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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Talitha + evangelho em tres actos + +Author: Pinto da Rocha + +Release Date: April 29, 2009 [EBook #28639] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK TALITHA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + + Pinto da Rocha + + TALITHA + + EVANGELHO EM TRES ACTOS + + Segunda Edição + + + + + LIVRARIA CHARDRON + DE LELLO & IRMÃO + Carmelitas, 144-Porto + 1909 + + + + + TALITHA + + + + + Pinto da Rocha + + TALITHA + + EVANGELHO EM TRES ACTOS + + Segunda Edição + + + + + LIVRARIA CHARDRON + DE LELLO & IRMÃO + Carmelitas, 144-Porto + 1909 + + + + +O _accordo_ assignado no Rio de Janeiro, em 9 de Setembro de 1889, entre +o Brazil e Portugal, assegurou o direito de propriedade literaria e +artistica em ambos os paizes. + + +A presente edição está devidamente registada nas _Bibliothecas +Nacionaes_, de Lisboa e Rio de Janeiro. + +Imprensa Moderna, de Manoel Lello +R. da Rainha D. Amelia, 61--PORTO +Grande premio na Exposição do Rio de Janeiro de 1908 + + + + +PERSONAGENS + + TALITHA, céga 18 annos + JOÃO FULGENCIO, cura da aldeia 80 " + DR. RUY DE ORNELLAS, medico 25 " + JOAQUINA, irmã do cura 65 " + MARQUEZA DE RILMA 50 " + Um escudeiro--Camponezas--Lavradores + +A acção passa-se em uma aldeia da Provincia de Traz-os-Montes, Portugal + +ACTUALIDADE + + + + +INTERPRETAÇÃO + +NO RIO DE JANEIRO EM 1906 + + Talitha Maria Falcão + Joaquina Jesuina Saraiva + Marqueza de Rilma Barbara Wolckart + João Fulgencio Chaby Pinheiro + Ruy de Ornellas Henrique Alves + +NO RIO GRANDE DO SUL EM 1907 + + Talitha Maria Falcão + Joaquina Maria Pinheiro + Marqueza de Rilma Olivia de Almeida + João Fulgencio Chaby Pinheiro + Ruy de Ornellas João Lopes + +A _Talitha_ subiu á scena, pela primeira vez, no Theatro Apollo, do Rio +de Janeiro, em Agosto de 1906, na festa artistica da eximia actriz Maria +Falcão. + + + + + E tomando a mão da menina disse-lhe: + --Talitha cumi:--Filhinha levanta-te. + + _Novo Testamento._ S. Marcos, V. 41. + + + + +PRIMEIRO ACTO + +Jardim, na residencia do Cura.--Á direita, um banco de pedra junto a um +poço: á esquerda, frontaria da casa. Grade ao fundo, com portão.--Vista +de estrada e campo. + + +SCENA I + +Joaquina e Ruy + +Joaquina + + Louvado seja Deus! Como está bello e forte! + +Ruy + + É verdade, Joaquina, o clima aqui da terra + encheu-me novamente o coração de alento. + Posso dizer que entrei neste bondoso lar + vigiado, sem dó, pelos olhos da morte. + E agora, a luz do Sol, os perfumes da serra, + as aguas desta fonte, o sadio alimento, + o seu cuidado santo, amigo e tutelar, + fizeram-me robusto. + +Joaquina + + E Deus não lhe fez nada? + +Ruy + + Foi elle quem salvou a minha mocidade, + porque a divina mão que fez os céos e os montes, + que deu flores á terra e deu frescura ás fontes, + que faz vibrar a luz e a voz da passarada, + que impelle a nuvem branca em plena immensidade, + um dia vos creou as almas caridosas + que vivem nesta casa, humildes e serenas, + felizes com o Bem, suaves como as rosas, + mais simples do que o trigo, a neve e as açucenas! + +Joaquina + + Então, menino, crê tambem que Deus existe?! + +Ruy + + De certo, minha amiga. + +Joaquina + + E não é um hereje, + dessa raça maldita e negra que desmente + as obras do Senhor? + +Ruy + + Ingenua creatura! + É tão alegre a crença e não crêr é tão triste, + que mesmo sem querer o coração da gente + acredita num Deus que todo o mundo rege, + num Pae que assim te deu alma simples e pura! + Faz tanto bem, Joaquina, acreditar em Deus + e adormecer á noite abrindo a consciencia + aos beijos do luar, sorrir de madrugada + á frescura que vem do azul ethereo e vasto, + que o nosso olhar ascende ás amplidões dos céos + sem esforço nenhum, como a espiral da essencia + que se evola da flôr, se a abelha delicada + lhe poisa na corolla o vôo leve e casto! + +Joaquina + + Bemdito seja Deus! Não póde imaginar + como eu fico contente ouvindo assim fallar!... + +Ruy + + Mas que idéa fazia então de mim? Julgava + talvez que eu fosse atheu? + +Joaquina, _benzendo-se_ + + Deus me perdôe... pensava! + +Ruy + + Como poude a sua alma angelica e tão boa + fazer-me, sem motivo, essa enorme injustiça? + +Joaquina + + Ah! mas não foi por mal, nem o pensei á tôa: + eu nunca o vi rezar, eu nunca o vi na missa... + E a gente vê só cara e não vê corações... + +Ruy + + E se o visse, Joaquina!... + +Joaquina + + E que é que me servia + o ver-lhe o coração? + +Ruy + + Nada, é certo. Entretanto + conheceria bem as minhas intenções, + a esperança que faz brotar, em cada dia + que passa, um pensamento alegre, puro e santo... + +Joaquina, _interrompendo_ + + É, mas diz o rifão que está o inferno cheio + de boas intenções!... + +Ruy + + Tem razão; mas não minto + se lhe disser tambem, lealmente, o que sinto: + ás vezes mais parece um verdadeiro inferno + este peito infeliz... + +Joaquina, _benzendo-se_ + + Abrenuncio, menino!... + Mas que blasphemia a sua e que peccado feio!... + Um homem que acredita em Deus, bondoso e eterno, + em Deus Nosso Senhor, não diz tal desatino!... + Virgem Maria! Credo! + +Ruy + + Alma boa de santa!... + A tua vida inteira adormeceu. A aurora + já para ti não tem aquelle brilho vivo + que a primavera, em luz, alastra pelos campos... + Tudo se transformou em outra vida; agora + a fonte já soluça, a brisa já não canta; + aos teus olhos a lua é d'um fulgor esquivo, + o sol não tem calor, o céo já não é glastro, + as estrellas febris parecem pirilampos; + trazes o teu olhar constantemente a rastro; + sómente a fé te anima; é por isso que extranhas + o inferno abrasador que muita vez domina + a minha mocidade. + +Joaquina, _com sorriso_ + + Isso me bacoreja + algum amor perdido ahi por essas eiras... + +Ruy + + É possivel, quem sabe? Os ares das montanhas + tem caprichos assim, póde bem ser, Joaquina! + +Joaquina, _cariciosa_ + + E diga-me, que olhar é esse que negreja + a sua vida alegre? Ha tantas feiticeiras!... + +Ruy, _enleiado_ + + Que olhar? + +Joaquina, _interrompendo_ + + Mas é segredo? + +Ruy + + É, por ora é segredo... + +Joaquina + + Ah! não confia em mim?! bem sei, bem sei, tem medo + que eu descubra o mysterio, a princeza encantada + que assim lhe traz a vida em tantas amarguras... + +Ruy + + Não é mysterio, não. É... cousa complicada!... + +Joaquina + + Faz muito bem zelar a flôr dos seus amores; + não os conte a ninguem; se acaso as desventuras + lhe roubarem o somno agarre-se com Deus... + +_tomando-lhe a mão e fallando-lhe ao ouvido_ + + Reze constantemente á Senhora das Dôres. + Acceite este rosario e tenha-o por bordão. + É bemaventurado aquelle que padece, + porque é delle, menino, o reino azul dos céos... + E Deus a quem promette estende sempre o pão; + reze e será feliz... Essa alma bem merece... + +Ruy + + Santa velhinha, santa... + +Joaquina, _tapando-lhe a bocca_ + + E nem um ai, silencio... + Olhe quem vem ali... + +Ruy, _voltando-se_ + + O Padre João Fulgencio + e Talitha; meu Deus!... Pobre, infeliz Talitha!... + +Joaquina, _a Ruy_ + + Parece que ficou um tanto atrapalhado... + +Ruy, _encobrindo a verdade_ + + Sempre que a vejo, assim tão cheia de bondade e + céga... + +Joaquina + + Então, que sente?... + +Ruy + + Uma dôr inaudita, + que reveste de luto as minhas alegrias: + + Ha tanta luz espalhada + na concha astral dos espaços! + E os olhos della tão baços! + E a fronte tão macerada! + + +SCENA II + +Os mesmos, Padre João e Talitha + +_Talitha vem apoiada ao braço de padre João_ + +Padre + + Pois Deus Nosso Senhor nos dê muitos bons dias. + +_assenta Talitha: a Ruy, apertando-lhe a mão_ + + Como passou a noute? + +Ruy + + Assim; mais descançado... + Sonhando... E o Senhor Cura?... + +Padre + + Eu? Ah! na minha idade + já se não dorme; eu passo a noute toda em claro, + de rosario na mão, pedindo a Deus por nós! + E quando surge o dia e mal o Sol desponta, + dando o braço a Talitha, encaminho-me á Egreja. + +Talitha + + Diz a missa que ou ouço... + +Padre + + E é raro, muito raro, + voltarmos ella e eu, da Egreja a casa, sós. + Ás vezes vem comnosco esse infeliz sargento + que arrasta por ahi o longo soffrimento, + velho e cego tambem, e eu, mortiça candeia, + a conduzir os dois pelas ruas da aldeia! + +Talitha + + Mas o senhor doutor, por mim nunca dei conta, + nem uma vez, sequer, nos acompanhou! Veja! + No emtanto está comnosco ha sete mezes, não? + +Joaquina + + Isso mesmo eu já disse... + +Ruy + + Eu dei a explicação... + +Talitha + + E poder-se-á saber? Não é curiosidade? + +Padre + + Talvez seja, talvez... + +Ruy + + Não é! + +Talitha + + Então ouçamos!... + +Ruy + + Eu rezo no silencio o santo sacrificio, + no fundo de minh'alma elevo o meu altar, + sob o docel azul das minhas esperanças!... + +Padre + + E eu sem conhecer mais essa novidade!... + +Talitha + + Qual? + +Padre + + Esta que o Doutor nos deu, mas aprendamos... + +Ruy + + Padre não é sómente aquelle que a rezar + esgota uma existencia ao peso do cilicio + e vae pelas manhans, feliz como as creanças, + curvar humildemente a fronte e a consciencia, + na sombra da capella, aos pés do Redemptor... + +Talitha + + Mas ha d'outros, então? + +Padre + + Eu não conheço, filha! + +Ruy + + Sacerdote é tambem aquelle que tem culto + ao qual offereceu toda a sua existencia. + Padre, quem se dedica um dia com fervor + a amar alguem na terra a cujos pés se humilha, + tambem é sacerdote... + +Padre + + E eu, sacerdote, exulto + ouvindo do seu labio esta expressão severa. + +Joaquina, _que tem guardado silencio, enlevada pelas palavras de Ruy_ + + Bemdito seja Deus! menino, quem me dera + conhecer a mulher que tem um filho assim... + +Talitha + + Só eu não posso vêl-o!... + +Ruy, _entre alegre e enleado_ + + Obrigado, Talitha! + +Talitha + + Não tem que agradecer, disse-o sinceramente! + Que póde desejar mais uma céga, diga?... + +Padre + + Mas conforma-te, filha, espera que o Senhor, + ouvindo-me a oração, tenha pena de mim + e acuda com remedio ao mal dessa desdita! + +Ruy + + Como eu fôra feliz... + +Joaquina + + E eu seria contente!... + +Ruy + + Se pudesse voltar, ó minha boa amiga, + aos seus olhos de céga o perdido fulgor!... + +Talitha + + Nunca mais, nunca mais... + +Padre + + Porque é que te condemnas + se toda a nossa vida é uma esperança apenas?... + +Talitha + + Se é toda de esperanças esta vida, + já me fugiu aquella que voava + bem junto do meu seio e que roçava + sobre a minh'alma a aza foragida. + + Nem sei onde ella vae, talvez perdida + nao volte a mim por não morrer escrava + na escuridão da noite immensa e cava + dos meus olhos sem luz e sem guarida... + + Nunca mais fulgirás, dôce promessa, + na minha treva densa e prematura, + como o branco luar em noite espessa. + + Se vive, o olhar dos cégos não fulgura, + dorme na sombra e de sonhar não cessa + na tristeza sem fim da noite escura! + +Ruy + + Não descreia, Talitha, as suas illusões + não fugiram, por ora, esparsas na lufada! + Quem foi que lhe roubou a ultima esperança, + que braços sem caricia, ou duras privações + lhe puderam vibrar tão rude punhalada? + Pois bem, toda a minh'alma alegre se abalança + a dizer-lhe, Talitha:--o seu formoso olhar + tão cheio de fulgor, um dia ha de voltar... + +Joaquina + + Só milagre de Deus! + +Padre + + E Deus póde fazel-o: + é Pae de todos nós! + +Talitha, _com desanimo_ + + Tenho rezado tanto! + +Ruy + + Implore mais ainda, espere, tenha crença! + +Talitha + + Tenho pedido muito e tanto me flagello + que banho as orações nas bagas do meu pranto + e aqueço-as ao calor da minha dôr immensa. + A mesma escuridão tremenda me apavora, + nem um raio do luz, nem um vago lampejo; + nunca mais hei de vêr o campo que se inflora + nem do luar terei um luminoso beijo... + +Padre + + A tua redempção ainda não surgiu... + +Joaquina, _pondo as mãos_ + + Eu tenho tanta fé! + +Ruy + + O meu presentimento + não sei o que me diz... + +Talitha + + Que o coração sentiu, + que a sua alma pensou nessa dôce ventura, + eu creio porque sei quanto é nobre e bondoso. + Mas eu creio tambem que o meu cruel tormento + sómente acabará no chão da sepultura, + onde tudo tem fim, embora tenebroso!... + +Padre, _olhando o céo_ + + Perdôa-lhe, Senhor, ella ignora o que diz... + Se tem soffrido tanto esta pobre infeliz!... + +Talitha + + Eu sei bem o que disse; a minha crença é essa. + Ha muito que eu imploro ao céo a protecção + e rezo com fervor á dôce Conceição, + pedindo-lhe, a chorar de dôr, que não esqueça + a minha noite escura e tristemente agreste + como a sombra que faz a copa de um cypreste. + Aos pés do seu altar curvei-me como escrava + e emquanto pela igreja o incenso espiralava, + e as simples orações subiam na espiral, + fechei-me na mudez do meu fervor mental + e fiz uma promessa... + +Ruy, _com interesse_ + + E então qual foi, Talitha? + +Talitha + + Votar a minha vida ao divino serviço, + se um dia terminasse o meu padecimento; + nem peço mais a Deus, é tudo o que cubiço. + +Ruy + + E se tornar a ver? + +Talitha + + Entrarei num convento + a vestir o burel de freira Carmelita. + +Padre, _crente, pondo as mãos_ + + Se Deus te ouvisse, filha! + +Joaquina, _com uncção religiosa_ + + E o Bom Jesus quizesse!... + +Ruy, _com amargura_ + + Se tivera valor a minha humilde prece!... + +Talitha, _curiosa_ + + Se tivera valor, que lhe faria, Ruy? + +Ruy + + Não pediria a Deus esse milagre extremo... + +Talitha + + Porque? + +Ruy + + Porque seria arrancal-a da treva + e lançal-a de novo em mais cruel negrura. + Juntando toda a fé que de minh'alma flúe + eu iria pedir, como um favor supremo, + que as almas alevanta e os corações eleva, + que me guiasse a mão na lucida aventura + de devolver-lhe um dia ao seu olhar perdido + aquelle brilho antigo e aquelle ardor de outr'ora + que faziam inveja ao proprio olhar de Flóra! + +Padre + + E seria capaz? + +Joaquina + + Credo! + +_Sae_ + + +SCENA III + +Padre João, Ruy e Talitha + +Ruy + + E tão convencido + estou de que o Senhor a mão me guiaria + nesse instante feliz, que não hesitaria + um momento sequer... A simples catarata + é facil de operar e em dez dias exactos + Talitha voltaria á luz que o céo desata + e que dá vida á terra, aos fructos e aos regatos!... + Pense, Talitha, pense e permitta que eu faça + esse dôce milagre. + +Talitha + + E eu tornarei a vêr + o presbyterio, a fonte, a madrugada, as aves, + as abelhas sugando o mel dos jasmineiros? + +Ruy + + Os seus olhos verão a luz da eterna graça + no sorriso gracil da alvorada, ao nascer + nas bandas do oriente em nuvens tão suaves, + como um rebanho astral de timidos cordeiros! + +Talitha + + E que mais hei de vêr? + +Ruy + + Que mais? Verá tambem + um velhinho a sorrir com lagrimas na face, + e uma velhinha branca e trémula a chorar, + e ao pé delles, alegre, o olhar de mais alguem, + numa dôce oração tão leve e tão feliz, + como se a propria brisa aqui se demorasse + um momentinho só tambem para rezar! + +Talitha, _alegre_ + + E eu voltarei de novo aos encantos da luz? + E hei de vêr tambem o jardim do mosteiro + onde floresce a fé que a nossa vida arrima, + as rosas enfeitando a Virgem que as anima, + o corpo de Jesus exanime e trigueiro, + entre cirios a arder, deitado sobre a cruz?... + E então assim feliz... + +Ruy, _interrompendo_ + + E então, Talitha, e então? + +Talitha + + Rezarei pelo Ruy, tão bom, tão generoso, + que trouxe ao meu olhar escuro e tormentoso + a esmola angelical d'um lucido clarão! + + +SCENA IV + +Os mesmos e Joaquina + +Joaquina, _entrando_ + + Padre Cura, uma carta. + +Padre + + Uma carta? Mas donde? + +_recebe-a e examina_ + + Hum! e de quem será? + +Talitha + + Joaquina, dê-me o braço... + +_Joaquina dá-lhe o braço. A Ruy_ + + Dr. Ruy, até já. + +_ao cura_ + + Até já, meu Padrinho... + +Ruy, _que se tem conservado triste_ + + Talitha!... + +Talitha, _voltando-se_ + + Meu Senhor!... + +Ruy, _indo a ella_ + + Perdão, Talitha... nada! + +Talitha + + Arrependeu-se, não? E tambem não responde... + Desconfia de mim?... Outro tanto eu não faço + Doutor, a seu respeito; eu bem sei, adivinho... + +Ruy, _com interesse_ + + Que foi que adivinhou? + +Talitha, _com malicia_ + + Uma coisa adorada... + que só tres corações conhecem bem: o seu, + o della, e o Senhor que tudo vê do céo... + +Ruy, _admirado_ + + Della, Talitha, quem? + +Joaquina, _com intenção_ + + Daquella princesinha + d'olhos da côr do céo, vestida de andorinha... + +Talitha + + Ouviu, Doutor, ouviu? + +Ruy + + Juro... + +Talitha, _interrompendo_ + + Não jure falso!... + +_a Joaquina_ + + Vamos, Madrinha, embora: é tempo de almoçar. + +_sahem_ + + +SCENA V + +Padre João e Ruy + +_Desde que recebe a carta, Padre João lê com a maior attenção. Pela sua +face corre toda a expressão de espanto que vae recebendo. Quando sahem +Joaquina e Talitha, o Padre conclue a leitura e fica a meditar. Ao +approximar-se Ruy, suspende-se._ + +Padre + + Esta agora é que foi! + +Ruy + + E que foi, Senhor Cura? + +Padre + + Quem sabe? Póde ser um pequeno precalço, + mas póde ser tambem que venha de mistura + alguma dôr maior. E não posso evitar!... + +Ruy + + O que essa carta diz deixou sua alma afflicta: + um segredo talvez que vive no seu seio?!... + +Padre + + Foi, sim, mas ja não é. Agora só receio + que m'a levem daqui... + +Ruy + + Que a levem? quem? + +Padre + + Talitha... + +Ruy + + E quem a levará deste remanso augusto? + O convento, a promessa?... + +Padre + + Oh! não... + +Ruy + + Não tenha susto! + E quem mais poderá, nesse caso, arrancal-a + do lar em que nasceu? + +Padre + + A Mãe... + +Ruy, _surprehendido_ + + Ah! mas... então... + +Padre, _baixinho_ + + Então... já percebeu?! Ella foi engeitada... + Eis aqui o segredo em que esta vida abraço. + +_baixa a cabeça, scismando_ + +Ruy, _depois de uma pausa_ + + Oh! meiga creatura! + +Padre + + E não poder salval-a!... + +Ruy + + Engeitada!... + +Padre + + Sim, sim. Ao romper da alvorada. + Ha muito tempo já. Inda no céo brilhava + a estrella da manhã; vieram procurar-me; + bateram ao portal com desusado alarme... + Ergui-me e fui abrir; a neve branqueava + os campos e eu pensei que um pobre moribundo, + no momento supremo em que deixava o mundo, + quizesse receber da minha propria mão + o balsamo final da santa extrema-uncção, + e abri desta choupana a porta sempre franca. + Parecia o jardim uma toalha branca. + Era um frio cruel, cortava como fôsse + o gume de uma faca e o fio de uma fouce... + Sahi, olhei em roda e já não vi ninguem. + No céo luzia só a estrella de Bethlem! + Não sei porque a fitei nesse feliz momento. + Um silencio profundo amordaçava o vento; + dormia a natureza um somno indefinido, + vibrou então no espaço um timido vagido... + Estremeci de horror... + +Ruy, _com anciedade_ + + Era a pobre Talitha?! + +Padre + + Approximei-me e vi, aqui junto do banco + um cestinho de verga envolto em panno branco. + Banhou-me o coração uma dôr infinita. + Na tragica mudez da alvorada deserta + tomei nas mãos, tremendo, a delicada offerta + e agasalhei-a ao peito, assim, para aquecel-a + como quem agasalha o corpo de uma estrella + que tombasse do céo... + +Ruy, _com mais anciedade_ + + E esse penhor amigo?!... + +Padre + + A meu lado cresceu e formou-se o thesoiro, + alma rica de luz, feita de amor e d'oiro. + Parece que ao romper daquella madrugada + tão fria, tão cruel, mas tão abençoada, + que eu lembro com saudade e que inda hoje bemdigo, + teve o banho castalio, o baptismo de luz + da mesma estrella exul que baptisou Jesus. + Por isso é que minh'alma agora não sopita + a magua de perdel-a... + +Ruy + + E quem terá coragem + energica e viril de arrebatar Talitha + ao seu amor leal e bom, dôce miragem, + no deserto feliz desta velhice austera? + +Padre + + A mãe que a vem buscar... + +Ruy + + A mãe não tem direito... + A mãe que engeita a filha é peior que uma fera! + +Padre + + Mas é mãe!... + +Ruy + + Sim, será, sem coração no peito. + +Padre + + Engana-se, doutor, a mãe que hoje a reclama, + depois de tanto tempo, é que lhe tem amor... + +Ruy + + Como a engeitou, então? + +Padre + + A fera tambem ama... + Quem sabe o que terá soffrido essa mulher? + Sabe-o sómente o céo, calcule-o quem puder. + E diz-me o coração que vou perdel-a em breve. + +_Erguendo as mãos ao céo_ + + Não me tires, meu Deus, esse gentil penhor! + Repara que já tenho os cabellos de neve, + tão tremulas as mãos, e os labios descorados, + como sonhos que vão batidos e levados + num extremo soluço... O que eu tenho no mundo, + pouco mais é que um ai e o golpe agora é fundo! + +_Enxuga os olhos e sáe_ + + +SCENA VI + +Ruy e Talitha + +_Ruy vê sahir o Padre e fica pensativo, fitando os olhos no chão, +sentado no banco de pedra. Depois de uma pausa, Talitha desce, +tacteando, até junto delle._ + +Talitha + + Padrinho, então não vem? + +Ruy, _sobresaltado_ + + Ah! Talitha... + +Talitha + + Perdão! + Pensei que estava aqui... + +Ruy + + Já se foi... + +Talitha + + Obrigada... + +_Vae retirar-se_ + +Ruy + + Talitha! + +Talitha + + Senhor Ruy! + +Ruy + + O seu bom coração + inda não lhe contou, baixo, muito baixinho, + quasi a tremer de medo e susto, um segredinho, + diga, não lhe contou? + +Talitha, _com muita simplicidade_ + + Que pergunta engraçada! + +Ruy + + E vive então sereno? + +Talitha + + Ah! Sim, tenho certeza! + +Ruy + + É bem feliz, Talitha, a sua singeleza! + Outro tanto, porém, ao meu já não succede + que o sinto palpitar acceleradamente, + como quem vae fallar e o soffrimento impede. + +Talitha + + Eu bem lh'o disse ha pouco... + +Ruy + + Entretanto eu lhe juro... + +Talitha, _interrompendo_ + + Não jure que é peccado a jura de quem sente + que não diz a verdade. É mais bello e mais puro + não negar. + +Ruy + + Tem razão, mas eu não disse, ainda + qual era o juramento... + +Talitha, _ingenua_ + + E qualquer que elle seja... + +Ruy + + Diga, diga o que sente... + +Talitha + + Ha de ser... + +Ruy, _curioso_ + + Ha de ser? + +Talitha + + Não digo... + +Ruy + + Diga, sim, a sua voz bemvinda + ha de me dar a esmola honesta e bemfazeja + que a minh'alma sem luz precisa de viver. + E do seu labio casto apenas um sorriso + vale mais que uma estrella e rasga um paraiso. + +Talitha + + Assim o quer, direi; jamais o seu protesto + póde ser verdadeiro... + +Ruy + + E porque não, Talitha?... + +Talitha + + Não sei, não sei porque. A jura é como o gesto + que abala fortemente, a nossa vida agita, + mas passa e foge... + +Ruy + + Ah! sim, quando falla sómente + o labio, sem fallar tambem o coração... + Ah! de certo que assim o labio sempre mente. + Mas quando o sangue estúa e faz tremer a mão + de quem jura, Talitha, ou quando a fronte em braza, + apenas num momento, empallidece e tomba, + bem como se a roçára a ponta fria da aza + feita de gelo e dôr de alguma extranha pomba, + quando um homem que sempre olhou de frente o sol + tem medo de encarar o olhar de um rouxinol, + e treme até de ouvir-lhe a voz encantadora, + quem sempre ouviu sorrindo a furia rugidora + do vento e dos trovões... + +Talitha, _interrompendo_ + + Então?... + +Ruy + + Assim revela + que é grande, generoso e casto o sentimento + que apenas se traduz e que tão mal se vela + na gaze pueril d'um simples juramento! + +Talitha, _ingenua_ + + Quem foi que o ensinou a fallar assim? + +Ruy, _timido_ + + Digo?... + +Talitha, _ingenua_ + + E porque não? Quem foi?... + +Ruy, _timido_ + + Nem mesmo eu sei, Talitha! + +Talitha, _insistido_ + + Nem sabe onde aprendeu? + +Ruy, _sorrindo_ + + Quer aprender commigo? + +Talitha, _ingenua e triste_ + + Não me quer responder, nem confessa, nem nega... + Se eu pudesse aprender, de que valera á céga + saber fallar assim? + +Ruy, _triste_ + + Á céga? + +Talitha, _simples_ + + E á Carmelita?... + +Ruy, _ancioso_ + + Á Carmelita!... e quem lhe disse que os seus olhos + recuperando a luz, como duas estrellas, + irão illuminar as fragas e os escolhos + das montanhas da Syria, entre as monjas Carmellas? + Quer sepultar-se em vida? + +Talitha + + E não é cemiterio + maior a escuridão deste pavor funereo, + sem vêr o sol que doira as nuvens do poente, + sem vêr a lua assim como um berço dolente + embalando no azul um sonho que não morre, + não vêr duma colmeia o mel que filtra e corre + como um rio de luz nascendo num enxame, + sentir e adivinhar a suprema belleza + da madrugada em flôr, das noites constelladas, + dos mares e do céo, de toda a natureza, + ter olhos e não vêr, inda haverá quem chame + vida a tal vida? Não! Mais negras, mais cerradas + do que esta noite immensa e triste, sem estrellas, + não póde ser, de certo, a solidão das cellas, + e o sol que tudo aquece, aquecerá de leve + a macerada fronte á monja que não teve + nem um seio de mãe que um dia a amamentasse, + nem a luz d'um olhar na pallidez da face, + e nem um coração... + +Ruy + + Talitha! + +Talitha, _ingenua_ + + Meu doutor! + +Ruy, _com intenção_ + + Um coração? + +Talitha, _ingenua_ + + Qual foi? + +Ruy, _tomando-lhe a mão_ + + O meu... + +Talitha, _comprehendendo, envergonhada_ + + O seu? + +_Retira a mão_ + +Ruy, _enleiado_ + + Perdoe. + +_Pausa prolongada_ + +Talitha, _implorando_ + + Que mal lhe fiz? + +Ruy + + Rasgou-me o coração, Talitha; + e pensará, talvez, que não me fere a dôr + de vêl-o assim rasgar? + +Talitha, _humilde, implorando_ + + Mas creia, Ruy, que foi + sem que eu desse por isso. E se o mal está feito + seja agora gentil e não me rasgue o peito. + Esqueça a minha falta, esqueça esta maldita, + não se lembre da céga e deixe-a definhar + na torva escuridão desta noite polar... + +Ruy + + E se eu não conseguir tirar do pensamento + o seu casto perfil, celeste e macilento, + se a minh'alma quizer viver escravisada + unindo o meu destino á corrente doirada + que me prende, sorrindo, ao seu cruel martyrio, + se o meu olhar prefere esse apagado cirio + dos seus olhos de céga á lucida manhan + do amor sentimental de alguma castellan, + como esquecel-a então? + +_Joaquina apparece ao fundo_ + +Talitha, _triste_ + + Não creio... + +Ruy + + Mas porque? + Já tão cedo a sua alma angelica descrê + da minha que, arrastada á fimbria azul da sua, + por toda a parte a segue e a seu lado fluctua? + Não recorda, Talitha, o dia amargurado + em que eu entrei aqui perdido e quasi morto? + Não se lembra da noite em que eu fui condemnado? + Não se lembra talvez das horas de conforto + que os seus olhos sem luz e a sua bocca em flôr + me trouxeram a rir, como um remedio santo + da minha vida enferma á cruciante dôr? + Não recorda talvez que esse supremo encanto, + essa graça divina, aligera e bemdita + a vida me salvou? + +Talitha + + Não creio... + +Ruy, _curioso_ + + É tão cruel! + Porque razão não crê, a minha alma fiel + simplesmente traduz o que a sua entendeu? + +Talitha, _com intenção_ + + Só porque a sua mão na minha não tremeu. + +Ruy + + Entretanto, Talitha, eu amo-a... + +Talitha, _tremula_ + + Ruy!... + +Ruy, _apertando-lhe a cintura_ + + Talitha! + + _Beija-lhe docemente a mão_ + +Talitha + + Ah! E eu sem poder vêr o labio que me beija!... + Que destino fatal, que desgraçada eu sou! + +Ruy + + Não foi a minha bocca ardente que a beijou. + Foi o dôce rumor da abelha que voeja + sugando á sua mão de branca flôr de liz + o magico licôr, o aroma delicado, + que vem do rosicler florido e perfumado, + no sangue que palpita em vibrações subtis!! + +Talitha + + Mas, Ruy, o seu amor não ve como eu sou pobre!! + +Ruy, _interrompendo_ + + Pobre sou eu que peço a esmola angelical + desse affecto gentil que a vida transfigura. + +Talitha + + Tão pobre que não tenho um Pae que me conforte, + nem caricias de mãe que veja esta tortura... + +Ruy + + A sua alma divina essa tortura encobre... + +Talitha + + Tão pobre que este olhar perdido é glacial + como um floco de neve, e a desfazer fluctúa... + +Ruy + + Os seus olhos sem luz tem mais fulgor que a lua. + +Talitha + + Engeitada ao nascer vivo esperando a morte... + +Ruy + + Alma branca de luz que illuminaste + a ventura das minhas esperanças, + bemdito seja o véo de negras tranças + que sobre a minha vida desnastraste! + + Bemdito seja nesse dôce engaste + das palpebras subtis brancas e mansas + o mesto olhar que cobre de bonanças + a vida deste amor que tu salvaste! + + És para mim a linha do horisonte, + curva do céo, á noite, constellada, + agua lustral de uma sagrada fonte, + + toda a ambição dest'alma allucinada, + e a nuvem que circumda a minha fronte + como um disco de treva avelludada... + +Talitha, _de mãos postas_ + + Meu Deus, e nunca mais, nunca mais hei de vêl-o!... + +Ruy + + Sim, Talitha, verá; o meu maior desvelo + ha de ser o fulgor do seu formoso olhar. + + +SCENA VII + +Os mesmos e Joaquina + +Joaquina, _que tem ouvido tudo, feliz e contente, vem descendo com +lentidão e junto de ambos exclama:_ + + Caia a benção de Deus neste formoso par... + +_Ruy e Talitha, surprehendidos, afastam-se_ + +Ruy, _recuperando a serenidade_ + + Talitha assim o quiz! + +Talitha, _perturbada_ + + A culpa não foi minha... + +Joaquina, _sorrindo e acariciando-a_ + + A culpada fui eu que te deixei sósinha! + +CAE O PANNO + + + + +SEGUNDO ACTO + +Sala de visitas em casa do Cura; tudo muito simples. Janellas e portas. +Um oratorio com lampada. Um pequeno orgam. + + +SCENA I + +Joaquina e Padre João + +_Conversando alegremente_ + +Joaquina + + Graças a Deus, chegou por fim o grande dia... + +Padre + + É verdade, é verdade! irmã, quem nos diria + que a linda pequenita... + +Joaquina + + A formosa engeitada... + +Padre + + Que Deus nos enviou naquella madrugada + inclemente de inverno... + +Joaquina, _interrompendo_ + + E parece-me ainda + vêr a neve a cahir num pó macio e branco + no cestinho de vime, ali, ao pé do banco... + +Padre + + E eu tenho aqui no ouvido aquella prece linda + que rezaste ao Senhor quando ella adormeceu + depois de ter mamado... + +Joaquina + + E, lembras-te, que fina! + Tão branquinha, tão loira, a rir, tão pequenina! + +Padre + + Se me recordo, irmã!?... Pois então, se fui eu + quem primeiro velou, durante o dia inteiro, + o somno encantador da candida innocente!... + Se me recordo, então?!... + +Joaquina, _sorrindo_ + + Mansa como um cordeiro!... + Mas uma coisa eu sei que esqueceste... + +Padre, _curioso_ + + Qual é? + +Joaquina + + Não te digo, adivinha... + +_Pausa prolongada_ + + É do primeiro dente... + +Padre, _alegre_ + + Ó Joaquina! É verdade! O que se fez!... Até + parece que a alegria andava á tentação; + e nós a rir, a rir, a rir perdidamente... + Sempre ha coisas, meu Deus!... + +Joaquina + + A vida é uma illusão, + ligeira como o vento, ás vezes nem se sente, + não é verdade? + +_Pausa_ + + Falla?... + +Padre + + É, de certo, Joaquina. + +Joaquina + + Pois então que mal faz que a gente esteja agora + a rir do que lá vae por essa vida fóra?!... + Pois agora é que é rir, que passou a desgraça, + quando a gente é feliz té na morte acha graça. + +Padre + + Por causa desse dente esteve a pequenina + tres dias por um triz... + +Joaquina, _triste_ + + Bem ás portas da morte... + +Padre + + Valeu-lhe a vela benta... + +Joaquina + + Inda foi uma sorte + eu ter guardado aquella... + +Padre, _rapidamente alegre, interrompendo_ + + Ó! mana, e o baptisado?... + Que festa! E que jantar! Aquelle frango assado, + com rodellas de paio; inda me estão lembrando + aquelle arroz de forno e aquelle vinho brando... + Recordas? + +Joaquina, _com malicia_ + + Bem me lembro, até nesse jantar + o vinho começou a subir e a trepar... + +Padre, _interrompendo, com gravidade_ + + Ó mana... + +Joaquina, _saudosa_ + + E já lá vão uns bons dezeseis annos... + +Padre, _pensativo_ + + Mas como corre o tempo! + +Joaquina, _nostalgica_ + + E como a gente muda!... + +Padre + + A vida não é nada! A magua, os desenganos, + a enfermidade e a dôr fazem a gente velha; + e não ha santo algum no céo que nos acuda! + +Joaquina + + Pois sim, sim, mas depois os filhos vão crescendo + e os paes a cada instante, a rir, vão-se revendo + na luz do seu olhar em que tambem se espelha + o tempo que passou... + +Padre, _interrompendo_ + + Como o tempo é cruel! + E aquelle immenso mal que um dia nos feriu?... + Recordas? Que manhã! Mais amarga que o fel! + +Joaquina, _olhando o céo_ + + Se me lembro, Senhor, quando ella ficou céga, + que só podia andar guiada por alguem!... + Não hei de recordar? Recordo muito bem! + Quanta vez, coitadinha, a chorar me pediu + que lhe fôsse comprar dois olhinhos melhores + para trocar os della... + +Padre, _limpando os olhos_ + + Até se me despega + o coração de dôr!... + +Joaquina + + E nenhum dos doutores + atinou de a curar, nem sequer as promessas + deram com ella a vêr... + +Padre + + Quantas vezes subi + os tres degráos do altar e rezando pedi + ferventemente a Deus, por amor de Jesus, + que lhe tornasse a dar aos seus olhos sem luz + a visão que perdera... + +Joaquina + + E agora tu confessas + que a sorte a perseguiu sem dó nem piedade, + apezar de ella ser um mimo de bondade? + +Padre + + Confesso. Até que Deus mandou a desventura + da sua juventude a alvorada feliz + desse primeiro amor... + +Joaquina + + E se Elle assim o quiz!... + +Padre + + Que seja feita a sua energica vontade, + nos céos como na terra e que um dia a tortura + tenha fim! + +Joaquina + + Pois não teve, afinal?... + +Padre + + Eu não sei... + Dizem vocês que teve e a operação deixou + o melhor resultado... + +Joaquina + + Elle diz que a curou! + O que elle fez não sei, nem mesmo perguntei + mas que ella torne a vêr... + +Padre + + É isso o que deseja + a minh'alma sincera, é vêl-a venturosa! + Entretanto, meu Deus, por que Talitha o seja + é preciso, talvez, que a vara da desgraça + me toque o coração e a fonte caprichosa + das lagrimas estale. A dôr que me ameaça + enche-me de pavor. Tenho um presentimento + que me não abandona um dia, um só momento! + +Joaquina + + Isso não vale nada... + +Padre + + Entretanto eu medito + naquelle casamento. + +Joaquina, _interrompendo_ + + O casamento?... + +Padre + + Sim; + o casamento, sim, que vae arrebatal-a + á nossa pobre vida... Está, porém, escripto, + e Deus que o destinou ha de por fim leval-a + e nunca mais trazel-a aqui, junto de mim. + +Joaquina + + E quem nos diz a nós que essa desconfiança + não seja apenas medo? + +Padre + + O coração, irmã!... + +Joaquina + + Ah! Sim o coração... o coração tambem cança! + Já não regula o teu, nem serve de evangelho, + é coração de padre e padre muito velho... + +Padre + + Pois bem, não servirá, mas inda esta manhã, + por occasião da missa, as lagrimas vertidas + tombaram-me da face ao calix consagrado, + ao recordar, então, que um dia, angustiado, + hei de vêl-a partir! Como fôram sentidas + essas bagas leaes que, em silencio, chorei + e que juntas ao vinho eu mesmo consagrei! + Eu creio em Deus e espero o golpe do destino + como um favor do céo purissimo e divino! + +Joaquina + + Descança, meu irmão! O Ruy é bom rapaz, + tem muito amor á gente, ha de ficar, verás! + Parece alma de santo e só pensa no bem. + +Padre + + Póde ser, póde ser, mas recorda tambem + a promessa que fez a nossa pequenita + e, se ella conseguir outra vez a visão, + lá se nos vae embora a meiga Carmelita... + +Joaquina + + Ah! disso eu não receio; então crês que o convento + tenha força capaz de virar-lhe a razão + o fazel-a esquecer, assim, o casamento? + +Padre + + Mas se não a levar o voto de noviça + ha de a levar o amor que quanto vê cobiça. + De certo a chamará, talvez para bem longe, + a palavra inspirada e convicta do monge + que nos fez o milagre e deu olhos á céga... + É por isso, meu Deus, que est'alma não socega! + + +SCENA II + +Os mesmos e Ruy + +Ruy, _entrando_ + + Bons dias, Senhor Cura. + +_A Joaquina_ + + E a mãe Joaquina, então, + como passou a noute? Aposto que sonharam + muito commigo, sim? + +Padre + + Foi tal qual!... + +Joaquina + + Pois eu, não; + tive mais que fazer, dormi regaladinha + durante a noite inteira... + +Ruy + + E bem conchegadinha? + +Joaquina + + Nem mais!... + +Ruy + + E claro então que nem, sequer, cuidaram + de Talitha... + +Joaquina + + Cuidei, sim senhor... + +Ruy, _prazenteiro_ + + Não entendo... + se dormiu toda a noite... + +Padre, _a rir_ + + É, eu não comprehendo + tambem como se possa, a um tempo só, dormir + e velar!... É bem certo o rifão: mais depressa + se agarra um mentiroso... + +Ruy, concluindo + + Exacto; do que um coxo... + +_Ambos riem muito_ + +Joaquina + + Mas eu é que não sei que tanto tem que rir! + +_A Ruy_ + + Nem é da sua conta + +_ao Padre_ + + e nem da sua! Peça + a Deus Nosso Senhor que dê mais tento aos dois: + +_batendo com um dedo na testa_ + + talvez haja por lá um parafuso frouxo... + +Padre, _com gravidade comica_ + + Ó mana, isso é demais... + +Ruy, _abraçando-a_ + + Não vá subir á serra; + deixemos essa historia a resolver depois + e vamos conversar da luz que se descerra + e que hoje ha de fazer toda a nossa alegria... + +Padre + + Fallava eu nisso mesmo antes da sua entrada. + +Joaquina + + E quer saber, menino, o que elle me dizia?... + +Ruy + + Pois diga, francamente, e não esqueça nada... + +Padre + + Não havia segredo, era tão natural + e tão simples, meu Deus, o que eu dizia ha pouco... + +Joaquina + + Deixe-o fallar, menino, anda que é mesmo um louco; + não diz coisa com coisa, a tudo julga mal + e já pelo peior! + +_Contando pelos dedos_ + + Primeiro, que a pequena + breve nos deixará, que o Ruy vae desposal-a, + e depois, o convento: ora veja se cabe + uma cantiga assim na cabeça d'alguem? + Se ella ha de preferir aquella quarentena + á casa dum marido!... A mim já não abala + essa ideia!... + +_Ao Padre_ + + Você nunca soube, nem sabe + um marido bonito os encantos que tem... + +_A Ruy_ + + Finalmente, receia... + +Padre, _interrompendo_ + + Eis onde pega o carro!... + E sabe Deus, Doutor, que se não fôsse a crença!!... + +Ruy + + Pois bem, Joaquina, diga, em que é que o Cura pensa? + +Joaquina + + Que depois de casada... + +Padre, _interrompendo_ + + Ouça-me então, eu narro: + Receio, é natural, que ella siga o marido, + e venha a solidão morar nesta choupana + onde eu mesmo não sei como tenho vivido! + E que será de mim e que será da mana, + diga-me, Ruy, tambem o que será de nós, + dois velhos, nesta casa, enfermos e tão sós?... + vendo, a cada momento, a lucta nos escolhos + da saudade e da dôr, sem ter no dia extremo + aquella mão leal que feche os nossos olhos?!... + Fique sabendo, Ruy, porque motivo eu tremo... + +Ruy + + Sim, mas não tem razão, pensemos na ventura, + nessa immensa ventura... + +Joaquina, _interrompendo_ + + É mesmo assim que eu penso... + +Ruy + + Que vae sentir Talitha ao vêr a luz do sol, + tantos annos depois de longa noite escura, + envolto o dôce olhar num véo pesado o denso! + Vamos fallar de nós, deste novo arrebol + que nos ha de banhar o coração e a alma, + como um luar de outomno, uma alvorada calma, + quando ella abrir á luz a languida pupilla + dos olhos ideaes, tão doces e tão flavos, + que são como um casal de abelhas que assimilla, + nas flôres dos jardins, o loiro mel dos favos. + Pensemos na expressão que o seu olhar vae ter + quando ella vir ao sol tão brancos os cabellos + do Senhor Cura... + +Padre + + Assim como a neve a descer + sobre a minha cabeça, em flócos e novellos... + +Joaquina, _saudosa_ + + E nós dois a curvar ao peso da nevada, + o corpo já pendido, a procurar a estrada + que váe á eternidade... + +Ruy, _interrompendo alegremente_ + + E já pensou, Joaquina, + no famoso jantar? + +Joaquina + + Não, depois se combina. + Como faltam ainda uns dias ao Natal + vamos tratar primeiro... + +Padre, _atalhando_ + + Isso! do nosso almoço, + porque eu já estou sentindo um enorme alvoroço + cá por dentro. + +_A Ruy_ + + Que diz? + +Ruy + + Tudo quanto fizer + a mãe Joaquina, está bem feito. + +Joaquina, _ironica_ + + Agradecida! + Eu já volto. + +_Sae_ + + +SCENA III + +Padre e Ruy + +Padre + + Então, Ruy, pensou no resultado + que vae ter para nós a sua operação? + +Ruy + + Tenho pensado muito e só me felicito: + parece que se abriu um vasto rosicler, + enchendo de perfume o lar da minha vida; + descanta-me no peito o coração alado + tão viva, tão alegre e limpida canção, + que me parece ouvir palpitar o infinito + e a dôce voz de Deus abençoar-me o nome... + +Padre + + Pois bem, Ruy, entretanto a duvida consome + os meus dias; medito e tenho muito medo + de uma lucta que vae ser travada, em segredo, + no seio de Talitha... + +Ruy + + E então que lucta é essa? + +Padre + + O encontro, á luz do Sol, do amor e da promessa. + Conheço-a muito bem. Alma branca de pérola, + possue alguma coisa assim divina e cérula. + Foi creada por mim, na dôce região + em que repoisa a crença á sombra da oração... + e sei que a pobresinha, um dia, prometteu + professar e vestir o burel carmelita, + se a Virgem lhe voltasse o seu perdido olhar. + A Mãe de Deus ouviu a prece, mas agora + que um novo dia aponta a curva azul do céo, + mostrando-lhe o porvir numa formosa aurora + de amor e de ventura, a angelica Talitha + verá, na sua frente, erguer-se e fluctuar, + constante, pertinaz, energica e severa, + a promessa que fez, a consciencia austera + a exigir-lhe que a cumpra e o seu primeiro amor + a sorrir e a tental-a... + +Ruy + + Esse mesmo receio + tambem me preoccupa. Eu já presinto a dôr + que vae, como um espinho, amargurar-lhe o seio. + Assim a Providencia ás vezes desconhece + o proprio mal que faz e como que se esquece + da victima innocente e nessa lucta enorme + a desgraça feroz que não cança, nem dorme, + de certo vencerá, se nós que a divisamos + ao longe, no horisonte, a deixarmos crescer + tão alto, que domine aquelle pobre ser. + E preciso pensar e vêr bem se afastamos + da sua intelligencia a ideia do convento, + como se afasta a flôr dos impetos do vento. + +Padre + + E quem terá prestigio e força de arrancar + áquella consciencia, a dôce, a delicada, + a candida expressão da promessa sagrada + que ella espontaneamente ergueu junto ao altar? + +Ruy + + Nao desejo arrancar essa illusão formosa + á crença da sua alma... A raiz dessa rosa + não é muito profunda, apenas esbraceja + á flôr do coração, por isso não viceja + ainda como o seio altivo e perfumado + de uma corola aberta!... Um botão delicado + agora principia a despertar á luz... + Dessa casta missão, que moverá Jesus, + sómente, Senhor Cura, a sua phrase austera + se póde encarregar; o prestigio da idade, + a alvura de luar das cans alabastrinas, + a palavra de amor, piedosa e severa, + do seu conselho bom, tão cheio de amizade, + a sua consciencia e as affeições divinas + que avizinham do céo o seu viver de santo, + a fé que o seu olhar inspira a quem o fita, + hão de estancar, por certo, a dôr, fonte do pranto, + nos olhos virginaes da mimosa Talitha. + +Padre + + Sacerdote de Deus que o serve, ha tantos annos, + nas duras provações, na dôr, nos desenganos, + sem nunca haver mentido uma só vez na vida, + tenho medo que a voz de commoção me trema, + que me fuja o valor á hora assim blasphema + de entregar á mentira esta fiel guarida... + +Ruy + + Caridosa mentira, ó culpa dôce e casta + que salva uma esperança e mais um anjo afasta + á amargura cruel de um grande sacrificio! + Responda, Senhor Cura, em sua consciencia, + acredita que Deus condemne uma existencia + purissima de flôr, a tamanho supplicio? + Que peccados terá Talitha a redimir + que precise descer em vida á sepultura, + agora que brilhou a estrella do porvir + aos seus olhos, sem luz, na densa noite escura? + Não mente, Senhor Cura, o labio quando salva: + é aspera a mentira e tem a côr terrena, + ao passo que a sua alma é branca, de açucena, + e a sua phrase é sã, é redemptora, é alva! + Em vez de sacerdote, a confessar a freira, + seja Pae que dirige o coração da filha! + Aquelle olhar sem luz, durante a vida inteira, + desviou-lhe a razão para diversa trilha. + Estenda-lhe o seu braço, ampare-a no caminho, + traga de novo a rola ao palpitar do ninho! + +Padre + + E pensa, Ruy, que um Pae, se tiver consciencia, + deva pedir que a filha afaste da lembrança + a promessa que fez, com tanta segurança, + quando implorava a Deus piedade e clemencia?... + +Ruy + + Meu amigo, nao vê que esse immenso fervor + nascia do tropel da magua e do pavor? + Que, assim feita, a promessa, além de não ser santa, + as almas enlanguece e os corações quebranta? + Não vê que faltou luz áquella intelligencia? + Que aquella alma vergou á estolida exigencia + do desespero intenso e bárbaro, que a ancia + de revêr inda o sol da sua alegre infancia + envolver-lhe a cabeça em nimbos de ventura + a levaram, talvez, nessa hora de tortura, + á extrema tentação de dar a mocidade + por um dia feliz de viva claridade? + Levita, cuja mão diariamente eleva + ao throno do Senhor a hostia consagrada, + levanta esse sacrario á curva constellada, + a flôr que pede sol não viverá na treva!... + +Padre, _depois de uma pausa_ + + Pois seja assim, meu Deus! e tu que o vês perdôa, + porque ha no meu peccado uma intenção tão boa, + tão pura e tão leal, que eu sinto adormecido + o velho coração por nunca haver mentido... + + +SCENA IV + +Os mesmos e Joaquina + +Joaquina, _entrando_ + + Que grandes trapalhões, aqui a badalar + numa palrice enorme e toda a gente á espera + que o doutor mais o cura acabem de fallar... + +Ruy + + Por que ha de ser assim tão má e tão severa? + +Padre + + Rabugice de velha!... + +Joaquina + + É só meu o proveito... + +Ruy, _abraçando-a_ + + Deixe-o fallar, Joaquina, aquillo é tudo inveja... + da sua mocidade!... + +_Riem ambos_ + +Joaquina, _entre risonha e severa_ + + Ai, ai! o malcreado! + Esquece a obrigação e falta-me ao respeito! + E a culpada sou eu! Ora não ha! Pois veja + que emquanto está gastando o seu palavreado, + seria bem melhor que cuidasse da enferma, + que vive ali no escuro abandonada e erma. + +Padre + + E você que fazia? + +Joaquina + + Eu fui tratar do almoço; + não andei de conversa á espera que o maná + nos cahisse do céo. + +Ruy + + Por isso falla grosso! + +Joaquina + + Não é da sua conta, ouviu? + +Ruy, _com a maior gravidade_ + + Ouvi... + +Joaquina + + Pois vá + tratar do seu dever porque não faz favor... + +Padre + + Então que succedeu? + +Joaquina, _amenisando a voz_ + + É que a pobre pequena + já cançou de esperar e quer vêr se o doutor + lhe permitte que venha até aqui á sala. + +Padre + + Que diz, Senhor Doutor? + +Ruy + + Que se Talitha ordena... + +Padre + + Pois faça-se a vontade... + +Joaquina + + Então, eu vou buscal-a... + +_Joaquina sae.--O Padre, ancioso, passeia ao longo da sala; Ruy, +encostado á meza, olha para a porta por onde sahiu Joaquina.--Pausa +cheia de anciedade._ + + +SCENA V + +O mesmos, Joaquina e Talitha + +_Talitha entra de olhos vendados, pelo braço de Joaquina. Ruy e Padre +vão ao seu encontro e tomam-lhe as mãos para conduzil-a a uma cadeira. +Joaquina, deixando-a, vae cerrar as janellas e portas. Senta-se Talitha +e conversam um pouco._ + +Padre + + Como te sentes, filha? + +Talitha + + Afflicta, muito afflicta + por ver a luz do dia... + +Ruy, _tomando-lhe a mão_ + + A mesma curiosa + de sempre!... + +Talitha + + Se parece á sua intelligencia + que não tenho razão!... Ha tantos annos céga!... + +Joaquina + + Deixa-o fallar, Talitha, isto é mais tagarella + do que as creanças, vês? + +Ruy + + Pois não creia, Talitha!... + +Padre, _tomando Ruy á parte_ + + Prepare o coração e veja que anciosa + aquella vida está... tenha a maior prudencia! + +Ruy + + É muito natural; só emquanto não chega + o instante de tirar a venda que lhe vela + o dulcissimo olhar... + +_A Talitha_ + + Diga, Talitha, ainda + sente alguma dôr? + +Talitha + + Não! apenas a impressão + do lenço que me causa a maior afflicção, + a vontade feliz, viva, crescente, infinda + de vêr de novo a luz... + +Ruy + + E não ha quinze dias + que lhe descubro a vista? + +Talitha + + Ha, sim, mas lá no escuro, + onde eu não vejo nada... + +Padre + + Assim é que convem... + Depois de tanto tempo, então, já pretendias + vêr livremente o sol? Seria prematuro... + +Joaquina + + É muito perigoso!... + +Ruy + + E sentia-se bem? + Chegou a distinguir, alguma vez, o aspecto + ou a forma geral de qualquer um objecto? + +Talitha + + Muitas vezes, pois não; primeiro vagamente, + depois com nitidez. + +Padre, _alegre_ + + Mas então a doente + Recuperou a vista!? + +Joaquina + + Abençoada a hora + em que o menino entrou nesta pobre choupana!... + +Ruy + + Agradeçam a Deus! + +Talitha + + Doutor, porque demora + esta venda cruel que o meu olhar empana? + +Ruy + + Pois diga-me primeiro o que pensa de mim. + +Talitha + + Que é muito feio e máo... + +Joaquina + + Bem feito! + +Ruy + + E da Joaquina?... + +Talitha + + Penso della que é santa e que tem de setim + côr da neve o cabello, a pelle muito fina, + como eu creio que são as santas da capella. + +Ruy + + E o nosso Padre-cura? + +Talitha + + Um velhinho bondoso, + que vive para o bem e sobre os pobres vela! + Supponho que elle tenha a cabeça bem branca, + o olhar muito suave e d'expressão tão franca, + que appareça na face enrugada e senil + a dôce candidez da sua alma infantil... + E, cogitando assim, parece-me que vejo, + dos altos de uma torre, a uma enorme distancia, + como um jardim florido, a minha dôce infancia + vicejando a sorrir, a sombra do seu braço, + e o seu olhar de Pae enchendo todo o espaço + de luz, de muita luz, tão dôce e tão leal, + como o luar banhando as ondas de um trigal + numa noite estreitada, e o sangue me palpita + no seio, e o coração ardentemente agita + na immensa anciedade afflicta e pressurosa + de poder innundar a sua mão rugosa + de lagrimas febris e de beijos sem fim. + +Ruy + + Tantas coisas ao Cura e nada para mim!... + +Talitha + + Exactamente, Ruy; a saudade de vêl-o + augmenta a cada instante o meu triste flagello, + porque nos braços delle um dia adormeci + e não despertei mais... e ao Ruy... + +_baixando a voz_ + + eu nunca vi... + +Ruy, _com caricia_ + + Pois vae tornar a vêr a boa da Joaquina + que a trouxe ao collo, a rir, quando era pequenina. + +_Aproxima-se de Talitha para tirar-lhe a venda_ + + Vae vêr o Padre-cura e matar os desejos + de lhe cobrir a face e as mãos de muitos beijos... + E vae me conhecer... + +_Tira-lhe a venda_ + +_Silencio. Commoção geral. Talitha, acostumada á treva, não supporta a +luz; tapa os olhos com as mãos; depois habitua a vista, levanta-se, +olha, procura anciosamente. Antes de Talitha distinguir cada uma das +pessoas, encanta-se com a luz e com os objectos._ + +Talitha, _á luz, correndo á janella_ + + Céos! Vejo novamente + a luz que me faltou durante a meninice! + Ó Sol da minha infancia, a sorrir de contente + torno a vêr-te de novo. Azul do céo, meiguice + que ha muito não beijava o meu perdido olhar, + como deves ser lindo ao dôce despontar + da madrugada clara! + +_Ao oratorio_ + + Oratorio velhinho, + junto ao qual, em pequena, eu tanto vez rezei, + como sinto vontade, agora que revejo + o teu branco Jesus, do amor e do carinho + com que pela manhã e á noite eu te beijei, + e hoje, meu velho amigo, a estremecer te beijo! + +_Passa as mãos nos olhos, como para certificar-se que vê bem_ + + Mas parece-me um sonho! + +_Pausa. De novo esfrega os olhos_ + + Eu já não sou a céga... + +_Pausa_ + + Eu vejo tudo... + +_Estaca; olha as paredes_ + + Sim, sim tudo... + +_Olha para o tecto, baixa os olhos ao chão, volta-se para os lados, +palpa as cadeiras, palpa a meza, corre á commoda_ + + Eu não me engano. + Eu vejo a minha mão! + +_Olha para as mãos_ + + Mais branca do que o panno + +_pega o avental e examina_ + + do meu lindo avental! + +_Põe a mão sobre o peito, como que desmaiada_ + + Ah! coração, socega... + +_Neste momento Joaquina, receiando que Talitha caia, corre para +amparal-a, dizendo_ + +Joaquina + + Credo! Jesus, Senhor! + +Talitha, _como que acordando aos gritos de Joaquina, ao vêl-a tem uma +commoção e exclama_ + + Joaquina! ó boa e santa + velhinha, dôce mãe que tanta dôr e tanta + lagrima derramaste, aos pés do meu bercinho!... + +_Vendo o Cura, lança-se a elle, soluçando; abraça-o, beija-o, vê-o, +chora, ri, torna a abraçal-o, doida de alegria_ + + Mas como eu sou feliz, meu Pae, meu Avôsinho! + +_Deixa afinal o Cura e corre para Ruy_ + + E Ruy que me salvou... + +_Vae para abraçal-o, estaca: o pudor impede-a; baixa os olhos, em silencio_ + + Ah!... Ruy... eu nunca o vi!... + +Padre, _soluçando e enxugando as lagrimas, aproxima-se della, toma-lhe a +mão e leva-a junto de Ruy_ + + Beija-o, Talitha; beija, elle é digno de ti, + emquanto eu vou render a Jesus Christo, filha, + graças por essa luz que nos teus olhos brilha. + +_Sae, enxugando os olhos_ + +Joaquina, _a Ruy_ + + Á Virgem prometti uma lampada accêsa + durante uma semana, e por sua intenção, + se Ella daqui levasse as dôres e a tristeza, + fazendo este milagre. Hei de accender o azeite + e rezar a seus pés, com toda a devoção, + pedindo á Virgem Mãe que este meu voto acceite. + Louvado seja Deus! O Céo vos abençôe! + +_Sae_ + + +SCENA VI + +Talitha e Ruy + +_Depois de uma pausa prolongada_ + +Talitha, _sempre pudica_ + + Porque me encara assim? Offendi-o? Perdôe. + +Ruy, _caminhando para ella_ + + Fitei-a porque sinto o brilho desse olhar, + como um rio de luz suavissima, innundar + a minha mocidade inhospita e sombria, + num banho redemptor de dôce calmaria. + E parece-me vêr a sombra avelludada + da sua fronte branca, e pura, e macerada, + fugir espavorida á luz desse clarão... + +Talitha + + Que eu devo tão sómente á sua compaixão... + +Ruy + + Esqueça que fui eu... + +Talitha, _interrompendo_ + + Não sei como se esquece... + +Ruy + + Então recordará, por toda a sua vida, + o nosso amor feliz? + +Talitha + + A sua alma duvida? + +Ruy + + Eu não duvido, eu peço, e vae na minha prece + quanto minh'alma tem de puro sentimento... + +Talitha, _curiosa_ + + Na sua prece? + +Ruy + + Sim, tão cheia de fervor + como a casta oração que a sua crença augusta + soluça de manhã, mais triste que um lamento, + que vae, azul em fóra, ao throno do Senhor, + no murmurio subtil dessa bocca venusta. + +Talitha + + Eu nunca olvidarei a dulcida ventura + daquella noite densa, atormentada, escura, + em cujo manto negro a sua mão bondosa + rasgou a dôce aurora alegre e luminosa... + O caridoso amor, que os seus labios deixaram + gravado nesta mão que tanta vez beijaram, + foi um sonho feliz numa noite polar, + sonho de primavera em noite sem luar: + nunca mais sahirá d'entre as minhas lembranças. + Como um beijo de mãe na face das creanças, + a primeira affeição nunca se desvanece, + é como a flôr da lenda: a todo o instante cresce! + Se eu a esquecesse, Ruy, como seria ingrata! + +Ruy + + Talitha, minha vida, a densa cataracta + não poude escurecer a lucidez suprema + da sua alma christã, que vale um diadema + de rainha e de santa, a cujos pés se inclina + a minha alma que vae sobre a esteira argentina + que o seu vestido traça ao longo da jornada, + como no azul do mar as velas da jangada... + +Talitha + + E se a vela, batida ao vento da desdita, + levar á sombra eterna essa infeliz Talitha + que a sua mão salvou da mesma sombra eterna? + +Ruy + + Irei onde ella vá. Se a aragem fôr galerna + e o nosso amor levar a gondola encantada, + sobre o dorso da vaga em branca espumarada, + eu seguirei, sonhando, á prôa, na epopêa + que o seu divino olhar de candida sereia + ha de inspirar, sorrindo, a quem o illuminou. + Se o vento arremessar a vela que enfunou + á rude penedia e sossobrar a barca, + hei de salvar, então, a pequenina arca, + onde vive encerrada a pomba da alliança, + que faz do nosso amor uma alegre esperança! + +Talitha + + Apenas esperança, e nada mais! A vida + é um sonho que passa e foge; perseguida, + occulta-se a esperança á sombra de um asylo, + tão occulto tambem que, para descobril-o, + desfaz-se muita vez ou rasga-se em pedaços + a nossa fé mais pura e a crença, em estilhaços, + desapparece e vae, por esse mundo fóra, + como nuvens no céo ao despontar da aurora... + +Ruy + + Porque razão, Talitha, os nossos pobres sonhos + não poderão florir, alegres e risonhos, + á plena luz do Sol? + +Talitha + + Sonhos são illusões + que a madrugada esbate em limpidos clarões, + e nada mais... Talvez as suas, sim!... As minhas + irão fazer o ninho á sombra... As andorinhas + tem que mudar de clima ao começar o inverno, + levando para longe o seu amor materno... + A minha acostumou-se á sombra da cegueira: + se na sombra passou quasi uma vida inteira! + Na sombra adormeceu, na sombra soluçou + e na sombra sorriu... A sua mão rasgou + este sulco de luz no meu perdido olhar, + e a triste, acostumada á sombra tumular, + fugiu espavorida ao lucido lampejo + e tão distante foi, que nem sequer a vejo... + +Ruy + + É o receio infantil que vem da escuridão! + A esperança, Talitha, ainda um só instante + não sahiu do calor que faz do coração + o ninho aconchegado, o berço palpitante + e o sacrario fiel do nosso casto amor! + Na sombra nasce, e cresce, e vive tanta flôr + sem perder o perfume!... E a esperança, Talitha, + é o perfume do amor, a essencia que dormita + serena e só desperta ao carinhoso afago + dum beijo a murmurar em sonho dôce e vago... + +Talitha + + Mas antes que o murmurio a despertasse, a luz + do sol lhe recordou que aos olhos de Jesus + e aos pés de sua Mãe ella havia ajoelhado + no fervor da oração, em dia torturado, + prendendo a vida inteira ao brilho de um olhar. + Entre nós dois agora eleva-se um altar, + e eu vejo-me prostrada e envolta no burel, + sorrindo para o céo, por ter sido fiel + á promessa que fiz... + +Ruy + + E o nosso amor, Talitha, + não foi uma promessa? + +Talitha + + Ah! foi, mas a desdita + lançou-lhe a maldição no dia em que nasceu + e o nosso puro amor agora feneceu. + +Ruy + + E a tua mão divina, angelico florão + de algum ciborio astral, a tua mão de rosa + e jaspe é que me vem ferir esta affeição + que banhava em frescor a vida bonançosa + deste meu sonho azul!... Mas quando, em nostalgia, + á sombra do mosteiro, a tua phantasia + volver para o passado esse formoso olhar + tão cheio de candura e te fizer sonhar; + quando a espiral do incenso á curva do docel + subir da tua mão occulta no burel, + como a dôce expressão duma saudade immensa; + quando á noite o luar, vencendo a treva densa, + entrar na tua cella e fôr beijar-te a face, + como se por ventura envolta nelle entrasse + a minh'alma saudosa a visitar a tua: + quando esse olhar divino, em cuja luz fluctua + a pureza vestal da tua castidade, + sorrindo, remontar á dôce claridade + das estrellas no céo, minha gentil Talitha, + recorda o nosso amor, formosa cenobita, + e pensa na tortura intermina e profunda + desta vaga de fel que a minha vida innunda, + medita nesta noite atroz, que me apavora, + e tu me dás em paga a fulgurante aurora + que o meu amor te deu, sorrindo de ventura... + Bemdita seja a treva, a noite de amargura, + bemdita seja a dôr, para sempre bemdita, + que vem da tua mão, angelica Talitha! + +_Talitha, em lagrimas, soluça. Ruy vae para sahir e encontra o Padre que +entra. Pausa, durante a qual o Padre, mudo de dôr, fita os olhos, ora em +Talitha, ora em Ruy._ + + +SCENA VII + +Os mesmos e Padre + +Padre, _junto de Talitha_ + + Porque choras, creança? + +_Ruy, cabisbaixo, medita. Pausa, durante a qual se ouve o soluçar de +Talitha._ + + O teu silencio abala + toda a minh'alma, filha; abre os teus labios, falla... + +_Silencio. A Ruy_ + + A sua commoção... Ruy! Mas que succedeu? + +Ruy + + Foi mais uma illusão que se desfez... morreu! + +_Sae_ + + +SCENA VIII + +Padre e Talitha + +Padre, _abraçando Talitha_ + + Não te apoquentes, filha! A dôr que te devora + eu já previra ha muito. A noite tambem chora + no calice da flôr, e o céo que tem a luz + das estrellas sem fim, chorou, quando Jesus + abriu por sobre a terra a sombra dos seus braços, + abençoando a dôr que vaga nos espaços... + Mas os teus olhos, ha pouco illuminados, + não devem, por emquanto, andar annuviados + que se pódem cegar de novo, sem remedio... + +Talitha, _rapidamente, entre alegre e chorosa_ + + Então se eu lhe pedisse... + +Padre + + O quer que seja, pede-o... + Pede, Talitha, pede, e poupa o teu olhar... + +Talitha, _lacrimosa_ + + Pois bem, eu pedirei, que deixe-me chorar! + +Padre + + Não te apavora a noite immensa e tenebrosa?! + +Talitha + + Não me amedronta mais! A lua carinhosa + vive na escuridão. Fui tão feliz na treva + que chego a ter saudade e o coração me leva + a pedir que me deixe ind'outra vez banhar + na sombra eterna e mésta a luz do meu olhar... + +Padre + + Que blasphemia, Talitha! + +Talitha + + O meu labio não erra, + e o que elle disse, Padre, o meu fervor encerra. + +Padre + + Medita, minha filha, e Deus Nosso Senhor + envolva a tua crença em seu divino amor! + +Talitha + + Pois ouça-me um instante a confissão singela + da incomparavel dôr que a minha vida gela: + +_Padre senta-se e Talitha ajoelha-se ao lado_ + + Tinha soffrido muito; o immenso desespero + de um dia de tortura, afflictivo e severo, + me fez allucinar e, erguendo para os céos + as mãos de quem supplica, eu implorei a Deus + clemencia a tanta dôr. A noite de flagicio, + que dava á minha vida o aspecto de um supplicio, + parecia sem fim, sem luz e sem aurora. + E, como a flôr que á noite exhala, espaço a fóra, + o aroma delicado e puro do seu seio, + vencendo o meu temor e o natural anceio, + eu dei, como penhor da luz que supplicava, + a minha mocidade e o porvir que eu sonhava; + e prometti á santa e casta Samarita + votar-me para sempre ao burel carmelita... + Mas presenti, depois, que dentro de minh'alma + despontava, sorrindo, uma esperança calma + que innundava de luz o coração da céga, + e commigo pensei:--Deus, de certo, não nega + que veja agora a luz quem sempre foi escrava: + e nesse pensamento a vida concentrava. + Foi quando Ruy me fez a esmola caridosa + de uma dôce affeição que tem a côr da rosa; + e, sem pensar, jámais, em vêr de novo o mundo, + o meu amor cresceu e fez-se tão profundo + que para desprender-lhe as tumidas raizes + eu rasgarei, talvez, mais largas cicatrizes... + Depois a mão de Ruy abriu para os meus olhos + o véo da madrugada e eu vi sobre os escolhos, + toda em pedaços feita, a minha pobre herança, + perdida para sempre a querida esperança + que eu havia sonhado em dias de cegueira... + Se sacrifico o amor pelo burel de freira + eu desço á sepultura em plena mocidade; + se não cumpro a promessa e minto á santidade + do voto que levei á pedra de um altar, + não devo conservar a luz do meu olhar + e rogo novamente a Deus que m'a desfaça + e á Virgem que conceda a pequenina graça + de receber de novo esse penhor tão puro, + deixando-me, outra vez, o mesmo olhar escuro! + +Padre + + Escuta, minha filha.