diff options
| -rw-r--r-- | .gitattributes | 3 | ||||
| -rw-r--r-- | 34287-8.txt | 2291 | ||||
| -rw-r--r-- | 34287-8.zip | bin | 0 -> 48609 bytes | |||
| -rw-r--r-- | 34287-h.zip | bin | 0 -> 50901 bytes | |||
| -rw-r--r-- | 34287-h/34287-h.htm | 2340 | ||||
| -rw-r--r-- | LICENSE.txt | 11 | ||||
| -rw-r--r-- | README.md | 2 |
7 files changed, 4647 insertions, 0 deletions
diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/34287-8.txt b/34287-8.txt new file mode 100644 index 0000000..7e55735 --- /dev/null +++ b/34287-8.txt @@ -0,0 +1,2291 @@ +The Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos +Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo + +Author: Robert Guliver + +Release Date: November 12, 2010 [EBook #34287] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA *** + + + + +Produced by Mike Silva + + + + + + CRATES MALLOTES + + OU + + CRITICA DIALOGISTICA + + DOS GRAMMATICOS DEFUNCTOS + CONTRA A PEDANTARIA DO TEMPO, + + ESCRITA E PUBLICADA + + POR GULIVER + + _Que chegou ha pouco da outra vida._ + + _Obra taõ divertida como interesante aos curiosos, + e amantes do bom gosto._ + + + + _Praeterea, ne sic, ut qui jocularia, ridens + Percurram: quamquam ridentem dicere veruim + Quid vetat?_ Horat. Sat. I. do L. I. + + + + LISBOA, + ANNO M. DCCC. + Na offic. de Joaõ Procopio Correa da Silva, + Impressor da Santa Igreja Patriarcal. + + _Com licença da Mesa do Desembargador do Paço._ + + + + + + + + _Non semper ea sunt; quae videntur: decipit + Frons prima multos: rara mens intelligit, + Quod interiore condidit cura angulo._ + + Phaed. Prol. do L. IV. + + + + +AO SR. PANTALEAÕ GONÇALVES SALGADO + +DAS BARROCAS + +ROBERTO GULIVER OBSEQUIOSAMENTE SAUDA. + + +_Porque meu avô, que em paz descance, costumava gastar huma boa parte +das compridas noites do Inverno ao seu lume, elogiando muito a pessoa de +V. m. e fallando sempre no seu prestimo, e cançasso no serviço dos +amigos: e tambem pela justa paixaõ, a qual, como Portuguez velho, por +muitas vias sei, pela sua naçaõ naõ cessa de mostrar: tudo isto me +obriga a dar-lhe o incommodo de concorrer com todos os seus bons +officios, para que se imprima o mais breve este livrinho, parto dos +Grammaticos defunctos contra a_ pedantaria _do_ tempo: _em o qual livro +achará V. m. as verdades mais importantes, naõ forjadas neste, mas sim +no outro mundo, donde ha pouco cheguei a salvamento. Naõ quero todavia, +que a sua bolsa padeça detrimento; por isso que o portador entregará +50 libras estrellinas: e, se mais for preciso, mais irá: nem seria +necessário tanto, se eu naõ quizesse, que a Ediçaõ fosse em tudo +completa, e que se estampassem 6000 volumes. Receba pois esta obra, como +toda consagrada aos merecimentos da sua veneranda pessoa: e peça-lhe +encarecidamente, faça por aqui aprender a ler seus netos; porque assim, +naõ duvido, terá a satisfacçaõ de os ver em sua vida os melhores +doutores; por isso que naõ lhes falta esperteza, do que estou bem +inteirado. Deos guarde a V. m, muitos annos._ + + +_Londres 25 de Fevereiro de 1800._ + + + + +PROLOGO. + + +Qualquer que seja o estado, ó amicissimos Leitores, em que a sórte tenha +collocado o homem, nunca já mais o pode dispensar de Fazer bem aos da +sua raça: foi este devêr gravado no coraçaõ humano pelo dedo da propria +Natureza; nem taõ pouco o Author Supremo lhe permittio a feia liberdade +de derribar os alicerces mais seguros da ordem social. Estes motivos, +julgo, obrigáram a meu avô a fazer suas viagens a differentes ilhas, +donde vos trouxe bellos, e interessantes documentos, os quaes, a meu +ver, muito vos aproveitariam, se bem trabalhasseis pelos entender. Eu +pois naõ querendo deixar só em taõ louvavel projecto hum illustre +progenitor, que honrou ainda mais a sua naçaõ, que a sua familia, fui, +depois de alguns estudos sérios o unico patrimonio, que recebi de meu +pai, passear pelo mundo, a fim de recolher os fructos, que a minha +terra naõ houvera produzido. Agitado por isso destas boas intenções, +viajei por todas as partes do orbe; e lá virá tempo, se a Parca o +quizer, que eu deleite a vossa curiosidade com bocados bem gostosos. +Entre tanto desfructai estas bem adubadas lições dos Grammaticos +defunctos, que vos trago da ilha dos Mortos, á qual apportei naõ sei +como, depois de haver naufragado dois dias antes, junto da Arcadia. Naõ +me foge ser este presente bem digno da minha amada patria, e confio, que +ella naõ rejeite as provas mais sinceras do meu affectuoso coraçaõ; +ainda que por outra parte naõ desconheço mais quereria, que eu a +mettesse de posse da dita ilha; mas naõ podendo ser a sua conquista +senaõ depois da morte, só lhe dou o que cabe em a minha alçada: isto he, +lições mui precisas, que a benignidade de Crates Mallotes, e de outros +Grammaticos fallecidos muito me recommendou; e as quaes eu terei sem +algum rebuço, e com a mesma franqueza de vos manifestar; já por ter +lido isto expressamente mandado, como vereis, por gente da outra vida, +com quem naõ se deve brincar; já por ser contra o meu decóro naõ pizar a +feia, e çuja lisonja com os mesmos pés que correram pelas ingenuas +provincias da eternidade. + + + + +CRATES MALLOTES. + + +DIALOGO I. + +_Acha-se Gúliver depois de seu naufragio deitado em huma cama de penas; +levanta-se, fica vestido com ellas: he levado ao palacio de Crates +Mallotes: falla-se em a decadencia das Letras: estabelece Teive tres +causas de pedantaria geral: nomeia Crates para cada huma seu relator, &c._ + + +Tinha amanhecido o dia 27 de Dezembro de 1799, passados já quasi 23 +annos, que havia sahido dos patrios lares, e para onde vinha navegando: +seriam tres da tarde, quando se levantou pelo Sul huma nuvem +pardacenta, que em breve espaço vestio o Ceo de negro, e logo o +vento entrou a dar horrendos berros, os quaes converteram os mares em +elevadissimas montanhas, cujas fraldas eram medonhas cavernas: ferviam +os alaridos; mas a fervura pouco durou; porque a tempestade correu +veloz, fez em migalhas toda a mastreaçaõ, o mar de Arcadia engolio o +casco do navio, e sepultou em suas malvadas entranhas os meus amados +companheiros. Eu andei abraçado com hum pedaço de mastro, dois dias, +segundo penso, feito boia; no fim dos quaes cheguei quasi defuncto +áquella parte da ilha dos Mortos, que os Grammaticos habitam. Naõ sei +dizer como ahi apportei; porque só me lembro de resuscitar no meio dos +Grammaticos, que já morreram, cuja caridade, e benevolencia vou apregoar +para confusaõ dos ingratos de que o mundo está cheio. He pois o caso: +mal hia eu abrindo os amortecidos olhos, senaõ quando vejo Sanches todo +arregaçado a applicar-me varios remedios, e ninguem dizia nada, eu +tambem fiquei callado; porém nada me escapou: porque reparei me +haviam deitado em hum leito de negro evano, enterrado em plumas de aves +desconhecidas, no meio de hum portico de soberbas columnas, o qual +servia de fachada a hum palacio taõ magnifico, que bem conheci naõ ser +feito por braço mortal, cujas obras pelos erros, e defeitos, logo se daõ +a conhecer. + +Assim estava medindo com os meus botões o edificio dos mórtos, quando +Sanches observando hum e outro pulso, disse: _Desta estás çafo._ Eu +porém, que naõ estava acostumado a ouvir fallar defunctos, metti a viola +no sacco. Mas o Francez Despauterio, como quem quiz mostrar o pique da +sua naçaõ contra a Hespanhola, disse com hum rizo Sardonico, muito +gosto, Sanches, de vos vêr de Grammatico feito Medico. Já no mundo +(tornou o sabio Brocense em hum tom, que me regalou) fui o Medico, que +curou as doenças literarias do teu paiz: o meu nome lá anda na boca +dos eruditos; o teu na dos pedantes. + +Entaõ Despauterio ficou de queixo cahido: todo o congresso bateu as +palmas, e carregou de vivas o Principe dos Grammaticos, e eu animado com +a galhofa agradeci-lhe muito a caridade com que me tratou: e fiquei +desde entaõ senhor de mim de tal feiçaõ, que me parecia, já naõ ser +homem de Inglaterra: de maneira que sem ceremonia nenhuma saltei pela +cama fóra; mas quanto naõ fiquei maravilhado, quando me vi vestido das +mesmas pennas, em que, pouco havia, estive deitado! Fiquei pois com huma +beca, como de Desembargador, e naõ cessava de me mirar, assim como fazem +os casquilhos no meio das ruas; porém he certo que eu naõ obrava assim +por asneira, como elles. Toda a minha admiraçaõ era ver hum vestido +feito por si mesmo sem tezoura, nem agulha de alfaiate. Antonio Nebrixa +conheceu o meu espanto, e disse: Aqui naõ admittimos homens, que fazem +officio de mulher, e subministram ao luxo mundano o ultimo +refinamento, ajudando os teares da tua naçaõ a esgotar quanto dinheiro +as outras tem. Fiquei envergonhado, e elle conhecendo o meu pejo, +virou-se para a turba, e disse: Aonde está Linacro, que naõ vem dar as +boas vindas ao seu compatriota? Logo appareceo o Grammatico Inglez, de +quem recebi aquelles generosos cortejos, que de homem taõ douto devia +esperar. Entaõ fez D. Maximo de Sousa certo signal, e fui levado em +procissaõ para o palacio. + +Logo que ahi entrei, espetei os olhos em hum velho venerando, o qual +estava sentado em o segundo salaõ em huma cadeira toda cravejada de +brilhantes carbunculos; em cujo espaldar se viam as armas do Rei Attalo, +de quem havia sido Embaixador. Ajoelhei, e elle virou a cára para a +banda. Disse-me entaõ Estevam Cavalleiro: Aqui naõ se gosta de lisonjas, +faze o que vires fazer aos mais. André de Rezende, que estava ao pé, +disse-me: Todos aqui estamos assentados: aquelle he verdade está com +mais distinçaõ, por ter sido o primeiro Mestre, que Roma teve, +Crates Mallotes se chama. + +Entaõ eu pedi licença para fallar: ao que todos os que estavam perto de +mim, responderam, que naõ só pelos merecimentos de meu avô, mas pelos +proprios, os quaes valiam seiscentas mil vezes mais que os alheios, +podia eu dizer o que bem quizesse. Abaixei a cabeça pelo obsequio, e +disse: Se bem me lembro, este homem foi Grego, e naõ sei, porque recebe +aqui as honras de primeiro contra outros da Grecia muito mais antigos +que elle? Assim he, disse Sanches, mas como os Romanos venceram os +Gregos, e ficaram senhores do terceiro periodo das Letras, tambem sempre +respeitaram o seu primeiro Mestre: e tendo o imperio Romano dado leis a +todo o mundo, ficou este com os seus discipulos nesta Ilha ainda +recebendo as honras do Magisterio: e nós todos respeitamos muito as suas +cãs. + +Quando elle assim fallava, vi huma nuvem de Grammaticos Romanos, que +o Barbadinho nomeava por seus proprios nomes, que me naõ eram novos +pelos haver lido em Suetonio _de Illustribus Grammaticis_. Notei com +tudo tres turmas differentes, a saber, a primeira dos Grammaticos +antigos, isto he, desde o fim da segunda guerra Punica até o seculo X. +da era vulgar: outra dos velhos, isto he, desde o seculo X. até o XVI. a +ultima dos modernos, isto he, desde entaõ até hoje. Porém muitos dos +modernos estavam misturados com os velhos; e disse-me Porretti, que era +por terem seguido as mesmas opiniões. Tambem ouvi em outro salaõ hum +grande susurro, e disse Cataldi, serem os Grammaticos antiquíssimos, de +quem naõ havia memoria no mundo, e que por isso viviam solitarios. + +Cuidei, disse eu, que a Grammatica naõ era taõ antiga: he mais +(respondeu Carlos Tobalduzio) do que os pedantes pensam: mas +sentemo-nos, que para isso já o Mestre fez signal. Logo que todos se +assentaram, e eu ao pé de Sanches, poz Crates Mallotes huns oculos +no nariz, e avistando-me, diz: Tambem por cá, meu Inglez? Eu me admirava +já de naõ apparecer por aqui algum marinheiro da Grã-Bretanha mas vamos +adiante, que vos parece a pedantaria deste chamado seculo das luzes? Ha +23 annos, respondi, que sahi da minha Patria, e Portugal foi a primeira +terra, que depois da minha conheci: E entaõ que viste por lá? Florecer +as letras com muita vantagem, o commercio; vi manufacturas, taõ boas, ou +melhores, que as do meu paiz. + +Assim foi, disse Crates, mas para que saibais, quanto agora lá vaõ +decahindo as letras, para que eu naõ falle em outras nações que +finalmente estaõ prostradas na mais furiosa ignorancia, vos informará o +respeitavel Diogo de Teive, e outros Portuguezes, e estrangeiros, os +quaes comnosco vivem. Porque, naõ obstante as justas providencias, que +para remedio deste mal, ha dado o melhor e o mais pio de todos os +Monarcas do orbe, necessariamente havia de fazer alguma opposiçaõ á +piedade de seus desejos a furiosa torrente de desgraças, que ha onze +annos, tem alagado de sangue, e de maldades a infeliz Europa. Portugal, +talvez pela sanctidade de seu Augusto Soberano, tem padecido bem pouco; +ahi ha mais sabios, melhores soldados, mais gente honrada em todos os +estados, do que naçaõ alguma possue. Por isso, meu Inglez, applicai as +nossas justas censuras, ainda com mais razaõ, a todos os póvos da terra; +e confessai isto mesmo lá no mundo, para credito da nossa honra, e prova +da nossa verdade. + +Eu desempenharei, diz Despauterio, a tua commissaõ, nem outro melhor +para isso acharás. Callai-vos, repondeu Mallotes, todos sabem que fostes +hum gritador contra todos os Grammaticos de teu tempo, quando a tua Arte +he hum _cahos_ muito similhante á massa informe, que existia _Ante mare +& terras_.... O Francez vaidoso ficou fazendo trejeitos; mas por +entaõ ficou callado. + +Todos gostaram muito do sabonete do velho; porém Diogo de Teive com toda +a civilidade principiou dizendo: Ainda que Despauterio tenha milhares de +defeitos em a sua obra, naõ deixa todavia de ter algumas coisas +interessantes, de cujo numero he a definiçaõ de Grammatica: _Omnium +scientiarum sons uberrimus._ E certamente, se o dom da palavra he hum +dos maiores que do Ceo recebeu a humana geraçaõ, e porque se differença +dos brutos animaes, como poderiam sem este dom os homens viver em +sociedade? He por esta via que elles huns aos outros communicam os seus +desejos, e sentimentos, a fim das utilidades, e interesses da vida +social. He logo preciso que o homem saiba fallar; pois senaõ souber, de +que lhe valem todos os seus conhecimentos? E naõ será por conseguinte a +primeira de todas as disciplinas aquella de fallar, e escrever sem erro? + +Quem o duvida? disse Vossio, por isso he que os Gregos, Mestres do +genero humano inventaram a Grammatica. A isto tornou Crates Mallotes, +abaixando a cabeça: Naõ ha duvida que de nós a receberam muitos póvos; +mas já antes de nós os Hebreos a conheceram. + +He verdade, continuou Teive, que os sabios de todos os tempos muito bem +se persuadiram do interesse desta arte; e póde-se dizer que ao homem, o +qual sem ella quizer ser letrado, acontecerá o mesmo, que ao cégo sem +moço, nem bordaõ, correndo por montes, e rochedos. + +Mas os homens deste tempo, diz Pedro Simaõ Abril, nenhum caso fazem +della: todo o que era tido por honrado em o meu, mandava seus filhos ao +Latim; e desta maneira ficavam pelo menos com alguma instrucçaõ de +Grammatica geral. + +Sim, disse o Barbadinho, naõ ha muitos annos, que os rapazes hiam leguas +aprender Latim, hoje naõ faltam Mestres, sem terem a quem ensinem. +Por isso, disse Agostinho Saturni, ninguem vê senaõ casquilhos, mettidos +a espertos, sem que ao menos saibam ler. + +Naõ se estudando Grammatica, proseguio Teive, tambem fica abandonada a +Logica, a Eloquencia, e os mais estudos, que allumiam o espirito do +homem: e daqui vereis quanto vaõ decahindo as letras, sendo taõ poucos +os que a ellas se applicam. + +De França, disse Lopo Gallego, veio o exemplo desta pedantaria, deste +desprezo das letras. Aqui se levantou o P. Manoel Alvares, todo +inflammado, e disse: Depois que o grande Rei D. José reformou os +Estudos, e reprovou a minha arte, ficou a Grammatica Latina bem facil de +aprender; mas a pezar desta reforma vejo cada vez mais pedantes, e +estadistas de café. + +He verdade, disse Fr. Theotonio de Lisboa, que as intenções do nosso Rei +foram todas as mais heroicas; Portugal no meio deste seculo poz-se +todo luminoso; e os sabios cresciam em tanto numero, quanto era o das +mercês, e premios, que de taõ alto Senhor recebiam. Estas luzes porém +vaõ-se diariamente apagando pelas borrascas tenebrosas, que ha dez annos +pegaram, e a ignorancia corre appressadamente a pôr no cachaço dos +humanos a sua canga de ferro. + +Como póde ser, disse eu, que as letras tenham decahido tanto em +Portugal? Ha 23 annos, que lá estive, e parecia-me ter sabios para +ensinar todos os povos do mundo. + +Ainda hoje, respondeo Martinho Crusio, tem em sua pequenez mais eruditos +que naçaõ alguma; porém a mocidade vai perdida: e esta praga he geral, +ainda naquelles povos, que se jactam de mais espertos. + +E que vos parece, companheiros, disse Sevio Nicanor, a persuasaõ +ridicula de certas cabeças allucinadas, que attribuem á sciencia as +revoltas deste seculo? Á ignorancia, respondeo Aurelio Opilio, he +que deveram ser attribuidas. + +Dizeis bem, continuou Teive, esse he hum sophisma _non caussae pro +caussa_. Porque pela falta de sabios perdeu-se Athenas: o imperio Romano +espirou em a noite da ignorancia: França nunca foi taõ florescente, como +em o tempo de Luiz XIV.: Hespanha em o dos Reis Catholicos. Estas provas +saõ de facto, e só por outras da mesma natureza podem ser contrastadas. + +Joaõ Despauterio, que vio fazer a França aquelle elogio, poz-se todo +tezo, e disse, que ella havia sido a mãi dos sabios; Crates Mallotes +porém, que já o mandára callar, poz-se a dar cuadas, e parecia huma +vibora. Vendo Jerardo Joaõ Vossio o velho assanhado, disse: Aqui naõ he +lugar de enganos, bem sabeis que os Francezes nunca passaram de +Contrabandistas das letras. Todos sabem que elles tem vertido o trabalho +dos mais povos, e que muitos inventos alheios os tem vendido por seus. + +He isso taõ certo, diz o grande Joaõ de Barros, que até a invençaõ da +maquina aerostatica fizeraõ sua, quando foi de hum clerigo Portuguez, +que sendo entaõ tido por Magico padeceu seus detrimentos. + +De vagar, de vagar, disse Lancelot, senaõ temos inventores temos +aperfeiçoadores, o que he nada menos estimavel. Vede Maxilon, e +Bordalue, e reparai quanto he hum semelhante a Cicero, e o outro a +Demosthenes. Confesso, disse Barros, souberam bem aproveitar-se da +Eloquencia Grega, e Romana. He na verdade grande admiraçaõ hum imperio +taõ vasto produzir hum punhado de homens grandes! Mas dizei-me, que +vedes agora por lá, senaõ systemas imaginarios, que estando armados no +ar hoje se levantam, ámanhã se dissipam, bem como as nuvens, que tem os +mesmos alicerces? + +Esta disputa hia sendo bem gostosa, e tratada com calor; mas Crates +Mallotes deixou cahir a vizeira, e tudo ficou em silencio: e olhando +para huma, e outra parte; a essas desputas, disse, saõ impertinentes; já +vos mandei, Diogo de Teive satisfazer a esse Inglez. Entaõ o Illustre +Humanista continuou, dizendo: A causa da decadencia das letras, ou para +o dizer melhor, as causas da pedantaria deste tempo saõ tres: a primeira +saõ sem duvida os pais de familia, que em vez de educarem filhos, que +honrem a lua patria, criam ou leões que a devoram, ou porcos, que a +çujam: a segunda saõ os Mestres idiotas, e charlatães, que vam formando +discipulos a si similhantes: a ultima saõ os máos livros didaticos por +onde muitos ensinam a mocidade. + +Todos os Grammaticos applaudiram muito a proposta de Teive, e ao mesmo +tempo hiam cortando o discurso com as suas costumadas reflexões, e já +era o susurro tamanho, que nada se percebia: entaõ Crates deu duas +pancadas em a cadeira, e fallou com palavras meigas: Bem vedes, +amados companheiros, que esse Inglez he vosso discipulo, e que por isso +he necessario o bom methodo para se aproveitar das vossas interessantes +lições. Sou pois de parecer que a primeira das tres causas da +pedantaria, que tu, ó Teive, taõ eruditamente expozeste, seja tratada +por Marco Fabio Quintiliano; a segunda por Elio Antonio Nebrixa: a +ultima por Francisco Sanches Brocense; pois que foi, e será sempre a +honra dos escritores Grammaticos: com tudo qualquer dos outros poderá +fallar em tempo competente para deleite deste respeitavel congresso. E +tu, ó mortal ditoso, que tiveste a ventura de ouvir em tua vida as +lições dos mortos, naõ percas cousa alguma, para sahires daqui com as +forças precisas ao justo fim de bem coçares huma chusma de pedantes, os +quaes com seus erros, e com sua ignorancia tem çujado, e envilecido as +nossas provincias Grammaticaes. + +Abaixei a cabeça, e beijei as palmas em signal de agradecimento: e os +outros ficaram com a boca aberta a olhar para Quintiliano, que se foi +sentar em hum escabello, o qual estava chegado á cadeira pela parte de +diante. + + + + +DIALOGO II. + +_Expõem Marco Fabio a primeira causa da pedantaria: erros de educaçaõ: +bandalhices: desprezo da literatura: funestas consequencias, &c._ + + +Quando todos os Grammaticos defunctos estavam com a maior attençaõ, fez +huma grande reverencia Fabio, e deu com o queixo no peito huma tamanha +pancada, que todo o edificio tremeu, e eu de medo cahi sem sentidos; nem +por certo o meu desmaio foi similhante aos fenicos das damas, que fingem +diabruras para terem occasiaõ de fallarem aos casquilhos: Sanches que +era bem versado em Medicina, logo me chegou ao nariz hum estimulante, o +qual me tornou taõ esperto, e huma memoria taõ feliz, como podereis ir +observando em todo o processo destas arengas. + +Mas tornando ao proposito: Depois daquella ceremonial venia, que taõ +cáro me custou; voltou Quintiliano successivamente a cabeça para os +lados de toda a assembléa, do mesmo modo que fazem os Oradores em o +principio de seus discursos; e entaõ assim principiou: He sem duvida +serem os pais de familia a primeira causa da pedantaria. Apenas os +infelices meninos nascem, logo entram a puchar por elles para o curral +da ignorancia, e pelos caminhos do vicio he que vaõ arrastrando aquellas +innocentes victimas para os altares da charlatanaria, e da maldade. + +O peor he, disse Francisco de Brito, que muitos pais ensinam aos filhos +as mais ridiculas extravagancias, e estaõ persuadidos, que só elles +sabem dar boa creaçaõ a seus filhos. A esses, disse Nicodemos +Frischilino, a sua tolice os desculpa; mas nenhuma tem os que praticam +todo o genero de maldades sem pejo da sua familia ser testemunha, e +quereram que ella seja virtuosa? + +Taes, disse Lucio Joaõ Scopa, com suas amoestações, conseguem o mesmo, +que a mãi dos caranguejos, a qual mandando aos filhos, que naõ andassem +ás avessas, elles responderam: Andai vós ás direitas, e nós vos seguiremos. + +Bem sabeis, disse Fabio, que eu fui o primeiro Mestre público que em +Roma ensinou, e nunca cessei de clamar contra a má educaçaõ, que os pais +daõ aos filhos; mas os homens de hoje saõ infinitamente mais culpados. + +Que Romano, disse Samuel do Prat, naõ entranhou com o seu exemplo em o +coraçaõ dos filhos o amor da patria, e das letras? + +Ora pois, continuou Fabio, os idiotas nunca em Roma figuraram, senaõ em +os seculos da escuridade; por isso os pais procuravam pela sciencia a +fortuna dos filhos, e a sua. + +Mas em que pontos principalmente, diz Elias Maior, peccam hoje os +pais em a educaçaõ de seus filhos? Dois extremos viciosos, respondeu +Quintiliano, saõ as causas primitivas. Huns os tratam com excessivo +mimo, outros com excessivo rigor. Daqui nasce, serem estes clausurados +em casa, como Freiras, e serem aquelles largados sem freio para onde +querem. Todavia accresce a tudo o mau exemplo: porque, como a virtude, +anda fogindo destas guerras, e destes desaforos modernos, se o menino +naõ a encontra lá por fóra, muito menos a achará em casa, aonde nem se +falla em Doutrina, nem em Religiaõ, nem em temor de Deos, nem amor da +patria, do Soberano, das sciencias, &c. Ora vede agora que taes doutores +seraõ os filhos de taõ bons pais? Por isto, disse Buchnéro, o mundo está +cheio de paraltas, e estadistas, como nunca. + +E que vos parecem, disse Barnabé de Busto, estas bandalhices da moda? +estes çapatos de bico mais comprido, que corno de boi? Estes +calções, que custam mais a saccar das pernas, do que a cobra a +largar a sua pelle? Estes dois relogios? Estes chapeos de zabumba? Por +ventura os Romanos senhores do universo praticaram no meio do seu luxo, +e das suas riquezas, similhantes extravagancias? + +Naõ chameis, respondeo Fabio com muita brandura, naõ chameis a isso +extravagancias, chamai-lhe falta de bóla. Os Romanos foram muito sabios: +todas as ordens tinham seu modo de trajar; e o mesmo homem em as suas +differentes idades usava de vestido accommodado a cada huma dellas. + +Os nossos antigos Reis, disse André de Resende, foram inimigos +declarados do luxo: e estavam taõ persuadidos serem estes os sentimentos +de todos os seus vassallos honrados, que D. Affonso o Bravo deu hum +grande golpe no luxo para adoçar a magoa publica, que nasceo das +desavenças, que elle tivera com seu irmaõ: e o que foram os Portuguezes +daquelle tempo, prova-se com a batalha do Salado, cuja memoria, faz +parecer, todas as que depois houveram, brincos de rapazes. + +Mas ainda dado, replicou Barnabé de Busto, que entre os antigos, +apparecesse alguma vez o luxo, esse lobo faminto, que devora a honra, a +virtude, e o dinheiro, vio-se em alguma época taõ enfeitado de +redicularias como hoje? Os çapatos de espeto, naõ mostram quanto he +romba a cabeça de quem os traz? Os calções de talas fariam menos +deshonestos os antigos Faunos, quando dançavam nús em os theatros? Os... + +Basta, disse Manoel Alvares, o peor he o custo do feitio, e da peça, que +dura tanto, como aquelle animalinho, que nasce pela manhã, e morre á +noite. Eis-ahi a causa, diz Taberio, de huma enxurrada de caloteiros, e +de meritrizes, que tudo varrem. + +Naõ houve seculo, continuou Manoel Alvares, nem mais farto de +viveres, nem mais abundante de gente honrada que o meu; ensinei no +pateo de Santo Antaõ, e nesse tempo o ornato dos estudantes naõ passava +de huma sotaina, e capa de baeta, assim como todo o luxo dos Cidadaõs +consistia em huma casaca de saragoça de abas entrouxadas, e canhões de +barbas até aos joelhos. + +Mas essas casacas, disse Quintiliano, nunca eu approvaria pelo muito +panno, que consumiam. Naõ tendes razaõ, tornou o velho Portuguez, essas +casacas ficavam dos avós aos netos, e vinham a ser hum respeitavel +morgado das familias: eram as melhores insignias de hum homem honrado; +nem havia precisaõ de outro distinctivo: hoje porém naõ sabereis +differençar nem hum ridiculo, nem hum homem de bem, senaõ com muito +trabalho. + +Dizeis bem, disse Caspar Sciopio, os homens honrados algum dia naõ +andavam com penicos na cabeça, nem com brincos nas orelhas, salvo, se +por desgraça se faziam escravos da Rainha da Lidia; porque entaõ naõ +só seriaõ capazes de fiar na roca, mas tambem de levarem huma albarda ás +costas com muito gosto. + +He certo, proseguio