><a name="pag_219">[219]</a></span> o peruano ou boliviano, altivo +de mais, ou preguiçoso de mais para se dignar reparar nos meios de +riqueza e de grandeza tão prodigamente espalhados em torno de si. +Não; o brazileiro tem energia sufficiente para ambicionar e para calcular. +A sua attenção está fixa nas ferteis regiões do interior. Desejaria +bem vêr a rede dos seus rios navegaveis cobertos de barcos e vapores. +Succede mesmo que, nos pontos mais ricos da costa, o habitante queixa-se +que uma excessiva porção dos impostos com que é sobrecarregado vae +ser gasta em collossaes trabalhos emprehendidos em vantagem de remotas +e incultas regiões que nunca ou, ao menos, só d'aqui a longos annos, +poderão aproveitar com elles. Mas, em todo o caso, o Brazil sente +em si força sufficiente para dar ao seu vasto territorio os beneficios +de uma sabia administração.» + +<P> +O <i>Times</i> aqui tem um pequeno periodo, alludindo á nobre ambição +que têm os brazileiros de fazer tudo por si mesmos, vendo com aborrecimento +as grandes obras entregues á pericia estrangeira, e preferindo os +esforços da sciencia e do talento nacionaes, ainda mesmo quando elles +falham, custando ao paiz milhões perdidos... Depois prossegue: + +<P> +«Mas emquanto o brazileiro se mostra assim, em theorias politicas +e administrativas, ancioso por fomentar elle mesmo, por elle mesmo +fazer todas as <span class="pagenum"><a name="pag_220">[220]</a></span> obras dos seus cinco milhões de milhas +quadradas—ás suas mãos repugna o agarrar o cabo da enxada, ou tomar +a rabiça do arado, que é justamente o serviço que a natureza reclama +d'elle. N'um continente, que depois de tres seculos e meio continúa +a ser um torrão novo, a grandeza das Republicas ou dos Imperios depende +exclusivamente do trabalho manual. + +<P> +«Italianos, allemães, negros, têm sido, estão sendo importados para +fazerem o trabalho duro que repugna aos senhores do solo. Mas, inaclimatados, +em certos districtos, elles nunca poderiam labutar como os naturaes +dos tropicos. Nem mesmo nas provincias mais temperadas do Imperio +jámais os immigrantes trabalharão resolutamente—até que o exemplo +lhes seja dado pela população indigena, senhora da terra. O brazileiro +ou tem de trabalhar por suas mãos, ou então largar a rica herança +que é incompetente para administrar. Á maneira que o tempo se adianta, +vae-se tornando uma positiva certeza que todos os grandes recursos +da America do Sul entrarão no patrimonio da humanidade.» + +<P> +O <i>Times</i> aqui embrulha-se. Prefiro explicar a sua ideia, a traduzir-lhe +a complicada prosa; quer elle dizer que o dia se approxima em que +a civilisação não poderá consentir que tão ricos solos, como os dos +Estados do Sul da America, permaneçam estereis e inuteis, e que, se +os possuidores actuaes são <span class="pagenum"><a name="pag_221">[221]</a></span> incapazes de os fazer valer +e produzir, para maior felicidade do homem, deverão então entregal-os +a mãos mais fortes e mais habeis. É o systema de expropriação por +utilidade de civilização. Theoria favorita da Inglaterra e de todas +as nações de rapina... + +<P> + + +<P> +Continúa depois o artigo, com ferocidade: «No Perú, na Bolivia, no +Paraguay, no Equador, em Venezuela... em outros mais, os actuaes occupadores +do solo terão gradualmente de desapparecer e descer áquella condição +inferior, que o seu fraco temperamento lhes marca como destino. (Nunca +se escreveu nada tão ferino!) O povo brazileiro, porém, tem qualidades +excellentes e a Inglaterra não chegará promptamente á conclusão de +que elle tem de partilhar a sorte de seus febris ou casmurros visinhos... +Mas, dadas as condições do seu solo, o Brazil mesmo tem a