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+The Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos
+Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo
+
+Author: Robert Guliver
+
+Release Date: November 12, 2010 [EBook #34287]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA ***
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+Produced by Mike Silva
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+ CRATES MALLOTES
+
+ OU
+
+ CRITICA DIALOGISTICA
+
+ DOS GRAMMATICOS DEFUNCTOS
+ CONTRA A PEDANTARIA DO TEMPO,
+
+ ESCRITA E PUBLICADA
+
+ POR GULIVER
+
+ _Que chegou ha pouco da outra vida._
+
+ _Obra taõ divertida como interesante aos curiosos,
+ e amantes do bom gosto._
+
+
+
+ _Praeterea, ne sic, ut qui jocularia, ridens
+ Percurram: quamquam ridentem dicere veruim
+ Quid vetat?_ Horat. Sat. I. do L. I.
+
+
+
+ LISBOA,
+ ANNO M. DCCC.
+ Na offic. de Joaõ Procopio Correa da Silva,
+ Impressor da Santa Igreja Patriarcal.
+
+ _Com licença da Mesa do Desembargador do Paço._
+
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+
+
+ _Non semper ea sunt; quae videntur: decipit
+ Frons prima multos: rara mens intelligit,
+ Quod interiore condidit cura angulo._
+
+ Phaed. Prol. do L. IV.
+
+
+
+
+AO SR. PANTALEAÕ GONÇALVES SALGADO
+
+DAS BARROCAS
+
+ROBERTO GULIVER OBSEQUIOSAMENTE SAUDA.
+
+
+_Porque meu avô, que em paz descance, costumava gastar huma boa parte
+das compridas noites do Inverno ao seu lume, elogiando muito a pessoa de
+V. m. e fallando sempre no seu prestimo, e cançasso no serviço dos
+amigos: e tambem pela justa paixaõ, a qual, como Portuguez velho, por
+muitas vias sei, pela sua naçaõ naõ cessa de mostrar: tudo isto me
+obriga a dar-lhe o incommodo de concorrer com todos os seus bons
+officios, para que se imprima o mais breve este livrinho, parto dos
+Grammaticos defunctos contra a_ pedantaria _do_ tempo: _em o qual livro
+achará V. m. as verdades mais importantes, naõ forjadas neste, mas sim
+no outro mundo, donde ha pouco cheguei a salvamento. Naõ quero todavia,
+que a sua bolsa padeça detrimento; por isso que o portador entregará
+50 libras estrellinas: e, se mais for preciso, mais irá: nem seria
+necessário tanto, se eu naõ quizesse, que a Ediçaõ fosse em tudo
+completa, e que se estampassem 6000 volumes. Receba pois esta obra, como
+toda consagrada aos merecimentos da sua veneranda pessoa: e peça-lhe
+encarecidamente, faça por aqui aprender a ler seus netos; porque assim,
+naõ duvido, terá a satisfacçaõ de os ver em sua vida os melhores
+doutores; por isso que naõ lhes falta esperteza, do que estou bem
+inteirado. Deos guarde a V. m, muitos annos._
+
+
+_Londres 25 de Fevereiro de 1800._
+
+
+
+
+PROLOGO.
+
+
+Qualquer que seja o estado, ó amicissimos Leitores, em que a sórte tenha
+collocado o homem, nunca já mais o pode dispensar de Fazer bem aos da
+sua raça: foi este devêr gravado no coraçaõ humano pelo dedo da propria
+Natureza; nem taõ pouco o Author Supremo lhe permittio a feia liberdade
+de derribar os alicerces mais seguros da ordem social. Estes motivos,
+julgo, obrigáram a meu avô a fazer suas viagens a differentes ilhas,
+donde vos trouxe bellos, e interessantes documentos, os quaes, a meu
+ver, muito vos aproveitariam, se bem trabalhasseis pelos entender. Eu
+pois naõ querendo deixar só em taõ louvavel projecto hum illustre
+progenitor, que honrou ainda mais a sua naçaõ, que a sua familia, fui,
+depois de alguns estudos sérios o unico patrimonio, que recebi de meu
+pai, passear pelo mundo, a fim de recolher os fructos, que a minha
+terra naõ houvera produzido. Agitado por isso destas boas intenções,
+viajei por todas as partes do orbe; e lá virá tempo, se a Parca o
+quizer, que eu deleite a vossa curiosidade com bocados bem gostosos.
+Entre tanto desfructai estas bem adubadas lições dos Grammaticos
+defunctos, que vos trago da ilha dos Mortos, á qual apportei naõ sei
+como, depois de haver naufragado dois dias antes, junto da Arcadia. Naõ
+me foge ser este presente bem digno da minha amada patria, e confio, que
+ella naõ rejeite as provas mais sinceras do meu affectuoso coraçaõ;
+ainda que por outra parte naõ desconheço mais quereria, que eu a
+mettesse de posse da dita ilha; mas naõ podendo ser a sua conquista
+senaõ depois da morte, só lhe dou o que cabe em a minha alçada: isto he,
+lições mui precisas, que a benignidade de Crates Mallotes, e de outros
+Grammaticos fallecidos muito me recommendou; e as quaes eu terei sem
+algum rebuço, e com a mesma franqueza de vos manifestar; já por ter
+lido isto expressamente mandado, como vereis, por gente da outra vida,
+com quem naõ se deve brincar; já por ser contra o meu decóro naõ pizar a
+feia, e çuja lisonja com os mesmos pés que correram pelas ingenuas
+provincias da eternidade.
+
+
+
+
+CRATES MALLOTES.
+
+
+DIALOGO I.
+
+_Acha-se Gúliver depois de seu naufragio deitado em huma cama de penas;
+levanta-se, fica vestido com ellas: he levado ao palacio de Crates
+Mallotes: falla-se em a decadencia das Letras: estabelece Teive tres
+causas de pedantaria geral: nomeia Crates para cada huma seu relator, &c._
+
+
+Tinha amanhecido o dia 27 de Dezembro de 1799, passados já quasi 23
+annos, que havia sahido dos patrios lares, e para onde vinha navegando:
+seriam tres da tarde, quando se levantou pelo Sul huma nuvem
+pardacenta, que em breve espaço vestio o Ceo de negro, e logo o
+vento entrou a dar horrendos berros, os quaes converteram os mares em
+elevadissimas montanhas, cujas fraldas eram medonhas cavernas: ferviam
+os alaridos; mas a fervura pouco durou; porque a tempestade correu
+veloz, fez em migalhas toda a mastreaçaõ, o mar de Arcadia engolio o
+casco do navio, e sepultou em suas malvadas entranhas os meus amados
+companheiros. Eu andei abraçado com hum pedaço de mastro, dois dias,
+segundo penso, feito boia; no fim dos quaes cheguei quasi defuncto
+áquella parte da ilha dos Mortos, que os Grammaticos habitam. Naõ sei
+dizer como ahi apportei; porque só me lembro de resuscitar no meio dos
+Grammaticos, que já morreram, cuja caridade, e benevolencia vou apregoar
+para confusaõ dos ingratos de que o mundo está cheio. He pois o caso:
+mal hia eu abrindo os amortecidos olhos, senaõ quando vejo Sanches todo
+arregaçado a applicar-me varios remedios, e ninguem dizia nada, eu
+tambem fiquei callado; porém nada me escapou: porque reparei me
+haviam deitado em hum leito de negro evano, enterrado em plumas de aves
+desconhecidas, no meio de hum portico de soberbas columnas, o qual
+servia de fachada a hum palacio taõ magnifico, que bem conheci naõ ser
+feito por braço mortal, cujas obras pelos erros, e defeitos, logo se daõ
+a conhecer.
+
+Assim estava medindo com os meus botões o edificio dos mórtos, quando
+Sanches observando hum e outro pulso, disse: _Desta estás çafo._ Eu
+porém, que naõ estava acostumado a ouvir fallar defunctos, metti a viola
+no sacco. Mas o Francez Despauterio, como quem quiz mostrar o pique da
+sua naçaõ contra a Hespanhola, disse com hum rizo Sardonico, muito
+gosto, Sanches, de vos vêr de Grammatico feito Medico. Já no mundo
+(tornou o sabio Brocense em hum tom, que me regalou) fui o Medico, que
+curou as doenças literarias do teu paiz: o meu nome lá anda na boca
+dos eruditos; o teu na dos pedantes.
+
+Entaõ Despauterio ficou de queixo cahido: todo o congresso bateu as
+palmas, e carregou de vivas o Principe dos Grammaticos, e eu animado com
+a galhofa agradeci-lhe muito a caridade com que me tratou: e fiquei
+desde entaõ senhor de mim de tal feiçaõ, que me parecia, já naõ ser
+homem de Inglaterra: de maneira que sem ceremonia nenhuma saltei pela
+cama fóra; mas quanto naõ fiquei maravilhado, quando me vi vestido das
+mesmas pennas, em que, pouco havia, estive deitado! Fiquei pois com huma
+beca, como de Desembargador, e naõ cessava de me mirar, assim como fazem
+os casquilhos no meio das ruas; porém he certo que eu naõ obrava assim
+por asneira, como elles. Toda a minha admiraçaõ era ver hum vestido
+feito por si mesmo sem tezoura, nem agulha de alfaiate. Antonio Nebrixa
+conheceu o meu espanto, e disse: Aqui naõ admittimos homens, que fazem
+officio de mulher, e subministram ao luxo mundano o ultimo
+refinamento, ajudando os teares da tua naçaõ a esgotar quanto dinheiro
+as outras tem. Fiquei envergonhado, e elle conhecendo o meu pejo,
+virou-se para a turba, e disse: Aonde está Linacro, que naõ vem dar as
+boas vindas ao seu compatriota? Logo appareceo o Grammatico Inglez, de
+quem recebi aquelles generosos cortejos, que de homem taõ douto devia
+esperar. Entaõ fez D. Maximo de Sousa certo signal, e fui levado em
+procissaõ para o palacio.
+
+Logo que ahi entrei, espetei os olhos em hum velho venerando, o qual
+estava sentado em o segundo salaõ em huma cadeira toda cravejada de
+brilhantes carbunculos; em cujo espaldar se viam as armas do Rei Attalo,
+de quem havia sido Embaixador. Ajoelhei, e elle virou a cára para a
+banda. Disse-me entaõ Estevam Cavalleiro: Aqui naõ se gosta de lisonjas,
+faze o que vires fazer aos mais. André de Rezende, que estava ao pé,
+disse-me: Todos aqui estamos assentados: aquelle he verdade está com
+mais distinçaõ, por ter sido o primeiro Mestre, que Roma teve,
+Crates Mallotes se chama.
+
+Entaõ eu pedi licença para fallar: ao que todos os que estavam perto de
+mim, responderam, que naõ só pelos merecimentos de meu avô, mas pelos
+proprios, os quaes valiam seiscentas mil vezes mais que os alheios,
+podia eu dizer o que bem quizesse. Abaixei a cabeça pelo obsequio, e
+disse: Se bem me lembro, este homem foi Grego, e naõ sei, porque recebe
+aqui as honras de primeiro contra outros da Grecia muito mais antigos
+que elle? Assim he, disse Sanches, mas como os Romanos venceram os
+Gregos, e ficaram senhores do terceiro periodo das Letras, tambem sempre
+respeitaram o seu primeiro Mestre: e tendo o imperio Romano dado leis a
+todo o mundo, ficou este com os seus discipulos nesta Ilha ainda
+recebendo as honras do Magisterio: e nós todos respeitamos muito as suas
+cãs.
+
+Quando elle assim fallava, vi huma nuvem de Grammaticos Romanos, que
+o Barbadinho nomeava por seus proprios nomes, que me naõ eram novos
+pelos haver lido em Suetonio _de Illustribus Grammaticis_. Notei com
+tudo tres turmas differentes, a saber, a primeira dos Grammaticos
+antigos, isto he, desde o fim da segunda guerra Punica até o seculo X.
+da era vulgar: outra dos velhos, isto he, desde o seculo X. até o XVI. a
+ultima dos modernos, isto he, desde entaõ até hoje. Porém muitos dos
+modernos estavam misturados com os velhos; e disse-me Porretti, que era
+por terem seguido as mesmas opiniões. Tambem ouvi em outro salaõ hum
+grande susurro, e disse Cataldi, serem os Grammaticos antiquíssimos, de
+quem naõ havia memoria no mundo, e que por isso viviam solitarios.
+
+Cuidei, disse eu, que a Grammatica naõ era taõ antiga: he mais
+(respondeu Carlos Tobalduzio) do que os pedantes pensam: mas
+sentemo-nos, que para isso já o Mestre fez signal. Logo que todos se
+assentaram, e eu ao pé de Sanches, poz Crates Mallotes huns oculos
+no nariz, e avistando-me, diz: Tambem por cá, meu Inglez? Eu me admirava
+já de naõ apparecer por aqui algum marinheiro da Grã-Bretanha mas vamos
+adiante, que vos parece a pedantaria deste chamado seculo das luzes? Ha
+23 annos, respondi, que sahi da minha Patria, e Portugal foi a primeira
+terra, que depois da minha conheci: E entaõ que viste por lá? Florecer
+as letras com muita vantagem, o commercio; vi manufacturas, taõ boas, ou
+melhores, que as do meu paiz.
+
+Assim foi, disse Crates, mas para que saibais, quanto agora lá vaõ
+decahindo as letras, para que eu naõ falle em outras nações que
+finalmente estaõ prostradas na mais furiosa ignorancia, vos informará o
+respeitavel Diogo de Teive, e outros Portuguezes, e estrangeiros, os
+quaes comnosco vivem. Porque, naõ obstante as justas providencias, que
+para remedio deste mal, ha dado o melhor e o mais pio de todos os
+Monarcas do orbe, necessariamente havia de fazer alguma opposiçaõ á
+piedade de seus desejos a furiosa torrente de desgraças, que ha onze
+annos, tem alagado de sangue, e de maldades a infeliz Europa. Portugal,
+talvez pela sanctidade de seu Augusto Soberano, tem padecido bem pouco;
+ahi ha mais sabios, melhores soldados, mais gente honrada em todos os
+estados, do que naçaõ alguma possue. Por isso, meu Inglez, applicai as
+nossas justas censuras, ainda com mais razaõ, a todos os póvos da terra;
+e confessai isto mesmo lá no mundo, para credito da nossa honra, e prova
+da nossa verdade.
+
+Eu desempenharei, diz Despauterio, a tua commissaõ, nem outro melhor
+para isso acharás. Callai-vos, repondeu Mallotes, todos sabem que fostes
+hum gritador contra todos os Grammaticos de teu tempo, quando a tua Arte
+he hum _cahos_ muito similhante á massa informe, que existia _Ante mare
+& terras_.... O Francez vaidoso ficou fazendo trejeitos; mas por
+entaõ ficou callado.
+
+Todos gostaram muito do sabonete do velho; porém Diogo de Teive com toda
+a civilidade principiou dizendo: Ainda que Despauterio tenha milhares de
+defeitos em a sua obra, naõ deixa todavia de ter algumas coisas
+interessantes, de cujo numero he a definiçaõ de Grammatica: _Omnium
+scientiarum sons uberrimus._ E certamente, se o dom da palavra he hum
+dos maiores que do Ceo recebeu a humana geraçaõ, e porque se differença
+dos brutos animaes, como poderiam sem este dom os homens viver em
+sociedade? He por esta via que elles huns aos outros communicam os seus
+desejos, e sentimentos, a fim das utilidades, e interesses da vida
+social. He logo preciso que o homem saiba fallar; pois senaõ souber, de
+que lhe valem todos os seus conhecimentos? E naõ será por conseguinte a
+primeira de todas as disciplinas aquella de fallar, e escrever sem erro?
+
+Quem o duvida? disse Vossio, por isso he que os Gregos, Mestres do
+genero humano inventaram a Grammatica. A isto tornou Crates Mallotes,
+abaixando a cabeça: Naõ ha duvida que de nós a receberam muitos póvos;
+mas já antes de nós os Hebreos a conheceram.
+
+He verdade, continuou Teive, que os sabios de todos os tempos muito bem
+se persuadiram do interesse desta arte; e póde-se dizer que ao homem, o
+qual sem ella quizer ser letrado, acontecerá o mesmo, que ao cégo sem
+moço, nem bordaõ, correndo por montes, e rochedos.
+
+Mas os homens deste tempo, diz Pedro Simaõ Abril, nenhum caso fazem
+della: todo o que era tido por honrado em o meu, mandava seus filhos ao
+Latim; e desta maneira ficavam pelo menos com alguma instrucçaõ de
+Grammatica geral.
+
+Sim, disse o Barbadinho, naõ ha muitos annos, que os rapazes hiam leguas
+aprender Latim, hoje naõ faltam Mestres, sem terem a quem ensinem.
+Por isso, disse Agostinho Saturni, ninguem vê senaõ casquilhos, mettidos
+a espertos, sem que ao menos saibam ler.
+
+Naõ se estudando Grammatica, proseguio Teive, tambem fica abandonada a
+Logica, a Eloquencia, e os mais estudos, que allumiam o espirito do
+homem: e daqui vereis quanto vaõ decahindo as letras, sendo taõ poucos
+os que a ellas se applicam.
+
+De França, disse Lopo Gallego, veio o exemplo desta pedantaria, deste
+desprezo das letras. Aqui se levantou o P. Manoel Alvares, todo
+inflammado, e disse: Depois que o grande Rei D. José reformou os
+Estudos, e reprovou a minha arte, ficou a Grammatica Latina bem facil de
+aprender; mas a pezar desta reforma vejo cada vez mais pedantes, e
+estadistas de café.
+
+He verdade, disse Fr. Theotonio de Lisboa, que as intenções do nosso Rei
+foram todas as mais heroicas; Portugal no meio deste seculo poz-se
+todo luminoso; e os sabios cresciam em tanto numero, quanto era o das
+mercês, e premios, que de taõ alto Senhor recebiam. Estas luzes porém
+vaõ-se diariamente apagando pelas borrascas tenebrosas, que ha dez annos
+pegaram, e a ignorancia corre appressadamente a pôr no cachaço dos
+humanos a sua canga de ferro.
+
+Como póde ser, disse eu, que as letras tenham decahido tanto em
+Portugal? Ha 23 annos, que lá estive, e parecia-me ter sabios para
+ensinar todos os povos do mundo.
+
+Ainda hoje, respondeo Martinho Crusio, tem em sua pequenez mais eruditos
+que naçaõ alguma; porém a mocidade vai perdida: e esta praga he geral,
+ainda naquelles povos, que se jactam de mais espertos.
+
+E que vos parece, companheiros, disse Sevio Nicanor, a persuasaõ
+ridicula de certas cabeças allucinadas, que attribuem á sciencia as
+revoltas deste seculo? Á ignorancia, respondeo Aurelio Opilio, he
+que deveram ser attribuidas.
+
+Dizeis bem, continuou Teive, esse he hum sophisma _non caussae pro
+caussa_. Porque pela falta de sabios perdeu-se Athenas: o imperio Romano
+espirou em a noite da ignorancia: França nunca foi taõ florescente, como
+em o tempo de Luiz XIV.: Hespanha em o dos Reis Catholicos. Estas provas
+saõ de facto, e só por outras da mesma natureza podem ser contrastadas.
+
+Joaõ Despauterio, que vio fazer a França aquelle elogio, poz-se todo
+tezo, e disse, que ella havia sido a mãi dos sabios; Crates Mallotes
+porém, que já o mandára callar, poz-se a dar cuadas, e parecia huma
+vibora. Vendo Jerardo Joaõ Vossio o velho assanhado, disse: Aqui naõ he
+lugar de enganos, bem sabeis que os Francezes nunca passaram de
+Contrabandistas das letras. Todos sabem que elles tem vertido o trabalho
+dos mais povos, e que muitos inventos alheios os tem vendido por seus.
+
+He isso taõ certo, diz o grande Joaõ de Barros, que até a invençaõ da
+maquina aerostatica fizeraõ sua, quando foi de hum clerigo Portuguez,
+que sendo entaõ tido por Magico padeceu seus detrimentos.
+
+De vagar, de vagar, disse Lancelot, senaõ temos inventores temos
+aperfeiçoadores, o que he nada menos estimavel. Vede Maxilon, e
+Bordalue, e reparai quanto he hum semelhante a Cicero, e o outro a
+Demosthenes. Confesso, disse Barros, souberam bem aproveitar-se da
+Eloquencia Grega, e Romana. He na verdade grande admiraçaõ hum imperio
+taõ vasto produzir hum punhado de homens grandes! Mas dizei-me, que
+vedes agora por lá, senaõ systemas imaginarios, que estando armados no
+ar hoje se levantam, ámanhã se dissipam, bem como as nuvens, que tem os
+mesmos alicerces?
+
+Esta disputa hia sendo bem gostosa, e tratada com calor; mas Crates
+Mallotes deixou cahir a vizeira, e tudo ficou em silencio: e olhando
+para huma, e outra parte; a essas desputas, disse, saõ impertinentes; já
+vos mandei, Diogo de Teive satisfazer a esse Inglez. Entaõ o Illustre
+Humanista continuou, dizendo: A causa da decadencia das letras, ou para
+o dizer melhor, as causas da pedantaria deste tempo saõ tres: a primeira
+saõ sem duvida os pais de familia, que em vez de educarem filhos, que
+honrem a lua patria, criam ou leões que a devoram, ou porcos, que a
+çujam: a segunda saõ os Mestres idiotas, e charlatães, que vam formando
+discipulos a si similhantes: a ultima saõ os máos livros didaticos por
+onde muitos ensinam a mocidade.
+
+Todos os Grammaticos applaudiram muito a proposta de Teive, e ao mesmo
+tempo hiam cortando o discurso com as suas costumadas reflexões, e já
+era o susurro tamanho, que nada se percebia: entaõ Crates deu duas
+pancadas em a cadeira, e fallou com palavras meigas: Bem vedes,
+amados companheiros, que esse Inglez he vosso discipulo, e que por isso
+he necessario o bom methodo para se aproveitar das vossas interessantes
+lições. Sou pois de parecer que a primeira das tres causas da
+pedantaria, que tu, ó Teive, taõ eruditamente expozeste, seja tratada
+por Marco Fabio Quintiliano; a segunda por Elio Antonio Nebrixa: a
+ultima por Francisco Sanches Brocense; pois que foi, e será sempre a
+honra dos escritores Grammaticos: com tudo qualquer dos outros poderá
+fallar em tempo competente para deleite deste respeitavel congresso. E
+tu, ó mortal ditoso, que tiveste a ventura de ouvir em tua vida as
+lições dos mortos, naõ percas cousa alguma, para sahires daqui com as
+forças precisas ao justo fim de bem coçares huma chusma de pedantes, os
+quaes com seus erros, e com sua ignorancia tem çujado, e envilecido as
+nossas provincias Grammaticaes.
+
+Abaixei a cabeça, e beijei as palmas em signal de agradecimento: e os
+outros ficaram com a boca aberta a olhar para Quintiliano, que se foi
+sentar em hum escabello, o qual estava chegado á cadeira pela parte de
+diante.
+
+
+
+
+DIALOGO II.
+
+_Expõem Marco Fabio a primeira causa da pedantaria: erros de educaçaõ:
+bandalhices: desprezo da literatura: funestas consequencias, &c._
+
+
+Quando todos os Grammaticos defunctos estavam com a maior attençaõ, fez
+huma grande reverencia Fabio, e deu com o queixo no peito huma tamanha
+pancada, que todo o edificio tremeu, e eu de medo cahi sem sentidos; nem
+por certo o meu desmaio foi similhante aos fenicos das damas, que fingem
+diabruras para terem occasiaõ de fallarem aos casquilhos: Sanches que
+era bem versado em Medicina, logo me chegou ao nariz hum estimulante, o
+qual me tornou taõ esperto, e huma memoria taõ feliz, como podereis ir
+observando em todo o processo destas arengas.
+
+Mas tornando ao proposito: Depois daquella ceremonial venia, que taõ
+cáro me custou; voltou Quintiliano successivamente a cabeça para os
+lados de toda a assembléa, do mesmo modo que fazem os Oradores em o
+principio de seus discursos; e entaõ assim principiou: He sem duvida
+serem os pais de familia a primeira causa da pedantaria. Apenas os
+infelices meninos nascem, logo entram a puchar por elles para o curral
+da ignorancia, e pelos caminhos do vicio he que vaõ arrastrando aquellas
+innocentes victimas para os altares da charlatanaria, e da maldade.
+
+O peor he, disse Francisco de Brito, que muitos pais ensinam aos filhos
+as mais ridiculas extravagancias, e estaõ persuadidos, que só elles
+sabem dar boa creaçaõ a seus filhos. A esses, disse Nicodemos
+Frischilino, a sua tolice os desculpa; mas nenhuma tem os que praticam
+todo o genero de maldades sem pejo da sua familia ser testemunha, e
+quereram que ella seja virtuosa?
+
+Taes, disse Lucio Joaõ Scopa, com suas amoestações, conseguem o mesmo,
+que a mãi dos caranguejos, a qual mandando aos filhos, que naõ andassem
+ás avessas, elles responderam: Andai vós ás direitas, e nós vos seguiremos.
+
+Bem sabeis, disse Fabio, que eu fui o primeiro Mestre público que em
+Roma ensinou, e nunca cessei de clamar contra a má educaçaõ, que os pais
+daõ aos filhos; mas os homens de hoje saõ infinitamente mais culpados.
+
+Que Romano, disse Samuel do Prat, naõ entranhou com o seu exemplo em o
+coraçaõ dos filhos o amor da patria, e das letras?
+
+Ora pois, continuou Fabio, os idiotas nunca em Roma figuraram, senaõ em
+os seculos da escuridade; por isso os pais procuravam pela sciencia a
+fortuna dos filhos, e a sua.
+
+Mas em que pontos principalmente, diz Elias Maior, peccam hoje os
+pais em a educaçaõ de seus filhos? Dois extremos viciosos, respondeu
+Quintiliano, saõ as causas primitivas. Huns os tratam com excessivo
+mimo, outros com excessivo rigor. Daqui nasce, serem estes clausurados
+em casa, como Freiras, e serem aquelles largados sem freio para onde
+querem. Todavia accresce a tudo o mau exemplo: porque, como a virtude,
+anda fogindo destas guerras, e destes desaforos modernos, se o menino
+naõ a encontra lá por fóra, muito menos a achará em casa, aonde nem se
+falla em Doutrina, nem em Religiaõ, nem em temor de Deos, nem amor da
+patria, do Soberano, das sciencias, &c. Ora vede agora que taes doutores
+seraõ os filhos de taõ bons pais? Por isto, disse Buchnéro, o mundo está
+cheio de paraltas, e estadistas, como nunca.
+
+E que vos parecem, disse Barnabé de Busto, estas bandalhices da moda?
+estes çapatos de bico mais comprido, que corno de boi? Estes
+calções, que custam mais a saccar das pernas, do que a cobra a
+largar a sua pelle? Estes dois relogios? Estes chapeos de zabumba? Por
+ventura os Romanos senhores do universo praticaram no meio do seu luxo,
+e das suas riquezas, similhantes extravagancias?
+
+Naõ chameis, respondeo Fabio com muita brandura, naõ chameis a isso
+extravagancias, chamai-lhe falta de bóla. Os Romanos foram muito sabios:
+todas as ordens tinham seu modo de trajar; e o mesmo homem em as suas
+differentes idades usava de vestido accommodado a cada huma dellas.
+
+Os nossos antigos Reis, disse André de Resende, foram inimigos
+declarados do luxo: e estavam taõ persuadidos serem estes os sentimentos
+de todos os seus vassallos honrados, que D. Affonso o Bravo deu hum
+grande golpe no luxo para adoçar a magoa publica, que nasceo das
+desavenças, que elle tivera com seu irmaõ: e o que foram os Portuguezes
+daquelle tempo, prova-se com a batalha do Salado, cuja memoria, faz
+parecer, todas as que depois houveram, brincos de rapazes.
+
+Mas ainda dado, replicou Barnabé de Busto, que entre os antigos,
+apparecesse alguma vez o luxo, esse lobo faminto, que devora a honra, a
+virtude, e o dinheiro, vio-se em alguma época taõ enfeitado de
+redicularias como hoje? Os çapatos de espeto, naõ mostram quanto he
+romba a cabeça de quem os traz? Os calções de talas fariam menos
+deshonestos os antigos Faunos, quando dançavam nús em os theatros? Os...
+
+Basta, disse Manoel Alvares, o peor he o custo do feitio, e da peça, que
+dura tanto, como aquelle animalinho, que nasce pela manhã, e morre á
+noite. Eis-ahi a causa, diz Taberio, de huma enxurrada de caloteiros, e
+de meritrizes, que tudo varrem.
+
+Naõ houve seculo, continuou Manoel Alvares, nem mais farto de
+viveres, nem mais abundante de gente honrada que o meu; ensinei no
+pateo de Santo Antaõ, e nesse tempo o ornato dos estudantes naõ passava
+de huma sotaina, e capa de baeta, assim como todo o luxo dos Cidadaõs
+consistia em huma casaca de saragoça de abas entrouxadas, e canhões de
+barbas até aos joelhos.
+
+Mas essas casacas, disse Quintiliano, nunca eu approvaria pelo muito
+panno, que consumiam. Naõ tendes razaõ, tornou o velho Portuguez, essas
+casacas ficavam dos avós aos netos, e vinham a ser hum respeitavel
+morgado das familias: eram as melhores insignias de hum homem honrado;
+nem havia precisaõ de outro distinctivo: hoje porém naõ sabereis
+differençar nem hum ridiculo, nem hum homem de bem, senaõ com muito
+trabalho.
+
+Dizeis bem, disse Caspar Sciopio, os homens honrados algum dia naõ
+andavam com penicos na cabeça, nem com brincos nas orelhas, salvo, se
+por desgraça se faziam escravos da Rainha da Lidia; porque entaõ naõ
+só seriaõ capazes de fiar na roca, mas tambem de levarem huma albarda ás
+costas com muito gosto.
+
+He certo, proseguio Quintiliano, que os pais erram muito em consentir
+similhantes loucuras aos filhos, e ainda mais em praticalas; porque
+estes erros abrem a porta a infinitos males, os quaes perturbam a
+sociedade. Mas os procedimentos a respeito do espirito tem consequencias
+tanto mais funestas, quanto he mais attendivel a parte do homem, a qual
+só o póde fazer feliz, ou desgraçado.
