diff options
| -rw-r--r-- | .gitattributes | 3 | ||||
| -rw-r--r-- | 31905-8.txt | 4564 | ||||
| -rw-r--r-- | 31905-8.zip | bin | 0 -> 72800 bytes | |||
| -rw-r--r-- | 31905-h.zip | bin | 0 -> 77245 bytes | |||
| -rw-r--r-- | 31905-h/31905-h.htm | 4884 | ||||
| -rw-r--r-- | LICENSE.txt | 11 | ||||
| -rw-r--r-- | README.md | 2 |
7 files changed, 9464 insertions, 0 deletions
diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/31905-8.txt b/31905-8.txt new file mode 100644 index 0000000..d614183 --- /dev/null +++ b/31905-8.txt @@ -0,0 +1,4564 @@ +The Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Contos + +Author: João da Camara + +Release Date: April 6, 2010 [EBook #31905] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (This file was produced from +images generously made available by The Internet Archive) + + + + + + JOÃO DA CAMARA + + CONTOS + + + 1900 + _LIVRARIA EDITORA_ + GUIMARÃES, LIBANIO & C.ia + _108, Rua de S. Roque, 110_ + LISBOA + + + + + CONTOS + + + + JOÃO DA CAMARA + + CONTOS + + + 1900 + _LIVRARIA EDITORA_ + GUIMARÃES, LIBANIO & C.ia + _108, Rua de S. Roque, 110_ + LISBOA + + + + +AS MÃES + + +O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das +queimadas soprava abrazador. Via-se tudo em volta como atravez de vidros +amarellos. + +O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas +e cheios de musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da +estrada erguiam-se de espaço a espaço enormes panedos, que ainda +conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho abandonado de um +dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. Massas +enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas +por cima das outras, acastelladas. Por entre as pedras cresciam as +giestas sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol +e deixava caír a semente na terra. Nos pontos mais elevados resahiam do +tremulo azul celeste uns carvalhos rachiticos e tortos, que não davam +sombra. + +Elle caminhava alegre, estrada fóra, parando de vez em quando para +escolher nos cachos das amoras, que relusiam ao sol, as menos maduras, +avermelhadas, rijas, cujo acido lhe mitigava a sede. + +Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas +de soldado, em que brilhavam como lentejoulas os pedacinhos de mica do +granito desfeito. + +O gosto com que elle diria lá na terra ao Antonio:--«Deite-me isto +abaixo, ó mestre, e talhe-me n'esta cara uma suissa como a que eu tinha +d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.» + +E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suissa que havia de +usar. + +O gosto com que atiraria para o lado aquellas botas engraxadas, a +mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas +de senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse á missa. As +botas altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo e tão bom +para andar, lá tinham ficado penduradas n'um prego, defronte da lareira, +muito bem ensebadas e recommendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas +eram botas amigas. Como havia de calçal-as, contente, para sair com +ellas para o trabalho, quando vem rompendo a aurora, quando o céu é +cheio de luz e ainda não ha sombras na terra! + +Ia morto por voltar aos habitos velhos, á santa vida do campo. + +Lembrava-se, cheio de saudades, das boas historias, que se contam pela +estrada fóra, na volta do trabalho, caminhando lentamente atraz dos +burros, que, de orelhas muito cahidas, projectam na alvura da poeira +sombras de gigantes. + +O que hão de rir os ganhões com as historias novas que elle traz do +quartel! + +Quasi ao chegar á villa, ao pé da volta da estrada, um nadinha para +baixo, á direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se _chó!_ aos +burros, pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que +passam de bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras +sadias, com uns fios de dentes, que o pão de centeio torna muito +brancos, como folhinhas de malmequeres, e que ellas gostam muito de +mostrar, abrindo em grandes risos, por qualquer dichote amavel, as +boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas que uma ginja. + +Aquelle bocado de tempo era sempre o melhor do dia. + +E, ao pensar na fonte, alargou o passo. + +É coisa aborrecida estar de sentinella duas horas, uma noite de inverno. +E a agua pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, +precipitando-se na sargeta, com uma bulha muito triste, muito monotona, +tão differente do estrepito das ribeiras quebrando as aguas nos rochedos +das voltas! + +Elle pensava na fonte e nos taes labios vermelhos. E o tempo assim lá +passava mais depressa. + +Um outro, ás vezes, tão triste como elle talvez, gritava-lhe de uma +guarita perdida na treva: + +--Sentinella, álérta! + +E elle respondia, engrossando a voz: + +--Álérta está!... Sentinella álérta! + +E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recahia no +mesmo pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste. + +Mas afinal estava livre! N'aquella mesma tarde, á hora em que as +chaminés começam fumegando e debaixo das parreiras, emquanto a ceia +aquece, se toca alegremente nas businas, estaria batendo á porta de +casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobresinho a pedir esmola e +agasalho. + +E ria feliz com aquella idéa divertida. + +A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha! + +Sabe Deus, quantas vezes, quando elle pelas madrugadas frias tremia +enregelado na guarita, não molhava ella com lagrimas o travesseiro, a +chorar a sua pobreza. + +Recebera duas cartas d'ella muito ternas, cheias de noticias e de +conselhos. Pedia a todos que lh'as lessem e por fim sabias-as de cór; +trazia-as sempre comsigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um +saquinho de coiro, para se não estragarem. + +E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, +ia novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava +ligeiro, cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João. + + * * * * * + +Ainda lhe faltavam tres leguas para chegar a casa. + +Aquelles sitios já eram d'elle muito conhecidos. Lembrava-se +perfeitamente de que, por detraz d'aquellas pedras, que lhe ficavam á +esquerda, crescia basta a herva, regada pela agua de uma fontesita, +onde, por mais de uma vez, de madrugada, quando ali andava guardando as +cabras da viuva, viera armar aos passarinhos. + +Não havia sitio melhor para descançar um bocado. + +No fardel trazia um pedaço de pão e o conducto, meia duzia de azeitonas +e um queijinho pequeno. + +É comer! E, se nos der o somno, dorme-se uma sésta até que abrande o calor! + +Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em +fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas +pedras, emquanto muito alto, parecendo pontos negros no azul do ceu, +umas poucas de aguias descreviam curvas enormes, com a mira n'um burro +morto, que apodrecia entre os rochedos. + + * * * * * + +Quando accordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o +norte e algum tanto abrandára o calor. + +Do outro lado do cabeço ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras +da viuva, que andavam pastando. No alto, d'onde a propriedade se +descobria quasi toda, um pastorito de dez annos, deitado sobre as +pedras, com o chapéo de abas largas, todo roto, a servir-lhe de +travesseiro, fazia dançar um bogalho na ponta esmagada de uma palha de +centeio, por onde soprava. + +Sensibilisou-o tal recordação da infancia, que ali passára como aquelle +pequeno. + +--Adeus, ó cachopinho! gritou. + +--Saude! respondeu o pequeno. + +Teria dormido duas horas e achava-se completamente descançado. +Ergueu-se, espreguiçou-se, coçou desesperadamente a cabeça, bateu com os +pés no chão para desentorpecer as pernas e porfim, agarrando no chapéo e +no bordão, poz-se alegremente a caminho. + +Como por ali não havia vinhas, e isto era no mez das vindimas, não +encontrára ninguem por aquelles sitios, abandonados até ao tempo das +sementeiras. + +Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a +casa antes do anoitecer. + +Faltava-lhe ainda quasi uma legua, quando o sol se escondeu. + +As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto, +constantes no mesmo logar, batendo muito as azas. + +Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em duvida sobre o +caminho que havia de tomar. Passava a mão pela cara, devagarinho, +sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tental-o muito, sorria-se +para elle, mas como quem tem medo de ceder á tentação. + +E que tentação não era!... Se nunca mais vira uns olhos d'aquelle azul! + +A pobre mãe, áquellas horas, sentada á porta de casa, cruzadas sobre os +joelhos as mãos, onde umas veias em relevo resaem sobre uma rede confusa +de rugas pequeninas, pensava n'elle talvez, cheia de amor e de quantas +tristezas! Quem passava por defronte da porta tirava o chapéo áquelles +cabellos brancos, muito bem alisados por debaixo do lenço negro da +viuva. N'aquelles olhos meio apagados brilhavam talvez as lagrimas d'uma +saudade... E elle parado ali... cheio de duvidas! + +Seguindo sempre em frente, mal chegasse ao alto, veria na encosta +fronteira a casa onde nascera, muito caiada, com a cimalha pintada de +azul, a porta vermelha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de +cachos tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a +subir até desvanecer-se, signal da recompensa depois do dia de trabalho, +a boa ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, +passado um quarto d'hora, estaria nos braços da mãe, seccando-lhe as +lagrimas, trazendo-lhe o coração que levára. + +E continuava em duvidas! Pois a quem mais do que á mãe queria elle? + +E por fim quando se resolveu... tomou para a esquerda. + +Pobre mãe! + + + + +O BAILE DOS VELHOS + + +Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros. + +Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do +casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa +desmereceu. Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou +a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa. + +Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo:--quem não +foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu +os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela +velhice fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os +homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior +não contava) tendo que attender a tanta senhora, não querendo +escandalisar nenhuma. + +A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela +illuminação. Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, +ardiam quatro vellas sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso +caiado, tinham disposto a loiça branca e na chaminé um grande tronco de +asinho ardia, rodeado de piorno, fazendo passar clarões vermelhos na +bateria de cobre, disposta, como um tropheu, do outro lado da casa. + +Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco +tinha mais do que outro tanto em serviço na cosinha, e que tudo +aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle +tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão +rica, fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam +da casa? + +O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de +todo, coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado +desde que não póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, +lá se arrastou conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se +divertiram. Abordoado á grossa bengala de castãosinho de prata, +amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle, assistiu a toda a festa, +até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a cabeça muito calva, +onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos, esvoaçavam, +tenuissimos, no ar agitado. + +Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar. + +O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto +para não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade +proporções medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe +começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um +pontapé, que acertou, como por acaso, nas canellas do mestre-escola. + +A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão +de fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez +enganados pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos +para traz, ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações +risonhas da mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, +dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como +se ainda se namorassem, como, havia meio seculo, se sorriam e namoravam. + +Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher. + +--Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento. + +Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche +fino, o collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, +parecia ter voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, +arqueando o peito, baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos. + +A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito +dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um +quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as +habilidades, que n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas +aldeias. + +E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por +toda a casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de +rugas, fazia rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e +lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear +constante de cabeça. + +--Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do +officio. + +--E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior, +continuando a rir. + +Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento. + +--Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír +esfalfada num tropeço, ao pé da lareira. + +--Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor. + +E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, +esticando a perna, com um sorriso orgulhoso. + +Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros! + + * * * * * + +Mas o melhor foi a ceia. + +O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de +proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario. +Imaginem! + +Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se +arranharam, por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas. + +Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle +coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de +beiços muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos +narizes para baixo. + +Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas +interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos +convites aos assistentes. + +--O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma +colherinha de canja, tia Ignez? + +E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé +da bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando +os olhos; alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de +pé, observando, com a concha mettida na enorme terrina, lançava em +redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem +pedisse. + +--Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção! + +--Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem +quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato. + +Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados. + +Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os +copos para abrir o appetite. + +Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas +discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde +um magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, +espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz +afiladissimo, depois de attentamente ter examinado o fio da faca, +principiou, cheio de sua pericia, a trinchar, seguindo com olhares +gulosos os bocados, que iam cahindo. + +O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou +a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, +iam caindo os baguinhos na toalha. + +O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete. + +Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao +ouvido com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois +com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, +que poz sobre a meza defronte do padeiro. + +--Sabem, meus senhores?... Garrafas lacradas por mim no dia do meu +casamento. Os seus copos, façam favor... Ora adeus! O que é isso, sr. +professor? O copo maior... Então? O vinho é o sangue dos velhos. + +O sangue não sei, a lingua é com certeza. Instantes depois, a algazarra +subira de tom a tal ponto, que o professor, de pé, examinando á luz +a transparencia da amethista enorme que lhe refulgia no copo, teve de +pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada. + +--Meus senhores... começou. + +Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o +mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam +áquella festa, puzeram-se ellas a gritar: + +--Basta! Basta! Não queremos tristezas! + +Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás +cabecinhas brancas. + +Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo +vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa +berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo, +resmungando. + +O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua +mocidade. + +Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas +o queriam. + +--E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava á +porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella! + +--Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo +sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o +bochecho que tinha na bocca. + +Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se. + +--Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão +e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada. + +--É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por cima +da meza, de collete já todo desabotoado. + +Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. +Elle bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a +brincar. + +--E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o +anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo +por causa ali da tia Domingas. + +--Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da mão. + +--Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar. + +A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um +grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e +disse toda commovida: + +--Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo! + +E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola. + +--Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não oiço +a voz. + +--Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui... + +--Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que +vocemecê foi. + + * * * * * + +Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas +das janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir. + +O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e +muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba +rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice +avinhada e de somno mal combatido. + +Havia longos silencios e bocejos profundos. + +Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar +a Josepha ao quarto. + +E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com +largas fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo +Antonio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, +dizendo que não era costume. + +Pararam todos á porta. + +Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, +enchendo-o d'uma serena meia claridade. + +O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda +de pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de +ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha +escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas +bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra. + + +Havia cincoenta annos! + + + + +A OUTRA + + +Era em fins d'agosto, á hora do meio dia. + +Havia um instante, que, na torre pequenina da egreja, o sacristão, com a +cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com +ramagens amarellas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias. + +Hora do descanço. Alguns dos que trabalhavam mais perto recolheram a +casa para jantar e socegar um pedaço, durante a sesta. + +Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas +todas na nesgasinha de sombra, as gallinhas dormitavam; os passaros nos +salgueiraes, que sombreavam o ribeiro, tinham emmudecido. No interior +das casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as +carroças, nos pateos, com os varaes aprumados, pareciam, como n'um +espreguiçamento, dispôr-se para o somno. + +O sol quasi a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentissimos, +reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos +vidrados, que pareciam em braza, e atravessava com elles as ramarias, +enchendo o ribeiro de manchas movediças, multiformes, cheias de +scintilações, como pedacinhos de metal. + +Era aquella a hora a que d'antes costumava recolher a casa o José +Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quasi a trasbordar, tão +cheia a trazia sempre de perdigotos e laparos. + +Ainda elle vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo +na frente. + +Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da +porta, encostava-se á hombreira, e punha-se á espera, toda risonha, +feliz, fresquinha como uma flôr, com o seu vestido de linho muito +engommado. + +Os que passavam iam-lhe dando as boas tardes. + +--Não tarda ahi, diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa +cheia e cartuxeira vasia. + + * * * * * + +Tempos!... Tempos! + +Havia quasi um mez que a pobre Marianna debalde esperava o marido +áquella hora. + +Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos +vidros da janella e, com as faces incendiadas, o ouvido attento, +fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava +correr em fio as lagrimas silenciosas. + +E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam para ella com um modo +tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os +outros:--Coitadinha! + + * * * * * + +O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que +passára! + +Para aquillo tinha casado, para mal decorrido um anno, um anno pouco +mais, ali se vêr sósinha, chorando o marido que lhe fugira! + +Porque assim fôra rebelde aos conselhos do pae? Bem lh'o tinha elle +prégado no proprio dia em que dera por aquelles amores! + +O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, á porta da rua, +viera buscal-a por um braço, arrastára-a pela escada até ao quarto +lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando +chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas:--Senhora! + +E ella começara a chorar e logo elle, ternissimo e afflicto, a enchera +de beijos. + +Ainda não pensára n'aquillo...! Pois tão nova ainda, havia de assim +deixal-o? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, +um conquistador! + +Recordára-lhe a morte da mãe que a deixára com trez annos entregue a +elle, o que elle soffrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que +lhe dera. + +Era á noite, noite muito serena, cheia de murmurios misteriosos, que se +elevavam dos campos n'uma grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda +das aguas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janella estava aberta e lá +de fóra vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera. + +Junto da porta crescia uma roseira, que mettêra para dentro do +quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. +Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos ninhos. + +O mestre-escola approximou-se da janella e esteve por algum tempo +respirando aquelle ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei +que recordações. + +Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o +pescoço muito bem torneado, o cabello farto, enrolado no alto em duas +tranças; viu-lhe a carnadura branca, sadia e forte. + +O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um +movimento languido, vergando a um suspiro da noite. + +O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um movimento d'hombros +resignado. + +--É preciso casar-te, não ha remedio. + +Como por miudos se lembrava de toda a scena que tivera com o pae e dos +conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra elle que o José Miguel a +havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era +leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, +que tinham sido, uma apoz outra, todas as raparigas da aldeia. + +Que mal empregadas lagrimas ella chorára, até que afinal o pae +consentira no casamento! + +Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os trez commentado aquella historia! + + * * * * * + +Um dia o mestre-escola fôra pelo Prior e outros convidado para uma +caçada a que iria tambem o José Miguel. + +Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe á porta. + +--Prompto, sr. Eustachio? Olhe que o Prior, ha mais de um quarto d'hora +que está á sua espera no adro! + +--Lá vou! lá vou! gritou de dentro o Eustachio. + +E appareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o bonnet de pala +verde, que usava havia dez annos. + +--Adeus! disse ao José Miguel com máu modo. + +--Sr. Eustachio...! respondeu este, cumprimentando-o, entre ironico e +atarantado. + +E, erguendo os olhos, entreviu na unica janella do primeiro andar, +detraz das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito +triste, que lhe sorria por entre muitas lagrimas. + +--Vamos! disse o Eustachio, pondo-se a caminho e olhando de revez para o +outro. + +--Deixa estar, grande patife! ia pensando o José Miguel. Ainda hoje m'as +has de pagar! + +Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com +impaciencia. + +Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustachio +respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque +a egreja era no fim da aldeia e no sopé d'um cabeço predilecto das +perdizes. + +Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo +no gatilho, esperava que as perdizes levantassem. + +--Entra, cão! + +Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saude. O +velho caçador fez um movimento de máu genio. + +Então o José Miguel, collocado um pouco mais longe, apontou serenamente, +descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um +instante haverem batido convulsamente as azas, inclinaram as cabeças e +deixaram-se cahir a prumo, como coisas inertes. + +--Que é lá isso? perguntou o Eustachio. + +--O sr. não vê? disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. São +duas perdizes. + +E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustachio o não +ouvisse: + +--E dois _bigodes_. Elle que os vá contando. + +E contou-os, e não foram poucos. + +Felizmente o Eustachio não era de reservas. O rapaz enthusiasmou-o. + +--Bravo! dizia elle ao fim da tarde, com o olhito a luzir, o que era +tambem d'umas beijocas a mais na borracha do Prior. + +E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no hombro: + +--Sabes que tens quasi uma riqueza n'essa espingarda? + + * * * * * + +Com que saudades a Marianna recordava esse momento em que, pela primeira +vez, ouvira da bocca do pae um elogio ao namorado! + +--Mas isto não obsta. Não quero! teimava ainda o Eustachio. Aquillo é um +cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas peor do que viuva! + +Afinal consentira. Que lhe havia de fazer? + +O José Miguel acirrára-se com aquella resistencia e, em vez de abandonar +a rapariga, como fizéra ás outras, cada vez se mostrava mais assiduo +junto da filha do mestre-escola. A Marianna definhava-se, que era um dó +vel-a. + +O Eustachio, bem contra vontade, não teve outro remedio, consentiu. + + * * * * * + +O bom tempo tem azas. + +Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a +triste chorava amargamente, lembrando-se d'aquelles primeiros mezes de +casada e das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do +_Valente_, que voltava da caça. + +Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; +puxava a mesa para defronte da janella, que uma parreira sombreava; +dispunha-a com muito cuidado, o logar d'ella e o d'elle, um defronte +do outro, o cangirão cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os +pratos de fructa, que perfumavam a casa. + +Então o _Valente_ entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, +querendo que lhe abrissem a porta do pateo, para onde logo sahia a +correr, enterrando o focinho na panella cheia de caldo e de grandes +bocados de pão de munição. + +O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, +sorria ao ver aquelles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito +fresco, bebia-o depois, de uma vez, d'olhos continuando a sorrir, +soltando ao acabar um bello ah! de satisfação. + +--Vamos a isto mulher, vamos a isto! dizia approximando da mesa a grande +cadeira de páu santo. + +E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, +destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas. + +Emquanto ia comendo, vinham as historias do dia. + +Ella pouco podia adeantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada +de novo. + +Elle então contava façanhas do _Valente_, que, saciada a fome, muito +sujo, muito lambusado, sentado a um canto, d'olhos meio-cerrados, +esperava com paciencia o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa. + +Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava. + +Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquelle calor andavam +levadas da breca! O que elle andára por aquelles mattos! + +A mulher, sentada defronte d'elle, ria muito contente, mostrando-lhe os +dentes muito brancos entre os labios vermelhos, com duas covinhas aos +cantos. + +Pois as perdizes andavam assim como elle dizia, e estava a rede ali tão +cheia! + +--Mas vê lá se outro consegue o mesmo, dizia o José Miguel todo +orgulhoso. É que d'aquillo e d'estas não ha outro que as tenha na +aldeia. + +E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas. + +--São de ferro! + +O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com elles á +sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo. + +Caçador velho, muito conhecedor d'aquelles terrenos, gostava de dar +conselhos ao genro, que o escutava attencioso. + +Isto não obstava a que, sahindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer +o sogro, matando-lhe a caça que este errava. + +--Ora anda lá, meu velho, resmungava muito alegre, apanha lá mais este, +para a conta. + + * * * * * + +Agora o José Miguel continuava a sahir todas as manhãs, mas só recolhia +alta noite. Ás vezes, nem recolhia, e ella, coitadita, levava as noites +a chorar. + +Quando o marido sahia, punha-se á janella e via-o desapparecer por +detraz da egreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados minutos, +avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O _Valente_ seguia-o +cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a extranhar o dono. +Desappareciam depois entre os pinheiros e ella já não podia cá debaixo +tornar a avistal-os. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, +começava a elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo +azulado, que logo se desfazia no azul do céu. + +Ella então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsamente. + + * * * * * + +N'esse dia pela uma hora, o Eustachio entrou em casa da filha. + +--O teu homem? + +--Foi para a caça, respondeu a Marianna, sentando-se no leito e á pressa +limpando as lagrimas. + +O mestre-escola trazia o bonnet de palla verde, a espingarda a tiracolo, +o polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede. + +--Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incommodar. Deita-te, filha, que eu +vou procural-o. + +A Marianna quiz retel-o, extranhando-lhe os modos. + +--Talvez o não encontre. Sabe Deus onde elle pára! + +--Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! +respondeu o Eustachio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. +Olha, sabes o que vou fazer? + +--Ó meu pae!... disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo +segurar-lhe os braços. + +--Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não teem mais que o castigo que +ambos merecem. Tu sabes quem ella é? + +A Marianna disse que não com a cabeça. + +Mas não havia de saber!... + +--A Maria da Escusa, aquella cigana, que, não contente com ter dado cabo +do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem... e +a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba! + +E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente. + +A Marianna, cheia de susto, sem forças para seguir o pae, sem forças +para gritar, deixou-se cahir no leito, desmaiada quasi, sem animo para +pensar na desgraça, que lhe estava acontecendo. + + * * * * * + +Assim esteve por muito tempo. Despertaram a afinal uns latidos alegres, +tão conhecidos d'ella. Sentou-se no leito. Os latidos approximaram-se, e +por fim o _Valente_ rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo +o jantar, a arranhar na porta do pateo. + +Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pae e o que +diziam não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas. + +A Marianna correu, muito chorosa, até á porta, e, muito excitada, cahiu +soluçando nos braços do marido. + +--O que é isso? o que é isso? perguntava o Eustachio, tambem com um +nósito na garganta. Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se +adivinhasse o disparate, tinha o deixado lá ficar. + +--Então, mulher, então? Que tens tu? dizia o José Miguel muito commovido. + + * * * * * + +Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa, sentaram-se todos á mesa. + +A curiosidade, que nem um dito, uma allusão deram motivo para saciar, +sorria nos olhos vivos da Marianna. + +Que se haveria passado? + +Mas, quasi ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando +muito animadamente, enganou-se e, querendo beber á saude da filha, pegou +no copo d'agua; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro désse +pela distracção, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago. + +--Não é só na caça que se apanham _bigodes_ sr. Eustachio. + +--Não, não, respondeu o velho. E tu que o sabes d'hoje...! + +O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um +sorriso em que a malicia apagára a tristeza, levantou-se da mesa e veio +beijal-a muito. + +--Coitada da Marianna! + +--Então ella... enganou-te? + +--Porque falas n'isso? Que te importa? Que me importa? + +A curiosidade da Marianna ainda não estava satisfeita. + +--Com quem?... Dize... Dize... Com quem? + +Então o mestre-escola, muito córado--era talvez da pinga? entendeu dever +deixal-os sós, e sahiu a rir, com um arsinho trocista, muito contente, a +esfregar as mãos. + + + + +O PAQUETE + + +Era no fim da azinhaga--uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno e +tendo ainda marcada na lama secca a passagem do ultimo carro de bois. +D'um lado e d'outro velhas piteiras misturavam a côr verde claro das +largas folhas carnosas com o verde escuro, quasi negro, das silvas e +pilriteiros; de espaço a espaço erguiam-se algum sobreiro decrepito, +faias brancas e prateadas, loureiros embalsamando o ar com o cheiro +forte e bom das longas folhas agudas. + +No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril. + +A hera apoderára-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo +abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarello que +revestia cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos +cachos de arroz que desciam em elegantes pyramides das beiras do telhado. + +Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos, +conduzia do pateo ao vestibulo do palacio. + +Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco, +ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da familia, sobre o qual +ameaçava ruina uma grande coroa de conde transformada em coito de +lagartixas. + +Os vidros ennegrecidos e apenas translucidos tremiam de velhice nos +caixilhos de chumbo. + +Pelo pateo, nos intersticios das pedras, crescia livremente a erva, +e a um canto um rallo juntava as estridulas melodias ao monotono coaxar +das rãs do pantano visinho. + +O Conde estava na livraria sentado n'uma velha poltrona de coiro com +pregos de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia attentamente. + +A livraria era uma vasta sala alumiada por trez janellas de grande vão. + +Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanario branco, suas casinhas +bem caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e +indicando a estrada que a atravessava conduzindo d'uma villa a outra. + +Entre as janellas e as portas estavam as estantes com os grandes +in-folios amarellos, os grossos diccionarios e as obras classicas +latinas, portuguezas e francezas. + +A parede fronteira ás janellas, por cima da chaminé de marmore branco, +era occupada pelo retrato do avô do Conde. Era um homem alto, bem feito, +sympathico. Estava vestido á epocha de D. João V. Tinha uma das mãos +nos copos da espada, as suas commendas ao peito e uma sombra exquisita, +forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura deixára +caír o doirado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha +tecêra a teia e esperava pela presa, escondida n'um rasgão da tela. + +O sol descia e o Conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puchára a +cadeira para o vão da janella e, com o livro sobre o joelho, o cotovello +sobre a perna traçada e a testa encostada á mão, lia attentamente uma +passagem de Suetonio. + +O crepusculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o ultimo +raio brincado um instante na testa veneranda do avô commendador, desceu +para detraz do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco +a pouco n'uma tinta geral. + +O Conde fechou o livro sobre o index e poz-se a contemplar a aldeia. + +O vento do norte entrando pelas fendas das paredes sibillava +tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de chumbo, as +aves nocturnas, que habitavam as vastas chaminés do palacio, começavam a +piar e aos ouvidos do Conde chegava a alegria da aldeia como nota +extranha d'uma lingua esquecida. + +Meiados de novembro, as noites eram frias. + +O Conde olhou tristemente para as janellas das casas dos lavradores +alegremente illuminadas pelo fogo vivo das lareiras, e, estremecendo de +frio dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha +e, mettendo as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala. + +Era um velho alquebrado e quasi completamente calvo; apenas duas ou trez +madeixas de cabello branco e comprido desciam-lhe da nuca até á golla do +casaco. Usava a barba toda; era curta e branca. Os olhos, cuja luz a +edade ia apagando, eram da côr mal definida que teem os olhos dos +velhos e os das creanças de mama: tinham comtudo uma expressão doce +e melancholica. Ao canto da bocca uma prega vertical, desdenhosa e +altiva quando o Conde estava serio, dava-lhe uma expressão de sympathica +tristeza quando sorria. + +Ao toque da campainha accudiu um criado. + +Era um velho tambem, mais velho do que o Conde talvez. Trazia vestida +uma casaca por certo verde, de tão velha que era, se não lhe occultassem +o estofo accumuladas passagens de linha preta. + +Entrou curvado um pouco pelo respeito, outro tanto pelos annos. + +--José, disse o Conde, vae arrancar mais uma taboa á sala do docel a +arranja o lume. + +--Sr. Conde, eu sósinho não tenho forças. + +--Chama o caseiro, como tens feito nos outros dias. + +--O Manuel foi-se hoje embora, sr. Conde. + +--Foi-se hoje embora! Porque? + +--Foi trabalhar para a quinta do João Pereira. V. Ex.