escolher +entre um semelhante futuro ou então o trabalho, o duro esforço pessoal, +contra o qual até agora se tem rebellado. Se o seu destino tivesse +levado os brazileiros a outro canto do continente, nem tão largo, +nem tão bello, poder-se-hia permittir-lhes que passassem a existencia +n'uma grande somnolencia. Mas ao brazileiro está confiada a decima +quinta parte da superficie do globo: essa decima quinta parte é, toda +ella, um thesouro <span class="pagenum"><a name="pag_222">[222]</a></span> de belleza, riquezas e felicidades +possiveis; e de tal responsavel—o brazileiro tem de subir ou de +cahir!» + +<P> +E com esta palavra, á Gambetta, termino. Já se alonga muito esta carta +para que eu a sobrecarregue de comentarios á prosa do <i>Times</i>. +No seu conjuncto é um juizo sympathico. O <i>Times</i>, sendo, por +assim dizer, a consciencia escripta da classe media da Inglaterra, +a mais rica, a mais forte, a mais solida da Europa, tem uma auctoridade +formidavel; e escrevendo para o Brazil, eu não podia deixar de recolher +as suas palavras—que devem ser naturalmente a expressão do que a +classe media da Inglaterra pensa ou vae pensar algum tempo do Brazil. +Porque a prosa do <i>Times</i> é a matéria-prima de que se faz em +Inglaterra o estofo da opinião. + +<P> +E reparando agora que, por vezes n'estas linhas, fui menos reverente +com o <i>Times</i>—murmuro, baixo e contricto, um <i>peccavi</i>... + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_223">[223]</a></span> + +<H1><A NAME="SECTION001100000000000000000"> +XI +<BR> +A festa das creanças</A> +</H1> + +<P> +A mais engraçada festa das creanças de que me lembro, foi em Inglaterra, +na casa de campo dos meus amigos Birds, no paiz de Cornwall. Era uma +mascarada reproduzindo em miniatura a côrte de el-rei Arthur e dos +cavaleiros da Tavola Redonda. E o que tornava interessante a ressurreição +d'este mundo heroico e gentil, popularizado por Tennyson, é que nós +estavamos alli justamente na região de Cornwall, onde viviam, entre +saráus e batalhas, Arthur, a sua rainha Guinevra e os doze valentes +da Tavola. A pouca distancia do parque dos Birds, n'uma collina coberta +de carvalheiras, a tradição colloca os paços de Arthur e a maravilhosa +e sombria cidade de Caerleon. O rio em que pescavam trutas era o velho +Usk. Nas suas frescas margens erguera-se <span class="pagenum"><a name="pag_224">[224]</a></span> outr'ora o mosteiro, +onde o irmão de Percival, uma noite, da janella da sua cella, viu +passar n'uma nuvem côr de rosa, entre aromas de junquilhos, o vaso +do Santo Graal cheio de sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. E das +varandas da sala de jantar, podiam avistar-se em dias claros, lá ao +longe, na costa, e entre as rochas, as ruinas d'esse castello de Tintagil, +que apparece em todas as balladas do rei Arthur, negro e triste junto +ao mar de Cornwall. + +<P> +A côrte começou a reunir-se cedo, á hora do lunch, no grande salão +branco, sobre o jardim. Era o filho dos Birds quem esplendidamente +recebia, vestido de rei Arthur. O primeiro personagem da lenda que +chegou, acompanhado pela sua governante, foi o feiticeiro Merlino, +um adoravel bébé, gordo e embezerrado com a corôa de hera, uns cabellos +louros e umas enormes barbas propheticas enchendo-lhe a bochecha côr +de rosa. Depois, seguidos das mamãs, vieram entrando todos os outros +figurões da romantica chronica, cavalleiros de cinco annos armados +e emplumados, mongesinhos nedios, bispos quasi de mama com os seus +baculos nos braços, bardos rabugentos, mesteirais vestidos de seda, +e fadas mais lindas que as fadas. As tres rainhas mysticas do Walhalla +chegaram por ultimo, gravesinhas, todas tres pela mão, cobertas de +véos negros, escoltadas por um grande lacaio empoado. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_225">[225]</a></span>Pouco a pouco o salão ficou animado como o velho Caerleon +n'uma manhã de torneio. O pequeno Bird, de Rei Arthur, com seu manto +bordado d'ouro, os cabellos frisados sahindo em anneis de sob a corôa +carregada de pedras, passeava magestoso, entre os seus irmãos de armas. +Uma senhora, encantada, quiz dar-lhe um beijo. Elle repeliu-a asperamente, +como teria feito o casto Rei Arthur. Mais orgulhoso do que elle, só +o bravo Lancelote do Lago, a quem tinham pintado um buço, e que revestido +de armas negras, com uma longa pluma escarlate ondeando-lhe desde +o elmo até ás esporas d'ouro, não tirava a mão da espada. E o que +parecia ensoberbece-lo mais era a sua faxa de gaze branca, passada +sobre a couraça, e feita em rigida obediencia á epopéa, d'um véo da +rainha Guinevra. Essa era a grande belleza do saráu, a rainha Guinevra, +uma irlandezasinha com as duas tranças negras e os olhos verdes como +os prados d'Erin. Séria e fria, envolta na pesada capa de setim azul, +conservava-se no meio de um sofá, immovel, com um sorriso que lhe +punha uma covinha no queixo, indifferente aos madrigaes, insensivel +ás proezas dos cavalleiros, e sempre de olhos baixos, ou por ella +os bardos firam as harpas, ou por ella se batam os vassalos junto +ao mar de Cornwall. + +<P> +Um escudeiro annunciou o lunch, tocando uma buzina de prata, tal qual +como no Caerleon. E pelo <span class="pagenum"><a name="pag_226">[226]</a></span> corredor, aos pares, toda a +côrte seguiu á sala de jantar o rei Arthur, que levava pela mão, com +uma graça solemne, a linda rainha Guinevra. Depois, mas não sem alguma +confusão, em que necessariamente as mamãs tiveram de ser energicas +com os cavalleiros, ficou completa a Tavola Redonda, ornada de baixellas +e flôres. E nada faltava do que mandam as poeticas chronicas. + +<P> +Ao fundo da mesa, na sua cadeira esculpida pelos Genios, lá se achava +o velho feiticeiro Merlino, a quem a governante, para elle comer com +limpeza a sua sopa, tirára as barbas propheticas. Não havia um javali +assado sobre um prato de ouro. Apenas um modesto <i>roast-beef</i>. +Mas o rei Arthur levantava o seu copo d'agua, misturada de uma gota +de Bordeus, com a nobreza com que o outro, ha tantos centos de annos +e n'aquella mesma collina, erguia a taça de hydromel em dias de victoria. +De resto a sala, com o seu tecto de carvalho lavrado, tinha o severo +apparato d'outras éras e através da janella lá estavam, como nos versos +da <i>Morte d'Arthur</i>, as ruinas do Castello de Tintagil, negro +e triste junto do mar de Cornwall. + +<P> +A Côrte mostrava tanto apetite como á volta de uma batida aos lobos +nos bosques, que avisinham o Usk. Até as fadas devoravam. Sir Galahad, +esse que possuia a força de mil, porque o seu coração era <span class="pagenum"><a name="pag_227">[227]</a></span>virgem, já por duas vezes reclamára <i>pudding</i> de batatas, batendo +furiosamente com o garfo sobre o seu murrião de prata, posto ao lado +da mesa entre os crystaes. + +<P> +Fôra preciso, por causa da sua magnifica tunica de setim verde, atar +um guardanapo ao pescoço do cavalleiro Bors, essa radiante flôr de +bravura christã. No meio de toda a alegria o forte Percival, incommodado +com a sua armadura, permanecia manso e corado com o ar de estar pensando +(como o outro Percival) em se recolher ao mosteiro de Wik. Depois, +de repente e inexplicavelmente, rolou abaixo da cadeira, entornando +todo o molho nos joelhos do intrigante Modred, o mais violento cavalleiro +da Tavola. + +<P> +Modred despropositou e arrepelou os cabellos d'ouro de Percival. A +tia do heróe acudiu assustada, e então, como o famoso Lancelote do +Lago se estava tornando turbulento, foi arrancado da Tavola Redonda +ignominiosamente, nos braços d'um escudeiro, aos berros. + +<P> +Depois do lunch, a côrte de el-rei Arthur voltou ao saráu a regozijar-se +com danças. Saráu delicioso! Havia dois monges extraordinarios, de +bureis brancos, tão pequenos e tão tropegos que as senhoras tinham +de os segurar pelos braços nas quadrilhas e que queriam constantemente +dançar, mais joviaes que <span class="pagenum"><a name="pag_228">[228]</a></span> os cavalleiros, promptos a atirar-se +sempre aos bracinhos das camponezas toucadas de flôres. + +<P> +O puro Sir Galahad, já sem broquel e sem murrião, galopava doidamente +com uma ligeira fada, chegada n'essa manhã da Bretanha, das florestas +de Broceliande. Um bardo, com a corôa de folhas de carvalho enterrada +até aos olhos, chorava por ter perdido a sua harpa. Havia tambem um +principe do Mar do Norte, um castellão de Erin e o bravo cavalleiro +Bors, que se tinham refugiado a um canto, por detraz d'um sophá, onde +sentados no chão continuavam na sua divertida merenda com bolos, dando +gritos, quando as senhoras queriam pôr cobro áquella gula tão impropria +de paladinos christãos. + +<P> +No corredor o pae Bird teve de suster um rechonchudo abbade, que arregaçava +as vestes sacerdotaes e ia, furioso, sovar o intrigante cavalleiro +Modred. E não foi possivel realizar a parte mais picante da lenda, +fazendo com que Lancelote do Lago cortejasse Guinevra. O bravo Lancelote +(bem differente do outro) parecia de coração duro e sem gosto pelo +sorrir das damas. Terminou mesmo por ter uma hedionda perrice, e cahiu +nos joelhos da mamã, com duas grossas lagrimas nas pestanas e a sua +bella penna escarlate cahida no chão, como n'uma tarde de derrota. + +<P> +Cedo os bébés começaram a estar cançados. Eu <span class="pagenum"><a name="pag_229">[229]</a></span> mesmo, no +meio da festa, tive de levar ao collo o veneravel bispo de Blackburn +com a sua mitra e com o seu rico baculo. Os seus doces olhinhos azues +fechavam-se de somno. Deitei-o no sophá, junto da mais pequenina das +rainhas do Walhalla, que já alli dormia sob o véo negro, com os cabellos +d'ouro soltos e o lyrio do Paraiso entre as mãosinhas cruzadas... + +<P> +E o santo bispo candidamente adormeceu ao lado da mystica rainha. +<span class="pagenum"><a name="pag_230">[230]</a></span> + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_231">[231]</a></span> +<H1><a name="SECTION001200000000000000000"></a> +<BR> +XII +<BR> +Uma partida feita ao «Times» +</H1> + +<P> +É ao mesmo tempo lamentavel e piccaresco o caso succedido ao <i>Times</i>. +Este nobre in-folio diario, que inspira orgulho a todo o inglez sinceramente +patriota, e que aos olhos respeitosos do estrangeiro apparece como +uma das mais fortes columnas da sociedade ingleza, como a propria +consciencia da Inglaterra posta em lettra redonda; este augusto periodico +que nunca, desde a sua fundação, citou o nome d'um collega, nem jámais +se abaixou a uma controversia, pelas mesmas razões de inflexivel etiqueta +que vedariam a Luis XIV argumentar com Colbert; esta austera gazeta +que preferiria despedaçar as suas magnificas machinas a consentir +que ellas imprimissem um <i>bon-mot</i>, uma pilheria, uma linda bagatella +ou uma jovial anecdota; este papel tão pudico que <span class="pagenum"><a name="pag_232">[232]</a></span> evita +o nome de Zola, como uma indecencia—o <i>Times</i>, emfim, o venerando +<i>Times</i>, foi ultimamente victima de uma d'essas <i>partidas</i>, +como nós dizemos, <i>facecias em acção</i>, como dizem os Americanos, +que são ao mesmo tempo nefandas