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+The Project Gutenberg EBook of Talitha, by Pinto da Rocha
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Talitha
+ evangelho em tres actos
+
+Author: Pinto da Rocha
+
+Release Date: April 29, 2009 [EBook #28639]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK TALITHA ***
+
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+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
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+
+
+ Pinto da Rocha
+
+ TALITHA
+
+ EVANGELHO EM TRES ACTOS
+
+ Segunda Edição
+
+
+
+
+ LIVRARIA CHARDRON
+ DE LELLO & IRMÃO
+ Carmelitas, 144-Porto
+ 1909
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+ TALITHA
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+
+ Pinto da Rocha
+
+ TALITHA
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+ EVANGELHO EM TRES ACTOS
+
+ Segunda Edição
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+
+ LIVRARIA CHARDRON
+ DE LELLO & IRMÃO
+ Carmelitas, 144-Porto
+ 1909
+
+
+
+
+O _accordo_ assignado no Rio de Janeiro, em 9 de Setembro de 1889, entre
+o Brazil e Portugal, assegurou o direito de propriedade literaria e
+artistica em ambos os paizes.
+
+
+A presente edição está devidamente registada nas _Bibliothecas
+Nacionaes_, de Lisboa e Rio de Janeiro.
+
+Imprensa Moderna, de Manoel Lello
+R. da Rainha D. Amelia, 61--PORTO
+Grande premio na Exposição do Rio de Janeiro de 1908
+
+
+
+
+PERSONAGENS
+
+ TALITHA, céga 18 annos
+ JOÃO FULGENCIO, cura da aldeia 80 "
+ DR. RUY DE ORNELLAS, medico 25 "
+ JOAQUINA, irmã do cura 65 "
+ MARQUEZA DE RILMA 50 "
+ Um escudeiro--Camponezas--Lavradores
+
+A acção passa-se em uma aldeia da Provincia de Traz-os-Montes, Portugal
+
+ACTUALIDADE
+
+
+
+
+INTERPRETAÇÃO
+
+NO RIO DE JANEIRO EM 1906
+
+ Talitha Maria Falcão
+ Joaquina Jesuina Saraiva
+ Marqueza de Rilma Barbara Wolckart
+ João Fulgencio Chaby Pinheiro
+ Ruy de Ornellas Henrique Alves
+
+NO RIO GRANDE DO SUL EM 1907
+
+ Talitha Maria Falcão
+ Joaquina Maria Pinheiro
+ Marqueza de Rilma Olivia de Almeida
+ João Fulgencio Chaby Pinheiro
+ Ruy de Ornellas João Lopes
+
+A _Talitha_ subiu á scena, pela primeira vez, no Theatro Apollo, do Rio
+de Janeiro, em Agosto de 1906, na festa artistica da eximia actriz Maria
+Falcão.
+
+
+
+
+ E tomando a mão da menina disse-lhe:
+ --Talitha cumi:--Filhinha levanta-te.
+
+ _Novo Testamento._ S. Marcos, V. 41.
+
+
+
+
+PRIMEIRO ACTO
+
+Jardim, na residencia do Cura.--Á direita, um banco de pedra junto a um
+poço: á esquerda, frontaria da casa. Grade ao fundo, com portão.--Vista
+de estrada e campo.
+
+
+SCENA I
+
+Joaquina e Ruy
+
+Joaquina
+
+ Louvado seja Deus! Como está bello e forte!
+
+Ruy
+
+ É verdade, Joaquina, o clima aqui da terra
+ encheu-me novamente o coração de alento.
+ Posso dizer que entrei neste bondoso lar
+ vigiado, sem dó, pelos olhos da morte.
+ E agora, a luz do Sol, os perfumes da serra,
+ as aguas desta fonte, o sadio alimento,
+ o seu cuidado santo, amigo e tutelar,
+ fizeram-me robusto.
+
+Joaquina
+
+ E Deus não lhe fez nada?
+
+Ruy
+
+ Foi elle quem salvou a minha mocidade,
+ porque a divina mão que fez os céos e os montes,
+ que deu flores á terra e deu frescura ás fontes,
+ que faz vibrar a luz e a voz da passarada,
+ que impelle a nuvem branca em plena immensidade,
+ um dia vos creou as almas caridosas
+ que vivem nesta casa, humildes e serenas,
+ felizes com o Bem, suaves como as rosas,
+ mais simples do que o trigo, a neve e as açucenas!
+
+Joaquina
+
+ Então, menino, crê tambem que Deus existe?!
+
+Ruy
+
+ De certo, minha amiga.
+
+Joaquina
+
+ E não é um hereje,
+ dessa raça maldita e negra que desmente
+ as obras do Senhor?
+
+Ruy
+
+ Ingenua creatura!
+ É tão alegre a crença e não crêr é tão triste,
+ que mesmo sem querer o coração da gente
+ acredita num Deus que todo o mundo rege,
+ num Pae que assim te deu alma simples e pura!
+ Faz tanto bem, Joaquina, acreditar em Deus
+ e adormecer á noite abrindo a consciencia
+ aos beijos do luar, sorrir de madrugada
+ á frescura que vem do azul ethereo e vasto,
+ que o nosso olhar ascende ás amplidões dos céos
+ sem esforço nenhum, como a espiral da essencia
+ que se evola da flôr, se a abelha delicada
+ lhe poisa na corolla o vôo leve e casto!
+
+Joaquina
+
+ Bemdito seja Deus! Não póde imaginar
+ como eu fico contente ouvindo assim fallar!...
+
+Ruy
+
+ Mas que idéa fazia então de mim? Julgava
+ talvez que eu fosse atheu?
+
+Joaquina, _benzendo-se_
+
+ Deus me perdôe... pensava!
+
+Ruy
+
+ Como poude a sua alma angelica e tão boa
+ fazer-me, sem motivo, essa enorme injustiça?
+
+Joaquina
+
+ Ah! mas não foi por mal, nem o pensei á tôa:
+ eu nunca o vi rezar, eu nunca o vi na missa...
+ E a gente vê só cara e não vê corações...
+
+Ruy
+
+ E se o visse, Joaquina!...
+
+Joaquina
+
+ E que é que me servia
+ o ver-lhe o coração?
+
+Ruy
+
+ Nada, é certo. Entretanto
+ conheceria bem as minhas intenções,
+ a esperança que faz brotar, em cada dia
+ que passa, um pensamento alegre, puro e santo...
+
+Joaquina, _interrompendo_
+
+ É, mas diz o rifão que está o inferno cheio
+ de boas intenções!...
+
+Ruy
+
+ Tem razão; mas não minto
+ se lhe disser tambem, lealmente, o que sinto:
+ ás vezes mais parece um verdadeiro inferno
+ este peito infeliz...
+
+Joaquina, _benzendo-se_
+
+ Abrenuncio, menino!...
+ Mas que blasphemia a sua e que peccado feio!...
+ Um homem que acredita em Deus, bondoso e eterno,
+ em Deus Nosso Senhor, não diz tal desatino!...
+ Virgem Maria! Credo!
+
+Ruy
+
+ Alma boa de santa!...
+ A tua vida inteira adormeceu. A aurora
+ já para ti não tem aquelle brilho vivo
+ que a primavera, em luz, alastra pelos campos...
+ Tudo se transformou em outra vida; agora
+ a fonte já soluça, a brisa já não canta;
+ aos teus olhos a lua é d'um fulgor esquivo,
+ o sol não tem calor, o céo já não é glastro,
+ as estrellas febris parecem pirilampos;
+ trazes o teu olhar constantemente a rastro;
+ sómente a fé te anima; é por isso que extranhas
+ o inferno abrasador que muita vez domina
+ a minha mocidade.
+
+Joaquina, _com sorriso_
+
+ Isso me bacoreja
+ algum amor perdido ahi por essas eiras...
+
+Ruy
+
+ É possivel, quem sabe? Os ares das montanhas
+ tem caprichos assim, póde bem ser, Joaquina!
+
+Joaquina, _cariciosa_
+
+ E diga-me, que olhar é esse que negreja
+ a sua vida alegre? Ha tantas feiticeiras!...
+
+Ruy, _enleiado_
+
+ Que olhar?
+
+Joaquina, _interrompendo_
+
+ Mas é segredo?
+
+Ruy
+
+ É, por ora é segredo...
+
+Joaquina
+
+ Ah! não confia em mim?! bem sei, bem sei, tem medo
+ que eu descubra o mysterio, a princeza encantada
+ que assim lhe traz a vida em tantas amarguras...
+
+Ruy
+
+ Não é mysterio, não. É... cousa complicada!...
+
+Joaquina
+
+ Faz muito bem zelar a flôr dos seus amores;
+ não os conte a ninguem; se acaso as desventuras
+ lhe roubarem o somno agarre-se com Deus...
+
+_tomando-lhe a mão e fallando-lhe ao ouvido_
+
+ Reze constantemente á Senhora das Dôres.
+ Acceite este rosario e tenha-o por bordão.
+ É bemaventurado aquelle que padece,
+ porque é delle, menino, o reino azul dos céos...
+ E Deus a quem promette estende sempre o pão;
+ reze e será feliz... Essa alma bem merece...
+
+Ruy
+
+ Santa velhinha, santa...
+
+Joaquina, _tapando-lhe a bocca_
+
+ E nem um ai, silencio...
+ Olhe quem vem ali...
+
+Ruy, _voltando-se_
+
+ O Padre João Fulgencio
+ e Talitha; meu Deus!... Pobre, infeliz Talitha!...
+
+Joaquina, _a Ruy_
+
+ Parece que ficou um tanto atrapalhado...
+
+Ruy, _encobrindo a verdade_
+
+ Sempre que a vejo, assim tão cheia de bondade e
+ céga...
+
+Joaquina
+
+ Então, que sente?...
+
+Ruy
+
+ Uma dôr inaudita,
+ que reveste de luto as minhas alegrias:
+
+ Ha tanta luz espalhada
+ na concha astral dos espaços!
+ E os olhos della tão baços!
+ E a fronte tão macerada!
+
+
+SCENA II
+
+Os mesmos, Padre João e Talitha
+
+_Talitha vem apoiada ao braço de padre João_
+
+Padre
+
+ Pois Deus Nosso Senhor nos dê muitos bons dias.
+
+_assenta Talitha: a Ruy, apertando-lhe a mão_
+
+ Como passou a noute?
+
+Ruy
+
+ Assim; mais descançado...
+ Sonhando... E o Senhor Cura?...
+
+Padre
+
+ Eu? Ah! na minha idade
+ já se não dorme; eu passo a noute toda em claro,
+ de rosario na mão, pedindo a Deus por nós!
+ E quando surge o dia e mal o Sol desponta,
+ dando o braço a Talitha, encaminho-me á Egreja.
+
+Talitha
+
+ Diz a missa que ou ouço...
+
+Padre
+
+ E é raro, muito raro,
+ voltarmos ella e eu, da Egreja a casa, sós.
+ Ás vezes vem comnosco esse infeliz sargento
+ que arrasta por ahi o longo soffrimento,
+ velho e cego tambem, e eu, mortiça candeia,
+ a conduzir os dois pelas ruas da aldeia!
+
+Talitha
+
+ Mas o senhor doutor, por mim nunca dei conta,
+ nem uma vez, sequer, nos acompanhou! Veja!
+ No emtanto está comnosco ha sete mezes, não?
+
+Joaquina
+
+ Isso mesmo eu já disse...
+
+Ruy
+
+ Eu dei a explicação...
+
+Talitha
+
+ E poder-se-á saber? Não é curiosidade?
+
+Padre
+
+ Talvez seja, talvez...
+
+Ruy
+
+ Não é!
+
+Talitha
+
+ Então ouçamos!...
+
+Ruy
+
+ Eu rezo no silencio o santo sacrificio,
+ no fundo de minh'alma elevo o meu altar,
+ sob o docel azul das minhas esperanças!...
+
+Padre
+
+ E eu sem conhecer mais essa novidade!...
+
+Talitha
+
+ Qual?
+
+Padre
+
+ Esta que o Doutor nos deu, mas aprendamos...
+
+Ruy
+
+ Padre não é sómente aquelle que a rezar
+ esgota uma existencia ao peso do cilicio
+ e vae pelas manhans, feliz como as creanças,
+ curvar humildemente a fronte e a consciencia,
+ na sombra da capella, aos pés do Redemptor...
+
+Talitha
+
+ Mas ha d'outros, então?
+
+Padre
+
+ Eu não conheço, filha!
+
+Ruy
+
+ Sacerdote é tambem aquelle que tem culto
+ ao qual offereceu toda a sua existencia.
+ Padre, quem se dedica um dia com fervor
+ a amar alguem na terra a cujos pés se humilha,
+ tambem é sacerdote...
+
+Padre
+
+ E eu, sacerdote, exulto
+ ouvindo do seu labio esta expressão severa.
+
+Joaquina, _que tem guardado silencio, enlevada pelas palavras de Ruy_
+
+ Bemdito seja Deus! menino, quem me dera
+ conhecer a mulher que tem um filho assim...
+
+Talitha
+
+ Só eu não posso vêl-o!...
+
+Ruy, _entre alegre e enleado_
+
+ Obrigado, Talitha!
+
+Talitha
+
+ Não tem que agradecer, disse-o sinceramente!
+ Que póde desejar mais uma céga, diga?...
+
+Padre
+
+ Mas conforma-te, filha, espera que o Senhor,
+ ouvindo-me a oração, tenha pena de mim
+ e acuda com remedio ao mal dessa desdita!
+
+Ruy
+
+ Como eu fôra feliz...
+
+Joaquina
+
+ E eu seria contente!...
+
+Ruy
+
+ Se pudesse voltar, ó minha boa amiga,
+ aos seus olhos de céga o perdido fulgor!...
+
+Talitha
+
+ Nunca mais, nunca mais...
+
+Padre
+
+ Porque é que te condemnas
+ se toda a nossa vida é uma esperança apenas?...
+
+Talitha
+
+ Se é toda de esperanças esta vida,
+ já me fugiu aquella que voava
+ bem junto do meu seio e que roçava
+ sobre a minh'alma a aza foragida.
+
+ Nem sei onde ella vae, talvez perdida
+ nao volte a mim por não morrer escrava
+ na escuridão da noite immensa e cava
+ dos meus olhos sem luz e sem guarida...
+
+ Nunca mais fulgirás, dôce promessa,
+ na minha treva densa e prematura,
+ como o branco luar em noite espessa.
+
+ Se vive, o olhar dos cégos não fulgura,
+ dorme na sombra e de sonhar não cessa
+ na tristeza sem fim da noite escura!
+
+Ruy
+
+ Não descreia, Talitha, as suas illusões
+ não fugiram, por ora, esparsas na lufada!
+ Quem foi que lhe roubou a ultima esperança,
+ que braços sem caricia, ou duras privações
+ lhe puderam vibrar tão rude punhalada?
+ Pois bem, toda a minh'alma alegre se abalança
+ a dizer-lhe, Talitha:--o seu formoso olhar
+ tão cheio de fulgor, um dia ha de voltar...
+
+Joaquina
+
+ Só milagre de Deus!
+
+Padre
+
+ E Deus póde fazel-o:
+ é Pae de todos nós!
+
+Talitha, _com desanimo_
+
+ Tenho rezado tanto!
+
+Ruy
+
+ Implore mais ainda, espere, tenha crença!
+
+Talitha
+
+ Tenho pedido muito e tanto me flagello
+ que banho as orações nas bagas do meu pranto
+ e aqueço-as ao calor da minha dôr immensa.
+ A mesma escuridão tremenda me apavora,
+ nem um raio do luz, nem um vago lampejo;
+ nunca mais hei de vêr o campo que se inflora
+ nem do luar terei um luminoso beijo...
+
+Padre
+
+ A tua redempção ainda não surgiu...
+
+Joaquina, _pondo as mãos_
+
+ Eu tenho tanta fé!
+
+Ruy
+
+ O meu presentimento
+ não sei o que me diz...
+
+Talitha
+
+ Que o coração sentiu,
+ que a sua alma pensou nessa dôce ventura,
+ eu creio porque sei quanto é nobre e bondoso.
+ Mas eu creio tambem que o meu cruel tormento
+ sómente acabará no chão da sepultura,
+ onde tudo tem fim, embora tenebroso!...
+
+Padre, _olhando o céo_
+
+ Perdôa-lhe, Senhor, ella ignora o que diz...
+ Se tem soffrido tanto esta pobre infeliz!...
+
+Talitha
+
+ Eu sei bem o que disse; a minha crença é essa.
+ Ha muito que eu imploro ao céo a protecção
+ e rezo com fervor á dôce Conceição,
+ pedindo-lhe, a chorar de dôr, que não esqueça
+ a minha noite escura e tristemente agreste
+ como a sombra que faz a copa de um cypreste.
+ Aos pés do seu altar curvei-me como escrava
+ e emquanto pela igreja o incenso espiralava,
+ e as simples orações subiam na espiral,
+ fechei-me na mudez do meu fervor mental
+ e fiz uma promessa...
+
+Ruy, _com interesse_
+
+ E então qual foi, Talitha?
+
+Talitha
+
+ Votar a minha vida ao divino serviço,
+ se um dia terminasse o meu padecimento;
+ nem peço mais a Deus, é tudo o que cubiço.
+
+Ruy
+
+ E se tornar a ver?
+
+Talitha
+
+ Entrarei num convento
+ a vestir o burel de freira Carmelita.
+
+Padre, _crente, pondo as mãos_
+
+ Se Deus te ouvisse, filha!
+
+Joaquina, _com uncção religiosa_
+
+ E o Bom Jesus quizesse!...
+
+Ruy, _com amargura_
+
+ Se tivera valor a minha humilde prece!...
+
+Talitha, _curiosa_
+
+ Se tivera valor, que lhe faria, Ruy?
+
+Ruy
+
+ Não pediria a Deus esse milagre extremo...
+
+Talitha
+
+ Porque?
+
+Ruy
+
+ Porque seria arrancal-a da treva
+ e lançal-a de novo em mais cruel negrura.
+ Juntando toda a fé que de minh'alma flúe
+ eu iria pedir, como um favor supremo,
+ que as almas alevanta e os corações eleva,
+ que me guiasse a mão na lucida aventura
+ de devolver-lhe um dia ao seu olhar perdido
+ aquelle brilho antigo e aquelle ardor de outr'ora
+ que faziam inveja ao proprio olhar de Flóra!
+
+Padre
+
+ E seria capaz?
+
+Joaquina
+
+ Credo!
+
+_Sae_
+
+
+SCENA III
+
+Padre João, Ruy e Talitha
+
+Ruy
+
+ E tão convencido
+ estou de que o Senhor a mão me guiaria
+ nesse instante feliz, que não hesitaria
+ um momento sequer... A simples catarata
+ é facil de operar e em dez dias exactos
+ Talitha voltaria á luz que o céo desata
+ e que dá vida á terra, aos fructos e aos regatos!...
+ Pense, Talitha, pense e permitta que eu faça
+ esse dôce milagre.
+
+Talitha
+
+ E eu tornarei a vêr
+ o presbyterio, a fonte, a madrugada, as aves,
+ as abelhas sugando o mel dos jasmineiros?
+
+Ruy
+
+ Os seus olhos verão a luz da eterna graça
+ no sorriso gracil da alvorada, ao nascer
+ nas bandas do oriente em nuvens tão suaves,
+ como um rebanho astral de timidos cordeiros!
+
+Talitha
+
+ E que mais hei de vêr?
+
+Ruy
+
+ Que mais? Verá tambem
+ um velhinho a sorrir com lagrimas na face,
+ e uma velhinha branca e trémula a chorar,
+ e ao pé delles, alegre, o olhar de mais alguem,
+ numa dôce oração tão leve e tão feliz,
+ como se a propria brisa aqui se demorasse
+ um momentinho só tambem para rezar!
+
+Talitha, _alegre_
+
+ E eu voltarei de novo aos encantos da luz?
+ E hei de vêr tambem o jardim do mosteiro
+ onde floresce a fé que a nossa vida arrima,
+ as rosas enfeitando a Virgem que as anima,
+ o corpo de Jesus exanime e trigueiro,
+ entre cirios a arder, deitado sobre a cruz?...
+ E então assim feliz...
+
+Ruy, _interrompendo_
+
+ E então, Talitha, e então?
+
+Talitha
+
+ Rezarei pelo Ruy, tão bom, tão generoso,
+ que trouxe ao meu olhar escuro e tormentoso
+ a esmola angelical d'um lucido clarão!
+
+
+SCENA IV
+
+Os mesmos e Joaquina
+
+Joaquina, _entrando_
+
+ Padre Cura, uma carta.
+
+Padre
+
+ Uma carta? Mas donde?
+
+_recebe-a e examina_
+
+ Hum! e de quem será?
+
+Talitha
+
+ Joaquina, dê-me o braço...
+
+_Joaquina dá-lhe o braço. A Ruy_
+
+ Dr. Ruy, até já.
+
+_ao cura_
+
+ Até já, meu Padrinho...
+
+Ruy, _que se tem conservado triste_
+
+ Talitha!...
+
+Talitha, _voltando-se_
+
+ Meu Senhor!...
+
+Ruy, _indo a ella_
+
+ Perdão, Talitha... nada!
+
+Talitha
+
+ Arrependeu-se, não? E tambem não responde...
+ Desconfia de mim?... Outro tanto eu não faço
+ Doutor, a seu respeito; eu bem sei, adivinho...
+
+Ruy, _com interesse_
+
+ Que foi que adivinhou?
+
+Talitha, _com malicia_
+
+ Uma coisa adorada...
+ que só tres corações conhecem bem: o seu,
+ o della, e o Senhor que tudo vê do céo...
+
+Ruy, _admirado_
+
+ Della, Talitha, quem?
+
+Joaquina, _com intenção_
+
+ Daquella princesinha
+ d'olhos da côr do céo, vestida de andorinha...
+
+Talitha
+
+ Ouviu, Doutor, ouviu?
+
+Ruy
+
+ Juro...
+
+Talitha, _interrompendo_
+
+ Não jure falso!...
+
+_a Joaquina_
+
+ Vamos, Madrinha, embora: é tempo de almoçar.
+
+_sahem_
+
+
+SCENA V
+
+Padre João e Ruy
+
+_Desde que recebe a carta, Padre João lê com a maior attenção. Pela sua
+face corre toda a expressão de espanto que vae recebendo. Quando sahem
+Joaquina e Talitha, o Padre conclue a leitura e fica a meditar. Ao
+approximar-se Ruy, suspende-se._
+
+Padre
+
+ Esta agora é que foi!
+
+Ruy
+
+ E que foi, Senhor Cura?
+
+Padre
+
+ Quem sabe? Póde ser um pequeno precalço,
+ mas póde ser tambem que venha de mistura
+ alguma dôr maior. E não posso evitar!...
+
+Ruy
+
+ O que essa carta diz deixou sua alma afflicta:
+ um segredo talvez que vive no seu seio?!...
+
+Padre
+
+ Foi, sim, mas ja não é. Agora só receio
+ que m'a levem daqui...
+
+Ruy
+
+ Que a levem? quem?
+
+Padre
+
+ Talitha...
+
+Ruy
+
+ E quem a levará deste remanso augusto?
+ O convento, a promessa?...
+
+Padre
+
+ Oh! não...
+
+Ruy
+
+ Não tenha susto!
+ E quem mais poderá, nesse caso, arrancal-a
+ do lar em que nasceu?
+
+Padre
+
+ A Mãe...
+
+Ruy, _surprehendido_
+
+ Ah! mas... então...
+
+Padre, _baixinho_
+
+ Então... já percebeu?! Ella foi engeitada...
+ Eis aqui o segredo em que esta vida abraço.
+
+_baixa a cabeça, scismando_
+
+Ruy, _depois de uma pausa_
+
+ Oh! meiga creatura!
+
+Padre
+
+ E não poder salval-a!...
+
+Ruy
+
+ Engeitada!...
+
+Padre
+
+ Sim, sim. Ao romper da alvorada.
+ Ha muito tempo já. Inda no céo brilhava
+ a estrella da manhã; vieram procurar-me;
+ bateram ao portal com desusado alarme...
+ Ergui-me e fui abrir; a neve branqueava
+ os campos e eu pensei que um pobre moribundo,
+ no momento supremo em que deixava o mundo,
+ quizesse receber da minha propria mão
+ o balsamo final da santa extrema-uncção,
+ e abri desta choupana a porta sempre franca.
+ Parecia o jardim uma toalha branca.
+ Era um frio cruel, cortava como fôsse
+ o gume de uma faca e o fio de uma fouce...
+ Sahi, olhei em roda e já não vi ninguem.
+ No céo luzia só a estrella de Bethlem!
+ Não sei porque a fitei nesse feliz momento.
+ Um silencio profundo amordaçava o vento;
+ dormia a natureza um somno indefinido,
+ vibrou então no espaço um timido vagido...
+ Estremeci de horror...
+
+Ruy, _com anciedade_
+
+ Era a pobre Talitha?!
+
+Padre
+
+ Approximei-me e vi, aqui junto do banco
+ um cestinho de verga envolto em panno branco.
+ Banhou-me o coração uma dôr infinita.
+ Na tragica mudez da alvorada deserta
+ tomei nas mãos, tremendo, a delicada offerta
+ e agasalhei-a ao peito, assim, para aquecel-a
+ como quem agasalha o corpo de uma estrella
+ que tombasse do céo...
+
+Ruy, _com mais anciedade_
+
+ E esse penhor amigo?!...
+
+Padre
+
+ A meu lado cresceu e formou-se o thesoiro,
+ alma rica de luz, feita de amor e d'oiro.
+ Parece que ao romper daquella madrugada
+ tão fria, tão cruel, mas tão abençoada,
+ que eu lembro com saudade e que inda hoje bemdigo,
+ teve o banho castalio, o baptismo de luz
+ da mesma estrella exul que baptisou Jesus.
+ Por isso é que minh'alma agora não sopita
+ a magua de perdel-a...
+
+Ruy
+
+ E quem terá coragem
+ energica e viril de arrebatar Talitha
+ ao seu amor leal e bom, dôce miragem,
+ no deserto feliz desta velhice austera?
+
+Padre
+
+ A mãe que a vem buscar...
+
+Ruy
+
+ A mãe não tem direito...
+ A mãe que engeita a filha é peior que uma fera!
+
+Padre
+
+ Mas é mãe!...
+
+Ruy
+
+ Sim, será, sem coração no peito.
+
+Padre
+
+ Engana-se, doutor, a mãe que hoje a reclama,
+ depois de tanto tempo, é que lhe tem amor...
+
+Ruy
+
+ Como a engeitou, então?
+
+Padre
+
+ A fera tambem ama...
+ Quem sabe o que terá soffrido essa mulher?
+ Sabe-o sómente o céo, calcule-o quem puder.
+ E diz-me o coração que vou perdel-a em breve.
+
+_Erguendo as mãos ao céo_
+
+ Não me tires, meu Deus, esse gentil penhor!
+ Repara que já tenho os cabellos de neve,
+ tão tremulas as mãos, e os labios descorados,
+ como sonhos que vão batidos e levados
+ num extremo soluço... O que eu tenho no mundo,
+ pouco mais é que um ai e o golpe agora é fundo!
+
+_Enxuga os olhos e sáe_
+
+
+SCENA VI
+
+Ruy e Talitha
+
+_Ruy vê sahir o Padre e fica pensativo, fitando os olhos no chão,
+sentado no banco de pedra. Depois de uma pausa, Talitha desce,
+tacteando, até junto delle._
+
+Talitha
+
+ Padrinho, então não vem?
+
+Ruy, _sobresaltado_
+
+ Ah! Talitha...
+
+Talitha
+
+ Perdão!
+ Pensei que estava aqui...
+
+Ruy
+
+ Já se foi...
+
+Talitha
+
+ Obrigada...
+
+_Vae retirar-se_
+
+Ruy
+
+ Talitha!
+
+Talitha
+
+ Senhor Ruy!
+
+Ruy
+
+ O seu bom coração
+ inda não lhe contou, baixo, muito baixinho,
+ quasi a tremer de medo e susto, um segredinho,
+ diga, não lhe contou?
+
+Talitha, _com muita simplicidade_
+
+ Que pergunta engraçada!
+
+Ruy
+
+ E vive então sereno?
+
+Talitha
+
+ Ah! Sim, tenho certeza!
+
+Ruy
+
+ É bem feliz, Talitha, a sua singeleza!
+ Outro tanto, porém, ao meu já não succede
+ que o sinto palpitar acceleradamente,
+ como quem vae fallar e o soffrimento impede.
+
+Talitha
+
+ Eu bem lh'o disse ha pouco...
+
+Ruy
+
+ Entretanto eu lhe juro...
+
+Talitha, _interrompendo_
+
+ Não jure que é peccado a jura de quem sente
+ que não diz a verdade. É mais bello e mais puro
+ não negar.
+
+Ruy
+
+ Tem razão, mas eu não disse, ainda
+ qual era o juramento...
+
+Talitha, _ingenua_
+
+ E qualquer que elle seja...
+
+Ruy
+
+ Diga, diga o que sente...
+
+Talitha
+
+ Ha de ser...
+
+Ruy, _curioso_
+
+ Ha de ser?
+
+Talitha
+
+ Não digo...
+
+Ruy
+
+ Diga, sim, a sua voz bemvinda
+ ha de me dar a esmola honesta e bemfazeja
+ que a minh'alma sem luz precisa de viver.
+ E do seu labio casto apenas um sorriso
+ vale mais que uma estrella e rasga um paraiso.
+
+Talitha
+
+ Assim o quer, direi; jamais o seu protesto
+ póde ser verdadeiro...
+
+Ruy
+
+ E porque não, Talitha?...
+
+Talitha
+
+ Não sei, não sei porque. A jura é como o gesto
+ que abala fortemente, a nossa vida agita,
+ mas passa e foge...
+
+Ruy
+
+ Ah! sim, quando falla sómente
+ o labio, sem fallar tambem o coração...
+ Ah! de certo que assim o labio sempre mente.
+ Mas quando o sangue estúa e faz tremer a mão
+ de quem jura, Talitha, ou quando a fronte em braza,
+ apenas num momento, empallidece e tomba,
+ bem como se a roçára a ponta fria da aza
+ feita de gelo e dôr de alguma extranha pomba,
+ quando um homem que sempre olhou de frente o sol
+ tem medo de encarar o olhar de um rouxinol,
+ e treme até de ouvir-lhe a voz encantadora,
+ quem sempre ouviu sorrindo a furia rugidora
+ do vento e dos trovões...
+
+Talitha, _interrompendo_
+
+ Então?...
+
+Ruy
+
+ Assim revela
+ que é grande, generoso e casto o sentimento
+ que apenas se traduz e que tão mal se vela
+ na gaze pueril d'um simples juramento!
+
+Talitha, _ingenua_
+
+ Quem foi que o ensinou a fallar assim?
+
+Ruy, _timido_
+
+ Digo?...
+
+Talitha, _ingenua_
+
+ E porque não? Quem foi?...
+
+Ruy, _timido_
+
+ Nem mesmo eu sei, Talitha!
+
+Talitha, _insistido_
+
+ Nem sabe onde aprendeu?
+
+Ruy, _sorrindo_
+
+ Quer aprender commigo?
+
+Talitha, _ingenua e triste_
+
+ Não me quer responder, nem confessa, nem nega...
+ Se eu pudesse aprender, de que valera á céga
+ saber fallar assim?
+
+Ruy, _triste_
+
+ Á céga?
+
+Talitha, _simples_
+
+ E á Carmelita?...
+
+Ruy, _ancioso_
+
+ Á Carmelita!... e quem lhe disse que os seus olhos
+ recuperando a luz, como duas estrellas,
+ irão illuminar as fragas e os escolhos
+ das montanhas da Syria, entre as monjas Carmellas?
+ Quer sepultar-se em vida?
+
+Talitha
+
+ E não é cemiterio
+ maior a escuridão deste pavor funereo,
+ sem vêr o sol que doira as nuvens do poente,
+ sem vêr a lua assim como um berço dolente
+ embalando no azul um sonho que não morre,
+ não vêr duma colmeia o mel que filtra e corre
+ como um rio de luz nascendo num enxame,
+ sentir e adivinhar a suprema belleza
+ da madrugada em flôr, das noites constelladas,
+ dos mares e do céo, de toda a natureza,
+ ter olhos e não vêr, inda haverá quem chame
+ vida a tal vida? Não! Mais negras, mais cerradas
+ do que esta noite immensa e triste, sem estrellas,
+ não póde ser, de certo, a solidão das cellas,
+ e o sol que tudo aquece, aquecerá de leve
+ a macerada fronte á monja que não teve
+ nem um seio de mãe que um dia a amamentasse,
+ nem a luz d'um olhar na pallidez da face,
+ e nem um coração...
+
+Ruy
+
+ Talitha!
+
+Talitha, _ingenua_
+
+ Meu doutor!
+
+Ruy, _com intenção_
+
+ Um coração?
+
+Talitha, _ingenua_
+
+ Qual foi?
+
+Ruy, _tomando-lhe a mão_
+
+ O meu...
+
+Talitha, _comprehendendo, envergonhada_
+
+ O seu?
+
+_Retira a mão_
+
+Ruy, _enleiado_
+
+ Perdoe.
+
+_Pausa prolongada_
+
+Talitha, _implorando_
+
+ Que mal lhe fiz?
+
+Ruy
+
+ Rasgou-me o coração, Talitha;
+ e pensará, talvez, que não me fere a dôr
+ de vêl-o assim rasgar?
+
+Talitha, _humilde, implorando_
+
+ Mas creia, Ruy, que foi
+ sem que eu desse por isso. E se o mal está feito
+ seja agora gentil e não me rasgue o peito.
+ Esqueça a minha falta, esqueça esta maldita,
+ não se lembre da céga e deixe-a definhar
+ na torva escuridão desta noite polar...
+
+Ruy
+
+ E se eu não conseguir tirar do pensamento
+ o seu casto perfil, celeste e macilento,
+ se a minh'alma quizer viver escravisada
+ unindo o meu destino á corrente doirada
+ que me prende, sorrindo, ao seu cruel martyrio,
+ se o meu olhar prefere esse apagado cirio
+ dos seus olhos de céga á lucida manhan
+ do amor sentimental de alguma castellan,
+ como esquecel-a então?
+
+_Joaquina apparece ao fundo_
+
+Talitha, _triste_
+
+ Não creio...
+
+Ruy
+
+ Mas porque?
+ Já tão cedo a sua alma angelica descrê
+ da minha que, arrastada á fimbria azul da sua,
+ por toda a parte a segue e a seu lado fluctua?
+ Não recorda, Talitha, o dia amargurado
+ em que eu entrei aqui perdido e quasi morto?
+ Não se lembra da noite em que eu fui condemnado?
+ Não se lembra talvez das horas de conforto
+ que os seus olhos sem luz e a sua bocca em flôr
+ me trouxeram a rir, como um remedio santo
+ da minha vida enferma á cruciante dôr?
+ Não recorda talvez que esse supremo encanto,
+ essa graça divina, aligera e bemdita
+ a vida me salvou?
+
+Talitha
+
+ Não creio...
+
+Ruy, _curioso_
+
+ É tão cruel!
+ Porque razão não crê, a minha alma fiel
+ simplesmente traduz o que a sua entendeu?
+
+Talitha, _com intenção_
+
+ Só porque a sua mão na minha não tremeu.
+
+Ruy
+
+ Entretanto, Talitha, eu amo-a...
+
+Talitha, _tremula_
+
+ Ruy!...
+
+Ruy, _apertando-lhe a cintura_
+
+ Talitha!
+
+ _Beija-lhe docemente a mão_
+
+Talitha
+
+ Ah! E eu sem poder vêr o labio que me beija!...
+ Que destino fatal, que desgraçada eu sou!
+
+Ruy
+
+ Não foi a minha bocca ardente que a beijou.
+ Foi o dôce rumor da abelha que voeja
+ sugando á sua mão de branca flôr de liz
+ o magico licôr, o aroma delicado,
+ que vem do rosicler florido e perfumado,
+ no sangue que palpita em vibrações subtis!!
+
+Talitha
+
+ Mas, Ruy, o seu amor não ve como eu sou pobre!!
+
+Ruy, _interrompendo_
+
+ Pobre sou eu que peço a esmola angelical
+ desse affecto gentil que a vida transfigura.
+
+Talitha
+
+ Tão pobre que não tenho um Pae que me conforte,
+ nem caricias de mãe que veja esta tortura...
+
+Ruy
+
+ A sua alma divina essa tortura encobre...
+
+Talitha
+
+ Tão pobre que este olhar perdido é glacial
+ como um floco de neve, e a desfazer fluctúa...
+
+Ruy
+
+ Os seus olhos sem luz tem mais fulgor que a lua.
+
+Talitha
+
+ Engeitada ao nascer vivo esperando a morte...
+
+Ruy
+
+ Alma branca de luz que illuminaste
+ a ventura das minhas esperanças,
+ bemdito seja o véo de negras tranças
+ que sobre a minha vida desnastraste!
+
+ Bemdito seja nesse dôce engaste
+ das palpebras subtis brancas e mansas
+ o mesto olhar que cobre de bonanças
+ a vida deste amor que tu salvaste!
+
+ És para mim a linha do horisonte,
+ curva do céo, á noite, constellada,
+ agua lustral de uma sagrada fonte,
+
+ toda a ambição dest'alma allucinada,
+ e a nuvem que circumda a minha fronte
+ como um disco de treva avelludada...
+
+Talitha, _de mãos postas_
+
+ Meu Deus, e nunca mais, nunca mais hei de vêl-o!...
+
+Ruy
+
+ Sim, Talitha, verá; o meu maior desvelo
+ ha de ser o fulgor do seu formoso olhar.
+
+
+SCENA VII
+
+Os mesmos e Joaquina
+
+Joaquina, _que tem ouvido tudo, feliz e contente, vem descendo com
+lentidão e junto de ambos exclama:_
+
+ Caia a benção de Deus neste formoso par...
+
+_Ruy e Talitha, surprehendidos, afastam-se_
+
+Ruy, _recuperando a serenidade_
+
+ Talitha assim o quiz!
+
+Talitha, _perturbada_
+
+ A culpa não foi minha...
+
+Joaquina, _sorrindo e acariciando-a_
+
+ A culpada fui eu que te deixei sósinha!
+
+CAE O PANNO
+
+
+
+
+SEGUNDO ACTO
+
+Sala de visitas em casa do Cura; tudo muito simples. Janellas e portas.
+Um oratorio com lampada. Um pequeno orgam.
+
+
+SCENA I
+
+Joaquina e Padre João
+
+_Conversando alegremente_
+
+Joaquina
+
+ Graças a Deus, chegou por fim o grande dia...
+
+Padre
+
+ É verdade, é verdade! irmã, quem nos diria
+ que a linda pequenita...
+
+Joaquina
+
+ A formosa engeitada...
+
+Padre
+
+ Que Deus nos enviou naquella madrugada
+ inclemente de inverno...
+
+Joaquina, _interrompendo_
+
+ E parece-me ainda
+ vêr a neve a cahir num pó macio e branco
+ no cestinho de vime, ali, ao pé do banco...
+
+Padre
+
+ E eu tenho aqui no ouvido aquella prece linda
+ que rezaste ao Senhor quando ella adormeceu
+ depois de ter mamado...
+
+Joaquina
+
+ E, lembras-te, que fina!
+ Tão branquinha, tão loira, a rir, tão pequenina!
+
+Padre
+
+ Se me recordo, irmã!?... Pois então, se fui eu
+ quem primeiro velou, durante o dia inteiro,
+ o somno encantador da candida innocente!...
+ Se me recordo, então?!...
+
+Joaquina, _sorrindo_
+
+ Mansa como um cordeiro!...
+ Mas uma coisa eu sei que esqueceste...
+
+Padre, _curioso_
+
+ Qual é?
+
+Joaquina
+
+ Não te digo, adivinha...
+
+_Pausa prolongada_
+
+ É do primeiro dente...
+
+Padre, _alegre_
+
+ Ó Joaquina! É verdade! O que se fez!... Até
+ parece que a alegria andava á tentação;
+ e nós a rir, a rir, a rir perdidamente...
+ Sempre ha coisas, meu Deus!...
+
+Joaquina
+
+ A vida é uma illusão,
+ ligeira como o vento, ás vezes nem se sente,
+ não é verdade?
+
+_Pausa_
+
+ Falla?...
+
+Padre
+
+ É, de certo, Joaquina.
+
+Joaquina
+
+ Pois então que mal faz que a gente esteja agora
+ a rir do que lá vae por essa vida fóra?!...
+ Pois agora é que é rir, que passou a desgraça,
+ quando a gente é feliz té na morte acha graça.
+
+Padre
+
+ Por causa desse dente esteve a pequenina
+ tres dias por um triz...
+
+Joaquina, _triste_
+
+ Bem ás portas da morte...
+
+Padre
+
+ Valeu-lhe a vela benta...
+
+Joaquina
+
+ Inda foi uma sorte
+ eu ter guardado aquella...
+
+Padre, _rapidamente alegre, interrompendo_
+
+ Ó! mana, e o baptisado?...
+ Que festa! E que jantar! Aquelle frango assado,
+ com rodellas de paio; inda me estão lembrando
+ aquelle arroz de forno e aquelle vinho brando...
+ Recordas?
+
+Joaquina, _com malicia_
+
+ Bem me lembro, até nesse jantar
+ o vinho começou a subir e a trepar...
+
+Padre, _interrompendo, com gravidade_
+
+ Ó mana...
+
+Joaquina, _saudosa_
+
+ E já lá vão uns bons dezeseis annos...
+
+Padre, _pensativo_
+
+ Mas como corre o tempo!
+
+Joaquina, _nostalgica_
+
+ E como a gente muda!...
+
+Padre
+
+ A vida não é nada! A magua, os desenganos,
+ a enfermidade e a dôr fazem a gente velha;
+ e não ha santo algum no céo que nos acuda!
+
+Joaquina
+
+ Pois sim, sim, mas depois os filhos vão crescendo
+ e os paes a cada instante, a rir, vão-se revendo
+ na luz do seu olhar em que tambem se espelha
+ o tempo que passou...
+
+Padre, _interrompendo_
+
+ Como o tempo é cruel!
+ E aquelle immenso mal que um dia nos feriu?...
+ Recordas? Que manhã! Mais amarga que o fel!
+
+Joaquina, _olhando o céo_
+
+ Se me lembro, Senhor, quando ella ficou céga,
+ que só podia andar guiada por alguem!...
+ Não hei de recordar? Recordo muito bem!
+ Quanta vez, coitadinha, a chorar me pediu
+ que lhe fôsse comprar dois olhinhos melhores
+ para trocar os della...
+
+Padre, _limpando os olhos_
+
+ Até se me despega
+ o coração de dôr!...
+
+Joaquina
+
+ E nenhum dos doutores
+ atinou de a curar, nem sequer as promessas
+ deram com ella a vêr...
+
+Padre
+
+ Quantas vezes subi
+ os tres degráos do altar e rezando pedi
+ ferventemente a Deus, por amor de Jesus,
+ que lhe tornasse a dar aos seus olhos sem luz
+ a visão que perdera...
+
+Joaquina
+
+ E agora tu confessas
+ que a sorte a perseguiu sem dó nem piedade,
+ apezar de ella ser um mimo de bondade?
+
+Padre
+
+ Confesso. Até que Deus mandou a desventura
+ da sua juventude a alvorada feliz
+ desse primeiro amor...
+
+Joaquina
+
+ E se Elle assim o quiz!...
+
+Padre
+
+ Que seja feita a sua energica vontade,
+ nos céos como na terra e que um dia a tortura
+ tenha fim!
+
+Joaquina
+
+ Pois não teve, afinal?...
+
+Padre
+
+ Eu não sei...
+ Dizem vocês que teve e a operação deixou
+ o melhor resultado...
+
+Joaquina
+
+ Elle diz que a curou!
+ O que elle fez não sei, nem mesmo perguntei
+ mas que ella torne a vêr...
+
+Padre
+
+ É isso o que deseja
+ a minh'alma sincera, é vêl-a venturosa!
+ Entretanto, meu Deus, por que Talitha o seja
+ é preciso, talvez, que a vara da desgraça
+ me toque o coração e a fonte caprichosa
+ das lagrimas estale. A dôr que me ameaça
+ enche-me de pavor. Tenho um presentimento
+ que me não abandona um dia, um só momento!
+
+Joaquina
+
+ Isso não vale nada...
+
+Padre
+
+ Entretanto eu medito
+ naquelle casamento.
+
+Joaquina, _interrompendo_
+
+ O casamento?...
+
+Padre
+
+ Sim;
+ o casamento, sim, que vae arrebatal-a
+ á nossa pobre vida... Está, porém, escripto,
+ e Deus que o destinou ha de por fim leval-a
+ e nunca mais trazel-a aqui, junto de mim.
+
+Joaquina
+
+ E quem nos diz a nós que essa desconfiança
+ não seja apenas medo?
+
+Padre
+
+ O coração, irmã!...
+
+Joaquina
+
+ Ah! Sim o coração... o coração tambem cança!
+ Já não regula o teu, nem serve de evangelho,
+ é coração de padre e padre muito velho...
+
+Padre
+
+ Pois bem, não servirá, mas inda esta manhã,
+ por occasião da missa, as lagrimas vertidas
+ tombaram-me da face ao calix consagrado,
+ ao recordar, então, que um dia, angustiado,
+ hei de vêl-a partir! Como fôram sentidas
+ essas bagas leaes que, em silencio, chorei
+ e que juntas ao vinho eu mesmo consagrei!
+ Eu creio em Deus e espero o golpe do destino
+ como um favor do céo purissimo e divino!
+
+Joaquina
+
+ Descança, meu irmão! O Ruy é bom rapaz,
+ tem muito amor á gente, ha de ficar, verás!
+ Parece alma de santo e só pensa no bem.
+
+Padre
+
+ Póde ser, póde ser, mas recorda tambem
+ a promessa que fez a nossa pequenita
+ e, se ella conseguir outra vez a visão,
+ lá se nos vae embora a meiga Carmelita...
+
+Joaquina
+
+ Ah! disso eu não receio; então crês que o convento
+ tenha força capaz de virar-lhe a razão
+ o fazel-a esquecer, assim, o casamento?
+
+Padre
+
+ Mas se não a levar o voto de noviça
+ ha de a levar o amor que quanto vê cobiça.
+ De certo a chamará, talvez para bem longe,
+ a palavra inspirada e convicta do monge
+ que nos fez o milagre e deu olhos á céga...
+ É por isso, meu Deus, que est'alma não socega!
+
+
+SCENA II
+
+Os mesmos e Ruy
+
+Ruy, _entrando_
+
+ Bons dias, Senhor Cura.
+
+_A Joaquina_
+
+ E a mãe Joaquina, então,
+ como passou a noute? Aposto que sonharam
+ muito commigo, sim?
+
+Padre
+
+ Foi tal qual!...
+
+Joaquina
+
+ Pois eu, não;
+ tive mais que fazer, dormi regaladinha
+ durante a noite inteira...
+
+Ruy
+
+ E bem conchegadinha?
+
+Joaquina
+
+ Nem mais!...
+
+Ruy
+
+ E claro então que nem, sequer, cuidaram
+ de Talitha...
+
+Joaquina
+
+ Cuidei, sim senhor...
+
+Ruy, _prazenteiro_
+
+ Não entendo...
+ se dormiu toda a noite...
+
+Padre, _a rir_
+
+ É, eu não comprehendo
+ tambem como se possa, a um tempo só, dormir
+ e velar!... É bem certo o rifão: mais depressa
+ se agarra um mentiroso...
+
+Ruy, concluindo
+
+ Exacto; do que um coxo...
+
+_Ambos riem muito_
+
+Joaquina
+
+ Mas eu é que não sei que tanto tem que rir!
+
+_A Ruy_
+
+ Nem é da sua conta
+
+_ao Padre_
+
+ e nem da sua! Peça
+ a Deus Nosso Senhor que dê mais tento aos dois:
+
+_batendo com um dedo na testa_
+
+ talvez haja por lá um parafuso frouxo...
+
+Padre, _com gravidade comica_
+
+ Ó mana, isso é demais...
+
+Ruy, _abraçando-a_
+
+ Não vá subir á serra;
+ deixemos essa historia a resolver depois
+ e vamos conversar da luz que se descerra
+ e que hoje ha de fazer toda a nossa alegria...
+
+Padre
+
+ Fallava eu nisso mesmo antes da sua entrada.
+
+Joaquina
+
+ E quer saber, menino, o que elle me dizia?...
+
+Ruy
+
+ Pois diga, francamente, e não esqueça nada...
+
+Padre
+
+ Não havia segredo, era tão natural
+ e tão simples, meu Deus, o que eu dizia ha pouco...
+
+Joaquina
+
+ Deixe-o fallar, menino, anda que é mesmo um louco;
+ não diz coisa com coisa, a tudo julga mal
+ e já pelo peior!
+
+_Contando pelos dedos_
+
+ Primeiro, que a pequena
+ breve nos deixará, que o Ruy vae desposal-a,
+ e depois, o convento: ora veja se cabe
+ uma cantiga assim na cabeça d'alguem?
+ Se ella ha de preferir aquella quarentena
+ á casa dum marido!... A mim já não abala
+ essa ideia!...
+
+_Ao Padre_
+
+ Você nunca soube, nem sabe
+ um marido bonito os encantos que tem...
+
+_A Ruy_
+
+ Finalmente, receia...
+
+Padre, _interrompendo_
+
+ Eis onde pega o carro!...
+ E sabe Deus, Doutor, que se não fôsse a crença!!...
+
+Ruy
+
+ Pois bem, Joaquina, diga, em que é que o Cura pensa?
+
+Joaquina
+
+ Que depois de casada...
+
+Padre, _interrompendo_
+
+ Ouça-me então, eu narro:
+ Receio, é natural, que ella siga o marido,
+ e venha a solidão morar nesta choupana
+ onde eu mesmo não sei como tenho vivido!
+ E que será de mim e que será da mana,
+ diga-me, Ruy, tambem o que será de nós,
+ dois velhos, nesta casa, enfermos e tão sós?...
+ vendo, a cada momento, a lucta nos escolhos
+ da saudade e da dôr, sem ter no dia extremo
+ aquella mão leal que feche os nossos olhos?!...
+ Fique sabendo, Ruy, porque motivo eu tremo...
+
+Ruy
+
+ Sim, mas não tem razão, pensemos na ventura,
+ nessa immensa ventura...
+
+Joaquina, _interrompendo_
+
+ É mesmo assim que eu penso...
+
+Ruy
+
+ Que vae sentir Talitha ao vêr a luz do sol,
+ tantos annos depois de longa noite escura,
+ envolto o dôce olhar num véo pesado o denso!
+ Vamos fallar de nós, deste novo arrebol
+ que nos ha de banhar o coração e a alma,
+ como um luar de outomno, uma alvorada calma,
+ quando ella abrir á luz a languida pupilla
+ dos olhos ideaes, tão doces e tão flavos,
+ que são como um casal de abelhas que assimilla,
+ nas flôres dos jardins, o loiro mel dos favos.
+ Pensemos na expressão que o seu olhar vae ter
+ quando ella vir ao sol tão brancos os cabellos
+ do Senhor Cura...
+
+Padre
+
+ Assim como a neve a descer
+ sobre a minha cabeça, em flócos e novellos...
+
+Joaquina, _saudosa_
+
+ E nós dois a curvar ao peso da nevada,
+ o corpo já pendido, a procurar a estrada
+ que váe á eternidade...
+
+Ruy, _interrompendo alegremente_
+
+ E já pensou, Joaquina,
+ no famoso jantar?
+
+Joaquina
+
+ Não, depois se combina.
+ Como faltam ainda uns dias ao Natal
+ vamos tratar primeiro...
+
+Padre, _atalhando_
+
+ Isso! do nosso almoço,
+ porque eu já estou sentindo um enorme alvoroço
+ cá por dentro.
+
+_A Ruy_
+
+ Que diz?
+
+Ruy
+
+ Tudo quanto fizer
+ a mãe Joaquina, está bem feito.
+
+Joaquina, _ironica_
+
+ Agradecida!
+ Eu já volto.
+
+_Sae_
+
+
+SCENA III
+
+Padre e Ruy
+
+Padre
+
+ Então, Ruy, pensou no resultado
+ que vae ter para nós a sua operação?
+
+Ruy
+
+ Tenho pensado muito e só me felicito:
+ parece que se abriu um vasto rosicler,
+ enchendo de perfume o lar da minha vida;
+ descanta-me no peito o coração alado
+ tão viva, tão alegre e limpida canção,
+ que me parece ouvir palpitar o infinito
+ e a dôce voz de Deus abençoar-me o nome...
+
+Padre
+
+ Pois bem, Ruy, entretanto a duvida consome
+ os meus dias; medito e tenho muito medo
+ de uma lucta que vae ser travada, em segredo,
+ no seio de Talitha...
+
+Ruy
+
+ E então que lucta é essa?
+
+Padre
+
+ O encontro, á luz do Sol, do amor e da promessa.
+ Conheço-a muito bem. Alma branca de pérola,
+ possue alguma coisa assim divina e cérula.
+ Foi creada por mim, na dôce região
+ em que repoisa a crença á sombra da oração...
+ e sei que a pobresinha, um dia, prometteu
+ professar e vestir o burel carmelita,
+ se a Virgem lhe voltasse o seu perdido olhar.
+ A Mãe de Deus ouviu a prece, mas agora
+ que um novo dia aponta a curva azul do céo,
+ mostrando-lhe o porvir numa formosa aurora
+ de amor e de ventura, a angelica Talitha
+ verá, na sua frente, erguer-se e fluctuar,
+ constante, pertinaz, energica e severa,
+ a promessa que fez, a consciencia austera
+ a exigir-lhe que a cumpra e o seu primeiro amor
+ a sorrir e a tental-a...
+
+Ruy
+
+ Esse mesmo receio
+ tambem me preoccupa. Eu já presinto a dôr
+ que vae, como um espinho, amargurar-lhe o seio.
+ Assim a Providencia ás vezes desconhece
+ o proprio mal que faz e como que se esquece
+ da victima innocente e nessa lucta enorme
+ a desgraça feroz que não cança, nem dorme,
+ de certo vencerá, se nós que a divisamos
+ ao longe, no horisonte, a deixarmos crescer
+ tão alto, que domine aquelle pobre ser.
+ E preciso pensar e vêr bem se afastamos
+ da sua intelligencia a ideia do convento,
+ como se afasta a flôr dos impetos do vento.
+
+Padre
+
+ E quem terá prestigio e força de arrancar
+ áquella consciencia, a dôce, a delicada,
+ a candida expressão da promessa sagrada
+ que ella espontaneamente ergueu junto ao altar?
+
+Ruy
+
+ Nao desejo arrancar essa illusão formosa
+ á crença da sua alma... A raiz dessa rosa
+ não é muito profunda, apenas esbraceja
+ á flôr do coração, por isso não viceja
+ ainda como o seio altivo e perfumado
+ de uma corola aberta!... Um botão delicado
+ agora principia a despertar á luz...
+ Dessa casta missão, que moverá Jesus,
+ sómente, Senhor Cura, a sua phrase austera
+ se póde encarregar; o prestigio da idade,
+ a alvura de luar das cans alabastrinas,
+ a palavra de amor, piedosa e severa,
+ do seu conselho bom, tão cheio de amizade,
+ a sua consciencia e as affeições divinas
+ que avizinham do céo o seu viver de santo,
+ a fé que o seu olhar inspira a quem o fita,
+ hão de estancar, por certo, a dôr, fonte do pranto,
+ nos olhos virginaes da mimosa Talitha.
+
+Padre
+
+ Sacerdote de Deus que o serve, ha tantos annos,
+ nas duras provações, na dôr, nos desenganos,
+ sem nunca haver mentido uma só vez na vida,
+ tenho medo que a voz de commoção me trema,
+ que me fuja o valor á hora assim blasphema
+ de entregar á mentira esta fiel guarida...
+
+Ruy
+
+ Caridosa mentira, ó culpa dôce e casta
+ que salva uma esperança e mais um anjo afasta
+ á amargura cruel de um grande sacrificio!
+ Responda, Senhor Cura, em sua consciencia,
+ acredita que Deus condemne uma existencia
+ purissima de flôr, a tamanho supplicio?
+ Que peccados terá Talitha a redimir
+ que precise descer em vida á sepultura,
+ agora que brilhou a estrella do porvir
+ aos seus olhos, sem luz, na densa noite escura?
+ Não mente, Senhor Cura, o labio quando salva:
+ é aspera a mentira e tem a côr terrena,
+ ao passo que a sua alma é branca, de açucena,
+ e a sua phrase é sã, é redemptora, é alva!
+ Em vez de sacerdote, a confessar a freira,
+ seja Pae que dirige o coração da filha!
+ Aquelle olhar sem luz, durante a vida inteira,
+ desviou-lhe a razão para diversa trilha.
+ Estenda-lhe o seu braço, ampare-a no caminho,
+ traga de novo a rola ao palpitar do ninho!
+
+Padre
+
+ E pensa, Ruy, que um Pae, se tiver consciencia,
+ deva pedir que a filha afaste da lembrança
+ a promessa que fez, com tanta segurança,
+ quando implorava a Deus piedade e clemencia?...
+
+Ruy
+
+ Meu amigo, nao vê que esse immenso fervor
+ nascia do tropel da magua e do pavor?
+ Que, assim feita, a promessa, além de não ser santa,
+ as almas enlanguece e os corações quebranta?
+ Não vê que faltou luz áquella intelligencia?
+ Que aquella alma vergou á estolida exigencia
+ do desespero intenso e bárbaro, que a ancia
+ de revêr inda o sol da sua alegre infancia
+ envolver-lhe a cabeça em nimbos de ventura
+ a levaram, talvez, nessa hora de tortura,
+ á extrema tentação de dar a mocidade
+ por um dia feliz de viva claridade?
+ Levita, cuja mão diariamente eleva
+ ao throno do Senhor a hostia consagrada,
+ levanta esse sacrario á curva constellada,
+ a flôr que pede sol não viverá na treva!...
+
+Padre, _depois de uma pausa_
+
+ Pois seja assim, meu Deus! e tu que o vês perdôa,
+ porque ha no meu peccado uma intenção tão boa,
+ tão pura e tão leal, que eu sinto adormecido
+ o velho coração por nunca haver mentido...
+
+
+SCENA IV
+
+Os mesmos e Joaquina
+
+Joaquina, _entrando_
+
+ Que grandes trapalhões, aqui a badalar
+ numa palrice enorme e toda a gente á espera
+ que o doutor mais o cura acabem de fallar...
+
+Ruy
+
+ Por que ha de ser assim tão má e tão severa?
+
+Padre
+
+ Rabugice de velha!...
+
+Joaquina
+
+ É só meu o proveito...
+
+Ruy, _abraçando-a_
+
+ Deixe-o fallar, Joaquina, aquillo é tudo inveja...
+ da sua mocidade!...
+
+_Riem ambos_
+
+Joaquina, _entre risonha e severa_
+
+ Ai, ai! o malcreado!
+ Esquece a obrigação e falta-me ao respeito!
+ E a culpada sou eu! Ora não ha! Pois veja
+ que emquanto está gastando o seu palavreado,
+ seria bem melhor que cuidasse da enferma,
+ que vive ali no escuro abandonada e erma.
+
+Padre
+
+ E você que fazia?