+
+Isso he, disse Curcio Nicia, ao que menos se attende: entrega-se o
+menino commummente a huma mulher para o ensinar a ler, ou vai a escóla,
+ou vem Mestre a casa. Porém como o ensinar a ler, sendo coisa bem
+trivial, naõ he todavia para ignorantes, ahi se vai condemnar o
+innocente ao trabalho inutil de seis, sete, e mais annos, e por fim he
+tal a sua leitura, que faz vomitar a quem ouve. Perdido este tempo,
+assim como havia de ser o resto da vida se em taes lições fosse gasto,
+vem entaõ Mestre Francez, já o moço sabe fazer seus comprimentos
+naquelle idioma, o pai, e a mãi se estaõ babando a ouvir o seu novo
+Monsieur. Entaõ julgam terem em casa hum sabio da Grecia; mas naõ sabe o
+_Padre nosso_!
+
+Isso, disse Sciopio, he só para aquelles, cujos pais tem boas mezadas,
+que dem aos emigrados, que se naõ contentam com bagatellas: que os
+outros quasi todos vaõ para o Collegio aprender Mathematica sem fumos de
+literatura.
+
+Naõ fallemos nisso, proseguio Quintiliano, quando o Lente os manda á
+pedra, entaõ conhece, que nem sabem fallar. Mas a pezar de tudo, disse
+Sciopio, saõ os chefes dos estadistas da moda: elles pelas assembleas, e
+pelos botiquins, de tudo fallam, de tudo decidem, para tudo tem bellos
+planos; e com o seu luzidio compasso tudo sabem medir. Porém estes, e
+muitos outros falladores similhantes, de que por desgraça abunda
+toda a Europa, saõ huns fracos, e a deshonra dos racionaes, assim como o
+jumento he a dos brutos.
+
+O pai, disse Antonio Pereira, que manda seus filhos a essas sciencias,
+sem bons principios de literatura, he similhante ao que obriga o
+Architecto a fazer huma alta torre sem nenhum alicerce, a qual mais
+hoje, mais amanhã ha de cahir. Ora vede quaes seraõ as consequencias da
+sua quéda!
+
+Esse era o justo motivo, disse Antonio Feliz Mendes, de tu fazeres
+alardo das tuas artes de Grammatica Latina, quando nenhum fazias das
+outras infinitas obras, de que tambem foste autor.
+
+Era essa, continuou Fabio, huma vaidade digna do sabio Pereira, e teria
+feito a Portugal hum eterno serviço, se em vez do trabalho de algumas
+das suas obras, que o naõ honram, aperfeiçoasse o seu Novo Methodo, e o
+seu Compendio, para o que tinha forças de sobejo. E certo, o homem
+que, naõ sabe Grammatica, sejam quaes forem os seus estudos,
+nenhumas Bullas o pódem dispensar de ser pedante. Como poderá perceber
+os lugares da Historia, como entenderá os authores, quem ignora a
+sciencia das palavras? Como dará o juiz a sua sentença? Como fará o
+Theologo as suas analyses.
+
+Mas as aulas publicas de Latim, diz mui agastado o respeitavel Pereira,
+estaõ quasi vasias de estudantes, que dizeis? Digo, proseguio o Romano,
+que toda a culpa he dos pais; e por isso vereis cada vez mais idiotas,
+mais ociosos, mais presumidos, mais gárrulos.
+
+He huma piedade, disse Antonio Félis, ouvir a muitos pais as causas
+futeis de naõ mandarem os filhos ao Latim. Naõ pertendemos, dizem elles,
+que sejam nem Frades, nem Clerigos: nem taõ pouco se necessita de Latim
+para ser bom Cidadaõ.
+
+Naõ se necessita de Latim, disse o grande Diogo de Teive todo fóra do
+seu sério, naõ se necessita de Latim para qualquer ser bom homem,
+mas necessita-se delle para naõ ser asno. Ainda que a lingua Latina naõ
+fosse a lingua dos sabios, bastava para ser estimada o ter muitas filhas
+na Europa, que herdaram muito cabedal da sua mãi, do qual nunca já mais
+saberá dar conta quem ignorar as riquezas della. Assim he que estaõ
+infinitos sujeitos em empregos publicos, ganhando salarios enormes, os
+quaes nem escrevem coisa direita, nem sabem atar duas palavras juntas, e
+o mais por modestia fique no silencio.
+
+Tudo isso, disse Joaõ de Barros, he fructa deste tempo tenebroso. O
+mundo em suas mudanças tambem vai variando os seus registos, e por força
+alguma vez sahiraõ os desaffinados. Até agora tendes bem mostrado as
+doenças literarias; naõ he porém da nossa caridade deixalas sem algum
+remedio. Julgo pois, que se deve entregar o menino a hum Mestre erudito,
+para o ensinar bem a ler, e a amar a sua Religiaõ, e os seus deveres:
+depois disto deve aprender a Grammatica da sua, lingua materna;
+porque, naõ embargante, que em a Latina se acham os principios geraes de
+todos os idiomas, naõ devem todavia ignorar-se os particulares daquelle
+que mais que nenhum ha de servir aos interesses, e ás utilidades da
+vida. Entaõ vá aprender Latim, e por fim Filosofia Racional. E sem estes
+subsidios escuza de avançar a outras sciencias; porque he melhor naõ
+saber, que saber mal as coisas.
+
+O conhecimento da Grammatica da lingua materna, continuou Fabio, tem
+sido recommendado pelos sabios de todos os tempos: nós a ensinavamos em
+Roma juntamente com a Grega, e veio assim a fazer-se a nossa linguagem
+taõ bella, e taõ universal pelo mundo, que só entre póvos selvagens, se
+acharia, e com muita dificuldade, quem naõ entendesse alguma coisa do
+idioma Latino. O Imperador Carlos Magno julgou naõ ter ainda alcançado a
+immortal gloria com a multidaõ dos seus triunfos; por isso em a sua
+velhice compoz para as suas gentes huma Grammatica Tudesca.
+
+Por mais que clamei, disse Barros, já em o feliz Reinado de D. Joaõ III.
+por introduzir nas escolas a Grammatica Portugueza, nunca o pude
+conseguir; nem depois sobre isto foram observados os Decretos do sempre
+Augusto D. José I.
+
+Amigos, proseguio Quintiliano, isso pertence aos Professores, e se os
+pais nisto tem alguma culpa, he só em entregarem seus filhos a Mestres
+pedantes. Elles os procurariam bons, se hoje houvesse a lei que
+desobrigava os filhos de soccorrer aos pais, que tendo posses, naõ os
+mandavam instruir nas letras. Em quanto esta lei durou foi a Grecia em
+tudo respeitavel, e se ainda agora revivesse em os póvos civilisados,
+naõ seria a substancia publica devorada por infinitos glutões, que tudo
+engolem, e que de ordinario saõ os menos fiéis á sua patria.
+
+Hum homem erudito, e Christaõ, disse Duarte Nunes, vendo o
+ignorante, e inhabil a cevar a gula com o comer ao seu merecimento
+devido, póde sim por alguns momentos queixar-se; he com tudo impossivel
+moral esquecer-se da gratidaõ dos beneficios; mas o idiota presumido
+cuida, que mais se lhe deve, e ingrato desdenha de quem o farta.
+
+Tudo isso he verdade, disse Joaõ Rivio; mas reparei, que Barros naõ
+fallou em aprender Francez, quando alguns autores mandam que o seu
+estudo seja antes do Latim. Esse Portuguez, continuou Fabio, he mui
+douto, e naõ devia favorecer a pedantaria: quer justamente que logo que
+se saiba ler, se aprenda a Grammatica da lingua materna, e depois a
+Latina, por ser mãi da Franceza, da Portugueza, da Italiana, da
+Hespanhola, e de outras, que facilmente aprenderá quem souber a lingua
+dos sabios. E digo-vos que o Francez tem estragado bellissimos idiomas.
+
+No tempo em que ensinei letras humanas em a Universidade de Coimbra,
+disse o honrado Teive, poucos, ou ninguem estudava Francez. Porém he
+certo, que nunca Portugal teve nem mais sabios, nem melhor gente. Naõ
+possuia entaõ a nossa lingua nem outra formosura, nem outras riquezas,
+que as herdadas da sua respeitavel mãi: e hoje apparece de quando em
+quando com a sua capa de remendos, mais ou menos despresivel, segundo os
+retalhos, e os pontos do alfaiate, que a cozeu.
+
+Mas tendo os Franceses, disse Mariángelo, vertido as obras dos outros,
+como fica notado, naõ será inutil saber esta lingua. Sempre saõ versões,
+respondeo Julio Cesar Escaligero, melhor he ler os originaes. Naõ sou
+contra este idioma; confesso que nelle estaõ escriptos bons, e máos
+livros. Com tudo estou pelo sentimento commum dos sabios, que o seu
+estudo naõ deve ser o primeiro; e até julgo naõ ser presentemente grande
+perda ignoralo, em quanto que naõ chegam das duas Anticeras navios, e
+mais navios carregados de helleboro para curar a funesta loucura,
+que se apoderou das cabeças daquelle povo infeliz.
+
+Pais de familia; pais de familia exclamou Fabio, vós sois a primeira
+causa da pedantaria geral, e oxalá o naõ fosseis tambem dos horrores
+deste seculo de lagrimas.
+
+Assim acabou Quintiliano, deixando ver em seu triste semblante a magoa
+de seu peito.
+
+
+
+
+DIALOGO III.
+
+_Expõe Antonio Nebrixa a segunda causa da pedantaria: motivos de
+haverem tantos Professores inhabeis: entre os de ler saõ raros os bons:
+como se póde isto remediar: os de Latim ainda saõ bastantes: muitos
+particulares enganam os pais de familia: os rapazes devem frequentar as
+aulas públicas, &c._
+
+
+Sahindo Marco Fabio todo consternado daquelle assento para o seu
+primeiro, logo para alli se foi chegando Antonio Nebrixa: estava elle
+embrulhado em hum pellote cor de fogo de feitio mui exotico, com hum
+gorro pardo na cabeça, que lhe chegava ao meio das costas: e apenas se
+assentou deixou cahir hum sobreolho taõ feio, que parecia huma carranca
+de navio. Mas cuidando eu que elle ficaria eternamente severo, naõ
+foi assim: por quanto, feitas as suas continencias, soltou taes
+gargalhadas de riso, que Crates Mallotes lhe disse com muita brandura:
+Eu vos escolhi para que ajudeis a fazer a caridade aos Professores
+pedantes e isto he o ponto do maior melindre, e da mais alta
+importancia: dizei a verdade, e deixai as risotas para occasiaõ competente.
+
+Ainda bem naõ tinha o velho Mallotes concluído taõ judiciosa
+admoestaçaõ, quando Nebrixa, compondo o seu comprido barrete assim
+começou: Se os pais de familia saõ mui culpados na pedantaria dos fins
+deste seculo, os mestres lhes ficam a perder de vista. De toda a Europa
+vos referiria exemplos, se a minha commissaõ naõ fora muito mais
+estreita. Naõ penseis todavia, que hum homem como eu, depois de deixar
+sepultados os enganos, e as mentiras com os despojos da humanidade, que
+a terra engolio, se atreva a satyrisar muitos Professores Portuguezes,
+os quaes com as suas obras, e com as suas lições, que os eruditos
+bem conhecem, ainda hoje servem de honra, e de lustre áquella naçaõ; a
+qual desde o Reinado do grande D. Diniz, dignissimo neto do nosso D.
+Affonso Sabio, até ao presente tanto da escola de Minerva, como da
+escola de Marte, tem offerecido ao mundo heróes taõ prodigiosos, que a
+fama, tendo cem bocas, apenas os póde contar. Dirige-se pois a justiça
+de minhas queixas, contra milhares de Professores ignorantes; e desejára
+fazelos conhecer, para que naõ deshonrem os benemeritos, sendo
+confundidos com elles.
+
+He justo, disse Filippe Melanchton, que sejam conhecidos os zangãos
+pelos effeitos, e que se restitua o mel ás sabias abelhas.
+
+Saõ mui verdadeiras as vossas expressões, disse Antonio Pereira: já
+antes da minha passagem para a vossa companhia observei muitos
+presumidos a enganarem os pais de família, com ditos apanhados aos
+sabios, feitos Catões pelas assembléas, e pelos botiquins, a fim de
+ajuntarem hum bom rebanho de rapazes, os quaes com prejuízo da bolsa
+paternal vem a ser os semeadores da charlatanaria, e ignorancia de seus
+Mestres.
+
+Sim, disse Nebrixa, semelhantes Professores saõ primos co-irmaõs do
+çapateiro, que naõ tendo geito para fazer çapatos vendia saccos de
+antidoto, mas antídoto no nome; porque lhe custava menos a ser Medico
+dos simplices, do que a fazer calçado a casquilhos, e a peraltas.
+
+O Augustissimo Rei D. José, continuou Pereira, Nome, que proferido fará
+vir aos labios de Portugal saudosas, e ternas lagrimas, sempre que se
+lembrarem do que lhe devem, escolheu para educaçaõ da mocidade os homens
+mais benemeritos, e naõ sei como tem graçado tanto o pedantismo.
+
+Ninguem melhor que tu o sabe, respondeu Nebrixa; porque foste hum
+respeitavel membro da Meza Censoria; por isso bem conheces a causa de
+tantos Professores ignorantes: fugiram acaso do mundo as
+_Instrucções_ appensas justissimo _Alvará_ de 1759? E naõ determina elle
+que senaõ ensine nem publica, nem particularmente sem rigoroso exame?
+Naõ dá bem a entender quaes devam ser os conhecimentos dos Professores?
+O Augustissimo D. José para os animar naõ os incorporou em Direito
+Commum, fazendo-os Nobres? Naõ vês estudantes de Latim, para que eu naõ
+falle em os de outras faculdades, feitos Mestres sem outros principios
+mais que os do teu Compendio, ou da Arte de Felis Mendes, e, se muito,
+do teu Novo Methodo? Podem por ventura similhantes Mestres desempenhar
+as suas obrigações?
+
+Sempre clamei, disse o sabio Portuguez, em o Tribunal contra esta
+tolerancia de Professores inhabeis, sendo aliás excluidos muitos
+sujeitos de merecimento; porém a culpa....
+
+Bem sabemos (disse Crates Mallotes, apressado para cortar o fio) bem
+sabemos aonde se dirigem as tuas queixas: nós naõ queremos, que
+nenhum vivo diga, que os mortos tiveram a deshumanidade de lhe pôr a par
+de seu nome os seus defeitos. Os nossos discursos saõ sagrados tanto,
+como os dos Prégadores; por isso devem só ser dirigidos contra o erro em
+geral. Em todos os estados do mundo ha bom, e máu, e só algum idiota
+quando nos vir fallar contra o máu, he que poderá cuidar, que nós
+fallamos contra o bom. Pelo que, meu Nebrixa, ide discorrendo em
+primeiro lugar sobre os Professores de ler: que he negocio de grande
+ponderaçaõ.
+
+Nebrixa, que estivera applicando o ouvido a taõ justas expressões,
+continuou dizendo, de cem Professores de ler, se achardes hum capaz
+tendes feito huma descuberta, digna de avultadas alviçaras. Ide pelas
+escólas, e ouvireis desconcertados berros de rapazes: que naõ só vos
+faraõ chagas nas orelhas, mas até vos encheraõ da mais profunda melancolia.
+
+Todos esses incómmodos, disse o Barbadinho, se poderiam bem soffrer,
+se os moços dahi naõ sahissem gagos toda a vida. Porque por certo quando
+estaõ a ler, nada differem de quem nasceu com a lingua travada: só
+alguma palavra deshonesta he que pronunciam expeditamente. He taõ raro
+como mosca branca o que ensina os meninos a destinguir bem as syllabas,
+a pronunciar naturalmente as palavras, a respeitar pontos, e virgulas.
+
+Se similhantes homens naõ sabem que coisa seja nem syllaba, disse todo
+agastado Marciano Capella, nem que coisa seja fallar, nem para que sirva
+a pontoaçaõ, como haõ de ensinar o que ignoram?
+
+Pode acontecer, respondeu Lancelot, que qualquer saiba para si, e naõ
+para ensinar; porque saõ coisas bem differentes: e que acontecerá a quem
+ensina, sem saber nem o que, nem o como deve ensinar? Que acontecerá?
+respondeu Sciopio, encher o Publico de babosos, e pedantes; porque os
+erros da escóla quasi sempre saõ incuraveis; e os melhores
+Professores de Latim, pondo todas as suas forças para os remediar, raras
+vezes o conseguem.
+
+He huma dor de coraçaõ, proseguio Nebrixa, ver engenhos taõ raros, que
+continuamente se vaõ perdendo por culpa de Professores de ler.
+
+Ainda Antonio Nebrixa mal havia acabado a sua queixa, quando Remmio
+Palemaõ se levantou com toda a arrogancia, e disse: Porque naõ mandam
+similhantes homens guardar pórcos?
+
+Ouvindo isto Terencio Varro, o qual havia sido insultado em Roma por
+aquelle mordaz, assim lhe respondeu: Fazes mais favor a esses homens, do
+que em outro tempo me fizeste, quando por toda a parte me andavas
+chamando o Porco das Letras, e queres que similhantes pedantes sejam
+porqueiros, em vez de os mandares comer farellos?
+
+Todos gostaram muito daquella singeleza Romana, mas Antonio Nebrixa,
+que foi hum Hespanhol honrado, disse com toda a inteireza: Ainda naõ he
+taõ mau, que haja quem ensine a ler; e aquelle que sabe, e executa a sua
+obrigaçaõ faz mais serviço ao Publico do que se pensa lá no mundo: e bem
+vedes quanto estimamos estes poucos de quem nos prezamos muito de serem
+nossos companheiros, e a pena he virem para cá taõ poucos deste calibre!
+
+Entaõ abaixaram a cabeça os Professores elogiados, e Crates Mallotes
+louvou muito o relator, que assim proseguio: Os Professores Regios de
+ler apenas tem salarios para o aluguel de casas; e por isso ou haõ de
+ser homens incapazes, ou haõ de procurar o sustento por outra via. Se se
+dessem os mesmos ordenados, e as mesmas honras aos Professores de ler,
+que se daõ aos de Rhetorica, haveriam muitos eruditos que servissem ao
+Estado de boa mente, neste ramo: entaõ se ensinaria a Grammatica da
+Lingua materna na escola, aprender-se-hia qualquer lingua com muita
+facilidade, e naõ morreriam de trabalho os Professores de Latim em o
+ensino de gente bruta.
+
+Tivessem elles dinheiro, disse Dionisio de Syragoça, que honra lhes dei
+eu, porque naõ me desprezei de ensinar meninos, depois de ter sido o que
+sabeis. Mas já que tendes fallado tanto na pedantaria dos Professores de
+ler de quem fui collega, dizei tambem alguma coisa dos de Latim para
+consolaçaõ da minha tristeza.
+
+Tem havido optimos Professores de Latim, continuou Nebrixa, e ainda hoje
+os ha; porém para fallar com a sinceridade de defuncto, naõ me posso
+dispensar de dizer, que saõ muitos mais os idiotas. Depois que se deram
+Provisões de favor, isto he, sem se fazer rigoroso exame, ou depois que
+muitos entraram a ensinar sem faculdade alguma do Estado, entaõ tambem
+começáram apparecer nuvens de falladores, que sendo huns Professores
+diminutivos, sem a mais leve tinctura nem de Logica, nem de Critica,
+andam feitos censores dos melhores livros, por onde podiam aprender
+(a terem os conhecimentos que a lei delles requer) e vaõ surrando o
+entendimento da mocidade com os cartapacios defumados, que sem offensa
+de seus autores, deviam ser condemnados a embrulhar adubos.
+
+He forte cegueira, disse Gaspar Sciopio, ver ainda hoje homens mais
+afferrados á opiniaõ dos livros por onde aprenderam, do que os
+Pythagoricos a de seu Mestre!
+
+Mas esses pedantes, disse o Barbadinho, neste tempo escuro, em que mui
+poucos aprendem Latim, he que trazem mais algum estudante.
+
+Esses Mestres, continuou Nebrixa, pela maior parte saõ particulares
+(reparai, Guliver, que naõ digo, _Todos_) e como o estudante traz a
+mezada em o fim do mez, he preciso fazer a boca doce aos pais; murmurar
+dos estudos Regios, e persuadir-lhes ser coisa menos decente mandar os
+filhos ás aulas dos pobres.
+
+Pobres de juizo, disse Antonio Pereira todo agastado, pobres de
+juizo saõ os que accreditam similhantes novelleiros. Como se os
+estudos do Rei naõ fossem a honra de todos os vassallos? Ou como se
+fosse desprezo acompanhar com seus irmãos aquelle que tendo melhor
+fortuna, naõ tem outra natureza?
+
+Ainda se servem, proseguio Nebrixa, de outro estratagema mais sagaz, que
+he apregoarem, ou por si, ou por seus devotos, que as aulas Regias andam
+cheias de moços mal procedidos.
+
+Este seculo, disse o Barbadinho, está cheio de corrupçaõ, e como as
+aulas particulares, trazem alguns estudantes mais que as outras, tambem
+vos podeis persuadir, que trazem muito peior gente.
+
+De casa, disse Quintiliano, já os moços trazem os máos costumes, nem he
+preciso que os venham buscar ás aulas.
+
+Mas ainda dado, e naõ concedido, proseguio Nebrixa, que de casa venham
+innocentes; nem por isso he justo que a mocidade deixe de frequentar
+as aulas Publicas. Os pais devem vigiar sobre a conducta, e companhias
+de seus filhos; mas tambem devem fazer a vista grossa a certas coisas,
+que naõ offendendo a virtude, he necessario que os rapazes em quanto saõ
+rapazes as pratiquem: aliás em idade incompetente seraõ os peiores
+homens, segundo a triste experiencia o tem mostrado.
+
+Parece seria melhor, disse o Conde de Castel-Branco, ensinar em casa aos
+meninos os Estudos menores, para lhes evitar os laços, que a seus tenros
+annos o mundo costuma armar.
+
+Nada, nada, respondeu Antonio Pereira, porque em idade maior he que se
+conhece o erro; por isso que ficam estupidos: engolem todas as petas,
+naõ prestam para a sociedade: a sua brutalidade os conduz para os vicios
+mais grosseiros; e ficam em tudo huns perfeitos Sardanapálos.
+
+Bem: concluio Nebrixa, hum tal encerramento, he mui bom para mulheres,
+para homens naõ tem geito. Pouco vale clausurar os rapazes para
+evitar más companhias, em casa mesmo acharaõ quem os estrague: e oxalá
+fossem mentirolas estas nossas expressões! E deixai murmurar os
+pedantes, esses que ensinam a conhecer as sylabas pelos fôlegos; e que
+toda a sua sciencia consiste em affeiar, e corromper o verbo _arcabuzear_.
+
+Acabando o Hespanhol de dizer isto, e entrando por algum tempo a engolir
+em secco, exclamou: Professores pedantes, Professores idiotas, tratai de
+outro officio; naõ augmenteis o charlatanismo com os desconcertos da
+vossa ignorancia. E tu ó mortal (virou-se para mim) muito bem tens
+ouvido os justos louvores, que aos benemeritos havemos dado.
+
+Entaõ todos lhe abaixaram profundamente a cabeça em signal de parabens;
+e elle se levantou, sahindo com a mesma cara com que principiára a sua
+commissaõ.
+
+
+
+
+DIALOGO IV.
+
+_He tratado Sanches por Crates com toda a distinçaõ: expõem elle a
+terceira causa da pedantaria: fica a beca de Guliver convertida em tres
+artes de Grammatica Latina: faz-se grande estimaçaõ da primeira:
+criticam-se as outras: vai-se Guliver successivamente convertendo em
+passaro: manda Crates Mallotes mostrar-lhe a ilha, &c._
+
+
+Ja Elio Antonio Nebrixa estava em o seu assento colhendo os bem
+merecidos applausos dos que estavam junto delle, quando Francisco
+Sanches Brocense hia com o seu passo grave, e magestoso, procurar o
+banco; mas Crates Mallotes, logo se levantou, cujo exemplo seguio toda
+aquella multidaõ dos illustres defunctos: e assim erguido, clamou: Nada,
+nada: hoje has de ensinar de cadeira: nem he justo, que o Principe
+dos Grammaticos deixe de ter a maior distinçaõ em a terra da verdade.
+Logo que elle isto disse, sahio coxiando para fóra, e rindo dizia: A
+Grammatica, que em Roma ensinei, era taõ coixa, como eu. Mas todavia se
+os Romanos de mim naõ houvessem recebido o exemplo, tambem naõ opporiam
+á Grecia tantos sabios.
+
+Porém Sanches modesto recusava taõ distincta mercê, allegando para isso,
+que naõ só por haver sido o respeitavel velho Embaixador do Rei Attalo,
+que fartou Roma de pergaminho; mas tambem por ter alcançado a honra, e a
+gloria de primeiro Mestre do povo senhor do mundo, por nenhum titulo
+devia ser dispensado de sahir de seu devido aposento.
+
+Nem ter sido Embaixador, replicou Crates, nem ter sido o primeiro Mestre
+dos antigos Romanos, equivale a ter sido, como tu, o primeiro açoite da
+pedantaria, e do ranço de todos os Grammaticos do universo. Eu aqui
+ficarei.
+
+Dizendo isto puxou do escabello, que estava diante da cadeira, e pólo
+para o lado: e Sanches naõ teve remedio senaõ obedecer, subir,
+assentar-se: e todos fizeram o mesmo.
+
+Hum pouco esteve Sanches, como quem estava reflectindo, depois do que
+voltando-se para Crates fez huma profunda venia; mas nem por isso deixou
+de significar a todos a sua civilidade. Eu tenho grande pena de vos naõ
+poder pintar ao vivo a delicadeza, graça, e energia da sua pronuncia,
+por isso só vos escreverei o seu arrazoado, cujo comêço he o seguinte.
+
+Se os pais ás mãos ambas semeam o pedantismo, e os Professores idiotas
+nas campinas da mocidade saccos cheios vaõ deitando: saõ sem dúvida os
+máos livros o celleiro infame, aonde taõ pestifera semente está
+guardada. Os escritos impressos naõ tem numero; elles vaõ durando com as
+épocas futuras: o bom e o máu nelles vai vivendo. Assim he que as
+fallas humanas duram, depois do homem naõ viver. E como já naõ he
+preciso o penoso trabalho de trasladar livros, como antigamente, eilos
+vulgares: e sendo poucos os que possam ser juizes da bondade, ou
+ruindade, que nelles houver, entaõ adquirem apaixonados os que naõ saõ
+bons; e censores, os que o saõ. Por outra via ha homens ou taõ
+ignorantes, ou taõ fatuos, que julgam verdades eternas tudo o que está
+escripto em letra redonda. He por estas bem claras razões, que muitos
+sabios ainda naõ poderam decidir, se a arte Typografica tenha
+aproveitado mais ás Letras, ou se mais as tenha offendido.
+
+He certo, disse Sciopio, que ella faz conservar escriptos, cuja memoria
+naõ devia existir: e quando muitos outros saõ funestos, naõ se póde
+dizer quanto seja huma multidaõ de livros didaticos, os quaes naõ só
+corrompem o bom gosto, mas enchem os rapazes de mais ranço do que
+que teria toucinho de cem annos ao fumeiro.
+
+Em a Minerva, continuou Sanches, dei eu bem a conhecer os escriptores
+pedantes: he este livro bem vulgar; e o Memoravel Rei D. José lhe deu a
+devida estimaçaõ, mandou por hum Decreto, que nenhum Professor em
+Portugal deixasse de o ter, e de por elle explicar: porém isso durou
+pouco. Hoje ha lá muitos, que nem sabem, que ha similhante thesouro no
+mundo, nem tam pouco tem principios para o entenderem, e para se
+utilisarem.
+
+Assim he, disse o P. Manoel Alvares, mui poucos fazem caso desse livro:
+e ainda agora ha quem transcreva as peiores coisas da minha arte
+reprovada por huma Lei, vendendo por seu o meu trabalho: julgando talvez
+o pódem fazer a seu salvo, por ninguem já saber o que eu escrevi.
+
+Bem sei, que fallas, proseguio Brocense, em a arte das linguagens, que
+ha dias acabou de ser impressa: descança, que logo lhe faremos a
+caridade; porque o seu autor naõ tem mais privilegios que muitos de vós
+a quem censurei, e nem por isso somos inimigos; antes a nossa amizade
+será taõ eterna, como nós havemos de ser.
+
+A Critica, disse Jacob Peritonio, tem o caracter de hum juiz inteiro,
+que sentenciando as obras segundo o seu merecimento, deve sempre deixar
+illeso o seu autor.
+
+Hoje enfastia muito, disse Antonio Felis, ver resuscitar os destemperos
+das Grammaticas velhas; se isto se fizesse, quando eu fiz a minha
+compilaçaõ, e Antonio Pereira as suas artes, seria digno de perdaõ;
+porque nos expozemos ás maiores calúmnias, como todos sabem, e as quaes
+muito nos vexariam, a naõ sermos protegidos pelo braço Real; e ainda
+assim naõ padecemos pouco.
+
+Eu honrei Hespanha com as minhas obras, continuou Brocense, e a paga que
+recebi dos meus serviços, foi ver a Minerva condemnada ao pó de bem
+poucas livrarias; a qual se fez taõ rara, que sendo achada por Sciopio,
+a quiz reimprimir por sua, julgando haver-se inteiramente perdido a sua
+lembrança; mas ainda houve entaõ quem restituisse ao meu nome a gloria,
+que se lhe hia a roubar.
+
+Apenas assim fallou, todos olháram para Sciopio como enfadados; elle
+porém muito senhor de si, se desforrou, dizendo: Isso tudo he verdade;
+mas depois em todas as minhas obras Grammaticaes, me intitulei teu
+discipulo, nome que muito bem desempenhei, e ajudei a tua espada a dar
+os mais profundos golpes no cachaço dos pedantes.