e patuscas, que nos abrazam a face +de indignação e nos arrancam aos labios um sorriso, que nos fazem +vituperar publicamente o farçante e saborear secretamente a farça, +como se vissemos um rabo de papel pregado ao manto d'el-rei, ou sobre +os cabellos em caracoes da imagem do Senhor dos Passos—um chapéu +alto. + +<P> +Todas as pessoas que teem folheado esses vastos lençóes de materia +impressa que constituem um numero do <i>Times</i>, sabem que a quinta +pagina é ordinariamente destinada á publicação dos discursos pronunciados +por homens eminentes da politica, da litteratura, da sciencia, da +arte, em <i>meetings</i>, comicios, banquetes, inaugurações, <i>conversazioni</i>, +em todos esses ajuntamentos de <i>ladies and gentlemen</i> onde a +Inglaterra dá vazão ao seu tumultuoso fluxo labial!... O <i>Times</i> +é famoso por estas reproducções. Não são resumos, nem extractos: são +as arengas, palavra a palavra, especialmente tachygraphadas para o +<i>Times</i> por um pessoal experimentado, com as interrupções correctamente +transladadas, os murmurios religiosamente marcados, sem que lhes falte +um <i>meus senhores!</i>,<span class="pagenum"><a name="pag_233">[233]</a></span> sem que ficasse perdido um <i>oh!</i> +ou um <i>ah!</i> e revistas, esmiuçadas, zeladas como se tivessem +cahido dos labios de Socrates ou de Christo prégando outro Evangelho. + +<P> +Este simples serviço custa por anno ao <i>Times</i> milhares de libras—mas +dá-lhe a vantagem de ser elle a acta official do verbo publico da +Inglaterra. Todos os jornaes da Europa assim o reconhecem: quando +se discute um discurso do Sr. Gladstone, uma conferencia do professor +Huxley ou uma predica do arcebispo de Canterbury, tem-se presente, +como texto sagrado, o texto do <i>Times</i>. Um orador póde negar +a incorrecção de um adjectivo, a violencia de uma apostrophe, quando +a apostrophe ou o adjectivo tenham apparecido nos resumos rapidos +de outro jornal: nunca, quando hajam apparecido nas columnas infalliveis +do <i>Times</i>. Sabe-se a despeza, o desvelo, a minuciosidade, empregada +para obter a exactidão—e essa exactidão nunca é contestada. + +<P> +Quando o Sr. Gladstone, na campanha eleitoral da Escocia, soltou essa +famosa invectiva contra o imperio dos Hapsburgos,—o protesto cortez +do embaixador d'Austria era fundado em citações do <i>Times</i>. Um +orador que, querendo deixar um monumento solido da sua arte, publique +os seus discursos em volumes—collige-os do texto seguro do <i>Times</i>. +O <i>Times</i> tem aqui o valor d'uma reproducção photographica. <span class="pagenum"><a name="pag_234">[234]</a></span>Insisto n'isto, para tornar mais vivo o horror da facecia. + +<P> +Ha semanas Sir William Harcourt, o ministro do interior, fez um discurso +em Manchester, discurso consideravel, muito annunciado, muito esperado, +tocando todas as questões que inquietam agora a Inglaterra, a anarchia +da Irlanda, o tratado de commercio com a França, a intervenção no +Egypto, a criação do Governo Municipal de Londres, outras coisas graves +ainda. + +<P> +Esta arenga, tachygraphada pelo pessoal do <i>Times</i> em Manchester, +telegraphada para os escriptorios do <i>Times</i> em Londres, foi +composta, lida pelos revisores, revista pelo secretario de Sir William +Harcourt, verificada, comprovada, relida ainda, e, emfim definitivamente +installada na sua pagina... E aqui se colloca a facecia. + +<P> +Mas é necessario primeiro, para maior indignação e maior goso, conhecer +Sir William Harcourt. De todos os membros do ministerio Gladstone, +Sir William é o mais austero. Já a sua apparencia intimida: grosso, +membrudo, de hombros compactos, com a face imperiosa, pallida, rapada, +Sir William tem