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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891) + +Author: Jorge de Abreu + +Release Date: July 22, 2009 [EBook #29484] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net + + + + + + + BIBLIOTHECA HISTORICA + (POPULAR E ILLUSTRADA) + III + + A Revolução + Portugueza + + O 31 DE JANEIRO + + *(Porto 1891)* + POR + JORGE D'ABREU + + [Ilustração da capa: bandeira do Centro Democratico Federal] + + + + 1912 + EDIÇÃO DA CASA ALFREDO DAVID + ENCADERNADOR + _30-32, Rua Serpa Pinto, 34-36_ + LISBOA + + + + +BIBLIOTHECA HISTORICA +(POPULAR E ILLUSTRADA) +III + +A Revolução Portugueza + +O 31 DE JANEIRO + + + + + VOLUMES PUBLICADOS + + I--HISTORIA DA REVOLUÇÃO FRANCEZA, por _F. Mignet_, 1.º volume. + + II--HISTORIA DA REVOLUÇÃO FRANCEZA, 2.º volume. + + III--A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA--O 31 DE JANEIRO (PORTO 1891), por _Jorge + d'Abreu_. + + NO PRÉLO + + IV--A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA--O 5 DE OUTUBRO + (LISBOA 1910), por _Jorge d'Abreu_. + + V--A REVOLUÇÃO E A REPUBLICA HESPANHOLA (1868 A 1874), por _Victor + Ribeiro_. + + + + +BIBLIOTHECA HISTORICA +(POPULAR E ILLUSTRADA) + +A Revolução +Portugueza + +O 31 DE JANEIRO + +(Porto 1891) + +POR + +JORGE D'ABREU + +Logotipo do editor + +1912 + +EDIÇÃO DA CASA ALFREDO DAVID +ENCADERNADOR +_30-32, Rua Serpa Pinto, 34-36_ +LISBOA + + + + +Composto e Impresso na Imprensa Libanio da Silva==Travessa do Falla-Só, +24--Lisboa + + + + +PALAVRAS DE UM SOLDADO + +*ao presidente do tribunal de guerra, no acto do julgamento:* + + +... _Eu, meu senhor, não sei o que é a Republica, mas não póde deixar de +ser uma cousa santa. Nunca na egreja sentí um calafrio assim. Perdí a +cabeça então, como os outros todos. Todos a perdemos. Atirámos então as +barretinas ao ar. Gritámos então todos:--Viva! viva, viva a Republica!_... + + Do «Manifesto dos Emigrados da Revolução + do Porto de 31 de Janeiro de 1891.» + + + + +O 31 DE JANEIRO + +(Porto 1891) + + + + +CAPITULO I + +O movimento de 31 de janeiro filia-se no "ultimatum" de 1890 + + +A revolta militar de 31 de janeiro de 1891 caracterisou-se pela +precipitação com que foi decidida e a pouca ou nenhuma reserva com que +foi organisada. Durante mezes uma parte do paiz teve conhecimento quasi +minucioso de que se conspirava contra a monarchia e que na conspiração +entravam elementos de importancia recrutados na officialidade dos +regimentos que a guarneciam. No emtanto a explosão patriotica, que na +madrugada de 31 fez triumphar por algumas horas a bandeira verde e +vermelha, surprehendeu muita gente porque apenas uma insignificante +minoria não julgava extemporaneo o _rebentar da bomba_. + +A causa unica do movimento podemol-a filiar no _ultimatum_ de 1890. Por +espaço d'um anno, a agitação popular, que essa chicotada diplomatica +provocara nos primeiros instantes--agitação que, no dizer de João +Chagas, trouxera pela primeira vez para a rua, a manifestarem-se, +«homens graves e de chapeu alto»--por espaço d'um anno, repetimos, +essa agitação minou profundamente diversas camadas sociaes e fez +augmentar por uma forma extraordinaria o descontentamento da nação, a +sua hostilidade contra o regimen monarchico e o soberano. Viu-se +claramente, n'esse momento grave da vida portugueza, que, ao +substituir-se o ministerio abatido pelo _ultimatum_, o novo governo +procurara antes de mais nada deitar uma escóra ao throno, desprezando em +absoluto as reclamações do povo, a sua grita sedenta de justiça. +Calcára-se a patria para sustentar no poder o monarcha brigantino. A +dignidade da nação, o seu anceio fervoroso de que o _ultimatum_ +obrigasse a politica governativa a mudar de processos, a trabalhar com +seriedade, uma e outro foram espesinhados pelo empenho dos aulicos da +monarchia em precavel-a da marcha progressiva das ideias democraticas. +D'ahi o exodo para o partido republicano de muitos dos homens que até +então tinham tentado servir os partidos monarchicos com boa fé e dedicação. + +Mais adeante desenvolveremos, na medida do possivel, esse periodo da +historia contemporanea, cujos incidentes, voltamos a affirmal-o, fizeram +germinar o pensamento da revolta e contribuiram directamente para que +ella rebentasse no Porto no dia 31 de janeiro de 1891. Por agora +limitaremos o nosso papel de modesto e desataviado chronista da +Revolução Portugueza a descrever o que occorreu em Lisboa mal se soube +da momentanea victoria das armas republicanas. É interessante recordar +as horas de mortifera espectativa que a capital soffreu, emquanto a +varias leguas de distancia um troço de valentes se fazia massacrar pela +chamada _guarda pretoriana_. + + +Nas vesperas da revolta, os jornaes de Lisboa ainda reflectiam quasi +toda a indignação e a celeuma causadas pelo _ultimatum_. A poucas horas +de ser iniciado o movimento, os _Pontos nos ii_ inseriam uma pagina +faiscante de Bordallo Pinheiro, intitulada _A maldita questão ingleza_. +As perseguições a differentes officiaes do exercito succediam-se com uma +pertinacia feroz. No dia 30 de janeiro, um jornal, alludindo á que fôra +movida ao alferes de caçadores 9 (aquartelado no Porto) Simões Trindade, +salientava o facto curioso d'esse official ter sido, em 27 d'aquelle +mez, mandado apresentar _immediatamente_ no quartel general da +respectiva divisão; depois, d'ahi, mandado seguir, _immediatamente_, +para o ministerio da guerra; d'aqui apresentado _immediatamente_ no +quartel general da 1.ª divisão, onde tinham acabado por lhe dar uma guia +afim de se apresentar, _immediatamente_ tambem, no regimento de +infantaria 24, aquartelado em Pinhel. Os jornaes do Porto, confirmando +esse furor persecutorio, accrescentavam que a violencia das auctoridades +militares incidia especialmente sobre os officiaes inferiores. + +Surgiu a manhã de 31 e com ella principiaram a circular em Lisboa os +boatos alarmantes. Um d'elles, talvez o primeiro e o que mais +consistencia adquiriu desde logo no espirito do publico, dizia: + + +_No Porto, ás seis horas, os regimentos de caçadores 9 e infantaria 10 e +parte de infantaria 18, sahindo dos quarteis, dirigiram-se á praça da +Regeneração, soltando vivas á Republica. O movimento tende a +alastrar-se. A guarda municipal quiz oppôr-se-lhe; mas, depois d'uma +descarga dada por caçadores 9, e da qual morreram 12 soldados d'aquella +guarda, os outros adheriram aos revoltosos._ + + +A seguir, correu que a primeira auctoridade militar do Porto pedira de +madrugada reforço á _guarda pretoriana_, mas que ella se recusara +peremptoriamente a combater as tropas sublevadas. Dizia-se tambem que +toda a guarnição se solidarisara com os insurrectos. + +Estas e outras noticias, como é de comprehender, lançaram na capital uma +agitação indescriptivel. Os primeiros momentos foram, sem duvida, de +confusão e de panico. Ás 7 da manhã, o ministerio já estava reunido e +procurava, não sem difficuldade, tomar contacto com a situação. Ás 8, +eram chamados ao paço da Ajuda o presidente do conselho e o general +Moreira, commandante das guardas municipaes. D'um extremo ao outro da +cidade, desfilavam vertiginosamente as ordenanças, os correios, e a +população, despertada pelo annuncio retumbante d'esse golpe de audacia +republicana, espreitava curiosa a sequencia e o desfecho dos +acontecimentos. + +Pouco depois das 8 horas, correu em Lisboa que um telegramma recebido no +jornal o _Seculo_ affirmava estarem occupados pelos insurrectos todos os +edificios publicos e que a população da capital do norte adherira em +massa á obra iniciada pelo exercito. Era o triumpho completo da +Revolução, o alvorecer radioso d'um novo regimen politico, interrompendo +na nossa historia o desenrolar corrosivo da tyrannia monarchica. O +governo, reunido, tentava com medidas successivas suffocar o incendio +que lavrava no Porto. Os regimentos de infantaria recebiam ordem de +partir para ali. O sr. Antonio Ennes, ministro da marinha, fazia-se +conduzir ao Arsenal e ahi, em conferencia com o commandante geral da +armada, exigia que os navios de guerra disponiveis seguissem sem demora +a investir a cidade revoltada. O ministerio fremia de impaciencia e de +terror. A familia real inquiria constantemente das diversas phases da +insurreição. Os elementos avançados principiavam a respirar a atmosphera +de liberdade trazida do Porto na lufada dos telegrammas optimistas. +A alegria desenhava-se em quasi todos os rostos. + +Longas horas se passaram assim--horas de esperança, horas de espectativa +anciosa--durante as quaes os boatos nunca cessaram de fervilhar. Contava +no dia seguinte um jornalista que a confusão de momento era tal que os +mesmos alviçareiros que espalhavam a noticia da victoria decisiva dos +sublevados não tardavam d'ahi a instantes a divulgar o contrario. Para o +paço de Belem havia desde manhã cedo enorme affluencia de personagens +officiaes. «Desde os ministros, affirmou mais tarde um _reporter_, até +os simples fidalgos cavalleiros, dos quaes vimos dois, fardados, irem em +trem pôr-se ás ordens de D. Carlos, todos á porfia accorreram á regia +morada.» A guarda do paço era n'esse dia de infantaria 2. Mas, apesar do +reboliço que ia dentro do edificio, os soldados mostravam-se +despreoccupados e no local--cá fóra--pouco se sabia da revolução. Os +politicos, frequentadores da Arcada, andavam desvairados. Uns +asseguravam que a população portuense, dirigida por officiaes de +caçadores 9, arvorara a bandeira republicana no palacio da Bolsa; outros +que infantaria 8, de Braga, e o 14, de Vizeu, tinham adherido ao +movimento; outros ainda que a guarda municipal, fraternisando com os +revoltosos, se apressara a soltar João Chagas, que então expiava na +cadeia da Relação a condemnação imposta por um delicto de imprensa. Os +que pareciam melhor informados accrescentavam a tudo isto que na +madrugada de 30 de janeiro varios telegrammas cifrados haviam annunciado +aos dirigentes da politica democratica o _estalar da bomba_. De Lisboa, +por exemplo, tinham perguntado para o Porto: _Como vae o doente?_ Do +Porto tinham respondido: _Deve morrer ámanhã_... + + +Mas, ao começo da tarde, o optimismo cedeu o passo ao desalento. As +agencias officiosas principiaram a falar em suffocação da revolta e em +rendição de revoltados. Mudára a face das cousas. O paço animava-se, o +governo cobrava sangue frio. O commandante da divisão militar com séde +na capital do norte--o general Scarnichia--que na occasião se encontrava +em Lisboa, tratando junto do ministerio da guerra das transferencias dos +seus subordinados suspeitos de republicanismo, seguia ás 2 e 30 para o +Porto n'um comboio especial. Uma parte das tropas que, tendo recebido +ordem de marchar em soccorro da monarchia, já se agglomeravam nas +estações de caminho de ferro, regressava a quarteis. Suspendiam-se por +um mez as garantias em todo o districto do Porto e auctorisava-se a +suspensão dos _jornaes perigosos_ ali e no resto do paiz. Evidentemente, +a sublevação não lograra exito e o sangue derramado na manhã de 31 +servira apenas a registar uma infructifera tentativa de reacção contra a +dynastia oppressora. A democracia fôra vencida pouco depois de ter +vencido. A atmosphera voltava a carregar-se de violencia, de jugo +tyrannico, e no horisonte já se descortinava que as represalias iam ser +ferozes. Uma gazeta das mais populares da epoca, reconhecendo que, uma +vez dominada a _sargentada_, o governo se apressaria sem duvida a +esmagar a mais insignificante velleidade de resistencia, escrevia vinte +e quatro horas apoz a derrota: + + +«Á mercê do arbitrio é difficil poder-se viver; aguardemos melhores dias +de liberdade e... calemo-nos.» + + +Extincto o clarão redemptor, a imprensa--salvo raras excepções--ou +vociferava tonitruante, enraivecida, contra os revoltosos, pedindo para +os vencidos o maximo do castigo--até a pena de morte--ou se curvava +resignada sob a ameaça do triumphador, disposta a supportar em silencio +a desforra cruel que os vencedores procurariam abertamente tirar dos +derrotados. O nucleo dirigente do partido republicano escrevia a poucas +semanas dos acontecimentos: + + +«O directorio cumpriu o seu dever, synthetisando as aspirações d'um +partido; em vez de appellar para aventuras anarchicas, recommendou á +imprensa republicana, aos conferentes e propagandistas a demonstração +calma e justificada d'esses principios. (Alludia aos que tinham sido +consignados no seu manifesto de 11 de janeiro de 1891). + +«Acceitando o mandato de acção, conferido pelo ultimo congresso, o +directorio entendeu que consistia essa acção em repellir a mesquinha +subserviencia que envolvia o partido em accordos com os grupos +monarchicos e em conter as individualidades sem mandato, que, +trabalhando sem disciplina, compromettiam o partido, como em seguida os +acontecimentos o provaram. + +«As revoluções são factos inherentes ao organismo social; não é um grupo +de homens que as fazem, como ou quando querem; mas compete a esse grupo +dar-lhes pensamento e direcção quando sobrevenham.» + + +Resumindo: o directorio entendia de boa politica não se responsabilisar +pela tentativa mallograda e condemnava-a pelo que ella se lhe affigurava +de desordenada e inopportuna. N'outra passagem do documento a que nos +referimos affirmava que «a nação inteira julgara immediatamente o +movimento de 31 de janeiro pela sua _inopportunidade_.» E no emtanto, a +poucos dias da revolta, o mesmo directorio tinha espalhado profusamente +esta opinião nitida e vigorosa: + + +«No momento que atravessamos não ha logar para demonstrações theoricas +nem para argumentar com os pedantocratas do constitucionalismo. Elles já +deram as suas provas. Para a crise extrema um supremo remedio». + + +Supremo remedio!... Que outro poderia ser, afinal, senão o iniciado na +manhã de 31? + + + + +CAPITULO II + +O primeiro rebate do conflicto diplomatico anglo-portuguez + + +Precisemos os factos: + +O _ultimatum_ de 11 de janeiro de 1890 teve como pretexto a expedição do +major Serpa Pinto na Africa Oriental. Antes d'ella já se falava +vagamente na possibilidade d'um conflicto anglo-portuguez e porque em +1889, nos fins do reinado de D. Luiz, tudo o que dependia da influencia +ou da acção ministerial se inclinava a hostilisar--ainda que mais ou +menos disfarçadamente--a Inglaterra e as cousas inglezas. + +Parece assente que aquelle soberano, levado talvez por considerações de +ordem familiar, projectava lançar-se e lançar ostensivamente o paiz nos +braços do imperio allemão, quebrando todos os laços intimos que, desde +seculos, uniam a nacionalidade portugueza á Grã-Bretanha. D. Luiz e os +seus ministros queriam mais: queriam amarrar á Allemanha o destino do +nosso commercio vinicola e das nossas colonias--o primeiro ligado á +França e as segundas relacionadas quasi todas com o dominio inglez. +Tentou-se mesmo fazer derivar da França para a Allemanha a exportação +dos vinhos nacionaes, com a organisação em Berlim d'um certamen, +que, no fim de contas, nada deu de productivo. + +[Ilustração: Quartel de infantaria 18, e campo da Regeneração, onde se +reuniram as tropas sublevadas na madrugada de 31 de janeiro] + +Mas o primeiro rebate d'essa hostilidade appareceu de fórma inilludivel +em julho de 1889, quando o governo então no poder rescindiu o contracto +de 14 de dezembro de 1883 (o contracto para a construcção do caminho de +ferro de Lourenço Marques). Não diremos em absoluto que essa rescisão +fosse apenas inspirada no desejo de ferir homens e interesses da +Grã-Bretanha. A verdade, porém, é que muita gente quiz vêr logo no facto +o ensejo propicio para o trespasse da mencionada concessão a um grupo de +capitalistas allemães e essa suspeita surgiu clara e precisa na imprensa +a mais ponderada e suave de termos. A Inglaterra, pela bocca dos seus +orgãos jornalisticos, sentiu-se fundamente attingida com a medida tomada +pelo governo portuguez e não tardou que désse largas a uma celeuma até +certo ponto exagerada, mas comprehensivel em face das nossas manobras +secretas com a chancellaria germanica. + +Os periodicos londrinos aconselharam acto continuo o governo inglez a +enviar a Lourenço Marques uma esquadra, com o fim, diziam ironicamente, +de «proteger os seus subditos ali ameaçados pela valentia de Portugal», +e embora um ou outro d'esses mesmos periodicos indicasse vagamente a +arbitragem como um meio decente de liquidar o assumpto, o conjuncto +d'elles não desafinava na sua exigencia de que deviamos soffrer uma +punição significativa. Por alguns dias receiou-se, effectivamente, que o +governo inglez seguisse o conselho da imprensa exaltada. Mas, como ainda +não soara a hora para a diplomacia britannica nos mostrar que andavamos +por caminho errado, pretendendo, nos pactos de alliança internacional, +substituil-a pela Allemanha, as cousas foram atamancadas sem grande +dispendio de dignidade e as nuvens negras, que já carregavam e +entenebreciam o horisonte, perderam um pouco do seu aspecto ameaçador. + +O partido republicano, tendo seguido com interesse patriotico a marcha +dos incidentes, não duvidou estigmatisar publicamente o projecto +desvairado da monarchia ao procurar enredar a nacionalidade na teia +emmaranhada d'um conflicto diplomatico. Os jornaes da epoca falam +pormenorisadamente da campanha que esse partido então fez não só contra +a projectada alliança luso-germanica mas, principalmente, contra a +entrega do caminho de ferro de Lourenço Marques a um grupo allemão. + +Quando surdiu o _ultimatum_, ninguem hesitou em reconhecer que, se a +patada do colosso de além Mancha era brutal, mesmo brutalissima, á +monarchia e aos seus governos cabiam, entretanto, uma boa parte das +culpas. Opinião identica expressou-a mais tarde João Chagas ao tratar do +assumpto, de collaboração com o ex-tenente Coelho: + + +«Estava-se em principios de janeiro sob uma situação presidida pelo +sr. José Luciano de Castro e na qual detinha a pasta dos estrangeiros o +sr. Henrique de Barros Gomes, quando os jornaes começaram referindo-se +com insistencia á possibilidade d'um conflicto com a Inglaterra, a +proposito das pretenções d'esta nação sobre os territorios do Nyassa, +onde algumas expedições portuguezas de caracter scientifico operavam ao +tempo. O facto pareceu novo e surprehendeu, se bem que tivesse origem +antiga no plano de absorpção da Africa Austral e dos territorios +sertanejos de Moçambique, principiado a executar-se em 1888, pelo +tratado feito entre a Inglaterra e o potentado Lobengula no qual era +comprehendido o territorio dos Mashonas, reivindicado por Portugal; e +levado a cabo pelo tratado de 18 de maio de 1891, extorquido pelo +governo britannico á invalidez portugueza. + +«O litigio, que veiu a liquidar-se desastrosamente pelo _ultimatum_ de +11 de junho de 1890, pode dizer-se, começou então. Durante dois +annos--forçoso é reconhecer para esclarecimento da historia e apuramento +de responsabilidades--a Inglaterra oppôz ás pretenções de Portugal o +_veto_ mais formal. Já em 1887, o marquez de Salisbury protestava contra +os tratados, assignados e publicados, de Portugal com a Allemanha e a +França, declarando não nos reconhecer o direito, que aquellas nações nos +attribuiam, de exercermos jurisdicção em territorios d'Africa, onde não +tinhamos occupação effectiva, e invocava, para justificar o seu +protesto, as decisões da conferencia de Berlim. + +«Mais tarde, em 1888, sir James Fergusson pronunciava na Camara dos +Communs um discurso que fez impressão em Portugal, mas nem por isso +deixou de constituir uma negação severa, que o governo britannico +officialmente apoiou, dos direitos de soberania, invocados pelo governo +portuguez, sobre o sertão da Africa Oriental. Quando, apoz o tratado +feito pela Inglaterra com o regulo Lobengulo, o governo portuguez quiz +definir, por uma delimitação, a posse dos territorios da Africa Oriental +(outubro de 1888) o governo britannico, presentindo que não chegaria a +uma rapida conciliação, fez-lhe sentir, pelo ministro em Lisboa, sir +George Petre, que o estado das relações entre os dois governos, no que +se referia ás questões africanas, «estava longe de ser satisfatorio, e +que uma prolongação d'esse estado podia conduzir a uma seria quebra de +amizade entre os dois paizes.» + + +Em janeiro de 1889, o marquez de Salisbury queixava-se ao representante +de Portugal em Londres de que o governo lusitano tivesse feito partir +para a Africa e com _destino mysterioso_ (aos territorios do Nyassa) a +expedição do capitão tenente Antonio Maria Cardoso e avisava o diplomata +portuguez «de que as boas relações dos dois paizes não podiam por muito +tempo resistir ao perigo a que estavam sendo expostas». Essa expedição, +á data da queixa do marquez de Salisbury, acampava no Monte Melange e +luctava não só com as febres mas tambem com a falta de carregadores, +parte dos quaes havia fugido. E facto curioso: emquanto o ministro +inglez mostrava ao representante de Portugal apprehensões sobre o +objectivo principal da expedição, «que lhe parecia ser o territorio +occupado pelas missões e estações commerciaes inglezas», os indigenas da +região atravessada por Antonio Maria Cardoso desfaziam-se em queixas +contra os subditos britannicos, considerando-os d'uma tyrannia excepcional. + +Em resumo: os inglezes, antes mesmo de occorrer o facto que mais tarde +invocaram como a causa directa do rompimento de relações com o nosso +paiz, já preparavam o golpe, aproveitando todos os ensejos de insinuar +na diplomacia portugueza a ideia de que cedo ou tarde rebentaria o +conflicto e de que este seria motivado essencialmente pela nossa +politica e a nossa acção na Africa Oriental. O _ultimatum_ de 1890 +surprehendeu até certo ponto a população portugueza. O mesmo não +succedeu, por certo, aos governantes, que estavam fartos de saber que a +Grã-Bretanha só espreitava o momento favoravel de nos enviar essa ameaça +humilhadora. + +[Ilustração: Elias Garcia] + +Ha quem attribua ao ministro do gabinete progressista que mais de perto +lidou com a diplomacia ingleza intenções criminosas. Cremos, porém, que +isso é exagerado. O ministro em questão, o sr. Barros Gomes, deve antes +talvez ser accusado de incompetencia e inhabilidade. As cousas +ter-se-hiam naturalmente passado de modo diverso se, quando appareceu na +tela da discussão diplomatica a contestação da Inglaterra aos direitos +que Portugal affirmava ter em varios territorios da Africa Oriental, o +ministro, longe de empregar processos dilatorios, houvesse sem perda de +tempo sujeitado o litigio ao exame e decisão d'uma conferencia das +potencias signatarias do Acto Geral de Berlim. Por outro lado, como a +Inglaterra fundamentava a sua contestação em que esses territorios nunca +tinham sido occupados d'um modo effectivo por Portugal nem soffrido a +menor influencia civilisadora, ao governo da epoca incumbia +logicamente desmentir com actos, e não com palavras, os argumentos +utilisados pela poderosa Albion. + +Mas o ministro culpado entendeu dever manter até quasi ás vesperas do +_ultimatum_ uma attitude de indecisão e de pusillanimidade e assim, +quando se iniciou a occupação definitiva dos territorios contestados, +lançando-se atravez d'Africa algumas expedições, todas ellas chocaram +innumeros obstaculos que precipitaram logicamente o desfecho da questão. +O ministro n'essa altura ainda quiz emendar a mão; era tarde, porém, e +os erros diplomaticos por elle commettidos não permittiam já que se +recorresse á arbitragem internacional. Portugal tinha que aguentar a pé +firme e sem esquiva tudo o que a Grã-Bretanha sobre elle fizesse desabar. + + + + +CAPITULO III + +Serpa Pinto, á frente de 6000 homens, derrota os makololos revoltados + + +A expedição Serpa Pinto, já o dissemos, foi o rastilho que faz detonar a +ameaça contida no _ultimatum_. Contemos como o caso se deu: + +A expedição tinha por mobil o affirmar a soberania de Portugal nos +territorios do Nyassa, que o nosso paiz reivindicava. Commandava-a +aquelle major do exercito e compunham-na varios funccionarios e +technicos. O engenheiro chefe da missão de estudo era o sr. Pereira +Ferraz. Em fins de 1899, Serpa Pinto, sahindo de Messanje em direcção a +Quelimane, entregou-lhe o commando da expedição, emquanto outro +funccionario, o sr. Themudo, seguia para Mupasso com parte da gente e as +embarcações transportando bagagens e mantimentos. O sr. Pereira Ferraz +acompanhado d'uns duzentos homens dirigiu-se para ali a encontrar o +seu collega de missão--disposto a acampar defronte de Mupasso para +seguir á risca as instrucções do commandante em chefe. Tratava-se, não é +mau repetir, de pacificar a região, que alguns pretos insubordinados +«animados por uma influencia estranha, tentavam revoltar contra nós». + +Os effeitos d'essa attitude hostil não se fizeram esperar. Logo que a +expedição chegou em frente da aldeia dos makololos, viu-se fóra do +recinto da povoação varios homens armados e «dentro appareceram por cima +da palissada muitas cabeças, ao todo talvez uns duzentos negros promptos +a entrar em combate». O sr. Pereira Ferraz fez signaes para parlamentar +com o que parecia ser o chefe dos pretos, o qual lhe correspondeu +fazendo signal para que se approximasse. O sr. Ferraz queria dizer-lhe +que não ia disposto á guerra, portanto que deixassem passar a sua gente +e cargas e que lhe daria um presente. + + +«Não me deixou, porém--informa o mesmo engenheiro--o negro dizer nada +d'isso, pois logo que nos viu ao alcance das espingardas de pederneira +com que elle e os outros estavam armados, disparou sobre nós, fugindo +para dentro do recinto, pelo que, chamando alguns dos nossos, que eu +posso affirmar não passavam de 40, fizemos fogo sobre a povoação, que +elles abandonaram com perda de 6 homens e umas 12 barricas de polvora, +que explodiram no incendio que os landins lançaram ás palhotas da aldeia». + + +Por aqui se vê que os pretos tinham o firme proposito de aggredir a +expedição. Esta pouco depois era avisada de que os regulos Massêa, +Catanga, Molidima, Caberenguene e os filhos do Chipitura haviam reunido +e armado a sua gente e se tinham juntado a Melaure para baterem os +nossos. Estas informações aterradoras, note-se, foram ministradas á +expedição pelos inglezes Harry e George Petit, accrescentando-lhes que o +Melaure tinha comsigo muita gente, muita polvora e 6:000 espingardas. Um +e outro d'esses agentes britannicos correspondiam-se com aquelle regulo +e, tendo o sr. Pereira Ferraz convidado ambos, para maior segurança das +suas fazendas e vidas, a retirarem-se para a povoação portugueza de +Natumbe, a dois dias de viagem ao sul de Mupasso, pondo ás suas ordens, +para isso, as necessarias embarcações, responderam-lhe que preferiam +antes ir _to up_, sahindo logo no dia immediato em direcção ao norte, +tentando ainda assim e infructiferamente lançar o panico entre os +auxiliares portuguezes. + +Os makololos, refeitos do primeiro embate, saltaram sobre a povoação +portugueza de Samoane e, em territorio nosso, destruiram o caminho +collimado e atravessaram n'elle espinheiros, dizendo que até ali tudo +lhes pertencia e que matariam quem se atrevesse a collimar um palmo de +terra d'ali para cima. Os indigenas de Samoane fugiram aterrados a +acolher-se á protecção do sr. Pereira Ferraz e este engenheiro julgou +mais prudente collocar-se em guarda e esperar reforços que pediu ao +governador de Quelimane. + +[Ilustração: Encontro dos revoltosos com as tropas fieis ao Governo] + +Foi depois d'sto que o major Serpa Pinto, accudindo com mais gente á +expedição e elevando o seu contigente a uns 6.000 homens armados, +marchou sobre os negros revoltados e travou com elles em Mupasso +sangrento combate. Os makololos deixaram mortos no campo uns 72 homens e +muitos prisioneiros importantes. A expedição poz-se novamente em marcha +apoz a victoria, que, diga-se desde já, teve no estrangeiro uma +extraordinaria resonancia. Na Africa Oriental e principalmente na região +sublevada o effeito não foi menor. O sultão Macanjira estabelecido nas +margens do Nyassa prestou vassalagem a Portugal. O chefe M'ponda +apressou-se tambem a imital-o; o regulo Malipuiri e outro visinho dos +makololos foram a Quelimane receber a bandeira portugueza. Mas, +emquanto isto succedia, o _Times_, dando conta do combate, fazia +affirmações d'este theor: que o major Serpa Pinto enganara o consul +inglez na região onde elle se travara, affirmando intenções pacificas, +mas que, decorrido algum tempo, levantara conflicto com os makololos, +fazendo n'elles grande morticinio e tomando-lhes duas bandeiras +britannicas recentemente dadas por aquelle consul. Os makololos, +julgando-se abandonados pelos inglezes, tinham então reconhecido a +dominação portugueza. O major Serpa Pinto, accrescentava o _Times_, +annunciara a intenção de conquistar o Chire até o lago Nyassa e +convidara os residentes inglezes a collocarem-se debaixo da protecção de +Portugal, tornando-os responsaveis pelas consequencias no caso de +recusa. A imprensa franceza, por seu lado, occupando-se da victoria +alcançada por Serpa Pinto, falava pouco mais ou menos n'estes termos: «a +acção do major portuguez poz termo á comedia que a Inglaterra andava +representando em Moçambique. Felicitamol-o por isso. Portugal deu um +excellente exemplo. Esperamos que outras nações o saberão seguir na +occasião opportuna para fazerem respeitar as espheras de influencia de +cada um, e não permittirem as continuas invasões da Inglaterra no +terreno alheio». + +A informação relativa ao combate transmittida pelo consul britannico em +Zanzibar ao marquez de Salisbury, que se encontrava ao tempo em +Hatfield, foi logo noticiada na imprensa londrina com o commentario de +que lord Salisbury certamente não procederia com rapidez emquanto não +recebesse pormenores do facto; que pediria primeiro explicações a +Lisboa, e, se o governo portuguez lh'as não desse, chamaria a Londres o +diplomata sr. Petre. D'ahi a dias surgiu, com effeito, a primeira +reclamação da Inglaterra sobre a expedição Serpa Pinto. O marquez de +Salisbury dirigiu ao governo portuguez uma nota que foi entregue ao sr. +Barros Gomes pelo sr. Glynn Petre, ministro britannico em Lisboa. A +nota, diziam n'essa occasião os telegrammas de Londres, tinha a forma de +uma representação sobre a acção de Portugal na Africa do Sul e Oriental +e pedia que o nosso governo repudiasse os actos do agente portuguez no +districto da Zambezia. O marquez de Salisbury, affirmava-se, não usava +de ameaças; a nota continha uma exposição de varios factos que +asseverava terem occorrido e pedia a restauração do anterior _statu quo_ +na região em litigio; o governo inglez não podia permittir que fosse +arriada a bandeira ingleza depois de arvorada por um representante +responsavel. Outras informações diziam que a nota vinha redigida em +termos correctos, embora o gabinete de Londres registasse, +impressionado, as noticias recebidas pelo bispo Smythies, ácêrca de +hostilidades a estabelecimentos inglezes por parte do major Serpa Pinto, +acontecimentos que, afinal, não constavam no nosso paiz. Serpa Pinto, na +verdade, objectava-se em Portugal, limitara-se a desembaraçar o caminho +á expedição Ferraz perturbada pelos makololos e mais nada. + +Isto passava-se em 18 de dezembro de 1889. A nota do marquez de +Salisbury referindo-se exclusivamente ao supposto ataque da expedição +portugueza contra os makololos, e não fazendo menção alguma dos outros +assumptos pendentes entre a Inglaterra e Portugal sobre as suas +respectivas espheras de influencia na Africa do Sul e Oriental e pedindo +ao sr. Barros Gomes uma resposta prompta, o mais rapida possivel, e, no +caso do ataque se confirmar, a chamada a Lisboa do major Serpa Pinto; o +ministro portuguez dos negocios estrangeiros replicou que as informações +até á data recebidas não confirmavam as interpretações dadas pelo +gabinete inglez aos actos do major, que «repellira sómente o ataque +d'uma tribu hostil na bagagem da qual encontrara tres bandeiras +inglezas». O sr. Barros Gomes terminava por pedir uma demora afim de +poder communicar com o major Serpa Pinto. Entretanto, «para estar +preparado para qualquer contingencia», o governo britannico decidia +collocar as suas forças navaes proximo de Portugal. Persuadido de que «a +reunião de barcos de guerra inglezes no Tejo augmentaria +indefectivelmente a irritação dos portuguezes e entorpeceria a acção do +governo lusitano nas suas negociações para o arranjo da questão relativa +ao paiz do Nyassa», os couraçados britannicos receberam ordem de +reunir-se em Gibraltar e de ahi se manterem «em expectativa dos +acontecimentos futuros». Os navios destinados a essa empreza foram +escolhidos entre os que formavam a esquadra do Mediterraneo. Os +couraçados _Bendvor_ e _Colossus_, a 27 de dezembro, levantavam ferro de +Malta com destino a Gibraltar. Em Malta tambem se encontravam as +fragatas couraçadas _Agammenon_ e _Dreadnought_; em Edimburgo egualmente +se preparavam outros navios. + +Em Portugal, no emtanto, percebiam-se os primeiros symptomas d'uma +reacção forte contra o regimen. A imprensa democratica clamava +altisonante que se a Revolução ainda se não tinha feito não era porque +«o terreno fosse safaro, ou porque as vozes republicanas não +encontrassem echo, mas apenas por motivos de ordem secundaria», que não +cabiam ao momento discutir. «Comtudo estava provado que a realeza +perdera o prestigio, que a dynastia de Bragança alienara todas as +sympathias, que as instituições tinham cahido no descredito e que, por +conseguinte, o povo desejava vida nova». E perguntava-se: «O que devemos +á dynastia? Que principio superior anda ligado á existencia d'essa +anachronica forma de governo? A Patria?... Oh! nós bem sabemos que, +quando Portugal se quiz emancipar do jugo da monarchia hespanhola, quem +mais conspirou contra a Patria foi o Bragança idiota, por quem os +ingenuos combatentes de 1640 andavam expondo a vida; sabemos como esta +funesta dynastia tem, pouco a pouco, em presentes de noivado e como +premio de serviços contra a nação, entregado as nossas colonias aos +inglezes; sabemos como, na hora do perigo para a nossa independencia, +para a nossa honra nacional, o sr. D. João VI fugiu covardemente para o +Brazil; sabemos como o pae do actual reinante (D. Luiz) escreveu umas +cartas criminosas a Napoleão III, no intuito de se formar em seu +proveito e da sua raça a união iberica. A Liberdade?... Não a suffocam, +porque não podem. O Bragança, que aqui implantou o systema +constitucional, fôra um despota no Brazil. Escorraçado de lá, como não +podia apresentar-se em frente da monarchia tradiccional representada por +seu irmão, em nome de outro principio deu-nos a constituição que, mais +tarde, seu filho rasgou á vontade, abafando os clamores angustiosos da +nação, com a intervenção das armas estrangeiras...» + + + + +CAPITULO IV + +O governo progressista cede ante as exigencias da Grã-Bretanha + + +Os primeiros dias de janeiro de 1890 ainda reflectiram as benignas +razões dadas pelo sr. Barros Gomes ao governo inglez. Não se podia +exauctorar Pereira Ferraz e Serpa Pinto--dizia o ministro e diziam +alguns jornaes de Lisboa--prestando apenas credito ás informações dos +funccionarios britannicos. Era necessario ouvir os dois +expedicionarios e ouvir-lhes as allegações que, decerto, produziriam +sobre a sua attitude em tão melindroso assumpto. Uma parte da imprensa +acreditava até ingenuamente que a Inglaterra não tardaria a modificar o +tom aggressivo das suas notas diplomaticas, substituindo-o por outro de +feição conciliadora: «em primeiro logar, porque assim o quer o respeito +devido por cada nação a todas as outras; em segundo logar, porque, se +procurasse entregar á violencia a decisão d'um pleito em que devem ser +ouvidos e escutados os argumentos de parte a parte e em que a justiça ou +a equidade deve proferir sentença em unica instancia, não só concitaria +a nossa resistencia mas, porventura, tambem provocaria a indignação do +mundo». E essa parte da imprensa ia mesmo mais longe na sua ingenuidade: +«A Grã-Bretanha sabe que, embora sejam enormes as suas forças comparadas +com as nossas, poderia arriscar-se a revezes se desrasoadamente +accendesse a guerra na Africa...» + +Ao abrir-se o parlamento, o rei D. Carlos, que, pela primeira vez, se +apresentava a desempenhar o seu papel constitucional de «chave de todos +os poderes», lendo o classico discurso da côroa, sublinhou estas +passagens, que a assembleia dos representantes da nação escutou com rara +e justificada avidez: + + +«Recentemente as patrioticas aspirações da nação ingleza e do governo de +sua magestade britannica, a dilatarem as suas vastas possessões na +Africa, encontraram-se em mais d'um ponto d'esse continente, com o firme +proposito de Portugal de conservar sob o seu dominio e de utilisar para +a civilisação os territorios africanos que primeiro foram descobertos e +trilhados pelos portuguezes, por elles foram revelados e abertos ás +missões do christianismo e ás operações do commercio e nos quaes as +auctoridades portuguezas teem praticado os actos de jurisdicção e +influencia consentaneos ao estado social dos seus habitantes, actos que +sempre bastaram para significar dominio incontestavel. + +«Este encontro poz em relevo desaccordos de opinião entre o meu governo +e o de sua magestade britannica ácêrca das condições a que devem +satisfazer e dos titulos que teem de adduzir as soberanias europeias em +Africa, para serem reconhecidas pelas potencias, e d'esses desaccordos +resultou uma correspondencia diplomatica que ainda os não poude sanar e +que tambem houve de occupar-se de outras divergencias, posteriormente +suscitadas, sobre o modo de apreciar um conflicto, occorrido nas margens +do Chire, entre uma tribu indigena e uma expedição scientifica +portugueza. O meu governo, inspirando-se no sentimento nacional e +conformando-se com o voto unanime das duas casas do parlamento, tem +diligenciado convencer o de sua magestade britannica do direito que +assiste a Portugal de reger os territorios ao sul e norte do Zambeze +sobre que versa a mencionada correspondencia, limitando-se, durante o +incidente e em todos os seus termos, a manter dominios que sempre +reivindicou, e reiterar declarações que sempre fez. E n'esta attitude +persistirá com o apoio, que decerto lhe não ha de faltar, dos +representantes da nação, esperando conseguir uma equitativa conciliação +de todos os legitimos interesses, que promptamente restabeleça, como eu +desejo, o perfeito accordo entre os governos de duas nações ligadas por +vinculos de amizade e tradicções seculares». + + +Pura illusão! No dia 5 de janeiro, o ministro inglez em Lisboa, +rebatendo a asseveração do sr. Barros Gomes de que Serpa Pinto, travando +combate com os makololos, se limitara a «repellir o ataque d'uma +tribu hostil» escrevia-lhe notando que «essa asseveração não parecia ao +seu governo de muito peso, pois que a acção dos makololos, quer tivessem +ou não tomado a offensiva, fôra unicamente determinada pelo desejo de +proteger o seu territorio contra a invasão dos portuguezes». A questão +attingia, evidentemente, a sua phase aguda. O _Times_, referindo-se-lhe, +dizia que, se a Inglaterra não tomasse promptas providencias «para +apagar a impressão causada pelas incursões do major Serpa Pinto, toda a +região dos Lagos Africanos se incendiaria; os makololos tinham visto a +Inglaterra grosseiramente ultrajada; era necessario que a vissem +reivindicar claramente a sua honra». Por outro lado, o governo +portuguez, desejoso, sem duvida, de attenuar um pouco a irritação que o +da Grã-Bretanha denunciara na nota de 5 de janeiro, havia ordenado a +Serpa Pinto que recolhesse á metropole. Mas nem com isso o colosso +amorteceu a pancada. + +O sr. Barros Gomes tentou então propôr a suspensão temporaria de +qualquer procedimento e submetter o litigio ao exame e decisão d'uma +conferencia internacional. Trabalho inutil. Á nota do dia 8 d'aquelle +mez, em que o sr. Barros Gomes lamentava que a Inglaterra nunca tivesse +reconhecido o direito historico constantemente affirmado por Portugal +aos territorios do Chire e do Nyassa, a essa nota, o ministro Petre +respondeu no dia 10 com um _memorandum_--guarda avançada da exigencia +formal. «O governo britannico, frisava esse documento, precisa saber se +foram ou não enviadas instrucções rigorosas ás auctoridades portuguezas +em Moçambique com referencia aos actos de força e ao exercicio de +jurisdicção que ali subsistem actualmente». E, quasi sem dar tempo a que +a sr. Barros Gomes digerisse o tom comminatorio do _memorandum_, o +ministro Petre entregou-lhe o famoso _ultimatum_ concebido n'estes termos: + + +_O governo de sua magestade britannica não pode acceitar como +satisfatorias ou sufficientes as seguranças dadas pelo governo +portuguez, taes como as interpreta. O consul interino de sua magestade +em Moçambique telegraphou, citando o proprio major Serpa Pinto, que a +expedição estava ainda occupando o Chire e que Kalunga e outros logares +mais no territorio dos makololos iam ser fortificados e receberiam +guarnições. O que o governo de sua magestade deseja e em que insiste é +no seguinte:_ + +[Ilustração: Alves da Veiga (1891)] + +_Que se enviem ao governador de Moçambique instrucções telegraphicas +immediatas para que todas e quaesquer forças militares actualmente no +Chire e nos paizes dos makololos e mashonas se retirem. O governo de sua +magestade entende que sem isto as seguranças dadas pelo governo +portuguez são illusorias._ + +_Mr. Petre ver-se-ha obrigado, á vista das suas instrucções, a deixar +immediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação, se uma +resposta satisfatoria á precedente intimação não fôr por elle recebida +esta tarde; o navio de sua magestade «Enchantress» está em Vigo +esperando as suas ordens._ + + +O _ultimatum_ tinha a data de 11 de janeiro. No mesmo dia o sr. Barros +Gomes entregava ao ministro inglez a resposta. Não a transcrevemos na +integra, dada a sua extensão. Registem-se comtudo os seus pontos +essenciaes. Abria pela declaração infantil de que o governo portuguez +julgava ter, com a sua nota do dia 8, satisfeito «por inteiro quanto +d'elle reclamava o de sua magestade britannica; antecipando-se á +segurança d'uma justa reciprocidade, que devia constituir o natural +preliminar das suas resoluções, apressara-se a enviar para Moçambique as +ordens mais terminantes no sentido de fazer respeitar desde logo, em +toda a provincia, o compromisso tomado, no intuito de facilitar a +realisação d'um accordo com a Grã-Bretanha, pelo qual o governo +portuguez sempre pugnara». A resposta do sr. Barros Gomes fechava assim: + + +_Na presença d'uma ruptura imminente de relações com a Grã-Bretanha e de +todas as consequencias que d'ella poderiam talvez derivar-se, o governo +de sua magestade resolveu ceder ás exigencias recentemente formuladas e, +resalvando por todas as formas os direitos da corôa de Portugal nas +regiões africanas de que se trata, protestando bem assim pelo direito +que lhe confere o artigo 12.º do Acto Geral de Berlim, de ver resolvido +definitivamente o assumpto em litigio por uma mediação ou pela +arbitragem, o governo de sua magestade vae expedir para o governador +geral de Moçambique as ordens exigidas pela Grã-Bretanha. Aproveito a +occasião para renovar a v. ex.ª as seguranças da minha alta +consideração._ + + +Resumindo: se a intimação era cathegorica, e a ameaça do governo inglez +resumava inilludivelmente o proposito de vexar, de humilhar o pequeno +paiz ao qual ella se dirigia, a resposta não podia ser mais +subserviente, apesar do fraco esboço de protesto com apoio no direito +internacional consignado nas ultimas linhas do documento. Ao pontapé +vibrado impiedosamente pela Inglaterra, Portugal offerecia uma curvatura +de espinha só propria d'um lacaio... Custa dizel-o sem disfarce, mas é a +verdade. + +A noticia do _ultimatum_ foi divulgada em Lisboa poucas horas depois do +sr. Barros Gomes a ter recebido. No dia 12 de manhã, um jornal dos de +maior circulação exclamava, em typo graúdo, no logar mais saliente da +sua primeira pagina: + + +«O governo inglez, o philantropico e honesto governo inglez, recorreu, +emfim, ao argumento que lhe é usual nas discordias com os povos +pequenos. Recorreu ao argumento da força! O governo portuguez recebeu +uma intimação formal: ou dá promptas satisfações, n'um curto praso, que +deveria ter terminado ás 2 horas da manhã de hoje, ou marcha sobre +Lisboa a poderosa esquadra que está reunida em Gibraltar, com ordem de +bombardear a capital de Portugal! Lisboa, a nossa querida e formosissima +Lisboa, bombardeada pelos canhões da Inglaterra! A cidade de onde +partiram os descobridores audazes que deram ao mundo--e no mundo mais +que a nenhum outro povo, ao povo britannico--a America prodigiosa, e +essa Asia, onde a Inglaterra tem o seu grande imperio, e essa Africa, +por um ponto insignificante da qual se levanta o presente conflicto--a +cidade dos navegadores heroicos e generosos, destruida a tiros de peça +pelos couraçados da nação colonial por excellencia! É phantasticamente +horrivel! + +«Que respondeu o governo? Salvou a sua honra, ou salvou a historia +d'esta immensa vergonha, e Lisboa d'esta immensa catastrophe? Nada +podemos averiguar. O ministerio esteve reunido até alta noite e do que +decidiu só hoje, provavelmente, haverá conhecimento. A hora não é de +recriminações. Aguardemos com serenidade e com firmeza o que o destino, +a imprevidencia dos homens e a rapacidade d'uma nação egoista e +desalmada nos preparam n'este momento solemne da nossa historia!» + + +Estava lançado o rebate. O povo, a genuina massa do povo, não tardaria a +entrar em scena, manifestando-se por uma fórma até então desconhecida +pelos serventuarios da monarchia--explodindo indignação e sincero +patriotismo. O partido republicano, firmando-se n'esse impulso da +opinião, adquiria novo alento e preparava-se para ulteriores trabalhos +de propaganda, mais forte, melhor orientada e, sobretudo, de maior +efficacia. + + + + +CAPITULO V + +O protesto contra o "ultimatum" echoa de norte a sul do paiz + + +O domingo 12, isto é, o dia immediato ao da recepção do _ultimatum_, +consagrou-o a população lisboeta a commentar o acontecimento. Uma parte +da imprensa, fazendo o resumo do conflicto diplomatico que desfechara na +affronta despedida pela Grã-Bretanha, accrescentava que, emquanto o +ministro inglez sr. Petre entregava a intimação formal ao sr. Barros +Gomes, este recebia do governador de Cabo Verde um telegramma +communicando-lhe que entrara no porto de S. Vicente com carta de prego +um cruzador britannico; o nosso consul em Gibraltar avisava-o, por +seu turno, de que a esquadra do Canal lá estava concentrada, prompta ao +primeiro aviso; o consul em Zanzibar tambem telegraphava participando a +sahida para as costas de Moçambique de dez navios de guerra inglezes, +acompanhados de um transporte com carvão e mantimentos. Perante esta +situação, o governo consultara o conselho de Estado, que reunira sob a +presidencia do rei D. Carlos. No conselho tinham votado pela satisfação +ás exigencias da Inglaterra os srs. Barjona de Freitas, José Luciano de +Castro, conde de S. Lourenço, Barros Gomes e João Chrysostomo. O sr. +Antonio de Serpa manifestára-se pela arbitragem e por que só fossem +mandadas retirar as forças portuguezas do Chire depois da Inglaterra a +acceitar. + +Á tarde, apesar da excitação popular já ser bem visivel, o rei D. Carlos +exhibiu-se em passeio na Avenida da Liberdade e seu irmão o infante D. +Affonso percorreu á desfilada varios pontos da cidade, mostrando-se um e +outro completamente alheiados do facto que enlutára a nação. Ao começo +da noite formaram-se grupos numerosos no Rocio e como do Colyseu da rua +da Palma sahisse, em certa altura, um cortejo de patriotas que soltavam +calorosos vivas á nação, ao exercito e á imprensa e morras ao governo e +á Inglaterra, os grupos addicionaram-se-lhes e uma enorme multidão +dirigiu os passos para a Sociedade de Geographia. Ahi, d'uma das +varandas, falou o sr. Luciano Cordeiro: + +--A Inglaterra, trovejou, pode expulsar-nos pela força, mas o direito +subsiste! Precisamos protestar contra a pirataria britannica!... + +Mas, da multidão, elevaram-se outras vozes: + +--E contra o governo que nos atraiçoou! E contra os Braganças que nos +jungiram á Inglaterra!... + +Depois, a grande massa dos manifestantes subiu á parte alta da cidade a +saudar a imprensa, que se collocára abertamente ao lado do povo, +verberando a affronta. As redacções do _Seculo_, _Revolução de +Setembro_, _Jornal da Noite_, _Jornal do Commercio_, _Debates_, _Correio +da Manhã_ e _Gazeta de Portugal_ foram alvo de manifestações de +sympathia. Á passagem em frente da redacção do _Dia_, alguns dos +populares deram palmas emquanto outros se limitaram a bradar: «Viva +Portugal! Abaixo a Inglaterra!». Em frente ao _Correio da Noite_ +produziu-se uma manifestação hostil ao governo, manifestação que se +repetiu junto do _Reporter_ e que redobrou de violencia em frente das +_Novidades_, com morras ao sr. Emygdio Navarro, aos «progressistas +traidores» e gritos de: «Abaixo o _chalet_! Viva a Republica!» + +Na rua Serpa Pinto, a multidão, lembrando-se do nome do official que +derrotara os makololos, rompeu em estrepitosas acclamações em sua honra. +O enthusiasmo attingiu proporções indescriptiveis. Do terceiro andar +d'uma casa habitada por uma modista, falou um academico convidando os +collegas a realisarem no dia seguinte um grande cortejo patriotico. Foi +delirantemente applaudido. Da rua Serpa Pinto, a massa popular avançou +depois sobre o theatro de S. Carlos e irrompeu na sala dando vivas á +patria e clamando contra a Inglaterra. Os _habitués_ da nossa Opera,--_a +jeunesse dorée_--tranzidos de pavor, não lhe oppuzeram a menor +resistencia. Dentro e fora do edificio os manifestantes gritavam: + +--Hoje não é dia de espectaculo, é dia de luto!... + +Sahindo de S. Carlos, alguem lembrou que o consulado inglez era na rua +das Flores. O rastilho propagou-se. N'um abrir e fechar d'olhos, a casa +do consul foi apedrejada, arrancando-se da parede o respectivo escudo. +Apedrejaram egualmente a residencia do sr. Barros Gomes. E, só quando a +policia interveiu, prendendo 61 dos populares, é que a mole se +desfez, mas preparando _in mente_ para o dia seguinte novas e incisivas +manifestações de antipathia á Grã-Bretanha e ao governo que promptamente +se lhe submettera. Entretanto, esse ministerio pedia a demissão, abalado +pelos primeiros symptomas da reacção nacional. Para mais o movimento de +protesto não se limitára a Lisboa. Repercutira de norte a sul do paiz, +revelando energias civicas que desnorteavam por completo a corôa e os +partidos da monarchia. + + +No dia 13 de janeiro, os estudantes da capital effectuaram uma reunião +na Escola Polytechnica, reunião a que compareceram os alumnos da Escola +Naval, da Escola do Exercito e do Collegio Militar. Presidiu o sr. +Hygino de Sousa e falaram varios oradores, todos elles estygmatisando +com violencia a affronta ingleza e aconselhando a _boycottage_ aos +productos da Grã-Bretanha. Um professor do lyceu de Lisboa, sr. Carlos +de Mello, tentou, n'um discurso habil, defender o sr. Barros Gomes, mas +a assembléa recebeu pessimamente as suas palavras e foi resolvido acto +continuo que a academia se dirigisse á camara dos pares a pedir ao +parlamento declarações terminantes que serenassem o espirito publico. +Assim se fez e um cortejo de mais de quinze mil pessoas, sahindo da +Escola Polytechnica, encaminhou-se para S. Bento. + +Á entrada do Largo das Côrtes, do lado do mercado, um cordão de policias +pretendeu impedir a passagem aos manifestantes, mas o cortejo rompeu-o e +tudo passou. A guarda do palacio chamou ás armas e calou bayonetas. Em +frente do edificio, destacou-se do cortejo uma commissão que foi falar +ao presidente da camara. A policia dentro e fora do edificio era em tão +grande quantidade que Fialho d'Almeida soltou esta _boutade_: + +--Os seios da representação nacional trazem hoje espartilho de guarda +civil... + +Os aspirantes de marinha, receiando que a massa de povo aglomerada no +largo fosse maltratada pela força militar, formaram deante d'esta, +offerecendo-lhe como que uma barreira, e a sua attitude provocou uma +ovação extraordinaria, frenetica de enthusiasmo. D'ahi a momentos, a +commissão que se avistara com o presidente da camara voltou para junto +dos manifestantes, e communicou-lhes que o parlamento, tendo tomado em +consideração a _démarche_ patriotica da academia, occupar-se-hia, na +sessão seguinte, dos assumptos que interessavam a defeza e a integridade +do paiz. O cortejo andou depois a percorrer varias ruas da cidade, +pronunciando-se hostilmente em frente dos jornaes caracterisadamente +governamentaes e á noite repetiram-se as scenas da vespera, queimando-se +bandeiras inglezas, victoriando-se em delirio os nomes de Serpa Pinto, +Latino Coelho e outros democratas então em evidencia. + +No dia 14, pelas seis e meia da tarde, sahiu do Café Aurea um grupo de +estudantes soltando vivas á patria, á liberdade, á independencia +nacional, ao exercito e á marinha. A esse grupo juntou-se na rua do Ouro +e praça de D. Pedro muito povo e á porta do Café Martinho o antigo +deputado progressista sr. dr. Eduardo de Abreu propoz à multidão que se +envolvesse em crepes a estatua de Camões. Dito e feito. Os manifestantes +enfiaram pela rua Nova do Carmo e o Chiado, explodindo sempre o maior +enthusiasmo, aos degraus do monumento subiram alguns individuos, +arranjou-se uma escada, passou-se o crepe em largas dobras rodeando a +estatua e rematando sobre a corôa de ferro ali deposta pelos estudantes +em 1880 e, no meio do mais respeitoso silencio, leu-se ao povo este +cartaz, que foi depois affixado: + +[Ilustração: Na rua de Santo Antonio] + + +_Estes crepes, que envolvem a alma da patria, são entregues á guarda do +povo, do exercito e da alma nacional. Quem os arrancar ou mandar +arrancar é o ultimo dos covardes vendido á Inglaterra._ + + +Uma prolongada e fremente salva de palmas acolheu a leitura d'este +protesto, simples e curto, mas d'uma eloquencia esmagadora e o cortejo +patriotico voltou, como nos dias anteriores, a percorrer as ruas de +Lisboa, gritando febrilmente o seu desejo de liberdade e a revolta +contra a ignominia com que a nação fôra aviltada. O ministerio +progressista já tinha sido substituido por um outro de feição +regeneradora, sob a presidencia do sr. Antonio de Serpa e em que +figuravam pela primeira vez o sr. João Arroyo na pasta da marinha, +João Franco na da fazenda e Vasco Guedes na da guerra. Um dos actos do +novo governo, mal subiu ao poder, foi o de procurar reprimir todas as +manifestações patrioticas inspiradas no _ultimatum_, mandando espadeirar +dezenas de populares que na noite de 14 de janeiro desciam o Chiado +desferindo as suas exclamações de odio á poderosa Albion. O inicio, como +se vê, não podia ser mais promettedor de brutalidade e arbitrio. + + + + +CAPITULO VI + +Serpa Pinto, heroe africano, perde o prestigio + + +D'essa agitação imponente, d'essa inesperada revelação de civismo em +face da humilhação inflingida ao paiz, sahira, porém, uma ideia, que, +encontrando rapidamente o maior apoio em todas as classes manifestantes, +em breve se traduziu n'uma aspiração nacional. Referimo-nos á +subscripção da iniciativa dos alumnos da Escola Naval destinada á compra +de meios de defeza maritima. De toda a parte acudiram donativos, e +dentro de pouco tempo a commissão incumbida de os recolher e que tinha +como secretario o sr. dr. Eduardo de Abreu, desligado do partido +progressista e filiado, com Guerra Junqueiro, no partido republicano, +houve de fazer as suas reuniões no salão do theatro D. Maria e de ali +centralisar o trabalho que lhe estava affecto. + +Ao mesmo passo organisava-se a Liga Patriotica do Norte collocada sob a +egide de Anthero de Quental; Alfredo Keil, imitando Rouget de Lysle, +compunha o hymno a _Portugueza_, para o qual o sr. Lopes de Mendonça +escrevia os versos e esse canto vulgarisava-se tanto ou mais que a +_Marselheza_; faziam-se diariamente conferencias publicas de +esclarecimento e de protesto; os nomes dos mais illustres +africanistas andavam em todas as boccas aureolados de ruidosa +celebridade. Houve mesmo uma epoca em que o de Serpa Pinto se ligou á +narrativa d'um incidente sul-africano com proporções de feito heroico. +Foi quando a imprensa deu publicidade á carta que elle dirigira ao +agente britannico Buchanan que o intimara a não avançar pelas terras dos +makololos, collocados sob a protecção do governo inglez. N'essa carta +dizia Serpa Pinto: + + +«Se na verdade os makololos estão debaixo da protecção do governo inglez +e por conseguinte lhe obedecem, estou certo de que a minha passagem será +facil e segura, porque o governo inglez, representado por v. ex.ª, só me +póde dar facilidades, sendo eu d'um paiz que sempre teve abertas, franca +e lealmente, as portas das suas colonias ás expedições scientificas +inglezas, prestando-lhes todo o auxilio e amparo; mas, em todo o caso, +se é verdade o que v. ex.ª, me diz, peço-lhe que convença os makololos +de que a minha expedição é pacifica e scientifica, que lhes diga que +pertenço a uma nação amiga da Inglaterra e que, portanto, não perturbem +a minha marcha, perturbação a que v. ex.ª, n'esse caso, não pode ser +considerado extranho; e assegurando-lhe que não posso consentir que um +chefe negro queira disputar-me a passagem, ou fazer-me o mais +insignificante insulto, asseguro, além d'isso, a v. ex.ª, que, se na +minha entrada no territorio makololo eu fôr atacado, tomarei +immediatamente a offensiva e acabarei de uma vez com essa causa +constante de perturbação n'esta parte do Chire.» + + +E n'outro paragrapho: + + +«Emquanto á intimação que v. ex.ª me faz de não continuar no meu +caminho, peço licença para lembrar a v. ex.ª que eu só recebo ordens +do governo de sua magestade fidelissima, de quem as recebo directamente +e, como não recebi ordem em contrario, continuarei, tenaz e +pacificamente, a minha jornada, arvorando uma bandeira de paz e só de +paz, mas prompto a repellir com energia quaesquer aggressões sem motivo +que me possam ser feitas». + + +Mas Serpa Pinto, longe de conservar esse favor popular, tornando-se o +proeminente defensor das reivindicações da grande massa, optou, em +breve, pelo serviço incondicional á corôa e essa attitude divorciou-o +completamente do nucleo democratico, que o encarara durante algum tempo +como uma das esperanças mais promettedoras. E, divorciado, perdeu o +prestigio. Quando morreu, dez annos mais tarde, estava em absoluto +esquecido. Continuemos, porém, a contar os episodios que caracterisaram +essa phase de agitação nacional, consequencia do _ultimatum_. + +O sentimento da dignidade collectiva, despertando com extraordinaria +vehemencia, produziu em todas as classes, até mesmo na aristocratica, +uma reacção contra a Grã-Bretanha. O duque de Palmella, por exemplo, +tendo renunciado ás condecorações inglezas que possuia, collocou-se á +frente da commissão da subscripção patriotica; dos partidos monarchicos +desertaram alguns homens dos mais eminentes; surgiu, emfim, uma nova +imprensa, reflectindo, como diz João Chagas «não já os interesses +especiaes do partido republicano, mas as coleras e os enthusiasmos do +patriotismo, identificado com a republica para a missão commum da +desaffronta». + +Fundou-se a _Patria_, jornal de estudantes de Lisboa, e, logo de +entrada, essa folha, feita um pouco _à la diable_, investiu +denodadamente contra o velho regimen, apaixonando em alto grau a +opinião. N'ella se revelaram, entre outros politicos militantes, Brito +Camacho e Hygino de Sousa. E a sua acção de propaganda foi tão intensa +que a ella se deveu, sem duvida, uma grande parte da tensão +revolucionaria mantida atravez do anno de 1890 e começo do anno seguinte. + +Aqui tem cabimento referir que o directorio do partido republicano, +julgando azado o momento de sanccionar com a sua chancella a +recrudescencia do partido democratico, publicou n'essa occasião um +manifesto em que propunha a congregação dos esforços honestos no sentido +de se rejuvenescer Portugal não só confiando-o ao novo regimen como +protegendo-o internacionalmente por meio d'uma federação latina. Esse +manifesto concluia assim: + + +«Só a republica pode organisar o exercito e a marinha, fortificar +Lisboa, administrar as colonias e defender a nação affrontada. A +republica, no meio d'estes desastres publicos, está na consciencia de +todos como o recurso definitivo da nossa estabilidade nacional. Da +consciencia para os factos vae um momento. E esse momento approxima-se.» + + +Por outras palavras: o directorio comprehendia, ou convencia-se, n'essa +altura, de que a propaganda bem dirigida resultaria fatalmente na +liquidação, dentro de curto praso, das instituições que envergonhavam o +paiz. E se o trabalho no ambiente rubro dos centros politicos denunciava +então uma actividade excepcional, fóra, na rua, auxiliavam-no, ainda que +d'outro modo, as manifestações da grande massa, que não affrouxava em +protestar energicamente contra o _ultimatum_ e a cobardia da familia +brigantina. + +Dois dias a fio, um cortejo composto exclusivamente de marinheiros +da armada appareceu n'alguns pontos de Lisboa, saudando +enthusiasticamente a bandeira da patria e dando vivas á independencia +nacional. O governo atemorisou-se com o facto e ameaçou os manifestantes +de os encarcerar durante trinta dias. Ao mesmo tempo, a policia recebeu +ordem de empregar maior violencia na dispersão dos grupos patrioticos. +Uma coisa e outra, porém, não impediram que a onda de indignação se +avolumasse e que frequentemente se produzissem incidentes demonstrando +que o divorcio entre a nação e a dynastia se accentuava cada vez mais. +N'um dos ultimos dias de janeiro, o Gremio Henriques Nogueira, tendo +dirigido caloroso convite ao povo de Lisboa, organisou uma manifestação +imponente que, em marcha correcta e digna pelas ruas da cidade, se +dirigiu ás legações de França e Hespanha a agradecer á opinião dos dois +paizes, a sympathia e a solidariedade moral dispensadas nas horas +lutuosas da affronta ingleza. O gabinete regenerador, entretanto--muito +embora todos os grupos politicos lhe tivessem offerecido apoio +incondicional no respeitante á questão anglo-lusa--fazia dissolver o +parlamento, collocando-se em verdadeira dictadura. O presidente do +conselho, sr. Serpa Pimentel, e o ministro dos estrangeiros, o sr. +Hintze Ribeiro, preparavam-se assim para negociar com a chancellaria +britannica o accordo final, sanccionando a expoliação contida no +_ultimatum_. + +Em 11 de fevereiro, repetiram-se na capital, e com maior intensidade, as +scenas de agitação popular que haviam caracterisado os primeiros dias do +mez anterior. Motivou-as a prohibição d'um comicio no colyseu da rua da +Palma, em que se deveria «accordar nos meios de se enviar uma mensagem +de congratulação e agradecimento ao povo francez e hespanhol e de se +apreciar o pensamento e a opportunidade da liga portugueza +anti-britannica como base dos trabalhos da federação dos povos +latinos». Pouco antes, como corressem boatos de que o governo projectava +dissolver a camara municipal de Lisboa, o presidente d'essa corporação, +o sr. Fernando Palha, apressara-se a inquirir do chefe do governo os +motivos de tão arbitraria resolução, tomando ao mesmo passo varias +medidas tendentes a resistir-lhe caso ella fosse levada á pratica. O sr. +Serpa Pimentel, apesar do decreto de dissolução já estar lavrado, +receiou publical-o e respondeu ao sr. Fernando Palha que os boatos eram +insubsistentes, calculando que, recuando n'essa altura da situação, +poderia conjurar uma nova explosão de sentimentos patrioticos. + +No dia 11, á tarde, quando o povo se encaminhava para o colyseu da rua +da Palma a assistir ao comicio, verificou-se que o governo não só +decidira obstar á sua realisação como á d'um cortejo organisado pelo +Gremio Henriques Nogueira, que se propunha, n'esse mesmo dia, collocar +uma corôa no monumento a Camões. A policia e a municipal que +estacionavam nas immediações do colyseu tinham modos provocadores. O +povo, porém, conservou-se tranquillo e só ás 3 horas, quando se +convenceu em absoluto de que a ordem do governo era irrevogavel, é que +formou um cortejo, acompanhando na retirada do local os oradores que +deviam falar no comicio: Jacintho Nunes, Manuel de Arriaga, Consiglieri +Pedroso e outros. Chegado esse cortejo ao Rocio, Manuel de Arriaga, no +intuito de fazer dispersar a multidão, subiu a um banco e dando um _viva +á patria_, disse: + +--Povo: o governo sahiu da lei prohibindo a nossa reunião. +Conservemo-nos dentro d'ella, protestando contra os que a violaram. + +O sr. Jacintho Nunes tambem proferiu algumas palavras no mesmo sentido. +O povo, enthusiasmado, applaudiu os dois oradores. Mas não foi +preciso mais para a policia iniciar as violencias e as prisões. As +correrias dos guardas lançaram no recinto largos minutos de panico. +Chamou-se ali, como reforço, um esquadrão de cavallaria. O povo +recebeu-o com demonstrações de sympathia e os soldados desfilaram +socegadamente, acompanhados dos vivas da multidão. Os primeiros presos +foram Manuel de Arriaga e Jacintho Nunes. Depois a leva, comprehendendo +uns 130 individuos, seguiu para o governo civil, d'onde, no dia +immediato, foi mandada para bordo do _India_ e do _Vasco da Gama_. + +Assim que o facto constou na cidade, o commercio fechou meia porta e +quasi todas as associações realisaram sessões de protesto. Reappareceram +os incidentes tumultuosos, a população voltou a agitar-se, os jornaes +democratas abriram subscripções em favor dos presos e, ás ameaças de +novas e maiores violencias, o elemento popular respondeu approximando-se +mais e mais dos vultos então em evidencia no partido republicano. A +_Patria_, diario visado especialmente pelos serventuarios do regimen, +escrevia a poucas horas de perpetrado o arbitrio governamental: + + +«Consta-nos que da parte do governo ha todo o empenho em damnificar o +nosso jornal e que se tomam providencias tendentes a supprimir a +_Patria_ e bem assim prender os seus redactores. O publico fica de +sobreaviso, na certeza de que todos os dias sahirá o nosso jornal com o +nome que tem ou com qualquer outro, se lhe fôr inhibido usar o glorioso +nome de _Patria_ que o encima. Não é com ameaças, levadas ou não a +effeito, nem é com prisões ou detenções a bordo do _Africa_ que nos +farão desistir da tarefa que nos impuzemos, porque, uns presos, outros +virão, e quando esses forem presos outros virão ainda e a _Patria_ +apparecerá implacavelmente e o governo d'este paiz ha de aprender que +não é com vilezas e processos de mão baixa que se combatem sentimentos +grandes e generosos, que só anceiam pelo bem estar do seu paiz.» + +[Ilustração: João Chagas (1891)] + + +Mas os serventuarios do regimen não descançaram na tarefa de precavel-o +contra o progresso da democracia, tentando por todos os modos +estrangular os clamores do povo. Em 14 de fevereiro dissolveram a +Associação Academica de Lisboa, sob o pretexto de que ella, contrariando +os fins indicados nos seus estatutos, se «entregava a aventuras +politicas que tinham perturbado a ordem publica.» Ainda mais: +decidiram-se finalmente a publicar o decreto dissolvendo o primeiro +municipio do paiz, apprehenderam alguns jornaes da opposição, entraram +em conflicto com a commissão executiva da Subscripção Nacional, +reorganisaram a guarda municipal, gratificaram a policia e, por uma +série de medidas dictatoriaes, restringiram a liberdade de pensamento e +o direito de reunião. + +Entretanto, caminhava-se a passos agigantados para a conclusão do +tratado anglo-portuguez, o famoso tratado que devia, por assim dizer, +ratificar o _ultimatum_ de 11 de janeiro e a perda subsequente do que +Portugal disputava á Grã-Bretanha. + + + + +CAPITULO VII + +O partido republicano nasce da dispersão do reformista + + +Cabe agora dar aos leitores um rapido esboço das phases por que passou o +partido republicano desde 1880 até á eclosão da revolta do Porto. Esse +partido nasceu da dissolução do reformista, apoz o movimento de Cadiz +que tambem animou o mesmo ideal em Hespanha. Do partido reformista +sahiram Latino Coelho, Elias Garcia, Bernardino Pinheiro e Jacintho +Nunes que, acompanhados de Oliveira Marreca e os generaes Gilberto Rolla +e Sousa Brandão, fundaram o jornal _Democracia Portugueza_ á cabeça do +qual foi logo inscripto o primeiro programma partidario accentuadamente +democratico. Esse programma comprehendia: + + +_Egualdade civil e politica. Governo e taxação do povo pelo povo. +Suffragio universal e representação das minorias. Abolição do juramento +politico; de privilegios pessoaes; dos direitos de consumo para o +Estado; do recrutamento. Serviço pessoal; exercito reduzido á escola e +quadro; milicia nacional. Liberdade de consciencia; egualdade de cultos; +casamento civil; registo civil; liberdade de imprensa e de ensino; +julgamento pelo jury; liberdade pessoal; inviolabilidade do domicilio; +liberdade de associação; de reunião; de representação, excepto para a +força armada collectivamente. Poder legislativo de eleição; executivo +delegado d'este e que dirige os negocios geraes do Estado. +Descentralisação administrativa e autonomia das provincias ultramarinas. +Ensino obrigatorio. Economia na despeza publica. Direito de +resistencia aos actos da auctoridade, offensivos das leis. Justiça +democratica retribuida pelo Estado, revertendo para este os emolumentos; +jurados por eleição; juizes collectivos; ampliação da competencia dos +arbitros. Harmonia do codigo penal e do processo com a philosophia do +direito e o modo de ser da sociedade portugueza._ + + +O programma foi obra, principalmente, de Latino Coelho e Elias +Garcia--este dirigindo a _Democracia Portugueza_ emquanto o jornal +arrastou a sua vida precaria. Os restantes redactores eram Osorio de +Vasconcellos, Teixeira Simões, Gomes da Silva, Ferreira Mendes, Caetano +Pinto e Feio Terenas. De camaradagem com estes nomes appareciam os de +Manuel de Arriaga, Nunes da Matta, Sousa Larcher, Homem Christo, +Magalhães Lima, Alves da Veiga, José Sampaio (Bruno), Emygdio +d'Oliveira, etc., etc. Hintze Ribeiro tambem gosou durante algum tempo a +fama de democrata e pode lêr-se na sua biographia que, quando estudante +em Coimbra, escreveu artigos inflammados para um jornal de Ponta +Delgada. Mas que admira, se da Universidade é que surdiram em todas as +epocas os elementos mais avançados, os propagandistas mais devotados, os +revolucionarios mais atrevidos... Quantos dos antigos ministros da +monarchia portugueza não foram, afinal, durante a sua passagem por +Coimbra, considerados as futuras escoras do partido republicano!... +Quantos! + +Até 1880, esse partido apenas exerceu no paiz uma acção de simples +sentinella, quasi perdida na immensidade do deserto. Ainda não havia +despertado o sentimento civico entre os portuguezes como mais tarde +despertou, precipitando-os em reivindicações revolucionarias e a nação +mal dava pelos clamores do nucleo nascente que todo se esbofava na +imprensa e nas palestras da rua a demonstrar que o reinado de D. Luiz +cavava alguns metros mais no abysmo da nossa ruina. Em Lisboa, o partido +republicano dispunha d'uma modesta influencia eleitoral, que, no +emtanto, lhe permittia, uma vez por outra, travar lucta com os +monarchicos. No Porto, toda a propaganda democratica se reduzia a meia +duzia de homens--de alto valor, é certo, mas de fraco exito nas suas +tentativas para arrancar a capital do Norte á tradicção monarchica. Na +provincia, tudo se subordinava ao caciquismo e os republicanos ali eram +encarados como fautores da anarchia e da desordem. Finalmente, o proprio +nucleo democratico de que Lisboa se envaidecia antes de 1880, não +apresentava a resistencia e a solidez necessarias á conquista do poder +politico. + + +A celebração do tri-centenario de Camões, realisada n'quelle +anno--sacudindo o paiz inteiro n'uma rajada de patriotismo--deu corpo e +energia ao ideal republicano e transformou o nucleo existente n'uma +força respeitavel, digna de ser encarada pela monarchia como um inimigo +serio. Melhor do que nós o poderiamos fazer, o dr. Magalhães Lima vae +dizer aos nossos leitores da influencia decisiva d'essa apotheose na +democracia portugueza: + + +«O tri-centenario de Camões foi o primeiro capitulo da gloriosa jornada +que teve o seu desfecho em 5 de outubro de 1910. Nunca se viu cousa +semelhante em grandeza e sinceridade. O povo, o bom povo portuguez, +compenetrado da elevação da festa, e ainda mais de que a homenagem ao +immortal cantor das nossas glorias correspondia ao anceio d'uma +revivescencia futura, acorreu a ella cheio de enthusiasmo, ardoroso, +expandindo a maior alegria. A celebração do tri-centenario radicou +no espirito da nacionalidade a ideia carinhosa de que no auctor dos +_Lusiadas_ se symbolisavam as esperanças de melhores dias e talvez do +regresso a um passado opulento, viril, de inapagaveis tradicções. + +«Mas a grandiosa homenagem não teve só esse condão. Despertou egualmente +a energia democratica, congregou em volta das figuras do partido +republicano, então em evidencia, os elementos dispersos, consolidou-os, +deu corpo á opinião publica, foi o ponto de partida da marcha politica +que, em successivas _étapes_, conseguiu, entre nós, pôr um ponto final +no regimen monarchico. Devemol-a essencialmente a Theophilo Braga, que +durante tres annos consecutivos fez uma propaganda intensissima para a +sua realisação. A commissão executiva da festa compunham-na elle, +Rodrigues da Costa, que representava ao tempo o jornal mais antigo, a +_Revolução de Setembro_; Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Jayme Batalha +Reis, Ramalho Ortigão, Luciano Cordeiro, eu e o visconde de Juromenha, +mais tarde substituido pelo Rodrigo Pequito. Cada um de nós tomou a seu +cargo para a preparação da solemnidade o realisar um certo numero de +conferencias em que, divulgando a obra do epico, se orientava ao mesmo +tempo o espirito publico n'um ideal genuinamente patriotico. + +«E a influencia exercida pela nossa acção foi tal que, apesar da +hostilidade que o governo progressista da epoca nos moveu, os _Lusiadas_ +entraram em todos os lares e Camões, alcançando a maior consagração, +passou a ser como que o orago da massa popular. As edições da monumental +epopeia vulgarisaram-se por uma forma extraordinaria. Fizeram-se varias, +desde a mais modesta, ao alcance de todas as bolsas, até á de luxo, +regalo de privilegiados. Os nossos manifestos eram acolhidos com +verdadeira soffreguidão e conseguiam maior exito do que os decretos do +governo. Chamava-se ironicamente á commissão do tri-centenario o +_comité_ de Salvação Publica, mas essa ironia dava bem a medida da nossa +força e o que é mais: da impetuosidade da corrente democratica que +caracterisou sempre e profundamente a homenagem ao grande poeta. + +«A celebração do tri-centenario fez expandir a ideia republicana que +muitos espiritos acalentavam em silencio. Em 1880 havia republicanos, +mas não havia conjugação de forças democraticas. O tri-centenario +promoveu-a. Antes de se prestar a homenagem ao poeta, já se palpava a +existencia de um ideal de liberdade e de justiça, o esboço d'uma reacção +decidida contra o regimen monarchico. Recordo-me, perfeitamente, que no +antigo _Commercio de Portugal_, ensaiando a verificação d'essa corrente +avassaladora, obtive um resultado bastante lisongeiro. Nos caixeiros, +mais talvez do que nas outras classes, encontrei elementos valiosos de +propaganda--parte dos quaes fundou e installou o Atheneu e mezes depois +da celebração do tri-centenario me auxiliou na fundação do _Seculo_. + +«Glorificando o epico immortal, revestindo de excepcional imponencia +esse cortejo apotheotico do dia 10 de junho de 1880, Lisboa e, com ella, +as provincias, soffreram um abalo salutar, enveredando decisivamente no +caminho da destruição da tyrannia brigantina. A monarchia comprehendeu-o +e quiz impedil-o. O rei D. Luiz pretendeu encorporar-se no cortejo e o +governo não lh'o consentiu. Em summa, a influencia desprendida da festa +foi enormissima e fez-se sentir de modo flagrante no decorrer dos annos +e em diversos incidentes da vida interna da nacionalidade». + + +Em 1881, quando a imprensa republicana promoveu uma campanha justa e +violenta contra o celebre tratado de Lourenço Marques, a opinião vibrou +como nunca até ali vibrara. Alguns officiaes do exercito chegaram a +offerecer-se para, na impossibilidade do partido republicano se lançar +abertamente n'uma revolução, organisarem guerrilhas e d'esse modo +combaterem a monarchia. Crearam-se centros politicos, as associações de +classe tomaram um incremento irreprimivel e o povo passou a +interessar-se a valer pelas attitudes dos governantes. Apoz a celebração +do tri-centenario, o dr. Magalhães Lima propoz-se deputado por Lisboa, +ou melhor, pelo circulo 98, que comprehendia S. Paulo, Santos, Lapa e +Alcantara. A lucta foi renhida. Theophilo Braga propoz-se depois por +Alfama, Manuel de Arriaga pela Baixa e Elias Garcia pelo circulo 95 +(Anjos). Durante annos foram estes os _candidatos chronicos_ dos +republicanos da capital. Travaram-se batalhas eleitoraes que ficaram +memoraveis. D'uma das vezes, disputando Magalhães Lima um circulo a +Hintze Ribeiro, Fontes, ao tempo presidente do conselho, viu-se forçado +a ir presidir a um comicio para _poder salvar a honra do convento_... + +Comtudo, esse impulso progressivo experimentado em 1880 pelo ideal +democratico, soffreu um decrescimento apoz 1881, isto é, logo que a +questão do tratado de Lourenço Marques se apagou do espirito publico. E +essa decadencia, chamemos-lhe assim, chegou a ser tão accentuada que o +incomparavel jornalista Emygdio Navarro não duvidou um bello dia fazer +um appello ao estado maior do partido republicano convidando-o «a ir +religiosamente enterrar uma bandeira que parecia condemnada a não se +desfraldar jámais». O director das _Novidades_ supplicava a todos os +democratas que fossem uteis á patria, levando a sua dedicação, o seu +trabalho, a sua intelligencia aos arraiaes da monarchia, que os +receberia de braços abertos. Deram-se mesmo algumas deserções. O +jornalista portuense Emygdio de Oliveira cessou a publicação do diario +_Folha Nova_ e renunciou á politica republicana. Outros dos seus +correlligionarios acolheram-se a um novo gremio politico--a _Esquerda +Dynastica_--fundado e dirigido pelo sr. Barjona de Freitas, e durante +mezes, dada a crise de desorganisação que o minava, suppoz-se até que o +partido mais avançado se fusionára n'aquella facção conservadora. + + + + +CAPITULO VIII + +João Chagas abandona enojado a imprensa monarchica + + +Mas sobreveiu o _ultimatum_ e esse conflicto diplomatico exerceu +egualmente consideravel influencia nas condições politicas da sociedade +portugueza. O patriotismo, offendido, encorporou-se nas fileiras +democraticas e engrossou-as. Brotaram da indignação do momento varios +jornaes que foram outros tantos pamphletos revolucionarios: a _Patria_, +de Lisboa, o _Rebate_, do Porto, fundado pelo sr. Eduardo de Sousa, o +_Ultimatum_, de Coimbra, fundado pelo sr. Antonio José de Almeida. Com +essa erupção jornalistica coincidiu a formação, na Universidade, d'uma +geração de propagadores do ideal, que apoz os dias luctuosos de 1890 +publicou um manifesto vigoroso, aggredindo directamente o regimen +monarchico e reclamando a bem da patria uma mudança de instituições. A +policia não deixou circular esse documento, mas dois diarios +reproduziram-no immediatamente nas suas columnas. Assignavam o +manifesto, entre outros, estes estudantes: + +[Ilustração: A guarda municipal entrincheirada na egreja de Santo +Ildefonso] + + +_Fernando Brederode, João de Menezes, Agostinho de Campos, Cunha e +Costa, Couceiro da Costa, Antonio José de Almeida, Pires de Carvalho, +Lomelino de Freitas, Antonio Cabral, Mario Monteiro, Augusto Barreto, +Silvestre Falcão, João de Freitas, Paulo Falcão, Francisco Valle, Julio +Paulo de Freitas, Malva do Valle, Evaristo Cutileiro, Luiz Soares de +Sousa Henriques, Affonso Costa, Manuel Galvão, Lucio Paes_ +_Abranches, Julio de Mello e Mattos, Fausto Guedes, Bessa de Carvalho, +Alberto de Oliveira, Bernardo Leite, Carneiro de Moura, Antão de +Carvalho, Arthur Leitão e Virgilio Poyares._ + + +É tempo de nos referirmos á entrada de João Chagas na scena politica, +facto que se produziu em 20 de fevereiro de 1890. O eminente publicista, +que até então trabalhara na imprensa monarchica, revoltado ou, melhor, +enojado com o espectaculo que presenceara durante os dias agitados que +se seguiram ao _ultimatum_, dirigiu n'aquella data esta carta ao +_Correio da Noite_: + + +«_Meu caro amigo_:--Não me convindo continuar a collaborar em jornaes da +imprensa monarchica, nos quaes, aliás, tenho tido apenas collaboração +litteraria, peço a v... me julgue desde hoje desligado da redacção +d'essa folha. Aproveito o ensejo para lhe agradecer as provas de +consideração que constantemente me tem dispensado.