+
+Tivemos pelo meio deste seculo, disse Sanches consternado, homens
+grandes por amigos, pelos fins delle só conheço hum escriptor, que com
+as suas, e nossas opiniões honrará as provincias da Grammatica, sempre
+que por ellas corra, quem ahi naõ seja peregrino. Mas porque fallamos em
+os ultimos escriptores desta idade; faça-se justiça: vinde cá, Inglez.
+
+Assim que me chamou, fui chegando a cadeira, e como elle fallou em
+Justiça, fiquei pouco satisfeito, cuidando já se sabe, que se me faria
+alguma execuçaõ á móda de Inglaterra. Já estes cuidados me ruiam o
+coraçaõ, quando veio da boca de Sanches hum repellaõ de vento, e me
+levou a béca de plumas. Entaõ he que pensei, naõ tardaria, que a cabeça
+me voasse. Mas estes sustos se converteram em galhofa logo que ví a béca
+de pennas, tambem convertida em folhetos de papel; e a mim em trajes de
+marujo, como d'antes.
+
+Com esses vestidos, disse-me Crates Mallotes todo risonho, podeste tu
+vir do mundo; mas com outros has de tornar.
+
+Eu estava com olho de punho para os folhetos, a ver aonde fosse o caso
+dar comsigo; entaõ chegou hum contino, que bem conheci ser hum
+Grammatico mui pedante, o qual em Londres ficava, quando de lá sahi.
+Pegou pois este criado em os cadernos, e pregou-os na parede. Veio
+outro, e com toda a humildade (do que me admirei por ter sido Francez, e
+deixar de ser arrogante) e metteu na maõ de Brocense hum ponteiro de
+barba de balêa; mas o cabo era de oiro massiço, em que estavam
+esculpidos tres escriptores Portuguezes: os quaes ficaram fechados em a
+maõ do Hespanhol, cujos nomes naõ tive licença de declarar em esta
+Historia; mas os escriptos, que saõ do direito publico, naõ tiveram a
+mesma prohibiçaõ: e confesso-vos, que nesta parte escrevo constrangido,
+e callo muitas coisas, que reporei, a quem me pedir contas, ajuntando
+outros appensos, que Crates Mallotes, do outro mundo me promette.
+
+Mas tornando ao proposito, estendeu Sanches o seu ponteiro para a
+parede, e entaõ ví em correnteza tres artes de Grammatica: Lê esse
+primeiro titulo, disse; entaõ li alto, e em voz clara _Novo Epitome de
+Grammatica Latina Moderna, ou Verdadeiro Methodo de ensinar Latim a hum
+Principiante.... Lisboa.... Anno de 1795_.
+
+Naõ appareceu ainda, continuou, hum livro mais bello para ensino da
+mocidade, nem que seja mais accommodado para ser explicado conforme as
+determinações do grande D. José I.
+
+Vê estes Nominativos, estes Generos como estaõ taõ bem ordenados. Estas
+Linguagens, expostas em taboas synopticas: como debaixo de hum ponto de
+vista obriga o menino a firmar a sua memoria? Estas _raizes_ de
+formaçaõ! Estes _preteritos_! Quem até agora fez huma Syntaxe como esta?
+Quem melhor Prosodia? Como he em tudo coherente! E estas _notas_ naõ
+fazem por ventura hum systema completo?
+
+Tem boa duvida, disse o Barbadinho, e o que mais admiro além das
+novidades, que escaparam ao teu engenho, he a brevidade e clareza, com
+que ensina o que outros naõ poderiam em bem gordos volumes.
+
+Esse moço, disse Antonio Pereira, tem dedo para isso, e ainda o vereis
+dar á sua patria signaes de bom filho.
+
+Mas ha Professores, replicou Vocio, que dizem ser esse livro muito bom
+para Mestres; mas que naõ presta para rapazes, pela ordem Filosofica com
+que foi tecido. E que dizeis a esta? Digo, respondeu Sanches, que he
+para rapazes, mas para rapazes, que naõ tenham a desfortuna de serem
+discipulos de similhantes Mestres. Como se Filosofia naõ fosse a recta
+razaõ, ou se sem ella possa haver bom escriptor, ou bom Mestre?
+
+Eu pasmo, disse o Barbadinho de ver tanto charlataõ; cuidei, com as
+minhas Cartas, ou com a Introducçaõ Historica, e Critica, tinha curado a
+loucura dos Pythagoricos: agora vejo, naõ fiz nada. Acaso naõ he para
+rapazes huma arte, que ensina sem confusaõ a hum principiante, a hum
+adiantado, a hum Mestre? Huma obra que tem tudo em seu lugar? Em que
+concorda o principio com o meio, e o meio com o fim?
+
+Esses homens, disse Palemaõ, eram bons para Mestres de papagaios; e
+fazia huma grande caridade quem os mandasse para o Certaõ, dirigir pretos.
+
+Parece-me, disse Lithocómo, que o autor desta arte errou em lhe chamar
+Epitome; porque sendo huma obra completa, devia-lhe chamar Flagello do
+ranço Grammatical do fim do XVIII. seculo: e saõ homens de má cabeça os
+que desdanham de livro taõ bello.
+
+Acabava Ludolfo Lithocómo taõ douta reflexaõ, quando Joaõ Garcia
+exclamou: Mil parabens á Naçaõ Hespanhola, que ainda tem filhos, que
+deram próvas do seu bom gosto na versaõ desta arte, datada em Madrid em
+1797.
+
+O discipulo digno de Sanches (continuou elle mesmo) consola a tua
+paciencia com estes elogios, até que a Ignorancia invejosa naõ morda o
+teu serviço com seus dentes carunchosos. Quando para aqui vieres
+serás carregado de louvores; porque a Inveja mordaz em os bons defunctos
+naõ acha que roer.
+
+Aqui se levantou Joaõ de Barros, exclamando: Quem naõ vê o serviço que
+eu fiz aos Portuguezes? Eu escrevi os seus illustres feitos, que fizeram
+pasmar a todos os povos do mundo, e o fructo que em meus dias entrou em
+meus celeiros, foram taõ descomedidas, como escandalosas censuras; ha
+muito porém, que depois da minha morte sou chamado o Livio Portuguez, o
+Mestre do patrio idioma.
+
+A melhor satisfacçaõ, disse o P. Buffier, que o bom escriptor possue em
+sua vida he a consciencia do louvor, que naõ póde ser affogada nem pelo
+mais basto oceano de calumnias.
+
+Já tudo estava em o mais profundo silencio, e Sanches medindo com os
+olhos inquietos todo aquelle livro: mostrando com o continuo movimento
+da cabeça quanto delle gostava, até que depois de hum largo
+intervallo, com os beiços alguma coisa sobrepostos, fez-lhe huma
+profunda inclinaçaõ: e logo com o seu ponteiro, o qual em o tempo da sua
+revisaõ estivera voltado para o hombro direito, bateu na dita arte, a
+qual desappareceu.
+
+Mas qual naõ foi a minha admiraçaõ quando me vi convertido em hum guapo
+passaro, desde a cabeça até o embigo? Naõ ha nem oiro, nem pedras
+preciosas no mundo, com que possa comparar a formosura das minhas
+pennas. Entaõ me lembrou que o ponteiro de Sanches era mais milagroso
+que a vara de Mercurio. Por certo, dizia eu comigo, que os mortos saõ
+mais habilidosos, que os vivos.
+
+Quando eu corria veloz por estas, e outras muitas cogitações, e me
+estava namorando, qual outro Narciso, já o amigo Sanches estava a contas
+com a segunda arte, cujo titulo era _Novo Compendio da Grammatica
+Latina, &c. Coimbra.... Anno de 1796_. Como insulta, dizia, nesse
+arrogante Prologo a todos os Grammaticos! Como se vale de
+Despauterio! Mas quede a sua Grammatica Filosófica, que promette?
+Aquella Grammatica Filosofica desconhecida até agora?
+
+Ella ahi está em pouco mais de meia folha de papel, respondeu Condillac,
+vê como desfigurou a minha doutrina! Quantas idéas intermedias naõ ficam
+ahi cortadas?
+
+Essa Grammatica Filosófica, disse Gaspar Sciopio, he bem similhante ás
+escadas de hum edificio, apartadas sete braças humas das outras. Donde
+nem as pernas de hum gigante as pódem alcancar; e muito menos as de hum
+rapaz, que saõ mui curtas.
+
+Toda a Etymologia Latina, e Prosodia, continuou Sanches, bem vedes,
+serem quasi formaes de Antonio Fereira, com algumas coisas de outros
+autores.
+
+Sim, disse o Barbadinho, alguns exemplos tem seus; corta, e accrescenta
+algumas poucas coisas, e outras as muda: porem de ordinario he infeliz,
+como se vê no incremento em _A_.
+
+Em a Syntaxe, proseguio Brocense, em que se conhece quanto vale hum
+escriptor deste genero, nem vejo novidade, nem methodo algum. Ora quem
+póde soffrer estas incoherencias?
+
+Huma Grammatica em tudo perfeita, disse o Barbadinho, he coisa mais
+difficultosa de encontrar, do que agulha em palheiro; os sabios ainda
+hoje suspiram por ella.
+
+Eu concedo, disse o P. Antonio Rodrigues Dantas, que até hoje ninguem
+tem escripto sem defeito, e que he optimo o livro, que tem mui poucos
+erros. Mas naõ posso tolerar, o ver gritar com Despauterio contra todas
+as Grammaticas, e reprehender-se neste ponto naõ só a Portugal, mas
+tambem a toda a Europa; e dizer-se claramente ser esse o motivo de Sahir
+ao mundo aquelle grande parto.
+
+Eu gritava, confessou lisamente Despauterio, porque naõ via a trava no
+meu olho: esse moderno todavia faz bem justas as minhas queixas, com
+a inutilidade de seus escriptos.
+
+Quem tanto de si presume, disse Sanches agastado, devia satisfazer ás
+suas promessas, e naõ imitar ao monte, que depois de tantos brados pario
+o que eu tenho vergonha de dizer.
+
+Hum rato sem pello, disse Palemaõ, foi o grande parto que se esperava, o
+qual fez arrebentar de riso aos que deraõ attençaõ aos seus gritos, e
+nelles se fiáraõ.
+
+Ainda fallava este mordaz, senaõ quando Brocense, mostrando em seu
+semblante huma indisivel desplicencia, bateu naquelles escriptos, que
+logo fugiram. Entaõ fiquei desde o embigo até ao pé direito carregado de
+pennas cor de papel pardo. Já pois para ser passaro completo, me naõ
+faltava mais, que o lado esquerdo desde aquelle ponto, que já disse.
+
+Entre tanto que eu observava a differença das minhas pennas, clamou
+Sanches enfurecido. He possivel, que no fim do XVIII. seculo
+apparecesse no mundo huma arte como esta?
+
+Entaõ virei o bico para a parede, e lí o frontispicio da ultima arte, o
+qual era _Novo Methodo de Grammatica Latina &c... Lisboa... Anno de
+1799_. Mas ninguem repare de ver hum passaro a ler; porque eu era
+passaro feito no outro mundo.
+
+Mal acabei de ler o titulo, e o Hespanhol, trazendo o ponteiro em hum
+redupio, clamava: Vê, vê as incoherencias dessa Etymologia. Vê aqui como
+esta _Hic_, _haec_, _hoc_, feito particula, contra o que se diz alli em
+o número das partes da oraçaõ. Forte miscilania! E que vos parecem essas
+linguagens eternas? Por ventura poderá hum rapaz decoralas em dez annos?
+
+Na verdade, continuou Sanches, estes Infinitos estam bem fartos de
+embrulhos. E a pezar de terem o Portuguez do Indicativo, ainda lhes
+falta o do Conjunctivo; e quem gosta de tanta selada, quanto naõ
+gostaria de ter noticia de mais estas alfaces?
+
+Assim como, disse o Barbadinho este escriptor saccou com a repetiçaõ
+sómente de certas letras finaes as Raizes de formaçaõ do Novo Epitome, e
+desfigurou outras coisas; porque naõ leu aquella interessante Nota de
+Syntaxe, aonde absolve os rapazes destas sempiternas perlengas?
+
+Tudo he huma palhada, disse Manoel Alvares; se essas linguagens tivessem
+o _Já entaõ_, o _oxalá_, e o _cum_, nenhuma differença tinham das
+minhas, senaõ o serem ainda mais extensas.
+
+Essa arte, disse Sciopio, com mais justiça merecia ser queimada, do que
+foi a tua; porque se foste máu Grammatico, ninguem te póde roubar a
+gloria de teres sido optimo Latino. Os teus versos naõ invejam aos
+melhores da idade de Augusto: mas de Grammatica foste hum verdugo, como
+se próva claramente nas Instrucções de 1759. Tambem o teu Mercurio,
+disse Alvares, naõ foi quem abrio os olhos aos mortaes.
+
+Isto picou tanto a Sciopio, que entrou com a sua mordacidade a altercar
+taõ descomedidamente, que já a favor de Manoel Alvares se vinha chegando
+Prisciano, para rebater aquelles dicterios. Entaõ o sabio Presidente em
+tom magistral, assim fallou: Nada de calúmnias; Manoel Alvares para o
+tempo em que viveu merece desculpa, seguio aos que lhe precederam, como
+as ovelhas ao carneiro do chocalho. Mas no fim do chamado seculo das
+luzes apparecer huma arte como esta, depois de tantos livros
+excellentes? porém naõ percamos mais o nosso trabalho.
+
+Logo que assim acabou, sem querer ver mais nada olhou carrancudo para
+aquelles folhetos, e elles como settas me ficaram cravados pelo lado
+esquerdo, pennas, já se sabe, cor de mechas.
+
+Assim he que me fui aos poucos convertendo em passaro na ilha dos
+Mortos. Sanches desceu da Cadeira, praticou com os outros relatores.
+E todos diziam: Viva Crates Mallotes, viva, que campou na escolha que
+fez. Porém reparei, que Despauterio naõ gostára da galhófa.
+
+Acabados estes comprimentos sahiram todos, e eu feito passaro entre
+elles, com o meu rabo de rastros, taõ comprido como as linguagens do
+Novo Methodo. Porém, como naõ perdi a falla, agradeci muito ao
+Embaixador do Rei Attalo, o devertimento que me deu. E certamente nunca
+vi opera taõ gostosa; porque sem duvida deixarei todos os gostos do
+mundo de boa mente, quando se me offereça similhante fortuna: e ainda
+espero de lá tornar.
+
+Mas como hia dizendo: já estava desconfiado de tornar a Inglaterra;
+Crates porém, que era mui esperto, e mui politico, conhecendo a minha
+desconfiança, disse a Sanches: Mostrai a esse hospede as coisas mais
+notaveis da nossa ilha, para ir o mais breve para sua casa. E tu, amigo
+Gúliver, desculpa, naõ te poder acompanhar, bem vês, que hum coixo
+naõ póde andar depressa; porém o respeitavel Teive iré em meu lugar.
+Ide; eu naõ tardarei muito em ser comvosco; lá nos veremos no mirante de
+Carlos Magno.
+
+
+
+
+DIALOGO V.
+
+_Necessidade da obediencia: elogios da naçaõ Portugueza: utilidades da
+Agricultura: quanto foi apreciada pelos antigos Portuguezes: castigos
+dos pedantes na ilha dos Mortos: chegada de Crates Mallotes, para me
+persuadir a ser Grammatico, &c._
+
+
+Logo que Crates Mallotes mandou os seus subditos, nada se demoráram, e
+eu naõ pude tambem fazer outra despedida, que voltar o rabo para o ar, e
+o bico para o chaõ, e fazer-me de volta com taõ respeitaveis
+companheiros. Accusava-vos todavia de sahirem taõ apressados, que me naõ
+deixaram fazer os devidos comprimentos, ao menos a todos os que haviam
+fallado no Congresso, de quem tinha eu recebido taõ altas mercês;
+porque a toda a multidaõ era impossivel.
+
+Comprimentaste a todos, disse Sanches, sem nicas, nem fingimentos dos
+Politicos mundanos. A obediencia he o eixo da carroça social, por falta
+deste dever he que ninguem hoje póde viver no mundo. A nossa sociedade
+compoem-se de sabios que sabem muito bem a sua obrigaçaõ, sem o conselho
+dos quaes nenhuma póde ser bem dirigida. O nosso velho mandou, governa,
+obedecemos.
+
+Os sabios! disse Diogo de Teive com hum grande suspiro: A pedantaria!...
+Mas foi Deos, Gúliver, o que te fez aqui arribar: para remedio de muitos
+abusos literarios da minha naçaõ, que a pedantaria das outras naõ me
+importa. Has de achar ahi, dizia elle, has de achar, quem te ajude em
+este grande serviço. Já Portugal estava com seu rosto coberto de luzes,
+quando outros póvos estavam sepultados em as mais escuras trevas da
+ignorancia. Naõ ha no mundo quem tenha melhor legislaçaõ; os nossos
+Monarcas saõ Senhores no nome, e na Magestade; pais no procedimento:
+has de achar hum Principe Religioso, Pio, moderado, amigo de Deos, e dos
+homens; hum Principe, como Tito, que chora o dia em que naõ póde fazer
+mercê: que está immovel aos conselhos menos piedosos: e que naõ quer
+tirar o paõ aos servos do Sanctuario, para sustentar o odio, que a
+pedantaria do tempo tem aos altares.
+
+Na verdade, disse Sanches, nenhuma naçaõ da Europa tem tido melhores
+Reis, e por isso nunca outros tiveram iguaes vassallos.
+
+Tem boa dúvida, disse Diogo de Teive, os Portuguezes pódem-se chamar
+melhor filhos, que vassallos dos seus Soberanos, pela fedilidade, e amor
+com que todo o povo os serve.
+
+Para que estais com isso? replicou Sanches, toda a naçaõ Portugueza se
+tem distinguido em tudo das mais. Quem tem tido melhores Reis? quem
+melhores vassallos? Quem melhores letrados? Quem melhores soldados?
+
+E quem, continuou Teive, hum Joaõ das Regras? hum Camões? hum Barros?
+hum Heitor Pinto, gloria dos Frades de Belém, honra de Portugal?
+
+Entaõ foi desenvolvendo a Historia de todos os Reis de Portugal, os
+sabios de todas as épocas: acções que pareciam fabulas: guerreiros:
+proezas até das proprias mulheres. O que tudo vos deixo de contar naõ
+tanto por se naõ engrossar o volume, como para economia da bolsa de meus
+apaixonados. Além de que tudo achareis em as Historias daquella naçaõ,
+ainda que os mortos sabiam o que ellas vos naõ contam.
+
+Já Teive entrava a elogiar muitos dos vivos, sem todavia proferir os
+nomes de cada hum, até que todo inflammado disse: Será mais facil acabar
+toda a geraçaõ Portugueza, do que apossar-se della o inimigo.
+
+O que saõ os Portuguezes, disse Sanches, ainda neste tempo dos chás, e
+dos caffés, em o Rossilhaõ, e em Napoles muito bem se conheceu.
+
+Em quanto eu hia caminhando entre os dois amigos, ouvindo attentamente
+os elogios dos Portuguezes, que muito me deleitáram os ouvidos: tambem
+hia desfructando com os olhos a linda prespectiva naõ só de verdes
+seáras, mas tambem de vistosas arvores, carregadas de bellas fructas,
+assim como risonhos prados: muitas vinhas; olivaes &c. ví muitos
+carreiros, almocreves: muitos homens a assar castanhas, outros a pôr
+hortalica, outros em fim a semear batatas. Estava na verdade ancioso por
+saber que gente fosse aquella: e ainda mais fiquei, quando vi outros a
+esfolar mosquitos: e muitissimos á caça de moscas.
+
+Já com difficuldade me podia ter; porem Teive que previo a minha
+curiosidade, disse-me: Bem sei que estás admirado do que vês: por isso
+deves saber, que naõ pódem aqui morar senaõ Grammaticos, e Professores
+de ler, e á medida do seu pedantismo se lhes dá cá occupaçaõ competente:
+Lavradores somos nós todos: os charlatães tem differentes
+ministerios, ou almocreves, ou carreiros, &c. os delicados assam
+castanhas: os negligentes caçam moscas: os que deixam de exprimir os
+seus pensamentos, porque naõ acham em Cicero palavras para isso, estaõ
+se cançando a tirar a pelle aos mosquitos. Mas como naõ gostamos de
+gente ociosa todos nas occasiões vaõ trabalhar em Agricultura.
+
+Se lá no mundo, disse Sanches, mandassem cultivar a terra a homens
+inhabeis para as letras (naõ deixando em silencio aquelles infinitos
+estudantes de Mathematica, que nem sabem ler) nem mortificariam a seus
+Mestres, nem faltaria paõ.
+
+Assim como em meu tempo, disse Teive, em que a Agricultura era taõ
+estimada: entaõ naõ era preciso vir trigo de fóra, antes havia muito
+para vender, e quando era cáro naõ passava o alqueire do preço de trinta
+réis. Oh! Felizes tempos, em que haviam sabios, haviam soldados, havia
+de comer!
+
+E naõ haviam, disse Sanches, casquilhos sem religiaõ, a medirem as
+verdades Positivas a compasso: feitos Juristas, e Theologos abstractos.
+
+Estas, e outras coisas diziam, e tinhamos já bastante caminhado; porém
+nunca me custou taõ pouco o andar. Eu bem podia voar; todavia por
+decencia hia a pé. Cada vez mais campinas cultivadas hia descobrindo,
+até que chegámos a hum oiteiro carregado de tójos, e de cardos, por onde
+pastava huma grande manada de jumentos, guardados por infinitos homens.
+Estes saõ os Professores de ler, disse Teive, que no mundo só ensináram
+os meninos a gaguejar, e que foram a causa de nunca poderem avançar ao
+estudo das sciencias. Naõ foram como os que viste em o congresso, os
+quaes aproveitáram mais ás suas respectivas nações, do que muitos
+Rhétoricos, e Filósofos.
+
+A literatura, disse Sanches, he a base das sciencias, e quem poderá ser
+sabio, sem que saiba ler?
+
+Resolvi-me pois, a fazer minhas perguntas; mas sempre commedidas
+para naõ me portar, como tolo. Abrí o bico, dizendo: Aonde estaõ
+aquelles defunctos, que nem foram Grammaticos, nem Professores de ler?
+
+Além daquelle rio caudaloso (respondeu Sanches, apontando com o dedo) ha
+muitas ilhas, e cada qual tem a sua jerarquia; porém se algum foi
+Mestre, ou escriptor de Grammatica, ou Professor de primeiras letras,
+ainda que tambem fosse Rhétorico, Filósofo, Theólogo, ou General, &c.
+faz-nos entaõ o favor de vir para aqui.
+
+Em quanto Sanches me satisfazia, puxou Teive de huma luneta, e olhando
+para além do rio, entrou a rir como hum perdido.
+
+Aqui me obrigou a fazer segunda pergunta; porque em similhantes
+occasiões tem muita desculpa a curiosidade.
+
+Naõ ha coisa mais galante, respondeu, lá está Pythágoras, com a
+escudélla de Diógenes entre pernas, comendo favas, como o lobo carne
+de borrego.
+
+No mundo, disse Sanches, naõ houve quem mais asco lhes tivesse, e agora
+está capaz de engolir a mesma escudélla. Ora o certo he, que se entre os
+Grammaticos ha pedantes, muitos mais achareis entre os Filósofos.
+
+Já haviamos passado as fraldas de huma montanha de mais de tres legoas
+de altura: quando ví os seus lados cobertos de bois, cabras, ovelhas: de
+maneira que naõ avistava palmo de terra; e muito tempo estive
+persuadido, que os pegureiros eraõ pedras cor de musgo. Mas a poucos
+passos ví em o cume do monte hum mirante de tal grandeza, e magestade,
+que a pobreza de minha penna naõ o póde debuxar. Basta dizer, que a sua
+escadaria principiava desde seis milhas, e era de tal arquitectura, que
+me parecia ir correndo por huma eira.
+
+Ainda Sanches hia batendo nos Filósofos pedantes, dizendo raios
+contra Voltaire, e contra outros impios: senaõ quando ahi chega Crates
+Mallotes em huma cadeirinha, trazida aos hombros de dois mariólas,
+vestidos com saiaes até o joelho de pelles de bóde côr de cinza. Tenho
+vergonha de dizer a naçaõ a quem pertenciam: Portuguezes naõ eram, o que
+digo por descargo de minha consciencia; pois que Sanches me disse, serem
+taõ respeitados naquella ilha os Portuguezes, que até os mesmos pedantes
+eram muito favorecidos.
+
+Para que saibas, disse o meu Velho, para que saibas quanto te estimo; e
+para que agradecido a esta boa hospedagem, venhas em outro tempo para a
+nossa companhia, he que venho estar comtigo até que daqui te safes.
+
+Dizendo isto sahio pela cadeirinha fóra, e fomo-nos sentar bem perto da
+entrada do mirante.
+
+Fez varias perguntas, entre outras, que me tinha parecido a sua ilha? E
+tambem me disse a razaõ de naõ haver nella jardim, nem coitada: e
+por fim levantou-se, e bateu a pórta do mirante, que logo se abrio; e o
+que se passou, logo o vereis: e espero que muito vos divirta, e que nada
+menos vos aproveite.
+
+
+
+
+DIALOGO VI.
+
+_Idéa da grandeza do mirante de Carlos Magno: este, e Cesar recebem com
+muita alegria a Crates Mallotes: Gúliver he tratado muito humanamente:
+ultimas desgraças da pedantaria: remedio para ellas: chegam muitos
+Grammaticos para pedirem a Gúliver, que escreva Grammatica Filosófica da
+lingua Portugueza: como este fica no ar sem ver coisa alguma &c._
+
+
+Assim que se abrio aquella porta appareceu huma escadaria taõ alta, que
+logo me lembrei da torre de Babel. Fui saltando por ahi a cima atraz de
+todos; porque o velho se servio dos dois, como de moletas; naõ pela
+razaõ da sua muita idade; mas por aquella, que vos naõ esquecerá, se me
+lestes com a devida attençaõ. Naõ me custou tanto toda a comprida
+jornada, como a subir (posto que hia de vagar) por as escadas a cima;
+pois que as pernas por serem curtas me obrigavam a saltar violentamente.
+Deste modo hia eu tirando forças da fraqueza; mas nem por isso quiz
+voar: segundo o proposito, que havia formado. Com tudo muito estimaria
+que Crates Mallotes sobre isto desfizesse a minha teima com preceito de
+obediencia. Elle porém gemia como huma mulher na occasiaõ do parto. Em
+fim, nestes apertos chegámos a todo cima a hum grande pateo; e parando
+hum pouco para se moderar a respiraçaõ, virou-se Crates para mim com o
+semblante cheio de alegria, e disse: Estás chegado a fallar com as
+personagens que em os antigos seculos mais no mundo florecêram: ellas te
+daráõ lições bem gostosas para a curiosidade portugueza.
+
+Dito isto, fomos entrando por falas, e mais falas, até chegar a huma
+espantosa, e soberba varanda. Sim, disse Crates, has de levar lições
+de grandes e illustres heróes: aqui naõ ha nem aduladores, nem
+tractantes, que sejam capazes de os enganar.
+
+Ainda elle fallava, senaõ quando vejo Carlos Magno em o meio de Cesar; e
+Cataõ, e Lelio á ilharga algum tanto apartado, e outros muitos em pé:
+Mas avistando aquelles quatro insignes varões ao velho Crates, foraõ
+tantos os festejos, os comprimentos, as alegrias, os abraços, as
+galhófas, os ditos engraçados, que bem podia fazer divisaõ deste ultimo
+_Dialogo_, se vos pertendesse chupar dinheiro com palavras sem proveito.
+
+Em quanto pois se passavam estes sinceros, e innocentes festins,
+perguntei a Sanches (que já me havia dito, quem fossem os quatro) se os
+outros eram os Grammaticos antiquissimos, pertencentes aos do susurro,
+que tinhamos ouvido, quando estiveramos em o congresso?
+
+Que tu quizeres! respondeu, esses saõ bichos cor da noite, aos quaes
+ninguem atégora vio: saõ os habitadores das trévas.
+
+Os Senhores saõ Cortezãos (disse-me Diogo de Teive) e os unicos, que naõ
+havendo sido lá no mundo nem Grammaticos, nem Professores de ler, por
+previlegio, e merecimentos do Imperador, vieram para aqui. Tem sim bons
+salarios; mas nunca diante delle se devem assentar; porque só nós o
+podemos fazer.
+
+Por isso, disse eu em segredo apontando com o bico para a orelha de
+Teive, por isso lhes vejo as pernas bem inchadas; mas agrada-me muito o
+seu sério.
+
+Aqui estaõ callados, tornou o Portuguez, mas fóra da vista de Carlos
+Magno ninguem os póde aturar: tudo pisariam, senaõ fossem bem conhecidos
+por elle, que os sabe bem domar: e assim todos vivemos huma maravilha.
+
+Já se haviam em fim acabado os comprimentos, e os Imperadores se foram
+sentar, e depois os outros cinco. Eu, como por ser passaro estava
+dispensado de fazer o mesmo, cheguei-me para aquelles, que tinham a
+mesma dispensa, posto que por differentes motivos. Elles me trataram com
+muito carinho: e para naõ ser ingrato, digo, disse, e sempre direi, que
+em aquella ilha recebi obsequios até dos esfoladores de mosquitos, e dos
+caçadores de moscas.
+
+Estando eu feito Cortezaõ, como acabo de significar, sem merecimento
+algum, e cuidando por isso, naõ se faria caso de mim, logo fiquei sem
+estes escrupulos: porque vendo Carlos Magno a minha submissaõ, e o
+quanto eu conhecia a mercê, que me tinham feito em me admittirem com
+tanta benignidade ás suas lições, e á sua companhia, disse em tom sério,
+brando, e affavel: Es passaro, naõ ha duvida; mas passaro feito pelo
+nosso dedo. O que tens foi-te dado; porque o merecias. Naõ és como essas
+infinitas gralhas, que se andam enfeitando descaradamente lá na terra
+com plumas, que furtam ás aves mais formosas, e mais estimaveis.
+
+Sim, disse Cesar, mas de ordinario, naõ se sabem armar com ellas, e
+expoem-se ao risco de serem depennadas.
+
+Como as pennas, disse Cataõ, saõ bens de raiz, tambem as aves roubadas
+poucas vezes demandam as ladras, que pouco a pouco vaõ perdendo o furtado.