+
+Joaquina
+
+ Eu fui tratar do almoço;
+ não andei de conversa á espera que o maná
+ nos cahisse do céo.
+
+Ruy
+
+ Por isso falla grosso!
+
+Joaquina
+
+ Não é da sua conta, ouviu?
+
+Ruy, _com a maior gravidade_
+
+ Ouvi...
+
+Joaquina
+
+ Pois vá
+ tratar do seu dever porque não faz favor...
+
+Padre
+
+ Então que succedeu?
+
+Joaquina, _amenisando a voz_
+
+ É que a pobre pequena
+ já cançou de esperar e quer vêr se o doutor
+ lhe permitte que venha até aqui á sala.
+
+Padre
+
+ Que diz, Senhor Doutor?
+
+Ruy
+
+ Que se Talitha ordena...
+
+Padre
+
+ Pois faça-se a vontade...
+
+Joaquina
+
+ Então, eu vou buscal-a...
+
+_Joaquina sae.--O Padre, ancioso, passeia ao longo da sala; Ruy,
+encostado á meza, olha para a porta por onde sahiu Joaquina.--Pausa
+cheia de anciedade._
+
+
+SCENA V
+
+O mesmos, Joaquina e Talitha
+
+_Talitha entra de olhos vendados, pelo braço de Joaquina. Ruy e Padre
+vão ao seu encontro e tomam-lhe as mãos para conduzil-a a uma cadeira.
+Joaquina, deixando-a, vae cerrar as janellas e portas. Senta-se Talitha
+e conversam um pouco._
+
+Padre
+
+ Como te sentes, filha?
+
+Talitha
+
+ Afflicta, muito afflicta
+ por ver a luz do dia...
+
+Ruy, _tomando-lhe a mão_
+
+ A mesma curiosa
+ de sempre!...
+
+Talitha
+
+ Se parece á sua intelligencia
+ que não tenho razão!... Ha tantos annos céga!...
+
+Joaquina
+
+ Deixa-o fallar, Talitha, isto é mais tagarella
+ do que as creanças, vês?
+
+Ruy
+
+ Pois não creia, Talitha!...
+
+Padre, _tomando Ruy á parte_
+
+ Prepare o coração e veja que anciosa
+ aquella vida está... tenha a maior prudencia!
+
+Ruy
+
+ É muito natural; só emquanto não chega
+ o instante de tirar a venda que lhe vela
+ o dulcissimo olhar...
+
+_A Talitha_
+
+ Diga, Talitha, ainda
+ sente alguma dôr?
+
+Talitha
+
+ Não! apenas a impressão
+ do lenço que me causa a maior afflicção,
+ a vontade feliz, viva, crescente, infinda
+ de vêr de novo a luz...
+
+Ruy
+
+ E não ha quinze dias
+ que lhe descubro a vista?
+
+Talitha
+
+ Ha, sim, mas lá no escuro,
+ onde eu não vejo nada...
+
+Padre
+
+ Assim é que convem...
+ Depois de tanto tempo, então, já pretendias
+ vêr livremente o sol? Seria prematuro...
+
+Joaquina
+
+ É muito perigoso!...
+
+Ruy
+
+ E sentia-se bem?
+ Chegou a distinguir, alguma vez, o aspecto
+ ou a forma geral de qualquer um objecto?
+
+Talitha
+
+ Muitas vezes, pois não; primeiro vagamente,
+ depois com nitidez.
+
+Padre, _alegre_
+
+ Mas então a doente
+ Recuperou a vista!?
+
+Joaquina
+
+ Abençoada a hora
+ em que o menino entrou nesta pobre choupana!...
+
+Ruy
+
+ Agradeçam a Deus!
+
+Talitha
+
+ Doutor, porque demora
+ esta venda cruel que o meu olhar empana?
+
+Ruy
+
+ Pois diga-me primeiro o que pensa de mim.
+
+Talitha
+
+ Que é muito feio e máo...
+
+Joaquina
+
+ Bem feito!
+
+Ruy
+
+ E da Joaquina?...
+
+Talitha
+
+ Penso della que é santa e que tem de setim
+ côr da neve o cabello, a pelle muito fina,
+ como eu creio que são as santas da capella.
+
+Ruy
+
+ E o nosso Padre-cura?
+
+Talitha
+
+ Um velhinho bondoso,
+ que vive para o bem e sobre os pobres vela!
+ Supponho que elle tenha a cabeça bem branca,
+ o olhar muito suave e d'expressão tão franca,
+ que appareça na face enrugada e senil
+ a dôce candidez da sua alma infantil...
+ E, cogitando assim, parece-me que vejo,
+ dos altos de uma torre, a uma enorme distancia,
+ como um jardim florido, a minha dôce infancia
+ vicejando a sorrir, a sombra do seu braço,
+ e o seu olhar de Pae enchendo todo o espaço
+ de luz, de muita luz, tão dôce e tão leal,
+ como o luar banhando as ondas de um trigal
+ numa noite estreitada, e o sangue me palpita
+ no seio, e o coração ardentemente agita
+ na immensa anciedade afflicta e pressurosa
+ de poder innundar a sua mão rugosa
+ de lagrimas febris e de beijos sem fim.
+
+Ruy
+
+ Tantas coisas ao Cura e nada para mim!...
+
+Talitha
+
+ Exactamente, Ruy; a saudade de vêl-o
+ augmenta a cada instante o meu triste flagello,
+ porque nos braços delle um dia adormeci
+ e não despertei mais... e ao Ruy...
+
+_baixando a voz_
+
+ eu nunca vi...
+
+Ruy, _com caricia_
+
+ Pois vae tornar a vêr a boa da Joaquina
+ que a trouxe ao collo, a rir, quando era pequenina.
+
+_Aproxima-se de Talitha para tirar-lhe a venda_
+
+ Vae vêr o Padre-cura e matar os desejos
+ de lhe cobrir a face e as mãos de muitos beijos...
+ E vae me conhecer...
+
+_Tira-lhe a venda_
+
+_Silencio. Commoção geral. Talitha, acostumada á treva, não supporta a
+luz; tapa os olhos com as mãos; depois habitua a vista, levanta-se,
+olha, procura anciosamente. Antes de Talitha distinguir cada uma das
+pessoas, encanta-se com a luz e com os objectos._
+
+Talitha, _á luz, correndo á janella_
+
+ Céos! Vejo novamente
+ a luz que me faltou durante a meninice!
+ Ó Sol da minha infancia, a sorrir de contente
+ torno a vêr-te de novo. Azul do céo, meiguice
+ que ha muito não beijava o meu perdido olhar,
+ como deves ser lindo ao dôce despontar
+ da madrugada clara!
+
+_Ao oratorio_
+
+ Oratorio velhinho,
+ junto ao qual, em pequena, eu tanto vez rezei,
+ como sinto vontade, agora que revejo
+ o teu branco Jesus, do amor e do carinho
+ com que pela manhã e á noite eu te beijei,
+ e hoje, meu velho amigo, a estremecer te beijo!
+
+_Passa as mãos nos olhos, como para certificar-se que vê bem_
+
+ Mas parece-me um sonho!
+
+_Pausa. De novo esfrega os olhos_
+
+ Eu já não sou a céga...
+
+_Pausa_
+
+ Eu vejo tudo...
+
+_Estaca; olha as paredes_
+
+ Sim, sim tudo...
+
+_Olha para o tecto, baixa os olhos ao chão, volta-se para os lados,
+palpa as cadeiras, palpa a meza, corre á commoda_
+
+ Eu não me engano.
+ Eu vejo a minha mão!
+
+_Olha para as mãos_
+
+ Mais branca do que o panno
+
+_pega o avental e examina_
+
+ do meu lindo avental!
+
+_Põe a mão sobre o peito, como que desmaiada_
+
+ Ah! coração, socega...
+
+_Neste momento Joaquina, receiando que Talitha caia, corre para
+amparal-a, dizendo_
+
+Joaquina
+
+ Credo! Jesus, Senhor!
+
+Talitha, _como que acordando aos gritos de Joaquina, ao vêl-a tem uma
+commoção e exclama_
+
+ Joaquina! ó boa e santa
+ velhinha, dôce mãe que tanta dôr e tanta
+ lagrima derramaste, aos pés do meu bercinho!...
+
+_Vendo o Cura, lança-se a elle, soluçando; abraça-o, beija-o, vê-o,
+chora, ri, torna a abraçal-o, doida de alegria_
+
+ Mas como eu sou feliz, meu Pae, meu Avôsinho!
+
+_Deixa afinal o Cura e corre para Ruy_
+
+ E Ruy que me salvou...
+
+_Vae para abraçal-o, estaca: o pudor impede-a; baixa os olhos, em silencio_
+
+ Ah!... Ruy... eu nunca o vi!...
+
+Padre, _soluçando e enxugando as lagrimas, aproxima-se della, toma-lhe a
+mão e leva-a junto de Ruy_
+
+ Beija-o, Talitha; beija, elle é digno de ti,
+ emquanto eu vou render a Jesus Christo, filha,
+ graças por essa luz que nos teus olhos brilha.
+
+_Sae, enxugando os olhos_
+
+Joaquina, _a Ruy_
+
+ Á Virgem prometti uma lampada accêsa
+ durante uma semana, e por sua intenção,
+ se Ella daqui levasse as dôres e a tristeza,
+ fazendo este milagre. Hei de accender o azeite
+ e rezar a seus pés, com toda a devoção,
+ pedindo á Virgem Mãe que este meu voto acceite.
+ Louvado seja Deus! O Céo vos abençôe!
+
+_Sae_
+
+
+SCENA VI
+
+Talitha e Ruy
+
+_Depois de uma pausa prolongada_
+
+Talitha, _sempre pudica_
+
+ Porque me encara assim? Offendi-o? Perdôe.
+
+Ruy, _caminhando para ella_
+
+ Fitei-a porque sinto o brilho desse olhar,
+ como um rio de luz suavissima, innundar
+ a minha mocidade inhospita e sombria,
+ num banho redemptor de dôce calmaria.
+ E parece-me vêr a sombra avelludada
+ da sua fronte branca, e pura, e macerada,
+ fugir espavorida á luz desse clarão...
+
+Talitha
+
+ Que eu devo tão sómente á sua compaixão...
+
+Ruy
+
+ Esqueça que fui eu...
+
+Talitha, _interrompendo_
+
+ Não sei como se esquece...
+
+Ruy
+
+ Então recordará, por toda a sua vida,
+ o nosso amor feliz?
+
+Talitha
+
+ A sua alma duvida?
+
+Ruy
+
+ Eu não duvido, eu peço, e vae na minha prece
+ quanto minh'alma tem de puro sentimento...
+
+Talitha, _curiosa_
+
+ Na sua prece?
+
+Ruy
+
+ Sim, tão cheia de fervor
+ como a casta oração que a sua crença augusta
+ soluça de manhã, mais triste que um lamento,
+ que vae, azul em fóra, ao throno do Senhor,
+ no murmurio subtil dessa bocca venusta.
+
+Talitha
+
+ Eu nunca olvidarei a dulcida ventura
+ daquella noite densa, atormentada, escura,
+ em cujo manto negro a sua mão bondosa
+ rasgou a dôce aurora alegre e luminosa...
+ O caridoso amor, que os seus labios deixaram
+ gravado nesta mão que tanta vez beijaram,
+ foi um sonho feliz numa noite polar,
+ sonho de primavera em noite sem luar:
+ nunca mais sahirá d'entre as minhas lembranças.
+ Como um beijo de mãe na face das creanças,
+ a primeira affeição nunca se desvanece,
+ é como a flôr da lenda: a todo o instante cresce!
+ Se eu a esquecesse, Ruy, como seria ingrata!
+
+Ruy
+
+ Talitha, minha vida, a densa cataracta
+ não poude escurecer a lucidez suprema
+ da sua alma christã, que vale um diadema
+ de rainha e de santa, a cujos pés se inclina
+ a minha alma que vae sobre a esteira argentina
+ que o seu vestido traça ao longo da jornada,
+ como no azul do mar as velas da jangada...
+
+Talitha
+
+ E se a vela, batida ao vento da desdita,
+ levar á sombra eterna essa infeliz Talitha
+ que a sua mão salvou da mesma sombra eterna?
+
+Ruy
+
+ Irei onde ella vá. Se a aragem fôr galerna
+ e o nosso amor levar a gondola encantada,
+ sobre o dorso da vaga em branca espumarada,
+ eu seguirei, sonhando, á prôa, na epopêa
+ que o seu divino olhar de candida sereia
+ ha de inspirar, sorrindo, a quem o illuminou.
+ Se o vento arremessar a vela que enfunou
+ á rude penedia e sossobrar a barca,
+ hei de salvar, então, a pequenina arca,
+ onde vive encerrada a pomba da alliança,
+ que faz do nosso amor uma alegre esperança!
+
+Talitha
+
+ Apenas esperança, e nada mais! A vida
+ é um sonho que passa e foge; perseguida,
+ occulta-se a esperança á sombra de um asylo,
+ tão occulto tambem que, para descobril-o,
+ desfaz-se muita vez ou rasga-se em pedaços
+ a nossa fé mais pura e a crença, em estilhaços,
+ desapparece e vae, por esse mundo fóra,
+ como nuvens no céo ao despontar da aurora...
+
+Ruy
+
+ Porque razão, Talitha, os nossos pobres sonhos
+ não poderão florir, alegres e risonhos,
+ á plena luz do Sol?
+
+Talitha
+
+ Sonhos são illusões
+ que a madrugada esbate em limpidos clarões,
+ e nada mais... Talvez as suas, sim!... As minhas
+ irão fazer o ninho á sombra... As andorinhas
+ tem que mudar de clima ao começar o inverno,
+ levando para longe o seu amor materno...
+ A minha acostumou-se á sombra da cegueira:
+ se na sombra passou quasi uma vida inteira!
+ Na sombra adormeceu, na sombra soluçou
+ e na sombra sorriu... A sua mão rasgou
+ este sulco de luz no meu perdido olhar,
+ e a triste, acostumada á sombra tumular,
+ fugiu espavorida ao lucido lampejo
+ e tão distante foi, que nem sequer a vejo...
+
+Ruy
+
+ É o receio infantil que vem da escuridão!
+ A esperança, Talitha, ainda um só instante
+ não sahiu do calor que faz do coração
+ o ninho aconchegado, o berço palpitante
+ e o sacrario fiel do nosso casto amor!
+ Na sombra nasce, e cresce, e vive tanta flôr
+ sem perder o perfume!... E a esperança, Talitha,
+ é o perfume do amor, a essencia que dormita
+ serena e só desperta ao carinhoso afago
+ dum beijo a murmurar em sonho dôce e vago...
+
+Talitha
+
+ Mas antes que o murmurio a despertasse, a luz
+ do sol lhe recordou que aos olhos de Jesus
+ e aos pés de sua Mãe ella havia ajoelhado
+ no fervor da oração, em dia torturado,
+ prendendo a vida inteira ao brilho de um olhar.
+ Entre nós dois agora eleva-se um altar,
+ e eu vejo-me prostrada e envolta no burel,
+ sorrindo para o céo, por ter sido fiel
+ á promessa que fiz...
+
+Ruy
+
+ E o nosso amor, Talitha,
+ não foi uma promessa?
+
+Talitha
+
+ Ah! foi, mas a desdita
+ lançou-lhe a maldição no dia em que nasceu
+ e o nosso puro amor agora feneceu.
+
+Ruy
+
+ E a tua mão divina, angelico florão
+ de algum ciborio astral, a tua mão de rosa
+ e jaspe é que me vem ferir esta affeição
+ que banhava em frescor a vida bonançosa
+ deste meu sonho azul!... Mas quando, em nostalgia,
+ á sombra do mosteiro, a tua phantasia
+ volver para o passado esse formoso olhar
+ tão cheio de candura e te fizer sonhar;
+ quando a espiral do incenso á curva do docel
+ subir da tua mão occulta no burel,
+ como a dôce expressão duma saudade immensa;
+ quando á noite o luar, vencendo a treva densa,
+ entrar na tua cella e fôr beijar-te a face,
+ como se por ventura envolta nelle entrasse
+ a minh'alma saudosa a visitar a tua:
+ quando esse olhar divino, em cuja luz fluctua
+ a pureza vestal da tua castidade,
+ sorrindo, remontar á dôce claridade
+ das estrellas no céo, minha gentil Talitha,
+ recorda o nosso amor, formosa cenobita,
+ e pensa na tortura intermina e profunda
+ desta vaga de fel que a minha vida innunda,
+ medita nesta noite atroz, que me apavora,
+ e tu me dás em paga a fulgurante aurora
+ que o meu amor te deu, sorrindo de ventura...
+ Bemdita seja a treva, a noite de amargura,
+ bemdita seja a dôr, para sempre bemdita,
+ que vem da tua mão, angelica Talitha!
+
+_Talitha, em lagrimas, soluça. Ruy vae para sahir e encontra o Padre que
+entra. Pausa, durante a qual o Padre, mudo de dôr, fita os olhos, ora em
+Talitha, ora em Ruy._
+
+
+SCENA VII
+
+Os mesmos e Padre
+
+Padre, _junto de Talitha_
+
+ Porque choras, creança?
+
+_Ruy, cabisbaixo, medita. Pausa, durante a qual se ouve o soluçar de
+Talitha._
+
+ O teu silencio abala
+ toda a minh'alma, filha; abre os teus labios, falla...
+
+_Silencio. A Ruy_
+
+ A sua commoção... Ruy! Mas que succedeu?
+
+Ruy
+
+ Foi mais uma illusão que se desfez... morreu!
+
+_Sae_
+
+
+SCENA VIII
+
+Padre e Talitha
+
+Padre, _abraçando Talitha_
+
+ Não te apoquentes, filha! A dôr que te devora
+ eu já previra ha muito. A noite tambem chora
+ no calice da flôr, e o céo que tem a luz
+ das estrellas sem fim, chorou, quando Jesus
+ abriu por sobre a terra a sombra dos seus braços,
+ abençoando a dôr que vaga nos espaços...
+ Mas os teus olhos, ha pouco illuminados,
+ não devem, por emquanto, andar annuviados
+ que se pódem cegar de novo, sem remedio...
+
+Talitha, _rapidamente, entre alegre e chorosa_
+
+ Então se eu lhe pedisse...
+
+Padre
+
+ O quer que seja, pede-o...
+ Pede, Talitha, pede, e poupa o teu olhar...
+
+Talitha, _lacrimosa_
+
+ Pois bem, eu pedirei, que deixe-me chorar!
+
+Padre
+
+ Não te apavora a noite immensa e tenebrosa?!
+
+Talitha
+
+ Não me amedronta mais! A lua carinhosa
+ vive na escuridão. Fui tão feliz na treva
+ que chego a ter saudade e o coração me leva
+ a pedir que me deixe ind'outra vez banhar
+ na sombra eterna e mésta a luz do meu olhar...
+
+Padre
+
+ Que blasphemia, Talitha!
+
+Talitha
+
+ O meu labio não erra,
+ e o que elle disse, Padre, o meu fervor encerra.
+
+Padre
+
+ Medita, minha filha, e Deus Nosso Senhor
+ envolva a tua crença em seu divino amor!
+
+Talitha
+
+ Pois ouça-me um instante a confissão singela
+ da incomparavel dôr que a minha vida gela:
+
+_Padre senta-se e Talitha ajoelha-se ao lado_
+
+ Tinha soffrido muito; o immenso desespero
+ de um dia de tortura, afflictivo e severo,
+ me fez allucinar e, erguendo para os céos
+ as mãos de quem supplica, eu implorei a Deus
+ clemencia a tanta dôr. A noite de flagicio,
+ que dava á minha vida o aspecto de um supplicio,
+ parecia sem fim, sem luz e sem aurora.
+ E, como a flôr que á noite exhala, espaço a fóra,
+ o aroma delicado e puro do seu seio,
+ vencendo o meu temor e o natural anceio,
+ eu dei, como penhor da luz que supplicava,
+ a minha mocidade e o porvir que eu sonhava;
+ e prometti á santa e casta Samarita
+ votar-me para sempre ao burel carmelita...
+ Mas presenti, depois, que dentro de minh'alma
+ despontava, sorrindo, uma esperança calma
+ que innundava de luz o coração da céga,
+ e commigo pensei:--Deus, de certo, não nega
+ que veja agora a luz quem sempre foi escrava:
+ e nesse pensamento a vida concentrava.
+ Foi quando Ruy me fez a esmola caridosa
+ de uma dôce affeição que tem a côr da rosa;
+ e, sem pensar, jámais, em vêr de novo o mundo,
+ o meu amor cresceu e fez-se tão profundo
+ que para desprender-lhe as tumidas raizes
+ eu rasgarei, talvez, mais largas cicatrizes...
+ Depois a mão de Ruy abriu para os meus olhos
+ o véo da madrugada e eu vi sobre os escolhos,
+ toda em pedaços feita, a minha pobre herança,
+ perdida para sempre a querida esperança
+ que eu havia sonhado em dias de cegueira...
+ Se sacrifico o amor pelo burel de freira
+ eu desço á sepultura em plena mocidade;
+ se não cumpro a promessa e minto á santidade
+ do voto que levei á pedra de um altar,
+ não devo conservar a luz do meu olhar
+ e rogo novamente a Deus que m'a desfaça
+ e á Virgem que conceda a pequenina graça
+ de receber de novo esse penhor tão puro,
+ deixando-me, outra vez, o mesmo olhar escuro!
+
+Padre
+
+ Escuta, minha filha.--A Providencia, ás vezes,
+ se manda aos corações as dôres e os revezes
+ não é que se compraza em opprimir as almas
+ para lhes dar mais tarde as viridentes palmas
+ do martyrio, não! Não, minha ingenua Talitha.
+ Eras ainda tu mimosa e pequenita
+ quando ficaste céga. Abrira para o mundo,
+ apenas, a tua alma e o teu olhar jocundo
+ sorria para a luz. Assim, innocentinha,
+ tu ias de manhã commigo á capellinha
+ e, emquanto eu murmurava as orações da missa,
+ tu rezavas, sorrindo, angelica e submissa,
+ á Virgem que te ouvia, a Salvé Magestosa,
+ bem como se a rezara o labio de uma rosa...
+ Desse labio subia um fervor tão intenso
+ como a espiral azul e timida do incenso...
+ Depois... faltou-te a luz, mas tu nunca faltaste
+ á mesma hora de sempre, á missa. E que contraste;
+ tu, pequenita e céga e o Sol com tanta luz!
+ Muitos annos pediste á Madre de Jesus
+ que te restituisse um dia o teu olhar,
+ como se a Virgem fôsse autora da desdita
+ que te ferira assim, minha meiga Talitha...
+ Pois creança, tu crês que a Mãe que soffreu tanto
+ no dia em que perdeu o filho casto e santo
+ te pudesse roubar dos olhos transparentes
+ a luz que illuminava as pupillas ardentes?
+ Pois ella que te viu de rastros, a rezar,
+ em todas as manhãs, aos pés do seu altar,
+ levando-lhe, a sorrir, tantos ramos de flôres,
+ podia assim voltar a crueldade e as dôres
+ sobre a tua cabeça ingenua e piedosa,
+ Ella que foi a Mãe mais dôce e generosa!?
+ Escuta, minha filha:--o livro do Senhor
+ descreve que, uma feita, andava na Judéa
+ o divino Jesus prégando a sua idéa...
+ Acercou-se do Mestre uma infeliz proscripta
+ a quem a dôr matara a filha pequenita,
+ e, em lagrimas, pediu que lhe voltasse á vida
+ o cadaver da filha extremosa e querida.
+ Abençoando a mãe que aquella dôr humilha
+ disse Jesus então: «a tua pobre filha
+ estava adormecida e agora está acordada;
+ volta que a encontrarás a rir, já levantada».
+ E a pobre mãe, que vira a pequenina morta,
+ depois, ao regressar, foi encontral-a á porta,
+ sorrindo alegremente, entre as demais creanças,
+ como um bando gazil de cordeirinhas mansas!
+ Pois bem, minha Talitha, o teu olhar dormiu
+ sómente, não morreu. Quando a céga pediu,
+ á Virgem Mãe de Deus, que um dia t'o salvasse,
+ o seu divino olhar fitava a tua face
+ e despertou do somno o teu formoso olhar
+ que nunca fôra cégo e, apenas a sonhar,
+ adormecera. E agora, agora que acordou
+ póde fitar a mão de quem lhe descerrou,
+ em nome de Jesus, a noite que o toldava,
+ que te fazia triste e lacrimosa, escrava...
+
+Talitha
+
+ E a Virgem que me ouviu quando eu lhe prometti
+ votar-me ao seu burel, por tanto que soffri,
+ quererá perdoar a minha negra falta?
+
+Padre
+
+ Escuta-me, Talitha:
+
+_Ruy surge ao fundo e escuta_
+
+ O coração exalta,
+ pergunta-lhe o que sente, o que deseja; pensa
+ muito, muito, em silencio, indaga a tua crença
+ e faze o que disser a tua consciencia,
+ mas não esqueças, filha, a dôce confidencia
+ de Ruy que illuminou o teu escuro olhar,
+ e lembra-te, depois, que, só por muito amar,
+ o Christo perdoou á pobre Magdalena.
+ E agora, que a tua alma está bem mais serena,
+ attende-me!--Rezando adormeci. A aurora
+ despertou-me, sorrindo, e entrevi, áquella hora,
+ um sonho que fugia, em busca de outros lares!
+ Subia docemente, ao claro azul dos ares,
+ o vulto da Senhora, abrindo pelo Céo
+ o palio virginal do seu materno véo,
+ desnastrado o cabello, um manto de rainha
+ recamado de sóes; a nuvem que a sustinha,
+ toda cheia de luz, deixava atraz de si
+ um rastro de fulgor. E eu lembrei-me de ti...
+ Curvaram-se a tremer as pernas fatigadas,
+ ao peso esmagador das longas invernadas;
+ e assim, postas as mãos, olhando para o vulto
+ da Virgem que eu adoro em fervoroso culto,
+ pedi-lhe que mandasse um raio de luar
+ ás lagrimas de fel da tua dôr sem par...
+
+_Talitha começa a sorrir_
+
+ E a Virgem, a sorrir, do seio do infinito,
+ baixou por sobre o meu um dôce olhar bemdito
+ e eu vi rolar no azul da immensa vastidão,
+ no fulgor de uma estrella, o beijo do perdão...
+
+Talitha, _correndo para a porta_
+
+ Ruy!
+
+_Encontra-se com Ruy e pára, pudibunda, de olhar no chão_
+
+Padre, _só, á frente da scena, mãos postas, a olhar para o céo_
+
+ Perdôa, Senhor, se lhe menti, perdôa;
+ o meu labio peccou, mas a intenção foi boa!
+
+CAE O PANNO
+
+
+
+
+TERCEIRO ACTO
+
+
+Modesta sala de jantar em casa do Cura. Á direita, um oratorio sobre uma
+commoda antiga; á esquerda, entre portas, um orgam.
+
+
+SCENA I
+
+Joaquina, só
+
+_Joaquina procede aos arranjos da casa para uma noite de festa; cuida do
+oratorio, accende-lhe as velas, começa a pôr a meza para a ceia; tudo em
+silencio. Depois de alguns momentos entra Ruy._
+
+
+SCENA II
+
+Joaquina e Ruy
+
+Ruy, _entrando_
+
+ Boas noites, Joaquina!
+
+Joaquina
+
+ As mesmas Deus lhe dê!
+ Inda bem que chegou; pensei que não voltasse
+ aqui á nossa casa!
+
+Ruy
+
+ Essa agora... e porque?
+
+Joaquina
+
+ É boa! Inda pergunta? Esteve lá por fóra
+ durante todo o dia e sem que se lembrasse
+ que neste pobre asylo ainda vive e mora
+ gente boa e christã...
+
+Ruy, _interrompendo_
+
+ E quem lhe disse tanto?
+ Vão vêr que foi intriga ou treta de algum santo!...
+
+Joaquina
+
+ Hereje! brinque, brinque assim com Jesus Christo
+ e ha de vêr se é feliz! Não sabe que o Natal
+ é a noite sagrada?
+
+Ruy
+
+ É, sei! Não foi por mal
+ que faltei. Pela vez primeira não assisto
+ á missa desta noite. Ha bem vinte e seis annos
+ que falleceu meu Pae: rompia a madrugada.
+ Começaram-me assim os tristes desenganos
+ e a lucta da existencia abriu-se amargurada.
+ Desde então, minha Mãe, boa e santa velhinha,
+ recorda tristemente, apenas se avizinha
+ a noite do Natal, a dôr daquella aurora,
+ e emquanto tudo ri, ella soluça e chora...
+
+Joaquina
+
+ Sem mesmo a conhecer eu tenho pena della.
+
+Ruy
+
+ E hoje que eu sou feliz a pobresinha vela.
+ Creio que neste instante os seus labios de crente
+ envolvem numa prece encantadora e mesta,
+ num templo illuminado, ao celebrar da festa,
+ o esposo que morreu e o proprio filho ausente.
+
+Joaquina
+
+ Devera ser então mais um grande motivo
+ de não faltar á missa.
+
+Ruy
+
+ E creia que é bem vivo
+ o meu pezar. Entanto a razão dessa falta
+ foi sagrada e vae vêr como ella tanto exalta
+ a minha consciencia.
+
+Joaquina, _ironica_
+
+ Eu imagino bem!
+
+Ruy
+
+ Não posso vêr soffrer o coração de alguem...
+ Attenda-me, Joaquina, e diga se eu podia
+ negar-me, sem peccar, ao dever que exigia
+ de acudir pressuroso ao leito d'um enfermo
+ ardendo em alta febre e bem proximo ao termo
+ duma longa existencia asperrima e deserta,
+ onde apenas a dôr tinha uma entrada aberta.
+ Conhece aquelle atalho escuro e retirado
+ que vae dar á capella?
+
+Joaquina, _benzendo-se_
+
+ Onde foi enforcado
+ O marido da Emilia?
+
+Ruy
+
+ Exactamente, ahi.
+ Mesmo nesse logar em que ficou a cruz
+ existe uma choupana á qual me recolhi
+ para fugir á chuva. O caminho conduz,
+ pela esquerda, á Capella; a direita, ao moinho
+ do velho reformado! Entrou-me na choupana
+ a neta do sargento a dizer que o avosinho
+ quasi estava a expirar. Fôra maldade insana
+ deixar morrer o velho á mingoa de cuidados.
+ Fui. Mas antes não fôsse. Em nada lhe valeu
+ a visita que fiz, o velho falleceu...
+ Como devem morrer os bravos e os soldados
+ assim elle expirou, fitando bem a morte,
+ firme como um leão e simples como um forte.
+ Uma miseria extrema; os netos quasi nús,
+ com fome e sem comida ha dois dias!
+
+Joaquina, _benzendo-se_
+
+ Jesus!
+ E aqui tanta fartura!
+
+Ruy
+
+ A Patria é bem madrasta!
+ Esse velho, que a morte aos netos hoje afasta,
+ tem no peito e na face algumas cicatrizes
+ das lanças do inimigo.
+
+Joaquina
+
+ Ah! são bem mais felizes
+ os soldados que vão á guerra e que lá morrem
+ no campo da batalha.
+
+Ruy
+
+ Exacto. Os outros correm
+ o perigo maior de morrer desprezados, como
+ esse pobre velho.
+
+Joaquina
+
+ E estão abandonados
+ os netos, Sr. Ruy?
+
+Ruy
+
+ Não estão; felizmente
+ fallei ao regedor e tudo se arranjou;
+ demais a mais tambem, segundo me informou,
+ têm direito á pensão que o velho Avô doente
+ não poude receber.
+
+Joaquina
+
+ E quem receberá
+ essa triste pensão, se o velho que serviu
+ não poude recebel-a e nem sequer a viu?
+
+Ruy
+
+ Tambem já pensei nisso e tudo se fará,
+ minha boa Joaquina. Assim, o moribundo
+ me obrigou a faltar á missa do Natal.
+ Se um pobre que estivesse a deixar este mundo
+ lhe pedisse um amparo, a sua alma leal
+ negaria essa esmola?
+
+Joaquina
+
+ Ainda m'o pergunta?
+
+Ruy
+
+ Á sombra desse olhar tudo se abriga e junta
+ e eu leio na pupilla esmaecida e pura,
+ num misto de mudez, de pranto e de ternura,
+ que o seu bom coração tambem acudiria.
+ E por isso faltei; tenho, porém, certeza
+ que Talitha por mim, ao menos, rezaria.
+ E quando assim se tem tão lucida pureza
+ a interceder por nós aos pés da Divindade,
+ parece que a nossa alma, em dôce alacridade,
+ mergulha no baptismo, em aguas de um Jordão
+ todo feito de amor, de beijos e perdão!
+
+Joaquina
+
+ Ah! quando eu penso em tudo o que se tem passado
+ depois que aqui chegou!... Como isto está mudado!
+
+Ruy
+
+ Tudo é tão natural que não nos vale a pena
+ gastar tempo a pensar em cousa tão pequena.
+
+Joaquina
+
+ Então é cousa pouca uma pobre engeitada,
+ ha tanto tempo céga, e sem mãe, desprezada,
+ encontrar quem lhe dê de novo o seu olhar,
+ e quem lhe tenha amor e a queira desposar!?
+
+Ruy
+
+ Engeitada, que importa? O coração não pensa,
+ ama sómente e assim não indaga a nascença
+ da mulher que o inspirou. Mas não é desprezada
+ a formosa Talitha; esta mansão amada
+ serviu de lar paterno á sua dôce infancia
+ e, se aqui respirou a magica fragrancia
+ de uma alma aberta, em flôr, se a sua mão, Joaquina,
+ materna, a acompanhou desde assim pequenina,
+ pouco importa que a mãe a tivesse engeitado;
+ amei-a, e nesse amor eu tenho baptisado
+ o sonho do porvir...
+
+Joaquina
+
+ Diga, e quando casar
+ vae leval-a d'aqui?
+
+Ruy
+
+ Seria derrancar
+ o santo coração do velho Padre-Cura;
+ nem tanto necessita a completa ventura
+ das minhas illusões, nem teria coragem
+ para tamanho mal; seria mais selvagem
+ que a propria malvadez
+
+_abraçando-a_
+
+ tirar ao seu amor
+ o prazer de aspirar o aroma dessa flôr,
+ que ao seu lado cresceu, tão branca e tão fagueira,
+ como um lyrio do valle ao pé de uma roseira!
+
+Joaquina
+
+ Sim; isso diz agora e depois de casado
+ ha de pensar, de certo, em sua mãe saudosa,
+ e para que ella veja, alegre e carinhosa,
+ o filho salvo e bom, tão robusto e córado,
+ o Ruy tem de levar comsigo a pequenita
+ que nos serve de filha e que nos faz felizes!...
+
+Ruy
+
+ Descance, boa amiga; este amor tem raizes
+ que eu nunca poderei arrancar de Talitha,
+ nem penso em perturbar a paz do vosso azylo
+ que a propria mão de Deus formou assim tranquillo.
+
+Joaquina
+
+ Se Deus que nos dôou a innocentinha, agora
+ mandasse a Mãe aqui para leval-a embora,
+ onde quer que ella fosse havia eu d'ir tambem,
+ porque a trouxe no collo e quero tanto bem
+ que passo a minha vida olhando o azul dos céos,
+ para vêr se descubro a Santa Mãe de Deus
+ e pedir-lhe que deixe á tremula velhice
+ dos meus dias sem luz, ao menos, a meiguice,
+ daquelle coração que eu vi desabrochar...
+
+Ruy
+
+ E o céo que lhe responde?
+
+Joaquina
+
+ O céo?... Nada! A rezar
+ tenho passado a vida e, nesta idade, a gente
+ já não póde chorar, as lagrimas seccaram
+ e por isto se soffre, a dôr é mais pungente
+ quando se quer chorar e os olhos já cançaram.
+
+_Ouve-se a voz de Talitha, fóra_
+
+Taitha
+
+ Ó Joaquina! Ruy, Ruy...
+
+Joaquina
+
+ Ahi vem a traquina;
+ E ha de chamar por tudo a pobre da Joaquina...
+
+Ruy, _corre á porta_
+
+ Mas como vem alegre...
+
+_Entra Talitha_
+
+
+SCENA III
+
+Os mesmos e Talitha
+
+Talitha, _ao entrar, vendo Ruy, estaca: fica silenciosa e em seguida:_
+
+ Eu bem disse ao padrinho...
+
+Ruy, _tomando-lhe a mão_
+
+ Que foi que tu disseste, alma da côr do linho?
+
+Talitha
+
+ Que ninguem póde crêr na jura...
+
+Ruy, _interrompendo com meiguice_
+
+ Das mulheres?...
+
+Talitha, _ralhando com carinho e retirando a mão_
+
+ Dos homens... atrevido, ainda tens coragem
+ de rir?...
+
+Ruy, _alegremente_
+
+ Ou de chorar, se tu assim preferes...
+
+Talitha
+
+ Mas a tua promessa? Esqueceste a homenagem
+ da noite de Natal?
+
+Ruy
+
+ Pois pergunta á Joaquina...
+
+Joaquina, _intervindo_
+
+ A mim? não sei de nada...
+
+Ruy, _a Talitha_
+
+ Ella está gracejando;
+ sabe tudo tão bem como eu, mas imagina
+ que tu és ciumenta e então, de vez em quando,
+ a recordar o tempo em que era rapariga,
+ faz pirraças á gente, armando alguma intriga...
+
+Talitha
+
+ A verdade, porém, é que faltaste e eu não.
+
+Ruy
+
+ Pois bem, faltei; mas tive uma forte razão:
+ o velho reformado estava agonisante
+ e mandou-me chamar; eu fui no mesmo instante
+ assistir-lhe á agonia. Expirou-me nos braços:
+ ia o sol a fugir na curva dos espaços,
+ á hora em que soluça o sino das trindades
+ o Angelus sagrado envolto nas saudades
+ que a terra balbucia, agradecendo ao céo
+ a luz que lhe mandou na flacidez do véo
+ crepuscular e dôce, oiro tecido em gaze,
+ sem brilho de offuscar e sem calor que abraze.
+
+Talitha
+
+ E nunca mais o vi, nem o verei jamais!...
+ Foi cégo como eu fui. Nas manhãs estivaes
+ muita vez o encontrei, cançado dos trabalhos,
+ pedindo esmola ahi por todos os atalhos.
+ Elle ia pela mão da neta, uma creança!
+ Era um velho senil á sombra da esperança!
+ Eu ía recostada ao braço do padrinho
+ e, ao sentir-me, dizia: «ampare-me esse anginho
+ --amigo Padre-Cura, eu quero que elle veja
+ --como um velho soldado, a mendigar, rasteja
+ --neste mundo de Christo»--. E ficava a pensar
+ naquelle desgraçado. O meu perdido olhar
+ novamente voltou, quando o delle se apaga
+ na escuridão mortal que tudo cobre e alaga...
+ Se eu pudesse amparar as pobres creancinhas!
+
+Ruy
+
+ Não faltará calor ás meigas andorinhas.
+
+Joaquina
+
+ E quem lhes ha de dar?
+
+Ruy
+
+ Quem?
+
+Talitha
+
+ Deus, Jesus e nós!
+
+Ruy, _com ingenuidade_
+
+ Nós seremos os paes:
+
+_a Joaquina_
+
+ tu e o Cura, os avós...
+
+Joaquina
+
+ Valha-te Deus, tontinha!
+
+Ruy, _a Talitha_
+
+ Encantadora e casta;
+ ó Virgem Conceição, flôr, ingenua madrasta,
+ bemdito seja o dia em que te amei, formosa,
+ sonho feito mulher, sorriso feito em rosa...
+
+Talitha, _admirada_
+
+ Que tem isso de mal? Tambem elle era cégo,
+ não podia cuidar da neta que o guiava
+ e agora, felizmente, eu tenho no aconchego
+ da minha mocidade a luz que me faltava
+ e posso olhar por ella. A minha desventura
+ não teve neste asylo o amor do Padre-Cura?
+ Depois não tive ainda?!...
+
+_Olha para Ruy, baixa os olhos e cala-se_
+
+Joaquina, _beijando-a_
+
+ Ah! minha tagarella!...
+
+Ruy
+
+ Depois tiveste ainda o teu formoso olhar
+ que andava lá no céo illuminando a estrella
+ d'alva. E agora tambem tens muito que narrar
+ do que viste na igreja...
+
+Talitha
+
+ Ah! na missa do gallo?
+ Eu vinha exactamente aqui para contal-o...
+ O que eu vi, Ruy, na igreja, emquanto o Padre-Cura
+ dizia aquella missa!... Inda agora fulgura,
+ sobre a minha retina, a vivida impressão
+ do seu olhar tão dôce e manso, de perdão...
+ Inda agora o sorriso, angelico e furtivo,
+ do seu labio de rosa, orvalhado e festivo,
+ innunda de frescor a minha vida inteira,
+ como o rócio da noite á flôr da amendoeira.
+
+Ruy
+
+ Quem foi que te sorriu com tamanha affeição,
+ que fez vibrar tu'alma em tanta commoção?
+
+Talitha
+
+ Um milagre de Deus! Se tens fé, acredita
+ no que te vou dizer.
+
+Ruy
+
+ Dize, minha Talitha!
+
+Joaquina, _approximando-se_
+
+ Conta, conta o que foi.
+
+Talitha
+
+ Pois nesse caso, ouvi:
+ Quando eu entrei no templo um borborinho enorme
+ encheu toda a capella; então foi que eu senti
+ como é triste ser cégo e ter olhar que dorme
+ tantos annos de vida, em funda lethargia,
+ sem a benção gentil de vêr a luz do dia!
+ Toda a gente fallava, olhando para mim,
+ e eu muito satisfeita a caminhar assim...
+
+_Imita o andar magestoso_
+
+Ruy
+
+ Como tu és vaidosa!
+
+Joaquina, _sorrindo e pondo as mãos_
+
+ E como ella é catita...
+
+Talitha, _a Ruy, ingenua_
+
+ Mas se eu fôsse a teu lado, inda era mais bonita!...
+ Deram-me tanto abraço e beijaram-me tanto!
+ A capellinha estava alegre, era um encanto.
+ Á entrada muita flôr, o altar com muita luz,
+ e num bercinho branco o menino Jesus,
+ tão lindo, tão mimoso e tão engraçadinho,
+ que parecia mesmo um rouxinol no ninho.
+ Uma velha fitou-me e disse: que princeza!
+ Um velho lavrador olhou-me com surpreza
+ e bem alto fallou: «Que Deus Nosso Senhor
+ te dê um bom marido»...
+
+Ruy
+
+ E que disseste, amor?
+
+Talitha
+
+ Nem uma palavrinha! Eu ía bem calada,
+ entre muito contente e muito envergonhada.
+
+Joaquina
+
+ E depois?
+
+Talitha
+
+ E depois... fui então ajoelhar,
+ sósinha, nos degráos que sóbem ao altar,
+ á espera que viesse, a meia noite, a missa.
+ Rezando ali, a sós, com fervor de noviça,
+ lembrei-me da promessa e as lagrimas rolaram,
+ subindo-me do seio aos olhos que as choraram.
+ Eu sentia uma dôr immensa, por fugir
+ ao voto que fizera e, em vão, quiz resistir,
+ á minh'alma affluia um extranho remorso
+ e embora eu despendesse o mais sincero esforço,
+ para conter o pranto, o coração vergava
+ e, numa agitação convulsa, palpitava
+ acabrunhado e triste...
+
+_Ouve-se o repicar dos sinos_
+
+Joaquina, _interrompendo_
+
+ Ai! que acabou a festa
+ e a ceia por fazer, mas que cabeça é esta!...
+
+_Sae e entra constantemente, nos arranjos da casa_
+
+Ruy
+
+ Mas não te lembras já que, em nome do Senhor,
+ o Cura abençôou o nosso casto amor?
+ Não te lembras tambem da lucida visão
+ que te trouxe do céo a estrella do perdão?
+
+Talitha
+
+ De tudo me lembrei; não sei que força extranha
+ pesava sobre mim, como immensa montanha,
+ e não deixava erguer o meu olhar medroso
+ para encarar de frente o vulto magestoso
+ da Virgem Mãe de Deus! Mas quando o Cura entrou
+ parece que a minha alma
+
+_torna o sino a repicar_
+
+ alegre despertou...
+ Senti uma esperança illuminar-me o seio
+ e dissipar-se então esse cruel receio!
+ Rezei muito, rezei com tanta commoção,
+ pedi com tanto ardor, com tanta devoção,
+ que a minh'alma subiu, tão leve e tão submissa,
+ aos pés da Mãe de Deus, durante aquella missa,
+ como se fôsse presa a hostia consagrada
+ que o Cura levantava á cruz abençoada...
+ Com ella o meu olhar de supplica subiu.
+ E fitando, sem medo, a face alabastrina
+ da candida judia, eu vi que Ella sorriu
+ com tão dôce expressão de placidez divina
+ que me banhou de luz amortecida e calma
+ a minha santa crença e fez vibrar minh'alma!
+ Senti que era o perdão que vinha, n'um sorriso,
+ abrir á minha vida um novo paraiso...
+ Ergui-me docemente, approximei-me d'Ella
+ e, beijando-lhe a mão que sobre o mundo vela,
+ ouvi, como um soluço, a sua voz tão pura,
+ dizendo-me em segredo, em intima ternura:
+
+ Que lindos olhos, Talitha,
+ os olhos que o Ruy te deu:
+ tem uma luz infinita,
+ parecem feitos no céo...
+
+_Joaquina, que tem parado o trabalho, attrahida pela narrarão de
+Talitha, enlevada, abraça-a, lacrimosa, beija-a..._
+
+Ruy, _emquanto Joaquina abraça Talitha_
+
+ Mas tu ouviste bem, tens a certeza plena?
+
+Talitha, _desprendendo-se de Joaquina_
+
+ Ouvi perfeitamente; a voz era serena,
+ tão serena e subtil que a mim se affigurava
+ ser o proprio silencio assim que me fallava.
+
+_Ouve-se o repicar dos sinos e começa-se a ouvir as primeiras vozes dos
+córos distantes._
+
+ Estremeci de alegre e acreditei então
+ que surgira, afinal, o dia do perdão;
+
+_Approximam-se as vozes_
+
+ desci do altar, corri, deixei a missa e vim,
+ como se o coração cantasse dentro de mim,
+ para dizer-te, Ruy, que a minha vida é tua.
+
+_Corre para elle, mas detem-se e, olhando para Joaquina, baixa os olhos
+timida, brincando com o avental: pausa e silencio._
+
+Joaquina, _percebendo_
+
+ Filhos, não serei eu quem assim vos destrua
+ as santas illusões...
+
+_ouve-se o côro muito perto_
+
+ Se Deus as abençôa!...
+
+_Sae_
+
+Talitha, _vendo-a sahir_
+
+ Ruy!
+
+_Corre para elle_
+
+Ruy, _recebendo-a nos braços_
+
+ Ah! minha Talitha!
+
+Talitha, _abraçada, beija-o_
+
+ Oh! meu amor!
+
+Ruy, _beijando-a_
+
+ Perdôa!
+
+_As vózes elevam-se distinctamente com a musica das violas e gaitas de
+fóles; pausa, emquanto os dois, enleiados, nada ouvem._
+
+
+SCENA IV
+
+Os mesmos, Padre, raparigas e rapazes
+
+_O Padre, entrando com as raparigas e rapazes, surprehende ainda os dois
+que se beijam e Joaquina que está estupefacta, junto á porta._
+
+Padre, _fingindo que não vê e fallando alto_
+
+ Raparigas, entrai, a noite é de alegria...
+
+Talitha, _surprehendidos ambos, desprende-se de Ruy e diz_
+
+ Tem razão, meu padrinho, nossa phantasia
+ deve expandir-se agora...
+
+Padre, _com caricia, baixo a Talitha_
+
+ Assim, aos beijos, não...
+
+Talitha
+
+ Quem poderá conter o nosso coração?
+
+_Ás raparigas_
+
+ Raparigas, cantae! A céga já tem vista;
+ que a Virgem Mãe de Deus a todas vós assista;
+ a freira, que devia entrar para o convento,
+ teve hoje a redempção do seu cruel tormento!
+
+Um rapaz
+
+ Viva a céguinha!
+
+O grupo
+
+ Viva!
+
+Outro rapaz
+
+ E mais o Padre Cura!
+ Viva!
+
+Uma rapariga
+
+ Viva quem fez este milagre!
+
+O grupo
+
+ Viva!
+
+Um rapaz
+
+ E a mãe Joaquina, então, que é mesmo uma ternura?!
+
+Todos
+
+ Viva!
+
+Joaquina
+
+ Muito obrigada!
+
+Ruy
+
+ Olha como é altiva!
+
+Padre
+
+ Raparigas, dançae!
+
+Ruy, _a uma rapariga_
+
+ Pois cante a cotovia,
+ e vibre essa garganta até romper o dia...
+
+_As raparigas formam roda, os rapazes afinam as violas e o grupo, com
+Talitha e Ruy á frente, dançam a Ciranda. O Cura, sentado em uma
+cadeira, observa alegremente a scena._
+
+Uma rapariga
+
+ Quem deu espinho ás roseiras
+ não teve muita razão,
+ antes désse ao coração,
+ como deu ás Tarangeiras.
+
+ Deus que creou tantas flôres
+ fez as estrellas aos centos:
+ não dorme quem tem amores,
+ que os amores são tormentos.
+
+Segunda rapariga
+
+ Toda tu pareces feita
+ com a cêra das abelhas,
+ quando alguem d'aqui t'espreita
+ ficam-te as faces vermelhas.
+
+Primeira rapariga
+
+ Quem ao pé do Sol caminha
+ anda sempre com calor,
+ Quem á lua se avizinha
+ póde até crear bolôr.
+
+ As tuas tranças são pretas,
+ pareces de cêra mol,
+ não te abeires muito ao sol,
+ olha lá não te derretas...
+
+_O Cura, satisfeito e alegre, ri a cada descante das raparigas e
+acompanha-as com um olhar de caricia. Enthusiasmado, levanta-se e
+encaminha-se para o grupo:_
+
+Padre
+
+ Tambem eu quero entrar na dança, raparigas,
+ e ser como a papoila em meio das espigas!
+
+Primeira rapariga
+
+ Viva, viva o Sr. Cura,
+ que é o paesinho desta aldeia,
+ que tem a alminha mais pura,
+ mais alva que a lua cheia.
+
+_Neste momento ouve-se bater á porta violentamente, ao mesmo tempo que
+cessam os guizos denunciativos de um carro que parou á porta.
+Quando ouve bater, o Padre Cura soffre uma visivel transformação de
+physionomia que todos os circumstantes percebem._
+
+Padre
+
+ Um carro, Santo Deus!
+
+_Cessa toda a alegria e acercam-se do Padre que, repentinamente, põe as
+mãos em oração._
+
+Ruy, _acudindo_
+
+ Senhor Cura, que tem?
+
+_Ouve-se bater de novo_
+
+Padre, _pensativo_
+
+ Ha tantos annos já!
+
+_Batem novamente. O Cura, sem dar uma palavra, benze-se, vae á porta e
+abre-a. Entra uma senhora de lucto, acompanhada de um velho creado, com
+malas e agazalhos. Todos emmudecem e olham-n'a curiosamente._
+
+
+SCENA V
+
+Os mesmos, Marqueza e Escudeiro
+
+Padre
+
+ Perdão! Procura alguem?
+
+Marqueza
+
+ O Cura João Fulgencio! É Vossa Senhoria?
+
+Padre
+
+ Sou eu mesmo, Senhora!
+
+Marqueza
+
+ Inda bem, obrigada!
+ Eu já tinha certeza, o céo me conduzia.
+ Não quero perturbar a alegria da noite:
+ Viajante, sósinha, e quasi desviada
+ pela neve que tomba, eu peço onde me acoite.
+
+Talitha
+
+ Sois bem vinda, Senhora; aqui sob este tecto
+ encontrareis conchego e o mais sereno affecto.
+
+Marqueza, _olhando-a_
+
+ Obrigada, creança!
+
+Talitha
+
+ A Noite é de Natal
+ e o nosso coração não sabe fazer mal...
+
+Padre
+
+ Deveis estar cançada, o inverno vae tão duro!
+
+Marqueza
+
+ Pensei que não chegava á sua residencia.
+ A nevada é cruel, o caminho coberto,
+ o frio é de cortar, o céo está escuro,
+ nem um astro se vê, perde-se a consciencia
+ da nossa propria vida, a estrada é um deserto...
+ Nem sei como cheguei...
+
+Talitha
+
+ Jesus a protegeu...
+
+Marqueza
+
+ Eu creio bem que sim e dou graças ao céo!
+
+Padre
+
+ E não quer repousar?
+
+Marqueza
+
+ Antes, porém, quizera,
+ Senhor Cura, dizer o que me traz aqui...
+
+Padre
+
+ Assim seja, Senhora, e ao bom Jesus prouvera
+ que eu pudesse remir a dôr que presenti...
+
+_a Talitha e Ruy, fingindo alegria_
+
+ Ide com Deus, cantae!
+
+_O grupo retira-se em silencio, curiosamente_
+
+Talitha, _a Ruy_
+
+ Quem é? Quem te parece?
+
+Ruy
+
+ Não sei, mas esta voz a minh'alma conhece.
+
+_sahem_
+
+
+SCENA VI
+
+Marqueza e Padre
+
+Padre
+
+ Senhora, estamos sós! Vossa Excellencia ordene!
+
+Marqueza
+
+ Ouça-me, Senhor Cura! ouça e não me condemne!
+
+Padre
+
+ E condemnar por que? Se tem algum peccado,
+ o coração de Deus não estará fechado!
+
+Marqueza
+
+ Pensei chegar mais cedo: hontem, pelo sol posto,
+ estaria acabado este immenso desgosto
+ que me tortura a vida; a asperrima inverneira
+ embaraçou-me o passo e augmentou-me a canceira.
+
+Padre
+
+ E vem de muito longe?
+
+Marqueza
+
+ Ah! sim, de bem distante,
+ anciosa, esperando este feliz instante.
+ Ha muito tempo, um dia, ao romper da alvorada,
+ alguem que veiu aqui lhe trouxe uma engeitada...
+
+Padre
+
+ É verdade, Senhora!
+
+Marqueza
+
+ Uma carta pedia
+ ao Cura desta aldêa a esmola caridosa
+ de guardar a creança, até que a mãe chorosa,
+ depois, a procurasse. Afinal esse dia
+ felizmente chegou e a mãe que a dôr humilha,
+ Senhor Cura, a seus pés, vem procurar a filha...
+
+Padre
+
+ E como poderei saber se esta senhora
+ que se confessa mãe, embora peccadora,
+ é realmente a mãe da creança engeitada
+ ha tantos annos já, naquella madrugada
+ tristissima d'inverno?
+
+Marqueza
+
+ A carta igual áquella
+ que o Senhor Cura achou no berço, junto della...
+
+Padre, _tomando a carta_
+
+ Mas falta alguma cousa...
+
+Marqueza
+
+ A pérola? está aqui...
+
+_Dá-lhe a pérola_
+
+ Pois desde aquella noite eu jámais a perdi
+ de vista e a conservei com cuidadoso afan,
+ como alguem que resguarda um rico talisman.
+
+Padre
+
+ Seija feita de Deus a sagrada vontade,
+ embora se me parta o coração de dôr...
+
+Marqueza
+
+ Essa dôr, Senhor Cura, ha de fugir vencida!
+ Eu não quero quebrar tão dôce piedade
+ que fez de minha filha o seu risonho amor,
+ nem desejo apagar a luz da sua vida
+ num soluço de magua.
+
+Padre
+
+ Então não vem buscal-a?
+
+Marqueza
+
+ Não, não, meu bom amigo, eu venho acompanhal-a.
+ A minha desventura, emfim, se condoeu
+ dest'alma cruciada e triste que viveu
+ reclusa na saudade, apenas na esperança
+ de vêr um dia ainda essa gentil creança...
+ Se nunca procurei saber dessa existencia
+ não é que se apagasse em minha consciencia,
+ como um sonho infeliz, a lembrança dorida
+ dessa flôr do peccado em anjo convertida.
+ Como eu pensava nella, ah! sabe-o Deus sómente!
+ Que lagrimas chorei por conserval-a ausente,
+ e quanto passei eu por causa desta filha
+ dil-o, com eloquencia, a dôr que me polvilha
+ a cabeça de cans. Amal-a com ardor
+ e ter de estrangular todo esse immenso amor!...
+ Vêl-a crescer ao longe, e calcular-lhe o encanto,
+ mas sem poder beijal-a, adivinhar que o pranto
+ as faces lhe banhava e não poder sorvel-o,
+ que tormento cruel, que duro pesadello...
+ Soffri, meu bom amigo, e soffri a sorrir,
+ que até para soffrer é preciso mentir!
+ Não me pergunte, Padre, a origem desse amor
+ ninguem perguntaria ao seio de uma flôr
+ como foi que nasceu o aroma que elle exhala.
+ Bastará que lhe diga: a dôr que me avassalla
+ é a amiga fiel que me segue ha vinte annos,
+ que nunca me deixou; que os tristes desenganos
+ dessas horas sem luz foram os companheiros
+ da minha mocidade e os filhos feiticeiros
+ que encheram o meu lar de pranto e de amargores,
+ como um dia sem sol, como um jardim sem flôres.
+ Um dia, Sr. Cura, em confissão, no templo,
+ diante do seu olhar que eu agora contemplo
+ humilde e agradecida, hei de contar-lhe a historia
+ da minha desventura e desta dôr ingloria,
+ mas não exija, Padre, agora, que eu recorde
+ o passado infeliz, que o coração acorde
+ do somno em que repousa, e desvende o segredo
+ que a vida me cobriu de sombras e de medo.
+
+Padre
+
+ Nem quero desvendar, Senhora, essas torturas;
+ mas a minha velhice acostumou-se a vêr
+ em tão meiga creança uma filha extremosa
+ junto de mim crescer, florir como uma rosa
+ ao pé dum castanheiro, e fazer-se mulher.
+ Aos dez annos cegou...
+
+Marqueza, _interrompendo, afflicta_
+
+ É céga a minha filha?
+
+Padre
+
+ Foi: ha dias, porém, a luz de novo brilha
+ no seu formoso olhar. Emquanto a escuridão
+ durou, eu sempre a trouxe unida ao coração,
+ apoiada ao meu braço.
+
+Marqueza
+
+ E quem foi que a curou?
+
+Padre
+
+ Alguem que a soube amar. Um dia despontou
+ na sua alma de flôr um novo sentimento
+ e a pobre céga amou e foi tambem amada.
+ Queria dedicar-se á vida enclausurada
+ na casta região da cela de um convento,
+ mas, sonhadora e boa, o amor venceu em breve
+ o vago mysticismo e a Virgem que a fadou,
+ condoendo-se della, o seu amor salvou...
+ De modo que, feliz, dentro de pouco, deve
+ desposar um rapaz, formoso coração...
+
+Marqueza, _interrompendo_
+
+ Ruy de Ornellas, talvez?
+
+Padre, _admirado_
+
+ Mas como adivinhou?
+
+Marqueza, _depois de uma pausa_
+
+ Não importa saber; prosiga, Senhor Cura,
+ eu contarei mais tarde essa alegre aventura,
+ tão simples e feliz.
+
+Padre, _proseguindo_
+
+ A mim, pobre ancião,
+ uma alegria basta: a de morrer contente
+ por haver feito bem á candida innocente.