--Seu amigo e collega: +_João Chagas_.» + + +Egual declaração foi publicada no _Tempo_ e na _Provincia_ e no dia 21 +um jornal republicano da manhã accrescentava, fazendo allusão ao facto: +«desde já affirmamos que João Chagas traz ao nosso partido toda a sua +intelligencia, toda a sua dedicação e todo o seu ulterior trabalho; é +uma adhesão valiosissima, que mostra bem o que ha de diamantino no +caracter do nosso amigo, que não hesita sacrificar interesses egoistas +nas aras sacrosantas da patria, cuja remodelação é incompativel com a +subsistencia do affrontoso regimen que nos vae explorando». + +Na _Historia da Revolta do Porto_, que escreveu de collaboração com o +ex-tenente Coelho, João Chagas descreve assim os seus primeiros +passos na propaganda do ideal republicano: + + +«Em fevereiro de 1890, como um dos auctores d'esta obra, ao tempo joven +e fazendo um jornalismo sem paixão e sem ambições, se decidisse a +encetar o jornalismo politico e a adoptar a causa que era então de toda +a gente, reuniu-se a um, egualmente joven--tudo foi juventude n'esse +movimento!--alumno do curso de engenharia civil, Chrispiniano Fonseca, +que mais tarde veiu a morrer no Brazil, de febre amarella, sob a +republica de Floriano Peixoto; e tendo os dois concertado «que era +preciso fazer alguma coisa», como se dizia por essa grande epocha, +começaram por ir espionar a provincia do Algarve, onde certo dia se +affirmou com alarme que rebentara uma sedição militar e, havendo +reconhecido que tal sedição estava longe de ser um facto, voltaram as +vistas para outro lado e decidiram, apoz diversas machinações, que o que +havia a fazer era _propaganda_ muito activa e muito eloquente. + +«D'este accordo partiu a ideia de fundar um jornal republicano, já se +vê, que tomasse a dianteira a todos os que já existiam e que, para a +nossa impaciencia, pareciam excessivamente deficientes. + +«Alvitrou-se que se lançasse o jornal a publico o mais rapidamente +possivel, dentro de quinze dias, dentro de um mez--e quando se discutiam +as bases d'essa publicação imprevista e fulminante, lembrámos que um +jornal, tal como o sonhavamos, desencadeando uma tormenta de paixões +populares, só poderia nascer e cobrir-se de gloria no Porto, que até +então não dera grandes signaes de vida civica, mas que se nos +affigurava, pela sua tradicção e pelas nossas superstições, o unico +centro de população portugueza susceptivel de soltar o primeiro de +liberdade de que nos propunhamos ser os interpretes. + +«Lisboa, inçada de uma população heterogenea, disseminada n'uma grande +área e dividida pelas opiniões mais diversas, foi posta de parte, como +pouco propicia para o exito do nosso emprehendimento, e adoptou-se o +Porto com enthusiasmo e esperança. Estes dois homens não dispunham, +porém, de uma moeda de cobre que lhes permittisse acalentar tão vasto +sonho, e, por outro lado, não tinham um nome que os auctorisasse a +lançar-se nas luctas politicas, em meio da confiança dos que iam ser +seus amigos e cumplices.» + + +Apesar d'isso, João Chagas poz-se a caminho da capital do Norte, +alcançou o concurso do velho democrata José Sampaio (Bruno) e em breve +formou-se uma modesta empreza com o capital sufficiente para a fundação +da ambicionada gazeta. O primeiro numero da _Republica_--tal era o +titulo do novo jornal--sahiu a 18 de abril de 1890 e, embora esse e os +numeros seguintes traduzissem ás claras o radicalismo das aspirações do +seu director, a verdade é que o diario logrou pouca vida e pouco tempo +depois suspendia a publicação. Em setembro do mesmo anno, João Chagas, +recebendo o auxilio efficaz de tres democratas, Dyonisio dos Santos +Silva, Joaquim Leitão e Alvarim Pimenta, voltou a insistir na creação +d'uma folha demolidora e fez sahir a _Republica Portugueza_, que acolheu +na sua redacção toda uma pleiade de velhos e jovens combatentes, +animados por egual do desejo de derrubar o regimen. O artigo de +apresentação inserto no primeiro numero dizia assim: + + +«A obra d'este jornal será inteiramente e desassombradamente +revolucionaria. Tanto vale dizer que será um jornal de combate e +dirá tudo o que fôr mister: + +«a despeito da vontade pessoal do rei; + +«a despeito da tyrannia dos governos; + +«a despeito do odio e da antipathia dos homens e dos partidos que +exploram o paiz.» + + +No primeiro numero da _Republica Portugueza_ tambem foram estampados os +retratos do rei e de dois dos ministros, precedidos d'estas palavras: +_Pelourinho: Os tres de Inglaterra_. Nos outros logares do jornal +explodia a incitação á revolta, usando-se d'uma linguagem que nunca até +ali fôra empregada com tanta franqueza. D'aqui resultou o crear-se, pelo +estimulo do exemplo, uma atmosphera de decisiva batalha, que nem os +acontecimentos nem os homens haviam ainda preparado. Affirma-o João Chagas: + + +«A revolta de 31 de janeiro pode attribuir-se em grande parte ás +instigações directas d'esse jornal, o qual, por seu turno, se veiu a +publico, não foi senão em virtude de circumstancias que não se +produziriam sem o conflicto diplomatico anglo-portuguez. Por isso +reputamos esse conflicto a causa unica do movimento revolucionario do +Porto, que, sem elle, nem encontraria meio idoneo em que se consumasse, +nem agentes que o provocassem. Dar-se-hia outro, mais tarde, e em outras +circumstancias. Esse não». + + +Na _Republica Portugueza_ collaboraram José Sampaio (Bruno), Julio de +Mattos, Basilio Telles, Latino Coelho, Elias Garcia, Gomes Leal, +Heliodoro Salgado e, o que é mais interessante fixar, varios officiaes +do exercito--um dos quaes, em serviço na guarda municipal, teve um dia +ensejo de ver querellada a sua prosa. A par d'essa collaboração, +logo que a _Republica Portugueza_ viu a luz da publicidade, arremettendo +violentamente contra as instituições, appareceram um sem numero de +communicações «sob a forma de cartas e manifestos, de soldados, cabos e +sargentos da guarnição portuense, a principio, depois de militares das +guarnições da provincia, por ultimo de officiaes de todas as graduações +já do Porto já de Lisboa». E os que as enviavam ao jornal faziam-no de +modo tão explicito que, em certa altura, houve necessidade de destruir +uma boa parte da papelada, receiando-se que ella cahisse em poder dos +defensores do regimen e collocasse os signatarios em situação +compromettida. Como amostra da linguagem empregada n'esses documentos, +damos a seguir o trecho d'uma carta enviada n'essa occasião á _Republica +Portugueza_ por um grupo de officiaes transmontanos: + + +_Camaradas: A mãe-patria agonisa. É preciso que seus filhos a salvem sem +demora, porque a sua salvação é do nosso dever. Salvemos a patria +proclamando a Republica. Camaradas: Não ha tempo a perder._ + + +D'aqui se deprehende facilmente que os acontecimentos de janeiro de 1890 +não tinham apenas perturbado a massa generosa do povo, mas egualmente o +exercito, que se sentira molestado nos seus brios. Como toda a nação, o +exercito reclamava o desaggravo. E esse estado de animos não se revelava +simplesmente nas communicações dirigidas á _Republica Portugueza_, mas +tambem em dois orgãos da classe militar, o _Sargento_ e a _Vedeta_, que +deram á imprensa democratica um forte contingente para a sua propaganda +subversiva. O _Sargento_, por exemplo, exclamava com uma audacia que ia +a todo o genero de infracções disciplinares: + +«O exercito aguarda o plebiscito da nação, sem as restricções, as +formulas e os sophismas constitucionaes; o plebiscito dos cidadãos +livres e honrados na urna livre e honrada; o plebiscito de protesto e da +representação nos comicios; ou o plebiscito da revolução nas barricadas. + +«O povo é o poder legislativo; o exercito é o poder executivo. O povo é +a vontade; o exercito é a acção. O povo é a soberania; o exercito é a +força. O exercito não é uma guarda de suissos; o exercito não é uma +casta. O exercito é a nação armada e é a democracia armada». + + +A linguagem da _Vedeta_ não era menos arrojada e expressiva. A irritação +na classe militar augmentava de dia para dia, e porque o governo de +Hintze Ribeiro, sempre cuidadoso de rodear o throno do maior numero de +garantias, entrara a valer no caminho das repressões, transferindo +officiaes e mandando para o serviço do cordão sanitario, que então +guarnecia a fronteira, certos contingentes de corpos suspeitos de +rebeldia. Por outro lado, em agosto, o mesmo governo apresentava ao +parlamento o tratado com a Inglaterra e esse novo acto de vergonhosa +submissão ante a _fiel alliada_, longe de acalmar os espiritos, aguçara +extraordinariamente as ideias revolucionarias. + +A medida ia a trasbordar... N'uma noite d'aquelle mez, um grupo de +segundos sargentos e cabos de infantaria e caçadores, sem que a sua +_démarche_ correspondesse a qualquer trabalho previo de alliciação, +apresentou-se na redacção da _Republica Portugueza_ e um d'elles, +Annibal Cunha, formulou o plano da rebellião. Tratava-se de fazer sahir +infantaria 18, para o que diziam contar com o apoio de grande numero dos +seus camaradas, depositando antecipadamente na alameda da Lapa, proxima +do quartel, uma certa quantidade de espingardas de velho typo, +existentes na arrecadação do regimento. As espingardas serviriam para +armar os cidadãos que fosse possivel ligar á aventura. + +Exposto o plano, o grupo prometteu voltar ao jornal e voltou, com +effeito, desferindo então mais largos vôos, ampliando a esphera do seu +emprehendimento. Não era facil, porém, realisar na occasião qualquer +tentativa e, apoz acalorada discussão, foi decidido aguardar o regresso +ao Porto das tropas empregadas no cordão sanitario. Mas esse grupo, +tendo iniciado o contacto directo com os homens que propagavam pela +palavra e pela escripta o ideal republicano, não tardou que outros +militares o imitassem e, dentro de semanas, a redacção da _Republica +Portugueza_ passou a ser frequentada por dezenas de sargentos, cabos e +soldados da guarnição do Porto, todos dispostos a collaborar na obra da +revolução. Quer dizer: o _complot_ militar formava-se e avolumava-se +gradualmente, espontaneamente, sem que os dirigentes da politica +democratica para elle houvessem contribuido com o mais insignificante +pedido de concurso. + + + + +CAPITULO IX + +O dr. Alves da Veiga assume a chefia civil do movimento + + +Comtudo, tornava-se necessario acceitar as adhesões que irrompiam cada +vez mais numerosas e inflammadas e canalisal-as, dando-lhes orientação +perfeitamente definida. João Chagas e a redacção da _Republica +Portugueza_ procuraram entender-se, para tal effeito, com o dr. Alves da +Veiga, que ao tempo gosava no Porto da situação d'um chefe de +partido e dividiram com elle as responsabilidades da conspiração. Até o +momento, os republicanos do Porto tinham-se limitado, na espectativa dos +acontecimentos, a agitar a opinião por meio da imprensa e dos clubs; o +directorio do partido, presidido por Elias Garcia, procurára iniciar um +movimento egualmente de caracter militar e delegára em Basilio Telles o +encargo de o secundar na capital do Norte. No emtanto, como de todos os +republicanos portuenses o dr. Alves da Veiga era o que dispunha de maior +actividade organisadora, foi elle que desde logo assumiu a chefia civil +da conspiração, continuando Basilio Telles a operar de concerto com o +directorio, extranho em absoluto a esta primeira phase dos +acontecimentos. E assim, em setembro de 1890, lançando mãos á obra, o +illustre jurisconsulto preparou nas provincias do Norte diversos +_comités_ revolucionarios que deviam secundar, no ensejo propicio, a +iniciativa do Porto. + +[Ilustração: Capitão Leitão (1891)] + +Restava encontrar quem reunisse á sua volta, e os estimulasse, os +elementos de lucta que se offereciam constantemente á redacção da +_Republica Portugueza_. Lançou-se os olhos sobre a figura gigantesca +de Santos Cardoso e o famoso director d'um semanario de combate--que se +propunha «pôr as calvas a descoberto»--embora soffrendo d'uma reputação +pouco cuidada, appareceu immediatamente como o homem de acção capaz de +aggremiar os officiaes inferiores da guarnição do Porto que se +entregavam á causa da revolta. E assim succedeu. A casa de Santos +Cardoso passou a ser o centro da conspiração dos sargentos. Mas o +director da _Justiça Portugueza_, não contente com isso, quiz ir mais +longe. Principiou a dirigir-se a varios officiaes, solicitando a sua +adhesão e a corresponder-se com o directorio, de quem recebia +communicações e mais tarde lhe conferiu um voto de confiança. + + +Em 17 de setembro, deu-se no Porto a unica manifestação tumultuosa que +precedeu na capital do Norte a revolta de 31 de janeiro. A sua +iniciativa partiu d'um grupo de estudantes, entre os quaes se contavam +Alberto de Oliveira e Eduardo Arttayette. Começou no café Suisso, na +praça de D. Pedro. Pouco antes, tinham sido queimados á porta do +estabelecimento varios jornaes do governo--como protesto contra a +apresentação do tratado de 20 de agosto--e davam-se vivas á Patria e +morras á Inglaterra, quando entrou no café o antigo republicano +Felizardo de Lima. Resoou uma enthusiastica salva de palmas, o estudante +Ernesto de Vasconcellos fez um discurso caloroso e alguem soltou este +grito: + +--Para a rua! + +Os manifestantes sahiram em massa do estabelecimento e encaminharam-se +para a rua dos Clerigos, tendo á frente, entre outros, João Chagas e o +dr. Julio de Mattos. O cortejo comprehendia individuos de todas as +classes sociaes e atroava os ares com vivas, morras e ruidosas salvas de +palmas. Dos Clerigos, os manifestantes foram á Cordoaria. Depois, em +frente da Relação, o estudante Eduardo de Sousa fez um discurso e o +cortejo encaminhou-se para a rua das Taypas, produzindo novas e +estrepitosas demonstrações deante do quartel de caçadores 9. Á porta e +ás janellas do quartel appareceram muitas praças agitando os _bonnets_. +Da rua das Taypas, os manifestantes dirigiram-se á rua do Triumpho, +entoando a _Marselheza_ e a _Portugueza_, então muito em voga. Em frente +do quartel de infantaria 10 reproduziram-se os applausos ao exercito e o +cortejo seguiu para a rua do Pombal, parando junto d'uma das casas +d'essa rua a acclamar o dr. Alexandre Braga, pae do illustre causidico +do mesmo nome. Alexandre Braga, assomando a uma janella, falou ao povo, +affirmando-lhe estar orgulhoso por encontrar nos moradores do Porto a +sua altiva e tradiccional energia. + +A manifestação seguiu depois ao campo de Santo Ovidio, parando em varios +pontos do percurso para ouvir improvisados oradores. Um d'elles disse: + +--O Porto precisa provar que ainda não perdeu o segredo das revoluções. + +No campo de Santo Ovidio, as demonstrações patrioticas attingiram o +delirio. Alguns officiaes de infantaria 18 vieram até junto da multidão +pedir-lhe cordura. A seguir, a manifestação desceu pela rua do Almada e, +voltando á Cordoaria, passou pelo quartel da guarda municipal. +Immediatamente sahiu d'ali uma força de cavallaria e, carregando sobre a +multidão, que se refugiou no jardim, dispersou-a. Alguns individuos +responderam á pedrada, houve gritos subversivos e na refrega um +estudante ficou ferido nas costas. Reconcentrando-se, os manifestantes +desceram á rua dos Clerigos e vieram para a praça de D. Pedro. Ahi, os +soldados da guarda municipal, cravando as esporas nos cavallos, +carregaram novamente sobre o povo, acutilando-o a torto e a direito, +mettendo toda a gente debaixo das patas dos animaes, varrendo não só a +praça mas as ruas circumvisinhas e ferindo e prostrando grande numero de +pessoas. Os cafés do local foram logo fechados por ordem da policia. +Muitos feridos receberam curativo no hospital da Misericordia. No dia +immediato, a cidade reentrou no socego habitual; mas todos esses +incidentes que acabamos de relatar foram a origem d'uma nova excitação +que aggravou «a que já fundamente lavrava e havia de resolver-se no +movimento de 31 de janeiro». + + +Entretanto, os trabalhos para a organisação do _complot_ progrediam a +olhos vistos. Os organisadores já contavam com o concurso de varios +officiaes e porque alguns d'elles tinham apparecido nas redacções dos +jornaes republicanos, decididos, pelo menos na apparencia, a contribuir +para a derrocada da monarchia. E se é certo que no momento em que +rebentou a revolta, apenas tres d'elles conseguiram justa evidencia, a +verdade é que durante o periodo preparatorio da conspiração o numero de +officiaes que n'elle intervieram contavam-se por dezenas. Cada corpo da +guarnição do Porto, sem exclusão da guarda municipal, dava, pelo menos, +um contingente de tres officiaes, cujos nomes circulavam entre os +conspiradores e eram quasi do dominio publico. Os mais graduados eram +capitães. Por outro lado, nas provincias, onde Alves da Veiga organisara +_comités_ civis e militares, estes garantiam-lhe a sua plena adhesão. O +commandante d'uma das forças aquarteladas no Porto compromettia-se a +adherir ao movimento «caso não recebesse ordem em contrario do quartel +general». Santos Cardoso affirmava a todo o momento que o major Graça, +da guarda municipal, e que mais tarde havia de desempenhar um papel +decisivo na insurreição, mas para a suffocar, estava ao lado dos +revoltosos. + +Nos quarteis, entre os officiaes, era corrente que se conspirava. As +noticias do facto transpiravam dia a dia e invadiam abertamente a +opinião. Nos cafés do Porto não se falava n'outra cousa e os agitadores +não se occultavam ao solicitar para a causa a adhesão de novos +elementos. «Crescia-se em audacia. Todos suppunham e se convenciam que +caminhavam realmente para um exito seguro». João Chagas, já na cadeia da +Relação, a cumprir a sentença imposta por um delicto de imprensa, +escrevia n'um artigo inserto na _Republica Portugueza_: + + +«Estou convencido a serio, porque pertenço ao grande numero dos +indisciplinados republicanos que querem a Republica--de que uma +revolução se fará dentro em breve, a mais nobre, a mais generosa, a mais +sympathica de quantas revoluções tem tentado um povo offendido, em nome +da sua dignidade e da sua honra. + +«Quero-a, desejo-a, promovo-a e d'isso me ufano. Com a minha consciencia +vivo na mais perfeita beatitude. Da minha intelligencia faço o uso mais +nobre. Estou tranquillo por mim, porque pratico uma boa acção. Como +convencional, fiz commigo proprio um pacto que vae desde a liberdade á +morte. Ao serviço da minha causa puz todo o meu pensamento, todo o meu +sentimento, toda a minha acção. Quero, pois, a Republica por vingança, +por odio e por dignidade. Dias virão, cheios de alternativas, dias de +orgulho, talvez dias de infortunio--quem sabe? + +«É todo um mundo a fazer! É toda uma sociedade a reformar! Vivemos sobre +lama. Os pés enterram-se-nos no solo. Quanto esforço, quanto trabalho, +quanta coragem para consolidar o chão que nos foge!... Pois bem! +Batidos, vencidos, eu, nós, os meus companheiros de combate, +recomeçaremos em qualquer ponto onde estejamos, aqui ou na terra +estrangeira, dando o nosso sacrificio pessoal, entregando a nossa +felicidade, a nossa vida á causa da patria e da liberdade. A opinião e a +historia condemnarão os que prevaricarem e, se algum de nós os julgar um +dia, dirá inexoravelmente como Manoel falando do rei de França: «Um +traidor de menos, não é um homem de menos». + + +As idéas de revolta inflamavam todos os corações. «Os estudantes das +escolas do paiz que já se tinham offerecido ao governo para constituir +um batalhão voluntario que fosse á Africa combater os inglezes e se +tinham visto recusados, entravam resolutamente no vasto campo da +rebellião. A mocidade academica de Coimbra, posta em contacto com os +revolucionarios do Porto, aprestava-se a tomar parte na lucta em +vesperas de travar-se. O grupo revolucionario academico--sessenta e +tantos estudantes--organisara-se secretamente e reunia-se para +exercicios de espingarda Kropatschek com o concurso dos sargentos de +infantaria 23. Formavam-se novos clubs republicanos. Nos logares os mais +publicos exhibiam-se opiniões revolucionarias. De toda a parte affluiam +exhortações e incitamentos em telegrammas e em bilhetes postaes. Todos +pediam que o movimento se iniciasse quanto antes. A impaciencia era +flagrante e, mal contida, expressava-se nos menores actos dos +conspiradores. + +Alves da Veiga, tomando o pulso á agitação, ponderando os trabalhos até +então realisados e reconhecendo que o movimento necessitava á sua frente +d'um chefe militar prestigioso, abalançou-se a procurar esse official e +conseguiu a promessa formal do general Sebastião Calheiros, então +residente em Vianna do Castello. Resolvido o problema, obtida assim +uma direcção certamente efficaz no instante da revolta, aquelle official +poz-se a caminho de Lisboa, decidido a arranjar collaboradores, que o +auxiliassem em semelhante empreza. O contacto do general Calheiros com +varios dos elementos republicanos residentes na capital do paiz +prejudicou o bom andamento das cousas revolucionarias... É tempo de +descrever aos leitores, como esse facto, e outros que se lhe seguiram, +entravaram o movimento, tirando-lhe ao mesmo passo o caracter d'uma +acção conjuncta da democracia portugueza. + + + + +CAPITULO X + +O Directorio recusa a sancção official á revolta + + +No mez de setembro de 1890, quando a redacção da _Republica Portugueza_ +já concentrava um numero bastante regular de sargentos conspiradores, o +partido republicano soffreu uma dissidencia profunda. D'um lado ficou +Elias Garcia, congregando á sua volta toda a parte conservadora do +partido; do outro surgiu o tenente de caçadores Homem Christo, com todos +os radicaes. «O conflicto devia ter solução no congresso annunciado para +janeiro de 1891 e no qual os dois grupos travariam a batalha decisiva». +Apesar da dissidencia, porém, os republicanos do Porto continuaram a +entender-se com Elias Garcia, pois que este, como já tivemos ensejo de +referir, tambem trabalhava na organisação d'um movimento de caracter +militar e o seu delegado na capital do Norte, Basilio Telles, prestava +rasoavel concurso á actividade de Alves da Veiga. Santos Cardoso, por +seu lado, entrara na intimidade d'outros vultos em evidencia como +Bernardino Pinheiro e Theophilo Braga. + +Em dezembro, Homem Christo, que não via com bons olhos a chefatura de +Elias Garcia e o contrariava em tudo que parecesse dimanar da sua +resolução pessoal, procurou-o e fez-lhe sentir a inconveniencia do +Directorio secundar a _sargentada_ do Porto. «A revolta de sargentos, +dizia elle a Elias Garcia, se vingar, vae ser funesta á disciplina do +exercito; mas não vinga, porque lhe falta o elemento intelligente e de +cohesão». Depois, logo a seguir, convidado por Jacintho Nunes, foi ao +Porto «estudar a situação». No Porto, Homem Christo procurou Alves da +Veiga e Rodrigues de Freitas, mas não lhes poude falar. Jacintho Nunes +propoz-lhe então uma conversa com Santos Cardoso. Homem Christo recusou, +porque odiava fundamente o director da _Justiça Portugueza_, mas depois +consentiu em procural-o, para averiguar até que ponto eram authenticos +os trabalhos revolucionarios. O encontro d'esses dois homens é assim +relatado por João Chagas, que foi quem apresentou Homem Christo e +Jacintho Nunes a Santos Cardoso: + + +«A entrevista não teve o menor effeito na obra que estava em via de +realisar-se e passal-a-hiamos em claro se o facto de termos assistido a +ella não nos permittisse formular uma impressão exacta da situação +reciproca dos dois homens--Santos Cardoso e Homem Christo--n'esse +curioso lance, mais tarde exposto e discutido nos tribunaes e na +imprensa. Homem Christo entrou em casa de Santos Cardoso munido de todas +as prevenções que o indispunham contra o director da _Justiça +Portugueza_. Por seu turno, Santos Cardoso recebeu-o como a um inimigo. + +[Ilustração: Uma carga de cavallaria.] + +«A memoria não nos soccorre de forma a podermos reproduzir, dez +annos volvidos, os termos exactos d'essa conferencia; mas a impressão +que nos deixou e que subsiste no nosso espirito é de que foi um acto +sobre o qual pesou uma profunda e mal contida irritação. Santos Cardoso, +com o seu ar fanfarrão de desafio e Homem Christo, com o seu duro e +implacavel desdem, estavam destinados a não entender-se. E foi o que +succedeu. + +«Como o director da _Justiça Portugueza_, pallido, mas affectando +serenidade, a cofiar largamente a sua vasta pera, entrasse de enumerar +com aparato aquellas forças de todas as proveniencias, que já reputava +solidamente ao serviço da revolução, Homem Christo entrou, por seu +turno, de dar evidentes mostras de impaciencia, menos talvez porque +estivesse ali o homem que elle detestava, senão porque n'esse homem +detestado via o paisano a mover soldados, que de todo o tempo irritou o +espirito dos militares profissionaes. Não era realmente irritante que +aquelle adventicio, alheio a todo o saber e a todos os interesses +militares, se permittisse a impertinencia de dar sentenças a um militar +de profissão, sobre o que fossem regimentos, batalhões, companhias, +officiaes, soldados, parecendo ter a pretenção de usurpar com o seu +desplante a soberania dos chefes militares n'esse movimento feito por +sargentos que elle já parecia commandar? + +«Na sua cegueira, embriagado com o que suppunha já a sua obra e com o +proprio ruido das suas palavras, Santos Cardoso não comprehendia até que +ponto se tornava antipathico ao seu interlocutor. E proseguia +inexgotavelmente, enunciando regimentos, guarnições, nomes de +officiaes... Friamente, como quem se vinga, Homem Christo impoz á sua +total ignorancia uma sabbatina cruel, reduziu-o a confessar-se em erro, +em equivoco, em mentira. Santos Cardoso embrulhava-se, mettia os pés +pelas mãos, já se agitava na sua cadeira, como procurando romper. É +certo que, finda essa penosa entrevista, Homem Christo o tivesse +maltratado, atirando-lhe ao rosto o epitheto de imbecil? Não o +recordamos e não cremos que essa palavra tivesse sido pronunciada em +termos d'elle a ouvir. Os dois homens despediram-se mesmo com cortezia. +O que recordamos com precisão é que, já na rua, Homem Christo disse: +«Vou ali falar com alguns rapazes» e que, poucas horas depois, como +tornassemos a encontral-o, accrescentou: «Isto não está tão mau como eu +pensava». + + +D'ahi a alguns dias, como houvesse no Porto apprehensões sobre o valor +do apoio que o Directorio dispensava ao movimento, João Chagas foi +incumbido de ir a Lisboa falar a Elias Garcia. Encontrou-o no Hotel +Atlantico, mas o chefe republicano, cauteloso e previdente, não quiz +desde logo sujeitar-se á conversa sobre tão melindroso assumpto e, +rasgando em duas metades um cartão de visita, entregou-lhe uma d'ellas +dizendo: + +--Ás 8 horas, alguem lhe apparecerá com a outra metade d'este cartão. É +pessoa de confiança. Pode seguil-a. + +Ás 8, com effeito, um emissario discreto conduzia João Chagas ao +Directorio, que estava reunido em casa de Bernardino Pinheiro e, uma vez +junto d'esse democrata, de Elias Garcia, Theophilo Braga e Sousa +Brandão, o director da _Republica Portugueza_ constatou que nenhum +d'esses homens hostilisava o movimento. Pelo contrario. A uma pergunta +directa de João Chagas, o Directorio respondeu que trabalhava para +secundar a revolta do Porto. E no fim, apoz animada conversa, ficou +assente que o general Sousa Brandão iria pessoalmente ao Norte +inteirar-se, _de visu_, da situação--o que fez, na realidade, +encontrando-se ali com os mais importantes elementos da conjura. + + +Em principios de janeiro reuniu em Lisboa o congresso do partido e +os amigos de Homem Christo triumpharam dos de Elias Garcia. O novo +Directorio, dias depois de eleito, fez circular pelo paiz um vigoroso +manifesto em que parecia dar alento aos revolucionarios, apontando-lhes +como unico caminho a seguir, perante o descalabro da monarchia, a +execução immediata do plano da conjura. «No estado actual da crise +portugueza--dizia uma passagem do manifesto, que era acompanhado d'um +novo programma partidario--só existe uma solução nacional, pratica e +salvadora: a proclamação da Republica. Só assim acabarão os interesses +egoistas que nos perturbam e vendem, só assim apparecerá uma geração +nova capaz de civismo e de sacrificios pela Patria». Mas, quasi a +seguir, o Directorio mostrou-se como que cheio de remorsos por haver +expendido doutrina tão francamente revolucionaria e, dedicando-se a +entravar os progressos, já inilludiveis, da conspiração do Porto, fez +publicar em 25 de janeiro uma circular em que dizia sem disfarce: + + +«Prevenimos os nossos correligionarios para que abandonem ao seu +isolamento egoista qualquer grupo perturbador que anteponha á magestade +dos principios o fetichismo de personalidades e aos interesses da +propaganda as vantagens dos lucros economicos». + + +E concluia: + + +«Aproveitamos este ensejo para lembrar ás dignas commissões a +necessidade de se proceder aos trabalhos do recenseamento eleitoral; e, +ao mesmo tempo, que todas as combinações importantes para a vida do +Partido serão communicadas e estabelecidas por um enviado especial do +Directorio, evitando assim as intervenções discricionarias de +individualidades sem mandato, que enfraquecem toda a auctoridade». + + +A circular visava, como se comprehende, a tirar aos conspiradores do +Porto «qualquer sombra de auctoridade official». E para que não restasse +duvidas sobre a sua significação, no dia 27, os _Debates_ publicavam um +artigo de Homem Christo, intitulado _Uma prevenção_, em que se attribuia +ao movimento o caracter d'uma _pavorosa_ urdida pelo governo e se +exclamava: + + +«Acautelem-se, pois, os republicanos com essas manobras. Revoluções +fazem-se. Não se dizem, nem se apregoam. Quando se dizem e quando se +apregoam, ou é desconchavo que faz rir, ou armadilha lançada aos +ingenuos e simples do mundo. E como ha muito ingenuo e muito simples, +sempre é preciso cuidado com taes armadilhas e artes de tratantes. +Cautela, pois». + + +Homem Christo vingava-se de Santos Cardoso e outras personalidades +implicadas no movimento, mas que lhe eram antipathicas, aggredindo-as +por essa forma indirecta e pretendendo _furar_ as probabilidades de +exito que, porventura, caracterisassem o projecto de revolta. Antepunha +á questão do partido uma questão de mero odio pessoal. E a esta +sacrificava tudo, indo até á denuncia publica e formal do que se tramava +na capital do Norte. + + + + +CAPITULO XI + +A crise ministerial dos «vinte e sete dias» + + +Retrogrademos um pouco até á apresentação ao parlamento do tratado +anglo-luso. Este documento, tendo sido publicado no _Diario do +Governo_ em fins de agosto de 1890, levantara, como já dissémos n'outro +ponto, enorme grita de hostilidade. Os jornaes da opposição +classificaram-n'o acto continuo de: «certidão de obito passada por um +diplomata funebre a uma nação narcotisada por dois seculos de jesuitismo +e de inquisição e esterilisada por pouco mais de meio seculo d'um +constitucionalismo dissolvente e desmoralisador». Pela essencia do +tratado, Portugal não podia alienar os seus territorios africanos sem +previo consentimento da Inglaterra. + +As associações mais importantes da capital pronunciaram-se altivamente +contra a ratificação de semelhante «hypotheca feita á Grã-Bretanha». +Convocaram-se comicios em diversas cidades do paiz, houve mesmo um no +Porto presidido pelo africanista Alvaro de Castellões, em que os +oradores, alguns monarchicos, tonitruaram contra o negociador do +tratado, o sr. Barjona de Freitas; de modo que no dia em que o ministro +Hintze Ribeiro se aprestou a ler o respectivo texto á camara dos +deputados, a esquerda parlamentar acolheu as suas primeiras palavras com +uma enorme pateada. A esta manifestação da esquerda corresponderam +ligeiras manifestações das galerias e a maioria rompeu em invectivas +contra a opposição, despedindo-lhe phrases como estas: + +--Fóra pulhas!... + +--Isso é indecente!... é de canalhas! + +A opposição recrudesceu na gritaria e o tumulto generalisou-se. Serpa +Pinto, que era deputado governamental por Lisboa, subindo a uma coxia, +interveiu, clamando com intimativa: + +--Nem mais uma palavra aqui, nem mais um pio! + +--O que? O que diz? perguntou-lhe o padre Alfredo Brandão. + +Serpa Pinto replicou: + +--Nem mais um pio, sou eu que o digo. + +O reverendo agarrou então o heroe pelas orelhas, sujeitando-o nos seus +dedos de ferro e a desordem tomou por momentos proporções inenarraveis. +Restabelecida a calma, o tratado foi enviado ás commissões incumbidas de +lhe dar parecer. Naufragara decisivamente por effeito do tumulto +parlamentar. + + +Ao cahir da tarde, esse tumulto repercutiu-se, sangrento, nas ruas de +Lisboa. O povo, que se agglomerara durante o dia no largo das Côrtes, +encaminhou-se ao terminar a sessão para os lados da Esperança. A policia +quiz dispersal-o e effectuou uma prisão que foi mal recebida pela grande +massa. Tanto bastou para que os guardas cahissem á cutilada sobre os +populares, travando-se lucta renhida, pois a multidão resistiu +corajosamente á ferocidade dos janizaros. A policia, por fim, +refugiou-se na esquadra de S. Bento, em frente das grades do largo das +Côrtes e d'ali disparou os revolvers sobre o povo, ferindo alguns +individuos e matando o operario fundidor Carlos Franco (_Antonio +Pardal_). O cadaver do infeliz foi transportado á casa mortuaria da +Misericordia e o povo acompanhou-o em cortejo dorido, convidando toda a +gente que encontrava no percurso a descobrir-se ante o «martyr +sacrificado ás iras governamentaes». + +No dia seguinte declarava-se a crise ministerial. Por espaço de vinte e +sete dias, a corôa recorreu a todos os expedientes afim de constituir o +novo gabinete. Pretendia-se que o momento era azado para experimentar os +politicos que não pertenciam á rotação constitucional. De Roma veiu a +toda a pressa o sr. Martens Ferrão, mas nada conseguiu fazer. A situação +era grave, confessavam-n'o os proprios jornaes monarchicos. «Estamos +á mercê d'um movimento popular, que pode rebentar d'um instante para +outro e porque a irritação publica augmenta a olhos vistos». Chegou-se a +aventar a subida ao poder d'um ministerio de concentração, de que +fizessem parte representantes do partido republicano. A propria imprensa +democratica quasi que intimava os seus adeptos a tomarem conta das +pastas vagas. No estrangeiro a Republica Portugueza annunciava-se para +breve como um facto previsto, indiscutivel. + +A 18 de setembro repetiram-se os conflictos populares. Apoz um incidente +motivado pela policia, no largo de Camões, de dois garotitos +inoffensivos, uma força da guarda municipal parou em frente do Café +Martinho, onde abancavam estudantes, jornalistas, militares, deputados, +gente, emfim de todas as classes, e sem previo aviso desfechou sobre +aquella mole desarmada, causando um mixto de panico e de colerico +assombro nas victimas de semelhante surpreza. Depois, a mesma força +andou em correrias selvagens pela avenida da Liberdade e arterias +proximas, espancando quem encontrava desprevenido. Quer dizer: apesar de +demissionario o gabinete regenerador, os serventuarios do regimen +recorriam ao emprego da brutalidade e da selvageria para aterrorisar o +povo e impedir o mais ligeiro gesto de censura ao regimen. + +Por fim, a crise ministerial foi resolvida com a constituição d'um +gabinete extra-partidario da chefia do general João Chrysostomo e em que +eram ministros: da guerra, o presidente do conselho; do reino, Antonio +Candido; da justiça, Sá Brandão; da fazenda, Mello Gouveia; da marinha, +Antonio Ennes; das obras publicas, Thomaz Ribeiro; dos estrangeiros, +Barbosa du Bocage. Mas esta solução dada pela corôa á situação politica +do momento não logrou aquietar os animos e as primeiras providencias +decretadas pelo novo governo nada mais conseguiram do que intensificar +os odios que o throno já concitára á sua volta, e no paiz inteiro. + +[Ilustração: Rodrigues de Freitas (1891)] + +Iniciaram-se perseguições á imprensa e, para dar satisfação ás +reclamações inglezas sobre a rejeição do tratado de 20 de agosto, +approvou-se um _modus-vivendi_, pelo qual Portugal concedia á +Grã-Bretanha a liberdade de navegação no Chire e no Zambeze. Pela mesma +época fundou-se a chamada _Liga Liberal_, partido em que preponderou o +sr. Augusto Fuschini e que teve uma aura de sympathia, dadas as suas +apparencias revolucionarias. Falhou quasi a seguir, porque não passava, +afinal, d'uma liga de concentração de interesses conservadores. No +emtanto, a agitação popular ia crescendo, crescendo sempre, a +conspiração do Porto alargava mais e mais a importancia e o numero de +adhesões e nos fins de dezembro de 1890 já se perguntava sem disfarce e +em voz alta quando rebentava a revolta. A mocidade das escolas fremia de +impaciencia e de indignação. Guerra Junqueiro publicara o seu _Finis +Patriæ_ e as estrophes da bella poesia resoavam a todos os ouvidos como +notas vibrantes d'um canto guerreiro. + +Em certa altura, Alves da Veiga apresentou-se em Lisboa e, ás +advertencias do novo Directorio, que lhe fez sentir a inopportunidade do +movimento em plena preparação effervescente, respondeu que da melhor +vontade se esforçaria por addial-o, mas que tal empreza não era facil, +porque a excitação dos elementos militares portuenses não admittia +delongas. E, a comprovar-lhe a affirmativa, deu-se um facto que marcou +por assim dizer a data da revolução, apressando-a, ou melhor, +precipitando-a. Referimo-nos a uma reunião de sargentos da guarnição do +Norte, effectuada a 24 de janeiro de 1891, n'uma casa da rua do +Laranjal. Essa reunião foi provocada por um acto do ministro da guerra, +que descontentou sobremaneira a classe. Os sargentos vinham desde muito +reclamando, por intermedio do seu orgão especial, contra a forma de +promoção; e as suas reclamações assumiram feição mais aggressiva, quando +a ordem do exercito publicada em 17 de janeiro de 1891 inseriu a +promoção ao posto de alferes de trez aspirantes,--promoção contraria á +lei, visto que por ella deviam beneficiar dois aspirantes e um 1.º +sargento. + +O orgão da classe transpareceu logo esse descontentamento e um grupo de +sargentos da guarnição do Porto divulgou um protesto em que se dizia com +toda a clareza: + + +«Camaradas! + +«Nós temos sido a pella de brinquedo dos governos nos ultimos tempos e o +nosso bom nome clama com energia para que termine este ultrage. Ha pouco +era um ministerio que, tendo-nos constantemente illudido com a promessa +de augmento de vencimento, só quando foi invadido pelo terror da agonia +é que se lembrou de que nós podiamos ser seu sustentaculo, e por isso +tentou corromper-nos, sacudindo nas nossas faces as migalhas da +toalha do orçamento. Agora é um gabinete presidido por um general, +que nós ingenuamente consideravamos nosso protector, nosso amigo +solicito e desvelado, que, tendo-nos promettido a escala de promoção por +antiguidade do curso, se curva ante as exigencias de uma aggremiação +politica em que militam muitos officiaes da arma scientifica, +respondendo com despreso á nossa ardente... e jubilosa expectativa. + +«Unamo-nos todos: que haja uma só voz, um só pensamento, uma só vontade! +Só assim nos poderemos vingar impondo a nossa força e fazendo prevalecer +os nossos direitos contra a perfidia dos nossos _amigos_. Desviemos os +olhos d'este monturo pestilento, que exhala miasmas que nos asphyxiam e +volvamol-os para a alvorada que desponta no horisonte social... Tomemos +as armas nas mãos, e com fé e enthusiasmo saudemos o futuro, que elle +minorará a nossa sorte ingrata.» + + +Ao mesmo passo, tres sargentos-ajudantes da guarnição de Lisboa redigiam +e faziam imprimir a minuta d'uma petição que enviaram a todos os corpos +de infantaria e caçadores, a fim de ser assignada individualmente pelos +1.os sargentos d'esses corpos e remettida ao parlamento. A petição +solicitava que a promoção continuasse a ser regulada na razão de um +terço das vacaturas que occorressem no posto de alferes. + +Recebido no Porto esse documento, os sargentos da guarnição +apressaram-se a reunir para o apreciar. + + + + +CAPITULO XII + +«E as armas que nos foram entregues para defeza das instituições, +voltal-as-hemos contra ellas» + + +Á reunião na casa da rua do Laranjal--casa habitada por um individuo da +intimidade de Santos Cardoso--presidiu o alferes de caçadores 9, Simões +Trindade, homem da absoluta confiança da classe e que com ella cooperava +no movimento da revolta. Mas os sargentos presentes, não se contentando +com o subscreverem individualmente a petição enviada de Lisboa, foram +mais longe: approvaram a minuta d'um verdadeiro _ultimatum_, ameaçando o +governo com a sedição caso elle não respeitasse a lei no tocante ás +promoções. A ameaça continha entre outras esta phrase: «..._e as armas +que nos foram entregues para defeza das instituições voltal-as-hemos +contra ellas_». + +O sargento-ajudante de infanteria 18 Arthur Ferreira de Castro, que +tambem tomara parte na reunião, conseguiu obter copia do documento e +entregou-o ao capitão do mesmo regimento Alexandre Sarsfield, que, por +sua vez, o passou ao coronel Lencastre de Menezes. Estava denunciado o +proposito dos sargentos e não tardou que o ministerio da guerra, tendo +conhecimento minucioso do que se discutira na assembléa da rua do +Laranjal e de posse de uma lista de officiaes inferiores que a ella +tinham assistido, desatasse a transferir quantos se lhe affiguravam +suspeitos de republicanismo. + +Quer dizer: a traição do sargento-ajudante Arthur Ferreira de Castro não +só revelou ao governo a existencia da conspiração como, provocando as +immediatas represalias, contribuiu directamente para que os +revolucionarios apressassem a sua sahida e a levassem a cabo em +condições bastante tumultuarias. «Sem a denuncia do sargento +Castro--affirma uma testemunha dos acontecimentos--os sargentos do Porto +não se teriam precipitado e a revolta, que se daria um mez ou dois mais +tarde, teria tido provavelmente um chefe militar, um estado maior bem +mais numeroso, um plano mais intelligente e, seguramente, uma maior e +mais vasta repercussão. Não seria, então, uma revolta: seria uma +revolução, incendiando pelo menos metade do paiz e á qual era de +presumir que a outra metade adherisse, dada a disposição geral dos +espiritos para uma transformação politica, que um grande numero reputava +indispensavel e que os outros acceitariam sem protesto. Assim, foi um +homem, um homem só, obscuro, desconhecido, vindo do anonymato e da +treva, que subverteu a obra da redempção do anno de 91, entravando a +evolução politica da nação, fazendo parar com seus fracos pulsos a ideia +que já se precipitava na gloria de um futuro talvez maravilhoso, +mergulhando--quem sabe?--a bella Patria portugueza na desesperação de um +incerto destino ou de um outro, porventura, funestamente irremediavel». + +Ordenadas as transferencias de sargentos compromettidos no movimento, +todos elles foram procurar Santos Cardoso e instaram energicamente para +que se não addiasse por mais tempo a sua eclosão. Santos Cardoso +entendeu-se com o dr. Alves da Veiga e este, convencendo-se de que não +havia maneira de protelar a revolta embora inopportuna, tratou de, em +curto espaço, ultimar os preparativos dando certa unidade aos elementos +que, fora do Porto, o deviam secundar no momento decisivo. Santos +Cardoso ainda tentou um derradeiro esforço junto dos sargentos mais +exaltados, mas estes, vendo nas evasivas do director da _Justiça +Portugueza_ um receio injustificado, puzeram a questão n'estes +termos: «Se no dia 30 de janeiro não resolverem fazer a revolução, +sahiremos para a rua á frente dos soldados». + +Não havia que hesitar. No dia 30, Santos Cardoso e o dr. Alves da Veiga +decidiram o general reformado da arma de engenharia Correia da Silva a +tomar a direcção do movimento, mas o general só acceitou o encargo «até +ao momento em que algum official superior, em effectivo serviço, +apparecesse a assumir o commando das tropas revoltadas ou ainda se os +officiaes que se apresentassem á frente d'essas tropas concordassem em +que fosse elle o chefe». + +D'ahi a uma hora, effectuou-se uma reunião em casa d'uns parentes do +general, na rua de Malmerendas, reunião para que foram convocados todos +os officiaes adherentes e os individuos da classe civil destinados á +execução do plano revolucionario. Á mesma hora realisava-se n'uma casa +da rua da Alegria uma reunião de cerca de setenta sargentos e estes, +receiando que o general Correia da Silva opinasse pelo addiamento da +revolta, foram á rua de Malmerendas demovel-o d'esse proposito. + +O general ouviu-os e, por fim, concordou-se em que o movimento +rebentaria na madrugada. Faltava discutir o plano revolucionario. Para +isso marcou-se nova reunião, ás 10 da noite, na rua de Santa Catharina. +Talvez n'ella comparecesse maior numero de officiaes, visto que nem +todos os compromettidos tinham recebido o respectivo aviso e a primeira +reunião na rua de Malmerendas caracterisara-se pela falta de muitos +d'esses elementos. + + +«Para aproveitar o tempo que decorria até se realisar essa reunião, +entendera o general, bem como o dr. Alves da Veiga, que fossem +procurados alguns officiaes de superior graduação, convidando-os a +comparecer em casa d'um conhecido negociante do Porto. Esses officiaes +eram o coronel, o tenente-coronel e um major de caçadores 9, que se +recusaram a acceder ao convite. Lembrou-se, em vista da recusa d'estes, +o nome d'outro official, que, sem ter uma graduação superior, era +comtudo muito estimado entre os seus camaradas e gosava de um notavel +prestigio entre os seus subordinados. Este alvitre, porém, não foi +aceito; por consequencia, o general Correia da Silva ficaria, até +ulterior resolução e dependendo isso das circumstancias occorrentes, com +o commando em chefe das tropas revolucionarias». + + +Ás 10 da noite, na reunião da rua de Santa Catharina compareceram apenas +o general, o dr. Alves da Veiga, Santos Cardoso, diversos civis, alguns +sargentos, o capitão Leitão e um alferes da guarda fiscal. Os outros +officiaes compromettidos não compareceram, ou, melhor, não foram +convidados a comparecer. Durante alguns instantes, o general e o capitão +Leitão discutiram o plano revolucionario. O primeiro entendia que as +tropas deviam concentrar-se na praça da Batalha e tomar desde logo posse +do quartel general, do governo civil e do telegrapho, cujos edificios +estão reunidos n'aquelle local. O capitão Leitão desejava que a +concentração se fizesse no campo de Santo Ovidio e contrariava a +indicação do general, porque, dizia, os revolucionarios necessitavam +antes de tudo vencer uma difficuldade: a da sahida do quartel do +regimento de infantaria 18. A respectiva officialidade, quasi toda +residindo dentro do edificio, fôra, decerto prevenida, do proposito dos +sargentos pela denuncia do traidor Castro e trataria de oppôr-se a que +elles sublevassem as praças. Por conseguinte, só com a presença dos +outros corpos nas immediações do quartel é que infantaria 18 poderia, +quebrando os laços da disciplina, cooperar na insurreição. Quanto ao +quartel general, os revoltosos contavam que o sargento commandante da +guarda o submetteria sem difficuldade. + +O general Correia da Silva insistiu mais do que uma vez na superioridade +do seu plano estrategico, mas Santos Cardoso, collocando-se ao lado do +capitão Leitão, fez vingar a ideia de se effectuar a concentração das +tropas no campo de Santo Ovidio. Assentou-se tambem em que alguns dos +civis presentes procederiam á detenção das auctoridades governamentaes, +mas com a condição de não exercerem sobre ellas a menor violencia, salvo +se isso se tornasse absolutamente indispensavel ao bom exito da causa. +Do mesmo modo se deveria proceder para com os officiaes que se não +solidarisassem desde logo com o movimento. Por ultimo: o general Correia +da Silva só seria chamado ao campo de Santo Ovidio, se depois das tropas +ali concentradas não apparecessem a commandal-as officiaes d'uma certa +graduação. + +Dissolvida a reunião, o dr. Alves da Veiga e outros conjurados +encaminharam-se para a loja maçonica o _Gremio Independencia_, d'onde +deviam lançar as ordens necessarias para a execução do plano pouco antes +delineado. A essa hora, no Porto, a noticia de que dentro em pouco +rebentaria a revolta já se divulgara o bastante para que a maioria da +população a não ignorasse. Mostra-o o depoimento do ex-tenente Coelho, +consignado no livro que escreveu de collaboração com João Chagas. Vamos +transcrevel-o, porque evidencia egualmente a precipitação com que, +chegado o momento decisivo, se tocou a reunir nos arraiaes revolucionarios: + + +«Entrando o tenente Manuel Coelho, por um mero acaso, na noite de 30 no +Café Central, que era então um verdadeiro foco de conspiração, veiu +a saber que se preparava a revolução para a madrugada immediata de 31 em +circumstancias que é conveniente registar. Depois de haver trocado +algumas palavras com um seu camarada, tomou assento a uma das mezas do +café. D'ahi a pouco acercou-se-lhe o dr. João Novaes, que lhe disse: + +[Ilustração: Levantando os feridos] + +«--Já sabes que a revolução se projecta para a madrugada? + +«--Não, respondeu-lhe; e até me surprehende muito a noticia, porque o +capitão Leitão me viu no quartel e de nada me falou. + +«--Pois toda a gente diz isso ahi á bocca cheia. Sabem-n'o todos, até +mesmo a policia. + +«--Não sei de nada, e quer-me parecer que, se a noticia tivesse algum +fundamento, certamente eu teria sido procurado. + +«--Tens razão, com effeito, replicou o dr. João Novaes; mas corre o +boato com tal insistencia que me parece que elle tem fundamento. Mas +eu vou já sabel-o; vou falar ao dr. Alves da Veiga. + +«O dr. João Novaes sahiu. Pouco depois entravam no Café Central o +tenente da cavallaria 6 Vaz Monteiro, destacado no Porto, e o tenente +Margarido de cavallaria da guarda municipal. Aquelle veiu immediatamente +sentar-se junto de Manuel Coelho, acercando-se de ambos este ultimo, +que, logo depois de cumprimentar, disse: + +«--Então sabes o que para ahi corre?... Diz-se que n'esta madrugada se +vae fazer uma revolução republicana. + +«--Não ouvi ainda falar de tal. + +«E a rir replicou: + +«--Ah! que tu tambem estás compromettido! + +«--Não, não sei de nada, podes crêr... + +«E explicou que, se sabia a noticia, era por causa do impedido d'um +official de infantaria 18 que o dissera no quartel a outras praças +d'aquelle regimento. Passados momentos, entrava de novo o dr. João +Novaes, que aproveitou o ensejo para dizer que, com effeito, estava +plenamente confirmado o boato e que o dr. Alves da Veiga lhe affirmara +que a revolução se iniciaria ás 3 horas da manhã, com a sahida dos +corpos revoltados. Entretanto, iam conversando Manoel Coelho e os +tenentes Vaz Monteiro e Margarido, em assumpto differente d'aquelle que +primeiro abordaram. + +«Eram já dez e meia da noite e os freguezes do café começavam a rarear. +Preparava-se Manuel Coelho para sahir, quando notou que, do guarda-vento +envidraçado do café, um individuo, que apenas havia entrevisto, uma por +outra vez, falar com o capitão Leitão, lhe fazia signal de querer +transmittir-lhe qualquer communicação. Approximou-se d'esse individuo, +que lhe disse: + +«--O sr. capitão Leitão manda-me aqui para dizer a V. que deseja +falar-lhe. + +«--A mim? Sabe quem sou? + +«--É o sr. tenente Coelho, não é verdade? + +«--Com effeito. E onde está o sr. capitão Leitão? + +«--No _Gremio Independencia_. Se o consente, acompanho-o. + +«Seguiram os dois. As ruas estavam inundadas e a chuva persistente fazia +caminhar rapidamente. Emfim, chegaram á rua Fernandes Thomaz, esquina da +rua de Santa Catharina, tendo atravessado por uma das ruas lateraes do +mercado do Bolhão. Subiram a longa escadaria do edificio onde estava +installado o _Gremio Independencia_ e penetraram n'uma sala do segundo +andar, onde estava reunido um grande numero de individuos. Eram os +irmãos d'esse gremio, que tinham sido convocados pelo dr. Alves da +Veiga, com o fim de encobrir a concorrencia áquella casa, de outras +pessoas estranhas á associação. + +«Á volta do bilhar, jogando, andavam dois homens, um dos quaes era o +capitão Leitão, trajando á paisana: grosso jaquetão de pelles, calça +clara unida á perna e chapéo desabado. No nariz, a sua luneta de vidros +escuros, que elle usava, mais que por outro motivo, pela necessidade de +occultar a fixidez do olho direito immobilisado, quasi completamente, +pela paralysia dos musculos da face. Muito embaraçado, olhou em redor e +disse: + +«--O dr. Alves da Veiga está lá em baixo; vamos falar-lhe. + +«Depôz o taco e desceram ao primeiro andar. N'um pequeno gabinete +interior, cuja forma se approximava do symbolico triangulo, +encontravam-se, cada um sentado á sua meza, Santos Cardoso e o dr. Alves +da Veiga. Em pé, e como esperando ordens, estava um homem ainda novo, +pequeno bigode, quasi um buço sombreando-lhe o labio, grandes olhos +vivos que pareciam prestes a sahir das orbitas, estatura menos que meã, +largos hombros, busto amplo, poisando em pernas robustas; era +Annibal Cunha, então cabo de infantaria 18, estudante da Escola +Polytechnica. O dr. Alves da Veiga estava com um lapis pondo signaes em +frente dos nomes registados no _Almanach Commercial_ e designados sob a +rubrica--_Regimento de infantaria n.º 10_. + +«--É certo, perguntou Manuel Coelho, o que por ahi corre, da projectada +revolução para esta madrugada? + +«Sim, era certo; não tinha podido ser de outro modo. Santos Cardoso, do +lado, affirmou com superioridade: + +«--Estou a fazer os avisos. + +«Com effeito, em cartões de visita, com o seu nome, escrevia--_pede a V. +para comparecer ás 3 da madrugada no campo da Regeneração_. E mettia +depois esses cartões em envelopes nos quaes escrevia o nome d'um +official, entregando-os a Annibal Cunha. + +«O tenente Manuel Coelho retirou-se preoccupado. As circumstancias não +eram de natureza a fazer-lhe acreditar n'um triumpho. Todavia, era +forçoso acceitar os factos como elles se apresentavam. Era tarde para +discutir e inopportuno desobedecer». + + +Emquanto no _Gremio Independencia_ se passava isto que acabamos de +transcrever, varios republicanos em destaque, reunidos n'um gabinete do +Café Suisso, preparavam o manifesto que desde o inicio da revolta seria +lançado: _Aos camaradas do Norte e Sul de Portugal; aos cidadãos do +Porto; aos cidadãos portuguezes!_ Esse manifesto, composto e impresso na +typographia da _Republica Portugueza_--e cujos exemplares foram +destruidos ao ser um facto a derrota dos insurrectos--principiava assim: + + +«A força militar do Porto acaba de dar por findo o reinado do sr. D. +Carlos de Bragança. Proclamou a Republica. Não se trata d'uma simples, +d'uma transitoria revolta. Foi uma revolução que se fez». + + +Expunha a seguir, a traços largos, a situação do paiz, _situação +aviltante, deshonrosa, receiante_. Era um documento em que cada um dos +convivas d'essa historica ceia no Café Suisso puzera a sua «nota +pessoal, philosophica, ou anedoctica» e que surgira dos commentarios +calorosos, apaixonados, sobre o resultado do movimento que não tardaria +a rebentar. + +Mas, emquanto os conspiradores davam a ultima demão aos preparativos da +revolta, as auctoridades civis e militares tomavam conhecimento d'uma +parte do plano concebido e concertavam os meios de o inutilisar. Ás 7 da +noite de 30, um amigo do governador civil, Joaquim Taibner de Moraes, +tendo ouvido a dois sargentos que infantaria 18 se insurreccionaria na +madrugada de 31 «por causa da transferencia d'um sargento ajudante», foi +avisal-o do caso e aquella auctoridade dirigiu-se immediatamente ao +quartel do Carmo, a prevenir o commandante da guarda municipal. + +A conferencia foi rapida. N'ella ficou assente que o commandante da +guarda concentraria, sem grande apparato, toda a força de que pudesse +dispôr e que mandaria vigiar de perto os outros quarteis militares dados +como suspeitos. Combinado isto, o governador civil e o commisario da +policia procuraram o commandante interino da divisão--o general +Scarnichia marchara pouco antes para Lisboa--e esse commandante foi, em +pessoa, ao quartel de infantaria 18, onde, em face das suas ordens, +todos os officiaes passaram a exercer a maior vigilancia nas respectivas +companhias, «aguardando o que de anormal se preparava». + +Por outras palavras: á meia noite de 30, as auctoridades civis e +militares do Porto sabiam perfeitamente o que estava planeado e +repousavam descançadas, suppondo ter providenciado de modo a impedir +qualquer tentativa de sedição. Comtudo é curioso registar que essas +providencias se haviam limitado á policia civil, á guarda municipal e ao +regimento de infantaria 18 e que aos commandantes de infantaria 10 e +caçadores 9 nada fôra communicado ou transmittido que lhes revelasse +_officialmente_ o proposito dos revolucionarios. + + + + +CAPITULO XIII + +Vinte annos apoz a derrota... + + +A manhã do dia 30 surgira nevoenta, tristonha, açoitada pelo vento +agreste do inverno. D'ahi até a noite alta, a chuva cahiu a espaços +inundando a cidade e afastando das ruas do Porto a massa de transeuntes. +João Chagas, encurralado na cadeia da Relação, recebera á tarde a visita +de Alves da Veiga, que sombrio e preoccupado lhe dissera, falando do +movimento prestes a rebentar: + +--Vae ser desastroso... + +--Evite. + +--É tarde... + + +Ao começo da noite, os soldados de guarda á cadeia e que estavam no +segredo da conspiração foram despedir-se de João Chagas: + +--Vimos dizer-lhe adeus... até logo. + +--Até logo. + + +Que se passou depois? Fala o brilhante jornalista, confiando ao auctor +d'esta narrativa as suas impressões da madrugada tragica: + +«Já decorreram vinte annos sobre a derrota... Na vespera á noite, assim +que a treva obscureceu o ambiente, começaram para mim horas inquietas e +perturbadas. Sabia que a insurreição devia rebentar ás tres da +madrugada. Tirei o relogio do bolso. Eram oito horas. Distrahi-me em +coisas futeis, bebi café e fumei como um desesperado. Ainda, como +distracção e talvez para surprehender mais facilmente o primeiro rumor +d'essa arrancada decidida contra a monarchia, abri a janella. A noite, +humida, afogava a cidade. Houve um instante, já quando se approximava a +hora marcada para o rebentar do movimento, que suppuz aperceber o +barulho de carros á desfilada... + +«Ás duas e meia, gelado pelo frio, comprehendi que se fazia um silencio +magestoso, o silencio do somno pesado. Mas d'ahi a pouco levantou-se um +clamor enorme e distingui gritos, brados, vivas, vozes confusas, retinir +d'armas. Depois, uns minutos de treguas, minutos terriveis de anciedade +e, _perto de mim_, o passo cadenciado d'uma força militar... Eu, que não +resava, fiz _in mente_ uma grande e ferverosa prece _por elles_. A força +não tardou a desapparecer e voltou a agitar-me a persuasão de que tudo +recahira em tranquilidade absoluta. Os minutos escoaram-se +dolorosissimos, augmentando a minha impaciencia, aguçando a minha +ignorancia do que occorria. Cheguei a ter a impressão de que essa +guarda-avançada dos insurrectos se submettia completamente e que a mesma +noite que a vira nascer a veria sepultar. Horrivel e febril essa +hesitação do meu espirito, sem outro horizonte que uma neblina glacial, +torturante e a galhofa das sentinellas que vigiavam o meu carcere. + +«A fadiga e a commoção prostraram-me. Exhausto, renunciei a saber, a +indagar, a prescrutar. Tombei no leito, fechei os olhos e dormi. Quando +despertei, era manhã clara. A nevoa dissipara-se e a cidade surgia +cheia de luz. Corri á janella. O socego parecia completo. O dia +annunciava-se lindo, calmo. Mas não tardou que um homem de quem me não +lembro o nome, entrando na cella, me communicasse que a revolução estava +na rua, e, seguindo-o e enfiando a cabeça por umas grades de ferro, +presenciei effectivamente um dos episodios do combate. O movimento +estava realmente no seu auge. A fuzilaria crescia de minuto para minuto. +Convencido do triumpho, preparei-me para a sahida da cadeia... Não +tardariam decerto a vir-me buscar. + +«O resto é por demais sabido. Ao começo da tarde, a bandeira +revolucionaria, que até então tremulara no edificio da Camara, +desappareceu com o estrondear do canhão. Esse trapo, que era a minha +esperança, sumira-se após um tiroteio pavoroso, encarniçado. Ao declinar +do dia, tive a sensação da derrota. Sobre a cidade cahia verdadeira +mortalha. Tornei de novo a estender-me no leito, dormi doze horas sem +interrupção e, quando despertei, reconheci-me excellentes disposições +para affrontar a tempestade que ia desencadear-se, impiedosamente, sobre +a minha cabeça...» + + +Vejamos o que á mesma hora succedia em Coimbra, onde, como em Santarem e +outras cidades do paiz, a organisação revolucionaria portuense contava +um auxilio efficaz. + +Resolvido que a sedição se iniciaria ás 3 da madrugada de 31, Alves da +Veiga mandou a Coimbra Ricardo Severo com o encargo de communicar a +Silvestre Falcão: «que estivessem todos a postos, mas que só sahissem em +armas quando recebessem um telegramma em cifra, isto para evitar +impulsos temerarios.» Ricardo Severo desempenhou-se cabalmente da missão +e ás 10 da noite reuniam cerca de setenta rapazes na casa dos Arcos do +Jardim, onde moravam, alem de Silvestre Falcão, Augusto Barreto, +Guilherme Franqueira e Fernando Brederode. + +Em primeiro logar, a assembleia nomeou um _comité_ dirigente, que ficou +constituido por Silvestre Falcão, Pires de Carvalho, Augusto Barreto, +Barbosa de Andrade e Antonio José d'Almeida. Depois, Malva do Valle foi +alugar o telegrapho, para se conservar até de manhã por conta do +_comité_ e operou-se a juncção do elemento academico com os outros +revolucionarios de Coimbra, combinando-se por ultimo o seguinte: + +[Ilustração: José Sampaio (Bruno) (1891)] + +Logo que Silvestre Falcão recebesse na Alta o telegramma cifrado de +Alves da Veiga, dez ou doze estudantes desceriam a ladeira do Pio até á +parte posterior do quartel de infantaria 23, onde receberiam as armas e +as munições destinadas a armar os conspiradores. Em seguida todos elles +atravessariam a cidade, descendo pelo Quebra-Costas e a rua Visconde da +Luz até o quartel. Ahi bastaria uma manifestação ao regimento, que, á +voz dos sargentos revoltados, viria para a rua em sedição. Removidos +todos os obstaculos que, porventura, se apresentassem á execução do +plano, os conspiradores iriam depôr a sua obra nas mãos de José +Falcão, que, informado de tudo, horas antes, puzera o seu esforço ao +serviço da Republica. + +Um dos estudantes ainda lembrou a conveniencia de se destacarem grupos +armados para junto das residencias dos officiaes do 23, a fim de lhes +embargarem o passo, caso pretendessem sahir em direcção ao quartel, mas +Silvestre Falcão ponderou que isso era perigoso e podia provocar uma +série de assassinios e a assembleia revolucionaria decidiu «caminhar +temerariamente, lançando o exito da empreza aos azares da guerra». + + +Até á manhã clara, os estudantes conservaram-se reunidos na Alta +esperando o telegramma do dr. Alves da Veiga. Mas o telegramma não +chegou e assim que todos elles adquiriram a convicção de que o movimento +do Porto fôra mal succedido, dispersaram desalentados, ainda que +dispostos, no intimo, a renovar mais tarde a audaciosa tentativa. + +E muitos d'elles a renovaram com effeito. As datas de 28 de janeiro e 4 +e 5 de outubro, trouxeram á evidencia uma boa porção dos nomes dos +academicos conspiradores de 1891. + + + + +CAPITULO XIV + +A alvorada triumphante: caçadores 9 inicia o movimento + + +Duas da madrugada... + + +Terminada a reunião na rua de Santa Catharina, os sargentos da guarnição +portuense que a ella tinham assistido dirigiram-se aos seus quarteis e +tomaram desde logo as providencias necessarias para a sahida das +forças no momento opportuno, preparando-a de modo que á rapidez de +execução se alliasse o affastamento da intervenção de qualquer official +que, pelo seu prestigio, conseguisse contrariar a revolta. + +Caçadores 9 foi o primeiro regimento a dar o signal da sedição. As +companhias formaram na parada do quartel sob o commando dos sargentos e +emquanto dois d'elles, Galho e Bandarra, e algumas sentinellas +procuravam impedir que o coronel Malheiro, o official de inspecção e o +tenente ajudante saissem dos aposentos e se mostrassem aos soldados, o +1.º sargento Abilio[A] soltou o primeiro grito de _Viva a +Republica_!--calorosamente repetido por todos os seus subordinados. +Entretanto, apesar de todas as precauções tomadas pelos revoltosos, +o coronel e o tenente-ajudante appareceram na parada e o coronel, +dirigindo-se ao 1.º sargento, exprobou-lhe em phrases paternaes a sua +attitude: + +--Tambem você, Abilio... e eu... que era tão seu amigo! + +--Meu coronel--respondeu o interpellado--v. ex.ª dar-nos-hia grande +prazer se viesse commandar o regimento. + +--Isso não... + +--Nesse caso, v. ex.ª fica e nós sahimos. + +O tenente-ajudante chorava que nem uma creança e pedia a todos os +sargentos que desistissem da sua audaciosa sortida, empregando os +maiores esforços n'esse sentido. O coronel Malheiro ainda tentou falar +ao regimento, para o demover do seu proposito e por ultimo exclamou para +o 1.º sargento Norberto, que, como mais antigo, commandava o corpo: + +--Mande retirar essa gente para as casernas! + +--Agora já é tarde, meu coronel; não pode ser... + +E logo a seguir, o mesmo 1.º sargento deu as vozes do estylo: + +--_Direita volver, ordinario marche_... + +A intervenção do coronel Malheiro falhara por completo. + + +Caçadores 9, sahindo do quartel, subiu em boa ordem a rua de S. Bento e +dirigiu-se á cadeia da Relação, onde estacou. A guarda á cadeia, +fornecida por aquelle corpo, era commandada pelo alferes Malheiro. Desde +que nenhum dos officiaes, conhecidos como republicanos, que estavam +dentro do quartel, tinha querido assumir o commando do regimento, os +sargentos lembraram-se durante o trajecto de o offerecer áquelle +subalterno, que sabiam tambem professar ideias democraticas. E um +d'elles, abeirando-se da porta da casa da guarda, gritou para dentro: + +--Ó sr. Malheiro, venha d'ahi... + +O alferes não sahiu e a mesma voz tornou a insistir: + +--Ó sr. Malheiro, tome o commando do regimento, porque o official de +inspecção não quiz acompanhal-o... + +O alferes então accedeu ao convite e voltando-se para o sargento da +guarda recommendou-lhe que vigiasse bem o edificio da cadeia, não fossem +os presos aproveitar o ensejo para se evadirem. Ninguem se lembrou, +n'esse momento, que lá dentro estava João Chagas e que era natural +gosasse immediatamente da liberdade para collocar o seu nome, o seu +talento, o seu esforço individual e a sua energia ao serviço da +revolução. Pensou-se apenas--e n'isso o alferes Malheiro deu provas de +extraordinario sangue frio--em deixar guarnecida a prisão, com o receio +de que o menor descuido fizesse extravasar para as ruas do Porto a +grande massa de criminosos ali agglomerada. + +Liquidado este incidente, caçadores 9 proseguiu a sua marcha em direcção +ao grupo de Santo Ovidio. Dentro de pouco reunia-se-lhe o de infantaria 10. + +As condições topographicas do quartel que então alojava o segundo +d'aquelles regimentos permittiram que elle formasse na parada interior +sem que o official de inspecção desse por tal. Ás 2 e meia da madrugada, +um dos revoltados foi avisar o capitão Leitão, que morava proximo e que +não tardou a comparecer no edificio. Dirigiu-se logo á arrecadação, poz +um capacete na cabeça e tendo inquirido dos outros officiaes +compromettidos na conjura foi esperal-os para um caramanchão. Estava bem +longe de suppôr que uma vez chegado ao Campo de Santo Ovidio, teria que +assumir o commando superior das forças revoltadas... + +Os minutos, no emtanto, iam decorrendo e como não apparecessem no +quartel outros officiaes republicanos, um sargento veiu convidar o +capitão Leitão a seguir immediatamente com as forças para o campo de +Santo Ovidio. Assim se fez e o regimento marchou em acelerado para o +local da concentração. Á entrada na rua da Rainha, encontrou o tenente +Coelho, que fora chamado ao quartel por um grupo de cabos. O tenente +Coelho conferenciou rapidamente com o capitão Leitão, trocou o kepi que +levava pelo capacete do 1.