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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-14 20:02:58 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Flirts + +Author: Henrique de Vasconcellos + +Release Date: January 26, 2011 [EBook #35073] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + + +*Notas de transcrição:* + +O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1905. + +Foi mantida a grafia usada na edição original de 1905, tendo sido +corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura +do texto, e que por isso não foram assinalados. + + + + + +HENRIQUE DE VASCONCELLOS + +FLIRTS + +(CONTOS) + +LISBOA +Ferreira & Oliveira, Lda.--Editores +_132, Rua Aurea, 138_ + +1905 + + + + + +FLIRTS + + + +HENRIQUE DE VASCONCELLOS + +FLIRTS + + +LISBOA +Ferreira & Oliveira, Lda.--Editores +_132, Rua do Ouro, 138_ + +1905 + + + +DE HENRIQUE DE VASCONCELLOS + + _PRIMEIRAS POESIAS, EM QUATRO VOLUMES:_ + + FLORES CINZENTAS (exgotado) + OS ESOTERICOS (exgotado) + A HARPA DE VANADIO + AMÔR PERFEITO (exgotado) + + _PROSA:_ + + A MENTIRA VITAL, um volume. + CONTOS NOVOS, um volume. + + + + L'art et la science sont independants. La morale ne doit avoir + aucune prise sur eux; jamais l'artiste, avant de faire une statue, + jamais le philosophe avant de faire une loi, ne doivent se demander + si cette statue sera utile aux m½urs, si cette loi portera les + hommes à la vertu. L'artiste n'a pour but que de produire le beau, + le savant n'a pour but que de trouver le vrai. Les changer en + predicateurs, c'est les detruire. Il n'y a plus de science ni art + dès que l'art et la science devienent des instruments de pedagogie + et de gouvernement. + + H. TAINE. + + * * * * * + +A ESCOLA DE FLIRT + + AO CONDE DE FIGUEIRÓ + + + + +A ESCOLA DE FLIRT + + O PROFESSOR.--Sem edade, 25 ou 40, tudo lhe convém. Uma mocidade que + envelheceu, ou mocidade que dura _quand même_, «je meurs où je + m'attache». Toda a pelle do rosto é sulcada por imperceptiveis rugas + finissimas; a boca tem um sorriso de cético, mas os olhos ainda + brilham. Parece ter conhecido tudo ou advinhado tudo. Se se olha + para a boca, sente-se que conheceu, para os olhos, pensa-se que + adivinhou. + + Elegante, uma ponta de preciosismo,--muito pouco!--apenas presentida + na maneira como olha para as mãos deliciosamente cuidadas, como as + d'uma senhora, viajou por toda a parte, indo mais ás festas mundanas + do que aos museus, leu mais jornaes do que livros. + + A DISCIPULA.--Uma ingenuidade, que quer conhecer tudo, ignorando + tudo. Vestida um pouco _à la diable_, seria positivamente _fagotée_ + sem a elegancia do corpo fino e leve e o brilho e o riso dos olhos e + dos labios côr de rosa. + + A discipula vae procurar o professor da Escola de Flirt, + discretamente annunciada por meio de circulares em papel lilaz com + dois corações em chamas estilisados à maneira moderna. É n'um + minusculo jardim seculo XVIII portuguez, com um delgado repuxo a + partir-se n'um pequeno tanque sem lavores e canteiros bordados por + buxeiros. No centro d'um, uma anagua forma uma copa verde-clara de + onde pendem as campanulas brancas que perfumam. + + +O PROFESSOR--É v. ex.ª que... + +A DISCIPULA--Sim, senhor... Venho aqui tomar algumas lições. Fiz a minha +educação no convento; não tive occasião de aprender os rendimentos +do Flirt. Casei sem amor, sem noivado, sem lua de mel... Um casamento de +conveniencia... para o meu tutor. Escusou de prestar contas. Vim ha +pouco para Lisboa. Aqui, toda a gente flirtea um pouco. Troçam do meu +acanhamento, chamam-me Pires, até Possidonia, dizem que sou «old style», +do tempo da rainha Anna... Recommendaram-me esta escola. Se não ensinam +aqui as cortezias, dança, diversas maneiras de trazer as _mouches_, como +no tempo de Moliére, mostram-nos como se conduz um flirt com a pericia +com que o Jeronymo Condeixa guiava _four-in-hands_. + +O PROFESSOR--V. ex.ª é intelligente? + +A DISCIPULA--(_Modestamente_)--Sou. + +O PROFESSOR--Formosa, vejo que é. (_A discipula agradece_) Gosta de +toilettes? + +A DISCIPULA--_Fagotée_ durante a minha interminavel mocidade--vinte +annos na provincia!--não possuo a complicada arte da _fanfreluche_. + +O PROFESSOR--Mas tem tendencias? + +A DISCIPULA--Enormes! Passo horas ao espelho a compor o meu pobre +cabello, a pôr uma fita... + +O PROFESSOR--Mais tout ça c'est l'affaire de la femme de chambre! + +A DISCIPULA--(_Indignada_) Entregar-me a mãos mercenarias?! + +O PROFESSOR--Mas minha senhora! Deve v. ex.ª fazer... permitta-me a +expressão--as proprias meias? Passar as noites em compridos serões a +alinhavar os corpetes com essas mãos que adivinho lindas sob a pellica +da luva? (_A discipula agradece._) Com certeza que não. Bem o vejo nos +seus olhos que são, deixe-me dizer-lhe, d'um brilho incomparavel. (_A +discipula torna a agradecer._) Todos esses cuidados pertencem aos +fornecedores. É por acaso a propria rosa que póda a roseira? Não! Ha +jardineiros de mãos calosas e almas rudimentares que preparam a eclosão +das orgulhosas flores que são o pasmo e o encantamento dos jardins. Ha +creaturas que se dobram dias inteiros sobre sedas e rendas, pensando em +cosinhadas e roes de roupa suja, e constroem fantasticas teias em que +nos vamos prender, as deliciosas toilettes dos Redfern e dos Rouff... +Porque se não deixa preparar por ellas? Ha cabelleireiras habeis que +ageitam deliciosos penteados. Seja paciente, consinta que ellas a penteiem. + +A DISCIPULA--É absolutamente preciso? Não poderei prescindir? + +O PROFESSOR--Absolutamente... absolutamente... não... A formosura de v. +ex.ª suppre muito... tudo... Mas é util. + +A DISCIPULA--Bem... E depois? + +O PROFESSOR--Sabe conversar? + +A DISCIPULA--Meu Deus! No convento, no que conversavamos mais era nas +Irmãs... para dizer mal d'ellas. + +O PROFESSOR--Dizer mal... é bom... mas de quando em quando... Senão +cae-se nas soirées do _Sporting_.--Lê? + +A DISCIPULA--O _Diario Illustrado_, todas as manhãs... + +O PROFESSOR--É pouco. Bourget--fala do coração. É um bom tema. Tudo o +que se disser é verdadeiro e falso, de fórma que uma opinião é voltada +do avesso com a maior facilidade. Falla de mulheres, _toilettes_ e +almas, pezares e córtes _tailleurs_, amores e rendas de corpetes...--uma +_macedoine_ que, para a conversação, tem o encanto da variedade. + +A DISCIPULA--Tenho o Larousse. + +O PROFESSOR--Bah! O Larousse é muito comprido. Não se pode falar em +sociedade, como se não deve falar no diabo e em outras coisas do uso +diario. Outro: Theuriet--é sentimental, cheio de lamurias; no campo, um +chorão, n'uma sala, um piano. É optimo para as noites de luar, na praia, +emquanto se faz a digestão. + +A DISCIPULA--Uma pastilha de Vichy em trezentas paginas. + +O PROFESSOR--Pouco mais ou menos. É um filho de Lamartine... Olhe, este +é preciso cital-o... ás vezes... a troçar... Depois, todos os +_vient-de-paraitre_. O _Figaro_ assignala-os. A proposito: são +muitos. Leia dez paginas no começo, vinte no meio e as tres ultimas. +Terá assim um verniz literario... completo. + +A DISCIPULA--Tenho entendido. + +O PROFESSOR--Mas isto é longo. Prefere entrar? Quer a primeira lição +aqui ou na aula? Aqui? + +A DISCIPULA--Sim. Acho melhor. Sob as arvores, junto ás flores, a ouvir +o murmurio dolente da agua que corre. + +O PROFESSOR--É poetica? + +A DISCIPULA--Quasi, ás vezes. + +O PROFESSOR--Não fica mal um pouco de poesia... Falar do mar e do +estremecimento da lua sobre as aguas inquietas, comparar-se á agua +movediça e infiel... Emfim são coisas para mais tarde. Vamos aos +preliminares. Ah! Antes de mais nada: o nome de v. ex.ª? + +A DISCIPULA--Carmo... Maria do Carmo. As minhas amigas chamam-me +a Carminho. + +O PROFESSOR--Um nome lindo... + +A DISCIPULA--Não se presta a madrigaes. + +O PROFESSOR--Um nome sabendo a flores silvestres... + +A DISCIPULA--Pires... + +O PROFESSOR--(_Vae tomando calor_)--Pelo contrario. Um nome que se +desfaz na boca como um _fondant_, nome para murmurar nas horas +perturbantes, nome que finalisa n'um franzir de labios, como para um +beijo... Delicioso! + +A DISCIPULA--Muito obrigada. + +O PROFESSOR--Bem. Bem. Passemos á lição. (_Toma um falso ar amavel, faz +brilhar na boca um sorriso, retorce o bigode loiro_). + +A DISCIPULA--Ouvil-o-hei com toda a attenção. + +O PROFESSOR--(_Agradece com um gesto largo._) _Flirt_ é uma palavra +ingleza que deriva do francez. Já tem fóros de portugueza: Garrett +empregou-a. É como uma batalha de flores entre duas pessoas de diferente +sexo. + +A DISCIPULA--Com os espinhos? + +O PROFESSOR--Conforme: ha varias especies de flirt. Ha um em que as +rosas são quasi todas guardadas por numerosos regimentos de espinhos: é +o flirt agressivo, feito de recriminações. Ha quem lhe encontre encanto. +Pff! Não lh'o aconselho. É bom para velhas de sessenta annos com os +_vieux beaux_ que foram seus namoros. Ha o flirt sentimental, aquelle a +quem me referi ha pouco, com _clair-de-lune_ e regatos prateados, o +flirt com Theuriet e Alfred de Musset dos proverbios, um assucareiro em +que caiu agua e vae entornando calda que pinga e lambusa. Horrivel! Mas +tem os seus adoradores, misses _sur le retour_, tias, meninas da Baixa +espremidas nos espartilhos de baleia e aço--crosta d'um peixe que a +ichtyologia ignora; é muito usado lá para os lados excentricos da +Estefania. Ha--tome toda a attenção, pois é o que convem ao seu +genero de belleza... + +A DISCIPULA--V. Ex.ª confunde-me... + +O PROFESSOR--O que ha de mais sincero!... Ha um genero, o meu +predilecto... (_Ageita-se no banco, torna a retorcer o bigode, olha +amorosamente para as unhas rosadas_). É o flirt perfumado e finissimo, o +fumo das cassoletas com perfumes leves, como se queimassem flores, +petalas tremulas d'anemonas... + +A DISCIPULA--Como V. Ex.ª é eloquente! + +O PROFESSOR (_Baboso_)--É V. Ex.ª que me inspira! + +A DISCIPULA--Os seus olhos sublinham com tal calor as frases! + +O PROFESSOR--Um pouco de luz que vem dos seus!... Um reflexo do seu +admiravel olhar! É por isso que falo assim. (_Approxima-se d'ella_). É o +flirt em que o coração apenas perfuma... O que tem de bom uma flor? A +propria materia? Não, que essa é unica, a mesma na couve lombarda e no +lyrio. É o perfume e a côr. Do coração, tambem, só devemos permutar o +perfume. Ora imagine: entregar um coração cheio de sangue, a palpitar +como um peixe quando acaba de ser pescado! + +A DISCIPULA--Até mete medo! + +O PROFESSOR--Tem razão. Até mete medo. V. Ex.ª tem sempre razão. + +A DISCIPULA--Muito obrigada. + +O PROFESSOR--As pessoas formosas--e V. Ex.ª é divinamente +formosa--teem sempre razão. + +A DISCIPULA--V. Ex.ª é muito lisonjeiro. + +O PROFESSOR--A lisonja é o aroma da verdade. V. Ex.ª merece tudo. + +A DISCIPULA--V. Ex.ª é extraordinariamente amavel. + +O PROFESSOR--Podesse eu ser amavel para que todas as senhoras bonitas me +amassem! + +A DISCIPULA--Todas? + +O PROFESSOR--Quando digo todas... V. Ex.ª comprehende que me refiro a +uma só. + +A DISCIPULA--Feliz aquella... + +O PROFESSOR--Acha feliz? + +A DISCIPULA--Deve sentir o peito em festa... + +O PROFESSOR--Oh minha senhora! + +A DISCIPULA--Lembrar-me-hei de si. Nas noites infindaveis, quando me +sento ao piano e os meus dedos correm sem fito sobre o teclado... + +O PROFESSOR--Como nardos que andassem... + +A DISCIPULA--Como póde dizer isso, se nunca as viu? + +O PROFESSOR--Adivinho-as. Mas gostaria de as vêr (_Toma-lhe a mão_). +Estas luvas são de Paris? + +A DISCIPULA--Não senhor: são dos Gatos. + +O PROFESSOR--(_Um pouco desapontado_). Não importa. As mãos são lindas. +(_Vae desabotoando uma das luvas_). + +A DISCIPULA--(_Consentindo_). O que faz? + +O PROFESSOR--Estes botões são feios. Mas a pelle é finissima. + +A DISCIPULA--A da luva? + +O PROFESSOR--Não, a da mão. + +A DISCIPULA--Agradecida. + +O PROFESSOR--(_Curva mais a cabeça approximando-se mais, assim, da mão_). + +A DISCIPULA--(_Sem a retirar_). O que faz? + +O PROFESSOR--Nada, minha senhora... ia vêr melhor o grão da pelle. + +A DISCIPULA--(_Ligeiramente desapontada_). Ah! julguei... + +O PROFESSOR--Oh minha senhora! Pensar tal a meu respeito! Não sabe que o +flirt é o amor sem desejo, a sombra do Amor? Eu não podia dar-lhe um +beijo! + + * * * * * + + + + +FLIRTS + + A ANTONIO BANDEIRA + + +FLIRTS + + Maria do Carmo, curvada sobre a meza, folheia os ultimos _envois_ de + Paquin e Redfern. Um candieiro com um largo quebra-luz de seda e + rendas lança-lhe sobre o cabello uma aureola de oiro. O corpo está + mergulhado na penumbra. Na sala, os moveis tomam aspectos + fantasticos. Os espelhos teem um brilho pallido. Gonçalo, ao entrar, + beija a mão que Maria do Carmo lhe estende, sem levantar os olhos + dos papeis. + + MARIA DO CARMO--trinta annos, com dez de casamento. Sem filhos. A + vida passa-se-lhe em visitas, _raouts_, recéções e bailes. Alguns + livros da moda, recommendados por Marcel Ballot, no _Figaro_, e Jean + Lorrain, por curiosidade. Interessante como um enigma, ás vezes + perversa. Não se lhe conhece um amante, mas indicam-se muitos. Não + toca piano. + + GONÇALO--não tem uma branca, mas no meio da animação, ficticia, + vê-se um grande cançaço de viver, como se tivesse experimentado + tudo. Procura por toda a parte, como um _gourmet_, o manjar fino. + Epicurista, delicadamente depravado, como um _roué_ da Restauração, + ou um elegante do fim da republica romana. + + +--Ainda bem que veiu!... Preciso do seu bom conselho... + +--Como sempre, depois de ter feito alguma tolice?... + +--Impertinente! + +--É sempre assim. Pede-me o conselho depois de não precisar d'elle! De +resto, dá na mesma: ninguem segue conselhos. + +--Não. Tenho aqui estes dois albuns. De Paquin... De Redfern... São as +ultimas creações. Estou tentada a escolher quasi tudo e a não escolher +nenhum... Quer acreditar que tenho dias vazios na minha vida? Dias sem +vontade, d'uma grande lassidão, em que nem sequer tenho forças para +fingir que sorrío!... + +--Ame um pouco... + +--É coisa que se encommende? Acordo um dia, com a resolução de amar. É +logo. O primeiro que me apparece na Avenida, aquelle que melhor dorme em +S. Carlos, o caixeiro que me vende as fitas no Martins! Vê-se bem que +nunca amou! + +--Não amei! Mas eu não _sou_, eu _amo_. É a minha maneira de existir. Um +nasce cego; nasci amoroso... + +--Calle-se! Diga lá, qual d'estes vestidos prefere? + +--Sabe que é muito difficil escolher um vestido pelos desenhos feitos +_d'après_ os manequins? O mesmo vestido toma aspectos differentes +conforme as pessoas... + +--Não faça filosofia. Olhe este de Paquin: ligeiro, todo em rendas, em +coisas leves, parece feito com flôres; o Redfern é mais hieratico; mesmo +nos vestidos de baile conserva a _raideur_ dos córtes _tailleur_. São +vestidos para a Bouro, que parece ameaçar-nos constantemente com a sua +corôa de marqueza. Este? + +--Não lhe irá bem, talvez... O talhe da saia engrossa a sua figura, a +que não vão bem... + +--O senhor treslê... Tudo me vae bem... Deixe lá os figurinos... Não +sabe nada de vestidos... É como do coração. Aconselha-me a que ame... + +--E dou-lhe um bom conselho. Nem parece que sou seu amigo. + +--Trouxe hoje a alma de cinico? + +--Era a que tinha mais á mão. Estava ao cimo da gaveta... + +--Continuo a dizer: não percebe nada dos negocios do coração... + +--Não ha negocios do coração. O coração dá-se... + +--Não; troca-se... + +--Para quê? Não é preciso, no amor, ser-se correspondido. Basta amar. É +possivel que para a felicidade seja necessaria a permuta... + +--O amor é o choque... + +--Muitas vezes o cheque. + +--Que _jeu de mots_ tão velho! É o choque de duas almas. É preciso que +girem bem, no encontro. São duas electricidades que se combinam. Conhece +a theoria das duas metades da maçã? + +--Conheço: é uma figura de rétorica... + +--Não é. Andam duas creaturas por esse mundo, ignorando o seu futuro, +achando a vida sem rasão, idiota... + +--Escolhe uma mentira vital, como diz Ibsen. Conheço-lhe o _charabia_... + +--Deixe-me acabar. Corre mundos, faz tolices, fecha-se dias em casa, até +vae ao circo ver as focas... E nada! Um dia, sem saber como nem porquê, +uns olhos encontram-se com os seus, numa multidão. Ha a faisca... Pode +ser um santo ou um bandido, lindo como o Rubempré, estupido como um +tenor, candidato á grilheta ou futil como um janota. Fica-se presa; +somos d'elle para toda a vida, ficamos amarradas a elle, como uma +sombra... É assim o Amor, é feito de imprevistos... Não tem rasão alguma +de ser, mas é. + +--Uma coisa fatal? Tem que ser? + +--Sim. + +--Permite-me que discorde? + +--É teimoso. + +--Sou. Já viu alguma discussão dar resultado? O amor é sempre creado por +nós. Não amamos senão a pessoa que queremos amar. É, como tudo, um acto +voluntario. Ha escolha. Vemos uma mulher, vinte, trinta vezes, sem nos +fazer impressão alguma. Um dia ella repara em nós. Se é bonita, +elegante, calça no Chapelle e veste na Lippman, pelo menos, a nossa +vaidade sente-se satisfeita e começamos a descobrir-lhe encantos, a +crear alguns, a afeiçoal-a ao nosso geito. Ao conversar com ella, pomos +intensão nas frases ôcas que diz, vemos mysterio no seu sorriso... +Estamos presos.--Um bello dia, porém, por qualquer motivo, torna-se util +acabar com o pesadello da mulher que aparece em toda a parte: sae das +brasas do fogão, a que nos aquecemos, da pagina que lemos, do fumo do +cigarro, do papel em branco em que vamos escrever ao nosso procurador. +Repara-se um pouco nella. Descobre-se o primeiro defeito. Exageramol-o +para o grotesco. E da deusa perfeita tambem as flores e fica uma caração +que faz rir. + +--Uma theoria... + +--Não é, creia. Acontece-me isso duas ou tres vezes por anno. Sabe que +ando sempre com uma paixoneta... ou mais. Levo oito dias a fazel-as cair +do peito. + +--E vive feliz? + +--Inteiramente feliz. Saber contentar-se não é a suprema sabedoria? Para +que se inventou o _flirt?_ + +--O _flirt?_ Que horrivel coisa? É a «sombra chineza» do Amor... + +--É melhor. É o perfume. Os delicados contentam-se. É preciso comer uma +flor? Não, basta respirar-lhe o aroma. Ora essas conversas, meio +sentimentaes, a um canto, ditas em voz baixa, sublinhadas pelos olhos +que toda a alma illumina, são como o roçar de azas que fossem flores. Ha +o ligeiro premir dos dedos, sob os leques, certos tremores de labios, +como se os beijos n'elles esvoaçassem, uma concentração de todo o +ser, que parece boiar no ether, leve... As phrases não se arrastam, n'um +espasmo. Teem palpitações, lançam-se n'uma curva larga, até desapparecer +em estrella. Não conhece o _flirt_. Todo o ser é livre e vae +entregar-se, rendido... Cada palavra toma um sentido misterioso... +Vou-lhe contar um _flirt_... Estava na Suissa. + +--Internacional? + +--Cosmopolita. N'um d'esses cantos, que ultimamente o Cook estraga, na +Engadine. Paisagem de gelo, hotel de gente podre... + +--De chic? + +--De chic. Conheci uma americana, deliciosa como um fructo acre, que +vivia fora da _coterie swell_. O americano vae-se tornando terrivelmente +_rasta_. Trinta annos? Talvez... Mas trinta annos frescos, sem rugas, +viuva depois de dois mezes de escasso matrimonio com um formidavel +_brasseur d'affaires_ de New-York, cerebro em ebulição permanente que +acabou n'uma neurasthenia aguda. Iamos passear sós, pelo gelo. +Sentavamo-nos nos pontos de vista que o B½deker não indica, paisagens +tristes de tanta brancura, sem uma mancha. Fugiamos dos _five-ó-clock_, +das _parties_ bulhentas em complicada companhia. Comecei a amal-a. +Tinhamos lido os mesmos livros, sobre elles fallavamos: gostavamos das +mesmas musicas, d'esse Schumann cheio de côr, dolente e envenenado; +preferiamos aos flamengos gordurosos e aos hespanhoes sombrios, o +delicado misterio dos Vinci, a graça fina e brilhante de Raphael. + +A fallar de quadros e de romances, as nossas almas tocavam-se, porque um +sentido novo brilhava em cada palavra; e parecia que cada frase +terminava n'um beijo. Ás vezes, levemente, as nossas mãos tocavam-se. +Era rapido e delicioso. D'esse contacto ficava uma lembrança, como d'um +perfume. Amor platonico? Não. Um _flirt_. Sem arroubamentos. Sempre a +Alma livre, sempre o beijo a tremer na bocca, sem cair... Uma ou outra +vez, comprehende, por esquecimento... + +--Comprehendo. Sem malicia... + +--Essa mulher tinha realisado todo o meu sonho! De resto acontece-me +isto muitas vezes. O sonho varía com as mulheres que nos interessam. Mas +essa parecia realisar tudo. No seu corpo ambiguo, de egipcia, parecia +conservar-se, como um fructo no gelo, uma adolescencia eterna. As suas +mãos finas, pesadas de tantos anneis em que Vever pozera todo o seu +genio estranho, floriam gestos d'uma caricia delicada e terna. A sua +alma, que parecia ter visto tudo, ainda sentia a vida com frescura. As +horas que passei junto d'ella! O perfume, uma mistura sabia +d'Houbigants, então _dernier bateau_, perturbava... Longe d'ella, não +pensava n'outra coisa. Recordava-me dos gestos, os pequenos detalhes +da _toilette_ e da conversa, um rosar de pelle sob as rendas, uma +palavra, um _grain de beauté_, que tinha na nuca. Sabe como acabou? Ella +propoz-me casar. Fechei-me no quarto, horrorisado. Casar, eu? Uma mulher +que me julgava capaz d'isso! Era preciso abater esse amor orgulhoso, que +crescia no meu peito. Que defeito tinha ella? A principio não vi +nenhum... Fui procurando. Tinha, ás vezes, quando fallavamos em francez, +erros de grammatica deliciosos. Comecei a achar ridiculo essa +ignorancia. D'ahi passou para os vestidos, para o corpo, o peito chato, +sem ancas... Tudo caiu. Essa mulher pareceu-me horrorosa... Comecei a +troçar d'ella, do seu _bas-bleuismo_... Por fim ella resolveu partir. +Lembro-me perfeitamente. O gerente do hotel levou-lhe um enorme ramo de +_bluets_, os raros amigos tambem lhe levaram flôres. Todo o carro estava +cheio de flôres. Sentou-se entre ellas, afagava-as, cortára algumas para +cheirar. Chorára. Ainda me deitou um molho, que tinha beijado. O carro +partiu, como se fosse um açafate. E a sua face branca era como uma flôr +triste... Não tive pena. O amor já caira. A gente ou gosta ou não gosta, +conforme quer.--Vamos fazer um _flirt_ para experimentar? + + * * * * * + + + + +LOGICA + + A ANTONIO DA COSTA CABRAL (THOMAR) + + +LOGICA + + N'um _garden-party_. Emquanto no _tennis_ se cruzam as palavras + inglezas, e no kiosque, d'onde caem chuveiros de glicinias, se + discutem mãos de _bridge_, afastados, junto a um roseiral, Joanna, + Maria e Miguel veem jogar. + + JOANNA--Toda a face branca é illuminada por dois largos olhos + negros. Casada ha dois annos com um _sportsman enragé_, que prefere + o cabo de uma _raquette_, o leme d'um _outrigger_, o _guidon_ d'um + automovel, á mais terna caricia da mulher. Usando e abusando do + flirt, um em cada dia, ás vezes dois, tem periodos de fidelidade: + quando quer torturar alguem. Provoca-o, chama-o, fal-o entontecer + com promessas. Quando o vê absolutamente rendido, foge, para pensar + n'outra coisa, ou em coisa alguma. Não vae ao fim de nada. Desenha, + mas nunca terminou um esboço; toca piano, mas deixa sempre o trecho + de musica suspenso a meio d'um compasso. Tem medo de acabar. É uma + natureza hesitante. + + MIGUEL--Nada intellectual. Um bom animal intelligente. Tem viajado. + Mas prefere o _steeple-chase_ de Auteuil a uma _première_ no + Vaudeville. Admira a força. É um leal. Dá o seu coração sem + reservas. É, actualmente, o flirt fixo de Joanna. + + MARIA--Vão-lhe falhando os admiradores. Os cabellos brancos não lhe + ficam bem. Não sente muito a falta, nem se irrita com a felicidade + alheia. Natureza simpatica, hoje rara. + + +MARIA--... Encontrou o Cerqueira a passear d'um lado para o outro, no +terraço do Hotel, a balbuciar phrases, os olhos fechados, um livro na +mão.--Que estás tu a fazer?--Tenho hoje de fazer uma declaração á +Clotilde. Estou a estudar aqui no Bourget duas phrases tezas!... + +(_Joanna e Miguel riem-se, mas deixam cair a conversa_). + +MARIA--A Clotilde merecia-o. Quando se começaram a usar os _flous_, para +que é preciso _postiches_, ella tinha escrupulos e explicava:--«Sei lá +se o cabello pertenceu a alguma creatura damnada! E hei-de pôr na minha +cabeça uma coisa de alguem que hoje está a arder nas profundas dos +infernos!» O que acham vocês? + +(_Joanna e Miguel tornam a rir-se, sem responder_). + +MARIA--Já comprehendo. Vocês querem ficar sós... (_levanta-se_). + +JOANNA (_sem convicção_)--Não. Deixa-te estar... + +MIGUEL (_a mesma coisa_)--Pelo amor de Deus!... + +(_Maria afasta-se, voltando ainda a cabeça para sorrir-lhes_). + +MIGUEL (a _principio, parece hesitar, por fim decide-se_)--Afinal, o que +quer de mim, ao certo? + +JOANNA--Eu? + +MIGUEL--Sim. O que quer de mim? + +JOANNA--Não comprehendo... + +MIGUEL--É bem facil!... + +JOANNA--Quer chamar-me estupida? Ha de concordar que é pouco amavel!... + +MIGUEL--Não desvie a conversa. Sabe que mesmo que o pensasse não lh'o +diria... + +JOANNA--Então pensa-o? + +MIGUEL--Não o penso; sabe isso muito bem. + +JOANNA--Uff! Respiro... Não poderia entrar na Academia, se fizesse tal +conceito da minha intelectualidade... Não é assim que se diz, nos meios +_très dernier bateau_? + +MIGUEL--Oh! por mim!... + +JOANNA--É o seu ambiente, o meio cosmopolita; é inseparavel dos +diplomatas, delicia-se no Tyrol e em Roma... + +MIGUEL--Quer outra vez mudar a conversa. Não é verdade? + +JOANNA--Confesso-lhe que sim... Não percebo o que quer!... + +MIGUEL--Repito-lhe: é facil. O que quer de mim? + +JOANNA--Olhe: dê-me d'ali a minha sombrinha... N'este momento é a unica +coisa que quero de si. + +(_Miguel traz-lhe a sombrinha vermelha, que ella abre. A luz parece +incendiar-lhe o chapeu branco, e toda a face branca_). + +MIGUEL--Fallemos a serio, um pouco... + +JOANNA--Já me viu brincar? Na minha edade!... + +MIGUEL--Fishing for compliments? + +JOANNA--Será, se quizer... Oiço-lh'os tão poucas vezes! + +MIGUEL--Queria passar a vida, como um d'esses pagens antigos, sentado a +seus pés a cantar-lhe endeixas. Mas o seu sorriso paralisa, na minha +bocca, o amor que vae a sair. + +JOANNA--É o que o Cerqueira chamava uma phrase tesa! + +MIGUEL--Porque troça de mim? Porque faz de mim seu joguete? Eu andava +feliz e livre, sem mulher alguma que me preocupasse. Nunca andei tão +alegre. Vivia a minha vida, livremente. Todas as mulheres bonitas me +pareciam eguaes. Joanna começou a chamar-me, a dizer-me phrases que me +prendiam, que me entonteciam. Tinha olhares para mim tão cheios de +promessas, que corri como um esfomeado, diante d'uma mão que se lhe +estende, carregada de vitualhas. E junto de si senti-me perturbado. +Foram para mim as palavras mais carinhosas, aquellas que tinham um +sentido ambiguo, banal para os estranhos, para mim precioso e comovido. +Parecia um flirt terno. Subitamente, tudo mudou. Parece escolher tudo o +que possa desagradar para dizer-me. É o flirt agressivo, em que d'uma +das partes não ha amor, ou o quer esconder. E a conversa é toda feita de +botes de florete, que muitas vezes arranham e podem até matar o amor. + +JOANNA--Tout passe, tout casse, tout lasse... Porque não ha de ser assim +o Amôr?... + +MIGUEL--Mas deixe-o acabar por si, como uma flôr n'um jardim +deserto, que se desfolha aos poucos... + +JOANNA--Para apodrecer?... + +MIGUEL--Ó não, não apodrece. Evapora-se como uma essencia e deixa um +perfume suave--uma recordação... + +JOANNA--Outra phrase tesa. Está terrivel! + +MIGUEL--Faça-me a justiça de pensar que não a li... + +JOANNA--Não. Ouviu-a em alguma peça... Você diz-me que não lê nada... + +MIGUEL--Leio o _Seculo_, todas as manhãs. + +JOANNA--Não acredito... + +MIGUEL--Palavra! Por causa das cotações da bolsa. Tenho uns dinheiros +nos fundos russos... Mas não sobem... Ando infeliz em tudo: no jogo e +nos amores. + +JOANNA--Nos amores? Diz isso a mim? Você é muito ingrato, Miguel! + +MIGUEL--Continua a brincar comigo! + +JOANNA--Agora é occasião de eu tambem fallar a serio. E faço-lhe a mesma +pergunta que me fez ha pouco:--O que quer de mim? + +MIGUEL--(_não atina com a resposta_) Eu? + +JOANNA--Sim. O que quer? Tem um flirt comigo... É o meu preferido... + +MIGUEL--Diga antes favorito, como se tratasse d'um cavallo de corridas. + +JOANNA--É o meu favorito, seja. Gosta de mim? Muito. É o que ia a dizer, +com alguma rétorica. Não gosto eu de si? Não me ponho pelos cantos a +fallar comsigo, a sós? Não estou aqui a apanhar sol, só por sua causa, +para poder estar comsigo, em liberdade, sem ter ninguem que nos oiça? +Não vou á Avenida todas as tardes para o vêr? Não olho para si sempre no +theatro? Não lhe digo os dias em que vou _shopping_ pelo Chiado? Para +quê? Para estarmos juntos! Então que quer? Quer casar comigo? Mas sou +casada e felizmente não ha o divorcio entre nós. + +MIGUEL (_tristemente_)--Felizmente? + +JOANNA--Sim! Felizmente. Primeiro, é contra a religião; depois, escusa a +gente de se arrepender varias vezes de ter casado. Assim arrepende-se +uma só. Não pode casar commigo. Então o que quer? + +(_Miguel olha-a estupefacto. Não encontra resposta. A expressão de +Joanna é equivoca. Miguel não sabe se falla ingenuamente, se quer +mystifical-o. Cala-se_). + +JOANNA--Então bem vê que não tem razão para se queixar de mim! + +MIGUEL (_Tem o ar de quem apanhou de surpresa uma grande pancada. +Olha para Joanna, para si, para os outros. Pensa que o desfrutam. +Acodem-lhe á boca frases energicas. Levanta-se, ageita o fraque e +despede-se_).--Muito boa tarde! + + * * * * * + + + + +ROMANTICO + + AO CONDE DE ARNOSO + + +ROMANTICO + + +--Ajude-me a servir o chá, primo... + +Levantou-se. Na quasi obscuridade da sala, que tinha uma luz +violacea--coada pelos vitraes onde se curvam lirios roxos--Clara parecia +nascer dos tapetes, como uma graciosa e alta flôr de espuma. «Toilette» +branca e ligeira, como pennas de ave, toda em musselinas, apenas +indicando a elegancia do seu corpo fino, ia morrer no tapete branco... + +Ia por entre os moveis, offerecendo as chavenas onde fumegava o chá +perfumado, que da China trazem lentas caravanas, por tortuosos caminhos. +O seu corpo agil descrevia carinhosas curvas. O ruido das conversas +continuava... Um «flirt» a um canto murmurava, como se as palavras +ficassem nos labios. Paulo, de grupo em grupo, uma chavena na mão, +contente por ser alguma coisa, junto d'ella, tinha na bôcca um sorriso +beato. + +N'aquella tarde nem conversava. Entravam e saiam as visitas, umas +apressadas,--«apenas para saber de ti, Clara»--outras morosas, dando +«rendez-vous» no salão elegante e discreto, onde na meia luz quasi se +não conheciam as pessoas, podia-se estar sem ser visto. E Paulo, calado, +n'um fauteuil a um canto, sorria para si proprio, olhando a figura +indecisa de Clara, os cabellos loiros, na sala como enevoada onde apenas +o fogão, por baixo do para-feu, tinha um brilho vermelho. + +Lembrava-se de todo o comprido caminho percorrido desde aquella noite em +Cascaes, em que o impressionara a graciosidade de Clara, o seu aspecto +de flôr fresca, sempre em «toilettes» leves, abundantes em gazas, +crepons tenues. Certamente que, companheiro e parente, admirára sempre a +belleza da prima, mas seguira outros caminhos, nunca reparára bem para o +enigma perturbante dos olhos verdes, para a elegancia moderna, feita de +graça, a gentil figurinha de Boldini, princeza de cera e de seda, cujas +mãos eram dignas de vêr florir entre os dedos os anneis mais preciosos +que Vever e Lalique inventam, em combinações de moribundas gemas. Nunca +olhára bem para ella com olhos de vêr. Habituára-se desde a puberdade a +vêl-a. E seus cubiçosos olhares procuravam outras mais distantes, que +julgava conhecer menos, pelo encanto do imprevisto. + +Mas essa noite! Como lhe apparecia ainda, depois de tantos mezes, +nitidamente, essa noite d'um ceu leitoso, com uma lua enevoada, que se +espalhava sobre o mar, sem brilho. Na varanda do Casino, quasi deserta, +os Auers incidiam fortemente sobre Clara. No mar, em baixo, fogachos +prateados tremiam. E além, as raras luzes da Cidadella; na Esplanada os +focos esverdeados tiravam da sombra manchas de palmeiras e listravam de +luz a agua inquieta, gemebunda e misteriosa. + +Paulo, recostado n'uma cadeira, olhava a mancha mais negra do yacht +real, apagado, apezar das suas lanternas que tremeluziam no mar. O +charuto caíra-lhe da boca. Foi uma frase preciosa de Clara que o acordou: + +--Quem me dirá um dia a cantilena do mar? Como ella embala! Como seria +bom dormir a ouvir junto de nós a suave cantilena! + +Paulo olhou para ella surprehendido. Pois quê? Clara, a ultima +florescencia dos _raouts_ e dos _teas_, teria phrases de heroina de +Rosseti, seria leitora de Ruskin? Foi então que reparou nos olhos cheios +de sonhos e de misterio, na bocca dolorosa, a vermelha e fina bocca, no +seu collo de infanta apenas nubil, em toda a adolescencia que se +conservava intacta no corpo precioso, como um fructo no gelo. + +Começou então a seguil-a. Dura lhe foi a vida em theatros, jantares e +bailes. Não faltava a uma _sauterie_, a uma _party_, que d'antes o +deixavam indifferente, ficando nas interminaveis partidas de _bluff_. A +dolorosa expressão que na bocca se vincára n'aquella noite do Casino +desapparecera; um grande contentamento da vida parecia boiar á flor dos +olhos garços e os movimentos rythmicos, que ella fazia, como se fosse ao +som d'uma musica, eram livres, felizes, sem promessas. + +Não voltar o abandono d'aquella noite! Paulo desejava que Clara outra +vez abrisse a sua alma, para elle sentir a caricia deliciosa. + +Mas a mulher amada conservava-se indifferente, risonha, um pouco +_coquette_. + +Para os seus madrigaes escolhidos, preparados com antecedencia, buscados +em livros de auctores novos, phrases perturbantes de Lorrain, perfumados +disticos de Henri de Regnier, licenciosas palavras de Lionel des Rieux, +com um sabor antigo, até o proprio d'Annunzio servira para a +pilhagem,--para todos esses periodos carinhosos ella tinha o mesmo riso, +que abria a bocca fina, descórada, que o traço de carmim violentaria a +macerada pallidez da sua face: + +--Ah! Paulo! Ah! Paulo! Apaixonado por mim! Tenho-lhe conhecido tantas +paixões? Só na semana passada, tres! + +--Se não penso senão em si! + +--Quando está commigo? Nem isso! + +--Clara! Clara! Se me conhecesse bem, veria como a minha alma se fez +para si um fresco bordão de assucenas... + +E outro riso claro cantava na bocca exangue, a troçar da phrase +pretenciosa. + +Uma tarde, n'um _garden party_, emquanto no _court_ de _tennis_ as +palavras inglezas crusavam-se e os jogadores corriam, a _raquette_ no +ar, elles um pouco afastados, juntos a um macisso de jasmineiros que +floria, cobrindo-se d'uma renda fina e branca de pequeninos jasmins, +Paulo, esquecendo-se das phrases decoradas nos romances, deixou sair da +bocca, livremente, toda a força e toda a anciedade do amor que parecia +abrir-lhe uma chaga no peito, teve palavras em que fulgiam desejos, os +olhos brilhavam, enternecidos, agarrou-lhe nas mãos, encheu de beijos as +palmas roseas, puxou-a para si, e pôde dar-lhe, de surpresa, um grande +beijo na bocca, soffrego, que Clara não pôde evitar. + +Voltada a si do pasmo, espantada pelo insolito atrevimento que a sua +ligeira _coquetterie_ não permitira, quiz zangar-se; mas voltou a +rir-se, como se esse beijo, que lhe deixara na boca um calor de chama, +tivesse sido apenas uma phrase, das grandes phrases de Annunzio, tão +cheias de volupia que entontecem, como os largos calices das magnolias +n'um pequeno jardim fechado. E sempre a sentir na bocca a impressão +ardente d'esse beijo, Clara correu para o _tennis_, a querer jogar +tambem para esquecer-se. + +Era d'esse beijo que Paulo vivia, tomado de assalto, como n'uma pilhagem +de egreja. + +E, apesar de Clara continuar a ser indifferente e risonha para elle, +lembrava-se da perturbação que levára á alma ligeira da preciosa +bonequinha de Nuremberg; olhos abertos, continuava a sonhar que esmagava +os labios exangues sobre a pressão da sua bocca ávida. + +Paulo era um romantico. Paulo vivia de pouco, como as aves do ceu. + + * * * * * + + + + +A BISANTINA + + A LUIZ FERREIRA DE CASTRO + + +A Bisantina + + +No café, diante do _cocktail_ vulgar, eu esperava um amigo. Fôra mais +cedo para a entrevista, de maneira que antes da hora lêra os jornaes, +folheára as revistas, olhára para o relogio, consultára até o barometro, +interessado. Iam saindo os clientes, aos poucos. Conforme se levantavam +das mezas, o criado, n'um _crac_ apagava a lampada electrica. Eu ficára +já, n'um canto, quasi na meia luz. No fundo da sala as lampadas +faiscavam nos espelhos, telintavam os pratos, as discussões cruzavam-se. + +Esperava em vão... Comecei a ceiar. + +D'ahi a pouco um rapaz veiu sentar-se ao pé de mim. Conhecia-o de o vêr +nos cafés nocturnos, quasi sempre em companhia de mulheres faceis, +estardalhando, contando façanhas de orgias nas _vadrouilles_ de +Montmartre; de quando em quando, como n'uma expansão, falava de um +quadro que entrevira n'um museu, alguma luminosa festa da +Renascença, um nú veneziano, ou preciosas figurinhas dos primitivos, +simples e mal desenhadas, entre brocados de oiro. + +Mas nunca me ligára, correndo a minha vida n'outra direcção. N'essa +noite, admirei-me de elle deixar a bulhenta sociedade que _sabrait le +champagne_, para se acolher ao silencio, á quasi obscuridade. + +A principio bebeu a pequenos goles o Bucellas que mandou buscar. Tinha o +ar de quem hesita em praticar um acto, o recolhimento subito d'um gesto +esboçado, ensimesmava-se, enchia novamente o copo, lia attentamente o +rotulo da garrafa. + +Por fim debruçou-se para a minha meza: + +--O senhor gosta de coisas exoticas, das mulheres finamente perversas, +do brilho das podridões... + +--Ó, não! Apenas do _faisandé_!... + +--É uma questão de palavras... Tudo o que é ambiguo, perturbante, +insexual, tenta-o; compraz-se no esmiuçamento das taras, é o chronista +do irregular, do _à coté_. Prefere as monstruosas orchideas ás rosas, o +enigma dos Vincis, á belleza forte dos Rubens. Deixa-me contar-lhe uma +historia? + +Por certo que a minha phisionomia traiu o receio da maçada eminente. +Toda a gente imagina que a sua vida é um «motivo» interessante para +um livro. E eu tenho deixado cair, como folhas secas, tantos casos que +me contam, compridamente, com meandros de detalhes! + +--O senhor tem o dever de me ouvir e não se arrependerá! O senhor é um +psicologo... + +--Não faço profissão... + +--Não importa. Tem obrigação. + +--N'esse caso... + +Resignei-me. + +O noctambulo começou a contar. Tinha a linguagem pittoresca, imageada, +parecia comprazer-se com a sua phrase. Notei-lhe grande copia de +estrangeirismos. Mas o caso pareceu-me interessante. Aqui o deixo +registado. + +--Comprehende que eu, _fetard_ cançado, que tenho visto museus entre +duas ceias no Maxim ou no Carlton, que aprecio mais o _tea-room_ do +Grand Hotel, de Roma, que o _Salon Carré_ do Louvre ou a sala de +Velasquez, no Prado, só lhe poderei fallar da mulher ou do amor. E das +mulheres que tenho conhecido, um pouco por todo o mundo, d'aquellas que +teem ficado com um pouco da minha mocidade entre os dentes brancos ou os +dedos esguios, só me recordo da ultima, que é a melhor e a peior, a que +faz rir e soluçar, curva-nos n'uma somnolencia em que nos apparece muito +mais bella do que é realmente, cingida com todas as joias com que a +nossa phantasia a enfeita, mais cruel tambem, porque o amor torna mais +cruciante as dores, intensifica o desespero, cria a halucinação da +Magua, inventa a Chiméra da turtura, essa Chimera de afiadas garras que +nos retalham... Estou muito eloquente. Faça-me signal, quando lhe +parecer Cicero... + +Imagine que conheci, n'uma pequena cidade italiana onde me fôra curar +d'uma paixoneta recente, uma creatura singular, cujo encanto me prendeu +quasi de subito. Era uma figura de bisantina, atavismo talvez, +influencia das pinturas de Ravenna, onde passára a mocidade. E, artista, +cultivava essa feição, arranjava penteados hieraticos, sem complicadas e +rutilantes gemas, que o cofre do pae, mediscatro qualquer, não era +abundante, mas com flores, essas rosas vermelhas de Pæstum, que ella +propria cultivava, amorosamente, no pequeno jardim de sua casa. O que +tinha de bisantina realmente, era a bocca fresca, a bocca innocente que +sorria apenas, n'uma candura de primeira commungante, uma bocca que +deixava em nós a impressão de que era um seraphim a sorrir. E não +apetecia beijal-a: apenas quedar-se a gente deante d'ella á espera que +nascesse a claridade auroral do sorriso, em que mostrava levemente o +traço branco dos pequeninos dentes. Mas os olhos escuros desmentiam toda +a infantilidade da bocca, o aspecto angelical do seu corpo magro +d'adolescente, o collo branco e purissimo. Os olhos brilhavam como +n'um assalto, a ferir, sem ternura, no fundo uma repulsão ou um +escarneo... + +Essa mulher tentou-me. Largos mezes fui todos os dias á sua casa onde me +recebeu com palavras dulcissimas. Estendia-me a mão deliciosa para +beijar, dizia-me frases que entonteciam como um vinho aspero, fazia +passar por mim o perfume forte que punha nos longos cabellos, que ás +vezes caíam pesadamente da cabeça, estendiam-se pelas costas, como uma +rosa que se desfolha, d'uma vez, da haste. Ás vezes furtivamente, +apertava-me a mão com força. E sorria-se ingenuamente a face de perola, +eu via a innocencia de toda aquella figura, porque ella fechava os +olhos, como se todo o seu ser adormecesse n'um espasmo. + +Ao sair, tinha remorsos de não ter beijado a bocca fresquissima, de não +ter, sob a pressão dos meus labios, maguado os olhos maus. + +E toda a noite soluçava, enraivecido a desejal-a, até que de tarde ia +visital-a, encontrava-a estendida, n'uma atitude de imperatriz, +bisantina, em sedas _moirées_, toda a gama do verde e do lilaz, a +garganta descoberta. E n'um gesto estudado, estendia-me a mão, que eu +beijava longamente, essa mão em que as gemas não brilhavam: escuras, +opacas, pedras finas, opalas, como gottas de agua d'um lago envenenado. + +E a scena repetia-se. Eram perturbadores oaristos, que deixavam os +nervos tensos e vibrantes. Na voz amortecida e doce, dizia as +palavras magicas que accendem fogachos. E quando ella via toda a minha +Alma arremessada para ella, tinha o fechar de olhos, abria o sorriso +celeste, e eu fugia com medo de mim e com medo d'ella. Como? Uma creança +ingenua! Era preciso fugir! + +Um dia tive que partir. + +Tinha, na pequena cidade, perdido largos mezes. Fui a uma ultima +entrevista, chorei como uma creança ao dizer-lhe a magua immensa de a +deixar. Contei-lhe toda a tortura d'aquelle tempo de infinita delicia e +infinita tortura; pela primeira vez disse-lhe claramente, entre lagrimas +tristes, quanto amára todo o seu ser, todo o seu corpo flexivel, todo o +seu espirito cançado, mas mesmo assim brilhante. Que me dissesse uma +palavra de esperança, que me deixasse levar uma harmonia divina, uma +palavra de amor! + +Teve uma frase, apenas, com uma expressão de immenso sentimento: + +--E não trouxe um fonografo! + + * * * * * + + + + +MÁ-LINGUA + + A JOSÉ LEITE NOGUEIRA PINTO + + +MÁ-LINGUA + + +N'aquella mesa de _bluff_, era feroz a _debinage_... Apenas o Barros, +que ganhava com uma _veine_ espantosa, sorria beatificamente, cheio de +indulgencia, e para as arrojadas arremettidas dos parceiros, tinha +sempre a mesma phrase: + +--Mais caridade, meus senhores... + +Eram sempre occasiões em que o Leite mostrava «quatro cartas» ou «street +flesh.» + +O baile, na sala proxima, corria animado. As valsas, o pas-de-quatre e +as quadrilhas martelladas ao piano, tinham concorrencia. E uma ou outra +que fugia do calôr, para as salas de jogo, era apanhada na passagem, +amarfanhada, esmiuçavam-lhe a chronica, apimentada de notas ineditas, +calumnias talvez. + +--A Gracinda Fortes! + +O conde de Marvilla teve um sobresalto. Voltou-se para trás. A Gracinda +vinha com um vestido de tonkin cinzento que mostrava toda a graça +fragil do seu corpo magro. O conde commentou, eriçando mais o bigode +loiro, cortado á ingleza: + +--Um cabide para vestidos!... + +--Mais caridade!... + +--Ah, já sei: tem pelo menos um flesh na mão... Passo! + +Depois, olhando ainda a figura esbelta que sahia... + +--Mas ella não é uma mulher--é uma boneca de Nuremberg!... Vejam o andar +articulado, mechanico... Tudo aquillo se mexe por molas! E aquella +cabeça d'arara a dar a dar, como se estivesse presa ás espaduas por um +parafuso lasso? E depois, meus amigos, ella é toda postiça... O cabello +loiro pertenceu já a tres cabeças... É uma mulher feita de collaboração +por um cabelleireiro, um droguista e uma costureira. Tudo aquillo é +sustentado por baleias e faixas, senão desabava, de lasso... Imaginam +que o marido está arruinado por causa dos vestidos? Não: pelos +cosmeticos... Á quantidade de drogas que anda por aquella pelle é +inconcebivel. Já repararam em como se não decóta nunca, completamente, +que o collo é sempre coberto por uma gaze ou uma renda? É que a pelle, +estragada por uma pitiriasis qualquer, esfarella-se. Todas as manhãs a +creada de quarto tira-lhe kilos de farellos da cama. E já não pode com o +serviço de maquilhagem--tapar buracos, concertar rugas, +pés-de-gallinha, disfarçar sardas e signaes de variola--manda chamar um +trolha... + +--Seu amante? + +--Talvez... Para a rebocar. Para que ande, é preciso dar-lhe corda. Anda +sempre da mesma maneira, ás continencias, cabeça para cima e para baixo, +como um d'esses bonecos movidos por relojoarias. Imagina que aquillo é o +andar rythmico das parisienses, esse andar leve e airoso como o d'um +passaro... É parisiense, é: tambem são parisienses as macacas que nascem +no _Jardin des Plantes_... Ainda por cima, velha. Não tem frescura nem +mesmo nos olhos parados, conçados do espelho. A pelle despega-se da +carne e na cara faz papeiras em feitio de bambinellas. E toda aquella +pintura, ás chapadas, faz sombras, augmenta-lhe as papeiras... + +--Tens-lhe odio!... + +--Não, tenho olhos. Não é preciso mais. Por causa d'ella lá me fez você +um _bluff_ sem eu dar por isso...