+ Do mundo nada espero, esta gentil creança
+ era a minha formosa e unica esperança:
+ arrancam-m'a daqui e eu sinto que a corola
+ dessa flôr, que me dava a encantadora esmola
+ do seu perfume agreste, arrasta a minha vida
+ á derradeira estancia, á ultima guarida...
+
+Marqueza
+
+ E quem lhe disse, Padre, as minhas intenções?
+
+Padre
+
+ Ninguem. Mas adivinho. Eu sei que os corações
+ carinhosos das mães não querem a partilha
+ das caricias, do amor, dos beijos de uma filha.
+ Talitha vae partir; que o Senhor a conduza
+ e que uma boa estrella ao seu porvir reluza.
+
+Marqueza
+
+ Attenda, Sr. Cura! A mãe que ora lhe falla
+ tambem sabe que a dôr o coração estala
+ e não lhe vem roubar a luz dessa velhice
+ tão cheia de bondade e simples de meiguice.
+ A dôr me fatigou e eu quero repousar
+ de tantas afflicções, e venho procurar,
+ nesta aldeia tranquilla e sem perversidade,
+ a paz que não frui na minha mocidade.
+ Sou rica, felizmente, e quero ter um nicho
+ onde acaba a existencia: é, talvez, um capricho...
+ Mas quero aqui viver ao lado desta filha
+ que a sua alma de santo, alvissima, perfilha
+ e nunca mais sahir deste sereno azylo
+ tão suave e tão bom, tão feliz e tranquillo,
+ onde mora a virtude. A filha que eu procuro
+ tambem é muito rica e tem porvir seguro.
+ Se a desventura um dia a separou de mim
+ a minha vida agora ha de chegar ao fim,
+ aqui onde ella teve um lar sagrado e nobre.
+ E o dôce olhar de Deus que o mundo inteiro cobre,
+ abrindo sobre nós o pallio da ventura,
+ ha de envolver na sombra o coração do Cura
+ que fez de minha filha a filha da sua alma,
+ extremosa e leal. E Deus que tudo acalma
+ ha de extinguir a dôr de todo esse passado
+ que eu vejo, felizmente, agora terminado...
+
+Padre, _alegremente_
+
+ Obrigado, Senhora. O coração que sente
+ a alheia desventura e lança boamente
+ o seu conforto amigo a quem já nada espera,
+ tem, nas bençãos do céo, eterna primavera...
+ E agora que sabeis que a vossa filha é viva,
+ attendei-me, Senhora, á santa rogativa:
+ Talitha esteve céga. O homem que salvou
+ o seu formoso olhar o amor lhe conquistou.
+ Ella, uma encantadora e formosa creança,
+ concentra nesse amor toda a sua esperança:
+ tiral-a será dar-lhe o mais cruel supplicio.
+
+Marqueza
+
+ Não preciso pedir tão duro sacrificio
+ ao seu bom coração. Eu quero-a vêr feliz,
+ se quem serviu de Pae o consentiu e quiz.
+ Procurava uma filha, encontrei um casal:
+ para mim, que sou mãe, jámais este Natal
+ feliz esquecerei. E agora que conhece
+ a Mãe da sua filha, attenda á minha prece
+ e mostre-me Talitha, anceio por beijal-a.
+
+Padre
+
+ Louvado seja Deus, Senhora, eu vou chamal-a.
+
+_Entra e volta com Talitha pela mão_
+
+
+SCENA VII
+
+Os mesmos e Talitha
+
+Padre, _entrando, a Talitha_
+
+ Recordas que uma vez, em lagrimas banhada,
+ disseste que a tu'alma andava amargurada
+ a pensar que jámais a tua mãe verias?
+ Recordas a palavra alegre, de conforto,
+ que te disse a sorrir quando tu me pedias
+ a luz do teu olhar que tu suppunhas morto?
+
+Talitha
+
+ Nem eu posso esquecer.
+
+Padre
+
+ Pois, filha, a Providencia
+ abriu á tua vida a sua immensa graça.
+
+Talitha, _curiosa_
+
+ E então?
+
+Padre
+
+ Então responde: em tua consciencia
+ que mais desejas tu que o Santo Deus te faça?
+
+Talitha
+
+ Que eu possa vêr um dia a minha Mãe querida!
+
+Marqueza, _correndo para ella e abraçando-a_
+
+ Talitha, minha filha! Amor da minha vida!
+
+Talitha, _surprehendida_
+
+ Minha Mãe! Minha Mãe!
+
+_Abraçam-se em pranto_
+
+Padre
+
+ Obrigado, Senhor;
+ abençoado seja este Natal de amor!
+
+Marqueza, _desprendendo-se de Talitha_
+
+ Mas como eu sou feliz! Como tu és bonita!
+ Que lindo nome o teu! Quem te chamou Talitha?
+
+_Beija, abraça-a, encara-a sorrindo e soluçando. Senta-a nos joelhos_
+
+ Quero ver bem de perto o teu formoso olhar.
+
+_Fita-lhe os olhos_
+
+Talitha
+
+ E já sabes, mamã, que de tanto chorar
+ com saudades de ti, um dia fiquei céga?
+
+Marqueza
+
+ Com saudades de mim?
+
+Talitha, _agitada_
+
+ Não crês, mamã?
+
+Marqueza
+
+ Socega;
+ eu acredito em tudo, a tua alma não mente...
+
+Talitha
+
+ Mamã, como eu te quero!
+
+_Abraça-a_
+
+ Olha-me bem de frente!
+ Tanto tempo sem vêr a imagem dos meus sonhos,
+ agora que te encontro, eu desejo risonhos
+ os teus olhos de Mãe que nunca vi mais bellos;
+ quero beijar, sorrindo, os teus alvos cabellos
+ e sentir palpitar o seio teu, amigo,
+ e o meu seio de filha, a palpitar comtigo.
+
+_O Cura, que se tem enlevado a contemplar a scena, sae pé ante-pé,
+olhando o grupo e chama para dentro. Entram Joaquina e Ruy._
+
+
+SCENA VIII
+
+Os mesmos, Joaquina e Ruy
+
+Marqueza
+
+ Dize-me, filha, e tu sonhavas muitas vezes
+ com tua mãe?
+
+Talitha
+
+ Sonhava!
+
+Marqueza
+
+ E o sonho que dizia?
+
+Talitha
+
+ Tanta coisa, mamã! Quando os nossos revezes
+ nos vinham perturbar, desde o romper do dia
+ até o anoitecer, pensava em ti, mamã,
+ e, sem dormir, sonhava até pela manhã.
+
+Marqueza
+
+ Mas revezes de quem?
+
+Talitha
+
+ Desta immensa tristeza
+ que vinha atormentar a vida de pobreza
+
+_baixo, quasi em segredo_
+
+ do nosso Padre Cura...
+
+Marqueza
+
+ E o Padre Cura é pobre?
+
+Talitha
+
+ Muito, muito, mamã, mas tão bom e tão nobre
+ que nunca pude ouvir um lamento, sequer!
+
+Marqueza
+
+ D'hoje em diante, porém, não faltará mais nada:
+ será de todos nós aquillo que eu tiver.
+ Tu és rica, Talitha, e d'alma bem formada,
+ por certo acudirás de todo o coração
+ por que não faltem mais nem ventura, nem pão
+ a quem te fez gentil, tão boa e generosa...
+
+Talitha
+
+ Muito rica, mamã?
+
+Marqueza
+
+ Que te serve saber?
+
+Talitha
+
+ É que o velho sargento acaba de morrer
+ deixando na miseria immensa e dolorosa
+ os netinhos com fome. O velho era céguinho!
+ muita vez o encontrei mendigando, sósinho,
+ para matar a fome e, se eu hoje sou rica,
+ só este pensamento a dôr me purifica
+ e, se tu dás licença, o Ruy vae procural-os.
+
+Marqueza
+
+ Pois sim, minha Talitha, irás tambem buscal-os;
+ que sejam teus irmãos já que assim o quizeste.
+ Mas dize, o Ruy quem é? Inda não m'o disseste...
+
+_Durante este dialogo as duas não poderão vêr as demais pessoas,
+enlevadas como estão. Ha sorrisos em todos._
+
+Talitha, _perturbada_
+
+ O Ruy?...
+
+_Baixa os olhos, sorri e cala-se_
+
+Marqueza
+
+ Sim, sim o Ruy...
+
+Talitha, _enleada_
+
+ O Ruy é um doutor...
+ Quando eu estive céga... Eu era tão céguinha!...
+ Elle tratou de mim e fez a operação...
+
+Marqueza
+
+ Só?!
+
+Talitha
+
+ O resto não conto...
+
+Marqueza
+
+ E porquê?
+
+Talitha
+
+ Adivinha!
+
+Marqueza
+
+ E não furtou tambem o teu primeiro amor?
+
+Talitha
+
+ Furtou!... E que mal fez? Deu luz ao meu olhar,
+ eu dei-lhe o coração...
+
+Marqueza
+
+ Mas depois de casar
+ deixarás tu sósinho o velho Padre Cura?
+
+Talitha
+
+ Nem eu quero pensar em tamanha loucura.
+ Viveremos aqui juntinhos da Joaquina
+ que sempre me guiou, do tempo de menina.
+
+Marqueza
+
+ Pois vae dizer ao Ruy que tua mãe quer vêl-o.
+
+Talitha, _soltando-se do pescoço da mãe, sorrindo alegremente._
+
+ Tu vais ver que rapaz... intelligente e bello...
+ Ruy! Ruy!
+
+_Voltando-se encontra Ruy, Joaquina e Padre. Fica embaraçada e cobre o
+rosto com as mãos._
+
+ Meu Deus, que susto!
+
+Padre
+
+ Ouvimos tudo, tudo!...
+
+Marqueza, _voltando-se_
+
+ Desculpe, Senhor Cura... em favor della acudo...
+ A culpada fui eu...
+
+Ruy, _surprehendido_
+
+ Ah! Senhora Marqueza!
+
+Marqueza
+
+ Sim. Ruy, eu mesma, aqui. Nem me causa extranheza
+ o vêl-o nesta casa. Eu fui quem o mandou
+ em busca deste céo tão puro que o salvou.
+ Previ toda esta scena e quando aconselhei
+ que viesse até cá, senti que palpitava
+ o meu seio de mãe. Já vê que adivinhei
+ e o meu presentimento o bem me segredava...
+
+Talitha, _admirada_
+
+ Mamã, tu és Marqueza?
+
+_Silencio prolongado_
+
+Marqueza
+
+ A Marqueza morreu...
+ Agora sou a mãe da mimosa Talitha
+ que vem pedir perdão a quem assim soffreu
+ dessa magua sem par, dessa dôr infinita,
+ que tanto fez chorar a tua mocidade,
+ as lagrimas febris e negras da saudade.
+ Agora sou a Mãe que um dia te engeitou
+ e que uma vida inteira a dôr acabrunhou,
+ que vem pedir perdão ao velho Padre-Cura
+ do quanto padeceu para te dar ventura,
+ que vem agradecer á santa da Joaquina,
+ os beijos que te deu quando eras tamanina,
+ que vem pedir a Ruy o supremo favor
+ de dar á sua filha o seu primeiro amor...
+
+Ruy
+
+ Marqueza, o meu amor recebe a grande esmola
+ do casto coração da candida Talitha,
+ como um beijo de luz que conforta e consola
+ a dôr da minha vida. O peito me palpita
+ na suprema alegria e eu penso na alvorada
+ desta noite feliz, de lucido natal,
+ bemdizendo, Senhora, a dôce madrugada
+ que vae surgir em breve.
+
+Talitha
+
+ Ao despontar o dia
+ vamos todos buscar os netos do sargento...
+ Tu concordas, mamã?
+
+_Ao Cura_
+
+ Acha que faço mal?
+
+Padre
+
+ Para ti, minha filha, a madrugada é fria.
+ O Ruy irá commigo e apenas num momento
+ as creanças virão: descança, pequenita.
+
+Marqueza, _a Joaquina_
+
+ Repare bem, Joaquina: este casal catita
+ como envelhece a gente!
+
+Joaquina
+
+ E Deus Nosso Senhor
+ lhe dê por toda a vida o seu sagrado amor!
+
+Padre
+
+ Já toca á missa d'Alva...
+
+Ruy, _a Talitha_
+
+ Estrella d'Alva, pura,
+ immaculada estrella, o céo desta ventura
+ estende sobre nós a cupula sagrada
+ e eu vejo nesse olhar a luz ambicionada
+ que faz de ti, creança, a dôce Conceição
+ do meu culto feliz, purissimo e christão.
+
+_A Joaquina_
+
+ Um dia, bem me lembro, a sua mão amiga
+ mais trémula e subtil do que uma branca estriga
+ ás aragens d'outomno, abrindo-me o sacrario
+ da sua alma de santa, entregou-me um rosario.
+ Recorda-se? Pois bem! nas horas de afflicção
+ esse rosario amigo encheu-me o coração
+ duma frescura immensa e assim se dissipou
+ essa nuvem cruel que sobre nós passou...
+ Quero beijar a mão da santa que me deu
+ nesse rosario astral uma visão do céo:
+ a flôr que se banhou na sua fé divina,
+ bondosa creatura, alvissima Joaquina!
+
+_Beija-lhe a mão. Joaquina, em silencio, enxuga os olhos com o avental._
+
+Padre
+
+ O dia vae surgir, o sino da capella
+ convida-nos á missa. Ali pela janella
+ já vem a madrugada entrando alegremente
+ num baptismo de luz que brota do nascente.
+
+Talitha
+
+ Meu Deus, como é feliz a minha mocidade!
+ Rasgou a mão de Ruy a dôce claridade
+ ao meu perdido olhar, depois a mãe de Deus
+ envia-me o perdão do fundo azul dos céos:
+ e, dando luz á céga e vida á condemnada,
+ entrega-me, a sorrir, no fim da madrugada
+ do Natal de Jesus, a minha Mãe distante.
+ Meu Deus, como é feliz neste sereno instante
+
+_a Ruy_
+
+ a nossa mocidade ao pé desta velhice
+ tão boa e tão leal! Antes que alguem cobice
+ esta aurora de amor que ao céo nos avizinha
+ eu vou rezar por nós uma Salvé-Rainha:
+
+_Ouve-se o repicar dos sinos. Talitha approxima-se do oratorio;
+ajoelham-se todos, excepto o Padre que fica de pé._
+
+Talitha
+
+ Salvé, Rainha Mãe, céu de misericordia,
+ vida e doçura, amor, luz da nossa esperança,
+ lançae por sobre nós o manto da concordia.
+ Salvé, Rainha, Mãe serena de bonança!
+ A vós, os filhos d'Eva, em lagrimas, bradamos,
+ por vós que estaes no céo, gemendo, suspiramos,
+ neste valle de magua e dôr. Eia, Senhora!
+ Sêde a divina Mãe, a dôce protectora
+ da nossa vida inteira e para nós volvei
+ esse olhar piedoso e tão cheio de luz!
+ Sobre o nosso destino a vossa mão pendei,
+ rasgae a nossa dôr, mostrae-nos a Jesus,
+ fructo do vosso ventre, ó sagrada e clemente,
+ ó Virgem dôce e casta, ó candida innocente!
+ ó Santa Mãe de Deus, ouvi a nossa voz
+ tão simples e fiel, rogue no céu por nós,
+ por que sejamos bons e dignos da promessa
+ do moreno Jesus. Que a nossa vida aqueça
+ o materno calor da estrella de Bethlem,
+ á luz do vosso olhar, por todo o sempre.
+
+Padre
+
+ Amen!
+
+CAE O PANNO
+
+
+
+
+RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA
+
+ _Toute l'operation critique se borne ainsi a constater un fait,
+ depuis la cause qui l'a produit jusqu'aux conséquences qu'il
+ produira. Sans doute, un pareil travail contient une leçon, et à se
+ voir dans un miroir aussi fidèle, un écrivain peut refléchir,
+ connâitre ses infirmités, tâcher de les marquer le plus possible.
+ Seulement, la leçon vient de haut, sort de la verité même du
+ portrait el n'est plus l'enseignement gourmê d'un professeur. La
+ critique expose, elle n'enseigne pas. Elle a compris elle-même que
+ son influence sur le niveau litteraire était à peu prés nulle, car
+ les tempéraments restent indociles; et elle a préféré jouer le beau
+ rôle d'ecrire l'histoire litteraire contemporaine, expliquée et
+ commentée._
+
+ E. Zola. _Documents litteraires_, pag. 334.
+
+
+ _Est critique, à notre jugement, celui qui fait effort pour
+ comprendre et qui juge avec sympathie._
+
+ Nolet. _La vie et l'oeuvre de Chateaubriand_, pag. 673.
+
+
+ _...si nous possedons quelques talents, nous nous empressons de les
+ déprécier. Après les avoir élevés au pinacle, nous les roulons dans
+ la bosse; puis nous y revennons, puis nous les méprisons de nouveau.
+ Nous ne pouvons souffrir de reputation; il nous semble qu'on nous
+ vole ce qu'on admire: nos vanités prennent ombrage du moindre
+ succès, et s'il dure un peu, elles sont au supplice._
+
+ Chateaubriand. _Essai sur la litterature anglaise_. pag. 171.
+
+
+ _Que la scène soit triste ou gaie, nous retrouvons toujours la même
+ distinction entre l'émotion réelle et l'émotion esthétique. Il faut
+ de toute necessité, pour que cette dernière soit possible, que
+ l'autre disparaisse; il faut que l'auditeur ou le spectateur ne
+ puisse jamais oublier qu'il y a entre le fait et lui un
+ intermediaire dont l'impression constitue la poesie de l'oeuvre;
+ c'est surtout au théâtre que cette distinction entre le réel et le
+ fait poetique est essentielle. L'illusion complète, loin d'être le
+ suprême degré de l'art, comme on l'a dit, en serait simplement la
+ négation._
+
+ Eug. Veron, _L'Estetique_, pag. 407 e 408.
+
+
+RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA
+
+A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade, piedosamente recolhida pelo
+coração á mudez da alma, que a minha intelligencia modesta crystallizou
+em versos froixos, que o meu sentimento fixou em drama e que a cegueira
+das paixões pretendeu ferir.
+
+Devo, quero e vou defendel-a.
+
+ * * * * *
+
+Zola, o genio, o mestre, o justo, escreveu:
+
+ «Lorsqu'on a l'honneur de tenir une plume, on se consulte avant
+ d'ecrire, et quand on a écrit une page, on l'affirme, on la défend.»
+
+ _La critique contemporaine_, pag. 356.
+
+A critica censurou-me porque, brazileiro e rio-grandense, fui procurar
+em terras de Portugal o assumpto do meu obscuro trabalho. A _Talitha_
+não é uma obra nacional: nem portugueza porque o seu autor não nasceu em
+Portugal, nem brazileira porque a acção se passa em terra estrangeira,
+entre personagens de uma aldeia lusitana perdida nas serranias da
+provincia de Traz-os-montes.
+
+ * * * * *
+
+A censura é futil.
+
+A critica esquece que Portugal é a patria da nossa patria; que o nosso
+idioma nacional ainda não sahiu do periodo primitivo e selvagem; que a
+lingua de Camões foi a lingua de Gonçalves Dias e ainda hoje é a lingua
+de Olavo Bilac e de Coelho Netto; que os sentimentos de José de Alencar
+vibraram nas mesmas palavras em que vibrou a alma de Camillo Castello
+Branco o através das quaes se impoz á grandeza do seculo que passou a
+individualidade singular e forte de Eça de Queiroz, ao mesmo tempo que
+se impunha, em outro hemispherio, a personalidade singular e forte de
+Machado de Assis.
+
+Ingenua, ignorante ou perfida, a critica esqueceu o preceito de Taine:
+
+ «Les productions de l'esprit humain, comme celles de la nature
+ vivante, ne s'expliquent que par leur mllieu.»
+
+ H. Taine--_Philosophie de l'Art_. vol. I, pag. 11.
+
+O homem é um producto do meio, este inflúe poderosamente na formação de
+seu espirito; mais que poderosamente--decisivamente.
+
+A mocidade é mais docil em receber essa influencia natural e espontanea
+do ambiente--do clima, das tradições, dos costumes, da religião, da arte.
+
+É na infancia e na adolescencia, como observa Moreau, de Tours, no seu
+estudo--_La Folie chez les Enfants_--que os erros e os preconceitos se
+apoderam do espirito e por tal forma criam raizes que difficilmente se
+arrancam.
+
+Spencer, na Educação moral, intellectual e physica, affirma que a
+influencia do meio sobre a mocidade decide do futuro inteiro.
+
+A minha adolescencia e a minha mocidade fluiram em Portugal, nas
+escolas, nas aldeias, no seio patriarchal da familia paterna.
+
+Com os portuguezes, moços como eu, senti os pezares d'aquelle grande
+povo, sorri nas alegrias d'aquella boa gente.
+
+Á sombra fresca e generosa das suas arvores adormeci e sonhei: ao calor
+daquelle sol aqueci as minhas esperanças; no gelo daquellas neves
+murcharam-me as mais perfumadas illusões; ao luar opalescente daquellas
+noites ouvi a musica das primeiras serenatas: ao fulgor daquellas
+estrellas peneirou no meu coração a voz dolentissima dos rouxinóes; com
+a poesia popular daquella alma lyrica de onze seculos aprendi a versejar
+quando a minh'alma de dezeseis annos abria para o mundo as flôres das
+suas aspirações incipientes; com a lithania religiosa dos orgãos ruraes
+nas capellas das aldeias aprendi a amar a Deus, a crer na sua olympica
+magestade, ao mesmo tempo que filtrava docemente no meu espirito a
+ternura sagrada daquelle mysticismo que reza na voz das aragens, no
+perfume das flôres, no marulhar das fontes, no gorgeio das aves e até no
+merencorio soluçar das vagas, rolando eternamente nas areias das praias.
+
+Dezoito annos correram para a minha vida feliz e descuidosa, naquella
+terra santa que é a patria da saudade, e, quando o meu coração começou a
+sentir as amarguras do exilio, quando a minha intelligencia poude
+comprehender toda a magua da ausencia, foi na saudade portugueza
+
+«o delicioso pungir de acerbo espinho,»
+
+que eu aprendi a sentir a saudade do lar que aqui deixára, do berço que
+me embalára as horas da infancia, da voz materna que me acalentára a
+puericia, do céo que dera luz ao meu olhar e calor ao meu sangue,
+sangue em cujas ondas correm leucocytos de sangue lusitano. «d'este
+sangue abençoado», fortemente oxygenado, que me dá energia para as
+luctas e ampara a tranquilidade transparente da minha consciencia,
+limpida e superior, as investidas da injustiça e da critica.
+
+E como poderia eu, por que estranho processo de cirurgia, arrancar ao
+meu organismo essa metade portugueza que constitue um nobre orgulho da
+minha vida?
+
+E como poderia eu, por que estranho processo de psychologia, arrancar á
+minh'alma esse conjuncto essencial de elementos que durante dezoito
+annos se vincularam ao meu espirito, á minha intelligencia, á minha
+vontade, á minha sensibilidade, com a mesma delicadeza, com a mesma
+subtil insistencia com que a luz do sol penetra no seio da terra para
+fazer germinar as sementes, com que a palavra das mães penetra na alma
+dos filhos para transfigural-a, como o luar que transforma em espelho de
+prata a agua dos lagos e dos rios?
+
+ * * * * *
+
+A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade passada na aldeia
+traz-montana, na suave e consoladora almosphera da familia paterna;
+_Talitha_ não é uma creação da minha phantasia, é a copia do modelo vivo
+que eu conheci, que acompanhei na cegueira cruel e, depois, na luminosa
+redempção do seu primeiro amor.
+
+_Ruy de Ornellas_ foi meu irmão de lettras, foi meu amigo, meu
+companheiro de escola, meu consocio na bohemia alegre e feliz da vida
+academica, nem o nome lhe occultei.
+
+O velho cura _João Fulgencio_ foi uma realidade soberba de caridosa
+affeição evangelica: era um sacerdote de alma pura, um ancião de oitenta
+invernos consumidos em espalhar o bem emquanto muitos moços de alma nova
+mas precocemente corrompida ao contacto das descrenças enervadoras e
+fataes, na convivencia intima da politicagem, dos bordeis e dos cafés,
+vivem para fazer o mal, no gozo requintado de espalhar desventuras,
+quando é mais facil, mais dôce, mais humano, mais confortante, mais
+nobre, semear carinhos e affectos para fazer a colheita das sympathias e
+das dedicações.
+
+A velhinha _Joaquina_, a irmã desse honrado e justo sacerdote, é o
+retrato fiel, copiado á intimidade da minha propria familia, em cujo
+seio fui buscar o modelo daquella virtude christan, na figura venerada
+de uma santa creatura que acalentara, ha sessenta annos, a puericia de
+meu Pae.
+
+A _Marqueza de Rilma_ não é um personagem ficticio, viveu, foi a mãe de
+Talitha, não com o titulo de tão elevada condição aristocratica, mas de
+nobre linhagem, victima innocente das luctas civis de 1846 que
+accenderam a fogueira horrivel dos odios entre os partidos politicos.
+Revelar-lhe o verdadeiro nome seria uma iniquidade, além de
+absolutamente desnecessario ao desenvolvimento da acção dramatica: a
+mais rudimentar educação, a mais vulgar delicadeza de sentimentos
+mandavam occultar essa circumstancia, inutil á fidelidade da observação
+e perfeitamente dispensavel ao estudo da psychologia do personagem.
+
+Que representa, pois a _Talitha_?
+
+O intimo e nobre desabrochar de uma consciencia que não esqueceu o
+passado, que transformou um incidente da vida em pretexto para resgatar
+uma divida de gratidão, para abrir no seio um longo e profundo sulco de
+reconhecimento á terra sagrada em que dormem seus avós o somno
+ultimo e perpétuo, onde ficaram os primeiros dias de existencia do
+ancião que me deu o sêr, onde eu deixei as gerações irmans que me
+acompanharam na peregrinação astral das illusões academicas.
+
+A perversidade incuravel dos zoilos, porém, occultou, de proposito
+deliberado, que o obscuro autor da _Talitha_, agora alvejado por haver
+esquecido ingratamente a sua patria, preferindo assumptos, personagens e
+céos estranhos, já estudara em um drama, em tres actos, intitulado _A
+Farça_, a sociedade da sua terra e um facto que se desenrolara no meio
+em que vive.
+
+E esse drama foi levado á scena tres vezes, no Theatro S. Pedro, por uma
+sociedade de amadores; mereceu a critica da imprensa local e foi
+largamente estudado por dois homens conhecidos nas lettras: Alarico
+Ribeiro e dr. Sebastião Leão.
+
+Se não teve esse modesto trabalho a ventura de ser interpretado por
+artistas, não pode caber ao autor a culpa de faltar entre nós uma
+companhia dramatica nacional constituida de profissionaes.
+
+A critica indigena devia ter conhecimento d'esse facto; se sabe d'elle é
+perversa occultando-o propositalmente para ferir a _Talitha_; se não
+sabe, é ignorante, e uma critica _soi-disant_ competente, que desconhece
+o autor escolhido para a censura e os trabalhos por elle produzidos, não
+póde exigir consideração nem respeito do meio litterario em que pretende
+pontificar.
+
+ «Il y a même, au fond de la grande majorité des critiques, un
+ producteur manqué, qui se regisne à parler des oeuvres d'autrui,
+ quand il voit que personne ne parle des siennes.»
+
+ Zola, oeuvre cit., pag. 349.
+
+A critica, ou ignorante, ou perfida, ou ingenua, esqueceu que
+Taine, o mestre supremo, havia pontificado:
+
+ «La méthode moderne que je tâche de suivre, et qui commence à
+ s'introduire dans toutes les sciences morales, consiste a considerer
+ les oeuvres humaines, et en particulier les oeuvres d'art, comme des
+ faits et des produits dont il faut marquer les caractères et
+ chercher les causes; rien de plus. Ainsi comprise, la science ne
+ proscrit ni ne pardonne: elle constate et explique.»
+
+ H. Taine--oeuvre cit, vol. I, pag. 14.
+
+Mas a critica levantou-se contra as leis proclamadas pelo proprio mestre
+invocado: condemnou, não explicou.
+
+Sem investigar as origens do drama, sem conhecer a sua significação, sem
+sondar a alma que o creára, fulminou a obra e insultou o espirito que a
+produzira.
+
+Para maldizer bastaram-lhe dois elementos: o assumpto que é portuguez e
+o estylo que não é brazileiro...
+
+E a critica, sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, esqueceu que
+Shakespeare fôra buscar á nevoenta Dinamarca a figura culminante de
+Hamlet, á sorridente Italia dos laranjaes em flôr, as suaves imagens de
+Romeu e Julieta, e o vulto soberbamente tragico do tremendo Othelo.
+
+Sempre com a mesma perfidia, a critica, depois de citar os nomes de
+Racine e Corneille, occultou que esses grandes espiritos da França foram
+pedir á Grecia e à Roma antigas, á Hespanha medieva e aos Barbaros a
+quasi totalidade dos seus heróes e das suas heroinas, deixando na
+obscuridade a immensa galeria de personagens illustres da propria
+patria: o genio desses dois sublimes cerebros andou a resuscitar, a
+illuminar, a galvanizar no tablado do theatro francez a grandeza épica
+de vultos estranhos e deixou no tumulo o vulto leonino dos
+immortaes filhos da França e as imagens delicadas e formosas das
+mulheres gaulezas.
+
+De Corneille, _Medéa_ é uma simples imitação de Lucio Seneca, romano,
+que a seu turno pedira inspiração ao theatro grego; _Cid_, que é uma
+obra-prima, além de ser puramente hespanhola a sua acção de altissima
+tragedia, foi inspirada pela obra do poeta castelhano Guilhen de Castro,
+que o genio de Corneille deixou na sombra; _Horace_ é um assumpto romano
+que o poeta francez pediu a Tilo-Livio; romanos são _Polyeucte_, _Cinna_
+e _Pompée_, este inspirado por Lucano; _Mentor_ é o velho personagem da
+legenda grega de Ithaca, já reproduzido no theatro hespanhol pelo poeta
+Alarcon, ao qual Corneille foi pedir o modelo; _oedipe_ e _Sertorius_,
+que são lampejos da constellação de decadencia de um genio, pertencem, a
+primeira ao cyclo da heroicidade thebana que Sophocles já havia
+immortalisado na scena grega, a segunda é pura historia da Iberia em que
+o vulto admiravel do general romano fulge num derradeiro vestigio de
+genio, ao lado de Viriato, o grandioso pastor dos Herminios e fundador
+da nacionalidade lusitana.
+
+Nem mesmo no periodo da sua decadencia, vencido na queda da _Pertharite_
+e no confronto do seu _Attila_ com a _Andromaque_ de Racine, outro genio
+que subia rapidamente ao zenith, nem mesmo na desventura, a alma de
+Corneille vibrou pela patria, o seu talento não procurou conforto na
+historia assombrosa da França: o seu coração voltou-se ainda para o
+oriente, foi á Judea estudar a grandeza sublime do Rabbino da Samaria e
+deixou na _Imitação de Christo_ a ultima expressão do seu genio, como o
+raio extremo do sol ao entrar na sepultura do occaso.
+
+De Racine, póde-se affirmar que escreveu as suas tragedias
+inspirando-se, ora no theatro grego, ora na Biblia.
+
+Assim o ensina um sabio mestre brazileiro:
+
+ «deixando respeitosamente de parte Eschylo e Sophocles, impossiveis
+ de imitar, modelou-se por Eurypedes, menos perfeito na generalidade
+ da concepção, porém mais tocante na pintura dos accessorios e que
+ maior conformidade offerecia com o seu talento.»
+
+São d'esse genero a _Andromaque_, _Mithridates_, _Phèdre_, _Iphigénie_.
+
+São inspiradas na Biblia, a _Thébaïde_, _Esther_ e _Athalie_.
+
+Pertencem ao genero historico: _Alexandre_, _Berenice_, _Britannicus_. E
+ainda mesmo quando Racine, resolvendo esmagar os seus zoilos, escreveu a
+comedia _Les Plaideurs_, que é uma _charge_ temivel de espirito e de
+genio, foi pedir ás _Vespas_ de Aristophanes, não só a inspiração, mas o
+exemplo, o paradigma.
+
+Todas essas tragedias ficaram na litteratura franceza, pertencem ao
+Theatro da França que não as repudiou, que as ama, que as admira,
+cultuando a memoria dos genialissimos poetas, não obstante o haverem
+elles esquecido a seara magnifica da patria pelos encantos das estranhas
+figuras orientaes.
+
+Victor Hugo foi pedir a Inglaterra o vulto espantoso do dictador para
+escrever a maravilha dramatica de _Cromwell_, deixando no esquecimento a
+soberba grandeza de Danton! Para dar á Escola romantica a sua data
+inicial no Theatro francez, o grande poeta das _Folhas de Outono_ foi
+buscar á Hespanha a inspiração dos versos maravilhosos do _Hernani_ e
+deixou á litteratura dramatica da França as figuras esculpturaes de
+_Dona Sol_, do bandido celebre, do Rei D. Carlos e do velho aristocrata
+Ruy Gomez.
+
+Mas onde o genio do grande filho de Besançon attingiu a altitude suprema
+a que não chegaram Corneille no _Cid_ nem Racine na _Phèdre_, foi
+no _Torquemada_, a epopéa dramatica do fanatismo: e Torquemada foi o
+inquisidor da Hespanha. Nenhum poeta da peninsula havia arrancado á
+historia a figura sinistra do sacerdote; Hugo levanta-a do tumulo,
+illumina-a com as fulgurações do seu genio, como se em torno da
+cariatide monstruosa da Inquisição ardessem as fogueiras dos
+autos-da-fé, e liga á litteratura dramamatica da França a figura
+barbara, apocalyplica do carrasco da Igreja.
+
+No emtanto, na historia da França havia a linha cruel de Luiz XI, algoz
+do duque de Alençon, que podia ter inspirado o genio do poeta sublime.
+
+Alfred de Vigny, contemporaneo de Victor Hugo, na sua primeira phase
+litteraria foi quasi totalmente oriental e biblico: _Eloah_, _Symeta_,
+_Dryade_, _Fille de Jephté_, _Femme adultère_, _Dolorida_, _Deluge_.
+
+Na segunda phase produziu, em verso, o seu drama notavel Chatterton,
+cujo heróe é o grande e infortunado poeta inglez que, aos 22 annos,
+procurou no suicidio a solução para a vida das amarguras e tristezas que
+arrastava o seu genio incomprehendido.
+
+E Alfred de Vigny, tão admirador de André-Chénier que n'este procurou
+inspiração para a sua _Dryade_, deixou no esquecimento a figura soberba
+e tragica do poeta da revolução, cuja cabeça rolou no cadafalso como uma
+cabeça vulgar, não obstante:
+
+ «avoir quelque chose là dedans»
+
+E a França não engeitou a obra immortal de Alfred de Vigny, e a
+_Comedie-Française_ em 1881 fazia a sua _reprise_, com alto successo,
+não obstante a opinião do Zola que a reputa:
+
+ «la negation du théatre.»
+
+A critica, severa para mim, devêra ter vergastado primeiramente a
+memoria de Lord Byron que cantou na sua lyra de poeta e serviu com a sua
+espada de guerreiro a obra politica da emancipação da Grecia; devêra
+anathematisar Sienkiewicz, o polaco genial que estudou no romance a
+reconstituição da vida romana á época da decadencia cesarista de Nero;
+devêra ter condemnado á morte M.^me Judith Gauthier, a filha gentil e
+talentosa de Theophile, que, deixando de parte a herança paterna,
+preciosa e brilhante, foi procurar o assumpto das suas obras notaveis
+nas terras e nos costumes do extremo oriente, com especialidade no Japão
+e na China; devêra ter amaldiçoado e reduzido a pó o sublime poeta
+contemporaneo da França--Edmond Rostand--que engastou nos tres actos
+phantasticos da _Princesse-Lointaine_ um assumpto oriental e na
+_Samaritaine_, a sua obra prima, a vida, a figura, a alma encantadora da
+filha da Judéa, deixando no esquecimento a belleza mystica de Joanna
+d'Arc; devêra ter queimado a estatua de Castellar, porque o espantoso
+rival de Cicero escreveu os extraordinarios volumes dos _Recuerdos
+d'Italia_, sem ter jámais escripto uma pagina de viagem pela propria
+Hespanha, sua patria; devêra ter castigado os despojos funebres de
+Milton, porque o grande poeta inglez, cuja inspiração hombrea com as de
+Tasso e Ariosto, cuja grandeza genial é, depois de Shakespeare, a
+creação mais opulenta da poesia britanica, teve o arrojo de esquecer a
+sua verde Erin e foi ao pincaro do Himalaya, ao berço da tradição
+adamita, procurar o assumpto do seu _Paradise Lost_.
+
+E a critica para ser sincera, ou, pelo menos, logica, severa como foi
+para o obscuro autor da desventurada _Talitha_, devêra censurar
+amargamente a falta de patriotismo de Araujo Porto Alegre que, em versos
+de um sabor arcadico e em metro solto, celebrou o almirante genovez
+Colombo, deixando ingratamente no olvido a figura épica do riograndense
+Tamandaré, lobo dos mares como o piloto de Palos, além de guerreiro como
+Patterson.
+
+E a censura devêra estender-se tambem a Gonçalves de Magalhães que, em
+vez de cantar o heróe dos Guararapes ou a figura brilhante de Garibaldi
+que vive na tradição da liberdade sulina, preferiu celebrar na sua lyra
+a aguia de Wagram, na queda monstruosa de Waterloo, tanto mais que ao
+nascer do theatro brazileiro, quando fulgia o talento artistico de João
+Caetano, deixou no esquecimento a figura negra de Calabar e foi á
+historia de Milão pedir o assumpto e os personagens da sua tragedia
+_Olgiate_, em cuja acção se estuda a tyrannia licenciosa de Galeazzo
+Visconti e o assassinato do tyranno.
+
+E a critica, tão rispida com o autor da _Talitha_, chegando mesmo a
+citar a sentença do divino Almeida Garrett para aquelles que se
+abalançam ao estudo de estranhos assumptos esquecendo a patria, devêra
+começar pela censura ao proprio autor do _Frei Luiz de Souza_, que
+iniciou a sua vida litteraria no theatro escrevendo _Xerxes_,
+_Lucrecia_, _Sophonisba_, _Atala_, _Meroppe_ e _Catão_, antes de se
+lembrar que _D. Filippa de Vilhena_ fôra uma das heroinas de sua terra.
+
+ * * * * *
+
+Mas a critica, severa com o autor da _Talitha_, não tem sinceridade nos
+seus conceitos.
+
+Um formosissimo talento de artista, alma de raro quilate, aberta ás
+emoções do Bello, filho d'esta terra, Araujo Vianna, musicista de
+apurado engenho, escreveu a sua brilhante partitura da _Carmella_, um
+encanto, uma joia.
+
+A acção do libreto passa-se na Italia, a musica inspira-se
+claramente na escola de Massenet, sóbe á scena no Rio de Janeiro
+interpretada por artistas italianos, sóbe á scena em Porto Alegre
+interpretada por artistas italianos, a critica applaudiu em delirio,
+extasiou-se, e ninguem viu, ninguem sentiu, que a _Carmella_ é italiana
+pelo libreto e franceza pela musica; o patriotismo riograndense não se
+julgou melindrado porque o intelligente _maestro_ patricio deixou na
+obscuridade a nossa paisagem, o nosso clima, as nossas mulheres, os
+nossos costumes, a nossa poesia, a nossa musica popular e
+caracteristica, preferindo a lenda, o lyrismo, a impetuosidade, o céo, a
+aventura da gloriosa e divina Italia da arte...
+
+A critica emmudeceu.
+
+Entretanto Araujo Vianna apenas visitou a Italia: o seu sangue é
+genuinamente brazileiro, formou-se o seu espirito na propria patria, nem
+a natureza nem a sociedade italiana influiram no seu desenvolvimento
+intellectual e moral...
+
+A critica tinha de tudo isso conhecimento exacto e perfeito mas...
+_passons là dessus_.
+
+ «Dès lors, les impuissants et les hypocrites peuvent injurier
+ l'oeuvre et l'auteur, les couvrir de boue, les nier...»
+
+ Zola--_Documents litteraires_, pag. 418.
+
+ * * * * *
+
+Sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, a critica censura a _Talitha_,
+condemnando-a porque os seus personagens fallam uma linguagem elevada,
+superior á modestia das suas condições de aldeãos.
+
+A critica é futil e não sabe o que diz.
+
+_Talitha_ falla nos seus dialogos a linguagem do mysticismo que durante
+dezesete annos ouviu e aprendeu com o seu velho padrinho: o cura.
+
+A sua linguagem é simples, ingenua e lyrica.
+
+Mas simples, ingenua e lyrica é a linguagem do povo portuguez, desde a
+sua infancia até hoje.
+
+As imagens que o autor lhe põe nos labios são as mesmas que borbulham na
+phantasia do povo lusitano, ha mais de nove seculos de nacionalidade,
+affirmada num _folke-lore_ riquissimo e inexgottavel, desde Guesto
+Ansures até Antonio Fogaça.
+
+Pois a uma creança de dezoito annos, alma pura e boa, natureza casta,
+intelligente e fina, delicada e vibratil, torturada pela desventura,
+póde ser negada a phantasia creadora, poetica e imaginosa que
+caracterisa o povo em cujo meio ella vive, principalmente na aldeia, na
+atmosphera idylica e bucolica, simplesmente porque a cataracta a cegou
+aos oito annos?
+
+Mas Antonio Feliciano de Castilho foi o bardo cégo que escreveu a _Noite
+do Castello_, as _Cartas de Echo a Narciso_, os _Ciumes do Bardo_, a
+_Primavera_, o _Outono_ e cégo é o anonymato popular que produz ha oito
+seculos esse rosario encantador e sublime das trovas e cantigas que
+andam na tradição oral, na garganta de todas as mulheres, na voz de
+todos os cantores, nos labios de todos os estudantes, desde o
+_Cancioneiro de Garcia de Rezende_ e de _El-Rei D. Diniz_ até o
+_Romanceiro_ de Garrett e os _Cancioneiros_ de Theophilo Braga e
+Gualdino de Campos.
+
+São da poesia popular, são do povo em cujo seio _Talitha_ nasceu,
+cresceu, amou, sonhou e foi noiva, as formosas quadras que correm de
+labio em labio, sem autor conhecido e que Junqueiro, Eugenio de Castro,
+Antonio Nobre e Correia de Oliveira gostosamente assignariam.
+
+ I Nessas tuas mãos pequenas
+ como não vi em ninguem
+ não sei como as minhas penas
+ couberam nellas tão bem.
+
+ II Perdes mais em me perder
+ do que eu perco em te deixar:
+ perco quem sabe offender,
+ tu perdes quem sabe amar.
+
+ III Dizes que deixo saudades,
+ não me posso conformar:
+ pois se eu as levo commigo,
+ como t'as posso deixar?
+
+ IV Acostumei tanto os meus olhos
+ a namorarem os teus
+ que de tanto confundil-os
+ nem já sei quaes são os meus.
+
+ V Se os meus olhos te incommodam
+ quando estão na tua frente
+ hei de arrancal-os um dia
+ para te amar cegamente.
+
+ VI Se eu soubesse que voando
+ alcançava o que desejo
+ mandava fazer as azas
+ que as penas são de sobejo.
+
+ VII Eu jurei que não tornava
+ a dar adeus a ninguem:
+ quem parte saudades leva
+ quem fica saudades tem.
+
+ VIII Essas tuas sobrancelhas
+ como nunca vi mais bellas
+ são laços de fita preta
+ unindo duas estrellas.
+
+ IX Não sei que quer a desgraça
+ que atraz de mim corre tanto,
+ hei de parar e mostrar-lhe
+ que de vêl-a não me espanto.
+
+ X Vae alta a noite, vae alta,
+ mais alto vae o luar,
+ mais alta vae a ventura
+ que Deus tem para me dar.
+
+ XI É tua bocca ideal
+ um palacio com jardim:
+ as portas são de coral
+ os degráos são de marfim.
+
+ XII Aguas passadas não tornam;
+ deixae fallar o dictado:
+ ó saudade, és um moinho
+ móes com aguas do passado.
+
+ XIII Pára tu, meu coração!
+ onde estou eu, onde vim?
+ triste caminho de lagrimas
+ tem começo e não tem fim.
+
+ XIV Ouço cousas que não ouço,
+ vejo cousas que não vejo:
+ olhos da minha saudade,
+ ouvidos do meu desejo!
+
+ * * * * *
+
+E a um povo que assim traduz tão lyricamente, com tanta philosophia, com
+tanto sentimento, todas as impressões da sua alma dôce, que assim vibra
+essa poesia celeste nas cantigas das eiras ao luar, nas espadelladas,
+nas desgarradas, nos desafios, na Paschoa, no Natal, nas romarias, a um
+povo que tem alma poetica, mais suave que um paraiso, mais simples e
+mais colorida que um poente de outono e uma alvorada de primavera,
+póde-se, com justiça, arrancar essa linguagem que é caracteristica?
+
+O escriptor que o fizesse, a pretexto de ser verdadeiro com os seus
+personagens, para que estes não pareçam superiores ao seu meio, mentiria
+á propria consciencia, adulteraria a natureza, roubaria ao povo que
+quizesse estudar o mais bello reflexo da sua individualidade litteraria.
+
+A um velho cégo que mendigava pelas estradas, entre Villa-Pouca de
+Aguiar e Pedras Salgadas, na Provincia de Traz-os-Montes, muitas vezes
+ouvi cantar com a sua voz roufenha, na tristissima toada, monotona
+como a sua desventura, as quadras que aqui reproduzo fielmente. Andava
+elle pelas feiras, pelos caminhos, pelas romarias, levando a sua
+desgraça, como Ashaverus, durante sessenta annos, a toda a parte onde a
+tradição religiosa celebrava as festas dos seus oragos, onde a alegria
+popular estuava nas danças e folguedos; o rapazio espantado escutava-o
+com profundo respeito, as raparigas ouviam-n'o em silencio, porque na
+amargura das suas cantilenas, na monotonia das suas queixas, na tristeza
+das suas lamentações havia verdade de conceitos e a revolta justissima
+de uma alma ferida contra a dureza da sorte e a iniquidade da natureza.
+
+Quem lh'o ensinou, quem escreveu esses versos, onde os aprendeu elle,
+que poeta mysterioso, simultaneamente artista e philosopho, traduziu na
+simplicidade mystica d'aquellas quadras toda a immensidade da sua
+irremediavel desventura? A alma popular, suave e lyrica, de uma raça,
+filtrada na arêa branca e pura de uma tradição de oito seculos.
+
+ Diz toda a gente e eu não nego
+ que Deus é pae de bondade,
+ mas se isso é pura verdade
+ como foi que eu nasci cégo?
+
+ Lá que Deus tirasse a luz
+ a quem rouba ou assassina,
+ era a justiça da sina
+ que todo o mundo conduz.
+
+ Mas a mim, não foi clemente
+ porque eu não tinha nascido;
+ é que Deus tinha o sentido
+ de cegar um innocente.
+
+ Aos lobos que andam na serra
+ matando ovelhas e anhos,
+ dizendo mal aos rebanhos
+ Deus não castiga na terra.
+
+ Não ha lobo que não veja,
+ todos são filhos de Deus,
+ só nos tristes olhos meus
+ a eterna noite negreja.
+
+ Não tocaria viola
+ se eu fosse fera damnada,
+ mas não andava na estrada
+ soffrendo e pedindo esmola.
+
+ * * * * *
+
+Milton, collocando nos labios de Eva os seus primorosos versos, não
+curou de saber se no Paraiso a Mãe dos homens fôra educada pela serpente
+nos mysterios da poesia, da arte, da phantasia, da linguagem
+alcandorada, nem cogitou de saber se já naquelle tempo, no pincaro da
+cordilheira industanica, se fallava o inglez.
+
+A Samaritana era uma mulher vulgar e desprezivel; Rostand colloca-lhe
+nos labios a linguagem sublime dos seus alexandrinos formosos, sem
+indagar se, ao tempo de Christo, na Samaria, junto ao poço de Jacob, já
+se fallava francez, em verso, de metrica impeccavel e de rima opulenta,
+brilhante, artisticamente disposta sob a fórma severa que Boileau,
+Corneille e Racine haviam de prescrever 1600 annos depois.
+
+A critica, porém, mais céga que a minha desventurosa _Talitha_, mais
+ingenua que a alma primitiva, mais ignorante que a Samaritana e mais
+perfida que a Serpente, a sogra feroz de Adão, occultou o preceito de
+Taine:
+
+ «Par cet excès de l'imitation litterale, l'artiste arrive a
+ produire, non pas le plaisir, mais la répugnance, souvent le dêgôut,
+ et quelque fois l'horreur.
+
+ «Il en est de même dans la litterature.
+
+ «La meilleure moitié de la poesie dramatique, tout le théatre
+ classique grec et français, la plus grande partie des drames
+ espagnols et anglais, loin de copier exactemente la conversation
+ ordinaire, altèrent la parole humaine de propos deliberé. Chacun de
+ ces poètes dramatiques fait parler ses personnages en vers, impose a
+ leurs discours le rythme et souvent la rime. Cette falsification est
+ elle nuisible a l'oeuvre?
+
+ «En aucune façon. L'experience en a été faite de la maniere la plus
+ frappante dans une des grandes oeuvres de ce temps, l'_Iphigénie_ de
+ Goethe, ecrite d'abord en prose et ensuit en vers. Elle est belle en
+ prose, mais, en vers, quelle diference! Ici, visiblement, c'est
+ l'alteration du langage ordinaire, c'est l'introduction du rythme et
+ du mètre qui communique à l'oeuvre son accent incomparable, cette
+ sublimité sereine, ce large chant tragique et soutenu, au son duquel
+ l'esprit s'élève au-dessus des vulgarités de la vie ordinaire et voi
+ reparaitre devant ses yeux les herós des anciens jours, la race
+ oubliée des âmes primitives, et, parmi elles, la vierge auguste,
+ interprète des dieux, gardienne des lois, bienfaitrice des hommes,
+ en qui toutes les bontés et toutes les noblesses de la nature
+ humaine se concentrent pour glorifier notre espèce et pour relever
+ notre coeur.»
+
+ H. Taine--op. cit., vol. I, pag. 28 et 29.
+
+E a critica indigena censura ao obscuro autor da modesta _Talitha_ a
+ousadia de ter observado o preceito que Taine, o grande mestre da França
+e do mundo, ordena que se faça, exactamente o que fez Goethe para dar
+maior valor e mais gloriosa belleza á sua _Iphigenia_; exactamente o que
+fez Rostand para poder impôr á civilisação parisiense, na compleição
+nevrotica de Sarah Bernhardt, a inferioridade da mulher da Biblia, a
+hetaïra da Samaria condemnada ao supplicio da lapidação pelos heliastas
+da Judéa.
+
+ * * * * *
+
+Diante da bondade e em face das virtudes caracteristicas dos personagens
+que se movimentam nos tres actos da _Talitha_, a critica sentiu arrepios
+de indignação e abespinhou-se: á intelligencia dos censores é
+inconcebivel a coincidencia de um encontro simultaneo de cinco almas
+igualmente boas, simples, generosas, quasi santas; a sociedade repelle
+essa pureza, os factos demonstram o contrario: o autor da _Talitha_ não
+observou, phantasiou; o seu drama é um trabalho de gabinete, no ambiente
+do mundo real essa hypothese não existe.
+
+A critica pontificou _ex-cathedra_, infallivel como o successor de S.
+Pedro, Vigario de Christo na terra.
+
+Taine escreveu:
+
+ «Après avoir examine devant vous la nature de l'oeuvre d'art, il
+ reste à etudier la loi de sa production. Cette loi peut, au premier
+ regard, s'exprimer ainsi: _L'oeuvre d'art est determinée par un
+ ensemble qui est l'état général de l'esprit et des oeuvres
+ environnentes.»_
+
+ H. Taine.--op. cit., vol. I, pag. 55.
+
+É a influencia do meio na producção artistica: consequentemente, para
+apreciar a obra d'arte, quando é sincera, a critica necessita de
+conhecer o meio em que ella foi produzida, o estado geral dos espiritos
+e dos costumes em cujo seio o pintor, o esculptor ou o escriptor, pintou
+o quadro, esculpiu a estatua, ou escreveu o poema.
+
+E dos criticos indigenas que se lançaram á _Talitha_, como San Thiago
+aos moiros, apenas um viveu temporariamente em Portugal, mas nunca se
+perdeu em terras trasmontanas, gastou o tempo nas ruas das cidades
+populosas: a aldeia lusitana, se a viu não a estudou, se a estudou
+ou não a comprehendeu ou... tresleu.
+
+De sorte que a critica, severa e exigente, desconhece por completo o
+meio que influiu na producção da _Talitha_, não tem noção, sequer, do
+estado geral do espirito e dos costumes em cuja atmosphera o obscuro
+autor do drama foi buscar os seus personagens: a critica, portanto, é
+ignorante e, como todo os ignorantes, é pretenciosa, balofa e
+petulantissima.
+
+Ha doze annos ficou terminado o terceiro acto d'esse modestissimo
+evangelho; ha doze annos appareceu pela primeira vez, no Brazil, a
+sublime pastoral--_Os Velhos_--de D. João da Camara, cuja acção se passa
+em uma aldeia do Alemtejo.
+
+Quando a critica indigena, do Rio Grande do Sul, assistiu á
+representação dessa obra prima, extasiou-se e não viu que na formosa
+comedia do mallogrado escriptor portuguez se movimentam, não cinco, mas
+nove personagens, nove almas igualmente puras, virtuosas, que em toda a
+acção da bellissima pastoral ha um ambiente de consoladora bondade.
+
+Applaudiu incondicionalmente, sem conhecer o meio em que D. João da
+Camara estudou os seus personagens, nem sentiu necessidade de saber qual
+era o estado geral dos espiritos e dos costumes que o brilhante
+escriptor portuguez reproduziu no palco, para verificar se aquelles
+personagens, aquella acção, aquelle ambiente correspondiam á realidade
+objectiva da vida aldean no Alemtejo, ou se o dramaturgo phantasiara; se
+seria possivel encontrar no fim do seculo XIX, em plena civilisação
+occidental europea, reunidas na mesma terra, nove almas puras,
+virtuosas, preoccupadas apenas com a pratica do Bem, sem um pensamento
+máo, sem uma palavra rude, sem uma acção menos digna.
+
+Ha nos dois primeiros actos da _Talitha_ uma profunda tristeza, a
+amargura soluça em todas as gargantas e no terceiro acto ha uma explosão
+de alegria: esse contraste parece exquisito, inverosimil, sem exemplo na
+realidade da existencia; todo o drama tem um excessivo perfume religioso
+que vae ao exaggero, diz a critica.
+
+A critica ignora o que sejam na aldeia portugueza o sentimento
+religioso, o culto catholico, a tradição christan, porque nunca viveu na
+intimidade daquelles lares; o que lobrigou, através da obra suspeita e
+viciada de escriptores trabalhados pelo meio social corrompido dos
+grandes centros, envenenou-lhe a alma já preparada para receber a
+semente do mal e a critica, enfunada de leitura superficial, para
+maldizer, deixou-se ficar na commodidade das biliothecas e dos
+gabinetes, acceitou as indicações da alma perversa de algum mentor sem
+sinceridade, explorador da inexperiencia de creanças talentosas e
+esqueceu a lição de Taine:
+
+ «Pour plus de clarté, nous prendrons un cas très simple, simplifié
+ exprés, celui d'un état d'esprit dans lequel la tristesse est
+ predominante.
+
+ ..................................................................
+
+ «Il faut d'abord remarquer que les malheurs qui attristent le public
+ attristent aussi l'artiste.
+
+ «Comme il est une tête dans le troupeau, il subit les chances du
+ troupeau.
+
+ ..................................................................
+
+ «Sous cette pluie continue de misères personelles, il deviendra
+ moins joyeux, s'il est joyeux, et plus triste s'il est triste.
+ Voilá--un premier effet du milieu.
+
+ ..................................................................
+
+ «Car, ce qui le fait artiste, c'est l'habitude de degager dans les
+ objets le caractère essentiel et les traits saillants: les autres
+ hommes ne volent que des portions, il saisit l'ensemble et l'esprit.
+ Et comme ici le caractère saillant est la tristesse, c'est la
+ tristesse qu'il aperçoil dans les choses.»
+
+ H. Taine--Op. cit., pag. 68 e seguintes.
+
+Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:
+
+ «O que deu nascimento, entre elles, á noção de fatalidade é uma
+ concepção que se refere, não ao futuro, mas unicamente ao passado; o
+ que é, é, e nenhum poder no mundo poderia fazer que um facto
+ concluido não existisse.»
+
+ _A poesia e a arte no ponto de vista philosophico._--Cap. II, pag. 50.
+
+O modesto autor da _Talitha_ não podia fugir á acção do meio em que se
+encontrou com os seus personagens, como doutrina Taine, nem se podia
+oppôr á verdade: _o que é, é, e um facto concluido, poder algum o annulla_.
+
+Se o autor transformasse á medida do seu desejo, pensando em ser
+agradavel á critica, mentiria á sua consciencia, deturparia as leis da
+arte: os zoilos pódem maldizer, á vontade, o autor fica tranquillo e
+contente com a fiel observancia das lições de Taine e do escriptor
+brazileiro, inspirado na doutrina de Guyau.
+
+O facto é verdadeiro, era sufficiente que fôsse verosimil: o autor da
+_Talitha_ dramatisou-o, traduziu nos seus versos modestos as desventuras
+e a redempção dos seus personagens pelo amor,
+
+ «l'amor che muove il sole e l'altre stelle.»
+
+O seu drama obscuro impressionou e commoveu, tanto basta: a agitação da
+critica apenas conseguiu encrespar a vaidosa pleiade de coripheus do
+elogio mutuo e a paixão, a animosidade e malquerença politicas.
+
+Zola pontificou:
+
+ «Il n'est poin't de jeune homme arrivant de sa province qui ne rève
+ de distribuer des coups de férule.
+
+ «Ces pauvres jeunes gens n'ont souvent pas deux idées nettes dans la
+ tête. L'experience leur manque. Ils tapent en aveugles. De lá les
+ jugements extraordinaires qui font resembler notre critique a une
+ veritables Babel, ou on parlerait toutes les langues, sauf la langue
+ de verité et de justice qu'il faudrait y parler.
+
+ «Je ne nommerai personne parmi ces jeunes gens.
+
+ «Le vent qui les apporte, les emporte.»
+
+ _Documents litteraires; la critique contemporaine._--pags. 346, 347.
+
+ * * * * *
+
+O assumpto da _Talitha_ é portuguez, portuguezes são os seus
+personagens, portuguez o meio em que a acção se desenvolve, portugueza
+foi a atmosphera em que o autor viveu a sua adolescencia e a sua
+mocidade: o drama não podia deixar de reflectir
+
+ «l'état général de l'esprit et des moeurs environnantes.»
+
+De profundas amarguras, de lacerantes provações para o povo portuguez
+foi a época dolorosa em que o modesto autor da _Talitha_ aprehendeu em
+flagrante o desenrolar da acção dramatica do seu poema lyrico: e essa
+éra prolongou-se em uma crise tremenda que acaba de chegar ao seu auge,
+a sua maxima intensidade.