º sargento Vergueiro e assumiu o commando do +2.º pelotão de infantaria 10. No Campo de Santo Ovidio, os dois +regimentos formaram d'este modo: o de caçadores 9, em quadrado, proximo +da porta principal do quartel de infantaria 18; o de infantaria 10 em +dois circulos na outra extremidade do Campo. + +Concluida a formatura, os soldados e os civis já então ali agglomerados +começaram a dar vivas ao regimento de infantaria 18 para o decidir a +cooperar na insurreição. Outras vozes elevaram-se: + +--Viva a Republica! + +--Viva o exercito! + +--Abaixo a monarchia! + +Momentos depois, o destacamento de cavallaria 6, alojado n'uma das +dependencias do quartel do 18, sahindo pela porta posterior do edificio, +veiu a galope formar em linha parallela á fachada. As saudações e os +vivas redobraram de intensidade. Ao mesmo tempo convergiam para o campo +as forças da guarda fiscal. O cabo João Borges apresentou-se á frente de +87 praças de infantaria e o 2.º sargento Silva commandando 24 praças de +cavallaria da mesma guarda. Quer dizer: ás 4 da manhã de 31 todas estas +forças estavam revolucionadas e só aguardavam a sahida de infantaria 18 +para iniciarem marcha contra o inimigo monarchico, apenas +representado, dentro do Porto, pela guarda municipal e a policia civil. + +Varios officiaes superiores tentaram, emquanto o 18 não appareceu no +local, fazer voltar aos respectivos quarteis as outras forças +sublevadas. O primeiro foi o major Graça, da _guarda pretoriana_. +Sahindo do quartel do Carmo, á frente de infantaria e cavallaria, +dirigiu-se ao Campo da Regeneração e chamando o commandante de caçadores +9 já ali estacionado, intimou o alferes Malheiro a render-se. + +--Agora é tarde, respondeu o official revolucionario. + +--Ainda não é... + +Um cabo que ouvira a intimação exclamou: + +--Se é militar, eu tambem o sou; se é portuguez egualmente o sou; mas +não posso soffrer esta tyrannia por mais uma hora! + +O major Graça, em resposta, bradou: + +--Querem então que haja derramamento de sangue, e sangue portuguez, +n'estes dolorosos momentos por que está passando a patria? Pois seja... + +Um individuo da classe civil ia, n'esta altura, a arengar qualquer cousa +aos soldados, mas os militares oppuzeram-se, dizendo-lhe: + +--Cale-se; aqui só a tropa tem voz activa. + +O major Graça dispoz as suas forças nas ruas da Lapa e de Germalde e foi +dar ordens ao quartel de S. Braz. D'ahi a pouco entrou no Campo de Santo +Ovidio o sub-chefe do estado maior da divisão, tenente-coronel Fernando +de Magalhães. Encaminhou-se para o 2.º pelotão de infantaria 10 e +perguntou pelo seu commandante. Respondeu-lhe o tenente Coelho. + +--Que estão a fazer aqui? disse o sub-chefe.--Mande retirar essa gente +para o quartel. Os senhores são uns doidos... + +--Não é possivel, replicou o tenente. Estou sob as ordens d'um +capitão do meu regimento e, tendo sahido do quartel, insurrecionado, +para proclamar a Republica, já é tarde para recuar. + +--Quem é esse capitão que commanda o seu regimento? + +--O capitão Leitão. + +E dizendo isto, o tenente Coelho apontou ao sub-chefe o sitio onde elle +se encontrava. Junto do commandante de infantaria 10, o sr. Fernando de +Magalhães empregou quasi as mesmas palavras: + +--Mande recolher essa pobre gente a quem está a comprometter. + +--D'aqui não sae ninguem, respondeu o capitão, a carta está jogada e +vamos até ao fim!... + +A seguir, o tenente coronel ainda formulou novo conselho de retirada ao +alferes Malheiro, mas ninguem lhe obedeceu, como, de resto, tambem lhe +não obedeceriam se elle, em vez de meios suasorios, procurando impôr o +prestigio da sua personalidade, tivesse tentado outros processos mais +violentos. + + +Deixemos as forças revoltosas especadas no campo de Santo Ovidio e +cercadas por todos os lados pela guarda municipal e vejamos o que se +passava no quartel de infantaria 18. A insurreição d'este regimento não +fora levada a cabo com tanta facilidade como a de caçadores 9 e +infantaria 10, por causa das prevenções tomadas pelos officiaes. Um dos +sargentos do 18, que assistira á reunião na rua de Santa Catharina, ao +regressar ao quartel recebera ordem de detenção e só por um prodigio de +astucia é que, illudindo a vigilancia do official de inspecção, +conseguira dar conhecimento das deliberações tomadas na mesma reunião +aos sargentos de cavallaria 6. Ainda assim, á hora marcada para a +revolta, as companhias, á ordem dos officiaes superiores, começaram a +formar as casernas. + +[Ilustração: Proclamação da Republica] + +Presentindo o movimento, alguem quiz evital-o, mas inutilmente. D'uma +janella do primeiro pavimento, o tenente-ajudante arengou ás forças que +já estavam na parada, mas dois tiros disparados na direcção d'essa +janella cortaram-lhe o discurso. O coronel do regimento, Lencastre de +Menezes, mostrando uma indecisão extraordinaria, ordenou a varios +officiaes que sahissem do quartel a indagar que forças estavam formadas +no campo. + +Decorrido algum tempo, os sargentos do 18 compromettidos na revolta, +julgando que nem todos os seus camaradas adheriam á insurreição e que a +sahida do regimento não se operaria sem um impulso energico, +soltaram gritos furiosos de traição!--e assim conseguiram arrastar um +grosso contingente de soldados--quasi duas companhias--para junto dos +revoltosos do 9 e do 10. Mas o portão do edificio voltou a fechar-se +sobre a sahida d'essa força e os instantes foram passando sem que o +regimento adoptasse uma attitude definida em conjunctura, como essa, tão +critica. + +Era necessario, na verdade, tomar uma resolução. Apoz alguns momentos de +reflexão, em que os officiaes revoltados trocaram impressões sobre o +caso, infantaria 10 e caçadores 9, formando a quatro, encaminharam-se +para a parte posterior do quartel do 18 e estacionaram em frente da +egreja da Lapa. As forças da guarda municipal, sob o commando do major +Graça, retiraram prudentemente e, deixando livres as ruas que conduzem +ao campo de Santo Ovidio, foram estacionar para a praça da Batalha, +junto do quartel general e do telegrapho. + +A multidão, que a cada instante crescia, misturava aos das tropas os +seus vivas atroadores. «No rosto de toda a gente havia a expressão d'uma +alegria indizivel. Por vezes, os mais enthusiasmados rompiam as fileiras +e iam abraçar um sargento ou um soldado, victoriando-os, acclamando-os. +Era tão quente o arrebatamento, tão ardente aquella ruidosa alegria que +a doce e consoladora esperança na victoria revolucionaria penetrava em +todos os corações, dissipando vagos receios que a longa inacção das +tropas fizera despertar.» + + +Tratava-se agora de invadir o quartel de infantaria 18 e impellir de +qualquer maneira esse regimento para a revolta. Os populares que se +tinham collocado na vanguarda das forças do 9 e do 10 fôram a uma +estação de incendios, que havia perto, trouxeram de lá dois machados e +abriram um rombo na porta do quartel do lado da Lapa, que o coronel +Lencastre de Menezes fizera pouco antes barricar. Soldados e populares +iam, certamente, a entrar de tropel no edificio e travar lucta com os +elementos hesitantes, quando o actor Miguel Verdial, tendo, n'um +relance, a visão da provavel carnificina--o quartel era habitado por +muitas familias--exclamou para os invasores: + +--Suspendam, que eu vou parlamentar com o coronel. + +Cá fóra, os vivas ao regimento de infantaria 18 eram calorosos e sem +interrupção. + +Atraz de Miguel Verdial, entraram no quartel Santos Cardoso e outros +individuos da classe civil e por fim o capitão Leitão commandando uma +força dos dois regimentos revoltados. Santos Cardoso, gesticulando como +um possesso e ameaçando a officialidade do 18 de ser riscada do exercito +caso não adherisse á Republica, encaminhou-se para junto do coronel +Lencastre e disse-lhe: + +--A esta hora estão quarenta e quatro regimentos sublevados, o +telegrapho na nossa mão, o rei a embarcar: não queira V. ex.ª ser a +unica nota discordante. + +--Deixe-me, replicou o coronel, eu não sou republicano nem monarchico. +Sahirei d'aqui a pouco. + +O capitão Sarsfield, que estava proximo, accrescentou: + +--Visto que vae parte do nosso corpo, vamos tambem. + +Por seu lado, o capitão Leitão tambem procurou convencer o coronel a +acompanhar os revoltosos. E, ao cabo d'alguns momentos, conseguiu +effectivamente d'elle essa promessa, que mais tarde, nos conselhos de +guerra, varios officiaes do 18 se empenharam em negar tivesse sido +feita. Emquanto isto se passava, uma força da guarda municipal +commandada por um tenente apparecia no largo da Lapa a enfileirar +ao lado de infantaria 10. Depois, por conselho do tenente Coelho, +punha-se novamente em marcha e seguia pela rua que ladeia á esquerda o +quartel do 18. + +D'ahi a pouco, o capitão Leitão, sahindo d'aquelle edificio, voltava +para junto das forças sublevadas e communicava aos officiaes ás suas +ordens: + +--O 18 vem já. Nós seguimos para a Praça Nova e lá o esperamos. O +commandante disse-me que vinha em breve: que estando elle e quasi todos +os officiaes presentes no quartel era necessario tomar certas medidas de +ordem e segurança e que convinha reunir o conselho administrativo antes +do regimento sahir. + +Mas não era só o capitão Leitão que affirmava isto. Militares e civis, +todos quantos sahiam n'aquella celebre manhã do quartel de infantaria 18 +asseveravam que o coronel Lencastre de Menezes não tardaria com as +forças do seu commando a juntar-se aos insurrectos. E faziam-no, +certamente, por terem ouvido ao official já citado palavras muito +nitidas a tal respeito. Mais tarde, nos conselhos de guerra, +pretendeu-se desmentir tudo isso, e embora tivesse sido aconselhado ao +capitão Leitão e aos outros reos que não aggravassem a sua situação com +accusações a officiaes superiores que não estavam mettidos no processo, +a verdade é que das acareações feitas em pleno tribunal militar resultou +o convencimento geral de que só por um mero acaso não soffreram o +castigo imposto a certos dos conspiradores outras creaturas de maior +patente e mais graves responsabilidades. + + [A] O 1.º sargento Abilio, hoje tenente n'um regimento de + infantaria, apoz o mallogro da revolta de 31 de janeiro, deixou + crescer a barba e prometteu á esposa que só a faria rapar no dia em + que em Portugal fosse definitivamente proclamada a Republica. Quando + rebentou a revolução de 4 e 5 de outubro, a esposa, que estava em + Espinho, telegraphou-lhe para o Porto, anciosa, a pedir noticias. O + 1.º sargento Abilio dirigiu-se á estação da praça da Batalha e + depositou um telegramma de resposta em que dizia: «_Estou bom; foi + proclamada a Republica_». O empregado dos telegraphos recusou + acceitar a communicação. + + --Porque não acceita? perguntou-lhe o antigo revolucionario do 31. + + --Porque ahi diz que foi proclamada a Republica e a noticia ainda + não é _official_. + + --Bem... não ha duvida, redijo outro telegramma. + + E redigiu. A esposa, quando o recebeu delirou de contentamento e foi + mostral-o a umas pessoas amigas. Mas estas, lendo o texto, não se + contiveram que não observassem: + + --Seu marido mandou-lhe um telegramma de troça. Pois não é?... + _Estou bom; vou fazer a barba_... + + --Não é troça, não... _Se elle vae fazer a barba_ é porque _já foi + proclamada a Republica_! + + + + +CAPITULO XV + +Proclama-se a Republica no edificio da Camara Municipal + + +Já manhã clara, as forças revolucionarias sahiram das immediações do +quartel de infantaria 18 e dirigiram-se pela rua do Almada até á praça +de D. Pedro, onde deviam occupar os paços do concelho para se effectuar +a cerimonia da deposição do monarcha reinante e da proclamação da +Republica. Segundo a formatura ordenada pelo capitão Leitão, abria a +columna, tocando a _Portugueza_, a banda, quasi completa, de infantaria +10, com alguns musicos de caçadores 9, todos sob a direcção do musico de +1.ª classe Eduardo da Silva; seguia-se-lhe a guarda fiscal e depois as +praças d'aquelles dois regimentos, as do 9 antecedendo o 10. Conta um +chronista: + + +«Desde que as forças começaram a marchar, sentia-se desapparecer a +oppressão que invadira todos os espiritos n'essas longas tres horas em +que, fóra ou dentro do quartel, se tentara que o regimento de infantaria +18, devidamente commandado, viesse augmentar as forças da revolta. O que +se seguiria depois parecia não preoccupar os espiritos. Acreditava-se +firmemente que o regimento de infantaria 18 estava inclinado a apoiar a +revolta. Se assim fosse nenhuma duvida poderia offerecer a victoria +decisiva da Republica; não porque a força do regimento de infantaria 18 +desse ás tropas insurreccionadas uma superioridade notavel sobre as da +guarda municipal, mas pela alta significação que teria não só para a +população civil mas para o quartel general o facto das tropas sublevadas +serem commandadas por um coronel e muitos officiaes. Era evidente que, +se esse acontecimento viesse a realisar-se, as adhesões seriam +innumeraveis. Ninguem teria duvida em acceitar os factos consumados; as +garantias de victoria eram indiscutiveis; a resistencia da guarda +municipal seria nulla, sem contestação; a ordem estava assegurada. + +«Animadas d'uma doce esperança, as tropas revolucionarias, ladeadas +por immensa multidão, seguiram para a praça de D. Pedro. Ao longo +da rua do Almada, desfilava a columna em formação regulamentar e +disciplinadamente. As janellas estavam todas abertas, e os habitantes +que já tinham conhecimento de que a guarnição militar da cidade sahira +dos quarteis para proclamar a Republica recebiam a noticia com manifesto +aprazimento. E assim, á medida que as forças da revolta iam descendo a +rua, ás saudações erguidas pelo povo que as acompanhava, correspondiam +das janellas, gritando: + +«--Viva a Republica! + +«--Viva o exercito portuguez! + +«Acenavam com lenços, davam palmas, n'uma grande expansão de alegria que +punha nos corações um suavissimo calor e nos labios um sorriso de +triumpho. Nunca tão espontanea e tão calorosa manifestação se produziu +na bella cidade do Norte. Nunca o Porto, a cidade do trabalho e das +grandes virtudes civicas, fez tão enthusiastica acclamação a um exercito +victorioso, porque nunca esteve mais identificado com a ideia que esse +exercito vinha proclamando. Na rua a multidão engrossava a cada momento, +e, quando as tropas revolucionarias dobravam a rua do Almada para entrar +na praça de D. Pedro, era difficil romper por entre a massa compacta que +se agglomerava...» + +Chegadas as forças á praça de D. Pedro, formaram rodeando a mesma praça +pelos lados do norte, nascente e sul, começando a linha pela guarda +fiscal e terminando por caçadores 9. O esquadrão de cavallaria 6, que +tambem acompanhava a columna, estacou na rua occidental da praça. + +Pouco passava das seis horas da manhã. As acclamações despedidas pelos +populares continuavam vibrantes, enthusiasticas. De repente, abriram-se +as janellas dos paços do concelho e alguns individuos da classe civil, +entre os quaes se destacava a figura herculea de Santos Cardoso, +appareceram a dar vivas á Republica, ao exercito e aos regimentos +sublevados. Um popular, armado de espingarda, foi buscar a bandeira do +Centro Democratico Federal 15 de Novembro; Santos Cardoso agitou-a +freneticamente sobre a multidão e depois fel-a arvorar no mastro que +sobrepujava o frontão do edificio. A guarda de honra nos paços do +concelho era feita por uma força de infantaria 10 commandada pelo 1.º +sargento Vergueiro. + +Decorrido algum tempo, o dr. Alves da Veiga assomou a uma das janellas +da casa da Camara e proferiu um discurso, entrecortado pelos applausos +da multidão. Depois ia a ler os nomes das pessoas que deviam constituir +o governo provisorio, mas o actor Miguel Verdial arrancou-lhe o papel +das mãos e procedeu a essa leitura. Esses nomes eram os seguintes: + + +_Rodrigues de Freitas._ + +_Joaquim Bernardo Soares_ (desembargador). + +_José Maria Correia da Silva_ (general de divisão). + +_Joaquim Azevedo Albuquerque_ (lente da Academia Polytechnica). + +_José Ventura dos Santos Reis_ (medico). + +_Licinio Pinto Leite_ (banqueiro). + +_Antonio Joaquim de Moraes Caldas_ (professor). + +_Alves da Veiga._ + + +Cada um d'estes nomes foi acolhido com vivas delirantes e estrepitosos. +Proclamado o governo provisorio, a maioria dos populares que tinham +entrado na casa da Camara desceu á praça a misturar-se com os soldados, +que, diga-se sem hesitações, já começavam a sentir os effeitos d'uma +immobilidade que afinal ninguem justificava. Na varanda dos paços do +concelho ondulavam dezenas de bandeiras azues e brancas. O nevoeiro, que +de madrugada amortalhara a cidade, dissipara-se lentamente. + + +O capitão Leitão, vendo que, em contrario do que lhe assegurara o +coronel Lencastre de Menezes, infantaria 18 não vinha juntar-se ás +forças revoltadas, e que os minutos corriam rapidos sem que no local +apparecessem outros officiaes além dos tres que desde o começo da +revolta lhe tinham francamente adherido, approximou-se do tenente Coelho +e disse-lhe: + +--Estou a perceber isto perfeitamente; fomos trahidos: _são uns +infames_. Disseram-me que a guarda municipal adheria e não a vi no +campo; que o sub-chefe de estado maior tambem vinha e eu tambem o não +vi... Aqui acontece a mesma cousa. _São homens de pannos quentes._ +Talvez haja motivo para demoras. Pelo sim pelo não continuarei a esperar... + +Mas os soldados mostravam desejos de seguir para a frente e um popular, +approximando-se do capitão Leitão, observou-lhe que a guarda municipal +já estava occupando a praça da Batalha, na defensiva e que era urgente +desalojal-a d'ali para se occupar o telegrapho e o quartel general. +Outro popular aconselhou-o a fraccionar as forças do seu commando. + +[Ilustração: A Bandeira da Revolta que foi hasteada na Camara Municipal] + +--Ora, tenha juizo, replicou o valente official. Ninguem nos hostilisa. + +E, voltando-se para o tenente Coelho, acrescentou: + +--Vou tomar uma resolução definitiva: vou mandar seguir pela rua de +Santo Antonio, onde me apresentarei ao general; n'um caso ou n'outro +elle dará as suas ordens... + +O tenente Coelho notou que a guarda da Camara tinha desapparecido e que +era conveniente não deixar o edificio á mercê da populaça. O capitão +Leitão concordou com a ideia e mandou para os paços do concelho uma +força do commando d'um sargento. Feito isto dispoz-se a marchar em +direcção á praça da Batalha. Antes, porém, reuniu com o tenente Coelho e +o alferes Malheiro uma especie de conselho conversando os tres +sobre a attitude que d'ahi por diante deviam adoptar as tropas +sublevadas perante as outras que não manifestavam adhesão ao movimento. +O tenente Coelho registou mais tarde, do seguinte modo, as ideias que +predominaram n'essa conferencia: + + +«O parecer de que as forças da revolta se dividissem em differentes +fracções que por diversas ruas convergiriam na praça da Batalha, +forçando a guarda municipal que ali se encontrava a abandonar o seu +posto, atacada de frente, de revez e de flanco foi posto de parte, +porque, apesar de tudo, se tinha como certa a adhesão d'essa força desde +que as tropas sublevadas manifestassem não abandonar o seu proposito. A +guarda municipal estava informada de que o regimento de infantaria 18 +apoiava a revolução; vira com que ardentes acclamações eram saudadas as +forças revolucionarias; sentia-se, portanto, isolada do resto das tropas +da guarnição e das sympathias da população civil; demais entre aquella +guarda havia um grande numero de homens que tomara parte nos +preparativos da revolta. + +O que havia, pois, a fazer era, do mesmo modo que a guarda municipal +procedera com as tropas sublevadas no campo de Santo Ovidio, procederem +tambem para com ella, aconselhando-a a abandonar a sua attitude +espectante e a adherir ao movimento insurreccional; o regimento de +infantaria 18 havia adherido, não era rasoavel nem patriotico que a +guarda municipal o não fizesse. As tropas sublevadas não tinham a menor +intenção de fazer derramar sangue de irmãos d'armas; não desejavam uma +lucta fratricida, tanto menos presumivel que, sem excepções, todo o +exercito se sentia impellido a resgatar o paiz da humilhante situação em +que se encontrava por virtude dos actos dos governos da monarchia, +que não se inspiravam nos sagrados interesses nacionaes. + +«Não. A guarda municipal era com as tropas da revolta. Se estas não +tinham a commandal-as officiaes, cujas patentes e cujos nomes se +impuzessem, bem certo era que o regimento de infantaria 18, com o seu +coronel e com os seus officiaes, tinha adherido ao movimento +revolucionario e não havia que hesitar. Os tres officiaes que se +encontravam com as forças sublevadas, ali, não queriam reivindicar +nenhum direito de superioridade; contentavam-se bem com a satisfação da +sua iniciativa e, nem por si, nem pelos seus subordinados, reclamavam +nem outros postos nem outras honras. Se outras ideias germinavam no +espirito dos que não tinham até aquelle momento adherido á revolta, que +se desilludissem. Que o throno desapparecesse: mais nada. A nação +governar-se-hia sem profundas transformações. Ellas viriam depois. O +essencial era quebrar com a criminosa tradição. Por ella é que Portugal +vergava ao peso de tanta deshonra, por ella é que a vida social vinha +sendo insupportavel. Governar-nos-hiamos como irmãos, no mesmo +sentimento commum dos interesses individuaes, coincidindo com os da +Patria. Taes pensamentos animavam as tropas sublevadas. Não havia que +discutir.» + + +Resumindo: o capitão Leitão iria á frente das forças e ao chegar á praça +da Batalha procuraria parlamentar com o sub-chefe de estado maior, +Fernando de Magalhães, que os revolucionarios consideravam intelligente +e de caracter. Elle decidiria em ultima instancia se a superioridade +estava, na verdade, do lado dos sublevados e se a guarda municipal podia +ou não submetter-se-lhes sem hesitações. Era o appello honesto a um +arbitro de occasião, que gosava ao momento de justificado prestigio na +classe militar. + + + + +CAPITULO XVI + +O choque sangrento--A guarda municipal desbarata os revoltosos + + +As forças do commando do capitão Leitão sahiram da praça de D. Pedro e +principiaram a subir a rua de Santo Antonio. Formavam uma columna «em +marcha de quatro», levando á frente a banda de infantaria 10; +seguia-se-lhe a guarda fiscal e iam depois caçadores 9 e aquelle +regimento. A guarda municipal formava ao alto da rua, no adro escalonado +de Santo Ildefonso, guardando a entrada da Batalha pelas ruas de Santa +Catharina, Santo Antonio, de Santo Ildefonso, de Cimo de Villa e viela +da Madeira. A entrada pelas ruas de Entreparedes e Alexandre Herculano, +vedavam-na cem praças fieis da guarda fiscal. No lado nascente do antigo +theatro de S. João formava cavallaria 6, cobrindo o edificio do quartel +general e governo civil. + +Uma multidão immensa acompanhava as forças da revolta na marcha rua de +Santo Antonio acima e essa arteria do Porto tinha um aspecto quasi de +festa. A maior animação e alegria illuminavam-na. Do povo sahiam brados +enthusiasticos victoriando os sublevados. As senhoras que estavam ás +janellas agitavam freneticamente os lenços, soltavam vivas calorosos, +batiam as palmas n'um contentamento indescriptivel. A satisfação +dominava tudo e todos. A marcha das forças tinha o caracter +insophismavel d'um passeio triumphal, em que elles pareciam recolher os +applausos pela victoria alcançada rapidamente e sem embate sensivel. + +Na altura da viela chamada dos Banhos, do lado direito da rua de Santo +Antonio, o povo que acompanhava os sublevados hesitou e recuou. O +capitão Leitão olhou para cima, e viu a guarda municipal em attitude +defensiva com as armas apontadas para a columna. Não ligou grande +importancia ao facto e, como a banda de infantaria 10 continuasse a +tocar, não ouviu que de Santo Ildefonso os cornetas tinham feito o +signal de _alto_--_meia volta_. Ia a proseguir na marcha quando +presenceou que dois soldados da guarda fiscal, sahindo da fórma, se +dispunham a disparar as armas contra a municipal. Correu para elles e +gritou-lhes: + +--Não atirem!... A guarda não nos faz mal!... + +[Ilustração: Basilio Telles 1891] + +Os homens entraram na fórma e elle então, collocando-se á frente da +columna, levantou os braços, como pretendendo affirmar á municipal que a +attitude dos sublevados era pacifica. De nada valeu esse expediente. A +guarda, fazendo pontarias baixas, deu uma descarga que lançou o maior +panico nas forças da revolta e nos populares que pejavam a rua de Santo +Antonio. A marcha deteve-se. Uma commoção violenta agitou aquella massa +compacta. N'um segundo, ou em menos d'um segundo, produziu-se um grande +e precipitado movimento de recuo. Os populares, como por instincto, +penetraram nas fileiras da columna procurando um abrigo. Impellida +pela força collossal d'essa enorme multidão, a columna dissolveu-se, +desordenada e a breve trecho a rua de Santo Antonio ficou juncada de +corpos inanimados e dos despojos das victimas. O capitão Leitão, ferido +na cabeça, abrigou-se n'uma casa proxima, acompanhado de dois +corneteiros e d'uma praça da guarda fiscal e mandou fazer repetidos +toques de cessar fogo. Trabalho inutil. A guarda municipal, abrigada por +detraz de pedras continuou a alvejar a rua de Santo Antonio, respondendo +áquelles toques com tiroteio renhido. + +Entretanto, no meio de todo esse panico, os soldados revoltados ou se +agrupavam junto de alguns portaes ou se deitavam no chão, offerecendo o +menor alvo possivel ao fogo da guarda. E, emquanto tiveram munições, +responderam com valentia ao ataque da força fiel ao regimen monarchico. +Esses heroicos combatentes eram principalmente da guarda fiscal e de +caçadores 9, porque o regimento de infantaria 10, estando no fundo da +rua de Santo Antonio ao começar o tiroteio, fôra forçado a recuar até á +casa da camara. E assim se sustentaram n'um ou n'outro ponto da rua, +quasi sempre expostos aos projecteis da municipal, atirando sobre os +adversarios com uma serenidade extraordinaria, desafiando impavidamente +a morte. + +Em certa altura, ouviram-se na praça de D. Pedro os primeiros tiros da +artilharia. A bateria da Serra do Pilar intervinha na lucta para lhe pôr +o ponto final. Os revoltados até então escalonados na rua de Santo +Antonio desceram até ao edificio municipal e ahi se reuniram ás forças +do 10, que se tinham concentrado n'esse ponto desde o começo da refrega. +O capitão Leitão, havendo conseguido, depois de abandonar a casa onde se +abrigara, chegar por entre quintaes e escalando muros até á Praça Nova, +ainda procurou com as forças reunidas na casa da camara operar um +retorno offensivo sobre a guarda municipal. Mas não houve meio, ou +melhor, já era tarde para tentar a sortida. Pequenas fracções da guarda, +protegendo a bateria de artilharia postada nos angulos dos Loyos e de S. +Bento, começaram a atacar os sublevados encurralados nos paços do +concelho e um tiro de peça, arrombando a porta do edificio, mostrou +áquelles valentes que a situação se definia, irremediavelmente como a +derrota da Republica. + +O capitão Leitão abandonou a casa da camara e d'ahi a pouco os outros +combatentes imitaram-n'o, terminando a lucta cerca das 9 da manhã. +Durara duas horas. + +Por este relato é facil de vêr que a victoria alcançada pela guarda +municipal foi mais devida á excessiva _boa-fé_--chamemos-lhe assim--das +tropas revolucionarias do que á coragem dos soldados fieis á monarchia. +Se as forças revolucionarias houvessem marchado sobre a praça da Batalha +em disposição hostil, o resultado do choque sangrento teria sido, sem +duvida, bem diverso. O proprio capitão Leitão reconheceu isso mesmo no +conselho de guerra a que foi submettido: + +--Se eu adivinhasse que tratava com tal gente--disse elle, referindo-se +ás forças do commando do major Graça--eu procederia d'outra forma e hoje +não me alcunhariam de imbecil. Eu avançava com a maior serenidade e nem +mesmo me passava pela mente que ia para um ataque. Suppunha-os +plenamente seguros e, como já disse, tinha razões para isso. Se eu +entendesse, se eu suspeitasse do que me esperava, não teria receio algum +de os atacar. + +«Não era a guarda municipal, que de poucas forças dispunha, pois não +estava toda reunida (e nem mesmo que o estivesse) que derrotaria as +forças do meu commando. Cercal-a-hia, e isso sem grandes planos +estrategicos e forçal-a-hia a render-se, sem mesmo disparar um +tiro. E não se daria a grande desgraça que se deu. Eu envolvia a guarda +e ella não poderia resistir. Não lhes chamem, pois, valentes, porque o +não são. Estava espantado de um tal procedimento. «Eu não ia para +isto»--disse na casa onde entrei. E esta é a verdade; a prova é que +alguem que ouviu a minha phrase já aqui a referiu. Não digo isto para +declinar responsabilidades, porque não quero declinal-as...» + +Incontestavelmente, a guarda municipal não poderia manter-se nas suas +posições; e, nem pelo numero nem pela dextreza, conseguiria offerecer +uma resistencia demorada. Alem d'isso, não estava suficientemente +instruida no manejo da espingarda Kropatschek, que só muito pouco tempo +antes da revolta lhe fôra distribuida; o serviço especial de policia, em +que era empregada, não lhe permittia evolucionar convenientemente em +combate. Pelo contrario; os seus adversarios, tendo passado pela +carreira de tiro em exercicios reiterados, estavam perfeitamente aptos +para se medir com ella e para a subjugar sem esforço sensivel ou grande +dispendio de munições. E a prova é que a guarda se conservou sempre na +defensiva, abrigada pelas varandas de pedra que guarnecem as escadas e +patamares que dão accesso á egreja de Santo Ildefonso e só mudou de +attitude quando a bateria de artilharia, rompendo o fogo contra o +edificio municipal, rematou a contenda. + + +Emquanto, na rua de Santo Antonio e na praça Nova se desenrolavam os +acontecimentos que acabamos de narrar, as guardas de revoltados que +haviam ficado nos quarteis impediam que ali entrassem os respectivos +officiaes não adherentes ao movimento e que o mesmo movimento +surprehendera ainda no leito ao romper da manhã de 31 de janeiro. +No quartel de caçadores 9, por exemplo, ficara uma força sob o commando +do sargento Galho, que mandara armar todas as praças que ali estavam, +collocando-as ás suas ordens. Instantes depois do regimento ter sahido +para a revolta, essa força avistando na rua de S. Bento um troço da +guarda municipal, fel-a dispersar com uma descarga. E desde manhã até ao +começo da tarde, todos os officiaes que tentaram penetrar no edificio +foram respeitosamente prevenidos pelo sargento Galho de que desfecharia +sobre elles a sua espingarda. + +[Ilustração: Bombardeamento da Camara Municipal pelas tropas fieis ao +Governo] + +Só ás tres horas é que esse valente militar se rendeu, abandonando o +quartel ao dominio dos vencedores. O capitão Almeida Soares que +havia tomado conta da guarda á cadeia da Relação, appareceu á porta +principal d'aquelle edificio e intimou o sargento a entregar-se-lhe. + +--Não, respondeu o revoltado. + +--Mas isso é uma loucura, insistiu o capitão. A insurreição já está +suffocada. + +--V. ex.ª dá-me a sua palavra de honra? + +--Dou. + +Então o sargento Galho disparou a espingarda para o ar e franqueou as +portas do quartel ao capitão Almeida Soares. + + +Em infantaria 10 as cousas passaram-se d'outro modo. Ahi a guarda ao +quartel, composta d'um cabo e varios soldados conseguiu, ás primeiras +ameaças, que os officiaes não tentassem sequer empregar a sua +auctoridade hierarchica para a demover do proposito em que se +encontrava. Todos elles, percebendo a inutilidade de qualquer esforço +n'esse sentido, dirigiram-se á casa do commandante do regimento e só +mais tarde, quando a revolta se considerou completamente suffocada é que +conseguiram submetter a guarda do quartel e as praças que retiravam da +lucta que se travara. + +Mas, facto digno de registo: tanto n'um como n'outro quartel não se +produziram violencias--aliás comprehensiveis n'um momento como esse de +fundamentada agitação e irresistivel anormalidade. Violou-se é certo, a +disciplina. Nem a revolução era possivel sem esse delicto. Mas ninguem +faltou ao respeito individual pelos officiaes que não quizeram adherir +ao movimento. + + + + +CAPITULO XVII + +A noite negra do traidor Castro +O destino de trez officiaes + + +Relatados assim os factos que caracterisaram essencialmente a revolta, +desde o primeiro viva á Republica soltado pelo sargento Abilio até á +_reconquista_ dos paços do concelho pela guarda municipal victoriosa, +não é demais uma referencia embora ligeira ao homem que, atraiçoando os +seus camaradas, contribuiu de algum modo para que a noticia do movimento +se divulgasse prematuramente e o contrariasse em mais d'um ponto. Esse +homem, já o dissemos n'outro logar d'esta desataviada narrativa, foi o +sargento Castro. + +«Tendo assistido á reunião da rua do Laranjal--contou elle em conselho +de guerra, depondo como testemunha accusatoria dos implicados na +revolta--vi, com espanto, que se tratava d'uma representação dos +sargentos ao governo, elaborada em termos taes, que era mais uma ameaça +do que um pedido. Á reunião presidiu o alferes Simões Trindade. Pretendi +tomar a palavra, para combater a forma como fora escripto esse +documento, mas a maioria dos assistentes abafou as minhas palavras e eu +retirei-me do local. _No dia seguinte ao da reunião, procurei o capitão +Sarsfield e narrei-lhe o succedido, para evitar que mais tarde me +calumniassem_...» + +Mas a delação do sargento Castro não ficou por aqui. Provocando com essa +narrativa ao capitão Sarsfield as perseguições que as auctoridades +militares moveram dias antes da revolta aos officiaes inferiores da +guarnição do Porto, o traidor, na tarde do dia 30, voltou a avisar +aquelle capitão de que o movimento rebentaria na madrugada do dia +seguinte. Fez a denuncia e sahiu do quartel do 18, disposto a não tornar +a entrar lá dentro, porque receiava justamente que os seus camaradas de +regimento, sabedores do seu acto ignobil, lhe arrancassem a pelle. Ás 11 +da noite, porem, como tivesse deixado ficar no edificio a guia de marcha +para Lisboa--o sargento Castro fora mandado apresentar com urgencia no +ministerio da guerra--arriscou-se a penetrar novamente alli e falou ao +capitão Fumega, que era o official de inspecção. O capitão, mal o viu, +aconselhou-o a que se retirasse, accrescentando: + +--Olhe que a sua vida corre perigo... Alguns sargentos querem matal-o +por não haver adherido á conjura... + +--Não tenho medo, respondeu o traidor, encaminhando-se para a secretaria. + +Nessa dependencia do quartel estavam reunidos o coronel Lencastre de +Menezes e o capitão Sarsfield. O coronel dirigiu ao sargento Castro +conselho identico ao que já lhe dera o official de inspecção: + +--O senhor desappareça do edificio, porque a sua presença aqui pode +provocar um conflicto grave... + +--Vim buscar a guia de marcha, replicou o traidor. + +--Isso é o mesmo... Diga onde quer que eu lh'a mande amanhã de manhã... + +O sargento Castro obedeceu. E abandonando o quartel foi tomar café. +Depois como se fazia tarde, lembrou-se de ir dormir a uma hospedaria da +praça de Santa Thereza. Quando parou á porta, principiava a accentuar-se +nas ruas o movimento das tropas insurrecionadas. Tremeu de medo. O seu +acto infame seria, indubitavelmente castigado e castigado com rigor, +pelas forças que aclamavam a Republica. Receiando que o vissem e +lhe pedissem estreitas contas da delação foi para a esquadra dos +Carmelitas e alli supplicou que o não entregassem aos revoltados pelos +motivos acima expostos e que reproduziu entre lamentos cobardes ao +commandante da força policial. + +Durante hora e meia, conservou-se recolhido n'esse abrigo, estremecendo +a cada ruido indicativo da victoria dos insurrectos. Passado esse tempo +veiu ordem do quartel do Carmo para toda a policia da esquadra dos +Carmelitas--como das outras esquadras--auxiliar as evoluções das tropas +fieis á monarchia. A esquadra ficou deserta. Cheio de terror, +sentindo-se isolado no transe mais angustioso da sua vida, o sargento +Castro acabou por tambem abandonar a esquadra e foi para o quartel do +Carmo, onde suppunha estar em maior segurança. Ahi, apresentou-se ao +official de inspecção e este vendo que elle ainda não tinha seguido para +Lisboa, apesar da ordem urgente que recebera, prendeu-o incommunicavel +e, no dia immediato, fel-o transportar para bordo da corveta _Sagres_. +Na corveta detiveram-no por vinte e quatro horas e só o puzeram em +liberdade quando o commandante do 18, intercedendo em seu favor, +informou as outras auctoridades militares do papel repugnante que o +prisioneiro desempenhara na insurreição... + + +Fechemos aqui a historia do traidor Castro e sigamos o destino dos trez +officiaes combatentes que se salientaram nas diversas phases do +movimento revolucionario. O capitão Leitão, acabada a lucta na casa da +Camara, refugiou-se nas proximidades do quartel de infantaria 10 e ás 8 +da noite de 31 foi ao domicilio do tenente Coelho que ahi se acolhera +apoz a derrota. O tenente Coelho, surpreso, de o ver, exclamou: + +--Como, pois tu aqui? + +--É verdade, replicou o valente official. Que fazer agora? + +--Meu caro, ou fugir ou apresentarmo-nos no quartel general. Para o caso +de nos expatriarmos é preciso dinheiro que eu não tenho... + +--Nem eu. Comtudo, talvez um amigo m'o empreste. + +--Pois bem, concluiu o tenente Coelho, se conseguires o dinheiro +necessario aos dois vem á minha casa ás duas da madrugada; se não +alcançares senão o sufficiente para ti, vae só e sê feliz... + +O capitão Leitão sahiu e não tardou a apparecer ao seu companheiro de +lucta. Na madrugada de 1 de fevereiro, montou a cavallo e dirigiu-se a +Oliveira de Azemeis. «Aqui, dil-o uma testemunha presencial, apesar de o +reconhecerem, as auctoridades não o perseguiram e elle seguiu para +Albergaria-a-Velha, no intuito de comer alguma cousa. Quando chegou a +essa localidade, estava o padre, que tem a alcunha de _O Sopas_, +conversando com varios individuos ácerca dos acontecimentos do Porto. +Este padre tinha sido, durante doze dias, hospede de cama e meza do +capitão Leitão. Ao vêr o cavalleiro, exclamou: + +--«É elle!... + +«Alguem recommendou ao _Sopas_ que não denunciasse o fugitivo. Mas o +padre approximou-se acto continuo do cavalleiro e disse-lhe: + +--«O senhor é o capitão Leitão! + +--«Não, não sou, respondeu o interpellado. + +«Mas, logo a seguir, commovido, fraco--havia muitas horas que não +comia--o capitão Leitão succumbiu e cahiu com uma syncope. O padre +procurou o administrador e este tomando conta do foragido, encerrou-o na +cadeia. Na prisão, o capitão Leitão teve nova syncope. Quando d'alli +sahiu, no meio da escolta que o devia acompanhar ao Porto, +dirigiu-se ao povo em phrases sentidas e a commoção que provocou foi tão +intensa, que muita gente derramou sinceras lagrimas.» + +No trajecto de Albergaria-a-Velha para aquella cidade, o capitão Leitão +observou ao commandante da escolta: + +--Sabe uma cousa... Não triumphámos na revolta de 31 porque fomos trahidos. + +--Mas quem os atraiçoou no fim de contas... perguntou o commandante. + +--Sou bastante generoso para não denunciar ninguem! + +Na cadeia da Relação, o capitão Leitão mostrou-se por vezes +excitadissimo e nunca cessou de solicitar do respectivo director que lhe +consentisse vêr o filho--um rapazito de quatorze annos que ia alli +levar-lhe a comida. No dia 6 de fevereiro á tarde, satisfizeram-lhe o +desejo. E elle então, ao avistar a creança, ajoelhou, exclamando: + +--Perdoa-me, assassinei-te!... + + +O tenente Coelho, esse, apresentou-se no dia 1 de fevereiro, no quartel +general, aqui entregou a sua espada ao sub-chefe de estado-maior, que +lhe deu voz de prisão e foi em seguida conduzido para o castello da Foz, +onde ficou custodiado á vista. + +O alferes Malheiro, ao que depois se affirmou, tendo sido derrubado na +rua de Santo Antonio pelos populares que fugiam das descargas da guarda +municipal, acolheu-se á casa d'um amigo, d'onde mais tarde passou para +uma quinta do Douro e d'aqui para a Povoa do Varzim. Na Povoa embarcou +n'uma canoa de pesca para a Galliza e de Vigo seguiu mais tarde para a +America do Sul. + + +A maledicencia não poupou nenhum d'esses tres homens. Vendo-os +derrotados, entreteve-se a assacar-lhes varias infamias, como se +fosse necessario cobril-os de opprobrio para mais facil apotheose dos +vencedores. Os jornaes da epocha, porém, registam diversos documentos +que ao mesmo passo que evidenciam a qualidade dos manejos tecidos para +denegrir a situação dos tres officiaes, demonstram egualmente que todos +elles investiram de frente contra as insidias e calumnias espalhadas nos +orgãos da monarchia. Vejamos, em primeiro logar, esta carta do capitão +Leitão publicada, já depois de elle ter sido julgado e condemnado em +conselho de guerra: + + +«_Sr. redactor do «Seculo»_:--Informa o _Dia_ que minha esposa +supplicára do general Scarnichia commandante da 3.ª divisão militar, o +auxilio da rainha de Portugal em seu favor e que a soberana ia, com +effeito, conceder-lh'o bem como a meus dois filhos. Achando-me eu +separado ha annos da senhora de quem se trata, cumpre-me declarar em +vista de tal informação, que nem sou solidario com os seus actos nem +d'elles assumo a menor responsabilidade. Cumpre-me outrosim accrescentar +quanto a meus filhos que a situação d'estes é perfeitamente independente +da de minha esposa e se acham felizmente ao abrigo da regia +philantropia. Lamentando que um tal facto me obrigasse a vir á imprensa +desvendar um recanto da minha vida intima, etc.--_Antonio do Amaral +Leitão_.» + + +Trechos d'uma carta do tenente Coelho: + + +«_Sr. redactor do «Diario Popular»_:--Tive por acaso conhecimento de que +um jornal de Lisboa, no furor de fazer _reportage_, a proposito dos +lamentaveis successos do dia 31 de janeiro se refere a um incidente da +minha vida de estudante, deturpando-o e commentando-o de um modo +insultante para mim. Indigna-me a cobardia; porque é facil e pouco +perigoso insultar um preso que tem a absoluta impossibilidade de +desforçar-se. Não fui eu o unico a quem aconteceu aquelle incidente, mas +fui o unico que por elle respondi, sendo absolvido por unanimidade no +conselho de guerra respectivo. Outros mais felizes obtiveram as suas +cartas apesar de identicos incidentes. + +[Ilustração: Tenente Coelho (1891)] + +«Pois embora tivesse sido denunciado por um camarada, não deixei de lhe +perdoar o muito que soffri pelo muito que os dignos officiaes que +compunham o corpo docente da escola do exercito me beneficiaram a mim. E +desde que vesti a minha farda de official, desde janeiro de 1883, posso +erguer bem alta a cabeça, que na minha vida não ha uma acção que me +deslustre! Tenho por testemunhas toda a população de Villa Real, onde +sempre tenho vivido e os officiaes que commigo serviram em infanteria +13. Desafio quem quer que seja a desmentir as minhas palavras. +Transferido violentamente e violentamente exonerado de ajudante de +infanteria 13, como o prova o sr. conde de Villa Real, pelo simples +facto de eu ser progressista, partido em que trabalhei afanosamente, bem +podera ter ficado no mesmo logar se quizesse transigir com o partido +regenerador, como pode proval-o um dos homens mais honrados e illustres +d'esse partido, o sr. dr. Antonio de Azevedo Castello Branco. Mas não. O +meu dever era não abandonar o partido em que me alistára e assim o fiz, +apesar dos innumeros sacrificios que isso me custou. + +«Tendo um grande amor ao trabalho e ao estudo, todo Villa Real sabe e +todos os que me conhecem testemunham como eu desde as 6 horas da manhã +até ás 6 ou 7 da tarde, áparte as horas em que cumpria os meus deveres +officiaes, leccionava varias disciplinas para angariar meios de +subsistencia para a minha numerosa familia sem me arredar um ponto da +linha recta da honra e da dignidade.--_Manuel Maria Coelho_.» + + +Uma carta do alferes Malheiro: + + +«_Sr. redactor do «Jornal de Noticias»_:--Tendo lido em diversos +periodicos que eu tentara alliciar a força da guarda do meu commando, a +fim de me acompanhar na revolta e que essa força não adheriu devido ao +procedimento energico do 2.º sargento Benigno, que disse não abandonar o +seu posto emquanto tivesse munições, tenho a declarar muito +terminantemente que são falsas taes versões. + +«Na occasião em que se apresentou o regimento de caçadores 9 em frente +da cadeia, sahi do meu quarto e como visse grupos de soldados passeando, +intimei-os a recolher á casa da guarda, assistindo eu mesmo a essa +retirada. Disse-lhes, finalmente, que ninguem sahiria d'alli a não ser +ao brado d'armas. Tudo isto que declaro é a expressão da verdade, +podendo ser garantido pelo sargento que estava n'esse momento a meu lado. + +«Nunca me passou pela imaginação a adhesão da força da guarda, pois +n'aquelle momento de exaltação não deixei de pensar em que se +tornava precisa a maior vigilancia sobre a cadeia. Seria leviano, +mas não tanto como o julgam aquelles para quem escrevo esta +declaração.--_Augusto Rodolpho da Costa Malheiro._» + + +Repetimos: a maledicencia não poupou nenhum dos tres officiaes que se +evidenciaram durante a revolta. Dias a fio bradou-se, á mistura com a +divulgação dos mais censuraveis boatos, que era necessario applicar aos +culpados todo o rigor das disposições penaes. Pouca gente, da affecta ao +regimen e á dynastia brigantina, ponderou que a genese do movimento +brotara exactamente dos erros e dos escandalos d'um e d'outra e que para +os accusadores serem realmente justos precisavam, antes de mais nada, +pensar nas suas proprias responsabilidades, ou nas dos partidos +politicos a que pertenciam. + + + + +CAPITULO XVIII + +O dia seguinte ao da derrota + + +Suffocado o movimento, que fizera triumphar por algumas horas, a dentro +dos muros do Porto, a bandeira verde e vermelha, os serventuarios da +monarchia apressaram-se a enaltecer os talentos dos vencedores e a +amesquinhar o valor da organisação revolucionaria. Não ignoravam elles +que fóra d'aquella cidade se tinham dado occorrencias graves, +reveladoras da amplitude d'essa organisação e que para evitar maiores +complicações se mandara interromper a marcha d'algumas das forças +militares a caminho do fóco insurreccional. + +«O mesmo regimento de infanteria 18--affirma-o um chronista da epoca--só +ás dez da manhã, terminado completamente o combate, finda +inteiramente a lucta, foi, a bandeira desfraldada, apresentar-se ao +quartel general. Um dos regimentos do Norte, que chegou a desembarcar na +estação de Campanhã, ahi mesmo levantou vivas á Republica. Muitas praças +do regimento de caçadores 5 que faziam a guarda ás prisões onde se +encontravam os revoltosos que não haviam conseguido fugir, diziam-lhes +que tinham feito mal em não prolongar a lucta até á sua chegada, porque +o regimento faria causa commum com a revolta...» + +Na imprensa monarchica liam-se as cousas mais affrontosas para os +derrotados. Todos os que, durante os momentos victoriosos, tinham +receiado pela sua integridade pessoal, atropellavam-se no empenho de +accumular a _metralha accusatoria_ sobre os vencidos. Sacudiam-se +responsabilidades e ninguem queria ter a menor solidariedade com os +revoltosos. As mesmas corporações que no caso do triumpho republicano se +apressariam por certo a saudar o advento d'um novo regimen com o appoio +incondicional e festivo despejavam sobre o throno canastradas de +felicitações, algumas n'uma linguagem servil e, por isso mesmo, abjecta. + + +No dia 31, ao começo da tarde, o governador civil do Porto, Taibner de +Moraes, fez publicar um edital suspendendo «as formalidades que garantem +a liberdade individual», e o governo central acrescentou a isso a +suppressão da imprensa republicana ou d'aquella que não vociferasse +tonitruante contra o movimento e os seus promotores. A serie das +bajulações á monarchia victoriosa que, afinal, durante a insurreição, +não ganhara para o susto, foi aberta pela vereação portuense n'uma +mensagem que ella propria veio entregar a Lisboa, dizendo todas estas +enormidades: + + +«N'esse nefasto dia (o de 31 de janeiro) uma parte da guarnição, +esquecendo o juramento de fidelidade á sua bandeira e ás instituições +que nos regem e não menos o dever da disciplina e da manutenção da ordem +e da tranquilidade publica, praticou o maior dos attentados contra a +patria, que na occasião se podia commetter. + +«Attentando contra a monarchia constitucional que é o mais seguro esteio +da independencia portugueza, nem ao menos se ponderaram as criticas +circumstancias em que nos collocam no actual momento as pretenções de +uma poderosa nação sobre o nosso dominio africano e a situação da +fazenda publica. + +«E quando todo o cidadão que verdadeiramente ama o seu paiz sente o +impreterivel dever de não crear o menor embaraço nem levantar o menor +estorvo á melhor solução d'aquellas difficuldades e perigos é que uns +poucos de militares e um insignificante numero de individuos da classe +civil intentam, verdadeiramente obcecados, mudar a natureza das +instituições fundamentaes, abolir a monarchia e precipitar o paiz na +revolução á mão armada...» + + +A mensagem tinha os nomes dos srs. Oliveira Monteiro, Ribeiro da Costa e +Almeida, Leão da Costa, Anthero d'Araujo, Mendes Correia, Pinto de +Mesquita, Chaves de Oliveira, Christiano Vanzeller, Pires de Lima, +Teixeira Duarte, Lima Junior, Silva Moreira, Alves Pimenta, José Arroyo, +Fernando Bahia, Silva Tapada, Moreira Monteiro, Manuel da Silva Pinto, +Vieira d'Andrade, Pedro de Araujo e Tito Fontes. + +A guarda municipal do Porto tambem recebeu a sua quota parte de +felicitações e... melhoria de rancho, pelo «denodo com que repellira os +insurrectos». Os jornaes da epoca estão pejados de documentos +interessantes, revelando o calor bajulatorio projectado sobre os +triumphadores do movimento. Um d'elles: + + +«Satisfeito com o exemplar comportamento e bravura que mostrou o corpo +da guarda municipal do Porto, no dia 31 de janeiro para conter os +desordeiros e fazer respeitar a lei e o governo do paiz e seguindo as +ideias do meu compadre e bom amigo João Pinto Ferreira Leite, tomo a +liberdade de remetter a v. ex.ª (o commandante da guarda) a quantia de +50$000 réis destinados para melhorar o rancho dos soldados da mesma +guarda.--_Januario Bastos_». + + +Outro, egualmente dirigido ao commandante da guarda municipal: + + +«_Meu bravo e glorioso camarada_: Felicito a v. ex.ª e felicito a +valente guarda municipal do Porto, hoje mais do que nunca, uma honra +para o nosso paiz, pela maneira corajosa por que acaba de arrancar da +beira de um abysmo a monarchia e a nação. Consinta v. ex.ª que o abrace +e este amplexo cinge toda a corporação da guarda municipal do +Porto.--_Christovão Ayres_». + + +Alguns dos membros do governo provisorio proclamado no edificio da +camara municipal, uma vez suffocado o movimento, publicaram egualmente +nas gazetas declarações terminantes repudiando a menor ligação com os +revoltosos. O sr. Joaquim Bernardo Soares, por exemplo, dizia na sua carta: + + +«Tenho sido sempre homem de ordem--nem o meu passado, nem as ideias +que tenho manifestado inalteravelmente com o maior desassombro, +podiam auctorisar um tal procedimento da parte d'aquelles que +imprudentemente lançaram o meu nome para o publico e com os quaes não +tenho relações de qualquer natureza nem sequer pessoalmente conheço. +Repillo, portanto, com a maior indignação, o abuso que do meu nome se +fez, sem que possa descortinar o motivo que o determinou». + + +O sr. Azevedo Albuquerque foi mais laconico: + + +«Declaro que não dei auctorisação para o meu nome figurar na lista dos +membros do governo provisorio proclamado na casa da camara do Porto; e +que não concorri nem directa nem indirectamente, para o movimento +revolucionario». + + +A declaração do sr. Rodrigues de Freitas, embora principiasse +por affirmar que o seu auctor «desde muito se manifestara +republicano-democrata e continuaria a professar firmemente as mesmas +ideias» quaesquer que fossem os derrotados ou os victoriosos, acrescentava: + + +«Não auctorisei ninguem, quer directa quer indirectamente, a incluir o +meu nome na lista do governo provisorio lida nos paços do concelho no +dia 31 de janeiro; e deploro que um errado modo de encarar os negocios +da nossa infeliz patria levasse tantas pessoas a tal movimento +revolucionario». + + +Por ultimo esta declaração do sr. José Ventura dos Santos Reis: + + +«Sabendo que o meu nome anda envolvido nos tristes acontecimentos que se +deram n'esta cidade no dia 31 do mez passado, cumpre-me declarar +cathegoricamente que não auctorisei absolutamente ninguem a incluir o +meu nome na lista do governo provisorio, que foi lida nos paços do +concelho; que fui completamente estranho a quaesquer preparativos ou +combinações que precederam as occorrencias d'aquelle dia». + + +Quarenta e oito horas depois da revolta, o governo fez publicar varios +decretos com o fim, dizia elle, de supprir as deficiencias da legislação +então vigente «provendo á necessidade de reprimir de prompto e punir com +severidade os attentados commettidos contra a ordem publica, segurança +do Estado e suas instituições». Por um d'esses decretos entregava á +exclusiva competencia dos tribunaes militares, o conhecimento e o +julgamento do crime de rebellião, aliás previsto e punido no codigo +penal portuguez. Na cidade do Porto, não faltavam edificios onde +podessem funccionar os conselhos de guerra nem cadeias onde acumular os +individuos presos como implicados na revolta. Mas o governo receiou que +a população se interessasse demasiadamente pelo espectaculo dos +julgamentos e assim decidiu que os conselhos de guerra reunissem a bordo +de navios de guerra. + +Para esse effeito, collocaram no porto de Leixões o transporte _India_, +a corveta _Bartholomeu Dias_, e o vapor da Mala Real, _Moçambique_, +guarnecido com marinheiros da _Sado_. Como deposito de prisioneiros +juntaram a estes tres navios um velho pontão incapaz de navegar. Para o +_Moçambique_ foram mandados João Chagas, Santos Cardoso, o capitão +Leitão, tenentes Coelho e Homem Christo, as praças do regimento de +caçadores 9 e os civis: Miguel Verdial, Felizardo de Lima, Santos Silva, +o abbade de S. Nicolau (rev.º Paes Pinto), Eduardo de Sousa, Amoinha +Lopes, Thomaz de Brito, Barbosa Junior, Alvarim Pimenta, José Durão, +Pereira da Costa, Gomes Alves, Soares das Neves, Pinto de Moura, Pinto +de Vasconcellos, Aurelio da Paz dos Reis, Cervaens y Rodrigues, +Feito y Sanz e Simões d'Almeida. Para a _Bartholomeu Dias_ foram as +praças de infantaria 18 e 10; para o _India_, o alferes Trindade e +os revoltosos da guarda fiscal. Mais tarde, o tenente Coelho passou +do _Moçambique_ para aquella corveta. Dos chefes civis do movimento, +conseguiram expatriar-se o dr. Alves da Veiga, José Sampaio (Bruno) e +Basilio Telles. + +[Ilustração: Santos Cardoso, preso a bordo] + +Reunidos os conselhos de guerra, os julgamentos decorreram de tal modo +que ninguem se illudiu sobre a sorte que estava reservada aos +revoltosos. Sabia-se de antemão que sobre elles recahiria o peso d'uma +forte condemnação e que quaesquer que fossem os incidentes revelados +durante as sessões dos conselhos elles em nada alterariam a sentença já +lavrada. + + +«O tribunal--affirmou-se mezes depois no manifesto dos emigrados da +revolução--era uma tão evidente delegação do poder executivo que, em +plena audiencia, um dos julgadores, nem sequer resguardando o melindre +das conveniencias, declarou que não proseguiria n'um detalhe qualquer de +juridicas investigações, _em virtude de ordens superiores_. + +«Foi decerto tambem em virtude d'essas ordens superiores que os +julgamentos se realisaram sobre o mar, acossado por uma invernia +excepcional. Foi em consequencia d'essas ordens que succedeu que, uma +tarde mais aspera, as vagas arrojaram contra os paredões do porto +(Leixões) ainda em via de construcção, desamparado e á mercê, +consequentemente, um dos navios ahi ancorados, persuadindo-se todos os +habitantes do Porto que a verminada carcassa desfeita fôra a d'um dos +pontões onde se mandara apodrecer os suppostos criminosos e +assistindo-se então ao tremendo exemplo d'uma população de mães e +esposas clamorosas accorrendo, em gritos de dôr, a olhar a perfida, +movediça sepultura, onde repousariam, emfim, seus desditosos filhos, +seus tristes esposos, a alegria das suas almas, as esperanças de +suas escuras existencias. + +«Em virtude e consequencia d'essas ordens superiores foi que um dos +navios de guerra (pois que se transformaram os maritimos gloriosos do +glorioso Portugal passado em carcereiros dos que almejavam restituir a +patria ao seu antigo esplendor) se desprendeu uma noite de tempestade e, +com um condemnado a bordo, andou perdido, sem provisões e sem rumo, na +serração, pela clemencia infinita das aguas.» + + +Terminados os julgamentos, os conselhos de guerra condemnaram na pena de +prisão maior cellular (e, na alternativa, na de degredo): João Chagas, +Santos Cardoso, Verdial, capitão Leitão, os sargentos Abilio, Galho, +Silva Nunes, Castro Silva, Rocha, Barros, Pinho Junior, Fernandes +Pinheiro, Gonçalves de Freitas, Villela, Pereira da Silva, Folgado, +Figueiredo e Cardoso, os cabos João Borges, Galileu Moreira e Pires e o +soldado da guarda fiscal Felicio da Conceição. O tenente Coelho foi +condemnado a cinco annos de degredo. Aos restantes implicados couberam +penas variaveis de deportação militar, degredo e prisão correccional. + +Os regimentos de caçadores 9 e infantaria 10 tambem soffreram castigo +exemplar: o governo dissolveu-os. E comtudo, em 1826, o primeiro de +esses corpos, tendo-se revoltado contra o marquez de Chaves, que +defendia o absolutismo do sr. D. Miguel, fôra aclamado fiel e até +comtemplado com augmento de soldo... + + + + +CAPITULO XIX + +Para as despezas da revolta bastou um conto de réis + + +Uma das accusações graves feitas aos revolucionarios do 31 de janeiro +foi a de que o movimento só se levara a cabo para servir interesses +inconfessaveis e apoiar especulações financeiras. Envolveram-se durante +alguns dias os revolucionarios n'um circulo de malquerença e de odio, +attribuindo-se-lhes propositos realmente nefandos--como dizia o governo +nos documentos officiaes, classificando os incidentes do movimento. O +_Diario Illustrado_ chegou mesmo a affirmar: + + +«Elles (os revolucionarios) puzeram-se, conscientemente muitos, +inconscientemente alguns, ao lado dos inimigos da patria, serviram a +causa da Inglaterra, que nos quer expoliar em Africa; _serviram a causa +dos financeiros que pretendem explorar com onzenices as desgraças da +nossa situação_.» + + +Outro jornal, as _Novidades_, ia mais longe: + + +«D'onde veiu e para onde foi o dinheiro que se arranjara para a revolta? + +«Houve ha um mez uma reunião no Porto onde foram dois delegados de +Lisboa. Ao contrario do que se tem dito, o accordo para a revolução foi +completo. Nem os de lá nem os de cá divergiram. No que não concordaram +os de cá com os de lá foi na forma da republica a proclamar, oppondo-se +os de Lisboa á federação com a Hespanha. + +«O que é certo, porém, porque resulta de documentos encontrados, e +de depoimentos recolhidos, é que a isto se seguiu a subscripção aberta +em Lisboa para a revolta, que produziu rapidamente 20 contos que foram +levados ao Porto por dois sujeitos, um dos quaes tem uma alta graduação +burocratica. Esse dinheiro ficou nas mãos de Alves da Veiga. + +«Escusamos dizer que não foi encontrado na busca que a policia fez. Nem +o dinheiro nem os papeis importantes, porque as gavetas foram já +encontradas tiradas dos moveis, espalhadas pelo chão e alguns dos papeis +que n'ellas ainda havia eram ou insignificantes ou rasgados.» + +[Ilustração: Actor Verdial (1891)] + + +Em summa, as _Novidades_ diziam claramente que um dos chefes da revolta +recebera alguns contos de réis e com elles se locupletara. + +Essa e outras accusações despertaram, como é natural, protestos +vehementes. Os jornaes republicanos, apesar da mordaça que o governo +lhes collocara apoz o 31 de janeiro, esforçaram-se o mais possivel por +quebrar os dentes á calumnia e apagar a serie de apodos com que a +imprensa monarchica mimoseava os revoltosos. E esse sentimento de +protesto conquistou tambem a grande maioria dos jornaes madrilenos, +porque um d'elles, o mais accentuada e tradicionalmente monarchico, +o jornal ultra-conservador a _Epoca_ fez côro com os collegas radicaes +que estygmatisaram a insidia cavilosa. + +E comprehende-se que assim succedesse. Não era crivel que o exercito +portuguez--a parte d'esse exercito que se revoltara no 31 de +janeiro--pensasse em saquear a cidade do Porto, como egualmente a +imprensa monarchica pretendeu fazer acreditar. Admittir tal hypothese +seria o mesmo que admittir que a revolta, longe de visar á proclamação +da Republica, se limitava a favorecer o roubo d'umas tantas casas +commerciaes. Narrou-o mais tarde um dos revolucionarios que conseguiu +escapar á furia dos serventuarios do regimen, exilando-se em Hespanha: + + +«Emquanto a estupida imprensa officiosa de Portugal enxovalhava de tal +modo o exercito portuguez perante a Europa toda, por um momento occupada +quasi exclusivamente do que estava ocorrendo na nossa terra, o +jornalismo estrangeiro registava, ainda com os louvores mais rasgados, +que a revolução militar do Porto não se devera a nenhum baixo mobil, não +fora propulsionada por nenhum mesquinho interesse, antes, pelo +contrario, constituira, na solidariedade moral europeia, um caso honroso +para toda a humanidade e infelizmente raro, na historia d'um movimento +politico, combinado e ultimado pelo simples prestigio das convicções. + +«E todavia a imprensa estrangeira ignorava que o traço particularmente +typico do movimento de 31 de janeiro foi o da sua essencia genuinamente +democratica; ignorava que nenhuma seducção poderia exercer em almas +populares o fascinamento das posições sociaes de elevados alliciadores, +pois que os não houve; ignorava que não sómente não existia caixa +alguma, pittoresca, estolidamente, denominada _da revolução_, mas +ainda que nem sequer o anonymo soldado recebera um real para sahir do +quartel; ignorava que na noite famosa que precedeu o acontecimento se +deixara bem assignalado que, na hypothese da victoria, nenhum dos +militares revolucionados teria a mais somenos promoção ou o mais +insignificante beneficio, de qualquer genero que fosse. + +«Em tão novas condições se consumou este movimento politico de 31 de +janeiro de 1891 que elle fará a admiração das gerações portuguezas e +nobilitará o paiz, comprehendendo-o na esphera dos povos que sabem, +podem e querem, ao menos tentam pelejar e morrer pela consecução +desinteressada d'um ideal de justiça abstracta. + +«A historia não ha-de ser commettida aos escribas da imprensa vendida +dos nossos tempos; e a historia ha-de considerar o movimento republicano +do Porto a uma altura que parece irrisorio talvez á tagarelice insensata +de certos portuguezes de hoje». + + +E tinha razão de sobejo o revolucionario emigrado. Tres dias depois de +suffocado o movimento, o presidente da edilidade portuense, n'uma nota +distribuida aos jornaes monarchicos, salientava o facto dos revoltosos +não haverem tocado no thesouro da camara emquanto occuparam o edificio +municipal. Na grande meza da sala das sessões repousaram, durante o +tiroteio entre os revolucionarios e as forças fieis, magnificos +tinteiros de prata. Pois ninguem lhes tocou, até que os empregados da +camara, uma vez liquidado o movimento, os arrecadaram em logar seguro. + +A _Tarde_, jornal de Lisboa affecto ao antigo partido regenerador, bem +se esfalfou em asseverar que a muitos dos militares presos tinham sido +encontradas libras em ouro, o que provava que na madrugada de 31 de +janeiro se fizera larga distribuição de dinheiro. Outras gazetas +insinuaram egualmente que a revolução rebentara mais cedo do que fôra +determinado pelos seus organisadores, porque um dos sargentos +compromettidos tendo defraudado a caixa do respectivo regimento em +centenas de mil réis--gastos em alliciar os subordinados--não queria de +modo algum que em 1 de fevereiro de 1891 o obrigassem a prestar contas. +Afinal, tudo isto cahe pela base sabendo-se que o unico dinheiro que +serviu realmente a pagar despezas da revolta foi fornecido ao dr. Alves +da Veiga pelo negociante portuense José Ferreira Gonçalves e não +excedeu... um conto de réis. Não se dirá, por isso mesmo, que o +movimento custou caro! + +Junte-se agora a essa quantia a de sete contos--em que se avaliou os +estragos causados pelas balas nos predios dos Clerigos, rua de Santo +Antonio e praça de D. Pedro--e vêr-se-ha que nunca se fez uma revolução +com tanta economia de numerario e tanta nobreza de procedimento da parte +dos que a levaram á pratica. + + +Mas se os revolucionarios dispenderam pouquissimo dinheiro em investir +contra o regimen monarchico, em compensação prodigalisaram os actos de +heroismo. N'outro logar d'esta narrativa, já assignalámos o ardor com +que a guarda fiscal e as tropas do 10 e do 9 sustentaram na rua de Santo +Antonio e na casa da camara as arremettidas da guarda municipal. +Devemos, no emtanto, registar dois casos typicos que a imprensa da epoca +descreveu pormenorisadamente e que qualificam nitidamente o valor dos +insurrectos. + +Um d'elles é o d'um guarda fiscal--figura de athleta--que, installado +n'uma das janellas do Café Suisso, na praça de D. Pedro, ahi se manteve +desfechando ininterruptamente a sua espingarda sobre os defensores +da monarchia e só abandonou o posto quando lhe faltaram totalmente os +projecteis. Essa janela do café ficou crivada de balas, mas o guarda +fiscal em questão nunca perdeu o sangue frio e por espaço de horas +visou, certeiro, a guarda municipal. O segundo caso é a reproducção do +primeiro e occorreu n'outra janella do estabelecimento já citado, onde +se entrincheiraram quatro estudantes. + +[Ilustração: Revoltosos presos a bordo do _India_] + +Compare-se a attitude d'essas creaturas luctando serenamente, +imperturbavelmente, pelo ideal que se tinham proposto conduzir á +victoria com o de outras que no curto espaço de tempo que durou a +revolta se bandearam primeiro com os revoltosos e logo a seguir +manifestaram a sua adhesão ao regimen monarchico. Os exemplos +d'essa cobardia moral abundam. Respigamos ao acaso n'um jornal portuense +do dia 2 de fevereiro de 1891: + + +«C... proprietario d'um armazem de moveis e L... pharmaceutico, logo que +viram o caso mal parado (o triumpho momentaneo dos insurrectos) tiraram +das frontarias dos respectivos estabelecimentos os escudos com as armas +reaes; mas depois tornaram a collocal-os, porque perceberam que a +monarchia não fôra vencida na refrega.» + + + + +CAPITULO XX + +Triste balanço: o das victimas da insurreição + + +Vinte e quatro horas apoz a liquidação do movimento, espalhou-se que o +numero de mortos na refrega não passara de doze--na sua maioria guardas +municipaes. Entretanto, na população portuense ficou durante muito tempo +a impressão de que esse numero não representava a verdade e que os +cadaveres de revoltosos sepultados nos cemiterios da capital do Norte se +tinham contado por centenas. O _Primeiro de Janeiro_, do dia immediato +ao da revolta, forneceu aos seus leitores esta lista de feridos +graves--muitos dos quaes vieram a fallecer dos ferimentos recebidos: + + +«_Recolhidos no hospital do Terço._--Manuel Canedo, soldado de +infantaria 10; Manuel Barreira, guarda municipal; Francisco Joaquim, +guarda municipal; Manuel Maria, soldado do 10; José Joaquim Teixeira, +guarda fiscal; João Manuel Gomes, guarda fiscal; Antonio Carneiro, +soldado do 18; Pedro da Rocha, soldado do 10; Manuel Cardoso, cabo +da municipal; João Nepomuceno, guarda fiscal; Antonio Pereira de +Almeida, civil; Francisco José e José Antonio Carneiro, municipaes; João +José Pereira de Azevedo Lobo e Joaquim Gomes, cabos da municipal; dr. +João Henrique da Rocha, redactor da _Luz_; Maria Custodia Alves, +costureira. Esta rapariga estava á janella da casa do sr. Henrique de +Mello quando rebentou o tiroteio e recebeu uma bala no pescoço. + +«_Recolhidos no hospital da Misericordia._ Victorino da Assumpção e +Domingos da Cunha, guardas fiscaes; Antonio Joaquim, municipal; +Bernardino Gonçalves Losa, cabo da municipal; Albino Cardoso, guarda +fiscal; Julio Cordeiro, sargento do 18; João Aleixo, corticeiro; José +Manuel da Silva Monteiro, charuteiro; Joaquim Sant'Anna, pedreiro; João +de Castro, empregado forense; Antonio Gomes Junior, alfaiate; Manuel +Pereira da Fonseca, chapelleiro; Cosme Campos Cabral, estudante; +Marianna Rosa, serviçal. + +«_Recolhidos no hospital militar._--Lemos Junior, cabo do 10; um soldado +do 9 e tres soldados da guarda municipal.» + + +Sobre o numero de mortos, dizia: + + +«_No hospital do Terço._--Um soldado da guarda fiscal. + +«_No hospital da Misericordia._--José Joaquim d'Almeida, tamanqueiro; +João de Carvalho, trolha; um desconhecido e José Gustavo Adolpho Alves +de Almeida Guimarães. + +«_Nas ruas_--Um desconhecido; Silverio d'Almeida Santos, guarda fiscal; +Taveira, 2.º sargento; Domingos Nogueira; João, entalhador e um +empregado do commercio, irmão do redactor da _Republica_ Jayme +Filinto.» + + +Evidentemente, esta lista era deficientissima. Tanto assim que d'ahi a +dias uma nota do commissariado geral da policia indicava como despojos +dos militares compromettidos no movimento: + + +«147 espingardas, 147 terçados, 1 espadim de official, 3 espadins de +musicos, 1 bainha de espada de cavallaria, 147 patronas, 176 cinturões +completos, 197 cananas, 14 cantis, 12 mochilas, 92 capacetes grandes, +parte dos quaes sem a corôa real, 13 bonets da guarda fiscal, 9 +instrumentos musicos, uma corneta, dois tambores, 39 capotes, um capote +de official, 23 jaquetas, a maior parte das quaes pertencentes a +sargentos, 173 massos de cartuchame embalado com vinte tiros cada um, +227 massos com dez tiros e uma grande porção de balas soltas.» + + +Reproduzindo esta nota, não queremos dizer com isso que cada um dos +objectos acima enumerados tenha realmente correspondido a um morto pela +revolução. A nota, em primeiro logar, expressa por uma maneira bem +flagrante a intensidade do panico que se desenvolveu ao principiar o +recontro na rua de Santo Antonio. Por outro lado, muitos dos militares +que empunhavam esse armamento recolhido pela policia, tendo conseguido +escapar á fusilaria da municipal, abrigaram-se fóra do Porto e uma +grande porção d'elles fugiu para Lisboa. Em resumo: se não foram apenas +doze as victimas do movimento republicano--como se pretendeu affirmar no +dia seguinte ao da derrota--tambem não cremos que tivessem passado de +cincoenta os cadaveres enterrados nos cemiterios. + + +No dia 3, á meia noite, correu no Porto que o regimento de infantaria 3, +aquartelado em Santo Ovidio de camaradagem com o 18--fôra para ali +horas depois de suffocada a revolta--se insubordinara e pretendia sahir +á rua dando vivas á Liberdade e á Republica. A capital do Norte tornou a +viver momentos de angustiosa espectativa. Pelo espirito da população +portuense de novo perpassou a visão d'outros cadaveres empilhados no +Prado do Repouso... A guarda municipal, prevenida dos boatos correntes, +encaminhou-se sem demora para o Campo de Santo Ovidio. Ahi, reconhecendo +que nada tinha a fazer, evolucionou em varias direcções e por fim desceu +á Praça de D. Pedro, ostentando a _pose_ irritante adequada a +_salvadores da monarchia_. De madrugada recolheu ao quartel e a cidade +recuperou o socego. + +[Ilustração: Antonio José de Almeida (1891)] + +Nos dias immediatos, ainda os cemiterios receberam os corpos de algumas +das victimas da Revolução. Tratava-se de feridos graves operados nos +hospitaes e que não tinham resistido a amputações dolorosissimas, ás +trepanações e outros trabalhos cirurgicos. A par d'essa liquidação +funebre, a policia e as auctoridades militares procediam a uma outra: a +das creaturas que se lhes affiguravam suspeitas de republicanismo. Para +mais, nas buscas realisadas em diversas casas de revoltosos haviam sido +apprehendidos documentos provando a adhesão ao movimento não só de +quasi todos os officiaes inferiores da guarnição do Porto mas de dezenas +de militares residentes n'outros pontos do paiz. E assim, a rede lançada +pelos agentes da ordem procurou abranger o maior numero possivel de +elementos accusatorios, collocando ao mesmo tempo os presos politicos em +situação de esmorecerem de animo pelo effeito do tratamento que lhes +dispensavam. + +Dil-o um testemunho insuspeito: + + +«Punge-me a triste situação em que se acham os revoltosos do 31 de +Janeiro. Aos presos apenas é dada uma triste açorda; não teem cama nem +uma enxerga ou maca, nem uma pouca de palha em que se deitem, nem uma +manta em que se embrulhem. Os que dispõem d'alguns recursos mandam ir +das suas casas roupas e enxergas, mas os restantes, que são o maior +numero, estão dormindo nas tabuas nuas, tiritando e morrendo com frio.» + + +Pelo que respeita á assistencia judiciaria foram os revoltosos mais +felizes. O curso do 5.