Quintiliano, que os pais erram muito em consentir +similhantes loucuras aos filhos, e ainda mais em praticalas; porque +estes erros abrem a porta a infinitos males, os quaes perturbam a +sociedade. Mas os procedimentos a respeito do espirito tem consequencias +tanto mais funestas, quanto he mais attendivel a parte do homem, a qual +só o póde fazer feliz, ou desgraçado. + +Isso he, disse Curcio Nicia, ao que menos se attende: entrega-se o +menino commummente a huma mulher para o ensinar a ler, ou vai a escóla, +ou vem Mestre a casa. Porém como o ensinar a ler, sendo coisa bem +trivial, naõ he todavia para ignorantes, ahi se vai condemnar o +innocente ao trabalho inutil de seis, sete, e mais annos, e por fim he +tal a sua leitura, que faz vomitar a quem ouve. Perdido este tempo, +assim como havia de ser o resto da vida se em taes lições fosse gasto, +vem entaõ Mestre Francez, já o moço sabe fazer seus comprimentos +naquelle idioma, o pai, e a mãi se estaõ babando a ouvir o seu novo +Monsieur. Entaõ julgam terem em casa hum sabio da Grecia; mas naõ sabe o +_Padre nosso_! + +Isso, disse Sciopio, he só para aquelles, cujos pais tem boas mezadas, +que dem aos emigrados, que se naõ contentam com bagatellas: que os +outros quasi todos vaõ para o Collegio aprender Mathematica sem fumos de +literatura. + +Naõ fallemos nisso, proseguio Quintiliano, quando o Lente os manda á +pedra, entaõ conhece, que nem sabem fallar. Mas a pezar de tudo, disse +Sciopio, saõ os chefes dos estadistas da moda: elles pelas assembleas, e +pelos botiquins, de tudo fallam, de tudo decidem, para tudo tem bellos +planos; e com o seu luzidio compasso tudo sabem medir. Porém estes, e +muitos outros falladores similhantes, de que por desgraça abunda +toda a Europa, saõ huns fracos, e a deshonra dos racionaes, assim como o +jumento he a dos brutos. + +O pai, disse Antonio Pereira, que manda seus filhos a essas sciencias, +sem bons principios de literatura, he similhante ao que obriga o +Architecto a fazer huma alta torre sem nenhum alicerce, a qual mais +hoje, mais amanhã ha de cahir. Ora vede quaes seraõ as consequencias da +sua quéda! + +Esse era o justo motivo, disse Antonio Feliz Mendes, de tu fazeres +alardo das tuas artes de Grammatica Latina, quando nenhum fazias das +outras infinitas obras, de que tambem foste autor. + +Era essa, continuou Fabio, huma vaidade digna do sabio Pereira, e teria +feito a Portugal hum eterno serviço, se em vez do trabalho de algumas +das suas obras, que o naõ honram, aperfeiçoasse o seu Novo Methodo, e o +seu Compendio, para o que tinha forças de sobejo. E certo, o homem +que, naõ sabe Grammatica, sejam quaes forem os seus estudos, +nenhumas Bullas o pódem dispensar de ser pedante. Como poderá perceber +os lugares da Historia, como entenderá os authores, quem ignora a +sciencia das palavras? Como dará o juiz a sua sentença? Como fará o +Theologo as suas analyses. + +Mas as aulas publicas de Latim, diz mui agastado o respeitavel Pereira, +estaõ quasi vasias de estudantes, que dizeis? Digo, proseguio o Romano, +que toda a culpa he dos pais; e por isso vereis cada vez mais idiotas, +mais ociosos, mais presumidos, mais gárrulos. + +He huma piedade, disse Antonio Félis, ouvir a muitos pais as causas +futeis de naõ mandarem os filhos ao Latim. Naõ pertendemos, dizem elles, +que sejam nem Frades, nem Clerigos: nem taõ pouco se necessita de Latim +para ser bom Cidadaõ. + +Naõ se necessita de Latim, disse o grande Diogo de Teive todo fóra do +seu sério, naõ se necessita de Latim para qualquer ser bom homem, +mas necessita-se delle para naõ ser asno. Ainda que a lingua Latina naõ +fosse a lingua dos sabios, bastava para ser estimada o ter muitas filhas +na Europa, que herdaram muito cabedal da sua mãi, do qual nunca já mais +saberá dar conta quem ignorar as riquezas della. Assim he que estaõ +infinitos sujeitos em empregos publicos, ganhando salarios enormes, os +quaes nem escrevem coisa direita, nem sabem atar duas palavras juntas, e +o mais por modestia fique no silencio. + +Tudo isso, disse Joaõ de Barros, he fructa deste tempo tenebroso. O +mundo em suas mudanças tambem vai variando os seus registos, e por força +alguma vez sahiraõ os desaffinados. Até agora tendes bem mostrado as +doenças literarias; naõ he porém da nossa caridade deixalas sem algum +remedio. Julgo pois, que se deve entregar o menino a hum Mestre erudito, +para o ensinar bem a ler, e a amar a sua Religiaõ, e os seus deveres: +depois disto deve aprender a Grammatica da sua, lingua materna; +porque, naõ embargante, que em a Latina se acham os principios geraes de +todos os idiomas, naõ devem todavia ignorar-se os particulares daquelle +que mais que nenhum ha de servir aos interesses, e ás utilidades da +vida. Entaõ vá aprender Latim, e por fim Filosofia Racional. E sem estes +subsidios escuza de avançar a outras sciencias; porque he melhor naõ +saber, que saber mal as coisas. + +O conhecimento da Grammatica da lingua materna, continuou Fabio, tem +sido recommendado pelos sabios de todos os tempos: nós a ensinavamos em +Roma juntamente com a Grega, e veio assim a fazer-se a nossa linguagem +taõ bella, e taõ universal pelo mundo, que só entre póvos selvagens, se +acharia, e com muita dificuldade, quem naõ entendesse alguma coisa do +idioma Latino. O Imperador Carlos Magno julgou naõ ter ainda alcançado a +immortal gloria com a multidaõ dos seus triunfos; por isso em a sua +velhice compoz para as suas gentes huma Grammatica Tudesca. + +Por mais que clamei, disse Barros, já em o feliz Reinado de D. Joaõ III. +por introduzir nas escolas a Grammatica Portugueza, nunca o pude +conseguir; nem depois sobre isto foram observados os Decretos do sempre +Augusto D. José I. + +Amigos, proseguio Quintiliano, isso pertence aos Professores, e se os +pais nisto tem alguma culpa, he só em entregarem seus filhos a Mestres +pedantes. Elles os procurariam bons, se hoje houvesse a lei que +desobrigava os filhos de soccorrer aos pais, que tendo posses, naõ os +mandavam instruir nas letras. Em quanto esta lei durou foi a Grecia em +tudo respeitavel, e se ainda agora revivesse em os póvos civilisados, +naõ seria a substancia publica devorada por infinitos glutões, que tudo +engolem, e que de ordinario saõ os menos fiéis á sua patria. + +Hum homem erudito, e Christaõ, disse Duarte Nunes, vendo o +ignorante, e inhabil a cevar a gula com o comer ao seu merecimento +devido, póde sim por alguns momentos queixar-se; he com tudo impossivel +moral esquecer-se da gratidaõ dos beneficios; mas o idiota presumido +cuida, que mais se lhe deve, e ingrato desdenha de quem o farta. + +Tudo isso he verdade, disse Joaõ Rivio; mas reparei, que Barros naõ +fallou em aprender Francez, quando alguns autores mandam que o seu +estudo seja antes do Latim. Esse Portuguez, continuou Fabio, he mui +douto, e naõ devia favorecer a pedantaria: quer justamente que logo que +se saiba ler, se aprenda a Grammatica da lingua materna, e depois a +Latina, por ser mãi da Franceza, da Portugueza, da Italiana, da +Hespanhola, e de outras, que facilmente aprenderá quem souber a lingua +dos sabios. E digo-vos que o Francez tem estragado bellissimos idiomas. + +No tempo em que ensinei letras humanas em a Universidade de Coimbra, +disse o honrado Teive, poucos, ou ninguem estudava Francez. Porém he +certo, que nunca Portugal teve nem mais sabios, nem melhor gente. Naõ +possuia entaõ a nossa lingua nem outra formosura, nem outras riquezas, +que as herdadas da sua respeitavel mãi: e hoje apparece de quando em +quando com a sua capa de remendos, mais ou menos despresivel, segundo os +retalhos, e os pontos do alfaiate, que a cozeu. + +Mas tendo os Franceses, disse Mariángelo, vertido as obras dos outros, +como fica notado, naõ será inutil saber esta lingua. Sempre saõ versões, +respondeo Julio Cesar Escaligero, melhor he ler os originaes. Naõ sou +contra este idioma; confesso que nelle estaõ escriptos bons, e máos +livros. Com tudo estou pelo sentimento commum dos sabios, que o seu +estudo naõ deve ser o primeiro; e até julgo naõ ser presentemente grande +perda ignoralo, em quanto que naõ chegam das duas Anticeras navios, e +mais navios carregados de helleboro para curar a funesta loucura, +que se apoderou das cabeças daquelle povo infeliz. + +Pais de familia; pais de familia exclamou Fabio, vós sois a primeira +causa da pedantaria geral, e oxalá o naõ fosseis tambem dos horrores +deste seculo de lagrimas. + +Assim acabou Quintiliano, deixando ver em seu triste semblante a magoa +de seu peito. + + + + +DIALOGO III. + +_Expõe Antonio Nebrixa a segunda causa da pedantaria: motivos de +haverem tantos Professores inhabeis: entre os de ler saõ raros os bons: +como se póde isto remediar: os de Latim ainda saõ bastantes: muitos +particulares enganam os pais de familia: os rapazes devem frequentar as +aulas públicas, &c._ + + +Sahindo Marco Fabio todo consternado daquelle assento para o seu +primeiro, logo para alli se foi chegando Antonio Nebrixa: estava elle +embrulhado em hum pellote cor de fogo de feitio mui exotico, com hum +gorro pardo na cabeça, que lhe chegava ao meio das costas: e apenas se +assentou deixou cahir hum sobreolho taõ feio, que parecia huma carranca +de navio. Mas cuidando eu que elle ficaria eternamente severo, naõ +foi assim: por quanto, feitas as suas continencias, soltou taes +gargalhadas de riso, que Crates Mallotes lhe disse com muita brandura: +Eu vos escolhi para que ajudeis a fazer a caridade aos Professores +pedantes e isto he o ponto do maior melindre, e da mais alta +importancia: dizei a verdade, e deixai as risotas para occasiaõ competente. + +Ainda bem naõ tinha o velho Mallotes concluído taõ judiciosa +admoestaçaõ, quando Nebrixa, compondo o seu comprido barrete assim +começou: Se os pais de familia saõ mui culpados na pedantaria dos fins +deste seculo, os mestres lhes ficam a perder de vista. De toda a Europa +vos referiria exemplos, se a minha commissaõ naõ fora muito mais +estreita. Naõ penseis todavia, que hum homem como eu, depois de deixar +sepultados os enganos, e as mentiras com os despojos da humanidade, que +a terra engolio, se atreva a satyrisar muitos Professores Portuguezes, +os quaes com as suas obras, e com as suas lições, que os eruditos +bem conhecem, ainda hoje servem de honra, e de lustre áquella naçaõ; a +qual desde o Reinado do grande D. Diniz, dignissimo neto do nosso D. +Affonso Sabio, até ao presente tanto da escola de Minerva, como da +escola de Marte, tem offerecido ao mundo heróes taõ prodigiosos, que a +fama, tendo cem bocas, apenas os póde contar. Dirige-se pois a justiça +de minhas queixas, contra milhares de Professores ignorantes; e desejára +fazelos conhecer, para que naõ deshonrem os benemeritos, sendo +confundidos com elles. + +He justo, disse Filippe Melanchton, que sejam conhecidos os zangãos +pelos effeitos, e que se restitua o mel ás sabias abelhas. + +Saõ mui verdadeiras as vossas expressões, disse Antonio Pereira: já +antes da minha passagem para a vossa companhia observei muitos +presumidos a enganarem os pais de família, com ditos apanhados aos +sabios, feitos Catões pelas assembléas, e pelos botiquins, a fim de +ajuntarem hum bom rebanho de rapazes, os quaes com prejuízo da bolsa +paternal vem a ser os semeadores da charlatanaria, e ignorancia de seus +Mestres. + +Sim, disse Nebrixa, semelhantes Professores saõ primos co-irmaõs do +çapateiro, que naõ tendo geito para fazer çapatos vendia saccos de +antidoto, mas antídoto no nome; porque lhe custava menos a ser Medico +dos simplices, do que a fazer calçado a casquilhos, e a peraltas. + +O Augustissimo Rei D. José, continuou Pereira, Nome, que proferido fará +vir aos labios de Portugal saudosas, e ternas lagrimas, sempre que se +lembrarem do que lhe devem, escolheu para educaçaõ da mocidade os homens +mais benemeritos, e naõ sei como tem graçado tanto o pedantismo. + +Ninguem melhor que tu o sabe, respondeu Nebrixa; porque foste hum +respeitavel membro da Meza Censoria; por isso bem conheces a causa de +tantos Professores ignorantes: fugiram acaso do mundo as +_Instrucções_ appensas justissimo _Alvará_ de 1759? E naõ determina elle +que senaõ ensine nem publica, nem particularmente sem rigoroso exame? +Naõ dá bem a entender quaes devam ser os conhecimentos dos Professores? +O Augustissimo D. José para os animar naõ os incorporou em Direito +Commum, fazendo-os Nobres? Naõ vês estudantes de Latim, para que eu naõ +falle em os de outras faculdades, feitos Mestres sem outros principios +mais que os do teu Compendio, ou da Arte de Felis Mendes, e, se muito, +do teu Novo Methodo? Podem por ventura similhantes Mestres desempenhar +as suas obrigações? + +Sempre clamei, disse o sabio Portuguez, em o Tribunal contra esta +tolerancia de Professores inhabeis, sendo aliás excluidos muitos +sujeitos de merecimento; porém a culpa.... + +Bem sabemos (disse Crates Mallotes, apressado para cortar o fio) bem +sabemos aonde se dirigem as tuas queixas: nós naõ queremos, que +nenhum vivo diga, que os mortos tiveram a deshumanidade de lhe pôr a par +de seu nome os seus defeitos. Os nossos discursos saõ sagrados tanto, +como os dos Prégadores; por isso devem só ser dirigidos contra o erro em +geral. Em todos os estados do mundo ha bom, e máu, e só algum idiota +quando nos vir fallar contra o máu, he que poderá cuidar, que nós +fallamos contra o bom. Pelo que, meu Nebrixa, ide discorrendo em +primeiro lugar sobre os Professores de ler: que he negocio de grande +ponderaçaõ. + +Nebrixa, que estivera applicando o ouvido a taõ justas expressões, +continuou dizendo, de cem Professores de ler, se achardes hum capaz +tendes feito huma descuberta, digna de avultadas alviçaras. Ide pelas +escólas, e ouvireis desconcertados berros de rapazes: que naõ só vos +faraõ chagas nas orelhas, mas até vos encheraõ da mais profunda melancolia. + +Todos esses incómmodos, disse o Barbadinho, se poderiam bem soffrer, +se os moços dahi naõ sahissem gagos toda a vida. Porque por certo quando +estaõ a ler, nada differem de quem nasceu com a lingua travada: só +alguma palavra deshonesta he que pronunciam expeditamente. He taõ raro +como mosca branca o que ensina os meninos a destinguir bem as syllabas, +a pronunciar naturalmente as palavras, a respeitar pontos, e virgulas. + +Se similhantes homens naõ sabem que coisa seja nem syllaba, disse todo +agastado Marciano Capella, nem que coisa seja fallar, nem para que sirva +a pontoaçaõ, como haõ de ensinar o que ignoram? + +Pode acontecer, respondeu Lancelot, que qualquer saiba para si, e naõ +para ensinar; porque saõ coisas bem differentes: e que acontecerá a quem +ensina, sem saber nem o que, nem o como deve ensinar? Que acontecerá? +respondeu Sciopio, encher o Publico de babosos, e pedantes; porque os +erros da escóla quasi sempre saõ incuraveis; e os melhores +Professores de Latim, pondo todas as suas forças para os remediar, raras +vezes o conseguem. + +He huma dor de coraçaõ, proseguio Nebrixa, ver engenhos taõ raros, que +continuamente se vaõ perdendo por culpa de Professores de ler. + +Ainda Antonio Nebrixa mal havia acabado a sua queixa, quando Remmio +Palemaõ se levantou com toda a arrogancia, e disse: Porque naõ mandam +similhantes homens guardar pórcos? + +Ouvindo isto Terencio Varro, o qual havia sido insultado em Roma por +aquelle mordaz, assim lhe respondeu: Fazes mais favor a esses homens, do +que em outro tempo me fizeste, quando por toda a parte me andavas +chamando o Porco das Letras, e queres que similhantes pedantes sejam +porqueiros, em vez de os mandares comer farellos? + +Todos gostaram muito daquella singeleza Romana, mas Antonio Nebrixa, +que foi hum Hespanhol honrado, disse com toda a inteireza: Ainda naõ he +taõ mau, que haja quem ensine a ler; e aquelle que sabe, e executa a sua +obrigaçaõ faz mais serviço ao Publico do que se pensa lá no mundo: e bem +vedes quanto estimamos estes poucos de quem nos prezamos muito de serem +nossos companheiros, e a pena he virem para cá taõ poucos deste calibre! + +Entaõ abaixaram a cabeça os Professores elogiados, e Crates Mallotes +louvou muito o relator, que assim proseguio: Os Professores Regios de +ler apenas tem salarios para o aluguel de casas; e por isso ou haõ de +ser homens incapazes, ou haõ de procurar o sustento por outra via. Se se +dessem os mesmos ordenados, e as mesmas honras aos Professores de ler, +que se daõ aos de Rhetorica, haveriam muitos eruditos que servissem ao +Estado de boa mente, neste ramo: entaõ se ensinaria a Grammatica da +Lingua materna na escola, aprender-se-hia qualquer lingua com muita +facilidade, e naõ morreriam de trabalho os Professores de Latim em o +ensino de gente bruta. + +Tivessem elles dinheiro, disse Dionisio de Syragoça, que honra lhes dei +eu, porque naõ me desprezei de ensinar meninos, depois de ter sido o que +sabeis. Mas já que tendes fallado tanto na pedantaria dos Professores de +ler de quem fui collega, dizei tambem alguma coisa dos de Latim para +consolaçaõ da minha tristeza. + +Tem havido optimos Professores de Latim, continuou Nebrixa, e ainda hoje +os ha; porém para fallar com a sinceridade de defuncto, naõ me posso +dispensar de dizer, que saõ muitos mais os idiotas. Depois que se deram +Provisões de favor, isto he, sem se fazer rigoroso exame, ou depois que +muitos entraram a ensinar sem faculdade alguma do Estado, entaõ tambem +começáram apparecer nuvens de falladores, que sendo huns Professores +diminutivos, sem a mais leve tinctura nem de Logica, nem de Critica, +andam feitos censores dos melhores livros, por onde podiam aprender +(a terem os conhecimentos que a lei delles requer) e vaõ surrando o +entendimento da mocidade com os cartapacios defumados, que sem offensa +de seus autores, deviam ser condemnados a embrulhar adubos. + +He forte cegueira, disse Gaspar Sciopio, ver ainda hoje homens mais +afferrados á opiniaõ dos livros por onde aprenderam, do que os +Pythagoricos a de seu Mestre! + +Mas esses pedantes, disse o Barbadinho, neste tempo escuro, em que mui +poucos aprendem Latim, he que trazem mais algum estudante. + +Esses Mestres, continuou Nebrixa, pela maior parte saõ particulares +(reparai, Guliver, que naõ digo, _Todos_) e como o estudante traz a +mezada em o fim do mez, he preciso fazer a boca doce aos pais; murmurar +dos estudos Regios, e persuadir-lhes ser coisa menos decente mandar os +filhos ás aulas dos pobres. + +Pobres de juizo, disse Antonio Pereira todo agastado, pobres de +juizo saõ os que accreditam similhantes novelleiros. Como se os +estudos do Rei naõ fossem a honra de todos os vassallos? Ou como se +fosse desprezo acompanhar com seus irmãos aquelle que tendo melhor +fortuna, naõ tem outra natureza? + +Ainda se servem, proseguio Nebrixa, de outro estratagema mais sagaz, que +he apregoarem, ou por si, ou por seus devotos, que as aulas Regias andam +cheias de moços mal procedidos. + +Este seculo, disse o Barbadinho, está cheio de corrupçaõ, e como as +aulas particulares, trazem alguns estudantes mais que as outras, tambem +vos podeis persuadir, que trazem muito peior gente. + +De casa, disse Quintiliano, já os moços trazem os máos costumes, nem he +preciso que os venham buscar ás aulas. + +Mas ainda dado, e naõ concedido, proseguio Nebrixa, que de casa venham +innocentes; nem por isso he justo que a mocidade deixe de frequentar +as aulas Publicas. Os pais devem vigiar sobre a conducta, e companhias +de seus filhos; mas tambem devem fazer a vista grossa a certas coisas, +que naõ offendendo a virtude, he necessario que os rapazes em quanto saõ +rapazes as pratiquem: aliás em idade incompetente seraõ os peiores +homens, segundo a triste experiencia o tem mostrado. + +Parece seria melhor, disse o Conde de Castel-Branco, ensinar em casa aos +meninos os Estudos menores, para lhes evitar os laços, que a seus tenros +annos o mundo costuma armar. + +Nada, nada, respondeu Antonio Pereira, porque em idade maior he que se +conhece o erro; por isso que ficam estupidos: engolem todas as petas, +naõ prestam para a sociedade: a sua brutalidade os conduz para os vicios +mais grosseiros; e ficam em tudo huns perfeitos Sardanapálos. + +Bem: concluio Nebrixa, hum tal encerramento, he mui bom para mulheres, +para homens naõ tem geito. Pouco vale clausurar os rapazes para +evitar más companhias, em casa mesmo acharaõ quem os estrague: e oxalá +fossem mentirolas estas nossas expressões! E deixai murmurar os +pedantes, esses que ensinam a conhecer as sylabas pelos fôlegos; e que +toda a sua sciencia consiste em affeiar, e corromper o verbo _arcabuzear_. + +Acabando o Hespanhol de dizer isto, e entrando por algum tempo a engolir +em secco, exclamou: Professores pedantes, Professores idiotas, tratai de +outro officio; naõ augmenteis o charlatanismo com os desconcertos da +vossa ignorancia. E tu ó mortal (virou-se para mim) muito bem tens +ouvido os justos louvores, que aos benemeritos havemos dado. + +Entaõ todos lhe abaixaram profundamente a cabeça em signal de parabens; +e elle se levantou, sahindo com a mesma cara com que principiára a sua +commissaõ. + + + + +DIALOGO IV. + +_He tratado Sanches por Crates com toda a distinçaõ: expõem elle a +terceira causa da pedantaria: fica a beca de Guliver convertida em tres +artes de Grammatica Latina: faz-se grande estimaçaõ da primeira: +criticam-se as outras: vai-se Guliver successivamente convertendo em +passaro: manda Crates Mallotes mostrar-lhe a ilha, &c._ + + +Ja Elio Antonio Nebrixa estava em o seu assento colhendo os bem +merecidos applausos dos que estavam junto delle, quando Francisco +Sanches Brocense hia com o seu passo grave, e magestoso, procurar o +banco; mas Crates Mallotes, logo se levantou, cujo exemplo seguio toda +aquella multidaõ dos illustres defunctos: e assim erguido, clamou: Nada, +nada: hoje has de ensinar de cadeira: nem he justo, que o Principe +dos Grammaticos deixe de ter a maior distinçaõ em a terra da verdade. +Logo que elle isto disse, sahio coxiando para fóra, e rindo dizia: A +Grammatica, que em Roma ensinei, era taõ coixa, como eu. Mas todavia se +os Romanos de mim naõ houvessem recebido o exemplo, tambem naõ opporiam +á Grecia tantos sabios. + +Porém Sanches modesto recusava taõ distincta mercê, allegando para isso, +que naõ só por haver sido o respeitavel velho Embaixador do Rei Attalo, +que fartou Roma de pergaminho; mas tambem por ter alcançado a honra, e a +gloria de primeiro Mestre do povo senhor do mundo, por nenhum titulo +devia ser dispensado de sahir de seu devido aposento. + +Nem ter sido Embaixador, replicou Crates, nem ter sido o primeiro Mestre +dos antigos Romanos, equivale a ter sido, como tu, o primeiro açoite da +pedantaria, e do ranço de todos os Grammaticos do universo. Eu aqui +ficarei. + +Dizendo isto puxou do escabello, que estava diante da cadeira, e pólo +para o lado: e Sanches naõ teve remedio senaõ obedecer, subir, +assentar-se: e todos fizeram o mesmo. + +Hum pouco esteve Sanches, como quem estava reflectindo, depois do que +voltando-se para Crates fez huma profunda venia; mas nem por isso deixou +de significar a todos a sua civilidade. Eu tenho grande pena de vos naõ +poder pintar ao vivo a delicadeza, graça, e energia da sua pronuncia, +por isso só vos escreverei o seu arrazoado, cujo comêço he o seguinte. + +Se os pais ás mãos ambas semeam o pedantismo, e os Professores idiotas +nas campinas da mocidade saccos cheios vaõ deitando: saõ sem dúvida os +máos livros o celleiro infame, aonde taõ pestifera semente está +guardada. Os escritos impressos naõ tem numero; elles vaõ durando com as +épocas futuras: o bom e o máu nelles vai vivendo. Assim he que as +fallas humanas duram, depois do homem naõ viver. E como já naõ he +preciso o penoso trabalho de trasladar livros, como antigamente, eilos +vulgares: e sendo poucos os que possam ser juizes da bondade, ou +ruindade, que nelles houver, entaõ adquirem apaixonados os que naõ saõ +bons; e censores, os que o saõ. Por outra via ha homens ou taõ +ignorantes, ou taõ fatuos, que julgam verdades eternas tudo o que está +escripto em letra redonda. He por estas bem claras razões, que muitos +sabios ainda naõ poderam decidir, se a arte Typografica tenha +aproveitado mais ás Letras, ou se mais as tenha offendido. + +He certo, disse Sciopio, que ella faz conservar escriptos, cuja memoria +naõ devia existir: e quando muitos outros saõ funestos, naõ se póde +dizer quanto seja huma multidaõ de livros didaticos, os quaes naõ só +corrompem o bom gosto, mas enchem os rapazes de mais ranço do que +que teria toucinho de cem annos ao fumeiro. + +Em a Minerva, continuou Sanches, dei eu bem a conhecer os escriptores +pedantes: he este livro bem vulgar; e o Memoravel Rei D. José lhe deu a +devida estimaçaõ, mandou por hum Decreto, que nenhum Professor em +Portugal deixasse de o ter, e de por elle explicar: porém isso durou +pouco. Hoje ha lá muitos, que nem sabem, que ha similhante thesouro no +mundo, nem tam pouco tem principios para o entenderem, e para se +utilisarem. + +Assim he, disse o P. Manoel Alvares, mui poucos fazem caso desse livro: +e ainda agora ha quem transcreva as peiores coisas da minha arte +reprovada por huma Lei, vendendo por seu o meu trabalho: julgando talvez +o pódem fazer a seu salvo, por ninguem já saber o que eu escrevi. + +Bem sei, que fallas, proseguio Brocense, em a arte das linguagens, que +ha dias acabou de ser impressa: descança, que logo lhe faremos a +caridade; porque o seu autor naõ tem mais privilegios que muitos de vós +a quem censurei, e nem por isso somos inimigos; antes a nossa amizade +será taõ eterna, como nós havemos de ser. + +A Critica, disse Jacob Peritonio, tem o caracter de hum juiz inteiro, +que sentenciando as obras segundo o seu merecimento, deve sempre deixar +illeso o seu autor. + +Hoje enfastia muito, disse Antonio Felis, ver resuscitar os destemperos +das Grammaticas velhas; se isto se fizesse, quando eu fiz a minha +compilaçaõ, e Antonio Pereira as suas artes, seria digno de perdaõ; +porque nos expozemos ás maiores calúmnias, como todos sabem, e as quaes +muito nos vexariam, a naõ sermos protegidos pelo braço Real; e ainda +assim naõ padecemos pouco. + +Eu honrei Hespanha com as minhas obras, continuou Brocense, e a paga que +recebi dos meus serviços, foi ver a Minerva condemnada ao pó de bem +poucas livrarias; a qual se fez taõ rara, que sendo achada por Sciopio, +a quiz reimprimir por sua, julgando haver-se inteiramente perdido a sua +lembrança; mas ainda houve entaõ quem restituisse ao meu nome a gloria, +que se lhe hia a roubar. + +Apenas assim fallou, todos olháram para Sciopio como enfadados; elle +porém muito senhor de si, se desforrou, dizendo: Isso tudo he verdade; +mas depois em todas as minhas obras Grammaticaes, me intitulei teu +discipulo, nome que muito bem desempenhei, e