+
+Portugal acabava de receber o _ultimatum inglez_ na questão
+pungentissima das possessões africanas, a natureza fôra de uma dureza
+extrema: ás innundações dos invernos succedeu a crise agricola que
+esmagou a producção vinicola pela invasão phyloxerica, as agitações
+politicas ganhavam terreno e a ideia republicana fazia proselytos
+ameaçando as instituições monarchico-religiosas de sete seculos e,
+em meio dessas provações a Providencia, esquecida da immensa piedade
+d'aquelle povo sublime, ininterruptamente demonstrada em uma historia em
+que não soffre solução de continuidade o culto da divindade catholica,
+fulmina-lhe os homens notaveis e successivamente desapparecem no tumulo:
+Fontes Pereira de Mello, Anselmo Braamcamp, Pinheiro Chagas, Guilherme
+de Azevedo, Lopo Vaz, Antonio Rodrigues Sampaio, Luciano Cordeiro,
+Antonio Ennes, Marianno de Carvalho, Oliveira Martins, Carlos Lobo
+d'Avila, Eça de Queiroz, Alexandre da Conceição, Raphael Bordallo
+Pinheiro, Gervasio Lobato, Souza Martins, Camillo Castello Branco e
+Anthero de Quental imitam o exemplo de Chatterton e atravessam a
+luminosa região dos seus cerebros geniaes com a inferioridade
+crudellissima de uma bala.
+
+Da nova geração, Antonio Fogaça, Luiz Ozorio, Antonio Nobre, Moniz
+Barreto seguiram a estrada da morte.
+
+A crise economica era pavorosa, a emigração clandestina assustava os
+espiritos mais fleugmaticos, á questão ingleza, seguiu-se a revolta de
+31 de Janeiro e a situação geral era tão delicada e complexa que nem o
+genio de José Dias Ferreira, nem as combinações politicas de homens como
+Hintze Ribeiro e Fuschini conseguiram solver.
+
+Ao desequilibrio financeiro succederam a questão monetaria e o augmento
+da divida publica, fortemente aggravadas as condições do credito publico
+pela questão internacional do emprestimo de D. Miguel. E Teixeira Bastos
+escreve:
+
+ «Diante do desconsolador espectaculo que apresenta a sociedade
+ portugueza estrebuchando no esphacêlo, ha quem tenha perdido de todo
+ a esperança de regeneração; ha quem se persuada que estão
+ chegados os ultimos dias de Portugal. Com effeito, a agudeza da
+ crise, que talvez ainda esteja longo de seu termo, justifica em
+ grande parte este excesso de pessimismo.
+
+ «Portugal, como todas as nações contemporaneas, em maior ou menor
+ gráo, lucta com uma crise terrivel, que se revela sob aspectos
+ variadissimos. É uma crise politica, financeira, economica, mas
+ sobre tudo social e moral.»
+
+ Teixeira Bastos--A Crise, pag. 435.
+
+Esse estado geral do espirito e dos costumes portuguezes influiu
+poderosamente na producção artistica e litteraria d'aquelle tempo e na
+que se seguia.
+
+Na esculptura destaca-se a estatua de _Hermengarda_ em que o talento de
+Moreira Rato evoca para o marmore a alma dilacerada da heroina de
+Herculano, o pessimista glorioso, o desilludido sublime de Val de Lobos.
+
+Na architectura não surge cousa alguma que atteste a sublimidade do
+caracter nacional e o que havia de notavel, legado e herança do passado,
+soffre a influencia do desanimo, da indefferença, da tristeza geral que
+domina.
+
+É de Ramalho Ortigão o que se vae lêr:
+
+ «Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos
+ os attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a
+ mais desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos
+ architectonicos da nação...
+
+ «Dos desacatos de lesa-magestade nacional, a que tenho a dôr e a
+ vergonha de me referir, uns teem caracter anonymo, outros affectam
+ directamente a cumplicidade official. Os primeiros são uma
+ consequencia do desdem: os segundos são um resultado de incapacidade.»
+
+ Ramalho Ortigão.--_O culto da Arte em Portugal_, pags., 19 e
+ seguintes.
+
+Quanto á vida e a producção litteraria, o autor da _Talitha_ invoca o
+depoimento do grande critico portuguez; é elle quem affirma:
+
+ «Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de
+ abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver
+ egreja que os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na
+ arte de portugal faltam corações portuguezes.
+
+ «Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da
+ vida intellectual.
+
+ ..................................................................
+
+ «A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de
+ applicação e de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas
+ nevoentos, anti-meridional, e vem fallando uma lingua secreta,
+ cabalistica, interessantemente engenhosa, incomprehensivel para o
+ povo e para os que não estiverem iniciados na morphologia espiritica
+ das novas seitas.
+
+ «Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza
+ de critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de
+ apagada tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue
+ vermelho da raça, nem se retrata o genio do nosso povo, meigo,
+ docil, de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente sociavel,
+ amando a grande alegria estridente das feiras, das tardes de touros,
+ das romarias dos seus santos populares, conservando nas intimas
+ camadas sociaes um residuo trovadoresco, de palladino e de
+ menestrel, susceptivel ainda das paixões mais profundas, todo de
+ imposição e repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente
+ grandes, poetico, aventureiro e destemido.
+
+ «Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola
+ portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos
+ artistas, sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes,
+ sem lição commum, não ha entre elles mutuamente, nem entre elles e o
+ povo de que derivam, communhão alguma de ideal ou de sentimentos.»
+
+ Ram. Ortigão.--op. cit., pag. 110 e seguintes.
+
+ * * * * *
+
+Embora modesta a _Talitha_, embora sem merecimento o seu autor obscuro,
+como poderiam ambos--drama e escriptor--fugir a esse estado geral do
+espirito e dos costumes, de que falla Taine?
+
+Necessariamente deveriam obedecer á lei, e por isso apparece nos dois
+primeiros actos do drama essa dolorida tristeza que é o reflexo da
+situação geral da sociedade e que a desventura daquella familia, pela
+desventura da pequena Talitha, aggrava e apura com intensidade.
+
+ «D'autre part, l'artiste a été élevé parmi des contemporains
+ mélancoliques; partant, les idées qu'il a reçu et celles qu'il
+ reçoit encore tous les jours sont mélancholiques.
+
+ «La religion regnante, qui s'est accommodée au lugubre train des
+ choses, lui dit que la terre est un exil, le monde un cachot, la vie
+ un mal, et que toute notre affaire est de meriter d'en sortir»
+
+ H. Taine--op. cit., vol. I. pag. 65.
+
+Aliás é profundamente melancolica toda a obra litteraria portugueza
+desse tempo, muito principalmente na poesia.
+
+É um soluço de magua--o _Espirito Gentil_--de Luiz Ozorio; formam um
+rosario de amarguras--as _Orações do Amor_ de Antonio Fogaça; é um
+gemido crudellissimo o _Só_ de Antonio Nobre; é como um echo de
+Necropole--_Nada_--de Julio Dantas.
+
+No theatro, Marcellino de Mesquita lança a _Noite do Calvario_,
+reproducção profundamente dolorosa e triste de um acontecimento real da
+vida de um lar que o dramaturgo generalisa ás condições da vida social,
+aliás já cruelmente desvendada nos _Castros_.
+
+Para fugir á influencia da actualidade Julio Dantas recorre ao passado,
+á chronica, a historia e não consegue eximir-se á impressão da
+desventura: _O que morreu de amor_ é uma resurreição esmagadora de
+magua; a _Severa_ é um manto de crepe encobrindo um cenotaphio; _O serão
+nas larangeiras_ é uma ironia finissima, um esfusiar de espirito que
+occulta, mascára, e pinta um immenso abatimento moral.
+
+Gervasio Lobato passa nesse meio espalhando gargalhadas, ridiculo e
+_troça_ sobre a sociedade carcomida pela crise e acabrunha de pilherias
+a burguezia e a classe media no _Commissario de Policia_, no _Solar dos
+Barrigas_ e na _Lisboa em Camisa_, passando do palco ao romance.
+
+A _Velhice do Padre Eterno_ é uma _charge_ monumental sobre o
+ultramontanismo da sociedade religiosa: a _Patria_ é uma objurgatoria
+tremenda, um raio de colera olympica; os _Simples_, constituem um colar
+de lagrimas de uma jeremiada genial e as _Orações ao Pão e á Luz_ são as
+aspirações tantalicas do genio ao seio da excelsa divinisação da arte,
+como refugio extremo de uma alma que foge ás revoltas da terra para não
+cahir na lama das decomposições sociaes.
+
+A _Rosa engeitada_, de D. João da Camara, é a dôr vivendo e esmagando as
+almas; os _Velhos_, apezar do seu encanto bucolico e purissimo, é um
+crepusculo de sombras dôces.
+
+A _Cruz da Esmola_, de Eduardo Schwalbach, é a photographia nitida da
+tortura e do desespero...
+
+E tudo isso é a reproducção conscienciosa de um estado de pathologia
+social... a menos que a critica não attribua tudo isso á phantasia dos
+artistas pelo gozo requintado de esmagar a propria patria ao peso de
+calumnias...
+
+Mas neste caso como comprehender o collossal successo das obras
+extraordinarias de Ramalho Ortigão na critica, de Eça do Queiroz ao
+romance e de Raphael Bordallo na caricatura, profligando esse estado
+geral de espirito e de costumes como Alphonse Karr, Gavarni e Flaubert
+na alta cultura genial da França, em plena floração artistica e litteraria?
+
+O terceiro acto da _Talitha_ não destôa dos anteriores, a unidade não se
+quebra, transmitte-se, completa-se: a mesma suave melancolia dos
+primeiros conserva-se na narrativa da morte do sargento que _Ruy_
+communica a _Joaquina_ e no _raconto_ que das suas desventuras, faz a
+_Marqueza de Rilma_ ao velho cura João Fulgencio.
+
+A mesma serenidade christan dos primeiros actos paira no terceiro
+através da descripção em que _Talitha_, ao som dos sinos distantes da
+missa do gallo, conta a _Ruy_ e a _Joaquina_ a sua allucinação
+passageira e termina com a _Salve-Rainha_ rezada ao soluçar do orgam e
+ao repique da alvorada annunciando a missa d'alva.
+
+A alegria que vibra n'este acto é mais intensa, realmente, mas n'elle se
+encontram trez factos culminantes: a confirmação do noivado de Talitha
+pelo perdão da Virgem na visão da missa; a cura radical e milagrosa da
+sua cegueira e o apparecimento da mãe tanto tempo perdida.
+
+Mas a alegria não surge alli de surpresa, repentinamente: no primeiro
+acto ella vibra na scena final de amor em que as duas almas que se
+comprehendem recebem a benção da velha Joaquina surprehendendo-as na
+ventura do seu idyllio, e no segundo acto a primeira scena succede
+naturalmente a essa e os dois velhos ligam, plas recordações, a passada
+alegria de outros tempos, a que se vae em breve descerrar quando _Ruy_
+levantar definitivamente a venda aos olhos da redimida.
+
+Ahi a alegria vae á intensidade das lagrimas, é a tristeza que
+nasce das extremas emoções da felicidade que não é triste e, se
+momentaneamente desapparece quando _Talitha_ se deixa vencer pela fé
+religiosa e rompe o juramento de amor para cumprir o juramento do voto
+de clausura, de novo se reata e estala em um sorriso de supremo
+arrebatamento, quando a piedosa e santa mentira do _Cura_, depois da
+confissão, lhe relata o sonho da madrugada anterior em que elle viu
+rolar no espaço
+
+ no fulgor de uma estrella o beijo do perdão.
+
+ * * * * *
+
+A virtude daquellas almas!...
+
+E porque razão de alta monta o autor da _Talitha_ devia quebrar a
+verdade do facto observado, a unidade d'aquelle conjuncto que elle não
+phantasiou e que, felizmente, encontrou num dia da sua mocidade, em meio
+da crise social moral que caracterizava aquella época dolorosa de
+provações populares?
+
+Introduzir um personagem que não tivesse as mesmas qualidades de
+caracter seria deturpar os factos para obedecer ao _métier_, a
+carpintaria de theatro vencendo a moral na arte: um cumulo de estupidez.
+
+Além de tudo, inutil: a emoção dramatica, o effeito theatral são
+completos e seguros com a simplicidade daquellas cinco figuras, porque o
+Bem, a Virtude e a Harmonia encantam e commovem sempre, em todas as
+zonas e latitudes da terra.
+
+Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:
+
+ «O artista que emprega suas faculdades ao serviço de uma idéa
+ generosa não é menos artista por isso, se bem que não seja por isso
+ que elle é artista. O amor e a intelligencia do bem suppõem uma
+ concepção superior das condições da vida individual e social que é
+ preciso desejar a todos os artistas como a todos os homens...»
+
+ ..................................................................
+
+ «Entretanto ha uma observação a fazer neste ponto, é que parece mais
+ facil pintar o vicio do que a virtude. Balsac, que se sahiu
+ admiravelmente na pintura dos monstros, encalhava quasl sempre
+ quando era atacado pelos homens pudicos.
+
+ «Tão verdadeiros e vivos são os seus libertinos da alta o baixa
+ sociedade, como os outros, na maior parte do tempo, são ternos e mal
+ acanhados.»
+
+ Op. cit. pag. 32.
+
+Ainda mesmo quando o autor da _Talitha_ houvesse faltado á verdade dos
+factos que observou, teria tentado o problema, na opinião do estheta
+brazileiro, mais difficil de resolver: o estudo e a interpretação da
+Virtude o do Bem, na psychologia dos cinco personagens que jogam em
+scena a acção do seu obscuro poema lyrico.
+
+A critica indigena, ignorante ou perversa, petulante ou futil, feriu-se
+com as proprias armas.
+
+ * * * * *
+
+Que o autor da _Talitha_, sem prestigio para fazel-o, permittiu-se a
+liberdade de escrever um drama em verso, fórma litteraria que está
+totalmente banida do theatro moderno, supplantada pela prosa.
+
+
+É outra censura da critica indigena; espera-a a mesma sorte das
+anteriores: a critica é vesga e não sabe o que diz.
+
+Do theatro moderno ainda não foi banida a fórma alta e pura do verso:
+semelhante vandalismo seria uma violencia feita á arte, á belleza, ao
+bom gosto, á suprema lei do rythmo, para cujo excelso dominio tendem
+naturalmente todas as manifestações da vida e a linguagem da poesia do
+metro e da rima, a altissima elegancia.
+
+Moderno é Victor Hugo, gigante de oiro do theatro francez e escreveu em
+verso: _Esmeralda_, _Burgraves_, _Ruy Blas_, _Cromwell_, _Torquemada_,
+_Grandmère_, _L'Épée_, _Mangerontils?_, _Sur la lisière d'un bois_, _Les
+gueux_, _Étre aimé_, _La Forêt-mouillée_.
+
+Modernos são Paul Delair e Lomon e escreveram em verso os seus dramas
+_Garin_, _Jean Dacier_ e _Marquis de Kenilis_ que Zola critica
+asperamente na sua obra--_Naturalisme au Théâtre_.
+
+Moderno é Banville e produziu _Hymnis_, _Riquet à la houpe_ e _Socrates
+et sa femme_, tres comedias em verso.
+
+Moderno é Alphonse Daudet e entre as suas obras figura _Char_, comedia
+em verso, em um acto.
+
+Moderno é Alfred Musset e legou ao theatro da sua patria: _Les marrons
+du feu_, comedia; _A quoi rêvent les jeunes filles_, comedia; e _La
+coupe et les lèvres_, drama, todos em verso.
+
+Moderno é Ed. Pailleron e no seu theatro figuram _Narcotique_, comedia
+em um acto, e _Hélène_, drama em quatro actos, ambos em verso.
+
+Moderno é Ludovic Halévy, collaborador de Meilhac, e produziu, em verso,
+a _Phryné_ e _Nina, la Tueuse_.
+
+Modernissimo é Emile Augier, o grande mestre da litteratura dramatica e
+da carpintaria theatral e escreveu em verso a maior parte das suas
+peças. São em verso: _Cigüe_, _Paul Forestier_, _Homme de bien_,
+_Aventurière_, _Gabrielle_, _Joueur de flúte_, _Philiberte_ e
+_Jeunesse_.
+
+Moderno é Catulle Mendés e em 1872 dotou o theatro com a sua comedia em
+verso, _La Part du Roi_, em um acto; em 1888 fez representar a sua
+formosa phantasia, tambem em verso--_Isoline_, em tres actos; e em 1889
+produziu, ainda em verso, o drama em 6 actos--_Fiammete_; em 1906, punha
+em scena no Odéon, o seu drama _Glatigny_, tambem em verso.
+
+Modernissimo é Jean Richepin e, em 1905, fazia representar na Comédie
+Française o seu _D. Quichote_, em verso.
+
+Modernissimo é tambem André Arnymede, que em 1906 assombrava a critica
+parisiense com a representação triumphal de _La Courtisane_, em cinco
+actos e em verso.
+
+Modernissimo é Francis de Croisset e escreveu em verso os tres actos
+sensacionaes do Paon que subiu á scena na Comédie Française.
+
+Modernissimo é Emile Veyrin que viu os seus formosos versos dos quatro
+actos de _Embarquement Pour Cythère_, no palco do Theatro des Bouffes
+Parisienne.
+
+Modernissimo é Jacques Richepin e, em Abril de 1907, viu na ribalta da
+_Porte St. Martin_, os soberbos alexandrinos da _Majorlaine_, em cinco
+actos, depois de haver debutado com os versos admiraveis da _Reine de
+Tyr_, no theatro Sarah Bernhardt.
+
+Moderno é François Coppée, e em 1878, em collaboração com Armand
+d'Artois, produziu o drama em cinco actos _Guerre des Cent ans_; em
+1879, _Le Trésor_, comedia em um acto; em 1881, _Madame Maintenon_,
+drama em cinco actos e um prologo: em 1883, _Severo Torelli_, drama em
+cinco actos; em 1885, _Les Jacobites_, drama em cinco actos; em 1880,
+_Le Passant_, em um acto; e em 1888, _La Grève des Forgerons_, em um
+acto, e em 1905, _Scarron_, em cinco actos: e todos esses trabalhos são
+em verso.
+
+Rostand escreveu todos os seus dramas em verso: _Princesse Lointaine_,
+_Romanesques_, _Cyranno de Bergerac_, _Samaritaine_, _Ayglon_ e
+ultimamente os tres primeiros actos do _Chant-clair_...
+
+Miguel Zamacoix acaba de escrever e fazer representar em Paris pelo
+genio de Sarah Bernhardt, _Les Boufons_, em verso alexandrino, obra
+prima que a critica europea colloca, senão acima, ao lado do _Cyrano_.
+
+E ainda recentemente, em Outubro de 1906, a imprensa franceza se occupou
+de uma outra obra prima do talento de Catulle Mendés, em soberbos
+alexandrinos, de um mysticisco celeste, que se intitula _Sainte Thérèse_.
+
+Na Inglaterra, Robert Browning escreveu a tragedia historica _Strafford_
+e os dramas _Mancha no Brazão_ e _Regresso dos Deuses_, todos em verso.
+
+Na Italia, Gabriel d'Annunzio escreveu em verso os tres actos da _Filha
+de Jorio_, e fez representar por Eleonora Duse o seu grandioso monumento
+_Francesca da Rimini_, em verso, como em verso havia escripto pouco
+antes o seu extraordinario _Nerone_, o genio brilhante de Boito, e
+Cavalloti o seu formosissimo idylio _Cantico dei cantici_, em 1882.
+
+Na Hespanha, deixando de parte o _D. Juan Tenorio_, de Zorrilla: o
+_Trovador_, de Gutierres; a _Roda de la Fortuna_, de Thomaz Rubi, todos
+de 1850: Hartzemburch produziu mais recentemente _Los Amantes de
+Terruel_; _Alfonso, el Casto_ e _La Madre de Pelagio_, e Echegaray o seu
+conhecidissimo _Gran Galeoto_.
+
+E todos esses dramas são escriptos em verso.
+
+Em Portugal, João de Deus, o lyrico sublime, escreveu _Horacio e Lidia_;
+Eugenio de Castro, o revolucionario de genio, o extraordinario autor da
+_Belkiss_ e de _Constança_, acaba de publicar o _Annel de Polycrates_;
+Henrique Lopes de Mendonça, o _Duque de Vizeu_ e a _Noiva_:
+Fernando Caldeira, a _Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_; Marcellino de
+Mesquita, a _Leonor Telles_; Julio Dantas, a _Ceia dos Cardeaes_;
+Francisco Palha, a _Fabia_; Luiz de Magalhães, o _D. Quixote_, os dois
+ultimos para o Theatro Academico, de Coimbra, todos em verso; sómente
+para citar os escriptores da actualidade, deixando de parte _O Catão_ e
+a _Merope_ de Almeida Garrett e o _Camões_, de Antonio Feliciano de
+Castilho.
+
+Finalmente: em verso tambem escreveram no Brazil: Gonçalves de
+Magalhães, o _Olgiato_; Arthur Azevedo, o _Badejo_; Zeferino Brasil, o
+_Outro_ e Coelho Netto, _As estações_.
+
+A critica, portanto, ou é ignorante ou mentiu propositalmente.
+
+ * * * * *
+
+Mas a critica adiantou-se ainda: abriu dogmaticamente uma excepção: o
+verso em theatro só se admitte para as tragedias historicas.
+
+Outra cincada.
+
+Em Portugal, Fernando Caldeira deixou no theatro duas joias preciosas: a
+_Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_ que nem são tragedias, nem tem
+filiação alguma historica.
+
+Na Italia, Cavallotti legou á lilteratura dramatica um primor de
+lyrismo: o _Cantico dei cantici_ que não é tragico, nem historico.
+
+Em França, Catulle Mendès escreveu, em verso, os tres actos de _Isoline_
+e os seis do _Fiammette_ que nada tem a vêr com a historia, nem com a
+tragedia.
+
+François Coppée produziu _Le Trésor_, _Le Passant_, _La Grève des
+Forgerons_, todos em um acto e que não tem a minima relação com a
+tragedia, nem o menor vestigio de historia.
+
+No Brasil, o _Badejo_, de Arthur Azevedo, é uma comedia, o _Outro_, de
+Zeferino Brasil, um drama; _As estações_, de Coelho Netto, uma
+phantasia, todos em verso, sem relação alguma com a historia ou com a
+tragedia.
+
+A critica indigena
+
+ «appartient à ce monde de paresseux qui font chaque soir une grande
+ oeuvre, en buvant une chope; seulement, le lendemain, ils ont sommeil
+ et ne trouvent pas le temps d'ècrire la grande oeuvre. «La vie se
+ passe, l'âge arrive, ils restent des debutants.»
+
+ Zola, _La critique Contemporaine_, pag. 351.
+
+Entretanto, René Doumic, um mestre da critica, escreve na _Revue des
+Deux Mondes_:
+
+ «Je voudrais seulement que les poètes qui se sentent une vocation
+ d'auteurs dramatiques ne s'imaginent point que le succès ne peut
+ être obtenu par eux, à la scène, qu'en nous narrant des histoires
+ romantiques ou des féeries.»
+
+E Gaston Sorbets conclúe:
+
+ «M. René Doumic á assurément raison: la poesie dramatique est faite
+ anssi pour exprimer les mouvements les plus profonds de notre coeur
+ ou les aspirations les plus hautes de notre âme. Il suffit de voiler
+ de poesie la Verité nue pour faire de cette divinité une muse
+ nouvelle.»
+
+Deixemos vociferar os maldizentes: nós ficamos com os criticos que sabem
+sentir e... lêr.
+
+ * * * * *
+
+Os zoilos que se lançaram á modestissima _Talitha_, censuraram ao seu
+autor o atrevimento inaudito de não observar a regra do Theatro francez
+de Corneille e Racine, que manda emparelhar systematicamente os graves e
+agudos na symetria inalteravel prescripta por aquellas duas autoridades.
+
+Mas a critica, absolutamente não tem competencia para impôr aos
+escriptores brazileiros, por muito modestos e insignificantes que sejam,
+as leis e as regras da arte poetica franceza.
+
+Se a obra d'arte é portugueza ou brazileira, o auctor não se submette ás
+leis da poetica franceza: observa os modelos nacionaes e portuguezes.
+
+E, sem receio de ser contestado por quem quer que seja, o autor da
+_Talitha_ affirma: não ha poeta algum na lingua de Camões, quer no
+theatro, quer fóra delle, que obedeça ás exigencias das prescripções
+francezas, que, aliás, o proprio Corneille, invocado pela critica, não
+seguiu nem adoptou na _Imitation de Christ_:
+
+ «Le desir de savoir est naturel aux hommes:
+ il nait dans leur berceau sans mourir qu'avec eux
+ mais, ô Dieu, dont la main nous fait ce que nous sommes,
+ que peut-il sans ta crainte avoir de fructueux?
+
+ Liv. I, Chap. II.
+
+ «Vanité d'entasser richesses sur richesses,
+ Vanité de languir dans la soif des honneurs,
+ Vanité de choisir pour souverains bonheurs
+ de la chair et des sens les damnables caresses.
+
+ Liv. I, Chap. I.
+
+ «Vraiment grand est celui qui dans soi se ravale
+ qui rentre en son néant pour s'y connaitre bien,
+ qui de tous les honneurs que l'univers étale
+ craint la pompe fatale,
+ et ne l'estime en rien.
+
+ Liv. I, Chap. III.
+
+Victor Hugo, o mestre supremo, tambem não obedeceu invariavelmente a
+esta regra que a critica pretende impôr dogmaticamente, como immutavel.
+
+Vejamos na _Esmeralda_, acto I:
+
+ «Nous irons au clair de lune
+ danser avec les esprits...
+ Vive Clopin, roi de Thune!
+ Vivent les gueux de Paris!
+
+ «Au milieu de la ronde infame
+ qu'importe le soupir d'une ame?
+ Je souffre! oh! jamais plus de flamme
+ au sein d'un volcan ne gronda.
+
+Em _La Forêt mouillée_, Scene II:
+
+ «Les moutons promis aux fourchettes
+ Passent là-bas; j'entends leurs voix
+ Sonnez, clochettes,
+ au fond des bois.
+ Le beau Narcisse est en manchettes;
+ Silène a mis toutes ses croix.
+
+Rostand, o impeccavel, na _Samaritaine_, tambem não se subordinou
+absolutamente a essa regra, como se vê logo na primeira scena:
+
+ «Poussé par la brise des nuits,
+ et vagabond jusqu'à l'aurore,
+ je viens pour des fins que j'ignore,
+ comme un fantôme que je suis.
+ D'une sandale sonore
+ je viens, je glisse et je m'enfuis...
+ Mais, ô Jehovah que j'adore!
+ quelle est cette grande ombre encore
+ qui se tient debout près du puits?
+
+e assim prosegue o genial poeta em toda essa scena que se compõe de
+cento e nove versos.
+
+E para que não diga a critica perversa que n'esses exemplos não ha
+alexandrinos, aqui ficam estes alexandrinos, ainda do I acto, scena V,
+em que Photina declama:
+
+ «Mon bien aimé--je t'ai cherché--depuis l'aurore,
+ Sans te trouver,--et je te trouve,--et c'est le soir;
+ Mais quel bonheur!--il ne fait pas--tout a fait-noir:
+ mes yeux encore
+ pourrent te voir.
+
+e assim por toda a _fala_ de Photina, gue se compõe de mais de vinte
+nove versos.
+
+Na lingua portugueza, porém, não ha um poeta sequer que obedeça á regra
+da metrica franceza, nem no drama, nem no poema.
+
+Junqueiro, na _Morte de D. João_, na _Musa em ferias_, na _Velhice do
+Padre Eterno_, na _Patria_, ou nos _Simples_ usa indistinctamente as
+rimas agudas, graves, e esdruxulas, emparelhadas, ou alternadas.
+
+ «O pensamento humano
+ mergulhou como um Deus nas grutas do oceano,
+ embebeu-se no azul, andou pelo infinito,
+ interrogou a historia, os ventos, o granito,
+ todas as creações, todas as creaturas,
+ vermes, religiões, abysmos, sepulturas,
+ e disse-nos: Jesus, Socrates, Platão
+ fallaram a verdade. Existe uma rasão,
+ uma ideia, uma lei, mysteriosa, etherea,
+ que rege o movimento e as formas da materia...
+
+ _Morte de D. João._--Introducção, pag. 31.
+
+ * * * * *
+
+ «Hediondo! assassinar um homem que assassina!
+ Collocar o direito ao pé da guilhotina.
+ Resolver a questão do crime--um cemiterio!
+ Sanccionar Papavoine e decretar Tiberio!
+ Um carrasco de guarda á nossa segurança!
+ O pelotão--juiz e o tribunal--vingança!
+ E é uma coisa que indigna, um facto que comove,
+ que quasi ao terminar o seculo dezenove
+ pensem como Marat, pensem como Cain
+ as leis no velho mundo e o tigre em Bombaim!
+
+ _Musa em férias_; Idilios e Satiras, pag. 137.
+
+Julio Dantas, o brilhante poeta da _Ceia dos Cardeaes_ tambem não
+adoptou a regra que a critica indigena pretende nacionalizar.
+
+ Xerez.
+ «Roma! Roma que viu, pela primeira vez,
+ Beneditto XIV, um papa,--a receber
+ Conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire!
+ ............................................
+
+ «As cartas de Voltaire, honram!
+ ... É natural
+ fala como francez.
+ ... Fala como cardeal!
+ ............................................
+
+ «Mas perdão... Não será politica de mais
+ para uma ceia alegre? Emfim trez cardeaes
+ não salvam Roma...
+
+Como se vê, Julio Dantas, empregou successivamente dez agudos.
+
+E esse arrojo do eminente poeta portuguez não impediu que a _Ceia dos
+Cardeaes_ tivesse oito traducções em allemão, francez, italiano,
+hespanhol e no dialeto catalão, nem evitou que fôsse representada mais
+de quatrocentas vezes.
+
+Entre os poetas brasileiros bastará citar dois nomes de primeira
+grandeza: Alberto de Oliveira e Goulart de Andrada; nenhum se submette á
+exigencia franceza da critica indigena.
+
+A _Cruz da montanha_ do primeiro é um poemeto de 126 alexandrinos. Em
+toda essa obra prima não ha dois versos agudos e apenas se encontra uma
+parelha de esdruxulos.
+
+Observa-se o mesmo phenomeno em varias outras composições como--_A
+Enchente_, com 76 alexandrinos; a _Lagarta_, com 124 versos de vario
+metro, onde apenas ha 14 rimas agudas: _Atmo_, com 88 alexandrinos,
+entre os quaes apenas dois esdruxulos e nem um agudo.
+
+ * * * * *
+
+_Ascenção perigosa_, de Goulart, é uma poesia composta de 44
+alexandrinos, dos quaes apenas quatro são esdruxulos e nem um agudo.
+
+_Apocalypse_ é formado de 158 alexandrinos: nem um agudo, sómente dois
+esdruxulos.
+
+ * * * * *
+
+E a razão é simples, é natural, é formidavel: o idioma francez é
+abundantissimo de agudos e o portuguez é, relativamente, pauperrimo.
+
+Para observar inalteravelmente a regra franceza que a critica pedante e
+fátua pretende impôr vaidosamente, depressa ficariam exgottadas as rimas
+agudas e o poeta incidiria na repetição das consoantes, o que constitúe
+o defeito da pobreza de rimas, acremente censurado pela critica.
+
+Além disso, os francezes não conhecem as palavras esdruxulas, ao passo
+que a lingua vernacula é riquissima d'esses vocabulos e, a ser observada
+na poesia dramatica portugueza e brazileira a lei da arte de Corneille e
+Racine, os poetas lusitanos e patricios vêr-se-iam obrigados a escrever
+alternadamente os seus versos em parelhas systematicas de esdruxulas,
+graves e agudas, o que seria, além de fatigante e exhaustivo, de um
+rebuscamento torturado, monotono, somnolento.
+
+O obscuro autor da _Talitha_ preferiu deixar expandir-se naturalmente o
+pensamento proprio, de accordo com a alma dos personagens: o verso e a
+rima já de si são condições impostas pela exigencia artistica,
+apurar essa exigencia com o requinte de uma symetria dispensavel,
+equivaleria a torturar os sentimentos das figuras que se movem na acção
+dramatica.
+
+O facto de ser uma regra de Corneille e de Racine tambem geralmente
+seguida por outros poetas modernos--o emprego alternado de dois agudos e
+dois graves, não evita a monotonia, principalmente quando se traduz o
+pensamento de um personagem ou se reproduz um vulto historico: na vida
+real ninguem se exprime por essa fórma.
+
+Entretanto, admittidos geralmente o verso e a rima, o poeta deve quanto
+possivel, para evitar a monotonia, variar o rythmo, o metro e o
+encadeamento da rima: as difficuldades artisticas e technicas não são
+excluidas por esse criterio, conservam-se; a monotonia desapparece e o
+pensamento, exprimindo-se com mais liberdade, permitte melhor estudo da
+psychologia dos personagens, e mais vigor descriptivo.
+
+O proprio autor da _Talitha_ verificou praticamente o que acaba de
+affirmar quando escreveu a _Visão de Colombo_, em um acto, obedecendo
+systematicamente á regra da poetica franceza e emparelhando os
+alexandrinos por ordem de rimas agudas, graves e esdruxulas em toda a
+extensão do poema dramatico, formado de quatro centos e poucos versos,
+sem repetição de rimas.
+
+
+Ramalho Ortigão ensina:
+
+ «não são as academias que pautam as proposições e os limites da
+ creação artistica. Tudo o que se pode formular em preceito cessa de
+ ter valor em arte. A obra de arte não é um producto de escola: é a
+ livre expressão individual de uma alma, convertida em realidade
+ objectiva e communicando aos homens uma vibração nova de
+ sentimento.
+
+ «A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua cathegoria,
+ deduz-se da maior ou menor quantidade de ideias que a sua obra
+ suggere e dos sentimentos cuja percussão ella determina.»
+
+ Op. cit., pag. 145.
+
+Adherbal de Carvalho doutrina:
+
+ «É no sentido da liberdade que em geral se faz todo o progresso; é
+ neste sentido que tambem se deve fazer todo o progresso do verso.
+
+ «A liberdade do rythmo era muito insufficiente entre os romanticos.
+ Vimos que a consequencia é a pobreza, a esterilidade do proprio
+ pensamento; porque a forma do verso reage sobre o cerebro do poeta.
+ O remedio seria a auzencia de estorvo sem fim, a suppressão de
+ regras não racionadas: liberdade é fecundidade.»
+
+ Op. cit., pag. 282.
+
+E depois d'essas duas sentenças, atreve-se o autor da _Talitha_ a
+perguntar á critica indigena como será possivel arvorar em preceito
+obrigatorio de arte poetica da nossa lingua, a regra de Racine e
+Corneille, quando a tendencia moderna é para supressão da rima e para a
+cultura extremada do rythmo no verso branco?
+
+A falla de _Cacambo_ e o episodio da morte de _Lindoya_ no _Uruguay_ de
+Basilio Gama nada perderam em valor artistico pela falta de rima: o
+_Colombo_ de Araujo Porto Alegre encerra verdadeiras maravilhas em verso
+branco; Alexandre Herculano, que foi um cinzelador do verso, na _Harpa
+do Crente_ deixou primorosos lavores em verso solto.
+
+Anthero Quental, cujas _Odes modernas_ arrancaram a Michelet uma soberba
+explosão de espanto
+
+ «Se em Portugal ainda houver quatro ou cinco homens como o poeta das
+ _Odes modernas_, Portugal continuará a ser um grande paiz vivo.»
+
+Anthero legou nessa obra monumental pequenos monumentos em verso branco.
+
+E para não fallar na _D. Branca_ de Garrett, todo escripto em versos
+soltos, bastará citar os livros admiraveis de Correia de Oliveira: _Ara_
+e _Raiz_, demonstração brilhante de que a obrigatoriedade da rima tende
+a desapparecer cedendo á liberdade do pensamento.
+
+O velho mestre Antonio Feliciano de Castilho, na sua Arte poetica,
+escreveu:
+
+ «Os versos agudos, pelo seu modo secco estalado de acabar, sem
+ elasticidade, sem vibração, se assim o podemos dizer, teem o que
+ quer que seja de ingrato ao ouvido; seriam insoffriveis, se alguem
+ se lembrasse de nol-os dar enfiados aos centos e aos milheiros, como
+ os graves nos apparecem, sem nos cançarem: demais por isso mesmo que
+ os vocabulos agudos são menos frequentes, d'ahi tiram os versos
+ agudos um quid de exhibição e exquisitice que não parece frisar
+ senão com as idéas extravagantes, comicas, brutescas ou satyricas.
+
+ «Do expendido por boa razão se infere: l.º que em toda e qualquer
+ especie de metro são os versos graves que devem, predominar.»
+
+A critica pretenciosa e petulante indicadora de regras de arte
+rebella-se contra a autoridade incontestavel e consagrada de Antonio
+Feliciano de Castilho e quer que em versos portuguezes o autor da
+_Talitha_ adopte a regra franceza, que equipare agudos e graves e os
+manda empregar em numero igual, symetrica e systematicamente dispostos
+em parelhas alternadas.
+
+O autor da _Talitha_ não adoptou a regra de Castilho mas tem ao seu
+lado, para apoiarem o seu procedimento, as autoridades dos rebeldes
+Junqueiro, Feijó, Luiz de Magalhães, Lopes de Mendonça, Julio Dantas,
+Eugenio de Castro, Antonio Nobre, Gonçalves Crespo, Marcellino de
+Mesquita, Fernando Caldeira que não a observaram, nem se
+submetteram á lei de Corneille e Racine, e, o que é tudo, do proprio
+Antonio Feliciano de Castilho que não adoptou a regra franceza na
+composição dos alexandrinos emparelhados.
+
+Isso em Portugal, porque no Brasil o autor da _Talitha_ encontra apoio
+para o seu procedimento em Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Goulart de
+Andrada, Martins Fontes, Guimarães Passos, Luiz Murat, Machado de Assis,
+Valentim Magalhães, Lucio Mendonça, Oscar Lopes, Pereira da Silva,
+Emilio Menezes, Frota Pessoa, Flexa Ribeiro, Zeferino Brasil e Coelho
+Netto que não consideram a technica franceza como adaptavel ao verso
+portuguez, se bem que discretamente observem a opinião de Castilho,
+relativamente á proporção das rimas agudas e graves.
+
+Ora, a critica indigena, ainda rescendendo aos aromas equivocos da
+primeira infancia, ha de permittir que o autor da _Talitha_ prefira as
+autoridades artisticas de dois hemispherios, acima citadas, ao
+impertinente pedantismo da incompetencia de quem, em materia de
+autoridade litteraria, não chegou ainda se quer á categoria de
+trintanario do _Pegaso_, na estrebaria de Augias.
+
+ * * * * *
+
+A critica indigena censura a pobreza de rima da _Talitha_: não tem razão.
+
+A _Ceia dos Cardeaes_ é uma obra prima: assim o prégou a critica, assim
+a considera a opinião.
+
+Pois bem; essa joia tem 338 versos; o primeiro acto da _Talitha_
+compõe-se de 492.
+
+A _Ceia dos Cardeaes_ tem apenas 66 rimas diversas; o primeiro acto da
+_Talitha_ dispõe de 127 rimas differentes: a proporção naquella é de 5%,
+nesta é de 25%.
+
+Na _Ceia dos Cardeaes_ ha apenas 31 rimas que não foram repetidas; no
+1.° acto da Talitha ha 80.
+
+Na primeira, a obra prima, essa proporção é de 9%, na _Talitha_, a
+condemnada, a proporção é de 17%. A critica indigena tem cabellos na
+lingua e fel no coração.
+
+A _Samaritana_ é a obra prima de Rostand, assim a julgou a critica
+europea, assim a julga o proprio poeta.
+
+O primeiro acto d'essa joia magestosa tem 808 versos.
+
+Pois bem: entre esses ha 322 repetições, apenas em 17 rimas.
+
+Poder-se-ia fazer o confronto dos tres actos: basta esse que ahi fica
+para demonstrar que a critica nem soube o que disse, nem sabe o que é
+pobreza ou riqueza de rima.
+
+A opulencia de rima póde ser exigida em composições poeticas esparsas,
+que não tenham grande extensão, mas em um poema dramatico essa exigencia
+da critica é despotica, é absurda, principalmente quando os personagens
+que o movimentam são da especie daquelles que figuram no entrecho da
+_Talitha_.
+
+Collocar nos labios de _Joaquina_ versos de rima escolhida, apurada, sem
+repetições de termos que andam constantemente na conversa commum,
+substituindo estes por palavras rebuscadas nos diccionarios de rimas,
+sómente para que a critica se extasie deante de uma riqueza phantastica,
+equivaleria a falsear a natureza intima do personagem e fazer de uma
+santa e simples mulher vulgar da aldeia, uma pretenciosa ridicula; a
+espontaneidade do escriptor desappareceria para dar logar ao
+rebuscamento, o artista seria supplantado pelo artifice, o poeta pelo
+rimador, o sentimento pela paciencia.
+
+A opulencia da rima importaria necessariamente na elevação da
+linguagem e a critica deixa de ser logica exigindo por essa fórma o que
+já condemnára, considerando alcandorada em demasia para personagens de
+aldeia a linguagem que o autor da _Talitha_ confiou a cada um d'elles.
+
+Nos acontecimentos vulgares da vida de aldeia as palavras são simples,
+corriqueiras; o vocabulario dos aldeãos é pouco extenso e
+tradicionalmente consagrado: ha phrases peculiares, ha para cada facto
+da vida, póde-se dizer, um termo que não se substitue, um conceito
+consagrado pelo uso immemorial; o mesmo sentimento, traduzido por outros
+termos, em phrase diversa, não é comprehendido.
+
+O eminentissimo critico e brilhante espirito de estheta brasileiro o
+notavel mestre da lingua vernacula, Snr. José Verissimo, doutrina
+superiormente:
+
+ «O grande escriptor em todas as linguas é o que escreve e consegue
+ todos os effeitos da sua arte com o vocabulario corrente, não só do
+ povo--que é realmente pobre--mas da litteratura do seu tempo.»
+
+ Citação de Elysio de Carvalho no livro--_As modernas correntes
+ estheticas_, pag. 27.
+
+Em taes condições, se o dialogo, apezar de ser em verso, deve reflectir,
+quanto possivel, as condições normaes da vida e do personagem, attribuir
+a este a expressão dos seus affectos, das suas dôres, das suas alegrias,
+dos seus desejos ou das suas esperanças, por meio de palavras em rima
+opulenta, será desnaturar o personagem, será mentir á realidade, será
+phantasiar um typo que a natureza local reproduzida no theatro, não
+creou na vida real.
+
+Comprehende-se essa exigencia na alta tragedia historica ou sacra, ou
+ainda nas phantasias mythologicas: alli, sim, a linguagem póde e deve
+ser alcandorada sem inverosimilhança, os personagens vem
+distinguidos pelo prestigio da historia, da Biblia, do sobrenatural, que
+substituem toda a realidade objectiva.
+
+A admiração, a fé e a idolatria pódem crear os maiores absurdos: Esopo,
+Phedro, Lafontaine fizeram falar os animaes em verso sublime, limado,
+terso, brilhante, sonóro, de rima opulentissima.
+
+Zola escreveu:
+
+ «C'est, je le répète, le seul cadre ou j'admets, au theatre, le
+ dedain du vrai. On est là en pleine convention, en pleine fantaisie,
+ et le charme est d'y mentir, d'y échapper a toutes les realités de
+ ce bas monde.
+
+ ..................................................................
+
+ «Jamais les auteurs ne se trouvent acculés par la vraisemblance et
+ la logique: ils peuvent aller dans tous les sens, aussi loin qu'ils
+ veulent, certains de ne se heurter contre aucune muraille.
+
+ ..................................................................
+
+ «La comédie et le drame, au contraire, sont tenus à être
+ vraisemblables.»
+
+ Zola. _Le Naturalisme au théâtre_, pag. 357, 358.
+
+Mas João de Deus, que foi em Portugal «a mais completa encarnação do
+lyrico apaixonado, sem entraves positivos, sem preoccupações
+estylisticas visando á erudição», que foi «sentimento singelo, o amor,
+esse amor portuguezissimo, em palavras singelas, versos de medida
+simples e estylo simples», João de Deus que cantou a simpleza rural da
+sua terra, a alma dôce do povo e dos campos, esse «que é o lyrico mais
+portuguez» como considera Fidelino Figueiredo, «um grande scismador e um
+grande artista, que não tem artificios na sua poesia, singela como todos
+os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de
+creança, suave e consoladora como uma parábola de Christo, serena e
+luminosa como um dialogo de Platão», no dizer profundo de Alexandre da
+Conceição, João de Deus não se preoccupou com a opulencia da rima, nem
+mesmo quando escreveu para o theatro aquella encantadora phantasia em um
+acto _Horacio e Lydia_, romana pelo assumpto, grega pela technica.
+
+Ora, a _Talitha_ é composta de 1873 versos de varios metros,
+predominando o alexandrino.
+
+Para demonstrar opulencia de rima, o obscuro autor da _Talitha_ reservou
+as suas modestas poesias esparsas, entre as quaes figura a _Ode ás
+Arvores_, dedicada a Coelho Netto, ode essa que se compõe de 312
+alexandrinos, e não tem sequer uma rima repetida, além da grande
+abundancia de vocabulos cuja difficuldade de rima é conhecida.
+
+Um dos zoilos da Talitha, com o intuito de provar que os tres actos
+d'esse evangelho são indigentes de rima, nota que no 2.° acto a palavra
+enferma rima com erma e no 3.° acto tambem enfermo rima com ermo.
+
+E o zoilo exclama:
+
+ «Para _Enfermo_ o poeta encontrou apenas a rima _ermo_, uma rima
+ pobrissima.»
+
+Mais pobre de espirito é o critico.
+
+A _Talitha_ compõe-se de 1873 versos; quatro vezes apenas o maldizente
+encontrou a rima em _erma_, ainda assim uma vez no masculino e outra no
+feminino, e fulmina a censura:
+
+ «o poeta só encontrou a rima _ermo_ para _enfermo_, rima pobrissima.»
+
+Ignorante, perverso, futil, ou lorpa.
+
+Pois bem, o autor da _Talitha_ consultou os diccionarios de rima de
+Castilho e de Alencar, duas autoridades na materia, e para _enfermo_
+apenas encontrou _ermo_, _termo_ e _estafermo_. As duas primeiras foram
+applicadas, uma no segundo, outra no terceiro acto.
+
+Quanto á terceira--_estafermo_--o poeta da _Talitha_ só a poderia
+utilizar se fizesse referencia ao critico.
+
+Para agradar á sua opinião e corresponder á sua exigencia, o zoilo
+pretende que o autor da _Talitha_ deveria forgicar palavras,
+neologismos, sómente com o fim de não repetir a rima!
+
+Mas se essa rima é pobrissima, que culpa tem o autor da _Talitha_, se a
+lingua apenas lhe faculta, além dessa, mais duas, uma das quaes
+pertencente ao calão?
+
+Entretanto o critico mentiu: no segundo acto a rima de _enferma_ é
+_erma_; no terceiro acto á palavra _enfermo_ foi dada a rima--_termo_.
+
+2.º acto, pag. 64:
+
+ «seria bem melhor que cuidasse da enferma,
+ que vive ali no escuro abandonada e erma»
+
+3.º acto, pag. 89:
+
+ «de acudir pressuroso ao leito dum enfermo
+ ardendo em alta febre e bem proximo ao termo
+ d'uma longa existencia...»
+
+Eis ahi ao que se reduz a censura do zoilo: á mentira.
+
+ * * * * *
+
+Por ultimo a critica indigena censura o autor da _Talitha_ por ter
+escripto o drama em tres actos afim de apresentar, desnecessariamente,
+no terceiro, a _marqueza_, mãe da heroina.
+
+E a critica, em ar de pilheria, pede um quarto acto para que appareça
+tambem o Pae de _Talitha_.
+
+O autor não teria duvida em satisfazer o desejo da critica, escrevendo
+mais dois actos para apresentação da sogra de _Talitha_, se tambem a
+critica de outra tempera, a critica elevada e honesta, não houvesse
+solicitado a redacção dos tres actos simplesmente aos dois primeiros
+para que esse obscuro trabalho
+
+ «seja legado pelo autor ao seu paiz, como um thesouro, refundindo-a,
+ cortando as scenas a mais, deixando-a nos dois actos primeiros mais
+ o milagre e a oração; assim _Talitha_ será um primor litterario...»
+
+ Critica da _Tribuna do Rio_.
+
+
+ «O drama é magnifico. E porque não dizer o melhor drama que se tem
+ escripto no Brazil?»
+
+ Critica da _Gazeta de Noticias_, do Rio.
+
+
+ «Os tres actos do Sr. Pinto da Rocha dão a quem os ouviu a
+ satisfação rara e salutar que só produzem as obras de arte, erguidas
+ severamente com a segurança de que só é capaz a sinceridade.»
+
+ Critica do _Paiz_, do Rio.
+
+
+ «...mas os bons versos, as rimas felizes e inesperadas abundam na
+ peça, que fica sendo um dos mais bellos poemas da nossa litteratura.
+
+ «... pois nao ha muito disso por toda essa America afóra.»
+
+ Arthur Azevedo--Critica da _Noticia_, do Rio.
+
+Á critica indigena, rasteiramente inspirada pelo odio e pela paixão
+politica, o autor da _Talitha_ contrapõe a critica da imprensa do Rio.
+
+Será vaidosa a citação d'essas opiniões, mas o obscuro autor da
+_Talitha_ tem orgulho do seu trabalho e esse orgulho é como a
+soberbia das mães que beijam os filhinhos aleijados e loucos, tendo-os
+no coração como as imagens incomparaveis da suprema formosura.
+
+A _Talitha_ não será brasileira porque o assumpto e os personagens são
+portuguezes; não será portugueza porque o seu autor não teve a
+felicidade de nascer em Portugal, mas...
+
+Mas a _Talitha_ é mais que portugueza, mais que brazileira, é humana.
+
+Mas a _Talitha_ é minha... É o producto do meu espirito, do meu
+trabalho, é filha da minha mocidade...
+
+É modesta, é pauperrima, e futil, mas é minha.
+
+E a critica indigena dos zoilos que produziu? Nada, absolutamente nada;
+póde viver noventa annos, como Sárah, não haverá Abrahão na terra que
+lhe arranque um Isaac das entranhas...
+
+Os zoilos são admiraveis, sabem tudo e não fazem cousa alguma.
+
+Conhecem perfeitamente a patria, sob todos os aspectos, desde a
+fecundidade uberrima da terra aos esplendores astraes do céo; desde a
+constituição intima da familia á grandeza fulgurante da historia.
+
+Os primores da paysagem, a belleza e a simplicidade dos costumes, os
+encantos da musica popular e da poesia anonyma, a bravura dos homens com
+o typo legendario do gaúcho, a formosura das mulheres inspirando os
+altos feitos heroicos, o mysterio das florestas que dá o aspecto
+profundo á alma do povo, a vastidão das campinas que modela a franqueza
+limpida das consciencias, o desdobrar ondulante das cochilhas que
+imprime ao typo riograndense a epopeia da nossa historia, os vultos
+homericos dos nossos guerreiros, a envergadura dos nossos estadistas, a
+intelligencia dos nossos escriptores, a obra dos nossos politicos, tudo
+isso a critica dos zoilos conhece... _à merveille_.
+
+Sabe ella que o verso está banido do theatro moderno e só é admittido
+nos assumptos historicos ou nas phantasias caprichosas dos sonhos e
+devaneios litterarios; sabe ella que os alexandrinos devem ser
+emparelhados á maneira de Corneille e Racine, alternando-se agudos e
+graves, na symetria impeccavel de parallelas geometricamente exactas;
+sabe ella que o rythmo do verso não deve ser apenas o junqueireano para
+evitar a monotonia: sabe ella que a rima deve ser opulenta: sabe que no
+theatro moderno a prosa supplanta o verso, porque se presta melhor ás
+exigencias do estudo da psychologia dos personagens; que a escola
+romantica foi batida pelo naturalismo; que hoje os exemplos a seguir não
+são os d'Ennery, os Augier, os Scribe, os Labiche, os Dumas, os Meilhac:
+que os modelos acceitaveis são Suderman, Ibsen, Hauptmann Bjornsen; tudo
+isso a critica dos zoilos sabe perfeitamente.
+
+Além disso a critica tem talento, tem erudição, tem admiradores, tem
+bibliothecas, tem a vida garantida e facil pela munificencia do thesouro
+publico, tem o apoio da sociedade, não sabe o que seja a amargura da
+lucta pela existencia...
+
+Entretanto as horas passam, os dias correm, os mezes flúem, os annos se
+succedem e a critica deixa em abandono todo esse material soberbo e
+magestoso, esquece todos esses elementos de incomparavel riqueza, e não
+produz absolutamente nada.
+
+Atravessa a existencia, como um janota futil que vive preoccupado com a
+coloração garrida das gravatas, com o brilho frio dos collarinhos, com o
+figurino do fato, empanturrando-se da leitura _à la diable_, maldizendo
+do tudo e de todos e vivendo de um usofructo que a sociedade constituiu
+pelo trabalho accumulado exactamente d'aquelles que a critica dos zoilos
+alveja, fere, offende e babuja.
+
+Vive para gozar e maldizer.
+
+A critica indigena dos zoilos é como o Sahára: esterilidade completa,
+beduinos e camellos.
+
+Á caravana dos zoilos, o deserto e a receita de Ezequiel.
+
+ Pinto da Rocha
+
+
+
+
+Livraria Chardron
+
+De LELLO & IRMÃO
+
+RUA DAS CARMELITAS, 144--PORTO
+
+ GARCIA REDONDO
+
+ Salada de fructas, 500
+ Atravez da Europa, 500
+ Cara alegre, no prélo
+ A mulher--manias e cacoetas, no prélo
+
+ MANOEL ARÃO
+
+ Transfiguração, 1 vol., 1$000
+
+ COELHO NETTO
+
+ Esphynge, 600
+ Sertão, 600
+ Agua de Juventa, 700
+ A Bico de penna, 700
+ Romanceiro, 500
+ Theatro, 400
+ Jardim das Oliveiras, 500
+ Quebranto (theatro), 1 vol, 800
+ Fabulario, 500
+ Miragem, romance, 1 vol., 600
+ Apologos, no prélo
+ Fé, no prélo
+ Theatro, 1.º vol., no prélo
+ Mysterios do Natal, no prélo
+
+ JOÃO GRAVE
+
+ Os famintos, 500
+ A eterna mentira, 600
+ O ultimo fauno, 500
+ O Passado, no prélo
+
+ SHAKESPEARE
+
+ Sonho d'uma noite de S. João, 1 vol., 600
+ Rei Lear, 1 vol., 400
+ Romeu e Julieta, 1 vol., no prélo
+ Hamlet, no prélo
+ Othello, no prélo
+
+ OSCAR LOPES
+
+ Conferencias, 1 vol., no prélo
+
+ MAYER GARÇÃO
+
+ Excelsior, 500
+
+ CARMEN DOLORES
+
+ Ao esvoaçar da ideia, no prélo
+ Alma complexa, no prélo
+
+ IHERING
+
+ Lucta pelo direito, no prélo
+
+ THOMAZ LOPES
+
+ Paysagens d'Hespanha, no prélo
+
+ TAVARES BASTOS
+
+ Instituições juridicas na Republica, no prélo
+
+ JOÃO DO RIO
+
+ Cinematographo, 700
+ Frivola-City, no prélo
+
+ BENTO CARQUEJA
+
+ O Capitalismo Moderno e suas Origens em Portugal, 1 vol. broch., 500
+ O Futuro de Portugal, 1 volume, no prélo
+
+ EUCLYDES DA CUNHA
+
+ Á margem da historia, 1 volume, no prélo
+
+ SYLVIO ROMERO
+
+ Discursos, 1 vol., 600
+ Martins Penna, 1 vol., 400
+ America latina, 1 vol., 500
+ Provocações e debates. 1 v., no prélo
+
+ LUIZ MURAT
+
+ Ondas, 1 vol., no prélo
+
+ VICENTE DE CARVALHO
+
+ Versos da Mocidade, no prélo
+ Poemas e Canções, no prélo
+
+ THOMAZ DA FONSECA
+
+ Os Desherdados (versos), 500
+
+ TUDE DE SOUZA
+
+ A Serra do Gerez, 1 vol., 500
+
+ MANOEL DA SILVA GAYO
+
+ Torturados, romance, no prélo
+
+ ALCIDES MAIA
+
+ Ruinas, no prélo
+
+Envia-se gratis o CATALOGO GERAL a quem o requisitar
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+The Project Gutenberg EBook of Talitha, by Pinto da Rocha
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+
+Title: Talitha
+ evangelho em tres actos
+
+Author: Pinto da Rocha
+
+Release Date: April 29, 2009 [EBook #28639]
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+Language: Portuguese
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK TALITHA ***
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+Produced by Pedro Saborano
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+<div
+style="border: solid 2px #000000; padding: 1em; background-color: #FF7777;">
+<p style="text-align:right; font-size: 1.2em;">Pinto da Rocha</p>
+
+<p style="text-align:center; font-size: 3em; color: white;">TALITHA</p>
+
+<div style="width: 50%; margin-left: 50%;">
+<p style="text-align:right;">EVANGELHO EM TRES ACTOS</p>
+</div>
+
+<div style="width: 20%;">
+<p style="text-align:center;">SEGUNDA EDIÇÃO</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="width: 40%; margin-left: 60%; font-size: 0.8em;">
+<p style="text-align:center;">LIVRARIA CHARDRON</p>
+
+<p style="text-align:center;">DE LELLO &amp; IRMÃO</p>
+
+<p style="text-align:center;">C<small>armelitas</small>, 144-Porto</p>
+
+<p style="text-align:center;">1909</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center; font-size: 3em; color: red;">TALITHA</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;"><img src="images/autor.png" width="520" alt="Pinto da Rocha"></p>
+
+<div style="border: solid 1px #000000; padding: 1em;">
+<p>PINTO DA ROCHA</p>
+
+<p style="text-align:center; font-size: 3em; color: red;">TALITHA</p>
+
+<div style="width: 50%; margin-left: 50%;">
+<p style="text-align:right;">EVANGELHO EM TRES ACTOS</p>
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+
+<div style="width: 20%;">
+<p style="text-align:center;">SEGUNDA EDIÇÃO</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
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+
+<p>&nbsp;</p>
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+<p>&nbsp;</p>
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+<p>&nbsp;</p>
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+<div style="width: 40%; margin-left: 60%; font-size: 0.8em;">
+<p style="text-align:center;">LIVRARIA CHARDRON</p>
+
+<p style="text-align:center;">DE LELLO &amp; IRMÃO</p>
+
+<p style="text-align:center;">C<small>armelitas</small>, 144-Porto</p>
+
+<p style="text-align:center;">1909</p>
+</div>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="preambulo">
+<p>O <em>accordo</em> assignado no Rio de Janeiro, em 9 de Setembro de 1889,
+entre o Brazil e Portugal, assegurou o direito de propriedade literaria e
+artistica em ambos os paizes.</p>
+
+<p style="text-align:center;">&mdash;&mdash;&mdash;&mdash;</p>
+
+<p>A presente edição está devidamente registada nas <em>Bibliothecas
+Nacionaes</em>, de Lisboa e Rio de Janeiro.</p>
+
+<p style="text-indent: 0; font-size: 0.8em; width: 70%; margin:auto;">Imprensa
+Moderna, de Manoel Lello<br>
+R. da Rainha D. Amelia, 61&mdash;PORTO<br>
+Grande premio na Exposição do Rio de Janeiro de 1908</p>
+
+<h2>PERSONAGENS</h2>
+
+<table border="0" cellspacing="2" summary="Personagens">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td><span class="small-caps">Talitha</span>, céga</td>
+ <td>18 annos</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><span class="small-caps">João Fulgencio</span>, cura da aldeia</td>
+ <td>80 "</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><span class="small-caps">Dr. Ruy de Ornellas</span>, medico</td>
+ <td>25 "</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><span class="small-caps">Joaquina</span>, irmã do cura</td>
+ <td>65 "</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><span class="small-caps">Marqueza de Rilma</span></td>
+ <td>50 "</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="2">UM ESCUDEIRO&mdash;CAMPONEZAS&mdash;LAVRADORES</td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p style="text-align:center;">A acção passa-se em uma aldeia da Provincia de
+Traz-os-Montes, Portugal</p>
+
+<p style="text-align:center;">&mdash;&mdash;&mdash;</p>
+
+<p style="text-align:center;">ACTUALIDADE</p>
+
+<h2>INTERPRETAÇÃO</h2>
+
+<table border="0" cellspacing="4" align="center" summary="Interpretações">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <th colspan="2">NO RIO DE JANEIRO EM 1906</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Talitha</td>
+ <td><span class="small-caps">Maria Falcão</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Joaquina</td>
+ <td><span class="small-caps">Jesuina Saraiva</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Marqueza de Rilma</td>
+ <td><span class="small-caps">Barbara Wolckart</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>João Fulgencio</td>
+ <td><span class="small-caps">Chaby Pinheiro</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Ruy de Ornellas</td>
+ <td><span class="small-caps">Henrique Alves</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td colspan="2"></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">NO RIO GRANDE DO SUL EM 1907</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Talitha</td>
+ <td><span class="small-caps">Maria Falcão</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Joaquina</td>
+ <td><span class="small-caps">Maria Pinheiro</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Marqueza de Rilma</td>
+ <td><span class="small-caps">Olivia de Almeida</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>João Fulgencio</td>
+ <td><span class="small-caps">Chaby Pinheiro</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Ruy de Ornellas</td>
+ <td><span class="small-caps">João Lopes</span></td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p style="text-align:center;">A <em>Talitha</em> subiu á scena, pela primeira
+vez, no Theatro Apollo, do Rio de Janeiro, em Agosto de 1906, na festa
+artistica da eximia actriz Maria Falcão.</p>
+
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="font-size: small; margin-left: 40%">
+ <p>E tomando a mão da menina disse-lhe:<br>
+ &mdash;Talitha cumi:&mdash;Filhinha levanta-te.</p>
+
+ <p><em>Novo Testamento.</em> <span class="small-caps">S. Marcos</span>, V.