º anno da Faculdade de Direito, n'um impulso de +vehemente generosidade, offereceu-se em massa para defender os réus, +explicando, porém, pela bocca do seu camarada dr. Lomelino de Freitas--o +porta-voz do bizarro offerecimento--que «a sua attitude não implicava de +modo algum profissão de fé politica nem approvação ou desapprovação dos +acontecimentos.» + +Os republicanos que tinham conseguido abrigar-se em Hespanha, esses, +depois de socorridos pelo governo do paiz visinho, haviam recebido ordem +de se afastar da fronteira, internando-se--exactamente o contrario do +que succedeu mais tarde, estando no poder o sr. Canalejas e tentando o +ex-capitão de artilharia Paiva Couceiro restaurar a monarchia +brigantina. + +A situação, em resumo, tornara-se difficil e penosa para todos os que, +não partilhando da subserviencia incondicional ao regimen monarchico, se +viam forçados a procurar no isolamento ou no exilio a tranquilidade que +o mesmo regimen lhes negava. O governo, no proposito firme de cortar as +azas á mais insignificante velleidade de resistencia, dissolvia os clubs +republicanos e punha a guarda municipal constantemente de prevenção. E a +sua furia contra as aggremiações democraticas attingiu taes proporções +que só n'um dia mandou fechar quatorze das que então existiam em Lisboa. + + + + +CAPITULO XXI + +A serenidade d'uns e o desalento de muitos + + +Chegado o momento da justiça militar pedir contas dos seus actos aos +individuos presos por effeito da revolta, houve o maximo cuidado, nas +regiões officiaes, em impedir que os depoimentos dos _principaes +culpados_ salientassem o condemnavel procedimento de varias +personalidades consideradas sustentaculos do throno. Procurou-se assim +dar ao grande publico, á nação inteira e até ao estrangeiro, a impressão +falsissima de que a revolta de 31 de Janeiro brotára apenas dos cerebros +de meia duzia de tresloucados, creaturas apagadas e de nullo valor +social, sem ligação com outros elementos de superior importancia. Ao +mesmo tempo, a imprensa monarchica tentou insinuar, falsamente tambem, +que a maioria dos individuos presos como revolucionarios experimentára, +ao embarcar nos navios-prisões, o arrependimento do seu gesto nobre +e patriotico e só anceiava por alijar as responsabilidades que lhe +cabiam á face das leis. + +Se é certo que no decorrer da instrucção do processo e mesmo durante o +julgamento em conselho de guerra alguns d'esses homens mostraram falhas +de animo e de coragem, devidas essencialmente á torturante atmosphera +moral que os agentes da monarchia lhes tinham creado, muitos houve--e +esses constituiram o maior numero--que evidenciaram não só incomparavel +dignidade como uma presença de espirito, uma serenidade verdadeiramente +heroicas. + +João Chagas, por exemplo, conservou uma placidez digna de registo. Dil-o +um jornal da epoca: + + +«O brilhante escriptor não afasta de si todas as responsabilidades nem +as assume todas. Acceita as que tem e não as declina, antes entende que +deve ufanar-se d'ellas. Essas responsabilidades versam principalmente +sobre o que elle escreveu e sobre o que se publicou no jornal que +dirigia: a _Republica Portugueza_». + + +E como circulasse que no seu depoimento feito perante a auctoridade +militar, o illustre pamphletario commentára acremente a attitude dubia +de diversos individuos compromettidos na revolta, o mesmo jornal a que +acima nos referimos accrescentou dias depois: + + +«É inexacto que o depoimento de João Chagas contenha censuras. Elle +julga simplesmente que é nobre que responda cada qual corajosamente +pelos seus actos. É correcto. João Chagas mantem a serenidade e a +tranquilidade dos primeiros dias. Dorme pouco em virtude d'uma tosse que +contrahiu na frialdade humida da cadeia. Será visto por um medico. Um +amigo do fogoso jornalista, desejoso de lhe provar a consideração e +a estima em que o tem, fez-lhe, por intermedio do digno director da +cadeia, alguns offerecimentos que elle agradeceu e recusou. Consta até +que affirmou, mostrando desprendimento pela vida: + +[Ilustração: Os prisioneiros a bordo] + + +--O ser condemnado pouco me importa. Estava um pouco cançado e o +governo, mandando-me prender, offereceu-me descanço por alguns annos». + + +D'uma vez, porém, a serenidade de João Chagas estremeceu ao de leve. Foi +no dia, em que já encarcerado a bordo, viu passar, a curta distancia do +local onde se encontrava, o famoso director da _Justiça +Portugueza_. Então, voltando-se para um companheiro de prisão, disse, +apontando Santos Cardoso: + +--Estamos aqui a pagar as antipathias que aquelle homem provocou... + + +E já que falamos de Santos Cardoso: o seu depoimento confiado ao +instructor do processo não correspondeu ao que se esperava do seu +aspecto energico, quasi feroz. Mostrando-se muito abatido e desanimado, +declarou que não tomára parte activa no movimento insurreccional, que +nada soubera antecipadamente do _complot_ revolucionario e que apenas +sahira á rua na madrugada de 31 de Janeiro depois de ter ouvido tocar a +rebate na egreja da Lapa. Mais tarde descera á praça de D. Pedro e +assistira na camara á proclamação da Republica. Contou, n'esta altura, +um insignificante episodio occorrido dentro do edificio municipal. A seu +lado, na sala, encontrava-se no momento da proclamação, um individuo +envolto na bandeira do Club Democratico 15 de Novembro. Esse individuo, +pretendendo deslocar-se para ir á varanda, ensarilhou o cordel da +bandeira na espingarda d'um soldado e a arma cahiu no sobrado. A +multidão, receiando que a espingarda se disparasse, afastou-se +pressurosa do local... + + +Decorridos alguns dias apoz o depoimento, a esposa de Santos Cardoso foi +visital-o á prisão. O antigo director da _Justiça Portugueza_ soffreu +tal choque com essa visita, que chorou desabaladamente, lamentando a sua +situação e pedindo a todos que d'ella se apiedassem. «Ignorava, disse, a +responsabilidade em que incorria, tomando parte no movimento; do +contrario, não o teria feito». E quando teve conhecimento das +declarações de Homem Christo, prestadas á policia, declarações que +relatavam minuciosamente os seus trabalhos na preparação revolucionaria, +então o seu desanimo tornou-se mais profundo. Succumbiu. + + +O jornalista Eduardo de Sousa, que collaborara na _Republica Portugueza_ +sob o pseudonymo de _Gualter_, esse, pretendendo fazer um depoimento +revelador d'uma virilidade intemerata, lançou a policia na peugada de +varios republicanos egualmente implicados no _complot_. A imprensa +noticiosa da epoca chegou a asseverar que a defeza desse reu servira +simplesmente a comprometter diversas personalidades, algumas das quaes +tinham sido presas ao mesmo tempo que elle. Cremos, porem, que muito se +exagerou a tal respeito e que a verdade do caso reside no proposito de +atrevido exhibicionismo que acima registamos. + + +O sargento Abilio, n'uma carta que escreveu ao juiz affirmou +desassombradamente: «sou culpado, mas ha superiores meus mais culpados +do que eu». + + +Depoimento de Dyonisio Ferreira dos Santos Silva: «Sou republicano desde +que me conheço, mas mais accentuadamente desde 11 de janeiro de 1890; no +emtanto, nunca fui socio de nenhum club democratico e nunca privei com +os homens dirigentes do partido republicano. Não sabia da revolta que se +preparava para 31 de janeiro e não podia, portanto, ter alliciado para +ella militares ou paisanos. Soube da sublevação horas antes de rebentar, +porque era esse o assumpto de todas as conversas nos cafés, +restaurantes, etc. Attribuo a minha prisão ao facto de ser pouco +conhecido na policia...» + +Tambem declarou ter sociedade na empreza do jornal _Republica +Portugueza_; fôra presencear, como curioso, os successos do dia 31, mas +não tomára a menor parte n'elles, e sentia-se, por isso mesmo, +tranquillo, não receiando o resultado do seu julgamento. + + +Declarações do actor Verdial:« Não alliciei ninguem para a revolta; +sabendo que o movimento estava para rebentar, fui ao Campo da +Regeneração, onde collaborei nos episodios que ahi occorreram. +Parlamentei com o coronel Lencastre, commandante de infantaria 18, e +entrei depois na Camara Municipal, onde me conservei até o edificio ser +atacado pelas tropas monarchicas. Só me pesa uma cousa: a lembrança de +minha mulher e dos meus filhos. Comtudo, aguardo sereno, a sentença do +tribunal.» + + +Do abbade de S. Nicolau: «Tinha por costume recolher a casa todos os +dias, ás 7 da tarde, sendo falso que conspirasse na sombra contra as +instituições vigentes; para elle eram boas todas as formas de governo, +desde que os homens se inspirassem nos verdadeiros principios da moral e +da justiça. Desilludido com respeito aos processos governativos até aqui +seguidos, a Republica era para elle uma esperança, mas não a queria por +meio da anarchia; os comicios realisados no theatro do Principe Real, em +que figurara, deram-lhe certa notoriedade, sendo essa a origem das +desventuras por que estava passando. Não era homem de acção, porque +d'isso o impedia o seu caracter sacerdotal. Tendo ouvido falar no dia 30 +a alguns individuos na revolta que se ia dar, sobresaltara-se com a +noticia e recolhera a casa. Na manhã seguinte, sahira para fins +religiosos, ouvindo então falar na reunião das tropas na praça de D. +Pedro. Ao avistarem-n'o, muitos populares ergueram-lhe vivas. Entrara no +edificio da camara, mas ao vêr que ali reinava a anarchia, afastara-se +do local, encaminhando-se novamente para o seu domicilio. Tinha +confiança em que justiça lhe seria feita...» + + +Alvarim Pimenta falou d'este modo: «Nunca commungara nos segredos dos +dirigentes do partido democratico; como um dos societarios da empreza +litteraria em que exercia o logar de administrador da _Republica +Portugueza_, fôra presencear os factos occorridos no Campo da +Regeneração e paços do concelho; mas não assistira ás reuniões +preparatorias da revolução ou se envolvera nos acontecimentos que se +deram.» + + +Do aspirante a medico naval Gomes de Faria, accusado de ter tentado +revoltar a guarnição da corveta _Sagres_: «Não tivera o minimo +conhecimento dos preparativos da revolta, pois não estava pessoalmente +relacionado com os individuos indicados como promotores d'ella; nunca +assistira nem fora convidado a assistir a reuniões preparatorias para a +sedição. Na madrugada de 31 de janeiro fora a sua casa o 1.º sargento +Abilio de caçadores 9 que o convidára a um passeio até Massarellos, afim +de ambos visitarem a corveta _Sagres_. Estranhara a proposta, recusára a +principio, mas, instado, terminára por acceder. Quando ia a sahir de +casa, acompanhado do sargento Abilio, este dissera-lhe que era melhor +vestir o uniforme de aspirante a medico naval, para ter mais facil +ingresso na _Sagres_. Achara natural a observação e vestira o uniforme. +Chegados ambos a Massarellos, dirigiram-se para bordo da corveta. Só +n'essa occasião é que o sargento Abilio lhe dissera que se tratava de +sublevar a tripulação para adherir á revolta que ia rebentar. Hesitou +quando soube o papel que lhe destinavam, mas sendo republicano convicto, +embora não fosse partidario dos meios violentos, não tivera forças +para retroceder; por isso fôra a bordo da _Sagres_ tentar, mas sem +resultado, sublevar a guarnição. Suppozera sempre não ter incorrido em +grande delicto; por esse facto não se homisiara, apesar de o terem +aconselhado a fazel-o.» + + +Por ultimo, o depoimento do commissario geral da policia: «Estava na +Praça de D. Pedro e viu alli chegarem os revoltosos. Receiando que elles +o prendessem, refugiou-se n'uma casa em obras proximo do restaurante +Camanho, onde trocou o fato pela blusa d'um operario. Depois subiu mais +um andar e d'ahi presenceou a lucta entre os republicanos e as tropas +fieis. Parte dos revoltosos destroçados na rua de Santo Antonio veiu em +debandada para a praça de D. Pedro, formando aqui tres pelotões +commandados pelo capitão Leitão e recolhendo mais tarde á casa da +camara. Tambem viu a fuga precipitada d'um troço de cavallaria da guarda +fiscal em direcção aos Clerigos e recorda-se dos nomes de varias pessoas +que se envolveram no movimento.» + + +Escusamos dizer que o commissario geral da policia do Porto não se fez +rogado para indicar ás auctoridades militares esses nomes, contribuindo +assim com a sua solicitude para augmentar o numero de presos existentes +a bordo dos navios fundeados em Leixões. + + + + +CAPITULO XXII + +O julgamento dos revoltosos + + +Vamos terminar. Mas, antes de o fazermos, é de necessidade registar +algumas notas colhidas no decorrer dos conselhos de guerra que +sentenciaram os revoltosos. Ellas darão aos leitores d'esta modesta e +desataviada narrativa uma ideia clara da forma como se procedeu no +julgamento de todos esses homens e da attitude de alguns d'elles em +momento tão critico e tão grave. + +[Ilustração: Dr. Affonso Costa (1891)] + + +_Depoimento do 1.º sargento Abilio:_ + +«Narrou pormenorisadamente todos os incidentes que caracterisaram a +revolta e perguntado por fim sobre as intenções com que entrára no +movimento, respondeu: + +«--Sim, entrei no movimento para ajudar a depôr o rei D. Carlos, porque +sou republicano e tenho muitas razões para o ser. Não sou republicano de +evolução, porque, por ella nem d'aqui a um seculo, julgo, teremos a +republica em Portugal. O que reconheço é que fomos enganados, pois vi +muitas adhesões escriptas e sabia de outras feitas verbalmente e de +reuniões de camaradas meus e de outros de superior graduação. + +«Sobre a sua prisão conta que foi o ultimo a retirar da casa da camara, +quando já não tinha munições. Refugiou-se n'um predio da rua do +Almada. Quando ali appareceram soldados da municipal a perguntar se +lá estava algum militar, o dono da casa perguntou-lhe o que queria que +dissesse. Elle apresentou-se. Os municipaes cruzaram ainda armas contra +elle, apesar de o verem só e desarmado. Deu-se á prisão. + +«O auditor insistiu com o reu para que declarasse quaes eram os +militares que tinham relações com os auctores do movimento do Porto. O +reu respondeu simples, mas dignamente: + +«--Não senhor, não digo... + +«E acentuou: + +«--Não quero acusar ninguem; quanto a mim, digo que foi da melhor +vontade que entrei no movimento e não declino a minha responsabilidade. +Na parada do quartel fui eu quem primeiro levantou um viva á Republica». + + +_Depoimento de Eduardo de Sousa (aspirante a medico naval):_ + +«Declarou francamente ser republicano e repudiou por completo o seu +depoimento escripto que lhe foi arrancado pela policia á força de ardis +e por outros meios egualmente condemnaveis. Declarou mais ter dado a +nota alegre na ceia que houve no café Suisso na vespera da revolta, +assim como outros deram a nota philosophica, etc. Quanto a essa ceia, +explica que era seu costume e dos demais convivas cear ali todas as +noites. Accrescentou que acompanhára o movimento das tropas na qualidade +de redactor da _Republica Portugueza_ E não na de _reporter_ como lhe +chamaram». + + +_Extracto da sessão do 2.º conselho de guerra (8 de março de 1891)_: + +«... A parte mais interessante foi o promotor requerer acareação entre o +tenente de cavallaria 6, Vaz Monteiro, do destacamento aquartelado +no Porto, com o reu Thadeu Freitas, sargento de infantaria 10. Na +audiencia de hontem, Thadeu disse que o referido tenente affirmára ao +tenente Coelho que o esquadrão estava prompto a sahir para acompanhar os +revoltosos. Chamado o tenente Vaz Monteiro, este negou ter dito +semelhante cousa. Acareado com o sargento Thadeu continuou negando a pés +juntos. Thadeu confirmou, acrescentando que o tenente Vaz Monteiro +pedira senha ao tenente Coelho. + +«Acareados ambos com este reu, Coelho disse não se recordar de +semelhantes palavras. Falara no Campo da Regeneração com o tenente Vaz +Monteiro, mas este apenas lhe observara: «Manuel, vae-te embora». Nada +mais. O sargento Thadeu disse que era verdade tudo que tinha affirmado e +que se o tenente Coelho dizia não ter ouvido as palavras do tenente Vaz +Monteiro não era porque as não ouvisse. O que o levava a proceder assim +era o seu cavalheirismo e a nobreza do seu bello caracter, que não +queria comprometter ninguem. Que bem sabia que o tenente Coelho era um +homem de honra e por isso comprehendia a sua negativa. + +«O promotor requereu com urgencia auto de noticia das declarações +cathegoricas do sargento Thadeu para as enviar ao quartel general, +segundo o seu dever, a que não podia faltar. O incidente causou +impressão, sendo todos concordes em elogiar o procedimento do tenente +Coelho, que a ninguem quer comprometter». + + +_Depoimento de João Chagas:_ + +«Que o artigo da _Republica Portugueza_ sob o titulo _Terceira +meditação_ era seu e que o artigo que se seguia a esse o não era; sabia +bem de quem era, mas não o dizia. De resto, sendo elle director do +jornal, folgava em poder declarar que assumia, inteira e completa, +toda a responsabilidade dos artigos alli publicados. Inquirido sobre o +facto de ter incitado á revolta, declarou ter incitado á revolução que +não se dera, porque o movimento de 31 de janeiro não fôra um erro +politico, mas um erro de gramatica, um erro de palmatoria. Respondendo á +pergunta--se os artigos do seu jornal eram attentatorios das +instituições vigentes--disse que os membros do tribunal bem melhor do +que elle poderiam e deveriam saber de semelhante cousa. + +«Era republicano e, como tal, não poderia, está bem visto, defender as +instituições que julgava não convirem á felicidade da sua patria. Uma +vez convencido d'isto, não recuaria deante de qualquer obstaculo ou +contratempo; a sua convicção, arreigada pela força da experiencia da +sociedade portugueza, era pela mudança do systema de governo. No +movimento de 31 de janeiro não tomara parte pelo motivo de estar preso +na cadeia da Relação, por causa da primeira querella do seu jornal, +depois da lei restrictiva de Lopo Vaz contra a imprensa democratica. + +«Todas as suas declarações, feitas com um tom de franqueza e +sinceridade, proprias da sua nobreza de caracter, foram escutadas +attentamente e produziram sensação. Ao findar o seu interrogatorio, +travou-se entre elle e o auditor o seguinte dialogo: + +«--Teve conhecimento antes, do movimento que havia de effectuar-se no +dia 31? + +«--Sim, senhor. + +«--Pode dizer-me, quem lh'o disse? + +«--Não quero». + + +_Depoimento de Homem Christo_: + +«Contrariara o movimento, como provava pelo artigo dos _Debates_ e pela +circular do Directorio em que figura o seu nome, pela sua ida ao +Porto para dissuadir Santos Cardoso e pela descompostura que por esse +motivo recebeu do mesmo Santos Cardoso. + +[Ilustração: Conselho de guerra a bordo do transporte _India_] + +«A sua qualidade de republicano d'alma e coração não era cousa que o +impedisse de vêr as cousas como ellas realmente são e lhe não +permittisse discernir o que convém á Patria e ao partido do que não +convém nem a uma nem a outro, e antes é prejudicial a ambos. A paixão +politica não o obceca a tal ponto». + + +_Depoimento do capitão Leitão:_ + +«--Em abono da verdade, disse o réu, e porque não me soffre o animo vêr +que um innocente está envolvido no movimento revolucionario preciso que +o tribunal tome conhecimento de que o espingardeiro de infantaria 10 não +tomou a minima parte na revolta. A accusação que sobre elle impende é +falsa. Reconheci perfeitamente todas as praças da minha companhia e +o espingardeiro não estava ali no acto da sublevação. + +«A passagem mais curiosa do depoimento é, porém, a seguinte, com +referencia ao coronel Lencastre de Menezes: + +«--O sr. coronel disse-me então: «Obste a que entre mais gente no +quartel e faça sahir os populares que estão dentro». Cumpri essa ordem e +depois de a cumprir voltei para junto do sr. coronel, ouvindo +distinctamente que elle dizia aos paisanos com quem falava: «Vão +descançados, que eu lá estou ás seis horas. Dou-lhes a minha palavra de +honra que não hostiliso o movimento.» Deram-se então muitos vivas ao +coronel do 18. Isto seriam quatro horas e um quarto, o maximo quatro +horas e meia. O coronel accrescentou ainda: «Preciso ordenar certas +providencias para guardar os reclusos do presidio e o cofre. Os senhores +já lá teem duas companhias e eu tenho pouca gente disponivel...» + +«Eu entrei no movimento militar, continuou o capitão Leitão, por muitas +circumstancias e não foi só a ideia de ser ou não republicano que em mim +imperou; foi só pelo bem do meu paiz que trabalhei. Não sou monarchico, +mas já o fui. Comecei a carreira militar apoiando o partido regenerador +e em 1874, nas suas fileiras, procurei ser util ao meu paiz. Tambem +militei no partido progressista, no qual julguei antever uma regeneração +da minha patria. Dentro em pouco, percebi que tanto um como outro +d'esses partidos nada faziam em bem da nação. Quasi todos os annos +promettiam vida nova; mas não passavam d'isso; eram tudo apparencias +enganadoras. + +«Afinal tudo isto me chegou a fazer crer e a convencer de que todos +nós--o paiz--estavamos fóra da lei e que eu, estando o paiz fóra da lei, +o estava egualmente. Eu não posso permittir nem admittir que a lei +seja por degraus. Eu julgo a lei superior a tudo e a todos e, portanto, +não admitto irresponsabilidades a ninguem. Eu, como capitão, aquelle +como coronel e este como general, todos teem deveres e obrigações e são +responsaveis pelo seu cumprimento. Ha, porém, uma unica excepção--o que +prova que a nossa lei não é egual para todos, (_exaltando-se_) não +é!--Ha um unico responsavel é o rei! + +«Eu sempre tive um odio profundo ao inglez--desde que me conheço +(_exaltando-se_): os jornaes disseram que eu estava desanimado, mas não +ha tal: é mentira! Tinha um tio que se bateu contra os inglezes, +morrendo de 101 annos de edade. Como todos os velhos militares, gostava +de narrar os seus feitos ou os dos seus camaradas. Com as suas +historias, fez-me elle conceber esse odio, narrando-me algumas das +infamias e torpezas da tal raça. O que me custava mais é que, depois do +_ultimatum_, não terminassem ainda com essa alliança. + +«O que eu queria e quero é um governo que traga a felicidade do paiz, +que tão humilhado está. Embora preso e vilipendiado como estou, espero +ainda a redempção. Considerar-me-hei feliz, se, com o que fiz, concorrer +de alguma forma para o bem da patria. Não receio nem temo o castigo: o +que fiz foi o principio de alguma cousa. Ficarei satisfeito, serei +feliz, se a semente, fructificar. No entretanto, nada receio, além de +que conto não cumprir a pena a que me condemnarem.» + + +Para se avaliar da maneira atrabiliaria como se lançou á conta de +dezenas de individuos as responsabilidades da sublevação, basta +reproduzir alguns trechos dos discursos de defeza proferidos nos +conselhos de guerra: + + +_Do Dr. Pires de Lima:_ + +«N'uma das guerras da religião foi cercada pelos catholicos uma cidade +protestante. Renderam-se os sitiados; e, conforme os usos barbaros +d'esses calamitosos tempos foram todos condemnados á morte pelos +invasores. Como na cidade tomada havia tambem muitos catholicos, +perguntaram ao legado do papa como os haviam de distinguir dos +huguenotes. «Matem-nos todos, respondeu o catholico varão; Deus lá os +separará.» O mesmo se fez agora. Fôra visto qualquer individuo +republicano na camara ou no campo da Regeneração? Prendam-n'o e +mandem-n'o para bordo. Mas elle está innocente: É o mesmo. O tribunal lá +os separará.» + + +_Do capitão Fernando Maia:_ + +«Acho extraordinario o que se fez aos soldados que ficaram no quartel +quer de guarda, quer nas casernas. Foi um desvairamento singular a +maneira como se procedeu. Que tumultuaria maneira de apreciar +criminalidades e avolumar o numero dos presos! Viu-se aqui, no tribunal, +bem clara e positivamente como tudo isso se fez. Prendeu-se a esmo. +Quantos estavam no quartel e não cahiram nas boas graças, foram presos e +de mais a mais ao engano, dizendo-se-lhes que era para averiguações, +ainda com receio de que a sua justiça valesse mais do que a disciplina! + +«Onde está a nota dos que se apresentaram voluntariamente? Onde a +d'aquelles que nenhuma parte tomaram no movimento? Onde a relação das +armas limpas e intactas? Onde a d'aquelles que tinham licença para +dormir fóra? Se até appareceu aqui quem negasse a existencia d'essas +licenças, quando existem n'este tribunal os documentos officiaes que as +confirmam! Comprehende-se a irritação natural dos chefes contra os +subordinados rebeldes, mas o sentimento da justiça, e a natural +piedade para com os vencidos deviam preponderar para que se tratasse de +indagar devidamente as condições especiaes em que cada um se encontrava». + + +_Do mesmo official referindo-se a muitos dos acusados:_ + +«Reus! É quasi um sarcasmo qualifical-os assim, a todos esses que ahi +estão submissos, respeitosos e obedientes, a todos esses cujas +declarações sinceras, ingenuamente sinceras, commoveram profundamente +quantos as ouviram. + +«E os sargentos? Apparece como principal figura o sargento Abilio. Todos +o ouviram aqui: todos apreciaram a franqueza, a nobreza das suas +declarações. Podia falar, podia comprometter muita gente; podia revelar +cumplicidades graves. A sua generosidade levou-o a repudiar até a defeza +primitivamente apresentada, comquanto referindo inteira verdade. + +«E como é nobre o seu procedimento acerca dos soldados! «De nada sabiam, +disse elle: foram levados por mim: conheciam-me e obedeceram-me». Eis o +segredo de tudo quanto se passou. Essa influencia deviam tel-a os +officiaes; não é momento agora para apreciar as razões porque a não +tinham e tirar d'ahi as legitimas consequencias». + + +Os quesitos referentes aos reus e submettidos aos officiaes julgadores +foram em grande numero. Damos apenas os seguintes, relativos ás diversas +classes em que se dividiu a natureza dos crimes: + +_Para os reus civis:_ + +«O crime da rebellião de que o reu é accusado no libello por, na +madrugada do dia 31 de janeiro do corrente anno, com outros individuos +e muitos militares dos corpos da guarnição da cidade do Porto e +outros militares, haver tentado destruir a fórma de governo +monarchico-representativo, pela qual é regida a nação portugueza, +apoderando-se do edificio da Camara municipal da mesma cidade, de uma +das varandas da qual foi proclamada a Republica e até lida uma lista dos +membros do governo provisorio, está ou não provado? + +«A cumplicidade no crime de rebellião de que o reu é accusado no +libello, por haver por meio de propaganda em logares publicos +directamente aconselhado ou instigado a execução do mesmo crime, +consistente em se haver tentado destruir a fórma de governo +monarchico-representativo pelo qual é regida a nação portugueza, crime +este praticado na manhã de 31 de janeiro do corrente anno, em que os +meus auctores, apoderando-se do edificio da camara municipal da mesma +cidade, chegaram a proclamar a Republica d'uma das varandas do mesmo +edificio e a ler uma lista dos membros do governo provisorio, sendo que +sem esse conselho e instigação podia ter sido commettido o crime, está +ou não provado?» + +_Para os réus militares:_ + +[Ilustração: Tumulo das victimas no cemiterio do Repouso, no Porto] + +«O crime de revolta militar de que o réu é accusado no libello por, no +dia 31 de janeiro do corrente anno, cerca das 3 horas da manhã no +quartel d'aquelle regimento, na cidade do Porto, tendo sahido com outros +militares do mesmo regimento, em numero muito superior a quatro, das +respectivas casernas, desordenada e tumultuariamente, e tendo com os +mesmos militares, sem preceder toque previo, pegado nas suas armas e sem +auctorisação entrado em fórma, de commum concerto, se haver recusado a +obedecer as ordens do seu commandante, o coronel do regimento que os +intimou a dispersar, e sahindo depois do mesmo quartel incorporado com +outros em numero excedente a oito, sob o commando de alguns sargentos e +depois do alferes Augusto Rodolpho da Costa Malheiro, que se +lhes reuniu junto á guarda da cadeia da Relação, onde, com outras forças +revoltadas, persistindo na desordem e commettendo violencias, não haver +dispersado á voz dos superiores Fernando de Magalhães, tenente-coronel +sub-chefe do estado maior da divisão e José Maria da Graça, major da +guarda municipal, está ou não provado? + +«O crime de revolta militar de que o réu F... n.º... de matricula e... +da companhia do batalhão n.º 3 da guarda fiscal é accusado, por têr na +madrugada de 31 de janeiro ultimo, cerca das 3 horas da manhã, sahido na +cidade do Porto, com muitos outros militares, todos armados, para a rua, +desordenada e tumultuariamente, e ter desobedecido a um dos seus +legitimos chefes, que o exhortou a entrar na ordem e seguir o caminho +legal: e ainda porque, juntando-se com muitos outros revoltosos, fez uzo +das armas contra tropas fieis, comettendo violencias e não despersando +ás intimações de seus legitimos superiores, persistindo na +desordem--está ou não provado?» + + +Antes de serem lidas as sentenças aos accusados, o capitão Leitão teve +ensejo de usar novamente da palavra--o presidente do tribunal +perguntara-lhe se tinha mais alguma cousa a allegar em sua defeza--e disse: + +«--Eu, infelizmente, sendo o principal accusado sou o unico a quem não +foi permittida a defeza. A minha fé, porém, está de tal fórma arreigada +que não ha nada que a possa abalar. A fé desterra o medo, abala os +tyranos e vence. O que se passa commigo é uma monstruosidade e n'isto +sirvo-me das proprias palavras do sr. promotor. O sr. auditor, como +homem de brio, disse, quando aqui se tratou da questão da minha defeza, +que desde o momento em que o meu defensor (o quintanista de direito +Lomelino de Freitas) apresentasse documentos que o auctorisassem a +advogar, na conformidade com o que dispõe o regulamento de 26 de +dezembro de 1888, seria admittido. + +«V. Ex.ª (_dirigindo-se ao auditor_) devia ter esclarecido o conselho de +guerra sobre este assumpto. É verdade que tive defeza que agradeço ao +sr. dr. Alvaro de Vasconcellos. Essa defeza não foi engeitada mas foi +emprestada. O illustre advogado empregou todos os esforços, embora não +tivesse em seu poder muitos dos apontamentos que possuia o sr. Lomelino. +O sr. dr. Vasconcellos disse que se achava coacto. Eu o estou egualmente +e protesto contra a perseguição que se me faz. Cortou-se-me a defeza, +apesar do meu defensor apresentar documentos legaes: aqui decidiu-se que +todos os advogados podessem defender os seus constituintes, desde o +momento em que apresentassem os necessarios documentos provando estar +para esse fim habilitados. Todos apresentaram esses documentos; uns mais +cedo, outros depois. Como o meu defensor não podesse apresentar logo os +seus documentos, resolveu-se que o sr. dr. Alvaro de Vasconcellos +tomasse a minha defeza até que elle os apresentasse. N'essa occasião, o +sr. promotor declarou que desejava dar a maior latitude á defeza e que +por isso, seria acceite o defensor que eu escolhera, logo que se +apresentasse devidamente auctorisado. + +«Chegou o dia dos debates: o meu defensor apresenta documentos +devidamente authenticados, de fórma a ninguem os poder contestar e +negam-me a defeza! Admiro que o sr. promotor, assistindo a tal facto e +em vista da sua anterior declaração, não protestasse immediatamente +contra a violencia de que eu era victima. + +«Estou coacto e apello, não para o conselho, que não me pode merecer +confiança, mas para a imprensa, para que esta faça demonstrar bem +alto este meu protesto. Apesar de tudo, a minha fé fica firme, +porque é sincera; ninguem a póde ferir. O que commigo se passa é +simplesmente odioso. Eu continuo incommunicavel, quando é certo que o +sr. auditor tinha levantado a minha excommunhão. Eu chamo-lhe assim, +porque isto não é mais que uma excommunhão. O eu continuar +incommunicavel é uma monstruosidade, como afinal, é tudo isto, segundo o +proprio sr. promotor o declarou. Eu ainda sou official, tenho direitos +que ninguem póde contestar. Estou coacto, tendo defeza emprestada, +quando eu só depositava confiança no defensor que escolhera. Eu tenho a +fazer uma referencia. O sr. promotor atirou umas pedradas contra o meu +regimento, que Deus haja, por quanto infanteria 10 já não existe. V. +Ex.ª (_dirigindo-se ao promotor_) disse que nós fôramos cobardes... + +«_O promotor_--Eu não disse isso... Não dou mais explicações porque não +posso discutir com V. Ex.ª. O senhor póde apresentar novos argumentos +para a sua defeza e nunca discutir as minhas palavras. + +«_O capitão Leitão_--Não quero discutir as palavras de V. Ex.ª Não +posso, porém, admittir que me chamem cobarde. Se não me deixam defender, +dêem-me ao menos o direito de protestar. Nós iamos em caminho do quartel +general... + +«_O promotor (interrompendo)_--Eu não me referi nunca ao sr. capitão +Leitão. Referi-me á defeza; e demais não tenho que dar satisfações do +que aqui disse. + +«_O capitão Leitão_--Eu então termino mais depressa. Quando me chegar a +minha vez, eu appellarei para tudo e até para a imprensa, para se +conhecer bem que não tive defeza, e desde já protesto contra todas as +violencias que se me fizeram». + +Outro protesto não menos vibrante reproduzido na imprensa republicana: + + +«Em nome dos republicanos prezos a bordo do vapor _Moçambique_, +pedimos-lhe o favor de protestar perante o publico contra a ultima +violencia que se está commettendo comnosco na demora injustificada, e +por todos os motivos arbitraria, da leitura da sentença do primeiro +conselho de guerra. Sujeitos a todos os vexames, os officiaes militares +submettidos a um regimen contrario á lei e attentatorio da sua +dignidade, os prezos civis conduzidos como assassinos e salteadores, em +carros cellulares desde a Relação até Massarellos, e a pé, no meio d'uma +escolta, desde a Foz até Mattosinhos, depois de terem corrido graves +riscos na barra do Porto a bordo do vapor chamado _D. Luiz_, com um +tratamento vergonhoso na 2.ª camara do vapor _Moçambique_, apezar de nos +exigirem a cada um uma quantia sufficiente para um tratamento regular, +só nos faltava que o governo conservasse por tantos dias, como conserva, +suspensa a leitura da sentença do tribunal que nos julgou, sob o +pretexto ridiculo ou comico do receio de manifestações populares. + +«O paiz avaliará um governo que não tem força para fazer julgar em terra +uns centos de accusados politicos e, por esse motivo, os conduz +violentamente para bordo de varios navios ancorados n'um porto que só +por cumulo d'irrisão se pode denominar «porto de abrigo», onde as +tempestades desencadeadas teem produzido os estragos que se conhecem e +posto em perigo imminente a vida de tantos homens, muitos dos quaes os +proprios accusadores officiaes declararam «innocentes» durante a +discussão da causa! O paiz julgará da força e do prestigio d'um governo +que conserva, durante oito dias, um tribunal em sessão permanente e +«secreta», só porque receia a discussão publica e as manifestações do +povo em cima d'uma sentença que o proprio governo vem declarando ha +muito ser a sentença mais levantada e mais patriotica de quantas se +poderiam lavrar e pronunciar na nossa terra. + +«O paiz que julgue isso tudo. Nós protestamos, com toda a força do nosso +direito e da nossa justiça, contra a ultima violencia que se comette +comnosco. + +«A bordo do _Moçambique_, 20 de março de 1891.--_João Paes Pinto_, +abbade de S. Nicolau; _João Chagas_; _Francisco Christo_.» + + +Por fim sempre appareceram as decantadas sentenças. Como se verá pelo +extracto que damos a seguir nada tiveram da _elevação_ e do +_patriotismo_ apregoados pelos defensores do regimen monarchico e antes +se caracterisaram por uma manifesta desegualdade na applicação das +diversas penas. + + +_No 1.º conselho de guerra:_ + +Santos Cardoso, condemnado a 4 annos de Penitenciaria seguidos de 8 de +degredo; 1.º sargento Abilio e 2.º sargento Galho, 6 annos de +Penitenciaria; João Chagas e 2.º sargento Manuel Nunes, 4 annos de +Penitenciaria e na alternativa de 6 annos de degredo; 2.º sargento +Castro Silva, 3 annos e 4 mezes de prisão maior cellular; 1.º cabo +Galileu Moreira e o actor Miguel Verdial, 2 annos de Penitenciaria; +Eduardo de Sousa, 2 annos de prisão correcional; Felizardo de Lima, +Amoinha Lopes e Manuel Pereira da Costa, 18 mezes de cadeia; 8 cabos, 1 +corneteiro e 32 soldados, 3 annos de deportação militar; 8 cabos, 3 +corneteiros e 23 soldados, 3 annos e 6 mezes de deportação; 1.os cabos +Arthur Carneiro e Rosas Pinto, 4 annos de deportação; o soldado Albino +Rodrigues e os corneteiros Jacintho Duarte e Sousa Vaz, 5 annos de +deportação. + + +_No 2.º conselho de guerra:_ + +Capitão Leitão, 6 annos de Penitenciaria, seguidos de 10 de degredo; +tenente Coelho, 5 annos de degredo; sargentos Joaquim Pinheiro, Thadeu +de Freitas, Pinto Villela e Hermenegildo Silva, 4 annos de +Penitenciaria; sargentos Raymundo de Carvalho, Alcoforado e Antonio +Maria, o musico Eduardo Correia, 3 aprendizes de musica, um mestre de +corneteiros, 12 cabos e 45 soldados, 3 annos de degredo; sargento Nunes +Folgado, 4 annos de Penitenciaria; sargentos Correia Mendes, Rodrigues +da Silva, Pinto Gomes, Botto Machado, Joaquim Moutinho, os musicos +Eduardo Silva, José Silverio, Eduardo Fortuna, Joaquim da Rocha, Manuel +Correia, Aurelio Silva, Jayme Lopes, o aprendiz Costa Rebello, 17 cabos +e 48 soldados, tambem 3 annos de degredo; 1.º cabo Thomaz Bastos, 5 +annos de degredo; 2.os sargentos Alexandre de Figueiredo e Vasconcellos +Cardoso, 4 annos de Penitenciaria. + + +_No 3.º conselho de guerra:_ + +Sargentos Guilherme Rocha, Miranda de Barros, Pinho Junior e Alfredo +Fernandes e cabo João Borges, 4 annos de Penitenciaria, seguidos de 8 +annos de degredo; 2.os cabos Ferreira Pires e Felicio da Conceição, 4 +annos de Penitenciaria; 1 cabo e 5 soldados da guarda fiscal, 18 mezes +de prisão militar. + + +De todos os revoltosos condemnados á prisão maior cellular, apenas um, +cremos nós, o cabo Salomé, da guarda fiscal, chegou realmente a ser +internado na Penitenciaria de Lisboa. Os outros, como nas suas sentenças +havia a alternativa de uns tantos annos de degredo, foram +espalhados pelos presidios ultramarinos. D'um d'estes se evadiu mais +tarde João Chagas, aproveitando o concurso dedicadissimo d'um official +da marinha mercante portugueza. A evasão do illustre escriptor revestiu +pormenores rocambolescos. Indo parar a uma colonia franceza da Africa +Occidental, de lá se transportou a Paris onde viveu algum tempo na +intimidade doutros revoltosos emigrados. Breve, porém, sentiu a +nostalgia da patria e um bello dia abalançou-se a regressar ao Porto, +onde a espionagem policial o descobriu e o prendeu... + + +Agora que já decorreram muitos annos sobre os episodios que constituiram +a revolta de 31 de janeiro, não nos furtamos ao desejo de relembrar como +a classificaram então as individualidades que eram o sustentaculo do +throno. Se a revolta houvesse triumphado, por certo a linguagem +empregada teria sido muito outra. Mas não triumphou e a arrojada +tentativa d'um punhado de valentes foi assim qualificada: + + +«...lamentaveis acontecimentos que um bando de ambiciosos sem escrupulos +promoveu e por quem, infelizmente, alguns homens que vestiam a nobre +farda do exercito portuguez se deixaram arrastar n'uma lucta fratricida +contra os seus camaradas fieis, faltando ao seu sagrado juramento de +soldado e á sua nunca desmentida lealdade e disciplina, commettendo um +verdadeiro crime de lesa-patriotismo...» + + +Isto appareceu n'um documento official--o elogio tributado pelo general +da divisão do Porto ás praças da guarnição da cidade que não haviam +tomado parte na revolta. Ao mesmo passo, e tambem em documento +official, dirigia-se estas amabilidades á guarda pretoriana: + + +«Mais uma vez, a guarda municipal do Porto deu provas da sua +inquebrantavel lealdade, disciplina, bravura e coragem nunca +desmentidas. O dia de hontem (31 de janeiro) foi muito trabalhoso e de +grande risco para todos, mas foi um dia de gloria para esta guarda. A +ella, a mais ninguem, pode dizer-se sem receio de que alguem possa vir +affirmar o contrario, se deve a suffocação da revolta, que os corpos da +guarnição d'esta cidade, esquecidos dos seus deveres de honra, do +juramento que prestaram, e do que devem á nossa querida patria e á +dignidade propria, levaram a effeito, intentando derrubar as +instituições que felizmente nos regem e os poderes legalmente +constituidos, reconhecidos e respeitados pela grandissima maioria da +nação. Foi um acto da maior indisciplina que pode dar-se na familia +militar; ainda bem, porém, que outros militares fizeram baquear os +revoltosos, e certamente um rigorosissimo castigo cahirá sobre elles e +os fará então arrepender, se já não estão arrependidos, da erradissima +acção que praticaram». + + +Por outro lado, as camaras municipaes como que obedecendo a um _mot +d'ordre_ superior, felicitaram a monarchia pela victoria obtida e uma +d'ellas, em mensagem de maior requinte litterario, expressava-se d'este +modo: + + +«_Senhor._ Reconhecendo que as sociedades, obedecendo ás leis +biologicas, tendem a ser successivamente modificadas na sua organisação, +mas attento o grave e critico momento historico que a nossa querida +patria está atravessando, profundamente commocionada pelos irreflectidos +e criminosos acontecimentos que em 31 de janeiro findo enlutaram a +cidade do Porto e o paiz inteiro, a camara municipal d'este concelho, +interprete dos sentimentos que animam os povos que o constituem vem +depôr junto de vossa magestade como representante d'um paiz que caminha +na vanguarda das aspirações sociaes, o seu preito de dedicação e +fidelidade ao regimen monarchico e de felicitação a vossa magestade e a +toda a familia real, por ver n'este angustioso momento, junto de um dos +thronos mais dignos da consideração universal, reunida a grande massa da +nação, que só deseja ordem e inteira união de todas as classes para +debellar os males que a affligem e poder repellir os inimigos que tentam +sepultar a sua autonomia.» + + +Não faltaram elogios e homenagens aos triumphadores como se não poupou +os vencidos a toda a casta de imprecações. No momento da derrota ninguem +pensou em que a explosão revolucionaria podia reproduzir-se, apoz certo +lapso de tempo, e que essa reproducção podia ser acompanhada de +elementos de exito seguro. Todos trataram, na occasião, de mostrar á +dynastia brigantina um servilismo fóra do commum e aos pés do rei +cahiram dias a fio excessivas doses de lisonja que, por serem de +encommenda, nem ao proprio alvejado deviam illudir. + +E comtudo a revolta do 31 de janeiro marcára uma _étape_ bem nitida no +caminho da modificação do regimen. Tão nitida, que pouco antes d'ella +ser julgada nos conselhos de guerra, como em outro logar referimos, o +manifesto dos emigrados portuguezes residentes em Madrid soltava este +grito de esperança, desferido com tanto enthusiasmo como se já o +illuminasse um clarão inapagavel de victoria: + + +«...Nós, orgulhosos, obscuros, altivos e humildes, porque cuspimos nos +homens indignos e imploramos a Deus justiceiro, entendemos que bate +o minuto em que urge gritar a um povo honrado, a um povo valente que não +póde ser mais: que não hade ser ainda; que é inevitavel, que é +irremediavel que é necessario, immediata e incontrariadamente, cavar +fundo, rasgar immenso, despedaçar largo, destruir vasto, já, já, agora, +agora, de maneira que a incomparavel vergonha se envergonhe, esta +incomparavel, esta inverosimil, esta unica e extraordinaria hediondez de +que uma nação inteira continue, inerte, tranquilla e triturada, sob as +patadas obscenas d'uma canalha que ella abomina muito menos do que ella +despreza. + +«E, se os emigrados teem toda a esperança no paiz, o paiz não se hade +vexar envergonhado, dos seus filhos hoje proscriptos, antes com elles +deve e pode contar para todos os sacrificios que a salvação da patria em +perigo tem o direito de exigir dos cidadãos probos e dedicados. A grande +palavra de Danton, de que ninguem consegue partir do solo que embalou o +berço em que vagiu a infancia, levando a patria pegada ás solas dos +sapatos, tem-n'a presente constantemente os emigrados no espirito. Com +sobresaltada attenção espiam os successos; com a alma em susto, +forçados, a, raivosamente, cruzarem os braços, n'uma inefficacia +provisoria, assistem ao desesperador espectaculo do crescente +amesquinhamento do paiz, que, com fervoroso impeto, respeitam e amam. + +«Mas, aguardando sempre, não se differenciam dos seus concidadãos, +injuriados pelo roubo das liberdades outr'ora conquistadas nem se +desinteressam das preoccupações que os agitam. Os de fóra continuam a +fazer causa commum com os que, a dentro de fronteiras, mal podem +expressar seus queixumes. Do exilio os alentam, da terra estrangeira +lhes clamam a esperança no futuro. Solde-se assim um pacto santo. Que a +ultima palavra que pronunciamos seja a que em breve, verbo +reformador, ascenda de todos os corações generosos e irrompa em todos os +puros labios, como a consummação, salutar e fecunda, da grande obra +iniciada a 31 de janeiro: + +«Viva Portugal! + +«Viva a Republica!» + + +Este manifesto era assignado, entre outros emigrados, por Alves da +Veiga, Basilio Telles, alferes Malheiro, Antonio Claro, Carlos Infante +da Camara, Annibal Cunha, José Sampaio, Alipio Augusto Trancoso e José +Tavares Coutinho. + + +A obra iniciada a 31 de janeiro... essa veiu a consummar-se quasi vinte +annos depois. + +FIM + + + + +Indice + + +_Do TEXTO_ + + Pag. + +Palavras de um soldado 3 + +Capitulo I--O movimento de 31 de Janeiro filia-se no «ultimatum» de + 1890 7 + + » II--O primeiro rebate do conflicto diplomatico anglo-portuguez 14 + + » III--Serpa Pinto, á frente de 6.000 homens, derrota os + makololos revoltados 20 + + » IV--O governo progressista cede ante as exigencias da + Grã-Bretanha 27 + + » V--O protesto contra o «ultimatum» echoa de norte a sul + do paiz 34 + + » VI--Serpa Pinto, heroe africano, perde o prestigio 40 + + » VII--O partido republicano nasce da dispersão do reformista 48 + + » VIII--João Chagas abandona enojado a imprensa monarchica 54 + + » IX--O Dr. Alves da Veiga assume a chefia civil do movimento 62 + + » X--O Directorio recusa a sancção official á revolta 69 + + » XI--A crise ministerial dos «vinte sete dias» 75 + + » XII--«E as armas que nos foram entregues para defeza das + instituições, voltal-as-hemos contra ellas» 82 + + » XIII--Vinte annos apoz a derrota 92 + + » XIV--A alvorada triumphante: caçadores 9 inicia o movimento 96 + + » XV--Proclama-se a Republica no edificio da camara Municipal 107 + + » XVI--O choque sangrento--A guarda municipal desbarata os + revoltosos 114 + + » XVII--A noite negra do traidor Castro--O destino de tres + officiaes 121 + + » XVIII--O dia seguinte ao da derrota 129 + + » XIX--Para as despezas da revolta bastou um conto de reis 138 + + » XX--Triste balanço: o das victimas da insurreição 144 + + » XXI--A serenidade de uns e o desalento de muitos 149 + + » XXII--O julgamento dos revoltosos 156 + + +_Das GRAVURAS_ + +Quartel de infanteria 18, e campo da Regeneração, onde se reuniram as +tropas sublevadas na madrugada de 31 de Janeiro 15 + +Elias Garcia 19 + +Encontro dos revoltosos com as tropas fieis ao governo 23 + +Alves da Veiga (1891) 31 + +Na rua de Santo Antonio 39 + +João Chagas (1891) 47 + +A guarda municipal entrincheirada na egreja de Santo Ildefonso 55 + +Capitão Leitão (1891) 63 + +Uma carga de cavallaria 71 + +Rodrigues de Freitas (1891) 79 + +Levantando os feridos 87 + +José Sampaio (Bruno) (1891) 95 + +Proclamação da Republica 103 + +A Bandeira da Revolta que foi hasteada na camara Municipal 111 + +Basilio Telles (1891) 115 + +Bombardeamento da Camara Municipal pelas tropas fieis ao governo 119 + +Tenente Coelho (1891) 127 + +Santos Cardoso, preso a bordo 135 + +Actor Verdial (1891) 139 + +Revoltosos presos a bordo do _India_ 143 + +Antonio José de Almeida (1891) 147 + +Os prisioneiros a bordo 151 + +Dr. Affonso Costa (1891) 157 + +Conselho de guerra a bordo do transporte _India_ 161 + +O tumulo das victimas no cemiterio do Repouso, no Porto 167 + + + + + * * * * * + +A sahir brevemente o 5.º volume + +DA + +BIBLIOTHECA HISTORICA + +A Revolução e a Republica Hespanhola + +(1868 a 1874) + +POR + +Victor Ribeiro + +Da Academia das Sciencias + +Um elegantissimo volume de 200 pag. 200 rs. broc. e 300 rs. enc. em +percalina + + +BIBLIOTHECA DA INFANCIA + +COLLECÇÃO ILLUSTRADA DE LEITURAS EDUCATIVAS + +Sob a direcção litteraria + +DE + +VICTOR RIBEIRO + +Da Academia das Sciencias + +Volumes em 8.º, illustrados com esplendidas gravuras no texto e de +pagina, nitidamente impressos em magnifico papel, expressamente +fabricado para esta publicação, formando elegantissimos livros de cerca +de 200 paginas. + +Cada vol. brochado 200 rs. enc. em percalina 300 rs. + +N. B.--Alguns d'estes livros estão sendo adoptados para leitura nas +escolas por conselho de professores. + + +BIBLIOTHECA DA INFANCIA + +Volumes publicados + +I--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (A Conquista do Reino). + +II--_A. Daudet_--*A Creança Abandonada*. + +III--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (O Condestavel). + +IV--*A Vida dos Animaes* (No Paiz do Leão). + +V--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (D. João I, o rei eleito do +Povo). + +VI--_Victor Hugo_--*O Bom Bispo*. + +VII--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (Os Filhos de D. João I). + +VIII--*A Vida dos Animaes* (Os cães). + +IX--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (O Infante D. Henrique). + +NO PRELO + +X--*A Terra Portugueza* (Portugal Pitoresco). + + +Os mais bellos e os mais baratos brindes para creanças e premios para as +escolas + +200 réis cada volume em brochura 500 réis bellamente encadernado com +capa em percalina a ouro e a côres em relevo, proprio para brindes + +[Ilustração: As Nereidas (CAMÕES CANTO II)] + +Todos os pedidos devem ser dirigidos a ALFREDO DAVID--encadernador + +30, 32, RUA SERPA PINTO, 34,36 + +==LISBOA== + + +BIBLIOTHECA HISTORICA + +Volumes de cerca de 200 paginas, illustrados com primorosas gravuras +no texto e de pagina, impressos com typo novo, bem legivel, em optimo +papel, ao preço de *200 réis* por cada volume brochado e *300 réis* por +cada volume luxuosamente encadernado em percalina. + + +VOLUMES PUBLICADOS + +I, II--*Historia da Revolução Franceza* por _F. Mignet_ 2 vols. + +III *A Revolução Portugueza--O 31 de Janeiro* por _J. d'Abreu_. + +NO PRÉLO + +IV--*A Revolução Portugueza--O 5 de Outubro* por _J. d'Abreu_. + +V--*A Revolução Hespanhola* por _Victor Ribeiro_. + +VI--*A Revolução Nihilista na Russia* por _Stepniak_. + +BIBLIOTHECA DA INFANCIA + +COLLECÇÃO ILLUSTRADA DE LEITURAS EDUCATIVAS + +SOB A DIRECÇÃO LITTERARIA DE + +VICTOR RIBEIRO + +Da Academia das Sciencias + + +VOLUMES PUBLICADOS + +I--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (A Conquista do Reino). + +II--_A Daudet_--*A Creança Abandonada*. + +III--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (O Condestavel). + +IV--*A Vida dos Animaes* (No Paiz do Leão). + +V--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (D. João I, o rei eleito do +povo). + +VI--_Victor Hugo_--*O Bom Bispo*. + +VII--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (Os filhos de D. João I). + +VIII--*A Vida dos Animaes* (Os cães). + +IX--*Narrativas e Lendas da Historia Patria* (O Infante D. Henrique). + +NO PRÉLO + +X--*A Terra Portugueza* (Portugal Pitoresco). + + +Cada volume em 8.º, illustrado com esplendidas gravuras nitidamente +impresso em magnifico papel, expressamente fabricado para esta +publicação, forma um elegantissimo livro de cerca de 200 paginas. + +*Os mais baratos e elegantes brindes para creanças e premios escolares* + +200 réis cada volume brochado--300 réis enc. em percalina + +Pedidos a + +ALFREDO DAVID--Encadernador + +Rua Serpa Pinto, 30 a 36--Lisboa + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of A Revolução Portugueza: O 31 de +Janeiro (Porto 1891), by Jorge de Abreu + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA *** + +***** This file should be named 29484-8.txt or 29484-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/9/4/8/29484/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + http://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/29484-8.zip b/29484-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..2d7afb5 --- /dev/null +++ b/29484-8.zip diff --git a/29484-h.zip b/29484-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..e0cd134 --- /dev/null +++ b/29484-h.zip diff --git a/29484-h/29484-h.htm b/29484-h/29484-h.htm new file mode 100644 index 0000000..a8bcf57 --- /dev/null +++ b/29484-h/29484-h.htm @@ -0,0 +1,6431 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>A Revolução Portugueza:O 31 de janeiro, por Jorge d'Abreu.</title> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <meta name="author" content="Jorge d'Abreu"> + <meta name="date" content="1912"> + <meta name="publisher" content="Casa ALFREDO DAVID"> + <style type="text/css"> + @media print { + .pagenum { visibility: hidden;} + } + @media handheld { + .pagenum { visibility: hidden;} + } + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: #cccccc; + } + .rodape { + font-size: 0.8em; + text-align: justify; + margin: 2em; + border: dotted 2px #cccccc; + } + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px #000000;} + #corpo sup {font-size: 70%;} + h1, h2 {text-align:center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em; } + #corpo p{ + line-height: 1em; + text-align: justify; + text-indent: 1em; + } + #corpo .ilustracao p {font-size: 0.9em; text-align: center; text-indent: 0;} + a {text-decoration: none; font-family: helvetica, arial, sans-serif;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro +(Porto 1891), by Jorge de Abreu + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891) + +Author: Jorge de Abreu + +Release Date: July 22, 2009 [EBook #29484] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net + + + + + + +</pre> + + +<div style="text-align:center; border: solid 2px #000; padding: 1em;"> +<p style="color:#ff0000;">BIBLIOTHECA HISTORICA<br> +<small>(POPULAR E ILLUSTRADA)</small><br> +III</p> + +<p style="font-size: 3em; font-weight: bold;"><span style="margin-right: 3em;">A Revolução</span><br> +<span style="margin-left: 3em;">Portugueza</span></p> + +<p style="font-size: 2em;">O 31 DE JANEIRO</p> + +<p style="color:#ff0000;"><strong>(Porto 1891)</strong><br> + +<span style="font-size: 0.8em;">POR</span><br> + +JORGE D'ABREU<img +alt="Imagem de capa: bandeira do Centro Democratico Federal" +src="images/capa.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>1912<br> + +E<small>DIÇÃO DA</small> C<small>ASA</small> ALFREDO DAVID<br> + +<small>ENCADERNADOR</small><br> + +<em>30-32, Rua Serpa Pinto, 34-36</em><br> + +<small>LISBOA</small><br> +</p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<table border="0" align="center" summary="Indice"> + <tbody> + <tr> + <th colspan="3">INDICE</th> + </tr> + <tr> + <td></td> + <td></td> + <td>Pag.</td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2">Palavras de um soldado</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_3">3</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capitulo I—</td> + <td style="text-align:justify;">O movimento de 31 de Janeiro filia-se no + «ultimatum» de 1890</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_7">7</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» II—</td> + <td style="text-align:justify;">O primeiro rebate do conflicto + diplomatico anglo-portuguez</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_14">14</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» III—</td> + <td style="text-align:justify;">Serpa Pinto, á frente de 6.000 homens, + derrota os makololos revoltados</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_20">20</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» IV—</td> + <td style="text-align:justify;">O governo progressista cede ante as + exigencias da Grã-Bretanha</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_27">27</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» V—</td> + <td style="text-align:justify;">O protesto contra o «ultimatum» echoa de + norte a sul do paiz</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_34">34</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» VI—</td> + <td style="text-align:justify;">Serpa Pinto, heroe africano, perde o + prestigio</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_40">40</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» VII—</td> + <td style="text-align:justify;">O partido republicano nasce da dispersão + do reformista</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_48">48</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» VIII—</td> + <td style="text-align:justify;">João Chagas abandona enojado a imprensa + monarchica</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_54">54</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» IX—</td> + <td style="text-align:justify;">O Dr. Alves da Veiga assume a chefia + civil do movimento</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_62">62</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» X—</td> + <td style="text-align:justify;">O Directorio recusa a sancção official á + revolta</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_69">69</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XI—</td> + <td style="text-align:justify;">A crise ministerial dos «vinte sete + dias»</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_75">75</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XII—</td> + <td style="text-align:justify;">«E as armas que nos foram entregues para + defeza das instituições, voltal-as-hemos contra ellas»</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_82">82</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XIII—</td> + <td style="text-align:justify;">Vinte annos apoz a derrota</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_92">92</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XIV—</td> + <td style="text-align:justify;">A alvorada triumphante: caçadores 9 + inicia o movimento</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_96">96</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XV—</td> + <td style="text-align:justify;">Proclama-se a Republica no edificio da + camara Municipal</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_107">107</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XVI—</td> + <td style="text-align:justify;">O choque sangrento—A guarda + municipal desbarata os revoltosos</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_114">114</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XVII—</td> + <td style="text-align:justify;">A noite negra do traidor Castro—O + destino de tres officiaes</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_121">121</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XVIII—</td> + <td style="text-align:justify;">O dia seguinte ao da derrota</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_129">129</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XIX—</td> + <td style="text-align:justify;">Para as despezas da revolta bastou um + conto de reis</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_138">138</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XX—</td> + <td style="text-align:justify;">Triste balanço: o das victimas da + insurreição</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_144">144</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XXI—</td> + <td style="text-align:justify;">A serenidade de uns e o desalento de + muitos</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_149">149</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XXII—</td> + <td style="text-align:justify;">O julgamento dos revoltosos</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_156">156</a></td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p> </p> + + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<div style="text-align:center;"> +<p>BIBLIOTHECA HISTORICA<br> + +(POPULAR E ILLUSTRADA)<br> + +III<br> + +<p style="font-size: 2em;">A Revolução Portugueza</p> + +<p style="font-size: 1.5em;">O 31 DE JANEIRO</p> +</div> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="font-size: 0.8em; margin: 10%;"> +<p style="text-align: center;">VOLUMES PUBLICADOS</p> + +<p>I—H<small>ISTORIA DA</small> R<small>EVOLUÇÃO</small> +F<small>RANCEZA</small>, por <em>F. Mignet</em>, 1.º volume.</p> + +<p>II—H<small>ISTORIA DA</small> R<small>EVOLUÇÃO</small> +F<small>RANCEZA</small>, 2.º volume.</p> + +<p>III—A R<small>EVOLUÇÃO</small> P<small>ORTUGUEZA</small>—O 31 +<small>DE</small> J<small>ANEIRO</small> (P<small>ORTO</small> 1891), por +<em>Jorge d'Abreu</em>.</p> + +<p>NO PRÉLO</p> + +<p>IV—A R<small>EVOLUÇÃO</small> P<small>ORTUGUEZA</small>—O 5 +<small>DE</small> O<small>UTUBRO</small><br> +(L<small>ISBOA</small> 1910), por <em>Jorge d'Abreu</em>.</p> + +<p>V—A R<small>EVOLUÇÃO E A</small> R<small>EPUBLICA</small> +H<small>ESPANHOLA</small> (1868 <small>A</small> 1874), por <em>Victor +Ribeiro</em>.<span class="pn"><a name="pg_1" id="pg_1">{1}</a></span></p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<p>BIBLIOTHECA HISTORICA<br> + +<small>(POPULAR E ILLUSTRADA)</small></p> + +<hr style="border: 0; border-bottom: solid 2px #000; width: 80%"> + +<p style="font-size: 3em; font-weight: bold;"><span style="margin-right: 3em;">A Revolução</span><br> +<span style="margin-left: 3em;">Portugueza</span></p> + +<p style="font-size: 2em;">O 31 DE JANEIRO</p> + +<p style="font-size: 1.2em;">(Porto 1891)</p> + +<p><small>POR</small></p> + +<p style="font-size: 1.4em;">JORGE D'ABREU</p> + +<p><img alt="Logotipo do editor" src="images/p001.png"></p> + +<p>1912</p> + +<p>E<small>DIÇÃO DA</small> C<small>ASA</small> ALFREDO DAVID<br> + +<small>ENCADERNADOR</small><br> + +<em>30-32, Rua Serpa Pinto, 34-36</em><br> + +LISBOA<span class="pn"><a name="pg_2" id="pg_2">{2}</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;"><small>Composto e Impresso na Imprensa Libanio da +Silva==Travessa do Falla-Só, 24—Lisboa</small><span class="pn"><a +name="pg_3" id="pg_3">{3}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 1.4em;">PALAVRAS DE UM SOLDADO</p> + +<p style="text-align:center;"><strong>ao presidente do tribunal de guerra, no acto do +julgamento:</strong></p> + +<p>... <em>Eu, meu senhor, não sei o que é a Republica, mas não póde deixar de +ser uma cousa santa. Nunca na egreja sentí um calafrio assim. Perdí a cabeça +então, como os outros todos. Todos a perdemos. Atirámos então as barretinas ao +ar. Gritámos então todos:—Viva! viva, viva a Republica!</em>...</p> + +<blockquote style="margin-left: 50%; "> + <p><small>Do «Manifesto dos Emigrados da Revolução do Porto de 31 de Janeiro de 1891.»</small><span class="pn"><a name="pg_4" + id="pg_4">{4}</a><br> + <a name="pg_5" id="pg_5">{5}</a></span></p> +</blockquote> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 2.5em">O 31 DE JANEIRO</p> + +<p style="text-align:center;">(Porto 1891)<br> +<span class="pn"><a name="pg_6" id="pg_6">{6}</a><br> +<a name="pg_7" id="pg_7">{7}</a></span></p> + +<div id="corpo"> +<p> </p> + +<p> </p> + +<p><img alt="Decoração de página" src="images/p007.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<h1>CAPITULO I</h1> + +<h2>O movimento de 31 de janeiro filia-se no "ultimatum" de 1890</h2> + +<p>A revolta militar de 31 de janeiro de 1891 caracterisou-se pela precipitação +com que foi decidida e a pouca ou nenhuma reserva com que foi organisada. +Durante mezes uma parte do paiz teve conhecimento quasi minucioso de que se +conspirava contra a monarchia e que na conspiração entravam elementos de +importancia recrutados na officialidade dos regimentos que a guarneciam. No +emtanto a explosão patriotica, que na madrugada de 31 fez triumphar por algumas +horas a bandeira verde e vermelha, surprehendeu muita gente porque apenas uma +insignificante minoria não julgava extemporaneo o <em>rebentar da +bomba</em>.</p> + +<p>A causa unica do movimento podemol-a filiar no <em>ultimatum</em> de 1890. +Por espaço d'um anno, a agitação popular, que essa chicotada diplomatica +provocara nos primeiros instantes—agitação que, no dizer de João Chagas, +trouxera pela primeira vez para a rua, a manifestarem-se, «homens graves e de +chapeu alto»—por espaço d'um anno, repetimos, essa<span class="pn"><a +name="pg_8" id="pg_8">{8}</a></span> agitação minou profundamente diversas +camadas sociaes e fez augmentar por uma forma extraordinaria o descontentamento +da nação, a sua hostilidade contra o regimen monarchico e o soberano. Viu-se +claramente, n'esse momento grave da vida portugueza, que, ao substituir-se o +ministerio abatido pelo <em>ultimatum</em>, o novo governo procurara antes de +mais nada deitar uma escóra ao throno, desprezando em absoluto as reclamações +do povo, a sua grita sedenta de justiça. Calcára-se a patria para sustentar no +poder o monarcha brigantino. A dignidade da nação, o seu anceio fervoroso de +que o <em>ultimatum</em> obrigasse a politica governativa a mudar de processos, +a trabalhar com seriedade, uma e outro foram espesinhados pelo empenho dos +aulicos da monarchia em precavel-a da marcha progressiva das ideias +democraticas. D'ahi o exodo para o partido republicano de muitos dos homens que +até então tinham tentado servir os partidos monarchicos com boa fé e dedicação. +</p> + +<p>Mais adeante desenvolveremos, na medida do possivel, esse periodo da +historia contemporanea, cujos incidentes, voltamos a affirmal-o, fizeram +germinar o pensamento da revolta e contribuiram directamente para que ella +rebentasse no Porto no dia 31 de janeiro de 1891. Por agora limitaremos o nosso +papel de modesto e desataviado chronista da Revolução Portugueza a descrever o +que occorreu em Lisboa mal se soube da momentanea victoria das armas +republicanas. É interessante recordar as horas de mortifera espectativa que a +capital soffreu, emquanto a varias leguas de distancia um troço de valentes se +fazia massacrar pela chamada <em>guarda pretoriana</em>.</p> + +<p> </p> + +<p>Nas vesperas da revolta, os jornaes de Lisboa ainda reflectiam quasi toda a +indignação e a celeuma causadas pelo <em>ultimatum</em>. A poucas horas de +ser<span class="pn"><a name="pg_9" id="pg_9">{9}</a></span> iniciado o +movimento, os <em>Pontos nos ii</em> inseriam uma pagina faiscante de Bordallo +Pinheiro, intitulada <em>A maldita questão ingleza</em>. As perseguições a +differentes officiaes do exercito succediam-se com uma pertinacia feroz. No dia +30 de janeiro, um jornal, alludindo á que fôra movida ao alferes de caçadores 9 +(aquartelado no Porto) Simões Trindade, salientava o facto curioso d'esse +official ter sido, em 27 d'aquelle mez, mandado apresentar +<em>immediatamente</em> no quartel general da respectiva divisão; depois, +d'ahi, mandado seguir, <em>immediatamente</em>, para o ministerio da guerra; +d'aqui apresentado <em>immediatamente</em> no quartel general da 1.ª divisão, +onde tinham acabado por lhe dar uma guia afim de se apresentar, +<em>immediatamente</em> tambem, no regimento de infantaria 24, aquartelado em +Pinhel. Os jornaes do Porto, confirmando esse furor persecutorio, +accrescentavam que a violencia das auctoridades militares incidia especialmente +sobre os officiaes inferiores.</p> + +<p>Surgiu a manhã de 31 e com ella principiaram a circular em Lisboa os boatos +alarmantes. Um d'elles, talvez o primeiro e o que mais consistencia adquiriu +desde logo no espirito do publico, dizia:</p> + +<p> </p> + +<p><em>No Porto, ás seis horas, os regimentos de caçadores 9 e infantaria 10 e +parte de infantaria 18, sahindo dos quarteis, dirigiram-se á praça da +Regeneração, soltando vivas á Republica. O movimento tende a alastrar-se. A +guarda municipal quiz oppôr-se-lhe; mas, depois d'uma descarga dada por +caçadores 9, e da qual morreram 12 soldados d'aquella guarda, os outros +adheriram aos revoltosos.</em></p> + +<p> </p> + +<p>A seguir, correu que a primeira auctoridade militar do Porto pedira de +madrugada reforço á <em>guarda</em><span class="pn"><a name="pg_10" +id="pg_10">{10}</a></span> <em>pretoriana</em>, mas que ella se recusara +peremptoriamente a combater as tropas sublevadas. Dizia-se tambem que toda a +guarnição se solidarisara com os insurrectos.</p> + +<p>Estas e outras noticias, como é de comprehender, lançaram na capital uma +agitação indescriptivel. Os primeiros momentos foram, sem duvida, de confusão e +de panico. Ás 7 da manhã, o ministerio já estava reunido e procurava, não sem +difficuldade, tomar contacto com a situação. Ás 8, eram chamados ao paço da +Ajuda o presidente do conselho e o general Moreira, commandante das guardas +municipaes. D'um extremo ao outro da cidade, desfilavam vertiginosamente as +ordenanças, os correios, e a população, despertada pelo annuncio retumbante +d'esse golpe de audacia republicana, espreitava curiosa a sequencia e o +desfecho dos acontecimentos.</p> + +<p>Pouco depois das 8 horas, correu em Lisboa que um telegramma recebido no +jornal o <em>Seculo</em> affirmava estarem occupados pelos insurrectos todos os +edificios publicos e que a população da capital do norte adherira em massa á +obra iniciada pelo exercito. Era o triumpho completo da Revolução, o alvorecer +radioso d'um novo regimen politico, interrompendo na nossa historia o +desenrolar corrosivo da tyrannia monarchica. O governo, reunido, tentava com +medidas successivas suffocar o incendio que lavrava no Porto. Os regimentos de +infantaria recebiam ordem de partir para ali. O sr. Antonio Ennes, ministro da +marinha, fazia-se conduzir ao Arsenal e ahi, em conferencia com o commandante +geral da armada, exigia que os navios de guerra disponiveis seguissem sem +demora a investir a cidade revoltada. O ministerio fremia de impaciencia e de +terror. A familia real inquiria constantemente das diversas phases da +insurreição. Os elementos avançados principiavam a respirar a atmosphera de +liberdade trazida do Porto na lufada dos telegrammas<span class="pn"><a +name="pg_11" id="pg_11">{11}</a></span> optimistas. A alegria desenhava-se em +quasi todos os rostos.</p> + +<p>Longas horas se passaram assim—horas de esperança, horas de +espectativa anciosa—durante as quaes os boatos nunca cessaram de +fervilhar. Contava no dia seguinte um jornalista que a confusão de momento era +tal que os mesmos alviçareiros que espalhavam a noticia da victoria decisiva +dos sublevados não tardavam d'ahi a instantes a divulgar o contrario. Para o +paço de Belem havia desde manhã cedo enorme affluencia de personagens +officiaes. «Desde os ministros, affirmou mais tarde um <em>reporter</em>, até +os simples fidalgos cavalleiros, dos quaes vimos dois, fardados, irem em trem +pôr-se ás ordens de D. Carlos, todos á porfia accorreram á regia morada.» A +guarda do paço era n'esse dia de infantaria 2. Mas, apesar do reboliço que ia +dentro do edificio, os soldados mostravam-se despreoccupados e no +local—cá fóra—pouco se sabia da revolução. Os politicos, +frequentadores da Arcada, andavam desvairados. Uns asseguravam que a população +portuense, dirigida por officiaes de caçadores 9, arvorara a bandeira +republicana no palacio da Bolsa; outros que infantaria 8, de Braga, e o 14, de +Vizeu, tinham adherido ao movimento; outros ainda que a guarda municipal, +fraternisando com os revoltosos, se apressara a soltar João Chagas, que então +expiava na cadeia da Relação a condemnação imposta por um delicto de imprensa. +Os que pareciam melhor informados accrescentavam a tudo isto que na madrugada +de 30 de janeiro varios telegrammas cifrados haviam annunciado aos dirigentes +da politica democratica o <em>estalar da bomba</em>. De Lisboa, por exemplo, +tinham perguntado para o Porto: <em>Como vae o doente?</em> Do Porto tinham +respondido: <em>Deve morrer ámanhã</em>...</p> + +<p> </p> + +<p>Mas, ao começo da tarde, o optimismo cedeu o<span class="pn"><a +name="pg_12" +id="pg_12">{12}</a></span> passo ao desalento. As agencias officiosas +principiaram a falar em suffocação da revolta e em rendição de revoltados. +Mudára a face das cousas. O paço animava-se, o governo cobrava sangue frio. O +commandante da divisão militar com séde na capital do norte—o general +Scarnichia—que na occasião se encontrava em Lisboa, tratando junto do +ministerio da guerra das transferencias dos seus subordinados suspeitos de +republicanismo, seguia ás 2 e 30 para o Porto n'um comboio especial. Uma parte +das tropas que, tendo recebido ordem de marchar em soccorro da monarchia, já se +agglomeravam nas estações de caminho de ferro, regressava a quarteis. +Suspendiam-se por um mez as garantias em todo o districto do Porto e +auctorisava-se a suspensão dos <em>jornaes perigosos</em> ali e no resto do +paiz. Evidentemente, a sublevação não lograra exito e o sangue derramado na +manhã de 31 servira apenas a registar uma infructifera tentativa de reacção +contra a dynastia oppressora. A democracia fôra vencida pouco depois de ter +vencido. A atmosphera voltava a carregar-se de violencia, de jugo tyrannico, e +no horisonte já se descortinava que as represalias iam ser ferozes. Uma gazeta +das mais populares da epoca, reconhecendo que, uma vez dominada a +<em>sargentada</em>, o governo se apressaria sem duvida a esmagar a mais +insignificante velleidade de resistencia, escrevia vinte e quatro horas apoz a +derrota:</p> + +<p> </p> + +<p>«Á mercê do arbitrio é difficil poder-se viver; aguardemos melhores dias de +liberdade e... calemo-nos.»