ajudei a tua espada a dar +os mais profundos golpes no cachaço dos pedantes. + +Tivemos pelo meio deste seculo, disse Sanches consternado, homens +grandes por amigos, pelos fins delle só conheço hum escriptor, que com +as suas, e nossas opiniões honrará as provincias da Grammatica, sempre +que por ellas corra, quem ahi naõ seja peregrino. Mas porque fallamos em +os ultimos escriptores desta idade; faça-se justiça: vinde cá, Inglez. + +Assim que me chamou, fui chegando a cadeira, e como elle fallou em +Justiça, fiquei pouco satisfeito, cuidando já se sabe, que se me faria +alguma execuçaõ á móda de Inglaterra. Já estes cuidados me ruiam o +coraçaõ, quando veio da boca de Sanches hum repellaõ de vento, e me +levou a béca de plumas. Entaõ he que pensei, naõ tardaria, que a cabeça +me voasse. Mas estes sustos se converteram em galhofa logo que ví a béca +de pennas, tambem convertida em folhetos de papel; e a mim em trajes de +marujo, como d'antes. + +Com esses vestidos, disse-me Crates Mallotes todo risonho, podeste tu +vir do mundo; mas com outros has de tornar. + +Eu estava com olho de punho para os folhetos, a ver aonde fosse o caso +dar comsigo; entaõ chegou hum contino, que bem conheci ser hum +Grammatico mui pedante, o qual em Londres ficava, quando de lá sahi. +Pegou pois este criado em os cadernos, e pregou-os na parede. Veio +outro, e com toda a humildade (do que me admirei por ter sido Francez, e +deixar de ser arrogante) e metteu na maõ de Brocense hum ponteiro de +barba de balêa; mas o cabo era de oiro massiço, em que estavam +esculpidos tres escriptores Portuguezes: os quaes ficaram fechados em a +maõ do Hespanhol, cujos nomes naõ tive licença de declarar em esta +Historia; mas os escriptos, que saõ do direito publico, naõ tiveram a +mesma prohibiçaõ: e confesso-vos, que nesta parte escrevo constrangido, +e callo muitas coisas, que reporei, a quem me pedir contas, ajuntando +outros appensos, que Crates Mallotes, do outro mundo me promette. + +Mas tornando ao proposito, estendeu Sanches o seu ponteiro para a +parede, e entaõ ví em correnteza tres artes de Grammatica: Lê esse +primeiro titulo, disse; entaõ li alto, e em voz clara _Novo Epitome de +Grammatica Latina Moderna, ou Verdadeiro Methodo de ensinar Latim a hum +Principiante.... Lisboa.... Anno de 1795_. + +Naõ appareceu ainda, continuou, hum livro mais bello para ensino da +mocidade, nem que seja mais accommodado para ser explicado conforme as +determinações do grande D. José I. + +Vê estes Nominativos, estes Generos como estaõ taõ bem ordenados. Estas +Linguagens, expostas em taboas synopticas: como debaixo de hum ponto de +vista obriga o menino a firmar a sua memoria? Estas _raizes_ de +formaçaõ! Estes _preteritos_! Quem até agora fez huma Syntaxe como esta? +Quem melhor Prosodia? Como he em tudo coherente! E estas _notas_ naõ +fazem por ventura hum systema completo? + +Tem boa duvida, disse o Barbadinho, e o que mais admiro além das +novidades, que escaparam ao teu engenho, he a brevidade e clareza, com +que ensina o que outros naõ poderiam em bem gordos volumes. + +Esse moço, disse Antonio Pereira, tem dedo para isso, e ainda o vereis +dar á sua patria signaes de bom filho. + +Mas ha Professores, replicou Vocio, que dizem ser esse livro muito bom +para Mestres; mas que naõ presta para rapazes, pela ordem Filosofica com +que foi tecido. E que dizeis a esta? Digo, respondeu Sanches, que he +para rapazes, mas para rapazes, que naõ tenham a desfortuna de serem +discipulos de similhantes Mestres. Como se Filosofia naõ fosse a recta +razaõ, ou se sem ella possa haver bom escriptor, ou bom Mestre? + +Eu pasmo, disse o Barbadinho de ver tanto charlataõ; cuidei, com as +minhas Cartas, ou com a Introducçaõ Historica, e Critica, tinha curado a +loucura dos Pythagoricos: agora vejo, naõ fiz nada. Acaso naõ he para +rapazes huma arte, que ensina sem confusaõ a hum principiante, a hum +adiantado, a hum Mestre? Huma obra que tem tudo em seu lugar? Em que +concorda o principio com o meio, e o meio com o fim? + +Esses homens, disse Palemaõ, eram bons para Mestres de papagaios; e +fazia huma grande caridade quem os mandasse para o Certaõ, dirigir pretos. + +Parece-me, disse Lithocómo, que o autor desta arte errou em lhe chamar +Epitome; porque sendo huma obra completa, devia-lhe chamar Flagello do +ranço Grammatical do fim do XVIII. seculo: e saõ homens de má cabeça os +que desdanham de livro taõ bello. + +Acabava Ludolfo Lithocómo taõ douta reflexaõ, quando Joaõ Garcia +exclamou: Mil parabens á Naçaõ Hespanhola, que ainda tem filhos, que +deram próvas do seu bom gosto na versaõ desta arte, datada em Madrid em +1797. + +O discipulo digno de Sanches (continuou elle mesmo) consola a tua +paciencia com estes elogios, até que a Ignorancia invejosa naõ morda o +teu serviço com seus dentes carunchosos. Quando para aqui vieres +serás carregado de louvores; porque a Inveja mordaz em os bons defunctos +naõ acha que roer. + +Aqui se levantou Joaõ de Barros, exclamando: Quem naõ vê o serviço que +eu fiz aos Portuguezes? Eu escrevi os seus illustres feitos, que fizeram +pasmar a todos os povos do mundo, e o fructo que em meus dias entrou em +meus celeiros, foram taõ descomedidas, como escandalosas censuras; ha +muito porém, que depois da minha morte sou chamado o Livio Portuguez, o +Mestre do patrio idioma. + +A melhor satisfacçaõ, disse o P. Buffier, que o bom escriptor possue em +sua vida he a consciencia do louvor, que naõ póde ser affogada nem pelo +mais basto oceano de calumnias. + +Já tudo estava em o mais profundo silencio, e Sanches medindo com os +olhos inquietos todo aquelle livro: mostrando com o continuo movimento +da cabeça quanto delle gostava, até que depois de hum largo +intervallo, com os beiços alguma coisa sobrepostos, fez-lhe huma +profunda inclinaçaõ: e logo com o seu ponteiro, o qual em o tempo da sua +revisaõ estivera voltado para o hombro direito, bateu na dita arte, a +qual desappareceu. + +Mas qual naõ foi a minha admiraçaõ quando me vi convertido em hum guapo +passaro, desde a cabeça até o embigo? Naõ ha nem oiro, nem pedras +preciosas no mundo, com que possa comparar a formosura das minhas +pennas. Entaõ me lembrou que o ponteiro de Sanches era mais milagroso +que a vara de Mercurio. Por certo, dizia eu comigo, que os mortos saõ +mais habilidosos, que os vivos. + +Quando eu corria veloz por estas, e outras muitas cogitações, e me +estava namorando, qual outro Narciso, já o amigo Sanches estava a contas +com a segunda arte, cujo titulo era _Novo Compendio da Grammatica +Latina, &c. Coimbra.... Anno de 1796_. Como insulta, dizia, nesse +arrogante Prologo a todos os Grammaticos! Como se vale de +Despauterio! Mas quede a sua Grammatica Filosófica, que promette? +Aquella Grammatica Filosofica desconhecida até agora? + +Ella ahi está em pouco mais de meia folha de papel, respondeu Condillac, +vê como desfigurou a minha doutrina! Quantas idéas intermedias naõ ficam +ahi cortadas? + +Essa Grammatica Filosófica, disse Gaspar Sciopio, he bem similhante ás +escadas de hum edificio, apartadas sete braças humas das outras. Donde +nem as pernas de hum gigante as pódem alcancar; e muito menos as de hum +rapaz, que saõ mui curtas. + +Toda a Etymologia Latina, e Prosodia, continuou Sanches, bem vedes, +serem quasi formaes de Antonio Fereira, com algumas coisas de outros +autores. + +Sim, disse o Barbadinho, alguns exemplos tem seus; corta, e accrescenta +algumas poucas coisas, e outras as muda: porem de ordinario he infeliz, +como se vê no incremento em _A_. + +Em a Syntaxe, proseguio Brocense, em que se conhece quanto vale hum +escriptor deste genero, nem vejo novidade, nem methodo algum. Ora quem +póde soffrer estas incoherencias? + +Huma Grammatica em tudo perfeita, disse o Barbadinho, he coisa mais +difficultosa de encontrar, do que agulha em palheiro; os sabios ainda +hoje suspiram por ella. + +Eu concedo, disse o P. Antonio Rodrigues Dantas, que até hoje ninguem +tem escripto sem defeito, e que he optimo o livro, que tem mui poucos +erros. Mas naõ posso tolerar, o ver gritar com Despauterio contra todas +as Grammaticas, e reprehender-se neste ponto naõ só a Portugal, mas +tambem a toda a Europa; e dizer-se claramente ser esse o motivo de Sahir +ao mundo aquelle grande parto. + +Eu gritava, confessou lisamente Despauterio, porque naõ via a trava no +meu olho: esse moderno todavia faz bem justas as minhas queixas, com +a inutilidade de seus escriptos. + +Quem tanto de si presume, disse Sanches agastado, devia satisfazer ás +suas promessas, e naõ imitar ao monte, que depois de tantos brados pario +o que eu tenho vergonha de dizer. + +Hum rato sem pello, disse Palemaõ, foi o grande parto que se esperava, o +qual fez arrebentar de riso aos que deraõ attençaõ aos seus gritos, e +nelles se fiáraõ. + +Ainda fallava este mordaz, senaõ quando Brocense, mostrando em seu +semblante huma indisivel desplicencia, bateu naquelles escriptos, que +logo fugiram. Entaõ fiquei desde o embigo até ao pé direito carregado de +pennas cor de papel pardo. Já pois para ser passaro completo, me naõ +faltava mais, que o lado esquerdo desde aquelle ponto, que já disse. + +Entre tanto que eu observava a differença das minhas pennas, clamou +Sanches enfurecido. He possivel, que no fim do XVIII. seculo +apparecesse no mundo huma arte como esta? + +Entaõ virei o bico para a parede, e lí o frontispicio da ultima arte, o +qual era _Novo Methodo de Grammatica Latina &c... Lisboa... Anno de +1799_. Mas ninguem repare de ver hum passaro a ler; porque eu era +passaro feito no outro mundo. + +Mal acabei de ler o titulo, e o Hespanhol, trazendo o ponteiro em hum +redupio, clamava: Vê, vê as incoherencias dessa Etymologia. Vê aqui como +esta _Hic_, _haec_, _hoc_, feito particula, contra o que se diz alli em +o número das partes da oraçaõ. Forte miscilania! E que vos parecem essas +linguagens eternas? Por ventura poderá hum rapaz decoralas em dez annos? + +Na verdade, continuou Sanches, estes Infinitos estam bem fartos de +embrulhos. E a pezar de terem o Portuguez do Indicativo, ainda lhes +falta o do Conjunctivo; e quem gosta de tanta selada, quanto naõ +gostaria de ter noticia de mais estas alfaces? + +Assim como, disse o Barbadinho este escriptor saccou com a repetiçaõ +sómente de certas letras finaes as Raizes de formaçaõ do Novo Epitome, e +desfigurou outras coisas; porque naõ leu aquella interessante Nota de +Syntaxe, aonde absolve os rapazes destas sempiternas perlengas? + +Tudo he huma palhada, disse Manoel Alvares; se essas linguagens tivessem +o _Já entaõ_, o _oxalá_, e o _cum_, nenhuma differença tinham das +minhas, senaõ o serem ainda mais extensas. + +Essa arte, disse Sciopio, com mais justiça merecia ser queimada, do que +foi a tua; porque se foste máu Grammatico, ninguem te póde roubar a +gloria de teres sido optimo Latino. Os teus versos naõ invejam aos +melhores da idade de Augusto: mas de Grammatica foste hum verdugo, como +se próva claramente nas Instrucções de 1759. Tambem o teu Mercurio, +disse Alvares, naõ foi quem abrio os olhos aos mortaes. + +Isto picou tanto a Sciopio, que entrou com a sua mordacidade a altercar +taõ descomedidamente, que já a favor de Manoel Alvares se vinha chegando +Prisciano, para rebater aquelles dicterios. Entaõ o sabio Presidente em +tom magistral, assim fallou: Nada de calúmnias; Manoel Alvares para o +tempo em que viveu merece desculpa, seguio aos que lhe precederam, como +as ovelhas ao carneiro do chocalho. Mas no fim do chamado seculo das +luzes apparecer huma arte como esta, depois de tantos livros +excellentes? porém naõ percamos mais o nosso trabalho. + +Logo que assim acabou, sem querer ver mais nada olhou carrancudo para +aquelles folhetos, e elles como settas me ficaram cravados pelo lado +esquerdo, pennas, já se sabe, cor de mechas. + +Assim he que me fui aos poucos convertendo em passaro na ilha dos +Mortos. Sanches desceu da Cadeira, praticou com os outros relatores. +E todos diziam: Viva Crates Mallotes, viva, que campou na escolha que +fez. Porém reparei, que Despauterio naõ gostára da galhófa. + +Acabados estes comprimentos sahiram todos, e eu feito passaro entre +elles, com o meu rabo de rastros, taõ comprido como as linguagens do +Novo Methodo. Porém, como naõ perdi a falla, agradeci muito ao +Embaixador do Rei Attalo, o devertimento que me deu. E certamente nunca +vi opera taõ gostosa; porque sem duvida deixarei todos os gostos do +mundo de boa mente, quando se me offereça similhante fortuna: e ainda +espero de lá tornar. + +Mas como hia dizendo: já estava desconfiado de tornar a Inglaterra; +Crates porém, que era mui esperto, e mui politico, conhecendo a minha +desconfiança, disse a Sanches: Mostrai a esse hospede as coisas mais +notaveis da nossa ilha, para ir o mais breve para sua casa. E tu, amigo +Gúliver, desculpa, naõ te poder acompanhar, bem vês, que hum coixo +naõ póde andar depressa; porém o respeitavel Teive iré em meu lugar. +Ide; eu naõ tardarei muito em ser comvosco; lá nos veremos no mirante de +Carlos Magno. + + + + +DIALOGO V. + +_Necessidade da obediencia: elogios da naçaõ Portugueza: utilidades da +Agricultura: quanto foi apreciada pelos antigos Portuguezes: castigos +dos pedantes na ilha dos Mortos: chegada de Crates Mallotes, para me +persuadir a ser Grammatico, &c._ + + +Logo que Crates Mallotes mandou os seus subditos, nada se demoráram, e +eu naõ pude tambem fazer outra despedida, que voltar o rabo para o ar, e +o bico para o chaõ, e fazer-me de volta com taõ respeitaveis +companheiros. Accusava-vos todavia de sahirem taõ apressados, que me naõ +deixaram fazer os devidos comprimentos, ao menos a todos os que haviam +fallado no Congresso, de quem tinha eu recebido taõ altas mercês; +porque a toda a multidaõ era impossivel. + +Comprimentaste a todos, disse Sanches, sem nicas, nem fingimentos dos +Politicos mundanos. A obediencia he o eixo da carroça social, por falta +deste dever he que ninguem hoje póde viver no mundo. A nossa sociedade +compoem-se de sabios que sabem muito bem a sua obrigaçaõ, sem o conselho +dos quaes nenhuma póde ser bem dirigida. O nosso velho mandou, governa, +obedecemos. + +Os sabios! disse Diogo de Teive com hum grande suspiro: A pedantaria!... +Mas foi Deos, Gúliver, o que te fez aqui arribar: para remedio de muitos +abusos literarios da minha naçaõ, que a pedantaria das outras naõ me +importa. Has de achar ahi, dizia elle, has de achar, quem te ajude em +este grande serviço. Já Portugal estava com seu rosto coberto de luzes, +quando outros póvos estavam sepultados em as mais escuras trevas da +ignorancia. Naõ ha no mundo quem tenha melhor legislaçaõ; os nossos +Monarcas saõ Senhores no nome, e na Magestade; pais no procedimento: +has de achar hum Principe Religioso, Pio, moderado, amigo de Deos, e dos +homens; hum Principe, como Tito, que chora o dia em que naõ póde fazer +mercê: que está immovel aos conselhos menos piedosos: e que naõ quer +tirar o paõ aos servos do Sanctuario, para sustentar o odio, que a +pedantaria do tempo tem aos altares. + +Na verdade, disse Sanches, nenhuma naçaõ da Europa tem tido melhores +Reis, e por isso nunca outros tiveram iguaes vassallos. + +Tem boa dúvida, disse Diogo de Teive, os Portuguezes pódem-se chamar +melhor filhos, que vassallos dos seus Soberanos, pela fedilidade, e amor +com que todo o povo os serve. + +Para que estais com isso? replicou Sanches, toda a naçaõ Portugueza se +tem distinguido em tudo das mais. Quem tem tido melhores Reis? quem +melhores vassallos? Quem melhores letrados? Quem melhores soldados? + +E quem, continuou Teive, hum Joaõ das Regras? hum Camões? hum Barros? +hum Heitor Pinto, gloria dos Frades de Belém, honra de Portugal? + +Entaõ foi desenvolvendo a Historia de todos os Reis de Portugal, os +sabios de todas as épocas: acções que pareciam fabulas: guerreiros: +proezas até das proprias mulheres. O que tudo vos deixo de contar naõ +tanto por se naõ engrossar o volume, como para economia da bolsa de meus +apaixonados. Além de que tudo achareis em as Historias daquella naçaõ, +ainda que os mortos sabiam o que ellas vos naõ contam. + +Já Teive entrava a elogiar muitos dos vivos, sem todavia proferir os +nomes de cada hum, até que todo inflammado disse: Será mais facil acabar +toda a geraçaõ Portugueza, do que apossar-se della o inimigo. + +O que saõ os Portuguezes, disse Sanches, ainda neste tempo dos chás, e +dos caffés, em o Rossilhaõ, e em Napoles muito bem se conheceu. + +Em quanto eu hia caminhando entre os dois amigos, ouvindo attentamente +os elogios dos Portuguezes, que muito me deleitáram os ouvidos: tambem +hia desfructando com os olhos a linda prespectiva naõ só de verdes +seáras, mas tambem de vistosas arvores, carregadas de bellas fructas, +assim como risonhos prados: muitas vinhas; olivaes &c. ví muitos +carreiros, almocreves: muitos homens a assar castanhas, outros a pôr +hortalica, outros em fim a semear batatas. Estava na verdade ancioso por +saber que gente fosse aquella: e ainda mais fiquei, quando vi outros a +esfolar mosquitos: e muitissimos á caça de moscas. + +Já com difficuldade me podia ter; porem Teive que previo a minha +curiosidade, disse-me: Bem sei que estás admirado do que vês: por isso +deves saber, que naõ pódem aqui morar senaõ Grammaticos, e Professores +de ler, e á medida do seu pedantismo se lhes dá cá occupaçaõ competente: +Lavradores somos nós todos: os charlatães tem differentes +ministerios, ou almocreves, ou carreiros, &c. os delicados assam +castanhas: os negligentes caçam moscas: os que deixam de exprimir os +seus pensamentos, porque naõ acham em Cicero palavras para isso, estaõ +se cançando a tirar a pelle aos mosquitos. Mas como naõ gostamos de +gente ociosa todos nas occasiões vaõ trabalhar em Agricultura. + +Se lá no mundo, disse Sanches, mandassem cultivar a terra a homens +inhabeis para as letras (naõ deixando em silencio aquelles infinitos +estudantes de Mathematica, que nem sabem ler) nem mortificariam a seus +Mestres, nem faltaria paõ. + +Assim como em meu tempo, disse Teive, em que a Agricultura era taõ +estimada: entaõ naõ era preciso vir trigo de fóra, antes havia muito +para vender, e quando era cáro naõ passava o alqueire do preço de trinta +réis. Oh! Felizes tempos, em que haviam sabios, haviam soldados, havia +de comer! + +E naõ haviam, disse Sanches, casquilhos sem religiaõ, a medirem as +verdades Positivas a compasso: feitos Juristas, e Theologos abstractos. + +Estas, e outras coisas diziam, e tinhamos já bastante caminhado; porém +nunca me custou taõ pouco o andar. Eu bem podia voar; todavia por +decencia hia a pé. Cada vez mais campinas cultivadas hia descobrindo, +até que chegámos a hum oiteiro carregado de tójos, e de cardos, por onde +pastava huma grande manada de jumentos, guardados por infinitos homens. +Estes saõ os Professores de ler, disse Teive, que no mundo só ensináram +os meninos a gaguejar, e que foram a causa de nunca poderem avançar ao +estudo das sciencias. Naõ foram como os que viste em o congresso, os +quaes aproveitáram mais ás suas respectivas nações, do que muitos +Rhétoricos, e Filósofos. + +A literatura, disse Sanches, he a base das sciencias, e quem poderá ser +sabio, sem que saiba ler? + +Resolvi-me pois, a fazer minhas perguntas; mas sempre commedidas +para naõ me portar, como tolo. Abrí o bico, dizendo: Aonde estaõ +aquelles defunctos, que nem foram Grammaticos, nem Professores de ler? + +Além daquelle rio caudaloso (respondeu Sanches, apontando com o dedo) ha +muitas ilhas, e cada qual tem a sua jerarquia; porém se algum foi +Mestre, ou escriptor de Grammatica, ou Professor de primeiras letras, +ainda que tambem fosse Rhétorico, Filósofo, Theólogo, ou General, &c. +faz-nos entaõ o favor de vir para aqui. + +Em quanto Sanches me satisfazia, puxou Teive de huma luneta, e olhando +para além do rio, entrou a rir como hum perdido. + +Aqui me obrigou a fazer segunda pergunta; porque em similhantes +occasiões tem muita desculpa a curiosidade. + +Naõ ha coisa mais galante, respondeu, lá está Pythágoras, com a +escudélla de Diógenes entre pernas, comendo favas, como o lobo carne +de borrego. + +No mundo, disse Sanches, naõ houve quem mais asco lhes tivesse, e agora +está capaz de engolir a mesma escudélla. Ora o certo he, que se entre os +Grammaticos ha pedantes, muitos mais achareis entre os Filósofos. + +Já haviamos passado as fraldas de huma montanha de mais de tres legoas +de altura: quando ví os seus lados cobertos de bois, cabras, ovelhas: de +maneira que naõ avistava palmo de terra; e muito tempo estive +persuadido, que os pegureiros eraõ pedras cor de musgo. Mas a poucos +passos ví em o cume do monte hum mirante de tal grandeza, e magestade, +que a pobreza de minha penna naõ o póde debuxar. Basta dizer, que a sua +escadaria principiava desde seis milhas, e era de tal arquitectura, que +me parecia ir correndo por huma eira. + +Ainda Sanches hia batendo nos Filósofos pedantes, dizendo raios +contra Voltaire, e contra outros impios: senaõ quando ahi chega Crates +Mallotes em huma cadeirinha, trazida aos hombros de dois mariólas, +vestidos com saiaes até o joelho de pelles de bóde côr de cinza. Tenho +vergonha de dizer a naçaõ a quem pertenciam: Portuguezes naõ eram, o que +digo por descargo de minha consciencia; pois que Sanches me disse, serem +taõ respeitados naquella ilha os Portuguezes, que até os mesmos pedantes +eram muito favorecidos. + +Para que saibas, disse o meu Velho, para que saibas quanto te estimo; e +para que agradecido a esta boa hospedagem, venhas em outro tempo para a +nossa companhia, he que venho estar comtigo até que daqui te safes. + +Dizendo isto sahio pela cadeirinha fóra, e fomo-nos sentar bem perto da +entrada do mirante. + +Fez varias perguntas, entre outras, que me tinha parecido a sua ilha? E +tambem me disse a razaõ de naõ haver nella jardim, nem coitada: e +por fim levantou-se, e bateu a pórta do mirante, que logo se abrio; e o +que se passou, logo o vereis: e espero que muito vos divirta, e que nada +menos vos aproveite. + + + + +DIALOGO VI. + +_Idéa da grandeza do mirante de Carlos Magno: este, e Cesar recebem com +muita alegria a Crates Mallotes: Gúliver he tratado muito humanamente: +ultimas desgraças da pedantaria: remedio para ellas: chegam muitos +Grammaticos para pedirem a Gúliver, que escreva Grammatica Filosófica da +lingua Portugueza: como este fica no ar sem ver coisa alguma &c._ + + +Assim que se abrio aquella porta appareceu huma escadaria taõ alta, que +logo me lembrei da torre de Babel. Fui saltando por ahi a cima atraz de +todos; porque o velho se servio dos dois, como de moletas; naõ pela +razaõ da sua muita idade; mas por aquella, que vos naõ esquecerá, se me +lestes com a devida attençaõ. Naõ me custou tanto toda a comprida +jornada, como a subir (posto que hia de vagar) por as escadas a cima; +pois que as pernas por serem curtas me obrigavam a saltar violentamente. +Deste modo hia eu tirando forças da fraqueza; mas nem por isso quiz +voar: segundo o proposito, que havia formado. Com tudo muito estimaria +que Crates Mallotes sobre isto desfizesse a minha teima com preceito de +obediencia. Elle porém gemia como huma mulher na occasiaõ do parto. Em +fim, nestes apertos chegámos a todo cima a hum grande pateo; e parando +hum pouco para se moderar a respiraçaõ, virou-se Crates para mim com o +semblante cheio de alegria, e disse: Estás chegado a fallar com as +personagens que em os antigos seculos mais no mundo florecêram: ellas te +daráõ lições bem gostosas para a curiosidade portugueza. + +Dito isto, fomos entrando por falas, e mais falas, até chegar a huma +espantosa, e soberba varanda. Sim, disse Crates, has de levar lições +de grandes e illustres heróes: aqui naõ ha nem aduladores, nem +tractantes, que sejam capazes de os enganar. + +Ainda elle fallava, senaõ quando vejo Carlos Magno em o meio de Cesar; e +Cataõ, e Lelio á ilharga algum tanto apartado, e outros muitos em pé: +Mas avistando aquelles quatro insignes varões ao velho Crates, foraõ +tantos os festejos, os comprimentos, as alegrias, os abraços, as +galhófas, os ditos engraçados, que bem podia fazer divisaõ deste ultimo +_Dialogo_, se vos pertendesse chupar dinheiro com palavras sem proveito. + +Em quanto pois se passavam estes sinceros, e innocentes festins, +perguntei a Sanches (que já me havia dito, quem fossem os quatro) se os +outros eram os Grammaticos antiquissimos, pertencentes aos do susurro, +que tinhamos ouvido, quando estiveramos em o congresso? + +Que tu quizeres! respondeu, esses saõ bichos cor da noite, aos quaes +ninguem atégora vio: saõ os habitadores das trévas. + +Os Senhores saõ Cortezãos (disse-me Diogo de Teive) e os unicos, que naõ +havendo sido lá no mundo nem Grammaticos, nem Professores de ler, por +previlegio, e merecimentos do Imperador, vieram para aqui. Tem sim bons +salarios; mas nunca diante delle se devem assentar; porque só nós o +podemos fazer. + +Por isso, disse eu em segredo apontando com o bico para a orelha de +Teive, por isso lhes vejo as pernas bem inchadas; mas agrada-me muito o +seu sério. + +Aqui estaõ callados, tornou o Portuguez, mas fóra da vista de Carlos +Magno ninguem os póde aturar: tudo pisariam, senaõ fossem bem conhecidos +por elle, que os sabe bem domar: e assim todos vivemos huma maravilha. + +Já se haviam em fim acabado os comprimentos, e os Imperadores se foram +sentar, e depois os outros cinco. Eu, como por ser passaro estava +dispensado de fazer o mesmo, cheguei-me para aquelles, que tinham a +mesma dispensa, posto que por differentes motivos. Elles me trataram com +muito carinho: e para naõ ser ingrato, digo, disse, e sempre direi, que +em aquella ilha recebi obsequios até dos esfoladores de mosquitos, e dos +caçadores de moscas. + +Estando eu feito Cortezaõ, como acabo de significar, sem merecimento +algum, e cuidando por isso, naõ se faria caso de mim, logo fiquei sem +estes escrupulos: porque vendo Carlos Magno a minha submissaõ, e o +quanto eu conhecia a mercê, que me tinham feito em me admittirem com +tanta benignidade ás suas lições, e á sua companhia, disse em tom sério, +brando, e affavel: Es passaro, naõ ha duvida; mas passaro feito pelo +nosso dedo. O que tens foi-te dado; porque o merecias. Naõ és como essas +infinitas gralhas, que se andam enfeitando descaradamente lá na terra +com plumas, que furtam ás aves mais formosas, e mais estimaveis. + +Sim, disse Cesar, mas de ordinario, naõ se sabem armar com ellas, e +expoem-se ao risco de serem depennadas. + +Como as pennas, disse Cataõ, saõ bens de raiz, tambem as aves roubadas +poucas vezes demandam as ladras, que pouco a pouco vaõ perdendo o furtado. + +Senaõ demandam, disse Crates Mallotes, queixam-se pelo menos, como naõ +ha muito fez o nosso Condillac á vista desse Inglez. + +Ora