+
+Senaõ demandam, disse Crates Mallotes, queixam-se pelo menos, como naõ
+ha muito fez o nosso Condillac á vista desse Inglez.
+
+Ora pois, disse-me Carlos Magno, vinde para aqui. Entaõ fui-me chegando
+com a cauda de rojos feito viuva, despedindo-me dos Cortezãos á Ingleza,
+isto he, sem comprimentos, nem ceremonias, por ser indecente, que eu em
+semelhante occasiaõ, me dilatasse com elles.
+
+Chegado que fui ao pé do illustre Heróe, já Cataõ se havia levantado, e
+estava fazendo pontaria com hum telescopio, incomparavelmente mais
+comprido, que o de Galilei de Galileos. Teria pelo menos trinta
+covados de comprimento: estava em cima de huma especie de carreta,
+que tinha suas escadas, para poder ver cada qual, segundo sua estatura.
+
+Ajustada a mira do instrumento, veio-se Cataõ assentar. Entaõ Carlos
+Magno arrancando de seu piedoso coraçaõ hum grande, e magoado suspiro:
+Sóbe, disse, verás por alli (apontava para o telescopio) por alli,
+pedantarias já dignas de riso; já dignas de lágrimas. E vós Sanches, ide
+estar bem, ao pé deste estrangeiro.
+
+Dito isto trepei pelas escadas até o ultimo degráu, pela razaõ da minha
+estatura, que entaõ pouco maior seria, que a de perú: o rabo sim era
+tamanho, e taõ monstruoso, como as _Linguagens_ que em elle foram
+convertidas. Sanches porém, que naõ havia padecido, como eu nenhuma
+metamorphose, ficou em pé sete escadas abaixo, e com a sua cabeça a par
+da minha. Virei pois o olho esquerdo para a boca daquella grande
+maquina, e o bico para a banda; mas dei a volta com elle voltado para o
+ar, a fim de naõ molestar a cára do Hespanhol, companheiro, amigo,
+&c. Os circunstantes gostáram do meu procedimento, riram he verde,
+todavia com aquella moderaçaõ de gente bem educada. Eu confesso, que
+estive hum pouco confuso. Ora eu já tinha reparado ser desmarcado o meu
+bico; porém entaõ he que conheci ser sessenta vezes maior que o da
+cegonha. Nascia a minha admiraçaõ de ter sido feito de huma arte taõ
+breve, como o Novo Epitome. Já me naõ embaraçava olhar para outras
+partes senaõ com ambos os olhos para o meu bico.
+
+Assim me estava demorando com estas bagatellas, quando Sanches me disse:
+Naõ te maravilhes, tudo isso he preciso para dares as mais valentes
+picadas no charlatanismo deste seculo. Observa o que vai pela Europa.
+
+Entaõ vi casas do tamanho de bocetas, ruas, chafarizes, proporcionados,
+e logo infinitos ratos, devorando-se huns aos outros. As mortes ferviam:
+tudo era huma confusaõ. Em quanto isto se passava, sahiam arrãs de
+differentes lagos; entráram logo a formárem-se em esquadrões: os seus
+escudos eram conchas de amejoas, as armas juncos mui agudos. Assim
+invadiram os campos, pertencentes aos ratos, estes moderaram algum tanto
+o odio intestino; muitos porém se misturáram com ellas; as quaes já hiam
+ganhando castellos: e alvoravaõ suas bandeiras. Mas os ratos logo se
+uniram quasi todos, levavam escudos de cascas de nozes, e as armas eram
+folhas de trigo candial. Affugentáram as arrãs, e fizeram-se senhores de
+muitas das suas ribeiras.
+
+Assim acabou aquella invasaõ. Depois ví alguns ratos ás costas das
+arrãs, que nadavam pelos lagos, e dahi a pouco vi muitos delles
+affogados pelas margens. Vieram outros com forcados ás costas: entaõ
+muitas arrãs fizeram paz com elles, segundo me pareceu, outras ficaram
+sós em campo: padeceram muitas derrotas: perderam muito das suas
+ribeiras. Tambem os ratos tractaram mal a muitas das que haviam deixado
+a liga, roubando, e comendo os seus viveres, e occupando o seu
+terreno. Em quanto isto observei, vieram infinitos cágados, ajudaram
+tanto as arrãs, que já hiam recuperando muito do perdido. Muitos ratos
+fugiam pelas montanhas, com juncos espetados pelos olhos. As arrãs
+mortas eram sem numero; os ratos sem conto.
+
+Muito tens visto, disse Carlos Magno, e queira Deos vejas estas revoltas
+socegadas. Vê, como os ratos tudo querem roer; e depois querem que as
+arrãs sejam animaes silvestres, como elles.
+
+Eu estava pasmado, e ainda hoje trabalho por decifrar todo aquelle
+enigma, e canço-me debalde. Tambem vi batalhas navaes, em que as arrãs
+obraram maravilhas.
+
+Se estas, disse Cataõ, naõ derem cabo destes ratos enfurecidos, a mim me
+mellem.
+
+Crates Mallotes, queria se me explicasse aquessa visaõ; porém Carlos
+Magno disse: vamos ao que importa, venha Gúliver para aqui.
+
+Entaõ fui logo pelas escadas abaixo para junto do Imperador, o qual
+assim continuou. Nunca o mundo esteve taõ cheio de traidores, e de
+malvados como hoje: Por aquelle telescopio sabemos tudo; o qual alli da
+parte direita tem certo canudo por onde tudo ouvimos. Quizemos
+divertir-te com esses ridiculos objectos: cuja explicaçaõ alguem acharás
+entre os vivos, que bem a possa desenvolver. Só vos dizemos, que a falta
+de Religiaõ, de temor de Deos, assim como o orgulho, e o egoismo deste
+tempo, saõ as causas das desgraças, que com lagrimas nos olhos os bons
+mortaes em a patria vos contaraõ.
+
+Sim, disse Cataõ, este seculo tem produzido mais impios, e mais Atheos,
+que gafanhotos o estio. Os pais de familia, e a falta de vigilancia
+publica sobre a educaçaõ da mocidade, tem causado muitos prejuizos á
+sociedade humana.
+
+Cuidei, disse eu, que isso só serviria de augmentar o pedantismo, e
+nada mais. A pedantaria, respondeu Cataõ, he prima mui chegada do
+desatino. Todas as causas della, tambem o saõ dos males mais funestos.
+
+Quando isto ouvi, lembrei-me logo da expressaõ de Aurelio Opilio, quando
+disse, que as revoltas do mundo deviam ser attribuidas á ignorancia: o
+que Teive havia provado com argumentos, que naõ tinham resposta.
+
+Os pais de familia, disse Lelio, com a sua má educaçaõ, os Mestres
+prevaricadores, os livros impios, tem feito em o mundo estragos mais
+terriveis, do que peste em cem annos.
+
+Tudo isto, disse Cataõ ainda tem remedio, os pais que naõ ensinam aos
+filhos o temor de Deos, a doutrina da sua religiaõ, a obediencia aos
+seus Soberanos, e superiores, sejam castigados: os Mestres que naõ
+mostram interesse na conservaçaõ das leis da sua patria, sejam apartados
+do ensino público, e particular: os livros impios sejam naõ só
+prohibidos, mas até queimados; porque o seu pedantismo he mui prejudicial.
+
+Eu com difficuldade podia ouvir estas coisas: todo o meu desejo se
+encaminhava a que se me explicasse aquella célebre visaõ: por isso
+perguntei: Que quer dizer aquella loucura dos ratos, e das arrãs?
+
+Naõ sejais teimoso, respondeu Crates, surrindo-se; todas estas reflexões
+dahi nascêram. Ouvi a Cataõ, que he bello para isto. A vossa curiosidade
+he por certo innocente, mas de nenhuma maneira vos he util.
+
+Como ouvi fallar em a inutilidade do meu appetite, deitei-o para fóra, e
+inclinei o ouvido para Cataõ, que assim discorria: Hum homem sabio, que
+tem lido as Historias do mundo, e de cujo coraçaõ o diabo ainda naõ
+tomára posse, conhece muito bem, que tudo está perdido, huma vez, que se
+quebrem os antigos eixos de qualquer governo: ou seja por meio de
+planos, apparentemente bons: ou interesses imaginarios, ou titulos
+de liberdade. E o peor he que o fogo desta funebre pedantaria passa de
+ordinario muito além das barreiras, dentro das quaes se accendeu; pois
+que he infinita a ignorancia, que lhe serve de lenha, e a si de ruina.
+
+Sem sahir de Roma, disse Cesar, temos as mais concludentes provas dessa
+verdade. Quando Bruto, o maior fanatico, que a antiguidade conheceu, com
+o pretexto virtuoso de vingar huma adultra suicida, todo o rude povo
+amotinára, naõ foi só o Imperio quem padeceu os funestos effeitos
+daquella republicana, e pedantesca novidade.
+
+Ouvindo isto o mordaz Cataõ, o qual havia sido o capataz dos
+Republicanos, torceu o nariz, e fazendo uma carantonha, como de quem
+sentio fedorentissimos vapores; assim retrucou a Cesar: Mas tu pouco
+menos de cinco seculos, depois daquelle delirio pedantesco: já quando
+todos amavam as leis, e os costumes de Republica taõ antiga, foste de
+Roma regar os campos de Farsalia de Romano, e barbaro sangue.
+Hespanha sentio tambem os malvados golpes da tua furiosa espada.
+
+Toda a paga do meu delirio, disse Cesar, foram vinte e tres punhaladas,
+que recebi de quem a vida muito devêra desejar-me. Mas tambem o
+sedicioso Bruto em o mesmo anno de seu Consulado alcançou a recompensa
+da sua perfidia. Eu perdoei aos Cidadãos, que foram meus inimigos:
+mandei aos meus soldados metter a espada na bainha. Podéra muito bem naõ
+dar vida a algum. Porém todo o meu fim era restituir á patria o antigo,
+e bom governo da sua creaçaõ; porque sempre me pareceu pessimo o guizado
+da panella por muitos mexida.
+
+Mas naõ sendo tua a panella, replicou Cataõ, foras comendo esta tal, e
+qual vianda com que todos nos haviamos sustentado. E que prazer recebias
+de estar só a mexella, sendo a sua agua as lagrimas dos vivos, e o
+seu adubo o sangue dos mortos?
+
+Tambem o fogo aonde fervia, disse Carlos Magno, era o incendio da guerra
+civil, a coisa mais lamentavel de todas as desgraças, que em o mundo
+possam succeder.
+
+He hum ingrato mui pedante, disse Crates Mallotes, todo o que deseja
+mudada a Legislaçaõ, e os antigos costumes do seu paiz, em pontos
+essenciaes; porque similhantes mudanças saõ a origem daquelle triste
+fenomeno, que Gúliver ha pouco vio: e que tem produzido des donde o Sol
+se poem até aonde elle nasce as miserias mais terriveis, do que a
+memoria de todos os seculos nos tem mostrado. Mas para naõ mentirmos,
+devemos confessar, que as traições tem sido a causa dos ratos terem
+feito tanto damno pelas ribeiras: se isso naõ fora, já ha muito estariam
+incurralados em seus buracos.
+
+Melhor seria, disse Lelio, que as arrãs, naõ lhes houvessem dado pasto
+para roer; porque entaõ elles se devorariam huns aos outros, como
+fazem estes, que andam de cavallaria, pelos fórros destes tectos.
+Todavia he muito certo terem sido as traições a causa de durarem ha
+tantos annos essas carniçarias lamentaveis.
+
+Se os traidores, disse Cataõ, naõ fossem pedantes, conheceriam, que em o
+desempenho de suas obrigações, he que consiste a sua propria felicidade;
+e que o ultimo fim da vil traiçaõ he todo o genero de trabalhos, ou,
+quando pouco, huma infamia, que nem todo o mar em infinitos seculos
+poderá lavar.
+
+Sabemos muito bem, disse Crates, que o interesse do traidor costuma
+commummente ser igual ao do que entregou Gibraltar; mas Gibraltar ficou
+perdido. Pelo que mostrai, como se podem evitar os menos traidores, que
+for possível, em pontos taõ delicados.
+
+Huma boa educaçaõ publica, respondeu Cataõ he o primeiro remedio: depois
+disto evitar-se o mais que poder ser tropa mercenaria. Assim he,
+disse Cesar, porque, quando todos os Cidadãos em Roma eram soldados, nem
+ao imperio faltava defeza, nem o povo morria de fome. Em tempo de guerra
+corria toda a gente necessaria, no fim cada qual vinha para sua casa.
+Desta maneira o ser soldado naõ se oppunha entaõ nem a ser estudante,
+nem lavrador, nem General.
+
+Tambem os soldados Portuguezes antigamente, disse Diogo de Teive, eram
+lavradores, e homens, que tinham interesse na conservaçaõ de suas
+familias, e de seus bens: homens capazes, que de suas lavoiras hiam para
+a guerra, e da guerra para as suas lavoiras. Naquelle ditoso tempo naõ
+se prendiam homens vadios, e facinorosos, senaõ para o supplicio; e
+ainda que se admitisse algum destes por ser valoroso, elle se fazia
+honrado, pelo desempenho dos seus deveres.
+
+Por isso, continuou Cataõ, temos visto por aquelle telescopio, que
+ninguem até agora entrou em Portugal com maõ armada, que mais hoje,
+mais amanhã naõ sahisse com a aza a rastros.
+
+Eu estava admirado do que ouvia, e já gostava de ser bom estadista (naõ
+como os do caffé, aos quaes aborreço de morte, quero dizer as suas
+loucuras) por isso, estando muito familiarisado com a presença de Carlos
+Magno, que me tinha havia tanto tempo ao pé de si; com o mais profundo
+respeito; porque naõ costumo abusar do favor, que se me faz, assim
+perguntei: Como, Senhor, póde neste tempo, em que tanto se necessita de
+trópa bem disciplinada, deixar de haver soldadesca paga?
+
+Cataõ logo entrou a rosnar; mas em tom que nada percebi, com tudo, se
+fordes bom Logico, podeis fazer huma boa conjectura.
+
+Sua Magestade, o Illustre Imperador Carlos Magno respondeu-me com a
+mesma affabilidade, com que costumam os Monarcas Portuguezes fallar ao
+seu povo, e aos estrangeiros, o que tudo observei quando estive em
+Lisboa; e Teive havia confirmado com milhares de provas; o qual era
+testemunha sem suspeita. O plano, proseguio o heróe famoso, para haver
+muitos soldados fiéis, e valorosos com bem moderada despeza, he o
+seguinte: Tem por exemplo huma Potencia 60$000 homens pagos, tenha só
+12$000: estes sejam bem escolhidos. Alistem-se agora 200$000:
+repartam-se em Regimentos: venham da tropa paga officiaes sabios, e
+honrados para cada regimento. Tenha-se muita attençaõ aos destrictos
+para se ajuntarem os soldados em os dias desoccupados a fazerem
+exercicio. Dê-se aos pobres fardamento de tres em tres annos: a todos
+sem excepçaõ a sua arma. Fóra do exercicio naõ se vistam as fardas,
+tirando aquellas, que cada qual quizer comprar, &c. Naõ se pague senaõ
+em guerra, ou actual serviço. Naõ se falte com o premio aos benemeritos.
+Entaõ siga cada hum o modo de vida que bem lhe parecer. Mas quando este
+seja incompativel, naõ se deve vexar ninguem. Ora dizei-me deste
+modo faltará quem defenda a sua Patria?
+
+E seraõ, respondeu Cesar, menos as miserias publicas, e naõ ficaraõ as
+terras a monte, e naõ haveraõ tantos ociosos, e...
+
+Naõ será preciso, interrompeu Cataõ, prender homens, e assim
+constrangelos a jurar bandeiras, as quaes por esse motivo lhes haõ de
+ser sempre odiosas.
+
+Fallando assim Cataõ, e estando Carlos Magno virado algum tanto para
+elle: aproveitei-me da occasiaõ, e espetei o bico na orelha de Crates
+Mallotes, que estava á ilharga de Cesar; perguntei-lhe muito baixinho:
+Com que Bullas está aqui o açoite dos infiéis?
+
+Já te esqueceste (respondeu-me em o mesmo tom) do que te disse
+Quintiliano lá no congresso, quando se recommendou a Grammatica da
+lingua materna? Entaõ lembrei-me da Grammatica Tudesca; e ao mesmo tempo
+da brevidade, ou fraqueza da memoria humana. Mas debalde se fallou taõ
+baixinho; porque o Imperador tudo ouvio, e disse mui expeditamente:
+Sim, fui Grammatico, e naõ temos medo aos Filósofos da moda. Tu faze
+pelo ser, para que algum dia tenhas lugar aqui comnosco.
+
+Elle que acabava de fallar, chega Manucio, Braz Pico, Laurenti, Crinito,
+Linacro, o Barbadinho, Antonio Pereira, e mais vinte Escritores
+Portuguezes, e pediram, compozesse eu huma Grammatica Filosófica da
+Lingua Portugueza; no que agora trabalho, mas espero de Lisboa humas
+tres que me dizem, estaõ a sahir a publico, para dellas me aproveitar
+sem crime de furto.
+
+Parece-me escusado dizer, com quanto respeito estes Grammaticos, que me
+vieram fazer a sua recommendaçaõ, tractaram aos Imperadores; porque já
+vos disse muitas vezes, que alli naõ ha gente mal criada.
+
+Em fim, promettendo eu áquelles amigos pôr todas as minhas forças por
+satisfazer ao seu empenho, disse Crates Mallotes: Vai agora ver o
+que vai; chega-te ao telescopio. Subi, inclinei o olho, e Sanches
+chegou-me o canudo ao ouvido, e entaõ vi, e ouvi hum grande ajuntamento
+de ratos a chiar: e logo entráram ás focinhadas huns aos outros, como
+damnados. Nesse tempo veio-me aos olhos hum reflexo de luz de tal
+qualidade, que me obrigou a fechalos; mas quando os tornei a abrir, já
+nem vi mirante, nem nada: só me vi na regiaõ das aves sem saber que rumo
+seguisse, nem para onde me voltasse.
+
+
+
+
+FECHO DA OBRA.
+
+_Conta Gúliver como chegou á patria: como foi poizar á quinta de hum
+Lord: como foi tratado: como deixou de ser passaro pelo toque da Carta
+de Crates: o seu Theor, &c._
+
+
+Sahindo eu daquelle magestoso edificio sem saber de que maneira, assim
+como naõ soubera o modo com que á ilha arribára; naõ tive entaõ remedio,
+senaõ voltar o rabo para o Norte, e o bico para o Sul; porque naõ
+avistava nem palmo de terra: agua, e ceo, eram os unicos objectos de
+meus olhos. Estive hum pouco agitado dos mais tristes pensamentos,
+lembrando-me a desgraça de Icaro; mas adoçava estes amargos com o
+perfeito conhecimento de naõ terem sido as minhas azas feitas de cêra
+pelos homens; sendo pelo contrario seus autores defunctos sabios, e
+honrados, inimigos de traidores.
+
+Assim animado desta esperança verdadeira, cujo fim naõ foi doloso, vim
+voando á ventura, por cima de mares immensos, que ví em differentes
+partes coalhados de navios, que me pareciam formigas d'aza. Porém
+chegando á altura de Londres, que muito bem conheci, e que me creou hum
+novo coraçaõ, entrei a descer por huma perpendicular, e cada vez se me
+hiam fazendo maiores os edificios, os quaes ao principio me pareciam
+conchas de mariscos, ou de caracois brancos.
+
+Cheguei em fim á patria; mas _ad cautelam_ para evitar algum insulto da
+plebe, fui poisar á quinta de hum Lord, que fora muito meu amigo em
+outro tempo, e que ainda hoje o he. Porém eu chegado ahi, senaõ quando
+todos os rapazes, e raparigas da fazenda, me vieram com páos dar as boas
+vindas. Como pois eu era hum passaro taõ desusado, como manso, me
+foram tangendo para casa de seu amo: nem eu queria outra coisa. Acudio
+elle, e ficou satisfeito do presente. Eu tive minhas tentações de lhe
+dizer quem fosse; mas contive-me; porque julgaria, que era algum diabo,
+ou alguma bruxa pelo menos. Deste modo segui o systema de mudo, até que
+algum defuncto me absolvesse de passaro, e me restituisse a figura de
+homem.
+
+Assim que ví o Lord entrei a fazer-lhe festa, como pude, isto he, com o
+rabo, e dando minhas correrias; mas de sórte que elle conhecesse que eu
+era animal domestico, por evitar alguma peia, &c. O amigo estava-se
+babando: logo mandou vir huma escudélla de páu, cheia de legumes,
+lembrei-me logo de Pythagoras, e do riso de Teive; e conheci-me
+comprehendido em o mesmo crime; porque havia sido pouco devoto daquella
+fructa (por má creaçaõ, eu o confesso) e entaõ senti huma tamanha rafa,
+que até devoraria a propria gamella. Mas todavia fiz-me grave até ás
+horas de jantar, que me pareceram mais compridas do que a noite em
+que Alcmena dormio com Júpiter; cuidando ella ter em casa o seu Anfitriaõ.
+
+Neste dilatado tempo recebi milhares de visitas, que me fizeram hum
+grosso circulo, bem como a plebe de Lisboa costuma fazer a hum preto,
+quando esfola algum cavallo; do que sou testemunha de vista. Tocou
+finalmente a jantar, e eu que estava já aborrecido daquella gentalha, e
+morto de fome, rompi por onde pude, fazendo caminho com o bico, o qual
+fui logo espetar no prato do Lord, que naõ levou a mal o meu
+desembaraço, antes mo encheu humas poucas de vezes de boas viandas.
+Tambem repiquei em o copo; mas com muita moderaçaõ. Desta maneira tirei
+o ventre de miseria: e regallei-me em quanto fui ave. Eu sahia pela
+quinta, e tornava: e naõ havia mimo, que se me naõ fizesse.
+
+Ora eu cheguei áquella boa hospedagem ás déz horas do dia 2 de Janeiro
+de 1800, e seriam onze do dia 13 do dito, estava eu ao Sol (que
+durou bem poucos minutos) estendendo a aza, e compondo a plumagem: senaõ
+quando chega huma ave, que me parecia galinholla, com hum cartaz no
+bico, e deixando-o cahir lá do alto sobre mim, fiquei Gúliver como
+dantes, vestido em trajes de marujo, o que eu certamente nunca fui, mas
+assim vestia em meus embarques. As pennas lá fugiram para o corpo do
+Correio: e talvez tornem a ser convertidas em as artes de que já fallei.
+
+Estando eu todo concho a abrir a carta, chega de repente o caseiro, e
+diz: Quem deu a você licença de aqui entrar? Senhor, respondi, achei a
+porta aberta. Naõ póde ser, replicou, vocês trepam pelas paredes como
+gatos. E apostamos, que você vem com o cheiro em o passaro de meu amo?
+Ah! Sim hum passaro mui esquipatico, disse eu, ahi anda em o cima da
+estrada a querer saltar para dentro. Vamos fóra eu lho ajudarei a
+enxotar para cá.
+
+O pateta, que isto ouvio, sahio a correr; e eu apoz elle. Metti-o em
+huma travessa, e safei-me por outra bem para longe a ler a recommendaçaõ
+dos amigos defunctos, cujo theor he o seguinte, em pergaminho de boa
+letra, que naõ dou nem por hum milhaõ de libras estrellinas.
+
+
+
+
+CRATES MALLOTES
+
+Exembaixador do Rei Attalo, Exprofessor de Letras Humanas em a
+Cidade de Roma, Presidente Honorario dos Grammaticos defunctos
+
+
+_Ao nosso amado Hospede Roberto Gúliver deseja muita Fortuna._
+
+
+NAÕ te posso explicar, amigo Inglez, as saudades, que deixaste em a
+nossa ilha, e quanto todos ficáram namorados do teu bom procedimento;
+por isto, e tambem pelo bom affecto com que te tractámos, he necessario,
+naõ te esqueceres das nossas recommendações, para que, depois do golpe
+da Parca, te associes comnosco. Muito bem observaste quantos homens
+grandes aqui habitam, Imperadores, Bispos, Condes, Generaes, &c. Depois
+disto aviva lá no mundo a nossa memoria, para naõ esquecer de todo:
+o que te será pouco custoso, patenteando os justos açoites, que nos
+vistes descargar sobre o pedantismo deste seculo. Mas os Grammaticos
+Portuguezes, de quem muito nos prezamos, e os Hespanhoes, querem, que tu
+dívulgues as nossas lições em Portugal; naõ por necessitar mais dellas,
+do que as outras nações, mas porque lá ainda ha muitos sabios, a quem
+haõ de ser bem gostosas. Naõ temas nada: tudo o que disseres, he nosso,
+que nos lastimamos muito dos destemperos da humanidade. Se em fim por
+tamanha caridade houver quem te morda, de cá irá o medicamento, sem que
+pagues porte ao Correio. O portador desta he Despauterio, e pódes dizer
+áquelle amigo, que elle já naõ ralha dos outros, e que siga este
+exemplo. Ilha dos Mórtos 12 de Janeiro de 1800.
+
+
+Apenas lí este passaporte, corrí como huma lebre a casa do Lord, que naõ
+sabia o que me fizesse. Logo me deu vestido, dinheiro, tudo.
+Mandou-me sem perda de tempo pôr mãos á obra; e depois de a lêr
+carregou-me de elogios: e vai-se a imprimir por sua conta. Eu estou mui
+gostoso da sua approvaçaõ, por ser hum homem doutissimo, que naõ declaro
+para naõ cahir em incoherencia, que he o peor defeito de quem escreve.
+
+
+FIM.
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica
+Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA ***
+
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+Produced by Mike Silva
+
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+one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
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+set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
+copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
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+Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
+charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you
+do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
+rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose
+such as creation of derivative works, reports, performances and
+research. They may be modified and printed and given away--you may do
+practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
+subject to the trademark license, especially commercial
+redistribution.
+
+
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+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
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+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
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+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
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+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
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+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
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+any statements concerning tax treatment of donations received from
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+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
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+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+ <title>Crates Mallotes, por Robert Guliver</title>
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+
+
+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos
+Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+
+Title: Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo
+
+Author: Robert Guliver
+
+Release Date: November 12, 2010 [EBook #34287]
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+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA ***
+
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+
+Produced by Mike Silva
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+
+
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+
+</pre>
+
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="capa">
+<p style="font-size: 1.8em;">CRATES MALLOTES</p>
+
+<p style="font-size: 1.4em;">OU</p>
+
+<p style="font-size: 1.6em;">CRITICA DIALOGISTICA</p>
+
+<p style="font-size: 1.4em;">DOS GRAMMATICOS DEFUNCTOS</p>
+
+<p style="font-size: 1.4em;">CONTRA A PEDANTARIA DO TEMPO,</p>
+
+<p>ESCRITA E PUBLICADA</p>
+
+<p style="font-size: 1.4em;">POR GULIVER</p>
+
+<p><em>Que chegou ha pouco da outra vida.</em></p>
+
+<p><em>Obra taõ divertida como interesante aos curiosos, e amantes do bom
+gosto.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:left; font-size: small; border-top: solid 1px #000; border-bottom: solid 1px #000;"><em>Praeterea, ne sic, ut qui jocularia, ridens</em><br>
+ <em>Percurram: quamquam ridentem dicere veruim</em><br>
+ <em>Quid vetat?</em>          Horat. Sat. <small>I</small>. do L.
