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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-14 20:01:20 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Fialho d'Almeida + +Author: Visconde de Vila Moura + +Illustrator: António Carneiro + +Release Date: November 12, 2010 [EBook #34288] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FIALHO D'ALMEIDA *** + + + + +Produced by Mike Silva + + + + + + VISCONDE + + DE + + VILLA-MOURA + + + FIALHO D'ALMEIDA + + (COM UM DESENHO DE ANTONIO CARNEIRO) + + + EDIÇÃO DA «RENASCENÇA PORTUGUESA» + + + + + Direitos reservados + + + + + FIALHO D'ALMEIDA + + + + +DO AUCTOR: + +A Moral na Religião e na Arte, 1906. + +A Vida Mental Portuguesa, 1909. + +Vida Litteraria e Politica, 1911. + +Nova Sapho (romance), 1912. + +Camillo Inédito annotado, 1913. + +CONTOS E NOVELLAS: + +I--Doentes da Belleza, 1913. + +II--Bohemios, 1914. + +Antonio Nobre, 1915. + +Grandes de Portugal (em collaboração com Antonio Carneiro), 1916. + +Fialho d'Almeida, 1916. + + + + + VISCONDE DE VILLA-MOURA + + Fialho d'Almeida + + + + EDIÇÃO DA + «RENASCENÇA PORTUGUESA» + PORTO + + + + +I + +CUBA E VILLA DE FRADES + + +Eu estive já, por duas vezes, em Villa de Frades, no largo da +Misericordia, onde foi aquella «casinha de taipa, construida por +pedreiros da gente de Fialho»--como elle nos conta na _Autobiographia_ +do seu livro--_Á Esquina_. + +Fui ali quando das minhas jornadas pelo Baixo Alemtejo, em excursão de +curioso pelo mais da sua gente e paizagem. + +A primeira vez que visitei a residencia de Fialho, que não é já hoje a +casita de taipa que os seus construiram, mas uma das melhores da +terriola,--foi por uma tarde de agosto, uma daquellas tardes de +rescaldo que erguem, á volta de nós, serpentes de fogo, e lhe ensinaram, +a elle, a sua pintura deslumbrante, á maneira de Rubens, em que a +propria côr queima! + +Não foi sem um certo alvoroço, confesso, que bati ao portão da antiga +casa do Escriptor. + +Veio alguem abri-lo, deixando a descoberto, a meio de uma segunda porta +fronteira, um homem alto, vestido de negro, de aspecto recolhido, quasi +ecclesiastico, e que, num instante, me encarou e desappareceu, +abandonando-me no jardim, ao sol, com o meu remorso de indiscreto. + +Desapparecera tambem o creado, ou quem quer que fosse, que me tinha +introduzido no pateo. + +Esperei instantes, e, como não visse alguem, dirigi-me para a entrada da +primeira casa, que logo vi ser a cozinha, encarando, pela segunda vez, +aquella mesma figura quasi sombra, que depois soube que era o irmão +de Fialho. + +Disse alto o que queria:--falar ao dono da casa e pedir-lhe o favor de +me deixar ver a antiga residencia do Artista. + +Sahiu a attender-me uma mulher nova, figura doente e franzina, que logo +se deu a explicar-me que era ella a actual dona da antiga casa do +Escriptor, de quem era parenta, vivendo ali com o marido e seu primo, o +irmão de Fialho d'Almeida, que, já ao tempo, mais familiarizado comigo, +me fitava serenamente. + +Dei-me tambem a vê-lo melhor. + +Não me lembro da edade que me disse ter; quarenta e sete annos podia +talvez apparentar. + +--Que era um temperamento impressionavel, a espaços dado a medos e +hysterias, sempre melancholico, informou ainda a sua parenta. + +Deparou-me, pois, o acaso, nem mais nem menos, do que um novo documento +a instruir a historia do genio do Artista, na pessoa do irmão, que me +dei a ver como uma figura-symbolo de familia, em que, não sei porque, +presenti a elegia viva da Arte mais exquisita e morbida de Fialho, +qualquer coisa da neurilidade extravagante dos seus doridos, aquella que +animou os seus personagens tão suavemente fataes e androgynos, toda a +belleza maravilhosa, e não raro inconsequente, da sua obra de +apontamentos, onde tão extranhamente exuberam os noctambulos e toda a +sorte de mysteriosos! + +Corrêra, de certo, enferma a adolescencia do irmão de Fialho, que viera +até ali, aos quarenta e sete annos, ou mais que podia ter, porventura +ainda innocente, como por milagre da sua mesma frouxidão de alma, a que, +a cada momento, sua prima alludia, ao referir-me, perto delle, as +sinistras manhans das suas torturas de neuropatha. + +Entretanto que a dona da Casa me convidava a passar á primeira sala, +chegou o marido della, tambem primo de Fialho, que, a meu pedido, +mandara chamar, e que logo se dispoz a acompanhar-me, apontando-me, por +miudo, o mobiliario e antigos aposentos do Artista. + +Fôra este seu parente a quem Fialho recorrera, quando, na vespera da +morte, veio a Villa de Frades, ordenar os papeis do seu gabinete, como +quem se decide a dispor tudo, antes de seguir... + +--Quando chegou deu pela falta da chave do escriptorio, me explicou o +snr. José Fialho. E apontando uma porta:--tentou ainda abri-lo, +quebrando o vidro daquella bandeira; por fim, resolveu-se a chamar-me, +e, como é cá da minha arte este serviço, pois sou carpinteiro, +immediatamente arranjei tudo; e, elle entrou, demorando-se aqui até á +hora da partida. + +Insisti na supposição, que mais se radicou em mim, depois da minha +derradeira estada no Alemtejo, do provavel suicidio de Fialho, +confirmando-me o seu parente que, de facto, se tinha aventurado tal +suspeita, logo apoz a sua morte, mas que os medicos que, por ultimo, o +haviam soccorrido, tinham negado o facto, e, elle, por si, coisa alguma +sabia dizer a tal respeito... + +Entretanto, encarou-me mysteriosamente, quando lhe disse que alguem da +familia Carapeto, que lhe assistira á morte, na Cuba, tinha como certo o +seu envenenamento; que, na vespera, elle tratara do arranjo definitivo +de tudo, e nomeadamente do seu testamento, lavrado numa das dependencias +da Tabacaria Fonseca, onde costumava passar parte das noites; que +soubera, ainda na Cuba, dos seus aborrecimentos de doente, afóra outras +razões que a minha admiração tinha reunido para reconstituir o drama +duvidoso do seu desenlace. + +Mas deixêmos este caso ao tempo, que é quem definitivamente aclara tudo, +e voltemos á sua casa de Villa de Frades. + + +Como acima informei, actualmente pouco deve ella ter da construcção +primitivamente gizada pelo pae do Escriptor, antigo mestre regio da +freguezia. + +É sabido que Fialho casara com uma senhora de fortuna, de quem tambem +ficou herdeiro, pelo que tanto aquella Casa, como a de Cuba, sua +residencia predilecta, foram por elle reformadas, com todas as melhorias +em uso nas boas construcções da região. + +Mas não se infira dahi que se trate de edificios luxuosos; são, pelo +contrario, casas sem interesse, e, ainda, no ponto de vista artistico, +valem tão sómente pelo caracter que lhes advém do facto de obedecerem ao +desenho do mais das habitações daquellas paragens,--quasi todas ellas +tijoladas, cozinhas brancas de telha van, eirados sobre a planicie, e os +jardins tão intimos das casas e pateos, á maneira arabe, como que +continuando-se das salas. + +Villa de Frades, pequena povoação do concelho da Vidigueira, com um +censo de dois mil habitantes proximamente, tem um certo relevo, em +contraste com o resto da formidavel planura sul-alemtejana, e, o que é +mais, foi uma das poucas terras, se não a unica do districto, que +encontrei verde, no agosto em que a visitei. Tudo o mais, ao largo, era +desolação e secca. + + [IMAGEM: Fialho d'Almeida. Desenho de Antonio Carneiro] + +Para lá da matriz, logo ao sahir do povoado, corriam as obras das +escolas que o Escriptor garantira com o seu testamento, e que, +confesso, pouco me detiveram, dado o meu aborrecimento por construcções +do seu desenho, entre gaiolas e penitenciarias, com destino á futura +infancia de Villa de Frades, de mais, ao tempo, sobremaneira +antipathicas, como todos os edificios por concluir. + +O que devéras me prendeu, foi a chamada antiga Casa da Aula, pela qual +perguntei ao primo de Fialho e immediatamente saiu a apontar-me. + +É fronteira á Egreja, e um edificio tosco, sobre o comprido, áquelle +tempo escrupulosamente caiado, de aspecto simples e o ar abstracto de um +templo abandonado. + +Era quasi noite. A matriz bateu não sei que horas, com aquella +solemnidade triste, que é do dobrar dos sinos de todas as villas... + +Dei-me a imaginar a infancia de Fialho, partilhando daquella +melancholia, pelas grandes tardes morrinhentas de Villa de Frades, com +todo o primeiro mundo da sua inicial e subconsciente comparticipação da +Vida... + +Ali, de facto, naquella humillissima escola, cursara elle as primeiras +lettras, de par das primeiras contrariedades, ao lado do pae, o mestre +escola da terra, «aquelle typo de santo austero, n'uma alma de sonhador, +sempre calado», explica o Artista, annos depois. + +E, em verdade, tanto como a casa onde nasceu, mais ainda, talvez, se me +prendeu da alma aquella capellita das suas primeiras canseiras. + +Ahi deveria, porventura, estabelecer-se o Museu-Fialho, uma vez que uma +dezena de amigos, refiro-me sobretudo aos seus amigos de leitura, se +concertasse para juntar em tal logar, com os seus livros, tudo o que +pudesse considerar-se como reliquia da sua obra ou memoria. + +Da casa de Fialho, em Villa de Frades, hoje quasi vazia do peregrino +espirito que a encheu, lembrarei especialmente o quarto do Artista, +onde, por acaso, quedam algumas arcas com revistas que excluiu da sua +livraria, destinada á Bibliotheca de Lisboa, legando-as a um amigo que +ainda as não levantou, e, nas paredes, duas telas da sua auctoria. + +Propositadamente trazemos a publico a noticia, que cremos em primeira +hora, daquellas telas, ambas más, de figuras religiosas, de tintas +empastadas e peior desenho, pelo interesse de documentar o seu esforço +de plastico, que o fez pintor, em segredo, a elle, o critico +impertinente dos maiores pintores do seu paiz! + +Esta, porventura, tambem a nota mais interessante que me foi dado +conhecer por informação da Familia-Fialho, e me fez lembrar o caso +de Hugo, identicamente desenhista e, mais ainda, entalhador, e cuja +obra, no genero, decora, ao presente, a sua antiga residencia, hoje +Museu, na _Place des Vosges_. + +Finalmente, resta-me apontar, o trecho fronteiro á casa, systema absorto +de outeiros verde-suaves, que se me depararam conhecidos, como se, de +sempre, os houvesse visitado. + +E, de facto, era quasi assim. Conhecia-os, havia muito, de algumas das +paginas mais luxuriantes do Escriptor, onde elle, o magnifico colorista, +a espaços se deu a pintá-los daquella tinta intima que lhe veio, pelo +tempo fóra, das suas memorias e impressões de infante. + + +Despeço-me, á pressa, da sympathica terriola, como quem foge do tumulto +de lembranças que me vem da casa, daquelles outeiros, dos primos de +Fialho, do Irmão, irreprehensivelmente estatual no seu papel de symbolo +rigoroso; e parece-me receber das mãos deste fios da tragedia, ainda +viva, das primeiras desfortunas do Artista, as que lhe advieram da quasi +miseria da sua segunda infancia, e cuja recordação o obrigava talvez, +mais tarde, a fugir dali, (onde viveu sempre o menos tempo) por +morphinizar-se do aborrecimento em commum por terras de mais convivio. + + +A Casa da Cuba, que em geral preferia, quando estava no Alemtejo, é um +edificio melhor que o de Villa de Frades, tambem terreo e de +compartimentos amplos. + +Nesta casa fui encontrar enferma, na mesma alcova em que o Artista +agonisara, a sua antiga legataria,--uma senhora de edade da Familia +Carapeto, a quem devo o offerecimento dos retratos de Fialho que +illustram a presente noticia e alguns dos seus esclarecimentos. + +Pouco me detive nesta sua antiga morada, e o tempo que ali quedei foi no +terraço, velho miradouro de gosto mourisco, donde se abrange, numa +extensão de leguas, o mais das terras seccas que circumdam a Comarca. + +Cuba é das povoações mais incaracteristicas e sem interesse que +encontrei no Baixo Alemtejo. Lembra, pela monotonia do seu casario +reverberante, certas povoações de Hespanha, da Mancha, sobretudo, e que, +em vez de quebrarem a aridez das chans, servem como que a memorá-las, +tão irmans da estepe parecem crescer da terra. + +Avalio, com tristeza, do viver do Escriptor na villa, quando, obrigado +pelas mil coisas desagradaveis da sua vida, em que parece não ter +figurado pouco a intriga politica da ultima hora,--se recolheu aos seus +telheiros. + +Fez o acaso que me defrontasse com o proprietario da Tabacaria, em que +passava uma parte das noites, a conversar, por distrahir-se e illudir a +monotonia que o cercava. + +Deu-se-me logo o snr. Fonseca, não afianço o appellido, como tendo sido +muito da intimidade de Fialho, propondo-se reproduzir factos e retalhos +seus de conversa que, é claro, lhe sahiam pouco authenticos... + +--Conheceu-o pessoalmente? me perguntou elle, a meio das suas tiradas. + +E, á minha negativa: + +--Pois olhe que era melhor ouvi-lo, do que lê-lo! + +Os livros valem pouco, accrescentou, em comparação com o que elle aqui +nos contava... + +E logo continuou a palavrear ácerca do Artista, emquanto eu me explicava +a sua vida final, o suicidio provavel, os caixões de revistas que vira +em Villa de Frades, e com as quaes elle, por ultimo, quasi obrigado a +viver ali, bem por certo, de volta a casa, iria feriar-se daquellas +noites mal conversadas com quem, por falta de ouvidos, não podia +ouvi-lo,--a elle que fora em Lisboa, o primeiro de um cenáculo de que +haviam feito parte, entre outros, artistas como Ramalho e Bordallo, ao +lado de curiosos, ás vezes, valha a verdade, bem inferiores ao +sympathico negociante, que, ao menos, herdara do seu convivio a devoção +supersticiosa da sua memoria! + + +Como quer que seja, pois que Fialho passou em Cuba os ultimos annos da +sua vida, importa-me naturalmente escrever da pequena cabeça da +comarca o pouco que della apontei de más lembranças. + +Como acima referi, não tem ella, para mim, a bem dizer, outro interesse +alem do que lhe advem do facto de ter sido o derradeiro exilio do +Escriptor, que se dava a disfarçá-lo, administrando directamente as suas +herdades. + +Especie de villa improvisada, sem paizagem que pudesse entreter, por +momentos, o espirito, aliaz exigentissimo do Artista; sem edificios de +valor; com repartições inferiores; avenidas lugubres, no geito da +Alameda, sobranceira ao Caminho de ferro, e sombria como uma rua de +cemiterio; habitações mesquinhas, servidas de ruas mal calçadas; a +Estação, a distancia, quasi que fugida da terra que a fizeram +servir--tal é, de facto, Cuba, cujo casario abre sobre a campina +formidavel do sul como uma aguarella infima! + +E, entretanto, foi ali que Fialho quiz ficar, e mandou que lhe erigissem +o mausoleu, que visitei na ultima tarde da minha estada em Cuba, depois +de dolorosos transes para arrancar duma adega o chaveiro do Cemiterio. + +Ah! como Fialho tinha razão, ao informar-nos no conto--_A Ruiva:_--«Ha +uma coisa peior que um cão damnado: é um coveiro bebado!» + +Comtudo, ao lado dum tal coveiro segui eu até ao cemiterio de Cuba, em +que, aliaz, coisa alguma de notavel fui encontrar. + +Todos os cemiterios, a meu ver, se parecem; o da Cuba vale o +_Père-Lachaise_, como o de _Montmartre_ ou _Montparnasse_, por nomear os +trez mais notaveis de França (onde os homens passam por mais +reconhecidos)--como os de todas as terras, ainda os das muito +civilizadas e extremas. + +Imagine-se um cercado alto, com o ar de casa, á qual o vento +arrebatasse o telhado, arruamentos de capellas e arcas com lettras de +pedra, uma especie de convento de ossos, onde todos os dias ha camas de +terra revolvidas e cruzes novas;--a frieza dos brancos e solemnes livros +de marmore, das flores, ali casuaes e tranzidas, dos esguios arvoredos, +como de todo um pequeno mundo de symbolos;--uma lage-obstaculo em cada +campa, e, como a fechar mais os que jazem, gradis, linhas de cimento +juntando as cantarias, mais um complicado e diabolico systema de +cremalheiras e cadeados! + +Eis o cemiterio de Cuba, cujo desenho é, de facto, o de todas as grandes +ou pequenas cidades de mortos, dos quaes os vivos se vão desquitando, +mais ainda do que cobrindo-os daquelles obstaculos,--quasi esquecendo-os +para ali, onde perpetuamente terão de ficar, afastados de tudo, onde +jámais chegará o proprio carinho selvagem dos temporaes, sós, entre os +silencios negros da sua noite immensa, velados dos elementos, a par das +esculpturas somnambulas dos tumulos, tambem de si indifferentes, +abstractas, e, como por acaso, ali dispostas, ainda por erguerem +(paredes-meias dos cinerarios) o formal e glacido tributo da sua agonia +fria e lapidar! + +Ora, isto me ia eu recordando, ao seguir, mais o coveiro, pelo cemiterio +de Cuba, do mesmo passo que, sem querer, lembrava certas passagens da +Obra de Fialho, que, de momento, quasi me falavam, e, eu sentia, como +que batidas de vento, ao meu ouvido... + +Como no caso das grandes paginas de presagio da sua +monographia--_Manuel_, começára de anoitecer, e os sinos tocavam! + +Ainda mais, lembro-me de ouvir, ao longe, nitidamente, +distinctamente, representando-se-me como um relampago vermelho á meia +treva, o uivar daquelle cão, que, quando, em taes paginas, o Artista se +dá a dialogar com o Coveiro a probabilidade de Manuel ser enterrado +vivo, como toda a sua afflicção pela farça material dos tumulos--como +que o chama á realidade desse mundo que fica para alem do proprio +pezadelo hystero-epiletico da sua tortura de superemotivo, e lhe queda, +a dobrar, na alma, o timbre vivo e sinistro da hora horrivel que já não +conta, e, eu, de momento senti ali, perto delle, bater tragicamente, +lugubremente, como um echo do seu sentido, ainda doloroso, embora já +distante, vago, erradio... + +Porque, para mim, esse typo de _hysterico_ e _fragmentado_, +_contradictorio_ e _presciente_ que figurou no _Manuel_, é +fundamentalmente elle proprio, desdobrando-se por escrever a sua +mesma «duplicidade cerebral» e gritar contra a desgraça do _outro_, «o +que morrera», e agora, eu sabia ali, sem que ao menos pudesse precisar +onde! + +Onde? + +Eis o que o coveiro, depois que o instei, se deu a contar-me, moendo as +palavras, que, aliaz, lhe sahiam cavas e aos gorgolões, como se me +falasse ainda da adega á qual, minutos antes, o fôra arrancar. + +Afinal pouco tem que ver a futura Casaforte dos ossos de Fialho,--no +começo da primeira rua do cemiterio, e a poucos passos do portão, como +do logar em que nos encontravamos. + +Imagine-se uma especie de cofre em marmore branco, sem arestas, +escrupulosamente polido e goivado á volta, quasi sem ornatos, uma porta +grossa cruzada da fecharia,--todo elle de um desenho facil, e, por sobre +a cupula, ainda de pedra, dois gatos de bronze, dormindo abraçados o +velho somno dos symbolos! Eis tudo... + +Este, repetimos, o mausoleu que lhe servirá em breve. + +Porque provisoriamente, e a avaliar das informações que apontei, o +Escriptor, descança ainda, de momento, ao fim do cemiterio, perto da +ultima parede, num pedaço de chão mal tijolado e de emprestimo, em +sepultura rasa... + + + + +II + +A INDOLE DE FIALHO + + +Não é facil escrever de momento, e directamente, ácerca dum artista como +Fialho, tal o occultismo das suas predilecções, como, mais propriamente, +da obra que deixou, e tomaremos ainda como indice da sua singularissima +neurilidade. + +Assim, começaremos por esclarecer que Fialho d'Almeida era filho de um +homem da Beira e de uma mulher do Alemtejo, por melhor caracterizar +algumas das suas extranhezas e contrastes, como o seu conflicto em +materia de assumptos e realizações artisticas, que, antes de tudo, +parecia advir-lhe do ser encontro de duas raças. + +Da mesma maneira que cumpre ter presente a influencia da provincia +em que nasceu, e que, na infancia, a edade impressionavel por +excellencia, lhe deu aquelle amor pela tinta mais propria, ou seja a que +os seus olhos receberam directamente da paizagem; como a sua grande +intimidade com a natureza, com quem aprendeu a exprimir-se, e que tão +fundamente foi penetrada pelo seu genio. + +De facto, nenhum elemento mais cioso da transmissão do caracter do que a +terra. O que Fialho prova, á saciedade, a par dos nossos maiores +impressionistas. + +Desenvolvemos noutro logar[1] a indole da zona mais meridional +do Alemtejo, onde se incluem Cuba e a pequena villa em que nasceu Fialho. + +Resulta daquelle estudo um campo ethnico á parte na geographia intima +de Portugal região embaraçada da herança arabe, que semelhantemente +se vê na cultura, nos seus barros e azulejos, nas suas casas, como nas +manifestações mais simples da vida vulgar dos seus habitantes. + +Ora Fialho, que ali passou parte da infancia jámais destruirá a +recordação do primeiro espectaculo natural que feriu a sua retina de +colorista, e, depois, pela vida fóra, mais se lhe foi insinuando pela +mesma fatalidade de sangue e nascimento que á sua terra o prendia. É +isto, apesar da herança de tristeza que tambem desta lhe provinha, e a +que se refere, ainda doridamente, annos depois da sua estada ali, no +capitulo autobiographico do _Á Esquina_. + +De facto, é sempre presente, na sua obra, aquelle primeiro campo de +observações. Ahi ha a ver a intriga das passagens mais violentas das +suas narrativas, as tintas das suas combinações de painelista, os +dialogos e personagens brutaes da sua tragedia mais popular; e, para +alem, ainda, da paizagem, como das figuras, a razão culminante do seu +genio de origem, em que migra o sonho luxurioso, mais que dum artista e +dum povo,--duma civilização perdida! + +Importa insistir: a herança arabe se não vingou entre nós, como em +Hespanha, a ponto de que, ainda hoje, quasi tudo o que tem de grande se +não foi della, nella se filia--nem por isso deixou de influir no genio +de Portugal, onde logrou a sua invasão pelo Sul, e, onde, repetimos, se +conserva evidente. + +É ali viva, manifesta em todas as coisas, e, sobretudo, nos homens, a +quem as mesmas condições da terra naturalmente defenderam das fusões com +outras raças. + +Ora, assentes estes factos, e tendo presente os ensinamentos que do seu +conhecimento derivam, chegamos logicamente a entender melhor o caso, +na apparencia extranho, das manifestações, por vezes distantes e tão +intensivamente artisticas do Sul, e mais, em especial, de certos +capitulos da obra de Fialho d'Almeida. + +Em verdade, eu não encontro para explicar-me o exuberante exquisito de +algumas paginas do Artista, mais do que o segredo das colorações, como +dos labyrinthicos e caprichosos desenhos de certos e admiraveis +exemplares da civilização arabe na Peninsula, dentre os quaes me veem á +lembrança, quasi sem o querer, os velhos monumentos da Andaluzia, +tambem, porventura, da melhor intimidade de Fialho, e que o deviam ser +de todos os artistas, muito particularmente dos de Portugal e Hespanha. + +E, de facto, qual o artista, verdadeiramente curioso de civilizações +mortas, que não percorreu ainda Alhambra,--a Alhambra monumental dos +grandes Paços de Luz, redosos e filigranados, cujos marchetes e esmaltes +se nos defrontam, mais do que como obra paciente e custosissima, quasi +dolorosos á nossa admiração, pela mesma regularidade do seu maravilhoso, +tão distantemente extranho! + +Pois paga a pena a sua visita, sobretudo á luz de certas horas, quando, +pelo estio, a tarde transfigura os monumentos, quasi os move!