pois, disse-me Carlos Magno, vinde para aqui. Entaõ fui-me chegando +com a cauda de rojos feito viuva, despedindo-me dos Cortezãos á Ingleza, +isto he, sem comprimentos, nem ceremonias, por ser indecente, que eu em +semelhante occasiaõ, me dilatasse com elles. + +Chegado que fui ao pé do illustre Heróe, já Cataõ se havia levantado, e +estava fazendo pontaria com hum telescopio, incomparavelmente mais +comprido, que o de Galilei de Galileos. Teria pelo menos trinta +covados de comprimento: estava em cima de huma especie de carreta, +que tinha suas escadas, para poder ver cada qual, segundo sua estatura. + +Ajustada a mira do instrumento, veio-se Cataõ assentar. Entaõ Carlos +Magno arrancando de seu piedoso coraçaõ hum grande, e magoado suspiro: +Sóbe, disse, verás por alli (apontava para o telescopio) por alli, +pedantarias já dignas de riso; já dignas de lágrimas. E vós Sanches, ide +estar bem, ao pé deste estrangeiro. + +Dito isto trepei pelas escadas até o ultimo degráu, pela razaõ da minha +estatura, que entaõ pouco maior seria, que a de perú: o rabo sim era +tamanho, e taõ monstruoso, como as _Linguagens_ que em elle foram +convertidas. Sanches porém, que naõ havia padecido, como eu nenhuma +metamorphose, ficou em pé sete escadas abaixo, e com a sua cabeça a par +da minha. Virei pois o olho esquerdo para a boca daquella grande +maquina, e o bico para a banda; mas dei a volta com elle voltado para o +ar, a fim de naõ molestar a cára do Hespanhol, companheiro, amigo, +&c. Os circunstantes gostáram do meu procedimento, riram he verde, +todavia com aquella moderaçaõ de gente bem educada. Eu confesso, que +estive hum pouco confuso. Ora eu já tinha reparado ser desmarcado o meu +bico; porém entaõ he que conheci ser sessenta vezes maior que o da +cegonha. Nascia a minha admiraçaõ de ter sido feito de huma arte taõ +breve, como o Novo Epitome. Já me naõ embaraçava olhar para outras +partes senaõ com ambos os olhos para o meu bico. + +Assim me estava demorando com estas bagatellas, quando Sanches me disse: +Naõ te maravilhes, tudo isso he preciso para dares as mais valentes +picadas no charlatanismo deste seculo. Observa o que vai pela Europa. + +Entaõ vi casas do tamanho de bocetas, ruas, chafarizes, proporcionados, +e logo infinitos ratos, devorando-se huns aos outros. As mortes ferviam: +tudo era huma confusaõ. Em quanto isto se passava, sahiam arrãs de +differentes lagos; entráram logo a formárem-se em esquadrões: os seus +escudos eram conchas de amejoas, as armas juncos mui agudos. Assim +invadiram os campos, pertencentes aos ratos, estes moderaram algum tanto +o odio intestino; muitos porém se misturáram com ellas; as quaes já hiam +ganhando castellos: e alvoravaõ suas bandeiras. Mas os ratos logo se +uniram quasi todos, levavam escudos de cascas de nozes, e as armas eram +folhas de trigo candial. Affugentáram as arrãs, e fizeram-se senhores de +muitas das suas ribeiras. + +Assim acabou aquella invasaõ. Depois ví alguns ratos ás costas das +arrãs, que nadavam pelos lagos, e dahi a pouco vi muitos delles +affogados pelas margens. Vieram outros com forcados ás costas: entaõ +muitas arrãs fizeram paz com elles, segundo me pareceu, outras ficaram +sós em campo: padeceram muitas derrotas: perderam muito das suas +ribeiras. Tambem os ratos tractaram mal a muitas das que haviam deixado +a liga, roubando, e comendo os seus viveres, e occupando o seu +terreno. Em quanto isto observei, vieram infinitos cágados, ajudaram +tanto as arrãs, que já hiam recuperando muito do perdido. Muitos ratos +fugiam pelas montanhas, com juncos espetados pelos olhos. As arrãs +mortas eram sem numero; os ratos sem conto. + +Muito tens visto, disse Carlos Magno, e queira Deos vejas estas revoltas +socegadas. Vê, como os ratos tudo querem roer; e depois querem que as +arrãs sejam animaes silvestres, como elles. + +Eu estava pasmado, e ainda hoje trabalho por decifrar todo aquelle +enigma, e canço-me debalde. Tambem vi batalhas navaes, em que as arrãs +obraram maravilhas. + +Se estas, disse Cataõ, naõ derem cabo destes ratos enfurecidos, a mim me +mellem. + +Crates Mallotes, queria se me explicasse aquessa visaõ; porém Carlos +Magno disse: vamos ao que importa, venha Gúliver para aqui. + +Entaõ fui logo pelas escadas abaixo para junto do Imperador, o qual +assim continuou. Nunca o mundo esteve taõ cheio de traidores, e de +malvados como hoje: Por aquelle telescopio sabemos tudo; o qual alli da +parte direita tem certo canudo por onde tudo ouvimos. Quizemos +divertir-te com esses ridiculos objectos: cuja explicaçaõ alguem acharás +entre os vivos, que bem a possa desenvolver. Só vos dizemos, que a falta +de Religiaõ, de temor de Deos, assim como o orgulho, e o egoismo deste +tempo, saõ as causas das desgraças, que com lagrimas nos olhos os bons +mortaes em a patria vos contaraõ. + +Sim, disse Cataõ, este seculo tem produzido mais impios, e mais Atheos, +que gafanhotos o estio. Os pais de familia, e a falta de vigilancia +publica sobre a educaçaõ da mocidade, tem causado muitos prejuizos á +sociedade humana. + +Cuidei, disse eu, que isso só serviria de augmentar o pedantismo, e +nada mais. A pedantaria, respondeu Cataõ, he prima mui chegada do +desatino. Todas as causas della, tambem o saõ dos males mais funestos. + +Quando isto ouvi, lembrei-me logo da expressaõ de Aurelio Opilio, quando +disse, que as revoltas do mundo deviam ser attribuidas á ignorancia: o +que Teive havia provado com argumentos, que naõ tinham resposta. + +Os pais de familia, disse Lelio, com a sua má educaçaõ, os Mestres +prevaricadores, os livros impios, tem feito em o mundo estragos mais +terriveis, do que peste em cem annos. + +Tudo isto, disse Cataõ ainda tem remedio, os pais que naõ ensinam aos +filhos o temor de Deos, a doutrina da sua religiaõ, a obediencia aos +seus Soberanos, e superiores, sejam castigados: os Mestres que naõ +mostram interesse na conservaçaõ das leis da sua patria, sejam apartados +do ensino público, e particular: os livros impios sejam naõ só +prohibidos, mas até queimados; porque o seu pedantismo he mui prejudicial. + +Eu com difficuldade podia ouvir estas coisas: todo o meu desejo se +encaminhava a que se me explicasse aquella célebre visaõ: por isso +perguntei: Que quer dizer aquella loucura dos ratos, e das arrãs? + +Naõ sejais teimoso, respondeu Crates, surrindo-se; todas estas reflexões +dahi nascêram. Ouvi a Cataõ, que he bello para isto. A vossa curiosidade +he por certo innocente, mas de nenhuma maneira vos he util. + +Como ouvi fallar em a inutilidade do meu appetite, deitei-o para fóra, e +inclinei o ouvido para Cataõ, que assim discorria: Hum homem sabio, que +tem lido as Historias do mundo, e de cujo coraçaõ o diabo ainda naõ +tomára posse, conhece muito bem, que tudo está perdido, huma vez, que se +quebrem os antigos eixos de qualquer governo: ou seja por meio de +planos, apparentemente bons: ou interesses imaginarios, ou titulos +de liberdade. E o peor he que o fogo desta funebre pedantaria passa de +ordinario muito além das barreiras, dentro das quaes se accendeu; pois +que he infinita a ignorancia, que lhe serve de lenha, e a si de ruina. + +Sem sahir de Roma, disse Cesar, temos as mais concludentes provas dessa +verdade. Quando Bruto, o maior fanatico, que a antiguidade conheceu, com +o pretexto virtuoso de vingar huma adultra suicida, todo o rude povo +amotinára, naõ foi só o Imperio quem padeceu os funestos effeitos +daquella republicana, e pedantesca novidade. + +Ouvindo isto o mordaz Cataõ, o qual havia sido o capataz dos +Republicanos, torceu o nariz, e fazendo uma carantonha, como de quem +sentio fedorentissimos vapores; assim retrucou a Cesar: Mas tu pouco +menos de cinco seculos, depois daquelle delirio pedantesco: já quando +todos amavam as leis, e os costumes de Republica taõ antiga, foste de +Roma regar os campos de Farsalia de Romano, e barbaro sangue. +Hespanha sentio tambem os malvados golpes da tua furiosa espada. + +Toda a paga do meu delirio, disse Cesar, foram vinte e tres punhaladas, +que recebi de quem a vida muito devêra desejar-me. Mas tambem o +sedicioso Bruto em o mesmo anno de seu Consulado alcançou a recompensa +da sua perfidia. Eu perdoei aos Cidadãos, que foram meus inimigos: +mandei aos meus soldados metter a espada na bainha. Podéra muito bem naõ +dar vida a algum. Porém todo o meu fim era restituir á patria o antigo, +e bom governo da sua creaçaõ; porque sempre me pareceu pessimo o guizado +da panella por muitos mexida. + +Mas naõ sendo tua a panella, replicou Cataõ, foras comendo esta tal, e +qual vianda com que todos nos haviamos sustentado. E que prazer recebias +de estar só a mexella, sendo a sua agua as lagrimas dos vivos, e o +seu adubo o sangue dos mortos? + +Tambem o fogo aonde fervia, disse Carlos Magno, era o incendio da guerra +civil, a coisa mais lamentavel de todas as desgraças, que em o mundo +possam succeder. + +He hum ingrato mui pedante, disse Crates Mallotes, todo o que deseja +mudada a Legislaçaõ, e os antigos costumes do seu paiz, em pontos +essenciaes; porque similhantes mudanças saõ a origem daquelle triste +fenomeno, que Gúliver ha pouco vio: e que tem produzido des donde o Sol +se poem até aonde elle nasce as miserias mais terriveis, do que a +memoria de todos os seculos nos tem mostrado. Mas para naõ mentirmos, +devemos confessar, que as traições tem sido a causa dos ratos terem +feito tanto damno pelas ribeiras: se isso naõ fora, já ha muito estariam +incurralados em seus buracos. + +Melhor seria, disse Lelio, que as arrãs, naõ lhes houvessem dado pasto +para roer; porque entaõ elles se devorariam huns aos outros, como +fazem estes, que andam de cavallaria, pelos fórros destes tectos. +Todavia he muito certo terem sido as traições a causa de durarem ha +tantos annos essas carniçarias lamentaveis. + +Se os traidores, disse Cataõ, naõ fossem pedantes, conheceriam, que em o +desempenho de suas obrigações, he que consiste a sua propria felicidade; +e que o ultimo fim da vil traiçaõ he todo o genero de trabalhos, ou, +quando pouco, huma infamia, que nem todo o mar em infinitos seculos +poderá lavar. + +Sabemos muito bem, disse Crates, que o interesse do traidor costuma +commummente ser igual ao do que entregou Gibraltar; mas Gibraltar ficou +perdido. Pelo que mostrai, como se podem evitar os menos traidores, que +for possível, em pontos taõ delicados. + +Huma boa educaçaõ publica, respondeu Cataõ he o primeiro remedio: depois +disto evitar-se o mais que poder ser tropa mercenaria. Assim he, +disse Cesar, porque, quando todos os Cidadãos em Roma eram soldados, nem +ao imperio faltava defeza, nem o povo morria de fome. Em tempo de guerra +corria toda a gente necessaria, no fim cada qual vinha para sua casa. +Desta maneira o ser soldado naõ se oppunha entaõ nem a ser estudante, +nem lavrador, nem General. + +Tambem os soldados Portuguezes antigamente, disse Diogo de Teive, eram +lavradores, e homens, que tinham interesse na conservaçaõ de suas +familias, e de seus bens: homens capazes, que de suas lavoiras hiam para +a guerra, e da guerra para as suas lavoiras. Naquelle ditoso tempo naõ +se prendiam homens vadios, e facinorosos, senaõ para o supplicio; e +ainda que se admitisse algum destes por ser valoroso, elle se fazia +honrado, pelo desempenho dos seus deveres. + +Por isso, continuou Cataõ, temos visto por aquelle telescopio, que +ninguem até agora entrou em Portugal com maõ armada, que mais hoje, +mais amanhã naõ sahisse com a aza a rastros. + +Eu estava admirado do que ouvia, e já gostava de ser bom estadista (naõ +como os do caffé, aos quaes aborreço de morte, quero dizer as suas +loucuras) por isso, estando muito familiarisado com a presença de Carlos +Magno, que me tinha havia tanto tempo ao pé de si; com o mais profundo +respeito; porque naõ costumo abusar do favor, que se me faz, assim +perguntei: Como, Senhor, póde neste tempo, em que tanto se necessita de +trópa bem disciplinada, deixar de haver soldadesca paga? + +Cataõ logo entrou a rosnar; mas em tom que nada percebi, com tudo, se +fordes bom Logico, podeis fazer huma boa conjectura. + +Sua Magestade, o Illustre Imperador Carlos Magno respondeu-me com a +mesma affabilidade, com que costumam os Monarcas Portuguezes fallar ao +seu povo, e aos estrangeiros, o que tudo observei quando estive em +Lisboa; e Teive havia confirmado com milhares de provas; o qual era +testemunha sem suspeita. O plano, proseguio o heróe famoso, para haver +muitos soldados fiéis, e valorosos com bem moderada despeza, he o +seguinte: Tem por exemplo huma Potencia 60$000 homens pagos, tenha só +12$000: estes sejam bem escolhidos. Alistem-se agora 200$000: +repartam-se em Regimentos: venham da tropa paga officiaes sabios, e +honrados para cada regimento. Tenha-se muita attençaõ aos destrictos +para se ajuntarem os soldados em os dias desoccupados a fazerem +exercicio. Dê-se aos pobres fardamento de tres em tres annos: a todos +sem excepçaõ a sua arma. Fóra do exercicio naõ se vistam as fardas, +tirando aquellas, que cada qual quizer comprar, &c. Naõ se pague senaõ +em guerra, ou actual serviço. Naõ se falte com o premio aos benemeritos. +Entaõ siga cada hum o modo de vida que bem lhe parecer. Mas quando este +seja incompativel, naõ se deve vexar ninguem. Ora dizei-me deste +modo faltará quem defenda a sua Patria? + +E seraõ, respondeu Cesar, menos as miserias publicas, e naõ ficaraõ as +terras a monte, e naõ haveraõ tantos ociosos, e... + +Naõ será preciso, interrompeu Cataõ, prender homens, e assim +constrangelos a jurar bandeiras, as quaes por esse motivo lhes haõ de +ser sempre odiosas. + +Fallando assim Cataõ, e estando Carlos Magno virado algum tanto para +elle: aproveitei-me da occasiaõ, e espetei o bico na orelha de Crates +Mallotes, que estava á ilharga de Cesar; perguntei-lhe muito baixinho: +Com que Bullas está aqui o açoite dos infiéis? + +Já te esqueceste (respondeu-me em o mesmo tom) do que te disse +Quintiliano lá no congresso, quando se recommendou a Grammatica da +lingua materna? Entaõ lembrei-me da Grammatica Tudesca; e ao mesmo tempo +da brevidade, ou fraqueza da memoria humana. Mas debalde se fallou taõ +baixinho; porque o Imperador tudo ouvio, e disse mui expeditamente: +Sim, fui Grammatico, e naõ temos medo aos Filósofos da moda. Tu faze +pelo ser, para que algum dia tenhas lugar aqui comnosco. + +Elle que acabava de fallar, chega Manucio, Braz Pico, Laurenti, Crinito, +Linacro, o Barbadinho, Antonio Pereira, e mais vinte Escritores +Portuguezes, e pediram, compozesse eu huma Grammatica Filosófica da +Lingua Portugueza; no que agora trabalho, mas espero de Lisboa humas +tres que me dizem, estaõ a sahir a publico, para dellas me aproveitar +sem crime de furto. + +Parece-me escusado dizer, com quanto respeito estes Grammaticos, que me +vieram fazer a sua recommendaçaõ, tractaram aos Imperadores; porque já +vos disse muitas vezes, que alli naõ ha gente mal criada. + +Em fim, promettendo eu áquelles amigos pôr todas as minhas forças por +satisfazer ao seu empenho, disse Crates Mallotes: Vai agora ver o +que vai; chega-te ao telescopio. Subi, inclinei o olho, e Sanches +chegou-me o canudo ao ouvido, e entaõ vi, e ouvi hum grande ajuntamento +de ratos a chiar: e logo entráram ás focinhadas huns aos outros, como +damnados. Nesse tempo veio-me aos olhos hum reflexo de luz de tal +qualidade, que me obrigou a fechalos; mas quando os tornei a abrir, já +nem vi mirante, nem nada: só me vi na regiaõ das aves sem saber que rumo +seguisse, nem para onde me voltasse. + + + + +FECHO DA OBRA. + +_Conta Gúliver como chegou á patria: como foi poizar á quinta de hum +Lord: como foi tratado: como deixou de ser passaro pelo toque da Carta +de Crates: o seu Theor, &c._ + + +Sahindo eu daquelle magestoso edificio sem saber de que maneira, assim +como naõ soubera o modo com que á ilha arribára; naõ tive entaõ remedio, +senaõ voltar o rabo para o Norte, e o bico para o Sul; porque naõ +avistava nem palmo de terra: agua, e ceo, eram os unicos objectos de +meus olhos. Estive hum pouco agitado dos mais tristes pensamentos, +lembrando-me a desgraça de Icaro; mas adoçava estes amargos com o +perfeito conhecimento de naõ terem sido as minhas azas feitas de cêra +pelos homens; sendo pelo contrario seus autores defunctos sabios, e +honrados, inimigos de traidores. + +Assim animado desta esperança verdadeira, cujo fim naõ foi doloso, vim +voando á ventura, por cima de mares immensos, que ví em differentes +partes coalhados de navios, que me pareciam formigas d'aza. Porém +chegando á altura de Londres, que muito bem conheci, e que me creou hum +novo coraçaõ, entrei a descer por huma perpendicular, e cada vez se me +hiam fazendo maiores os edificios, os quaes ao principio me pareciam +conchas de mariscos, ou de caracois brancos. + +Cheguei em fim á patria; mas _ad cautelam_ para evitar algum insulto da +plebe, fui poisar á quinta de hum Lord, que fora muito meu amigo em +outro tempo, e que ainda hoje o he. Porém eu chegado ahi, senaõ quando +todos os rapazes, e raparigas da fazenda, me vieram com páos dar as boas +vindas. Como pois eu era hum passaro taõ desusado, como manso, me +foram tangendo para casa de seu amo: nem eu queria outra coisa. Acudio +elle, e ficou satisfeito do presente. Eu tive minhas tentações de lhe +dizer quem fosse; mas contive-me; porque julgaria, que era algum diabo, +ou alguma bruxa pelo menos. Deste modo segui o systema de mudo, até que +algum defuncto me absolvesse de passaro, e me restituisse a figura de +homem. + +Assim que ví o Lord entrei a fazer-lhe festa, como pude, isto he, com o +rabo, e dando minhas correrias; mas de sórte que elle conhecesse que eu +era animal domestico, por evitar alguma peia, &c. O amigo estava-se +babando: logo mandou vir huma escudélla de páu, cheia de legumes, +lembrei-me logo de Pythagoras, e do riso de Teive; e conheci-me +comprehendido em o mesmo crime; porque havia sido pouco devoto daquella +fructa (por má creaçaõ, eu o confesso) e entaõ senti huma tamanha rafa, +que até devoraria a propria gamella. Mas todavia fiz-me grave até ás +horas de jantar, que me pareceram mais compridas do que a noite em +que Alcmena dormio com Júpiter; cuidando ella ter em casa o seu Anfitriaõ. + +Neste dilatado tempo recebi milhares de visitas, que me fizeram hum +grosso circulo, bem como a plebe de Lisboa costuma fazer a hum preto, +quando esfola algum cavallo; do que sou testemunha de vista. Tocou +finalmente a jantar, e eu que estava já aborrecido daquella gentalha, e +morto de fome, rompi por onde pude, fazendo caminho com o bico, o qual +fui logo espetar no prato do Lord, que naõ levou a mal o meu +desembaraço, antes mo encheu humas poucas de vezes de boas viandas. +Tambem repiquei em o copo; mas com muita moderaçaõ. Desta maneira tirei +o ventre de miseria: e regallei-me em quanto fui ave. Eu sahia pela +quinta, e tornava: e naõ havia mimo, que se me naõ fizesse. + +Ora eu cheguei áquella boa hospedagem ás déz horas do dia 2 de Janeiro +de 1800, e seriam onze do dia 13 do dito, estava eu ao Sol (que +durou bem poucos minutos) estendendo a aza, e compondo a plumagem: senaõ +quando chega huma ave, que me parecia galinholla, com hum cartaz no +bico, e deixando-o cahir lá do alto sobre mim, fiquei Gúliver como +dantes, vestido em trajes de marujo, o que eu certamente nunca fui, mas +assim vestia em meus embarques. As pennas lá fugiram para o corpo do +Correio: e talvez tornem a ser convertidas em as artes de que já fallei. + +Estando eu todo concho a abrir a carta, chega de repente o caseiro, e +diz: Quem deu a você licença de aqui entrar? Senhor, respondi, achei a +porta aberta. Naõ póde ser, replicou, vocês trepam pelas paredes como +gatos. E apostamos, que você vem com o cheiro em o passaro de meu amo? +Ah! Sim hum passaro mui esquipatico, disse eu, ahi anda em o cima da +estrada a querer saltar para dentro. Vamos fóra eu lho ajudarei a +enxotar para cá. + +O pateta, que isto ouvio, sahio a correr; e eu apoz elle. Metti-o em +huma travessa, e safei-me por outra bem para longe a ler a recommendaçaõ +dos amigos defunctos, cujo theor he o seguinte, em pergaminho de boa +letra, que naõ dou nem por hum milhaõ de libras estrellinas. + + + + +CRATES MALLOTES + +Exembaixador do Rei Attalo, Exprofessor de Letras Humanas em a +Cidade de Roma, Presidente Honorario dos Grammaticos defunctos + + +_Ao nosso amado Hospede Roberto Gúliver deseja muita Fortuna._ + + +NAÕ te posso explicar, amigo Inglez, as saudades, que deixaste em a +nossa ilha, e quanto todos ficáram namorados do teu bom procedimento; +por isto, e tambem pelo bom affecto com que te tractámos, he necessario, +naõ te esqueceres das nossas recommendações, para que, depois do golpe +da Parca, te associes comnosco. Muito bem observaste quantos homens +grandes aqui habitam, Imperadores, Bispos, Condes, Generaes, &c. Depois +disto aviva lá no mundo a nossa memoria, para naõ esquecer de todo: +o que te será pouco custoso, patenteando os justos açoites, que nos +vistes descargar sobre o pedantismo deste seculo. Mas os Grammaticos +Portuguezes, de quem muito nos prezamos, e os Hespanhoes, querem, que tu +dívulgues as nossas lições em Portugal; naõ por necessitar mais dellas, +do que as outras nações, mas porque lá ainda ha muitos sabios, a quem +haõ de ser bem gostosas. Naõ temas nada: tudo o que disseres, he nosso, +que nos lastimamos muito dos destemperos da humanidade. Se em fim por +tamanha caridade houver quem te morda, de cá irá o medicamento, sem que +pagues porte ao Correio. O portador desta he Despauterio, e pódes dizer +áquelle amigo, que elle já naõ ralha dos outros, e que siga este +exemplo. Ilha dos Mórtos 12 de Janeiro de 1800. + + +Apenas lí este passaporte, corrí como huma lebre a casa do Lord, que naõ +sabia o que me fizesse. Logo me deu vestido, dinheiro, tudo. +Mandou-me sem perda de tempo pôr mãos á obra; e depois de a lêr +carregou-me de elogios: e vai-se a imprimir por sua conta. Eu estou mui +gostoso da sua approvaçaõ, por ser hum homem doutissimo, que naõ declaro +para naõ cahir em incoherencia, que he o peor defeito de quem escreve. + + +FIM. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica +Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA *** + +***** This file should be named 34287-8.txt or 34287-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/4/2/8/34287/ + +Produced by Mike Silva + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/34287-8.zip b/34287-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..4d638aa --- /dev/null +++ b/34287-8.zip diff --git a/34287-h.zip b/34287-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..dcce680 --- /dev/null +++ b/34287-h.zip diff --git a/34287-h/34287-h.htm b/34287-h/34287-h.htm new file mode 100644 index 0000000..12da02c --- /dev/null +++ b/34287-h/34287-h.htm @@ -0,0 +1,2340 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Crates Mallotes, por Robert Guliver</title> + <meta name="Author" content="Robert Guliver"> + <meta name="Edition" content="Lisboa. Offic. de João Procopio Correa da Silva, 1800"> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: 0.7em; + text-align: right; + color: gray; + } + big {font-size: 2em;} + #capa p {margin: 0; text-align: center;} + #corpo p.centrado{text-align: center; text-indent: 0;} + #corpo p {text-align: justify; text-indent: 1em;} + #corpo p.ni {text-align: justify; text-indent: 0;} + #corpo p.sinopse {text-align: justify; text-indent: -1em; margin-left: 1em;} + h1,h2,h3 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px #000;} + a {text-decoration: none; color: navy; font-size: 0.7em; font-family: sans-serif;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + .fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: +75%; margin-left: 10%; margin-right: 10%;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos +Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Crates Mallotes ou Critica Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo + +Author: Robert Guliver + +Release Date: November 12, 2010 [EBook #34287] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA *** + + + + +Produced by Mike Silva + + + + + +</pre> + + +<p> </p> + +<div id="capa"> +<p style="font-size: 1.8em;">CRATES MALLOTES</p> + +<p style="font-size: 1.4em;">OU</p> + +<p style="font-size: 1.6em;">CRITICA DIALOGISTICA</p> + +<p style="font-size: 1.4em;">DOS GRAMMATICOS DEFUNCTOS</p> + +<p style="font-size: 1.4em;">CONTRA A PEDANTARIA DO TEMPO,</p> + +<p>ESCRITA E PUBLICADA</p> + +<p style="font-size: 1.4em;">POR GULIVER</p> + +<p><em>Que chegou ha pouco da outra vida.</em></p> + +<p><em>Obra taõ divertida como interesante aos curiosos, e amantes do bom +gosto.</em></p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:left; font-size: small; border-top: solid 1px #000; border-bottom: solid 1px #000;"><em>Praeterea, ne sic, ut qui jocularia, ridens</em><br> + <em>Percurram: quamquam ridentem dicere veruim</em><br> + <em>Quid vetat?</em> Horat. Sat. <small>I</small>. do L. + <small>I</small>.</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="font-size: 1.6em;">LISBOA,</p> + +<p>ANNO M. DCCC.</p> + +<p style="font-size: 1.2em;">Na offic. de Joaõ Procopio Correa da Silva,</p> + +<p>Impressor da Santa Igreja Patriarcal.</p> + +<hr> + +<p><em>Com licença da Mesa do Desembargador do Paço.</em></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<blockquote style="font-size: small; margin: 15%; border: dotted 3px #000; padding: 1em;"> + <p><em>Non semper ea sunt; quae videntur: decipit<br> + Frons prima multos: rara mens intelligit,<br> + Quod interiore condidit cura angulo.</em></p> + + <p style="text-align: right;">Phaed. Prol. do L. IV.</p> +</blockquote> + +<p> </p> + +<p> <span class="pn">{III}</span></p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> + +<h3>A<small>O </small>S<small>R. </small>P<small>ANTALEAÕ +</small>G<small>ONÇALVES </small>S<small>ALGADO</small><br> +<small><small>DAS </small>B<small>ARROCAS</small><br> +R<small>OBERTO </small>G<small>ULIVER OBSEQUIOSAMENTE SAUDA.</small></small></h3> + +<p> </p> + + +<p class="ni"><em><big>P</big>Orque meu avô, que em paz descance, costumava gastar huma boa parte das +compridas noites do Inverno ao seu lume, elogiando muito a pessoa de V. m. e +fallando sempre no seu prestimo, e cançasso no serviço dos amigos: e tambem +pela justa paixaõ, a qual, como Portuguez velho, por muitas vias sei, pela sua +naçaõ naõ cessa de mostrar: tudo isto me obriga a dar-lhe o incommodo de +concorrer com todos os seus bons officios, para que se imprima o mais breve +este livrinho, parto dos Grammaticos defunctos contra a</em> pedantaria +<em>do</em> tempo: <em>em o qual livro achará V. m. as verdades mais +importantes, naõ forjadas neste, mas sim no outro mundo, donde ha pouco cheguei +a salvamento. Naõ quero todavia, que a sua bolsa padeça detrimento; por +isso<span class="pn">{IV}</span> que o portador entregará 50 libras +estrellinas: e, se mais for preciso, mais irá: nem seria necessário tanto, se +eu naõ quizesse, que a Ediçaõ fosse em tudo completa, e que se estampassem 6000 +volumes. Receba pois esta obra, como toda consagrada aos merecimentos da sua +veneranda pessoa: e peça-lhe encarecidamente, faça por aqui aprender a ler seus +netos; porque assim, naõ duvido, terá a satisfacçaõ de os ver em sua vida os +melhores doutores; por isso que naõ lhes falta esperteza, do que estou bem +inteirado. Deos guarde a V. m, muitos annos.