--Conheço-a muito. Veiu da provincia e +por ahi andou a mostrar ao Chiado e á Avenida as suas _toilettes_, como +um manequim de loja de modas em furor de reclame. Ninguem a recebia, +senão as casas em delirio de festas, onde a ida d'um conde, dos feitos +ultimamente ás canastradas, enche de jubilo os amaveis donos da casa, +como se diz nos jornaes. Mas a sua ambição era do podre-de-chic, e +não podendo suppôr-se com sangue azul--a mercearia do pae, ainda lá está +a falsificar--imaginava-se com o chá das cinco horas nas veias... Um chá +requentado como o espirito d'ella, estudado em velhos almanachs. + +Emquanto não entrou na sociedade, vestia-se seis vezes ao dia, e nos +intervallos injuriava o idiota do marido, essa bola de cebo com suissas +brancas, que, atolambado, não lhe respondia que não tinha culpa de não +convidarem uma amostra de cocotte do Maxim para casas de familias +honestas. E era uma vida dura, atroz, n'aquella casa, ella de mau humôr, +acre, dizendo horrores na voz impertinente, sem inflexões, monocorda, e +elle angustiado, sempre em calculos diabolicos para saldar as contas +monstruosas que lhe mandava o Goodefroy, dos cosmeticos e _postiches_ +com que se engalanava a mulher. + +A vida n'aquella casa! Vocês não calculam a expressão dura, injuriosa, +que se estampava n'aquella cara agora risonha, quando recolhia, á tarde, +cançada de fazer a Avenida, quasi sem um chapeu a comprimental-a, sem +meios para ter uma carruagem, olhando, gulosa, as pessoas chics que +passavam, sorrindo ás saudações. E na mesa de jantar, silenciosa, apenas +se ouvia o tilintar dos talheres e uma ou outra phrase grosseira ao +Fortes, que abanava a cabeça, todo elle se agachava, no receio, +talvez, d'um prato ou d'um copo arremessado na furia. + +Depois das refeições, separavam-se, elle para a rua tomar ar, fugindo da +perigosa visinhança, ella a arrastar-se nos quartos, a enfeitar-se de +joias, punha-as todas, enchia as mãos d'anneis, rodeava a garganta magra +com todos os collares, enchia os braços de pulseiras quasi até o +cotovello e via-se ao espelho estudando sorrisos, gestos de comprimento +para os grandes bailes a que havia de ser convidada um dia. + +--Para fallar d'esse modo é preciso ter sido _éconduit_... + +O conde córou, encolheu os hombros: + +--Ás vezes não se levantava da cama em dias de chuva em que se tornava +impossivel fazer a parada nas ruas, _troteuse_ á cata d'olhares: vestia +uma camisa de noite de que cahiam _valenciennes_ e cobria a cabeça com +pentes e travessas d'oiro com pedras finas, e as mãos floriam-se de toda +a collecção d'anneis. Era oiro por toda a parte, sem fallar nos dentes +em que se combinavam todos os metaes e todas as massas. Ouvi que se lhe +podia dirigir o epigramma de Marcial: Não te rias porque só tens tres +dentes e esses mesmos são de buxo. + +--Conheces tão intimamente? + +--Pela creada do quarto... Agora, saracoteia-se, esqueleto feito +manequim, arrebanhando os rapasolas inexperientes para _flirts_--ó +só _flirts_! não por virtude ou amor conjugal, mas porque a pitiriasis +não permitte o desnudamento--_flirts_ que acabavam logo que um mais +affoito fallasse em beijar a pelle perfumada. + +--Schiu! Lá vem ella! + +O conde olhou para a porta, por onde entrára, fina e flexivel como haste +florida, a Gracinda Fortes. A bocca pequena, que o cosmetico fazia +sangrar, abria-se n'um sorriso fresco, que mostrava os dentes brancos. E +de todo esse corpo magro exhalava-se, como um perfume que entontece, um +encanto perturbante. + +E seguiu-a com os olhos, commovidamente, até que desappareceu, como um +sonho... + + * * * * * + + + + +A RAINHA DE SABÁ + + A EUGENIO DE CASTRO + + +A RAINHA DE SABÁ + + +Balkis esperava. Entre as sumptuosidades do seu palacio de Mareb, a +Rainha vivia, solitaria, escondida, só com a sua belleza. + +Em vão os povos e os senhores, ouvindo fallar da immaculada formosura +accorriam dos remotos reinos onde a sua lei governava, Sabá, Mareb e +Yemen, e, defronte do palacio immenso e fechado, pediam para vêr a +deslumbrante adolescente. Em vão os sacerdotes quizeram vêr os olhos +puros. Ninguem o conseguiu. + +Apenas uma velha ama a vira nua, quando menina. Era como um lirio o seu +corpo. + +Sete aposentos eram os da Rainha. E cada uma das sete portas uma chave +d'oiro fechava. E no ultimo, a rainha vivia. Grandes espelhos de cobre +mandavam-se uns aos outros, como écos, a imagem quasi divina. E Balkis, +apenas vestida de joias, passava os dias na contemplação dos +intactos esplendores da sua adolescencia. + +Entravam pela janella que abria sobre o jardim fechado e callado, os +pavões brancos e os pavões polichromos. Aquelles formavam, estendendo as +caudas, pequenas luas macias; estes faziam fulgir constellações, doçuras +de velludos, coruscantes gemmas. E Balkis era mais branca do que os +pavões brancos, mais brilhavam as suas cinturas e manilhas pesadas do +que as caudas scintillantes. + +Nas noites escuras sahia ao jardim. Deixava cair entre as moitas de +flôres, a cintura, as manilhas, os anneis e o diadema. Soltavam-se-lhe +os cabellos d'oiro, que eram, no ar azul escuro, como um cometa pallido; +e nua, como uma flôr graciosa, dirigia-se para o tanque de marmore onde +adormecera a agua perfumada. Os seus pés, ao entrar no tanque, eram como +um raio de lua... + +Deitada no tanque, os braços abertos, as mãos á tona d'agua, como dois +lótos brancos, Balkis espreitava o ceu onde se movia o doirado +formigueiro d'astros. As estrellas vinham reproduzir-se na agua, como +molhadas flôres d'oiro, em indecisos contornos; uma lhe brincava no +seio, quasi á flôr d'agua. Era como uma joia a correr, com o movimento +do corpo. Ás vezes, n'um gesto mais largo, a gemma cahia, para outra vez +voltar, n'uma festa, a percorrer todo o corpo branco, que era, na +agua escura, polvilhado de brilhos, como um nenuphar enorme, em que se +agitassem grandes abelhas fulgentes. + +Depois, quieta, ouvindo sómente, de quando em quando, o ruido ligeiro +das flôres que tombavam, murchas, na areia discreta do jardim, os braços +a appoiar a cabeça, como um diadema feito de duas hastes d'açucenas, a +Rainha pensava. + +E esperava... + +Balkis esperava o noivo que havia de vir. + +De todas as partes, chamados pela fama da sua belleza, dos seus +thesouros ou dos seus exercitos, tinham acorrido os principes da Asia. +Poetas uns, avaros outros, na maior parte guerreiros, todos vinham em +cavalgadas surprehendentes, cobertos d'oiro e de joias. No seu throno +altissimo d'oiro e prata, invisivel, mas a todos vendo, a Rainha ouvia +as imagens aladas que fulgem e perfumam, a descripção dos poços +profundos, abarrotados de barras d'oiro, de vasos de cobre, de moedas de +todos os feitios, de pedrarias de todos os brilhos; diziam-lhe historias +compridas de cruentas façanhas, batalhas mortiferas em que as flechas e +as espadas, a bater contra os escudos, produziam chispas de incendio, +contra os corpos, rios de sangue. Os guerreiros, com o desejo de +augmentar os exercitos bellicosos, aprendiam uma eloquencia +calorosa. Eram os que mais fallavam, regosijando-se com a recordação das +chacinas. Mas a um signal da Rainha iam-se, despedidos, os poetas com as +lagrimas nos olhos, as cabeças curvadas, como sobre o peso das mithras, +os avaros e os guerreiros batendo com força, nos ladrilhos polichromos, +as sandalias ligeiras. + +E Balkis voltava para o recuado aposento do seu palacio populoso. Alli, +só, admirava nos espelhos a gracilidade do seu corpo esbelto e firme. +Deixava cahir sobre o corpo branco, como uma flôr inundada de sol, o +cabello loiro. + +Depois de admirar toda a sua belleza, Balkis dizia-se: + +--Aquelle que eu amar possuir-me-ha intacta, como uma flôr que vive no +meio d'uma floresta guardada pelos Medos. Ninguem lhe aspirou o perfume, +ninguem viu a côr deslumbrante, ninguem a maculou. N'esta terra cheia de +sol, em que as côres não brilham, ardem, e as cassoletas não perfumam, +estonteiam, eu sou branca, o sol nunca me viu. Entre os muros dourados +dos meus sete aposentos, a vida é quieta e facil! + +Balkis esperava. + +Os mezes passavam ligeiros. No jardim fechado, as rosas desabrochavam, +perfumavam e morriam. Outras vinham com egual brilho e egual frescura, +enormes rosas escarlates, como boccas em que os beijos deixam +feridas, do desejo intenso. Balkis conservava, no seu corpo nubil, +intactos, os esplendores d'uma adolescencia eterna. Untava-se com oleos, +alisava com pentes d'oiro os seus cabellos d'oiro. Vestia-se apenas com +joias, joia ella mesma. E nos seus olhos azues, largos e serenos, +brilhava a mocidade. + +Não a viam olhos humanos. Nenhum desejo maculou o seu corpo. + +E quando Salomão, filho de David, que no seu palacio de Jerusalem tinha +mais concubinas que de estrellas ha no ceu n'uma noite de lua, quando +Salomão a veiu buscar, ella entregou-se-lhe, pura, radiosa e immaculada, +como uma flôr crescida n'uma floresta insondavel, cujo perfume ninguem +aspirou. + +Virgens, guardae para o desconhecido Amado, o vosso corpo e a vossa +alma, como, se é verdade a lenda arabe, para Salomão, filho de David, +guardou Balkis, Rainha de Sabá! + + * * * * * + + + + +CHIARA LILIAM + + A VICENTE D'ARNOSO. + + +CHIARA LILIAM + + +Barcelona e o seu porto com incendiados espelhamentos de sol nas aguas +que se agitam em pequenas ondas, aguas-fortes de mastros a distancia, +toda a geometria do horizonte cinzento cortado pelos perfis dos vapores! +Ha dorsos vermelhos de navios, nodoas negras das barcaças de carvão, até +a florescencia d'um yacht que emerge entre a poeira negra da fumaraça, e +os fardos, e as pipas, como uma delgada flôr de prata... + +Para alem da cinta da docka, ao rez do mar, o ceu toma tons brancos que +se esbatem e degradam na ascenção, accentuando-se na cupula um azul +fino. E os vapores passam, pequeninos, carregados de vagas multidões +para Barcelonete. + +Para alem da formidavel estatua de Colombo, as Ramblas sacodem os ramos +verdes dos platanos e o Tibidabo recorta-se, escalvado. + +--É ámanhã o vapor para Mallorca, informam-me. + +Volto para traz, deixando o ruido dos guindastes e das sereias, a bulha +dos catraeiros e descarregadores, para entrar n'outro bulicio tão +grande, o zumbido dos milhares de boccas que cruzam a Rambla, as +campainhadas dos tranvias, a buzina dos automoveis, com gritos diversos, +pragas, pregões, injurias guturaes dos catalães furiosos. + +Sentira desejos de vêr Palma de Mallorca em que me fallára Teixeira +Gomes, as suas egrejas caladas, os seus palacios antigos. Por elle sabia +que a cidade conservára-se immovel, tipica, como no principio do seculo +XIX. E a sua conversa luminosa e pittoresca acirrara-me o desejo de +visitar uma terra que, na convulsa marcha do seculo industrial, +immobilisára-se nos seus antigos sonhos de pedra. + +Aborrecera-me já Barcelona, commercial, trabalhadora, respirando pelas +mil boccas das suas chaminés; parecia que a alma da cidade andava +triturada pelos poderosos engenhos das suas fabricas. Vira os seus +theatros, os seus museus, Santa Maria de la Mar perdida entre o casario; +mas em toda a parte o commercio abria ruas, estendia fazendas, +crusavam-se os _camions_. + +Ah! Salamanca parada e quieta, a morrer n'uma agonia d'oiro! As saudades +que tive da paz das suas ruas bordadas de egrejas e de palacios, das +cathedraes sumptuosas e desertas, das pequeninas parochias, onde se +descobrem ainda, atravez dos vandalismos, curvas d'arcos romanicos, +flores de capiteis graciosos; de Santo Esteban e o seu claustro que a +hera invadiu, do balneario, antigo claustro de convento e do Monterrey +maravilhoso, da Universidade quasi sem estudantes! + +Aborrecia-me Barcelona, toda entre arvores, Barcelona e o soturno +Monjuich com a lenda dos supplicios dos anarchistas. + +Ainda um dia! Era preciso depois de jantar subir á _Gran Via_ e ir ao +tumultuoso café ouvir a gritaria ensurdecedora, passear pelas Ramblas +entre uma multidão compacta que espairece, vêr as caras angustiosas dos +operarios, sempre na vespera d'uma revolta, e os pobres que nos +perseguem pela esmola, e as raparigas sujas, enrugadas, que se +offerecem, n'um chale rôto. + +Ao entrar no «Paseo de la Aduana» para esperar um tranvia que me levasse +ao Parque, vi passar n'uma carruagem, fresca, toda vestida de branco, +como um ramo de goivos brancos, Chiara Liliam, a cantora italiana que +mezes antes conhecera em Genebra, no Kursaal, e com quem passeára no +Leman, pelas tardes quietas de agosto e pelas noites de luar, ouvindo-a +cantar, não as operas transcendentes com que regalava os suissos e +inglezes, mas ligeiras canções napolitanas, que tomavam na sua bocca uma +voluptuosidade mais fina e adormeciam, envenenando-as, as nossas Almas. + +Ah! Chiara Liliam! As tardes limpidas e serenas em que vimos a paisagem +doce, fecunda, do cantão de Genebra, no vapor da carreira, alheiados das +inglezas de Cook, de dentes monumentaes e _canotiers_ ridiculos! E as +noites frias, em que deixavamos o Kursaal e os _petits chevaux_ e iamos, +costeando o caes illuminado, n'um pequeno bote que o ruivo barqueiro +conduzia serenamente, respirar a delicia do luar pastoso, que parecia +ter em si um pouco da neve do Monte Branco! + +Lord Carnehan, o seu amante, acompanhava-nos. A tristeza da sua face, de +todo o seu corpo cançado! Parecia ter sentido, aquelle rapaz de trinta +annos, todo o travo da vida, visto desfolhar-se, uma a uma, todas as +illusões, as ambições murchar, como quem assistisse ao incendio de todos +os seus haveres e dos proprios castellos no ar que a sua mente creára. + +Nem alcoolico, nem etheromano, abominando a morfina e a cocaina, tomando +uma leve taça de café, apenas, resignára-se na vida, «deixava-se +morrer», dizia. + +Andava com Chiara, porque era preciso ter uma amante, como uma _ecurie_, +um palacio em Londres, um castello na Escocia e uma villa na +Riviera, decorada por Burne Jones. + +Chiara Liliam era a sua vontade. Ia para onde ella quizesse, para fazer +alguma coisa e não ficar, no hall do Metropole Hotel, de olhos pasmados +para os decotes largos das _ladies_, que liam jornaes. + +Mas nenhum amor, nem mesmo sabia, talvez, se era macia a pelle da +cantora. E assim viviam, ella feliz pela liberdade, risonha como um +galho d'_eglantines_, elle, com uma razão de viver: acompanhar Chiara. + +Chiara, que viu o meu cumprimento, mandou-me subir para o trem. + +--Venha comigo ao parque... se não tem melhor... + +--Ia justamente para lá aborrecer-me... + +--Então venho a proposito... + +Perguntei-lhe por lord Carnehan. + +--Ó meu Deus! Lord Carnehan tornou-se para mim uma obsessão. Era como um +vidro negro que me punham nos olhos para eu vêr a vida. Nada me parecia +claro, luminoso, florido. Julgava olhar sempre para dentro d'um poço +secco. Essa creatura estragou-me alguns mezes de existencia. A principio +ainda eu ria, pelo movimento adquirido. Mais tarde, porém, o riso +desappareceu. Sempre aquelle somnolento homem que só abria a bocca para +perguntar pelas horas, como se tivesse pressa d'alguma coisa, elle +que não fazia nada, ou para dizer alguma sentença, um aphorismo de +Schopenhauer ou d'alguns dos fulminantes catholicos, á maneira +hespanhola, sombrios, repulsivos. Comecei a olhar para o espelho, a vêr +se sabia rir. Não sabia. Vinha uma careta ao contrahir a bocca; +parecia-me de pedra os labios, ao querer abril-os n'um sorriso. Quiz +mortifical-o, fazer com que, atraz de mim, os amorosos corressem; +empreguei, ante os seus olhos pardos, o requinte do coquetismo; mostrei +todo o artificio de mulher e de actriz. Nada. Sempre lord Carnehan +indifferente, a cabeça sobre o peito, as mãos pendidas, a perguntar-me +periodicamente:--Que horas são? De quando em quando, sem lhe dizer aonde +ia, deixava-o todo o dia; ás vezes, aborrecida, nem ia á rua. Ficava no +meu quarto, as lagrimas nos olhos, a vêr o movimento dos +_bateaux-mouches_ a atravessar o Leman; os raros automoveis que passavam +pela rua e alguns ranchos de forasteiros arregimentados pelas agencias. +Arrastava-se o tempo; defronte de mim, o lago que á esquerda se curva, +limpido, transparente. Na outra margem, o parque Jean Jacques, alinhado +e limpo, como um desenho do concurso. E era alli, á direita, a arvore +que dera sombra, na tarde criminosa, em que o anarchista matára a +Imperatriz Isabel. Pensava no fim tragico que ali procurara, sob um +pequeno platano viçoso, a alma aventureira e poetica, a dama de +todas as viagens, que vira tantos ceus ensolados e tantos mares em +procella... Quando voltava, de proposito despenteada, com muito rouge na +face, a fingir córada, lord Carnehan levantava com esforço os olhos para +mim e perguntava-me, na voz pausada, sem um estremecimento: + +--Que horas são? + +Eu era o relogio, para elle! N'essa terra fria, geometrica, regular no +andamento como uma machina--a alma de Genebra é um relogio--eu não era +nada mais do que um chronometro em que se tem confiança. Um dia, +furiosa, comprei um relogio e offereci-lh'o. Imagina que acabou a +historia? Não. Comecei a fazer-lhe scenas, a dizer-lhe improperios em +calão dos bairros infimos de Londres--uma artista conhece tudo e o +resto--phrases de marujo; elle ouvia, ouvia, e depois tirava o relogio +da algibeira e dizia-me: + +--Por força que este relogio atraza! Que horas são? + +Quiz matal-o. Uma noite entrei no seu quarto. A lamparina envolvia tudo +em penumbra. Até a dormir tinha o ar cançado. Levava uma mascara de +cloroformio... Conhece o conto de Lorrain sobre as mascaras de Londres? +foi n'elle que me inspirei... Ia para lh'a pôr na cara e acabar com +elle. Tropecei n'uma cadeira. Carnehan acordou sem sobresalto. Olhou +para mim: + +--O quê? já manhã? Que horas são? + +Não! Não era possivel! Pensei em atirar-me da janella abaixo. Não podia +mais com a vida. O diabo é que estragava o penteado! Resolvi fugir. Fiz +as malas, guardei joias e dinheiro, rompi a escriptura com o emprezario, +perguntei por minha vez que horas eram a Carnehan--a cara que elle +fez!--e metti-me n'um comboio e vim para a Hespanha, onde ha sol, ha +muito sol e não quero nunca saber que horas são!» + +A sua face parecia uma flôr de perola, e na bocca fortemente pintada um +sorriso brilhou... + + * * * * * + + + + +A MARCIA + + A SILVA GRAÇA. + + +A MARCIA + + +Aquella velha encarquilhada e ignobil que encontrei na estrada de +Cascaes, pelo crepusculo suave, tinha uma historia. + +Estava bebeda. A bocca onde dois unicos dentes se mostravam, careados, +no gargalhar, a bocca de beiços finos e roxos, sabendo a alcool e a +podridão, tinha gritado dores, tinha tambem beijado. + +Contou-me tudo, como n'um vomito. Caiu-lhe d'um jacto toda a sua +historia e toda a sua alma; e pareceu-me que o crepusculo que fazia de +perola o horizonte longiquo e trazia a calma á ligeira inquietação do +Mar, se enchia de gangrenas, extravasava lodo, manchava o Ceu purissimo +em que nem um farrapo de nuvem a esgarçar-se perturbava o estranho socego. + +No mar azulado, pairavam, sem velas, as faluas da pesca. Ao longe +esfumavam-se as montanhas que correm para o Espichel, mais +acentuadas na poeira de cinza e de perola do horisonte. A baixo da +estrada corre a fita d'oiro fosco do areal, que nas angras se alastra, +para desapparecer nos cachopos violaceos. É toda debruada d'oiro a larga +curva da Cidadella ao Hospital de Parede. As pequenas ondas, na tarde +quieta, vinham franjar de renda branca a seda do areal. + +Eu seguia do Estoril para Cascaes. Queria vêr ainda o mar, fixar em +imagens subtis a palpitação dos ultimos brilhos solares na agua, +conhecer como vivem e estremecem, sob a agua azul, as longas petalas de +luz multicôr e fina em que desabrocha o poente; diluir toda a minha alma +na Paz da tarde, que, por ser tamanha, dava a illusão de ser eterna. E a +velha não me deixava! Ia atraz de mim a gargalhar, desfiando, por entre +os labios resequidos, palavras desconexas, chamando-me a attenção. + +O velho trapo! Na cabeça calva a cuia á banda era grotesca. E no +movimento sacudido da embriaguez e do _delirium-tremens_, as vestes +esgarçadas pareciam agitar bandeirolas, saia de farrapos, corpo de lona. + +E não me deixava! Comigo cruzou a linha ferrea, parando para, as mãos +abertas sobre os olhos, espreitar se vinha algum comboio. + +Como sombra minha atravessou as ruellas de Cascaes, o passeio Maria +Pia. Passámos a _villa_ Arnoso e a _villa_ O'Neill. + +A noite caía do Ceu resignadamente. O mar escurecia. + +Por certo que o ar fresco da tarde diminuira a embriaguez, porque as +palavras formavam serie, embora as dissesse n'uma toada de cantilena. + +Sentei-me nos rochedos da Boca do Inferno. Ouvia-se o confuso lamento do +mar na cova onde se agachava uma sombra mais densa. + +A velha não podia suster mais tempo a sua historia. Sentou-se ao pé de +mim e contou-m'a. Ha pessoas que teem a alma pequena. As imagens +intensas e poderosas não podem viver lá dentro. É preciso que as deitem +para fóra. É por isso que os bebedos são em geral loquazes e +indiscretos. A capacidade psychica conservando-se a mesma e +engrandecendo-se as imagens pelo poder ampliatorio do vinho, elles +fallam, confessam-se, vão sós pela rua a dizer os seus segredos; foi por +isso que a velha me contou a historia, como a podia ter contado a um +poste do telegrafo ou a um pedregulho da praia. + +--Se me visse quando eu era nova! Ih! Ih! Não tinha esta cara, não, nem +só estes dois dentes--e um d'elles já abala! Era bonita! Era loira. +Tinha os olhos azues. Que elles agora, de chorar pelas desgraças e de +chorar com o vinho, já não teem côr. Olhe para elles, não tenha medo! + +Não tinham côr os olhos. Dentre as palpebras vermelhas e sem cilios eram +deslavados e estupidos. + +--E os meus cabellos louros e finos! Tenho só algumas mechas brancas, +porque começaram a cair aos punhados d'uma doença que tive. E fiquei +assim com a cabeça... E embranqueceram-se os que ficaram... + +Tirou a cuia. Metia nojo essa bola em que luziam chagas. Raras mechas de +cabello a enfeitavam. A velha tornou a rir-se, o mesmo ih! ih! +contrafeito em que abria a bocca putrida. + +--O meu corpo era lindo, delgado e forte. Os seios eram brancos e +firmes. Olhe como ficaram! + +Tirou, n'um sacão, da bluza encardida e rota, os seios murchos que +bambolearam como dois figos a desprender-se d'um galho. E depois contou, +atropellando as palavras, a querer acabar a historia, para se vêr livre +d'ella, como se se esquecesse, m'a transmitisse, com o encargo da sua +angustia, e podesse, sem esse pezo, caminhar mais ligeira, ferindo menos +os pés descalços nas pedras das estradas e nas silvas dos atalhos. + + +O pae era um pequeno lavrador, que vivia feliz entre as suas vinhas e os +seus milhos. + +Um dia casou com a mãe, uma pobre rapariga da cidade, que cozia a dias. +Louçã, fresca, de grandes olhos claros, gostava dos vestidos de seda, +dos brincos d'oiro e das rendas. Depois do primeiro anno, tiveram +Marcia, que poz no lar contente um ponto de luz. Em volta d'ella os +carinhos adejaram. E as mãos habeis da mãe cançaram-se a arranjar-lhe +touquinhas, camisinhas, pequenas coisas de linhos finos que iam á cidade +comprar. Parecia uma filha de gente rica, tão garrida andava. + +E linda, com o seu cabellito loiro e os olhos azues muito largos, sempre +abertos como a querer aprehender toda a vida, todo o mundo. + +Aos sete annos adoeceu gravemente. O medico ia duas e tres vezes a casa, +cada dia. E á noite, depois de vêr a pequena, ficava ali, emquanto o pae +somnoleava, a conversar com a mãe. O medico era novo, janota, tinha os +bigodes pretos retorcidos e dizia versos. A mãe caiu-lhe nos braços, uma +noite em que Marcia ficára livre de perigo. + +--O que eu vi! Vocemecê não acredita, mas vejo ainda! É como se +estivesse diante d'elles na minha caminha! Elles punham-se aos beijos e +aos abraços, pensando que eu dormia. Eu não dizia nada, nem sabia o que +era. O pae ficava fóra, a dormitar, na salla de meza. Uma noite elle +entrou e apanhou-os abraçados. Voltou sem fazer bulha para dentro. +Trouxe uma foice comsigo. E degolou-os ali, o medico primeiro, a +mãesinha depois. + +«Agarrou-o pelo cabello e foi como quem monda herva, só d'uma vez. E +atirou para o chão a cabeça, de que escorria sangue. A mãe nem pôde +gritar. Nem eu, que sentia um peso aqui, na garganta. Tambem degolou a +mãe e atirou para o chão com a cabeça. A mãe custou mais. Foi aos sacões +que a acabou. Depois poz as cabeças e os corpos fóra a pontapés. A +pontapés! E então? Parecia doido! E o quarto parecia-me todo vermelho, e +meu pae, e eu mesma sentia o sangue escorregar-me pelas mãos. E queria +limpal-as e não podia. Parecia que tinha as mãos atadas e sangue na +bocca! Depois, meu pae, que pensava que eu dormia, veiu lavar a casa, +muito devagar, para não fazer bulha. Depois chamou os creados. Então +todos choraram. Mas meu pae não chorou. Veiu para o pé de mim e passou +toda a noite a vêr ao candieiro se tinha sangue nas mãos. Chegava-se +muito á luz para vêr as unhas. Depois lavava as mãos e sentava-se, +punha-se a olhar muito para ellas, a esfregal-as, e ia laval-as mais! + +A velha calou-se por momentos. Depois proseguiu: + +--É tal e qual! Vejo como se fosse vocemecê! As barbas do pae, que eram +pretas, pareciam encarnadas. E tudo, tudo estava tingido de encarnado! + +«O pae foi preso, mas d'ahi a mezes saiu livre.» + +Olhou para mim, e com terror: + +--Parece que podia matar! + +«Fiquei em casa com a mulher que me servira d'ama e melhorei. Antes Deus +me tivesse matado, que não tinha soffrido tanto! Lembro-me de tudo! De +tudo! É por isso que bebo. Quando bebo muito, parece-me que os casos se +deram com outros; parecem coisas que me contaram. E bebo muito, bebo +sempre, mas nada me esquece, senão quando cáio na estrada a dormir!» + +E voltou á historia dolorosa da sua vida, sempre apressada, a querer +acabal-a quanto antes. + +Ficára com o pae, sombrio sempre, que lhe dizia palavras severas d'uma +moral cruel e sanguinaria. Foi crescendo sem alegria na casa de crime e +de amor. Um dia alguem a possuiu tambem. Sentiu os beijos que são +vermelhos como o sangue e como sangue embriagam, nas boccas amorosas. +Sentiu os abraços que apertam como uma cadeia de flores venenosas. Não +me disse o nome do amante, não me deu uma unica indicação. Tratava-o por +«alguem», sem odio. + +Um dia sentiu que uma vida estranha se agitava dentro d'ella; confusa e +alarmada, disse-o ao amante. + +--«Nunca mais appareceu. Escrevia-lhe, mas as minhas cartas ficavam sem +resposta. Até que soube que «alguem» tinha abalado da terra.» + +Referiu-me com terror os mezes angustiosos que passou a querer esconder +o seu «peccado», como ella dizia. Eram sobresaltos continuos. Não o +queria confessar a ninguem, não queria confidentes. Mesmo na quaresma +fingiu-se doente e não foi á desobriga. Até do padre tinha medo, não +fosse elle dizel-o ao pae. Este não via nada, absorvido sempre, +ensimesmado, como quem tinha dentro de si imagens sufficientes para não +recorrer ao mundo exterior. Vivia do passado, enlisado na noite vermelha +em que matára os amantes que se beijavam. + +Uma noite, no quarto escuro, onde não se atreveu a acender um candieiro, +o filho nasceu entre estertores, ralos que Marcia mordia, para não +despertar ninguem, para que ninguem suspeitasse do seu segredo. E n'essa +noite, emquanto as dores do parto lhe rasgavam todas as fibras, +estorciam todos os nervos e punham-lhe nos olhos a figura da morte +horrivel, outras imagens se levantavam, nitidas, deante d'ella: o pae +com a foice, os amantes que se abraçavam, e as cabeças decepadas a rolar +no chão, com esguichos de sangue. O quarto era todo vermelho, outra vez, +apezar da noite escura. E Marcia rasgava com os dentes os lençoes, +mordia os travesseiros, e o linho tinha um gosto a sangue dos +proprios labios, mas dos _outros_, pensava. + +O filho nasceu, n'um vagido. Marcia beijou-o, para o calar. Apezar de se +sentir desmaiar, pegou n'elle amorosamente e embalou-o. Mas outro gemido +saiu da massa informe. Parecia-lhe que era estridente, enchia todo o +quarto, acordaria, talvez, a villa, como os sinos quando tocam, +anciosos, a rebate. + +As suas mãos magras apertaram a garganta do pequenino ser. Nem um ai. O +filho devia estar morto. Levantou-se, a cambalear. As pernas +dobravam-se. Com o pequeno n'um braço, de rastos, os olhos cheios de +sangue da allucinação, rojou-se pelo quarto, abriu a porta, desceu as +escadas ás arrecuas, saiu á rua. + +Era uma noite clara, sem lua. As estrellas formigavam no ceu. A via +latea, no azul escuro e transparente, era uma poeira de mica. As arvores +faziam pastas de sombra na paisagem. Uma fonte doloridamente se +lamentava, n'um tanque de pedra. Lembrava-se de todos os promenores. Na +abegoaria mugiu uma vacca. E o cão veiu apressado e contente lamber-lhe +as mãos. Ninguem sentira. Mas Marcia pensava ouvir passadas no estalido +seco das folhas murchas que caíam e na brisa pelas ramadas, o mexer de +vestes de pessoas a perseguil-a. + +Em cada canto mais denso de sombra, via olhos a espreital-a. E, em +camisa, quiz correr, sem forças. De onde em onde, sentava-se, forçada, +porque as pernas não podiam mais. Ouvia gritar a morta. E as suas unhas +cravavam-se desvairadamente na garganta do innocente. Chegou ao fundo da +quinta, um terreno de trigo já ceifado. Verão seco, a terra chistosa era +dura. + +--Foi com as minhas mãos que cavei a terra. Como era dura! Parecia que +eram pedras que eu partia com as mãos. E ellas encheram-se de sangue. E +eu, no meio d'aquelle trabalho feroz, ainda ouvia o innocentinho gritar. +E apertava-lhe mais a garganta. E voltava a cavar, queria cavar fundo, +para que não dessem com o corpinho quando lavrassem a terra para semear +de novo. E não havia maneira! Não tinha força nem coragem para ir +procurar uma enxada, um ferro, qualquer coisa com que podesse abrir a +terra tão dura, que me fazia doer tanto as mãos. Sentia que rasgava os +dedos. E tinha medo de que amanhecesse. Olhava para o Ceu, a vêr se já +despontava a claridade. E parecia-me sempre vêr o ceu mais claro, ás +vezes até pensava que havia sol de meio dia. E voltava a cavar, os olhos +fechados, com raiva, sem saber bem o que fazia!» + +Conseguiu fazer uma cova. Grande? Pequena? Não sabia dizel-o. Deitou +terra por cima do cadaver ensanguentado, calcou-o com raiva, e então +poude correr, por entre as arvores, a bater nos galhos e nos +troncos, a rasgar a camisa e as carnes, até casa. Ia amanhecendo. Um +traço alaranjado corria na nascente. Metteu-se na cama e dormiu. + +Calou-se. Estendeu-se nas pedras, de borco, a olhar fixamente para o +mar. Era já noite. As estrellas palpitavam no céu transparente. O mar +enchera-se de sombra. Os barcos tinham recolhido já. Ouvia-se apenas o +quebrar das vagas na Bocca do Inferno. + +Marcia levantou-se e estendeu-me a mão, supplicante: + +--Dá-me um tostão para aguardente?! + + * * * * * + + + + +O CEGO + + A ALBERTO D'OLIVEIRA. + + +O CEGO + + +O Pintor, que vivera intensamente na luminosa communhão das coisas +bellas, no culto da Fórma e da Côr, sorvendo a Belleza religiosamente, +como se aprecia um vinho velho, de repente cegára. + +E no tumulo do seu atelier de que haviam fugido os modelos, errava +angustiado, querendo com a mão sentir a linha das figuras que o seu +divino pincel traçara, nas manhãs claras, entre tapetes que amorteciam +os passos e ás vezes a queda dos corpos dos divans acolhedores. + +Sentava-se no mesmo escabello veneziano, marchetado, tendo diante de si, +no cavallete, uma tela. E vagarosamente ia traçando linhas, julgando +ainda desenhar figuras, compôr peitos firmes, contornar curvas musicaes +de quadris, illuminar olhos abertos, cheios de sonho e de volupia. + +Mas o pincel empastava tintas, inexperiente na mão do grande mestre, +como na d'uma creança de peito. + +Depois do inutil esforço, não podendo vêr, lançava ao chão, com raiva, a +tela, e punha-se a passear, cambaleante, hesitante, como um ebrio, as +mãos estendidas, como se da ponta dos dedos nascessem olhos, a guial-o. + +E vivia apenas com um velho servo. O _atelier_ morria ao abandono. Para +quê a molleza dos tapetes persas, os brilhos dos espelhos de Veneza, os +marmores das estatuas e a radiosa formosura dos seus proprios quadros +divinisando a Vida? Para quê? Se tudo adormeceu sob a cinza que se +acumulára nos seus olhos d'antes d'um tamanho brilho, esses olhos leaes, +sem ironia, cheios d'amor por tudo o que tivesse uma particula de Belleza? + +Fôra um grande pintor afamado. Retratára as mais elegantes senhoras da +côrte, em vestidos sumptuosos que mostravam, n'um decóte largo, o cóllo +nu, como uma enorme flôr. E nos seus quadros punha tanta voluptuosidade +que a marqueza de Bouro, devota e pudica, recusára com horror o retrato; +apesar do pequeno decóte, da garganta alva pareciam nascer rubras +florescencias de desejos. + +E nunca mais pintou retratos. Ideou quadros em que a mulher e a vida +eram divinisados. Fez bacchanaes, em que as sacerdotisas nuas agitam +tirsos enramados, coroadas de flôres, numa loucura divina. Compôz uma +scena das vindimas em que as mulheres comem as uvas, sob as latadas +viçosas, das boccas dos amantes. Fez Leda e o cysne, em que, n'um lago +transparente, as virgens descuidosas se banham. Um cysne apparece, +airoso, vagaroso, o macio pescoço n'uma curva larga. E ellas querem +apanhal-o á porfia. + +E esses quadros d'uma athmosphera tão clara, d'um ceu tão luminoso, com +carnaduras frescas, admiraveis seios que exhalavam, como uma flôr de +tropico, um perfume estonteante, tinham-lhe dado a riqueza e a gloria. + +A multidão apontava-o, nas ruas, com reverencia. As mulheres +lançavam-lhe ternamente cobiçosos olhares. E o pintor gosava a vida, sem +se prender, beijando as bôccas, aspirando o aroma das cabelleiras +fartas, que caiam sobre as nucas, sobre as costas, como mantos finissimos. + +Até que um dia cegou. Fechou a sua casa, como se tivesse partido para +uma longa viagem, não querendo deixar vêr a ninguem o espectaculo +turturante da sua angustia. E continuava a querer pintar, ainda o +cerebro povoado pelas risonhas imagens, concupiscentes seios, rios +translucidos, gemas coruscantes, dobras sensuaes de sedas, sobre o +ambar da pelle das morenas, sobre a magnolia das epidermes branquissimas. + +Um dia, soube-se. Vagamente correu na cidade que o pintor magnifico +cegára. A curiosidade durou tres dias. Os possuidores dos quadros viram +com prazer a sua valorisação. Os collegas secretamente exultaram pelo +desapparecimento do rival vencedor... E tudo caiu, tudo esqueceu. + +Uma apenas se lembrou d'elle. Carinhosa, amorosa, forçou a porta +teimosamente fechada. E entregou-se ao cego. + +Dias passaram cruzados de angustias e de intensos prazeres. Até que um +dia o pintor lhe disse: + +--Eu tinha que coroar de rosas--a minha mão inutil nem para isso +serve--a tua cabeça. Devia ajoelhar diante de ti e dar-te todo o meu +sangue, pois que te dei já todas as minhas lagrimas. Vieste accender uma +aurora no crepusculo eterno da minha cegueira. Permittiste que eu +revisse a Belleza da Fórma. Com os meus dedos pude sentir como é pura a +curva do teu seio, a linha das tuas espaduas e lindos os teus dedos. +Trouxeste-me o aroma da carne moça, como uma brisa benefica leva a um +prisioneiro o cheiro do feno. Senti outra vez a musica deliciosa das +palavras de amor. E no teu corpo pequeno e flexivel, o teu rosto +deve ser como o luar d'um lirio sobre a sua haste... + +Calou-se. Hesitou alguns momentos. Pareceu encher-se de coragem +e continuou: + +--Mas não posso vêr-te! Vivo comtigo, como n'uma somnolencia--um pouco +de realidade e um pouco de sonho. Pode ser que os annos tenham feito +brancos os teus cabellos compridos; que alguma doença má tenha +esverdeado a tua pelle macia. Nas palavras que dizes, oiço ás vezes uma +promessa, outras um retraimento. Não posso vêr nos teus olhos palpitar a +tua alma. É como se todos os dias me apparecesses, ás escuras, com uma +mascara na cara, um dominó a velar-te o corpo. Entrevistas em jardins +frondosos, ás escuras. Tudo silencio, mesmo na minha alma. Chegaria até +nós, lugubremente, o adormecimento da vida. E não serias inteiramente +minha, apenas uma parte de ti me pertenceria, e a outra, uma promessa +vaga. «Penso que nos encontraremos, dirias... Etheromana em busca de +excitantes, romantica, caçando aventuras, feia sem remedio a esconder +aleijões e a querer ouvir palavras que nunca ouviu, sou mais que tudo +isso, acredita, e menos que uma illusão!» Que importariam as tuas +palavras? No arroubamento dos beijos sentir-se-hia o travo do prazer +incompleto. E beijo-te um pouco como se beija um phantasma. Se eu te +podesse vêr, dir-te-ia que arrancasses a mascara, ou que te fosses +para sempre. Quereria ver-te, ou realidade inteira, deliciosa na pureza +da atmosphera, ou sonho puro, como sei sonhar. Não posso com a tortura +do meio mysterio que a nevoa dos meus olhos cegos cria... Podesses ser +toda minha, conseguisse eu deitar abaixo a mascara, vêr-te na gloria da +tua formosura, mesmo na miseria de alguma incuravel doença, fixaria na +tela, com estrellas fulgentes, com sucos magicos de flôres +desconhecidas, essa radiosa Belleza, ou essa deformidade, que se +illuminaria, subiria aos ceus, como S. Julião quando beijou a bocca +gangrenada do leproso. Apparecesses tu! Mas não. Ficas na meia luz como +um phantasma! + +E o cego, em passadas incertas, as mãos estendidas, saiu do atelier, +onde a unica nota de vida era o soluçar da amante. + + * * * * * + + + + +A GLORIA + + A CARLOS MALHEIRO DIAS. + + +A GLORIA + + Qu'est-ce que ça fait que je sois une grande artiste, si je ne suis + pas heureuse? + + Anatole France--_Histoire Comique_. + + +Gonçalo Freire, o escriptor que um romance intenso tornára celebre, +estava triste e desanimado no seu gabinete de trabalho. + +Os candelabros Luiz XV brilhavam nas multiplas velas brancas, faziam +saltar faiscas dos cobres doirados, das faianças onde corriam idilios em +jardins frondosos. O seu _studio_ era sempre luminoso, quer de manhã, +com as largas janellas abertas sobre o rio, quer de noite com as +resplandecencias das luzes. Dizia que assim a imagem surgia mais +precisa, mais clara, mais _latina_. + +Gonçalo não gostava do nevoeiro que os escriptores do Norte deixam entre +os seus periodos. Amava o sol e os ceus macios, o mar incendiado, +as praias do Algarve d'areia doirada, os rios transparentes, onde, á +tarde sómente, boia um fumo tenue. + +Esse romance, «A Face do Homem» revelava esse amor da clareza e do +equilibrio. Pondo de parte os intuitos sociaes que prevertiam a +literatura moderna, ligára quadros d'uma emarcessivel belleza por um +enredo forte, interessante e commovido. + +Pessimista á feição de Nietzche, descrevera a miseria da face humana, +depois de arrancada a mascara; puzera o homem diante de si, n'um +espelho, e o homem sentira-se asqueroso. Mas, crendo no culto dionisico, +esperava pela Arte cobrir a fealdade da vida. E, perto do homem, a +mulher, florida pelo amor, representava o Sonho, a Illusão que cobre com +um veo azul, a distancia, os montes escarpados. + +O publico gostára. Seis edições successivas se tinham esgotado, entre +aclamações, em dois mezes. Os jornaes tinham publicado o seu retrato com +artigos encomiasticos, comparando-o a Camillo, pela riqueza e +propriedade do vocabulario, a Eça pela ironia, a Fialho pelo vigor do +descritivo, sendo superior a todos pelo interesse e pela suprema Belleza +do seu ideal de latino. + +Era um d'Annunzio com mais sinthese. + +Todas as revistas e jornaes sollicitavam a preciosa colaboração; o +_Suisso_ chamára-lhe plagiario e idiota, apontára-lhe seis erros de +concordancia, descobrira que em Coimbra roubára versos a Anthero do +Quental, n'um poemeto que correra impresso, _Sunt lacrimae rerum_, em +que Gonçalo Freire acreditava no Inconsciente, segundo Hartman e na +Vontade, segundo Schopenhauer. + +Quasi todos os dias o editor lhe mandava molhos de cartas de +admiradoras, umas apenas a dizer a palavra quente da sua admiração, +outras pedindo autografos e uma ou outra marcando, misteriosa, uma +entrevista, n'um _coupé_, em sitio escuso. + +N'essa noite, ao entrar em casa depois d'uma _bridge party_, fora +sentar-se, a querer trabalhar n'uma novella, de que esboçara já o plano. +O creado levou-lhe a correspondencia que Gonçalo abriu, aborrecido. Uma +carta d'um editor que lhe pedia um livro para lançar a sua livraria; uma +actriz nova e elegante, que lhe lembrava a vaga promessa d'uma peça, +duas amorosas a pedir-lhe entrevistas e um escriptor hespanhol que +solicitava auctorisação para traduzir «A Face do Homem». A lapis azul, +no summario do _Mercure de France_, chamavam-lhe a attenção para um +longo artigo de Philéas Lebesgue, em que o critico entoava um hymno em +seu louvôr, enaltecendo a harmoniosa belleza do romance, «mais subtil, +como psychologia do que Bourget, mais moderno que Jean Lorrain, e +tão puro de estylo como Anatole France». Recommendava-o a Herelle, como +sendo a obra d'um Annunzio mais intenso. + +Era a gloria, vinda do anonymo, não a celebridade feita pelos amigos. + +Moço ainda, trinta annos, rico, representante d'uma casa antiquissima +com o brazão registado muito antes de D. João III, parecia um d'aquelles +principes que as fadas assistem no baptismo, dando-lhes todas as venturas. + +Mas, triste, Gonçalo foi á janella e rasgou cada uma d'aquellas cartas, +lançando ao vento os pedaços de papel, que baixavam, pareciam hesitar e +sumiam-se no escuro. + +Na noite sem lua pareciam nascer no espaço as luzes dos navios, que +punham na agua um reflexo de estrella. Encostado ao parapeito, Gonçalo +muito tempo olhou para a escuridão que enchia o rio. Um ou outro ruido +de carro chegava até elle, sem o despertar; de quando em quando na rua, +ao longe, brilhava por um instante um electrico, como um meteóro. + +E Gonçalo poz-se a pensar no amor que dentro de si trazia, sem +esperanças, um amôr que tivera uma demorada cristalisação. Essa mulher +surgia, luminosa e florida, deante d'elle, no escuro. Via o seu corpo +magro e esbelto, a florescencia clara do rosto um pouco duro, o olhar +indiferente. Era sempre assim. E, ensimesmando-se, a figura +aparecia-lhe, como uma obsessão, para acentuar o alheiamento, +atormental-o mais. + +Muitas vezes, quando compunha, largava a pena, porque a mulher vinha +para defronte d'elle e não havia maneira de fechar-se no seu pensamento, +continuar o periodo interrompido pela visita. + +E punha-se a recordar de como nascera aquelle amôr. Vira-a muitas vezes +nas festas, nas ruas, nos theatros, indiferentemente. Uma mulher +elegante e nada mais, feita talvez pelas costureiras que dispõem de +espartilhos, de faixas que apertam os quadris, de _bouffants_ que +disfarçam chatezas de peito, de tecidos leves, que dão a aparencia de +ligeireza aos corpos. + +Não a conhecia. Nunca fôra forçoso conhecel-a e como não o interessava, +não se aproximou. Era a Maria do Amparo. Quando ella passava pelo +_Turf_, alguem dizia, ou o proprio Gonçalo: + +--A Ampáro vae hoje bem. + +--É uma mulher interessante. + +--Veste-se bem, principalmente. + +E tanto tempo a vêl-a, outras o chamaram, trouxe o seu coração envolvido +em outros amores risonhos, quasi sem se prender. E a Maria do Amparo +continuava a aparecer em toda a parte, elegante, um pouco preciosa, +viva, um sorriso na boca fina que mordia para avivar o traço roseo dos +labios. + +Uma noite, em S. Carlos, n'uma visita a um camarote, Gonçalo +encontrou-a. Amparo falou-lhe nos artigos que Gonçalo publicara n'um +jornal, chronicas vivas sobre o Culto da Belleza, a belleza na cidade, +nos monumentos, nos jardins e nas praças, belleza no lar cheio de +flores, com moveis elegantes e comodos, belleza na mulher, +artificialmente rectificada, por maquilhagens habeis e vestidos +sabiamente confeccionados por mãos peritas. Attraiu-o a conversa. Amparo +tocou com intelligencia e tacto nos pontos mais originaes, mostrou +comprehender e sentir a Belleza, rodeou-o de frases amaveis, em que +havia, ora no sentido, ora na entoação, alguma coisa de carinhoso, poz +em campo toda a seducção de mulher elegante, chamando-o a si, +lançando-lhe a perturbante luz dos seus olhos claros. A conversa, apesar +de curta, um entreacto e o começo d'um acto, acabara n'um _flirt_. + +Gonçalo procurou vêl-a. Esperou-a attento e ancioso no Chiado, +frequentou as casas onde poderia encontral-a. E as tardes de recepções, +os raouts, as sauteries, e mesmo as empertigadas recepções diplomaticas, +eram leves _flirtations_, que o deixavam absorto, andando pelas ruas sem +attender a nada, sorrindo-se ás vezes de alguma palavra dita por ella, +de um gesto mais expontaneo. + +Todos os elementos de seducção foram postos em pratica por Amparo. +E na alma de Gonçalo começara a cristalisação; a rede ia-o apertando, +avassalava-o a mulher deliciosa, como os antigos retiarios os seus +adversarios nos circos romanos. + +Gonçalo já não pensava em mais nada. Logo depois do almoço, em vez de +sentar-se á meza, a trabalhar, ia para a rua sem destino, com a vaga +esperança de a encontrar, de a vêr na carruagem. E em todas as festas se +aborrecia até chegar a Amparo. No Gremio pedia todos os jornaes, sem +poder lêr nenhum, porque se alheava, recordava os momentos felizes, +idealisava impossiveis sonhos, uma fuga para algum paiz onde ninguem o +conhecesse, e Amparo vivesse só para elle, esquecida do hediondo marido, +de todas as caricias, de toda a vida interior. Se por acaso lhe passava +pela mente a ideia justa de que Amparo nunca deixaria a vida mundana, a +«consideração», a «situação», logo Gonçalo a sacudia por importuna, e +enlevava-se no sonho. + +Era uma vida feliz, apesar do pouco que ella dava--olhares, commovidas +palavras, promessas n'um futuro remoto e impreciso, e, um ou outro beijo +nas mãos que tinha macias, palidas, mãos entre sensuaes e misticas da +Gioconda, sem a aristocracia das mãos de Velasquez ou Van Dick, sem a +luxuria que rosea os dedos das figuras do pintor de Verona. + +De repente, porém, começou a esquivar-se a Amparo. Houve palavras +dubias, falou de consciencia e de dever; prometeu um amor eterno, mas +ideal, sem pecado, um amor que lhes cubrisse a vida com uma gaze leve, +como um zaimpho. E mais e mais se foi esquivando, emquanto em Gonçalo o +amôr se tornava mais forte, enchia-lhe o peito de desespero, +amachucava-lhe todas as energias e dava-lhe a sensação de ter, dentro de +si a alma, como o chapeu alto d'um clown. + +E diante da noite, rasgando as cartas d'amor das outras e as aclamações +do publico, Gonçalo, a chorar, repetia a frase da heroina da _Histoire +Comique_: + +--Que importa que eu seja um grande artista, se não sou feliz? + + * * * * * + + + + +A FESTA DE MAIO + + A M. TEIXEIRA GOMES. + + +A FESTA DE MAIO + + +--Violante! Violante! gritou o marquez para o jardim. + +André, no cimo da escada, d'onde ageitava ramos no entablamento, +conseguiu desenroscar-se dos molhos de madre-silvas que o coroavam, o +envolviam, e voltou-se. Ao ver o pae sorriu-se. + +--Admira-se? + +--A estas horas, já levantado, e em casa? + +André abriu na bocca pallida um sorriso exangue; mesmo assim o sorriso +brilhou nos olhos negros, fez viver toda aquella adolescencia, que +parecia finar-se lentamente: + +--Não me deitei. + +--Ouves, Violante? Não se deitou! + +A marqueza apareceu á porta, n'uma blusa clara, tremente nas rendas +amarelladas, ainda aberto o guarda-sol lilaz, por onde se filtrava o +sol, que extranhamente lhe coloria o cabello. + +--Ó André! Que tolice! + +--Prometti vir ajudar-te, e mesmo que não promettesse, no dia da tua +festa, eu não deixaria de vir arranjar a capella. Não está linda? Digam... + +--Lindissima. + +A pequena capella, em estylo da Renascença italiana, branca nos seus +marmores puros, sobria d'ornatos, sorria nos festões de madre-silva, nas +grinaldas de rosas, nos vasos trabalhados de que escorriam glicinias +roxas, nas peanhas onde santos olhavam, suaves, os grandes lyrios +abertos, em toda a florida vegetação que manchava a nitidez do marmore +pallido, correndo sobre os frisos, despenhando-se pelas janellas largas, +envolvendo-se ás columnas, vindo morrer no lagedo claro do chão. + +Toda aquella architectura, feminina, sensual,--até na figura do Baptista +o esculptor puzera um quebranto--brilhava e vivia uma vida lasciva e +fina, ornatos delicados, sem exhuberancias, curvas que lembravam a +doçura calida de corpos nus, no tom ambarino do marmore velho. + +André desceu. A marqueza trazia nas mãos, ainda molhadas da rega, um +molho de grandes orchideas d'um azul doente, listrado de esverdinhadas +veias como feridas a apodrecer. + +--E estas orchideas, onde as hei de pôr? + +--Aqui não! Para o mez de Maria, para a festa de maio, orchideas não. +Ponha-as no gabinete do papá, junto das estampas de Goya... Aqui não! + +--Tens razão, annuiu o marquez. Antes tragam maias... + +--Vou eu buscal-as, lembraram André e a marqueza. + +--Não. + +--Não. Vou eu, Violante! insistiu André. + +--Vamos ambos... + +--Querem que eu tambem vá? offereceu sem enthusiasmo o marquez. + +--Não. Deixe-se estar; vamos nós. + +Ao sahir da capella, passando os pinheiros mansos, em circulo, como a +formar um adro, descia uma escada balaustrada, n'uma curva larga, +ladeada de roseiras. Depois dois caminhos direitos, onde branquejavam +estatuas, cantavam repuxos esguios que no alto se abriam, como lirios de +cristal perpetuamente a florir e a quebrar n'um ruido claro. + +--Onde ha maias? perguntou André. + +--Não sabes? É alli no fim, uma grande encosta, por baixo do tanque dos +tristões... Não conheces a quinta! + +--Como queres que a conheça? Não venho cá nunca! + +--Hei de mostrar-te a quinta, agora... Has de gostar. Vaes-lhe tomar +gosto. Olha, é aqui... + +No fundo verde abriam-se, sorriam, na manhã clara, como pequenas +estrellas, as maias d'oiro. Desde o caminho apertado entre fitas de +marmores que as roseiras invadiam, marinhando pelas estatuas dos deuses +e das graças, luziam maias. + +A fonte despejava, pelas buzinas brancas de tres tristões, cujas caudas +se enroscavam, fitas d'agua. + +Tudo cantava, tudo era alegre, na manhã radiosa. A encosta descia, verde +da relva, das arvores copadas, mosqueada pela brancura dos marmores, +brilhos de flores, sobre tudo rosas-chá, enormes e delicadas, flores de +cera e flores de carne, sensuaes e finas, como um beijo em que os labios +mal se tocam, na pressa, mas em que as almas se confundem, n'uma +vertigem. Em baixo continuava a descida rapida da colina, viam-se tectos +angulosos de casas, faiscas que o sol levantava das janellas, linhas +tortuosas de ruas, arvores de praças, o Rocio, como um lago de fogo a +brilhar nas pedras claras, a Avenida n'uma chapada verde; vivamente um +monte subia em apertadas casarias, alastrava-se por todos os lados a +cidade, perdiam-se na perspectiva os telhados irregulares, até os montes +violacios da Outra Banda, que se esbatiam no ceu claro, no ceu risonho e +roseo da manhã de primavera. No rio embandeiravam-se navios ligeiros e +airosos. Velas de faluas passavam, largas, pandas, como monstruosas +gaivotas n'um vôo sereno. E do rio sahia uma grande alegria, como +um fumo: fazia tremular as bandeiras, doirava mais o sol, percorria toda +a cidade, extraía das ruas acordadas um ruido confuso, chiar de carros, +pregões, coleras, risadas, que se misturavam, fundiam-se, e lá cima +chegavam n'uma voz unica como um rumor de vaga. + +--Vamos a vêr quem apanha mais! E a marqueza deixando a sombrinha, +desceu por entre as maias, afagando-as com as mãos brancas.