+ <small>I</small>.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="font-size: 1.6em;">LISBOA,</p>
+
+<p>ANNO M. DCCC.</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">Na offic. de Joaõ Procopio Correa da Silva,</p>
+
+<p>Impressor da Santa Igreja Patriarcal.</p>
+
+<hr>
+
+<p><em>Com licença da Mesa do Desembargador do Paço.</em></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="font-size: small; margin: 15%; border: dotted 3px #000; padding: 1em;">
+ <p><em>Non semper ea sunt; quae videntur: decipit<br>
+ Frons prima multos: rara mens intelligit,<br>
+ Quod interiore condidit cura angulo.</em></p>
+
+ <p style="text-align: right;">Phaed. Prol. do L. IV.</p>
+</blockquote>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p> <span class="pn">{III}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+
+<h3>A<small>O </small>S<small>R. </small>P<small>ANTALEAÕ
+</small>G<small>ONÇALVES </small>S<small>ALGADO</small><br>
+<small><small>DAS </small>B<small>ARROCAS</small><br>
+R<small>OBERTO </small>G<small>ULIVER OBSEQUIOSAMENTE SAUDA.</small></small></h3>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+
+<p class="ni"><em><big>P</big>Orque meu avô, que em paz descance, costumava gastar huma boa parte das
+compridas noites do Inverno ao seu lume, elogiando muito a pessoa de V. m. e
+fallando sempre no seu prestimo, e cançasso no serviço dos amigos: e tambem
+pela justa paixaõ, a qual, como Portuguez velho, por muitas vias sei, pela sua
+naçaõ naõ cessa de mostrar: tudo isto me obriga a dar-lhe o incommodo de
+concorrer com todos os seus bons officios, para que se imprima o mais breve
+este livrinho, parto dos Grammaticos defunctos contra a</em> pedantaria
+<em>do</em> tempo: <em>em o qual livro achará V. m. as verdades mais
+importantes, naõ forjadas neste, mas sim no outro mundo, donde ha pouco cheguei
+a salvamento. Naõ quero todavia, que a sua bolsa padeça detrimento; por
+isso<span class="pn">{IV}</span> que o portador entregará 50 libras
+estrellinas: e, se mais for preciso, mais irá: nem seria necessário tanto, se
+eu naõ quizesse, que a Ediçaõ fosse em tudo completa, e que se estampassem 6000
+volumes. Receba pois esta obra, como toda consagrada aos merecimentos da sua
+veneranda pessoa: e peça-lhe encarecidamente, faça por aqui aprender a ler seus
+netos; porque assim, naõ duvido, terá a satisfacçaõ de os ver em sua vida os
+melhores doutores; por isso que naõ lhes falta esperteza, do que estou bem
+inteirado. Deos guarde a V. m, muitos annos.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><em>Londres 25 de Fevereiro de 1800.</em><span class="pn">{V}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>PROLOGO.</h2>
+
+<p class="ni"><big>Q</big>Ualquer que seja o estado, ó amicissimos Leitores, em que a sórte tenha
+collocado o homem, nunca já mais o pode dispensar de Fazer bem aos da sua raça:
+foi este devêr gravado no coraçaõ humano pelo dedo da propria Natureza; nem taõ
+pouco o Author Supremo lhe permittio a feia liberdade de derribar os alicerces
+mais seguros da ordem social. Estes motivos, julgo, obrigáram a meu avô a fazer
+suas viagens a differentes ilhas, donde vos trouxe bellos, e interessantes
+documentos, os quaes, a meu ver, muito vos aproveitariam, se bem trabalhasseis
+pelos entender. Eu pois naõ querendo deixar só em taõ louvavel projecto hum
+illustre progenitor, que honrou ainda mais a sua naçaõ, que a sua familia, fui,
+depois de alguns estudos sérios o unico patrimonio, que recebi de meu pai,
+passear pelo mundo, a fim de<span class="pn">{VI}</span> recolher os fructos,
+que a minha terra naõ houvera produzido. Agitado por isso destas boas
+intenções, viajei por todas as partes do orbe; e lá virá tempo, se a Parca o
+quizer, que eu deleite a vossa curiosidade com bocados bem gostosos. Entre
+tanto desfructai estas bem adubadas lições dos Grammaticos defunctos, que vos
+trago da ilha dos Mortos, á qual apportei naõ sei como, depois de haver
+naufragado dois dias antes, junto da Arcadia. Naõ me foge ser este presente bem
+digno da minha amada patria, e confio, que ella naõ rejeite as provas mais
+sinceras do meu affectuoso coraçaõ; ainda que por outra parte naõ desconheço
+mais quereria, que eu a mettesse de posse da dita ilha; mas naõ podendo ser a
+sua conquista senaõ depois da morte, só lhe dou o que cabe em a minha alçada:
+isto he, lições mui precisas, que a benignidade de Crates Mallotes, e de outros
+Grammaticos fallecidos muito me recommendou; e as quaes eu terei sem algum<span
+class="pn">{VII}</span> rebuço, e com a mesma franqueza de vos manifestar; já
+por ter lido isto expressamente mandado, como vereis, por gente da outra vida,
+com quem naõ se deve brincar; já por ser contra o meu decóro naõ pizar a feia,
+e çuja lisonja com os mesmos pés que correram pelas ingenuas provincias da
+eternidade.<span class="pn">{VIII}</span></p>
+
+<p> <span class="pn">{9}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1>CRATES MALLOTES.</h1>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>DIALOGO I.</h2>
+
+<p class="sinopse"><em>Acha-se Gúliver depois de seu naufragio deitado em huma cama de penas;
+levanta-se, fica vestido com ellas: he levado ao palacio de Crates Mallotes:
+falla-se em a decadencia das Letras: estabelece Teive tres causas de pedantaria
+geral: nomeia Crates para cada huma seu relator, &amp;c.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>T</big>Inha amanhecido o dia 27 de Dezembro de 1799, passados já quasi 23 annos,
+que havia sahido dos patrios lares, e para onde vinha navegando: seriam tres da
+tarde, quando se levantou pelo Sul huma nuvem pardacenta,<span
+class="pn">{10}</span> que em breve espaço vestio o Ceo de negro, e logo o
+vento entrou a dar horrendos berros, os quaes converteram os mares em
+elevadissimas montanhas, cujas fraldas eram medonhas cavernas: ferviam os
+alaridos; mas a fervura pouco durou; porque a tempestade correu veloz, fez em
+migalhas toda a mastreaçaõ, o mar de Arcadia engolio o casco do navio, e
+sepultou em suas malvadas entranhas os meus amados companheiros. Eu andei
+abraçado com hum pedaço de mastro, dois dias, segundo penso, feito boia; no fim
+dos quaes cheguei quasi defuncto áquella parte da ilha dos Mortos, que os
+Grammaticos habitam. Naõ sei dizer como ahi apportei; porque só me lembro de
+resuscitar no meio dos Grammaticos, que já morreram, cuja caridade, e
+benevolencia vou apregoar para confusaõ dos ingratos de que o mundo está cheio.
+He pois o caso: mal hia eu abrindo os amortecidos olhos, senaõ quando vejo
+Sanches todo arregaçado a applicar-me varios remedios, e ninguem dizia nada, eu
+tambem<span class="pn">{11}</span> fiquei callado; porém nada me escapou:
+porque reparei me haviam deitado em hum leito de negro evano, enterrado em
+plumas de aves desconhecidas, no meio de hum portico de soberbas columnas, o
+qual servia de fachada a hum palacio taõ magnifico, que bem conheci naõ ser
+feito por braço mortal, cujas obras pelos erros, e defeitos, logo se daõ a
+conhecer.</p>
+
+<p>Assim estava medindo com os meus botões o edificio dos mórtos, quando
+Sanches observando hum e outro pulso, disse: <em>Desta estás çafo.</em> Eu
+porém, que naõ estava acostumado a ouvir fallar defunctos, metti a viola no
+sacco. Mas o Francez Despauterio, como quem quiz mostrar o pique da sua naçaõ
+contra a Hespanhola, disse com hum rizo Sardonico, muito gosto, Sanches, de vos
+vêr de Grammatico feito Medico. Já no mundo (tornou o sabio Brocense em hum
+tom, que me regalou) fui o Medico, que curou as doenças literarias do teu paiz:
+o meu nome lá anda na boca<span class="pn">{12}</span> dos eruditos; o teu na
+dos pedantes.</p>
+
+<p>Entaõ Despauterio ficou de queixo cahido: todo o congresso bateu as palmas,
+e carregou de vivas o Principe dos Grammaticos, e eu animado com a galhofa
+agradeci-lhe muito a caridade com que me tratou: e fiquei desde entaõ senhor de
+mim de tal feiçaõ, que me parecia, já naõ ser homem de Inglaterra: de maneira
+que sem ceremonia nenhuma saltei pela cama fóra; mas quanto naõ fiquei
+maravilhado, quando me vi vestido das mesmas pennas, em que, pouco havia,
+estive deitado! Fiquei pois com huma beca, como de Desembargador, e naõ cessava
+de me mirar, assim como fazem os casquilhos no meio das ruas; porém he certo
+que eu naõ obrava assim por asneira, como elles. Toda a minha admiraçaõ era ver
+hum vestido feito por si mesmo sem tezoura, nem agulha de alfaiate. Antonio
+Nebrixa conheceu o meu espanto, e disse: Aqui naõ admittimos homens, que fazem
+officio de mulher, e subministram ao luxo mundano<span class="pn">{13}</span> o
+ultimo refinamento, ajudando os teares da tua naçaõ a esgotar quanto dinheiro
+as outras tem. Fiquei envergonhado, e elle conhecendo o meu pejo, virou-se para
+a turba, e disse: Aonde está Linacro, que naõ vem dar as boas vindas ao seu
+compatriota? Logo appareceo o Grammatico Inglez, de quem recebi aquelles
+generosos cortejos, que de homem taõ douto devia esperar. Entaõ fez D. Maximo
+de Sousa certo signal, e fui levado em procissaõ para o palacio.</p>
+
+<p>Logo que ahi entrei, espetei os olhos em hum velho venerando, o qual estava
+sentado em o segundo salaõ em huma cadeira toda cravejada de brilhantes
+carbunculos; em cujo espaldar se viam as armas do Rei Attalo, de quem havia
+sido Embaixador. Ajoelhei, e elle virou a cára para a banda. Disse-me entaõ
+Estevam Cavalleiro: Aqui naõ se gosta de lisonjas, faze o que vires fazer aos
+mais. André de Rezende, que estava ao pé, disse-me: Todos aqui estamos
+assentados: aquelle he verdade está com mais<span class="pn">{14}</span>
+distinçaõ, por ter sido o primeiro Mestre, que Roma teve, Crates Mallotes se
+chama.</p>
+
+<p>Entaõ eu pedi licença para fallar: ao que todos os que estavam perto de mim,
+responderam, que naõ só pelos merecimentos de meu avô, mas pelos proprios, os
+quaes valiam seiscentas mil vezes mais que os alheios, podia eu dizer o que bem
+quizesse. Abaixei a cabeça pelo obsequio, e disse: Se bem me lembro, este homem
+foi Grego, e naõ sei, porque recebe aqui as honras de primeiro contra outros da
+Grecia muito mais antigos que elle? Assim he, disse Sanches, mas como os
+Romanos venceram os Gregos, e ficaram senhores do terceiro periodo das Letras,
+tambem sempre respeitaram o seu primeiro Mestre: e tendo o imperio Romano dado
+leis a todo o mundo, ficou este com os seus discipulos nesta Ilha ainda
+recebendo as honras do Magisterio: e nós todos respeitamos muito as suas cãs.
+</p>
+
+<p>Quando elle assim fallava, vi huma<span class="pn">{15}</span> nuvem de
+Grammaticos Romanos, que o Barbadinho nomeava por seus proprios nomes, que me
+naõ eram novos pelos haver lido em Suetonio <em>de Illustribus
+Grammaticis</em>. Notei com tudo tres turmas differentes, a saber, a primeira
+dos Grammaticos antigos, isto he, desde o fim da segunda guerra Punica até o
+seculo X. da era vulgar: outra dos velhos, isto he, desde o seculo X. até o
+XVI. a ultima dos modernos, isto he, desde entaõ até hoje. Porém muitos dos
+modernos estavam misturados com os velhos; e disse-me Porretti, que era por
+terem seguido as mesmas opiniões. Tambem ouvi em outro salaõ hum grande
+susurro, e disse Cataldi, serem os Grammaticos antiquíssimos, de quem naõ havia
+memoria no mundo, e que por isso viviam solitarios.</p>
+
+<p>Cuidei, disse eu, que a Grammatica naõ era taõ antiga: he mais (respondeu
+Carlos Tobalduzio) do que os pedantes pensam: mas sentemo-nos, que para isso já
+o Mestre fez signal. Logo que todos se assentaram, e eu ao<span
+class="pn">{16}</span> pé de Sanches, poz Crates Mallotes huns oculos no nariz,
+e avistando-me, diz: Tambem por cá, meu Inglez? Eu me admirava já de naõ
+apparecer por aqui algum marinheiro da Grã-Bretanha mas vamos adiante, que vos
+parece a pedantaria deste chamado seculo das luzes? Ha 23 annos, respondi, que
+sahi da minha Patria, e Portugal foi a primeira terra, que depois da minha
+conheci: E entaõ que viste por lá? Florecer as letras com muita vantagem, o
+commercio; vi manufacturas, taõ boas, ou melhores, que as do meu paiz.</p>
+
+<p>Assim foi, disse Crates, mas para que saibais, quanto agora lá vaõ decahindo
+as letras, para que eu naõ falle em outras nações que finalmente estaõ
+prostradas na mais furiosa ignorancia, vos informará o respeitavel Diogo de
+Teive, e outros Portuguezes, e estrangeiros, os quaes comnosco vivem. Porque,
+naõ obstante as justas providencias, que para remedio deste mal, ha dado o
+melhor e o mais pio de todos os Monarcas<span class="pn">{17}</span> do orbe,
+necessariamente havia de fazer alguma opposiçaõ á piedade de seus desejos a
+furiosa torrente de desgraças, que ha onze annos, tem alagado de sangue, e de
+maldades a infeliz Europa. Portugal, talvez pela sanctidade de seu Augusto
+Soberano, tem padecido bem pouco; ahi ha mais sabios, melhores soldados, mais
+gente honrada em todos os estados, do que naçaõ alguma possue. Por isso, meu
+Inglez, applicai as nossas justas censuras, ainda com mais razaõ, a todos os
+póvos da terra; e confessai isto mesmo lá no mundo, para credito da nossa
+honra, e prova da nossa verdade.</p>
+
+<p>Eu desempenharei, diz Despauterio, a tua commissaõ, nem outro melhor para
+isso acharás. Callai-vos, repondeu Mallotes, todos sabem que fostes hum
+gritador contra todos os Grammaticos de teu tempo, quando a tua Arte he hum
+<em>cahos</em> muito similhante á massa informe, que existia <em>Ante mare
+&amp; terras</em>.... O Francez vaidoso ficou fazendo trejeitos;<span
+class="pn">{18}</span> mas por entaõ ficou callado.</p>
+
+<p>Todos gostaram muito do sabonete do velho; porém Diogo de Teive com toda a
+civilidade principiou dizendo: Ainda que Despauterio tenha milhares de defeitos
+em a sua obra, naõ deixa todavia de ter algumas coisas interessantes, de cujo
+numero he a definiçaõ de Grammatica: <em>Omnium scientiarum sons
+uberrimus.</em> E certamente, se o dom da palavra he hum dos maiores que do Ceo
+recebeu a humana geraçaõ, e porque se differença dos brutos animaes, como
+poderiam sem este dom os homens viver em sociedade? He por esta via que elles
+huns aos outros communicam os seus desejos, e sentimentos, a fim das
+utilidades, e interesses da vida social. He logo preciso que o homem saiba
+fallar; pois senaõ souber, de que lhe valem todos os seus conhecimentos? E naõ
+será por conseguinte a primeira de todas as disciplinas aquella de fallar, e
+escrever sem erro?<span class="pn">{19}</span></p>
+
+<p>Quem o duvida? disse Vossio, por isso he que os Gregos, Mestres do genero
+humano inventaram a Grammatica. A isto tornou Crates Mallotes, abaixando a
+cabeça: Naõ ha duvida que de nós a receberam muitos póvos; mas já antes de nós
+os Hebreos a conheceram.</p>
+
+<p>He verdade, continuou Teive, que os sabios de todos os tempos muito bem se
+persuadiram do interesse desta arte; e póde-se dizer que ao homem, o qual sem
+ella quizer ser letrado, acontecerá o mesmo, que ao cégo sem moço, nem bordaõ,
+correndo por montes, e rochedos.</p>
+
+<p>Mas os homens deste tempo, diz Pedro Simaõ Abril, nenhum caso fazem della:
+todo o que era tido por honrado em o meu, mandava seus filhos ao Latim; e desta
+maneira ficavam pelo menos com alguma instrucçaõ de Grammatica geral.</p>
+
+<p>Sim, disse o Barbadinho, naõ ha muitos annos, que os rapazes hiam leguas
+aprender Latim, hoje naõ faltam Mestres, sem terem a quem ensinem.<span
+class="pn">{20}</span> Por isso, disse Agostinho Saturni, ninguem vê senaõ
+casquilhos, mettidos a espertos, sem que ao menos saibam ler.</p>
+
+<p>Naõ se estudando Grammatica, proseguio Teive, tambem fica abandonada a
+Logica, a Eloquencia, e os mais estudos, que allumiam o espirito do homem: e
+daqui vereis quanto vaõ decahindo as letras, sendo taõ poucos os que a ellas se
+applicam.</p>
+
+<p>De França, disse Lopo Gallego, veio o exemplo desta pedantaria, deste
+desprezo das letras. Aqui se levantou o P. Manoel Alvares, todo inflammado, e
+disse: Depois que o grande Rei D. José reformou os Estudos, e reprovou a minha
+arte, ficou a Grammatica Latina bem facil de aprender; mas a pezar desta
+reforma vejo cada vez mais pedantes, e estadistas de café.</p>
+
+<p>He verdade, disse Fr. Theotonio de Lisboa, que as intenções do nosso Rei
+foram todas as mais heroicas; Portugal no meio deste seculo poz-se<span
+class="pn">{21}</span> todo luminoso; e os sabios cresciam em tanto numero,
+quanto era o das mercês, e premios, que de taõ alto Senhor recebiam. Estas
+luzes porém vaõ-se diariamente apagando pelas borrascas tenebrosas, que ha dez
+annos pegaram, e a ignorancia corre appressadamente a pôr no cachaço dos
+humanos a sua canga de ferro.</p>
+
+<p>Como póde ser, disse eu, que as letras tenham decahido tanto em Portugal? Ha
+23 annos, que lá estive, e parecia-me ter sabios para ensinar todos os povos do
+mundo.</p>
+
+<p>Ainda hoje, respondeo Martinho Crusio, tem em sua pequenez mais eruditos que
+naçaõ alguma; porém a mocidade vai perdida: e esta praga he geral, ainda
+naquelles povos, que se jactam de mais espertos.</p>
+
+<p>E que vos parece, companheiros, disse Sevio Nicanor, a persuasaõ ridicula de
+certas cabeças allucinadas, que attribuem á sciencia as revoltas deste seculo?
+Á ignorancia,<span class="pn">{22}</span> respondeo Aurelio Opilio, he que
+deveram ser attribuidas.</p>
+
+<p>Dizeis bem, continuou Teive, esse he hum sophisma <em>non caussae pro
+caussa</em>. Porque pela falta de sabios perdeu-se Athenas: o imperio Romano
+espirou em a noite da ignorancia: França nunca foi taõ florescente, como em o
+tempo de Luiz XIV.: Hespanha em o dos Reis Catholicos. Estas provas saõ de
+facto, e só por outras da mesma natureza podem ser contrastadas.</p>
+
+<p>Joaõ Despauterio, que vio fazer a França aquelle elogio, poz-se todo tezo, e
+disse, que ella havia sido a mãi dos sabios; Crates Mallotes porém, que já o
+mandára callar, poz-se a dar cuadas, e parecia huma vibora. Vendo Jerardo Joaõ
+Vossio o velho assanhado, disse: Aqui naõ he lugar de enganos, bem sabeis que
+os Francezes nunca passaram de Contrabandistas das letras. Todos sabem que
+elles tem vertido o trabalho dos mais povos, e que muitos inventos<span
+class="pn">{23}</span> alheios os tem vendido por seus.</p>
+
+<p>He isso taõ certo, diz o grande Joaõ de Barros, que até a invençaõ da
+maquina aerostatica fizeraõ sua, quando foi de hum clerigo Portuguez, que sendo
+entaõ tido por Magico padeceu seus detrimentos.</p>
+
+<p>De vagar, de vagar, disse Lancelot, senaõ temos inventores temos
+aperfeiçoadores, o que he nada menos estimavel. Vede Maxilon, e Bordalue, e
+reparai quanto he hum semelhante a Cicero, e o outro a Demosthenes. Confesso,
+disse Barros, souberam bem aproveitar-se da Eloquencia Grega, e Romana. He na
+verdade grande admiraçaõ hum imperio taõ vasto produzir hum punhado de homens
+grandes! Mas dizei-me, que vedes agora por lá, senaõ systemas imaginarios, que
+estando armados no ar hoje se levantam, ámanhã se dissipam, bem como as nuvens,
+que tem os mesmos alicerces?</p>
+
+<p>Esta disputa hia sendo bem gostosa, e tratada com calor; mas Crates<span
+class="pn">{24}</span> Mallotes deixou cahir a vizeira, e tudo ficou em
+silencio: e olhando para huma, e outra parte; a essas desputas, disse, saõ
+impertinentes; já vos mandei, Diogo de Teive satisfazer a esse Inglez. Entaõ o
+Illustre Humanista continuou, dizendo: A causa da decadencia das letras, ou
+para o dizer melhor, as causas da pedantaria deste tempo saõ tres: a primeira
+saõ sem duvida os pais de familia, que em vez de educarem filhos, que honrem a
+lua patria, criam ou leões que a devoram, ou porcos, que a çujam: a segunda saõ
+os Mestres idiotas, e charlatães, que vam formando discipulos a si similhantes:
+a ultima saõ os máos livros didaticos por onde muitos ensinam a mocidade.</p>
+
+<p>Todos os Grammaticos applaudiram muito a proposta de Teive, e ao mesmo tempo
+hiam cortando o discurso com as suas costumadas reflexões, e já era o susurro
+tamanho, que nada se percebia: entaõ Crates deu duas pancadas em a cadeira,
+e<span class="pn">{25}</span> fallou com palavras meigas: Bem vedes, amados
+companheiros, que esse Inglez he vosso discipulo, e que por isso he necessario
+o bom methodo para se aproveitar das vossas interessantes lições. Sou pois de
+parecer que a primeira das tres causas da pedantaria, que tu, ó Teive, taõ
+eruditamente expozeste, seja tratada por Marco Fabio Quintiliano; a segunda por
+Elio Antonio Nebrixa: a ultima por Francisco Sanches Brocense; pois que foi, e
+será sempre a honra dos escritores Grammaticos: com tudo qualquer dos outros
+poderá fallar em tempo competente para deleite deste respeitavel congresso. E
+tu, ó mortal ditoso, que tiveste a ventura de ouvir em tua vida as lições dos
+mortos, naõ percas cousa alguma, para sahires daqui com as forças precisas ao
+justo fim de bem coçares huma chusma de pedantes, os quaes com seus erros, e
+com sua ignorancia tem çujado, e envilecido as nossas provincias
+Grammaticaes.<span class="pn">{26}</span></p>
+
+<p>Abaixei a cabeça, e beijei as palmas em signal de agradecimento: e os outros
+ficaram com a boca aberta a olhar para Quintiliano, que se foi sentar em hum
+escabello, o qual estava chegado á cadeira pela parte de diante.<span
+class="pn">{27}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>DIALOGO II.</h2>
+
+<p class="sinopse"><em>Expõem Marco Fabio a primeira causa da pedantaria: erros de educaçaõ:
+bandalhices: desprezo da literatura: funestas consequencias, &amp;c.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>Q</big>Uando todos os Grammaticos defunctos estavam com a maior attençaõ, fez huma
+grande reverencia Fabio, e deu com o queixo no peito huma tamanha pancada, que
+todo o edificio tremeu, e eu de medo cahi sem sentidos; nem por certo o meu
+desmaio foi similhante aos fenicos das damas, que fingem diabruras para terem
+occasiaõ de fallarem aos casquilhos: Sanches que era bem versado em Medicina,
+logo me chegou ao nariz hum estimulante, o qual me tornou taõ esperto, e huma
+memoria taõ feliz, como podereis ir observando<span class="pn">{28}</span> em
+todo o processo destas arengas.</p>
+
+<p>Mas tornando ao proposito: Depois daquella ceremonial venia, que taõ cáro me
+custou; voltou Quintiliano successivamente a cabeça para os lados de toda a
+assembléa, do mesmo modo que fazem os Oradores em o principio de seus
+discursos; e entaõ assim principiou: He sem duvida serem os pais de familia a
+primeira causa da pedantaria. Apenas os infelices meninos nascem, logo entram a
+puchar por elles para o curral da ignorancia, e pelos caminhos do vicio he que
+vaõ arrastrando aquellas innocentes victimas para os altares da charlatanaria,
+e da maldade.</p>
+
+<p>O peor he, disse Francisco de Brito, que muitos pais ensinam aos filhos as
+mais ridiculas extravagancias, e estaõ persuadidos, que só elles sabem dar boa
+creaçaõ a seus filhos. A esses, disse Nicodemos Frischilino, a sua tolice os
+desculpa; mas nenhuma tem os que praticam todo o genero de maldades sem pejo da
+sua familia<span class="pn">{29}</span> ser testemunha, e quereram que ella
+seja virtuosa?</p>
+
+<p>Taes, disse Lucio Joaõ Scopa, com suas amoestações, conseguem o mesmo, que a
+mãi dos caranguejos, a qual mandando aos filhos, que naõ andassem ás avessas,
+elles responderam: Andai vós ás direitas, e nós vos seguiremos.</p>
+
+<p>Bem sabeis, disse Fabio, que eu fui o primeiro Mestre público que em Roma
+ensinou, e nunca cessei de clamar contra a má educaçaõ, que os pais daõ aos
+filhos; mas os homens de hoje saõ infinitamente mais culpados.</p>
+
+<p>Que Romano, disse Samuel do Prat, naõ entranhou com o seu exemplo em o
+coraçaõ dos filhos o amor da patria, e das letras?</p>
+
+<p>Ora pois, continuou Fabio, os idiotas nunca em Roma figuraram, senaõ em os
+seculos da escuridade; por isso os pais procuravam pela sciencia a fortuna dos
+filhos, e a sua.</p>
+
+<p>Mas em que pontos principalmente,<span class="pn">{30}</span> diz Elias
+Maior, peccam hoje os pais em a educaçaõ de seus filhos? Dois extremos
+viciosos, respondeu Quintiliano, saõ as causas primitivas. Huns os tratam com
+excessivo mimo, outros com excessivo rigor. Daqui nasce, serem estes
+clausurados em casa, como Freiras, e serem aquelles largados sem freio para
+onde querem. Todavia accresce a tudo o mau exemplo: porque, como a virtude,
+anda fogindo destas guerras, e destes desaforos modernos, se o menino naõ a
+encontra lá por fóra, muito menos a achará em casa, aonde nem se falla em
+Doutrina, nem em Religiaõ, nem em temor de Deos, nem amor da patria, do
+Soberano, das sciencias, &amp;c. Ora vede agora que taes doutores seraõ os
+filhos de taõ bons pais? Por isto, disse Buchnéro, o mundo está cheio de
+paraltas, e estadistas, como nunca.</p>
+
+<p>E que vos parecem, disse Barnabé de Busto, estas bandalhices da moda? estes
+çapatos de bico mais comprido, que corno de boi? Estes calções,<span
+class="pn">{31}</span> que custam mais a saccar das pernas, do que a cobra a
+largar a sua pelle? Estes dois relogios? Estes chapeos de zabumba? Por ventura
+os Romanos senhores do universo praticaram no meio do seu luxo, e das suas
+riquezas, similhantes extravagancias?</p>
+
+<p>Naõ chameis, respondeo Fabio com muita brandura, naõ chameis a isso
+extravagancias, chamai-lhe falta de bóla. Os Romanos foram muito sabios: todas
+as ordens tinham seu modo de trajar; e o mesmo homem em as suas differentes
+idades usava de vestido accommodado a cada huma dellas.</p>
+
+<p>Os nossos antigos Reis, disse André de Resende, foram inimigos declarados do
+luxo: e estavam taõ persuadidos serem estes os sentimentos de todos os seus
+vassallos honrados, que D. Affonso o Bravo deu hum grande golpe no luxo para
+adoçar a magoa publica, que nasceo das desavenças, que elle tivera com seu
+irmaõ: e o que foram os Portuguezes daquelle<span class="pn">{32}</span> tempo,
+prova-se com a batalha do Salado, cuja memoria, faz parecer, todas as que
+depois houveram, brincos de rapazes.</p>
+
+<p>Mas ainda dado, replicou Barnabé de Busto, que entre os antigos, apparecesse
+alguma vez o luxo, esse lobo faminto, que devora a honra, a virtude, e o
+dinheiro, vio-se em alguma época taõ enfeitado de redicularias como hoje? Os
+çapatos de espeto, naõ mostram quanto he romba a cabeça de quem os traz? Os
+calções de talas fariam menos deshonestos os antigos Faunos, quando dançavam
+nús em os theatros? Os...</p>
+
+<p>Basta, disse Manoel Alvares, o peor he o custo do feitio, e da peça, que
+dura tanto, como aquelle animalinho, que nasce pela manhã, e morre á noite.
+Eis-ahi a causa, diz Taberio, de huma enxurrada de caloteiros, e de meritrizes,
+que tudo varrem.</p>
+
+<p>Naõ houve seculo, continuou Manoel Alvares, nem mais farto de viveres,<span
+class="pn">{33}</span> nem mais abundante de gente honrada que o meu; ensinei
+no pateo de Santo Antaõ, e nesse tempo o ornato dos estudantes naõ passava de
+huma sotaina, e capa de baeta, assim como todo o luxo dos Cidadaõs consistia em
+huma casaca de saragoça de abas entrouxadas, e canhões de barbas até aos
+joelhos.</p>
+
+<p>Mas essas casacas, disse Quintiliano, nunca eu approvaria pelo muito panno,
+que consumiam. Naõ tendes razaõ, tornou o velho Portuguez, essas casacas
+ficavam dos avós aos netos, e vinham a ser hum respeitavel morgado das
+familias: eram as melhores insignias de hum homem honrado; nem havia precisaõ
+de outro distinctivo: hoje porém naõ sabereis differençar nem hum ridiculo, nem
+hum homem de bem, senaõ com muito trabalho.</p>
+
+<p>Dizeis bem, disse Caspar Sciopio, os homens honrados algum dia naõ andavam
+com penicos na cabeça, nem com brincos nas orelhas, salvo, se por desgraça se
+faziam escravos da<span class="pn">{34}</span> Rainha da Lidia; porque entaõ
+naõ só seriaõ capazes de fiar na roca, mas tambem de levarem huma albarda ás
+costas com muito gosto.</p>
+
+<p>He certo, proseguio Quintiliano, que os pais erram muito em consentir
+similhantes loucuras aos filhos, e ainda mais em praticalas; porque estes erros
+abrem a porta a infinitos males, os quaes perturbam a sociedade. Mas os
+procedimentos a respeito do espirito tem consequencias tanto mais funestas,
+quanto he mais attendivel a parte do homem, a qual só o póde fazer feliz, ou
+desgraçado.</p>
+
+<p>Isso he, disse Curcio Nicia, ao que menos se attende: entrega-se o menino
+commummente a huma mulher para o ensinar a ler, ou vai a escóla, ou vem Mestre
+a casa. Porém como o ensinar a ler, sendo coisa bem trivial, naõ he todavia
+para ignorantes, ahi se vai condemnar o innocente ao trabalho inutil de seis,
+sete, e mais annos, e por fim he tal a sua leitura, que faz vomitar a quem
+ouve. Perdido<span class="pn">{35}</span> este tempo, assim como havia de ser o
+resto da vida se em taes lições fosse gasto, vem entaõ Mestre Francez, já o
+moço sabe fazer seus comprimentos naquelle idioma, o pai, e a mãi se estaõ
+babando a ouvir o seu novo Monsieur. Entaõ julgam terem em casa hum sabio da
+Grecia; mas naõ sabe o <em>Padre nosso</em>!</p>
+
+<p>Isso, disse Sciopio, he só para aquelles, cujos pais tem boas mezadas, que
+dem aos emigrados, que se naõ contentam com bagatellas: que os outros quasi
+todos vaõ para o Collegio aprender Mathematica sem fumos de literatura.</p>
+
+<p>Naõ fallemos nisso, proseguio Quintiliano, quando o Lente os manda á pedra,
+entaõ conhece, que nem sabem fallar. Mas a pezar de tudo, disse Sciopio, saõ os
+chefes dos estadistas da moda: elles pelas assembleas, e pelos botiquins, de
+tudo fallam, de tudo decidem, para tudo tem bellos planos; e com o seu luzidio
+compasso tudo sabem medir. Porém estes, e muitos outros falladores similhantes,
+de<span class="pn">{36}</span> que por desgraça abunda toda a Europa, saõ huns
+fracos, e a deshonra dos racionaes, assim como o jumento he a dos brutos.</p>
+
+<p>O pai, disse Antonio Pereira, que manda seus filhos a essas sciencias, sem
+bons principios de literatura, he similhante ao que obriga o Architecto a fazer
+huma alta torre sem nenhum alicerce, a qual mais hoje, mais amanhã ha de cahir.