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><em>Londres 25 de Fevereiro de 1800.</em><span class="pn">{V}</span></p> + +<p> </p> + +<h2>PROLOGO.</h2> + +<p class="ni"><big>Q</big>Ualquer que seja o estado, ó amicissimos Leitores, em que a sórte tenha +collocado o homem, nunca já mais o pode dispensar de Fazer bem aos da sua raça: +foi este devêr gravado no coraçaõ humano pelo dedo da propria Natureza; nem taõ +pouco o Author Supremo lhe permittio a feia liberdade de derribar os alicerces +mais seguros da ordem social. Estes motivos, julgo, obrigáram a meu avô a fazer +suas viagens a differentes ilhas, donde vos trouxe bellos, e interessantes +documentos, os quaes, a meu ver, muito vos aproveitariam, se bem trabalhasseis +pelos entender. Eu pois naõ querendo deixar só em taõ louvavel projecto hum +illustre progenitor, que honrou ainda mais a sua naçaõ, que a sua familia, fui, +depois de alguns estudos sérios o unico patrimonio, que recebi de meu pai, +passear pelo mundo, a fim de<span class="pn">{VI}</span> recolher os fructos, +que a minha terra naõ houvera produzido. Agitado por isso destas boas +intenções, viajei por todas as partes do orbe; e lá virá tempo, se a Parca o +quizer, que eu deleite a vossa curiosidade com bocados bem gostosos. Entre +tanto desfructai estas bem adubadas lições dos Grammaticos defunctos, que vos +trago da ilha dos Mortos, á qual apportei naõ sei como, depois de haver +naufragado dois dias antes, junto da Arcadia. Naõ me foge ser este presente bem +digno da minha amada patria, e confio, que ella naõ rejeite as provas mais +sinceras do meu affectuoso coraçaõ; ainda que por outra parte naõ desconheço +mais quereria, que eu a mettesse de posse da dita ilha; mas naõ podendo ser a +sua conquista senaõ depois da morte, só lhe dou o que cabe em a minha alçada: +isto he, lições mui precisas, que a benignidade de Crates Mallotes, e de outros +Grammaticos fallecidos muito me recommendou; e as quaes eu terei sem algum<span +class="pn">{VII}</span> rebuço, e com a mesma franqueza de vos manifestar; já +por ter lido isto expressamente mandado, como vereis, por gente da outra vida, +com quem naõ se deve brincar; já por ser contra o meu decóro naõ pizar a feia, +e çuja lisonja com os mesmos pés que correram pelas ingenuas provincias da +eternidade.<span class="pn">{VIII}</span></p> + +<p> <span class="pn">{9}</span></p> + +<p> </p> + +<h1>CRATES MALLOTES.</h1> + +<p> </p> + +<h2>DIALOGO I.</h2> + +<p class="sinopse"><em>Acha-se Gúliver depois de seu naufragio deitado em huma cama de penas; +levanta-se, fica vestido com ellas: he levado ao palacio de Crates Mallotes: +falla-se em a decadencia das Letras: estabelece Teive tres causas de pedantaria +geral: nomeia Crates para cada huma seu relator, &c.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>T</big>Inha amanhecido o dia 27 de Dezembro de 1799, passados já quasi 23 annos, +que havia sahido dos patrios lares, e para onde vinha navegando: seriam tres da +tarde, quando se levantou pelo Sul huma nuvem pardacenta,<span +class="pn">{10}</span> que em breve espaço vestio o Ceo de negro, e logo o +vento entrou a dar horrendos berros, os quaes converteram os mares em +elevadissimas montanhas, cujas fraldas eram medonhas cavernas: ferviam os +alaridos; mas a fervura pouco durou; porque a tempestade correu veloz, fez em +migalhas toda a mastreaçaõ, o mar de Arcadia engolio o casco do navio, e +sepultou em suas malvadas entranhas os meus amados companheiros. Eu andei +abraçado com hum pedaço de mastro, dois dias, segundo penso, feito boia; no fim +dos quaes cheguei quasi defuncto áquella parte da ilha dos Mortos, que os +Grammaticos habitam. Naõ sei dizer como ahi apportei; porque só me lembro de +resuscitar no meio dos Grammaticos, que já morreram, cuja caridade, e +benevolencia vou apregoar para confusaõ dos ingratos de que o mundo está cheio. +He pois o caso: mal hia eu abrindo os amortecidos olhos, senaõ quando vejo +Sanches todo arregaçado a applicar-me varios remedios, e ninguem dizia nada, eu +tambem<span class="pn">{11}</span> fiquei callado; porém nada me escapou: +porque reparei me haviam deitado em hum leito de negro evano, enterrado em +plumas de aves desconhecidas, no meio de hum portico de soberbas columnas, o +qual servia de fachada a hum palacio taõ magnifico, que bem conheci naõ ser +feito por braço mortal, cujas obras pelos erros, e defeitos, logo se daõ a +conhecer.</p> + +<p>Assim estava medindo com os meus botões o edificio dos mórtos, quando +Sanches observando hum e outro pulso, disse: <em>Desta estás çafo.</em> Eu +porém, que naõ estava acostumado a ouvir fallar defunctos, metti a viola no +sacco. Mas o Francez Despauterio, como quem quiz mostrar o pique da sua naçaõ +contra a Hespanhola, disse com hum rizo Sardonico, muito gosto, Sanches, de vos +vêr de Grammatico feito Medico. Já no mundo (tornou o sabio Brocense em hum +tom, que me regalou) fui o Medico, que curou as doenças literarias do teu paiz: +o meu nome lá anda na boca<span class="pn">{12}</span> dos eruditos; o teu na +dos pedantes.</p> + +<p>Entaõ Despauterio ficou de queixo cahido: todo o congresso bateu as palmas, +e carregou de vivas o Principe dos Grammaticos, e eu animado com a galhofa +agradeci-lhe muito a caridade com que me tratou: e fiquei desde entaõ senhor de +mim de tal feiçaõ, que me parecia, já naõ ser homem de Inglaterra: de maneira +que sem ceremonia nenhuma saltei pela cama fóra; mas quanto naõ fiquei +maravilhado, quando me vi vestido das mesmas pennas, em que, pouco havia, +estive deitado! Fiquei pois com huma beca, como de Desembargador, e naõ cessava +de me mirar, assim como fazem os casquilhos no meio das ruas; porém he certo +que eu naõ obrava assim por asneira, como elles. Toda a minha admiraçaõ era ver +hum vestido feito por si mesmo sem tezoura, nem agulha de alfaiate. Antonio +Nebrixa conheceu o meu espanto, e disse: Aqui naõ admittimos homens, que fazem +officio de mulher, e subministram ao luxo mundano<span class="pn">{13}</span> o +ultimo refinamento, ajudando os teares da tua naçaõ a esgotar quanto dinheiro +as outras tem. Fiquei envergonhado, e elle conhecendo o meu pejo, virou-se para +a turba, e disse: Aonde está Linacro, que naõ vem dar as boas vindas ao seu +compatriota? Logo appareceo o Grammatico Inglez, de quem recebi aquelles +generosos cortejos, que de homem taõ douto devia esperar. Entaõ fez D. Maximo +de Sousa certo signal, e fui levado em procissaõ para o palacio.</p> + +<p>Logo que ahi entrei, espetei os olhos em hum velho venerando, o qual estava +sentado em o segundo salaõ em huma cadeira toda cravejada de brilhantes +carbunculos; em cujo espaldar se viam as armas do Rei Attalo, de quem havia +sido Embaixador. Ajoelhei, e elle virou a cára para a banda. Disse-me entaõ +Estevam Cavalleiro: Aqui naõ se gosta de lisonjas, faze o que vires fazer aos +mais. André de Rezende, que estava ao pé, disse-me: Todos aqui estamos +assentados: aquelle he verdade está com mais<span class="pn">{14}</span> +distinçaõ, por ter sido o primeiro Mestre, que Roma teve, Crates Mallotes se +chama.</p> + +<p>Entaõ eu pedi licença para fallar: ao que todos os que estavam perto de mim, +responderam, que naõ só pelos merecimentos de meu avô, mas pelos proprios, os +quaes valiam seiscentas mil vezes mais que os alheios, podia eu dizer o que bem +quizesse. Abaixei a cabeça pelo obsequio, e disse: Se bem me lembro, este homem +foi Grego, e naõ sei, porque recebe aqui as honras de primeiro contra outros da +Grecia muito mais antigos que elle? Assim he, disse Sanches, mas como os +Romanos venceram os Gregos, e ficaram senhores do terceiro periodo das Letras, +tambem sempre respeitaram o seu primeiro Mestre: e tendo o imperio Romano dado +leis a todo o mundo, ficou este com os seus discipulos nesta Ilha ainda +recebendo as honras do Magisterio: e nós todos respeitamos muito as suas cãs. +</p> + +<p>Quando elle assim fallava, vi huma<span class="pn">{15}</span> nuvem de +Grammaticos Romanos, que o Barbadinho nomeava por seus proprios nomes, que me +naõ eram novos pelos haver lido em Suetonio <em>de Illustribus +Grammaticis</em>. Notei com tudo tres turmas differentes, a saber, a primeira +dos Grammaticos antigos, isto he, desde o fim da segunda guerra Punica até o +seculo X. da era vulgar: outra dos velhos, isto he, desde o seculo X. até o +XVI. a ultima dos modernos, isto he, desde entaõ até hoje. Porém muitos dos +modernos estavam misturados com os velhos; e disse-me Porretti, que era por +terem seguido as mesmas opiniões. Tambem ouvi em outro salaõ hum grande +susurro, e disse Cataldi, serem os Grammaticos antiquíssimos, de quem naõ havia +memoria no mundo, e que por isso viviam solitarios.</p> + +<p>Cuidei, disse eu, que a Grammatica naõ era taõ antiga: he mais (respondeu +Carlos Tobalduzio) do que os pedantes pensam: mas sentemo-nos, que para isso já +o Mestre fez signal. Logo que todos se assentaram, e eu ao<span +class="pn">{16}</span> pé de Sanches, poz Crates Mallotes huns oculos no nariz, +e avistando-me, diz: Tambem por cá, meu Inglez? Eu me admirava já de naõ +apparecer por aqui algum marinheiro da Grã-Bretanha mas vamos adiante, que vos +parece a pedantaria deste chamado seculo das luzes? Ha 23 annos, respondi, que +sahi da minha Patria, e Portugal foi a primeira terra, que depois da minha +conheci: E entaõ que viste por lá? Florecer as letras com muita vantagem, o +commercio; vi manufacturas, taõ boas, ou melhores, que as do meu paiz.</p> + +<p>Assim foi, disse Crates, mas para que saibais, quanto agora lá vaõ decahindo +as letras, para que eu naõ falle em outras nações que finalmente estaõ +prostradas na mais furiosa ignorancia, vos informará o respeitavel Diogo de +Teive, e outros Portuguezes, e estrangeiros, os quaes comnosco vivem. Porque, +naõ obstante as justas providencias, que para remedio deste mal, ha dado o +melhor e o mais pio de todos os Monarcas<span class="pn">{17}</span> do orbe, +necessariamente havia de fazer alguma opposiçaõ á piedade de seus desejos a +furiosa torrente de desgraças, que ha onze annos, tem alagado de sangue, e de +maldades a infeliz Europa. Portugal, talvez pela sanctidade de seu Augusto +Soberano, tem padecido bem pouco; ahi ha mais sabios, melhores soldados, mais +gente honrada em todos os estados, do que naçaõ alguma possue. Por isso, meu +Inglez, applicai as nossas justas censuras, ainda com mais razaõ, a todos os +póvos da terra; e confessai isto mesmo lá no mundo, para credito da nossa +honra, e prova da nossa verdade.</p> + +<p>Eu desempenharei, diz Despauterio, a tua commissaõ, nem outro melhor para +isso acharás. Callai-vos, repondeu Mallotes, todos sabem que fostes hum +gritador contra todos os Grammaticos de teu tempo, quando a tua Arte he hum +<em>cahos</em> muito similhante á massa informe, que existia <em>Ante mare +& terras</em>.... O Francez vaidoso ficou fazendo trejeitos;<span +class="pn">{18}</span> mas por entaõ ficou callado.</p> + +<p>Todos gostaram muito do sabonete do velho; porém Diogo de Teive com toda a +civilidade principiou dizendo: Ainda que Despauterio tenha milhares de defeitos +em a sua obra, naõ deixa todavia de ter algumas coisas interessantes, de cujo +numero he a definiçaõ de Grammatica: <em>Omnium scientiarum sons +uberrimus.</em> E certamente, se o dom da palavra he hum dos maiores que do Ceo +recebeu a humana geraçaõ, e porque se differença dos brutos animaes, como +poderiam sem este dom os homens viver em sociedade? He por esta via que elles +huns aos outros communicam os seus desejos, e sentimentos, a fim das +utilidades, e interesses da vida social. He logo preciso que o homem saiba +fallar; pois senaõ souber, de que lhe valem todos os seus conhecimentos? E naõ +será por conseguinte a primeira de todas as disciplinas aquella de fallar, e +escrever sem erro?<span class="pn">{19}</span></p> + +<p>Quem o duvida? disse Vossio, por isso he que os Gregos, Mestres do genero +humano inventaram a Grammatica. A isto tornou Crates Mallotes, abaixando a +cabeça: Naõ ha duvida que de nós a receberam muitos póvos; mas já antes de nós +os Hebreos a conheceram.</p> + +<p>He verdade, continuou Teive, que os sabios de todos os tempos muito bem se +persuadiram do interesse desta arte; e póde-se dizer que ao homem, o qual sem +ella quizer ser letrado, acontecerá o mesmo, que ao cégo sem moço, nem bordaõ, +correndo por montes, e rochedos.</p> + +<p>Mas os homens deste tempo, diz Pedro Simaõ Abril, nenhum caso fazem della: +todo o que era tido por honrado em o meu, mandava seus filhos ao Latim; e desta +maneira ficavam pelo menos com alguma instrucçaõ de Grammatica geral.</p> + +<p>Sim, disse o Barbadinho, naõ ha muitos annos, que os rapazes hiam leguas +aprender Latim, hoje naõ faltam Mestres, sem terem a quem ensinem.<span +class="pn">{20}</span> Por isso, disse Agostinho Saturni, ninguem vê senaõ +casquilhos, mettidos a espertos, sem que ao menos saibam ler.</p> + +<p>Naõ se estudando Grammatica, proseguio Teive, tambem fica abandonada a +Logica, a Eloquencia, e os mais estudos, que allumiam o espirito do homem: e +daqui vereis quanto vaõ decahindo as letras, sendo taõ poucos os que a ellas se +applicam.</p> + +<p>De França, disse Lopo Gallego, veio o exemplo desta pedantaria, deste +desprezo das letras. Aqui se levantou o P. Manoel Alvares, todo inflammado, e +disse: Depois que o grande Rei D. José reformou os Estudos, e reprovou a minha +arte, ficou a Grammatica Latina bem facil de aprender; mas a pezar desta +reforma vejo cada vez mais pedantes, e estadistas de café.</p> + +<p>He verdade, disse Fr. Theotonio de Lisboa, que as intenções do nosso Rei +foram todas as mais heroicas; Portugal no meio deste seculo poz-se<span +class="pn">{21}</span> todo luminoso; e os sabios cresciam em tanto numero, +quanto era o das mercês, e premios, que de taõ alto Senhor recebiam. Estas +luzes porém vaõ-se diariamente apagando pelas borrascas tenebrosas, que ha dez +annos pegaram, e a ignorancia corre appressadamente a pôr no cachaço dos +humanos a sua canga de ferro.</p> + +<p>Como póde ser, disse eu, que as letras tenham decahido tanto em Portugal? Ha +23 annos, que lá estive, e parecia-me ter sabios para ensinar todos os povos do +mundo.</p> + +<p>Ainda hoje, respondeo Martinho Crusio, tem em sua pequenez mais eruditos que +naçaõ alguma; porém a mocidade vai perdida: e esta praga he geral, ainda +naquelles povos, que se jactam de mais espertos.</p> + +<p>E que vos parece, companheiros, disse Sevio Nicanor, a persuasaõ ridicula de +certas cabeças allucinadas, que attribuem á sciencia as revoltas deste seculo? +Á ignorancia,<span class="pn">{22}</span> respondeo Aurelio Opilio, he que +deveram ser attribuidas.</p> + +<p>Dizeis bem, continuou Teive, esse he hum sophisma <em>non caussae pro +caussa</em>. Porque pela falta de sabios perdeu-se Athenas: o imperio Romano +espirou em a noite da ignorancia: França nunca foi taõ florescente, como em o +tempo de Luiz XIV.: Hespanha em o dos Reis Catholicos. Estas provas saõ de +facto, e só por outras da mesma natureza podem ser contrastadas.</p> + +<p>Joaõ Despauterio, que vio fazer a França aquelle elogio, poz-se todo tezo, e +disse, que ella havia sido a mãi dos sabios; Crates Mallotes porém, que já o +mandára callar, poz-se a dar cuadas, e parecia huma vibora. Vendo Jerardo Joaõ +Vossio o velho assanhado, disse: Aqui naõ he lugar de enganos, bem sabeis que +os Francezes nunca passaram de Contrabandistas das letras. Todos sabem que +elles tem vertido o trabalho dos mais povos, e que muitos inventos<span +class="pn">{23}</span> alheios os tem vendido por seus.</p> + +<p>He isso taõ certo, diz o grande Joaõ de Barros, que até a invençaõ da +maquina aerostatica fizeraõ sua, quando foi de hum clerigo Portuguez, que sendo +entaõ tido por Magico padeceu seus detrimentos.</p> + +<p>De vagar, de vagar, disse Lancelot, senaõ temos inventores temos +aperfeiçoadores, o que he nada menos estimavel. Vede Maxilon, e Bordalue, e +reparai quanto he hum semelhante a Cicero, e o outro a Demosthenes. Confesso, +disse Barros, souberam bem aproveitar-se da Eloquencia Grega, e Romana. He na +verdade grande admiraçaõ hum imperio taõ vasto produzir hum punhado de homens +grandes! Mas dizei-me, que vedes agora por lá, senaõ systemas imaginarios, que +estando armados no ar hoje se levantam, ámanhã se dissipam, bem como as nuvens, +que tem os mesmos alicerces?</p> + +<p>Esta disputa hia sendo bem gostosa, e tratada com calor; mas Crates<span +class="pn">{24}</span> Mallotes deixou cahir a vizeira, e tudo ficou em +silencio: e olhando para huma, e outra parte; a essas desputas, disse, saõ +impertinentes; já vos mandei, Diogo de Teive satisfazer a esse Inglez. Entaõ o +Illustre Humanista continuou, dizendo: A causa da decadencia das letras, ou +para o dizer melhor, as causas da pedantaria deste tempo saõ tres: a primeira +saõ sem duvida os pais de familia, que em vez de educarem filhos, que honrem a +lua patria, criam ou leões que a devoram, ou porcos, que a çujam: a segunda saõ +os Mestres idiotas, e charlatães, que vam formando discipulos a si similhantes: +a ultima saõ os máos livros didaticos por onde muitos ensinam a mocidade.</p> + +<p>Todos os Grammaticos applaudiram muito a proposta de Teive, e ao mesmo tempo +hiam cortando o discurso com as suas costumadas reflexões, e já era o susurro +tamanho, que nada se percebia: entaõ Crates deu duas pancadas em a cadeira, +e<span class="pn">{25}</span> fallou com palavras meigas: Bem vedes, amados +companheiros, que esse Inglez he vosso discipulo, e que por isso he necessario +o bom methodo para se aproveitar das vossas interessantes lições. Sou pois de +parecer que a primeira das tres causas da pedantaria, que tu, ó Teive, taõ +eruditamente expozeste, seja tratada por Marco Fabio Quintiliano; a segunda por +Elio Antonio Nebrixa: a ultima por Francisco Sanches Brocense; pois que foi, e +será sempre a honra dos escritores Grammaticos: com tudo qualquer dos outros +poderá fallar em tempo competente para deleite deste respeitavel congresso. E +tu, ó mortal ditoso, que tiveste a ventura de ouvir em tua vida as lições dos +mortos, naõ percas cousa alguma, para sahires daqui com as forças precisas ao +justo fim de bem coçares huma chusma de pedantes, os quaes com seus erros, e +com sua ignorancia tem çujado, e envilecido as nossas provincias +Grammaticaes.<span class="pn">{26}</span></p> + +<p>Abaixei a cabeça, e beijei as palmas em signal de agradecimento: e os outros +ficaram com a boca aberta a olhar para Quintiliano, que se foi sentar em hum +escabello, o qual estava chegado á cadeira pela parte de diante.<span +class="pn">{27}</span></p> + +<p> </p> + +<h2>DIALOGO II.</h2> + +<p class="sinopse"><em>Expõem Marco Fabio a primeira causa da pedantaria: erros de educaçaõ: +bandalhices: desprezo da literatura: funestas consequencias, &c.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>Q</big>Uando todos os Grammaticos defunctos estavam com a maior attençaõ, fez huma +grande reverencia Fabio, e deu com o queixo no peito huma tamanha pancada, que +todo o edificio tremeu, e eu de medo cahi sem sentidos; nem por certo o meu +desmaio foi similhante aos fenicos das damas, que fingem diabruras para terem +occasiaõ de fallarem aos casquilhos: Sanches que era bem versado em Medicina, +logo me chegou ao nariz hum estimulante, o qual me tornou taõ esperto, e huma +memoria taõ feliz, como podereis ir observando<span class="pn">{28}</span> em +todo o processo destas arengas.</p> + +<p>Mas tornando ao proposito: Depois daquella ceremonial venia, que taõ cáro me +custou; voltou Quintiliano successivamente a cabeça para os lados de toda a +assembléa, do mesmo modo que fazem os Oradores em o principio de seus +discursos; e entaõ assim principiou: He sem duvida serem os pais de familia a +primeira causa da pedantaria. Apenas os infelices meninos nascem, logo entram a +puchar por elles para o curral da ignorancia, e pelos caminhos do vicio he que +vaõ arrastrando aquellas innocentes victimas para os altares da charlatanaria, +e da maldade.</p> + +<p>O peor he, disse Francisco de Brito, que muitos pais ensinam aos filhos as +mais ridiculas extravagancias, e estaõ persuadidos, que só elles sabem dar boa +creaçaõ a seus filhos. A esses, disse Nicodemos Frischilino, a sua tolice os +desculpa; mas nenhuma tem os que praticam todo o genero de maldades sem pejo da +sua familia<span class="pn">{29}</span> ser testemunha, e quereram que ella +seja virtuosa?</p> + +<p>Taes, disse Lucio Joaõ Scopa, com suas amoestações, conseguem o mesmo, que a +mãi dos caranguejos, a qual mandando aos filhos, que naõ andassem ás avessas, +elles responderam: Andai vós ás direitas, e nós vos seguiremos.</p> + +<p>Bem sabeis, disse Fabio, que eu fui o primeiro Mestre público que em Roma +ensinou, e nunca cessei de clamar contra a má educaçaõ, que os pais daõ aos +filhos; mas os homens de hoje saõ infinitamente mais culpados.</p> + +<p>Que Romano, disse Samuel do Prat, naõ entranhou com o seu exemplo em o +coraçaõ dos filhos o amor da patria, e das letras?</p> + +<p>Ora pois, continuou Fabio, os idiotas nunca em Roma figuraram, senaõ em os +seculos da escuridade; por isso os pais procuravam pela sciencia a fortuna dos +filhos, e a sua.</p> + +<p>Mas em que pontos principalmente,<span class="pn">{30}</span> diz Elias +Maior, peccam hoje os pais em a educaçaõ de seus filhos? Dois extremos +viciosos, respondeu Quintiliano, saõ as causas primitivas. Huns os tratam com +excessivo mimo, outros com excessivo rigor. Daqui nasce, serem estes +clausurados em casa, como Freiras, e serem aquelles largados sem freio para +onde querem. Todavia accresce a tudo o mau exemplo: porque, como a virtude, +anda fogindo destas guerras, e destes desaforos modernos, se o menino naõ a +encontra lá por fóra, muito menos a achará em casa, aonde nem se falla em +Doutrina, nem em Religiaõ, nem em temor de Deos, nem amor da patria, do +Soberano, das sciencias, &c. Ora vede agora que taes doutores seraõ os +filhos de taõ bons pais? Por isto, disse Buchnéro, o mundo está cheio de +paraltas, e estadistas, como nunca.</p> + +<p>E que vos parecem, disse Barnabé de Busto, estas bandalhices da moda? estes +çapatos de bico mais comprido, que corno de boi? Estes calções,<span +class="pn">{31}</span> que custam mais a saccar das pernas, do que a cobra a +largar a sua pelle? Estes dois relogios? Estes chapeos de zabumba? Por ventura +os Romanos senhores do universo praticaram no meio do seu luxo, e das suas +riquezas, similhantes extravagancias?</p> + +<p>Naõ chameis, respondeo Fabio com muita brandura, naõ chameis a isso +extravagancias, chamai-lhe falta de bóla. Os Romanos foram muito sabios: todas +as ordens tinham seu modo de trajar; e o mesmo homem em as suas differentes +idades usava de vestido accommodado a cada huma dellas.</p> + +<p>Os nossos antigos Reis, disse André de Resende, foram inimigos declarados do +luxo: e estavam taõ persuadidos serem estes os sentimentos de todos os seus +vassallos honrados, que D. Affonso o Bravo deu hum grande golpe no luxo para +adoçar a magoa publica, que nasceo das desavenças, que elle tivera com seu +irmaõ: e o que foram os Portuguezes daquelle<span class="pn">{32}</span> tempo, +prova-se com a batalha do Salado, cuja memoria, faz parecer, todas as que +depois houveram, brincos de rapazes.</p> + +<p>Mas ainda dado, replicou Barnabé de Busto, que entre os antigos, apparecesse +alguma vez o luxo, esse lobo faminto, que devora a honra, a virtude, e o +dinheiro, vio-se em alguma época taõ enfeitado de redicularias como hoje? Os +çapatos de espeto, naõ mostram quanto he romba a cabeça de quem os traz? Os +calções de talas fariam menos deshonestos os antigos Faunos, quando dançavam +nús em os theatros? Os...</p> + +<p>Basta, disse Manoel Alvares, o peor he o custo do feitio, e da peça, que +dura tanto, como aquelle animalinho, que nasce pela manhã, e morre á noite. +Eis-ahi a causa, diz Taberio, de huma enxurrada de caloteiros, e de meritrizes, +que tudo varrem.</p> + +<p>Naõ houve seculo, continuou Manoel Alvares, nem mais farto de viveres,<span +class="pn">{33}</span> nem mais abundante de gente honrada que o meu; ensinei +no pateo de Santo Antaõ, e nesse tempo o ornato dos estudantes naõ passava de +huma sotaina, e capa de baeta, assim como todo o luxo dos Cidadaõs consistia em +huma casaca de saragoça de abas entrouxadas, e canhões de barbas até aos +joelhos.</p> + +<p>Mas essas casacas, disse Quintiliano, nunca eu approvaria pelo muito panno, +que consumiam. Naõ tendes razaõ, tornou o velho Portuguez, essas casacas +ficavam dos avós aos netos, e vinham a ser hum respeitavel morgado das +familias: eram as melhores insignias de hum homem honrado; nem havia precisaõ +de outro distinctivo: hoje porém naõ sabereis differençar nem hum ridiculo, nem +hum homem de bem, senaõ com muito trabalho.</p> + +<p>Dizeis bem, disse Caspar Sciopio, os homens honrados algum dia naõ andavam +com penicos na cabeça, nem com brincos nas orelhas, salvo, se por desgraça se +faziam escravos da<span class="pn">{34}</span> Rainha da Lidia; porque entaõ +naõ só seriaõ capazes de fiar na roca, mas tambem de levarem huma albarda ás +costas com muito gosto.</p> + +<p>He certo, proseguio Quintiliano, que os pais erram muito em consentir +similhantes loucuras aos filhos, e ainda mais em praticalas; porque estes erros +abrem a porta a infinitos males, os quaes perturbam a sociedade. Mas os +procedimentos a respeito do espirito tem consequencias tanto mais funestas, +quanto he mais attendivel a parte do homem, a qual só o póde fazer feliz, ou +desgraçado.</p> + +<p>Isso he, disse Curcio Nicia, ao que menos se attende: entrega-se o menino +commummente a huma mulher para o ensinar a ler, ou vai a escóla, ou vem Mestre +a casa. Porém como o ensinar a ler, sendo coisa bem trivial, naõ he todavia +para ignorantes, ahi se vai condemnar o innocente ao trabalho inutil de seis, +sete, e mais annos, e por fim he tal a sua leitura, que faz vomitar a quem +ouve. Perdido<span class="pn">{35}</span> este tempo, assim como havia de ser o +resto da vida se em taes lições fosse gasto, vem entaõ Mestre Francez, já o +moço sabe fazer seus comprimentos naquelle idioma, o pai, e a mãi se estaõ +babando a ouvir o seu novo Monsieur. Entaõ julgam terem em casa hum sabio da +Grecia; mas naõ sabe o <em>Padre nosso</em>!