as linhas solemnes e marmoreas do busto de um Cesar. + +<P> +E dentro d'esta fórma romana habita um espirito rigido de doutrinario: +liberal (em comparação <span class="pagenum"><a name="pag_235">[235]</a></span> com o marquez de Salisbury, que +é quadradamente feudal), Sir William representa no Governo a tradicção, +a formula <i>whig</i>. É o contrapeso conservador d'este ministerio +radical: está alli como um bloco de granito constitucional para impedir +que os outros ministros, Chamberlain, Sir Charles Dilke, os discipulos +de Stuart Mill, se adiantem muito pela grande estrada da Revolução: +e tem por isso essa ampla solemnidade de maneiras, essa cadencia pomposa +de expressão, de quem se honra em guardar as coisas supremas—a corôa, +a egreja, a aristocracia territorial, os privilegios, a integridade +do imperio... É um solemne. Mesmo abotoado n'um paletot, parece embrulhado +n'uma toga. É moroso, massudo, incapaz de sorrir, tem essa especie +de magestade official que faz lembrar ao mesmo tempo Guizot e um elephante. + +<P> +E quando a gente o contempla no parlamento, grave, rispido, vestido +de negro—não o póde conceber nas attitudes triviaes da vida, fumando +um cigarro n'um sophá, com uma perna por cima da outra, muito menos +de joelhos, com uma linda mão de mulher entre as suas, murmurando +coisas ternas e tontas... + +<P> +E é isto que torna atroz e deliciosa a facecia... O discurso solemne +d'este solemne estadista estava, pois, paginado, pronto para passar +ás machinas,<span class="pagenum"><a name="pag_236">[236]</a></span> quando aproveitando um momento em que a policia +interior dos escriptorios do <i>Times</i> casualmente afrouxára de +vigilancia, <i>alguem</i>, um monstro, um scelerado, subtilmente, +pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substitue-as +por outras, compostas de ante-mão, perfida e habilmente compostas! +E que linhas! meu Deus! como posso eu, conservando-me casto, explical-as +aos leitores da <i>Gazeta de Noticias</i>? + +<P> + + +<P> +Essas linhas intercaladas no severo discurso do severo ministro eram +(tremo de dizel-o) eram linhas eroticas! Era um grito convulsivo de +desordenada lubricidade; era o ruido d'uma besta agitada por todas +as furias de Venus; era como esse rouco e secco bramar dos veados, +nos bosques, sob a calma do estio; era a balbuciação ebria dos Faunos +da fabula, do deus Priappo, dos Satyros caprinos que vagueavam pelos +pendores sagrados do monte Olympo, ululando, trincando a brancura +dos lyrios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos +ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras +nymphas das aguas... Era tudo isto, e era ainda mais. + +<P> +E, para requinte de facecia, isto não destoava, não chocava, apparecendo +bruscamente e sem ligação,<span class="pagenum"><a name="pag_237">[237]</a></span> como um monturo immundo entre +roseas flôres de rhetorica. Não: tinha sido <i>encaixado</i> com uma +habilidade diabolica. Sir William Harcourt estava accusando os conservadores +de affectarem uma patriotica melancolia em presença dos suppostos +perigos, que sob o regimen liberal correm os grandes principios da +ordem monarchica, a integridade mesma da Inglaterra. E aqui perguntava-lhes, +naturalmente n'um natural movimento de oratoria: «Porque são esses +gemidos? Porque é essa exageração de tristeza publica? Decerto a questão +da Irlanda e a do Egypto são graves: mas o governo de Sua Magestade +sabe que as soluções proveitosas e gloriosas não tardarão... Nós estamos +tranquillos. Eu, por mim, sinto-me na disposição de quem, depois de +cumprir um dever official, tem para o recompensar o sorriso sereno +e approvador da consciencia, etc., etc.» + +<P> +E