+Ora vede quaes seraõ as consequencias da sua quéda!</p>
+
+<p>Esse era o justo motivo, disse Antonio Feliz Mendes, de tu fazeres alardo
+das tuas artes de Grammatica Latina, quando nenhum fazias das outras infinitas
+obras, de que tambem foste autor.</p>
+
+<p>Era essa, continuou Fabio, huma vaidade digna do sabio Pereira, e teria
+feito a Portugal hum eterno serviço, se em vez do trabalho de algumas das suas
+obras, que o naõ honram, aperfeiçoasse o seu Novo Methodo, e o seu Compendio,
+para o que tinha forças de sobejo. E certo, o homem que,<span
+class="pn">{37}</span> naõ sabe Grammatica, sejam quaes forem os seus estudos,
+nenhumas Bullas o pódem dispensar de ser pedante. Como poderá perceber os
+lugares da Historia, como entenderá os authores, quem ignora a sciencia das
+palavras? Como dará o juiz a sua sentença? Como fará o Theologo as suas
+analyses.</p>
+
+<p>Mas as aulas publicas de Latim, diz mui agastado o respeitavel Pereira,
+estaõ quasi vasias de estudantes, que dizeis? Digo, proseguio o Romano, que
+toda a culpa he dos pais; e por isso vereis cada vez mais idiotas, mais
+ociosos, mais presumidos, mais gárrulos.</p>
+
+<p>He huma piedade, disse Antonio Félis, ouvir a muitos pais as causas futeis
+de naõ mandarem os filhos ao Latim. Naõ pertendemos, dizem elles, que sejam nem
+Frades, nem Clerigos: nem taõ pouco se necessita de Latim para ser bom Cidadaõ.
+</p>
+
+<p>Naõ se necessita de Latim, disse o grande Diogo de Teive todo fóra do seu
+sério, naõ se necessita de Latim<span class="pn">{38}</span> para qualquer ser
+bom homem, mas necessita-se delle para naõ ser asno. Ainda que a lingua Latina
+naõ fosse a lingua dos sabios, bastava para ser estimada o ter muitas filhas na
+Europa, que herdaram muito cabedal da sua mãi, do qual nunca já mais saberá dar
+conta quem ignorar as riquezas della. Assim he que estaõ infinitos sujeitos em
+empregos publicos, ganhando salarios enormes, os quaes nem escrevem coisa
+direita, nem sabem atar duas palavras juntas, e o mais por modestia fique no
+silencio.</p>
+
+<p>Tudo isso, disse Joaõ de Barros, he fructa deste tempo tenebroso. O mundo em
+suas mudanças tambem vai variando os seus registos, e por força alguma vez
+sahiraõ os desaffinados. Até agora tendes bem mostrado as doenças literarias;
+naõ he porém da nossa caridade deixalas sem algum remedio. Julgo pois, que se
+deve entregar o menino a hum Mestre erudito, para o ensinar bem a ler, e a amar
+a sua Religiaõ, e os seus deveres: depois disto<span class="pn">{39}</span>
+deve aprender a Grammatica da sua, lingua materna; porque, naõ embargante, que
+em a Latina se acham os principios geraes de todos os idiomas, naõ devem
+todavia ignorar-se os particulares daquelle que mais que nenhum ha de servir
+aos interesses, e ás utilidades da vida. Entaõ vá aprender Latim, e por fim
+Filosofia Racional. E sem estes subsidios escuza de avançar a outras sciencias;
+porque he melhor naõ saber, que saber mal as coisas.</p>
+
+<p>O conhecimento da Grammatica da lingua materna, continuou Fabio, tem sido
+recommendado pelos sabios de todos os tempos: nós a ensinavamos em Roma
+juntamente com a Grega, e veio assim a fazer-se a nossa linguagem taõ bella, e
+taõ universal pelo mundo, que só entre póvos selvagens, se acharia, e com muita
+dificuldade, quem naõ entendesse alguma coisa do idioma Latino. O Imperador
+Carlos Magno julgou naõ ter ainda alcançado a immortal gloria com a multidaõ
+dos seus triunfos; por isso em a sua velhice<span class="pn">{40}</span> compoz
+para as suas gentes huma Grammatica Tudesca.</p>
+
+<p>Por mais que clamei, disse Barros, já em o feliz Reinado de D. Joaõ III. por
+introduzir nas escolas a Grammatica Portugueza, nunca o pude conseguir; nem
+depois sobre isto foram observados os Decretos do sempre Augusto D. José I.</p>
+
+<p>Amigos, proseguio Quintiliano, isso pertence aos Professores, e se os pais
+nisto tem alguma culpa, he só em entregarem seus filhos a Mestres pedantes.
+Elles os procurariam bons, se hoje houvesse a lei que desobrigava os filhos de
+soccorrer aos pais, que tendo posses, naõ os mandavam instruir nas letras. Em
+quanto esta lei durou foi a Grecia em tudo respeitavel, e se ainda agora
+revivesse em os póvos civilisados, naõ seria a substancia publica devorada por
+infinitos glutões, que tudo engolem, e que de ordinario saõ os menos fiéis á
+sua patria.</p>
+
+<p>Hum homem erudito, e Christaõ, disse Duarte Nunes, vendo o ignorante,<span
+class="pn">{41}</span> e inhabil a cevar a gula com o comer ao seu merecimento
+devido, póde sim por alguns momentos queixar-se; he com tudo impossivel moral
+esquecer-se da gratidaõ dos beneficios; mas o idiota presumido cuida, que mais
+se lhe deve, e ingrato desdenha de quem o farta.</p>
+
+<p>Tudo isso he verdade, disse Joaõ Rivio; mas reparei, que Barros naõ fallou
+em aprender Francez, quando alguns autores mandam que o seu estudo seja antes
+do Latim. Esse Portuguez, continuou Fabio, he mui douto, e naõ devia favorecer
+a pedantaria: quer justamente que logo que se saiba ler, se aprenda a
+Grammatica da lingua materna, e depois a Latina, por ser mãi da Franceza, da
+Portugueza, da Italiana, da Hespanhola, e de outras, que facilmente aprenderá
+quem souber a lingua dos sabios. E digo-vos que o Francez tem estragado
+bellissimos idiomas.</p>
+
+<p>No tempo em que ensinei letras humanas em a Universidade de Coimbra, disse o
+honrado Teive, poucos,<span class="pn">{42}</span> ou ninguem estudava Francez.
+Porém he certo, que nunca Portugal teve nem mais sabios, nem melhor gente. Naõ
+possuia entaõ a nossa lingua nem outra formosura, nem outras riquezas, que as
+herdadas da sua respeitavel mãi: e hoje apparece de quando em quando com a sua
+capa de remendos, mais ou menos despresivel, segundo os retalhos, e os pontos
+do alfaiate, que a cozeu.</p>
+
+<p>Mas tendo os Franceses, disse Mariángelo, vertido as obras dos outros, como
+fica notado, naõ será inutil saber esta lingua. Sempre saõ versões, respondeo
+Julio Cesar Escaligero, melhor he ler os originaes. Naõ sou contra este idioma;
+confesso que nelle estaõ escriptos bons, e máos livros. Com tudo estou pelo
+sentimento commum dos sabios, que o seu estudo naõ deve ser o primeiro; e até
+julgo naõ ser presentemente grande perda ignoralo, em quanto que naõ chegam das
+duas Anticeras navios, e mais navios carregados de helleboro para curar a
+funesta<span class="pn">{43}</span> loucura, que se apoderou das cabeças
+daquelle povo infeliz.</p>
+
+<p>Pais de familia; pais de familia exclamou Fabio, vós sois a primeira causa
+da pedantaria geral, e oxalá o naõ fosseis tambem dos horrores deste seculo de
+lagrimas.</p>
+
+<p>Assim acabou Quintiliano, deixando ver em seu triste semblante a magoa de
+seu peito.<span class="pn">{44}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>DIALOGO III.</h2>
+
+<p class="sinopse"><em>Expõe Antonio Nebrixa a segunda causa da pedantaria: motivos de haverem
+tantos Professores inhabeis: entre os de ler saõ raros os bons: como se póde
+isto remediar: os de Latim ainda saõ bastantes: muitos particulares enganam os
+pais de familia: os rapazes devem frequentar as aulas públicas, &amp;c.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>S</big>Ahindo Marco Fabio todo consternado daquelle assento para o seu primeiro,
+logo para alli se foi chegando Antonio Nebrixa: estava elle embrulhado em hum
+pellote cor de fogo de feitio mui exotico, com hum gorro pardo na cabeça, que
+lhe chegava ao meio das costas: e apenas se assentou deixou cahir hum sobreolho
+taõ feio, que parecia huma carranca de navio. Mas cuidando eu que elle<span
+class="pn">{44}</span> ficaria eternamente severo, naõ foi assim: por quanto,
+feitas as suas continencias, soltou taes gargalhadas de riso, que Crates
+Mallotes lhe disse com muita brandura: Eu vos escolhi para que ajudeis a fazer
+a caridade aos Professores pedantes e isto he o ponto do maior melindre, e da
+mais alta importancia: dizei a verdade, e deixai as risotas para occasiaõ
+competente.</p>
+
+<p>Ainda bem naõ tinha o velho Mallotes concluído taõ judiciosa admoestaçaõ,
+quando Nebrixa, compondo o seu comprido barrete assim começou: Se os pais de
+familia saõ mui culpados na pedantaria dos fins deste seculo, os mestres lhes
+ficam a perder de vista. De toda a Europa vos referiria exemplos, se a minha
+commissaõ naõ fora muito mais estreita. Naõ penseis todavia, que hum homem como
+eu, depois de deixar sepultados os enganos, e as mentiras com os despojos da
+humanidade, que a terra engolio, se atreva a satyrisar muitos Professores
+Portuguezes, os quaes com as suas obras,<span class="pn">{46}</span> e com as
+suas lições, que os eruditos bem conhecem, ainda hoje servem de honra, e de
+lustre áquella naçaõ; a qual desde o Reinado do grande D. Diniz, dignissimo
+neto do nosso D. Affonso Sabio, até ao presente tanto da escola de Minerva,
+como da escola de Marte, tem offerecido ao mundo heróes taõ prodigiosos, que a
+fama, tendo cem bocas, apenas os póde contar. Dirige-se pois a justiça de
+minhas queixas, contra milhares de Professores ignorantes; e desejára fazelos
+conhecer, para que naõ deshonrem os benemeritos, sendo confundidos com elles.
+</p>
+
+<p>He justo, disse Filippe Melanchton, que sejam conhecidos os zangãos pelos
+effeitos, e que se restitua o mel ás sabias abelhas.</p>
+
+<p>Saõ mui verdadeiras as vossas expressões, disse Antonio Pereira: já antes da
+minha passagem para a vossa companhia observei muitos presumidos a enganarem os
+pais de família, com ditos apanhados aos sabios, feitos Catões pelas assembléas,
+e pelos botiquins, a<span class="pn">{47}</span> fim de ajuntarem hum bom
+rebanho de rapazes, os quaes com prejuízo da bolsa paternal vem a ser os
+semeadores da charlatanaria, e ignorancia de seus Mestres.</p>
+
+<p>Sim, disse Nebrixa, semelhantes Professores saõ primos co-irmaõs do
+çapateiro, que naõ tendo geito para fazer çapatos vendia saccos de antidoto,
+mas antídoto no nome; porque lhe custava menos a ser Medico dos simplices, do
+que a fazer calçado a casquilhos, e a peraltas.</p>
+
+<p>O Augustissimo Rei D. José, continuou Pereira, Nome, que proferido fará vir
+aos labios de Portugal saudosas, e ternas lagrimas, sempre que se lembrarem do
+que lhe devem, escolheu para educaçaõ da mocidade os homens mais benemeritos, e
+naõ sei como tem graçado tanto o pedantismo.</p>
+
+<p>Ninguem melhor que tu o sabe, respondeu Nebrixa; porque foste hum
+respeitavel membro da Meza Censoria; por isso bem conheces a causa de tantos
+Professores ignorantes: fugiram<span class="pn">{48}</span> acaso do mundo as
+<em>Instrucções</em> appensas justissimo <em>Alvará</em> de 1759? E naõ
+determina elle que senaõ ensine nem publica, nem particularmente sem rigoroso
+exame? Naõ dá bem a entender quaes devam ser os conhecimentos dos Professores?
+O Augustissimo D. José para os animar naõ os incorporou em Direito Commum,
+fazendo-os Nobres? Naõ vês estudantes de Latim, para que eu naõ falle em os de
+outras faculdades, feitos Mestres sem outros principios mais que os do teu
+Compendio, ou da Arte de Felis Mendes, e, se muito, do teu Novo Methodo? Podem
+por ventura similhantes Mestres desempenhar as suas obrigações?</p>
+
+<p>Sempre clamei, disse o sabio Portuguez, em o Tribunal contra esta tolerancia
+de Professores inhabeis, sendo aliás excluidos muitos sujeitos de merecimento;
+porém a culpa....</p>
+
+<p>Bem sabemos (disse Crates Mallotes, apressado para cortar o fio) bem sabemos
+aonde se dirigem as tuas queixas:<span class="pn">{49}</span> nós naõ queremos,
+que nenhum vivo diga, que os mortos tiveram a deshumanidade de lhe pôr a par de
+seu nome os seus defeitos. Os nossos discursos saõ sagrados tanto, como os dos
+Prégadores; por isso devem só ser dirigidos contra o erro em geral. Em todos os
+estados do mundo ha bom, e máu, e só algum idiota quando nos vir fallar contra
+o máu, he que poderá cuidar, que nós fallamos contra o bom. Pelo que, meu
+Nebrixa, ide discorrendo em primeiro lugar sobre os Professores de ler: que he
+negocio de grande ponderaçaõ.</p>
+
+<p>Nebrixa, que estivera applicando o ouvido a taõ justas expressões, continuou
+dizendo, de cem Professores de ler, se achardes hum capaz tendes feito huma
+descuberta, digna de avultadas alviçaras. Ide pelas escólas, e ouvireis
+desconcertados berros de rapazes: que naõ só vos faraõ chagas nas orelhas, mas
+até vos encheraõ da mais profunda melancolia.</p>
+
+<p>Todos esses incómmodos, disse o Barbadinho,<span class="pn">{50}</span> se
+poderiam bem soffrer, se os moços dahi naõ sahissem gagos toda a vida. Porque
+por certo quando estaõ a ler, nada differem de quem nasceu com a lingua
+travada: só alguma palavra deshonesta he que pronunciam expeditamente. He taõ
+raro como mosca branca o que ensina os meninos a destinguir bem as syllabas, a
+pronunciar naturalmente as palavras, a respeitar pontos, e virgulas.</p>
+
+<p>Se similhantes homens naõ sabem que coisa seja nem syllaba, disse todo
+agastado Marciano Capella, nem que coisa seja fallar, nem para que sirva a
+pontoaçaõ, como haõ de ensinar o que ignoram?</p>
+
+<p>Pode acontecer, respondeu Lancelot, que qualquer saiba para si, e naõ para
+ensinar; porque saõ coisas bem differentes: e que acontecerá a quem ensina, sem
+saber nem o que, nem o como deve ensinar? Que acontecerá? respondeu Sciopio,
+encher o Publico de babosos, e pedantes; porque os erros da escóla quasi sempre
+saõ incuraveis;<span class="pn">{51}</span> e os melhores Professores de Latim,
+pondo todas as suas forças para os remediar, raras vezes o conseguem.</p>
+
+<p>He huma dor de coraçaõ, proseguio Nebrixa, ver engenhos taõ raros, que
+continuamente se vaõ perdendo por culpa de Professores de ler.</p>
+
+<p>Ainda Antonio Nebrixa mal havia acabado a sua queixa, quando Remmio Palemaõ
+se levantou com toda a arrogancia, e disse: Porque naõ mandam similhantes
+homens guardar pórcos?</p>
+
+<p>Ouvindo isto Terencio Varro, o qual havia sido insultado em Roma por aquelle
+mordaz, assim lhe respondeu: Fazes mais favor a esses homens, do que em outro
+tempo me fizeste, quando por toda a parte me andavas chamando o Porco das
+Letras, e queres que similhantes pedantes sejam porqueiros, em vez de os
+mandares comer farellos?</p>
+
+<p>Todos gostaram muito daquella singeleza Romana, mas Antonio Nebrixa,<span
+class="pn">{52}</span> que foi hum Hespanhol honrado, disse com toda a
+inteireza: Ainda naõ he taõ mau, que haja quem ensine a ler; e aquelle que
+sabe, e executa a sua obrigaçaõ faz mais serviço ao Publico do que se pensa lá
+no mundo: e bem vedes quanto estimamos estes poucos de quem nos prezamos muito
+de serem nossos companheiros, e a pena he virem para cá taõ poucos deste
+calibre!</p>
+
+<p>Entaõ abaixaram a cabeça os Professores elogiados, e Crates Mallotes louvou
+muito o relator, que assim proseguio: Os Professores Regios de ler apenas tem
+salarios para o aluguel de casas; e por isso ou haõ de ser homens incapazes, ou
+haõ de procurar o sustento por outra via. Se se dessem os mesmos ordenados, e
+as mesmas honras aos Professores de ler, que se daõ aos de Rhetorica, haveriam
+muitos eruditos que servissem ao Estado de boa mente, neste ramo: entaõ se
+ensinaria a Grammatica da Lingua materna na escola, aprender-se-hia qualquer
+lingua com muita facilidade, e<span class="pn">{53}</span> naõ morreriam de
+trabalho os Professores de Latim em o ensino de gente bruta.</p>
+
+<p>Tivessem elles dinheiro, disse Dionisio de Syragoça, que honra lhes dei eu,
+porque naõ me desprezei de ensinar meninos, depois de ter sido o que sabeis.
+Mas já que tendes fallado tanto na pedantaria dos Professores de ler de quem
+fui collega, dizei tambem alguma coisa dos de Latim para consolaçaõ da minha
+tristeza.</p>
+
+<p>Tem havido optimos Professores de Latim, continuou Nebrixa, e ainda hoje os
+ha; porém para fallar com a sinceridade de defuncto, naõ me posso dispensar de
+dizer, que saõ muitos mais os idiotas. Depois que se deram Provisões de favor,
+isto he, sem se fazer rigoroso exame, ou depois que muitos entraram a ensinar
+sem faculdade alguma do Estado, entaõ tambem começáram apparecer nuvens de
+falladores, que sendo huns Professores diminutivos, sem a mais leve tinctura
+nem de Logica, nem de Critica, andam feitos censores dos melhores livros,<span
+class="pn">{54}</span> por onde podiam aprender (a terem os conhecimentos que a
+lei delles requer) e vaõ surrando o entendimento da mocidade com os cartapacios
+defumados, que sem offensa de seus autores, deviam ser condemnados a embrulhar
+adubos.</p>
+
+<p>He forte cegueira, disse Gaspar Sciopio, ver ainda hoje homens mais
+afferrados á opiniaõ dos livros por onde aprenderam, do que os Pythagoricos a
+de seu Mestre!</p>
+
+<p>Mas esses pedantes, disse o Barbadinho, neste tempo escuro, em que mui
+poucos aprendem Latim, he que trazem mais algum estudante.</p>
+
+<p>Esses Mestres, continuou Nebrixa, pela maior parte saõ particulares
+(reparai, Guliver, que naõ digo, <em>Todos</em>) e como o estudante traz a
+mezada em o fim do mez, he preciso fazer a boca doce aos pais; murmurar dos
+estudos Regios, e persuadir-lhes ser coisa menos decente mandar os filhos ás
+aulas dos pobres.</p>
+
+<p>Pobres de juizo, disse Antonio Pereira todo agastado, pobres de juizo<span
+class="pn">{55}</span> saõ os que accreditam similhantes novelleiros. Como se
+os estudos do Rei naõ fossem a honra de todos os vassallos? Ou como se fosse
+desprezo acompanhar com seus irmãos aquelle que tendo melhor fortuna, naõ tem
+outra natureza?</p>
+
+<p>Ainda se servem, proseguio Nebrixa, de outro estratagema mais sagaz, que he
+apregoarem, ou por si, ou por seus devotos, que as aulas Regias andam cheias de
+moços mal procedidos.</p>
+
+<p>Este seculo, disse o Barbadinho, está cheio de corrupçaõ, e como as aulas
+particulares, trazem alguns estudantes mais que as outras, tambem vos podeis
+persuadir, que trazem muito peior gente.</p>
+
+<p>De casa, disse Quintiliano, já os moços trazem os máos costumes, nem he
+preciso que os venham buscar ás aulas.</p>
+
+<p>Mas ainda dado, e naõ concedido, proseguio Nebrixa, que de casa venham
+innocentes; nem por isso he justo que a mocidade deixe de frequentar<span
+class="pn">{56}</span> as aulas Publicas. Os pais devem vigiar sobre a
+conducta, e companhias de seus filhos; mas tambem devem fazer a vista grossa a
+certas coisas, que naõ offendendo a virtude, he necessario que os rapazes em
+quanto saõ rapazes as pratiquem: aliás em idade incompetente seraõ os peiores
+homens, segundo a triste experiencia o tem mostrado.</p>
+
+<p>Parece seria melhor, disse o Conde de Castel-Branco, ensinar em casa aos
+meninos os Estudos menores, para lhes evitar os laços, que a seus tenros annos
+o mundo costuma armar.</p>
+
+<p>Nada, nada, respondeu Antonio Pereira, porque em idade maior he que se
+conhece o erro; por isso que ficam estupidos: engolem todas as petas, naõ
+prestam para a sociedade: a sua brutalidade os conduz para os vicios mais
+grosseiros; e ficam em tudo huns perfeitos Sardanapálos.</p>
+
+<p>Bem: concluio Nebrixa, hum tal encerramento, he mui bom para mulheres, para
+homens naõ tem geito.<span class="pn">{57}</span> Pouco vale clausurar os
+rapazes para evitar más companhias, em casa mesmo acharaõ quem os estrague: e
+oxalá fossem mentirolas estas nossas expressões! E deixai murmurar os pedantes,
+esses que ensinam a conhecer as sylabas pelos fôlegos; e que toda a sua
+sciencia consiste em affeiar, e corromper o verbo <em>arcabuzear</em>.</p>
+
+<p>Acabando o Hespanhol de dizer isto, e entrando por algum tempo a engolir em
+secco, exclamou: Professores pedantes, Professores idiotas, tratai de outro
+officio; naõ augmenteis o charlatanismo com os desconcertos da vossa
+ignorancia. E tu ó mortal (virou-se para mim) muito bem tens ouvido os justos
+louvores, que aos benemeritos havemos dado.</p>
+
+<p>Entaõ todos lhe abaixaram profundamente a cabeça em signal de parabens; e
+elle se levantou, sahindo com a mesma cara com que principiára a sua
+commissaõ.<span class="pn">{58}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>DIALOGO IV.</h2>
+
+<p class="sinopse"><em>He tratado Sanches por Crates com toda a distinçaõ: expõem elle a
+terceira causa da pedantaria: fica a beca de Guliver convertida em tres artes
+de Grammatica Latina: faz-se grande estimaçaõ da primeira: criticam-se as
+outras: vai-se Guliver successivamente convertendo em passaro: manda Crates
+Mallotes mostrar-lhe a ilha, &amp;c.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>J</big>A Elio Antonio Nebrixa estava em o seu assento colhendo os bem merecidos
+applausos dos que estavam junto delle, quando Francisco Sanches Brocense hia
+com o seu passo grave, e magestoso, procurar o banco; mas Crates Mallotes, logo
+se levantou, cujo exemplo seguio toda aquella multidaõ dos illustres defunctos:
+e assim erguido, clamou: Nada, nada: hoje has<span class="pn">{59}</span> de
+ensinar de cadeira: nem he justo, que o Principe dos Grammaticos deixe de ter a
+maior distinçaõ em a terra da verdade. Logo que elle isto disse, sahio coxiando
+para fóra, e rindo dizia: A Grammatica, que em Roma ensinei, era taõ coixa,
+como eu. Mas todavia se os Romanos de mim naõ houvessem recebido o exemplo,
+tambem naõ opporiam á Grecia tantos sabios.</p>
+
+<p>Porém Sanches modesto recusava taõ distincta mercê, allegando para isso, que
+naõ só por haver sido o respeitavel velho Embaixador do Rei Attalo, que fartou
+Roma de pergaminho; mas tambem por ter alcançado a honra, e a gloria de
+primeiro Mestre do povo senhor do mundo, por nenhum titulo devia ser dispensado
+de sahir de seu devido aposento.</p>
+
+<p>Nem ter sido Embaixador, replicou Crates, nem ter sido o primeiro Mestre dos
+antigos Romanos, equivale a ter sido, como tu, o primeiro açoite da pedantaria,
+e do ranço de todos<span class="pn">{60}</span> os Grammaticos do universo. Eu
+aqui ficarei.</p>
+
+<p>Dizendo isto puxou do escabello, que estava diante da cadeira, e pólo para o
+lado: e Sanches naõ teve remedio senaõ obedecer, subir, assentar-se: e todos
+fizeram o mesmo.</p>
+
+<p>Hum pouco esteve Sanches, como quem estava reflectindo, depois do que
+voltando-se para Crates fez huma profunda venia; mas nem por isso deixou de
+significar a todos a sua civilidade. Eu tenho grande pena de vos naõ poder
+pintar ao vivo a delicadeza, graça, e energia da sua pronuncia, por isso só vos
+escreverei o seu arrazoado, cujo comêço he o seguinte.</p>
+
+<p>Se os pais ás mãos ambas semeam o pedantismo, e os Professores idiotas nas
+campinas da mocidade saccos cheios vaõ deitando: saõ sem dúvida os máos livros
+o celleiro infame, aonde taõ pestifera semente está guardada. Os escritos
+impressos naõ tem numero; elles vaõ durando com as épocas futuras:<span
+class="pn">{61}</span> o bom e o máu nelles vai vivendo. Assim he que as fallas
+humanas duram, depois do homem naõ viver. E como já naõ he preciso o penoso
+trabalho de trasladar livros, como antigamente, eilos vulgares: e sendo poucos
+os que possam ser juizes da bondade, ou ruindade, que nelles houver, entaõ
+adquirem apaixonados os que naõ saõ bons; e censores, os que o saõ. Por outra
+via ha homens ou taõ ignorantes, ou taõ fatuos, que julgam verdades eternas
+tudo o que está escripto em letra redonda. He por estas bem claras razões, que
+muitos sabios ainda naõ poderam decidir, se a arte Typografica tenha
+aproveitado mais ás Letras, ou se mais as tenha offendido.</p>
+
+<p>He certo, disse Sciopio, que ella faz conservar escriptos, cuja memoria naõ
+devia existir: e quando muitos outros saõ funestos, naõ se póde dizer quanto
+seja huma multidaõ de livros didaticos, os quaes naõ só corrompem o bom gosto,
+mas enchem os rapazes de mais ranço do<span class="pn">{62}</span> que que
+teria toucinho de cem annos ao fumeiro.</p>
+
+<p>Em a Minerva, continuou Sanches, dei eu bem a conhecer os escriptores
+pedantes: he este livro bem vulgar; e o Memoravel Rei D. José lhe deu a devida
+estimaçaõ, mandou por hum Decreto, que nenhum Professor em Portugal deixasse de
+o ter, e de por elle explicar: porém isso durou pouco. Hoje ha lá muitos, que
+nem sabem, que ha similhante thesouro no mundo, nem tam pouco tem principios
+para o entenderem, e para se utilisarem.</p>
+
+<p>Assim he, disse o P. Manoel Alvares, mui poucos fazem caso desse livro: e
+ainda agora ha quem transcreva as peiores coisas da minha arte reprovada por
+huma Lei, vendendo por seu o meu trabalho: julgando talvez o pódem fazer a seu
+salvo, por ninguem já saber o que eu escrevi.</p>
+
+<p>Bem sei, que fallas, proseguio Brocense, em a arte das linguagens, que ha
+dias acabou de ser impressa: descança,<span class="pn">{63}</span> que logo lhe
+faremos a caridade; porque o seu autor naõ tem mais privilegios que muitos de
+vós a quem censurei, e nem por isso somos inimigos; antes a nossa amizade será
+taõ eterna, como nós havemos de ser.</p>
+
+<p>A Critica, disse Jacob Peritonio, tem o caracter de hum juiz inteiro, que
+sentenciando as obras segundo o seu merecimento, deve sempre deixar illeso o
+seu autor.</p>
+
+<p>Hoje enfastia muito, disse Antonio Felis, ver resuscitar os destemperos das
+Grammaticas velhas; se isto se fizesse, quando eu fiz a minha compilaçaõ, e
+Antonio Pereira as suas artes, seria digno de perdaõ; porque nos expozemos ás
+maiores calúmnias, como todos sabem, e as quaes muito nos vexariam, a naõ
+sermos protegidos pelo braço Real; e ainda assim naõ padecemos pouco.</p>
+
+<p>Eu honrei Hespanha com as minhas obras, continuou Brocense, e a paga que
+recebi dos meus serviços, foi ver a Minerva condemnada ao pó<span
+class="pn">{64}</span> de bem poucas livrarias; a qual se fez taõ rara, que
+sendo achada por Sciopio, a quiz reimprimir por sua, julgando haver-se
+inteiramente perdido a sua lembrança; mas ainda houve entaõ quem restituisse ao
+meu nome a gloria, que se lhe hia a roubar.</p>
+
+<p>Apenas assim fallou, todos olháram para Sciopio como enfadados; elle porém
+muito senhor de si, se desforrou, dizendo: Isso tudo he verdade; mas depois em
+todas as minhas obras Grammaticaes, me intitulei teu discipulo, nome que muito
+bem desempenhei, e ajudei a tua espada a dar os mais profundos golpes no
+cachaço dos pedantes.</p>
+
+<p>Tivemos pelo meio deste seculo, disse Sanches consternado, homens grandes
+por amigos, pelos fins delle só conheço hum escriptor, que com as suas, e
+nossas opiniões honrará as provincias da Grammatica, sempre que por ellas
+corra, quem ahi naõ seja peregrino. Mas porque fallamos em os ultimos
+escriptores desta idade;<span class="pn">{65}</span> faça-se justiça: vinde cá,
+Inglez.</p>
+
+<p>Assim que me chamou, fui chegando a cadeira, e como elle fallou em Justiça,
+fiquei pouco satisfeito, cuidando já se sabe, que se me faria alguma execuçaõ á
+móda de Inglaterra. Já estes cuidados me ruiam o coraçaõ, quando veio da boca
+de Sanches hum repellaõ de vento, e me levou a béca de plumas. Entaõ he que
+pensei, naõ tardaria, que a cabeça me voasse. Mas estes sustos se converteram
+em galhofa logo que ví a béca de pennas, tambem convertida em folhetos de
+papel; e a mim em trajes de marujo, como d'antes.</p>
+
+<p>Com esses vestidos, disse-me Crates Mallotes todo risonho, podeste tu vir do
+mundo; mas com outros has de tornar.</p>
+
+<p>Eu estava com olho de punho para os folhetos, a ver aonde fosse o caso dar
+comsigo; entaõ chegou hum contino, que bem conheci ser hum Grammatico mui
+pedante, o qual em Londres ficava, quando de lá sahi.<span
+class="pn">{66}</span> Pegou pois este criado em os cadernos, e pregou-os na
+parede. Veio outro, e com toda a humildade (do que me admirei por ter sido
+Francez, e deixar de ser arrogante) e metteu na maõ de Brocense hum ponteiro de
+barba de balêa; mas o cabo era de oiro massiço, em que estavam esculpidos tres
+escriptores Portuguezes: os quaes ficaram fechados em a maõ do Hespanhol, cujos
+nomes naõ tive licença de declarar em esta Historia; mas os escriptos, que saõ
+do direito publico, naõ tiveram a mesma prohibiçaõ: e confesso-vos, que nesta
+parte escrevo constrangido, e callo muitas coisas, que reporei, a quem me pedir
+contas, ajuntando outros appensos, que Crates Mallotes, do outro mundo me
+promette.</p>
+
+<p>Mas tornando ao proposito, estendeu Sanches o seu ponteiro para a parede, e
+entaõ ví em correnteza tres artes de Grammatica: Lê esse primeiro titulo,
+disse; entaõ li alto, e em voz clara <em>Novo Epitome de Grammatica Latina
+Moderna, ou Verdadeiro Methodo de ensinar Latim a hum Principiante....