--e +Alhambra inteira exulta á claridade frouxa dos seus crepusculos. + +Como, de egual sorte, surprehende o desenho interior dos phantasticos +paços, ainda pelo que abrigam de inaudito, no espectaculo das suas +casas-retabulos, aliaz tão intimamente caprichosas, como se fossem +ampliações das covas naturaes que, no Monte Sacro, lhes são fronteiras. + +É que ninguem como o povo arabe teve o segredo dos recantos, soube +estudar e praticar as sombras, quasi medir a penumbra das arcarias; da +mesma forma que tambem ninguem mais, como elle, conseguiu dominar pontos +de vista, aperceber horizontes, toda a natureza, moldurá-la dos seus +monumentos, por vezes verdadeiros filtros de luz,--viver, sentir a côr, +e, o que é mais, orchestrá-la na sua obra, de uma fina grandeza sem egual. + +Dahi tambem o não se saber que mais admirar dos encantados paços, bem de +molde a servirem a luxuria religiosa de tão lendario povo, se o +labyrinthico desenho das suas paredes, como dos seus tectos e azulejos, +se o mesmo diabolismo e imaginativa do seu alçado! + + +Ora, derivando dos monumentos attribuidos ao genio arabe, á razão de +sangue que flue na gente do sul da Peninsula, chegamos facilmente á +averiguação do grande valor da tutela semita no nosso movimento +tradicional, mercê daquella herança--tutela sobremaneira documentada, no +mais do nosso lyrismo, como, em regra, em toda a nossa obra artistica. + +E, assim, nos encontramos, muito naturalmente com o caso de Fialho +d'Almeida. + +De facto, dentre os grandes plasticos da Peninsula, quem mais que o +grande Artista conseguiu ainda praticar um semelhante ou equivalente +embrenhado de esmaltes e de linhas, o segredo da luz e da côr, identica +riqueza no processo de exprimir Arte, toda aquella ancia de vida +luxuriosa que ergue o mais da obra arabe, e, em que domina sempre, ao +lado do culto do individuo, considerado na sua religiosidade como no seu +luxo,--a preoccupação alacre do supremo culto da Natureza! + +E, entretanto, não foi, ainda, sob um tal ponto de vista que +principalmente nos demos a estuda-lo. + +A verdade é que fiamos pouco do rigorismo dos methodos geralmente +considerados como mais logicos, por mais naturalistas, os que tudo +explicam pela razão exclusiva da procedencia e do meio--quando se trata +de comprehender emotivos da estatura de Fialho, cuja obra precisa, a +nosso entender, principalmente ser considerada sem opinião previa, ou +seja a toda a luz dos seus livros, e onde ha, a par das admiraveis +fatalidades das suas taras de artista do Sul, o conhecimento, os +commentarios, como a presença ou suggestões de tudo o que nesse rodopio +de Arte, que foi a segunda metade do outro seculo, podia considerar-se +de mais interessante ou notavel. + +Mas caminhemos vagarosamente. Em primeiro logar, convem ter presente +que ha nos recursos de Fialho d'Almeida um grande numero de facetas e a +tal ponto imprevistas e admiraveis, que, a elle proprio, o offuscaram, +perturbando-o, e impedindo até que realizasse o que para todo o auctor +deve ser o primeiro fim--a obra de conjuncto, que, exactamente, resulta +do ajustamento ou systematização de todo o seu trabalho, de molde a +levantar a figura do Artista se elle é um temperamento, ou o objectivo +da sua Arte, quando elle tenha de desapparecer, em sacrificio á sua mais +propria missão. + +O tempo é ainda um material ao dispor dos artistas, embora, quanto a +nós, o peior dos materiaes. + +Fialho devotou-se-lhe, talvez, excessivamente. Pois que tinha auscultado +a miseria do povo, no seu instincto, por desventura apurado nos +primeiros annos da sua vida de acaso, não raro deixou falar o +coração, para alem da sua mesma canseira de Artista. + +Quantas vezes elle, que foi um espirito alto e pairante, se deu a +desmedir o grito dos que a propria miseria, confinada da cobardia +congenita das desgraças populares, havia tornado quasi aphonos, e que +ainda, por uma razão de indole, eternizou vivo e plebeu,--tal como lhe +sahiu, ao primeiro golpe, nas paginas formidaveis dos _Gatos_! + +Foi isto um delicto de Arte, seria um bem? + +Foi um facto. E este facto vale o melhor da sua obra de pamphletario +que, antes de qualquer outra, convem ter presente. + +Ora, neste rumo de trabalhos, seguiu elle, naturalmente, o exemplo de +todos os pamphletarios;--isto é, deu-se a compor paginas do material +commum, o que vale dizer de aspirações e casos, não raro menos +claros de que vulgares! + +Dahi partiu, e logicamente foi até ao fim: a servir a propria plebe +politica--a peior das plebes! + +Houve tempo em que não socegou. Numa canseira pertinaz, diaria, quasi +tomou por seu dever perseguir a vida constituida, onde quer que ella +surgisse ou se se lhe afigurasse. + +Ora, este foi, tambem, porventura, o seu mal, assente como está que, em +materia de vida conjuncta, peior do que qualquer instituição crapulosa +ou gasta, é a sua substituição á doida, á sorte, como infelizmente, +entre nós, elle a ajudou a preparar! + + +Acabo de percorrer os _Gatos_, onde reuniu o melhor da sua Arte de +pamphletario. + +Do primeiro ao ultimo opusculo, que serie de estudos, de commentarios, +de almas e acontecimentos tratados pelo seu riso! + +Tudo o que elle tinha de imprevisto, como tudo o que da inferioridade de +uns poude reunir e editar para servir a inferioridade dos outros, está +ali, nos seis volumes que hoje formam a Obra, e ficará como documento +dos seus violentos e extremadissimos recursos. + +Pois que foi a civilização quem categorisou o riso, transfundindo-o, +filtrando-o até á ironia, uma das grandes forças da demolição +moderna,--importa ainda considerar o riso de Fialho. + +A ironia de Fialho, se assim podemos escrever daquella sua indole--era +ainda, como não podia deixar de ser, um caso mais do seu temperamento de +violento, aggravado do tempo e meio em que, por acaso, reagiu. + +Assim, nada tem de commum, por exemplo, com Eça e Camillo, por falar dos +humoristas mais discutidos da lida contemporanea. + +Camillo era a graça a flux, com os seus laivos de razão intima, muito +para alem dos castellos politico-litterarios de momento, golfando risos +ao acaso da sua natural interpretação sinistra de Humanidade. + +Eça deu-se scepticamente a lapidar costumes e figuras infimas, no geral +de uma banalidade exhaustiva, á conta do prazer do seu riso frio, que +logo se fez moda, como tudo o que nos vinha de fóra, por seu intermedio. + +É ver o successo das _Cartas de Fradique Mendes_, «um Acacio a serio», +informa Fialho, e cuja prosa relata o apontoado symetrico das notas dum +civilizado, ali paciente e cuidadosamente estylizadas pelo seu sentido +de mundano. + + [IMAGEM: Fotografia de Fialho d'Almeida.] + +Ora, nada de premeditado encontramos em Fialho, e nomeadamente nas +notações dos Gatos, por cujo entrecho natural é que comecemos o exame á +sua obra. + +A razão desta preferencia incide, é claro, na mesma indole dos folhetos +que reuniu debaixo daquelle titulo, e, onde, de facto, encontramos, a +despeito dos seus propositos, o Fialho definitivo, quer sob o ponto de +vista do estylo e inauditismo de Arte, quer ainda pela acção demolidora +que tanto foi de seu empenho e naquella obra rajou desesperadamente, a +paginas plenas, como em nenhum outro dos seus trabalhos. + + [1] Terras do Sul. + + + + +III + +O PAMPHLETARIO + + +Abre os _Gatos_ o aviso-cartaz de que o auctor se propõe tratar +criticamente os homens e os acontecimentos, explicando, +humoristicamente, o nome da publicação. + +O primeiro folheto da serie tem a data de Agosto de 1889, e inaugura por +um capitulo, pleno de paixão artistica, com seus esmaltes de +irreverencia, e a que elle chamou:--_Bric-á-bracomania, como cultura e +como doença._ + +No desenvolvimento da curiosa these encontra-se naturalmente com o caso +do testamento de D. Fernando. Este caso foi um dos mais antipathicos e +escandalosos do tempo, pois que accendeu nos Paços, com o odio da +rainha pela condessa d'Edla, uma questão de familia burgueza, em que se +discutiu tudo, desde a imaginada loucura lucida do principe, ao tempo +das suas ultimas disposições, até ao valor e direito dos _bibelots_ e +quadros do seu espolio! + +Veio a questão para a rua, e, ainda dessa vez, rua e Paço se deram as +mãos, na roda de insultos dirigidos á viuva de D. Fernando, sem attenção +pela memoria deste principe, cuja probidade foi tratada sem sombra, não +diremos já de justiça, mas de delicadeza. + +Em nome dos republicanos dirigia, no _Seculo_, a campanha Rodrigues de +Freitas, valha a verdade, serenamente. Por parte do Paço, e vestindo, +mais uma vez, a innocente pelle do povo--. escrevia Emygdio Navarro, +tratando cynicamente D. Fernando, em quem diagnosticara dois scirrhos--o +da cara, que o levara á morte, e o do coração, que elle, Emygdio +Navarro, se propunha sarjar publicamente, fazendo-lhe a historia na +praça das _Novidades_, e isto, affirmava, por dignificar a memoria do Rei! + +Fialho que, de facto, era um delicado, e, por accidente, se fizera +politico, e, bem por certo, lhe repugnava toda aquella griteira, tratou +tambem do caso moderadamente, chegando a lembrar até a arbitragem para +resolver os direitos do espolio controvertido. + +Ainda, por egual forma, trata a figura de D. Fernando, cujo perfil +surprehende, sobretudo, á luz da sua aventura de amoroso e homem de Arte. + +Assim visto, não podia elle deixar de lhe ser sympathico, e dahi tambem +o seu elogio, mal disfarçado, como as attitudes em que o focou, e donde +mal sobresahe o vulto, ao tempo tão acintosamente discutido, do Rei! + +Quer dizer, em verdade, é ali presente a homenagem do Artista ao +Artista, para lá de todo o convencionalismo critico, como de toda a +exigencia publica. + + +Começa o segundo opusculo por um capitulo dedicado ao violoncellista +Sergio, e que, neste proposito a que nos obrigamos, de mero indiciador +das suas passagens de mais interesse e que melhor o mostram--mal podemos +tratar condignamente. + +Registe-se, no entretanto, o extremado capitulo, como um dos mais +notaveis da sua obra, e, alem de tudo, a forma como elle, sempre tão +presente nos seus livros, sabia, embora excepcionalmente, apagar-se, +quando as circumstancias lhe conferiam Arte que um tal sacrificio valesse. + +É o caso do violoncellista. Para no-lo descrever, Fialho quasi se apaga +no café-concerto da Mouraria, em que o apresenta, e, onde, de facto, +elle costumava ir, ás noites, transfigurando-o da sua Arte, cuja +referencia é, ainda, como que a sombra resoante da alma tão +extranhamente regressiva do Musico. + + +Paginas adiante, é tambem com paixão e valor equivalentes que, a +proposito das exequias de D. Luiz, trata a figura da Rainha. + +D. Maria Pia resalta do seu exame como uma resurreição dos grandes +dramas reaes de Shakespeare, ou seja como um verdadeiro prodigio de +alma, genialmente estatuada da sua tristeza de soberana-viuva, +equilibrando-se no orgulho profissional da sua creação de princeza de +raça, acaso abordada ás praias portuguezas. + +Inegualavelmente soberba, de facto, a sua maneira de tratar a +lendaria Rainha que surprehende nos funeraes do Rei como um alabastro +solemne! + +Assim a tinha sonhado, tanto como o Paço, a propria Rua que, entretanto, +lhe perdoava tudo, ainda os mais custosos dispendios, tomando-a, mais do +que como Rainha--como uma figura de luxo, especie de marmore vivo, por +boa fatalidade, a soldo no Museu Real das Necessidades. + +Tambem, por seu lado, ella cumpria escrupulosamente o papel a que, por +sua mesma prosapia, se compromettera (fôra cheia de protocolo a sua +escriptura de esponsaes)--e dahi o vê-la toda a gente mais do que +cerimoniosa, theatral, quasi memoria, seguindo sempre, de par da sua +lenda, de que ninguem, nem ainda os mais ousados, tentaram algum dia +separá-la! + +Quando endoideceu (a natureza é logica; que outra doença devia +segui-la?) logo os jornaes vieram contar as parabolas da sua +loucura, nos Paços de Cintra; corriam historias de _toilettes_ que +jámais usara; e, por fim, enterneceu a sua retirada de Portugal, quando, +na Ericeira partiu, tão magestosa e alheadamente, como annos antes, +tinha chegado... + +A differença dos dois espectaculos, estava, unicamente, no tempo, que +daquelle passo final da sua vida tinha urdido mais uma tragedia! + +Chegara solemnissima, recebida por toda a ordem de festas e alegrias +officiaes; retirou, á opportunidade da primeira revolução, como uma +rainha usada, que já não serve, e segue, á pressa, devolvida, ao paiz de +origem. + + +Despedimo-nos com pezar destas paginas, que tão fundamente, por si, +bastariam a vincar a alma do Artista, acaso nellas mal casada á sua +preoccupação de pamphletario,--para derivar a outras que, na sua obra, +dão o contraste da violencia, talvez, mais inopportuna e abrupta, que +ainda instigou critica portugueza! + +Reportamo-nos ao caso grosseiro das suas diatribes contra Guilherme de +Azevedo que justiçou depois de morto, e declara analysar sobre uma pedra +de autopsia, ainda sem piedade por si, como pelos leitores, e quando +aquelle, já longe, havia ganho, ha muito, o esquecimento publico! + +Na sua quasi diabolica sanha de deprimir vê-o primeiramente no seu logar +de escrivão de fazenda em Santarem, onde o surprehende a passear os seus +aleijões, de par das suas canseiras de lyrico e apaixonado ridiculo. + +Depois examina-lhe, publicamente, os defeitos, as suas fraquezas e +purgueiras de estrumoso, como a sua obra, na parte mais rebuscada, +indo até pracear-lhe os papeis unhados pela lida do chronista! + +Por fim, como que convida o publico a assistir-lhe á morte, em Pariz, +numa casa de saude! + +E, para o caso de que o publico falte, redige elle mesmo a informação da +agonia do Artista, passada, esclarece, entre sujidades! + +Ora eu não sei de outra hora tão extranhamente infeliz para um escriptor! + + +Do mais dos artistas contemporaneos, e, especialmente, dos pintores, é +sabido o que escreveu de desalentador para elles que já, contra si, +tinham tudo:--a rua, o mundo politico, o meio pobre em que trabalhavam, +o paiz de origem, e toda a serie de prejuizos que, para mais, Fialho +conhecia intimamente como ninguem! + +Comtudo, nem Columbano escapou a esta sua impertinencia, por vezes de +uma irritação doente, quasi atrabiliaria e descomposta, á conta da sua +faina de exigir do mundo plastico, mais do que representações da +natureza, verdadeiras telas vivas, porventura, a capricho, illuminadas +das suas mesmas composições escriptas. + +Dahi a sua injustiça para com o grande pintor que, no seu juizo facil da +primeira hora, qualificou de mero artista hesitante, como que estagnado, +«perdido, na monotonia cadaverica dos seus quadros de imitação!» + +E, de identica maneira, tratava os outros. + +Não lhe era facil fugir á fatalidade do seu genio, sempre em duvida, e +que mascarava de desdens; para mais acossado pela circumstancia de +viver, o mais do tempo, em Lisboa, onde os Artistas teem _ateliers_ +paredes-meias, e a Arte anda sempre ao de cima das sympathias duma tal +Cidade, ainda, como nenhuma outra, de entre as nossas, aberta a +intimidades, mettediça, e pretenciosamente futil! + +Dahi tambem a sua maneira, quasi mesquinha, de tratar a Politica e, em +especial, os politicos. + +A Carlos Lobo d'Avila, por exemplo, processa-o como degenerado. + +Lopo Vaz é, para elle, um mero «preboste regio». A Barjona toma-o como +um conselheiro de negocios, anecdotico e sujo. Hintze é uma especie de +empresario de Portugal--feitoria-ingleza, figura dependente e quasi +irresponsavel ás ordens da dynastia, e assim os outros. + +A paixão do pamphletario céga-o a qualquer vislumbre de justiça para +com politicos e assim tambem para com o Rei, que, ainda á maneira +popular, considerava como figura enkystada no corpo governativo da +Nacionalidade. + +Dahi tambem o atacá-lo systematicamente, afeiando-o de todos os +delictos, em que não deixou de figurar a pecha das mais ruins +ingratidões, as já classicas ingratidões dos reis! + +Quer dizer, consciente ou inconscientemente, foi, como todos os +pamphletarios, um Orpheu da Rua, pelo menos até se sentir sacudido por +ella. + +E fossem lá insinuar ao seu aferro pelas chamadas reivindicações +democraticas, que atraz da ingratidão dos reis, está sempre a ingratidão +dos povos; que a França, por exemplo, politicamente radical, no curso de +dezenas de annos, conserva no _Père Lachaise_ a ossada de Balzac, ao +passo que carreou, ha muito, para o Pantheon Carnot e outros menores! + +De que lhe serviria, de momento, o aviso? O que sempre enche a obra do +pamphletario é a philosophia facil do odio ao Constituido, onde quer que +elle se encontre. Emquanto ha reis, a culpa de tudo o que existe de mau, +ou por tal passa, é dos reis; como é dos padres emquanto ha padres; dos +validos emquanto ha validos; em ultimo logar, dos parlamentos; de tudo, +emfim, o que o povo, em nome dos seus direitos, nunca até hoje +definidos, organiza e desorganiza, menos a seu talante, do que ao acaso +de uma esperança ou das gerações por apparecer! + +E, comtudo, não falta nunca quem se dê a orchestrar a sua voz, por mais +vaga, ou dissonante que ella seja. + +É preciso que o escriptor tenha, mais do que talento, uma sensibilidade +propria e escrupulosamente cerrada ao gosto publico, melhor ainda, +religiosamente isenta, para que possa afastar, com desprezo, o applauso +geral, repulsando, para longe, o titulo de dirigente, ou seja o de +encantador das multidões, pelo qual, principalmente, o maior numero dos +apostolos se bate. + +E, em todo o caso, como aquella isenção é rara! + +Ainda os de melhor fé e que se julgam de posse duma missão necessaria, +raro chegam, por si, a conhecer do erro de excesso, em materia de +reverencia e culto pelo publico! + +O que, a miudo, se dá, é a inutilidade da sua faina, e isto pelo mesmo +uso daquelle prestigio, ainda sujeito, como tudo, á acção do tempo que +sómente, não consome as obras de sentido definitivo. + +Este foi tambem o caso de Fialho que durante annos destruiu, sem +treguas, confundindo, propositadamente, os principios e os homens, +batendo, de toda a maneira, um systema que, sobretudo, foi erro não +termos reformado dentro das nossas melhores tradições; e que elle, +Fialho, como os demais contemporaneos escriptores politicos, reputaram +fóra de toda a razão nacional. + +É claro que deste erro se confessou mais tarde repeso--ou tenha sido +quando as suas palavras offereciam menor echo--ao ver que, para os +logares mais responsaveis, quando o antigo regime cahiu, o paiz, +democratizado á força, não encontrou, de momento, para substituir o +corpo official expulso, mais do que gente ousada, que mental e +moralmente valia menos do que a anterior, que de si já estava muito +abaixo da geração que a havia antecedido, e cuja herança nem sequer +soubera defender! + +É de justiça lembrar que tambem Fialho foi dos primeiros a corrigir os +impetos dos pretendentes que, de todos os lados, surgiram com a sua +conta de serviços; embora o facto valha unicamente a justificar a sua +boa fé. + +Era tarde. Á sombra das suas paginas, como das de Ramalho, Junqueiro, +Eça e Bordallo, por lembrar os maiores, se tinham elles organizado de +vez, entretanto que a alvorada do regime abria logicamente por um banquete! + +Para mais, quasi todos os demolidores, companheiros de Fialho, tinham +desapparecido. Ao acaso do tempo ficara, unicamente, Ramalho--velho, +surdo a louvores como a insultos, fechado na sua cella de valetudinario, +em Lisboa, de facto uma especie de santo de nicho do _bairro alto_, a +quem já, a bem dizer, ninguem recorria, de cujos milagres ninguem mais +queria saber... + +Bordallo morrera, providencialmente, antes do bôdo. + +Alem de que, quem se atreveria a continuar-lhe a obra? Onde o artista da +sua coragem, á altura de um jornal nos moldes do _Antonio Maria_? Onde o +redactor graphico do seu estylo, e, mais ainda, onde as +personalidades-motivos a enchê-lo? + +Como quer que seja, Fialho, leal ao que, de começo, se impuzera, tentou +ainda o ultimo esforço, contra o muito do que succedera e lhe repugnava +tanto como á consciencia, á sua sensibilidade, acuradissima, de Artista. + +Era tarde, repetimos. Já ninguem o ouvia, demais que elle proprio tinha +perdido o vigor das suas primeiras investidas! + + +E, entretanto, o Artista crescera ainda, depois das novas provações, ou +antes tinha-se accrescentado daquella razão de amargura que a vida +empresta sempre, cedo ou tarde, aos temperamentos da sua +impressionabilidade, e que nelle deu a transfiguração notavel de um +ousio artistico sem egual, e de que é, sobretudo, exemplo essa obra +trasbordante da sua derradeira colheita--«_Barbear e Pentear_». + + +Este livro, sublinhado pela explicação amarga--_Jornal dum vagabundo_, +que aliaz emprega noutras obras, attinge, effectivamente, o maximo da +sua perfeição exquisita. + +É ali que verdadeiramente elle trata a mulher-fada, tão de sua +predilecção, e de quem se dá a referir a _toilete_, á luz dos móres +recursos, escrevendo da sua razão de vestir, como arte maxima; das joias +que redundam do seu imaginar em preciosos esmaltes vivos, especie de +insectos inertes, quasi pedras mornas por não arrepiarem a carne-seda +das animadas estatuas que são chamadas a guarnecer;--de tudo, emfim, o +que do abraço caprichoso da arte e da natureza elle poude aventurar de +imprevisto na ideação dum espectaculo para embriagar sensibilidades! + +E, de facto, chega ás maiores extranhezas de gosto na inventiva daquelle +livro, e especialmente no seu capitulo:--_Juizo do Anno_, quer pelo +turbilhão de côr que delle entorna, quer, sobretudo, pelo seu empenho de +phantasia e _nuance_ ali expressos, como ainda pela circumstancia de +considerar a mulher o que, porventura, virá um dia a ser, um caso de +perfeição sómente, quando a natureza mais accordada com o homem, sahir +de sua attitude esphingica, e isto ainda por viver com elle uma +futura vida luxuriosa, sem medos e sem pecados... + + +As _Pasquinadas_ e o _Á Esquina_ subordinam-se á mesma rubrica:--_Jornal +dum vagabundo._ + +Nesta ultima obra ha de tudo:--paginas notaveis e criticas de menos folgo. + +São do melhor interesse as que abrem o livro e +titulou:--_Autobiographia_; e devem ter-se como supremas aquellas em que +nos descreve os _Ceifeiros_, como as que referem as suas impressões da +Atalaya e Exposição-Bordallo. + +Tambem este livro inclue umas notas a que deu a epigraphe:--_Problema +taurino_, e que, já agora, glosaremos, embora de fugida. + +Neste capitulo lança o Escriptor á balha a idéa do toureio a serio nas +praças portuguezas, o que vale informar:--a opinião da morte do +touro, com os demais episodios sangrentos dos curros hespanhoes. + +Ora a proposta, se foi sincera, destoa, a nosso ver, da sagacidade do +critico, acaso perturbada pela paixão do aficionado e homem do sul, +paredes-meias da Hespanha e seus costumes. + +O portuguez habituou-se facilmente á morte pela associação politica; +aceita, como de direito, o assassinato por adulterio, e toda a ordem de +morte por um delicto sectarista ou passional; o que elle jámais +decretará é a morte por uma razão de Arte, e isto pelo mesmo facto de +não comprehender outro sacrificio que não seja para sagrar ou colher +interesse. + +Ora, para elle, o toureio, ainda como exposição de vida e educação de +raça, não tem interesse. + +As _Pasquinadas_ reunem uma serie de artigos de impressão +rapida--instantaneos dos acontecimentos e pessoas de occasião. + +Entretanto, como se tenha dado o caso de ter sido obrigado a tratar de +figuras da categoria de Camillo e Sarah Bernhardt, este livro inclue, a +seu proposito, paginas que, bem por certo, ficarão ainda como documentos +da sua desproporcionada maneira de considerar os grandes artistas! + +Insurgia-se elle, a espaços, contra as lettras, friamente rigorosas, dos +modelos mais classicos e academicos. + +E, de facto, importava-lhe sahir não só das velhas disposições, como +ainda dos recursos em uso, por inteiro alheios ao genio, mais que +revolucionario, desmedido, daquelles dois vultos, que, por isso mesmo, +tratou, não só fóra de todos os moldes, mas, mais ainda, fóra do tempo. + +A _Lisboa Galante_, outro livro de voga, comprehende, em geral, +episodios e aspectos de cidade, por entre apontamentos de casos minimos, +por communs, a todos os logares de accumulação. + +Entretanto, ainda ahi Fialho incluiu phantasias e situações admiraveis, +haja em vista o conto--_Amor de velhos_; e, sobretudo, a _Chavena da +China_, porcellanas da sua maior delicadeza e inventiva. + + +Passaremos á pressa sobre o livro--_Saibam quantos..._ não só porque +literariamente o não accrescenta, como pela circumstancia de nelle ter +reunido cartas e artigos politicos que valem, meramente, como actos de +sua contrição. + +Archivemos, no emtanto, do capitulo--_A morte do Rei_, o seu leal +proposito de homenagem a D. Carlos, a cujo caracter, por fim, +concede as mais complexas facetas, e a impossibilidade de falar destas +em paginas resumidas, como as que, de momento, lhe consagra; e, mais +ainda, como fecho dellas, o seguinte:--«Pobre D. Carlos! quando se pensa +que afinal era mais intelligente e teve talvez virtudes superiores ás +dos seus adversarios, e por não dizer ás dos seus cumplices...» + +Eis, finalmente, palavras suas, ácerca de D. Carlos, alinhadas, talvez, +sobre a impressão da morte brutal do rei, á hora, quem sabe? em que o +seu cadaver, abandonado de todos, presidente do Conselho incluso, lhe +dava a lembrar a calumnia, tanta vez pelo pamphletario, contra elle, +escripta, de primeiro responsavel da desordem a que o paiz descera! + +É que talvez já ao tempo elle bem claramente visse que aquelle que tão +violentamente responsabilizara como primeiro culpado do desastre a +que a nacionalidade havia chegado, era afinal um rei que consumira um +reinado a procurar Alguem, no fundo, bem da alma, elle proprio, com a +Rua, que era, de facto, quem mandava, sem que, ao menos, governasse, +como ao presente, e que ora o applaudia, mais á rainha, ora o insultava, +até que se decretou a montaria com que, por fim, deu fecho á Realeza. + + +Mas, deixemos o rumo de taes considerações que, indevidamente, é de uso +considerar politicas, e que, ao acaso, nos occorreram, a proposito +dalgumas paginas do _Saibam quantos..._ ultimo passo na vida de Fialho, +e ainda á conta da sua velha lida de pamphletario. + +Finalmente, pois que, por esta obra, chegamos ao termo da sua jornada de +agitador, resta-nos, ao presente, e logicamente, insistir no mais da +sua melhor canseira--isto a proposito, não só dalguns trechos já +marcados, como ainda doutros, onde mais intencionalmente se deu a urdir +obra de Arte pela Arte. + +Assim visto, este será, em nosso entender, o Fialho definitivo, cujo +elogio desde já promettemos levar a cabo quasi sem rasuras criticas, ou +seja sem restricções, no capitulo a seguir... + + + + +IV + +O ARTISTA + +FIGURAS NOTAVEIS DA SUA GALERIA. INTUITOS E SUPERIORES FATALIDADES DO +SEU TEMPERAMENTO. UMA GRANDE E ADMIRAVEL REVOLUÇÃO ESTHETICA. A SUA OBRA. + + [IMAGEM: Fotografia de Fialho d'Almeida.] + + +Nenhum outro documento mais interessante, se bem que mais difficil de +ler, do que o primeiro livro dum Artista. + +Toda a obra de Arte tem a sua infancia que importa ver na prova-estreia +do auctor, atravez dos seus defeitos, como das suas virtudes. + +Ora essa difficuldade eu senti ao ler os _Contos_ de Fialho, quer pela +exuberancia de vida episodica de que esta obra se enreda, quer pelo +tumulto dos recursos que já ali o auctor revela. + +Exemplificando. + +Abre elle este seu primeiro livro por uma historia, em parte de sua +observação, e em parte de phantasia,--_A Ruiva._ + +Pela intriga deste seu trabalho, vê-se que elle não chegou a realizar +uma novella, no rigor geralmente attribuido ás composições deste nome. +Bem pelo contrario, o que conseguiu foi uma serie de biographias, ou, +mais propriamente, de exquisitas telas. + +Fialho, muito do Sul, é, como já vimos, um pintor; ou melhor, um +painelista, no geito dos pintores da Hespanha meridional, logrando, pela +penna, conforme o seu poder de descriptivo, dar a côr, tonalidades e +almas tão distantes e irreaes e, no entretanto, tão signaladamente +intimas e perfeitas, como só as encontramos nas prodigiosas collecções +dalguns auctores da Andaluzia,--isto a averiguar da impressão das suas +manchas, como das suas madonas e dos seus aleijados, ou seja de quasi +toda a sua galeria de excelsas e de sinistros! + +Assim, a _Ruiva_, principal figura do conto em analyse, é uma especie de +hyena de amor, transportando-se, quando os guardas do cemiterio saem, á +casa do deposito, onde entra para escolher cadaveres! + +É pela calma mysteriosa e calada que elle descreve a necrophila +Carolina, misto de miseravel e viciosa, tacteando os mortos +adolescentes, quasi possuindo-os. + +Exquisita figura de virgem, a suave e brutal filha do coveiro, que +Fialho trata com enthusiasmo, quasi carinhosamente, ainda na sua faina +de amante de formas mortas! + +A Marcellina é o typo vulgar da harpia, velha e sabia, que tendo +aprendido da miseria tudo o que de mau ella ensina, volvera a sua +experiencia num capital que lhe ia servindo para viver... + +Para o caso, ella é a alcoveta que vende a _Ruiva_ a um rapazola, o +João, um precoce torpe, typo de bambino operario, official de +marceneiro e fadista, que um momento a possue e quasi logo a abandona. + +É filho dum bebado e duma desgraçada que elle, ainda creança, vae +encontrar, pela ultima vez, na _morgue_, depois que a acabaram os maus +tratos do marido. + +E, tambem, dahi a sua historia, que em si resume a vida natural de todos +os tresnoitados pelos portaes e escadas. + +Por fim, fecha o conto o relato da faina livre de Carolina (a _Ruiva_), +primeiro assalariada numa fabrica, depois pelos quartos andares, +vendendo-se a todos os vicios, até que, roida da tuberculose, chega ao +hospital, donde sáe aos pedaços, como um gesso em cacos! + +O seu enterro descreve-o o Artista no primeiro capitulo, como para +impôr, logo de começo, o conto, de tal arte iniciado, á maneira +romantica, pelo seu episodio mais pio e sinistro. + +É ahi que apparece a figura do coveiro, pae da Ruiva, uma especie de +Antonio Pedro no _Hamlet_, acaso transportado á taberna do _Pescada_, +onde o Contista o apresenta, bebado, a commentar a morte da filha! + + +Eis a noticia-summario do que temos pela estreia de Arte de Fialho, em +1878, ou tenha sido do tempo de quando elle, intencionalmente realista, +com suas tintas de Hoffmann, se deu a iniciar a sua obra por uma figura, +aliaz nada casual--a _Ruiva_, cuja caveira nos aponta, ao fim do livro, +sobre a sua banca de contista-medico, não se sabe bem, se como um +despojo de estudioso, se como um cofre de osso de que antes, por +capricho, se dera a extrahir uma novella... + +Como quer que seja, esta realiza menos o que pretende ser--a biographia +da filha do coveiro--do que a primeira galeria de figuras da sua maneira +extranha de pintar, e onde a _Ruiva_ acaso surge como que sombreada +daquella maceração e tinta de luar que Zurbaran parece ter composto já +da eternidade para espectrar as figuras tão suavemente doentes dos seus +monges! + +E, entretanto, como ali está, naquella simples novella todo o seu +original processo, desde o poderosissimo descriptivo que lhe anima o +melhor da obra, até á sua pintura, ainda narrativa, de costumes; a +hesitação do Artista no papel violento ou declamatorio dos personagens; +a sua maneira dispersa e fragmentaria; o dialogo; a imprecisão de +traços; a preoccupação das grandes telas; a falta de peças no esqueleto +do seu trabalho; a paixão de certas figuras, como de certos logares; +a sua dolorosa e sensual sanha de necrographo, de par dos seus carinhos, +como dos seus sustos pela morte; o monstruoso dos typos, desgarrando, +autónomos, um drama proprio; o sentido da vida no que ella tem de mais +intimo, como no que pode suggerir de mais esparso; a falta de +ajustamento e equilibrio no curso da acção; e, para alem destas +qualidades e defeitos, dos typos, como das situações, o Auctor, +exuberante da sua razão de belleza a esmo, desmedindo, revolucionando a +Arte, por servir a Arte; no seu intimo medroso, e instinctivamente +avesso, se não inimigo de todo o methodo;--e, entretanto, sempre elle, +comsigo mesmo, fazendo valer o defeito pelo que nelle nos dá de grande e +imprevisto; creando das suas desproporções, uma Arte propria; arruando +de graça a cidade amoral dos seus viciosos; enscenando a vida do +verde-amarello da sua biliosa de pamphletario;--e tudo como quem +empresta a sua fatalidade de exotico aos homens e coisas a tratar; e +sempre para alem de todas as convenções, como de todos os moldes +academicos! + + +Particularizemos, ainda um pouco, este seu processo, não tanto por +firmar principios, como por tratar do seu ousio de Artista, ou seja das +suas figuras de imaginação, visto que esta não é, nos emotivos do seu +destino, mero delirio do sentido, mas, pelo contrario, uma força ainda a +avaliar das suas creações. + +Effectivamente, bem errada e mesquinhamente trabalham os que se dão a +encaixar a vida num preceito! + +Pois que esta é, de si, infinita, recurso algum, por minimo, deve +escapar ao seu apercebimento. + +Ora este cuidado tinha Fialho bem affecto da sensibilidade, cuja ancia +de representação, jámais deixou de archivar tudo quanto a vida real ou a +phantazia lhe importavam, embora, ás vezes, á doida,--fosse numa pagina, +ou numa simples linha. + +Assim, naquelle mesmo volume--_(Contos)_, ha um capitulo, _Os dois +Primos_, em que apparece a sombra de Albertina, uma actriz, e que vale +menos pela belleza real da sua figurinha de exigua, que pela sua +presença artificializada de quasi-dahlia--ao acaso cahida num palco de +Lisboa, onde elle, o Artista, a surprehende, á luz da sua _toilette_, á +qual, por fim, de todo, attribue o successo feliz da sua linha de +_cocotte_! + +Este ainda um exemplo do seu occultismo de Arte,--do seu segredo e +poder de imprevisto. + + +Tambem a mesma graça quasi infantil, de tratar a phantasia a que deu o +nome de _Chavena da China_, como todos os seus objectos e figurinhas do +mais delicado relevo, usa elle já no conto--_Os dois patifes_, do mesmo +volume, ao escrever ácerca de dois gatitos, verdadeiras porcellanas +vivas e mexidas, e de cujas correrias elle logrou a deliciosa +tragicomedia do arrasamento duma cidade de cartão, prenda de annos do +pequeno Arthur. + +Lê-se dum folgo a linda historia, como essa outra--_Ninho d'Aguia_, de +que, por egual, o Artista tira o partido, já notavel, do seu engenho de +considerar figuras suaves e innocentes, e em que, tambem, as pobres aves +do conto são tratadas como barros vivos, a que sempre alligou +carinhos que jámais o vimos dispender no capitulo humano da sua Obra. + +E propositadamente nos referimos a estas suas pequeninas obras primas, +menos por feriar-nos da historia magoante dos seus nevroticos--figuras +quasi-anjos, ao lado de mulheres e bambinos quasi-flores--do que por +mostrar as delicadezas da sua Arte, tão sinceramente desegual, quanto, +por vezes, exhaustiva, á conta de certas insistencias e mal escolhidos +episodios. + + +Comtudo, verdadeiramente grande é só mais tarde, quando, muito para alem +daquelle livro, sae a moldar do seu genio adulto, então notavel de +extremos recursos, a vida monstruosa dos grandes e desafortunados typos +do seu fabulario. Reportamo-nos ao tempo da _Madona do Campo Santo_, +do _Anão_, da monographia-_Manuel_ e principalmente dos _Pobres_. + +E, pois que mal poderiamos concluir do seu grande poder de plasticizar +da Imaginação, sem nos referirmos a estas obras, tratemo-las, embora +passageiramente, menos para as ver que para as apontar. + + +O _Manuel_ é, sem contestação, a mais sincera figura da sua galeria de +_Nocturnos_. É um ser que da sua propria alma o Escriptor edita; e, de +si, nos dá como um ex-voto á sua tortura de humano quando, penitente da +propria escravidão da sua Arte, della se entrega a versar o que de mais +inquietante ella tem:--o indefinido da sua universalidade dolorosa e +reveladora. Quer dizer, é ainda menos do que uma obra de Arte, um +espelho doloroso, em que elle se transfigura dos seus medos, como +dos seus sonhos,--dando-se ahi, de facto, como melhor nos não podia +surdir:--no espectaculo da sua figura de receio, ou seja no esgar +caricatural e dramatico da sua afflicção de presciente. + +Mas reconstruamos, tanto quanto possivel, por palavras suas, a sinistra +figura de _Manuel_, ainda por melhor a esclarecer. + +Primeiramente a creança: + +--«Era aos nove annos como uma figurinha de aguarella, fina de carnes, +os cabellos sem pigmento, as unhas longas, a voz avelludada e com +demoras sentimentaes em certas inflexões--amando a solidão e as musicas +plangentes, colleccionando estampas de castellos, terrivel no amor como +no odio, e duma volubilidade tal na phantasia, que era impossivel +prende-lo a uma lição por meia hora, sem elle cortar o assumpto com +extravagancias de mimo e _enfant gaté_.» + +Mais:--«Tinha a feminilidade da igreja, o nervosismo do incenso, paixões +quasi physicas por imagens, sentido este que nunca se lhe apagou de +todo, e que a reclusão de Campolide exasperou a um mysticismo de fazer +inquietações aos proprios padres.» + +Quando já homem, «no typo de algarvio, branco de cera, idealmente puro +como a afilada gravação dum camafeu, a sua belleza tinha transcendencias +extaticas, uma pacificação de tinta lurenta, macerada, esfallecida de +insomnia; e dava a impressão dum destes insexuaes no gosto da Seraphita, +cujo mysterio desorienta,--por terem tudo o que faz sonhar, sublinhado +por tudo o que faz soffrer.» + +Esta a epoca em que o Escriptor melhor fixa o drama de _Manuel_, que já +daquelles retratos, resulta menos uma figura autonoma do que uma imagem +de especial e entranha vocação, especie de seraphim de egreja, dahi +fugido por viver a vida emprestada do Artista que o elegeu. + +Mas sigamos, ainda mais vagarosamente, o graphico doloroso das suas +grandes azas de anjo bohemio... + +_Manuel_ chega a Lisboa quando--diz o Artista--«a bem dizer já ninguem +esperava por elle», isto é, «quando decrescia no Martinho a terrivel +phalange dos revoltados á Byron, e entrava a achar-se um tic pulha nas +attitudes procuradas, nas vozes de chibato, nos olhares revoltos, e mais +artificios de que até ali os homens de lettras se revestiam em publico, +por fugir ao molde burguez da outra gente.» + +Era uma figura «toda nervos, altivo como se viesse de berço real», a +preceito recortado pelo Artista, do seu album intimo,--o que lhe +reproduzia as sombras carinhosas dos «bellos seres de excepção do +seu cyclo, os da extranha lumininosidade interior» que ante a sua +«mysantropia moral» conseguiam impor-se, pela mesma razão do seu +genio,--de que elle via chispar, a par de extravagantes «inauditismos» +«maravilhas minusculas» da mais emotiva Arte. + +Chegado a Lisboa, ei-lo, primeiramente perplexo, o pobre _Manuel_, no +papel de anjo despregado, e, como que por acaso, transferido da Egreja +da sua aldeia ao museu vivo duma cidade tão falha de interesse que nem +sequer tem torpeza propria;--depois vivendo o expediente dos +sem-recursos, longe dos seus, luctando entre o seu pudor de Artista e a +intranquilidade do seu genio atrabiliario e dispersivo. + +Esta inadaptação é a mesma que depois lhe dá a Tragedia--aquella +«_tragedia dum homem de genio obscuro_», que Fialho extrae da sua +caprichosa maneira de reagir, tal como devia sahir-lhe, lavrada de +ironias--como daquella philosophia e tristeza que enchem a obra a que o +Artista dá o nome de--«_Esculptura_ em fragmentos» pois que «dos seus +avulsos bocados» ninguem poderia tirar mais do que «mutilações de uma +grande estatua...» + +Ora, dessa estatua nos apresenta elle, a par de bocados infimos, com +extranhezas caricaturaes e laivos dum rir doente, _boutades_ e dôr +inferior, por demais fragmentada, quasi sem significação de +Arte,--trechos formidaveis, como certas passagens da «_Noite de Alcacer +Kebir_», aliaz tão lugubres e intensivamente trabalhadas como raro +encontramos outras, ainda na obra de Fialho. + +E, entretanto, não é a Arte de _Manuel_ o que mais interessa da sua +biographia. + +O que melhor vale, e della resalta, é a sua mesma reacção, ainda mais +que de encontro ao meio alheio, quando do ruflar do seu genio no +intimo de si proprio! + +Esta lucta fóca-a o Artista da sua lente amarello-lugubre, desde a +primeira infancia do bohemio até á edade da «fixação do seu typo de +adolescente» que estatua da «hereditariedade», desenvolvendo-se, +determinando-se, sobretudo, na vida de collegio--na sua reclusão de +Campolide, onde toda a ordem de factores apropriados, ajustando-se-lhe +«como serpes» se porfiam «a esfuriar nesse corpinho espurio» todos os +instinctos do seu genio de tarado, e que de si erguem o perfeito modelo +morbido que, effectivamente, chega a realizar. + +Na sua vontade lassa nada mais governa que o proprio instincto do luxo, +do inesperado, da extravagancia da sua ideação frouxa e admiravel,--como +a inclinação bohemia da sua vida de acaso, á qual se dá, sem que +alguma vez se interrogue. + +Ainda por dessedentar os nervos, logo de começo perros ás suas +exigencias, entrega-se á embriaguez. + +Tinha necessidade de excitar-se, de viver violentamente os seus +delirios, ainda como por melhor escutar a sua nevrose, de tal arte mais +nitida á sua sensacional expectação. + +Intermittentemente cahia em marasmos; tinha «syncopes de intelligencia» +que eram como que sombras daquella sobrexcitação e o derivavam do seu +tumulto ao que Fialho chamou os seus «crepusculos intellectuaes com +sobrelaivos de perseguição e delirio religioso.» + +«De resto na sua esthetica, como na sua vida, sobresaltos de louco!» + +Depois dum maior exgottamento de vida nervosa, adoeceu gravemente, e +tão gravemente, informa o Escriptor, que não era difficil «marcar +na sua intelligencia o accesso vesperal da sua ennublação». + +A partir deste momento deu-se a errar... + +A sua enfermidade era como que uma obsessão de si proprio, sempre alerta +contra o _outro_, isto é, contra aquelle que a sua duplicidade mental +dava como presente aos seus menores actos--e lhe embaraçava tudo o que +deliberasse! + +Novos dias e elle cada vez mais doente, erratico, somnambulo, com a +paixão do alcool e o susto de tudo. + +Certa madrugada accordou horrorizado com a idéa de que o estavam a +enterrar vivo e o desejo «de que o deixassem apodrecer fóra da cova»... + +A partir deste dia a sua vida torna-se pavorosa; é a creatura sem rumo, +equilibrando-se, ao justo, no acaso geral do arranjo commum. + +É, sobretudo, como expoente de vontade que o homem vale; ora elle +perdera absolutamente a vontade, mantendo-se como que, provisoriamente, +a dentro do seu corpo, ao tempo já desconjunctado de fantochino, e que +lhe sobrevivia por milagre, como num assomo de quasi extravagante apego +pelo que fôra... + +O resto adivinha-se:--é a convulsão das ultimas horas; são restos de +sonho; os derradeiros phantasmas, nos seus derradeiros dias; é elle +gritando a sua agonia doida, numa casa de saude, a pelejar a morte, como +se, de minuto a minuto, lhe rompessem cordões nervosos; finalmente elle +ainda, mas com a vida a fugir-lhe e como que afilando-se-lhe até +perder-se na noite rehabilitante da sua podridão... + +E, entretanto, a sua historia não acaba ahi! + +Como noutro logar affirmamos, ha, para alem da sua vida de symbolo, +o caso vivo, em aberto, duma real figura da qual o bohemio «um duplo», +se accrescenta e desdobra, e que, a nosso ver, é, nem mais nem menos, do +que o seu proprio revelador,--o Artista que, na alludida monographia, +sinceramente, lugubremente, trata o caso da morte de _Manuel_ como se a +espreitasse em si proprio! + +Passaremos adiante a miuda informação daquelle desenlace, ainda logico +dentro da extravagante «_Tragedia de um homem de genio obscuro_», por +ver, de relance, o Artista, ao pretexto do admiravel estudo em analyse. + +De facto, qual a figura que surde para alem da mascara de _Manuel_? + +É, affirma-lo-emos ainda uma vez, nem mais nem menos do que o Auctor, +embora transfigurado da sua Arte:--isto é o artista «_violento e +contradictorio_» que dahi resulta; ou seja o escriptor atavicamente +«_presciente do raro em arte_», com o mais extranho «_senso pictoral de +certos aspectos sociaes_», de par do maior «_poder amplificador dos +grotescos_»; o artista, a um tempo «_fragmentario e dispersivo_»; o +transfigurador; a creatura perdida «_em assumpções de genio_» e logo +baixada dos «_fulgurantes cimos da intelligencia_», como que distrahido +por casos minimos; o «_de filiação hysteriça e infancia convulsiva, +terrivel no amor como no odio_», o «mystico» e necrographo, de «_vontade +frouxa, com antipathias invenciveis pelos grandes fanfarrões da +sociedade e escriptores lançados_»--o emotivo, emfim, que no _Manuel_ +não faz mais do que esmaltar de picaresco e lugubre a sua propria +figura, errando nelle o seu drama de morbido, e parabolando-lhe, nas +attitudes, como na desgraça, os seus grandes pavores da morte, de +par da duvida que lhe advinha da sua mesma Obra, que, no fundo, julgava +irremediavelmente episodica e fragmentaria![2] + +Por isso, tambem, ao deixar o quarto, do _outro_, agonisante, elle põe +na boca do indio, o Pratas, velho confidente dos dois, como que o echo +do seu pensamento intimo:--«O ideal seria que a alma delle não morresse, +e nós ainda a encontrassemos, intacta e genial, num outro mundo +insubmisso»! + +Ainda uma vez mais, elle formula o seu velho sonho:--não acabar! Em +ultima analyse:--o seu drama em duas palavras[3]. + +Finalmente nada mais haveria a escrever de commentario ao extraordinario +capitulo da obra de Fialho que principalmente nos demos a desarticular +ainda por compor a figura que nelle foi--se não tivessemos de incluir um +tal trabalho na parte que reservamos das suas melhores provas. + +Como demonstração de Arte, mal poderiamos deixar de alludir ás paginas +que fecham a tragedia, em parte verdadeira, de _Manuel_--e que tambem, +de si, são, ainda de uma precisão e valor notaveis. + +De facto, velou elle o doente de duas figuras que mal apparecem no curso +da acção e, no quarto do moribundo, apresenta silenciosas,--duas +esphinges de odio que o encaram e ao Pratas, o segundo companheiro de +_Manuel_, como se fossem elles os verdadeiros culpados da sua desgraça! + +A primeira é um velho, o pae do doente que, depois de lhe ter negado os +recursos, tomando á conta de extravagancia todos os seus dispendios, +como o seu irremissivel alcance de saude, vem assistir-lhe á morte. + +A segunda, e mais notavel das duas figuras, é aquella que o Artista +designa na folha-cartaz da monographia por--_essa mulher de negro!_ + +«É, segundo informa, quasi velha, com um vestido negro e uma gollilha +bordada, em grandes bicos. Sobre as orelhas ha já cabellos brancos, tem +a pallidez macerada duma santa, as mãos reaes, queixo voluntario... +Emtanto essa rigidez guarda uma boca pura de creança, e sae dessa +magua, uma obra prima de martyrio.» + +«Tóco, narra, por fim, as mãos do agonisante, um marmore molhado. Está a +amanhecer lá fóra, e os cinzentos azues dessa madrugada de inverno +entram no quarto, com albescencias funeraes que me espantam. Pelas +quatro horas Pratas que lhe sustinha o pulso, dá de repente um grito: é +o momento: e o velho erguendo-se, em vez de correr ao filho morto, é +contra nós que parece crescer, rigidamente...» + +Eis o final do drama! + +Mas quem é aquella _mulher de negro_? + +Eis o que mal nos diz. O que della se sabe é unicamente que fôra uma +rara figura de dedicação, envelhecendo no sonho de ser noiva do bohemio, +que lhe escrevia, e elle amara vagamente... + +De momento, aponta-a o Artista como um regelo de amor, acaso um +symbolo assomado ali ainda por enscenar as ultimas horas do bohemio. + + +Derivando, no exame das suas obras primas, ás paginas que, dentre as +citadas, maior contraste offerecem com aquella monographia, +encontramo-nos com o seu admiravel conto,--o _Anão_. + +Este demonstra, alem de tudo, de par da mais frisante extravagancia +imaginativa, o seu grande poder caricatural. + +Trata-se duma ligeira farça que o auctor compõe, mais que dos +personagens, das suas situações. + +Por outro lado, o drama é um jogo de riso, em cujo taboleiro Fialho +incluiu uma pedra dolorosa--o Carrasquinho, o _Anão_... + +Este é uma figura minima, minuscula a ponto de se perder na copa +dum chapeo de pello, e no bolso da madrinha quando do seu casamento; é +um quasi monstro de fabula, entre humano e herbivoro, de «focinho +aguçado e movel, mascando sempre, com as bosseladuras da testa de +tendencias conicas para chibato, sensivel e espantadiço aos rumores +dispersos do campo, a quem os bodes reconheciam um ar de familia, e por +quem as cabrinhas amorosamente se roçavam» quando elle, o pobre +cabreiro, se misturava com ellas no redil. + +Casou com a Rosa «um cavallão da mais desmedida estatura, que a mãe +trouxera vinte e sete mezes no ventre e levára seis dias a expulsar!» + +O Anão dansava o fandango e era videiro. De principio tudo lhe foi bem; +a boda correra-lhe alegre, bem folgada, depois da qual o manageiro de +Torres, o Jacinthinho, se installou por metade de cada dia em casa +da Rosa. + +Esta a desgraça! Quando o _Anão_ chega a mulher bate-lhe e o manageiro +obriga-o a dansar... + +A seis mezes do casamento a Rosa dá-lhe um rapagão, forte como «um boi +bravo». + +Tudo no conto são confrontos e confusões de animaes armados... + +O Anão, cada vez mais chibato, lá vae vivendo, ora em casa, ora entre os +sementões, sempre lamentando-se, na sua «voz balada», até que um dia, +tendo-o a mulher enfaixado (por confusão com o filho) e conduzido á +missa, lá o povileo toma-o pelo proprio diabo, e logo um devoto bebado o +arremessa da torre abaixo, e era uma vez o pobre Carrasquinho, +esborrachado contra as lages sepulcraes do adro!... + +Tal o esqueleto da historia que o genio do humorista vae depois +folhando das situações mais ridiculas, e que, de tal arte, lhe decorre +viva, hilariante pelo imprevisto e desproporcionado dos personagens, e +em que o pobre «_grão de milho_», mal sobresae como uma figurinha de +amuleto, errando ao acaso vida emprestada. + +E, entretanto, é num tão exiguo personagem que, principalmente, o Auctor +se dá a desenrolar aquella aventura, toda ella uma farça de dolorosa +escravidão! + +O mesmo sestro que levara Fialho a apolegar a gente miuda, por attingir +a expansão maxima do seu inegualavel empirismo de Arte, de semelhante +forma lhe pautou a solução da vida em riso, que a breve trecho e +involuntariamente derivava em farça. Ainda mais, deliciou-se da união +dos elementos mais difficeis, como impossiveis até, quando, pelo drama +convulso da sua polypersonalidade, se deu a parabolar da vida real +o mundo imaginativo das suas extravagantes suggestões de artista. + +Dahi as phantasias, no genero daquellas, ao lado de outras em que +sobresaem mulheres como a _Madona do Campo Santo_, a quem dota da +galantaria e gestos nobres dos cysnes, figurinha de suave illuminura, e +que, mais ainda que do seu vicio de comer flores, elle parece alimentar +do pão azymo da sua Arte! + + +Mas não nos antecipemos á referencia que della nos deixou. + +Reunamos os fragmentos da estatua da _Madona_:--«restos, diz o +Escriptor, da mais assombrosa esculptura que tem visto o mundo, e que, +soldados por agulhas de ferro, ornam hoje o tumulo de Judith.» + + [IMAGEM: Fotografia e assinatura de Fialho d'Almeida.] + +Ora a _Madona do Campo Santo_, foi tambem uma das creações mais tratadas +pela suave idolatria de Fialho, e que elle, antes do apaixonado Albano, +se deu a estatuar numa hora de quasi divina loucura! + +E não é ainda casualmente que escrevemos da sua idolatria. + +A verdade é que o grande Artista foi, alem de tudo, um pagão, embora por +fatalidade da sua arte de Extranho, por amor daquella Arte que ainda, de +egual maneira, o fez religioso ou, melhor, sectario de toda a Belleza, +como jámais conhecemos outro. + +É ver as paginas que dedica á _Madona do Campo Santo_, ao lado de outras, +como as que abrem o _Paiz das Uvas_, e a admiravel _Symphonia_ da +_Cidade do Vicio_! + +Em todas ellas, que de adoraveis espectros de faunos e de +sylphos:--creações phantasticas do genio mysterioso da grande +jornada humana immemoravel; e que a elle, ao Poeta, o levam a cantar (a +sua obra é ali um hymno)--um quasi amor contra a natureza, de tão +extravagante e brutal! + +E, entretanto, é ainda á «vibratilidade dolorosa do sol» que elle +escreve e nos diz da «vida allucinada» que lhe vae em roda. + +Dahi, tambem, a sua litteratura, na apparencia difficil e desajustada, +como um romance da Mythologia, gritada de Evohés, com palmas á belleza e +á ebriedade, pompas sem rito, casos de flora animada e fauna monstruosa, +com a sua multidão de satyros e dryades, formando junto a Baccho--o Deus +da boca fogueirada de risos, acaso os mesmos que, por vezes, parecem +tingir da sua cambiante algumas das paginas mais notaveis, ainda por +menos verosimeis, do transfigurador! + +É dum folgo que se leem estas passagens que quasi nos suggerem a +esperança dum suave mundo de deuses reaes, pleno de sentido novo, e em +que exuberem, a esmo, os fructos, e cresçam divinamente os marmores! + +Ora, dum tal poder de imaginação, e influencia de tudo, facil nos é +derivar ao mais do seu _atelier_ de estatuario do Exquisito; e, mais +propriamente, ao caso da _Madona do Campo Santo_, a cujo proposito +trouxemos aquelles recursos. + + +A _Madona_ é, na verdade, uma das suas obras primas de mais justificado +renome:--typo de mulher-insecto, dentando flores, amando por instincto, +comendo com dôr, tocada, ainda por uma razão de belleza, do susto humano +de morrer, gracil como uma ave, de resto frouxa e luarada como convinha +a uma creatura do outro mundo... + +E tão deslocada fôra, tão doutro mundo ella era, que Fialho, querendo +apontar-nos, no final da novella, a estatua que da sua memoria desbastou +Albano, é assim que a descreve: + +«Era uma maravilha unica de genio! Desabrochava completa, estendendo os +braços para invocar Deus, por um assombro de equilibrio lançada na +attitude de quem desprende vôos, desennovelando-se da base