ª bem sabe que o +homem, coitado, tem familia que sustentar e como os ordenados andam +atrazaditos... + +--Effectivamente, recordo-me de que ha já bastante tempo... Ora, +coitado! Mas, porque não me disse elle?... Eu esqueço-me de tudo. Has de +dar-lhe dois pintos da minha parte. Eu te ajudo hoje a arrancar a taboa. + +E saíndo ambos, foram a um quarto proximo e arrancaram uma taboa do +soalho. O José serrou-a n'umas poucas de partes, feriu lume n'uma +pederneira, porque o Conde reprovava os fosforos como perigosos, e, +pouco depois, uma chamma viva e alegre trepava pela chaminé. + +O Conde tornou a abrir o livro e continuou a ler Suetonio á luz de um +bocado do seu palacio. + +Tinham-se ido as taboas pouco a pouco e já quasi não restavam senão trez +quartos completos, o do Conde, o do José e a livraria. Taboas, +vigas, portas e janellas tinham-se desfeito em cinzas. + +E os velhos lavradores da aldeia, ao verem o fumo erguer-se acima da +chaminé do palacio, sorriam tristemente e diziam: + +--Coitado! + +Mas o Conde continuava alegre e indifferente. Como até ali nada lhe +faltára, Deus sabe á custa de quantos sacrificios do pobre criado, não +pensava no estado de miseria a que se achava reduzido ou, para melhor +dizer, não queria pensar. + +Quando ao domingo voltava da missa, vinha conversando alegremente, com +um certo ar entre familiar e protector, com os lavradores que o +estimavam e gostavam de ouvil-o. Entrava nas choupanas mais pobres, e +afflicto com a miseria que n'ellas encontrava, dizia baixinho para o +velho José, que o acompanhava sempre, com o grande missal romano debaixo +do braço: + +--José, deixa um pinto em cima da mesa para esta pobre gente +festejar o domingo. + +E saía tocando ao de leve com os dedos nas faces rosadas das +criancinhas, que olhavam para elle com os seus meigos olhos grandes, +cheios de espanto e de curiosidade. + +O José demorava-se como que para obedecer ao fidalgo e saia momentos +depois, levando nas vastas algibeiras da casaca os bocados de pão negro +e de carne, com os quaes e com a ajuda de mais uma taboa o Conde havia +de jantar n'aquelle dia. + +E o Conde continuava alegre e passava os dias conversando, como elle +dizia, com os seus auctores favoritos e entretendo a imaginação com os +sonhos doirados d'um futuro melhor. + +Tinha um filho. + +Havia trez annos que o seu genio desleixado o obrigára a partir para o +Brazil, na esperança de, á força de trabalho, reparar os desastres da +fortuna. + +E não fôra a ambição que o levára tão longe. Não ignorava elle a +maneira como se sustentava o Conde e o seu genio altivo custava-lhe +sujeitar-se á compassiva esmola dos aldeãos. + +Um dia, deu parte de suas tenções ao pae, mostrando-lhe a conveniencia +d'aquella partida, occultando-lhe porém uma grande parte da verdade com +receio que a revelação d'ella fosse um golpe fatal na vida do velho. +Repellida primeiramente a ideia como absurda e pouco digna, o pobre pae, +com o coração esmigalhado pela dôr e pela vergonha, teve por fim que +render-se e sacrificar o seu orgulho ao orgulho mais nobre do filho. + +Obtida a licença, partiu levando como capital a benção paterna e os +poucos pintos que rendeu mais uma hypotheca. + + * * * * * + +Os primeiros dias foram horriveis para o Conde. Sentia um vacuo enorme +n'aquella casa, havia pouco tão cheia ainda. Depois a dôr foi +abrandando pouco a pouco, e o Conde voltou aos habitos antigos. Tinha +mais um sentimento no coração: a esperança. + + * * * * * + +Uma tarde chegou uma carta que dizia: + + +«Meu caro pae, vou bem, vou muito bem. Pelo proximo paquete espero poder +enviar-lhe cem mil réis, quantia que continuarei a mandar todos os mezes.» + + +O Conde procurou _paquete_ no diccionario de Moraes, mas achou a palavra +comida pela traça. + +O José chorava de alegria e n'aquella noite deitou duas taboas no lume, +acceitou um copo de vinho ao João Pereira, e, quando acabou o terço, +disse para o Conde, com quem o resára em voz alta: + +--Para que se realise o que sr. D. Carlos nos promette: Salve, Rainha. + + * * * * * + +E passou-se mez e meio e o Conde dizia: + +--O que será _paquete_? + +De Agostinho de Macedo para cá não sabia nada, não lia jornaes, nem +vêl-os queria. Detestava-os com um odio de velho, quasi instinctivo. +Quando via algum jornal murmurava logo! + +--Maçonaria! + +E continuava a esperar o paquete, como um sebastianista espera D. +Sebastião, com uma confiança cheia de misterios e de pequenas impaciencias. + +O palacio já pouco mais tinha do que as paredes. Pouco a pouco, taboa, +por taboa, viga por viga, o quarto do criado passára pela chaminé e este +dormia agora na camara do Conde. + +E o velho fidalgo dizia ao ver crepitar na vasta lareira as taboas +carcomidas: + +--Paciencia! Isto concerta-se depois, quando chegar o paquete. + +E o José apenas respondia: + +--Salve, Rainha. + +Estava-se no principio de janeiro. + +O Conde começou a separar os livros em duas classes: a dos livros uteis +e a dos livros inuteis. + +Os livros inuteis transformaram-se em calor, e, quando o Conde via as +paginas amarelladas torcerem-se sob a acção do lume, olhava para ellas +tristemente e depois, erguendo os olhos para o retrato do avô, dizia +mentalmente, como que pedindo desculpa: + +--São os peores. + +Acabaram os livros inuteis e o Conde poz de lado os optimos e queimou os +restantes. + +Duraram dois dias. + +E como o paquete não chegava, o Conde coçava a cabeça e olhava com um +modo menos respeitoso para o missal romano. + +O José triplicava o numero das _salve-rainhas_. + +E o paquete não chegava, e os manuscriptos arderam, e o Conde +queimou as gravuras e conservou apenas o Suetonio. + + * * * * * + +Passados dias chegou uma carta. + +Trazia um sobrescripto azul, um pouco transparente, muito boa lettra, +uma lettra com muitos finos e grossos, como a d'um professor de +caligraphia. Trazia a marca do Brazil e cheirava a carvão de pedra. + +Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o Conde +estendia instinctivamente as mãos tremulas sobre as cinzas frias da +chaminé, entrou gritando: + +--O paquete! o paquete! + +O Conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta. + +Era talvez a riqueza! + +Passou-lhe uma nuvem pelos olhos. + +Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abrio o sobrescripto. + +E leu: + +«Temos o doloroso dever de dar parte a V. Ex.ª do fallecimento do seu +filho...» + + +O Conde não poude ler mais e deixou cair a carta. + +José exclamava: + +--Perdidos! Perdidos! + +E dava com a cabeça nas paredes. + +O Conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha de +papel azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento. + +--Resta-nos a caridade, José, disse porfim. Vae, vae ter com essa gente +a quem hontem ainda eu dei esmolla, e dize-lhe que o Conde lhe pede, por +amor de Deus, um bocado de pão. + +E depois soluçando: + +--Manuel! Filho!... Meu querido filho! E como fazia muito frio, o Conde +queimou o Suetonio. + + + + +PERDIDO + + +Quando ouviu ao longe, no campanario da freguezia, bater meia noite, +entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. +Nem um sussurro!... Tudo dormia áquella hora. + +Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao hombro, approximou-se da aldeia, que +tinha de atravessar. + +Tudo era em silencio; apenas, muito ao longe, junto á fonte, uma rã +solitaria coaxava tristemente. + +A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas trinta ou +quarenta casas, dispostas no fundo do valle, ao acaso, entre os choupos +da beira do riacho e os ultimos pinheiros da matta, que descia pela +encosta em pujante vegetação sombria. + +Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo +ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido á +escuta, olho á espreita, com um pé para deante, o outro para traz, posto +de bico, prompto para a retirada. E, quando tudo outra vez cahia no +primitivo silencio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, +sobresaltado, de olhar desconfiado, como se fosse commetter um crime. + +Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras, onde a +lua, n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, +começaram deixando cair grossos pingos d'agua sobre a rama dos +pinheiros. + +O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, +fantasticos, em meio do sussurro da folhagem. + +Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. +A chuva engrossára, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de +luar, iriando, como perolas transparentes, as gottas d'agua, que +tremeluziam no extremo das agulhas. + +Era no alto da serra que o seu thesoiro junto pouco a pouco, desde +tantos annos, fôra escondido. Vinha augmental-o n'aquella noite, vinha +palpal-o, tomar-lhe o peso, tendo como unicas testemunhas de prazer +tamanho o céo de temporal e os pinheiros a gemerem. + + * * * * * + +Subitamente estacou. Na clareira, ao meio do pinhal, era a choupana do +guarda. Ouvira um chôro de criança e uma voz triste de mulher a cantar. + +O avarento approximou-se pé ante pé. + +--É fome que o pequeno tem, dizia a mulher com a voz cheia de lagrimas, +interrompendo o canto. Se eu não comi!... Seccou-se-me o leite. + +E chorava. + +Aquella mulher pedira-lhe esmola na vespera. Pedira-lhe esmola!... Tinha +fome, dizia. E elle?... Tinha frio. E elle? O filho definhava-se, desde +que o marido d'ella adoecêra. Pedira-lhe esmola, como se lhe fôra +possivel, a elle, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher! + +Mas ao som d'aquella voz estremeceu, porque ella, doida, offendida pela +recusa, desgrenhada, d'olhos injectados, chamára-lhe ladrão, assassino, +pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara. + +--Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, has de chorar, em cima da +cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama,... ladrão! + +E só a idéa de poder um dia ser assassinado, roubado, que vinha a +dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que lhe erriçou +todos os pelinhos do corpo. + +Afastou-se da chóça, para longe afugentar aquella idéa soturna; mas +poucos passos andára, quando lhe pareceu ouvir o rachador, com uma voz +fraca de tisico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome. + +Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido +á escuta, sentindo bater accelerado o coração. + +Calára-se tudo na chóça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal +fóra uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de soffrer. + +Tentariam aquelles roubal-o? + +E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal fóra, +deixando o vento levar-lhe o chapéo esboracado e remoinhar-lhe nas +longas farripas grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas silvas +os tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma, agarrando-se +aos pinheiros, que sacudidos o encharcavam, a correr, a correr por +ali fóra, até ao alto da serra, onde se deixou cahir extenuado ao pé +d'um enorme pinheiro manso, sêcco, que sobre um rochedo escalvado +atirava para o ar os longos braços de espectro. + +Era ali o seu thesoiro. + + * * * * * + +Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos humidos, +arquejando longamente. Depois, creando animo, mostrando força +inacreditavel em corpo tão franzino, com os braços osseos erguendo alto +a enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe arrancava do +peito cavado um gemido a cada enxadada, começou a cavar, a cavar, até +que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro. + +Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova, +metteu-lhe dentro as mãos, e, arquejante, fazendo um esforço +supremo, com um ah! de victoria, puchou a si o cofre, que, rolando no +chão, produziu um som criador do extasis. + +Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou +o suor que lhe escorria pela testa. + +Ali estava o seu thesoiro!... Seu! + +E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimasinha no +olho, abaixando-se para sopesal-o. + +Queriam roubal-o talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente +d'uma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendel-o, +como nunca loba defendeu um filho. + +Podia alguem ter desconfiado do logar onde o escondêra... Era muito +noite ainda teria tempo de sobra para leval-o d'ali. Felizmente não lhe +escasseavam forças. Querido thesoiro da sua alma, junto moeda a moeda! + +E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra +alma lá dentro houvesse de perceber a d'elle; pedia-lhe, cheio de +ternura que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de seu coração! + +Os pinheiros humidos tornavam balsamica a atmosphera. Os raios obliquos +da lua quebravam as sombras das arvores nos troncos das outras e as +sombras das copas bailavam, fantasticas, sobre os fetos molhados. + +E elle ali, tão sósinho com seu thesoiro! Havia tanto que lhe não punha +os olhos! + +Sentando-se n'uma pedra, approximando o cofre, com um esforço enorme, +fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos. + +O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faiscas d'oiro. +E o avarento, em extasis, fechou os olhos, como encandeado por tanta +luz! + + * * * * * + +O vento cessára de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, +um grito de dôr, estridulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, +pelo ecco da montanha empinada, partiu da choça do rachador. + +Eram elles com certeza!... Eram os ladrões! + +Ergueu-se abraçado ao thesoiro, tranzido de medo, suando frio. E depois, +espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne +nos esgalhos, cahindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e +levantando-se logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do +grito, que, ameaçador, o perseguia. + +E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem +sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara. + +Quando o luar começava esmorecendo, ajoelhou, meio desfallecido, e +com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova funda, onde, com esgares +de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, d'onde estava d'antes. +Tapou tudo e, por instincto de precaução, puxou-lhe os fetos para cima. +E abalou outra vez. + +Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo, com os +cabellos agarrados ás faces gotejando sangue, ardendo em febre. +Deixou-se cahir no catre nojento. + +O dia rompia sereno. O vento abrandára e só por detraz da serra é que as +nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paizagem, em que +destacavam alvejantes as casarias. O sol erguia-se esplendido, enchendo +os campos de joias scintillando no escrinio de verdura. A aldeia +acordára n'um banho de luz, cheia de bulicios, de cantos de gallos e +risos de crianças. Pelas chaminés subia uma columnasinha de fumo +azulado, transparente, que a enchia do cheiro bom, alegre, do pinho +queimado nas lareiras, aquecendo os almoços. + + * * * * * + +Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delirio, +apenas intervallado por curtos somnos cheios de pesadelos, um pesadelo +ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquella noite agitada. + +Viu-se percorrendo o pinhal immenso, que gemia e dançava lugubremente, +estorcendo-se no temporal como um condemnado na fogueira. Lembrou-se do +grito que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas +despegadas do sabugo, o corpo cheio de nodoas negras, os joelhos +escalavrados. + +Mas onde enterrára o seu oiro? + +Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o +sitio, a forma d'algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no +catre, rasgando com as unhas lascadas a carne magra do peito, +tremulo, suando frio. + +Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a +bocca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas ás +portas das casas, vigiando os pequenos, que brincavam no riacho, +tostando ao sol os ventresinhos redondos e as cabecinhas loiras. + +E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali +fóra! Ali estava o seu thesoiro, ali debaixo d'uns fetos, cujas hastes +se abriam á sombra d'uns pinheiros, fetos e pinheiros todos eguaes +n'aquella immensidade! + +Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu +encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a +mão pela testa com gestos de desespero, como tentando arrancar do +cerebro a loucura, que, pouco a pouco, o invadia! + + * * * * * + +Quasi noite foi dar á choça do rachador. + +Lembrou-se então que d'ali partira o grito que o amedrontára e, +escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando: + +--Ladrões! Ladrões! + +No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos, +pallida, mirrada, as mãosinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita +velha de seda roxa. + +E o pae e a mãe, ao lado do cadaver do filho, choravam mansamente. + +O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo ultimo vislumbre da +razão. + +Recuou instinctivamente e foi cahir sobre um grande molho d'achas, +dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgaseados, doido de todo e +para sempre. + +E por deante d'elle passavam bandos alegres de pintasilgos fugindo para +os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que elle deixára +nas silvas do pinhal, em quanto os gaios contentes, aquecendo-se ao +ultimo raio de sol d'aquella tarde de primavera, soltavam, pulando de +ramo em ramo, grandes gargalhadas ironicas. + + + + +AD ASTRA + + +Quando o tio Bernardo, deitando o barrete de pelles para o lado, +começava a apontar para o tecto as nuvens de fumo do negro cachimbo de +gesso, escusado era falar-lhe; só rosnava em resposta um dito de mau +humor ou, quando muito, um disparate. Estava pensando no Brazil, no seu +Brazil, como lhe elle chamava. + +E era tratar de não fazer bulha, emquanto elle, sorrindo para os +florões do tecto, recordava scenas da mocidade, temporaes vencidos pelo +arrojo, amores de mulatas, muito ouro ganho n'um só bafejo da sorte. + +--O tio Bernardo está no Brazil, diziamos nós baixinho. + +E, quando o cachimbo se lhe apagava, olhava para nós a rir, sacudindo a +cinza na unha rugada e negra: + +--Cá me embarquei eu outra vez! Demonio de tabaco! Este diabo vem de +lá... Não sou capaz de fumal-o sem que logo me ponha a sonhar... Estava +pensando agora... + +E começava uma historia por nós ouvida mil vezes. Eu e minha irmã +sahiamos nos bicos dos pés, e elle concluia-a, dirigindo-se a minha mãe, +que sentada na poltrona de tabúa, já sem feitio, pouco a pouco adormecia +serenamente. + +É com lagrimas nos olhos que, depois de tantos annos, me recordo d'esses +tempos. + +A nossa casa era a mais risonha de toda a villa. + +Ainda me alegra relembral-a, no alto dos rochedos, sobranceira ao mar. +Muito pequena, mas sempre muito caiada, davam-lhe certo ar as gelosias +verdes das janellas. Tinha em volta uma cercadura de ninhos, e todas as +manhãs, no verão, acordava ouvindo cantar as andorinhas. + +No inverno era mais triste. Quando havia temporal, as ondas salpicavam +os vidros e minha irmã pequenina, assustada como um pardal, escondia a +cabecinha loira debaixo do chaile de minha mãe, que, sentada á lareira, +lembrando-se do marido e do filho mais velho, que andavam sobre as aguas +do mar, resava o credo em cruz. + +Não eramos dos mais infelizes; nunca soube o que era miseria. Depois que +o tio Bernardo chegou, houve até sempre, lá em casa, um certo luxo, uma +certa despreoccupação pelo dia seguinte. + +É que o tio, além de vir dono d'um cahique, trazia comsigo uma +caixinha de ferro cheia até cima de muito boas libras. + +Meu pae, que viera com elle como piloto, pouco tempo se demorou comnosco. + +O tio Bernardo disse-lhe, uma noite, depois da ceia: + +--Olha, irmão; o que ali está... (e apontava para a tal caixinha) o que +ali está chega-me para aqui poder acabar socegadamente os meus dias. +Sabes que mais? Dou-te de presente o cahique. Não tenhas cuidado na +mulher e nos filhos. O teu mais velho tem quinze annos; que vá comtigo. +Vai, e sê tão feliz, como eu fui. + +Era sina de todos--o mar. Os mais desgraçados eram pescadores; os outros +quasi todos partiam para o Brazil; alguns voltavam pilotos, alguns +commandando por sua conta; eram os mais felizes. Alguns tambem... nunca +voltavam. + +E era a lembrança d'estes que tornava tão triste a lareira nas longas +noites de inverno, quando uivava o temporal. + + * * * * * + +Um dia parti para a escola um bocado mais cedo que o costume, porque no +quintal do padre prior, tinha visto uma figueira deitar por cima do +muro, para o lado do caminho, um dos ramos todo cheio de figos brancos, +tentadores. + +O mestre, ou porque desejasse lisongear o tio Bernardo ou porque na +verdade eu me atirasse ao estudo um pouco mais que os outros, quando ao +domingo, depois da missa, nos encontrava a passear na Praça, nunca +deixava de me dizer, tocando-me com dois dedos na cara: + +--Ah! que se o tio quizesse... havias de ir longe. + +Eu não sabia bem o que elle queria dizer com aquelle _ir longe_. +Lembrava-me logo do Brazil. Mas porque motivo eu e não os outros? + +N'aquelle dia, quando já de vara na mão me dispunha a roubar quatro +figos ao prior, ouvi de repente a voz de meu tio. Senti um calafrio pela +espinha. + +--Olá, rapaz! que andas por ahi a mariolar, em vez de ires direito para +a escola? + +Voltei-me todo assustado e vi-o á janella do prior, que, felizmente para +mim, desatou ás gargalhadas. + +--Espera ahi que te quero falar. + +Esperei, mas quando chegou ao pé de mim, apesar de elle nunca me ter +batido, com as duas mãos tapei as orelhas e a nuca. + +O tio Bernardo poz-se a rir. + +--Não tens vergonha...! + +Começou andando ao meu lado muito depressa. Ás vezes parava limpando o +suor. + +--Sabes o que vou fazer? perguntou-me. Vou ver se o teu mestre diz +verdade. Quero um dia assistir á escola. + +Tremeram-me as pernas. Se ainda depois de me ter apanhado a roubar os +figos, me fosse ver a atrapalhar-me á pedra! Fiz a promessa d'uma véla +de cera á Senhora dos Milagres e, com mais alguma confiança, entrei na +escola e fui pedir a bençam do mestre. + +Chegámos um nadinha tarde. Estava o Patricio á pedra. + +O tio Bernardo fez um signal para que ninguem se incommodasse e +sentou-se ao pé do professor. Eu caminhei gravemente para o meu logar. + +O Patricio, coitado, que estenderete! + +Parece-me ainda estar a vel-o com as calças de quadradinhos, remendadas, +muito curtas, a barriguinha muito redonda, o que lhe dava um +aspectosinho grave, a camisa de panno cru aberta sobre o peito, e dois +bocados de ourelo a servirem de suspensorios. Com as mãos nas +algibeiras, os olhos muito injectados, e as azas do nariz a tremerem, +ouvia contendo o mau genio, a rabecada do mestre. + +Não foi nunca dos mais felizes, coitado! Por ali ficou sempre. Tem +quatro ou cinco medalhas ao peito e todos os dias a fome em casa. + +--O senhor... disse o mestre apontando para mim. + +Ergui-me e, pegando no giz, acabei com desembaraço a conta, que tanto +atrapalhava o Patricio. + +--Muito bem. Tire a prova dos nove. É o que eu digo, murmurou, quando +acabei. Has de ir muito longe. + +O tio Bernardo pediu ao mestre que me fizesse mais algumas perguntas. A +todas respondi com muito animo e desembaraço. + +--D. Affonso Henriques, o Conquistador, D. Sancho I, o Povoador, D. +Affonso II, o Gordo... + +A historia toda. + +--Muito bem. Pode sentar-se. + +O tio levantou-se, dizendo-me: + +--Estou contente comtigo, rapaz. + +E sahiu. + +Ao jantar reparei que o tio Bernardo e minha mãe deviam de ter falado a +meu respeito. Apenas eu abria a bocca, olhavam um para o outro e tossiam +com certo ar misterioso. Minha mãe teve alternativas de alegria e de +tristeza. + +Quando a via rir, pensava: + +--O tio falou-lhe na lição. + +E, quando a ouvia suspirar, lembrava-me dos figos. Se ella soubesse...! + +Quando o jantar acabou, o tio Bernardo chamou-me e disse-me: + +--Ouve cá. Tu tens uma cara seria e o teu mestre, que deve ser n'isso +entendido, diz que aqui dentro tens mais alguma coisa do que os outros. + +E batia-me com os nós dos dedos na cabeça. + +Eu estava radiante de alegria. + +--Além d'isso tens os pulsos muito fraquitos, e isso é o diabo para um +homem do mar. + +A conversação tomava de repente para mim um caminho inesperado. Se os +pulsos eram fracos, e isso era o diabo para um homem do mar, que me +importava o que o mestre dizia que eu tinha dentro da cabeça? + +Olhei para minha mãe. Minha mãe sorria. + +--Ainda agora, continuou meu tio, estive a conversar com o padre prior a +teu respeito. Aquillo é que é vida, meu filho: padre! + +--Não quero! respondi, dando um murro em cima da mesa. Não quero ser padre. + +--Ninguem te obriga, rapaz. Ha outras vidas tão boas ou melhores até. +Medico, por exemplo. + +--Não quero! + +E, desviando os olhos para o lado da janella, vi lá onde o céo vai dar +um beijo no mar, uma velasinha alvejando, que me pareceu do meu partido +e a gritar-me lá de longe: + +--Fazes muito bem. Não queiras ser medico, não queiras ser padre. Olha +para mim. Cá dentro vai a ventura! + +--Pois não queiras! gritou meu tio. + +E começou a passear pelo quarto, puxando grandes fumaças. + +Eu, espantado do meu atrevimento, tinha baixado tristemente os olhos +e, muito amuado, coçava a cabeça. + +--Lá no collegio, tens tempo de sobra, para te resolveres, disse meu tio +porfim, parando deante de mim. Ámanhã vais comigo para Lisboa. + +Lisboa! + +Soou-me o nome aos ouvidos como palavra magica. + +Lisboa! Ia partir para Lisboa, que nunca tinha visto, mas cujo só nome +me despertava na imaginativa sonhos encantadores, prodigios de riqueza, +mansões de fadas! + +Ergui a cabeça, tão cheio de alegria, que até me puz a rir de rijo! + +Olhei para minha mãe. Coitadinha, chorava. + +--Vamos, disse o tio, batendo-me com a mão no hombro. Vai vestir o teu +fatinho preto, que tens que despedir-te desta gente! + +Lisboa! Lisboa! + +Eu bem via as lagrimas da minha mãe, mas este grito da minh'alma +calava-me o coração. + +Fui despedir-me do mestre-escola que, adeante de todos, me deu um +valente abraço, dizendo-me: + +--Continua assim, meu rapaz. _Sic itur ad astra!_ + +Eu, muito envergonhado, para fazer alguma coisa, bafejava a palla do +bonnet e limpava-a depois á manga da jaleca. + +Ficou-me o latinorio no ouvido. Annos depois encontrei-o... Boa vontade +não te faltava, querido mestre! + +Á noite, depois da ceia, o tio Bernardo julgou dever discursar. + +--Quando ás vezes me esqueço para ahi horas inteiras a fumar cachimbo, +vocês põem-se a rir e dizem: «Lá está o tio Bernardo no Brazil!...» Pois +bom é que saibas, antes que o aprendas á tua custa: nem tudo são rosas +na vida. E no mar os espinhos são muitos. A gente volta, chega a casa, +esquece tudo. Quantas vezes o diabo não levou a cardada! O que +passou, passou; olha a gente para traz e só vê aquillo de que tem +saudades: por isso nunca falo de fomes, de privações, de perigos... Não +te dê desgosto não ser homem do mar. Andar sobre as ondas é tentar a Deus. + +Não sei que mais me disse ainda o tio Bernardo para me provar que, desde +que eu voltava costas ao Oceano e marchava para Lisboa, era o ente mais +feliz do mundo. Bem lhe dispensava o sermão. Já me via homem, voltando +para a terra, de relogio e breloques, apertando na praia, depois do +banho, as mãosinhas das senhoras, fumando o meu charuto, tratando o +administrador por _tu_ e o prior por _você_. + +--Agora, rapaz, vai deitar-te e pede a bençam á tua mãe. + +Então, não sei porquê, senti de repente um nó na garganta e eu, que tão +pouco me lembrára d'ella, foi a soluçar que lhe cahi nos braços. Ella +apertou-me contra o peito, muito, muito, até me fazer doer, e +dando-me um beijo muito longo, disse-me um adeus tão sumido, tão +sumido que quasi o não ouvi. + +No dia seguinte, ao romper da manhã, eu e o tio Bernardo, ambos na +almofada da diligencia, partiamos caminho de Lisboa. + + * * * * * + +Quando, depois de bacharel e de muito tempo gasto a escrever cartas e +procurar empenhos, consegui finalmente ser admittido como amanuense nos +proprios nacionaes, telegraphei a minha mãe, ou que na resposta me +participou a chegada de meu pae. + +Não se calcula a alegria com que parti. + +Havia trez annos que não via o querido velho, que só de longe em longe +vinha a Portugal matar saudades. + +Estavamos então no principio do inverno e um denso nevoeiro espalhava-se +sobre o mar. Ainda longe da villa, já ouvia o sino da Senhora dos +Milagres tocando afflictivamente para indicar o porto aos que andavam fóra. + +--O José Sacrista, coitado, disse-me o cocheiro, tem o filho lá no mar e +desde hontem de manhã que está agarrado á corda do sino. + +Foi talvez o nevoeiro, ou foi aquelle sino tão afflicto, ou talvez dó do +sacrista, que fez com que me apeasse da diligencia, levando oppresso o +coração. + +No caminho de casa encontrei o mestre-escola que me veio abraçar todo +tremulo, cheio de brancas, abordoado a uma bengala. + +--Parabens, muitos parabens. Eu bem te dizia. + +Não pude deixar de sorrir-me. + +--Que pena, continuou, vires em occasião tão triste! + +--O que? + +--Não sabes?... Valha me Deus! O tio Bernardo... + +--Morreu? perguntei ancioso. + +--Não, felizmente ainda não. Venho de lá agora. Mas está tão mal... + +Não ouvi mais e desatei a correr. Estavam todos reunidos no quarto do +tio. Quando entrei, abriu os olhos e disse: + +--És tu! ainda bem que vieste. Deu-me o caruncho. Tinha pena de morrer +sem tornar a vêr-te. Já sei que estás amanuense. Sou um homem rude, não +sei o que isso é; mas deve ser... muito! Foste longe. + +Esteve um momento calado, respirando a custo, e depois continuou: + +--O teu irmão foi menos feliz. Nasceu forte, foi para o mar. O teu pae +já está farto de andar por esses oceanos e deu-lhe o cahique. + +Olhei para meu irmão. Estava herculeo. Uma barba negra, muito espessa, +descia-lhe até meio do peito. Um pesado grilhão de oiro cahia-lhe do +pescoço até ao ventre redondo. Meu tio fitou por um instante em mim os +olhos já embaciados, e sorrindo: + +--Olhem que mãosinhas! Não vivias no mar dois dias. Tive rasão. +Emfim, graças a Deus, fiz todos felizes. + +Fechou os olhos e esteve assim por muito tempo, arquejando. Quando +tornou a abril-os, procurou-me com a vista: + +--Tenho pensado muito em ti... Como é o latinorio do mestre? + +Não sabia o que elle queria dizer... Depois lembrou-me de repente. + +--_Sic itur ad astra._ + +--_Ad astra, ad astra!_ repetiu machinalmente. + +E, com os olhos vidrados fitando os florões do tecto, ficou-se a sorrir, +como se Deus o houvera levado para um Brazil ideal. + + + + +O VENTURA + + +Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não havia carreiras +de vapor. Faziam apenas concorrencia aos catraeiros de Belem os omnibus +immensos da Companhia, que de meia em meia hora passavam, chocalhando +por aquella estrada fóra até ao Pelourinho, uns vinte passageiros, a +seis vinténs por cabeça. + +A vida de barqueiro não era então das peores; e o José da Anastacia +com o seu bom genio constante e o sorriso obsequiador, em que mostrava +os dentes amarellados pelo tabaco, quasi da côr do rosto requeimado +pelas soalheiras do Tejo, conquistára as sympathias de muitos, que +preferiam o bote d'elle e a viva conversa do algarvio, á velocidade +pacata dos churriões da Companhia. + +Era vel-o quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do +Paço a familia do Conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o +bote, arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portugueza, dadiva +das meninas, e que fluctuava lá no alto, no angulo da véla, com mais +donaire e, com o ser pequena, com mais orgulho que a bandeira branca de +cruz vermelha d'uma náu da India. + +O Conselheiro, muito amigo d'elle, nunca lhe chamava senão o Ventura. +Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando sentado ao leme, com +a mão junto aos sobrolhos e os olhos piscos por causa do sol, todo +cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a +fluctuar lá em cima, e a prôa do bote, um pouco tombado, riscar o +espelho azul, em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas +Bailadeiras, junto ao Pontal de Cacilhas. + +E os véos azues das filhas do Conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo +vento. + +Á volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para +entreter, contava historias e fazia reflexões, que as meninas +approvavam, meneando lentamente a cabeça, sentadas uma de cada lado do +barco, fitando os olhos nas margens do Tejo que deslisavam lentamente. E +elle, fincados os pés no banco deanteiro, de mangas arregaçadas, +deixando ver os musculos possantes dos braços cabelludos, duros como +seixos e palpitando com o esforço, sorria n'uma felicidade santa e +levantava compassadamente os remos, d'onde cahiam enfiadas de +perolas, que os ultimos raios do sol cravejavam de pontos luminosos. + +A Anastacia, uma velhinha, que morava n'uma agua furtada, quasi ao cimo +da Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava +em casa, atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na +cabeça do filho com ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta +grenha emmaranhada, beijava com ancia, mil vezes, sobre os cabellos +seccos e duros, o amparo querido da sua viuvez. + +Elle, um homemzarrão com vinte e tantos annos, adormecia, logo depois da +ceia, com a cabeça reclinada no collo da mãe, cançado, mas feliz, +contente n'aquelle ninho. + +--José, vamos, acorda, dizia ella, dobrando o serão, quando na torre da +Boa Hora batiam vagarosamente as dez. + +O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de somno. + +--Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião! + +Com os olhos meio cerrados, encandeado, dirigia-se então para o quarto, +murmurando: + +--Sua bençam, minha mãe. + +E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim. + + * * * * * + +Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali +fóra, até Monsanto. + +Ia passeando devagarinho. + +O vento soprava do noroeste. Ao meio dia tinha dado aquella volta, e o +José achava-lhe geitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao +cimo da serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas cahindo d'alto, +lá por detraz, ao pé da Costa. + +Diabo do inverno! Começava cedo. + +O sol descia. O José parou um bocado a vel-o mergulhar na espuma. + +Começou soprando mais rijo o vento, e, quando o sol desappareceu, +fechava o horizonte uma lista negra, franjada de oiro, que ameaçava +engrossar. + +Pois paciencia! Felizmente lá estavam na gaveta as economias do verão. +Todos os annos havia inverno e na casa d'elle nunca houvera fome, graças +a Deus. + +E o José levou a mão ao barrete. + +Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava-lhe pela porta +dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a elle nada lhe +faltava e a muitos faltava tudo. + +Lembraram-lhe então certas historias. Aquella mulher a quem uma vez +alugára o bote, porque a encontrára a chorar no Largo. Tinha deixado os +filhos sósinhos em Caparica e estava ali com um vintem na algibeira; e +elle alugára-lhe o bote pelo vintém, que acceitára, porque não queria +envergonhal-a. E outra vez que elle se escondeu para o Conselheiro o não +ver e alugar o bote ao tio Matheus, que havia dois dias não trabalhava e +tinha a filha doente em casa, a tossir, a tossir, e elle sem +dinheiro para lhe comprar o caustico? + +Havia tanta pobreza! + +Elle nada lhe faltava e até na algibeira trazia quasi sempre uns cobres, +para o que desse e viesse. + +E como levava sede, entrou n'uma taberna e pediu dois decilitros. + +O taberneiro tinha sahido. Foi a filha quem veiu servir. + +O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe +trouxe o copo trasbordando, deixando cahir no pires de barro grosso, +branco, riscado de azul, um pouco de vinho em que ella molhava a unha do +pollegar. + +Para o gosto d'elle nunca vira mulher assim! + +Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada: + +--Muito obrigado. + +E ficou-se a olhar para ella, um pouco apatetado, querendo falar e não +lhe occorrendo nada, sentindo como que um nó na garganta e um véo +no entendimento, que o apouquentavam. + +Era uma rapariga alta, magra, de cabellos castanhos muito finos, muito +compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco +branquissimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar d'uma pequena +quebra; a bocca um quasi nada grande, com o beiço interior saliente, e +uns olhos azues escuros, que entonteceram o José, quando n'elles demorou +os seus. + +Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada tambem +pela ingenua admiração que percebia causar áquelle homem, lavava os +copos n'um alguidar de zinco posto em cima d'um mocho, e collocava-os +depois na prateleira de pinho pintada de azul, virando para o ar os +fundos, onde, como aureolas, se alastravam grandes nodoas roxas rebeldes +á limpeza. + +A noite vinha-se approximando. A taberneira raspou um fosforo na +prateleira e, desviando a cara dos fumos do enxofre, accendeu o +candieiro de petroleo. + +--Muito boa noite, disse. + +--Boa noite, respondeu o José, erguendo-se um pouco. + +E nunca musica para elle valêra aquella voz. + +O vento fóra soprava rijo e o ramo de loiro á porta raspava na parede. + +O José levantou-se e abriu o saquinho d'algodão. Com voz sumida pediu +por favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem +se atrever a mais palavra. + +Por toda a estrada veiu pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente +fixada na memoria, e até nas mais pequenas particularidades, uns +signaesinhos espalhados pelo nariz e um outro sobre a palpebra um pouco +mais accentuado. + +E repetia mentalmente, muito enlevado, as unicas palavras que lhe +ouvira:--«Muito boa noite. Muito boa noite.» + + * * * * * + +A mãe extranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como +costumava, pregou os olhos no tecto, e ficou-se a mascar um bocado de +charuto, a mascar, ora serio, ora sorrindo a alguma imagem que +entrevisse, como quem faz castellos no ar, que os vê cahir de repente e +logo erguerem-se mais alto. Nem sequer reparou nos olhares +prescrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe lançava por cima dos +oculos. + +Mas de repente a pobre Anastacia deu-lhe o coração um baque. E ella que +nunca se lembrára d'aquillo! Pois não era certo que tarde ou cedo havia +de acontecer? + +E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passára, murmurou +com os olhos embaciados: + +--Queira Deus que seja para bem. + +O José encarou-a, despertado por aquella voz. + +Ergueu-se e approximou-se da janella, que abriu. + +O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. +Grossas cordas d'agua entraram no quarto. + +--O inverno! disse elle, fechando a janella. + +A velha encolheu os hombros. + +E depois, com certo ar malicioso, já conformada: + +--Ainda agora para ti começa a primavera! + + * * * * * + +Pouco tempo durou. + +Uma noite, o José sentou-se tristemente á prôa do bote e remou devagar +para o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, traçando a +perna, fincando a barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. +Poz-se a olhar, sem as ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as +nodoas escuras dos navios brilhavam como lentejoulas no panno negro +dos caixões. Estava triste o José naquella noite. + +E quando reparou, á pôpa do barco, na alcunha d'elle--Ventura--pintada +em grossas letras brancas sobre uma variegada rosa dos ventos, sorriu +amargamente e murmurou com ironia:--Ventura! + +O bote arrastado pela vasante passou para além da Torre, e o José perdeu +de vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um +candeio baloiçando-se sobre a facha projectada, tremeluzente. + +Que tristeza aquella! + +O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. +Fazia frio, e o Ventura encharcado, tremia. + +De repente, o candeio desappareceu. Então o José ergueu-se, pegou +novamente nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado +de Lisboa, arquejando, como a fugir d'um perigo. Mas de novo deixou +cahir os braços, em grande prostração, e a cabeça inclinou-se-lhe sobre +o peito. O bote virou devagarinho e continuou em seu caminho fatal. + +O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da Torre de S. +Julião parecia examinal-o com uma grande curiosidade idiota, nunca +satisfeita. O bote passou entre os dois faroes. + +As ondas marulhavam de encontro ás bordas do barco, e a musica d'ellas +era triste como o coração do Ventura. + +E fôra o Conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrára o primeiro +espinho! + +Ao principio corrêra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais +que todos o Conselheiro. + +--Nada! dizia elle ao Ventura, batendo-lhe com a mão no hombro. Estes +progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um bello dia... + +--Zaz!... Pum!... concluia José, rindo muito e imitando com os braços um +grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar. + +E, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o +Conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a +reboque, muito coxas com as botas curtas, fazendo todos signaes +desesperados com os chapéus de chuva para o vapor que apitava, prompto a +largar. + +Bem lhe tinha dito o pae da Maria Eduarda: + +--Muda de vida, José, ou prégo-te a peça. + +E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham +pregado a peça ao Ventura. + +Foi n'um dia em que o catraeiro, pelo maior dos acasos, tinha ganho dois +tostões. E, em vez de os entregar á mãe, foi á loja da esquina comprar +um collar de contas para levar á namorada. + +--Está cá, menina Maria? perguntou da porta com o coração a bater. + +--Sahiu, respondeu lá de dentro a voz do pae. Queres-lhe alguma coisa? + +--Nada, respondeu. + +E ficou encostado á porta, esperando a noiva. + +Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam, +bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver. + +E o Ventura á porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome. + +--Olá, _seu_ Manuel Joaquim, disse entrando alegremente na taberna um +cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das orelhas, +cara escanhoada, chapéu de capa d'oleado deitado para traz. Já vieram as +senhoras? + +--Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse á mãe que haviam de +voltar cedo por você cá vir... _Seu_ maroto!... + +--Ó _seu_ Manuel Joaquim!... Eu cá dou-lhe a minha palavra... + +--Mau! mau! + +E, largando as Sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao +ouvido: + +--Olhe que a ceia está prompta e tenho ali uma pinga...! + +O Ventura á porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos, +escondia o pé descalço atráz da perna nua e torcia nas mãos o barrete de +lã esboracado. + +E logo voltando, n'um desespero, atirou ao chão a caixa do collar. E as +contas de vidro foram adiante d'elle saltando por longo tempo, fazendo +uma bulha alegre de gargalhadinhas trocistas. + +E a mãe áquella hora tinha fome...! E fôra talvez a fome que a matára! + +Lá estava enterrada na valla dos pobres, lá muito longe, por detraz +d'aquelles montes, que a lua a nascer, espargindo uma baça claridade, +azulava docemente. + + +Estavam fóra da barra, o mar estava picado e o Ventura tremia. + + * * * * * + +No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além +de S. Julião, um bote abandonado, que tinha á poppa escripto n'uma +variegada rosa dos ventos o nome do Ventura. + +E quando soube da triste nova, emquanto aos olhos das filhas subiam +saudosas e sentidas lagrimas, o Conselheiro, gravemente, lembrando-se do +pouco tempo que durára a primavera do José, citou as rosas de Malherbe. + + + + +O PRIMEIRO SORRISO + + +Mal se tinham accendido as luzes no Colyseu, quando elle entrou +devagarinho, triste, um pouco asmatico, meneando a cabeça pallida. + +Parece que mais lhe pesava a corcunda n'aquella noite. + +Andando pelo corredor estreito, que divide os camarotes dos logares mais +baratos, foi encostar o queixo á teia de pinho, pintada de branco, +junto do caminho atapetado, que a cantora devia seguir do camarim para o +palco. + +Era uma artista celebre a que se estreava. Com oito dias de antecedencia +tinha-se espalhado com profusão pela cidade, collado aos vidros das +portas dos armazens de musica, pendurado em quadros ás esquinas das +ruas, o retrato lithographado de mademoiselle Eva d'Avenay. + +Um dia, o corcunda, passeando depois do jantar, como costumava, pela rua +do Oiro, erguendo a cabeça, deu, de subito, com um d'aquelles retratos +na loja d'um livreiro. + +Parecido ou não, representava uma mulher lindissima. + +Ficou extatico um momento; sentia tremer-lhe o coração um pouco, e como +que dois dedos apertarem-lhe amorosamente a garganta. + +Entrou envergonhado, e com voz sumida perguntou ao caixeiro se aquillo +se vendia. + +--Um tostão. + +Elle que nunca olhára para mulher senão cá de muito baixo, coitado, +assentando no meio da espinha as abas do chapéu, que (facto pouco +vulgar) por detraz é que amolleciam, podia finalmente, por um tostão +(barato!) contemplar uma mulher bonita á vontade, sentado commodamente, +sem ser visto e sem ter de córar. + +Quando sahiu da loja, levando na mão o rolinho de papel pardo, que +embrulhava a lithographia, caminhou mais depressa, quasi alegre, menos +asmatico. + +Chegou a casa, desdobrou o retrato sobre a mesa, encostou n'ella os +cotovellos, e, com as fontes apertadas nos punhos cerrados, passou parte +da noite em contemplação da extranha formosura. + +Parecia-lhe que afinal aquella mulher tinha que reflectir para elle uma +parte de tanto amor, que todo lhe estava dando e que era o primeiro que +sentia. + +Desejos haveria tido, mas amar... Quem? Se, quando passava, todos +se riam e ninguem, ninguem, jámais sorrira para elle! + +Quando recordava tempos longinquos, via, como atravez d'um nevoeiro, uma +mulher a quem elle estendia os bracinhos magros, que se lhe debruçava +sobre o pequenino berço--tão pequenino!