</p> + +<p> </p> + +<p>Extincto o clarão redemptor, a imprensa—salvo raras excepções—ou +vociferava tonitruante, enraivecida, contra os revoltosos, pedindo para os +vencidos o maximo do castigo—até a pena de morte—ou<span +class="pn"><a name="pg_13" id="pg_13">{13}</a></span> se curvava resignada sob +a ameaça do triumphador, disposta a supportar em silencio a desforra cruel que +os vencedores procurariam abertamente tirar dos derrotados. O nucleo dirigente +do partido republicano escrevia a poucas semanas dos acontecimentos:</p> + +<p> </p> + +<p>«O directorio cumpriu o seu dever, synthetisando as aspirações d'um partido; +em vez de appellar para aventuras anarchicas, recommendou á imprensa +republicana, aos conferentes e propagandistas a demonstração calma e +justificada d'esses principios. (Alludia aos que tinham sido consignados no seu +manifesto de 11 de janeiro de 1891).</p> + +<p>«Acceitando o mandato de acção, conferido pelo ultimo congresso, o +directorio entendeu que consistia essa acção em repellir a mesquinha +subserviencia que envolvia o partido em accordos com os grupos monarchicos e em +conter as individualidades sem mandato, que, trabalhando sem disciplina, +compromettiam o partido, como em seguida os acontecimentos o provaram.</p> + +<p>«As revoluções são factos inherentes ao organismo social; não é um grupo de +homens que as fazem, como ou quando querem; mas compete a esse grupo dar-lhes +pensamento e direcção quando sobrevenham.»</p> + +<p> </p> + +<p>Resumindo: o directorio entendia de boa politica não se responsabilisar pela +tentativa mallograda e condemnava-a pelo que ella se lhe affigurava de +desordenada e inopportuna. N'outra passagem do documento a que nos referimos +affirmava que «a nação inteira julgara immediatamente o movimento de 31 de +janeiro pela sua <em>inopportunidade</em>.» E no emtanto, a poucos dias da +revolta, o mesmo directorio tinha espalhado profusamente esta opinião nitida e +vigorosa:<span class="pn"><a name="pg_14" id="pg_14">{14}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p>«No momento que atravessamos não ha logar para demonstrações theoricas nem +para argumentar com os pedantocratas do constitucionalismo. Elles já deram as +suas provas. Para a crise extrema um supremo remedio».</p> + +<p> </p> + +<p>Supremo remedio!... Que outro poderia ser, afinal, senão o iniciado na manhã +de 31?</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO II</h1> + +<h2 style="text-align:center;">O primeiro rebate do conflicto diplomatico +anglo-portuguez</h2> + +<p>Precisemos os factos:</p> + +<p>O <em>ultimatum</em> de 11 de janeiro de 1890 teve como pretexto a expedição +do major Serpa Pinto na Africa Oriental. Antes d'ella já se falava vagamente na +possibilidade d'um conflicto anglo-portuguez e porque em 1889, nos fins do +reinado de D. Luiz, tudo o que dependia da influencia ou da acção ministerial +se inclinava a hostilisar—ainda que mais ou menos disfarçadamente—a +Inglaterra e as cousas inglezas.</p> + +<p>Parece assente que aquelle soberano, levado talvez por considerações de +ordem familiar, projectava lançar-se e lançar ostensivamente o paiz nos braços +do imperio allemão, quebrando todos os laços intimos que, desde seculos, uniam +a nacionalidade portugueza á Grã-Bretanha. D. Luiz e os seus ministros queriam +mais: queriam amarrar á Allemanha o destino do nosso commercio vinicola e das +nossas colonias—o primeiro ligado á França e as segundas relacionadas +quasi todas com o dominio inglez. Tentou-se mesmo fazer derivar da França para +a Allemanha a exportação dos vinhos nacionaes,<span class="pn"><a name="pg_15" +id="pg_15">{15}</a></span> com a organisação em Berlim d'um certamen, que, no +fim de contas, nada deu de productivo.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img015"></a> +<p><img alt="Fotografia do Quartel de Infantaria 18, e campo da Regeneração" +src="images/p015.png" width="100%"></p> + +<p>Quartel de infantaria 18, e campo da Regeneração, onde se reuniram as tropas +sublevadas na madrugada de 31 de janeiro</p> +</div> + +<p>Mas o primeiro rebate d'essa hostilidade appareceu de fórma inilludivel em +julho de 1889, quando o governo então no poder rescindiu o contracto de 14 de +dezembro de 1883 (o contracto para a construcção do caminho de ferro de +Lourenço Marques). Não diremos em absoluto que essa rescisão fosse apenas +inspirada no desejo de ferir homens e interesses da Grã-Bretanha. A verdade, +porém, é que muita gente quiz vêr logo no facto o ensejo propicio para o +trespasse da mencionada concessão a um grupo de capitalistas allemães e essa +suspeita surgiu clara e precisa na imprensa a mais ponderada e suave de termos. +A Inglaterra, pela bocca dos seus orgãos jornalisticos, sentiu-se fundamente +attingida com a medida tomada pelo governo portuguez e não tardou que désse +largas a uma celeuma até certo ponto exagerada, mas comprehensivel em face das +nossas manobras secretas com a chancellaria germanica.<span class="pn"><a +name="pg_16" id="pg_16">{16}</a></span></p> + +<p>Os periodicos londrinos aconselharam acto continuo o governo inglez a enviar +a Lourenço Marques uma esquadra, com o fim, diziam ironicamente, de «proteger +os seus subditos ali ameaçados pela valentia de Portugal», e embora um ou outro +d'esses mesmos periodicos indicasse vagamente a arbitragem como um meio decente +de liquidar o assumpto, o conjuncto d'elles não desafinava na sua exigencia de +que deviamos soffrer uma punição significativa. Por alguns dias receiou-se, +effectivamente, que o governo inglez seguisse o conselho da imprensa exaltada. +Mas, como ainda não soara a hora para a diplomacia britannica nos mostrar que +andavamos por caminho errado, pretendendo, nos pactos de alliança +internacional, substituil-a pela Allemanha, as cousas foram atamancadas sem +grande dispendio de dignidade e as nuvens negras, que já carregavam e +entenebreciam o horisonte, perderam um pouco do seu aspecto ameaçador.</p> + +<p>O partido republicano, tendo seguido com interesse patriotico a marcha dos +incidentes, não duvidou estigmatisar publicamente o projecto desvairado da +monarchia ao procurar enredar a nacionalidade na teia emmaranhada d'um +conflicto diplomatico. Os jornaes da epoca falam pormenorisadamente da campanha +que esse partido então fez não só contra a projectada alliança luso-germanica +mas, principalmente, contra a entrega do caminho de ferro de Lourenço Marques a +um grupo allemão.</p> + +<p>Quando surdiu o <em>ultimatum</em>, ninguem hesitou em reconhecer que, se a +patada do colosso de além Mancha era brutal, mesmo brutalissima, á monarchia e +aos seus governos cabiam, entretanto, uma boa parte das culpas. Opinião +identica expressou-a mais tarde João Chagas ao tratar do assumpto, de +collaboração com o ex-tenente Coelho:</p> + +<p> </p> + +<p>«Estava-se em principios de janeiro sob uma situação<span class="pn"><a +name="pg_17" id="pg_17">{17}</a></span> presidida pelo sr. José Luciano de +Castro e na qual detinha a pasta dos estrangeiros o sr. Henrique de Barros +Gomes, quando os jornaes começaram referindo-se com insistencia á possibilidade +d'um conflicto com a Inglaterra, a proposito das pretenções d'esta nação sobre +os territorios do Nyassa, onde algumas expedições portuguezas de caracter +scientifico operavam ao tempo. O facto pareceu novo e surprehendeu, se bem que +tivesse origem antiga no plano de absorpção da Africa Austral e dos territorios +sertanejos de Moçambique, principiado a executar-se em 1888, pelo tratado feito +entre a Inglaterra e o potentado Lobengula no qual era comprehendido o +territorio dos Mashonas, reivindicado por Portugal; e levado a cabo pelo +tratado de 18 de maio de 1891, extorquido pelo governo britannico á invalidez +portugueza.</p> + +<p>«O litigio, que veiu a liquidar-se desastrosamente pelo <em>ultimatum</em> +de 11 de junho de 1890, pode dizer-se, começou então. Durante dois +annos—forçoso é reconhecer para esclarecimento da historia e apuramento +de responsabilidades—a Inglaterra oppôz ás pretenções de Portugal o +<em>veto</em> mais formal. Já em 1887, o marquez de Salisbury protestava contra +os tratados, assignados e publicados, de Portugal com a Allemanha e a França, +declarando não nos reconhecer o direito, que aquellas nações nos attribuiam, de +exercermos jurisdicção em territorios d'Africa, onde não tinhamos occupação +effectiva, e invocava, para justificar o seu protesto, as decisões da +conferencia de Berlim.</p> + +<p>«Mais tarde, em 1888, sir James Fergusson pronunciava na Camara dos Communs +um discurso que fez impressão em Portugal, mas nem por isso deixou de +constituir uma negação severa, que o governo britannico officialmente apoiou, +dos direitos de soberania, invocados pelo governo portuguez, sobre o sertão da +Africa Oriental. Quando, apoz o<span class="pn"><a name="pg_18" +id="pg_18">{18}</a></span> tratado feito pela Inglaterra com o regulo +Lobengulo, o governo portuguez quiz definir, por uma delimitação, a posse dos +territorios da Africa Oriental (outubro de 1888) o governo britannico, +presentindo que não chegaria a uma rapida conciliação, fez-lhe sentir, pelo +ministro em Lisboa, sir George Petre, que o estado das relações entre os dois +governos, no que se referia ás questões africanas, «estava longe de ser +satisfatorio, e que uma prolongação d'esse estado podia conduzir a uma seria +quebra de amizade entre os dois paizes.»</p> + +<p> </p> + +<p>Em janeiro de 1889, o marquez de Salisbury queixava-se ao representante de +Portugal em Londres de que o governo lusitano tivesse feito partir para a +Africa e com <em>destino mysterioso</em> (aos territorios do Nyassa) a +expedição do capitão tenente Antonio Maria Cardoso e avisava o diplomata +portuguez «de que as boas relações dos dois paizes não podiam por muito tempo +resistir ao perigo a que estavam sendo expostas». Essa expedição, á data da +queixa do marquez de Salisbury, acampava no Monte Melange e luctava não só com +as febres mas tambem com a falta de carregadores, parte dos quaes havia fugido. +E facto curioso: emquanto o ministro inglez mostrava ao representante de +Portugal apprehensões sobre o objectivo principal da expedição, «que lhe +parecia ser o territorio occupado pelas missões e estações commerciaes +inglezas», os indigenas da região atravessada por Antonio Maria Cardoso +desfaziam-se em queixas contra os subditos britannicos, considerando-os d'uma +tyrannia excepcional.</p> + +<p>Em resumo: os inglezes, antes mesmo de occorrer o facto que mais tarde +invocaram como a causa directa do rompimento de relações com o nosso paiz, já +preparavam o golpe, aproveitando todos os ensejos de insinuar na diplomacia +portugueza<span class="pn"><a name="pg_19" id="pg_19">{19}</a></span> a ideia +de que cedo ou tarde rebentaria o conflicto e de que este seria motivado +essencialmente pela nossa politica e a nossa acção na Africa Oriental. O +<em>ultimatum</em> de 1890 surprehendeu até certo ponto a população portugueza. +O mesmo não succedeu, por certo, aos governantes, que estavam fartos de saber +que a Grã-Bretanha só espreitava o momento favoravel de nos enviar essa ameaça +humilhadora.</p> + +<div class="ilustracao" style="float: left;"><a name="img019"></a> +<p><img alt="Fotografia de Elias Garcia" src="images/p019.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Elias Garcia</p> +</div> + +<p>Ha quem attribua ao ministro do gabinete progressista que mais de perto +lidou com a diplomacia ingleza intenções criminosas. Cremos, porém, que isso é +exagerado. O ministro em questão, o sr. Barros Gomes, deve antes talvez ser +accusado de incompetencia e inhabilidade. As cousas ter-se-hiam naturalmente +passado de modo diverso se, quando appareceu na tela da discussão diplomatica a +contestação da Inglaterra aos direitos que Portugal affirmava ter em varios +territorios da Africa Oriental, o ministro, longe de empregar processos +dilatorios, houvesse sem perda de tempo sujeitado o litigio ao exame e decisão +d'uma conferencia das potencias signatarias do Acto Geral de Berlim. Por outro +lado, como a Inglaterra fundamentava a sua contestação em que esses territorios +nunca tinham sido occupados d'um modo effectivo por Portugal nem soffrido a +menor influencia civilisadora, ao governo da epoca incumbia<span class="pn"><a +name="pg_20" id="pg_20">{20}</a></span> logicamente desmentir com actos, e não +com palavras, os argumentos utilisados pela poderosa Albion.</p> + +<p>Mas o ministro culpado entendeu dever manter até quasi ás vesperas do +<em>ultimatum</em> uma attitude de indecisão e de pusillanimidade e assim, +quando se iniciou a occupação definitiva dos territorios contestados, +lançando-se atravez d'Africa algumas expedições, todas ellas chocaram innumeros +obstaculos que precipitaram logicamente o desfecho da questão. O ministro +n'essa altura ainda quiz emendar a mão; era tarde, porém, e os erros +diplomaticos por elle commettidos não permittiam já que se recorresse á +arbitragem internacional. Portugal tinha que aguentar a pé firme e sem esquiva +tudo o que a Grã-Bretanha sobre elle fizesse desabar.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO III</h1> + +<h2>Serpa Pinto, á frente de 6000 homens, derrota os makololos revoltados</h2> + +<p>A expedição Serpa Pinto, já o dissemos, foi o rastilho que faz detonar a +ameaça contida no <em>ultimatum</em>. Contemos como o caso se deu: </p> + +<p>A expedição tinha por mobil o affirmar a soberania de Portugal nos +territorios do Nyassa, que o nosso paiz reivindicava. Commandava-a aquelle +major do exercito e compunham-na varios funccionarios e technicos. O engenheiro +chefe da missão de estudo era o sr. Pereira Ferraz. Em fins de 1899, Serpa +Pinto, sahindo de Messanje em direcção a Quelimane, entregou-lhe o commando da +expedição, emquanto outro funccionario, o sr. Themudo, seguia para Mupasso com +parte da gente e as embarcações transportando bagagens e mantimentos. O sr. +Pereira Ferraz acompanhado d'uns duzentos homens dirigiu-se para ali a +encontrar o<span class="pn"><a name="pg_21" id="pg_21">{21}</a></span> seu +collega de missão—disposto a acampar defronte de Mupasso para seguir á +risca as instrucções do commandante em chefe. Tratava-se, não é mau repetir, de +pacificar a região, que alguns pretos insubordinados «animados por uma +influencia estranha, tentavam revoltar contra nós».</p> + +<p>Os effeitos d'essa attitude hostil não se fizeram esperar. Logo que a +expedição chegou em frente da aldeia dos makololos, viu-se fóra do recinto da +povoação varios homens armados e «dentro appareceram por cima da palissada +muitas cabeças, ao todo talvez uns duzentos negros promptos a entrar em +combate». O sr. Pereira Ferraz fez signaes para parlamentar com o que parecia +ser o chefe dos pretos, o qual lhe correspondeu fazendo signal para que se +approximasse. O sr. Ferraz queria dizer-lhe que não ia disposto á guerra, +portanto que deixassem passar a sua gente e cargas e que lhe daria um presente. +</p> + +<p> </p> + +<p>«Não me deixou, porém—informa o mesmo engenheiro—o negro dizer +nada d'isso, pois logo que nos viu ao alcance das espingardas de pederneira com +que elle e os outros estavam armados, disparou sobre nós, fugindo para dentro +do recinto, pelo que, chamando alguns dos nossos, que eu posso affirmar não +passavam de 40, fizemos fogo sobre a povoação, que elles abandonaram com perda +de 6 homens e umas 12 barricas de polvora, que explodiram no incendio que os +landins lançaram ás palhotas da aldeia».</p> + +<p> </p> + +<p>Por aqui se vê que os pretos tinham o firme proposito de aggredir a +expedição. Esta pouco depois era avisada de que os regulos Massêa, Catanga, +Molidima, Caberenguene e os filhos do Chipitura haviam reunido e armado a sua +gente e se tinham juntado a Melaure para baterem os nossos.<span class="pn"><a +name="pg_22" id="pg_22">{22}</a></span> Estas informações aterradoras, note-se, +foram ministradas á expedição pelos inglezes Harry e George Petit, +accrescentando-lhes que o Melaure tinha comsigo muita gente, muita polvora e +6:000 espingardas. Um e outro d'esses agentes britannicos correspondiam-se com +aquelle regulo e, tendo o sr. Pereira Ferraz convidado ambos, para maior +segurança das suas fazendas e vidas, a retirarem-se para a povoação portugueza +de Natumbe, a dois dias de viagem ao sul de Mupasso, pondo ás suas ordens, para +isso, as necessarias embarcações, responderam-lhe que preferiam antes ir <em>to +up</em>, sahindo logo no dia immediato em direcção ao norte, tentando ainda +assim e infructiferamente lançar o panico entre os auxiliares portuguezes.</p> + +<p>Os makololos, refeitos do primeiro embate, saltaram sobre a povoação +portugueza de Samoane e, em territorio nosso, destruiram o caminho collimado e +atravessaram n'elle espinheiros, dizendo que até ali tudo lhes pertencia e que +matariam quem se atrevesse a collimar um palmo de terra d'ali para cima. Os +indigenas de Samoane fugiram aterrados a acolher-se á protecção do sr. Pereira +Ferraz e este engenheiro julgou mais prudente collocar-se em guarda e esperar +reforços que pediu ao governador de Quelimane.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img023"></a> +<p><img alt="Gravura do Encontro dos revoltosos com as tropas fieis ao Governo" +src="images/p023.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Encontro dos revoltosos com as tropas fieis ao Governo</p> +</div> + +<p>Foi depois d'sto que o major Serpa Pinto, accudindo com mais gente á +expedição e elevando o seu contigente a uns 6.000 homens armados, marchou sobre +os negros revoltados e travou com elles em Mupasso sangrento combate. Os +makololos deixaram mortos no campo uns 72 homens e muitos prisioneiros +importantes. A expedição poz-se novamente em marcha apoz a victoria, que, +diga-se desde já, teve no estrangeiro uma extraordinaria resonancia. Na Africa +Oriental e principalmente na região sublevada o effeito não foi menor. O sultão +Macanjira estabelecido nas margens do<span class="pn"><a name="pg_23" +id="pg_23">{23}</a></span> Nyassa prestou vassalagem a Portugal. O chefe +M'ponda apressou-se tambem a imital-o; o regulo Malipuiri e outro visinho dos +makololos foram a<span class="pn"><a name="pg_24" id="pg_24">{24}</a></span> +Quelimane receber a bandeira portugueza. Mas, emquanto isto succedia, o +<em>Times</em>, dando conta do combate, fazia affirmações d'este theor: que o +major Serpa Pinto enganara o consul inglez na região onde elle se travara, +affirmando intenções pacificas, mas que, decorrido algum tempo, levantara +conflicto com os makololos, fazendo n'elles grande morticinio e tomando-lhes +duas bandeiras britannicas recentemente dadas por aquelle consul. Os makololos, +julgando-se abandonados pelos inglezes, tinham então reconhecido a dominação +portugueza. O major Serpa Pinto, accrescentava o <em>Times</em>, annunciara a +intenção de conquistar o Chire até o lago Nyassa e convidara os residentes +inglezes a collocarem-se debaixo da protecção de Portugal, tornando-os +responsaveis pelas consequencias no caso de recusa. A imprensa franceza, por +seu lado, occupando-se da victoria alcançada por Serpa Pinto, falava pouco mais +ou menos n'estes termos: «a acção do major portuguez poz termo á comedia que a +Inglaterra andava representando em Moçambique. Felicitamol-o por isso. Portugal +deu um excellente exemplo. Esperamos que outras nações o saberão seguir na +occasião opportuna para fazerem respeitar as espheras de influencia de cada um, +e não permittirem as continuas invasões da Inglaterra no terreno alheio».</p> + +<p>A informação relativa ao combate transmittida pelo consul britannico em +Zanzibar ao marquez de Salisbury, que se encontrava ao tempo em Hatfield, foi +logo noticiada na imprensa londrina com o commentario de que lord Salisbury +certamente não procederia com rapidez emquanto não recebesse pormenores do +facto; que pediria primeiro explicações a Lisboa, e, se o governo portuguez +lh'as não desse, chamaria a Londres o diplomata sr. Petre. D'ahi a dias surgiu, +com effeito, a primeira reclamação da Inglaterra sobre a expedição<span +class="pn"><a name="pg_25" id="pg_25">{25}</a></span> Serpa Pinto. O marquez de +Salisbury dirigiu ao governo portuguez uma nota que foi entregue ao sr. Barros +Gomes pelo sr. Glynn Petre, ministro britannico em Lisboa. A nota, diziam +n'essa occasião os telegrammas de Londres, tinha a forma de uma representação +sobre a acção de Portugal na Africa do Sul e Oriental e pedia que o nosso +governo repudiasse os actos do agente portuguez no districto da Zambezia. O +marquez de Salisbury, affirmava-se, não usava de ameaças; a nota continha uma +exposição de varios factos que asseverava terem occorrido e pedia a restauração +do anterior <em>statu quo</em> na região em litigio; o governo inglez não podia +permittir que fosse arriada a bandeira ingleza depois de arvorada por um +representante responsavel. Outras informações diziam que a nota vinha redigida +em termos correctos, embora o gabinete de Londres registasse, impressionado, as +noticias recebidas pelo bispo Smythies, ácêrca de hostilidades a +estabelecimentos inglezes por parte do major Serpa Pinto, acontecimentos que, +afinal, não constavam no nosso paiz. Serpa Pinto, na verdade, objectava-se em +Portugal, limitara-se a desembaraçar o caminho á expedição Ferraz perturbada +pelos makololos e mais nada.</p> + +<p>Isto passava-se em 18 de dezembro de 1889. A nota do marquez de Salisbury +referindo-se exclusivamente ao supposto ataque da expedição portugueza contra +os makololos, e não fazendo menção alguma dos outros assumptos pendentes entre +a Inglaterra e Portugal sobre as suas respectivas espheras de influencia na +Africa do Sul e Oriental e pedindo ao sr. Barros Gomes uma resposta prompta, o +mais rapida possivel, e, no caso do ataque se confirmar, a chamada a Lisboa do +major Serpa Pinto; o ministro portuguez dos negocios estrangeiros replicou que +as informações até á data recebidas não confirmavam as interpretações +dadas<span class="pn"><a name="pg_26" id="pg_26">{26}</a></span> pelo gabinete +inglez aos actos do major, que «repellira sómente o ataque d'uma tribu hostil +na bagagem da qual encontrara tres bandeiras inglezas». O sr. Barros Gomes +terminava por pedir uma demora afim de poder communicar com o major Serpa +Pinto. Entretanto, «para estar preparado para qualquer contingencia», o governo +britannico decidia collocar as suas forças navaes proximo de Portugal. +Persuadido de que «a reunião de barcos de guerra inglezes no Tejo augmentaria +indefectivelmente a irritação dos portuguezes e entorpeceria a acção do governo +lusitano nas suas negociações para o arranjo da questão relativa ao paiz do +Nyassa», os couraçados britannicos receberam ordem de reunir-se em Gibraltar e +de ahi se manterem «em expectativa dos acontecimentos futuros». Os navios +destinados a essa empreza foram escolhidos entre os que formavam a esquadra do +Mediterraneo. Os couraçados <em>Bendvor</em> e <em>Colossus</em>, a 27 de +dezembro, levantavam ferro de Malta com destino a Gibraltar. Em Malta tambem se +encontravam as fragatas couraçadas <em>Agammenon</em> e <em>Dreadnought</em>; +em Edimburgo egualmente se preparavam outros navios.</p> + +<p>Em Portugal, no emtanto, percebiam-se os primeiros symptomas d'uma reacção +forte contra o regimen. A imprensa democratica clamava altisonante que se a +Revolução ainda se não tinha feito não era porque «o terreno fosse safaro, ou +porque as vozes republicanas não encontrassem echo, mas apenas por motivos de +ordem secundaria», que não cabiam ao momento discutir. «Comtudo estava provado +que a realeza perdera o prestigio, que a dynastia de Bragança alienara todas as +sympathias, que as instituições tinham cahido no descredito e que, por +conseguinte, o povo desejava vida nova». E perguntava-se: «O que devemos á +dynastia? Que principio superior anda ligado á existencia<span class="pn"><a +name="pg_27" id="pg_27">{27}</a></span> d'essa anachronica forma de governo? A +Patria?... Oh! nós bem sabemos que, quando Portugal se quiz emancipar do jugo +da monarchia hespanhola, quem mais conspirou contra a Patria foi o Bragança +idiota, por quem os ingenuos combatentes de 1640 andavam expondo a vida; +sabemos como esta funesta dynastia tem, pouco a pouco, em presentes de noivado +e como premio de serviços contra a nação, entregado as nossas colonias aos +inglezes; sabemos como, na hora do perigo para a nossa independencia, para a +nossa honra nacional, o sr. D. João VI fugiu covardemente para o Brazil; +sabemos como o pae do actual reinante (D. Luiz) escreveu umas cartas criminosas +a Napoleão III, no intuito de se formar em seu proveito e da sua raça a união +iberica. A Liberdade?... Não a suffocam, porque não podem. O Bragança, que aqui +implantou o systema constitucional, fôra um despota no Brazil. Escorraçado de +lá, como não podia apresentar-se em frente da monarchia tradiccional +representada por seu irmão, em nome de outro principio deu-nos a constituição +que, mais tarde, seu filho rasgou á vontade, abafando os clamores angustiosos +da nação, com a intervenção das armas estrangeiras...»</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO IV</h1> + +<h2>O governo progressista cede ante as exigencias da Grã-Bretanha</h2> + +<p>Os primeiros dias de janeiro de 1890 ainda reflectiram as benignas razões +dadas pelo sr. Barros Gomes ao governo inglez. Não se podia exauctorar Pereira +Ferraz e Serpa Pinto—dizia o ministro e diziam alguns jornaes de +Lisboa—prestando apenas credito ás informações dos funccionarios<span +class="pn"><a name="pg_28" id="pg_28">{28}</a></span> britannicos. Era +necessario ouvir os dois expedicionarios e ouvir-lhes as allegações que, +decerto, produziriam sobre a sua attitude em tão melindroso assumpto. Uma parte +da imprensa acreditava até ingenuamente que a Inglaterra não tardaria a +modificar o tom aggressivo das suas notas diplomaticas, substituindo-o por +outro de feição conciliadora: «em primeiro logar, porque assim o quer o +respeito devido por cada nação a todas as outras; em segundo logar, porque, se +procurasse entregar á violencia a decisão d'um pleito em que devem ser ouvidos +e escutados os argumentos de parte a parte e em que a justiça ou a equidade +deve proferir sentença em unica instancia, não só concitaria a nossa +resistencia mas, porventura, tambem provocaria a indignação do mundo». E essa +parte da imprensa ia mesmo mais longe na sua ingenuidade: «A Grã-Bretanha sabe +que, embora sejam enormes as suas forças comparadas com as nossas, poderia +arriscar-se a revezes se desrasoadamente accendesse a guerra na Africa...»</p> + +<p>Ao abrir-se o parlamento, o rei D. Carlos, que, pela primeira vez, se +apresentava a desempenhar o seu papel constitucional de «chave de todos os +poderes», lendo o classico discurso da côroa, sublinhou estas passagens, que a +assembleia dos representantes da nação escutou com rara e justificada +avidez:</p> + +<p> </p> + +<p>«Recentemente as patrioticas aspirações da nação ingleza e do governo de sua +magestade britannica, a dilatarem as suas vastas possessões na Africa, +encontraram-se em mais d'um ponto d'esse continente, com o firme proposito de +Portugal de conservar sob o seu dominio e de utilisar para a civilisação os +territorios africanos que primeiro foram descobertos e trilhados pelos +portuguezes, por elles foram revelados e abertos ás missões do<span +class="pn"><a name="pg_29" id="pg_29">{29}</a></span> christianismo e ás +operações do commercio e nos quaes as auctoridades portuguezas teem praticado +os actos de jurisdicção e influencia consentaneos ao estado social dos seus +habitantes, actos que sempre bastaram para significar dominio incontestavel.</p> + +<p>«Este encontro poz em relevo desaccordos de opinião entre o meu governo e o +de sua magestade britannica ácêrca das condições a que devem satisfazer e dos +titulos que teem de adduzir as soberanias europeias em Africa, para serem +reconhecidas pelas potencias, e d'esses desaccordos resultou uma +correspondencia diplomatica que ainda os não poude sanar e que tambem houve de +occupar-se de outras divergencias, posteriormente suscitadas, sobre o modo de +apreciar um conflicto, occorrido nas margens do Chire, entre uma tribu indigena +e uma expedição scientifica portugueza. O meu governo, inspirando-se no +sentimento nacional e conformando-se com o voto unanime das duas casas do +parlamento, tem diligenciado convencer o de sua magestade britannica do direito +que assiste a Portugal de reger os territorios ao sul e norte do Zambeze sobre +que versa a mencionada correspondencia, limitando-se, durante o incidente e em +todos os seus termos, a manter dominios que sempre reivindicou, e reiterar +declarações que sempre fez. E n'esta attitude persistirá com o apoio, que +decerto lhe não ha de faltar, dos representantes da nação, esperando conseguir +uma equitativa conciliação de todos os legitimos interesses, que promptamente +restabeleça, como eu desejo, o perfeito accordo entre os governos de duas +nações ligadas por vinculos de amizade e tradicções seculares».</p> + +<p> </p> + +<p>Pura illusão! No dia 5 de janeiro, o ministro inglez em Lisboa, rebatendo a +asseveração do sr. Barros Gomes de que Serpa Pinto, travando combate<span +class="pn"><a name="pg_30" id="pg_30">{30}</a></span> com os makololos, se +limitara a «repellir o ataque d'uma tribu hostil» escrevia-lhe notando que +«essa asseveração não parecia ao seu governo de muito peso, pois que a acção +dos makololos, quer tivessem ou não tomado a offensiva, fôra unicamente +determinada pelo desejo de proteger o seu territorio contra a invasão dos +portuguezes». A questão attingia, evidentemente, a sua phase aguda. O +<em>Times</em>, referindo-se-lhe, dizia que, se a Inglaterra não tomasse +promptas providencias «para apagar a impressão causada pelas incursões do major +Serpa Pinto, toda a região dos Lagos Africanos se incendiaria; os makololos +tinham visto a Inglaterra grosseiramente ultrajada; era necessario que a vissem +reivindicar claramente a sua honra». Por outro lado, o governo portuguez, +desejoso, sem duvida, de attenuar um pouco a irritação que o da Grã-Bretanha +denunciara na nota de 5 de janeiro, havia ordenado a Serpa Pinto que recolhesse +á metropole. Mas nem com isso o colosso amorteceu a pancada.</p> + +<p>O sr. Barros Gomes tentou então propôr a suspensão temporaria de qualquer +procedimento e submetter o litigio ao exame e decisão d'uma conferencia +internacional. Trabalho inutil. Á nota do dia 8 d'aquelle mez, em que o sr. +Barros Gomes lamentava que a Inglaterra nunca tivesse reconhecido o direito +historico constantemente affirmado por Portugal aos territorios do Chire e do +Nyassa, a essa nota, o ministro Petre respondeu no dia 10 com um +<em>memorandum</em>—guarda avançada da exigencia formal. «O governo +britannico, frisava esse documento, precisa saber se foram ou não enviadas +instrucções rigorosas ás auctoridades portuguezas em Moçambique com referencia +aos actos de força e ao exercicio de jurisdicção que ali subsistem +actualmente». E, quasi sem dar tempo a que a sr. Barros Gomes digerisse o tom +comminatorio<span class="pn"><a name="pg_31" id="pg_31">{31}</a></span> do +<em>memorandum</em>, o ministro Petre entregou-lhe o famoso <em>ultimatum</em> +concebido n'estes termos:</p> + +<p> </p> + +<p><em>O governo de sua magestade britannica não pode acceitar como +satisfatorias ou sufficientes as seguranças dadas pelo governo portuguez, taes +como as interpreta. O consul interino de sua magestade em Moçambique +telegraphou, citando o proprio major Serpa Pinto, que a expedição estava ainda +occupando o Chire e que Kalunga e outros logares mais no territorio dos +makololos iam ser fortificados e receberiam guarnições. O que o governo de sua +magestade deseja e em que insiste é no seguinte:</em></p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img031"></a> +<p><img alt="Fotografia de Alves da Veiga" src="images/p031.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Alves da Veiga (1891)</p> +</div> + +<p><em>Que se enviem ao governador de Moçambique instrucções telegraphicas +immediatas para que todas e quaesquer forças militares actualmente no Chire e +nos paizes dos makololos e mashonas se retirem. O governo de sua magestade +entende que sem isto as seguranças dadas pelo governo portuguez são illusorias. +</em></p> + +<p><em>Mr. Petre ver-se-ha obrigado, á vista das suas instrucções, a deixar +immediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação, se uma resposta +satisfatoria á precedente intimação não fôr por elle recebida esta tarde; o +navio de<span class="pn"><a name="pg_32" id="pg_32">{32}</a></span> sua +magestade «Enchantress» está em Vigo esperando as suas ordens.</em></p> + +<p> </p> + +<p>O <em>ultimatum</em> tinha a data de 11 de janeiro. No mesmo dia o sr. +Barros Gomes entregava ao ministro inglez a resposta. Não a transcrevemos na +integra, dada a sua extensão. Registem-se comtudo os seus pontos essenciaes. +Abria pela declaração infantil de que o governo portuguez julgava ter, com a +sua nota do dia 8, satisfeito «por inteiro quanto d'elle reclamava o de sua +magestade britannica; antecipando-se á segurança d'uma justa reciprocidade, que +devia constituir o natural preliminar das suas resoluções, apressara-se a +enviar para Moçambique as ordens mais terminantes no sentido de fazer respeitar +desde logo, em toda a provincia, o compromisso tomado, no intuito de facilitar +a realisação d'um accordo com a Grã-Bretanha, pelo qual o governo portuguez +sempre pugnara». A resposta do sr. Barros Gomes fechava assim:</p> + +<p> </p> + +<p><em>Na presença d'uma ruptura imminente de relações com a Grã-Bretanha e de +todas as consequencias que d'ella poderiam talvez derivar-se, o governo de sua +magestade resolveu ceder ás exigencias recentemente formuladas e, resalvando +por todas as formas os direitos da corôa de Portugal nas regiões africanas de +que se trata, protestando bem assim pelo direito que lhe confere o artigo 12.º +do Acto Geral de Berlim, de ver resolvido definitivamente o assumpto em litigio +por uma mediação ou pela arbitragem, o governo de sua magestade vae expedir +para o governador geral de Moçambique as ordens exigidas pela Grã-Bretanha. +Aproveito a occasião para renovar a v. ex.ª as seguranças da minha alta +consideração.</em><span class="pn"><a name="pg_33" +id="pg_33">{33}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p>Resumindo: se a intimação era cathegorica, e a ameaça do governo inglez +resumava inilludivelmente o proposito de vexar, de humilhar o pequeno paiz ao +qual ella se dirigia, a resposta não podia ser mais subserviente, apesar do +fraco esboço de protesto com apoio no direito internacional consignado nas +ultimas linhas do documento. Ao pontapé vibrado impiedosamente pela Inglaterra, +Portugal offerecia uma curvatura de espinha só propria d'um lacaio... Custa +dizel-o sem disfarce, mas é a verdade.</p> + +<p>A noticia do <em>ultimatum</em> foi divulgada em Lisboa poucas horas depois +do sr. Barros Gomes a ter recebido. No dia 12 de manhã, um jornal dos de maior +circulação exclamava, em typo graúdo, no logar mais saliente da sua primeira +pagina:</p> + +<p> </p> + +<p>«O governo inglez, o philantropico e honesto governo inglez, recorreu, +emfim, ao argumento que lhe é usual nas discordias com os povos pequenos. +Recorreu ao argumento da força! O governo portuguez recebeu uma intimação +formal: ou dá promptas satisfações, n'um curto praso, que deveria ter terminado +ás 2 horas da manhã de hoje, ou marcha sobre Lisboa a poderosa esquadra que +está reunida em Gibraltar, com ordem de bombardear a capital de Portugal! +Lisboa, a nossa querida e formosissima Lisboa, bombardeada pelos canhões da +Inglaterra! A cidade de onde partiram os descobridores audazes que deram ao +mundo—e no mundo mais que a nenhum outro povo, ao povo britannico—a +America prodigiosa, e essa Asia, onde a Inglaterra tem o seu grande imperio, e +essa Africa, por um ponto insignificante da qual se levanta o presente +conflicto—a cidade dos navegadores heroicos e generosos, destruida a +tiros de peça pelos couraçados da nação colonial por excellencia! É +phantasticamente horrivel!<span class="pn"><a name="pg_34" +id="pg_34">{34}</a></span></p> + +<p>«Que respondeu o governo? Salvou a sua honra, ou salvou a historia d'esta +immensa vergonha, e Lisboa d'esta immensa catastrophe? Nada podemos averiguar. +O ministerio esteve reunido até alta noite e do que decidiu só hoje, +provavelmente, haverá conhecimento. A hora não é de recriminações. Aguardemos +com serenidade e com firmeza o que o destino, a imprevidencia dos homens e a +rapacidade d'uma nação egoista e desalmada nos preparam n'este momento solemne +da nossa historia!»</p> + +<p> </p> + +<p>Estava lançado o rebate. O povo, a genuina massa do povo, não tardaria a +entrar em scena, manifestando-se por uma fórma até então desconhecida pelos +serventuarios da monarchia—explodindo indignação e sincero patriotismo. O +partido republicano, firmando-se n'esse impulso da opinião, adquiria novo +alento e preparava-se para ulteriores trabalhos de propaganda, mais forte, +melhor orientada e, sobretudo, de maior efficacia.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO V</h1> + +<h2>O protesto contra o "ultimatum" echoa de norte a sul do paiz</h2> + +<p>O domingo 12, isto é, o dia immediato ao da recepção do <em>ultimatum</em>, +consagrou-o a população lisboeta a commentar o acontecimento. Uma parte da +imprensa, fazendo o resumo do conflicto diplomatico que desfechara na affronta +despedida pela Grã-Bretanha, accrescentava que, emquanto o ministro inglez sr. +Petre entregava a intimação formal ao sr. Barros Gomes, este recebia do +governador de Cabo Verde um telegramma communicando-lhe que entrara no porto de +S. Vicente com carta de prego um cruzador britannico; o nosso consul em +Gibraltar<span class="pn"><a name="pg_35" id="pg_35">{35}</a></span> avisava-o, +por seu turno, de que a esquadra do Canal lá estava concentrada, prompta ao +primeiro aviso; o consul em Zanzibar tambem telegraphava participando a sahida +para as costas de Moçambique de dez navios de guerra inglezes, acompanhados de +um transporte com carvão e mantimentos. Perante esta situação, o governo +consultara o conselho de Estado, que reunira sob a presidencia do rei D. +Carlos. No conselho tinham votado pela satisfação ás exigencias da Inglaterra +os srs. Barjona de Freitas, José Luciano de Castro, conde de S. Lourenço, +Barros Gomes e João Chrysostomo. O sr. Antonio de Serpa manifestára-se pela +arbitragem e por que só fossem mandadas retirar as forças portuguezas do Chire +depois da Inglaterra a acceitar.</p> + +<p>Á tarde, apesar da excitação popular já ser bem visivel, o rei D. Carlos +exhibiu-se em passeio na Avenida da Liberdade e seu irmão o infante D. Affonso +percorreu á desfilada varios pontos da cidade, mostrando-se um e outro +completamente alheiados do facto que enlutára a nação. Ao começo da noite +formaram-se grupos numerosos no Rocio e como do Colyseu da rua da Palma +sahisse, em certa altura, um cortejo de patriotas que soltavam calorosos vivas +á nação, ao exercito e á imprensa e morras ao governo e á Inglaterra, os grupos +addicionaram-se-lhes e uma enorme multidão dirigiu os passos para a Sociedade +de Geographia. Ahi, d'uma das varandas, falou o sr. Luciano Cordeiro:</p> + +<p>—A Inglaterra, trovejou, pode expulsar-nos pela força, mas o direito +subsiste! Precisamos protestar contra a pirataria britannica!...</p> + +<p>Mas, da multidão, elevaram-se outras vozes:</p> + +<p>—E contra o governo que nos atraiçoou! E contra os Braganças que nos +jungiram á Inglaterra!...</p> + +<p>Depois, a grande massa dos manifestantes subiu á parte alta da cidade a +saudar a imprensa, que se<span class="pn"><a name="pg_36" +id="pg_36">{36}</a></span> collocára abertamente ao lado do povo, verberando a +affronta. As redacções do <em>Seculo</em>, <em>Revolução de Setembro</em>, +<em>Jornal da Noite</em>, <em>Jornal do Commercio</em>, <em>Debates</em>, +<em>Correio da Manhã</em> e <em>Gazeta de Portugal</em> foram alvo de +manifestações de sympathia. Á passagem em frente da redacção do <em>Dia</em>, +alguns dos populares deram palmas emquanto outros se limitaram a bradar: «Viva +Portugal! Abaixo a Inglaterra!». Em frente ao <em>Correio da Noite</em> +produziu-se uma manifestação hostil ao governo, manifestação que se repetiu +junto do <em>Reporter</em> e que redobrou de violencia em frente das +<em>Novidades</em>, com morras ao sr. Emygdio Navarro, aos «progressistas +traidores» e gritos de: «Abaixo o <em>chalet</em>! Viva a Republica!»</p> + +<p>Na rua Serpa Pinto, a multidão, lembrando-se do nome do official que +derrotara os makololos, rompeu em estrepitosas acclamações em sua honra. O +enthusiasmo attingiu proporções indescriptiveis. Do terceiro andar d'uma casa +habitada por uma modista, falou um academico convidando os collegas a +realisarem no dia seguinte um grande cortejo patriotico. Foi delirantemente +applaudido. Da rua Serpa Pinto, a massa popular avançou depois sobre o theatro +de S. Carlos e irrompeu na sala dando vivas á patria e clamando contra a +Inglaterra. Os <em>habitués</em> da nossa Opera,—<em>a jeunesse +dorée</em>—tranzidos de pavor, não lhe oppuzeram a menor resistencia. +Dentro e fora do edificio os manifestantes gritavam:</p> + +<p>—Hoje não é dia de espectaculo, é dia de luto!...</p> + +<p>Sahindo de S. Carlos, alguem lembrou que o consulado inglez era na rua das +Flores. O rastilho propagou-se. N'um abrir e fechar d'olhos, a casa do consul +foi apedrejada, arrancando-se da parede o respectivo escudo. Apedrejaram +egualmente a residencia do sr. Barros Gomes. E, só quando a policia interveiu, +prendendo 61 dos populares, é que a<span class="pn"><a name="pg_37" +id="pg_37">{37}</a></span> mole se desfez, mas preparando <em>in mente</em> +para o dia seguinte novas e incisivas manifestações de antipathia á +Grã-Bretanha e ao governo que promptamente se lhe submettera. Entretanto, esse +ministerio pedia a demissão, abalado pelos primeiros symptomas da reacção +nacional. Para mais o movimento de protesto não se limitára a Lisboa. +Repercutira de norte a sul do paiz, revelando energias civicas que desnorteavam +por completo a corôa e os partidos da monarchia.</p> + +<p> </p> + +<p>No dia 13 de janeiro, os estudantes da capital effectuaram uma reunião na +Escola Polytechnica, reunião a que compareceram os alumnos da Escola Naval, da +Escola do Exercito e do Collegio Militar. Presidiu o sr. Hygino de Sousa e +falaram varios oradores, todos elles estygmatisando com violencia a affronta +ingleza e aconselhando a <em>boycottage</em> aos productos da Grã-Bretanha. Um +professor do lyceu de Lisboa, sr. Carlos de Mello, tentou, n'um discurso habil, +defender o sr. Barros Gomes, mas a assembléa recebeu pessimamente as suas +palavras e foi resolvido acto continuo que a academia se dirigisse á camara dos +pares a pedir ao parlamento declarações terminantes que serenassem o espirito +publico. Assim se fez e um cortejo de mais de quinze mil pessoas, sahindo da +Escola Polytechnica, encaminhou-se para S. Bento.</p> + +<p>Á entrada do Largo das Côrtes, do lado do mercado, um cordão de policias +pretendeu impedir a passagem aos manifestantes, mas o cortejo rompeu-o e tudo +passou. A guarda do palacio chamou ás armas e calou bayonetas. Em frente do +edificio, destacou-se do cortejo uma commissão que foi falar ao presidente da +camara. A policia dentro e fora do edificio era em tão grande quantidade que +Fialho d'Almeida soltou esta <em>boutade</em>:<span class="pn"><a name="pg_38" +id="pg_38">{38}</a></span> </p> + +<p>—Os seios da representação nacional trazem hoje espartilho de guarda +civil...</p> + +<p>Os aspirantes de marinha, receiando que a massa de povo aglomerada no largo +fosse maltratada pela força militar, formaram deante d'esta, offerecendo-lhe +como que uma barreira, e a sua attitude provocou uma ovação extraordinaria, +frenetica de enthusiasmo. D'ahi a momentos, a commissão que se avistara com o +presidente da camara voltou para junto dos manifestantes, e communicou-lhes que +o parlamento, tendo tomado em consideração a <em>démarche</em> patriotica da +academia, occupar-se-hia, na sessão seguinte, dos assumptos que interessavam a +defeza e a integridade do paiz. O cortejo andou depois a percorrer varias ruas +da cidade, pronunciando-se hostilmente em frente dos jornaes caracterisadamente +governamentaes e á noite repetiram-se as scenas da vespera, queimando-se +bandeiras inglezas, victoriando-se em delirio os nomes de Serpa Pinto, Latino +Coelho e outros democratas então em evidencia.</p> + +<p>No dia 14, pelas seis e meia da tarde, sahiu do Café Aurea um grupo de +estudantes soltando vivas á patria, á liberdade, á independencia nacional, ao +exercito e á marinha. A esse grupo juntou-se na rua do Ouro e praça de D. Pedro +muito povo e á porta do Café Martinho o antigo deputado progressista sr. dr. +Eduardo de Abreu propoz à multidão que se envolvesse em crepes a estatua de +Camões. Dito e feito. Os manifestantes enfiaram pela rua Nova do Carmo e o +Chiado, explodindo sempre o maior enthusiasmo, aos degraus do monumento subiram +alguns individuos, arranjou-se uma escada, passou-se o crepe em largas dobras +rodeando a estatua e rematando sobre a corôa de ferro ali deposta pelos +estudantes em 1880 e, no meio do mais respeitoso silencio, leu-se ao povo este +cartaz, que foi depois affixado:<span class="pn"><a name="pg_39" +id="pg_39">{39}</a></span></p> + +<div class="ilustracao"><a name="img039"></a> +<p><img alt="Gravura: Na rua de Santo Antonio" src="images/p039.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Na rua de Santo Antonio</p> +</div> + +<p> </p> + +<p><em>Estes crepes, que envolvem a alma da patria, são entregues á guarda do +povo, do exercito e da alma nacional. Quem os arrancar ou mandar arrancar é o +ultimo dos covardes vendido á Inglaterra.</em></p> + +<p> </p> + +<p>Uma prolongada e fremente salva de palmas acolheu a leitura d'este protesto, +simples e curto, mas d'uma eloquencia esmagadora e o cortejo patriotico voltou, +como nos dias anteriores, a percorrer as ruas de Lisboa, gritando febrilmente o +seu desejo de liberdade e a revolta contra a ignominia com que a nação fôra +aviltada. O ministerio progressista já tinha sido substituido por um outro de +feição regeneradora, sob a presidencia do sr. Antonio de Serpa e em que +figuravam pela primeira vez o sr. João Arroyo na pasta da marinha,<span +class="pn"><a name="pg_40" id="pg_40">{40}</a></span> João Franco na da fazenda +e Vasco Guedes na da guerra. Um dos actos do novo governo, mal subiu ao poder, +foi o de procurar reprimir todas as manifestações patrioticas inspiradas no +<em>ultimatum</em>, mandando espadeirar dezenas de populares que na noite de 14 +de janeiro desciam o Chiado desferindo as suas exclamações de odio á poderosa +Albion. O inicio, como se vê, não podia ser mais promettedor de brutalidade e +arbitrio.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO VI</h1> + +<h2>Serpa Pinto, heroe africano, perde o prestigio</h2> + +<p>D'essa agitação imponente, d'essa inesperada revelação de civismo em face da +humilhação inflingida ao paiz, sahira, porém, uma ideia, que, encontrando +rapidamente o maior apoio em todas as classes manifestantes, em breve se +traduziu n'uma aspiração nacional. Referimo-nos á subscripção da iniciativa dos +alumnos da Escola Naval destinada á compra de meios de defeza maritima. De toda +a parte acudiram donativos, e dentro de pouco tempo a commissão incumbida de os +recolher e que tinha como secretario o sr. dr. Eduardo de Abreu, desligado do +partido progressista e filiado, com Guerra Junqueiro, no partido republicano, +houve de fazer as suas reuniões no salão do theatro D. Maria e de ali +centralisar o trabalho que lhe estava affecto.</p> + +<p>Ao mesmo passo organisava-se a Liga Patriotica do Norte collocada sob a +egide de Anthero de Quental; Alfredo Keil, imitando Rouget de Lysle, compunha o +hymno a <em>Portugueza</em>, para o qual o sr. Lopes de Mendonça escrevia os +versos e esse canto vulgarisava-se tanto ou mais que a <em>Marselheza</em>; +faziam-se diariamente conferencias publicas de esclarecimento e de protesto; os +nomes dos<span class="pn"><a name="pg_41" id="pg_41">{41}</a></span> mais +illustres africanistas andavam em todas as boccas aureolados de ruidosa +celebridade. Houve mesmo uma epoca em que o de Serpa Pinto se ligou á narrativa +d'um incidente sul-africano com proporções de feito heroico. Foi quando a +imprensa deu publicidade á carta que elle dirigira ao agente britannico +Buchanan que o intimara a não avançar pelas terras dos makololos, collocados +sob a protecção do governo inglez. N'essa carta dizia Serpa Pinto:</p> + +<p> </p> + +<p>«Se na verdade os makololos estão debaixo da protecção do governo inglez e +por conseguinte lhe obedecem, estou certo de que a minha passagem será facil e +segura, porque o governo inglez, representado por v. ex.ª, só me póde dar +facilidades, sendo eu d'um paiz que sempre teve abertas, franca e lealmente, as +portas das suas colonias ás expedições scientificas inglezas, prestando-lhes +todo o auxilio e amparo; mas, em todo o caso, se é verdade o que v. ex.ª, me +diz, peço-lhe que convença os makololos de que a minha expedição é pacifica e +scientifica, que lhes diga que pertenço a uma nação amiga da Inglaterra e que, +portanto, não perturbem a minha marcha, perturbação a que v. ex.ª, n'esse caso, +não pode ser considerado extranho; e assegurando-lhe que não posso consentir +que um chefe negro queira disputar-me a passagem, ou fazer-me o mais +insignificante insulto, asseguro, além d'isso, a v. ex.ª, que, se na minha +entrada no territorio makololo eu fôr atacado, tomarei immediatamente a +offensiva e acabarei de uma vez com essa causa constante de perturbação n'esta +parte do Chire.»</p> + +<p> </p> + +<p>E n'outro paragrapho:</p> + +<p> </p> + +<p>«Emquanto á intimação que v. ex.ª me faz de não continuar no meu caminho, +peço licença para<span class="pn"><a name="pg_42" id="pg_42">{42}</a></span> +lembrar a v. ex.ª que eu só recebo ordens do governo de sua magestade +fidelissima, de quem as recebo directamente e, como não recebi ordem em +contrario, continuarei, tenaz e pacificamente, a minha jornada, arvorando uma +bandeira de paz e só de paz, mas prompto a repellir com energia quaesquer +aggressões sem motivo que me possam ser feitas».</p> + +<p> </p> + +<p>Mas Serpa Pinto, longe de conservar esse favor popular, tornando-se o +proeminente defensor das reivindicações da grande massa, optou, em breve, pelo +serviço incondicional á corôa e essa attitude divorciou-o completamente do +nucleo democratico, que o encarara durante algum tempo como uma das esperanças +mais promettedoras. E, divorciado, perdeu o prestigio. Quando morreu, dez annos +mais tarde, estava em absoluto esquecido. Continuemos, porém, a contar os +episodios que caracterisaram essa phase de agitação nacional, consequencia do +<em>ultimatum</em>.</p> + +<p>O sentimento da dignidade collectiva, despertando com extraordinaria +vehemencia, produziu em todas as classes, até mesmo na aristocratica, uma +reacção contra a Grã-Bretanha. O duque de Palmella, por exemplo, tendo +renunciado ás condecorações inglezas que possuia, collocou-se á frente da +commissão da subscripção patriotica; dos partidos monarchicos desertaram alguns +homens dos mais eminentes; surgiu, emfim, uma nova imprensa, reflectindo, como +diz João Chagas «não já os interesses especiaes do partido republicano, mas as +coleras e os enthusiasmos do patriotismo, identificado com a republica para a +missão commum da desaffronta».</p> + +<p>Fundou-se a <em>Patria</em>, jornal de estudantes de Lisboa, e, logo de +entrada, essa folha, feita um pouco <em>à la diable</em>, investiu +denodadamente contra o velho<span class="pn"><a name="pg_43" +id="pg_43">{43}</a></span> regimen, apaixonando em alto grau a opinião. N'ella +se revelaram, entre outros politicos militantes, Brito Camacho e Hygino de +Sousa. E a sua acção de propaganda foi tão intensa que a ella se deveu, sem +duvida, uma grande parte da tensão revolucionaria mantida atravez do anno de +1890 e começo do anno seguinte.</p> + +<p>Aqui tem cabimento referir que o directorio do partido republicano, julgando +azado o momento de sanccionar com a sua chancella a recrudescencia do partido +democratico, publicou n'essa occasião um manifesto em que propunha a +congregação dos esforços honestos no sentido de se rejuvenescer Portugal não só +confiando-o ao novo regimen como protegendo-o internacionalmente por meio d'uma +federação latina. Esse manifesto concluia assim:</p> + +<p> </p> + +<p>«Só a republica pode organisar o exercito e a marinha, fortificar Lisboa, +administrar as colonias e defender a nação affrontada. A republica, no meio +d'estes desastres publicos, está na consciencia de todos como o recurso +definitivo da nossa estabilidade nacional. Da consciencia para os factos vae um +momento. E esse momento approxima-se.»</p> + +<p> </p> + +<p>Por outras palavras: o directorio comprehendia, ou convencia-se, n'essa +altura, de que a propaganda bem dirigida resultaria fatalmente na liquidação, +dentro de curto praso, das instituições que envergonhavam o paiz. E se o +trabalho no ambiente rubro dos centros politicos denunciava então uma +actividade excepcional, fóra, na rua, auxiliavam-no, ainda que d'outro modo, as +manifestações da grande massa, que não affrouxava em protestar energicamente +contra o <em>ultimatum</em> e a cobardia da familia brigantina.</p> + +<p>Dois dias a fio, um cortejo composto exclusivamente<span class="pn"><a +name="pg_44" id="pg_44">{44}</a></span> de marinheiros da armada appareceu +n'alguns pontos de Lisboa, saudando enthusiasticamente a bandeira da patria e +dando vivas á independencia nacional. O governo atemorisou-se com o facto e +ameaçou os manifestantes de os encarcerar durante trinta dias. Ao mesmo tempo, +a policia recebeu ordem de empregar maior violencia na dispersão dos grupos +patrioticos. Uma coisa e outra, porém, não impediram que a onda de indignação +se avolumasse e que frequentemente se produzissem incidentes demonstrando que o +divorcio entre a nação e a dynastia se accentuava cada vez mais. N'um dos +ultimos dias de janeiro, o Gremio Henriques Nogueira, tendo dirigido caloroso +convite ao povo de Lisboa, organisou uma manifestação imponente que, em marcha +correcta e digna pelas ruas da cidade, se dirigiu ás legações de França e +Hespanha a agradecer á opinião dos dois paizes, a sympathia e a solidariedade +moral dispensadas nas horas lutuosas da affronta ingleza. O gabinete +regenerador, entretanto—muito embora todos os grupos politicos lhe +tivessem offerecido apoio incondicional no respeitante á questão +anglo-lusa—fazia dissolver o parlamento, collocando-se em verdadeira +dictadura. O presidente do conselho, sr. Serpa Pimentel, e o ministro dos +estrangeiros, o sr. Hintze Ribeiro, preparavam-se assim para negociar com a +chancellaria britannica o accordo final, sanccionando a expoliação contida no +<em>ultimatum</em>.</p> + +<p>Em 11 de fevereiro, repetiram-se na capital, e com maior intensidade, as +scenas de agitação popular que haviam caracterisado os primeiros dias do mez +anterior. Motivou-as a prohibição d'um comicio no colyseu da rua da Palma, em +que se deveria «accordar nos meios de se enviar uma mensagem de congratulação e +agradecimento ao povo francez e hespanhol e de se apreciar o pensamento e a +opportunidade da liga portugueza anti-britannica<span class="pn"><a +name="pg_45" id="pg_45">{45}</a></span> como base dos trabalhos da federação +dos povos latinos». Pouco antes, como corressem boatos de que o governo +projectava dissolver a camara municipal de Lisboa, o presidente d'essa +corporação, o sr. Fernando Palha, apressara-se a inquirir do chefe do governo +os motivos de tão arbitraria resolução, tomando ao mesmo passo varias medidas +tendentes a resistir-lhe caso ella fosse levada á pratica. O sr. Serpa +Pimentel, apesar do decreto de dissolução já estar lavrado, receiou publical-o +e respondeu ao sr. Fernando Palha que os boatos eram insubsistentes, calculando +que, recuando n'essa altura da situação, poderia conjurar uma nova explosão de +sentimentos patrioticos.</p> + +<p>No dia 11, á tarde, quando o povo se encaminhava para o colyseu da rua da +Palma a assistir ao comicio, verificou-se que o governo não só decidira obstar +á sua realisação como á d'um cortejo organisado pelo Gremio Henriques Nogueira, +que se propunha, n'esse mesmo dia, collocar uma corôa no monumento a Camões. A +policia e a municipal que estacionavam nas immediações do colyseu tinham modos +provocadores. O povo, porém, conservou-se tranquillo e só ás 3 horas, quando se +convenceu em absoluto de que a ordem do governo era irrevogavel, é que formou +um cortejo, acompanhando na retirada do local os oradores que deviam falar no +comicio: Jacintho Nunes, Manuel de Arriaga, Consiglieri Pedroso e outros. +Chegado esse cortejo ao Rocio, Manuel de Arriaga, no intuito de fazer dispersar +a multidão, subiu a um banco e dando um <em>viva á patria</em>, disse:</p> + +<p>—Povo: o governo sahiu da lei prohibindo a nossa reunião. +Conservemo-nos dentro d'ella, protestando contra os que a violaram.</p> + +<p>O sr. Jacintho Nunes tambem proferiu algumas palavras no mesmo sentido. O +povo, enthusiasmado, applaudiu os dois oradores. Mas não foi preciso<span +class="pn"><a name="pg_46" id="pg_46">{46}</a></span> mais para a policia +iniciar as violencias e as prisões. As correrias dos guardas lançaram no +recinto largos minutos de panico. Chamou-se ali, como reforço, um esquadrão de +cavallaria. O povo recebeu-o com demonstrações de sympathia e os soldados +desfilaram socegadamente, acompanhados dos vivas da multidão. Os primeiros +presos foram Manuel de Arriaga e Jacintho Nunes. Depois a leva, comprehendendo +uns 130 individuos, seguiu para o governo civil, d'onde, no dia immediato, foi +mandada para bordo do <em>India</em> e do <em>Vasco da Gama</em>.</p> + +<p>Assim que o facto constou na cidade, o commercio fechou meia porta e quasi +todas as associações realisaram sessões de protesto. Reappareceram os +incidentes tumultuosos, a população voltou a agitar-se, os jornaes democratas +abriram subscripções em favor dos presos e, ás ameaças de novas e maiores +violencias, o elemento popular respondeu approximando-se mais e mais dos vultos +então em evidencia no partido republicano. A <em>Patria</em>, diario visado +especialmente pelos serventuarios do regimen, escrevia a poucas horas de +perpetrado o arbitrio governamental:</p> + +<p> </p> + +<p>«Consta-nos que da parte do governo ha todo o empenho em damnificar o nosso +jornal e que se tomam providencias tendentes a supprimir a <em>Patria</em> e +bem assim prender os seus redactores. O publico fica de sobreaviso, na certeza +de que todos os dias sahirá o nosso jornal com o nome que tem ou com qualquer +outro, se lhe fôr inhibido usar o glorioso nome de <em>Patria</em> que o +encima. Não é com ameaças, levadas ou não a effeito, nem é com prisões ou +detenções a bordo do <em>Africa</em> que nos farão desistir da tarefa que nos +impuzemos, porque, uns presos, outros virão, e quando esses forem presos outros +virão ainda e a <em>Patria</em> apparecerá implacavelmente e o governo d'este +paiz ha de<span class="pn"><a name="pg_47" id="pg_47">{47}</a></span> aprender +que não é com vilezas e processos de mão baixa que se combatem sentimentos +grandes e generosos, que só anceiam pelo bem estar do seu paiz.»</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img047"></a> +<p><img alt="Fotografia de João Chagas" src="images/p047.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>João Chagas (1891)</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Mas os serventuarios do regimen não descançaram na tarefa de precavel-o +contra o progresso da democracia, tentando por todos os modos estrangular os +clamores do povo. Em 14 de fevereiro dissolveram a Associação Academica de +Lisboa, sob o pretexto de que ella, contrariando os fins indicados nos seus +estatutos, se «entregava a aventuras politicas que tinham perturbado a ordem +publica.» Ainda mais: decidiram-se finalmente a publicar o decreto dissolvendo +o primeiro municipio do paiz, apprehenderam alguns jornaes da opposição, +entraram em conflicto com a commissão executiva da Subscripção Nacional, +reorganisaram a guarda municipal, gratificaram a policia e, por uma série de +medidas dictatoriaes, restringiram a liberdade de pensamento e o direito de +reunião. </p> + +<p>Entretanto, caminhava-se a passos agigantados para a conclusão do tratado +anglo-portuguez, o famoso tratado que devia, por assim dizer, ratificar o +<em>ultimatum</em> de 11 de janeiro e a perda subsequente do que Portugal +disputava á Grã-Bretanha.<span class="pn"><a name="pg_48" +id="pg_48">{48}</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO VII</h1> + +<h2>O partido republicano nasce da dispersão do reformista</h2> + +<p>Cabe agora dar aos leitores um rapido esboço das phases por que passou o +partido republicano desde 1880 até á eclosão da revolta do Porto. Esse partido +nasceu da dissolução do reformista, apoz o movimento de Cadiz que tambem animou +o mesmo ideal em Hespanha. Do partido reformista sahiram Latino Coelho, Elias +Garcia, Bernardino Pinheiro e Jacintho Nunes que, acompanhados de Oliveira +Marreca e os generaes Gilberto Rolla e Sousa Brandão, fundaram o jornal +<em>Democracia Portugueza</em> á cabeça do qual foi logo inscripto o primeiro +programma partidario accentuadamente democratico. Esse programma +comprehendia:</p> + +<p> </p> + +<p><em>Egualdade civil e politica. Governo e taxação do povo pelo povo. +Suffragio universal e representação das minorias. Abolição do juramento +politico; de privilegios pessoaes; dos direitos de consumo para o Estado; do +recrutamento. Serviço pessoal; exercito reduzido á escola e quadro; milicia +nacional. Liberdade de consciencia; egualdade de cultos; casamento civil; +registo civil; liberdade de imprensa e de ensino; julgamento pelo jury; +liberdade pessoal; inviolabilidade do domicilio; liberdade de associação; de +reunião; de representação, excepto para a força armada collectivamente. Poder +legislativo de eleição; executivo delegado d'este e que dirige os negocios +geraes do Estado. Descentralisação administrativa e autonomia das provincias +ultramarinas. Ensino obrigatorio. Economia<span class="pn"><a name="pg_49" +id="pg_49">{49}</a></span> na despeza publica. Direito de resistencia aos actos +da auctoridade, offensivos das leis. Justiça democratica retribuida pelo +Estado, revertendo para este os emolumentos; jurados por eleição; juizes +collectivos; ampliação da competencia dos arbitros. Harmonia do codigo penal e +do processo com a philosophia do direito e o modo de ser da sociedade +portugueza.</em></p> + +<p> </p> + +<p>O programma foi obra, principalmente, de Latino Coelho e Elias +Garcia—este dirigindo a <em>Democracia Portugueza</em> emquanto o jornal +arrastou a sua vida precaria. Os restantes redactores eram Osorio de +Vasconcellos, Teixeira Simões, Gomes da Silva, Ferreira Mendes, Caetano Pinto e +Feio Terenas. De camaradagem com estes nomes appareciam os de Manuel de +Arriaga, Nunes da Matta, Sousa Larcher, Homem Christo, Magalhães Lima, Alves da +Veiga, José Sampaio (Bruno), Emygdio d'Oliveira, etc., etc. Hintze Ribeiro +tambem gosou durante algum tempo a fama de democrata e pode lêr-se na sua +biographia que, quando estudante em Coimbra, escreveu artigos inflammados para +um jornal de Ponta Delgada. Mas que admira, se da Universidade é que surdiram +em todas as epocas os elementos mais avançados, os propagandistas mais +devotados, os revolucionarios mais atrevidos... Quantos dos antigos ministros +da monarchia portugueza não foram, afinal, durante a sua passagem por Coimbra, +considerados as futuras escoras do partido republicano!... Quantos!</p> + +<p>Até 1880, esse partido apenas exerceu no paiz uma acção de simples +sentinella, quasi perdida na immensidade do deserto. Ainda não havia despertado +o sentimento civico entre os portuguezes como mais tarde despertou, +precipitando-os em reivindicações revolucionarias e a nação mal dava pelos +clamores do nucleo nascente que todo se<span class="pn"><a name="pg_50" +id="pg_50">{50}</a></span> esbofava na imprensa e nas palestras da rua a +demonstrar que o reinado de D. Luiz cavava alguns metros mais no abysmo da +nossa ruina. Em Lisboa, o partido republicano dispunha d'uma modesta influencia +eleitoral, que, no emtanto, lhe permittia, uma vez por outra, travar lucta com +os monarchicos. No Porto, toda a propaganda democratica se reduzia a meia duzia +de homens—de alto valor, é certo, mas de fraco exito nas suas tentativas +para arrancar a capital do Norte á tradicção monarchica. Na provincia, tudo se +subordinava ao caciquismo e os republicanos ali eram encarados como fautores da +anarchia e da desordem. Finalmente, o proprio nucleo democratico de que Lisboa +se envaidecia antes de 1880, não apresentava a resistencia e a solidez +necessarias á conquista do poder politico.</p> + +<p> </p> + +<p>A celebração do tri-centenario de Camões, realisada n'quelle +anno—sacudindo o paiz inteiro n'uma rajada de patriotismo—deu corpo +e energia ao ideal republicano e transformou o nucleo existente n'uma força +respeitavel, digna de ser encarada pela monarchia como um inimigo serio. Melhor +do que nós o poderiamos fazer, o dr. Magalhães Lima vae dizer aos nossos +leitores da influencia decisiva d'essa apotheose na democracia portugueza:</p> + +<p> </p> + +<p>«O tri-centenario de Camões foi o primeiro capitulo da gloriosa jornada que +teve o seu desfecho em 5 de outubro de 1910. Nunca se viu cousa semelhante em +grandeza e sinceridade. O povo, o bom povo portuguez, compenetrado da elevação +da festa, e ainda mais de que a homenagem ao immortal cantor das nossas glorias +correspondia ao anceio d'uma revivescencia futura, acorreu a ella cheio de +enthusiasmo, ardoroso, expandindo a<span class="pn"><a name="pg_51" +id="pg_51">{51}</a></span> maior alegria. A celebração do tri-centenario +radicou no espirito da nacionalidade a ideia carinhosa de que no auctor dos +<em>Lusiadas</em> se symbolisavam as esperanças de melhores dias e talvez do +regresso a um passado opulento, viril, de inapagaveis tradicções.</p> + +<p>«Mas a grandiosa homenagem não teve só esse condão. Despertou egualmente a +energia democratica, congregou em volta das figuras do partido republicano, +então em evidencia, os elementos dispersos, consolidou-os, deu corpo á opinião +publica, foi o ponto de partida da marcha politica que, em successivas +<em>étapes</em>, conseguiu, entre nós, pôr um ponto final no regimen +monarchico. Devemol-a essencialmente a Theophilo Braga, que durante tres annos +consecutivos fez uma propaganda intensissima para a sua realisação. A commissão +executiva da festa compunham-na elle, Rodrigues da Costa, que representava ao +tempo o jornal mais antigo, a <em>Revolução de Setembro</em>; Pinheiro Chagas, +Eduardo Coelho, Jayme Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Luciano Cordeiro, eu e o +visconde de Juromenha, mais tarde substituido pelo Rodrigo Pequito. Cada um de +nós tomou a seu cargo para a preparação da solemnidade o realisar um certo +numero de conferencias em que, divulgando a obra do epico, se orientava ao +mesmo tempo o espirito publico n'um ideal genuinamente patriotico. </p> + +<p>«E a influencia exercida pela nossa acção foi tal que, apesar da hostilidade +que o governo progressista da epoca nos moveu, os <em>Lusiadas</em> entraram em +todos os lares e Camões, alcançando a maior consagração, passou a ser como que +o orago da massa popular. As edições da monumental epopeia vulgarisaram-se por +uma forma extraordinaria. Fizeram-se varias, desde a mais modesta, ao alcance +de todas as bolsas, até á de luxo, regalo de privilegiados. Os nossos +manifestos eram acolhidos com<span class="pn"><a name="pg_52" +id="pg_52">{52}</a></span> verdadeira soffreguidão e conseguiam maior exito do +que os decretos do governo. Chamava-se ironicamente á commissão do +tri-centenario o <em>comité</em> de Salvação Publica, mas essa ironia dava bem +a medida da nossa força e o que é mais: da impetuosidade da corrente +democratica que caracterisou sempre e profundamente a homenagem ao grande +poeta.</p> + +<p>«A celebração do tri-centenario fez expandir a ideia republicana que muitos +espiritos acalentavam em silencio. Em 1880 havia republicanos, mas não havia +conjugação de forças democraticas. O tri-centenario promoveu-a. Antes de se +prestar a homenagem ao poeta, já se palpava a existencia de um ideal de +liberdade e de justiça, o esboço d'uma reacção decidida contra o regimen +monarchico. Recordo-me, perfeitamente, que no antigo <em>Commercio de +Portugal</em>, ensaiando a verificação d'essa corrente avassaladora, obtive um +resultado bastante lisongeiro. Nos caixeiros, mais talvez do que nas outras +classes, encontrei elementos valiosos de propaganda—parte dos quaes +fundou e installou o Atheneu e mezes depois da celebração do tri-centenario me +auxiliou na fundação do <em>Seculo</em>.</p> + +<p>«Glorificando o epico immortal, revestindo de excepcional imponencia esse +cortejo apotheotico do dia 10 de junho de 1880, Lisboa e, com ella, as +provincias, soffreram um abalo salutar, enveredando decisivamente no caminho da +destruição da tyrannia brigantina. A monarchia comprehendeu-o e quiz impedil-o. +O rei D. Luiz pretendeu encorporar-se no cortejo e o governo não lh'o +consentiu. Em summa, a influencia desprendida da festa foi enormissima e fez-se +sentir de modo flagrante no decorrer dos annos e em diversos incidentes da vida +interna da nacionalidade».</p> + +<p> </p> + +<p>Em 1881, quando a imprensa republicana promoveu<span class="pn"><a +name="pg_53" id="pg_53">{53}</a></span> uma campanha justa e violenta contra o +celebre tratado de Lourenço Marques, a opinião vibrou como nunca até ali +vibrara. Alguns officiaes do exercito chegaram a offerecer-se para, na +impossibilidade do partido republicano se lançar abertamente n'uma revolução, +organisarem guerrilhas e d'esse modo combaterem a monarchia. Crearam-se centros +politicos, as associações de classe tomaram um incremento irreprimivel e o povo +passou a interessar-se a valer pelas attitudes dos governantes. Apoz a +celebração do tri-centenario, o dr. Magalhães Lima propoz-se deputado por +Lisboa, ou melhor, pelo circulo 98, que comprehendia S. Paulo, Santos, Lapa e +Alcantara. A lucta foi renhida. Theophilo Braga propoz-se depois por Alfama, +Manuel de Arriaga pela Baixa e Elias Garcia pelo circulo 95 (Anjos). Durante +annos foram estes os <em>candidatos chronicos</em> dos republicanos da capital. +Travaram-se batalhas eleitoraes que ficaram memoraveis. D'uma das vezes, +disputando Magalhães Lima um circulo a Hintze Ribeiro, Fontes, ao tempo +presidente do conselho, viu-se forçado a ir presidir a um comicio para +<em>poder salvar a honra do convento</em>...</p> + +<p>Comtudo, esse impulso progressivo experimentado em 1880 pelo ideal +democratico, soffreu um decrescimento apoz 1881, isto é, logo que a questão do +tratado de Lourenço Marques se apagou do espirito publico. E essa decadencia, +chamemos-lhe assim, chegou a ser tão accentuada que o incomparavel jornalista +Emygdio Navarro não duvidou um bello dia fazer um appello ao estado maior do +partido republicano convidando-o «a ir religiosamente enterrar uma bandeira que +parecia condemnada a não se desfraldar jámais». O director das +<em>Novidades</em> supplicava a todos os democratas que fossem uteis á patria, +levando a sua dedicação, o seu trabalho, a sua intelligencia aos arraiaes +da<span class="pn"><a name="pg_54" id="pg_54">{54}</a></span> monarchia, que os +receberia de braços abertos. Deram-se mesmo algumas deserções. O jornalista +portuense Emygdio de Oliveira cessou a publicação do diario <em>Folha Nova</em> +e renunciou á politica republicana. Outros dos seus correlligionarios +acolheram-se a um novo gremio politico—a <em>Esquerda +Dynastica</em>—fundado e dirigido pelo sr. Barjona de Freitas, e durante +mezes, dada a crise de desorganisação que o minava, suppoz-se até que o partido +mais avançado se fusionára n'aquella facção conservadora.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO VIII</h1> + +<h2>João Chagas abandona enojado a imprensa monarchica</h2> + +<p>Mas sobreveiu o <em>ultimatum</em> e esse conflicto diplomatico exerceu +egualmente consideravel influencia nas condições politicas da sociedade +portugueza. O patriotismo, offendido, encorporou-se nas fileiras democraticas e +engrossou-as. Brotaram da indignação do momento varios jornaes que foram outros +tantos pamphletos revolucionarios: a <em>Patria</em>, de Lisboa, o +<em>Rebate</em>, do Porto, fundado pelo sr. Eduardo de Sousa, o +<em>Ultimatum</em>, de Coimbra, fundado pelo sr. Antonio José de Almeida. Com +essa erupção jornalistica coincidiu a formação, na Universidade, d'uma geração +de propagadores do ideal, que apoz os dias luctuosos de 1890 publicou um +manifesto vigoroso, aggredindo directamente o regimen monarchico e reclamando a +bem da patria uma mudança de instituições. A policia não deixou circular esse +documento, mas dois diarios reproduziram-no immediatamente nas suas columnas. +Assignavam o manifesto, entre outros, estes estudantes:<span class="pn"><a +name="pg_55" id="pg_55">{55}</a></span> </p> + +<div class="ilustracao"><a name="img055"></a> +<p><img alt="A guarda municipal entrincheirada na egreja de Santo Ildefonso" +src="images/p055.