--A Providencia, ás vezes, + se manda aos corações as dôres e os revezes + não é que se compraza em opprimir as almas + para lhes dar mais tarde as viridentes palmas + do martyrio, não! Não, minha ingenua Talitha. + Eras ainda tu mimosa e pequenita + quando ficaste céga. Abrira para o mundo, + apenas, a tua alma e o teu olhar jocundo + sorria para a luz. Assim, innocentinha, + tu ias de manhã commigo á capellinha + e, emquanto eu murmurava as orações da missa, + tu rezavas, sorrindo, angelica e submissa, + á Virgem que te ouvia, a Salvé Magestosa, + bem como se a rezara o labio de uma rosa... + Desse labio subia um fervor tão intenso + como a espiral azul e timida do incenso... + Depois... faltou-te a luz, mas tu nunca faltaste + á mesma hora de sempre, á missa. E que contraste; + tu, pequenita e céga e o Sol com tanta luz! + Muitos annos pediste á Madre de Jesus + que te restituisse um dia o teu olhar, + como se a Virgem fôsse autora da desdita + que te ferira assim, minha meiga Talitha... + Pois creança, tu crês que a Mãe que soffreu tanto + no dia em que perdeu o filho casto e santo + te pudesse roubar dos olhos transparentes + a luz que illuminava as pupillas ardentes? + Pois ella que te viu de rastros, a rezar, + em todas as manhãs, aos pés do seu altar, + levando-lhe, a sorrir, tantos ramos de flôres, + podia assim voltar a crueldade e as dôres + sobre a tua cabeça ingenua e piedosa, + Ella que foi a Mãe mais dôce e generosa!? + Escuta, minha filha:--o livro do Senhor + descreve que, uma feita, andava na Judéa + o divino Jesus prégando a sua idéa... + Acercou-se do Mestre uma infeliz proscripta + a quem a dôr matara a filha pequenita, + e, em lagrimas, pediu que lhe voltasse á vida + o cadaver da filha extremosa e querida. + Abençoando a mãe que aquella dôr humilha + disse Jesus então: «a tua pobre filha + estava adormecida e agora está acordada; + volta que a encontrarás a rir, já levantada». + E a pobre mãe, que vira a pequenina morta, + depois, ao regressar, foi encontral-a á porta, + sorrindo alegremente, entre as demais creanças, + como um bando gazil de cordeirinhas mansas! + Pois bem, minha Talitha, o teu olhar dormiu + sómente, não morreu. Quando a céga pediu, + á Virgem Mãe de Deus, que um dia t'o salvasse, + o seu divino olhar fitava a tua face + e despertou do somno o teu formoso olhar + que nunca fôra cégo e, apenas a sonhar, + adormecera. E agora, agora que acordou + póde fitar a mão de quem lhe descerrou, + em nome de Jesus, a noite que o toldava, + que te fazia triste e lacrimosa, escrava... + +Talitha + + E a Virgem que me ouviu quando eu lhe prometti + votar-me ao seu burel, por tanto que soffri, + quererá perdoar a minha negra falta? + +Padre + + Escuta-me, Talitha: + +_Ruy surge ao fundo e escuta_ + + O coração exalta, + pergunta-lhe o que sente, o que deseja; pensa + muito, muito, em silencio, indaga a tua crença + e faze o que disser a tua consciencia, + mas não esqueças, filha, a dôce confidencia + de Ruy que illuminou o teu escuro olhar, + e lembra-te, depois, que, só por muito amar, + o Christo perdoou á pobre Magdalena. + E agora, que a tua alma está bem mais serena, + attende-me!--Rezando adormeci. A aurora + despertou-me, sorrindo, e entrevi, áquella hora, + um sonho que fugia, em busca de outros lares! + Subia docemente, ao claro azul dos ares, + o vulto da Senhora, abrindo pelo Céo + o palio virginal do seu materno véo, + desnastrado o cabello, um manto de rainha + recamado de sóes; a nuvem que a sustinha, + toda cheia de luz, deixava atraz de si + um rastro de fulgor. E eu lembrei-me de ti... + Curvaram-se a tremer as pernas fatigadas, + ao peso esmagador das longas invernadas; + e assim, postas as mãos, olhando para o vulto + da Virgem que eu adoro em fervoroso culto, + pedi-lhe que mandasse um raio de luar + ás lagrimas de fel da tua dôr sem par... + +_Talitha começa a sorrir_ + + E a Virgem, a sorrir, do seio do infinito, + baixou por sobre o meu um dôce olhar bemdito + e eu vi rolar no azul da immensa vastidão, + no fulgor de uma estrella, o beijo do perdão... + +Talitha, _correndo para a porta_ + + Ruy! + +_Encontra-se com Ruy e pára, pudibunda, de olhar no chão_ + +Padre, _só, á frente da scena, mãos postas, a olhar para o céo_ + + Perdôa, Senhor, se lhe menti, perdôa; + o meu labio peccou, mas a intenção foi boa! + +CAE O PANNO + + + + +TERCEIRO ACTO + + +Modesta sala de jantar em casa do Cura. Á direita, um oratorio sobre uma +commoda antiga; á esquerda, entre portas, um orgam. + + +SCENA I + +Joaquina, só + +_Joaquina procede aos arranjos da casa para uma noite de festa; cuida do +oratorio, accende-lhe as velas, começa a pôr a meza para a ceia; tudo em +silencio. Depois de alguns momentos entra Ruy._ + + +SCENA II + +Joaquina e Ruy + +Ruy, _entrando_ + + Boas noites, Joaquina! + +Joaquina + + As mesmas Deus lhe dê! + Inda bem que chegou; pensei que não voltasse + aqui á nossa casa! + +Ruy + + Essa agora... e porque? + +Joaquina + + É boa! Inda pergunta? Esteve lá por fóra + durante todo o dia e sem que se lembrasse + que neste pobre asylo ainda vive e mora + gente boa e christã... + +Ruy, _interrompendo_ + + E quem lhe disse tanto? + Vão vêr que foi intriga ou treta de algum santo!... + +Joaquina + + Hereje! brinque, brinque assim com Jesus Christo + e ha de vêr se é feliz! Não sabe que o Natal + é a noite sagrada? + +Ruy + + É, sei! Não foi por mal + que faltei. Pela vez primeira não assisto + á missa desta noite. Ha bem vinte e seis annos + que falleceu meu Pae: rompia a madrugada. + Começaram-me assim os tristes desenganos + e a lucta da existencia abriu-se amargurada. + Desde então, minha Mãe, boa e santa velhinha, + recorda tristemente, apenas se avizinha + a noite do Natal, a dôr daquella aurora, + e emquanto tudo ri, ella soluça e chora... + +Joaquina + + Sem mesmo a conhecer eu tenho pena della. + +Ruy + + E hoje que eu sou feliz a pobresinha vela. + Creio que neste instante os seus labios de crente + envolvem numa prece encantadora e mesta, + num templo illuminado, ao celebrar da festa, + o esposo que morreu e o proprio filho ausente. + +Joaquina + + Devera ser então mais um grande motivo + de não faltar á missa. + +Ruy + + E creia que é bem vivo + o meu pezar. Entanto a razão dessa falta + foi sagrada e vae vêr como ella tanto exalta + a minha consciencia. + +Joaquina, _ironica_ + + Eu imagino bem! + +Ruy + + Não posso vêr soffrer o coração de alguem... + Attenda-me, Joaquina, e diga se eu podia + negar-me, sem peccar, ao dever que exigia + de acudir pressuroso ao leito d'um enfermo + ardendo em alta febre e bem proximo ao termo + duma longa existencia asperrima e deserta, + onde apenas a dôr tinha uma entrada aberta. + Conhece aquelle atalho escuro e retirado + que vae dar á capella? + +Joaquina, _benzendo-se_ + + Onde foi enforcado + O marido da Emilia? + +Ruy + + Exactamente, ahi. + Mesmo nesse logar em que ficou a cruz + existe uma choupana á qual me recolhi + para fugir á chuva. O caminho conduz, + pela esquerda, á Capella; a direita, ao moinho + do velho reformado! Entrou-me na choupana + a neta do sargento a dizer que o avosinho + quasi estava a expirar. Fôra maldade insana + deixar morrer o velho á mingoa de cuidados. + Fui. Mas antes não fôsse. Em nada lhe valeu + a visita que fiz, o velho falleceu... + Como devem morrer os bravos e os soldados + assim elle expirou, fitando bem a morte, + firme como um leão e simples como um forte. + Uma miseria extrema; os netos quasi nús, + com fome e sem comida ha dois dias! + +Joaquina, _benzendo-se_ + + Jesus! + E aqui tanta fartura! + +Ruy + + A Patria é bem madrasta! + Esse velho, que a morte aos netos hoje afasta, + tem no peito e na face algumas cicatrizes + das lanças do inimigo. + +Joaquina + + Ah! são bem mais felizes + os soldados que vão á guerra e que lá morrem + no campo da batalha. + +Ruy + + Exacto. Os outros correm + o perigo maior de morrer desprezados, como + esse pobre velho. + +Joaquina + + E estão abandonados + os netos, Sr. Ruy? + +Ruy + + Não estão; felizmente + fallei ao regedor e tudo se arranjou; + demais a mais tambem, segundo me informou, + têm direito á pensão que o velho Avô doente + não poude receber. + +Joaquina + + E quem receberá + essa triste pensão, se o velho que serviu + não poude recebel-a e nem sequer a viu? + +Ruy + + Tambem já pensei nisso e tudo se fará, + minha boa Joaquina. Assim, o moribundo + me obrigou a faltar á missa do Natal. + Se um pobre que estivesse a deixar este mundo + lhe pedisse um amparo, a sua alma leal + negaria essa esmola? + +Joaquina + + Ainda m'o pergunta? + +Ruy + + Á sombra desse olhar tudo se abriga e junta + e eu leio na pupilla esmaecida e pura, + num misto de mudez, de pranto e de ternura, + que o seu bom coração tambem acudiria. + E por isso faltei; tenho, porém, certeza + que Talitha por mim, ao menos, rezaria. + E quando assim se tem tão lucida pureza + a interceder por nós aos pés da Divindade, + parece que a nossa alma, em dôce alacridade, + mergulha no baptismo, em aguas de um Jordão + todo feito de amor, de beijos e perdão! + +Joaquina + + Ah! quando eu penso em tudo o que se tem passado + depois que aqui chegou!... Como isto está mudado! + +Ruy + + Tudo é tão natural que não nos vale a pena + gastar tempo a pensar em cousa tão pequena. + +Joaquina + + Então é cousa pouca uma pobre engeitada, + ha tanto tempo céga, e sem mãe, desprezada, + encontrar quem lhe dê de novo o seu olhar, + e quem lhe tenha amor e a queira desposar!? + +Ruy + + Engeitada, que importa? O coração não pensa, + ama sómente e assim não indaga a nascença + da mulher que o inspirou. Mas não é desprezada + a formosa Talitha; esta mansão amada + serviu de lar paterno á sua dôce infancia + e, se aqui respirou a magica fragrancia + de uma alma aberta, em flôr, se a sua mão, Joaquina, + materna, a acompanhou desde assim pequenina, + pouco importa que a mãe a tivesse engeitado; + amei-a, e nesse amor eu tenho baptisado + o sonho do porvir... + +Joaquina + + Diga, e quando casar + vae leval-a d'aqui? + +Ruy + + Seria derrancar + o santo coração do velho Padre-Cura; + nem tanto necessita a completa ventura + das minhas illusões, nem teria coragem + para tamanho mal; seria mais selvagem + que a propria malvadez + +_abraçando-a_ + + tirar ao seu amor + o prazer de aspirar o aroma dessa flôr, + que ao seu lado cresceu, tão branca e tão fagueira, + como um lyrio do valle ao pé de uma roseira! + +Joaquina + + Sim; isso diz agora e depois de casado + ha de pensar, de certo, em sua mãe saudosa, + e para que ella veja, alegre e carinhosa, + o filho salvo e bom, tão robusto e córado, + o Ruy tem de levar comsigo a pequenita + que nos serve de filha e que nos faz felizes!... + +Ruy + + Descance, boa amiga; este amor tem raizes + que eu nunca poderei arrancar de Talitha, + nem penso em perturbar a paz do vosso azylo + que a propria mão de Deus formou assim tranquillo. + +Joaquina + + Se Deus que nos dôou a innocentinha, agora + mandasse a Mãe aqui para leval-a embora, + onde quer que ella fosse havia eu d'ir tambem, + porque a trouxe no collo e quero tanto bem + que passo a minha vida olhando o azul dos céos, + para vêr se descubro a Santa Mãe de Deus + e pedir-lhe que deixe á tremula velhice + dos meus dias sem luz, ao menos, a meiguice, + daquelle coração que eu vi desabrochar... + +Ruy + + E o céo que lhe responde? + +Joaquina + + O céo?... Nada! A rezar + tenho passado a vida e, nesta idade, a gente + já não póde chorar, as lagrimas seccaram + e por isto se soffre, a dôr é mais pungente + quando se quer chorar e os olhos já cançaram. + +_Ouve-se a voz de Talitha, fóra_ + +Taitha + + Ó Joaquina! Ruy, Ruy... + +Joaquina + + Ahi vem a traquina; + E ha de chamar por tudo a pobre da Joaquina... + +Ruy, _corre á porta_ + + Mas como vem alegre... + +_Entra Talitha_ + + +SCENA III + +Os mesmos e Talitha + +Talitha, _ao entrar, vendo Ruy, estaca: fica silenciosa e em seguida:_ + + Eu bem disse ao padrinho... + +Ruy, _tomando-lhe a mão_ + + Que foi que tu disseste, alma da côr do linho? + +Talitha + + Que ninguem póde crêr na jura... + +Ruy, _interrompendo com meiguice_ + + Das mulheres?... + +Talitha, _ralhando com carinho e retirando a mão_ + + Dos homens... atrevido, ainda tens coragem + de rir?... + +Ruy, _alegremente_ + + Ou de chorar, se tu assim preferes... + +Talitha + + Mas a tua promessa? Esqueceste a homenagem + da noite de Natal? + +Ruy + + Pois pergunta á Joaquina... + +Joaquina, _intervindo_ + + A mim? não sei de nada... + +Ruy, _a Talitha_ + + Ella está gracejando; + sabe tudo tão bem como eu, mas imagina + que tu és ciumenta e então, de vez em quando, + a recordar o tempo em que era rapariga, + faz pirraças á gente, armando alguma intriga... + +Talitha + + A verdade, porém, é que faltaste e eu não. + +Ruy + + Pois bem, faltei; mas tive uma forte razão: + o velho reformado estava agonisante + e mandou-me chamar; eu fui no mesmo instante + assistir-lhe á agonia. Expirou-me nos braços: + ia o sol a fugir na curva dos espaços, + á hora em que soluça o sino das trindades + o Angelus sagrado envolto nas saudades + que a terra balbucia, agradecendo ao céo + a luz que lhe mandou na flacidez do véo + crepuscular e dôce, oiro tecido em gaze, + sem brilho de offuscar e sem calor que abraze. + +Talitha + + E nunca mais o vi, nem o verei jamais!... + Foi cégo como eu fui. Nas manhãs estivaes + muita vez o encontrei, cançado dos trabalhos, + pedindo esmola ahi por todos os atalhos. + Elle ia pela mão da neta, uma creança! + Era um velho senil á sombra da esperança! + Eu ía recostada ao braço do padrinho + e, ao sentir-me, dizia: «ampare-me esse anginho + --amigo Padre-Cura, eu quero que elle veja + --como um velho soldado, a mendigar, rasteja + --neste mundo de Christo»--. E ficava a pensar + naquelle desgraçado. O meu perdido olhar + novamente voltou, quando o delle se apaga + na escuridão mortal que tudo cobre e alaga... + Se eu pudesse amparar as pobres creancinhas! + +Ruy + + Não faltará calor ás meigas andorinhas. + +Joaquina + + E quem lhes ha de dar? + +Ruy + + Quem? + +Talitha + + Deus, Jesus e nós! + +Ruy, _com ingenuidade_ + + Nós seremos os paes: + +_a Joaquina_ + + tu e o Cura, os avós... + +Joaquina + + Valha-te Deus, tontinha! + +Ruy, _a Talitha_ + + Encantadora e casta; + ó Virgem Conceição, flôr, ingenua madrasta, + bemdito seja o dia em que te amei, formosa, + sonho feito mulher, sorriso feito em rosa... + +Talitha, _admirada_ + + Que tem isso de mal? Tambem elle era cégo, + não podia cuidar da neta que o guiava + e agora, felizmente, eu tenho no aconchego + da minha mocidade a luz que me faltava + e posso olhar por ella. A minha desventura + não teve neste asylo o amor do Padre-Cura? + Depois não tive ainda?!... + +_Olha para Ruy, baixa os olhos e cala-se_ + +Joaquina, _beijando-a_ + + Ah! minha tagarella!... + +Ruy + + Depois tiveste ainda o teu formoso olhar + que andava lá no céo illuminando a estrella + d'alva. E agora tambem tens muito que narrar + do que viste na igreja... + +Talitha + + Ah! na missa do gallo? + Eu vinha exactamente aqui para contal-o... + O que eu vi, Ruy, na igreja, emquanto o Padre-Cura + dizia aquella missa!... Inda agora fulgura, + sobre a minha retina, a vivida impressão + do seu olhar tão dôce e manso, de perdão... + Inda agora o sorriso, angelico e furtivo, + do seu labio de rosa, orvalhado e festivo, + innunda de frescor a minha vida inteira, + como o rócio da noite á flôr da amendoeira. + +Ruy + + Quem foi que te sorriu com tamanha affeição, + que fez vibrar tu'alma em tanta commoção? + +Talitha + + Um milagre de Deus! Se tens fé, acredita + no que te vou dizer. + +Ruy + + Dize, minha Talitha! + +Joaquina, _approximando-se_ + + Conta, conta o que foi. + +Talitha + + Pois nesse caso, ouvi: + Quando eu entrei no templo um borborinho enorme + encheu toda a capella; então foi que eu senti + como é triste ser cégo e ter olhar que dorme + tantos annos de vida, em funda lethargia, + sem a benção gentil de vêr a luz do dia! + Toda a gente fallava, olhando para mim, + e eu muito satisfeita a caminhar assim... + +_Imita o andar magestoso_ + +Ruy + + Como tu és vaidosa! + +Joaquina, _sorrindo e pondo as mãos_ + + E como ella é catita... + +Talitha, _a Ruy, ingenua_ + + Mas se eu fôsse a teu lado, inda era mais bonita!... + Deram-me tanto abraço e beijaram-me tanto! + A capellinha estava alegre, era um encanto. + Á entrada muita flôr, o altar com muita luz, + e num bercinho branco o menino Jesus, + tão lindo, tão mimoso e tão engraçadinho, + que parecia mesmo um rouxinol no ninho. + Uma velha fitou-me e disse: que princeza! + Um velho lavrador olhou-me com surpreza + e bem alto fallou: «Que Deus Nosso Senhor + te dê um bom marido»... + +Ruy + + E que disseste, amor? + +Talitha + + Nem uma palavrinha! Eu ía bem calada, + entre muito contente e muito envergonhada. + +Joaquina + + E depois? + +Talitha + + E depois... fui então ajoelhar, + sósinha, nos degráos que sóbem ao altar, + á espera que viesse, a meia noite, a missa. + Rezando ali, a sós, com fervor de noviça, + lembrei-me da promessa e as lagrimas rolaram, + subindo-me do seio aos olhos que as choraram. + Eu sentia uma dôr immensa, por fugir + ao voto que fizera e, em vão, quiz resistir, + á minh'alma affluia um extranho remorso + e embora eu despendesse o mais sincero esforço, + para conter o pranto, o coração vergava + e, numa agitação convulsa, palpitava + acabrunhado e triste... + +_Ouve-se o repicar dos sinos_ + +Joaquina, _interrompendo_ + + Ai! que acabou a festa + e a ceia por fazer, mas que cabeça é esta!... + +_Sae e entra constantemente, nos arranjos da casa_ + +Ruy + + Mas não te lembras já que, em nome do Senhor, + o Cura abençôou o nosso casto amor? + Não te lembras tambem da lucida visão + que te trouxe do céo a estrella do perdão? + +Talitha + + De tudo me lembrei; não sei que força extranha + pesava sobre mim, como immensa montanha, + e não deixava erguer o meu olhar medroso + para encarar de frente o vulto magestoso + da Virgem Mãe de Deus! Mas quando o Cura entrou + parece que a minha alma + +_torna o sino a repicar_ + + alegre despertou... + Senti uma esperança illuminar-me o seio + e dissipar-se então esse cruel receio! + Rezei muito, rezei com tanta commoção, + pedi com tanto ardor, com tanta devoção, + que a minh'alma subiu, tão leve e tão submissa, + aos pés da Mãe de Deus, durante aquella missa, + como se fôsse presa a hostia consagrada + que o Cura levantava á cruz abençoada... + Com ella o meu olhar de supplica subiu. + E fitando, sem medo, a face alabastrina + da candida judia, eu vi que Ella sorriu + com tão dôce expressão de placidez divina + que me banhou de luz amortecida e calma + a minha santa crença e fez vibrar minh'alma! + Senti que era o perdão que vinha, n'um sorriso, + abrir á minha vida um novo paraiso... + Ergui-me docemente, approximei-me d'Ella + e, beijando-lhe a mão que sobre o mundo vela, + ouvi, como um soluço, a sua voz tão pura, + dizendo-me em segredo, em intima ternura: + + Que lindos olhos, Talitha, + os olhos que o Ruy te deu: + tem uma luz infinita, + parecem feitos no céo... + +_Joaquina, que tem parado o trabalho, attrahida pela narrarão de +Talitha, enlevada, abraça-a, lacrimosa, beija-a..._ + +Ruy, _emquanto Joaquina abraça Talitha_ + + Mas tu ouviste bem, tens a certeza plena? + +Talitha, _desprendendo-se de Joaquina_ + + Ouvi perfeitamente; a voz era serena, + tão serena e subtil que a mim se affigurava + ser o proprio silencio assim que me fallava. + +_Ouve-se o repicar dos sinos e começa-se a ouvir as primeiras vozes dos +córos distantes._ + + Estremeci de alegre e acreditei então + que surgira, afinal, o dia do perdão; + +_Approximam-se as vozes_ + + desci do altar, corri, deixei a missa e vim, + como se o coração cantasse dentro de mim, + para dizer-te, Ruy, que a minha vida é tua. + +_Corre para elle, mas detem-se e, olhando para Joaquina, baixa os olhos +timida, brincando com o avental: pausa e silencio._ + +Joaquina, _percebendo_ + + Filhos, não serei eu quem assim vos destrua + as santas illusões... + +_ouve-se o côro muito perto_ + + Se Deus as abençôa!... + +_Sae_ + +Talitha, _vendo-a sahir_ + + Ruy! + +_Corre para elle_ + +Ruy, _recebendo-a nos braços_ + + Ah! minha Talitha! + +Talitha, _abraçada, beija-o_ + + Oh! meu amor! + +Ruy, _beijando-a_ + + Perdôa! + +_As vózes elevam-se distinctamente com a musica das violas e gaitas de +fóles; pausa, emquanto os dois, enleiados, nada ouvem._ + + +SCENA IV + +Os mesmos, Padre, raparigas e rapazes + +_O Padre, entrando com as raparigas e rapazes, surprehende ainda os dois +que se beijam e Joaquina que está estupefacta, junto á porta._ + +Padre, _fingindo que não vê e fallando alto_ + + Raparigas, entrai, a noite é de alegria... + +Talitha, _surprehendidos ambos, desprende-se de Ruy e diz_ + + Tem razão, meu padrinho, nossa phantasia + deve expandir-se agora... + +Padre, _com caricia, baixo a Talitha_ + + Assim, aos beijos, não... + +Talitha + + Quem poderá conter o nosso coração? + +_Ás raparigas_ + + Raparigas, cantae! A céga já tem vista; + que a Virgem Mãe de Deus a todas vós assista; + a freira, que devia entrar para o convento, + teve hoje a redempção do seu cruel tormento! + +Um rapaz + + Viva a céguinha! + +O grupo + + Viva! + +Outro rapaz + + E mais o Padre Cura! + Viva! + +Uma rapariga + + Viva quem fez este milagre! + +O grupo + + Viva! + +Um rapaz + + E a mãe Joaquina, então, que é mesmo uma ternura?! + +Todos + + Viva! + +Joaquina + + Muito obrigada! + +Ruy + + Olha como é altiva! + +Padre + + Raparigas, dançae! + +Ruy, _a uma rapariga_ + + Pois cante a cotovia, + e vibre essa garganta até romper o dia... + +_As raparigas formam roda, os rapazes afinam as violas e o grupo, com +Talitha e Ruy á frente, dançam a Ciranda. O Cura, sentado em uma +cadeira, observa alegremente a scena._ + +Uma rapariga + + Quem deu espinho ás roseiras + não teve muita razão, + antes désse ao coração, + como deu ás Tarangeiras. + + Deus que creou tantas flôres + fez as estrellas aos centos: + não dorme quem tem amores, + que os amores são tormentos. + +Segunda rapariga + + Toda tu pareces feita + com a cêra das abelhas, + quando alguem d'aqui t'espreita + ficam-te as faces vermelhas. + +Primeira rapariga + + Quem ao pé do Sol caminha + anda sempre com calor, + Quem á lua se avizinha + póde até crear bolôr. + + As tuas tranças são pretas, + pareces de cêra mol, + não te abeires muito ao sol, + olha lá não te derretas... + +_O Cura, satisfeito e alegre, ri a cada descante das raparigas e +acompanha-as com um olhar de caricia. Enthusiasmado, levanta-se e +encaminha-se para o grupo:_ + +Padre + + Tambem eu quero entrar na dança, raparigas, + e ser como a papoila em meio das espigas! + +Primeira rapariga + + Viva, viva o Sr. Cura, + que é o paesinho desta aldeia, + que tem a alminha mais pura, + mais alva que a lua cheia. + +_Neste momento ouve-se bater á porta violentamente, ao mesmo tempo que +cessam os guizos denunciativos de um carro que parou á porta. +Quando ouve bater, o Padre Cura soffre uma visivel transformação de +physionomia que todos os circumstantes percebem._ + +Padre + + Um carro, Santo Deus! + +_Cessa toda a alegria e acercam-se do Padre que, repentinamente, põe as +mãos em oração._ + +Ruy, _acudindo_ + + Senhor Cura, que tem? + +_Ouve-se bater de novo_ + +Padre, _pensativo_ + + Ha tantos annos já! + +_Batem novamente. O Cura, sem dar uma palavra, benze-se, vae á porta e +abre-a. Entra uma senhora de lucto, acompanhada de um velho creado, com +malas e agazalhos. Todos emmudecem e olham-n'a curiosamente._ + + +SCENA V + +Os mesmos, Marqueza e Escudeiro + +Padre + + Perdão! Procura alguem? + +Marqueza + + O Cura João Fulgencio! É Vossa Senhoria? + +Padre + + Sou eu mesmo, Senhora! + +Marqueza + + Inda bem, obrigada! + Eu já tinha certeza, o céo me conduzia. + Não quero perturbar a alegria da noite: + Viajante, sósinha, e quasi desviada + pela neve que tomba, eu peço onde me acoite. + +Talitha + + Sois bem vinda, Senhora; aqui sob este tecto + encontrareis conchego e o mais sereno affecto. + +Marqueza, _olhando-a_ + + Obrigada, creança! + +Talitha + + A Noite é de Natal + e o nosso coração não sabe fazer mal... + +Padre + + Deveis estar cançada, o inverno vae tão duro! + +Marqueza + + Pensei que não chegava á sua residencia. + A nevada é cruel, o caminho coberto, + o frio é de cortar, o céo está escuro, + nem um astro se vê, perde-se a consciencia + da nossa propria vida, a estrada é um deserto... + Nem sei como cheguei... + +Talitha + + Jesus a protegeu... + +Marqueza + + Eu creio bem que sim e dou graças ao céo! + +Padre + + E não quer repousar? + +Marqueza + + Antes, porém, quizera, + Senhor Cura, dizer o que me traz aqui... + +Padre + + Assim seja, Senhora, e ao bom Jesus prouvera + que eu pudesse remir a dôr que presenti... + +_a Talitha e Ruy, fingindo alegria_ + + Ide com Deus, cantae! + +_O grupo retira-se em silencio, curiosamente_ + +Talitha, _a Ruy_ + + Quem é? Quem te parece? + +Ruy + + Não sei, mas esta voz a minh'alma conhece. + +_sahem_ + + +SCENA VI + +Marqueza e Padre + +Padre + + Senhora, estamos sós! Vossa Excellencia ordene! + +Marqueza + + Ouça-me, Senhor Cura! ouça e não me condemne! + +Padre + + E condemnar por que? Se tem algum peccado, + o coração de Deus não estará fechado! + +Marqueza + + Pensei chegar mais cedo: hontem, pelo sol posto, + estaria acabado este immenso desgosto + que me tortura a vida; a asperrima inverneira + embaraçou-me o passo e augmentou-me a canceira. + +Padre + + E vem de muito longe? + +Marqueza + + Ah! sim, de bem distante, + anciosa, esperando este feliz instante. + Ha muito tempo, um dia, ao romper da alvorada, + alguem que veiu aqui lhe trouxe uma engeitada... + +Padre + + É verdade, Senhora! + +Marqueza + + Uma carta pedia + ao Cura desta aldêa a esmola caridosa + de guardar a creança, até que a mãe chorosa, + depois, a procurasse. Afinal esse dia + felizmente chegou e a mãe que a dôr humilha, + Senhor Cura, a seus pés, vem procurar a filha... + +Padre + + E como poderei saber se esta senhora + que se confessa mãe, embora peccadora, + é realmente a mãe da creança engeitada + ha tantos annos já, naquella madrugada + tristissima d'inverno? + +Marqueza + + A carta igual áquella + que o Senhor Cura achou no berço, junto della... + +Padre, _tomando a carta_ + + Mas falta alguma cousa... + +Marqueza + + A pérola? está aqui... + +_Dá-lhe a pérola_ + + Pois desde aquella noite eu jámais a perdi + de vista e a conservei com cuidadoso afan, + como alguem que resguarda um rico talisman. + +Padre + + Seija feita de Deus a sagrada vontade, + embora se me parta o coração de dôr... + +Marqueza + + Essa dôr, Senhor Cura, ha de fugir vencida! + Eu não quero quebrar tão dôce piedade + que fez de minha filha o seu risonho amor, + nem desejo apagar a luz da sua vida + num soluço de magua. + +Padre + + Então não vem buscal-a? + +Marqueza + + Não, não, meu bom amigo, eu venho acompanhal-a. + A minha desventura, emfim, se condoeu + dest'alma cruciada e triste que viveu + reclusa na saudade, apenas na esperança + de vêr um dia ainda essa gentil creança... + Se nunca procurei saber dessa existencia + não é que se apagasse em minha consciencia, + como um sonho infeliz, a lembrança dorida + dessa flôr do peccado em anjo convertida. + Como eu pensava nella, ah! sabe-o Deus sómente! + Que lagrimas chorei por conserval-a ausente, + e quanto passei eu por causa desta filha + dil-o, com eloquencia, a dôr que me polvilha + a cabeça de cans. Amal-a com ardor + e ter de estrangular todo esse immenso amor!... + Vêl-a crescer ao longe, e calcular-lhe o encanto, + mas sem poder beijal-a, adivinhar que o pranto + as faces lhe banhava e não poder sorvel-o, + que tormento cruel, que duro pesadello... + Soffri, meu bom amigo, e soffri a sorrir, + que até para soffrer é preciso mentir! + Não me pergunte, Padre, a origem desse amor + ninguem perguntaria ao seio de uma flôr + como foi que nasceu o aroma que elle exhala. + Bastará que lhe diga: a dôr que me avassalla + é a amiga fiel que me segue ha vinte annos, + que nunca me deixou; que os tristes desenganos + dessas horas sem luz foram os companheiros + da minha mocidade e os filhos feiticeiros + que encheram o meu lar de pranto e de amargores, + como um dia sem sol, como um jardim sem flôres. + Um dia, Sr. Cura, em confissão, no templo, + diante do seu olhar que eu agora contemplo + humilde e agradecida, hei de contar-lhe a historia + da minha desventura e desta dôr ingloria, + mas não exija, Padre, agora, que eu recorde + o passado infeliz, que o coração acorde + do somno em que repousa, e desvende o segredo + que a vida me cobriu de sombras e de medo. + +Padre + + Nem quero desvendar, Senhora, essas torturas; + mas a minha velhice acostumou-se a vêr + em tão meiga creança uma filha extremosa + junto de mim crescer, florir como uma rosa + ao pé dum castanheiro, e fazer-se mulher. + Aos dez annos cegou... + +Marqueza, _interrompendo, afflicta_ + + É céga a minha filha? + +Padre + + Foi: ha dias, porém, a luz de novo brilha + no seu formoso olhar. Emquanto a escuridão + durou, eu sempre a trouxe unida ao coração, + apoiada ao meu braço. + +Marqueza + + E quem foi que a curou? + +Padre + + Alguem que a soube amar. Um dia despontou + na sua alma de flôr um novo sentimento + e a pobre céga amou e foi tambem amada. + Queria dedicar-se á vida enclausurada + na casta região da cela de um convento, + mas, sonhadora e boa, o amor venceu em breve + o vago mysticismo e a Virgem que a fadou, + condoendo-se della, o seu amor salvou... + De modo que, feliz, dentro de pouco, deve + desposar um rapaz, formoso coração... + +Marqueza, _interrompendo_ + + Ruy de Ornellas, talvez? + +Padre, _admirado_ + + Mas como adivinhou? + +Marqueza, _depois de uma pausa_ + + Não importa saber; prosiga, Senhor Cura, + eu contarei mais tarde essa alegre aventura, + tão simples e feliz. + +Padre, _proseguindo_ + + A mim, pobre ancião, + uma alegria basta: a de morrer contente + por haver feito bem á candida innocente. + Do mundo nada espero, esta gentil creança + era a minha formosa e unica esperança: + arrancam-m'a daqui e eu sinto que a corola + dessa flôr, que me dava a encantadora esmola + do seu perfume agreste, arrasta a minha vida + á derradeira estancia, á ultima guarida... + +Marqueza + + E quem lhe disse, Padre, as minhas intenções? + +Padre + + Ninguem. Mas adivinho. Eu sei que os corações + carinhosos das mães não querem a partilha + das caricias, do amor, dos beijos de uma filha. + Talitha vae partir; que o Senhor a conduza + e que uma boa estrella ao seu porvir reluza. + +Marqueza + + Attenda, Sr. Cura! A mãe que ora lhe falla + tambem sabe que a dôr o coração estala + e não lhe vem roubar a luz dessa velhice + tão cheia de bondade e simples de meiguice. + A dôr me fatigou e eu quero repousar + de tantas afflicções, e venho procurar, + nesta aldeia tranquilla e sem perversidade, + a paz que não frui na minha mocidade. + Sou rica, felizmente, e quero ter um nicho + onde acaba a existencia: é, talvez, um capricho... + Mas quero aqui viver ao lado desta filha + que a sua alma de santo, alvissima, perfilha + e nunca mais sahir deste sereno azylo + tão suave e tão bom, tão feliz e tranquillo, + onde mora a virtude. A filha que eu procuro + tambem é muito rica e tem porvir seguro. + Se a desventura um dia a separou de mim + a minha vida agora ha de chegar ao fim, + aqui onde ella teve um lar sagrado e nobre. + E o dôce olhar de Deus que o mundo inteiro cobre, + abrindo sobre nós o pallio da ventura, + ha de envolver na sombra o coração do Cura + que fez de minha filha a filha da sua alma, + extremosa e leal. E Deus que tudo acalma + ha de extinguir a dôr de todo esse passado + que eu vejo, felizmente, agora terminado... + +Padre, _alegremente_ + + Obrigado, Senhora. O coração que sente + a alheia desventura e lança boamente + o seu conforto amigo a quem já nada espera, + tem, nas bençãos do céo, eterna primavera... + E agora que sabeis que a vossa filha é viva, + attendei-me, Senhora, á santa rogativa: + Talitha esteve céga. O homem que salvou + o seu formoso olhar o amor lhe conquistou. + Ella, uma encantadora e formosa creança, + concentra nesse amor toda a sua esperança: + tiral-a será dar-lhe o mais cruel supplicio. + +Marqueza + + Não preciso pedir tão duro sacrificio + ao seu bom coração. Eu quero-a vêr feliz, + se quem serviu de Pae o consentiu e quiz. + Procurava uma filha, encontrei um casal: + para mim, que sou mãe, jámais este Natal + feliz esquecerei. E agora que conhece + a Mãe da sua filha, attenda á minha prece + e mostre-me Talitha, anceio por beijal-a. + +Padre + + Louvado seja Deus, Senhora, eu vou chamal-a. + +_Entra e volta com Talitha pela mão_ + + +SCENA VII + +Os mesmos e Talitha + +Padre, _entrando, a Talitha_ + + Recordas que uma vez, em lagrimas banhada, + disseste que a tu'alma andava amargurada + a pensar que jámais a tua mãe verias? + Recordas a palavra alegre, de conforto, + que te disse a sorrir quando tu me pedias + a luz do teu olhar que tu suppunhas morto? + +Talitha + + Nem eu posso esquecer. + +Padre + + Pois, filha, a Providencia + abriu á tua vida a sua immensa graça. + +Talitha, _curiosa_ + + E então? + +Padre + + Então responde: em tua consciencia + que mais desejas tu que o Santo Deus te faça? + +Talitha + + Que eu possa vêr um dia a minha Mãe querida! + +Marqueza, _correndo para ella e abraçando-a_ + + Talitha, minha filha! Amor da minha vida! + +Talitha, _surprehendida_ + + Minha Mãe! Minha Mãe! + +_Abraçam-se em pranto_ + +Padre + + Obrigado, Senhor; + abençoado seja este Natal de amor! + +Marqueza, _desprendendo-se de Talitha_ + + Mas como eu sou feliz! Como tu és bonita! + Que lindo nome o teu! Quem te chamou Talitha? + +_Beija, abraça-a, encara-a sorrindo e soluçando. Senta-a nos joelhos_ + + Quero ver bem de perto o teu formoso olhar. + +_Fita-lhe os olhos_ + +Talitha + + E já sabes, mamã, que de tanto chorar + com saudades de ti, um dia fiquei céga? + +Marqueza + + Com saudades de mim? + +Talitha, _agitada_ + + Não crês, mamã? + +Marqueza + + Socega; + eu acredito em tudo, a tua alma não mente... + +Talitha + + Mamã, como eu te quero! + +_Abraça-a_ + + Olha-me bem de frente! + Tanto tempo sem vêr a imagem dos meus sonhos, + agora que te encontro, eu desejo risonhos + os teus olhos de Mãe que nunca vi mais bellos; + quero beijar, sorrindo, os teus alvos cabellos + e sentir palpitar o seio teu, amigo, + e o meu seio de filha, a palpitar comtigo. + +_O Cura, que se tem enlevado a contemplar a scena, sae pé ante-pé, +olhando o grupo e chama para dentro. Entram Joaquina e Ruy._ + + +SCENA VIII + +Os mesmos, Joaquina e Ruy + +Marqueza + + Dize-me, filha, e tu sonhavas muitas vezes + com tua mãe? + +Talitha + + Sonhava! + +Marqueza + + E o sonho que dizia? + +Talitha + + Tanta coisa, mamã! Quando os nossos revezes + nos vinham perturbar, desde o romper do dia + até o anoitecer, pensava em ti, mamã, + e, sem dormir, sonhava até pela manhã. + +Marqueza + + Mas revezes de quem? + +Talitha + + Desta immensa tristeza + que vinha atormentar a vida de pobreza + +_baixo, quasi em segredo_ + + do nosso Padre Cura... + +Marqueza + + E o Padre Cura é pobre? + +Talitha + + Muito, muito, mamã, mas tão bom e tão nobre + que nunca pude ouvir um lamento, sequer! + +Marqueza + + D'hoje em diante, porém, não faltará mais nada: + será de todos nós aquillo que eu tiver. + Tu és rica, Talitha, e d'alma bem formada, + por certo acudirás de todo o coração + por que não faltem mais nem ventura, nem pão + a quem te fez gentil, tão boa e generosa... + +Talitha + + Muito rica, mamã? + +Marqueza + + Que te serve saber? + +Talitha + + É que o velho sargento acaba de morrer + deixando na miseria immensa e dolorosa + os netinhos com fome. O velho era céguinho! + muita vez o encontrei mendigando, sósinho, + para matar a fome e, se eu hoje sou rica, + só este pensamento a dôr me purifica + e, se tu dás licença, o Ruy vae procural-os. + +Marqueza + + Pois sim, minha Talitha, irás tambem buscal-os; + que sejam teus irmãos já que assim o quizeste. + Mas dize, o Ruy quem é? Inda não m'o disseste... + +_Durante este dialogo as duas não poderão vêr as demais pessoas, +enlevadas como estão. Ha sorrisos em todos._ + +Talitha, _perturbada_ + + O Ruy?... + +_Baixa os olhos, sorri e cala-se_ + +Marqueza + + Sim, sim o Ruy... + +Talitha, _enleada_ + + O Ruy é um doutor... + Quando eu estive céga... Eu era tão céguinha!... + Elle tratou de mim e fez a operação... + +Marqueza + + Só?! + +Talitha + + O resto não conto... + +Marqueza + + E porquê? + +Talitha + + Adivinha! + +Marqueza + + E não furtou tambem o teu primeiro amor? + +Talitha + + Furtou!... E que mal fez? Deu luz ao meu olhar, + eu dei-lhe o coração... + +Marqueza + + Mas depois de casar + deixarás tu sósinho o velho Padre Cura? + +Talitha + + Nem eu quero pensar em tamanha loucura. + Viveremos aqui juntinhos da Joaquina + que sempre me guiou, do tempo de menina. + +Marqueza + + Pois vae dizer ao Ruy que tua mãe quer vêl-o. + +Talitha, _soltando-se do pescoço da mãe, sorrindo alegremente._ + + Tu vais ver que rapaz... intelligente e bello... + Ruy! Ruy! + +_Voltando-se encontra Ruy, Joaquina e Padre. Fica embaraçada e cobre o +rosto com as mãos._ + + Meu Deus, que susto! + +Padre + + Ouvimos tudo, tudo!... + +Marqueza, _voltando-se_ + + Desculpe, Senhor Cura... em favor della acudo... + A culpada fui eu... + +Ruy, _surprehendido_ + + Ah! Senhora Marqueza! + +Marqueza + + Sim. Ruy, eu mesma, aqui. Nem me causa extranheza + o vêl-o nesta casa. Eu fui quem o mandou + em busca deste céo tão puro que o salvou. + Previ toda esta scena e quando aconselhei + que viesse até cá, senti que palpitava + o meu seio de mãe. Já vê que adivinhei + e o meu presentimento o bem me segredava... + +Talitha, _admirada_ + + Mamã, tu és Marqueza? + +_Silencio prolongado_ + +Marqueza + + A Marqueza morreu... + Agora sou a mãe da mimosa Talitha + que vem pedir perdão a quem assim soffreu + dessa magua sem par, dessa dôr infinita, + que tanto fez chorar a tua mocidade, + as lagrimas febris e negras da saudade. + Agora sou a Mãe que um dia te engeitou + e que uma vida inteira a dôr acabrunhou, + que vem pedir perdão ao velho Padre-Cura + do quanto padeceu para te dar ventura, + que vem agradecer á santa da Joaquina, + os beijos que te deu quando eras tamanina, + que vem pedir a Ruy o supremo favor + de dar á sua filha o seu primeiro amor... + +Ruy + + Marqueza, o meu amor recebe a grande esmola + do casto coração da candida Talitha, + como um beijo de luz que conforta e consola + a dôr da minha vida. O peito me palpita + na suprema alegria e eu penso na alvorada + desta noite feliz, de lucido natal, + bemdizendo, Senhora, a dôce madrugada + que vae surgir em breve. + +Talitha + + Ao despontar o dia + vamos todos buscar os netos do sargento... + Tu concordas, mamã? + +_Ao Cura_ + + Acha que faço mal? + +Padre + + Para ti, minha filha, a madrugada é fria. + O Ruy irá commigo e apenas num momento + as creanças virão: descança, pequenita. + +Marqueza, _a Joaquina_ + + Repare bem, Joaquina: este casal catita + como envelhece a gente! + +Joaquina + + E Deus Nosso Senhor + lhe dê por toda a vida o seu sagrado amor! + +Padre + + Já toca á missa d'Alva... + +Ruy, _a Talitha_ + + Estrella d'Alva, pura, + immaculada estrella, o céo desta ventura + estende sobre nós a cupula sagrada + e eu vejo nesse olhar a luz ambicionada + que faz de ti, creança, a dôce Conceição + do meu culto feliz, purissimo e christão. + +_A Joaquina_ + + Um dia, bem me lembro, a sua mão amiga + mais trémula e subtil do que uma branca estriga + ás aragens d'outomno, abrindo-me o sacrario + da sua alma de santa, entregou-me um rosario. + Recorda-se? Pois bem! nas horas de afflicção + esse rosario amigo encheu-me o coração + duma frescura immensa e assim se dissipou + essa nuvem cruel que sobre nós passou... + Quero beijar a mão da santa que me deu + nesse rosario astral uma visão do céo: + a flôr que se banhou na sua fé divina, + bondosa creatura, alvissima Joaquina! + +_Beija-lhe a mão. Joaquina, em silencio, enxuga os olhos com o avental._ + +Padre + + O dia vae surgir, o sino da capella + convida-nos á missa. Ali pela janella + já vem a madrugada entrando alegremente + num baptismo de luz que brota do nascente. + +Talitha + + Meu Deus, como é feliz a minha mocidade! + Rasgou a mão de Ruy a dôce claridade + ao meu perdido olhar, depois a mãe de Deus + envia-me o perdão do fundo azul dos céos: + e, dando luz á céga e vida á condemnada, + entrega-me, a sorrir, no fim da madrugada + do Natal de Jesus, a minha Mãe distante. + Meu Deus, como é feliz neste sereno instante + +_a Ruy_ + + a nossa mocidade ao pé desta velhice + tão boa e tão leal! Antes que alguem cobice + esta aurora de amor que ao céo nos avizinha + eu vou rezar por nós uma Salvé-Rainha: + +_Ouve-se o repicar dos sinos. Talitha approxima-se do oratorio; +ajoelham-se todos, excepto o Padre que fica de pé._ + +Talitha + + Salvé, Rainha Mãe, céu de misericordia, + vida e doçura, amor, luz da nossa esperança, + lançae por sobre nós o manto da concordia. + Salvé, Rainha, Mãe serena de bonança! + A vós, os filhos d'Eva, em lagrimas, bradamos, + por vós que estaes no céo, gemendo, suspiramos, + neste valle de magua e dôr. Eia, Senhora! + Sêde a divina Mãe, a dôce protectora + da nossa vida inteira e para nós volvei + esse olhar piedoso e tão cheio de luz! + Sobre o nosso destino a vossa mão pendei, + rasgae a nossa dôr, mostrae-nos a Jesus, + fructo do vosso ventre, ó sagrada e clemente, + ó Virgem dôce e casta, ó candida innocente! + ó Santa Mãe de Deus, ouvi a nossa voz + tão simples e fiel, rogue no céu por nós, + por que sejamos bons e dignos da promessa + do moreno Jesus. Que a nossa vida aqueça + o materno calor da estrella de Bethlem, + á luz do vosso olhar, por todo o sempre. + +Padre + + Amen! + +CAE O PANNO + + + + +RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA + + _Toute l'operation critique se borne ainsi a constater un fait, + depuis la cause qui l'a produit jusqu'aux conséquences qu'il + produira. Sans doute, un pareil travail contient une leçon, et à se + voir dans un miroir aussi fidèle, un écrivain peut refléchir, + connâitre ses infirmités, tâcher de les marquer le plus possible. + Seulement, la leçon vient de haut, sort de la verité même du + portrait el n'est plus l'enseignement gourmê d'un professeur. La + critique expose, elle n'enseigne pas. Elle a compris elle-même que + son influence sur le niveau litteraire était à peu prés nulle, car + les tempéraments restent indociles; et elle a préféré jouer le beau + rôle d'ecrire l'histoire litteraire contemporaine, expliquée et + commentée._ + + E. Zola. _Documents litteraires_, pag. 334. + + + _Est critique, à notre jugement, celui qui fait effort pour + comprendre et qui juge avec sympathie._ + + Nolet. _La vie et l'oeuvre de Chateaubriand_, pag. 673. + + + _...si nous possedons quelques talents, nous nous empressons de les + déprécier. Après les avoir élevés au pinacle, nous les roulons dans + la bosse; puis nous y revennons, puis nous les méprisons de nouveau. + Nous ne pouvons souffrir de reputation; il nous semble qu'on nous + vole ce qu'on admire: nos vanités prennent ombrage du moindre + succès, et s'il dure un peu, elles sont au supplice._ + + Chateaubriand. _Essai sur la litterature anglaise_. pag. 171. + + + _Que la scène soit triste ou gaie, nous retrouvons toujours la même + distinction entre l'émotion réelle et l'émotion esthétique. Il faut + de toute necessité, pour que cette dernière soit possible, que + l'autre disparaisse; il faut que l'auditeur ou le spectateur ne + puisse jamais oublier qu'il y a entre le fait et lui un + intermediaire dont l'impression constitue la poesie de l'oeuvre; + c'est surtout au théâtre que cette distinction entre le réel et le + fait poetique est essentielle. L'illusion complète, loin d'être le + suprême degré de l'art, comme on l'a dit, en serait simplement la + négation._ + + Eug. Veron, _L'Estetique_, pag. 407 e 408. + + +RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA + +A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade, piedosamente recolhida pelo +coração á mudez da alma, que a minha intelligencia modesta crystallizou +em versos froixos, que o meu sentimento fixou em drama e que a cegueira +das paixões pretendeu ferir. + +Devo, quero e vou defendel-a. + + * * * * * + +Zola, o genio, o mestre, o justo, escreveu: + + «Lorsqu'on a l'honneur de tenir une plume, on se consulte avant + d'ecrire, et quand on a écrit une page, on l'affirme, on la défend.» + + _La critique contemporaine_, pag. 356. + +A critica censurou-me porque, brazileiro e rio-grandense, fui procurar +em terras de Portugal o assumpto do meu obscuro trabalho. A _Talitha_ +não é uma obra nacional: nem portugueza porque o seu autor não nasceu em +Portugal, nem brazileira porque a acção se passa em terra estrangeira, +entre personagens de uma aldeia lusitana perdida nas serranias da +provincia de Traz-os-montes. + + * * * * * + +A censura é futil. + +A critica esquece que Portugal é a patria da nossa patria; que o nosso +idioma nacional ainda não sahiu do periodo primitivo e selvagem; que a +lingua de Camões foi a lingua de Gonçalves Dias e ainda hoje é a lingua +de Olavo Bilac e de Coelho Netto; que os sentimentos de José de Alencar +vibraram nas mesmas palavras em que vibrou a alma de Camillo Castello +Branco o através das quaes se impoz á grandeza do seculo que passou a +individualidade singular e forte de Eça de Queiroz, ao mesmo tempo que +se impunha, em outro hemispherio, a personalidade singular e forte de +Machado de Assis. + +Ingenua, ignorante ou perfida, a critica esqueceu o preceito de Taine: + + «Les productions de l'esprit humain, comme celles de la nature + vivante, ne s'expliquent que par leur mllieu.» + + H. Taine--_Philosophie de l'Art_. vol. I, pag. 11. + +O homem é um producto do meio, este inflúe poderosamente na formação de +seu espirito; mais que poderosamente--decisivamente. + +A mocidade é mais docil em receber essa influencia natural e espontanea +do ambiente--do clima, das tradições, dos costumes, da religião, da arte. + +É na infancia e na adolescencia, como observa Moreau, de Tours, no seu +estudo--_La Folie chez les Enfants_--que os erros e os preconceitos se +apoderam do espirito e por tal forma criam raizes que difficilmente se +arrancam. + +Spencer, na Educação moral, intellectual e physica, affirma que a +influencia do meio sobre a mocidade decide do futuro inteiro. + +A minha adolescencia e a minha mocidade fluiram em Portugal, nas +escolas, nas aldeias, no seio patriarchal da familia paterna. + +Com os portuguezes, moços como eu, senti os pezares d'aquelle grande +povo, sorri nas alegrias d'aquella boa gente. + +Á sombra fresca e generosa das suas arvores adormeci e sonhei: ao calor +daquelle sol aqueci as minhas esperanças; no gelo daquellas neves +murcharam-me as mais perfumadas illusões; ao luar opalescente daquellas +noites ouvi a musica das primeiras serenatas: ao fulgor daquellas +estrellas peneirou no meu coração a voz dolentissima dos rouxinóes; com +a poesia popular daquella alma lyrica de onze seculos aprendi a versejar +quando a