+ 41.</p>
+</blockquote>
+</div>
+
+<div id="talitha">
+<h1>PRIMEIRO ACTO</h1>
+
+<p style="text-align:center;">Jardim, na residencia do Cura.&mdash;Á direita, um
+banco de pedra junto a um poço: á esquerda, frontaria da casa. Grade ao fundo,
+com portão.&mdash;Vista de estrada e campo.</p>
+
+<h2>SCENA I</h2>
+
+<h3><strong>Joaquina</strong> e <strong>Ruy</strong></h3>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Louvado seja Deus! Como está bello e forte!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>É verdade, Joaquina, o clima aqui da terra
+encheu-me novamente o coração de alento.
+Posso dizer que entrei neste bondoso lar
+vigiado, sem dó, pelos olhos da morte.
+E agora, a luz do Sol, os perfumes da serra,
+as aguas desta fonte, o sadio alimento,
+o seu cuidado santo, amigo e tutelar,
+fizeram-me robusto.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E Deus não lhe fez nada?<span class="pagenum">{12}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Foi elle quem salvou a minha mocidade,
+porque a divina mão que fez os céos e os montes,
+que deu flores á terra e deu frescura ás fontes,
+que faz vibrar a luz e a voz da passarada,
+que impelle a nuvem branca em plena immensidade,
+um dia vos creou as almas caridosas
+que vivem nesta casa, humildes e serenas,
+felizes com o Bem, suaves como as rosas,
+mais simples do que o trigo, a neve e as açucenas!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Então, menino, crê tambem que Deus existe?!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>De certo, minha amiga.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E não é um hereje,
+dessa raça maldita e negra que desmente
+as obras do Senhor?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Ingenua creatura!
+É tão alegre a crença e não crêr é tão triste,
+que mesmo sem querer o coração da gente
+acredita num Deus que todo o mundo rege,
+num Pae que assim te deu alma simples e pura!
+Faz tanto bem, Joaquina, acreditar em Deus
+e adormecer á noite abrindo a consciencia
+aos beijos do luar, sorrir de madrugada
+á frescura que vem do azul ethereo e vasto,<span class="pagenum">{13}</span>
+que o nosso olhar ascende ás amplidões dos céos
+sem esforço nenhum, como a espiral da essencia
+que se evola da flôr, se a abelha delicada
+lhe poisa na corolla o vôo leve e casto!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Bemdito seja Deus! Não póde imaginar
+como eu fico contente ouvindo assim fallar!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Mas que idéa fazia então de mim? Julgava
+talvez que eu fosse atheu?</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4>
+<pre> Deus me perdôe... pensava!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Como poude a sua alma angelica e tão boa
+fazer-me, sem motivo, essa enorme injustiça?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Ah! mas não foi por mal, nem o pensei á tôa:
+eu nunca o vi rezar, eu nunca o vi na missa...
+E a gente vê só cara e não vê corações...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E se o visse, Joaquina!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E que é que me servia
+o ver-lhe o coração?<span class="pagenum">{14}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Nada, é certo. Entretanto
+conheceria bem as minhas intenções,
+a esperança que faz brotar, em cada dia
+que passa, um pensamento alegre, puro e santo...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre>É, mas diz o rifão que está o inferno cheio
+de boas intenções!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Tem razão; mas não minto
+se lhe disser tambem, lealmente, o que sinto:
+ás vezes mais parece um verdadeiro inferno
+este peito infeliz...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4>
+<pre> Abrenuncio, menino!...
+Mas que blasphemia a sua e que peccado feio!...
+Um homem que acredita em Deus, bondoso e eterno,
+em Deus Nosso Senhor, não diz tal desatino!...
+Virgem Maria! Credo!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Alma boa de santa!...
+A tua vida inteira adormeceu. A aurora
+já para ti não tem aquelle brilho vivo
+que a primavera, em luz, alastra pelos campos...
+Tudo se transformou em outra vida; agora
+a fonte já soluça, a brisa já não canta;
+aos teus olhos a lua é d'um fulgor esquivo,
+o sol não tem calor, o céo já não é glastro,
+as estrellas febris parecem pirilampos;<span class="pagenum">{15}</span>
+trazes o teu olhar constantemente a rastro;
+sómente a fé te anima; é por isso que extranhas
+o inferno abrasador que muita vez domina
+a minha mocidade.</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>com sorriso</em></h4>
+<pre> Isso me bacoreja
+algum amor perdido ahi por essas eiras...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>É possivel, quem sabe? Os ares das montanhas
+tem caprichos assim, póde bem ser, Joaquina!</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>cariciosa</em></h4>
+<pre>E diga-me, que olhar é esse que negreja
+a sua vida alegre? Ha tantas feiticeiras!...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>enleiado</em></h4>
+<pre>Que olhar?</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Mas é segredo?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> É, por ora é segredo...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Ah! não confia em mim?! bem sei, bem sei, tem medo
+que eu descubra o mysterio, a princeza encantada
+que assim lhe traz a vida em tantas amarguras...<span class="pagenum">{16}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Não é mysterio, não. É... cousa complicada!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Faz muito bem zelar a flôr dos seus amores;
+não os conte a ninguem; se acaso as desventuras
+lhe roubarem o somno agarre-se com Deus...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>tomando-lhe a mão e fallando-lhe ao ouvido</em></p>
+<pre>Reze constantemente á Senhora das Dôres.
+Acceite este rosario e tenha-o por bordão.
+É bemaventurado aquelle que padece,
+porque é delle, menino, o reino azul dos céos...
+E Deus a quem promette estende sempre o pão;
+reze e será feliz... Essa alma bem merece...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Santa velhinha, santa...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>tapando-lhe a bocca</em></h4>
+<pre> E nem um ai, silencio...
+Olhe quem vem ali...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>voltando-se</em></h4>
+<pre> O Padre João Fulgencio
+e Talitha; meu Deus!... Pobre, infeliz Talitha!...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>a Ruy</em></h4>
+<pre>Parece que ficou um tanto atrapalhado...<span class="pagenum">{17}</span></pre>
+
+<h4>Ruy, <em>encobrindo a verdade</em></h4>
+<pre>Sempre que a vejo, assim tão cheia de bondade e
+céga...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Então, que sente?...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Uma dôr inaudita,
+que reveste de luto as minhas alegrias:
+
+ Ha tanta luz espalhada
+ na concha astral dos espaços!
+ E os olhos della tão baços!
+ E a fronte tão macerada!
+</pre>
+
+<h2>SCENA II</h2>
+
+<h3>Os mesmos, <strong>Padre João</strong> e <strong>Talitha</strong></h3>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Talitha vem apoiada ao braço de padre
+João</em></p>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Pois Deus Nosso Senhor nos dê muitos bons dias.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>assenta Talitha: a Ruy, apertando-lhe a mão</em></p>
+<pre>Como passou a noute?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Assim; mais descançado...
+Sonhando... E o Senhor Cura?...<span class="pagenum">{18}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Eu? Ah! na minha idade
+já se não dorme; eu passo a noute toda em claro,
+de rosario na mão, pedindo a Deus por nós!
+E quando surge o dia e mal o Sol desponta,
+dando o braço a Talitha, encaminho-me á Egreja.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Diz a missa que ou ouço...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> E é raro, muito raro,
+voltarmos ella e eu, da Egreja a casa, sós.
+Ás vezes vem comnosco esse infeliz sargento
+que arrasta por ahi o longo soffrimento,
+velho e cego tambem, e eu, mortiça candeia,
+a conduzir os dois pelas ruas da aldeia!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Mas o senhor doutor, por mim nunca dei conta,
+nem uma vez, sequer, nos acompanhou! Veja!
+No emtanto está comnosco ha sete mezes, não?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Isso mesmo eu já disse...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Eu dei a explicação...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>E poder-se-á saber? Não é curiosidade?<span class="pagenum">{19}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Talvez seja, talvez...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Não é!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Então ouçamos!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Eu rezo no silencio o santo sacrificio,
+no fundo de minh'alma elevo o meu altar,
+sob o docel azul das minhas esperanças!...
+</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E eu sem conhecer mais essa novidade!...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Qual?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Esta que o Doutor nos deu, mas aprendamos...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Padre não é sómente aquelle que a rezar
+esgota uma existencia ao peso do cilicio
+e vae pelas manhans, feliz como as creanças,
+curvar humildemente a fronte e a consciencia,
+na sombra da capella, aos pés do Redemptor...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Mas ha d'outros, então?<span class="pagenum">{20}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Eu não conheço, filha!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Sacerdote é tambem aquelle que tem culto
+ao qual offereceu toda a sua existencia.
+Padre, quem se dedica um dia com fervor
+a amar alguem na terra a cujos pés se humilha,
+tambem é sacerdote...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> E eu, sacerdote, exulto
+ouvindo do seu labio esta expressão severa.</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>que tem guardado silencio, enlevada pelas palavras de
+Ruy</em></h4>
+<pre>Bemdito seja Deus! menino, quem me dera
+conhecer a mulher que tem um filho assim...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Só eu não posso vêl-o!...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>entre alegre e enleado</em></h4>
+<pre> Obrigado, Talitha!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Não tem que agradecer, disse-o sinceramente!
+Que póde desejar mais uma céga, diga?...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Mas conforma-te, filha, espera que o Senhor,<span class="pagenum">{21}</span>
+ouvindo-me a oração, tenha pena de mim
+e acuda com remedio ao mal dessa desdita!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Como eu fôra feliz...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E eu seria contente!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Se pudesse voltar, ó minha boa amiga,
+aos seus olhos de céga o perdido fulgor!...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Nunca mais, nunca mais...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Porque é que te condemnas
+se toda a nossa vida é uma esperança apenas?...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Se é toda de esperanças esta vida,
+ já me fugiu aquella que voava
+ bem junto do meu seio e que roçava
+ sobre a minh'alma a aza foragida.
+
+ Nem sei onde ella vae, talvez perdida
+ nao volte a mim por não morrer escrava
+ na escuridão da noite immensa e cava
+ dos meus olhos sem luz e sem guarida...
+
+ Nunca mais fulgirás, dôce promessa,
+ na minha treva densa e prematura,
+ como o branco luar em noite espessa.<span class="pagenum">{22}</span>
+
+ Se vive, o olhar dos cégos não fulgura,
+ dorme na sombra e de sonhar não cessa
+ na tristeza sem fim da noite escura!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Não descreia, Talitha, as suas illusões
+não fugiram, por ora, esparsas na lufada!
+Quem foi que lhe roubou a ultima esperança,
+que braços sem caricia, ou duras privações
+lhe puderam vibrar tão rude punhalada?
+Pois bem, toda a minh'alma alegre se abalança
+a dizer-lhe, Talitha:&mdash;o seu formoso olhar
+tão cheio de fulgor, um dia ha de voltar...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Só milagre de Deus!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> E Deus póde fazel-o:
+é Pae de todos nós!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>com desanimo</em></h4>
+<pre> Tenho rezado tanto!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Implore mais ainda, espere, tenha crença!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Tenho pedido muito e tanto me flagello
+que banho as orações nas bagas do meu pranto
+e aqueço-as ao calor da minha dôr immensa.
+A mesma escuridão tremenda me apavora,<span class="pagenum">{23}</span>
+nem um raio do luz, nem um vago lampejo;
+nunca mais hei de vêr o campo que se inflora
+nem do luar terei um luminoso beijo...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>A tua redempção ainda não surgiu...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>pondo as mãos</em></h4>
+<pre>Eu tenho tanta fé!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> O meu presentimento
+não sei o que me diz...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Que o coração sentiu,
+que a sua alma pensou nessa dôce ventura,
+eu creio porque sei quanto é nobre e bondoso.
+Mas eu creio tambem que o meu cruel tormento
+sómente acabará no chão da sepultura,
+onde tudo tem fim, embora tenebroso!...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>olhando o céo</em></h4>
+<pre>Perdôa-lhe, Senhor, ella ignora o que diz...
+Se tem soffrido tanto esta pobre infeliz!...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Eu sei bem o que disse; a minha crença é essa.
+Ha muito que eu imploro ao céo a protecção
+e rezo com fervor á dôce Conceição,
+pedindo-lhe, a chorar de dôr, que não esqueça
+a minha noite escura e tristemente agreste<span class="pagenum">{24}</span>
+como a sombra que faz a copa de um cypreste.
+Aos pés do seu altar curvei-me como escrava
+e emquanto pela igreja o incenso espiralava,
+e as simples orações subiam na espiral,
+fechei-me na mudez do meu fervor mental
+e fiz uma promessa...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com interesse</em></h4>
+<pre> E então qual foi, Talitha?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Votar a minha vida ao divino serviço,
+se um dia terminasse o meu padecimento;
+nem peço mais a Deus, é tudo o que cubiço.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E se tornar a ver?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Entrarei num convento
+a vestir o burel de freira Carmelita.</pre>
+
+<h4>Padre, <em>crente, pondo as mãos</em></h4>
+<pre>Se Deus te ouvisse, filha!</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>com uncção religiosa</em></h4>
+<pre> E o Bom Jesus quizesse!...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com amargura</em></h4>
+<pre>Se tivera valor a minha humilde prece!...<span class="pagenum">{28}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>curiosa</em></h4>
+<pre>Se tivera valor, que lhe faria, Ruy?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Não pediria a Deus esse milagre extremo...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Porque?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Porque seria arrancal-a da treva
+e lançal-a de novo em mais cruel negrura.
+Juntando toda a fé que de minh'alma flúe
+eu iria pedir, como um favor supremo,
+que as almas alevanta e os corações eleva,
+que me guiasse a mão na lucida aventura
+de devolver-lhe um dia ao seu olhar perdido
+aquelle brilho antigo e aquelle ardor de outr'ora
+que faziam inveja ao proprio olhar de Flóra!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E seria capaz?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Credo!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{26}</span></p>
+
+<h2>SCENA III</h2>
+
+<h3><strong>Padre João</strong>, <strong>Ruy</strong> e
+<strong>Talitha</strong></h3>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E tão convencido
+estou de que o Senhor a mão me guiaria
+nesse instante feliz, que não hesitaria
+um momento sequer... A simples catarata
+é facil de operar e em dez dias exactos
+Talitha voltaria á luz que o céo desata
+e que dá vida á terra, aos fructos e aos regatos!...
+Pense, Talitha, pense e permitta que eu faça
+esse dôce milagre.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> E eu tornarei a vêr
+o presbyterio, a fonte, a madrugada, as aves,
+as abelhas sugando o mel dos jasmineiros?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Os seus olhos verão a luz da eterna graça
+no sorriso gracil da alvorada, ao nascer
+nas bandas do oriente em nuvens tão suaves,
+como um rebanho astral de timidos cordeiros!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>E que mais hei de vêr?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Que mais? Verá tambem
+um velhinho a sorrir com lagrimas na face,<span class="pagenum">{27}</span>
+e uma velhinha branca e trémula a chorar,
+e ao pé delles, alegre, o olhar de mais alguem,
+numa dôce oração tão leve e tão feliz,
+como se a propria brisa aqui se demorasse
+um momentinho só tambem para rezar!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>alegre</em></h4>
+<pre>E eu voltarei de novo aos encantos da luz?
+E hei de vêr tambem o jardim do mosteiro
+onde floresce a fé que a nossa vida arrima,
+as rosas enfeitando a Virgem que as anima,
+o corpo de Jesus exanime e trigueiro,
+entre cirios a arder, deitado sobre a cruz?...
+E então assim feliz...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> E então, Talitha, e então?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Rezarei pelo Ruy, tão bom, tão generoso,
+que trouxe ao meu olhar escuro e tormentoso
+a esmola angelical d'um lucido clarão!</pre>
+
+<h2>SCENA IV</h2>
+
+<h3>Os mesmos e <strong>Joaquina</strong></h3>
+
+<h4>Joaquina, <em>entrando</em></h4>
+<pre>Padre Cura, uma carta.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Uma carta? Mas donde?<span class="pagenum">{28}</span></pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>recebe-a e examina</em></p>
+<pre>Hum! e de quem será?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Joaquina, dê-me o braço...
+</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Joaquina dá-lhe o braço. A Ruy</em></p>
+<pre>Dr. Ruy, até já. </pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>ao cura</em></p>
+<pre> Até já, meu Padrinho...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>que se tem conservado triste</em></h4>
+<pre>Talitha!...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>voltando-se</em></h4>
+<pre> Meu Senhor!...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>indo a ella</em></h4>
+<pre> Perdão, Talitha... nada!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Arrependeu-se, não? E tambem não responde...
+Desconfia de mim?... Outro tanto eu não faço
+Doutor, a seu respeito; eu bem sei, adivinho...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com interesse</em></h4>
+<pre>Que foi que adivinhou?<span class="pagenum">{29}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>com malicia</em></h4>
+<pre> Uma coisa adorada...
+que só tres corações conhecem bem: o seu,
+o della, e o Senhor que tudo vê do céo...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>admirado</em></h4>
+<pre>Della, Talitha, quem?</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>com intenção</em></h4>
+<pre> Daquella princesinha
+d'olhos da côr do céo, vestida de andorinha...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Ouviu, Doutor, ouviu?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Juro...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Não jure falso!...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>a Joaquina</em></p>
+<pre>Vamos, Madrinha, embora: é tempo de almoçar.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>sahem</em><span
+class="pagenum">{30}</span></p>
+
+<h2>SCENA V</h2>
+
+<h3><strong>Padre João</strong> e <strong>Ruy</strong></h3>
+
+<p class="instruccoes"><em>Desde que recebe a carta, Padre João lê com a maior
+attenção. Pela sua face corre toda a expressão de espanto que vae recebendo.
+Quando sahem Joaquina e Talitha, o Padre conclue a leitura e fica a meditar. Ao
+approximar-se Ruy, suspende-se.</em></p>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Esta agora é que foi!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E que foi, Senhor Cura?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Quem sabe? Póde ser um pequeno precalço,
+mas póde ser tambem que venha de mistura
+alguma dôr maior. E não posso evitar!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>O que essa carta diz deixou sua alma afflicta:
+um segredo talvez que vive no seu seio?!...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Foi, sim, mas ja não é. Agora só receio
+que m'a levem daqui...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Que a levem? quem?<span class="pagenum">{31}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Talitha...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E quem a levará deste remanso augusto?
+O convento, a promessa?...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Oh! não...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Não tenha susto!
+E quem mais poderá, nesse caso, arrancal-a
+do lar em que nasceu?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> A Mãe...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>surprehendido</em></h4>
+<pre> Ah! mas... então...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>baixinho</em></h4>
+<pre>Então... já percebeu?! Ella foi engeitada...
+Eis aqui o segredo em que esta vida abraço.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>baixa a cabeça, scismando</em></p>
+
+<h4>Ruy, <em>depois de uma pausa</em></h4>
+<pre>Oh! meiga creatura!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> E não poder salval-a!...<span class="pagenum">{32}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Engeitada!...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Sim, sim. Ao romper da alvorada.
+Ha muito tempo já. Inda no céo brilhava
+a estrella da manhã; vieram procurar-me;
+bateram ao portal com desusado alarme...
+Ergui-me e fui abrir; a neve branqueava
+os campos e eu pensei que um pobre moribundo,
+no momento supremo em que deixava o mundo,
+quizesse receber da minha propria mão
+o balsamo final da santa extrema-uncção,
+e abri desta choupana a porta sempre franca.
+Parecia o jardim uma toalha branca.
+Era um frio cruel, cortava como fôsse
+o gume de uma faca e o fio de uma fouce...
+Sahi, olhei em roda e já não vi ninguem.
+No céo luzia só a estrella de Bethlem!
+Não sei porque a fitei nesse feliz momento.
+Um silencio profundo amordaçava o vento;
+dormia a natureza um somno indefinido,
+vibrou então no espaço um timido vagido...
+Estremeci de horror...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com anciedade</em></h4>
+<pre> Era a pobre Talitha?!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Approximei-me e vi, aqui junto do banco
+um cestinho de verga envolto em panno branco.
+Banhou-me o coração uma dôr infinita.
+Na tragica mudez da alvorada deserta
+tomei nas mãos, tremendo, a delicada offerta<span class="pagenum">{33}</span>
+e agasalhei-a ao peito, assim, para aquecel-a
+como quem agasalha o corpo de uma estrella
+que tombasse do céo...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com mais anciedade</em></h4>
+<pre> E esse penhor amigo?!...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>A meu lado cresceu e formou-se o thesoiro,
+alma rica de luz, feita de amor e d'oiro.
+Parece que ao romper daquella madrugada
+tão fria, tão cruel, mas tão abençoada,
+que eu lembro com saudade e que inda hoje bemdigo,
+teve o banho castalio, o baptismo de luz
+da mesma estrella exul que baptisou Jesus.
+Por isso é que minh'alma agora não sopita
+a magua de perdel-a...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E quem terá coragem
+energica e viril de arrebatar Talitha
+ao seu amor leal e bom, dôce miragem,
+no deserto feliz desta velhice austera?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>A mãe que a vem buscar...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> A mãe não tem direito...
+A mãe que engeita a filha é peior que uma fera!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Mas é mãe!...<span class="pagenum">{34}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Sim, será, sem coração no peito.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Engana-se, doutor, a mãe que hoje a reclama,
+depois de tanto tempo, é que lhe tem amor...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Como a engeitou, então?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> A fera tambem ama...
+Quem sabe o que terá soffrido essa mulher?
+Sabe-o sómente o céo, calcule-o quem puder.
+E diz-me o coração que vou perdel-a em breve.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Erguendo as mãos ao céo</em></p>
+<pre>Não me tires, meu Deus, esse gentil penhor!
+Repara que já tenho os cabellos de neve,
+tão tremulas as mãos, e os labios descorados,
+como sonhos que vão batidos e levados
+num extremo soluço... O que eu tenho no mundo,
+pouco mais é que um ai e o golpe agora é fundo!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Enxuga os olhos e sáe</em><span
+class="pagenum">{35}</span></p>
+
+<h2>SCENA VI</h2>
+
+<h3><strong>Ruy</strong> e <strong>Talitha</strong></h3>
+
+<p class="instruccoes"><em>Ruy vê sahir o Padre e fica pensativo, fitando os
+olhos no chão, sentado no banco de pedra. Depois de uma pausa, Talitha desce,
+tacteando, até junto delle.</em></p>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Padrinho, então não vem?</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>sobresaltado</em></h4>
+<pre> Ah! Talitha...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Perdão!
+Pensei que estava aqui...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Já se foi...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Obrigada...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Vae retirar-se</em></p>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Talitha!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Senhor Ruy!<span class="pagenum">{36}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> O seu bom coração
+inda não lhe contou, baixo, muito baixinho,
+quasi a tremer de medo e susto, um segredinho,
+diga, não lhe contou?</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>com muita simplicidade</em></h4>
+<pre> Que pergunta engraçada!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E vive então sereno?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Ah! Sim, tenho certeza!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>É bem feliz, Talitha, a sua singeleza!
+Outro tanto, porém, ao meu já não succede
+que o sinto palpitar acceleradamente,
+como quem vae fallar e o soffrimento impede.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Eu bem lh'o disse ha pouco...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Entretanto eu lhe juro...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre>Não jure que é peccado a jura de quem sente
+que não diz a verdade. É mais bello e mais puro
+não negar.<span class="pagenum">{37}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Tem razão, mas eu não disse, ainda
+qual era o juramento...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4>
+<pre> E qualquer que elle seja...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Diga, diga o que sente...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Ha de ser...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>curioso</em></h4>
+<pre> Ha de ser?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Não digo...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Diga, sim, a sua voz bemvinda
+ha de me dar a esmola honesta e bemfazeja
+que a minh'alma sem luz precisa de viver.
+E do seu labio casto apenas um sorriso
+vale mais que uma estrella e rasga um paraiso.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Assim o quer, direi; jamais o seu protesto
+póde ser verdadeiro...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E porque não, Talitha?...<span class="pagenum">{38}</span></pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Não sei, não sei porque. A jura é como o gesto
+que abala fortemente, a nossa vida agita,
+mas passa e foge...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Ah! sim, quando falla sómente
+o labio, sem fallar tambem o coração...
+Ah! de certo que assim o labio sempre mente.
+Mas quando o sangue estúa e faz tremer a mão
+de quem jura, Talitha, ou quando a fronte em braza,
+apenas num momento, empallidece e tomba,
+bem como se a roçára a ponta fria da aza
+feita de gelo e dôr de alguma extranha pomba,
+quando um homem que sempre olhou de frente o sol
+tem medo de encarar o olhar de um rouxinol,
+e treme até de ouvir-lhe a voz encantadora,
+quem sempre ouviu sorrindo a furia rugidora
+do vento e dos trovões...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Então?...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Assim revela
+que é grande, generoso e casto o sentimento
+que apenas se traduz e que tão mal se vela
+na gaze pueril d'um simples juramento!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4>
+<pre>Quem foi que o ensinou a fallar assim?</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>timido</em></h4>
+<pre> Digo?...<span class="pagenum">{39}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4>
+<pre>E porque não? Quem foi?...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>timido</em></h4>
+<pre> Nem mesmo eu sei, Talitha!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>insistido</em></h4>
+<pre>Nem sabe onde aprendeu?</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>sorrindo</em></h4>
+<pre> Quer aprender commigo?</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>ingenua e triste</em></h4>
+<pre>Não me quer responder, nem confessa, nem nega...
+Se eu pudesse aprender, de que valera á céga
+saber fallar assim?</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>triste</em></h4>
+<pre> Á céga?</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>simples</em></h4>
+<pre> E á Carmelita?...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>ancioso</em></h4>
+<pre>Á Carmelita!... e quem lhe disse que os seus olhos
+recuperando a luz, como duas estrellas,
+irão illuminar as fragas e os escolhos
+das montanhas da Syria, entre as monjas Carmellas?
+Quer sepultar-se em vida?<span class="pagenum">{40}</span></pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> E não é cemiterio
+maior a escuridão deste pavor funereo,
+sem vêr o sol que doira as nuvens do poente,
+sem vêr a lua assim como um berço dolente
+embalando no azul um sonho que não morre,
+não vêr duma colmeia o mel que filtra e corre
+como um rio de luz nascendo num enxame,
+sentir e adivinhar a suprema belleza
+da madrugada em flôr, das noites constelladas,
+dos mares e do céo, de toda a natureza,
+ter olhos e não vêr, inda haverá quem chame
+vida a tal vida? Não! Mais negras, mais cerradas
+do que esta noite immensa e triste, sem estrellas,
+não póde ser, de certo, a solidão das cellas,
+e o sol que tudo aquece, aquecerá de leve
+a macerada fronte á monja que não teve
+nem um seio de mãe que um dia a amamentasse,
+nem a luz d'um olhar na pallidez da face,
+e nem um coração...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Talitha!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4>
+<pre> Meu doutor!</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com intenção</em></h4>
+<pre>Um coração?</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4>
+<pre> Qual foi?<span class="pagenum">{41}</span></pre>
+
+<h4>Ruy, <em>tomando-lhe a mão</em></h4>
+<pre> O meu...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>comprehendendo, envergonhada</em></h4>
+<pre> O seu?</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Retira a mão</em></p>
+
+<h4>Ruy, <em>enleiado</em></h4>
+<pre> Perdoe.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Pausa prolongada</em></p>
+
+<h4>Talitha, <em>implorando</em></h4>
+<pre>Que mal lhe fiz?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Rasgou-me o coração, Talitha;
+e pensará, talvez, que não me fere a dôr
+de vêl-o assim rasgar?</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>humilde, implorando</em></h4>
+<pre> Mas creia, Ruy, que foi
+sem que eu desse por isso. E se o mal está feito
+seja agora gentil e não me rasgue o peito.
+Esqueça a minha falta, esqueça esta maldita,
+não se lembre da céga e deixe-a definhar
+na torva escuridão desta noite polar...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E se eu não conseguir tirar do pensamento
+o seu casto perfil, celeste e macilento,
+se a minh'alma quizer viver escravisada<span class="pagenum">{42}</span>
+unindo o meu destino á corrente doirada
+que me prende, sorrindo, ao seu cruel martyrio,
+se o meu olhar prefere esse apagado cirio
+dos seus olhos de céga á lucida manhan
+do amor sentimental de alguma castellan,
+como esquecel-a então?</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Joaquina apparece ao fundo</em></p>
+
+<h4>Talitha, <em>triste</em></h4>
+<pre> Não creio...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Mas porque?
+Já tão cedo a sua alma angelica descrê
+da minha que, arrastada á fimbria azul da sua,
+por toda a parte a segue e a seu lado fluctua?
+Não recorda, Talitha, o dia amargurado
+em que eu entrei aqui perdido e quasi morto?
+Não se lembra da noite em que eu fui condemnado?
+Não se lembra talvez das horas de conforto
+que os seus olhos sem luz e a sua bocca em flôr
+me trouxeram a rir, como um remedio santo
+da minha vida enferma á cruciante dôr?
+Não recorda talvez que esse supremo encanto,
+essa graça divina, aligera e bemdita
+a vida me salvou?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Não creio...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>curioso</em></h4>
+<pre> É tão cruel!
+Porque razão não crê, a minha alma fiel
+simplesmente traduz o que a sua entendeu?<span class="pagenum">{43}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>com intenção</em></h4>
+<pre>Só porque a sua mão na minha não tremeu.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Entretanto, Talitha, eu amo-a...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>tremula</em></h4>
+<pre> Ruy!...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>apertando-lhe a cintura</em></h4>
+<pre> Talitha!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Beija-lhe docemente a mão</em></p>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Ah! E eu sem poder vêr o labio que me beija!...
+Que destino fatal, que desgraçada eu sou!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Não foi a minha bocca ardente que a beijou.
+Foi o dôce rumor da abelha que voeja
+sugando á sua mão de branca flôr de liz
+o magico licôr, o aroma delicado,
+que vem do rosicler florido e perfumado,
+no sangue que palpita em vibrações subtis!!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Mas, Ruy, o seu amor não ve como eu sou pobre!!</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre>Pobre sou eu que peço a esmola angelical
+desse affecto gentil que a vida transfigura.<span class="pagenum">{44}</span></pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Tão pobre que não tenho um Pae que me conforte,
+nem caricias de mãe que veja esta tortura...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>A sua alma divina essa tortura encobre...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Tão pobre que este olhar perdido é glacial
+como um floco de neve, e a desfazer fluctúa...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Os seus olhos sem luz tem mais fulgor que a lua.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Engeitada ao nascer vivo esperando a morte...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Alma branca de luz que illuminaste
+ a ventura das minhas esperanças,
+ bemdito seja o véo de negras tranças
+ que sobre a minha vida desnastraste!
+
+ Bemdito seja nesse dôce engaste
+ das palpebras subtis brancas e mansas
+ o mesto olhar que cobre de bonanças
+ a vida deste amor que tu salvaste!
+
+ És para mim a linha do horisonte,
+ curva do céo, á noite, constellada,
+ agua lustral de uma sagrada fonte,
+
+ toda a ambição dest'alma allucinada,
+ e a nuvem que circumda a minha fronte
+ como um disco de treva avelludada...<span class="pagenum">{45}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>de mãos postas</em></h4>
+<pre>Meu Deus, e nunca mais, nunca mais hei de vêl-o!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Sim, Talitha, verá; o meu maior desvelo
+ha de ser o fulgor do seu formoso olhar.</pre>
+
+<h2>SCENA VII</h2>
+
+<h3 style="text-align:center;">Os mesmos e <strong>Joaquina</strong></h3>
+
+<h4>Joaquina, <em>que tem ouvido tudo, feliz e contente, vem descendo com
+lentidão e junto de ambos exclama:</em></h4>
+<pre>Caia a benção de Deus neste formoso par...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ruy e Talitha, surprehendidos,
+afastam-se</em></p>
+
+<h4>Ruy, <em>recuperando a serenidade</em></h4>
+<pre>Talitha assim o quiz!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>perturbada</em></h4>
+<pre> A culpa não foi minha...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>sorrindo e acariciando-a</em></h4>
+<pre>A culpada fui eu que te deixei sósinha!</pre>
+
+<p style="text-align:center;">CAE O PANNO<span class="pagenum">{46}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1>SEGUNDO ACTO</h1>
+
+<p style="text-align:center;">Sala de visitas em casa do Cura; tudo muito
+simples. Janellas e portas. Um oratorio com lampada. Um pequeno orgam.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>SCENA I</h2>
+
+<h3><strong>Joaquina</strong> e <strong>Padre João</strong> </h3>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Conversando alegremente</em></p>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Graças a Deus, chegou por fim o grande dia...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>É verdade, é verdade! irmã, quem nos diria
+que a linda pequenita...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> A formosa engeitada...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Que Deus nos enviou naquella madrugada
+inclemente de inverno...<span class="pagenum">{48}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> E parece-me ainda
+vêr a neve a cahir num pó macio e branco
+no cestinho de vime, ali, ao pé do banco...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E eu tenho aqui no ouvido aquella prece linda
+que rezaste ao Senhor quando ella adormeceu
+depois de ter mamado...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E, lembras-te, que fina!
+Tão branquinha, tão loira, a rir, tão pequenina!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Se me recordo, irmã!?... Pois então, se fui eu
+quem primeiro velou, durante o dia inteiro,
+o somno encantador da candida innocente!...
+Se me recordo, então?!...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>sorrindo</em></h4>
+<pre> Mansa como um cordeiro!...
+Mas uma coisa eu sei que esqueceste...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>curioso</em></h4>
+<pre> Qual é?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Não te digo, adivinha...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Pausa prolongada</em></p>
+<pre> É do primeiro dente...<span class="pagenum">{49}</span></pre>
+
+<h4>Padre, <em>alegre</em></h4>
+<pre>Ó Joaquina! É verdade! O que se fez!... Até
+parece que a alegria andava á tentação;
+e nós a rir, a rir, a rir perdidamente...
+Sempre ha coisas, meu Deus!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> A vida é uma illusão,
+ligeira como o vento, ás vezes nem se sente,
+não é verdade?</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Pausa</em></p>
+<pre> Falla?...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> É, de certo, Joaquina.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Pois então que mal faz que a gente esteja agora
+a rir do que lá vae por essa vida fóra?!...
+Pois agora é que é rir, que passou a desgraça,
+quando a gente é feliz té na morte acha graça.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Por causa desse dente esteve a pequenina
+tres dias por um triz...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>triste</em></h4>
+<pre> Bem ás portas da morte...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Valeu-lhe a vela benta...<span class="pagenum">{50}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Inda foi uma sorte
+eu ter guardado aquella...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>rapidamente alegre, interrompendo</em></h4>
+<pre> Ó! mana, e o baptisado?...
+Que festa! E que jantar! Aquelle frango assado,
+com rodellas de paio; inda me estão lembrando
+aquelle arroz de forno e aquelle vinho brando...
+Recordas?</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>com malicia</em></h4>
+<pre> Bem me lembro, até nesse jantar
+o vinho começou a subir e a trepar...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>interrompendo, com gravidade</em></h4>
+<pre>Ó mana...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>saudosa</em></h4>
+<pre> E já lá vão uns bons dezeseis annos...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>pensativo</em></h4>
+<pre>Mas como corre o tempo!</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>nostalgica</em></h4>
+<pre> E como a gente muda!...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>A vida não é nada! A magua, os desenganos,
+a enfermidade e a dôr fazem a gente velha;
+e não ha santo algum no céo que nos acuda!<span class="pagenum">{51}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Pois sim, sim, mas depois os filhos vão crescendo
+e os paes a cada instante, a rir, vão-se revendo
+na luz do seu olhar em que tambem se espelha
+o tempo que passou...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Como o tempo é cruel!
+E aquelle immenso mal que um dia nos feriu?...
+Recordas? Que manhã! Mais amarga que o fel!</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>olhando o céo</em></h4>
+<pre>Se me lembro, Senhor, quando ella ficou céga,
+que só podia andar guiada por alguem!...
+Não hei de recordar? Recordo muito bem!
+Quanta vez, coitadinha, a chorar me pediu
+que lhe fôsse comprar dois olhinhos melhores
+para trocar os della...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>limpando os olhos</em></h4>
+<pre> Até se me despega
+o coração de dôr!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E nenhum dos doutores
+atinou de a curar, nem sequer as promessas
+deram com ella a vêr...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Quantas vezes subi
+os tres degráos do altar e rezando pedi
+ferventemente a Deus, por amor de Jesus,<span class="pagenum">{52}</span>
+que lhe tornasse a dar aos seus olhos sem luz
+a visão que perdera...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E agora tu confessas
+que a sorte a perseguiu sem dó nem piedade,
+apezar de ella ser um mimo de bondade?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Confesso. Até que Deus mandou a desventura
+da sua juventude a alvorada feliz
+desse primeiro amor...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E se Elle assim o quiz!...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Que seja feita a sua energica vontade,
+nos céos como na terra e que um dia a tortura
+tenha fim!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Pois não teve, afinal?...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Eu não sei...
+Dizem vocês que teve e a operação deixou
+o melhor resultado...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Elle diz que a curou!
+O que elle fez não sei, nem mesmo perguntei
+mas que ella torne a vêr...<span class="pagenum">{53}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> É isso o que deseja
+a minh'alma sincera, é vêl-a venturosa!
+Entretanto, meu Deus, por que Talitha o seja
+é preciso, talvez, que a vara da desgraça
+me toque o coração e a fonte caprichosa
+das lagrimas estale. A dôr que me ameaça
+enche-me de pavor. Tenho um presentimento
+que me não abandona um dia, um só momento!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Isso não vale nada...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Entretanto eu medito
+naquelle casamento.</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> O casamento?...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Sim;
+o casamento, sim, que vae arrebatal-a
+á nossa pobre vida... Está, porém, escripto,
+e Deus que o destinou ha de por fim leval-a
+e nunca mais trazel-a aqui, junto de mim.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>E quem nos diz a nós que essa desconfiança
+não seja apenas medo?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> O coração, irmã!...<span class="pagenum">{54}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Ah! Sim o coração... o coração tambem cança!
+Já não regula o teu, nem serve de evangelho,
+é coração de padre e padre muito velho...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Pois bem, não servirá, mas inda esta manhã,
+por occasião da missa, as lagrimas vertidas
+tombaram-me da face ao calix consagrado,
+ao recordar, então, que um dia, angustiado,
+hei de vêl-a partir! Como fôram sentidas
+essas bagas leaes que, em silencio, chorei
+e que juntas ao vinho eu mesmo consagrei!
+Eu creio em Deus e espero o golpe do destino
+como um favor do céo purissimo e divino!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Descança, meu irmão! O Ruy é bom rapaz,
+tem muito amor á gente, ha de ficar, verás!
+Parece alma de santo e só pensa no bem.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Póde ser, póde ser, mas recorda tambem
+a promessa que fez a nossa pequenita
+e, se ella conseguir outra vez a visão,
+lá se nos vae embora a meiga Carmelita...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Ah! disso eu não receio; então crês que o convento
+tenha força capaz de virar-lhe a razão
+o fazel-a esquecer, assim, o casamento?<span class="pagenum">{55}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Mas se não a levar o voto de noviça
+ha de a levar o amor que quanto vê cobiça.
+De certo a chamará, talvez para bem longe,
+a palavra inspirada e convicta do monge
+que nos fez o milagre e deu olhos á céga...
+É por isso, meu Deus, que est'alma não socega!</pre>
+
+<h2>SCENA II</h2>
+
+<h3>Os mesmos e <strong>Ruy</strong></h3>
+
+<h4>Ruy, <em>entrando</em></h4>
+<pre>Bons dias, Senhor Cura.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>A Joaquina</em></p>
+<pre> E a mãe Joaquina, então,
+como passou a noute? Aposto que sonharam
+muito commigo, sim?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Foi tal qual!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Pois eu, não;
+tive mais que fazer, dormi regaladinha
+durante a noite inteira...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E bem conchegadinha?<span class="pagenum">{56}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Nem mais!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E claro então que nem, sequer, cuidaram
+de Talitha...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Cuidei, sim senhor...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>prazenteiro</em></h4>
+<pre> Não entendo...
+se dormiu toda a noite...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>a rir</em></h4>
+<pre> É, eu não comprehendo
+tambem como se possa, a um tempo só, dormir
+e velar!... É bem certo o rifão: mais depressa
+se agarra um mentiroso...</pre>
+
+<h4>Ruy, concluindo</h4>
+<pre> Exacto; do que um coxo...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ambos riem muito</em></p>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Mas eu é que não sei que tanto tem que rir!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>A Ruy</em></p>
+<pre>Nem é da sua conta</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>ao Padre</em></p>
+<pre> e nem da sua! Peça<span class="pagenum">{57}</span>
+a Deus Nosso Senhor que dê mais tento aos dois:</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>batendo com um dedo na testa</em></p>
+<pre>talvez haja por lá um parafuso frouxo...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>com gravidade comica</em></h4>
+<pre>Ó mana, isso é demais...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>abraçando-a</em></h4>
+<pre> Não vá subir á serra;
+deixemos essa historia a resolver depois
+e vamos conversar da luz que se descerra
+e que hoje ha de fazer toda a nossa alegria...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Fallava eu nisso mesmo antes da sua entrada.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>E quer saber, menino, o que elle me dizia?...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Pois diga, francamente, e não esqueça nada...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Não havia segredo, era tão natural
+e tão simples, meu Deus, o que eu dizia ha pouco...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Deixe-o fallar, menino, anda que é mesmo um louco;
+não diz coisa com coisa, a tudo julga mal
+e já pelo peior!<span class="pagenum">{58}</span></pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Contando pelos dedos</em></p>
+<pre> Primeiro, que a pequena
+breve nos deixará, que o Ruy vae desposal-a,
+e depois, o convento: ora veja se cabe
+uma cantiga assim na cabeça d'alguem?
+Se ella ha de preferir aquella quarentena
+á casa dum marido!... A mim já não abala
+essa ideia!...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ao Padre</em></p>
+<pre> Você nunca soube, nem sabe
+um marido bonito os encantos que tem...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>A Ruy</em></p>
+<pre>Finalmente, receia...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Eis onde pega o carro!...
+E sabe Deus, Doutor, que se não fôsse a crença!!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Pois bem, Joaquina, diga, em que é que o Cura pensa?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Que depois de casada...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Ouça-me então, eu narro:
+Receio, é natural, que ella siga o marido,
+e venha a solidão morar nesta choupana
+onde eu mesmo não sei como tenho vivido!
+E que será de mim e que será da mana,
+diga-me, Ruy, tambem o que será de nós,<span class="pagenum">{59}</span>
+dois velhos, nesta casa, enfermos e tão sós?...
+vendo, a cada momento, a lucta nos escolhos
+da saudade e da dôr, sem ter no dia extremo
+aquella mão leal que feche os nossos olhos?!...
+Fique sabendo, Ruy, porque motivo eu tremo...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Sim, mas não tem razão, pensemos na ventura,
+nessa immensa ventura...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> É mesmo assim que eu penso...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Que vae sentir Talitha ao vêr a luz do sol,
+tantos annos depois de longa noite escura,
+envolto o dôce olhar num véo pesado o denso!
+Vamos fallar de nós, deste novo arrebol
+que nos ha de banhar o coração e a alma,
+como um luar de outomno, uma alvorada calma,
+quando ella abrir á luz a languida pupilla
+dos olhos ideaes, tão doces e tão flavos,
+que são como um casal de abelhas que assimilla,
+nas flôres dos jardins, o loiro mel dos favos.
+Pensemos na expressão que o seu olhar vae ter
+quando ella vir ao sol tão brancos os cabellos
+do Senhor Cura...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Assim como a neve a descer
+sobre a minha cabeça, em flócos e novellos...<span class="pagenum">{60}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>saudosa</em></h4>
+<pre>E nós dois a curvar ao peso da nevada,
+o corpo já pendido, a procurar a estrada
+que váe á eternidade...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>interrompendo alegremente</em></h4>
+<pre> E já pensou, Joaquina,
+no famoso jantar?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Não, depois se combina.
+Como faltam ainda uns dias ao Natal
+vamos tratar primeiro...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>atalhando</em></h4>
+<pre> Isso! do nosso almoço,
+porque eu já estou sentindo um enorme alvoroço
+cá por dentro.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>A Ruy</em></p>
+<pre> Que diz?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Tudo quanto fizer
+a mãe Joaquina, está bem feito.</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>ironica</em></h4>
+<pre> Agradecida!
+Eu já volto.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{61}</span></p>
+
+<h2>SCENA III</h2>
+
+<h3><strong>Padre</strong> e <strong>Ruy</strong></h3>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Então, Ruy, pensou no resultado
+que vae ter para nós a sua operação?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Tenho pensado muito e só me felicito:
+parece que se abriu um vasto rosicler,
+enchendo de perfume o lar da minha vida;
+descanta-me no peito o coração alado
+tão viva, tão alegre e limpida canção,
+que me parece ouvir palpitar o infinito
+e a dôce voz de Deus abençoar-me o nome...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Pois bem, Ruy, entretanto a duvida consome
+os meus dias; medito e tenho muito medo
+de uma lucta que vae ser travada, em segredo,
+no seio de Talitha...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E então que lucta é essa?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>O encontro, á luz do Sol, do amor e da promessa.
+Conheço-a muito bem. Alma branca de pérola,
+possue alguma coisa assim divina e cérula.
+Foi creada por mim, na dôce região
+em que repoisa a crença á sombra da oração...<span class="pagenum">{62}</span>
+e sei que a pobresinha, um dia, prometteu
+professar e vestir o burel carmelita,
+se a Virgem lhe voltasse o seu perdido olhar.
+A Mãe de Deus ouviu a prece, mas agora
+que um novo dia aponta a curva azul do céo,
+mostrando-lhe o porvir numa formosa aurora
+de amor e de ventura, a angelica Talitha
+verá, na sua frente, erguer-se e fluctuar,
+constante, pertinaz, energica e severa,
+a promessa que fez, a consciencia austera
+a exigir-lhe que a cumpra e o seu primeiro amor
+a sorrir e a tental-a...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Esse mesmo receio
+tambem me preoccupa. Eu já presinto a dôr
+que vae, como um espinho, amargurar-lhe o seio.
+Assim a Providencia ás vezes desconhece
+o proprio mal que faz e como que se esquece
+da victima innocente e nessa lucta enorme
+a desgraça feroz que não cança, nem dorme,
+de certo vencerá, se nós que a divisamos
+ao longe, no horisonte, a deixarmos crescer
+tão alto, que domine aquelle pobre ser.
+E preciso pensar e vêr bem se afastamos
+da sua intelligencia a ideia do convento,
+como se afasta a flôr dos impetos do vento.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E quem terá prestigio e força de arrancar
+áquella consciencia, a dôce, a delicada,
+a candida expressão da promessa sagrada
+que ella espontaneamente ergueu junto ao altar?<span class="pagenum">{63}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Nao desejo arrancar essa illusão formosa
+á crença da sua alma... A raiz dessa rosa
+não é muito profunda, apenas esbraceja
+á flôr do coração, por isso não viceja
+ainda como o seio altivo e perfumado
+de uma corola aberta!... Um botão delicado
+agora principia a despertar á luz...
+Dessa casta missão, que moverá Jesus,
+sómente, Senhor Cura, a sua phrase austera
+se póde encarregar; o prestigio da idade,
+a alvura de luar das cans alabastrinas,
+a palavra de amor, piedosa e severa,
+do seu conselho bom, tão cheio de amizade,
+a sua consciencia e as affeições divinas
+que avizinham do céo o seu viver de santo,
+a fé que o seu olhar inspira a quem o fita,
+hão de estancar, por certo, a dôr, fonte do pranto,
+nos olhos virginaes da mimosa Talitha.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Sacerdote de Deus que o serve, ha tantos annos,
+nas duras provações, na dôr, nos desenganos,
+sem nunca haver mentido uma só vez na vida,
+tenho medo que a voz de commoção me trema,
+que me fuja o valor á hora assim blasphema
+de entregar á mentira esta fiel guarida...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Caridosa mentira, ó culpa dôce e casta
+que salva uma esperança e mais um anjo afasta
+á amargura cruel de um grande sacrificio!
+Responda, Senhor Cura, em sua consciencia,<span class="pagenum">{64}</span>
+acredita que Deus condemne uma existencia
+purissima de flôr, a tamanho supplicio?
+Que peccados terá Talitha a redimir
+que precise descer em vida á sepultura,
+agora que brilhou a estrella do porvir
+aos seus olhos, sem luz, na densa noite escura?
+Não mente, Senhor Cura, o labio quando salva:
+é aspera a mentira e tem a côr terrena,
+ao passo que a sua alma é branca, de açucena,
+e a sua phrase é sã, é redemptora, é alva!
+Em vez de sacerdote, a confessar a freira,
+seja Pae que dirige o coração da filha!
+Aquelle olhar sem luz, durante a vida inteira,
+desviou-lhe a razão para diversa trilha.
+Estenda-lhe o seu braço, ampare-a no caminho,
+traga de novo a rola ao palpitar do ninho!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E pensa, Ruy, que um Pae, se tiver consciencia,
+deva pedir que a filha afaste da lembrança
+a promessa que fez, com tanta segurança,
+quando implorava a Deus piedade e clemencia?...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Meu amigo, nao vê que esse immenso fervor
+nascia do tropel da magua e do pavor?
+Que, assim feita, a promessa, além de não ser santa,
+as almas enlanguece e os corações quebranta?
+Não vê que faltou luz áquella intelligencia?
+Que aquella alma vergou á estolida exigencia
+do desespero intenso e bárbaro, que a ancia
+de revêr inda o sol da sua alegre infancia
+envolver-lhe a cabeça em nimbos de ventura
+a levaram, talvez, nessa hora de tortura,<span class="pagenum">{65}</span>
+á extrema tentação de dar a mocidade
+por um dia feliz de viva claridade?
+Levita, cuja mão diariamente eleva
+ao throno do Senhor a hostia consagrada,
+levanta esse sacrario á curva constellada,
+a flôr que pede sol não viverá na treva!...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>depois de uma pausa</em></h4>
+<pre>Pois seja assim, meu Deus! e tu que o vês perdôa,
+porque ha no meu peccado uma intenção tão boa,
+tão pura e tão leal, que eu sinto adormecido
+o velho coração por nunca haver mentido...</pre>
+
+<h2>SCENA IV</h2>
+
+<h3>Os mesmos e <strong>Joaquina</strong></h3>
+
+<h4>Joaquina, <em>entrando</em></h4>
+<pre>Que grandes trapalhões, aqui a badalar
+numa palrice enorme e toda a gente á espera
+que o doutor mais o cura acabem de fallar...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Por que ha de ser assim tão má e tão severa?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Rabugice de velha!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> É só meu o proveito...<span class="pagenum">{66}</span></pre>
+
+<h4>Ruy, <em>abraçando-a</em></h4>
+<pre>Deixe-o fallar, Joaquina, aquillo é tudo inveja...
+da sua mocidade!...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Riem ambos</em></p>
+
+<h4>Joaquina, <em>entre risonha e severa</em></h4>
+<pre> Ai, ai! o malcreado!
+Esquece a obrigação e falta-me ao respeito!
+E a culpada sou eu! Ora não ha! Pois veja
+que emquanto está gastando o seu palavreado,
+seria bem melhor que cuidasse da enferma,
+que vive ali no escuro abandonada e erma.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E você que fazia?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Eu fui tratar do almoço;
+não andei de conversa á espera que o maná
+nos cahisse do céo.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Por isso falla grosso!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Não é da sua conta, ouviu?
+</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com a maior gravidade</em></h4>
+<pre> Ouvi...<span class="pagenum">{67}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Pois vá
+tratar do seu dever porque não faz favor...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Então que succedeu?</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>amenisando a voz</em></h4>
+<pre> É que a pobre pequena
+já cançou de esperar e quer vêr se o doutor
+lhe permitte que venha até aqui á sala.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Que diz, Senhor Doutor?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Que se Talitha ordena...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Pois faça-se a vontade...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Então, eu vou buscal-a...</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Joaquina sae.&mdash;O Padre, ancioso, passeia ao longo da
+sala; Ruy, encostado á meza, olha para a porta por onde sahiu
+Joaquina.&mdash;Pausa cheia de anciedade.<span class="pagenum">{68}</span></em></p>
+
+<h2>SCENA V </h2>
+
+<h3>O mesmos, <strong>Joaquina</strong> e
+<strong>Talitha</strong></h3>
+
+<p class="instruccoes"><em>Talitha entra de olhos vendados, pelo braço de
+Joaquina. Ruy e Padre vão ao seu encontro e tomam-lhe as mãos para conduzil-a a
+uma cadeira. Joaquina, deixando-a, vae cerrar as janellas e portas. Senta-se
+Talitha e conversam um pouco.</em></p>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Como te sentes, filha?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Afflicta, muito afflicta
+por ver a luz do dia...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>tomando-lhe a mão</em></h4>
+<pre> A mesma curiosa
+de sempre!...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Se parece á sua intelligencia
+que não tenho razão!... Ha tantos annos céga!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Deixa-o fallar, Talitha, isto é mais tagarella
+do que as creanças, vês?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Pois não creia, Talitha!...<span class="pagenum">{69}</span></pre>
+
+<h4>Padre, <em>tomando Ruy á parte</em></h4>
+<pre>Prepare o coração e veja que anciosa
+aquella vida está... tenha a maior prudencia!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>É muito natural; só emquanto não chega
+o instante de tirar a venda que lhe vela
+o dulcissimo olhar...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>A Talitha</em></p>
+<pre> Diga, Talitha, ainda
+sente alguma dôr?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Não! apenas a impressão
+do lenço que me causa a maior afflicção,
+a vontade feliz, viva, crescente, infinda
+de vêr de novo a luz...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E não ha quinze dias
+que lhe descubro a vista?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Ha, sim, mas lá no escuro,
+onde eu não vejo nada...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Assim é que convem...
+Depois de tanto tempo, então, já pretendias
+vêr livremente o sol? Seria prematuro...<span class="pagenum">{70}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>É muito perigoso!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E sentia-se bem?
+Chegou a distinguir, alguma vez, o aspecto
+ou a forma geral de qualquer um objecto?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Muitas vezes, pois não; primeiro vagamente,
+depois com nitidez.</pre>
+
+<h4>Padre, <em>alegre</em></h4>
+<pre> Mas então a doente
+Recuperou a vista!?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Abençoada a hora
+em que o menino entrou nesta pobre choupana!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Agradeçam a Deus!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Doutor, porque demora
+esta venda cruel que o meu olhar empana?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Pois diga-me primeiro o que pensa de mim.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Que é muito feio e máo...<span class="pagenum">{71}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Bem feito!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E da Joaquina?...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Penso della que é santa e que tem de setim
+côr da neve o cabello, a pelle muito fina,
+como eu creio que são as santas da capella.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E o nosso Padre-cura?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Um velhinho bondoso,
+que vive para o bem e sobre os pobres vela!
+Supponho que elle tenha a cabeça bem branca,
+o olhar muito suave e d'expressão tão franca,
+que appareça na face enrugada e senil
+a dôce candidez da sua alma infantil...
+E, cogitando assim, parece-me que vejo,
+dos altos de uma torre, a uma enorme distancia,
+como um jardim florido, a minha dôce infancia
+vicejando a sorrir, a sombra do seu braço,
+e o seu olhar de Pae enchendo todo o espaço
+de luz, de muita luz, tão dôce e tão leal,
+como o luar banhando as ondas de um trigal
+numa noite estreitada, e o sangue me palpita
+no seio, e o coração ardentemente agita
+na immensa anciedade afflicta e pressurosa
+de poder innundar a sua mão rugosa
+de lagrimas febris e de beijos sem fim.<span class="pagenum">{72}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Tantas coisas ao Cura e nada para mim!...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Exactamente, Ruy; a saudade de vêl-o
+augmenta a cada instante o meu triste flagello,
+porque nos braços delle um dia adormeci
+e não despertei mais... e ao Ruy...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>baixando a voz</em></p>
+<pre>eu nunca vi...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com caricia</em></h4>
+<pre>Pois vae tornar a vêr a boa da Joaquina
+que a trouxe ao collo, a rir, quando era pequenina.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Aproxima-se de Talitha para tirar-lhe a
+venda</em></p>
+<pre>Vae vêr o Padre-cura e matar os desejos
+de lhe cobrir a face e as mãos de muitos beijos...
+E vae me conhecer...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Tira-lhe a venda</em></p>
+
+<p class="instruccoes"><em>Silencio. Commoção geral. Talitha, acostumada á
+treva, não supporta a luz; tapa os olhos com as mãos; depois
+habitua a vista, levanta-se, olha, procura anciosamente. Antes de
+Talitha distinguir cada uma das pessoas, encanta-se com a luz e
+com os objectos.</em></p>
+
+<h4>Talitha, <em>á luz, correndo á janella</em></h4>
+<pre> Céos! Vejo novamente
+a luz que me faltou durante a meninice!