como uma +labareda de sarça, em zig-zags aéreos. Esse phenomeno de extranha +belleza, era ao mesmo tempo um prodigio de audacia, palpitava, falava, +sentia-se soffrer e respirar, como uma creatura.» + +Notavel trecho, de si eloquente até ao excesso, e bem de molde a +resuscitar a pobre Judith! + +Entretanto, permitta-se-nos, ainda a tal proposito, um breve +parentheses, ou seja o glossario de faceis considerações, á conta +da sua esculptura. + + +É tão somente para frisar que, ainda em Fialho, como para o mais dos +plasticos portuguezes, a estatuaria é sobretudo narrativa. + +O marmore da _Madona_ não é, effectivamente, um mero acaso da imaginação +do contista; bem pelo contrario, estava na logica da sua educação, pois +que lhe proveio directamente da mesma causa romantica, que ainda, ao +presente, determina o grande numero dos nossos estatuarios. + +Ainda mais, o movimento liberal, que, entre nós, começou em 1820, deu á +Arte portugueza um motivo de ornamentação tão extranho como +detestavel,--a estatuaria rhetorica, se assim podemos defini-la e que, +de logo, começou a animar os nossos terreiros publicos, onde mais +ou menos todas as memorias discursam! + +E, a tal ponto a nossa exuberancia de latinos, ligou ao gesto o seu +sentido de eternidade que, ainda hoje, reputariamos inverosimil, entre +nós, a estatua, á maneira ingleza, como significado de mera presença,--a +figura-marco, tal como surde, nas praças de Londres, menos como ficção +de vida, do que, pelo contrario, como uma forma abstracta, e a que o +Artista procura dar sempre aquella attitude quasi sagrada que, +definitivamente, volve em symbolos as memorias! + + +Comtudo, dado o facto do supremo poder de Fialho, como plastico, força é +admittir que bem foi para a memoria de Judith a sua estatua, tal qual +elle a trabalhou, como todo o drama de que circumscreveu a sua +prodigiosa e raphaelesca figura, a cuja decomposição, por fim, +assiste, indifferente, depois que ella, já morta, de «face marbreada de +roxo» e a «expressão carrancuda» por lhe terem arrancado a +mascara,--começa a abater, da sua gracil e suave forma de noiva dos +«esponsaes da eternidade...» + + +Finalmente, o ultimo conto das suas apontadas obras--_Os Pobres_, +comprehende um trecho curto, e, no entretanto, ainda mais notavel que os +anteriores. + +E tão notavel que só a custo poderemos desarticular essa singularissima +peça de Arte, tal a selvageria que dá cohesão á novella, concebida para +alem de todas as ficções litterarias! + +Trata-se dum casamento de monstros numas ruinas, de «duas virgindades +adormecidas», informa o narrador, que num momento vingam o amor +abstemio de tantos annos, e celebram, á cumplicidade de uma noite +tenebrosa, o seu brutal noivado. + +Elle, o macho, é um ser desprezivel, vivendo de restos, especie de +cyphotico, aleijado pelo lapis de Velasquez; valente pela sua vida de +carreira, ao ar livre; humilde; torto e forte como um azinho; animal +corrido de todas as mesas, piolhento que as raparigas enjeitam e +escarnecem nos serões:--figura, emfim, perdida no «immenso irradouro» +que é, para elle, o mundo. + +Segue da Vidigueira para Pedrogão ao acaso do vento, que o esfarrapa, +confundindo-o com a urze. + +Leva-o o mesmo fim de sempre:--pedir, errar... + +Vae por entre a esteva que o açouta; «o vento fala-lhe»; e, no emtanto, +elle nada ouve, caminhando á ventura, como um elemento deslocado da +mesma noite sinistra que o persegue... + +Entra, por acaso, numa ruina, onde o guia primeiramente um resto de +brazido, depois um farrapo de oração, que sae dum canto, por fim o +cheiro da femea, uma sombra que escabuja a seu lado, e, num momento, +desdobra para elle fios occultos de uma voluptuosidade instinctiva, toda +animal. + +Elle presente-a; e ella fala-lhe, numa voz que é um rôgo, de que elle +não sabe deslindar-se, até que começam de tecer-se novos fios do desejo +dos dois, do impulso mutuo que subito os impelle um para o outro, como +duas forças dum mesmo systema que a luxuria move e dão de si o ruido de +corpos escamosos, «rimando urros», diz o Artista, numa especie de +noivado de potestades, com ferezas e grunhidos de varrascos! + +Tal o relato-impressão que do estupendo conto nos ficou, e pelo qual +chegamos, naturalmente, e, por ultimo, ao fim dos maiores recursos de +Fialho; e que, a partir deste momento, nos permittem averiguar da sua +obra em conjuncto, atravez das paginas exemplificadas, como daquelles +seus mais caracteristicos personagens. + +Ora, o que, dumas e doutros, de logo se nota é que o mesmo titulo de +_Doentios_, que indica o seu primeiro livro, inculca tambem o grande +numero das suas figuras-motivos. + +Entretanto, o que mal pode explicar-se, fóra do seu caso de raça, é o +segredo da sua forma, ainda tão exoticamente plastica,--como o seu +grande conhecimento da Arte pairante alem-fronteiras, e que, +cumulativamente, exerceu de par dos móres diabolismos, ainda e sobretudo +ao pretexto da nossa comedia publica. Como quer que seja, +propositadamente guardamos, para final do presente estudo, a analyse +generica destes recursos, de que, já agora, partiremos para a revolução +artistica que da sua penna levantou, sobretudo contra o pantano +classico, e rhetorica do momento. + +A todos os formalismos, de facto, elle deu batalha, não só vencendo, +mas, mais ainda, trazendo á Arte novas intenções, de par de melhores +impulsos e novos rumos. + +Houve contemporaneos, como João de Deus e Bordallo, cujo inauditismo é +tanto mais para admirar, quanto mais occulta nos deixaram a sua razão de +Arte. + +Não é este o caso de Fialho, cujo genio reagiu sobre uma cultura +intensa, procurada como num anceio de quasi exhaustação. + +Desde Balzac, o mais notavel dos mestres do pensamento novo, até aos +exquisitos Goncourts, lavrantes quasi diabolicos dos mil nadas mundanos, +apostolos da graça, como do mais extravagante japonesismo litterario, +todos os grandes contemporaneos elle conheceu e estudou; do mesmo passo +que o seu espirito, com escala por todas as representações de +Arte:--museus, revistas, theatros, escolas, industrias de luxo, por todo +o espectaculo, emfim, onde houvesse que aprender,--se repartiu, talvez +menos por enriquecer-se dos seus ensinamentos, que por colher as +suggestões que do seu interesse mais tarde desenvolveu. + +Ora duma curiosidade de tal forma animada foi que, naturalmente, sahiu a +editar o melhor da sua obra, como tudo o que da sua sympathia pelo raro +elle poude discorrer atravez da sua dolorosa fadiga de +supersensibilizado! + +Assim, tambem, talvez nenhum dos escriptores do seu tempo conseguisse +surprehender a Arte dos etherisados e extranhos cumes donde elle se deu +a vertiginá-la. + +É ver as paizagens, quasi irreaes do seu lapis de crayonista; as suas +figurinhas hystericas de branda genealogia biblica; os seus aleijados; +as suas porcellanas, como todo o mundo phantastico da sua inegualavel Arte! + + +Tambem é de costume, tratando-se de Fialho, escrever do que vulgarmente +se considera a sua obra critica. + +Não o faremos nós, ainda em attenção ao criterio proprio de que Fialho +não foi um critico, mas um impressionista. + +E, a proposito, vem recordar o caso de Ramalho que, depois de uma vida +longa, perscrutando a canseira extranha, talvez menos pelo trabalho +de a corrigir que pelo vicio de a desfiar; depois duma fadiga insana por +ver do trabalho alheio, no proposito de deixar definitivas as suas +notações de pedagogo, sáe, por fim, a desculpar-se, na pagina derradeira +do seu papel de critico, denunciando a publico a sua aspiração até ahi +occulta,--imagina-se lá de que!--nem mais nem menos do que de poeta +lyrico... + +E, comtudo, como é de estimar, a nova triste daquelle velho, figura +rigida de portuense, com suas tintas de trato inglez, escrevendo á +garrocha no couro endurecido de Portugal do tempo, afinal sobre o motivo +constante e commum a todos os criticos,--ácerca dos mais versateis casos +de gosto burguez! + +Porque, fundamentalmente, foi o gosto burguez que elle tratou, embora +como uma especie de jogador de penna contra os cenaculos havidos +então como tradicionaes, e de que um acaso de civilização o fizera +transfuga. + +Entretanto, é bem de archivar aquella sua pagina de contrição, ainda +como desfecho do seu ingrato mister. É que, de facto, elle era um +artista, e dahi o ter vindo a publico indultar-se, como em final +provação, dos seus cançados propositos criticos, se não legar-nos, á +hora da sua agonia litteraria, uma derradeira ironia... + +Contrariamente outros dos seus melhores contemporaneos, e entre +todos:--Fialho, Eça, Bordallo e ainda Junqueiro (a despeito da sua +escravidão politica)--haviam sido mais do que reformadores da +Arte,--seus verdadeiros revolucionarios, isto no melhor sentido da +desacreditada palavra. + +Vejamos, a traços rapidos, a acção que de um tal confronto advem, pois +que obteremos, assim, a par da divergencia dos temperamentos de +maior interesse na vida artistica do tempo,--a sua systematização e um +fim commum, ou tenha sido a notavel revolução litteraria que das suas +provas resultou. + +Comecemos por Bordallo, bem por certo, ainda hoje, o menos estudado. + +Raphael Bordallo, que conseguiu tornar poderosa uma arte, entre nós +desacreditadissima, mercê da chusma dos habilidosos:--a Caricatura, foi, +de facto, o genio em bruto, um oleiro de amalgama, misturando, na sua +masseira de Jove do tempo, toda a sorte de civilização, por mais +desencontrada; trabalhando, ora de phantasia, ora dos seus apontamentos +de rua; e, finalmente, editando-se, tal como Fialho, ainda por seu +innato valor. + +Eça, talvez o de menos influencia, se bem que tambem o unico que +logrou admirações incondicionaes, foi, de facto, dentre todos, o menos +original, que não o menos brilhante. + +No seu _atelier_ não faltou petrecho algum dos mais necessarios ao +arranjo dos seus livros de Arte, aliaz sempre duma belleza meditada, a +bem dizer medida, e em que perpassa todo um methodo opiado de ironias, +por entre as suas demais preoccupações de consciente marmorista e +penitenciario da prosa. + +Finalmente, Junqueiro foi dentre as figuras litterarias do momento o +mais sagaz e ajustavel á sua extranha confusão. + +Por isso tambem, logo que appareceu, se fez mister consagrá-lo, de par +dos seus alexandrinos, ainda undisonos e revoados, á Hugo, e que os do +tempo immediatamente se deram a ouvir, mais do que com attenção devida a +uma obra de Arte, religiosamente, como se nas suas rolantes e +evocativas estrophes o Poeta orchestrasse a propria musica do mar... + + +Mas deixemos propriamente o caso da acção politica por parte da geração +a que pertenceu Fialho para o vermos, a elle, tal como tem de ficar, +nessa outra revolução litteraria que sobreleva aquella, e á qual devemos +mais attento exame. + +Fialho foi, bem por certo, sob tal ponto de vista, o maior do seu tempo, +pois que realizou um verdadeiro revolucionario da Arte, que, partindo da +admiração dos typos classicos, das paginas mais academicas, seguiu +directamente o filão popular, colhendo e escrevendo, sem o corromper, o +sentimento plebeu, sempre que este sentimento lhe poude expressar uma +verdade, ou refundir da phantasia situações e estados litterarios +novos. + +E não se imagine que, ainda no capitulo menos original e mais facil da +sua obra, como pamphetario, elle deixasse de mostrar os melhores +ensinamentos e boa fé. + +É ver o que nos diz duma possivel Lisboa monumental, á sua maneira; dos +seus propositos de substituição duma cidade á moderna, como a +fizeram,--facil e incaracteristica,--por uma cidade-memoria! + +Ainda mais:--antes delle creara-se uma especie de constitucionalismo das +Lettras, aliaz sempre, mais ou menos regradas ao gosto classico, o +que, de egual maneira, satisfazia leitores e auctores... + +Ora Fialho foi um dos raros que, entre nós, com melhor ousio praticou o +direito da escripta a flux, sem medos, como sem os bardos aramados +da covencional Litteratura anterior. + + +Muito justas as suas paginas de theatro onde versou a nossa +miserabilissima flora dramatica, e onde nem sequer teve a descontar á +auctoridade com que a viu a pecha dalguma vez a ter tentado. O que elle +nos diz dessas peçasinhas de acaso, que lá fóra seriam inverosimeis num +theatro de suburbio, e que, entre nós, tão facilmente são alçadas, +segundo a categoria jornalistica ou politica dos auctores, a peças de +grande effeito, por um publico, ás vezes educado, mas sem coragem para +patear ou sahir a meio da semsaboria em que, por via de regra, nos +nossos palcos, as peças decaem! + +Da Hespanha do Sul, sua visinha, vimos como soube orchestrar a luz, +tanto do seu pincel, de par do mais da vida natural que, como ninguem, +teve o poder de aperceber. + +Tambem elle, se vivesse em Hespanha, onde a sua intenção revolucionaria +seria inopportuna, teria completado, talvez, o capitulo mais desfalcado +de quanto escreveu:--referimo-nos, sobretudo, á sua maneira de tratar +figuras e seus demais esboços de novellista. + +Entre nós, dados os multiplices acasos da mesquinhez publica, que +affecta a nossa vida de livraria, e onde a maior parte dos auctores, de +olhos fitos na _coterie_, raro sabe trabalhar independentemente,--elle +que começou por demolir, e demolir _à outrance_, gastando, a paginas +plenas, talento e nervos, deixou-se, talvez, desviar, demasiadamente, +pelas reclamações que do seu valor o publico exigia; e dahi +aquellas faltas, de que, por fim, a visão clara da derradeira hora lhe +deu os mais angustiosos clarões! + +E, entretanto, se onde quer que está, chega a memoria do que vae +passando,--com que surpresa ha de sentir (se lá ha surpresas) tudo isso +que para ahi ficou após de si! + +É que, bem péor do que no seu tempo, os Artistas são hoje, para o grande +numero dos mentores officiaes, meras figuras de acaso, cujos agoiros +elles, os revolucionarios de hontem, por cautela, se dão a amordaçar; e, +isto sómente, porque se não perturbe a troça a que a Nacionalidade +desceu,--ou seja uma ceia de politicos, pela cerrada noite fóra, que vem +de longe, e onde um teclado de dentes, instrumentando o desforço de +fomes velhas, nem sequer deixa ouvir, por attenuar, a voz dos +_baccarats_... + +Mas abandonemos, por uma razão de sensibilidade, a noticia do +inopportuno festim. + +E pois que, sobre uma tal noite, acertou de baixar escuridão mais +tragica, a que ameaça de subverter a raça, que, ainda por sua admiravel +fatalidade, terá de triumphar,--vamos nós inventariando tudo o que ao +presente de grande existe e futuramente possa servir-nos. + +Ora, no extranho conjuncto da nossa obra escripta, já hoje +extrema,--têem, como acabamos de ver, o maior interesse, as paginas de +Fialho, quer no seu valor intrinseco, quer pelo que representam em +confronto com os demais e alheios padrões de Arte. + +Uma obra, unicamente, elle não teve de seu intento; e, conseguintemente, +não logrou escrever, como a não escreveram, talvez, por a supporem então +menos necessaria, os que o precederam, e que, no entretanto, de +momento, se torna preciso, quanto antes, compor, ainda por servir +aquelle resurgimento. + +Reportamo-nos, (quem ainda o não sentiu?) á falta de um _Manual de +Sensibilidade_, o que equivale a informar--duma nova Cartilha, com +destino á futura mocidade portugueza, e onde caibam as delicadezas +porque sempre nos affirmamos, ainda atravez do mais accidentado da nossa +jornada historica; e que hoje, mais do que nunca de opportunidade é que +desde já occupem quem, para alem de todos os sectarismos--sinta, mais do +que por si, pela Nacionalidade, a carinhosa obrigação de as versar! + +Trata-se, de resto, dum livro facil, pois que nos não é preciso mais do +que editá-lo dum bem orientado sentido popular, ou seja do nosso velho +espirito de generosidade e isenção, aliaz, de si, ainda latente, +quando não expresso, na obra dos nossos maiores auctores,--tambem, +quanto a nós, os melhores, se não, até hoje, os unicos interpretes da +verdadeira alma de Portugal. + + +_Ancede_, novembro de 1916. + + [2] Propositadamente, e á sua maneira, _pelas suas proprias + palavras_, e tambem «como quem junta uma esculptura de bocados», + entendemos dever reunir, ainda por melhor o revelar, aquellas suas + mais entranhas e quasi confessadas caracteristicas. + + [3] E não se infira destes seus receios o argumento simplista da + improbabilidade do seu suicidio, pois que, muito ao contrario, + aquella versão pode denotar, quem o sabe? como que o seu + aprestamento, com as costumadas alternações de desespero + e intimidades com a Morte, de facto habituaes á maior parte + dos que voluntariamente a provocam. + + + +INDICE + + + I + Pag. + Cuba e Villa de Frades 7 + + II + + A indole de Fialho 33 + + III + + O Pamphletario 51 + + IV + + O Artista 79 + + + + + ACABOU DE SE IMPRIMIR + NA TIPOGRAFIA DA «RENASCENÇA PORTUGUESA», + RUA DOS MÁRTIRES DA LIBERDADE, 178, + AOS 14 DE FEVEREIRO DE 1917. + + + + + +End of Project Gutenberg's Fialho d'Almeida, by Visconde de Vila Moura + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FIALHO D'ALMEIDA *** + +***** This file should be named 34288-8.txt or 34288-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/4/2/8/34288/ + +Produced by Mike Silva + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/34288-8.zip b/34288-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..f00ab00 --- /dev/null +++ b/34288-8.zip diff --git a/34288-h.zip b/34288-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..252087b --- /dev/null +++ b/34288-h.zip diff --git a/34288-h/34288-h.htm b/34288-h/34288-h.htm new file mode 100644 index 0000000..bfc4257 --- /dev/null +++ b/34288-h/34288-h.htm @@ -0,0 +1,3481 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html> +<head> + <title>Fialho d'Almeida, por Visconde de Villa-Moura</title> + <meta name="Author" content="Visconde de Villa-Moura"> + <meta name="Edition" content="Porto: Renascença Portuguesa, 1917."> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + text-decoration: none; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: 7px; + text-align: right; + color: silver; + } + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1.5em;} + h1, h2, h3, h4 {text-align: center; margin-top: 2em;} + h2 {text-align: center; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.sinopse {margin: 2em; font-size: small; text-indent: -2em;} + #corpo p.ni {text-indent: 0;} + #corpo p.centrado {text-indent: 0; text-align: center;} + #corpo blockquote p {text-indent: 0;} + #corpo p.assin {text-indent: 0; text-align: right; margin-right: 2em;} + p.centrado {text-indent: 0; text-align: center;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px #000;} + blockquote {margin-left: 10%; font-size: small;} + div.ilustracao {margin-left: 10%; margin-right: 10%;} + #corpo .ilustracao p {text-align: center; font-size: small;} + a {text-decoration: none;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin-left: 2em; + margin-right: 2em; + } + #corpo .rodape p {text-indent: 0;} + .errata {border-bottom: dotted 2px #aaaaaa;} + .typo {border-bottom: dotted 2px #77dd77;} + .fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: 0.8em; + margin-left: 10%; margin-right: 10%;} + .cap:first-letter {float: left; clear: left; margin: -0.2em 0.1em 0 0; margin-top: 0%; + padding: 0; line-height: .75em; font-size: 300%; text-align: justify;} + .cap {text-align: justify;} + .sc {text-transform: uppercase;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Fialho d'Almeida, by Visconde de Vila Moura + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Fialho d'Almeida + +Author: Visconde de Vila Moura + +Illustrator: António Carneiro + +Release Date: November 12, 2010 [EBook #34288] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FIALHO D'ALMEIDA *** + + + + +Produced by Mike Silva + + + + + +</pre> + + +<p> </p> +<div style="border: solid 2px #000; padding: 1em; text-align: center;"> + +<p style="font-size: 1.5em;">VISCONDE</p> + +<p style="font-size: 1.3em;">DE</p> + +<p style="font-size: 1.5em;">VILLA-MOURA</p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="font-size: 2em;">FIALHO D'ALMEIDA</p> + +<p>(COM UM DESENHO DE ANTONIO CARNEIRO)</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="font-size: 1.3em;">EDIÇÃO DA «RENASCENÇA PORTUGUESA»</p> + +</div> + +<p> </p> + +<p style="text-align: center; font-size: small;">Direitos reservados</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 1.5em;">FIALHO D'ALMEIDA</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="text-align: center;">DO AUCTOR:</p> + +<p>A Moral na Religião e na Arte, 1906.</p> +<p>A Vida Mental Portuguesa, 1909.</p> +<p>Vida Litteraria e Politica, 1911.</p> +<p>Nova Sapho (romance), 1912.</p> +<p>Camillo Inédito annotado, 1913.</p> + +<p>C<small>ONTOS E</small> N<small>OVELLAS</small>:</p> + +<p>I—Doentes da Belleza, 1913.</p> +<p>II—Bohemios, 1914.</p> + +<p>Antonio Nobre, 1915.</p> +<p>Grandes de Portugal (em collaboração com Antonio Carneiro), 1916.</p> +<p>Fialho d'Almeida, 1916.</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align: center;"> +<p style="font-size: 1.5em; text-decoration: underline;">V<small>ISCONDE DE</small> V<small>ILLA</small>-M<small>OURA</small></p> + +<p style="font-size: 2.5em;">Fialho d'Almeida</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p><img src="images/renascenca.png" border="0" alt="Logotipo Renascença Portuguesa"></p> +<p> </p> +<p> </p> + + +<p>EDIÇÃO DA<br> +«RENASCENÇA PORTUGUESA»<br> +PORTO</p> +</div> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p><span class="pn"><a name="pag_6">{6}</a><br><a name="pag_7">{7}</a></span></p> + +<div id="corpo"> + +<h2>I</h2> + +<h2>CUBA E VILLA DE FRADES</h2> + +<p><span class="pn"><a name="pag_8">{8}</a><br><a name="pag_9">{9}</a></span></p> + +<div class="cap"> +E<span class="sc">u</span> estive já, por duas vezes, em Villa +de Frades, no largo da Misericordia, +onde foi aquella «casinha de taipa, construida +por pedreiros da gente de Fialho»—como +elle nos conta na <em>Autobiographia</em> +do seu livro—<em>Á Esquina</em>.</div> + +<p>Fui ali quando das minhas jornadas +pelo Baixo Alemtejo, em excursão de +curioso pelo mais da sua gente e paizagem.</p> + +<p>A primeira vez que visitei a residencia +de Fialho, que não é já hoje a casita de +taipa que os seus construiram, mas uma +das melhores da terriola,—foi por uma +tarde de agosto, uma daquellas tardes de<span class="pn"><a name="pag_10">{10}</a></span> +rescaldo que erguem, á volta de nós, serpentes +de fogo, e lhe ensinaram, a elle, a +sua pintura deslumbrante, á maneira de +Rubens, em que a propria côr queima!</p> + +<p>Não foi sem um certo alvoroço, confesso, +que bati ao portão da antiga casa +do Escriptor.</p> + +<p>Veio alguem abri-lo, deixando a descoberto, +a meio de uma segunda porta +fronteira, um homem alto, vestido de negro, +de aspecto recolhido, quasi ecclesiastico, +e que, num instante, me encarou e desappareceu, +abandonando-me no jardim, ao +sol, com o meu remorso de indiscreto.</p> + +<p>Desapparecera tambem o creado, ou +quem quer que fosse, que me tinha introduzido +no pateo.</p> + +<p>Esperei instantes, e, como não visse +alguem, dirigi-me para a entrada da primeira +casa, que logo vi ser a cozinha, +encarando, pela segunda vez, aquella mesma<span class="pn"><a name="pag_11">{11}</a></span> +figura quasi sombra, que depois soube +que era o irmão de Fialho.</p> + +<p>Disse alto o que queria:—falar ao dono +da casa e pedir-lhe o favor de me deixar +ver a antiga residencia do Artista.</p> + +<p>Sahiu a attender-me uma mulher nova, +figura doente e franzina, que logo se deu +a explicar-me que era ella a actual dona +da antiga casa do Escriptor, de quem era +parenta, vivendo ali com o marido e seu +primo, o irmão de Fialho d'Almeida, que, +já ao tempo, mais familiarizado comigo, +me fitava serenamente.</p> + +<p>Dei-me tambem a vê-lo melhor.</p> + +<p>Não me lembro da edade que me disse +ter; quarenta e sete annos podia talvez +apparentar.</p> + +<p>—Que era um temperamento impressionavel, +a espaços dado a medos e hysterias, +sempre melancholico, informou +ainda a sua parenta.<span class="pn"><a name="pag_12">{12}</a></span></p> + +<p>Deparou-me, pois, o acaso, nem mais +nem menos, do que um novo documento +a instruir a historia do genio do Artista, +na pessoa do irmão, que me dei a ver +como uma figura-symbolo de familia, em +que, não sei porque, presenti a elegia viva +da Arte mais exquisita e morbida de Fialho, +qualquer coisa da neurilidade extravagante +dos seus doridos, aquella que animou +os seus personagens tão suavemente +fataes e androgynos, toda a belleza maravilhosa, +e não raro inconsequente, da sua +obra de apontamentos, onde tão extranhamente +exuberam os noctambulos e toda +a sorte de mysteriosos!</p> + +<p>Corrêra, de certo, enferma a adolescencia +do irmão de Fialho, que viera até ali, +aos quarenta e sete annos, ou mais que +podia ter, porventura ainda innocente, +como por milagre da sua mesma frouxidão +de alma, a que, a cada momento,<span class="pn"><a name="pag_13">{13}</a></span> +sua prima alludia, ao referir-me, perto +delle, as sinistras manhans das suas torturas +de neuropatha.</p> + +<p>Entretanto que a dona da Casa me +convidava a passar á primeira sala, chegou +o marido della, tambem primo de Fialho, +que, a meu pedido, mandara chamar, e que +logo se dispoz a acompanhar-me, apontando-me, +por miudo, o mobiliario e antigos +aposentos do Artista.</p> + +<p>Fôra este seu parente a quem Fialho +recorrera, quando, na vespera da morte, +veio a Villa de Frades, ordenar os papeis +do seu gabinete, como quem se decide a +dispor tudo, antes de seguir...