--Que lindas +são! Como sorriem para mim... Tenho pena de cortal-as. + +--Vê se caes... Eu dou-te o braço. E André alcançou-a. + +--Não. Não. Vamos apanhal-as! Vamos a vêr quem apanha mais! Vamos a vêr! + +Febrilmente, começaram a apanhal-as, a cortar grandes braçadas. Ás vezes +as suas mãos encontravam-se, apertavam-as e riam-se. + +--Não são maias... são os meus dedos. + +E continuavam, já corados, a marqueza curvada, a cabeça d'um loiro +quente quasi entre as maias. + +--Estou cançada. Estou cançada! + +--Que lindo quadro. Todo de flores! Espera, vou enfeitar-te. E André +coroou-a de maias, toda a sua cabeça ficou florida. E a marqueza, +risonha e córada, protestava a rir-se: + +--Olha que me despenteias! + +--Que importa? Que importa? Estás melhor assim... Agora este ramo +para o peito... Mais estas... Um grande ramo... Como estás linda; oiro e +lilaz! E o teu cabello é d'oiro. O papá vae ficar encantado quando te +vir assim... + +Subiram, ainda a rir-se. André deu-lhe o braço e foram, quasi a correr. +Ao passar por um repuxo: + +--Vamos molhar as flôres, ficam mais bonitas, como se tivesse acabado de +cahir o rócio. + +--Pois sim, pois sim. + +O cristal dos repuxos altos cahiu sobre as grandes braçadas de maias. + +--Vamos lá, vamos lá, que se faz tarde para o almoço! + +No altar da Virgem estavam apenas largas rosas brancas, flôres d'um +aroma subtil e angelico. + +--Onde pôr as maias? + +--No chão, junto ao altar. São as primicias da primavera oferecidas á +Virgem. + +--Pagão! censurou a marqueza. + +--Não importa. Ficam bem. Aqui no chão, como um monte de estrellas, aos +pés da Virgem: + +Para que fosses mais formosa Deus deu-te a lua por chapins e as +estrellas por caminho. + +A sineta tocou para o almoço. + +Rodearam a casa e entraram pela estufa, cheia de begonias e de cravos. + +Emquanto André se vestia, o marquez perguntou se Violante se não +admirava do seu procedimento. + +--Ha quantos annos não fica elle em casa? Tresnoitado, entrando muitas +vezes quando eu já rodo pelo jardim, escondendo-me d'elle, para fingir +ignorar os desatinos, elle dormia e almoçava aqui, fóra d'horas, +escondido da Felicia, que resmunga contra elle coisas terriveis, +chama-lhe perdido, sustenta que está possesso... + +--Uma paixoneta, que trata de curar... Disse-me tambem, que agora ia +começar vida nova, talvez fosse para a Quinta dos Limoeiros, para se +desaffeiçoar... Isto passa-lhe... Para a semana lá o teremos na mesma +vida; theatros, actrizes, ceias... + +--E se o pudesses reter em casa! Vê se o divertes... Fal-o sahir +comtigo. Agora que vou a Paris podias conseguir que te acompanhasse a +visitas, bailes, _soirées_... Já o quiz interessar com as estampas, mas +perguntou-me se eu julgava que havia de passar os dias a vêr bonecos... + +O almoço foi alegre. Violante e André fallaram no que era preciso fazer, +nas passadeiras a pôr na egreja, nas cadeiras, na disposição dos bancos +no adro, á sombra dos velhos pinheiros, até sob o arco dos limoeiros pôr +cadeiras, que convidassem os flirts a recolherem-se na discreta +arcada. André promptificou-se a tudo fazer; sahiu para o jardim, +illuminado pelo sol, cantante nas aguas abundantes dos tanques e +cascatas, misterioso nas sombras que o arvoredo formava, rico de côr, +verdes diversos, vermelhos, azues, lilazes das flores, mosto fresco das +olaias floridas; mas, sob a copa larga e tremente d'um choupo do Canadá, +deitou-se e adormeceu profundamente. + +O jardim antigo, desenhado por um artista italiano, não tinha as placas +relvosas dos parques inglezes e o seu frio alinhamento. Cresciam por +toda a parte altas e poderosas arvores, que apertavam a architectura +renascença do palacio; por toda a parte cantavam em fontes, em cascatas, +em repuxos, aguas claras. + +Havia macissos de roseiras que cresciam livremente e se enrolavam aos +marmores, aos soclos, iam florescer e perfumar nos collos brancos dos +bustos, entre braços finos dos grupos mitologicos, rondas de estações, +danças das Horas, cheias de movimento e de belleza. Escadas brancas de +balaustradas ligavam as depressões de terreno; e por toda a parte uma +grande alegria de flôres e de arvores viçosas, pinheiros, carvalhos, +arbustos de folhas variados, jasmineiros trepadeiros, que sorriam, +trementes, nos minusculos jasmins, entre a folhagem verde. + +Por toda a parte uma exhuberancia de flores, que nasciam em +canteiros, amores perfeitos de velludos quentes, pequeninos myosotis, +quasi brancos no seu azul virginal; outras que subiam pelas arvores; +estrelavam-se clematites, umas roxas, outras brancas, enroscavam-se aos +troncos, iam florir na copa larga dos castanheiros. Em pequenas sebes de +cana os craveiros inclinavam-se, cravos vermelhos d'um perfume que +entontece, cravos brancos, mosqueados de violeta, cravos estranhos como +nodoas nas epidermes. + +Tudo sorria, tudo gritava, na confusão da manhã clara; estendia-se pelo +ceu o sol, batia nos flocos de nuvens que se doiravam, extraindo de toda +a terra uma alegria immensa, que subia no fumo, que cantava na viração +leve arrastando-se pelas arvores altas, manifestava-se nas folhagens +claras, envolvia tudo. + +Em grandes placas floresciam as maias e, no inverno, violetas de Parma, +d'um lilaz moribundo. Por toda a parte flores, estendendo-se pela terra, +ou subindo e perfumando. E as aguas cantavam, cristallinas, corriam, iam +beijar nos regos abertos folhas viridentes. Era a Quinta Alegre, o +jardim magico. Nos ornatos das janellas e das portas, nos baixos relevos +e nas pinturas das salas, reproduziam-se em linhas puras os motivos de +volupia e de belleza. Até na capela havia uma exuberancia de vida. +Viam-se figuras nuas, como nas Loggias do Vaticano. Os monstros não +tinham, como nos ornamentos goticos, uma aparencia terrivel: eram +elegantes, d'uma aparencia risonha e as retorcidas caudas terminavam, +estilisadas, em caules de flores. A vida era triunfante nos collos +sensuaes das mulheres, nos cachos de fructos, romãs abertas de que sahia +um riso vermelho, laranjas doiradas, cepas que subiam espalhando-se em +ramos com grossas uvas, como a de Corinto, figuras aladas, sensuaes, +antes amôres contentes, do que anjos misticos e salvadores. + +Havia uma volupia fina, uma delicada sensualidade cada um dos ornatos, +como em cada um dos caminhos da Quinta Alegre. A mesma latada verde +clara, em que se via a poeira dos cachos que cresciam, se reproduzia e +multiplicava nos marmores das sallas e da capella; e os corpos alvos das +ninfas, das graças, hamadriadas contentes, dos faunos lascivos +levantavam-se e sorriam no marmore das estatuas. + +Era alli que todo o anno viviam os marquezes de Runa, salvo um mez na +Bretanha, setembro, em alguma praia tranquilla e ensolada, d'onde +voltavam, apressados, logo aos primeiros frios, apenas uma pequena +paragem em Paris, para as necessarias visitas da marqueza a Redfern, +Paquin, e pequenas e especialissimas lojas d'outros fornecedores. + +O marquez, Christiano Spinola d'Acciaioli, descendia de duas familias +italianas, os marquezes Spinolas e os marquezes d'Acciaioli, que foram +duques d'Athenas, de que vieram ramos para Portugal. No seculo XVII fôra +um seu tio, Simão de Vasconcellos Acciaioli casar a Florença com a filha +unica do marquez d'Acciaioli, para não acabar o nome. E d'ahi os dois +ramos conservaram sempre relações intimas, visitas dos portuguezes e +italianos, e mesmo o marquez passára parte da sua mocidade em Florença +na casa senhorial de seus avós. + +Novo, voltára a Portugal e amára com um tranquillo amôr sua primeira +mulher D. Estevaninha Henriques, descendente do celebre conde D. +Henrique Henriques. + +Vira-a por uma manhã de sol a atravessar o pateo branco e calado do seu +palacio de Sevilha. E a languidez do seu andar, o seu ar triste, +n'aquella casa quasi morta--calado e morto é o tanque esbelto e branco e +sobre os arcos apenas touristes passam, silenciosos--impressionavam. Os +seus olhos habituaram-se a vêr nas praças, nas ruas ensombradas pelos +toldos, a face branca, onde ardiam os grandes olhos pretos de D. +Estevaninha, a risca sensual e fina dos labios vermelhos, como num traço +de sangue, que a faziam mais pallida. + +Conhecendo os duques de Medina, facil lhe foi ajustar o casamento. + +Depois d'uma luzida boda, aberta de par em par a Puerta del Pardon da +Catedral para a passagem dos convidados entre os quaes a infanta, que +representava a Rainha, vieram para Lisboa esconder o seu amôr na Quinta +Alegre, cheia de rumores d'aguas e de folhagens que gemiam e riam á +passagem da brisa. + +Mas aquella casa alegre, onde tudo era voluptuoso, d'uma volupia fina, +em que todos se tinham habituado a amar a vida em todas as suas +manifestações, parecera hostil ao sentimento hespanhol da doce +Estevaninha, na nudez dos corpos, até no desabrochar das flores de +marmore, que pareciam tentar. + +Certamente, que junto de si, para a amparar e dirigir, estava sempre, +rotundo e oleoso, o conego D. Benito, que com ella viera de Sevilha, e +na capella risonha e branca constantemente ardiam lumes fumarentos de +tochas; certamente, que as missas, as novenas, as trezenas, +lausperennes--fôra difficilimo conseguir do Senhor Patriarcha um dia de +lausperenne, cada mez, mas conseguira-o a protecção decidida da baronesa +d'Angra--todas as festas e macerações da egreja se sucediam na capella +clara; as confissões, as comunhões multiplicavam-se; um cilicio de crina +fazia, ás sextas-feiras, gemer a branca noiva, mas tudo parecia falso, +porque a capella tinha sempre o ar de rir e de tentar, nas volutas +floridas dos seus capiteis, nas figuras nuas, que mostravam em cada +ruga da pelle, em cada grão de marmore, um desejo impuro que era uma +tentação e um escarneo. + +E a marqueza não se sentia feliz. Preferia o seu viver austero na sua +casa d'Andaluzia, entre paisagens asperas, crueza de sol pelos desolados +campos onde as piteiras aguçam as pontas de suas folhas curvas, e as +egrejas hespanholas, severas e sem luz; em vão lhe dizia D. Benito que +um sátiro confessára Christo a S. Jeronymo, e lhe trouxera flôres para +enfeitar o altar do verdadeiro Deus; debalde lhe assegurou o frade +affeiçoado ás sombras quietas da quinta, aos tuneis de verdura, onde a +pretexto de ler o breviario, nas tardes calmosas de verão, adormecia +ecclesiasticamente, que as apparencias nada eram e que a verdade estava +em Deus--D. Estevaninha redobrava de supplicios, os jejuns, as +penitencias rudes que abalavam o delicado corpo magro e gracil, que +palpitava na aproximação do marido, cheia d'angustioso terror e de +volupia; e pouco a pouco se definhou, e pela noite fria do Natal, á hora +em que na egreja, entre resplendores de cirios e uma chuva de flores, se +festeja o Nascimento de Christo, morreu aos gritos, ao dar á luz André. + +Para o marquez a morte de D. Estevaninha não foi um desastre dos que +abrem no coração um vinco duradoiro. + +Gostára d'aquella face triste e habituára-se ao ardôr receoso do corpo +fino e doirado da andaluza; mas a casa fina, elegante e pagã, ia tomando +aspectos sombrios. Na ante-camara, como nos corredores episcopaes, +murmuravam grupos de padres. E atravessaram a Quinta fallando baixo, +olhando para as areias dos caminhos, dizendo sempre palavras unctuosas, +a querer vender o ceu. Monsenhores de cintas arroxeadas, bispos +imponentes, a cruz d'oiro a brilhar no peito, camareiros de S. +Santidade, frades que batiam as sandalias n'um ruido surdo, cruzavam-se +nas escadas, junctos sahiam, sempre a mesma maneira hypocrita d'olhar as +coisas, sempre os mesmos labios mentirosos e distilar frases decoradas. +O marquez recolhera-se á bibliotheca onde dispunha a sua collecção de +estampas, por que dia a dia se apaixonara mais. Vinham da Italia e da +Allemanha e da França e da Inglaterra em rolos, em caixotes, que os +agentes enviavam, ás dezenas. Reunira uma preciosa collecção de +aguas-fortes de Rembrandt e as gravuras de Dürer; tinha desenhos de +Vinci, de Raphael, esboços de Ticiano e de Ribera. Tudo o que fosse +arte, desde o balbuciar dos primeiros «primitivos», até á exuberancia +formidavel de Rubens, misterios de sombra de Rembrandt, torcionarias +figuras de Ribera, suaves santas carnudas de Murillo, extranhas mascaras +de angustia ou de grotesco de Goya, tudo o que fosse arte e não +tivesse côr o seduzia, proves avant la lettre, exemplares rotos, em que +se visse uma mancha bem posta, elle os guardava, catalogando, apenas se +distrahindo em passeios pelo parque, grandes voltas, descendo até o +extremo da quinta, onde repousava, vendo o multiplo esguicho que saía +das duplas flautas de tres aulitridas, n'um gesto elegante de dança nas +transparentes tunicas que tornavam mais attrahentes a nudez dos +seus corpos. + +Com a morte da marqueza, o palacio voltou a ser mais silencioso e mais +claro. Parecia que na quinta as aves cantavam mais. Apenas D. Benito +ficára, «por amor al niño de la señora marqueza», protestava, mas porque +se afeiçoára ás sombras frescas, onde dormia. + +André foi crescendo livremente entre os creados e D. Benito. Aos tres +annos andava pela quinta, arrancando flôres, quebrando vasos, e +interrompendo com gritarias e surpresas as prolongadas séstas do conego. + +André foi crescendo livremente, em correrias doidas, traquinas e +imprudentes, subindo ás arvores, despindo-se e atirando-se para as +bacias de marmore, sempre perseguido pela miss loira e terna, que lhe +ensinava inglez. + +As feições da mãe reproduziam-se, graciosas, no filho. O pae via, com +inquietação o mesmo fallar da mãe, os mesmos olhos tristes, a mesma +boca fina, apenas, em André, mais exangue. Teve medo que a +intellectualidade desequilibrada da devota tivesse continuado no filho a +vida de pavores christãos, e ao conego e á miss recommendou que o +deixassem livre, que o fizessem um animal forte e feliz, com poucas +resas e pouca grammatica. Quiz que elle aprendesse a ter o Amôr da Vida, +que aquelles pulmões respirassem sem medo e sem pecado as grandes rosas +que desabrochavam lentamente, petala a petala nos caminhos da quinta. +Que visse no canto das aguas um hymno d'alegria, no chilrear dos +passaros e no balançar dos ramos uma festa da Natureza, que elle proprio +tivesse a alma constantemente em festa. + +Assim lhe foi ensinado o pensamento dos antigos. Disse-lhe a alegria +imortal das fabulas gregas, os deuses que no vôo rapido desciam do +recurvo Olympo e vinham á terra violar os corpos nubeis das filhas dos +reis; a dança dos satyros e das faunezas nas clareiras das florestas +quietas, as festas da lavoura, as procissões a Céres no tempo em que os +trigaes amadurecem, a Dyonisos, quando os cachos são côr de rubim e de +esmeralda. + +Levou-o ás suas terras do Douro a vêr as vindimas, quando elle tinha +sete annos. Pelos montes verdes, onde a vinha ri, rasteira, curvada ao +peso dos cachos, bandos de trabalhadores curvados cortam, cantando, os +cachos e levantam-se um pouco para os lançar nos cestos; de quando +em quando a fileira move-se, forma-se em semi-circulo, desdobrando-se +como um exercito n'um movimento largo, agrupam-se para debandar outra +vez, com rythmo e graça. E as camisas brancas contrastam com os lenços +vermelhos, e riem as faces trigueiras, ha uma grande alegria, cantam as +boccas, e o mesmo movimento regular dos bustos que se levantam, dos +braços que deitam, n'um movimento largo a uva nos balseiros escuros. + +Depois das vindimas, os balseiros cheios despejam-se nas dornas, nos +lagares. O vinho ferve, com um aroma forte. E os trabalhadores cantam, +como no tempo da Hellada, glorificando a Terra e glorificando os Deuses. + +Habituou-o a vêr coisas bellas, a reparar nas minucias das plantas, na +finura dos sarmentos, na delicadeza dos coloridos das flôres, quiz que +elle amasse as paisagens quietas. E com o pae, André ia contente; não +lhe ensinava resas, nem o obrigava a saber lições. + +O conego e a miss, por um momento accordados, esquecendo as rivalidades +das Egrejas Catholica e Reformada, que os separavam e os traziam n'uma +lucta constante, censuravam o marquez por aquella educação original, que +seria muito bem cabida n'um gentio, mas não n'um cavalleiro portuguez. E +o conego desolava-se: + +--É para admirar que a alma da senhora marqueza não tenha ainda +apparecido... Que se ella vivesse, isto era tamanha mortificação, que +morreria de desgosto. + +E miss Lucy, fazendo com a linda boca vermelha um gesto de desdem, +terminava n'um tom cortante: + +--Improper! + +E André ia crescendo. Gostava da miss, porque era linda, tinha uns olhos +verdes, côr do mar, e uma pelle fina, branca como as gardenias, e o +cabello tão loiro, que André lhe perguntava se aquillo era oiro. Mas não +gostava do conego, porque, em o apanhando nas correrias do costume pelo +jardim, logo o prendia entre os joelhos e o fazia recitar, durante muito +tempo tantos rosarios d'Avés, padrenossos, de credos, salve rainhas, +actos de contricção que André chorava no fim. E D. Benito alegrava-se, +dizia que era o Diabo que fugia do corpo del niño. + +André não se aventurava já a puxar pela batina enodoada do conego, +quando elle dormitava no jardim: limitava-se a gritar de longe, e quando +D. Benito sobresaltado acordava e voltava para elle a face gorda, André +corria a esconder-se no regaço virginal da miss, que se fingia severa: + +--Aoh! Naughty boy! Very naughty boy. What did you do to D. Benito? + +Mas ria-se das partidas d'André e beijava a face pallida, os olhos tristes. + +De vez em quando apparecia a baroneza d'Angra a visitar o marquez. Mal a +presentia, André ia esconder-se n'algum recanto misterioso do parque, +atraz d'uma estatua, entre buxos altos. Não era que não achasse +agradavel estar com a baroneza, pequenina e gentil, com uns lindos olhos +frescos e em quem sentia, quando a beijava, um perfume doce; e mesmo os +labios d'ella eram mais vermelhos ainda do que os da miss, que os tinha +tão vermelhos e emanava d'elles tamanho ardor sensual, que a creança o +sentia confusamente. + +Mas, passadas as primeiras ternuras, a baroneza fazia-lhe um minucioso +exame de doutrina, diante do marquez que enrugava a testa, descontente. + +--Diga lá o menino os mandamentos!... + +André dizia contrafeito e arrastado. + +--E os artigos da fé?... E as virtudes cardeaes?... E os Novissimos do +Homem?... + +--Mundo... Diabo... Carne... + +--Carne, não, interrompia o marquez. Osso! Não é verdade, prima? + +André não comprehendia, mas gostava, porque a baroneza deixava-o logo e +voltando-se para o marquez: + +--O primo tem esta creança como um filho d'heretico. Já conheci um +inglez, e era protestante, que ensinava o catecismo aos filhos! Mas +o primo que tem papas na familia... + +--Chegam para salvar o resto. Escusamos nós de pensar nisso, sorria. + +--É pena ser seu filho. Tão lindo! Vê aquelles olhos tristes?... + +--Gostava mais que fossem alegres!... + +--Ora!... O primo não entende nada d'isto... Que lindos olhos!... Bem... +Bem... Tenho de ir á novena. + +Ao sair, sempre a mesma frase a proposito da escada onde figuras nuas se +perseguiam, num lavor elegante e sobrio: + +--O primo tem a casa cheia de indecencias! Acabo por não voltar cá! + +André, porem, ia a fazer doze annos; não podia continuar entre o +catecismo de D. Benito e o inglez doce da miss. O marquez mandou-o +para o colégio. Mas á tarde, quando o conego o trouxe para casa, André +abraçou-se ao pae a chorar e a pedir-lhe para não voltar ali. + +A disciplina escolar, os olhos curiosos dos camaradas que o troçavam, o +olhar duro dos mestres, o mau cheiro, a falta d'ar fizeram-lhe ter medo +do colégio. E prometeu ao pae tudo, para não voltar. + +--Até aprender as resas de D. Benito e as da tia Angra! + +Com grande escandalo de D. Benito, o marquez anuiu. + +--Escusas de aprender resas. Vou-te arranjar, quando a miss se fôr +embora, uma mestra franceza e professores que virão a casa dar-te lições. + +André ficou admirado. Então a miss ia-se embora? Porquê? + +--Acaba o seu contracto... + +André foi, a correr, perguntar á miss. Cheio d'angustia, com uma suplica +na voz: + +--Então vae deixar-me? + +--Yes, yes, my little André... E afagou-lhe os cabelos. + +André agarrou-se a miss Lucy a soluçar nervosamente. A miss +acariciava-o, queria beijal-o, chorava tambem, comovida, lagrimas de +prata que se prendiam nos compridos cilios d'oiro. + +Fôra a miss, até então, a unica mulher de que André gostára. A ella +fazia as suas confidencias, contava-lhe as proezas de brigas terriveis +com os amigos, as diabruras feitas ao conego. E a miss tinha sempre um +sorriso e um afago para a creança, nunca lhe ensinára orações, não o +castigava por não saber a lição, falta que se repetia a miudo; apenas +lhe dera uma biblia com gravuras recomendando-lhe a leitura--sem resultado. + +Á noite contava-lhe lendas poeticas da Inglaterra, castelãs brancas e +tristes, almas de mortos que vagueiam e a voz dorida dos pagens +soluçando d'amor... + +Muitas vezes, quando era mais mocinho, fôra a miss, no inverno, +aconchegar-lhe a roupa no pequenino leito. Ao adormecer, a sensação +branda das mãos delgadas de Lucy na sua face. E cantava como uma musica, +a voz que dizia, ao fechar mansamente a porta: + +--Good night, my little André. + +Mas a miss partiu em lagrimas dolorosas. André foi acompanhal-a ao vapor +com o velho «footman». Já ia longe o navio e ainda André acenava, os +olhos molhados, o soluço a contrair a garganta; a miss tambem agitava o +lenço, chorando... + +Tempo depois apareceu em casa, de manhã cedo, quando André andava a +regar os seus canteiros, a professora franceza que chegára de Paris. O +seu andar era ligeiro e miudo como o dum passaro e evolavam-se d'ella +uma gracilidade suave, desde os cabellos palidos até a curva rapida da +cinta delgada. Tinha nos pequenos olhos cinzentos uma malicia e um riso. +André, que se voltára, ficou boquiaberto. Certamente que a miss era +linda como uma santa e doces as suas mãos e a tia Angra tinha os labios +vermelhos e um perfume delicioso; mas nunca vira creatura assim airosa, +alta e delgada, que balançava o seu corpo quando andava, como se fosse +uma flôr, como um bloco de gracilidade a deslocar-se. + +Ao saber, porém, que era a mestra franceza, não a quiz vêr mais; +nem a cumprimentou. Estava persuadido de que era culpada da partida da +miss e guardava-lhe no peito, antes de a conhecer, um grande rancor. +Fugiu, a correr, para o fundo da quinta e ali ficou a chorar com +saudades da miss. + +Ao almoço André foi repreendido. Ficou calado, os olhos baixos sem +explicar o procedimento. O marquez disse-lhe que ia ter outros mestres, +pois não podia ficar a saber apenas o latim, as vagas e erroneas noções +de coisas que lhe dera D. Benito e as poeticas baladas de miss Lucy. + +A principio a vida foi dura para André entre os professores +indifferentes que tomavam as lições sonoleando, e mademoiselle Renée, +hostil, que, pensava elle, tinha causado a partida da miss, linda como +uma dessas santas serenas e indulgentes, que teem sempre, nos dedos em +fuso, o gesto da benção. + +André olhava para Renée, disfarçadamente; admirava a graça do seu corpo +de que saia um perfume tenue, as mãos brancas, as unhas cuidadosamente +tratadas, e, quando ella se abaixava, o palido reflexo da sua nuca +doirada. O perfume era subtil e perturbante. Respondia com maneiras +bruscas ás perguntas feitas numa voz macia e quente, falava-lhe muitas +vezes inglez, fingindo ignorar os termos franceses, para lhe ser +desagradavel. Mas Renée Viardot tudo suportava com paciencia, +lançava-lhe olhares enternecidos, queria afagal-o até, beijal-o num +impeto em que brilhavam os seus olhos claros; mas André fugia logo, +apesar dos quatorze annos, como uma creança indocil. + +No verão davam as lições na quinta, em baixo, junto aos tritões, numa +rotunda assombreada. Numa tarde quieta e quente, como estivessem juntos +e Renée tivesse ao cólo um livro que interessava André e de que lhe +explicava uma passagem, elle inclinou-se mais sobre o seu braço, quasi a +tocar-lhe na musselina transparente da blusa, poude sentir o perfume +brando e sensual e, interrompendo mademoiselle, perguntou-lhe bruscamente: + +--Que perfume usa? + +Nos seus olhos negros havia um quebranto e na face palida duas rosas +vivas despertaram. + +Renée agarrou-lhe na cabeça e mergulhando-lh'a na musselina da blusa: + +--Est-ce que tu aimes mon parfum? Dis! + +A impressão foi demasiadamente violenta. André fugiu, a tremer; foi +sentar-se sobre o arco verde e doirado dos limoeiros, a tremer, os olhos +parados, pensando na sensação deliciosa e rude que tivera. + +O aroma das rosas que lentamente se desfolhavam, o perfume dos lilazes +brancos e dos lilazes roxos que punham nos lilazeiros uma espuma branca +e uma espuma roxa, mesmo o cheiro acre dos limões maduros não +conseguiram vencer o aroma subtil e sensual do peito farto de mademoiselle. + +Dias seguidos, André pretextou enxaquecas, fugiu de Renée, espreitando-a +de longe com receio e com desejo de se approximar d'ella, outra vez +mergulhar a cara na frescura da musselina e muito tempo sorver o +inibriante aroma. Um dia, na estufa aberta, examinava langorosamente os +cravos que iam já a murchar. Havia-os de toda a côr. Todos os vermelhos, +desde a purpura sombria, até ás descolorações das rosas anemicas; +gritavam alguns côr de vinho, surgiam roseos e triumphantes, até que +desmaiavam rosados puros de geraneos, como bocas novas que querem beijar. + +E aos vermelhos, quer heroicos, quer tenues, uniam-se outras côres, +outras n'elles se fundiam ou se embutiam, perpassavam em alguns laivos +fortes de violetas, n'outros espraiava-se um branco que hesitava em ser +rosa; aqui um, desesperado, as petalas revoltas, como em arrepelos, era +d'um violeta ardido, além outro era todo branco, d'uma quasi irreal +alvura, como se anjos os houvessem beijado nas horas suaves em que do +ceu cae o rócio... Outro, tambem branco, beijos de abelhas o tinham +mordido, n'elle gotejava um sangue avermelhado; mas os vermelhos +combatiam, aqui vinho, além quasi roxo, havia como uma lucta de que +resaltavam gotejos, que pareciam cristalisar em coraes; em certos, +o vermelho do fundo degradava-se, triunfava fortalecido, até que nas +pontas recurvas se franjava de roxo. Havia retalhos de tunica do Senhor +dos Passos, carnes a apodrecer, pedaços de pelles virginaes, estriados, +franzidos, sempre frizados, raiados de côres diversas: aquelles eram +«modern style» em côres estranhas que se reuniam, certos cremes onde se +dilue o vermelho, tons sem brilho, onde a luz morre, côres de tijollo, +esverdeados longiquos que pareciam dormir sob os roseos. + +Mas todos tinham frescura, todos viviam uma vida impertinente que se +affirmava no odor sensual, perturbante e voluptuoso, todos eram d'uma +ardente mocidade, quer saissem dos tubos, entre folhas de musgo, quer +baloiçassem em hastes longas de craveiros, como que ejaculados, tal a +sua soberba. E mesmo os que eram enormes e faziam vergar a haste, como +um corpo cançado, na seda fina das petalas tinham sempre sorrisos, um +sorriso que excitava. + +Eram todos sensuaes. Faziam lembrar _croupes_ fortes de espanholas +d'olhos languidos e cabeleiras negras mordidas por pentes d'oiro. + +O langor das flôres, junto á puberdade que nascia e se afirmava e +entontecia, como as grandes olaias de marfineo calice, pelos jardins +calados nas noites d'agosto, perturbavam, embriagavam André, tal um copo +de capitoso vinho que se bebe d'um trago n'uma convalescença. + +Pé ante pé, Renée entrou e, curvando o corpo n'uma atitude provocante, +agarrou-lhe na mão e segredou-lhe: + +--Quer saber o meu perfume? + +A bocca vermelha e seca ria-se, contrafeita. + +--Ha dias, não tive tempo para lhe dizer... + +Aproximou-se d'André, apertou-lhe as mãos, deitava-lhe, ao falar, um +halito perfumado e quente. + +--Quer saber?--insistiu. + +André córou e quiz fugir; mas mademoiselle agarrou-o mais, tomou-lhe a +outra mão e apertando-lh'as, n'uma caricia sabia, palma com palma: + +--Não faço segredo: é uma mistura de resedá e jasmim do cabo. Quer vêr? + +Sem que lhe désse tempo para responder, poz-se nos bicos dos pés, mãos +nas mãos, olhos nos olhos, e approximou-lhe da face o cólo tremente. +Largando-lhe as mãos deitou para trás a cabeça palida de adolescente e +reavivou com um longo beijo a flôr exangue dos seus labios virgens. + +André beijou-a tambem, os olhos fechados, os corpos unidos, arcobotados +um contra o outro. + +Quando terminou o demorado abraço, André olhou para ella a medo. E por +sua vez agarrou na cabecita linda e beijou-lhe a boca longamente, +sofregamente... + +A noite, para André, foi toda de revoltas no leito, olhos abertos, +labios em febre, franzidos, a procurar outros labios que não vinham, a +desejar beijos, como se elles adejassem esparsos pelo ar e podessem +pousar na sua boca. Comparava os beijos suaves da miss com os beijos de +fogo que lhe dera Renée. E como era doce dormir depois de sentir as mãos +alvas de Lucy a afagar-lhe os cabellos n'um somno tranquillo e doce! e +como lhe era difficil adormecer, a revirar-se na cama, apagava e acendia +a luz, sempre a lembrar-se da caricia extranha e inedita, do perfume +estonteante, do calor dos labios secos, da macieza do cabello loiro, +como se fosse de seda, de todo o corpo fino e flexivel que se colára ao +seu, e n'elle deixára como cauterisadas placas de feridas, era bom e era +terrivel. E toda a noite passou assim, até que de madrugada adormeceu +murmurando em segredo o nome de Renée. + +Era a puberdade que aparecia subitamente, irrompendo d'um jacto, como um +poço artesiano de repente aberto. + +Longo tempo durou esse noivado vermelho. + +Certa tarde, D. Benito que ainda se arrastava pelo palacio, achacoso e +velho, fazendo do dia uma comprida sésta, surprehendeu-os a +beijarem-se. + +Clamando contra as iniquidades da terra, foi-se encontrar com o marquez, +que á sombra d'uma tilia meditava Marco Aurelio, e contou-lhe, vermelho, +esquecido do reumatismo que lhe tolhia as pernas, entremelando a lingua +numa algaravia inconcebivel, a abominação das abominações. + +O marquez, que pousára sobre o banco de marmore o livro antigo, +mostrou-lhe uma haste toda coberta de goivos brancos: + +--Vê esta planta, D. Benito? É algum peccado que na época propria se +cubra de flôres? Repare para ellas. Com que voluptuosidade mergulham-se +na atmosfera! Riem n'uma alegria clara e vívida por terem nascido. Da +raiz sobe, triunfante, a seiva para as alimentar. Perfumam hoje, +morrerão ámanhã, sem pecado, felizes por terem integralmente vivido. O +seu polen voará para fecundar outras flores, D. Benito. Deixe que a vida +se manifeste, deixe que todos sejam felizes! + +O conego arriscou uma apoplexia ao ouvir a blasfemia do fidalgo. Teve +forças para ir para casa embrulhar as escassas roupas e na mesma noite +partiu para Sevilha--queria morrer entre gente cristã, dizia. Não se +despediu d'André, nem de mademoiselle, apenas um comprimento seco ao +marquez. + +Fingiu este ignorar o que entre o filho e a mestra se passava. +Continuavam no seu idilio. Mas os annos passavam, André fez os seus +estudos e o marquez mandou-o para Florença. + +Renée regressou a França. Partiram juntos, por mar, para Barcelona. + +Foi entre beijos, que sulcaram o Mediterraneo calmo e transparente, aqui +azul-ferrete, além verde-claro, logo ensolado e doirado, sempre +transparente. E de noite iam vêr, sós, as mãos nas cintas, muitas vezes +os braços se uniam--a fosforescencia que se levantava na prôa, +brilhante, n'uma espuma fina, como uma poeira de mica. + +Como dois amorosos que acabam de dar o primeiro beijo, e logo, na ancia, +querem contar mais de mil, mal viram Cadiz branca e pequena, a luzir no +recurvo golfo azul; em Malaga não repararam no ar dolente das flamencas, +que cantam cheias de volupia, e mesmo no _Paseo_ sacodem as ancas, como +n'um convite para uma volupia triste, e os seus vinhedos claros; apenas +na cathedral feia e banal, se extasiaram diante d'um quadro, imagem de +uma santa. Qual? Não o souberam e chamaram-lhe Nossa Senhora do Desejo +insatisfeito. N'uma pequena tela um busto de mulher trigueira, andaluza, +forte, pelle doirada, olha para o ceu. Os olhos teem a expressão +dolorosa de quem muito deseja. E o vermelho dos labios carnudos, as +narinas dilatadas, dizem o que ha de sensual n'aquella expressão +ardente. O collo é aberto. E as mãos, ao tapal-o com um lenço +vermelho, ainda mais aquecem o tom quente do collo doirado. + +Indifferentes, viram Valencia entre vergeis, clara e voluptuosa na +planicie fertil e o Grao rumoroso, onde moirejam descarregadores nas +docas e operarios nas fabricas. E Barcelona que se alastra em renques de +arvores nas ruas largas, com seus palacios, suas avenidas, as Ramblas +onde se apertam catalães silenciosos, os mercados de flôres cheios de +gardenias, de jasmins e rosas, pareceu-lhes triste, porque alli se +deviam separar. + +Em vão subiram ao Tibidabo; donde se vê toda a Barcelona estendida, como +um tapete, cortada de ruas; correm, ora direitas, ora em sinuosidades, +linhas claras de platanos. Estendem-se as casas até junto ao mar azul, +de onde em onde raras torres se levantam e entre ellas sobresahe o vulto +gothico e afilado de Santa Maria de la Mar. + +A ligeira neblina que se levanta do porto e envolve a estatua de +Colombo, negra sobre a pedra branca da doca, parecia que envolvia tudo, +que dava ás coisas a tristeza que estava n'elles. E Renée chorava, +abraçava-se muito a André, obrigava-o a prometer-lhe longas e amiudadas +cartas e uma viagem a Paris, quando voltasse, no anno seguinte, +de Florença. + +E assim, por uma tarde triste, conseguiu André leval-a, pelo +passeio da Aduana fóra, entre as palmeiras, á estação. + +E os beijos cantaram, demorados e angustiosos, nas bocas dos amantes, +até que uma voz rouca gritou:--Viajeros, al tren!--e o comboio silvou e +partiu. André ficou a vêr o lenço de Renée e o comboio que se perdeu +n'uma curva, fumegando. + +Dolorosa foi, para André, essa noite. + +Pareceu-lhe vasia e silenciosa a pequena alcova onde durante uma semana +tinham dormido. Perseguia-o a lembrança do perfume, a macieza e a côr do +cabello d'um loiro palido como um sol convalescente, a frescura da pelle +fina, todo o encanto e todo o Amôr da deliciosa Renée que o iniciára e +que o amára e de quem sentia ainda as lagrimas amargas que se misturavam +aos beijos tristes que ella lhe dera nos curtos dias da despedida. E +André chorou. + +Na manhã seguinte partiu para Genova n'um _liner_ da Liguria. Com elle +regressavam á Italia cantoras do Liceu. Notou uma comprimaria delgada de +cabellos e olhos pretos, que trazia do mercado da Rambla um grande mólho +de flôres. Olhou para ella com desejo e n'esse desejo se surpreendeu, +quasi esquecido de Renée. Facilmente feito o conhecimento, os dois dias +de viagem foram rapidos em inconsequentes flirts, alegrias de dança na +tolda e leves concertos no salão. Em Genova se separaram e André +partiu para Florença ligeiro e esquecido, com um certo prazer de se ter +separado de Renée, que, agora o sentia, começava a pesar-lhe. + +Em Italia a vida foi-lhe facil entre monumentos e mulheres, em cujos +olhos boia uma grande alegria de viver. + +Teve paixões e conquistas; quiz realisar quadros dos mestres florentinos +que diariamente via no Pitti e nos Uffizi; procurou por toda a parte os +typos ambiguos, perturbantes no seu enigma, entre efebos e mulheres, +adolescentes sempre, ovaes perfeitos de rostos brancos, bocas sensuaes e +vermelhas. + +Nos _corsos_ da Italia passeou em cavallos inglezes; em Veneza poetisou, +no Grande Canal, pelas noites claras, sentindo humidade e paixão, até +que aos dezoito annos voltou a Lisboa sempre a mesma palôr na face, os +mesmos olhos tristes e boca exangue. + +O marquez aprestava o seu casamento com Violante Cerquedo, filha dos +condes de Cerquedo. + +Só no palacio, sem os risos do filho, procurou distrações na vida +mundana. Novo ainda, puzera-se a amar Violante, graciosa e intelligente, +cujos vinte annos cantavam triunfantes, como uma primavera florida. +Seduziu Violante a intelligencia do marquez, a sua figura aristocratica +e a maneira amorosa como a olhava, como se fosse uma obra d'arte. + +Pouco tempo depois do regresso de André, por um inverno chuvoso e frio, +a capella do palacio encheu-se de lumes e casaram. + +André não deixou os costumes que trouxera de Italia. Paixonetas diversas +amorteciam-lhe o coração, até que um dia, perseguindo Martha, uma actriz +loura e chique, que lhe fugia um pouco, a tornar-se difficil e desejada, +julgou ter «a verdadeira paixão da sua vida», como confessára, depois +d'uma ceia fausta e turbulenta, a Jacintho Roquette, seu irmão em letras +e seu confidente. + +André lançára-se, á volta de Italia, doidamente na literatura. +Frequentava redações e jornaes, theatros e cafés onde se reuniam jovens +escriptores cheios de esperanças e de imprecações, revolvendo as ideias +e os livros sem cerimonia, com o ar de quem, do alto d'uma montanha +inaccessivel á plebe, residencia olimpica de escolhidos, considerou já +os homens e as coisas. + +Instintivamente fugira d'elles, da sua imperturbavel confiança, do +azedume que d'elles suava quando se lembravam d'um exito. Ligou-se ainda +mais com Jacintho Roquette, caustico e risonho, com um real talento que +desperdiçava em cavaqueiras de café e em artigos feitos a trouxe-mouxe +para jornaes e revistas, sempre a luzirem, atravez da luneta, os olhos +azues, que dir-se-hiam infantis, no fundo uma grande bondade e um +caracter firme. + +As primeiras impressões d'André tinham tido um certo exito pelo seu +paganismo, uma maneira leve de escrever, lembrando a finura que teem os +mestres florentinos nas suas medalhas nitidas. + +Dissera recantos de paisagens, brilhos de mares azues, figurinhas que +tinham passado, subtis, pela sua vista, desaparecendo logo, na rapidez +das viagens, no imprevisto das caminhadas pelos campos serenos da Toscana. + +Ser delicado e cético, saboreou a ironia viva e o céticismo escarnica de +Jacintho Roquette e juntos andavam pelos theatros, vendo retalhos de +peças e demorando-se pelos camarins em flirts com actrizes, ceias +pacatas, que as companheiras não supportavam, by their own +respectability, orgias triunfaes, até que se apaixonou por Martha, essa +actriz magrisella, que guerreava a velhice com pastas de cosmeticos e +massagens, a unica mesmo que conhecia e usava os processos parisienses +para a guerra da galanteria. + +Martha tinha uma vida irregular, tecida em mentiras, misterios, certos +hiatos de treva, na sua vida, até para os mais intimos. + +Nunca um só amante, nunca num trimestre inteiro o seu leito conheceu o +mesmo corpo, antes variavam, mudavam, com sinceros _beguins_, ás +vezes o seu coração e o seu corpo pareciam uma estalagem de +entroncamento, como um vertiginoso vae-vem de passageiros. + +André, n'uma noite feliz, em que uma joia brilhou ante os olhos de +Martha, teve a ventura de a acompanhar a casa n'um trem que se +desarticulava, guiado por um batedor experimentado. + +E de manhã, ao almoço, satisfez, contente uma pequena conta de chapeus. + +Reconhecida a uma generosidade tal, Martha, durante tres dias, foi fiel +a André. Mas ao quarto dia, pretextando enxaqueca, recusou-lhe o leito +de pau santo e os braços brancos, ferteis em caricias. + +As enxaquecas repetiram-se e André entrou a desconfiar, a carpir-se +tristemente da infidelidade de Martha, a Jacintho Roquette que chasqueava: + +--Ella recebe-os ambos ao mesmo tempo? Não. Que te importa então? Os +beijos que ella te dá teem o mesmo sabôr? Teem. Que te importa o resto? +Encontras um perfume estranho no seu corpo? Mas é uma _coquetterie_ o +querer variar de perfume. Então? + +As rasões aduzidas não convenciam André e, lentamente, o que fôra talvez +um capricho, o desejo infantil de possuir a mulher da moda que era chic +possuir, foi-se transformando em obsessão, em ideia fixa, tinha a +necessidade de estar com ella constantemente, rondar-lhe o camarim, +espreitava-a entre os bastidores á espera da _deixa_, ia ao meio dia +esperal-a á porta do theatro, quando entrava para o ensaio, e, nas +noites de enxaqueca, desolado, nervoso, ia com o Roquette dizer mal +d'ella, pôr-lhe a nu todos os defeitos, inventando alguns, mas tendo +sempre um secreto desejo de a possuir, mesmo nas passagens mais +verrinosas surgia a imagem de Martha, nua, a bocca pequena espremida +n'um beijo, a offerecer-se-lhe. + +E André redobrava de violencia, dizia a vida postiça e infame da amante, +a teia de mentiras que urdia, as suas baixezas, com um prazer cruel +enumerava o rol comprido dos amantes, e terminava quasi a soluçar: + +--C'est une catin; il faut la tuer; «morte la catin, mort le chagrin.» + +--Mais uma filipica! concluiu, rindo-se, o Roquette. Vou-te apresentar +hoje uma das minhas amigas, a Princeza das Botas Cambadas. Curar-te-hei +pela hom½pathia: dentada de cabra, com pello de cabra se cura. + +Mas Miguel sentia-se frio e aborrecido, e triste, diante das princesas +do Roquette, até que um dia, sem dizer nada, decidiu-se a recolher-se á +Quinta Alegre, onde havia cinco annos não se demorava, pois depois da +sua viagem, tivera uma vida de estroina, que o fazia fugir de casa após +o almoço tardio, para só recolher a altas horas ou noite, até +madrugada clara. + +Fizera de Violante sua confidente, e a ella contou, polidas as +asperezas, o mal d'amor de que soffria, e o desejo de o curar. + +--Vou ser teu medico. Deste-te mal com as mulheres... Experimenta as +flôres. São mais lindas e fazem sofrer menos. Dirigirás o jardim. Manda +fazer as obras que quizeres. Precisamente tens aqui no «Studio» um +artigo sobre a architectura dos jardins. Faze modificações á tua +vontade. O teu pae concorda; eu ajudo-te, travamos relações, porque, +para dizer a verdade, mal nos conhecemos. Desde que foste para Florença +que não fallo comtigo, senão á pressa, quando te preparas para sahir. +Ainda te vejo menos do que quando eu era uma menina grave e te batia em +casa da tia Talleiros, pelas tuas partidas. Olha, ámanhã começa o mez de +Maria... Enfeita a capella. Tens ás tuas ordens o jardineiro e o jardim +todo. Tens invenção e gosto... olha que eu exijo genio!... + +--Oh! Genio... sabes?... + +--Bom; contento-me com talento. + +--Vá lá, prometto... + +Apanhando um grande ramo de lilazes brancos, poz-lh'o na cabeça, como um +diadema: + +--Está enfeitada a Santa! + + * * * * * + + + + +TIBIDABO + + AO SR. BARÃO DE S. PEDRO. + + +TIBIDABO + + +Na tarde de agosto quente, fugira de Barcelona para a escalvada montanha +que a fanfarronada hespanhola bátisou de Tibidabo, o sitio da Judeia +onde Satan prometeu a Christo as grandezas do Mundo e os fulgores do +Peccado. + +O monte levanta-se, precipitadamente, do fundo da planicie em que +Barcelona ondeia. E querem dizer talvez na sua os catalães, que Satanaz +ergue as creaturas que quer tentar e, firmando-as nos cimos d'este +monte, oferece-lhes a cidade, imagem brilhante dos esplendores mundanos. + +Sob o toldo do restaurante deserto me acolhi, a sentir a brisa +preguiçosa. Espalmava-se em baixo a cidade. Corriam as suas avenidas +arborisadas, as «Ramblas» que se seguem como uma bicha, e a «Gran-Via», +a infindavel «Cortes», que corta Barcelona em diagonal. Quedava-se o +Parque enorme e, ao fundo, n'um vago de nevoeiro, o mar azul, +riscado pela linha cinzenta da doca, onde os navios acolhidos eram imoveis. + +Vinha caindo a tarde sobre as raras torres das egrejas. Brilhavam um a +um os bicos de gaz e as janellas em que o poente puzera uma luz de oiro. + +Longo tempo ali estive. Sonhei? Foi real? Não sei. + + + +Um mancebo pallido e triste abeirou-se de mim: + +--Vês a noite a cair? D'aqui a pouco as ruas vão brilhar do fremito +luminoso dos desejos das multidões. A cubiça e a luxuria porão brazas +nas almas que incendiarão os olhos. As mulheres mostrarão nos bailes e +nos theatros o maculado esplendor dos seios perfumados. Nos mostradores +das lojas, á luz das lampadas electricas, as joias farão percorrer nas +mãos desejos de roubo. A Besta ergue-se--olha como se ilumina a cidade! +Vês um clarão que nasce, sobe e se perde no Ceu? Julgas que é dos +candieiros? Não, é das almas! é toda debruada de vermelho como as chamas +dos incendios. Como é bella a cidade quando é culpada! + +Voltei-me para o mancebo, tranquilamente. Vi que era o Diabo. Não que +tivesse chifres ou cheirasse a enxofre, mas pela belleza triste, de quem +conhece tudo. Não lhe tive horror. O Diabo é o gnomo subtil que +trabalha na sombra as filagranas das tentações. É o Diabo que amontôa as +cidades, inspira os artistas, empurra o homem para as civilisações que +apodrecem e brilham. + +Não lhe respondi... N'um fogacho violaceo, o sol apagára-se no mar. Era +tudo cinzento. Pelos canaes das ruas, por entre as arvores, n'uma sombra +mais densa, cintillavam os bicos e os mostradores das lojas. + +O Diabo continuou: + +--Quero a tua alma... + +Olhei-o atonito. Para quê a minha Alma? O grande colecionador tinha um +museu estranho em que brilhavam todas as taras possiveis. Assassinos +vulgares, ladrões de taberna, mães que vendem as filhas, incestuosos, +ganindo de luxuria, velhos abades macerados e corroidos pelas +disciplinas, que as ilusões vãs de Satanaz venceram, bispos, cardeaes +simoniacos, todos os pecados que se engastam como gemas e possuem um +fulgor lugubre, como se as pedras dos diademas ardessem nas cabeças, as +gargantilhas nos pescoços, as manilhas e pulseiras nos braços, os +compridos cintos nas cinturas! Satan tudo possuia, tragicos homicidas, +capitães que entregam os seus soldados, reis que mancham os altares, +velhas dementes que ululam nas monstruosas orgias, rojando pelo chão os +cabellos pintados, crispando as boccas maquilhadas nos espasmos +lancinantes, poetas que arrastam a lira pelos lameiros, virgens que se +vendem sem amor e sem vicio, toda a constelação dos sete pecados, como +sete soes nocturnos, envenenados pela treva, corroidos pela lepra, um +museu formidavel, sombrio, apesar de todos os brilhos, frio e +angustiante, como um corredor que leva a presentida cilada--era tudo de +Satan e queria-me! + +O pasmo pintou-se na minha cara. + +--Quero a tua alma! Falta-me na coléção. É por isso que hoje abandonei +as ruas das cidades e seus encobertos vicios para subir a esta montanha, +que tem o nome de outra, onde prometi tudo e tudo me recusaram. É o nome +da derrota. Não sou supersticioso. Tens uma alma de amoroso. Amas pelo +Amor. Idealista e sensual, a Fórma bella comove-te como um poema e mais +nada. Não tens as crispações dos lascivos. Amas uma mulher e uma estatua +da mesma maneira profunda, serena e harmoniosa. O amor não rebenta em +beijos violentos, como as folhas das arvores pelas primaveras +risonhas--floresce em imagens. Eu, que não posso amar, que soluço +angustiosamente pela minha impotencia, quero a tua alma! + +Quando o Diabo fallou do amor, do negrume da noite que se apoiara já +fortemente sobre a cidade e o monte, vi passar, no seu andar musical e +casto, tal uma deusa, a Bem-Amada. Foi como se uma via-lactea suave +se accendesse e florissem as flôres da terra sobre as estrelas do Ceu... + +--Não te dou a minha alma. + +--Vão abrir-se, d'aqui a pouco, na cidade enigmatica, as portas escuras +das casas de jogo. Dar-te-hei o segredo de sempre ganhar. Farei correr +por ti os cubos amarelecidos dos dados. As pintas pretas far-se-hão +olhos e verão onde apontas. As bolas das roletas saltarão por ti nas +arestas de cobre... Conhecerás o prazer de ver amontoar na tua frente as +notas e as moedas de oiro, de observar, ironico, os rostos, que a +angustia encarquilha, dos jogadores que perdem. E os sobresaltos do +banqueiro, imovel, mas de olhar esgazeado, far-te-hão rir... + +--Que importa? Jogarei com os sorrisos que brincam nos beiços finos de +Livia. Ganharei sempre porque, quer ella sorria ou não, vel-a-hei e, por +vel-a, andarei contente... + +--Ensinar-te-hei os segredos das cotas, dir-te-hei as confidencias que a +si mesmos mal ousam segredar os financeiros internacionaes. E farás cair +as grandes emprezas que vão dar ao mundo um aspéto novo. Arruinarás +povos inteiros, farás baquear os tronos em que rainhas hirtas se +assentam, no pavor das revoltas. Serás o ordenador magnifico dos cracks, +e, de paiz em paiz, o teu nome correrá, nos fios dos telegrafos, +espalhando o sobresalto e a ruina. + +--Não quero. Basta que o meu nome seja pronunciado n'uma voz suave pela +Bem-Amada. Dito por ella, o meu nome vae, de flôr em flôr, espalhar o +perfume da sua bocca. + +--Amas a mulher? Dar-te-hei as cortezãs vestidas de joias, como idolos +antigos. Virão, de rojo, abraçar-te os joelhos, como escravas. E dos +corpos alvos e brilhantes subirão perfumes que