--e que o envolvia n'uma +atmosphera de amor, beijando-o muito. Mas essa mulher tambem não +sorria... chorava. + +Chorava naturalmente de vel-o tão fraquinho, tão feio, tão infesado. Se +o visse agora, cheio de rugas precoces, com os cabellos alvejando-lhe +nas fontes, e triste sempre, sempre tão triste! + +Por isso contemplava aquelle retrato, como se fôra possivel aquella +mulher loira, voltar a cabeça no papel e enviar-lhe, só para elle, +aquelle sorriso que, por todas as esquinas, por toda a parte, ella +enviava... para quem?--para coisa nenhuma; que o retrato era a tres +quartos e ninguem sabia para onde olhava. + + * * * * * + +Os porteiros, cada um á sua porta a receberem os bilhetes, cantarolavam +os bocejos e assoavam-se com estrondo para espertar. O theatro +continuava ás escuras. + +Um homem gordo entrou devagar, com as mãos nas algibeiras do collete, +assobiando por entre dentes. Sentou-se, deitou as pernas para cima da +cadeira que lhe ficava defronte, poz o lenço entre o pescoço e o +collarinho, e, tirando um palito da algibeira, poz-se a espalitar os +dentes, com um ar massado. + +Duas ou tres filas mais adiante, um outro abanava-se pachorrentamente +com o chapeu, virando um bocadinho a cara para lhe ir o fresco ás orelhas. + +Conheciam-se e começaram conversando em voz alta: + +--Olá, Conselheiro! Então tambem deitou até cá? + +O homem gordo encolheu os hombros. + +--Não ha mais nada que fazer! + +E depois de espalitar um bocado: + +--Que isto cheira-me a fiasco. + +--Ora! disse o outro com ar convencido e para estar de acordo. A tal +mulher... + +--A gente cai em cada uma...! terminou o Conselheiro. + +E, encostando a cabeça para traz, deu largas a um bocejo formidavel. + +Um arrumador, que passava n'aquelle instante, sorriu-se aduladoramente, +curvando-se muito. + +--Senhor Conselheiro... + +--Adeus, _seu_ José. + +E fechou os olhos, como se estivesse dormindo. + +Ah! se o corcunda não andasse tão rasteiro, se não fosse tão fraquinho, +como perguntaria áquelle homem, frente a frente, com que direito +bocejava, quando elle estava ali sentindo o coração a estalar-lhe no peito! + +Os musicos com os instrumentos dentro de saquinhos de chita, +começaram a entrar, limpando o suor, resmungando arias, espreguiçando-se. + +Deram oito horas. Chegaram umas carruagens a trote largo. O theatro +encheu-se rapidamente. + +Ouvia-se o sussurro das conversações e o ranger das varetas dos leques. + +Os logares junto da teia, a que se encostara o corcunda, eram da +predilecção de muitos; pouco a pouco foram-o empurrando, e elle +apertado, afflicto com a asma, que logo o atacou violentamente, ouvia +por detraz umas risadinhas zombeteiras. Sentiu n'uma orelha bater-lhe +uma bolinha de papel. Um velho mal encarado, ao lado d'elle, estava de +figa feita. + +E resignado, agarrando-se aos balaustres da teia, esperava que fosse +aquella noite a primeira feliz da sua vida. + +Abriram as torneiras do gaz e a luz jorrou de repente. + +Houve um sussurro maior. Muitos, que ainda se não tinham visto, +cumprimentaram-se. Os elegantes das cadeiras apontaram os oculos para os +camarotes e começaram tirando os chapéus. + +O theatro transbordava. + +Os musicos afinavam os instrumentos. Ouviam-se por entre as variações +alegres da flauta as notas harmonicas das rabecas. O homem dos timbales +batia notas surdas com a mão esquerda e apertava com a direita as +escaravelhas. + +Afinal entrou o regente, de casaca e gravata branca, cumprimentando os +collegas, emquanto descalçava a luva. + +Bateu na estante e ergueu alto o braço. + +Houve uns _schius!_ assobiados por alguns amadores, que a toda a salla +impuzeram silencio. + +O regente olhou para todos os musicos, demorou-se um instante e depois, +descrevendo com a batuta um quarto de circumferencia, fez signal ás +rabecas, que logo começaram tocando muito piano, em unisono. + +Era com certeza mademoiselle Eva d'Avenay quem ali attrahia a maior +parte dos espectadores. Os conversadores pouco a pouco foram elevando o +tom e, como as rabecas sósinhas continuavam tocando pianissimo, havia o +que quer que fosse fantastico n'aquelle maestro de grande cabelleira +cahindo-lhe até á golla da sobrecasaca, elevando alto, muito alto, a +batuta, e deixando depois cahir o braço a tremer, a tremer, commandando +uns arcos que se mexiam como puchados por um só homem, mordendo cordas +que não tinham som. + +Decididamente o corcunda suffocava. + +De repente, a um signal energico do regente, os metaes vibraram enchendo +a sala de notas alegres, vivas, que n'um instante, como por encanto, +cortaram as palestras. Foi um relampago de alegria. O regente sorriu-se +delicadamente e as rabecas continuaram sósinhas no meio da distracção +geral. + +Um gaiato gritou lá de cima: + +--Muito bem! + +Tinham acabado felizmente. + +A respiração do corcunda era um apitosinho. + + * * * * * + +Instantes depois, corria-se uma cortina e encaminhava-se para o palco +mademoiselle d'Avenay. + +Houve um sussurro admirativo. Muita gente ergueu-se. Ouviram-se vozes: + +--Abaixo! + +Ella, já no palco, sorria impassivel, cumprimentando o publico, olhando +em volta, muito serena. + +Alguns enthusiastas davam palmas. + +O Conselheiro olhou para o amigo e fez-lhe uma cara como quem diz:--de +truz! + +O regente muito amavel curvou-se para a cantora e fez-lhe baixinho uma +pergunta. + +Respondeu que sim, muito risonha, muito amavel. + +As rabecas preludiaram. + +Ella concertava o decote e alisava o cabello na testa. + +Era uma mulher em todo o esplendor da belleza dos trinta annos, de +elegancia distincta e intelligente, alta, com o busto quebrado um pouco +na cintura, o peito forte, braços admiraveis, hombros muito redondos, e +nas costas, bem ao meio, uns dois ou trez signaes, que pareciam ter-lhe +sido dados, de caso pensado, pela natureza, para que ninguem julgasse +que aquelle busto era de marmore. Os olhos azues tinham um olhar +profundo e os cabellos loiros e finos emmolduravam uma testa muito lisa, +como de virgem de quinze annos. + +Quando cantava, a bocca sympathica, fresca, sorria sempre, alegrando-se +aos cantos com duas pregas infantis. + +Do logar onde estava, o corcunda via-lhe o perfil sereno, a longa trança +doirada e todo o vulto branco salientando-se na massa escura dos +espectadores agglomerados nos degraus em amphitheatro do outro lado da +sala. + +Quando ella acabou de cantar, toda a platéa applaudia, delirante. + +O corcunda bem queria dizer--bravo! mas sumira-se-lhe a voz. + +Mademoiselle d'Avenay cantou tres vezes n'aquella noite e o delirio +crescendo sempre! + +Agradecia muito reconhecida, pondo a mão no peito, fazendo ranger a seda +do vestido. + +Já os musicos se tinham retirado, já o illuminador começava fechando as +torneiras do gaz e ainda novas ovações eccoavam na sala. + +Ella tornava a subir ao palco, agradecendo, muito amavel, sorrindo como +no retrato, para o ar, para coisa nenhuma. + +E por onde passava deixava no rasto um cheiro forte, bom, que embriagava +o corcunda. + + * * * * * + +Achou-se afinal sósinho. + +Umas familias, que se tinham encontrado á sahida, conversavam, +emquanto as senhoras vestiam os chailes e os homens accendiam os cigarros. + +Que fazia ali o corcunda? Viera na esperança de que essa mulher ideal, +como elle não sonhara poder haver no mundo, reparasse no pobre verme e +do seu pedestal lhe fizesse a mercê d'um olhar. + +Mas nem ella o vira, nem elle pudera ajudar á ovação. Bem tinha deitado +os bracinhos por entre os balaustres para applaudir; se não fosse a +asma, teria gritado: bravo! mil vezes. Mas se era tão fraquinho...! + +Estava extenuado, meio morto; a cabeça estalava-lhe. + +Sentou-se n'um dos degraus da geral e escondeu o rosto entre as mãos. + +Pouco a pouco, ia perdendo a memoria do que se passára, conservando +apenas a consciencia de que era um desgraçado. + +Accordaram-o uns passos de mulher. + +Ergueu a cabeça. + +Mademoiselle d'Avenay, toda embrulhada em rendas brancas, sahia do +camarim muito risonha, conversando com uma velha, que a acompanhava. + +Levantou-se. Ella tinha de passar por ali e elle tremia. + +Quasi sem forças, desvairado, mal poude pronunciar: + +--Bravo! Bravo! + +Ella parou um pouco assustada. Vendo-o tão pequenino, na meia escuridão, +julgando-o provavelmente uma creança, tocou-lhe com dois dedos na cara. +Mas, picando-se nas barbas, retirou a mão e disse: + +--_Pardon, monsieur._ + +E quando passou... sorriu-se para elle. + + + + +O MEU REWOLVER + + +Em dezembro. O sol morria depois de curta vida. A tarde era fria e o +vento cortava. + +Triste, cansado, depois de um dia inutil, voltava para casa +silenciosamente, mastigando um charuto insupportavel. + +Pesava-me como cruz de ferro a ociosidade que não pudéra combater. + +A melancolia apoderára-se de mim. Envolvia-me a alma como que n'um +lençol humido e frio. + +Bandos de operarios voltavam do trabalho alegres, socegados, +interrompendo com cantigas de fado as conversações politicas. + +Irritou-me a alegria d'elles. + +Eu caminhava de cabeça baixa; mas só mal definidos pensamentos se +atropellavam no meu espirito, sem razão, como succede nos sonhos inquietos. + +Vagas saudades do passado, desejos mal definidos de outro tempo... Tudo +triste, triste. + + * * * * * + +Subi a escada ingreme, que levava ao meu quarto andar, e achei-me em +casa, sem quasi me lembrar do caminho que seguira. + +Os ultimos raios do sol entrando pela janella entreaberta morriam, +faltos de forças, allumiando fracamente uns velhos retratos de familia, +immoveis, havia muito, nas molduras carunchosas. + +Estava só. + +Ainda bem. + +Puxei de uma cadeira e sentei-me á janella, resolvido a esperar com +paciencia a noite, que ao mesmo tempo desejava e temia. + +A atmosphera era humida e pesada. + +Na rua havia profundo silencio. + +O occidente, carregado de nuvens negras, orladas por uma franja dourada, +parecia o panno enorme d'um caixão de gigante. + +As nuvens cresciam impellidas pelo vento da barra, ameaçando breve +toldar o céu. + +Luziu a primeira estrella. + +Contemplei-a com amor, lembrando-me de que ainda ninguem áquella hora +tivesse dado por ella. Estaria talvez no ceu brilhando tão só para mim. + +E senti não sei que satisfação intima com aquella idéa: para mim só! + +Puz-me a contemplal-a com amor, a falar-lhe como um poeta; e ella +consolou-me, e, durante toda aquella tarde, foi este o unico momento em +que tive amor á vida. + +Um empregado do gaz passou pela rua accendendo os candieiros e +assobiando uma polca. + +Ouvi uma voz por cima da minha cabeça. + +--Menina Maria! Menina Maria! + +Era o meu vizinho da trapeira, um empregado de uma casa de penhores, +feio, bexigoso e rachitico. + +--Está o gaz acceso. São horas de começarmos a conversar. + +N'uma janella do outro lado da rua appareceu a cabeça pallida de uma +rapariga, que de dia namorava o boticario e de noite conversava com o +bexigoso. + +--Muito boas noites. + +A menina Maria começou a fazer-lhe signaes querendo dizer, creio eu, que +addiasse para mais tarde as declarações de amor, não fosse eu ouvil-as. + +--O que? perguntava o bexigoso. Não percebo. É pena estar o tempo de chuva. + +--É pena, é! Pouco poderemos conversar. D'aqui a pouco... Olhe, não vê? +Estão as nuvens quasi tapando aquella estrella. + +E apontou para a estrella, que fôra até ali o meu enlevo. + +Dei um murro no parapeito da janella e fechei-a desesperado. + + * * * * * + +A nuvem negra, para provar que o bexigoso não era tolo de todo, deixou +cahir como prologo de maior chuveiro, uns poucos de grossos pingos de +agua, que vieram bater tristemente nos vidros da janella. + +Accendi o velho candieiro de azeite e recostei-me n'uma poltrona de +oleado, onde dei largas aos merencorios pensamentos. + +Decididamente odiava a vida. + +E que me prendia a ella? Fôra uma cadeia de oiro a d'outros tempos, mas +viera a desgraça quebrar-lhe, um a um, os elos todos. + +--A morte! + +E machinalmente puxei do rewolver. + +Era uma joasinha americana, bonita, de systema engenhoso, com fechos de +prata, que me saira n'um bazar de caridade. + +--Eis o remedio para quantos males se soffrem no mundo, pensei. Uma +pouca de coragem, um pequenissimo movimento... e nada mais é preciso. + +Comecei a brincar com o gatilho. + +--De que serve uma vida a que póde dar fim coisa tão pouca? + +E, como para convencer-me de que não havia nada mais facil, approximei +da bocca o cano do rewolver. + +E vi que tinha medo e que me repugnava a morte. + +Lembrei-me do frio da terra e do contacto da carne com os corpos frios e +molles dos bichos nos cemiterios. E requintei na fantasia as sensações +da longa fileira dos rigidos cadaveres, que via dormindo na valla commum +o somno doloroso da morte. + +Passou-me um calafrio pelo corpo, ergui-me, levantei a golla do +casaco e comecei a passear pelo quarto. + +Os velhos retratos mettidos na sombra da bandeirola pareceram-me espectros. + +Um sobre todos, lembra-me, causou-me horror extranho, n'aquella noite. + +Era um conego velho, gordo, sem barba, com uma corôa de cabellos +grisalhos em torno d'uma calva lisa e amarella. Tinha uns olhos azues, +pequeninos, que se fitavam na gente para onde quer que se fugisse. + +Quando eu era pequeno, tinha um dia virado o conego de cabeça para +baixo, para ver se assim parava a perseguição do seu olhar. Meu avô, que +n'aquelle momento entrara no quarto, ralhou muito commigo, que fôra uma +falta de respeito, que o conego era meu tio, que fôra homem de muito +saber e que até compuzéra uma grammatica latina com a prosodia em verso. + +E eu, que detestava a prosodia e o latim, comecei desde logo a detestar +o tio. + +N'aquella noite pareceu-me que os olhos azues e pequeninos scintillavam, +phosphorescentes. + +Recuei com um calafrio, procurando fugir ao pesadêlo. + +E os seus olhos pequeninos, azues, phosphorescentes continuaram a +seguir-me com pertinacia. + +Passei a mão pela testa e trouxe-a humida de suor frio. + +Dei volta á bandeirola do candeeiro e, cheio de falsa coragem, +approximei-me do retrato. + +Estava louco! + +--Sou um cobarde! Tenho a cobardia d'uma criança, pensei. + +Fui ao armario de páo preto, envidraçado, onde tinha uma garrafa com um +resto d'absintho. + +Um caruncho, com aquelle ruido monotono e compassado, que tanto se ouve +nas casas velhas, incumbira-se da agradavel tarefa de esfarelar uma +prateleira. + +E eu sentia dentro em mim uma tempestade! E se me tivesse suicidado, se +junto d'aquelle armario se houvesse passado um drama horrivel, elle +teria placidamente, com a maior indifferença, continuado a morder +voluptuosamente a madeira resequida, em sua obra de destruição. + +Abri a garrafa. Bebi sofregamente. + +Pela segunda vez approximei da bocca, voltando as costas ao conego, o +cano do rewolver. + +Senti abrir-se a janella do bexigoso e ouvi-lhe a voz esganiçada: + +--Menina Maria! Parou a chuva. + +Salvou-me a vida. Escutando-o, quiz despedir-me da voz humana. No curto +momento, em que o meu antipathico visinho levou a dizer aquella phrase, +entrou-me n'alma o receio. + +--Decididamente sou um cobarde, um grande cobarde! Preciso beber. + +E sahi, mettendo o rewolver na algibeira. + + * * * * * + +Pela segunda vez na vida o bexigoso falára sem dizer tolice. +Effectivamente cessára a chuva, e apenas umas nuvens brancas, com +grandes manchas d'uma côr mais carregada, formavam castellos +fantasticos, entre os quaes corria a lua a toda a brida. + +Ao dobrar d'uma esquina encontrei um amigo. + +--Aonde vais? disse-me. Até S. Carlos? + +Pareceu-me offensa a pergunta e estive para responder-lhe: + +--Não, vou matar-me. + +Mas não quiz. Dizer-lh'o, para que? Se não podia perceber-me? + +--Vou sem destino, disse. + +--Já jantaste? + +--Ainda não. + +--Jantemos juntos n'esse caso. + +E deu-me o braço e começámos a descer a rua. + +E eu ia pensando com uma certa alegria no jantar e comecei a ver a +morte sob outro aspecto: o suicidio depois de bem comido, numa salla +bonita, quente, alumiada fortemente por dois lustres de gaz. + +Que differença! Que admirava que me tivesse faltado a coragem n'aquelle +quarto frio e humido quando eu estava possuido da tristeza da fome? Frio +e fome por toda a eternidade!... + +Entrei no hotel cantarolando um bocado da minha opera favorita. + +Defronte de nós uns americanos bebiam champagne, _veuve Cliquot_. + +--Grande vinho, o champagne! não achas? disse o meu amigo. + +--Magnifico! + +--Havemos de vir bebel-o aqui um dia d'estes. É pena não poder ser hoje. + +--Porquê? + +Não respondeu e córou até ás pontas das orelhas. + +E eu achei que para dar coragem nada havia como o champagne. + +E puz-me a passar revista a todas as suas boas qualidades, e por fim +achei que eram tantas e tantas, que, esquecido da morte... fui pôr o +rewolver no prego. + + + + +O MIMOSO + + +--Está frio, dizia elle subindo o Chiado. + +Era um homem de quarenta annos, magro, quasi cadaverico, de melenas tão +compridas e tão esquecidas de pente que se lhe emmaranhavam nas barbas, +de olhos negros, encovados, de olhar obliquo e desconfiado, a luzirem +com fome por cima das olheiras papudas. + +Era no inverno e elle com a mão ossuda, engrifada apertava contra o +peito a sobrecasaca rota, sem botões. Não trazia collete e a camisa era +um frangalho. Como se precisa ter gravata para entrar nos passeios, onde +não desgostava de ir á tarde apanhar um bocado de sol, trazia um +pedacinho de panno azul pregado ao collarinho sem gomma com um alfinete +de ferro. As botas rotas, sem tacões, tinham, a tapar-lhes os buracos, +camadas sobrepostas de lama secca. + +Parou á porta do Baltresqui. + +Um janota sentado a uma das mesinhas do café, deante de uma garrafa de +Père Kermann, aspirava o fumo aromatico de um charuto pequenino. +Passados momentos, tirou o relogio da algibeira, viu as horas, engoliu +de um trago as ultimas gottas do calix e, chamando o criado pelo nome, +atirou-lhe uma nota de dez mil réis. Quando o criado voltou com o trôco, +levantou-se deixando o cobre em cima da mesa. + +--Muito obrigado, sr. Visconde, disse o criado, dando-lhe piparotes +na manga do sobretudo suja pela cinza do charuto, que o Visconde +quebrára na borda da mesa. + +--É um visconde, observou distrahidamente o homem das botas rotas. + +E como o Visconde voltasse para cima, seguiu-o á espera que deitasse +fóra a ponta do charuto. Ia apertando a sobrecasaca contra o peito e +invejando o casaco do Visconde, comprido, felpudo, de grande golla, que +se podia levantar e abrigava as orelhas do frio. + +O Visconde subia o Chiado devagarinho, com as mãos nas vastas +algibeiras, tirando do charuto abundantes fumaças, com aquelle sorriso +de satisfação, que dá a certos parvos de bom estomago a digestão de um +bom jantar. + +O pobre diabo tinha fome. Almoçára na véspera; depois não tinha comido. + +Mas o que mais o apouquentava era o apetite de fumar. + +O fumo adormece a fome e expulsa a melancolia. Póde-se dormir, quando se +tem um cigarro na algibeira e o fumo de um outro enchendo o quarto. +O tabaco é o veneno rei dos venenos, um elixir que mata lentamente, que +embriaga, que socega os nervos, que enfraquece a memoria e dá ás pernas +uma preguiça deliciosa, que faz achar boa a cama pela manhã, quando o ar +está cheio de neblina e na rua afogada em lama se ouvem os pregões e o +sussurro dos que teem que fazer, dos que trabalham. + +--Por isso Deus que afinal é bom, ia o homem pensando, encheu as ruas de +pontas de charuto para os homens e de tallos de couve para os cães, que +não fumam, que não teem que esquecer, que são tolos. + +Mas a noite estava chuvosa e as pontas de charuto, não se viam, +enterradas na lama pelas rodas das carruagens. Por isso seguia o ricaço, +ancioso pelo momento em que o charuto havia de cahir espalhando em torno +uma chuva de faisquinhas. + +O Visconde parava de vez em quando, apertando a mão aos amigos que +desciam. + +--Então que se faz? perguntavam-lhe. + +E elle só encolhia os hombros como resposta áquella pergunta ociosa e +tola. O homem notou: + +--Pois elle não terá nada, mesmo nada, que fazer? + +Comparou-se com o Visconde e sentiu uma certa vaidade. Porque elle +trabalhava, fazia alguma coisa. Se lhe perguntassem o quê, talvez não +respondesse logo, assim sem pensar, sem examinar um instante com olhar +desconfiado o fim com que lhe faziam a pergunta. Ás vezes, quando se +levantava, não tinha de comer; era preciso arranjal-o e arranjava-o. Era +talvez pouco escrupuloso; isso sim. + +--Mas, pensava, para se terem delicadezas é preciso alguma coisa na +algibeira. + +E isso era raro, muito raro. + +Decididamente, se alguém lhe perguntasse: + +--Então que se faz? havia de responder como o Visconde, encolhendo os +hombros. + +Depois, como se toda esta cadeia de pensamentos o tivesse conduzido +a uma conclusão certissima, olhou para o janota, a rir-se, com certo ar +maganão, e exclamou baixinho, como quem faz uma descoberta: + +--Olá! + +E, apontando com o dedo pollegar para o Visconde, disse piscando o olho +a si mesmo: + +--É cá do meus. + +Chegado á rua Nova dos Martyres, o Visconde parou um instante, tirou o +relogio da algibeira e, approximando-se de um candeeiro, tornou a ver as +horas. Esteve um momento como que indeciso sobre o que havia de fazer; +por fim dobrou a esquina e dirigiu-se para S. Carlos. + +Tirou as luvas da algibeira e começou a calçal-as. + +--Quando deitará elle fóra o charuto? pensava o homem. + +Mas de repente affirmou a vista e os olhos faiscaram-lhe: o Visconde ao +tirar as luvas da algibeira deixára ficar o lenço com a pontinha de +fóra. + +Contrahiu um pouco as sobrancelhas meditando. + +Valeria a pena um lenço? Tinha fome. Aquelle lenço representava talvez a +ceia. Seria triste na verdade; o que poderia valer um lenço? + +Estendeu o labio inferior. + +Era preciso tomar uma resolução. + +Ora, adeus! Mais valia do que morrer de fome. + +Approximou-se nos bicos dos pés. + +Olhou para todos os lados. A rua era deserta. + +O coração bateu-lhe um pouco. O Visconde podia sentil-o, defender-se, +gritar, e elle iria preso, com fome, e passaria a noite a tiritar de +frio, fechado n'um calaboiço. + +Animo! + +Metteu a mão esquerda por debaixo da aba do sobretudo. + +O Visconde cantarolava: + + C'est q'çá gli...iiis...se. + +Victoria! O lenço era d'elle! + +O homem não tinha sentido nada e acabava a copla: + + Encore un qui n'l'aura pas + La timbale + La timbale. + + * * * * * + +Um lenço! Ia finalmente comer. Tinha ganho o dia. + +E o lenço era um bom lenço, muito branco, muito novo. + +Mirou-o e remirou-o. + +Não tinha uma só passagem e era de seda. + +Era de seda! Queria dizer que representava talvez mais do que a ceia. + +Quanto poderia valer aquillo? + +O homem chegou-se a um bico de gaz e poz-se a olhar. De vez em quando, +coçava com a unha a aza do nariz, signal certo de duvida. + +O Gomes é que lh'o poderia dizer. O Gomes era muito entendido; um pouco +ladrão, mas muito entendido. + +E já esquecido do Visconde e do charuto, voltou e dirigiu-se para a +Calçada do Duque. + +A casa de penhores era á esquerda, uma casa pequena, asphixiante, cheia +de fato até á porta. + +O Gomes estava por detraz do balcão, encostado aos livros, com a sua +suissa á ingleza, a caneta atraz da orelha, e o seu sorriso protector. + +Um candeeiro de petroleo, com vidro sujo e luz economica, alumiava +fracamente as roupas inuteis, que nas prateleiras até ao tecto esperavam +tristemente pela traça ou pelo proximo leilão. + +Uma guitarra sem cordas pendia de um prego ao lado de uma serra. Do +outro lado, o retrato de um bom velho burguez e calvo, com a barba +cerrada, ar de pessoa de bem, e um botão d'oiro, quadrado, no peitilho +da camisa, sorria com bondosa satisfação para um cacho de botas +velhas, que, suspensas do tecto, se lhe baloiçavam a dois palmos do +nariz. Tinha valido um dinheirão, valia agora cinco tostões. + +O homem parou á porta e poz-se á espreita. + +--Muito boas noites, sr. Gomes. + +--Olá! + +--Dá licença? + +Atirou o lenço para cima do balcão. + +--Faça favor de ver isso. + +E, á espera que o exame do lenço acabasse, entreteve-se a olhar para uma +borboleta, que esvoaçava em torno do candeeiro. + +O Gomes desdobrou o lenço, sacudiu-o, levantou um pouco a torcida e +começou um exame minucioso, palpando, virando e revirando a seda. + +--Isto de bordados... Um _A_ e uma corôa. + +E o Gomes sorriu-se, esforçando-se por ter um ar intelligente. + +--Foi o sr. Visconde que m'o deu para o empenhar, disse o outro, +encolhendo os hombros com impaciencia. + +--Pois, amigo, diga ao sr. Visconde que isto pouco valor tem. O bordado +é bom, o bordado tem valor; mas a quem póde isto servir? Quer trez tostões? + +--Traste...! resmungou o homem. Então só vale...? Ó sr. Gomes, olhe que +roubar é feio. Faça favor de reparar que é de seda. + +O Gomes, desdenhoso atirou com o lenço. + +--Dê-me um cruzado e vou-me embora. + +--Homem, você parece que não sabe quem eu sou! + +E poz doze vintens em cima do balcão. + +--Traste! tornou a resmungar o homem, pegando nos doze vintens e +encaminhando-se para a porta. + +--Quer cautella? perguntou o Gomes com ar de brincadeira, já +desmanchando o bordado com o bico d'uma tesoira. + +--Nada. Obrigado. O sr. Visconde não me falou em cautella. + +E sahiu sempre a resmungar. + + * * * * * + +Poucas horas depois, estava estirado ao pé d'uma sargeta. + +Cahia uma chuva miuda e fria e elle sonhava. + +Sonhava que tinha roubado um lenço de seda, d'uma seda muito fina, tão +fina que nem o Gomes sabia ao principio o que lhe havia de dar pelo +lenço. E tinha-lhe dado a loja toda, as botas, a guitarra, o oiro que +estava na gaveta do balcão, o dinheiro que estava na commoda, tudo. E +elle era rico. Andava de trem e bebia no Baltresqui uma coisa com +bolhasinhas a subirem e que fazia saltar as rolhas das garrafas. Os +janotas do Chiado tratavam-o por _tu_ e os gaiatos davam-lhe _dom_. O +Visconde era muito amigo d'elle e offerecia-lhe charutos +magnificos, que roubava a um estanqueiro muito velho da rua dos +Canos. Tinha um sobretudo côr de canella, muito quente e andava de +luvas. Morava n'um palacio e tinha na salla o retrato do velho que +estava na loja do Gomes, e que era pae d'elle, e do outro lado estava o +retrato do outro pae, do que tinha conhecido, do que lhe dava pancadas +quando elle era pequeno. E o Gomes vinha pedir-lhe esmola. Estava muito +magro. O lenço não era de seda, era de papel. E elle tinha um cão muito +grande, com olhos de lume, que mordia no Gomes, e o Gomes chorava. + +--Leva arriba! + +Um policia de voz aspera accordou-o com um pontapé. + +E, como o homem resmungava, metteu-lhe a mão por debaixo dos braços e +obrigou-o a levantar-se. + +--Marche adeante e nada de cerimonias. + +Fôra dia de grande gala e as luminarias morriam nos preguinhos do +governo civil. + +O homem percebia tudo um pouco vagamente. Sentia-se empurrado e via as +luminarias. + +Aquillo entristecia-o. + +Perguntaram-lhe o nome e ainda teve forças para murmurar com voz avinhada: + +--Francisco Antonio, o _Mimoso_. + + * * * * * + +Quando, pela madrugada, acordou, cheio de frio e de fome, metteu a mão +tremula na algibeira das calças e murmurou com voz triste e arrependida: + +--Fiz mal. + +E depois d'um instante de reflexão: + +--Devia ter comprado um massinho de cigarros. + + + + +GRI-GRI[1] + + +Ao longe, para as bandas de Santos, começavam a apagar os candeeiros. +Uma neblina baixa espalhava-se sobre o Tejo, mas no céu, atravez do +nevoeiro, brilhava, muito fria, a estrella da manhã, e a lua, como um +saveiro de prata, de proa e poppa recurvadas, empallidecia pouco a +pouco. Os montes da Outra Banda estampavam confusos no céo embaciado os +contornos gigantescos, e no fundo escuro mal se distinguiam as grandes +massas negras dos navios. Occulto n'um monte de pedras, um grillo +cantava distrahido:--_gri, gri, gri, gri..._ + +O homem vinha d'aquelles lados do Caes do Sodré. Parecia bastante fóra +de si; cambaleava por excesso de cançaço; muito pallido, com o fato em +desalinho, o chapéo de palha, amolgado, deitado para a nuca. Parava +repentinamente, de quando em quando, como em frente de um obstaculo +invencivel, e limpava com as costas da mão as bagas de suor +escorrendo-lhe sobre a testa das melenas desgrenhadas, que então sacudia +para traz com um gesto violento da cabeça. Seguia aos SS, machinalmente, +ao acaso, para onde as pernas o levavam. As abas do casaco desabotoado, +onde batia com os braços a dar, a dar, faziam-o parecer na sombra, +quando passava junto dos candeeiros, um grande morcego ferido a +querer esvoaçar. Vinha de dentes ferrados, olhar fixo, olheiras pisadas. + +Já se ouviam os barulhos antipathicos do amanhecer na cidade. Recolhiam +as carroças dos varredores, e na Praça D. Luiz dois empregados, mudos e +somnolentos, limpavam as sargetas do passeio. O homem dos candeeiros +vinha-se approximando, fazendo tinir os vidros, ao cahirem depois da luz +apagada. Para aquelles lados apenas ficou luzindo uma lanterna moribunda +n'uma barca de banhos. Um homem em mangas de camisa, que dormira toda a +noite em cima d'um banco, espreguiçou-se muito, dobrou os joelhos, +tornou a esticar as pernas e depois, rodando sobre o centro, sentou-se +de repente, tirou o barrete, coçou desesperadamente a cabeça. Uns +operarios, com o fardel em lenço de chita na ponteira do guarda-chuva, +passaram apressados. Por todos os lados, na cidade alta, em roda da +Praça e nas capoeiras dos terceiros andares, estrugiam cantos de +gallos, roucos e solemnes, conquistadores e desafinados. + +O homem, que até então seguira pelo meio da rua, approximou-se do +passeio. O outro acabara de coçar-se e, como a manhã estava humida, +enterrara o barrete até ás orelhas e, de braços cruzados, muito chegados +ao peito, fazia, para aquecer, o gesto de quem emballa uma criança. +Levantou-se depois e foi para o caes gritar muito prolongadamente--«Ó +compadre...! Ó compadre...! Ó compadre...!» Lá de longe, d'uma fragata, +responderam-lhe:--«Eh! ti'Zé...!» O homem dos candeeiros passou, e, como +o ti'Zé se levantára, o outro sentou-se sem dar por isso, no mesmo +banco, perto d'onde o grillo continuava distrahido:--_gri, gri, gri, +gri..._ + +Parecia muito afflicto, em grande desespero, relanceando em redor os +olhos, sem fixar a vista em nenhum objecto, como se apenas pudesse olhar +para a sua desgraça. Tirou o chapeu, fincou os cotovellos nos joelhos, e +com as maçãs das faces sobre os punhos cerrados, arrepelou as barbas +para cima dos olhos. Olhando tristemente para o chão, todo curvado, +vinham-lhe estremecimentos nervosos, que lhe percorriam rapidos o corpo, +fazendo-o levantar as pernas, que recahiam com força; tinha no rosto a +mascara pallida e feia da tristeza sem consolo; nas olheiras carregadas +e nos cantos dos labios uma amargura dolorosa cavára as rugas muito +fundas. Respirava alto, murmurando exclamações irritadas d'uma angustia +sem remedio, frases sem nexo, cortadas por soluços. + +Os fios do telegrapho cantavam sem pausa uma doida melopéa triste, +emquanto ao longe, já se ouvia um murmurio indefinido de vida a começar. +Algumas chaminés principiaram a deitar baforadas negras de fumo, que, +não podendo elevar-se na atmosphera humida, alastrava-se sobre o Tejo. E +os signaes das embarcações e o reflexo d'elles n'uma grande faxa +tremeluzente faziam como que um bordado a oiro no grande véu +esfarrapado de gaze luctuoso. + +O horisonte branquejava. + +Ouviram-se nos navios os tiros frouxos da alvorada e de longe chegaram +moribundos uns toques de corneta. Junto ao caes passeava, com modos de +avejão na densa neblina, um guarda da alfandega friorento. E o grillo +sob as pedras continuava distrahido:--_gri, gri, gri, gri..._ + +O homem ergueu-se n'um impeto, como quem toma uma decisão inabalavel +contra argumentos. Cambaleando, arrastando-se, approximou-se do caes. +Pequeninas vagas marulhavam docemente e lá do fundo subia um frio +humido, desagradavel, frio de morte. Então poz-se a fitar os olhos nas +aguas e, como se ellas lhe cantassem uma canção muito meiga, como se +ouvisse a voz da melhor amiga, sorriu-lhes desvanecido, mais tranquillo, +já quasi convalescente da longa noite de exaspero. Duas grossas lagrimas +correram-lhe pelas faces macilentas, o peito oppresso ergueu-se +alto, e elle respirou fundamente, passou as mãos pela cara. Pouco +depois, preso de pavor medonho, abalou, sem querer olhar para traz, com +gestos doidos, d'olhos esbogalhados, chapéu na mão, melenas erriçadas. + +E, passados instantes, estava outra vez junto do caes, parado, +meditando, com os olhos fitos na agua. + +O Tejo accordára. Do lado do Barreiro surgiam umas velasitas brancas e +rio abaixo singrava, orgulhosa, uma grande fragata de vela avermelhada, +com uma ancora pintada de negro no panno, projectando na agua immovel +como grande placa oleosa, uma imagem tremida, enorme, cortada por uma +linha de espuma. Em terra começavam a definir-se certos sussurros. +Rangiam portas de tabernas, passavam peixeiras correndo, um guarda +nocturno batia fortemente á porta d'um armazem, ouviu-se um despertador +no interior d'uma casa. O ceu, muito branco havia pouco, tornara-se côr +de laranja. A neblina erguera-se e o fumo das chaminés subia a +prumo, alargando-se no alto, como um penacho de porta machado. + +Então o homem decidiu-se e de braços para a frente, atirou-se ao +rio--Chap!--O benemerito guarda d'alfandega, o _72_ por signal, +atirou-se atraz do homem. + +E, quando seguia para a esquadra, acompanhado pelo guarda que +gesticulava muito, entre dois soldados da guarda municipal, encharcado, +sujo, envergonhado, arrependido, tranzido de frio, o grillo continuava +distrahido sob as pedras:--_gri, gri, gri, gri..._ + + * * * * * + +Ora isto não quer dizer nada; mas então porque foi que só n'essa +occasião é que elle embirrou com o grillo que fazia _gri, gri_? + + [1] _Variante em verso, publicada pela livraria Popular_ + + + + +NA BIQUEIRA + + +Ella tem uns olhos azues tão bonitos!... Mas se eu vi! Elle a olhar para +cima... e ella a fazer signaesinhos com o lenço!... Vi; ninguem m'o veio +dizer... Fui eu que vi! + +E estas cartas que me escreveu! Talvez em nenhuma fale verdade. Esta +ultima é toda mentira com toda a certeza. Quando a escreveu, já foi +depois de ter polcado com elle... E chama-me seu _anjo_ a infame! + +Como póde um homem baixar até morrer por uma mulher assim! Morrer, +sim, está resolvido... vou matar-me. + +Meu pobre pae, coitado! Sempre com tantos sacrificios por minha causa! O +que dirá, quando souber que me suicidei? Pobre velhinho! É capaz de +morrer de desgosto! Tinha vontade de lhe escrever; mas não tenho animo. +Nem animo nem papel. Gostava de me despedir... O resto do papel ainda o +gastei a escrever áquella desgraçada! + +Ah! mas vou afinal vingar-me!... Hei de atribular-lhe a vida com remorsos! + +Custa-me tanto morrer!... Dizem que só os cobardes é que se matam. E eu +acho que é preciso ter animo, muito animo! + +Mas está decidido. + +Vou morrer enforcado... Dizem que não doe nada... Mas morrer! Quem foi +que disse que não doe? Aqui está a corda. Exactamente do tamanho preciso +para que, de manhã, quando ella abrir a janella, me veja pendurado, em +frente dos seus olhos, na biqueira do meu telhado. + +É preciso não hesitar... Infame! Mas que mulher tão infame! E tem uns +olhos tão bonitos!... Que besta... o outro! + +Bem! agora ponho-me a chorar! São saudades de meu pae! + +Aquella biqueira tentou-me. É de zinco, parece muito forte, algum tanto +virada para cima. + +Vamos. + +Está frio cá fóra... Chovisca... A noite é escura!... + +Ali estão as janellas do quarto d'ella, d'onde tanta vez olhou para mim, +d'onde tanta vez me falou e me atirou beijos com as pontinhas dos +dedos!... Que mentira! Agora faz o mesmo ao outro! + +Está frio! Será bom vestir o sobretudo... Assim estou melhor, mais +conchegado... para morrer! + +Cá estou outra vez a chorar! + +Ámanhã, quando abrires as tuas janellas, has de ver, mesmo em frente, o +meu corpo, baloiçando-se ao vento soturnamente. + +O peor é se fico com a lingua de fóra... É tão feio uma lingua de fóra! +Eu fico tão feio!... E os olhos...! Os olhos d'um enforcado...! + +Mas está decidido, está decidido. O enforcado é o mais limpo dos suicidas. + +Se não fosse o medo já lá estava. Um suicida é um valente! + +Atemos a corda. Mau! o telhado escorrega...! Se eu cahisse lá abaixo!... +Só pensal-o me arripia todo! + +D'ali é que ella erguia os olhos tanta vez para a minha trapeira! + +Devagar... Assim.. Parece-me que o laço está bem dado... Quasi que não +vejo com as lagrimas... Está bem dado, está; está seguro. + +O melhor é descer pela corda, e depois, lá em baixo, quando tiver +chegado ao fim, metto o pescoço no laço, segurando a corda, devagarinho, +muito devagarinho... e deixo apertar. + +Como é triste morrer assim tão novo, tão cheio de vida!... +Morrer!... Chega a ser estupido...! porque afinal eu tinha um futuro +talvez brilhante... Um praticante de pharmacia... Morrer assim tão novo! + +Mas como isto faz chorar! + +Está frio! + +Ella dorme...! Se adivinhasse...! + +Não pensemos mais n'isto. Sejamos homem! + +Devagarinho...! + +Estou suspenso sobre o abismo! Uma altura de cinco andares...! Sinto um +frio na espinha...! Se as mãos se me escapassem...! + +Não me despedi bem do meu quarto. Devia de voltar para cima. Afinal fui +ingrato com elle. Tive ali momentos bons. + +A corda dá-me cabo das mãos. Devo estar quasi na ponta... Cá está o +laço. Estou mesmo, mesmo em frente das janellas. Se me baloiçasse um +bocadinho, tocava-lhe com a ponta do pé nos vidros. + +Punhamos o laço ao pescoço. Foste tu, mulher devassa, que me fizeste +esta gravata!... Agora deixemos apertar devagarinho. + +Apre! É aspera a corda! + +É horrivel morrer-se assim! Se ella me visse, se arrependesse e me +salvasse! + +Já tenho os braços cançados...! Que tentação de voltar para cima! + +Morrer...! Mas é uma desgraça!... uma tolice! + +Hein? Que é isto? Pareceu-me sentir estalar o zinco da biqueira!... + +Talvez fosse engano... Mas o melhor é voltar... verificar... + +Não, não é engano, que horror! Estalou, é certo. Ao mais pequeno +movimento estala e dobra! Se verga demais, o laço escorrega e eu +esmigalho-me lá em baixo nas pedras da calçada! + +Quem me ac...! + +E se ella apparece á janella? + +Doem-me os braços, já não posso mais! + +Mas então é certo!... Mas então vou morrer! Mas não quero, d'essa +morte horrivel não quero! + +E não poder subir...! Talvez com um esforço grande, apoiando os pés á +parede... Mas o zinco estala cada vez mais, dobra-se todo...! + +Se eu batesse as palmas ao guarda nocturno...? Mas como? Para bater as +palmas seria preciso largar a corda... Se me pudesse segurar com uma só +mão, despir-me com a outra e bater as palmas no... + +Mas nem sei o que penso! Não posso suster-me só com um braço... Sinto +faltarem-me as forças!... E se ella abrisse a janella e me visse n'essa +posição ridicula? + +Agora é que é certo! agora é que tenho de morrer!... E ninguem, ninguem +me salva! + +Tenho as mãos a arder; não posso mais. Quem me dera ter animo para +gritar!... + +Ainda que queira subir já não posso... E o zinco verga cada vez mais, ao +mais pequeno movimento! + +Parece-me que sinto passos...! É preciso estar muito quieto...! Valha-me +Deus! O laço já correu um bocadinho... + +Os passos approximam-se... É uma patrulha! + +Ó camaradas!... camaradas!... Pchiu!... + +Não são ladrões que tenho em casa, não senhor. Não vêem que estou +pendurado?... Acudam depressa!... O zinco está todo dobrado! +Depressa!... Sim, senhor, acompanho-os á esquadra. + +E o laço a escorregar!... + +Depressa! A porta lá em baixo está aberta. + +É só preciso arrombar a cá de cima. + +Tolice! Porque não a deixei eu aberta tambem? + +E se alguém me quizesse acudir? + +Os passos approximam-se... + +Graças a Deus!... está a porta arrombada! + +Acuda! acuda depressa! + +Obrigado camarada!... Não ponha o pé no zinco!... + +Meu Deus! + +Ó meu pae, coitadinho! + +Que horror! + +Ella tem uns olhos azues tão b...! + + + + +REQUIEM AETERNAM + + +Todas as tardes, quando o azul no alto do céu começava a desmaiar, ou já +a enlutar-se nas pregas, pouco a pouco, serenamente accumuladas pela +neblina da noite, recolhia a casa, aos solavancos sobre as pedras da +calçada, a carruagem das velhinhas. + +Espantosa, de grandes rodas espessas, ferragens desconjuntas, tecto +esboracado, tinta bexigosa, puxavam-a dois cavallos brancos, +magros, muito magros, de joelhos grossos, orelhas cahidas, choutando sem +brio, coxeando dolorosamente, com um ar de philosophos sem ração a +caminho da morte. + +Atraz saltava a carruagem com um tinir de ferragens, soturno como um +ranger d'ossos em dança macabra. E eu encostava aos vidros da janella a +testa ardendo com febre, para ver a passagem d'aquellas duas velhinhas +sympathicas, irmãs decerto, gemeas talvez, tão eguaes, com os +cabellinhos bracos alisados sobre as testas enrugadas, as boccas +reentrantes, os olhinhos apagados, tremulas, encolhidas como passarinhos +com frio, com os mesmos fatos de luto, o mesmo ar tranquillo, o mesmo +sorriso de bondade. Macrobias á espera que a morte viesse n'um beijo +perfumado cerrar-vos para sempre os olhos, como devieis soffrer, +cabeceando, sacudidas, empurradas brutalmente uma contra a outra pelas +mollas duras, aos safanões das sob-rodas da calçada! Boas velhinhas, +minha paixão unica, minha esperança d'um dia inteiro, quando eu +vivia isolado com a minha melancolia, n'aquella casa onde o vento +soprava tristezas, onde o sol nunca entrou e onde as corujas riam de noite! + +O cocheiro, um velho muito velho, corcovado, segurando tremulamente as +redeas, com as mãos pousadas sobre os joelhos, conservava um certo ar de +casa nobre, apezar da nodoa esverdinhada, que se alastrava nas costas da +sobrecasaca, e do chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, +arrombado, sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito +velho, d'outros tempos muito melhores. + +Que volta misteriosa dava todos os dias aquella carruagem, que ás tardes +ali passava trepando pela calçada? D'onde vinham, para onde iam, em que +palacio ou castello arruinado moravam as boas velhas? Quem eram? Nunca o +soube. + +E era talvez por isso que as amava tanto. Architectava historias +fantasticas a respeito d'ellas, da carruagem, do cocheiro, dos +cavallos, e, quando por fim ouvia o rodar pesado e o tinir das +ferragens, sentia o coração pulsando rapido, a respiração difficil, um +calor nas faces, como se em vez da decrepitude a caminho do cemiterio, +fosse uma primavera cheia de flores e de mocidade, que ali passasse em +grande aureola de luz, em nuvem subtil de perfumes. + +Creio que as velhinhas, n'uma doce, apagada recordação de galanteios +havia muito passados, adivinharam o meu amor, e olhavam para mim, +risonhas, fazendo renascer faiscas nos olhos côr de cinza, que um +sorriso bordava com ondas de preguinhas por cima das rugas! E eu, com a +testa encostada ás vidraças, via desapparecer a carruagem fantastica, +emquanto a noite descia lentamente e, muito desafinados, piavam lá no +alto, em doidas correrias, os negros andorinhões. + +Boas, santas velhinhas, benza-vos Deus! + +A calçada subia em linha recta, tendo por fundo o céu ainda vermelho, +áquellas horas. A carruagem levava uns cinco minutos até chegar ao +alto, e lá em cima, esfumada pela distancia, com as grandes rodas +salientes, tombadas para