</p> + +<p>—Quando chegou deu pela falta da +chave do escriptorio, me explicou o snr. +José Fialho. E apontando uma porta:—tentou +ainda abri-lo, quebrando o vidro +daquella bandeira; por fim, resolveu-se a +chamar-me, e, como é cá da minha arte<span class="pn"><a name="pag_14">{14}</a></span> +este serviço, pois sou carpinteiro, immediatamente +arranjei tudo; e, elle entrou, +demorando-se aqui até á hora da partida.</p> + +<p>Insisti na supposição, que mais se radicou +em mim, depois da minha derradeira +estada no Alemtejo, do provavel suicidio de +Fialho, confirmando-me o seu parente que, +de facto, se tinha aventurado tal suspeita, +logo apoz a sua morte, mas que os medicos +que, por ultimo, o haviam soccorrido, tinham +negado o facto, e, elle, por si, coisa +alguma sabia dizer a tal respeito...</p> + +<p>Entretanto, encarou-me mysteriosamente, +quando lhe disse que alguem da +familia Carapeto, que lhe assistira á morte, +na Cuba, tinha como certo o seu envenenamento; +que, na vespera, elle tratara do +arranjo definitivo de tudo, e nomeadamente +do seu testamento, lavrado numa das dependencias +da Tabacaria Fonseca, onde +costumava passar parte das noites; que<span class="pn"><a name="pag_15">{15}</a></span> +soubera, ainda na Cuba, dos seus aborrecimentos +de doente, afóra outras razões que +a minha admiração tinha reunido para reconstituir +o drama duvidoso do seu desenlace.</p> + +<p>Mas deixêmos este caso ao tempo, que +é quem definitivamente aclara tudo, e voltemos +á sua casa de Villa de Frades.</p> + +<p> </p> + +<p>Como acima informei, actualmente +pouco deve ella ter da construcção primitivamente +gizada pelo pae do Escriptor, +antigo mestre regio da freguezia.</p> + +<p>É sabido que Fialho casara com uma +senhora de fortuna, de quem tambem ficou +herdeiro, pelo que tanto aquella Casa, como +a de Cuba, sua residencia predilecta, foram +por elle reformadas, com todas as melhorias +em uso nas boas construcções da região.</p> + +<p>Mas não se infira dahi que se trate de<span class="pn"><a name="pag_16">{16}</a></span> +edificios luxuosos; são, pelo contrario, casas +sem interesse, e, ainda, no ponto de vista +artistico, valem tão sómente pelo caracter +que lhes advém do facto de obedecerem +ao desenho do mais das habitações +daquellas paragens,—quasi todas ellas +tijoladas, cozinhas brancas de telha van, +eirados sobre a planicie, e os jardins tão +intimos das casas e pateos, á maneira arabe, +como que continuando-se das salas.</p> + +<p>Villa de Frades, pequena povoação do +concelho da Vidigueira, com um censo +de dois mil habitantes proximamente, tem +um certo relevo, em contraste com o resto +da formidavel planura sul-alemtejana, e, o +que é mais, foi uma das poucas terras, se +não a unica do districto, que encontrei verde, +no agosto em que a visitei. Tudo o +mais, ao largo, era desolação e secca.</p> + +<div class="ilustracao"> + +<p><img src="images/fialho1.jpg" border="0" width="100%" alt="Fialho d'Almeida. Desenho de Antonio Carneiro"></p> + +<p style="text-align: center;">FIALHO D'ALMEIDA</p> + +<p style="text-align: right;">(Desenho de Antonio Carneiro).</p> +</div> + +<p>Para lá da matriz, logo ao sahir do povoado, +corriam as obras das escolas que o<span class="pn"><a name="pag_17">{17}</a></span> +Escriptor garantira com o seu testamento, +e que, confesso, pouco me detiveram, dado +o meu aborrecimento por construcções do +seu desenho, entre gaiolas e penitenciarias, +com destino á futura infancia de Villa de +Frades, de mais, ao tempo, sobremaneira +antipathicas, como todos os edificios por +concluir.</p> + +<p>O que devéras me prendeu, foi a chamada +antiga Casa da Aula, pela qual perguntei +ao primo de Fialho e immediatamente +saiu a apontar-me.</p> + +<p>É fronteira á Egreja, e um edificio +tosco, sobre o comprido, áquelle tempo escrupulosamente +caiado, de aspecto simples +e o ar abstracto de um templo abandonado.</p> + +<p>Era quasi noite. A matriz bateu não +sei que horas, com aquella solemnidade +triste, que é do dobrar dos sinos de todas +as villas...</p> + +<p>Dei-me a imaginar a infancia de Fialho,<span class="pn"><a name="pag_18">{18}</a></span> +partilhando daquella melancholia, pelas +grandes tardes morrinhentas de Villa de +Frades, com todo o primeiro mundo da +sua inicial e subconsciente comparticipação +da Vida...</p> + +<p>Ali, de facto, naquella humillissima +escola, cursara elle as primeiras lettras, de +par das primeiras contrariedades, ao lado +do pae, o mestre escola da terra, «aquelle +typo de santo austero, n'uma alma de sonhador, +sempre calado», explica o Artista, +annos depois.</p> + +<p>E, em verdade, tanto como a casa onde +nasceu, mais ainda, talvez, se me prendeu +da alma aquella capellita das suas primeiras +canseiras.</p> + +<p>Ahi deveria, porventura, estabelecer-se +o Museu-Fialho, uma vez que uma dezena +de amigos, refiro-me sobretudo aos seus +amigos de leitura, se concertasse para juntar +em tal logar, com os seus livros, tudo o<span class="pn"><a name="pag_19">{19}</a></span> +que pudesse considerar-se como reliquia +da sua obra ou memoria.</p> + +<p>Da casa de Fialho, em Villa de Frades, +hoje quasi vazia do peregrino espirito que +a encheu, lembrarei especialmente o quarto +do Artista, onde, por acaso, quedam algumas +arcas com revistas que excluiu +da sua livraria, destinada á Bibliotheca de +Lisboa, legando-as a um amigo que ainda +as não levantou, e, nas paredes, duas telas +da sua auctoria.</p> + +<p>Propositadamente trazemos a publico +a noticia, que cremos em primeira hora, +daquellas telas, ambas más, de figuras religiosas, +de tintas empastadas e peior desenho, +pelo interesse de documentar o seu +esforço de plastico, que o fez pintor, em +segredo, a elle, o critico impertinente dos +maiores pintores do seu paiz!</p> + +<p>Esta, porventura, tambem a nota mais +interessante que me foi dado conhecer por<span class="pn"><a name="pag_20">{20}</a></span> +informação da Familia-Fialho, e me fez +lembrar o caso de Hugo, identicamente +desenhista e, mais ainda, entalhador, e +cuja obra, no genero, decora, ao presente, +a sua antiga residencia, hoje Museu, na +<em>Place des Vosges</em>.</p> + +<p>Finalmente, resta-me apontar, o trecho +fronteiro á casa, systema absorto de outeiros +verde-suaves, que se me depararam +conhecidos, como se, de sempre, os houvesse +visitado.</p> + +<p>E, de facto, era quasi assim. Conhecia-os, +havia muito, de algumas das paginas mais +luxuriantes do Escriptor, onde elle, o magnifico +colorista, a espaços se deu a pintá-los +daquella tinta intima que lhe veio, pelo +tempo fóra, das suas memorias e impressões +de infante.</p> + +<p> </p> + +<p>Despeço-me, á pressa, da sympathica +terriola, como quem foge do tumulto de<span class="pn"><a name="pag_21">{21}</a></span> +lembranças que me vem da casa, daquelles +outeiros, dos primos de Fialho, do Irmão, +irreprehensivelmente estatual no seu papel +de symbolo rigoroso; e parece-me receber +das mãos deste fios da tragedia, ainda +viva, das primeiras desfortunas do Artista, +as que lhe advieram da quasi miseria da +sua segunda infancia, e cuja recordação +o obrigava talvez, mais tarde, a fugir dali, +(onde viveu sempre o menos tempo) por +morphinizar-se do aborrecimento em commum +por terras de mais convivio.</p> + +<p> </p> + +<p>A Casa da Cuba, que em geral preferia, +quando estava no Alemtejo, é um edificio +melhor que o de Villa de Frades, tambem +terreo e de compartimentos amplos.</p> + +<p>Nesta casa fui encontrar enferma, na +mesma alcova em que o Artista agonisara, a +sua antiga legataria,—uma senhora de<span class="pn"><a name="pag_22">{22}</a></span> +edade da Familia Carapeto, a quem devo o +offerecimento dos retratos de Fialho que +illustram a presente noticia e alguns dos +seus esclarecimentos.</p> + +<p>Pouco me detive nesta sua antiga morada, +e o tempo que ali quedei foi no terraço, +velho miradouro de gosto mourisco, +donde se abrange, numa extensão de leguas, +o mais das terras seccas que circumdam +a Comarca.</p> + +<p>Cuba é das povoações mais incaracteristicas +e sem interesse que encontrei no +Baixo Alemtejo. Lembra, pela monotonia +do seu casario reverberante, certas povoações +de Hespanha, da Mancha, sobretudo, +e que, em vez de quebrarem a aridez das +chans, servem como que a memorá-las, tão +irmans da estepe parecem crescer da terra.</p> + +<p>Avalio, com tristeza, do viver do Escriptor +na villa, quando, obrigado pelas +mil coisas desagradaveis da sua vida, em<span class="pn"><a name="pag_23">{23}</a></span> +que parece não ter figurado pouco a intriga +politica da ultima hora,—se recolheu +aos seus telheiros.</p> + +<p>Fez o acaso que me defrontasse com +o proprietario da Tabacaria, em que passava +uma parte das noites, a conversar, por distrahir-se +e illudir a monotonia que o cercava.</p> + +<p>Deu-se-me logo o snr. Fonseca, não +afianço o appellido, como tendo sido muito +da intimidade de Fialho, propondo-se reproduzir +factos e retalhos seus de conversa +que, é claro, lhe sahiam pouco authenticos...</p> + +<p>—Conheceu-o pessoalmente? me perguntou +elle, a meio das suas tiradas.</p> + +<p>E, á minha negativa:</p> + +<p>—Pois olhe que era melhor ouvi-lo, do +que lê-lo!</p> + +<p>Os livros valem pouco, accrescentou, +em comparação com o que elle aqui nos +contava...<span class="pn"><a name="pag_24">{24}</a></span></p> + +<p>E logo continuou a palavrear ácerca do +Artista, emquanto eu me explicava a sua +vida final, o suicidio provavel, os caixões +de revistas que vira em Villa de Frades, e +com as quaes elle, por ultimo, quasi obrigado +a viver ali, bem por certo, de volta +a casa, iria feriar-se daquellas noites mal +conversadas com quem, por falta de ouvidos, +não podia ouvi-lo,—a elle que fora +em Lisboa, o primeiro de um cenáculo de +que haviam feito parte, entre outros, artistas +como Ramalho e Bordallo, ao lado de +curiosos, ás vezes, valha a verdade, bem +inferiores ao sympathico negociante, que, +ao menos, herdara do seu convivio a devoção +supersticiosa da sua memoria!</p> + +<p> </p> + +<p>Como quer que seja, pois que Fialho +passou em Cuba os ultimos annos da sua +vida, importa-me naturalmente escrever da<span class="pn"><a name="pag_25">{25}</a></span> +pequena cabeça da comarca o pouco que +della apontei de más lembranças.</p> + +<p>Como acima referi, não tem ella, para +mim, a bem dizer, outro interesse alem do +que lhe advem do facto de ter sido o derradeiro +exilio do Escriptor, que se dava a +disfarçá-lo, administrando directamente as +suas herdades.</p> + +<p>Especie de villa improvisada, sem paizagem +que pudesse entreter, por momentos, +o espirito, aliaz exigentissimo do Artista; +sem edificios de valor; com repartições inferiores; +avenidas lugubres, no geito da +Alameda, sobranceira ao Caminho de ferro, +e sombria como uma rua de cemiterio; habitações +mesquinhas, servidas de ruas mal +calçadas; a Estação, a distancia, quasi que +fugida da terra que a fizeram servir—tal +é, de facto, Cuba, cujo casario abre +sobre a campina formidavel do sul como +uma aguarella infima!<span class="pn"><a name="pag_26">{26}</a></span></p> + +<p>E, entretanto, foi ali que Fialho quiz +ficar, e mandou que lhe erigissem o mausoleu, +que visitei na ultima tarde da minha +estada em Cuba, depois de dolorosos +transes para arrancar duma adega o chaveiro +do Cemiterio.</p> + +<p>Ah! como Fialho tinha razão, ao informar-nos +no conto—<em>A Ruiva:</em>—«Ha +uma coisa peior que um cão damnado: é +um coveiro bebado!»</p> + +<p>Comtudo, ao lado dum tal coveiro segui +eu até ao cemiterio de Cuba, em que, +aliaz, coisa alguma de notavel fui encontrar.</p> + +<p>Todos os cemiterios, a meu ver, se parecem; +o da Cuba vale o <em>Père-Lachaise</em>, +como o de <em>Montmartre</em> ou <em>Montparnasse</em>, +por nomear os trez mais notaveis de França +(onde os homens passam por mais reconhecidos)—como +os de todas as terras, +ainda os das muito civilizadas e extremas.</p> + +<p>Imagine-se um cercado alto, com o ar<span class="pn"><a name="pag_27">{27}</a></span> +de casa, á qual o vento arrebatasse o telhado, +arruamentos de capellas e arcas com +lettras de pedra, uma especie de convento de +ossos, onde todos os dias ha camas de terra +revolvidas e cruzes novas;—a frieza dos +brancos e solemnes livros de marmore, das +flores, ali casuaes e tranzidas, dos esguios +arvoredos, como de todo um pequeno +mundo de symbolos;—uma lage-obstaculo +em cada campa, e, como a fechar +mais os que jazem, gradis, linhas de cimento +juntando as cantarias, mais um complicado +e diabolico systema de cremalheiras +e cadeados!</p> + +<p>Eis o cemiterio de Cuba, cujo desenho +é, de facto, o de todas as grandes ou pequenas +cidades de mortos, dos quaes os +vivos se vão desquitando, mais ainda do +que cobrindo-os daquelles obstaculos,—quasi +esquecendo-os para ali, onde perpetuamente +terão de ficar, afastados de tudo,<span class="pn"><a name="pag_28">{28}</a></span> +onde jámais chegará o proprio carinho selvagem +dos temporaes, sós, entre os silencios +negros da sua noite immensa, velados +dos elementos, a par das esculpturas +somnambulas dos tumulos, tambem de si +indifferentes, abstractas, e, como por acaso, +ali dispostas, ainda por erguerem (paredes-meias +dos cinerarios) o formal e glacido +tributo da sua agonia fria e lapidar!</p> + +<p>Ora, isto me ia eu recordando, ao seguir, +mais o coveiro, pelo cemiterio de +Cuba, do mesmo passo que, sem querer, +lembrava certas passagens da Obra de Fialho, +que, de momento, quasi me falavam, +e, eu sentia, como que batidas de vento, ao +meu ouvido...</p> + +<p>Como no caso das grandes paginas de +presagio da sua monographia—<em>Manuel</em>, +começára de anoitecer, e os sinos tocavam!</p> + +<p>Ainda mais, lembro-me de ouvir, ao<span class="pn"><a name="pag_29">{29}</a></span> +longe, nitidamente, distinctamente, representando-se-me +como um relampago vermelho +á meia treva, o uivar daquelle cão, +que, quando, em taes paginas, o Artista se +dá a dialogar com o Coveiro a probabilidade +de Manuel ser enterrado vivo, como +toda a sua afflicção pela farça material +dos tumulos—como que o chama á realidade +desse mundo que fica para alem +do proprio pezadelo hystero-epiletico da +sua tortura de superemotivo, e lhe queda, +a dobrar, na alma, o timbre vivo e sinistro +da hora horrivel que já não conta, e, eu, de +momento senti ali, perto delle, bater tragicamente, +lugubremente, como um echo +do seu sentido, ainda doloroso, embora já +distante, vago, erradio...</p> + +<p>Porque, para mim, esse typo de <em>hysterico</em> +e <em>fragmentado</em>, <em>contradictorio</em> e <em>presciente</em> +que figurou no <em>Manuel</em>, é fundamentalmente +elle proprio, desdobrando-se<span class="pn"><a name="pag_30">{30}</a></span> +por escrever a sua mesma «duplicidade cerebral» +e gritar contra a desgraça do <em>outro</em>, +«o que morrera», e agora, eu sabia ali, +sem que ao menos pudesse precisar onde!</p> + +<p>Onde?</p> + +<p>Eis o que o coveiro, depois que o instei, +se deu a contar-me, moendo as palavras, +que, aliaz, lhe sahiam cavas e aos gorgolões, +como se me falasse ainda da adega á +qual, minutos antes, o fôra arrancar.</p> + +<p>Afinal pouco tem que ver a futura Casaforte +dos ossos de Fialho,—no começo da +primeira rua do cemiterio, e a poucos passos +do portão, como do logar em que nos +encontravamos.</p> + +<p>Imagine-se uma especie de cofre em +marmore branco, sem arestas, escrupulosamente +polido e goivado á volta, quasi sem +ornatos, uma porta grossa cruzada da fecharia,—todo +elle de um desenho facil, e, +por sobre a cupula, ainda de pedra, dois<span class="pn"><a name="pag_31">{31}</a></span> +gatos de bronze, dormindo abraçados o velho +somno dos symbolos! Eis tudo...</p> + +<p>Este, repetimos, o mausoleu que lhe +servirá em breve.</p> + +<p>Porque provisoriamente, e a avaliar das +informações que apontei, o Escriptor, descança +ainda, de momento, ao fim do cemiterio, +perto da ultima parede, num pedaço +de chão mal tijolado e de emprestimo, +em sepultura rasa...<span class="pn"><a name="pag_32">{32}</a><br><a name="pag_33">{33}</a></span></p> + + +<h2>II</h2> + +<h2>A INDOLE DE FIALHO</h2> + +<p><span class="pn"><a name="pag_34">{34}</a><br><a name="pag_35">{35}</a></span></p> + +<div class="cap"> +N<span class="sc">ão</span> é facil escrever de momento, e directamente, +ácerca dum artista como +Fialho, tal o occultismo das suas predilecções, +como, mais propriamente, da obra +que deixou, e tomaremos ainda como indice +da sua singularissima neurilidade.</div> + +<p>Assim, começaremos por esclarecer que +Fialho d'Almeida era filho de um homem +da Beira e de uma mulher do Alemtejo, +por melhor caracterizar algumas das suas +extranhezas e contrastes, como o seu conflicto +em materia de assumptos e realizações +artisticas, que, antes de tudo, parecia +advir-lhe do ser encontro de duas raças.</p> + +<p>Da mesma maneira que cumpre ter presente<span class="pn"><a name="pag_36">{36}</a></span> +a influencia da provincia em que nasceu, +e que, na infancia, a edade impressionavel +por excellencia, lhe deu aquelle amor +pela tinta mais propria, ou seja a que os seus +olhos receberam directamente da paizagem; +como a sua grande intimidade com +a natureza, com quem aprendeu a exprimir-se, +e que tão fundamente foi penetrada +pelo seu genio.</p> + +<p>De facto, nenhum elemento mais cioso +da transmissão do caracter do que a terra. +O que Fialho prova, á saciedade, a par dos +nossos maiores impressionistas.</p> + +<p>Desenvolvemos noutro logar<sup><a href="#nota1" name="m_nota1">[1]</a></sup> a indole +da zona mais meridional do Alemtejo, +onde se incluem Cuba e a pequena villa +em que nasceu Fialho.</p> + +<p>Resulta daquelle estudo um campo +ethnico á parte na geographia intima de<span class="pn"><a name="pag_37">{37}</a></span> +Portugal região embaraçada da herança +arabe, que semelhantemente se vê na cultura, +nos seus barros e azulejos, nas suas +casas, como nas manifestações mais simples +da vida vulgar dos seus habitantes.</p> + +<p>Ora Fialho, que ali passou parte da infancia +jámais destruirá a recordação do primeiro +espectaculo natural que feriu a sua +retina de colorista, e, depois, pela vida +fóra, mais se lhe foi insinuando pela mesma +fatalidade de sangue e nascimento que á +sua terra o prendia. É isto, apesar da herança +de tristeza que tambem desta lhe +provinha, e a que se refere, ainda doridamente, +annos depois da sua estada ali, +no capitulo autobiographico do <em>Á Esquina</em>.</p> + +<p>De facto, é sempre presente, na sua +obra, aquelle primeiro campo de observações. +Ahi ha a ver a intriga das passagens +mais violentas das suas narrativas, as tintas +das suas combinações de painelista, os<span class="pn"><a name="pag_38">{38}</a></span> +dialogos e personagens brutaes da sua +tragedia mais popular; e, para alem, ainda, +da paizagem, como das figuras, a razão +culminante do seu genio de origem, em +que migra o sonho luxurioso, mais que dum +artista e dum povo,—duma civilização perdida!</p> + +<p>Importa insistir: a herança arabe se não +vingou entre nós, como em Hespanha, a +ponto de que, ainda hoje, quasi tudo o que +tem de grande se não foi della, nella se +filia—nem por isso deixou de influir no +genio de Portugal, onde logrou a sua invasão +pelo Sul, e, onde, repetimos, se conserva +evidente.</p> + +<p>É ali viva, manifesta em todas as coisas, +e, sobretudo, nos homens, a quem as mesmas +condições da terra naturalmente defenderam +das fusões com outras raças.</p> + +<p>Ora, assentes estes factos, e tendo +presente os ensinamentos que do seu conhecimento<span class="pn"><a name="pag_39">{39}</a></span> +derivam, chegamos logicamente +a entender melhor o caso, na apparencia +extranho, das manifestações, por +vezes distantes e tão intensivamente artisticas +do Sul, e mais, em especial, de certos +capitulos da obra de Fialho d'Almeida.</p> + +<p>Em verdade, eu não encontro para explicar-me +o exuberante exquisito de algumas +paginas do Artista, mais do que o segredo +das colorações, como dos labyrinthicos e +caprichosos desenhos de certos e admiraveis +exemplares da civilização arabe na Peninsula, +dentre os quaes me veem á lembrança, +quasi sem o querer, os velhos monumentos +da Andaluzia, tambem, porventura, +da melhor intimidade de Fialho, e que +o deviam ser de todos os artistas, muito +particularmente dos de Portugal e Hespanha.</p> + +<p>E, de facto, qual o artista, verdadeiramente +curioso de civilizações mortas,<span class="pn"><a name="pag_40">{40}</a></span> +que não percorreu ainda Alhambra,—a +Alhambra monumental dos grandes Paços +de Luz, redosos e filigranados, cujos marchetes +e esmaltes se nos defrontam, mais +do que como obra paciente e custosissima, +quasi dolorosos á nossa admiração, pela +mesma regularidade do seu maravilhoso, +tão distantemente extranho!</p> + +<p>Pois paga a pena a sua visita, sobretudo +á luz de certas horas, quando, pelo +estio, a tarde transfigura os monumentos, +quasi os move!—e Alhambra inteira +exulta á claridade frouxa dos seus crepusculos.</p> + +<p>Como, de egual sorte, surprehende o +desenho interior dos phantasticos paços, +ainda pelo que abrigam de inaudito, no +espectaculo das suas casas-retabulos, aliaz +tão intimamente caprichosas, como se fossem +ampliações das covas naturaes que, +no Monte Sacro, lhes são fronteiras.<span class="pn"><a name="pag_41">{41}</a></span></p> + +<p>É que ninguem como o povo arabe +teve o segredo dos recantos, soube estudar +e praticar as sombras, quasi medir a +penumbra das arcarias; da mesma forma +que tambem ninguem mais, como elle, +conseguiu dominar pontos de vista, aperceber +horizontes, toda a natureza, moldurá-la +dos seus monumentos, por vezes verdadeiros +filtros de luz,—viver, sentir a côr, +e, o que é mais, orchestrá-la na sua obra, +de uma fina grandeza sem egual.</p> + +<p>Dahi tambem o não se saber que mais +admirar dos encantados paços, bem de +molde a servirem a luxuria religiosa de tão +lendario povo, se o labyrinthico desenho +das suas paredes, como dos seus tectos e +azulejos, se o mesmo diabolismo e imaginativa +do seu alçado!</p> + +<p> </p> + +<p>Ora, derivando dos monumentos attribuidos +ao genio arabe, á razão de sangue<span class="pn"><a name="pag_42">{42}</a></span> +que flue na gente do sul da Peninsula, +chegamos facilmente á averiguação do +grande valor da tutela semita no nosso +movimento tradicional, mercê daquella +herança—tutela sobremaneira documentada, +no mais do nosso lyrismo, como, em +regra, em toda a nossa obra artistica.</p> + +<p>E, assim, nos encontramos, muito naturalmente +com o caso de Fialho d'Almeida.</p> + +<p>De facto, dentre os grandes plasticos +da Peninsula, quem mais que o grande +Artista conseguiu ainda praticar um +semelhante ou equivalente embrenhado +de esmaltes e de linhas, o segredo da luz +e da côr, identica riqueza no processo de +exprimir Arte, toda aquella ancia de vida +luxuriosa que ergue o mais da obra arabe, +e, em que domina sempre, ao lado do culto +do individuo, considerado na sua religiosidade +como no seu luxo,—a preoccupação +alacre do supremo culto da Natureza!<span class="pn"><a name="pag_43">{43}</a></span></p> + +<p>E, entretanto, não foi, ainda, sob um tal +ponto de vista que principalmente nos demos +a estuda-lo.</p> + +<p>A verdade é que fiamos pouco do rigorismo +dos methodos geralmente considerados +como mais logicos, por mais naturalistas, +os que tudo explicam pela razão exclusiva +da procedencia e do meio—quando +se trata de comprehender emotivos da estatura +de Fialho, cuja obra precisa, a nosso +entender, principalmente ser considerada +sem opinião previa, ou seja a toda a luz +dos seus livros, e onde ha, a par das +admiraveis fatalidades das suas taras de +artista do Sul, o conhecimento, os commentarios, +como a presença ou suggestões +de tudo o que nesse rodopio de Arte, que +foi a segunda metade do outro seculo, +podia considerar-se de mais interessante ou +notavel.</p> + +<p>Mas caminhemos vagarosamente. Em<span class="pn"><a name="pag_44">{44}</a></span> +primeiro logar, convem ter presente que +ha nos recursos de Fialho d'Almeida um +grande numero de facetas e a tal ponto +imprevistas e admiraveis, que, a elle proprio, +o offuscaram, perturbando-o, e impedindo +até que realizasse o que para +todo o auctor deve ser o primeiro fim—a obra +de conjuncto, que, exactamente, +resulta do ajustamento ou systematização +de todo o seu trabalho, de molde a levantar +a figura do Artista se elle é um temperamento, +ou o objectivo da sua Arte, quando +elle tenha de desapparecer, em sacrificio á +sua mais propria missão.</p> + +<p>O tempo é ainda um material ao dispor +dos artistas, embora, quanto a nós, o peior +dos materiaes.</p> + +<p>Fialho devotou-se-lhe, talvez, excessivamente. +Pois que tinha auscultado a miseria +do povo, no seu instincto, por desventura +apurado nos primeiros annos da sua vida<span class="pn"><a name="pag_45">{45}</a></span> +de acaso, não raro deixou falar o coração, +para alem da sua mesma canseira de Artista.</p> + +<p>Quantas vezes elle, que foi um espirito +alto e pairante, se deu a desmedir o grito +dos que a propria miseria, confinada da cobardia +congenita das desgraças populares, +havia tornado quasi aphonos, e que ainda, +por uma razão de indole, eternizou vivo e +plebeu,—tal como lhe sahiu, ao primeiro +golpe, nas paginas formidaveis dos <em>Gatos</em>!</p> + +<p>Foi isto um delicto de Arte, seria um +bem?</p> + +<p>Foi um facto. E este facto vale o melhor +da sua obra de pamphletario que, +antes de qualquer outra, convem ter presente.</p> + +<p>Ora, neste rumo de trabalhos, seguiu +elle, naturalmente, o exemplo de todos os +pamphletarios;—isto é, deu-se a compor +paginas do material commum, o que vale<span class="pn"><a name="pag_46">{46}</a></span> +dizer de aspirações e casos, não raro menos +claros de que vulgares!</p> + +<p>Dahi partiu, e logicamente foi até ao fim: +a servir a propria plebe politica—a peior +das plebes!</p> + +<p>Houve tempo em que não socegou. +Numa canseira pertinaz, diaria, quasi tomou +por seu dever perseguir a vida constituida, +onde quer que ella surgisse ou se +se lhe afigurasse.