+Ó Sol da minha infancia, a sorrir de contente<span class="pagenum">{73}</span>
+torno a vêr-te de novo. Azul do céo, meiguice
+que ha muito não beijava o meu perdido olhar,
+como deves ser lindo ao dôce despontar
+da madrugada clara!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ao oratorio</em></p>
+<pre> Oratorio velhinho,
+junto ao qual, em pequena, eu tanto vez rezei,
+como sinto vontade, agora que revejo
+o teu branco Jesus, do amor e do carinho
+com que pela manhã e á noite eu te beijei,
+e hoje, meu velho amigo, a estremecer te beijo!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Passa as mãos nos olhos, como para
+certificar-se que vê bem</em></p>
+<pre>Mas parece-me um sonho!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Pausa. De novo esfrega os olhos</em></p>
+<pre> Eu já não sou a céga...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Pausa</em></p>
+<pre>Eu vejo tudo...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Estaca; olha as paredes</em></p>
+<pre> Sim, sim tudo...</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Olha para o tecto, baixa os olhos ao chão, volta-se
+para os lados, palpa as cadeiras, palpa a meza, corre á
+commoda</em></p>
+<pre> Eu não me engano.
+Eu vejo a minha mão!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Olha para as mãos</em></p>
+<pre> Mais branca do que o panno<span class="pagenum">{74}</span></pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>pega o avental e examina</em></p>
+<pre>do meu lindo avental!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Põe a mão sobre o peito, como que
+desmaiada</em></p>
+<pre> Ah! coração, socega...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Neste momento Joaquina, receiando que Talitha
+caia, corre para amparal-a, dizendo</em></p>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Credo! Jesus, Senhor!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>como que acordando aos gritos de Joaquina, ao vêl-a tem uma
+commoção e exclama</em></h4>
+<pre> Joaquina! ó boa e santa
+velhinha, dôce mãe que tanta dôr e tanta
+lagrima derramaste, aos pés do meu bercinho!...</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Vendo o Cura, lança-se a elle, soluçando; abraça-o,
+beija-o, vê-o, chora, ri, torna a abraçal-o, doida de alegria</em></p>
+<pre>Mas como eu sou feliz, meu Pae, meu Avôsinho!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Deixa afinal o Cura e corre para Ruy</em></p>
+<pre>E Ruy que me salvou...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Vae para abraçal-o, estaca: o pudor impede-a;
+baixa os olhos, em silencio</em></p>
+<pre> Ah!... Ruy... eu nunca o vi!...<span class="pagenum">{78}</span></pre>
+
+<h4>Padre, <em>soluçando e enxugando as lagrimas, aproxima-se della, toma-lhe a
+mão e leva-a junto de Ruy</em></h4>
+<pre>Beija-o, Talitha; beija, elle é digno de ti,
+emquanto eu vou render a Jesus Christo, filha,
+graças por essa luz que nos teus olhos brilha.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Sae, enxugando os olhos</em></p>
+
+<h4>Joaquina, <em>a Ruy</em></h4>
+<pre>Á Virgem prometti uma lampada accêsa
+durante uma semana, e por sua intenção,
+se Ella daqui levasse as dôres e a tristeza,
+fazendo este milagre. Hei de accender o azeite
+e rezar a seus pés, com toda a devoção,
+pedindo á Virgem Mãe que este meu voto acceite.
+Louvado seja Deus! O Céo vos abençôe!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Sae</em></p>
+
+<h2>SCENA VI</h2>
+
+<h3><strong>Talitha</strong> e <strong>Ruy</strong></h3>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Depois de uma pausa prolongada</em></p>
+
+<h4>Talitha, <em>sempre pudica</em></h4>
+<pre>Porque me encara assim? Offendi-o? Perdôe.</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>caminhando para ella</em></h4>
+<pre>Fitei-a porque sinto o brilho desse olhar,
+como um rio de luz suavissima, innundar<span class="pagenum">{76}</span>
+a minha mocidade inhospita e sombria,
+num banho redemptor de dôce calmaria.
+E parece-me vêr a sombra avelludada
+da sua fronte branca, e pura, e macerada,
+fugir espavorida á luz desse clarão...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Que eu devo tão sómente á sua compaixão...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Esqueça que fui eu...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Não sei como se esquece...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Então recordará, por toda a sua vida,
+o nosso amor feliz?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> A sua alma duvida?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Eu não duvido, eu peço, e vae na minha prece
+quanto minh'alma tem de puro sentimento...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>curiosa</em></h4>
+<pre>Na sua prece?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Sim, tão cheia de fervor
+como a casta oração que a sua crença augusta<span class="pagenum">{77}</span>
+soluça de manhã, mais triste que um lamento,
+que vae, azul em fóra, ao throno do Senhor,
+no murmurio subtil dessa bocca venusta.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Eu nunca olvidarei a dulcida ventura
+daquella noite densa, atormentada, escura,
+em cujo manto negro a sua mão bondosa
+rasgou a dôce aurora alegre e luminosa...
+O caridoso amor, que os seus labios deixaram
+gravado nesta mão que tanta vez beijaram,
+foi um sonho feliz numa noite polar,
+sonho de primavera em noite sem luar:
+nunca mais sahirá d'entre as minhas lembranças.
+Como um beijo de mãe na face das creanças,
+a primeira affeição nunca se desvanece,
+é como a flôr da lenda: a todo o instante cresce!
+Se eu a esquecesse, Ruy, como seria ingrata!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Talitha, minha vida, a densa cataracta
+não poude escurecer a lucidez suprema
+da sua alma christã, que vale um diadema
+de rainha e de santa, a cujos pés se inclina
+a minha alma que vae sobre a esteira argentina
+que o seu vestido traça ao longo da jornada,
+como no azul do mar as velas da jangada...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>E se a vela, batida ao vento da desdita,
+levar á sombra eterna essa infeliz Talitha
+que a sua mão salvou da mesma sombra eterna?<span class="pagenum">{78}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Irei onde ella vá. Se a aragem fôr galerna
+e o nosso amor levar a gondola encantada,
+sobre o dorso da vaga em branca espumarada,
+eu seguirei, sonhando, á prôa, na epopêa
+que o seu divino olhar de candida sereia
+ha de inspirar, sorrindo, a quem o illuminou.
+Se o vento arremessar a vela que enfunou
+á rude penedia e sossobrar a barca,
+hei de salvar, então, a pequenina arca,
+onde vive encerrada a pomba da alliança,
+que faz do nosso amor uma alegre esperança!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Apenas esperança, e nada mais! A vida
+é um sonho que passa e foge; perseguida,
+occulta-se a esperança á sombra de um asylo,
+tão occulto tambem que, para descobril-o,
+desfaz-se muita vez ou rasga-se em pedaços
+a nossa fé mais pura e a crença, em estilhaços,
+desapparece e vae, por esse mundo fóra,
+como nuvens no céo ao despontar da aurora...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Porque razão, Talitha, os nossos pobres sonhos
+não poderão florir, alegres e risonhos,
+á plena luz do Sol?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Sonhos são illusões
+que a madrugada esbate em limpidos clarões,
+e nada mais... Talvez as suas, sim!... As minhas
+irão fazer o ninho á sombra... As andorinhas<span class="pagenum">{79}</span>
+tem que mudar de clima ao começar o inverno,
+levando para longe o seu amor materno...
+A minha acostumou-se á sombra da cegueira:
+se na sombra passou quasi uma vida inteira!
+Na sombra adormeceu, na sombra soluçou
+e na sombra sorriu... A sua mão rasgou
+este sulco de luz no meu perdido olhar,
+e a triste, acostumada á sombra tumular,
+fugiu espavorida ao lucido lampejo
+e tão distante foi, que nem sequer a vejo...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>É o receio infantil que vem da escuridão!
+A esperança, Talitha, ainda um só instante
+não sahiu do calor que faz do coração
+o ninho aconchegado, o berço palpitante
+e o sacrario fiel do nosso casto amor!
+Na sombra nasce, e cresce, e vive tanta flôr
+sem perder o perfume!... E a esperança, Talitha,
+é o perfume do amor, a essencia que dormita
+serena e só desperta ao carinhoso afago
+dum beijo a murmurar em sonho dôce e vago...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Mas antes que o murmurio a despertasse, a luz
+do sol lhe recordou que aos olhos de Jesus
+e aos pés de sua Mãe ella havia ajoelhado
+no fervor da oração, em dia torturado,
+prendendo a vida inteira ao brilho de um olhar.
+Entre nós dois agora eleva-se um altar,
+e eu vejo-me prostrada e envolta no burel,
+sorrindo para o céo, por ter sido fiel
+á promessa que fiz...<span class="pagenum">{80}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E o nosso amor, Talitha,
+não foi uma promessa?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Ah! foi, mas a desdita
+lançou-lhe a maldição no dia em que nasceu
+e o nosso puro amor agora feneceu.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E a tua mão divina, angelico florão
+de algum ciborio astral, a tua mão de rosa
+e jaspe é que me vem ferir esta affeição
+que banhava em frescor a vida bonançosa
+deste meu sonho azul!... Mas quando, em nostalgia,
+á sombra do mosteiro, a tua phantasia
+volver para o passado esse formoso olhar
+tão cheio de candura e te fizer sonhar;
+quando a espiral do incenso á curva do docel
+subir da tua mão occulta no burel,
+como a dôce expressão duma saudade immensa;
+quando á noite o luar, vencendo a treva densa,
+entrar na tua cella e fôr beijar-te a face,
+como se por ventura envolta nelle entrasse
+a minh'alma saudosa a visitar a tua:
+quando esse olhar divino, em cuja luz fluctua
+a pureza vestal da tua castidade,
+sorrindo, remontar á dôce claridade
+das estrellas no céo, minha gentil Talitha,
+recorda o nosso amor, formosa cenobita,
+e pensa na tortura intermina e profunda
+desta vaga de fel que a minha vida innunda,
+medita nesta noite atroz, que me apavora,
+e tu me dás em paga a fulgurante aurora<span class="pagenum">{81}</span>
+que o meu amor te deu, sorrindo de ventura...
+Bemdita seja a treva, a noite de amargura,
+bemdita seja a dôr, para sempre bemdita,
+que vem da tua mão, angelica Talitha!</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Talitha, em lagrimas, soluça. Ruy vae para sahir e
+encontra o Padre que entra. Pausa, durante a qual o Padre, mudo de dôr, fita os
+olhos, ora em Talitha, ora em Ruy.</em></p>
+
+<h2>SCENA VII</h2>
+
+<h3>Os mesmos e <strong>Padre</strong></h3>
+
+<h4>Padre, <em>junto de Talitha</em></h4>
+<pre>Porque choras, creança?</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ruy, cabisbaixo, medita. Pausa, durante a
+qual se ouve o soluçar de Talitha.</em></p>
+<pre> O teu silencio abala
+toda a minh'alma, filha; abre os teus labios, falla...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Silencio. A Ruy</em></p>
+<pre>A sua commoção... Ruy! Mas que succedeu?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Foi mais uma illusão que se desfez... morreu!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{82}</span></p>
+
+<h2>SCENA VIII</h2>
+
+<h3><strong>Padre</strong> e <strong>Talitha</strong></h3>
+
+<h4>Padre, <em>abraçando Talitha</em></h4>
+<pre>Não te apoquentes, filha! A dôr que te devora
+eu já previra ha muito. A noite tambem chora
+no calice da flôr, e o céo que tem a luz
+das estrellas sem fim, chorou, quando Jesus
+abriu por sobre a terra a sombra dos seus braços,
+abençoando a dôr que vaga nos espaços...
+Mas os teus olhos, ha pouco illuminados,
+não devem, por emquanto, andar annuviados
+que se pódem cegar de novo, sem remedio...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>rapidamente, entre alegre e chorosa</em></h4>
+<pre>Então se eu lhe pedisse...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> O quer que seja, pede-o...
+Pede, Talitha, pede, e poupa o teu olhar...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>lacrimosa</em></h4>
+<pre>Pois bem, eu pedirei, que deixe-me chorar!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Não te apavora a noite immensa e tenebrosa?!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Não me amedronta mais! A lua carinhosa
+vive na escuridão. Fui tão feliz na treva<span class="pagenum">{83}</span>
+que chego a ter saudade e o coração me leva
+a pedir que me deixe ind'outra vez banhar
+na sombra eterna e mésta a luz do meu olhar...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Que blasphemia, Talitha!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> O meu labio não erra,
+e o que elle disse, Padre, o meu fervor encerra.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Medita, minha filha, e Deus Nosso Senhor
+envolva a tua crença em seu divino amor!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Pois ouça-me um instante a confissão singela
+da incomparavel dôr que a minha vida gela:</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Padre senta-se e Talitha ajoelha-se ao
+lado</em></p>
+<pre>Tinha soffrido muito; o immenso desespero
+de um dia de tortura, afflictivo e severo,
+me fez allucinar e, erguendo para os céos
+as mãos de quem supplica, eu implorei a Deus
+clemencia a tanta dôr. A noite de flagicio,
+que dava á minha vida o aspecto de um supplicio,
+parecia sem fim, sem luz e sem aurora.
+E, como a flôr que á noite exhala, espaço a fóra,
+o aroma delicado e puro do seu seio,
+vencendo o meu temor e o natural anceio,
+eu dei, como penhor da luz que supplicava,
+a minha mocidade e o porvir que eu sonhava;
+e prometti á santa e casta Samarita<span class="pagenum">{84}</span>
+votar-me para sempre ao burel carmelita...
+Mas presenti, depois, que dentro de minh'alma
+despontava, sorrindo, uma esperança calma
+que innundava de luz o coração da céga,
+e commigo pensei:&mdash;Deus, de certo, não nega
+que veja agora a luz quem sempre foi escrava:
+e nesse pensamento a vida concentrava.
+Foi quando Ruy me fez a esmola caridosa
+de uma dôce affeição que tem a côr da rosa;
+e, sem pensar, jámais, em vêr de novo o mundo,
+o meu amor cresceu e fez-se tão profundo
+que para desprender-lhe as tumidas raizes
+eu rasgarei, talvez, mais largas cicatrizes...
+Depois a mão de Ruy abriu para os meus olhos
+o véo da madrugada e eu vi sobre os escolhos,
+toda em pedaços feita, a minha pobre herança,
+perdida para sempre a querida esperança
+que eu havia sonhado em dias de cegueira...
+Se sacrifico o amor pelo burel de freira
+eu desço á sepultura em plena mocidade;
+se não cumpro a promessa e minto á santidade
+do voto que levei á pedra de um altar,
+não devo conservar a luz do meu olhar
+e rogo novamente a Deus que m'a desfaça
+e á Virgem que conceda a pequenina graça
+de receber de novo esse penhor tão puro,
+deixando-me, outra vez, o mesmo olhar escuro!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Escuta, minha filha.&mdash;A Providencia, ás vezes,
+se manda aos corações as dôres e os revezes
+não é que se compraza em opprimir as almas
+para lhes dar mais tarde as viridentes palmas
+do martyrio, não! Não, minha ingenua Talitha.
+Eras ainda tu mimosa e pequenita<span class="pagenum">{85}</span>
+quando ficaste céga. Abrira para o mundo,
+apenas, a tua alma e o teu olhar jocundo
+sorria para a luz. Assim, innocentinha,
+tu ias de manhã commigo á capellinha
+e, emquanto eu murmurava as orações da missa,
+tu rezavas, sorrindo, angelica e submissa,
+á Virgem que te ouvia, a Salvé Magestosa,
+bem como se a rezara o labio de uma rosa...
+Desse labio subia um fervor tão intenso
+como a espiral azul e timida do incenso...
+Depois... faltou-te a luz, mas tu nunca faltaste
+á mesma hora de sempre, á missa. E que contraste;
+tu, pequenita e céga e o Sol com tanta luz!
+Muitos annos pediste á Madre de Jesus
+que te restituisse um dia o teu olhar,
+como se a Virgem fôsse autora da desdita
+que te ferira assim, minha meiga Talitha...
+Pois creança, tu crês que a Mãe que soffreu tanto
+no dia em que perdeu o filho casto e santo
+te pudesse roubar dos olhos transparentes
+a luz que illuminava as pupillas ardentes?
+Pois ella que te viu de rastros, a rezar,
+em todas as manhãs, aos pés do seu altar,
+levando-lhe, a sorrir, tantos ramos de flôres,
+podia assim voltar a crueldade e as dôres
+sobre a tua cabeça ingenua e piedosa,
+Ella que foi a Mãe mais dôce e generosa!?
+Escuta, minha filha:&mdash;o livro do Senhor
+descreve que, uma feita, andava na Judéa
+o divino Jesus prégando a sua idéa...
+Acercou-se do Mestre uma infeliz proscripta
+a quem a dôr matara a filha pequenita,
+e, em lagrimas, pediu que lhe voltasse á vida
+o cadaver da filha extremosa e querida.
+Abençoando a mãe que aquella dôr humilha
+disse Jesus então: «a tua pobre filha<span class="pagenum">{86}</span>
+estava adormecida e agora está acordada;
+volta que a encontrarás a rir, já levantada».
+E a pobre mãe, que vira a pequenina morta,
+depois, ao regressar, foi encontral-a á porta,
+sorrindo alegremente, entre as demais creanças,
+como um bando gazil de cordeirinhas mansas!
+Pois bem, minha Talitha, o teu olhar dormiu
+sómente, não morreu. Quando a céga pediu,
+á Virgem Mãe de Deus, que um dia t'o salvasse,
+o seu divino olhar fitava a tua face
+e despertou do somno o teu formoso olhar
+que nunca fôra cégo e, apenas a sonhar,
+adormecera. E agora, agora que acordou
+póde fitar a mão de quem lhe descerrou,
+em nome de Jesus, a noite que o toldava,
+que te fazia triste e lacrimosa, escrava...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>E a Virgem que me ouviu quando eu lhe prometti
+votar-me ao seu burel, por tanto que soffri,
+quererá perdoar a minha negra falta?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Escuta-me, Talitha:</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ruy surge ao fundo e escuta</em></p>
+<pre> O coração exalta,
+pergunta-lhe o que sente, o que deseja; pensa
+muito, muito, em silencio, indaga a tua crença
+e faze o que disser a tua consciencia,
+mas não esqueças, filha, a dôce confidencia
+de Ruy que illuminou o teu escuro olhar,
+e lembra-te, depois, que, só por muito amar,
+o Christo perdoou á pobre Magdalena.
+E agora, que a tua alma está bem mais serena,<span class="pagenum">{87}</span>
+attende-me!&mdash;Rezando adormeci. A aurora
+despertou-me, sorrindo, e entrevi, áquella hora,
+um sonho que fugia, em busca de outros lares!
+Subia docemente, ao claro azul dos ares,
+o vulto da Senhora, abrindo pelo Céo
+o palio virginal do seu materno véo,
+desnastrado o cabello, um manto de rainha
+recamado de sóes; a nuvem que a sustinha,
+toda cheia de luz, deixava atraz de si
+um rastro de fulgor. E eu lembrei-me de ti...
+Curvaram-se a tremer as pernas fatigadas,
+ao peso esmagador das longas invernadas;
+e assim, postas as mãos, olhando para o vulto
+da Virgem que eu adoro em fervoroso culto,
+pedi-lhe que mandasse um raio de luar
+ás lagrimas de fel da tua dôr sem par...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Talitha começa a sorrir</em></p>
+<pre>E a Virgem, a sorrir, do seio do infinito,
+baixou por sobre o meu um dôce olhar bemdito
+e eu vi rolar no azul da immensa vastidão,
+no fulgor de uma estrella, o beijo do perdão...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>correndo para a porta</em></h4>
+<pre>Ruy!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Encontra-se com Ruy e pára, pudibunda, de
+olhar no chão</em></p>
+
+<h4>Padre, <em>só, á frente da scena, mãos postas, a olhar para o céo</em></h4>
+<pre> Perdôa, Senhor, se lhe menti, perdôa;
+o meu labio peccou, mas a intenção foi boa!</pre>
+
+<p style="text-align:center;">CAE O PANNO<span class="pagenum">{89}</span></p>
+
+<h1>TERCEIRO ACTO</h1>
+
+<p>Modesta sala de jantar em casa do Cura. Á direita, um oratorio sobre uma
+commoda antiga; á esquerda, entre portas, um orgam.</p>
+
+<h2>SCENA I</h2>
+
+<h3><strong>Joaquina</strong>, só</h3>
+
+<p class="instruccoes"><em>Joaquina procede aos arranjos da casa para uma noite
+de festa; cuida do oratorio, accende-lhe as velas, começa a pôr a meza para a
+ceia; tudo em silencio. Depois de alguns momentos entra Ruy.</em></p>
+
+<h2>SCENA II</h2>
+
+<h3><strong>Joaquina</strong> e <strong>Ruy</strong></h3>
+
+<h4>Ruy, <em>entrando</em></h4>
+<pre>Boas noites, Joaquina!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> As mesmas Deus lhe dê!
+Inda bem que chegou; pensei que não voltasse
+aqui á nossa casa!<span class="pagenum">{90}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Essa agora... e porque?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>É boa! Inda pergunta? Esteve lá por fóra
+durante todo o dia e sem que se lembrasse
+que neste pobre asylo ainda vive e mora
+gente boa e christã...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> E quem lhe disse tanto?
+Vão vêr que foi intriga ou treta de algum santo!...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Hereje! brinque, brinque assim com Jesus Christo
+e ha de vêr se é feliz! Não sabe que o Natal
+é a noite sagrada?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> É, sei! Não foi por mal
+que faltei. Pela vez primeira não assisto
+á missa desta noite. Ha bem vinte e seis annos
+que falleceu meu Pae: rompia a madrugada.
+Começaram-me assim os tristes desenganos
+e a lucta da existencia abriu-se amargurada.
+Desde então, minha Mãe, boa e santa velhinha,
+recorda tristemente, apenas se avizinha
+a noite do Natal, a dôr daquella aurora,
+e emquanto tudo ri, ella soluça e chora...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Sem mesmo a conhecer eu tenho pena della.<span class="pagenum">{91}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E hoje que eu sou feliz a pobresinha vela.
+Creio que neste instante os seus labios de crente
+envolvem numa prece encantadora e mesta,
+num templo illuminado, ao celebrar da festa,
+o esposo que morreu e o proprio filho ausente.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Devera ser então mais um grande motivo
+de não faltar á missa.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E creia que é bem vivo
+o meu pezar. Entanto a razão dessa falta
+foi sagrada e vae vêr como ella tanto exalta
+a minha consciencia.</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>ironica</em></h4>
+<pre> Eu imagino bem!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Não posso vêr soffrer o coração de alguem...
+Attenda-me, Joaquina, e diga se eu podia
+negar-me, sem peccar, ao dever que exigia
+de acudir pressuroso ao leito d'um enfermo
+ardendo em alta febre e bem proximo ao termo
+duma longa existencia asperrima e deserta,
+onde apenas a dôr tinha uma entrada aberta.
+Conhece aquelle atalho escuro e retirado
+que vae dar á capella?<span class="pagenum">{92}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4>
+<pre> Onde foi enforcado
+O marido da Emilia?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Exactamente, ahi.
+Mesmo nesse logar em que ficou a cruz
+existe uma choupana á qual me recolhi
+para fugir á chuva. O caminho conduz,
+pela esquerda, á Capella; a direita, ao moinho
+do velho reformado! Entrou-me na choupana
+a neta do sargento a dizer que o avosinho
+quasi estava a expirar. Fôra maldade insana
+deixar morrer o velho á mingoa de cuidados.
+Fui. Mas antes não fôsse. Em nada lhe valeu
+a visita que fiz, o velho falleceu...
+Como devem morrer os bravos e os soldados
+assim elle expirou, fitando bem a morte,
+firme como um leão e simples como um forte.
+Uma miseria extrema; os netos quasi nús,
+com fome e sem comida ha dois dias!</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4>
+<pre> Jesus!
+E aqui tanta fartura!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> A Patria é bem madrasta!
+Esse velho, que a morte aos netos hoje afasta,
+tem no peito e na face algumas cicatrizes
+das lanças do inimigo.<span class="pagenum">{93}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Ah! são bem mais felizes
+os soldados que vão á guerra e que lá morrem
+no campo da batalha.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Exacto. Os outros correm
+o perigo maior de morrer desprezados, como
+esse pobre velho.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E estão abandonados
+os netos, Sr. Ruy?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Não estão; felizmente
+fallei ao regedor e tudo se arranjou;
+demais a mais tambem, segundo me informou,
+têm direito á pensão que o velho Avô doente
+não poude receber.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E quem receberá
+essa triste pensão, se o velho que serviu
+não poude recebel-a e nem sequer a viu?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Tambem já pensei nisso e tudo se fará,
+minha boa Joaquina. Assim, o moribundo
+me obrigou a faltar á missa do Natal.
+Se um pobre que estivesse a deixar este mundo
+lhe pedisse um amparo, a sua alma leal
+negaria essa esmola?<span class="pagenum">{94}</span></pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Ainda m'o pergunta?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Á sombra desse olhar tudo se abriga e junta
+e eu leio na pupilla esmaecida e pura,
+num misto de mudez, de pranto e de ternura,
+que o seu bom coração tambem acudiria.
+E por isso faltei; tenho, porém, certeza
+que Talitha por mim, ao menos, rezaria.
+E quando assim se tem tão lucida pureza
+a interceder por nós aos pés da Divindade,
+parece que a nossa alma, em dôce alacridade,
+mergulha no baptismo, em aguas de um Jordão
+todo feito de amor, de beijos e perdão!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Ah! quando eu penso em tudo o que se tem passado
+depois que aqui chegou!... Como isto está mudado!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Tudo é tão natural que não nos vale a pena
+gastar tempo a pensar em cousa tão pequena.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Então é cousa pouca uma pobre engeitada,
+ha tanto tempo céga, e sem mãe, desprezada,
+encontrar quem lhe dê de novo o seu olhar,
+e quem lhe tenha amor e a queira desposar!?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Engeitada, que importa? O coração não pensa,<span class="pagenum">{95}</span>
+ama sómente e assim não indaga a nascença
+da mulher que o inspirou. Mas não é desprezada
+a formosa Talitha; esta mansão amada
+serviu de lar paterno á sua dôce infancia
+e, se aqui respirou a magica fragrancia
+de uma alma aberta, em flôr, se a sua mão, Joaquina,
+materna, a acompanhou desde assim pequenina,
+pouco importa que a mãe a tivesse engeitado;
+amei-a, e nesse amor eu tenho baptisado
+o sonho do porvir...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Diga, e quando casar
+vae leval-a d'aqui?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Seria derrancar
+o santo coração do velho Padre-Cura;
+nem tanto necessita a completa ventura
+das minhas illusões, nem teria coragem
+para tamanho mal; seria mais selvagem
+que a propria malvadez</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>abraçando-a</em></p>
+<pre> tirar ao seu amor
+o prazer de aspirar o aroma dessa flôr,
+que ao seu lado cresceu, tão branca e tão fagueira,
+como um lyrio do valle ao pé de uma roseira!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Sim; isso diz agora e depois de casado
+ha de pensar, de certo, em sua mãe saudosa,
+e para que ella veja, alegre e carinhosa,<span class="pagenum">{96}</span>
+o filho salvo e bom, tão robusto e córado,
+o Ruy tem de levar comsigo a pequenita
+que nos serve de filha e que nos faz felizes!...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Descance, boa amiga; este amor tem raizes
+que eu nunca poderei arrancar de Talitha,
+nem penso em perturbar a paz do vosso azylo
+que a propria mão de Deus formou assim tranquillo.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Se Deus que nos dôou a innocentinha, agora
+mandasse a Mãe aqui para leval-a embora,
+onde quer que ella fosse havia eu d'ir tambem,
+porque a trouxe no collo e quero tanto bem
+que passo a minha vida olhando o azul dos céos,
+para vêr se descubro a Santa Mãe de Deus
+e pedir-lhe que deixe á tremula velhice
+dos meus dias sem luz, ao menos, a meiguice,
+daquelle coração que eu vi desabrochar...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>E o céo que lhe responde?</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> O céo?... Nada! A rezar
+tenho passado a vida e, nesta idade, a gente
+já não póde chorar, as lagrimas seccaram
+e por isto se soffre, a dôr é mais pungente
+quando se quer chorar e os olhos já cançaram.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se a voz de Talitha, fóra</em><span
+class="pagenum">{97}</span></p>
+
+<h4>Taitha</h4>
+<pre>Ó Joaquina! Ruy, Ruy...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Ahi vem a traquina;
+E ha de chamar por tudo a pobre da Joaquina...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>corre á porta</em></h4>
+<pre>Mas como vem alegre...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Entra Talitha</em></p>
+
+<h2>SCENA III</h2>
+
+<h3>Os mesmos e <strong>Talitha</strong></h3>
+
+<h4>Talitha, <em>ao entrar, vendo Ruy, estaca: fica silenciosa e em
+seguida:</em></h4>
+<pre> Eu bem disse ao padrinho...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>tomando-lhe a mão</em></h4>
+<pre>Que foi que tu disseste, alma da côr do linho?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Que ninguem póde crêr na jura...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>interrompendo com meiguice</em></h4>
+<pre> Das mulheres?...<span class="pagenum">{98}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>ralhando com carinho e retirando a mão</em></h4>
+<pre>Dos homens... atrevido, ainda tens coragem
+de rir?...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>alegremente</em></h4>
+<pre> Ou de chorar, se tu assim preferes...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Mas a tua promessa? Esqueceste a homenagem
+da noite de Natal?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Pois pergunta á Joaquina...</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>intervindo</em></h4>
+<pre>A mim? não sei de nada...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>a Talitha</em></h4>
+<pre> Ella está gracejando;
+sabe tudo tão bem como eu, mas imagina
+que tu és ciumenta e então, de vez em quando,
+a recordar o tempo em que era rapariga,
+faz pirraças á gente, armando alguma intriga...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>A verdade, porém, é que faltaste e eu não.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Pois bem, faltei; mas tive uma forte razão:
+o velho reformado estava agonisante
+e mandou-me chamar; eu fui no mesmo instante<span class="pagenum">{99}</span>
+assistir-lhe á agonia. Expirou-me nos braços:
+ia o sol a fugir na curva dos espaços,
+á hora em que soluça o sino das trindades
+o Angelus sagrado envolto nas saudades
+que a terra balbucia, agradecendo ao céo
+a luz que lhe mandou na flacidez do véo
+crepuscular e dôce, oiro tecido em gaze,
+sem brilho de offuscar e sem calor que abraze.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>E nunca mais o vi, nem o verei jamais!...
+Foi cégo como eu fui. Nas manhãs estivaes
+muita vez o encontrei, cançado dos trabalhos,
+pedindo esmola ahi por todos os atalhos.
+Elle ia pela mão da neta, uma creança!
+Era um velho senil á sombra da esperança!
+Eu ía recostada ao braço do padrinho
+e, ao sentir-me, dizia: «ampare-me esse anginho
+&mdash;amigo Padre-Cura, eu quero que elle veja
+&mdash;como um velho soldado, a mendigar, rasteja
+&mdash;neste mundo de Christo»&mdash;. E ficava a pensar
+naquelle desgraçado. O meu perdido olhar
+novamente voltou, quando o delle se apaga
+na escuridão mortal que tudo cobre e alaga...
+Se eu pudesse amparar as pobres creancinhas!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Não faltará calor ás meigas andorinhas.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>E quem lhes ha de dar?<span class="pagenum">{100}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Quem?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Deus, Jesus e nós!</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>com ingenuidade</em></h4>
+<pre>Nós seremos os paes:</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>a Joaquina</em></p>
+<pre> tu e o Cura, os avós...</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>Valha-te Deus, tontinha!</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>a Talitha</em></h4>
+<pre> Encantadora e casta;
+ó Virgem Conceição, flôr, ingenua madrasta,
+bemdito seja o dia em que te amei, formosa,
+sonho feito mulher, sorriso feito em rosa...</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>admirada</em></h4>
+<pre>Que tem isso de mal? Tambem elle era cégo,
+não podia cuidar da neta que o guiava
+e agora, felizmente, eu tenho no aconchego
+da minha mocidade a luz que me faltava
+e posso olhar por ella. A minha desventura
+não teve neste asylo o amor do Padre-Cura?
+Depois não tive ainda?!...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Olha para Ruy, baixa os olhos e
+cala-se</em></p>
+
+<h4>Joaquina, <em>beijando-a</em></h4>
+<pre> Ah! minha tagarella!...<span class="pagenum">{101}</span></pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Depois tiveste ainda o teu formoso olhar
+que andava lá no céo illuminando a estrella
+d'alva. E agora tambem tens muito que narrar
+do que viste na igreja...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Ah! na missa do gallo?
+Eu vinha exactamente aqui para contal-o...
+O que eu vi, Ruy, na igreja, emquanto o Padre-Cura
+dizia aquella missa!... Inda agora fulgura,
+sobre a minha retina, a vivida impressão
+do seu olhar tão dôce e manso, de perdão...
+Inda agora o sorriso, angelico e furtivo,
+do seu labio de rosa, orvalhado e festivo,
+innunda de frescor a minha vida inteira,
+como o rócio da noite á flôr da amendoeira.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Quem foi que te sorriu com tamanha affeição,
+que fez vibrar tu'alma em tanta commoção?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Um milagre de Deus! Se tens fé, acredita
+no que te vou dizer.</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Dize, minha Talitha!</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>approximando-se</em></h4>
+<pre>Conta, conta o que foi.<span class="pagenum">{102}</span></pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Pois nesse caso, ouvi:
+Quando eu entrei no templo um borborinho enorme
+encheu toda a capella; então foi que eu senti
+como é triste ser cégo e ter olhar que dorme
+tantos annos de vida, em funda lethargia,
+sem a benção gentil de vêr a luz do dia!
+Toda a gente fallava, olhando para mim,
+e eu muito satisfeita a caminhar assim...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Imita o andar magestoso</em></p>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Como tu és vaidosa!</pre>
+
+<h4>Joaquina, <em>sorrindo e pondo as mãos</em></h4>
+<pre> E como ella é catita...
+</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>a Ruy, ingenua</em></h4>
+<pre>Mas se eu fôsse a teu lado, inda era mais bonita!...
+Deram-me tanto abraço e beijaram-me tanto!
+A capellinha estava alegre, era um encanto.
+Á entrada muita flôr, o altar com muita luz,
+e num bercinho branco o menino Jesus,
+tão lindo, tão mimoso e tão engraçadinho,
+que parecia mesmo um rouxinol no ninho.
+Uma velha fitou-me e disse: que princeza!
+Um velho lavrador olhou-me com surpreza
+e bem alto fallou: «Que Deus Nosso Senhor
+te dê um bom marido»...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> E que disseste, amor?<span class="pagenum">{103}</span></pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Nem uma palavrinha! Eu ía bem calada,
+entre muito contente e muito envergonhada.</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre>E depois?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> E depois... fui então ajoelhar,
+sósinha, nos degráos que sóbem ao altar,
+á espera que viesse, a meia noite, a missa.
+Rezando ali, a sós, com fervor de noviça,
+lembrei-me da promessa e as lagrimas rolaram,
+subindo-me do seio aos olhos que as choraram.
+Eu sentia uma dôr immensa, por fugir
+ao voto que fizera e, em vão, quiz resistir,
+á minh'alma affluia um extranho remorso
+e embora eu despendesse o mais sincero esforço,
+para conter o pranto, o coração vergava
+e, numa agitação convulsa, palpitava
+acabrunhado e triste...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se o repicar dos sinos</em></p>
+
+<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre> Ai! que acabou a festa
+e a ceia por fazer, mas que cabeça é esta!...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Sae e entra constantemente, nos arranjos da
+casa</em></p>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Mas não te lembras já que, em nome do Senhor,
+o Cura abençôou o nosso casto amor?
+Não te lembras tambem da lucida visão
+que te trouxe do céo a estrella do perdão?<span class="pagenum">{104}</span></pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>De tudo me lembrei; não sei que força extranha
+pesava sobre mim, como immensa montanha,
+e não deixava erguer o meu olhar medroso
+para encarar de frente o vulto magestoso
+da Virgem Mãe de Deus! Mas quando o Cura entrou
+parece que a minha alma</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>torna o sino a repicar</em></p>
+<pre> alegre despertou...
+Senti uma esperança illuminar-me o seio
+e dissipar-se então esse cruel receio!
+Rezei muito, rezei com tanta commoção,
+pedi com tanto ardor, com tanta devoção,
+que a minh'alma subiu, tão leve e tão submissa,
+aos pés da Mãe de Deus, durante aquella missa,
+como se fôsse presa a hostia consagrada
+que o Cura levantava á cruz abençoada...
+Com ella o meu olhar de supplica subiu.
+E fitando, sem medo, a face alabastrina
+da candida judia, eu vi que Ella sorriu
+com tão dôce expressão de placidez divina
+que me banhou de luz amortecida e calma
+a minha santa crença e fez vibrar minh'alma!
+Senti que era o perdão que vinha, n'um sorriso,
+abrir á minha vida um novo paraiso...
+Ergui-me docemente, approximei-me d'Ella
+e, beijando-lhe a mão que sobre o mundo vela,
+ouvi, como um soluço, a sua voz tão pura,
+dizendo-me em segredo, em intima ternura:
+
+ Que lindos olhos, Talitha,
+ os olhos que o Ruy te deu:
+ tem uma luz infinita,
+ parecem feitos no céo...<span class="pagenum">{105}</span></pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Joaquina, que tem parado o trabalho, attrahida pela
+narrarão de Talitha, enlevada, abraça-a, lacrimosa, beija-a...</em></p>
+
+<h4>Ruy, <em>emquanto Joaquina abraça Talitha</em></h4>
+<pre>Mas tu ouviste bem, tens a certeza plena?</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>desprendendo-se de Joaquina</em></h4>
+<pre>Ouvi perfeitamente; a voz era serena,
+tão serena e subtil que a mim se affigurava
+ser o proprio silencio assim que me fallava.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se o repicar dos sinos e começa-se a
+ouvir as primeiras vozes dos córos distantes.</em></p>
+<pre>Estremeci de alegre e acreditei então
+que surgira, afinal, o dia do perdão;</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Approximam-se as vozes</em></p>
+<pre>desci do altar, corri, deixei a missa e vim,
+como se o coração cantasse dentro de mim,
+para dizer-te, Ruy, que a minha vida é tua.</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Corre para elle, mas detem-se e, olhando para
+Joaquina, baixa os olhos timida, brincando com o avental: pausa e
+silencio.</em></p>
+
+<h4>Joaquina, <em>percebendo</em></h4>
+<pre>Filhos, não serei eu quem assim vos destrua
+as santas illusões...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>ouve-se o côro muito perto</em></p>
+<pre> Se Deus as abençôa!...
+</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{106}</span></p>
+
+<h4>Talitha, <em>vendo-a sahir</em></h4>
+<pre>Ruy!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Corre para elle</em></p>
+
+<h4>Ruy, <em>recebendo-a nos braços</em></h4>
+<pre> Ah! minha Talitha!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>abraçada, beija-o</em></h4>
+<pre> Oh! meu amor!</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>beijando-a</em></h4>
+<pre> Perdôa!</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>As vózes elevam-se distinctamente com a musica das
+violas e gaitas de fóles; pausa, emquanto os dois, enleiados, nada
+ouvem.</em></p>
+
+<h2>SCENA IV</h2>
+
+<h3>Os mesmos, <strong>Padre</strong>, <strong>raparigas</strong> e
+<strong>rapazes</strong></h3>
+
+<p class="instruccoes"><em>O Padre, entrando com as raparigas e rapazes,
+surprehende ainda os dois que se beijam e Joaquina que está estupefacta, junto
+á porta.</em></p>
+
+<h4>Padre, <em>fingindo que não vê e fallando alto</em></h4>
+<pre>Raparigas, entrai, a noite é de alegria...<span class="pagenum">{107}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>surprehendidos ambos, desprende-se de Ruy e diz</em></h4>
+<pre>Tem razão, meu padrinho, nossa phantasia
+deve expandir-se agora...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>com caricia, baixo a Talitha</em></h4>
+<pre> Assim, aos beijos, não...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Quem poderá conter o nosso coração?
+</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ás raparigas</em></p>
+<pre>Raparigas, cantae! A céga já tem vista;
+que a Virgem Mãe de Deus a todas vós assista;
+a freira, que devia entrar para o convento,
+teve hoje a redempção do seu cruel tormento!</pre>
+
+<h4>Um rapaz</h4>
+<pre>Viva a céguinha!</pre>
+
+<h4>O grupo</h4>
+<pre> Viva!</pre>
+
+<h4>Outro rapaz</h4>
+<pre> E mais o Padre Cura!
+Viva!</pre>
+
+<h4>Uma rapariga</h4>
+<pre> Viva quem fez este milagre!</pre>
+
+<h4>O grupo</h4>
+<pre> Viva!<span class="pagenum">{108}</span></pre>
+
+<h4>Um rapaz</h4>
+<pre>E a mãe Joaquina, então, que é mesmo uma ternura?!</pre>
+
+<h4>Todos</h4>
+<pre>Viva!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> Muito obrigada!</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre> Olha como é altiva!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Raparigas, dançae!</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>a uma rapariga</em></h4>
+<pre> Pois cante a cotovia,
+e vibre essa garganta até romper o dia...
+</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>As raparigas formam roda, os rapazes afinam as
+violas e o grupo, com Talitha e Ruy á frente, dançam a Ciranda. O
+Cura, sentado em uma cadeira, observa alegremente a scena.</em></p>
+
+<h4>Uma rapariga</h4>
+<pre> Quem deu espinho ás roseiras
+ não teve muita razão,
+ antes désse ao coração,
+ como deu ás Tarangeiras.
+
+ Deus que creou tantas flôres
+ fez as estrellas aos centos:
+ não dorme quem tem amores,
+ que os amores são tormentos.<span class="pagenum">{109}</span></pre>
+
+<h4>Segunda rapariga</h4>
+<pre> Toda tu pareces feita
+ com a cêra das abelhas,
+ quando alguem d'aqui t'espreita
+ ficam-te as faces vermelhas.</pre>
+
+<h4>Primeira rapariga</h4>
+<pre> Quem ao pé do Sol caminha
+ anda sempre com calor,
+ Quem á lua se avizinha
+ póde até crear bolôr.
+
+ As tuas tranças são pretas,
+ pareces de cêra mol,
+ não te abeires muito ao sol,
+ olha lá não te derretas...</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>O Cura, satisfeito e alegre, ri a cada descante das
+raparigas e acompanha-as com um olhar de caricia. Enthusiasmado, levanta-se e
+encaminha-se para o grupo:</em></p>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Tambem eu quero entrar na dança, raparigas,
+e ser como a papoila em meio das espigas!</pre>
+
+<h4>Primeira rapariga</h4>
+<pre> Viva, viva o Sr. Cura,
+ que é o paesinho desta aldeia,
+ que tem a alminha mais pura,
+ mais alva que a lua cheia.</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Neste momento ouve-se bater á porta violentamente,
+ao mesmo tempo que cessam os guizos denunciativos<span
+class="pagenum">{110}</span> de um carro que parou á porta. Quando ouve bater,
+o Padre Cura soffre uma visivel transformação de physionomia que todos os
+circumstantes percebem.</em></p>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Um carro, Santo Deus!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Cessa toda a alegria e acercam-se do Padre
+que, repentinamente, põe as mãos em oração.</em></p>
+
+<h4>Ruy, <em>acudindo</em></h4>
+<pre> Senhor Cura, que tem?</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se bater de novo</em></p>
+
+<h4>Padre, <em>pensativo</em></h4>
+<pre>Ha tantos annos já!</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Batem novamente. O Cura, sem dar uma palavra,
+benze-se, vae á porta e abre-a. Entra uma senhora de lucto, acompanhada de um
+velho creado, com malas e agazalhos. Todos emmudecem e olham-n'a
+curiosamente.</em></p>
+
+<h2>SCENA V</h2>
+
+<h3>Os mesmos, <strong>Marqueza</strong> e <strong>Escudeiro</strong></h3>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Perdão! Procura alguem?<span class="pagenum">{111}</span></pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>O Cura João Fulgencio! É Vossa Senhoria?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Sou eu mesmo, Senhora!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Inda bem, obrigada!
+Eu já tinha certeza, o céo me conduzia.
+Não quero perturbar a alegria da noite:
+Viajante, sósinha, e quasi desviada
+pela neve que tomba, eu peço onde me acoite.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Sois bem vinda, Senhora; aqui sob este tecto
+encontrareis conchego e o mais sereno affecto.</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>olhando-a</em></h4>
+<pre>Obrigada, creança!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> A Noite é de Natal
+e o nosso coração não sabe fazer mal...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Deveis estar cançada, o inverno vae tão duro!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Pensei que não chegava á sua residencia.
+A nevada é cruel, o caminho coberto,<span class="pagenum">{112}</span>
+o frio é de cortar, o céo está escuro,
+nem um astro se vê, perde-se a consciencia
+da nossa propria vida, a estrada é um deserto...
+Nem sei como cheguei...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Jesus a protegeu...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Eu creio bem que sim e dou graças ao céo!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E não quer repousar?</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Antes, porém, quizera,
+Senhor Cura, dizer o que me traz aqui...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Assim seja, Senhora, e ao bom Jesus prouvera
+que eu pudesse remir a dôr que presenti...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>a Talitha e Ruy, fingindo alegria</em></p>
+<pre>Ide com Deus, cantae!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>O grupo retira-se em silencio,
+curiosamente</em></p>
+
+<h4>Talitha, <em>a Ruy</em></h4>
+<pre> Quem é? Quem te parece?</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Não sei, mas esta voz a minh'alma conhece.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>sahem</em><span
+class="pagenum">{113}</span></p>
+
+<h2>SCENA VI</h2>
+
+<h3><strong>Marqueza</strong> e <strong>Padre</strong></h3>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Senhora, estamos sós! Vossa Excellencia ordene!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Ouça-me, Senhor Cura! ouça e não me condemne!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E condemnar por que? Se tem algum peccado,
+o coração de Deus não estará fechado!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Pensei chegar mais cedo: hontem, pelo sol posto,
+estaria acabado este immenso desgosto
+que me tortura a vida; a asperrima inverneira
+embaraçou-me o passo e augmentou-me a canceira.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E vem de muito longe?</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Ah! sim, de bem distante,
+anciosa, esperando este feliz instante.
+Ha muito tempo, um dia, ao romper da alvorada,
+alguem que veiu aqui lhe trouxe uma engeitada...<span class="pagenum">{114}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>É verdade, Senhora!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Uma carta pedia
+ao Cura desta aldêa a esmola caridosa
+de guardar a creança, até que a mãe chorosa,
+depois, a procurasse. Afinal esse dia
+felizmente chegou e a mãe que a dôr humilha,
+Senhor Cura, a seus pés, vem procurar a filha...</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>E como poderei saber se esta senhora
+que se confessa mãe, embora peccadora,
+é realmente a mãe da creança engeitada
+ha tantos annos já, naquella madrugada
+tristissima d'inverno?</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> A carta igual áquella
+que o Senhor Cura achou no berço, junto della...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>tomando a carta</em></h4>
+<pre>Mas falta alguma cousa...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> A pérola? está aqui...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Dá-lhe a pérola</em></p>
+<pre>Pois desde aquella noite eu jámais a perdi
+de vista e a conservei com cuidadoso afan,
+como alguem que resguarda um rico talisman.<span class="pagenum">{115}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Seija feita de Deus a sagrada vontade,
+embora se me parta o coração de dôr...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Essa dôr, Senhor Cura, ha de fugir vencida!
+Eu não quero quebrar tão dôce piedade
+que fez de minha filha o seu risonho amor,
+nem desejo apagar a luz da sua vida
+num soluço de magua.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Então não vem buscal-a?</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Não, não, meu bom amigo, eu venho acompanhal-a.
+A minha desventura, emfim, se condoeu
+dest'alma cruciada e triste que viveu
+reclusa na saudade, apenas na esperança
+de vêr um dia ainda essa gentil creança...
+Se nunca procurei saber dessa existencia
+não é que se apagasse em minha consciencia,
+como um sonho infeliz, a lembrança dorida
+dessa flôr do peccado em anjo convertida.
+Como eu pensava nella, ah! sabe-o Deus sómente!
+Que lagrimas chorei por conserval-a ausente,
+e quanto passei eu por causa desta filha
+dil-o, com eloquencia, a dôr que me polvilha
+a cabeça de cans. Amal-a com ardor
+e ter de estrangular todo esse immenso amor!...
+Vêl-a crescer ao longe, e calcular-lhe o encanto,
+mas sem poder beijal-a, adivinhar que o pranto
+as faces lhe banhava e não poder sorvel-o,
+que tormento cruel, que duro pesadello...<span class="pagenum">{116}</span>
+Soffri, meu bom amigo, e soffri a sorrir,
+que até para soffrer é preciso mentir!
+Não me pergunte, Padre, a origem desse amor
+ninguem perguntaria ao seio de uma flôr
+como foi que nasceu o aroma que elle exhala.
+Bastará que lhe diga: a dôr que me avassalla
+é a amiga fiel que me segue ha vinte annos,
+que nunca me deixou; que os tristes desenganos
+dessas horas sem luz foram os companheiros
+da minha mocidade e os filhos feiticeiros
+que encheram o meu lar de pranto e de amargores,
+como um dia sem sol, como um jardim sem flôres.
+Um dia, Sr. Cura, em confissão, no templo,
+diante do seu olhar que eu agora contemplo
+humilde e agradecida, hei de contar-lhe a historia
+da minha desventura e desta dôr ingloria,
+mas não exija, Padre, agora, que eu recorde
+o passado infeliz, que o coração acorde
+do somno em que repousa, e desvende o segredo
+que a vida me cobriu de sombras e de medo.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Nem quero desvendar, Senhora, essas torturas;
+mas a minha velhice acostumou-se a vêr
+em tão meiga creança uma filha extremosa
+junto de mim crescer, florir como uma rosa
+ao pé dum castanheiro, e fazer-se mulher.
+Aos dez annos cegou...</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>interrompendo, afflicta</em></h4>
+<pre> É céga a minha filha?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Foi: ha dias, porém, a luz de novo brilha
+no seu formoso olhar. Emquanto a escuridão<span class="pagenum">{117}</span>
+durou, eu sempre a trouxe unida ao coração,
+apoiada ao meu braço.</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> E quem foi que a curou?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Alguem que a soube amar. Um dia despontou
+na sua alma de flôr um novo sentimento
+e a pobre céga amou e foi tambem amada.
+Queria dedicar-se á vida enclausurada
+na casta região da cela de um convento,
+mas, sonhadora e boa, o amor venceu em breve
+o vago mysticismo e a Virgem que a fadou,
+condoendo-se della, o seu amor salvou...
+De modo que, feliz, dentro de pouco, deve
+desposar um rapaz, formoso coração...</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>interrompendo</em></h4>
+<pre>Ruy de Ornellas, talvez?</pre>
+
+<h4>Padre, <em>admirado</em></h4>
+<pre> Mas como adivinhou?</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>depois de uma pausa</em></h4>
+<pre>Não importa saber; prosiga, Senhor Cura,
+eu contarei mais tarde essa alegre aventura,
+tão simples e feliz.</pre>
+
+<h4>Padre, <em>proseguindo</em></h4>
+<pre> A mim, pobre ancião,
+uma alegria basta: a de morrer contente
+por haver feito bem á candida innocente.<span class="pagenum">{118}</span>
+Do mundo nada espero, esta gentil creança
+era a minha formosa e unica esperança:
+arrancam-m'a daqui e eu sinto que a corola
+dessa flôr, que me dava a encantadora esmola
+do seu perfume agreste, arrasta a minha vida
+á derradeira estancia, á ultima guarida...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>E quem lhe disse, Padre, as minhas intenções?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Ninguem. Mas adivinho. Eu sei que os corações
+carinhosos das mães não querem a partilha
+das caricias, do amor, dos beijos de uma filha.
+Talitha vae partir; que o Senhor a conduza
+e que uma boa estrella ao seu porvir reluza.</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Attenda, Sr. Cura! A mãe que ora lhe falla
+tambem sabe que a dôr o coração estala
+e não lhe vem roubar a luz dessa velhice
+tão cheia de bondade e simples de meiguice.
+A dôr me fatigou e eu quero repousar
+de tantas afflicções, e venho procurar,
+nesta aldeia tranquilla e sem perversidade,
+a paz que não frui na minha mocidade.
+Sou rica, felizmente, e quero ter um nicho
+onde acaba a existencia: é, talvez, um capricho...
+Mas quero aqui viver ao lado desta filha
+que a sua alma de santo, alvissima, perfilha
+e nunca mais sahir deste sereno azylo
+tão suave e tão bom, tão feliz e tranquillo,
+onde mora a virtude. A filha que eu procuro
+tambem é muito rica e tem porvir seguro.<span class="pagenum">{119}</span>
+Se a desventura um dia a separou de mim
+a minha vida agora ha de chegar ao fim,
+aqui onde ella teve um lar sagrado e nobre.
+E o dôce olhar de Deus que o mundo inteiro cobre,
+abrindo sobre nós o pallio da ventura,
+ha de envolver na sombra o coração do Cura
+que fez de minha filha a filha da sua alma,
+extremosa e leal. E Deus que tudo acalma
+ha de extinguir a dôr de todo esse passado
+que eu vejo, felizmente, agora terminado...</pre>
+
+<h4>Padre, <em>alegremente</em></h4>
+<pre>Obrigado, Senhora. O coração que sente
+a alheia desventura e lança boamente
+o seu conforto amigo a quem já nada espera,
+tem, nas bençãos do céo, eterna primavera...
+E agora que sabeis que a vossa filha é viva,
+attendei-me, Senhora, á santa rogativa:
+Talitha esteve céga. O homem que salvou
+o seu formoso olhar o amor lhe conquistou.
+Ella, uma encantadora e formosa creança,
+concentra nesse amor toda a sua esperança:
+tiral-a será dar-lhe o mais cruel supplicio.</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Não preciso pedir tão duro sacrificio
+ao seu bom coração. Eu quero-a vêr feliz,
+se quem serviu de Pae o consentiu e quiz.
+Procurava uma filha, encontrei um casal:
+para mim, que sou mãe, jámais este Natal
+feliz esquecerei. E agora que conhece
+a Mãe da sua filha, attenda á minha prece
+e mostre-me Talitha, anceio por beijal-a.<span class="pagenum">{121}</span></pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Louvado seja Deus, Senhora, eu vou chamal-a.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Entra e volta com Talitha pela mão</em></p>
+
+<h2>SCENA VII</h2>
+
+<h3>Os mesmos e <strong>Talitha</strong></h3>
+
+<h4>Padre, <em>entrando, a Talitha</em></h4>
+<pre>Recordas que uma vez, em lagrimas banhada,
+disseste que a tu'alma andava amargurada
+a pensar que jámais a tua mãe verias?
+Recordas a palavra alegre, de conforto,
+que te disse a sorrir quando tu me pedias
+a luz do teu olhar que tu suppunhas morto?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Nem eu posso esquecer.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Pois, filha, a Providencia
+abriu á tua vida a sua immensa graça.</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>curiosa</em></h4>
+<pre>E então?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Então responde: em tua consciencia
+que mais desejas tu que o Santo Deus te faça?<span class="pagenum">{121}</span></pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Que eu possa vêr um dia a minha Mãe querida!
+</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>correndo para ella e abraçando-a</em></h4>
+<pre>Talitha, minha filha! Amor da minha vida!</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>surprehendida</em></h4>
+<pre>Minha Mãe! Minha Mãe!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Abraçam-se em pranto</em></p>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Obrigado, Senhor;
+abençoado seja este Natal de amor!</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>desprendendo-se de Talitha</em></h4>
+<pre>Mas como eu sou feliz! Como tu és bonita!
+Que lindo nome o teu! Quem te chamou Talitha?</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Beija, abraça-a, encara-a sorrindo e
+soluçando. Senta-a nos joelhos</em></p>
+<pre>Quero ver bem de perto o teu formoso olhar.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Fita-lhe os olhos</em></p>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>E já sabes, mamã, que de tanto chorar
+com saudades de ti, um dia fiquei céga?</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Com saudades de mim?<span class="pagenum">{122}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>agitada</em></h4>
+<pre> Não crês, mamã?</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Socega;
+eu acredito em tudo, a tua alma não mente...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Mamã, como eu te quero!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Abraça-a</em></p>
+<pre> Olha-me bem de frente!
+Tanto tempo sem vêr a imagem dos meus sonhos,
+agora que te encontro, eu desejo risonhos
+os teus olhos de Mãe que nunca vi mais bellos;
+quero beijar, sorrindo, os teus alvos cabellos
+e sentir palpitar o seio teu, amigo,
+e o meu seio de filha, a palpitar comtigo.</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>O Cura, que se tem enlevado a contemplar a scena,
+sae pé ante-pé, olhando o grupo e chama para dentro. Entram Joaquina e
+Ruy.</em></p>
+
+<h2>SCENA VIII</h2>
+
+<h3>Os mesmos, <strong>Joaquina</strong> e <strong>Ruy</strong></h3>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Dize-me, filha, e tu sonhavas muitas vezes
+com tua mãe?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Sonhava!<span class="pagenum">{123}</span></pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> E o sonho que dizia?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Tanta coisa, mamã! Quando os nossos revezes
+nos vinham perturbar, desde o romper do dia
+até o anoitecer, pensava em ti, mamã,
+e, sem dormir, sonhava até pela manhã.</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Mas revezes de quem?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Desta immensa tristeza
+que vinha atormentar a vida de pobreza</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>baixo, quasi em segredo</em></p>
+<pre>do nosso Padre Cura...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> E o Padre Cura é pobre?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Muito, muito, mamã, mas tão bom e tão nobre
+que nunca pude ouvir um lamento, sequer!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>D'hoje em diante, porém, não faltará mais nada:
+será de todos nós aquillo que eu tiver.
+Tu és rica, Talitha, e d'alma bem formada,
+por certo acudirás de todo o coração<span class="pagenum">{124}</span>
+por que não faltem mais nem ventura, nem pão
+a quem te fez gentil, tão boa e generosa...</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Muito rica, mamã?</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Que te serve saber?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>É que o velho sargento acaba de morrer
+deixando na miseria immensa e dolorosa
+os netinhos com fome. O velho era céguinho!
+muita vez o encontrei mendigando, sósinho,
+para matar a fome e, se eu hoje sou rica,
+só este pensamento a dôr me purifica
+e, se tu dás licença, o Ruy vae procural-os.</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Pois sim, minha Talitha, irás tambem buscal-os;
+que sejam teus irmãos já que assim o quizeste.
+Mas dize, o Ruy quem é? Inda não m'o disseste...</pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Durante este dialogo as duas não poderão vêr as
+demais pessoas, enlevadas como estão. Ha sorrisos em
+todos.</em></p>
+
+<h4>Talitha, <em>perturbada</em></h4>
+<pre>O Ruy?...</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Baixa os olhos, sorri e cala-se</em></p>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Sim, sim o Ruy...<span class="pagenum">{125}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>enleada</em></h4>
+<pre> O Ruy é um doutor...
+Quando eu estive céga... Eu era tão céguinha!...