</p> + +<p>Isso, disse Sciopio, he só para aquelles, cujos pais tem boas mezadas, que +dem aos emigrados, que se naõ contentam com bagatellas: que os outros quasi +todos vaõ para o Collegio aprender Mathematica sem fumos de literatura.</p> + +<p>Naõ fallemos nisso, proseguio Quintiliano, quando o Lente os manda á pedra, +entaõ conhece, que nem sabem fallar. Mas a pezar de tudo, disse Sciopio, saõ os +chefes dos estadistas da moda: elles pelas assembleas, e pelos botiquins, de +tudo fallam, de tudo decidem, para tudo tem bellos planos; e com o seu luzidio +compasso tudo sabem medir. Porém estes, e muitos outros falladores similhantes, +de<span class="pn">{36}</span> que por desgraça abunda toda a Europa, saõ huns +fracos, e a deshonra dos racionaes, assim como o jumento he a dos brutos.</p> + +<p>O pai, disse Antonio Pereira, que manda seus filhos a essas sciencias, sem +bons principios de literatura, he similhante ao que obriga o Architecto a fazer +huma alta torre sem nenhum alicerce, a qual mais hoje, mais amanhã ha de cahir. +Ora vede quaes seraõ as consequencias da sua quéda!</p> + +<p>Esse era o justo motivo, disse Antonio Feliz Mendes, de tu fazeres alardo +das tuas artes de Grammatica Latina, quando nenhum fazias das outras infinitas +obras, de que tambem foste autor.</p> + +<p>Era essa, continuou Fabio, huma vaidade digna do sabio Pereira, e teria +feito a Portugal hum eterno serviço, se em vez do trabalho de algumas das suas +obras, que o naõ honram, aperfeiçoasse o seu Novo Methodo, e o seu Compendio, +para o que tinha forças de sobejo. E certo, o homem que,<span +class="pn">{37}</span> naõ sabe Grammatica, sejam quaes forem os seus estudos, +nenhumas Bullas o pódem dispensar de ser pedante. Como poderá perceber os +lugares da Historia, como entenderá os authores, quem ignora a sciencia das +palavras? Como dará o juiz a sua sentença? Como fará o Theologo as suas +analyses.</p> + +<p>Mas as aulas publicas de Latim, diz mui agastado o respeitavel Pereira, +estaõ quasi vasias de estudantes, que dizeis? Digo, proseguio o Romano, que +toda a culpa he dos pais; e por isso vereis cada vez mais idiotas, mais +ociosos, mais presumidos, mais gárrulos.</p> + +<p>He huma piedade, disse Antonio Félis, ouvir a muitos pais as causas futeis +de naõ mandarem os filhos ao Latim. Naõ pertendemos, dizem elles, que sejam nem +Frades, nem Clerigos: nem taõ pouco se necessita de Latim para ser bom Cidadaõ. +</p> + +<p>Naõ se necessita de Latim, disse o grande Diogo de Teive todo fóra do seu +sério, naõ se necessita de Latim<span class="pn">{38}</span> para qualquer ser +bom homem, mas necessita-se delle para naõ ser asno. Ainda que a lingua Latina +naõ fosse a lingua dos sabios, bastava para ser estimada o ter muitas filhas na +Europa, que herdaram muito cabedal da sua mãi, do qual nunca já mais saberá dar +conta quem ignorar as riquezas della. Assim he que estaõ infinitos sujeitos em +empregos publicos, ganhando salarios enormes, os quaes nem escrevem coisa +direita, nem sabem atar duas palavras juntas, e o mais por modestia fique no +silencio.</p> + +<p>Tudo isso, disse Joaõ de Barros, he fructa deste tempo tenebroso. O mundo em +suas mudanças tambem vai variando os seus registos, e por força alguma vez +sahiraõ os desaffinados. Até agora tendes bem mostrado as doenças literarias; +naõ he porém da nossa caridade deixalas sem algum remedio. Julgo pois, que se +deve entregar o menino a hum Mestre erudito, para o ensinar bem a ler, e a amar +a sua Religiaõ, e os seus deveres: depois disto<span class="pn">{39}</span> +deve aprender a Grammatica da sua, lingua materna; porque, naõ embargante, que +em a Latina se acham os principios geraes de todos os idiomas, naõ devem +todavia ignorar-se os particulares daquelle que mais que nenhum ha de servir +aos interesses, e ás utilidades da vida. Entaõ vá aprender Latim, e por fim +Filosofia Racional. E sem estes subsidios escuza de avançar a outras sciencias; +porque he melhor naõ saber, que saber mal as coisas.</p> + +<p>O conhecimento da Grammatica da lingua materna, continuou Fabio, tem sido +recommendado pelos sabios de todos os tempos: nós a ensinavamos em Roma +juntamente com a Grega, e veio assim a fazer-se a nossa linguagem taõ bella, e +taõ universal pelo mundo, que só entre póvos selvagens, se acharia, e com muita +dificuldade, quem naõ entendesse alguma coisa do idioma Latino. O Imperador +Carlos Magno julgou naõ ter ainda alcançado a immortal gloria com a multidaõ +dos seus triunfos; por isso em a sua velhice<span class="pn">{40}</span> compoz +para as suas gentes huma Grammatica Tudesca.</p> + +<p>Por mais que clamei, disse Barros, já em o feliz Reinado de D. Joaõ III. por +introduzir nas escolas a Grammatica Portugueza, nunca o pude conseguir; nem +depois sobre isto foram observados os Decretos do sempre Augusto D. José I.</p> + +<p>Amigos, proseguio Quintiliano, isso pertence aos Professores, e se os pais +nisto tem alguma culpa, he só em entregarem seus filhos a Mestres pedantes. +Elles os procurariam bons, se hoje houvesse a lei que desobrigava os filhos de +soccorrer aos pais, que tendo posses, naõ os mandavam instruir nas letras. Em +quanto esta lei durou foi a Grecia em tudo respeitavel, e se ainda agora +revivesse em os póvos civilisados, naõ seria a substancia publica devorada por +infinitos glutões, que tudo engolem, e que de ordinario saõ os menos fiéis á +sua patria.</p> + +<p>Hum homem erudito, e Christaõ, disse Duarte Nunes, vendo o ignorante,<span +class="pn">{41}</span> e inhabil a cevar a gula com o comer ao seu merecimento +devido, póde sim por alguns momentos queixar-se; he com tudo impossivel moral +esquecer-se da gratidaõ dos beneficios; mas o idiota presumido cuida, que mais +se lhe deve, e ingrato desdenha de quem o farta.</p> + +<p>Tudo isso he verdade, disse Joaõ Rivio; mas reparei, que Barros naõ fallou +em aprender Francez, quando alguns autores mandam que o seu estudo seja antes +do Latim. Esse Portuguez, continuou Fabio, he mui douto, e naõ devia favorecer +a pedantaria: quer justamente que logo que se saiba ler, se aprenda a +Grammatica da lingua materna, e depois a Latina, por ser mãi da Franceza, da +Portugueza, da Italiana, da Hespanhola, e de outras, que facilmente aprenderá +quem souber a lingua dos sabios. E digo-vos que o Francez tem estragado +bellissimos idiomas.</p> + +<p>No tempo em que ensinei letras humanas em a Universidade de Coimbra, disse o +honrado Teive, poucos,<span class="pn">{42}</span> ou ninguem estudava Francez. +Porém he certo, que nunca Portugal teve nem mais sabios, nem melhor gente. Naõ +possuia entaõ a nossa lingua nem outra formosura, nem outras riquezas, que as +herdadas da sua respeitavel mãi: e hoje apparece de quando em quando com a sua +capa de remendos, mais ou menos despresivel, segundo os retalhos, e os pontos +do alfaiate, que a cozeu.</p> + +<p>Mas tendo os Franceses, disse Mariángelo, vertido as obras dos outros, como +fica notado, naõ será inutil saber esta lingua. Sempre saõ versões, respondeo +Julio Cesar Escaligero, melhor he ler os originaes. Naõ sou contra este idioma; +confesso que nelle estaõ escriptos bons, e máos livros. Com tudo estou pelo +sentimento commum dos sabios, que o seu estudo naõ deve ser o primeiro; e até +julgo naõ ser presentemente grande perda ignoralo, em quanto que naõ chegam das +duas Anticeras navios, e mais navios carregados de helleboro para curar a +funesta<span class="pn">{43}</span> loucura, que se apoderou das cabeças +daquelle povo infeliz.</p> + +<p>Pais de familia; pais de familia exclamou Fabio, vós sois a primeira causa +da pedantaria geral, e oxalá o naõ fosseis tambem dos horrores deste seculo de +lagrimas.</p> + +<p>Assim acabou Quintiliano, deixando ver em seu triste semblante a magoa de +seu peito.<span class="pn">{44}</span></p> + +<p> </p> + +<h2>DIALOGO III.</h2> + +<p class="sinopse"><em>Expõe Antonio Nebrixa a segunda causa da pedantaria: motivos de haverem +tantos Professores inhabeis: entre os de ler saõ raros os bons: como se póde +isto remediar: os de Latim ainda saõ bastantes: muitos particulares enganam os +pais de familia: os rapazes devem frequentar as aulas públicas, &c.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>S</big>Ahindo Marco Fabio todo consternado daquelle assento para o seu primeiro, +logo para alli se foi chegando Antonio Nebrixa: estava elle embrulhado em hum +pellote cor de fogo de feitio mui exotico, com hum gorro pardo na cabeça, que +lhe chegava ao meio das costas: e apenas se assentou deixou cahir hum sobreolho +taõ feio, que parecia huma carranca de navio. Mas cuidando eu que elle<span +class="pn">{44}</span> ficaria eternamente severo, naõ foi assim: por quanto, +feitas as suas continencias, soltou taes gargalhadas de riso, que Crates +Mallotes lhe disse com muita brandura: Eu vos escolhi para que ajudeis a fazer +a caridade aos Professores pedantes e isto he o ponto do maior melindre, e da +mais alta importancia: dizei a verdade, e deixai as risotas para occasiaõ +competente.</p> + +<p>Ainda bem naõ tinha o velho Mallotes concluído taõ judiciosa admoestaçaõ, +quando Nebrixa, compondo o seu comprido barrete assim começou: Se os pais de +familia saõ mui culpados na pedantaria dos fins deste seculo, os mestres lhes +ficam a perder de vista. De toda a Europa vos referiria exemplos, se a minha +commissaõ naõ fora muito mais estreita. Naõ penseis todavia, que hum homem como +eu, depois de deixar sepultados os enganos, e as mentiras com os despojos da +humanidade, que a terra engolio, se atreva a satyrisar muitos Professores +Portuguezes, os quaes com as suas obras,<span class="pn">{46}</span> e com as +suas lições, que os eruditos bem conhecem, ainda hoje servem de honra, e de +lustre áquella naçaõ; a qual desde o Reinado do grande D. Diniz, dignissimo +neto do nosso D. Affonso Sabio, até ao presente tanto da escola de Minerva, +como da escola de Marte, tem offerecido ao mundo heróes taõ prodigiosos, que a +fama, tendo cem bocas, apenas os póde contar. Dirige-se pois a justiça de +minhas queixas, contra milhares de Professores ignorantes; e desejára fazelos +conhecer, para que naõ deshonrem os benemeritos, sendo confundidos com elles. +</p> + +<p>He justo, disse Filippe Melanchton, que sejam conhecidos os zangãos pelos +effeitos, e que se restitua o mel ás sabias abelhas.</p> + +<p>Saõ mui verdadeiras as vossas expressões, disse Antonio Pereira: já antes da +minha passagem para a vossa companhia observei muitos presumidos a enganarem os +pais de família, com ditos apanhados aos sabios, feitos Catões pelas assembléas, +e pelos botiquins, a<span class="pn">{47}</span> fim de ajuntarem hum bom +rebanho de rapazes, os quaes com prejuízo da bolsa paternal vem a ser os +semeadores da charlatanaria, e ignorancia de seus Mestres.</p> + +<p>Sim, disse Nebrixa, semelhantes Professores saõ primos co-irmaõs do +çapateiro, que naõ tendo geito para fazer çapatos vendia saccos de antidoto, +mas antídoto no nome; porque lhe custava menos a ser Medico dos simplices, do +que a fazer calçado a casquilhos, e a peraltas.</p> + +<p>O Augustissimo Rei D. José, continuou Pereira, Nome, que proferido fará vir +aos labios de Portugal saudosas, e ternas lagrimas, sempre que se lembrarem do +que lhe devem, escolheu para educaçaõ da mocidade os homens mais benemeritos, e +naõ sei como tem graçado tanto o pedantismo.</p> + +<p>Ninguem melhor que tu o sabe, respondeu Nebrixa; porque foste hum +respeitavel membro da Meza Censoria; por isso bem conheces a causa de tantos +Professores ignorantes: fugiram<span class="pn">{48}</span> acaso do mundo as +<em>Instrucções</em> appensas justissimo <em>Alvará</em> de 1759? E naõ +determina elle que senaõ ensine nem publica, nem particularmente sem rigoroso +exame? Naõ dá bem a entender quaes devam ser os conhecimentos dos Professores? +O Augustissimo D. José para os animar naõ os incorporou em Direito Commum, +fazendo-os Nobres? Naõ vês estudantes de Latim, para que eu naõ falle em os de +outras faculdades, feitos Mestres sem outros principios mais que os do teu +Compendio, ou da Arte de Felis Mendes, e, se muito, do teu Novo Methodo? Podem +por ventura similhantes Mestres desempenhar as suas obrigações?</p> + +<p>Sempre clamei, disse o sabio Portuguez, em o Tribunal contra esta tolerancia +de Professores inhabeis, sendo aliás excluidos muitos sujeitos de merecimento; +porém a culpa....</p> + +<p>Bem sabemos (disse Crates Mallotes, apressado para cortar o fio) bem sabemos +aonde se dirigem as tuas queixas:<span class="pn">{49}</span> nós naõ queremos, +que nenhum vivo diga, que os mortos tiveram a deshumanidade de lhe pôr a par de +seu nome os seus defeitos. Os nossos discursos saõ sagrados tanto, como os dos +Prégadores; por isso devem só ser dirigidos contra o erro em geral. Em todos os +estados do mundo ha bom, e máu, e só algum idiota quando nos vir fallar contra +o máu, he que poderá cuidar, que nós fallamos contra o bom. Pelo que, meu +Nebrixa, ide discorrendo em primeiro lugar sobre os Professores de ler: que he +negocio de grande ponderaçaõ.</p> + +<p>Nebrixa, que estivera applicando o ouvido a taõ justas expressões, continuou +dizendo, de cem Professores de ler, se achardes hum capaz tendes feito huma +descuberta, digna de avultadas alviçaras. Ide pelas escólas, e ouvireis +desconcertados berros de rapazes: que naõ só vos faraõ chagas nas orelhas, mas +até vos encheraõ da mais profunda melancolia.</p> + +<p>Todos esses incómmodos, disse o Barbadinho,<span class="pn">{50}</span> se +poderiam bem soffrer, se os moços dahi naõ sahissem gagos toda a vida. Porque +por certo quando estaõ a ler, nada differem de quem nasceu com a lingua +travada: só alguma palavra deshonesta he que pronunciam expeditamente. He taõ +raro como mosca branca o que ensina os meninos a destinguir bem as syllabas, a +pronunciar naturalmente as palavras, a respeitar pontos, e virgulas.</p> + +<p>Se similhantes homens naõ sabem que coisa seja nem syllaba, disse todo +agastado Marciano Capella, nem que coisa seja fallar, nem para que sirva a +pontoaçaõ, como haõ de ensinar o que ignoram?</p> + +<p>Pode acontecer, respondeu Lancelot, que qualquer saiba para si, e naõ para +ensinar; porque saõ coisas bem differentes: e que acontecerá a quem ensina, sem +saber nem o que, nem o como deve ensinar? Que acontecerá? respondeu Sciopio, +encher o Publico de babosos, e pedantes; porque os erros da escóla quasi sempre +saõ incuraveis;<span class="pn">{51}</span> e os melhores Professores de Latim, +pondo todas as suas forças para os remediar, raras vezes o conseguem.</p> + +<p>He huma dor de coraçaõ, proseguio Nebrixa, ver engenhos taõ raros, que +continuamente se vaõ perdendo por culpa de Professores de ler.</p> + +<p>Ainda Antonio Nebrixa mal havia acabado a sua queixa, quando Remmio Palemaõ +se levantou com toda a arrogancia, e disse: Porque naõ mandam similhantes +homens guardar pórcos?</p> + +<p>Ouvindo isto Terencio Varro, o qual havia sido insultado em Roma por aquelle +mordaz, assim lhe respondeu: Fazes mais favor a esses homens, do que em outro +tempo me fizeste, quando por toda a parte me andavas chamando o Porco das +Letras, e queres que similhantes pedantes sejam porqueiros, em vez de os +mandares comer farellos?</p> + +<p>Todos gostaram muito daquella singeleza Romana, mas Antonio Nebrixa,<span +class="pn">{52}</span> que foi hum Hespanhol honrado, disse com toda a +inteireza: Ainda naõ he taõ mau, que haja quem ensine a ler; e aquelle que +sabe, e executa a sua obrigaçaõ faz mais serviço ao Publico do que se pensa lá +no mundo: e bem vedes quanto estimamos estes poucos de quem nos prezamos muito +de serem nossos companheiros, e a pena he virem para cá taõ poucos deste +calibre!</p> + +<p>Entaõ abaixaram a cabeça os Professores elogiados, e Crates Mallotes louvou +muito o relator, que assim proseguio: Os Professores Regios de ler apenas tem +salarios para o aluguel de casas; e por isso ou haõ de ser homens incapazes, ou +haõ de procurar o sustento por outra via. Se se dessem os mesmos ordenados, e +as mesmas honras aos Professores de ler, que se daõ aos de Rhetorica, haveriam +muitos eruditos que servissem ao Estado de boa mente, neste ramo: entaõ se +ensinaria a Grammatica da Lingua materna na escola, aprender-se-hia qualquer +lingua com muita facilidade, e<span class="pn">{53}</span> naõ morreriam de +trabalho os Professores de Latim em o ensino de gente bruta.</p> + +<p>Tivessem elles dinheiro, disse Dionisio de Syragoça, que honra lhes dei eu, +porque naõ me desprezei de ensinar meninos, depois de ter sido o que sabeis. +Mas já que tendes fallado tanto na pedantaria dos Professores de ler de quem +fui collega, dizei tambem alguma coisa dos de Latim para consolaçaõ da minha +tristeza.</p> + +<p>Tem havido optimos Professores de Latim, continuou Nebrixa, e ainda hoje os +ha; porém para fallar com a sinceridade de defuncto, naõ me posso dispensar de +dizer, que saõ muitos mais os idiotas. Depois que se deram Provisões de favor, +isto he, sem se fazer rigoroso exame, ou depois que muitos entraram a ensinar +sem faculdade alguma do Estado, entaõ tambem começáram apparecer nuvens de +falladores, que sendo huns Professores diminutivos, sem a mais leve tinctura +nem de Logica, nem de Critica, andam feitos censores dos melhores livros,<span +class="pn">{54}</span> por onde podiam aprender (a terem os conhecimentos que a +lei delles requer) e vaõ surrando o entendimento da mocidade com os cartapacios +defumados, que sem offensa de seus autores, deviam ser condemnados a embrulhar +adubos.</p> + +<p>He forte cegueira, disse Gaspar Sciopio, ver ainda hoje homens mais +afferrados á opiniaõ dos livros por onde aprenderam, do que os Pythagoricos a +de seu Mestre!</p> + +<p>Mas esses pedantes, disse o Barbadinho, neste tempo escuro, em que mui +poucos aprendem Latim, he que trazem mais algum estudante.</p> + +<p>Esses Mestres, continuou Nebrixa, pela maior parte saõ particulares +(reparai, Guliver, que naõ digo, <em>Todos</em>) e como o estudante traz a +mezada em o fim do mez, he preciso fazer a boca doce aos pais; murmurar dos +estudos Regios, e persuadir-lhes ser coisa menos decente mandar os filhos ás +aulas dos pobres.</p> + +<p>Pobres de juizo, disse Antonio Pereira todo agastado, pobres de juizo<span +class="pn">{55}</span> saõ os que accreditam similhantes novelleiros. Como se +os estudos do Rei naõ fossem a honra de todos os vassallos? Ou como se fosse +desprezo acompanhar com seus irmãos aquelle que tendo melhor fortuna, naõ tem +outra natureza?</p> + +<p>Ainda se servem, proseguio Nebrixa, de outro estratagema mais sagaz, que he +apregoarem, ou por si, ou por seus devotos, que as aulas Regias andam cheias de +moços mal procedidos.</p> + +<p>Este seculo, disse o Barbadinho, está cheio de corrupçaõ, e como as aulas +particulares, trazem alguns estudantes mais que as outras, tambem vos podeis +persuadir, que trazem muito peior gente.</p> + +<p>De casa, disse Quintiliano, já os moços trazem os máos costumes, nem he +preciso que os venham buscar ás aulas.</p> + +<p>Mas ainda dado, e naõ concedido, proseguio Nebrixa, que de casa venham +innocentes; nem por isso he justo que a mocidade deixe de frequentar<span +class="pn">{56}</span> as aulas Publicas. Os pais devem vigiar sobre a +conducta, e companhias de seus filhos; mas tambem devem fazer a vista grossa a +certas coisas, que naõ offendendo a virtude, he necessario que os rapazes em +quanto saõ rapazes as pratiquem: aliás em idade incompetente seraõ os peiores +homens, segundo a triste experiencia o tem mostrado.</p> + +<p>Parece seria melhor, disse o Conde de Castel-Branco, ensinar em casa aos +meninos os Estudos menores, para lhes evitar os laços, que a seus tenros annos +o mundo costuma armar.</p> + +<p>Nada, nada, respondeu Antonio Pereira, porque em idade maior he que se +conhece o erro; por isso que ficam estupidos: engolem todas as petas, naõ +prestam para a sociedade: a sua brutalidade os conduz para os vicios mais +grosseiros; e ficam em tudo huns perfeitos Sardanapálos.</p> + +<p>Bem: concluio Nebrixa, hum tal encerramento, he mui bom para mulheres, para +homens naõ tem geito.<span class="pn">{57}</span> Pouco vale clausurar os +rapazes para evitar más companhias, em casa mesmo acharaõ quem os estrague: e +oxalá fossem mentirolas estas nossas expressões! E deixai murmurar os pedantes, +esses que ensinam a conhecer as sylabas pelos fôlegos; e que toda a sua +sciencia consiste em affeiar, e corromper o verbo <em>arcabuzear</em>.</p> + +<p>Acabando o Hespanhol de dizer isto, e entrando por algum tempo a engolir em +secco, exclamou: Professores pedantes, Professores idiotas, tratai de outro +officio; naõ augmenteis o charlatanismo com os desconcertos da vossa +ignorancia. E tu ó mortal (virou-se para mim) muito bem tens ouvido os justos +louvores, que aos benemeritos havemos dado.</p> + +<p>Entaõ todos lhe abaixaram profundamente a cabeça em signal de parabens; e +elle se levantou, sahindo com a mesma cara com que principiára a sua +commissaõ.<span class="pn">{58}</span></p> + +<p> </p> + +<h2>DIALOGO IV.</h2> + +<p class="sinopse"><em>He tratado Sanches por Crates com toda a distinçaõ: expõem elle a +terceira causa da pedantaria: fica a beca de Guliver convertida em tres artes +de Grammatica Latina: faz-se grande estimaçaõ da primeira: criticam-se as +outras: vai-se Guliver successivamente convertendo em passaro: manda Crates +Mallotes mostrar-lhe a ilha, &c.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>J</big>A Elio Antonio Nebrixa estava em o seu assento colhendo os bem merecidos +applausos dos que estavam junto delle, quando Francisco Sanches Brocense hia +com o seu passo grave, e magestoso, procurar o banco; mas Crates Mallotes, logo +se levantou, cujo exemplo seguio toda aquella multidaõ dos illustres defunctos: +e assim erguido, clamou: Nada, nada: hoje has<span class="pn">{59}</span> de +ensinar de cadeira: nem he justo, que o Principe dos Grammaticos deixe de ter a +maior distinçaõ em a terra da verdade. Logo que elle isto disse, sahio coxiando +para fóra, e rindo dizia: A Grammatica, que em Roma ensinei, era taõ coixa, +como eu. Mas todavia se os Romanos de mim naõ houvessem recebido o exemplo, +tambem naõ opporiam á Grecia tantos sabios.</p> + +<p>Porém Sanches modesto recusava taõ distincta mercê, allegando para isso, que +naõ só por haver sido o respeitavel velho Embaixador do Rei Attalo, que fartou +Roma de pergaminho; mas tambem por ter alcançado a honra, e a gloria de +primeiro Mestre do povo senhor do mundo, por nenhum titulo devia ser dispensado +de sahir de seu devido aposento.</p> + +<p>Nem ter sido Embaixador, replicou Crates, nem ter sido o primeiro Mestre dos +antigos Romanos, equivale a ter sido, como tu, o primeiro açoite da pedantaria, +e do ranço de todos<span class="pn">{60}</span> os Grammaticos do universo. Eu +aqui ficarei.</p> + +<p>Dizendo isto puxou do escabello, que estava diante da cadeira, e pólo para o +lado: e Sanches naõ teve remedio senaõ obedecer, subir, assentar-se: e todos +fizeram o mesmo.</p> + +<p>Hum pouco esteve Sanches, como quem estava reflectindo, depois do que +voltando-se para Crates fez huma profunda venia; mas nem por isso deixou de +significar a todos a sua civilidade. Eu tenho grande pena de vos naõ poder +pintar ao vivo a delicadeza, graça, e energia da sua pronuncia, por isso só vos +escreverei o seu arrazoado, cujo comêço he o seguinte.</p> + +<p>Se os pais ás mãos ambas semeam o pedantismo, e os Professores idiotas nas +campinas da mocidade saccos cheios vaõ deitando: saõ sem dúvida os máos livros +o celleiro infame, aonde taõ pestifera semente está guardada. Os escritos +impressos naõ tem numero; elles vaõ durando com as épocas futuras:<span +class="pn">{61}</span> o bom e o máu nelles vai vivendo. Assim he que as fallas +humanas duram, depois do homem naõ viver. E como já naõ he preciso o penoso +trabalho de trasladar livros, como antigamente, eilos vulgares: e sendo poucos +os que possam ser juizes da bondade, ou ruindade, que nelles houver, entaõ +adquirem apaixonados os que naõ saõ bons; e censores, os que o saõ. Por outra +via ha homens ou taõ ignorantes, ou taõ fatuos, que julgam verdades eternas +tudo o que está escripto em letra redonda. He por estas bem claras razões, que +muitos sabios ainda naõ poderam decidir, se a arte Typografica tenha +aproveitado mais ás Letras, ou se mais as tenha offendido.</p> + +<p>He certo, disse Sciopio, que ella faz conservar escriptos, cuja memoria naõ +devia existir: e quando muitos outros saõ funestos, naõ se póde dizer quanto +seja huma multidaõ de livros didaticos, os quaes naõ só corrompem o bom gosto, +mas enchem os rapazes de mais ranço do<span class="pn">{62}</span> que que +teria toucinho de cem annos ao fumeiro.</p> + +<p>Em a Minerva, continuou Sanches, dei eu bem a conhecer os escriptores +pedantes: he este livro bem vulgar; e o Memoravel Rei D. José lhe deu a devida +estimaçaõ, mandou por hum Decreto, que nenhum Professor em Portugal deixasse de +o ter, e de por elle explicar: porém isso durou pouco. Hoje ha lá muitos, que +nem sabem, que ha similhante thesouro no mundo, nem tam pouco tem principios +para o entenderem, e para se utilisarem.</p> + +<p>Assim he, disse o P. Manoel Alvares, mui poucos fazem caso desse livro: e +ainda agora ha quem transcreva as peiores coisas da minha arte reprovada por +huma Lei, vendendo por seu o meu trabalho: julgando talvez o pódem fazer a seu +salvo, por ninguem já saber o que eu escrevi.</p> + +<p>Bem sei, que fallas, proseguio Brocense, em a arte das linguagens, que ha +dias acabou de ser impressa: descança,<span class="pn">{63}</span> que logo lhe +faremos a caridade; porque o seu autor naõ tem mais privilegios que muitos de +vós a quem censurei, e nem por isso somos inimigos; antes a nossa amizade será +taõ eterna, como nós havemos de ser.</p> + +<p>A Critica, disse Jacob Peritonio, tem o caracter de hum juiz inteiro, que +sentenciando as obras segundo o seu merecimento, deve sempre deixar illeso o +seu autor.</p> + +<p>Hoje enfastia muito, disse Antonio Felis, ver resuscitar os destemperos das +Grammaticas velhas; se isto se fizesse, quando eu fiz a minha compilaçaõ, e +Antonio Pereira as suas artes, seria digno de perdaõ; porque nos expozemos ás +maiores calúmnias, como todos sabem, e as quaes muito nos vexariam, a naõ +sermos protegidos pelo braço Real; e ainda assim naõ padecemos pouco.