entontecem... Dos seus +braços frescos, como as grinaldas que se entretecem com jasmins, fugirão +as caricias. Terão vozes magoadas a suplicar beijos. E, mais que as suas +joias, brilharão os seus grandes olhos... + +--As joias são flores mortas, retalhos de astros que sucumbiram... Essas +mulheres são como as joias: os beijos puzeram nos seus corações a +dureza, a frieza e a geometrica forma das pedras lapidadas. Prefiro, a +todas ellas, o gesto lento e curvo da Bem-Amada quando compõe o seu +cabello preto. + +--A mulher carinhosa e pura é como uma flôr sem perfume. É preciso que o +vicio lhes ponha um estremecimento. Dar-te-hei aquellas que envenenam a +sorrir, que atraiçoam entre duas caricias, a amante que vae surpreender, +n'um beijo, o segredo do amante, o segredo que leva á Forca, aquellas +que descobriram ineditas lascivias, corrutas e artificiaes, que eu mesmo +vestirei com tecidos fantasticos, que espalham um amavío! + +--Que amavío maior do que ver a Bem-Amada quando descança a face branca +sobre as mãos cruzadas, n'um vagaroso gesto cheio de doçura? + +--Dar-te-hei a alegria e a insaciedade, a embriaguez que exalta, o +redomoinho dos desejos que estrangulam, as bocas avidas e perseguir-te +com beijos e dentadas, toda a loucura incendiaria, a profanação de todos +os cultos, o poder de corromper, os venenos subtis que matam lentamente +e de longe, as misteriosas aguas e misteriosos pós, que fazem definhar, +como flores que se fanam, as creaturas... Serás o senhor das almas e dos +corpos. + +--Basta-me vel-a guardar, a sorrir-se, a carta que lhe escrevo... + +--Entregar-t'a-hei! Poderás tel-a entre os braços, morder a boca fina, +sentir sobre o teu peito o arfar apressado do seu collo amoroso, ver os +olhos cerrar-se como n'uma agonia doce... A sua figura fragil +aconchegar-se-ha entre os teus braços, aquecerás a sua frieza, será tua, +reconhecida, amorosa, fremente de paixão... Queres? Dá-me a tua alma! + +Tive um sobresalto, como quem, passeando n'um jardim florido, pisa um sapo: + +--Não. Basta-me sentir nas noites claras, quando lhe fallo á varanda, o +seu olhar cair gotta a gotta sobre os meus olhos extacticos! + +O creado veiu dizer-me que ia fechar-se o restaurante. A treva +escorregava pelo monte. Um clarão vinha da cidade estendida a meus pés. +E vago, confuso, o ruido da cidade com os seus vicios, seus tumultos, o +cio que começava. + +Desci. E, a acompanhar-me, senti a Bem-Amada, perto de mim, carinhosa, a +olhar-me longamente com os seus largos olhos pretos. + + * * * * * + + + + +A PRINCEZA PERDIDA + + AO SR. JOSÉ DE SOUSA MONTEIRO. + + +A PRINCEZA PERDIDA + + +N'aquella serena tarde de primavera, a princeza descera com as +pequeninas aias e a camareira-mór as escadas de marmore branco e de +marmore roseo do sumptuoso palacio real. + +Era n'uma côrte de complicada pragmatica. Os movimentos eram feitos +consoante regras antigas; cada passo, cada mesura, cada sorriso, vinham +marcadas no grosso livro que um mordomo-mór colligira, a exemplo do que +fizera um imperador bysantino. + +Apesar d'isso, porém, na côrte esplendida havia um pouco de mocidade. E +detraz dos leques de varetas rendilhadas, os labios abriam-se em +sorrisos os olhos franziam-se, quando estava distante a hirta, +camareira-mór. + +Os bailes tinham solemnidade como os officios divinos; mas as cores +frescas das raparigas, a ligeiresa com que dançavam, a graciosidade que +florescia nas suas atitudes rapidamente desmanchadas, logo +substituidas, davam-lhes o ar de festas. + +No grande palacio brilhante, as gentes andavam lentamente, como em +procissão. No rosto do mais alegre era preciso espelhar-se, sombria, a +tristeza que emagrecia a face pallida do rei. Era mister que ninguem +perturbasse, com o tenir fresco d'um riso, a dôr real. Se alguma vez as +donzellas deixavam passar o riso atravez das rendas finas dos seus +leques, logo a camareira-mór intervinha, sevéra, a repreender. Nos +tapetes morriam os sons dos passos; os grossos reposteiros abafavam o +ruido das vozes. O silencio era eterno, como essa grande e aniquilladora +magua que abatera a vigorosa mocidade do Rei. + +Em tempo, o palacio vibrára com o clamor das festas; as musicas +saltitantes riam nas amplas sallas. Os vestidos claros, em cujos decótes +os peitos brancos se mostram, sublinhavam a alegria. Um bobo pequenino e +monstruoso punha um chocalhar de guiso em cada frase. E junto da Rainha, +loira, pallida, delgada, o Rei tambem sorria, a olhar a flôr preciosa e +fragil que pelo braço levava, em movimentos musicaes, como uma ave. + +Junto á sua frescura luminosa, as joias pareciam flores. E o diadema +pesado, sobre os cabellos loiros, era como uma aureola maior n'essa +cabeça fina. + +Ella tambem sorria, olhando os olhos escuros do Rei. E pela bocca +vermelha havia como um palpitar de beijos. A festa continuava. Havia no +ambiente claro de tantas luzes, tantas joias, tantos olhos contentes, +uma alegria maior. Vaporisavam-se os movimentos. As rendas tremiam nos +vestidos das mulheres, nos gibões de seda dos gentishomens. As conversas +d'amor faziam arfar os seios... O Rei e a Rainha continuavam a +sorrir-se, como dois amantes rusticos, que se encontram na vinha, por um +suave outomno. + +Uma noite, porém, a dôr entrou n'esse palacio claro. Ligeiros, para não +fazer ruido, como sombras, os cortesãos, as damas d'honor, as aias, +passavam, murmurando resas, ou trocando, baixinho, as impressões. Era +como um ciciar leve de brisa sobre um campo de flores. Os vultos +cruzavam-se: + +--Então? + +--Na mesma... + +--Impossivel salvar-se... + +--O fisico não atina com o remedio... + +Era a Rainha, que, como certos arbustos que morrem, depois de florir, +finava-se ao dar á luz a pequena princeza. + +A dôr tragica e calada do moço Rei! Nem uma palavra se lhe ouviu da +bocca crispada. Nem um grito na luctuosa camara onde carpiam as senhoras +da côrte. De joelhos junto ao leito magnifico, onde se postára +depois de ter cerrado os largos olhos garços, o Rei chorava em silencio. +Os frades diziam monotonamente, como um esvoaçar de insectos, as resas +rituaes. Um ou outro soluço, a desolação d'um ai, cortavam a funebre +quietude; mas o rei, entre as suas as mãos finas e amarellecidas da +Rainha, não tinha um grito, nem uma palavra. Nos labios da morta ainda +havia o sorriso, esboçado a olhar para o marido... + +O Rei mandou retirar a todos do quarto. Quiz elle proprio vestir aquella +que tanto amára. Beijou-lhe os olhos de palpebras azuladas, beijou os +cabellos, que na imprecisa penumbra, tinham um brilho d'oiro... Outra +vez caiu de joelhos. + +Então as palavras de dôr, abundantes, sairam dos labios tanto tempo +represos. Disse-lhe o grande amôr e a grande magua. Prometteu-lhe viuvez +eterna; que a sua alma se conservaria fechada, como um relicario, a +guardar a imagem quasi divina da mulher primeira amada, unica... + +Longo tempo se conservou, as mãos frias da morta entre as suas, no +quarto silencioso, onde apenas os seus queixumes davam uma nota de vida. +No lampadario já se extinguiam as luzes, que, de quando em quando +lançavam, altas, dentadas, labaredas azues e d'oiro. + +A madrugada clara entrou pelas janellas, como um chilrear de +passaros. A vida renascia, musical, da noite escura. No coração do Rei a +dôr fizera uma sombra eterna. + +Entre os brandões acesos levaram o cadaver, vestido por mãos +mercenarias, que as do Rei nem tinham forças para o peso dos anneis... + +Filas de bispos mitrados, graves e compungidos, seguiam o feretro +atravez as ruas da cidade e por estradas risonhas, até o convento +magnifico em cuja egreja jaziam todos os numerosos reis e rainhas da +casa real; seguiram os fidalgos como seus escudeiros de lucto; seguiu, +commovido, o povo, que pranteou a morte d'aquella que fôra linda e nas +ruas sorria ás criancinhas pobres, que lhe pediam a benção... + +Era uma comprida fila que se perdia nas corcôvas da estrada. As +confrarias, os conventos mandaram os irmãos e os frades, com as +insignias. E áquelle radioso sol d'agosto, que punha na athmosphera uma +tremura, tudo resplandecia, como uma apotheose. Brilhavam as lanças, +brilhavam os ouros, brilhavam os báculos e sobretudo refulgiam as +insolitas pedrarias dos bispos, caminhando magestosos e tristes. E o +psalmejar dos padres, ouvido ao longe, perdia a nota de lamento: era +como o ultimo echo d'um canto de victoria, no dia glorioso... + +No palacio quasi deserto, o Rei ficára no quarto vazio. Como arredal-o +de lá? De joelhos ainda, pensava talvez ter entre as suas mãos os +dedos finos da Rainha morta. De quando em quando um soluço parecia +estalar a garganta. E as lagrimas desciam pela face, iam morrer na barba +perfumada. + +Olhava para o grande espelho, onde a Rainha costumava ageitar, á noite, +os cabellos fartos. Lembrava-se de ter alli visto o gesto gracil, +aquelle pó d'oiro, e o corpo que tinha a frescura e a elegancia d'uma +flôr que vae a desabrochar. Porque não guardam os espelhos as imagens +reflectidas? Teria alli, viva, a Rainha, na attitude de compôr as sedas +das suas tranças... Mas os espelhos deixam tudo escapar. Assim os lagos +não guardam, no seio ligeiro, voluvel, o vôo curvo das pombas que fogem... + +E para alli se quedava, vivendo do passado, como um velho... Que +importava que as guerras na fronteira distante assolassem o paiz? Que +tinha que os povos gemessem, que as catastrophes aluissem as cidades +fulgentes ao luar e ao sol nas suas cathedraes preciosas, que os rios, +saltando os leitos, invadissem as aldeias claras? Que importava a vida +se elle só vivia da morte? Mergulhassem os outros no passado os olhos +cubiçosos e vivessem de tanto explendor de batalhas e de riquezas que +listravam de clarões a historia do reino afortunado. Na miseria +presente, que se recordassem! + +A propria princeza entre as mãos das açafatas, delicada e linda, ia +vivendo, nos grandes olhos verdes, uma tristeza, como quem sabia... No +palacio sevéro, lugubre, sem os tinidos das alabardas e os mantos que +formavam lagôas, nas alcatifas, ninguem se via. E ella, a pequena +princeza, não aprendera a rir e tambem não chorava. + +Uma vez ou outra, ao atravessar silencioso e só as camaras, o Rei via a +princeza; machinalmente as suas mãos pallidas passavam pelos cabellos +loiros da filha. E seguia, taciturno, sempre diante de si a imagem +d'aquella que morrera a sorrir e o esperava na crípta silenciosa do +austero templo gothico. + +Ensinavam as aias á princezinha, não relatos crueis de contendas, nomes +temidos dos reis seus avós, mas historias maravilhosas. Diziam-lhe que á +noite, os grandes calices das magnolias abriam-se, com um ruido musical. +E de dentro saiam côrtes de fadas minusculas, vestidas com mantos +tecidos com raios de luas-cheias. Pelo parque andavam livremente entre +as roseiras explendidas... Contavam-lhe que á meia-noite, as arvores se +desprendem da terra e vão beber, como os gados, ás limpidas ribeiras. +Ella sabia que entre si os animaes falavam, as andorinhas nos bicos dos +telhados, os cisnes brancos nas lagôas azues, os pavões sobre as +arvores, quando espalmam as enjoalhadas caudas, as pombas brancas á +beira dos poços, sobre o marmore polido. + +Conhecia os trabalhos ligeiros dos gnomos, que nas cavernas escuras +trabalhavam o oiro e o ferro; distinguia os alfagemes, que afiam as +espadas mortiferas, e os ourives, que afilagranam os metaes. + +Diziam-lhe as lendas floridas dos amantes, de cujos tumulos saem +sorrisos carregados de rosas, que n'um arco perfumado se abraçam a +misturar os perfumes... + +Mas a pobre princeza, apenas nubil, não conhecia a Vida, nem o Amor, nem +o Riso. + +Um dia, pois, a princeza, com as pequenas aias, desceu ao jardim do +sumptuoso palacio. + +Misterioso por tantas sombras, tantos caminhos que se contorciam por +entre rugosos troncos, tantas aguas que cantavam nos marmores brancos, +tantas flores que dentre a verdura perfumavam... + +De socalco em socalco abriam-se, em leques, as escadarias; saltavam as +aguas das cascatas, despenhavam-se as trepadeiras floridas, rastejavam +as hervas, rosas de toucar e jasmins lançavam os ramos frageis. + +Junto ao palacio o jardim era cuidado, como uma cabeça garrida. As +largas flores espargiam os aromas; os repuxos finos esguichavam fios de +prata, pelas ruas areiadas passavam, magestosos os pavões solemnes... +Mas depois, começava a floresta. As altas arvores luctavam, +estorcidas: algumas subiam, magras como pedintes, n'uma aspiração, muito +direitas para o sol. Outras torciam-se, esta sem forças, esgarçava-se +mirrada. E a hera crescia, vestia os troncos, até nas arvores secas +vicejava, como uma mascara risonha n'uma face de morto. Alguns troncos +de seculares carvalhos continham grutas escuras. E os passaros, dentre +os galhos, ao ruido dos passos, levantavam vôo, alvoroçados. + +Era o «Caminho das Rosas», que alli levava. Rosas de toda a côr: +ensanguentadas, brancas, côr de mel e de marfim, côr de carne, rosas +para florir peitos de danados e para tranças de primeiras commungantes, +rosas que abrem chagas no verde das roseiras, outras que chamam beijos, +como colos nus em festas illuminadas, rosas que teem toda a pureza d'uma +noiva, outras toda a garridice d'uma amante, rosas para tumulos, +brancas, mortas quasi, rosas cheias de vida, que pareciam querer saltar +das hastes, e offerecer-se, lascivas... + +Vinha do seu conjuncto um perfume entontecedor. Por tanto aroma lançarem +no ar, nas noites quentes d'agosto, algumas damas da côrte caiam, em +deliquio. E todas tinham medo d'aquelle portico encantado, que parecia +abrir para um paraiso, mas que podia descer a algum abismo. + +Foi para ali, que, correndo atraz d'uma borboleta, se dirigiu a +princeza. Em vão lhe prenderam as vestes de seda os espinhos das +roseiras, em vão a chamaram as pequenas aias; mesmo foi debalde que a +voz secca da camareira-mór gritou por ella, entre respeitosa e +auctoritaria. A princeza, a rir, córada, continuava atraz da grande +borboleta, deixando tiras de seda nos galhos em flôr que, sacudidos, +lançavam sobre a sua cabeça petalas finas. + +Ninguem, comtudo, se atreveu a ir atraz d'ella. + +Corria no palacio e na cidade uma lenda extranha sobre a floresta, que +continuava o jardim, depois do perfumado «Caminho das Rosas». + +Dizia-se que n'uma epoca remota, no tempo em que pela cidade luminosa e +culpada ainda passavam os santos ensinando a Lei e edificando as gentes, +governava o reino uma rainha pagã. No jardim murmuroso e claro havia +fremitos de beijos. Nas aguas dos tanques brilhavam corpos ligeiros. Nas +sallas que as tochas e os lampadarios illuminavam, mulheres quasi nuas +dançavam levemente ao som de musicas alegres. E o vinho levava das taças +lavradas ás boccas vermelhas a alegria e o Amôr. + +Por toda a parte havia flores, havia risos, havia festas. Os +cavalleiros, nas justas, paravam; morriam as scentelhas em que ardem as +espadas no choque dos combates, e das boccas frescas saíam vozes a +cantar a formosura das florestas, a elegancia das mulheres, a limpidez +das aguas cantantes. + +Um dia, um santo bispo entrou, andrajoso e cançado, a pedir pousada; a +rainha, ao vel-o tão miseravel, mandou-o recolher no canil, com os +creados das matilhas. Os cães, piedosamente, foram lamber os pés em +sangue do santo homem. + +Mas a Rainha não o quiz receber. Como de S. João Baptista, as palavras +subiam para as portas, asperas e condemnatorias. Toda a noite a sua voz +rude annunciava o castigo. + +A Rainha, cançada de ouvir a voz rouca, mandou-o açoitar e expulsar do +palacio, em que reviveu a alegria. Mas durou pouco, porque um dia uma +lingua de fogo saiu da terra, e agitou-se no ar, de sangue e oiro; +espavorida, toda a côrte fugiu, para não mais voltar, para a floresta +misteriosa, que ninguem sabia ao certo onde acabava. + +E todo o reino teve medo, como d'um inferno, d'essa floresta que +começava por uma extranha floração de rosas e terminava porventura pelos +eternos gelos, pelas labaredas, talvez... + +Por ali seguira a princeza, a rir-se. Em vão o Medo guardou durante +seculos a misteriosa entrada. Em vão as rosas se agitaram, como +turibulos, para a entontecer com o perfume, e os galhos a prenderam, e +os espinhos lhe rasgaram as rendas e as sedas. Foi correndo. A +borboleta enorme parecia uma joia a fugir por entre as flores. A +princeza era como uma ave, delgada e linda, atraz d'ella. + +Subitamente a paisagem modificou-se. Do dia glorioso que estava no +jardim do palacio, nasceu um crepusculo doirado, como um velho damasco +amarello. + +A luz parecia um convalescente a rir-se por cima das arvores, pelos +tanques quietos, pelos marmores. E as folhas das arvores tremiam fazendo +brilhar os filamentos d'oiro. As flores tinham todas um aroma ligeiro, +como os frascos de perfumes, que durante longos annos se guardam, +vasios, nos armarios fechados. Eram brancas todas as rosas e as petalas +enrugadas, como pelles finas de velhas, que viveram nos claustros, entre +cosmeticos. + +Quando a princeza deu pela mudança da luz e da paisagem lembrou-se da +lenda pavorosa que afastava as gentes da floresta e do Caminho das Rosas. + +--Onde estão as linguas avidas do fogo? perguntava-se. Onde os gelos que +prendem e matam? Onde os dragões? + +A paisagem era toda serena e d'um riso triste. Dir-se-iam anemicas as +flores palidas, as anemonas de seda velha, de cera transparente, que por +toda a parte deixavam cair, de cançadas, as petalas finas. E nos +caminhos a areia preta era crusada pelos veios das hervas +rasteiras, coberta pelos galhos dos arbustos, aqui sacudiam-se rosas, +alem os geranios frescos. Pelos troncos direitos das arvores a hera +enroscava-se, a subir. Nas curvas dos tanques, dormiam os nenuphares. +Nos marmores dos poços as trepadeiras cobriam os lavores. Havia um +silencio leve, por onde perpassava o espirito d'um canto, como um aroma +que a brisa traz de longe. + +Os templos tinham as portas abertas. A princeza para elles entrou, a +medo, a espreitar, afastando os loureiros e os mirtos, que quasi +fechavam a entrada. + +Ninguem. Apenas os deuses de marmore, calmos, esperavam as oferendas. +Mas as aras dos sacrificios tinham humidade da lavagem recente. As +cinzas eram quentes; no templo d'uma deusa havia grinaldas de rosas e +pennas de pombas brancas soltas pelo chão. + +Alguem ali vivia, pensava a princeza. Mas quem? Genio malfazejo, que a +mataria, ou fada carinhosa? Seria ali que nas noites claras virião +passear as côrtes sumptuosas que moram nos calices das magnolias? + +Habituada ao silencio sombrio da côrte não a inquietava aquelle silencio +leve. E continuava a explorar a encantada floresta, onde parecia +agitar-se um simulacro de vida. + +Como um coração que vive da saudade dos tempos remotos, assim ali +parecia existir a repercursão d'uma vida antiga. A cada passo a princeza +encontrava signaes de sandalias, flores cortadas, uma fita, indicios de +vida. Mas d'onde partiam? Quem os deixava? + +Viveria ali, n'aquelle paiz de luz anemica, uma côrte de feiticeiras +tragicas, que esperam, para sair das cavernas, as badaladas lugubres da +meia-noite? Mas não. As feiticeiras escolhem as montanhas altas e +escarpadas onde chegue o canto soturno do mar revolto, sem arvores que +impeçam o vôo incendiario das blasphemias e das imprecações para o ceu +sem lua e sem estrellas. + +Ia caminhando a princeza. Via ribeiros claros que escorregavam sobre +seixos brancos; lagôas azues, fachadas de templos, quincuncios bordados +por buxos altos. E as ruas seguiam entre filas d'altas arvores formando +tunel, até serem cortadas por novas ruas, com arvores ou flores. + +Cançou-se a pequena princeza. Um vago terror a invadiu. Quiz regressar +ao palacio, mas não podia. As ruas d'arvores, os templos, os ribeiros, +as estatuas, sucediam-se. Parecia-lhe estar n'um complicado labirintho. +Como conseguir o magico fio? + +Uma noite, que parecia artificial, espalhara-se pelo ceu e envolvia as +coisas. Á tonalidade doirada, succedia uma tonalidade branca, como +se tudo fosse feito de prata. A princeza sentou-se n'um banco, a chorar. + +Ouviu de longe como um passar de brisa leve por harpas suspensas em +arvores. Escutou. Era um canto que um côro fazia subir, ligeiro como um +fumo. Mais se approximava. As vozes eram cançadas, mas limpidas. +Cantavam a vida e as festas, o rir das flôres, a alegria das arvores na +primavera. + +Cada vez se approximavam mais. Dirigiam-se, certamente, para o sitio +onde ficára a princeza, um jardim junto d'um templo de marmore verde. + +Já via as canephoras, com açafates de flores, seguidas pelas escravas +com tamboretes; depois a numerosa theoria de mulheres, com archotes, +que, ao queimar-se, illuminavam e perfumavam. Não havia homens. +Certamente que vinham para a festa atheniense das Thesmophorias. + +Eram as habitantes da floresta. Caminhavam lentamente, as cunharicas +fluctuantes sobre as tunicas amarellas. As hidrophoras traziam as urnas +na cabeça. N'um gesto gracioso, seguravam-as com uma das mãos; os braços +nus eram tão brancos como os marmores transparentes das urnas. + +Quando viram a princeza, medrosa, a esconder-se entre as arvores, a +procissão parou, as vozes calaram-se, a meio do canto. + +Em voz baixa concertavam entre si a resolução a tomar. A princeza ouvia +apenas um zumbido confuso, como os das abelhas, quando nos dias quentes +se cruzam pelos jardins floridos. Colada a um tronco, palida como um +ex-voto de cera, viu com pavor approximar-se d'ella uma das habitantes +da floresta. Era porém, tamanha a sua beleza e a sua gracilidade, que o +medo tombou do espirito da princeza. Pensava-se ver uma haste florida a +andar. Vagarosa, os seus gestos curvos e lentos pareciam fazer nascer no +ar quieto uma harmonia... + +--Perdi-me aqui! Perdi-me aqui! + +--D'onde vens? + +--Do palacio. Sou a princeza. As minhas aias não se atreveram. Eu corri +para apanhar uma borboleta. A borboleta fugiu. Fiquei sem saber onde +estava, que caminho tomar. Isto é tão lindo! Mas faz tanto medo não se +saber onde se está! + +--E queres voltar? Deixaste teu pae e tua mãe... + +--Minha mãe morreu. Meu pae não o vejo... quasi nunca. É um velho triste +e duro, que não fala... Tenho medo da camareira-mór. E as aias estão a +chorar ás escondidas d'ella como sempre... A vida é triste, triste, no +palacio... + +--Preferes ficar comnosco? + +A boca fina pareceu sorrir-se. A princeza olhava para as mais que se +tinham acercado. Eram todas lindas e moças, mas sem frescura, como +as rosas que abrem pelas chuvas e ventanias. + +--Se me quiserem. Se me quiserem. + +--Pois ficarás! Ficarás! Vem comnosco! + +Poz-se em marcha o cortejo, novamente. Entraram no templo com a princeza. + + +E a princeza ali ficou, porque nos rostos se conservava a mocidade e não +havia a dôr, nem o constrangimento. Tudo era claro e sereno. E não +voltou mais ao palacio, onde as aias choravam e a camareira-mór, seca e +hirta, tinha uma voz esganiçada e autoritaria. + + * * * * * + + + + +NOITE DE FESTA + + A ARMANDO NAVARRO. + + +NOITE DE FESTA + + +Era o jantar de despedida de Dowanov, que partia para o Mexico, +promovido a ministro. Jantar de secretarios de legação, que formam uma +confraria, para, na critica dos chefes, tirar uma consolação do exilio, +correra um pouco triste. + +A minha intimidade com o novo plenipotenciario, que viera da communidade +de vistas sobre a numismatica bisantina, abrira em meu favor uma excepção. + +No pequeno gabinete do Avenida Palace, a conversa versára sobre +diplomatas e postos. Dowanov, como todo o bom russo, suspirava por +Paris, onde estivera adido. Contava as suas tribulações junto do +embaixador solemne e desdenhoso, que, sabendo-o apaixonado por corridas, +nos dias de steeples e handicaps sensacionaes, sob pretexto de serviço o +mandava chamar com urgencia, mas realmente para o impedir de divertir-se +em Auteil e Longchamps. Apesar de tudo, porem, sorriam-se-lhe os +olhos ao lembrar-se das pequenas colhidas _un peu partout_. + +A minha presença não permitia as confidencias sobre a monotonia da +pequena cidade da provincia que é Lisboa. Havia um constrangimento. Por +isso falaram de companheiros, indicaram silhuetas vistas um momento, +logo esquecidas. + +--O que será feito d'esse roliço Kordst, que estava, no meu tempo, +encarregado de negocios em Bucharest? Nunca mais soube d'elle? Devia ter +morrido da falta d'um bilhete. Lembro-me que ia provocando uma questão +internacional, porque o ministro d'Austria, ao apresentar-lhe o adido +russo, disse primeiro o nome de Kordst. Moravamos no mesmo hotel. Foi +procurar-me apoplético: + +--O que terá contra mim o ministro d'Austria? Não lhe fiz coisa +alguma!... Não me lembro. Ainda hontem, na recepção, lhe dei o meu logar +no sofá!... + +--Kordst? Com o amor que tinha aos bilhetes de visita, fez-se litografo, +provavelmente... Sabem de Camusot, o adido militar francez, que tinha +uma mulher que andava aos saltos, como uma pêga? Não conheceram? Você, +Poliano? Não me disse que tinha estado com elle em Vienna?... + +--Não. Encontrei-o em Roma. A mulher realisava o typo perfeito da +_gaffeuse_... Em que liquidou? + +--_Croupier_ de batota, em Spa... Tinha ar... Um dia, no Jockey, +perceberam que corrigia a sorte, no baccará. + +--E Blumen, o chanceller da embaixada allemã, que conheci, de relance, +em Madrid? + +--Em missão junto de Menelick. Emborracha-se com o Negus, +formidavelmente, com cerveja de Munich. Tem a simpatia dos ras; ouvi que +iam crear em sua honra a ordem do Bock, na Abyssinia... + +--Era o intimo do conde de Strifforth... Que é feito de Strifforth? +Herdou já o _peerage_? Diziam-o muito considerado no Foreign Office. +Pensou-se n'elle para sub-secretario de Estado... + +--Nunca lhes contei a morte de Strifforth? + +--Morreu? + +--Vi-o suicidar-se. Acompanhei-o nos ultimos dias. Foi em Sevilha. +Tinha-o conhecido em Londres, no seu ultimo _congé_; quando fui +promovido para Madrid démo-nos muito ali. Morreu d'uma maneira singular, +n'uma festa da marqueza de Carrillos, na sua quinta de Eritaña... A +melhor festa de Hespanha... A mais elegante e romanesca; dava a sensação +da embriaguez d'uma boneca de Saxe, n'um Walpurgis. Havia feiticeiras +novas, ou melhor, ninfas. A quinta é deliciosa, um pouco acima de +Sevilha; o rio corta-a e para passar d'um lado a outro ha pequenas +gondolas com camaras para duas pessoas sómente. A Carrillos, um pouco +artista, um quasi nada doida, levou uma ranchada de gente para o seu +palacio, do tempo de Pedro, o Cru, para uma festa de mascaras pela +Piñata. Era tudo gente nova, salvo uma ou outra mãe que ia fazer a +decencia. Mas achavam-se deslocadas no meio da nossa alegria e, +intelligentemente, retiravam-se para sensacionaes partidas de bridge. Só +nos viamos ás refeições. Uma _party_ deliciosa, que acabou n'uma +tragedia, um pouco de _guignol dernier bateau_, entre musicas leves... É +melhor contar tudo, ab ovo... + +--Sim... Desde o congresso de Vienna. O pae foi secretario d'um dos +plenipotenciarios inglezes... + +--Ainda de peito? + +--Não. Strifforth era filho de velho... Isso explica muito o seu +temperamento. + +--Vá, psicologo! + +--Este Mumm não me diz nada! Traga Montebello! É um pouco da Carreira. + +--Por afinidade? + +--Então o antigo embaixador? + +--_En disgrace?_ + +--Sim. Ao quarto filho da czarina elle criticou:--«Ce n'est pas une +femme--c'est une pondeuse!» + +--Conta a historia tragica! + +--A marqueza de Carrillos levára a sua filha, aquella inquieta Mathilde, +noiva por sport, tecendo e desarranjando os casamentos, como Penelope a +famosa teia. Para ella não havia flirts: tudo noivados. É possivel que, +de a experimentar tanto, a grinalda nupcial estivesse já enxovalhada. +Conheceu a Carrillos? Você? Você? Ninguem? Fina como uma _flûte_ de +cristal cheia de champagne _mousseux_, ondulosa, sempre pronta para o +ataque e para a resposta, fazia a chuva e o bom tempo na sociedade, e +tinha um dom especial para pôr alcunhas que logo faziam o giro de Madrid +e crismavam as creaturas. N'um dos seus numerosos noivados a mãe, +oppondo-se, disse-lhe:--«Que sogra vaes ter!» A Mathilde, sem +pestanejar:--«E elle, mamã? E elle?» A marqueza ria-se perdidamente com +os ditos da filha, regosijando-se:--És digna de mim! + +--E Strifforth? + +--Lá vae. Ora fez-se a festa. O costume Luiz XV era de rigor. Por uma +noite estrellada, espalhámo-nos pelo jardim. Pelas janellas do palacio +corriam grinaldas de fogo das _bandes souples_ que as ligavam. Eram +tulipas de todos os córtes que d'entre a folhagem se uniam, pondo um +traço florido entre o incendio que vinha das multiplas janellas abertas +sobre o parque e sobre o caes. Pelos troncos das arvores +envolviam-se em espiras as serpentes luminosas, marchetadas, e abriam-se +em mil luzes nas copas, davam, ao longe, o aspecto de uma joalheria que +ardesse na noite quieta e calada, essas noites amorosas da Andaluzia em +que tudo parece estacar n'um beijo supremo... Pela margem do rio a mesma +florescencia, mergulhando na agua, dando ao rio a aparencia fantastica +de um ceu que se afundasse. + +De repente musicas invisiveis tocaram as melodias leves, _gavottes_ +suspiradas, em que ha um pouco de amor, um pouco de dança, como num +flirt. E do escuro d'uma angra moveram-se gondolas ligeiras, em que +ardiam e estremeciam largos balões venezianos. + +Os remadores, ensaiados, iam quasi ao compasso ligeiro das _gavottes_. +Tinhamos a impressão d'uma dança de gondolas, um sonho estranho de +veneziano, pelas horas misteriosas em que as coisas inanimadas tomam +vida. Do levantar dos remos das aguas, saltavam cintillações de +pedrarias. E a linha tortuosa de balões augmentava o incendio, na +vibração de tantas reluzentes joias a agitarem-se na agua do rio... +Fomo-nos metendo nas gondolas. Os _novios_ acolheram-se prestes ás +gondolas mais pequenas. Uma maior levou muitos de nós, descazalados, a +Mathilde Carrillos, Strifforth, a condessa de Valdelar... + +--Conheci-a em Roma... + +--O marido foi gentil-homem do Papa. Preciso falar d'ella. Foi a +principal figura d'este drama. Typo de hespanhola? Não. Mais italiana do +que hespanhola, com uns largos olhos pretos, cheios de doçura. O seu +gesto era harmonioso e curvo, sem uma aresta, sem um angulo, uns +nascendo dos outros sem solução, como as frases d'uma melodia. Tinha-se, +ao vêl-a, a sensação de que se ouvia uma musica dolente, vagarosa. E os +proprios olhos moviam-se lentamente, como pesados de tanta luz e tanta +belleza... + +Enigmatica, guardando n'um jardim encantado a sua alma, ninguem prudente +ousára definil-a... Poetica talvez, ou simplesmente aborrecida, fugia em +S. Sebastian do Casino e do Hotel du Palais e ia, á tarde, só, vêr as +crispações do poente nas vagas que eriçam de espuma o mar azul. + +Sentava-se n'um dos rochedos, ás vezes desenhando, outras a cabeça a +descançar na mão, e ali se quedava a tarde inteira, alma talvez de +sereia a chorar pelo mar, a querer aprehender no perfume da brisa, +alguma palpitação do oceano. + +Nenhum de nós se atreveu nunca a interrompel-a, apezar da attracção que +todos sentiamos pela sua figura gracil como uma amphora, da sua +_toilette_, de toda a elegancia pessoal e do misterio da alma +ávidamente guardada... Strifforth apaixonou-se por ella. E, solitario, +deixando as excursões amiudadas que fazia ao Casino de Biarritz, andava +de barco para vêr, isolada no rochedo, sem uma tristesa na face, a +condessa de Valdelar, certamente a mais formosa, a mais perturbante das +senhoras de Madrid. + +O conde de Valdelar ficava no hotel, gottoso, na leitura de livros +licenciosos, que salpicava de casquinadas nervosas, irritantes, +indifferente á belleza e á alma da mulher. Strifforth conhecia-a e +procurava todos os raros momentos em que ella apparecia, de manhã na +praia, á tarde no boulevard e, uma ou outra vez, pelas grandes festas, +no Casino, que atravessava n'um andar leve, dando-nos a sensação que +tinha azas que a sustentavam. Nada lhe permitira ainda uma declaração. A +condessa fallava-lhe, como a todos nós, em coisas indifferentes, em +festas, touradas, partidas de tennis, impressões rapidas de viagem e +deixava-o sem pressa, mas sem pezar, absoluctamente correcta. Elle +fallava-lhe do mar, mas a condessa tinha uma phrase banal, mudava +d'assunto, como se tivesse pudor d'esse sentimento, que parecia absorver +toda a sua vida. Foi n'esse tempo que Strifforth começou a picar-se com +morphina difficilmente adquirida, a beber perfumes, com horror aos +cognacs, e a arrastar uma vida d'automato, sempre com esperança de +a vêr, de lhe fallar. E, em a encontrando, pousava sobre ella os olhos +tristes, largas horas, inconvenientemente. + +Em Madrid, todo o inverno foi assim, com menos occasiões de a vêr, +porque a condessa frequentava pouco o Retiro e a Castellana e raramente +aparecia na sociedade, demorando-se o bastante para não parecer +aborrecida, mas saindo logo, com um tacto perfeito. Á vida escondida da +condessa correspondia uma outra vida secreta de Strifforth, ebrio, em +desesperos que o alcool longe de adormecer intensificava, fugindo a tudo +o que fôra d'antes o seu enlevo, até do Museu do Prado, onde ia todas as +manhãs--á minha missa, dizia elle--para vêr os Velasquez e os Grecos... +Mas, quando tinha que ir a alguma parte com esperança de encontrar a +condessa, o meu amigo não bebia para poder gozar inteiramente a presença +e a voz d'aquella que amava. Depois a embriaguez exagerava a impressão, +dava-lhe, quasi real, a presença da Valdelar. Meteu-se no ether, alem da +morphina e dos frascos de perfume--Parece que como flores, +explicou-me--arruinando por completo a saude, tornando mais agudas as +crises de desesperos, mais asperas, pelo enigma que para todos nós era +essa mulher esplendidamente artificial, que trazia uma mascara na sua +face calada. Coquette? Decerto, mas egualmente para todos, porque +os seus movimentos eram regrados por uma musica ineffavel. Mas talvez +coquette só para si, porque nem um só olhar ou palavra auctorisou +ninguem a dizer-lhe um galanteio atrevido. + +Fallou-se na festa da Carrillos, organisou-se a lista, e Strifforth, que +não tinha relações com a marqueza, logo que soube que a Valdeler era da +partida, solicitou, pondo de parte sem hesitação o seu orgulho +exagerado, uma apresentação e um convite, logo alcançados, não só por +ser muito _choyé_, mas tambem porque transpirára a paixão e todos se +interessavam pelo pobre rapaz, havendo até censuras á Valdelar, que de +nada era culpada. + +Fomos n'um expresso vagaroso, atravessando desoladas paisagens, até +Sevilha. Não conhecem Sevilha? É a cidade mais feminina e voluptuosa que +conheço. + +Á tarde, vista da Giralda, ella se nos oferece, nua, ondulosa, apenas +com a cinta azul do seu rio e as joias das cupulas e das janellas que +scintillam ao poente. Parece que estaca o movimento, e que, na alcova +enorme que é a planicie, Sevilha se estende, com flôres no cabello e uma +volupia extrema em todo o seu ser. Anda no ar um amavio. Tudo nos falla +d'amor sensual e quente, até os olhos largos das sevilhanas, que parecem +recortados n'esses enormes amôres perfeitos de velludo. + +Foi ali que tivemos a festa de que lhes fallei. Imaginem que na margem +esquerda, a dois kilometros da quinta da Carrillos, ha uma _venta_, cuja +varanda se debruça entre trepadeiras, sobre o rio. A marqueza tomára-a +sem custo por sua conta e alli varias musicas nos tocaram, não +_gavottes_ leves, mas doridas malagueñas em que se arrasta um langor, +como um beijo em que toda a alma succumbe. Um jacto de luz inundou a +gondola. A condessa levava as mãos dentro de agua, curvada ella propria +para o rio. Strifforth ia sentado sobre a borda. Deixou-se escoar +vagarosamente. + +--Caiu um! + +--Strifforth! + +Logo os braços se estenderam, um dos gondoleiros deitou-se á agua e +poude tirar Strifforth, todo ensopado no seu fato de seda.--Borracho! +Borracho! _Mais vous êtez ivre! Dites_!--Strifforth, não bebera uma +gotta. Eu ficára proximo d'elle. Os musicos não tinham dado por nada. A +musica continuava dolorosa e amorosa. A gondola seguiu, deixando o traço +de luz que brilhava e se quebrava d'encontro ás leves vagas. Houve +risos. Rodearam-o com grinaldas. A Valdelar teve, como os outros um +riso.--Escorreguei!... explicou apenas o conde. Mais adiante, porem, já +a musica se ouvia em surdina, Strifforth deixou-se cair outra vez.--É +demais! Está bebedo! gritaram. As cabeças empoadas inclinaram-se +novamente para a agua. A Valdelar, que tornára a mergulhar no rio os +braços nus em que escorriam as rendas molhadas, ao sentir a queda, +agarrou-o por um braço, indiferente. Strifforth, porem, deu um vigoroso +impulso e desprendeu-se d'ella... + +Houve um panico. Foram buscar archotes. Não calculam o macabro das +nossas figuras de _petits-abbés_ e gentishomens procurando, nos barcos, +que de tanta luz pareciam incendiados, um homem que se queria suicidar. +Os gritos cruzavam. Das pequenas gondolas surgiam vultos negros +iluminados á maneira d'um Rembrandt que tivesse adivinhado Turner e +Whistler, em chapadas de luz multicôr. Na nossa gondola um borborinho +correra. Alguem desmaiára, até. As cabeças empoadas agitavam-se. Ao +longe, as malagueñas continuavam num suspiro lascivo e preguiçoso. A +Valdelar voltára á sua primitiva posição: brincava com a agua, que lhe +passava entre os dedos abertos, pondo-lhe aneis que fugiam, logo +substituidos. Não tornamos a saber de Strifforth. O cadaver nunca +apareceu. + + * * * * * + + + + +CLARA + + A JULIO DE SOUSA. + + +CLARA + + +Friorenta, encolhida no fundo do coupé, tudo era indeciso na figurinha +que passou rapidamente, na tarde a escurecer. + +Nascia da penumbra, sem presisão nos contornos, como certos retratos de +Columbano e de Henner. E entre o chapeu preto e a face branca, o cabello +loiro punha uma esmaecida aureola como uma tenue poeira d'ambar. A boa, +de _renard bleu_, ainda aumentava o indeciso, o fluctuante d'essa +mulher; os olhos claros não brilhavam; o vermelho da bocca desmaiava... +Figurinha de cera e de seda, que passava, olhando para a rua sem +attentar talvez em ninguem, levando o nosso desejo de decifrar enigmas, +indefferente, graciosa, impressionou-me... Ao amigo que me acompanhava +recorri para saber d'ella. Quando me voltei para perguntar, vi que +Roberto se pusera pallido; parecia que á bocca se lhe afivelára uma +boqueira de pedra, mascara trágica a emudecer. + +Seguiu com os olhos a carruagem que trotava pela Avenida até se perder +entre as arvores em Valle de Pereiro. + +--Quem é? gaguejou. Alguma aventureira cosmopolita que veiu _faire le +Portugal_. Um pastel de Antonio de la Gandara, maquilhada como uma +infanta de Velasquez, mais artificial que uma boneca de Nuremberg, sem +vicio, talvez, amante enternecida d'algum _croupier_ de _Cercle_ +ordinario... Sei lá!... encolheu, impaciente, os hombros, a concluir. + +Houve um silencio. Raras carruagens passavam. Estava triste a Avenida. +Descemos. Abriam, simultaneamente, as grandes flôres geladas e luminosas +das lampadas electricas. Rapidos, fulgiam os americanos. Outra vez a +mulher passou, mais indeciso o vulto, apenas destincto o palôr da face +branca no _coupé_ escuro. + +--Porque teria vindo cá, essa mulher? perguntou Roberto, colerico. + +--Conhecel-a? + +--Se a conheço?! Tenho querido arrancal-a de mim, como se arranca d'um +boi uma farpa--violentamente. Tenho querido fugir de mim, para a +esquecer! E quando estou quasi a conseguil-o, quando a tortura da sua +lembrança é em mim apenas uma cicatriz, eil-a que apparece a reavivar a +chaga antiga, a tornal-a mais dolorosa! Clara veiu aqui só por minha +causa, ouves? Para fazer-me soffrer! + +Agarrava-se-me ao braço, a apertal-o violentamente. Na bocca +accentuava-se-lhe, aspero, o vinco da amargura. + +--Foi esta mulher que me fez fugir de tudo, perder o amor a tudo, +desterrar-me para esta passividade, eu que amava a vida dolorosamente, +gosando com tudo, intensamente! + +«Conhecia-a em Hespanha! N'um inverno humido deixei Lisboa e acolhi-me a +Sevilha. Os dias gloriosos de sol que lá gosei pelas margens do +Guadalquivir azul! Andava ebrio de tanta luz que enchia d'oiro e de +triumpho a cidade alegre. Saia para os campos, logo de manhã, a rir-me +com os trigaes e com as flôres. Ia ao parque vêr o sol fulgir nas caudas +abertas dos pavões orgulhosos; descia ao caes para vêr brilhar na agua +incendiada os cobres polidos dos navios; enchiam-me de prazer a +barulheira dos carregadores, o chiar aspero dos guindastes, o estridulo +das sereias, nos vapores que partiam... Tudo era alegria na cidade +maravilhosa mesmo á noite, as lampadas incendiavam a _Sierpee_ +brilhante, onde se apertava uma multidão palradora. Das janellas dos +casinos, das portas dos cafés, dos mostradores das lojas, vinham +chapadas de luz. Misturava-me a toda aquella vida insolente, ria com +todos os risos, todos os labios frescos me chamavam, rodeavam-me todas +as cabelleiras fartas, cheias de flôres. O donaire das andaluzas d'olhar +de volupia fazia-me achar mais bella a Vida. Era como um poema a +enaltecer a obra de Deus. Por todos amar, não amava nenhuma. + +Comprei o sineiro da Cathedral. Do alto da Giralda, uma noite, possui a +cidade, senti que todo o tumulto confuso que até mim chegava, era o seu +sangue que pulsava por mim nas suas arterias; aquella resplandecencia, +brilho de joias com que cobria a nudez. Os tranvias iluminados, cortando +em mil direcções a cidade, eram pedrarias, aqui se apagando uma, para +alem se accender outra, conforme as ia eu tocando com os meus olhos +amorosos. Ella, em baixo, abria os seus braços, entregava todo o seu +corpo, a morena Sevilha, offegante e lasciva! + +«Era feliz, poderosamente feliz. Sentia, em cada palpitação cardiaca, o +sangue remoçado que se espraiava pelo corpo. Foi então que conheci +Clara. Ella passava pela _Sierpes_, junto ao _Credit_, enygmatica, como +a viste. A elegancia do seu porte, ultima florescencia da moda franceza, +quasi immaterial, contrastava com a forte humanidade das sevilhanas +cheias de vida, de sangue e de desejos. Todos se voltaram para ella e +lhe abriram caminho, como se passasse um andor. Fui logo preso pelo +encanto decadente e artificial, esqueci a Vida e a gloria de viver ao +sol nos campos fecundos. Regressei á hyper-civilisação; segui-a e alegre +entrei, atraz d'ella, para o seu e meu hotel. + +«Vergonhosamente a segui como um cão fiel. Vergonhosamente mendiguei um +olhar dos seus olhos parados; e contente fiquei ao vel-a um dia no salão +da leitura, por que pude dirigir-lhe a palavra e pedir-lhe licença para +fumar. Apesar da resposta secca, insisti e entabolámos conhecimento. + +«Doces foram para mim os dias, em que visitámos Sevilha. A casa de +Pilatos e as suas penumbras em que esmaecem estuques e o patio claro de +marmores harmoniosos ouviram as palavras aladas que lhe disse; diante +das Assumpções do Murillo e dos frades de Zurbaran, no museu deserto, +contei-lhe o poema do meu desejo; na _Caridad_, a mostrar-lhe a estatua +de Herrera, ouviu a perfumada e embaladora cantilena. Na Giralda, a vêr +Sevilha doirada, deitada na planicie que ondulava, até perder-se no +horisonte circular, offereci-lhe toda a minha alma e toda a minha vida. +Houve momentos em que seus braços foram a levantar-se para apertar o meu +pescoço; julguei sentir o seu peito leve arfar de commoção: muitas vezes +a boca se apertou para a florescencia dos beijos e seus olhos verdes se +encheram de luz; mas rapido, tudo se desmanchava, e um sorriso tremia na +boca desmaiada, a mostrar a linha branca dos dentes. + +O flirt desabrochava. Uma tarde, nos jardins do Alcaçar, á porta dos +banhos de Maria Padilla, passou por mim o corpo delgado, agil, pela +cara roçou o cabello que tinha um perfume penetrante; fallou-me do seu +corpo e, sentados no salão dos Embaixadores, estendia a perna, para +mostrar o tornosello fino e a meia _ajourée_, que deixou vêr a pele +branquissima. Todas as noites eu pensava, que no dia seguinte beijaria a +boca perfumada. E todas as manhãs via cair a minha esperança, como as +folhas murchas que o vento sacode dos ramos seccos. + +«Certamente que as minhas palavras deviam ser perturbantes, porque +sahiam d'um coração perturbado. E, pesadas de tanto amor, cahiam da boca +vagarosamente. Ás vezes os cilios de oiro abatiam-se sobre os olhos, +como n'um espasmo. Mas logo o sorriso abria-lhe a pequenina boca! + +«Longos dias, longas semanas, durou o encantado oaristo. Já não cuidava +da gloria da natureza; das apoteóses do sol sobre as aguas azues do rio. +Só pensava n'ella, só vivia d'ella. + +«Um dia, porem, eu soube! Alguem, com palavras que julgou caridosas, +veiu pôr no meu coração as sete espadas! A creaturinha delicada e +deliciosa, princeza de balada d'hoje, urna de perfume, a quem me +entregava como um collegial, era uma aventureira das que frequentam a +_Riviera_ no inverno, Aix no verão, Paris na primavera, e que a Sevilha +viera atraz d'um clown, que no circo fazia rebentar estrépitos de +gargalhadas... Ao seu morbido encanto me prendera, e atraz d'ella me fui +a soluçar, flor de lameiro em que puz todo o perfume suave... Fôra nas +mãos d'ella um saxe fragil como que se brinca! + +«Ah, meu amigo! O desespero e a raiva puzeram mãos assassinas a +estrangular-me! N'um impeto, como uma aura que se nos levanta do peito e +nos atira para o ataque epileptico, decidi-me. Levei-a n'um trem para o +campo, para alem da Cartuja, com um cocheiro de confiança. E alli, +desapiedadamente, bati-lhe, arranquei-lhe as sedas e as rendas--parecia, +nua entre os trigaes verdes, uma magnolia enorme!--e o seu corpo +cobriu-se todo de sangue. Clara gemeu, implorando; as lagrimas +empastavam a maquilhagem; via-a sordida, enrolando-se para escapar ás +chicotadas, e fugi, ebrio, doido, a correr, diante do cocheiro espantado +que me metteu no trem e me levou a Sevilha. + +--Senorito, la navaja era mejor, aconselhou-me. + +«Parti. Nunca mais soube d'ella. Trouxe-a dentro de mim como um espinho. +A dôr que lhe causei augmentou a minha pena. De ter visto o corpo magro +e branco, ficou-me a ancia de o beijar. Andei de noite, pelas ruas, a +correr sem forças para fugir de mim e d'ella, porque a figura surgia +deante dos meus olhos, bella de toda a perversidade e de toda a +lascivia, como uma invencivel tentação, a que o maior santo succumbe. + +«Ás vezes conseguia distrahir-me; de repente ella surgia, sentava-se na +minha frente, mostrava os vergões das chicotadas, todo o corpo impudico +perfumava e brilhava, e a boca sorria a escarnecer de mim! + +«Foi algum philtro que me deu. + +«Ia a esquecel-a e eil-a que novamente me apparece, a prender-me, a +levar-me, outra vez para a allucinação, a atiçar o incendio que me +queimava! + +«Talvez queira vingar-se! + + +Não. Não queria vingar-se. Clara veiu a Lisbôa, soube-o mais tarde, +atraz d'um comprimario de S. Carlos, seu _amant de coeur_. + + * * * * * + + + + +IDILIO TRISTE + + A EDUARDO VALERIO VILLAÇA. + + +IDILIO TRISTE + + +No jardim, a tarde de oiro era perfumada pelas rosas e pelos cravos. Nos +canteiros, os cravos levantavam-se impertinentes, risonhos, em delgadas +hastes. E, por toda a parte, entremeiando-se com os buxos, enroscando-se +a uma macieira em flôr, serpenteando pelos muros, subindo pelas sebes, +uma opulenta floração de rosas de toda a côr, rosas de oiro pallido, +rosas roseas, rosas vermelhas a estremecer, como labios de que vão cair +os beijos, rosas escuras, enormes, sensuaes e dolorosas, umas ainda em +botão, misteriosas como as adolescentes, outras já totalmente abertas, +sem enigma, como as amantes antigas--todas ellas misturavam o seu +perfume no jardim quieto, em que as pombas arrulhavam, beijavam-se e +depois partiam em vôos curvos, as azas brancas a brilhar ao sol. + +Os dois amantes iam calados, elle a olhal-a intensamente, como a querer +apreendel-a, como se os olhos fossem bocas e podessem beijar, +braços e conseguissem abraçar--ella um pouco aborrecida, a desfazer +entre os dedos longos uma orchidea azul listrada de vergões esverdinhados. + +--Pensei em ti sempre, dizia elle. No Prado, diante dos tapetes de Goya, +disse o teu louvor. As raparigas esbeltas, que vão á fonte, as bilhas +esguias á cabeça, como as princezas de Homero, não tinham a tua +elegancia... Ás infantas de Velazquez, artificiaes, cadaveres de +bonecas, em que apenas os olhos attonitos teem vida, faltava a tua +belleza. As santas hirtas de Memling não tinham na bôca a primavera que +ruboresce os teus labios... Só na curva do braço de Danae, de Ticiano, +pude ver uma attitude como tens... Por todo o museu me perseguia a tua +imagem, como um canon, para avaliar as obras. As gordurosas flamengas de +Rubens, as cigarreiras sensuaes e extaticas de Murillo, as energicas +mulheres de salteadores em que Ribera se compraz, eram muito diferentes +de ti, d'ellas fugia o meu olhar. Em Raphael havia alguma coisa da tua +doçura risonha, mas demasiado passiva; em Greco, a tua distincção, mas +severa; apenas Leonardo te saberia pintar, quasi irreal por seres tão +bella, indecifravel, como uma esfinge sem segredos... Como uma esfinge +sem segredos... Que segredos teria a suave mulher do Jocondo? Que +segredos terás, alheia a tudo, passando pela vida, ligeiramente, +como a agua que vae n'um ribeiro, correndo e cantando? Vi-te em toda a +parte. Levei-te sempre commigo! Talvez o Moro te tivesse pintado... + +--Viste bem o museu... + +--Vi, porque te buscava... Um dia, ao aproximar-me da escadaria, vi +fugir, n'um automovel ligeiro, uma mulher, que se parecia comtigo... Era +um carro vermelho... Por toda a parte tive a _hantise_ dos automoveis +vermelhos. No _Retiro_ e na _Castellana_, o meu olhar prescrutava, +revolvia todos os automoveis, todas as carruagens, a ver se te +encontrava. Todas as manhãs, pelo museu, andava á tua espera, embora te +soubesse aqui, indiferente. Como te não encontrava, procurei vêr o teu +retrato, n'algum quadro antigo. E puz, em muitos, o reflexo da tua +belleza, porque n'uma atitude, n'um olhar, havia alguma coisa de ti... + +--O governo hespanhol agradeceu-te a valorisação dos quadros? + +--Ri-te. Ri-te de mim... A tua boca, ao abrir-se n'um riso, é uma flor +de nácar e prata...