fóra, similhava uma grande borboleta negra, que +a descida precipitava na rutilante fogueira do pôr do sol. + + * * * * * + +Pouco depois accendiam-se no céo muito pallido as primeiras estrellas. +Então um doido, que morava no rez do chão, começava a uivar +sinistramente e pela casa espalhava-se um cheiro intenso, um fumo +suffocante d'ervas, que a irmã queimava por conselho d'uma bruxa, entre +rezas plangentes, arrastadas, de arrelia. + +Pessimista bilioso, mal com a vida, fugira de parentes e de amigos, e +ali vivia isolado, merencorio, cheio de azedumes, n'aquella rua onde os +casebres em ruinas se alinhavam tristemente, com vidros esverdeados, +telhados cheios de corcovas, paredes desaprumadas, com ervas +crescendo junto aos muros em que as osgas aqueciam ao sol os dorsos +escamosos. + +E dava-me bem n'aquella paizagem cuja musica harmonisava com as minhas +queixas, n'aquelle scenario que havia procurado e emfim descobrira, onde +arrastava as minhas preocupações, os meus desvarios, na prisão +voluntaria que escolhera e me era cara á força de melancolica, que eu +amava porque me era hostil. + +Ao meu odio pela gente e pelas coisas, uma só coisa escapára--aquella +carruagem a desconjuntar-se, pyrilampo nas trevas da minha noite, nota +suavissima no concerto da minh'alma. + +Tão egual era sempre a dôr que me atormentava, tão parecidos rodavam +meus dias, que o verão passou, sem que, olhando para traz, eu pudesse +ver na estrada, que andei triste, o marco d'uma alegria, d'um aspecto +novo, d'uma miragem na vida. + +Aquelle amor, aquella quasi paixão, que ao principio as velhinhas +me haviam inspirado, esse mesmo sentimento purissimo affligia-me agora, +á medida que o sentia crescer. + +O tempo fôra passando, e os cavallos cada vez choutavam menos, coxeavam +mais, mais brancos, mais tisicos, mais dolorosamente meditabundos; o +cocheiro mais corcovado, um pouco descahido na almofada, deixava pender +o chicote; a carruagem tinha na frente umas tiras de papel sobre um +vidro rachado; cordas, a que todos os dias se juntava um nó, ligavam os +arreios; as velhinhas tinham menos palhetas doiradas no olhar, quando me +sorriam. E já me sorriam como a pessoa conhecida, que occupasse na vida +d'ellas o logar em que moravam na minha, o que augmentava a minha tristeza. + +Agora, cada vez que lá no alto da calçada se afundava a carruagem, +ficava scismando se teriam desapparecido de uma vez todos os meus +sonhos, tudo--que era sómente aquillo--quanto á vida me prendia. + +O verão, muito lentamente, assim foi rodando, até que vieram as +primeiras chuvas. + +Que tarde turbida e melancolica! Se não viessem...! E de tanto pensar +n'ellas, vi qual era sua pousada na minh'alma. Se não viessem...! Dia +immenso em que, cheio de inquietações passeei pelo quarto até +entontecer, approximando-me da janella a cada instante, vendo apenas na +solidão da calçada a chuva a cahir, a cahir, rio enorme, que se +despenhava até lá abaixo, rolando barrento, cheio de espuma, +quebrando-se, saltando sobre as pedras arrancadas, bi-partindo-se lá no +fundo, desapparecendo na curva e galgando as escadinhas, onde se +precipitava em cascata, com uma bulha monotona... + +O doido, a quem a meia escuridão d'aquelle dia exacerbára a furia, +torcia-se, berrava como um possesso; e logo de manhã espalhou-se pela +casa o tal cheiro que eu detestava, de alfazema queimada, de alecrim e +d'outras ervas com que o demonio embirra. + +Dia immenso, que me parecia não dever acabar! + +Na minha imaginação exaltada via, como de então para cá vi sempre, um +ente unico n'aquella carruagem, com as donas, os cavallos, o cocheiro, +como se uma só alma os animasse a todos, não podendo desligal-os, +abstrahir d'uns para só pensar nos outros. + +O dia vinha descendo e, ancioso, sentindo pelo ser fantastico que me +fazia pulsar o coração, aquelle fervoroso amor, que os encarcerados +dedicam ás vezes a uma formiga, a uma aranha, a uma plantasinha +qualquer, com as unhas cravadas na carne do peito, tive uma das mais +doidas alegrias da vida, quando senti sobre a lama que se alastrava de +lado a lado, o rodar lento, abafado, por que suspirava semi-doido. + +Os cavallos gemiam, suavam, lançando pelas ventas baforadas densas. As +sob-rodas, occultas pela lama e que o cocheiro não evitava, cego pela +chuva que o zurzia, faziam cambalear o trem como um ebrio. E lá +dentro mal pude avistar, atravez dos vidros embaciados, as velhinhas que +sorriam. + +Abri a janella para as ver desapparecer. Julguei que nunca chegassem ao +alto. O cocheiro com um gesto afflicto brandia o chicote; os cavallos +pegavam-se, ajoelhavam na lama; as molas estalavam. + +Chegaram finalmente. Disse-lhes um adeus maguado. E emquanto a noite +descia, sentado junto da janella, parecia-me ver, como n'um sonho, a +carruagem fugindo, fugindo, por uma estrada que não acabava nunca, +levando no tejadilho, de pé, como os anjos dos coches de enterro, a +figura da morte. E a chuva cahia, cahia, e a noite embrulhava-se n'um +véo muito negro, cheia de frio. + + * * * * * + +Nunca mais as vi. + +Passaram-se mezes. Na terça feira de entrudo uns mascarados bebados, que +desciam pela calçada, traziam adiante aos pontapés, em grande +troça, um chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, arrombado, sem +pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho... + +Boas e santas velhinhas! + +_Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis._ + + + + +AS ESTRELLAS DO CEGO + + +Noite de Natal. + +Terminára a missa. Repicavam sinos e o povo descia alegre os degráos em +ruina da larga escadaria. + +A noite era cheia de estrellas, luzes d'altar immenso sob o immenso +docel de velludo azul. O céo muito frio parecia rir-se, a piscar os +olhinhos alegres. + +Ainda nos eccos da alta abobada em berço resoavam os ultimos cheios +do orgam do convento. Pela porta aberta de par em par, onde a multidão +se acotovelava á sahida, vinha de dentro da egreja um perfume religioso +de flores, de fumo de incenso, de cera queimada. + +O altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de zig-zagues +rutilos as lentejoulas e os fios de seda nos mantos bordados da Santa +Familia e na colxa de damasco do berço pequenino, em que o Menino Jesus +dôrmia. + +Tocavam sinos, e os repiques, como foguetes, subiam pelo ar denso da +noite fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela +noite escura. A larga frontaria da egreja, comida pelo tempo, abafada +n'um velho tapete de musgo, sobresahia no céo em mancha muito negra, +d'onde jorravam feixes luminosos, ondas de harmonias, luz e canticos de +triumpho. + +Um pequeno desceu a escada levando um cego pela mão. + +Iam fechar-se as portas. Sahiam os ultimos devotos. + +O cego era um velho corcovado, tremulo, com a face cheia de rugas +crusadas, como um pedaço de papel amachucado. Os olhos sem luz +voltava-os para o céo, meneando a cabeça constantemente, como se +procurasse... o quê? E sorria. Dava a mão ao petizinho e descia os +degraos tacteando-os com o pé. + +--Ainda mais um, avô... E outro... E outro. + +Fechou-se a egreja. O candeeiro da esquina mal alumiava o adro. + +E o cego sorria e afagava a mão do pequeno. + +O povo espalhou-se pela ruas. Eram como estilhaços de alegria por toda a +cidade. + +Vinha a gente descendo pelos beccos angulosos, pelas travessas em +declive rapido. E parecia que todos levavam n'alma um pedaço de luz +d'aquella noite em Belem cantada nos evangelhos, da alegria +d'aquella musica ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o +côro entoou o _Gloria in excelsis_! Todos falavam, todos riam, muitos +cantavam. Era a ceia prompta em casa, era o dia seguinte todo elle +inteirinho de descanço! + +Noite de Natal! Noite de Natal! + +E eu fui por ali abaixo tambem, atraz do cego. + +O pequenito teria oito annos. Loiro. D'olhos azues. Olhava para as +estrellas a rirem lá em cima. + +Os olhos tinham a côr do céo, e o que n'elles brilhava tanto podia ser o +reflexo das estrellas como a luz placida da sua almasinha. + +Caminhavam os dois por ali abaixo e conversavam. Á voz tremula do velho +replicava compassadamente o pequenino. E o que elle dizia com a sua +vozita infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avô +ainda como um cantico, como se um anjo d'aquelles, que haviam aos +pastores annunciado a vinda do Senhor, houvesse ficado na terra; +porque o cego continuava sorrindo, e, a descer pelos beccos escuros e +tortuosos, afagando a mão do netinho, fitava os olhos condemnados ás +trevas lá em cima, lá muito em cima, d'onde vinha aquella luz toda, que +alegrava os olhos da criança. + +Conversavam os dois contentes. Eu ouvia bocadinhos do que diziam, +palavras soltas, por onde, mais ou menos, reconstituia a conversação. + +Esperava-os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. Os dois levavam +fome. A mulher ficara em casa fazendo a ceia. E ao velho ouvi dizer, uma +ou duas vezes, gulosamente: + +--A canja. + +E o pequeno: + +--Degráo, avôsinho. + +E o cego, muito attento, vagarosamente, tacteava o degráo com o pé, +afagando a mão do neto, cantarolando. + +Pelos beccos, pelas travessas, sob os arcos dos pateos irregulares, +cheios de sombras, disseminara-se a gente. Iamos agora sós, nós trez, +n'aquelle caminho. + +Ouviam-se ainda passos ao longe, eccos de vozes, uma ou outra guitarra +em lojas fechadas, onde brilhavam as frinchas das portas; de quando em +quando, um bater de palmas ao guarda nocturno, passos correndo, um tinir +de chaves. Um gallo cantou n'uma trapeira. + +--É tarde, disse o velho. + +Caminhavam mais depressa agora. + +E eu ia andando atraz d'elles, sem saber bem porquê, atrahido talvez +pela doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, +por ver tanta alegria onde tanta miseria se cuidava, tanta paz nas +almas, onde tanta dôr devia de suppôr-se. + +Passei-lhes adeante. Esperei junto de um candeeiro. Queria ver-lhes +ainda uma vez os rostos. + +O cego continuava a olhar para o céo, meneando a cabeça. O pequenito ao +lado, agora que na rua tinham acabado os tropeços, olhava para onde +olhava o cego. + +A cabelleira loira, toda em anneis, não lhe cabia dentro do chapéo e +cahia-lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces, pelas costas. + +Era lindo, lindo! E o cego, que o não via, continuava a sorrir! + +Deixei-os passar adeante. + +A rua alargava-se entre casarias irregulares. Caminhavam mais á vontade +agora, mas tinham-se calado. Culpa talvez da minha indiscrição. + +Faziam ecco no silencio da noite os nossos passos sobre a calçada, na +rua deserta. + +Pararam. O velho bateu cinco argoladas á porta de uma casa esguia, com +grades de madeira nas janellas cheias de vasos. Passados poucos +segundos, ouviu-se a pancada violenta do trinco puxado com força desde +lá de cima. + +O cego e o pequeno desappareceram na escuridão da escada. A porta bateu +com estrondo. + +Ouvi ainda o velho cantarolando, emquanto subia. Pouco a pouco a voz +sumiu-se. Encostei o ouvido á fechadura: uma bulha de passos +apagando-se, mais e mais, a cada volta da escada; uma voz muito +alegre--devia de ser a da mãe do pequeno recebendo-os--palavras que +não percebi... E fechou-se lá em cima uma porta. + + * * * * * + +Então passei para o outro lado da rua e fiquei-me a olhar para aquella +casa. + +Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. Talvez +as cordas da minh'alma vibrassem ainda em unisono com os cantos +d'aquellas vozes tão devotas, singelamente entoados por detraz das +grades do côro, hymnos muito simples ao Deus Menino nascido. + +No céo de immaculada pureza as estrellas vibravam raios de luz +intensissima. Fazia frio. + +E eu quedava-me a olhar para aquella casa, tão pobresinha, tão velha, +tão escura, tão cheia de flores d'alto a baixo! + +Uma janella no telhado illuminou-se. + +Começava a ceia do velho. Eu reconstituia o grupo dos trez: a mesa +encostada á parede na trapeira muito baixa, o velho aspirando os +perfumes da sopa, a terrina sobre a toalha muito branca, o pequeno +defronte do avô, e a mulher a sorrir-lhes, ouvindo-lhes as historias, o +throno, o presepio, a missa, o canto das freiras, a vinda por ali abaixo +a horas mortas, a minha perseguição. + +E o pae do pequeno? Ah! sim, esse tambem lá estava... Pois quem trabalha +para sustentar a alegria n'aquellas almas?... Santa familia! + +Que deliciosa ceia! Que paz tranquilla! Que boa noite de Natal! + +Tanto falava o cego na canja, rua fóra, pela mão do pequeno! Quem não +tem olhos, tem melhor paladar. + +E o pequeno como devora! É que é tarde e não costuma estar de véla +áquellas horas! Comprida manhã terá na cama. Já os olhitos se lhe +começam a fechar. + +E o pae e a mãe a rirem, contentes de os verem assim! + +Que boa noite de Natal! + +Fitára os olhos na janella, não sabia d'ali apartal-os. Tambem eu agora +olhava para cima, como ainda agora o pequeno para as estrellas, o cego +não sei para onde. + +Porque olhava o cego para o céo? + +Tornou o gallo a cantar. Ouvi-o, ao longe, mais alegre, como quem já +adivinha a madrugada. + +Ha quanto tempo estava eu ali? Porque olhava para aquella trapeira? + +Encaminhei-me vagarosamente para casa. + +Havia tantas estrellas no céo! Como era linda a noite de Natal! Como +tinha razão o pequenito dos cabellos loiros de olhar para as estrellas! +Que quantidade de luz! Tantas! Tantas!... Talvez o pequeno se lhe +mettesse em cabeça de contal-as! Houve uma, quando vinhamos pela +travessa abaixo, que passou correndo, deixando um rastro muito longo... +Era como a estrella dos Reis Magos. Que luz não tinham os olhos do +pequenito! E o cego sorrindo ao pé d'elle, com os olhos tenebrosos +postos no céo! Porque? É que se lhe voltavam para lá os olhos d'alma, é +que na alma tinha elle mais luz do que o pequeno nos olhos. + +E vejo-os ainda a descerem pelos beccos, o velho meneando a cabeça, o +pequenito a dar-lhe a mão? Degráo, avôsinho? ambos com os olhos no céo, +a estrella a correr... + +Que lindas estrellas vê o cego! + + + + +OS NETOS + + +Andavam todos pasmados, a falar baixinho pelos cantos. + +O D. Affonso parecia outro! + +Se fosse um Affonso qualquer!... mas o Dom, o quarto, o do Salado!... +Quem jámais o vira assim de olhar tão doce na sombra do supercilio +carregado, de riso tão lhano sob as enormes barbas patriarchaes, +honradas entre as mais honradas dos affonsinos? + +O Coelho, que, havia muito, andava tramando o crime, até disse baixinho +ao Pacheco:--«Ali ha coisa!» O Pacheco já a farejára, olha quem! E +entretanto, o D. Affonso, todo fóra dos eixos costumados, dizia graças, +quando passava alguma dama a rojar sedas na peugada da linda Inez. + +Ia seu caminho o drama tenebroso. Tanto haviam feito, que já tinham +escangalhado o socego da que depois de morta foi rainha. E o sceptro, +sobre que tão famigerados heroicos havia de bordar o Dr. Ferreira, +parecia pesar nas mãos do monarcha menos do que se fôra de pechisbeque, +talvez tanto como de papelão doirado. + +É que n'aquella noite... + +O homem tinha um fraco: pelava-se pela canja! + +Elle em pessoa comprára a gallinha, uma ave amarella, que era uma +belleza, gorda, anafada... Depois de muito regatear, e por ser a elle, +D. Affonso, é que a saloia a vendêra por seicentos e vinte! Um rico +pedaço de toucinho, um bom naco de prezunto, o bello chouriço, +cheirinhos, arroz da melhor tenda... Ora adeus! Um dia não são dias. +Aquella noite de Natal havia de ser falada! + +E, por debaixo dos longos bigodes brancos, brancos de neve, El-rei +lambia os beiços. + +Chovia a potes. + +O drama terrivel, a mais calamitosa tragedia da historia patria, ia-se +pouco a pouco desenrolando. + +Inez lamentava-se. Os horrificos algozes haviam-a trazido ante o rei. +Eram tres judeus de calvario de semana santa, muito capazes de dar sete +pesadêlos a quem não estivesse prevenido. Muito cabello, muita +sobrancelha, muita barba, vozes de tyrannos. Ella erguia para o céo +cristalino os olhos piedosos, attentava nos meninos cheios de somno, +falava ao avô cruel nas brutas feras e nas aves agrestes, na mãe de Nino +e nos irmãos que Roma edificaram; queria ir fosse lá para onde fosse, +para a Scythia fria ou para a Lybia ardente, comtanto que a +tirassem d'ali. Era de partir os corações! Mas aquelles patifes, de +punhaes desembainhados, sanhudos, faziam esgares! + +E a desditosa amante do Principe, entre soluços e lagrimas, +pensava:--Que demonio tem hoje o D. Affonso? + +O rei só via a canja, os olhinhos da gordura, o arroz muito branco... E +arregalava o olho e abria a venta! + +Ah! que delicioso quadro! Que lhe importavam a linda Inez de rojo a seus +pés, as iras do filho apaixonado, a politica do reino, as Hespanhas, os +Castros? + +Uma trapeira, que, toda envolta em arroz de telhado, era como um +ramalhete, n'uma rua estreita, escura, tortuosa, para lá lhe tugia o +pensamento. Em volta d'ella cantavam pardaes todas as manhãs, e o sol +mal nascia, pintava-lhe os vidros como se fossem pedras preciosas, +rutilantes. Tanta paz lá dentro, tanto riso de creanças! + +Noite de Natal muito fria. Ih! como chovia lá fóra! Cantava a agua, +cahindo em jorros das biqueiras sobre as pedras das calçadas. Como +estavam lamacentas as ruas, cheias de poças! O vento do sudoeste +arrastava pelo céo as nuvens desgrenhadas, e chovia sem descanço. + +Lá dentro da trapeira, tanta luz, tanta alegria! + +Noite de Natal! A toalha resplandecia muito branca sobre a velha mesa +herdada dos avós, um nadinha coxa e remendada. Era um velho traste +amigo, n'aquella noite todo enfeitado para a festa. O candeeiro, +entornando sobre a alvura do linho um circulo de luz aconchegador, fazia +faiscar as laminas das facas, estriava com fogo os cabos muito limpos +das colheres. O pão, ha pouco vindo do forno, ainda fumegava embrulhado +na flanella, e seis guardanapos engommados ostentavam formas +caprichosas, em cima dos pratos: pombinhas, leques, romãs abertas. + +Lá dentro, na cosinha, riam as crianças. + +A mais pequenina, uma gorducha rosada e muito loira, fechava os olhos +cançadinhos de somno, teimando em não querer deitar-se, que havia com as +mais velhas de assistir á grande festa. + +E a panella a chiar e o vinho a aquecer e o quebrar das nozes! + +Vá lá um homem ralar-se com a politica do reino, ter consciencia de sua +altissima missão, comprehender o direito divino, recalcar no coração a +piedade e ser cruel contra o proprio filho meio louco de amor e que a +dôr tornaria completamente louco, contra os infantes seus netos, contra +a formosa fidalga chorosa, que deixava espalhar pelos hombros os fartos +cabellos pintados de loiro! + +--Pois sim, cantem, pensava elle. + +E respondia tão distrahido, tão fóra do sentimento, que todos, pasmados, +diziam: + +--O D. Affonso... ali ha coisa! + +Corriam-lhe pelas faces uns arripiosinhos, impaciencias perceptiveis sob +as enormes barbas todas brancas, fazendo-lhe tremer as azas do +nariz e os cantinhos das fartas sobrancelhas. + +O filho, o D. Pedro, com voz de trovão, arrancava do peito as ultimas +exclamações e afastava-se a largos passos para ir pegar em armas. A +côrte, attonita, afflicta, corria para a vasta janella rendilhada para +ver o desgraçado amante atravessar os pateos, chamar os seus, com elles +dispor a vingança. Era então que o velho heroe do Salado, desgraçadinho, +cheio de lagrimas na voz, com o coração dilacerado, deante do corpo +inanimado da linda Inez, havia de soluçar altissimas philosophias sobre +a vaidade das vaidades, o peso d'aquella corôa sobre as cans, d'aquelle +sceptro nas mãos decrepitas. + +--A canja, a canja! pensava elle. + +E ainda o ecco murmurava os últimos gemidos d'aquelle diabo de tragedia, +e já o D. Affonso galgava a quatro e quatro os degráos da escada, sem +corôa, sem sceptro, sem barbas, respondendo ao contra-regra, que o +chamava para ir agradecer os applausos da claque: + +--Vão para o diabo! + +E, meia hora depois, que alegria! + +Quando chegou a casa, em volta da mesa, a filha, o genro, os tres +netinhos, todos a cantarem o hymno da carta:--Tchim! Tchim!... +Taratatchim! Taratatchim! + +Que bem que cheirava a canja! + +Aquella noite de Natal havia de ser falada! + + + + +A BURRINHA BRANCA + + +Meu avô tinha uma burrinha branca, que parecia um macho. + +Era branca e lustrosa como um cotãosinho de serralha, esbelta, com as +mãosinhas muito finas, viva, com as orelhitas muito curtas. Uma estampa. + +Quando o avô sahia n'ella, não havia general em campo de batalha que +mais garboso se apresentasse. Tic-tic!--lá iam os dois pelos caminhos. +Vinham as mulheres ás portas e era um côro: + +--Benza-te Deus, burrinha! + +É que tinha uns modos que prendiam o olhar de todos. + +Homens havia que embirravam com o avô, por causa d'aquella fortuna, e +diziam ao vel-os: + +--Raios os partam! + +Mas o velhote não cuidava de mulheres, despresava invejosos e só pensava +na burra. + +Chamava-se Pomba, pomba por dentro e por fóra, tão branquinha d'alma +como de pêllo. + +Muito meiga, quando o avô lhe levava a ração, esfregava n'elle a cabeça, +mexia as orelhas e dava ao rabo, que é o modo por que os burros fazem +festas á gente. O avô dava-lhe beijos. + +Por todas essas aldeias, nunca vi gato nem cão, animalzinho mais +querençudo. + +Assim passaram muitos mezes de muita paz e socego. + +Lá o nosso visinho sapateiro é que se mordia de inveja. De amarello que +era fez-se verde, de magro um trinca-espinhas. Era dono d'um cavallinho +lazão, coxo, pelludo, calçado de tres pés e bebendo em branco. + +Pois ainda queria comparar o diabo do homem!... + +Ora isto da malha branca da testa correndo pelo focinho até ao beiço é +de mau agoiro. Diziam os moiros que os cavallos assim marcados tinham na +cabeça a mortalha do cavalleiro. Até onde seja verdade não sei; mas vi +mais d'uma vez o lazão aos coices nas estrellas e o sapateiro no chão +com as costellas amolgadas. + +Pois, apezar d'isso, só para fazer rabiar o avô, dizia que não trocava!... + +A Pomba era um apetite. Invejavam-lhe ovelhas a mansidão. + +O avô calava-se, porque bem conhecia o sapateiro. Ria-se, sem que +ninguem desse por isso, que eram tantas as rugas na cara, que mais uma +menos uma não fazia differença. Onde se lhe conhecia a alegria era nos +olhos, uns olhitos pequeninos, já sem côr. + +A burrinha a trote,--tic-tic!--e elle: + +--Bons dias, visinho! + +Então o cavallicoque escanzelado, muito malcreado, tinha o máu sestro de +rinchar. + +O avô não gostava do atrevimento; mas que havia de fazer senão +conformar-se com o namoro desaforado de quantos quadrupedes na terra +havia? Era a linda cabecinha branca apontar entre os humbraes da +cocheira e logo cada zurro de repicaponto, que, fosse a Pomba como +certas mulheres, seria a aldeia um céo aberto. + +Ella, muito dengosa,--tic-tic!--olhava para todos de soslaio, mas nenhum +encarava de fito. + +Eu levava-a muita vez a pastar. E, como o avô não queria que ella +perdesse um só ponto da reputação, dizia-me sempre: + +--Não percas o animalzinho de vista. Não deixes de pear a burra. + +Nem o mais pintado se lhe havia de chegar, que eu tinha sempre o olho +n'ella e nunca as peias me haviam esquecido. + +Entretanto chegou o mez de abril e toda a charneca se encheu de flores, +desde as copas mais altas dos sobreiros até ás ervinhas, que se escondem +envergonhadas debaixo das moitas. + +A burrinha abria muito as ventas, respirando o ar fresco da madrugada, +que cheirava a alecrim e a rosmano, que nem eu sei encarecel-o! Os +estevaes eram todos em flor e a charneca parecia um mar todo elle verde +e branco, quando o vento cursava por essas mesas fóra. + +Ella gostava de ouvir os passarinhos, que até parece que os entendia. +Não ha como máus exemplos. Andava azougada e o avô inquieto. + +--Peia-me a burra, dizia sempre. + +Iam tamanhos desaforos pela aldeia...! Mas quem havia de pensar...? + + * * * * * + +Ora, por esse tempo, a Pomba fez quatro annos, o que é tambem a +primavera na vida dos burros. + +Uma certa manhã, o sol, depois de trez ou quatro dias de choviscos, +appareceu de repente limpo de nuvens e com tanta luz, que as abelhas +embebedaram-se todas. Era um zunir lá pelos ares, que até dava alegria á +gente. E lá em baixo no montado, ao pé do rio, ainda os rouxinoes se não +tinham calado, já os trigueirões andavam cantando. Era dia de festa +tanto na terra como no céo! + +Ora um homem póde ser marréca, aleijado e feio como eu sou, ha coisas +que lhe vão direitinhas á alma. + +Larguei a burra no ferregial e fui-me deitar debaixo da figueira. + +Dizem que o sol, quando nasce, é para todos; porque não havia de haver +uns raios para mim? Tanta moça boa na aldeia e eu estropiado, sem me +atrever... + +Puz-me a olhar para aquelles montes, d'onde o sol vinha a subir. Um +moinho ao longe bracejava, com as velas muito brancas, que mal se +viam no céo todo em volta cintado de côr de sangue. Zuniam as abelhas, +cantavam os passaros, e o cheiro das flores, em que me tinha deitado, +trepava-me á cabeça. Fechava os olhos encadeados com a luz do céo e +punha-me a sonhar. O sol appareceu por detraz do monte, correu uma +aragem, as florinhas do rosmano curvaram-se, escondendo-se na troca dos +beijos. Passaram no ar duas borboletas brancas, uma atraz da outra, e +pelas ervas andavam gafanhotos aos saltos. Eu pensava em muita coisa +junta e cantarolava baixinho uma cantiga, que tinha ouvido de longe, +n'um baile da véspera: + + Qual a distancia e a lonjura + Onde o sentido caminha, + Onde é que elle vai parar, + Isso ninguem adivinha. + +Ora os versos que eu cantava, a burra tambem os sabia. Tinha-me +esquecido peal-a e, quando voltei a mim, não vi da burra nem rastos! + +E ali fiquei eu, não sei que tempos, como um simplacheirão, de queixos +cahidos e mãos a abanar, sem achar uma idéa que me allumiasse, sem ver +remedio de vida, a tremer das furias do avô. + +Depois, muito cosido com as paredes, fui até á cocheira. Talvez a Pomba +tivesse tomado o caminho de casa. + +O avô, satisfeito como um gato ao borralho e descançando em meu cuidado, +assentára a barba sobre o peitilho, e no pateo, sentado no banco de +pedra, dormia ao sol. + +A burra não estava. + +Fui para a charneca. Onde via esteva pisada, procurava achar um rasto. +Levava n'uma palhinha a medida certa da ferradura; mas as poucas horas +de sol n'aquella manhã tinham endurecido a terra. + +O sol foi subindo e até ao meio dia andei leguas. O coração batia-me +tanto, que me fazia doer. Não parei. Ia á doida, sem destino. +Bateram na villa ave-marias. Dei por mim a quatro leguas da aldeia. +Calaram-se os passaros; as papoilas das estevas enrolaram-se para +dormir; anoiteceu, e eu deixei-me ficar toda a noite na charneca, a +tremer de susto e de frio. Toda a santa noite um mocho piou e eu pensei +na coça que me esperava. Se não fosse a marréca, tinha fugido para +assentar praça. Uma d'aquellas só pela fortuna! E toda a noite tive nos +ouvidos a mesma cantiga... Mas quem podia adivinhar...? + +Era quasi madrugada, quando cheguei a casa. + +Mal o avô me avistou, bateu-lhe o queixo como em terçãs, e até os beiços +se lhe fizeram brancos. + +--E a burra? perguntou. + +Por felicidade, n'essa altura, a Pomba entrou no pateo, a passo, de +orelha muito murcha, como quem traz peso na consciencia. + +Foi o que me valeu. Eu, que tanta praga durante a noite lhe rogára, tive +até vontade--palavra!--de desatar aos beijos á minha salvadora. + +Mas já o avô a tinha agarrado. O desgosto não lhe havia feito esquecer o +costume, pelo contrario, e uma melhor matadella de bicho tornava-o ainda +mais terno. + +O que elle disse á burra! O que elle lhe disse! + + * * * * * + +Mas embora o velho perdoasse, o mal estava feito. Breve d'isso se +convenceu. Primeiro foram apenas suspeitas, passados dias uma certeza. + +O avô andava envergonhado. Já, quando passava em frente da porta do +sapateiro, não largava chalaças para a loja. O caso tinha sido falado. +Isto de más linguas na aldeia!... O avô parecia-lhe que a honra da burra +tinha o que quer que fosse com a honra d'elle. D'antes sempre +cantando--_tiro-liro-liro!_--andava matuto agora. «Quem seria?... +Vão lá saber!» Nasceu-lhe um odio enorme a todas as cavalgaduras a quem +pudesse attribuir a desgraça. Desafogava comigo e dava-me bofetadas, +cada vez que dizia «não a peaste!» O asno do moleiro era amarello com +uma cruz nas costas e tinha fama de requestado. Nunca mais o poude ver. +Contra todos tinha uma pedra no sapato e, quando o lazão rinchava, +dizia:--«Desavergonhado!» Mas não desconfiava d'elle. Tão feio!... + +Quiz ver se a Pomba se trahia. Quando passeava pela aldeia na burrinha, +ia-lhe sempre observando qualquer gestosinho das orelhas. E ella muito +seria... tic-tic!... + + * * * * * + +Uma madrugada vim dar parte ao avô de que havia mais um machinho na +cavallariça. + +Nem sequer acabou de engolir o copinho de aguardente e atravessou como +doido o pateo. + +Um macho! Um macho!... Mas então quem?... quem? + +A luz da alvorada mal coava pelos intervallos da telha vã, cobertos de +teias de aranha, onde se baloiçavam palhas. Foi preciso que eu +accendesse a candeia. + +Como a Pomba enternecida lambia o filhinho! + +Era um machinho lazão, muito feio, calçado de tres pés, bebendo em branco. + +Quando o avô lhe não deu ali um estupor, é porque já não morre. + +O caso, é claro, fez bulha, ainda mais do que o primeiro. + +Eram quasi dez horas da manhã, quando o avô, que se fôra encostar na +cama, ralado pelo desgosto, ouviu uma voz alegre, que lhe gritava: + +--Parabéns! + +Veio á porta furioso e mostrou o punho ao sapateiro, que se afastava, +rindo, a chouto, no lazãosinho coxo, pelludo, calçado, dos trez pés e +com a tal malha de máu agoiro... + +Ora o que desconsolou o avô foi o que me deu alegria para a vida. +Aquillo do cavallicoque animou-me, porque a burra estava despeada e foi +até onde muito bem lhe pareceu. São gostos. Pobrinho d'uma figa n'alma, +no corpo e na algibeira, vivi desde então com uma esperança. + + * * * * * + +Quando o marrequita acabou de contar a historia, a Caetana que andára +servindo os freguezes, poz-se vermelha... vermelha... + +--Até mais logo, disse elle, sahindo. + +O diabo do marreca tinha sorte! + + + + +INDICE + + Pag. + + As Mães 1 + + O Baile dos velhos 13 + + A Outra 27 + + O Paquete 47 + + Perdido 63 + + Ad Astra 77 + + O Ventura 95 + + O Primeiro sorriso 113 + + O Meu rewolver 127 + + O Mimoso 139 + + Gri-gri 153 + + Na Biqueira 161 + + Requiem aeternam 171 + + As Estrellas do cego 183 + + Os Netos 195 + + A Burrinha branca 203 + + + + +LIVRARIA EDITORA + +GUIMARÃES, LIBANIO & C.IA + +108, R. de S. Roque, 110--LISBOA + +*Mulheres da Beira*, contos, de Abel Botelho--1 vol. broch. $700 + +*Os Amores de Camillo* (Biographia amorosa de Camillo C. Branco) por +Alberto Pimentel--1 vol. illustrado, broch. 1$200 + +*Lyra insubmissa*, versos de Abel Botelho--1 vol. broch. $500 + +*O Lubis-homem*, comedia em 3 actos, de Camillo C. Branco--1 vol. broch. +$600 + +*Historia do Culto de N. Senhora em Portugal*, por Alberto Pimentel--1 +vol. de 500 pag. in-4.º com mais de 80 gravuras--br. 2$000, enc. 2$600 + +*Cartas da Condessa d'Alve*, romance, por Daniella--1 vol. broch. $500 + +*Pintores e poetas de Rilhafolles*, por Julio Dantas--1 vol. ill. $400 + +*Viagem á roda das viagens*, por Alberto Pimentel--1 folh. impresso em +papel de linho $200 + +*Tratamento natural*--(7.º vol. da Collecção do povo) pelo dr. João +Bentes Castel-Branco--1 vol. cart. $100 + +*Meia Noite*, peça em 3 actos, de D. João da Camara--1 vol. br. $500 + +*Rindo...*, contos de D. Claudia de Campos--1 vol. br. $700 + +*Pela Vida fóra*, memorias, de Silva Pinto--1 vol. broch. 800 enc. 1$000 + +*O Sonho da Rainha*, por Alberto Pimentel--1 folheto $100 + +*Pedro Alvares Cabral e o descobrimento do Brazil*, por Faustino da +Fonseca--1 vol. cart. $100 + + + + Notas de transcrição: + + O texto aqui transcrito, é uma cópia integral e inalterada do livro + impresso em 1900. + + Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos + alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a + interpretação do texto, e que por isso não considerámos necessário + assinalá-los. Mantivemos inclusivamente as eventuais incoerências de + grafia de algumas palavras, em particular quanto à acentuação. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS *** + +***** This file should be named 31905-8.txt or 31905-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/1/9/0/31905/ + +Produced by Pedro Saborano (This file was produced from +images generously made available by The Internet Archive) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/31905-8.zip b/31905-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..5715ab5 --- /dev/null +++ b/31905-8.zip diff --git a/31905-h.zip b/31905-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..b98b4f3 --- /dev/null +++ b/31905-h.zip diff --git a/31905-h/31905-h.htm b/31905-h/31905-h.htm new file mode 100644 index 0000000..a07eb0a --- /dev/null +++ b/31905-h/31905-h.htm @@ -0,0 +1,4884 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Contos, por João da Camara</title> + <meta name="Author" content="João da Câmara"> + <meta name="Edition" + content="Lisboa. Livraria Editora Guimarães, Libanio e c.ia, 1900."> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } + h1,h2,h3 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;} + #corpo p.centrado {text-align: center; text-indent: 0;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px #000;} + a {text-decoration: none;} + blockquote {margin-left: 20%; font-size: 0.9em;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + .fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: +75%; margin-left: 10%; margin-right: 10%;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Contos + +Author: João da Camara + +Release Date: April 6, 2010 [EBook #31905] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (This file was produced from +images generously made available by The Internet Archive) + + + + + + +</pre> + + +<div style="text-align:center; padding: 1em; border: double 10px #000;"> +<p> </p> +<p style="font-size: 1.8em;">J<small>OÃO DA</small> C<small>AMARA</small></p> + +<hr style="height: 4px; border-top: solid 1px #000; width: 30%;"> + +<p style="font-size: 2.5em;">CONTOS</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p>1900<br> + +<em>LIVRARIA EDITORA</em><br> + +G<small>UIMARÃES, </small>L<small>IBANIO</small> & C.<sup>ia</sup><br> + +<em>108, Rua de S. Roque, 110</em><br> + +LISBOA</p> +<p> </p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 1.5em;">CONTOS</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align:center; padding: 1em;"> +<p> </p> +<p style="font-size: 1.8em;">JOÃO DA CAMARA</p> + +<hr style="height: 4px; border-top: solid 1px #000; width: 30%;"> + +<p style="font-size: 2.5em;">CONTOS</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p>1900<br> + +<em>LIVRARIA EDITORA</em><br> + +G<small>UIMARÃES, </small>L<small>IBANIO</small> & C.<sup>ia</sup><br> + +<em>108, Rua de S. Roque, 110</em><br> + +LISBOA</p> +<p> </p> +</div> + +<p> </p> + +<p><span class="pn">{1}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<h1><a name="SECTION00010">AS MÃES</a> </h1> + +<p>O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das +queimadas soprava abrazador. Via-se tudo em volta como atravez de vidros +amarellos.</p> + +<p>O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e +cheios de musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da estrada +erguiam-se de espaço a espaço enormes panedos, que ainda<span +class="pn">{2}</span> conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho +abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. +Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas +por cima das outras, acastelladas. Por entre as pedras cresciam as giestas +sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava caír +a semente na terra. Nos pontos mais elevados resahiam do tremulo azul celeste +uns carvalhos rachiticos e tortos, que não davam sombra.</p> + +<p>Elle caminhava alegre, estrada fóra, parando de vez em quando para escolher +nos cachos das amoras, que relusiam ao sol, as menos maduras, avermelhadas, +rijas, cujo acido lhe mitigava a sede.</p> + +<p>Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de +soldado, em que brilhavam como lentejoulas os pedacinhos de mica do granito +desfeito.</p> + +<p>O gosto com que elle diria lá na terra ao Antonio:—«Deite-me isto +abaixo, ó mestre,<span class="pn">{3}</span> e talhe-me n'esta cara uma suissa +como a que eu tinha d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.»</p> + +<p>E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suissa que havia de +usar.</p> + +<p>O gosto com que atiraria para o lado aquellas botas engraxadas, a +mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de +senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse á missa. As botas +altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo e tão bom para andar, +lá tinham ficado penduradas n'um prego, defronte da lareira, muito bem +ensebadas e recommendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas eram botas +amigas. Como havia de calçal-as, contente, para sair com ellas para o trabalho, +quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não ha +sombras na terra!</p> + +<p>Ia morto por voltar aos habitos velhos, á santa vida do campo.</p> + +<p>Lembrava-se, cheio de saudades, das boas<span class="pn">{4}</span> +historias, que se contam pela estrada fóra, na volta do trabalho, caminhando +lentamente atraz dos burros, que, de orelhas muito cahidas, projectam na alvura +da poeira sombras de gigantes.</p> + +<p>O que hão de rir os ganhões com as historias novas que elle traz do +quartel!</p> + +<p>Quasi ao chegar á villa, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, á +direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se <em>chó!</em> aos burros, +pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que passam de +bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de +dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de +malmequeres, e que ellas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por +qualquer dichote amavel, as boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas +que uma ginja.</p> + +<p>Aquelle bocado de tempo era sempre o melhor do dia.</p> + +<p>E, ao pensar na fonte, alargou o passo.<span class="pn">{5}</span></p> + +<p>É coisa aborrecida estar de sentinella duas horas, uma noite de inverno. E a +agua pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na +sargeta, com uma bulha muito triste, muito monotona, tão differente do +estrepito das ribeiras quebrando as aguas nos rochedos das voltas!</p> + +<p>Elle pensava na fonte e nos taes labios vermelhos. E o tempo assim lá +passava mais depressa.</p> + +<p>Um outro, ás vezes, tão triste como elle talvez, gritava-lhe de uma guarita +perdida na treva:</p> + +<p>—Sentinella, álérta!</p> + +<p>E elle respondia, engrossando a voz:</p> + +<p>—Álérta está!... Sentinella álérta!</p> + +<p>E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recahia no mesmo +pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste.</p> + +<p>Mas afinal estava livre! N'aquella mesma tarde, á hora em que as chaminés +começam fumegando e debaixo das parreiras,<span class="pn">{6}</span> emquanto +a ceia aquece, se toca alegremente nas businas, estaria batendo á porta de +casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobresinho a pedir esmola e +agasalho.</p> + +<p>E ria feliz com aquella idéa divertida.</p> + +<p>A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha!</p> + +<p>Sabe Deus, quantas vezes, quando elle pelas madrugadas frias tremia +enregelado na guarita, não molhava ella com lagrimas o travesseiro, a chorar a +sua pobreza.</p> + +<p>Recebera duas cartas d'ella muito ternas, cheias de noticias e de conselhos. +Pedia a todos que lh'as lessem e por fim sabias-as de cór; trazia-as sempre +comsigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um saquinho de coiro, para se +não estragarem.</p> + +<p>E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia +novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro, +cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João.<span +class="pn">{7}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Ainda lhe faltavam tres leguas para chegar a casa.</p> + +<p>Aquelles sitios já eram d'elle muito conhecidos. Lembrava-se perfeitamente +de que, por detraz d'aquellas pedras, que lhe ficavam á esquerda, crescia basta +a herva, regada pela agua de uma fontesita, onde, por mais de uma vez, de +madrugada, quando ali andava guardando as cabras da viuva, viera armar aos +passarinhos.</p> + +<p>Não havia sitio melhor para descançar um bocado.</p> + +<p>No fardel trazia um pedaço de pão e o conducto, meia duzia de azeitonas e um +queijinho pequeno.</p> + +<p>É comer! E, se nos der o somno, dorme-se uma sésta até que abrande o +calor!</p> + +<p>Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em +fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas pedras, +emquanto muito<span class="pn">{8}</span> alto, parecendo pontos negros no azul +do ceu, umas poucas de aguias descreviam curvas enormes, com a mira n'um burro +morto, que apodrecia entre os rochedos.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Quando accordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o norte e +algum tanto abrandára o calor.</p> + +<p>Do outro lado do cabeço ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras da +viuva, que andavam pastando. No alto, d'onde a propriedade se descobria quasi +toda, um pastorito de dez annos, deitado sobre as pedras, com o chapéo de abas +largas, todo roto, a servir-lhe de travesseiro, fazia dançar um bogalho na +ponta esmagada de uma palha de centeio, por onde soprava.</p> + +<p>Sensibilisou-o tal recordação da infancia, que ali passára como aquelle +pequeno.</p> + +<p>—Adeus, ó cachopinho! gritou.<span class="pn">{9}</span></p> + +<p>—Saude! respondeu o pequeno.</p> + +<p>Teria dormido duas horas e achava-se completamente descançado. Ergueu-se, +espreguiçou-se, coçou desesperadamente a cabeça, bateu com os pés no chão para +desentorpecer as pernas e porfim, agarrando no chapéo e no bordão, poz-se +alegremente a caminho.</p> + +<p>Como por ali não havia vinhas, e isto era no mez das vindimas, não +encontrára ninguem por aquelles sitios, abandonados até ao tempo das +sementeiras.</p> + +<p>Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a casa +antes do anoitecer.</p> + +<p>Faltava-lhe ainda quasi uma legua, quando o sol se escondeu.</p> + +<p>As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto, +constantes no mesmo logar, batendo muito as azas.</p> + +<p>Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em duvida sobre o caminho +que havia de tomar. Passava a mão pela cara,<span class="pn">{10}</span> +devagarinho, sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tental-o muito, +sorria-se para elle, mas como quem tem medo de ceder á tentação.</p> + +<p>E que tentação não era!... Se nunca mais vira uns olhos d'aquelle azul!