</p> + +<p>Ora, este foi, tambem, porventura, o seu +mal, assente como está que, em materia de +vida conjuncta, peior do que qualquer instituição +crapulosa ou gasta, é a sua substituição +á doida, á sorte, como infelizmente, +entre nós, elle a ajudou a preparar!</p> + +<p> </p> + +<p>Acabo de percorrer os <em>Gatos</em>, onde +reuniu o melhor da sua Arte de pamphletario.<span class="pn"><a name="pag_47">{47}</a></span></p> + +<p>Do primeiro ao ultimo opusculo, que serie +de estudos, de commentarios, de almas +e acontecimentos tratados pelo seu riso!</p> + +<p>Tudo o que elle tinha de imprevisto, +como tudo o que da inferioridade de uns +poude reunir e editar para servir a inferioridade +dos outros, está ali, nos seis volumes +que hoje formam a Obra, e ficará +como documento dos seus violentos e extremadissimos +recursos.</p> + +<p>Pois que foi a civilização quem categorisou +o riso, transfundindo-o, filtrando-o +até á ironia, uma das grandes forças da +demolição moderna,—importa ainda considerar +o riso de Fialho.</p> + +<p>A ironia de Fialho, se assim podemos +escrever daquella sua indole—era +ainda, como não podia deixar de ser, um +caso mais do seu temperamento de violento, +aggravado do tempo e meio em que, +por acaso, reagiu.<span class="pn"><a name="pag_48">{48}</a></span></p> + +<p>Assim, nada tem de commum, por +exemplo, com Eça e Camillo, por falar +dos humoristas mais discutidos da lida +contemporanea.</p> + +<p>Camillo era a graça a flux, com os seus +laivos de razão intima, muito para alem dos +castellos politico-litterarios de momento, +golfando risos ao acaso da sua natural interpretação +sinistra de Humanidade.</p> + +<p>Eça deu-se scepticamente a lapidar costumes +e figuras infimas, no geral de uma +banalidade exhaustiva, á conta do prazer +do seu riso frio, que logo se fez moda, +como tudo o que nos vinha de fóra, por +seu intermedio.</p> + +<p>É ver o successo das <em>Cartas de Fradique +Mendes</em>, «um Acacio a serio», informa +Fialho, e cuja prosa relata o apontoado +symetrico das notas dum civilizado, ali +paciente e cuidadosamente estylizadas pelo +seu sentido de mundano.<span class="pn"><a name="pag_49">{49}</a></span></p> + +<div class="ilustracao"> + +<p><img src="images/fialho2.jpg" border="0" width="100%" alt="Fotografia de Fialho d'Almeida."></p> + +<p>FIALHO D'ALMEIDA</p> +</div> + +<p>Ora, nada de premeditado encontramos +em Fialho, e nomeadamente nas notações +dos Gatos, por cujo entrecho natural é que +comecemos o exame á sua obra.</p> + +<p>A razão desta preferencia incide, é +claro, na mesma indole dos folhetos que +reuniu debaixo daquelle titulo, e, onde, +de facto, encontramos, a despeito dos +seus propositos, o Fialho definitivo, quer +sob o ponto de vista do estylo e inauditismo +de Arte, quer ainda pela acção demolidora +que tanto foi de seu empenho e +naquella obra rajou desesperadamente, a +paginas plenas, como em nenhum outro +dos seus trabalhos.<span class="pn"><a name="pag_50">{50}</a></span></p> + + +<div class="rodape"> +<p><sup><a href="#m_nota1" name="nota1">[1]</a></sup> +Terras do Sul.</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a name="pag_51">{51}</a></span></p> + +<h2>III</h2> + +<h2>O PAMPHLETARIO</h2> + +<p><span class="pn"><a name="pag_52">{52}</a><br><a name="pag_53">{53}</a></span></p> + +<div class="cap"> +A<span class="sc">bre</span> os <em>Gatos</em> o aviso-cartaz de que o +auctor se propõe tratar criticamente os +homens e os acontecimentos, explicando, +humoristicamente, o nome da publicação.</div> + +<p>O primeiro folheto da serie tem a data +de Agosto de 1889, e inaugura por um capitulo, +pleno de paixão artistica, com seus +esmaltes de irreverencia, e a que elle chamou:—<em>Bric-á-bracomania, +como cultura +e como doença.</em></p> + +<p>No desenvolvimento da curiosa these +encontra-se naturalmente com o caso do +testamento de D. Fernando. Este caso foi +um dos mais antipathicos e escandalosos +do tempo, pois que accendeu nos Paços,<span class="pn"><a name="pag_54">{54}</a></span> +com o odio da rainha pela condessa d'Edla, +uma questão de familia burgueza, em que +se discutiu tudo, desde a imaginada loucura +lucida do principe, ao tempo das suas +ultimas disposições, até ao valor e direito +dos <em>bibelots</em> e quadros do seu espolio!</p> + +<p>Veio a questão para a rua, e, ainda dessa +vez, rua e Paço se deram as mãos, na roda +de insultos dirigidos á viuva de D. Fernando, +sem attenção pela memoria deste +principe, cuja probidade foi tratada sem +sombra, não diremos já de justiça, mas de +delicadeza.</p> + +<p>Em nome dos republicanos dirigia, no +<em>Seculo</em>, a campanha Rodrigues de Freitas, +valha a verdade, serenamente. Por parte do +Paço, e vestindo, mais uma vez, a innocente +pelle do povo—. escrevia Emygdio Navarro, +tratando cynicamente D. Fernando, em +quem diagnosticara dois scirrhos—o da +cara, que o levara á morte, e o do coração,<span class="pn"><a name="pag_55">{55}</a></span> +que elle, Emygdio Navarro, se propunha +sarjar publicamente, fazendo-lhe a historia +na praça das <em>Novidades</em>, e isto, affirmava, +por dignificar a memoria do Rei!</p> + +<p>Fialho que, de facto, era um delicado, +e, por accidente, se fizera politico, e, bem +por certo, lhe repugnava toda aquella griteira, +tratou tambem do caso moderadamente, +chegando a lembrar até a arbitragem +para resolver os direitos do espolio controvertido.</p> + +<p>Ainda, por egual forma, trata a figura +de D. Fernando, cujo perfil surprehende, +sobretudo, á luz da sua aventura de amoroso +e homem de Arte.</p> + +<p>Assim visto, não podia elle deixar de +lhe ser sympathico, e dahi tambem o seu +elogio, mal disfarçado, como as attitudes +em que o focou, e donde mal sobresahe o +vulto, ao tempo tão acintosamente discutido, +do Rei!<span class="pn"><a name="pag_56">{56}</a></span></p> + +<p>Quer dizer, em verdade, é ali presente +a homenagem do Artista ao Artista, para +lá de todo o convencionalismo critico, como +de toda a exigencia publica.</p> + +<p> </p> + +<p>Começa o segundo opusculo por um +capitulo dedicado ao violoncellista Sergio, e +que, neste proposito a que nos obrigamos, +de mero indiciador das suas passagens de +mais interesse e que melhor o mostram—mal +podemos tratar condignamente.</p> + +<p>Registe-se, no entretanto, o extremado +capitulo, como um dos mais notaveis da +sua obra, e, alem de tudo, a forma como +elle, sempre tão presente nos seus livros, +sabia, embora excepcionalmente, apagar-se, +quando as circumstancias lhe conferiam Arte +que um tal sacrificio valesse.</p> + +<p>É o caso do violoncellista. Para no-lo +descrever, Fialho quasi se apaga no café-concerto<span class="pn"><a name="pag_57">{57}</a></span> +da Mouraria, em que o apresenta, e, +onde, de facto, elle costumava ir, ás noites, +transfigurando-o da sua Arte, cuja referencia +é, ainda, como que a sombra resoante +da alma tão extranhamente regressiva +do Musico.</p> + +<p> </p> + +<p>Paginas adiante, é tambem com paixão +e valor equivalentes que, a proposito das +exequias de D. Luiz, trata a figura da +Rainha.</p> + +<p>D. Maria Pia resalta do seu exame +como uma resurreição dos grandes dramas +reaes de Shakespeare, ou seja como um +verdadeiro prodigio de alma, genialmente +estatuada da sua tristeza de soberana-viuva, +equilibrando-se no orgulho profissional +da sua creação de princeza de raça, acaso +abordada ás praias portuguezas.</p> + +<p>Inegualavelmente soberba, de facto, a<span class="pn"><a name="pag_58">{58}</a></span> +sua maneira de tratar a lendaria Rainha que +surprehende nos funeraes do Rei como um +alabastro solemne!</p> + +<p>Assim a tinha sonhado, tanto como +o Paço, a propria Rua que, entretanto, lhe +perdoava tudo, ainda os mais custosos +dispendios, tomando-a, mais do que como +Rainha—como uma figura de luxo, especie +de marmore vivo, por boa fatalidade, a +soldo no Museu Real das Necessidades.</p> + +<p>Tambem, por seu lado, ella cumpria escrupulosamente +o papel a que, por sua +mesma prosapia, se compromettera (fôra +cheia de protocolo a sua escriptura de esponsaes)—e +dahi o vê-la toda a gente +mais do que cerimoniosa, theatral, quasi +memoria, seguindo sempre, de par da sua +lenda, de que ninguem, nem ainda os mais +ousados, tentaram algum dia separá-la!</p> + +<p>Quando endoideceu (a natureza é +logica; que outra doença devia segui-la?)<span class="pn"><a name="pag_59">{59}</a></span> +logo os jornaes vieram contar as parabolas +da sua loucura, nos Paços de +Cintra; corriam historias de <em>toilettes</em> que +jámais usara; e, por fim, enterneceu a sua +retirada de Portugal, quando, na Ericeira +partiu, tão magestosa e alheadamente, +como annos antes, tinha chegado...</p> + +<p>A differença dos dois espectaculos, estava, +unicamente, no tempo, que daquelle +passo final da sua vida tinha urdido mais +uma tragedia!</p> + +<p>Chegara solemnissima, recebida por +toda a ordem de festas e alegrias officiaes; +retirou, á opportunidade da primeira +revolução, como uma rainha usada, que já +não serve, e segue, á pressa, devolvida, +ao paiz de origem.</p> + +<p> </p> + +<p>Despedimo-nos com pezar destas paginas, +que tão fundamente, por si, bastariam<span class="pn"><a name="pag_60">{60}</a></span> +a vincar a alma do Artista, acaso nellas +mal casada á sua preoccupação de pamphletario,—para +derivar a outras que, na sua +obra, dão o contraste da violencia, talvez, +mais inopportuna e abrupta, que ainda instigou +critica portugueza!</p> + +<p>Reportamo-nos ao caso grosseiro das +suas diatribes contra Guilherme de Azevedo +que justiçou depois de morto, e declara analysar +sobre uma pedra de autopsia, ainda +sem piedade por si, como pelos leitores, e +quando aquelle, já longe, havia ganho, ha +muito, o esquecimento publico!</p> + +<p>Na sua quasi diabolica sanha de deprimir +vê-o primeiramente no seu logar de escrivão +de fazenda em Santarem, onde o surprehende +a passear os seus aleijões, de par +das suas canseiras de lyrico e apaixonado +ridiculo.</p> + +<p>Depois examina-lhe, publicamente, os +defeitos, as suas fraquezas e purgueiras de<span class="pn"><a name="pag_61">{61}</a></span> +estrumoso, como a sua obra, na parte mais +rebuscada, indo até pracear-lhe os papeis +unhados pela lida do chronista!</p> + +<p>Por fim, como que convida o publico a +assistir-lhe á morte, em Pariz, numa casa +de saude!</p> + +<p>E, para o caso de que o publico falte, +redige elle mesmo a informação da agonia +do Artista, passada, esclarece, entre sujidades!</p> + +<p>Ora eu não sei de outra hora tão extranhamente +infeliz para um escriptor!</p> + +<p> </p> + +<p>Do mais dos artistas contemporaneos, +e, especialmente, dos pintores, é sabido o +que escreveu de desalentador para elles +que já, contra si, tinham tudo:—a rua, o +mundo politico, o meio pobre em que trabalhavam, +o paiz de origem, e toda a serie<span class="pn"><a name="pag_62">{62}</a></span> +de prejuizos que, para mais, Fialho conhecia +intimamente como ninguem!</p> + +<p>Comtudo, nem Columbano escapou a +esta sua impertinencia, por vezes de uma +irritação doente, quasi atrabiliaria e descomposta, +á conta da sua faina de exigir +do mundo plastico, mais do que representações +da natureza, verdadeiras telas +vivas, porventura, a capricho, illuminadas +das suas mesmas composições escriptas.</p> + +<p>Dahi a sua injustiça para com o grande +pintor que, no seu juizo facil da primeira +hora, qualificou de mero artista hesitante, +como que estagnado, «perdido, na monotonia +cadaverica dos seus quadros de imitação!»</p> + +<p>E, de identica maneira, tratava os outros.</p> + +<p>Não lhe era facil fugir á fatalidade do +seu genio, sempre em duvida, e que mascarava<span class="pn"><a name="pag_63">{63}</a></span> +de desdens; para mais acossado pela +circumstancia de viver, o mais do tempo, +em Lisboa, onde os Artistas teem <em>ateliers</em> +paredes-meias, e a Arte anda sempre ao de +cima das sympathias duma tal Cidade, +ainda, como nenhuma outra, de entre as +nossas, aberta a intimidades, mettediça, e +pretenciosamente futil!</p> + +<p>Dahi tambem a sua maneira, quasi mesquinha, +de tratar a Politica e, em especial, +os politicos.</p> + +<p>A Carlos Lobo d'Avila, por exemplo, +processa-o como degenerado.</p> + +<p>Lopo Vaz é, para elle, um mero «preboste +regio». A Barjona toma-o como um +conselheiro de negocios, anecdotico e sujo. +Hintze é uma especie de empresario de +Portugal—feitoria-ingleza, figura dependente +e quasi irresponsavel ás ordens da +dynastia, e assim os outros.</p> + +<p>A paixão do pamphletario céga-o a<span class="pn"><a name="pag_64">{64}</a></span> +qualquer vislumbre de justiça para com politicos +e assim tambem para com o Rei, que, +ainda á maneira popular, considerava como +figura enkystada no corpo governativo da +Nacionalidade.</p> + +<p>Dahi tambem o atacá-lo systematicamente, +afeiando-o de todos os delictos, em +que não deixou de figurar a pecha das +mais ruins ingratidões, as já classicas ingratidões +dos reis!</p> + +<p>Quer dizer, consciente ou inconscientemente, +foi, como todos os pamphletarios, +um Orpheu da Rua, pelo menos até se sentir +sacudido por ella.</p> + +<p>E fossem lá insinuar ao seu aferro pelas +chamadas reivindicações democraticas, +que atraz da ingratidão dos reis, está sempre +a ingratidão dos povos; que a França, +por exemplo, politicamente radical, no curso +de dezenas de annos, conserva no <em>Père Lachaise</em> +a ossada de Balzac, ao passo que<span class="pn"><a name="pag_65">{65}</a></span> +carreou, ha muito, para o Pantheon Carnot +e outros menores!</p> + +<p>De que lhe serviria, de momento, o +aviso? O que sempre enche a obra do +pamphletario é a philosophia facil do odio +ao Constituido, onde quer que elle se encontre. +Emquanto ha reis, a culpa de tudo +o que existe de mau, ou por tal passa, é dos +reis; como é dos padres emquanto ha padres; +dos validos emquanto ha validos; em ultimo +logar, dos parlamentos; de tudo, emfim, o +que o povo, em nome dos seus direitos, +nunca até hoje definidos, organiza e desorganiza, +menos a seu talante, do que ao +acaso de uma esperança ou das gerações +por apparecer!</p> + +<p>E, comtudo, não falta nunca quem se +dê a orchestrar a sua voz, por mais vaga, +ou dissonante que ella seja.</p> + +<p>É preciso que o escriptor tenha, mais +do que talento, uma sensibilidade propria<span class="pn"><a name="pag_66">{66}</a></span> +e escrupulosamente cerrada ao gosto publico, +melhor ainda, religiosamente isenta, +para que possa afastar, com desprezo, o +applauso geral, repulsando, para longe, o +titulo de dirigente, ou seja o de encantador +das multidões, pelo qual, principalmente, o +maior numero dos apostolos se bate.</p> + +<p>E, em todo o caso, como aquella isenção +é rara!</p> + +<p>Ainda os de melhor fé e que se julgam +de posse duma missão necessaria, raro +chegam, por si, a conhecer do erro de excesso, +em materia de reverencia e culto +pelo publico!</p> + +<p>O que, a miudo, se dá, é a inutilidade +da sua faina, e isto pelo mesmo uso +daquelle prestigio, ainda sujeito, como tudo, +á acção do tempo que sómente, não consome +as obras de sentido definitivo.</p> + +<p>Este foi tambem o caso de Fialho que +durante annos destruiu, sem treguas, confundindo,<span class="pn"><a name="pag_67">{67}</a></span> +propositadamente, os principios e +os homens, batendo, de toda a maneira, +um systema que, sobretudo, foi erro não +termos reformado dentro das nossas melhores +tradições; e que elle, Fialho, como +os demais contemporaneos escriptores politicos, +reputaram fóra de toda a razão nacional.</p> + +<p>É claro que deste erro se confessou +mais tarde repeso—ou tenha sido quando +as suas palavras offereciam menor echo—ao +ver que, para os logares mais responsaveis, +quando o antigo regime cahiu, +o paiz, democratizado á força, não encontrou, +de momento, para substituir o +corpo official expulso, mais do que gente +ousada, que mental e moralmente valia menos +do que a anterior, que de si já estava +muito abaixo da geração que a havia antecedido, +e cuja herança nem sequer soubera +defender!<span class="pn"><a name="pag_68">{68}</a></span></p> + +<p>É de justiça lembrar que tambem Fialho +foi dos primeiros a corrigir os impetos +dos pretendentes que, de todos os lados, +surgiram com a sua conta de serviços; +embora o facto valha unicamente a justificar +a sua boa fé.</p> + +<p>Era tarde. Á sombra das suas paginas, +como das de Ramalho, Junqueiro, Eça e +Bordallo, por lembrar os maiores, se tinham +elles organizado de vez, entretanto +que a alvorada do regime abria logicamente +por um banquete!</p> + +<p>Para mais, quasi todos os demolidores, +companheiros de Fialho, tinham desapparecido. +Ao acaso do tempo ficara, unicamente, +Ramalho—velho, surdo a louvores +como a insultos, fechado na sua cella de +valetudinario, em Lisboa, de facto uma especie +de santo de nicho do <em>bairro alto</em>, a +quem já, a bem dizer, ninguem recorria, de +cujos milagres ninguem mais queria saber...<span class="pn"><a name="pag_69">{69}</a></span></p> + +<p>Bordallo morrera, providencialmente, +antes do bôdo.</p> + +<p>Alem de que, quem se atreveria a continuar-lhe +a obra? Onde o artista da sua coragem, +á altura de um jornal nos moldes +do <em>Antonio Maria</em>? Onde o redactor graphico +do seu estylo, e, mais ainda, onde +as personalidades-motivos a enchê-lo?</p> + +<p>Como quer que seja, Fialho, leal ao +que, de começo, se impuzera, tentou ainda +o ultimo esforço, contra o muito do que +succedera e lhe repugnava tanto como á +consciencia, á sua sensibilidade, acuradissima, +de Artista.</p> + +<p>Era tarde, repetimos. Já ninguem o ouvia, +demais que elle proprio tinha perdido +o vigor das suas primeiras investidas!</p> + +<p> </p> + +<p>E, entretanto, o Artista crescera ainda, +depois das novas provações, ou antes tinha-se<span class="pn"><a name="pag_70">{70}</a></span> +accrescentado daquella razão de +amargura que a vida empresta sempre, +cedo ou tarde, aos temperamentos da sua +impressionabilidade, e que nelle deu a +transfiguração notavel de um ousio artistico +sem egual, e de que é, sobretudo, +exemplo essa obra trasbordante da sua +derradeira colheita—«<em>Barbear e Pentear</em>».</p> + +<p> </p> + +<p>Este livro, sublinhado pela explicação +amarga—<em>Jornal dum vagabundo</em>, que +aliaz emprega noutras obras, attinge, effectivamente, +o maximo da sua perfeição exquisita.</p> + +<p>É ali que verdadeiramente elle trata a +mulher-fada, tão de sua predilecção, e de +quem se dá a referir a <em>toilete</em>, á luz dos +móres recursos, escrevendo da sua razão +de vestir, como arte maxima; das joias que<span class="pn"><a name="pag_71">{71}</a></span> +redundam do seu imaginar em preciosos +esmaltes vivos, especie de insectos inertes, +quasi pedras mornas por não arrepiarem +a carne-seda das animadas estatuas +que são chamadas a guarnecer;—de tudo, +emfim, o que do abraço caprichoso da +arte e da natureza elle poude aventurar de +imprevisto na ideação dum espectaculo +para embriagar sensibilidades!</p> + +<p>E, de facto, chega ás maiores extranhezas +de gosto na inventiva daquelle +livro, e especialmente no seu capitulo:—<em>Juizo +do Anno</em>, quer pelo turbilhão +de côr que delle entorna, quer, sobretudo, +pelo seu empenho de phantasia +e <em>nuance</em> ali expressos, como ainda pela +circumstancia de considerar a mulher o +que, porventura, virá um dia a ser, um +caso de perfeição sómente, quando a natureza +mais accordada com o homem, sahir +de sua attitude esphingica, e isto ainda por<span class="pn"><a name="pag_72">{72}</a></span> +viver com elle uma futura vida luxuriosa, +sem medos e sem pecados...</p> + +<p> </p> + +<p>As <em>Pasquinadas</em> e o <em>Á Esquina</em> subordinam-se +á mesma rubrica:—<em>Jornal +dum vagabundo.</em></p> + +<p>Nesta ultima obra ha de tudo:—paginas +notaveis e criticas de menos folgo.</p> + +<p>São do melhor interesse as que abrem +o livro e titulou:—<em>Autobiographia</em>; e devem +ter-se como supremas aquellas em +que nos descreve os <em>Ceifeiros</em>, como as +que referem as suas impressões da Atalaya +e Exposição-Bordallo.</p> + +<p>Tambem este livro inclue umas notas +a que deu a epigraphe:—<em>Problema taurino</em>, +e que, já agora, glosaremos, embora +de fugida.</p> + +<p>Neste capitulo lança o Escriptor á balha +a idéa do toureio a serio nas praças<span class="pn"><a name="pag_73">{73}</a></span> +portuguezas, o que vale informar:—a opinião +da morte do touro, com os demais +episodios sangrentos dos curros hespanhoes.</p> + +<p>Ora a proposta, se foi sincera, destoa, a +nosso ver, da sagacidade do critico, acaso +perturbada pela paixão do aficionado e homem +do sul, paredes-meias da Hespanha +e seus costumes.</p> + +<p>O portuguez habituou-se facilmente á +morte pela associação politica; aceita, como +de direito, o assassinato por adulterio, +e toda a ordem de morte por um delicto +sectarista ou passional; o que elle jámais +decretará é a morte por uma razão de Arte, +e isto pelo mesmo facto de não comprehender +outro sacrificio que não seja para +sagrar ou colher interesse.</p> + +<p>Ora, para elle, o toureio, ainda como +exposição de vida e educação de raça, não +tem interesse.<span class="pn"><a name="pag_74">{74}</a></span></p> + +<p>As <em>Pasquinadas</em> reunem uma serie de +artigos de impressão rapida—instantaneos +dos acontecimentos e pessoas de occasião.</p> + +<p>Entretanto, como se tenha dado o caso +de ter sido obrigado a tratar de figuras +da categoria de Camillo e Sarah Bernhardt, +este livro inclue, a seu proposito, paginas +que, bem por certo, ficarão ainda como +documentos da sua desproporcionada maneira +de considerar os grandes artistas!</p> + +<p>Insurgia-se elle, a espaços, contra as +lettras, friamente rigorosas, dos modelos +mais classicos e academicos.</p> + +<p>E, de facto, importava-lhe sahir não só +das velhas disposições, como ainda dos +recursos em uso, por inteiro alheios ao +genio, mais que revolucionario, desmedido, +daquelles dois vultos, que, por isso +mesmo, tratou, não só fóra de todos os +moldes, mas, mais ainda, fóra do tempo.<span class="pn"><a name="pag_75">{75}</a></span></p> + +<p>A <em>Lisboa Galante</em>, outro livro de +voga, comprehende, em geral, episodios e +aspectos de cidade, por entre apontamentos +de casos minimos, por communs, a +todos os logares de accumulação.</p> + +<p>Entretanto, ainda ahi Fialho incluiu +phantasias e situações admiraveis, haja em +vista o conto—<em>Amor de velhos</em>; e, sobretudo, +a <em>Chavena da China</em>, porcellanas +da sua maior delicadeza e inventiva.</p> + +<p> </p> + +<p>Passaremos á pressa sobre o livro—<em>Saibam +quantos...</em> não só porque literariamente +o não accrescenta, como pela +circumstancia de nelle ter reunido cartas +e artigos politicos que valem, meramente, +como actos de sua contrição.</p> + +<p>Archivemos, no emtanto, do capitulo—<em>A +morte do Rei</em>, o seu leal proposito +de homenagem a D. Carlos, a cujo caracter,<span class="pn"><a name="pag_76">{76}</a></span> +por fim, concede as mais complexas facetas, +e a impossibilidade de falar destas em +paginas resumidas, como as que, de momento, +lhe consagra; e, mais ainda, como +fecho dellas, o seguinte:—«Pobre D. Carlos! +quando se pensa que afinal era mais +intelligente e teve talvez virtudes superiores +ás dos seus adversarios, e por não dizer +ás dos seus cumplices...»</p> + +<p>Eis, finalmente, palavras suas, ácerca de +D. Carlos, alinhadas, talvez, sobre a impressão +da morte brutal do rei, á hora, +quem sabe? em que o seu cadaver, abandonado +de todos, presidente do Conselho +incluso, lhe dava a lembrar a calumnia, +tanta vez pelo pamphletario, contra elle, +escripta, de primeiro responsavel da desordem +a que o paiz descera!</p> + +<p>É que talvez já ao tempo elle bem claramente +visse que aquelle que tão violentamente +responsabilizara como primeiro<span class="pn"><a name="pag_77">{77}</a></span> +culpado do desastre a que a nacionalidade +havia chegado, era afinal um rei que consumira +um reinado a procurar Alguem, no +fundo, bem da alma, elle proprio, com a +Rua, que era, de facto, quem mandava, sem +que, ao menos, governasse, como ao presente, +e que ora o applaudia, mais á rainha, +ora o insultava, até que se decretou a montaria +com que, por fim, deu fecho á Realeza.</p> + +<p> </p> + +<p>Mas, deixemos o rumo de taes considerações +que, indevidamente, é de uso +considerar politicas, e que, ao acaso, nos +occorreram, a proposito dalgumas paginas +do <em>Saibam quantos...</em> ultimo passo na +vida de Fialho, e ainda á conta da sua velha +lida de pamphletario.</p> + +<p>Finalmente, pois que, por esta obra, +chegamos ao termo da sua jornada de agitador,<span class="pn"><a name="pag_78">{78}</a></span> +resta-nos, ao presente, e logicamente, +insistir no mais da sua melhor canseira—isto +a proposito, não só dalguns trechos +já marcados, como ainda doutros, onde +mais intencionalmente se deu a urdir obra +de Arte pela Arte.</p> + +<p>Assim visto, este será, em nosso entender, +o Fialho definitivo, cujo elogio +desde já promettemos levar a cabo quasi +sem rasuras criticas, ou seja sem restricções, +no capitulo a seguir...<span class="pn"><a name="pag_79">{79}</a></span></p> + + +<h2>IV</h2> + +<h2>O ARTISTA</h2> + +<p style="margin-left:2em; text-indent: -2em;">F<small>IGURAS NOTAVEIS DA SUA GALERIA.</small> I<small>NTUITOS E SUPERIORES +FATALIDADES DO SEU TEMPERAMENTO.</small> U<small>MA GRANDE E ADMIRAVEL REVOLUÇÃO ESTHETICA.</small> A <small>SUA</small> +O<small>BRA.</small></P> + +<p><span class="pn"><a name="pag_80">{80}</a></span></p> + + +<div class="ilustracao"> + +<p><img src="images/fialho3.jpg" border="0" width="100%" alt="Fotografia de Fialho d'Almeida."