--A principio, procurei-te... Depois, como a tortura +fosse muita, quiz fugir da tua imagem. Fui para Sevilha onde tudo é Amor +e resplandece. Deixáras de escrever-me... Só sabia que não pensavas em +mim. Ali, tudo é alegre e luminoso. O sol é o sangue da cidade... Doira +a planicie e as palmeiras de S. Fernando. Levanta scintillações do +calado Guadalquivir azul e da cupula inflamada da Torre del Oro. Enche +de vida o jardim do Alcazar, com seus repuxos com enjoalhadas lagrimas. +Tudo é luminoso e perfumado. O amor, ali, não aniquilla, escalda. Entre +os cravos que guarnecem as grades das janellas, as mulheres olham os +seus namorados com um olhar d'assalto. Ha uma voluptuosidade suspensa no +ar. Tudo vive, tudo ama, parece que tudo é feliz. Ha uma embriaguez de +côr. E nas varetas dos leques saltitam os beijos que caem das bocas. A +Sierpes, á noite, palpita com todo o anceio de tumultuosa cidade... Nos +pateos, sob as pequenas palmeiras e musas, os flirts sussurram palavras +de entontecer... Como tudo brilha! Só o meu coração se apagava e +murchava com saudades... Nos banhos silenciosos de Maria Padilla, pensei +no afortunado amor de favorita, nos lentos passeios pelo jardim, nas +casas de fresca sombra, onde luzem os estuques policromos e os +azulejos... E não deixei de sentir-te ao meu lado... + +--Acredita que não foi por minha culpa... + +--Fugias-me. Deixavas-me a tua imagem, para torturar-me. Mandavas-m'a, a +envenenar-me de longe... A belladona é doce e envenena... Muito mel +embriaga... Tão real a sentia, que, á noite, olhos fechados, queria +abraçar-te, e tinha a desillusão de Pan, quando perseguiu a ninfa +Seringe... Como quem corre atraz do sol e se encontra encerrado +n'um bêco. Nunca mais me escreveste! + +Deixaste cair o teu amor do peito, como as flores que levaste ao baile... + +--Depois d'uma noite de baile, as flores já não perfumam. O amor precisa +do viço. É necessario podar o coração... + +--Bem sei. Não te recrimino. Lamento-me... + +--Lamartiniano!... Julgava-te mais forte e mais moderno. Parecia-me que +a cultura intensiva do Eu tornava impossivel um amor sem esperanças... +Filosofos!... + +--Amar-te, não é para mim uma função: é a propria essencia do meu ser. +Julgo ás vezes que não existes, material e tangivel, que existes mais +real: nasceste e vives no meu cerebro, tanto se casa a tua figura ao meu +sonho de belleza. Pintor, se idealisasse uma mulher, o meu quadro +pareceria o teu retrato, embora nunca te tivesse visto. Poeta, o teu +misterio seduz-me, alma que se guarda, avidamente, sem que ninguem a +adivinhe. Todos passam por ti, sem a possuir, como as quilhas dos navios +que cortam as ondas não maculam a eterna virgindade do mar... Foi ao ver +o mar, que mais pensei em ti. Pelo Mediterraneo socegado, estudei a +onda, sem conseguir conhecel-a. As ondas são graciosas, as suas curvas +teem ternos desenvolvimentos: dir-se-iam mulheres que brincam na relva +fresca. E desfazem-se em flocos de espuma, quebram-se umas contra +as outras com fragilidade de cristaes, são leves como leques, e no +emtanto matam, levantam-se em vagalhões que sacodem os couraçados, +despedaçam os navios. Carinhosas, riem e fogem, como tu; a onda de +esmeralda que saltita, enfeitada de rendas, subitamente é uma gigantesca +aza d'abutre que se curva, para apreender... É um abismo que ri... As +mutações rapidas do mar fizeram-me lembrar o teu amor que desapareceu +sem se saber porquê... + +Nem sequer recrimino. «Não me esqueço», prometeste. E as tuas palavras +que guardei, como guardaria uma estrella, ainda cantam nos meus ouvidos. +E ha tanto que te esqueceste! Vivo do passado. Vive o meu coração do +passado, como as velhinhas, que foram actrizes, e no asilo se lembram +das aclamações quando faziam papeis de rainhas sumptuosas com luzidas +cortes a seguil-as e galãs esbeltos a segredar frases d'amor... + +Mas o passado esgota-se, como as cisternas, quando durante muito tempo +não chove...» + +Ella cortara e desfolhára as margaridas de uma moita viridente. O sol ia +a morrer, n'uma catástrofe... Um rebanho de nuvens encharcava-se em +sangue. N'uma fita delgada, um repuxo subia, dobrava-se e estilhaçava-se +na agua do tanque. + +O amante chorava... + + * * * * * + + + + +PERFIL D'AVENTUREIRO + + A EDUARDO DE MAYA CARDOZO. + + +PERFIL D'AVENTUREIRO + + +Desvairada, a ministra da Esclavonia perseguia sir Arnold Davis, que, de +sala para sala, passava em revista as senhoras em toilettes de baile. +Ia-lhe na piugada, metia-se pelos corredores, apressadamente, para +crusar-se com elle, receber um olhar, fazel-o parar, prendel-o no vão +d'uma janella, onde os seus olhos pareciam tomar d'assalto o rosto +glabro de sir Arnold, mordia a boca fortemente carminada, como para +reter os beijos, que queriam saír. + +As suas mãos magras e longas, as mãos que teem as doadoras e as santas +nos quadros góticos, tremiam ao apertar as de sir Arnold onde opalas +desmaiavam, maléficas e misteriosas. + +Carlota von Hameghen não via o baile, não se rodeava, como de costume, +de politicos e diplomatas, a sondal-os, a irrital-os, _allumeuse_ +internacional á cata de segredos, para vender a todas as chancelarias +que pagassem, generosas e discretas. + +A condessa Carlota von Hameghen, mulher do ministro de Esclavonia, era +quasi fiel ao marido. Apenas grande necessidade, um aperto de dinheiro, +um segredo muito importante, que só se confia nas horas de completo +aniquilamento, depois dos beijos, é que a faziam esquecer o marido, +ainda novo, que trepára na «Carreira» empurrado pela mulher, apesar de +morphimano e um pouco imbecil. Fóra disto, esposa exemplar. Espirito +d'honestidade? Não: impassibilidade; a cirurgia, com uma operação +dolorosa, em Londres, tirára-lhe o vigor da sensação. Vivia para a +ambição, uma vida farta, proporcionada pelos cheques de varias +embaixadas e legações, menos a de Esclavonia que pagava pouco e, por +complicações de finanças internas, a más horas. + +Alguns diplomatas, ao facto do temperamento da condessa, estranhavam +aquelle assalto insistente ao moço inglez, alheio aos segredos das +chancelarias, pouco rico para a condessa, servedoiro de milhões. + +O ministro da Dinamarca, ageitando, como de costume a unica farripa de +cabello que lhe guarnecia o craneo rubro: + +--Ha de ser uma desforra! Sir Arnold vingar-nos-ha... + +--Não ha de levar a melhor... + +--Aposto! Não sabem a força de sir Arnold. Conheço-o muito bem. + +--A Hameghen é uma fortaleza inexpugnavel. + +--Praça sitiada, praça tomada... + +--Mas quem sitía é a condessa!... + +--Estão enganados. Com o ar de quem se defende, sir Arnold ataca +vigorosamente. Conheço-lhe a tática. É toda de sapa. Minas e conminas. O +campo parece tranquilo e mil picaretes abrem galerias. É de primeira +força! Praça a saque, d'aqui a duas semanas, o maximo. + +--Não seja como Port-Arthur que todos os dias é tomado... + +--Verão. Vae custar á condessa, coisa d'um milhão. Sir Arnold lança +pesadas contribuições de guerra. + +--Que paiz pagará? + +--Mr. Alphonse? + +--Il faut vivre. Il n'y a pas de sot metier. A Mariam Ringen... + +--Aquella judia fanhosa? + +--Sim. E que tinha seis dedos em cada pé... Gastou mais de dez mil +libras em tres mezes. + +--É ante-semita. É _bien né_, o ser-se ante-semita! O começo da +liquidação... E depois, douze dedos. Parecia-lhe menos. + +--Contava muito depressa... 12 de cada vez... + +--Se é que contava pelos pés! + +--Sir Arnold interessa-me. Tenho-o examinado, na batalha. É impassivel. +Nunca procura primeiro uma mulher. Aquelle bello corpo d'Apollo +adrescente fascina. Os olhos claros, misteriosos, desequilibram os +nervos das nossas mulheres. E as opalas cheias de maleficios, que para +elle são _porte-bonheur_, dão um quebranto magico. A terrivel fama de +que tão justamente gosa e o precede como uma tenebrosa arauto faz-lhe um +halo. Luz do inferno, que importa? É uma aureola. Se não tivesse motivos +para ter um tal nome, caluniar-se-ia. É capaz de tudo, até d'uma boa +ação... que o não prejudique. Não faz o mal por arte. Para fazer o mal +por principio é necessario afirmar. Sir Arnold nada afirma nem nega. +Negar é, d'alguma fórma, afirmar. E isso é um esforço que elle se não +permite. Se quizesse ser diplomata, estaria hoje embaixador, membro do +Tribunal da Haya, ministro dos negocios estrangeiros. Encaminharia a +politica ingleza com menos soberba que Salisbury e mais firmeza que +Lansdowne, sem a literatura, o romantismo de Rosebery. Nos tempos da +vadiagem diplomatica, dos verdadeiros plenipotenciarios--hoje os nossos +plenos poderes ficam na secretaria, que nol-os vae mandando por conta e +pelo telegrafo--nesse tempo, talharia um imperio para o soberano que o +empregasse. Não, para si. Sir Arnold é um egoista formidavel. Julga-se o +centro do Universo. Nihil humani a me alienum puto. Nada do que +pertence ao homem lhe é alheio, isto é tem direitos sobre tudo, traduz +elle. Não tem outra moral. + +Nietzche estabeleceu os principios que nelle eram instinto. Cuido que +nunca se deu ao trabalho de ler um só volume do discipulo de Stirner... + +A conversa não interessava já. O dinamarquez tinha um pouco a mania +oratoria. O grupo dispersou-se, pelas salas, onde os pares deslisavam ao +som d'uma valsa da moda, langorosa e morbida... Fiquei com elle. +Fomo-nos dirigindo para a estufa. O ministro continuou: + +--Gósto de sir Arnold... pelo lado scientifico, como filósofo. É um +poderoso dissolvente. Todas as dissoluções apressam a evolução. Davis é +um força social. + +--Na boca d'um ministro d'um paiz monarchico, essas palavras são +imprevistas, sorri-me. + +--Tenho uma opinião como diplomata e outra como filósofo. Como +diplomata, sou conservador, como filósofo, anarchista... mas anarchista +com palacios, festas, condecorações... Quando quero pensar como +diplomata, visto a farda, ponho duas gran-cruzes, uma para cada +lado--tenho a Corôa da Prussia--e todas as placas. Quando me decido a +pensar como filósofo, cólo umas barbas postiças, fico em +_robe-de-chambre_. Defronte da minha psyché imperio, dou-me a ideia +d'uma Diogenes limpo. O mais usual, porem, é não pensar... Estou +dispepético: o pensamento é terrivel para nós. Isto não impede que lhe +conte um episodio da vida de Davis. Simpatiso com elle, dou-me até com +elle. Conheci-o em Aix-les-Bains ha seis ou sete annos. Estavamos no +mesmo hotel. Os nossos aposentos eram seguidos. A sacada era a mesma. +Conversavamos muito. Venha para aqui. + +Fomos para um canto isolado da estufa onde agonisavam, minadas por um +mal estranho, orchideas esverdeadas. Nasciam chagas nas suas petalas +recurvas, torcidas, listradas de vergões, varioladas. Sentamo-nos num +sofá. O ministro ofereceu-me um cigarro de Nestor Gianaclis, perfumado e +adormecedor. Escutei-o. + +--Como lhe disse, sir Arnold é um egoista. Quer aumentar o poder, para +empregar a formula de Nietzche. Desenvolve energicamente a +personalidade, segundo ou contra a moral, é-lhe indiferente, torneando +os preceitos dos codigos penaes e os usos sociaes, de maneira a se lhe +não fecharem os palcos onde se exibe, os salões cosmopolitas, mais +faceis e, sobre tudo, mais indulgentes. Elle não diz como o poeta: «je +porte fiérement la honte d'être beau»; não, para Davis não é uma +vergonha, pelo contrario, trata de fazer valer, por toilettes e atitudes +longamente estudadas, por meios artificiaes, a sua belleza clara, loira, +a que os olhos transparentes dão um encanto misterioso, uma sedução +que empolga, fascina, arrasta os pobres mulheres que desmaiam, sucumbem, +diante desse Apollo adolescente e terno, cuja força se adivinha apenas +nas mãos, de dedos firmes, de pelle, apesar dos cosmeticos, um pouco +aspera. Viu-o bem? Reparou em como todo o seu corpo harmonioso d'atléta +toma atitudes cançadas, como os seus olhos pareciam dissolver-se, ao +olhar para a pequena Von Hameghen e a sua boca de labios finos e +imberbes, se contraíam para o espasmo d'um beijo? Ha sete annos era o +mesmo. Parece que para elle o mundo e os dias se conservam imoveis. +Dir-se-hia que essa adolescencia se guarda no gelo. Que pacto teria +feito este homem com o demonio? + +--Talvez o mesmo que Dorian Grey... + +--Bah! Dorian Grey matou Basil... Julga que será Sargent, realista, +amando a força concentrada e não a belleza, quem fará o novo retrato +magico! Ou Lazló? + +Já não ha Basil. Talvez em Hespanha... Sorolla ou Zuloaga... Mas os +hespanhoes são naturalistas e republicanos. Veja Ibañez... A «Catedral» +liquida em artigo de fundo. + +--E Davis? atalhei, pondo um dique á divagação abundante. + +O ministro sorriu-se. Certamente que se lembrou do epigrama de Marcial. + +--Ah, sim! Davis e Aix-les-Bains. Estou prolixo como o bom Tito +Livio. Entro em materia. + +Ali, no canto da estufa, abaixando a voz quando alguem se aproximava, +para o afastar, o dinamarquez contou: + +--Estava no «Splendide» lady Hanswell, que depois de tratar do +reumatismo, com massagens e duchas, chorava poeticamente, pelas alturas +vicejantes do Bourget, os dez annos de casamento feliz com lord Vivian +Hanswell esse extraordinario homem, misto de Heroe, de Poeta e de doido, +que, começando por fazer odes extranhas aos venenos, aos assassinios e +ás traições, acabára em Middlefontain, voluntario da Rainha, o primeiro +na escalada d'uma collina, o monoculo entalado no olho, um livro de +versos na algibeira do kaki enlameado e a cartucheira já vasia, de +tantos tiros dados friamente, como nas suas coutadas ferteis da Irlanda. + +A viuva amára em seu marido a belleza adolescente, todo aquelle ar +gracioso como o d'uma mulher, os largos olhos claros, transparentes, +como gotas d'agua azul; amára o seu espirito extranho de comedor d'opio, +cambiante e misterioso, deleitando-se na posse de coisas frageis, de +flôres que, mal cortadas se fanam, os cristaes finos, as filigranas, as +ceras, os linhos que envolvem, fumos, as mumias egipcias e quasi se +pulverisam ao tocar-se-lhes, os leques de rendas; o imprevisto das suas +áções sem logica, que nada faziam prever, quasi sem realidade, como +essas arvores que teem um metro de raizes fóra da terra. + +Lady Hanswell, já passado o segundo anno de viuvez ainda carpia nas +palavras baixas em que recordava o marido, nos olhos que de tantas +lagrimas regadas eram frescos como fetos nascidos á beira dos regatos, +nas toilettes lilas, com que se vestia, foncées de manhã, claras á +noite, nas perolas cinsentas com que se enfeitava, gargantilhas pesadas, +collares multiplos, caindo sobre o collo, anneis de castães largos, que, +á luz, pareciam cinzas... + +Foi sobre ella que Davis se lançou, decidido, acirrado não só pelos seus +dois milhões de libras, mas tambem pela pelle fina, mate, macerada em +banhos prolongados de perfumes, pelos olhos em que brilhava uma volupia +indecisa, a afogar-se na tristeza, como um reflexo impreciso de estrella +num tanque. + +--A mulher deve ser como o Champagne: _extra dry_. + +Vi-o n'esse cerco, a sitiar a praça, a fazer-se valer, fugindo de lady +Hanswell, de todos, indo pouco ao Grand Cercle e á Villa des Fleurs, +tomando, de manhã, nos Banhos, e á meza, atitudes d'uma tristeza +profunda, maniaca, que interessasse. + +Só á noite, quando fumavamos o derradeiro charuto na varanda, sacudia a +mascara e falava-me do desenvolvimento da personalidade, toda a +theoria de Spencer e de Stirner, poetisada e dramatisada por Nietzche, +nelle menos literaria, menos filosofica, mas mais sincera, floração +inconsciente do seu Ego, sumula emfim da sua maneira de ser, animal +forte, que sabe que a Vida existe e quer apreender sem esforço, +desenvolver-se avidamente, até com detrimento dos outros. + +--É necessario viver a nossa vida, disse-me. + +N'essa noite, Davis, que era d'uma sobriedade exemplar, por calculo +talvez, para impressionar byronicamente lady Hanswell ou por impulso +atavico--gerações a alascar-se em Port-Wine pesam esmagadoramente--por +qualquer motivo, Davis acompanhou todo o jantar de Cliquot. Saimos +juntos, tomamos pelo _Boulevard des Côtes_, que vae contornando a +montanha e mostrando-nos, em cada curva, um aspecto novo d'Aix e do +campo, aqui a massa d'arvores illuminadas dos parques dos dois casinos, +alem a rua de _Genéve_, apagada e quieta, mais alem as montanhas cujos +perfis se recortam docemente no ceu enluarado, n'um outro cotovello o +lago do Bourget, que parece, na noite clara, de mercurio incendiado. +Caminhavamos apressados, subindo sempre, até á nascente d'essa agua +choca que os medicos nos fazem beber de manhã, em jejum. + +Sir Arnold falava com fluencia: + +--Todas as creaturas devem ser, para nós, elementos de desenvolvimento +do poder, utilidades. Extraido d'ellas o que nos pode servir devemos +pol-as á margem. É o que o organismo faz, inconscientemente... Quem +sobrecarrega com sentimentos inuteis o seu coração, apodrece, morre. +Devo todo este ensinamento filosofico, não aos livros, nem ás +conferencias, mas a uma pobre _caissière_, Eva Farland, d'um pequeno +restaurante do Strand onde eu jantava economicamente nos dias em que não +encontrava emprego para o meu mister agradavel de _pique-assietes_. Ali, +por um shelling e meio tinha uma boa talhada de _mutton_ e uma caneca de +cerveja, para desalterar. + +Essa pobre rapariga prendeu-se nos olhos azues de Davis; prenderam-a +seus braços fortes, a sua boca que ao beijar mordia. E foi para elle +como uma escrava, atenta, paciente, devotada, gastando o seu ultimo +penny em futilidades que Davis atirava para o lado, com desdem, +dando-lhe quarto, copiando á noite escritas, para pagar a luz, a lenha, +a agua, porque Davis fôra viver com ella, por economia--era um periodo +de _guigne_ extraordinaria!--persuadindo-se a pobre Eva que era por +amôr. Doce e abençoada mentira que a tornava feliz, dava-lhe coragem +para continuar a vida dura, fornecia-lhe a energia necessaria para estar +á caixa todo o longo dia, esperar, ás vezes, por elle toda a +inferminavel noite, quando o jogo o segurava com a caricia aspera das +suas mãos de aço; resignar-se ás longas ausencias, porque Sir Arnold, em +ganhando alguns guineus, reentrava na sociedade, ia jantar ao club, +frequentava os _music-halls_ nos camarotes do club, reencadernava-se, +emfim, de gentleman. + +Eva era o seu cão, mas cão de cego, util, chorando ás escondidas e +pouco, para não afear o soberbo rosto, não avermelhar os grandes olhos +sensuaes e tristes. + +N'um periodo mais largo de miseria, não chegando para os dois o salario +da amante, nem as copias, ella punha o chapeu, á noite, e ia pelo +Picadilly, misturando-se aos soldados, a fazer-lhes concorrencia, á caça +do guineu pondo em cada sorriso, um soluço. + +Davis via-a sofrer, indiferente, achando rasoavel que por elle outrem +penasse, continuando descuidado, até que um dia a fortuna sorriu-lhe +pela boca desdentada d'uma rainha de qualquer coisa na America, porco +salgado ou azeite de fóca. Nunca mais soube d'Eva, de quem nem sequer se +despediu, e que, se não morreu de dor--o que é pouco provavel--teve com +certeza uma lancinante crise de desespero. + +Ora essa mulher, que por elle fez todos os sacrificios, incluindo o do +pudor da amante, considerava-a elle o seu mestre de egoismo, pois +habituára-o a pensar que o amôr pode ser um modo de vida e a +belleza extranha e fascinante suprir as aptidões para a lucta pela vida. + +Foi a confissão que me fez n'uma noite de vinho, em que o Cliquot d'oiro +levára ao seu coração impassivel o desejo de expandir-se. + +Não tornámos a falar no assunto, persuadi-me até de que elle não tinha +consciencia da propria indiscrição e continuei a examinal-o no +interessante combate travado com lady Hanswell. + +Parece que a embriaguez produziu o seu efeito, porque lady Hanswell +começou a lançar-lhe, por vezes, obliquamente, olhares em que punha +alguma coisa de caloroso, as lagrimas deixaram de borbulhar-lhe nos +olhos, que andavam secos do desejo que ardia dentro. + +Ao começo d'ataque da ingleza, respondeu sir Arnold com um simulacro de +retirada, um mergulho na sua aparente tristeza, abstinencia de comida, +que o levava ás escondidas ao American Bar todas as noites, a leitura +constante do resignado Shelley e do desesperado Byron, cujos livros +deixava ficar sobre as mezas com marcas nos versos adequados á +circunstancia pensando que lady Hanswell não deixaria de ir folhear os +volumes. + +Ia realmente, sofrega, já esquecida do marido, estudando toilettes, não +já ruskinianas, com toda a tristeza doce das figuras dos primitivos, mas +as que fizessem realçar a sua elegancia, largos decótes que +mostravam a flor nevada do seu cólo opulento, fulgiam-lhe nas mãos os +largos costões esverdeados de berilos que Lalique lançára n'esse anno, +remoçava a sua boca escarlate uma primavera de beijos, que se ofereciam, +como as laranjeiras que nos quintaes murados veem sacudir para a estrada +as laranjas d'oiro. + +Lady Hanswell atacava vigorosamente, num assalto de desespero, pondo na +conquista de Davis toda a pertinacia da raça, toda a galantaria e +vaidade do sexo. + +Davis fugia, mas forneceu-lhe a ocasião d'ella se lhe dirigir, +entabolaram relações, elle mais dobrou a sua alma, melancolicamente, +falara-lhe de amôres purissimos, que vicejam nas almas candidas, como +desbotadas flores nas planicies geladas da Noruega. + +Falou-lhe n'uma especie de amor duplo, um amôr platonico por uma, em que +a alma vae em primeira cumungante, e o desejo se dirige para outra. + +E, diante d'ella, passeou pelas alamedas da Villa des Fleurs com Blanche +Lely, e, ostensivamente, durante alguns dias recolheu de manhã, a hora +em que lady Hanswell costumava sair para o banho. + +A tristeza voltou á face branca da ingleza. Durante o jantar olhava para +a porta constantemente, a cada movimento do _paravent_ estremecia, +lançava nos olhares para mim curiosas innterrogações que a minha face +muda deixava sem resposta. Voltou a chorar depois das ducha e das +massagens, como antigamente pelo defunto marido, e, de manhã, quando se +encontrava com sir Arnold o seu olhar tinha caricias, parecia que lhe +lambia a face linda. + +Foi ella que o levou, fremente, na ancia de não perder a presa, já no +carro a cerral-o entre os braços, para as Gorges du Sierroz, onde, +depois do almoço, no gabinete do restaurante rustico, os beijos arderam +e ella poude morder a boca em sangue de sir Arnold. + +Quanto custaram á consolada viuva esses beijos? + + +N'esse momento, sir Arnold Davis passou, levando pelo braço a franzina +Carlota Von Hameghen, que lhe encostava a cabeça ao hombro olhando para +elle n'uma suplica, que o sorriso dos labios finos apoiava fortemente. + + * * * * * + + + + +FUMO + + A LUIZ O'NEIL. + + +FUMO + + +Para fugir da exotica humanidade que enchia as salas do Kursaal de +Genebra, saimos, apezar da noite fria, para o amplo terraço sobre o +Léman tranquillo. + +Eu levára Roberto ali para mostrar-lhe Chiara, a dançarina italiana, que +nas suas danças bisantinas me surpreendera e comovera no Alhambra de +Londres. + +Era a Volupia feita luz e feita dança. N'um _maillot_ de seda, parecia +nua. Uma cintura de oiro, marchetada de largas pedras brilhantes +segurava-lhe os seios firmes. Grossas manilhas mordiam os braços finos e +os tornozellos. Um diadema apertava a massa luminosa dos seus cabellos +loiros. E, na face branca, eram d'um brilho de gema os olhos azues, +quasi violeta-de-Parma. A musica que a acompanhava tinha um envenenado +langor. Chiara deslisava, mal pousando os pés nús sobre o tapete de +Smyrna. E do brilho das joias, como da florescencia musical dos +gestos, brotavam lascivias, ardiam desejos, que faziam correr fremitos +por toda a sala incendiada por lampadas poderosas. + +Aquella dança sabia, apenas ritmada pelas vozes das flautas e das liras +que tocadoras de flauta e tocadoras de lira, vestidas á grega, no +palco tocavam! Uma ou outra vez um pé nú fazia vibrar o bronze dos +crotalos. Era como um grito de vitória, um beijo mordido n'uma boca +sedenta. Chiara tomava então uma atitude de entrega, todo o seu corpo +flexivel e delgado parecia tombar, como uma haste fragil que cede ao +explendor de uma enorme rosa vermelha, e verga e sucumbe. + +A grande flôr d'oiro e luz, em que as abelhas das joias picavam e +pareciam morder, fixas nas lhamas dos engastes! Como a vejo ainda +nitidamente, ramo d'oiro e de rosas, fazendo nascer desejos +cintillantes, chuveiros d'elles, rapidos, fulgentes, descendo como +estrellas d'oiro, como os bocados de astros que voam no ar escuro, nas +noites quietas d'agosto! + +E preso á tentação de vêr a dançarina, deixei Aix e as duchas, _Villa +des Fleurs_ e o seu rebanho de cocottes e, com Roberto, á pressa +envergados os smokings, fomos para o Kursaal. Mas no salão, um aviso e +um certificado medico diziam a doença de Chiara. Um grande desanimo +abateu-me as espaduas. Como passar uma noite na cidade alinhada e +mecanica como um relogio? Em todo o Kursaal, nem um rosto interessante. +Ranchos do Cook, das segundas classes, lyonezas rotundas e vermelhas, +suissas frescas, que parecem esculpidas em manteiga e em cujas faces +contentes os olhos são parados e azues... Caixeiros de Lyon, +aproveitando comboios a preços reduzidos, apertavam-se em volta das +compridas mezas dos _petits chevaux_. Dois americanos silenciosos +chupavam por palhinhas os violentos cocktails. + +Fugimos. + +Na noite escura, o lago era azul escuro. Os focos electricos dos caes +punham na agua fitas brancas, que dançavam e se quebravam contra as +ondas. Pareciam pestanejar as pequenas lanternas vermelhas dos +_bateaux-mouches_. Tudo parecia dormir. Uma brisa ligeira trazia até +junto de nós o silencio da cidade. Apenas do Kursaal as luzes coavam-se +pelas ramadas e, amortecidas, as walsas que acompanhavam mimambos e +acrobatas. + +Um de nós disse: + +--Talvez fosse melhor não ter visto Chiara. Um com a recordação, de que +viu, outro com a imaginação, teem uma imagem mais bella, por incompleta, +e em parte mentirosa, da dançarina e do seu bailado. A melhor maneira de +gosar é criar imagens, viver dentro de nós, alheio ao mundo. Recordando, +vive-se na imprecisão, sem as arestas. Tudo mergulha num nevoeiro, +que, deformando a real aparencia, nimba de misterio; desejando, +ilumina-se mais. Viver deve ser recordar e desejar. + +--Pode-se viver recordando e desejando apenas, no momento presente; mas +para recordar é necessario ter vivido, para desejar é preciso conhecer. +O desejo ilimitado põe a angustia na alma. É mister alguma coisa de +definido a desejar. + +--Quando chegamos á nossa edade, já vivemos tudo. Conhecemos o efemero +feminino. Andámos com o coração por todos os amores, por todas as +angustias. Provámos todos os _crús_, atravessámos mares, dormimos sob +todos os ceus. Podemos recordar. E, como conhecemos tudo, podemos +escolher e desejar. + +--A vida do homem é, como a de toda a natureza, um continuo movimento, +fluxo e refluxo permanentes. + +--Então é preciso agir? + +--É fatal. + +--S. Simeão Stylita gastou anos sobre uma coluna, a orar. Vinham de +desencontradas partes os crentes á espera de milagres. Esposas estereis +tocavam no plinto, certas de que tempo depois amamentariam o filho +desejado; os leprosos, os cegos, os atacados do «mal divino», +arrastavam-se pelos desertos queimados, até á coluna onde o santo +resava... E elle, indiferente, como indiferente era aos soes +asperos, ás ventanias e ás chuvas, continuava a orar. Viveu dentro de +si. A vida deve ser toda interior. + +--A vida do espirito é toda interior, como a vida digestiva. Precisamos +do mundo exterior para d'elle apreendermos as imagens e os alimentos. + +--_Ter comido_, é melhor que _comer_. _Ter gosado_ é melhor que _gosar_. +O momento da posse é doloroso e vão. É melhor recordar. + +--Recordar implica esquecer. E quando das imagens não ficar senão uma +mancha, como preencher a vida? + +--Desejando. + +--Mas a faculdade de desejar desapparece com os annos. O velho dos +Goncourt, quando no restaurante lhe perguntam:--O que deseja? +responde:--Desejava ter um desejo. Viver é agir. Colher todas flores e +todos os espinhos, violar todos os cimos, mergulhar em todos os lodos, +sentir intensamente, pensar todas as doutrinas, apreender do Universo +tudo o que fôr possivel, ver tudo, ouvir tudo! Viver é entrar na +harmonia do Mundo! É ser como o eucalipto, subir para o sol, +triunfalmente, lançar ramadas por todos os lados, espalhar avidas raizes +egoistas e crueis! + +--Viver é recordar e desejar. A vida deve ser feita por nós, como a +composição d'um quadro é arranjada por um pintor. Não devemos ser o +espelho de mostrador que refléte toda a rua, mas a psiché do _boudoir_ +d'uma mulher elegante que só refléte atitudes graciosas, sedas, rendas, +brilhos de pedrarias... + +--Viver... + +Despejava-se o Kursaal. Apagaram-se as lampadas. Fomos para a estação +esperar o expresso de Paris. + + +FIM + + + +INDICE + + A escola de flirt + Flirts + Logica + Romantico + A Bisantina + Má-lingua + A rainha de Sabá + Chiara Liliam + A Marcia + O cego + A gloria + A festa de maio + Tibidabo + A princeza perdida + Noite de festa + Clara + Idilio triste + Perfil d'aventureiro + Fumo + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Flirts, by Henrique de Vasconcellos + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS *** + +***** This file should be named 35073-8.txt or 35073-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/5/0/7/35073/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/35073-8.zip b/35073-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..8ea541f --- /dev/null +++ b/35073-8.zip diff --git a/35073-h.zip b/35073-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..4128110 --- /dev/null +++ b/35073-h.zip diff --git a/35073-h/35073-h.htm b/35073-h/35073-h.htm new file mode 100644 index 0000000..082df72 --- /dev/null +++ b/35073-h/35073-h.htm @@ -0,0 +1,5190 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html> +<head> + <title>Flirts, por Henrique de Vasconcellos</title> + <meta name="Author" content="Henrique de Vasconcellos"> + <meta name="Edition" content="Lisboa: Ferreira e Oliveira, Lda, 1905."> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + text-decoration: none; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: 8px; + text-align: right; + color: silver; + } + .capa { + border: solid 2px #000; + border-bottom: solid 5px #000; + border-right: solid 5px #000; + text-align: center; + padding: 1em; + } + .capa blockquote { + text-align: justify; + font-size: 0.7em; + margin-left: 30%; + } + p.obra {margin-left: 6em; text-indent: -3em;} + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1.5em;} + h1, h2, h3, h4 {text-align: center; margin-top: 2em;} + h2 {text-align: center; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.sinopse {margin: 2em; font-size: small; text-indent: -2em;} + #corpo p.ni {text-indent: 0;} + #corpo p.centrado {text-indent: 0; text-align: center;} + #corpo p.assin {text-indent: 0; text-align: right; margin-right: 2em;} + #corpo p.obra {margin-left: 6em; text-indent: -3em;} + p.centrado {text-indent: 0; text-align: center;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px #000;} + blockquote {margin-left: 40%; font-size: 0.7em;} + #corpo .ilustracao p {text-align: center; font-size: small;} + a {text-decoration: none;} + .rodape { + font-size: 0.7em; + color: #000; + margin-left: 2em; + margin-right: 2em; + } + #corpo .rodape p {text-indent: 0;} + .errata {border-bottom: dotted 2px #aaaaaa;} + .typo {border-bottom: dotted 2px #77dd77;} + .ntransc {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: 0.8em; + margin-left: 10%; margin-right: 10%;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Flirts, by Henrique de Vasconcellos + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Flirts + +Author: Henrique de Vasconcellos + +Release Date: January 26, 2011 [EBook #35073] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + +</pre> + + +<div> +<p> </p> + +<div class="ntransc"> +<p><b>Notas de transcrição:</b></p> + +<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1905.</p> + +<p>Foi mantida a grafia usada na edição original de 1905, tendo sido corrigidos +apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que +por isso não foram assinalados.</p> +</div> + +<p> </p> + +<p><span class="pn">{1}</span></p> + +<div class="capa"> +<p style="font-size: 1.2em;">H<small>ENRIQUE DE </small>V<small>ASCONCELLOS</small></p> + +<p style="font-size: 3em;">FLIRTS</p> + +<p>(CONTOS)</p> +<p> </p> + +<p>LISBOA <br> +<small>Ferreira & Oliveira, L.<sup>da</sup>—Editores <br> +<em>132, Rua Aurea, 138</em></small><br> +—<br> +1905</p> +</div> + +<p><span class="pn">{2}<br>{3}</span></p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p style="text-align:center; font-size: 1.6em;">FLIRTS</p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p><span class="pn">{4}<br>{5}</span></p> + +<div style="text-align:center;"> +<p style="font-size: 1.2em;">H<small>ENRIQUE DE </small>V<small>ASCONCELLOS</small></p> + +<p style="font-size: 3em;">FLIRTS</p> + +<p> </p> +<p> </p> + +<p>LISBOA <br> +<small>Ferreira & Oliveira, L.<sup>da</sup>—Editores <br> +<em>132, Rua Aurea, 138</em></small><br> +—<br> +1905</p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p><span class="pn">{6}</span></p> + +<div style="margin:4em;"> +<p style="text-align:center;">D<small>E </small>H<small>ENRIQUE DE </small>V<small>ASCONCELLOS</small></p> + +<p> <em>P<small>RIMEIRAS POESIAS, EM QUATRO VOLUMES:</small></em></p> + +<p>F<small>LORES CINZENTAS</small> (exgotado)<br> + +O<small>S ESOTERICOS</small> (exgotado)<br> + +A H<small>ARPA DE </small>V<small>ANADIO</small><br> + +A<small>MÔR PERFEITO</small> (exgotado)</p> + +<p> </p> + +<p> <em>P<small>ROSA:</small></em></p> + +<p>A M<small>ENTIRA </small>V<small>ITAL</small>, um volume.<br> + +C<small>ONTOS </small>N<small>OVOS</small>, um volume.</p> +</div> + +<p><span class="pn">{7}</span></p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div id="corpo"> + +<blockquote> + <p>L'art et la science sont independants. La morale ne doit avoir aucune + prise sur eux; jamais l'artiste, avant de faire une statue, jamais le + philosophe avant de faire une loi, ne doivent se demander si cette statue + sera utile aux m½urs, si cette loi portera les hommes à la vertu. L'artiste + n'a pour but que de produire le beau, le savant n'a pour but que de trouver + le vrai. Les changer en predicateurs, c'est les detruire. Il n'y a plus de + science ni art dès que l'art et la science devienent des instruments de + pedagogie et de gouvernement.</p> + + <p> H. T<small>AINE.</small></p> +</blockquote> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p><span class="pn">{8}<br> +{9}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00010">A ESCOLA DE FLIRT</a></h1> + +<p class="assin">A<small>O </small>C<small>ONDE DE +</small>F<small>IGUEIRÓ</small></p> + +<p><span class="pn">{10}<br> +{11}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00011">A <small>ESCOLA DE +</small>F<small>LIRT</small></a></h2> + +<blockquote> + <p>O <small>PROFESSOR</small>.—Sem edade, 25 ou 40, tudo lhe convém. Uma + mocidade que envelheceu, ou mocidade que dura <em>quand même</em>, «je meurs + où je m'attache». Toda a pelle do rosto é sulcada por imperceptiveis rugas + finissimas; a boca tem um sorriso de cético, mas os olhos ainda brilham. + Parece ter conhecido tudo ou advinhado tudo. Se se olha para a boca, sente-se + que conheceu, para os olhos, pensa-se que adivinhou.</p> + + <p>Elegante, uma ponta de preciosismo,—muito pouco!—apenas presentida na + maneira como olha para as mãos deliciosamente cuidadas, como as d'uma + senhora, viajou por toda a parte, indo mais ás festas mundanas do que aos + museus, leu mais jornaes do que livros.</p> + + <p>A <small>DISCIPULA</small>.—Uma ingenuidade, que quer conhecer tudo, + ignorando tudo. Vestida um pouco <em>à la diable</em>, seria positivamente + <em>fagotée</em> sem a elegancia do corpo fino e leve e o brilho e o riso dos + olhos e dos labios côr de rosa.</p> + + <p>A discipula vae procurar o professor da Escola de Flirt, discretamente + annunciada por meio de circulares em papel lilaz com dois corações em chamas + estilisados à maneira moderna. É n'um minusculo jardim seculo + <small>XVIII</small> portuguez, com um delgado repuxo a partir-se n'um + pequeno tanque sem lavores e canteiros bordados por buxeiros. No centro d'um, + uma anagua forma uma copa verde-clara de onde pendem as campanulas brancas + que perfumam.</p> +</blockquote> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—É v. ex.ª que...</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Sim, senhor... Venho aqui tomar algumas lições. +Fiz a minha educação<span class="pn">{12}</span> no convento; não tive occasião +de aprender os rendimentos do Flirt. Casei sem amor, sem noivado, sem lua de +mel... Um casamento de conveniencia... para o meu tutor. Escusou de prestar +contas. Vim ha pouco para Lisboa. Aqui, toda a gente flirtea um pouco. Troçam +do meu acanhamento, chamam-me Pires, até Possidonia, dizem que sou «old style», +do tempo da rainha Anna... Recommendaram-me esta escola. Se não ensinam aqui as +cortezias, dança, diversas maneiras de trazer as <em>mouches</em>, como no +tempo de Moliére, mostram-nos como se conduz um flirt com a pericia com que o +Jeronymo Condeixa guiava <em>four-in-hands</em>.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—V. ex.ª é intelligente?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—(<em>Modestamente</em>)—Sou.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Formosa, vejo que é. (<em>A discipula +agradece</em>) Gosta de toilettes?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—<em>Fagotée</em> durante a minha interminavel +mocidade—vinte annos na provincia!—não possuo a complicada arte da +<em>fanfreluche</em>.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Mas tem tendencias?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Enormes! Passo horas ao espelho a compor o meu +pobre cabello, a pôr uma fita...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Mais tout ça c'est l'affaire de la femme de +chambre!</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—(<em>Indignada</em>) Entregar-me a mãos +mercenarias?!<span class="pn">{13}</span></p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Mas minha senhora! Deve v. ex.ª fazer... +permitta-me a expressão—as proprias meias? Passar as noites em compridos +serões a alinhavar os corpetes com essas mãos que adivinho lindas sob a pellica +da luva? (<em>A discipula agradece.</em>) Com certeza que não. Bem o vejo nos +seus olhos que são, deixe-me dizer-lhe, d'um brilho incomparavel. (<em>A +discipula torna a agradecer.</em>) Todos esses cuidados pertencem aos +fornecedores. É por acaso a propria rosa que póda a roseira? Não! Ha +jardineiros de mãos calosas e almas rudimentares que preparam a eclosão das +orgulhosas flores que são o pasmo e o encantamento dos jardins. Ha creaturas +que se dobram dias inteiros sobre sedas e rendas, pensando em cosinhadas e roes +de roupa suja, e constroem fantasticas teias em que nos vamos prender, as +deliciosas toilettes dos Redfern e dos Rouff... Porque se não deixa preparar +por ellas? Ha cabelleireiras habeis que ageitam deliciosos penteados. Seja +paciente, consinta que ellas a penteiem.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—É absolutamente preciso? Não poderei +prescindir?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Absolutamente... absolutamente... não... A +formosura de v. ex.ª suppre muito... tudo... Mas é util.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Bem... E depois?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Sabe conversar?<span class="pn">{14}</span></p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Meu Deus! No convento, no que conversavamos mais +era nas Irmãs... para dizer mal d'ellas.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Dizer mal... é bom... mas de quando em quando... +Senão cae-se nas soirées do <em>Sporting</em>.—Lê?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—O <em>Diario Illustrado</em>, todas as +manhãs...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—É pouco. Bourget—fala do coração. É um bom +tema. Tudo o que se disser é verdadeiro e falso, de fórma que uma opinião é +voltada do avesso com a maior facilidade. Falla de mulheres, <em>toilettes</em> +e almas, pezares e córtes <em>tailleurs</em>, amores e rendas de +corpetes...—uma <em>macedoine</em> que, para a conversação, tem o encanto da +variedade.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Tenho o Larousse.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Bah! O Larousse é muito comprido. Não se pode +falar em sociedade, como se não deve falar no diabo e em outras coisas do uso +diario. Outro: Theuriet—é sentimental, cheio de lamurias; no campo, um chorão, +n'uma sala, um piano. É optimo para as noites de luar, na praia, emquanto se +faz a digestão.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Uma pastilha de Vichy em trezentas paginas.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Pouco mais ou menos. É um filho de Lamartine... +Olhe, este é preciso cital-o... ás vezes... a troçar... Depois, todos os +<em>vient-de-paraitre</em>. O <em>Figaro</em> assignala-os.<span +class="pn">{15}</span> A proposito: são muitos. Leia dez paginas no começo, +vinte no meio e as tres ultimas. Terá assim um verniz literario... completo.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Tenho entendido.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Mas isto é longo. Prefere entrar? Quer a +primeira lição aqui ou na aula? Aqui?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Sim. Acho melhor. Sob as arvores, junto ás +flores, a ouvir o murmurio dolente da agua que corre.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—É poetica?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Quasi, ás vezes.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Não fica mal um pouco de poesia... Falar do mar +e do estremecimento da lua sobre as aguas inquietas, comparar-se á agua +movediça e infiel... Emfim são coisas para mais tarde. Vamos aos preliminares. +Ah! Antes de mais nada: o nome de v. ex.ª?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Carmo... Maria do Carmo. As minhas amigas +chamam-me a Carminho.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Um nome lindo...</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Não se presta a madrigaes.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Um nome sabendo a flores silvestres...</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Pires...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—(<em>Vae tomando calor</em>)—Pelo contrario. Um +nome que se desfaz na boca como um <em>fondant</em>, nome para murmurar nas +horas perturbantes, nome que finalisa n'um franzir de labios, como para um +beijo... Delicioso!<span class="pn">{16}</span></p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Muito obrigada.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Bem. Bem. Passemos á lição. (<em>Toma um falso +ar amavel, faz brilhar na boca um sorriso, retorce o bigode loiro.</em>)</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Ouvil-o-hei com toda a attenção.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—(<em>Agradece com um gesto largo</em>). +<em>Flirt</em> é uma palavra ingleza que deriva do francez. Já tem fóros de +portugueza: Garrett empregou-a. É como uma batalha de flores entre duas pessoas +de diferente sexo.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Com os espinhos?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Conforme: ha varias especies de flirt. Ha um em +que as rosas são quasi todas guardadas por numerosos regimentos de espinhos: é +o flirt agressivo, feito de recriminações. Ha quem lhe encontre encanto. Pff! +Não lh'o aconselho. É bom para velhas de sessenta annos com os <em>vieux +beaux</em> que foram seus namoros. Ha o flirt sentimental, aquelle a quem me +referi ha pouco, com <em>clair-de-lune</em> e regatos prateados, o flirt com +Theuriet e Alfred de Musset dos proverbios, um assucareiro em que caiu agua e +vae entornando calda que pinga e lambusa. Horrivel! Mas tem os seus adoradores, +misses <em>sur le retour</em>, tias, meninas da Baixa espremidas nos +espartilhos de baleia e aço—crosta d'um peixe que a ichtyologia ignora; é +muito usado lá para os lados excentricos da Estefania. Ha—tome toda a +attenção, pois<span class="pn">{17}</span> é o que convem ao seu genero de +belleza...</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—V. Ex.ª confunde-me...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—O que ha de mais sincero!... Ha um genero, o meu +predilecto... (<em>Ageita-se no banco, torna a retorcer o bigode, olha +amorosamente para as unhas rosadas</em>). É o flirt perfumado e finissimo, o +fumo das cassoletas com perfumes leves, como se queimassem flores, petalas +tremulas d'anemonas...</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Como V. Ex.ª é eloquente!</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small> (<em>Baboso</em>)—É V. Ex.ª que me inspira!</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Os seus olhos sublinham com tal calor as +frases!</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Um pouco de luz que vem dos seus!... Um reflexo +do seu admiravel olhar! É por isso que falo assim. (<em>Approxima-se +d'ella</em>). É o flirt em que o coração apenas perfuma... O que tem de bom uma +flor? A propria materia? Não, que essa é unica, a mesma na couve lombarda e no +lyrio. É o perfume e a côr. Do coração, tambem, só devemos permutar o perfume. +Ora imagine: entregar um coração cheio de sangue, a palpitar como um peixe +quando acaba de ser pescado!</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Até mete medo!</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Tem razão. Até mete medo. V. Ex.ª tem sempre +razão.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Muito obrigada.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—As pessoas formosas—e V.<span +class="pn">{18}</span> Ex.ª é divinamente formosa—teem sempre razão.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—V. Ex.ª é muito lisonjeiro.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—A lisonja é o aroma da verdade. V. Ex.ª merece +tudo.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—V. Ex.ª é extraordinariamente amavel.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Podesse eu ser amavel para que todas as senhoras +bonitas me amassem!</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Todas?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Quando digo todas... V. Ex.ª comprehende que me +refiro a uma só.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Feliz aquella...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Acha feliz?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Deve sentir o peito em festa...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Oh minha senhora!</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Lembrar-me-hei de si. Nas noites infindaveis, +quando me sento ao piano e os meus dedos correm sem fito sobre o teclado...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Como nardos que andassem...</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Como póde dizer isso, se nunca as viu?