+Elle tratou de mim e fez a operação...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Só?!</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> O resto não conto...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> E porquê?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Adivinha!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>E não furtou tambem o teu primeiro amor?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Furtou!... E que mal fez? Deu luz ao meu olhar,
+eu dei-lhe o coração...</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> Mas depois de casar
+deixarás tu sósinho o velho Padre Cura?</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Nem eu quero pensar em tamanha loucura.
+Viveremos aqui juntinhos da Joaquina
+que sempre me guiou, do tempo de menina.<span class="pagenum">{126}</span></pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Pois vae dizer ao Ruy que tua mãe quer vêl-o.</pre>
+
+<h4>Talitha, <em>soltando-se do pescoço da mãe, sorrindo alegremente.</em></h4>
+<pre>Tu vais ver que rapaz... intelligente e bello...
+Ruy! Ruy!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Voltando-se encontra Ruy, Joaquina e Padre.
+Fica embaraçada e cobre o rosto com as mãos.</em></p>
+<pre> Meu Deus, que susto!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre> Ouvimos tudo, tudo!...</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>voltando-se</em></h4>
+<pre>Desculpe, Senhor Cura... em favor della acudo...
+A culpada fui eu...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>surprehendido</em></h4>
+<pre> Ah! Senhora Marqueza!</pre>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre>Sim. Ruy, eu mesma, aqui. Nem me causa extranheza
+o vêl-o nesta casa. Eu fui quem o mandou
+em busca deste céo tão puro que o salvou.
+Previ toda esta scena e quando aconselhei
+que viesse até cá, senti que palpitava
+o meu seio de mãe. Já vê que adivinhei
+e o meu presentimento o bem me segredava...<span class="pagenum">{127}</span></pre>
+
+<h4>Talitha, <em>admirada</em></h4>
+<pre>Mamã, tu és Marqueza?</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Silencio prolongado</em></p>
+
+<h4>Marqueza</h4>
+<pre> A Marqueza morreu...
+Agora sou a mãe da mimosa Talitha
+que vem pedir perdão a quem assim soffreu
+dessa magua sem par, dessa dôr infinita,
+que tanto fez chorar a tua mocidade,
+as lagrimas febris e negras da saudade.
+Agora sou a Mãe que um dia te engeitou
+e que uma vida inteira a dôr acabrunhou,
+que vem pedir perdão ao velho Padre-Cura
+do quanto padeceu para te dar ventura,
+que vem agradecer á santa da Joaquina,
+os beijos que te deu quando eras tamanina,
+que vem pedir a Ruy o supremo favor
+de dar á sua filha o seu primeiro amor...</pre>
+
+<h4>Ruy</h4>
+<pre>Marqueza, o meu amor recebe a grande esmola
+do casto coração da candida Talitha,
+como um beijo de luz que conforta e consola
+a dôr da minha vida. O peito me palpita
+na suprema alegria e eu penso na alvorada
+desta noite feliz, de lucido natal,
+bemdizendo, Senhora, a dôce madrugada
+que vae surgir em breve.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre> Ao despontar o dia
+vamos todos buscar os netos do sargento...
+Tu concordas, mamã?<span class="pagenum">{128}</span></pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Ao Cura</em></p>
+<pre> Acha que faço mal?</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Para ti, minha filha, a madrugada é fria.
+O Ruy irá commigo e apenas num momento
+as creanças virão: descança, pequenita.</pre>
+
+<h4>Marqueza, <em>a Joaquina</em></h4>
+<pre>Repare bem, Joaquina: este casal catita
+como envelhece a gente!</pre>
+
+<h4>Joaquina</h4>
+<pre> E Deus Nosso Senhor
+lhe dê por toda a vida o seu sagrado amor!</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Já toca á missa d'Alva...</pre>
+
+<h4>Ruy, <em>a Talitha</em></h4>
+<pre> Estrella d'Alva, pura,
+immaculada estrella, o céo desta ventura
+estende sobre nós a cupula sagrada
+e eu vejo nesse olhar a luz ambicionada
+que faz de ti, creança, a dôce Conceição
+do meu culto feliz, purissimo e christão.</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>A Joaquina</em></p>
+<pre>Um dia, bem me lembro, a sua mão amiga
+mais trémula e subtil do que uma branca estriga
+ás aragens d'outomno, abrindo-me o sacrario
+da sua alma de santa, entregou-me um rosario.<span class="pagenum">{129}</span>
+Recorda-se? Pois bem! nas horas de afflicção
+esse rosario amigo encheu-me o coração
+duma frescura immensa e assim se dissipou
+essa nuvem cruel que sobre nós passou...
+Quero beijar a mão da santa que me deu
+nesse rosario astral uma visão do céo:
+a flôr que se banhou na sua fé divina,
+bondosa creatura, alvissima Joaquina!</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>Beija-lhe a mão. Joaquina, em silencio,
+enxuga os olhos com o avental.</em></p>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>O dia vae surgir, o sino da capella
+convida-nos á missa. Ali pela janella
+já vem a madrugada entrando alegremente
+num baptismo de luz que brota do nascente.</pre>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Meu Deus, como é feliz a minha mocidade!
+Rasgou a mão de Ruy a dôce claridade
+ao meu perdido olhar, depois a mãe de Deus
+envia-me o perdão do fundo azul dos céos:
+e, dando luz á céga e vida á condemnada,
+entrega-me, a sorrir, no fim da madrugada
+do Natal de Jesus, a minha Mãe distante.
+Meu Deus, como é feliz neste sereno instante</pre>
+
+<p style="text-align:center;"><em>a Ruy</em></p>
+<pre>a nossa mocidade ao pé desta velhice
+tão boa e tão leal! Antes que alguem cobice
+esta aurora de amor que ao céo nos avizinha
+eu vou rezar por nós uma Salvé-Rainha:<span class="pagenum">{130}</span></pre>
+
+<p class="instruccoes"><em>Ouve-se o repicar dos sinos. Talitha approxima-se do
+oratorio; ajoelham-se todos, excepto o Padre que fica de pé.</em></p>
+
+<h4>Talitha</h4>
+<pre>Salvé, Rainha Mãe, céu de misericordia,
+vida e doçura, amor, luz da nossa esperança,
+lançae por sobre nós o manto da concordia.
+Salvé, Rainha, Mãe serena de bonança!
+A vós, os filhos d'Eva, em lagrimas, bradamos,
+por vós que estaes no céo, gemendo, suspiramos,
+neste valle de magua e dôr. Eia, Senhora!
+Sêde a divina Mãe, a dôce protectora
+da nossa vida inteira e para nós volvei
+esse olhar piedoso e tão cheio de luz!
+Sobre o nosso destino a vossa mão pendei,
+rasgae a nossa dôr, mostrae-nos a Jesus,
+fructo do vosso ventre, ó sagrada e clemente,
+ó Virgem dôce e casta, ó candida innocente!
+ó Santa Mãe de Deus, ouvi a nossa voz
+tão simples e fiel, rogue no céu por nós,
+por que sejamos bons e dignos da promessa
+do moreno Jesus. Que a nossa vida aqueça
+o materno calor da estrella de Bethlem,
+á luz do vosso olhar, por todo o sempre.</pre>
+
+<h4>Padre</h4>
+<pre>Amen!</pre>
+
+<p style="text-align:center;">CAE O PANNO<span class="pagenum">{131}</span></p>
+</div>
+
+<div id="resposta">
+<h1>RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA</h1>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="margin-left: 20%; font-size: small;">
+<p><em>Toute l'operation critique se borne ainsi a constater un fait, depuis la
+cause qui l'a produit jusqu'aux conséquences qu'il produira. Sans doute, un
+pareil travail contient une leçon, et à se voir dans un miroir aussi fidèle, un
+écrivain peut refléchir, connâitre ses infirmités, tâcher de les marquer le
+plus possible. Seulement, la leçon vient de haut, sort de la verité même du
+portrait el n'est plus l'enseignement gourmê d'un professeur. La critique
+expose, elle n'enseigne pas. Elle a compris elle-même que son influence sur le
+niveau litteraire était à peu prés nulle, car les tempéraments restent
+indociles; et elle a préféré jouer le beau rôle d'ecrire l'histoire litteraire
+contemporaine, expliquée et commentée.</em></p>
+
+<p><span class="small-caps">E. Zola</span>. <em>Documents litteraires</em>,
+pag. 334.</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="margin-left: 20%; font-size: small;">
+<p><em>Est critique, à notre jugement, celui qui fait effort pour comprendre et
+qui juge avec sympathie.</em></p>
+
+<p><span class="small-caps">Nolet</span>. <em>La vie et l'&oelig;uvre de
+Chateaubriand</em>, pag. 673.</p>
+
+<p style="text-align:center;">&mdash;&mdash;&mdash;</p>
+
+<p><em>...si nous possedons quelques talents, nous nous empressons de les
+déprécier. Après les avoir élevés au pinacle, nous les roulons dans la bosse;
+puis nous y revennons, puis nous les méprisons de nouveau. Nous ne pouvons
+souffrir de reputation; il nous semble qu'on nous vole ce qu'on admire: nos
+vanités prennent ombrage du moindre succès, et s'il dure un peu, elles sont au
+supplice.</em></p>
+
+<p><span class="small-caps">Chateaubriand</span>. <em>Essai sur la litterature
+anglaise</em>. pag. 171.</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="margin-left: 20%; font-size: small;">
+<p><em>Que la scène soit triste ou gaie, nous retrouvons toujours la même
+distinction entre l'émotion réelle et l'émotion esthétique. Il faut de toute
+necessité, pour que cette dernière soit possible, que l'autre disparaisse; il
+faut que l'auditeur ou le spectateur ne puisse jamais oublier qu'il y a entre
+le fait et lui un intermediaire dont l'impression constitue la poesie de
+l'&oelig;uvre; c'est surtout au théâtre que cette distinction entre le réel et le
+fait poetique est essentielle. L'illusion complète, loin d'être le suprême
+degré de l'art, comme on l'a dit, en serait simplement la négation.</em></p>
+
+<p><span class="small-caps">Eug. Veron</span>, <em>L'Estetique</em>, pag. 407 e
+408.</p>
+</div>
+
+<h2>RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA</h2>
+
+<p>A <em>Talitha</em> é uma reminiscencia da mocidade, piedosamente recolhida
+pelo coração á mudez da alma, que a minha intelligencia modesta crystallizou em
+versos froixos, que o meu sentimento fixou em drama e que a cegueira das
+paixões pretendeu ferir.</p>
+
+<p>Devo, quero e vou defendel-a.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Zola, o genio, o mestre, o justo, escreveu:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Lorsqu'on a l'honneur de tenir une plume, on se consulte avant d'ecrire,
+ et quand on a écrit une page, on l'affirme, on la défend.»</p>
+
+ <p><em>La critique contemporaine</em>, pag. 356.</p>
+</blockquote>
+
+<p>A critica censurou-me porque, brazileiro e rio-grandense, fui procurar em
+terras de Portugal o assumpto do meu obscuro trabalho. A <em>Talitha</em> não é
+uma obra nacional: nem portugueza porque o seu autor não nasceu em Portugal,
+nem brazileira porque a acção se passa em terra estrangeira, entre personagens
+de uma aldeia lusitana perdida nas serranias da provincia de
+Traz-os-montes.<span class="pagenum">{140}</span></p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>A censura é futil.</p>
+
+<p>A critica esquece que Portugal é a patria da nossa patria; que o nosso
+idioma nacional ainda não sahiu do periodo primitivo e selvagem; que a lingua
+de Camões foi a lingua de Gonçalves Dias e ainda hoje é a lingua de Olavo Bilac
+e de Coelho Netto; que os sentimentos de José de Alencar vibraram nas mesmas
+palavras em que vibrou a alma de Camillo Castello Branco o através das quaes se
+impoz á grandeza do seculo que passou a individualidade singular e forte de Eça
+de Queiroz, ao mesmo tempo que se impunha, em outro hemispherio, a
+personalidade singular e forte de Machado de Assis.</p>
+
+<p>Ingenua, ignorante ou perfida, a critica esqueceu o preceito de Taine:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Les productions de l'esprit humain, comme celles de la nature vivante, ne
+ s'expliquent que par leur mllieu.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">H. Taine</span>&mdash;<em>Philosophie de l'Art</em>.
+ vol. I, pag. 11.</p>
+</blockquote>
+
+<p>O homem é um producto do meio, este inflúe poderosamente na formação de seu
+espirito; mais que poderosamente&mdash;decisivamente.</p>
+
+<p>A mocidade é mais docil em receber essa influencia natural e espontanea do
+ambiente&mdash;do clima, das tradições, dos costumes, da religião, da arte.</p>
+
+<p>É na infancia e na adolescencia, como observa Moreau, de Tours, no seu
+estudo&mdash;<em>La Folie chez les Enfants</em>&mdash;que os erros e os preconceitos se
+apoderam do espirito e por tal forma criam raizes que difficilmente se
+arrancam.</p>
+
+<p>Spencer, na Educação moral, intellectual e physica, affirma que a influencia
+do meio sobre a mocidade decide do futuro inteiro.</p>
+
+<p>A minha adolescencia e a minha mocidade fluiram<span
+class="pagenum">{141}</span> em Portugal, nas escolas, nas aldeias, no seio
+patriarchal da familia paterna.</p>
+
+<p>Com os portuguezes, moços como eu, senti os pezares d'aquelle grande povo,
+sorri nas alegrias d'aquella boa gente.</p>
+
+<p>Á sombra fresca e generosa das suas arvores adormeci e sonhei: ao calor
+daquelle sol aqueci as minhas esperanças; no gelo daquellas neves murcharam-me
+as mais perfumadas illusões; ao luar opalescente daquellas noites ouvi a musica
+das primeiras serenatas: ao fulgor daquellas estrellas peneirou no meu coração
+a voz dolentissima dos rouxinóes; com a poesia popular daquella alma lyrica de
+onze seculos aprendi a versejar quando a minh'alma de dezeseis annos abria para
+o mundo as flôres das suas aspirações incipientes; com a lithania religiosa dos
+orgãos ruraes nas capellas das aldeias aprendi a amar a Deus, a crer na sua
+olympica magestade, ao mesmo tempo que filtrava docemente no meu espirito a
+ternura sagrada daquelle mysticismo que reza na voz das aragens, no perfume das
+flôres, no marulhar das fontes, no gorgeio das aves e até no merencorio soluçar
+das vagas, rolando eternamente nas areias das praias.</p>
+
+<p>Dezoito annos correram para a minha vida feliz e descuidosa, naquella terra
+santa que é a patria da saudade, e, quando o meu coração começou a sentir as
+amarguras do exilio, quando a minha intelligencia poude comprehender toda a
+magua da ausencia, foi na saudade portugueza<br>
+<br>
+<span style="margin-left: 20%; font-size: 90%;">«o delicioso pungir de acerbo
+espinho,»</span><br>
+<br>
+que eu aprendi a sentir a saudade do lar que aqui deixára, do berço que me
+embalára as horas da infancia, da voz materna que me acalentára a
+puericia,<span class="pagenum">{142}</span> do céo que dera luz ao meu olhar e
+calor ao meu sangue, sangue em cujas ondas correm leucocytos de sangue
+lusitano. «d'este sangue abençoado», fortemente oxygenado, que me dá energia
+para as luctas e ampara a tranquilidade transparente da minha consciencia,
+limpida e superior, as investidas da injustiça e da critica.</p>
+
+<p>E como poderia eu, por que estranho processo de cirurgia, arrancar ao meu
+organismo essa metade portugueza que constitue um nobre orgulho da minha
+vida?</p>
+
+<p>E como poderia eu, por que estranho processo de psychologia, arrancar á
+minh'alma esse conjuncto essencial de elementos que durante dezoito annos se
+vincularam ao meu espirito, á minha intelligencia, á minha vontade, á minha
+sensibilidade, com a mesma delicadeza, com a mesma subtil insistencia com que a
+luz do sol penetra no seio da terra para fazer germinar as sementes, com que a
+palavra das mães penetra na alma dos filhos para transfigural-a, como o luar
+que transforma em espelho de prata a agua dos lagos e dos rios?</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>A <em>Talitha</em> é uma reminiscencia da mocidade passada na aldeia
+traz-montana, na suave e consoladora almosphera da familia paterna;
+<em>Talitha</em> não é uma creação da minha phantasia, é a copia do modelo vivo
+que eu conheci, que acompanhei na cegueira cruel e, depois, na luminosa
+redempção do seu primeiro amor.</p>
+
+<p><em>Ruy de Ornellas</em> foi meu irmão de lettras, foi meu amigo, meu
+companheiro de escola, meu consocio na bohemia alegre e feliz da vida
+academica, nem o nome lhe occultei.<span class="pagenum">{143}</span></p>
+
+<p>O velho cura <em>João Fulgencio</em> foi uma realidade soberba de caridosa
+affeição evangelica: era um sacerdote de alma pura, um ancião de oitenta
+invernos consumidos em espalhar o bem emquanto muitos moços de alma nova mas
+precocemente corrompida ao contacto das descrenças enervadoras e fataes, na
+convivencia intima da politicagem, dos bordeis e dos cafés, vivem para fazer o
+mal, no gozo requintado de espalhar desventuras, quando é mais facil, mais
+dôce, mais humano, mais confortante, mais nobre, semear carinhos e affectos
+para fazer a colheita das sympathias e das dedicações.</p>
+
+<p>A velhinha <em>Joaquina</em>, a irmã desse honrado e justo sacerdote, é o
+retrato fiel, copiado á intimidade da minha propria familia, em cujo seio fui
+buscar o modelo daquella virtude christan, na figura venerada de uma santa
+creatura que acalentara, ha sessenta annos, a puericia de meu Pae.</p>
+
+<p>A <em>Marqueza de Rilma</em> não é um personagem ficticio, viveu, foi a mãe
+de Talitha, não com o titulo de tão elevada condição aristocratica, mas de
+nobre linhagem, victima innocente das luctas civis de 1846 que accenderam a
+fogueira horrivel dos odios entre os partidos politicos. Revelar-lhe o
+verdadeiro nome seria uma iniquidade, além de absolutamente desnecessario ao
+desenvolvimento da acção dramatica: a mais rudimentar educação, a mais vulgar
+delicadeza de sentimentos mandavam occultar essa circumstancia, inutil á
+fidelidade da observação e perfeitamente dispensavel ao estudo da psychologia
+do personagem.</p>
+
+<p>Que representa, pois a <em>Talitha</em>?</p>
+
+<p>O intimo e nobre desabrochar de uma consciencia que não esqueceu o passado,
+que transformou um incidente da vida em pretexto para resgatar uma divida de
+gratidão, para abrir no seio um longo e profundo sulco de reconhecimento á
+terra sagrada em<span class="pagenum">{144}</span> que dormem seus avós o somno
+ultimo e perpétuo, onde ficaram os primeiros dias de existencia do ancião que
+me deu o sêr, onde eu deixei as gerações irmans que me acompanharam na
+peregrinação astral das illusões academicas. </p>
+
+<p>A perversidade incuravel dos zoilos, porém, occultou, de proposito
+deliberado, que o obscuro autor da <em>Talitha</em>, agora alvejado por haver
+esquecido ingratamente a sua patria, preferindo assumptos, personagens e céos
+estranhos, já estudara em um drama, em tres actos, intitulado <em>A Farça</em>,
+a sociedade da sua terra e um facto que se desenrolara no meio em que vive.</p>
+
+<p>E esse drama foi levado á scena tres vezes, no Theatro S. Pedro, por uma
+sociedade de amadores; mereceu a critica da imprensa local e foi largamente
+estudado por dois homens conhecidos nas lettras: Alarico Ribeiro e dr.
+Sebastião Leão.</p>
+
+<p>Se não teve esse modesto trabalho a ventura de ser interpretado por
+artistas, não pode caber ao autor a culpa de faltar entre nós uma companhia
+dramatica nacional constituida de profissionaes.</p>
+
+<p>A critica indigena devia ter conhecimento d'esse facto; se sabe d'elle é
+perversa occultando-o propositalmente para ferir a <em>Talitha</em>; se não
+sabe, é ignorante, e uma critica <em>soi-disant</em> competente, que desconhece
+o autor escolhido para a censura e os trabalhos por elle produzidos, não póde
+exigir consideração nem respeito do meio litterario em que pretende
+pontificar.</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Il y a même, au fond de la grande majorité des critiques, un producteur
+ manqué, qui se regisne à parler des &oelig;uvres d'autrui, quand il voit que
+ personne ne parle des siennes.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Zola</span>, &oelig;uvre cit., pag. 349.</p>
+</blockquote>
+
+<p>A critica, ou ignorante, ou perfida, ou ingenua,<span
+class="pagenum">{145}</span>} esqueceu que Taine, o mestre supremo, havia
+pontificado:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«La méthode moderne que je tâche de suivre, et qui commence à s'introduire
+ dans toutes les sciences morales, consiste a considerer les &oelig;uvres humaines,
+ et en particulier les &oelig;uvres d'art, comme des faits et des produits dont il
+ faut marquer les caractères et chercher les causes; rien de plus. Ainsi
+ comprise, la science ne proscrit ni ne pardonne: elle constate et
+ explique.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">H. Taine</span>&mdash;&oelig;uvre cit, vol. I, pag. 14.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Mas a critica levantou-se contra as leis proclamadas pelo proprio mestre
+invocado: condemnou, não explicou.</p>
+
+<p>Sem investigar as origens do drama, sem conhecer a sua significação, sem
+sondar a alma que o creára, fulminou a obra e insultou o espirito que a
+produzira.</p>
+
+<p>Para maldizer bastaram-lhe dois elementos: o assumpto que é portuguez e o
+estylo que não é brazileiro...</p>
+
+<p>E a critica, sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, esqueceu que
+Shakespeare fôra buscar á nevoenta Dinamarca a figura culminante de Hamlet, á
+sorridente Italia dos laranjaes em flôr, as suaves imagens de Romeu e Julieta,
+e o vulto soberbamente tragico do tremendo Othelo.</p>
+
+<p>Sempre com a mesma perfidia, a critica, depois de citar os nomes de Racine e
+Corneille, occultou que esses grandes espiritos da França foram pedir á Grecia
+e à Roma antigas, á Hespanha medieva e aos Barbaros a quasi totalidade dos seus
+heróes e das suas heroinas, deixando na obscuridade a immensa galeria de
+personagens illustres da propria patria: o genio desses dois sublimes cerebros
+andou a resuscitar, a illuminar, a galvanizar no tablado do theatro francez a
+grandeza épica de vultos estranhos<span class="pagenum">{146}</span> e deixou
+no tumulo o vulto leonino dos immortaes filhos da França e as imagens delicadas
+e formosas das mulheres gaulezas.</p>
+
+<p>De Corneille, <em>Medéa</em> é uma simples imitação de Lucio Seneca, romano,
+que a seu turno pedira inspiração ao theatro grego; <em>Cid</em>, que é uma
+obra-prima, além de ser puramente hespanhola a sua acção de altissima tragedia,
+foi inspirada pela obra do poeta castelhano Guilhen de Castro, que o genio de
+Corneille deixou na sombra; <em>Horace</em> é um assumpto romano que o poeta
+francez pediu a Tilo-Livio; romanos são <em>Polyeucte</em>, <em>Cinna</em> e
+<em>Pompée</em>, este inspirado por Lucano; <em>Mentor</em> é o velho
+personagem da legenda grega de Ithaca, já reproduzido no theatro hespanhol pelo
+poeta Alarcon, ao qual Corneille foi pedir o modelo; <em>&oelig;dipe</em> e
+<em>Sertorius</em>, que são lampejos da constellação de decadencia de um genio,
+pertencem, a primeira ao cyclo da heroicidade thebana que Sophocles já havia
+immortalisado na scena grega, a segunda é pura historia da Iberia em que o
+vulto admiravel do general romano fulge num derradeiro vestigio de genio, ao
+lado de Viriato, o grandioso pastor dos Herminios e fundador da nacionalidade
+lusitana.</p>
+
+<p>Nem mesmo no periodo da sua decadencia, vencido na queda da
+<em>Pertharite</em> e no confronto do seu <em>Attila</em> com a
+<em>Andromaque</em> de Racine, outro genio que subia rapidamente ao zenith, nem
+mesmo na desventura, a alma de Corneille vibrou pela patria, o seu talento não
+procurou conforto na historia assombrosa da França: o seu coração voltou-se
+ainda para o oriente, foi á Judea estudar a grandeza sublime do Rabbino da
+Samaria e deixou na <em>Imitação de Christo</em> a ultima expressão do seu
+genio, como o raio extremo do sol ao entrar na sepultura do occaso.</p>
+
+<p>De Racine, póde-se affirmar que escreveu as suas tragedias inspirando-se,
+ora no theatro grego, ora na Biblia.<span class="pagenum">{147}</span>}</p>
+
+<p>Assim o ensina um sabio mestre brazileiro:</p>
+
+<blockquote>
+ <p style="text-indent: 0;">«deixando respeitosamente de parte Eschylo e
+ Sophocles, impossiveis de imitar, modelou-se por Eurypedes, menos perfeito na
+ generalidade da concepção, porém mais tocante na pintura dos accessorios e
+ que maior conformidade offerecia com o seu talento.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>São d'esse genero a <em>Andromaque</em>, <em>Mithridates</em>,
+<em>Phèdre</em>, <em>Iphigénie</em>.</p>
+
+<p>São inspiradas na Biblia, a <em>Thébaïde</em>, <em>Esther</em> e
+<em>Athalie</em>.</p>
+
+<p>Pertencem ao genero historico: <em>Alexandre</em>, <em>Berenice</em>,
+<em>Britannicus</em>. E ainda mesmo quando Racine, resolvendo esmagar os seus
+zoilos, escreveu a comedia <em>Les Plaideurs</em>, que é uma <em>charge</em>
+temivel de espirito e de genio, foi pedir ás <em>Vespas</em> de Aristophanes,
+não só a inspiração, mas o exemplo, o paradigma.</p>
+
+<p>Todas essas tragedias ficaram na litteratura franceza, pertencem ao Theatro
+da França que não as repudiou, que as ama, que as admira, cultuando a memoria
+dos genialissimos poetas, não obstante o haverem elles esquecido a seara
+magnifica da patria pelos encantos das estranhas figuras orientaes.</p>
+
+<p>Victor Hugo foi pedir a Inglaterra o vulto espantoso do dictador para
+escrever a maravilha dramatica de <em>Cromwell</em>, deixando no esquecimento a
+soberba grandeza de Danton! Para dar á Escola romantica a sua data inicial no
+Theatro francez, o grande poeta das <em>Folhas de Outono</em> foi buscar á
+Hespanha a inspiração dos versos maravilhosos do <em>Hernani</em> e deixou á
+litteratura dramatica da França as figuras esculpturaes de <em>Dona Sol</em>,
+do bandido celebre, do Rei D. Carlos e do velho aristocrata Ruy Gomez.</p>
+
+<p>Mas onde o genio do grande filho de Besançon attingiu a altitude suprema a
+que não chegaram Corneille<span class="pagenum">{148}</span> no <em>Cid</em>
+nem Racine na <em>Phèdre</em>, foi no <em>Torquemada</em>, a epopéa dramatica
+do fanatismo: e Torquemada foi o inquisidor da Hespanha. Nenhum poeta da
+peninsula havia arrancado á historia a figura sinistra do sacerdote; Hugo
+levanta-a do tumulo, illumina-a com as fulgurações do seu genio, como se em
+torno da cariatide monstruosa da Inquisição ardessem as fogueiras dos
+autos-da-fé, e liga á litteratura dramamatica da França a figura barbara,
+apocalyplica do carrasco da Igreja.</p>
+
+<p>No emtanto, na historia da França havia a linha cruel de Luiz XI, algoz do
+duque de Alençon, que podia ter inspirado o genio do poeta sublime.</p>
+
+<p>Alfred de Vigny, contemporaneo de Victor Hugo, na sua primeira phase
+litteraria foi quasi totalmente oriental e biblico: <em>Eloah</em>,
+<em>Symeta</em>, <em>Dryade</em>, <em>Fille de Jephté</em>, <em>Femme
+adultère</em>, <em>Dolorida</em>, <em>Deluge</em>.</p>
+
+<p>Na segunda phase produziu, em verso, o seu drama notavel Chatterton, cujo
+heróe é o grande e infortunado poeta inglez que, aos 22 annos, procurou no
+suicidio a solução para a vida das amarguras e tristezas que arrastava o seu
+genio incomprehendido.</p>
+
+<p>E Alfred de Vigny, tão admirador de André-Chénier que n'este procurou
+inspiração para a sua <em>Dryade</em>, deixou no esquecimento a figura soberba
+e tragica do poeta da revolução, cuja cabeça rolou no cadafalso como uma cabeça
+vulgar, não obstante:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«avoir quelque chose là dedans»</p>
+</blockquote>
+
+<p>E a França não engeitou a obra immortal de Alfred de Vigny, e a
+<em>Comedie-Française</em> em 1881 fazia a sua <em>reprise</em>, com alto
+successo, não obstante a opinião do Zola que a reputa:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«la negation du théatre.»<span class="pagenum">{149}</span></p>
+</blockquote>
+
+<p>A critica, severa para mim, devêra ter vergastado primeiramente a memoria de
+Lord Byron que cantou na sua lyra de poeta e serviu com a sua espada de
+guerreiro a obra politica da emancipação da Grecia; devêra anathematisar
+Sienkiewicz, o polaco genial que estudou no romance a reconstituição da vida
+romana á época da decadencia cesarista de Nero; devêra ter condemnado á morte
+M.<sup>me</sup> Judith Gauthier, a filha gentil e talentosa de Theophile, que,
+deixando de parte a herança paterna, preciosa e brilhante, foi procurar o
+assumpto das suas obras notaveis nas terras e nos costumes do extremo oriente,
+com especialidade no Japão e na China; devêra ter amaldiçoado e reduzido a pó o
+sublime poeta contemporaneo da França&mdash;Edmond Rostand&mdash;que engastou nos tres
+actos phantasticos da <em>Princesse-Lointaine</em> um assumpto oriental e na
+<em>Samaritaine</em>, a sua obra prima, a vida, a figura, a alma encantadora da
+filha da Judéa, deixando no esquecimento a belleza mystica de Joanna d'Arc;
+devêra ter queimado a estatua de Castellar, porque o espantoso rival de Cicero
+escreveu os extraordinarios volumes dos <em>Recuerdos d'Italia</em>, sem ter
+jámais escripto uma pagina de viagem pela propria Hespanha, sua patria; devêra
+ter castigado os despojos funebres de Milton, porque o grande poeta inglez,
+cuja inspiração hombrea com as de Tasso e Ariosto, cuja grandeza genial é,
+depois de Shakespeare, a creação mais opulenta da poesia britanica, teve o
+arrojo de esquecer a sua verde Erin e foi ao pincaro do Himalaya, ao berço da
+tradição adamita, procurar o assumpto do seu <em>Paradise Lost</em>.</p>
+
+<p>E a critica para ser sincera, ou, pelo menos, logica, severa como foi para o
+obscuro autor da desventurada <em>Talitha</em>, devêra censurar amargamente a
+falta de patriotismo de Araujo Porto Alegre que, em versos de um sabor arcadico
+e em metro solto, celebrou o<span class="pagenum">{150}</span> almirante
+genovez Colombo, deixando ingratamente no olvido a figura épica do riograndense
+Tamandaré, lobo dos mares como o piloto de Palos, além de guerreiro como
+Patterson.</p>
+
+<p>E a censura devêra estender-se tambem a Gonçalves de Magalhães que, em vez
+de cantar o heróe dos Guararapes ou a figura brilhante de Garibaldi que vive na
+tradição da liberdade sulina, preferiu celebrar na sua lyra a aguia de Wagram,
+na queda monstruosa de Waterloo, tanto mais que ao nascer do theatro
+brazileiro, quando fulgia o talento artistico de João Caetano, deixou no
+esquecimento a figura negra de Calabar e foi á historia de Milão pedir o
+assumpto e os personagens da sua tragedia <em>Olgiate</em>, em cuja acção se
+estuda a tyrannia licenciosa de Galeazzo Visconti e o assassinato do
+tyranno.</p>
+
+<p>E a critica, tão rispida com o autor da <em>Talitha</em>, chegando mesmo a
+citar a sentença do divino Almeida Garrett para aquelles que se abalançam ao
+estudo de estranhos assumptos esquecendo a patria, devêra começar pela censura
+ao proprio autor do <em>Frei Luiz de Souza</em>, que iniciou a sua vida
+litteraria no theatro escrevendo <em>Xerxes</em>, <em>Lucrecia</em>,
+<em>Sophonisba</em>, <em>Atala</em>, <em>Meroppe</em> e <em>Catão</em>, antes
+de se lembrar que <em>D. Filippa de Vilhena</em> fôra uma das heroinas de sua
+terra.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Mas a critica, severa com o autor da <em>Talitha</em>, não tem sinceridade
+nos seus conceitos.</p>
+
+<p>Um formosissimo talento de artista, alma de raro quilate, aberta ás emoções
+do Bello, filho d'esta terra, Araujo Vianna, musicista de apurado engenho,
+escreveu a sua brilhante partitura da <em>Carmella</em>, um encanto, uma
+joia.</p>
+
+<p>A acção do libreto passa-se na Italia, a musica inspira-se<span
+class="pagenum">{181}</span> claramente na escola de Massenet, sóbe á scena no
+Rio de Janeiro interpretada por artistas italianos, sóbe á scena em Porto
+Alegre interpretada por artistas italianos, a critica applaudiu em delirio,
+extasiou-se, e ninguem viu, ninguem sentiu, que a <em>Carmella</em> é italiana
+pelo libreto e franceza pela musica; o patriotismo riograndense não se julgou
+melindrado porque o intelligente <em>maestro</em> patricio deixou na
+obscuridade a nossa paisagem, o nosso clima, as nossas mulheres, os nossos
+costumes, a nossa poesia, a nossa musica popular e caracteristica, preferindo a
+lenda, o lyrismo, a impetuosidade, o céo, a aventura da gloriosa e divina
+Italia da arte...</p>
+
+<p>A critica emmudeceu.</p>
+
+<p>Entretanto Araujo Vianna apenas visitou a Italia: o seu sangue é
+genuinamente brazileiro, formou-se o seu espirito na propria patria, nem a
+natureza nem a sociedade italiana influiram no seu desenvolvimento intellectual
+e moral...</p>
+
+<p>A critica tinha de tudo isso conhecimento exacto e perfeito mas...
+<em>passons là dessus</em>.</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Dès lors, les impuissants et les hypocrites peuvent injurier l'&oelig;uvre et
+ l'auteur, les couvrir de boue, les nier...»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Zola</span>&mdash;<em>Documents litteraires</em>, pag.
+ 418.</p>
+</blockquote>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, a critica censura a
+<em>Talitha</em>, condemnando-a porque os seus personagens fallam uma linguagem
+elevada, superior á modestia das suas condições de aldeãos.</p>
+
+<p>A critica é futil e não sabe o que diz.</p>
+
+<p><em>Talitha</em> falla nos seus dialogos a linguagem do mysticismo que
+durante dezesete annos ouviu e aprendeu com o seu velho padrinho: o cura.<span
+class="pagenum">{152}</span></p>
+
+<p>A sua linguagem é simples, ingenua e lyrica.</p>
+
+<p>Mas simples, ingenua e lyrica é a linguagem do povo portuguez, desde a sua
+infancia até hoje.</p>
+
+<p>As imagens que o autor lhe põe nos labios são as mesmas que borbulham na
+phantasia do povo lusitano, ha mais de nove seculos de nacionalidade, affirmada
+num <em>folke-lore</em> riquissimo e inexgottavel, desde Guesto Ansures até
+Antonio Fogaça.</p>
+
+<p>Pois a uma creança de dezoito annos, alma pura e boa, natureza casta,
+intelligente e fina, delicada e vibratil, torturada pela desventura, póde ser
+negada a phantasia creadora, poetica e imaginosa que caracterisa o povo em cujo
+meio ella vive, principalmente na aldeia, na atmosphera idylica e bucolica,
+simplesmente porque a cataracta a cegou aos oito annos?</p>
+
+<p>Mas Antonio Feliciano de Castilho foi o bardo cégo que escreveu a <em>Noite
+do Castello</em>, as <em>Cartas de Echo a Narciso</em>, os <em>Ciumes do
+Bardo</em>, a <em>Primavera</em>, o <em>Outono</em> e cégo é o anonymato
+popular que produz ha oito seculos esse rosario encantador e sublime das trovas
+e cantigas que andam na tradição oral, na garganta de todas as mulheres, na voz
+de todos os cantores, nos labios de todos os estudantes, desde o
+<em>Cancioneiro de Garcia de Rezende</em> e de <em>El-Rei D. Diniz</em> até o
+<em>Romanceiro</em> de Garrett e os <em>Cancioneiros</em> de Theophilo Braga e
+Gualdino de Campos.</p>
+
+<p>São da poesia popular, são do povo em cujo seio <em>Talitha</em> nasceu,
+cresceu, amou, sonhou e foi noiva, as formosas quadras que correm de labio em
+labio, sem autor conhecido e que Junqueiro, Eugenio de Castro, Antonio Nobre e
+Correia de Oliveira gostosamente assignariam.<span
+class="pagenum">{153}</span></p>
+<pre> I Nessas tuas mãos pequenas
+ como não vi em ninguem
+ não sei como as minhas penas
+ couberam nellas tão bem.
+
+ II Perdes mais em me perder
+ do que eu perco em te deixar:
+ perco quem sabe offender,
+ tu perdes quem sabe amar.
+
+ III Dizes que deixo saudades,
+ não me posso conformar:
+ pois se eu as levo commigo,
+ como t'as posso deixar?
+
+ IV Acostumei tanto os meus olhos
+ a namorarem os teus
+ que de tanto confundil-os
+ nem já sei quaes são os meus.
+
+ V Se os meus olhos te incommodam
+ quando estão na tua frente
+ hei de arrancal-os um dia
+ para te amar cegamente.
+
+ VI Se eu soubesse que voando
+ alcançava o que desejo
+ mandava fazer as azas
+ que as penas são de sobejo.
+
+ VII Eu jurei que não tornava
+ a dar adeus a ninguem:
+ quem parte saudades leva
+ quem fica saudades tem.
+
+ VIII Essas tuas sobrancelhas
+ como nunca vi mais bellas
+ são laços de fita preta
+ unindo duas estrellas.
+
+ IX Não sei que quer a desgraça
+ que atraz de mim corre tanto,
+ hei de parar e mostrar-lhe
+ que de vêl-a não me espanto.
+
+ X Vae alta a noite, vae alta,
+ mais alto vae o luar,
+ mais alta vae a ventura
+ que Deus tem para me dar.<span class="pagenum">{154}</span>
+
+ XI É tua bocca ideal
+ um palacio com jardim:
+ as portas são de coral
+ os degráos são de marfim.
+
+ XII Aguas passadas não tornam;
+ deixae fallar o dictado:
+ ó saudade, és um moinho
+ móes com aguas do passado.
+
+XIII Pára tu, meu coração!
+ onde estou eu, onde vim?
+ triste caminho de lagrimas
+ tem começo e não tem fim.
+
+ XIV Ouço cousas que não ouço,
+ vejo cousas que não vejo:
+ olhos da minha saudade,
+ ouvidos do meu desejo!</pre>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>E a um povo que assim traduz tão lyricamente, com tanta philosophia, com
+tanto sentimento, todas as impressões da sua alma dôce, que assim vibra essa
+poesia celeste nas cantigas das eiras ao luar, nas espadelladas, nas
+desgarradas, nos desafios, na Paschoa, no Natal, nas romarias, a um povo que
+tem alma poetica, mais suave que um paraiso, mais simples e mais colorida que
+um poente de outono e uma alvorada de primavera, póde-se, com justiça, arrancar
+essa linguagem que é caracteristica?</p>
+
+<p>O escriptor que o fizesse, a pretexto de ser verdadeiro com os seus
+personagens, para que estes não pareçam superiores ao seu meio, mentiria á
+propria consciencia, adulteraria a natureza, roubaria ao povo que quizesse
+estudar o mais bello reflexo da sua individualidade litteraria.</p>
+
+<p>A um velho cégo que mendigava pelas estradas, entre Villa-Pouca de Aguiar e
+Pedras Salgadas, na Provincia de Traz-os-Montes, muitas vezes ouvi cantar<span
+class="pagenum">{155}</span> com a sua voz roufenha, na tristissima toada,
+monotona como a sua desventura, as quadras que aqui reproduzo fielmente. Andava
+elle pelas feiras, pelos caminhos, pelas romarias, levando a sua desgraça, como
+Ashaverus, durante sessenta annos, a toda a parte onde a tradição religiosa
+celebrava as festas dos seus oragos, onde a alegria popular estuava nas danças
+e folguedos; o rapazio espantado escutava-o com profundo respeito, as raparigas
+ouviam-n'o em silencio, porque na amargura das suas cantilenas, na monotonia
+das suas queixas, na tristeza das suas lamentações havia verdade de conceitos e
+a revolta justissima de uma alma ferida contra a dureza da sorte e a iniquidade
+da natureza.</p>
+
+<p>Quem lh'o ensinou, quem escreveu esses versos, onde os aprendeu elle, que
+poeta mysterioso, simultaneamente artista e philosopho, traduziu na
+simplicidade mystica d'aquellas quadras toda a immensidade da sua irremediavel
+desventura? A alma popular, suave e lyrica, de uma raça, filtrada na arêa
+branca e pura de uma tradição de oito seculos.</p>
+<pre>Diz toda a gente e eu não nego
+que Deus é pae de bondade,
+mas se isso é pura verdade
+como foi que eu nasci cégo?
+
+ Lá que Deus tirasse a luz
+ a quem rouba ou assassina,
+ era a justiça da sina
+ que todo o mundo conduz.
+
+Mas a mim, não foi clemente
+porque eu não tinha nascido;
+é que Deus tinha o sentido
+de cegar um innocente.
+
+ Aos lobos que andam na serra
+ matando ovelhas e anhos,
+ dizendo mal aos rebanhos
+ Deus não castiga na terra.<span class="pagenum">{156}</span>
+
+Não ha lobo que não veja,
+todos são filhos de Deus,
+só nos tristes olhos meus
+a eterna noite negreja.
+
+ Não tocaria viola
+ se eu fosse fera damnada,
+ mas não andava na estrada
+ soffrendo e pedindo esmola.</pre>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Milton, collocando nos labios de Eva os seus primorosos versos, não curou de
+saber se no Paraiso a Mãe dos homens fôra educada pela serpente nos mysterios
+da poesia, da arte, da phantasia, da linguagem alcandorada, nem cogitou de
+saber se já naquelle tempo, no pincaro da cordilheira industanica, se fallava o
+inglez.</p>
+
+<p>A Samaritana era uma mulher vulgar e desprezivel; Rostand colloca-lhe nos
+labios a linguagem sublime dos seus alexandrinos formosos, sem indagar se, ao
+tempo de Christo, na Samaria, junto ao poço de Jacob, já se fallava francez, em
+verso, de metrica impeccavel e de rima opulenta, brilhante, artisticamente
+disposta sob a fórma severa que Boileau, Corneille e Racine haviam de
+prescrever 1600 annos depois.</p>
+
+<p>A critica, porém, mais céga que a minha desventurosa <em>Talitha</em>, mais
+ingenua que a alma primitiva, mais ignorante que a Samaritana e mais perfida
+que a Serpente, a sogra feroz de Adão, occultou o preceito de Taine:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Par cet excès de l'imitation litterale, l'artiste arrive a produire, non
+ pas le plaisir, mais la répugnance, souvent le dêgôut, et quelque fois
+ l'horreur.</p>
+
+ <p>«Il en est de même dans la litterature.<span
+ class="pagenum">{157}</span></p>
+
+ <p>«La meilleure moitié de la poesie dramatique, tout le théatre classique
+ grec et français, la plus grande partie des drames espagnols et anglais, loin
+ de copier exactemente la conversation ordinaire, altèrent la parole humaine
+ de propos deliberé. Chacun de ces poètes dramatiques fait parler ses
+ personnages en vers, impose a leurs discours le rythme et souvent la rime.
+ Cette falsification est elle nuisible a l'&oelig;uvre?</p>
+
+ <p>«En aucune façon. L'experience en a été faite de la maniere la plus
+ frappante dans une des grandes &oelig;uvres de ce temps, l'<em>Iphigénie</em> de
+ G&oelig;the, ecrite d'abord en prose et ensuit en vers. Elle est belle en prose,
+ mais, en vers, quelle diference! Ici, visiblement, c'est l'alteration du
+ langage ordinaire, c'est l'introduction du rythme et du mètre qui communique
+ à l'&oelig;uvre son accent incomparable, cette sublimité sereine, ce large chant
+ tragique et soutenu, au son duquel l'esprit s'élève au-dessus des vulgarités
+ de la vie ordinaire et voi reparaitre devant ses yeux les herós des anciens
+ jours, la race oubliée des âmes primitives, et, parmi elles, la vierge
+ auguste, interprète des dieux, gardienne des lois, bienfaitrice des hommes,
+ en qui toutes les bontés et toutes les noblesses de la nature humaine se
+ concentrent pour glorifier notre espèce et pour relever notre c&oelig;ur.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">H. Taine</span>&mdash;op. cit., vol. I, pag. 28 et
+ 29.</p>
+</blockquote>
+
+<p>E a critica indigena censura ao obscuro autor da modesta <em>Talitha</em> a
+ousadia de ter observado o preceito que Taine, o grande mestre da França e do
+mundo, ordena que se faça, exactamente o que fez G&oelig;the para dar maior valor e
+mais gloriosa belleza á sua <em>Iphigenia</em>; exactamente o que fez Rostand
+para poder impôr á civilisação parisiense, na compleição nevrotica de Sarah
+Bernhardt, a inferioridade da mulher da Biblia, a hetaïra da Samaria condemnada
+ao supplicio da lapidação pelos heliastas da Judéa.<span
+class="pagenum">{158}</span></p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Diante da bondade e em face das virtudes caracteristicas dos personagens que
+se movimentam nos tres actos da <em>Talitha</em>, a critica sentiu arrepios de
+indignação e abespinhou-se: á intelligencia dos censores é inconcebivel a
+coincidencia de um encontro simultaneo de cinco almas igualmente boas, simples,
+generosas, quasi santas; a sociedade repelle essa pureza, os factos demonstram
+o contrario: o autor da <em>Talitha</em> não observou, phantasiou; o seu drama
+é um trabalho de gabinete, no ambiente do mundo real essa hypothese não
+existe.</p>
+
+<p>A critica pontificou <em>ex-cathedra</em>, infallivel como o successor de S.
+Pedro, Vigario de Christo na terra.</p>
+
+<p>Taine escreveu:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Après avoir examine devant vous la nature de l'&oelig;uvre d'art, il reste à
+ etudier la loi de sa production. Cette loi peut, au premier regard,
+ s'exprimer ainsi: <em>L'&oelig;uvre d'art est determinée par un ensemble qui est
+ l'état général de l'esprit et des &oelig;uvres environnentes.»</em></p>
+
+ <p><span class="small-caps">H. Taine.</span>&mdash;op. cit., vol. I, pag. 55.</p>
+</blockquote>
+
+<p>É a influencia do meio na producção artistica: consequentemente, para
+apreciar a obra d'arte, quando é sincera, a critica necessita de conhecer o
+meio em que ella foi produzida, o estado geral dos espiritos e dos costumes em
+cujo seio o pintor, o esculptor ou o escriptor, pintou o quadro, esculpiu a
+estatua, ou escreveu o poema.</p>
+
+<p>E dos criticos indigenas que se lançaram á <em>Talitha</em>, como San Thiago
+aos moiros, apenas um viveu temporariamente em Portugal, mas nunca se perdeu em
+terras trasmontanas, gastou o tempo nas ruas das cidades populosas: a aldeia
+lusitana, se a viu não <span class="pagenum">{159}</span> a estudou, se a
+estudou ou não a comprehendeu ou... tresleu.</p>
+
+<p>De sorte que a critica, severa e exigente, desconhece por completo o meio
+que influiu na producção da <em>Talitha</em>, não tem noção, sequer, do estado
+geral do espirito e dos costumes em cuja atmosphera o obscuro autor do drama
+foi buscar os seus personagens: a critica, portanto, é ignorante e, como todo
+os ignorantes, é pretenciosa, balofa e petulantissima.</p>
+
+<p>Ha doze annos ficou terminado o terceiro acto d'esse modestissimo evangelho;
+ha doze annos appareceu pela primeira vez, no Brazil, a sublime
+pastoral&mdash;<em>Os Velhos</em>&mdash;de D. João da Camara, cuja acção se passa em uma
+aldeia do Alemtejo.</p>
+
+<p>Quando a critica indigena, do Rio Grande do Sul, assistiu á representação
+dessa obra prima, extasiou-se e não viu que na formosa comedia do mallogrado
+escriptor portuguez se movimentam, não cinco, mas nove personagens, nove almas
+igualmente puras, virtuosas, que em toda a acção da bellissima pastoral ha um
+ambiente de consoladora bondade.</p>
+
+<p>Applaudiu incondicionalmente, sem conhecer o meio em que D. João da Camara
+estudou os seus personagens, nem sentiu necessidade de saber qual era o estado
+geral dos espiritos e dos costumes que o brilhante escriptor portuguez
+reproduziu no palco, para verificar se aquelles personagens, aquella acção,
+aquelle ambiente correspondiam á realidade objectiva da vida aldean no
+Alemtejo, ou se o dramaturgo phantasiara; se seria possivel encontrar no fim do
+seculo XIX, em plena civilisação occidental europea, reunidas na mesma terra,
+nove almas puras, virtuosas, preoccupadas apenas com a pratica do Bem, sem um
+pensamento máo, sem uma palavra rude, sem uma acção menos digna.</p>
+
+<p>Ha nos dois primeiros actos da <em>Talitha</em> uma profunda<span
+class="pagenum">{160}</span> tristeza, a amargura soluça em todas as gargantas
+e no terceiro acto ha uma explosão de alegria: esse contraste parece exquisito,
+inverosimil, sem exemplo na realidade da existencia; todo o drama tem um
+excessivo perfume religioso que vae ao exaggero, diz a critica.</p>
+
+<p>A critica ignora o que sejam na aldeia portugueza o sentimento religioso, o
+culto catholico, a tradição christan, porque nunca viveu na intimidade
+daquelles lares; o que lobrigou, através da obra suspeita e viciada de
+escriptores trabalhados pelo meio social corrompido dos grandes centros,
+envenenou-lhe a alma já preparada para receber a semente do mal e a critica,
+enfunada de leitura superficial, para maldizer, deixou-se ficar na commodidade
+das biliothecas e dos gabinetes, acceitou as indicações da alma perversa de
+algum mentor sem sinceridade, explorador da inexperiencia de creanças
+talentosas e esqueceu a lição de Taine:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Pour plus de clarté, nous prendrons un cas très simple, simplifié exprés,
+ celui d'un état d'esprit dans lequel la tristesse est predominante.</p>
+
+ <p>...............................</p>
+
+ <p>«Il faut d'abord remarquer que les malheurs qui attristent le public
+ attristent aussi l'artiste.</p>
+
+ <p>«Comme il est une tête dans le troupeau, il subit les chances du
+ troupeau.</p>
+
+ <p>................................</p>
+
+ <p>«Sous cette pluie continue de misères personelles, il deviendra moins
+ joyeux, s'il est joyeux, et plus triste s'il est triste. Voilá&mdash;un premier
+ effet du milieu.</p>
+
+ <p>................................</p>
+
+ <p>«Car, ce qui le fait artiste, c'est l'habitude de degager dans les objets
+ le caractère essentiel et les traits saillants: les autres hommes ne volent
+ que des portions, il saisit l'ensemble et l'esprit. Et comme ici le caractère
+ saillant est la tristesse,<span class="pagenum">{161}</span> c'est la
+ tristesse qu'il aperçoil dans les choses.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">H. Taine</span>&mdash;Op. cit., pag. 68 e
+ seguintes.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«O que deu nascimento, entre elles, á noção de fatalidade é uma concepção
+ que se refere, não ao futuro, mas unicamente ao passado; o que é, é, e nenhum
+ poder no mundo poderia fazer que um facto concluido não existisse.»</p>
+
+ <p><em>A poesia e a arte no ponto de vista philosophico.</em>&mdash;Cap. II, pag.
+ 50.</p>
+</blockquote>
+
+<p>O modesto autor da <em>Talitha</em> não podia fugir á acção do meio em que
+se encontrou com os seus personagens, como doutrina Taine, nem se podia oppôr á
+verdade: <em>o que é, é, e um facto concluido, poder algum o annulla</em>.</p>
+
+<p>Se o autor transformasse á medida do seu desejo, pensando em ser agradavel á
+critica, mentiria á sua consciencia, deturparia as leis da arte: os zoilos
+pódem maldizer, á vontade, o autor fica tranquillo e contente com a fiel
+observancia das lições de Taine e do escriptor brazileiro, inspirado na
+doutrina de Guyau.</p>
+
+<p>O facto é verdadeiro, era sufficiente que fôsse verosimil: o autor da
+<em>Talitha</em> dramatisou-o, traduziu nos seus versos modestos as desventuras
+e a redempção dos seus personagens pelo amor,</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«l'amor che muove il sole e l'altre stelle.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>O seu drama obscuro impressionou e commoveu, tanto basta: a agitação da
+critica apenas conseguiu encrespar a vaidosa pleiade de coripheus do elogio
+mutuo e a paixão, a animosidade e malquerença politicas.</p>
+
+<p>Zola pontificou:<span class="pagenum">{162}</span></p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Il n'est poin't de jeune homme arrivant de sa province qui ne rève de
+ distribuer des coups de férule.</p>
+
+ <p>«Ces pauvres jeunes gens n'ont souvent pas deux idées nettes dans la tête.