minh'alma de dezeseis annos abria para o mundo as flôres das +suas aspirações incipientes; com a lithania religiosa dos orgãos ruraes +nas capellas das aldeias aprendi a amar a Deus, a crer na sua olympica +magestade, ao mesmo tempo que filtrava docemente no meu espirito a +ternura sagrada daquelle mysticismo que reza na voz das aragens, no +perfume das flôres, no marulhar das fontes, no gorgeio das aves e até no +merencorio soluçar das vagas, rolando eternamente nas areias das praias. + +Dezoito annos correram para a minha vida feliz e descuidosa, naquella +terra santa que é a patria da saudade, e, quando o meu coração começou a +sentir as amarguras do exilio, quando a minha intelligencia poude +comprehender toda a magua da ausencia, foi na saudade portugueza + +«o delicioso pungir de acerbo espinho,» + +que eu aprendi a sentir a saudade do lar que aqui deixára, do berço que +me embalára as horas da infancia, da voz materna que me acalentára a +puericia, do céo que dera luz ao meu olhar e calor ao meu sangue, +sangue em cujas ondas correm leucocytos de sangue lusitano. «d'este +sangue abençoado», fortemente oxygenado, que me dá energia para as +luctas e ampara a tranquilidade transparente da minha consciencia, +limpida e superior, as investidas da injustiça e da critica. + +E como poderia eu, por que estranho processo de cirurgia, arrancar ao +meu organismo essa metade portugueza que constitue um nobre orgulho da +minha vida? + +E como poderia eu, por que estranho processo de psychologia, arrancar á +minh'alma esse conjuncto essencial de elementos que durante dezoito +annos se vincularam ao meu espirito, á minha intelligencia, á minha +vontade, á minha sensibilidade, com a mesma delicadeza, com a mesma +subtil insistencia com que a luz do sol penetra no seio da terra para +fazer germinar as sementes, com que a palavra das mães penetra na alma +dos filhos para transfigural-a, como o luar que transforma em espelho de +prata a agua dos lagos e dos rios? + + * * * * * + +A _Talitha_ é uma reminiscencia da mocidade passada na aldeia +traz-montana, na suave e consoladora almosphera da familia paterna; +_Talitha_ não é uma creação da minha phantasia, é a copia do modelo vivo +que eu conheci, que acompanhei na cegueira cruel e, depois, na luminosa +redempção do seu primeiro amor. + +_Ruy de Ornellas_ foi meu irmão de lettras, foi meu amigo, meu +companheiro de escola, meu consocio na bohemia alegre e feliz da vida +academica, nem o nome lhe occultei. + +O velho cura _João Fulgencio_ foi uma realidade soberba de caridosa +affeição evangelica: era um sacerdote de alma pura, um ancião de oitenta +invernos consumidos em espalhar o bem emquanto muitos moços de alma nova +mas precocemente corrompida ao contacto das descrenças enervadoras e +fataes, na convivencia intima da politicagem, dos bordeis e dos cafés, +vivem para fazer o mal, no gozo requintado de espalhar desventuras, +quando é mais facil, mais dôce, mais humano, mais confortante, mais +nobre, semear carinhos e affectos para fazer a colheita das sympathias e +das dedicações. + +A velhinha _Joaquina_, a irmã desse honrado e justo sacerdote, é o +retrato fiel, copiado á intimidade da minha propria familia, em cujo +seio fui buscar o modelo daquella virtude christan, na figura venerada +de uma santa creatura que acalentara, ha sessenta annos, a puericia de +meu Pae. + +A _Marqueza de Rilma_ não é um personagem ficticio, viveu, foi a mãe de +Talitha, não com o titulo de tão elevada condição aristocratica, mas de +nobre linhagem, victima innocente das luctas civis de 1846 que +accenderam a fogueira horrivel dos odios entre os partidos politicos. +Revelar-lhe o verdadeiro nome seria uma iniquidade, além de +absolutamente desnecessario ao desenvolvimento da acção dramatica: a +mais rudimentar educação, a mais vulgar delicadeza de sentimentos +mandavam occultar essa circumstancia, inutil á fidelidade da observação +e perfeitamente dispensavel ao estudo da psychologia do personagem. + +Que representa, pois a _Talitha_? + +O intimo e nobre desabrochar de uma consciencia que não esqueceu o +passado, que transformou um incidente da vida em pretexto para resgatar +uma divida de gratidão, para abrir no seio um longo e profundo sulco de +reconhecimento á terra sagrada em que dormem seus avós o somno +ultimo e perpétuo, onde ficaram os primeiros dias de existencia do +ancião que me deu o sêr, onde eu deixei as gerações irmans que me +acompanharam na peregrinação astral das illusões academicas. + +A perversidade incuravel dos zoilos, porém, occultou, de proposito +deliberado, que o obscuro autor da _Talitha_, agora alvejado por haver +esquecido ingratamente a sua patria, preferindo assumptos, personagens e +céos estranhos, já estudara em um drama, em tres actos, intitulado _A +Farça_, a sociedade da sua terra e um facto que se desenrolara no meio +em que vive. + +E esse drama foi levado á scena tres vezes, no Theatro S. Pedro, por uma +sociedade de amadores; mereceu a critica da imprensa local e foi +largamente estudado por dois homens conhecidos nas lettras: Alarico +Ribeiro e dr. Sebastião Leão. + +Se não teve esse modesto trabalho a ventura de ser interpretado por +artistas, não pode caber ao autor a culpa de faltar entre nós uma +companhia dramatica nacional constituida de profissionaes. + +A critica indigena devia ter conhecimento d'esse facto; se sabe d'elle é +perversa occultando-o propositalmente para ferir a _Talitha_; se não +sabe, é ignorante, e uma critica _soi-disant_ competente, que desconhece +o autor escolhido para a censura e os trabalhos por elle produzidos, não +póde exigir consideração nem respeito do meio litterario em que pretende +pontificar. + + «Il y a même, au fond de la grande majorité des critiques, un + producteur manqué, qui se regisne à parler des oeuvres d'autrui, + quand il voit que personne ne parle des siennes.» + + Zola, oeuvre cit., pag. 349. + +A critica, ou ignorante, ou perfida, ou ingenua, esqueceu que +Taine, o mestre supremo, havia pontificado: + + «La méthode moderne que je tâche de suivre, et qui commence à + s'introduire dans toutes les sciences morales, consiste a considerer + les oeuvres humaines, et en particulier les oeuvres d'art, comme des + faits et des produits dont il faut marquer les caractères et + chercher les causes; rien de plus. Ainsi comprise, la science ne + proscrit ni ne pardonne: elle constate et explique.» + + H. Taine--oeuvre cit, vol. I, pag. 14. + +Mas a critica levantou-se contra as leis proclamadas pelo proprio mestre +invocado: condemnou, não explicou. + +Sem investigar as origens do drama, sem conhecer a sua significação, sem +sondar a alma que o creára, fulminou a obra e insultou o espirito que a +produzira. + +Para maldizer bastaram-lhe dois elementos: o assumpto que é portuguez e +o estylo que não é brazileiro... + +E a critica, sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, esqueceu que +Shakespeare fôra buscar á nevoenta Dinamarca a figura culminante de +Hamlet, á sorridente Italia dos laranjaes em flôr, as suaves imagens de +Romeu e Julieta, e o vulto soberbamente tragico do tremendo Othelo. + +Sempre com a mesma perfidia, a critica, depois de citar os nomes de +Racine e Corneille, occultou que esses grandes espiritos da França foram +pedir á Grecia e à Roma antigas, á Hespanha medieva e aos Barbaros a +quasi totalidade dos seus heróes e das suas heroinas, deixando na +obscuridade a immensa galeria de personagens illustres da propria +patria: o genio desses dois sublimes cerebros andou a resuscitar, a +illuminar, a galvanizar no tablado do theatro francez a grandeza épica +de vultos estranhos e deixou no tumulo o vulto leonino dos +immortaes filhos da França e as imagens delicadas e formosas das +mulheres gaulezas. + +De Corneille, _Medéa_ é uma simples imitação de Lucio Seneca, romano, +que a seu turno pedira inspiração ao theatro grego; _Cid_, que é uma +obra-prima, além de ser puramente hespanhola a sua acção de altissima +tragedia, foi inspirada pela obra do poeta castelhano Guilhen de Castro, +que o genio de Corneille deixou na sombra; _Horace_ é um assumpto romano +que o poeta francez pediu a Tilo-Livio; romanos são _Polyeucte_, _Cinna_ +e _Pompée_, este inspirado por Lucano; _Mentor_ é o velho personagem da +legenda grega de Ithaca, já reproduzido no theatro hespanhol pelo poeta +Alarcon, ao qual Corneille foi pedir o modelo; _oedipe_ e _Sertorius_, +que são lampejos da constellação de decadencia de um genio, pertencem, a +primeira ao cyclo da heroicidade thebana que Sophocles já havia +immortalisado na scena grega, a segunda é pura historia da Iberia em que +o vulto admiravel do general romano fulge num derradeiro vestigio de +genio, ao lado de Viriato, o grandioso pastor dos Herminios e fundador +da nacionalidade lusitana. + +Nem mesmo no periodo da sua decadencia, vencido na queda da _Pertharite_ +e no confronto do seu _Attila_ com a _Andromaque_ de Racine, outro genio +que subia rapidamente ao zenith, nem mesmo na desventura, a alma de +Corneille vibrou pela patria, o seu talento não procurou conforto na +historia assombrosa da França: o seu coração voltou-se ainda para o +oriente, foi á Judea estudar a grandeza sublime do Rabbino da Samaria e +deixou na _Imitação de Christo_ a ultima expressão do seu genio, como o +raio extremo do sol ao entrar na sepultura do occaso. + +De Racine, póde-se affirmar que escreveu as suas tragedias +inspirando-se, ora no theatro grego, ora na Biblia. + +Assim o ensina um sabio mestre brazileiro: + + «deixando respeitosamente de parte Eschylo e Sophocles, impossiveis + de imitar, modelou-se por Eurypedes, menos perfeito na generalidade + da concepção, porém mais tocante na pintura dos accessorios e que + maior conformidade offerecia com o seu talento.» + +São d'esse genero a _Andromaque_, _Mithridates_, _Phèdre_, _Iphigénie_. + +São inspiradas na Biblia, a _Thébaïde_, _Esther_ e _Athalie_. + +Pertencem ao genero historico: _Alexandre_, _Berenice_, _Britannicus_. E +ainda mesmo quando Racine, resolvendo esmagar os seus zoilos, escreveu a +comedia _Les Plaideurs_, que é uma _charge_ temivel de espirito e de +genio, foi pedir ás _Vespas_ de Aristophanes, não só a inspiração, mas o +exemplo, o paradigma. + +Todas essas tragedias ficaram na litteratura franceza, pertencem ao +Theatro da França que não as repudiou, que as ama, que as admira, +cultuando a memoria dos genialissimos poetas, não obstante o haverem +elles esquecido a seara magnifica da patria pelos encantos das estranhas +figuras orientaes. + +Victor Hugo foi pedir a Inglaterra o vulto espantoso do dictador para +escrever a maravilha dramatica de _Cromwell_, deixando no esquecimento a +soberba grandeza de Danton! Para dar á Escola romantica a sua data +inicial no Theatro francez, o grande poeta das _Folhas de Outono_ foi +buscar á Hespanha a inspiração dos versos maravilhosos do _Hernani_ e +deixou á litteratura dramatica da França as figuras esculpturaes de +_Dona Sol_, do bandido celebre, do Rei D. Carlos e do velho aristocrata +Ruy Gomez. + +Mas onde o genio do grande filho de Besançon attingiu a altitude suprema +a que não chegaram Corneille no _Cid_ nem Racine na _Phèdre_, foi +no _Torquemada_, a epopéa dramatica do fanatismo: e Torquemada foi o +inquisidor da Hespanha. Nenhum poeta da peninsula havia arrancado á +historia a figura sinistra do sacerdote; Hugo levanta-a do tumulo, +illumina-a com as fulgurações do seu genio, como se em torno da +cariatide monstruosa da Inquisição ardessem as fogueiras dos +autos-da-fé, e liga á litteratura dramamatica da França a figura +barbara, apocalyplica do carrasco da Igreja. + +No emtanto, na historia da França havia a linha cruel de Luiz XI, algoz +do duque de Alençon, que podia ter inspirado o genio do poeta sublime. + +Alfred de Vigny, contemporaneo de Victor Hugo, na sua primeira phase +litteraria foi quasi totalmente oriental e biblico: _Eloah_, _Symeta_, +_Dryade_, _Fille de Jephté_, _Femme adultère_, _Dolorida_, _Deluge_. + +Na segunda phase produziu, em verso, o seu drama notavel Chatterton, +cujo heróe é o grande e infortunado poeta inglez que, aos 22 annos, +procurou no suicidio a solução para a vida das amarguras e tristezas que +arrastava o seu genio incomprehendido. + +E Alfred de Vigny, tão admirador de André-Chénier que n'este procurou +inspiração para a sua _Dryade_, deixou no esquecimento a figura soberba +e tragica do poeta da revolução, cuja cabeça rolou no cadafalso como uma +cabeça vulgar, não obstante: + + «avoir quelque chose là dedans» + +E a França não engeitou a obra immortal de Alfred de Vigny, e a +_Comedie-Française_ em 1881 fazia a sua _reprise_, com alto successo, +não obstante a opinião do Zola que a reputa: + + «la negation du théatre.» + +A critica, severa para mim, devêra ter vergastado primeiramente a +memoria de Lord Byron que cantou na sua lyra de poeta e serviu com a sua +espada de guerreiro a obra politica da emancipação da Grecia; devêra +anathematisar Sienkiewicz, o polaco genial que estudou no romance a +reconstituição da vida romana á época da decadencia cesarista de Nero; +devêra ter condemnado á morte M.^me Judith Gauthier, a filha gentil e +talentosa de Theophile, que, deixando de parte a herança paterna, +preciosa e brilhante, foi procurar o assumpto das suas obras notaveis +nas terras e nos costumes do extremo oriente, com especialidade no Japão +e na China; devêra ter amaldiçoado e reduzido a pó o sublime poeta +contemporaneo da França--Edmond Rostand--que engastou nos tres actos +phantasticos da _Princesse-Lointaine_ um assumpto oriental e na +_Samaritaine_, a sua obra prima, a vida, a figura, a alma encantadora da +filha da Judéa, deixando no esquecimento a belleza mystica de Joanna +d'Arc; devêra ter queimado a estatua de Castellar, porque o espantoso +rival de Cicero escreveu os extraordinarios volumes dos _Recuerdos +d'Italia_, sem ter jámais escripto uma pagina de viagem pela propria +Hespanha, sua patria; devêra ter castigado os despojos funebres de +Milton, porque o grande poeta inglez, cuja inspiração hombrea com as de +Tasso e Ariosto, cuja grandeza genial é, depois de Shakespeare, a +creação mais opulenta da poesia britanica, teve o arrojo de esquecer a +sua verde Erin e foi ao pincaro do Himalaya, ao berço da tradição +adamita, procurar o assumpto do seu _Paradise Lost_. + +E a critica para ser sincera, ou, pelo menos, logica, severa como foi +para o obscuro autor da desventurada _Talitha_, devêra censurar +amargamente a falta de patriotismo de Araujo Porto Alegre que, em versos +de um sabor arcadico e em metro solto, celebrou o almirante genovez +Colombo, deixando ingratamente no olvido a figura épica do riograndense +Tamandaré, lobo dos mares como o piloto de Palos, além de guerreiro como +Patterson. + +E a censura devêra estender-se tambem a Gonçalves de Magalhães que, em +vez de cantar o heróe dos Guararapes ou a figura brilhante de Garibaldi +que vive na tradição da liberdade sulina, preferiu celebrar na sua lyra +a aguia de Wagram, na queda monstruosa de Waterloo, tanto mais que ao +nascer do theatro brazileiro, quando fulgia o talento artistico de João +Caetano, deixou no esquecimento a figura negra de Calabar e foi á +historia de Milão pedir o assumpto e os personagens da sua tragedia +_Olgiate_, em cuja acção se estuda a tyrannia licenciosa de Galeazzo +Visconti e o assassinato do tyranno. + +E a critica, tão rispida com o autor da _Talitha_, chegando mesmo a +citar a sentença do divino Almeida Garrett para aquelles que se +abalançam ao estudo de estranhos assumptos esquecendo a patria, devêra +começar pela censura ao proprio autor do _Frei Luiz de Souza_, que +iniciou a sua vida litteraria no theatro escrevendo _Xerxes_, +_Lucrecia_, _Sophonisba_, _Atala_, _Meroppe_ e _Catão_, antes de se +lembrar que _D. Filippa de Vilhena_ fôra uma das heroinas de sua terra. + + * * * * * + +Mas a critica, severa com o autor da _Talitha_, não tem sinceridade nos +seus conceitos. + +Um formosissimo talento de artista, alma de raro quilate, aberta ás +emoções do Bello, filho d'esta terra, Araujo Vianna, musicista de +apurado engenho, escreveu a sua brilhante partitura da _Carmella_, um +encanto, uma joia. + +A acção do libreto passa-se na Italia, a musica inspira-se +claramente na escola de Massenet, sóbe á scena no Rio de Janeiro +interpretada por artistas italianos, sóbe á scena em Porto Alegre +interpretada por artistas italianos, a critica applaudiu em delirio, +extasiou-se, e ninguem viu, ninguem sentiu, que a _Carmella_ é italiana +pelo libreto e franceza pela musica; o patriotismo riograndense não se +julgou melindrado porque o intelligente _maestro_ patricio deixou na +obscuridade a nossa paisagem, o nosso clima, as nossas mulheres, os +nossos costumes, a nossa poesia, a nossa musica popular e +caracteristica, preferindo a lenda, o lyrismo, a impetuosidade, o céo, a +aventura da gloriosa e divina Italia da arte... + +A critica emmudeceu. + +Entretanto Araujo Vianna apenas visitou a Italia: o seu sangue é +genuinamente brazileiro, formou-se o seu espirito na propria patria, nem +a natureza nem a sociedade italiana influiram no seu desenvolvimento +intellectual e moral... + +A critica tinha de tudo isso conhecimento exacto e perfeito mas... +_passons là dessus_. + + «Dès lors, les impuissants et les hypocrites peuvent injurier + l'oeuvre et l'auteur, les couvrir de boue, les nier...» + + Zola--_Documents litteraires_, pag. 418. + + * * * * * + +Sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, a critica censura a _Talitha_, +condemnando-a porque os seus personagens fallam uma linguagem elevada, +superior á modestia das suas condições de aldeãos. + +A critica é futil e não sabe o que diz. + +_Talitha_ falla nos seus dialogos a linguagem do mysticismo que durante +dezesete annos ouviu e aprendeu com o seu velho padrinho: o cura. + +A sua linguagem é simples, ingenua e lyrica. + +Mas simples, ingenua e lyrica é a linguagem do povo portuguez, desde a +sua infancia até hoje. + +As imagens que o autor lhe põe nos labios são as mesmas que borbulham na +phantasia do povo lusitano, ha mais de nove seculos de nacionalidade, +affirmada num _folke-lore_ riquissimo e inexgottavel, desde Guesto +Ansures até Antonio Fogaça. + +Pois a uma creança de dezoito annos, alma pura e boa, natureza casta, +intelligente e fina, delicada e vibratil, torturada pela desventura, +póde ser negada a phantasia creadora, poetica e imaginosa que +caracterisa o povo em cujo meio ella vive, principalmente na aldeia, na +atmosphera idylica e bucolica, simplesmente porque a cataracta a cegou +aos oito annos? + +Mas Antonio Feliciano de Castilho foi o bardo cégo que escreveu a _Noite +do Castello_, as _Cartas de Echo a Narciso_, os _Ciumes do Bardo_, a +_Primavera_, o _Outono_ e cégo é o anonymato popular que produz ha oito +seculos esse rosario encantador e sublime das trovas e cantigas que +andam na tradição oral, na garganta de todas as mulheres, na voz de +todos os cantores, nos labios de todos os estudantes, desde o +_Cancioneiro de Garcia de Rezende_ e de _El-Rei D. Diniz_ até o +_Romanceiro_ de Garrett e os _Cancioneiros_ de Theophilo Braga e +Gualdino de Campos. + +São da poesia popular, são do povo em cujo seio _Talitha_ nasceu, +cresceu, amou, sonhou e foi noiva, as formosas quadras que correm de +labio em labio, sem autor conhecido e que Junqueiro, Eugenio de Castro, +Antonio Nobre e Correia de Oliveira gostosamente assignariam. + + I Nessas tuas mãos pequenas + como não vi em ninguem + não sei como as minhas penas + couberam nellas tão bem. + + II Perdes mais em me perder + do que eu perco em te deixar: + perco quem sabe offender, + tu perdes quem sabe amar. + + III Dizes que deixo saudades, + não me posso conformar: + pois se eu as levo commigo, + como t'as posso deixar? + + IV Acostumei tanto os meus olhos + a namorarem os teus + que de tanto confundil-os + nem já sei quaes são os meus. + + V Se os meus olhos te incommodam + quando estão na tua frente + hei de arrancal-os um dia + para te amar cegamente. + + VI Se eu soubesse que voando + alcançava o que desejo + mandava fazer as azas + que as penas são de sobejo. + + VII Eu jurei que não tornava + a dar adeus a ninguem: + quem parte saudades leva + quem fica saudades tem. + + VIII Essas tuas sobrancelhas + como nunca vi mais bellas + são laços de fita preta + unindo duas estrellas. + + IX Não sei que quer a desgraça + que atraz de mim corre tanto, + hei de parar e mostrar-lhe + que de vêl-a não me espanto. + + X Vae alta a noite, vae alta, + mais alto vae o luar, + mais alta vae a ventura + que Deus tem para me dar. + + XI É tua bocca ideal + um palacio com jardim: + as portas são de coral + os degráos são de marfim. + + XII Aguas passadas não tornam; + deixae fallar o dictado: + ó saudade, és um moinho + móes com aguas do passado. + + XIII Pára tu, meu coração! + onde estou eu, onde vim? + triste caminho de lagrimas + tem começo e não tem fim. + + XIV Ouço cousas que não ouço, + vejo cousas que não vejo: + olhos da minha saudade, + ouvidos do meu desejo! + + * * * * * + +E a um povo que assim traduz tão lyricamente, com tanta philosophia, com +tanto sentimento, todas as impressões da sua alma dôce, que assim vibra +essa poesia celeste nas cantigas das eiras ao luar, nas espadelladas, +nas desgarradas, nos desafios, na Paschoa, no Natal, nas romarias, a um +povo que tem alma poetica, mais suave que um paraiso, mais simples e +mais colorida que um poente de outono e uma alvorada de primavera, +póde-se, com justiça, arrancar essa linguagem que é caracteristica? + +O escriptor que o fizesse, a pretexto de ser verdadeiro com os seus +personagens, para que estes não pareçam superiores ao seu meio, mentiria +á propria consciencia, adulteraria a natureza, roubaria ao povo que +quizesse estudar o mais bello reflexo da sua individualidade litteraria. + +A um velho cégo que mendigava pelas estradas, entre Villa-Pouca de +Aguiar e Pedras Salgadas, na Provincia de Traz-os-Montes, muitas vezes +ouvi cantar com a sua voz roufenha, na tristissima toada, monotona +como a sua desventura, as quadras que aqui reproduzo fielmente. Andava +elle pelas feiras, pelos caminhos, pelas romarias, levando a sua +desgraça, como Ashaverus, durante sessenta annos, a toda a parte onde a +tradição religiosa celebrava as festas dos seus oragos, onde a alegria +popular estuava nas danças e folguedos; o rapazio espantado escutava-o +com profundo respeito, as raparigas ouviam-n'o em silencio, porque na +amargura das suas cantilenas, na monotonia das suas queixas, na tristeza +das suas lamentações havia verdade de conceitos e a revolta justissima +de uma alma ferida contra a dureza da sorte e a iniquidade da natureza. + +Quem lh'o ensinou, quem escreveu esses versos, onde os aprendeu elle, +que poeta mysterioso, simultaneamente artista e philosopho, traduziu na +simplicidade mystica d'aquellas quadras toda a immensidade da sua +irremediavel desventura? A alma popular, suave e lyrica, de uma raça, +filtrada na arêa branca e pura de uma tradição de oito seculos. + + Diz toda a gente e eu não nego + que Deus é pae de bondade, + mas se isso é pura verdade + como foi que eu nasci cégo? + + Lá que Deus tirasse a luz + a quem rouba ou assassina, + era a justiça da sina + que todo o mundo conduz. + + Mas a mim, não foi clemente + porque eu não tinha nascido; + é que Deus tinha o sentido + de cegar um innocente. + + Aos lobos que andam na serra + matando ovelhas e anhos, + dizendo mal aos rebanhos + Deus não castiga na terra. + + Não ha lobo que não veja, + todos são filhos de Deus, + só nos tristes olhos meus + a eterna noite negreja. + + Não tocaria viola + se eu fosse fera damnada, + mas não andava na estrada + soffrendo e pedindo esmola. + + * * * * * + +Milton, collocando nos labios de Eva os seus primorosos versos, não +curou de saber se no Paraiso a Mãe dos homens fôra educada pela serpente +nos mysterios da poesia, da arte, da phantasia, da linguagem +alcandorada, nem cogitou de saber se já naquelle tempo, no pincaro da +cordilheira industanica, se fallava o inglez. + +A Samaritana era uma mulher vulgar e desprezivel; Rostand colloca-lhe +nos labios a linguagem sublime dos seus alexandrinos formosos, sem +indagar se, ao tempo de Christo, na Samaria, junto ao poço de Jacob, já +se fallava francez, em verso, de metrica impeccavel e de rima opulenta, +brilhante, artisticamente disposta sob a fórma severa que Boileau, +Corneille e Racine haviam de prescrever 1600 annos depois. + +A critica, porém, mais céga que a minha desventurosa _Talitha_, mais +ingenua que a alma primitiva, mais ignorante que a Samaritana e mais +perfida que a Serpente, a sogra feroz de Adão, occultou o preceito de +Taine: + + «Par cet excès de l'imitation litterale, l'artiste arrive a + produire, non pas le plaisir, mais la répugnance, souvent le dêgôut, + et quelque fois l'horreur. + + «Il en est de même dans la litterature. + + «La meilleure moitié de la poesie dramatique, tout le théatre + classique grec et français, la plus grande partie des drames + espagnols et anglais, loin de copier exactemente la conversation + ordinaire, altèrent la parole humaine de propos deliberé. Chacun de + ces poètes dramatiques fait parler ses personnages en vers, impose a + leurs discours le rythme et souvent la rime. Cette falsification est + elle nuisible a l'oeuvre? + + «En aucune façon. L'experience en a été faite de la maniere la plus + frappante dans une des grandes oeuvres de ce temps, l'_Iphigénie_ de + Goethe, ecrite d'abord en prose et ensuit en vers. Elle est belle en + prose, mais, en vers, quelle diference! Ici, visiblement, c'est + l'alteration du langage ordinaire, c'est l'introduction du rythme et + du mètre qui communique à l'oeuvre son accent incomparable, cette + sublimité sereine, ce large chant tragique et soutenu, au son duquel + l'esprit s'élève au-dessus des vulgarités de la vie ordinaire et voi + reparaitre devant ses yeux les herós des anciens jours, la race + oubliée des âmes primitives, et, parmi elles, la vierge auguste, + interprète des dieux, gardienne des lois, bienfaitrice des hommes, + en qui toutes les bontés et toutes les noblesses de la nature + humaine se concentrent pour glorifier notre espèce et pour relever + notre coeur.» + + H. Taine--op. cit., vol. I, pag. 28 et 29. + +E a critica indigena censura ao obscuro autor da modesta _Talitha_ a +ousadia de ter observado o preceito que Taine, o grande mestre da França +e do mundo, ordena que se faça, exactamente o que fez Goethe para dar +maior valor e mais gloriosa belleza á sua _Iphigenia_; exactamente o que +fez Rostand para poder impôr á civilisação parisiense, na compleição +nevrotica de Sarah Bernhardt, a inferioridade da mulher da Biblia, a +hetaïra da Samaria condemnada ao supplicio da lapidação pelos heliastas +da Judéa. + + * * * * * + +Diante da bondade e em face das virtudes caracteristicas dos personagens +que se movimentam nos tres actos da _Talitha_, a critica sentiu arrepios +de indignação e abespinhou-se: á intelligencia dos censores é +inconcebivel a coincidencia de um encontro simultaneo de cinco almas +igualmente boas, simples, generosas, quasi santas; a sociedade repelle +essa pureza, os factos demonstram o contrario: o autor da _Talitha_ não +observou, phantasiou; o seu drama é um trabalho de gabinete, no ambiente +do mundo real essa hypothese não existe. + +A critica pontificou _ex-cathedra_, infallivel como o successor de S. +Pedro, Vigario de Christo na terra. + +Taine escreveu: + + «Après avoir examine devant vous la nature de l'oeuvre d'art, il + reste à etudier la loi de sa production. Cette loi peut, au premier + regard, s'exprimer ainsi: _L'oeuvre d'art est determinée par un + ensemble qui est l'état général de l'esprit et des oeuvres + environnentes.»_ + + H. Taine.--op. cit., vol. I, pag. 55. + +É a influencia do meio na producção artistica: consequentemente, para +apreciar a obra d'arte, quando é sincera, a critica necessita de +conhecer o meio em que ella foi produzida, o estado geral dos espiritos +e dos costumes em cujo seio o pintor, o esculptor ou o escriptor, pintou +o quadro, esculpiu a estatua, ou escreveu o poema. + +E dos criticos indigenas que se lançaram á _Talitha_, como San Thiago +aos moiros, apenas um viveu temporariamente em Portugal, mas nunca se +perdeu em terras trasmontanas, gastou o tempo nas ruas das cidades +populosas: a aldeia lusitana, se a viu não a estudou, se a estudou +ou não a comprehendeu ou... tresleu. + +De sorte que a critica, severa e exigente, desconhece por completo o +meio que influiu na producção da _Talitha_, não tem noção, sequer, do +estado geral do espirito e dos costumes em cuja atmosphera o obscuro +autor do drama foi buscar os seus personagens: a critica, portanto, é +ignorante e, como todo os ignorantes, é pretenciosa, balofa e +petulantissima. + +Ha doze annos ficou terminado o terceiro acto d'esse modestissimo +evangelho; ha doze annos appareceu pela primeira vez, no Brazil, a +sublime pastoral--_Os Velhos_--de D. João da Camara, cuja acção se passa +em uma aldeia do Alemtejo. + +Quando a critica indigena, do Rio Grande do Sul, assistiu á +representação dessa obra prima, extasiou-se e não viu que na formosa +comedia do mallogrado escriptor portuguez se movimentam, não cinco, mas +nove personagens, nove almas igualmente puras, virtuosas, que em toda a +acção da bellissima pastoral ha um ambiente de consoladora bondade. + +Applaudiu incondicionalmente, sem conhecer o meio em que D. João da +Camara estudou os seus personagens, nem sentiu necessidade de saber qual +era o estado geral dos espiritos e dos costumes que o brilhante +escriptor portuguez reproduziu no palco, para verificar se aquelles +personagens, aquella acção, aquelle ambiente correspondiam á realidade +objectiva da vida aldean no Alemtejo, ou se o dramaturgo phantasiara; se +seria possivel encontrar no fim do seculo XIX, em plena civilisação +occidental europea, reunidas na mesma terra, nove almas puras, +virtuosas, preoccupadas apenas com a pratica do Bem, sem um pensamento +máo, sem uma palavra rude, sem uma acção menos digna. + +Ha nos dois primeiros actos da _Talitha_ uma profunda tristeza, a +amargura soluça em todas as gargantas e no terceiro acto ha uma explosão +de alegria: esse contraste parece exquisito, inverosimil, sem exemplo na +realidade da existencia; todo o drama tem um excessivo perfume religioso +que vae ao exaggero, diz a critica. + +A critica ignora o que sejam na aldeia portugueza o sentimento +religioso, o culto catholico, a tradição christan, porque nunca viveu na +intimidade daquelles lares; o que lobrigou, através da obra suspeita e +viciada de escriptores trabalhados pelo meio social corrompido dos +grandes centros, envenenou-lhe a alma já preparada para receber a +semente do mal e a critica, enfunada de leitura superficial, para +maldizer, deixou-se ficar na commodidade das biliothecas e dos +gabinetes, acceitou as indicações da alma perversa de algum mentor sem +sinceridade, explorador da inexperiencia de creanças talentosas e +esqueceu a lição de Taine: + + «Pour plus de clarté, nous prendrons un cas très simple, simplifié + exprés, celui d'un état d'esprit dans lequel la tristesse est + predominante. + + .................................................................. + + «Il faut d'abord remarquer que les malheurs qui attristent le public + attristent aussi l'artiste. + + «Comme il est une tête dans le troupeau, il subit les chances du + troupeau. + + .................................................................. + + «Sous cette pluie continue de misères personelles, il deviendra + moins joyeux, s'il est joyeux, et plus triste s'il est triste. + Voilá--un premier effet du milieu. + + .................................................................. + + «Car, ce qui le fait artiste, c'est l'habitude de degager dans les + objets le caractère essentiel et les traits saillants: les autres + hommes ne volent que des portions, il saisit l'ensemble et l'esprit. + Et comme ici le caractère saillant est la tristesse, c'est la + tristesse qu'il aperçoil dans les choses.» + + H. Taine--Op. cit., pag. 68 e seguintes. + +Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras: + + «O que deu nascimento, entre elles, á noção de fatalidade é uma + concepção que se refere, não ao futuro, mas unicamente ao passado; o + que é, é, e nenhum poder no mundo poderia fazer que um facto + concluido não existisse.» + + _A poesia e a arte no ponto de vista philosophico._--Cap. II, pag. 50. + +O modesto autor da _Talitha_ não podia fugir á acção do meio em que se +encontrou com os seus personagens, como doutrina Taine, nem se podia +oppôr á verdade: _o que é, é, e um facto concluido, poder algum o annulla_. + +Se o autor transformasse á medida do seu desejo, pensando em ser +agradavel á critica, mentiria á sua consciencia, deturparia as leis da +arte: os zoilos pódem maldizer, á vontade, o autor fica tranquillo e +contente com a fiel observancia das lições de Taine e do escriptor +brazileiro, inspirado na doutrina de Guyau. + +O facto é verdadeiro, era sufficiente que fôsse verosimil: o autor da +_Talitha_ dramatisou-o, traduziu nos seus versos modestos as desventuras +e a redempção dos seus personagens pelo amor, + + «l'amor che muove il sole e l'altre stelle.» + +O seu drama obscuro impressionou e commoveu, tanto basta: a agitação da +critica apenas conseguiu encrespar a vaidosa pleiade de coripheus do +elogio mutuo e a paixão, a animosidade e malquerença politicas. + +Zola pontificou: + + «Il n'est poin't de jeune homme arrivant de sa province qui ne rève + de distribuer des coups de férule. + + «Ces pauvres jeunes gens n'ont souvent pas deux idées nettes dans la + tête. L'experience leur manque. Ils tapent en aveugles. De lá les + jugements extraordinaires qui font resembler notre critique a une + veritables Babel, ou on parlerait toutes les langues, sauf la langue + de verité et de justice qu'il faudrait y parler. + + «Je ne nommerai personne parmi ces jeunes gens. + + «Le vent qui les apporte, les emporte.» + + _Documents litteraires; la critique contemporaine._--pags. 346, 347. + + * * * * * + +O assumpto da _Talitha_ é portuguez, portuguezes são os seus +personagens, portuguez o meio em que a acção se desenvolve, portugueza +foi a atmosphera em que o autor viveu a sua adolescencia e a sua +mocidade: o drama não podia deixar de reflectir + + «l'état général de l'esprit et des moeurs environnantes.» + +De profundas amarguras, de lacerantes provações para o povo portuguez +foi a época dolorosa em que o modesto autor da _Talitha_ aprehendeu em +flagrante o desenrolar da acção dramatica do seu poema lyrico: e essa +éra prolongou-se em uma crise tremenda que acaba de chegar ao seu auge, +a sua maxima intensidade. + +Portugal acabava de receber o _ultimatum inglez_ na questão +pungentissima das possessões africanas, a natureza fôra de uma dureza +extrema: ás innundações dos invernos succedeu a crise agricola que +esmagou a producção vinicola pela invasão phyloxerica, as agitações +politicas ganhavam terreno e a ideia republicana fazia proselytos +ameaçando as instituições monarchico-religiosas de sete seculos e, +em meio dessas provações a Providencia, esquecida da immensa piedade +d'aquelle povo sublime, ininterruptamente demonstrada em uma historia em +que não soffre solução de continuidade o culto da divindade catholica, +fulmina-lhe os homens notaveis e successivamente desapparecem no tumulo: +Fontes Pereira de Mello, Anselmo Braamcamp, Pinheiro Chagas, Guilherme +de Azevedo, Lopo Vaz, Antonio Rodrigues Sampaio, Luciano Cordeiro, +Antonio Ennes, Marianno de Carvalho, Oliveira Martins, Carlos Lobo +d'Avila, Eça de Queiroz, Alexandre da Conceição, Raphael Bordallo +Pinheiro, Gervasio Lobato, Souza Martins, Camillo Castello Branco e +Anthero de Quental imitam o exemplo de Chatterton e atravessam a +luminosa região dos seus cerebros geniaes com a inferioridade +crudellissima de uma bala. + +Da nova geração, Antonio Fogaça, Luiz Ozorio, Antonio Nobre, Moniz +Barreto seguiram a estrada da morte. + +A crise economica era pavorosa, a emigração clandestina assustava os +espiritos mais fleugmaticos, á questão ingleza, seguiu-se a revolta de +31 de Janeiro e a situação geral era tão delicada e complexa que nem o +genio de José Dias Ferreira, nem as combinações politicas de homens como +Hintze Ribeiro e Fuschini conseguiram solver. + +Ao desequilibrio financeiro succederam a questão monetaria e o augmento +da divida publica, fortemente aggravadas as condições do credito publico +pela questão internacional do emprestimo de D. Miguel. E Teixeira Bastos +escreve: + + «Diante do desconsolador espectaculo que apresenta a sociedade + portugueza estrebuchando no esphacêlo, ha quem tenha perdido de todo + a esperança de regeneração; ha quem se persuada que estão + chegados os ultimos dias de Portugal. Com effeito, a agudeza da + crise, que talvez ainda esteja longo de seu termo, justifica em + grande parte este excesso de pessimismo. + + «Portugal, como todas as nações contemporaneas, em maior ou menor + gráo, lucta com uma crise terrivel, que se revela sob aspectos + variadissimos. É uma crise politica, financeira, economica, mas + sobre tudo social e moral.» + + Teixeira Bastos--A Crise, pag. 435. + +Esse estado geral do espirito e dos costumes portuguezes influiu +poderosamente na producção artistica e litteraria d'aquelle tempo e na +que se seguia. + +Na esculptura destaca-se a estatua de _Hermengarda_ em que o talento de +Moreira Rato evoca para o marmore a alma dilacerada da heroina de +Herculano, o pessimista glorioso, o desilludido sublime de Val de Lobos. + +Na architectura não surge cousa alguma que atteste a sublimidade do +caracter nacional e o que havia de notavel, legado e herança do passado, +soffre a influencia do desanimo, da indefferença, da tristeza geral que +domina. + +É de Ramalho Ortigão o que se vae lêr: + + «Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos + os attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a + mais desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos + architectonicos da nação... + + «Dos desacatos de lesa-magestade nacional, a que tenho a dôr e a + vergonha de me referir, uns teem caracter anonymo, outros affectam + directamente a cumplicidade official. Os primeiros são uma + consequencia do desdem: os segundos são um resultado de incapacidade.» + + Ramalho Ortigão.--_O culto da Arte em Portugal_, pags., 19 e + seguintes. + +Quanto á vida e a producção litteraria, o autor da _Talitha_ invoca o +depoimento do grande critico portuguez; é elle quem affirma: + + «Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de + abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver + egreja que os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na + arte de portugal faltam corações portuguezes. + + «Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da + vida intellectual. + + .................................................................. + + «A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de + applicação e de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas + nevoentos, anti-meridional, e vem fallando uma lingua secreta, + cabalistica, interessantemente engenhosa, incomprehensivel para o + povo e para os que não estiverem iniciados na morphologia espiritica + das novas seitas. + + «Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza + de critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de + apagada tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue + vermelho da raça, nem se retrata o genio do nosso povo, meigo, + docil, de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente sociavel, + amando a grande alegria estridente das feiras, das tardes de touros, + das romarias dos seus santos populares, conservando nas intimas + camadas sociaes um residuo trovadoresco, de palladino e de + menestrel, susceptivel ainda das paixões mais profundas, todo de + imposição e repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente + grandes, poetico, aventureiro e destemido. + + «Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola + portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos + artistas, sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes, + sem lição commum, não ha entre elles mutuamente, nem entre elles e o + povo de que derivam, communhão alguma de ideal ou de sentimentos.» + + Ram. Ortigão.--op. cit., pag. 110 e seguintes. + + * * * * * + +Embora modesta a _Talitha_, embora sem merecimento o seu autor obscuro, +como poderiam ambos--drama e escriptor--fugir a esse estado geral do +espirito e dos costumes, de que falla Taine? + +Necessariamente deveriam obedecer á lei, e por isso apparece nos dois +primeiros actos do drama essa dolorida tristeza que é o reflexo da +situação geral da sociedade e que a desventura daquella familia, pela +desventura da pequena Talitha, aggrava e apura com intensidade. + + «D'autre part, l'artiste a été élevé parmi des contemporains + mélancoliques; partant, les idées qu'il a reçu et celles qu'il + reçoit encore tous les jours sont mélancholiques. + + «La religion regnante, qui s'est accommodée au lugubre train des + choses, lui dit que la terre est un exil, le monde un cachot, la vie + un mal, et que toute notre affaire est de meriter d'en sortir» + + H. Taine--op. cit., vol. I. pag. 65. + +Aliás é profundamente melancolica toda a obra litteraria portugueza +desse tempo, muito principalmente na poesia. + +É um soluço de magua--o _Espirito Gentil_--de Luiz Ozorio; formam um +rosario de amarguras--as _Orações do Amor_ de Antonio Fogaça; é um +gemido crudellissimo o _Só_ de Antonio Nobre; é como um echo de +Necropole--_Nada_--de Julio Dantas. + +No theatro, Marcellino de Mesquita lança a _Noite do Calvario_, +reproducção profundamente dolorosa e triste de um acontecimento real da +vida de um lar que o dramaturgo generalisa ás condições da vida social, +aliás já cruelmente desvendada nos _Castros_. + +Para fugir á influencia da actualidade Julio Dantas recorre ao passado, +á chronica, a historia e não consegue eximir-se á impressão da +desventura: _O que morreu de amor_ é uma resurreição esmagadora de +magua; a _Severa_ é um manto de crepe encobrindo um cenotaphio; _O serão +nas larangeiras_ é uma ironia finissima, um esfusiar de espirito que +occulta, mascára, e pinta um immenso abatimento moral. + +Gervasio Lobato passa nesse meio espalhando gargalhadas, ridiculo e +_troça_ sobre a sociedade carcomida pela crise e acabrunha de pilherias +a burguezia e a classe media no _Commissario de Policia_, no _Solar dos +Barrigas_ e na _Lisboa em Camisa_, passando do palco ao romance. + +A _Velhice do Padre Eterno_ é uma _charge_ monumental sobre o +ultramontanismo da sociedade religiosa: a _Patria_ é uma objurgatoria +tremenda, um raio de colera olympica; os _Simples_, constituem um colar +de lagrimas de uma jeremiada genial e as _Orações ao Pão e á Luz_ são as +aspirações tantalicas do genio ao seio da excelsa divinisação da arte, +como refugio extremo de uma alma que foge ás revoltas da terra para não +cahir na lama das decomposições sociaes. + +A _Rosa engeitada_, de D. João da Camara, é a dôr vivendo e esmagando as +almas; os _Velhos_, apezar do seu encanto bucolico e purissimo, é um +crepusculo de sombras dôces. + +A _Cruz da Esmola_, de Eduardo Schwalbach, é a photographia nitida da +tortura e do desespero... + +E tudo isso é a reproducção conscienciosa de um estado de pathologia +social... a menos que a critica não attribua tudo isso á phantasia dos +artistas pelo gozo requintado de esmagar a propria patria ao peso de +calumnias... + +Mas neste caso como comprehender o collossal successo das obras +extraordinarias de Ramalho Ortigão na critica, de Eça do Queiroz ao +romance e de Raphael Bordallo na caricatura, profligando esse estado +geral de espirito e de costumes como Alphonse Karr, Gavarni e Flaubert +na alta cultura genial da França, em plena floração artistica e litteraria? + +O terceiro acto da _Talitha_ não destôa dos anteriores, a unidade não se +quebra, transmitte-se, completa-se: a mesma suave melancolia dos +primeiros conserva-se na narrativa da morte do sargento que _Ruy_ +communica a _Joaquina_ e no _raconto_ que das suas desventuras, faz a +_Marqueza de Rilma_ ao velho cura João Fulgencio. + +A mesma serenidade christan dos primeiros actos paira no terceiro +através da descripção em que _Talitha_, ao som dos sinos distantes da +missa do gallo, conta a _Ruy_ e a _Joaquina_ a sua allucinação +passageira e termina com a _Salve-Rainha_ rezada ao soluçar do orgam e +ao repique da alvorada annunciando a missa d'alva. + +A alegria que vibra n'este acto é mais intensa, realmente, mas n'elle se +encontram trez factos culminantes: a confirmação do noivado de Talitha +pelo perdão da Virgem na visão da missa; a cura radical e milagrosa da +sua cegueira e o apparecimento da mãe tanto tempo perdida. + +Mas a alegria não surge alli de surpresa, repentinamente: no primeiro +acto ella vibra na scena final de amor em que as duas almas que se +comprehendem recebem a benção da velha Joaquina surprehendendo-as na +ventura do seu idyllio, e no segundo acto a primeira scena succede +naturalmente a essa e os dois velhos ligam, plas recordações, a passada +alegria de outros tempos, a que se vae em breve descerrar quando _Ruy_ +levantar definitivamente a venda aos olhos da redimida. + +Ahi a alegria vae á intensidade das lagrimas, é a tristeza que +nasce das extremas emoções da felicidade que não é triste e, se +momentaneamente desapparece quando _Talitha_ se deixa vencer pela fé +religiosa e rompe o juramento de amor para cumprir o juramento do voto +de clausura, de novo se reata e estala em um sorriso de supremo +arrebatamento, quando a piedosa e santa mentira do _Cura_, depois da +confissão, lhe relata o sonho da madrugada anterior em que elle viu +rolar no espaço + + no fulgor de uma estrella o beijo do perdão. + + * * * * * + +A virtude daquellas almas!... + +E porque razão de alta monta o autor da _Talitha_ devia quebrar a +verdade do facto observado, a unidade d'aquelle conjuncto que elle não +phantasiou e que, felizmente, encontrou num dia da sua mocidade, em meio +da crise social moral que caracterizava aquella época dolorosa de +provações populares? + +Introduzir um personagem que não tivesse as mesmas qualidades de +caracter seria deturpar os factos para obedecer ao _métier_, a +carpintaria de theatro vencendo a moral na arte: um cumulo de estupidez. + +Além de tudo, inutil: a emoção dramatica, o effeito theatral são +completos e seguros com a simplicidade daquellas cinco figuras, porque o +Bem, a Virtude e a Harmonia encantam e commovem sempre, em todas as +zonas e latitudes da terra. + +Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras: + + «O artista que emprega suas faculdades ao serviço de uma idéa + generosa não é menos artista por isso, se bem que não seja por isso + que elle é artista. O amor e a intelligencia do bem suppõem uma + concepção superior das condições da vida individual e social que é + preciso desejar a todos os artistas como a todos os homens...» + + .................................................................. + + «Entretanto ha uma observação a fazer neste ponto, é que parece mais + facil pintar o vicio do que a virtude. Balsac, que se sahiu + admiravelmente na pintura dos monstros, encalhava quasl sempre + quando era atacado pelos homens pudicos. + + «Tão verdadeiros e vivos são os seus libertinos da alta o baixa + sociedade, como os outros, na maior parte do tempo, são ternos e mal + acanhados.» + + Op. cit. pag. 32. + +Ainda mesmo quando o autor da _Talitha_ houvesse faltado á verdade dos +factos que observou, teria tentado o problema, na opinião do estheta +brazileiro, mais difficil de resolver: o estudo e a interpretação da +Virtude o do Bem, na psychologia dos cinco personagens que jogam em +scena a acção do seu obscuro poema lyrico. + +A critica indigena, ignorante ou perversa, petulante ou futil, feriu-se +com as proprias armas. + + * * * * * + +Que o autor da _Talitha_, sem prestigio para fazel-o, permittiu-se a +liberdade de escrever um drama em verso, fórma litteraria que está +totalmente banida do theatro moderno, supplantada pela prosa. + + +É outra censura da critica indigena; espera-a a mesma sorte das +anteriores: a critica é vesga e não sabe o que diz. + +Do theatro moderno ainda não foi banida a fórma alta e pura do verso: +semelhante vandalismo seria uma violencia feita á arte, á belleza, ao +bom gosto, á suprema lei do rythmo, para cujo excelso dominio tendem +naturalmente todas as manifestações da vida e a linguagem da poesia do +metro e da rima, a altissima elegancia. + +Moderno é Victor Hugo, gigante de oiro do theatro francez e escreveu em +verso: _Esmeralda_, _Burgraves_, _Ruy Blas_, _Cromwell_, _Torquemada_, +_Grandmère_, _L'Épée_, _Mangerontils?_, _Sur la lisière d'un bois_, _Les +gueux_, _Étre aimé_, _La Forêt-mouillée_. + +Modernos são Paul Delair e Lomon e escreveram em verso os seus dramas +_Garin_, _Jean Dacier_ e _Marquis de Kenilis_ que Zola critica +asperamente na sua obra--_Naturalisme au Théâtre_. + +Moderno é Banville e produziu _Hymnis_, _Riquet à la houpe_ e _Socrates +et sa femme_, tres comedias em verso. + +Moderno é Alphonse Daudet e entre as suas obras figura _Char_, comedia +em verso, em um acto. + +Moderno é Alfred Musset e legou ao theatro da sua patria: _Les marrons +du feu_, comedia; _A quoi rêvent les jeunes filles_, comedia; e _La +coupe et les lèvres_, drama, todos em verso. + +Moderno é Ed. Pailleron e no seu theatro figuram _Narcotique_, comedia +em um acto, e _Hélène_, drama em quatro actos, ambos em verso. + +Moderno é Ludovic Halévy, collaborador de Meilhac, e produziu, em verso, +a _Phryné_ e _Nina, la Tueuse_. + +Modernissimo é Emile Augier, o grande mestre da litteratura dramatica e +da carpintaria theatral e escreveu em verso a maior parte das suas +peças. São em verso: _Cigüe_, _Paul Forestier_, _Homme de bien_, +_Aventurière_, _Gabrielle_, _Joueur de flúte_, _Philiberte_ e +_Jeunesse_. + +Moderno é Catulle Mendés e em 1872 dotou o theatro com a sua comedia em +verso, _La Part du Roi_, em um acto; em 1888 fez representar a sua +formosa phantasia, tambem em verso--_Isoline_, em tres actos; e em 1889 +produziu, ainda em verso, o drama em 6 actos--_Fiammete_; em 1906, punha +em scena no Odéon, o seu drama _Glatigny_, tambem em verso. + +Modernissimo é Jean Richepin e, em 1905, fazia representar na Comédie +Française o seu _D. Quichote_, em verso. + +Modernissimo é tambem André Arnymede, que em 1906 assombrava a critica +parisiense com a representação triumphal de _La Courtisane_, em cinco +actos e em verso. + +Modernissimo é Francis de Croisset e escreveu em verso os tres actos +sensacionaes do Paon que subiu á scena na Comédie Française. + +Modernissimo é Emile Veyrin que viu os seus formosos versos dos quatro +actos de _Embarquement Pour Cythère_, no palco do Theatro des Bouffes +Parisienne. + +Modernissimo é Jacques Richepin e, em Abril de 1907, viu na ribalta da +_Porte St. Martin_, os soberbos alexandrinos da _Majorlaine_, em cinco +actos, depois de haver debutado com os versos admiraveis da _Reine de +Tyr_, no theatro Sarah Bernhardt. + +Moderno é François Coppée, e em 1878, em collaboração com Armand +d'Artois, produziu o drama em cinco actos _Guerre des Cent ans_; em +1879, _Le Trésor_, comedia em um acto; em 1881, _Madame Maintenon_, +drama em cinco actos e um prologo: em 1883, _Severo Torelli_, drama em +cinco actos; em 1885, _Les Jacobites_, drama em cinco actos; em 1880, +_Le Passant_, em um acto; e em 1888, _La Grève des Forgerons_, em um +acto, e em 1905, _Scarron_, em cinco actos: e todos esses trabalhos são +em verso. + +Rostand escreveu todos os seus dramas em verso: _Princesse Lointaine_, +_Romanesques_, _Cyranno de Bergerac_, _Samaritaine_, _Ayglon_ e +ultimamente os tres primeiros actos do _Chant-clair_... + +Miguel Zamacoix acaba de escrever e fazer representar em Paris pelo +genio de Sarah Bernhardt, _Les Boufons_, em verso alexandrino, obra +prima que a critica europea colloca, senão acima, ao lado do _Cyrano_. + +E ainda recentemente, em Outubro de 1906, a imprensa franceza se occupou +de uma outra obra prima do talento de Catulle Mendés, em soberbos +alexandrinos, de um mysticisco celeste, que se intitula _Sainte Thérèse_. + +Na Inglaterra, Robert Browning escreveu a tragedia historica _Strafford_ +e os dramas _Mancha no Brazão_ e _Regresso dos Deuses_, todos em verso. + +Na Italia, Gabriel d'Annunzio escreveu em verso os tres actos da _Filha +de Jorio_, e fez representar por Eleonora Duse o seu grandioso monumento +_Francesca da Rimini_, em verso, como em verso havia escripto pouco +antes o seu extraordinario _Nerone_, o genio brilhante de Boito, e +Cavalloti o seu formosissimo idylio _Cantico dei cantici_, em 1882. + +Na Hespanha, deixando de parte o _D. Juan Tenorio_, de Zorrilla: o +_Trovador_, de Gutierres; a _Roda de la Fortuna_, de Thomaz Rubi, todos +de 1850: Hartzemburch produziu mais recentemente _Los Amantes de +Terruel_; _Alfonso, el Casto_ e _La Madre de Pelagio_, e Echegaray o seu +conhecidissimo _Gran Galeoto_. + +E todos esses dramas são escriptos em verso. + +Em Portugal, João de Deus, o lyrico sublime, escreveu _Horacio e Lidia_; +Eugenio de Castro, o revolucionario de genio, o extraordinario autor da +_Belkiss_ e de _Constança_, acaba de publicar o _Annel de Polycrates_; +Henrique Lopes de Mendonça, o _Duque de Vizeu_ e a _Noiva_: +Fernando Caldeira, a _Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_; Marcellino de +Mesquita, a _Leonor Telles_; Julio Dantas, a _Ceia dos Cardeaes_; +Francisco Palha, a _Fabia_; Luiz de Magalhães, o _D. Quixote_, os dois +ultimos para o Theatro Academico, de Coimbra, todos em verso; sómente +para citar os escriptores da actualidade, deixando de parte _O Catão_ e +a _Merope_ de Almeida Garrett e o _Camões_, de Antonio Feliciano de +Castilho. + +Finalmente: em verso tambem escreveram no Brazil: Gonçalves de +Magalhães, o _Olgiato_; Arthur Azevedo, o _Badejo_; Zeferino Brasil, o +_Outro_ e Coelho Netto, _As estações_. + +A critica, portanto, ou é ignorante ou mentiu propositalmente. + + * * * * * + +Mas a critica adiantou-se ainda: abriu dogmaticamente uma excepção: o +verso em theatro só se admitte para as tragedias historicas. + +Outra cincada. + +Em Portugal, Fernando Caldeira deixou no theatro duas joias preciosas: a +_Mantilha de Renda_ e a _Madrugada_ que nem são tragedias, nem tem +filiação alguma historica. + +Na Italia, Cavallotti legou á lilteratura dramatica um primor de +lyrismo: o _Cantico dei cantici_ que não é tragico, nem historico. + +Em França, Catulle Mendès escreveu, em verso, os tres actos de _Isoline_ +e os seis do _Fiammette_ que nada tem a vêr com a historia, nem com a +tragedia. + +François Coppée produziu _Le Trésor_, _Le Passant_, _La Grève des +Forgerons_, todos em um acto e que não tem a minima relação com a +tragedia, nem o menor vestigio de historia. + +No Brasil, o _Badejo_, de Arthur Azevedo, é uma comedia, o _Outro_, de +Zeferino Brasil, um drama; _As estações_, de Coelho Netto, uma +phantasia, todos em verso, sem relação alguma com a historia ou com a +tragedia. + +A critica indigena + + «appartient à ce monde de paresseux qui font chaque soir une grande + oeuvre, en buvant une chope; seulement, le lendemain, ils ont sommeil + et ne trouvent pas le temps d'ècrire la grande oeuvre. «La vie se + passe, l'âge arrive, ils restent des debutants.» + + Zola, _La critique Contemporaine_, pag. 351. + +Entretanto, René Doumic, um mestre da critica, escreve na _Revue des +Deux Mondes_: + + «Je voudrais seulement que les poètes qui se sentent une vocation + d'auteurs dramatiques ne s'imaginent point que le succès ne peut + être obtenu par eux, à la scène, qu'en nous narrant des histoires + romantiques ou des féeries.» + +E Gaston Sorbets conclúe: + + «M. René Doumic á assurément raison: la poesie dramatique est faite + anssi pour exprimer les mouvements les plus profonds de notre coeur + ou les aspirations les plus hautes de notre âme. Il suffit de voiler + de poesie la Verité nue pour faire de cette divinité une muse + nouvelle.» + +Deixemos vociferar os maldizentes: nós ficamos com os criticos que sabem +sentir e... lêr. + + * * * * * + +Os zoilos que se lançaram á modestissima _Talitha_, censuraram ao seu +autor o atrevimento inaudito de não observar a regra do Theatro francez +de Corneille e Racine, que manda emparelhar systematicamente os graves e +agudos na symetria inalteravel prescripta por aquellas duas autoridades. + +Mas a critica, absolutamente não tem competencia para impôr aos +escriptores brazileiros, por muito modestos e insignificantes que sejam, +as leis e as regras da arte poetica franceza. + +Se a obra d'arte é portugueza ou brazileira, o auctor não se submette ás +leis da poetica franceza: observa os modelos nacionaes e portuguezes. + +E, sem receio de ser contestado por quem quer que seja, o autor da +_Talitha_ affirma: não ha poeta algum na lingua de Camões, quer no +theatro, quer fóra delle, que obedeça ás exigencias das prescripções +francezas, que, aliás, o proprio Corneille, invocado pela critica, não +seguiu nem adoptou na _Imitation de Christ_: + + «Le desir de savoir est naturel aux hommes: + il nait dans leur berceau sans mourir qu'avec eux + mais, ô Dieu, dont la main nous fait ce que nous sommes, + que peut-il sans ta crainte avoir de fructueux? + + Liv. I, Chap. II. + + «Vanité d'entasser richesses sur richesses, + Vanité de languir dans la soif des honneurs, + Vanité de choisir pour souverains bonheurs + de la chair et des sens les damnables caresses. + + Liv. I, Chap. I. + + «Vraiment grand est celui qui dans soi se ravale + qui rentre en son néant pour s'y connaitre bien, + qui de tous les honneurs que l'univers étale + craint la pompe fatale, + et ne l'estime en rien. + + Liv. I, Chap. III. + +Victor Hugo, o mestre supremo, tambem não obedeceu invariavelmente a +esta regra que a critica pretende impôr dogmaticamente, como immutavel. + +Vejamos na _Esmeralda_, acto I: + + «Nous irons au clair de lune + danser avec les esprits... + Vive Clopin, roi de Thune! + Vivent les gueux de Paris! + + «Au milieu de la ronde infame + qu'importe le soupir d'une ame? + Je souffre! oh! jamais plus de flamme + au sein d'un volcan ne gronda. + +Em _La Forêt mouillée_, Scene II: + + «Les moutons promis aux fourchettes + Passent là-bas; j'entends leurs voix + Sonnez, clochettes, + au fond des bois. + Le beau Narcisse est en manchettes; + Silène a mis toutes ses croix. + +Rostand, o impeccavel, na _Samaritaine_, tambem não se subordinou +absolutamente a essa regra, como se vê logo na primeira scena: + + «Poussé par la brise des nuits, + et vagabond jusqu'à l'aurore, + je viens pour des fins que j'ignore, + comme un fantôme que je suis. + D'une sandale sonore + je viens, je glisse et je m'enfuis... + Mais, ô Jehovah que j'adore! + quelle est cette grande ombre encore + qui se tient debout près du puits? + +e assim prosegue o genial poeta em toda essa scena que se compõe de +cento e nove versos. + +E para que não diga a critica perversa que n'esses exemplos não ha +alexandrinos, aqui ficam estes alexandrinos, ainda do I acto, scena V, +em que Photina declama: + + «Mon bien aimé--je t'ai cherché--depuis l'aurore, + Sans te trouver,--et je te trouve,--et c'est le soir; + Mais quel bonheur!