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Adivinho-as. Mas gostaria de as vêr +(<em>Toma-lhe a mão</em>). Estas luvas são de Paris?</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Não senhor: são dos Gatos.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—(<em>Um pouco desapontado</em>). Não importa. As +mãos são lindas. (<em>Vae desabotoando uma das luvas</em>).<span +class="pn">{19}</span></p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—(<em>Consentindo</em>). O que faz?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Estes botões são feios. Mas a pelle é +finissima.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—A da luva?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Não, a da mão.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—Agradecida.</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—(<em>Curva mais a cabeça approximando-se mais, +assim, da mão</em>).</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—(<em>Sem a retirar</em>). O que faz?</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Nada, minha senhora... ia vêr melhor o grão da +pelle.</p> + +<p>A <small>DISCIPULA</small>—(<em>Ligeiramente desapontada</em>). Ah! +julguei...</p> + +<p>O <small>PROFESSOR</small>—Oh minha senhora! Pensar tal a meu respeito! Não +sabe que o flirt é o amor sem desejo, a sombra do Amor? Eu não podia dar-lhe um +beijo!<span class="pn">{20}<br> +{21}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00020">FLIRTS</a></h1> + +<p class="assin">A A<small>NTONIO </small>B<small>ANDEIRA</small></p> + +<p><span class="pn">{22}<br> +{23}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00021">F<small>LIRTS</small></a> </h2> + +<blockquote> + <p>Maria do Carmo, curvada sobre a meza, folheia os ultimos <em>envois</em> + de Paquin e Redfern. Um candieiro com um largo quebra-luz de seda e rendas + lança-lhe sobre o cabello uma aureola de oiro. O corpo está mergulhado na + penumbra. Na sala, os moveis tomam aspectos fantasticos. Os espelhos teem um + brilho pallido. Gonçalo, ao entrar, beija a mão que Maria do Carmo lhe + estende, sem levantar os olhos dos papeis.</p> + + <p>M<small>ARIA DO CARMO</small>—trinta annos, com dez de casamento. Sem + filhos. A vida passa-se-lhe em visitas, <em>raouts</em>, recéções e bailes. + Alguns livros da moda, recommendados por Marcel Ballot, no <em>Figaro</em>, e + Jean Lorrain, por curiosidade. Interessante como um enigma, ás vezes + perversa. Não se lhe conhece um amante, mas indicam-se muitos. Não toca + piano.</p> + + <p>G<small>ONÇALO</small>—não tem uma branca, mas no meio da animação, + ficticia, vê-se um grande cançaço de viver, como se tivesse experimentado + tudo. Procura por toda a parte, como um <em>gourmet</em>, o manjar fino. + Epicurista, delicadamente depravado, como um <em>roué</em> da Restauração, ou + um elegante do fim da republica romana.</p> +</blockquote> + +<p>—Ainda bem que veiu!... Preciso do seu bom conselho... </p> + +<p>—Como sempre, depois de ter feito alguma tolice?...</p> + +<p>—Impertinente!</p> + +<p>—É sempre assim. Pede-me o conselho depois de não precisar d'elle! De +resto, dá na mesma: ninguem segue conselhos.<span class="pn">{24}</span></p> + +<p>—Não. Tenho aqui estes dois albuns. De Paquin... De Redfern... São as +ultimas creações. Estou tentada a escolher quasi tudo e a não escolher +nenhum... Quer acreditar que tenho dias vazios na minha vida? Dias sem vontade, +d'uma grande lassidão, em que nem sequer tenho forças para fingir que +sorrío!...</p> + +<p>—Ame um pouco...</p> + +<p>—É coisa que se encommende? Acordo um dia, com a resolução de amar. É logo. +O primeiro que me apparece na Avenida, aquelle que melhor dorme em S. Carlos, o +caixeiro que me vende as fitas no Martins! Vê-se bem que nunca amou!</p> + +<p>—Não amei! Mas eu não <em>sou</em>, eu <em>amo</em>. É a minha maneira de +existir. Um nasce cego; nasci amoroso...</p> + +<p>—Calle-se! Diga lá, qual d'estes vestidos prefere?</p> + +<p>—Sabe que é muito difficil escolher um vestido pelos desenhos feitos +<em>d'après</em> os manequins? O mesmo vestido toma aspectos differentes +conforme as pessoas...</p> + +<p>—Não faça filosofia. Olhe este de Paquin: ligeiro, todo em rendas, em +coisas leves, parece feito com flôres; o Redfern é mais hieratico; mesmo nos +vestidos de baile conserva a <em>raideur</em> dos córtes <em>tailleur</em>. São +vestidos para a Bouro, que parece ameaçar-nos constantemente com a sua corôa de +marqueza. Este?<span class="pn">{25}</span></p> + +<p>—Não lhe irá bem, talvez... O talhe da saia engrossa a sua figura, a que +não vão bem...</p> + +<p>—O senhor treslê... Tudo me vae bem... Deixe lá os figurinos... Não sabe +nada de vestidos... É como do coração. Aconselha-me a que ame...</p> + +<p>—E dou-lhe um bom conselho. Nem parece que sou seu amigo.</p> + +<p>—Trouxe hoje a alma de cinico?</p> + +<p>—Era a que tinha mais á mão. Estava ao cimo da gaveta...</p> + +<p>—Continuo a dizer: não percebe nada dos negocios do coração...</p> + +<p>—Não ha negocios do coração. O coração dá-se...</p> + +<p>—Não; troca-se...</p> + +<p>—Para quê? Não é preciso, no amor, ser-se correspondido. Basta amar. É +possivel que para a felicidade seja necessaria a permuta...</p> + +<p>—O amor é o choque...</p> + +<p>—Muitas vezes o cheque.</p> + +<p>—Que <em>jeu de mots</em> tão velho! É o choque de duas almas. É preciso +que girem bem, no encontro. São duas electricidades que se combinam. Conhece a +theoria das duas metades da maçã?</p> + +<p>—Conheço: é uma figura de rétorica...</p> + +<p>—Não é. Andam duas creaturas por esse mundo, ignorando o seu futuro, +achando a vida sem rasão, idiota...<span class="pn">{26}</span></p> + +<p>—Escolhe uma mentira vital, como diz Ibsen. Conheço-lhe o +<em>charabia</em>...</p> + +<p>—Deixe-me acabar. Corre mundos, faz tolices, fecha-se dias em casa, até vae +ao circo ver as focas... E nada! Um dia, sem saber como nem porquê, uns olhos +encontram-se com os seus, numa multidão. Ha a faisca... Pode ser um santo ou um +bandido, lindo como o Rubempré, estupido como um tenor, candidato á grilheta ou +futil como um janota. Fica-se presa; somos d'elle para toda a vida, ficamos +amarradas a elle, como uma sombra... É assim o Amor, é feito de imprevistos... +Não tem rasão alguma de ser, mas é.</p> + +<p>—Uma coisa fatal? Tem que ser?</p> + +<p>—Sim.</p> + +<p>—Permite-me que discorde?</p> + +<p>—É teimoso.</p> + +<p>—Sou. Já viu alguma discussão dar resultado? O amor é sempre creado por +nós. Não amamos senão a pessoa que queremos amar. É, como tudo, um acto +voluntario. Ha escolha. Vemos uma mulher, vinte, trinta vezes, sem nos fazer +impressão alguma. Um dia ella repara em nós. Se é bonita, elegante, calça no +Chapelle e veste na Lippman, pelo menos, a nossa vaidade sente-se satisfeita e +começamos a descobrir-lhe encantos, a crear alguns, a afeiçoal-a ao nosso +geito. Ao conversar com ella, pomos intensão nas frases ôcas que diz, vemos +mysterio<span class="pn">{27}</span> no seu sorriso... Estamos presos.—Um +bello dia, porém, por qualquer motivo, torna-se util acabar com o pesadello da +mulher que aparece em toda a parte: sae das brasas do fogão, a que nos +aquecemos, da pagina que lemos, do fumo do cigarro, do papel em branco em que +vamos escrever ao nosso procurador. Repara-se um pouco nella. Descobre-se o +primeiro defeito. Exageramol-o para o grotesco. E da deusa perfeita tambem as +flores e fica uma caração que faz rir.</p> + +<p>—Uma theoria...</p> + +<p>—Não é, creia. Acontece-me isso duas ou tres vezes por anno. Sabe que ando +sempre com uma paixoneta... ou mais. Levo oito dias a fazel-as cair do +peito.</p> + +<p>—E vive feliz?</p> + +<p>—Inteiramente feliz. Saber contentar-se não é a suprema sabedoria? Para que +se inventou o <em>flirt?</em></p> + +<p>—O <em>flirt?</em> Que horrivel coisa? É a «sombra chineza» do Amor...</p> + +<p>—É melhor. É o perfume. Os delicados contentam-se. É preciso comer uma +flor? Não, basta respirar-lhe o aroma. Ora essas conversas, meio sentimentaes, +a um canto, ditas em voz baixa, sublinhadas pelos olhos que toda a alma +illumina, são como o roçar de azas que fossem flores. Ha o ligeiro premir dos +dedos, sob os leques, certos tremores de labios, como se os beijos n'elles +esvoaçassem, uma concentração<span class="pn">{28}</span> de todo o ser, que +parece boiar no ether, leve... As phrases não se arrastam, n'um espasmo. Teem +palpitações, lançam-se n'uma curva larga, até desapparecer em estrella. Não +conhece o <em>flirt</em>. Todo o ser é livre e vae entregar-se, rendido... Cada +palavra toma um sentido misterioso... Vou-lhe contar um <em>flirt</em>... +Estava na Suissa.</p> + +<p>—Internacional?</p> + +<p>—Cosmopolita. N'um d'esses cantos, que ultimamente o Cook estraga, na +Engadine. Paisagem de gelo, hotel de gente podre...</p> + +<p>—De chic?</p> + +<p>—De chic. Conheci uma americana, deliciosa como um fructo acre, que vivia +fora da <em>coterie swell</em>. O americano vae-se tornando terrivelmente +<em>rasta</em>. Trinta annos? Talvez... Mas trinta annos frescos, sem rugas, +viuva depois de dois mezes de escasso matrimonio com um formidavel <em>brasseur +d'affaires</em> de New-York, cerebro em ebulição permanente que acabou n'uma +neurasthenia aguda. Iamos passear sós, pelo gelo. Sentavamo-nos nos pontos de +vista que o B½deker não indica, paisagens tristes de tanta brancura, sem uma +mancha. Fugiamos dos <em>five-ó-clock</em>, das <em>parties</em> bulhentas em +complicada companhia. Comecei a amal-a. Tinhamos lido os mesmos livros, sobre +elles fallavamos: gostavamos das mesmas musicas, d'esse Schumann cheio de côr, +dolente e envenenado;<span class="pn">{29}</span> preferiamos aos flamengos +gordurosos e aos hespanhoes sombrios, o delicado misterio dos Vinci, a graça +fina e brilhante de Raphael.</p> + +<p>A fallar de quadros e de romances, as nossas almas tocavam-se, porque um +sentido novo brilhava em cada palavra; e parecia que cada frase terminava n'um +beijo. Ás vezes, levemente, as nossas mãos tocavam-se. Era rapido e delicioso. +D'esse contacto ficava uma lembrança, como d'um perfume. Amor platonico? Não. +Um <em>flirt</em>. Sem arroubamentos. Sempre a Alma livre, sempre o beijo a +tremer na bocca, sem cair... Uma ou outra vez, comprehende, por +esquecimento...</p> + +<p>—Comprehendo. Sem malicia...</p> + +<p>—Essa mulher tinha realisado todo o meu sonho! De resto acontece-me isto +muitas vezes. O sonho varía com as mulheres que nos interessam. Mas essa +parecia realisar tudo. No seu corpo ambiguo, de egipcia, parecia conservar-se, +como um fructo no gelo, uma adolescencia eterna. As suas mãos finas, pesadas de +tantos anneis em que Vever pozera todo o seu genio estranho, floriam gestos +d'uma caricia delicada e terna. A sua alma, que parecia ter visto tudo, ainda +sentia a vida com frescura. As horas que passei junto d'ella! O perfume, uma +mistura sabia d'Houbigants, então <em>dernier bateau</em>, perturbava... Longe +d'ella, não pensava n'outra coisa. Recordava-me dos gestos, os pequenos<span +class="pn">{30}</span> detalhes da <em>toilette</em> e da conversa, um rosar de +pelle sob as rendas, uma palavra, um <em>grain de beauté</em>, que tinha na +nuca. Sabe como acabou? Ella propoz-me casar. Fechei-me no quarto, horrorisado. +Casar, eu? Uma mulher que me julgava capaz d'isso! Era preciso abater esse amor +orgulhoso, que crescia no meu peito. Que defeito tinha ella? A principio não vi +nenhum... Fui procurando. Tinha, ás vezes, quando fallavamos em francez, erros +de grammatica deliciosos. Comecei a achar ridiculo essa ignorancia. D'ahi +passou para os vestidos, para o corpo, o peito chato, sem ancas... Tudo caiu. +Essa mulher pareceu-me horrorosa... Comecei a troçar d'ella, do seu +<em>bas-bleuismo</em>... Por fim ella resolveu partir. Lembro-me perfeitamente. +O gerente do hotel levou-lhe um enorme ramo de <em>bluets</em>, os raros amigos +tambem lhe levaram flôres. Todo o carro estava cheio de flôres. Sentou-se entre +ellas, afagava-as, cortára algumas para cheirar. Chorára. Ainda me deitou um +molho, que tinha beijado. O carro partiu, como se fosse um açafate. E a sua +face branca era como uma flôr triste... Não tive pena. O amor já caira. A gente +ou gosta ou não gosta, conforme quer.—Vamos fazer um <em>flirt</em> para +experimentar?<span class="pn">{31}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00030">LOGICA</a></h1> + +<p class="assin">A A<small>NTONIO DA </small>C<small>OSTA </small>C<small>ABRAL +(</small>T<small>HOMAR)</small></p> + +<p><span class="pn">{32}<br> +{33}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00031">L<small>OGICA</small></a> </h2> + +<blockquote> + <p>N'um <em>garden-party</em>. Emquanto no <em>tennis</em> se cruzam as + palavras inglezas, e no kiosque, d'onde caem chuveiros de glicinias, se + discutem mãos de <em>bridge</em>, afastados, junto a um roseiral, Joanna, + Maria e Miguel veem jogar.</p> + + <p>J<small>OANNA</small>—Toda a face branca é illuminada por dois largos + olhos negros. Casada ha dois annos com um <em>sportsman enragé</em>, que + prefere o cabo de uma <em>raquette</em>, o leme d'um <em>outrigger</em>, o + <em>guidon</em> d'um automovel, á mais terna caricia da mulher. Usando e + abusando do flirt, um em cada dia, ás vezes dois, tem periodos de fidelidade: + quando quer torturar alguem. Provoca-o, chama-o, fal-o entontecer com + promessas. Quando o vê absolutamente rendido, foge, para pensar n'outra + coisa, ou em coisa alguma. Não vae ao fim de nada. Desenha, mas nunca + terminou um esboço; toca piano, mas deixa sempre o trecho de musica suspenso + a meio d'um compasso. Tem medo de acabar. É uma natureza hesitante.</p> + + <p>M<small>IGUEL</small>—Nada intellectual. Um bom animal intelligente. Tem + viajado. Mas prefere o <em>steeple-chase</em> de Auteuil a uma + <em>première</em> no Vaudeville. Admira a força. É um leal. Dá o seu coração + sem reservas. É, actualmente, o flirt fixo de Joanna.</p> + + <p>M<small>ARIA</small>—Vão-lhe falhando os admiradores. Os cabellos brancos + não lhe ficam bem. Não sente muito a falta, nem se irrita com a felicidade + alheia. Natureza simpatica, hoje rara. </p> +</blockquote> + +<p>M<small>ARIA</small>—... Encontrou o Cerqueira a passear d'um lado para o +outro, no terraço do Hotel, a balbuciar phrases, os olhos fechados, um livro na +mão.—Que estás tu a fazer?—Tenho<span class="pn">{34}</span> hoje de fazer +uma declaração á Clotilde. Estou a estudar aqui no Bourget duas phrases +tezas!... </p> + +<p>(<em>Joanna e Miguel riem-se, mas deixam cair a conversa</em>).</p> + +<p>M<small>ARIA</small>—A Clotilde merecia-o. Quando se começaram a usar os +<em>flous</em>, para que é preciso <em>postiches</em>, ella tinha escrupulos e +explicava:—«Sei lá se o cabello pertenceu a alguma creatura damnada! E hei-de +pôr na minha cabeça uma coisa de alguem que hoje está a arder nas profundas dos +infernos!» O que acham vocês?</p> + +<p>(<em>Joanna e Miguel tornam a rir-se, sem responder</em>).</p> + +<p>M<small>ARIA</small>—Já comprehendo. Vocês querem ficar sós... +(<em>levanta-se</em>).</p> + +<p>J<small>OANNA</small> (<em>sem convicção</em>)—Não. Deixa-te estar...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small> (<em>a mesma coisa</em>)—Pelo amor de Deus!...</p> + +<p>(<em>Maria afasta-se, voltando ainda a cabeça para sorrir-lhes</em>).</p> + +<p>M<small>IGUEL</small> (a <em>principio, parece hesitar, por fim +decide-se</em>)—Afinal, o que quer de mim, ao certo?</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Eu?</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Sim. O que quer de mim?</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Não comprehendo...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—É bem facil!...</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Quer chamar-me estupida? Ha de concordar que é pouco +amavel!...<span class="pn">{35}</span></p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Não desvie a conversa. Sabe que mesmo que o pensasse +não lh'o diria...</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Então pensa-o?</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Não o penso; sabe isso muito bem.</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Uff! Respiro... Não poderia entrar na Academia, se +fizesse tal conceito da minha intelectualidade... Não é assim que se diz, nos +meios <em>très dernier bateau</em>?</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Oh! por mim!...</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—É o seu ambiente, o meio cosmopolita; é inseparavel +dos diplomatas, delicia-se no Tyrol e em Roma...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Quer outra vez mudar a conversa. Não é verdade?</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Confesso-lhe que sim... Não percebo o que quer!...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Repito-lhe: é facil. O que quer de mim?</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Olhe: dê-me d'ali a minha sombrinha... N'este momento +é a unica coisa que quero de si.</p> + +<p>(<em>Miguel traz-lhe a sombrinha vermelha, que ella abre. A luz parece +incendiar-lhe o chapeu branco, e toda a face branca</em>).</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Fallemos a serio, um pouco...</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Já me viu brincar? Na minha edade!...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Fishing for compliments?</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Será, se quizer... Oiço-lh'os tão poucas vezes!<span +class="pn">{36}</span></p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Queria passar a vida, como um d'esses pagens antigos, +sentado a seus pés a cantar-lhe endeixas. Mas o seu sorriso paralisa, na minha +bocca, o amor que vae a sair.</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—É o que o Cerqueira chamava uma phrase tesa!</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Porque troça de mim? Porque faz de mim seu joguete? +Eu andava feliz e livre, sem mulher alguma que me preocupasse. Nunca andei tão +alegre. Vivia a minha vida, livremente. Todas as mulheres bonitas me pareciam +eguaes. Joanna começou a chamar-me, a dizer-me phrases que me prendiam, que me +entonteciam. Tinha olhares para mim tão cheios de promessas, que corri como um +esfomeado, diante d'uma mão que se lhe estende, carregada de vitualhas. E junto +de si senti-me perturbado. Foram para mim as palavras mais carinhosas, aquellas +que tinham um sentido ambiguo, banal para os estranhos, para mim precioso e +comovido. Parecia um flirt terno. Subitamente, tudo mudou. Parece escolher tudo +o que possa desagradar para dizer-me. É o flirt agressivo, em que d'uma das +partes não ha amor, ou o quer esconder. E a conversa é toda feita de botes de +florete, que muitas vezes arranham e podem até matar o amor.</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Tout passe, tout casse, tout lasse... Porque não ha +de ser assim o Amôr?...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Mas deixe-o acabar por si, como<span +class="pn">{37}</span> uma flôr n'um jardim deserto, que se desfolha aos +poucos...</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Para apodrecer?...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Ó não, não apodrece. Evapora-se como uma essencia e +deixa um perfume suave—uma recordação...</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Outra phrase tesa. Está terrivel!</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Faça-me a justiça de pensar que não a li...</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Não. Ouviu-a em alguma peça... Você diz-me que não lê +nada...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Leio o <em>Seculo</em>, todas as manhãs.</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Não acredito...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Palavra! Por causa das cotações da bolsa. Tenho uns +dinheiros nos fundos russos... Mas não sobem... Ando infeliz em tudo: no jogo e +nos amores.</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Nos amores? Diz isso a mim? Você é muito ingrato, +Miguel!</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Continua a brincar comigo!</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Agora é occasião de eu tambem fallar a serio. E +faço-lhe a mesma pergunta que me fez ha pouco:—O que quer de mim?</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—(<em>não atina com a resposta</em>) Eu?</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Sim. O que quer? Tem um flirt comigo... É o meu +preferido...</p> + +<p>M<small>IGUEL</small>—Diga antes favorito, como se tratasse d'um cavallo de +corridas.</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—É o meu favorito, seja. Gosta de mim? Muito. É o que +ia a dizer, com alguma<span class="pn">{38}</span> rétorica. Não gosto eu de +si? Não me ponho pelos cantos a fallar comsigo, a sós? Não estou aqui a apanhar +sol, só por sua causa, para poder estar comsigo, em liberdade, sem ter ninguem +que nos oiça? Não vou á Avenida todas as tardes para o vêr? Não olho para si +sempre no theatro? Não lhe digo os dias em que vou <em>shopping</em> pelo +Chiado? Para quê? Para estarmos juntos! Então que quer? Quer casar comigo? Mas +sou casada e felizmente não ha o divorcio entre nós.</p> + +<p>M<small>IGUEL</small> (<em>tristemente</em>)—Felizmente?</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Sim! Felizmente. Primeiro, é contra a religião; +depois, escusa a gente de se arrepender varias vezes de ter casado. Assim +arrepende-se uma só. Não pode casar commigo. Então o que quer?</p> + +<p>(<em>Miguel olha-a estupefacto. Não encontra resposta. A expressão de Joanna +é equivoca. Miguel não sabe se falla ingenuamente, se quer mystifical-o. +Cala-se</em>).</p> + +<p>J<small>OANNA</small>—Então bem vê que não tem razão para se queixar de +mim!</p> + +<p>M<small>IGUEL</small> (<em>Tem o ar de quem apanhou de surpresa uma grande +pancada. Olha para Joanna, para si, para os outros. Pensa que o desfrutam. +Acodem-lhe á boca frases energicas. Levanta-se, ageita o fraque e +despede-se</em>).—Muito boa tarde!<span class="pn">{39}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00040">ROMANTICO</a></h1> + +<p class="assin">A<small>O CONDE DE </small>A<small>RNOSO</small></p> + +<p><span class="pn">{40}<br> +{41}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00041">R<small>OMANTICO</small></a> </h2> + +<p>—Ajude-me a servir o chá, primo...</p> + +<p>Levantou-se. Na quasi obscuridade da sala, que tinha uma luz violacea—coada +pelos vitraes onde se curvam lirios roxos—Clara parecia nascer dos tapetes, +como uma graciosa e alta flôr de espuma. «Toilette» branca e ligeira, como +pennas de ave, toda em musselinas, apenas indicando a elegancia do seu corpo +fino, ia morrer no tapete branco...</p> + +<p>Ia por entre os moveis, offerecendo as chavenas onde fumegava o chá +perfumado, que da China trazem lentas caravanas, por tortuosos caminhos. O seu +corpo agil descrevia carinhosas curvas. O ruido das conversas continuava... Um +«flirt» a um canto murmurava, como se as palavras ficassem nos labios. Paulo, +de grupo em grupo, uma chavena na mão, contente por ser alguma coisa, junto +d'ella, tinha na bôcca um sorriso beato.</p> + +<p>N'aquella tarde nem conversava. Entravam<span class="pn">{42}</span> e saiam +as visitas, umas apressadas,—«apenas para saber de ti, Clara»—outras morosas, +dando «rendez-vous» no salão elegante e discreto, onde na meia luz quasi se não +conheciam as pessoas, podia-se estar sem ser visto. E Paulo, calado, n'um +fauteuil a um canto, sorria para si proprio, olhando a figura indecisa de +Clara, os cabellos loiros, na sala como enevoada onde apenas o fogão, por baixo +do para-feu, tinha um brilho vermelho.</p> + +<p>Lembrava-se de todo o comprido caminho percorrido desde aquella noite em +Cascaes, em que o impressionara a graciosidade de Clara, o seu aspecto de flôr +fresca, sempre em «toilettes» leves, abundantes em gazas, crepons tenues. +Certamente que, companheiro e parente, admirára sempre a belleza da prima, mas +seguira outros caminhos, nunca reparára bem para o enigma perturbante dos olhos +verdes, para a elegancia moderna, feita de graça, a gentil figurinha de +Boldini, princeza de cera e de seda, cujas mãos eram dignas de vêr florir entre +os dedos os anneis mais preciosos que Vever e Lalique inventam, em combinações +de moribundas gemas. Nunca olhára bem para ella com olhos de vêr. Habituára-se +desde a puberdade a vêl-a. E seus cubiçosos olhares procuravam outras mais +distantes, que julgava conhecer menos, pelo encanto do imprevisto.</p> + +<p>Mas essa noite! Como lhe apparecia ainda,<span class="pn">{43}</span> depois +de tantos mezes, nitidamente, essa noite d'um ceu leitoso, com uma lua +enevoada, que se espalhava sobre o mar, sem brilho. Na varanda do Casino, quasi +deserta, os Auers incidiam fortemente sobre Clara. No mar, em baixo, fogachos +prateados tremiam. E além, as raras luzes da Cidadella; na Esplanada os focos +esverdeados tiravam da sombra manchas de palmeiras e listravam de luz a agua +inquieta, gemebunda e misteriosa.</p> + +<p>Paulo, recostado n'uma cadeira, olhava a mancha mais negra do yacht real, +apagado, apezar das suas lanternas que tremeluziam no mar. O charuto caíra-lhe +da boca. Foi uma frase preciosa de Clara que o acordou:</p> + +<p>—Quem me dirá um dia a cantilena do mar? Como ella embala! Como seria bom +dormir a ouvir junto de nós a suave cantilena!</p> + +<p>Paulo olhou para ella surprehendido. Pois quê? Clara, a ultima florescencia +dos <em>raouts</em> e dos <em>teas</em>, teria phrases de heroina de Rosseti, +seria leitora de Ruskin? Foi então que reparou nos olhos cheios de sonhos e de +misterio, na bocca dolorosa, a vermelha e fina bocca, no seu collo de infanta +apenas nubil, em toda a adolescencia que se conservava intacta no corpo +precioso, como um fructo no gelo.</p> + +<p>Começou então a seguil-a. Dura lhe foi a vida em theatros, jantares e +bailes. Não faltava a uma <em>sauterie</em>, a uma <em>party</em>, que +d'antes<span class="pn">{44}</span> o deixavam indifferente, ficando nas +interminaveis partidas de <em>bluff</em>. A dolorosa expressão que na bocca se +vincára n'aquella noite do Casino desapparecera; um grande contentamento da +vida parecia boiar á flor dos olhos garços e os movimentos rythmicos, que ella +fazia, como se fosse ao som d'uma musica, eram livres, felizes, sem +promessas.</p> + +<p>Não voltar o abandono d'aquella noite! Paulo desejava que Clara outra vez +abrisse a sua alma, para elle sentir a caricia deliciosa.</p> + +<p>Mas a mulher amada conservava-se indifferente, risonha, um pouco +<em>coquette</em>.</p> + +<p>Para os seus madrigaes escolhidos, preparados com antecedencia, buscados em +livros de auctores novos, phrases perturbantes de Lorrain, perfumados disticos +de Henri de Regnier, licenciosas palavras de Lionel des Rieux, com um sabor +antigo, até o proprio d'Annunzio servira para a pilhagem,—para todos esses +periodos carinhosos ella tinha o mesmo riso, que abria a bocca fina, descórada, +que o traço de carmim violentaria a macerada pallidez da sua face:</p> + +<p>—Ah! Paulo! Ah! Paulo! Apaixonado por mim! Tenho-lhe conhecido tantas +paixões? Só na semana passada, tres!</p> + +<p>—Se não penso senão em si!</p> + +<p>—Quando está commigo? Nem isso!</p> + +<p>—Clara! Clara! Se me conhecesse bem, veria<span class="pn">{45}</span> como +a minha alma se fez para si um fresco bordão de assucenas...</p> + +<p>E outro riso claro cantava na bocca exangue, a troçar da phrase +pretenciosa.</p> + +<p>Uma tarde, n'um <em>garden party</em>, emquanto no <em>court</em> de +<em>tennis</em> as palavras inglezas crusavam-se e os jogadores corriam, a +<em>raquette</em> no ar, elles um pouco afastados, juntos a um macisso de +jasmineiros que floria, cobrindo-se d'uma renda fina e branca de pequeninos +jasmins, Paulo, esquecendo-se das phrases decoradas nos romances, deixou sair +da bocca, livremente, toda a força e toda a anciedade do amor que parecia +abrir-lhe uma chaga no peito, teve palavras em que fulgiam desejos, os olhos +brilhavam, enternecidos, agarrou-lhe nas mãos, encheu de beijos as palmas +roseas, puxou-a para si, e pôde dar-lhe, de surpresa, um grande beijo na bocca, +soffrego, que Clara não pôde evitar.</p> + +<p>Voltada a si do pasmo, espantada pelo insolito atrevimento que a sua ligeira +<em>coquetterie</em> não permitira, quiz zangar-se; mas voltou a rir-se, como +se esse beijo, que lhe deixara na boca um calor de chama, tivesse sido apenas +uma phrase, das grandes phrases de Annunzio, tão cheias de volupia que +entontecem, como os largos calices das magnolias n'um pequeno jardim fechado. E +sempre a sentir na bocca a impressão ardente d'esse beijo, Clara correu<span +class="pn">{46}</span> para o <em>tennis</em>, a querer jogar tambem para +esquecer-se.</p> + +<p>Era d'esse beijo que Paulo vivia, tomado de assalto, como n'uma pilhagem de +egreja.</p> + +<p>E, apesar de Clara continuar a ser indifferente e risonha para elle, +lembrava-se da perturbação que levára á alma ligeira da preciosa bonequinha de +Nuremberg; olhos abertos, continuava a sonhar que esmagava os labios exangues +sobre a pressão da sua bocca ávida.</p> + +<p>Paulo era um romantico. Paulo vivia de pouco, como as aves do ceu.<span +class="pn">{47}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00050">A BISANTINA</a></h1> + +<p class="assin">A L<small>UIZ </small>F<small>ERREIRA DE +</small>C<small>ASTRO</small></p> + +<p><span class="pn">{48}<br> +{49}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00051">A Bisantina</a> </h2> + +<p>No café, diante do <em>cocktail</em> vulgar, eu esperava um amigo. Fôra mais +cedo para a entrevista, de maneira que antes da hora lêra os jornaes, folheára +as revistas, olhára para o relogio, consultára até o barometro, interessado. +Iam saindo os clientes, aos poucos. Conforme se levantavam das mezas, o criado, +n'um <em>crac</em> apagava a lampada electrica. Eu ficára já, n'um canto, quasi +na meia luz. No fundo da sala as lampadas faiscavam nos espelhos, telintavam os +pratos, as discussões cruzavam-se.</p> + +<p>Esperava em vão... Comecei a ceiar.</p> + +<p>D'ahi a pouco um rapaz veiu sentar-se ao pé de mim. Conhecia-o de o vêr nos +cafés nocturnos, quasi sempre em companhia de mulheres faceis, estardalhando, +contando façanhas de orgias nas <em>vadrouilles</em> de Montmartre; de quando +em quando, como n'uma expansão, falava de um quadro que entrevira n'um museu, +alguma<span class="pn">{50}</span> luminosa festa da Renascença, um nú +veneziano, ou preciosas figurinhas dos primitivos, simples e mal desenhadas, +entre brocados de oiro.</p> + +<p>Mas nunca me ligára, correndo a minha vida n'outra direcção. N'essa noite, +admirei-me de elle deixar a bulhenta sociedade que <em>sabrait le +champagne</em>, para se acolher ao silencio, á quasi obscuridade.</p> + +<p>A principio bebeu a pequenos goles o Bucellas que mandou buscar. Tinha o ar +de quem hesita em praticar um acto, o recolhimento subito d'um gesto esboçado, +ensimesmava-se, enchia novamente o copo, lia attentamente o rotulo da +garrafa.</p> + +<p>Por fim debruçou-se para a minha meza:</p> + +<p>—O senhor gosta de coisas exoticas, das mulheres finamente perversas, do +brilho das podridões...</p> + +<p>—Ó, não! Apenas do <em>faisandé</em>!...</p> + +<p>—É uma questão de palavras... Tudo o que é ambiguo, perturbante, insexual, +tenta-o; compraz-se no esmiuçamento das taras, é o chronista do irregular, do +<em>à coté</em>. Prefere as monstruosas orchideas ás rosas, o enigma dos +Vincis, á belleza forte dos Rubens. Deixa-me contar-lhe uma historia?</p> + +<p>Por certo que a minha phisionomia traiu o receio da maçada eminente. Toda a +gente imagina que a sua vida é um «motivo» interessante<span +class="pn">{51}</span> para um livro. E eu tenho deixado cair, como folhas +secas, tantos casos que me contam, compridamente, com meandros de detalhes!</p> + +<p>—O senhor tem o dever de me ouvir e não se arrependerá! O senhor é um +psicologo...</p> + +<p>—Não faço profissão...</p> + +<p>—Não importa. Tem obrigação.</p> + +<p>—N'esse caso...</p> + +<p>Resignei-me.</p> + +<p>O noctambulo começou a contar. Tinha a linguagem pittoresca, imageada, +parecia comprazer-se com a sua phrase. Notei-lhe grande copia de +estrangeirismos. Mas o caso pareceu-me interessante. Aqui o deixo registado.</p> + +<p>—Comprehende que eu, <em>fetard</em> cançado, que tenho visto museus entre +duas ceias no Maxim ou no Carlton, que aprecio mais o <em>tea-room</em> do +Grand Hotel, de Roma, que o <em>Salon Carré</em> do Louvre ou a sala de +Velasquez, no Prado, só lhe poderei fallar da mulher ou do amor. E das mulheres +que tenho conhecido, um pouco por todo o mundo, d'aquellas que teem ficado com +um pouco da minha mocidade entre os dentes brancos ou os dedos esguios, só me +recordo da ultima, que é a melhor e a peior, a que faz rir e soluçar, curva-nos +n'uma somnolencia em que nos apparece muito mais bella do que é realmente, +cingida com todas as joias com que a nossa phantasia a enfeita, mais cruel +tambem, porque o amor torna mais cruciante<span class="pn">{52}</span> as +dores, intensifica o desespero, cria a halucinação da Magua, inventa a Chiméra +da turtura, essa Chimera de afiadas garras que nos retalham... Estou muito +eloquente. Faça-me signal, quando lhe parecer Cicero...</p> + +<p>Imagine que conheci, n'uma pequena cidade italiana onde me fôra curar d'uma +paixoneta recente, uma creatura singular, cujo encanto me prendeu quasi de +subito. Era uma figura de bisantina, atavismo talvez, influencia das pinturas +de Ravenna, onde passára a mocidade. E, artista, cultivava essa feição, +arranjava penteados hieraticos, sem complicadas e rutilantes gemas, que o cofre +do pae, mediscatro qualquer, não era abundante, mas com flores, essas rosas +vermelhas de Pæstum, que ella propria cultivava, amorosamente, no pequeno +jardim de sua casa. O que tinha de bisantina realmente, era a bocca fresca, a +bocca innocente que sorria apenas, n'uma candura de primeira commungante, uma +bocca que deixava em nós a impressão de que era um seraphim a sorrir. E não +apetecia beijal-a: apenas quedar-se a gente deante d'ella á espera que nascesse +a claridade auroral do sorriso, em que mostrava levemente o traço branco dos +pequeninos dentes. Mas os olhos escuros desmentiam toda a infantilidade da +bocca, o aspecto angelical do seu corpo magro d'adolescente, o collo branco e +purissimo. Os olhos brilhavam como n'um<span class="pn">{53}</span> assalto, a +ferir, sem ternura, no fundo uma repulsão ou um escarneo...</p> + +<p>Essa mulher tentou-me. Largos mezes fui todos os dias á sua casa onde me +recebeu com palavras dulcissimas. Estendia-me a mão deliciosa para beijar, +dizia-me frases que entonteciam como um vinho aspero, fazia passar por mim o +perfume forte que punha nos longos cabellos, que ás vezes caíam pesadamente da +cabeça, estendiam-se pelas costas, como uma rosa que se desfolha, d'uma vez, da +haste. Ás vezes furtivamente, apertava-me a mão com força. E sorria-se +ingenuamente a face de perola, eu via a innocencia de toda aquella figura, +porque ella fechava os olhos, como se todo o seu ser adormecesse n'um +espasmo.</p> + +<p>Ao sair, tinha remorsos de não ter beijado a bocca fresquissima, de não ter, +sob a pressão dos meus labios, maguado os olhos maus.</p> + +<p>E toda a noite soluçava, enraivecido a desejal-a, até que de tarde ia +visital-a, encontrava-a estendida, n'uma atitude de imperatriz, bisantina, em +sedas <em>moirées</em>, toda a gama do verde e do lilaz, a garganta descoberta. +E n'um gesto estudado, estendia-me a mão, que eu beijava longamente, essa mão +em que as gemas não brilhavam: escuras, opacas, pedras finas, opalas, como +gottas de agua d'um lago envenenado.</p> + +<p>E a scena repetia-se. Eram perturbadores oaristos, que deixavam os nervos +tensos e vibrantes.<span class="pn">{54}</span> Na voz amortecida e doce, dizia +as palavras magicas que accendem fogachos. E quando ella via toda a minha Alma +arremessada para ella, tinha o fechar de olhos, abria o sorriso celeste, e eu +fugia com medo de mim e com medo d'ella. Como? Uma creança ingenua! Era preciso +fugir!</p> + +<p>Um dia tive que partir.</p> + +<p>Tinha, na pequena cidade, perdido largos mezes. Fui a uma ultima entrevista, +chorei como uma creança ao dizer-lhe a magua immensa de a deixar. Contei-lhe +toda a tortura d'aquelle tempo de infinita delicia e infinita tortura; pela +primeira vez disse-lhe claramente, entre lagrimas tristes, quanto amára todo o +seu ser, todo o seu corpo flexivel, todo o seu espirito cançado, mas mesmo +assim brilhante. Que me dissesse uma palavra de esperança, que me deixasse +levar uma harmonia divina, uma palavra de amor!</p> + +<p>Teve uma frase, apenas, com uma expressão de immenso sentimento:</p> + +<p>—E não trouxe um fonografo!<span class="pn">{55}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00060">MÁ-LINGUA</a></h1> + +<p class="assin">A J<small>OSÉ </small>L<small>EITE </small>N<small>OGUEIRA +</small>P<small>INTO</small></p> + +<p><span class="pn">{56}<br> +{57}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00061">M<small>Á-LINGUA</small></a> </h2> + +<p>N'aquella mesa de <em>bluff</em>, era feroz a <em>debinage</em>... Apenas o +Barros, que ganhava com uma <em>veine</em> espantosa, sorria beatificamente, +cheio de indulgencia, e para as arrojadas arremettidas dos parceiros, tinha +sempre a mesma phrase:</p> + +<p>—Mais caridade, meus senhores...</p> + +<p>Eram sempre occasiões em que o Leite mostrava «quatro cartas» ou «street +flesh.»</p> + +<p>O baile, na sala proxima, corria animado. As valsas, o pas-de-quatre e as +quadrilhas martelladas ao piano, tinham concorrencia. E uma ou outra que fugia +do calôr, para as salas de jogo, era apanhada na passagem, amarfanhada, +esmiuçavam-lhe a chronica, apimentada de notas ineditas, calumnias talvez.</p> + +<p>—A Gracinda Fortes!</p> + +<p>O conde de Marvilla teve um sobresalto. Voltou-se para trás. A Gracinda +vinha com um vestido de tonkin cinzento que mostrava toda a<span +class="pn">{58}</span> graça fragil do seu corpo magro. O conde commentou, +eriçando mais o bigode loiro, cortado á ingleza:</p> + +<p>—Um cabide para vestidos!...</p> + +<p>—Mais caridade!...</p> + +<p>—Ah, já sei: tem pelo menos um flesh na mão... Passo!</p> + +<p>Depois, olhando ainda a figura esbelta que sahia...</p> + +<p>—Mas ella não é uma mulher—é uma boneca de Nuremberg!... Vejam o andar +articulado, mechanico... Tudo aquillo se mexe por molas! E aquella cabeça +d'arara a dar a dar, como se estivesse presa ás espaduas por um parafuso lasso? +E depois, meus amigos, ella é toda postiça... O cabello loiro pertenceu já a +tres cabeças... É uma mulher feita de collaboração por um cabelleireiro, um +droguista e uma costureira. Tudo aquillo é sustentado por baleias e faixas, +senão desabava, de lasso... Imaginam que o marido está arruinado por causa dos +vestidos? Não: pelos cosmeticos... Á quantidade de drogas que anda por aquella +pelle é inconcebivel. Já repararam em como se não decóta nunca, completamente, +que o collo é sempre coberto por uma gaze ou uma renda? É que a pelle, +estragada por uma pitiriasis qualquer, esfarella-se. Todas as manhãs a creada +de quarto tira-lhe kilos de farellos da cama. E já não pode com o serviço de +maquilhagem—tapar<span class="pn">{59}</span> buracos, concertar rugas, +pés-de-gallinha, disfarçar sardas e signaes de variola—manda chamar um +trolha...</p> + +<p>—Seu amante?</p> + +<p>—Talvez... Para a rebocar. Para que ande, é preciso dar-lhe corda. Anda +sempre da mesma maneira, ás continencias, cabeça para cima e para baixo, como +um d'esses bonecos movidos por relojoarias. Imagina que aquillo é o andar +rythmico das parisienses, esse andar leve e airoso como o d'um passaro... É +parisiense, é: tambem são parisienses as macacas que nascem no <em>Jardin des +Plantes</em>... Ainda por cima, velha. Não tem frescura nem mesmo nos olhos +parados, conçados do espelho. A pelle despega-se da carne e na cara faz +papeiras em feitio de bambinellas. E toda aquella pintura, ás chapadas, faz +sombras, augmenta-lhe as papeiras...</p> + +<p>—Tens-lhe odio!...</p> + +<p>—Não, tenho olhos. Não é preciso mais. Por causa d'ella lá me fez você um +<em>bluff</em> sem eu dar por isso...—Conheço-a muito. Veiu da provincia e por +ahi andou a mostrar ao Chiado e á Avenida as suas <em>toilettes</em>, como um +manequim de loja de modas em furor de reclame. Ninguem a recebia, senão as +casas em delirio de festas, onde a ida d'um conde, dos feitos ultimamente ás +canastradas, enche de jubilo os amaveis donos da casa, como se diz nos +jornaes.<span class="pn">{60}</span> Mas a sua ambição era do podre-de-chic, e +não podendo suppôr-se com sangue azul—a mercearia do pae, ainda lá está a +falsificar—imaginava-se com o chá das cinco horas nas veias... Um chá +requentado como o espirito d'ella, estudado em velhos almanachs.</p> + +<p>Emquanto não entrou na sociedade, vestia-se seis vezes ao dia, e nos +intervallos injuriava o idiota do marido, essa bola de cebo com suissas +brancas, que, atolambado, não lhe respondia que não tinha culpa de não +convidarem uma amostra de cocotte do Maxim para casas de familias honestas. E +era uma vida dura, atroz, n'aquella casa, ella de mau humôr, acre, dizendo +horrores na voz impertinente, sem inflexões, monocorda, e elle angustiado, +sempre em calculos diabolicos para saldar as contas monstruosas que lhe mandava +o Goodefroy, dos cosmeticos e <em>postiches</em> com que se engalanava a +mulher.</p> + +<p>A vida n'aquella casa! Vocês não calculam a expressão dura, injuriosa, que +se estampava n'aquella cara agora risonha, quando recolhia, á tarde, cançada de +fazer a Avenida, quasi sem um chapeu a comprimental-a, sem meios para ter uma +carruagem, olhando, gulosa, as pessoas chics que passavam, sorrindo ás +saudações. E na mesa de jantar, silenciosa, apenas se ouvia o tilintar dos +talheres e uma ou outra phrase grosseira ao Fortes, que abanava a cabeça,<span +class="pn">{61}</span> todo elle se agachava, no receio, talvez, d'um prato ou +d'um copo arremessado na furia.</p> + +<p>Depois das refeições, separavam-se, elle para a rua tomar ar, fugindo da +perigosa visinhança, ella a arrastar-se nos quartos, a enfeitar-se de joias, +punha-as todas, enchia as mãos d'anneis, rodeava a garganta magra com todos os +collares, enchia os braços de pulseiras quasi até o cotovello e via-se ao +espelho estudando sorrisos, gestos de comprimento para os grandes bailes a que +havia de ser convidada um dia.</p> + +<p>—Para fallar d'esse modo é preciso ter sido <em>éconduit</em>...</p> + +<p>O conde córou, encolheu os hombros:</p> + +<p>—Ás vezes não se levantava da cama em dias de chuva em que se tornava +impossivel fazer a parada nas ruas, <em>troteuse</em> á cata d'olhares: vestia +uma camisa de noite de que cahiam <em>valenciennes</em> e cobria a cabeça com +pentes e travessas d'oiro com pedras finas, e as mãos floriam-se de toda a +collecção d'anneis. Era oiro por toda a parte, sem fallar nos dentes em que se +combinavam todos os metaes e todas as massas. Ouvi que se lhe podia dirigir o +epigramma de Marcial: Não te rias porque só tens tres dentes e esses mesmos são +de buxo.</p> + +<p>—Conheces tão intimamente?</p> + +<p>—Pela creada do quarto... Agora, saracoteia-se, esqueleto feito manequim, +arrebanhando os rapasolas inexperientes para <em>flirts</em>—ó<span +class="pn">{62}</span> só <em>flirts</em>! não por virtude ou amor conjugal, +mas porque a pitiriasis não permitte o desnudamento—<em>flirts</em> que +acabavam logo que um mais affoito fallasse em beijar a pelle perfumada.</p> + +<p>—Schiu! Lá vem ella!</p> + +<p>O conde olhou para a porta, por onde entrára, fina e flexivel como haste +florida, a Gracinda Fortes. A bocca pequena, que o cosmetico fazia sangrar, +abria-se n'um sorriso fresco, que mostrava os dentes brancos. E de todo esse +corpo magro exhalava-se, como um perfume que entontece, um encanto +perturbante.</p> + +<p>E seguiu-a com os olhos, commovidamente, até que desappareceu, como um +sonho... <span class="pn">{63}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00070">A RAINHA DE SABÁ</a></h1> + +<p class="assin">A E<small>UGENIO DE </small>C<small>ASTRO</small></p> + +<p><span class="pn">{64}<br> +{65}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00071">A R<small>AINHA DE </small>S<small>ABÁ</small></a> +</h2> + +<p>Balkis esperava. Entre as sumptuosidades do seu palacio de Mareb, a Rainha +vivia, solitaria, escondida, só com a sua belleza.</p> + +<p>Em vão os povos e os senhores, ouvindo fallar da immaculada formosura +accorriam dos remotos reinos onde a sua lei governava, Sabá, Mareb e Yemen, e, +defronte do palacio immenso e fechado, pediam para vêr a deslumbrante +adolescente. Em vão os sacerdotes quizeram vêr os olhos puros. Ninguem o +conseguiu.</p> + +<p>Apenas uma velha ama a vira nua, quando menina. Era como um lirio o seu +corpo.</p> + +<p>Sete aposentos eram os da Rainha. E cada uma das sete portas uma chave +d'oiro fechava. E no ultimo, a rainha vivia. Grandes espelhos de cobre +mandavam-se uns aos outros, como écos, a imagem quasi divina. E Balkis, apenas +vestida de joias, passava os dias na contemplação<span class="pn">{66}</span> +dos intactos esplendores da sua adolescencia.</p> + +<p>Entravam pela janella que abria sobre o jardim fechado e callado, os pavões +brancos e os pavões polichromos. Aquelles formavam, estendendo as caudas, +pequenas luas macias; estes faziam fulgir constellações, doçuras de velludos, +coruscantes gemmas. E Balkis era mais branca do que os pavões brancos, mais +brilhavam as suas cinturas e manilhas pesadas do que as caudas +scintillantes.</p> + +<p>Nas noites escuras sahia ao jardim. Deixava cair entre as moitas de flôres, +a cintura, as manilhas, os anneis e o diadema. Soltavam-se-lhe os cabellos +d'oiro, que eram, no ar azul escuro, como um cometa pallido; e nua, como uma +flôr graciosa, dirigia-se para o tanque de marmore onde adormecera a agua +perfumada. Os seus pés, ao entrar no tanque, eram como um raio de lua...</p> + +<p>Deitada no tanque, os braços abertos, as mãos á tona d'agua, como dois lótos +brancos, Balkis espreitava o ceu onde se movia o doirado formigueiro d'astros. +As estrellas vinham reproduzir-se na agua, como molhadas flôres d'oiro, em +indecisos contornos; uma lhe brincava no seio, quasi á flôr d'agua. Era como +uma joia a correr, com o movimento do corpo. Ás vezes, n'um gesto mais largo, a +gemma cahia, para outra vez voltar, n'uma festa, a percorrer<span +class="pn">{67}</span> todo o corpo branco, que era, na agua escura, polvilhado +de brilhos, como um nenuphar enorme, em que se agitassem grandes abelhas +fulgentes.</p> + +<p>Depois, quieta, ouvindo sómente, de quando em quando, o ruido ligeiro das +flôres que tombavam, murchas, na areia discreta do jardim, os braços a appoiar +a cabeça, como um diadema feito de duas hastes d'açucenas, a Rainha pensava.</p> + +<p>E esperava...</p> + +<p>Balkis esperava o noivo que havia de vir.</p> + +<p>De todas as partes, chamados pela fama da sua belleza, dos seus thesouros ou +dos seus exercitos, tinham acorrido os principes da Asia. Poetas uns, avaros +outros, na maior parte guerreiros, todos vinham em cavalgadas surprehendentes, +cobertos d'oiro e de joias. No seu throno altissimo d'oiro e prata, invisivel, +mas a todos vendo, a Rainha ouvia as imagens aladas que fulgem e perfumam, a +descripção dos poços profundos, abarrotados de barras d'oiro, de vasos de +cobre, de moedas de todos os feitios, de pedrarias de todos os brilhos; +diziam-lhe historias compridas de cruentas façanhas, batalhas mortiferas em que +as flechas e as espadas, a bater contra os escudos, produziam chispas de +incendio, contra os corpos, rios de sangue. Os guerreiros, com o desejo de +augmentar os exercitos bellicosos, aprendiam<span class="pn">{68}</span> uma +eloquencia calorosa. Eram os que mais fallavam, regosijando-se com a recordação +das chacinas. Mas a um signal da Rainha iam-se, despedidos, os poetas com as +lagrimas nos olhos, as cabeças curvadas, como sobre o peso das mithras, os +avaros e os guerreiros batendo com força, nos ladrilhos polichromos, as +sandalias ligeiras.</p> + +<p>E Balkis voltava para o recuado aposento do seu palacio populoso. Alli, só, +admirava nos espelhos a gracilidade do seu corpo esbelto e firme. Deixava cahir +sobre o corpo branco, como uma flôr inundada de sol, o cabello loiro.