justamente aqui as linhas perversas entravam naturalmente traçadas, +desenvolvendo mais esta affirmação de contentamento intimo, mostrando +a exuberancia de espirito d'um ministro galhofeiro, que, em presença +do glorioso estado da cousa publica, admitte que o regosijo da nação +tome a fórma excentrica mas justificavel, de uma tremenda bambochata, +de um regabofe de estalar tudo... Sir William prosseguia (comprehendem +bem que eu dou só expressões aproximativas e atenuadas; traduzir á +<span class="pagenum"><a name="pag_238">[238]</a></span> lettra o que appareceu publicado no <i>Times</i> seria +arruinar para sempre os creditos da <i>Gazeta de Noticias</i>) Sir +William prosseguia: «Eu, por mim, estou contente. Acho-me até capaz +de uma bella folia! Porque não nos daremos com effeito a uma rica +patuscada, com vinhaça e mulherinhas? Oh, as mulherinhas! Senhoras +que me escutaes, arremessae chapéus e vestidos, e toca a pandegar +e a bater um rico batuque!... <i>Evohé!</i> Viva o deboche! Olé, <i>champanhe</i>! +Abracemo-nos, deliremos!...» Isto é só para dar ideia: o que se lia +no <i>Times</i> tinha outra crueza d'expressão, outro arranque d'orgia!... + +<P> +Imaginem o effeito ao outro dia, quando milhares de numeros do <i>Times</i>, +contendo esta abominação, penetraram n'esses recatados interiores +inglezes, onde (segundo aqui dizem) habita o typo superior da familia +christã. O <i>Times</i>, o mais caro dos jornaes, é a folha querida +da aristocracia, da alta burguezia, da grande finança. Não se comprehende +um <i>gentleman</i> inglez, do padrão classico, sem ter logo pela +manhã percorrido conscienciosamente o seu <i>Times</i>: é como o coração +mesmo da Inglaterra, que elle sente um momento entre as mãos e onde +verifica cada dia, com orgulho, um accrescimo de força, uma pulsação +maior de vitalidade. Ordinariamente é ao almoço que se lê o <i>Times</i>: +e n'essa manhã, vendo-se na quarta pagina, em lettras grossas, O +D<SMALL>ISCURSO DE </SMALL>S<SMALL>IR </SMALL>W<SMALL>ILLIAM </SMALL><span class="pagenum"><a name="pag_239">[239]</a></span> H<SMALL>ARCOURT EM </SMALL>M<SMALL>ANCHESTER</SMALL>, corria-se +naturalmente a elle com curiosidade, já pelo interesse nacional, já +pela sympathia que inspira Sir William, o seu nome historico, a solida +pureza dos seus principios, a sua alta posição... + +<P> +Imaginem-se então as scenas! Aqui é uma velha e devota duqueza, cheia +de enthusiasmo pelas questões sociaes, que se aconchega na sua rica +poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratoria de Sir +William—e que de repente estaca, encara o <i>Times</i>, limpa as +lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o periodo, passa +a mão tremula pela face, procura anciosamente o seu frasco de saes, +volta ainda a verificar se a não enleia uma allucinação, e, arremessando +emfim para longe a gazeta immunda, sae da sala a passos offendidos, +pensando comsigo que são esses os resultado de um seculo de democracia, +de materialismo e de libertinagem! + +<P> +Além é um casal de noivos, que, aninhados no mesmo sophá ao pé do +fogão, com os braços entrelaçados, precorrem o <i>Times</i>, menos +para saber da questão no Egypto, do que para ler o <i>compte-rendu</i> +de outros casamentos elegantes ou as noticias de Paris, onde tencionam +ir findar a sua lua de mel; mas encontram o discurso de Sir William, +dão-lhe um olhar distrahido, quando de repente lhes salta d'entre +as linhas o jorro immundo das apostrophes eroticas! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_240">[240]</a></span>N'outra casa é uma fresca e loura creaturinha de desoito +primaveras, puro lyrio domestico, que faz a leitura do <i>Times</i> +a um velho tio general, tolhido de gotta, reliquia veneranda das guerras +peninsulares; o velho escuta, pouco attento á politica do dia que +detesta, mas muito ao encanto d'aquella voz d'oiro ao seu lado; de +repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se da côr d'uma rosa, +treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lagrimas dos olhos, +e foge, deixando o immundo <i>Times</i> nas mãos do general assombrado:—ou +então, caso peior, a doce rapariga, na sua candura de flôr d'estufa, +não comprehende, imagina que <i>aquillo é politica</i>, continua a +ler com a sua voz d'oiro,—e o veneravel tio ouve de repente sahir +dos labios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que ha de mais +casto na musica de Weber, um enxurro torpe de babugens lubricas. + +<P> +É medonho! E uma feição curiosa do incidente é que este negro attentado +só foi descoberto nos escriptorios do <i>Times</i> ás onze horas da +manhã: isto é, quando o jornal já estava distribuido em Londres, levado +pelos trens de madrugada para toda a provincia, e pela mala de Dover +para toda a Europa! A administração do <i>Times</i> telegraphou logo +a todos os seus agentes no mundo, para suspender a distribuição <i>e +comprar por todo o preço</i> os torpes numeros já espalhados. + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_241">[241]</a></span>Só estes telegrammas custaram perto de <i>dois contos +de reis</i>. Mas o melhor é que apenas se soube a historia da catastrophe, +e que o <i>Times</i> comprava por todo o preço o numero maldito—esse +numero tornou-se logo um valor, um papel de credito, base de especulação, +com cotações no mercado, eguaes, se não superiores, aos fundos de +muita nação civilisada. Eu sei d'um restaurante que toma regularmente +quatro numeros do <i>Times</i>—e que vendeu os seus exemplares immundos +a duas libras cada um. + +<P> +Realizaram-se, porém, ganhos maiores. O <i>Times</i> não regateia, +paga. E até hoje diz-se que em comprar essa fatal edição tem gasto +já perto de <i>quarenta contos</i>. + +<P> +O autor da facecia ainda se não descobriu. É sem duvida, um monstro, +e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunaes +inglezes o demoliriam, se elle apparecesse. Mas, por outro lado, considerando +que quarenta contos são apenas um somma minima para a fortuna do <i>Times</i>, +e que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada <i>pruderie</i> +a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros +realistas,—eu não posso deixar de pensar, com laivos de regosijo, +que a Providencia tem armas obliquas e terriveis! + +<P> +<span class="pagenum"><a name="pag_242">[242]</a></span>Nunca, decerto, desde a invenção da imprensa, aconteceu +um jornal publicar, na sua melhor pagina, em letras salientes, doze +linhas immundas de desbragada obscenidade; e ser o <i>Times</i>, o +primeiro que o fez, o <i>Times</i>, o mais pesado, mais moroso, mais +solemne, mais pedagogico, mais reverente de todos os jornaes que têm +existido desde a invenção da imprensa—é, digam o que disserem, divertido. + +<P> +E, terminando, peço ás almas caritativas e justas uma bôa risada á +custa do <i>Times</i>. + +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CARTAS DE INGLATERRA *** + +***** This file should be named 25641-h.htm or 25641-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/5/6/4/25641/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</BODY> +</HTML> diff --git a/25641-h/images/lello1.png b/25641-h/images/lello1.png Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..e2a676c --- /dev/null +++ b/25641-h/images/lello1.png diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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