</p> + +<p>Eu honrei Hespanha com as minhas obras, continuou Brocense, e a paga que +recebi dos meus serviços, foi ver a Minerva condemnada ao pó<span +class="pn">{64}</span> de bem poucas livrarias; a qual se fez taõ rara, que +sendo achada por Sciopio, a quiz reimprimir por sua, julgando haver-se +inteiramente perdido a sua lembrança; mas ainda houve entaõ quem restituisse ao +meu nome a gloria, que se lhe hia a roubar.</p> + +<p>Apenas assim fallou, todos olháram para Sciopio como enfadados; elle porém +muito senhor de si, se desforrou, dizendo: Isso tudo he verdade; mas depois em +todas as minhas obras Grammaticaes, me intitulei teu discipulo, nome que muito +bem desempenhei, e ajudei a tua espada a dar os mais profundos golpes no +cachaço dos pedantes.</p> + +<p>Tivemos pelo meio deste seculo, disse Sanches consternado, homens grandes +por amigos, pelos fins delle só conheço hum escriptor, que com as suas, e +nossas opiniões honrará as provincias da Grammatica, sempre que por ellas +corra, quem ahi naõ seja peregrino. Mas porque fallamos em os ultimos +escriptores desta idade;<span class="pn">{65}</span> faça-se justiça: vinde cá, +Inglez.</p> + +<p>Assim que me chamou, fui chegando a cadeira, e como elle fallou em Justiça, +fiquei pouco satisfeito, cuidando já se sabe, que se me faria alguma execuçaõ á +móda de Inglaterra. Já estes cuidados me ruiam o coraçaõ, quando veio da boca +de Sanches hum repellaõ de vento, e me levou a béca de plumas. Entaõ he que +pensei, naõ tardaria, que a cabeça me voasse. Mas estes sustos se converteram +em galhofa logo que ví a béca de pennas, tambem convertida em folhetos de +papel; e a mim em trajes de marujo, como d'antes.</p> + +<p>Com esses vestidos, disse-me Crates Mallotes todo risonho, podeste tu vir do +mundo; mas com outros has de tornar.</p> + +<p>Eu estava com olho de punho para os folhetos, a ver aonde fosse o caso dar +comsigo; entaõ chegou hum contino, que bem conheci ser hum Grammatico mui +pedante, o qual em Londres ficava, quando de lá sahi.<span +class="pn">{66}</span> Pegou pois este criado em os cadernos, e pregou-os na +parede. Veio outro, e com toda a humildade (do que me admirei por ter sido +Francez, e deixar de ser arrogante) e metteu na maõ de Brocense hum ponteiro de +barba de balêa; mas o cabo era de oiro massiço, em que estavam esculpidos tres +escriptores Portuguezes: os quaes ficaram fechados em a maõ do Hespanhol, cujos +nomes naõ tive licença de declarar em esta Historia; mas os escriptos, que saõ +do direito publico, naõ tiveram a mesma prohibiçaõ: e confesso-vos, que nesta +parte escrevo constrangido, e callo muitas coisas, que reporei, a quem me pedir +contas, ajuntando outros appensos, que Crates Mallotes, do outro mundo me +promette.</p> + +<p>Mas tornando ao proposito, estendeu Sanches o seu ponteiro para a parede, e +entaõ ví em correnteza tres artes de Grammatica: Lê esse primeiro titulo, +disse; entaõ li alto, e em voz clara <em>Novo Epitome de Grammatica Latina +Moderna, ou Verdadeiro Methodo de ensinar Latim a hum Principiante.... +Lisboa.... Anno de 1795</em>.<span class="pn">{67}</span></p> + +<p>Naõ appareceu ainda, continuou, hum livro mais bello para ensino da +mocidade, nem que seja mais accommodado para ser explicado conforme as +determinações do grande D. José I.</p> + +<p>Vê estes Nominativos, estes Generos como estaõ taõ bem ordenados. Estas +Linguagens, expostas em taboas synopticas: como debaixo de hum ponto de vista +obriga o menino a firmar a sua memoria? Estas <em>raizes</em> de formaçaõ! +Estes <em>preteritos</em>! Quem até agora fez huma Syntaxe como esta? Quem +melhor Prosodia? Como he em tudo coherente! E estas <em>notas</em> naõ fazem +por ventura hum systema completo?</p> + +<p>Tem boa duvida, disse o Barbadinho, e o que mais admiro além das novidades, +que escaparam ao teu engenho, he a brevidade e clareza, com que ensina o que +outros naõ poderiam em bem gordos volumes.<span class="pn">{68}</span></p> + +<p>Esse moço, disse Antonio Pereira, tem dedo para isso, e ainda o vereis dar á +sua patria signaes de bom filho.</p> + +<p>Mas ha Professores, replicou Vocio, que dizem ser esse livro muito bom para +Mestres; mas que naõ presta para rapazes, pela ordem Filosofica com que foi +tecido. E que dizeis a esta? Digo, respondeu Sanches, que he para rapazes, mas +para rapazes, que naõ tenham a desfortuna de serem discipulos de similhantes +Mestres. Como se Filosofia naõ fosse a recta razaõ, ou se sem ella possa haver +bom escriptor, ou bom Mestre?</p> + +<p>Eu pasmo, disse o Barbadinho de ver tanto charlataõ; cuidei, com as minhas +Cartas, ou com a Introducçaõ Historica, e Critica, tinha curado a loucura dos +Pythagoricos: agora vejo, naõ fiz nada. Acaso naõ he para rapazes huma arte, +que ensina sem confusaõ a hum principiante, a hum adiantado, a hum Mestre? Huma +obra que tem tudo em seu lugar? Em que concorda<span class="pn">{69}</span> o +principio com o meio, e o meio com o fim?</p> + +<p>Esses homens, disse Palemaõ, eram bons para Mestres de papagaios; e fazia +huma grande caridade quem os mandasse para o Certaõ, dirigir pretos.</p> + +<p>Parece-me, disse Lithocómo, que o autor desta arte errou em lhe chamar +Epitome; porque sendo huma obra completa, devia-lhe chamar Flagello do ranço +Grammatical do fim do XVIII. seculo: e saõ homens de má cabeça os que desdanham +de livro taõ bello.</p> + +<p>Acabava Ludolfo Lithocómo taõ douta reflexaõ, quando Joaõ Garcia exclamou: +Mil parabens á Naçaõ Hespanhola, que ainda tem filhos, que deram próvas do seu +bom gosto na versaõ desta arte, datada em Madrid em 1797.</p> + +<p>O discipulo digno de Sanches (continuou elle mesmo) consola a tua paciencia +com estes elogios, até que a Ignorancia invejosa naõ morda o teu serviço com +seus dentes carunchosos.<span class="pn">{70}</span> Quando para aqui vieres +serás carregado de louvores; porque a Inveja mordaz em os bons defunctos naõ +acha que roer.</p> + +<p>Aqui se levantou Joaõ de Barros, exclamando: Quem naõ vê o serviço que eu +fiz aos Portuguezes? Eu escrevi os seus illustres feitos, que fizeram pasmar a +todos os povos do mundo, e o fructo que em meus dias entrou em meus celeiros, +foram taõ descomedidas, como escandalosas censuras; ha muito porém, que depois +da minha morte sou chamado o Livio Portuguez, o Mestre do patrio idioma.</p> + +<p>A melhor satisfacçaõ, disse o P. Buffier, que o bom escriptor possue em sua +vida he a consciencia do louvor, que naõ póde ser affogada nem pelo mais basto +oceano de calumnias.</p> + +<p>Já tudo estava em o mais profundo silencio, e Sanches medindo com os olhos +inquietos todo aquelle livro: mostrando com o continuo movimento da cabeça +quanto delle gostava, até<span class="pn">{71}</span> que depois de hum largo +intervallo, com os beiços alguma coisa sobrepostos, fez-lhe huma profunda +inclinaçaõ: e logo com o seu ponteiro, o qual em o tempo da sua revisaõ +estivera voltado para o hombro direito, bateu na dita arte, a qual +desappareceu.</p> + +<p>Mas qual naõ foi a minha admiraçaõ quando me vi convertido em hum guapo +passaro, desde a cabeça até o embigo? Naõ ha nem oiro, nem pedras preciosas no +mundo, com que possa comparar a formosura das minhas pennas. Entaõ me lembrou +que o ponteiro de Sanches era mais milagroso que a vara de Mercurio. Por certo, +dizia eu comigo, que os mortos saõ mais habilidosos, que os vivos.</p> + +<p>Quando eu corria veloz por estas, e outras muitas cogitações, e me estava +namorando, qual outro Narciso, já o amigo Sanches estava a contas com a segunda +arte, cujo titulo era <em>Novo Compendio da Grammatica Latina, &c. +Coimbra.... Anno de 1796</em>. Como insulta, dizia, nesse arrogante Prologo a +todos os Grammaticos! Como<span class="pn">{72}</span> se vale de Despauterio! +Mas quede a sua Grammatica Filosófica, que promette? Aquella Grammatica +Filosofica desconhecida até agora?</p> + +<p>Ella ahi está em pouco mais de meia folha de papel, respondeu Condillac, vê +como desfigurou a minha doutrina! Quantas idéas intermedias naõ ficam ahi +cortadas?</p> + +<p>Essa Grammatica Filosófica, disse Gaspar Sciopio, he bem similhante ás +escadas de hum edificio, apartadas sete braças humas das outras. Donde nem as +pernas de hum gigante as pódem alcancar; e muito menos as de hum rapaz, que saõ +mui curtas.</p> + +<p>Toda a Etymologia Latina, e Prosodia, continuou Sanches, bem vedes, serem +quasi formaes de Antonio Fereira, com algumas coisas de outros autores.</p> + +<p>Sim, disse o Barbadinho, alguns exemplos tem seus; corta, e accrescenta +algumas poucas coisas, e outras as muda: porem de ordinario he infeliz, como se +vê no incremento em <em>A</em>.<span class="pn">{73}</span></p> + +<p>Em a Syntaxe, proseguio Brocense, em que se conhece quanto vale hum +escriptor deste genero, nem vejo novidade, nem methodo algum. Ora quem póde +soffrer estas incoherencias?</p> + +<p>Huma Grammatica em tudo perfeita, disse o Barbadinho, he coisa mais +difficultosa de encontrar, do que agulha em palheiro; os sabios ainda hoje +suspiram por ella.</p> + +<p>Eu concedo, disse o P. Antonio Rodrigues Dantas, que até hoje ninguem tem +escripto sem defeito, e que he optimo o livro, que tem mui poucos erros. Mas +naõ posso tolerar, o ver gritar com Despauterio contra todas as Grammaticas, e +reprehender-se neste ponto naõ só a Portugal, mas tambem a toda a Europa; e +dizer-se claramente ser esse o motivo de Sahir ao mundo aquelle grande parto. +</p> + +<p>Eu gritava, confessou lisamente Despauterio, porque naõ via a trava no meu +olho: esse moderno todavia faz bem justas as minhas queixas,<span +class="pn">{74}</span> com a inutilidade de seus escriptos.</p> + +<p>Quem tanto de si presume, disse Sanches agastado, devia satisfazer ás suas +promessas, e naõ imitar ao monte, que depois de tantos brados pario o que eu +tenho vergonha de dizer.</p> + +<p>Hum rato sem pello, disse Palemaõ, foi o grande parto que se esperava, o +qual fez arrebentar de riso aos que deraõ attençaõ aos seus gritos, e nelles se +fiáraõ.</p> + +<p>Ainda fallava este mordaz, senaõ quando Brocense, mostrando em seu semblante +huma indisivel desplicencia, bateu naquelles escriptos, que logo fugiram. Entaõ +fiquei desde o embigo até ao pé direito carregado de pennas cor de papel pardo. +Já pois para ser passaro completo, me naõ faltava mais, que o lado esquerdo +desde aquelle ponto, que já disse.</p> + +<p>Entre tanto que eu observava a differença das minhas pennas, clamou Sanches +enfurecido. He possivel, que no fim do XVIII. seculo apparecesse<span +class="pn">{75}</span> no mundo huma arte como esta?</p> + +<p>Entaõ virei o bico para a parede, e lí o frontispicio da ultima arte, o qual +era <em>Novo Methodo de Grammatica Latina &c... Lisboa... Anno de +1799</em>. Mas ninguem repare de ver hum passaro a ler; porque eu era passaro +feito no outro mundo.</p> + +<p>Mal acabei de ler o titulo, e o Hespanhol, trazendo o ponteiro em hum +redupio, clamava: Vê, vê as incoherencias dessa Etymologia. Vê aqui como esta +<em>Hic</em>, <em>haec</em>, <em>hoc</em>, feito particula, contra o que se diz +alli em o número das partes da oraçaõ. Forte miscilania! E que vos parecem +essas linguagens eternas? Por ventura poderá hum rapaz decoralas em dez annos? +</p> + +<p>Na verdade, continuou Sanches, estes Infinitos estam bem fartos de +embrulhos. E a pezar de terem o Portuguez do Indicativo, ainda lhes falta o do +Conjunctivo; e quem gosta de tanta selada, quanto naõ gostaria<span +class="pn">{76}</span> de ter noticia de mais estas alfaces?</p> + +<p>Assim como, disse o Barbadinho este escriptor saccou com a repetiçaõ sómente +de certas letras finaes as Raizes de formaçaõ do Novo Epitome, e desfigurou +outras coisas; porque naõ leu aquella interessante Nota de Syntaxe, aonde +absolve os rapazes destas sempiternas perlengas?</p> + +<p>Tudo he huma palhada, disse Manoel Alvares; se essas linguagens tivessem o +<em>Já entaõ</em>, o <em>oxalá</em>, e o <em>cum</em>, nenhuma differença +tinham das minhas, senaõ o serem ainda mais extensas.</p> + +<p>Essa arte, disse Sciopio, com mais justiça merecia ser queimada, do que foi +a tua; porque se foste máu Grammatico, ninguem te póde roubar a gloria de teres +sido optimo Latino. Os teus versos naõ invejam aos melhores da idade de +Augusto: mas de Grammatica foste hum verdugo, como se próva claramente nas +Instrucções de 1759. Tambem o teu<span class="pn">{77}</span> Mercurio, disse +Alvares, naõ foi quem abrio os olhos aos mortaes.</p> + +<p>Isto picou tanto a Sciopio, que entrou com a sua mordacidade a altercar taõ +descomedidamente, que já a favor de Manoel Alvares se vinha chegando Prisciano, +para rebater aquelles dicterios. Entaõ o sabio Presidente em tom magistral, +assim fallou: Nada de calúmnias; Manoel Alvares para o tempo em que viveu +merece desculpa, seguio aos que lhe precederam, como as ovelhas ao carneiro do +chocalho. Mas no fim do chamado seculo das luzes apparecer huma arte como esta, +depois de tantos livros excellentes? porém naõ percamos mais o nosso trabalho. +</p> + +<p>Logo que assim acabou, sem querer ver mais nada olhou carrancudo para +aquelles folhetos, e elles como settas me ficaram cravados pelo lado esquerdo, +pennas, já se sabe, cor de mechas.</p> + +<p>Assim he que me fui aos poucos convertendo em passaro na ilha dos Mortos. +Sanches desceu da Cadeira,<span class="pn">{78}</span> praticou com os outros +relatores. E todos diziam: Viva Crates Mallotes, viva, que campou na escolha +que fez. Porém reparei, que Despauterio naõ gostára da galhófa.</p> + +<p>Acabados estes comprimentos sahiram todos, e eu feito passaro entre elles, +com o meu rabo de rastros, taõ comprido como as linguagens do Novo Methodo. +Porém, como naõ perdi a falla, agradeci muito ao Embaixador do Rei Attalo, o +devertimento que me deu. E certamente nunca vi opera taõ gostosa; porque sem +duvida deixarei todos os gostos do mundo de boa mente, quando se me offereça +similhante fortuna: e ainda espero de lá tornar.</p> + +<p>Mas como hia dizendo: já estava desconfiado de tornar a Inglaterra; Crates +porém, que era mui esperto, e mui politico, conhecendo a minha desconfiança, +disse a Sanches: Mostrai a esse hospede as coisas mais notaveis da nossa ilha, +para ir o mais breve para sua casa. E tu, amigo Gúliver,<span +class="pn">{79}</span> desculpa, naõ te poder acompanhar, bem vês, que hum +coixo naõ póde andar depressa; porém o respeitavel Teive iré em meu lugar. Ide; +eu naõ tardarei muito em ser comvosco; lá nos veremos no mirante de Carlos +Magno.<span class="pn">{80}</span></p> + +<p> </p> + +<h2>DIALOGO V.</h2> + +<p class="sinopse"><em>Necessidade da obediencia: elogios da naçaõ Portugueza: utilidades da +Agricultura: quanto foi apreciada pelos antigos Portuguezes: castigos dos +pedantes na ilha dos Mortos: chegada de Crates Mallotes, para me persuadir a +ser Grammatico, &c.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>L</big>Ogo que Crates Mallotes mandou os seus subditos, nada se demoráram, e eu +naõ pude tambem fazer outra despedida, que voltar o rabo para o ar, e o bico +para o chaõ, e fazer-me de volta com taõ respeitaveis companheiros. +Accusava-vos todavia de sahirem taõ apressados, que me naõ deixaram fazer os +devidos comprimentos, ao menos a todos os que haviam fallado no Congresso, de +quem tinha eu recebido taõ altas mercês; porque<span class="pn">{81}</span> a +toda a multidaõ era impossivel.</p> + +<p>Comprimentaste a todos, disse Sanches, sem nicas, nem fingimentos dos +Politicos mundanos. A obediencia he o eixo da carroça social, por falta deste +dever he que ninguem hoje póde viver no mundo. A nossa sociedade compoem-se de +sabios que sabem muito bem a sua obrigaçaõ, sem o conselho dos quaes nenhuma +póde ser bem dirigida. O nosso velho mandou, governa, obedecemos.</p> + +<p>Os sabios! disse Diogo de Teive com hum grande suspiro: A pedantaria!... Mas +foi Deos, Gúliver, o que te fez aqui arribar: para remedio de muitos abusos +literarios da minha naçaõ, que a pedantaria das outras naõ me importa. Has de +achar ahi, dizia elle, has de achar, quem te ajude em este grande serviço. Já +Portugal estava com seu rosto coberto de luzes, quando outros póvos estavam +sepultados em as mais escuras trevas da ignorancia. Naõ ha no mundo quem tenha +melhor legislaçaõ; os nossos Monarcas<span class="pn">{82}</span> saõ Senhores +no nome, e na Magestade; pais no procedimento: has de achar hum Principe +Religioso, Pio, moderado, amigo de Deos, e dos homens; hum Principe, como Tito, +que chora o dia em que naõ póde fazer mercê: que está immovel aos conselhos +menos piedosos: e que naõ quer tirar o paõ aos servos do Sanctuario, para +sustentar o odio, que a pedantaria do tempo tem aos altares.</p> + +<p>Na verdade, disse Sanches, nenhuma naçaõ da Europa tem tido melhores Reis, e +por isso nunca outros tiveram iguaes vassallos.</p> + +<p>Tem boa dúvida, disse Diogo de Teive, os Portuguezes pódem-se chamar melhor +filhos, que vassallos dos seus Soberanos, pela fedilidade, e amor com que todo +o povo os serve.</p> + +<p>Para que estais com isso? replicou Sanches, toda a naçaõ Portugueza se tem +distinguido em tudo das mais. Quem tem tido melhores Reis? quem melhores +vassallos? Quem melhores letrados? Quem melhores soldados?<span +class="pn">{83}</span></p> + +<p>E quem, continuou Teive, hum Joaõ das Regras? hum Camões? hum Barros? hum +Heitor Pinto, gloria dos Frades de Belém, honra de Portugal?</p> + +<p>Entaõ foi desenvolvendo a Historia de todos os Reis de Portugal, os sabios +de todas as épocas: acções que pareciam fabulas: guerreiros: proezas até das +proprias mulheres. O que tudo vos deixo de contar naõ tanto por se naõ +engrossar o volume, como para economia da bolsa de meus apaixonados. Além de +que tudo achareis em as Historias daquella naçaõ, ainda que os mortos sabiam o +que ellas vos naõ contam.</p> + +<p>Já Teive entrava a elogiar muitos dos vivos, sem todavia proferir os nomes +de cada hum, até que todo inflammado disse: Será mais facil acabar toda a +geraçaõ Portugueza, do que apossar-se della o inimigo.</p> + +<p>O que saõ os Portuguezes, disse Sanches, ainda neste tempo dos chás, e dos +caffés, em o Rossilhaõ, e em Napoles muito bem se conheceu.<span +class="pn">{84}</span></p> + +<p>Em quanto eu hia caminhando entre os dois amigos, ouvindo attentamente os +elogios dos Portuguezes, que muito me deleitáram os ouvidos: tambem hia +desfructando com os olhos a linda prespectiva naõ só de verdes seáras, mas +tambem de vistosas arvores, carregadas de bellas fructas, assim como risonhos +prados: muitas vinhas; olivaes &c. ví muitos carreiros, almocreves: muitos +homens a assar castanhas, outros a pôr hortalica, outros em fim a semear +batatas. Estava na verdade ancioso por saber que gente fosse aquella: e ainda +mais fiquei, quando vi outros a esfolar mosquitos: e muitissimos á caça de +moscas.</p> + +<p>Já com difficuldade me podia ter; porem Teive que previo a minha +curiosidade, disse-me: Bem sei que estás admirado do que vês: por isso deves +saber, que naõ pódem aqui morar senaõ Grammaticos, e Professores de ler, e á +medida do seu pedantismo se lhes dá cá occupaçaõ competente: Lavradores somos +nós todos: os charlatães<span class="pn">{85}</span> tem differentes +ministerios, ou almocreves, ou carreiros, &c. os delicados assam castanhas: +os negligentes caçam moscas: os que deixam de exprimir os seus pensamentos, +porque naõ acham em Cicero palavras para isso, estaõ se cançando a tirar a +pelle aos mosquitos. Mas como naõ gostamos de gente ociosa todos nas occasiões +vaõ trabalhar em Agricultura.</p> + +<p>Se lá no mundo, disse Sanches, mandassem cultivar a terra a homens inhabeis +para as letras (naõ deixando em silencio aquelles infinitos estudantes de +Mathematica, que nem sabem ler) nem mortificariam a seus Mestres, nem faltaria +paõ.</p> + +<p>Assim como em meu tempo, disse Teive, em que a Agricultura era taõ estimada: +entaõ naõ era preciso vir trigo de fóra, antes havia muito para vender, e +quando era cáro naõ passava o alqueire do preço de trinta réis. Oh! Felizes +tempos, em que haviam sabios, haviam soldados, havia de comer!</p> + +<p>E naõ haviam, disse Sanches, casquilhos<span class="pn">{86}</span> sem +religiaõ, a medirem as verdades Positivas a compasso: feitos Juristas, e +Theologos abstractos.</p> + +<p>Estas, e outras coisas diziam, e tinhamos já bastante caminhado; porém nunca +me custou taõ pouco o andar. Eu bem podia voar; todavia por decencia hia a pé. +Cada vez mais campinas cultivadas hia descobrindo, até que chegámos a hum +oiteiro carregado de tójos, e de cardos, por onde pastava huma grande manada de +jumentos, guardados por infinitos homens. Estes saõ os Professores de ler, +disse Teive, que no mundo só ensináram os meninos a gaguejar, e que foram a +causa de nunca poderem avançar ao estudo das sciencias. Naõ foram como os que +viste em o congresso, os quaes aproveitáram mais ás suas respectivas nações, do +que muitos Rhétoricos, e Filósofos.</p> + +<p>A literatura, disse Sanches, he a base das sciencias, e quem poderá ser +sabio, sem que saiba ler?</p> + +<p>Resolvi-me pois, a fazer minhas<span class="pn">{87}</span> perguntas; mas +sempre commedidas para naõ me portar, como tolo. Abrí o bico, dizendo: Aonde +estaõ aquelles defunctos, que nem foram Grammaticos, nem Professores de ler? +</p> + +<p>Além daquelle rio caudaloso (respondeu Sanches, apontando com o dedo) ha +muitas ilhas, e cada qual tem a sua jerarquia; porém se algum foi Mestre, ou +escriptor de Grammatica, ou Professor de primeiras letras, ainda que tambem +fosse Rhétorico, Filósofo, Theólogo, ou General, &c. faz-nos entaõ o favor +de vir para aqui.</p> + +<p>Em quanto Sanches me satisfazia, puxou Teive de huma luneta, e olhando para +além do rio, entrou a rir como hum perdido.</p> + +<p>Aqui me obrigou a fazer segunda pergunta; porque em similhantes occasiões +tem muita desculpa a curiosidade.</p> + +<p>Naõ ha coisa mais galante, respondeu, lá está Pythágoras, com a escudélla de +Diógenes entre pernas,<span class="pn">{88}</span> comendo favas, como o lobo +carne de borrego.</p> + +<p>No mundo, disse Sanches, naõ houve quem mais asco lhes tivesse, e agora está +capaz de engolir a mesma escudélla. Ora o certo he, que se entre os Grammaticos +ha pedantes, muitos mais achareis entre os Filósofos.</p> + +<p>Já haviamos passado as fraldas de huma montanha de mais de tres legoas de +altura: quando ví os seus lados cobertos de bois, cabras, ovelhas: de maneira +que naõ avistava palmo de terra; e muito tempo estive persuadido, que os +pegureiros eraõ pedras cor de musgo. Mas a poucos passos ví em o cume do monte +hum mirante de tal grandeza, e magestade, que a pobreza de minha penna naõ o +póde debuxar. Basta dizer, que a sua escadaria principiava desde seis milhas, e +era de tal arquitectura, que me parecia ir correndo por huma eira.</p> + +<p>Ainda Sanches hia batendo nos Filósofos pedantes, dizendo raios<span +class="pn">{89}</span> contra Voltaire, e contra outros impios: senaõ quando +ahi chega Crates Mallotes em huma cadeirinha, trazida aos hombros de dois +mariólas, vestidos com saiaes até o joelho de pelles de bóde côr de cinza. +Tenho vergonha de dizer a naçaõ a quem pertenciam: Portuguezes naõ eram, o que +digo por descargo de minha consciencia; pois que Sanches me disse, serem taõ +respeitados naquella ilha os Portuguezes, que até os mesmos pedantes eram muito +favorecidos.</p> + +<p>Para que saibas, disse o meu Velho, para que saibas quanto te estimo; e para +que agradecido a esta boa hospedagem, venhas em outro tempo para a nossa +companhia, he que venho estar comtigo até que daqui te safes.</p> + +<p>Dizendo isto sahio pela cadeirinha fóra, e fomo-nos sentar bem perto da +entrada do mirante.</p> + +<p>Fez varias perguntas, entre outras, que me tinha parecido a sua ilha? E +tambem me disse a razaõ<span class="pn">{90}</span> de naõ haver nella jardim, +nem coitada: e por fim levantou-se, e bateu a pórta do mirante, que logo se +abrio; e o que se passou, logo o vereis: e espero que muito vos divirta, e que +nada menos vos aproveite.<span class="pn">{91}</span></p> + +<p> </p> + +<h2>DIALOGO VI.</h2> + +<p class="sinopse"><em>Idéa da grandeza do mirante de Carlos Magno: este, e Cesar recebem com +muita alegria a Crates Mallotes: Gúliver he tratado muito humanamente: ultimas +desgraças da pedantaria: remedio para ellas: chegam muitos Grammaticos para +pedirem a Gúliver, que escreva Grammatica Filosófica da lingua Portugueza: como +este fica no ar sem ver coisa alguma &c.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>A</big>Ssim que se abrio aquella porta appareceu huma escadaria taõ alta, que logo +me lembrei da torre de Babel. Fui saltando por ahi a cima atraz de todos; +porque o velho se servio dos dois, como de moletas; naõ pela razaõ da sua muita +idade; mas por aquella, que vos naõ esquecerá, se me lestes com a devida +attençaõ. Naõ me custou<span class="pn">{92}</span> tanto toda a comprida +jornada, como a subir (posto que hia de vagar) por as escadas a cima; pois que +as pernas por serem curtas me obrigavam a saltar violentamente. Deste modo hia +eu tirando forças da fraqueza; mas nem por isso quiz voar: segundo o proposito, +que havia formado. Com tudo muito estimaria que Crates Mallotes sobre isto +desfizesse a minha teima com preceito de obediencia. Elle porém gemia como huma +mulher na occasiaõ do parto. Em fim, nestes apertos chegámos a todo cima a hum +grande pateo; e parando hum pouco para se moderar a respiraçaõ, virou-se Crates +para mim com o semblante cheio de alegria, e disse: Estás chegado a fallar com +as personagens que em os antigos seculos mais no mundo florecêram: ellas te +daráõ lições bem gostosas para a curiosidade portugueza.</p> + +<p>Dito isto, fomos entrando por falas, e mais falas, até chegar a huma +espantosa, e soberba varanda. Sim, disse Crates, has de levar lições de<span +class="pn">{93}</span> grandes e illustres heróes: aqui naõ ha nem aduladores, +nem tractantes, que sejam capazes de os enganar.</p> + +<p>Ainda elle fallava, senaõ quando vejo Carlos Magno em o meio de Cesar; e +Cataõ, e Lelio á ilharga algum tanto apartado, e outros muitos em pé: Mas +avistando aquelles quatro insignes varões ao velho Crates, foraõ tantos os +festejos, os comprimentos, as alegrias, os abraços, as galhófas, os ditos +engraçados, que bem podia fazer divisaõ deste ultimo <em>Dialogo</em>, se vos +pertendesse chupar dinheiro com palavras sem proveito.</p> + +<p>Em quanto pois se passavam estes sinceros, e innocentes festins, perguntei a +Sanches (que já me havia dito, quem fossem os quatro) se os outros eram os +Grammaticos antiquissimos, pertencentes aos do susurro, que tinhamos ouvido, +quando estiveramos em o congresso?