--il ne fait pas--tout a fait-noir: + mes yeux encore + pourrent te voir. + +e assim por toda a _fala_ de Photina, gue se compõe de mais de vinte +nove versos. + +Na lingua portugueza, porém, não ha um poeta sequer que obedeça á regra +da metrica franceza, nem no drama, nem no poema. + +Junqueiro, na _Morte de D. João_, na _Musa em ferias_, na _Velhice do +Padre Eterno_, na _Patria_, ou nos _Simples_ usa indistinctamente as +rimas agudas, graves, e esdruxulas, emparelhadas, ou alternadas. + + «O pensamento humano + mergulhou como um Deus nas grutas do oceano, + embebeu-se no azul, andou pelo infinito, + interrogou a historia, os ventos, o granito, + todas as creações, todas as creaturas, + vermes, religiões, abysmos, sepulturas, + e disse-nos: Jesus, Socrates, Platão + fallaram a verdade. Existe uma rasão, + uma ideia, uma lei, mysteriosa, etherea, + que rege o movimento e as formas da materia... + + _Morte de D. João._--Introducção, pag. 31. + + * * * * * + + «Hediondo! assassinar um homem que assassina! + Collocar o direito ao pé da guilhotina. + Resolver a questão do crime--um cemiterio! + Sanccionar Papavoine e decretar Tiberio! + Um carrasco de guarda á nossa segurança! + O pelotão--juiz e o tribunal--vingança! + E é uma coisa que indigna, um facto que comove, + que quasi ao terminar o seculo dezenove + pensem como Marat, pensem como Cain + as leis no velho mundo e o tigre em Bombaim! + + _Musa em férias_; Idilios e Satiras, pag. 137. + +Julio Dantas, o brilhante poeta da _Ceia dos Cardeaes_ tambem não +adoptou a regra que a critica indigena pretende nacionalizar. + + Xerez. + «Roma! Roma que viu, pela primeira vez, + Beneditto XIV, um papa,--a receber + Conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire! + ............................................ + + «As cartas de Voltaire, honram! + ... É natural + fala como francez. + ... Fala como cardeal! + ............................................ + + «Mas perdão... Não será politica de mais + para uma ceia alegre? Emfim trez cardeaes + não salvam Roma... + +Como se vê, Julio Dantas, empregou successivamente dez agudos. + +E esse arrojo do eminente poeta portuguez não impediu que a _Ceia dos +Cardeaes_ tivesse oito traducções em allemão, francez, italiano, +hespanhol e no dialeto catalão, nem evitou que fôsse representada mais +de quatrocentas vezes. + +Entre os poetas brasileiros bastará citar dois nomes de primeira +grandeza: Alberto de Oliveira e Goulart de Andrada; nenhum se submette á +exigencia franceza da critica indigena. + +A _Cruz da montanha_ do primeiro é um poemeto de 126 alexandrinos. Em +toda essa obra prima não ha dois versos agudos e apenas se encontra uma +parelha de esdruxulos. + +Observa-se o mesmo phenomeno em varias outras composições como--_A +Enchente_, com 76 alexandrinos; a _Lagarta_, com 124 versos de vario +metro, onde apenas ha 14 rimas agudas: _Atmo_, com 88 alexandrinos, +entre os quaes apenas dois esdruxulos e nem um agudo. + + * * * * * + +_Ascenção perigosa_, de Goulart, é uma poesia composta de 44 +alexandrinos, dos quaes apenas quatro são esdruxulos e nem um agudo. + +_Apocalypse_ é formado de 158 alexandrinos: nem um agudo, sómente dois +esdruxulos. + + * * * * * + +E a razão é simples, é natural, é formidavel: o idioma francez é +abundantissimo de agudos e o portuguez é, relativamente, pauperrimo. + +Para observar inalteravelmente a regra franceza que a critica pedante e +fátua pretende impôr vaidosamente, depressa ficariam exgottadas as rimas +agudas e o poeta incidiria na repetição das consoantes, o que constitúe +o defeito da pobreza de rimas, acremente censurado pela critica. + +Além disso, os francezes não conhecem as palavras esdruxulas, ao passo +que a lingua vernacula é riquissima d'esses vocabulos e, a ser observada +na poesia dramatica portugueza e brazileira a lei da arte de Corneille e +Racine, os poetas lusitanos e patricios vêr-se-iam obrigados a escrever +alternadamente os seus versos em parelhas systematicas de esdruxulas, +graves e agudas, o que seria, além de fatigante e exhaustivo, de um +rebuscamento torturado, monotono, somnolento. + +O obscuro autor da _Talitha_ preferiu deixar expandir-se naturalmente o +pensamento proprio, de accordo com a alma dos personagens: o verso e a +rima já de si são condições impostas pela exigencia artistica, +apurar essa exigencia com o requinte de uma symetria dispensavel, +equivaleria a torturar os sentimentos das figuras que se movem na acção +dramatica. + +O facto de ser uma regra de Corneille e de Racine tambem geralmente +seguida por outros poetas modernos--o emprego alternado de dois agudos e +dois graves, não evita a monotonia, principalmente quando se traduz o +pensamento de um personagem ou se reproduz um vulto historico: na vida +real ninguem se exprime por essa fórma. + +Entretanto, admittidos geralmente o verso e a rima, o poeta deve quanto +possivel, para evitar a monotonia, variar o rythmo, o metro e o +encadeamento da rima: as difficuldades artisticas e technicas não são +excluidas por esse criterio, conservam-se; a monotonia desapparece e o +pensamento, exprimindo-se com mais liberdade, permitte melhor estudo da +psychologia dos personagens, e mais vigor descriptivo. + +O proprio autor da _Talitha_ verificou praticamente o que acaba de +affirmar quando escreveu a _Visão de Colombo_, em um acto, obedecendo +systematicamente á regra da poetica franceza e emparelhando os +alexandrinos por ordem de rimas agudas, graves e esdruxulas em toda a +extensão do poema dramatico, formado de quatro centos e poucos versos, +sem repetição de rimas. + + +Ramalho Ortigão ensina: + + «não são as academias que pautam as proposições e os limites da + creação artistica. Tudo o que se pode formular em preceito cessa de + ter valor em arte. A obra de arte não é um producto de escola: é a + livre expressão individual de uma alma, convertida em realidade + objectiva e communicando aos homens uma vibração nova de + sentimento. + + «A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua cathegoria, + deduz-se da maior ou menor quantidade de ideias que a sua obra + suggere e dos sentimentos cuja percussão ella determina.» + + Op. cit., pag. 145. + +Adherbal de Carvalho doutrina: + + «É no sentido da liberdade que em geral se faz todo o progresso; é + neste sentido que tambem se deve fazer todo o progresso do verso. + + «A liberdade do rythmo era muito insufficiente entre os romanticos. + Vimos que a consequencia é a pobreza, a esterilidade do proprio + pensamento; porque a forma do verso reage sobre o cerebro do poeta. + O remedio seria a auzencia de estorvo sem fim, a suppressão de + regras não racionadas: liberdade é fecundidade.» + + Op. cit., pag. 282. + +E depois d'essas duas sentenças, atreve-se o autor da _Talitha_ a +perguntar á critica indigena como será possivel arvorar em preceito +obrigatorio de arte poetica da nossa lingua, a regra de Racine e +Corneille, quando a tendencia moderna é para supressão da rima e para a +cultura extremada do rythmo no verso branco? + +A falla de _Cacambo_ e o episodio da morte de _Lindoya_ no _Uruguay_ de +Basilio Gama nada perderam em valor artistico pela falta de rima: o +_Colombo_ de Araujo Porto Alegre encerra verdadeiras maravilhas em verso +branco; Alexandre Herculano, que foi um cinzelador do verso, na _Harpa +do Crente_ deixou primorosos lavores em verso solto. + +Anthero Quental, cujas _Odes modernas_ arrancaram a Michelet uma soberba +explosão de espanto + + «Se em Portugal ainda houver quatro ou cinco homens como o poeta das + _Odes modernas_, Portugal continuará a ser um grande paiz vivo.» + +Anthero legou nessa obra monumental pequenos monumentos em verso branco. + +E para não fallar na _D. Branca_ de Garrett, todo escripto em versos +soltos, bastará citar os livros admiraveis de Correia de Oliveira: _Ara_ +e _Raiz_, demonstração brilhante de que a obrigatoriedade da rima tende +a desapparecer cedendo á liberdade do pensamento. + +O velho mestre Antonio Feliciano de Castilho, na sua Arte poetica, +escreveu: + + «Os versos agudos, pelo seu modo secco estalado de acabar, sem + elasticidade, sem vibração, se assim o podemos dizer, teem o que + quer que seja de ingrato ao ouvido; seriam insoffriveis, se alguem + se lembrasse de nol-os dar enfiados aos centos e aos milheiros, como + os graves nos apparecem, sem nos cançarem: demais por isso mesmo que + os vocabulos agudos são menos frequentes, d'ahi tiram os versos + agudos um quid de exhibição e exquisitice que não parece frisar + senão com as idéas extravagantes, comicas, brutescas ou satyricas. + + «Do expendido por boa razão se infere: l.º que em toda e qualquer + especie de metro são os versos graves que devem, predominar.» + +A critica pretenciosa e petulante indicadora de regras de arte +rebella-se contra a autoridade incontestavel e consagrada de Antonio +Feliciano de Castilho e quer que em versos portuguezes o autor da +_Talitha_ adopte a regra franceza, que equipare agudos e graves e os +manda empregar em numero igual, symetrica e systematicamente dispostos +em parelhas alternadas. + +O autor da _Talitha_ não adoptou a regra de Castilho mas tem ao seu +lado, para apoiarem o seu procedimento, as autoridades dos rebeldes +Junqueiro, Feijó, Luiz de Magalhães, Lopes de Mendonça, Julio Dantas, +Eugenio de Castro, Antonio Nobre, Gonçalves Crespo, Marcellino de +Mesquita, Fernando Caldeira que não a observaram, nem se +submetteram á lei de Corneille e Racine, e, o que é tudo, do proprio +Antonio Feliciano de Castilho que não adoptou a regra franceza na +composição dos alexandrinos emparelhados. + +Isso em Portugal, porque no Brasil o autor da _Talitha_ encontra apoio +para o seu procedimento em Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Goulart de +Andrada, Martins Fontes, Guimarães Passos, Luiz Murat, Machado de Assis, +Valentim Magalhães, Lucio Mendonça, Oscar Lopes, Pereira da Silva, +Emilio Menezes, Frota Pessoa, Flexa Ribeiro, Zeferino Brasil e Coelho +Netto que não consideram a technica franceza como adaptavel ao verso +portuguez, se bem que discretamente observem a opinião de Castilho, +relativamente á proporção das rimas agudas e graves. + +Ora, a critica indigena, ainda rescendendo aos aromas equivocos da +primeira infancia, ha de permittir que o autor da _Talitha_ prefira as +autoridades artisticas de dois hemispherios, acima citadas, ao +impertinente pedantismo da incompetencia de quem, em materia de +autoridade litteraria, não chegou ainda se quer á categoria de +trintanario do _Pegaso_, na estrebaria de Augias. + + * * * * * + +A critica indigena censura a pobreza de rima da _Talitha_: não tem razão. + +A _Ceia dos Cardeaes_ é uma obra prima: assim o prégou a critica, assim +a considera a opinião. + +Pois bem; essa joia tem 338 versos; o primeiro acto da _Talitha_ +compõe-se de 492. + +A _Ceia dos Cardeaes_ tem apenas 66 rimas diversas; o primeiro acto da +_Talitha_ dispõe de 127 rimas differentes: a proporção naquella é de 5%, +nesta é de 25%. + +Na _Ceia dos Cardeaes_ ha apenas 31 rimas que não foram repetidas; no +1.° acto da Talitha ha 80. + +Na primeira, a obra prima, essa proporção é de 9%, na _Talitha_, a +condemnada, a proporção é de 17%. A critica indigena tem cabellos na +lingua e fel no coração. + +A _Samaritana_ é a obra prima de Rostand, assim a julgou a critica +europea, assim a julga o proprio poeta. + +O primeiro acto d'essa joia magestosa tem 808 versos. + +Pois bem: entre esses ha 322 repetições, apenas em 17 rimas. + +Poder-se-ia fazer o confronto dos tres actos: basta esse que ahi fica +para demonstrar que a critica nem soube o que disse, nem sabe o que é +pobreza ou riqueza de rima. + +A opulencia de rima póde ser exigida em composições poeticas esparsas, +que não tenham grande extensão, mas em um poema dramatico essa exigencia +da critica é despotica, é absurda, principalmente quando os personagens +que o movimentam são da especie daquelles que figuram no entrecho da +_Talitha_. + +Collocar nos labios de _Joaquina_ versos de rima escolhida, apurada, sem +repetições de termos que andam constantemente na conversa commum, +substituindo estes por palavras rebuscadas nos diccionarios de rimas, +sómente para que a critica se extasie deante de uma riqueza phantastica, +equivaleria a falsear a natureza intima do personagem e fazer de uma +santa e simples mulher vulgar da aldeia, uma pretenciosa ridicula; a +espontaneidade do escriptor desappareceria para dar logar ao +rebuscamento, o artista seria supplantado pelo artifice, o poeta pelo +rimador, o sentimento pela paciencia. + +A opulencia da rima importaria necessariamente na elevação da +linguagem e a critica deixa de ser logica exigindo por essa fórma o que +já condemnára, considerando alcandorada em demasia para personagens de +aldeia a linguagem que o autor da _Talitha_ confiou a cada um d'elles. + +Nos acontecimentos vulgares da vida de aldeia as palavras são simples, +corriqueiras; o vocabulario dos aldeãos é pouco extenso e +tradicionalmente consagrado: ha phrases peculiares, ha para cada facto +da vida, póde-se dizer, um termo que não se substitue, um conceito +consagrado pelo uso immemorial; o mesmo sentimento, traduzido por outros +termos, em phrase diversa, não é comprehendido. + +O eminentissimo critico e brilhante espirito de estheta brasileiro o +notavel mestre da lingua vernacula, Snr. José Verissimo, doutrina +superiormente: + + «O grande escriptor em todas as linguas é o que escreve e consegue + todos os effeitos da sua arte com o vocabulario corrente, não só do + povo--que é realmente pobre--mas da litteratura do seu tempo.» + + Citação de Elysio de Carvalho no livro--_As modernas correntes + estheticas_, pag. 27. + +Em taes condições, se o dialogo, apezar de ser em verso, deve reflectir, +quanto possivel, as condições normaes da vida e do personagem, attribuir +a este a expressão dos seus affectos, das suas dôres, das suas alegrias, +dos seus desejos ou das suas esperanças, por meio de palavras em rima +opulenta, será desnaturar o personagem, será mentir á realidade, será +phantasiar um typo que a natureza local reproduzida no theatro, não +creou na vida real. + +Comprehende-se essa exigencia na alta tragedia historica ou sacra, ou +ainda nas phantasias mythologicas: alli, sim, a linguagem póde e deve +ser alcandorada sem inverosimilhança, os personagens vem +distinguidos pelo prestigio da historia, da Biblia, do sobrenatural, que +substituem toda a realidade objectiva. + +A admiração, a fé e a idolatria pódem crear os maiores absurdos: Esopo, +Phedro, Lafontaine fizeram falar os animaes em verso sublime, limado, +terso, brilhante, sonóro, de rima opulentissima. + +Zola escreveu: + + «C'est, je le répète, le seul cadre ou j'admets, au theatre, le + dedain du vrai. On est là en pleine convention, en pleine fantaisie, + et le charme est d'y mentir, d'y échapper a toutes les realités de + ce bas monde. + + .................................................................. + + «Jamais les auteurs ne se trouvent acculés par la vraisemblance et + la logique: ils peuvent aller dans tous les sens, aussi loin qu'ils + veulent, certains de ne se heurter contre aucune muraille. + + .................................................................. + + «La comédie et le drame, au contraire, sont tenus à être + vraisemblables.» + + Zola. _Le Naturalisme au théâtre_, pag. 357, 358. + +Mas João de Deus, que foi em Portugal «a mais completa encarnação do +lyrico apaixonado, sem entraves positivos, sem preoccupações +estylisticas visando á erudição», que foi «sentimento singelo, o amor, +esse amor portuguezissimo, em palavras singelas, versos de medida +simples e estylo simples», João de Deus que cantou a simpleza rural da +sua terra, a alma dôce do povo e dos campos, esse «que é o lyrico mais +portuguez» como considera Fidelino Figueiredo, «um grande scismador e um +grande artista, que não tem artificios na sua poesia, singela como todos +os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de +creança, suave e consoladora como uma parábola de Christo, serena e +luminosa como um dialogo de Platão», no dizer profundo de Alexandre da +Conceição, João de Deus não se preoccupou com a opulencia da rima, nem +mesmo quando escreveu para o theatro aquella encantadora phantasia em um +acto _Horacio e Lydia_, romana pelo assumpto, grega pela technica. + +Ora, a _Talitha_ é composta de 1873 versos de varios metros, +predominando o alexandrino. + +Para demonstrar opulencia de rima, o obscuro autor da _Talitha_ reservou +as suas modestas poesias esparsas, entre as quaes figura a _Ode ás +Arvores_, dedicada a Coelho Netto, ode essa que se compõe de 312 +alexandrinos, e não tem sequer uma rima repetida, além da grande +abundancia de vocabulos cuja difficuldade de rima é conhecida. + +Um dos zoilos da Talitha, com o intuito de provar que os tres actos +d'esse evangelho são indigentes de rima, nota que no 2.° acto a palavra +enferma rima com erma e no 3.° acto tambem enfermo rima com ermo. + +E o zoilo exclama: + + «Para _Enfermo_ o poeta encontrou apenas a rima _ermo_, uma rima + pobrissima.» + +Mais pobre de espirito é o critico. + +A _Talitha_ compõe-se de 1873 versos; quatro vezes apenas o maldizente +encontrou a rima em _erma_, ainda assim uma vez no masculino e outra no +feminino, e fulmina a censura: + + «o poeta só encontrou a rima _ermo_ para _enfermo_, rima pobrissima.» + +Ignorante, perverso, futil, ou lorpa. + +Pois bem, o autor da _Talitha_ consultou os diccionarios de rima de +Castilho e de Alencar, duas autoridades na materia, e para _enfermo_ +apenas encontrou _ermo_, _termo_ e _estafermo_. As duas primeiras foram +applicadas, uma no segundo, outra no terceiro acto. + +Quanto á terceira--_estafermo_--o poeta da _Talitha_ só a poderia +utilizar se fizesse referencia ao critico. + +Para agradar á sua opinião e corresponder á sua exigencia, o zoilo +pretende que o autor da _Talitha_ deveria forgicar palavras, +neologismos, sómente com o fim de não repetir a rima! + +Mas se essa rima é pobrissima, que culpa tem o autor da _Talitha_, se a +lingua apenas lhe faculta, além dessa, mais duas, uma das quaes +pertencente ao calão? + +Entretanto o critico mentiu: no segundo acto a rima de _enferma_ é +_erma_; no terceiro acto á palavra _enfermo_ foi dada a rima--_termo_. + +2.º acto, pag. 64: + + «seria bem melhor que cuidasse da enferma, + que vive ali no escuro abandonada e erma» + +3.º acto, pag. 89: + + «de acudir pressuroso ao leito dum enfermo + ardendo em alta febre e bem proximo ao termo + d'uma longa existencia...» + +Eis ahi ao que se reduz a censura do zoilo: á mentira. + + * * * * * + +Por ultimo a critica indigena censura o autor da _Talitha_ por ter +escripto o drama em tres actos afim de apresentar, desnecessariamente, +no terceiro, a _marqueza_, mãe da heroina. + +E a critica, em ar de pilheria, pede um quarto acto para que appareça +tambem o Pae de _Talitha_. + +O autor não teria duvida em satisfazer o desejo da critica, escrevendo +mais dois actos para apresentação da sogra de _Talitha_, se tambem a +critica de outra tempera, a critica elevada e honesta, não houvesse +solicitado a redacção dos tres actos simplesmente aos dois primeiros +para que esse obscuro trabalho + + «seja legado pelo autor ao seu paiz, como um thesouro, refundindo-a, + cortando as scenas a mais, deixando-a nos dois actos primeiros mais + o milagre e a oração; assim _Talitha_ será um primor litterario...» + + Critica da _Tribuna do Rio_. + + + «O drama é magnifico. E porque não dizer o melhor drama que se tem + escripto no Brazil?» + + Critica da _Gazeta de Noticias_, do Rio. + + + «Os tres actos do Sr. Pinto da Rocha dão a quem os ouviu a + satisfação rara e salutar que só produzem as obras de arte, erguidas + severamente com a segurança de que só é capaz a sinceridade.» + + Critica do _Paiz_, do Rio. + + + «...mas os bons versos, as rimas felizes e inesperadas abundam na + peça, que fica sendo um dos mais bellos poemas da nossa litteratura. + + «... pois nao ha muito disso por toda essa America afóra.» + + Arthur Azevedo--Critica da _Noticia_, do Rio. + +Á critica indigena, rasteiramente inspirada pelo odio e pela paixão +politica, o autor da _Talitha_ contrapõe a critica da imprensa do Rio. + +Será vaidosa a citação d'essas opiniões, mas o obscuro autor da +_Talitha_ tem orgulho do seu trabalho e esse orgulho é como a +soberbia das mães que beijam os filhinhos aleijados e loucos, tendo-os +no coração como as imagens incomparaveis da suprema formosura. + +A _Talitha_ não será brasileira porque o assumpto e os personagens são +portuguezes; não será portugueza porque o seu autor não teve a +felicidade de nascer em Portugal, mas... + +Mas a _Talitha_ é mais que portugueza, mais que brazileira, é humana. + +Mas a _Talitha_ é minha... É o producto do meu espirito, do meu +trabalho, é filha da minha mocidade... + +É modesta, é pauperrima, e futil, mas é minha. + +E a critica indigena dos zoilos que produziu? Nada, absolutamente nada; +póde viver noventa annos, como Sárah, não haverá Abrahão na terra que +lhe arranque um Isaac das entranhas... + +Os zoilos são admiraveis, sabem tudo e não fazem cousa alguma. + +Conhecem perfeitamente a patria, sob todos os aspectos, desde a +fecundidade uberrima da terra aos esplendores astraes do céo; desde a +constituição intima da familia á grandeza fulgurante da historia. + +Os primores da paysagem, a belleza e a simplicidade dos costumes, os +encantos da musica popular e da poesia anonyma, a bravura dos homens com +o typo legendario do gaúcho, a formosura das mulheres inspirando os +altos feitos heroicos, o mysterio das florestas que dá o aspecto +profundo á alma do povo, a vastidão das campinas que modela a franqueza +limpida das consciencias, o desdobrar ondulante das cochilhas que +imprime ao typo riograndense a epopeia da nossa historia, os vultos +homericos dos nossos guerreiros, a envergadura dos nossos estadistas, a +intelligencia dos nossos escriptores, a obra dos nossos politicos, tudo +isso a critica dos zoilos conhece... _à merveille_. + +Sabe ella que o verso está banido do theatro moderno e só é admittido +nos assumptos historicos ou nas phantasias caprichosas dos sonhos e +devaneios litterarios; sabe ella que os alexandrinos devem ser +emparelhados á maneira de Corneille e Racine, alternando-se agudos e +graves, na symetria impeccavel de parallelas geometricamente exactas; +sabe ella que o rythmo do verso não deve ser apenas o junqueireano para +evitar a monotonia: sabe ella que a rima deve ser opulenta: sabe que no +theatro moderno a prosa supplanta o verso, porque se presta melhor ás +exigencias do estudo da psychologia dos personagens; que a escola +romantica foi batida pelo naturalismo; que hoje os exemplos a seguir não +são os d'Ennery, os Augier, os Scribe, os Labiche, os Dumas, os Meilhac: +que os modelos acceitaveis são Suderman, Ibsen, Hauptmann Bjornsen; tudo +isso a critica dos zoilos sabe perfeitamente. + +Além disso a critica tem talento, tem erudição, tem admiradores, tem +bibliothecas, tem a vida garantida e facil pela munificencia do thesouro +publico, tem o apoio da sociedade, não sabe o que seja a amargura da +lucta pela existencia... + +Entretanto as horas passam, os dias correm, os mezes flúem, os annos se +succedem e a critica deixa em abandono todo esse material soberbo e +magestoso, esquece todos esses elementos de incomparavel riqueza, e não +produz absolutamente nada. + +Atravessa a existencia, como um janota futil que vive preoccupado com a +coloração garrida das gravatas, com o brilho frio dos collarinhos, com o +figurino do fato, empanturrando-se da leitura _à la diable_, maldizendo +do tudo e de todos e vivendo de um usofructo que a sociedade constituiu +pelo trabalho accumulado exactamente d'aquelles que a critica dos zoilos +alveja, fere, offende e babuja. + +Vive para gozar e maldizer. + +A critica indigena dos zoilos é como o Sahára: esterilidade completa, +beduinos e camellos. + +Á caravana dos zoilos, o deserto e a receita de Ezequiel. + + Pinto da Rocha + + + + +Livraria Chardron + +De LELLO & IRMÃO + +RUA DAS CARMELITAS, 144--PORTO + + GARCIA REDONDO + + Salada de fructas, 500 + Atravez da Europa, 500 + Cara alegre, no prélo + A mulher--manias e cacoetas, no prélo + + MANOEL ARÃO + + Transfiguração, 1 vol., 1$000 + + COELHO NETTO + + Esphynge, 600 + Sertão, 600 + Agua de Juventa, 700 + A Bico de penna, 700 + Romanceiro, 500 + Theatro, 400 + Jardim das Oliveiras, 500 + Quebranto (theatro), 1 vol, 800 + Fabulario, 500 + Miragem, romance, 1 vol., 600 + Apologos, no prélo + Fé, no prélo + Theatro, 1.º vol., no prélo + Mysterios do Natal, no prélo + + JOÃO GRAVE + + Os famintos, 500 + A eterna mentira, 600 + O ultimo fauno, 500 + O Passado, no prélo + + SHAKESPEARE + + Sonho d'uma noite de S. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/28639-8.zip b/28639-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..2d2f07a --- /dev/null +++ b/28639-8.zip diff --git a/28639-h.zip b/28639-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..ae8feca --- /dev/null +++ b/28639-h.zip diff --git a/28639-h/28639-h.htm b/28639-h/28639-h.htm new file mode 100644 index 0000000..0fa5081 --- /dev/null +++ b/28639-h/28639-h.htm @@ -0,0 +1,6838 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" + "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Talitha, por Pinto da Rocha</title> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <meta name="author" content="Pinto da Rocha"> + <meta name="date" content="1909"> + <meta name="publisher" content="Lello & Irmão"> + <style type="text/css"> + @media print { + .pagenum { visibility: hidden;} + } + @media handheld { + .pagenum { visibility: hidden;} + } + body {width: 520px; margin-left: 90px;} + .pagenum {font-size: 0.8em; font-style: normal; color: silver; position:absolute; left: 630px;} + /* body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pagenum { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } +*/ + a {text-decoration: none; color: #000000;} + .small-caps {font-variant: small-caps;} + #preambulo p {padding: 1em; text-align: justify;} + #resposta p {text-indent: 1em; text-align: justify;} + #resposta blockquote {font-size: 0.9em; margin-left: 20%;} + h1, h2 {text-align: center; margin-top: 3em;} + h4 {margin-left: 3em;} + h3 {text-align: center; font-weight: normal;} + h4 em {font-weight: normal;} + p.instruccoes {margin: 2em; text-indent: -2em; text-align: justify;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Talitha, by Pinto da Rocha + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Talitha + evangelho em tres actos + +Author: Pinto da Rocha + +Release Date: April 29, 2009 [EBook #28639] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK TALITHA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + +</pre> + + +<div +style="border: solid 2px #000000; padding: 1em; background-color: #FF7777;"> +<p style="text-align:right; font-size: 1.2em;">Pinto da Rocha</p> + +<p style="text-align:center; font-size: 3em; color: white;">TALITHA</p> + +<div style="width: 50%; margin-left: 50%;"> +<p style="text-align:right;">EVANGELHO EM TRES ACTOS</p> +</div> + +<div style="width: 20%;"> +<p style="text-align:center;">SEGUNDA EDIÇÃO</p> +</div> + +<p> </p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="width: 40%; margin-left: 60%; font-size: 0.8em;"> +<p style="text-align:center;">LIVRARIA CHARDRON</p> + +<p style="text-align:center;">DE LELLO & IRMÃO</p> + +<p style="text-align:center;">C<small>armelitas</small>, 144-Porto</p> + +<p style="text-align:center;">1909</p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 3em; color: red;">TALITHA</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;"><img src="images/autor.png" width="520" alt="Pinto da Rocha"></p> + +<div style="border: solid 1px #000000; padding: 1em;"> +<p>PINTO DA ROCHA</p> + +<p style="text-align:center; font-size: 3em; color: red;">TALITHA</p> + +<div style="width: 50%; margin-left: 50%;"> +<p style="text-align:right;">EVANGELHO EM TRES ACTOS</p> +</div> + +<div style="width: 20%;"> +<p style="text-align:center;">SEGUNDA EDIÇÃO</p> + +<p> </p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="width: 40%; margin-left: 60%; font-size: 0.8em;"> +<p style="text-align:center;">LIVRARIA CHARDRON</p> + +<p style="text-align:center;">DE LELLO & IRMÃO</p> + +<p style="text-align:center;">C<small>armelitas</small>, 144-Porto</p> + +<p style="text-align:center;">1909</p> +</div> +</div> + +<p> </p> + +<div id="preambulo"> +<p>O <em>accordo</em> assignado no Rio de Janeiro, em 9 de Setembro de 1889, +entre o Brazil e Portugal, assegurou o direito de propriedade literaria e +artistica em ambos os paizes.</p> + +<p style="text-align:center;">————</p> + +<p>A presente edição está devidamente registada nas <em>Bibliothecas +Nacionaes</em>, de Lisboa e Rio de Janeiro.</p> + +<p style="text-indent: 0; font-size: 0.8em; width: 70%; margin:auto;">Imprensa +Moderna, de Manoel Lello<br> +R. da Rainha D. Amelia, 61—PORTO<br> +Grande premio na Exposição do Rio de Janeiro de 1908</p> + +<h2>PERSONAGENS</h2> + +<table border="0" cellspacing="2" summary="Personagens"> + <tbody> + <tr> + <td><span class="small-caps">Talitha</span>, céga</td> + <td>18 annos</td> + </tr> + <tr> + <td><span class="small-caps">João Fulgencio</span>, cura da aldeia</td> + <td>80 "</td> + </tr> + <tr> + <td><span class="small-caps">Dr. Ruy de Ornellas</span>, medico</td> + <td>25 "</td> + </tr> + <tr> + <td><span class="small-caps">Joaquina</span>, irmã do cura</td> + <td>65 "</td> + </tr> + <tr> + <td><span class="small-caps">Marqueza de Rilma</span></td> + <td>50 "</td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2">UM ESCUDEIRO—CAMPONEZAS—LAVRADORES</td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p style="text-align:center;">A acção passa-se em uma aldeia da Provincia de +Traz-os-Montes, Portugal</p> + +<p style="text-align:center;">———</p> + +<p style="text-align:center;">ACTUALIDADE</p> + +<h2>INTERPRETAÇÃO</h2> + +<table border="0" cellspacing="4" align="center" summary="Interpretações"> + <tbody> + <tr> + <th colspan="2">NO RIO DE JANEIRO EM 1906</th> + </tr> + <tr> + <td>Talitha</td> + <td><span class="small-caps">Maria Falcão</span></td> + </tr> + <tr> + <td>Joaquina</td> + <td><span class="small-caps">Jesuina Saraiva</span></td> + </tr> + <tr> + <td>Marqueza de Rilma</td> + <td><span class="small-caps">Barbara Wolckart</span></td> + </tr> + <tr> + <td>João Fulgencio</td> + <td><span class="small-caps">Chaby Pinheiro</span></td> + </tr> + <tr> + <td>Ruy de Ornellas</td> + <td><span class="small-caps">Henrique Alves</span></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2"></td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">NO RIO GRANDE DO SUL EM 1907</th> + </tr> + <tr> + <td>Talitha</td> + <td><span class="small-caps">Maria Falcão</span></td> + </tr> + <tr> + <td>Joaquina</td> + <td><span class="small-caps">Maria Pinheiro</span></td> + </tr> + <tr> + <td>Marqueza de Rilma</td> + <td><span class="small-caps">Olivia de Almeida</span></td> + </tr> + <tr> + <td>João Fulgencio</td> + <td><span class="small-caps">Chaby Pinheiro</span></td> + </tr> + <tr> + <td>Ruy de Ornellas</td> + <td><span class="small-caps">João Lopes</span></td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p style="text-align:center;">A <em>Talitha</em> subiu á scena, pela primeira +vez, no Theatro Apollo, do Rio de Janeiro, em Agosto de 1906, na festa +artistica da eximia actriz Maria Falcão.</p> + + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<blockquote style="font-size: small; margin-left: 40%"> + <p>E tomando a mão da menina disse-lhe:<br> + —Talitha cumi:—Filhinha levanta-te.</p> + + <p><em>Novo Testamento.</em> <span class="small-caps">S. Marcos</span>, V. + 41.</p> +</blockquote> +</div> + +<div id="talitha"> +<h1>PRIMEIRO ACTO</h1> + +<p style="text-align:center;">Jardim, na residencia do Cura.—Á direita, um +banco de pedra junto a um poço: á esquerda, frontaria da casa. Grade ao fundo, +com portão.—Vista de estrada e campo.</p> + +<h2>SCENA I</h2> + +<h3><strong>Joaquina</strong> e <strong>Ruy</strong></h3> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Louvado seja Deus! Como está bello e forte!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>É verdade, Joaquina, o clima aqui da terra +encheu-me novamente o coração de alento. +Posso dizer que entrei neste bondoso lar +vigiado, sem dó, pelos olhos da morte. +E agora, a luz do Sol, os perfumes da serra, +as aguas desta fonte, o sadio alimento, +o seu cuidado santo, amigo e tutelar, +fizeram-me robusto.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E Deus não lhe fez nada?<span class="pagenum">{12}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Foi elle quem salvou a minha mocidade, +porque a divina mão que fez os céos e os montes, +que deu flores á terra e deu frescura ás fontes, +que faz vibrar a luz e a voz da passarada, +que impelle a nuvem branca em plena immensidade, +um dia vos creou as almas caridosas +que vivem nesta casa, humildes e serenas, +felizes com o Bem, suaves como as rosas, +mais simples do que o trigo, a neve e as açucenas!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Então, menino, crê tambem que Deus existe?!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>De certo, minha amiga.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E não é um hereje, +dessa raça maldita e negra que desmente +as obras do Senhor?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Ingenua creatura! +É tão alegre a crença e não crêr é tão triste, +que mesmo sem querer o coração da gente +acredita num Deus que todo o mundo rege, +num Pae que assim te deu alma simples e pura! +Faz tanto bem, Joaquina, acreditar em Deus +e adormecer á noite abrindo a consciencia +aos beijos do luar, sorrir de madrugada +á frescura que vem do azul ethereo e vasto,<span class="pagenum">{13}</span> +que o nosso olhar ascende ás amplidões dos céos +sem esforço nenhum, como a espiral da essencia +que se evola da flôr, se a abelha delicada +lhe poisa na corolla o vôo leve e casto!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Bemdito seja Deus! Não póde imaginar +como eu fico contente ouvindo assim fallar!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Mas que idéa fazia então de mim? Julgava +talvez que eu fosse atheu?</pre> + +<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4> +<pre> Deus me perdôe... pensava!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Como poude a sua alma angelica e tão boa +fazer-me, sem motivo, essa enorme injustiça?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Ah! mas não foi por mal, nem o pensei á tôa: +eu nunca o vi rezar, eu nunca o vi na missa... +E a gente vê só cara e não vê corações...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E se o visse, Joaquina!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E que é que me servia +o ver-lhe o coração?<span class="pagenum">{14}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Nada, é certo. Entretanto +conheceria bem as minhas intenções, +a esperança que faz brotar, em cada dia +que passa, um pensamento alegre, puro e santo...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4> +<pre>É, mas diz o rifão que está o inferno cheio +de boas intenções!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Tem razão; mas não minto +se lhe disser tambem, lealmente, o que sinto: +ás vezes mais parece um verdadeiro inferno +este peito infeliz...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4> +<pre> Abrenuncio, menino!... +Mas que blasphemia a sua e que peccado feio!... +Um homem que acredita em Deus, bondoso e eterno, +em Deus Nosso Senhor, não diz tal desatino!... +Virgem Maria! Credo!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Alma boa de santa!... +A tua vida inteira adormeceu. A aurora +já para ti não tem aquelle brilho vivo +que a primavera, em luz, alastra pelos campos... +Tudo se transformou em outra vida; agora +a fonte já soluça, a brisa já não canta; +aos teus olhos a lua é d'um fulgor esquivo, +o sol não tem calor, o céo já não é glastro, +as estrellas febris parecem pirilampos;<span class="pagenum">{15}</span> +trazes o teu olhar constantemente a rastro; +sómente a fé te anima; é por isso que extranhas +o inferno abrasador que muita vez domina +a minha mocidade.</pre> + +<h4>Joaquina, <em>com sorriso</em></h4> +<pre> Isso me bacoreja +algum amor perdido ahi por essas eiras...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>É possivel, quem sabe? Os ares das montanhas +tem caprichos assim, póde bem ser, Joaquina!</pre> + +<h4>Joaquina, <em>cariciosa</em></h4> +<pre>E diga-me, que olhar é esse que negreja +a sua vida alegre? Ha tantas feiticeiras!...</pre> + +<h4>Ruy, <em>enleiado</em></h4> +<pre>Que olhar?</pre> + +<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Mas é segredo?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> É, por ora é segredo...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Ah! não confia em mim?! bem sei, bem sei, tem medo +que eu descubra o mysterio, a princeza encantada +que assim lhe traz a vida em tantas amarguras...<span class="pagenum">{16}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Não é mysterio, não. É... cousa complicada!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Faz muito bem zelar a flôr dos seus amores; +não os conte a ninguem; se acaso as desventuras +lhe roubarem o somno agarre-se com Deus...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>tomando-lhe a mão e fallando-lhe ao ouvido</em></p> +<pre>Reze constantemente á Senhora das Dôres. +Acceite este rosario e tenha-o por bordão. +É bemaventurado aquelle que padece, +porque é delle, menino, o reino azul dos céos... +E Deus a quem promette estende sempre o pão; +reze e será feliz... Essa alma bem merece...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Santa velhinha, santa...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>tapando-lhe a bocca</em></h4> +<pre> E nem um ai, silencio... +Olhe quem vem ali...</pre> + +<h4>Ruy, <em>voltando-se</em></h4> +<pre> O Padre João Fulgencio +e Talitha; meu Deus!... Pobre, infeliz Talitha!...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>a Ruy</em></h4> +<pre>Parece que ficou um tanto atrapalhado...<span class="pagenum">{17}</span></pre> + +<h4>Ruy, <em>encobrindo a verdade</em></h4> +<pre>Sempre que a vejo, assim tão cheia de bondade e +céga...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Então, que sente?...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Uma dôr inaudita, +que reveste de luto as minhas alegrias: + + Ha tanta luz espalhada + na concha astral dos espaços! + E os olhos della tão baços! + E a fronte tão macerada! +</pre> + +<h2>SCENA II</h2> + +<h3>Os mesmos, <strong>Padre João</strong> e <strong>Talitha</strong></h3> + +<p style="text-align:center;"><em>Talitha vem apoiada ao braço de padre +João</em></p> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Pois Deus Nosso Senhor nos dê muitos bons dias.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>assenta Talitha: a Ruy, apertando-lhe a mão</em></p> +<pre>Como passou a noute?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Assim; mais descançado... +Sonhando... E o Senhor Cura?...<span class="pagenum">{18}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Eu? Ah! na minha idade +já se não dorme; eu passo a noute toda em claro, +de rosario na mão, pedindo a Deus por nós! +E quando surge o dia e mal o Sol desponta, +dando o braço a Talitha, encaminho-me á Egreja.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Diz a missa que ou ouço...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> E é raro, muito raro, +voltarmos ella e eu, da Egreja a casa, sós. +Ás vezes vem comnosco esse infeliz sargento +que arrasta por ahi o longo soffrimento, +velho e cego tambem, e eu, mortiça candeia, +a conduzir os dois pelas ruas da aldeia!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Mas o senhor doutor, por mim nunca dei conta, +nem uma vez, sequer, nos acompanhou! Veja! +No emtanto está comnosco ha sete mezes, não?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Isso mesmo eu já disse...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Eu dei a explicação...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>E poder-se-á saber? Não é curiosidade?<span class="pagenum">{19}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Talvez seja, talvez...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Não é!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Então ouçamos!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Eu rezo no silencio o santo sacrificio, +no fundo de minh'alma elevo o meu altar, +sob o docel azul das minhas esperanças!... +</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E eu sem conhecer mais essa novidade!...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Qual?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Esta que o Doutor nos deu, mas aprendamos...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Padre não é sómente aquelle que a rezar +esgota uma existencia ao peso do cilicio +e vae pelas manhans, feliz como as creanças, +curvar humildemente a fronte e a consciencia, +na sombra da capella, aos pés do Redemptor...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Mas ha d'outros, então?<span class="pagenum">{20}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Eu não conheço, filha!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Sacerdote é tambem aquelle que tem culto +ao qual offereceu toda a sua existencia. +Padre, quem se dedica um dia com fervor +a amar alguem na terra a cujos pés se humilha, +tambem é sacerdote...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> E eu, sacerdote, exulto +ouvindo do seu labio esta expressão severa.</pre> + +<h4>Joaquina, <em>que tem guardado silencio, enlevada pelas palavras de +Ruy</em></h4> +<pre>Bemdito seja Deus! menino, quem me dera +conhecer a mulher que tem um filho assim...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Só eu não posso vêl-o!...</pre> + +<h4>Ruy, <em>entre alegre e enleado</em></h4> +<pre> Obrigado, Talitha!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Não tem que agradecer, disse-o sinceramente! +Que póde desejar mais uma céga, diga?...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Mas conforma-te, filha, espera que o Senhor,<span class="pagenum">{21}</span> +ouvindo-me a oração, tenha pena de mim +e acuda com remedio ao mal dessa desdita!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Como eu fôra feliz...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E eu seria contente!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Se pudesse voltar, ó minha boa amiga, +aos seus olhos de céga o perdido fulgor!...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Nunca mais, nunca mais...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Porque é que te condemnas +se toda a nossa vida é uma esperança apenas?...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Se é toda de esperanças esta vida, + já me fugiu aquella que voava + bem junto do meu seio e que roçava + sobre a minh'alma a aza foragida. + + Nem sei onde ella vae, talvez perdida + nao volte a mim por não morrer escrava + na escuridão da noite immensa e cava + dos meus olhos sem luz e sem guarida... + + Nunca mais fulgirás, dôce promessa, + na minha treva densa e prematura, + como o branco luar em noite espessa.<span class="pagenum">{22}</span> + + Se vive, o olhar dos cégos não fulgura, + dorme na sombra e de sonhar não cessa + na tristeza sem fim da noite escura!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Não descreia, Talitha, as suas illusões +não fugiram, por ora, esparsas na lufada! +Quem foi que lhe roubou a ultima esperança, +que braços sem caricia, ou duras privações +lhe puderam vibrar tão rude punhalada? +Pois bem, toda a minh'alma alegre se abalança +a dizer-lhe, Talitha:—o seu formoso olhar +tão cheio de fulgor, um dia ha de voltar...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Só milagre de Deus!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> E Deus póde fazel-o: +é Pae de todos nós!</pre> + +<h4>Talitha, <em>com desanimo</em></h4> +<pre> Tenho rezado tanto!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Implore mais ainda, espere, tenha crença!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Tenho pedido muito e tanto me flagello +que banho as orações nas bagas do meu pranto +e aqueço-as ao calor da minha dôr immensa. +A mesma escuridão tremenda me apavora,<span class="pagenum">{23}</span> +nem um raio do luz, nem um vago lampejo; +nunca mais hei de vêr o campo que se inflora +nem do luar terei um luminoso beijo...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>A tua redempção ainda não surgiu...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>pondo as mãos</em></h4> +<pre>Eu tenho tanta fé!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> O meu presentimento +não sei o que me diz...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Que o coração sentiu, +que a sua alma pensou nessa dôce ventura, +eu creio porque sei quanto é nobre e bondoso. +Mas eu creio tambem que o meu cruel tormento +sómente acabará no chão da sepultura, +onde tudo tem fim, embora tenebroso!...</pre> + +<h4>Padre, <em>olhando o céo</em></h4> +<pre>Perdôa-lhe, Senhor, ella ignora o que diz... +Se tem soffrido tanto esta pobre infeliz!...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Eu sei bem o que disse; a minha crença é essa. +Ha muito que eu imploro ao céo a protecção +e rezo com fervor á dôce Conceição, +pedindo-lhe, a chorar de dôr, que não esqueça +a minha noite escura e tristemente agreste<span class="pagenum">{24}</span> +como a sombra que faz a copa de um cypreste. +Aos pés do seu altar curvei-me como escrava +e emquanto pela igreja o incenso espiralava, +e as simples orações subiam na espiral, +fechei-me na mudez do meu fervor mental +e fiz uma promessa...</pre> + +<h4>Ruy, <em>com interesse</em></h4> +<pre> E então qual foi, Talitha?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Votar a minha vida ao divino serviço, +se um dia terminasse o meu padecimento; +nem peço mais a Deus, é tudo o que cubiço.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E se tornar a ver?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Entrarei num convento +a vestir o burel de freira Carmelita.</pre> + +<h4>Padre, <em>crente, pondo as mãos</em></h4> +<pre>Se Deus te ouvisse, filha!</pre> + +<h4>Joaquina, <em>com uncção religiosa</em></h4> +<pre> E o Bom Jesus quizesse!...</pre> + +<h4>Ruy, <em>com amargura</em></h4> +<pre>Se tivera valor a minha humilde prece!...<span class="pagenum">{28}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>curiosa</em></h4> +<pre>Se tivera valor, que lhe faria, Ruy?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Não pediria a Deus esse milagre extremo...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Porque?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Porque seria arrancal-a da treva +e lançal-a de novo em mais cruel negrura. +Juntando toda a fé que de minh'alma flúe +eu iria pedir, como um favor supremo, +que as almas alevanta e os corações eleva, +que me guiasse a mão na lucida aventura +de devolver-lhe um dia ao seu olhar perdido +aquelle brilho antigo e aquelle ardor de outr'ora +que faziam inveja ao proprio olhar de Flóra!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E seria capaz?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Credo!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{26}</span></p> + +<h2>SCENA III</h2> + +<h3><strong>Padre João</strong>, <strong>Ruy</strong> e +<strong>Talitha</strong></h3> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E tão convencido +estou de que o Senhor a mão me guiaria +nesse instante feliz, que não hesitaria +um momento sequer... A simples catarata +é facil de operar e em dez dias exactos +Talitha voltaria á luz que o céo desata +e que dá vida á terra, aos fructos e aos regatos!... +Pense, Talitha, pense e permitta que eu faça +esse dôce milagre.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> E eu tornarei a vêr +o presbyterio, a fonte, a madrugada, as aves, +as abelhas sugando o mel dos jasmineiros?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Os seus olhos verão a luz da eterna graça +no sorriso gracil da alvorada, ao nascer +nas bandas do oriente em nuvens tão suaves, +como um rebanho astral de timidos cordeiros!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>E que mais hei de vêr?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Que mais? Verá tambem +um velhinho a sorrir com lagrimas na face,<span class="pagenum">{27}</span> +e uma velhinha branca e trémula a chorar, +e ao pé delles, alegre, o olhar de mais alguem, +numa dôce oração tão leve e tão feliz, +como se a propria brisa aqui se demorasse +um momentinho só tambem para rezar!</pre> + +<h4>Talitha, <em>alegre</em></h4> +<pre>E eu voltarei de novo aos encantos da luz? +E hei de vêr tambem o jardim do mosteiro +onde floresce a fé que a nossa vida arrima, +as rosas enfeitando a Virgem que as anima, +o corpo de Jesus exanime e trigueiro, +entre cirios a arder, deitado sobre a cruz?... +E então assim feliz...</pre> + +<h4>Ruy, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> E então, Talitha, e então?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Rezarei pelo Ruy, tão bom, tão generoso, +que trouxe ao meu olhar escuro e tormentoso +a esmola angelical d'um lucido clarão!</pre> + +<h2>SCENA IV</h2> + +<h3>Os mesmos e <strong>Joaquina</strong></h3> + +<h4>Joaquina, <em>entrando</em></h4> +<pre>Padre Cura, uma carta.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Uma carta? Mas donde?<span class="pagenum">{28}</span></pre> + +<p style="text-align:center;"><em>recebe-a e examina</em></p> +<pre>Hum! e de quem será?