</p> + +<p>A pobre mãe, áquellas horas, sentada á porta de casa, cruzadas sobre os +joelhos as mãos, onde umas veias em relevo resaem sobre uma rede confusa de +rugas pequeninas, pensava n'elle talvez, cheia de amor e de quantas tristezas! +Quem passava por defronte da porta tirava o chapéo áquelles cabellos brancos, +muito bem alisados por debaixo do lenço negro da viuva. N'aquelles olhos meio +apagados brilhavam talvez as lagrimas d'uma saudade... E elle parado ali... +cheio de duvidas!</p> + +<p>Seguindo sempre em frente, mal chegasse ao alto, veria na encosta fronteira +a casa onde nascera, muito caiada, com a cimalha pintada de azul, a porta +vermelha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de cachos<span +class="pn">{11}</span> tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a +subir até desvanecer-se, signal da recompensa depois do dia de trabalho, a boa +ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, passado um +quarto d'hora, estaria nos braços da mãe, seccando-lhe as lagrimas, +trazendo-lhe o coração que levára.</p> + +<p>E continuava em duvidas! Pois a quem mais do que á mãe queria elle?</p> + +<p>E por fim quando se resolveu... tomou para a esquerda.</p> + +<p>Pobre mãe!<span class="pn">{12}</span></p> + +<p><span class="pn">{13}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00020">O BAILE DOS VELHOS</a> </h1> + +<p>Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros.</p> + +<p>Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do +casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. +Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem +faltaram pares no meio da casa.<span class="pn">{14}</span></p> + +<p>Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo:—quem não +foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu os +leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice +fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis, +todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que +attender a tanta senhora, não querendo escandalisar nenhuma.</p> + +<p>A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela illuminação. +Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro vellas +sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a +loiça branca e na chaminé um grande tronco de asinho ardia, rodeado de piorno, +fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um +tropheu, do outro lado da casa.</p> + +<p>Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco tinha +mais<span class="pn">{15}</span> do que outro tanto em serviço na cosinha, e +que tudo aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle +tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, +fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam da casa?</p> + +<p>O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de todo, +coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não +póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, lá se arrastou +conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa +bengala de castãosinho de prata, amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle, +assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a +cabeça muito calva, onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos, +esvoaçavam, tenuissimos, no ar agitado.</p> + +<p>Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar.<span +class="pn">{16}</span></p> + +<p>O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para +não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade proporções +medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a +enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, +como por acaso, nas canellas do mestre-escola.</p> + +<p>A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de +fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez enganados +pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos para traz, +ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações risonhas da +mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos +bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, +havia meio seculo, se sorriam e namoravam.</p> + +<p>Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.<span +class="pn">{17}</span></p> + +<p>—Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento.</p> + +<p>Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche fino, o +collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, parecia ter +voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, +baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos.</p> + +<p>A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito +dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um quarto +de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que +n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas aldeias.</p> + +<p>E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por toda a +casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de rugas, fazia +rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar +incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear constante de +cabeça.<span class="pn">{18}</span></p> + +<p>—Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do +officio.</p> + +<p>—E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior, +continuando a rir.</p> + +<p>Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.</p> + +<p>—Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír +esfalfada num tropeço, ao pé da lareira.</p> + +<p>—Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor.</p> + +<p>E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando +a perna, com um sorriso orgulhoso.</p> + +<p>Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros!</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Mas o melhor foi a ceia.</p> + +<p>O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de +proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario. +Imaginem!<span class="pn">{19}</span></p> + +<p>Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se arranharam, +por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas.</p> + +<p>Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle +coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços +muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos narizes para +baixo.</p> + +<p>Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas +interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos convites +aos assistentes.</p> + +<p>—O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma +colherinha de canja, tia Ignez?</p> + +<p>E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da +bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando os olhos; +alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, +com a concha<span class="pn">{20}</span> mettida na enorme terrina, lançava em +redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem +pedisse.</p> + +<p>—Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção!</p> + +<p>—Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem +quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato.</p> + +<p>Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados.</p> + +<p>Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os copos +para abrir o appetite.</p> + +<p>Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas +discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um +magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, espetou-lhes o +garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladissimo, depois de +attentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua pericia, a +trinchar,<span class="pn">{21}</span> seguindo com olhares gulosos os bocados, +que iam cahindo.</p> + +<p>O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou a +servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam +caindo os baguinhos na toalha.</p> + +<p>O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete.</p> + +<p>Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao ouvido +com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois com os +leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, que poz sobre a +meza defronte do padeiro.</p> + +<p>—Sabem, meus senhores?... Garrafas lacradas por mim no dia do meu +casamento. Os seus copos, façam favor... Ora adeus! O que é isso, sr. +professor? O copo maior... Então? O vinho é o sangue dos velhos.</p> + +<p>O sangue não sei, a lingua é com certeza. Instantes depois, a algazarra +subira de<span class="pn">{22}</span> tom a tal ponto, que o professor, de pé, +examinando á luz a transparencia da amethista enorme que lhe refulgia no copo, +teve de pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada.</p> + +<p>—Meus senhores... começou.</p> + +<p>Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o +mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam áquella +festa, puzeram-se ellas a gritar:</p> + +<p>—Basta! Basta! Não queremos tristezas!</p> + +<p>Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás cabecinhas +brancas.</p> + +<p>Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo +vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa +berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo, +resmungando.</p> + +<p>O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua +mocidade.<span class="pn">{23}</span></p> + +<p>Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o +queriam.</p> + +<p>—E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava +á porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella!</p> + +<p>—Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo +sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho +que tinha na bocca.</p> + +<p>Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se.</p> + +<p>—Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão +e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada.</p> + +<p>—É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por +cima da meza, de collete já todo desabotoado.</p> + +<p>Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. Elle +bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a brincar.<span +class="pn">{24}</span></p> + +<p>—E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o +anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo por +causa ali da tia Domingas.</p> + +<p>—Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da +mão.</p> + +<p>—Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar.</p> + +<p>A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande +bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda +commovida:</p> + +<p>—Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo!</p> + +<p>E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do +mestre-escola.</p> + +<p>—Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não +oiço a voz.</p> + +<p>—Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui...</p> + +<p>—Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que +vocemecê foi.<span class="pn">{25}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das +janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir.</p> + +<p>O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e +muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda, +olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de somno +mal combatido.</p> + +<p>Havia longos silencios e bocejos profundos.</p> + +<p>Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar a +Josepha ao quarto.</p> + +<p>E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com largas +fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antonio, que, por +brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era +costume.<span class="pn">{26}</span></p> + +<p>Pararam todos á porta.</p> + +<p>Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o +d'uma serena meia claridade.</p> + +<p>O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda de +pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de ramagens, ao +fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma +ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, +alvejavam na penumbra.</p> + +<p> </p> + +<p>Havia cincoenta annos!<span class="pn">{27}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00030">A OUTRA</a> </h1> + +<p>Era em fins d'agosto, á hora do meio dia.</p> + +<p>Havia um instante, que, na torre pequenina da egreja, o sacristão, com a +cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens +amarellas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.</p> + +<p>Hora do descanço. Alguns dos que trabalhavam<span class="pn">{28}</span> +mais perto recolheram a casa para jantar e socegar um pedaço, durante a +sesta.</p> + +<p>Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas +na nesgasinha de sombra, as gallinhas dormitavam; os passaros nos salgueiraes, +que sombreavam o ribeiro, tinham emmudecido. No interior das casas nenhum +rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pateos, com +os varaes aprumados, pareciam, como n'um espreguiçamento, dispôr-se para o +somno.</p> + +<p>O sol quasi a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentissimos, +reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados, +que pareciam em braza, e atravessava com elles as ramarias, enchendo o ribeiro +de manchas movediças, multiformes, cheias de scintilações, como pedacinhos de +metal.</p> + +<p>Era aquella a hora a que d'antes costumava recolher a casa o José Miguel, o +melhor<span class="pn">{29}</span> caçador da aldeia, com a rede quasi a +trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e laparos.</p> + +<p>Ainda elle vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na +frente.</p> + +<p>Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta, +encostava-se á hombreira, e punha-se á espera, toda risonha, feliz, fresquinha +como uma flôr, com o seu vestido de linho muito engommado.</p> + +<p>Os que passavam iam-lhe dando as boas tardes.</p> + +<p>—Não tarda ahi, diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa +cheia e cartuxeira vasia.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Tempos!... Tempos!</p> + +<p>Havia quasi um mez que a pobre Marianna debalde esperava o marido áquella +hora.</p> + +<p>Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da +janella<span class="pn">{30}</span> e, com as faces incendiadas, o ouvido +attento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, +deixava correr em fio as lagrimas silenciosas.</p> + +<p>E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam para ella com um modo tão +triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os +outros:—Coitadinha!</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que +passára!</p> + +<p>Para aquillo tinha casado, para mal decorrido um anno, um anno pouco mais, +ali se vêr sósinha, chorando o marido que lhe fugira!</p> + +<p>Porque assim fôra rebelde aos conselhos do pae? Bem lh'o tinha elle prégado +no proprio dia em que dera por aquelles amores!</p> + +<p>O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, á porta da rua, viera +buscal-a<span class="pn">{31}</span> por um braço, arrastára-a pela escada até +ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando +chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas:—Senhora!</p> + +<p>E ella começara a chorar e logo elle, ternissimo e afflicto, a enchera de +beijos.</p> + +<p>Ainda não pensára n'aquillo...! Pois tão nova ainda, havia de assim +deixal-o? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um +conquistador!</p> + +<p>Recordára-lhe a morte da mãe que a deixára com trez annos entregue a elle, o +que elle soffrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera.</p> + +<p>Era á noite, noite muito serena, cheia de murmurios misteriosos, que se +elevavam dos campos n'uma grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das +aguas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janella estava aberta e lá de fóra +vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera.</p> + +<p>Junto da porta crescia uma roseira, que<span class="pn">{32}</span> mettêra +para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas +pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos +ninhos.</p> + +<p>O mestre-escola approximou-se da janella e esteve por algum tempo respirando +aquelle ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que +recordações.</p> + +<p>Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço +muito bem torneado, o cabello farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe +a carnadura branca, sadia e forte.</p> + +<p>O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento +languido, vergando a um suspiro da noite.</p> + +<p>O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um movimento d'hombros +resignado.</p> + +<p>—É preciso casar-te, não ha remedio.</p> + +<p>Como por miudos se lembrava de toda a scena que tivera com o pae e dos +conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra elle que o José Miguel a havia de +abandonar um<span class="pn">{33}</span> dia, não porque fosse mau, mas porque +era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que +tinham sido, uma apoz outra, todas as raparigas da aldeia.</p> + +<p>Que mal empregadas lagrimas ella chorára, até que afinal o pae consentira no +casamento!</p> + +<p>Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os trez commentado aquella +historia!</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Um dia o mestre-escola fôra pelo Prior e outros convidado para uma caçada a +que iria tambem o José Miguel.</p> + +<p>Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe á porta.</p> + +<p>—Prompto, sr. Eustachio? Olhe que o Prior, ha mais de um quarto d'hora +que está á sua espera no adro!</p> + +<p>—Lá vou! lá vou! gritou de dentro o Eustachio.<span +class="pn">{34}</span></p> + +<p>E appareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o bonnet de pala +verde, que usava havia dez annos.</p> + +<p>—Adeus! disse ao José Miguel com máu modo.</p> + +<p>—Sr. Eustachio...! respondeu este, cumprimentando-o, entre ironico e +atarantado.</p> + +<p>E, erguendo os olhos, entreviu na unica janella do primeiro andar, detraz +das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe +sorria por entre muitas lagrimas.</p> + +<p>—Vamos! disse o Eustachio, pondo-se a caminho e olhando de revez para +o outro.</p> + +<p>—Deixa estar, grande patife! ia pensando o José Miguel. Ainda hoje +m'as has de pagar!</p> + +<p>Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com +impaciencia.</p> + +<p>Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustachio respondeu +com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a egreja era +no<span class="pn">{35}</span> fim da aldeia e no sopé d'um cabeço predilecto +das perdizes.</p> + +<p>Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no +gatilho, esperava que as perdizes levantassem.</p> + +<p>—Entra, cão!</p> + +<p>Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saude. O velho +caçador fez um movimento de máu genio.</p> + +<p>Então o José Miguel, collocado um pouco mais longe, apontou serenamente, +descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um +instante haverem batido convulsamente as azas, inclinaram as cabeças e +deixaram-se cahir a prumo, como coisas inertes.</p> + +<p>—Que é lá isso? perguntou o Eustachio.</p> + +<p>—O sr. não vê? disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. +São duas perdizes.</p> + +<p>E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustachio o não +ouvisse:<span class="pn">{36}</span></p> + +<p>—E dois <em>bigodes</em>. Elle que os vá contando.</p> + +<p>E contou-os, e não foram poucos.</p> + +<p>Felizmente o Eustachio não era de reservas. O rapaz enthusiasmou-o.</p> + +<p>—Bravo! dizia elle ao fim da tarde, com o olhito a luzir, o que era +tambem d'umas beijocas a mais na borracha do Prior.</p> + +<p>E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no hombro:</p> + +<p>—Sabes que tens quasi uma riqueza n'essa espingarda?</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Com que saudades a Marianna recordava esse momento em que, pela primeira +vez, ouvira da bocca do pae um elogio ao namorado!</p> + +<p>—Mas isto não obsta. Não quero! teimava ainda o Eustachio. Aquillo é +um cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas peor do que viuva!<span +class="pn">{37}</span></p> + +<p>Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?</p> + +<p>O José Miguel acirrára-se com aquella resistencia e, em vez de abandonar a +rapariga, como fizéra ás outras, cada vez se mostrava mais assiduo junto da +filha do mestre-escola. A Marianna definhava-se, que era um dó vel-a.</p> + +<p>O Eustachio, bem contra vontade, não teve outro remedio, consentiu.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>O bom tempo tem azas.</p> + +<p>Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a +triste chorava amargamente, lembrando-se d'aquelles primeiros mezes de casada e +das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do <em>Valente</em>, +que voltava da caça.</p> + +<p>Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava +a mesa para defronte da janella, que uma parreira sombreava; dispunha-a com +muito cuidado, o logar d'ella e o d'elle, um defronte<span +class="pn">{38}</span> do outro, o cangirão cheio de vinho, o pão alvo partido +em quartos, os pratos de fructa, que perfumavam a casa.</p> + +<p>Então o <em>Valente</em> entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, +querendo que lhe abrissem a porta do pateo, para onde logo sahia a correr, +enterrando o focinho na panella cheia de caldo e de grandes bocados de pão de +munição.</p> + +<p>O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, +sorria ao ver aquelles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco, +bebia-o depois, de uma vez, d'olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um +bello ah! de satisfação.</p> + +<p>—Vamos a isto mulher, vamos a isto! dizia approximando da mesa a +grande cadeira de páu santo.</p> + +<p>E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a +terrina e enterrava a concha nas sopas.</p> + +<p>Emquanto ia comendo, vinham as historias do dia.<span +class="pn">{39}</span></p> + +<p>Ella pouco podia adeantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de +novo.</p> + +<p>Elle então contava façanhas do <em>Valente</em>, que, saciada a fome, muito +sujo, muito lambusado, sentado a um canto, d'olhos meio-cerrados, esperava com +paciencia o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa.</p> + +<p>Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava.</p> + +<p>Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquelle calor andavam levadas da +breca! O que elle andára por aquelles mattos!</p> + +<p>A mulher, sentada defronte d'elle, ria muito contente, mostrando-lhe os +dentes muito brancos entre os labios vermelhos, com duas covinhas aos +cantos.</p> + +<p>Pois as perdizes andavam assim como elle dizia, e estava a rede ali tão +cheia!</p> + +<p>—Mas vê lá se outro consegue o mesmo, dizia o José Miguel todo +orgulhoso. É que d'aquillo e d'estas não ha outro que as tenha na aldeia.<span +class="pn">{40}</span></p> + +<p>E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas.</p> + +<p>—São de ferro!</p> + +<p>O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com elles á +sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.</p> + +<p>Caçador velho, muito conhecedor d'aquelles terrenos, gostava de dar +conselhos ao genro, que o escutava attencioso.</p> + +<p>Isto não obstava a que, sahindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o +sogro, matando-lhe a caça que este errava.</p> + +<p>—Ora anda lá, meu velho, resmungava muito alegre, apanha lá mais este, +para a conta.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Agora o José Miguel continuava a sahir todas as manhãs, mas só recolhia alta +noite. Ás vezes, nem recolhia, e ella, coitadita, levava as noites a chorar.</p> + +<p>Quando o marido sahia, punha-se á janella<span class="pn">{41}</span> e +via-o desapparecer por detraz da egreja, onde o sol nascente batia de chapa. +Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O +<em>Valente</em> seguia-o cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a extranhar +o dono. Desappareciam depois entre os pinheiros e ella já não podia cá debaixo +tornar a avistal-os. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a +elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo +se desfazia no azul do céu.</p> + +<p>Ella então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsamente.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>N'esse dia pela uma hora, o Eustachio entrou em casa da filha.</p> + +<p>—O teu homem?</p> + +<p>—Foi para a caça, respondeu a Marianna, sentando-se no leito e á +pressa limpando as lagrimas.<span class="pn">{42}</span></p> + +<p>O mestre-escola trazia o bonnet de palla verde, a espingarda a tiracolo, o +polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede.</p> + +<p>—Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incommodar. Deita-te, filha, que +eu vou procural-o.</p> + +<p>A Marianna quiz retel-o, extranhando-lhe os modos.</p> + +<p>—Talvez o não encontre. Sabe Deus onde elle pára!</p> + +<p>—Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! +respondeu o Eustachio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha, +sabes o que vou fazer?</p> + +<p>—Ó meu pae!... disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo +segurar-lhe os braços.</p> + +<p>—Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não teem mais que o castigo que +ambos merecem. Tu sabes quem ella é?</p> + +<p>A Marianna disse que não com a cabeça.<span class="pn">{43}</span></p> + +<p>Mas não havia de saber!...</p> + +<p>—A Maria da Escusa, aquella cigana, que, não contente com ter dado +cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem... e a +ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!</p> + +<p>E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente.</p> + +<p>A Marianna, cheia de susto, sem forças para seguir o pae, sem forças para +gritar, deixou-se cahir no leito, desmaiada quasi, sem animo para pensar na +desgraça, que lhe estava acontecendo.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Assim esteve por muito tempo. Despertaram a afinal uns latidos alegres, tão +conhecidos d'ella. Sentou-se no leito. Os latidos approximaram-se, e por fim o +<em>Valente</em> rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar, +a arranhar na porta do pateo.<span class="pn">{44}</span></p> + +<p>Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pae e o que diziam +não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas.</p> + +<p>A Marianna correu, muito chorosa, até á porta, e, muito excitada, cahiu +soluçando nos braços do marido.</p> + +<p>—O que é isso? o que é isso? perguntava o Eustachio, tambem com um +nósito na garganta. Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o +disparate, tinha o deixado lá ficar.</p> + +<p>—Então, mulher, então? Que tens tu? dizia o José Miguel muito +commovido.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa, sentaram-se todos á mesa.</p> + +<p>A curiosidade, que nem um dito, uma allusão deram motivo para saciar, sorria +nos olhos vivos da Marianna.</p> + +<p>Que se haveria passado?<span class="pn">{45}</span></p> + +<p>Mas, quasi ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito +animadamente, enganou-se e, querendo beber á saude da filha, pegou no copo +d'agua; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro désse pela distracção, +lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.</p> + +<p>—Não é só na caça que se apanham <em>bigodes</em> sr. Eustachio.</p> + +<p>—Não, não, respondeu o velho. E tu que o sabes d'hoje...!</p> + +<p>O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um +sorriso em que a malicia apagára a tristeza, levantou-se da mesa e veio +beijal-a muito.</p> + +<p>—Coitada da Marianna!</p> + +<p>—Então ella... enganou-te?</p> + +<p>—Porque falas n'isso? Que te importa? Que me importa?</p> + +<p>A curiosidade da Marianna ainda não estava satisfeita.</p> + +<p>—Com quem?... Dize... Dize... Com quem?<span class="pn">{46}</span></p> + +<p>Então o mestre-escola, muito córado—era talvez da pinga? entendeu +dever deixal-os sós, e sahiu a rir, com um arsinho trocista, muito contente, a +esfregar as mãos.<span class="pn">{47}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00040">O PAQUETE</a> </h1> + +<p>Era no fim da azinhaga—uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno +e tendo ainda marcada na lama secca a passagem do ultimo carro de bois. D'um +lado e d'outro velhas piteiras misturavam a côr verde claro das largas folhas +carnosas com o verde escuro, quasi negro, das silvas e pilriteiros; de espaço a +espaço erguiam-se algum sobreiro decrepito, faias brancas e prateadas,<span +class="pn">{48}</span> loureiros embalsamando o ar com o cheiro forte e bom das +longas folhas agudas.</p> + +<p>No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril.</p> + +<p>A hera apoderára-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo +abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarello que revestia +cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos cachos de arroz que +desciam em elegantes pyramides das beiras do telhado.</p> + +<p>Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos, +conduzia do pateo ao vestibulo do palacio.</p> + +<p>Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco, +ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da familia, sobre o qual ameaçava +ruina uma grande coroa de conde transformada em coito de lagartixas.</p> + +<p>Os vidros ennegrecidos e apenas translucidos tremiam de velhice nos +caixilhos de chumbo.</p> + +<p>Pelo pateo, nos intersticios das pedras,<span class="pn">{49}</span> crescia +livremente a erva, e a um canto um rallo juntava as estridulas melodias ao +monotono coaxar das rãs do pantano visinho.</p> + +<p>O Conde estava na livraria sentado n'uma velha poltrona de coiro com pregos +de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia attentamente.</p> + +<p>A livraria era uma vasta sala alumiada por trez janellas de grande vão.</p> + +<p>Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanario branco, suas casinhas bem +caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e indicando a +estrada que a atravessava conduzindo d'uma villa a outra.</p> + +<p>Entre as janellas e as portas estavam as estantes com os grandes in-folios +amarellos, os grossos diccionarios e as obras classicas latinas, portuguezas e +francezas.</p> + +<p>A parede fronteira ás janellas, por cima da chaminé de marmore branco, era +occupada pelo retrato do avô do Conde. Era um homem alto, bem feito, +sympathico. Estava<span class="pn">{50}</span> vestido á epocha de D. João V. +Tinha uma das mãos nos copos da espada, as suas commendas ao peito e uma sombra +exquisita, forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura +deixára caír o doirado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha +tecêra a teia e esperava pela presa, escondida n'um rasgão da tela.</p> + +<p>O sol descia e o Conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puchára a +cadeira para o vão da janella e, com o livro sobre o joelho, o cotovello sobre +a perna traçada e a testa encostada á mão, lia attentamente uma passagem de +Suetonio.</p> + +<p>O crepusculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o ultimo raio +brincado um instante na testa veneranda do avô commendador, desceu para detraz +do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco a pouco n'uma +tinta geral.</p> + +<p>O Conde fechou o livro sobre o index e poz-se a contemplar a aldeia.</p> + +<p>O vento do norte entrando pelas fendas<span class="pn">{51}</span> das +paredes sibillava tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de +chumbo, as aves nocturnas, que habitavam as vastas chaminés do palacio, +começavam a piar e aos ouvidos do Conde chegava a alegria da aldeia como nota +extranha d'uma lingua esquecida.</p> + +<p>Meiados de novembro, as noites eram frias.</p> + +<p>O Conde olhou tristemente para as janellas das casas dos lavradores +alegremente illuminadas pelo fogo vivo das lareiras, e, estremecendo de frio +dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha e, mettendo +as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala.</p> + +<p>Era um velho alquebrado e quasi completamente calvo; apenas duas ou trez +madeixas de cabello branco e comprido desciam-lhe da nuca até á golla do +casaco. Usava a barba toda; era curta e branca. Os olhos, cuja luz a edade ia +apagando, eram da côr mal definida que teem os olhos dos velhos<span +class="pn">{52}</span> e os das creanças de mama: tinham comtudo uma expressão +doce e melancholica. Ao canto da bocca uma prega vertical, desdenhosa e altiva +quando o Conde estava serio, dava-lhe uma expressão de sympathica tristeza +quando sorria.</p> + +<p>Ao toque da campainha accudiu um criado.</p> + +<p>Era um velho tambem, mais velho do que o Conde talvez. Trazia vestida uma +casaca por certo verde, de tão velha que era, se não lhe occultassem o estofo +accumuladas passagens de linha preta.</p> + +<p>Entrou curvado um pouco pelo respeito, outro tanto pelos annos.</p> + +<p>—José, disse o Conde, vae arrancar mais uma taboa á sala do docel a +arranja o lume.</p> + +<p>—Sr. Conde, eu sósinho não tenho forças.</p> + +<p>—Chama o caseiro, como tens feito nos outros dias.</p> + +<p>—O Manuel foi-se hoje embora, sr. Conde.<span +class="pn">{53}</span></p> + +<p>—Foi-se hoje embora! Porque?</p> + +<p>—Foi trabalhar para a quinta do João Pereira. V. Ex.ª bem sabe que o +homem, coitado, tem familia que sustentar e como os ordenados andam +atrazaditos...</p> + +<p>—Effectivamente, recordo-me de que ha já bastante tempo... Ora, +coitado! Mas, porque não me disse elle?... Eu esqueço-me de tudo. Has de +dar-lhe dois pintos da minha parte. Eu te ajudo hoje a arrancar a taboa.</p> + +<p>E saíndo ambos, foram a um quarto proximo e arrancaram uma taboa do soalho. +O José serrou-a n'umas poucas de partes, feriu lume n'uma pederneira, porque o +Conde reprovava os fosforos como perigosos, e, pouco depois, uma chamma viva e +alegre trepava pela chaminé.</p> + +<p>O Conde tornou a abrir o livro e continuou a ler Suetonio á luz de um bocado +do seu palacio.</p> + +<p>Tinham-se ido as taboas pouco a pouco e já quasi não restavam senão trez +quartos<span class="pn">{54}</span> completos, o do Conde, o do José e a +livraria. Taboas, vigas, portas e janellas tinham-se desfeito em cinzas.</p> + +<p>E os velhos lavradores da aldeia, ao verem o fumo erguer-se acima da chaminé +do palacio, sorriam tristemente e diziam:</p> + +<p>—Coitado!</p> + +<p>Mas o Conde continuava alegre e indifferente. Como até ali nada lhe faltára, +Deus sabe á custa de quantos sacrificios do pobre criado, não pensava no estado +de miseria a que se achava reduzido ou, para melhor dizer, não queria +pensar.</p> + +<p>Quando ao domingo voltava da missa, vinha conversando alegremente, com um +certo ar entre familiar e protector, com os lavradores que o estimavam e +gostavam de ouvil-o. Entrava nas choupanas mais pobres, e afflicto com a +miseria que n'ellas encontrava, dizia baixinho para o velho José, que o +acompanhava sempre, com o grande missal romano debaixo do braço:</p> + +<p>—José, deixa um pinto em cima da<span class="pn">{55}</span> mesa para +esta pobre gente festejar o domingo.</p> + +<p>E saía tocando ao de leve com os dedos nas faces rosadas das criancinhas, +que olhavam para elle com os seus meigos olhos grandes, cheios de espanto e de +curiosidade.</p> + +<p>O José demorava-se como que para obedecer ao fidalgo e saia momentos depois, +levando nas vastas algibeiras da casaca os bocados de pão negro e de carne, com +os quaes e com a ajuda de mais uma taboa o Conde havia de jantar n'aquelle +dia.</p> + +<p>E o Conde continuava alegre e passava os dias conversando, como elle dizia, +com os seus auctores favoritos e entretendo a imaginação com os sonhos doirados +d'um futuro melhor.</p> + +<p>Tinha um filho.</p> + +<p>Havia trez annos que o seu genio desleixado o obrigára a partir para o +Brazil, na esperança de, á força de trabalho, reparar os desastres da +fortuna.</p> + +<p>E não fôra a ambição que o levára tão<span class="pn">{56}</span> longe. Não +ignorava elle a maneira como se sustentava o Conde e o seu genio altivo +custava-lhe sujeitar-se á compassiva esmola dos aldeãos.</p> + +<p>Um dia, deu parte de suas tenções ao pae, mostrando-lhe a conveniencia +d'aquella partida, occultando-lhe porém uma grande parte da verdade com receio +que a revelação d'ella fosse um golpe fatal na vida do velho. Repellida +primeiramente a ideia como absurda e pouco digna, o pobre pae, com o coração +esmigalhado pela dôr e pela vergonha, teve por fim que render-se e sacrificar o +seu orgulho ao orgulho mais nobre do filho.</p> + +<p>Obtida a licença, partiu levando como capital a benção paterna e os poucos +pintos que rendeu mais uma hypotheca.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Os primeiros dias foram horriveis para o Conde. Sentia um vacuo enorme +n'aquella casa, havia pouco tão cheia ainda. Depois a<span +class="pn">{57}</span> dôr foi abrandando pouco a pouco, e o Conde voltou aos +habitos antigos. Tinha mais um sentimento no coração: a esperança.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Uma tarde chegou uma carta que dizia:</p> + +<p> </p> + +<p>«Meu caro pae, vou bem, vou muito bem. Pelo proximo paquete espero poder +enviar-lhe cem mil réis, quantia que continuarei a mandar todos os mezes.»</p> + +<p> </p> + +<p>O Conde procurou <em>paquete</em> no diccionario de Moraes, mas achou a +palavra comida pela traça.</p> + +<p>O José chorava de alegria e n'aquella noite deitou duas taboas no lume, +acceitou um copo de vinho ao João Pereira, e, quando acabou o terço, disse para +o Conde, com quem o resára em voz alta:</p> + +<p>—Para que se realise o que sr. D. Carlos nos promette: Salve, +Rainha.<span class="pn">{58}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>E passou-se mez e meio e o Conde dizia:</p> + +<p>—O que será <em>paquete</em>?</p> + +<p>De Agostinho de Macedo para cá não sabia nada, não lia jornaes, nem vêl-os +queria. Detestava-os com um odio de velho, quasi instinctivo. Quando via algum +jornal murmurava logo!</p> + +<p>—Maçonaria!</p> + +<p>E continuava a esperar o paquete, como um sebastianista espera D. Sebastião, +com uma confiança cheia de misterios e de pequenas impaciencias.</p> + +<p>O palacio já pouco mais tinha do que as paredes. Pouco a pouco, taboa, por +taboa, viga por viga, o quarto do criado passára pela chaminé e este dormia +agora na camara do Conde.</p> + +<p>E o velho fidalgo dizia ao ver crepitar na vasta lareira as taboas +carcomidas:</p> + +<p>—Paciencia! Isto concerta-se depois, quando chegar o paquete.<span +class="pn">{59}</span></p> + +<p>E o José apenas respondia:</p> + +<p>—Salve, Rainha.</p> + +<p>Estava-se no principio de janeiro.</p> + +<p>O Conde começou a separar os livros em duas classes: a dos livros uteis e a +dos livros inuteis.</p> + +<p>Os livros inuteis transformaram-se em calor, e, quando o Conde via as +paginas amarelladas torcerem-se sob a acção do lume, olhava para ellas +tristemente e depois, erguendo os olhos para o retrato do avô, dizia +mentalmente, como que pedindo desculpa:</p> + +<p>—São os peores.</p> + +<p>Acabaram os livros inuteis e o Conde poz de lado os optimos e queimou os +restantes.</p> + +<p>Duraram dois dias.</p> + +<p>E como o paquete não chegava, o Conde coçava a cabeça e olhava com um modo +menos respeitoso para o missal romano.</p> + +<p>O José triplicava o numero das <em>salve-rainhas</em>.</p> + +<p>E o paquete não chegava, e os manuscriptos<span class="pn">{60}</span> +arderam, e o Conde queimou as gravuras e conservou apenas o Suetonio.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Passados dias chegou uma carta.</p> + +<p>Trazia um sobrescripto azul, um pouco transparente, muito boa lettra, uma +lettra com muitos finos e grossos, como a d'um professor de caligraphia. Trazia +a marca do Brazil e cheirava a carvão de pedra.</p> + +<p>Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o Conde estendia +instinctivamente as mãos tremulas sobre as cinzas frias da chaminé, entrou +gritando:</p> + +<p>—O paquete! o paquete!</p> + +<p>O Conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta.</p> + +<p>Era talvez a riqueza!</p> + +<p>Passou-lhe uma nuvem pelos olhos.</p> + +<p>Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abrio o sobrescripto.</p> + +<p>E leu:<span class="pn">{61}</span></p> + +<p>«Temos o doloroso dever de dar parte a V. Ex.ª do fallecimento do seu +filho...»</p> + +<p> </p> + +<p>O Conde não poude ler mais e deixou cair a carta.</p> + +<p>José exclamava:</p> + +<p>—Perdidos! Perdidos!</p> + +<p>E dava com a cabeça nas paredes.</p> + +<p>O Conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha de papel +azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento.</p> + +<p>—Resta-nos a caridade, José, disse porfim. Vae, vae ter com essa gente +a quem hontem ainda eu dei esmolla, e dize-lhe que o Conde lhe pede, por amor +de Deus, um bocado de pão.</p> + +<p>E depois soluçando:</p> + +<p>—Manuel! Filho!... Meu querido filho! E como fazia muito frio, o Conde +queimou o Suetonio.<span class="pn">{62}</span></p> + +<p><span class="pn">{63}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00050">PERDIDO</a> </h1> + +<p>Quando ouviu ao longe, no campanario da freguezia, bater meia noite, +entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um +sussurro!... Tudo dormia áquella hora.</p> + +<p>Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao hombro, approximou-se da aldeia, que +tinha de atravessar.</p> + +<p>Tudo era em silencio; apenas, muito ao<span class="pn">{64}</span> longe, +junto á fonte, uma rã solitaria coaxava tristemente.</p> + +<p>A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas trinta ou +quarenta casas, dispostas no fundo do valle, ao acaso, entre os choupos da +beira do riacho e os ultimos pinheiros da matta, que descia pela encosta em +pujante vegetação sombria.</p> + +<p>Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar +compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido á escuta, olho á +espreita, com um pé para deante, o outro para traz, posto de bico, prompto para +a retirada. E, quando tudo outra vez cahia no primitivo silencio, tornava a +caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobresaltado, de olhar desconfiado, +como se fosse commetter um crime.</p> + +<p>Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras, onde a lua, +n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram +deixando cair<span class="pn">{65}</span> grossos pingos d'agua sobre a rama +dos pinheiros.</p> + +<p>O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, +fantasticos, em meio do sussurro da folhagem.