</p> + +<p>Depois de admirar toda a sua belleza, Balkis dizia-se:</p> + +<p>—Aquelle que eu amar possuir-me-ha intacta, como uma flôr que vive no meio +d'uma floresta guardada pelos Medos. Ninguem lhe aspirou o perfume, ninguem viu +a côr deslumbrante, ninguem a maculou. N'esta terra cheia de sol, em que as +côres não brilham, ardem, e as cassoletas não perfumam, estonteiam, eu sou +branca, o sol nunca me viu. Entre os muros dourados dos meus sete aposentos, a +vida é quieta e facil!</p> + +<p>Balkis esperava.</p> + +<p>Os mezes passavam ligeiros. No jardim fechado, as rosas desabrochavam, +perfumavam e morriam. Outras vinham com egual brilho e egual frescura, enormes +rosas escarlates, como<span class="pn">{69}</span> boccas em que os beijos +deixam feridas, do desejo intenso. Balkis conservava, no seu corpo nubil, +intactos, os esplendores d'uma adolescencia eterna. Untava-se com oleos, +alisava com pentes d'oiro os seus cabellos d'oiro. Vestia-se apenas com joias, +joia ella mesma. E nos seus olhos azues, largos e serenos, brilhava a +mocidade.</p> + +<p>Não a viam olhos humanos. Nenhum desejo maculou o seu corpo.</p> + +<p>E quando Salomão, filho de David, que no seu palacio de Jerusalem tinha mais +concubinas que de estrellas ha no ceu n'uma noite de lua, quando Salomão a veiu +buscar, ella entregou-se-lhe, pura, radiosa e immaculada, como uma flôr +crescida n'uma floresta insondavel, cujo perfume ninguem aspirou.</p> + +<p>Virgens, guardae para o desconhecido Amado, o vosso corpo e a vossa alma, +como, se é verdade a lenda arabe, para Salomão, filho de David, guardou Balkis, +Rainha de Sabá!<span class="pn">{70}<br> +{71}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00080">CHIARA LILIAM</a></h1> + +<p class="assin">A V<small>ICENTE D'</small>A<small>RNOSO.</small></p> + +<p><span class="pn">{72}<br> +{73}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00081">C<small>HIARA </small>L<small>ILIAM</small></a> </h2> + +<p>Barcelona e o seu porto com incendiados espelhamentos de sol nas aguas que +se agitam em pequenas ondas, aguas-fortes de mastros a distancia, toda a +geometria do horizonte cinzento cortado pelos perfis dos vapores! Ha dorsos +vermelhos de navios, nodoas negras das barcaças de carvão, até a florescencia +d'um yacht que emerge entre a poeira negra da fumaraça, e os fardos, e as +pipas, como uma delgada flôr de prata...</p> + +<p>Para alem da cinta da docka, ao rez do mar, o ceu toma tons brancos que se +esbatem e degradam na ascenção, accentuando-se na cupula um azul fino. E os +vapores passam, pequeninos, carregados de vagas multidões para Barcelonete.</p> + +<p>Para alem da formidavel estatua de Colombo, as Ramblas sacodem os ramos +verdes dos platanos e o Tibidabo recorta-se, escalvado.<span +class="pn">{74}</span></p> + +<p>—É ámanhã o vapor para Mallorca, informam-me.</p> + +<p>Volto para traz, deixando o ruido dos guindastes e das sereias, a bulha dos +catraeiros e descarregadores, para entrar n'outro bulicio tão grande, o zumbido +dos milhares de boccas que cruzam a Rambla, as campainhadas dos tranvias, a +buzina dos automoveis, com gritos diversos, pragas, pregões, injurias guturaes +dos catalães furiosos.</p> + +<p>Sentira desejos de vêr Palma de Mallorca em que me fallára Teixeira Gomes, +as suas egrejas caladas, os seus palacios antigos. Por elle sabia que a cidade +conservára-se immovel, tipica, como no principio do seculo XIX. E a sua +conversa luminosa e pittoresca acirrara-me o desejo de visitar uma terra que, +na convulsa marcha do seculo industrial, immobilisára-se nos seus antigos +sonhos de pedra.</p> + +<p>Aborrecera-me já Barcelona, commercial, trabalhadora, respirando pelas mil +boccas das suas chaminés; parecia que a alma da cidade andava triturada pelos +poderosos engenhos das suas fabricas. Vira os seus theatros, os seus museus, +Santa Maria de la Mar perdida entre o casario; mas em toda a parte o commercio +abria ruas, estendia fazendas, crusavam-se os <em>camions</em>.</p> + +<p>Ah! Salamanca parada e quieta, a morrer n'uma agonia d'oiro! As saudades que +tive da<span class="pn">{75}</span> paz das suas ruas bordadas de egrejas e de +palacios, das cathedraes sumptuosas e desertas, das pequeninas parochias, onde +se descobrem ainda, atravez dos vandalismos, curvas d'arcos romanicos, flores +de capiteis graciosos; de Santo Esteban e o seu claustro que a hera invadiu, do +balneario, antigo claustro de convento e do Monterrey maravilhoso, da +Universidade quasi sem estudantes!</p> + +<p>Aborrecia-me Barcelona, toda entre arvores, Barcelona e o soturno Monjuich +com a lenda dos supplicios dos anarchistas.</p> + +<p>Ainda um dia! Era preciso depois de jantar subir á <em>Gran Via</em> e ir ao +tumultuoso café ouvir a gritaria ensurdecedora, passear pelas Ramblas entre uma +multidão compacta que espairece, vêr as caras angustiosas dos operarios, sempre +na vespera d'uma revolta, e os pobres que nos perseguem pela esmola, e as +raparigas sujas, enrugadas, que se offerecem, n'um chale rôto.</p> + +<p>Ao entrar no «Paseo de la Aduana» para esperar um tranvia que me levasse ao +Parque, vi passar n'uma carruagem, fresca, toda vestida de branco, como um ramo +de goivos brancos, Chiara Liliam, a cantora italiana que mezes antes conhecera +em Genebra, no Kursaal, e com quem passeára no Leman, pelas tardes quietas de +agosto e pelas noites de luar, ouvindo-a cantar, não as operas transcendentes +com<span class="pn">{76}</span> que regalava os suissos e inglezes, mas +ligeiras canções napolitanas, que tomavam na sua bocca uma voluptuosidade mais +fina e adormeciam, envenenando-as, as nossas Almas.</p> + +<p>Ah! Chiara Liliam! As tardes limpidas e serenas em que vimos a paisagem +doce, fecunda, do cantão de Genebra, no vapor da carreira, alheiados das +inglezas de Cook, de dentes monumentaes e <em>canotiers</em> ridiculos! E as +noites frias, em que deixavamos o Kursaal e os <em>petits chevaux</em> e iamos, +costeando o caes illuminado, n'um pequeno bote que o ruivo barqueiro conduzia +serenamente, respirar a delicia do luar pastoso, que parecia ter em si um pouco +da neve do Monte Branco!</p> + +<p>Lord Carnehan, o seu amante, acompanhava-nos. A tristeza da sua face, de +todo o seu corpo cançado! Parecia ter sentido, aquelle rapaz de trinta annos, +todo o travo da vida, visto desfolhar-se, uma a uma, todas as illusões, as +ambições murchar, como quem assistisse ao incendio de todos os seus haveres e +dos proprios castellos no ar que a sua mente creára.</p> + +<p>Nem alcoolico, nem etheromano, abominando a morfina e a cocaina, tomando uma +leve taça de café, apenas, resignára-se na vida, «deixava-se morrer», dizia.</p> + +<p>Andava com Chiara, porque era preciso ter uma amante, como uma +<em>ecurie</em>, um palacio em<span class="pn">{77}</span> Londres, um castello +na Escocia e uma villa na Riviera, decorada por Burne Jones.</p> + +<p>Chiara Liliam era a sua vontade. Ia para onde ella quizesse, para fazer +alguma coisa e não ficar, no hall do Metropole Hotel, de olhos pasmados para os +decotes largos das <em>ladies</em>, que liam jornaes.</p> + +<p>Mas nenhum amor, nem mesmo sabia, talvez, se era macia a pelle da cantora. E +assim viviam, ella feliz pela liberdade, risonha como um galho +d'<em>eglantines</em>, elle, com uma razão de viver: acompanhar Chiara.</p> + +<p>Chiara, que viu o meu cumprimento, mandou-me subir para o trem.</p> + +<p>—Venha comigo ao parque... se não tem melhor...</p> + +<p>—Ia justamente para lá aborrecer-me...</p> + +<p>—Então venho a proposito...</p> + +<p>Perguntei-lhe por lord Carnehan.</p> + +<p>—Ó meu Deus! Lord Carnehan tornou-se para mim uma obsessão. Era como um +vidro negro que me punham nos olhos para eu vêr a vida. Nada me parecia claro, +luminoso, florido. Julgava olhar sempre para dentro d'um poço secco. Essa +creatura estragou-me alguns mezes de existencia. A principio ainda eu ria, pelo +movimento adquirido. Mais tarde, porém, o riso desappareceu. Sempre aquelle +somnolento homem que só abria a bocca para perguntar pelas horas, como se +tivesse pressa<span class="pn">{78}</span> d'alguma coisa, elle que não fazia +nada, ou para dizer alguma sentença, um aphorismo de Schopenhauer ou d'alguns +dos fulminantes catholicos, á maneira hespanhola, sombrios, repulsivos. Comecei +a olhar para o espelho, a vêr se sabia rir. Não sabia. Vinha uma careta ao +contrahir a bocca; parecia-me de pedra os labios, ao querer abril-os n'um +sorriso. Quiz mortifical-o, fazer com que, atraz de mim, os amorosos corressem; +empreguei, ante os seus olhos pardos, o requinte do coquetismo; mostrei todo o +artificio de mulher e de actriz. Nada. Sempre lord Carnehan indifferente, a +cabeça sobre o peito, as mãos pendidas, a perguntar-me periodicamente:—Que +horas são? De quando em quando, sem lhe dizer aonde ia, deixava-o todo o dia; +ás vezes, aborrecida, nem ia á rua. Ficava no meu quarto, as lagrimas nos +olhos, a vêr o movimento dos <em>bateaux-mouches</em> a atravessar o Leman; os +raros automoveis que passavam pela rua e alguns ranchos de forasteiros +arregimentados pelas agencias. Arrastava-se o tempo; defronte de mim, o lago +que á esquerda se curva, limpido, transparente. Na outra margem, o parque Jean +Jacques, alinhado e limpo, como um desenho do concurso. E era alli, á direita, +a arvore que dera sombra, na tarde criminosa, em que o anarchista matára a +Imperatriz Isabel. Pensava no fim tragico que ali procurara, sob um pequeno +platano viçoso,<span class="pn">{79}</span> a alma aventureira e poetica, a +dama de todas as viagens, que vira tantos ceus ensolados e tantos mares em +procella... Quando voltava, de proposito despenteada, com muito rouge na face, +a fingir córada, lord Carnehan levantava com esforço os olhos para mim e +perguntava-me, na voz pausada, sem um estremecimento:</p> + +<p>—Que horas são?</p> + +<p>Eu era o relogio, para elle! N'essa terra fria, geometrica, regular no +andamento como uma machina—a alma de Genebra é um relogio—eu não era nada +mais do que um chronometro em que se tem confiança. Um dia, furiosa, comprei um +relogio e offereci-lh'o. Imagina que acabou a historia? Não. Comecei a +fazer-lhe scenas, a dizer-lhe improperios em calão dos bairros infimos de +Londres—uma artista conhece tudo e o resto—phrases de marujo; elle ouvia, +ouvia, e depois tirava o relogio da algibeira e dizia-me:</p> + +<p>—Por força que este relogio atraza! Que horas são?</p> + +<p>Quiz matal-o. Uma noite entrei no seu quarto. A lamparina envolvia tudo em +penumbra. Até a dormir tinha o ar cançado. Levava uma mascara de cloroformio... +Conhece o conto de Lorrain sobre as mascaras de Londres? foi n'elle que me +inspirei... Ia para lh'a pôr na cara e acabar com elle. Tropecei n'uma +cadeira.<span class="pn">{80}</span> Carnehan acordou sem sobresalto. Olhou +para mim:</p> + +<p>—O quê? já manhã? Que horas são?</p> + +<p>Não! Não era possivel! Pensei em atirar-me da janella abaixo. Não podia mais +com a vida. O diabo é que estragava o penteado! Resolvi fugir. Fiz as malas, +guardei joias e dinheiro, rompi a escriptura com o emprezario, perguntei por +minha vez que horas eram a Carnehan—a cara que elle fez!—e metti-me n'um +comboio e vim para a Hespanha, onde ha sol, ha muito sol e não quero nunca +saber que horas são!»</p> + +<p>A sua face parecia uma flôr de perola, e na bocca fortemente pintada um +sorriso brilhou...<span class="pn">{81}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00090">A MARCIA</a></h1> + +<p class="assin">A S<small>ILVA </small>G<small>RAÇA.</small></p> + +<p><span class="pn">{82}<br> +{83}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00091">A M<small>ARCIA</small></a> </h2> + +<p>Aquella velha encarquilhada e ignobil que encontrei na estrada de Cascaes, +pelo crepusculo suave, tinha uma historia.</p> + +<p>Estava bebeda. A bocca onde dois unicos dentes se mostravam, careados, no +gargalhar, a bocca de beiços finos e roxos, sabendo a alcool e a podridão, +tinha gritado dores, tinha tambem beijado.</p> + +<p>Contou-me tudo, como n'um vomito. Caiu-lhe d'um jacto toda a sua historia e +toda a sua alma; e pareceu-me que o crepusculo que fazia de perola o horizonte +longiquo e trazia a calma á ligeira inquietação do Mar, se enchia de gangrenas, +extravasava lodo, manchava o Ceu purissimo em que nem um farrapo de nuvem a +esgarçar-se perturbava o estranho socego.</p> + +<p>No mar azulado, pairavam, sem velas, as faluas da pesca. Ao longe +esfumavam-se as<span class="pn">{84}</span> montanhas que correm para o +Espichel, mais acentuadas na poeira de cinza e de perola do horisonte. A baixo +da estrada corre a fita d'oiro fosco do areal, que nas angras se alastra, para +desapparecer nos cachopos violaceos. É toda debruada d'oiro a larga curva da +Cidadella ao Hospital de Parede. As pequenas ondas, na tarde quieta, vinham +franjar de renda branca a seda do areal.</p> + +<p>Eu seguia do Estoril para Cascaes. Queria vêr ainda o mar, fixar em imagens +subtis a palpitação dos ultimos brilhos solares na agua, conhecer como vivem e +estremecem, sob a agua azul, as longas petalas de luz multicôr e fina em que +desabrocha o poente; diluir toda a minha alma na Paz da tarde, que, por ser +tamanha, dava a illusão de ser eterna. E a velha não me deixava! Ia atraz de +mim a gargalhar, desfiando, por entre os labios resequidos, palavras +desconexas, chamando-me a attenção.</p> + +<p>O velho trapo! Na cabeça calva a cuia á banda era grotesca. E no movimento +sacudido da embriaguez e do <em>delirium-tremens</em>, as vestes esgarçadas +pareciam agitar bandeirolas, saia de farrapos, corpo de lona.</p> + +<p>E não me deixava! Comigo cruzou a linha ferrea, parando para, as mãos +abertas sobre os olhos, espreitar se vinha algum comboio.</p> + +<p>Como sombra minha atravessou as ruellas<span class="pn">{85}</span> de +Cascaes, o passeio Maria Pia. Passámos a <em>villa</em> Arnoso e a +<em>villa</em> O'Neill.</p> + +<p>A noite caía do Ceu resignadamente. O mar escurecia.</p> + +<p>Por certo que o ar fresco da tarde diminuira a embriaguez, porque as +palavras formavam serie, embora as dissesse n'uma toada de cantilena.</p> + +<p>Sentei-me nos rochedos da Boca do Inferno. Ouvia-se o confuso lamento do mar +na cova onde se agachava uma sombra mais densa.</p> + +<p>A velha não podia suster mais tempo a sua historia. Sentou-se ao pé de mim e +contou-m'a. Ha pessoas que teem a alma pequena. As imagens intensas e poderosas +não podem viver lá dentro. É preciso que as deitem para fóra. É por isso que os +bebedos são em geral loquazes e indiscretos. A capacidade psychica +conservando-se a mesma e engrandecendo-se as imagens pelo poder ampliatorio do +vinho, elles fallam, confessam-se, vão sós pela rua a dizer os seus segredos; +foi por isso que a velha me contou a historia, como a podia ter contado a um +poste do telegrafo ou a um pedregulho da praia.</p> + +<p>—Se me visse quando eu era nova! Ih! Ih! Não tinha esta cara, não, nem só +estes dois dentes—e um d'elles já abala! Era bonita! Era loira. Tinha os olhos +azues. Que elles agora, de chorar pelas desgraças e de chorar com o<span +class="pn">{86}</span> vinho, já não teem côr. Olhe para elles, não tenha +medo!</p> + +<p>Não tinham côr os olhos. Dentre as palpebras vermelhas e sem cilios eram +deslavados e estupidos.</p> + +<p>—E os meus cabellos louros e finos! Tenho só algumas mechas brancas, porque +começaram a cair aos punhados d'uma doença que tive. E fiquei assim com a +cabeça... E embranqueceram-se os que ficaram...</p> + +<p>Tirou a cuia. Metia nojo essa bola em que luziam chagas. Raras mechas de +cabello a enfeitavam. A velha tornou a rir-se, o mesmo ih! ih! contrafeito em +que abria a bocca putrida.</p> + +<p>—O meu corpo era lindo, delgado e forte. Os seios eram brancos e firmes. +Olhe como ficaram!</p> + +<p>Tirou, n'um sacão, da bluza encardida e rota, os seios murchos que +bambolearam como dois figos a desprender-se d'um galho. E depois contou, +atropellando as palavras, a querer acabar a historia, para se vêr livre d'ella, +como se se esquecesse, m'a transmitisse, com o encargo da sua angustia, e +podesse, sem esse pezo, caminhar mais ligeira, ferindo menos os pés descalços +nas pedras das estradas e nas silvas dos atalhos.</p> + +<p> </p> + +<p>O pae era um pequeno lavrador, que vivia feliz entre as suas vinhas e os +seus milhos.<span class="pn">{87}</span></p> + +<p>Um dia casou com a mãe, uma pobre rapariga da cidade, que cozia a dias. +Louçã, fresca, de grandes olhos claros, gostava dos vestidos de seda, dos +brincos d'oiro e das rendas. Depois do primeiro anno, tiveram Marcia, que poz +no lar contente um ponto de luz. Em volta d'ella os carinhos adejaram. E as +mãos habeis da mãe cançaram-se a arranjar-lhe touquinhas, camisinhas, pequenas +coisas de linhos finos que iam á cidade comprar. Parecia uma filha de gente +rica, tão garrida andava.</p> + +<p>E linda, com o seu cabellito loiro e os olhos azues muito largos, sempre +abertos como a querer aprehender toda a vida, todo o mundo.</p> + +<p>Aos sete annos adoeceu gravemente. O medico ia duas e tres vezes a casa, +cada dia. E á noite, depois de vêr a pequena, ficava ali, emquanto o pae +somnoleava, a conversar com a mãe. O medico era novo, janota, tinha os bigodes +pretos retorcidos e dizia versos. A mãe caiu-lhe nos braços, uma noite em que +Marcia ficára livre de perigo.</p> + +<p>—O que eu vi! Vocemecê não acredita, mas vejo ainda! É como se estivesse +diante d'elles na minha caminha! Elles punham-se aos beijos e aos abraços, +pensando que eu dormia. Eu não dizia nada, nem sabia o que era. O pae ficava +fóra, a dormitar, na salla de meza. Uma noite elle entrou e apanhou-os +abraçados. Voltou<span class="pn">{88}</span> sem fazer bulha para dentro. +Trouxe uma foice comsigo. E degolou-os ali, o medico primeiro, a mãesinha +depois.</p> + +<p>«Agarrou-o pelo cabello e foi como quem monda herva, só d'uma vez. E atirou +para o chão a cabeça, de que escorria sangue. A mãe nem pôde gritar. Nem eu, +que sentia um peso aqui, na garganta. Tambem degolou a mãe e atirou para o chão +com a cabeça. A mãe custou mais. Foi aos sacões que a acabou. Depois poz as +cabeças e os corpos fóra a pontapés. A pontapés! E então? Parecia doido! E o +quarto parecia-me todo vermelho, e meu pae, e eu mesma sentia o sangue +escorregar-me pelas mãos. E queria limpal-as e não podia. Parecia que tinha as +mãos atadas e sangue na bocca! Depois, meu pae, que pensava que eu dormia, veiu +lavar a casa, muito devagar, para não fazer bulha. Depois chamou os creados. +Então todos choraram. Mas meu pae não chorou. Veiu para o pé de mim e passou +toda a noite a vêr ao candieiro se tinha sangue nas mãos. Chegava-se muito á +luz para vêr as unhas. Depois lavava as mãos e sentava-se, punha-se a olhar +muito para ellas, a esfregal-as, e ia laval-as mais!</p> + +<p>A velha calou-se por momentos. Depois proseguiu:</p> + +<p>—É tal e qual! Vejo como se fosse vocemecê! As barbas do pae, que eram +pretas, pareciam<span class="pn">{89}</span> encarnadas. E tudo, tudo estava +tingido de encarnado!</p> + +<p>«O pae foi preso, mas d'ahi a mezes saiu livre.»</p> + +<p>Olhou para mim, e com terror:</p> + +<p>—Parece que podia matar!</p> + +<p>«Fiquei em casa com a mulher que me servira d'ama e melhorei. Antes Deus me +tivesse matado, que não tinha soffrido tanto! Lembro-me de tudo! De tudo! É por +isso que bebo. Quando bebo muito, parece-me que os casos se deram com outros; +parecem coisas que me contaram. E bebo muito, bebo sempre, mas nada me esquece, +senão quando cáio na estrada a dormir!»</p> + +<p>E voltou á historia dolorosa da sua vida, sempre apressada, a querer +acabal-a quanto antes.</p> + +<p>Ficára com o pae, sombrio sempre, que lhe dizia palavras severas d'uma moral +cruel e sanguinaria. Foi crescendo sem alegria na casa de crime e de amor. Um +dia alguem a possuiu tambem. Sentiu os beijos que são vermelhos como o sangue e +como sangue embriagam, nas boccas amorosas. Sentiu os abraços que apertam como +uma cadeia de flores venenosas. Não me disse o nome do amante, não me deu uma +unica indicação. Tratava-o por «alguem», sem odio.</p> + +<p>Um dia sentiu que uma vida estranha se agitava dentro d'ella; confusa e +alarmada, disse-o ao amante.<span class="pn">{90}</span></p> + +<p>—«Nunca mais appareceu. Escrevia-lhe, mas as minhas cartas ficavam sem +resposta. Até que soube que «alguem» tinha abalado da terra.»</p> + +<p>Referiu-me com terror os mezes angustiosos que passou a querer esconder o +seu «peccado», como ella dizia. Eram sobresaltos continuos. Não o queria +confessar a ninguem, não queria confidentes. Mesmo na quaresma fingiu-se doente +e não foi á desobriga. Até do padre tinha medo, não fosse elle dizel-o ao pae. +Este não via nada, absorvido sempre, ensimesmado, como quem tinha dentro de si +imagens sufficientes para não recorrer ao mundo exterior. Vivia do passado, +enlisado na noite vermelha em que matára os amantes que se beijavam.</p> + +<p>Uma noite, no quarto escuro, onde não se atreveu a acender um candieiro, o +filho nasceu entre estertores, ralos que Marcia mordia, para não despertar +ninguem, para que ninguem suspeitasse do seu segredo. E n'essa noite, emquanto +as dores do parto lhe rasgavam todas as fibras, estorciam todos os nervos e +punham-lhe nos olhos a figura da morte horrivel, outras imagens se levantavam, +nitidas, deante d'ella: o pae com a foice, os amantes que se abraçavam, e as +cabeças decepadas a rolar no chão, com esguichos de sangue. O quarto era todo +vermelho, outra vez, apezar da noite escura. E Marcia rasgava com os dentes os +lençoes, mordia<span class="pn">{91}</span> os travesseiros, e o linho tinha um +gosto a sangue dos proprios labios, mas dos <em>outros</em>, pensava.</p> + +<p>O filho nasceu, n'um vagido. Marcia beijou-o, para o calar. Apezar de se +sentir desmaiar, pegou n'elle amorosamente e embalou-o. Mas outro gemido saiu +da massa informe. Parecia-lhe que era estridente, enchia todo o quarto, +acordaria, talvez, a villa, como os sinos quando tocam, anciosos, a rebate.</p> + +<p>As suas mãos magras apertaram a garganta do pequenino ser. Nem um ai. O +filho devia estar morto. Levantou-se, a cambalear. As pernas dobravam-se. Com o +pequeno n'um braço, de rastos, os olhos cheios de sangue da allucinação, +rojou-se pelo quarto, abriu a porta, desceu as escadas ás arrecuas, saiu á +rua.</p> + +<p>Era uma noite clara, sem lua. As estrellas formigavam no ceu. A via latea, +no azul escuro e transparente, era uma poeira de mica. As arvores faziam pastas +de sombra na paisagem. Uma fonte doloridamente se lamentava, n'um tanque de +pedra. Lembrava-se de todos os promenores. Na abegoaria mugiu uma vacca. E o +cão veiu apressado e contente lamber-lhe as mãos. Ninguem sentira. Mas Marcia +pensava ouvir passadas no estalido seco das folhas murchas que caíam e na brisa +pelas ramadas, o mexer de vestes de pessoas a perseguil-a.</p> + +<p>Em cada canto mais denso de sombra, via<span class="pn">{92}</span> olhos a +espreital-a. E, em camisa, quiz correr, sem forças. De onde em onde, +sentava-se, forçada, porque as pernas não podiam mais. Ouvia gritar a morta. E +as suas unhas cravavam-se desvairadamente na garganta do innocente. Chegou ao +fundo da quinta, um terreno de trigo já ceifado. Verão seco, a terra chistosa +era dura.</p> + +<p>—Foi com as minhas mãos que cavei a terra. Como era dura! Parecia que eram +pedras que eu partia com as mãos. E ellas encheram-se de sangue. E eu, no meio +d'aquelle trabalho feroz, ainda ouvia o innocentinho gritar. E apertava-lhe +mais a garganta. E voltava a cavar, queria cavar fundo, para que não dessem com +o corpinho quando lavrassem a terra para semear de novo. E não havia maneira! +Não tinha força nem coragem para ir procurar uma enxada, um ferro, qualquer +coisa com que podesse abrir a terra tão dura, que me fazia doer tanto as mãos. +Sentia que rasgava os dedos. E tinha medo de que amanhecesse. Olhava para o +Ceu, a vêr se já despontava a claridade. E parecia-me sempre vêr o ceu mais +claro, ás vezes até pensava que havia sol de meio dia. E voltava a cavar, os +olhos fechados, com raiva, sem saber bem o que fazia!»</p> + +<p>Conseguiu fazer uma cova. Grande? Pequena? Não sabia dizel-o. Deitou terra +por cima do cadaver ensanguentado, calcou-o com raiva, e então poude correr, +por entre as arvores, a<span class="pn">{93}</span> bater nos galhos e nos +troncos, a rasgar a camisa e as carnes, até casa. Ia amanhecendo. Um traço +alaranjado corria na nascente. Metteu-se na cama e dormiu.</p> + +<p>Calou-se. Estendeu-se nas pedras, de borco, a olhar fixamente para o mar. +Era já noite. As estrellas palpitavam no céu transparente. O mar enchera-se de +sombra. Os barcos tinham recolhido já. Ouvia-se apenas o quebrar das vagas na +Bocca do Inferno.</p> + +<p>Marcia levantou-se e estendeu-me a mão, supplicante:</p> + +<p>—Dá-me um tostão para aguardente?!<span class="pn">{94}<br> +{95}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000100">O CEGO</a></h1> + +<p class="assin">A A<small>LBERTO D'</small>O<small>LIVEIRA.</small></p> + +<p><span class="pn">{96}<br> +{97}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000101">O C<small>EGO</small></a> </h2> + +<p>O Pintor, que vivera intensamente na luminosa communhão das coisas bellas, +no culto da Fórma e da Côr, sorvendo a Belleza religiosamente, como se aprecia +um vinho velho, de repente cegára.</p> + +<p>E no tumulo do seu atelier de que haviam fugido os modelos, errava +angustiado, querendo com a mão sentir a linha das figuras que o seu divino +pincel traçara, nas manhãs claras, entre tapetes que amorteciam os passos e ás +vezes a queda dos corpos dos divans acolhedores.</p> + +<p>Sentava-se no mesmo escabello veneziano, marchetado, tendo diante de si, no +cavallete, uma tela. E vagarosamente ia traçando linhas, julgando ainda +desenhar figuras, compôr peitos firmes, contornar curvas musicaes de +quadris,<span class="pn">{98}</span> illuminar olhos abertos, cheios de sonho e +de volupia.</p> + +<p>Mas o pincel empastava tintas, inexperiente na mão do grande mestre, como na +d'uma creança de peito.</p> + +<p>Depois do inutil esforço, não podendo vêr, lançava ao chão, com raiva, a +tela, e punha-se a passear, cambaleante, hesitante, como um ebrio, as mãos +estendidas, como se da ponta dos dedos nascessem olhos, a guial-o.</p> + +<p>E vivia apenas com um velho servo. O <em>atelier</em> morria ao abandono. +Para quê a molleza dos tapetes persas, os brilhos dos espelhos de Veneza, os +marmores das estatuas e a radiosa formosura dos seus proprios quadros +divinisando a Vida? Para quê? Se tudo adormeceu sob a cinza que se acumulára +nos seus olhos d'antes d'um tamanho brilho, esses olhos leaes, sem ironia, +cheios d'amor por tudo o que tivesse uma particula de Belleza?</p> + +<p>Fôra um grande pintor afamado. Retratára as mais elegantes senhoras da +côrte, em vestidos sumptuosos que mostravam, n'um decóte largo, o cóllo nu, +como uma enorme flôr. E nos seus quadros punha tanta voluptuosidade que a +marqueza de Bouro, devota e pudica, recusára com horror o retrato; apesar do +pequeno decóte, da garganta alva pareciam nascer rubras florescencias de +desejos.</p> + +<p>E nunca mais pintou retratos. Ideou quadros<span class="pn">{99}</span> em +que a mulher e a vida eram divinisados. Fez bacchanaes, em que as sacerdotisas +nuas agitam tirsos enramados, coroadas de flôres, numa loucura divina. Compôz +uma scena das vindimas em que as mulheres comem as uvas, sob as latadas +viçosas, das boccas dos amantes. Fez Leda e o cysne, em que, n'um lago +transparente, as virgens descuidosas se banham. Um cysne apparece, airoso, +vagaroso, o macio pescoço n'uma curva larga. E ellas querem apanhal-o á +porfia.</p> + +<p>E esses quadros d'uma athmosphera tão clara, d'um ceu tão luminoso, com +carnaduras frescas, admiraveis seios que exhalavam, como uma flôr de tropico, +um perfume estonteante, tinham-lhe dado a riqueza e a gloria.</p> + +<p>A multidão apontava-o, nas ruas, com reverencia. As mulheres lançavam-lhe +ternamente cobiçosos olhares. E o pintor gosava a vida, sem se prender, +beijando as bôccas, aspirando o aroma das cabelleiras fartas, que caiam sobre +as nucas, sobre as costas, como mantos finissimos.</p> + +<p>Até que um dia cegou. Fechou a sua casa, como se tivesse partido para uma +longa viagem, não querendo deixar vêr a ninguem o espectaculo turturante da sua +angustia. E continuava a querer pintar, ainda o cerebro povoado pelas risonhas +imagens, concupiscentes seios, rios translucidos, gemas coruscantes,<span +class="pn">{100}</span> dobras sensuaes de sedas, sobre o ambar da pelle das +morenas, sobre a magnolia das epidermes branquissimas.</p> + +<p>Um dia, soube-se. Vagamente correu na cidade que o pintor magnifico cegára. +A curiosidade durou tres dias. Os possuidores dos quadros viram com prazer a +sua valorisação. Os collegas secretamente exultaram pelo desapparecimento do +rival vencedor... E tudo caiu, tudo esqueceu.</p> + +<p>Uma apenas se lembrou d'elle. Carinhosa, amorosa, forçou a porta +teimosamente fechada. E entregou-se ao cego.</p> + +<p>Dias passaram cruzados de angustias e de intensos prazeres. Até que um dia o +pintor lhe disse:</p> + +<p>—Eu tinha que coroar de rosas—a minha mão inutil nem para isso serve—a +tua cabeça. Devia ajoelhar diante de ti e dar-te todo o meu sangue, pois que te +dei já todas as minhas lagrimas. Vieste accender uma aurora no crepusculo +eterno da minha cegueira. Permittiste que eu revisse a Belleza da Fórma. Com os +meus dedos pude sentir como é pura a curva do teu seio, a linha das tuas +espaduas e lindos os teus dedos. Trouxeste-me o aroma da carne moça, como uma +brisa benefica leva a um prisioneiro o cheiro do feno. Senti outra vez a musica +deliciosa das palavras de amor. E no teu corpo pequeno e flexivel, o teu rosto +deve<span class="pn">{101}</span> ser como o luar d'um lirio sobre a sua +haste...</p> + +<p>Calou-se. Hesitou alguns momentos. Pareceu encher-se de coragem e +continuou:</p> + +<p>—Mas não posso vêr-te! Vivo comtigo, como n'uma somnolencia—um pouco de +realidade e um pouco de sonho. Pode ser que os annos tenham feito brancos os +teus cabellos compridos; que alguma doença má tenha esverdeado a tua pelle +macia. Nas palavras que dizes, oiço ás vezes uma promessa, outras um +retraimento. Não posso vêr nos teus olhos palpitar a tua alma. É como se todos +os dias me apparecesses, ás escuras, com uma mascara na cara, um dominó a +velar-te o corpo. Entrevistas em jardins frondosos, ás escuras. Tudo silencio, +mesmo na minha alma. Chegaria até nós, lugubremente, o adormecimento da vida. E +não serias inteiramente minha, apenas uma parte de ti me pertenceria, e a +outra, uma promessa vaga. «Penso que nos encontraremos, dirias... Etheromana em +busca de excitantes, romantica, caçando aventuras, feia sem remedio a esconder +aleijões e a querer ouvir palavras que nunca ouviu, sou mais que tudo isso, +acredita, e menos que uma illusão!» Que importariam as tuas palavras? No +arroubamento dos beijos sentir-se-hia o travo do prazer incompleto. E beijo-te +um pouco como se beija um phantasma. Se eu te podesse vêr, dir-te-ia que +arrancasses a mascara,<span class="pn">{102}</span> ou que te fosses para +sempre. Quereria ver-te, ou realidade inteira, deliciosa na pureza da +atmosphera, ou sonho puro, como sei sonhar. Não posso com a tortura do meio +mysterio que a nevoa dos meus olhos cegos cria... Podesses ser toda minha, +conseguisse eu deitar abaixo a mascara, vêr-te na gloria da tua formosura, +mesmo na miseria de alguma incuravel doença, fixaria na tela, com estrellas +fulgentes, com sucos magicos de flôres desconhecidas, essa radiosa Belleza, ou +essa deformidade, que se illuminaria, subiria aos ceus, como S. Julião quando +beijou a bocca gangrenada do leproso. Apparecesses tu! Mas não. Ficas na meia +luz como um phantasma!</p> + +<p>E o cego, em passadas incertas, as mãos estendidas, saiu do atelier, onde a +unica nota de vida era o soluçar da amante.<span class="pn">{103}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000110">A GLORIA</a></h1> + +<p class="assin">A C<small>ARLOS </small>M<small>ALHEIRO +</small>D<small>IAS.</small></p> + +<p><span class="pn">{104}<br> +{105}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000111">A G<small>LORIA</small></a> </h2> + +<blockquote> + <p>Qu'est-ce que ça fait que je sois une grande artiste, si je ne suis pas + heureuse?</p> + + <p> Anatole France—<em>Histoire Comique</em>. </p> +</blockquote> + +<p>Gonçalo Freire, o escriptor que um romance intenso tornára celebre, estava +triste e desanimado no seu gabinete de trabalho.</p> + +<p>Os candelabros Luiz XV brilhavam nas multiplas velas brancas, faziam saltar +faiscas dos cobres doirados, das faianças onde corriam idilios em jardins +frondosos. O seu <em>studio</em> era sempre luminoso, quer de manhã, com as +largas janellas abertas sobre o rio, quer de noite com as resplandecencias das +luzes. Dizia que assim a imagem surgia mais precisa, mais clara, mais +<em>latina</em>.</p> + +<p>Gonçalo não gostava do nevoeiro que os escriptores do Norte deixam entre os +seus periodos. Amava o sol e os ceus macios, o mar<span class="pn">{106}</span> +incendiado, as praias do Algarve d'areia doirada, os rios transparentes, onde, +á tarde sómente, boia um fumo tenue.</p> + +<p>Esse romance, «A Face do Homem» revelava esse amor da clareza e do +equilibrio. Pondo de parte os intuitos sociaes que prevertiam a literatura +moderna, ligára quadros d'uma emarcessivel belleza por um enredo forte, +interessante e commovido.</p> + +<p>Pessimista á feição de Nietzche, descrevera a miseria da face humana, depois +de arrancada a mascara; puzera o homem diante de si, n'um espelho, e o homem +sentira-se asqueroso. Mas, crendo no culto dionisico, esperava pela Arte cobrir +a fealdade da vida. E, perto do homem, a mulher, florida pelo amor, +representava o Sonho, a Illusão que cobre com um veo azul, a distancia, os +montes escarpados.</p> + +<p>O publico gostára. Seis edições successivas se tinham esgotado, entre +aclamações, em dois mezes. Os jornaes tinham publicado o seu retrato com +artigos encomiasticos, comparando-o a Camillo, pela riqueza e propriedade do +vocabulario, a Eça pela ironia, a Fialho pelo vigor do descritivo, sendo +superior a todos pelo interesse e pela suprema Belleza do seu ideal de +latino.</p> + +<p>Era um d'Annunzio com mais sinthese.</p> + +<p>Todas as revistas e jornaes sollicitavam a preciosa colaboração; o +<em>Suisso</em> chamára-lhe<span class="pn">{107}</span> plagiario e idiota, +apontára-lhe seis erros de concordancia, descobrira que em Coimbra roubára +versos a Anthero do Quental, n'um poemeto que correra impresso, <em>Sunt +lacrimae rerum</em>, em que Gonçalo Freire acreditava no Inconsciente, segundo +Hartman e na Vontade, segundo Schopenhauer.</p> + +<p>Quasi todos os dias o editor lhe mandava molhos de cartas de admiradoras, +umas apenas a dizer a palavra quente da sua admiração, outras pedindo +autografos e uma ou outra marcando, misteriosa, uma entrevista, n'um +<em>coupé</em>, em sitio escuso.</p> + +<p>N'essa noite, ao entrar em casa depois d'uma <em>bridge party</em>, fora +sentar-se, a querer trabalhar n'uma novella, de que esboçara já o plano. O +creado levou-lhe a correspondencia que Gonçalo abriu, aborrecido. Uma carta +d'um editor que lhe pedia um livro para lançar a sua livraria; uma actriz nova +e elegante, que lhe lembrava a vaga promessa d'uma peça, duas amorosas a +pedir-lhe entrevistas e um escriptor hespanhol que solicitava auctorisação para +traduzir «A Face do Homem». A lapis azul, no summario do <em>Mercure de +France</em>, chamavam-lhe a attenção para um longo artigo de Philéas Lebesgue, +em que o critico entoava um hymno em seu louvôr, enaltecendo a harmoniosa +belleza do romance, «mais subtil, como psychologia do que Bourget, mais moderno +que Jean<span class="pn">{108}</span> Lorrain, e tão puro de estylo como +Anatole France». Recommendava-o a Herelle, como sendo a obra d'um Annunzio mais +intenso.</p> + +<p>Era a gloria, vinda do anonymo, não a celebridade feita pelos amigos.</p> + +<p>Moço ainda, trinta annos, rico, representante d'uma casa antiquissima com o +brazão registado muito antes de D. João III, parecia um d'aquelles principes +que as fadas assistem no baptismo, dando-lhes todas as venturas.</p> + +<p>Mas, triste, Gonçalo foi á janella e rasgou cada uma d'aquellas cartas, +lançando ao vento os pedaços de papel, que baixavam, pareciam hesitar e +sumiam-se no escuro.</p> + +<p>Na noite sem lua pareciam nascer no espaço as luzes dos navios, que punham +na agua um reflexo de estrella. Encostado ao parapeito, Gonçalo muito tempo +olhou para a escuridão que enchia o rio. Um ou outro ruido de carro chegava até +elle, sem o despertar; de quando em quando na rua, ao longe, brilhava por um +instante um electrico, como um meteóro.</p> + +<p>E Gonçalo poz-se a pensar no amor que dentro de si trazia, sem esperanças, +um amôr que tivera uma demorada cristalisação. Essa mulher surgia, luminosa e +florida, deante d'elle, no escuro. Via o seu corpo magro e esbelto, a +florescencia clara do rosto um pouco duro, o olhar indiferente. Era sempre +assim. E, ensimesmando-se, a figura aparecia-lhe, como uma<span +class="pn">{109}</span> obsessão, para acentuar o alheiamento, atormental-o +mais.</p> + +<p>Muitas vezes, quando compunha, largava a pena, porque a mulher vinha para +defronte d'elle e não havia maneira de fechar-se no seu pensamento, continuar o +periodo interrompido pela visita.</p> + +<p>E punha-se a recordar de como nascera aquelle amôr. Vira-a muitas vezes nas +festas, nas ruas, nos theatros, indiferentemente. Uma mulher elegante e nada +mais, feita talvez pelas costureiras que dispõem de espartilhos, de faixas que +apertam os quadris, de <em>bouffants</em> que disfarçam chatezas de peito, de +tecidos leves, que dão a aparencia de ligeireza aos corpos.</p> + +<p>Não a conhecia. Nunca fôra forçoso conhecel-a e como não o interessava, não +se aproximou. Era a Maria do Amparo. Quando ella passava pelo <em>Turf</em>, +alguem dizia, ou o proprio Gonçalo:</p> + +<p>—A Ampáro vae hoje bem.</p> + +<p>—É uma mulher interessante.</p> + +<p>—Veste-se bem, principalmente.</p> + +<p>E tanto tempo a vêl-a, outras o chamaram, trouxe o seu coração envolvido em +outros amores risonhos, quasi sem se prender. E a Maria do Amparo continuava a +aparecer em toda a parte, elegante, um pouco preciosa, viva, um sorriso na boca +fina que mordia para avivar o traço roseo dos labios.<span +class="pn">{110}</span></p> + +<p>Uma noite, em S. Carlos, n'uma visita a um camarote, Gonçalo encontrou-a. +Amparo falou-lhe nos artigos que Gonçalo publicara n'um jornal, chronicas vivas +sobre o Culto da Belleza, a belleza na cidade, nos monumentos, nos jardins e +nas praças, belleza no lar cheio de flores, com moveis elegantes e comodos, +belleza na mulher, artificialmente rectificada, por maquilhagens habeis e +vestidos sabiamente confeccionados por mãos peritas. Attraiu-o a conversa. +Amparo tocou com intelligencia e tacto nos pontos mais originaes, mostrou +comprehender e sentir a Belleza, rodeou-o de frases amaveis, em que havia, ora +no sentido, ora na entoação, alguma coisa de carinhoso, poz em campo toda a +seducção de mulher elegante, chamando-o a si, lançando-lhe a perturbante luz +dos seus olhos claros. A conversa, apesar de curta, um entreacto e o começo +d'um acto, acabara n'um <em>flirt</em>.</p> + +<p>Gonçalo procurou vêl-a. Esperou-a attento e ancioso no Chiado, frequentou as +casas onde poderia encontral-a. E as tardes de recepções, os raouts, as +sauteries, e mesmo as empertigadas recepções diplomaticas, eram leves +<em>flirtations</em>, que o deixavam absorto, andando pelas ruas sem attender a +nada, sorrindo-se ás vezes de alguma palavra dita por ella, de um gesto mais +expontaneo.</p> + +<p>Todos os elementos de seducção foram postos<span class="pn">{111}</span> em +pratica por Amparo. E na alma de Gonçalo começara a cristalisação; a rede ia-o +apertando, avassalava-o a mulher deliciosa, como os antigos retiarios os seus +adversarios nos circos romanos.</p> + +<p>Gonçalo já não pensava em mais nada. Logo depois do almoço, em vez de +sentar-se á meza, a trabalhar, ia para a rua sem destino, com a vaga esperança +de a encontrar, de a vêr na carruagem. E em todas as festas se aborrecia até +chegar a Amparo. No Gremio pedia todos os jornaes, sem poder lêr nenhum, porque +se alheava, recordava os momentos felizes, idealisava impossiveis sonhos, uma +fuga para algum paiz onde ninguem o conhecesse, e Amparo vivesse só para elle, +esquecida do hediondo marido, de todas as caricias, de toda a vida interior. Se +por acaso lhe passava pela mente a ideia justa de que Amparo nunca deixaria a +vida mundana, a «consideração», a «situação», logo Gonçalo a sacudia por +importuna, e enlevava-se no sonho.</p> + +<p>Era uma vida feliz, apesar do pouco que ella dava—olhares, commovidas +palavras, promessas n'um futuro remoto e impreciso, e, um ou outro beijo nas +mãos que tinha macias, palidas, mãos entre sensuaes e misticas da Gioconda, sem +a aristocracia das mãos de Velasquez ou Van Dick, sem a luxuria que rosea os +dedos das figuras do pintor de Verona.<span class="pn">{112}</span></p> + +<p>De repente, porém, começou a esquivar-se a Amparo. Houve palavras dubias, +falou de consciencia e de dever; prometeu um amor eterno, mas ideal, sem +pecado, um amor que lhes cubrisse a vida com uma gaze leve, como um zaimpho. E +mais e mais se foi esquivando, emquanto em Gonçalo o amôr se tornava mais +forte, enchia-lhe o peito de desespero, amachucava-lhe todas as energias e +dava-lhe a sensação de ter, dentro de si a alma, como o chapeu alto d'um +clown.</p> + +<p>E diante da noite, rasgando as cartas d'amor das outras e as aclamações do +publico, Gonçalo, a chorar, repetia a frase da heroina da <em>Histoire +Comique</em>:</p> + +<p>—Que importa que eu seja um grande artista, se não sou feliz?<span +class="pn">{113}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000120">A FESTA DE MAIO</a></h1> + +<p class="assin">A M. T<small>EIXEIRA </small>G<small>OMES.</small></p> + +<p><span class="pn">{114}<br> +{115}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000121">A F<small>ESTA DE +</small>M<small>AIO</small></a></h2> + +<p>—Violante! Violante! gritou o marquez para o jardim.</p> + +<p>André, no cimo da escada, d'onde ageitava ramos no entablamento, conseguiu +desenroscar-se dos molhos de madre-silvas que o coroavam, o envolviam, e +voltou-se. Ao ver o pae sorriu-se.</p> + +<p>—Admira-se?</p> + +<p>—A estas horas, já levantado, e em casa?</p> + +<p>André abriu na bocca pallida um sorriso exangue; mesmo assim o sorriso +brilhou nos olhos negros, fez viver toda aquella adolescencia, que parecia +finar-se lentamente:</p> + +<p>—Não me deitei.</p> + +<p>—Ouves, Violante? Não se deitou!</p> + +<p>A marqueza apareceu á porta, n'uma blusa clara, tremente nas rendas +amarelladas, ainda aberto o guarda-sol lilaz, por onde se filtrava o sol, que +extranhamente lhe coloria o cabello.</p> + +<p>—Ó André! Que tolice!<span class="pn">{116}</span></p> + +<p>—Prometti vir ajudar-te, e mesmo que não promettesse, no dia da tua festa, +eu não deixaria de vir arranjar a capella. Não está linda? Digam...</p> + +<p>—Lindissima.</p> + +<p>A pequena capella, em estylo da Renascença italiana, branca nos seus +marmores puros, sobria d'ornatos, sorria nos festões de madre-silva, nas +grinaldas de rosas, nos vasos trabalhados de que escorriam glicinias roxas, nas +peanhas onde santos olhavam, suaves, os grandes lyrios abertos, em toda a +florida vegetação que manchava a nitidez do marmore pallido, correndo sobre os +frisos, despenhando-se pelas janellas largas, envolvendo-se ás columnas, vindo +morrer no lagedo claro do chão.</p> + +<p>Toda aquella architectura, feminina, sensual,—até na figura do Baptista o +esculptor puzera um quebranto—brilhava e vivia uma vida lasciva e fina, +ornatos delicados, sem exhuberancias, curvas que lembravam a doçura calida de +corpos nus, no tom ambarino do marmore velho.</p> + +<p>André desceu. A marqueza trazia nas mãos, ainda molhadas da rega, um molho +de grandes orchideas d'um azul doente, listrado de esverdinhadas veias como +feridas a apodrecer.</p> + +<p>—E estas orchideas, onde as hei de pôr?</p> + +<p>—Aqui não! Para o mez de Maria, para a festa de maio, orchideas não. +Ponha-as no gabinete<span class="pn">{117}</span> do papá, junto das estampas +de Goya... Aqui não!</p> + +<p>—Tens razão, annuiu o marquez. Antes tragam maias...</p> + +<p>—Vou eu buscal-as, lembraram André e a marqueza.</p> + +<p>—Não.</p> + +<p>—Não. Vou eu, Violante! insistiu André.</p> + +<p>—Vamos ambos...</p> + +<p>—Querem que eu tambem vá? offereceu sem enthusiasmo o marquez.</p> + +<p>—Não. Deixe-se estar; vamos nós.</p> + +<p>Ao sahir da capella, passando os pinheiros mansos, em circulo, como a formar +um adro, descia uma escada balaustrada, n'uma curva larga, ladeada de roseiras. +Depois dois caminhos direitos, onde branquejavam estatuas, cantavam repuxos +esguios que no alto se abriam, como lirios de cristal perpetuamente a florir e +a quebrar n'um ruido claro.</p> + +<p>—Onde ha maias? perguntou André.</p> + +<p>—Não sabes? É alli no fim, uma grande encosta, por baixo do tanque dos +tristões... Não conheces a quinta!</p> + +<p>—Como queres que a conheça? Não venho cá nunca!</p> + +<p>—Hei de mostrar-te a quinta, agora... Has de gostar. Vaes-lhe tomar gosto. +Olha, é aqui...</p> + +<p>No fundo verde abriam-se, sorriam, na manhã clara, como pequenas estrellas, +as maias<span class="pn">{118}</span> d'oiro. Desde o caminho apertado entre +fitas de marmores que as roseiras invadiam, marinhando pelas estatuas dos +deuses e das graças, luziam maias.</p> + +<p>A fonte despejava, pelas buzinas brancas de tres tristões, cujas caudas se +enroscavam, fitas d'agua.</p> + +<p>Tudo cantava, tudo era alegre, na manhã radiosa. A encosta descia, verde da +relva, das arvores copadas, mosqueada pela brancura dos marmores, brilhos de +flores, sobre tudo rosas-chá, enormes e delicadas, flores de cera e flores de +carne, sensuaes e finas, como um beijo em que os labios mal se tocam, na +pressa, mas em que as almas se confundem, n'uma vertigem. Em baixo continuava a +descida rapida da colina, viam-se tectos angulosos de casas, faiscas que o sol +levantava das janellas, linhas tortuosas de ruas, arvores de praças, o Rocio, +como um lago de fogo a brilhar nas pedras claras, a Avenida n'uma chapada +verde; vivamente um monte subia em apertadas casarias, alastrava-se por todos +os lados a cidade, perdiam-se na perspectiva os telhados irregulares, até os +montes violacios da Outra Banda, que se esbatiam no ceu claro, no ceu risonho e +roseo da manhã de primavera. No rio embandeiravam-se navios ligeiros e airosos. +Velas de faluas passavam, largas, pandas, como monstruosas gaivotas n'um vôo +sereno. E do rio sahia uma<span class="pn">{119}</span> grande alegria, como um +fumo: fazia tremular as bandeiras, doirava mais o sol, percorria toda a cidade, +extraía das ruas acordadas um ruido confuso, chiar de carros, pregões, coleras, +risadas, que se misturavam, fundiam-se, e lá cima chegavam n'uma voz unica como +um rumor de vaga.</p> + +<p>—Vamos a vêr quem apanha mais! E a marqueza deixando a sombrinha, desceu +por entre as maias, afagando-as com as mãos brancas.—Que lindas são! Como +sorriem para mim... Tenho pena de cortal-as.</p> + +<p>—Vê se caes... Eu dou-te o braço. E André alcançou-a.</p> + +<p>—Não. Não. Vamos apanhal-as! Vamos a vêr quem apanha mais! Vamos a vêr!</p> + +<p>Febrilmente, começaram a apanhal-as, a cortar grandes braçadas. Ás vezes as +suas mãos encontravam-se, apertavam-as e riam-se.</p> + +<p>—Não são maias... são os meus dedos.</p> + +<p>E continuavam, já corados, a marqueza curvada, a cabeça d'um loiro quente +quasi entre as maias.</p> + +<p>—Estou cançada. Estou cançada!</p> + +<p>—Que lindo quadro. Todo de flores! Espera, vou enfeitar-te. E André +coroou-a de maias, toda a sua cabeça ficou florida. E a marqueza, risonha e +córada, protestava a rir-se:</p> + +<p>—Olha que me despenteias!</p> + +<p>—Que importa? Que importa? Estás melhor<span class="pn">{120}</span> +assim... Agora este ramo para o peito... Mais estas... Um grande ramo... Como +estás linda; oiro e lilaz! E o teu cabello é d'oiro. O papá vae ficar encantado +quando te vir assim...</p> + +<p>Subiram, ainda a rir-se. André deu-lhe o braço e foram, quasi a correr. Ao +passar por um repuxo:</p> + +<p>—Vamos molhar as flôres, ficam mais bonitas, como se tivesse acabado de +cahir o rócio.</p> + +<p>—Pois sim, pois sim.</p> + +<p>O cristal dos repuxos altos cahiu sobre as grandes braçadas de maias.</p> + +<p>—Vamos lá, vamos lá, que se faz tarde para o almoço!</p> + +<p>No altar da Virgem estavam apenas largas rosas brancas, flôres d'um aroma +subtil e angelico.