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Joaquina, dê-me o braço... +</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Joaquina dá-lhe o braço. A Ruy</em></p> +<pre>Dr. Ruy, até já. </pre> + +<p style="text-align:center;"><em>ao cura</em></p> +<pre> Até já, meu Padrinho...</pre> + +<h4>Ruy, <em>que se tem conservado triste</em></h4> +<pre>Talitha!...</pre> + +<h4>Talitha, <em>voltando-se</em></h4> +<pre> Meu Senhor!...</pre> + +<h4>Ruy, <em>indo a ella</em></h4> +<pre> Perdão, Talitha... nada!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Arrependeu-se, não? E tambem não responde... +Desconfia de mim?... Outro tanto eu não faço +Doutor, a seu respeito; eu bem sei, adivinho...</pre> + +<h4>Ruy, <em>com interesse</em></h4> +<pre>Que foi que adivinhou?<span class="pagenum">{29}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>com malicia</em></h4> +<pre> Uma coisa adorada... +que só tres corações conhecem bem: o seu, +o della, e o Senhor que tudo vê do céo...</pre> + +<h4>Ruy, <em>admirado</em></h4> +<pre>Della, Talitha, quem?</pre> + +<h4>Joaquina, <em>com intenção</em></h4> +<pre> Daquella princesinha +d'olhos da côr do céo, vestida de andorinha...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Ouviu, Doutor, ouviu?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Juro...</pre> + +<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Não jure falso!...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>a Joaquina</em></p> +<pre>Vamos, Madrinha, embora: é tempo de almoçar.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>sahem</em><span +class="pagenum">{30}</span></p> + +<h2>SCENA V</h2> + +<h3><strong>Padre João</strong> e <strong>Ruy</strong></h3> + +<p class="instruccoes"><em>Desde que recebe a carta, Padre João lê com a maior +attenção. Pela sua face corre toda a expressão de espanto que vae recebendo. +Quando sahem Joaquina e Talitha, o Padre conclue a leitura e fica a meditar. Ao +approximar-se Ruy, suspende-se.</em></p> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Esta agora é que foi!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E que foi, Senhor Cura?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Quem sabe? Póde ser um pequeno precalço, +mas póde ser tambem que venha de mistura +alguma dôr maior. E não posso evitar!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>O que essa carta diz deixou sua alma afflicta: +um segredo talvez que vive no seu seio?!...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Foi, sim, mas ja não é. Agora só receio +que m'a levem daqui...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Que a levem? quem?<span class="pagenum">{31}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Talitha...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E quem a levará deste remanso augusto? +O convento, a promessa?...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Oh! não...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Não tenha susto! +E quem mais poderá, nesse caso, arrancal-a +do lar em que nasceu?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> A Mãe...</pre> + +<h4>Ruy, <em>surprehendido</em></h4> +<pre> Ah! mas... então...</pre> + +<h4>Padre, <em>baixinho</em></h4> +<pre>Então... já percebeu?! Ella foi engeitada... +Eis aqui o segredo em que esta vida abraço.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>baixa a cabeça, scismando</em></p> + +<h4>Ruy, <em>depois de uma pausa</em></h4> +<pre>Oh! meiga creatura!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> E não poder salval-a!...<span class="pagenum">{32}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Engeitada!...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Sim, sim. Ao romper da alvorada. +Ha muito tempo já. Inda no céo brilhava +a estrella da manhã; vieram procurar-me; +bateram ao portal com desusado alarme... +Ergui-me e fui abrir; a neve branqueava +os campos e eu pensei que um pobre moribundo, +no momento supremo em que deixava o mundo, +quizesse receber da minha propria mão +o balsamo final da santa extrema-uncção, +e abri desta choupana a porta sempre franca. +Parecia o jardim uma toalha branca. +Era um frio cruel, cortava como fôsse +o gume de uma faca e o fio de uma fouce... +Sahi, olhei em roda e já não vi ninguem. +No céo luzia só a estrella de Bethlem! +Não sei porque a fitei nesse feliz momento. +Um silencio profundo amordaçava o vento; +dormia a natureza um somno indefinido, +vibrou então no espaço um timido vagido... +Estremeci de horror...</pre> + +<h4>Ruy, <em>com anciedade</em></h4> +<pre> Era a pobre Talitha?!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Approximei-me e vi, aqui junto do banco +um cestinho de verga envolto em panno branco. +Banhou-me o coração uma dôr infinita. +Na tragica mudez da alvorada deserta +tomei nas mãos, tremendo, a delicada offerta<span class="pagenum">{33}</span> +e agasalhei-a ao peito, assim, para aquecel-a +como quem agasalha o corpo de uma estrella +que tombasse do céo...</pre> + +<h4>Ruy, <em>com mais anciedade</em></h4> +<pre> E esse penhor amigo?!...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>A meu lado cresceu e formou-se o thesoiro, +alma rica de luz, feita de amor e d'oiro. +Parece que ao romper daquella madrugada +tão fria, tão cruel, mas tão abençoada, +que eu lembro com saudade e que inda hoje bemdigo, +teve o banho castalio, o baptismo de luz +da mesma estrella exul que baptisou Jesus. +Por isso é que minh'alma agora não sopita +a magua de perdel-a...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E quem terá coragem +energica e viril de arrebatar Talitha +ao seu amor leal e bom, dôce miragem, +no deserto feliz desta velhice austera?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>A mãe que a vem buscar...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> A mãe não tem direito... +A mãe que engeita a filha é peior que uma fera!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Mas é mãe!...<span class="pagenum">{34}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Sim, será, sem coração no peito.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Engana-se, doutor, a mãe que hoje a reclama, +depois de tanto tempo, é que lhe tem amor...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Como a engeitou, então?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> A fera tambem ama... +Quem sabe o que terá soffrido essa mulher? +Sabe-o sómente o céo, calcule-o quem puder. +E diz-me o coração que vou perdel-a em breve.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Erguendo as mãos ao céo</em></p> +<pre>Não me tires, meu Deus, esse gentil penhor! +Repara que já tenho os cabellos de neve, +tão tremulas as mãos, e os labios descorados, +como sonhos que vão batidos e levados +num extremo soluço... O que eu tenho no mundo, +pouco mais é que um ai e o golpe agora é fundo!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Enxuga os olhos e sáe</em><span +class="pagenum">{35}</span></p> + +<h2>SCENA VI</h2> + +<h3><strong>Ruy</strong> e <strong>Talitha</strong></h3> + +<p class="instruccoes"><em>Ruy vê sahir o Padre e fica pensativo, fitando os +olhos no chão, sentado no banco de pedra. Depois de uma pausa, Talitha desce, +tacteando, até junto delle.</em></p> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Padrinho, então não vem?</pre> + +<h4>Ruy, <em>sobresaltado</em></h4> +<pre> Ah! Talitha...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Perdão! +Pensei que estava aqui...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Já se foi...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Obrigada...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Vae retirar-se</em></p> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Talitha!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Senhor Ruy!<span class="pagenum">{36}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> O seu bom coração +inda não lhe contou, baixo, muito baixinho, +quasi a tremer de medo e susto, um segredinho, +diga, não lhe contou?</pre> + +<h4>Talitha, <em>com muita simplicidade</em></h4> +<pre> Que pergunta engraçada!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E vive então sereno?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Ah! Sim, tenho certeza!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>É bem feliz, Talitha, a sua singeleza! +Outro tanto, porém, ao meu já não succede +que o sinto palpitar acceleradamente, +como quem vae fallar e o soffrimento impede.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Eu bem lh'o disse ha pouco...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Entretanto eu lhe juro...</pre> + +<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4> +<pre>Não jure que é peccado a jura de quem sente +que não diz a verdade. É mais bello e mais puro +não negar.<span class="pagenum">{37}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Tem razão, mas eu não disse, ainda +qual era o juramento...</pre> + +<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4> +<pre> E qualquer que elle seja...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Diga, diga o que sente...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Ha de ser...</pre> + +<h4>Ruy, <em>curioso</em></h4> +<pre> Ha de ser?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Não digo...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Diga, sim, a sua voz bemvinda +ha de me dar a esmola honesta e bemfazeja +que a minh'alma sem luz precisa de viver. +E do seu labio casto apenas um sorriso +vale mais que uma estrella e rasga um paraiso.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Assim o quer, direi; jamais o seu protesto +póde ser verdadeiro...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E porque não, Talitha?...<span class="pagenum">{38}</span></pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Não sei, não sei porque. A jura é como o gesto +que abala fortemente, a nossa vida agita, +mas passa e foge...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Ah! sim, quando falla sómente +o labio, sem fallar tambem o coração... +Ah! de certo que assim o labio sempre mente. +Mas quando o sangue estúa e faz tremer a mão +de quem jura, Talitha, ou quando a fronte em braza, +apenas num momento, empallidece e tomba, +bem como se a roçára a ponta fria da aza +feita de gelo e dôr de alguma extranha pomba, +quando um homem que sempre olhou de frente o sol +tem medo de encarar o olhar de um rouxinol, +e treme até de ouvir-lhe a voz encantadora, +quem sempre ouviu sorrindo a furia rugidora +do vento e dos trovões...</pre> + +<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Então?...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Assim revela +que é grande, generoso e casto o sentimento +que apenas se traduz e que tão mal se vela +na gaze pueril d'um simples juramento!</pre> + +<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4> +<pre>Quem foi que o ensinou a fallar assim?</pre> + +<h4>Ruy, <em>timido</em></h4> +<pre> Digo?...<span class="pagenum">{39}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4> +<pre>E porque não? Quem foi?...</pre> + +<h4>Ruy, <em>timido</em></h4> +<pre> Nem mesmo eu sei, Talitha!</pre> + +<h4>Talitha, <em>insistido</em></h4> +<pre>Nem sabe onde aprendeu?</pre> + +<h4>Ruy, <em>sorrindo</em></h4> +<pre> Quer aprender commigo?</pre> + +<h4>Talitha, <em>ingenua e triste</em></h4> +<pre>Não me quer responder, nem confessa, nem nega... +Se eu pudesse aprender, de que valera á céga +saber fallar assim?</pre> + +<h4>Ruy, <em>triste</em></h4> +<pre> Á céga?</pre> + +<h4>Talitha, <em>simples</em></h4> +<pre> E á Carmelita?...</pre> + +<h4>Ruy, <em>ancioso</em></h4> +<pre>Á Carmelita!... e quem lhe disse que os seus olhos +recuperando a luz, como duas estrellas, +irão illuminar as fragas e os escolhos +das montanhas da Syria, entre as monjas Carmellas? +Quer sepultar-se em vida?<span class="pagenum">{40}</span></pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> E não é cemiterio +maior a escuridão deste pavor funereo, +sem vêr o sol que doira as nuvens do poente, +sem vêr a lua assim como um berço dolente +embalando no azul um sonho que não morre, +não vêr duma colmeia o mel que filtra e corre +como um rio de luz nascendo num enxame, +sentir e adivinhar a suprema belleza +da madrugada em flôr, das noites constelladas, +dos mares e do céo, de toda a natureza, +ter olhos e não vêr, inda haverá quem chame +vida a tal vida? Não! Mais negras, mais cerradas +do que esta noite immensa e triste, sem estrellas, +não póde ser, de certo, a solidão das cellas, +e o sol que tudo aquece, aquecerá de leve +a macerada fronte á monja que não teve +nem um seio de mãe que um dia a amamentasse, +nem a luz d'um olhar na pallidez da face, +e nem um coração...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Talitha!</pre> + +<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4> +<pre> Meu doutor!</pre> + +<h4>Ruy, <em>com intenção</em></h4> +<pre>Um coração?</pre> + +<h4>Talitha, <em>ingenua</em></h4> +<pre> Qual foi?<span class="pagenum">{41}</span></pre> + +<h4>Ruy, <em>tomando-lhe a mão</em></h4> +<pre> O meu...</pre> + +<h4>Talitha, <em>comprehendendo, envergonhada</em></h4> +<pre> O seu?</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Retira a mão</em></p> + +<h4>Ruy, <em>enleiado</em></h4> +<pre> Perdoe.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Pausa prolongada</em></p> + +<h4>Talitha, <em>implorando</em></h4> +<pre>Que mal lhe fiz?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Rasgou-me o coração, Talitha; +e pensará, talvez, que não me fere a dôr +de vêl-o assim rasgar?</pre> + +<h4>Talitha, <em>humilde, implorando</em></h4> +<pre> Mas creia, Ruy, que foi +sem que eu desse por isso. E se o mal está feito +seja agora gentil e não me rasgue o peito. +Esqueça a minha falta, esqueça esta maldita, +não se lembre da céga e deixe-a definhar +na torva escuridão desta noite polar...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E se eu não conseguir tirar do pensamento +o seu casto perfil, celeste e macilento, +se a minh'alma quizer viver escravisada<span class="pagenum">{42}</span> +unindo o meu destino á corrente doirada +que me prende, sorrindo, ao seu cruel martyrio, +se o meu olhar prefere esse apagado cirio +dos seus olhos de céga á lucida manhan +do amor sentimental de alguma castellan, +como esquecel-a então?</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Joaquina apparece ao fundo</em></p> + +<h4>Talitha, <em>triste</em></h4> +<pre> Não creio...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Mas porque? +Já tão cedo a sua alma angelica descrê +da minha que, arrastada á fimbria azul da sua, +por toda a parte a segue e a seu lado fluctua? +Não recorda, Talitha, o dia amargurado +em que eu entrei aqui perdido e quasi morto? +Não se lembra da noite em que eu fui condemnado? +Não se lembra talvez das horas de conforto +que os seus olhos sem luz e a sua bocca em flôr +me trouxeram a rir, como um remedio santo +da minha vida enferma á cruciante dôr? +Não recorda talvez que esse supremo encanto, +essa graça divina, aligera e bemdita +a vida me salvou?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Não creio...</pre> + +<h4>Ruy, <em>curioso</em></h4> +<pre> É tão cruel! +Porque razão não crê, a minha alma fiel +simplesmente traduz o que a sua entendeu?<span class="pagenum">{43}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>com intenção</em></h4> +<pre>Só porque a sua mão na minha não tremeu.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Entretanto, Talitha, eu amo-a...</pre> + +<h4>Talitha, <em>tremula</em></h4> +<pre> Ruy!...</pre> + +<h4>Ruy, <em>apertando-lhe a cintura</em></h4> +<pre> Talitha!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Beija-lhe docemente a mão</em></p> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Ah! E eu sem poder vêr o labio que me beija!... +Que destino fatal, que desgraçada eu sou!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Não foi a minha bocca ardente que a beijou. +Foi o dôce rumor da abelha que voeja +sugando á sua mão de branca flôr de liz +o magico licôr, o aroma delicado, +que vem do rosicler florido e perfumado, +no sangue que palpita em vibrações subtis!!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Mas, Ruy, o seu amor não ve como eu sou pobre!!</pre> + +<h4>Ruy, <em>interrompendo</em></h4> +<pre>Pobre sou eu que peço a esmola angelical +desse affecto gentil que a vida transfigura.<span class="pagenum">{44}</span></pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Tão pobre que não tenho um Pae que me conforte, +nem caricias de mãe que veja esta tortura...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>A sua alma divina essa tortura encobre...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Tão pobre que este olhar perdido é glacial +como um floco de neve, e a desfazer fluctúa...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Os seus olhos sem luz tem mais fulgor que a lua.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Engeitada ao nascer vivo esperando a morte...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Alma branca de luz que illuminaste + a ventura das minhas esperanças, + bemdito seja o véo de negras tranças + que sobre a minha vida desnastraste! + + Bemdito seja nesse dôce engaste + das palpebras subtis brancas e mansas + o mesto olhar que cobre de bonanças + a vida deste amor que tu salvaste! + + És para mim a linha do horisonte, + curva do céo, á noite, constellada, + agua lustral de uma sagrada fonte, + + toda a ambição dest'alma allucinada, + e a nuvem que circumda a minha fronte + como um disco de treva avelludada...<span class="pagenum">{45}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>de mãos postas</em></h4> +<pre>Meu Deus, e nunca mais, nunca mais hei de vêl-o!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Sim, Talitha, verá; o meu maior desvelo +ha de ser o fulgor do seu formoso olhar.</pre> + +<h2>SCENA VII</h2> + +<h3 style="text-align:center;">Os mesmos e <strong>Joaquina</strong></h3> + +<h4>Joaquina, <em>que tem ouvido tudo, feliz e contente, vem descendo com +lentidão e junto de ambos exclama:</em></h4> +<pre>Caia a benção de Deus neste formoso par...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ruy e Talitha, surprehendidos, +afastam-se</em></p> + +<h4>Ruy, <em>recuperando a serenidade</em></h4> +<pre>Talitha assim o quiz!</pre> + +<h4>Talitha, <em>perturbada</em></h4> +<pre> A culpa não foi minha...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>sorrindo e acariciando-a</em></h4> +<pre>A culpada fui eu que te deixei sósinha!</pre> + +<p style="text-align:center;">CAE O PANNO<span class="pagenum">{46}</span></p> + +<p> </p> + +<h1>SEGUNDO ACTO</h1> + +<p style="text-align:center;">Sala de visitas em casa do Cura; tudo muito +simples. Janellas e portas. Um oratorio com lampada. Um pequeno orgam.</p> + +<p> </p> + +<h2>SCENA I</h2> + +<h3><strong>Joaquina</strong> e <strong>Padre João</strong> </h3> + +<p style="text-align:center;"><em>Conversando alegremente</em></p> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Graças a Deus, chegou por fim o grande dia...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>É verdade, é verdade! irmã, quem nos diria +que a linda pequenita...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> A formosa engeitada...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Que Deus nos enviou naquella madrugada +inclemente de inverno...<span class="pagenum">{48}</span></pre> + +<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> E parece-me ainda +vêr a neve a cahir num pó macio e branco +no cestinho de vime, ali, ao pé do banco...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E eu tenho aqui no ouvido aquella prece linda +que rezaste ao Senhor quando ella adormeceu +depois de ter mamado...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E, lembras-te, que fina! +Tão branquinha, tão loira, a rir, tão pequenina!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Se me recordo, irmã!?... Pois então, se fui eu +quem primeiro velou, durante o dia inteiro, +o somno encantador da candida innocente!... +Se me recordo, então?!...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>sorrindo</em></h4> +<pre> Mansa como um cordeiro!... +Mas uma coisa eu sei que esqueceste...</pre> + +<h4>Padre, <em>curioso</em></h4> +<pre> Qual é?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Não te digo, adivinha...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Pausa prolongada</em></p> +<pre> É do primeiro dente...<span class="pagenum">{49}</span></pre> + +<h4>Padre, <em>alegre</em></h4> +<pre>Ó Joaquina! É verdade! O que se fez!... Até +parece que a alegria andava á tentação; +e nós a rir, a rir, a rir perdidamente... +Sempre ha coisas, meu Deus!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> A vida é uma illusão, +ligeira como o vento, ás vezes nem se sente, +não é verdade?</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Pausa</em></p> +<pre> Falla?...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> É, de certo, Joaquina.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Pois então que mal faz que a gente esteja agora +a rir do que lá vae por essa vida fóra?!... +Pois agora é que é rir, que passou a desgraça, +quando a gente é feliz té na morte acha graça.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Por causa desse dente esteve a pequenina +tres dias por um triz...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>triste</em></h4> +<pre> Bem ás portas da morte...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Valeu-lhe a vela benta...<span class="pagenum">{50}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Inda foi uma sorte +eu ter guardado aquella...</pre> + +<h4>Padre, <em>rapidamente alegre, interrompendo</em></h4> +<pre> Ó! mana, e o baptisado?... +Que festa! E que jantar! Aquelle frango assado, +com rodellas de paio; inda me estão lembrando +aquelle arroz de forno e aquelle vinho brando... +Recordas?</pre> + +<h4>Joaquina, <em>com malicia</em></h4> +<pre> Bem me lembro, até nesse jantar +o vinho começou a subir e a trepar...</pre> + +<h4>Padre, <em>interrompendo, com gravidade</em></h4> +<pre>Ó mana...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>saudosa</em></h4> +<pre> E já lá vão uns bons dezeseis annos...</pre> + +<h4>Padre, <em>pensativo</em></h4> +<pre>Mas como corre o tempo!</pre> + +<h4>Joaquina, <em>nostalgica</em></h4> +<pre> E como a gente muda!...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>A vida não é nada! A magua, os desenganos, +a enfermidade e a dôr fazem a gente velha; +e não ha santo algum no céo que nos acuda!<span class="pagenum">{51}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Pois sim, sim, mas depois os filhos vão crescendo +e os paes a cada instante, a rir, vão-se revendo +na luz do seu olhar em que tambem se espelha +o tempo que passou...</pre> + +<h4>Padre, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Como o tempo é cruel! +E aquelle immenso mal que um dia nos feriu?... +Recordas? Que manhã! Mais amarga que o fel!</pre> + +<h4>Joaquina, <em>olhando o céo</em></h4> +<pre>Se me lembro, Senhor, quando ella ficou céga, +que só podia andar guiada por alguem!... +Não hei de recordar? Recordo muito bem! +Quanta vez, coitadinha, a chorar me pediu +que lhe fôsse comprar dois olhinhos melhores +para trocar os della...</pre> + +<h4>Padre, <em>limpando os olhos</em></h4> +<pre> Até se me despega +o coração de dôr!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E nenhum dos doutores +atinou de a curar, nem sequer as promessas +deram com ella a vêr...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Quantas vezes subi +os tres degráos do altar e rezando pedi +ferventemente a Deus, por amor de Jesus,<span class="pagenum">{52}</span> +que lhe tornasse a dar aos seus olhos sem luz +a visão que perdera...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E agora tu confessas +que a sorte a perseguiu sem dó nem piedade, +apezar de ella ser um mimo de bondade?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Confesso. Até que Deus mandou a desventura +da sua juventude a alvorada feliz +desse primeiro amor...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E se Elle assim o quiz!...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Que seja feita a sua energica vontade, +nos céos como na terra e que um dia a tortura +tenha fim!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Pois não teve, afinal?...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Eu não sei... +Dizem vocês que teve e a operação deixou +o melhor resultado...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Elle diz que a curou! +O que elle fez não sei, nem mesmo perguntei +mas que ella torne a vêr...<span class="pagenum">{53}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> É isso o que deseja +a minh'alma sincera, é vêl-a venturosa! +Entretanto, meu Deus, por que Talitha o seja +é preciso, talvez, que a vara da desgraça +me toque o coração e a fonte caprichosa +das lagrimas estale. A dôr que me ameaça +enche-me de pavor. Tenho um presentimento +que me não abandona um dia, um só momento!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Isso não vale nada...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Entretanto eu medito +naquelle casamento.</pre> + +<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> O casamento?...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Sim; +o casamento, sim, que vae arrebatal-a +á nossa pobre vida... Está, porém, escripto, +e Deus que o destinou ha de por fim leval-a +e nunca mais trazel-a aqui, junto de mim.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>E quem nos diz a nós que essa desconfiança +não seja apenas medo?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> O coração, irmã!...<span class="pagenum">{54}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Ah! Sim o coração... o coração tambem cança! +Já não regula o teu, nem serve de evangelho, +é coração de padre e padre muito velho...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Pois bem, não servirá, mas inda esta manhã, +por occasião da missa, as lagrimas vertidas +tombaram-me da face ao calix consagrado, +ao recordar, então, que um dia, angustiado, +hei de vêl-a partir! Como fôram sentidas +essas bagas leaes que, em silencio, chorei +e que juntas ao vinho eu mesmo consagrei! +Eu creio em Deus e espero o golpe do destino +como um favor do céo purissimo e divino!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Descança, meu irmão! O Ruy é bom rapaz, +tem muito amor á gente, ha de ficar, verás! +Parece alma de santo e só pensa no bem.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Póde ser, póde ser, mas recorda tambem +a promessa que fez a nossa pequenita +e, se ella conseguir outra vez a visão, +lá se nos vae embora a meiga Carmelita...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Ah! disso eu não receio; então crês que o convento +tenha força capaz de virar-lhe a razão +o fazel-a esquecer, assim, o casamento?<span class="pagenum">{55}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Mas se não a levar o voto de noviça +ha de a levar o amor que quanto vê cobiça. +De certo a chamará, talvez para bem longe, +a palavra inspirada e convicta do monge +que nos fez o milagre e deu olhos á céga... +É por isso, meu Deus, que est'alma não socega!</pre> + +<h2>SCENA II</h2> + +<h3>Os mesmos e <strong>Ruy</strong></h3> + +<h4>Ruy, <em>entrando</em></h4> +<pre>Bons dias, Senhor Cura.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>A Joaquina</em></p> +<pre> E a mãe Joaquina, então, +como passou a noute? Aposto que sonharam +muito commigo, sim?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Foi tal qual!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Pois eu, não; +tive mais que fazer, dormi regaladinha +durante a noite inteira...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E bem conchegadinha?<span class="pagenum">{56}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Nem mais!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E claro então que nem, sequer, cuidaram +de Talitha...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Cuidei, sim senhor...</pre> + +<h4>Ruy, <em>prazenteiro</em></h4> +<pre> Não entendo... +se dormiu toda a noite...</pre> + +<h4>Padre, <em>a rir</em></h4> +<pre> É, eu não comprehendo +tambem como se possa, a um tempo só, dormir +e velar!... É bem certo o rifão: mais depressa +se agarra um mentiroso...</pre> + +<h4>Ruy, concluindo</h4> +<pre> Exacto; do que um coxo...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ambos riem muito</em></p> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Mas eu é que não sei que tanto tem que rir!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>A Ruy</em></p> +<pre>Nem é da sua conta</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>ao Padre</em></p> +<pre> e nem da sua! Peça<span class="pagenum">{57}</span> +a Deus Nosso Senhor que dê mais tento aos dois:</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>batendo com um dedo na testa</em></p> +<pre>talvez haja por lá um parafuso frouxo...</pre> + +<h4>Padre, <em>com gravidade comica</em></h4> +<pre>Ó mana, isso é demais...</pre> + +<h4>Ruy, <em>abraçando-a</em></h4> +<pre> Não vá subir á serra; +deixemos essa historia a resolver depois +e vamos conversar da luz que se descerra +e que hoje ha de fazer toda a nossa alegria...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Fallava eu nisso mesmo antes da sua entrada.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>E quer saber, menino, o que elle me dizia?...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Pois diga, francamente, e não esqueça nada...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Não havia segredo, era tão natural +e tão simples, meu Deus, o que eu dizia ha pouco...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Deixe-o fallar, menino, anda que é mesmo um louco; +não diz coisa com coisa, a tudo julga mal +e já pelo peior!<span class="pagenum">{58}</span></pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Contando pelos dedos</em></p> +<pre> Primeiro, que a pequena +breve nos deixará, que o Ruy vae desposal-a, +e depois, o convento: ora veja se cabe +uma cantiga assim na cabeça d'alguem? +Se ella ha de preferir aquella quarentena +á casa dum marido!... A mim já não abala +essa ideia!...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ao Padre</em></p> +<pre> Você nunca soube, nem sabe +um marido bonito os encantos que tem...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>A Ruy</em></p> +<pre>Finalmente, receia...</pre> + +<h4>Padre, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Eis onde pega o carro!... +E sabe Deus, Doutor, que se não fôsse a crença!!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Pois bem, Joaquina, diga, em que é que o Cura pensa?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Que depois de casada...</pre> + +<h4>Padre, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Ouça-me então, eu narro: +Receio, é natural, que ella siga o marido, +e venha a solidão morar nesta choupana +onde eu mesmo não sei como tenho vivido! +E que será de mim e que será da mana, +diga-me, Ruy, tambem o que será de nós,<span class="pagenum">{59}</span> +dois velhos, nesta casa, enfermos e tão sós?... +vendo, a cada momento, a lucta nos escolhos +da saudade e da dôr, sem ter no dia extremo +aquella mão leal que feche os nossos olhos?!... +Fique sabendo, Ruy, porque motivo eu tremo...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Sim, mas não tem razão, pensemos na ventura, +nessa immensa ventura...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> É mesmo assim que eu penso...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Que vae sentir Talitha ao vêr a luz do sol, +tantos annos depois de longa noite escura, +envolto o dôce olhar num véo pesado o denso! +Vamos fallar de nós, deste novo arrebol +que nos ha de banhar o coração e a alma, +como um luar de outomno, uma alvorada calma, +quando ella abrir á luz a languida pupilla +dos olhos ideaes, tão doces e tão flavos, +que são como um casal de abelhas que assimilla, +nas flôres dos jardins, o loiro mel dos favos. +Pensemos na expressão que o seu olhar vae ter +quando ella vir ao sol tão brancos os cabellos +do Senhor Cura...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Assim como a neve a descer +sobre a minha cabeça, em flócos e novellos...<span class="pagenum">{60}</span></pre> + +<h4>Joaquina, <em>saudosa</em></h4> +<pre>E nós dois a curvar ao peso da nevada, +o corpo já pendido, a procurar a estrada +que váe á eternidade...</pre> + +<h4>Ruy, <em>interrompendo alegremente</em></h4> +<pre> E já pensou, Joaquina, +no famoso jantar?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Não, depois se combina. +Como faltam ainda uns dias ao Natal +vamos tratar primeiro...</pre> + +<h4>Padre, <em>atalhando</em></h4> +<pre> Isso! do nosso almoço, +porque eu já estou sentindo um enorme alvoroço +cá por dentro.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>A Ruy</em></p> +<pre> Que diz?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Tudo quanto fizer +a mãe Joaquina, está bem feito.</pre> + +<h4>Joaquina, <em>ironica</em></h4> +<pre> Agradecida! +Eu já volto.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{61}</span></p> + +<h2>SCENA III</h2> + +<h3><strong>Padre</strong> e <strong>Ruy</strong></h3> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Então, Ruy, pensou no resultado +que vae ter para nós a sua operação?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Tenho pensado muito e só me felicito: +parece que se abriu um vasto rosicler, +enchendo de perfume o lar da minha vida; +descanta-me no peito o coração alado +tão viva, tão alegre e limpida canção, +que me parece ouvir palpitar o infinito +e a dôce voz de Deus abençoar-me o nome...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Pois bem, Ruy, entretanto a duvida consome +os meus dias; medito e tenho muito medo +de uma lucta que vae ser travada, em segredo, +no seio de Talitha...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E então que lucta é essa?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>O encontro, á luz do Sol, do amor e da promessa. +Conheço-a muito bem. Alma branca de pérola, +possue alguma coisa assim divina e cérula. +Foi creada por mim, na dôce região +em que repoisa a crença á sombra da oração...<span class="pagenum">{62}</span> +e sei que a pobresinha, um dia, prometteu +professar e vestir o burel carmelita, +se a Virgem lhe voltasse o seu perdido olhar. +A Mãe de Deus ouviu a prece, mas agora +que um novo dia aponta a curva azul do céo, +mostrando-lhe o porvir numa formosa aurora +de amor e de ventura, a angelica Talitha +verá, na sua frente, erguer-se e fluctuar, +constante, pertinaz, energica e severa, +a promessa que fez, a consciencia austera +a exigir-lhe que a cumpra e o seu primeiro amor +a sorrir e a tental-a...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Esse mesmo receio +tambem me preoccupa. Eu já presinto a dôr +que vae, como um espinho, amargurar-lhe o seio. +Assim a Providencia ás vezes desconhece +o proprio mal que faz e como que se esquece +da victima innocente e nessa lucta enorme +a desgraça feroz que não cança, nem dorme, +de certo vencerá, se nós que a divisamos +ao longe, no horisonte, a deixarmos crescer +tão alto, que domine aquelle pobre ser. +E preciso pensar e vêr bem se afastamos +da sua intelligencia a ideia do convento, +como se afasta a flôr dos impetos do vento.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E quem terá prestigio e força de arrancar +áquella consciencia, a dôce, a delicada, +a candida expressão da promessa sagrada +que ella espontaneamente ergueu junto ao altar?<span class="pagenum">{63}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Nao desejo arrancar essa illusão formosa +á crença da sua alma... A raiz dessa rosa +não é muito profunda, apenas esbraceja +á flôr do coração, por isso não viceja +ainda como o seio altivo e perfumado +de uma corola aberta!... Um botão delicado +agora principia a despertar á luz... +Dessa casta missão, que moverá Jesus, +sómente, Senhor Cura, a sua phrase austera +se póde encarregar; o prestigio da idade, +a alvura de luar das cans alabastrinas, +a palavra de amor, piedosa e severa, +do seu conselho bom, tão cheio de amizade, +a sua consciencia e as affeições divinas +que avizinham do céo o seu viver de santo, +a fé que o seu olhar inspira a quem o fita, +hão de estancar, por certo, a dôr, fonte do pranto, +nos olhos virginaes da mimosa Talitha.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Sacerdote de Deus que o serve, ha tantos annos, +nas duras provações, na dôr, nos desenganos, +sem nunca haver mentido uma só vez na vida, +tenho medo que a voz de commoção me trema, +que me fuja o valor á hora assim blasphema +de entregar á mentira esta fiel guarida...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Caridosa mentira, ó culpa dôce e casta +que salva uma esperança e mais um anjo afasta +á amargura cruel de um grande sacrificio! +Responda, Senhor Cura, em sua consciencia,<span class="pagenum">{64}</span> +acredita que Deus condemne uma existencia +purissima de flôr, a tamanho supplicio? +Que peccados terá Talitha a redimir +que precise descer em vida á sepultura, +agora que brilhou a estrella do porvir +aos seus olhos, sem luz, na densa noite escura? +Não mente, Senhor Cura, o labio quando salva: +é aspera a mentira e tem a côr terrena, +ao passo que a sua alma é branca, de açucena, +e a sua phrase é sã, é redemptora, é alva! +Em vez de sacerdote, a confessar a freira, +seja Pae que dirige o coração da filha! +Aquelle olhar sem luz, durante a vida inteira, +desviou-lhe a razão para diversa trilha. +Estenda-lhe o seu braço, ampare-a no caminho, +traga de novo a rola ao palpitar do ninho!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E pensa, Ruy, que um Pae, se tiver consciencia, +deva pedir que a filha afaste da lembrança +a promessa que fez, com tanta segurança, +quando implorava a Deus piedade e clemencia?...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Meu amigo, nao vê que esse immenso fervor +nascia do tropel da magua e do pavor? +Que, assim feita, a promessa, além de não ser santa, +as almas enlanguece e os corações quebranta? +Não vê que faltou luz áquella intelligencia? +Que aquella alma vergou á estolida exigencia +do desespero intenso e bárbaro, que a ancia +de revêr inda o sol da sua alegre infancia +envolver-lhe a cabeça em nimbos de ventura +a levaram, talvez, nessa hora de tortura,<span class="pagenum">{65}</span> +á extrema tentação de dar a mocidade +por um dia feliz de viva claridade? +Levita, cuja mão diariamente eleva +ao throno do Senhor a hostia consagrada, +levanta esse sacrario á curva constellada, +a flôr que pede sol não viverá na treva!...</pre> + +<h4>Padre, <em>depois de uma pausa</em></h4> +<pre>Pois seja assim, meu Deus! e tu que o vês perdôa, +porque ha no meu peccado uma intenção tão boa, +tão pura e tão leal, que eu sinto adormecido +o velho coração por nunca haver mentido...</pre> + +<h2>SCENA IV</h2> + +<h3>Os mesmos e <strong>Joaquina</strong></h3> + +<h4>Joaquina, <em>entrando</em></h4> +<pre>Que grandes trapalhões, aqui a badalar +numa palrice enorme e toda a gente á espera +que o doutor mais o cura acabem de fallar...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Por que ha de ser assim tão má e tão severa?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Rabugice de velha!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> É só meu o proveito...<span class="pagenum">{66}</span></pre> + +<h4>Ruy, <em>abraçando-a</em></h4> +<pre>Deixe-o fallar, Joaquina, aquillo é tudo inveja... +da sua mocidade!...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Riem ambos</em></p> + +<h4>Joaquina, <em>entre risonha e severa</em></h4> +<pre> Ai, ai! o malcreado! +Esquece a obrigação e falta-me ao respeito! +E a culpada sou eu! Ora não ha! Pois veja +que emquanto está gastando o seu palavreado, +seria bem melhor que cuidasse da enferma, +que vive ali no escuro abandonada e erma.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E você que fazia?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Eu fui tratar do almoço; +não andei de conversa á espera que o maná +nos cahisse do céo.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Por isso falla grosso!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Não é da sua conta, ouviu? +</pre> + +<h4>Ruy, <em>com a maior gravidade</em></h4> +<pre> Ouvi...<span class="pagenum">{67}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Pois vá +tratar do seu dever porque não faz favor...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Então que succedeu?</pre> + +<h4>Joaquina, <em>amenisando a voz</em></h4> +<pre> É que a pobre pequena +já cançou de esperar e quer vêr se o doutor +lhe permitte que venha até aqui á sala.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Que diz, Senhor Doutor?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Que se Talitha ordena...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Pois faça-se a vontade...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Então, eu vou buscal-a...</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Joaquina sae.—O Padre, ancioso, passeia ao longo da +sala; Ruy, encostado á meza, olha para a porta por onde sahiu +Joaquina.—Pausa cheia de anciedade.<span class="pagenum">{68}</span></em></p> + +<h2>SCENA V </h2> + +<h3>O mesmos, <strong>Joaquina</strong> e +<strong>Talitha</strong></h3> + +<p class="instruccoes"><em>Talitha entra de olhos vendados, pelo braço de +Joaquina. Ruy e Padre vão ao seu encontro e tomam-lhe as mãos para conduzil-a a +uma cadeira. Joaquina, deixando-a, vae cerrar as janellas e portas. Senta-se +Talitha e conversam um pouco.</em></p> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Como te sentes, filha?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Afflicta, muito afflicta +por ver a luz do dia...</pre> + +<h4>Ruy, <em>tomando-lhe a mão</em></h4> +<pre> A mesma curiosa +de sempre!...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Se parece á sua intelligencia +que não tenho razão!... Ha tantos annos céga!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Deixa-o fallar, Talitha, isto é mais tagarella +do que as creanças, vês?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Pois não creia, Talitha!...<span class="pagenum">{69}</span></pre> + +<h4>Padre, <em>tomando Ruy á parte</em></h4> +<pre>Prepare o coração e veja que anciosa +aquella vida está... tenha a maior prudencia!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>É muito natural; só emquanto não chega +o instante de tirar a venda que lhe vela +o dulcissimo olhar...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>A Talitha</em></p> +<pre> Diga, Talitha, ainda +sente alguma dôr?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Não! apenas a impressão +do lenço que me causa a maior afflicção, +a vontade feliz, viva, crescente, infinda +de vêr de novo a luz...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E não ha quinze dias +que lhe descubro a vista?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Ha, sim, mas lá no escuro, +onde eu não vejo nada...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Assim é que convem... +Depois de tanto tempo, então, já pretendias +vêr livremente o sol? Seria prematuro...<span class="pagenum">{70}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>É muito perigoso!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E sentia-se bem? +Chegou a distinguir, alguma vez, o aspecto +ou a forma geral de qualquer um objecto?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Muitas vezes, pois não; primeiro vagamente, +depois com nitidez.</pre> + +<h4>Padre, <em>alegre</em></h4> +<pre> Mas então a doente +Recuperou a vista!?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Abençoada a hora +em que o menino entrou nesta pobre choupana!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Agradeçam a Deus!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Doutor, porque demora +esta venda cruel que o meu olhar empana?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Pois diga-me primeiro o que pensa de mim.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Que é muito feio e máo...<span class="pagenum">{71}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Bem feito!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E da Joaquina?...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Penso della que é santa e que tem de setim +côr da neve o cabello, a pelle muito fina, +como eu creio que são as santas da capella.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E o nosso Padre-cura?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Um velhinho bondoso, +que vive para o bem e sobre os pobres vela! +Supponho que elle tenha a cabeça bem branca, +o olhar muito suave e d'expressão tão franca, +que appareça na face enrugada e senil +a dôce candidez da sua alma infantil... +E, cogitando assim, parece-me que vejo, +dos altos de uma torre, a uma enorme distancia, +como um jardim florido, a minha dôce infancia +vicejando a sorrir, a sombra do seu braço, +e o seu olhar de Pae enchendo todo o espaço +de luz, de muita luz, tão dôce e tão leal, +como o luar banhando as ondas de um trigal +numa noite estreitada, e o sangue me palpita +no seio, e o coração ardentemente agita +na immensa anciedade afflicta e pressurosa +de poder innundar a sua mão rugosa +de lagrimas febris e de beijos sem fim.<span class="pagenum">{72}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Tantas coisas ao Cura e nada para mim!...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Exactamente, Ruy; a saudade de vêl-o +augmenta a cada instante o meu triste flagello, +porque nos braços delle um dia adormeci +e não despertei mais... e ao Ruy...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>baixando a voz</em></p> +<pre>eu nunca vi...</pre> + +<h4>Ruy, <em>com caricia</em></h4> +<pre>Pois vae tornar a vêr a boa da Joaquina +que a trouxe ao collo, a rir, quando era pequenina.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Aproxima-se de Talitha para tirar-lhe a +venda</em></p> +<pre>Vae vêr o Padre-cura e matar os desejos +de lhe cobrir a face e as mãos de muitos beijos... +E vae me conhecer...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Tira-lhe a venda</em></p> + +<p class="instruccoes"><em>Silencio. Commoção geral. Talitha, acostumada á +treva, não supporta a luz; tapa os olhos com as mãos; depois +habitua a vista, levanta-se, olha, procura anciosamente. Antes de +Talitha distinguir cada uma das pessoas, encanta-se com a luz e +com os objectos.</em></p> + +<h4>Talitha, <em>á luz, correndo á janella</em></h4> +<pre> Céos! Vejo novamente +a luz que me faltou durante a meninice! +Ó Sol da minha infancia, a sorrir de contente<span class="pagenum">{73}</span> +torno a vêr-te de novo. Azul do céo, meiguice +que ha muito não beijava o meu perdido olhar, +como deves ser lindo ao dôce despontar +da madrugada clara!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ao oratorio</em></p> +<pre> Oratorio velhinho, +junto ao qual, em pequena, eu tanto vez rezei, +como sinto vontade, agora que revejo +o teu branco Jesus, do amor e do carinho +com que pela manhã e á noite eu te beijei, +e hoje, meu velho amigo, a estremecer te beijo!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Passa as mãos nos olhos, como para +certificar-se que vê bem</em></p> +<pre>Mas parece-me um sonho!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Pausa. De novo esfrega os olhos</em></p> +<pre> Eu já não sou a céga...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Pausa</em></p> +<pre>Eu vejo tudo...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Estaca; olha as paredes</em></p> +<pre> Sim, sim tudo...</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Olha para o tecto, baixa os olhos ao chão, volta-se +para os lados, palpa as cadeiras, palpa a meza, corre á +commoda</em></p> +<pre> Eu não me engano. +Eu vejo a minha mão!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Olha para as mãos</em></p> +<pre> Mais branca do que o panno<span class="pagenum">{74}</span></pre> + +<p style="text-align:center;"><em>pega o avental e examina</em></p> +<pre>do meu lindo avental!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Põe a mão sobre o peito, como que +desmaiada</em></p> +<pre> Ah! coração, socega...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Neste momento Joaquina, receiando que Talitha +caia, corre para amparal-a, dizendo</em></p> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Credo! Jesus, Senhor!</pre> + +<h4>Talitha, <em>como que acordando aos gritos de Joaquina, ao vêl-a tem uma +commoção e exclama</em></h4> +<pre> Joaquina! ó boa e santa +velhinha, dôce mãe que tanta dôr e tanta +lagrima derramaste, aos pés do meu bercinho!...</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Vendo o Cura, lança-se a elle, soluçando; abraça-o, +beija-o, vê-o, chora, ri, torna a abraçal-o, doida de alegria</em></p> +<pre>Mas como eu sou feliz, meu Pae, meu Avôsinho!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Deixa afinal o Cura e corre para Ruy</em></p> +<pre>E Ruy que me salvou...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Vae para abraçal-o, estaca: o pudor impede-a; +baixa os olhos, em silencio</em></p> +<pre> Ah!... Ruy... eu nunca o vi!...<span class="pagenum">{78}</span></pre> + +<h4>Padre, <em>soluçando e enxugando as lagrimas, aproxima-se della, toma-lhe a +mão e leva-a junto de Ruy</em></h4> +<pre>Beija-o, Talitha; beija, elle é digno de ti, +emquanto eu vou render a Jesus Christo, filha, +graças por essa luz que nos teus olhos brilha.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Sae, enxugando os olhos</em></p> + +<h4>Joaquina, <em>a Ruy</em></h4> +<pre>Á Virgem prometti uma lampada accêsa +durante uma semana, e por sua intenção, +se Ella daqui levasse as dôres e a tristeza, +fazendo este milagre. Hei de accender o azeite +e rezar a seus pés, com toda a devoção, +pedindo á Virgem Mãe que este meu voto acceite. +Louvado seja Deus! O Céo vos abençôe!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Sae</em></p> + +<h2>SCENA VI</h2> + +<h3><strong>Talitha</strong> e <strong>Ruy</strong></h3> + +<p style="text-align:center;"><em>Depois de uma pausa prolongada</em></p> + +<h4>Talitha, <em>sempre pudica</em></h4> +<pre>Porque me encara assim? Offendi-o? Perdôe.</pre> + +<h4>Ruy, <em>caminhando para ella</em></h4> +<pre>Fitei-a porque sinto o brilho desse olhar, +como um rio de luz suavissima, innundar<span class="pagenum">{76}</span> +a minha mocidade inhospita e sombria, +num banho redemptor de dôce calmaria. +E parece-me vêr a sombra avelludada +da sua fronte branca, e pura, e macerada, +fugir espavorida á luz desse clarão...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Que eu devo tão sómente á sua compaixão...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Esqueça que fui eu...</pre> + +<h4>Talitha, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Não sei como se esquece...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Então recordará, por toda a sua vida, +o nosso amor feliz?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> A sua alma duvida?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Eu não duvido, eu peço, e vae na minha prece +quanto minh'alma tem de puro sentimento...</pre> + +<h4>Talitha, <em>curiosa</em></h4> +<pre>Na sua prece?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Sim, tão cheia de fervor +como a casta oração que a sua crença augusta<span class="pagenum">{77}</span> +soluça de manhã, mais triste que um lamento, +que vae, azul em fóra, ao throno do Senhor, +no murmurio subtil dessa bocca venusta.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Eu nunca olvidarei a dulcida ventura +daquella noite densa, atormentada, escura, +em cujo manto negro a sua mão bondosa +rasgou a dôce aurora alegre e luminosa... +O caridoso amor, que os seus labios deixaram +gravado nesta mão que tanta vez beijaram, +foi um sonho feliz numa noite polar, +sonho de primavera em noite sem luar: +nunca mais sahirá d'entre as minhas lembranças. +Como um beijo de mãe na face das creanças, +a primeira affeição nunca se desvanece, +é como a flôr da lenda: a todo o instante cresce! +Se eu a esquecesse, Ruy, como seria ingrata!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Talitha, minha vida, a densa cataracta +não poude escurecer a lucidez suprema +da sua alma christã, que vale um diadema +de rainha e de santa, a cujos pés se inclina +a minha alma que vae sobre a esteira argentina +que o seu vestido traça ao longo da jornada, +como no azul do mar as velas da jangada...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>E se a vela, batida ao vento da desdita, +levar á sombra eterna essa infeliz Talitha +que a sua mão salvou da mesma sombra eterna?<span class="pagenum">{78}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Irei onde ella vá. Se a aragem fôr galerna +e o nosso amor levar a gondola encantada, +sobre o dorso da vaga em branca espumarada, +eu seguirei, sonhando, á prôa, na epopêa +que o seu divino olhar de candida sereia +ha de inspirar, sorrindo, a quem o illuminou. +Se o vento arremessar a vela que enfunou +á rude penedia e sossobrar a barca, +hei de salvar, então, a pequenina arca, +onde vive encerrada a pomba da alliança, +que faz do nosso amor uma alegre esperança!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Apenas esperança, e nada mais! A vida +é um sonho que passa e foge; perseguida, +occulta-se a esperança á sombra de um asylo, +tão occulto tambem que, para descobril-o, +desfaz-se muita vez ou rasga-se em pedaços +a nossa fé mais pura e a crença, em estilhaços, +desapparece e vae, por esse mundo fóra, +como nuvens no céo ao despontar da aurora...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Porque razão, Talitha, os nossos pobres sonhos +não poderão florir, alegres e risonhos, +á plena luz do Sol?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Sonhos são illusões +que a madrugada esbate em limpidos clarões, +e nada mais... Talvez as suas, sim!... As minhas +irão fazer o ninho á sombra... As andorinhas<span class="pagenum">{79}</span> +tem que mudar de clima ao começar o inverno, +levando para longe o seu amor materno... +A minha acostumou-se á sombra da cegueira: +se na sombra passou quasi uma vida inteira! +Na sombra adormeceu, na sombra soluçou +e na sombra sorriu... A sua mão rasgou +este sulco de luz no meu perdido olhar, +e a triste, acostumada á sombra tumular, +fugiu espavorida ao lucido lampejo +e tão distante foi, que nem sequer a vejo...