></p> + +<p>FIALHO D'ALMEIDA</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a name="pag_81">{81}</a></span></p> + +<div class="cap"> +N<span class="sc">enhum</span> outro documento mais interessante, +se bem que mais difficil de ler, +do que o primeiro livro dum Artista.</div> + +<p>Toda a obra de Arte tem a sua infancia +que importa ver na prova-estreia do auctor, +atravez dos seus defeitos, como das suas +virtudes.</p> + +<p>Ora essa difficuldade eu senti ao ler +os <em>Contos</em> de Fialho, quer pela exuberancia +de vida episodica de que esta obra se +enreda, quer pelo tumulto dos recursos +que já ali o auctor revela.</p> + +<p>Exemplificando.</p> + +<p>Abre elle este seu primeiro livro por +uma historia, em parte de sua observação, +e em parte de phantasia,—<em>A Ruiva.</em><span class="pn"><a name="pag_82">{82}</a></span></p> + +<p>Pela intriga deste seu trabalho, vê-se +que elle não chegou a realizar uma novella, +no rigor geralmente attribuido ás +composições deste nome. Bem pelo contrario, +o que conseguiu foi uma serie de +biographias, ou, mais propriamente, de exquisitas +telas.</p> + +<p>Fialho, muito do Sul, é, como já vimos, +um pintor; ou melhor, um painelista, no +geito dos pintores da Hespanha meridional, +logrando, pela penna, conforme +o seu poder de descriptivo, dar a côr, tonalidades +e almas tão distantes e irreaes e, +no entretanto, tão signaladamente intimas e +perfeitas, como só as encontramos nas prodigiosas +collecções dalguns auctores da Andaluzia,—isto +a averiguar da impressão +das suas manchas, como das suas madonas +e dos seus aleijados, ou seja de +quasi toda a sua galeria de excelsas e de +sinistros!<span class="pn"><a name="pag_83">{83}</a></span></p> + +<p>Assim, a <em>Ruiva</em>, principal figura do +conto em analyse, é uma especie de hyena +de amor, transportando-se, quando os guardas +do cemiterio saem, á casa do deposito, +onde entra para escolher cadaveres!</p> + +<p>É pela calma mysteriosa e calada que +elle descreve a necrophila Carolina, misto +de miseravel e viciosa, tacteando os mortos +adolescentes, quasi possuindo-os.</p> + +<p>Exquisita figura de virgem, a suave e +brutal filha do coveiro, que Fialho trata +com enthusiasmo, quasi carinhosamente, +ainda na sua faina de amante de formas +mortas!</p> + +<p>A Marcellina é o typo vulgar da harpia, +velha e sabia, que tendo aprendido +da miseria tudo o que de mau ella ensina, +volvera a sua experiencia num capital que +lhe ia servindo para viver...</p> + +<p>Para o caso, ella é a alcoveta que +vende a <em>Ruiva</em> a um rapazola, o João,<span class="pn"><a name="pag_84">{84}</a></span> +um precoce torpe, typo de bambino operario, +official de marceneiro e fadista, que +um momento a possue e quasi logo a abandona.</p> + +<p>É filho dum bebado e duma desgraçada +que elle, ainda creança, vae encontrar, +pela ultima vez, na <em>morgue</em>, depois que +a acabaram os maus tratos do marido.</p> + +<p>E, tambem, dahi a sua historia, que em +si resume a vida natural de todos os tresnoitados +pelos portaes e escadas.</p> + +<p>Por fim, fecha o conto o relato da faina +livre de Carolina (a <em>Ruiva</em>), primeiro assalariada +numa fabrica, depois pelos quartos +andares, vendendo-se a todos os vicios, +até que, roida da tuberculose, chega ao hospital, +donde sáe aos pedaços, como um +gesso em cacos!</p> + +<p>O seu enterro descreve-o o Artista no +primeiro capitulo, como para impôr, logo de +começo, o conto, de tal arte iniciado, á<span class="pn"><a name="pag_85">{85}</a></span> +maneira romantica, pelo seu episodio mais +pio e sinistro.</p> + +<p>É ahi que apparece a figura do coveiro, +pae da Ruiva, uma especie de Antonio +Pedro no <em>Hamlet</em>, acaso transportado á +taberna do <em>Pescada</em>, onde o Contista o +apresenta, bebado, a commentar a morte +da filha!</p> + +<p> </p> + +<p>Eis a noticia-summario do que temos +pela estreia de Arte de Fialho, em 1878, +ou tenha sido do tempo de quando elle, +intencionalmente realista, com suas tintas +de Hoffmann, se deu a iniciar a sua obra +por uma figura, aliaz nada casual—a <em>Ruiva</em>, +cuja caveira nos aponta, ao fim do livro, +sobre a sua banca de contista-medico, não +se sabe bem, se como um despojo de estudioso, +se como um cofre de osso de que +antes, por capricho, se dera a extrahir uma +novella...<span class="pn"><a name="pag_86">{86}</a></span></p> + +<p>Como quer que seja, esta realiza menos +o que pretende ser—a biographia +da filha do coveiro—do que a primeira +galeria de figuras da sua maneira extranha +de pintar, e onde a <em>Ruiva</em> acaso surge +como que sombreada daquella maceração +e tinta de luar que Zurbaran parece ter +composto já da eternidade para espectrar +as figuras tão suavemente doentes dos +seus monges!</p> + +<p>E, entretanto, como ali está, naquella +simples novella todo o seu original processo, +desde o poderosissimo descriptivo +que lhe anima o melhor da obra, até á sua +pintura, ainda narrativa, de costumes; a +hesitação do Artista no papel violento ou +declamatorio dos personagens; a sua maneira +dispersa e fragmentaria; o dialogo; +a imprecisão de traços; a preoccupação +das grandes telas; a falta de peças no +esqueleto do seu trabalho; a paixão de<span class="pn"><a name="pag_87">{87}</a></span> +certas figuras, como de certos logares; a +sua dolorosa e sensual sanha de necrographo, +de par dos seus carinhos, como +dos seus sustos pela morte; o monstruoso +dos typos, desgarrando, autónomos, um +drama proprio; o sentido da vida no que +ella tem de mais intimo, como no que pode +suggerir de mais esparso; a falta de ajustamento +e equilibrio no curso da acção; e, +para alem destas qualidades e defeitos, dos +typos, como das situações, o Auctor, exuberante +da sua razão de belleza a esmo, +desmedindo, revolucionando a Arte, por +servir a Arte; no seu intimo medroso, e +instinctivamente avesso, se não inimigo de +todo o methodo;—e, entretanto, sempre +elle, comsigo mesmo, fazendo valer o defeito +pelo que nelle nos dá de grande e +imprevisto; creando das suas desproporções, +uma Arte propria; arruando de graça +a cidade amoral dos seus viciosos; enscenando<span class="pn"><a name="pag_88">{88}</a></span> +a vida do verde-amarello da sua +biliosa de pamphletario;—e tudo como +quem empresta a sua fatalidade de exotico +aos homens e coisas a tratar; e sempre +para alem de todas as convenções, como de +todos os moldes academicos!</p> + +<p> </p> + +<p>Particularizemos, ainda um pouco, este +seu processo, não tanto por firmar principios, +como por tratar do seu ousio de +Artista, ou seja das suas figuras de imaginação, +visto que esta não é, nos emotivos +do seu destino, mero delirio do sentido, +mas, pelo contrario, uma força ainda +a avaliar das suas creações.</p> + +<p>Effectivamente, bem errada e mesquinhamente +trabalham os que se dão a encaixar +a vida num preceito!</p> + +<p>Pois que esta é, de si, infinita, recurso<span class="pn"><a name="pag_89">{89}</a></span> +algum, por minimo, deve escapar ao seu +apercebimento.</p> + +<p>Ora este cuidado tinha Fialho bem +affecto da sensibilidade, cuja ancia de representação, +jámais deixou de archivar tudo +quanto a vida real ou a phantazia lhe importavam, +embora, ás vezes, á doida,—fosse +numa pagina, ou numa simples linha.</p> + +<p>Assim, naquelle mesmo volume—<em>(Contos)</em>, +ha um capitulo, <em>Os dois Primos</em>, +em que apparece a sombra de Albertina, +uma actriz, e que vale menos pela +belleza real da sua figurinha de exigua, que +pela sua presença artificializada de quasi-dahlia—ao +acaso cahida num palco de Lisboa, +onde elle, o Artista, a surprehende, á +luz da sua <em>toilette</em>, á qual, por fim, de todo, +attribue o successo feliz da sua linha de +<em>cocotte</em>!</p> + +<p>Este ainda um exemplo do seu occultismo<span class="pn"><a name="pag_90">{90}</a></span> +de Arte,—do seu segredo e poder +de imprevisto.</p> + +<p> </p> + +<p>Tambem a mesma graça quasi infantil, +de tratar a phantasia a que deu o nome de +<em>Chavena da China</em>, como todos os seus +objectos e figurinhas do mais delicado relevo, +usa elle já no conto—<em>Os dois patifes</em>, +do mesmo volume, ao escrever ácerca +de dois gatitos, verdadeiras porcellanas +vivas e mexidas, e de cujas correrias elle +logrou a deliciosa tragicomedia do arrasamento +duma cidade de cartão, prenda de +annos do pequeno Arthur.</p> + +<p>Lê-se dum folgo a linda historia, +como essa outra—<em>Ninho d'Aguia</em>, de que, +por egual, o Artista tira o partido, já notavel, +do seu engenho de considerar figuras +suaves e innocentes, e em que, tambem, +as pobres aves do conto são tratadas como<span class="pn"><a name="pag_91">{91}</a></span> +barros vivos, a que sempre alligou carinhos +que jámais o vimos dispender no capitulo +humano da sua Obra.</p> + +<p>E propositadamente nos referimos a +estas suas pequeninas obras primas, menos +por feriar-nos da historia magoante +dos seus nevroticos—figuras quasi-anjos, +ao lado de mulheres e bambinos quasi-flores—do +que por mostrar as delicadezas +da sua Arte, tão sinceramente desegual, +quanto, por vezes, exhaustiva, á conta de certas +insistencias e mal escolhidos episodios.</p> + +<p> </p> + +<p>Comtudo, verdadeiramente grande é +só mais tarde, quando, muito para alem +daquelle livro, sae a moldar do seu genio +adulto, então notavel de extremos recursos, +a vida monstruosa dos grandes e desafortunados +typos do seu fabulario. Reportamo-nos +ao tempo da <em>Madona do Campo +Santo</em>,<span class="pn"><a name="pag_92">{92}</a></span> do <em>Anão</em>, da monographia-<em>Manuel</em> +e principalmente dos <em>Pobres</em>.</p> + +<p>E, pois que mal poderiamos concluir +do seu grande poder de plasticizar da Imaginação, +sem nos referirmos a estas obras, +tratemo-las, embora passageiramente, menos +para as ver que para as apontar.</p> + +<p> </p> + +<p>O <em>Manuel</em> é, sem contestação, a mais +sincera figura da sua galeria de <em>Nocturnos</em>. +É um ser que da sua propria +alma o Escriptor edita; e, de si, nos dá +como um ex-voto á sua tortura de humano +quando, penitente da propria escravidão da +sua Arte, della se entrega a versar o que +de mais inquietante ella tem:—o indefinido +da sua universalidade dolorosa e reveladora. +Quer dizer, é ainda menos do +que uma obra de Arte, um espelho doloroso, +em que elle se transfigura dos seus<span class="pn"><a name="pag_93">{93}</a></span> +medos, como dos seus sonhos,—dando-se +ahi, de facto, como melhor nos não podia +surdir:—no espectaculo da sua figura de +receio, ou seja no esgar caricatural e dramatico +da sua afflicção de presciente.</p> + +<p>Mas reconstruamos, tanto quanto possivel, +por palavras suas, a sinistra figura +de <em>Manuel</em>, ainda por melhor a esclarecer.</p> + +<p>Primeiramente a creança:</p> + +<p>—«Era aos nove annos como uma figurinha +de aguarella, fina de carnes, os +cabellos sem pigmento, as unhas longas, +a voz avelludada e com demoras sentimentaes +em certas inflexões—amando a +solidão e as musicas plangentes, colleccionando +estampas de castellos, terrivel no +amor como no odio, e duma volubilidade +tal na phantasia, que era impossivel prende-lo +a uma lição por meia hora, sem elle +cortar o assumpto com extravagancias de +mimo e <em>enfant gaté</em>.»<span class="pn"><a name="pag_94">{94}</a></span></p> + +<p>Mais:—«Tinha a feminilidade da igreja, +o nervosismo do incenso, paixões quasi +physicas por imagens, sentido este que +nunca se lhe apagou de todo, e que a reclusão +de Campolide exasperou a um mysticismo +de fazer inquietações aos proprios +padres.»</p> + +<p>Quando já homem, «no typo de algarvio, +branco de cera, idealmente puro +como a afilada gravação dum camafeu, a +sua belleza tinha transcendencias extaticas, +uma pacificação de tinta lurenta, macerada, +esfallecida de insomnia; e dava a +impressão dum destes insexuaes no gosto +da Seraphita, cujo mysterio desorienta,—por +terem tudo o que faz sonhar, sublinhado +por tudo o que faz soffrer.»</p> + +<p>Esta a epoca em que o Escriptor melhor +fixa o drama de <em>Manuel</em>, que já +daquelles retratos, resulta menos uma figura +autonoma do que uma imagem de<span class="pn"><a name="pag_95">{95}</a></span> +especial e entranha vocação, especie de +seraphim de egreja, dahi fugido por viver +a vida emprestada do Artista que o elegeu.</p> + +<p>Mas sigamos, ainda mais vagarosamente, +o graphico doloroso das suas grandes +azas de anjo bohemio...</p> + +<p><em>Manuel</em> chega a Lisboa quando—diz +o Artista—«a bem dizer já ninguem esperava +por elle», isto é, «quando decrescia +no Martinho a terrivel phalange dos revoltados +á Byron, e entrava a achar-se um +tic pulha nas attitudes procuradas, nas vozes +de chibato, nos olhares revoltos, e +mais artificios de que até ali os homens +de lettras se revestiam em publico, por +fugir ao molde burguez da outra gente.»</p> + +<p>Era uma figura «toda nervos, altivo +como se viesse de berço real», a preceito +recortado pelo Artista, do seu album intimo,—o +que lhe reproduzia as sombras carinhosas +dos «bellos seres de excepção do<span class="pn"><a name="pag_96">{96}</a></span> +seu cyclo, os da extranha lumininosidade +interior» que ante a sua «mysantropia moral» +conseguiam impor-se, pela mesma +razão do seu genio,—de que elle via chispar, +a par de extravagantes «inauditismos» +«maravilhas minusculas» da mais emotiva +Arte.</p> + +<p>Chegado a Lisboa, ei-lo, primeiramente +perplexo, o pobre <em>Manuel</em>, no papel de +anjo despregado, e, como que por acaso, +transferido da Egreja da sua aldeia ao museu +vivo duma cidade tão falha de interesse +que nem sequer tem torpeza propria;—depois +vivendo o expediente dos sem-recursos, +longe dos seus, luctando entre o +seu pudor de Artista e a intranquilidade +do seu genio atrabiliario e dispersivo.</p> + +<p>Esta inadaptação é a mesma que depois +lhe dá a Tragedia—aquella «<em>tragedia +dum homem de genio obscuro</em>», que Fialho +extrae da sua caprichosa maneira de reagir,<span class="pn"><a name="pag_97">{97}</a></span> +tal como devia sahir-lhe, lavrada de +ironias—como daquella philosophia e tristeza +que enchem a obra a que o Artista +dá o nome de—«<em>Esculptura</em> em fragmentos» +pois que «dos seus avulsos bocados» +ninguem poderia tirar mais do que «mutilações +de uma grande estatua...»</p> + +<p>Ora, dessa estatua nos apresenta elle, +a par de bocados infimos, com extranhezas +caricaturaes e laivos dum rir doente, <em>boutades</em> +e dôr inferior, por demais fragmentada, +quasi sem significação de Arte,—trechos +formidaveis, como certas passagens +da «<em>Noite de Alcacer Kebir</em>», aliaz tão lugubres +e intensivamente trabalhadas como +raro encontramos outras, ainda na obra de +Fialho.</p> + +<p>E, entretanto, não é a Arte de <em>Manuel</em> +o que mais interessa da sua biographia.</p> + +<p>O que melhor vale, e della resalta, é a +sua mesma reacção, ainda mais que de encontro<span class="pn"><a name="pag_98">{98}</a></span> +ao meio alheio, quando do ruflar +do seu genio no intimo de si proprio!</p> + +<p>Esta lucta fóca-a o Artista da sua lente +amarello-lugubre, desde a primeira infancia +do bohemio até á edade da «fixação +do seu typo de adolescente» que estatua +da «hereditariedade», desenvolvendo-se, +determinando-se, sobretudo, na vida de +collegio—na sua reclusão de Campolide, +onde toda a ordem de factores apropriados, +ajustando-se-lhe «como serpes» +se porfiam «a esfuriar nesse corpinho espurio» +todos os instinctos do seu genio +de tarado, e que de si erguem o perfeito +modelo morbido que, effectivamente, chega +a realizar.</p> + +<p>Na sua vontade lassa nada mais governa +que o proprio instincto do luxo, do +inesperado, da extravagancia da sua ideação +frouxa e admiravel,—como a inclinação +bohemia da sua vida de acaso, á<span class="pn"><a name="pag_99">{99}</a></span> +qual se dá, sem que alguma vez se interrogue.</p> + +<p>Ainda por dessedentar os nervos, logo +de começo perros ás suas exigencias, entrega-se +á embriaguez.</p> + +<p>Tinha necessidade de excitar-se, de +viver violentamente os seus delirios, ainda +como por melhor escutar a sua nevrose, +de tal arte mais nitida á sua sensacional +expectação.</p> + +<p>Intermittentemente cahia em marasmos; +tinha «syncopes de intelligencia» que eram +como que sombras daquella sobrexcitação +e o derivavam do seu tumulto ao que +Fialho chamou os seus «crepusculos +intellectuaes com sobrelaivos de perseguição +e delirio religioso.»</p> + +<p>«De resto na sua esthetica, como na +sua vida, sobresaltos de louco!»</p> + +<p>Depois dum maior exgottamento de +vida nervosa, adoeceu gravemente, e tão<span class="pn"><a name="pag_100">{100}</a></span> +gravemente, informa o Escriptor, que não +era difficil «marcar na sua intelligencia o +accesso vesperal da sua ennublação».</p> + +<p>A partir deste momento deu-se a errar...</p> + +<p>A sua enfermidade era como que uma +obsessão de si proprio, sempre alerta contra +o <em>outro</em>, isto é, contra aquelle que a +sua duplicidade mental dava como presente +aos seus menores actos—e lhe embaraçava +tudo o que deliberasse!</p> + +<p>Novos dias e elle cada vez mais doente, +erratico, somnambulo, com a paixão do alcool +e o susto de tudo.</p> + +<p>Certa madrugada accordou horrorizado +com a idéa de que o estavam a enterrar +vivo e o desejo «de que o deixassem apodrecer +fóra da cova»...</p> + +<p>A partir deste dia a sua vida torna-se +pavorosa; é a creatura sem rumo, equilibrando-se, +ao justo, no acaso geral do +arranjo commum.<span class="pn"><a name="pag_101">{101}</a></span></p> + +<p>É, sobretudo, como expoente de vontade +que o homem vale; ora elle perdera +absolutamente a vontade, mantendo-se +como que, provisoriamente, a dentro do +seu corpo, ao tempo já desconjunctado de +fantochino, e que lhe sobrevivia por milagre, +como num assomo de quasi extravagante +apego pelo que fôra...</p> + +<p>O resto adivinha-se:—é a convulsão das +ultimas horas; são restos de sonho; os derradeiros +phantasmas, nos seus derradeiros +dias; é elle gritando a sua agonia doida, +numa casa de saude, a pelejar a morte, +como se, de minuto a minuto, lhe rompessem +cordões nervosos; finalmente elle +ainda, mas com a vida a fugir-lhe e como +que afilando-se-lhe até perder-se na noite +rehabilitante da sua podridão...</p> + +<p>E, entretanto, a sua historia não acaba +ahi!</p> + +<p>Como noutro logar affirmamos, ha, para<span class="pn"><a name="pag_102">{102}</a></span> +alem da sua vida de symbolo, o caso vivo, +em aberto, duma real figura da qual o +bohemio «um duplo», se accrescenta e +desdobra, e que, a nosso ver, é, nem mais +nem menos, do que o seu proprio revelador,—o +Artista que, na alludida monographia, +sinceramente, lugubremente, +trata o caso da morte de <em>Manuel</em> como se +a espreitasse em si proprio!</p> + +<p>Passaremos adiante a miuda informação +daquelle desenlace, ainda logico dentro +da extravagante «<em>Tragedia de um +homem de genio obscuro</em>», por ver, de relance, +o Artista, ao pretexto do admiravel +estudo em analyse.</p> + +<p>De facto, qual a figura que surde para +alem da mascara de <em>Manuel</em>?</p> + +<p>É, affirma-lo-emos ainda uma vez, nem +mais nem menos do que o Auctor, embora +transfigurado da sua Arte:—isto é o +artista «<em>violento e contradictorio</em>» que<span class="pn"><a name="pag_103">{103}</a></span> +dahi resulta; ou seja o escriptor atavicamente +«<em>presciente do raro em arte</em>», com o mais +extranho «<em>senso pictoral de certos aspectos +sociaes</em>», de par do maior «<em>poder +amplificador dos grotescos</em>»; o artista, +a um tempo «<em>fragmentario e dispersivo</em>»; +o transfigurador; a creatura perdida +«<em>em assumpções de genio</em>» e logo baixada +dos «<em>fulgurantes cimos da intelligencia</em>», +como que distrahido por casos minimos; +o «<em>de filiação hysteriça e infancia convulsiva, +terrivel no amor como no odio</em>», +o «mystico» e necrographo, de «<em>vontade +frouxa, com antipathias invenciveis pelos +grandes fanfarrões da sociedade e +escriptores lançados</em>»—o emotivo, emfim, +que no <em>Manuel</em> não faz mais do que +esmaltar de picaresco e lugubre a sua propria +figura, errando nelle o seu drama de +morbido, e parabolando-lhe, nas attitudes, +como na desgraça, os seus grandes pavores<span class="pn"><a name="pag_104">{104}</a></span> +da morte, de par da duvida que lhe advinha +da sua mesma Obra, que, no fundo, +julgava irremediavelmente episodica e fragmentaria!<sup><a href="#nota2" name="m_nota2">[2]</a></sup></p> + +<p>Por isso, tambem, ao deixar o quarto, +do <em>outro</em>, agonisante, elle põe na boca +do indio, o Pratas, velho confidente dos +dois, como que o echo do seu pensamento +intimo:—«O ideal seria que a alma delle +não morresse, e nós ainda a encontrassemos, +intacta e genial, num outro mundo +insubmisso»!</p> + +<p>Ainda uma vez mais, elle formula o +seu velho sonho:—não acabar! Em ultima +analyse:—o seu drama em duas palavras<sup><a href="#nota3" name="m_nota3">[3]</a></sup>.<span class="pn"><a name="pag_105">{105}</a></span></p> + +<p>Finalmente nada mais haveria a escrever +de commentario ao extraordinario capitulo +da obra de Fialho que principalmente +nos demos a desarticular ainda por compor +a figura que nelle foi—se não tivessemos +de incluir um tal trabalho na parte que +reservamos das suas melhores provas.</p> + +<p>Como demonstração de Arte, mal +poderiamos deixar de alludir ás paginas +que fecham a tragedia, em parte verdadeira, +de <em>Manuel</em>—e que tambem, de si, são, +ainda de uma precisão e valor notaveis.</p> + +<p>De facto, velou elle o doente de duas +figuras que mal apparecem no curso da +acção e, no quarto do moribundo, apresenta<span class="pn"><a name="pag_106">{106}</a></span> +silenciosas,—duas esphinges de odio que +o encaram e ao Pratas, o segundo companheiro +de <em>Manuel</em>, como se fossem +elles os verdadeiros culpados da sua desgraça!</p> + +<p>A primeira é um velho, o pae do +doente que, depois de lhe ter negado os +recursos, tomando á conta de extravagancia +todos os seus dispendios, como o seu +irremissivel alcance de saude, vem assistir-lhe +á morte.</p> + +<p>A segunda, e mais notavel das duas +figuras, é aquella que o Artista designa na +folha-cartaz da monographia por—<em>essa +mulher de negro!</em></p> + +<p>«É, segundo informa, quasi velha, com +um vestido negro e uma gollilha bordada, em +grandes bicos. Sobre as orelhas ha já cabellos +brancos, tem a pallidez macerada +duma santa, as mãos reaes, queixo voluntario... +Emtanto essa rigidez guarda uma<span class="pn"><a name="pag_107">{107}</a></span> +boca pura de creança, e sae dessa magua, +uma obra prima de martyrio.»</p> + +<p>«Tóco, narra, por fim, as mãos do +agonisante, um marmore molhado. Está a +amanhecer lá fóra, e os cinzentos azues +dessa madrugada de inverno entram no +quarto, com albescencias funeraes que me +espantam. Pelas quatro horas Pratas que +lhe sustinha o pulso, dá de repente um +grito: é o momento: e o velho erguendo-se, +em vez de correr ao filho morto, é contra +nós que parece crescer, rigidamente...»</p> + +<p>Eis o final do drama!</p> + +<p>Mas quem é aquella <em>mulher de negro</em>?</p> + +<p>Eis o que mal nos diz. O que della +se sabe é unicamente que fôra uma rara +figura de dedicação, envelhecendo no sonho +de ser noiva do bohemio, que lhe escrevia, +e elle amara vagamente...</p> + +<p>De momento, aponta-a o Artista como +um regelo de amor, acaso um symbolo<span class="pn"><a name="pag_108">{108}</a></span> +assomado ali ainda por enscenar as ultimas +horas do bohemio.</p> + +<p> </p> + +<p>Derivando, no exame das suas obras +primas, ás paginas que, dentre as citadas, +maior contraste offerecem com aquella monographia, +encontramo-nos com o seu admiravel +conto,—o <em>Anão</em>.</p> + +<p>Este demonstra, alem de tudo, de par +da mais frisante extravagancia imaginativa, +o seu grande poder caricatural.</p> + +<p>Trata-se duma ligeira farça que o auctor +compõe, mais que dos personagens, +das suas situações.</p> + +<p>Por outro lado, o drama é um jogo +de riso, em cujo taboleiro Fialho incluiu +uma pedra dolorosa—o Carrasquinho, o +<em>Anão</em>...</p> + +<p>Este é uma figura minima, minuscula<span class="pn"><a name="pag_109">{109}</a></span> +a ponto de se perder na copa dum chapeo +de pello, e no bolso da madrinha +quando do seu casamento; é um quasi +monstro de fabula, entre humano e herbivoro, +de «focinho aguçado e movel, +mascando sempre, com as bosseladuras da +testa de tendencias conicas para chibato, +sensivel e espantadiço aos rumores dispersos +do campo, a quem os bodes reconheciam +um ar de familia, e por quem as cabrinhas +amorosamente se roçavam» quando +elle, o pobre cabreiro, se misturava +com ellas no redil.</p> + +<p>Casou com a Rosa «um cavallão da +mais desmedida estatura, que a mãe trouxera +vinte e sete mezes no ventre e levára +seis dias a expulsar!»</p> + +<p>O Anão dansava o fandango e era videiro. +De principio tudo lhe foi bem; a +boda correra-lhe alegre, bem folgada, depois +da qual o manageiro de Torres, o<span class="pn"><a name="pag_110">{110}</a></span> +Jacinthinho, se installou por metade de +cada dia em casa da Rosa.</p> + +<p>Esta a desgraça! Quando o <em>Anão</em> chega +a mulher bate-lhe e o manageiro obriga-o +a dansar...</p> + +<p>A seis mezes do casamento a Rosa +dá-lhe um rapagão, forte como «um boi +bravo».</p> + +<p>Tudo no conto são confrontos e confusões +de animaes armados...</p> + +<p>O Anão, cada vez mais chibato, lá vae +vivendo, ora em casa, ora entre os sementões, +sempre lamentando-se, na sua «voz +balada», até que um dia, tendo-o a mulher +enfaixado (por confusão com o filho) e +conduzido á missa, lá o povileo toma-o +pelo proprio diabo, e logo um devoto bebado +o arremessa da torre abaixo, e era +uma vez o pobre Carrasquinho, esborrachado +contra as lages sepulcraes do adro!...