</p> + +<p>Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A +chuva engrossára, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar, +iriando, como perolas transparentes, as gottas d'agua, que tremeluziam no +extremo das agulhas.</p> + +<p>Era no alto da serra que o seu thesoiro junto pouco a pouco, desde tantos +annos, fôra escondido. Vinha augmental-o n'aquella noite, vinha palpal-o, +tomar-lhe o peso, tendo como unicas testemunhas de prazer tamanho o céo de +temporal e os pinheiros a gemerem.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Subitamente estacou. Na clareira, ao meio do pinhal, era a choupana do +guarda. Ouvira um chôro de criança e uma voz triste de mulher a cantar.<span +class="pn">{66}</span></p> + +<p>O avarento approximou-se pé ante pé.</p> + +<p>—É fome que o pequeno tem, dizia a mulher com a voz cheia de lagrimas, +interrompendo o canto. Se eu não comi!... Seccou-se-me o leite.</p> + +<p>E chorava.</p> + +<p>Aquella mulher pedira-lhe esmola na vespera. Pedira-lhe esmola!... Tinha +fome, dizia. E elle?... Tinha frio. E elle? O filho definhava-se, desde que o +marido d'ella adoecêra. Pedira-lhe esmola, como se lhe fôra possivel, a elle, +dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher!</p> + +<p>Mas ao som d'aquella voz estremeceu, porque ella, doida, offendida pela +recusa, desgrenhada, d'olhos injectados, chamára-lhe ladrão, assassino, +pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara.</p> + +<p>—Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, has de chorar, em cima da +cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama,... ladrão!</p> + +<p>E só a idéa de poder um dia ser assassinado,<span class="pn">{67}</span> +roubado, que vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que +lhe erriçou todos os pelinhos do corpo.</p> + +<p>Afastou-se da chóça, para longe afugentar aquella idéa soturna; mas poucos +passos andára, quando lhe pareceu ouvir o rachador, com uma voz fraca de +tisico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome.</p> + +<p>Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido á +escuta, sentindo bater accelerado o coração.</p> + +<p>Calára-se tudo na chóça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal +fóra uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de soffrer.</p> + +<p>Tentariam aquelles roubal-o?</p> + +<p>E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal fóra, deixando o +vento levar-lhe o chapéo esboracado e remoinhar-lhe nas longas farripas +grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas silvas os tristes farrapos que +o cobriam, escorregando na caruma, agarrando-se aos pinheiros, que +sacudidos<span class="pn">{68}</span> o encharcavam, a correr, a correr por ali +fóra, até ao alto da serra, onde se deixou cahir extenuado ao pé d'um enorme +pinheiro manso, sêcco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os +longos braços de espectro.</p> + +<p>Era ali o seu thesoiro.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos humidos, arquejando +longamente. Depois, creando animo, mostrando força inacreditavel em corpo tão +franzino, com os braços osseos erguendo alto a enxada e deixando-a depois cair +com um esforço, que lhe arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada, +começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao +ferro.</p> + +<p>Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova, +metteu-lhe dentro as mãos, e, arquejante, fazendo um<span +class="pn">{69}</span> esforço supremo, com um ah! de victoria, puchou a si o +cofre, que, rolando no chão, produziu um som criador do extasis.</p> + +<p>Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou o +suor que lhe escorria pela testa.</p> + +<p>Ali estava o seu thesoiro!... Seu!</p> + +<p>E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimasinha no +olho, abaixando-se para sopesal-o.</p> + +<p>Queriam roubal-o talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente d'uma +fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendel-o, como nunca +loba defendeu um filho.</p> + +<p>Podia alguem ter desconfiado do logar onde o escondêra... Era muito noite +ainda teria tempo de sobra para leval-o d'ali. Felizmente não lhe escasseavam +forças. Querido thesoiro da sua alma, junto moeda a moeda!</p> + +<p>E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra +alma lá<span class="pn">{70}</span> dentro houvesse de perceber a d'elle; +pedia-lhe, cheio de ternura que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de +seu coração!</p> + +<p>Os pinheiros humidos tornavam balsamica a atmosphera. Os raios obliquos da +lua quebravam as sombras das arvores nos troncos das outras e as sombras das +copas bailavam, fantasticas, sobre os fetos molhados.</p> + +<p>E elle ali, tão sósinho com seu thesoiro! Havia tanto que lhe não punha os +olhos!</p> + +<p>Sentando-se n'uma pedra, approximando o cofre, com um esforço enorme, fez +girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.</p> + +<p>O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faiscas d'oiro. E o +avarento, em extasis, fechou os olhos, como encandeado por tanta luz!<span +class="pn">{71}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>O vento cessára de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, um +grito de dôr, estridulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, pelo ecco +da montanha empinada, partiu da choça do rachador.</p> + +<p>Eram elles com certeza!... Eram os ladrões!</p> + +<p>Ergueu-se abraçado ao thesoiro, tranzido de medo, suando frio. E depois, +espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne nos +esgalhos, cahindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e levantando-se +logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito, que, ameaçador, +o perseguia.</p> + +<p>E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem sabia +por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.</p> + +<p>Quando o luar começava esmorecendo,<span class="pn">{72}</span> ajoelhou, +meio desfallecido, e com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova funda, onde, +com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, d'onde estava +d'antes. Tapou tudo e, por instincto de precaução, puxou-lhe os fetos para +cima. E abalou outra vez.</p> + +<p>Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo, com os cabellos +agarrados ás faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se cahir no catre +nojento.</p> + +<p>O dia rompia sereno. O vento abrandára e só por detraz da serra é que as +nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paizagem, em que destacavam +alvejantes as casarias. O sol erguia-se esplendido, enchendo os campos de joias +scintillando no escrinio de verdura. A aldeia acordára n'um banho de luz, cheia +de bulicios, de cantos de gallos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma +columnasinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do cheiro<span +class="pn">{73}</span> bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo +os almoços.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delirio, apenas +intervallado por curtos somnos cheios de pesadelos, um pesadelo ainda lhe +pareceu a lembrança confusa de toda aquella noite agitada.</p> + +<p>Viu-se percorrendo o pinhal immenso, que gemia e dançava lugubremente, +estorcendo-se no temporal como um condemnado na fogueira. Lembrou-se do grito +que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas despegadas do +sabugo, o corpo cheio de nodoas negras, os joelhos escalavrados.</p> + +<p>Mas onde enterrára o seu oiro?</p> + +<p>Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o sitio, a +forma d'algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no catre, rasgando com +as unhas<span class="pn">{74}</span> lascadas a carne magra do peito, tremulo, +suando frio.</p> + +<p>Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a +bocca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas ás portas +das casas, vigiando os pequenos, que brincavam no riacho, tostando ao sol os +ventresinhos redondos e as cabecinhas loiras.</p> + +<p>E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali fóra! +Ali estava o seu thesoiro, ali debaixo d'uns fetos, cujas hastes se abriam á +sombra d'uns pinheiros, fetos e pinheiros todos eguaes n'aquella +immensidade!</p> + +<p>Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu encostas, +procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a mão pela testa com +gestos de desespero, como tentando arrancar do cerebro a loucura, que, pouco a +pouco, o invadia!<span class="pn">{75}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Quasi noite foi dar á choça do rachador.</p> + +<p>Lembrou-se então que d'ali partira o grito que o amedrontára e, escumando de +raiva, atirou-se contra a porta, berrando:</p> + +<p>—Ladrões! Ladrões!</p> + +<p>No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos, +pallida, mirrada, as mãosinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita velha +de seda roxa.</p> + +<p>E o pae e a mãe, ao lado do cadaver do filho, choravam mansamente.</p> + +<p>O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo ultimo vislumbre da +razão.</p> + +<p>Recuou instinctivamente e foi cahir sobre um grande molho d'achas, dizendo +palavras desencadeadas, com os olhos esgaseados, doido de todo e para +sempre.</p> + +<p>E por deante d'elle passavam bandos alegres de pintasilgos fugindo para os +ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que elle deixára nas silvas +do pinhal, em<span class="pn">{76}</span> quanto os gaios contentes, +aquecendo-se ao ultimo raio de sol d'aquella tarde de primavera, soltavam, +pulando de ramo em ramo, grandes gargalhadas ironicas.<span +class="pn">{77}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00060">AD ASTRA</a> </h1> + +<p>Quando o tio Bernardo, deitando o barrete de pelles para o lado, começava a +apontar para o tecto as nuvens de fumo do negro cachimbo de gesso, escusado era +falar-lhe; só rosnava em resposta um dito de mau humor ou, quando muito, um +disparate. Estava pensando no Brazil, no seu Brazil, como lhe elle chamava.</p> + +<p>E era tratar de não fazer bulha, emquanto<span class="pn">{78}</span> elle, +sorrindo para os florões do tecto, recordava scenas da mocidade, temporaes +vencidos pelo arrojo, amores de mulatas, muito ouro ganho n'um só bafejo da +sorte.</p> + +<p>—O tio Bernardo está no Brazil, diziamos nós baixinho.</p> + +<p>E, quando o cachimbo se lhe apagava, olhava para nós a rir, sacudindo a +cinza na unha rugada e negra:</p> + +<p>—Cá me embarquei eu outra vez! Demonio de tabaco! Este diabo vem de +lá... Não sou capaz de fumal-o sem que logo me ponha a sonhar... Estava +pensando agora...</p> + +<p>E começava uma historia por nós ouvida mil vezes. Eu e minha irmã sahiamos +nos bicos dos pés, e elle concluia-a, dirigindo-se a minha mãe, que sentada na +poltrona de tabúa, já sem feitio, pouco a pouco adormecia serenamente.</p> + +<p>É com lagrimas nos olhos que, depois de tantos annos, me recordo d'esses +tempos.<span class="pn">{79}</span></p> + +<p>A nossa casa era a mais risonha de toda a villa.</p> + +<p>Ainda me alegra relembral-a, no alto dos rochedos, sobranceira ao mar. Muito +pequena, mas sempre muito caiada, davam-lhe certo ar as gelosias verdes das +janellas. Tinha em volta uma cercadura de ninhos, e todas as manhãs, no verão, +acordava ouvindo cantar as andorinhas.</p> + +<p>No inverno era mais triste. Quando havia temporal, as ondas salpicavam os +vidros e minha irmã pequenina, assustada como um pardal, escondia a cabecinha +loira debaixo do chaile de minha mãe, que, sentada á lareira, lembrando-se do +marido e do filho mais velho, que andavam sobre as aguas do mar, resava o credo +em cruz.</p> + +<p>Não eramos dos mais infelizes; nunca soube o que era miseria. Depois que o +tio Bernardo chegou, houve até sempre, lá em casa, um certo luxo, uma certa +despreoccupação pelo dia seguinte.</p> + +<p>É que o tio, além de vir dono d'um cahique,<span class="pn">{80}</span> +trazia comsigo uma caixinha de ferro cheia até cima de muito boas libras.</p> + +<p>Meu pae, que viera com elle como piloto, pouco tempo se demorou comnosco.</p> + +<p>O tio Bernardo disse-lhe, uma noite, depois da ceia:</p> + +<p>—Olha, irmão; o que ali está... (e apontava para a tal caixinha) o que +ali está chega-me para aqui poder acabar socegadamente os meus dias. Sabes que +mais? Dou-te de presente o cahique. Não tenhas cuidado na mulher e nos filhos. +O teu mais velho tem quinze annos; que vá comtigo. Vai, e sê tão feliz, como eu +fui.</p> + +<p>Era sina de todos—o mar. Os mais desgraçados eram pescadores; os +outros quasi todos partiam para o Brazil; alguns voltavam pilotos, alguns +commandando por sua conta; eram os mais felizes. Alguns tambem... nunca +voltavam.</p> + +<p>E era a lembrança d'estes que tornava tão triste a lareira nas longas noites +de inverno, quando uivava o temporal.<span class="pn">{81}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Um dia parti para a escola um bocado mais cedo que o costume, porque no +quintal do padre prior, tinha visto uma figueira deitar por cima do muro, para +o lado do caminho, um dos ramos todo cheio de figos brancos, tentadores.</p> + +<p>O mestre, ou porque desejasse lisongear o tio Bernardo ou porque na verdade +eu me atirasse ao estudo um pouco mais que os outros, quando ao domingo, depois +da missa, nos encontrava a passear na Praça, nunca deixava de me dizer, +tocando-me com dois dedos na cara:</p> + +<p>—Ah! que se o tio quizesse... havias de ir longe.</p> + +<p>Eu não sabia bem o que elle queria dizer com aquelle <em>ir longe</em>. +Lembrava-me logo do Brazil. Mas porque motivo eu e não os outros?</p> + +<p>N'aquelle dia, quando já de vara na mão<span class="pn">{82}</span> me +dispunha a roubar quatro figos ao prior, ouvi de repente a voz de meu tio. +Senti um calafrio pela espinha.</p> + +<p>—Olá, rapaz! que andas por ahi a mariolar, em vez de ires direito para +a escola?</p> + +<p>Voltei-me todo assustado e vi-o á janella do prior, que, felizmente para +mim, desatou ás gargalhadas.</p> + +<p>—Espera ahi que te quero falar.</p> + +<p>Esperei, mas quando chegou ao pé de mim, apesar de elle nunca me ter batido, +com as duas mãos tapei as orelhas e a nuca.</p> + +<p>O tio Bernardo poz-se a rir.</p> + +<p>—Não tens vergonha...!</p> + +<p>Começou andando ao meu lado muito depressa. Ás vezes parava limpando o +suor.</p> + +<p>—Sabes o que vou fazer? perguntou-me. Vou ver se o teu mestre diz +verdade. Quero um dia assistir á escola.</p> + +<p>Tremeram-me as pernas. Se ainda depois de me ter apanhado a roubar os figos, +me fosse ver a atrapalhar-me á pedra! Fiz a promessa d'uma véla de cera á +Senhora dos<span class="pn">{83}</span> Milagres e, com mais alguma confiança, +entrei na escola e fui pedir a bençam do mestre.</p> + +<p>Chegámos um nadinha tarde. Estava o Patricio á pedra.</p> + +<p>O tio Bernardo fez um signal para que ninguem se incommodasse e sentou-se ao +pé do professor. Eu caminhei gravemente para o meu logar.</p> + +<p>O Patricio, coitado, que estenderete!</p> + +<p>Parece-me ainda estar a vel-o com as calças de quadradinhos, remendadas, +muito curtas, a barriguinha muito redonda, o que lhe dava um aspectosinho +grave, a camisa de panno cru aberta sobre o peito, e dois bocados de ourelo a +servirem de suspensorios. Com as mãos nas algibeiras, os olhos muito +injectados, e as azas do nariz a tremerem, ouvia contendo o mau genio, a +rabecada do mestre.</p> + +<p>Não foi nunca dos mais felizes, coitado! Por ali ficou sempre. Tem quatro ou +cinco medalhas ao peito e todos os dias a fome em casa.<span +class="pn">{84}</span></p> + +<p>—O senhor... disse o mestre apontando para mim.</p> + +<p>Ergui-me e, pegando no giz, acabei com desembaraço a conta, que tanto +atrapalhava o Patricio.</p> + +<p>—Muito bem. Tire a prova dos nove. É o que eu digo, murmurou, quando +acabei. Has de ir muito longe.</p> + +<p>O tio Bernardo pediu ao mestre que me fizesse mais algumas perguntas. A +todas respondi com muito animo e desembaraço.</p> + +<p>—D. Affonso Henriques, o Conquistador, D. Sancho I, o Povoador, D. +Affonso II, o Gordo...</p> + +<p>A historia toda.</p> + +<p>—Muito bem. Pode sentar-se.</p> + +<p>O tio levantou-se, dizendo-me:</p> + +<p>—Estou contente comtigo, rapaz.</p> + +<p>E sahiu.</p> + +<p>Ao jantar reparei que o tio Bernardo e minha mãe deviam de ter falado a meu +respeito. Apenas eu abria a bocca, olhavam um para o outro e tossiam com certo +ar<span class="pn">{85}</span> misterioso. Minha mãe teve alternativas de +alegria e de tristeza.</p> + +<p>Quando a via rir, pensava:</p> + +<p>—O tio falou-lhe na lição.</p> + +<p>E, quando a ouvia suspirar, lembrava-me dos figos. Se ella soubesse...!</p> + +<p>Quando o jantar acabou, o tio Bernardo chamou-me e disse-me:</p> + +<p>—Ouve cá. Tu tens uma cara seria e o teu mestre, que deve ser n'isso +entendido, diz que aqui dentro tens mais alguma coisa do que os outros.</p> + +<p>E batia-me com os nós dos dedos na cabeça.</p> + +<p>Eu estava radiante de alegria.</p> + +<p>—Além d'isso tens os pulsos muito fraquitos, e isso é o diabo para um +homem do mar.</p> + +<p>A conversação tomava de repente para mim um caminho inesperado. Se os pulsos +eram fracos, e isso era o diabo para um homem do mar, que me importava o que o +mestre dizia que eu tinha dentro da cabeça?<span class="pn">{86}</span></p> + +<p>Olhei para minha mãe. Minha mãe sorria.</p> + +<p>—Ainda agora, continuou meu tio, estive a conversar com o padre prior +a teu respeito. Aquillo é que é vida, meu filho: padre!</p> + +<p>—Não quero! respondi, dando um murro em cima da mesa. Não quero ser +padre.</p> + +<p>—Ninguem te obriga, rapaz. Ha outras vidas tão boas ou melhores até. +Medico, por exemplo.</p> + +<p>—Não quero!</p> + +<p>E, desviando os olhos para o lado da janella, vi lá onde o céo vai dar um +beijo no mar, uma velasinha alvejando, que me pareceu do meu partido e a +gritar-me lá de longe:</p> + +<p>—Fazes muito bem. Não queiras ser medico, não queiras ser padre. Olha +para mim. Cá dentro vai a ventura!</p> + +<p>—Pois não queiras! gritou meu tio.</p> + +<p>E começou a passear pelo quarto, puxando grandes fumaças.</p> + +<p>Eu, espantado do meu atrevimento, tinha<span class="pn">{87}</span> baixado +tristemente os olhos e, muito amuado, coçava a cabeça.</p> + +<p>—Lá no collegio, tens tempo de sobra, para te resolveres, disse meu +tio porfim, parando deante de mim. Ámanhã vais comigo para Lisboa.</p> + +<p>Lisboa!</p> + +<p>Soou-me o nome aos ouvidos como palavra magica.</p> + +<p>Lisboa! Ia partir para Lisboa, que nunca tinha visto, mas cujo só nome me +despertava na imaginativa sonhos encantadores, prodigios de riqueza, mansões de +fadas!</p> + +<p>Ergui a cabeça, tão cheio de alegria, que até me puz a rir de rijo!</p> + +<p>Olhei para minha mãe. Coitadinha, chorava.</p> + +<p>—Vamos, disse o tio, batendo-me com a mão no hombro. Vai vestir o teu +fatinho preto, que tens que despedir-te desta gente!</p> + +<p>Lisboa! Lisboa!</p> + +<p>Eu bem via as lagrimas da minha mãe,<span class="pn">{88}</span> mas este +grito da minh'alma calava-me o coração.</p> + +<p>Fui despedir-me do mestre-escola que, adeante de todos, me deu um valente +abraço, dizendo-me:</p> + +<p>—Continua assim, meu rapaz. <em>Sic itur ad astra!</em></p> + +<p>Eu, muito envergonhado, para fazer alguma coisa, bafejava a palla do bonnet +e limpava-a depois á manga da jaleca.</p> + +<p>Ficou-me o latinorio no ouvido. Annos depois encontrei-o... Boa vontade não +te faltava, querido mestre!</p> + +<p>Á noite, depois da ceia, o tio Bernardo julgou dever discursar.</p> + +<p>—Quando ás vezes me esqueço para ahi horas inteiras a fumar cachimbo, +vocês põem-se a rir e dizem: «Lá está o tio Bernardo no Brazil!...» Pois bom é +que saibas, antes que o aprendas á tua custa: nem tudo são rosas na vida. E no +mar os espinhos são muitos. A gente volta, chega a casa, esquece tudo. Quantas +vezes o diabo não<span class="pn">{89}</span> levou a cardada! O que passou, +passou; olha a gente para traz e só vê aquillo de que tem saudades: por isso +nunca falo de fomes, de privações, de perigos... Não te dê desgosto não ser +homem do mar. Andar sobre as ondas é tentar a Deus.</p> + +<p>Não sei que mais me disse ainda o tio Bernardo para me provar que, desde que +eu voltava costas ao Oceano e marchava para Lisboa, era o ente mais feliz do +mundo. Bem lhe dispensava o sermão. Já me via homem, voltando para a terra, de +relogio e breloques, apertando na praia, depois do banho, as mãosinhas das +senhoras, fumando o meu charuto, tratando o administrador por <em>tu</em> e o +prior por <em>você</em>.</p> + +<p>—Agora, rapaz, vai deitar-te e pede a bençam á tua mãe.</p> + +<p>Então, não sei porquê, senti de repente um nó na garganta e eu, que tão +pouco me lembrára d'ella, foi a soluçar que lhe cahi nos braços. Ella +apertou-me contra o peito, muito, muito, até me fazer doer, e dando-me<span +class="pn">{90}</span> um beijo muito longo, disse-me um adeus tão sumido, tão +sumido que quasi o não ouvi.</p> + +<p>No dia seguinte, ao romper da manhã, eu e o tio Bernardo, ambos na almofada +da diligencia, partiamos caminho de Lisboa.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Quando, depois de bacharel e de muito tempo gasto a escrever cartas e +procurar empenhos, consegui finalmente ser admittido como amanuense nos +proprios nacionaes, telegraphei a minha mãe, ou que na resposta me participou a +chegada de meu pae.</p> + +<p>Não se calcula a alegria com que parti.</p> + +<p>Havia trez annos que não via o querido velho, que só de longe em longe vinha +a Portugal matar saudades.</p> + +<p>Estavamos então no principio do inverno e um denso nevoeiro espalhava-se +sobre o mar. Ainda longe da villa, já ouvia o sino<span class="pn">{91}</span> +da Senhora dos Milagres tocando afflictivamente para indicar o porto aos que +andavam fóra.</p> + +<p>—O José Sacrista, coitado, disse-me o cocheiro, tem o filho lá no mar +e desde hontem de manhã que está agarrado á corda do sino.</p> + +<p>Foi talvez o nevoeiro, ou foi aquelle sino tão afflicto, ou talvez dó do +sacrista, que fez com que me apeasse da diligencia, levando oppresso o +coração.</p> + +<p>No caminho de casa encontrei o mestre-escola que me veio abraçar todo +tremulo, cheio de brancas, abordoado a uma bengala.</p> + +<p>—Parabens, muitos parabens. Eu bem te dizia.</p> + +<p>Não pude deixar de sorrir-me.</p> + +<p>—Que pena, continuou, vires em occasião tão triste!</p> + +<p>—O que?</p> + +<p>—Não sabes?... Valha me Deus! O tio Bernardo...</p> + +<p>—Morreu? perguntei ancioso.<span class="pn">{92}</span></p> + +<p>—Não, felizmente ainda não. Venho de lá agora. Mas está tão mal...</p> + +<p>Não ouvi mais e desatei a correr. Estavam todos reunidos no quarto do tio. +Quando entrei, abriu os olhos e disse:</p> + +<p>—És tu! ainda bem que vieste. Deu-me o caruncho. Tinha pena de morrer +sem tornar a vêr-te. Já sei que estás amanuense. Sou um homem rude, não sei o +que isso é; mas deve ser... muito! Foste longe.</p> + +<p>Esteve um momento calado, respirando a custo, e depois continuou:</p> + +<p>—O teu irmão foi menos feliz. Nasceu forte, foi para o mar. O teu pae +já está farto de andar por esses oceanos e deu-lhe o cahique.</p> + +<p>Olhei para meu irmão. Estava herculeo. Uma barba negra, muito espessa, +descia-lhe até meio do peito. Um pesado grilhão de oiro cahia-lhe do pescoço +até ao ventre redondo. Meu tio fitou por um instante em mim os olhos já +embaciados, e sorrindo:</p> + +<p>—Olhem que mãosinhas! Não vivias no<span class="pn">{93}</span> mar +dois dias. Tive rasão. Emfim, graças a Deus, fiz todos felizes.</p> + +<p>Fechou os olhos e esteve assim por muito tempo, arquejando. Quando tornou a +abril-os, procurou-me com a vista:</p> + +<p>—Tenho pensado muito em ti... Como é o latinorio do mestre?</p> + +<p>Não sabia o que elle queria dizer... Depois lembrou-me de repente.</p> + +<p>—<em>Sic itur ad astra.</em></p> + +<p>—<em>Ad astra, ad astra!</em> repetiu machinalmente.</p> + +<p>E, com os olhos vidrados fitando os florões do tecto, ficou-se a sorrir, +como se Deus o houvera levado para um Brazil ideal.<span +class="pn">{94}</span></p> + +<p><span class="pn">{95}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00070">O VENTURA</a> </h1> + +<p>Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não havia carreiras de +vapor. Faziam apenas concorrencia aos catraeiros de Belem os omnibus immensos +da Companhia, que de meia em meia hora passavam, chocalhando por aquella +estrada fóra até ao Pelourinho, uns vinte passageiros, a seis vinténs por +cabeça.</p> + +<p>A vida de barqueiro não era então das<span class="pn">{96}</span> peores; e +o José da Anastacia com o seu bom genio constante e o sorriso obsequiador, em +que mostrava os dentes amarellados pelo tabaco, quasi da côr do rosto +requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistára as sympathias de muitos, que +preferiam o bote d'elle e a viva conversa do algarvio, á velocidade pacata dos +churriões da Companhia.</p> + +<p>Era vel-o quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do Paço +a familia do Conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o bote, +arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portugueza, dadiva das meninas, e +que fluctuava lá no alto, no angulo da véla, com mais donaire e, com o ser +pequena, com mais orgulho que a bandeira branca de cruz vermelha d'uma náu da +India.</p> + +<p>O Conselheiro, muito amigo d'elle, nunca lhe chamava senão o Ventura. +Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando sentado ao leme, com a mão +junto aos sobrolhos<span class="pn">{97}</span> e os olhos piscos por causa do +sol, todo cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a +fluctuar lá em cima, e a prôa do bote, um pouco tombado, riscar o espelho azul, +em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas Bailadeiras, junto ao +Pontal de Cacilhas.</p> + +<p>E os véos azues das filhas do Conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo +vento.</p> + +<p>Á volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para +entreter, contava historias e fazia reflexões, que as meninas approvavam, +meneando lentamente a cabeça, sentadas uma de cada lado do barco, fitando os +olhos nas margens do Tejo que deslisavam lentamente. E elle, fincados os pés no +banco deanteiro, de mangas arregaçadas, deixando ver os musculos possantes dos +braços cabelludos, duros como seixos e palpitando com o esforço, sorria n'uma +felicidade santa e levantava compassadamente os remos, d'onde cahiam enfiadas +de<span class="pn">{98}</span> perolas, que os ultimos raios do sol cravejavam +de pontos luminosos.</p> + +<p>A Anastacia, uma velhinha, que morava n'uma agua furtada, quasi ao cimo da +Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava em casa, +atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na cabeça do filho com +ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta grenha emmaranhada, beijava +com ancia, mil vezes, sobre os cabellos seccos e duros, o amparo querido da sua +viuvez.</p> + +<p>Elle, um homemzarrão com vinte e tantos annos, adormecia, logo depois da +ceia, com a cabeça reclinada no collo da mãe, cançado, mas feliz, contente +n'aquelle ninho.</p> + +<p>—José, vamos, acorda, dizia ella, dobrando o serão, quando na torre da +Boa Hora batiam vagarosamente as dez.</p> + +<p>O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de somno.</p> + +<p>—Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião!<span +class="pn">{99}</span></p> + +<p>Com os olhos meio cerrados, encandeado, dirigia-se então para o quarto, +murmurando:</p> + +<p>—Sua bençam, minha mãe.</p> + +<p>E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali fóra, +até Monsanto.</p> + +<p>Ia passeando devagarinho.</p> + +<p>O vento soprava do noroeste. Ao meio dia tinha dado aquella volta, e o José +achava-lhe geitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao cimo da +serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas cahindo d'alto, lá por detraz, +ao pé da Costa.</p> + +<p>Diabo do inverno! Começava cedo.</p> + +<p>O sol descia. O José parou um bocado a vel-o mergulhar na espuma.</p> + +<p>Começou soprando mais rijo o vento, e, quando o sol desappareceu, fechava o +horizonte<span class="pn">{100}</span> uma lista negra, franjada de oiro, que +ameaçava engrossar.</p> + +<p>Pois paciencia! Felizmente lá estavam na gaveta as economias do verão. Todos +os annos havia inverno e na casa d'elle nunca houvera fome, graças a Deus.</p> + +<p>E o José levou a mão ao barrete.</p> + +<p>Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava-lhe pela porta +dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a elle nada lhe faltava e +a muitos faltava tudo.</p> + +<p>Lembraram-lhe então certas historias. Aquella mulher a quem uma vez alugára +o bote, porque a encontrára a chorar no Largo. Tinha deixado os filhos sósinhos +em Caparica e estava ali com um vintem na algibeira; e elle alugára-lhe o bote +pelo vintém, que acceitára, porque não queria envergonhal-a. E outra vez que +elle se escondeu para o Conselheiro o não ver e alugar o bote ao tio Matheus, +que havia dois dias não trabalhava e tinha a filha doente em casa, a +tossir,<span class="pn">{101}</span> a tossir, e elle sem dinheiro para lhe +comprar o caustico?</p> + +<p>Havia tanta pobreza!</p> + +<p>Elle nada lhe faltava e até na algibeira trazia quasi sempre uns cobres, +para o que desse e viesse.</p> + +<p>E como levava sede, entrou n'uma taberna e pediu dois decilitros.</p> + +<p>O taberneiro tinha sahido. Foi a filha quem veiu servir.</p> + +<p>O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe +trouxe o copo trasbordando, deixando cahir no pires de barro grosso, branco, +riscado de azul, um pouco de vinho em que ella molhava a unha do pollegar.</p> + +<p>Para o gosto d'elle nunca vira mulher assim!</p> + +<p>Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada:</p> + +<p>—Muito obrigado.</p> + +<p>E ficou-se a olhar para ella, um pouco apatetado, querendo falar e não lhe +occorrendo<span class="pn">{102}</span> nada, sentindo como que um nó na +garganta e um véo no entendimento, que o apouquentavam.</p> + +<p>Era uma rapariga alta, magra, de cabellos castanhos muito finos, muito +compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco +branquissimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar d'uma pequena quebra; +a bocca um quasi nada grande, com o beiço interior saliente, e uns olhos azues +escuros, que entonteceram o José, quando n'elles demorou os seus.</p> + +<p>Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada tambem pela +ingenua admiração que percebia causar áquelle homem, lavava os copos n'um +alguidar de zinco posto em cima d'um mocho, e collocava-os depois na prateleira +de pinho pintada de azul, virando para o ar os fundos, onde, como aureolas, se +alastravam grandes nodoas roxas rebeldes á limpeza.</p> + +<p>A noite vinha-se approximando. A taberneira raspou um fosforo na prateleira +e, desviando<span class="pn">{103}</span> a cara dos fumos do enxofre, accendeu +o candieiro de petroleo.</p> + +<p>—Muito boa noite, disse.</p> + +<p>—Boa noite, respondeu o José, erguendo-se um pouco.</p> + +<p>E nunca musica para elle valêra aquella voz.</p> + +<p>O vento fóra soprava rijo e o ramo de loiro á porta raspava na parede.</p> + +<p>O José levantou-se e abriu o saquinho d'algodão. Com voz sumida pediu por +favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem se atrever +a mais palavra.</p> + +<p>Por toda a estrada veiu pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente fixada +na memoria, e até nas mais pequenas particularidades, uns signaesinhos +espalhados pelo nariz e um outro sobre a palpebra um pouco mais accentuado.</p> + +<p>E repetia mentalmente, muito enlevado, as unicas palavras que lhe +ouvira:—«Muito boa noite. Muito boa noite.»<span +class="pn">{104}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>A mãe extranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como +costumava, pregou os olhos no tecto, e ficou-se a mascar um bocado de charuto, +a mascar, ora serio, ora sorrindo a alguma imagem que entrevisse, como quem faz +castellos no ar, que os vê cahir de repente e logo erguerem-se mais alto. Nem +sequer reparou nos olhares prescrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe +lançava por cima dos oculos.</p> + +<p>Mas de repente a pobre Anastacia deu-lhe o coração um baque. E ella que +nunca se lembrára d'aquillo! Pois não era certo que tarde ou cedo havia de +acontecer?</p> + +<p>E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passára, murmurou com +os olhos embaciados:</p> + +<p>—Queira Deus que seja para bem.</p> + +<p>O José encarou-a, despertado por aquella voz.<span +class="pn">{105}</span></p> + +<p>Ergueu-se e approximou-se da janella, que abriu.</p> + +<p>O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. Grossas +cordas d'agua entraram no quarto.</p> + +<p>—O inverno! disse elle, fechando a janella.</p> + +<p>A velha encolheu os hombros.</p> + +<p>E depois, com certo ar malicioso, já conformada:</p> + +<p>—Ainda agora para ti começa a primavera!</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Pouco tempo durou.</p> + +<p>Uma noite, o José sentou-se tristemente á prôa do bote e remou devagar para +o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, traçando a perna, fincando a +barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. Poz-se a olhar, sem as +ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as nodoas escuras dos navios +brilhavam como lentejoulas<span class="pn">{106}</span> no panno negro dos +caixões. Estava triste o José naquella noite.</p> + +<p>E quando reparou, á pôpa do barco, na alcunha +d'elle—Ventura—pintada em grossas letras brancas sobre uma +variegada rosa dos ventos, sorriu amargamente e murmurou com +ironia:—Ventura!</p> + +<p>O bote arrastado pela vasante passou para além da Torre, e o José perdeu de +vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um candeio +baloiçando-se sobre a facha projectada, tremeluzente.</p> + +<p>Que tristeza aquella!</p> + +<p>O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. Fazia +frio, e o Ventura encharcado, tremia.</p> + +<p>De repente, o candeio desappareceu. Então o José ergueu-se, pegou novamente +nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado de Lisboa, +arquejando, como a fugir d'um perigo. Mas de novo deixou cahir os braços, em +grande prostração, e a cabeça inclinou-se-lhe sobre o peito. O<span +class="pn">{107}</span> bote virou devagarinho e continuou em seu caminho +fatal.</p> + +<p>O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da Torre de S. Julião +parecia examinal-o com uma grande curiosidade idiota, nunca satisfeita. O bote +passou entre os dois faroes.</p> + +<p>As ondas marulhavam de encontro ás bordas do barco, e a musica d'ellas era +triste como o coração do Ventura.</p> + +<p>E fôra o Conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrára o primeiro +espinho!</p> + +<p>Ao principio corrêra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais que +todos o Conselheiro.</p> + +<p>—Nada! dizia elle ao Ventura, batendo-lhe com a mão no hombro. Estes +progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um bello dia...</p> + +<p>—Zaz!... Pum!... concluia José, rindo muito e imitando com os braços +um grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar.<span +class="pn">{108}</span></p> + +<p>E, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o +Conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a reboque, +muito coxas com as botas curtas, fazendo todos signaes desesperados com os +chapéus de chuva para o vapor que apitava, prompto a largar.</p> + +<p>Bem lhe tinha dito o pae da Maria Eduarda:</p> + +<p>—Muda de vida, José, ou prégo-te a peça.</p> + +<p>E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham pregado a +peça ao Ventura.</p> + +<p>Foi n'um dia em que o catraeiro, pelo maior dos acasos, tinha ganho dois +tostões. E, em vez de os entregar á mãe, foi á loja da esquina comprar um +collar de contas para levar á namorada.</p> + +<p>—Está cá, menina Maria? perguntou da porta com o coração a bater.</p> + +<p>—Sahiu, respondeu lá de dentro a voz do pae. Queres-lhe alguma +coisa?<span class="pn">{109}</span></p> + +<p>—Nada, respondeu.</p> + +<p>E ficou encostado á porta, esperando a noiva.</p> + +<p>Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam, +bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver.</p> + +<p>E o Ventura á porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome.</p> + +<p>—Olá, <em>seu</em> Manuel Joaquim, disse entrando alegremente na +taberna um cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das +orelhas, cara escanhoada, chapéu de capa d'oleado deitado para traz. Já vieram +as senhoras?</p> + +<p>—Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse á mãe que haviam de +voltar cedo por você cá vir... <em>Seu</em> maroto!...</p> + +<p>—Ó <em>seu</em> Manuel Joaquim!... Eu cá dou-lhe a minha palavra...</p> + +<p>—Mau! mau!</p> + +<p>E, largando as Sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao +ouvido:<span class="pn">{110}</span></p> + +<p>—Olhe que a ceia está prompta e tenho ali uma pinga...!</p> + +<p>O Ventura á porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos, +escondia o pé descalço atráz da perna nua e torcia nas mãos o barrete de lã +esboracado.</p> + +<p>E logo voltando, n'um desespero, atirou ao chão a caixa do collar. E as +contas de vidro foram adiante d'elle saltando por longo tempo, fazendo uma +bulha alegre de gargalhadinhas trocistas.</p> + +<p>E a mãe áquella hora tinha fome...! E fôra talvez a fome que a matára!</p> + +<p>Lá estava enterrada na valla dos pobres, lá muito longe, por detraz +d'aquelles montes, que a lua a nascer, espargindo uma baça claridade, azulava +docemente.</p> + +<p> </p> + +<p>Estavam fóra da barra, o mar estava picado e o Ventura tremia.<span +class="pn">{111}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além de +S. Julião, um bote abandonado, que tinha á poppa escripto n'uma variegada rosa +dos ventos o nome do Ventura.</p> + +<p>E quando soube da triste nova, emquanto aos olhos das filhas subiam saudosas +e sentidas lagrimas, o Conselheiro, gravemente, lembrando-se do pouco tempo que +durára a primavera do José, citou as rosas de Malherbe.<span +class="pn">{112}</span></p> + +<p><span class="pn">{113}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00080">O PRIMEIRO SORRISO</a> </h1> + +<p>Mal se tinham accendido as luzes no Colyseu, quando elle entrou devagarinho, +triste, um pouco asmatico, meneando a cabeça pallida.</p> + +<p>Parece que mais lhe pesava a corcunda n'aquella noite.</p> + +<p>Andando pelo corredor estreito, que divide os camarotes dos logares mais +baratos, foi encostar o queixo á teia de pinho, pintada<span +class="pn">{114}</span> de branco, junto do caminho atapetado, que a cantora +devia seguir do camarim para o palco.</p> + +<p>Era uma artista celebre a que se estreava. Com oito dias de antecedencia +tinha-se espalhado com profusão pela cidade, collado aos vidros das portas dos +armazens de musica, pendurado em quadros ás esquinas das ruas, o retrato +lithographado de mademoiselle Eva d'Avenay.</p> + +<p>Um dia, o corcunda, passeando depois do jantar, como costumava, pela rua do +Oiro, erguendo a cabeça, deu, de subito, com um d'aquelles retratos na loja +d'um livreiro.</p> + +<p>Parecido ou não, representava uma mulher lindissima.</p> + +<p>Ficou extatico um momento; sentia tremer-lhe o coração um pouco, e como que +dois dedos apertarem-lhe amorosamente a garganta.</p> + +<p>Entrou envergonhado, e com voz sumida perguntou ao caixeiro se aquillo se +vendia.<span class="pn">{115}</span></p> + +<p>—Um tostão.</p> + +<p>Elle que nunca olhára para mulher senão cá de muito baixo, coitado, +assentando no meio da espinha as abas do chapéu, que (facto pouco vulgar) por +detraz é que amolleciam, podia finalmente, por um tostão (barato!) contemplar +uma mulher bonita á vontade, sentado commodamente, sem ser visto e sem ter de +córar.</p> + +<p>Quando sahiu da loja, levando na mão o rolinho de papel pardo, que +embrulhava a lithographia, caminhou mais depressa, quasi alegre, menos +asmatico.</p> + +<p>Chegou a casa, desdobrou o retrato sobre a mesa, encostou n'ella os +cotovellos, e, com as fontes apertadas nos punhos cerrados, passou parte da +noite em contemplação da extranha formosura.</p> + +<p>Parecia-lhe que afinal aquella mulher tinha que reflectir para elle uma +parte de tanto amor, que todo lhe estava dando e que era o primeiro que +sentia.</p> + +<p>Desejos haveria tido, mas amar... Quem?<span class="pn">{116}</span> Se, +quando passava, todos se riam e ninguem, ninguem, jámais sorrira para elle!</p> + +<p>Quando recordava tempos longinquos, via, como atravez d'um nevoeiro, uma +mulher a quem elle estendia os bracinhos magros, que se lhe debruçava sobre o +pequenino berço—tão pequenino!—e que o envolvia n'uma atmosphera de +amor, beijando-o muito. Mas essa mulher tambem não sorria... chorava.</p> + +<p>Chorava naturalmente de vel-o tão fraquinho, tão feio, tão infesado. Se o +visse agora, cheio de rugas precoces, com os cabellos alvejando-lhe nas fontes, +e triste sempre, sempre tão triste!</p> + +<p>Por isso contemplava aquelle retrato, como se fôra possivel aquella mulher +loira, voltar a cabeça no papel e enviar-lhe, só para elle, aquelle sorriso +que, por todas as esquinas, por toda a parte, ella enviava... para +quem?—para coisa nenhuma; que o retrato era a tres quartos e ninguem +sabia para onde olhava.<span class="pn">{117}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Os porteiros, cada um á sua porta a receberem os bilhetes, cantarolavam os +bocejos e assoavam-se com estrondo para espertar. O theatro continuava ás +escuras.</p> + +<p>Um homem gordo entrou devagar, com as mãos nas algibeiras do collete, +assobiando por entre dentes. Sentou-se, deitou as pernas para cima da cadeira +que lhe ficava defronte, poz o lenço entre o pescoço e o collarinho, e, tirando +um palito da algibeira, poz-se a espalitar os dentes, com um ar massado.</p> + +<p>Duas ou tres filas mais adiante, um outro abanava-se pachorrentamente com o +chapeu, virando um bocadinho a cara para lhe ir o fresco ás orelhas.</p> + +<p>Conheciam-se e começaram conversando em voz alta:</p> + +<p>—Olá, Conselheiro! Então tambem deitou até cá?</p> + +<p>O homem gordo encolheu os hombros.<span class="pn">{118}</span></p> + +<p>—Não ha mais nada que fazer!</p> + +<p>E depois de espalitar um bocado:</p> + +<p>—Que isto cheira-me a fiasco.</p> + +<p>—Ora! disse o outro com ar convencido e para estar de acordo. A tal +mulher...</p> + +<p>—A gente cai em cada uma...! terminou o Conselheiro.</p> + +<p>E, encostando a cabeça para traz, deu largas a um bocejo formidavel.</p> + +<p>Um arrumador, que passava n'aquelle instante, sorriu-se aduladoramente, +curvando-se muito.