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>É o receio infantil que vem da escuridão! +A esperança, Talitha, ainda um só instante +não sahiu do calor que faz do coração +o ninho aconchegado, o berço palpitante +e o sacrario fiel do nosso casto amor! +Na sombra nasce, e cresce, e vive tanta flôr +sem perder o perfume!... E a esperança, Talitha, +é o perfume do amor, a essencia que dormita +serena e só desperta ao carinhoso afago +dum beijo a murmurar em sonho dôce e vago...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Mas antes que o murmurio a despertasse, a luz +do sol lhe recordou que aos olhos de Jesus +e aos pés de sua Mãe ella havia ajoelhado +no fervor da oração, em dia torturado, +prendendo a vida inteira ao brilho de um olhar. +Entre nós dois agora eleva-se um altar, +e eu vejo-me prostrada e envolta no burel, +sorrindo para o céo, por ter sido fiel +á promessa que fiz...<span class="pagenum">{80}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E o nosso amor, Talitha, +não foi uma promessa?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Ah! foi, mas a desdita +lançou-lhe a maldição no dia em que nasceu +e o nosso puro amor agora feneceu.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E a tua mão divina, angelico florão +de algum ciborio astral, a tua mão de rosa +e jaspe é que me vem ferir esta affeição +que banhava em frescor a vida bonançosa +deste meu sonho azul!... Mas quando, em nostalgia, +á sombra do mosteiro, a tua phantasia +volver para o passado esse formoso olhar +tão cheio de candura e te fizer sonhar; +quando a espiral do incenso á curva do docel +subir da tua mão occulta no burel, +como a dôce expressão duma saudade immensa; +quando á noite o luar, vencendo a treva densa, +entrar na tua cella e fôr beijar-te a face, +como se por ventura envolta nelle entrasse +a minh'alma saudosa a visitar a tua: +quando esse olhar divino, em cuja luz fluctua +a pureza vestal da tua castidade, +sorrindo, remontar á dôce claridade +das estrellas no céo, minha gentil Talitha, +recorda o nosso amor, formosa cenobita, +e pensa na tortura intermina e profunda +desta vaga de fel que a minha vida innunda, +medita nesta noite atroz, que me apavora, +e tu me dás em paga a fulgurante aurora<span class="pagenum">{81}</span> +que o meu amor te deu, sorrindo de ventura... +Bemdita seja a treva, a noite de amargura, +bemdita seja a dôr, para sempre bemdita, +que vem da tua mão, angelica Talitha!</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Talitha, em lagrimas, soluça. Ruy vae para sahir e +encontra o Padre que entra. Pausa, durante a qual o Padre, mudo de dôr, fita os +olhos, ora em Talitha, ora em Ruy.</em></p> + +<h2>SCENA VII</h2> + +<h3>Os mesmos e <strong>Padre</strong></h3> + +<h4>Padre, <em>junto de Talitha</em></h4> +<pre>Porque choras, creança?</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ruy, cabisbaixo, medita. Pausa, durante a +qual se ouve o soluçar de Talitha.</em></p> +<pre> O teu silencio abala +toda a minh'alma, filha; abre os teus labios, falla...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Silencio. A Ruy</em></p> +<pre>A sua commoção... Ruy! Mas que succedeu?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Foi mais uma illusão que se desfez... morreu!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{82}</span></p> + +<h2>SCENA VIII</h2> + +<h3><strong>Padre</strong> e <strong>Talitha</strong></h3> + +<h4>Padre, <em>abraçando Talitha</em></h4> +<pre>Não te apoquentes, filha! A dôr que te devora +eu já previra ha muito. A noite tambem chora +no calice da flôr, e o céo que tem a luz +das estrellas sem fim, chorou, quando Jesus +abriu por sobre a terra a sombra dos seus braços, +abençoando a dôr que vaga nos espaços... +Mas os teus olhos, ha pouco illuminados, +não devem, por emquanto, andar annuviados +que se pódem cegar de novo, sem remedio...</pre> + +<h4>Talitha, <em>rapidamente, entre alegre e chorosa</em></h4> +<pre>Então se eu lhe pedisse...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> O quer que seja, pede-o... +Pede, Talitha, pede, e poupa o teu olhar...</pre> + +<h4>Talitha, <em>lacrimosa</em></h4> +<pre>Pois bem, eu pedirei, que deixe-me chorar!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Não te apavora a noite immensa e tenebrosa?!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Não me amedronta mais! A lua carinhosa +vive na escuridão. Fui tão feliz na treva<span class="pagenum">{83}</span> +que chego a ter saudade e o coração me leva +a pedir que me deixe ind'outra vez banhar +na sombra eterna e mésta a luz do meu olhar...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Que blasphemia, Talitha!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> O meu labio não erra, +e o que elle disse, Padre, o meu fervor encerra.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Medita, minha filha, e Deus Nosso Senhor +envolva a tua crença em seu divino amor!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Pois ouça-me um instante a confissão singela +da incomparavel dôr que a minha vida gela:</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Padre senta-se e Talitha ajoelha-se ao +lado</em></p> +<pre>Tinha soffrido muito; o immenso desespero +de um dia de tortura, afflictivo e severo, +me fez allucinar e, erguendo para os céos +as mãos de quem supplica, eu implorei a Deus +clemencia a tanta dôr. A noite de flagicio, +que dava á minha vida o aspecto de um supplicio, +parecia sem fim, sem luz e sem aurora. +E, como a flôr que á noite exhala, espaço a fóra, +o aroma delicado e puro do seu seio, +vencendo o meu temor e o natural anceio, +eu dei, como penhor da luz que supplicava, +a minha mocidade e o porvir que eu sonhava; +e prometti á santa e casta Samarita<span class="pagenum">{84}</span> +votar-me para sempre ao burel carmelita... +Mas presenti, depois, que dentro de minh'alma +despontava, sorrindo, uma esperança calma +que innundava de luz o coração da céga, +e commigo pensei:—Deus, de certo, não nega +que veja agora a luz quem sempre foi escrava: +e nesse pensamento a vida concentrava. +Foi quando Ruy me fez a esmola caridosa +de uma dôce affeição que tem a côr da rosa; +e, sem pensar, jámais, em vêr de novo o mundo, +o meu amor cresceu e fez-se tão profundo +que para desprender-lhe as tumidas raizes +eu rasgarei, talvez, mais largas cicatrizes... +Depois a mão de Ruy abriu para os meus olhos +o véo da madrugada e eu vi sobre os escolhos, +toda em pedaços feita, a minha pobre herança, +perdida para sempre a querida esperança +que eu havia sonhado em dias de cegueira... +Se sacrifico o amor pelo burel de freira +eu desço á sepultura em plena mocidade; +se não cumpro a promessa e minto á santidade +do voto que levei á pedra de um altar, +não devo conservar a luz do meu olhar +e rogo novamente a Deus que m'a desfaça +e á Virgem que conceda a pequenina graça +de receber de novo esse penhor tão puro, +deixando-me, outra vez, o mesmo olhar escuro!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Escuta, minha filha.—A Providencia, ás vezes, +se manda aos corações as dôres e os revezes +não é que se compraza em opprimir as almas +para lhes dar mais tarde as viridentes palmas +do martyrio, não! Não, minha ingenua Talitha. +Eras ainda tu mimosa e pequenita<span class="pagenum">{85}</span> +quando ficaste céga. Abrira para o mundo, +apenas, a tua alma e o teu olhar jocundo +sorria para a luz. Assim, innocentinha, +tu ias de manhã commigo á capellinha +e, emquanto eu murmurava as orações da missa, +tu rezavas, sorrindo, angelica e submissa, +á Virgem que te ouvia, a Salvé Magestosa, +bem como se a rezara o labio de uma rosa... +Desse labio subia um fervor tão intenso +como a espiral azul e timida do incenso... +Depois... faltou-te a luz, mas tu nunca faltaste +á mesma hora de sempre, á missa. E que contraste; +tu, pequenita e céga e o Sol com tanta luz! +Muitos annos pediste á Madre de Jesus +que te restituisse um dia o teu olhar, +como se a Virgem fôsse autora da desdita +que te ferira assim, minha meiga Talitha... +Pois creança, tu crês que a Mãe que soffreu tanto +no dia em que perdeu o filho casto e santo +te pudesse roubar dos olhos transparentes +a luz que illuminava as pupillas ardentes? +Pois ella que te viu de rastros, a rezar, +em todas as manhãs, aos pés do seu altar, +levando-lhe, a sorrir, tantos ramos de flôres, +podia assim voltar a crueldade e as dôres +sobre a tua cabeça ingenua e piedosa, +Ella que foi a Mãe mais dôce e generosa!? +Escuta, minha filha:—o livro do Senhor +descreve que, uma feita, andava na Judéa +o divino Jesus prégando a sua idéa... +Acercou-se do Mestre uma infeliz proscripta +a quem a dôr matara a filha pequenita, +e, em lagrimas, pediu que lhe voltasse á vida +o cadaver da filha extremosa e querida. +Abençoando a mãe que aquella dôr humilha +disse Jesus então: «a tua pobre filha<span class="pagenum">{86}</span> +estava adormecida e agora está acordada; +volta que a encontrarás a rir, já levantada». +E a pobre mãe, que vira a pequenina morta, +depois, ao regressar, foi encontral-a á porta, +sorrindo alegremente, entre as demais creanças, +como um bando gazil de cordeirinhas mansas! +Pois bem, minha Talitha, o teu olhar dormiu +sómente, não morreu. Quando a céga pediu, +á Virgem Mãe de Deus, que um dia t'o salvasse, +o seu divino olhar fitava a tua face +e despertou do somno o teu formoso olhar +que nunca fôra cégo e, apenas a sonhar, +adormecera. E agora, agora que acordou +póde fitar a mão de quem lhe descerrou, +em nome de Jesus, a noite que o toldava, +que te fazia triste e lacrimosa, escrava...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>E a Virgem que me ouviu quando eu lhe prometti +votar-me ao seu burel, por tanto que soffri, +quererá perdoar a minha negra falta?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Escuta-me, Talitha:</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ruy surge ao fundo e escuta</em></p> +<pre> O coração exalta, +pergunta-lhe o que sente, o que deseja; pensa +muito, muito, em silencio, indaga a tua crença +e faze o que disser a tua consciencia, +mas não esqueças, filha, a dôce confidencia +de Ruy que illuminou o teu escuro olhar, +e lembra-te, depois, que, só por muito amar, +o Christo perdoou á pobre Magdalena. +E agora, que a tua alma está bem mais serena,<span class="pagenum">{87}</span> +attende-me!—Rezando adormeci. A aurora +despertou-me, sorrindo, e entrevi, áquella hora, +um sonho que fugia, em busca de outros lares! +Subia docemente, ao claro azul dos ares, +o vulto da Senhora, abrindo pelo Céo +o palio virginal do seu materno véo, +desnastrado o cabello, um manto de rainha +recamado de sóes; a nuvem que a sustinha, +toda cheia de luz, deixava atraz de si +um rastro de fulgor. E eu lembrei-me de ti... +Curvaram-se a tremer as pernas fatigadas, +ao peso esmagador das longas invernadas; +e assim, postas as mãos, olhando para o vulto +da Virgem que eu adoro em fervoroso culto, +pedi-lhe que mandasse um raio de luar +ás lagrimas de fel da tua dôr sem par...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Talitha começa a sorrir</em></p> +<pre>E a Virgem, a sorrir, do seio do infinito, +baixou por sobre o meu um dôce olhar bemdito +e eu vi rolar no azul da immensa vastidão, +no fulgor de uma estrella, o beijo do perdão...</pre> + +<h4>Talitha, <em>correndo para a porta</em></h4> +<pre>Ruy!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Encontra-se com Ruy e pára, pudibunda, de +olhar no chão</em></p> + +<h4>Padre, <em>só, á frente da scena, mãos postas, a olhar para o céo</em></h4> +<pre> Perdôa, Senhor, se lhe menti, perdôa; +o meu labio peccou, mas a intenção foi boa!</pre> + +<p style="text-align:center;">CAE O PANNO<span class="pagenum">{89}</span></p> + +<h1>TERCEIRO ACTO</h1> + +<p>Modesta sala de jantar em casa do Cura. Á direita, um oratorio sobre uma +commoda antiga; á esquerda, entre portas, um orgam.</p> + +<h2>SCENA I</h2> + +<h3><strong>Joaquina</strong>, só</h3> + +<p class="instruccoes"><em>Joaquina procede aos arranjos da casa para uma noite +de festa; cuida do oratorio, accende-lhe as velas, começa a pôr a meza para a +ceia; tudo em silencio. Depois de alguns momentos entra Ruy.</em></p> + +<h2>SCENA II</h2> + +<h3><strong>Joaquina</strong> e <strong>Ruy</strong></h3> + +<h4>Ruy, <em>entrando</em></h4> +<pre>Boas noites, Joaquina!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> As mesmas Deus lhe dê! +Inda bem que chegou; pensei que não voltasse +aqui á nossa casa!<span class="pagenum">{90}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Essa agora... e porque?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>É boa! Inda pergunta? Esteve lá por fóra +durante todo o dia e sem que se lembrasse +que neste pobre asylo ainda vive e mora +gente boa e christã...</pre> + +<h4>Ruy, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> E quem lhe disse tanto? +Vão vêr que foi intriga ou treta de algum santo!...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Hereje! brinque, brinque assim com Jesus Christo +e ha de vêr se é feliz! Não sabe que o Natal +é a noite sagrada?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> É, sei! Não foi por mal +que faltei. Pela vez primeira não assisto +á missa desta noite. Ha bem vinte e seis annos +que falleceu meu Pae: rompia a madrugada. +Começaram-me assim os tristes desenganos +e a lucta da existencia abriu-se amargurada. +Desde então, minha Mãe, boa e santa velhinha, +recorda tristemente, apenas se avizinha +a noite do Natal, a dôr daquella aurora, +e emquanto tudo ri, ella soluça e chora...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Sem mesmo a conhecer eu tenho pena della.<span class="pagenum">{91}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E hoje que eu sou feliz a pobresinha vela. +Creio que neste instante os seus labios de crente +envolvem numa prece encantadora e mesta, +num templo illuminado, ao celebrar da festa, +o esposo que morreu e o proprio filho ausente.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Devera ser então mais um grande motivo +de não faltar á missa.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E creia que é bem vivo +o meu pezar. Entanto a razão dessa falta +foi sagrada e vae vêr como ella tanto exalta +a minha consciencia.</pre> + +<h4>Joaquina, <em>ironica</em></h4> +<pre> Eu imagino bem!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Não posso vêr soffrer o coração de alguem... +Attenda-me, Joaquina, e diga se eu podia +negar-me, sem peccar, ao dever que exigia +de acudir pressuroso ao leito d'um enfermo +ardendo em alta febre e bem proximo ao termo +duma longa existencia asperrima e deserta, +onde apenas a dôr tinha uma entrada aberta. +Conhece aquelle atalho escuro e retirado +que vae dar á capella?<span class="pagenum">{92}</span></pre> + +<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4> +<pre> Onde foi enforcado +O marido da Emilia?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Exactamente, ahi. +Mesmo nesse logar em que ficou a cruz +existe uma choupana á qual me recolhi +para fugir á chuva. O caminho conduz, +pela esquerda, á Capella; a direita, ao moinho +do velho reformado! Entrou-me na choupana +a neta do sargento a dizer que o avosinho +quasi estava a expirar. Fôra maldade insana +deixar morrer o velho á mingoa de cuidados. +Fui. Mas antes não fôsse. Em nada lhe valeu +a visita que fiz, o velho falleceu... +Como devem morrer os bravos e os soldados +assim elle expirou, fitando bem a morte, +firme como um leão e simples como um forte. +Uma miseria extrema; os netos quasi nús, +com fome e sem comida ha dois dias!</pre> + +<h4>Joaquina, <em>benzendo-se</em></h4> +<pre> Jesus! +E aqui tanta fartura!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> A Patria é bem madrasta! +Esse velho, que a morte aos netos hoje afasta, +tem no peito e na face algumas cicatrizes +das lanças do inimigo.<span class="pagenum">{93}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Ah! são bem mais felizes +os soldados que vão á guerra e que lá morrem +no campo da batalha.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Exacto. Os outros correm +o perigo maior de morrer desprezados, como +esse pobre velho.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E estão abandonados +os netos, Sr. Ruy?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Não estão; felizmente +fallei ao regedor e tudo se arranjou; +demais a mais tambem, segundo me informou, +têm direito á pensão que o velho Avô doente +não poude receber.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E quem receberá +essa triste pensão, se o velho que serviu +não poude recebel-a e nem sequer a viu?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Tambem já pensei nisso e tudo se fará, +minha boa Joaquina. Assim, o moribundo +me obrigou a faltar á missa do Natal. +Se um pobre que estivesse a deixar este mundo +lhe pedisse um amparo, a sua alma leal +negaria essa esmola?<span class="pagenum">{94}</span></pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Ainda m'o pergunta?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Á sombra desse olhar tudo se abriga e junta +e eu leio na pupilla esmaecida e pura, +num misto de mudez, de pranto e de ternura, +que o seu bom coração tambem acudiria. +E por isso faltei; tenho, porém, certeza +que Talitha por mim, ao menos, rezaria. +E quando assim se tem tão lucida pureza +a interceder por nós aos pés da Divindade, +parece que a nossa alma, em dôce alacridade, +mergulha no baptismo, em aguas de um Jordão +todo feito de amor, de beijos e perdão!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Ah! quando eu penso em tudo o que se tem passado +depois que aqui chegou!... Como isto está mudado!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Tudo é tão natural que não nos vale a pena +gastar tempo a pensar em cousa tão pequena.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Então é cousa pouca uma pobre engeitada, +ha tanto tempo céga, e sem mãe, desprezada, +encontrar quem lhe dê de novo o seu olhar, +e quem lhe tenha amor e a queira desposar!?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Engeitada, que importa? O coração não pensa,<span class="pagenum">{95}</span> +ama sómente e assim não indaga a nascença +da mulher que o inspirou. Mas não é desprezada +a formosa Talitha; esta mansão amada +serviu de lar paterno á sua dôce infancia +e, se aqui respirou a magica fragrancia +de uma alma aberta, em flôr, se a sua mão, Joaquina, +materna, a acompanhou desde assim pequenina, +pouco importa que a mãe a tivesse engeitado; +amei-a, e nesse amor eu tenho baptisado +o sonho do porvir...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Diga, e quando casar +vae leval-a d'aqui?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Seria derrancar +o santo coração do velho Padre-Cura; +nem tanto necessita a completa ventura +das minhas illusões, nem teria coragem +para tamanho mal; seria mais selvagem +que a propria malvadez</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>abraçando-a</em></p> +<pre> tirar ao seu amor +o prazer de aspirar o aroma dessa flôr, +que ao seu lado cresceu, tão branca e tão fagueira, +como um lyrio do valle ao pé de uma roseira!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Sim; isso diz agora e depois de casado +ha de pensar, de certo, em sua mãe saudosa, +e para que ella veja, alegre e carinhosa,<span class="pagenum">{96}</span> +o filho salvo e bom, tão robusto e córado, +o Ruy tem de levar comsigo a pequenita +que nos serve de filha e que nos faz felizes!...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Descance, boa amiga; este amor tem raizes +que eu nunca poderei arrancar de Talitha, +nem penso em perturbar a paz do vosso azylo +que a propria mão de Deus formou assim tranquillo.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Se Deus que nos dôou a innocentinha, agora +mandasse a Mãe aqui para leval-a embora, +onde quer que ella fosse havia eu d'ir tambem, +porque a trouxe no collo e quero tanto bem +que passo a minha vida olhando o azul dos céos, +para vêr se descubro a Santa Mãe de Deus +e pedir-lhe que deixe á tremula velhice +dos meus dias sem luz, ao menos, a meiguice, +daquelle coração que eu vi desabrochar...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>E o céo que lhe responde?</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> O céo?... Nada! A rezar +tenho passado a vida e, nesta idade, a gente +já não póde chorar, as lagrimas seccaram +e por isto se soffre, a dôr é mais pungente +quando se quer chorar e os olhos já cançaram.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se a voz de Talitha, fóra</em><span +class="pagenum">{97}</span></p> + +<h4>Taitha</h4> +<pre>Ó Joaquina! Ruy, Ruy...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Ahi vem a traquina; +E ha de chamar por tudo a pobre da Joaquina...</pre> + +<h4>Ruy, <em>corre á porta</em></h4> +<pre>Mas como vem alegre...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Entra Talitha</em></p> + +<h2>SCENA III</h2> + +<h3>Os mesmos e <strong>Talitha</strong></h3> + +<h4>Talitha, <em>ao entrar, vendo Ruy, estaca: fica silenciosa e em +seguida:</em></h4> +<pre> Eu bem disse ao padrinho...</pre> + +<h4>Ruy, <em>tomando-lhe a mão</em></h4> +<pre>Que foi que tu disseste, alma da côr do linho?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Que ninguem póde crêr na jura...</pre> + +<h4>Ruy, <em>interrompendo com meiguice</em></h4> +<pre> Das mulheres?...<span class="pagenum">{98}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>ralhando com carinho e retirando a mão</em></h4> +<pre>Dos homens... atrevido, ainda tens coragem +de rir?...</pre> + +<h4>Ruy, <em>alegremente</em></h4> +<pre> Ou de chorar, se tu assim preferes...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Mas a tua promessa? Esqueceste a homenagem +da noite de Natal?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Pois pergunta á Joaquina...</pre> + +<h4>Joaquina, <em>intervindo</em></h4> +<pre>A mim? não sei de nada...</pre> + +<h4>Ruy, <em>a Talitha</em></h4> +<pre> Ella está gracejando; +sabe tudo tão bem como eu, mas imagina +que tu és ciumenta e então, de vez em quando, +a recordar o tempo em que era rapariga, +faz pirraças á gente, armando alguma intriga...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>A verdade, porém, é que faltaste e eu não.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Pois bem, faltei; mas tive uma forte razão: +o velho reformado estava agonisante +e mandou-me chamar; eu fui no mesmo instante<span class="pagenum">{99}</span> +assistir-lhe á agonia. Expirou-me nos braços: +ia o sol a fugir na curva dos espaços, +á hora em que soluça o sino das trindades +o Angelus sagrado envolto nas saudades +que a terra balbucia, agradecendo ao céo +a luz que lhe mandou na flacidez do véo +crepuscular e dôce, oiro tecido em gaze, +sem brilho de offuscar e sem calor que abraze.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>E nunca mais o vi, nem o verei jamais!... +Foi cégo como eu fui. Nas manhãs estivaes +muita vez o encontrei, cançado dos trabalhos, +pedindo esmola ahi por todos os atalhos. +Elle ia pela mão da neta, uma creança! +Era um velho senil á sombra da esperança! +Eu ía recostada ao braço do padrinho +e, ao sentir-me, dizia: «ampare-me esse anginho +—amigo Padre-Cura, eu quero que elle veja +—como um velho soldado, a mendigar, rasteja +—neste mundo de Christo»—. E ficava a pensar +naquelle desgraçado. O meu perdido olhar +novamente voltou, quando o delle se apaga +na escuridão mortal que tudo cobre e alaga... +Se eu pudesse amparar as pobres creancinhas!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Não faltará calor ás meigas andorinhas.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>E quem lhes ha de dar?<span class="pagenum">{100}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Quem?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Deus, Jesus e nós!</pre> + +<h4>Ruy, <em>com ingenuidade</em></h4> +<pre>Nós seremos os paes:</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>a Joaquina</em></p> +<pre> tu e o Cura, os avós...</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>Valha-te Deus, tontinha!</pre> + +<h4>Ruy, <em>a Talitha</em></h4> +<pre> Encantadora e casta; +ó Virgem Conceição, flôr, ingenua madrasta, +bemdito seja o dia em que te amei, formosa, +sonho feito mulher, sorriso feito em rosa...</pre> + +<h4>Talitha, <em>admirada</em></h4> +<pre>Que tem isso de mal? Tambem elle era cégo, +não podia cuidar da neta que o guiava +e agora, felizmente, eu tenho no aconchego +da minha mocidade a luz que me faltava +e posso olhar por ella. A minha desventura +não teve neste asylo o amor do Padre-Cura? +Depois não tive ainda?!...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Olha para Ruy, baixa os olhos e +cala-se</em></p> + +<h4>Joaquina, <em>beijando-a</em></h4> +<pre> Ah! minha tagarella!...<span class="pagenum">{101}</span></pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Depois tiveste ainda o teu formoso olhar +que andava lá no céo illuminando a estrella +d'alva. E agora tambem tens muito que narrar +do que viste na igreja...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Ah! na missa do gallo? +Eu vinha exactamente aqui para contal-o... +O que eu vi, Ruy, na igreja, emquanto o Padre-Cura +dizia aquella missa!... Inda agora fulgura, +sobre a minha retina, a vivida impressão +do seu olhar tão dôce e manso, de perdão... +Inda agora o sorriso, angelico e furtivo, +do seu labio de rosa, orvalhado e festivo, +innunda de frescor a minha vida inteira, +como o rócio da noite á flôr da amendoeira.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Quem foi que te sorriu com tamanha affeição, +que fez vibrar tu'alma em tanta commoção?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Um milagre de Deus! Se tens fé, acredita +no que te vou dizer.</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Dize, minha Talitha!</pre> + +<h4>Joaquina, <em>approximando-se</em></h4> +<pre>Conta, conta o que foi.<span class="pagenum">{102}</span></pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Pois nesse caso, ouvi: +Quando eu entrei no templo um borborinho enorme +encheu toda a capella; então foi que eu senti +como é triste ser cégo e ter olhar que dorme +tantos annos de vida, em funda lethargia, +sem a benção gentil de vêr a luz do dia! +Toda a gente fallava, olhando para mim, +e eu muito satisfeita a caminhar assim...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Imita o andar magestoso</em></p> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Como tu és vaidosa!</pre> + +<h4>Joaquina, <em>sorrindo e pondo as mãos</em></h4> +<pre> E como ella é catita... +</pre> + +<h4>Talitha, <em>a Ruy, ingenua</em></h4> +<pre>Mas se eu fôsse a teu lado, inda era mais bonita!... +Deram-me tanto abraço e beijaram-me tanto! +A capellinha estava alegre, era um encanto. +Á entrada muita flôr, o altar com muita luz, +e num bercinho branco o menino Jesus, +tão lindo, tão mimoso e tão engraçadinho, +que parecia mesmo um rouxinol no ninho. +Uma velha fitou-me e disse: que princeza! +Um velho lavrador olhou-me com surpreza +e bem alto fallou: «Que Deus Nosso Senhor +te dê um bom marido»...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> E que disseste, amor?<span class="pagenum">{103}</span></pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Nem uma palavrinha! Eu ía bem calada, +entre muito contente e muito envergonhada.</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre>E depois?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> E depois... fui então ajoelhar, +sósinha, nos degráos que sóbem ao altar, +á espera que viesse, a meia noite, a missa. +Rezando ali, a sós, com fervor de noviça, +lembrei-me da promessa e as lagrimas rolaram, +subindo-me do seio aos olhos que as choraram. +Eu sentia uma dôr immensa, por fugir +ao voto que fizera e, em vão, quiz resistir, +á minh'alma affluia um extranho remorso +e embora eu despendesse o mais sincero esforço, +para conter o pranto, o coração vergava +e, numa agitação convulsa, palpitava +acabrunhado e triste...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se o repicar dos sinos</em></p> + +<h4>Joaquina, <em>interrompendo</em></h4> +<pre> Ai! que acabou a festa +e a ceia por fazer, mas que cabeça é esta!...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Sae e entra constantemente, nos arranjos da +casa</em></p> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Mas não te lembras já que, em nome do Senhor, +o Cura abençôou o nosso casto amor? +Não te lembras tambem da lucida visão +que te trouxe do céo a estrella do perdão?<span class="pagenum">{104}</span></pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>De tudo me lembrei; não sei que força extranha +pesava sobre mim, como immensa montanha, +e não deixava erguer o meu olhar medroso +para encarar de frente o vulto magestoso +da Virgem Mãe de Deus! Mas quando o Cura entrou +parece que a minha alma</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>torna o sino a repicar</em></p> +<pre> alegre despertou... +Senti uma esperança illuminar-me o seio +e dissipar-se então esse cruel receio! +Rezei muito, rezei com tanta commoção, +pedi com tanto ardor, com tanta devoção, +que a minh'alma subiu, tão leve e tão submissa, +aos pés da Mãe de Deus, durante aquella missa, +como se fôsse presa a hostia consagrada +que o Cura levantava á cruz abençoada... +Com ella o meu olhar de supplica subiu. +E fitando, sem medo, a face alabastrina +da candida judia, eu vi que Ella sorriu +com tão dôce expressão de placidez divina +que me banhou de luz amortecida e calma +a minha santa crença e fez vibrar minh'alma! +Senti que era o perdão que vinha, n'um sorriso, +abrir á minha vida um novo paraiso... +Ergui-me docemente, approximei-me d'Ella +e, beijando-lhe a mão que sobre o mundo vela, +ouvi, como um soluço, a sua voz tão pura, +dizendo-me em segredo, em intima ternura: + + Que lindos olhos, Talitha, + os olhos que o Ruy te deu: + tem uma luz infinita, + parecem feitos no céo...<span class="pagenum">{105}</span></pre> + +<p class="instruccoes"><em>Joaquina, que tem parado o trabalho, attrahida pela +narrarão de Talitha, enlevada, abraça-a, lacrimosa, beija-a...</em></p> + +<h4>Ruy, <em>emquanto Joaquina abraça Talitha</em></h4> +<pre>Mas tu ouviste bem, tens a certeza plena?</pre> + +<h4>Talitha, <em>desprendendo-se de Joaquina</em></h4> +<pre>Ouvi perfeitamente; a voz era serena, +tão serena e subtil que a mim se affigurava +ser o proprio silencio assim que me fallava.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se o repicar dos sinos e começa-se a +ouvir as primeiras vozes dos córos distantes.</em></p> +<pre>Estremeci de alegre e acreditei então +que surgira, afinal, o dia do perdão;</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Approximam-se as vozes</em></p> +<pre>desci do altar, corri, deixei a missa e vim, +como se o coração cantasse dentro de mim, +para dizer-te, Ruy, que a minha vida é tua.</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Corre para elle, mas detem-se e, olhando para +Joaquina, baixa os olhos timida, brincando com o avental: pausa e +silencio.</em></p> + +<h4>Joaquina, <em>percebendo</em></h4> +<pre>Filhos, não serei eu quem assim vos destrua +as santas illusões...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>ouve-se o côro muito perto</em></p> +<pre> Se Deus as abençôa!... +</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Sae</em><span class="pagenum">{106}</span></p> + +<h4>Talitha, <em>vendo-a sahir</em></h4> +<pre>Ruy!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Corre para elle</em></p> + +<h4>Ruy, <em>recebendo-a nos braços</em></h4> +<pre> Ah! minha Talitha!</pre> + +<h4>Talitha, <em>abraçada, beija-o</em></h4> +<pre> Oh! meu amor!</pre> + +<h4>Ruy, <em>beijando-a</em></h4> +<pre> Perdôa!</pre> + +<p class="instruccoes"><em>As vózes elevam-se distinctamente com a musica das +violas e gaitas de fóles; pausa, emquanto os dois, enleiados, nada +ouvem.</em></p> + +<h2>SCENA IV</h2> + +<h3>Os mesmos, <strong>Padre</strong>, <strong>raparigas</strong> e +<strong>rapazes</strong></h3> + +<p class="instruccoes"><em>O Padre, entrando com as raparigas e rapazes, +surprehende ainda os dois que se beijam e Joaquina que está estupefacta, junto +á porta.</em></p> + +<h4>Padre, <em>fingindo que não vê e fallando alto</em></h4> +<pre>Raparigas, entrai, a noite é de alegria...<span class="pagenum">{107}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>surprehendidos ambos, desprende-se de Ruy e diz</em></h4> +<pre>Tem razão, meu padrinho, nossa phantasia +deve expandir-se agora...</pre> + +<h4>Padre, <em>com caricia, baixo a Talitha</em></h4> +<pre> Assim, aos beijos, não...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Quem poderá conter o nosso coração? +</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ás raparigas</em></p> +<pre>Raparigas, cantae! A céga já tem vista; +que a Virgem Mãe de Deus a todas vós assista; +a freira, que devia entrar para o convento, +teve hoje a redempção do seu cruel tormento!</pre> + +<h4>Um rapaz</h4> +<pre>Viva a céguinha!</pre> + +<h4>O grupo</h4> +<pre> Viva!</pre> + +<h4>Outro rapaz</h4> +<pre> E mais o Padre Cura! +Viva!</pre> + +<h4>Uma rapariga</h4> +<pre> Viva quem fez este milagre!</pre> + +<h4>O grupo</h4> +<pre> Viva!<span class="pagenum">{108}</span></pre> + +<h4>Um rapaz</h4> +<pre>E a mãe Joaquina, então, que é mesmo uma ternura?!</pre> + +<h4>Todos</h4> +<pre>Viva!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> Muito obrigada!</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre> Olha como é altiva!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Raparigas, dançae!</pre> + +<h4>Ruy, <em>a uma rapariga</em></h4> +<pre> Pois cante a cotovia, +e vibre essa garganta até romper o dia... +</pre> + +<p class="instruccoes"><em>As raparigas formam roda, os rapazes afinam as +violas e o grupo, com Talitha e Ruy á frente, dançam a Ciranda. O +Cura, sentado em uma cadeira, observa alegremente a scena.</em></p> + +<h4>Uma rapariga</h4> +<pre> Quem deu espinho ás roseiras + não teve muita razão, + antes désse ao coração, + como deu ás Tarangeiras. + + Deus que creou tantas flôres + fez as estrellas aos centos: + não dorme quem tem amores, + que os amores são tormentos.<span class="pagenum">{109}</span></pre> + +<h4>Segunda rapariga</h4> +<pre> Toda tu pareces feita + com a cêra das abelhas, + quando alguem d'aqui t'espreita + ficam-te as faces vermelhas.</pre> + +<h4>Primeira rapariga</h4> +<pre> Quem ao pé do Sol caminha + anda sempre com calor, + Quem á lua se avizinha + póde até crear bolôr. + + As tuas tranças são pretas, + pareces de cêra mol, + não te abeires muito ao sol, + olha lá não te derretas...</pre> + +<p class="instruccoes"><em>O Cura, satisfeito e alegre, ri a cada descante das +raparigas e acompanha-as com um olhar de caricia. Enthusiasmado, levanta-se e +encaminha-se para o grupo:</em></p> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Tambem eu quero entrar na dança, raparigas, +e ser como a papoila em meio das espigas!</pre> + +<h4>Primeira rapariga</h4> +<pre> Viva, viva o Sr. Cura, + que é o paesinho desta aldeia, + que tem a alminha mais pura, + mais alva que a lua cheia.</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Neste momento ouve-se bater á porta violentamente, +ao mesmo tempo que cessam os guizos denunciativos<span +class="pagenum">{110}</span> de um carro que parou á porta. Quando ouve bater, +o Padre Cura soffre uma visivel transformação de physionomia que todos os +circumstantes percebem.</em></p> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Um carro, Santo Deus!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Cessa toda a alegria e acercam-se do Padre +que, repentinamente, põe as mãos em oração.</em></p> + +<h4>Ruy, <em>acudindo</em></h4> +<pre> Senhor Cura, que tem?</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ouve-se bater de novo</em></p> + +<h4>Padre, <em>pensativo</em></h4> +<pre>Ha tantos annos já!</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Batem novamente. O Cura, sem dar uma palavra, +benze-se, vae á porta e abre-a. Entra uma senhora de lucto, acompanhada de um +velho creado, com malas e agazalhos. Todos emmudecem e olham-n'a +curiosamente.</em></p> + +<h2>SCENA V</h2> + +<h3>Os mesmos, <strong>Marqueza</strong> e <strong>Escudeiro</strong></h3> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Perdão! Procura alguem?<span class="pagenum">{111}</span></pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>O Cura João Fulgencio! É Vossa Senhoria?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Sou eu mesmo, Senhora!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Inda bem, obrigada! +Eu já tinha certeza, o céo me conduzia. +Não quero perturbar a alegria da noite: +Viajante, sósinha, e quasi desviada +pela neve que tomba, eu peço onde me acoite.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Sois bem vinda, Senhora; aqui sob este tecto +encontrareis conchego e o mais sereno affecto.</pre> + +<h4>Marqueza, <em>olhando-a</em></h4> +<pre>Obrigada, creança!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> A Noite é de Natal +e o nosso coração não sabe fazer mal...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Deveis estar cançada, o inverno vae tão duro!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Pensei que não chegava á sua residencia. +A nevada é cruel, o caminho coberto,<span class="pagenum">{112}</span> +o frio é de cortar, o céo está escuro, +nem um astro se vê, perde-se a consciencia +da nossa propria vida, a estrada é um deserto... +Nem sei como cheguei...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Jesus a protegeu...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Eu creio bem que sim e dou graças ao céo!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E não quer repousar?</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Antes, porém, quizera, +Senhor Cura, dizer o que me traz aqui...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Assim seja, Senhora, e ao bom Jesus prouvera +que eu pudesse remir a dôr que presenti...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>a Talitha e Ruy, fingindo alegria</em></p> +<pre>Ide com Deus, cantae!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>O grupo retira-se em silencio, +curiosamente</em></p> + +<h4>Talitha, <em>a Ruy</em></h4> +<pre> Quem é? Quem te parece?</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Não sei, mas esta voz a minh'alma conhece.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>sahem</em><span +class="pagenum">{113}</span></p> + +<h2>SCENA VI</h2> + +<h3><strong>Marqueza</strong> e <strong>Padre</strong></h3> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Senhora, estamos sós! Vossa Excellencia ordene!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Ouça-me, Senhor Cura! ouça e não me condemne!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E condemnar por que? Se tem algum peccado, +o coração de Deus não estará fechado!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Pensei chegar mais cedo: hontem, pelo sol posto, +estaria acabado este immenso desgosto +que me tortura a vida; a asperrima inverneira +embaraçou-me o passo e augmentou-me a canceira.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E vem de muito longe?</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Ah! sim, de bem distante, +anciosa, esperando este feliz instante. +Ha muito tempo, um dia, ao romper da alvorada, +alguem que veiu aqui lhe trouxe uma engeitada...<span class="pagenum">{114}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>É verdade, Senhora!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Uma carta pedia +ao Cura desta aldêa a esmola caridosa +de guardar a creança, até que a mãe chorosa, +depois, a procurasse. Afinal esse dia +felizmente chegou e a mãe que a dôr humilha, +Senhor Cura, a seus pés, vem procurar a filha...</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>E como poderei saber se esta senhora +que se confessa mãe, embora peccadora, +é realmente a mãe da creança engeitada +ha tantos annos já, naquella madrugada +tristissima d'inverno?</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> A carta igual áquella +que o Senhor Cura achou no berço, junto della...</pre> + +<h4>Padre, <em>tomando a carta</em></h4> +<pre>Mas falta alguma cousa...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> A pérola? está aqui...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Dá-lhe a pérola</em></p> +<pre>Pois desde aquella noite eu jámais a perdi +de vista e a conservei com cuidadoso afan, +como alguem que resguarda um rico talisman.<span class="pagenum">{115}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Seija feita de Deus a sagrada vontade, +embora se me parta o coração de dôr...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Essa dôr, Senhor Cura, ha de fugir vencida! +Eu não quero quebrar tão dôce piedade +que fez de minha filha o seu risonho amor, +nem desejo apagar a luz da sua vida +num soluço de magua.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Então não vem buscal-a?</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Não, não, meu bom amigo, eu venho acompanhal-a. +A minha desventura, emfim, se condoeu +dest'alma cruciada e triste que viveu +reclusa na saudade, apenas na esperança +de vêr um dia ainda essa gentil creança... +Se nunca procurei saber dessa existencia +não é que se apagasse em minha consciencia, +como um sonho infeliz, a lembrança dorida +dessa flôr do peccado em anjo convertida. +Como eu pensava nella, ah! sabe-o Deus sómente! +Que lagrimas chorei por conserval-a ausente, +e quanto passei eu por causa desta filha +dil-o, com eloquencia, a dôr que me polvilha +a cabeça de cans. Amal-a com ardor +e ter de estrangular todo esse immenso amor!... +Vêl-a crescer ao longe, e calcular-lhe o encanto, +mas sem poder beijal-a, adivinhar que o pranto +as faces lhe banhava e não poder sorvel-o, +que tormento cruel, que duro pesadello...<span class="pagenum">{116}</span> +Soffri, meu bom amigo, e soffri a sorrir, +que até para soffrer é preciso mentir! +Não me pergunte, Padre, a origem desse amor +ninguem perguntaria ao seio de uma flôr +como foi que nasceu o aroma que elle exhala. +Bastará que lhe diga: a dôr que me avassalla +é a amiga fiel que me segue ha vinte annos, +que nunca me deixou; que os tristes desenganos +dessas horas sem luz foram os companheiros +da minha mocidade e os filhos feiticeiros +que encheram o meu lar de pranto e de amargores, +como um dia sem sol, como um jardim sem flôres. +Um dia, Sr. Cura, em confissão, no templo, +diante do seu olhar que eu agora contemplo +humilde e agradecida, hei de contar-lhe a historia +da minha desventura e desta dôr ingloria, +mas não exija, Padre, agora, que eu recorde +o passado infeliz, que o coração acorde +do somno em que repousa, e desvende o segredo +que a vida me cobriu de sombras e de medo.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Nem quero desvendar, Senhora, essas torturas; +mas a minha velhice acostumou-se a vêr +em tão meiga creança uma filha extremosa +junto de mim crescer, florir como uma rosa +ao pé dum castanheiro, e fazer-se mulher. +Aos dez annos cegou...</pre> + +<h4>Marqueza, <em>interrompendo, afflicta</em></h4> +<pre> É céga a minha filha?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Foi: ha dias, porém, a luz de novo brilha +no seu formoso olhar. Emquanto a escuridão<span class="pagenum">{117}</span> +durou, eu sempre a trouxe unida ao coração, +apoiada ao meu braço.</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> E quem foi que a curou?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Alguem que a soube amar. Um dia despontou +na sua alma de flôr um novo sentimento +e a pobre céga amou e foi tambem amada. +Queria dedicar-se á vida enclausurada +na casta região da cela de um convento, +mas, sonhadora e boa, o amor venceu em breve +o vago mysticismo e a Virgem que a fadou, +condoendo-se della, o seu amor salvou... +De modo que, feliz, dentro de pouco, deve +desposar um rapaz, formoso coração...</pre> + +<h4>Marqueza, <em>interrompendo</em></h4> +<pre>Ruy de Ornellas, talvez?</pre> + +<h4>Padre, <em>admirado</em></h4> +<pre> Mas como adivinhou?</pre> + +<h4>Marqueza, <em>depois de uma pausa</em></h4> +<pre>Não importa saber; prosiga, Senhor Cura, +eu contarei mais tarde essa alegre aventura, +tão simples e feliz.</pre> + +<h4>Padre, <em>proseguindo</em></h4> +<pre> A mim, pobre ancião, +uma alegria basta: a de morrer contente +por haver feito bem á candida innocente.<span class="pagenum">{118}</span> +Do mundo nada espero, esta gentil creança +era a minha formosa e unica esperança: +arrancam-m'a daqui e eu sinto que a corola +dessa flôr, que me dava a encantadora esmola +do seu perfume agreste, arrasta a minha vida +á derradeira estancia, á ultima guarida...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>E quem lhe disse, Padre, as minhas intenções?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Ninguem. Mas adivinho. Eu sei que os corações +carinhosos das mães não querem a partilha +das caricias, do amor, dos beijos de uma filha. +Talitha vae partir; que o Senhor a conduza +e que uma boa estrella ao seu porvir reluza.</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Attenda, Sr. Cura! A mãe que ora lhe falla +tambem sabe que a dôr o coração estala +e não lhe vem roubar a luz dessa velhice +tão cheia de bondade e simples de meiguice. +A dôr me fatigou e eu quero repousar +de tantas afflicções, e venho procurar, +nesta aldeia tranquilla e sem perversidade, +a paz que não frui na minha mocidade. +Sou rica, felizmente, e quero ter um nicho +onde acaba a existencia: é, talvez, um capricho... +Mas quero aqui viver ao lado desta filha +que a sua alma de santo, alvissima, perfilha +e nunca mais sahir deste sereno azylo +tão suave e tão bom, tão feliz e tranquillo, +onde mora a virtude. A filha que eu procuro +tambem é muito rica e tem porvir seguro.<span class="pagenum">{119}</span> +Se a desventura um dia a separou de mim +a minha vida agora ha de chegar ao fim, +aqui onde ella teve um lar sagrado e nobre. +E o dôce olhar de Deus que o mundo inteiro cobre, +abrindo sobre nós o pallio da ventura, +ha de envolver na sombra o coração do Cura +que fez de minha filha a filha da sua alma, +extremosa e leal. E Deus que tudo acalma +ha de extinguir a dôr de todo esse passado +que eu vejo, felizmente, agora terminado...</pre> + +<h4>Padre, <em>alegremente</em></h4> +<pre>Obrigado, Senhora. O coração que sente +a alheia desventura e lança boamente +o seu conforto amigo a quem já nada espera, +tem, nas bençãos do céo, eterna primavera... +E agora que sabeis que a vossa filha é viva, +attendei-me, Senhora, á santa rogativa: +Talitha esteve céga. O homem que salvou +o seu formoso olhar o amor lhe conquistou. +Ella, uma encantadora e formosa creança, +concentra nesse amor toda a sua esperança: +tiral-a será dar-lhe o mais cruel supplicio.</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Não preciso pedir tão duro sacrificio +ao seu bom coração. Eu quero-a vêr feliz, +se quem serviu de Pae o consentiu e quiz. +Procurava uma filha, encontrei um casal: +para mim, que sou mãe, jámais este Natal +feliz esquecerei. E agora que conhece +a Mãe da sua filha, attenda á minha prece +e mostre-me Talitha, anceio por beijal-a.<span class="pagenum">{121}</span></pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Louvado seja Deus, Senhora, eu vou chamal-a.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Entra e volta com Talitha pela mão</em></p> + +<h2>SCENA VII</h2> + +<h3>Os mesmos e <strong>Talitha</strong></h3> + +<h4>Padre, <em>entrando, a Talitha</em></h4> +<pre>Recordas que uma vez, em lagrimas banhada, +disseste que a tu'alma andava amargurada +a pensar que jámais a tua mãe verias? +Recordas a palavra alegre, de conforto, +que te disse a sorrir quando tu me pedias +a luz do teu olhar que tu suppunhas morto?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Nem eu posso esquecer.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Pois, filha, a Providencia +abriu á tua vida a sua immensa graça.</pre> + +<h4>Talitha, <em>curiosa</em></h4> +<pre>E então?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Então responde: em tua consciencia +que mais desejas tu que o Santo Deus te faça?<span class="pagenum">{121}</span></pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Que eu possa vêr um dia a minha Mãe querida! +</pre> + +<h4>Marqueza, <em>correndo para ella e abraçando-a</em></h4> +<pre>Talitha, minha filha! Amor da minha vida!</pre> + +<h4>Talitha, <em>surprehendida</em></h4> +<pre>Minha Mãe! Minha Mãe!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Abraçam-se em pranto</em></p> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Obrigado, Senhor; +abençoado seja este Natal de amor!</pre> + +<h4>Marqueza, <em>desprendendo-se de Talitha</em></h4> +<pre>Mas como eu sou feliz! Como tu és bonita! +Que lindo nome o teu! Quem te chamou Talitha?</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Beija, abraça-a, encara-a sorrindo e +soluçando. Senta-a nos joelhos</em></p> +<pre>Quero ver bem de perto o teu formoso olhar.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Fita-lhe os olhos</em></p> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>E já sabes, mamã, que de tanto chorar +com saudades de ti, um dia fiquei céga?</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Com saudades de mim?<span class="pagenum">{122}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>agitada</em></h4> +<pre> Não crês, mamã?</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Socega; +eu acredito em tudo, a tua alma não mente...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Mamã, como eu te quero!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Abraça-a</em></p> +<pre> Olha-me bem de frente! +Tanto tempo sem vêr a imagem dos meus sonhos, +agora que te encontro, eu desejo risonhos +os teus olhos de Mãe que nunca vi mais bellos; +quero beijar, sorrindo, os teus alvos cabellos +e sentir palpitar o seio teu, amigo, +e o meu seio de filha, a palpitar comtigo.</pre> + +<p class="instruccoes"><em>O Cura, que se tem enlevado a contemplar a scena, +sae pé ante-pé, olhando o grupo e chama para dentro. Entram Joaquina e +Ruy.</em></p> + +<h2>SCENA VIII</h2> + +<h3>Os mesmos, <strong>Joaquina</strong> e <strong>Ruy</strong></h3> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Dize-me, filha, e tu sonhavas muitas vezes +com tua mãe?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Sonhava!<span class="pagenum">{123}</span></pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> E o sonho que dizia?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Tanta coisa, mamã! Quando os nossos revezes +nos vinham perturbar, desde o romper do dia +até o anoitecer, pensava em ti, mamã, +e, sem dormir, sonhava até pela manhã.</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Mas revezes de quem?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Desta immensa tristeza +que vinha atormentar a vida de pobreza</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>baixo, quasi em segredo</em></p> +<pre>do nosso Padre Cura...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> E o Padre Cura é pobre?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Muito, muito, mamã, mas tão bom e tão nobre +que nunca pude ouvir um lamento, sequer!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>D'hoje em diante, porém, não faltará mais nada: +será de todos nós aquillo que eu tiver. +Tu és rica, Talitha, e d'alma bem formada, +por certo acudirás de todo o coração<span class="pagenum">{124}</span> +por que não faltem mais nem ventura, nem pão +a quem te fez gentil, tão boa e generosa...</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Muito rica, mamã?</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Que te serve saber?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>É que o velho sargento acaba de morrer +deixando na miseria immensa e dolorosa +os netinhos com fome. O velho era céguinho! +muita vez o encontrei mendigando, sósinho, +para matar a fome e, se eu hoje sou rica, +só este pensamento a dôr me purifica +e, se tu dás licença, o Ruy vae procural-os.</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Pois sim, minha Talitha, irás tambem buscal-os; +que sejam teus irmãos já que assim o quizeste. +Mas dize, o Ruy quem é? Inda não m'o disseste...</pre> + +<p class="instruccoes"><em>Durante este dialogo as duas não poderão vêr as +demais pessoas, enlevadas como estão. Ha sorrisos em +todos.</em></p> + +<h4>Talitha, <em>perturbada</em></h4> +<pre>O Ruy?...</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Baixa os olhos, sorri e cala-se</em></p> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Sim, sim o Ruy...<span class="pagenum">{125}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>enleada</em></h4> +<pre> O Ruy é um doutor... +Quando eu estive céga... Eu era tão céguinha!... +Elle tratou de mim e fez a operação...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Só?!</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> O resto não conto...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> E porquê?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Adivinha!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>E não furtou tambem o teu primeiro amor?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Furtou!... E que mal fez? Deu luz ao meu olhar, +eu dei-lhe o coração...</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> Mas depois de casar +deixarás tu sósinho o velho Padre Cura?</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Nem eu quero pensar em tamanha loucura. +Viveremos aqui juntinhos da Joaquina +que sempre me guiou, do tempo de menina.<span class="pagenum">{126}</span></pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Pois vae dizer ao Ruy que tua mãe quer vêl-o.</pre> + +<h4>Talitha, <em>soltando-se do pescoço da mãe, sorrindo alegremente.</em></h4> +<pre>Tu vais ver que rapaz... intelligente e bello... +Ruy! Ruy!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Voltando-se encontra Ruy, Joaquina e Padre. +Fica embaraçada e cobre o rosto com as mãos.</em></p> +<pre> Meu Deus, que susto!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre> Ouvimos tudo, tudo!...</pre> + +<h4>Marqueza, <em>voltando-se</em></h4> +<pre>Desculpe, Senhor Cura... em favor della acudo... +A culpada fui eu...