</p> + +<p>Tal o esqueleto da historia que o genio<span class="pn"><a name="pag_111">{111}</a></span> +do humorista vae depois folhando das situações +mais ridiculas, e que, de tal arte, +lhe decorre viva, hilariante pelo imprevisto +e desproporcionado dos personagens, e em +que o pobre «<em>grão de milho</em>», mal sobresae +como uma figurinha de amuleto, +errando ao acaso vida emprestada.</p> + +<p>E, entretanto, é num tão exiguo personagem +que, principalmente, o Auctor se +dá a desenrolar aquella aventura, toda ella +uma farça de dolorosa escravidão!</p> + +<p>O mesmo sestro que levara Fialho a +apolegar a gente miuda, por attingir a +expansão maxima do seu inegualavel empirismo +de Arte, de semelhante forma lhe pautou +a solução da vida em riso, que a breve +trecho e involuntariamente derivava em +farça. Ainda mais, deliciou-se da união +dos elementos mais difficeis, como impossiveis +até, quando, pelo drama convulso +da sua polypersonalidade, se deu a parabolar<span class="pn"><a name="pag_112">{112}</a></span> +da vida real o mundo imaginativo +das suas extravagantes suggestões +de artista.</p> + +<p>Dahi as phantasias, no genero daquellas, +ao lado de outras em que sobresaem +mulheres como a <em>Madona do +Campo Santo</em>, a quem dota da galantaria +e gestos nobres dos cysnes, figurinha +de suave illuminura, e que, mais +ainda que do seu vicio de comer flores, +elle parece alimentar do pão azymo da sua +Arte!</p> + +<p> </p> + +<p>Mas não nos antecipemos á referencia +que della nos deixou.</p> + +<p>Reunamos os fragmentos da estatua da +<em>Madona</em>:—«restos, diz o Escriptor, da +mais assombrosa esculptura que tem visto +o mundo, e que, soldados por agulhas de +ferro, ornam hoje o tumulo de Judith.»<span class="pn"><a name="pag_113">{113}</a></span></p> + +<div class="ilustracao"> + +<p><img src="images/fialho4.jpg" border="0" width="100%" alt="Fotografia e assinatura de Fialho d'Almeida."></p> + +</div> + +<p>Ora a <em>Madona do Campo Santo</em>, +foi tambem uma das creações mais tratadas +pela suave idolatria de Fialho, e +que elle, antes do apaixonado Albano, +se deu a estatuar numa hora de quasi +divina loucura!</p> + +<p>E não é ainda casualmente que escrevemos +da sua idolatria.</p> + +<p>A verdade é que o grande Artista foi, +alem de tudo, um pagão, embora por +fatalidade da sua arte de Extranho, por amor +daquella Arte que ainda, de egual maneira, +o fez religioso ou, melhor, sectario de +toda a Belleza, como jámais conhecemos +outro.</p> + +<p>É ver as paginas que dedica á <em>Madona +do Campo Santo</em>, ao lado de outras, como +as que abrem o <em>Paiz das Uvas</em>, e a admiravel +<em>Symphonia</em> da <em>Cidade do Vicio</em>!</p> + +<p>Em todas ellas, que de adoraveis espectros +de faunos e de sylphos:—creações phantasticas<span class="pn"><a name="pag_114">{114}</a></span> +do genio mysterioso da grande jornada +humana immemoravel; e que a elle, +ao Poeta, o levam a cantar (a sua obra é ali +um hymno)—um quasi amor contra a +natureza, de tão extravagante e brutal!</p> + +<p>E, entretanto, é ainda á «vibratilidade +dolorosa do sol» que elle escreve e nos diz +da «vida allucinada» que lhe vae em roda.</p> + +<p>Dahi, tambem, a sua litteratura, na +apparencia difficil e desajustada, como um +romance da Mythologia, gritada de Evohés, +com palmas á belleza e á ebriedade, +pompas sem rito, casos de flora animada e +fauna monstruosa, com a sua multidão +de satyros e dryades, formando junto a +Baccho—o Deus da boca fogueirada de +risos, acaso os mesmos que, por vezes, parecem +tingir da sua cambiante algumas +das paginas mais notaveis, ainda por menos +verosimeis, do transfigurador!</p> + +<p>É dum folgo que se leem estas passagens<span class="pn"><a name="pag_115">{115}</a></span> +que quasi nos suggerem a esperança +dum suave mundo de deuses reaes, pleno +de sentido novo, e em que exuberem, a +esmo, os fructos, e cresçam divinamente +os marmores!</p> + +<p>Ora, dum tal poder de imaginação, +e influencia de tudo, facil nos é derivar ao +mais do seu <em>atelier</em> de estatuario do +Exquisito; e, mais propriamente, ao caso da +<em>Madona do Campo Santo</em>, a cujo proposito +trouxemos aquelles recursos.</p> + +<p> </p> + +<p>A <em>Madona</em> é, na verdade, uma das +suas obras primas de mais justificado renome:—typo +de mulher-insecto, dentando +flores, amando por instincto, comendo +com dôr, tocada, ainda por uma +razão de belleza, do susto humano de morrer, +gracil como uma ave, de resto frouxa +e luarada como convinha a uma creatura +do outro mundo...<span class="pn"><a name="pag_116">{116}</a></span></p> + +<p>E tão deslocada fôra, tão doutro mundo +ella era, que Fialho, querendo apontar-nos, +no final da novella, a estatua que da sua +memoria desbastou Albano, é assim que +a descreve:</p> + +<p>«Era uma maravilha unica de genio! +Desabrochava completa, estendendo os +braços para invocar Deus, por um assombro +de equilibrio lançada na attitude +de quem desprende vôos, desennovelando-se +da base como uma labareda de sarça, +em zig-zags aéreos. Esse phenomeno de +extranha belleza, era ao mesmo tempo um +prodigio de audacia, palpitava, falava, sentia-se +soffrer e respirar, como uma creatura.»</p> + +<p>Notavel trecho, de si eloquente até ao +excesso, e bem de molde a resuscitar a pobre +Judith!</p> + +<p>Entretanto, permitta-se-nos, ainda a tal +proposito, um breve parentheses, ou seja o<span class="pn"><a name="pag_117">{117}</a></span> +glossario de faceis considerações, á conta +da sua esculptura.</p> + +<p> </p> + +<p>É tão somente para frisar que, ainda +em Fialho, como para o mais dos plasticos +portuguezes, a estatuaria é sobretudo narrativa.</p> + +<p>O marmore da <em>Madona</em> não é, effectivamente, +um mero acaso da imaginação +do contista; bem pelo contrario, estava +na logica da sua educação, pois que +lhe proveio directamente da mesma causa +romantica, que ainda, ao presente, determina +o grande numero dos nossos estatuarios.</p> + +<p>Ainda mais, o movimento liberal, que, +entre nós, começou em 1820, deu á +Arte portugueza um motivo de ornamentação +tão extranho como detestavel,—a +estatuaria rhetorica, se assim podemos +defini-la e que, de logo, começou a animar<span class="pn"><a name="pag_118">{118}</a></span> +os nossos terreiros publicos, onde mais +ou menos todas as memorias discursam!</p> + +<p>E, a tal ponto a nossa exuberancia de +latinos, ligou ao gesto o seu sentido de +eternidade que, ainda hoje, reputariamos +inverosimil, entre nós, a estatua, á maneira +ingleza, como significado de mera +presença,—a figura-marco, tal como surde, +nas praças de Londres, menos como ficção +de vida, do que, pelo contrario, como +uma forma abstracta, e a que o Artista procura +dar sempre aquella attitude quasi sagrada +que, definitivamente, volve em symbolos +as memorias!</p> + +<p> </p> + +<p>Comtudo, dado o facto do supremo +poder de Fialho, como plastico, força é +admittir que bem foi para a memoria de +Judith a sua estatua, tal qual elle a trabalhou, +como todo o drama de que circumscreveu +a sua prodigiosa e raphaelesca figura,<span class="pn"><a name="pag_119">{119}</a></span> +a cuja decomposição, por fim, assiste, +indifferente, depois que ella, já morta, de +«face marbreada de roxo» e a «expressão +carrancuda» por lhe terem arrancado a +mascara,—começa a abater, da sua gracil +e suave forma de noiva dos «esponsaes da +eternidade...»</p> + +<p> </p> + +<p>Finalmente, o ultimo conto das suas +apontadas obras—<em>Os Pobres</em>, comprehende +um trecho curto, e, no entretanto, +ainda mais notavel que os anteriores.</p> + +<p>E tão notavel que só a custo poderemos +desarticular essa singularissima peça de +Arte, tal a selvageria que dá cohesão á +novella, concebida para alem de todas as +ficções litterarias!</p> + +<p>Trata-se dum casamento de monstros +numas ruinas, de «duas virgindades adormecidas»,<span class="pn"><a name="pag_120">{120}</a></span> +informa o narrador, que num +momento vingam o amor abstemio de tantos +annos, e celebram, á cumplicidade de +uma noite tenebrosa, o seu brutal noivado.</p> + +<p>Elle, o macho, é um ser desprezivel, +vivendo de restos, especie de cyphotico, +aleijado pelo lapis de Velasquez; valente +pela sua vida de carreira, ao ar livre; +humilde; torto e forte como um azinho; +animal corrido de todas as mesas, piolhento +que as raparigas enjeitam e escarnecem +nos serões:—figura, emfim, perdida no +«immenso irradouro» que é, para elle, o +mundo.</p> + +<p>Segue da Vidigueira para Pedrogão +ao acaso do vento, que o esfarrapa, confundindo-o +com a urze.</p> + +<p>Leva-o o mesmo fim de sempre:—pedir, +errar...</p> + +<p>Vae por entre a esteva que o açouta; +«o vento fala-lhe»; e, no emtanto, elle nada<span class="pn"><a name="pag_121">{121}</a></span> +ouve, caminhando á ventura, como um elemento +deslocado da mesma noite sinistra +que o persegue...</p> + +<p>Entra, por acaso, numa ruina, onde o +guia primeiramente um resto de brazido, +depois um farrapo de oração, que sae dum +canto, por fim o cheiro da femea, uma +sombra que escabuja a seu lado, e, num momento, +desdobra para elle fios occultos de +uma voluptuosidade instinctiva, toda animal.</p> + +<p>Elle presente-a; e ella fala-lhe, numa voz +que é um rôgo, de que elle não sabe deslindar-se, +até que começam de tecer-se +novos fios do desejo dos dois, do impulso +mutuo que subito os impelle um para o outro, +como duas forças dum mesmo systema +que a luxuria move e dão de si o ruido +de corpos escamosos, «rimando urros», +diz o Artista, numa especie de noivado +de potestades, com ferezas e grunhidos de +varrascos!<span class="pn"><a name="pag_122">{122}</a></span></p> + +<p>Tal o relato-impressão que do estupendo +conto nos ficou, e pelo qual +chegamos, naturalmente, e, por ultimo, +ao fim dos maiores recursos de Fialho; e +que, a partir deste momento, nos permittem +averiguar da sua obra em conjuncto, atravez +das paginas exemplificadas, como daquelles +seus mais caracteristicos personagens.</p> + +<p>Ora, o que, dumas e doutros, de logo +se nota é que o mesmo titulo de <em>Doentios</em>, +que indica o seu primeiro livro, inculca +tambem o grande numero das suas figuras-motivos.</p> + +<p>Entretanto, o que mal pode explicar-se, +fóra do seu caso de raça, é o segredo +da sua forma, ainda tão exoticamente +plastica,—como o seu grande conhecimento +da Arte pairante alem-fronteiras, e +que, cumulativamente, exerceu de par dos +móres diabolismos, ainda e sobretudo +ao pretexto da nossa comedia publica.<span class="pn"><a name="pag_123">{123}</a></span> +Como quer que seja, propositadamente +guardamos, para final do presente estudo, +a analyse generica destes recursos, de que, +já agora, partiremos para a revolução artistica +que da sua penna levantou, sobretudo contra +o pantano classico, e rhetorica do momento.</p> + +<p>A todos os formalismos, de facto, elle +deu batalha, não só vencendo, mas, mais +ainda, trazendo á Arte novas intenções, +de par de melhores impulsos e novos +rumos.</p> + +<p>Houve contemporaneos, como João +de Deus e Bordallo, cujo inauditismo +é tanto mais para admirar, quanto mais +occulta nos deixaram a sua razão de +Arte.</p> + +<p>Não é este o caso de Fialho, cujo genio +reagiu sobre uma cultura intensa, procurada +como num anceio de quasi exhaustação.<span class="pn"><a name="pag_124">{124}</a></span></p> + +<p>Desde Balzac, o mais notavel dos mestres +do pensamento novo, até aos exquisitos +Goncourts, lavrantes quasi diabolicos +dos mil nadas mundanos, apostolos da +graça, como do mais extravagante japonesismo +litterario, todos os grandes contemporaneos +elle conheceu e estudou; do +mesmo passo que o seu espirito, com escala +por todas as representações de Arte:—museus, +revistas, theatros, escolas, industrias +de luxo, por todo o espectaculo, emfim, onde +houvesse que aprender,—se repartiu, talvez +menos por enriquecer-se dos seus ensinamentos, +que por colher as suggestões +que do seu interesse mais tarde desenvolveu.</p> + +<p>Ora duma curiosidade de tal forma +animada foi que, naturalmente, sahiu a editar +o melhor da sua obra, como tudo o +que da sua sympathia pelo raro elle poude +discorrer atravez da sua dolorosa fadiga +de supersensibilizado!<span class="pn"><a name="pag_125">{125}</a></span></p> + +<p>Assim, tambem, talvez nenhum dos +escriptores do seu tempo conseguisse surprehender +a Arte dos etherisados e extranhos +cumes donde elle se deu a vertiginá-la.</p> + +<p>É ver as paizagens, quasi irreaes do +seu lapis de crayonista; as suas figurinhas +hystericas de branda genealogia biblica; +os seus aleijados; as suas porcellanas, como +todo o mundo phantastico da sua inegualavel +Arte!</p> + +<p> </p> + +<p>Tambem é de costume, tratando-se +de Fialho, escrever do que vulgarmente se +considera a sua obra critica.</p> + +<p>Não o faremos nós, ainda em attenção +ao criterio proprio de que Fialho não foi +um critico, mas um impressionista.</p> + +<p>E, a proposito, vem recordar o caso de +Ramalho que, depois de uma vida longa,<span class="pn"><a name="pag_126">{126}</a></span> +perscrutando a canseira extranha, talvez +menos pelo trabalho de a corrigir que pelo +vicio de a desfiar; depois duma fadiga insana +por ver do trabalho alheio, no proposito +de deixar definitivas as suas notações +de pedagogo, sáe, por fim, a desculpar-se, +na pagina derradeira do seu papel de critico, +denunciando a publico a sua aspiração +até ahi occulta,—imagina-se lá de que!—nem +mais nem menos do que de poeta +lyrico...</p> + +<p>E, comtudo, como é de estimar, a +nova triste daquelle velho, figura rigida +de portuense, com suas tintas de trato inglez, +escrevendo á garrocha no couro endurecido +de Portugal do tempo, afinal sobre +o motivo constante e commum a todos +os criticos,—ácerca dos mais versateis casos +de gosto burguez!</p> + +<p>Porque, fundamentalmente, foi o gosto +burguez que elle tratou, embora como uma<span class="pn"><a name="pag_127">{127}</a></span> +especie de jogador de penna contra os cenaculos +havidos então como tradicionaes, +e de que um acaso de civilização o fizera +transfuga.</p> + +<p>Entretanto, é bem de archivar aquella +sua pagina de contrição, ainda como desfecho +do seu ingrato mister. É que, de +facto, elle era um artista, e dahi o ter vindo +a publico indultar-se, como em final provação, +dos seus cançados propositos criticos, +se não legar-nos, á hora da sua agonia litteraria, +uma derradeira ironia...</p> + +<p>Contrariamente outros dos seus melhores +contemporaneos, e entre todos:—Fialho, +Eça, Bordallo e ainda Junqueiro (a despeito +da sua escravidão politica)—haviam +sido mais do que reformadores da Arte,—seus +verdadeiros revolucionarios, isto no +melhor sentido da desacreditada palavra.</p> + +<p>Vejamos, a traços rapidos, a acção +que de um tal confronto advem, pois que<span class="pn"><a name="pag_128">{128}</a></span> +obteremos, assim, a par da divergencia +dos temperamentos de maior interesse na +vida artistica do tempo,—a sua systematização +e um fim commum, ou tenha sido a +notavel revolução litteraria que das suas +provas resultou.</p> + +<p>Comecemos por Bordallo, bem por +certo, ainda hoje, o menos estudado.</p> + +<p>Raphael Bordallo, que conseguiu tornar +poderosa uma arte, entre nós desacreditadissima, +mercê da chusma dos +habilidosos:—a Caricatura, foi, de facto, +o genio em bruto, um oleiro de +amalgama, misturando, na sua masseira +de Jove do tempo, toda a sorte de civilização, +por mais desencontrada; trabalhando, +ora de phantasia, ora dos seus +apontamentos de rua; e, finalmente, editando-se, +tal como Fialho, ainda por seu +innato valor.</p> + +<p>Eça, talvez o de menos influencia, se<span class="pn"><a name="pag_129">{129}</a></span> +bem que tambem o unico que logrou admirações +incondicionaes, foi, de facto, dentre +todos, o menos original, que não o menos +brilhante.</p> + +<p>No seu <em>atelier</em> não faltou petrecho algum +dos mais necessarios ao arranjo dos seus +livros de Arte, aliaz sempre duma belleza +meditada, a bem dizer medida, e em que +perpassa todo um methodo opiado de ironias, +por entre as suas demais preoccupações +de consciente marmorista e penitenciario +da prosa.</p> + +<p>Finalmente, Junqueiro foi dentre as +figuras litterarias do momento o mais sagaz +e ajustavel á sua extranha confusão.</p> + +<p>Por isso tambem, logo que appareceu, +se fez mister consagrá-lo, de par dos seus +alexandrinos, ainda undisonos e revoados, +á Hugo, e que os do tempo immediatamente +se deram a ouvir, mais do que com +attenção devida a uma obra de Arte, religiosamente,<span class="pn"><a name="pag_130">{130}</a></span> +como se nas suas rolantes e +evocativas estrophes o Poeta orchestrasse +a propria musica do mar...</p> + +<p> </p> + +<p>Mas deixemos propriamente o caso da +acção politica por parte da geração a que +pertenceu Fialho para o vermos, a elle, tal +como tem de ficar, nessa outra revolução +litteraria que sobreleva aquella, e á qual +devemos mais attento exame.</p> + +<p>Fialho foi, bem por certo, sob tal ponto +de vista, o maior do seu tempo, pois que +realizou um verdadeiro revolucionario da +Arte, que, partindo da admiração dos typos +classicos, das paginas mais academicas, seguiu +directamente o filão popular, colhendo +e escrevendo, sem o corromper, o sentimento +plebeu, sempre que este sentimento +lhe poude expressar uma verdade, ou refundir<span class="pn"><a name="pag_131">{131}</a></span> +da phantasia situações e estados +litterarios novos.</p> + +<p>E não se imagine que, ainda no capitulo +menos original e mais facil da sua +obra, como pamphetario, elle deixasse +de mostrar os melhores ensinamentos e +boa fé.</p> + +<p>É ver o que nos diz duma possivel +Lisboa monumental, á sua maneira; dos +seus propositos de substituição duma cidade +á moderna, como a fizeram,—facil +e incaracteristica,—por uma cidade-memoria!</p> + +<p>Ainda mais:—antes delle creara-se uma +especie de constitucionalismo das Lettras, +aliaz sempre, mais ou menos regradas ao +gosto classico, o que, de egual maneira, +satisfazia leitores e auctores...</p> + +<p>Ora Fialho foi um dos raros que, entre +nós, com melhor ousio praticou o direito da +escripta a flux, sem medos, como sem os<span class="pn"><a name="pag_132">{132}</a></span> +bardos aramados da covencional Litteratura +anterior.</p> + +<p> </p> + +<p>Muito justas as suas paginas de theatro +onde versou a nossa miserabilissima flora +dramatica, e onde nem sequer teve a +descontar á auctoridade com que a viu a +pecha dalguma vez a ter tentado. O que +elle nos diz dessas peçasinhas de acaso, +que lá fóra seriam inverosimeis num theatro +de suburbio, e que, entre nós, tão facilmente +são alçadas, segundo a categoria jornalistica +ou politica dos auctores, a peças de +grande effeito, por um publico, ás vezes educado, +mas sem coragem para patear ou +sahir a meio da semsaboria em que, por +via de regra, nos nossos palcos, as peças +decaem!<span class="pn"><a name="pag_133">{133}</a></span></p> + +<p>Da Hespanha do Sul, sua visinha, vimos +como soube orchestrar a luz, tanto do +seu pincel, de par do mais da vida natural +que, como ninguem, teve o poder de aperceber.</p> + +<p>Tambem elle, se vivesse em Hespanha, +onde a sua intenção revolucionaria seria +inopportuna, teria completado, talvez, o +capitulo mais desfalcado de quanto escreveu:—referimo-nos, +sobretudo, á sua +maneira de tratar figuras e seus demais +esboços de novellista.</p> + +<p>Entre nós, dados os multiplices acasos +da mesquinhez publica, que affecta a nossa +vida de livraria, e onde a maior parte dos +auctores, de olhos fitos na <em>coterie</em>, raro sabe +trabalhar independentemente,—elle que +começou por demolir, e demolir <em>à outrance</em>, +gastando, a paginas plenas, talento e +nervos, deixou-se, talvez, desviar, demasiadamente, +pelas reclamações que do seu<span class="pn"><a name="pag_134">{134}</a></span> +valor o publico exigia; e dahi aquellas faltas, +de que, por fim, a visão clara da derradeira +hora lhe deu os mais angustiosos clarões!</p> + +<p>E, entretanto, se onde quer que está, chega +a memoria do que vae passando,—com +que surpresa ha de sentir (se lá ha surpresas) +tudo isso que para ahi ficou após de si!</p> + +<p>É que, bem péor do que no seu tempo, +os Artistas são hoje, para o grande numero +dos mentores officiaes, meras figuras de acaso, +cujos agoiros elles, os revolucionarios de +hontem, por cautela, se dão a amordaçar; +e, isto sómente, porque se não perturbe a +troça a que a Nacionalidade desceu,—ou +seja uma ceia de politicos, pela cerrada +noite fóra, que vem de longe, e onde um +teclado de dentes, instrumentando o desforço +de fomes velhas, nem sequer deixa +ouvir, por attenuar, a voz dos <em>baccarats</em>...<span class="pn"><a name="pag_135">{135}</a></span></p> + +<p>Mas abandonemos, por uma razão de +sensibilidade, a noticia do inopportuno +festim.</p> + +<p>E pois que, sobre uma tal noite, acertou +de baixar escuridão mais tragica, a que +ameaça de subverter a raça, que, ainda por +sua admiravel fatalidade, terá de triumphar,—vamos +nós inventariando tudo o que ao +presente de grande existe e futuramente +possa servir-nos.</p> + +<p>Ora, no extranho conjuncto da nossa +obra escripta, já hoje extrema,—têem, +como acabamos de ver, o maior interesse, +as paginas de Fialho, quer no seu valor +intrinseco, quer pelo que representam em +confronto com os demais e alheios padrões +de Arte.</p> + +<p>Uma obra, unicamente, elle não teve de +seu intento; e, conseguintemente, não logrou +escrever, como a não escreveram, talvez, +por a supporem então menos necessaria,<span class="pn"><a name="pag_136">{136}</a></span> +os que o precederam, e que, no +entretanto, de momento, se torna preciso, +quanto antes, compor, ainda por servir +aquelle resurgimento.</p> + +<p>Reportamo-nos, (quem ainda o não sentiu?) +á falta de um <em>Manual de Sensibilidade</em>, +o que equivale a informar—duma nova +Cartilha, com destino á futura mocidade +portugueza, e onde caibam as delicadezas +porque sempre nos affirmamos, ainda atravez +do mais accidentado da nossa jornada +historica; e que hoje, mais do que nunca +de opportunidade é que desde já occupem +quem, para alem de todos os sectarismos—sinta, +mais do que por si, pela +Nacionalidade, a carinhosa obrigação de as +versar!</p> + +<p>Trata-se, de resto, dum livro facil, pois +que nos não é preciso mais do que editá-lo +dum bem orientado sentido popular, ou +seja do nosso velho espirito de generosidade<span class="pn"><a name="pag_137">{137}</a></span> +e isenção, aliaz, de si, ainda latente, +quando não expresso, na obra dos +nossos maiores auctores,—tambem, quanto +a nós, os melhores, se não, até hoje, os +unicos interpretes da verdadeira alma de +Portugal.</p> + +<p> </p> + +<p><small><em>Ancede</em>, novembro de 1916.</small></p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a href="#m_nota2" name="nota2">[2]</a></sup> +Propositadamente, e á sua maneira, <em>pelas suas +proprias palavras</em>, e tambem «como quem junta uma +esculptura de bocados», entendemos dever reunir, ainda +por melhor o revelar, aquellas suas mais entranhas e +quasi confessadas caracteristicas.</p> + +<p><sup><a href="#m_nota3" name="nota3">[3]</a></sup> +E não se infira destes seus receios o argumento +simplista da improbabilidade do seu suicidio, pois que, +muito ao contrario, aquella versão pode denotar, quem o +sabe? como que o seu aprestamento, com as costumadas +alternações de desespero e intimidades com a Morte, de +facto habituaes á maior parte dos que voluntariamente a +provocam.</p> +</div> + +</div> + +<p><span class="pn"><a name="pag_139">{139}</a></span></p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<h2>INDICE</h2> +<p><span class="pn"><a name="pag_140">{140}</a><br><a name="pag_141">{141}</a></span></p> +<p> </p> +<p> </p> + +<table align="center" summary="Indice"> +<tr><th colspan="2">I</th></tr> + +<tr><td> </td><td>Pag.</td></tr> + +<tr><td>Cuba e Villa de Frades</td><td><A href="#pag_7">7</A></td></tr> + +<tr><th colspan="2">II</th></tr> + +<tr><td>A indole de Fialho</td><td><A href="#pag_33">33</A></td></tr> + +<tr><th colspan="2">III</th></tr> + +<tr><td>O Pamphletario</td><td><A href="#pag_51">51</A></td></tr> + +<tr><th colspan="2">IV</th></tr> + +<tr><td>O Artista</td><td><A href="#pag_79">79</A></td></tr> +</table> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="text-align: center;">ACABOU DE SE IMPRIMIR<br> + +NA TIPOGRAFIA DA «RENASCENÇA PORTUGUESA»,<br> + +RUA DOS MÁRTIRES DA LIBERDADE, 178,<br> + +AOS 14 DE FEVEREIRO DE 1917.</p> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of Project Gutenberg's Fialho d'Almeida, by Visconde de Vila Moura + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FIALHO D'ALMEIDA *** + +***** This file should be named 34288-h.htm or 34288-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/4/2/8/34288/ + +Produced by Mike Silva + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/34288-h/images/fialho1.jpg b/34288-h/images/fialho1.jpg Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..2dac63e --- /dev/null +++ b/34288-h/images/fialho1.jpg diff --git a/34288-h/images/fialho2.jpg b/34288-h/images/fialho2.jpg Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..58b0f27 --- /dev/null +++ b/34288-h/images/fialho2.jpg diff --git a/34288-h/images/fialho3.jpg b/34288-h/images/fialho3.jpg Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..c1fe6a8 --- /dev/null +++ b/34288-h/images/fialho3.jpg diff --git a/34288-h/images/fialho4.jpg b/34288-h/images/fialho4.jpg Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..f249e3b --- /dev/null +++ b/34288-h/images/fialho4.jpg diff --git a/34288-h/images/renascenca.png b/34288-h/images/renascenca.png Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..47dfee9 --- /dev/null +++ b/34288-h/images/renascenca.png diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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