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>A guarda municipal entrincheirada na egreja de Santo Ildefonso</p> +</div> + +<p> </p> + +<p><em>Fernando Brederode, João de Menezes, Agostinho de Campos, Cunha e Costa, +Couceiro da Costa, Antonio José de Almeida, Pires de Carvalho, Lomelino de +Freitas, Antonio Cabral, Mario Monteiro, Augusto Barreto, Silvestre Falcão, +João de Freitas, Paulo Falcão, Francisco Valle, Julio Paulo de Freitas, Malva +do Valle, Evaristo Cutileiro, Luiz Soares de Sousa Henriques, Affonso Costa, +Manuel Galvão, Lucio Paes</em><span class="pn"><a name="pg_56" +id="pg_56">{56}</a></span> <em>Abranches, Julio de Mello e Mattos, Fausto +Guedes, Bessa de Carvalho, Alberto de Oliveira, Bernardo Leite, Carneiro de +Moura, Antão de Carvalho, Arthur Leitão e Virgilio Poyares.</em></p> + +<p> </p> + +<p>É tempo de nos referirmos á entrada de João Chagas na scena politica, facto +que se produziu em 20 de fevereiro de 1890. O eminente publicista, que até +então trabalhara na imprensa monarchica, revoltado ou, melhor, enojado com o +espectaculo que presenceara durante os dias agitados que se seguiram ao +<em>ultimatum</em>, dirigiu n'aquella data esta carta ao <em>Correio da +Noite</em>:</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>Meu caro amigo</em>:—Não me convindo continuar a collaborar em +jornaes da imprensa monarchica, nos quaes, aliás, tenho tido apenas +collaboração litteraria, peço a v... me julgue desde hoje desligado da redacção +d'essa folha. Aproveito o ensejo para lhe agradecer as provas de consideração +que constantemente me tem dispensado.—Seu amigo e collega: <em>João +Chagas</em>.»</p> + +<p> </p> + +<p>Egual declaração foi publicada no <em>Tempo</em> e na <em>Provincia</em> e +no dia 21 um jornal republicano da manhã accrescentava, fazendo allusão ao +facto: «desde já affirmamos que João Chagas traz ao nosso partido toda a sua +intelligencia, toda a sua dedicação e todo o seu ulterior trabalho; é uma +adhesão valiosissima, que mostra bem o que ha de diamantino no caracter do +nosso amigo, que não hesita sacrificar interesses egoistas nas aras sacrosantas +da patria, cuja remodelação é incompativel com a subsistencia do affrontoso +regimen que nos vae explorando».</p> + +<p>Na <em>Historia da Revolta do Porto</em>, que escreveu de collaboração com o +ex-tenente Coelho, João<span class="pn"><a name="pg_57" +id="pg_57">{57}</a></span> Chagas descreve assim os seus primeiros passos na +propaganda do ideal republicano:</p> + +<p> </p> + +<p>«Em fevereiro de 1890, como um dos auctores d'esta obra, ao tempo joven e +fazendo um jornalismo sem paixão e sem ambições, se decidisse a encetar o +jornalismo politico e a adoptar a causa que era então de toda a gente, +reuniu-se a um, egualmente joven—tudo foi juventude n'esse +movimento!—alumno do curso de engenharia civil, Chrispiniano Fonseca, que +mais tarde veiu a morrer no Brazil, de febre amarella, sob a republica de +Floriano Peixoto; e tendo os dois concertado «que era preciso fazer alguma +coisa», como se dizia por essa grande epocha, começaram por ir espionar a +provincia do Algarve, onde certo dia se affirmou com alarme que rebentara uma +sedição militar e, havendo reconhecido que tal sedição estava longe de ser um +facto, voltaram as vistas para outro lado e decidiram, apoz diversas +machinações, que o que havia a fazer era <em>propaganda</em> muito activa e +muito eloquente.</p> + +<p>«D'este accordo partiu a ideia de fundar um jornal republicano, já se vê, +que tomasse a dianteira a todos os que já existiam e que, para a nossa +impaciencia, pareciam excessivamente deficientes.</p> + +<p>«Alvitrou-se que se lançasse o jornal a publico o mais rapidamente possivel, +dentro de quinze dias, dentro de um mez—e quando se discutiam as bases +d'essa publicação imprevista e fulminante, lembrámos que um jornal, tal como o +sonhavamos, desencadeando uma tormenta de paixões populares, só poderia nascer +e cobrir-se de gloria no Porto, que até então não dera grandes signaes de vida +civica, mas que se nos affigurava, pela sua tradicção e pelas nossas +superstições, o unico centro de população portugueza susceptivel de soltar o +primeiro<span class="pn"><a name="pg_58" id="pg_58">{58}</a></span> de +liberdade de que nos propunhamos ser os interpretes.</p> + +<p>«Lisboa, inçada de uma população heterogenea, disseminada n'uma grande área +e dividida pelas opiniões mais diversas, foi posta de parte, como pouco +propicia para o exito do nosso emprehendimento, e adoptou-se o Porto com +enthusiasmo e esperança. Estes dois homens não dispunham, porém, de uma moeda +de cobre que lhes permittisse acalentar tão vasto sonho, e, por outro lado, não +tinham um nome que os auctorisasse a lançar-se nas luctas politicas, em meio da +confiança dos que iam ser seus amigos e cumplices.»</p> + +<p> </p> + +<p>Apesar d'isso, João Chagas poz-se a caminho da capital do Norte, alcançou o +concurso do velho democrata José Sampaio (Bruno) e em breve formou-se uma +modesta empreza com o capital sufficiente para a fundação da ambicionada +gazeta. O primeiro numero da <em>Republica</em>—tal era o titulo do novo +jornal—sahiu a 18 de abril de 1890 e, embora esse e os numeros seguintes +traduzissem ás claras o radicalismo das aspirações do seu director, a verdade é +que o diario logrou pouca vida e pouco tempo depois suspendia a publicação. Em +setembro do mesmo anno, João Chagas, recebendo o auxilio efficaz de tres +democratas, Dyonisio dos Santos Silva, Joaquim Leitão e Alvarim Pimenta, voltou +a insistir na creação d'uma folha demolidora e fez sahir a <em>Republica +Portugueza</em>, que acolheu na sua redacção toda uma pleiade de velhos e +jovens combatentes, animados por egual do desejo de derrubar o regimen. O +artigo de apresentação inserto no primeiro numero dizia assim:</p> + +<p> </p> + +<p>«A obra d'este jornal será inteiramente e desassombradamente revolucionaria. +Tanto vale dizer<span class="pn"><a name="pg_59" id="pg_59">{59}</a></span> que +será um jornal de combate e dirá tudo o que fôr mister:</p> + +<p>«a despeito da vontade pessoal do rei;</p> + +<p>«a despeito da tyrannia dos governos;</p> + +<p>«a despeito do odio e da antipathia dos homens e dos partidos que exploram o +paiz.»</p> + +<p> </p> + +<p>No primeiro numero da <em>Republica Portugueza</em> tambem foram estampados +os retratos do rei e de dois dos ministros, precedidos d'estas palavras: +<em>Pelourinho: Os tres de Inglaterra</em>. Nos outros logares do jornal +explodia a incitação á revolta, usando-se d'uma linguagem que nunca até ali +fôra empregada com tanta franqueza. D'aqui resultou o crear-se, pelo estimulo +do exemplo, uma atmosphera de decisiva batalha, que nem os acontecimentos nem +os homens haviam ainda preparado. Affirma-o João Chagas:</p> + +<p> </p> + +<p>«A revolta de 31 de janeiro pode attribuir-se em grande parte ás instigações +directas d'esse jornal, o qual, por seu turno, se veiu a publico, não foi senão +em virtude de circumstancias que não se produziriam sem o conflicto diplomatico +anglo-portuguez. Por isso reputamos esse conflicto a causa unica do movimento +revolucionario do Porto, que, sem elle, nem encontraria meio idoneo em que se +consumasse, nem agentes que o provocassem. Dar-se-hia outro, mais tarde, e em +outras circumstancias. Esse não».</p> + +<p> </p> + +<p>Na <em>Republica Portugueza</em> collaboraram José Sampaio (Bruno), Julio de +Mattos, Basilio Telles, Latino Coelho, Elias Garcia, Gomes Leal, Heliodoro +Salgado e, o que é mais interessante fixar, varios officiaes do +exercito—um dos quaes, em serviço na guarda municipal, teve um dia ensejo +de ver querellada a sua prosa. A par d'essa collaboração,<span class="pn"><a +name="pg_60" id="pg_60">{60}</a></span> logo que a <em>Republica +Portugueza</em> viu a luz da publicidade, arremettendo violentamente contra as +instituições, appareceram um sem numero de communicações «sob a forma de cartas +e manifestos, de soldados, cabos e sargentos da guarnição portuense, a +principio, depois de militares das guarnições da provincia, por ultimo de +officiaes de todas as graduações já do Porto já de Lisboa». E os que as +enviavam ao jornal faziam-no de modo tão explicito que, em certa altura, houve +necessidade de destruir uma boa parte da papelada, receiando-se que ella +cahisse em poder dos defensores do regimen e collocasse os signatarios em +situação compromettida. Como amostra da linguagem empregada n'esses documentos, +damos a seguir o trecho d'uma carta enviada n'essa occasião á <em>Republica +Portugueza</em> por um grupo de officiaes transmontanos:</p> + +<p> </p> + +<p><em>Camaradas: A mãe-patria agonisa. É preciso que seus filhos a salvem sem +demora, porque a sua salvação é do nosso dever. Salvemos a patria proclamando a +Republica. Camaradas: Não ha tempo a perder.</em></p> + +<p> </p> + +<p>D'aqui se deprehende facilmente que os acontecimentos de janeiro de 1890 não +tinham apenas perturbado a massa generosa do povo, mas egualmente o exercito, +que se sentira molestado nos seus brios. Como toda a nação, o exercito +reclamava o desaggravo. E esse estado de animos não se revelava simplesmente +nas communicações dirigidas á <em>Republica Portugueza</em>, mas tambem em dois +orgãos da classe militar, o <em>Sargento</em> e a <em>Vedeta</em>, que deram á +imprensa democratica um forte contingente para a sua propaganda subversiva. O +<em>Sargento</em>, por exemplo, exclamava com uma audacia que ia a todo o +genero de infracções disciplinares:<span class="pn"><a name="pg_61" +id="pg_61">{61}</a></span></p> + +<p>«O exercito aguarda o plebiscito da nação, sem as restricções, as formulas e +os sophismas constitucionaes; o plebiscito dos cidadãos livres e honrados na +urna livre e honrada; o plebiscito de protesto e da representação nos comicios; +ou o plebiscito da revolução nas barricadas.</p> + +<p>«O povo é o poder legislativo; o exercito é o poder executivo. O povo é a +vontade; o exercito é a acção. O povo é a soberania; o exercito é a força. O +exercito não é uma guarda de suissos; o exercito não é uma casta. O exercito é +a nação armada e é a democracia armada».</p> + +<p> </p> + +<p>A linguagem da <em>Vedeta</em> não era menos arrojada e expressiva. A +irritação na classe militar augmentava de dia para dia, e porque o governo de +Hintze Ribeiro, sempre cuidadoso de rodear o throno do maior numero de +garantias, entrara a valer no caminho das repressões, transferindo officiaes e +mandando para o serviço do cordão sanitario, que então guarnecia a fronteira, +certos contingentes de corpos suspeitos de rebeldia. Por outro lado, em agosto, +o mesmo governo apresentava ao parlamento o tratado com a Inglaterra e esse +novo acto de vergonhosa submissão ante a <em>fiel alliada</em>, longe de +acalmar os espiritos, aguçara extraordinariamente as ideias revolucionarias.</p> + +<p>A medida ia a trasbordar... N'uma noite d'aquelle mez, um grupo de segundos +sargentos e cabos de infantaria e caçadores, sem que a sua <em>démarche</em> +correspondesse a qualquer trabalho previo de alliciação, apresentou-se na +redacção da <em>Republica Portugueza</em> e um d'elles, Annibal Cunha, formulou +o plano da rebellião. Tratava-se de fazer sahir infantaria 18, para o que +diziam contar com o apoio de grande numero dos seus camaradas, depositando +antecipadamente na alameda da Lapa, proxima do quartel, uma certa quantidade de +espingardas<span class="pn"><a name="pg_62" id="pg_62">{62}</a></span> de velho +typo, existentes na arrecadação do regimento. As espingardas serviriam para +armar os cidadãos que fosse possivel ligar á aventura.</p> + +<p>Exposto o plano, o grupo prometteu voltar ao jornal e voltou, com effeito, +desferindo então mais largos vôos, ampliando a esphera do seu emprehendimento. +Não era facil, porém, realisar na occasião qualquer tentativa e, apoz acalorada +discussão, foi decidido aguardar o regresso ao Porto das tropas empregadas no +cordão sanitario. Mas esse grupo, tendo iniciado o contacto directo com os +homens que propagavam pela palavra e pela escripta o ideal republicano, não +tardou que outros militares o imitassem e, dentro de semanas, a redacção da +<em>Republica Portugueza</em> passou a ser frequentada por dezenas de +sargentos, cabos e soldados da guarnição do Porto, todos dispostos a collaborar +na obra da revolução. Quer dizer: o <em>complot</em> militar formava-se e +avolumava-se gradualmente, espontaneamente, sem que os dirigentes da politica +democratica para elle houvessem contribuido com o mais insignificante pedido de +concurso.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO IX</h1> + +<h2>O dr. Alves da Veiga assume a chefia civil do movimento</h2> + +<p>Comtudo, tornava-se necessario acceitar as adhesões que irrompiam cada vez +mais numerosas e inflammadas e canalisal-as, dando-lhes orientação +perfeitamente definida. João Chagas e a redacção da <em>Republica +Portugueza</em> procuraram entender-se, para tal effeito, com o dr. Alves da +Veiga, que ao tempo gosava no Porto da situação d'um chefe de<span +class="pn"><a name="pg_63" id="pg_63">{63}</a></span> partido e dividiram com +elle as responsabilidades da conspiração. Até o momento, os republicanos do +Porto tinham-se limitado, na espectativa dos acontecimentos, a agitar a opinião +por meio da imprensa e dos clubs; o directorio do partido, presidido por Elias +Garcia, procurára iniciar um movimento egualmente de caracter militar e +delegára em Basilio Telles o encargo de o secundar na capital do Norte. No +emtanto, como de todos os republicanos portuenses o dr. Alves da Veiga era o +que dispunha de maior actividade organisadora, foi elle que desde logo assumiu +a chefia civil da conspiração, continuando Basilio Telles a operar de concerto +com o directorio, extranho em absoluto a esta primeira phase dos +acontecimentos. E assim, em setembro de 1890, lançando mãos á obra, o illustre +jurisconsulto preparou nas provincias do Norte diversos <em>comités</em> +revolucionarios que deviam secundar, no ensejo propicio, a iniciativa do Porto. +</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img063"></a> +<p><img alt="Fotografia do Capitão Leitão" src="images/p063.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Capitão Leitão (1891)</p> +</div> + +<p>Restava encontrar quem reunisse á sua volta, e os estimulasse, os elementos +de lucta que se offereciam constantemente á redacção da <em>Republica +Portugueza</em>. Lançou-se os olhos sobre a figura<span class="pn"><a +name="pg_64" id="pg_64">{64}</a></span> gigantesca de Santos Cardoso e o famoso +director d'um semanario de combate—que se propunha «pôr as calvas a +descoberto»—embora soffrendo d'uma reputação pouco cuidada, appareceu +immediatamente como o homem de acção capaz de aggremiar os officiaes inferiores +da guarnição do Porto que se entregavam á causa da revolta. E assim succedeu. A +casa de Santos Cardoso passou a ser o centro da conspiração dos sargentos. Mas +o director da <em>Justiça Portugueza</em>, não contente com isso, quiz ir mais +longe. Principiou a dirigir-se a varios officiaes, solicitando a sua adhesão e +a corresponder-se com o directorio, de quem recebia communicações e mais tarde +lhe conferiu um voto de confiança.</p> + +<p> </p> + +<p>Em 17 de setembro, deu-se no Porto a unica manifestação tumultuosa que +precedeu na capital do Norte a revolta de 31 de janeiro. A sua iniciativa +partiu d'um grupo de estudantes, entre os quaes se contavam Alberto de Oliveira +e Eduardo Arttayette. Começou no café Suisso, na praça de D. Pedro. Pouco +antes, tinham sido queimados á porta do estabelecimento varios jornaes do +governo—como protesto contra a apresentação do tratado de 20 de +agosto—e davam-se vivas á Patria e morras á Inglaterra, quando entrou no +café o antigo republicano Felizardo de Lima. Resoou uma enthusiastica salva de +palmas, o estudante Ernesto de Vasconcellos fez um discurso caloroso e alguem +soltou este grito:</p> + +<p>—Para a rua!</p> + +<p>Os manifestantes sahiram em massa do estabelecimento e encaminharam-se para +a rua dos Clerigos, tendo á frente, entre outros, João Chagas e o dr. Julio de +Mattos. O cortejo comprehendia individuos de todas as classes sociaes e atroava +os ares com vivas, morras e ruidosas salvas de palmas.<span class="pn"><a +name="pg_65" id="pg_65">{65}</a></span> Dos Clerigos, os manifestantes foram á +Cordoaria. Depois, em frente da Relação, o estudante Eduardo de Sousa fez um +discurso e o cortejo encaminhou-se para a rua das Taypas, produzindo novas e +estrepitosas demonstrações deante do quartel de caçadores 9. Á porta e ás +janellas do quartel appareceram muitas praças agitando os <em>bonnets</em>. Da +rua das Taypas, os manifestantes dirigiram-se á rua do Triumpho, entoando a +<em>Marselheza</em> e a <em>Portugueza</em>, então muito em voga. Em frente do +quartel de infantaria 10 reproduziram-se os applausos ao exercito e o cortejo +seguiu para a rua do Pombal, parando junto d'uma das casas d'essa rua a +acclamar o dr. Alexandre Braga, pae do illustre causidico do mesmo nome. +Alexandre Braga, assomando a uma janella, falou ao povo, affirmando-lhe estar +orgulhoso por encontrar nos moradores do Porto a sua altiva e tradiccional +energia.</p> + +<p>A manifestação seguiu depois ao campo de Santo Ovidio, parando em varios +pontos do percurso para ouvir improvisados oradores. Um d'elles disse:</p> + +<p>—O Porto precisa provar que ainda não perdeu o segredo das +revoluções.</p> + +<p>No campo de Santo Ovidio, as demonstrações patrioticas attingiram o delirio. +Alguns officiaes de infantaria 18 vieram até junto da multidão pedir-lhe +cordura. A seguir, a manifestação desceu pela rua do Almada e, voltando á +Cordoaria, passou pelo quartel da guarda municipal. Immediatamente sahiu d'ali +uma força de cavallaria e, carregando sobre a multidão, que se refugiou no +jardim, dispersou-a. Alguns individuos responderam á pedrada, houve gritos +subversivos e na refrega um estudante ficou ferido nas costas. +Reconcentrando-se, os manifestantes desceram á rua dos Clerigos e vieram para a +praça de D. Pedro. Ahi, os soldados da guarda municipal, cravando as esporas +nos cavallos, carregaram<span class="pn"><a name="pg_66" +id="pg_66">{66}</a></span> novamente sobre o povo, acutilando-o a torto e a +direito, mettendo toda a gente debaixo das patas dos animaes, varrendo não só a +praça mas as ruas circumvisinhas e ferindo e prostrando grande numero de +pessoas. Os cafés do local foram logo fechados por ordem da policia. Muitos +feridos receberam curativo no hospital da Misericordia. No dia immediato, a +cidade reentrou no socego habitual; mas todos esses incidentes que acabamos de +relatar foram a origem d'uma nova excitação que aggravou «a que já fundamente +lavrava e havia de resolver-se no movimento de 31 de janeiro».</p> + +<p> </p> + +<p>Entretanto, os trabalhos para a organisação do <em>complot</em> progrediam a +olhos vistos. Os organisadores já contavam com o concurso de varios officiaes e +porque alguns d'elles tinham apparecido nas redacções dos jornaes republicanos, +decididos, pelo menos na apparencia, a contribuir para a derrocada da +monarchia. E se é certo que no momento em que rebentou a revolta, apenas tres +d'elles conseguiram justa evidencia, a verdade é que durante o periodo +preparatorio da conspiração o numero de officiaes que n'elle intervieram +contavam-se por dezenas. Cada corpo da guarnição do Porto, sem exclusão da +guarda municipal, dava, pelo menos, um contingente de tres officiaes, cujos +nomes circulavam entre os conspiradores e eram quasi do dominio publico. Os +mais graduados eram capitães. Por outro lado, nas provincias, onde Alves da +Veiga organisara <em>comités</em> civis e militares, estes garantiam-lhe a sua +plena adhesão. O commandante d'uma das forças aquarteladas no Porto +compromettia-se a adherir ao movimento «caso não recebesse ordem em contrario +do quartel general». Santos Cardoso affirmava a todo o momento que o major +Graça, da guarda municipal, e que mais tarde havia de desempenhar um papel +decisivo na<span class="pn"><a name="pg_67" id="pg_67">{67}</a></span> +insurreição, mas para a suffocar, estava ao lado dos revoltosos.</p> + +<p>Nos quarteis, entre os officiaes, era corrente que se conspirava. As +noticias do facto transpiravam dia a dia e invadiam abertamente a opinião. Nos +cafés do Porto não se falava n'outra cousa e os agitadores não se occultavam ao +solicitar para a causa a adhesão de novos elementos. «Crescia-se em audacia. +Todos suppunham e se convenciam que caminhavam realmente para um exito seguro». +João Chagas, já na cadeia da Relação, a cumprir a sentença imposta por um +delicto de imprensa, escrevia n'um artigo inserto na <em>Republica +Portugueza</em>:</p> + +<p> </p> + +<p>«Estou convencido a serio, porque pertenço ao grande numero dos +indisciplinados republicanos que querem a Republica—de que uma revolução +se fará dentro em breve, a mais nobre, a mais generosa, a mais sympathica de +quantas revoluções tem tentado um povo offendido, em nome da sua dignidade e da +sua honra.</p> + +<p>«Quero-a, desejo-a, promovo-a e d'isso me ufano. Com a minha consciencia +vivo na mais perfeita beatitude. Da minha intelligencia faço o uso mais nobre. +Estou tranquillo por mim, porque pratico uma boa acção. Como convencional, fiz +commigo proprio um pacto que vae desde a liberdade á morte. Ao serviço da minha +causa puz todo o meu pensamento, todo o meu sentimento, toda a minha acção. +Quero, pois, a Republica por vingança, por odio e por dignidade. Dias virão, +cheios de alternativas, dias de orgulho, talvez dias de infortunio—quem +sabe? </p> + +<p>«É todo um mundo a fazer! É toda uma sociedade a reformar! Vivemos sobre +lama. Os pés enterram-se-nos no solo. Quanto esforço, quanto trabalho, quanta +coragem para consolidar o chão que<span class="pn"><a name="pg_68" +id="pg_68">{68}</a></span> nos foge!... Pois bem! Batidos, vencidos, eu, nós, +os meus companheiros de combate, recomeçaremos em qualquer ponto onde +estejamos, aqui ou na terra estrangeira, dando o nosso sacrificio pessoal, +entregando a nossa felicidade, a nossa vida á causa da patria e da liberdade. A +opinião e a historia condemnarão os que prevaricarem e, se algum de nós os +julgar um dia, dirá inexoravelmente como Manoel falando do rei de França: «Um +traidor de menos, não é um homem de menos».</p> + +<p> </p> + +<p>As idéas de revolta inflamavam todos os corações. «Os estudantes das escolas +do paiz que já se tinham offerecido ao governo para constituir um batalhão +voluntario que fosse á Africa combater os inglezes e se tinham visto recusados, +entravam resolutamente no vasto campo da rebellião. A mocidade academica de +Coimbra, posta em contacto com os revolucionarios do Porto, aprestava-se a +tomar parte na lucta em vesperas de travar-se. O grupo revolucionario +academico—sessenta e tantos estudantes—organisara-se secretamente e +reunia-se para exercicios de espingarda Kropatschek com o concurso dos +sargentos de infantaria 23. Formavam-se novos clubs republicanos. Nos logares +os mais publicos exhibiam-se opiniões revolucionarias. De toda a parte affluiam +exhortações e incitamentos em telegrammas e em bilhetes postaes. Todos pediam +que o movimento se iniciasse quanto antes. A impaciencia era flagrante e, mal +contida, expressava-se nos menores actos dos conspiradores.</p> + +<p>Alves da Veiga, tomando o pulso á agitação, ponderando os trabalhos até +então realisados e reconhecendo que o movimento necessitava á sua frente d'um +chefe militar prestigioso, abalançou-se a procurar esse official e conseguiu a +promessa formal do general Sebastião Calheiros, então residente em<span +class="pn"><a name="pg_69" id="pg_69">{69}</a></span> Vianna do Castello. +Resolvido o problema, obtida assim uma direcção certamente efficaz no instante +da revolta, aquelle official poz-se a caminho de Lisboa, decidido a arranjar +collaboradores, que o auxiliassem em semelhante empreza. O contacto do general +Calheiros com varios dos elementos republicanos residentes na capital do paiz +prejudicou o bom andamento das cousas revolucionarias... É tempo de descrever +aos leitores, como esse facto, e outros que se lhe seguiram, entravaram o +movimento, tirando-lhe ao mesmo passo o caracter d'uma acção conjuncta da +democracia portugueza.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO X</h1> + +<h2>O Directorio recusa a sancção official á revolta</h2> + +<p>No mez de setembro de 1890, quando a redacção da <em>Republica +Portugueza</em> já concentrava um numero bastante regular de sargentos +conspiradores, o partido republicano soffreu uma dissidencia profunda. D'um +lado ficou Elias Garcia, congregando á sua volta toda a parte conservadora do +partido; do outro surgiu o tenente de caçadores Homem Christo, com todos os +radicaes. «O conflicto devia ter solução no congresso annunciado para janeiro +de 1891 e no qual os dois grupos travariam a batalha decisiva». Apesar da +dissidencia, porém, os republicanos do Porto continuaram a entender-se com +Elias Garcia, pois que este, como já tivemos ensejo de referir, tambem +trabalhava na organisação d'um movimento de caracter militar e o seu delegado +na capital do Norte, Basilio Telles, prestava rasoavel concurso á actividade de +Alves da Veiga. Santos Cardoso, por seu lado, entrara<span class="pn"><a +name="pg_70" id="pg_70">{70}</a></span> na intimidade d'outros vultos em +evidencia como Bernardino Pinheiro e Theophilo Braga.</p> + +<p>Em dezembro, Homem Christo, que não via com bons olhos a chefatura de Elias +Garcia e o contrariava em tudo que parecesse dimanar da sua resolução pessoal, +procurou-o e fez-lhe sentir a inconveniencia do Directorio secundar a +<em>sargentada</em> do Porto. «A revolta de sargentos, dizia elle a Elias +Garcia, se vingar, vae ser funesta á disciplina do exercito; mas não vinga, +porque lhe falta o elemento intelligente e de cohesão». Depois, logo a seguir, +convidado por Jacintho Nunes, foi ao Porto «estudar a situação». No Porto, +Homem Christo procurou Alves da Veiga e Rodrigues de Freitas, mas não lhes +poude falar. Jacintho Nunes propoz-lhe então uma conversa com Santos Cardoso. +Homem Christo recusou, porque odiava fundamente o director da <em>Justiça +Portugueza</em>, mas depois consentiu em procural-o, para averiguar até que +ponto eram authenticos os trabalhos revolucionarios. O encontro d'esses dois +homens é assim relatado por João Chagas, que foi quem apresentou Homem Christo +e Jacintho Nunes a Santos Cardoso:</p> + +<p> </p> + +<p>«A entrevista não teve o menor effeito na obra que estava em via de +realisar-se e passal-a-hiamos em claro se o facto de termos assistido a ella +não nos permittisse formular uma impressão exacta da situação reciproca dos +dois homens—Santos Cardoso e Homem Christo—n'esse curioso lance, +mais tarde exposto e discutido nos tribunaes e na imprensa. Homem Christo +entrou em casa de Santos Cardoso munido de todas as prevenções que o +indispunham contra o director da <em>Justiça Portugueza</em>. Por seu turno, +Santos Cardoso recebeu-o como a um inimigo.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img071"></a> +<p><img alt="Uma carga de cavallaria." src="images/p071.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Uma carga de cavallaria.</p> +</div> + +<p>«A memoria não nos soccorre de forma a podermos<span class="pn"><a +name="pg_71" id="pg_71">{71}</a></span> reproduzir, dez annos volvidos, os +termos exactos d'essa conferencia; mas a impressão que nos deixou e que +subsiste no nosso espirito é de<span class="pn"><a name="pg_72" +id="pg_72">{72}</a></span> que foi um acto sobre o qual pesou uma profunda e +mal contida irritação. Santos Cardoso, com o seu ar fanfarrão de desafio e +Homem Christo, com o seu duro e implacavel desdem, estavam destinados a não +entender-se. E foi o que succedeu.</p> + +<p>«Como o director da <em>Justiça Portugueza</em>, pallido, mas affectando +serenidade, a cofiar largamente a sua vasta pera, entrasse de enumerar com +aparato aquellas forças de todas as proveniencias, que já reputava solidamente +ao serviço da revolução, Homem Christo entrou, por seu turno, de dar evidentes +mostras de impaciencia, menos talvez porque estivesse ali o homem que elle +detestava, senão porque n'esse homem detestado via o paisano a mover soldados, +que de todo o tempo irritou o espirito dos militares profissionaes. Não era +realmente irritante que aquelle adventicio, alheio a todo o saber e a todos os +interesses militares, se permittisse a impertinencia de dar sentenças a um +militar de profissão, sobre o que fossem regimentos, batalhões, companhias, +officiaes, soldados, parecendo ter a pretenção de usurpar com o seu desplante a +soberania dos chefes militares n'esse movimento feito por sargentos que elle já +parecia commandar?</p> + +<p>«Na sua cegueira, embriagado com o que suppunha já a sua obra e com o +proprio ruido das suas palavras, Santos Cardoso não comprehendia até que ponto +se tornava antipathico ao seu interlocutor. E proseguia inexgotavelmente, +enunciando regimentos, guarnições, nomes de officiaes... Friamente, como quem +se vinga, Homem Christo impoz á sua total ignorancia uma sabbatina cruel, +reduziu-o a confessar-se em erro, em equivoco, em mentira. Santos Cardoso +embrulhava-se, mettia os pés pelas mãos, já se agitava na sua cadeira, como +procurando romper. É certo que, finda essa penosa entrevista, Homem Christo o +tivesse maltratado,<span class="pn"><a name="pg_73" id="pg_73">{73}</a></span> +atirando-lhe ao rosto o epitheto de imbecil? Não o recordamos e não cremos que +essa palavra tivesse sido pronunciada em termos d'elle a ouvir. Os dois homens +despediram-se mesmo com cortezia. O que recordamos com precisão é que, já na +rua, Homem Christo disse: «Vou ali falar com alguns rapazes» e que, poucas +horas depois, como tornassemos a encontral-o, accrescentou: «Isto não está tão +mau como eu pensava».</p> + +<p> </p> + +<p>D'ahi a alguns dias, como houvesse no Porto apprehensões sobre o valor do +apoio que o Directorio dispensava ao movimento, João Chagas foi incumbido de ir +a Lisboa falar a Elias Garcia. Encontrou-o no Hotel Atlantico, mas o chefe +republicano, cauteloso e previdente, não quiz desde logo sujeitar-se á conversa +sobre tão melindroso assumpto e, rasgando em duas metades um cartão de visita, +entregou-lhe uma d'ellas dizendo:</p> + +<p>—Ás 8 horas, alguem lhe apparecerá com a outra metade d'este cartão. É +pessoa de confiança. Pode seguil-a.</p> + +<p>Ás 8, com effeito, um emissario discreto conduzia João Chagas ao Directorio, +que estava reunido em casa de Bernardino Pinheiro e, uma vez junto d'esse +democrata, de Elias Garcia, Theophilo Braga e Sousa Brandão, o director da +<em>Republica Portugueza</em> constatou que nenhum d'esses homens hostilisava o +movimento. Pelo contrario. A uma pergunta directa de João Chagas, o Directorio +respondeu que trabalhava para secundar a revolta do Porto. E no fim, apoz +animada conversa, ficou assente que o general Sousa Brandão iria pessoalmente +ao Norte inteirar-se, <em>de visu</em>, da situação—o que fez, na +realidade, encontrando-se ali com os mais importantes elementos da conjura.</p> + +<p> </p> + +<p>Em principios de janeiro reuniu em Lisboa o<span class="pn"><a name="pg_74" +id="pg_74">{74}</a></span> congresso do partido e os amigos de Homem Christo +triumpharam dos de Elias Garcia. O novo Directorio, dias depois de eleito, fez +circular pelo paiz um vigoroso manifesto em que parecia dar alento aos +revolucionarios, apontando-lhes como unico caminho a seguir, perante o +descalabro da monarchia, a execução immediata do plano da conjura. «No estado +actual da crise portugueza—dizia uma passagem do manifesto, que era +acompanhado d'um novo programma partidario—só existe uma solução +nacional, pratica e salvadora: a proclamação da Republica. Só assim acabarão os +interesses egoistas que nos perturbam e vendem, só assim apparecerá uma geração +nova capaz de civismo e de sacrificios pela Patria». Mas, quasi a seguir, o +Directorio mostrou-se como que cheio de remorsos por haver expendido doutrina +tão francamente revolucionaria e, dedicando-se a entravar os progressos, já +inilludiveis, da conspiração do Porto, fez publicar em 25 de janeiro uma +circular em que dizia sem disfarce:</p> + +<p> </p> + +<p>«Prevenimos os nossos correligionarios para que abandonem ao seu isolamento +egoista qualquer grupo perturbador que anteponha á magestade dos principios o +fetichismo de personalidades e aos interesses da propaganda as vantagens dos +lucros economicos».</p> + +<p> </p> + +<p>E concluia:</p> + +<p> </p> + +<p>«Aproveitamos este ensejo para lembrar ás dignas commissões a necessidade de +se proceder aos trabalhos do recenseamento eleitoral; e, ao mesmo tempo, que +todas as combinações importantes para a vida do Partido serão communicadas e +estabelecidas por um enviado especial do Directorio, evitando assim as +intervenções discricionarias de<span class="pn"><a name="pg_75" +id="pg_75">{75}</a></span> individualidades sem mandato, que enfraquecem toda a +auctoridade».</p> + +<p> </p> + +<p>A circular visava, como se comprehende, a tirar aos conspiradores do Porto +«qualquer sombra de auctoridade official». E para que não restasse duvidas +sobre a sua significação, no dia 27, os <em>Debates</em> publicavam um artigo +de Homem Christo, intitulado <em>Uma prevenção</em>, em que se attribuia ao +movimento o caracter d'uma <em>pavorosa</em> urdida pelo governo e se +exclamava: </p> + +<p> </p> + +<p>«Acautelem-se, pois, os republicanos com essas manobras. Revoluções +fazem-se. Não se dizem, nem se apregoam. Quando se dizem e quando se apregoam, +ou é desconchavo que faz rir, ou armadilha lançada aos ingenuos e simples do +mundo. E como ha muito ingenuo e muito simples, sempre é preciso cuidado com +taes armadilhas e artes de tratantes. Cautela, pois».</p> + +<p> </p> + +<p>Homem Christo vingava-se de Santos Cardoso e outras personalidades +implicadas no movimento, mas que lhe eram antipathicas, aggredindo-as por essa +forma indirecta e pretendendo <em>furar</em> as probabilidades de exito que, +porventura, caracterisassem o projecto de revolta. Antepunha á questão do +partido uma questão de mero odio pessoal. E a esta sacrificava tudo, indo até á +denuncia publica e formal do que se tramava na capital do Norte.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XI</h1> + +<h2>A crise ministerial dos «vinte e sete dias»</h2> + +<p>Retrogrademos um pouco até á apresentação ao parlamento do tratado +anglo-luso. Este documento,<span class="pn"><a name="pg_76" +id="pg_76">{76}</a></span> tendo sido publicado no <em>Diario do Governo</em> +em fins de agosto de 1890, levantara, como já dissémos n'outro ponto, enorme +grita de hostilidade. Os jornaes da opposição classificaram-n'o acto continuo +de: «certidão de obito passada por um diplomata funebre a uma nação narcotisada +por dois seculos de jesuitismo e de inquisição e esterilisada por pouco mais de +meio seculo d'um constitucionalismo dissolvente e desmoralisador». Pela +essencia do tratado, Portugal não podia alienar os seus territorios africanos +sem previo consentimento da Inglaterra. </p> + +<p>As associações mais importantes da capital pronunciaram-se altivamente +contra a ratificação de semelhante «hypotheca feita á Grã-Bretanha». +Convocaram-se comicios em diversas cidades do paiz, houve mesmo um no Porto +presidido pelo africanista Alvaro de Castellões, em que os oradores, alguns +monarchicos, tonitruaram contra o negociador do tratado, o sr. Barjona de +Freitas; de modo que no dia em que o ministro Hintze Ribeiro se aprestou a ler +o respectivo texto á camara dos deputados, a esquerda parlamentar acolheu as +suas primeiras palavras com uma enorme pateada. A esta manifestação da esquerda +corresponderam ligeiras manifestações das galerias e a maioria rompeu em +invectivas contra a opposição, despedindo-lhe phrases como estas:</p> + +<p>—Fóra pulhas!...</p> + +<p>—Isso é indecente!... é de canalhas!</p> + +<p>A opposição recrudesceu na gritaria e o tumulto generalisou-se. Serpa Pinto, +que era deputado governamental por Lisboa, subindo a uma coxia, interveiu, +clamando com intimativa:</p> + +<p>—Nem mais uma palavra aqui, nem mais um pio!</p> + +<p>—O que? O que diz? perguntou-lhe o padre Alfredo Brandão.<span +class="pn"><a name="pg_77" id="pg_77">{77}</a></span></p> + +<p>Serpa Pinto replicou:</p> + +<p>—Nem mais um pio, sou eu que o digo.</p> + +<p>O reverendo agarrou então o heroe pelas orelhas, sujeitando-o nos seus dedos +de ferro e a desordem tomou por momentos proporções inenarraveis. Restabelecida +a calma, o tratado foi enviado ás commissões incumbidas de lhe dar parecer. +Naufragara decisivamente por effeito do tumulto parlamentar.</p> + +<p> </p> + +<p>Ao cahir da tarde, esse tumulto repercutiu-se, sangrento, nas ruas de +Lisboa. O povo, que se agglomerara durante o dia no largo das Côrtes, +encaminhou-se ao terminar a sessão para os lados da Esperança. A policia quiz +dispersal-o e effectuou uma prisão que foi mal recebida pela grande massa. +Tanto bastou para que os guardas cahissem á cutilada sobre os populares, +travando-se lucta renhida, pois a multidão resistiu corajosamente á ferocidade +dos janizaros. A policia, por fim, refugiou-se na esquadra de S. Bento, em +frente das grades do largo das Côrtes e d'ali disparou os revolvers sobre o +povo, ferindo alguns individuos e matando o operario fundidor Carlos Franco +(<em>Antonio Pardal</em>). O cadaver do infeliz foi transportado á casa +mortuaria da Misericordia e o povo acompanhou-o em cortejo dorido, convidando +toda a gente que encontrava no percurso a descobrir-se ante o «martyr +sacrificado ás iras governamentaes».</p> + +<p>No dia seguinte declarava-se a crise ministerial. Por espaço de vinte e sete +dias, a corôa recorreu a todos os expedientes afim de constituir o novo +gabinete. Pretendia-se que o momento era azado para experimentar os politicos +que não pertenciam á rotação constitucional. De Roma veiu a toda a pressa o sr. +Martens Ferrão, mas nada conseguiu fazer. A situação era grave, confessavam-n'o +os<span class="pn"><a name="pg_78" id="pg_78">{78}</a></span> proprios jornaes +monarchicos. «Estamos á mercê d'um movimento popular, que pode rebentar d'um +instante para outro e porque a irritação publica augmenta a olhos vistos». +Chegou-se a aventar a subida ao poder d'um ministerio de concentração, de que +fizessem parte representantes do partido republicano. A propria imprensa +democratica quasi que intimava os seus adeptos a tomarem conta das pastas +vagas. No estrangeiro a Republica Portugueza annunciava-se para breve como um +facto previsto, indiscutivel.</p> + +<p>A 18 de setembro repetiram-se os conflictos populares. Apoz um incidente +motivado pela policia, no largo de Camões, de dois garotitos inoffensivos, uma +força da guarda municipal parou em frente do Café Martinho, onde abancavam +estudantes, jornalistas, militares, deputados, gente, emfim de todas as +classes, e sem previo aviso desfechou sobre aquella mole desarmada, causando um +mixto de panico e de colerico assombro nas victimas de semelhante surpreza. +Depois, a mesma força andou em correrias selvagens pela avenida da Liberdade e +arterias proximas, espancando quem encontrava desprevenido. Quer dizer: apesar +de demissionario o gabinete regenerador, os serventuarios do regimen recorriam +ao emprego da brutalidade e da selvageria para aterrorisar o povo e impedir o +mais ligeiro gesto de censura ao regimen.</p> + +<p>Por fim, a crise ministerial foi resolvida com a constituição d'um gabinete +extra-partidario da chefia do general João Chrysostomo e em que eram ministros: +da guerra, o presidente do conselho; do reino, Antonio Candido; da justiça, Sá +Brandão; da fazenda, Mello Gouveia; da marinha, Antonio Ennes; das obras +publicas, Thomaz Ribeiro; dos estrangeiros, Barbosa du Bocage. Mas esta solução +dada pela corôa á situação politica do momento não logrou aquietar os animos e +as primeiras<span class="pn"><a name="pg_79" id="pg_79">{79}</a></span> +providencias decretadas pelo novo governo nada mais conseguiram do que +intensificar os odios que o throno já concitára á sua volta, e no paiz +inteiro.</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img079"></a> +<p><img alt="Fotografia de Rodrigues de Freitas" src="images/p079.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Rodrigues de Freitas (1891)</p> +</div> + +<p>Iniciaram-se perseguições á imprensa e, para dar satisfação ás reclamações +inglezas sobre a rejeição do tratado de 20 de agosto, approvou-se um +<em>modus-vivendi</em>, pelo qual Portugal concedia á Grã-Bretanha a liberdade +de navegação no Chire e no Zambeze. Pela mesma época fundou-se a chamada +<em>Liga Liberal</em>, partido em que preponderou o sr. Augusto Fuschini e que +teve uma aura de sympathia, dadas as suas apparencias revolucionarias. Falhou +quasi a seguir, porque não passava, afinal, d'uma liga de concentração de +interesses conservadores. No emtanto, a agitação popular ia crescendo, +crescendo sempre, a conspiração do Porto alargava mais e mais a importancia e o +numero de adhesões e nos fins de dezembro de 1890 já se perguntava sem disfarce +e em voz alta quando rebentava a revolta. A mocidade das escolas fremia de +impaciencia e de indignação. Guerra Junqueiro publicara o seu <em>Finis +Patriæ</em> e as estrophes da bella poesia resoavam a todos os ouvidos como +notas vibrantes d'um canto guerreiro.<span class="pn"><a name="pg_80" +id="pg_80">{80}</a></span></p> + +<p>Em certa altura, Alves da Veiga apresentou-se em Lisboa e, ás advertencias +do novo Directorio, que lhe fez sentir a inopportunidade do movimento em plena +preparação effervescente, respondeu que da melhor vontade se esforçaria por +addial-o, mas que tal empreza não era facil, porque a excitação dos elementos +militares portuenses não admittia delongas. E, a comprovar-lhe a affirmativa, +deu-se um facto que marcou por assim dizer a data da revolução, apressando-a, +ou melhor, precipitando-a. Referimo-nos a uma reunião de sargentos da guarnição +do Norte, effectuada a 24 de janeiro de 1891, n'uma casa da rua do Laranjal. +Essa reunião foi provocada por um acto do ministro da guerra, que descontentou +sobremaneira a classe. Os sargentos vinham desde muito reclamando, por +intermedio do seu orgão especial, contra a forma de promoção; e as suas +reclamações assumiram feição mais aggressiva, quando a ordem do exercito +publicada em 17 de janeiro de 1891 inseriu a promoção ao posto de alferes de +trez aspirantes,—promoção contraria á lei, visto que por ella deviam +beneficiar dois aspirantes e um 1.º sargento.</p> + +<p>O orgão da classe transpareceu logo esse descontentamento e um grupo de +sargentos da guarnição do Porto divulgou um protesto em que se dizia com toda a +clareza:</p> + +<p> </p> + +<p>«Camaradas!</p> + +<p>«Nós temos sido a pella de brinquedo dos governos nos ultimos tempos e o +nosso bom nome clama com energia para que termine este ultrage. Ha pouco era um +ministerio que, tendo-nos constantemente illudido com a promessa de augmento de +vencimento, só quando foi invadido pelo terror da agonia é que se lembrou de +que nós podiamos ser seu sustentaculo, e por isso tentou corromper-nos, +sacudindo nas nossas faces as migalhas da toalha<span class="pn"><a +name="pg_81" id="pg_81">{81}</a></span> do orçamento. Agora é um gabinete +presidido por um general, que nós ingenuamente consideravamos nosso protector, +nosso amigo solicito e desvelado, que, tendo-nos promettido a escala de +promoção por antiguidade do curso, se curva ante as exigencias de uma +aggremiação politica em que militam muitos officiaes da arma scientifica, +respondendo com despreso á nossa ardente... e jubilosa expectativa.</p> + +<p>«Unamo-nos todos: que haja uma só voz, um só pensamento, uma só vontade! Só +assim nos poderemos vingar impondo a nossa força e fazendo prevalecer os nossos +direitos contra a perfidia dos nossos <em>amigos</em>. Desviemos os olhos +d'este monturo pestilento, que exhala miasmas que nos asphyxiam e volvamol-os +para a alvorada que desponta no horisonte social... Tomemos as armas nas mãos, +e com fé e enthusiasmo saudemos o futuro, que elle minorará a nossa sorte +ingrata.»</p> + +<p> </p> + +<p>Ao mesmo passo, tres sargentos-ajudantes da guarnição de Lisboa redigiam e +faziam imprimir a minuta d'uma petição que enviaram a todos os corpos de +infantaria e caçadores, a fim de ser assignada individualmente pelos +1.<sup>os</sup> sargentos d'esses corpos e remettida ao parlamento. A petição +solicitava que a promoção continuasse a ser regulada na razão de um terço das +vacaturas que occorressem no posto de alferes.</p> + +<p>Recebido no Porto esse documento, os sargentos da guarnição apressaram-se a +reunir para o apreciar.<span class="pn"><a name="pg_82" +id="pg_82">{82}</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XII</h1> + +<h2>«E as armas que nos foram entregues para defeza das instituições, +voltal-as-hemos contra ellas»</h2> + +<p>Á reunião na casa da rua do Laranjal—casa habitada por um individuo da +intimidade de Santos Cardoso—presidiu o alferes de caçadores 9, Simões +Trindade, homem da absoluta confiança da classe e que com ella cooperava no +movimento da revolta. Mas os sargentos presentes, não se contentando com o +subscreverem individualmente a petição enviada de Lisboa, foram mais longe: +approvaram a minuta d'um verdadeiro <em>ultimatum</em>, ameaçando o governo com +a sedição caso elle não respeitasse a lei no tocante ás promoções. A ameaça +continha entre outras esta phrase: «...<em>e as armas que nos foram entregues +para defeza das instituições voltal-as-hemos contra ellas</em>».</p> + +<p>O sargento-ajudante de infanteria 18 Arthur Ferreira de Castro, que tambem +tomara parte na reunião, conseguiu obter copia do documento e entregou-o ao +capitão do mesmo regimento Alexandre Sarsfield, que, por sua vez, o passou ao +coronel Lencastre de Menezes. Estava denunciado o proposito dos sargentos e não +tardou que o ministerio da guerra, tendo conhecimento minucioso do que se +discutira na assembléa da rua do Laranjal e de posse de uma lista de officiaes +inferiores que a ella tinham assistido, desatasse a transferir quantos se lhe +affiguravam suspeitos de republicanismo.</p> + +<p>Quer dizer: a traição do sargento-ajudante Arthur Ferreira de Castro não só +revelou ao governo a existencia da conspiração como, provocando as immediatas +represalias, contribuiu directamente para que os revolucionarios apressassem a +sua sahida<span class="pn"><a name="pg_83" id="pg_83">{83}</a></span> e a +levassem a cabo em condições bastante tumultuarias. «Sem a denuncia do sargento +Castro—affirma uma testemunha dos acontecimentos—os sargentos do +Porto não se teriam precipitado e a revolta, que se daria um mez ou dois mais +tarde, teria tido provavelmente um chefe militar, um estado maior bem mais +numeroso, um plano mais intelligente e, seguramente, uma maior e mais vasta +repercussão. Não seria, então, uma revolta: seria uma revolução, incendiando +pelo menos metade do paiz e á qual era de presumir que a outra metade +adherisse, dada a disposição geral dos espiritos para uma transformação +politica, que um grande numero reputava indispensavel e que os outros +acceitariam sem protesto. Assim, foi um homem, um homem só, obscuro, +desconhecido, vindo do anonymato e da treva, que subverteu a obra da redempção +do anno de 91, entravando a evolução politica da nação, fazendo parar com seus +fracos pulsos a ideia que já se precipitava na gloria de um futuro talvez +maravilhoso, mergulhando—quem sabe?—a bella Patria portugueza na +desesperação de um incerto destino ou de um outro, porventura, funestamente +irremediavel».</p> + +<p>Ordenadas as transferencias de sargentos compromettidos no movimento, todos +elles foram procurar Santos Cardoso e instaram energicamente para que se não +addiasse por mais tempo a sua eclosão. Santos Cardoso entendeu-se com o dr. +Alves da Veiga e este, convencendo-se de que não havia maneira de protelar a +revolta embora inopportuna, tratou de, em curto espaço, ultimar os preparativos +dando certa unidade aos elementos que, fora do Porto, o deviam secundar no +momento decisivo. Santos Cardoso ainda tentou um derradeiro esforço junto dos +sargentos mais exaltados, mas estes, vendo nas evasivas do director da +<em>Justiça Portugueza</em> um receio injustificado, puzeram a<span +class="pn"><a name="pg_84" id="pg_84">{84}</a></span> questão n'estes termos: +«Se no dia 30 de janeiro não resolverem fazer a revolução, sahiremos para a rua +á frente dos soldados».</p> + +<p>Não havia que hesitar. No dia 30, Santos Cardoso e o dr. Alves da Veiga +decidiram o general reformado da arma de engenharia Correia da Silva a tomar a +direcção do movimento, mas o general só acceitou o encargo «até ao momento em +que algum official superior, em effectivo serviço, apparecesse a assumir o +commando das tropas revoltadas ou ainda se os officiaes que se apresentassem á +frente d'essas tropas concordassem em que fosse elle o chefe».</p> + +<p>D'ahi a uma hora, effectuou-se uma reunião em casa d'uns parentes do +general, na rua de Malmerendas, reunião para que foram convocados todos os +officiaes adherentes e os individuos da classe civil destinados á execução do +plano revolucionario. Á mesma hora realisava-se n'uma casa da rua da Alegria +uma reunião de cerca de setenta sargentos e estes, receiando que o general +Correia da Silva opinasse pelo addiamento da revolta, foram á rua de +Malmerendas demovel-o d'esse proposito.</p> + +<p>O general ouviu-os e, por fim, concordou-se em que o movimento rebentaria na +madrugada. Faltava discutir o plano revolucionario. Para isso marcou-se nova +reunião, ás 10 da noite, na rua de Santa Catharina. Talvez n'ella comparecesse +maior numero de officiaes, visto que nem todos os compromettidos tinham +recebido o respectivo aviso e a primeira reunião na rua de Malmerendas +caracterisara-se pela falta de muitos d'esses elementos.</p> + +<p> </p> + +<p>«Para aproveitar o tempo que decorria até se realisar essa reunião, +entendera o general, bem como o dr. Alves da Veiga, que fossem procurados +alguns officiaes de superior graduação, convidando-os<span class="pn"><a +name="pg_85" id="pg_85">{85}</a></span> a comparecer em casa d'um conhecido +negociante do Porto. Esses officiaes eram o coronel, o tenente-coronel e um +major de caçadores 9, que se recusaram a acceder ao convite. Lembrou-se, em +vista da recusa d'estes, o nome d'outro official, que, sem ter uma graduação +superior, era comtudo muito estimado entre os seus camaradas e gosava de um +notavel prestigio entre os seus subordinados. Este alvitre, porém, não foi +aceito; por consequencia, o general Correia da Silva ficaria, até ulterior +resolução e dependendo isso das circumstancias occorrentes, com o commando em +chefe das tropas revolucionarias».</p> + +<p> </p> + +<p>Ás 10 da noite, na reunião da rua de Santa Catharina compareceram apenas o +general, o dr. Alves da Veiga, Santos Cardoso, diversos civis, alguns +sargentos, o capitão Leitão e um alferes da guarda fiscal. Os outros officiaes +compromettidos não compareceram, ou, melhor, não foram convidados a comparecer. +Durante alguns instantes, o general e o capitão Leitão discutiram o plano +revolucionario. O primeiro entendia que as tropas deviam concentrar-se na praça +da Batalha e tomar desde logo posse do quartel general, do governo civil e do +telegrapho, cujos edificios estão reunidos n'aquelle local. O capitão Leitão +desejava que a concentração se fizesse no campo de Santo Ovidio e contrariava a +indicação do general, porque, dizia, os revolucionarios necessitavam antes de +tudo vencer uma difficuldade: a da sahida do quartel do regimento de infantaria +18. A respectiva officialidade, quasi toda residindo dentro do edificio, fôra, +decerto prevenida, do proposito dos sargentos pela denuncia do traidor Castro e +trataria de oppôr-se a que elles sublevassem as praças. Por conseguinte, só com +a presença dos outros corpos nas immediações do quartel é que infantaria 18 +poderia, quebrando<span class="pn"><a name="pg_86" id="pg_86">{86}</a></span> +os laços da disciplina, cooperar na insurreição. Quanto ao quartel general, os +revoltosos contavam que o sargento commandante da guarda o submetteria sem +difficuldade.</p> + +<p>O general Correia da Silva insistiu mais do que uma vez na superioridade do +seu plano estrategico, mas Santos Cardoso, collocando-se ao lado do capitão +Leitão, fez vingar a ideia de se effectuar a concentração das tropas no campo +de Santo Ovidio. Assentou-se tambem em que alguns dos civis presentes +procederiam á detenção das auctoridades governamentaes, mas com a condição de +não exercerem sobre ellas a menor violencia, salvo se isso se tornasse +absolutamente indispensavel ao bom exito da causa. Do mesmo modo se deveria +proceder para com os officiaes que se não solidarisassem desde logo com o +movimento. Por ultimo: o general Correia da Silva só seria chamado ao campo de +Santo Ovidio, se depois das tropas ali concentradas não apparecessem a +commandal-as officiaes d'uma certa graduação.</p> + +<p>Dissolvida a reunião, o dr. Alves da Veiga e outros conjurados +encaminharam-se para a loja maçonica o <em>Gremio Independencia</em>, d'onde +deviam lançar as ordens necessarias para a execução do plano pouco antes +delineado. A essa hora, no Porto, a noticia de que dentro em pouco rebentaria a +revolta já se divulgara o bastante para que a maioria da população a não +ignorasse. Mostra-o o depoimento do ex-tenente Coelho, consignado no livro que +escreveu de collaboração com João Chagas. Vamos transcrevel-o, porque evidencia +egualmente a precipitação com que, chegado o momento decisivo, se tocou a +reunir nos arraiaes revolucionarios:</p> + +<p> </p> + +<p>«Entrando o tenente Manuel Coelho, por um mero acaso, na noite de 30 no Café +Central, que<span class="pn"><a name="pg_87" id="pg_87">{87}</a></span> era +então um verdadeiro foco de conspiração, veiu a saber que se preparava a +revolução para a madrugada immediata de 31 em circumstancias que é conveniente +registar. Depois de haver trocado algumas palavras com um seu camarada, tomou +assento a uma das mezas do café. D'ahi a pouco acercou-se-lhe o dr. João +Novaes, que lhe disse:</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img087"></a> +<p><img alt="Levantando os feridos" src="images/p087.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Levantando os feridos</p> +</div> + +<p>«—Já sabes que a revolução se projecta para a madrugada?</p> + +<p>«—Não, respondeu-lhe; e até me surprehende muito a noticia, porque o +capitão Leitão me viu no quartel e de nada me falou.</p> + +<p>«—Pois toda a gente diz isso ahi á bocca cheia. Sabem-n'o todos, até +mesmo a policia.</p> + +<p>«—Não sei de nada, e quer-me parecer que, se a noticia tivesse algum +fundamento, certamente eu teria sido procurado.</p> + +<p>«—Tens razão, com effeito, replicou o dr. João Novaes; mas corre o +boato com tal insistencia que<span class="pn"><a name="pg_88" +id="pg_88">{88}</a></span> me parece que elle tem fundamento. Mas eu vou já +sabel-o; vou falar ao dr. Alves da Veiga.</p> + +<p>«O dr. João Novaes sahiu. Pouco depois entravam no Café Central o tenente da +cavallaria 6 Vaz Monteiro, destacado no Porto, e o tenente Margarido de +cavallaria da guarda municipal. Aquelle veiu immediatamente sentar-se junto de +Manuel Coelho, acercando-se de ambos este ultimo, que, logo depois de +cumprimentar, disse:</p> + +<p>«—Então sabes o que para ahi corre?... Diz-se que n'esta madrugada se +vae fazer uma revolução republicana.</p> + +<p>«—Não ouvi ainda falar de tal.</p> + +<p>«E a rir replicou:</p> + +<p>«—Ah! que tu tambem estás compromettido!</p> + +<p>«—Não, não sei de nada, podes crêr...</p> + +<p>«E explicou que, se sabia a noticia, era por causa do impedido d'um official +de infantaria 18 que o dissera no quartel a outras praças d'aquelle regimento. +Passados momentos, entrava de novo o dr. João Novaes, que aproveitou o ensejo +para dizer que, com effeito, estava plenamente confirmado o boato e que o dr. +Alves da Veiga lhe affirmara que a revolução se iniciaria ás 3 horas da manhã, +com a sahida dos corpos revoltados. Entretanto, iam conversando Manoel Coelho e +os tenentes Vaz Monteiro e Margarido, em assumpto differente d'aquelle que +primeiro abordaram.</p> + +<p>«Eram já dez e meia da noite e os freguezes do café começavam a rarear. +Preparava-se Manuel Coelho para sahir, quando notou que, do guarda-vento +envidraçado do café, um individuo, que apenas havia entrevisto, uma por outra +vez, falar com o capitão Leitão, lhe fazia signal de querer transmittir-lhe +qualquer communicação. Approximou-se d'esse individuo, que lhe disse:</p> + +<p>«—O sr. capitão Leitão manda-me aqui para dizer a V. que deseja +falar-lhe.<span class="pn"><a name="pg_89" id="pg_89">{89}</a></span></p> + +<p>«—A mim? Sabe quem sou?</p> + +<p>«—É o sr. tenente Coelho, não é verdade?</p> + +<p>«—Com effeito. E onde está o sr. capitão Leitão?</p> + +<p>«—No <em>Gremio Independencia</em>. Se o consente, acompanho-o. </p> + +<p>«Seguiram os dois. As ruas estavam inundadas e a chuva persistente fazia +caminhar rapidamente. Emfim, chegaram á rua Fernandes Thomaz, esquina da rua de +Santa Catharina, tendo atravessado por uma das ruas lateraes do mercado do +Bolhão. Subiram a longa escadaria do edificio onde estava installado o +<em>Gremio Independencia</em> e penetraram n'uma sala do segundo andar, onde +estava reunido um grande numero de individuos. Eram os irmãos d'esse gremio, +que tinham sido convocados pelo dr. Alves da Veiga, com o fim de encobrir a +concorrencia áquella casa, de outras pessoas estranhas á associação. </p> + +<p>«Á volta do bilhar, jogando, andavam dois homens, um dos quaes era o capitão +Leitão, trajando á paisana: grosso jaquetão de pelles, calça clara unida á +perna e chapéo desabado. No nariz, a sua luneta de vidros escuros, que elle +usava, mais que por outro motivo, pela necessidade de occultar a fixidez do +olho direito immobilisado, quasi completamente, pela paralysia dos musculos da +face. Muito embaraçado, olhou em redor e disse:</p> + +<p>«—O dr. Alves da Veiga está lá em baixo; vamos falar-lhe.</p> + +<p>«Depôz o taco e desceram ao primeiro andar. N'um pequeno gabinete interior, +cuja forma se approximava do symbolico triangulo, encontravam-se, cada um +sentado á sua meza, Santos Cardoso e o dr. Alves da Veiga. Em pé, e como +esperando ordens, estava um homem ainda novo, pequeno bigode, quasi um buço +sombreando-lhe o labio, grandes olhos vivos que pareciam prestes a sahir das +orbitas, estatura menos que meã, largos hombros,<span class="pn"><a +name="pg_90" id="pg_90">{90}</a></span> busto amplo, poisando em pernas +robustas; era Annibal Cunha, então cabo de infantaria 18, estudante da Escola +Polytechnica. O dr. Alves da Veiga estava com um lapis pondo signaes em frente +dos nomes registados no <em>Almanach Commercial</em> e designados sob a +rubrica—<em>Regimento de infantaria n.º 10</em>.</p> + +<p>«—É certo, perguntou Manuel Coelho, o que por ahi corre, da projectada +revolução para esta madrugada?</p> + +<p>«Sim, era certo; não tinha podido ser de outro modo. Santos Cardoso, do +lado, affirmou com superioridade:</p> + +<p>«—Estou a fazer os avisos.</p> + +<p>«Com effeito, em cartões de visita, com o seu nome, escrevia—<em>pede +a V. para comparecer ás 3 da madrugada no campo da Regeneração</em>. E mettia +depois esses cartões em envelopes nos quaes escrevia o nome d'um official, +entregando-os a Annibal Cunha.</p> + +<p>«O tenente Manuel Coelho retirou-se preoccupado. As circumstancias não eram +de natureza a fazer-lhe acreditar n'um triumpho. Todavia, era forçoso acceitar +os factos como elles se apresentavam. Era tarde para discutir e inopportuno +desobedecer».</p> + +<p> </p> + +<p>Emquanto no <em>Gremio Independencia</em> se passava isto que acabamos de +transcrever, varios republicanos em destaque, reunidos n'um gabinete do Café +Suisso, preparavam o manifesto que desde o inicio da revolta seria lançado: +<em>Aos camaradas do Norte e Sul de Portugal; aos cidadãos do Porto; aos +cidadãos portuguezes!</em> Esse manifesto, composto e impresso na typographia +da <em>Republica Portugueza</em>—e cujos exemplares foram destruidos ao +ser um facto a derrota dos insurrectos—principiava assim:<span +class="pn"><a name="pg_91" id="pg_91">{91}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p>«A força militar do Porto acaba de dar por findo o reinado do sr. D. Carlos +de Bragança. Proclamou a Republica. Não se trata d'uma simples, d'uma +transitoria revolta. Foi uma revolução que se fez».</p> + +<p> </p> + +<p>Expunha a seguir, a traços largos, a situação do paiz, <em>situação +aviltante, deshonrosa, receiante</em>. Era um documento em que cada um dos +convivas d'essa historica ceia no Café Suisso puzera a sua «nota pessoal, +philosophica, ou anedoctica» e que surgira dos commentarios calorosos, +apaixonados, sobre o resultado do movimento que não tardaria a rebentar.</p> + +<p>Mas, emquanto os conspiradores davam a ultima demão aos preparativos da +revolta, as auctoridades civis e militares tomavam conhecimento d'uma parte do +plano concebido e concertavam os meios de o inutilisar. Ás 7 da noite de 30, um +amigo do governador civil, Joaquim Taibner de Moraes, tendo ouvido a dois +sargentos que infantaria 18 se insurreccionaria na madrugada de 31 «por causa +da transferencia d'um sargento ajudante», foi avisal-o do caso e aquella +auctoridade dirigiu-se immediatamente ao quartel do Carmo, a prevenir o +commandante da guarda municipal.</p> + +<p>A conferencia foi rapida. N'ella ficou assente que o commandante da guarda +concentraria, sem grande apparato, toda a força de que pudesse dispôr e que +mandaria vigiar de perto os outros quarteis militares dados como suspeitos. +Combinado isto, o governador civil e o commisario da policia procuraram o +commandante interino da divisão—o general Scarnichia marchara pouco antes +para Lisboa—e esse commandante foi, em pessoa, ao quartel de infantaria +18, onde, em face das suas ordens, todos os officiaes passaram a exercer a +maior vigilancia nas respectivas companhias, «aguardando o que de anormal se +preparava».<span class="pn"><a name="pg_92" id="pg_92">{92}</a></span></p> + +<p>Por outras palavras: á meia noite de 30, as auctoridades civis e militares +do Porto sabiam perfeitamente o que estava planeado e repousavam descançadas, +suppondo ter providenciado de modo a impedir qualquer tentativa de sedição. +Comtudo é curioso registar que essas providencias se haviam limitado á policia +civil, á guarda municipal e ao regimento de infantaria 18 e que aos +commandantes de infantaria 10 e caçadores 9 nada fôra communicado ou +transmittido que lhes revelasse <em>officialmente</em> o proposito dos +revolucionarios.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XIII</h1> + +<h2>Vinte annos apoz a derrota...</h2> + +<p>A manhã do dia 30 surgira nevoenta, tristonha, açoitada pelo vento agreste +do inverno. D'ahi até a noite alta, a chuva cahiu a espaços inundando a cidade +e afastando das ruas do Porto a massa de transeuntes. João Chagas, encurralado +na cadeia da Relação, recebera á tarde a visita de Alves da Veiga, que sombrio +e preoccupado lhe dissera, falando do movimento prestes a rebentar:</p> + +<p>—Vae ser desastroso...</p> + +<p>—Evite.</p> + +<p>—É tarde...</p> + +<p> </p> + +<p>Ao começo da noite, os soldados de guarda á cadeia e que estavam no segredo +da conspiração foram despedir-se de João Chagas:</p> + +<p>—Vimos dizer-lhe adeus... até logo.</p> + +<p>—Até logo.</p> + +<p> </p> + +<p>Que se passou depois? Fala o brilhante jornalista, confiando ao auctor +d'esta narrativa as suas impressões da madrugada tragica:<span class="pn"><a +name="pg_93" id="pg_93">{93}</a></span></p> + +<p>«Já decorreram vinte annos sobre a derrota... Na vespera á noite, assim que +a treva obscureceu o ambiente, começaram para mim horas inquietas e +perturbadas. Sabia que a insurreição devia rebentar ás tres da madrugada. Tirei +o relogio do bolso. Eram oito horas. Distrahi-me em coisas futeis, bebi café e +fumei como um desesperado. Ainda, como distracção e talvez para surprehender +mais facilmente o primeiro rumor d'essa arrancada decidida contra a monarchia, +abri a janella. A noite, humida, afogava a cidade. Houve um instante, já quando +se approximava a hora marcada para o rebentar do movimento, que suppuz +aperceber o barulho de carros á desfilada...</p> + +<p>«Ás duas e meia, gelado pelo frio, comprehendi que se fazia um silencio +magestoso, o silencio do somno pesado. Mas d'ahi a pouco levantou-se um clamor +enorme e distingui gritos, brados, vivas, vozes confusas, retinir d'armas. +Depois, uns minutos de treguas, minutos terriveis de anciedade e, <em>perto de +mim</em>, o passo cadenciado d'uma força militar... Eu, que não resava, fiz +<em>in mente</em> uma grande e ferverosa prece <em>por elles</em>. A força não +tardou a desapparecer e voltou a agitar-me a persuasão de que tudo recahira em +tranquilidade absoluta. Os minutos escoaram-se dolorosissimos, augmentando a +minha impaciencia, aguçando a minha ignorancia do que occorria. Cheguei a ter a +impressão de que essa guarda-avançada dos insurrectos se submettia +completamente e que a mesma noite que a vira nascer a veria sepultar. Horrivel +e febril essa hesitação do meu espirito, sem outro horizonte que uma neblina +glacial, torturante e a galhofa das sentinellas que vigiavam o meu carcere.</p> + +<p>«A fadiga e a commoção prostraram-me. Exhausto, renunciei a saber, a +indagar, a prescrutar. Tombei no leito, fechei os olhos e dormi. Quando +despertei, era manhã clara. A nevoa dissipara-se e a cidade<span class="pn"><a +name="pg_94" id="pg_94">{94}</a></span> surgia cheia de luz. Corri á janella. O +socego parecia completo. O dia annunciava-se lindo, calmo. Mas não tardou que +um homem de quem me não lembro o nome, entrando na cella, me communicasse que a +revolução estava na rua, e, seguindo-o e enfiando a cabeça por umas grades de +ferro, presenciei effectivamente um dos episodios do combate. O movimento +estava realmente no seu auge. A fuzilaria crescia de minuto para minuto. +Convencido do triumpho, preparei-me para a sahida da cadeia... Não tardariam +decerto a vir-me buscar.</p> + +<p>«O resto é por demais sabido. Ao começo da tarde, a bandeira revolucionaria, +que até então tremulara no edificio da Camara, desappareceu com o estrondear do +canhão. Esse trapo, que era a minha esperança, sumira-se após um tiroteio +pavoroso, encarniçado. Ao declinar do dia, tive a sensação da derrota. Sobre a +cidade cahia verdadeira mortalha. Tornei de novo a estender-me no leito, dormi +doze horas sem interrupção e, quando despertei, reconheci-me excellentes +disposições para affrontar a tempestade que ia desencadear-se, impiedosamente, +sobre a minha cabeça...»</p> + +<p> </p> + +<p>Vejamos o que á mesma hora succedia em Coimbra, onde, como em Santarem e +outras cidades do paiz, a organisação revolucionaria portuense contava um +auxilio efficaz.</p> + +<p>Resolvido que a sedição se iniciaria ás 3 da madrugada de 31, Alves da Veiga +mandou a Coimbra Ricardo Severo com o encargo de communicar a Silvestre Falcão: +«que estivessem todos a postos, mas que só sahissem em armas quando recebessem +um telegramma em cifra, isto para evitar impulsos temerarios.» Ricardo Severo +desempenhou-se cabalmente da missão e ás 10 da noite reuniam cerca de setenta +rapazes na casa dos Arcos do Jardim, onde moravam, alem de Silvestre Falcão, +Augusto<span class="pn"><a name="pg_95" id="pg_95">{95}</a></span> Barreto, +Guilherme Franqueira e Fernando Brederode.</p> + +<p>Em primeiro logar, a assembleia nomeou um <em>comité</em> dirigente, que +ficou constituido por Silvestre Falcão, Pires de Carvalho, Augusto Barreto, +Barbosa de Andrade e Antonio José d'Almeida. Depois, Malva do Valle foi alugar +o telegrapho, para se conservar até de manhã por conta do <em>comité</em> e +operou-se a juncção do elemento academico com os outros revolucionarios de +Coimbra, combinando-se por ultimo o seguinte:</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img095"></a> +<p><img alt="Fotografia de José Sampaio (Bruno)" src="images/p095.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>José Sampaio (Bruno) (1891)</p> +</div> + +<p>Logo que Silvestre Falcão recebesse na Alta o telegramma cifrado de Alves da +Veiga, dez ou doze estudantes desceriam a ladeira do Pio até á parte posterior +do quartel de infantaria 23, onde receberiam as armas e as munições destinadas +a armar os conspiradores. Em seguida todos elles atravessariam a cidade, +descendo pelo Quebra-Costas e a rua Visconde da Luz até o quartel. Ahi bastaria +uma manifestação ao regimento, que, á voz dos sargentos revoltados, viria para +a rua em sedição. Removidos todos os obstaculos que, porventura, se +apresentassem á execução do plano, os conspiradores<span class="pn"><a +name="pg_96" id="pg_96">{96}</a></span> iriam depôr a sua obra nas mãos de José +Falcão, que, informado de tudo, horas antes, puzera o seu esforço ao serviço da +Republica.</p> + +<p>Um dos estudantes ainda lembrou a conveniencia de se destacarem grupos +armados para junto das residencias dos officiaes do 23, a fim de lhes +embargarem o passo, caso pretendessem sahir em direcção ao quartel, mas +Silvestre Falcão ponderou que isso era perigoso e podia provocar uma série de +assassinios e a assembleia revolucionaria decidiu «caminhar temerariamente, +lançando o exito da empreza aos azares da guerra».</p> + +<p> </p> + +<p>Até á manhã clara, os estudantes conservaram-se reunidos na Alta esperando o +telegramma do dr. Alves da Veiga. Mas o telegramma não chegou e assim que todos +elles adquiriram a convicção de que o movimento do Porto fôra mal succedido, +dispersaram desalentados, ainda que dispostos, no intimo, a renovar mais tarde +a audaciosa tentativa.</p> + +<p>E muitos d'elles a renovaram com effeito. As datas de 28 de janeiro e 4 e 5 +de outubro, trouxeram á evidencia uma boa porção dos nomes dos academicos +conspiradores de 1891.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XIV</h1> + +<h2>A alvorada triumphante: caçadores 9 inicia o movimento</h2> + +<p>Duas da madrugada...</p> + +<p> </p> + +<p>Terminada a reunião na rua de Santa Catharina, os sargentos da guarnição +portuense que a ella tinham assistido dirigiram-se aos seus quarteis e +tomaram<span class="pn"><a name="pg_97" id="pg_97">{97}</a></span> desde logo +as providencias necessarias para a sahida das forças no momento opportuno, +preparando-a de modo que á rapidez de execução se alliasse o affastamento da +intervenção de qualquer official que, pelo seu prestigio, conseguisse +contrariar a revolta.</p> + +<p>Caçadores 9 foi o primeiro regimento a dar o signal da sedição. As +companhias formaram na parada do quartel sob o commando dos sargentos e +emquanto dois d'elles, Galho e Bandarra, e algumas sentinellas procuravam +impedir que o coronel Malheiro, o official de inspecção e o tenente ajudante +saissem dos aposentos e se mostrassem aos soldados, o 1.º sargento Abilio<sup><a href="#fna" name="mfna">[A]</a></sup> +soltou o primeiro grito de <em>Viva a Republica</em>!—calorosamente +repetido por todos os seus subordinados. Entretanto, apesar de todas as +precauções tomadas pelos revoltosos,<span class="pn"><a name="pg_98" +id="pg_98">{98}</a></span> o coronel e o tenente-ajudante appareceram na parada +e o coronel, dirigindo-se ao 1.º sargento, exprobou-lhe em phrases paternaes a +sua attitude:</p> + +<p>—Tambem você, Abilio... e eu... que era tão seu amigo!</p> + +<p>—Meu coronel—respondeu o interpellado—v. ex.ª dar-nos-hia +grande prazer se viesse commandar o regimento.</p> + +<p>—Isso não...</p> + +<p>—Nesse caso, v. ex.ª fica e nós sahimos.</p> + +<p>O tenente-ajudante chorava que nem uma creança e pedia a todos os sargentos +que desistissem da sua audaciosa sortida, empregando os maiores esforços n'esse +sentido. O coronel Malheiro ainda tentou falar ao regimento, para o demover do +seu proposito e por ultimo exclamou para o 1.º sargento Norberto, que, como +mais antigo, commandava o corpo:</p> + +<p>—Mande retirar essa gente para as casernas!</p> + +<p>—Agora já é tarde, meu coronel; não pode ser...</p> + +<p>E logo a seguir, o mesmo 1.º sargento deu as vozes do estylo:</p> + +<p>—<em>Direita volver, ordinario marche</em>...</p> + +<p>A intervenção do coronel Malheiro falhara por completo.</p> + +<p> </p> + +<p>Caçadores 9, sahindo do quartel, subiu em boa ordem a rua de S. Bento e +dirigiu-se á cadeia da Relação, onde estacou. A guarda á cadeia, fornecida por +aquelle corpo, era commandada pelo alferes Malheiro. Desde que nenhum dos +officiaes, conhecidos como republicanos, que estavam dentro do quartel, tinha +querido assumir o commando do regimento, os sargentos lembraram-se durante o +trajecto de o offerecer áquelle subalterno, que sabiam tambem professar ideias +democraticas. E um<span class="pn"><a name="pg_99" id="pg_99">{99}</a></span> +d'elles, abeirando-se da porta da casa da guarda, gritou para dentro:</p> + +<p>—Ó sr. Malheiro, venha d'ahi...</p> + +<p>O alferes não sahiu e a mesma voz tornou a insistir:</p> + +<p>—Ó sr. Malheiro, tome o commando do regimento, porque o official de +inspecção não quiz acompanhal-o...</p> + +<p>O alferes então accedeu ao convite e voltando-se para o sargento da guarda +recommendou-lhe que vigiasse bem o edificio da cadeia, não fossem os presos +aproveitar o ensejo para se evadirem. Ninguem se lembrou, n'esse momento, que +lá dentro estava João Chagas e que era natural gosasse immediatamente da +liberdade para collocar o seu nome, o seu talento, o seu esforço individual e a +sua energia ao serviço da revolução. Pensou-se apenas—e n'isso o alferes +Malheiro deu provas de extraordinario sangue frio—em deixar guarnecida a +prisão, com o receio de que o menor descuido fizesse extravasar para as ruas do +Porto a grande massa de criminosos ali agglomerada.</p> + +<p>Liquidado este incidente, caçadores 9 proseguiu a sua marcha em direcção ao +grupo de Santo Ovidio. Dentro de pouco reunia-se-lhe o de infantaria 10.