</p> + +<p>Que tu quizeres! respondeu, esses saõ bichos cor da noite, aos quaes<span +class="pn">{94}</span> ninguem atégora vio: saõ os habitadores das trévas.</p> + +<p>Os Senhores saõ Cortezãos (disse-me Diogo de Teive) e os unicos, que naõ +havendo sido lá no mundo nem Grammaticos, nem Professores de ler, por +previlegio, e merecimentos do Imperador, vieram para aqui. Tem sim bons +salarios; mas nunca diante delle se devem assentar; porque só nós o podemos +fazer.</p> + +<p>Por isso, disse eu em segredo apontando com o bico para a orelha de Teive, +por isso lhes vejo as pernas bem inchadas; mas agrada-me muito o seu sério.</p> + +<p>Aqui estaõ callados, tornou o Portuguez, mas fóra da vista de Carlos Magno +ninguem os póde aturar: tudo pisariam, senaõ fossem bem conhecidos por elle, +que os sabe bem domar: e assim todos vivemos huma maravilha.</p> + +<p>Já se haviam em fim acabado os comprimentos, e os Imperadores se foram +sentar, e depois os outros cinco. Eu, como por ser passaro estava<span +class="pn">{95}</span> dispensado de fazer o mesmo, cheguei-me para aquelles, +que tinham a mesma dispensa, posto que por differentes motivos. Elles me +trataram com muito carinho: e para naõ ser ingrato, digo, disse, e sempre +direi, que em aquella ilha recebi obsequios até dos esfoladores de mosquitos, e +dos caçadores de moscas.</p> + +<p>Estando eu feito Cortezaõ, como acabo de significar, sem merecimento algum, +e cuidando por isso, naõ se faria caso de mim, logo fiquei sem estes +escrupulos: porque vendo Carlos Magno a minha submissaõ, e o quanto eu conhecia +a mercê, que me tinham feito em me admittirem com tanta benignidade ás suas +lições, e á sua companhia, disse em tom sério, brando, e affavel: Es passaro, +naõ ha duvida; mas passaro feito pelo nosso dedo. O que tens foi-te dado; +porque o merecias. Naõ és como essas infinitas gralhas, que se andam enfeitando +descaradamente lá na terra com plumas, que furtam ás aves mais formosas, e mais +estimaveis.<span class="pn">{96}</span></p> + +<p>Sim, disse Cesar, mas de ordinario, naõ se sabem armar com ellas, e +expoem-se ao risco de serem depennadas.</p> + +<p>Como as pennas, disse Cataõ, saõ bens de raiz, tambem as aves roubadas +poucas vezes demandam as ladras, que pouco a pouco vaõ perdendo o furtado.</p> + +<p>Senaõ demandam, disse Crates Mallotes, queixam-se pelo menos, como naõ ha +muito fez o nosso Condillac á vista desse Inglez.</p> + +<p>Ora pois, disse-me Carlos Magno, vinde para aqui. Entaõ fui-me chegando com +a cauda de rojos feito viuva, despedindo-me dos Cortezãos á Ingleza, isto he, +sem comprimentos, nem ceremonias, por ser indecente, que eu em semelhante +occasiaõ, me dilatasse com elles.</p> + +<p>Chegado que fui ao pé do illustre Heróe, já Cataõ se havia levantado, e +estava fazendo pontaria com hum telescopio, incomparavelmente mais comprido, +que o de Galilei de Galileos. Teria pelo menos trinta covados<span +class="pn">{97}</span> de comprimento: estava em cima de huma especie de +carreta, que tinha suas escadas, para poder ver cada qual, segundo sua +estatura.</p> + +<p>Ajustada a mira do instrumento, veio-se Cataõ assentar. Entaõ Carlos Magno +arrancando de seu piedoso coraçaõ hum grande, e magoado suspiro: Sóbe, disse, +verás por alli (apontava para o telescopio) por alli, pedantarias já dignas de +riso; já dignas de lágrimas. E vós Sanches, ide estar bem, ao pé deste +estrangeiro.</p> + +<p>Dito isto trepei pelas escadas até o ultimo degráu, pela razaõ da minha +estatura, que entaõ pouco maior seria, que a de perú: o rabo sim era tamanho, e +taõ monstruoso, como as <em>Linguagens</em> que em elle foram convertidas. +Sanches porém, que naõ havia padecido, como eu nenhuma metamorphose, ficou em +pé sete escadas abaixo, e com a sua cabeça a par da minha. Virei pois o olho +esquerdo para a boca daquella grande maquina, e o bico para a banda; mas dei a +volta com elle voltado para o ar, a fim de<span class="pn">{98}</span> naõ +molestar a cára do Hespanhol, companheiro, amigo, &c. Os circunstantes +gostáram do meu procedimento, riram he verde, todavia com aquella moderaçaõ de +gente bem educada. Eu confesso, que estive hum pouco confuso. Ora eu já tinha +reparado ser desmarcado o meu bico; porém entaõ he que conheci ser sessenta +vezes maior que o da cegonha. Nascia a minha admiraçaõ de ter sido feito de +huma arte taõ breve, como o Novo Epitome. Já me naõ embaraçava olhar para +outras partes senaõ com ambos os olhos para o meu bico.</p> + +<p>Assim me estava demorando com estas bagatellas, quando Sanches me disse: Naõ +te maravilhes, tudo isso he preciso para dares as mais valentes picadas no +charlatanismo deste seculo. Observa o que vai pela Europa.</p> + +<p>Entaõ vi casas do tamanho de bocetas, ruas, chafarizes, proporcionados, e +logo infinitos ratos, devorando-se huns aos outros. As mortes ferviam: tudo era +huma confusaõ. Em quanto isto se passava, sahiam arrãs<span +class="pn">{99}</span> de differentes lagos; entráram logo a formárem-se em +esquadrões: os seus escudos eram conchas de amejoas, as armas juncos mui +agudos. Assim invadiram os campos, pertencentes aos ratos, estes moderaram +algum tanto o odio intestino; muitos porém se misturáram com ellas; as quaes já +hiam ganhando castellos: e alvoravaõ suas bandeiras. Mas os ratos logo se +uniram quasi todos, levavam escudos de cascas de nozes, e as armas eram folhas +de trigo candial. Affugentáram as arrãs, e fizeram-se senhores de muitas das +suas ribeiras.</p> + +<p>Assim acabou aquella invasaõ. Depois ví alguns ratos ás costas das arrãs, +que nadavam pelos lagos, e dahi a pouco vi muitos delles affogados pelas +margens. Vieram outros com forcados ás costas: entaõ muitas arrãs fizeram paz +com elles, segundo me pareceu, outras ficaram sós em campo: padeceram muitas +derrotas: perderam muito das suas ribeiras. Tambem os ratos tractaram mal a +muitas das que haviam deixado a liga, roubando, e<span class="pn">{100}</span> +comendo os seus viveres, e occupando o seu terreno. Em quanto isto observei, +vieram infinitos cágados, ajudaram tanto as arrãs, que já hiam recuperando +muito do perdido. Muitos ratos fugiam pelas montanhas, com juncos espetados +pelos olhos. As arrãs mortas eram sem numero; os ratos sem conto.</p> + +<p>Muito tens visto, disse Carlos Magno, e queira Deos vejas estas revoltas +socegadas. Vê, como os ratos tudo querem roer; e depois querem que as arrãs +sejam animaes silvestres, como elles.</p> + +<p>Eu estava pasmado, e ainda hoje trabalho por decifrar todo aquelle enigma, e +canço-me debalde. Tambem vi batalhas navaes, em que as arrãs obraram +maravilhas.</p> + +<p>Se estas, disse Cataõ, naõ derem cabo destes ratos enfurecidos, a mim me +mellem.</p> + +<p>Crates Mallotes, queria se me explicasse aquessa visaõ; porém Carlos Magno +disse: vamos ao que importa, venha Gúliver para aqui.<span +class="pn">{101}</span></p> + +<p>Entaõ fui logo pelas escadas abaixo para junto do Imperador, o qual assim +continuou. Nunca o mundo esteve taõ cheio de traidores, e de malvados como +hoje: Por aquelle telescopio sabemos tudo; o qual alli da parte direita tem +certo canudo por onde tudo ouvimos. Quizemos divertir-te com esses ridiculos +objectos: cuja explicaçaõ alguem acharás entre os vivos, que bem a possa +desenvolver. Só vos dizemos, que a falta de Religiaõ, de temor de Deos, assim +como o orgulho, e o egoismo deste tempo, saõ as causas das desgraças, que com +lagrimas nos olhos os bons mortaes em a patria vos contaraõ.</p> + +<p>Sim, disse Cataõ, este seculo tem produzido mais impios, e mais Atheos, que +gafanhotos o estio. Os pais de familia, e a falta de vigilancia publica sobre a +educaçaõ da mocidade, tem causado muitos prejuizos á sociedade humana.</p> + +<p>Cuidei, disse eu, que isso só serviria de augmentar o pedantismo, e<span +class="pn">{102}</span> nada mais. A pedantaria, respondeu Cataõ, he prima mui +chegada do desatino. Todas as causas della, tambem o saõ dos males mais +funestos.</p> + +<p>Quando isto ouvi, lembrei-me logo da expressaõ de Aurelio Opilio, quando +disse, que as revoltas do mundo deviam ser attribuidas á ignorancia: o que +Teive havia provado com argumentos, que naõ tinham resposta.</p> + +<p>Os pais de familia, disse Lelio, com a sua má educaçaõ, os Mestres +prevaricadores, os livros impios, tem feito em o mundo estragos mais terriveis, +do que peste em cem annos.</p> + +<p>Tudo isto, disse Cataõ ainda tem remedio, os pais que naõ ensinam aos filhos +o temor de Deos, a doutrina da sua religiaõ, a obediencia aos seus Soberanos, e +superiores, sejam castigados: os Mestres que naõ mostram interesse na +conservaçaõ das leis da sua patria, sejam apartados do ensino público, e +particular: os livros<span class="pn">{103}</span> impios sejam naõ só +prohibidos, mas até queimados; porque o seu pedantismo he mui prejudicial.</p> + +<p>Eu com difficuldade podia ouvir estas coisas: todo o meu desejo se +encaminhava a que se me explicasse aquella célebre visaõ: por isso perguntei: +Que quer dizer aquella loucura dos ratos, e das arrãs?</p> + +<p>Naõ sejais teimoso, respondeu Crates, surrindo-se; todas estas reflexões +dahi nascêram. Ouvi a Cataõ, que he bello para isto. A vossa curiosidade he por +certo innocente, mas de nenhuma maneira vos he util.</p> + +<p>Como ouvi fallar em a inutilidade do meu appetite, deitei-o para fóra, e +inclinei o ouvido para Cataõ, que assim discorria: Hum homem sabio, que tem +lido as Historias do mundo, e de cujo coraçaõ o diabo ainda naõ tomára posse, +conhece muito bem, que tudo está perdido, huma vez, que se quebrem os antigos +eixos de qualquer governo: ou seja por meio de planos, apparentemente bons: ou +interesses imaginarios, ou titulos<span class="pn">{104}</span> de liberdade. E +o peor he que o fogo desta funebre pedantaria passa de ordinario muito além das +barreiras, dentro das quaes se accendeu; pois que he infinita a ignorancia, que +lhe serve de lenha, e a si de ruina.</p> + +<p>Sem sahir de Roma, disse Cesar, temos as mais concludentes provas dessa +verdade. Quando Bruto, o maior fanatico, que a antiguidade conheceu, com o +pretexto virtuoso de vingar huma adultra suicida, todo o rude povo amotinára, +naõ foi só o Imperio quem padeceu os funestos effeitos daquella republicana, e +pedantesca novidade.</p> + +<p>Ouvindo isto o mordaz Cataõ, o qual havia sido o capataz dos Republicanos, +torceu o nariz, e fazendo uma carantonha, como de quem sentio fedorentissimos +vapores; assim retrucou a Cesar: Mas tu pouco menos de cinco seculos, depois +daquelle delirio pedantesco: já quando todos amavam as leis, e os costumes de +Republica taõ antiga, foste de Roma<span class="pn">{105}</span> regar os +campos de Farsalia de Romano, e barbaro sangue. Hespanha sentio tambem os +malvados golpes da tua furiosa espada.</p> + +<p>Toda a paga do meu delirio, disse Cesar, foram vinte e tres punhaladas, que +recebi de quem a vida muito devêra desejar-me. Mas tambem o sedicioso Bruto em +o mesmo anno de seu Consulado alcançou a recompensa da sua perfidia. Eu perdoei +aos Cidadãos, que foram meus inimigos: mandei aos meus soldados metter a espada +na bainha. Podéra muito bem naõ dar vida a algum. Porém todo o meu fim era +restituir á patria o antigo, e bom governo da sua creaçaõ; porque sempre me +pareceu pessimo o guizado da panella por muitos mexida.</p> + +<p>Mas naõ sendo tua a panella, replicou Cataõ, foras comendo esta tal, e qual +vianda com que todos nos haviamos sustentado. E que prazer recebias de estar só +a mexella, sendo a sua agua as lagrimas dos vivos,<span class="pn">{106}</span> +e o seu adubo o sangue dos mortos?</p> + +<p>Tambem o fogo aonde fervia, disse Carlos Magno, era o incendio da guerra +civil, a coisa mais lamentavel de todas as desgraças, que em o mundo possam +succeder.</p> + +<p>He hum ingrato mui pedante, disse Crates Mallotes, todo o que deseja mudada +a Legislaçaõ, e os antigos costumes do seu paiz, em pontos essenciaes; porque +similhantes mudanças saõ a origem daquelle triste fenomeno, que Gúliver ha +pouco vio: e que tem produzido des donde o Sol se poem até aonde elle nasce as +miserias mais terriveis, do que a memoria de todos os seculos nos tem mostrado. +Mas para naõ mentirmos, devemos confessar, que as traições tem sido a causa dos +ratos terem feito tanto damno pelas ribeiras: se isso naõ fora, já ha muito +estariam incurralados em seus buracos.</p> + +<p>Melhor seria, disse Lelio, que as arrãs, naõ lhes houvessem dado pasto para +roer; porque entaõ elles se<span class="pn">{107}</span> devorariam huns aos +outros, como fazem estes, que andam de cavallaria, pelos fórros destes tectos. +Todavia he muito certo terem sido as traições a causa de durarem ha tantos +annos essas carniçarias lamentaveis.</p> + +<p>Se os traidores, disse Cataõ, naõ fossem pedantes, conheceriam, que em o +desempenho de suas obrigações, he que consiste a sua propria felicidade; e que +o ultimo fim da vil traiçaõ he todo o genero de trabalhos, ou, quando pouco, +huma infamia, que nem todo o mar em infinitos seculos poderá lavar.</p> + +<p>Sabemos muito bem, disse Crates, que o interesse do traidor costuma +commummente ser igual ao do que entregou Gibraltar; mas Gibraltar ficou +perdido. Pelo que mostrai, como se podem evitar os menos traidores, que for +possível, em pontos taõ delicados.</p> + +<p>Huma boa educaçaõ publica, respondeu Cataõ he o primeiro remedio: depois +disto evitar-se o mais<span class="pn">{108}</span> que poder ser tropa +mercenaria. Assim he, disse Cesar, porque, quando todos os Cidadãos em Roma +eram soldados, nem ao imperio faltava defeza, nem o povo morria de fome. Em +tempo de guerra corria toda a gente necessaria, no fim cada qual vinha para sua +casa. Desta maneira o ser soldado naõ se oppunha entaõ nem a ser estudante, nem +lavrador, nem General.</p> + +<p>Tambem os soldados Portuguezes antigamente, disse Diogo de Teive, eram +lavradores, e homens, que tinham interesse na conservaçaõ de suas familias, e +de seus bens: homens capazes, que de suas lavoiras hiam para a guerra, e da +guerra para as suas lavoiras. Naquelle ditoso tempo naõ se prendiam homens +vadios, e facinorosos, senaõ para o supplicio; e ainda que se admitisse algum +destes por ser valoroso, elle se fazia honrado, pelo desempenho dos seus +deveres.</p> + +<p>Por isso, continuou Cataõ, temos visto por aquelle telescopio, que +ninguem<span class="pn">{109}</span> até agora entrou em Portugal com maõ +armada, que mais hoje, mais amanhã naõ sahisse com a aza a rastros.</p> + +<p>Eu estava admirado do que ouvia, e já gostava de ser bom estadista (naõ como +os do caffé, aos quaes aborreço de morte, quero dizer as suas loucuras) por +isso, estando muito familiarisado com a presença de Carlos Magno, que me tinha +havia tanto tempo ao pé de si; com o mais profundo respeito; porque naõ costumo +abusar do favor, que se me faz, assim perguntei: Como, Senhor, póde neste +tempo, em que tanto se necessita de trópa bem disciplinada, deixar de haver +soldadesca paga?</p> + +<p>Cataõ logo entrou a rosnar; mas em tom que nada percebi, com tudo, se fordes +bom Logico, podeis fazer huma boa conjectura.</p> + +<p>Sua Magestade, o Illustre Imperador Carlos Magno respondeu-me com a mesma +affabilidade, com que costumam os Monarcas Portuguezes fallar ao seu povo, e +aos estrangeiros, o que<span class="pn">{110}</span> tudo observei quando +estive em Lisboa; e Teive havia confirmado com milhares de provas; o qual era +testemunha sem suspeita. O plano, proseguio o heróe famoso, para haver muitos +soldados fiéis, e valorosos com bem moderada despeza, he o seguinte: Tem por +exemplo huma Potencia 60$000 homens pagos, tenha só 12$000: estes sejam bem +escolhidos. Alistem-se agora 200$000: repartam-se em Regimentos: venham da +tropa paga officiaes sabios, e honrados para cada regimento. Tenha-se muita +attençaõ aos destrictos para se ajuntarem os soldados em os dias desoccupados a +fazerem exercicio. Dê-se aos pobres fardamento de tres em tres annos: a todos +sem excepçaõ a sua arma. Fóra do exercicio naõ se vistam as fardas, tirando +aquellas, que cada qual quizer comprar, &c. Naõ se pague senaõ em guerra, +ou actual serviço. Naõ se falte com o premio aos benemeritos. Entaõ siga cada +hum o modo de vida que bem lhe parecer. Mas quando este seja incompativel, naõ +se deve vexar ninguem.<span class="pn">{111}</span> Ora dizei-me deste modo +faltará quem defenda a sua Patria?</p> + +<p>E seraõ, respondeu Cesar, menos as miserias publicas, e naõ ficaraõ as +terras a monte, e naõ haveraõ tantos ociosos, e...</p> + +<p>Naõ será preciso, interrompeu Cataõ, prender homens, e assim constrangelos a +jurar bandeiras, as quaes por esse motivo lhes haõ de ser sempre odiosas.</p> + +<p>Fallando assim Cataõ, e estando Carlos Magno virado algum tanto para elle: +aproveitei-me da occasiaõ, e espetei o bico na orelha de Crates Mallotes, que +estava á ilharga de Cesar; perguntei-lhe muito baixinho: Com que Bullas está +aqui o açoite dos infiéis?</p> + +<p>Já te esqueceste (respondeu-me em o mesmo tom) do que te disse Quintiliano +lá no congresso, quando se recommendou a Grammatica da lingua materna? Entaõ +lembrei-me da Grammatica Tudesca; e ao mesmo tempo da brevidade, ou fraqueza da +memoria humana. Mas debalde se fallou taõ baixinho;<span +class="pn">{112}</span> porque o Imperador tudo ouvio, e disse mui +expeditamente: Sim, fui Grammatico, e naõ temos medo aos Filósofos da moda. Tu +faze pelo ser, para que algum dia tenhas lugar aqui comnosco.</p> + +<p>Elle que acabava de fallar, chega Manucio, Braz Pico, Laurenti, Crinito, +Linacro, o Barbadinho, Antonio Pereira, e mais vinte Escritores Portuguezes, e +pediram, compozesse eu huma Grammatica Filosófica da Lingua Portugueza; no que +agora trabalho, mas espero de Lisboa humas tres que me dizem, estaõ a sahir a +publico, para dellas me aproveitar sem crime de furto.</p> + +<p>Parece-me escusado dizer, com quanto respeito estes Grammaticos, que me +vieram fazer a sua recommendaçaõ, tractaram aos Imperadores; porque já vos +disse muitas vezes, que alli naõ ha gente mal criada.</p> + +<p>Em fim, promettendo eu áquelles amigos pôr todas as minhas forças por +satisfazer ao seu empenho, disse Crates Mallotes: Vai agora ver o que<span +class="pn">{113}</span> vai; chega-te ao telescopio. Subi, inclinei o olho, e +Sanches chegou-me o canudo ao ouvido, e entaõ vi, e ouvi hum grande ajuntamento +de ratos a chiar: e logo entráram ás focinhadas huns aos outros, como damnados. +Nesse tempo veio-me aos olhos hum reflexo de luz de tal qualidade, que me +obrigou a fechalos; mas quando os tornei a abrir, já nem vi mirante, nem nada: +só me vi na regiaõ das aves sem saber que rumo seguisse, nem para onde me +voltasse.</p> + +<p> </p> + +<h2>FECHO DA OBRA.</h2> + +<p class="sinopse"><em>Conta Gúliver como chegou á patria: como foi poizar á quinta de hum +Lord: como foi tratado: como deixou de ser passaro pelo toque da Carta de +Crates: o seu Theor, &c.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>S</big>Ahindo eu daquelle magestoso edificio sem saber de que maneira, assim como +naõ soubera o modo com que á ilha arribára; naõ tive entaõ remedio, senaõ +voltar o rabo para o Norte, e o bico para o Sul; porque naõ avistava nem palmo +de terra: agua, e ceo, eram os unicos objectos de meus olhos. Estive hum pouco +agitado dos mais tristes pensamentos, lembrando-me a desgraça de Icaro; mas +adoçava estes amargos com o perfeito conhecimento de naõ terem sido as minhas +azas feitas de cêra pelos<span class="pn">{115}</span> homens; sendo pelo +contrario seus autores defunctos sabios, e honrados, inimigos de traidores.</p> + +<p>Assim animado desta esperança verdadeira, cujo fim naõ foi doloso, vim +voando á ventura, por cima de mares immensos, que ví em differentes partes +coalhados de navios, que me pareciam formigas d'aza. Porém chegando á altura de +Londres, que muito bem conheci, e que me creou hum novo coraçaõ, entrei a +descer por huma perpendicular, e cada vez se me hiam fazendo maiores os +edificios, os quaes ao principio me pareciam conchas de mariscos, ou de +caracois brancos.</p> + +<p>Cheguei em fim á patria; mas <em>ad cautelam</em> para evitar algum insulto +da plebe, fui poisar á quinta de hum Lord, que fora muito meu amigo em outro +tempo, e que ainda hoje o he. Porém eu chegado ahi, senaõ quando todos os +rapazes, e raparigas da fazenda, me vieram com páos dar as boas vindas. Como +pois eu era hum passaro taõ desusado, como<span class="pn">{116}</span> manso, +me foram tangendo para casa de seu amo: nem eu queria outra coisa. Acudio elle, +e ficou satisfeito do presente. Eu tive minhas tentações de lhe dizer quem +fosse; mas contive-me; porque julgaria, que era algum diabo, ou alguma bruxa +pelo menos. Deste modo segui o systema de mudo, até que algum defuncto me +absolvesse de passaro, e me restituisse a figura de homem.</p> + +<p>Assim que ví o Lord entrei a fazer-lhe festa, como pude, isto he, com o +rabo, e dando minhas correrias; mas de sórte que elle conhecesse que eu era +animal domestico, por evitar alguma peia, &c. O amigo estava-se babando: +logo mandou vir huma escudélla de páu, cheia de legumes, lembrei-me logo de +Pythagoras, e do riso de Teive; e conheci-me comprehendido em o mesmo crime; +porque havia sido pouco devoto daquella fructa (por má creaçaõ, eu o confesso) +e entaõ senti huma tamanha rafa, que até devoraria a propria gamella. Mas +todavia fiz-me grave até ás horas de<span class="pn">{117}</span> jantar, que +me pareceram mais compridas do que a noite em que Alcmena dormio com Júpiter; +cuidando ella ter em casa o seu Anfitriaõ.</p> + +<p>Neste dilatado tempo recebi milhares de visitas, que me fizeram hum grosso +circulo, bem como a plebe de Lisboa costuma fazer a hum preto, quando esfola +algum cavallo; do que sou testemunha de vista. Tocou finalmente a jantar, e eu +que estava já aborrecido daquella gentalha, e morto de fome, rompi por onde +pude, fazendo caminho com o bico, o qual fui logo espetar no prato do Lord, que +naõ levou a mal o meu desembaraço, antes mo encheu humas poucas de vezes de +boas viandas. Tambem repiquei em o copo; mas com muita moderaçaõ. Desta maneira +tirei o ventre de miseria: e regallei-me em quanto fui ave. Eu sahia pela +quinta, e tornava: e naõ havia mimo, que se me naõ fizesse.</p> + +<p>Ora eu cheguei áquella boa hospedagem ás déz horas do dia 2 de Janeiro de +1800, e seriam onze do dia<span class="pn">{118}</span> 13 do dito, estava eu +ao Sol (que durou bem poucos minutos) estendendo a aza, e compondo a plumagem: +senaõ quando chega huma ave, que me parecia galinholla, com hum cartaz no bico, +e deixando-o cahir lá do alto sobre mim, fiquei Gúliver como dantes, vestido em +trajes de marujo, o que eu certamente nunca fui, mas assim vestia em meus +embarques. As pennas lá fugiram para o corpo do Correio: e talvez tornem a ser +convertidas em as artes de que já fallei.</p> + +<p>Estando eu todo concho a abrir a carta, chega de repente o caseiro, e diz: +Quem deu a você licença de aqui entrar? Senhor, respondi, achei a porta aberta. +Naõ póde ser, replicou, vocês trepam pelas paredes como gatos. E apostamos, que +você vem com o cheiro em o passaro de meu amo? Ah! Sim hum passaro mui +esquipatico, disse eu, ahi anda em o cima da estrada a querer saltar para +dentro. Vamos fóra eu lho ajudarei a enxotar para cá.<span +class="pn">{119}</span></p> + +<p>O pateta, que isto ouvio, sahio a correr; e eu apoz elle. Metti-o em huma +travessa, e safei-me por outra bem para longe a ler a recommendaçaõ dos amigos +defunctos, cujo theor he o seguinte, em pergaminho de boa letra, que naõ dou +nem por hum milhaõ de libras estrellinas.<span class="pn">{120}</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h2>CRATES MALLOTES</h2> + +<p class="centrado">Exembaixador do Rei Attalo, Exprofessor<br> +de Letras Humanas em a Cidade<br> +de Roma, Presidente Honorario<br> +dos Grammaticos defunctos</p> + +<p> </p> + +<p class="sinopse"><em>Ao nosso amado Hospede Roberto Gúliver deseja muita Fortuna.</em></p> + +<p> </p> + +<p class="ni"><big>N</big>Aõ te posso explicar, amigo Inglez, as saudades, que +deixaste em a nossa ilha, e quanto todos ficáram namorados do teu bom +procedimento; por isto, e tambem pelo bom affecto com que te tractámos, he +necessario, naõ te esqueceres das nossas recommendações, para que, depois do +golpe da Parca, te associes comnosco. Muito bem observaste quantos homens +grandes aqui habitam, Imperadores, Bispos, Condes, Generaes, &c. Depois +disto aviva lá no mundo a nossa memoria, para naõ esquecer de todo:<span +class="pn">{121}</span> o que te será pouco custoso, patenteando os justos +açoites, que nos vistes descargar sobre o pedantismo deste seculo. Mas os +Grammaticos Portuguezes, de quem muito nos prezamos, e os Hespanhoes, querem, +que tu dívulgues as nossas lições em Portugal; naõ por necessitar mais dellas, +do que as outras nações, mas porque lá ainda ha muitos sabios, a quem haõ de +ser bem gostosas. Naõ temas nada: tudo o que disseres, he nosso, que nos +lastimamos muito dos destemperos da humanidade. Se em fim por tamanha caridade +houver quem te morda, de cá irá o medicamento, sem que pagues porte ao Correio. +O portador desta he Despauterio, e pódes dizer áquelle amigo, que elle já naõ +ralha dos outros, e que siga este exemplo. Ilha dos Mórtos 12 de Janeiro de +1800.</p> + +<p> </p> + +<p>Apenas lí este passaporte, corrí como huma lebre a casa do Lord, que naõ +sabia o que me fizesse. Logo me deu vestido, dinheiro, tudo. Mandou-me<span +class="pn">{122}</span> sem perda de tempo pôr mãos á obra; e depois de a lêr +carregou-me de elogios: e vai-se a imprimir por sua conta. Eu estou mui gostoso +da sua approvaçaõ, por ser hum homem doutissimo, que naõ declaro para naõ cahir +em incoherencia, que he o peor defeito de quem escreve.</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;margin-left:auto;margin-right:auto;">FIM.</p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Crates Mallotes ou Critica +Dialogistica dos Grammaticos Defuntos contra a pedantaria do tempo, by Robert Guliver + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CRATES MALLOTES OU CRITICA *** + +***** This file should be named 34287-h.htm or 34287-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/4/2/8/34287/ + +Produced by Mike Silva + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> + diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize +this eBook outside of the United States should confirm copyright +status under the laws that apply to them. diff --git a/README.md b/README.md new file mode 100644 index 0000000..aee61b6 --- /dev/null +++ b/README.md @@ -0,0 +1,2 @@ +Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for +eBook #34287 (https://www.gutenberg.org/ebooks/34287) |