+ L'experience leur manque. Ils tapent en aveugles. De lá les jugements
+ extraordinaires qui font resembler notre critique a une veritables Babel, ou
+ on parlerait toutes les langues, sauf la langue de verité et de justice qu'il
+ faudrait y parler.</p>
+
+ <p>«Je ne nommerai personne parmi ces jeunes gens.</p>
+
+ <p>«Le vent qui les apporte, les emporte.»</p>
+
+ <p><em>Documents litteraires; la critique contemporaine.</em>&mdash;pags. 346,
+ 347.</p>
+</blockquote>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>O assumpto da <em>Talitha</em> é portuguez, portuguezes são os seus
+personagens, portuguez o meio em que a acção se desenvolve, portugueza foi a
+atmosphera em que o autor viveu a sua adolescencia e a sua mocidade: o drama
+não podia deixar de reflectir</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«l'état général de l'esprit et des m&oelig;urs environnantes.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>De profundas amarguras, de lacerantes provações para o povo portuguez foi a
+época dolorosa em que o modesto autor da <em>Talitha</em> aprehendeu em
+flagrante o desenrolar da acção dramatica do seu poema lyrico: e essa éra
+prolongou-se em uma crise tremenda que acaba de chegar ao seu auge, a sua
+maxima intensidade. </p>
+
+<p>Portugal acabava de receber o <em>ultimatum inglez</em> na questão
+pungentissima das possessões africanas, a natureza fôra de uma dureza extrema:
+ás innundações dos invernos succedeu a crise agricola que esmagou a producção
+vinicola pela invasão phyloxerica, as agitações politicas ganhavam terreno e a
+ideia republicana fazia proselytos ameaçando as instituições<span
+class="pagenum">{163}</span> monarchico-religiosas de sete seculos e, em meio
+dessas provações a Providencia, esquecida da immensa piedade d'aquelle povo
+sublime, ininterruptamente demonstrada em uma historia em que não soffre
+solução de continuidade o culto da divindade catholica, fulmina-lhe os homens
+notaveis e successivamente desapparecem no tumulo: Fontes Pereira de Mello,
+Anselmo Braamcamp, Pinheiro Chagas, Guilherme de Azevedo, Lopo Vaz, Antonio
+Rodrigues Sampaio, Luciano Cordeiro, Antonio Ennes, Marianno de Carvalho,
+Oliveira Martins, Carlos Lobo d'Avila, Eça de Queiroz, Alexandre da Conceição,
+Raphael Bordallo Pinheiro, Gervasio Lobato, Souza Martins, Camillo Castello
+Branco e Anthero de Quental imitam o exemplo de Chatterton e atravessam a
+luminosa região dos seus cerebros geniaes com a inferioridade crudellissima de
+uma bala.</p>
+
+<p>Da nova geração, Antonio Fogaça, Luiz Ozorio, Antonio Nobre, Moniz Barreto
+seguiram a estrada da morte.</p>
+
+<p>A crise economica era pavorosa, a emigração clandestina assustava os
+espiritos mais fleugmaticos, á questão ingleza, seguiu-se a revolta de 31 de
+Janeiro e a situação geral era tão delicada e complexa que nem o genio de José
+Dias Ferreira, nem as combinações politicas de homens como Hintze Ribeiro e
+Fuschini conseguiram solver.</p>
+
+<p>Ao desequilibrio financeiro succederam a questão monetaria e o augmento da
+divida publica, fortemente aggravadas as condições do credito publico pela
+questão internacional do emprestimo de D. Miguel. E Teixeira Bastos escreve:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Diante do desconsolador espectaculo que apresenta a sociedade portugueza
+ estrebuchando no esphacêlo, ha quem tenha perdido de todo a esperança de
+ regeneração; ha quem se persuada<span class="pagenum">{164}</span> que estão
+ chegados os ultimos dias de Portugal. Com effeito, a agudeza da crise, que
+ talvez ainda esteja longo de seu termo, justifica em grande parte este
+ excesso de pessimismo.</p>
+
+ <p>«Portugal, como todas as nações contemporaneas, em maior ou menor gráo,
+ lucta com uma crise terrivel, que se revela sob aspectos variadissimos. É uma
+ crise politica, financeira, economica, mas sobre tudo social e moral.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Teixeira Bastos</span>&mdash;A Crise, pag. 435.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Esse estado geral do espirito e dos costumes portuguezes influiu
+poderosamente na producção artistica e litteraria d'aquelle tempo e na que se
+seguia.</p>
+
+<p>Na esculptura destaca-se a estatua de <em>Hermengarda</em> em que o talento
+de Moreira Rato evoca para o marmore a alma dilacerada da heroina de Herculano,
+o pessimista glorioso, o desilludido sublime de Val de Lobos.</p>
+
+<p>Na architectura não surge cousa alguma que atteste a sublimidade do caracter
+nacional e o que havia de notavel, legado e herança do passado, soffre a
+influencia do desanimo, da indefferença, da tristeza geral que domina.</p>
+
+<p>É de Ramalho Ortigão o que se vae lêr:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos os
+ attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a mais
+ desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos
+ architectonicos da nação...</p>
+
+ <p>«Dos desacatos de lesa-magestade nacional, a que tenho a dôr e a vergonha
+ de me referir, uns teem caracter anonymo, outros affectam directamente a
+ cumplicidade official. Os primeiros são uma consequencia do desdem: os
+ segundos são um resultado de incapacidade.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Ramalho Ortigão.</span>&mdash;<em>O culto da Arte em
+ Portugal</em>, pags., 19 e seguintes.<span class="pagenum">{165}</span></p>
+</blockquote>
+
+<p>Quanto á vida e a producção litteraria, o autor da <em>Talitha</em> invoca o
+depoimento do grande critico portuguez; é elle quem affirma:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de
+ abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver egreja que
+ os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na arte de portugal
+ faltam corações portuguezes.</p>
+
+ <p>«Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da vida
+ intellectual.</p>
+
+ <p>................................</p>
+
+ <p>«A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de applicação e
+ de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas nevoentos,
+ anti-meridional, e vem fallando uma lingua secreta, cabalistica,
+ interessantemente engenhosa, incomprehensivel para o povo e para os que não
+ estiverem iniciados na morphologia espiritica das novas seitas.</p>
+
+ <p>«Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza de
+ critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de apagada
+ tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue vermelho da raça,
+ nem se retrata o genio do nosso povo, meigo, docil, de apparencia branda, mas
+ ainda hoje eminentemente sociavel, amando a grande alegria estridente das
+ feiras, das tardes de touros, das romarias dos seus santos populares,
+ conservando nas intimas camadas sociaes um residuo trovadoresco, de palladino
+ e de menestrel, susceptivel ainda das paixões mais profundas, todo de
+ imposição e repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente grandes,
+ poetico, aventureiro e destemido.</p>
+
+ <p>«Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola
+ portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos artistas,
+ sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes, sem lição commum,
+ não ha entre elles mutuamente, nem entre elles e o povo de que derivam,
+ communhão alguma de ideal ou de sentimentos.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Ram. Ortigão.</span>&mdash;op. cit., pag. 110 e
+ seguintes.<span class="pagenum">{166}</span></p>
+</blockquote>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Embora modesta a <em>Talitha</em>, embora sem merecimento o seu autor
+obscuro, como poderiam ambos&mdash;drama e escriptor&mdash;fugir a esse estado geral do
+espirito e dos costumes, de que falla Taine?</p>
+
+<p>Necessariamente deveriam obedecer á lei, e por isso apparece nos dois
+primeiros actos do drama essa dolorida tristeza que é o reflexo da situação
+geral da sociedade e que a desventura daquella familia, pela desventura da
+pequena Talitha, aggrava e apura com intensidade.</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«D'autre part, l'artiste a été élevé parmi des contemporains
+ mélancoliques; partant, les idées qu'il a reçu et celles qu'il reçoit encore
+ tous les jours sont mélancholiques.</p>
+
+ <p>«La religion regnante, qui s'est accommodée au lugubre train des choses,
+ lui dit que la terre est un exil, le monde un cachot, la vie un mal, et que
+ toute notre affaire est de meriter d'en sortir»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">H. Taine</span>&mdash;op. cit., vol. I. pag. 65.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Aliás é profundamente melancolica toda a obra litteraria portugueza desse
+tempo, muito principalmente na poesia.</p>
+
+<p>É um soluço de magua&mdash;o <em>Espirito Gentil</em>&mdash;de Luiz Ozorio; formam um
+rosario de amarguras&mdash;as <em>Orações do Amor</em> de Antonio Fogaça; é um
+gemido crudellissimo o <em>Só</em> de Antonio Nobre; é como um echo de
+Necropole&mdash;<em>Nada</em>&mdash;de Julio Dantas.</p>
+
+<p>No theatro, Marcellino de Mesquita lança a <em>Noite do Calvario</em>,
+reproducção profundamente dolorosa e triste de um acontecimento real da vida de
+um lar que o dramaturgo generalisa ás condições da vida social, aliás já
+cruelmente desvendada nos <em>Castros</em>.<span
+class="pagenum">{167}</span></p>
+
+<p>Para fugir á influencia da actualidade Julio Dantas recorre ao passado, á
+chronica, a historia e não consegue eximir-se á impressão da desventura: <em>O
+que morreu de amor</em> é uma resurreição esmagadora de magua; a
+<em>Severa</em> é um manto de crepe encobrindo um cenotaphio; <em>O serão nas
+larangeiras</em> é uma ironia finissima, um esfusiar de espirito que occulta,
+mascára, e pinta um immenso abatimento moral.</p>
+
+<p>Gervasio Lobato passa nesse meio espalhando gargalhadas, ridiculo e
+<em>troça</em> sobre a sociedade carcomida pela crise e acabrunha de pilherias
+a burguezia e a classe media no <em>Commissario de Policia</em>, no <em>Solar
+dos Barrigas</em> e na <em>Lisboa em Camisa</em>, passando do palco ao
+romance.</p>
+
+<p>A <em>Velhice do Padre Eterno</em> é uma <em>charge</em> monumental sobre o
+ultramontanismo da sociedade religiosa: a <em>Patria</em> é uma objurgatoria
+tremenda, um raio de colera olympica; os <em>Simples</em>, constituem um colar
+de lagrimas de uma jeremiada genial e as <em>Orações ao Pão e á Luz</em> são as
+aspirações tantalicas do genio ao seio da excelsa divinisação da arte, como
+refugio extremo de uma alma que foge ás revoltas da terra para não cahir na
+lama das decomposições sociaes. </p>
+
+<p>A <em>Rosa engeitada</em>, de D. João da Camara, é a dôr vivendo e esmagando
+as almas; os <em>Velhos</em>, apezar do seu encanto bucolico e purissimo, é um
+crepusculo de sombras dôces.</p>
+
+<p>A <em>Cruz da Esmola</em>, de Eduardo Schwalbach, é a photographia nitida da
+tortura e do desespero...</p>
+
+<p>E tudo isso é a reproducção conscienciosa de um estado de pathologia
+social... a menos que a critica não attribua tudo isso á phantasia dos artistas
+pelo gozo requintado de esmagar a propria patria ao peso de calumnias...</p>
+
+<p>Mas neste caso como comprehender o collossal successo das obras
+extraordinarias de Ramalho Ortigão<span class="pagenum">{168}</span> na
+critica, de Eça do Queiroz ao romance e de Raphael Bordallo na caricatura,
+profligando esse estado geral de espirito e de costumes como Alphonse Karr,
+Gavarni e Flaubert na alta cultura genial da França, em plena floração
+artistica e litteraria?</p>
+
+<p>O terceiro acto da <em>Talitha</em> não destôa dos anteriores, a unidade não
+se quebra, transmitte-se, completa-se: a mesma suave melancolia dos primeiros
+conserva-se na narrativa da morte do sargento que <em>Ruy</em> communica a
+<em>Joaquina</em> e no <em>raconto</em> que das suas desventuras, faz a
+<em>Marqueza de Rilma</em> ao velho cura João Fulgencio.</p>
+
+<p>A mesma serenidade christan dos primeiros actos paira no terceiro através da
+descripção em que <em>Talitha</em>, ao som dos sinos distantes da missa do
+gallo, conta a <em>Ruy</em> e a <em>Joaquina</em> a sua allucinação passageira
+e termina com a <em>Salve-Rainha</em> rezada ao soluçar do orgam e ao repique
+da alvorada annunciando a missa d'alva.</p>
+
+<p>A alegria que vibra n'este acto é mais intensa, realmente, mas n'elle se
+encontram trez factos culminantes: a confirmação do noivado de Talitha pelo
+perdão da Virgem na visão da missa; a cura radical e milagrosa da sua cegueira
+e o apparecimento da mãe tanto tempo perdida.</p>
+
+<p>Mas a alegria não surge alli de surpresa, repentinamente: no primeiro acto
+ella vibra na scena final de amor em que as duas almas que se comprehendem
+recebem a benção da velha Joaquina surprehendendo-as na ventura do seu idyllio,
+e no segundo acto a primeira scena succede naturalmente a essa e os dois velhos
+ligam, plas recordações, a passada alegria de outros tempos, a que se vae em
+breve descerrar quando <em>Ruy</em> levantar definitivamente a venda aos olhos
+da redimida.</p>
+
+<p>Ahi a alegria vae á intensidade das lagrimas, é a<span
+class="pagenum">{169}</span> tristeza que nasce das extremas emoções da
+felicidade que não é triste e, se momentaneamente desapparece quando
+<em>Talitha</em> se deixa vencer pela fé religiosa e rompe o juramento de amor
+para cumprir o juramento do voto de clausura, de novo se reata e estala em um
+sorriso de supremo arrebatamento, quando a piedosa e santa mentira do
+<em>Cura</em>, depois da confissão, lhe relata o sonho da madrugada anterior em
+que elle viu rolar no espaço</p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+<p>no fulgor de uma estrella o beijo do perdão.</p>
+</div>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>A virtude daquellas almas!...</p>
+
+<p>E porque razão de alta monta o autor da <em>Talitha</em> devia quebrar a
+verdade do facto observado, a unidade d'aquelle conjuncto que elle não
+phantasiou e que, felizmente, encontrou num dia da sua mocidade, em meio da
+crise social moral que caracterizava aquella época dolorosa de provações
+populares?</p>
+
+<p>Introduzir um personagem que não tivesse as mesmas qualidades de caracter
+seria deturpar os factos para obedecer ao <em>métier</em>, a carpintaria de
+theatro vencendo a moral na arte: um cumulo de estupidez.</p>
+
+<p>Além de tudo, inutil: a emoção dramatica, o effeito theatral são completos e
+seguros com a simplicidade daquellas cinco figuras, porque o Bem, a Virtude e a
+Harmonia encantam e commovem sempre, em todas as zonas e latitudes da terra.</p>
+
+<p>Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«O artista que emprega suas faculdades ao serviço de uma idéa generosa não
+ é menos artista por isso, se bem que não seja por isso que elle<span
+ class="pagenum">{170}</span> é artista. O amor e a intelligencia do bem
+ suppõem uma concepção superior das condições da vida individual e social que
+ é preciso desejar a todos os artistas como a todos os homens...»</p>
+
+ <p>................................</p>
+
+ <p>«Entretanto ha uma observação a fazer neste ponto, é que parece mais facil
+ pintar o vicio do que a virtude. Balsac, que se sahiu admiravelmente na
+ pintura dos monstros, encalhava quasl sempre quando era atacado pelos homens
+ pudicos.</p>
+
+ <p>«Tão verdadeiros e vivos são os seus libertinos da alta o baixa sociedade,
+ como os outros, na maior parte do tempo, são ternos e mal acanhados.»</p>
+
+ <p>Op. cit. pag. 32.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Ainda mesmo quando o autor da <em>Talitha</em> houvesse faltado á verdade
+dos factos que observou, teria tentado o problema, na opinião do estheta
+brazileiro, mais difficil de resolver: o estudo e a interpretação da Virtude o
+do Bem, na psychologia dos cinco personagens que jogam em scena a acção do seu
+obscuro poema lyrico.</p>
+
+<p>A critica indigena, ignorante ou perversa, petulante ou futil, feriu-se com
+as proprias armas.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<div style="margin-left: 10%;">
+<p>Que o autor da <em>Talitha</em>, sem prestigio para fazel-o, permittiu-se a
+liberdade de escrever um drama em verso, fórma litteraria que está totalmente
+banida do theatro moderno, supplantada pela prosa.</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>É outra censura da critica indigena; espera-a a mesma sorte das anteriores:
+a critica é vesga e não sabe o que diz.<span class="pagenum">{171}</span></p>
+
+<p>Do theatro moderno ainda não foi banida a fórma alta e pura do verso:
+semelhante vandalismo seria uma violencia feita á arte, á belleza, ao bom
+gosto, á suprema lei do rythmo, para cujo excelso dominio tendem naturalmente
+todas as manifestações da vida e a linguagem da poesia do metro e da rima, a
+altissima elegancia.</p>
+
+<p>Moderno é Victor Hugo, gigante de oiro do theatro francez e escreveu em
+verso: <em>Esmeralda</em>, <em>Burgraves</em>, <em>Ruy Blas</em>,
+<em>Cromwell</em>, <em>Torquemada</em>, <em>Grandmère</em>, <em>L'Épée</em>,
+<em>Mangerontils?</em>, <em>Sur la lisière d'un bois</em>, <em>Les gueux</em>,
+<em>Étre aimé</em>, <em>La Forêt-mouillée</em>.</p>
+
+<p>Modernos são Paul Delair e Lomon e escreveram em verso os seus dramas
+<em>Garin</em>, <em>Jean Dacier</em> e <em>Marquis de Kenilis</em> que Zola
+critica asperamente na sua obra&mdash;<em>Naturalisme au Théâtre</em>.</p>
+
+<p>Moderno é Banville e produziu <em>Hymnis</em>, <em>Riquet à la houpe</em> e
+<em>Socrates et sa femme</em>, tres comedias em verso.</p>
+
+<p>Moderno é Alphonse Daudet e entre as suas obras figura <em>Char</em>,
+comedia em verso, em um acto.</p>
+
+<p>Moderno é Alfred Musset e legou ao theatro da sua patria: <em>Les marrons du
+feu</em>, comedia; <em>A quoi rêvent les jeunes filles</em>, comedia; e <em>La
+coupe et les lèvres</em>, drama, todos em verso.</p>
+
+<p>Moderno é Ed. Pailleron e no seu theatro figuram <em>Narcotique</em>,
+comedia em um acto, e <em>Hélène</em>, drama em quatro actos, ambos em
+verso.</p>
+
+<p>Moderno é Ludovic Halévy, collaborador de Meilhac, e produziu, em verso, a
+<em>Phryné</em> e <em>Nina, la Tueuse</em>.</p>
+
+<p>Modernissimo é Emile Augier, o grande mestre da litteratura dramatica e da
+carpintaria theatral e escreveu em verso a maior parte das suas peças. São em
+verso: <em>Cigüe</em>, <em>Paul Forestier</em>, <em>Homme de bien</em>,
+<em>Aventurière</em>, <em>Gabrielle</em>, <em>Joueur de flúte</em>,
+<em>Philiberte</em> e <em>Jeunesse</em>.<span class="pagenum">{172}</span></p>
+
+<p>Moderno é Catulle Mendés e em 1872 dotou o theatro com a sua comedia em
+verso, <em>La Part du Roi</em>, em um acto; em 1888 fez representar a sua
+formosa phantasia, tambem em verso&mdash;<em>Isoline</em>, em tres actos; e em 1889
+produziu, ainda em verso, o drama em 6 actos&mdash;<em>Fiammete</em>; em 1906, punha
+em scena no Odéon, o seu drama <em>Glatigny</em>, tambem em verso.</p>
+
+<p>Modernissimo é Jean Richepin e, em 1905, fazia representar na Comédie
+Française o seu <em>D. Quichote</em>, em verso.</p>
+
+<p>Modernissimo é tambem André Arnymede, que em 1906 assombrava a critica
+parisiense com a representação triumphal de <em>La Courtisane</em>, em cinco
+actos e em verso.</p>
+
+<p>Modernissimo é Francis de Croisset e escreveu em verso os tres actos
+sensacionaes do Paon que subiu á scena na Comédie Française.</p>
+
+<p>Modernissimo é Emile Veyrin que viu os seus formosos versos dos quatro actos
+de <em>Embarquement Pour Cythère</em>, no palco do Theatro des Bouffes
+Parisienne.</p>
+
+<p>Modernissimo é Jacques Richepin e, em Abril de 1907, viu na ribalta da
+<em>Porte St. Martin</em>, os soberbos alexandrinos da <em>Majorlaine</em>, em
+cinco actos, depois de haver debutado com os versos admiraveis da <em>Reine de
+Tyr</em>, no theatro Sarah Bernhardt.</p>
+
+<p>Moderno é François Coppée, e em 1878, em collaboração com Armand d'Artois,
+produziu o drama em cinco actos <em>Guerre des Cent ans</em>; em 1879, <em>Le
+Trésor</em>, comedia em um acto; em 1881, <em>Madame Maintenon</em>, drama em
+cinco actos e um prologo: em 1883, <em>Severo Torelli</em>, drama em cinco
+actos; em 1885, <em>Les Jacobites</em>, drama em cinco actos; em 1880, <em>Le
+Passant</em>, em um acto; e em 1888, <em>La Grève des Forgerons</em>, em um
+acto, e em 1905, <em>Scarron</em>, em cinco actos: e todos esses trabalhos são
+em verso.<span class="pagenum">{173}</span></p>
+
+<p>Rostand escreveu todos os seus dramas em verso: <em>Princesse
+Lointaine</em>, <em>Romanesques</em>, <em>Cyranno de Bergerac</em>,
+<em>Samaritaine</em>, <em>Ayglon</em> e ultimamente os tres primeiros actos do
+<em>Chant-clair</em>...</p>
+
+<p>Miguel Zamacoix acaba de escrever e fazer representar em Paris pelo genio de
+Sarah Bernhardt, <em>Les Boufons</em>, em verso alexandrino, obra prima que a
+critica europea colloca, senão acima, ao lado do <em>Cyrano</em>.</p>
+
+<p>E ainda recentemente, em Outubro de 1906, a imprensa franceza se occupou de
+uma outra obra prima do talento de Catulle Mendés, em soberbos alexandrinos, de
+um mysticisco celeste, que se intitula <em>Sainte Thérèse</em>.</p>
+
+<p>Na Inglaterra, Robert Browning escreveu a tragedia historica
+<em>Strafford</em> e os dramas <em>Mancha no Brazão</em> e <em>Regresso dos
+Deuses</em>, todos em verso.</p>
+
+<p>Na Italia, Gabriel d'Annunzio escreveu em verso os tres actos da <em>Filha
+de Jorio</em>, e fez representar por Eleonora Duse o seu grandioso monumento
+<em>Francesca da Rimini</em>, em verso, como em verso havia escripto pouco
+antes o seu extraordinario <em>Nerone</em>, o genio brilhante de Boito, e
+Cavalloti o seu formosissimo idylio <em>Cantico dei cantici</em>, em 1882.</p>
+
+<p>Na Hespanha, deixando de parte o <em>D. Juan Tenorio</em>, de Zorrilla: o
+<em>Trovador</em>, de Gutierres; a <em>Roda de la Fortuna</em>, de Thomaz Rubi,
+todos de 1850: Hartzemburch produziu mais recentemente <em>Los Amantes de
+Terruel</em>; <em>Alfonso, el Casto</em> e <em>La Madre de Pelagio</em>, e
+Echegaray o seu conhecidissimo <em>Gran Galeoto</em>. </p>
+
+<p>E todos esses dramas são escriptos em verso.</p>
+
+<p>Em Portugal, João de Deus, o lyrico sublime, escreveu <em>Horacio e
+Lidia</em>; Eugenio de Castro, o revolucionario de genio, o extraordinario
+autor da <em>Belkiss</em> e de <em>Constança</em>, acaba de publicar o
+<em>Annel de Polycrates</em>; Henrique Lopes de Mendonça, o <em>Duque de
+Vizeu</em><span class="pagenum">{174}</span> e a <em>Noiva</em>: Fernando
+Caldeira, a <em>Mantilha de Renda</em> e a <em>Madrugada</em>; Marcellino de
+Mesquita, a <em>Leonor Telles</em>; Julio Dantas, a <em>Ceia dos Cardeaes</em>;
+Francisco Palha, a <em>Fabia</em>; Luiz de Magalhães, o <em>D. Quixote</em>, os
+dois ultimos para o Theatro Academico, de Coimbra, todos em verso; sómente para
+citar os escriptores da actualidade, deixando de parte <em>O Catão</em> e a
+<em>Merope</em> de Almeida Garrett e o <em>Camões</em>, de Antonio Feliciano de
+Castilho.</p>
+
+<p>Finalmente: em verso tambem escreveram no Brazil: Gonçalves de Magalhães, o
+<em>Olgiato</em>; Arthur Azevedo, o <em>Badejo</em>; Zeferino Brasil, o
+<em>Outro</em> e Coelho Netto, <em>As estações</em>.</p>
+
+<p>A critica, portanto, ou é ignorante ou mentiu propositalmente.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Mas a critica adiantou-se ainda: abriu dogmaticamente uma excepção: o verso
+em theatro só se admitte para as tragedias historicas.</p>
+
+<p>Outra cincada.</p>
+
+<p>Em Portugal, Fernando Caldeira deixou no theatro duas joias preciosas: a
+<em>Mantilha de Renda</em> e a <em>Madrugada</em> que nem são tragedias, nem
+tem filiação alguma historica.</p>
+
+<p>Na Italia, Cavallotti legou á lilteratura dramatica um primor de lyrismo: o
+<em>Cantico dei cantici</em> que não é tragico, nem historico.</p>
+
+<p>Em França, Catulle Mendès escreveu, em verso, os tres actos de
+<em>Isoline</em> e os seis do <em>Fiammette</em> que nada tem a vêr com a
+historia, nem com a tragedia. </p>
+
+<p>François Coppée produziu <em>Le Trésor</em>, <em>Le Passant</em>, <em>La
+Grève des Forgerons</em>, todos em um acto e que não<span
+class="pagenum">{175}</span> tem a minima relação com a tragedia, nem o menor
+vestigio de historia.</p>
+
+<p>No Brasil, o <em>Badejo</em>, de Arthur Azevedo, é uma comedia, o
+<em>Outro</em>, de Zeferino Brasil, um drama; <em>As estações</em>, de Coelho
+Netto, uma phantasia, todos em verso, sem relação alguma com a historia ou com
+a tragedia.</p>
+
+<p>A critica indigena</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«appartient à ce monde de paresseux qui font chaque soir une grande &oelig;uvre,
+ en buvant une chope; seulement, le lendemain, ils ont sommeil et ne trouvent
+ pas le temps d'ècrire la grande &oelig;uvre. «La vie se passe, l'âge arrive, ils
+ restent des debutants.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Zola</span>, <em>La critique Contemporaine</em>,
+ pag. 351.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Entretanto, René Doumic, um mestre da critica, escreve na <em>Revue des Deux
+Mondes</em>:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Je voudrais seulement que les poètes qui se sentent une vocation
+ d'auteurs dramatiques ne s'imaginent point que le succès ne peut être obtenu
+ par eux, à la scène, qu'en nous narrant des histoires romantiques ou des
+ féeries.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>E Gaston Sorbets conclúe:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«M. René Doumic á assurément raison: la poesie dramatique est faite anssi
+ pour exprimer les mouvements les plus profonds de notre c&oelig;ur ou les
+ aspirations les plus hautes de notre âme. Il suffit de voiler de poesie la
+ Verité nue pour faire de cette divinité une muse nouvelle.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>Deixemos vociferar os maldizentes: nós ficamos com os criticos que sabem
+sentir e... lêr.<span class="pagenum">{176}</span></p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Os zoilos que se lançaram á modestissima <em>Talitha</em>, censuraram ao seu
+autor o atrevimento inaudito de não observar a regra do Theatro francez de
+Corneille e Racine, que manda emparelhar systematicamente os graves e agudos na
+symetria inalteravel prescripta por aquellas duas autoridades.</p>
+
+<p>Mas a critica, absolutamente não tem competencia para impôr aos escriptores
+brazileiros, por muito modestos e insignificantes que sejam, as leis e as
+regras da arte poetica franceza.</p>
+
+<p>Se a obra d'arte é portugueza ou brazileira, o auctor não se submette ás
+leis da poetica franceza: observa os modelos nacionaes e portuguezes.</p>
+
+<p>E, sem receio de ser contestado por quem quer que seja, o autor da
+<em>Talitha</em> affirma: não ha poeta algum na lingua de Camões, quer no
+theatro, quer fóra delle, que obedeça ás exigencias das prescripções francezas,
+que, aliás, o proprio Corneille, invocado pela critica, não seguiu nem adoptou
+na <em>Imitation de Christ</em>:</p>
+
+<div style="font-size: small;">
+<p>«Le desir de savoir est naturel aux hommes:<br>
+il nait dans leur berceau sans mourir qu'avec eux<br>
+mais, ô Dieu, dont la main nous fait ce que nous sommes,<br>
+que peut-il sans ta crainte avoir de fructueux?</p>
+
+<p>Liv. I, Chap. II.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Vanité d'entasser richesses sur richesses,<br>
+Vanité de languir dans la soif des honneurs,<br>
+Vanité de choisir pour souverains bonheurs<br>
+de la chair et des sens les damnables caresses.</p>
+
+<p>Liv. I, Chap. I.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Vraiment grand est celui qui dans soi se ravale<br>
+qui rentre en son néant pour s'y connaitre bien,<br>
+qui de tous les honneurs que l'univers étale<br>
+        craint la pompe fatale,<br>
+        et ne l'estime en rien.</p>
+
+<p>Liv. I, Chap. III.<span class="pagenum">{177}</span></p>
+</div>
+
+<p>Victor Hugo, o mestre supremo, tambem não obedeceu invariavelmente a esta
+regra que a critica pretende impôr dogmaticamente, como immutavel.</p>
+
+<p>Vejamos na <em>Esmeralda</em>, acto I:</p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+    «Nous irons au clair de lune<br>
+    danser avec les esprits...<br>
+    Vive Clopin, roi de Thune!<br>
+    Vivent les gueux de Paris!<br>
+<br>
+«Au milieu de la ronde infame<br>
+qu'importe le soupir d'une ame?<br>
+Je souffre! oh! jamais plus de flamme<br>
+au sein d'un volcan ne gronda.<br>
+</div>
+
+<p>Em <em>La Forêt mouillée</em>, Scene II:</p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+«Les moutons promis aux fourchettes<br>
+Passent là-bas; j'entends leurs voix<br>
+    Sonnez, clochettes,<br>
+    au fond des bois.<br>
+Le beau Narcisse est en manchettes;<br>
+Silène a mis toutes ses croix.<br>
+</div>
+
+<p>Rostand, o impeccavel, na <em>Samaritaine</em>, tambem não se subordinou
+absolutamente a essa regra, como se vê logo na primeira scena:</p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+«Poussé par la brise des nuits,<br>
+et vagabond jusqu'à l'aurore,<br>
+je viens pour des fins que j'ignore,<br>
+comme un fantôme que je suis.<br>
+D'une sandale sonore<br>
+je viens, je glisse et je m'enfuis...<br>
+Mais, ô Jehovah que j'adore!<br>
+quelle est cette grande ombre encore<br>
+qui se tient debout près du puits?<br>
+</div>
+
+<p style="text-indent: 0em;">e assim prosegue o genial poeta em toda essa scena
+que se compõe de cento e nove versos.</p>
+
+<p>E para que não diga a critica perversa que n'esses exemplos não ha
+alexandrinos, aqui ficam estes alexandrinos, ainda do I acto, scena V, em que
+Photina declama:<span class="pagenum">{178}</span></p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+«Mon bien aimé&mdash;je t'ai cherché&mdash;depuis l'aurore,<br>
+Sans te trouver,&mdash;et je te trouve,&mdash;et c'est le soir;<br>
+Mais quel bonheur!&mdash;il ne fait pas&mdash;tout a fait-noir:<br>
+            mes yeux encore<br>
+            pourrent te voir. </div>
+
+<p style="text-indent: 0em;">e assim por toda a <em>fala</em> de Photina, gue
+se compõe de mais de vinte nove versos.</p>
+
+<p>Na lingua portugueza, porém, não ha um poeta sequer que obedeça á regra da
+metrica franceza, nem no drama, nem no poema.</p>
+
+<p>Junqueiro, na <em>Morte de D. João</em>, na <em>Musa em ferias</em>, na
+<em>Velhice do Padre Eterno</em>, na <em>Patria</em>, ou nos <em>Simples</em>
+usa indistinctamente as rimas agudas, graves, e esdruxulas, emparelhadas, ou
+alternadas.</p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+                     «O pensamento humano<br>
+mergulhou como um Deus nas grutas do oceano,<br>
+embebeu-se no azul, andou pelo infinito,<br>
+interrogou a historia, os ventos, o granito,<br>
+todas as creações, todas as creaturas,<br>
+vermes, religiões, abysmos, sepulturas,<br>
+e disse-nos: Jesus, Socrates, Platão<br>
+fallaram a verdade. Existe uma rasão,<br>
+uma ideia, uma lei, mysteriosa, etherea,<br>
+que rege o movimento e as formas da materia...<br>
+
+
+<p><em>Morte de D. João.</em>&mdash;Introducção, pag. 31.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+«Hediondo! assassinar um homem que assassina!<br>
+Collocar o direito ao pé da guilhotina.<br>
+Resolver a questão do crime&mdash;um cemiterio!<br>
+Sanccionar Papavoine e decretar Tiberio!<br>
+Um carrasco de guarda á nossa segurança!<br>
+O pelotão&mdash;juiz e o tribunal&mdash;vingança!<br>
+E é uma coisa que indigna, um facto que comove,<br>
+que quasi ao terminar o seculo dezenove<br>
+pensem como Marat, pensem como Cain<br>
+as leis no velho mundo e o tigre em Bombaim!<br>
+
+
+<p><em>Musa em férias</em>; Idilios e Satiras, pag. 137.<span
+class="pagenum">{180}</span></p>
+</div>
+
+<p>Julio Dantas, o brilhante poeta da <em>Ceia dos Cardeaes</em> tambem não
+adoptou a regra que a critica indigena pretende nacionalizar.</p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+                         Xerez.<br>
+«Roma! Roma que viu, pela primeira vez,<br>
+Beneditto XIV, um papa,&mdash;a receber<br>
+Conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire!<br>
+ ............................................<br>
+<br>
+«As cartas de Voltaire, honram!<br>
+                        ... É natural<br>
+fala como francez.<br>
+              ... Fala como cardeal!<br>
+ ............................................<br>
+<br>
+«Mas perdão... Não será politica de mais<br>
+para uma ceia alegre? Emfim trez cardeaes<br>
+não salvam Roma...</div>
+
+<p>Como se vê, Julio Dantas, empregou successivamente dez agudos.</p>
+
+<p>E esse arrojo do eminente poeta portuguez não impediu que a <em>Ceia dos
+Cardeaes</em> tivesse oito traducções em allemão, francez, italiano, hespanhol
+e no dialeto catalão, nem evitou que fôsse representada mais de quatrocentas
+vezes.</p>
+
+<p>Entre os poetas brasileiros bastará citar dois nomes de primeira grandeza:
+Alberto de Oliveira e Goulart de Andrada; nenhum se submette á exigencia
+franceza da critica indigena.</p>
+
+<p>A <em>Cruz da montanha</em> do primeiro é um poemeto de 126 alexandrinos. Em
+toda essa obra prima não ha dois versos agudos e apenas se encontra uma parelha
+de esdruxulos.</p>
+
+<p>Observa-se o mesmo phenomeno em varias outras composições como&mdash;<em>A
+Enchente</em>, com 76 alexandrinos; a <em>Lagarta</em>, com 124 versos de vario
+metro, onde<span class="pagenum">{181}</span> apenas ha 14 rimas agudas:
+<em>Atmo</em>, com 88 alexandrinos, entre os quaes apenas dois esdruxulos e nem
+um agudo.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p><em>Ascenção perigosa</em>, de Goulart, é uma poesia composta de 44
+alexandrinos, dos quaes apenas quatro são esdruxulos e nem um agudo.</p>
+
+<p><em>Apocalypse</em> é formado de 158 alexandrinos: nem um agudo, sómente
+dois esdruxulos.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>E a razão é simples, é natural, é formidavel: o idioma francez é
+abundantissimo de agudos e o portuguez é, relativamente, pauperrimo.</p>
+
+<p>Para observar inalteravelmente a regra franceza que a critica pedante e
+fátua pretende impôr vaidosamente, depressa ficariam exgottadas as rimas agudas
+e o poeta incidiria na repetição das consoantes, o que constitúe o defeito da
+pobreza de rimas, acremente censurado pela critica.</p>
+
+<p>Além disso, os francezes não conhecem as palavras esdruxulas, ao passo que a
+lingua vernacula é riquissima d'esses vocabulos e, a ser observada na poesia
+dramatica portugueza e brazileira a lei da arte de Corneille e Racine, os
+poetas lusitanos e patricios vêr-se-iam obrigados a escrever alternadamente os
+seus versos em parelhas systematicas de esdruxulas, graves e agudas, o que
+seria, além de fatigante e exhaustivo, de um rebuscamento torturado, monotono,
+somnolento.</p>
+
+<p>O obscuro autor da <em>Talitha</em> preferiu deixar expandir-se naturalmente
+o pensamento proprio, de accordo com a alma dos personagens: o verso e a rima
+já de<span class="pagenum">{182}</span> si são condições impostas pela
+exigencia artistica, apurar essa exigencia com o requinte de uma symetria
+dispensavel, equivaleria a torturar os sentimentos das figuras que se movem na
+acção dramatica.</p>
+
+<p>O facto de ser uma regra de Corneille e de Racine tambem geralmente seguida
+por outros poetas modernos&mdash;o emprego alternado de dois agudos e dois graves,
+não evita a monotonia, principalmente quando se traduz o pensamento de um
+personagem ou se reproduz um vulto historico: na vida real ninguem se exprime
+por essa fórma.</p>
+
+<p>Entretanto, admittidos geralmente o verso e a rima, o poeta deve quanto
+possivel, para evitar a monotonia, variar o rythmo, o metro e o encadeamento da
+rima: as difficuldades artisticas e technicas não são excluidas por esse
+criterio, conservam-se; a monotonia desapparece e o pensamento, exprimindo-se
+com mais liberdade, permitte melhor estudo da psychologia dos personagens, e
+mais vigor descriptivo.</p>
+
+<p>O proprio autor da <em>Talitha</em> verificou praticamente o que acaba de
+affirmar quando escreveu a <em>Visão de Colombo</em>, em um acto, obedecendo
+systematicamente á regra da poetica franceza e emparelhando os alexandrinos por
+ordem de rimas agudas, graves e esdruxulas em toda a extensão do poema
+dramatico, formado de quatro centos e poucos versos, sem repetição de rimas.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Ramalho Ortigão ensina:</p>
+
+<blockquote>
+ <p style="text-indent: 0em;">«não são as academias que pautam as proposições
+ e os limites da creação artistica. Tudo o que se pode formular em preceito
+ cessa de ter valor em arte. A obra de arte não é um producto de escola: é a
+ livre expressão individual de uma alma, convertida em realidade objectiva e
+ communicando aos homens uma vibração nova de sentimento.<span
+ class="pagenum">{183}</span></p>
+
+ <p>«A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua cathegoria,
+ deduz-se da maior ou menor quantidade de ideias que a sua obra suggere e dos
+ sentimentos cuja percussão ella determina.»</p>
+
+ <p>Op. cit., pag. 145.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Adherbal de Carvalho doutrina:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«É no sentido da liberdade que em geral se faz todo o progresso; é neste
+ sentido que tambem se deve fazer todo o progresso do verso.</p>
+
+ <p>«A liberdade do rythmo era muito insufficiente entre os romanticos. Vimos
+ que a consequencia é a pobreza, a esterilidade do proprio pensamento; porque
+ a forma do verso reage sobre o cerebro do poeta. O remedio seria a auzencia
+ de estorvo sem fim, a suppressão de regras não racionadas: liberdade é
+ fecundidade.»</p>
+
+ <p>Op. cit., pag. 282.</p>
+</blockquote>
+
+<p>E depois d'essas duas sentenças, atreve-se o autor da <em>Talitha</em> a
+perguntar á critica indigena como será possivel arvorar em preceito obrigatorio
+de arte poetica da nossa lingua, a regra de Racine e Corneille, quando a
+tendencia moderna é para supressão da rima e para a cultura extremada do rythmo
+no verso branco?</p>
+
+<p>A falla de <em>Cacambo</em> e o episodio da morte de <em>Lindoya</em> no
+<em>Uruguay</em> de Basilio Gama nada perderam em valor artistico pela falta de
+rima: o <em>Colombo</em> de Araujo Porto Alegre encerra verdadeiras maravilhas
+em verso branco; Alexandre Herculano, que foi um cinzelador do verso, na
+<em>Harpa do Crente</em> deixou primorosos lavores em verso solto.</p>
+
+<p>Anthero Quental, cujas <em>Odes modernas</em> arrancaram a Michelet uma
+soberba explosão de espanto</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Se em Portugal ainda houver quatro ou cinco homens como o poeta das
+ <em>Odes modernas</em>, Portugal continuará a ser um grande paiz vivo.»<span
+ class="pagenum">{184}</span></p>
+</blockquote>
+
+<p>Anthero legou nessa obra monumental pequenos monumentos em verso branco.</p>
+
+<p>E para não fallar na <em>D. Branca</em> de Garrett, todo escripto em versos
+soltos, bastará citar os livros admiraveis de Correia de Oliveira: <em>Ara</em>
+e <em>Raiz</em>, demonstração brilhante de que a obrigatoriedade da rima tende
+a desapparecer cedendo á liberdade do pensamento.</p>
+
+<p>O velho mestre Antonio Feliciano de Castilho, na sua Arte poetica,
+escreveu:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Os versos agudos, pelo seu modo secco estalado de acabar, sem
+ elasticidade, sem vibração, se assim o podemos dizer, teem o que quer que
+ seja de ingrato ao ouvido; seriam insoffriveis, se alguem se lembrasse de
+ nol-os dar enfiados aos centos e aos milheiros, como os graves nos apparecem,
+ sem nos cançarem: demais por isso mesmo que os vocabulos agudos são menos
+ frequentes, d'ahi tiram os versos agudos um quid de exhibição e exquisitice
+ que não parece frisar senão com as idéas extravagantes, comicas, brutescas ou
+ satyricas.</p>
+
+ <p>«Do expendido por boa razão se infere: l.º que em toda e qualquer especie
+ de metro são os versos graves que devem, predominar.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>A critica pretenciosa e petulante indicadora de regras de arte rebella-se
+contra a autoridade incontestavel e consagrada de Antonio Feliciano de Castilho
+e quer que em versos portuguezes o autor da <em>Talitha</em> adopte a regra
+franceza, que equipare agudos e graves e os manda empregar em numero igual,
+symetrica e systematicamente dispostos em parelhas alternadas.</p>
+
+<p>O autor da <em>Talitha</em> não adoptou a regra de Castilho mas tem ao seu
+lado, para apoiarem o seu procedimento, as autoridades dos rebeldes Junqueiro,
+Feijó, Luiz de Magalhães, Lopes de Mendonça, Julio Dantas, Eugenio de Castro,
+Antonio Nobre, Gonçalves Crespo, Marcellino de Mesquita, Fernando Caldeira que
+não<span class="pagenum">{185}</span> a observaram, nem se submetteram á lei de
+Corneille e Racine, e, o que é tudo, do proprio Antonio Feliciano de Castilho
+que não adoptou a regra franceza na composição dos alexandrinos
+emparelhados.</p>
+
+<p>Isso em Portugal, porque no Brasil o autor da <em>Talitha</em> encontra
+apoio para o seu procedimento em Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Goulart de
+Andrada, Martins Fontes, Guimarães Passos, Luiz Murat, Machado de Assis,
+Valentim Magalhães, Lucio Mendonça, Oscar Lopes, Pereira da Silva, Emilio
+Menezes, Frota Pessoa, Flexa Ribeiro, Zeferino Brasil e Coelho Netto que não
+consideram a technica franceza como adaptavel ao verso portuguez, se bem que
+discretamente observem a opinião de Castilho, relativamente á proporção das
+rimas agudas e graves.</p>
+
+<p>Ora, a critica indigena, ainda rescendendo aos aromas equivocos da primeira
+infancia, ha de permittir que o autor da <em>Talitha</em> prefira as
+autoridades artisticas de dois hemispherios, acima citadas, ao impertinente
+pedantismo da incompetencia de quem, em materia de autoridade litteraria, não
+chegou ainda se quer á categoria de trintanario do <em>Pegaso</em>, na
+estrebaria de Augias.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>A critica indigena censura a pobreza de rima da <em>Talitha</em>: não tem
+razão.</p>
+
+<p>A <em>Ceia dos Cardeaes</em> é uma obra prima: assim o prégou a critica,
+assim a considera a opinião.</p>
+
+<p>Pois bem; essa joia tem 338 versos; o primeiro acto da <em>Talitha</em>
+compõe-se de 492.</p>
+
+<p>A <em>Ceia dos Cardeaes</em> tem apenas 66 rimas diversas; o primeiro acto
+da <em>Talitha</em> dispõe de 127 rimas differentes: a proporção naquella é de
+5%, nesta é de 25%.<span class="pagenum">{186}</span></p>
+
+<p>Na <em>Ceia dos Cardeaes</em> ha apenas 31 rimas que não foram repetidas; no
+1.° acto da Talitha ha 80.</p>
+
+<p>Na primeira, a obra prima, essa proporção é de 9%, na <em>Talitha</em>, a
+condemnada, a proporção é de 17%. A critica indigena tem cabellos na lingua e
+fel no coração.</p>
+
+<p>A <em>Samaritana</em> é a obra prima de Rostand, assim a julgou a critica
+europea, assim a julga o proprio poeta.</p>
+
+<p>O primeiro acto d'essa joia magestosa tem 808 versos.</p>
+
+<p>Pois bem: entre esses ha 322 repetições, apenas em 17 rimas.</p>
+
+<p>Poder-se-ia fazer o confronto dos tres actos: basta esse que ahi fica para
+demonstrar que a critica nem soube o que disse, nem sabe o que é pobreza ou
+riqueza de rima.</p>
+
+<p>A opulencia de rima póde ser exigida em composições poeticas esparsas, que
+não tenham grande extensão, mas em um poema dramatico essa exigencia da critica
+é despotica, é absurda, principalmente quando os personagens que o movimentam
+são da especie daquelles que figuram no entrecho da <em>Talitha</em>.</p>
+
+<p>Collocar nos labios de <em>Joaquina</em> versos de rima escolhida, apurada,
+sem repetições de termos que andam constantemente na conversa commum,
+substituindo estes por palavras rebuscadas nos diccionarios de rimas, sómente
+para que a critica se extasie deante de uma riqueza phantastica, equivaleria a
+falsear a natureza intima do personagem e fazer de uma santa e simples mulher
+vulgar da aldeia, uma pretenciosa ridicula; a espontaneidade do escriptor
+desappareceria para dar logar ao rebuscamento, o artista seria supplantado pelo
+artifice, o poeta pelo rimador, o sentimento pela paciencia. </p>
+
+<p>A opulencia da rima importaria necessariamente<span
+class="pagenum">{187}</span> na elevação da linguagem e a critica deixa de ser
+logica exigindo por essa fórma o que já condemnára, considerando alcandorada em
+demasia para personagens de aldeia a linguagem que o autor da <em>Talitha</em>
+confiou a cada um d'elles.</p>
+
+<p>Nos acontecimentos vulgares da vida de aldeia as palavras são simples,
+corriqueiras; o vocabulario dos aldeãos é pouco extenso e tradicionalmente
+consagrado: ha phrases peculiares, ha para cada facto da vida, póde-se dizer,
+um termo que não se substitue, um conceito consagrado pelo uso immemorial; o
+mesmo sentimento, traduzido por outros termos, em phrase diversa, não é
+comprehendido.</p>
+
+<p>O eminentissimo critico e brilhante espirito de estheta brasileiro o notavel
+mestre da lingua vernacula, Snr. José Verissimo, doutrina superiormente:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«O grande escriptor em todas as linguas é o que escreve e consegue todos
+ os effeitos da sua arte com o vocabulario corrente, não só do povo&mdash;que é
+ realmente pobre&mdash;mas da litteratura do seu tempo.»</p>
+
+ <p>Citação de Elysio de Carvalho no livro&mdash;<em>As modernas correntes
+ estheticas</em>, pag. 27.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Em taes condições, se o dialogo, apezar de ser em verso, deve reflectir,
+quanto possivel, as condições normaes da vida e do personagem, attribuir a este
+a expressão dos seus affectos, das suas dôres, das suas alegrias, dos seus
+desejos ou das suas esperanças, por meio de palavras em rima opulenta, será
+desnaturar o personagem, será mentir á realidade, será phantasiar um typo que a
+natureza local reproduzida no theatro, não creou na vida real.</p>
+
+<p>Comprehende-se essa exigencia na alta tragedia historica ou sacra, ou ainda
+nas phantasias mythologicas: alli, sim, a linguagem póde e deve ser
+alcandorada<span class="pagenum">{188}</span> sem inverosimilhança, os
+personagens vem distinguidos pelo prestigio da historia, da Biblia, do
+sobrenatural, que substituem toda a realidade objectiva.</p>
+
+<p>A admiração, a fé e a idolatria pódem crear os maiores absurdos: Esopo,
+Phedro, Lafontaine fizeram falar os animaes em verso sublime, limado, terso,
+brilhante, sonóro, de rima opulentissima.</p>
+
+<p>Zola escreveu:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«C'est, je le répète, le seul cadre ou j'admets, au theatre, le dedain du
+ vrai. On est là en pleine convention, en pleine fantaisie, et le charme est
+ d'y mentir, d'y échapper a toutes les realités de ce bas monde.</p>
+
+ <p>....................................</p>
+
+ <p>«Jamais les auteurs ne se trouvent acculés par la vraisemblance et la
+ logique: ils peuvent aller dans tous les sens, aussi loin qu'ils veulent,
+ certains de ne se heurter contre aucune muraille.</p>
+
+ <p>....................................</p>
+
+ <p>«La comédie et le drame, au contraire, sont tenus à être
+ vraisemblables.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Zola.</span> <em>Le Naturalisme au théâtre</em>,
+ pag. 357, 358.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Mas João de Deus, que foi em Portugal «a mais completa encarnação do lyrico
+apaixonado, sem entraves positivos, sem preoccupações estylisticas visando á
+erudição», que foi «sentimento singelo, o amor, esse amor portuguezissimo, em
+palavras singelas, versos de medida simples e estylo simples», João de Deus que
+cantou a simpleza rural da sua terra, a alma dôce do povo e dos campos, esse
+«que é o lyrico mais portuguez» como considera Fidelino Figueiredo, «um grande
+scismador e um grande artista, que não tem artificios na sua poesia, singela
+como todos os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de
+creança, suave e consoladora como uma<span class="pagenum">{189}</span>
+parábola de Christo, serena e luminosa como um dialogo de Platão», no dizer
+profundo de Alexandre da Conceição, João de Deus não se preoccupou com a
+opulencia da rima, nem mesmo quando escreveu para o theatro aquella encantadora
+phantasia em um acto <em>Horacio e Lydia</em>, romana pelo assumpto, grega pela
+technica.</p>
+
+<p>Ora, a <em>Talitha</em> é composta de 1873 versos de varios metros,
+predominando o alexandrino.</p>
+
+<p>Para demonstrar opulencia de rima, o obscuro autor da <em>Talitha</em>
+reservou as suas modestas poesias esparsas, entre as quaes figura a <em>Ode ás
+Arvores</em>, dedicada a Coelho Netto, ode essa que se compõe de 312
+alexandrinos, e não tem sequer uma rima repetida, além da grande abundancia de
+vocabulos cuja difficuldade de rima é conhecida.</p>
+
+<p>Um dos zoilos da Talitha, com o intuito de provar que os tres actos d'esse
+evangelho são indigentes de rima, nota que no 2.° acto a palavra enferma rima
+com erma e no 3.° acto tambem enfermo rima com ermo.</p>
+
+<p>E o zoilo exclama:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«Para <em>Enfermo</em> o poeta encontrou apenas a rima <em>ermo</em>, uma
+ rima pobrissima.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>Mais pobre de espirito é o critico.</p>
+
+<p>A <em>Talitha</em> compõe-se de 1873 versos; quatro vezes apenas o
+maldizente encontrou a rima em <em>erma</em>, ainda assim uma vez no masculino
+e outra no feminino, e fulmina a censura:</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«o poeta só encontrou a rima <em>ermo</em> para <em>enfermo</em>, rima
+ pobrissima.»</p>
+</blockquote>
+
+<p>Ignorante, perverso, futil, ou lorpa.</p>
+
+<p>Pois bem, o autor da <em>Talitha</em> consultou os diccionarios<span
+class="pagenum">{190}</span> de rima de Castilho e de Alencar, duas autoridades
+na materia, e para <em>enfermo</em> apenas encontrou <em>ermo</em>,
+<em>termo</em> e <em>estafermo</em>. As duas primeiras foram applicadas, uma no
+segundo, outra no terceiro acto.</p>
+
+<p>Quanto á terceira&mdash;<em>estafermo</em>&mdash;o poeta da <em>Talitha</em> só a
+poderia utilizar se fizesse referencia ao critico.</p>
+
+<p>Para agradar á sua opinião e corresponder á sua exigencia, o zoilo pretende
+que o autor da <em>Talitha</em> deveria forgicar palavras, neologismos, sómente
+com o fim de não repetir a rima!</p>
+
+<p>Mas se essa rima é pobrissima, que culpa tem o autor da <em>Talitha</em>, se
+a lingua apenas lhe faculta, além dessa, mais duas, uma das quaes pertencente
+ao calão?</p>
+
+<p>Entretanto o critico mentiu: no segundo acto a rima de <em>enferma</em> é
+<em>erma</em>; no terceiro acto á palavra <em>enfermo</em> foi dada a
+rima&mdash;<em>termo</em>.</p>
+
+<div style="font-size: small; margin-left: 10%;">
+2.º acto, pag. 64:<br>
+<br>
+«seria bem melhor que cuidasse da enferma,<br>
+que vive ali no escuro abandonada e erma»<br>
+<br>
+3.º acto, pag. 89:<br>
+<br>
+«de acudir pressuroso ao leito dum enfermo ardendo em alta febre e bem proximo
+ao termo<br>
+d'uma longa existencia...»</div>
+
+<p>Eis ahi ao que se reduz a censura do zoilo: á mentira.</p>
+
+<p style="text-align:center;">*</p>
+
+<p>Por ultimo a critica indigena censura o autor da <em>Talitha</em> por ter
+escripto o drama em tres actos afim de apresentar, desnecessariamente, no
+terceiro, a <em>marqueza</em>, mãe da heroina.<span
+class="pagenum">{191}</span></p>
+
+<p>E a critica, em ar de pilheria, pede um quarto acto para que appareça tambem
+o Pae de <em>Talitha</em>.</p>
+
+<p>O autor não teria duvida em satisfazer o desejo da critica, escrevendo mais
+dois actos para apresentação da sogra de <em>Talitha</em>, se tambem a critica
+de outra tempera, a critica elevada e honesta, não houvesse solicitado a
+redacção dos tres actos simplesmente aos dois primeiros para que esse obscuro
+trabalho</p>
+
+<blockquote>
+ <p>«seja legado pelo autor ao seu paiz, como um thesouro, refundindo-a,
+ cortando as scenas a mais, deixando-a nos dois actos primeiros mais o milagre
+ e a oração; assim <em>Talitha</em> será um primor litterario...»</p>
+
+ <p>Critica da <em>Tribuna do Rio</em>.</p>
+
+ <p>&nbsp;</p>
+
+ <p>«O drama é magnifico. E porque não dizer o melhor drama que se tem
+ escripto no Brazil?»</p>
+
+ <p>Critica da <em>Gazeta de Noticias</em>, do Rio.</p>
+
+ <p>&nbsp;</p>
+
+ <p>«Os tres actos do Sr. Pinto da Rocha dão a quem os ouviu a satisfação rara
+ e salutar que só produzem as obras de arte, erguidas severamente com a
+ segurança de que só é capaz a sinceridade.»</p>
+
+ <p>Critica do <em>Paiz</em>, do Rio.</p>
+
+ <p>&nbsp;</p>
+
+ <p>«...mas os bons versos, as rimas felizes e inesperadas abundam na peça,
+ que fica sendo um dos mais bellos poemas da nossa litteratura.</p>
+
+ <p>«... pois nao ha muito disso por toda essa America afóra.»</p>
+
+ <p><span class="small-caps">Arthur Azevedo</span>&mdash;Critica da
+ <em>Noticia</em>, do Rio.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Á critica indigena, rasteiramente inspirada pelo odio e pela paixão
+politica, o autor da <em>Talitha</em> contrapõe a critica da imprensa do
+Rio.</p>
+
+<p>Será vaidosa a citação d'essas opiniões, mas o obscuro autor da
+<em>Talitha</em> tem orgulho do seu trabalho<span class="pagenum">{192}</span>
+e esse orgulho é como a soberbia das mães que beijam os filhinhos aleijados e
+loucos, tendo-os no coração como as imagens incomparaveis da suprema
+formosura.</p>
+
+<p>A <em>Talitha</em> não será brasileira porque o assumpto e os personagens
+são portuguezes; não será portugueza porque o seu autor não teve a felicidade
+de nascer em Portugal, mas...</p>
+
+<p>Mas a <em>Talitha</em> é mais que portugueza, mais que brazileira, é
+humana.</p>
+
+<p>Mas a <em>Talitha</em> é minha... É o producto do meu espirito, do meu
+trabalho, é filha da minha mocidade...</p>
+
+<p>É modesta, é pauperrima, e futil, mas é minha.</p>
+
+<p>E a critica indigena dos zoilos que produziu? Nada, absolutamente nada; póde
+viver noventa annos, como Sárah, não haverá Abrahão na terra que lhe arranque
+um Isaac das entranhas...</p>
+
+<p>Os zoilos são admiraveis, sabem tudo e não fazem cousa alguma.</p>
+
+<p>Conhecem perfeitamente a patria, sob todos os aspectos, desde a fecundidade
+uberrima da terra aos esplendores astraes do céo; desde a constituição intima
+da familia á grandeza fulgurante da historia.</p>
+
+<p>Os primores da paysagem, a belleza e a simplicidade dos costumes, os
+encantos da musica popular e da poesia anonyma, a bravura dos homens com o typo
+legendario do gaúcho, a formosura das mulheres inspirando os altos feitos
+heroicos, o mysterio das florestas que dá o aspecto profundo á alma do povo, a
+vastidão das campinas que modela a franqueza limpida das consciencias, o
+desdobrar ondulante das cochilhas que imprime ao typo riograndense a epopeia da
+nossa historia, os vultos homericos dos nossos guerreiros, a envergadura dos
+nossos estadistas, a intelligencia dos nossos escriptores, a obra dos nossos
+politicos, tudo isso a critica dos zoilos conhece... <em>à merveille</em>.<span
+class="pagenum">{193}</span></p>
+
+<p>Sabe ella que o verso está banido do theatro moderno e só é admittido nos
+assumptos historicos ou nas phantasias caprichosas dos sonhos e devaneios
+litterarios; sabe ella que os alexandrinos devem ser emparelhados á maneira de
+Corneille e Racine, alternando-se agudos e graves, na symetria impeccavel de
+parallelas geometricamente exactas; sabe ella que o rythmo do verso não deve
+ser apenas o junqueireano para evitar a monotonia: sabe ella que a rima deve
+ser opulenta: sabe que no theatro moderno a prosa supplanta o verso, porque se
+presta melhor ás exigencias do estudo da psychologia dos personagens; que a
+escola romantica foi batida pelo naturalismo; que hoje os exemplos a seguir não
+são os d'Ennery, os Augier, os Scribe, os Labiche, os Dumas, os Meilhac: que os
+modelos acceitaveis são Suderman, Ibsen, Hauptmann Bjornsen; tudo isso a
+critica dos zoilos sabe perfeitamente.</p>
+
+<p>Além disso a critica tem talento, tem erudição, tem admiradores, tem
+bibliothecas, tem a vida garantida e facil pela munificencia do thesouro
+publico, tem o apoio da sociedade, não sabe o que seja a amargura da lucta pela
+existencia...</p>
+
+<p>Entretanto as horas passam, os dias correm, os mezes flúem, os annos se
+succedem e a critica deixa em abandono todo esse material soberbo e magestoso,
+esquece todos esses elementos de incomparavel riqueza, e não produz
+absolutamente nada.</p>
+
+<p>Atravessa a existencia, como um janota futil que vive preoccupado com a
+coloração garrida das gravatas, com o brilho frio dos collarinhos, com o
+figurino do fato, empanturrando-se da leitura <em>à la diable</em>, maldizendo
+do tudo e de todos e vivendo de um usofructo que a sociedade constituiu pelo
+trabalho accumulado exactamente d'aquelles que a critica dos zoilos alveja,
+fere, offende e babuja.<span class="pagenum">{194}</span></p>
+
+<p>Vive para gozar e maldizer.</p>
+
+<p>A critica indigena dos zoilos é como o Sahára: esterilidade completa,
+beduinos e camellos.</p>
+
+<p>Á caravana dos zoilos, o deserto e a receita de Ezequiel.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;">Pinto da Rocha</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="catalogo">
+<p style="text-align:center;">Livraria Chardron</p>
+
+<p style="text-align:center;">De LELLO &amp; IRMÃO</p>
+
+<p style="text-align:center;">RUA DAS CARMELITAS, 144&mdash;PORTO</p>
+
+<table border="1" align="center" summary="Obras publicadas">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <th colspan="2">GARCIA REDONDO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Salada de fructas</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Atravez da Europa</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Cara alegre</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A mulher&mdash;manias e cacoetas</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">MANOEL ARÃO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Transfiguração, 1 vol.</td>
+ <td>1$000</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">COELHO NETTO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Esphynge</td>
+ <td>600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Sertão</td>
+ <td>600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Agua de Juventa</td>
+ <td>700</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A Bico de penna</td>
+ <td>700</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Romanceiro</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Theatro</td>
+ <td>400</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Jardim das Oliveiras</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Quebranto (theatro), 1 vol.</td>
+ <td>800</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Fabulario</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Miragem, romance, 1 vol.</td>
+ <td>600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Apologos</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Fé</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Theatro, 1.º vol.</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Mysterios do Natal</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">JOÃO GRAVE</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Os famintos</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A eterna mentira</td>
+ <td>600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>O ultimo fauno</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>O Passado</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">SHAKESPEARE</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Sonho d'uma noite de S. João, 1 vol.</td>
+ <td>600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Rei Lear, 1 vol.</td>
+ <td>400</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Romeu e Julieta, 1 vol.</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Hamlet </td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Othello</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">OSCAR LOPES</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Conferencias, 1 vol.</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">MAYER GARÇÃO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Excelsior</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">CARMEN DOLORES</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Ao esvoaçar da ideia</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Alma complexa</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">IHERING</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Lucta pelo direito</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">THOMAZ LOPES</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Paysagens d'Hespanha</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">TAVARES BASTOS</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Instituições juridicas na Republica</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">JOÃO DO RIO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Cinematographo</td>
+ <td>700</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Frivola-City</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">BENTO CARQUEJA</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>O Capitalismo Moderno e suas Origens em Portugal, 1 vol. broch.</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>O Futuro de Portugal, 1 volume</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">EUCLYDES DA CUNHA</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Á margem da historia, 1 volume</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">SYLVIO ROMERO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Discursos, 1 vol.</td>
+ <td>600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Martins Penna, 1 vol.</td>
+ <td>400</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>America latina, 1 vol.</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Provocações e debates. 1 v.</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">LUIZ MURAT</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Ondas, 1 vol.</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">VICENTE DE CARVALHO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Versos da Mocidade</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Poemas e Canções</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">THOMAZ DA FONSECA</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Os Desherdados (versos)</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">TUDE DE SOUZA</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A Serra do Gerez, 1 vol.</td>
+ <td>500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">MANOEL DA SILVA GAYO</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Torturados, romance</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th colspan="2">ALCIDES MAIA</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Ruinas</td>
+ <td>no prélo</td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p style="text-align:center;">Envia-se gratis o CATALOGO GERAL a quem o
+requisitar</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Talitha, by Pinto da Rocha
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK TALITHA ***
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+Produced by Pedro Saborano
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+subject to the trademark license, especially commercial
+redistribution.
+
+
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+
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+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
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+1.E.9.
+
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+
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+
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+Gutenberg-tm License.
+
+1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
+compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
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+"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
+posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
+you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
+copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
+request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
+form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
+License as specified in paragraph 1.E.1.
+
+1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
+performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
+unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
+
+1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
+access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
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+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
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+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
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+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
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+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
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+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
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+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
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+
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+ Chief Executive and Director
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+
+
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+Literary Archive Foundation
+
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+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
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+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
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+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
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+
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+
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+concept of a library of electronic works that could be freely shared
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+
+
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