+Lisboa.... Anno de 1795</em>.<span class="pn">{67}</span></p>
+
+<p>Naõ appareceu ainda, continuou, hum livro mais bello para ensino da
+mocidade, nem que seja mais accommodado para ser explicado conforme as
+determinações do grande D. José I.</p>
+
+<p>Vê estes Nominativos, estes Generos como estaõ taõ bem ordenados. Estas
+Linguagens, expostas em taboas synopticas: como debaixo de hum ponto de vista
+obriga o menino a firmar a sua memoria? Estas <em>raizes</em> de formaçaõ!
+Estes <em>preteritos</em>! Quem até agora fez huma Syntaxe como esta? Quem
+melhor Prosodia? Como he em tudo coherente! E estas <em>notas</em> naõ fazem
+por ventura hum systema completo?</p>
+
+<p>Tem boa duvida, disse o Barbadinho, e o que mais admiro além das novidades,
+que escaparam ao teu engenho, he a brevidade e clareza, com que ensina o que
+outros naõ poderiam em bem gordos volumes.<span class="pn">{68}</span></p>
+
+<p>Esse moço, disse Antonio Pereira, tem dedo para isso, e ainda o vereis dar á
+sua patria signaes de bom filho.</p>
+
+<p>Mas ha Professores, replicou Vocio, que dizem ser esse livro muito bom para
+Mestres; mas que naõ presta para rapazes, pela ordem Filosofica com que foi
+tecido. E que dizeis a esta? Digo, respondeu Sanches, que he para rapazes, mas
+para rapazes, que naõ tenham a desfortuna de serem discipulos de similhantes
+Mestres. Como se Filosofia naõ fosse a recta razaõ, ou se sem ella possa haver
+bom escriptor, ou bom Mestre?</p>
+
+<p>Eu pasmo, disse o Barbadinho de ver tanto charlataõ; cuidei, com as minhas
+Cartas, ou com a Introducçaõ Historica, e Critica, tinha curado a loucura dos
+Pythagoricos: agora vejo, naõ fiz nada. Acaso naõ he para rapazes huma arte,
+que ensina sem confusaõ a hum principiante, a hum adiantado, a hum Mestre? Huma
+obra que tem tudo em seu lugar? Em que concorda<span class="pn">{69}</span> o
+principio com o meio, e o meio com o fim?</p>
+
+<p>Esses homens, disse Palemaõ, eram bons para Mestres de papagaios; e fazia
+huma grande caridade quem os mandasse para o Certaõ, dirigir pretos.</p>
+
+<p>Parece-me, disse Lithocómo, que o autor desta arte errou em lhe chamar
+Epitome; porque sendo huma obra completa, devia-lhe chamar Flagello do ranço
+Grammatical do fim do XVIII. seculo: e saõ homens de má cabeça os que desdanham
+de livro taõ bello.</p>
+
+<p>Acabava Ludolfo Lithocómo taõ douta reflexaõ, quando Joaõ Garcia exclamou:
+Mil parabens á Naçaõ Hespanhola, que ainda tem filhos, que deram próvas do seu
+bom gosto na versaõ desta arte, datada em Madrid em 1797.</p>
+
+<p>O discipulo digno de Sanches (continuou elle mesmo) consola a tua paciencia
+com estes elogios, até que a Ignorancia invejosa naõ morda o teu serviço com
+seus dentes carunchosos.<span class="pn">{70}</span> Quando para aqui vieres
+serás carregado de louvores; porque a Inveja mordaz em os bons defunctos naõ
+acha que roer.</p>
+
+<p>Aqui se levantou Joaõ de Barros, exclamando: Quem naõ vê o serviço que eu
+fiz aos Portuguezes? Eu escrevi os seus illustres feitos, que fizeram pasmar a
+todos os povos do mundo, e o fructo que em meus dias entrou em meus celeiros,
+foram taõ descomedidas, como escandalosas censuras; ha muito porém, que depois
+da minha morte sou chamado o Livio Portuguez, o Mestre do patrio idioma.</p>
+
+<p>A melhor satisfacçaõ, disse o P. Buffier, que o bom escriptor possue em sua
+vida he a consciencia do louvor, que naõ póde ser affogada nem pelo mais basto
+oceano de calumnias.</p>
+
+<p>Já tudo estava em o mais profundo silencio, e Sanches medindo com os olhos
+inquietos todo aquelle livro: mostrando com o continuo movimento da cabeça
+quanto delle gostava, até<span class="pn">{71}</span> que depois de hum largo
+intervallo, com os beiços alguma coisa sobrepostos, fez-lhe huma profunda
+inclinaçaõ: e logo com o seu ponteiro, o qual em o tempo da sua revisaõ
+estivera voltado para o hombro direito, bateu na dita arte, a qual
+desappareceu.</p>
+
+<p>Mas qual naõ foi a minha admiraçaõ quando me vi convertido em hum guapo
+passaro, desde a cabeça até o embigo? Naõ ha nem oiro, nem pedras preciosas no
+mundo, com que possa comparar a formosura das minhas pennas. Entaõ me lembrou
+que o ponteiro de Sanches era mais milagroso que a vara de Mercurio. Por certo,
+dizia eu comigo, que os mortos saõ mais habilidosos, que os vivos.</p>
+
+<p>Quando eu corria veloz por estas, e outras muitas cogitações, e me estava
+namorando, qual outro Narciso, já o amigo Sanches estava a contas com a segunda
+arte, cujo titulo era <em>Novo Compendio da Grammatica Latina, &amp;c.
+Coimbra.... Anno de 1796</em>. Como insulta, dizia, nesse arrogante Prologo a
+todos os Grammaticos! Como<span class="pn">{72}</span> se vale de Despauterio!
+Mas quede a sua Grammatica Filosófica, que promette? Aquella Grammatica
+Filosofica desconhecida até agora?</p>
+
+<p>Ella ahi está em pouco mais de meia folha de papel, respondeu Condillac, vê
+como desfigurou a minha doutrina! Quantas idéas intermedias naõ ficam ahi
+cortadas?</p>
+
+<p>Essa Grammatica Filosófica, disse Gaspar Sciopio, he bem similhante ás
+escadas de hum edificio, apartadas sete braças humas das outras. Donde nem as
+pernas de hum gigante as pódem alcancar; e muito menos as de hum rapaz, que saõ
+mui curtas.</p>
+
+<p>Toda a Etymologia Latina, e Prosodia, continuou Sanches, bem vedes, serem
+quasi formaes de Antonio Fereira, com algumas coisas de outros autores.</p>
+
+<p>Sim, disse o Barbadinho, alguns exemplos tem seus; corta, e accrescenta
+algumas poucas coisas, e outras as muda: porem de ordinario he infeliz, como se
+vê no incremento em <em>A</em>.<span class="pn">{73}</span></p>
+
+<p>Em a Syntaxe, proseguio Brocense, em que se conhece quanto vale hum
+escriptor deste genero, nem vejo novidade, nem methodo algum. Ora quem póde
+soffrer estas incoherencias?</p>
+
+<p>Huma Grammatica em tudo perfeita, disse o Barbadinho, he coisa mais
+difficultosa de encontrar, do que agulha em palheiro; os sabios ainda hoje
+suspiram por ella.</p>
+
+<p>Eu concedo, disse o P. Antonio Rodrigues Dantas, que até hoje ninguem tem
+escripto sem defeito, e que he optimo o livro, que tem mui poucos erros. Mas
+naõ posso tolerar, o ver gritar com Despauterio contra todas as Grammaticas, e
+reprehender-se neste ponto naõ só a Portugal, mas tambem a toda a Europa; e
+dizer-se claramente ser esse o motivo de Sahir ao mundo aquelle grande parto.
+</p>
+
+<p>Eu gritava, confessou lisamente Despauterio, porque naõ via a trava no meu
+olho: esse moderno todavia faz bem justas as minhas queixas,<span
+class="pn">{74}</span> com a inutilidade de seus escriptos.</p>
+
+<p>Quem tanto de si presume, disse Sanches agastado, devia satisfazer ás suas
+promessas, e naõ imitar ao monte, que depois de tantos brados pario o que eu
+tenho vergonha de dizer.</p>
+
+<p>Hum rato sem pello, disse Palemaõ, foi o grande parto que se esperava, o
+qual fez arrebentar de riso aos que deraõ attençaõ aos seus gritos, e nelles se
+fiáraõ.</p>
+
+<p>Ainda fallava este mordaz, senaõ quando Brocense, mostrando em seu semblante
+huma indisivel desplicencia, bateu naquelles escriptos, que logo fugiram. Entaõ
+fiquei desde o embigo até ao pé direito carregado de pennas cor de papel pardo.
+Já pois para ser passaro completo, me naõ faltava mais, que o lado esquerdo
+desde aquelle ponto, que já disse.</p>
+
+<p>Entre tanto que eu observava a differença das minhas pennas, clamou Sanches
+enfurecido. He possivel, que no fim do XVIII. seculo apparecesse<span
+class="pn">{75}</span> no mundo huma arte como esta?</p>
+
+<p>Entaõ virei o bico para a parede, e lí o frontispicio da ultima arte, o qual
+era <em>Novo Methodo de Grammatica Latina &amp;c... Lisboa... Anno de
+1799</em>. Mas ninguem repare de ver hum passaro a ler; porque eu era passaro
+feito no outro mundo.</p>
+
+<p>Mal acabei de ler o titulo, e o Hespanhol, trazendo o ponteiro em hum
+redupio, clamava: Vê, vê as incoherencias dessa Etymologia. Vê aqui como esta
+<em>Hic</em>, <em>haec</em>, <em>hoc</em>, feito particula, contra o que se diz
+alli em o número das partes da oraçaõ. Forte miscilania! E que vos parecem
+essas linguagens eternas? Por ventura poderá hum rapaz decoralas em dez annos?
+</p>
+
+<p>Na verdade, continuou Sanches, estes Infinitos estam bem fartos de
+embrulhos. E a pezar de terem o Portuguez do Indicativo, ainda lhes falta o do
+Conjunctivo; e quem gosta de tanta selada, quanto naõ gostaria<span
+class="pn">{76}</span> de ter noticia de mais estas alfaces?</p>
+
+<p>Assim como, disse o Barbadinho este escriptor saccou com a repetiçaõ sómente
+de certas letras finaes as Raizes de formaçaõ do Novo Epitome, e desfigurou
+outras coisas; porque naõ leu aquella interessante Nota de Syntaxe, aonde
+absolve os rapazes destas sempiternas perlengas?</p>
+
+<p>Tudo he huma palhada, disse Manoel Alvares; se essas linguagens tivessem o
+<em>Já entaõ</em>, o <em>oxalá</em>, e o <em>cum</em>, nenhuma differença
+tinham das minhas, senaõ o serem ainda mais extensas.</p>
+
+<p>Essa arte, disse Sciopio, com mais justiça merecia ser queimada, do que foi
+a tua; porque se foste máu Grammatico, ninguem te póde roubar a gloria de teres
+sido optimo Latino. Os teus versos naõ invejam aos melhores da idade de
+Augusto: mas de Grammatica foste hum verdugo, como se próva claramente nas
+Instrucções de 1759. Tambem o teu<span class="pn">{77}</span> Mercurio, disse
+Alvares, naõ foi quem abrio os olhos aos mortaes.</p>
+
+<p>Isto picou tanto a Sciopio, que entrou com a sua mordacidade a altercar taõ
+descomedidamente, que já a favor de Manoel Alvares se vinha chegando Prisciano,
+para rebater aquelles dicterios. Entaõ o sabio Presidente em tom magistral,
+assim fallou: Nada de calúmnias; Manoel Alvares para o tempo em que viveu
+merece desculpa, seguio aos que lhe precederam, como as ovelhas ao carneiro do
+chocalho. Mas no fim do chamado seculo das luzes apparecer huma arte como esta,
+depois de tantos livros excellentes? porém naõ percamos mais o nosso trabalho.
+</p>
+
+<p>Logo que assim acabou, sem querer ver mais nada olhou carrancudo para
+aquelles folhetos, e elles como settas me ficaram cravados pelo lado esquerdo,
+pennas, já se sabe, cor de mechas.</p>
+
+<p>Assim he que me fui aos poucos convertendo em passaro na ilha dos Mortos.
+Sanches desceu da Cadeira,<span class="pn">{78}</span> praticou com os outros
+relatores. E todos diziam: Viva Crates Mallotes, viva, que campou na escolha
+que fez. Porém reparei, que Despauterio naõ gostára da galhófa.</p>
+
+<p>Acabados estes comprimentos sahiram todos, e eu feito passaro entre elles,
+com o meu rabo de rastros, taõ comprido como as linguagens do Novo Methodo.
+Porém, como naõ perdi a falla, agradeci muito ao Embaixador do Rei Attalo, o
+devertimento que me deu. E certamente nunca vi opera taõ gostosa; porque sem
+duvida deixarei todos os gostos do mundo de boa mente, quando se me offereça
+similhante fortuna: e ainda espero de lá tornar.</p>
+
+<p>Mas como hia dizendo: já estava desconfiado de tornar a Inglaterra; Crates
+porém, que era mui esperto, e mui politico, conhecendo a minha desconfiança,
+disse a Sanches: Mostrai a esse hospede as coisas mais notaveis da nossa ilha,
+para ir o mais breve para sua casa. E tu, amigo Gúliver,<span
+class="pn">{79}</span> desculpa, naõ te poder acompanhar, bem vês, que hum
+coixo naõ póde andar depressa; porém o respeitavel Teive iré em meu lugar. Ide;
+eu naõ tardarei muito em ser comvosco; lá nos veremos no mirante de Carlos
+Magno.<span class="pn">{80}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>DIALOGO V.</h2>
+
+<p class="sinopse"><em>Necessidade da obediencia: elogios da naçaõ Portugueza: utilidades da
+Agricultura: quanto foi apreciada pelos antigos Portuguezes: castigos dos
+pedantes na ilha dos Mortos: chegada de Crates Mallotes, para me persuadir a
+ser Grammatico, &amp;c.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>L</big>Ogo que Crates Mallotes mandou os seus subditos, nada se demoráram, e eu
+naõ pude tambem fazer outra despedida, que voltar o rabo para o ar, e o bico
+para o chaõ, e fazer-me de volta com taõ respeitaveis companheiros.
+Accusava-vos todavia de sahirem taõ apressados, que me naõ deixaram fazer os
+devidos comprimentos, ao menos a todos os que haviam fallado no Congresso, de
+quem tinha eu recebido taõ altas mercês; porque<span class="pn">{81}</span> a
+toda a multidaõ era impossivel.</p>
+
+<p>Comprimentaste a todos, disse Sanches, sem nicas, nem fingimentos dos
+Politicos mundanos. A obediencia he o eixo da carroça social, por falta deste
+dever he que ninguem hoje póde viver no mundo. A nossa sociedade compoem-se de
+sabios que sabem muito bem a sua obrigaçaõ, sem o conselho dos quaes nenhuma
+póde ser bem dirigida. O nosso velho mandou, governa, obedecemos.</p>
+
+<p>Os sabios! disse Diogo de Teive com hum grande suspiro: A pedantaria!... Mas
+foi Deos, Gúliver, o que te fez aqui arribar: para remedio de muitos abusos
+literarios da minha naçaõ, que a pedantaria das outras naõ me importa. Has de
+achar ahi, dizia elle, has de achar, quem te ajude em este grande serviço. Já
+Portugal estava com seu rosto coberto de luzes, quando outros póvos estavam
+sepultados em as mais escuras trevas da ignorancia. Naõ ha no mundo quem tenha
+melhor legislaçaõ; os nossos Monarcas<span class="pn">{82}</span> saõ Senhores
+no nome, e na Magestade; pais no procedimento: has de achar hum Principe
+Religioso, Pio, moderado, amigo de Deos, e dos homens; hum Principe, como Tito,
+que chora o dia em que naõ póde fazer mercê: que está immovel aos conselhos
+menos piedosos: e que naõ quer tirar o paõ aos servos do Sanctuario, para
+sustentar o odio, que a pedantaria do tempo tem aos altares.</p>
+
+<p>Na verdade, disse Sanches, nenhuma naçaõ da Europa tem tido melhores Reis, e
+por isso nunca outros tiveram iguaes vassallos.</p>
+
+<p>Tem boa dúvida, disse Diogo de Teive, os Portuguezes pódem-se chamar melhor
+filhos, que vassallos dos seus Soberanos, pela fedilidade, e amor com que todo
+o povo os serve.</p>
+
+<p>Para que estais com isso? replicou Sanches, toda a naçaõ Portugueza se tem
+distinguido em tudo das mais. Quem tem tido melhores Reis? quem melhores
+vassallos? Quem melhores letrados? Quem melhores soldados?<span
+class="pn">{83}</span></p>
+
+<p>E quem, continuou Teive, hum Joaõ das Regras? hum Camões? hum Barros? hum
+Heitor Pinto, gloria dos Frades de Belém, honra de Portugal?</p>
+
+<p>Entaõ foi desenvolvendo a Historia de todos os Reis de Portugal, os sabios
+de todas as épocas: acções que pareciam fabulas: guerreiros: proezas até das
+proprias mulheres. O que tudo vos deixo de contar naõ tanto por se naõ
+engrossar o volume, como para economia da bolsa de meus apaixonados. Além de
+que tudo achareis em as Historias daquella naçaõ, ainda que os mortos sabiam o
+que ellas vos naõ contam.</p>
+
+<p>Já Teive entrava a elogiar muitos dos vivos, sem todavia proferir os nomes
+de cada hum, até que todo inflammado disse: Será mais facil acabar toda a
+geraçaõ Portugueza, do que apossar-se della o inimigo.</p>
+
+<p>O que saõ os Portuguezes, disse Sanches, ainda neste tempo dos chás, e dos
+caffés, em o Rossilhaõ, e em Napoles muito bem se conheceu.<span
+class="pn">{84}</span></p>
+
+<p>Em quanto eu hia caminhando entre os dois amigos, ouvindo attentamente os
+elogios dos Portuguezes, que muito me deleitáram os ouvidos: tambem hia
+desfructando com os olhos a linda prespectiva naõ só de verdes seáras, mas
+tambem de vistosas arvores, carregadas de bellas fructas, assim como risonhos
+prados: muitas vinhas; olivaes &amp;c. ví muitos carreiros, almocreves: muitos
+homens a assar castanhas, outros a pôr hortalica, outros em fim a semear
+batatas. Estava na verdade ancioso por saber que gente fosse aquella: e ainda
+mais fiquei, quando vi outros a esfolar mosquitos: e muitissimos á caça de
+moscas.</p>
+
+<p>Já com difficuldade me podia ter; porem Teive que previo a minha
+curiosidade, disse-me: Bem sei que estás admirado do que vês: por isso deves
+saber, que naõ pódem aqui morar senaõ Grammaticos, e Professores de ler, e á
+medida do seu pedantismo se lhes dá cá occupaçaõ competente: Lavradores somos
+nós todos: os charlatães<span class="pn">{85}</span> tem differentes
+ministerios, ou almocreves, ou carreiros, &amp;c. os delicados assam castanhas:
+os negligentes caçam moscas: os que deixam de exprimir os seus pensamentos,
+porque naõ acham em Cicero palavras para isso, estaõ se cançando a tirar a
+pelle aos mosquitos. Mas como naõ gostamos de gente ociosa todos nas occasiões
+vaõ trabalhar em Agricultura.</p>
+
+<p>Se lá no mundo, disse Sanches, mandassem cultivar a terra a homens inhabeis
+para as letras (naõ deixando em silencio aquelles infinitos estudantes de
+Mathematica, que nem sabem ler) nem mortificariam a seus Mestres, nem faltaria
+paõ.</p>
+
+<p>Assim como em meu tempo, disse Teive, em que a Agricultura era taõ estimada:
+entaõ naõ era preciso vir trigo de fóra, antes havia muito para vender, e
+quando era cáro naõ passava o alqueire do preço de trinta réis. Oh! Felizes
+tempos, em que haviam sabios, haviam soldados, havia de comer!</p>
+
+<p>E naõ haviam, disse Sanches, casquilhos<span class="pn">{86}</span> sem
+religiaõ, a medirem as verdades Positivas a compasso: feitos Juristas, e
+Theologos abstractos.</p>
+
+<p>Estas, e outras coisas diziam, e tinhamos já bastante caminhado; porém nunca
+me custou taõ pouco o andar. Eu bem podia voar; todavia por decencia hia a pé.
+Cada vez mais campinas cultivadas hia descobrindo, até que chegámos a hum
+oiteiro carregado de tójos, e de cardos, por onde pastava huma grande manada de
+jumentos, guardados por infinitos homens. Estes saõ os Professores de ler,
+disse Teive, que no mundo só ensináram os meninos a gaguejar, e que foram a
+causa de nunca poderem avançar ao estudo das sciencias. Naõ foram como os que
+viste em o congresso, os quaes aproveitáram mais ás suas respectivas nações, do
+que muitos Rhétoricos, e Filósofos.</p>
+
+<p>A literatura, disse Sanches, he a base das sciencias, e quem poderá ser
+sabio, sem que saiba ler?</p>
+
+<p>Resolvi-me pois, a fazer minhas<span class="pn">{87}</span> perguntas; mas
+sempre commedidas para naõ me portar, como tolo. Abrí o bico, dizendo: Aonde
+estaõ aquelles defunctos, que nem foram Grammaticos, nem Professores de ler?
+</p>
+
+<p>Além daquelle rio caudaloso (respondeu Sanches, apontando com o dedo) ha
+muitas ilhas, e cada qual tem a sua jerarquia; porém se algum foi Mestre, ou
+escriptor de Grammatica, ou Professor de primeiras letras, ainda que tambem
+fosse Rhétorico, Filósofo, Theólogo, ou General, &amp;c. faz-nos entaõ o favor
+de vir para aqui.</p>
+
+<p>Em quanto Sanches me satisfazia, puxou Teive de huma luneta, e olhando para
+além do rio, entrou a rir como hum perdido.</p>
+
+<p>Aqui me obrigou a fazer segunda pergunta; porque em similhantes occasiões
+tem muita desculpa a curiosidade.</p>
+
+<p>Naõ ha coisa mais galante, respondeu, lá está Pythágoras, com a escudélla de
+Diógenes entre pernas,<span class="pn">{88}</span> comendo favas, como o lobo
+carne de borrego.</p>
+
+<p>No mundo, disse Sanches, naõ houve quem mais asco lhes tivesse, e agora está
+capaz de engolir a mesma escudélla. Ora o certo he, que se entre os Grammaticos
+ha pedantes, muitos mais achareis entre os Filósofos.</p>
+
+<p>Já haviamos passado as fraldas de huma montanha de mais de tres legoas de
+altura: quando ví os seus lados cobertos de bois, cabras, ovelhas: de maneira
+que naõ avistava palmo de terra; e muito tempo estive persuadido, que os
+pegureiros eraõ pedras cor de musgo. Mas a poucos passos ví em o cume do monte
+hum mirante de tal grandeza, e magestade, que a pobreza de minha penna naõ o
+póde debuxar. Basta dizer, que a sua escadaria principiava desde seis milhas, e
+era de tal arquitectura, que me parecia ir correndo por huma eira.</p>
+
+<p>Ainda Sanches hia batendo nos Filósofos pedantes, dizendo raios<span
+class="pn">{89}</span> contra Voltaire, e contra outros impios: senaõ quando
+ahi chega Crates Mallotes em huma cadeirinha, trazida aos hombros de dois
+mariólas, vestidos com saiaes até o joelho de pelles de bóde côr de cinza.