</pre> + +<h4>Ruy, <em>surprehendido</em></h4> +<pre> Ah! Senhora Marqueza!</pre> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre>Sim. Ruy, eu mesma, aqui. Nem me causa extranheza +o vêl-o nesta casa. Eu fui quem o mandou +em busca deste céo tão puro que o salvou. +Previ toda esta scena e quando aconselhei +que viesse até cá, senti que palpitava +o meu seio de mãe. Já vê que adivinhei +e o meu presentimento o bem me segredava...<span class="pagenum">{127}</span></pre> + +<h4>Talitha, <em>admirada</em></h4> +<pre>Mamã, tu és Marqueza?</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Silencio prolongado</em></p> + +<h4>Marqueza</h4> +<pre> A Marqueza morreu... +Agora sou a mãe da mimosa Talitha +que vem pedir perdão a quem assim soffreu +dessa magua sem par, dessa dôr infinita, +que tanto fez chorar a tua mocidade, +as lagrimas febris e negras da saudade. +Agora sou a Mãe que um dia te engeitou +e que uma vida inteira a dôr acabrunhou, +que vem pedir perdão ao velho Padre-Cura +do quanto padeceu para te dar ventura, +que vem agradecer á santa da Joaquina, +os beijos que te deu quando eras tamanina, +que vem pedir a Ruy o supremo favor +de dar á sua filha o seu primeiro amor...</pre> + +<h4>Ruy</h4> +<pre>Marqueza, o meu amor recebe a grande esmola +do casto coração da candida Talitha, +como um beijo de luz que conforta e consola +a dôr da minha vida. O peito me palpita +na suprema alegria e eu penso na alvorada +desta noite feliz, de lucido natal, +bemdizendo, Senhora, a dôce madrugada +que vae surgir em breve.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre> Ao despontar o dia +vamos todos buscar os netos do sargento... +Tu concordas, mamã?<span class="pagenum">{128}</span></pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Ao Cura</em></p> +<pre> Acha que faço mal?</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Para ti, minha filha, a madrugada é fria. +O Ruy irá commigo e apenas num momento +as creanças virão: descança, pequenita.</pre> + +<h4>Marqueza, <em>a Joaquina</em></h4> +<pre>Repare bem, Joaquina: este casal catita +como envelhece a gente!</pre> + +<h4>Joaquina</h4> +<pre> E Deus Nosso Senhor +lhe dê por toda a vida o seu sagrado amor!</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Já toca á missa d'Alva...</pre> + +<h4>Ruy, <em>a Talitha</em></h4> +<pre> Estrella d'Alva, pura, +immaculada estrella, o céo desta ventura +estende sobre nós a cupula sagrada +e eu vejo nesse olhar a luz ambicionada +que faz de ti, creança, a dôce Conceição +do meu culto feliz, purissimo e christão.</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>A Joaquina</em></p> +<pre>Um dia, bem me lembro, a sua mão amiga +mais trémula e subtil do que uma branca estriga +ás aragens d'outomno, abrindo-me o sacrario +da sua alma de santa, entregou-me um rosario.<span class="pagenum">{129}</span> +Recorda-se? Pois bem! nas horas de afflicção +esse rosario amigo encheu-me o coração +duma frescura immensa e assim se dissipou +essa nuvem cruel que sobre nós passou... +Quero beijar a mão da santa que me deu +nesse rosario astral uma visão do céo: +a flôr que se banhou na sua fé divina, +bondosa creatura, alvissima Joaquina!</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>Beija-lhe a mão. Joaquina, em silencio, +enxuga os olhos com o avental.</em></p> + +<h4>Padre</h4> +<pre>O dia vae surgir, o sino da capella +convida-nos á missa. Ali pela janella +já vem a madrugada entrando alegremente +num baptismo de luz que brota do nascente.</pre> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Meu Deus, como é feliz a minha mocidade! +Rasgou a mão de Ruy a dôce claridade +ao meu perdido olhar, depois a mãe de Deus +envia-me o perdão do fundo azul dos céos: +e, dando luz á céga e vida á condemnada, +entrega-me, a sorrir, no fim da madrugada +do Natal de Jesus, a minha Mãe distante. +Meu Deus, como é feliz neste sereno instante</pre> + +<p style="text-align:center;"><em>a Ruy</em></p> +<pre>a nossa mocidade ao pé desta velhice +tão boa e tão leal! Antes que alguem cobice +esta aurora de amor que ao céo nos avizinha +eu vou rezar por nós uma Salvé-Rainha:<span class="pagenum">{130}</span></pre> + +<p class="instruccoes"><em>Ouve-se o repicar dos sinos. Talitha approxima-se do +oratorio; ajoelham-se todos, excepto o Padre que fica de pé.</em></p> + +<h4>Talitha</h4> +<pre>Salvé, Rainha Mãe, céu de misericordia, +vida e doçura, amor, luz da nossa esperança, +lançae por sobre nós o manto da concordia. +Salvé, Rainha, Mãe serena de bonança! +A vós, os filhos d'Eva, em lagrimas, bradamos, +por vós que estaes no céo, gemendo, suspiramos, +neste valle de magua e dôr. Eia, Senhora! +Sêde a divina Mãe, a dôce protectora +da nossa vida inteira e para nós volvei +esse olhar piedoso e tão cheio de luz! +Sobre o nosso destino a vossa mão pendei, +rasgae a nossa dôr, mostrae-nos a Jesus, +fructo do vosso ventre, ó sagrada e clemente, +ó Virgem dôce e casta, ó candida innocente! +ó Santa Mãe de Deus, ouvi a nossa voz +tão simples e fiel, rogue no céu por nós, +por que sejamos bons e dignos da promessa +do moreno Jesus. Que a nossa vida aqueça +o materno calor da estrella de Bethlem, +á luz do vosso olhar, por todo o sempre.</pre> + +<h4>Padre</h4> +<pre>Amen!</pre> + +<p style="text-align:center;">CAE O PANNO<span class="pagenum">{131}</span></p> +</div> + +<div id="resposta"> +<h1>RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA</h1> + +<p> </p> + +<div style="margin-left: 20%; font-size: small;"> +<p><em>Toute l'operation critique se borne ainsi a constater un fait, depuis la +cause qui l'a produit jusqu'aux conséquences qu'il produira. Sans doute, un +pareil travail contient une leçon, et à se voir dans un miroir aussi fidèle, un +écrivain peut refléchir, connâitre ses infirmités, tâcher de les marquer le +plus possible. Seulement, la leçon vient de haut, sort de la verité même du +portrait el n'est plus l'enseignement gourmê d'un professeur. La critique +expose, elle n'enseigne pas. Elle a compris elle-même que son influence sur le +niveau litteraire était à peu prés nulle, car les tempéraments restent +indociles; et elle a préféré jouer le beau rôle d'ecrire l'histoire litteraire +contemporaine, expliquée et commentée.</em></p> + +<p><span class="small-caps">E. Zola</span>. <em>Documents litteraires</em>, +pag. 334.</p> +</div> + +<p> </p> + +<div style="margin-left: 20%; font-size: small;"> +<p><em>Est critique, à notre jugement, celui qui fait effort pour comprendre et +qui juge avec sympathie.</em></p> + +<p><span class="small-caps">Nolet</span>. <em>La vie et l'œuvre de +Chateaubriand</em>, pag. 673.</p> + +<p style="text-align:center;">———</p> + +<p><em>...si nous possedons quelques talents, nous nous empressons de les +déprécier. Après les avoir élevés au pinacle, nous les roulons dans la bosse; +puis nous y revennons, puis nous les méprisons de nouveau. Nous ne pouvons +souffrir de reputation; il nous semble qu'on nous vole ce qu'on admire: nos +vanités prennent ombrage du moindre succès, et s'il dure un peu, elles sont au +supplice.</em></p> + +<p><span class="small-caps">Chateaubriand</span>. <em>Essai sur la litterature +anglaise</em>. pag. 171.</p> +</div> + +<p> </p> + +<div style="margin-left: 20%; font-size: small;"> +<p><em>Que la scène soit triste ou gaie, nous retrouvons toujours la même +distinction entre l'émotion réelle et l'émotion esthétique. Il faut de toute +necessité, pour que cette dernière soit possible, que l'autre disparaisse; il +faut que l'auditeur ou le spectateur ne puisse jamais oublier qu'il y a entre +le fait et lui un intermediaire dont l'impression constitue la poesie de +l'œuvre; c'est surtout au théâtre que cette distinction entre le réel et le +fait poetique est essentielle. L'illusion complète, loin d'être le suprême +degré de l'art, comme on l'a dit, en serait simplement la négation.</em></p> + +<p><span class="small-caps">Eug. Veron</span>, <em>L'Estetique</em>, pag. 407 e +408.</p> +</div> + +<h2>RESPOSTA Á CRITICA INDIGENA</h2> + +<p>A <em>Talitha</em> é uma reminiscencia da mocidade, piedosamente recolhida +pelo coração á mudez da alma, que a minha intelligencia modesta crystallizou em +versos froixos, que o meu sentimento fixou em drama e que a cegueira das +paixões pretendeu ferir.</p> + +<p>Devo, quero e vou defendel-a.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Zola, o genio, o mestre, o justo, escreveu:</p> + +<blockquote> + <p>«Lorsqu'on a l'honneur de tenir une plume, on se consulte avant d'ecrire, + et quand on a écrit une page, on l'affirme, on la défend.»</p> + + <p><em>La critique contemporaine</em>, pag. 356.</p> +</blockquote> + +<p>A critica censurou-me porque, brazileiro e rio-grandense, fui procurar em +terras de Portugal o assumpto do meu obscuro trabalho. A <em>Talitha</em> não é +uma obra nacional: nem portugueza porque o seu autor não nasceu em Portugal, +nem brazileira porque a acção se passa em terra estrangeira, entre personagens +de uma aldeia lusitana perdida nas serranias da provincia de +Traz-os-montes.<span class="pagenum">{140}</span></p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>A censura é futil.</p> + +<p>A critica esquece que Portugal é a patria da nossa patria; que o nosso +idioma nacional ainda não sahiu do periodo primitivo e selvagem; que a lingua +de Camões foi a lingua de Gonçalves Dias e ainda hoje é a lingua de Olavo Bilac +e de Coelho Netto; que os sentimentos de José de Alencar vibraram nas mesmas +palavras em que vibrou a alma de Camillo Castello Branco o através das quaes se +impoz á grandeza do seculo que passou a individualidade singular e forte de Eça +de Queiroz, ao mesmo tempo que se impunha, em outro hemispherio, a +personalidade singular e forte de Machado de Assis.</p> + +<p>Ingenua, ignorante ou perfida, a critica esqueceu o preceito de Taine:</p> + +<blockquote> + <p>«Les productions de l'esprit humain, comme celles de la nature vivante, ne + s'expliquent que par leur mllieu.»</p> + + <p><span class="small-caps">H. Taine</span>—<em>Philosophie de l'Art</em>. + vol. I, pag. 11.</p> +</blockquote> + +<p>O homem é um producto do meio, este inflúe poderosamente na formação de seu +espirito; mais que poderosamente—decisivamente.</p> + +<p>A mocidade é mais docil em receber essa influencia natural e espontanea do +ambiente—do clima, das tradições, dos costumes, da religião, da arte.</p> + +<p>É na infancia e na adolescencia, como observa Moreau, de Tours, no seu +estudo—<em>La Folie chez les Enfants</em>—que os erros e os preconceitos se +apoderam do espirito e por tal forma criam raizes que difficilmente se +arrancam.</p> + +<p>Spencer, na Educação moral, intellectual e physica, affirma que a influencia +do meio sobre a mocidade decide do futuro inteiro.</p> + +<p>A minha adolescencia e a minha mocidade fluiram<span +class="pagenum">{141}</span> em Portugal, nas escolas, nas aldeias, no seio +patriarchal da familia paterna.</p> + +<p>Com os portuguezes, moços como eu, senti os pezares d'aquelle grande povo, +sorri nas alegrias d'aquella boa gente.</p> + +<p>Á sombra fresca e generosa das suas arvores adormeci e sonhei: ao calor +daquelle sol aqueci as minhas esperanças; no gelo daquellas neves murcharam-me +as mais perfumadas illusões; ao luar opalescente daquellas noites ouvi a musica +das primeiras serenatas: ao fulgor daquellas estrellas peneirou no meu coração +a voz dolentissima dos rouxinóes; com a poesia popular daquella alma lyrica de +onze seculos aprendi a versejar quando a minh'alma de dezeseis annos abria para +o mundo as flôres das suas aspirações incipientes; com a lithania religiosa dos +orgãos ruraes nas capellas das aldeias aprendi a amar a Deus, a crer na sua +olympica magestade, ao mesmo tempo que filtrava docemente no meu espirito a +ternura sagrada daquelle mysticismo que reza na voz das aragens, no perfume das +flôres, no marulhar das fontes, no gorgeio das aves e até no merencorio soluçar +das vagas, rolando eternamente nas areias das praias.</p> + +<p>Dezoito annos correram para a minha vida feliz e descuidosa, naquella terra +santa que é a patria da saudade, e, quando o meu coração começou a sentir as +amarguras do exilio, quando a minha intelligencia poude comprehender toda a +magua da ausencia, foi na saudade portugueza<br> +<br> +<span style="margin-left: 20%; font-size: 90%;">«o delicioso pungir de acerbo +espinho,»</span><br> +<br> +que eu aprendi a sentir a saudade do lar que aqui deixára, do berço que me +embalára as horas da infancia, da voz materna que me acalentára a +puericia,<span class="pagenum">{142}</span> do céo que dera luz ao meu olhar e +calor ao meu sangue, sangue em cujas ondas correm leucocytos de sangue +lusitano. «d'este sangue abençoado», fortemente oxygenado, que me dá energia +para as luctas e ampara a tranquilidade transparente da minha consciencia, +limpida e superior, as investidas da injustiça e da critica.</p> + +<p>E como poderia eu, por que estranho processo de cirurgia, arrancar ao meu +organismo essa metade portugueza que constitue um nobre orgulho da minha +vida?</p> + +<p>E como poderia eu, por que estranho processo de psychologia, arrancar á +minh'alma esse conjuncto essencial de elementos que durante dezoito annos se +vincularam ao meu espirito, á minha intelligencia, á minha vontade, á minha +sensibilidade, com a mesma delicadeza, com a mesma subtil insistencia com que a +luz do sol penetra no seio da terra para fazer germinar as sementes, com que a +palavra das mães penetra na alma dos filhos para transfigural-a, como o luar +que transforma em espelho de prata a agua dos lagos e dos rios?</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>A <em>Talitha</em> é uma reminiscencia da mocidade passada na aldeia +traz-montana, na suave e consoladora almosphera da familia paterna; +<em>Talitha</em> não é uma creação da minha phantasia, é a copia do modelo vivo +que eu conheci, que acompanhei na cegueira cruel e, depois, na luminosa +redempção do seu primeiro amor.</p> + +<p><em>Ruy de Ornellas</em> foi meu irmão de lettras, foi meu amigo, meu +companheiro de escola, meu consocio na bohemia alegre e feliz da vida +academica, nem o nome lhe occultei.<span class="pagenum">{143}</span></p> + +<p>O velho cura <em>João Fulgencio</em> foi uma realidade soberba de caridosa +affeição evangelica: era um sacerdote de alma pura, um ancião de oitenta +invernos consumidos em espalhar o bem emquanto muitos moços de alma nova mas +precocemente corrompida ao contacto das descrenças enervadoras e fataes, na +convivencia intima da politicagem, dos bordeis e dos cafés, vivem para fazer o +mal, no gozo requintado de espalhar desventuras, quando é mais facil, mais +dôce, mais humano, mais confortante, mais nobre, semear carinhos e affectos +para fazer a colheita das sympathias e das dedicações.</p> + +<p>A velhinha <em>Joaquina</em>, a irmã desse honrado e justo sacerdote, é o +retrato fiel, copiado á intimidade da minha propria familia, em cujo seio fui +buscar o modelo daquella virtude christan, na figura venerada de uma santa +creatura que acalentara, ha sessenta annos, a puericia de meu Pae.</p> + +<p>A <em>Marqueza de Rilma</em> não é um personagem ficticio, viveu, foi a mãe +de Talitha, não com o titulo de tão elevada condição aristocratica, mas de +nobre linhagem, victima innocente das luctas civis de 1846 que accenderam a +fogueira horrivel dos odios entre os partidos politicos. Revelar-lhe o +verdadeiro nome seria uma iniquidade, além de absolutamente desnecessario ao +desenvolvimento da acção dramatica: a mais rudimentar educação, a mais vulgar +delicadeza de sentimentos mandavam occultar essa circumstancia, inutil á +fidelidade da observação e perfeitamente dispensavel ao estudo da psychologia +do personagem.</p> + +<p>Que representa, pois a <em>Talitha</em>?</p> + +<p>O intimo e nobre desabrochar de uma consciencia que não esqueceu o passado, +que transformou um incidente da vida em pretexto para resgatar uma divida de +gratidão, para abrir no seio um longo e profundo sulco de reconhecimento á +terra sagrada em<span class="pagenum">{144}</span> que dormem seus avós o somno +ultimo e perpétuo, onde ficaram os primeiros dias de existencia do ancião que +me deu o sêr, onde eu deixei as gerações irmans que me acompanharam na +peregrinação astral das illusões academicas. </p> + +<p>A perversidade incuravel dos zoilos, porém, occultou, de proposito +deliberado, que o obscuro autor da <em>Talitha</em>, agora alvejado por haver +esquecido ingratamente a sua patria, preferindo assumptos, personagens e céos +estranhos, já estudara em um drama, em tres actos, intitulado <em>A Farça</em>, +a sociedade da sua terra e um facto que se desenrolara no meio em que vive.</p> + +<p>E esse drama foi levado á scena tres vezes, no Theatro S. Pedro, por uma +sociedade de amadores; mereceu a critica da imprensa local e foi largamente +estudado por dois homens conhecidos nas lettras: Alarico Ribeiro e dr. +Sebastião Leão.</p> + +<p>Se não teve esse modesto trabalho a ventura de ser interpretado por +artistas, não pode caber ao autor a culpa de faltar entre nós uma companhia +dramatica nacional constituida de profissionaes.</p> + +<p>A critica indigena devia ter conhecimento d'esse facto; se sabe d'elle é +perversa occultando-o propositalmente para ferir a <em>Talitha</em>; se não +sabe, é ignorante, e uma critica <em>soi-disant</em> competente, que desconhece +o autor escolhido para a censura e os trabalhos por elle produzidos, não póde +exigir consideração nem respeito do meio litterario em que pretende +pontificar.</p> + +<blockquote> + <p>«Il y a même, au fond de la grande majorité des critiques, un producteur + manqué, qui se regisne à parler des œuvres d'autrui, quand il voit que + personne ne parle des siennes.»</p> + + <p><span class="small-caps">Zola</span>, œuvre cit., pag. 349.</p> +</blockquote> + +<p>A critica, ou ignorante, ou perfida, ou ingenua,<span +class="pagenum">{145}</span>} esqueceu que Taine, o mestre supremo, havia +pontificado:</p> + +<blockquote> + <p>«La méthode moderne que je tâche de suivre, et qui commence à s'introduire + dans toutes les sciences morales, consiste a considerer les œuvres humaines, + et en particulier les œuvres d'art, comme des faits et des produits dont il + faut marquer les caractères et chercher les causes; rien de plus. Ainsi + comprise, la science ne proscrit ni ne pardonne: elle constate et + explique.»</p> + + <p><span class="small-caps">H. Taine</span>—œuvre cit, vol. I, pag. 14.</p> +</blockquote> + +<p>Mas a critica levantou-se contra as leis proclamadas pelo proprio mestre +invocado: condemnou, não explicou.</p> + +<p>Sem investigar as origens do drama, sem conhecer a sua significação, sem +sondar a alma que o creára, fulminou a obra e insultou o espirito que a +produzira.</p> + +<p>Para maldizer bastaram-lhe dois elementos: o assumpto que é portuguez e o +estylo que não é brazileiro...</p> + +<p>E a critica, sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, esqueceu que +Shakespeare fôra buscar á nevoenta Dinamarca a figura culminante de Hamlet, á +sorridente Italia dos laranjaes em flôr, as suaves imagens de Romeu e Julieta, +e o vulto soberbamente tragico do tremendo Othelo.</p> + +<p>Sempre com a mesma perfidia, a critica, depois de citar os nomes de Racine e +Corneille, occultou que esses grandes espiritos da França foram pedir á Grecia +e à Roma antigas, á Hespanha medieva e aos Barbaros a quasi totalidade dos seus +heróes e das suas heroinas, deixando na obscuridade a immensa galeria de +personagens illustres da propria patria: o genio desses dois sublimes cerebros +andou a resuscitar, a illuminar, a galvanizar no tablado do theatro francez a +grandeza épica de vultos estranhos<span class="pagenum">{146}</span> e deixou +no tumulo o vulto leonino dos immortaes filhos da França e as imagens delicadas +e formosas das mulheres gaulezas.</p> + +<p>De Corneille, <em>Medéa</em> é uma simples imitação de Lucio Seneca, romano, +que a seu turno pedira inspiração ao theatro grego; <em>Cid</em>, que é uma +obra-prima, além de ser puramente hespanhola a sua acção de altissima tragedia, +foi inspirada pela obra do poeta castelhano Guilhen de Castro, que o genio de +Corneille deixou na sombra; <em>Horace</em> é um assumpto romano que o poeta +francez pediu a Tilo-Livio; romanos são <em>Polyeucte</em>, <em>Cinna</em> e +<em>Pompée</em>, este inspirado por Lucano; <em>Mentor</em> é o velho +personagem da legenda grega de Ithaca, já reproduzido no theatro hespanhol pelo +poeta Alarcon, ao qual Corneille foi pedir o modelo; <em>œdipe</em> e +<em>Sertorius</em>, que são lampejos da constellação de decadencia de um genio, +pertencem, a primeira ao cyclo da heroicidade thebana que Sophocles já havia +immortalisado na scena grega, a segunda é pura historia da Iberia em que o +vulto admiravel do general romano fulge num derradeiro vestigio de genio, ao +lado de Viriato, o grandioso pastor dos Herminios e fundador da nacionalidade +lusitana.</p> + +<p>Nem mesmo no periodo da sua decadencia, vencido na queda da +<em>Pertharite</em> e no confronto do seu <em>Attila</em> com a +<em>Andromaque</em> de Racine, outro genio que subia rapidamente ao zenith, nem +mesmo na desventura, a alma de Corneille vibrou pela patria, o seu talento não +procurou conforto na historia assombrosa da França: o seu coração voltou-se +ainda para o oriente, foi á Judea estudar a grandeza sublime do Rabbino da +Samaria e deixou na <em>Imitação de Christo</em> a ultima expressão do seu +genio, como o raio extremo do sol ao entrar na sepultura do occaso.</p> + +<p>De Racine, póde-se affirmar que escreveu as suas tragedias inspirando-se, +ora no theatro grego, ora na Biblia.<span class="pagenum">{147}</span>}</p> + +<p>Assim o ensina um sabio mestre brazileiro:</p> + +<blockquote> + <p style="text-indent: 0;">«deixando respeitosamente de parte Eschylo e + Sophocles, impossiveis de imitar, modelou-se por Eurypedes, menos perfeito na + generalidade da concepção, porém mais tocante na pintura dos accessorios e + que maior conformidade offerecia com o seu talento.»</p> +</blockquote> + +<p>São d'esse genero a <em>Andromaque</em>, <em>Mithridates</em>, +<em>Phèdre</em>, <em>Iphigénie</em>.</p> + +<p>São inspiradas na Biblia, a <em>Thébaïde</em>, <em>Esther</em> e +<em>Athalie</em>.</p> + +<p>Pertencem ao genero historico: <em>Alexandre</em>, <em>Berenice</em>, +<em>Britannicus</em>. E ainda mesmo quando Racine, resolvendo esmagar os seus +zoilos, escreveu a comedia <em>Les Plaideurs</em>, que é uma <em>charge</em> +temivel de espirito e de genio, foi pedir ás <em>Vespas</em> de Aristophanes, +não só a inspiração, mas o exemplo, o paradigma.</p> + +<p>Todas essas tragedias ficaram na litteratura franceza, pertencem ao Theatro +da França que não as repudiou, que as ama, que as admira, cultuando a memoria +dos genialissimos poetas, não obstante o haverem elles esquecido a seara +magnifica da patria pelos encantos das estranhas figuras orientaes.</p> + +<p>Victor Hugo foi pedir a Inglaterra o vulto espantoso do dictador para +escrever a maravilha dramatica de <em>Cromwell</em>, deixando no esquecimento a +soberba grandeza de Danton! Para dar á Escola romantica a sua data inicial no +Theatro francez, o grande poeta das <em>Folhas de Outono</em> foi buscar á +Hespanha a inspiração dos versos maravilhosos do <em>Hernani</em> e deixou á +litteratura dramatica da França as figuras esculpturaes de <em>Dona Sol</em>, +do bandido celebre, do Rei D. Carlos e do velho aristocrata Ruy Gomez.</p> + +<p>Mas onde o genio do grande filho de Besançon attingiu a altitude suprema a +que não chegaram Corneille<span class="pagenum">{148}</span> no <em>Cid</em> +nem Racine na <em>Phèdre</em>, foi no <em>Torquemada</em>, a epopéa dramatica +do fanatismo: e Torquemada foi o inquisidor da Hespanha. Nenhum poeta da +peninsula havia arrancado á historia a figura sinistra do sacerdote; Hugo +levanta-a do tumulo, illumina-a com as fulgurações do seu genio, como se em +torno da cariatide monstruosa da Inquisição ardessem as fogueiras dos +autos-da-fé, e liga á litteratura dramamatica da França a figura barbara, +apocalyplica do carrasco da Igreja.</p> + +<p>No emtanto, na historia da França havia a linha cruel de Luiz XI, algoz do +duque de Alençon, que podia ter inspirado o genio do poeta sublime.</p> + +<p>Alfred de Vigny, contemporaneo de Victor Hugo, na sua primeira phase +litteraria foi quasi totalmente oriental e biblico: <em>Eloah</em>, +<em>Symeta</em>, <em>Dryade</em>, <em>Fille de Jephté</em>, <em>Femme +adultère</em>, <em>Dolorida</em>, <em>Deluge</em>.</p> + +<p>Na segunda phase produziu, em verso, o seu drama notavel Chatterton, cujo +heróe é o grande e infortunado poeta inglez que, aos 22 annos, procurou no +suicidio a solução para a vida das amarguras e tristezas que arrastava o seu +genio incomprehendido.</p> + +<p>E Alfred de Vigny, tão admirador de André-Chénier que n'este procurou +inspiração para a sua <em>Dryade</em>, deixou no esquecimento a figura soberba +e tragica do poeta da revolução, cuja cabeça rolou no cadafalso como uma cabeça +vulgar, não obstante:</p> + +<blockquote> + <p>«avoir quelque chose là dedans»</p> +</blockquote> + +<p>E a França não engeitou a obra immortal de Alfred de Vigny, e a +<em>Comedie-Française</em> em 1881 fazia a sua <em>reprise</em>, com alto +successo, não obstante a opinião do Zola que a reputa:</p> + +<blockquote> + <p>«la negation du théatre.»<span class="pagenum">{149}</span></p> +</blockquote> + +<p>A critica, severa para mim, devêra ter vergastado primeiramente a memoria de +Lord Byron que cantou na sua lyra de poeta e serviu com a sua espada de +guerreiro a obra politica da emancipação da Grecia; devêra anathematisar +Sienkiewicz, o polaco genial que estudou no romance a reconstituição da vida +romana á época da decadencia cesarista de Nero; devêra ter condemnado á morte +M.<sup>me</sup> Judith Gauthier, a filha gentil e talentosa de Theophile, que, +deixando de parte a herança paterna, preciosa e brilhante, foi procurar o +assumpto das suas obras notaveis nas terras e nos costumes do extremo oriente, +com especialidade no Japão e na China; devêra ter amaldiçoado e reduzido a pó o +sublime poeta contemporaneo da França—Edmond Rostand—que engastou nos tres +actos phantasticos da <em>Princesse-Lointaine</em> um assumpto oriental e na +<em>Samaritaine</em>, a sua obra prima, a vida, a figura, a alma encantadora da +filha da Judéa, deixando no esquecimento a belleza mystica de Joanna d'Arc; +devêra ter queimado a estatua de Castellar, porque o espantoso rival de Cicero +escreveu os extraordinarios volumes dos <em>Recuerdos d'Italia</em>, sem ter +jámais escripto uma pagina de viagem pela propria Hespanha, sua patria; devêra +ter castigado os despojos funebres de Milton, porque o grande poeta inglez, +cuja inspiração hombrea com as de Tasso e Ariosto, cuja grandeza genial é, +depois de Shakespeare, a creação mais opulenta da poesia britanica, teve o +arrojo de esquecer a sua verde Erin e foi ao pincaro do Himalaya, ao berço da +tradição adamita, procurar o assumpto do seu <em>Paradise Lost</em>.</p> + +<p>E a critica para ser sincera, ou, pelo menos, logica, severa como foi para o +obscuro autor da desventurada <em>Talitha</em>, devêra censurar amargamente a +falta de patriotismo de Araujo Porto Alegre que, em versos de um sabor arcadico +e em metro solto, celebrou o<span class="pagenum">{150}</span> almirante +genovez Colombo, deixando ingratamente no olvido a figura épica do riograndense +Tamandaré, lobo dos mares como o piloto de Palos, além de guerreiro como +Patterson.</p> + +<p>E a censura devêra estender-se tambem a Gonçalves de Magalhães que, em vez +de cantar o heróe dos Guararapes ou a figura brilhante de Garibaldi que vive na +tradição da liberdade sulina, preferiu celebrar na sua lyra a aguia de Wagram, +na queda monstruosa de Waterloo, tanto mais que ao nascer do theatro +brazileiro, quando fulgia o talento artistico de João Caetano, deixou no +esquecimento a figura negra de Calabar e foi á historia de Milão pedir o +assumpto e os personagens da sua tragedia <em>Olgiate</em>, em cuja acção se +estuda a tyrannia licenciosa de Galeazzo Visconti e o assassinato do +tyranno.</p> + +<p>E a critica, tão rispida com o autor da <em>Talitha</em>, chegando mesmo a +citar a sentença do divino Almeida Garrett para aquelles que se abalançam ao +estudo de estranhos assumptos esquecendo a patria, devêra começar pela censura +ao proprio autor do <em>Frei Luiz de Souza</em>, que iniciou a sua vida +litteraria no theatro escrevendo <em>Xerxes</em>, <em>Lucrecia</em>, +<em>Sophonisba</em>, <em>Atala</em>, <em>Meroppe</em> e <em>Catão</em>, antes +de se lembrar que <em>D. Filippa de Vilhena</em> fôra uma das heroinas de sua +terra.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Mas a critica, severa com o autor da <em>Talitha</em>, não tem sinceridade +nos seus conceitos.</p> + +<p>Um formosissimo talento de artista, alma de raro quilate, aberta ás emoções +do Bello, filho d'esta terra, Araujo Vianna, musicista de apurado engenho, +escreveu a sua brilhante partitura da <em>Carmella</em>, um encanto, uma +joia.</p> + +<p>A acção do libreto passa-se na Italia, a musica inspira-se<span +class="pagenum">{181}</span> claramente na escola de Massenet, sóbe á scena no +Rio de Janeiro interpretada por artistas italianos, sóbe á scena em Porto +Alegre interpretada por artistas italianos, a critica applaudiu em delirio, +extasiou-se, e ninguem viu, ninguem sentiu, que a <em>Carmella</em> é italiana +pelo libreto e franceza pela musica; o patriotismo riograndense não se julgou +melindrado porque o intelligente <em>maestro</em> patricio deixou na +obscuridade a nossa paisagem, o nosso clima, as nossas mulheres, os nossos +costumes, a nossa poesia, a nossa musica popular e caracteristica, preferindo a +lenda, o lyrismo, a impetuosidade, o céo, a aventura da gloriosa e divina +Italia da arte...</p> + +<p>A critica emmudeceu.</p> + +<p>Entretanto Araujo Vianna apenas visitou a Italia: o seu sangue é +genuinamente brazileiro, formou-se o seu espirito na propria patria, nem a +natureza nem a sociedade italiana influiram no seu desenvolvimento intellectual +e moral...</p> + +<p>A critica tinha de tudo isso conhecimento exacto e perfeito mas... +<em>passons là dessus</em>.</p> + +<blockquote> + <p>«Dès lors, les impuissants et les hypocrites peuvent injurier l'œuvre et + l'auteur, les couvrir de boue, les nier...»</p> + + <p><span class="small-caps">Zola</span>—<em>Documents litteraires</em>, pag. + 418.</p> +</blockquote> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Sempre ingenua, ou ignorante, ou perfida, a critica censura a +<em>Talitha</em>, condemnando-a porque os seus personagens fallam uma linguagem +elevada, superior á modestia das suas condições de aldeãos.</p> + +<p>A critica é futil e não sabe o que diz.</p> + +<p><em>Talitha</em> falla nos seus dialogos a linguagem do mysticismo que +durante dezesete annos ouviu e aprendeu com o seu velho padrinho: o cura.<span +class="pagenum">{152}</span></p> + +<p>A sua linguagem é simples, ingenua e lyrica.</p> + +<p>Mas simples, ingenua e lyrica é a linguagem do povo portuguez, desde a sua +infancia até hoje.</p> + +<p>As imagens que o autor lhe põe nos labios são as mesmas que borbulham na +phantasia do povo lusitano, ha mais de nove seculos de nacionalidade, affirmada +num <em>folke-lore</em> riquissimo e inexgottavel, desde Guesto Ansures até +Antonio Fogaça.</p> + +<p>Pois a uma creança de dezoito annos, alma pura e boa, natureza casta, +intelligente e fina, delicada e vibratil, torturada pela desventura, póde ser +negada a phantasia creadora, poetica e imaginosa que caracterisa o povo em cujo +meio ella vive, principalmente na aldeia, na atmosphera idylica e bucolica, +simplesmente porque a cataracta a cegou aos oito annos?</p> + +<p>Mas Antonio Feliciano de Castilho foi o bardo cégo que escreveu a <em>Noite +do Castello</em>, as <em>Cartas de Echo a Narciso</em>, os <em>Ciumes do +Bardo</em>, a <em>Primavera</em>, o <em>Outono</em> e cégo é o anonymato +popular que produz ha oito seculos esse rosario encantador e sublime das trovas +e cantigas que andam na tradição oral, na garganta de todas as mulheres, na voz +de todos os cantores, nos labios de todos os estudantes, desde o +<em>Cancioneiro de Garcia de Rezende</em> e de <em>El-Rei D. Diniz</em> até o +<em>Romanceiro</em> de Garrett e os <em>Cancioneiros</em> de Theophilo Braga e +Gualdino de Campos.</p> + +<p>São da poesia popular, são do povo em cujo seio <em>Talitha</em> nasceu, +cresceu, amou, sonhou e foi noiva, as formosas quadras que correm de labio em +labio, sem autor conhecido e que Junqueiro, Eugenio de Castro, Antonio Nobre e +Correia de Oliveira gostosamente assignariam.<span +class="pagenum">{153}</span></p> +<pre> I Nessas tuas mãos pequenas + como não vi em ninguem + não sei como as minhas penas + couberam nellas tão bem. + + II Perdes mais em me perder + do que eu perco em te deixar: + perco quem sabe offender, + tu perdes quem sabe amar. + + III Dizes que deixo saudades, + não me posso conformar: + pois se eu as levo commigo, + como t'as posso deixar? + + IV Acostumei tanto os meus olhos + a namorarem os teus + que de tanto confundil-os + nem já sei quaes são os meus. + + V Se os meus olhos te incommodam + quando estão na tua frente + hei de arrancal-os um dia + para te amar cegamente. + + VI Se eu soubesse que voando + alcançava o que desejo + mandava fazer as azas + que as penas são de sobejo. + + VII Eu jurei que não tornava + a dar adeus a ninguem: + quem parte saudades leva + quem fica saudades tem. + + VIII Essas tuas sobrancelhas + como nunca vi mais bellas + são laços de fita preta + unindo duas estrellas. + + IX Não sei que quer a desgraça + que atraz de mim corre tanto, + hei de parar e mostrar-lhe + que de vêl-a não me espanto. + + X Vae alta a noite, vae alta, + mais alto vae o luar, + mais alta vae a ventura + que Deus tem para me dar.<span class="pagenum">{154}</span> + + XI É tua bocca ideal + um palacio com jardim: + as portas são de coral + os degráos são de marfim. + + XII Aguas passadas não tornam; + deixae fallar o dictado: + ó saudade, és um moinho + móes com aguas do passado. + +XIII Pára tu, meu coração! + onde estou eu, onde vim? + triste caminho de lagrimas + tem começo e não tem fim. + + XIV Ouço cousas que não ouço, + vejo cousas que não vejo: + olhos da minha saudade, + ouvidos do meu desejo!</pre> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>E a um povo que assim traduz tão lyricamente, com tanta philosophia, com +tanto sentimento, todas as impressões da sua alma dôce, que assim vibra essa +poesia celeste nas cantigas das eiras ao luar, nas espadelladas, nas +desgarradas, nos desafios, na Paschoa, no Natal, nas romarias, a um povo que +tem alma poetica, mais suave que um paraiso, mais simples e mais colorida que +um poente de outono e uma alvorada de primavera, póde-se, com justiça, arrancar +essa linguagem que é caracteristica?</p> + +<p>O escriptor que o fizesse, a pretexto de ser verdadeiro com os seus +personagens, para que estes não pareçam superiores ao seu meio, mentiria á +propria consciencia, adulteraria a natureza, roubaria ao povo que quizesse +estudar o mais bello reflexo da sua individualidade litteraria.</p> + +<p>A um velho cégo que mendigava pelas estradas, entre Villa-Pouca de Aguiar e +Pedras Salgadas, na Provincia de Traz-os-Montes, muitas vezes ouvi cantar<span +class="pagenum">{155}</span> com a sua voz roufenha, na tristissima toada, +monotona como a sua desventura, as quadras que aqui reproduzo fielmente. Andava +elle pelas feiras, pelos caminhos, pelas romarias, levando a sua desgraça, como +Ashaverus, durante sessenta annos, a toda a parte onde a tradição religiosa +celebrava as festas dos seus oragos, onde a alegria popular estuava nas danças +e folguedos; o rapazio espantado escutava-o com profundo respeito, as raparigas +ouviam-n'o em silencio, porque na amargura das suas cantilenas, na monotonia +das suas queixas, na tristeza das suas lamentações havia verdade de conceitos e +a revolta justissima de uma alma ferida contra a dureza da sorte e a iniquidade +da natureza.</p> + +<p>Quem lh'o ensinou, quem escreveu esses versos, onde os aprendeu elle, que +poeta mysterioso, simultaneamente artista e philosopho, traduziu na +simplicidade mystica d'aquellas quadras toda a immensidade da sua irremediavel +desventura? A alma popular, suave e lyrica, de uma raça, filtrada na arêa +branca e pura de uma tradição de oito seculos.</p> +<pre>Diz toda a gente e eu não nego +que Deus é pae de bondade, +mas se isso é pura verdade +como foi que eu nasci cégo? + + Lá que Deus tirasse a luz + a quem rouba ou assassina, + era a justiça da sina + que todo o mundo conduz. + +Mas a mim, não foi clemente +porque eu não tinha nascido; +é que Deus tinha o sentido +de cegar um innocente. + + Aos lobos que andam na serra + matando ovelhas e anhos, + dizendo mal aos rebanhos + Deus não castiga na terra.<span class="pagenum">{156}</span> + +Não ha lobo que não veja, +todos são filhos de Deus, +só nos tristes olhos meus +a eterna noite negreja. + + Não tocaria viola + se eu fosse fera damnada, + mas não andava na estrada + soffrendo e pedindo esmola.</pre> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Milton, collocando nos labios de Eva os seus primorosos versos, não curou de +saber se no Paraiso a Mãe dos homens fôra educada pela serpente nos mysterios +da poesia, da arte, da phantasia, da linguagem alcandorada, nem cogitou de +saber se já naquelle tempo, no pincaro da cordilheira industanica, se fallava o +inglez.</p> + +<p>A Samaritana era uma mulher vulgar e desprezivel; Rostand colloca-lhe nos +labios a linguagem sublime dos seus alexandrinos formosos, sem indagar se, ao +tempo de Christo, na Samaria, junto ao poço de Jacob, já se fallava francez, em +verso, de metrica impeccavel e de rima opulenta, brilhante, artisticamente +disposta sob a fórma severa que Boileau, Corneille e Racine haviam de +prescrever 1600 annos depois.</p> + +<p>A critica, porém, mais céga que a minha desventurosa <em>Talitha</em>, mais +ingenua que a alma primitiva, mais ignorante que a Samaritana e mais perfida +que a Serpente, a sogra feroz de Adão, occultou o preceito de Taine:</p> + +<blockquote> + <p>«Par cet excès de l'imitation litterale, l'artiste arrive a produire, non + pas le plaisir, mais la répugnance, souvent le dêgôut, et quelque fois + l'horreur.</p> + + <p>«Il en est de même dans la litterature.<span + class="pagenum">{157}</span></p> + + <p>«La meilleure moitié de la poesie dramatique, tout le théatre classique + grec et français, la plus grande partie des drames espagnols et anglais, loin + de copier exactemente la conversation ordinaire, altèrent la parole humaine + de propos deliberé. Chacun de ces poètes dramatiques fait parler ses + personnages en vers, impose a leurs discours le rythme et souvent la rime. + Cette falsification est elle nuisible a l'œuvre?</p> + + <p>«En aucune façon. L'experience en a été faite de la maniere la plus + frappante dans une des grandes œuvres de ce temps, l'<em>Iphigénie</em> de + Gœthe, ecrite d'abord en prose et ensuit en vers. Elle est belle en prose, + mais, en vers, quelle diference! Ici, visiblement, c'est l'alteration du + langage ordinaire, c'est l'introduction du rythme et du mètre qui communique + à l'œuvre son accent incomparable, cette sublimité sereine, ce large chant + tragique et soutenu, au son duquel l'esprit s'élève au-dessus des vulgarités + de la vie ordinaire et voi reparaitre devant ses yeux les herós des anciens + jours, la race oubliée des âmes primitives, et, parmi elles, la vierge + auguste, interprète des dieux, gardienne des lois, bienfaitrice des hommes, + en qui toutes les bontés et toutes les noblesses de la nature humaine se + concentrent pour glorifier notre espèce et pour relever notre cœur.»</p> + + <p><span class="small-caps">H. Taine</span>—op. cit., vol. I, pag. 28 et + 29.</p> +</blockquote> + +<p>E a critica indigena censura ao obscuro autor da modesta <em>Talitha</em> a +ousadia de ter observado o preceito que Taine, o grande mestre da França e do +mundo, ordena que se faça, exactamente o que fez Gœthe para dar maior valor e +mais gloriosa belleza á sua <em>Iphigenia</em>; exactamente o que fez Rostand +para poder impôr á civilisação parisiense, na compleição nevrotica de Sarah +Bernhardt, a inferioridade da mulher da Biblia, a hetaïra da Samaria condemnada +ao supplicio da lapidação pelos heliastas da Judéa.<span +class="pagenum">{158}</span></p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Diante da bondade e em face das virtudes caracteristicas dos personagens que +se movimentam nos tres actos da <em>Talitha</em>, a critica sentiu arrepios de +indignação e abespinhou-se: á intelligencia dos censores é inconcebivel a +coincidencia de um encontro simultaneo de cinco almas igualmente boas, simples, +generosas, quasi santas; a sociedade repelle essa pureza, os factos demonstram +o contrario: o autor da <em>Talitha</em> não observou, phantasiou; o seu drama +é um trabalho de gabinete, no ambiente do mundo real essa hypothese não +existe.</p> + +<p>A critica pontificou <em>ex-cathedra</em>, infallivel como o successor de S. +Pedro, Vigario de Christo na terra.</p> + +<p>Taine escreveu:</p> + +<blockquote> + <p>«Après avoir examine devant vous la nature de l'œuvre d'art, il reste à + etudier la loi de sa production. Cette loi peut, au premier regard, + s'exprimer ainsi: <em>L'œuvre d'art est determinée par un ensemble qui est + l'état général de l'esprit et des œuvres environnentes.»</em></p> + + <p><span class="small-caps">H. Taine.</span>—op. cit., vol. I, pag. 55.</p> +</blockquote> + +<p>É a influencia do meio na producção artistica: consequentemente, para +apreciar a obra d'arte, quando é sincera, a critica necessita de conhecer o +meio em que ella foi produzida, o estado geral dos espiritos e dos costumes em +cujo seio o pintor, o esculptor ou o escriptor, pintou o quadro, esculpiu a +estatua, ou escreveu o poema.</p> + +<p>E dos criticos indigenas que se lançaram á <em>Talitha</em>, como San Thiago +aos moiros, apenas um viveu temporariamente em Portugal, mas nunca se perdeu em +terras trasmontanas, gastou o tempo nas ruas das cidades populosas: a aldeia +lusitana, se a viu não <span class="pagenum">{159}</span> a estudou, se a +estudou ou não a comprehendeu ou... tresleu.</p> + +<p>De sorte que a critica, severa e exigente, desconhece por completo o meio +que influiu na producção da <em>Talitha</em>, não tem noção, sequer, do estado +geral do espirito e dos costumes em cuja atmosphera o obscuro autor do drama +foi buscar os seus personagens: a critica, portanto, é ignorante e, como todo +os ignorantes, é pretenciosa, balofa e petulantissima.</p> + +<p>Ha doze annos ficou terminado o terceiro acto d'esse modestissimo evangelho; +ha doze annos appareceu pela primeira vez, no Brazil, a sublime +pastoral—<em>Os Velhos</em>—de D. João da Camara, cuja acção se passa em uma +aldeia do Alemtejo.</p> + +<p>Quando a critica indigena, do Rio Grande do Sul, assistiu á representação +dessa obra prima, extasiou-se e não viu que na formosa comedia do mallogrado +escriptor portuguez se movimentam, não cinco, mas nove personagens, nove almas +igualmente puras, virtuosas, que em toda a acção da bellissima pastoral ha um +ambiente de consoladora bondade.</p> + +<p>Applaudiu incondicionalmente, sem conhecer o meio em que D. João da Camara +estudou os seus personagens, nem sentiu necessidade de saber qual era o estado +geral dos espiritos e dos costumes que o brilhante escriptor portuguez +reproduziu no palco, para verificar se aquelles personagens, aquella acção, +aquelle ambiente correspondiam á realidade objectiva da vida aldean no +Alemtejo, ou se o dramaturgo phantasiara; se seria possivel encontrar no fim do +seculo XIX, em plena civilisação occidental europea, reunidas na mesma terra, +nove almas puras, virtuosas, preoccupadas apenas com a pratica do Bem, sem um +pensamento máo, sem uma palavra rude, sem uma acção menos digna.</p> + +<p>Ha nos dois primeiros actos da <em>Talitha</em> uma profunda<span +class="pagenum">{160}</span> tristeza, a amargura soluça em todas as gargantas +e no terceiro acto ha uma explosão de alegria: esse contraste parece exquisito, +inverosimil, sem exemplo na realidade da existencia; todo o drama tem um +excessivo perfume religioso que vae ao exaggero, diz a critica.</p> + +<p>A critica ignora o que sejam na aldeia portugueza o sentimento religioso, o +culto catholico, a tradição christan, porque nunca viveu na intimidade +daquelles lares; o que lobrigou, através da obra suspeita e viciada de +escriptores trabalhados pelo meio social corrompido dos grandes centros, +envenenou-lhe a alma já preparada para receber a semente do mal e a critica, +enfunada de leitura superficial, para maldizer, deixou-se ficar na commodidade +das biliothecas e dos gabinetes, acceitou as indicações da alma perversa de +algum mentor sem sinceridade, explorador da inexperiencia de creanças +talentosas e esqueceu a lição de Taine:</p> + +<blockquote> + <p>«Pour plus de clarté, nous prendrons un cas très simple, simplifié exprés, + celui d'un état d'esprit dans lequel la tristesse est predominante.</p> + + <p>...............................</p> + + <p>«Il faut d'abord remarquer que les malheurs qui attristent le public + attristent aussi l'artiste.</p> + + <p>«Comme il est une tête dans le troupeau, il subit les chances du + troupeau.</p> + + <p>................................</p> + + <p>«Sous cette pluie continue de misères personelles, il deviendra moins + joyeux, s'il est joyeux, et plus triste s'il est triste. Voilá—un premier + effet du milieu.</p> + + <p>................................</p> + + <p>«Car, ce qui le fait artiste, c'est l'habitude de degager dans les objets + le caractère essentiel et les traits saillants: les autres hommes ne volent + que des portions, il saisit l'ensemble et l'esprit. Et comme ici le caractère + saillant est la tristesse,<span class="pagenum">{161}</span> c'est la + tristesse qu'il aperçoil dans les choses.»</p> + + <p><span class="small-caps">H. Taine</span>—Op. cit., pag. 68 e + seguintes.</p> +</blockquote> + +<p>Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:</p> + +<blockquote> + <p>«O que deu nascimento, entre elles, á noção de fatalidade é uma concepção + que se refere, não ao futuro, mas unicamente ao passado; o que é, é, e nenhum + poder no mundo poderia fazer que um facto concluido não existisse.»</p> + + <p><em>A poesia e a arte no ponto de vista philosophico.</em>—Cap. II, pag. + 50.</p> +</blockquote> + +<p>O modesto autor da <em>Talitha</em> não podia fugir á acção do meio em que +se encontrou com os seus personagens, como doutrina Taine, nem se podia oppôr á +verdade: <em>o que é, é, e um facto concluido, poder algum o annulla</em>.</p> + +<p>Se o autor transformasse á medida do seu desejo, pensando em ser agradavel á +critica, mentiria á sua consciencia, deturparia as leis da arte: os zoilos +pódem maldizer, á vontade, o autor fica tranquillo e contente com a fiel +observancia das lições de Taine e do escriptor brazileiro, inspirado na +doutrina de Guyau.</p> + +<p>O facto é verdadeiro, era sufficiente que fôsse verosimil: o autor da +<em>Talitha</em> dramatisou-o, traduziu nos seus versos modestos as desventuras +e a redempção dos seus personagens pelo amor,</p> + +<blockquote> + <p>«l'amor che muove il sole e l'altre stelle.»</p> +</blockquote> + +<p>O seu drama obscuro impressionou e commoveu, tanto basta: a agitação da +critica apenas conseguiu encrespar a vaidosa pleiade de coripheus do elogio +mutuo e a paixão, a animosidade e malquerença politicas.</p> + +<p>Zola pontificou:<span class="pagenum">{162}</span></p> + +<blockquote> + <p>«Il n'est poin't de jeune homme arrivant de sa province qui ne rève de + distribuer des coups de férule.</p> + + <p>«Ces pauvres jeunes gens n'ont souvent pas deux idées nettes dans la tête. + L'experience leur manque. Ils tapent en aveugles. De lá les jugements + extraordinaires qui font resembler notre critique a une veritables Babel, ou + on parlerait toutes les langues, sauf la langue de verité et de justice qu'il + faudrait y parler.</p> + + <p>«Je ne nommerai personne parmi ces jeunes gens.</p> + + <p>«Le vent qui les apporte, les emporte.»</p> + + <p><em>Documents litteraires; la critique contemporaine.</em>—pags. 346, + 347.</p> +</blockquote> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>O assumpto da <em>Talitha</em> é portuguez, portuguezes são os seus +personagens, portuguez o meio em que a acção se desenvolve, portugueza foi a +atmosphera em que o autor viveu a sua adolescencia e a sua mocidade: o drama +não podia deixar de reflectir</p> + +<blockquote> + <p>«l'état général de l'esprit et des mœurs environnantes.»</p> +</blockquote> + +<p>De profundas amarguras, de lacerantes provações para o povo portuguez foi a +época dolorosa em que o modesto autor da <em>Talitha</em> aprehendeu em +flagrante o desenrolar da acção dramatica do seu poema lyrico: e essa éra +prolongou-se em uma crise tremenda que acaba de chegar ao seu auge, a sua +maxima intensidade. </p> + +<p>Portugal acabava de receber o <em>ultimatum inglez</em> na questão +pungentissima das possessões africanas, a natureza fôra de uma dureza extrema: +ás innundações dos invernos succedeu a crise agricola que esmagou a producção +vinicola pela invasão phyloxerica, as agitações politicas ganhavam terreno e a +ideia republicana fazia proselytos ameaçando as instituições<span +class="pagenum">{163}</span> monarchico-religiosas de sete seculos e, em meio +dessas provações a Providencia, esquecida da immensa piedade d'aquelle povo +sublime, ininterruptamente demonstrada em uma historia em que não soffre +solução de continuidade o culto da divindade catholica, fulmina-lhe os homens +notaveis e successivamente desapparecem no tumulo: Fontes Pereira de Mello, +Anselmo Braamcamp, Pinheiro Chagas, Guilherme de Azevedo, Lopo Vaz, Antonio +Rodrigues Sampaio, Luciano Cordeiro, Antonio Ennes, Marianno de Carvalho, +Oliveira Martins, Carlos Lobo d'Avila, Eça de Queiroz, Alexandre da Conceição, +Raphael Bordallo Pinheiro, Gervasio Lobato, Souza Martins, Camillo Castello +Branco e Anthero de Quental imitam o exemplo de Chatterton e atravessam a +luminosa região dos seus cerebros geniaes com a inferioridade crudellissima de +uma bala.</p> + +<p>Da nova geração, Antonio Fogaça, Luiz Ozorio, Antonio Nobre, Moniz Barreto +seguiram a estrada da morte.</p> + +<p>A crise economica era pavorosa, a emigração clandestina assustava os +espiritos mais fleugmaticos, á questão ingleza, seguiu-se a revolta de 31 de +Janeiro e a situação geral era tão delicada e complexa que nem o genio de José +Dias Ferreira, nem as combinações politicas de homens como Hintze Ribeiro e +Fuschini conseguiram solver.</p> + +<p>Ao desequilibrio financeiro succederam a questão monetaria e o augmento da +divida publica, fortemente aggravadas as condições do credito publico pela +questão internacional do emprestimo de D. Miguel. E Teixeira Bastos escreve:</p> + +<blockquote> + <p>«Diante do desconsolador espectaculo que apresenta a sociedade portugueza + estrebuchando no esphacêlo, ha quem tenha perdido de todo a esperança de + regeneração; ha quem se persuada<span class="pagenum">{164}</span> que estão + chegados os ultimos dias de Portugal. Com effeito, a agudeza da crise, que + talvez ainda esteja longo de seu termo, justifica em grande parte este + excesso de pessimismo.</p> + + <p>«Portugal, como todas as nações contemporaneas, em maior ou menor gráo, + lucta com uma crise terrivel, que se revela sob aspectos variadissimos. É uma + crise politica, financeira, economica, mas sobre tudo social e moral.»</p> + + <p><span class="small-caps">Teixeira Bastos</span>—A Crise, pag. 435.</p> +</blockquote> + +<p>Esse estado geral do espirito e dos costumes portuguezes influiu +poderosamente na producção artistica e litteraria d'aquelle tempo e na que se +seguia.</p> + +<p>Na esculptura destaca-se a estatua de <em>Hermengarda</em> em que o talento +de Moreira Rato evoca para o marmore a alma dilacerada da heroina de Herculano, +o pessimista glorioso, o desilludido sublime de Val de Lobos.</p> + +<p>Na architectura não surge cousa alguma que atteste a sublimidade do caracter +nacional e o que havia de notavel, legado e herança do passado, soffre a +influencia do desanimo, da indefferença, da tristeza geral que domina.</p> + +<p>É de Ramalho Ortigão o que se vae lêr:</p> + +<blockquote> + <p>«Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos os + attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a mais + desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos + architectonicos da nação...</p> + + <p>«Dos desacatos de lesa-magestade nacional, a que tenho a dôr e a vergonha + de me referir, uns teem caracter anonymo, outros affectam directamente a + cumplicidade official. Os primeiros são uma consequencia do desdem: os + segundos são um resultado de incapacidade.»</p> + + <p><span class="small-caps">Ramalho Ortigão.</span>—<em>O culto da Arte em + Portugal</em>, pags., 19 e seguintes.<span class="pagenum">{165}</span></p> +</blockquote> + +<p>Quanto á vida e a producção litteraria, o autor da <em>Talitha</em> invoca o +depoimento do grande critico portuguez; é elle quem affirma:</p> + +<blockquote> + <p>«Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de + abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver egreja que + os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na arte de portugal + faltam corações portuguezes.</p> + + <p>«Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da vida + intellectual.</p> + + <p>................................</p> + + <p>«A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de applicação e + de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas nevoentos, + anti-meridional, e vem fallando uma lingua secreta, cabalistica, + interessantemente engenhosa, incomprehensivel para o povo e para os que não + estiverem iniciados na morphologia espiritica das novas seitas.</p> + + <p>«Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza de + critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de apagada + tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue vermelho da raça, + nem se retrata o genio do nosso povo, meigo, docil, de apparencia branda, mas + ainda hoje eminentemente sociavel, amando a grande alegria estridente das + feiras, das tardes de touros, das romarias dos seus santos populares, + conservando nas intimas camadas sociaes um residuo trovadoresco, de palladino + e de menestrel, susceptivel ainda das paixões mais profundas, todo de + imposição e repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente grandes, + poetico, aventureiro e destemido.