</p> + +<p>—Senhor Conselheiro...</p> + +<p>—Adeus, <em>seu</em> José.</p> + +<p>E fechou os olhos, como se estivesse dormindo.</p> + +<p>Ah! se o corcunda não andasse tão rasteiro, se não fosse tão fraquinho, como +perguntaria áquelle homem, frente a frente, com que direito bocejava, quando +elle estava ali sentindo o coração a estalar-lhe no peito!</p> + +<p>Os musicos com os instrumentos dentro<span class="pn">{119}</span> de +saquinhos de chita, começaram a entrar, limpando o suor, resmungando arias, +espreguiçando-se.</p> + +<p>Deram oito horas. Chegaram umas carruagens a trote largo. O theatro +encheu-se rapidamente.</p> + +<p>Ouvia-se o sussurro das conversações e o ranger das varetas dos leques.</p> + +<p>Os logares junto da teia, a que se encostara o corcunda, eram da predilecção +de muitos; pouco a pouco foram-o empurrando, e elle apertado, afflicto com a +asma, que logo o atacou violentamente, ouvia por detraz umas risadinhas +zombeteiras. Sentiu n'uma orelha bater-lhe uma bolinha de papel. Um velho mal +encarado, ao lado d'elle, estava de figa feita.</p> + +<p>E resignado, agarrando-se aos balaustres da teia, esperava que fosse aquella +noite a primeira feliz da sua vida.</p> + +<p>Abriram as torneiras do gaz e a luz jorrou de repente.</p> + +<p>Houve um sussurro maior. Muitos, que<span class="pn">{120}</span> ainda se +não tinham visto, cumprimentaram-se. Os elegantes das cadeiras apontaram os +oculos para os camarotes e começaram tirando os chapéus.</p> + +<p>O theatro transbordava.</p> + +<p>Os musicos afinavam os instrumentos. Ouviam-se por entre as variações +alegres da flauta as notas harmonicas das rabecas. O homem dos timbales batia +notas surdas com a mão esquerda e apertava com a direita as escaravelhas.</p> + +<p>Afinal entrou o regente, de casaca e gravata branca, cumprimentando os +collegas, emquanto descalçava a luva.</p> + +<p>Bateu na estante e ergueu alto o braço.</p> + +<p>Houve uns <em>schius!</em> assobiados por alguns amadores, que a toda a +salla impuzeram silencio.</p> + +<p>O regente olhou para todos os musicos, demorou-se um instante e depois, +descrevendo com a batuta um quarto de circumferencia, fez signal ás rabecas, +que logo começaram tocando muito piano, em unisono.<span +class="pn">{121}</span></p> + +<p>Era com certeza mademoiselle Eva d'Avenay quem ali attrahia a maior parte +dos espectadores. Os conversadores pouco a pouco foram elevando o tom e, como +as rabecas sósinhas continuavam tocando pianissimo, havia o que quer que fosse +fantastico n'aquelle maestro de grande cabelleira cahindo-lhe até á golla da +sobrecasaca, elevando alto, muito alto, a batuta, e deixando depois cahir o +braço a tremer, a tremer, commandando uns arcos que se mexiam como puchados por +um só homem, mordendo cordas que não tinham som.</p> + +<p>Decididamente o corcunda suffocava.</p> + +<p>De repente, a um signal energico do regente, os metaes vibraram enchendo a +sala de notas alegres, vivas, que n'um instante, como por encanto, cortaram as +palestras. Foi um relampago de alegria. O regente sorriu-se delicadamente e as +rabecas continuaram sósinhas no meio da distracção geral.</p> + +<p>Um gaiato gritou lá de cima:<span class="pn">{122}</span></p> + +<p>—Muito bem!</p> + +<p>Tinham acabado felizmente.</p> + +<p>A respiração do corcunda era um apitosinho.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Instantes depois, corria-se uma cortina e encaminhava-se para o palco +mademoiselle d'Avenay.</p> + +<p>Houve um sussurro admirativo. Muita gente ergueu-se. Ouviram-se vozes:</p> + +<p>—Abaixo!</p> + +<p>Ella, já no palco, sorria impassivel, cumprimentando o publico, olhando em +volta, muito serena.</p> + +<p>Alguns enthusiastas davam palmas.</p> + +<p>O Conselheiro olhou para o amigo e fez-lhe uma cara como quem diz:—de +truz!</p> + +<p>O regente muito amavel curvou-se para a cantora e fez-lhe baixinho uma +pergunta.</p> + +<p>Respondeu que sim, muito risonha, muito amavel.</p> + +<p>As rabecas preludiaram.<span class="pn">{123}</span></p> + +<p>Ella concertava o decote e alisava o cabello na testa.</p> + +<p>Era uma mulher em todo o esplendor da belleza dos trinta annos, de elegancia +distincta e intelligente, alta, com o busto quebrado um pouco na cintura, o +peito forte, braços admiraveis, hombros muito redondos, e nas costas, bem ao +meio, uns dois ou trez signaes, que pareciam ter-lhe sido dados, de caso +pensado, pela natureza, para que ninguem julgasse que aquelle busto era de +marmore. Os olhos azues tinham um olhar profundo e os cabellos loiros e finos +emmolduravam uma testa muito lisa, como de virgem de quinze annos.</p> + +<p>Quando cantava, a bocca sympathica, fresca, sorria sempre, alegrando-se aos +cantos com duas pregas infantis.</p> + +<p>Do logar onde estava, o corcunda via-lhe o perfil sereno, a longa trança +doirada e todo o vulto branco salientando-se na massa escura dos espectadores +agglomerados nos degraus em amphitheatro do outro lado da sala.<span +class="pn">{124}</span></p> + +<p>Quando ella acabou de cantar, toda a platéa applaudia, delirante.</p> + +<p>O corcunda bem queria dizer—bravo! mas sumira-se-lhe a voz.</p> + +<p>Mademoiselle d'Avenay cantou tres vezes n'aquella noite e o delirio +crescendo sempre!</p> + +<p>Agradecia muito reconhecida, pondo a mão no peito, fazendo ranger a seda do +vestido.</p> + +<p>Já os musicos se tinham retirado, já o illuminador começava fechando as +torneiras do gaz e ainda novas ovações eccoavam na sala.</p> + +<p>Ella tornava a subir ao palco, agradecendo, muito amavel, sorrindo como no +retrato, para o ar, para coisa nenhuma.</p> + +<p>E por onde passava deixava no rasto um cheiro forte, bom, que embriagava o +corcunda.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Achou-se afinal sósinho.</p> + +<p>Umas familias, que se tinham encontrado<span class="pn">{125}</span> á +sahida, conversavam, emquanto as senhoras vestiam os chailes e os homens +accendiam os cigarros.</p> + +<p>Que fazia ali o corcunda? Viera na esperança de que essa mulher ideal, como +elle não sonhara poder haver no mundo, reparasse no pobre verme e do seu +pedestal lhe fizesse a mercê d'um olhar.</p> + +<p>Mas nem ella o vira, nem elle pudera ajudar á ovação. Bem tinha deitado os +bracinhos por entre os balaustres para applaudir; se não fosse a asma, teria +gritado: bravo! mil vezes. Mas se era tão fraquinho...!</p> + +<p>Estava extenuado, meio morto; a cabeça estalava-lhe.</p> + +<p>Sentou-se n'um dos degraus da geral e escondeu o rosto entre as mãos.</p> + +<p>Pouco a pouco, ia perdendo a memoria do que se passára, conservando apenas a +consciencia de que era um desgraçado.</p> + +<p>Accordaram-o uns passos de mulher.</p> + +<p>Ergueu a cabeça.</p> + +<p>Mademoiselle d'Avenay, toda embrulhada<span class="pn">{126}</span> em +rendas brancas, sahia do camarim muito risonha, conversando com uma velha, que +a acompanhava.</p> + +<p>Levantou-se. Ella tinha de passar por ali e elle tremia.</p> + +<p>Quasi sem forças, desvairado, mal poude pronunciar:</p> + +<p>—Bravo! Bravo!</p> + +<p>Ella parou um pouco assustada. Vendo-o tão pequenino, na meia escuridão, +julgando-o provavelmente uma creança, tocou-lhe com dois dedos na cara. Mas, +picando-se nas barbas, retirou a mão e disse:</p> + +<p>—<em>Pardon, monsieur.</em></p> + +<p>E quando passou... sorriu-se para elle.<span class="pn">{127}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00090">O MEU REWOLVER</a> </h1> + +<p>Em dezembro. O sol morria depois de curta vida. A tarde era fria e o vento +cortava.</p> + +<p>Triste, cansado, depois de um dia inutil, voltava para casa silenciosamente, +mastigando um charuto insupportavel.</p> + +<p>Pesava-me como cruz de ferro a ociosidade que não pudéra combater.</p> + +<p>A melancolia apoderára-se de mim. Envolvia-me<span class="pn">{128}</span> a +alma como que n'um lençol humido e frio.</p> + +<p>Bandos de operarios voltavam do trabalho alegres, socegados, interrompendo +com cantigas de fado as conversações politicas.</p> + +<p>Irritou-me a alegria d'elles.</p> + +<p>Eu caminhava de cabeça baixa; mas só mal definidos pensamentos se +atropellavam no meu espirito, sem razão, como succede nos sonhos inquietos.</p> + +<p>Vagas saudades do passado, desejos mal definidos de outro tempo... Tudo +triste, triste.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Subi a escada ingreme, que levava ao meu quarto andar, e achei-me em casa, +sem quasi me lembrar do caminho que seguira.</p> + +<p>Os ultimos raios do sol entrando pela janella entreaberta morriam, faltos de +forças, allumiando fracamente uns velhos retratos de familia, immoveis, havia +muito, nas molduras carunchosas.<span class="pn">{129}</span></p> + +<p>Estava só.</p> + +<p>Ainda bem.</p> + +<p>Puxei de uma cadeira e sentei-me á janella, resolvido a esperar com +paciencia a noite, que ao mesmo tempo desejava e temia.</p> + +<p>A atmosphera era humida e pesada.</p> + +<p>Na rua havia profundo silencio.</p> + +<p>O occidente, carregado de nuvens negras, orladas por uma franja dourada, +parecia o panno enorme d'um caixão de gigante.</p> + +<p>As nuvens cresciam impellidas pelo vento da barra, ameaçando breve toldar o +céu.</p> + +<p>Luziu a primeira estrella.</p> + +<p>Contemplei-a com amor, lembrando-me de que ainda ninguem áquella hora +tivesse dado por ella. Estaria talvez no ceu brilhando tão só para mim.</p> + +<p>E senti não sei que satisfação intima com aquella idéa: para mim só!</p> + +<p>Puz-me a contemplal-a com amor, a falar-lhe como um poeta; e ella +consolou-me, e, durante toda aquella tarde, foi este o unico momento em que +tive amor á vida.<span class="pn">{130}</span></p> + +<p>Um empregado do gaz passou pela rua accendendo os candieiros e assobiando +uma polca.</p> + +<p>Ouvi uma voz por cima da minha cabeça.</p> + +<p>—Menina Maria! Menina Maria!</p> + +<p>Era o meu vizinho da trapeira, um empregado de uma casa de penhores, feio, +bexigoso e rachitico.</p> + +<p>—Está o gaz acceso. São horas de começarmos a conversar.</p> + +<p>N'uma janella do outro lado da rua appareceu a cabeça pallida de uma +rapariga, que de dia namorava o boticario e de noite conversava com o +bexigoso.</p> + +<p>—Muito boas noites.</p> + +<p>A menina Maria começou a fazer-lhe signaes querendo dizer, creio eu, que +addiasse para mais tarde as declarações de amor, não fosse eu ouvil-as.</p> + +<p>—O que? perguntava o bexigoso. Não percebo. É pena estar o tempo de +chuva.</p> + +<p>—É pena, é! Pouco poderemos conversar. D'aqui a pouco... Olhe, não vê? +Estão<span class="pn">{131}</span> as nuvens quasi tapando aquella estrella.</p> + +<p>E apontou para a estrella, que fôra até ali o meu enlevo.</p> + +<p>Dei um murro no parapeito da janella e fechei-a desesperado.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>A nuvem negra, para provar que o bexigoso não era tolo de todo, deixou cahir +como prologo de maior chuveiro, uns poucos de grossos pingos de agua, que +vieram bater tristemente nos vidros da janella.</p> + +<p>Accendi o velho candieiro de azeite e recostei-me n'uma poltrona de oleado, +onde dei largas aos merencorios pensamentos.</p> + +<p>Decididamente odiava a vida.</p> + +<p>E que me prendia a ella? Fôra uma cadeia de oiro a d'outros tempos, mas +viera a desgraça quebrar-lhe, um a um, os elos todos.</p> + +<p>—A morte!<span class="pn">{132}</span></p> + +<p>E machinalmente puxei do rewolver.</p> + +<p>Era uma joasinha americana, bonita, de systema engenhoso, com fechos de +prata, que me saira n'um bazar de caridade.</p> + +<p>—Eis o remedio para quantos males se soffrem no mundo, pensei. Uma +pouca de coragem, um pequenissimo movimento... e nada mais é preciso.</p> + +<p>Comecei a brincar com o gatilho.</p> + +<p>—De que serve uma vida a que póde dar fim coisa tão pouca?</p> + +<p>E, como para convencer-me de que não havia nada mais facil, approximei da +bocca o cano do rewolver.</p> + +<p>E vi que tinha medo e que me repugnava a morte.</p> + +<p>Lembrei-me do frio da terra e do contacto da carne com os corpos frios e +molles dos bichos nos cemiterios. E requintei na fantasia as sensações da longa +fileira dos rigidos cadaveres, que via dormindo na valla commum o somno +doloroso da morte.</p> + +<p>Passou-me um calafrio pelo corpo, ergui-me,<span class="pn">{133}</span> +levantei a golla do casaco e comecei a passear pelo quarto.</p> + +<p>Os velhos retratos mettidos na sombra da bandeirola pareceram-me +espectros.</p> + +<p>Um sobre todos, lembra-me, causou-me horror extranho, n'aquella noite.</p> + +<p>Era um conego velho, gordo, sem barba, com uma corôa de cabellos grisalhos +em torno d'uma calva lisa e amarella. Tinha uns olhos azues, pequeninos, que se +fitavam na gente para onde quer que se fugisse.</p> + +<p>Quando eu era pequeno, tinha um dia virado o conego de cabeça para baixo, +para ver se assim parava a perseguição do seu olhar. Meu avô, que n'aquelle +momento entrara no quarto, ralhou muito commigo, que fôra uma falta de +respeito, que o conego era meu tio, que fôra homem de muito saber e que até +compuzéra uma grammatica latina com a prosodia em verso.</p> + +<p>E eu, que detestava a prosodia e o latim, comecei desde logo a detestar o +tio.<span class="pn">{134}</span></p> + +<p>N'aquella noite pareceu-me que os olhos azues e pequeninos scintillavam, +phosphorescentes.</p> + +<p>Recuei com um calafrio, procurando fugir ao pesadêlo.</p> + +<p>E os seus olhos pequeninos, azues, phosphorescentes continuaram a seguir-me +com pertinacia.</p> + +<p>Passei a mão pela testa e trouxe-a humida de suor frio.</p> + +<p>Dei volta á bandeirola do candeeiro e, cheio de falsa coragem, approximei-me +do retrato.</p> + +<p>Estava louco!</p> + +<p>—Sou um cobarde! Tenho a cobardia d'uma criança, pensei.</p> + +<p>Fui ao armario de páo preto, envidraçado, onde tinha uma garrafa com um +resto d'absintho.</p> + +<p>Um caruncho, com aquelle ruido monotono e compassado, que tanto se ouve nas +casas velhas, incumbira-se da agradavel tarefa de esfarelar uma +prateleira.<span class="pn">{135}</span></p> + +<p>E eu sentia dentro em mim uma tempestade! E se me tivesse suicidado, se +junto d'aquelle armario se houvesse passado um drama horrivel, elle teria +placidamente, com a maior indifferença, continuado a morder voluptuosamente a +madeira resequida, em sua obra de destruição.</p> + +<p>Abri a garrafa. Bebi sofregamente.</p> + +<p>Pela segunda vez approximei da bocca, voltando as costas ao conego, o cano +do rewolver.</p> + +<p>Senti abrir-se a janella do bexigoso e ouvi-lhe a voz esganiçada:</p> + +<p>—Menina Maria! Parou a chuva.</p> + +<p>Salvou-me a vida. Escutando-o, quiz despedir-me da voz humana. No curto +momento, em que o meu antipathico visinho levou a dizer aquella phrase, +entrou-me n'alma o receio.</p> + +<p>—Decididamente sou um cobarde, um grande cobarde! Preciso beber.</p> + +<p>E sahi, mettendo o rewolver na algibeira.<span class="pn">{136}</span></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Pela segunda vez na vida o bexigoso falára sem dizer tolice. Effectivamente +cessára a chuva, e apenas umas nuvens brancas, com grandes manchas d'uma côr +mais carregada, formavam castellos fantasticos, entre os quaes corria a lua a +toda a brida.</p> + +<p>Ao dobrar d'uma esquina encontrei um amigo.</p> + +<p>—Aonde vais? disse-me. Até S. Carlos?</p> + +<p>Pareceu-me offensa a pergunta e estive para responder-lhe:</p> + +<p>—Não, vou matar-me.</p> + +<p>Mas não quiz. Dizer-lh'o, para que? Se não podia perceber-me?</p> + +<p>—Vou sem destino, disse.</p> + +<p>—Já jantaste?</p> + +<p>—Ainda não.</p> + +<p>—Jantemos juntos n'esse caso.</p> + +<p>E deu-me o braço e começámos a descer a rua.</p> + +<p>E eu ia pensando com uma certa alegria<span class="pn">{137}</span> no +jantar e comecei a ver a morte sob outro aspecto: o suicidio depois de bem +comido, numa salla bonita, quente, alumiada fortemente por dois lustres de +gaz.</p> + +<p>Que differença! Que admirava que me tivesse faltado a coragem n'aquelle +quarto frio e humido quando eu estava possuido da tristeza da fome? Frio e fome +por toda a eternidade!...</p> + +<p>Entrei no hotel cantarolando um bocado da minha opera favorita.</p> + +<p>Defronte de nós uns americanos bebiam champagne, <em>veuve Cliquot</em>.</p> + +<p>—Grande vinho, o champagne! não achas? disse o meu amigo.</p> + +<p>—Magnifico!</p> + +<p>—Havemos de vir bebel-o aqui um dia d'estes. É pena não poder ser +hoje.</p> + +<p>—Porquê?</p> + +<p>Não respondeu e córou até ás pontas das orelhas.</p> + +<p>E eu achei que para dar coragem nada havia como o champagne.<span +class="pn">{138}</span></p> + +<p>E puz-me a passar revista a todas as suas boas qualidades, e por fim achei +que eram tantas e tantas, que, esquecido da morte... fui pôr o rewolver no +prego.<span class="pn">{139}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION000100">O MIMOSO</a> </h1> + +<p>—Está frio, dizia elle subindo o Chiado.</p> + +<p>Era um homem de quarenta annos, magro, quasi cadaverico, de melenas tão +compridas e tão esquecidas de pente que se lhe emmaranhavam nas barbas, de +olhos negros, encovados, de olhar obliquo e desconfiado, a luzirem com fome por +cima das olheiras papudas.</p> + +<p>Era no inverno e elle com a mão ossuda,<span class="pn">{140}</span> +engrifada apertava contra o peito a sobrecasaca rota, sem botões. Não trazia +collete e a camisa era um frangalho. Como se precisa ter gravata para entrar +nos passeios, onde não desgostava de ir á tarde apanhar um bocado de sol, +trazia um pedacinho de panno azul pregado ao collarinho sem gomma com um +alfinete de ferro. As botas rotas, sem tacões, tinham, a tapar-lhes os buracos, +camadas sobrepostas de lama secca.</p> + +<p>Parou á porta do Baltresqui.</p> + +<p>Um janota sentado a uma das mesinhas do café, deante de uma garrafa de Père +Kermann, aspirava o fumo aromatico de um charuto pequenino. Passados momentos, +tirou o relogio da algibeira, viu as horas, engoliu de um trago as ultimas +gottas do calix e, chamando o criado pelo nome, atirou-lhe uma nota de dez mil +réis. Quando o criado voltou com o trôco, levantou-se deixando o cobre em cima +da mesa.</p> + +<p>—Muito obrigado, sr. Visconde, disse o<span class="pn">{141}</span> +criado, dando-lhe piparotes na manga do sobretudo suja pela cinza do charuto, +que o Visconde quebrára na borda da mesa.</p> + +<p>—É um visconde, observou distrahidamente o homem das botas rotas.</p> + +<p>E como o Visconde voltasse para cima, seguiu-o á espera que deitasse fóra a +ponta do charuto. Ia apertando a sobrecasaca contra o peito e invejando o +casaco do Visconde, comprido, felpudo, de grande golla, que se podia levantar e +abrigava as orelhas do frio.</p> + +<p>O Visconde subia o Chiado devagarinho, com as mãos nas vastas algibeiras, +tirando do charuto abundantes fumaças, com aquelle sorriso de satisfação, que +dá a certos parvos de bom estomago a digestão de um bom jantar.</p> + +<p>O pobre diabo tinha fome. Almoçára na véspera; depois não tinha comido.</p> + +<p>Mas o que mais o apouquentava era o apetite de fumar.</p> + +<p>O fumo adormece a fome e expulsa a melancolia. Póde-se dormir, quando se +tem<span class="pn">{142}</span> um cigarro na algibeira e o fumo de um outro +enchendo o quarto. O tabaco é o veneno rei dos venenos, um elixir que mata +lentamente, que embriaga, que socega os nervos, que enfraquece a memoria e dá +ás pernas uma preguiça deliciosa, que faz achar boa a cama pela manhã, quando o +ar está cheio de neblina e na rua afogada em lama se ouvem os pregões e o +sussurro dos que teem que fazer, dos que trabalham.</p> + +<p>—Por isso Deus que afinal é bom, ia o homem pensando, encheu as ruas +de pontas de charuto para os homens e de tallos de couve para os cães, que não +fumam, que não teem que esquecer, que são tolos.</p> + +<p>Mas a noite estava chuvosa e as pontas de charuto, não se viam, enterradas +na lama pelas rodas das carruagens. Por isso seguia o ricaço, ancioso pelo +momento em que o charuto havia de cahir espalhando em torno uma chuva de +faisquinhas.</p> + +<p>O Visconde parava de vez em quando, apertando a mão aos amigos que +desciam.<span class="pn">{143}</span></p> + +<p>—Então que se faz? perguntavam-lhe.</p> + +<p>E elle só encolhia os hombros como resposta áquella pergunta ociosa e tola. +O homem notou:</p> + +<p>—Pois elle não terá nada, mesmo nada, que fazer?</p> + +<p>Comparou-se com o Visconde e sentiu uma certa vaidade. Porque elle +trabalhava, fazia alguma coisa. Se lhe perguntassem o quê, talvez não +respondesse logo, assim sem pensar, sem examinar um instante com olhar +desconfiado o fim com que lhe faziam a pergunta. Ás vezes, quando se levantava, +não tinha de comer; era preciso arranjal-o e arranjava-o. Era talvez pouco +escrupuloso; isso sim.</p> + +<p>—Mas, pensava, para se terem delicadezas é preciso alguma coisa na +algibeira.</p> + +<p>E isso era raro, muito raro.</p> + +<p>Decididamente, se alguém lhe perguntasse:</p> + +<p>—Então que se faz? havia de responder como o Visconde, encolhendo os +hombros.</p> + +<p>Depois, como se toda esta cadeia de pensamentos<span class="pn">{144}</span> +o tivesse conduzido a uma conclusão certissima, olhou para o janota, a rir-se, +com certo ar maganão, e exclamou baixinho, como quem faz uma descoberta:</p> + +<p>—Olá!</p> + +<p>E, apontando com o dedo pollegar para o Visconde, disse piscando o olho a si +mesmo:</p> + +<p>—É cá do meus.</p> + +<p>Chegado á rua Nova dos Martyres, o Visconde parou um instante, tirou o +relogio da algibeira e, approximando-se de um candeeiro, tornou a ver as horas. +Esteve um momento como que indeciso sobre o que havia de fazer; por fim dobrou +a esquina e dirigiu-se para S. Carlos.</p> + +<p>Tirou as luvas da algibeira e começou a calçal-as.</p> + +<p>—Quando deitará elle fóra o charuto? pensava o homem.</p> + +<p>Mas de repente affirmou a vista e os olhos faiscaram-lhe: o Visconde ao +tirar as luvas da algibeira deixára ficar o lenço com a pontinha de fóra.<span +class="pn">{145}</span></p> + +<p>Contrahiu um pouco as sobrancelhas meditando.</p> + +<p>Valeria a pena um lenço? Tinha fome. Aquelle lenço representava talvez a +ceia. Seria triste na verdade; o que poderia valer um lenço?</p> + +<p>Estendeu o labio inferior.</p> + +<p>Era preciso tomar uma resolução.</p> + +<p>Ora, adeus! Mais valia do que morrer de fome.</p> + +<p>Approximou-se nos bicos dos pés.</p> + +<p>Olhou para todos os lados. A rua era deserta.</p> + +<p>O coração bateu-lhe um pouco. O Visconde podia sentil-o, defender-se, +gritar, e elle iria preso, com fome, e passaria a noite a tiritar de frio, +fechado n'um calaboiço.</p> + +<p>Animo!</p> + +<p>Metteu a mão esquerda por debaixo da aba do sobretudo.</p> + +<p>O Visconde cantarolava:</p> + +<blockquote> + C'est q'çá gli...iiis...se.<span class="pn">{146}</span> </blockquote> + +<p>Victoria! O lenço era d'elle!</p> + +<p>O homem não tinha sentido nada e acabava a copla:</p> + +<blockquote> + Encore un qui n'l'aura pas <br> + La timbale <br> + La timbale. </blockquote> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Um lenço! Ia finalmente comer. Tinha ganho o dia.</p> + +<p>E o lenço era um bom lenço, muito branco, muito novo.</p> + +<p>Mirou-o e remirou-o.</p> + +<p>Não tinha uma só passagem e era de seda.</p> + +<p>Era de seda! Queria dizer que representava talvez mais do que a ceia.</p> + +<p>Quanto poderia valer aquillo?</p> + +<p>O homem chegou-se a um bico de gaz e poz-se a olhar. De vez em quando, +coçava com a unha a aza do nariz, signal certo de duvida.<span +class="pn">{147}</span></p> + +<p>O Gomes é que lh'o poderia dizer. O Gomes era muito entendido; um pouco +ladrão, mas muito entendido.</p> + +<p>E já esquecido do Visconde e do charuto, voltou e dirigiu-se para a Calçada +do Duque.</p> + +<p>A casa de penhores era á esquerda, uma casa pequena, asphixiante, cheia de +fato até á porta.</p> + +<p>O Gomes estava por detraz do balcão, encostado aos livros, com a sua suissa +á ingleza, a caneta atraz da orelha, e o seu sorriso protector.</p> + +<p>Um candeeiro de petroleo, com vidro sujo e luz economica, alumiava +fracamente as roupas inuteis, que nas prateleiras até ao tecto esperavam +tristemente pela traça ou pelo proximo leilão.</p> + +<p>Uma guitarra sem cordas pendia de um prego ao lado de uma serra. Do outro +lado, o retrato de um bom velho burguez e calvo, com a barba cerrada, ar de +pessoa de bem, e um botão d'oiro, quadrado, no peitilho da camisa, sorria com +bondosa satisfação<span class="pn">{148}</span> para um cacho de botas velhas, +que, suspensas do tecto, se lhe baloiçavam a dois palmos do nariz. Tinha valido +um dinheirão, valia agora cinco tostões.</p> + +<p>O homem parou á porta e poz-se á espreita.</p> + +<p>—Muito boas noites, sr. Gomes.</p> + +<p>—Olá!</p> + +<p>—Dá licença?</p> + +<p>Atirou o lenço para cima do balcão.</p> + +<p>—Faça favor de ver isso.</p> + +<p>E, á espera que o exame do lenço acabasse, entreteve-se a olhar para uma +borboleta, que esvoaçava em torno do candeeiro.</p> + +<p>O Gomes desdobrou o lenço, sacudiu-o, levantou um pouco a torcida e começou +um exame minucioso, palpando, virando e revirando a seda.</p> + +<p>—Isto de bordados... Um <em>A</em> e uma corôa.</p> + +<p>E o Gomes sorriu-se, esforçando-se por ter um ar intelligente.</p> + +<p>—Foi o sr. Visconde que m'o deu para o<span class="pn">{149}</span> +empenhar, disse o outro, encolhendo os hombros com impaciencia.</p> + +<p>—Pois, amigo, diga ao sr. Visconde que isto pouco valor tem. O bordado +é bom, o bordado tem valor; mas a quem póde isto servir? Quer trez tostões?</p> + +<p>—Traste...! resmungou o homem. Então só vale...? Ó sr. Gomes, olhe que +roubar é feio. Faça favor de reparar que é de seda.</p> + +<p>O Gomes, desdenhoso atirou com o lenço.</p> + +<p>—Dê-me um cruzado e vou-me embora.</p> + +<p>—Homem, você parece que não sabe quem eu sou!</p> + +<p>E poz doze vintens em cima do balcão.</p> + +<p>—Traste! tornou a resmungar o homem, pegando nos doze vintens e +encaminhando-se para a porta.</p> + +<p>—Quer cautella? perguntou o Gomes com ar de brincadeira, já +desmanchando o bordado com o bico d'uma tesoira.<span +class="pn">{150}</span></p> + +<p>—Nada. Obrigado. O sr. Visconde não me falou em cautella.</p> + +<p>E sahiu sempre a resmungar.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Poucas horas depois, estava estirado ao pé d'uma sargeta.</p> + +<p>Cahia uma chuva miuda e fria e elle sonhava.</p> + +<p>Sonhava que tinha roubado um lenço de seda, d'uma seda muito fina, tão fina +que nem o Gomes sabia ao principio o que lhe havia de dar pelo lenço. E +tinha-lhe dado a loja toda, as botas, a guitarra, o oiro que estava na gaveta +do balcão, o dinheiro que estava na commoda, tudo. E elle era rico. Andava de +trem e bebia no Baltresqui uma coisa com bolhasinhas a subirem e que fazia +saltar as rolhas das garrafas. Os janotas do Chiado tratavam-o por <em>tu</em> +e os gaiatos davam-lhe <em>dom</em>. O Visconde era muito amigo d'elle e +offerecia-lhe charutos magnificos,<span class="pn">{151}</span> que roubava a +um estanqueiro muito velho da rua dos Canos. Tinha um sobretudo côr de canella, +muito quente e andava de luvas. Morava n'um palacio e tinha na salla o retrato +do velho que estava na loja do Gomes, e que era pae d'elle, e do outro lado +estava o retrato do outro pae, do que tinha conhecido, do que lhe dava pancadas +quando elle era pequeno. E o Gomes vinha pedir-lhe esmola. Estava muito magro. +O lenço não era de seda, era de papel. E elle tinha um cão muito grande, com +olhos de lume, que mordia no Gomes, e o Gomes chorava.</p> + +<p>—Leva arriba!</p> + +<p>Um policia de voz aspera accordou-o com um pontapé.</p> + +<p>E, como o homem resmungava, metteu-lhe a mão por debaixo dos braços e +obrigou-o a levantar-se.</p> + +<p>—Marche adeante e nada de cerimonias.</p> + +<p>Fôra dia de grande gala e as luminarias morriam nos preguinhos do governo +civil.<span class="pn">{152}</span></p> + +<p>O homem percebia tudo um pouco vagamente. Sentia-se empurrado e via as +luminarias.</p> + +<p>Aquillo entristecia-o.</p> + +<p>Perguntaram-lhe o nome e ainda teve forças para murmurar com voz +avinhada:</p> + +<p>—Francisco Antonio, o <em>Mimoso</em>.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Quando, pela madrugada, acordou, cheio de frio e de fome, metteu a mão +tremula na algibeira das calças e murmurou com voz triste e arrependida:</p> + +<p>—Fiz mal.</p> + +<p>E depois d'um instante de reflexão:</p> + +<p>—Devia ter comprado um massinho de cigarros.<span +class="pn">{153}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION000110">GRI-GRI</a><a name="tex2html1" +href="#foot2534"><sup +style="font-size: 30%; font-weight: normal;">[1]</sup></a> </h1> + +<p>Ao longe, para as bandas de Santos, começavam a apagar os candeeiros. Uma +neblina baixa espalhava-se sobre o Tejo, mas no céu, atravez do nevoeiro, +brilhava, muito fria, a estrella da manhã, e a lua, como um saveiro de prata, +de proa e poppa<span class="pn">{154}</span> recurvadas, empallidecia pouco a +pouco. Os montes da Outra Banda estampavam confusos no céo embaciado os +contornos gigantescos, e no fundo escuro mal se distinguiam as grandes massas +negras dos navios. Occulto n'um monte de pedras, um grillo cantava +distrahido:—<em>gri, gri, gri, gri...</em></p> + +<p>O homem vinha d'aquelles lados do Caes do Sodré. Parecia bastante fóra de +si; cambaleava por excesso de cançaço; muito pallido, com o fato em desalinho, +o chapéo de palha, amolgado, deitado para a nuca. Parava repentinamente, de +quando em quando, como em frente de um obstaculo invencivel, e limpava com as +costas da mão as bagas de suor escorrendo-lhe sobre a testa das melenas +desgrenhadas, que então sacudia para traz com um gesto violento da cabeça. +Seguia aos SS, machinalmente, ao acaso, para onde as pernas o levavam. As abas +do casaco desabotoado, onde batia com os braços a dar, a dar, faziam-o parecer +na sombra, quando passava junto dos candeeiros, um grande<span +class="pn">{155}</span> morcego ferido a querer esvoaçar. Vinha de dentes +ferrados, olhar fixo, olheiras pisadas.</p> + +<p>Já se ouviam os barulhos antipathicos do amanhecer na cidade. Recolhiam as +carroças dos varredores, e na Praça D. Luiz dois empregados, mudos e +somnolentos, limpavam as sargetas do passeio. O homem dos candeeiros vinha-se +approximando, fazendo tinir os vidros, ao cahirem depois da luz apagada. Para +aquelles lados apenas ficou luzindo uma lanterna moribunda n'uma barca de +banhos. Um homem em mangas de camisa, que dormira toda a noite em cima d'um +banco, espreguiçou-se muito, dobrou os joelhos, tornou a esticar as pernas e +depois, rodando sobre o centro, sentou-se de repente, tirou o barrete, coçou +desesperadamente a cabeça. Uns operarios, com o fardel em lenço de chita na +ponteira do guarda-chuva, passaram apressados. Por todos os lados, na cidade +alta, em roda da Praça e nas capoeiras dos terceiros andares, estrugiam cantos +de<span class="pn">{156}</span> gallos, roucos e solemnes, conquistadores e +desafinados.</p> + +<p>O homem, que até então seguira pelo meio da rua, approximou-se do passeio. O +outro acabara de coçar-se e, como a manhã estava humida, enterrara o barrete +até ás orelhas e, de braços cruzados, muito chegados ao peito, fazia, para +aquecer, o gesto de quem emballa uma criança. Levantou-se depois e foi para o +caes gritar muito prolongadamente—«Ó compadre...! Ó compadre...! Ó +compadre...!» Lá de longe, d'uma fragata, responderam-lhe:—«Eh! +ti'Zé...!» O homem dos candeeiros passou, e, como o ti'Zé se levantára, o outro +sentou-se sem dar por isso, no mesmo banco, perto d'onde o grillo continuava +distrahido:—<em>gri, gri, gri, gri...</em></p> + +<p>Parecia muito afflicto, em grande desespero, relanceando em redor os olhos, +sem fixar a vista em nenhum objecto, como se apenas pudesse olhar para a sua +desgraça. Tirou o chapeu, fincou os cotovellos nos<span class="pn">{157}</span> +joelhos, e com as maçãs das faces sobre os punhos cerrados, arrepelou as barbas +para cima dos olhos. Olhando tristemente para o chão, todo curvado, vinham-lhe +estremecimentos nervosos, que lhe percorriam rapidos o corpo, fazendo-o +levantar as pernas, que recahiam com força; tinha no rosto a mascara pallida e +feia da tristeza sem consolo; nas olheiras carregadas e nos cantos dos labios +uma amargura dolorosa cavára as rugas muito fundas. Respirava alto, murmurando +exclamações irritadas d'uma angustia sem remedio, frases sem nexo, cortadas por +soluços.</p> + +<p>Os fios do telegrapho cantavam sem pausa uma doida melopéa triste, emquanto +ao longe, já se ouvia um murmurio indefinido de vida a começar. Algumas +chaminés principiaram a deitar baforadas negras de fumo, que, não podendo +elevar-se na atmosphera humida, alastrava-se sobre o Tejo. E os signaes das +embarcações e o reflexo d'elles n'uma grande faxa tremeluzente faziam como<span +class="pn">{158}</span> que um bordado a oiro no grande véu esfarrapado de gaze +luctuoso.</p> + +<p>O horisonte branquejava.</p> + +<p>Ouviram-se nos navios os tiros frouxos da alvorada e de longe chegaram +moribundos uns toques de corneta. Junto ao caes passeava, com modos de avejão +na densa neblina, um guarda da alfandega friorento. E o grillo sob as pedras +continuava distrahido:—<em>gri, gri, gri, gri...</em></p> + +<p>O homem ergueu-se n'um impeto, como quem toma uma decisão inabalavel contra +argumentos. Cambaleando, arrastando-se, approximou-se do caes. Pequeninas vagas +marulhavam docemente e lá do fundo subia um frio humido, desagradavel, frio de +morte. Então poz-se a fitar os olhos nas aguas e, como se ellas lhe cantassem +uma canção muito meiga, como se ouvisse a voz da melhor amiga, sorriu-lhes +desvanecido, mais tranquillo, já quasi convalescente da longa noite de +exaspero. Duas grossas lagrimas correram-lhe pelas faces macilentas, o +peito<span class="pn">{159}</span> oppresso ergueu-se alto, e elle respirou +fundamente, passou as mãos pela cara. Pouco depois, preso de pavor medonho, +abalou, sem querer olhar para traz, com gestos doidos, d'olhos esbogalhados, +chapéu na mão, melenas erriçadas.</p> + +<p>E, passados instantes, estava outra vez junto do caes, parado, meditando, +com os olhos fitos na agua.</p> + +<p>O Tejo accordára. Do lado do Barreiro surgiam umas velasitas brancas e rio +abaixo singrava, orgulhosa, uma grande fragata de vela avermelhada, com uma +ancora pintada de negro no panno, projectando na agua immovel como grande placa +oleosa, uma imagem tremida, enorme, cortada por uma linha de espuma. Em terra +começavam a definir-se certos sussurros. Rangiam portas de tabernas, passavam +peixeiras correndo, um guarda nocturno batia fortemente á porta d'um armazem, +ouviu-se um despertador no interior d'uma casa. O ceu, muito branco havia +pouco, tornara-se côr de laranja. A neblina<span class="pn">{160}</span> +erguera-se e o fumo das chaminés subia a prumo, alargando-se no alto, como um +penacho de porta machado.</p> + +<p>Então o homem decidiu-se e de braços para a frente, atirou-se ao +rio—Chap!—O benemerito guarda d'alfandega, o <em>72</em> por +signal, atirou-se atraz do homem.</p> + +<p>E, quando seguia para a esquadra, acompanhado pelo guarda que gesticulava +muito, entre dois soldados da guarda municipal, encharcado, sujo, envergonhado, +arrependido, tranzido de frio, o grillo continuava distrahido sob as +pedras:—<em>gri, gri, gri, gri...</em></p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Ora isto não quer dizer nada; mas então porque foi que só n'essa occasião é +que elle embirrou com o grillo que fazia <em>gri, gri</em>?<span +class="pn">{161}</span></p> + +<p><a name="foot2534" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> <em>Variante em +verso, publicada pela livraria Popular</em></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION000120">NA BIQUEIRA</a> </h1> + +<p>Ella tem uns olhos azues tão bonitos!... Mas se eu vi! Elle a olhar para +cima... e ella a fazer signaesinhos com o lenço!... Vi; ninguem m'o veio +dizer... Fui eu que vi!</p> + +<p>E estas cartas que me escreveu! Talvez em nenhuma fale verdade. Esta ultima +é toda mentira com toda a certeza. Quando a escreveu, já foi depois de ter +polcado com elle... E chama-me seu <em>anjo</em> a infame!</p> + +<p>Como póde um homem baixar até morrer<span class="pn">{162}</span> por uma +mulher assim! Morrer, sim, está resolvido... vou matar-me.</p> + +<p>Meu pobre pae, coitado! Sempre com tantos sacrificios por minha causa! O que +dirá, quando souber que me suicidei? Pobre velhinho! É capaz de morrer de +desgosto! Tinha vontade de lhe escrever; mas não tenho animo. Nem animo nem +papel. Gostava de me despedir... O resto do papel ainda o gastei a escrever +áquella desgraçada!</p> + +<p>Ah! mas vou afinal vingar-me!... Hei de atribular-lhe a vida com +remorsos!</p> + +<p>Custa-me tanto morrer!... Dizem que só os cobardes é que se matam. E eu acho +que é preciso ter animo, muito animo!</p> + +<p>Mas está decidido.</p> + +<p>Vou morrer enforcado... Dizem que não doe nada... Mas morrer! Quem foi que +disse que não doe? Aqui está a corda. Exactamente do tamanho preciso para que, +de manhã, quando ella abrir a janella, me veja pendurado, em frente dos seus +olhos, na biqueira do meu telhado.<span class="pn">{163}</span></p> + +<p>É preciso não hesitar... Infame! Mas que mulher tão infame! E tem uns olhos +tão bonitos!... Que besta... o outro!</p> + +<p>Bem! agora ponho-me a chorar! São saudades de meu pae!</p> + +<p>Aquella biqueira tentou-me. É de zinco, parece muito forte, algum tanto +virada para cima.</p> + +<p>Vamos.</p> + +<p>Está frio cá fóra... Chovisca... A noite é escura!...</p> + +<p>Ali estão as janellas do quarto d'ella, d'onde tanta vez olhou para mim, +d'onde tanta vez me falou e me atirou beijos com as pontinhas dos dedos!... Que +mentira! Agora faz o mesmo ao outro!</p> + +<p>Está frio! Será bom vestir o sobretudo... Assim estou melhor, mais +conchegado... para morrer!</p> + +<p>Cá estou outra vez a chorar!</p> + +<p>Ámanhã, quando abrires as tuas janellas, has de ver, mesmo em frente, o meu +corpo, baloiçando-se ao vento soturnamente.<span class="pn">{164}</span></p> + +<p>O peor é se fico com a lingua de fóra... É tão feio uma lingua de fóra! Eu +fico tão feio!... E os olhos...! Os olhos d'um enforcado...!</p> + +<p>Mas está decidido, está decidido. O enforcado é o mais limpo dos +suicidas.</p> + +<p>Se não fosse o medo já lá estava. Um suicida é um valente!</p> + +<p>Atemos a corda. Mau! o telhado escorrega...! Se eu cahisse lá abaixo!... Só +pensal-o me arripia todo!</p> + +<p>D'ali é que ella erguia os olhos tanta vez para a minha trapeira!</p> + +<p>Devagar... Assim.. Parece-me que o laço está bem dado... Quasi que não vejo +com as lagrimas... Está bem dado, está; está seguro.</p> + +<p>O melhor é descer pela corda, e depois, lá em baixo, quando tiver chegado ao +fim, metto o pescoço no laço, segurando a corda, devagarinho, muito +devagarinho... e deixo apertar.</p> + +<p>Como é triste morrer assim tão novo, tão<span class="pn">{165}</span> cheio +de vida!... Morrer!... Chega a ser estupido...! porque afinal eu tinha um +futuro talvez brilhante... Um praticante de pharmacia... Morrer assim tão +novo!</p> + +<p>Mas como isto faz chorar!</p> + +<p>Está frio!</p> + +<p>Ella dorme...! Se adivinhasse...!</p> + +<p>Não pensemos mais n'isto. Sejamos homem!</p> + +<p>Devagarinho...!</p> + +<p>Estou suspenso sobre o abismo! Uma altura de cinco andares...! Sinto um frio +na espinha...! Se as mãos se me escapassem...!</p> + +<p>Não me despedi bem do meu quarto. Devia de voltar para cima. Afinal fui +ingrato com elle. Tive ali momentos bons.</p> + +<p>A corda dá-me cabo das mãos. Devo estar quasi na ponta... Cá está o laço. +Estou mesmo, mesmo em frente das janellas. Se me baloiçasse um bocadinho, +tocava-lhe com a ponta do pé nos vidros.</p> + +<p>Punhamos o laço ao pescoço. Foste tu,<span class="pn">{166}</span> mulher +devassa, que me fizeste esta gravata!... Agora deixemos apertar devagarinho.</p> + +<p>Apre! É aspera a corda!</p> + +<p>É horrivel morrer-se assim! Se ella me visse, se arrependesse e me +salvasse!</p> + +<p>Já tenho os braços cançados...! Que tentação de voltar para cima!</p> + +<p>Morrer...! Mas é uma desgraça!... uma tolice!</p> + +<p>Hein? Que é isto? Pareceu-me sentir estalar o zinco da biqueira!...</p> + +<p>Talvez fosse engano... Mas o melhor é voltar... verificar...</p> + +<p>Não, não é engano, que horror! Estalou, é certo. Ao mais pequeno movimento +estala e dobra! Se verga demais, o laço escorrega e eu esmigalho-me lá em baixo +nas pedras da calçada!</p> + +<p>Quem me ac...!</p> + +<p>E se ella apparece á janella?</p> + +<p>Doem-me os braços, já não posso mais!</p> + +<p>Mas então é certo!... Mas então vou<span class="pn">{167}</span> morrer! Mas +não quero, d'essa morte horrivel não quero!</p> + +<p>E não poder subir...! Talvez com um esforço grande, apoiando os pés á +parede... Mas o zinco estala cada vez mais, dobra-se todo...!</p> + +<p>Se eu batesse as palmas ao guarda nocturno...? Mas como? Para bater as +palmas seria preciso largar a corda... Se me pudesse segurar com uma só mão, +despir-me com a outra e bater as palmas no...</p> + +<p>Mas nem sei o que penso! Não posso suster-me só com um braço... Sinto +faltarem-me as forças!... E se ella abrisse a janella e me visse n'essa posição +ridicula?</p> + +<p>Agora é que é certo! agora é que tenho de morrer!... E ninguem, ninguem me +salva!</p> + +<p>Tenho as mãos a arder; não posso mais. Quem me dera ter animo para +gritar!...</p> + +<p>Ainda que queira subir já não posso... E o zinco verga cada vez mais, ao +mais pequeno movimento!<span class="pn">{168}</span></p> + +<p>Parece-me que sinto passos...! É preciso estar muito quieto...! Valha-me +Deus! O laço já correu um bocadinho...</p> + +<p>Os passos approximam-se... É uma patrulha!</p> + +<p>Ó camaradas!... camaradas!... Pchiu!...</p> + +<p>Não são ladrões que tenho em casa, não senhor. Não vêem que estou +pendurado?... Acudam depressa!... O zinco está todo dobrado! Depressa!... Sim, +senhor, acompanho-os á esquadra.</p> + +<p>E o laço a escorregar!...</p> + +<p>Depressa! A porta lá em baixo está aberta.</p> + +<p>É só preciso arrombar a cá de cima.</p> + +<p>Tolice! Porque não a deixei eu aberta tambem?</p> + +<p>E se alguém me quizesse acudir?</p> + +<p>Os passos approximam-se...</p> + +<p>Graças a Deus!... está a porta arrombada!</p> + +<p>Acuda! acuda depressa!</p> + +<p>Obrigado camarada!... Não ponha o pé no zinco!...<span +class="pn">{169}</span></p> + +<p>Meu Deus!</p> + +<p>Ó meu pae, coitadinho!</p> + +<p>Que horror!</p> + +<p>Ella tem uns olhos azues tão b...!<span class="pn">{170}</span></p> + +<p><span class="pn">{171}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION000130">REQUIEM AETERNAM</a> </h1> + +<p>Todas as tardes, quando o azul no alto do céu começava a desmaiar, ou já a +enlutar-se nas pregas, pouco a pouco, serenamente accumuladas pela neblina da +noite, recolhia a casa, aos solavancos sobre as pedras da calçada, a carruagem +das velhinhas.