</p> + +<p>As condições topographicas do quartel que então alojava o segundo d'aquelles +regimentos permittiram que elle formasse na parada interior sem que o official +de inspecção desse por tal. Ás 2 e meia da madrugada, um dos revoltados foi +avisar o capitão Leitão, que morava proximo e que não tardou a comparecer no +edificio. Dirigiu-se logo á arrecadação, poz um capacete na cabeça e tendo +inquirido dos outros officiaes compromettidos na conjura foi esperal-os para um +caramanchão. Estava bem longe de suppôr que uma vez chegado ao Campo de Santo +Ovidio, teria que assumir o commando superior das forças revoltadas...<span +class="pn"><a name="pg_100" id="pg_100">{100}</a></span> </p> + +<p>Os minutos, no emtanto, iam decorrendo e como não apparecessem no quartel +outros officiaes republicanos, um sargento veiu convidar o capitão Leitão a +seguir immediatamente com as forças para o campo de Santo Ovidio. Assim se fez +e o regimento marchou em acelerado para o local da concentração. Á entrada na +rua da Rainha, encontrou o tenente Coelho, que fora chamado ao quartel por um +grupo de cabos. O tenente Coelho conferenciou rapidamente com o capitão Leitão, +trocou o kepi que levava pelo capacete do 1.º sargento Vergueiro e assumiu o +commando do 2.º pelotão de infantaria 10. No Campo de Santo Ovidio, os dois +regimentos formaram d'este modo: o de caçadores 9, em quadrado, proximo da +porta principal do quartel de infantaria 18; o de infantaria 10 em dois +circulos na outra extremidade do Campo.</p> + +<p>Concluida a formatura, os soldados e os civis já então ali agglomerados +começaram a dar vivas ao regimento de infantaria 18 para o decidir a cooperar +na insurreição. Outras vozes elevaram-se:</p> + +<p>—Viva a Republica!</p> + +<p>—Viva o exercito!</p> + +<p>—Abaixo a monarchia!</p> + +<p>Momentos depois, o destacamento de cavallaria 6, alojado n'uma das +dependencias do quartel do 18, sahindo pela porta posterior do edificio, veiu a +galope formar em linha parallela á fachada. As saudações e os vivas redobraram +de intensidade. Ao mesmo tempo convergiam para o campo as forças da guarda +fiscal. O cabo João Borges apresentou-se á frente de 87 praças de infantaria e +o 2.º sargento Silva commandando 24 praças de cavallaria da mesma guarda. Quer +dizer: ás 4 da manhã de 31 todas estas forças estavam revolucionadas e só +aguardavam a sahida de infantaria 18 para iniciarem marcha contra o inimigo +monarchico, apenas<span class="pn"><a name="pg_101" +id="pg_101">{101}</a></span> representado, dentro do Porto, pela guarda +municipal e a policia civil.</p> + +<p>Varios officiaes superiores tentaram, emquanto o 18 não appareceu no local, +fazer voltar aos respectivos quarteis as outras forças sublevadas. O primeiro +foi o major Graça, da <em>guarda pretoriana</em>. Sahindo do quartel do Carmo, +á frente de infantaria e cavallaria, dirigiu-se ao Campo da Regeneração e +chamando o commandante de caçadores 9 já ali estacionado, intimou o alferes +Malheiro a render-se.</p> + +<p>—Agora é tarde, respondeu o official revolucionario.</p> + +<p>—Ainda não é...</p> + +<p>Um cabo que ouvira a intimação exclamou:</p> + +<p>—Se é militar, eu tambem o sou; se é portuguez egualmente o sou; mas +não posso soffrer esta tyrannia por mais uma hora!</p> + +<p>O major Graça, em resposta, bradou:</p> + +<p>—Querem então que haja derramamento de sangue, e sangue portuguez, +n'estes dolorosos momentos por que está passando a patria? Pois seja...</p> + +<p>Um individuo da classe civil ia, n'esta altura, a arengar qualquer cousa aos +soldados, mas os militares oppuzeram-se, dizendo-lhe:</p> + +<p>—Cale-se; aqui só a tropa tem voz activa.</p> + +<p>O major Graça dispoz as suas forças nas ruas da Lapa e de Germalde e foi dar +ordens ao quartel de S. Braz. D'ahi a pouco entrou no Campo de Santo Ovidio o +sub-chefe do estado maior da divisão, tenente-coronel Fernando de Magalhães. +Encaminhou-se para o 2.º pelotão de infantaria 10 e perguntou pelo seu +commandante. Respondeu-lhe o tenente Coelho.</p> + +<p>—Que estão a fazer aqui? disse o sub-chefe.—Mande retirar essa +gente para o quartel. Os senhores são uns doidos...</p> + +<p>—Não é possivel, replicou o tenente. Estou sob<span class="pn"><a +name="pg_102" id="pg_102">{102}</a></span> as ordens d'um capitão do meu +regimento e, tendo sahido do quartel, insurrecionado, para proclamar a +Republica, já é tarde para recuar.</p> + +<p>—Quem é esse capitão que commanda o seu regimento?</p> + +<p>—O capitão Leitão.</p> + +<p>E dizendo isto, o tenente Coelho apontou ao sub-chefe o sitio onde elle se +encontrava. Junto do commandante de infantaria 10, o sr. Fernando de Magalhães +empregou quasi as mesmas palavras:</p> + +<p>—Mande recolher essa pobre gente a quem está a comprometter.</p> + +<p>—D'aqui não sae ninguem, respondeu o capitão, a carta está jogada e +vamos até ao fim!...</p> + +<p>A seguir, o tenente coronel ainda formulou novo conselho de retirada ao +alferes Malheiro, mas ninguem lhe obedeceu, como, de resto, tambem lhe não +obedeceriam se elle, em vez de meios suasorios, procurando impôr o prestigio da +sua personalidade, tivesse tentado outros processos mais violentos.</p> + +<p> </p> + +<p>Deixemos as forças revoltosas especadas no campo de Santo Ovidio e cercadas +por todos os lados pela guarda municipal e vejamos o que se passava no quartel +de infantaria 18. A insurreição d'este regimento não fora levada a cabo com +tanta facilidade como a de caçadores 9 e infantaria 10, por causa das +prevenções tomadas pelos officiaes. Um dos sargentos do 18, que assistira á +reunião na rua de Santa Catharina, ao regressar ao quartel recebera ordem de +detenção e só por um prodigio de astucia é que, illudindo a vigilancia do +official de inspecção, conseguira dar conhecimento das deliberações tomadas na +mesma reunião aos sargentos de cavallaria 6. Ainda assim, á hora marcada para a +revolta, as companhias, á ordem dos officiaes superiores, começaram a formar as +casernas.<span class="pn"><a name="pg_103" id="pg_103">{103}</a></span></p> + +<div class="ilustracao"><a name="img103"></a> +<p><img alt="Proclamação da Republica" src="images/p103.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Proclamação da Republica</p> +</div> + +<p>Presentindo o movimento, alguem quiz evital-o, mas inutilmente. D'uma +janella do primeiro pavimento, o tenente-ajudante arengou ás forças que já +estavam na parada, mas dois tiros disparados na direcção d'essa janella +cortaram-lhe o discurso. O coronel do regimento, Lencastre de Menezes, +mostrando uma indecisão extraordinaria, ordenou a varios officiaes que sahissem +do quartel a indagar que forças estavam formadas no campo.</p> + +<p>Decorrido algum tempo, os sargentos do 18 compromettidos na revolta, +julgando que nem todos os seus camaradas adheriam á insurreição e que a sahida +do regimento não se operaria sem um impulso<span class="pn"><a name="pg_104" +id="pg_104">{104}</a></span> energico, soltaram gritos furiosos de +traição!—e assim conseguiram arrastar um grosso contingente de +soldados—quasi duas companhias—para junto dos revoltosos do 9 e do +10. Mas o portão do edificio voltou a fechar-se sobre a sahida d'essa força e +os instantes foram passando sem que o regimento adoptasse uma attitude definida +em conjunctura, como essa, tão critica.</p> + +<p>Era necessario, na verdade, tomar uma resolução. Apoz alguns momentos de +reflexão, em que os officiaes revoltados trocaram impressões sobre o caso, +infantaria 10 e caçadores 9, formando a quatro, encaminharam-se para a parte +posterior do quartel do 18 e estacionaram em frente da egreja da Lapa. As +forças da guarda municipal, sob o commando do major Graça, retiraram +prudentemente e, deixando livres as ruas que conduzem ao campo de Santo Ovidio, +foram estacionar para a praça da Batalha, junto do quartel general e do +telegrapho.</p> + +<p>A multidão, que a cada instante crescia, misturava aos das tropas os seus +vivas atroadores. «No rosto de toda a gente havia a expressão d'uma alegria +indizivel. Por vezes, os mais enthusiasmados rompiam as fileiras e iam abraçar +um sargento ou um soldado, victoriando-os, acclamando-os. Era tão quente o +arrebatamento, tão ardente aquella ruidosa alegria que a doce e consoladora +esperança na victoria revolucionaria penetrava em todos os corações, dissipando +vagos receios que a longa inacção das tropas fizera despertar.»</p> + +<p> </p> + +<p>Tratava-se agora de invadir o quartel de infantaria 18 e impellir de +qualquer maneira esse regimento para a revolta. Os populares que se tinham +collocado na vanguarda das forças do 9 e do 10 fôram a uma estação de +incendios, que havia perto, trouxeram de lá dois machados e abriram um +rombo<span class="pn"><a name="pg_105" id="pg_105">{105}</a></span> na porta do +quartel do lado da Lapa, que o coronel Lencastre de Menezes fizera pouco antes +barricar. Soldados e populares iam, certamente, a entrar de tropel no edificio +e travar lucta com os elementos hesitantes, quando o actor Miguel Verdial, +tendo, n'um relance, a visão da provavel carnificina—o quartel era +habitado por muitas familias—exclamou para os invasores:</p> + +<p>—Suspendam, que eu vou parlamentar com o coronel.</p> + +<p>Cá fóra, os vivas ao regimento de infantaria 18 eram calorosos e sem +interrupção.</p> + +<p>Atraz de Miguel Verdial, entraram no quartel Santos Cardoso e outros +individuos da classe civil e por fim o capitão Leitão commandando uma força dos +dois regimentos revoltados. Santos Cardoso, gesticulando como um possesso e +ameaçando a officialidade do 18 de ser riscada do exercito caso não adherisse á +Republica, encaminhou-se para junto do coronel Lencastre e disse-lhe:</p> + +<p>—A esta hora estão quarenta e quatro regimentos sublevados, o +telegrapho na nossa mão, o rei a embarcar: não queira V. ex.ª ser a unica nota +discordante. </p> + +<p>—Deixe-me, replicou o coronel, eu não sou republicano nem monarchico. +Sahirei d'aqui a pouco.</p> + +<p>O capitão Sarsfield, que estava proximo, accrescentou:</p> + +<p>—Visto que vae parte do nosso corpo, vamos tambem.</p> + +<p>Por seu lado, o capitão Leitão tambem procurou convencer o coronel a +acompanhar os revoltosos. E, ao cabo d'alguns momentos, conseguiu +effectivamente d'elle essa promessa, que mais tarde, nos conselhos de guerra, +varios officiaes do 18 se empenharam em negar tivesse sido feita. Emquanto isto +se passava, uma força da guarda municipal commandada por um tenente apparecia +no largo da<span class="pn"><a name="pg_106" id="pg_106">{106}</a></span> Lapa +a enfileirar ao lado de infantaria 10. Depois, por conselho do tenente Coelho, +punha-se novamente em marcha e seguia pela rua que ladeia á esquerda o quartel +do 18.</p> + +<p>D'ahi a pouco, o capitão Leitão, sahindo d'aquelle edificio, voltava para +junto das forças sublevadas e communicava aos officiaes ás suas ordens:</p> + +<p>—O 18 vem já. Nós seguimos para a Praça Nova e lá o esperamos. O +commandante disse-me que vinha em breve: que estando elle e quasi todos os +officiaes presentes no quartel era necessario tomar certas medidas de ordem e +segurança e que convinha reunir o conselho administrativo antes do regimento +sahir.</p> + +<p>Mas não era só o capitão Leitão que affirmava isto. Militares e civis, todos +quantos sahiam n'aquella celebre manhã do quartel de infantaria 18 asseveravam +que o coronel Lencastre de Menezes não tardaria com as forças do seu commando a +juntar-se aos insurrectos. E faziam-no, certamente, por terem ouvido ao +official já citado palavras muito nitidas a tal respeito. Mais tarde, nos +conselhos de guerra, pretendeu-se desmentir tudo isso, e embora tivesse sido +aconselhado ao capitão Leitão e aos outros reos que não aggravassem a sua +situação com accusações a officiaes superiores que não estavam mettidos no +processo, a verdade é que das acareações feitas em pleno tribunal militar +resultou o convencimento geral de que só por um mero acaso não soffreram o +castigo imposto a certos dos conspiradores outras creaturas de maior patente e +mais graves responsabilidades.<span class="pn"><a name="pg_107" +id="pg_107">{107}</a></span></p> + +<div class="rodape"> + +<p><sup><a href="#mfna" name="fna">[A]</a></sup> O 1.º sargento Abilio, hoje tenente n'um regimento de +infantaria, apoz o mallogro da revolta de 31 de janeiro, deixou crescer a barba +e prometteu á esposa que só a faria rapar no dia em que em Portugal fosse +definitivamente proclamada a Republica. Quando rebentou a revolução de 4 e 5 de +outubro, a esposa, que estava em Espinho, telegraphou-lhe para o Porto, +anciosa, a pedir noticias. O 1.º sargento Abilio dirigiu-se á estação da praça +da Batalha e depositou um telegramma de resposta em que dizia: «<em>Estou bom; +foi proclamada a Republica</em>». O empregado dos telegraphos recusou acceitar +a communicação.</p> + +<p>—Porque não acceita? perguntou-lhe o antigo revolucionario do 31.</p> + +<p>—Porque ahi diz que foi proclamada a Republica e a noticia ainda não é +<em>official</em>.</p> + +<p>—Bem... não ha duvida, redijo outro telegramma.</p> + +<p>E redigiu. A esposa, quando o recebeu delirou de contentamento e foi +mostral-o a umas pessoas amigas. Mas estas, lendo o texto, não se contiveram +que não observassem:</p> + +<p>—Seu marido mandou-lhe um telegramma de troça. Pois não é?... +<em>Estou bom; vou fazer a barba</em>...</p> + +<p>—Não é troça, não... <em>Se elle vae fazer a barba</em> é porque +<em>já foi proclamada a Republica</em>!</p> + +</div> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XV</h1> + +<h2>Proclama-se a Republica no edificio da Camara Municipal</h2> + +<p>Já manhã clara, as forças revolucionarias sahiram das immediações do quartel +de infantaria 18 e dirigiram-se pela rua do Almada até á praça de D. Pedro, +onde deviam occupar os paços do concelho para se effectuar a cerimonia da +deposição do monarcha reinante e da proclamação da Republica. Segundo a +formatura ordenada pelo capitão Leitão, abria a columna, tocando a +<em>Portugueza</em>, a banda, quasi completa, de infantaria 10, com alguns +musicos de caçadores 9, todos sob a direcção do musico de 1.ª classe Eduardo da +Silva; seguia-se-lhe a guarda fiscal e depois as praças d'aquelles dois +regimentos, as do 9 antecedendo o 10. Conta um chronista:</p> + +<p> </p> + +<p>«Desde que as forças começaram a marchar, sentia-se desapparecer a oppressão +que invadira todos os espiritos n'essas longas tres horas em que, fóra ou +dentro do quartel, se tentara que o regimento de infantaria 18, devidamente +commandado, viesse augmentar as forças da revolta. O que se seguiria depois +parecia não preoccupar os espiritos. Acreditava-se firmemente que o regimento +de infantaria 18 estava inclinado a apoiar a revolta. Se assim fosse nenhuma +duvida poderia offerecer a victoria decisiva da Republica; não porque a força +do regimento de infantaria 18 desse ás tropas insurreccionadas uma +superioridade notavel sobre as da guarda municipal, mas pela alta significação +que teria não só para a população<span class="pn"><a name="pg_108" +id="pg_108">{108}</a></span> civil mas para o quartel general o facto das +tropas sublevadas serem commandadas por um coronel e muitos officiaes. Era +evidente que, se esse acontecimento viesse a realisar-se, as adhesões seriam +innumeraveis. Ninguem teria duvida em acceitar os factos consumados; as +garantias de victoria eram indiscutiveis; a resistencia da guarda municipal +seria nulla, sem contestação; a ordem estava assegurada.</p> + +<p>«Animadas d'uma doce esperança, as tropas revolucionarias, ladeadas por +immensa multidão, seguiram para a praça de D. Pedro. Ao longo da rua do Almada, +desfilava a columna em formação regulamentar e disciplinadamente. As janellas +estavam todas abertas, e os habitantes que já tinham conhecimento de que a +guarnição militar da cidade sahira dos quarteis para proclamar a Republica +recebiam a noticia com manifesto aprazimento. E assim, á medida que as forças +da revolta iam descendo a rua, ás saudações erguidas pelo povo que as +acompanhava, correspondiam das janellas, gritando: </p> + +<p>«—Viva a Republica!</p> + +<p>«—Viva o exercito portuguez!</p> + +<p>«Acenavam com lenços, davam palmas, n'uma grande expansão de alegria que +punha nos corações um suavissimo calor e nos labios um sorriso de triumpho. +Nunca tão espontanea e tão calorosa manifestação se produziu na bella cidade do +Norte. Nunca o Porto, a cidade do trabalho e das grandes virtudes civicas, fez +tão enthusiastica acclamação a um exercito victorioso, porque nunca esteve mais +identificado com a ideia que esse exercito vinha proclamando. Na rua a multidão +engrossava a cada momento, e, quando as tropas revolucionarias dobravam a rua +do Almada para entrar na praça de D. Pedro, era difficil romper por entre a +massa compacta que se agglomerava...»<span class="pn"><a name="pg_109" +id="pg_109">{109}</a></span></p> + +<p>Chegadas as forças á praça de D. Pedro, formaram rodeando a mesma praça +pelos lados do norte, nascente e sul, começando a linha pela guarda fiscal e +terminando por caçadores 9. O esquadrão de cavallaria 6, que tambem acompanhava +a columna, estacou na rua occidental da praça.</p> + +<p>Pouco passava das seis horas da manhã. As acclamações despedidas pelos +populares continuavam vibrantes, enthusiasticas. De repente, abriram-se as +janellas dos paços do concelho e alguns individuos da classe civil, entre os +quaes se destacava a figura herculea de Santos Cardoso, appareceram a dar vivas +á Republica, ao exercito e aos regimentos sublevados. Um popular, armado de +espingarda, foi buscar a bandeira do Centro Democratico Federal 15 de Novembro; +Santos Cardoso agitou-a freneticamente sobre a multidão e depois fel-a arvorar +no mastro que sobrepujava o frontão do edificio. A guarda de honra nos paços do +concelho era feita por uma força de infantaria 10 commandada pelo 1.º sargento +Vergueiro. </p> + +<p>Decorrido algum tempo, o dr. Alves da Veiga assomou a uma das janellas da +casa da Camara e proferiu um discurso, entrecortado pelos applausos da +multidão. Depois ia a ler os nomes das pessoas que deviam constituir o governo +provisorio, mas o actor Miguel Verdial arrancou-lhe o papel das mãos e procedeu +a essa leitura. Esses nomes eram os seguintes:</p> + +<p> </p> + +<p><em>Rodrigues de Freitas.</em></p> + +<p><em>Joaquim Bernardo Soares</em> (desembargador).</p> + +<p><em>José Maria Correia da Silva</em> (general de divisão).</p> + +<p><em>Joaquim Azevedo Albuquerque</em> (lente da Academia Polytechnica).</p> + +<p><em>José Ventura dos Santos Reis</em> (medico).<span class="pn"><a +name="pg_110" id="pg_110">{110}</a></span></p> + +<p><em>Licinio Pinto Leite</em> (banqueiro).</p> + +<p><em>Antonio Joaquim de Moraes Caldas</em> (professor).</p> + +<p><em>Alves da Veiga.</em></p> + +<p> </p> + +<p>Cada um d'estes nomes foi acolhido com vivas delirantes e estrepitosos. +Proclamado o governo provisorio, a maioria dos populares que tinham entrado na +casa da Camara desceu á praça a misturar-se com os soldados, que, diga-se sem +hesitações, já começavam a sentir os effeitos d'uma immobilidade que afinal +ninguem justificava. Na varanda dos paços do concelho ondulavam dezenas de +bandeiras azues e brancas. O nevoeiro, que de madrugada amortalhara a cidade, +dissipara-se lentamente.</p> + +<p> </p> + +<p>O capitão Leitão, vendo que, em contrario do que lhe assegurara o coronel +Lencastre de Menezes, infantaria 18 não vinha juntar-se ás forças revoltadas, e +que os minutos corriam rapidos sem que no local apparecessem outros officiaes +além dos tres que desde o começo da revolta lhe tinham francamente adherido, +approximou-se do tenente Coelho e disse-lhe:</p> + +<p>—Estou a perceber isto perfeitamente; fomos trahidos: <em>são uns +infames</em>. Disseram-me que a guarda municipal adheria e não a vi no campo; +que o sub-chefe de estado maior tambem vinha e eu tambem o não vi... Aqui +acontece a mesma cousa. <em>São homens de pannos quentes.</em> Talvez haja +motivo para demoras. Pelo sim pelo não continuarei a esperar...</p> + +<p>Mas os soldados mostravam desejos de seguir para a frente e um popular, +approximando-se do capitão Leitão, observou-lhe que a guarda municipal já +estava occupando a praça da Batalha, na defensiva e que era urgente desalojal-a +d'ali para se occupar o telegrapho e o quartel general. Outro popular<span +class="pn"><a name="pg_111" id="pg_111">{111}</a></span> aconselhou-o a +fraccionar as forças do seu commando.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img111"></a> +<p><img alt="A Bandeira da Revolta que foi hasteada na Camara Municipal" +src="images/p111.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>A Bandeira da Revolta que foi hasteada na Camara Municipal</p> +</div> + +<p>—Ora, tenha juizo, replicou o valente official. Ninguem nos +hostilisa.</p> + +<p>E, voltando-se para o tenente Coelho, acrescentou:</p> + +<p>—Vou tomar uma resolução definitiva: vou mandar seguir pela rua de +Santo Antonio, onde me apresentarei ao general; n'um caso ou n'outro elle dará +as suas ordens...</p> + +<p>O tenente Coelho notou que a guarda da Camara tinha desapparecido e que era +conveniente não deixar o edificio á mercê da populaça. O capitão Leitão +concordou com a ideia e mandou para os paços do concelho uma força do commando +d'um sargento. Feito isto dispoz-se a marchar em direcção á praça da Batalha. +Antes, porém, reuniu com o tenente Coelho e o alferes Malheiro uma especie<span +class="pn"><a name="pg_112" id="pg_112">{112}</a></span> de conselho +conversando os tres sobre a attitude que d'ahi por diante deviam adoptar as +tropas sublevadas perante as outras que não manifestavam adhesão ao movimento. +O tenente Coelho registou mais tarde, do seguinte modo, as ideias que +predominaram n'essa conferencia:</p> + +<p> </p> + +<p>«O parecer de que as forças da revolta se dividissem em differentes fracções +que por diversas ruas convergiriam na praça da Batalha, forçando a guarda +municipal que ali se encontrava a abandonar o seu posto, atacada de frente, de +revez e de flanco foi posto de parte, porque, apesar de tudo, se tinha como +certa a adhesão d'essa força desde que as tropas sublevadas manifestassem não +abandonar o seu proposito. A guarda municipal estava informada de que o +regimento de infantaria 18 apoiava a revolução; vira com que ardentes +acclamações eram saudadas as forças revolucionarias; sentia-se, portanto, +isolada do resto das tropas da guarnição e das sympathias da população civil; +demais entre aquella guarda havia um grande numero de homens que tomara parte +nos preparativos da revolta.</p> + +<p>O que havia, pois, a fazer era, do mesmo modo que a guarda municipal +procedera com as tropas sublevadas no campo de Santo Ovidio, procederem tambem +para com ella, aconselhando-a a abandonar a sua attitude espectante e a adherir +ao movimento insurreccional; o regimento de infantaria 18 havia adherido, não +era rasoavel nem patriotico que a guarda municipal o não fizesse. As tropas +sublevadas não tinham a menor intenção de fazer derramar sangue de irmãos +d'armas; não desejavam uma lucta fratricida, tanto menos presumivel que, sem +excepções, todo o exercito se sentia impellido a resgatar o paiz da humilhante +situação em que se encontrava por virtude dos actos dos governos<span +class="pn"><a name="pg_113" id="pg_113">{113}</a></span> da monarchia, que não +se inspiravam nos sagrados interesses nacionaes.</p> + +<p>«Não. A guarda municipal era com as tropas da revolta. Se estas não tinham a +commandal-as officiaes, cujas patentes e cujos nomes se impuzessem, bem certo +era que o regimento de infantaria 18, com o seu coronel e com os seus +officiaes, tinha adherido ao movimento revolucionario e não havia que hesitar. +Os tres officiaes que se encontravam com as forças sublevadas, ali, não queriam +reivindicar nenhum direito de superioridade; contentavam-se bem com a +satisfação da sua iniciativa e, nem por si, nem pelos seus subordinados, +reclamavam nem outros postos nem outras honras. Se outras ideias germinavam no +espirito dos que não tinham até aquelle momento adherido á revolta, que se +desilludissem. Que o throno desapparecesse: mais nada. A nação governar-se-hia +sem profundas transformações. Ellas viriam depois. O essencial era quebrar com +a criminosa tradição. Por ella é que Portugal vergava ao peso de tanta +deshonra, por ella é que a vida social vinha sendo insupportavel. +Governar-nos-hiamos como irmãos, no mesmo sentimento commum dos interesses +individuaes, coincidindo com os da Patria. Taes pensamentos animavam as tropas +sublevadas. Não havia que discutir.»</p> + +<p> </p> + +<p>Resumindo: o capitão Leitão iria á frente das forças e ao chegar á praça da +Batalha procuraria parlamentar com o sub-chefe de estado maior, Fernando de +Magalhães, que os revolucionarios consideravam intelligente e de caracter. Elle +decidiria em ultima instancia se a superioridade estava, na verdade, do lado +dos sublevados e se a guarda municipal podia ou não submetter-se-lhes sem +hesitações. Era o appello honesto a um arbitro de occasião, que gosava ao +momento de justificado prestigio na classe militar.<span class="pn"><a +name="pg_114" id="pg_114">{114}</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XVI</h1> + +<h2>O choque sangrento—A guarda municipal desbarata os revoltosos</h2> + +<p>As forças do commando do capitão Leitão sahiram da praça de D. Pedro e +principiaram a subir a rua de Santo Antonio. Formavam uma columna «em marcha de +quatro», levando á frente a banda de infantaria 10; seguia-se-lhe a guarda +fiscal e iam depois caçadores 9 e aquelle regimento. A guarda municipal formava +ao alto da rua, no adro escalonado de Santo Ildefonso, guardando a entrada da +Batalha pelas ruas de Santa Catharina, Santo Antonio, de Santo Ildefonso, de +Cimo de Villa e viela da Madeira. A entrada pelas ruas de Entreparedes e +Alexandre Herculano, vedavam-na cem praças fieis da guarda fiscal. No lado +nascente do antigo theatro de S. João formava cavallaria 6, cobrindo o edificio +do quartel general e governo civil. </p> + +<p>Uma multidão immensa acompanhava as forças da revolta na marcha rua de Santo +Antonio acima e essa arteria do Porto tinha um aspecto quasi de festa. A maior +animação e alegria illuminavam-na. Do povo sahiam brados enthusiasticos +victoriando os sublevados. As senhoras que estavam ás janellas agitavam +freneticamente os lenços, soltavam vivas calorosos, batiam as palmas n'um +contentamento indescriptivel. A satisfação dominava tudo e todos. A marcha das +forças tinha o caracter insophismavel d'um passeio triumphal, em que elles +pareciam recolher os applausos pela victoria alcançada rapidamente e sem embate +sensivel.</p> + +<p>Na altura da viela chamada dos Banhos, do lado direito da rua de Santo +Antonio, o povo que acompanhava<span class="pn"><a name="pg_115" +id="pg_115">{115}</a></span> os sublevados hesitou e recuou. O capitão Leitão +olhou para cima, e viu a guarda municipal em attitude defensiva com as armas +apontadas para a columna. Não ligou grande importancia ao facto e, como a banda +de infantaria 10 continuasse a tocar, não ouviu que de Santo Ildefonso os +cornetas tinham feito o signal de <em>alto</em>—<em>meia volta</em>. Ia a +proseguir na marcha quando presenceou que dois soldados da guarda fiscal, +sahindo da fórma, se dispunham a disparar as armas contra a municipal. Correu +para elles e gritou-lhes:</p> + +<p>—Não atirem!... A guarda não nos faz mal!...</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img115"></a> +<p><img alt="Fotografia de Basilio Telles" src="images/p115.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Basilio Telles 1891</p> +</div> + +<p>Os homens entraram na fórma e elle então, collocando-se á frente da columna, +levantou os braços, como pretendendo affirmar á municipal que a attitude dos +sublevados era pacifica. De nada valeu esse expediente. A guarda, fazendo +pontarias baixas, deu uma descarga que lançou o maior panico nas forças da +revolta e nos populares que pejavam a rua de Santo Antonio. A marcha deteve-se. +Uma commoção violenta agitou aquella massa compacta. N'um segundo, ou em menos +d'um segundo, produziu-se um grande e precipitado movimento de recuo. Os +populares, como por instincto, penetraram nas fileiras da columna procurando um +abrigo. Impellida<span class="pn"><a name="pg_116" id="pg_116">{116}</a></span> +pela força collossal d'essa enorme multidão, a columna dissolveu-se, +desordenada e a breve trecho a rua de Santo Antonio ficou juncada de corpos +inanimados e dos despojos das victimas. O capitão Leitão, ferido na cabeça, +abrigou-se n'uma casa proxima, acompanhado de dois corneteiros e d'uma praça da +guarda fiscal e mandou fazer repetidos toques de cessar fogo. Trabalho inutil. +A guarda municipal, abrigada por detraz de pedras continuou a alvejar a rua de +Santo Antonio, respondendo áquelles toques com tiroteio renhido.</p> + +<p>Entretanto, no meio de todo esse panico, os soldados revoltados ou se +agrupavam junto de alguns portaes ou se deitavam no chão, offerecendo o menor +alvo possivel ao fogo da guarda. E, emquanto tiveram munições, responderam com +valentia ao ataque da força fiel ao regimen monarchico. Esses heroicos +combatentes eram principalmente da guarda fiscal e de caçadores 9, porque o +regimento de infantaria 10, estando no fundo da rua de Santo Antonio ao começar +o tiroteio, fôra forçado a recuar até á casa da camara. E assim se sustentaram +n'um ou n'outro ponto da rua, quasi sempre expostos aos projecteis da +municipal, atirando sobre os adversarios com uma serenidade extraordinaria, +desafiando impavidamente a morte.</p> + +<p>Em certa altura, ouviram-se na praça de D. Pedro os primeiros tiros da +artilharia. A bateria da Serra do Pilar intervinha na lucta para lhe pôr o +ponto final. Os revoltados até então escalonados na rua de Santo Antonio +desceram até ao edificio municipal e ahi se reuniram ás forças do 10, que se +tinham concentrado n'esse ponto desde o começo da refrega. O capitão Leitão, +havendo conseguido, depois de abandonar a casa onde se abrigara, chegar por +entre quintaes e escalando muros até á Praça Nova, ainda procurou com as forças +reunidas na casa da camara operar um retorno offensivo sobre<span class="pn"><a +name="pg_117" id="pg_117">{117}</a></span> a guarda municipal. Mas não houve +meio, ou melhor, já era tarde para tentar a sortida. Pequenas fracções da +guarda, protegendo a bateria de artilharia postada nos angulos dos Loyos e de +S. Bento, começaram a atacar os sublevados encurralados nos paços do concelho e +um tiro de peça, arrombando a porta do edificio, mostrou áquelles valentes que +a situação se definia, irremediavelmente como a derrota da Republica.</p> + +<p>O capitão Leitão abandonou a casa da camara e d'ahi a pouco os outros +combatentes imitaram-n'o, terminando a lucta cerca das 9 da manhã. Durara duas +horas.</p> + +<p>Por este relato é facil de vêr que a victoria alcançada pela guarda +municipal foi mais devida á excessiva <em>boa-fé</em>—chamemos-lhe +assim—das tropas revolucionarias do que á coragem dos soldados fieis á +monarchia. Se as forças revolucionarias houvessem marchado sobre a praça da +Batalha em disposição hostil, o resultado do choque sangrento teria sido, sem +duvida, bem diverso. O proprio capitão Leitão reconheceu isso mesmo no conselho +de guerra a que foi submettido:</p> + +<p>—Se eu adivinhasse que tratava com tal gente—disse elle, +referindo-se ás forças do commando do major Graça—eu procederia d'outra +forma e hoje não me alcunhariam de imbecil. Eu avançava com a maior serenidade +e nem mesmo me passava pela mente que ia para um ataque. Suppunha-os plenamente +seguros e, como já disse, tinha razões para isso. Se eu entendesse, se eu +suspeitasse do que me esperava, não teria receio algum de os atacar.</p> + +<p>«Não era a guarda municipal, que de poucas forças dispunha, pois não estava +toda reunida (e nem mesmo que o estivesse) que derrotaria as forças do meu +commando. Cercal-a-hia, e isso sem grandes planos estrategicos e forçal-a-hia +a<span class="pn"><a name="pg_118" id="pg_118">{118}</a></span> render-se, sem +mesmo disparar um tiro. E não se daria a grande desgraça que se deu. Eu +envolvia a guarda e ella não poderia resistir. Não lhes chamem, pois, valentes, +porque o não são. Estava espantado de um tal procedimento. «Eu não ia para +isto»—disse na casa onde entrei. E esta é a verdade; a prova é que alguem +que ouviu a minha phrase já aqui a referiu. Não digo isto para declinar +responsabilidades, porque não quero declinal-as...»</p> + +<p>Incontestavelmente, a guarda municipal não poderia manter-se nas suas +posições; e, nem pelo numero nem pela dextreza, conseguiria offerecer uma +resistencia demorada. Alem d'isso, não estava suficientemente instruida no +manejo da espingarda Kropatschek, que só muito pouco tempo antes da revolta lhe +fôra distribuida; o serviço especial de policia, em que era empregada, não lhe +permittia evolucionar convenientemente em combate. Pelo contrario; os seus +adversarios, tendo passado pela carreira de tiro em exercicios reiterados, +estavam perfeitamente aptos para se medir com ella e para a subjugar sem +esforço sensivel ou grande dispendio de munições. E a prova é que a guarda se +conservou sempre na defensiva, abrigada pelas varandas de pedra que guarnecem +as escadas e patamares que dão accesso á egreja de Santo Ildefonso e só mudou +de attitude quando a bateria de artilharia, rompendo o fogo contra o edificio +municipal, rematou a contenda.</p> + +<p> </p> + +<p>Emquanto, na rua de Santo Antonio e na praça Nova se desenrolavam os +acontecimentos que acabamos de narrar, as guardas de revoltados que haviam +ficado nos quarteis impediam que ali entrassem os respectivos officiaes não +adherentes ao movimento e que o mesmo movimento surprehendera ainda no leito ao +romper da manhã de 31 de<span class="pn"><a name="pg_119" +id="pg_119">{119}</a></span> janeiro. No quartel de caçadores 9, por exemplo, +ficara uma força sob o commando do sargento Galho, que mandara armar todas as +praças que ali estavam, collocando-as ás suas ordens. Instantes depois do +regimento ter sahido para a revolta, essa força avistando na rua de S. Bento um +troço da guarda municipal, fel-a dispersar com uma descarga. E desde manhã até +ao começo da tarde, todos os officiaes que tentaram penetrar no edificio foram +respeitosamente prevenidos pelo sargento Galho de que desfecharia sobre elles a +sua espingarda.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img119"></a> +<p><img alt="Bombardeamento da Camara Municipal pelas tropas fieis ao Governo" +src="images/p119.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Bombardeamento da Camara Municipal pelas tropas fieis ao Governo</p> +</div> + +<p>Só ás tres horas é que esse valente militar se rendeu, abandonando o quartel +ao dominio dos vencedores. O capitão Almeida Soares que havia<span +class="pn"><a name="pg_120" id="pg_120">{120}</a></span> tomado conta da guarda +á cadeia da Relação, appareceu á porta principal d'aquelle edificio e intimou o +sargento a entregar-se-lhe.</p> + +<p>—Não, respondeu o revoltado.</p> + +<p>—Mas isso é uma loucura, insistiu o capitão. A insurreição já está +suffocada.</p> + +<p>—V. ex.ª dá-me a sua palavra de honra?</p> + +<p>—Dou.</p> + +<p>Então o sargento Galho disparou a espingarda para o ar e franqueou as portas +do quartel ao capitão Almeida Soares.</p> + +<p> </p> + +<p>Em infantaria 10 as cousas passaram-se d'outro modo. Ahi a guarda ao +quartel, composta d'um cabo e varios soldados conseguiu, ás primeiras ameaças, +que os officiaes não tentassem sequer empregar a sua auctoridade hierarchica +para a demover do proposito em que se encontrava. Todos elles, percebendo a +inutilidade de qualquer esforço n'esse sentido, dirigiram-se á casa do +commandante do regimento e só mais tarde, quando a revolta se considerou +completamente suffocada é que conseguiram submetter a guarda do quartel e as +praças que retiravam da lucta que se travara.</p> + +<p>Mas, facto digno de registo: tanto n'um como n'outro quartel não se +produziram violencias—aliás comprehensiveis n'um momento como esse de +fundamentada agitação e irresistivel anormalidade. Violou-se é certo, a +disciplina. Nem a revolução era possivel sem esse delicto. Mas ninguem faltou +ao respeito individual pelos officiaes que não quizeram adherir ao +movimento.<span class="pn"><a name="pg_121" id="pg_121">{121}</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XVII</h1> + +<h2>A noite negra do traidor Castro<br> +O destino de trez officiaes</h2> + +<p>Relatados assim os factos que caracterisaram essencialmente a revolta, desde +o primeiro viva á Republica soltado pelo sargento Abilio até á +<em>reconquista</em> dos paços do concelho pela guarda municipal victoriosa, +não é demais uma referencia embora ligeira ao homem que, atraiçoando os seus +camaradas, contribuiu de algum modo para que a noticia do movimento se +divulgasse prematuramente e o contrariasse em mais d'um ponto. Esse homem, já o +dissemos n'outro logar d'esta desataviada narrativa, foi o sargento Castro.</p> + +<p>«Tendo assistido á reunião da rua do Laranjal—contou elle em conselho +de guerra, depondo como testemunha accusatoria dos implicados na +revolta—vi, com espanto, que se tratava d'uma representação dos sargentos +ao governo, elaborada em termos taes, que era mais uma ameaça do que um pedido. +Á reunião presidiu o alferes Simões Trindade. Pretendi tomar a palavra, para +combater a forma como fora escripto esse documento, mas a maioria dos +assistentes abafou as minhas palavras e eu retirei-me do local. <em>No dia +seguinte ao da reunião, procurei o capitão Sarsfield e narrei-lhe o succedido, +para evitar que mais tarde me calumniassem</em>...»</p> + +<p>Mas a delação do sargento Castro não ficou por aqui. Provocando com essa +narrativa ao capitão Sarsfield as perseguições que as auctoridades militares +moveram dias antes da revolta aos officiaes inferiores da guarnição do Porto, o +traidor, na tarde<span class="pn"><a name="pg_122" id="pg_122">{122}</a></span> +do dia 30, voltou a avisar aquelle capitão de que o movimento rebentaria na +madrugada do dia seguinte. Fez a denuncia e sahiu do quartel do 18, disposto a +não tornar a entrar lá dentro, porque receiava justamente que os seus camaradas +de regimento, sabedores do seu acto ignobil, lhe arrancassem a pelle. Ás 11 da +noite, porem, como tivesse deixado ficar no edificio a guia de marcha para +Lisboa—o sargento Castro fora mandado apresentar com urgencia no +ministerio da guerra—arriscou-se a penetrar novamente alli e falou ao +capitão Fumega, que era o official de inspecção. O capitão, mal o viu, +aconselhou-o a que se retirasse, accrescentando:</p> + +<p>—Olhe que a sua vida corre perigo... Alguns sargentos querem matal-o +por não haver adherido á conjura...</p> + +<p>—Não tenho medo, respondeu o traidor, encaminhando-se para a +secretaria. </p> + +<p>Nessa dependencia do quartel estavam reunidos o coronel Lencastre de Menezes +e o capitão Sarsfield. O coronel dirigiu ao sargento Castro conselho identico +ao que já lhe dera o official de inspecção:</p> + +<p>—O senhor desappareça do edificio, porque a sua presença aqui pode +provocar um conflicto grave...</p> + +<p>—Vim buscar a guia de marcha, replicou o traidor.</p> + +<p>—Isso é o mesmo... Diga onde quer que eu lh'a mande amanhã de +manhã...</p> + +<p>O sargento Castro obedeceu. E abandonando o quartel foi tomar café. Depois +como se fazia tarde, lembrou-se de ir dormir a uma hospedaria da praça de Santa +Thereza. Quando parou á porta, principiava a accentuar-se nas ruas o movimento +das tropas insurrecionadas. Tremeu de medo. O seu acto infame seria, +indubitavelmente castigado e castigado com rigor, pelas forças que aclamavam a +Republica.<span class="pn"><a name="pg_123" id="pg_123">{123}</a></span> +Receiando que o vissem e lhe pedissem estreitas contas da delação foi para a +esquadra dos Carmelitas e alli supplicou que o não entregassem aos revoltados +pelos motivos acima expostos e que reproduziu entre lamentos cobardes ao +commandante da força policial.</p> + +<p>Durante hora e meia, conservou-se recolhido n'esse abrigo, estremecendo a +cada ruido indicativo da victoria dos insurrectos. Passado esse tempo veiu +ordem do quartel do Carmo para toda a policia da esquadra dos +Carmelitas—como das outras esquadras—auxiliar as evoluções das +tropas fieis á monarchia. A esquadra ficou deserta. Cheio de terror, +sentindo-se isolado no transe mais angustioso da sua vida, o sargento Castro +acabou por tambem abandonar a esquadra e foi para o quartel do Carmo, onde +suppunha estar em maior segurança. Ahi, apresentou-se ao official de inspecção +e este vendo que elle ainda não tinha seguido para Lisboa, apesar da ordem +urgente que recebera, prendeu-o incommunicavel e, no dia immediato, fel-o +transportar para bordo da corveta <em>Sagres</em>. Na corveta detiveram-no por +vinte e quatro horas e só o puzeram em liberdade quando o commandante do 18, +intercedendo em seu favor, informou as outras auctoridades militares do papel +repugnante que o prisioneiro desempenhara na insurreição...</p> + +<p> </p> + +<p>Fechemos aqui a historia do traidor Castro e sigamos o destino dos trez +officiaes combatentes que se salientaram nas diversas phases do movimento +revolucionario. O capitão Leitão, acabada a lucta na casa da Camara, +refugiou-se nas proximidades do quartel de infantaria 10 e ás 8 da noite de 31 +foi ao domicilio do tenente Coelho que ahi se acolhera apoz a derrota. O +tenente Coelho, surpreso, de o ver, exclamou:<span class="pn"><a name="pg_124" +id="pg_124">{124}</a></span></p> + +<p>—Como, pois tu aqui?</p> + +<p>—É verdade, replicou o valente official. Que fazer agora?</p> + +<p>—Meu caro, ou fugir ou apresentarmo-nos no quartel general. Para o +caso de nos expatriarmos é preciso dinheiro que eu não tenho...</p> + +<p>—Nem eu. Comtudo, talvez um amigo m'o empreste.</p> + +<p>—Pois bem, concluiu o tenente Coelho, se conseguires o dinheiro +necessario aos dois vem á minha casa ás duas da madrugada; se não alcançares +senão o sufficiente para ti, vae só e sê feliz...</p> + +<p>O capitão Leitão sahiu e não tardou a apparecer ao seu companheiro de lucta. +Na madrugada de 1 de fevereiro, montou a cavallo e dirigiu-se a Oliveira de +Azemeis. «Aqui, dil-o uma testemunha presencial, apesar de o reconhecerem, as +auctoridades não o perseguiram e elle seguiu para Albergaria-a-Velha, no +intuito de comer alguma cousa. Quando chegou a essa localidade, estava o padre, +que tem a alcunha de <em>O Sopas</em>, conversando com varios individuos ácerca +dos acontecimentos do Porto. Este padre tinha sido, durante doze dias, hospede +de cama e meza do capitão Leitão. Ao vêr o cavalleiro, exclamou:</p> + +<p>—«É elle!...</p> + +<p>«Alguem recommendou ao <em>Sopas</em> que não denunciasse o fugitivo. Mas o +padre approximou-se acto continuo do cavalleiro e disse-lhe:</p> + +<p>—«O senhor é o capitão Leitão!</p> + +<p>—«Não, não sou, respondeu o interpellado.</p> + +<p>«Mas, logo a seguir, commovido, fraco—havia muitas horas que não +comia—o capitão Leitão succumbiu e cahiu com uma syncope. O padre +procurou o administrador e este tomando conta do foragido, encerrou-o na +cadeia. Na prisão, o capitão Leitão teve nova syncope. Quando d'alli sahiu, no +meio da escolta que o devia acompanhar ao Porto,<span class="pn"><a +name="pg_125" id="pg_125">{125}</a></span> dirigiu-se ao povo em phrases +sentidas e a commoção que provocou foi tão intensa, que muita gente derramou +sinceras lagrimas.»</p> + +<p>No trajecto de Albergaria-a-Velha para aquella cidade, o capitão Leitão +observou ao commandante da escolta:</p> + +<p>—Sabe uma cousa... Não triumphámos na revolta de 31 porque fomos +trahidos. </p> + +<p>—Mas quem os atraiçoou no fim de contas... perguntou o commandante.</p> + +<p>—Sou bastante generoso para não denunciar ninguem!</p> + +<p>Na cadeia da Relação, o capitão Leitão mostrou-se por vezes excitadissimo e +nunca cessou de solicitar do respectivo director que lhe consentisse vêr o +filho—um rapazito de quatorze annos que ia alli levar-lhe a comida. No +dia 6 de fevereiro á tarde, satisfizeram-lhe o desejo. E elle então, ao avistar +a creança, ajoelhou, exclamando:</p> + +<p>—Perdoa-me, assassinei-te!...</p> + +<p> </p> + +<p>O tenente Coelho, esse, apresentou-se no dia 1 de fevereiro, no quartel +general, aqui entregou a sua espada ao sub-chefe de estado-maior, que lhe deu +voz de prisão e foi em seguida conduzido para o castello da Foz, onde ficou +custodiado á vista.</p> + +<p>O alferes Malheiro, ao que depois se affirmou, tendo sido derrubado na rua +de Santo Antonio pelos populares que fugiam das descargas da guarda municipal, +acolheu-se á casa d'um amigo, d'onde mais tarde passou para uma quinta do Douro +e d'aqui para a Povoa do Varzim. Na Povoa embarcou n'uma canoa de pesca para a +Galliza e de Vigo seguiu mais tarde para a America do Sul.</p> + +<p> </p> + +<p>A maledicencia não poupou nenhum d'esses tres homens. Vendo-os derrotados, +entreteve-se a assacar-lhes<span class="pn"><a name="pg_126" +id="pg_126">{126}</a></span> varias infamias, como se fosse necessario +cobril-os de opprobrio para mais facil apotheose dos vencedores. Os jornaes da +epocha, porém, registam diversos documentos que ao mesmo passo que evidenciam a +qualidade dos manejos tecidos para denegrir a situação dos tres officiaes, +demonstram egualmente que todos elles investiram de frente contra as insidias e +calumnias espalhadas nos orgãos da monarchia. Vejamos, em primeiro logar, esta +carta do capitão Leitão publicada, já depois de elle ter sido julgado e +condemnado em conselho de guerra:</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>Sr. redactor do «Seculo»</em>:—Informa o <em>Dia</em> que minha +esposa supplicára do general Scarnichia commandante da 3.ª divisão militar, o +auxilio da rainha de Portugal em seu favor e que a soberana ia, com effeito, +conceder-lh'o bem como a meus dois filhos. Achando-me eu separado ha annos da +senhora de quem se trata, cumpre-me declarar em vista de tal informação, que +nem sou solidario com os seus actos nem d'elles assumo a menor +responsabilidade. Cumpre-me outrosim accrescentar quanto a meus filhos que a +situação d'estes é perfeitamente independente da de minha esposa e se acham +felizmente ao abrigo da regia philantropia. Lamentando que um tal facto me +obrigasse a vir á imprensa desvendar um recanto da minha vida intima, +etc.—<em>Antonio do Amaral Leitão</em>.»</p> + +<p> </p> + +<p>Trechos d'uma carta do tenente Coelho:</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>Sr. redactor do «Diario Popular»</em>:—Tive por acaso +conhecimento de que um jornal de Lisboa, no furor de fazer <em>reportage</em>, +a proposito dos lamentaveis successos do dia 31 de janeiro se refere a um +incidente da minha vida de estudante, deturpando-o e commentando-o de um modo +insultante<span class="pn"><a name="pg_127" id="pg_127">{127}</a></span> para +mim. Indigna-me a cobardia; porque é facil e pouco perigoso insultar um preso +que tem a absoluta impossibilidade de desforçar-se. Não fui eu o unico a quem +aconteceu aquelle incidente, mas fui o unico que por elle respondi, sendo +absolvido por unanimidade no conselho de guerra respectivo. Outros mais felizes +obtiveram as suas cartas apesar de identicos incidentes.</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img127"></a> +<p><img alt="Fotografia de Tenente Coelho" src="images/p127.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Tenente Coelho (1891)</p> +</div> + +<p>«Pois embora tivesse sido denunciado por um camarada, não deixei de lhe +perdoar o muito que soffri pelo muito que os dignos officiaes que compunham o +corpo docente da escola do exercito me beneficiaram a mim. E desde que vesti a +minha farda de official, desde janeiro de 1883, posso erguer bem alta a cabeça, +que na minha vida não ha uma acção que me deslustre! Tenho por testemunhas toda +a população de Villa Real, onde sempre tenho vivido e os officiaes que commigo +serviram em infanteria 13. Desafio quem quer que seja a desmentir as minhas +palavras. Transferido violentamente e violentamente exonerado de ajudante de +infanteria 13, como o prova o sr. conde de Villa Real, pelo simples facto de eu +ser progressista, partido em que trabalhei afanosamente, bem podera ter ficado +no mesmo logar se quizesse transigir com o partido<span class="pn"><a +name="pg_128" id="pg_128">{128}</a></span> regenerador, como pode proval-o um +dos homens mais honrados e illustres d'esse partido, o sr. dr. Antonio de +Azevedo Castello Branco. Mas não. O meu dever era não abandonar o partido em +que me alistára e assim o fiz, apesar dos innumeros sacrificios que isso me +custou.</p> + +<p>«Tendo um grande amor ao trabalho e ao estudo, todo Villa Real sabe e todos +os que me conhecem testemunham como eu desde as 6 horas da manhã até ás 6 ou 7 +da tarde, áparte as horas em que cumpria os meus deveres officiaes, leccionava +varias disciplinas para angariar meios de subsistencia para a minha numerosa +familia sem me arredar um ponto da linha recta da honra e da +dignidade.—<em>Manuel Maria Coelho</em>.»</p> + +<p> </p> + +<p>Uma carta do alferes Malheiro:</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>Sr. redactor do «Jornal de Noticias»</em>:—Tendo lido em diversos +periodicos que eu tentara alliciar a força da guarda do meu commando, a fim de +me acompanhar na revolta e que essa força não adheriu devido ao procedimento +energico do 2.º sargento Benigno, que disse não abandonar o seu posto emquanto +tivesse munições, tenho a declarar muito terminantemente que são falsas taes +versões.</p> + +<p>«Na occasião em que se apresentou o regimento de caçadores 9 em frente da +cadeia, sahi do meu quarto e como visse grupos de soldados passeando, +intimei-os a recolher á casa da guarda, assistindo eu mesmo a essa retirada. +Disse-lhes, finalmente, que ninguem sahiria d'alli a não ser ao brado d'armas. +Tudo isto que declaro é a expressão da verdade, podendo ser garantido pelo +sargento que estava n'esse momento a meu lado.</p> + +<p>«Nunca me passou pela imaginação a adhesão da força da guarda, pois +n'aquelle momento de exaltação não deixei de pensar em que se tornava<span +class="pn"><a name="pg_129" id="pg_129">{129}</a></span> precisa a maior +vigilancia sobre a cadeia. Seria leviano, mas não tanto como o julgam aquelles +para quem escrevo esta declaração.—<em>Augusto Rodolpho da Costa +Malheiro.</em>»</p> + +<p> </p> + +<p>Repetimos: a maledicencia não poupou nenhum dos tres officiaes que se +evidenciaram durante a revolta. Dias a fio bradou-se, á mistura com a +divulgação dos mais censuraveis boatos, que era necessario applicar aos +culpados todo o rigor das disposições penaes. Pouca gente, da affecta ao +regimen e á dynastia brigantina, ponderou que a genese do movimento brotara +exactamente dos erros e dos escandalos d'um e d'outra e que para os accusadores +serem realmente justos precisavam, antes de mais nada, pensar nas suas proprias +responsabilidades, ou nas dos partidos politicos a que pertenciam.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XVIII</h1> + +<h2>O dia seguinte ao da derrota</h2> + +<p>Suffocado o movimento, que fizera triumphar por algumas horas, a dentro dos +muros do Porto, a bandeira verde e vermelha, os serventuarios da monarchia +apressaram-se a enaltecer os talentos dos vencedores e a amesquinhar o valor da +organisação revolucionaria. Não ignoravam elles que fóra d'aquella cidade se +tinham dado occorrencias graves, reveladoras da amplitude d'essa organisação e +que para evitar maiores complicações se mandara interromper a marcha d'algumas +das forças militares a caminho do fóco insurreccional.</p> + +<p>«O mesmo regimento de infanteria 18—affirma-o um chronista da +epoca—só ás dez da manhã, terminado<span class="pn"><a name="pg_130" +id="pg_130">{130}</a></span> completamente o combate, finda inteiramente a +lucta, foi, a bandeira desfraldada, apresentar-se ao quartel general. Um dos +regimentos do Norte, que chegou a desembarcar na estação de Campanhã, ahi mesmo +levantou vivas á Republica. Muitas praças do regimento de caçadores 5 que +faziam a guarda ás prisões onde se encontravam os revoltosos que não haviam +conseguido fugir, diziam-lhes que tinham feito mal em não prolongar a lucta até +á sua chegada, porque o regimento faria causa commum com a revolta...»</p> + +<p>Na imprensa monarchica liam-se as cousas mais affrontosas para os +derrotados. Todos os que, durante os momentos victoriosos, tinham receiado pela +sua integridade pessoal, atropellavam-se no empenho de accumular a <em>metralha +accusatoria</em> sobre os vencidos. Sacudiam-se responsabilidades e ninguem +queria ter a menor solidariedade com os revoltosos. As mesmas corporações que +no caso do triumpho republicano se apressariam por certo a saudar o advento +d'um novo regimen com o appoio incondicional e festivo despejavam sobre o +throno canastradas de felicitações, algumas n'uma linguagem servil e, por isso +mesmo, abjecta.</p> + +<p> </p> + +<p>No dia 31, ao começo da tarde, o governador civil do Porto, Taibner de +Moraes, fez publicar um edital suspendendo «as formalidades que garantem a +liberdade individual», e o governo central acrescentou a isso a suppressão da +imprensa republicana ou d'aquella que não vociferasse tonitruante contra o +movimento e os seus promotores. A serie das bajulações á monarchia victoriosa +que, afinal, durante a insurreição, não ganhara para o susto, foi aberta pela +vereação portuense n'uma mensagem que ella propria veio entregar a Lisboa, +dizendo todas estas enormidades: <span class="pn"><a name="pg_131" +id="pg_131">{131}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p>«N'esse nefasto dia (o de 31 de janeiro) uma parte da guarnição, esquecendo +o juramento de fidelidade á sua bandeira e ás instituições que nos regem e não +menos o dever da disciplina e da manutenção da ordem e da tranquilidade +publica, praticou o maior dos attentados contra a patria, que na occasião se +podia commetter.</p> + +<p>«Attentando contra a monarchia constitucional que é o mais seguro esteio da +independencia portugueza, nem ao menos se ponderaram as criticas circumstancias +em que nos collocam no actual momento as pretenções de uma poderosa nação sobre +o nosso dominio africano e a situação da fazenda publica. </p> + +<p>«E quando todo o cidadão que verdadeiramente ama o seu paiz sente o +impreterivel dever de não crear o menor embaraço nem levantar o menor estorvo á +melhor solução d'aquellas difficuldades e perigos é que uns poucos de militares +e um insignificante numero de individuos da classe civil intentam, +verdadeiramente obcecados, mudar a natureza das instituições fundamentaes, +abolir a monarchia e precipitar o paiz na revolução á mão armada...»</p> + +<p> </p> + +<p>A mensagem tinha os nomes dos srs. Oliveira Monteiro, Ribeiro da Costa e +Almeida, Leão da Costa, Anthero d'Araujo, Mendes Correia, Pinto de Mesquita, +Chaves de Oliveira, Christiano Vanzeller, Pires de Lima, Teixeira Duarte, Lima +Junior, Silva Moreira, Alves Pimenta, José Arroyo, Fernando Bahia, Silva +Tapada, Moreira Monteiro, Manuel da Silva Pinto, Vieira d'Andrade, Pedro de +Araujo e Tito Fontes.</p> + +<p>A guarda municipal do Porto tambem recebeu a sua quota parte de felicitações +e... melhoria de rancho, pelo «denodo com que repellira os insurrectos». Os +jornaes da epoca estão pejados de documentos<span class="pn"><a name="pg_132" +id="pg_132">{132}</a></span> interessantes, revelando o calor bajulatorio +projectado sobre os triumphadores do movimento. Um d'elles: </p> + +<p> </p> + +<p>«Satisfeito com o exemplar comportamento e bravura que mostrou o corpo da +guarda municipal do Porto, no dia 31 de janeiro para conter os desordeiros e +fazer respeitar a lei e o governo do paiz e seguindo as ideias do meu compadre +e bom amigo João Pinto Ferreira Leite, tomo a liberdade de remetter a v. ex.ª +(o commandante da guarda) a quantia de 50$000 réis destinados para melhorar o +rancho dos soldados da mesma guarda.—<em>Januario Bastos</em>».</p> + +<p> </p> + +<p>Outro, egualmente dirigido ao commandante da guarda municipal:</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>Meu bravo e glorioso camarada</em>: Felicito a v. ex.ª e felicito a +valente guarda municipal do Porto, hoje mais do que nunca, uma honra para o +nosso paiz, pela maneira corajosa por que acaba de arrancar da beira de um +abysmo a monarchia e a nação. Consinta v. ex.ª que o abrace e este amplexo +cinge toda a corporação da guarda municipal do Porto.—<em>Christovão +Ayres</em>».</p> + +<p> </p> + +<p>Alguns dos membros do governo provisorio proclamado no edificio da camara +municipal, uma vez suffocado o movimento, publicaram egualmente nas gazetas +declarações terminantes repudiando a menor ligação com os revoltosos. O sr. +Joaquim Bernardo Soares, por exemplo, dizia na sua carta:</p> + +<p> </p> + +<p>«Tenho sido sempre homem de ordem—nem o meu passado, nem as ideias que +tenho manifestado inalteravelmente com o maior desassombro, podiam auctorisar +um tal procedimento da parte<span class="pn"><a name="pg_133" +id="pg_133">{133}</a></span> d'aquelles que imprudentemente lançaram o meu nome +para o publico e com os quaes não tenho relações de qualquer natureza nem +sequer pessoalmente conheço. Repillo, portanto, com a maior indignação, o abuso +que do meu nome se fez, sem que possa descortinar o motivo que o +determinou».</p> + +<p> </p> + +<p>O sr. Azevedo Albuquerque foi mais laconico:</p> + +<p> </p> + +<p>«Declaro que não dei auctorisação para o meu nome figurar na lista dos +membros do governo provisorio proclamado na casa da camara do Porto; e que não +concorri nem directa nem indirectamente, para o movimento revolucionario».</p> + +<p> </p> + +<p>A declaração do sr. Rodrigues de Freitas, embora principiasse por affirmar +que o seu auctor «desde muito se manifestara republicano-democrata e +continuaria a professar firmemente as mesmas ideias» quaesquer que fossem os +derrotados ou os victoriosos, acrescentava:</p> + +<p> </p> + +<p>«Não auctorisei ninguem, quer directa quer indirectamente, a incluir o meu +nome na lista do governo provisorio lida nos paços do concelho no dia 31 de +janeiro; e deploro que um errado modo de encarar os negocios da nossa infeliz +patria levasse tantas pessoas a tal movimento revolucionario».</p> + +<p> </p> + +<p>Por ultimo esta declaração do sr. José Ventura dos Santos Reis:</p> + +<p> </p> + +<p>«Sabendo que o meu nome anda envolvido nos tristes acontecimentos que se +deram n'esta cidade no dia 31 do mez passado, cumpre-me declarar +cathegoricamente que não auctorisei absolutamente ninguem a incluir o meu nome +na lista do governo<span class="pn"><a name="pg_134" +id="pg_134">{134}</a></span> provisorio, que foi lida nos paços do concelho; +que fui completamente estranho a quaesquer preparativos ou combinações que +precederam as occorrencias d'aquelle dia».</p> + +<p> </p> + +<p>Quarenta e oito horas depois da revolta, o governo fez publicar varios +decretos com o fim, dizia elle, de supprir as deficiencias da legislação então +vigente «provendo á necessidade de reprimir de prompto e punir com severidade +os attentados commettidos contra a ordem publica, segurança do Estado e suas +instituições». Por um d'esses decretos entregava á exclusiva competencia dos +tribunaes militares, o conhecimento e o julgamento do crime de rebellião, aliás +previsto e punido no codigo penal portuguez. Na cidade do Porto, não faltavam +edificios onde podessem funccionar os conselhos de guerra nem cadeias onde +acumular os individuos presos como implicados na revolta. Mas o governo receiou +que a população se interessasse demasiadamente pelo espectaculo dos julgamentos +e assim decidiu que os conselhos de guerra reunissem a bordo de navios de +guerra.</p> + +<p>Para esse effeito, collocaram no porto de Leixões o transporte +<em>India</em>, a corveta <em>Bartholomeu Dias</em>, e o vapor da Mala Real, +<em>Moçambique</em>, guarnecido com marinheiros da <em>Sado</em>. Como deposito +de prisioneiros juntaram a estes tres navios um velho pontão incapaz de +navegar. Para o <em>Moçambique</em> foram mandados João Chagas, Santos Cardoso, +o capitão Leitão, tenentes Coelho e Homem Christo, as praças do regimento de +caçadores 9 e os civis: Miguel Verdial, Felizardo de Lima, Santos Silva, o +abbade de S. Nicolau (rev.º Paes Pinto), Eduardo de Sousa, Amoinha Lopes, +Thomaz de Brito, Barbosa Junior, Alvarim Pimenta, José Durão, Pereira da Costa, +Gomes Alves, Soares das Neves, Pinto de Moura, Pinto de Vasconcellos,<span +class="pn"><a name="pg_135" id="pg_135">{135}</a></span> Aurelio da Paz dos +Reis, Cervaens y Rodrigues, Feito y Sanz e Simões d'Almeida. Para a +<em>Bartholomeu Dias</em> foram as praças de infantaria 18 e 10; para o +<em>India</em>, o alferes Trindade e os<span class="pn"><a name="pg_136" +id="pg_136">{136}</a></span> revoltosos da guarda fiscal. Mais tarde, o tenente +Coelho passou do <em>Moçambique</em> para aquella corveta. Dos chefes civis do +movimento, conseguiram expatriar-se o dr. Alves da Veiga, José Sampaio (Bruno) +e Basilio Telles.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img135"></a> +<p><img alt="Santos Cardoso, preso a bordo" src="images/p135.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Santos Cardoso, preso a bordo</p> +</div> + +<p>Reunidos os conselhos de guerra, os julgamentos decorreram de tal modo que +ninguem se illudiu sobre a sorte que estava reservada aos revoltosos. Sabia-se +de antemão que sobre elles recahiria o peso d'uma forte condemnação e que +quaesquer que fossem os incidentes revelados durante as sessões dos conselhos +elles em nada alterariam a sentença já lavrada.</p> + +<p> </p> + +<p>«O tribunal—affirmou-se mezes depois no manifesto dos emigrados da +revolução—era uma tão evidente delegação do poder executivo que, em plena +audiencia, um dos julgadores, nem sequer resguardando o melindre das +conveniencias, declarou que não proseguiria n'um detalhe qualquer de juridicas +investigações, <em>em virtude de ordens superiores</em>.</p> + +<p>«Foi decerto tambem em virtude d'essas ordens superiores que os julgamentos +se realisaram sobre o mar, acossado por uma invernia excepcional. Foi em +consequencia d'essas ordens que succedeu que, uma tarde mais aspera, as vagas +arrojaram contra os paredões do porto (Leixões) ainda em via de construcção, +desamparado e á mercê, consequentemente, um dos navios ahi ancorados, +persuadindo-se todos os habitantes do Porto que a verminada carcassa desfeita +fôra a d'um dos pontões onde se mandara apodrecer os suppostos criminosos e +assistindo-se então ao tremendo exemplo d'uma população de mães e esposas +clamorosas accorrendo, em gritos de dôr, a olhar a perfida, movediça sepultura, +onde repousariam, emfim, seus desditosos filhos, seus tristes esposos, a +alegria<span class="pn"><a name="pg_137" id="pg_137">{137}</a></span> das suas +almas, as esperanças de suas escuras existencias.</p> + +<p>«Em virtude e consequencia d'essas ordens superiores foi que um dos navios +de guerra (pois que se transformaram os maritimos gloriosos do glorioso +Portugal passado em carcereiros dos que almejavam restituir a patria ao seu +antigo esplendor) se desprendeu uma noite de tempestade e, com um condemnado a +bordo, andou perdido, sem provisões e sem rumo, na serração, pela clemencia +infinita das aguas.»</p> + +<p> </p> + +<p>Terminados os julgamentos, os conselhos de guerra condemnaram na pena de +prisão maior cellular (e, na alternativa, na de degredo): João Chagas, Santos +Cardoso, Verdial, capitão Leitão, os sargentos Abilio, Galho, Silva Nunes, +Castro Silva, Rocha, Barros, Pinho Junior, Fernandes Pinheiro, Gonçalves de +Freitas, Villela, Pereira da Silva, Folgado, Figueiredo e Cardoso, os cabos +João Borges, Galileu Moreira e Pires e o soldado da guarda fiscal Felicio da +Conceição. O tenente Coelho foi condemnado a cinco annos de degredo. Aos +restantes implicados couberam penas variaveis de deportação militar, degredo e +prisão correccional.</p> + +<p>Os regimentos de caçadores 9 e infantaria 10 tambem soffreram castigo +exemplar: o governo dissolveu-os. E comtudo, em 1826, o primeiro de esses +corpos, tendo-se revoltado contra o marquez de Chaves, que defendia o +absolutismo do sr. D. Miguel, fôra aclamado fiel e até comtemplado com augmento +de soldo...<span class="pn"><a name="pg_138" id="pg_138">{138}</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XIX</h1> + +<h2>Para as despezas da revolta bastou um conto de réis</h2> + +<p>Uma das accusações graves feitas aos revolucionarios do 31 de janeiro foi a +de que o movimento só se levara a cabo para servir interesses inconfessaveis e +apoiar especulações financeiras. Envolveram-se durante alguns dias os +revolucionarios n'um circulo de malquerença e de odio, attribuindo-se-lhes +propositos realmente nefandos—como dizia o governo nos documentos +officiaes, classificando os incidentes do movimento. O <em>Diario +Illustrado</em> chegou mesmo a affirmar:</p> + +<p> </p> + +<p>«Elles (os revolucionarios) puzeram-se, conscientemente muitos, +inconscientemente alguns, ao lado dos inimigos da patria, serviram a causa da +Inglaterra, que nos quer expoliar em Africa; <em>serviram a causa dos +financeiros que pretendem explorar com onzenices as desgraças da nossa +situação</em>.»</p> + +<p> </p> + +<p>Outro jornal, as <em>Novidades</em>, ia mais longe:</p> + +<p> </p> + +<p>«D'onde veiu e para onde foi o dinheiro que se arranjara para a revolta?</p> + +<p>«Houve ha um mez uma reunião no Porto onde foram dois delegados de Lisboa. +Ao contrario do que se tem dito, o accordo para a revolução foi completo. Nem +os de lá nem os de cá divergiram. No que não concordaram os de cá com os de lá +foi na forma da republica a proclamar, oppondo-se os de Lisboa á federação com +a Hespanha.</p> + +<p>«O que é certo, porém, porque resulta de documentos<span class="pn"><a +name="pg_139" id="pg_139">{139}</a></span> encontrados, e de depoimentos +recolhidos, é que a isto se seguiu a subscripção aberta em Lisboa para a +revolta, que produziu rapidamente 20 contos que foram levados ao Porto por dois +sujeitos, um dos quaes tem uma alta graduação burocratica. Esse dinheiro ficou +nas mãos de Alves da Veiga.</p> + +<p>«Escusamos dizer que não foi encontrado na busca que a policia fez. Nem o +dinheiro nem os papeis importantes, porque as gavetas foram já encontradas +tiradas dos moveis, espalhadas pelo chão e alguns dos papeis que n'ellas ainda +havia eram ou insignificantes ou rasgados.»</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img139"></a> +<p><img alt="Fotografia do Actor Verdial" src="images/p139.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Actor Verdial (1891)</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Em summa, as <em>Novidades</em> diziam claramente que um dos chefes da +revolta recebera alguns contos de réis e com elles se locupletara. </p> + +<p>Essa e outras accusações despertaram, como é natural, protestos vehementes. +Os jornaes republicanos, apesar da mordaça que o governo lhes collocara apoz o +31 de janeiro, esforçaram-se o mais possivel por quebrar os dentes á calumnia e +apagar a serie de apodos com que a imprensa monarchica mimoseava os revoltosos. +E esse sentimento de protesto conquistou tambem a grande maioria dos jornaes +madrilenos, porque um d'elles, o mais<span class="pn"><a name="pg_140" +id="pg_140">{140}</a></span> accentuada e tradicionalmente monarchico, o jornal +ultra-conservador a <em>Epoca</em> fez côro com os collegas radicaes que +estygmatisaram a insidia cavilosa.</p> + +<p>E comprehende-se que assim succedesse. Não era crivel que o exercito +portuguez—a parte d'esse exercito que se revoltara no 31 de +janeiro—pensasse em saquear a cidade do Porto, como egualmente a imprensa +monarchica pretendeu fazer acreditar. Admittir tal hypothese seria o mesmo que +admittir que a revolta, longe de visar á proclamação da Republica, se limitava +a favorecer o roubo d'umas tantas casas commerciaes. Narrou-o mais tarde um dos +revolucionarios que conseguiu escapar á furia dos serventuarios do regimen, +exilando-se em Hespanha:</p> + +<p> </p> + +<p>«Emquanto a estupida imprensa officiosa de Portugal enxovalhava de tal modo +o exercito portuguez perante a Europa toda, por um momento occupada quasi +exclusivamente do que estava ocorrendo na nossa terra, o jornalismo estrangeiro +registava, ainda com os louvores mais rasgados, que a revolução militar do +Porto não se devera a nenhum baixo mobil, não fora propulsionada por nenhum +mesquinho interesse, antes, pelo contrario, constituira, na solidariedade moral +europeia, um caso honroso para toda a humanidade e infelizmente raro, na +historia d'um movimento politico, combinado e ultimado pelo simples prestigio +das convicções.</p> + +<p>«E todavia a imprensa estrangeira ignorava que o traço particularmente +typico do movimento de 31 de janeiro foi o da sua essencia genuinamente +democratica; ignorava que nenhuma seducção poderia exercer em almas populares o +fascinamento das posições sociaes de elevados alliciadores, pois que os não +houve; ignorava que não sómente não existia caixa alguma, pittoresca, +estolidamente, denominada<span class="pn"><a name="pg_141" +id="pg_141">{141}</a></span> <em>da revolução</em>, mas ainda que nem sequer o +anonymo soldado recebera um real para sahir do quartel; ignorava que na noite +famosa que precedeu o acontecimento se deixara bem assignalado que, na +hypothese da victoria, nenhum dos militares revolucionados teria a mais somenos +promoção ou o mais insignificante beneficio, de qualquer genero que fosse.</p> + +<p>«Em tão novas condições se consumou este movimento politico de 31 de janeiro +de 1891 que elle fará a admiração das gerações portuguezas e nobilitará o paiz, +comprehendendo-o na esphera dos povos que sabem, podem e querem, ao menos +tentam pelejar e morrer pela consecução desinteressada d'um ideal de justiça +abstracta.</p> + +<p>«A historia não ha-de ser commettida aos escribas da imprensa vendida dos +nossos tempos; e a historia ha-de considerar o movimento republicano do Porto a +uma altura que parece irrisorio talvez á tagarelice insensata de certos +portuguezes de hoje».</p> + +<p> </p> + +<p>E tinha razão de sobejo o revolucionario emigrado. Tres dias depois de +suffocado o movimento, o presidente da edilidade portuense, n'uma nota +distribuida aos jornaes monarchicos, salientava o facto dos revoltosos não +haverem tocado no thesouro da camara emquanto occuparam o edificio municipal. +Na grande meza da sala das sessões repousaram, durante o tiroteio entre os +revolucionarios e as forças fieis, magnificos tinteiros de prata. Pois ninguem +lhes tocou, até que os empregados da camara, uma vez liquidado o movimento, os +arrecadaram em logar seguro.</p> + +<p>A <em>Tarde</em>, jornal de Lisboa affecto ao antigo partido regenerador, +bem se esfalfou em asseverar que a muitos dos militares presos tinham sido +encontradas libras em ouro, o que provava que na<span class="pn"><a +name="pg_142" id="pg_142">{142}</a></span> madrugada de 31 de janeiro se fizera +larga distribuição de dinheiro. Outras gazetas insinuaram egualmente que a +revolução rebentara mais cedo do que fôra determinado pelos seus organisadores, +porque um dos sargentos compromettidos tendo defraudado a caixa do respectivo +regimento em centenas de mil réis—gastos em alliciar os +subordinados—não queria de modo algum que em 1 de fevereiro de 1891 o +obrigassem a prestar contas. Afinal, tudo isto cahe pela base sabendo-se que o +unico dinheiro que serviu realmente a pagar despezas da revolta foi fornecido +ao dr. Alves da Veiga pelo negociante portuense José Ferreira Gonçalves e não +excedeu... um conto de réis. Não se dirá, por isso mesmo, que o movimento +custou caro!</p> + +<p>Junte-se agora a essa quantia a de sete contos—em que se avaliou os +estragos causados pelas balas nos predios dos Clerigos, rua de Santo Antonio e +praça de D. Pedro—e vêr-se-ha que nunca se fez uma revolução com tanta +economia de numerario e tanta nobreza de procedimento da parte dos que a +levaram á pratica.</p> + +<p> </p> + +<p>Mas se os revolucionarios dispenderam pouquissimo dinheiro em investir +contra o regimen monarchico, em compensação prodigalisaram os actos de +heroismo. N'outro logar d'esta narrativa, já assignalámos o ardor com que a +guarda fiscal e as tropas do 10 e do 9 sustentaram na rua de Santo Antonio e na +casa da camara as arremettidas da guarda municipal. Devemos, no emtanto, +registar dois casos typicos que a imprensa da epoca descreveu +pormenorisadamente e que qualificam nitidamente o valor dos insurrectos.</p> + +<p>Um d'elles é o d'um guarda fiscal—figura de athleta—que, +installado n'uma das janellas do Café Suisso, na praça de D. Pedro, ahi se +manteve desfechando ininterruptamente a sua espingarda sobre<span class="pn"><a +name="pg_143" id="pg_143">{143}</a></span> os defensores da monarchia e só +abandonou o posto quando lhe faltaram totalmente os projecteis. Essa janela do +café ficou crivada de balas, mas o guarda fiscal em questão nunca perdeu o +sangue frio e por espaço de horas visou, certeiro, a guarda municipal. O +segundo caso é a reproducção do primeiro e occorreu n'outra janella do +estabelecimento já citado, onde se entrincheiraram quatro estudantes.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img143"></a> +<p><img alt="Revoltosos presos a bordo do India" src="images/p143.