</p> + + <p>«Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola + portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos artistas, + sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes, sem lição commum, + não ha entre elles mutuamente, nem entre elles e o povo de que derivam, + communhão alguma de ideal ou de sentimentos.»</p> + + <p><span class="small-caps">Ram. Ortigão.</span>—op. cit., pag. 110 e + seguintes.<span class="pagenum">{166}</span></p> +</blockquote> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Embora modesta a <em>Talitha</em>, embora sem merecimento o seu autor +obscuro, como poderiam ambos—drama e escriptor—fugir a esse estado geral do +espirito e dos costumes, de que falla Taine?</p> + +<p>Necessariamente deveriam obedecer á lei, e por isso apparece nos dois +primeiros actos do drama essa dolorida tristeza que é o reflexo da situação +geral da sociedade e que a desventura daquella familia, pela desventura da +pequena Talitha, aggrava e apura com intensidade.</p> + +<blockquote> + <p>«D'autre part, l'artiste a été élevé parmi des contemporains + mélancoliques; partant, les idées qu'il a reçu et celles qu'il reçoit encore + tous les jours sont mélancholiques.</p> + + <p>«La religion regnante, qui s'est accommodée au lugubre train des choses, + lui dit que la terre est un exil, le monde un cachot, la vie un mal, et que + toute notre affaire est de meriter d'en sortir»</p> + + <p><span class="small-caps">H. Taine</span>—op. cit., vol. I. pag. 65.</p> +</blockquote> + +<p>Aliás é profundamente melancolica toda a obra litteraria portugueza desse +tempo, muito principalmente na poesia.</p> + +<p>É um soluço de magua—o <em>Espirito Gentil</em>—de Luiz Ozorio; formam um +rosario de amarguras—as <em>Orações do Amor</em> de Antonio Fogaça; é um +gemido crudellissimo o <em>Só</em> de Antonio Nobre; é como um echo de +Necropole—<em>Nada</em>—de Julio Dantas.</p> + +<p>No theatro, Marcellino de Mesquita lança a <em>Noite do Calvario</em>, +reproducção profundamente dolorosa e triste de um acontecimento real da vida de +um lar que o dramaturgo generalisa ás condições da vida social, aliás já +cruelmente desvendada nos <em>Castros</em>.<span +class="pagenum">{167}</span></p> + +<p>Para fugir á influencia da actualidade Julio Dantas recorre ao passado, á +chronica, a historia e não consegue eximir-se á impressão da desventura: <em>O +que morreu de amor</em> é uma resurreição esmagadora de magua; a +<em>Severa</em> é um manto de crepe encobrindo um cenotaphio; <em>O serão nas +larangeiras</em> é uma ironia finissima, um esfusiar de espirito que occulta, +mascára, e pinta um immenso abatimento moral.</p> + +<p>Gervasio Lobato passa nesse meio espalhando gargalhadas, ridiculo e +<em>troça</em> sobre a sociedade carcomida pela crise e acabrunha de pilherias +a burguezia e a classe media no <em>Commissario de Policia</em>, no <em>Solar +dos Barrigas</em> e na <em>Lisboa em Camisa</em>, passando do palco ao +romance.</p> + +<p>A <em>Velhice do Padre Eterno</em> é uma <em>charge</em> monumental sobre o +ultramontanismo da sociedade religiosa: a <em>Patria</em> é uma objurgatoria +tremenda, um raio de colera olympica; os <em>Simples</em>, constituem um colar +de lagrimas de uma jeremiada genial e as <em>Orações ao Pão e á Luz</em> são as +aspirações tantalicas do genio ao seio da excelsa divinisação da arte, como +refugio extremo de uma alma que foge ás revoltas da terra para não cahir na +lama das decomposições sociaes. </p> + +<p>A <em>Rosa engeitada</em>, de D. João da Camara, é a dôr vivendo e esmagando +as almas; os <em>Velhos</em>, apezar do seu encanto bucolico e purissimo, é um +crepusculo de sombras dôces.</p> + +<p>A <em>Cruz da Esmola</em>, de Eduardo Schwalbach, é a photographia nitida da +tortura e do desespero...</p> + +<p>E tudo isso é a reproducção conscienciosa de um estado de pathologia +social... a menos que a critica não attribua tudo isso á phantasia dos artistas +pelo gozo requintado de esmagar a propria patria ao peso de calumnias...</p> + +<p>Mas neste caso como comprehender o collossal successo das obras +extraordinarias de Ramalho Ortigão<span class="pagenum">{168}</span> na +critica, de Eça do Queiroz ao romance e de Raphael Bordallo na caricatura, +profligando esse estado geral de espirito e de costumes como Alphonse Karr, +Gavarni e Flaubert na alta cultura genial da França, em plena floração +artistica e litteraria?</p> + +<p>O terceiro acto da <em>Talitha</em> não destôa dos anteriores, a unidade não +se quebra, transmitte-se, completa-se: a mesma suave melancolia dos primeiros +conserva-se na narrativa da morte do sargento que <em>Ruy</em> communica a +<em>Joaquina</em> e no <em>raconto</em> que das suas desventuras, faz a +<em>Marqueza de Rilma</em> ao velho cura João Fulgencio.</p> + +<p>A mesma serenidade christan dos primeiros actos paira no terceiro através da +descripção em que <em>Talitha</em>, ao som dos sinos distantes da missa do +gallo, conta a <em>Ruy</em> e a <em>Joaquina</em> a sua allucinação passageira +e termina com a <em>Salve-Rainha</em> rezada ao soluçar do orgam e ao repique +da alvorada annunciando a missa d'alva.</p> + +<p>A alegria que vibra n'este acto é mais intensa, realmente, mas n'elle se +encontram trez factos culminantes: a confirmação do noivado de Talitha pelo +perdão da Virgem na visão da missa; a cura radical e milagrosa da sua cegueira +e o apparecimento da mãe tanto tempo perdida.</p> + +<p>Mas a alegria não surge alli de surpresa, repentinamente: no primeiro acto +ella vibra na scena final de amor em que as duas almas que se comprehendem +recebem a benção da velha Joaquina surprehendendo-as na ventura do seu idyllio, +e no segundo acto a primeira scena succede naturalmente a essa e os dois velhos +ligam, plas recordações, a passada alegria de outros tempos, a que se vae em +breve descerrar quando <em>Ruy</em> levantar definitivamente a venda aos olhos +da redimida.</p> + +<p>Ahi a alegria vae á intensidade das lagrimas, é a<span +class="pagenum">{169}</span> tristeza que nasce das extremas emoções da +felicidade que não é triste e, se momentaneamente desapparece quando +<em>Talitha</em> se deixa vencer pela fé religiosa e rompe o juramento de amor +para cumprir o juramento do voto de clausura, de novo se reata e estala em um +sorriso de supremo arrebatamento, quando a piedosa e santa mentira do +<em>Cura</em>, depois da confissão, lhe relata o sonho da madrugada anterior em +que elle viu rolar no espaço</p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> +<p>no fulgor de uma estrella o beijo do perdão.</p> +</div> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>A virtude daquellas almas!...</p> + +<p>E porque razão de alta monta o autor da <em>Talitha</em> devia quebrar a +verdade do facto observado, a unidade d'aquelle conjuncto que elle não +phantasiou e que, felizmente, encontrou num dia da sua mocidade, em meio da +crise social moral que caracterizava aquella época dolorosa de provações +populares?</p> + +<p>Introduzir um personagem que não tivesse as mesmas qualidades de caracter +seria deturpar os factos para obedecer ao <em>métier</em>, a carpintaria de +theatro vencendo a moral na arte: um cumulo de estupidez.</p> + +<p>Além de tudo, inutil: a emoção dramatica, o effeito theatral são completos e +seguros com a simplicidade daquellas cinco figuras, porque o Bem, a Virtude e a +Harmonia encantam e commovem sempre, em todas as zonas e latitudes da terra.</p> + +<p>Pertencem ao Sr. Adherbal de Carvalho as seguintes palavras:</p> + +<blockquote> + <p>«O artista que emprega suas faculdades ao serviço de uma idéa generosa não + é menos artista por isso, se bem que não seja por isso que elle<span + class="pagenum">{170}</span> é artista. O amor e a intelligencia do bem + suppõem uma concepção superior das condições da vida individual e social que + é preciso desejar a todos os artistas como a todos os homens...»</p> + + <p>................................</p> + + <p>«Entretanto ha uma observação a fazer neste ponto, é que parece mais facil + pintar o vicio do que a virtude. Balsac, que se sahiu admiravelmente na + pintura dos monstros, encalhava quasl sempre quando era atacado pelos homens + pudicos.</p> + + <p>«Tão verdadeiros e vivos são os seus libertinos da alta o baixa sociedade, + como os outros, na maior parte do tempo, são ternos e mal acanhados.»</p> + + <p>Op. cit. pag. 32.</p> +</blockquote> + +<p>Ainda mesmo quando o autor da <em>Talitha</em> houvesse faltado á verdade +dos factos que observou, teria tentado o problema, na opinião do estheta +brazileiro, mais difficil de resolver: o estudo e a interpretação da Virtude o +do Bem, na psychologia dos cinco personagens que jogam em scena a acção do seu +obscuro poema lyrico.</p> + +<p>A critica indigena, ignorante ou perversa, petulante ou futil, feriu-se com +as proprias armas.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<div style="margin-left: 10%;"> +<p>Que o autor da <em>Talitha</em>, sem prestigio para fazel-o, permittiu-se a +liberdade de escrever um drama em verso, fórma litteraria que está totalmente +banida do theatro moderno, supplantada pela prosa.</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>É outra censura da critica indigena; espera-a a mesma sorte das anteriores: +a critica é vesga e não sabe o que diz.<span class="pagenum">{171}</span></p> + +<p>Do theatro moderno ainda não foi banida a fórma alta e pura do verso: +semelhante vandalismo seria uma violencia feita á arte, á belleza, ao bom +gosto, á suprema lei do rythmo, para cujo excelso dominio tendem naturalmente +todas as manifestações da vida e a linguagem da poesia do metro e da rima, a +altissima elegancia.</p> + +<p>Moderno é Victor Hugo, gigante de oiro do theatro francez e escreveu em +verso: <em>Esmeralda</em>, <em>Burgraves</em>, <em>Ruy Blas</em>, +<em>Cromwell</em>, <em>Torquemada</em>, <em>Grandmère</em>, <em>L'Épée</em>, +<em>Mangerontils?</em>, <em>Sur la lisière d'un bois</em>, <em>Les gueux</em>, +<em>Étre aimé</em>, <em>La Forêt-mouillée</em>.</p> + +<p>Modernos são Paul Delair e Lomon e escreveram em verso os seus dramas +<em>Garin</em>, <em>Jean Dacier</em> e <em>Marquis de Kenilis</em> que Zola +critica asperamente na sua obra—<em>Naturalisme au Théâtre</em>.</p> + +<p>Moderno é Banville e produziu <em>Hymnis</em>, <em>Riquet à la houpe</em> e +<em>Socrates et sa femme</em>, tres comedias em verso.</p> + +<p>Moderno é Alphonse Daudet e entre as suas obras figura <em>Char</em>, +comedia em verso, em um acto.</p> + +<p>Moderno é Alfred Musset e legou ao theatro da sua patria: <em>Les marrons du +feu</em>, comedia; <em>A quoi rêvent les jeunes filles</em>, comedia; e <em>La +coupe et les lèvres</em>, drama, todos em verso.</p> + +<p>Moderno é Ed. Pailleron e no seu theatro figuram <em>Narcotique</em>, +comedia em um acto, e <em>Hélène</em>, drama em quatro actos, ambos em +verso.</p> + +<p>Moderno é Ludovic Halévy, collaborador de Meilhac, e produziu, em verso, a +<em>Phryné</em> e <em>Nina, la Tueuse</em>.</p> + +<p>Modernissimo é Emile Augier, o grande mestre da litteratura dramatica e da +carpintaria theatral e escreveu em verso a maior parte das suas peças. São em +verso: <em>Cigüe</em>, <em>Paul Forestier</em>, <em>Homme de bien</em>, +<em>Aventurière</em>, <em>Gabrielle</em>, <em>Joueur de flúte</em>, +<em>Philiberte</em> e <em>Jeunesse</em>.<span class="pagenum">{172}</span></p> + +<p>Moderno é Catulle Mendés e em 1872 dotou o theatro com a sua comedia em +verso, <em>La Part du Roi</em>, em um acto; em 1888 fez representar a sua +formosa phantasia, tambem em verso—<em>Isoline</em>, em tres actos; e em 1889 +produziu, ainda em verso, o drama em 6 actos—<em>Fiammete</em>; em 1906, punha +em scena no Odéon, o seu drama <em>Glatigny</em>, tambem em verso.</p> + +<p>Modernissimo é Jean Richepin e, em 1905, fazia representar na Comédie +Française o seu <em>D. Quichote</em>, em verso.</p> + +<p>Modernissimo é tambem André Arnymede, que em 1906 assombrava a critica +parisiense com a representação triumphal de <em>La Courtisane</em>, em cinco +actos e em verso.</p> + +<p>Modernissimo é Francis de Croisset e escreveu em verso os tres actos +sensacionaes do Paon que subiu á scena na Comédie Française.</p> + +<p>Modernissimo é Emile Veyrin que viu os seus formosos versos dos quatro actos +de <em>Embarquement Pour Cythère</em>, no palco do Theatro des Bouffes +Parisienne.</p> + +<p>Modernissimo é Jacques Richepin e, em Abril de 1907, viu na ribalta da +<em>Porte St. Martin</em>, os soberbos alexandrinos da <em>Majorlaine</em>, em +cinco actos, depois de haver debutado com os versos admiraveis da <em>Reine de +Tyr</em>, no theatro Sarah Bernhardt.</p> + +<p>Moderno é François Coppée, e em 1878, em collaboração com Armand d'Artois, +produziu o drama em cinco actos <em>Guerre des Cent ans</em>; em 1879, <em>Le +Trésor</em>, comedia em um acto; em 1881, <em>Madame Maintenon</em>, drama em +cinco actos e um prologo: em 1883, <em>Severo Torelli</em>, drama em cinco +actos; em 1885, <em>Les Jacobites</em>, drama em cinco actos; em 1880, <em>Le +Passant</em>, em um acto; e em 1888, <em>La Grève des Forgerons</em>, em um +acto, e em 1905, <em>Scarron</em>, em cinco actos: e todos esses trabalhos são +em verso.<span class="pagenum">{173}</span></p> + +<p>Rostand escreveu todos os seus dramas em verso: <em>Princesse +Lointaine</em>, <em>Romanesques</em>, <em>Cyranno de Bergerac</em>, +<em>Samaritaine</em>, <em>Ayglon</em> e ultimamente os tres primeiros actos do +<em>Chant-clair</em>...</p> + +<p>Miguel Zamacoix acaba de escrever e fazer representar em Paris pelo genio de +Sarah Bernhardt, <em>Les Boufons</em>, em verso alexandrino, obra prima que a +critica europea colloca, senão acima, ao lado do <em>Cyrano</em>.</p> + +<p>E ainda recentemente, em Outubro de 1906, a imprensa franceza se occupou de +uma outra obra prima do talento de Catulle Mendés, em soberbos alexandrinos, de +um mysticisco celeste, que se intitula <em>Sainte Thérèse</em>.</p> + +<p>Na Inglaterra, Robert Browning escreveu a tragedia historica +<em>Strafford</em> e os dramas <em>Mancha no Brazão</em> e <em>Regresso dos +Deuses</em>, todos em verso.</p> + +<p>Na Italia, Gabriel d'Annunzio escreveu em verso os tres actos da <em>Filha +de Jorio</em>, e fez representar por Eleonora Duse o seu grandioso monumento +<em>Francesca da Rimini</em>, em verso, como em verso havia escripto pouco +antes o seu extraordinario <em>Nerone</em>, o genio brilhante de Boito, e +Cavalloti o seu formosissimo idylio <em>Cantico dei cantici</em>, em 1882.</p> + +<p>Na Hespanha, deixando de parte o <em>D. Juan Tenorio</em>, de Zorrilla: o +<em>Trovador</em>, de Gutierres; a <em>Roda de la Fortuna</em>, de Thomaz Rubi, +todos de 1850: Hartzemburch produziu mais recentemente <em>Los Amantes de +Terruel</em>; <em>Alfonso, el Casto</em> e <em>La Madre de Pelagio</em>, e +Echegaray o seu conhecidissimo <em>Gran Galeoto</em>. </p> + +<p>E todos esses dramas são escriptos em verso.</p> + +<p>Em Portugal, João de Deus, o lyrico sublime, escreveu <em>Horacio e +Lidia</em>; Eugenio de Castro, o revolucionario de genio, o extraordinario +autor da <em>Belkiss</em> e de <em>Constança</em>, acaba de publicar o +<em>Annel de Polycrates</em>; Henrique Lopes de Mendonça, o <em>Duque de +Vizeu</em><span class="pagenum">{174}</span> e a <em>Noiva</em>: Fernando +Caldeira, a <em>Mantilha de Renda</em> e a <em>Madrugada</em>; Marcellino de +Mesquita, a <em>Leonor Telles</em>; Julio Dantas, a <em>Ceia dos Cardeaes</em>; +Francisco Palha, a <em>Fabia</em>; Luiz de Magalhães, o <em>D. Quixote</em>, os +dois ultimos para o Theatro Academico, de Coimbra, todos em verso; sómente para +citar os escriptores da actualidade, deixando de parte <em>O Catão</em> e a +<em>Merope</em> de Almeida Garrett e o <em>Camões</em>, de Antonio Feliciano de +Castilho.</p> + +<p>Finalmente: em verso tambem escreveram no Brazil: Gonçalves de Magalhães, o +<em>Olgiato</em>; Arthur Azevedo, o <em>Badejo</em>; Zeferino Brasil, o +<em>Outro</em> e Coelho Netto, <em>As estações</em>.</p> + +<p>A critica, portanto, ou é ignorante ou mentiu propositalmente.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Mas a critica adiantou-se ainda: abriu dogmaticamente uma excepção: o verso +em theatro só se admitte para as tragedias historicas.</p> + +<p>Outra cincada.</p> + +<p>Em Portugal, Fernando Caldeira deixou no theatro duas joias preciosas: a +<em>Mantilha de Renda</em> e a <em>Madrugada</em> que nem são tragedias, nem +tem filiação alguma historica.</p> + +<p>Na Italia, Cavallotti legou á lilteratura dramatica um primor de lyrismo: o +<em>Cantico dei cantici</em> que não é tragico, nem historico.</p> + +<p>Em França, Catulle Mendès escreveu, em verso, os tres actos de +<em>Isoline</em> e os seis do <em>Fiammette</em> que nada tem a vêr com a +historia, nem com a tragedia. </p> + +<p>François Coppée produziu <em>Le Trésor</em>, <em>Le Passant</em>, <em>La +Grève des Forgerons</em>, todos em um acto e que não<span +class="pagenum">{175}</span> tem a minima relação com a tragedia, nem o menor +vestigio de historia.</p> + +<p>No Brasil, o <em>Badejo</em>, de Arthur Azevedo, é uma comedia, o +<em>Outro</em>, de Zeferino Brasil, um drama; <em>As estações</em>, de Coelho +Netto, uma phantasia, todos em verso, sem relação alguma com a historia ou com +a tragedia.</p> + +<p>A critica indigena</p> + +<blockquote> + <p>«appartient à ce monde de paresseux qui font chaque soir une grande œuvre, + en buvant une chope; seulement, le lendemain, ils ont sommeil et ne trouvent + pas le temps d'ècrire la grande œuvre. «La vie se passe, l'âge arrive, ils + restent des debutants.»</p> + + <p><span class="small-caps">Zola</span>, <em>La critique Contemporaine</em>, + pag. 351.</p> +</blockquote> + +<p>Entretanto, René Doumic, um mestre da critica, escreve na <em>Revue des Deux +Mondes</em>:</p> + +<blockquote> + <p>«Je voudrais seulement que les poètes qui se sentent une vocation + d'auteurs dramatiques ne s'imaginent point que le succès ne peut être obtenu + par eux, à la scène, qu'en nous narrant des histoires romantiques ou des + féeries.»</p> +</blockquote> + +<p>E Gaston Sorbets conclúe:</p> + +<blockquote> + <p>«M. René Doumic á assurément raison: la poesie dramatique est faite anssi + pour exprimer les mouvements les plus profonds de notre cœur ou les + aspirations les plus hautes de notre âme. Il suffit de voiler de poesie la + Verité nue pour faire de cette divinité une muse nouvelle.»</p> +</blockquote> + +<p>Deixemos vociferar os maldizentes: nós ficamos com os criticos que sabem +sentir e... lêr.<span class="pagenum">{176}</span></p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Os zoilos que se lançaram á modestissima <em>Talitha</em>, censuraram ao seu +autor o atrevimento inaudito de não observar a regra do Theatro francez de +Corneille e Racine, que manda emparelhar systematicamente os graves e agudos na +symetria inalteravel prescripta por aquellas duas autoridades.</p> + +<p>Mas a critica, absolutamente não tem competencia para impôr aos escriptores +brazileiros, por muito modestos e insignificantes que sejam, as leis e as +regras da arte poetica franceza.</p> + +<p>Se a obra d'arte é portugueza ou brazileira, o auctor não se submette ás +leis da poetica franceza: observa os modelos nacionaes e portuguezes.</p> + +<p>E, sem receio de ser contestado por quem quer que seja, o autor da +<em>Talitha</em> affirma: não ha poeta algum na lingua de Camões, quer no +theatro, quer fóra delle, que obedeça ás exigencias das prescripções francezas, +que, aliás, o proprio Corneille, invocado pela critica, não seguiu nem adoptou +na <em>Imitation de Christ</em>:</p> + +<div style="font-size: small;"> +<p>«Le desir de savoir est naturel aux hommes:<br> +il nait dans leur berceau sans mourir qu'avec eux<br> +mais, ô Dieu, dont la main nous fait ce que nous sommes,<br> +que peut-il sans ta crainte avoir de fructueux?</p> + +<p>Liv. I, Chap. II.</p> + +<p> </p> + +<p>«Vanité d'entasser richesses sur richesses,<br> +Vanité de languir dans la soif des honneurs,<br> +Vanité de choisir pour souverains bonheurs<br> +de la chair et des sens les damnables caresses.</p> + +<p>Liv. I, Chap. I.</p> + +<p> </p> + +<p>«Vraiment grand est celui qui dans soi se ravale<br> +qui rentre en son néant pour s'y connaitre bien,<br> +qui de tous les honneurs que l'univers étale<br> + craint la pompe fatale,<br> + et ne l'estime en rien.</p> + +<p>Liv. I, Chap. III.<span class="pagenum">{177}</span></p> +</div> + +<p>Victor Hugo, o mestre supremo, tambem não obedeceu invariavelmente a esta +regra que a critica pretende impôr dogmaticamente, como immutavel.</p> + +<p>Vejamos na <em>Esmeralda</em>, acto I:</p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> + «Nous irons au clair de lune<br> + danser avec les esprits...<br> + Vive Clopin, roi de Thune!<br> + Vivent les gueux de Paris!<br> +<br> +«Au milieu de la ronde infame<br> +qu'importe le soupir d'une ame?<br> +Je souffre! oh! jamais plus de flamme<br> +au sein d'un volcan ne gronda.<br> +</div> + +<p>Em <em>La Forêt mouillée</em>, Scene II:</p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> +«Les moutons promis aux fourchettes<br> +Passent là-bas; j'entends leurs voix<br> + Sonnez, clochettes,<br> + au fond des bois.<br> +Le beau Narcisse est en manchettes;<br> +Silène a mis toutes ses croix.<br> +</div> + +<p>Rostand, o impeccavel, na <em>Samaritaine</em>, tambem não se subordinou +absolutamente a essa regra, como se vê logo na primeira scena:</p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> +«Poussé par la brise des nuits,<br> +et vagabond jusqu'à l'aurore,<br> +je viens pour des fins que j'ignore,<br> +comme un fantôme que je suis.<br> +D'une sandale sonore<br> +je viens, je glisse et je m'enfuis...<br> +Mais, ô Jehovah que j'adore!<br> +quelle est cette grande ombre encore<br> +qui se tient debout près du puits?<br> +</div> + +<p style="text-indent: 0em;">e assim prosegue o genial poeta em toda essa scena +que se compõe de cento e nove versos.</p> + +<p>E para que não diga a critica perversa que n'esses exemplos não ha +alexandrinos, aqui ficam estes alexandrinos, ainda do I acto, scena V, em que +Photina declama:<span class="pagenum">{178}</span></p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> +«Mon bien aimé—je t'ai cherché—depuis l'aurore,<br> +Sans te trouver,—et je te trouve,—et c'est le soir;<br> +Mais quel bonheur!—il ne fait pas—tout a fait-noir:<br> + mes yeux encore<br> + pourrent te voir. </div> + +<p style="text-indent: 0em;">e assim por toda a <em>fala</em> de Photina, gue +se compõe de mais de vinte nove versos.</p> + +<p>Na lingua portugueza, porém, não ha um poeta sequer que obedeça á regra da +metrica franceza, nem no drama, nem no poema.</p> + +<p>Junqueiro, na <em>Morte de D. João</em>, na <em>Musa em ferias</em>, na +<em>Velhice do Padre Eterno</em>, na <em>Patria</em>, ou nos <em>Simples</em> +usa indistinctamente as rimas agudas, graves, e esdruxulas, emparelhadas, ou +alternadas.</p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> + «O pensamento humano<br> +mergulhou como um Deus nas grutas do oceano,<br> +embebeu-se no azul, andou pelo infinito,<br> +interrogou a historia, os ventos, o granito,<br> +todas as creações, todas as creaturas,<br> +vermes, religiões, abysmos, sepulturas,<br> +e disse-nos: Jesus, Socrates, Platão<br> +fallaram a verdade. Existe uma rasão,<br> +uma ideia, uma lei, mysteriosa, etherea,<br> +que rege o movimento e as formas da materia...<br> + + +<p><em>Morte de D. João.</em>—Introducção, pag. 31.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> +«Hediondo! assassinar um homem que assassina!<br> +Collocar o direito ao pé da guilhotina.<br> +Resolver a questão do crime—um cemiterio!<br> +Sanccionar Papavoine e decretar Tiberio!<br> +Um carrasco de guarda á nossa segurança!<br> +O pelotão—juiz e o tribunal—vingança!<br> +E é uma coisa que indigna, um facto que comove,<br> +que quasi ao terminar o seculo dezenove<br> +pensem como Marat, pensem como Cain<br> +as leis no velho mundo e o tigre em Bombaim!<br> + + +<p><em>Musa em férias</em>; Idilios e Satiras, pag. 137.<span +class="pagenum">{180}</span></p> +</div> + +<p>Julio Dantas, o brilhante poeta da <em>Ceia dos Cardeaes</em> tambem não +adoptou a regra que a critica indigena pretende nacionalizar.</p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> + Xerez.<br> +«Roma! Roma que viu, pela primeira vez,<br> +Beneditto XIV, um papa,—a receber<br> +Conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire!<br> + ............................................<br> +<br> +«As cartas de Voltaire, honram!<br> + ... É natural<br> +fala como francez.<br> + ... Fala como cardeal!<br> + ............................................<br> +<br> +«Mas perdão... Não será politica de mais<br> +para uma ceia alegre? Emfim trez cardeaes<br> +não salvam Roma...</div> + +<p>Como se vê, Julio Dantas, empregou successivamente dez agudos.</p> + +<p>E esse arrojo do eminente poeta portuguez não impediu que a <em>Ceia dos +Cardeaes</em> tivesse oito traducções em allemão, francez, italiano, hespanhol +e no dialeto catalão, nem evitou que fôsse representada mais de quatrocentas +vezes.</p> + +<p>Entre os poetas brasileiros bastará citar dois nomes de primeira grandeza: +Alberto de Oliveira e Goulart de Andrada; nenhum se submette á exigencia +franceza da critica indigena.</p> + +<p>A <em>Cruz da montanha</em> do primeiro é um poemeto de 126 alexandrinos. Em +toda essa obra prima não ha dois versos agudos e apenas se encontra uma parelha +de esdruxulos.</p> + +<p>Observa-se o mesmo phenomeno em varias outras composições como—<em>A +Enchente</em>, com 76 alexandrinos; a <em>Lagarta</em>, com 124 versos de vario +metro, onde<span class="pagenum">{181}</span> apenas ha 14 rimas agudas: +<em>Atmo</em>, com 88 alexandrinos, entre os quaes apenas dois esdruxulos e nem +um agudo.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p><em>Ascenção perigosa</em>, de Goulart, é uma poesia composta de 44 +alexandrinos, dos quaes apenas quatro são esdruxulos e nem um agudo.</p> + +<p><em>Apocalypse</em> é formado de 158 alexandrinos: nem um agudo, sómente +dois esdruxulos.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>E a razão é simples, é natural, é formidavel: o idioma francez é +abundantissimo de agudos e o portuguez é, relativamente, pauperrimo.</p> + +<p>Para observar inalteravelmente a regra franceza que a critica pedante e +fátua pretende impôr vaidosamente, depressa ficariam exgottadas as rimas agudas +e o poeta incidiria na repetição das consoantes, o que constitúe o defeito da +pobreza de rimas, acremente censurado pela critica.</p> + +<p>Além disso, os francezes não conhecem as palavras esdruxulas, ao passo que a +lingua vernacula é riquissima d'esses vocabulos e, a ser observada na poesia +dramatica portugueza e brazileira a lei da arte de Corneille e Racine, os +poetas lusitanos e patricios vêr-se-iam obrigados a escrever alternadamente os +seus versos em parelhas systematicas de esdruxulas, graves e agudas, o que +seria, além de fatigante e exhaustivo, de um rebuscamento torturado, monotono, +somnolento.</p> + +<p>O obscuro autor da <em>Talitha</em> preferiu deixar expandir-se naturalmente +o pensamento proprio, de accordo com a alma dos personagens: o verso e a rima +já de<span class="pagenum">{182}</span> si são condições impostas pela +exigencia artistica, apurar essa exigencia com o requinte de uma symetria +dispensavel, equivaleria a torturar os sentimentos das figuras que se movem na +acção dramatica.</p> + +<p>O facto de ser uma regra de Corneille e de Racine tambem geralmente seguida +por outros poetas modernos—o emprego alternado de dois agudos e dois graves, +não evita a monotonia, principalmente quando se traduz o pensamento de um +personagem ou se reproduz um vulto historico: na vida real ninguem se exprime +por essa fórma.</p> + +<p>Entretanto, admittidos geralmente o verso e a rima, o poeta deve quanto +possivel, para evitar a monotonia, variar o rythmo, o metro e o encadeamento da +rima: as difficuldades artisticas e technicas não são excluidas por esse +criterio, conservam-se; a monotonia desapparece e o pensamento, exprimindo-se +com mais liberdade, permitte melhor estudo da psychologia dos personagens, e +mais vigor descriptivo.</p> + +<p>O proprio autor da <em>Talitha</em> verificou praticamente o que acaba de +affirmar quando escreveu a <em>Visão de Colombo</em>, em um acto, obedecendo +systematicamente á regra da poetica franceza e emparelhando os alexandrinos por +ordem de rimas agudas, graves e esdruxulas em toda a extensão do poema +dramatico, formado de quatro centos e poucos versos, sem repetição de rimas.</p> + +<p> </p> + +<p>Ramalho Ortigão ensina:</p> + +<blockquote> + <p style="text-indent: 0em;">«não são as academias que pautam as proposições + e os limites da creação artistica. Tudo o que se pode formular em preceito + cessa de ter valor em arte. A obra de arte não é um producto de escola: é a + livre expressão individual de uma alma, convertida em realidade objectiva e + communicando aos homens uma vibração nova de sentimento.<span + class="pagenum">{183}</span></p> + + <p>«A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua cathegoria, + deduz-se da maior ou menor quantidade de ideias que a sua obra suggere e dos + sentimentos cuja percussão ella determina.»</p> + + <p>Op. cit., pag. 145.</p> +</blockquote> + +<p>Adherbal de Carvalho doutrina:</p> + +<blockquote> + <p>«É no sentido da liberdade que em geral se faz todo o progresso; é neste + sentido que tambem se deve fazer todo o progresso do verso.</p> + + <p>«A liberdade do rythmo era muito insufficiente entre os romanticos. Vimos + que a consequencia é a pobreza, a esterilidade do proprio pensamento; porque + a forma do verso reage sobre o cerebro do poeta. O remedio seria a auzencia + de estorvo sem fim, a suppressão de regras não racionadas: liberdade é + fecundidade.»</p> + + <p>Op. cit., pag. 282.</p> +</blockquote> + +<p>E depois d'essas duas sentenças, atreve-se o autor da <em>Talitha</em> a +perguntar á critica indigena como será possivel arvorar em preceito obrigatorio +de arte poetica da nossa lingua, a regra de Racine e Corneille, quando a +tendencia moderna é para supressão da rima e para a cultura extremada do rythmo +no verso branco?</p> + +<p>A falla de <em>Cacambo</em> e o episodio da morte de <em>Lindoya</em> no +<em>Uruguay</em> de Basilio Gama nada perderam em valor artistico pela falta de +rima: o <em>Colombo</em> de Araujo Porto Alegre encerra verdadeiras maravilhas +em verso branco; Alexandre Herculano, que foi um cinzelador do verso, na +<em>Harpa do Crente</em> deixou primorosos lavores em verso solto.</p> + +<p>Anthero Quental, cujas <em>Odes modernas</em> arrancaram a Michelet uma +soberba explosão de espanto</p> + +<blockquote> + <p>«Se em Portugal ainda houver quatro ou cinco homens como o poeta das + <em>Odes modernas</em>, Portugal continuará a ser um grande paiz vivo.»<span + class="pagenum">{184}</span></p> +</blockquote> + +<p>Anthero legou nessa obra monumental pequenos monumentos em verso branco.</p> + +<p>E para não fallar na <em>D. Branca</em> de Garrett, todo escripto em versos +soltos, bastará citar os livros admiraveis de Correia de Oliveira: <em>Ara</em> +e <em>Raiz</em>, demonstração brilhante de que a obrigatoriedade da rima tende +a desapparecer cedendo á liberdade do pensamento.</p> + +<p>O velho mestre Antonio Feliciano de Castilho, na sua Arte poetica, +escreveu:</p> + +<blockquote> + <p>«Os versos agudos, pelo seu modo secco estalado de acabar, sem + elasticidade, sem vibração, se assim o podemos dizer, teem o que quer que + seja de ingrato ao ouvido; seriam insoffriveis, se alguem se lembrasse de + nol-os dar enfiados aos centos e aos milheiros, como os graves nos apparecem, + sem nos cançarem: demais por isso mesmo que os vocabulos agudos são menos + frequentes, d'ahi tiram os versos agudos um quid de exhibição e exquisitice + que não parece frisar senão com as idéas extravagantes, comicas, brutescas ou + satyricas.</p> + + <p>«Do expendido por boa razão se infere: l.º que em toda e qualquer especie + de metro são os versos graves que devem, predominar.»</p> +</blockquote> + +<p>A critica pretenciosa e petulante indicadora de regras de arte rebella-se +contra a autoridade incontestavel e consagrada de Antonio Feliciano de Castilho +e quer que em versos portuguezes o autor da <em>Talitha</em> adopte a regra +franceza, que equipare agudos e graves e os manda empregar em numero igual, +symetrica e systematicamente dispostos em parelhas alternadas.</p> + +<p>O autor da <em>Talitha</em> não adoptou a regra de Castilho mas tem ao seu +lado, para apoiarem o seu procedimento, as autoridades dos rebeldes Junqueiro, +Feijó, Luiz de Magalhães, Lopes de Mendonça, Julio Dantas, Eugenio de Castro, +Antonio Nobre, Gonçalves Crespo, Marcellino de Mesquita, Fernando Caldeira que +não<span class="pagenum">{185}</span> a observaram, nem se submetteram á lei de +Corneille e Racine, e, o que é tudo, do proprio Antonio Feliciano de Castilho +que não adoptou a regra franceza na composição dos alexandrinos +emparelhados.</p> + +<p>Isso em Portugal, porque no Brasil o autor da <em>Talitha</em> encontra +apoio para o seu procedimento em Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Goulart de +Andrada, Martins Fontes, Guimarães Passos, Luiz Murat, Machado de Assis, +Valentim Magalhães, Lucio Mendonça, Oscar Lopes, Pereira da Silva, Emilio +Menezes, Frota Pessoa, Flexa Ribeiro, Zeferino Brasil e Coelho Netto que não +consideram a technica franceza como adaptavel ao verso portuguez, se bem que +discretamente observem a opinião de Castilho, relativamente á proporção das +rimas agudas e graves.</p> + +<p>Ora, a critica indigena, ainda rescendendo aos aromas equivocos da primeira +infancia, ha de permittir que o autor da <em>Talitha</em> prefira as +autoridades artisticas de dois hemispherios, acima citadas, ao impertinente +pedantismo da incompetencia de quem, em materia de autoridade litteraria, não +chegou ainda se quer á categoria de trintanario do <em>Pegaso</em>, na +estrebaria de Augias.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>A critica indigena censura a pobreza de rima da <em>Talitha</em>: não tem +razão.</p> + +<p>A <em>Ceia dos Cardeaes</em> é uma obra prima: assim o prégou a critica, +assim a considera a opinião.</p> + +<p>Pois bem; essa joia tem 338 versos; o primeiro acto da <em>Talitha</em> +compõe-se de 492.</p> + +<p>A <em>Ceia dos Cardeaes</em> tem apenas 66 rimas diversas; o primeiro acto +da <em>Talitha</em> dispõe de 127 rimas differentes: a proporção naquella é de +5%, nesta é de 25%.<span class="pagenum">{186}</span></p> + +<p>Na <em>Ceia dos Cardeaes</em> ha apenas 31 rimas que não foram repetidas; no +1.° acto da Talitha ha 80.</p> + +<p>Na primeira, a obra prima, essa proporção é de 9%, na <em>Talitha</em>, a +condemnada, a proporção é de 17%. A critica indigena tem cabellos na lingua e +fel no coração.</p> + +<p>A <em>Samaritana</em> é a obra prima de Rostand, assim a julgou a critica +europea, assim a julga o proprio poeta.</p> + +<p>O primeiro acto d'essa joia magestosa tem 808 versos.</p> + +<p>Pois bem: entre esses ha 322 repetições, apenas em 17 rimas.</p> + +<p>Poder-se-ia fazer o confronto dos tres actos: basta esse que ahi fica para +demonstrar que a critica nem soube o que disse, nem sabe o que é pobreza ou +riqueza de rima.</p> + +<p>A opulencia de rima póde ser exigida em composições poeticas esparsas, que +não tenham grande extensão, mas em um poema dramatico essa exigencia da critica +é despotica, é absurda, principalmente quando os personagens que o movimentam +são da especie daquelles que figuram no entrecho da <em>Talitha</em>.</p> + +<p>Collocar nos labios de <em>Joaquina</em> versos de rima escolhida, apurada, +sem repetições de termos que andam constantemente na conversa commum, +substituindo estes por palavras rebuscadas nos diccionarios de rimas, sómente +para que a critica se extasie deante de uma riqueza phantastica, equivaleria a +falsear a natureza intima do personagem e fazer de uma santa e simples mulher +vulgar da aldeia, uma pretenciosa ridicula; a espontaneidade do escriptor +desappareceria para dar logar ao rebuscamento, o artista seria supplantado pelo +artifice, o poeta pelo rimador, o sentimento pela paciencia. </p> + +<p>A opulencia da rima importaria necessariamente<span +class="pagenum">{187}</span> na elevação da linguagem e a critica deixa de ser +logica exigindo por essa fórma o que já condemnára, considerando alcandorada em +demasia para personagens de aldeia a linguagem que o autor da <em>Talitha</em> +confiou a cada um d'elles.</p> + +<p>Nos acontecimentos vulgares da vida de aldeia as palavras são simples, +corriqueiras; o vocabulario dos aldeãos é pouco extenso e tradicionalmente +consagrado: ha phrases peculiares, ha para cada facto da vida, póde-se dizer, +um termo que não se substitue, um conceito consagrado pelo uso immemorial; o +mesmo sentimento, traduzido por outros termos, em phrase diversa, não é +comprehendido.</p> + +<p>O eminentissimo critico e brilhante espirito de estheta brasileiro o notavel +mestre da lingua vernacula, Snr. José Verissimo, doutrina superiormente:</p> + +<blockquote> + <p>«O grande escriptor em todas as linguas é o que escreve e consegue todos + os effeitos da sua arte com o vocabulario corrente, não só do povo—que é + realmente pobre—mas da litteratura do seu tempo.»</p> + + <p>Citação de Elysio de Carvalho no livro—<em>As modernas correntes + estheticas</em>, pag. 27.</p> +</blockquote> + +<p>Em taes condições, se o dialogo, apezar de ser em verso, deve reflectir, +quanto possivel, as condições normaes da vida e do personagem, attribuir a este +a expressão dos seus affectos, das suas dôres, das suas alegrias, dos seus +desejos ou das suas esperanças, por meio de palavras em rima opulenta, será +desnaturar o personagem, será mentir á realidade, será phantasiar um typo que a +natureza local reproduzida no theatro, não creou na vida real.</p> + +<p>Comprehende-se essa exigencia na alta tragedia historica ou sacra, ou ainda +nas phantasias mythologicas: alli, sim, a linguagem póde e deve ser +alcandorada<span class="pagenum">{188}</span> sem inverosimilhança, os +personagens vem distinguidos pelo prestigio da historia, da Biblia, do +sobrenatural, que substituem toda a realidade objectiva.</p> + +<p>A admiração, a fé e a idolatria pódem crear os maiores absurdos: Esopo, +Phedro, Lafontaine fizeram falar os animaes em verso sublime, limado, terso, +brilhante, sonóro, de rima opulentissima.</p> + +<p>Zola escreveu:</p> + +<blockquote> + <p>«C'est, je le répète, le seul cadre ou j'admets, au theatre, le dedain du + vrai. On est là en pleine convention, en pleine fantaisie, et le charme est + d'y mentir, d'y échapper a toutes les realités de ce bas monde.</p> + + <p>....................................</p> + + <p>«Jamais les auteurs ne se trouvent acculés par la vraisemblance et la + logique: ils peuvent aller dans tous les sens, aussi loin qu'ils veulent, + certains de ne se heurter contre aucune muraille.</p> + + <p>....................................</p> + + <p>«La comédie et le drame, au contraire, sont tenus à être + vraisemblables.»</p> + + <p><span class="small-caps">Zola.</span> <em>Le Naturalisme au théâtre</em>, + pag. 357, 358.</p> +</blockquote> + +<p>Mas João de Deus, que foi em Portugal «a mais completa encarnação do lyrico +apaixonado, sem entraves positivos, sem preoccupações estylisticas visando á +erudição», que foi «sentimento singelo, o amor, esse amor portuguezissimo, em +palavras singelas, versos de medida simples e estylo simples», João de Deus que +cantou a simpleza rural da sua terra, a alma dôce do povo e dos campos, esse +«que é o lyrico mais portuguez» como considera Fidelino Figueiredo, «um grande +scismador e um grande artista, que não tem artificios na sua poesia, singela +como todos os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de +creança, suave e consoladora como uma<span class="pagenum">{189}</span> +parábola de Christo, serena e luminosa como um dialogo de Platão», no dizer +profundo de Alexandre da Conceição, João de Deus não se preoccupou com a +opulencia da rima, nem mesmo quando escreveu para o theatro aquella encantadora +phantasia em um acto <em>Horacio e Lydia</em>, romana pelo assumpto, grega pela +technica.</p> + +<p>Ora, a <em>Talitha</em> é composta de 1873 versos de varios metros, +predominando o alexandrino.</p> + +<p>Para demonstrar opulencia de rima, o obscuro autor da <em>Talitha</em> +reservou as suas modestas poesias esparsas, entre as quaes figura a <em>Ode ás +Arvores</em>, dedicada a Coelho Netto, ode essa que se compõe de 312 +alexandrinos, e não tem sequer uma rima repetida, além da grande abundancia de +vocabulos cuja difficuldade de rima é conhecida.</p> + +<p>Um dos zoilos da Talitha, com o intuito de provar que os tres actos d'esse +evangelho são indigentes de rima, nota que no 2.° acto a palavra enferma rima +com erma e no 3.° acto tambem enfermo rima com ermo.</p> + +<p>E o zoilo exclama:</p> + +<blockquote> + <p>«Para <em>Enfermo</em> o poeta encontrou apenas a rima <em>ermo</em>, uma + rima pobrissima.»</p> +</blockquote> + +<p>Mais pobre de espirito é o critico.</p> + +<p>A <em>Talitha</em> compõe-se de 1873 versos; quatro vezes apenas o +maldizente encontrou a rima em <em>erma</em>, ainda assim uma vez no masculino +e outra no feminino, e fulmina a censura:</p> + +<blockquote> + <p>«o poeta só encontrou a rima <em>ermo</em> para <em>enfermo</em>, rima + pobrissima.»</p> +</blockquote> + +<p>Ignorante, perverso, futil, ou lorpa.</p> + +<p>Pois bem, o autor da <em>Talitha</em> consultou os diccionarios<span +class="pagenum">{190}</span> de rima de Castilho e de Alencar, duas autoridades +na materia, e para <em>enfermo</em> apenas encontrou <em>ermo</em>, +<em>termo</em> e <em>estafermo</em>. As duas primeiras foram applicadas, uma no +segundo, outra no terceiro acto.</p> + +<p>Quanto á terceira—<em>estafermo</em>—o poeta da <em>Talitha</em> só a +poderia utilizar se fizesse referencia ao critico.</p> + +<p>Para agradar á sua opinião e corresponder á sua exigencia, o zoilo pretende +que o autor da <em>Talitha</em> deveria forgicar palavras, neologismos, sómente +com o fim de não repetir a rima!</p> + +<p>Mas se essa rima é pobrissima, que culpa tem o autor da <em>Talitha</em>, se +a lingua apenas lhe faculta, além dessa, mais duas, uma das quaes pertencente +ao calão?</p> + +<p>Entretanto o critico mentiu: no segundo acto a rima de <em>enferma</em> é +<em>erma</em>; no terceiro acto á palavra <em>enfermo</em> foi dada a +rima—<em>termo</em>.</p> + +<div style="font-size: small; margin-left: 10%;"> +2.º acto, pag. 64:<br> +<br> +«seria bem melhor que cuidasse da enferma,<br> +que vive ali no escuro abandonada e erma»<br> +<br> +3.º acto, pag. 89:<br> +<br> +«de acudir pressuroso ao leito dum enfermo ardendo em alta febre e bem proximo +ao termo<br> +d'uma longa existencia...»</div> + +<p>Eis ahi ao que se reduz a censura do zoilo: á mentira.</p> + +<p style="text-align:center;">*</p> + +<p>Por ultimo a critica indigena censura o autor da <em>Talitha</em> por ter +escripto o drama em tres actos afim de apresentar, desnecessariamente, no +terceiro, a <em>marqueza</em>, mãe da heroina.<span +class="pagenum">{191}</span></p> + +<p>E a critica, em ar de pilheria, pede um quarto acto para que appareça tambem +o Pae de <em>Talitha</em>.</p> + +<p>O autor não teria duvida em satisfazer o desejo da critica, escrevendo mais +dois actos para apresentação da sogra de <em>Talitha</em>, se tambem a critica +de outra tempera, a critica elevada e honesta, não houvesse solicitado a +redacção dos tres actos simplesmente aos dois primeiros para que esse obscuro +trabalho</p> + +<blockquote> + <p>«seja legado pelo autor ao seu paiz, como um thesouro, refundindo-a, + cortando as scenas a mais, deixando-a nos dois actos primeiros mais o milagre + e a oração; assim <em>Talitha</em> será um primor litterario...»</p> + + <p>Critica da <em>Tribuna do Rio</em>.</p> + + <p> </p> + + <p>«O drama é magnifico. E porque não dizer o melhor drama que se tem + escripto no Brazil?»</p> + + <p>Critica da <em>Gazeta de Noticias</em>, do Rio.</p> + + <p> </p> + + <p>«Os tres actos do Sr. Pinto da Rocha dão a quem os ouviu a satisfação rara + e salutar que só produzem as obras de arte, erguidas severamente com a + segurança de que só é capaz a sinceridade.»</p> + + <p>Critica do <em>Paiz</em>, do Rio.</p> + + <p> </p> + + <p>«...mas os bons versos, as rimas felizes e inesperadas abundam na peça, + que fica sendo um dos mais bellos poemas da nossa litteratura.</p> + + <p>«... pois nao ha muito disso por toda essa America afóra.»</p> + + <p><span class="small-caps">Arthur Azevedo</span>—Critica da + <em>Noticia</em>, do Rio.</p> +</blockquote> + +<p>Á critica indigena, rasteiramente inspirada pelo odio e pela paixão +politica, o autor da <em>Talitha</em> contrapõe a critica da imprensa do +Rio.</p> + +<p>Será vaidosa a citação d'essas opiniões, mas o obscuro autor da +<em>Talitha</em> tem orgulho do seu trabalho<span class="pagenum">{192}</span> +e esse orgulho é como a soberbia das mães que beijam os filhinhos aleijados e +loucos, tendo-os no coração como as imagens incomparaveis da suprema +formosura.</p> + +<p>A <em>Talitha</em> não será brasileira porque o assumpto e os personagens +são portuguezes; não será portugueza porque o seu autor não teve a felicidade +de nascer em Portugal, mas...</p> + +<p>Mas a <em>Talitha</em> é mais que portugueza, mais que brazileira, é +humana.</p> + +<p>Mas a <em>Talitha</em> é minha... É o producto do meu espirito, do meu +trabalho, é filha da minha mocidade...</p> + +<p>É modesta, é pauperrima, e futil, mas é minha.</p> + +<p>E a critica indigena dos zoilos que produziu? Nada, absolutamente nada; póde +viver noventa annos, como Sárah, não haverá Abrahão na terra que lhe arranque +um Isaac das entranhas...</p> + +<p>Os zoilos são admiraveis, sabem tudo e não fazem cousa alguma.</p> + +<p>Conhecem perfeitamente a patria, sob todos os aspectos, desde a fecundidade +uberrima da terra aos esplendores astraes do céo; desde a constituição intima +da familia á grandeza fulgurante da historia.</p> + +<p>Os primores da paysagem, a belleza e a simplicidade dos costumes, os +encantos da musica popular e da poesia anonyma, a bravura dos homens com o typo +legendario do gaúcho, a formosura das mulheres inspirando os altos feitos +heroicos, o mysterio das florestas que dá o aspecto profundo á alma do povo, a +vastidão das campinas que modela a franqueza limpida das consciencias, o +desdobrar ondulante das cochilhas que imprime ao typo riograndense a epopeia da +nossa historia, os vultos homericos dos nossos guerreiros, a envergadura dos +nossos estadistas, a intelligencia dos nossos escriptores, a obra dos nossos +politicos, tudo isso a critica dos zoilos conhece... <em>à merveille</em>.<span +class="pagenum">{193}</span></p> + +<p>Sabe ella que o verso está banido do theatro moderno e só é admittido nos +assumptos historicos ou nas phantasias caprichosas dos sonhos e devaneios +litterarios; sabe ella que os alexandrinos devem ser emparelhados á maneira de +Corneille e Racine, alternando-se agudos e graves, na symetria impeccavel de +parallelas geometricamente exactas; sabe ella que o rythmo do verso não deve +ser apenas o junqueireano para evitar a monotonia: sabe ella que a rima deve +ser opulenta: sabe que no theatro moderno a prosa supplanta o verso, porque se +presta melhor ás exigencias do estudo da psychologia dos personagens; que a +escola romantica foi batida pelo naturalismo; que hoje os exemplos a seguir não +são os d'Ennery, os Augier, os Scribe, os Labiche, os Dumas, os Meilhac: que os +modelos acceitaveis são Suderman, Ibsen, Hauptmann Bjornsen; tudo isso a +critica dos zoilos sabe perfeitamente.</p> + +<p>Além disso a critica tem talento, tem erudição, tem admiradores, tem +bibliothecas, tem a vida garantida e facil pela munificencia do thesouro +publico, tem o apoio da sociedade, não sabe o que seja a amargura da lucta pela +existencia...</p> + +<p>Entretanto as horas passam, os dias correm, os mezes flúem, os annos se +succedem e a critica deixa em abandono todo esse material soberbo e magestoso, +esquece todos esses elementos de incomparavel riqueza, e não produz +absolutamente nada.</p> + +<p>Atravessa a existencia, como um janota futil que vive preoccupado com a +coloração garrida das gravatas, com o brilho frio dos collarinhos, com o +figurino do fato, empanturrando-se da leitura <em>à la diable</em>, maldizendo +do tudo e de todos e vivendo de um usofructo que a sociedade constituiu pelo +trabalho accumulado exactamente d'aquelles que a critica dos zoilos alveja, +fere, offende e babuja.<span class="pagenum">{194}</span></p> + +<p>Vive para gozar e maldizer.</p> + +<p>A critica indigena dos zoilos é como o Sahára: esterilidade completa, +beduinos e camellos.</p> + +<p>Á caravana dos zoilos, o deserto e a receita de Ezequiel.</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;">Pinto da Rocha</p> +</div> + +<p> </p> + +<div id="catalogo"> +<p style="text-align:center;">Livraria Chardron</p> + +<p style="text-align:center;">De LELLO & IRMÃO</p> + +<p style="text-align:center;">RUA DAS CARMELITAS, 144—PORTO</p> + +<table border="1" align="center" summary="Obras publicadas"> + <tbody> + <tr> + <th colspan="2">GARCIA REDONDO</th> + </tr> + <tr> + <td>Salada de fructas</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>Atravez da Europa</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>Cara alegre</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>A mulher—manias e cacoetas</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">MANOEL ARÃO</th> + </tr> + <tr> + <td>Transfiguração, 1 vol.</td> + <td>1$000</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">COELHO NETTO</th> + </tr> + <tr> + <td>Esphynge</td> + <td>600</td> + </tr> + <tr> + <td>Sertão</td> + <td>600</td> + </tr> + <tr> + <td>Agua de Juventa</td> + <td>700</td> + </tr> + <tr> + <td>A Bico de penna</td> + <td>700</td> + </tr> + <tr> + <td>Romanceiro</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>Theatro</td> + <td>400</td> + </tr> + <tr> + <td>Jardim das Oliveiras</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>Quebranto (theatro), 1 vol.</td> + <td>800</td> + </tr> + <tr> + <td>Fabulario</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>Miragem, romance, 1 vol.</td> + <td>600</td> + </tr> + <tr> + <td>Apologos</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>Fé</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>Theatro, 1.º vol.</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>Mysterios do Natal</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">JOÃO GRAVE</th> + </tr> + <tr> + <td>Os famintos</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>A eterna mentira</td> + <td>600</td> + </tr> + <tr> + <td>O ultimo fauno</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>O Passado</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">SHAKESPEARE</th> + </tr> + <tr> + <td>Sonho d'uma noite de S. João, 1 vol.</td> + <td>600</td> + </tr> + <tr> + <td>Rei Lear, 1 vol.</td> + <td>400</td> + </tr> + <tr> + <td>Romeu e Julieta, 1 vol.</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>Hamlet </td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>Othello</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">OSCAR LOPES</th> + </tr> + <tr> + <td>Conferencias, 1 vol.</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">MAYER GARÇÃO</th> + </tr> + <tr> + <td>Excelsior</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">CARMEN DOLORES</th> + </tr> + <tr> + <td>Ao esvoaçar da ideia</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>Alma complexa</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">IHERING</th> + </tr> + <tr> + <td>Lucta pelo direito</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">THOMAZ LOPES</th> + </tr> + <tr> + <td>Paysagens d'Hespanha</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">TAVARES BASTOS</th> + </tr> + <tr> + <td>Instituições juridicas na Republica</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">JOÃO DO RIO</th> + </tr> + <tr> + <td>Cinematographo</td> + <td>700</td> + </tr> + <tr> + <td>Frivola-City</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">BENTO CARQUEJA</th> + </tr> + <tr> + <td>O Capitalismo Moderno e suas Origens em Portugal, 1 vol. broch.</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>O Futuro de Portugal, 1 volume</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">EUCLYDES DA CUNHA</th> + </tr> + <tr> + <td>Á margem da historia, 1 volume</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">SYLVIO ROMERO</th> + </tr> + <tr> + <td>Discursos, 1 vol.</td> + <td>600</td> + </tr> + <tr> + <td>Martins Penna, 1 vol.</td> + <td>400</td> + </tr> + <tr> + <td>America latina, 1 vol.</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <td>Provocações e debates. 1 v.</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">LUIZ MURAT</th> + </tr> + <tr> + <td>Ondas, 1 vol.</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">VICENTE DE CARVALHO</th> + </tr> + <tr> + <td>Versos da Mocidade</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <td>Poemas e Canções</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">THOMAZ DA FONSECA</th> + </tr> + <tr> + <td>Os Desherdados (versos)</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">TUDE DE SOUZA</th> + </tr> + <tr> + <td>A Serra do Gerez, 1 vol.</td> + <td>500</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">MANOEL DA SILVA GAYO</th> + </tr> + <tr> + <td>Torturados, romance</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + <tr> + <th colspan="2">ALCIDES MAIA</th> + </tr> + <tr> + <td>Ruinas</td> + <td>no prélo</td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p style="text-align:center;">Envia-se gratis o CATALOGO GERAL a quem o +requisitar</p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Talitha, by Pinto da Rocha + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK TALITHA *** + +***** This file should be named 28639-h.htm or 28639-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/8/6/3/28639/ + +Produced by Pedro Saborano + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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