</p> + +<p>Espantosa, de grandes rodas espessas, ferragens desconjuntas, tecto +esboracado, tinta bexigosa, puxavam-a dois cavallos brancos,<span +class="pn">{172}</span> magros, muito magros, de joelhos grossos, orelhas +cahidas, choutando sem brio, coxeando dolorosamente, com um ar de philosophos +sem ração a caminho da morte.</p> + +<p>Atraz saltava a carruagem com um tinir de ferragens, soturno como um ranger +d'ossos em dança macabra. E eu encostava aos vidros da janella a testa ardendo +com febre, para ver a passagem d'aquellas duas velhinhas sympathicas, irmãs +decerto, gemeas talvez, tão eguaes, com os cabellinhos bracos alisados sobre as +testas enrugadas, as boccas reentrantes, os olhinhos apagados, tremulas, +encolhidas como passarinhos com frio, com os mesmos fatos de luto, o mesmo ar +tranquillo, o mesmo sorriso de bondade. Macrobias á espera que a morte viesse +n'um beijo perfumado cerrar-vos para sempre os olhos, como devieis soffrer, +cabeceando, sacudidas, empurradas brutalmente uma contra a outra pelas mollas +duras, aos safanões das sob-rodas da calçada! Boas velhinhas, minha paixão +unica, minha esperança d'um<span class="pn">{173}</span> dia inteiro, quando eu +vivia isolado com a minha melancolia, n'aquella casa onde o vento soprava +tristezas, onde o sol nunca entrou e onde as corujas riam de noite!</p> + +<p>O cocheiro, um velho muito velho, corcovado, segurando tremulamente as +redeas, com as mãos pousadas sobre os joelhos, conservava um certo ar de casa +nobre, apezar da nodoa esverdinhada, que se alastrava nas costas da +sobrecasaca, e do chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, arrombado, +sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho, d'outros tempos +muito melhores.</p> + +<p>Que volta misteriosa dava todos os dias aquella carruagem, que ás tardes ali +passava trepando pela calçada? D'onde vinham, para onde iam, em que palacio ou +castello arruinado moravam as boas velhas? Quem eram? Nunca o soube.</p> + +<p>E era talvez por isso que as amava tanto. Architectava historias fantasticas +a respeito d'ellas, da carruagem, do cocheiro, dos cavallos,<span +class="pn">{174}</span> e, quando por fim ouvia o rodar pesado e o tinir das +ferragens, sentia o coração pulsando rapido, a respiração difficil, um calor +nas faces, como se em vez da decrepitude a caminho do cemiterio, fosse uma +primavera cheia de flores e de mocidade, que ali passasse em grande aureola de +luz, em nuvem subtil de perfumes.</p> + +<p>Creio que as velhinhas, n'uma doce, apagada recordação de galanteios havia +muito passados, adivinharam o meu amor, e olhavam para mim, risonhas, fazendo +renascer faiscas nos olhos côr de cinza, que um sorriso bordava com ondas de +preguinhas por cima das rugas! E eu, com a testa encostada ás vidraças, via +desapparecer a carruagem fantastica, emquanto a noite descia lentamente e, +muito desafinados, piavam lá no alto, em doidas correrias, os negros +andorinhões.</p> + +<p>Boas, santas velhinhas, benza-vos Deus!</p> + +<p>A calçada subia em linha recta, tendo por fundo o céu ainda vermelho, +áquellas horas.<span class="pn">{175}</span> A carruagem levava uns cinco +minutos até chegar ao alto, e lá em cima, esfumada pela distancia, com as +grandes rodas salientes, tombadas para fóra, similhava uma grande borboleta +negra, que a descida precipitava na rutilante fogueira do pôr do sol.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Pouco depois accendiam-se no céo muito pallido as primeiras estrellas. Então +um doido, que morava no rez do chão, começava a uivar sinistramente e pela casa +espalhava-se um cheiro intenso, um fumo suffocante d'ervas, que a irmã queimava +por conselho d'uma bruxa, entre rezas plangentes, arrastadas, de arrelia.</p> + +<p>Pessimista bilioso, mal com a vida, fugira de parentes e de amigos, e ali +vivia isolado, merencorio, cheio de azedumes, n'aquella rua onde os casebres em +ruinas se alinhavam tristemente, com vidros esverdeados, telhados cheios de +corcovas, paredes desaprumadas,<span class="pn">{176}</span> com ervas +crescendo junto aos muros em que as osgas aqueciam ao sol os dorsos +escamosos.</p> + +<p>E dava-me bem n'aquella paizagem cuja musica harmonisava com as minhas +queixas, n'aquelle scenario que havia procurado e emfim descobrira, onde +arrastava as minhas preocupações, os meus desvarios, na prisão voluntaria que +escolhera e me era cara á força de melancolica, que eu amava porque me era +hostil.</p> + +<p>Ao meu odio pela gente e pelas coisas, uma só coisa escapára—aquella +carruagem a desconjuntar-se, pyrilampo nas trevas da minha noite, nota +suavissima no concerto da minh'alma.</p> + +<p>Tão egual era sempre a dôr que me atormentava, tão parecidos rodavam meus +dias, que o verão passou, sem que, olhando para traz, eu pudesse ver na +estrada, que andei triste, o marco d'uma alegria, d'um aspecto novo, d'uma +miragem na vida.</p> + +<p>Aquelle amor, aquella quasi paixão, que<span class="pn">{177}</span> ao +principio as velhinhas me haviam inspirado, esse mesmo sentimento purissimo +affligia-me agora, á medida que o sentia crescer.</p> + +<p>O tempo fôra passando, e os cavallos cada vez choutavam menos, coxeavam +mais, mais brancos, mais tisicos, mais dolorosamente meditabundos; o cocheiro +mais corcovado, um pouco descahido na almofada, deixava pender o chicote; a +carruagem tinha na frente umas tiras de papel sobre um vidro rachado; cordas, a +que todos os dias se juntava um nó, ligavam os arreios; as velhinhas tinham +menos palhetas doiradas no olhar, quando me sorriam. E já me sorriam como a +pessoa conhecida, que occupasse na vida d'ellas o logar em que moravam na +minha, o que augmentava a minha tristeza.</p> + +<p>Agora, cada vez que lá no alto da calçada se afundava a carruagem, ficava +scismando se teriam desapparecido de uma vez todos os meus sonhos, +tudo—que era sómente aquillo—quanto á vida me prendia.<span +class="pn">{178}</span></p> + +<p>O verão, muito lentamente, assim foi rodando, até que vieram as primeiras +chuvas.</p> + +<p>Que tarde turbida e melancolica! Se não viessem...! E de tanto pensar +n'ellas, vi qual era sua pousada na minh'alma. Se não viessem...! Dia immenso +em que, cheio de inquietações passeei pelo quarto até entontecer, +approximando-me da janella a cada instante, vendo apenas na solidão da calçada +a chuva a cahir, a cahir, rio enorme, que se despenhava até lá abaixo, rolando +barrento, cheio de espuma, quebrando-se, saltando sobre as pedras arrancadas, +bi-partindo-se lá no fundo, desapparecendo na curva e galgando as escadinhas, +onde se precipitava em cascata, com uma bulha monotona...</p> + +<p>O doido, a quem a meia escuridão d'aquelle dia exacerbára a furia, +torcia-se, berrava como um possesso; e logo de manhã espalhou-se pela casa o +tal cheiro que eu detestava, de alfazema queimada, de alecrim e d'outras ervas +com que o demonio embirra.<span class="pn">{179}</span></p> + +<p>Dia immenso, que me parecia não dever acabar!</p> + +<p>Na minha imaginação exaltada via, como de então para cá vi sempre, um ente +unico n'aquella carruagem, com as donas, os cavallos, o cocheiro, como se uma +só alma os animasse a todos, não podendo desligal-os, abstrahir d'uns para só +pensar nos outros.</p> + +<p>O dia vinha descendo e, ancioso, sentindo pelo ser fantastico que me fazia +pulsar o coração, aquelle fervoroso amor, que os encarcerados dedicam ás vezes +a uma formiga, a uma aranha, a uma plantasinha qualquer, com as unhas cravadas +na carne do peito, tive uma das mais doidas alegrias da vida, quando senti +sobre a lama que se alastrava de lado a lado, o rodar lento, abafado, por que +suspirava semi-doido.</p> + +<p>Os cavallos gemiam, suavam, lançando pelas ventas baforadas densas. As +sob-rodas, occultas pela lama e que o cocheiro não evitava, cego pela chuva que +o zurzia, faziam cambalear o trem como um ebrio. E<span class="pn">{180}</span> +lá dentro mal pude avistar, atravez dos vidros embaciados, as velhinhas que +sorriam.</p> + +<p>Abri a janella para as ver desapparecer. Julguei que nunca chegassem ao +alto. O cocheiro com um gesto afflicto brandia o chicote; os cavallos +pegavam-se, ajoelhavam na lama; as molas estalavam.</p> + +<p>Chegaram finalmente. Disse-lhes um adeus maguado. E emquanto a noite descia, +sentado junto da janella, parecia-me ver, como n'um sonho, a carruagem fugindo, +fugindo, por uma estrada que não acabava nunca, levando no tejadilho, de pé, +como os anjos dos coches de enterro, a figura da morte. E a chuva cahia, cahia, +e a noite embrulhava-se n'um véo muito negro, cheia de frio.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Nunca mais as vi.</p> + +<p>Passaram-se mezes. Na terça feira de entrudo uns mascarados bebados, que +desciam pela calçada, traziam adiante aos pontapés,<span +class="pn">{181}</span> em grande troça, um chapéo de furta-côres, pequeno, de +abas largas, arrombado, sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, +muito velho...</p> + +<p>Boas e santas velhinhas!</p> + +<p><em>Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.</em><span +class="pn">{182}</span></p> + +<p><span class="pn">{183}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION000140">AS ESTRELLAS DO CEGO</a> </h1> + +<p>Noite de Natal.</p> + +<p>Terminára a missa. Repicavam sinos e o povo descia alegre os degráos em +ruina da larga escadaria.</p> + +<p>A noite era cheia de estrellas, luzes d'altar immenso sob o immenso docel de +velludo azul. O céo muito frio parecia rir-se, a piscar os olhinhos alegres.</p> + +<p>Ainda nos eccos da alta abobada em berço<span class="pn">{184}</span> +resoavam os ultimos cheios do orgam do convento. Pela porta aberta de par em +par, onde a multidão se acotovelava á sahida, vinha de dentro da egreja um +perfume religioso de flores, de fumo de incenso, de cera queimada.</p> + +<p>O altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de zig-zagues rutilos +as lentejoulas e os fios de seda nos mantos bordados da Santa Familia e na +colxa de damasco do berço pequenino, em que o Menino Jesus dôrmia.</p> + +<p>Tocavam sinos, e os repiques, como foguetes, subiam pelo ar denso da noite +fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela noite escura. A +larga frontaria da egreja, comida pelo tempo, abafada n'um velho tapete de +musgo, sobresahia no céo em mancha muito negra, d'onde jorravam feixes +luminosos, ondas de harmonias, luz e canticos de triumpho.</p> + +<p>Um pequeno desceu a escada levando um cego pela mão.<span +class="pn">{185}</span></p> + +<p>Iam fechar-se as portas. Sahiam os ultimos devotos.</p> + +<p>O cego era um velho corcovado, tremulo, com a face cheia de rugas crusadas, +como um pedaço de papel amachucado. Os olhos sem luz voltava-os para o céo, +meneando a cabeça constantemente, como se procurasse... o quê? E sorria. Dava a +mão ao petizinho e descia os degraos tacteando-os com o pé.</p> + +<p>—Ainda mais um, avô... E outro... E outro.</p> + +<p>Fechou-se a egreja. O candeeiro da esquina mal alumiava o adro.</p> + +<p>E o cego sorria e afagava a mão do pequeno.</p> + +<p>O povo espalhou-se pela ruas. Eram como estilhaços de alegria por toda a +cidade.</p> + +<p>Vinha a gente descendo pelos beccos angulosos, pelas travessas em declive +rapido. E parecia que todos levavam n'alma um pedaço de luz d'aquella noite em +Belem cantada nos evangelhos, da alegria d'aquella<span class="pn">{186}</span> +musica ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o côro entoou o <em>Gloria +in excelsis</em>! Todos falavam, todos riam, muitos cantavam. Era a ceia +prompta em casa, era o dia seguinte todo elle inteirinho de descanço!</p> + +<p>Noite de Natal! Noite de Natal!</p> + +<p>E eu fui por ali abaixo tambem, atraz do cego.</p> + +<p>O pequenito teria oito annos. Loiro. D'olhos azues. Olhava para as estrellas +a rirem lá em cima.</p> + +<p>Os olhos tinham a côr do céo, e o que n'elles brilhava tanto podia ser o +reflexo das estrellas como a luz placida da sua almasinha.</p> + +<p>Caminhavam os dois por ali abaixo e conversavam. Á voz tremula do velho +replicava compassadamente o pequenino. E o que elle dizia com a sua vozita +infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avô ainda como um +cantico, como se um anjo d'aquelles, que haviam aos pastores annunciado a vinda +do Senhor, houvesse<span class="pn">{187}</span> ficado na terra; porque o cego +continuava sorrindo, e, a descer pelos beccos escuros e tortuosos, afagando a +mão do netinho, fitava os olhos condemnados ás trevas lá em cima, lá muito em +cima, d'onde vinha aquella luz toda, que alegrava os olhos da criança.</p> + +<p>Conversavam os dois contentes. Eu ouvia bocadinhos do que diziam, palavras +soltas, por onde, mais ou menos, reconstituia a conversação.</p> + +<p>Esperava-os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. Os dois levavam fome. A +mulher ficara em casa fazendo a ceia. E ao velho ouvi dizer, uma ou duas vezes, +gulosamente:</p> + +<p>—A canja.</p> + +<p>E o pequeno:</p> + +<p>—Degráo, avôsinho.</p> + +<p>E o cego, muito attento, vagarosamente, tacteava o degráo com o pé, afagando +a mão do neto, cantarolando.</p> + +<p>Pelos beccos, pelas travessas, sob os arcos<span class="pn">{188}</span> dos +pateos irregulares, cheios de sombras, disseminara-se a gente. Iamos agora sós, +nós trez, n'aquelle caminho.</p> + +<p>Ouviam-se ainda passos ao longe, eccos de vozes, uma ou outra guitarra em +lojas fechadas, onde brilhavam as frinchas das portas; de quando em quando, um +bater de palmas ao guarda nocturno, passos correndo, um tinir de chaves. Um +gallo cantou n'uma trapeira.</p> + +<p>—É tarde, disse o velho.</p> + +<p>Caminhavam mais depressa agora.</p> + +<p>E eu ia andando atraz d'elles, sem saber bem porquê, atrahido talvez pela +doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, por ver tanta +alegria onde tanta miseria se cuidava, tanta paz nas almas, onde tanta dôr +devia de suppôr-se.</p> + +<p>Passei-lhes adeante. Esperei junto de um candeeiro. Queria ver-lhes ainda +uma vez os rostos.</p> + +<p>O cego continuava a olhar para o céo, meneando a cabeça. O pequenito ao +lado,<span class="pn">{189}</span> agora que na rua tinham acabado os tropeços, +olhava para onde olhava o cego.</p> + +<p>A cabelleira loira, toda em anneis, não lhe cabia dentro do chapéo e +cahia-lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces, pelas costas.</p> + +<p>Era lindo, lindo! E o cego, que o não via, continuava a sorrir!</p> + +<p>Deixei-os passar adeante.</p> + +<p>A rua alargava-se entre casarias irregulares. Caminhavam mais á vontade +agora, mas tinham-se calado. Culpa talvez da minha indiscrição.</p> + +<p>Faziam ecco no silencio da noite os nossos passos sobre a calçada, na rua +deserta.</p> + +<p>Pararam. O velho bateu cinco argoladas á porta de uma casa esguia, com +grades de madeira nas janellas cheias de vasos. Passados poucos segundos, +ouviu-se a pancada violenta do trinco puxado com força desde lá de cima.</p> + +<p>O cego e o pequeno desappareceram na escuridão da escada. A porta bateu com +estrondo.<span class="pn">{190}</span></p> + +<p>Ouvi ainda o velho cantarolando, emquanto subia. Pouco a pouco a voz +sumiu-se. Encostei o ouvido á fechadura: uma bulha de passos apagando-se, mais +e mais, a cada volta da escada; uma voz muito alegre—devia de ser a da +mãe do pequeno recebendo-os—palavras que não percebi... E fechou-se lá em +cima uma porta.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Então passei para o outro lado da rua e fiquei-me a olhar para aquella +casa.</p> + +<p>Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. Talvez as +cordas da minh'alma vibrassem ainda em unisono com os cantos d'aquellas vozes +tão devotas, singelamente entoados por detraz das grades do côro, hymnos muito +simples ao Deus Menino nascido.</p> + +<p>No céo de immaculada pureza as estrellas vibravam raios de luz intensissima. +Fazia frio.<span class="pn">{191}</span></p> + +<p>E eu quedava-me a olhar para aquella casa, tão pobresinha, tão velha, tão +escura, tão cheia de flores d'alto a baixo!</p> + +<p>Uma janella no telhado illuminou-se.</p> + +<p>Começava a ceia do velho. Eu reconstituia o grupo dos trez: a mesa encostada +á parede na trapeira muito baixa, o velho aspirando os perfumes da sopa, a +terrina sobre a toalha muito branca, o pequeno defronte do avô, e a mulher a +sorrir-lhes, ouvindo-lhes as historias, o throno, o presepio, a missa, o canto +das freiras, a vinda por ali abaixo a horas mortas, a minha perseguição.</p> + +<p>E o pae do pequeno? Ah! sim, esse tambem lá estava... Pois quem trabalha +para sustentar a alegria n'aquellas almas?... Santa familia!</p> + +<p>Que deliciosa ceia! Que paz tranquilla! Que boa noite de Natal!</p> + +<p>Tanto falava o cego na canja, rua fóra, pela mão do pequeno! Quem não tem +olhos, tem melhor paladar.<span class="pn">{192}</span></p> + +<p>E o pequeno como devora! É que é tarde e não costuma estar de véla áquellas +horas! Comprida manhã terá na cama. Já os olhitos se lhe começam a fechar.</p> + +<p>E o pae e a mãe a rirem, contentes de os verem assim!</p> + +<p>Que boa noite de Natal!</p> + +<p>Fitára os olhos na janella, não sabia d'ali apartal-os. Tambem eu agora +olhava para cima, como ainda agora o pequeno para as estrellas, o cego não sei +para onde.</p> + +<p>Porque olhava o cego para o céo?</p> + +<p>Tornou o gallo a cantar. Ouvi-o, ao longe, mais alegre, como quem já +adivinha a madrugada.</p> + +<p>Ha quanto tempo estava eu ali? Porque olhava para aquella trapeira?</p> + +<p>Encaminhei-me vagarosamente para casa.</p> + +<p>Havia tantas estrellas no céo! Como era linda a noite de Natal! Como tinha +razão o pequenito dos cabellos loiros de olhar para as estrellas! Que +quantidade de luz! Tantas! Tantas!... Talvez o pequeno se lhe<span +class="pn">{193}</span> mettesse em cabeça de contal-as! Houve uma, quando +vinhamos pela travessa abaixo, que passou correndo, deixando um rastro muito +longo... Era como a estrella dos Reis Magos. Que luz não tinham os olhos do +pequenito! E o cego sorrindo ao pé d'elle, com os olhos tenebrosos postos no +céo! Porque? É que se lhe voltavam para lá os olhos d'alma, é que na alma tinha +elle mais luz do que o pequeno nos olhos.</p> + +<p>E vejo-os ainda a descerem pelos beccos, o velho meneando a cabeça, o +pequenito a dar-lhe a mão? Degráo, avôsinho? ambos com os olhos no céo, a +estrella a correr...</p> + +<p>Que lindas estrellas vê o cego!<span class="pn">{194}</span></p> + +<p><span class="pn">{195}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION000150">OS NETOS</a> </h1> + +<p>Andavam todos pasmados, a falar baixinho pelos cantos.</p> + +<p>O D. Affonso parecia outro!</p> + +<p>Se fosse um Affonso qualquer!... mas o Dom, o quarto, o do Salado!... Quem +jámais o vira assim de olhar tão doce na sombra do supercilio carregado, de +riso tão lhano sob as enormes barbas patriarchaes, honradas entre as mais +honradas dos affonsinos?<span class="pn">{196}</span></p> + +<p>O Coelho, que, havia muito, andava tramando o crime, até disse baixinho ao +Pacheco:—«Ali ha coisa!» O Pacheco já a farejára, olha quem! E +entretanto, o D. Affonso, todo fóra dos eixos costumados, dizia graças, quando +passava alguma dama a rojar sedas na peugada da linda Inez.</p> + +<p>Ia seu caminho o drama tenebroso. Tanto haviam feito, que já tinham +escangalhado o socego da que depois de morta foi rainha. E o sceptro, sobre que +tão famigerados heroicos havia de bordar o Dr. Ferreira, parecia pesar nas mãos +do monarcha menos do que se fôra de pechisbeque, talvez tanto como de papelão +doirado.</p> + +<p>É que n'aquella noite...</p> + +<p>O homem tinha um fraco: pelava-se pela canja!</p> + +<p>Elle em pessoa comprára a gallinha, uma ave amarella, que era uma belleza, +gorda, anafada... Depois de muito regatear, e por ser a elle, D. Affonso, é que +a saloia a vendêra por seicentos e vinte! Um rico pedaço de<span +class="pn">{197}</span> toucinho, um bom naco de prezunto, o bello chouriço, +cheirinhos, arroz da melhor tenda... Ora adeus! Um dia não são dias. Aquella +noite de Natal havia de ser falada!</p> + +<p>E, por debaixo dos longos bigodes brancos, brancos de neve, El-rei lambia os +beiços.</p> + +<p>Chovia a potes.</p> + +<p>O drama terrivel, a mais calamitosa tragedia da historia patria, ia-se pouco +a pouco desenrolando.</p> + +<p>Inez lamentava-se. Os horrificos algozes haviam-a trazido ante o rei. Eram +tres judeus de calvario de semana santa, muito capazes de dar sete pesadêlos a +quem não estivesse prevenido. Muito cabello, muita sobrancelha, muita barba, +vozes de tyrannos. Ella erguia para o céo cristalino os olhos piedosos, +attentava nos meninos cheios de somno, falava ao avô cruel nas brutas feras e +nas aves agrestes, na mãe de Nino e nos irmãos que Roma edificaram; queria ir +fosse lá para onde fosse, para a Scythia fria<span class="pn">{198}</span> ou +para a Lybia ardente, comtanto que a tirassem d'ali. Era de partir os corações! +Mas aquelles patifes, de punhaes desembainhados, sanhudos, faziam esgares!</p> + +<p>E a desditosa amante do Principe, entre soluços e lagrimas, +pensava:—Que demonio tem hoje o D. Affonso?</p> + +<p>O rei só via a canja, os olhinhos da gordura, o arroz muito branco... E +arregalava o olho e abria a venta!</p> + +<p>Ah! que delicioso quadro! Que lhe importavam a linda Inez de rojo a seus +pés, as iras do filho apaixonado, a politica do reino, as Hespanhas, os +Castros?</p> + +<p>Uma trapeira, que, toda envolta em arroz de telhado, era como um ramalhete, +n'uma rua estreita, escura, tortuosa, para lá lhe tugia o pensamento. Em volta +d'ella cantavam pardaes todas as manhãs, e o sol mal nascia, pintava-lhe os +vidros como se fossem pedras preciosas, rutilantes. Tanta paz lá dentro, tanto +riso de creanças!</p> + +<p>Noite de Natal muito fria. Ih! como chovia<span class="pn">{199}</span> lá +fóra! Cantava a agua, cahindo em jorros das biqueiras sobre as pedras das +calçadas. Como estavam lamacentas as ruas, cheias de poças! O vento do sudoeste +arrastava pelo céo as nuvens desgrenhadas, e chovia sem descanço.</p> + +<p>Lá dentro da trapeira, tanta luz, tanta alegria!</p> + +<p>Noite de Natal! A toalha resplandecia muito branca sobre a velha mesa +herdada dos avós, um nadinha coxa e remendada. Era um velho traste amigo, +n'aquella noite todo enfeitado para a festa. O candeeiro, entornando sobre a +alvura do linho um circulo de luz aconchegador, fazia faiscar as laminas das +facas, estriava com fogo os cabos muito limpos das colheres. O pão, ha pouco +vindo do forno, ainda fumegava embrulhado na flanella, e seis guardanapos +engommados ostentavam formas caprichosas, em cima dos pratos: pombinhas, +leques, romãs abertas.</p> + +<p>Lá dentro, na cosinha, riam as crianças.<span class="pn">{200}</span></p> + +<p>A mais pequenina, uma gorducha rosada e muito loira, fechava os olhos +cançadinhos de somno, teimando em não querer deitar-se, que havia com as mais +velhas de assistir á grande festa.</p> + +<p>E a panella a chiar e o vinho a aquecer e o quebrar das nozes!</p> + +<p>Vá lá um homem ralar-se com a politica do reino, ter consciencia de sua +altissima missão, comprehender o direito divino, recalcar no coração a piedade +e ser cruel contra o proprio filho meio louco de amor e que a dôr tornaria +completamente louco, contra os infantes seus netos, contra a formosa fidalga +chorosa, que deixava espalhar pelos hombros os fartos cabellos pintados de +loiro!</p> + +<p>—Pois sim, cantem, pensava elle.</p> + +<p>E respondia tão distrahido, tão fóra do sentimento, que todos, pasmados, +diziam:</p> + +<p>—O D. Affonso... ali ha coisa!</p> + +<p>Corriam-lhe pelas faces uns arripiosinhos, impaciencias perceptiveis sob as +enormes barbas todas brancas, fazendo-lhe tremer as<span +class="pn">{201}</span> azas do nariz e os cantinhos das fartas +sobrancelhas.</p> + +<p>O filho, o D. Pedro, com voz de trovão, arrancava do peito as ultimas +exclamações e afastava-se a largos passos para ir pegar em armas. A côrte, +attonita, afflicta, corria para a vasta janella rendilhada para ver o +desgraçado amante atravessar os pateos, chamar os seus, com elles dispor a +vingança. Era então que o velho heroe do Salado, desgraçadinho, cheio de +lagrimas na voz, com o coração dilacerado, deante do corpo inanimado da linda +Inez, havia de soluçar altissimas philosophias sobre a vaidade das vaidades, o +peso d'aquella corôa sobre as cans, d'aquelle sceptro nas mãos decrepitas.</p> + +<p>—A canja, a canja! pensava elle.</p> + +<p>E ainda o ecco murmurava os últimos gemidos d'aquelle diabo de tragedia, e +já o D. Affonso galgava a quatro e quatro os degráos da escada, sem corôa, sem +sceptro, sem barbas, respondendo ao contra-regra,<span class="pn">{202}</span> +que o chamava para ir agradecer os applausos da claque:</p> + +<p>—Vão para o diabo!</p> + +<p>E, meia hora depois, que alegria!</p> + +<p>Quando chegou a casa, em volta da mesa, a filha, o genro, os tres netinhos, +todos a cantarem o hymno da carta:—Tchim! Tchim!... Taratatchim! +Taratatchim!</p> + +<p>Que bem que cheirava a canja!</p> + +<p>Aquella noite de Natal havia de ser falada!<span class="pn">{203}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION000160">A BURRINHA BRANCA</a> </h1> + +<p>Meu avô tinha uma burrinha branca, que parecia um macho.</p> + +<p>Era branca e lustrosa como um cotãosinho de serralha, esbelta, com as +mãosinhas muito finas, viva, com as orelhitas muito curtas. Uma estampa.</p> + +<p>Quando o avô sahia n'ella, não havia general em campo de batalha que mais +garboso se apresentasse. Tic-tic!—lá iam os dois pelos caminhos. Vinham +as mulheres ás portas e era um côro:<span class="pn">{204}</span></p> + +<p>—Benza-te Deus, burrinha!</p> + +<p>É que tinha uns modos que prendiam o olhar de todos.</p> + +<p>Homens havia que embirravam com o avô, por causa d'aquella fortuna, e diziam +ao vel-os:</p> + +<p>—Raios os partam!</p> + +<p>Mas o velhote não cuidava de mulheres, despresava invejosos e só pensava na +burra.</p> + +<p>Chamava-se Pomba, pomba por dentro e por fóra, tão branquinha d'alma como de +pêllo.</p> + +<p>Muito meiga, quando o avô lhe levava a ração, esfregava n'elle a cabeça, +mexia as orelhas e dava ao rabo, que é o modo por que os burros fazem festas á +gente. O avô dava-lhe beijos.</p> + +<p>Por todas essas aldeias, nunca vi gato nem cão, animalzinho mais +querençudo.</p> + +<p>Assim passaram muitos mezes de muita paz e socego.</p> + +<p>Lá o nosso visinho sapateiro é que se mordia de inveja. De amarello que era +fez-se verde, de magro um trinca-espinhas. Era<span class="pn">{205}</span> +dono d'um cavallinho lazão, coxo, pelludo, calçado de tres pés e bebendo em +branco.</p> + +<p>Pois ainda queria comparar o diabo do homem!...</p> + +<p>Ora isto da malha branca da testa correndo pelo focinho até ao beiço é de +mau agoiro. Diziam os moiros que os cavallos assim marcados tinham na cabeça a +mortalha do cavalleiro. Até onde seja verdade não sei; mas vi mais d'uma vez o +lazão aos coices nas estrellas e o sapateiro no chão com as costellas +amolgadas.</p> + +<p>Pois, apezar d'isso, só para fazer rabiar o avô, dizia que não +trocava!...</p> + +<p>A Pomba era um apetite. Invejavam-lhe ovelhas a mansidão.</p> + +<p>O avô calava-se, porque bem conhecia o sapateiro. Ria-se, sem que ninguem +desse por isso, que eram tantas as rugas na cara, que mais uma menos uma não +fazia differença. Onde se lhe conhecia a alegria era nos olhos, uns olhitos +pequeninos, já sem côr.<span class="pn">{206}</span></p> + +<p>A burrinha a trote,—tic-tic!—e elle:</p> + +<p>—Bons dias, visinho!</p> + +<p>Então o cavallicoque escanzelado, muito malcreado, tinha o máu sestro de +rinchar.</p> + +<p>O avô não gostava do atrevimento; mas que havia de fazer senão conformar-se +com o namoro desaforado de quantos quadrupedes na terra havia? Era a linda +cabecinha branca apontar entre os humbraes da cocheira e logo cada zurro de +repicaponto, que, fosse a Pomba como certas mulheres, seria a aldeia um céo +aberto.</p> + +<p>Ella, muito dengosa,—tic-tic!—olhava para todos de soslaio, mas +nenhum encarava de fito.</p> + +<p>Eu levava-a muita vez a pastar. E, como o avô não queria que ella perdesse +um só ponto da reputação, dizia-me sempre:</p> + +<p>—Não percas o animalzinho de vista. Não deixes de pear a burra.</p> + +<p>Nem o mais pintado se lhe havia de chegar, que eu tinha sempre o olho n'ella +e nunca as peias me haviam esquecido.<span class="pn">{207}</span></p> + +<p>Entretanto chegou o mez de abril e toda a charneca se encheu de flores, +desde as copas mais altas dos sobreiros até ás ervinhas, que se escondem +envergonhadas debaixo das moitas.</p> + +<p>A burrinha abria muito as ventas, respirando o ar fresco da madrugada, que +cheirava a alecrim e a rosmano, que nem eu sei encarecel-o! Os estevaes eram +todos em flor e a charneca parecia um mar todo elle verde e branco, quando o +vento cursava por essas mesas fóra.</p> + +<p>Ella gostava de ouvir os passarinhos, que até parece que os entendia. Não ha +como máus exemplos. Andava azougada e o avô inquieto.</p> + +<p>—Peia-me a burra, dizia sempre.</p> + +<p>Iam tamanhos desaforos pela aldeia...! Mas quem havia de pensar...?</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Ora, por esse tempo, a Pomba fez quatro<span class="pn">{208}</span> annos, +o que é tambem a primavera na vida dos burros.</p> + +<p>Uma certa manhã, o sol, depois de trez ou quatro dias de choviscos, +appareceu de repente limpo de nuvens e com tanta luz, que as abelhas +embebedaram-se todas. Era um zunir lá pelos ares, que até dava alegria á gente. +E lá em baixo no montado, ao pé do rio, ainda os rouxinoes se não tinham +calado, já os trigueirões andavam cantando. Era dia de festa tanto na terra +como no céo!</p> + +<p>Ora um homem póde ser marréca, aleijado e feio como eu sou, ha coisas que +lhe vão direitinhas á alma.</p> + +<p>Larguei a burra no ferregial e fui-me deitar debaixo da figueira.</p> + +<p>Dizem que o sol, quando nasce, é para todos; porque não havia de haver uns +raios para mim? Tanta moça boa na aldeia e eu estropiado, sem me atrever...</p> + +<p>Puz-me a olhar para aquelles montes, d'onde o sol vinha a subir. Um moinho +ao longe bracejava, com as velas muito brancas,<span class="pn">{209}</span> +que mal se viam no céo todo em volta cintado de côr de sangue. Zuniam as +abelhas, cantavam os passaros, e o cheiro das flores, em que me tinha deitado, +trepava-me á cabeça. Fechava os olhos encadeados com a luz do céo e punha-me a +sonhar. O sol appareceu por detraz do monte, correu uma aragem, as florinhas do +rosmano curvaram-se, escondendo-se na troca dos beijos. Passaram no ar duas +borboletas brancas, uma atraz da outra, e pelas ervas andavam gafanhotos aos +saltos. Eu pensava em muita coisa junta e cantarolava baixinho uma cantiga, que +tinha ouvido de longe, n'um baile da véspera:</p> + +<blockquote> + Qual a distancia e a lonjura <br> + Onde o sentido caminha, <br> + Onde é que elle vai parar, <br> + Isso ninguem adivinha. </blockquote> + +<p>Ora os versos que eu cantava, a burra tambem os sabia. Tinha-me esquecido +peal-a<span class="pn">{210}</span> e, quando voltei a mim, não vi da burra nem +rastos!</p> + +<p>E ali fiquei eu, não sei que tempos, como um simplacheirão, de queixos +cahidos e mãos a abanar, sem achar uma idéa que me allumiasse, sem ver remedio +de vida, a tremer das furias do avô.</p> + +<p>Depois, muito cosido com as paredes, fui até á cocheira. Talvez a Pomba +tivesse tomado o caminho de casa.</p> + +<p>O avô, satisfeito como um gato ao borralho e descançando em meu cuidado, +assentára a barba sobre o peitilho, e no pateo, sentado no banco de pedra, +dormia ao sol.</p> + +<p>A burra não estava.</p> + +<p>Fui para a charneca. Onde via esteva pisada, procurava achar um rasto. +Levava n'uma palhinha a medida certa da ferradura; mas as poucas horas de sol +n'aquella manhã tinham endurecido a terra.</p> + +<p>O sol foi subindo e até ao meio dia andei leguas. O coração batia-me tanto, +que me fazia doer. Não parei. Ia á doida, sem destino.<span +class="pn">{211}</span> Bateram na villa ave-marias. Dei por mim a quatro +leguas da aldeia. Calaram-se os passaros; as papoilas das estevas enrolaram-se +para dormir; anoiteceu, e eu deixei-me ficar toda a noite na charneca, a tremer +de susto e de frio. Toda a santa noite um mocho piou e eu pensei na coça que me +esperava. Se não fosse a marréca, tinha fugido para assentar praça. Uma +d'aquellas só pela fortuna! E toda a noite tive nos ouvidos a mesma cantiga... +Mas quem podia adivinhar...?</p> + +<p>Era quasi madrugada, quando cheguei a casa.</p> + +<p>Mal o avô me avistou, bateu-lhe o queixo como em terçãs, e até os beiços se +lhe fizeram brancos.</p> + +<p>—E a burra? perguntou.</p> + +<p>Por felicidade, n'essa altura, a Pomba entrou no pateo, a passo, de orelha +muito murcha, como quem traz peso na consciencia.</p> + +<p>Foi o que me valeu. Eu, que tanta praga durante a noite lhe rogára, tive até +vontade—palavra!—de<span class="pn">{212}</span> desatar aos beijos +á minha salvadora.</p> + +<p>Mas já o avô a tinha agarrado. O desgosto não lhe havia feito esquecer o +costume, pelo contrario, e uma melhor matadella de bicho tornava-o ainda mais +terno.</p> + +<p>O que elle disse á burra! O que elle lhe disse!</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Mas embora o velho perdoasse, o mal estava feito. Breve d'isso se convenceu. +Primeiro foram apenas suspeitas, passados dias uma certeza.</p> + +<p>O avô andava envergonhado. Já, quando passava em frente da porta do +sapateiro, não largava chalaças para a loja. O caso tinha sido falado. Isto de +más linguas na aldeia!... O avô parecia-lhe que a honra da burra tinha o que +quer que fosse com a honra d'elle. D'antes sempre +cantando—<em>tiro-liro-liro!</em>—andava matuto agora. «Quem +seria?...<span class="pn">{213}</span> Vão lá saber!» Nasceu-lhe um odio enorme +a todas as cavalgaduras a quem pudesse attribuir a desgraça. Desafogava comigo +e dava-me bofetadas, cada vez que dizia «não a peaste!» O asno do moleiro era +amarello com uma cruz nas costas e tinha fama de requestado. Nunca mais o poude +ver. Contra todos tinha uma pedra no sapato e, quando o lazão rinchava, +dizia:—«Desavergonhado!» Mas não desconfiava d'elle. Tão feio!...</p> + +<p>Quiz ver se a Pomba se trahia. Quando passeava pela aldeia na burrinha, +ia-lhe sempre observando qualquer gestosinho das orelhas. E ella muito seria... +tic-tic!...</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Uma madrugada vim dar parte ao avô de que havia mais um machinho na +cavallariça.</p> + +<p>Nem sequer acabou de engolir o copinho de aguardente e atravessou como doido +o pateo.<span class="pn">{214}</span></p> + +<p>Um macho! Um macho!... Mas então quem?... quem?</p> + +<p>A luz da alvorada mal coava pelos intervallos da telha vã, cobertos de teias +de aranha, onde se baloiçavam palhas. Foi preciso que eu accendesse a +candeia.</p> + +<p>Como a Pomba enternecida lambia o filhinho!</p> + +<p>Era um machinho lazão, muito feio, calçado de tres pés, bebendo em +branco.</p> + +<p>Quando o avô lhe não deu ali um estupor, é porque já não morre.</p> + +<p>O caso, é claro, fez bulha, ainda mais do que o primeiro.</p> + +<p>Eram quasi dez horas da manhã, quando o avô, que se fôra encostar na cama, +ralado pelo desgosto, ouviu uma voz alegre, que lhe gritava:</p> + +<p>—Parabéns!</p> + +<p>Veio á porta furioso e mostrou o punho ao sapateiro, que se afastava, rindo, +a chouto, no lazãosinho coxo, pelludo, calçado, dos trez pés e com a tal malha +de máu agoiro...<span class="pn">{215}</span></p> + +<p>Ora o que desconsolou o avô foi o que me deu alegria para a vida. Aquillo do +cavallicoque animou-me, porque a burra estava despeada e foi até onde muito bem +lhe pareceu. São gostos. Pobrinho d'uma figa n'alma, no corpo e na algibeira, +vivi desde então com uma esperança.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Quando o marrequita acabou de contar a historia, a Caetana que andára +servindo os freguezes, poz-se vermelha... vermelha...</p> + +<p>—Até mais logo, disse elle, sahindo.</p> + +<p>O diabo do marreca tinha sorte!</p> + +<p><span class="pn">{216}<br> +{217}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> +</div> + +<h1>INDICE</h1> + +<table align="center" summary="Indice"> + <tbody> + <tr> + <td> </td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;">Pag.</td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00010">As Mães</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00010">1</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00020">O Baile dos velhos</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00020">13</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00030">A Outra</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00030">27</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00040">O Paquete</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00040">47</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00050">Perdido</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00050">63</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00060">Ad Astra</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00060">77</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00070">O Ventura</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00070">95</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00080">O Primeiro sorriso</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00080">113</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION00090">O Meu rewolver</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION00090">127</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION000100">O Mimoso</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION000100">139</a><span class="pn">{218}</span></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION000110">Gri-gri</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION000110">153</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION000120">Na Biqueira</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION000120">161</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION000130">Requiem aeternam</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION000130">171</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION000140">As Estrellas do cego</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION000140">183</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION000150">Os Netos</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION000150">195</a></td> + </tr> + <tr> + <td><a href="#SECTION000160">A Burrinha branca</a></td> + <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a + href="#SECTION000160">203</a></td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div id="cat_editor" +style="font-size: 0.9em; margin: 5%; border: double 10px #000; padding: 1em;"> +<p style="text-align: center; font-size: 1.4em;">LIVRARIA EDITORA</p> + +<p style="text-align: center; font-size: 1.6em;">GUIMARÃES, LIBANIO & +C.<sup>IA</sup></p> + +<p style="text-align: center; font-size: 1.1em;">108, R. de S. Roque, +110—LISBOA</p> + +<table width="100%" summary="Obras publicadas pelo mesmo editor"> + <tbody> + <tr> + <td><strong>Mulheres da Beira</strong>, contos, de Abel Botelho—1 + vol. broch.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$700</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Os Amores de Camillo</strong> (Biographia amorosa de Camillo + C. Branco) por Alberto Pimentel—1 vol. illustrado, broch.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">1$200</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Lyra insubmissa</strong>, versos de Abel Botelho—1 vol. + broch.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$500</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>O Lubis-homem</strong>, comedia em 3 actos, de Camillo C. + Branco—1 vol. broch.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$600</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Historia do Culto de N. Senhora em Portugal</strong>, por + Alberto Pimentel—1 vol. de 500 pag. in-4.º com mais de 80 + gravuras—br. 2$000, enc.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">2$600</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Cartas da Condessa d'Alve</strong>, romance, por + Daniella—1 vol. broch.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$500</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Pintores e poetas de Rilhafolles</strong>, por Julio + Dantas—1 vol. ill.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$400</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Viagem á roda das viagens</strong>, por Alberto + Pimentel—1 folh. impresso em papel de linho</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$200</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Tratamento natural</strong>—(7.º vol. da Collecção do + povo) pelo dr. João Bentes Castel-Branco—1 vol. cart.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$100</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Meia Noite</strong>, peça em 3 actos, de D. João da + Camara—1 vol. br.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$500</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Rindo...</strong>, contos de D. Claudia de Campos—1 + vol. br.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$700</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Pela Vida fóra</strong>, memorias, de Silva Pinto—1 + vol. broch. 800 enc.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">1$000</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>O Sonho da Rainha</strong>, por Alberto Pimentel—1 + folheto</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$100</td> + </tr> + <tr> + <td><strong>Pedro Alvares Cabral e o descobrimento do Brazil</strong>, + por Faustino da Fonseca—1 vol. cart.</td> + <td style="text-align: right;" valign="bottom">$100</td> + </tr> + </tbody> +</table> +</div> + +<div class="fbox"><p><b>Notas de transcrição:</b></p> + +<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral e inalterada do livro +impresso em 1900.</p> + +<p>Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns +pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a interpretação do texto, +e que por isso não considerámos necessário assinalá-los. Mantivemos +inclusivamente as eventuais incoerências de grafia de algumas palavras, em +particular quanto à acentuação.</p> +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS *** + +***** This file should be named 31905-h.htm or 31905-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/1/9/0/31905/ + +Produced by Pedro Saborano (This file was produced from +images generously made available by The Internet Archive) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize +this eBook outside of the United States should confirm copyright +status under the laws that apply to them. diff --git a/README.md b/README.md new file mode 100644 index 0000000..0eb93c3 --- /dev/null +++ b/README.md @@ -0,0 +1,2 @@ +Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for +eBook #31905 (https://www.gutenberg.org/ebooks/31905) |