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Revoltosos presos a bordo do <em>India</em></p> +</div> + +<p>Compare-se a attitude d'essas creaturas luctando serenamente, +imperturbavelmente, pelo ideal que se tinham proposto conduzir á victoria com o +de outras que no curto espaço de tempo que durou a revolta se bandearam +primeiro com os revoltosos e logo a seguir manifestaram a sua adhesão ao +regimen<span class="pn"><a name="pg_144" id="pg_144">{144}</a></span> +monarchico. Os exemplos d'essa cobardia moral abundam. Respigamos ao acaso n'um +jornal portuense do dia 2 de fevereiro de 1891:</p> + +<p> </p> + +<p>«C... proprietario d'um armazem de moveis e L... pharmaceutico, logo que +viram o caso mal parado (o triumpho momentaneo dos insurrectos) tiraram das +frontarias dos respectivos estabelecimentos os escudos com as armas reaes; mas +depois tornaram a collocal-os, porque perceberam que a monarchia não fôra +vencida na refrega.» </p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XX</h1> + +<h2>Triste balanço: o das victimas da insurreição</h2> + +<p>Vinte e quatro horas apoz a liquidação do movimento, espalhou-se que o +numero de mortos na refrega não passara de doze—na sua maioria guardas +municipaes. Entretanto, na população portuense ficou durante muito tempo a +impressão de que esse numero não representava a verdade e que os cadaveres de +revoltosos sepultados nos cemiterios da capital do Norte se tinham contado por +centenas. O <em>Primeiro de Janeiro</em>, do dia immediato ao da revolta, +forneceu aos seus leitores esta lista de feridos graves—muitos dos quaes +vieram a fallecer dos ferimentos recebidos:</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>Recolhidos no hospital do Terço.</em>—Manuel Canedo, soldado de +infantaria 10; Manuel Barreira, guarda municipal; Francisco Joaquim, guarda +municipal; Manuel Maria, soldado do 10; José Joaquim Teixeira, guarda fiscal; +João Manuel Gomes, guarda fiscal; Antonio Carneiro, soldado do<span +class="pn"><a name="pg_145" id="pg_145">{145}</a></span> 18; Pedro da Rocha, +soldado do 10; Manuel Cardoso, cabo da municipal; João Nepomuceno, guarda +fiscal; Antonio Pereira de Almeida, civil; Francisco José e José Antonio +Carneiro, municipaes; João José Pereira de Azevedo Lobo e Joaquim Gomes, cabos +da municipal; dr. João Henrique da Rocha, redactor da <em>Luz</em>; Maria +Custodia Alves, costureira. Esta rapariga estava á janella da casa do sr. +Henrique de Mello quando rebentou o tiroteio e recebeu uma bala no pescoço.</p> + +<p>«<em>Recolhidos no hospital da Misericordia.</em> Victorino da Assumpção e +Domingos da Cunha, guardas fiscaes; Antonio Joaquim, municipal; Bernardino +Gonçalves Losa, cabo da municipal; Albino Cardoso, guarda fiscal; Julio +Cordeiro, sargento do 18; João Aleixo, corticeiro; José Manuel da Silva +Monteiro, charuteiro; Joaquim Sant'Anna, pedreiro; João de Castro, empregado +forense; Antonio Gomes Junior, alfaiate; Manuel Pereira da Fonseca, +chapelleiro; Cosme Campos Cabral, estudante; Marianna Rosa, serviçal.</p> + +<p>«<em>Recolhidos no hospital militar.</em>—Lemos Junior, cabo do 10; um +soldado do 9 e tres soldados da guarda municipal.»</p> + +<p> </p> + +<p>Sobre o numero de mortos, dizia:</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>No hospital do Terço.</em>—Um soldado da guarda fiscal.</p> + +<p>«<em>No hospital da Misericordia.</em>—José Joaquim d'Almeida, +tamanqueiro; João de Carvalho, trolha; um desconhecido e José Gustavo Adolpho +Alves de Almeida Guimarães.</p> + +<p>«<em>Nas ruas</em>—Um desconhecido; Silverio d'Almeida Santos, guarda +fiscal; Taveira, 2.º sargento; Domingos Nogueira; João, entalhador e um +empregado do commercio, irmão do redactor da <em>Republica</em> Jayme +Filinto.»<span class="pn"><a name="pg_146" id="pg_146">{146}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p>Evidentemente, esta lista era deficientissima. Tanto assim que d'ahi a dias +uma nota do commissariado geral da policia indicava como despojos dos militares +compromettidos no movimento:</p> + +<p> </p> + +<p>«147 espingardas, 147 terçados, 1 espadim de official, 3 espadins de +musicos, 1 bainha de espada de cavallaria, 147 patronas, 176 cinturões +completos, 197 cananas, 14 cantis, 12 mochilas, 92 capacetes grandes, parte dos +quaes sem a corôa real, 13 bonets da guarda fiscal, 9 instrumentos musicos, uma +corneta, dois tambores, 39 capotes, um capote de official, 23 jaquetas, a maior +parte das quaes pertencentes a sargentos, 173 massos de cartuchame embalado com +vinte tiros cada um, 227 massos com dez tiros e uma grande porção de balas +soltas.»</p> + +<p> </p> + +<p>Reproduzindo esta nota, não queremos dizer com isso que cada um dos objectos +acima enumerados tenha realmente correspondido a um morto pela revolução. A +nota, em primeiro logar, expressa por uma maneira bem flagrante a intensidade +do panico que se desenvolveu ao principiar o recontro na rua de Santo Antonio. +Por outro lado, muitos dos militares que empunhavam esse armamento recolhido +pela policia, tendo conseguido escapar á fusilaria da municipal, abrigaram-se +fóra do Porto e uma grande porção d'elles fugiu para Lisboa. Em resumo: se não +foram apenas doze as victimas do movimento republicano—como se pretendeu +affirmar no dia seguinte ao da derrota—tambem não cremos que tivessem +passado de cincoenta os cadaveres enterrados nos cemiterios.</p> + +<p> </p> + +<p>No dia 3, á meia noite, correu no Porto que o regimento de infantaria 3, +aquartelado em Santo Ovidio de camaradagem com o 18—fôra para ali<span +class="pn"><a name="pg_147" id="pg_147">{147}</a></span> horas depois de +suffocada a revolta—se insubordinara e pretendia sahir á rua dando vivas +á Liberdade e á Republica. A capital do Norte tornou a viver momentos de +angustiosa espectativa. Pelo espirito da população portuense de novo perpassou +a visão d'outros cadaveres empilhados no Prado do Repouso... A guarda +municipal, prevenida dos boatos correntes, encaminhou-se sem demora para o +Campo de Santo Ovidio. Ahi, reconhecendo que nada tinha a fazer, evolucionou em +varias direcções e por fim desceu á Praça de D. Pedro, ostentando a +<em>pose</em> irritante adequada a <em>salvadores da monarchia</em>. De +madrugada recolheu ao quartel e a cidade recuperou o socego.</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img147"></a> +<p><img alt="Fotografia de Antonio José de Almeida" src="images/p147.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Antonio José de Almeida (1891)</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Nos dias immediatos, ainda os cemiterios receberam os corpos de algumas das +victimas da Revolução. Tratava-se de feridos graves operados nos hospitaes e +que não tinham resistido a amputações dolorosissimas, ás trepanações e outros +trabalhos cirurgicos. A par d'essa liquidação funebre, a policia e as +auctoridades militares procediam a uma outra: a das creaturas que se lhes +affiguravam suspeitas de republicanismo. Para mais, nas buscas realisadas em +diversas casas de revoltosos haviam sido apprehendidos documentos provando a +adhesão<span class="pn"><a name="pg_148" id="pg_148">{148}</a></span> ao +movimento não só de quasi todos os officiaes inferiores da guarnição do Porto +mas de dezenas de militares residentes n'outros pontos do paiz. E assim, a rede +lançada pelos agentes da ordem procurou abranger o maior numero possivel de +elementos accusatorios, collocando ao mesmo tempo os presos politicos em +situação de esmorecerem de animo pelo effeito do tratamento que lhes +dispensavam.</p> + +<p>Dil-o um testemunho insuspeito:</p> + +<p> </p> + +<p>«Punge-me a triste situação em que se acham os revoltosos do 31 de Janeiro. +Aos presos apenas é dada uma triste açorda; não teem cama nem uma enxerga ou +maca, nem uma pouca de palha em que se deitem, nem uma manta em que se +embrulhem. Os que dispõem d'alguns recursos mandam ir das suas casas roupas e +enxergas, mas os restantes, que são o maior numero, estão dormindo nas tabuas +nuas, tiritando e morrendo com frio.»</p> + +<p> </p> + +<p>Pelo que respeita á assistencia judiciaria foram os revoltosos mais felizes. +O curso do 5.º anno da Faculdade de Direito, n'um impulso de vehemente +generosidade, offereceu-se em massa para defender os réus, explicando, porém, +pela bocca do seu camarada dr. Lomelino de Freitas—o porta-voz do bizarro +offerecimento—que «a sua attitude não implicava de modo algum profissão +de fé politica nem approvação ou desapprovação dos acontecimentos.»</p> + +<p>Os republicanos que tinham conseguido abrigar-se em Hespanha, esses, depois +de socorridos pelo governo do paiz visinho, haviam recebido ordem de se afastar +da fronteira, internando-se—exactamente o contrario do que succedeu mais +tarde, estando no poder o sr. Canalejas e tentando o ex-capitão<span +class="pn"><a name="pg_149" id="pg_149">{149}</a></span> de artilharia Paiva +Couceiro restaurar a monarchia brigantina.</p> + +<p>A situação, em resumo, tornara-se difficil e penosa para todos os que, não +partilhando da subserviencia incondicional ao regimen monarchico, se viam +forçados a procurar no isolamento ou no exilio a tranquilidade que o mesmo +regimen lhes negava. O governo, no proposito firme de cortar as azas á mais +insignificante velleidade de resistencia, dissolvia os clubs republicanos e +punha a guarda municipal constantemente de prevenção. E a sua furia contra as +aggremiações democraticas attingiu taes proporções que só n'um dia mandou +fechar quatorze das que então existiam em Lisboa.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XXI</h1> + +<h2>A serenidade d'uns e o desalento de muitos</h2> + +<p>Chegado o momento da justiça militar pedir contas dos seus actos aos +individuos presos por effeito da revolta, houve o maximo cuidado, nas regiões +officiaes, em impedir que os depoimentos dos <em>principaes culpados</em> +salientassem o condemnavel procedimento de varias personalidades consideradas +sustentaculos do throno. Procurou-se assim dar ao grande publico, á nação +inteira e até ao estrangeiro, a impressão falsissima de que a revolta de 31 de +Janeiro brotára apenas dos cerebros de meia duzia de tresloucados, creaturas +apagadas e de nullo valor social, sem ligação com outros elementos de superior +importancia. Ao mesmo tempo, a imprensa monarchica tentou insinuar, falsamente +tambem, que a maioria dos individuos presos como revolucionarios experimentára, +ao embarcar nos navios-prisões, o arrependimento do seu<span class="pn"><a +name="pg_150" id="pg_150">{150}</a></span> gesto nobre e patriotico e só +anceiava por alijar as responsabilidades que lhe cabiam á face das leis.</p> + +<p>Se é certo que no decorrer da instrucção do processo e mesmo durante o +julgamento em conselho de guerra alguns d'esses homens mostraram falhas de animo e +de coragem, devidas essencialmente á torturante atmosphera moral que os agentes +da monarchia lhes tinham creado, muitos houve—e esses constituiram o +maior numero—que evidenciaram não só incomparavel dignidade como uma +presença de espirito, uma serenidade verdadeiramente heroicas.</p> + +<p>João Chagas, por exemplo, conservou uma placidez digna de registo. Dil-o um +jornal da epoca:</p> + +<p> </p> + +<p>«O brilhante escriptor não afasta de si todas as responsabilidades nem as +assume todas. Acceita as que tem e não as declina, antes entende que deve +ufanar-se d'ellas. Essas responsabilidades versam principalmente sobre o que +elle escreveu e sobre o que se publicou no jornal que dirigia: a <em>Republica +Portugueza</em>».</p> + +<p> </p> + +<p>E como circulasse que no seu depoimento feito perante a auctoridade militar, +o illustre pamphletario commentára acremente a attitude dubia de diversos +individuos compromettidos na revolta, o mesmo jornal a que acima nos referimos +accrescentou dias depois:</p> + +<p> </p> + +<p>«É inexacto que o depoimento de João Chagas contenha censuras. Elle julga +simplesmente que é nobre que responda cada qual corajosamente pelos seus actos. +É correcto. João Chagas mantem a serenidade e a tranquilidade dos primeiros +dias. Dorme pouco em virtude d'uma tosse que contrahiu na frialdade humida da +cadeia. Será visto por um medico. Um amigo do fogoso jornalista, desejoso<span +class="pn"><a name="pg_151" id="pg_151">{151}</a></span> de lhe provar a +consideração e a estima em que o tem, fez-lhe, por intermedio do digno director +da cadeia, alguns offerecimentos que elle agradeceu e recusou. Consta até que +affirmou, mostrando desprendimento pela vida:</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img151"></a> +<p><img alt="Os prisioneiros a bordo" src="images/p151.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Os prisioneiros a bordo</p> + +<p> </p> +</div> + +<p>—O ser condemnado pouco me importa. Estava um pouco cançado e o +governo, mandando-me prender, offereceu-me descanço por alguns annos».</p> + +<p> </p> + +<p>D'uma vez, porém, a serenidade de João Chagas estremeceu ao de leve. Foi no +dia, em que já encarcerado a bordo, viu passar, a curta distancia do local onde +se encontrava, o famoso director da<span class="pn"><a name="pg_152" +id="pg_152">{152}</a></span> <em>Justiça Portugueza</em>. Então, voltando-se +para um companheiro de prisão, disse, apontando Santos Cardoso:</p> + +<p>—Estamos aqui a pagar as antipathias que aquelle homem provocou...</p> + +<p> </p> + +<p>E já que falamos de Santos Cardoso: o seu depoimento confiado ao instructor +do processo não correspondeu ao que se esperava do seu aspecto energico, quasi +feroz. Mostrando-se muito abatido e desanimado, declarou que não tomára parte +activa no movimento insurreccional, que nada soubera antecipadamente do +<em>complot</em> revolucionario e que apenas sahira á rua na madrugada de 31 de +Janeiro depois de ter ouvido tocar a rebate na egreja da Lapa. Mais tarde +descera á praça de D. Pedro e assistira na camara á proclamação da Republica. +Contou, n'esta altura, um insignificante episodio occorrido dentro do edificio +municipal. A seu lado, na sala, encontrava-se no momento da proclamação, um +individuo envolto na bandeira do Club Democratico 15 de Novembro. Esse +individuo, pretendendo deslocar-se para ir á varanda, ensarilhou o cordel da +bandeira na espingarda d'um soldado e a arma cahiu no sobrado. A multidão, +receiando que a espingarda se disparasse, afastou-se pressurosa do local...</p> + +<p> </p> + +<p>Decorridos alguns dias apoz o depoimento, a esposa de Santos Cardoso foi +visital-o á prisão. O antigo director da <em>Justiça Portugueza</em> soffreu +tal choque com essa visita, que chorou desabaladamente, lamentando a sua +situação e pedindo a todos que d'ella se apiedassem. «Ignorava, disse, a +responsabilidade em que incorria, tomando parte no movimento; do contrario, não +o teria feito». E quando teve conhecimento das declarações de Homem Christo, +prestadas á policia, declarações que<span class="pn"><a name="pg_153" +id="pg_153">{153}</a></span> relatavam minuciosamente os seus trabalhos na +preparação revolucionaria, então o seu desanimo tornou-se mais profundo. +Succumbiu.</p> + +<p> </p> + +<p>O jornalista Eduardo de Sousa, que collaborara na <em>Republica +Portugueza</em> sob o pseudonymo de <em>Gualter</em>, esse, pretendendo fazer +um depoimento revelador d'uma virilidade intemerata, lançou a policia na +peugada de varios republicanos egualmente implicados no <em>complot</em>. A +imprensa noticiosa da epoca chegou a asseverar que a defeza desse reu servira +simplesmente a comprometter diversas personalidades, algumas das quaes tinham +sido presas ao mesmo tempo que elle. Cremos, porem, que muito se exagerou a tal +respeito e que a verdade do caso reside no proposito de atrevido exhibicionismo +que acima registamos.</p> + +<p> </p> + +<p>O sargento Abilio, n'uma carta que escreveu ao juiz affirmou +desassombradamente: «sou culpado, mas ha superiores meus mais culpados do que +eu».</p> + +<p> </p> + +<p>Depoimento de Dyonisio Ferreira dos Santos Silva: «Sou republicano desde que +me conheço, mas mais accentuadamente desde 11 de janeiro de 1890; no emtanto, +nunca fui socio de nenhum club democratico e nunca privei com os homens +dirigentes do partido republicano. Não sabia da revolta que se preparava para +31 de janeiro e não podia, portanto, ter alliciado para ella militares ou +paisanos. Soube da sublevação horas antes de rebentar, porque era esse o +assumpto de todas as conversas nos cafés, restaurantes, etc. Attribuo a minha +prisão ao facto de ser pouco conhecido na policia...»</p> + +<p>Tambem declarou ter sociedade na empreza do jornal <em>Republica +Portugueza</em>; fôra presencear, como curioso, os successos do dia 31, mas não +tomára a menor parte n'elles, e sentia-se, por isso<span class="pn"><a +name="pg_154" id="pg_154">{154}</a></span> mesmo, tranquillo, não receiando o +resultado do seu julgamento.</p> + +<p> </p> + +<p>Declarações do actor Verdial:« Não alliciei ninguem para a revolta; sabendo +que o movimento estava para rebentar, fui ao Campo da Regeneração, onde +collaborei nos episodios que ahi occorreram. Parlamentei com o coronel +Lencastre, commandante de infantaria 18, e entrei depois na Camara Municipal, +onde me conservei até o edificio ser atacado pelas tropas monarchicas. Só me +pesa uma cousa: a lembrança de minha mulher e dos meus filhos. Comtudo, aguardo +sereno, a sentença do tribunal.»</p> + +<p> </p> + +<p>Do abbade de S. Nicolau: «Tinha por costume recolher a casa todos os dias, +ás 7 da tarde, sendo falso que conspirasse na sombra contra as instituições +vigentes; para elle eram boas todas as formas de governo, desde que os homens +se inspirassem nos verdadeiros principios da moral e da justiça. Desilludido +com respeito aos processos governativos até aqui seguidos, a Republica era para +elle uma esperança, mas não a queria por meio da anarchia; os comicios +realisados no theatro do Principe Real, em que figurara, deram-lhe certa +notoriedade, sendo essa a origem das desventuras por que estava passando. Não +era homem de acção, porque d'isso o impedia o seu caracter sacerdotal. Tendo +ouvido falar no dia 30 a alguns individuos na revolta que se ia dar, +sobresaltara-se com a noticia e recolhera a casa. Na manhã seguinte, sahira +para fins religiosos, ouvindo então falar na reunião das tropas na praça de D. +Pedro. Ao avistarem-n'o, muitos populares ergueram-lhe vivas. Entrara no +edificio da camara, mas ao vêr que ali reinava a anarchia, afastara-se do +local, encaminhando-se<span class="pn"><a name="pg_155" +id="pg_155">{155}</a></span> novamente para o seu domicilio. Tinha confiança em +que justiça lhe seria feita...»</p> + +<p> </p> + +<p>Alvarim Pimenta falou d'este modo: «Nunca commungara nos segredos dos +dirigentes do partido democratico; como um dos societarios da empreza +litteraria em que exercia o logar de administrador da <em>Republica +Portugueza</em>, fôra presencear os factos occorridos no Campo da Regeneração e +paços do concelho; mas não assistira ás reuniões preparatorias da revolução ou +se envolvera nos acontecimentos que se deram.»</p> + +<p> </p> + +<p>Do aspirante a medico naval Gomes de Faria, accusado de ter tentado revoltar +a guarnição da corveta <em>Sagres</em>: «Não tivera o minimo conhecimento dos +preparativos da revolta, pois não estava pessoalmente relacionado com os +individuos indicados como promotores d'ella; nunca assistira nem fora convidado +a assistir a reuniões preparatorias para a sedição. Na madrugada de 31 de +janeiro fora a sua casa o 1.º sargento Abilio de caçadores 9 que o convidára a +um passeio até Massarellos, afim de ambos visitarem a corveta <em>Sagres</em>. +Estranhara a proposta, recusára a principio, mas, instado, terminára por +acceder. Quando ia a sahir de casa, acompanhado do sargento Abilio, este +dissera-lhe que era melhor vestir o uniforme de aspirante a medico naval, para +ter mais facil ingresso na <em>Sagres</em>. Achara natural a observação e +vestira o uniforme. Chegados ambos a Massarellos, dirigiram-se para bordo da +corveta. Só n'essa occasião é que o sargento Abilio lhe dissera que se tratava +de sublevar a tripulação para adherir á revolta que ia rebentar. Hesitou quando +soube o papel que lhe destinavam, mas sendo republicano convicto, embora não +fosse partidario dos meios violentos, não tivera forças<span class="pn"><a +name="pg_156" id="pg_156">{156}</a></span> para retroceder; por isso fôra a +bordo da <em>Sagres</em> tentar, mas sem resultado, sublevar a guarnição. +Suppozera sempre não ter incorrido em grande delicto; por esse facto não se +homisiara, apesar de o terem aconselhado a fazel-o.»</p> + +<p> </p> + +<p>Por ultimo, o depoimento do commissario geral da policia: «Estava na Praça +de D. Pedro e viu alli chegarem os revoltosos. Receiando que elles o +prendessem, refugiou-se n'uma casa em obras proximo do restaurante Camanho, +onde trocou o fato pela blusa d'um operario. Depois subiu mais um andar e d'ahi +presenceou a lucta entre os republicanos e as tropas fieis. Parte dos +revoltosos destroçados na rua de Santo Antonio veiu em debandada para a praça +de D. Pedro, formando aqui tres pelotões commandados pelo capitão Leitão e +recolhendo mais tarde á casa da camara. Tambem viu a fuga precipitada d'um +troço de cavallaria da guarda fiscal em direcção aos Clerigos e recorda-se dos +nomes de varias pessoas que se envolveram no movimento.»</p> + +<p> </p> + +<p>Escusamos dizer que o commissario geral da policia do Porto não se fez +rogado para indicar ás auctoridades militares esses nomes, contribuindo assim +com a sua solicitude para augmentar o numero de presos existentes a bordo dos +navios fundeados em Leixões.</p> + +<p> </p> + +<h1>CAPITULO XXII</h1> + +<h2>O julgamento dos revoltosos</h2> + +<p>Vamos terminar. Mas, antes de o fazermos, é de necessidade registar algumas +notas colhidas no decorrer<span class="pn"><a name="pg_157" +id="pg_157">{157}</a></span> dos conselhos de guerra que sentenciaram os +revoltosos. Ellas darão aos leitores d'esta modesta e desataviada narrativa uma +ideia clara da forma como se procedeu no julgamento de todos esses homens e da +attitude de alguns d'elles em momento tão critico e tão grave.</p> + +<div class="ilustracao" style="float: right;"><a name="img157"></a> +<p><img alt="Fotografia do Dr. Affonso Costa" src="images/p157.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto"></p> + +<p>Dr. Affonso Costa (1891)</p> +</div> + +<p> </p> + +<p><em>Depoimento do 1.º sargento Abilio:</em></p> + +<p>«Narrou pormenorisadamente todos os incidentes que caracterisaram a revolta +e perguntado por fim sobre as intenções com que entrára no movimento, +respondeu:</p> + +<p>«—Sim, entrei no movimento para ajudar a depôr o rei D. Carlos, porque +sou republicano e tenho muitas razões para o ser. Não sou republicano de +evolução, porque, por ella nem d'aqui a um seculo, julgo, teremos a republica +em Portugal. O que reconheço é que fomos enganados, pois vi muitas adhesões +escriptas e sabia de outras feitas verbalmente e de reuniões de camaradas meus +e de outros de superior graduação.</p> + +<p>«Sobre a sua prisão conta que foi o ultimo a retirar da casa da camara, +quando já não tinha munições. Refugiou-se n'um predio da rua do Almada.<span +class="pn"><a name="pg_158" id="pg_158">{158}</a></span> Quando ali appareceram +soldados da municipal a perguntar se lá estava algum militar, o dono da casa +perguntou-lhe o que queria que dissesse. Elle apresentou-se. Os municipaes +cruzaram ainda armas contra elle, apesar de o verem só e desarmado. Deu-se á +prisão.</p> + +<p>«O auditor insistiu com o reu para que declarasse quaes eram os militares +que tinham relações com os auctores do movimento do Porto. O reu respondeu +simples, mas dignamente:</p> + +<p>«—Não senhor, não digo...</p> + +<p>«E acentuou:</p> + +<p>«—Não quero acusar ninguem; quanto a mim, digo que foi da melhor +vontade que entrei no movimento e não declino a minha responsabilidade. Na +parada do quartel fui eu quem primeiro levantou um viva á Republica».</p> + +<p> </p> + +<p><em>Depoimento de Eduardo de Sousa (aspirante a medico naval):</em></p> + +<p>«Declarou francamente ser republicano e repudiou por completo o seu +depoimento escripto que lhe foi arrancado pela policia á força de ardis e por +outros meios egualmente condemnaveis. Declarou mais ter dado a nota alegre na +ceia que houve no café Suisso na vespera da revolta, assim como outros deram a +nota philosophica, etc. Quanto a essa ceia, explica que era seu costume e dos +demais convivas cear ali todas as noites. Accrescentou que acompanhára o +movimento das tropas na qualidade de redactor da <em>Republica Portugueza</em> +E não na de <em>reporter</em> como lhe chamaram».</p> + +<p> </p> + +<p><em>Extracto da sessão do 2.º conselho de guerra (8 de março de +1891)</em>:</p> + +<p>«... A parte mais interessante foi o promotor requerer acareação entre o +tenente de cavallaria 6, Vaz Monteiro, do destacamento aquartelado<span +class="pn"><a name="pg_159" id="pg_159">{159}</a></span> no Porto, com o reu +Thadeu Freitas, sargento de infantaria 10. Na audiencia de hontem, Thadeu disse +que o referido tenente affirmára ao tenente Coelho que o esquadrão estava +prompto a sahir para acompanhar os revoltosos. Chamado o tenente Vaz Monteiro, +este negou ter dito semelhante cousa. Acareado com o sargento Thadeu continuou +negando a pés juntos. Thadeu confirmou, acrescentando que o tenente Vaz +Monteiro pedira senha ao tenente Coelho.</p> + +<p>«Acareados ambos com este reu, Coelho disse não se recordar de semelhantes +palavras. Falara no Campo da Regeneração com o tenente Vaz Monteiro, mas este +apenas lhe observara: «Manuel, vae-te embora». Nada mais. O sargento Thadeu +disse que era verdade tudo que tinha affirmado e que se o tenente Coelho dizia +não ter ouvido as palavras do tenente Vaz Monteiro não era porque as não +ouvisse. O que o levava a proceder assim era o seu cavalheirismo e a nobreza do +seu bello caracter, que não queria comprometter ninguem. Que bem sabia que o +tenente Coelho era um homem de honra e por isso comprehendia a sua negativa.</p> + +<p>«O promotor requereu com urgencia auto de noticia das declarações +cathegoricas do sargento Thadeu para as enviar ao quartel general, segundo o +seu dever, a que não podia faltar. O incidente causou impressão, sendo todos +concordes em elogiar o procedimento do tenente Coelho, que a ninguem quer +comprometter».</p> + +<p> </p> + +<p><em>Depoimento de João Chagas:</em></p> + +<p>«Que o artigo da <em>Republica Portugueza</em> sob o titulo <em>Terceira +meditação</em> era seu e que o artigo que se seguia a esse o não era; sabia bem +de quem era, mas não o dizia. De resto, sendo elle director do jornal, folgava +em poder declarar que<span class="pn"><a name="pg_160" +id="pg_160">{160}</a></span> assumia, inteira e completa, toda a +responsabilidade dos artigos alli publicados. Inquirido sobre o facto de ter +incitado á revolta, declarou ter incitado á revolução que não se dera, porque o +movimento de 31 de janeiro não fôra um erro politico, mas um erro de gramatica, +um erro de palmatoria. Respondendo á pergunta—se os artigos do seu jornal +eram attentatorios das instituições vigentes—disse que os membros do +tribunal bem melhor do que elle poderiam e deveriam saber de semelhante +cousa.</p> + +<p>«Era republicano e, como tal, não poderia, está bem visto, defender as +instituições que julgava não convirem á felicidade da sua patria. Uma vez +convencido d'isto, não recuaria deante de qualquer obstaculo ou contratempo; a +sua convicção, arreigada pela força da experiencia da sociedade portugueza, era +pela mudança do systema de governo. No movimento de 31 de janeiro não tomara +parte pelo motivo de estar preso na cadeia da Relação, por causa da primeira +querella do seu jornal, depois da lei restrictiva de Lopo Vaz contra a imprensa +democratica.</p> + +<p>«Todas as suas declarações, feitas com um tom de franqueza e sinceridade, +proprias da sua nobreza de caracter, foram escutadas attentamente e produziram +sensação. Ao findar o seu interrogatorio, travou-se entre elle e o auditor o +seguinte dialogo:</p> + +<p>«—Teve conhecimento antes, do movimento que havia de effectuar-se no +dia 31?</p> + +<p>«—Sim, senhor.</p> + +<p>«—Pode dizer-me, quem lh'o disse?</p> + +<p>«—Não quero».</p> + +<p> </p> + +<p><em>Depoimento de Homem Christo</em>:</p> + +<p>«Contrariara o movimento, como provava pelo artigo dos <em>Debates</em> e +pela circular do Directorio<span class="pn"><a name="pg_161" +id="pg_161">{161}</a></span> em que figura o seu nome, pela sua ida ao Porto +para dissuadir Santos Cardoso e pela descompostura que por esse motivo recebeu +do mesmo Santos Cardoso.</p> + +<div class="ilustracao"><a name="img161"></a> +<p><img alt="Conselho de guerra a bordo do transporte India" +src="images/p161.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Conselho de guerra a bordo do transporte <em>India</em></p> +</div> + +<p>«A sua qualidade de republicano d'alma e coração não era cousa que o +impedisse de vêr as cousas como ellas realmente são e lhe não permittisse +discernir o que convém á Patria e ao partido do que não convém nem a uma nem a +outro, e antes é prejudicial a ambos. A paixão politica não o obceca a tal +ponto».</p> + +<p> </p> + +<p><em>Depoimento do capitão Leitão:</em></p> + +<p>«—Em abono da verdade, disse o réu, e porque não me soffre o animo vêr +que um innocente está envolvido no movimento revolucionario preciso que o +tribunal tome conhecimento de que o espingardeiro de infantaria 10 não tomou a +minima parte na revolta. A accusação que sobre elle impende é falsa. Reconheci +perfeitamente todas as praças da<span class="pn"><a name="pg_162" +id="pg_162">{162}</a></span> minha companhia e o espingardeiro não estava ali +no acto da sublevação.</p> + +<p>«A passagem mais curiosa do depoimento é, porém, a seguinte, com referencia +ao coronel Lencastre de Menezes:</p> + +<p>«—O sr. coronel disse-me então: «Obste a que entre mais gente no +quartel e faça sahir os populares que estão dentro». Cumpri essa ordem e depois +de a cumprir voltei para junto do sr. coronel, ouvindo distinctamente que elle +dizia aos paisanos com quem falava: «Vão descançados, que eu lá estou ás seis +horas. Dou-lhes a minha palavra de honra que não hostiliso o movimento.» +Deram-se então muitos vivas ao coronel do 18. Isto seriam quatro horas e um +quarto, o maximo quatro horas e meia. O coronel accrescentou ainda: «Preciso +ordenar certas providencias para guardar os reclusos do presidio e o cofre. Os +senhores já lá teem duas companhias e eu tenho pouca gente disponivel...»</p> + +<p>«Eu entrei no movimento militar, continuou o capitão Leitão, por muitas +circumstancias e não foi só a ideia de ser ou não republicano que em mim +imperou; foi só pelo bem do meu paiz que trabalhei. Não sou monarchico, mas já +o fui. Comecei a carreira militar apoiando o partido regenerador e em 1874, nas +suas fileiras, procurei ser util ao meu paiz. Tambem militei no partido +progressista, no qual julguei antever uma regeneração da minha patria. Dentro +em pouco, percebi que tanto um como outro d'esses partidos nada faziam em bem +da nação. Quasi todos os annos promettiam vida nova; mas não passavam d'isso; +eram tudo apparencias enganadoras.</p> + +<p>«Afinal tudo isto me chegou a fazer crer e a convencer de que todos +nós—o paiz—estavamos fóra da lei e que eu, estando o paiz fóra da +lei, o estava egualmente. Eu não posso permittir nem<span class="pn"><a +name="pg_163" id="pg_163">{163}</a></span> admittir que a lei seja por degraus. +Eu julgo a lei superior a tudo e a todos e, portanto, não admitto +irresponsabilidades a ninguem. Eu, como capitão, aquelle como coronel e este +como general, todos teem deveres e obrigações e são responsaveis pelo seu +cumprimento. Ha, porém, uma unica excepção—o que prova que a nossa lei +não é egual para todos, (<em>exaltando-se</em>) não é!—Ha um unico +responsavel é o rei!</p> + +<p>«Eu sempre tive um odio profundo ao inglez—desde que me conheço +(<em>exaltando-se</em>): os jornaes disseram que eu estava desanimado, mas não +ha tal: é mentira! Tinha um tio que se bateu contra os inglezes, morrendo de +101 annos de edade. Como todos os velhos militares, gostava de narrar os seus +feitos ou os dos seus camaradas. Com as suas historias, fez-me elle conceber +esse odio, narrando-me algumas das infamias e torpezas da tal raça. O que me +custava mais é que, depois do <em>ultimatum</em>, não terminassem ainda com +essa alliança.</p> + +<p>«O que eu queria e quero é um governo que traga a felicidade do paiz, que +tão humilhado está. Embora preso e vilipendiado como estou, espero ainda a +redempção. Considerar-me-hei feliz, se, com o que fiz, concorrer de alguma +forma para o bem da patria. Não receio nem temo o castigo: o que fiz foi o +principio de alguma cousa. Ficarei satisfeito, serei feliz, se a semente, +fructificar. No entretanto, nada receio, além de que conto não cumprir a pena a +que me condemnarem.»</p> + +<p> </p> + +<p>Para se avaliar da maneira atrabiliaria como se lançou á conta de dezenas de +individuos as responsabilidades da sublevação, basta reproduzir alguns trechos +dos discursos de defeza proferidos nos conselhos de guerra:<span class="pn"><a +name="pg_164" id="pg_164">{164}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p><em>Do Dr. Pires de Lima:</em></p> + +<p>«N'uma das guerras da religião foi cercada pelos catholicos uma cidade +protestante. Renderam-se os sitiados; e, conforme os usos barbaros d'esses +calamitosos tempos foram todos condemnados á morte pelos invasores. Como na +cidade tomada havia tambem muitos catholicos, perguntaram ao legado do papa +como os haviam de distinguir dos huguenotes. «Matem-nos todos, respondeu o +catholico varão; Deus lá os separará.» O mesmo se fez agora. Fôra visto +qualquer individuo republicano na camara ou no campo da Regeneração? +Prendam-n'o e mandem-n'o para bordo. Mas elle está innocente: É o mesmo. O +tribunal lá os separará.»</p> + +<p> </p> + +<p><em>Do capitão Fernando Maia:</em></p> + +<p>«Acho extraordinario o que se fez aos soldados que ficaram no quartel quer +de guarda, quer nas casernas. Foi um desvairamento singular a maneira como se +procedeu. Que tumultuaria maneira de apreciar criminalidades e avolumar o +numero dos presos! Viu-se aqui, no tribunal, bem clara e positivamente como +tudo isso se fez. Prendeu-se a esmo. Quantos estavam no quartel e não cahiram +nas boas graças, foram presos e de mais a mais ao engano, dizendo-se-lhes que +era para averiguações, ainda com receio de que a sua justiça valesse mais do +que a disciplina!</p> + +<p>«Onde está a nota dos que se apresentaram voluntariamente? Onde a d'aquelles +que nenhuma parte tomaram no movimento? Onde a relação das armas limpas e +intactas? Onde a d'aquelles que tinham licença para dormir fóra? Se até +appareceu aqui quem negasse a existencia d'essas licenças, quando existem +n'este tribunal os documentos officiaes que as confirmam! Comprehende-se a +irritação natural dos chefes contra os subordinados rebeldes,<span +class="pn"><a name="pg_165" id="pg_165">{165}</a></span> mas o sentimento da +justiça, e a natural piedade para com os vencidos deviam preponderar para que +se tratasse de indagar devidamente as condições especiaes em que cada um se +encontrava».</p> + +<p> </p> + +<p><em>Do mesmo official referindo-se a muitos dos acusados:</em></p> + +<p>«Reus! É quasi um sarcasmo qualifical-os assim, a todos esses que ahi estão +submissos, respeitosos e obedientes, a todos esses cujas declarações sinceras, +ingenuamente sinceras, commoveram profundamente quantos as ouviram.</p> + +<p>«E os sargentos? Apparece como principal figura o sargento Abilio. Todos o +ouviram aqui: todos apreciaram a franqueza, a nobreza das suas declarações. +Podia falar, podia comprometter muita gente; podia revelar cumplicidades +graves. A sua generosidade levou-o a repudiar até a defeza primitivamente +apresentada, comquanto referindo inteira verdade.</p> + +<p>«E como é nobre o seu procedimento acerca dos soldados! «De nada sabiam, +disse elle: foram levados por mim: conheciam-me e obedeceram-me». Eis o segredo +de tudo quanto se passou. Essa influencia deviam tel-a os officiaes; não é +momento agora para apreciar as razões porque a não tinham e tirar d'ahi as +legitimas consequencias».</p> + +<p> </p> + +<p>Os quesitos referentes aos reus e submettidos aos officiaes julgadores foram +em grande numero. Damos apenas os seguintes, relativos ás diversas classes em +que se dividiu a natureza dos crimes:</p> + +<p><em>Para os reus civis:</em></p> + +<p>«O crime da rebellião de que o reu é accusado no libello por, na madrugada +do dia 31 de janeiro do corrente anno, com outros individuos e muitos militares +dos corpos da guarnição da cidade do Porto e outros militares, haver tentado +destruir a<span class="pn"><a name="pg_166" id="pg_166">{166}</a></span> fórma +de governo monarchico-representativo, pela qual é regida a nação portugueza, +apoderando-se do edificio da Camara municipal da mesma cidade, de uma das +varandas da qual foi proclamada a Republica e até lida uma lista dos membros do +governo provisorio, está ou não provado?</p> + +<p>«A cumplicidade no crime de rebellião de que o reu é accusado no libello, +por haver por meio de propaganda em logares publicos directamente aconselhado +ou instigado a execução do mesmo crime, consistente em se haver tentado +destruir a fórma de governo monarchico-representativo pelo qual é regida a +nação portugueza, crime este praticado na manhã de 31 de janeiro do corrente +anno, em que os meus auctores, apoderando-se do edificio da camara municipal da +mesma cidade, chegaram a proclamar a Republica d'uma das varandas do mesmo +edificio e a ler uma lista dos membros do governo provisorio, sendo que sem +esse conselho e instigação podia ter sido commettido o crime, está ou não +provado?»</p> + +<p><em>Para os réus militares:</em></p> + +<div class="ilustracao"><a name="img167"></a> +<p><img alt="Tumulo das victimas no cemiterio do Repouso, no Porto" +src="images/p167.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p>Tumulo das victimas no cemiterio do Repouso, no Porto</p> +</div> + +<p>«O crime de revolta militar de que o réu é accusado no libello por, no dia +31 de janeiro do corrente anno, cerca das 3 horas da manhã no quartel d'aquelle +regimento, na cidade do Porto, tendo sahido com outros militares do mesmo +regimento, em numero muito superior a quatro, das respectivas casernas, +desordenada e tumultuariamente, e tendo com os mesmos militares, sem preceder +toque previo, pegado nas suas armas e sem auctorisação entrado em fórma, de +commum concerto, se haver recusado a obedecer as ordens do seu commandante, o +coronel do regimento que os intimou a dispersar, e sahindo depois do mesmo +quartel incorporado com outros em numero excedente a oito, sob o commando de +alguns sargentos e depois do alferes Augusto Rodolpho da Costa Malheiro,<span +class="pn"><a name="pg_167" id="pg_167">{167}</a></span><span class="pn"><a +name="pg_168" id="pg_168">{168}</a></span> que se lhes reuniu junto á guarda da +cadeia da Relação, onde, com outras forças revoltadas, persistindo na desordem +e commettendo violencias, não haver dispersado á voz dos superiores Fernando de +Magalhães, tenente-coronel sub-chefe do estado maior da divisão e José Maria da +Graça, major da guarda municipal, está ou não provado?</p> + +<p>«O crime de revolta militar de que o réu F... n.º... de matricula e... da +companhia do batalhão n.º 3 da guarda fiscal é accusado, por têr na madrugada +de 31 de janeiro ultimo, cerca das 3 horas da manhã, sahido na cidade do Porto, +com muitos outros militares, todos armados, para a rua, desordenada e +tumultuariamente, e ter desobedecido a um dos seus legitimos chefes, que o +exhortou a entrar na ordem e seguir o caminho legal: e ainda porque, +juntando-se com muitos outros revoltosos, fez uzo das armas contra tropas +fieis, comettendo violencias e não despersando ás intimações de seus legitimos +superiores, persistindo na desordem—está ou não provado?»</p> + +<p> </p> + +<p>Antes de serem lidas as sentenças aos accusados, o capitão Leitão teve +ensejo de usar novamente da palavra—o presidente do tribunal +perguntara-lhe se tinha mais alguma cousa a allegar em sua defeza—e +disse:</p> + +<p>«—Eu, infelizmente, sendo o principal accusado sou o unico a quem não +foi permittida a defeza. A minha fé, porém, está de tal fórma arreigada que não +ha nada que a possa abalar. A fé desterra o medo, abala os tyranos e vence. O +que se passa commigo é uma monstruosidade e n'isto sirvo-me das proprias +palavras do sr. promotor. O sr. auditor, como homem de brio, disse, quando aqui +se tratou da questão da minha defeza, que desde o momento em que o meu defensor +(o quintanista de direito Lomelino de Freitas) apresentasse documentos<span +class="pn"><a name="pg_169" id="pg_169">{169}</a></span> que o auctorisassem a +advogar, na conformidade com o que dispõe o regulamento de 26 de dezembro de +1888, seria admittido.</p> + +<p>«V. Ex.ª (<em>dirigindo-se ao auditor</em>) devia ter esclarecido o conselho +de guerra sobre este assumpto. É verdade que tive defeza que agradeço ao sr. +dr. Alvaro de Vasconcellos. Essa defeza não foi engeitada mas foi emprestada. O +illustre advogado empregou todos os esforços, embora não tivesse em seu poder +muitos dos apontamentos que possuia o sr. Lomelino. O sr. dr. Vasconcellos +disse que se achava coacto. Eu o estou egualmente e protesto contra a +perseguição que se me faz. Cortou-se-me a defeza, apesar do meu defensor +apresentar documentos legaes: aqui decidiu-se que todos os advogados podessem +defender os seus constituintes, desde o momento em que apresentassem os +necessarios documentos provando estar para esse fim habilitados. Todos +apresentaram esses documentos; uns mais cedo, outros depois. Como o meu +defensor não podesse apresentar logo os seus documentos, resolveu-se que o sr. +dr. Alvaro de Vasconcellos tomasse a minha defeza até que elle os apresentasse. +N'essa occasião, o sr. promotor declarou que desejava dar a maior latitude á +defeza e que por isso, seria acceite o defensor que eu escolhera, logo que se +apresentasse devidamente auctorisado.</p> + +<p>«Chegou o dia dos debates: o meu defensor apresenta documentos devidamente +authenticados, de fórma a ninguem os poder contestar e negam-me a defeza! +Admiro que o sr. promotor, assistindo a tal facto e em vista da sua anterior +declaração, não protestasse immediatamente contra a violencia de que eu era +victima.</p> + +<p>«Estou coacto e apello, não para o conselho, que não me pode merecer +confiança, mas para a imprensa, para que esta faça demonstrar bem alto<span +class="pn"><a name="pg_170" id="pg_170">{170}</a></span> este meu protesto. +Apesar de tudo, a minha fé fica firme, porque é sincera; ninguem a póde ferir. +O que commigo se passa é simplesmente odioso. Eu continuo incommunicavel, +quando é certo que o sr. auditor tinha levantado a minha excommunhão. Eu +chamo-lhe assim, porque isto não é mais que uma excommunhão. O eu continuar +incommunicavel é uma monstruosidade, como afinal, é tudo isto, segundo o +proprio sr. promotor o declarou. Eu ainda sou official, tenho direitos que +ninguem póde contestar. Estou coacto, tendo defeza emprestada, quando eu só +depositava confiança no defensor que escolhera. Eu tenho a fazer uma +referencia. O sr. promotor atirou umas pedradas contra o meu regimento, que +Deus haja, por quanto infanteria 10 já não existe. V. Ex.ª (<em>dirigindo-se ao +promotor</em>) disse que nós fôramos cobardes... </p> + +<p>«<em>O promotor</em>—Eu não disse isso... Não dou mais explicações +porque não posso discutir com V. Ex.ª. O senhor póde apresentar novos +argumentos para a sua defeza e nunca discutir as minhas palavras.</p> + +<p>«<em>O capitão Leitão</em>—Não quero discutir as palavras de V. Ex.ª +Não posso, porém, admittir que me chamem cobarde. Se não me deixam defender, +dêem-me ao menos o direito de protestar. Nós iamos em caminho do quartel +general...</p> + +<p>«<em>O promotor (interrompendo)</em>—Eu não me referi nunca ao sr. +capitão Leitão. Referi-me á defeza; e demais não tenho que dar satisfações do +que aqui disse.</p> + +<p>«<em>O capitão Leitão</em>—Eu então termino mais depressa. Quando me +chegar a minha vez, eu appellarei para tudo e até para a imprensa, para se +conhecer bem que não tive defeza, e desde já protesto contra todas as +violencias que se me fizeram».<span class="pn"><a name="pg_171" +id="pg_171">{171}</a></span></p> + +<p>Outro protesto não menos vibrante reproduzido na imprensa republicana:</p> + +<p> </p> + +<p>«Em nome dos republicanos prezos a bordo do vapor <em>Moçambique</em>, +pedimos-lhe o favor de protestar perante o publico contra a ultima violencia +que se está commettendo comnosco na demora injustificada, e por todos os +motivos arbitraria, da leitura da sentença do primeiro conselho de guerra. +Sujeitos a todos os vexames, os officiaes militares submettidos a um regimen +contrario á lei e attentatorio da sua dignidade, os prezos civis conduzidos +como assassinos e salteadores, em carros cellulares desde a Relação até +Massarellos, e a pé, no meio d'uma escolta, desde a Foz até Mattosinhos, depois +de terem corrido graves riscos na barra do Porto a bordo do vapor chamado +<em>D. Luiz</em>, com um tratamento vergonhoso na 2.ª camara do vapor +<em>Moçambique</em>, apezar de nos exigirem a cada um uma quantia sufficiente +para um tratamento regular, só nos faltava que o governo conservasse por tantos +dias, como conserva, suspensa a leitura da sentença do tribunal que nos julgou, +sob o pretexto ridiculo ou comico do receio de manifestações populares.</p> + +<p>«O paiz avaliará um governo que não tem força para fazer julgar em terra uns +centos de accusados politicos e, por esse motivo, os conduz violentamente para +bordo de varios navios ancorados n'um porto que só por cumulo d'irrisão se pode +denominar «porto de abrigo», onde as tempestades desencadeadas teem produzido +os estragos que se conhecem e posto em perigo imminente a vida de tantos +homens, muitos dos quaes os proprios accusadores officiaes declararam +«innocentes» durante a discussão da causa! O paiz julgará da força e do +prestigio d'um governo que conserva, durante oito dias, um tribunal em sessão +permanente e<span class="pn"><a name="pg_172" id="pg_172">{172}</a></span> +«secreta», só porque receia a discussão publica e as manifestações do povo em +cima d'uma sentença que o proprio governo vem declarando ha muito ser a +sentença mais levantada e mais patriotica de quantas se poderiam lavrar e +pronunciar na nossa terra.</p> + +<p>«O paiz que julgue isso tudo. Nós protestamos, com toda a força do nosso +direito e da nossa justiça, contra a ultima violencia que se comette comnosco. +</p> + +<p>«A bordo do <em>Moçambique</em>, 20 de março de 1891.—<em>João Paes +Pinto</em>, abbade de S. Nicolau; <em>João Chagas</em>; <em>Francisco +Christo</em>.»</p> + +<p> </p> + +<p>Por fim sempre appareceram as decantadas sentenças. Como se verá pelo +extracto que damos a seguir nada tiveram da <em>elevação</em> e do +<em>patriotismo</em> apregoados pelos defensores do regimen monarchico e antes +se caracterisaram por uma manifesta desegualdade na applicação das diversas +penas.</p> + +<p> </p> + +<p><em>No 1.º conselho de guerra:</em></p> + +<p>Santos Cardoso, condemnado a 4 annos de Penitenciaria seguidos de 8 de +degredo; 1.º sargento Abilio e 2.º sargento Galho, 6 annos de Penitenciaria; +João Chagas e 2.º sargento Manuel Nunes, 4 annos de Penitenciaria e na +alternativa de 6 annos de degredo; 2.º sargento Castro Silva, 3 annos e 4 mezes +de prisão maior cellular; 1.º cabo Galileu Moreira e o actor Miguel Verdial, 2 +annos de Penitenciaria; Eduardo de Sousa, 2 annos de prisão correcional; +Felizardo de Lima, Amoinha Lopes e Manuel Pereira da Costa, 18 mezes de cadeia; +8 cabos, 1 corneteiro e 32 soldados, 3 annos de deportação militar; 8 cabos, 3 +corneteiros e 23 soldados, 3 annos e 6 mezes de deportação; 1.<sup>os</sup> +cabos Arthur Carneiro e Rosas Pinto, 4 annos de deportação; o soldado Albino +Rodrigues e os corneteiros<span class="pn"><a name="pg_173" +id="pg_173">{173}</a></span> Jacintho Duarte e Sousa Vaz, 5 annos de +deportação.</p> + +<p> </p> + +<p><em>No 2.º conselho de guerra:</em></p> + +<p>Capitão Leitão, 6 annos de Penitenciaria, seguidos de 10 de degredo; tenente +Coelho, 5 annos de degredo; sargentos Joaquim Pinheiro, Thadeu de Freitas, +Pinto Villela e Hermenegildo Silva, 4 annos de Penitenciaria; sargentos +Raymundo de Carvalho, Alcoforado e Antonio Maria, o musico Eduardo Correia, 3 +aprendizes de musica, um mestre de corneteiros, 12 cabos e 45 soldados, 3 annos +de degredo; sargento Nunes Folgado, 4 annos de Penitenciaria; sargentos Correia +Mendes, Rodrigues da Silva, Pinto Gomes, Botto Machado, Joaquim Moutinho, os +musicos Eduardo Silva, José Silverio, Eduardo Fortuna, Joaquim da Rocha, Manuel +Correia, Aurelio Silva, Jayme Lopes, o aprendiz Costa Rebello, 17 cabos e 48 +soldados, tambem 3 annos de degredo; 1.º cabo Thomaz Bastos, 5 annos de +degredo; 2.<sup>os</sup> sargentos Alexandre de Figueiredo e Vasconcellos +Cardoso, 4 annos de Penitenciaria.</p> + +<p> </p> + +<p><em>No 3.º conselho de guerra:</em></p> + +<p>Sargentos Guilherme Rocha, Miranda de Barros, Pinho Junior e Alfredo +Fernandes e cabo João Borges, 4 annos de Penitenciaria, seguidos de 8 annos de +degredo; 2.<sup>os</sup> cabos Ferreira Pires e Felicio da Conceição, 4 annos +de Penitenciaria; 1 cabo e 5 soldados da guarda fiscal, 18 mezes de prisão +militar.</p> + +<p> </p> + +<p>De todos os revoltosos condemnados á prisão maior cellular, apenas um, +cremos nós, o cabo Salomé, da guarda fiscal, chegou realmente a ser internado +na Penitenciaria de Lisboa. Os outros, como nas suas sentenças havia a +alternativa de<span class="pn"><a name="pg_174" id="pg_174">{174}</a></span> +uns tantos annos de degredo, foram espalhados pelos presidios ultramarinos. +D'um d'estes se evadiu mais tarde João Chagas, aproveitando o concurso +dedicadissimo d'um official da marinha mercante portugueza. A evasão do +illustre escriptor revestiu pormenores rocambolescos. Indo parar a uma colonia +franceza da Africa Occidental, de lá se transportou a Paris onde viveu algum +tempo na intimidade doutros revoltosos emigrados. Breve, porém, sentiu a +nostalgia da patria e um bello dia abalançou-se a regressar ao Porto, onde a +espionagem policial o descobriu e o prendeu...</p> + +<p> </p> + +<p>Agora que já decorreram muitos annos sobre os episodios que constituiram a +revolta de 31 de janeiro, não nos furtamos ao desejo de relembrar como a +classificaram então as individualidades que eram o sustentaculo do throno. Se a +revolta houvesse triumphado, por certo a linguagem empregada teria sido muito +outra. Mas não triumphou e a arrojada tentativa d'um punhado de valentes foi +assim qualificada:</p> + +<p> </p> + +<p>«...lamentaveis acontecimentos que um bando de ambiciosos sem escrupulos +promoveu e por quem, infelizmente, alguns homens que vestiam a nobre farda do +exercito portuguez se deixaram arrastar n'uma lucta fratricida contra os seus +camaradas fieis, faltando ao seu sagrado juramento de soldado e á sua nunca +desmentida lealdade e disciplina, commettendo um verdadeiro crime de +lesa-patriotismo...»</p> + +<p> </p> + +<p>Isto appareceu n'um documento official—o elogio tributado pelo general +da divisão do Porto ás praças da guarnição da cidade que não haviam tomado +parte na revolta. Ao mesmo passo, e tambem<span class="pn"><a name="pg_175" +id="pg_175">{175}</a></span> em documento official, dirigia-se estas +amabilidades á guarda pretoriana:</p> + +<p> </p> + +<p>«Mais uma vez, a guarda municipal do Porto deu provas da sua inquebrantavel +lealdade, disciplina, bravura e coragem nunca desmentidas. O dia de hontem (31 +de janeiro) foi muito trabalhoso e de grande risco para todos, mas foi um dia +de gloria para esta guarda. A ella, a mais ninguem, pode dizer-se sem receio de +que alguem possa vir affirmar o contrario, se deve a suffocação da revolta, que +os corpos da guarnição d'esta cidade, esquecidos dos seus deveres de honra, do +juramento que prestaram, e do que devem á nossa querida patria e á dignidade +propria, levaram a effeito, intentando derrubar as instituições que felizmente +nos regem e os poderes legalmente constituidos, reconhecidos e respeitados pela +grandissima maioria da nação. Foi um acto da maior indisciplina que pode dar-se +na familia militar; ainda bem, porém, que outros militares fizeram baquear os +revoltosos, e certamente um rigorosissimo castigo cahirá sobre elles e os fará +então arrepender, se já não estão arrependidos, da erradissima acção que +praticaram».</p> + +<p> </p> + +<p>Por outro lado, as camaras municipaes como que obedecendo a um <em>mot +d'ordre</em> superior, felicitaram a monarchia pela victoria obtida e uma +d'ellas, em mensagem de maior requinte litterario, expressava-se d'este modo: +</p> + +<p> </p> + +<p>«<em>Senhor.</em> Reconhecendo que as sociedades, obedecendo ás leis +biologicas, tendem a ser successivamente modificadas na sua organisação, mas +attento o grave e critico momento historico que a nossa querida patria está +atravessando, profundamente commocionada pelos irreflectidos e criminosos +acontecimentos que em 31 de janeiro findo<span class="pn"><a name="pg_176" +id="pg_176">{176}</a></span> enlutaram a cidade do Porto e o paiz inteiro, a +camara municipal d'este concelho, interprete dos sentimentos que animam os +povos que o constituem vem depôr junto de vossa magestade como representante +d'um paiz que caminha na vanguarda das aspirações sociaes, o seu preito de +dedicação e fidelidade ao regimen monarchico e de felicitação a vossa magestade +e a toda a familia real, por ver n'este angustioso momento, junto de um dos +thronos mais dignos da consideração universal, reunida a grande massa da nação, +que só deseja ordem e inteira união de todas as classes para debellar os males +que a affligem e poder repellir os inimigos que tentam sepultar a sua +autonomia.»</p> + +<p> </p> + +<p>Não faltaram elogios e homenagens aos triumphadores como se não poupou os +vencidos a toda a casta de imprecações. No momento da derrota ninguem pensou em +que a explosão revolucionaria podia reproduzir-se, apoz certo lapso de tempo, e +que essa reproducção podia ser acompanhada de elementos de exito seguro. Todos +trataram, na occasião, de mostrar á dynastia brigantina um servilismo fóra do +commum e aos pés do rei cahiram dias a fio excessivas doses de lisonja que, por +serem de encommenda, nem ao proprio alvejado deviam illudir.</p> + +<p>E comtudo a revolta do 31 de janeiro marcára uma <em>étape</em> bem nitida +no caminho da modificação do regimen. Tão nitida, que pouco antes d'ella ser +julgada nos conselhos de guerra, como em outro logar referimos, o manifesto dos +emigrados portuguezes residentes em Madrid soltava este grito de esperança, +desferido com tanto enthusiasmo como se já o illuminasse um clarão inapagavel +de victoria:</p> + +<p> </p> + +<p>«...Nós, orgulhosos, obscuros, altivos e humildes, porque cuspimos nos +homens indignos e imploramos<span class="pn"><a name="pg_177" +id="pg_177">{177}</a></span> a Deus justiceiro, entendemos que bate o minuto em +que urge gritar a um povo honrado, a um povo valente que não póde ser mais: que +não hade ser ainda; que é inevitavel, que é irremediavel que é necessario, +immediata e incontrariadamente, cavar fundo, rasgar immenso, despedaçar largo, +destruir vasto, já, já, agora, agora, de maneira que a incomparavel vergonha se +envergonhe, esta incomparavel, esta inverosimil, esta unica e extraordinaria +hediondez de que uma nação inteira continue, inerte, tranquilla e triturada, +sob as patadas obscenas d'uma canalha que ella abomina muito menos do que ella +despreza.</p> + +<p>«E, se os emigrados teem toda a esperança no paiz, o paiz não se hade vexar +envergonhado, dos seus filhos hoje proscriptos, antes com elles deve e pode +contar para todos os sacrificios que a salvação da patria em perigo tem o +direito de exigir dos cidadãos probos e dedicados. A grande palavra de Danton, +de que ninguem consegue partir do solo que embalou o berço em que vagiu a +infancia, levando a patria pegada ás solas dos sapatos, tem-n'a presente +constantemente os emigrados no espirito. Com sobresaltada attenção espiam os +successos; com a alma em susto, forçados, a, raivosamente, cruzarem os braços, +n'uma inefficacia provisoria, assistem ao desesperador espectaculo do crescente +amesquinhamento do paiz, que, com fervoroso impeto, respeitam e amam.</p> + +<p>«Mas, aguardando sempre, não se differenciam dos seus concidadãos, +injuriados pelo roubo das liberdades outr'ora conquistadas nem se desinteressam +das preoccupações que os agitam. Os de fóra continuam a fazer causa commum com +os que, a dentro de fronteiras, mal podem expressar seus queixumes. Do exilio +os alentam, da terra estrangeira lhes clamam a esperança no futuro. Solde-se +assim um pacto santo. Que a ultima palavra que pronunciamos<span class="pn"><a +name="pg_178" id="pg_178">{178}</a></span> seja a que em breve, verbo +reformador, ascenda de todos os corações generosos e irrompa em todos os puros +labios, como a consummação, salutar e fecunda, da grande obra iniciada a 31 de +janeiro:</p> + +<p>«Viva Portugal!</p> + +<p>«Viva a Republica!»</p> + +<p> </p> + +<p>Este manifesto era assignado, entre outros emigrados, por Alves da Veiga, +Basilio Telles, alferes Malheiro, Antonio Claro, Carlos Infante da Camara, +Annibal Cunha, José Sampaio, Alipio Augusto Trancoso e José Tavares Coutinho. +</p> + +<p> </p> + +<p>A obra iniciada a 31 de janeiro... essa veiu a consummar-se quasi vinte +annos depois.</p> + +<p style="text-align:center;">FIM</p> +</div> + +<h2>Indice</h2> + +<table border="0" align="center" summary="Indice de capitulos e imagens"> + <tbody> + <tr> + <td colspan="3"><em>Do TEXTO</em></td> + </tr> + <tr> + <td></td> + <td></td> + <td>Pag.</td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2">Palavras de um soldado</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_3">3</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">Capitulo I—</td> + <td style="text-align:justify;">O movimento de 31 de Janeiro filia-se no + «ultimatum» de 1890</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_7">7</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» II—</td> + <td style="text-align:justify;">O primeiro rebate do conflicto + diplomatico anglo-portuguez</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_14">14</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» III—</td> + <td style="text-align:justify;">Serpa Pinto, á frente de 6.000 homens, + derrota os makololos revoltados</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_20">20</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» IV—</td> + <td style="text-align:justify;">O governo progressista cede ante as + exigencias da Grã-Bretanha</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_27">27</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» V—</td> + <td style="text-align:justify;">O protesto contra o «ultimatum» echoa de + norte a sul do paiz</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_34">34</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» VI—</td> + <td style="text-align:justify;">Serpa Pinto, heroe africano, perde o + prestigio</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_40">40</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» VII—</td> + <td style="text-align:justify;">O partido republicano nasce da dispersão + do reformista</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_48">48</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» VIII—</td> + <td style="text-align:justify;">João Chagas abandona enojado a imprensa + monarchica</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_54">54</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» IX—</td> + <td style="text-align:justify;">O Dr. Alves da Veiga assume a chefia + civil do movimento</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_62">62</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» X—</td> + <td style="text-align:justify;">O Directorio recusa a sancção official á + revolta</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_69">69</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XI—</td> + <td style="text-align:justify;">A crise ministerial dos «vinte sete + dias»</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_75">75</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XII—</td> + <td style="text-align:justify;">«E as armas que nos foram entregues para + defeza das instituições, voltal-as-hemos contra ellas»</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_82">82</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XIII—</td> + <td style="text-align:justify;">Vinte annos apoz a derrota</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_92">92</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XIV—</td> + <td style="text-align:justify;">A alvorada triumphante: caçadores 9 + inicia o movimento</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_96">96</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XV—</td> + <td style="text-align:justify;">Proclama-se a Republica no edificio da + camara Municipal</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_107">107</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XVI—</td> + <td style="text-align:justify;">O choque sangrento—A guarda + municipal desbarata os revoltosos</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_114">114</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XVII—</td> + <td style="text-align:justify;">A noite negra do traidor Castro—O + destino de tres officiaes</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_121">121</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XVIII—</td> + <td style="text-align:justify;">O dia seguinte ao da derrota</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_129">129</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XIX—</td> + <td style="text-align:justify;">Para as despezas da revolta bastou um + conto de reis</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_138">138</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XX—</td> + <td style="text-align:justify;">Triste balanço: o das victimas da + insurreição</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_144">144</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XXI—</td> + <td style="text-align:justify;">A serenidade de uns e o desalento de + muitos</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_149">149</a></td> + </tr> + <tr> + <td style="text-align:right;">» XXII—</td> + <td style="text-align:justify;">O julgamento dos revoltosos</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_156">156</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="3"><em>Das GRAVURAS</em></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Quartel de infanteria 18, e + campo da Regeneração, onde se reuniram as tropas sublevadas na + madrugada de 31 de Janeiro</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img015">15</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Elias Garcia</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img019">19</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Encontro dos revoltosos com + as tropas fieis ao governo</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img023">23</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Alves da Veiga (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img031">31</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Na rua de Santo Antonio</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img039">39</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">João Chagas (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img047">47</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">A guarda municipal + entrincheirada na egreja de Santo Ildefonso</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img055">55</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Capitão Leitão (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img063">63</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Uma carga de cavallaria</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img071">71</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Rodrigues de Freitas + (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img079">79</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Levantando os feridos</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img087">87</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">José Sampaio (Bruno) + (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img095">95</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Proclamação da Republica</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img103">103</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">A Bandeira da Revolta que foi + hasteada na camara Municipal</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img111">111</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Basilio Telles (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img115">115</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Bombardeamento da Camara + Municipal pelas tropas fieis ao governo</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img119">119</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Tenente Coelho (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img127">127</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Santos Cardoso, preso a + bordo</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img135">135</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Actor Verdial (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img139">139</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Revoltosos presos a bordo do + <em>India</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img143">143</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Antonio José de Almeida + (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img147">147</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Os prisioneiros a bordo</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img151">151</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Dr. Affonso Costa (1891)</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img157">157</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">Conselho de guerra a bordo do + transporte <em>India</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img161">161</a></td> + </tr> + <tr> + <td colspan="2" style="text-align:justify;">O tumulo das victimas no + cemiterio do Repouso, no Porto</td> + <td style="text-align:right;"><a href="#img167">167</a></td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p> </p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<p style="font-size: 1.2em">A sahir brevemente o 5.º volume</p> + +<p>DA</p> + +<p style="font-size: 1.2em">BIBLIOTHECA HISTORICA</p> + +<p><span style="font-size: 2em">A Revolução e a Republica Hespanhola</span></p> + +<p>(1868 a 1874)</p> + +<p><span style="font-size: 0.8em">POR</span></p> + +<p style="font-size: 1.2em">Victor Ribeiro</p> + +<p><span style="font-size: 0.8em">Da Academia das Sciencias</span></p> + +<p><span style="font-size: 1.2em">Um elegantissimo volume de 200 pag. 200 rs. +broc. e 300 rs. enc. em percalina</span></p> +</div> +<hr> + +<p style="text-align:center;">BIBLIOTHECA DA INFANCIA</p> + +<p style="text-align:center;">COLLECÇÃO ILLUSTRADA DE LEITURAS EDUCATIVAS</p> + +<p style="text-align:center;">Sob a direcção litteraria</p> + +<p style="text-align:center;">DE</p> + +<p style="text-align:center;">VICTOR RIBEIRO</p> + +<p style="text-align:center;">Da Academia das Sciencias</p> + +<p style="text-align:justify;"> Volumes em 8.º, illustrados com esplendidas +gravuras no texto e de pagina, nitidamente impressos em magnifico papel, +expressamente fabricado para esta publicação, formando elegantissimos livros de +cerca de 200 paginas.</p> + +<p style="text-align:center;">Cada vol. brochado 200 rs. enc. em percalina 300 +rs.</p> + +<p style="text-align:justify;"> N. B.—Alguns d'estes livros estão sendo +adoptados para leitura nas escolas por conselho de professores.</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;"><span style="font-size: 16pt">BIBLIOTHECA DA +INFANCIA</span></p> + +<p style="text-align:center;">Volumes publicados</p> + +<p style="text-align:justify;">I—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (A Conquista do Reino).</p> + +<p style="text-align:justify;">II—<em>A. Daudet</em>—<b>A Creança +Abandonada</b>. </p> + +<p style="text-align:justify;">III—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (O Condestavel).</p> + +<p style="text-align:justify;">IV—<b>A Vida dos Animaes</b> (No Paiz do +Leão). </p> + +<p style="text-align:justify;">V—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (D. João I, o rei eleito do Povo).</p> + +<p style="text-align:justify;">VI—<em>Victor Hugo</em>—<b>O Bom +Bispo</b>.</p> + +<p style="text-align:justify;">VII—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (Os Filhos de D. João I).</p> + +<p style="text-align:justify;">VIII—<b>A Vida dos Animaes</b> (Os +cães).</p> + +<p style="text-align:justify;">IX—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (O Infante D. Henrique).</p> + +<p>NO PRELO</p> + +<p>X—<b>A Terra Portugueza</b> (Portugal Pitoresco).</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">Os mais bellos e os mais baratos brindes para +creanças e premios para as escolas</p> + +<p style="text-align:center;">200 réis cada volume em brochura 500 réis +bellamente encadernado com capa em percalina a ouro e a côres em relevo, +proprio para brindes</p> + +<div class="ilustracao"> +<p style="text-align:center;"><img alt="As Nereidas (Camões Canto II)" +src="images/p182.png" +style="display: block; text-align: center; margin-left: auto; margin-right: auto" +width="100%"></p> + +<p style="text-align:center;">As Nereidas (C<small>AMÕES</small> +C<small>ANTO</small> II)</p> +</div> + +<p style="text-align:center;">Todos os pedidos devem ser dirigidos a ALFREDO +DAVID—encadernador</p> + +<p style="text-align:center;">30, 32, RUA SERPA PINTO, 34,36</p> + +<p style="text-align:center;">==LISBOA==</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;"><span +style="color:#ff0000;font-size: 1.6em;">BIBLIOTHECA HISTORICA</span></p> + +<p style="text-align:justify;"> Volumes de cerca de 200 paginas, illustrados +com primorosas gravuras no texto e de pagina, impressos com typo novo, bem +legivel, em optimo papel, ao preço de <b>200 réis</b> por cada volume brochado +e <b>300 réis</b> por cada volume luxuosamente encadernado em percalina.</p> + +<p> </p> + +<p>VOLUMES PUBLICADOS</p> + +<p style="text-align:justify;">I, II—<b>Historia da Revolução +Franceza</b> por <em>F. Mignet</em> 2 vols.</p> + +<p style="text-align:justify;">III <b>A Revolução Portugueza—O 31 de +Janeiro</b> por <em>J. d'Abreu</em>.</p> + +<p style="text-align:justify;">NO PRÉLO</p> + +<p style="text-align:justify;">IV—<b>A Revolução Portugueza-O 5 de +Outubro</b> por <em>J. d'Abreu</em>.</p> + +<p style="text-align:justify;">V—<b>A Revolução Hespanhola</b> por +<em>Victor Ribeiro</em>.</p> + +<p style="text-align:justify;">VI—<b>A Revolução Nihilista na Russia</b> +por <em>Stepniak</em>.</p> + +<p style="text-align:center;"><span +style="color:#ff0000;font-size: 1.6em;">BIBLIOTHECA DA INFANCIA</span></p> + +<p style="text-align:center;"><span style="font-size: 0.8em">COLLECÇÃO +ILLUSTRADA DE LEITURAS EDUCATIVAS</span></p> + +<p style="text-align:center;"><span style="font-size: 0.8em">SOB A DIRECÇÃO +LITTERARIA DE</span></p> + +<p style="text-align:center;">VICTOR RIBEIRO</p> + +<p style="text-align:center;"><span style="font-size: 0.8em">Da Academia das +Sciencias</span></p> + +<p> </p> + +<p>VOLUMES PUBLICADOS</p> + +<p style="text-align:justify;">I—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (A Conquista do Reino).</p> + +<p style="text-align:justify;">II—<em>A Daudet</em>—<b>A Creança +Abandonada</b>. </p> + +<p style="text-align:justify;">III—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (O Condestavel).</p> + +<p style="text-align:justify;">IV—<b>A Vida dos Animaes</b> (No Paiz do +Leão).</p> + +<p style="text-align:justify;">V—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (D. João I, o rei eleito do povo).</p> + +<p style="text-align:justify;">VI—<em>Victor Hugo</em>—<b>O Bom +Bispo</b>.</p> + +<p style="text-align:justify;">VII—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (Os filhos de D. João I).</p> + +<p style="text-align:justify;">VIII—<b>A Vida dos Animaes</b> (Os +cães).</p> + +<p style="text-align:justify;">IX—<b>Narrativas e Lendas da Historia +Patria</b> (O Infante D. Henrique).</p> + +<p>NO PRÉLO</p> + +<p>X—<b>A Terra Portugueza</b> (Portugal Pitoresco).</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:justify;"> Cada volume em 8.º, illustrado com +esplendidas gravuras nitidamente impresso em magnifico papel, expressamente +fabricado para esta publicação, forma um elegantissimo livro de cerca de 200 +paginas.</p> + +<p style="text-align:center;"><strong>Os mais baratos e elegantes brindes para +creanças e premios escolares</strong></p> + +<p style="text-align:center;color:#ff0000;font-size: 1.2em;"><span +style="font-size: 1.2em">200 réis cada volume brochado—300 réis enc. em +percalina</span></p> + +<p>Pedidos a</p> + +<p style="text-align:center;">ALFREDO DAVID—<span +style="color:#ff0000">Encadernador</span></p> + +<p style="text-align:center;">Rua Serpa Pinto, 30 a 36—Lisboa</p> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of A Revolução Portugueza: O 31 de +Janeiro (Porto 1891), by Jorge de Abreu + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA *** + +***** This file should be named 29484-h.htm or 29484-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/9/4/8/29484/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at http://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including checks, online payments and credit card donations. +To donate, please visit: http://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. 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