+Tenho vergonha de dizer a naçaõ a quem pertenciam: Portuguezes naõ eram, o que
+digo por descargo de minha consciencia; pois que Sanches me disse, serem taõ
+respeitados naquella ilha os Portuguezes, que até os mesmos pedantes eram muito
+favorecidos.</p>
+
+<p>Para que saibas, disse o meu Velho, para que saibas quanto te estimo; e para
+que agradecido a esta boa hospedagem, venhas em outro tempo para a nossa
+companhia, he que venho estar comtigo até que daqui te safes.</p>
+
+<p>Dizendo isto sahio pela cadeirinha fóra, e fomo-nos sentar bem perto da
+entrada do mirante.</p>
+
+<p>Fez varias perguntas, entre outras, que me tinha parecido a sua ilha? E
+tambem me disse a razaõ<span class="pn">{90}</span> de naõ haver nella jardim,
+nem coitada: e por fim levantou-se, e bateu a pórta do mirante, que logo se
+abrio; e o que se passou, logo o vereis: e espero que muito vos divirta, e que
+nada menos vos aproveite.<span class="pn">{91}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>DIALOGO VI.</h2>
+
+<p class="sinopse"><em>Idéa da grandeza do mirante de Carlos Magno: este, e Cesar recebem com
+muita alegria a Crates Mallotes: Gúliver he tratado muito humanamente: ultimas
+desgraças da pedantaria: remedio para ellas: chegam muitos Grammaticos para
+pedirem a Gúliver, que escreva Grammatica Filosófica da lingua Portugueza: como
+este fica no ar sem ver coisa alguma &amp;c.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>A</big>Ssim que se abrio aquella porta appareceu huma escadaria taõ alta, que logo
+me lembrei da torre de Babel. Fui saltando por ahi a cima atraz de todos;
+porque o velho se servio dos dois, como de moletas; naõ pela razaõ da sua muita
+idade; mas por aquella, que vos naõ esquecerá, se me lestes com a devida
+attençaõ. Naõ me custou<span class="pn">{92}</span> tanto toda a comprida
+jornada, como a subir (posto que hia de vagar) por as escadas a cima; pois que
+as pernas por serem curtas me obrigavam a saltar violentamente. Deste modo hia
+eu tirando forças da fraqueza; mas nem por isso quiz voar: segundo o proposito,
+que havia formado. Com tudo muito estimaria que Crates Mallotes sobre isto
+desfizesse a minha teima com preceito de obediencia. Elle porém gemia como huma
+mulher na occasiaõ do parto. Em fim, nestes apertos chegámos a todo cima a hum
+grande pateo; e parando hum pouco para se moderar a respiraçaõ, virou-se Crates
+para mim com o semblante cheio de alegria, e disse: Estás chegado a fallar com
+as personagens que em os antigos seculos mais no mundo florecêram: ellas te
+daráõ lições bem gostosas para a curiosidade portugueza.</p>
+
+<p>Dito isto, fomos entrando por falas, e mais falas, até chegar a huma
+espantosa, e soberba varanda. Sim, disse Crates, has de levar lições de<span
+class="pn">{93}</span> grandes e illustres heróes: aqui naõ ha nem aduladores,
+nem tractantes, que sejam capazes de os enganar.</p>
+
+<p>Ainda elle fallava, senaõ quando vejo Carlos Magno em o meio de Cesar; e
+Cataõ, e Lelio á ilharga algum tanto apartado, e outros muitos em pé: Mas
+avistando aquelles quatro insignes varões ao velho Crates, foraõ tantos os
+festejos, os comprimentos, as alegrias, os abraços, as galhófas, os ditos
+engraçados, que bem podia fazer divisaõ deste ultimo <em>Dialogo</em>, se vos
+pertendesse chupar dinheiro com palavras sem proveito.</p>
+
+<p>Em quanto pois se passavam estes sinceros, e innocentes festins, perguntei a
+Sanches (que já me havia dito, quem fossem os quatro) se os outros eram os
+Grammaticos antiquissimos, pertencentes aos do susurro, que tinhamos ouvido,
+quando estiveramos em o congresso?</p>
+
+<p>Que tu quizeres! respondeu, esses saõ bichos cor da noite, aos quaes<span
+class="pn">{94}</span> ninguem atégora vio: saõ os habitadores das trévas.</p>
+
+<p>Os Senhores saõ Cortezãos (disse-me Diogo de Teive) e os unicos, que naõ
+havendo sido lá no mundo nem Grammaticos, nem Professores de ler, por
+previlegio, e merecimentos do Imperador, vieram para aqui. Tem sim bons
+salarios; mas nunca diante delle se devem assentar; porque só nós o podemos
+fazer.</p>
+
+<p>Por isso, disse eu em segredo apontando com o bico para a orelha de Teive,
+por isso lhes vejo as pernas bem inchadas; mas agrada-me muito o seu sério.</p>
+
+<p>Aqui estaõ callados, tornou o Portuguez, mas fóra da vista de Carlos Magno
+ninguem os póde aturar: tudo pisariam, senaõ fossem bem conhecidos por elle,
+que os sabe bem domar: e assim todos vivemos huma maravilha.</p>
+
+<p>Já se haviam em fim acabado os comprimentos, e os Imperadores se foram
+sentar, e depois os outros cinco. Eu, como por ser passaro estava<span
+class="pn">{95}</span> dispensado de fazer o mesmo, cheguei-me para aquelles,
+que tinham a mesma dispensa, posto que por differentes motivos. Elles me
+trataram com muito carinho: e para naõ ser ingrato, digo, disse, e sempre
+direi, que em aquella ilha recebi obsequios até dos esfoladores de mosquitos, e
+dos caçadores de moscas.</p>
+
+<p>Estando eu feito Cortezaõ, como acabo de significar, sem merecimento algum,
+e cuidando por isso, naõ se faria caso de mim, logo fiquei sem estes
+escrupulos: porque vendo Carlos Magno a minha submissaõ, e o quanto eu conhecia
+a mercê, que me tinham feito em me admittirem com tanta benignidade ás suas
+lições, e á sua companhia, disse em tom sério, brando, e affavel: Es passaro,
+naõ ha duvida; mas passaro feito pelo nosso dedo. O que tens foi-te dado;
+porque o merecias. Naõ és como essas infinitas gralhas, que se andam enfeitando
+descaradamente lá na terra com plumas, que furtam ás aves mais formosas, e mais
+estimaveis.<span class="pn">{96}</span></p>
+
+<p>Sim, disse Cesar, mas de ordinario, naõ se sabem armar com ellas, e
+expoem-se ao risco de serem depennadas.</p>
+
+<p>Como as pennas, disse Cataõ, saõ bens de raiz, tambem as aves roubadas
+poucas vezes demandam as ladras, que pouco a pouco vaõ perdendo o furtado.</p>
+
+<p>Senaõ demandam, disse Crates Mallotes, queixam-se pelo menos, como naõ ha
+muito fez o nosso Condillac á vista desse Inglez.</p>
+
+<p>Ora pois, disse-me Carlos Magno, vinde para aqui. Entaõ fui-me chegando com
+a cauda de rojos feito viuva, despedindo-me dos Cortezãos á Ingleza, isto he,
+sem comprimentos, nem ceremonias, por ser indecente, que eu em semelhante
+occasiaõ, me dilatasse com elles.</p>
+
+<p>Chegado que fui ao pé do illustre Heróe, já Cataõ se havia levantado, e
+estava fazendo pontaria com hum telescopio, incomparavelmente mais comprido,
+que o de Galilei de Galileos. Teria pelo menos trinta covados<span
+class="pn">{97}</span> de comprimento: estava em cima de huma especie de
+carreta, que tinha suas escadas, para poder ver cada qual, segundo sua
+estatura.</p>
+
+<p>Ajustada a mira do instrumento, veio-se Cataõ assentar. Entaõ Carlos Magno
+arrancando de seu piedoso coraçaõ hum grande, e magoado suspiro: Sóbe, disse,
+verás por alli (apontava para o telescopio) por alli, pedantarias já dignas de
+riso; já dignas de lágrimas. E vós Sanches, ide estar bem, ao pé deste
+estrangeiro.</p>
+
+<p>Dito isto trepei pelas escadas até o ultimo degráu, pela razaõ da minha
+estatura, que entaõ pouco maior seria, que a de perú: o rabo sim era tamanho, e
+taõ monstruoso, como as <em>Linguagens</em> que em elle foram convertidas.
+Sanches porém, que naõ havia padecido, como eu nenhuma metamorphose, ficou em
+pé sete escadas abaixo, e com a sua cabeça a par da minha. Virei pois o olho
+esquerdo para a boca daquella grande maquina, e o bico para a banda; mas dei a
+volta com elle voltado para o ar, a fim de<span class="pn">{98}</span> naõ
+molestar a cára do Hespanhol, companheiro, amigo, &amp;c. Os circunstantes
+gostáram do meu procedimento, riram he verde, todavia com aquella moderaçaõ de
+gente bem educada. Eu confesso, que estive hum pouco confuso. Ora eu já tinha
+reparado ser desmarcado o meu bico; porém entaõ he que conheci ser sessenta
+vezes maior que o da cegonha. Nascia a minha admiraçaõ de ter sido feito de
+huma arte taõ breve, como o Novo Epitome. Já me naõ embaraçava olhar para
+outras partes senaõ com ambos os olhos para o meu bico.</p>
+
+<p>Assim me estava demorando com estas bagatellas, quando Sanches me disse: Naõ
+te maravilhes, tudo isso he preciso para dares as mais valentes picadas no
+charlatanismo deste seculo. Observa o que vai pela Europa.</p>
+
+<p>Entaõ vi casas do tamanho de bocetas, ruas, chafarizes, proporcionados, e
+logo infinitos ratos, devorando-se huns aos outros. As mortes ferviam: tudo era
+huma confusaõ. Em quanto isto se passava, sahiam arrãs<span
+class="pn">{99}</span> de differentes lagos; entráram logo a formárem-se em
+esquadrões: os seus escudos eram conchas de amejoas, as armas juncos mui
+agudos. Assim invadiram os campos, pertencentes aos ratos, estes moderaram
+algum tanto o odio intestino; muitos porém se misturáram com ellas; as quaes já
+hiam ganhando castellos: e alvoravaõ suas bandeiras. Mas os ratos logo se
+uniram quasi todos, levavam escudos de cascas de nozes, e as armas eram folhas
+de trigo candial. Affugentáram as arrãs, e fizeram-se senhores de muitas das
+suas ribeiras.</p>
+
+<p>Assim acabou aquella invasaõ. Depois ví alguns ratos ás costas das arrãs,
+que nadavam pelos lagos, e dahi a pouco vi muitos delles affogados pelas
+margens. Vieram outros com forcados ás costas: entaõ muitas arrãs fizeram paz
+com elles, segundo me pareceu, outras ficaram sós em campo: padeceram muitas
+derrotas: perderam muito das suas ribeiras. Tambem os ratos tractaram mal a
+muitas das que haviam deixado a liga, roubando, e<span class="pn">{100}</span>
+comendo os seus viveres, e occupando o seu terreno. Em quanto isto observei,
+vieram infinitos cágados, ajudaram tanto as arrãs, que já hiam recuperando
+muito do perdido. Muitos ratos fugiam pelas montanhas, com juncos espetados
+pelos olhos. As arrãs mortas eram sem numero; os ratos sem conto.</p>
+
+<p>Muito tens visto, disse Carlos Magno, e queira Deos vejas estas revoltas
+socegadas. Vê, como os ratos tudo querem roer; e depois querem que as arrãs
+sejam animaes silvestres, como elles.</p>
+
+<p>Eu estava pasmado, e ainda hoje trabalho por decifrar todo aquelle enigma, e
+canço-me debalde. Tambem vi batalhas navaes, em que as arrãs obraram
+maravilhas.</p>
+
+<p>Se estas, disse Cataõ, naõ derem cabo destes ratos enfurecidos, a mim me
+mellem.</p>
+
+<p>Crates Mallotes, queria se me explicasse aquessa visaõ; porém Carlos Magno
+disse: vamos ao que importa, venha Gúliver para aqui.<span
+class="pn">{101}</span></p>
+
+<p>Entaõ fui logo pelas escadas abaixo para junto do Imperador, o qual assim
+continuou. Nunca o mundo esteve taõ cheio de traidores, e de malvados como
+hoje: Por aquelle telescopio sabemos tudo; o qual alli da parte direita tem
+certo canudo por onde tudo ouvimos. Quizemos divertir-te com esses ridiculos
+objectos: cuja explicaçaõ alguem acharás entre os vivos, que bem a possa
+desenvolver. Só vos dizemos, que a falta de Religiaõ, de temor de Deos, assim
+como o orgulho, e o egoismo deste tempo, saõ as causas das desgraças, que com
+lagrimas nos olhos os bons mortaes em a patria vos contaraõ.</p>
+
+<p>Sim, disse Cataõ, este seculo tem produzido mais impios, e mais Atheos, que
+gafanhotos o estio. Os pais de familia, e a falta de vigilancia publica sobre a
+educaçaõ da mocidade, tem causado muitos prejuizos á sociedade humana.</p>
+
+<p>Cuidei, disse eu, que isso só serviria de augmentar o pedantismo, e<span
+class="pn">{102}</span> nada mais. A pedantaria, respondeu Cataõ, he prima mui
+chegada do desatino. Todas as causas della, tambem o saõ dos males mais
+funestos.</p>
+
+<p>Quando isto ouvi, lembrei-me logo da expressaõ de Aurelio Opilio, quando
+disse, que as revoltas do mundo deviam ser attribuidas á ignorancia: o que
+Teive havia provado com argumentos, que naõ tinham resposta.</p>
+
+<p>Os pais de familia, disse Lelio, com a sua má educaçaõ, os Mestres
+prevaricadores, os livros impios, tem feito em o mundo estragos mais terriveis,
+do que peste em cem annos.</p>
+
+<p>Tudo isto, disse Cataõ ainda tem remedio, os pais que naõ ensinam aos filhos
+o temor de Deos, a doutrina da sua religiaõ, a obediencia aos seus Soberanos, e
+superiores, sejam castigados: os Mestres que naõ mostram interesse na
+conservaçaõ das leis da sua patria, sejam apartados do ensino público, e
+particular: os livros<span class="pn">{103}</span> impios sejam naõ só
+prohibidos, mas até queimados; porque o seu pedantismo he mui prejudicial.</p>
+
+<p>Eu com difficuldade podia ouvir estas coisas: todo o meu desejo se
+encaminhava a que se me explicasse aquella célebre visaõ: por isso perguntei:
+Que quer dizer aquella loucura dos ratos, e das arrãs?</p>
+
+<p>Naõ sejais teimoso, respondeu Crates, surrindo-se; todas estas reflexões
+dahi nascêram. Ouvi a Cataõ, que he bello para isto. A vossa curiosidade he por
+certo innocente, mas de nenhuma maneira vos he util.</p>
+
+<p>Como ouvi fallar em a inutilidade do meu appetite, deitei-o para fóra, e
+inclinei o ouvido para Cataõ, que assim discorria: Hum homem sabio, que tem
+lido as Historias do mundo, e de cujo coraçaõ o diabo ainda naõ tomára posse,
+conhece muito bem, que tudo está perdido, huma vez, que se quebrem os antigos
+eixos de qualquer governo: ou seja por meio de planos, apparentemente bons: ou
+interesses imaginarios, ou titulos<span class="pn">{104}</span> de liberdade. E
+o peor he que o fogo desta funebre pedantaria passa de ordinario muito além das
+barreiras, dentro das quaes se accendeu; pois que he infinita a ignorancia, que
+lhe serve de lenha, e a si de ruina.</p>
+
+<p>Sem sahir de Roma, disse Cesar, temos as mais concludentes provas dessa
+verdade. Quando Bruto, o maior fanatico, que a antiguidade conheceu, com o
+pretexto virtuoso de vingar huma adultra suicida, todo o rude povo amotinára,
+naõ foi só o Imperio quem padeceu os funestos effeitos daquella republicana, e
+pedantesca novidade.</p>
+
+<p>Ouvindo isto o mordaz Cataõ, o qual havia sido o capataz dos Republicanos,
+torceu o nariz, e fazendo uma carantonha, como de quem sentio fedorentissimos
+vapores; assim retrucou a Cesar: Mas tu pouco menos de cinco seculos, depois
+daquelle delirio pedantesco: já quando todos amavam as leis, e os costumes de
+Republica taõ antiga, foste de Roma<span class="pn">{105}</span> regar os
+campos de Farsalia de Romano, e barbaro sangue. Hespanha sentio tambem os
+malvados golpes da tua furiosa espada.</p>
+
+<p>Toda a paga do meu delirio, disse Cesar, foram vinte e tres punhaladas, que
+recebi de quem a vida muito devêra desejar-me. Mas tambem o sedicioso Bruto em
+o mesmo anno de seu Consulado alcançou a recompensa da sua perfidia. Eu perdoei
+aos Cidadãos, que foram meus inimigos: mandei aos meus soldados metter a espada
+na bainha. Podéra muito bem naõ dar vida a algum. Porém todo o meu fim era
+restituir á patria o antigo, e bom governo da sua creaçaõ; porque sempre me
+pareceu pessimo o guizado da panella por muitos mexida.</p>
+
+<p>Mas naõ sendo tua a panella, replicou Cataõ, foras comendo esta tal, e qual
+vianda com que todos nos haviamos sustentado. E que prazer recebias de estar só
+a mexella, sendo a sua agua as lagrimas dos vivos,<span class="pn">{106}</span>
+e o seu adubo o sangue dos mortos?</p>
+
+<p>Tambem o fogo aonde fervia, disse Carlos Magno, era o incendio da guerra
+civil, a coisa mais lamentavel de todas as desgraças, que em o mundo possam
+succeder.</p>
+
+<p>He hum ingrato mui pedante, disse Crates Mallotes, todo o que deseja mudada
+a Legislaçaõ, e os antigos costumes do seu paiz, em pontos essenciaes; porque
+similhantes mudanças saõ a origem daquelle triste fenomeno, que Gúliver ha
+pouco vio: e que tem produzido des donde o Sol se poem até aonde elle nasce as
+miserias mais terriveis, do que a memoria de todos os seculos nos tem mostrado.
+Mas para naõ mentirmos, devemos confessar, que as traições tem sido a causa dos
+ratos terem feito tanto damno pelas ribeiras: se isso naõ fora, já ha muito
+estariam incurralados em seus buracos.</p>
+
+<p>Melhor seria, disse Lelio, que as arrãs, naõ lhes houvessem dado pasto para
+roer; porque entaõ elles se<span class="pn">{107}</span> devorariam huns aos
+outros, como fazem estes, que andam de cavallaria, pelos fórros destes tectos.
+Todavia he muito certo terem sido as traições a causa de durarem ha tantos
+annos essas carniçarias lamentaveis.</p>
+
+<p>Se os traidores, disse Cataõ, naõ fossem pedantes, conheceriam, que em o
+desempenho de suas obrigações, he que consiste a sua propria felicidade; e que
+o ultimo fim da vil traiçaõ he todo o genero de trabalhos, ou, quando pouco,
+huma infamia, que nem todo o mar em infinitos seculos poderá lavar.</p>
+
+<p>Sabemos muito bem, disse Crates, que o interesse do traidor costuma
+commummente ser igual ao do que entregou Gibraltar; mas Gibraltar ficou
+perdido. Pelo que mostrai, como se podem evitar os menos traidores, que for
+possível, em pontos taõ delicados.</p>
+
+<p>Huma boa educaçaõ publica, respondeu Cataõ he o primeiro remedio: depois
+disto evitar-se o mais<span class="pn">{108}</span> que poder ser tropa
+mercenaria. Assim he, disse Cesar, porque, quando todos os Cidadãos em Roma
+eram soldados, nem ao imperio faltava defeza, nem o povo morria de fome. Em
+tempo de guerra corria toda a gente necessaria, no fim cada qual vinha para sua
+casa. Desta maneira o ser soldado naõ se oppunha entaõ nem a ser estudante, nem
+lavrador, nem General.</p>
+
+<p>Tambem os soldados Portuguezes antigamente, disse Diogo de Teive, eram
+lavradores, e homens, que tinham interesse na conservaçaõ de suas familias, e
+de seus bens: homens capazes, que de suas lavoiras hiam para a guerra, e da
+guerra para as suas lavoiras. Naquelle ditoso tempo naõ se prendiam homens
+vadios, e facinorosos, senaõ para o supplicio; e ainda que se admitisse algum
+destes por ser valoroso, elle se fazia honrado, pelo desempenho dos seus
+deveres.</p>
+
+<p>Por isso, continuou Cataõ, temos visto por aquelle telescopio, que
+ninguem<span class="pn">{109}</span> até agora entrou em Portugal com maõ
+armada, que mais hoje, mais amanhã naõ sahisse com a aza a rastros.</p>
+
+<p>Eu estava admirado do que ouvia, e já gostava de ser bom estadista (naõ como
+os do caffé, aos quaes aborreço de morte, quero dizer as suas loucuras) por
+isso, estando muito familiarisado com a presença de Carlos Magno, que me tinha
+havia tanto tempo ao pé de si; com o mais profundo respeito; porque naõ costumo
+abusar do favor, que se me faz, assim perguntei: Como, Senhor, póde neste
+tempo, em que tanto se necessita de trópa bem disciplinada, deixar de haver
+soldadesca paga?</p>
+
+<p>Cataõ logo entrou a rosnar; mas em tom que nada percebi, com tudo, se fordes
+bom Logico, podeis fazer huma boa conjectura.</p>
+
+<p>Sua Magestade, o Illustre Imperador Carlos Magno respondeu-me com a mesma
+affabilidade, com que costumam os Monarcas Portuguezes fallar ao seu povo, e
+aos estrangeiros, o que<span class="pn">{110}</span> tudo observei quando
+estive em Lisboa; e Teive havia confirmado com milhares de provas; o qual era
+testemunha sem suspeita. O plano, proseguio o heróe famoso, para haver muitos
+soldados fiéis, e valorosos com bem moderada despeza, he o seguinte: Tem por
+exemplo huma Potencia 60$000 homens pagos, tenha só 12$000: estes sejam bem
+escolhidos. Alistem-se agora 200$000: repartam-se em Regimentos: venham da
+tropa paga officiaes sabios, e honrados para cada regimento. Tenha-se muita
+attençaõ aos destrictos para se ajuntarem os soldados em os dias desoccupados a
+fazerem exercicio. Dê-se aos pobres fardamento de tres em tres annos: a todos
+sem excepçaõ a sua arma. Fóra do exercicio naõ se vistam as fardas, tirando
+aquellas, que cada qual quizer comprar, &amp;c. Naõ se pague senaõ em guerra,
+ou actual serviço. Naõ se falte com o premio aos benemeritos. Entaõ siga cada
+hum o modo de vida que bem lhe parecer. Mas quando este seja incompativel, naõ
+se deve vexar ninguem.<span class="pn">{111}</span> Ora dizei-me deste modo
+faltará quem defenda a sua Patria?</p>
+
+<p>E seraõ, respondeu Cesar, menos as miserias publicas, e naõ ficaraõ as
+terras a monte, e naõ haveraõ tantos ociosos, e...</p>
+
+<p>Naõ será preciso, interrompeu Cataõ, prender homens, e assim constrangelos a
+jurar bandeiras, as quaes por esse motivo lhes haõ de ser sempre odiosas.</p>
+
+<p>Fallando assim Cataõ, e estando Carlos Magno virado algum tanto para elle:
+aproveitei-me da occasiaõ, e espetei o bico na orelha de Crates Mallotes, que
+estava á ilharga de Cesar; perguntei-lhe muito baixinho: Com que Bullas está
+aqui o açoite dos infiéis?</p>
+
+<p>Já te esqueceste (respondeu-me em o mesmo tom) do que te disse Quintiliano
+lá no congresso, quando se recommendou a Grammatica da lingua materna? Entaõ
+lembrei-me da Grammatica Tudesca; e ao mesmo tempo da brevidade, ou fraqueza da
+memoria humana. Mas debalde se fallou taõ baixinho;<span
+class="pn">{112}</span> porque o Imperador tudo ouvio, e disse mui
+expeditamente: Sim, fui Grammatico, e naõ temos medo aos Filósofos da moda. Tu
+faze pelo ser, para que algum dia tenhas lugar aqui comnosco.</p>
+
+<p>Elle que acabava de fallar, chega Manucio, Braz Pico, Laurenti, Crinito,
+Linacro, o Barbadinho, Antonio Pereira, e mais vinte Escritores Portuguezes, e
+pediram, compozesse eu huma Grammatica Filosófica da Lingua Portugueza; no que
+agora trabalho, mas espero de Lisboa humas tres que me dizem, estaõ a sahir a
+publico, para dellas me aproveitar sem crime de furto.</p>
+
+<p>Parece-me escusado dizer, com quanto respeito estes Grammaticos, que me
+vieram fazer a sua recommendaçaõ, tractaram aos Imperadores; porque já vos
+disse muitas vezes, que alli naõ ha gente mal criada.</p>
+
+<p>Em fim, promettendo eu áquelles amigos pôr todas as minhas forças por
+satisfazer ao seu empenho, disse Crates Mallotes: Vai agora ver o que<span
+class="pn">{113}</span> vai; chega-te ao telescopio. Subi, inclinei o olho, e
+Sanches chegou-me o canudo ao ouvido, e entaõ vi, e ouvi hum grande ajuntamento
+de ratos a chiar: e logo entráram ás focinhadas huns aos outros, como damnados.
+Nesse tempo veio-me aos olhos hum reflexo de luz de tal qualidade, que me
+obrigou a fechalos; mas quando os tornei a abrir, já nem vi mirante, nem nada:
+só me vi na regiaõ das aves sem saber que rumo seguisse, nem para onde me
+voltasse.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>FECHO DA OBRA.</h2>
+
+<p class="sinopse"><em>Conta Gúliver como chegou á patria: como foi poizar á quinta de hum
+Lord: como foi tratado: como deixou de ser passaro pelo toque da Carta de
+Crates: o seu Theor, &amp;c.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>S</big>Ahindo eu daquelle magestoso edificio sem saber de que maneira, assim como
+naõ soubera o modo com que á ilha arribára; naõ tive entaõ remedio, senaõ
+voltar o rabo para o Norte, e o bico para o Sul; porque naõ avistava nem palmo
+de terra: agua, e ceo, eram os unicos objectos de meus olhos. Estive hum pouco
+agitado dos mais tristes pensamentos, lembrando-me a desgraça de Icaro; mas
+adoçava estes amargos com o perfeito conhecimento de naõ terem sido as minhas
+azas feitas de cêra pelos<span class="pn">{115}</span> homens; sendo pelo
+contrario seus autores defunctos sabios, e honrados, inimigos de traidores.</p>
+
+<p>Assim animado desta esperança verdadeira, cujo fim naõ foi doloso, vim
+voando á ventura, por cima de mares immensos, que ví em differentes partes
+coalhados de navios, que me pareciam formigas d'aza. Porém chegando á altura de
+Londres, que muito bem conheci, e que me creou hum novo coraçaõ, entrei a
+descer por huma perpendicular, e cada vez se me hiam fazendo maiores os
+edificios, os quaes ao principio me pareciam conchas de mariscos, ou de
+caracois brancos.</p>
+
+<p>Cheguei em fim á patria; mas <em>ad cautelam</em> para evitar algum insulto
+da plebe, fui poisar á quinta de hum Lord, que fora muito meu amigo em outro
+tempo, e que ainda hoje o he. Porém eu chegado ahi, senaõ quando todos os
+rapazes, e raparigas da fazenda, me vieram com páos dar as boas vindas. Como
+pois eu era hum passaro taõ desusado, como<span class="pn">{116}</span> manso,
+me foram tangendo para casa de seu amo: nem eu queria outra coisa. Acudio elle,
+e ficou satisfeito do presente. Eu tive minhas tentações de lhe dizer quem
+fosse; mas contive-me; porque julgaria, que era algum diabo, ou alguma bruxa
+pelo menos. Deste modo segui o systema de mudo, até que algum defuncto me
+absolvesse de passaro, e me restituisse a figura de homem.</p>
+
+<p>Assim que ví o Lord entrei a fazer-lhe festa, como pude, isto he, com o
+rabo, e dando minhas correrias; mas de sórte que elle conhecesse que eu era
+animal domestico, por evitar alguma peia, &amp;c. O amigo estava-se babando:
+logo mandou vir huma escudélla de páu, cheia de legumes, lembrei-me logo de
+Pythagoras, e do riso de Teive; e conheci-me comprehendido em o mesmo crime;
+porque havia sido pouco devoto daquella fructa (por má creaçaõ, eu o confesso)
+e entaõ senti huma tamanha rafa, que até devoraria a propria gamella. Mas
+todavia fiz-me grave até ás horas de<span class="pn">{117}</span> jantar, que
+me pareceram mais compridas do que a noite em que Alcmena dormio com Júpiter;
+cuidando ella ter em casa o seu Anfitriaõ.</p>
+
+<p>Neste dilatado tempo recebi milhares de visitas, que me fizeram hum grosso
+circulo, bem como a plebe de Lisboa costuma fazer a hum preto, quando esfola
+algum cavallo; do que sou testemunha de vista. Tocou finalmente a jantar, e eu
+que estava já aborrecido daquella gentalha, e morto de fome, rompi por onde
+pude, fazendo caminho com o bico, o qual fui logo espetar no prato do Lord, que
+naõ levou a mal o meu desembaraço, antes mo encheu humas poucas de vezes de
+boas viandas. Tambem repiquei em o copo; mas com muita moderaçaõ. Desta maneira
+tirei o ventre de miseria: e regallei-me em quanto fui ave. Eu sahia pela
+quinta, e tornava: e naõ havia mimo, que se me naõ fizesse.</p>
+
+<p>Ora eu cheguei áquella boa hospedagem ás déz horas do dia 2 de Janeiro de
+1800, e seriam onze do dia<span class="pn">{118}</span> 13 do dito, estava eu
+ao Sol (que durou bem poucos minutos) estendendo a aza, e compondo a plumagem:
+senaõ quando chega huma ave, que me parecia galinholla, com hum cartaz no bico,
+e deixando-o cahir lá do alto sobre mim, fiquei Gúliver como dantes, vestido em
+trajes de marujo, o que eu certamente nunca fui, mas assim vestia em meus
+embarques. As pennas lá fugiram para o corpo do Correio: e talvez tornem a ser
+convertidas em as artes de que já fallei.</p>
+
+<p>Estando eu todo concho a abrir a carta, chega de repente o caseiro, e diz:
+Quem deu a você licença de aqui entrar? Senhor, respondi, achei a porta aberta.
+Naõ póde ser, replicou, vocês trepam pelas paredes como gatos. E apostamos, que
+você vem com o cheiro em o passaro de meu amo? Ah! Sim hum passaro mui
+esquipatico, disse eu, ahi anda em o cima da estrada a querer saltar para
+dentro. Vamos fóra eu lho ajudarei a enxotar para cá.<span
+class="pn">{119}</span></p>
+
+<p>O pateta, que isto ouvio, sahio a correr; e eu apoz elle. Metti-o em huma
+travessa, e safei-me por outra bem para longe a ler a recommendaçaõ dos amigos
+defunctos, cujo theor he o seguinte, em pergaminho de boa letra, que naõ dou
+nem por hum milhaõ de libras estrellinas.<span class="pn">{120}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2>CRATES MALLOTES</h2>
+
+<p class="centrado">Exembaixador do Rei Attalo, Exprofessor<br>
+de Letras Humanas em a Cidade<br>
+de Roma, Presidente Honorario<br>
+dos Grammaticos defunctos</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="sinopse"><em>Ao nosso amado Hospede Roberto Gúliver deseja muita Fortuna.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p class="ni"><big>N</big>Aõ te posso explicar, amigo Inglez, as saudades, que
+deixaste em a nossa ilha, e quanto todos ficáram namorados do teu bom
+procedimento; por isto, e tambem pelo bom affecto com que te tractámos, he
+necessario, naõ te esqueceres das nossas recommendações, para que, depois do
+golpe da Parca, te associes comnosco. Muito bem observaste quantos homens
+grandes aqui habitam, Imperadores, Bispos, Condes, Generaes, &amp;c. Depois
+disto aviva lá no mundo a nossa memoria, para naõ esquecer de todo:<span
+class="pn">{121}</span> o que te será pouco custoso, patenteando os justos
+açoites, que nos vistes descargar sobre o pedantismo deste seculo. Mas os
+Grammaticos Portuguezes, de quem muito nos prezamos, e os Hespanhoes, querem,
+que tu dívulgues as nossas lições em Portugal; naõ por necessitar mais dellas,
+do que as outras nações, mas porque lá ainda ha muitos sabios, a quem haõ de
+ser bem gostosas. Naõ temas nada: tudo o que disseres, he nosso, que nos
+lastimamos muito dos destemperos da humanidade. Se em fim por tamanha caridade
+houver quem te morda, de cá irá o medicamento, sem que pagues porte ao Correio.
+O portador desta he Despauterio, e pódes dizer áquelle amigo, que elle já naõ
+ralha dos outros, e que siga este exemplo. Ilha dos Mórtos 12 de Janeiro de
+1800.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Apenas lí este passaporte, corrí como huma lebre a casa do Lord, que naõ
+sabia o que me fizesse. Logo me deu vestido, dinheiro, tudo. Mandou-me<span
+class="pn">{122}</span> sem perda de tempo pôr mãos á obra; e depois de a lêr
+carregou-me de elogios: e vai-se a imprimir por sua conta. Eu estou mui gostoso
+da sua approvaçaõ, por ser hum homem doutissimo, que naõ declaro para naõ cahir
+em incoherencia, que he o peor defeito de quem escreve.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;margin-left:auto;margin-right:auto;">FIM.</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica
+Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA ***
+
+***** This file should be named 34287-h.htm or 34287-h.zip *****
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+Produced by Mike Silva
+
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+works. See paragraph 1.E below.
+
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
+
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+
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index 0000000..6312041
--- /dev/null
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
diff --git a/README.md b/README.md
new file mode 100644
index 0000000..aee61b6
--- /dev/null
+++ b/README.md
@@ -0,0 +1,2 @@
+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #34287 (https://www.gutenberg.org/ebooks/34287)