</p> + +<p>—Onde pôr as maias?</p> + +<p>—No chão, junto ao altar. São as primicias da primavera oferecidas á +Virgem.</p> + +<p>—Pagão! censurou a marqueza.</p> + +<p>—Não importa. Ficam bem. Aqui no chão, como um monte de estrellas, aos pés +da Virgem:</p> + +<p>Para que fosses mais formosa Deus deu-te a lua por chapins e as estrellas +por caminho.</p> + +<p>A sineta tocou para o almoço.</p> + +<p>Rodearam a casa e entraram pela estufa, cheia de begonias e de cravos.<span +class="pn">{121}</span></p> + +<p>Emquanto André se vestia, o marquez perguntou se Violante se não admirava do +seu procedimento.</p> + +<p>—Ha quantos annos não fica elle em casa? Tresnoitado, entrando muitas vezes +quando eu já rodo pelo jardim, escondendo-me d'elle, para fingir ignorar os +desatinos, elle dormia e almoçava aqui, fóra d'horas, escondido da Felicia, que +resmunga contra elle coisas terriveis, chama-lhe perdido, sustenta que está +possesso...</p> + +<p>—Uma paixoneta, que trata de curar... Disse-me tambem, que agora ia começar +vida nova, talvez fosse para a Quinta dos Limoeiros, para se desaffeiçoar... +Isto passa-lhe... Para a semana lá o teremos na mesma vida; theatros, actrizes, +ceias...</p> + +<p>—E se o pudesses reter em casa! Vê se o divertes... Fal-o sahir comtigo. +Agora que vou a Paris podias conseguir que te acompanhasse a visitas, bailes, +<em>soirées</em>... Já o quiz interessar com as estampas, mas perguntou-me se +eu julgava que havia de passar os dias a vêr bonecos...</p> + +<p>O almoço foi alegre. Violante e André fallaram no que era preciso fazer, nas +passadeiras a pôr na egreja, nas cadeiras, na disposição dos bancos no adro, á +sombra dos velhos pinheiros, até sob o arco dos limoeiros pôr cadeiras, que +convidassem os flirts a recolherem-se<span class="pn">{122}</span> na discreta +arcada. André promptificou-se a tudo fazer; sahiu para o jardim, illuminado +pelo sol, cantante nas aguas abundantes dos tanques e cascatas, misterioso nas +sombras que o arvoredo formava, rico de côr, verdes diversos, vermelhos, azues, +lilazes das flores, mosto fresco das olaias floridas; mas, sob a copa larga e +tremente d'um choupo do Canadá, deitou-se e adormeceu profundamente.</p> + +<p>O jardim antigo, desenhado por um artista italiano, não tinha as placas +relvosas dos parques inglezes e o seu frio alinhamento. Cresciam por toda a +parte altas e poderosas arvores, que apertavam a architectura renascença do +palacio; por toda a parte cantavam em fontes, em cascatas, em repuxos, aguas +claras.</p> + +<p>Havia macissos de roseiras que cresciam livremente e se enrolavam aos +marmores, aos soclos, iam florescer e perfumar nos collos brancos dos bustos, +entre braços finos dos grupos mitologicos, rondas de estações, danças das +Horas, cheias de movimento e de belleza. Escadas brancas de balaustradas +ligavam as depressões de terreno; e por toda a parte uma grande alegria de +flôres e de arvores viçosas, pinheiros, carvalhos, arbustos de folhas variados, +jasmineiros trepadeiros, que sorriam, trementes, nos minusculos jasmins, entre +a folhagem verde.</p> + +<p>Por toda a parte uma exhuberancia de flores,<span class="pn">{123}</span> +que nasciam em canteiros, amores perfeitos de velludos quentes, pequeninos +myosotis, quasi brancos no seu azul virginal; outras que subiam pelas arvores; +estrelavam-se clematites, umas roxas, outras brancas, enroscavam-se aos +troncos, iam florir na copa larga dos castanheiros. Em pequenas sebes de cana +os craveiros inclinavam-se, cravos vermelhos d'um perfume que entontece, cravos +brancos, mosqueados de violeta, cravos estranhos como nodoas nas epidermes.</p> + +<p>Tudo sorria, tudo gritava, na confusão da manhã clara; estendia-se pelo ceu +o sol, batia nos flocos de nuvens que se doiravam, extraindo de toda a terra +uma alegria immensa, que subia no fumo, que cantava na viração leve +arrastando-se pelas arvores altas, manifestava-se nas folhagens claras, +envolvia tudo.</p> + +<p>Em grandes placas floresciam as maias e, no inverno, violetas de Parma, d'um +lilaz moribundo. Por toda a parte flores, estendendo-se pela terra, ou subindo +e perfumando. E as aguas cantavam, cristallinas, corriam, iam beijar nos regos +abertos folhas viridentes. Era a Quinta Alegre, o jardim magico. Nos ornatos +das janellas e das portas, nos baixos relevos e nas pinturas das salas, +reproduziam-se em linhas puras os motivos de volupia e de belleza. Até na +capela havia uma exuberancia de vida. Viam-se figuras nuas, como nas +Loggias<span class="pn">{124}</span> do Vaticano. Os monstros não tinham, como +nos ornamentos goticos, uma aparencia terrivel: eram elegantes, d'uma aparencia +risonha e as retorcidas caudas terminavam, estilisadas, em caules de flores. A +vida era triunfante nos collos sensuaes das mulheres, nos cachos de fructos, +romãs abertas de que sahia um riso vermelho, laranjas doiradas, cepas que +subiam espalhando-se em ramos com grossas uvas, como a de Corinto, figuras +aladas, sensuaes, antes amôres contentes, do que anjos misticos e +salvadores.</p> + +<p>Havia uma volupia fina, uma delicada sensualidade cada um dos ornatos, como +em cada um dos caminhos da Quinta Alegre. A mesma latada verde clara, em que se +via a poeira dos cachos que cresciam, se reproduzia e multiplicava nos marmores +das sallas e da capella; e os corpos alvos das ninfas, das graças, hamadriadas +contentes, dos faunos lascivos levantavam-se e sorriam no marmore das +estatuas.</p> + +<p>Era alli que todo o anno viviam os marquezes de Runa, salvo um mez na +Bretanha, setembro, em alguma praia tranquilla e ensolada, d'onde voltavam, +apressados, logo aos primeiros frios, apenas uma pequena paragem em Paris, para +as necessarias visitas da marqueza a Redfern, Paquin, e pequenas e +especialissimas lojas d'outros fornecedores.<span class="pn">{125}</span></p> + +<p>O marquez, Christiano Spinola d'Acciaioli, descendia de duas familias +italianas, os marquezes Spinolas e os marquezes d'Acciaioli, que foram duques +d'Athenas, de que vieram ramos para Portugal. No seculo XVII fôra um seu tio, +Simão de Vasconcellos Acciaioli casar a Florença com a filha unica do marquez +d'Acciaioli, para não acabar o nome. E d'ahi os dois ramos conservaram sempre +relações intimas, visitas dos portuguezes e italianos, e mesmo o marquez +passára parte da sua mocidade em Florença na casa senhorial de seus avós.</p> + +<p>Novo, voltára a Portugal e amára com um tranquillo amôr sua primeira mulher +D. Estevaninha Henriques, descendente do celebre conde D. Henrique +Henriques.</p> + +<p>Vira-a por uma manhã de sol a atravessar o pateo branco e calado do seu +palacio de Sevilha. E a languidez do seu andar, o seu ar triste, n'aquella casa +quasi morta—calado e morto é o tanque esbelto e branco e sobre os arcos apenas +touristes passam, silenciosos—impressionavam. Os seus olhos habituaram-se a +vêr nas praças, nas ruas ensombradas pelos toldos, a face branca, onde ardiam +os grandes olhos pretos de D. Estevaninha, a risca sensual e fina dos labios +vermelhos, como num traço de sangue, que a faziam mais pallida.</p> + +<p>Conhecendo os duques de Medina, facil lhe foi ajustar o casamento.<span +class="pn">{126}</span></p> + +<p>Depois d'uma luzida boda, aberta de par em par a Puerta del Pardon da +Catedral para a passagem dos convidados entre os quaes a infanta, que +representava a Rainha, vieram para Lisboa esconder o seu amôr na Quinta Alegre, +cheia de rumores d'aguas e de folhagens que gemiam e riam á passagem da +brisa.</p> + +<p>Mas aquella casa alegre, onde tudo era voluptuoso, d'uma volupia fina, em +que todos se tinham habituado a amar a vida em todas as suas manifestações, +parecera hostil ao sentimento hespanhol da doce Estevaninha, na nudez dos +corpos, até no desabrochar das flores de marmore, que pareciam tentar.</p> + +<p>Certamente, que junto de si, para a amparar e dirigir, estava sempre, +rotundo e oleoso, o conego D. Benito, que com ella viera de Sevilha, e na +capella risonha e branca constantemente ardiam lumes fumarentos de tochas; +certamente, que as missas, as novenas, as trezenas, lausperennes—fôra +difficilimo conseguir do Senhor Patriarcha um dia de lausperenne, cada mez, mas +conseguira-o a protecção decidida da baronesa d'Angra—todas as festas e +macerações da egreja se sucediam na capella clara; as confissões, as comunhões +multiplicavam-se; um cilicio de crina fazia, ás sextas-feiras, gemer a branca +noiva, mas tudo parecia falso, porque a capella tinha sempre o ar de rir e de +tentar, nas volutas floridas dos seus capiteis, nas<span +class="pn">{127}</span> figuras nuas, que mostravam em cada ruga da pelle, em +cada grão de marmore, um desejo impuro que era uma tentação e um escarneo.</p> + +<p>E a marqueza não se sentia feliz. Preferia o seu viver austero na sua casa +d'Andaluzia, entre paisagens asperas, crueza de sol pelos desolados campos onde +as piteiras aguçam as pontas de suas folhas curvas, e as egrejas hespanholas, +severas e sem luz; em vão lhe dizia D. Benito que um sátiro confessára Christo +a S. Jeronymo, e lhe trouxera flôres para enfeitar o altar do verdadeiro Deus; +debalde lhe assegurou o frade affeiçoado ás sombras quietas da quinta, aos +tuneis de verdura, onde a pretexto de ler o breviario, nas tardes calmosas de +verão, adormecia ecclesiasticamente, que as apparencias nada eram e que a +verdade estava em Deus—D. Estevaninha redobrava de supplicios, os jejuns, as +penitencias rudes que abalavam o delicado corpo magro e gracil, que palpitava +na aproximação do marido, cheia d'angustioso terror e de volupia; e pouco a +pouco se definhou, e pela noite fria do Natal, á hora em que na egreja, entre +resplendores de cirios e uma chuva de flores, se festeja o Nascimento de +Christo, morreu aos gritos, ao dar á luz André.</p> + +<p>Para o marquez a morte de D. Estevaninha não foi um desastre dos que abrem +no coração um vinco duradoiro.<span class="pn">{128}</span></p> + +<p>Gostára d'aquella face triste e habituára-se ao ardôr receoso do corpo fino +e doirado da andaluza; mas a casa fina, elegante e pagã, ia tomando aspectos +sombrios. Na ante-camara, como nos corredores episcopaes, murmuravam grupos de +padres. E atravessaram a Quinta fallando baixo, olhando para as areias dos +caminhos, dizendo sempre palavras unctuosas, a querer vender o ceu. Monsenhores +de cintas arroxeadas, bispos imponentes, a cruz d'oiro a brilhar no peito, +camareiros de S. Santidade, frades que batiam as sandalias n'um ruido surdo, +cruzavam-se nas escadas, junctos sahiam, sempre a mesma maneira hypocrita +d'olhar as coisas, sempre os mesmos labios mentirosos e distilar frases +decoradas. O marquez recolhera-se á bibliotheca onde dispunha a sua collecção +de estampas, por que dia a dia se apaixonara mais. Vinham da Italia e da +Allemanha e da França e da Inglaterra em rolos, em caixotes, que os agentes +enviavam, ás dezenas. Reunira uma preciosa collecção de aguas-fortes de +Rembrandt e as gravuras de Dürer; tinha desenhos de Vinci, de Raphael, esboços +de Ticiano e de Ribera. Tudo o que fosse arte, desde o balbuciar dos primeiros +«primitivos», até á exuberancia formidavel de Rubens, misterios de sombra de +Rembrandt, torcionarias figuras de Ribera, suaves santas carnudas de Murillo, +extranhas mascaras de angustia ou de grotesco<span class="pn">{129}</span> de +Goya, tudo o que fosse arte e não tivesse côr o seduzia, proves avant la +lettre, exemplares rotos, em que se visse uma mancha bem posta, elle os +guardava, catalogando, apenas se distrahindo em passeios pelo parque, grandes +voltas, descendo até o extremo da quinta, onde repousava, vendo o multiplo +esguicho que saía das duplas flautas de tres aulitridas, n'um gesto elegante de +dança nas transparentes tunicas que tornavam mais attrahentes a nudez dos seus +corpos.</p> + +<p>Com a morte da marqueza, o palacio voltou a ser mais silencioso e mais +claro. Parecia que na quinta as aves cantavam mais. Apenas D. Benito ficára, +«por amor al niño de la señora marqueza», protestava, mas porque se afeiçoára +ás sombras frescas, onde dormia.</p> + +<p>André foi crescendo livremente entre os creados e D. Benito. Aos tres annos +andava pela quinta, arrancando flôres, quebrando vasos, e interrompendo com +gritarias e surpresas as prolongadas séstas do conego.</p> + +<p>André foi crescendo livremente, em correrias doidas, traquinas e +imprudentes, subindo ás arvores, despindo-se e atirando-se para as bacias de +marmore, sempre perseguido pela miss loira e terna, que lhe ensinava inglez.</p> + +<p>As feições da mãe reproduziam-se, graciosas, no filho. O pae via, com +inquietação o mesmo fallar da mãe, os mesmos olhos tristes, a mesma<span +class="pn">{130}</span> boca fina, apenas, em André, mais exangue. Teve medo +que a intellectualidade desequilibrada da devota tivesse continuado no filho a +vida de pavores christãos, e ao conego e á miss recommendou que o deixassem +livre, que o fizessem um animal forte e feliz, com poucas resas e pouca +grammatica. Quiz que elle aprendesse a ter o Amôr da Vida, que aquelles pulmões +respirassem sem medo e sem pecado as grandes rosas que desabrochavam +lentamente, petala a petala nos caminhos da quinta. Que visse no canto das +aguas um hymno d'alegria, no chilrear dos passaros e no balançar dos ramos uma +festa da Natureza, que elle proprio tivesse a alma constantemente em festa.</p> + +<p>Assim lhe foi ensinado o pensamento dos antigos. Disse-lhe a alegria imortal +das fabulas gregas, os deuses que no vôo rapido desciam do recurvo Olympo e +vinham á terra violar os corpos nubeis das filhas dos reis; a dança dos satyros +e das faunezas nas clareiras das florestas quietas, as festas da lavoura, as +procissões a Céres no tempo em que os trigaes amadurecem, a Dyonisos, quando os +cachos são côr de rubim e de esmeralda.</p> + +<p>Levou-o ás suas terras do Douro a vêr as vindimas, quando elle tinha sete +annos. Pelos montes verdes, onde a vinha ri, rasteira, curvada ao peso dos +cachos, bandos de trabalhadores curvados cortam, cantando, os cachos e +levantam-se<span class="pn">{131}</span> um pouco para os lançar nos cestos; de +quando em quando a fileira move-se, forma-se em semi-circulo, desdobrando-se +como um exercito n'um movimento largo, agrupam-se para debandar outra vez, com +rythmo e graça. E as camisas brancas contrastam com os lenços vermelhos, e riem +as faces trigueiras, ha uma grande alegria, cantam as boccas, e o mesmo +movimento regular dos bustos que se levantam, dos braços que deitam, n'um +movimento largo a uva nos balseiros escuros.</p> + +<p>Depois das vindimas, os balseiros cheios despejam-se nas dornas, nos +lagares. O vinho ferve, com um aroma forte. E os trabalhadores cantam, como no +tempo da Hellada, glorificando a Terra e glorificando os Deuses.</p> + +<p>Habituou-o a vêr coisas bellas, a reparar nas minucias das plantas, na +finura dos sarmentos, na delicadeza dos coloridos das flôres, quiz que elle +amasse as paisagens quietas. E com o pae, André ia contente; não lhe ensinava +resas, nem o obrigava a saber lições.</p> + +<p>O conego e a miss, por um momento accordados, esquecendo as rivalidades das +Egrejas Catholica e Reformada, que os separavam e os traziam n'uma lucta +constante, censuravam o marquez por aquella educação original, que seria muito +bem cabida n'um gentio, mas não n'um cavalleiro portuguez. E o conego +desolava-se:<span class="pn">{132}</span></p> + +<p>—É para admirar que a alma da senhora marqueza não tenha ainda +apparecido... Que se ella vivesse, isto era tamanha mortificação, que morreria +de desgosto.</p> + +<p>E miss Lucy, fazendo com a linda boca vermelha um gesto de desdem, terminava +n'um tom cortante:</p> + +<p>—Improper!</p> + +<p>E André ia crescendo. Gostava da miss, porque era linda, tinha uns olhos +verdes, côr do mar, e uma pelle fina, branca como as gardenias, e o cabello tão +loiro, que André lhe perguntava se aquillo era oiro. Mas não gostava do conego, +porque, em o apanhando nas correrias do costume pelo jardim, logo o prendia +entre os joelhos e o fazia recitar, durante muito tempo tantos rosarios d'Avés, +padrenossos, de credos, salve rainhas, actos de contricção que André chorava no +fim. E D. Benito alegrava-se, dizia que era o Diabo que fugia do corpo del +niño.</p> + +<p>André não se aventurava já a puxar pela batina enodoada do conego, quando +elle dormitava no jardim: limitava-se a gritar de longe, e quando D. Benito +sobresaltado acordava e voltava para elle a face gorda, André corria a +esconder-se no regaço virginal da miss, que se fingia severa:</p> + +<p>—Aoh! Naughty boy! Very naughty boy. What did you do to D. Benito?<span +class="pn">{133}</span></p> + +<p>Mas ria-se das partidas d'André e beijava a face pallida, os olhos +tristes.</p> + +<p>De vez em quando apparecia a baroneza d'Angra a visitar o marquez. Mal a +presentia, André ia esconder-se n'algum recanto misterioso do parque, atraz +d'uma estatua, entre buxos altos. Não era que não achasse agradavel estar com a +baroneza, pequenina e gentil, com uns lindos olhos frescos e em quem sentia, +quando a beijava, um perfume doce; e mesmo os labios d'ella eram mais vermelhos +ainda do que os da miss, que os tinha tão vermelhos e emanava d'elles tamanho +ardor sensual, que a creança o sentia confusamente.</p> + +<p>Mas, passadas as primeiras ternuras, a baroneza fazia-lhe um minucioso exame +de doutrina, diante do marquez que enrugava a testa, descontente.</p> + +<p>—Diga lá o menino os mandamentos!...</p> + +<p>André dizia contrafeito e arrastado.</p> + +<p>—E os artigos da fé?... E as virtudes cardeaes?... E os Novissimos do +Homem?...</p> + +<p>—Mundo... Diabo... Carne...</p> + +<p>—Carne, não, interrompia o marquez. Osso! Não é verdade, prima?</p> + +<p>André não comprehendia, mas gostava, porque a baroneza deixava-o logo e +voltando-se para o marquez:</p> + +<p>—O primo tem esta creança como um filho d'heretico. Já conheci um inglez, e +era protestante,<span class="pn">{134}</span> que ensinava o catecismo aos +filhos! Mas o primo que tem papas na familia...</p> + +<p>—Chegam para salvar o resto. Escusamos nós de pensar nisso, sorria.</p> + +<p>—É pena ser seu filho. Tão lindo! Vê aquelles olhos tristes?...</p> + +<p>—Gostava mais que fossem alegres!...</p> + +<p>—Ora!... O primo não entende nada d'isto... Que lindos olhos!... Bem... +Bem... Tenho de ir á novena.</p> + +<p>Ao sair, sempre a mesma frase a proposito da escada onde figuras nuas se +perseguiam, num lavor elegante e sobrio:</p> + +<p>—O primo tem a casa cheia de indecencias! Acabo por não voltar cá!</p> + +<p>André, porem, ia a fazer doze annos; não podia continuar entre o catecismo +de D. Benito e o inglez doce da miss. O marquez mandou-o para o colégio. Mas +á tarde, quando o conego o trouxe para casa, André abraçou-se ao pae a chorar e +a pedir-lhe para não voltar ali.</p> + +<p>A disciplina escolar, os olhos curiosos dos camaradas que o troçavam, o +olhar duro dos mestres, o mau cheiro, a falta d'ar fizeram-lhe ter medo do +colégio. E prometeu ao pae tudo, para não voltar.</p> + +<p>—Até aprender as resas de D. Benito e as da tia Angra!</p> + +<p>Com grande escandalo de D. Benito, o marquez anuiu.<span +class="pn">{135}</span></p> + +<p>—Escusas de aprender resas. Vou-te arranjar, quando a miss se fôr embora, +uma mestra franceza e professores que virão a casa dar-te lições.</p> + +<p>André ficou admirado. Então a miss ia-se embora? Porquê?</p> + +<p>—Acaba o seu contracto...</p> + +<p>André foi, a correr, perguntar á miss. Cheio d'angustia, com uma suplica na +voz:</p> + +<p>—Então vae deixar-me?</p> + +<p>—Yes, yes, my little André... E afagou-lhe os cabelos.</p> + +<p>André agarrou-se a miss Lucy a soluçar nervosamente. A miss acariciava-o, +queria beijal-o, chorava tambem, comovida, lagrimas de prata que se prendiam +nos compridos cilios d'oiro.</p> + +<p>Fôra a miss, até então, a unica mulher de que André gostára. A ella fazia as +suas confidencias, contava-lhe as proezas de brigas terriveis com os amigos, as +diabruras feitas ao conego. E a miss tinha sempre um sorriso e um afago para a +creança, nunca lhe ensinára orações, não o castigava por não saber a lição, +falta que se repetia a miudo; apenas lhe dera uma biblia com gravuras +recomendando-lhe a leitura—sem resultado.</p> + +<p>Á noite contava-lhe lendas poeticas da Inglaterra, castelãs brancas e +tristes, almas de mortos que vagueiam e a voz dorida dos pagens soluçando +d'amor...<span class="pn">{136}</span></p> + +<p>Muitas vezes, quando era mais mocinho, fôra a miss, no inverno, +aconchegar-lhe a roupa no pequenino leito. Ao adormecer, a sensação branda das +mãos delgadas de Lucy na sua face. E cantava como uma musica, a voz que dizia, +ao fechar mansamente a porta:</p> + +<p>—Good night, my little André.</p> + +<p>Mas a miss partiu em lagrimas dolorosas. André foi acompanhal-a ao vapor com +o velho «footman». Já ia longe o navio e ainda André acenava, os olhos +molhados, o soluço a contrair a garganta; a miss tambem agitava o lenço, +chorando...</p> + +<p>Tempo depois apareceu em casa, de manhã cedo, quando André andava a regar os +seus canteiros, a professora franceza que chegára de Paris. O seu andar era +ligeiro e miudo como o dum passaro e evolavam-se d'ella uma gracilidade suave, +desde os cabellos palidos até a curva rapida da cinta delgada. Tinha nos +pequenos olhos cinzentos uma malicia e um riso. André, que se voltára, ficou +boquiaberto. Certamente que a miss era linda como uma santa e doces as suas +mãos e a tia Angra tinha os labios vermelhos e um perfume delicioso; mas nunca +vira creatura assim airosa, alta e delgada, que balançava o seu corpo quando +andava, como se fosse uma flôr, como um bloco de gracilidade a deslocar-se.</p> + +<p>Ao saber, porém, que era a mestra franceza,<span class="pn">{137}</span> não +a quiz vêr mais; nem a cumprimentou. Estava persuadido de que era culpada da +partida da miss e guardava-lhe no peito, antes de a conhecer, um grande rancor. +Fugiu, a correr, para o fundo da quinta e ali ficou a chorar com saudades da +miss.</p> + +<p>Ao almoço André foi repreendido. Ficou calado, os olhos baixos sem explicar +o procedimento. O marquez disse-lhe que ia ter outros mestres, pois não podia +ficar a saber apenas o latim, as vagas e erroneas noções de coisas que lhe dera +D. Benito e as poeticas baladas de miss Lucy.</p> + +<p>A principio a vida foi dura para André entre os professores indifferentes +que tomavam as lições sonoleando, e mademoiselle Renée, hostil, que, pensava +elle, tinha causado a partida da miss, linda como uma dessas santas serenas e +indulgentes, que teem sempre, nos dedos em fuso, o gesto da benção.</p> + +<p>André olhava para Renée, disfarçadamente; admirava a graça do seu corpo de +que saia um perfume tenue, as mãos brancas, as unhas cuidadosamente tratadas, +e, quando ella se abaixava, o palido reflexo da sua nuca doirada. O perfume era +subtil e perturbante. Respondia com maneiras bruscas ás perguntas feitas numa +voz macia e quente, falava-lhe muitas vezes inglez, fingindo ignorar os termos +franceses, para lhe ser desagradavel. Mas Renée Viardot tudo<span +class="pn">{138}</span> suportava com paciencia, lançava-lhe olhares +enternecidos, queria afagal-o até, beijal-o num impeto em que brilhavam os seus +olhos claros; mas André fugia logo, apesar dos quatorze annos, como uma creança +indocil.</p> + +<p>No verão davam as lições na quinta, em baixo, junto aos tritões, numa +rotunda assombreada. Numa tarde quieta e quente, como estivessem juntos e Renée +tivesse ao cólo um livro que interessava André e de que lhe explicava uma +passagem, elle inclinou-se mais sobre o seu braço, quasi a tocar-lhe na +musselina transparente da blusa, poude sentir o perfume brando e sensual e, +interrompendo mademoiselle, perguntou-lhe bruscamente:</p> + +<p>—Que perfume usa?</p> + +<p>Nos seus olhos negros havia um quebranto e na face palida duas rosas vivas +despertaram.</p> + +<p>Renée agarrou-lhe na cabeça e mergulhando-lh'a na musselina da blusa:</p> + +<p>—Est-ce que tu aimes mon parfum? Dis!</p> + +<p>A impressão foi demasiadamente violenta. André fugiu, a tremer; foi +sentar-se sobre o arco verde e doirado dos limoeiros, a tremer, os olhos +parados, pensando na sensação deliciosa e rude que tivera.</p> + +<p>O aroma das rosas que lentamente se desfolhavam, o perfume dos lilazes +brancos e dos lilazes roxos que punham nos lilazeiros uma espuma branca e uma +espuma roxa, mesmo o<span class="pn">{139}</span> cheiro acre dos limões +maduros não conseguiram vencer o aroma subtil e sensual do peito farto de +mademoiselle.</p> + +<p>Dias seguidos, André pretextou enxaquecas, fugiu de Renée, espreitando-a de +longe com receio e com desejo de se approximar d'ella, outra vez mergulhar a +cara na frescura da musselina e muito tempo sorver o inibriante aroma. Um dia, +na estufa aberta, examinava langorosamente os cravos que iam já a murchar. +Havia-os de toda a côr. Todos os vermelhos, desde a purpura sombria, até ás +descolorações das rosas anemicas; gritavam alguns côr de vinho, surgiam roseos +e triumphantes, até que desmaiavam rosados puros de geraneos, como bocas novas +que querem beijar.</p> + +<p>E aos vermelhos, quer heroicos, quer tenues, uniam-se outras côres, outras +n'elles se fundiam ou se embutiam, perpassavam em alguns laivos fortes de +violetas, n'outros espraiava-se um branco que hesitava em ser rosa; aqui um, +desesperado, as petalas revoltas, como em arrepelos, era d'um violeta ardido, +além outro era todo branco, d'uma quasi irreal alvura, como se anjos os +houvessem beijado nas horas suaves em que do ceu cae o rócio... Outro, tambem +branco, beijos de abelhas o tinham mordido, n'elle gotejava um sangue +avermelhado; mas os vermelhos combatiam, aqui vinho, além quasi roxo, havia +como uma lucta de que resaltavam<span class="pn">{140}</span> gotejos, que +pareciam cristalisar em coraes; em certos, o vermelho do fundo degradava-se, +triunfava fortalecido, até que nas pontas recurvas se franjava de roxo. Havia +retalhos de tunica do Senhor dos Passos, carnes a apodrecer, pedaços de pelles +virginaes, estriados, franzidos, sempre frizados, raiados de côres diversas: +aquelles eram «modern style» em côres estranhas que se reuniam, certos cremes +onde se dilue o vermelho, tons sem brilho, onde a luz morre, côres de tijollo, +esverdeados longiquos que pareciam dormir sob os roseos.</p> + +<p>Mas todos tinham frescura, todos viviam uma vida impertinente que se +affirmava no odor sensual, perturbante e voluptuoso, todos eram d'uma ardente +mocidade, quer saissem dos tubos, entre folhas de musgo, quer baloiçassem em +hastes longas de craveiros, como que ejaculados, tal a sua soberba. E mesmo os +que eram enormes e faziam vergar a haste, como um corpo cançado, na seda fina +das petalas tinham sempre sorrisos, um sorriso que excitava.</p> + +<p>Eram todos sensuaes. Faziam lembrar <em>croupes</em> fortes de espanholas +d'olhos languidos e cabeleiras negras mordidas por pentes d'oiro.</p> + +<p>O langor das flôres, junto á puberdade que nascia e se afirmava e +entontecia, como as grandes olaias de marfineo calice, pelos jardins calados +nas noites d'agosto, perturbavam, embriagavam André, tal um copo de capitoso +vinho<span class="pn">{141}</span> que se bebe d'um trago n'uma +convalescença.</p> + +<p>Pé ante pé, Renée entrou e, curvando o corpo n'uma atitude provocante, +agarrou-lhe na mão e segredou-lhe:</p> + +<p>—Quer saber o meu perfume?</p> + +<p>A bocca vermelha e seca ria-se, contrafeita.</p> + +<p>—Ha dias, não tive tempo para lhe dizer...</p> + +<p>Aproximou-se d'André, apertou-lhe as mãos, deitava-lhe, ao falar, um halito +perfumado e quente.</p> + +<p>—Quer saber?—insistiu.</p> + +<p>André córou e quiz fugir; mas mademoiselle agarrou-o mais, tomou-lhe a outra +mão e apertando-lh'as, n'uma caricia sabia, palma com palma:</p> + +<p>—Não faço segredo: é uma mistura de resedá e jasmim do cabo. Quer vêr?</p> + +<p>Sem que lhe désse tempo para responder, poz-se nos bicos dos pés, mãos nas +mãos, olhos nos olhos, e approximou-lhe da face o cólo tremente. Largando-lhe +as mãos deitou para trás a cabeça palida de adolescente e reavivou com um longo +beijo a flôr exangue dos seus labios virgens.</p> + +<p>André beijou-a tambem, os olhos fechados, os corpos unidos, arcobotados um +contra o outro.</p> + +<p>Quando terminou o demorado abraço, André olhou para ella a medo. E por sua +vez agarrou<span class="pn">{142}</span> na cabecita linda e beijou-lhe a boca +longamente, sofregamente...</p> + +<p>A noite, para André, foi toda de revoltas no leito, olhos abertos, labios em +febre, franzidos, a procurar outros labios que não vinham, a desejar beijos, +como se elles adejassem esparsos pelo ar e podessem pousar na sua boca. +Comparava os beijos suaves da miss com os beijos de fogo que lhe dera Renée. E +como era doce dormir depois de sentir as mãos alvas de Lucy a afagar-lhe os +cabellos n'um somno tranquillo e doce! e como lhe era difficil adormecer, a +revirar-se na cama, apagava e acendia a luz, sempre a lembrar-se da caricia +extranha e inedita, do perfume estonteante, do calor dos labios secos, da +macieza do cabello loiro, como se fosse de seda, de todo o corpo fino e +flexivel que se colára ao seu, e n'elle deixára como cauterisadas placas de +feridas, era bom e era terrivel. E toda a noite passou assim, até que de +madrugada adormeceu murmurando em segredo o nome de Renée.</p> + +<p>Era a puberdade que aparecia subitamente, irrompendo d'um jacto, como um +poço artesiano de repente aberto.</p> + +<p>Longo tempo durou esse noivado vermelho.</p> + +<p>Certa tarde, D. Benito que ainda se arrastava pelo palacio, achacoso e +velho, fazendo do dia uma comprida sésta, surprehendeu-os a beijarem-se.<span +class="pn">{143}</span></p> + +<p>Clamando contra as iniquidades da terra, foi-se encontrar com o marquez, que +á sombra d'uma tilia meditava Marco Aurelio, e contou-lhe, vermelho, esquecido +do reumatismo que lhe tolhia as pernas, entremelando a lingua numa algaravia +inconcebivel, a abominação das abominações.</p> + +<p>O marquez, que pousára sobre o banco de marmore o livro antigo, mostrou-lhe +uma haste toda coberta de goivos brancos:</p> + +<p>—Vê esta planta, D. Benito? É algum peccado que na época propria se cubra +de flôres? Repare para ellas. Com que voluptuosidade mergulham-se na atmosfera! +Riem n'uma alegria clara e vívida por terem nascido. Da raiz sobe, triunfante, +a seiva para as alimentar. Perfumam hoje, morrerão ámanhã, sem pecado, felizes +por terem integralmente vivido. O seu polen voará para fecundar outras flores, +D. Benito. Deixe que a vida se manifeste, deixe que todos sejam felizes!</p> + +<p>O conego arriscou uma apoplexia ao ouvir a blasfemia do fidalgo. Teve forças +para ir para casa embrulhar as escassas roupas e na mesma noite partiu para +Sevilha—queria morrer entre gente cristã, dizia. Não se despediu d'André, nem +de mademoiselle, apenas um comprimento seco ao marquez.</p> + +<p>Fingiu este ignorar o que entre o filho e a mestra se passava. Continuavam +no seu idilio.<span class="pn">{144}</span> Mas os annos passavam, André fez os +seus estudos e o marquez mandou-o para Florença.</p> + +<p>Renée regressou a França. Partiram juntos, por mar, para Barcelona.</p> + +<p>Foi entre beijos, que sulcaram o Mediterraneo calmo e transparente, aqui +azul-ferrete, além verde-claro, logo ensolado e doirado, sempre transparente. E +de noite iam vêr, sós, as mãos nas cintas, muitas vezes os braços se uniam—a +fosforescencia que se levantava na prôa, brilhante, n'uma espuma fina, como uma +poeira de mica.</p> + +<p>Como dois amorosos que acabam de dar o primeiro beijo, e logo, na ancia, +querem contar mais de mil, mal viram Cadiz branca e pequena, a luzir no recurvo +golfo azul; em Malaga não repararam no ar dolente das flamencas, que cantam +cheias de volupia, e mesmo no <em>Paseo</em> sacodem as ancas, como n'um +convite para uma volupia triste, e os seus vinhedos claros; apenas na cathedral +feia e banal, se extasiaram diante d'um quadro, imagem de uma santa. Qual? Não +o souberam e chamaram-lhe Nossa Senhora do Desejo insatisfeito. N'uma pequena +tela um busto de mulher trigueira, andaluza, forte, pelle doirada, olha para o +ceu. Os olhos teem a expressão dolorosa de quem muito deseja. E o vermelho dos +labios carnudos, as narinas dilatadas, dizem o que ha de sensual n'aquella +expressão ardente. O collo é aberto.<span class="pn">{145}</span> E as mãos, ao +tapal-o com um lenço vermelho, ainda mais aquecem o tom quente do collo +doirado.</p> + +<p>Indifferentes, viram Valencia entre vergeis, clara e voluptuosa na planicie +fertil e o Grao rumoroso, onde moirejam descarregadores nas docas e operarios +nas fabricas. E Barcelona que se alastra em renques de arvores nas ruas largas, +com seus palacios, suas avenidas, as Ramblas onde se apertam catalães +silenciosos, os mercados de flôres cheios de gardenias, de jasmins e rosas, +pareceu-lhes triste, porque alli se deviam separar.</p> + +<p>Em vão subiram ao Tibidabo; donde se vê toda a Barcelona estendida, como um +tapete, cortada de ruas; correm, ora direitas, ora em sinuosidades, linhas +claras de platanos. Estendem-se as casas até junto ao mar azul, de onde em onde +raras torres se levantam e entre ellas sobresahe o vulto gothico e afilado de +Santa Maria de la Mar.</p> + +<p>A ligeira neblina que se levanta do porto e envolve a estatua de Colombo, +negra sobre a pedra branca da doca, parecia que envolvia tudo, que dava ás +coisas a tristeza que estava n'elles. E Renée chorava, abraçava-se muito a +André, obrigava-o a prometer-lhe longas e amiudadas cartas e uma viagem a +Paris, quando voltasse, no anno seguinte, de Florença.</p> + +<p>E assim, por uma tarde triste, conseguiu André<span class="pn">{146}</span> +leval-a, pelo passeio da Aduana fóra, entre as palmeiras, á estação.</p> + +<p>E os beijos cantaram, demorados e angustiosos, nas bocas dos amantes, até +que uma voz rouca gritou:—Viajeros, al tren!—e o comboio silvou e partiu. +André ficou a vêr o lenço de Renée e o comboio que se perdeu n'uma curva, +fumegando.</p> + +<p>Dolorosa foi, para André, essa noite.</p> + +<p>Pareceu-lhe vasia e silenciosa a pequena alcova onde durante uma semana +tinham dormido. Perseguia-o a lembrança do perfume, a macieza e a côr do +cabello d'um loiro palido como um sol convalescente, a frescura da pelle fina, +todo o encanto e todo o Amôr da deliciosa Renée que o iniciára e que o amára e +de quem sentia ainda as lagrimas amargas que se misturavam aos beijos tristes +que ella lhe dera nos curtos dias da despedida. E André chorou.</p> + +<p>Na manhã seguinte partiu para Genova n'um <em>liner</em> da Liguria. Com +elle regressavam á Italia cantoras do Liceu. Notou uma comprimaria delgada de +cabellos e olhos pretos, que trazia do mercado da Rambla um grande mólho de +flôres. Olhou para ella com desejo e n'esse desejo se surpreendeu, quasi +esquecido de Renée. Facilmente feito o conhecimento, os dois dias de viagem +foram rapidos em inconsequentes flirts, alegrias de dança na tolda e leves +concertos no salão. Em Genova se separaram e André<span class="pn">{147}</span> +partiu para Florença ligeiro e esquecido, com um certo prazer de se ter +separado de Renée, que, agora o sentia, começava a pesar-lhe.</p> + +<p>Em Italia a vida foi-lhe facil entre monumentos e mulheres, em cujos olhos +boia uma grande alegria de viver.</p> + +<p>Teve paixões e conquistas; quiz realisar quadros dos mestres florentinos que +diariamente via no Pitti e nos Uffizi; procurou por toda a parte os typos +ambiguos, perturbantes no seu enigma, entre efebos e mulheres, adolescentes +sempre, ovaes perfeitos de rostos brancos, bocas sensuaes e vermelhas.</p> + +<p>Nos <em>corsos</em> da Italia passeou em cavallos inglezes; em Veneza +poetisou, no Grande Canal, pelas noites claras, sentindo humidade e paixão, até +que aos dezoito annos voltou a Lisboa sempre a mesma palôr na face, os mesmos +olhos tristes e boca exangue.</p> + +<p>O marquez aprestava o seu casamento com Violante Cerquedo, filha dos condes +de Cerquedo.</p> + +<p>Só no palacio, sem os risos do filho, procurou distrações na vida mundana. +Novo ainda, puzera-se a amar Violante, graciosa e intelligente, cujos vinte +annos cantavam triunfantes, como uma primavera florida. Seduziu Violante a +intelligencia do marquez, a sua figura aristocratica e a maneira amorosa como a +olhava, como se fosse uma obra d'arte.<span class="pn">{148}</span></p> + +<p>Pouco tempo depois do regresso de André, por um inverno chuvoso e frio, a +capella do palacio encheu-se de lumes e casaram.</p> + +<p>André não deixou os costumes que trouxera de Italia. Paixonetas diversas +amorteciam-lhe o coração, até que um dia, perseguindo Martha, uma actriz loura +e chique, que lhe fugia um pouco, a tornar-se difficil e desejada, julgou ter +«a verdadeira paixão da sua vida», como confessára, depois d'uma ceia fausta e +turbulenta, a Jacintho Roquette, seu irmão em letras e seu confidente.</p> + +<p>André lançára-se, á volta de Italia, doidamente na literatura. Frequentava +redações e jornaes, theatros e cafés onde se reuniam jovens escriptores cheios +de esperanças e de imprecações, revolvendo as ideias e os livros sem cerimonia, +com o ar de quem, do alto d'uma montanha inaccessivel á plebe, residencia +olimpica de escolhidos, considerou já os homens e as coisas.</p> + +<p>Instintivamente fugira d'elles, da sua imperturbavel confiança, do azedume +que d'elles suava quando se lembravam d'um exito. Ligou-se ainda mais com +Jacintho Roquette, caustico e risonho, com um real talento que desperdiçava em +cavaqueiras de café e em artigos feitos a trouxe-mouxe para jornaes e revistas, +sempre a luzirem, atravez da luneta, os olhos azues, que dir-se-hiam infantis, +no<span class="pn">{149}</span> fundo uma grande bondade e um caracter +firme.</p> + +<p>As primeiras impressões d'André tinham tido um certo exito pelo seu +paganismo, uma maneira leve de escrever, lembrando a finura que teem os mestres +florentinos nas suas medalhas nitidas.</p> + +<p>Dissera recantos de paisagens, brilhos de mares azues, figurinhas que tinham +passado, subtis, pela sua vista, desaparecendo logo, na rapidez das viagens, no +imprevisto das caminhadas pelos campos serenos da Toscana.</p> + +<p>Ser delicado e cético, saboreou a ironia viva e o céticismo escarnica de +Jacintho Roquette e juntos andavam pelos theatros, vendo retalhos de peças e +demorando-se pelos camarins em flirts com actrizes, ceias pacatas, que as +companheiras não supportavam, by their own respectability, orgias triunfaes, até +que se apaixonou por Martha, essa actriz magrisella, que guerreava a velhice +com pastas de cosmeticos e massagens, a unica mesmo que conhecia e usava os +processos parisienses para a guerra da galanteria.</p> + +<p>Martha tinha uma vida irregular, tecida em mentiras, misterios, certos +hiatos de treva, na sua vida, até para os mais intimos.</p> + +<p>Nunca um só amante, nunca num trimestre inteiro o seu leito conheceu o mesmo +corpo, antes variavam, mudavam, com sinceros <em>beguins</em>,<span +class="pn">{150}</span> ás vezes o seu coração e o seu corpo pareciam uma +estalagem de entroncamento, como um vertiginoso vae-vem de passageiros.</p> + +<p>André, n'uma noite feliz, em que uma joia brilhou ante os olhos de Martha, +teve a ventura de a acompanhar a casa n'um trem que se desarticulava, guiado +por um batedor experimentado.</p> + +<p>E de manhã, ao almoço, satisfez, contente uma pequena conta de chapeus.</p> + +<p>Reconhecida a uma generosidade tal, Martha, durante tres dias, foi fiel a +André. Mas ao quarto dia, pretextando enxaqueca, recusou-lhe o leito de pau +santo e os braços brancos, ferteis em caricias.</p> + +<p>As enxaquecas repetiram-se e André entrou a desconfiar, a carpir-se +tristemente da infidelidade de Martha, a Jacintho Roquette que chasqueava:</p> + +<p>—Ella recebe-os ambos ao mesmo tempo? Não. Que te importa então? Os beijos +que ella te dá teem o mesmo sabôr? Teem. Que te importa o resto? Encontras um +perfume estranho no seu corpo? Mas é uma <em>coquetterie</em> o querer variar +de perfume. Então?</p> + +<p>As rasões aduzidas não convenciam André e, lentamente, o que fôra talvez um +capricho, o desejo infantil de possuir a mulher da moda que era chic possuir, +foi-se transformando em obsessão, em ideia fixa, tinha a necessidade de<span +class="pn">{151}</span> estar com ella constantemente, rondar-lhe o camarim, +espreitava-a entre os bastidores á espera da <em>deixa</em>, ia ao meio dia +esperal-a á porta do theatro, quando entrava para o ensaio, e, nas noites de +enxaqueca, desolado, nervoso, ia com o Roquette dizer mal d'ella, pôr-lhe a nu +todos os defeitos, inventando alguns, mas tendo sempre um secreto desejo de a +possuir, mesmo nas passagens mais verrinosas surgia a imagem de Martha, nua, a +bocca pequena espremida n'um beijo, a offerecer-se-lhe.</p> + +<p>E André redobrava de violencia, dizia a vida postiça e infame da amante, a +teia de mentiras que urdia, as suas baixezas, com um prazer cruel enumerava o +rol comprido dos amantes, e terminava quasi a soluçar:</p> + +<p>—C'est une catin; il faut la tuer; «morte la catin, mort le chagrin.»</p> + +<p>—Mais uma filipica! concluiu, rindo-se, o Roquette. Vou-te apresentar hoje +uma das minhas amigas, a Princeza das Botas Cambadas. Curar-te-hei pela +hom½pathia: dentada de cabra, com pello de cabra se cura.</p> + +<p>Mas Miguel sentia-se frio e aborrecido, e triste, diante das princesas do +Roquette, até que um dia, sem dizer nada, decidiu-se a recolher-se á Quinta +Alegre, onde havia cinco annos não se demorava, pois depois da sua viagem, +tivera uma vida de estroina, que o fazia fugir de casa após o almoço tardio, +para só recolher<span class="pn">{152}</span> a altas horas ou noite, até +madrugada clara.</p> + +<p>Fizera de Violante sua confidente, e a ella contou, polidas as asperezas, o +mal d'amor de que soffria, e o desejo de o curar.</p> + +<p>—Vou ser teu medico. Deste-te mal com as mulheres... Experimenta as flôres. +São mais lindas e fazem sofrer menos. Dirigirás o jardim. Manda fazer as obras +que quizeres. Precisamente tens aqui no «Studio» um artigo sobre a architectura +dos jardins. Faze modificações á tua vontade. O teu pae concorda; eu ajudo-te, +travamos relações, porque, para dizer a verdade, mal nos conhecemos. Desde que +foste para Florença que não fallo comtigo, senão á pressa, quando te preparas +para sahir. Ainda te vejo menos do que quando eu era uma menina grave e te +batia em casa da tia Talleiros, pelas tuas partidas. Olha, ámanhã começa o mez +de Maria... Enfeita a capella. Tens ás tuas ordens o jardineiro e o jardim +todo. Tens invenção e gosto... olha que eu exijo genio!...</p> + +<p>—Oh! Genio... sabes?...</p> + +<p>—Bom; contento-me com talento.</p> + +<p>—Vá lá, prometto...</p> + +<p>Apanhando um grande ramo de lilazes brancos, poz-lh'o na cabeça, como um +diadema:</p> + +<p>—Está enfeitada a Santa!<span class="pn">{153}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000130">TIBIDABO</a></h1> + +<p class="assin">A<small>O SR. </small>B<small>ARÃO DE </small>S. +P<small>EDRO.</small></p> + +<p><span class="pn">{154}<br> +{155}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000131">T<small>IBIDABO</small></a> </h2> + +<p>Na tarde de agosto quente, fugira de Barcelona para a escalvada montanha que +a fanfarronada hespanhola bátisou de Tibidabo, o sitio da Judeia onde Satan +prometeu a Christo as grandezas do Mundo e os fulgores do Peccado.</p> + +<p>O monte levanta-se, precipitadamente, do fundo da planicie em que Barcelona +ondeia. E querem dizer talvez na sua os catalães, que Satanaz ergue as +creaturas que quer tentar e, firmando-as nos cimos d'este monte, oferece-lhes a +cidade, imagem brilhante dos esplendores mundanos.</p> + +<p>Sob o toldo do restaurante deserto me acolhi, a sentir a brisa preguiçosa. +Espalmava-se em baixo a cidade. Corriam as suas avenidas arborisadas, as +«Ramblas» que se seguem como uma bicha, e a «Gran-Via», a infindavel «Cortes», +que corta Barcelona em diagonal. Quedava-se o Parque enorme e, ao fundo, n'um +vago de nevoeiro,<span class="pn">{156}</span> o mar azul, riscado pela linha +cinzenta da doca, onde os navios acolhidos eram imoveis.</p> + +<p>Vinha caindo a tarde sobre as raras torres das egrejas. Brilhavam um a um os +bicos de gaz e as janellas em que o poente puzera uma luz de oiro.</p> + +<p>Longo tempo ali estive. Sonhei? Foi real? Não sei.</p> + +<p> </p> + +<p>Um mancebo pallido e triste abeirou-se de mim:</p> + +<p>—Vês a noite a cair? D'aqui a pouco as ruas vão brilhar do fremito luminoso +dos desejos das multidões. A cubiça e a luxuria porão brazas nas almas que +incendiarão os olhos. As mulheres mostrarão nos bailes e nos theatros o +maculado esplendor dos seios perfumados. Nos mostradores das lojas, á luz das +lampadas electricas, as joias farão percorrer nas mãos desejos de roubo. A +Besta ergue-se—olha como se ilumina a cidade! Vês um clarão que nasce, sobe e +se perde no Ceu? Julgas que é dos candieiros? Não, é das almas! é toda debruada +de vermelho como as chamas dos incendios. Como é bella a cidade quando é +culpada!</p> + +<p>Voltei-me para o mancebo, tranquilamente. Vi que era o Diabo. Não que +tivesse chifres ou cheirasse a enxofre, mas pela belleza triste, de quem +conhece tudo. Não lhe tive horror. O Diabo<span class="pn">{157}</span> é o +gnomo subtil que trabalha na sombra as filagranas das tentações. É o Diabo que +amontôa as cidades, inspira os artistas, empurra o homem para as civilisações +que apodrecem e brilham.</p> + +<p>Não lhe respondi... N'um fogacho violaceo, o sol apagára-se no mar. Era tudo +cinzento. Pelos canaes das ruas, por entre as arvores, n'uma sombra mais densa, +cintillavam os bicos e os mostradores das lojas.</p> + +<p>O Diabo continuou:</p> + +<p>—Quero a tua alma...</p> + +<p>Olhei-o atonito. Para quê a minha Alma? O grande colecionador tinha um museu +estranho em que brilhavam todas as taras possiveis. Assassinos vulgares, +ladrões de taberna, mães que vendem as filhas, incestuosos, ganindo de luxuria, +velhos abades macerados e corroidos pelas disciplinas, que as ilusões vãs de +Satanaz venceram, bispos, cardeaes simoniacos, todos os pecados que se engastam +como gemas e possuem um fulgor lugubre, como se as pedras dos diademas ardessem +nas cabeças, as gargantilhas nos pescoços, as manilhas e pulseiras nos braços, +os compridos cintos nas cinturas! Satan tudo possuia, tragicos homicidas, +capitães que entregam os seus soldados, reis que mancham os altares, velhas +dementes que ululam nas monstruosas orgias, rojando pelo chão os cabellos +pintados, crispando as boccas maquilhadas<span class="pn">{158}</span> nos +espasmos lancinantes, poetas que arrastam a lira pelos lameiros, virgens que se +vendem sem amor e sem vicio, toda a constelação dos sete pecados, como sete +soes nocturnos, envenenados pela treva, corroidos pela lepra, um museu +formidavel, sombrio, apesar de todos os brilhos, frio e angustiante, como um +corredor que leva a presentida cilada—era tudo de Satan e queria-me!</p> + +<p>O pasmo pintou-se na minha cara.</p> + +<p>—Quero a tua alma! Falta-me na coléção. É por isso que hoje abandonei as +ruas das cidades e seus encobertos vicios para subir a esta montanha, que tem o +nome de outra, onde prometi tudo e tudo me recusaram. É o nome da derrota. Não +sou supersticioso. Tens uma alma de amoroso. Amas pelo Amor. Idealista e +sensual, a Fórma bella comove-te como um poema e mais nada. Não tens as +crispações dos lascivos. Amas uma mulher e uma estatua da mesma maneira +profunda, serena e harmoniosa. O amor não rebenta em beijos violentos, como as +folhas das arvores pelas primaveras risonhas—floresce em imagens. Eu, que não +posso amar, que soluço angustiosamente pela minha impotencia, quero a tua +alma!</p> + +<p>Quando o Diabo fallou do amor, do negrume da noite que se apoiara já +fortemente sobre a cidade e o monte, vi passar, no seu andar musical e casto, +tal uma deusa, a Bem-Amada. Foi<span class="pn">{159}</span> como se uma +via-lactea suave se accendesse e florissem as flôres da terra sobre as estrelas +do Ceu...</p> + +<p>—Não te dou a minha alma.</p> + +<p>—Vão abrir-se, d'aqui a pouco, na cidade enigmatica, as portas escuras das +casas de jogo. Dar-te-hei o segredo de sempre ganhar. Farei correr por ti os +cubos amarelecidos dos dados. As pintas pretas far-se-hão olhos e verão onde +apontas. As bolas das roletas saltarão por ti nas arestas de cobre... +Conhecerás o prazer de ver amontoar na tua frente as notas e as moedas de oiro, +de observar, ironico, os rostos, que a angustia encarquilha, dos jogadores que +perdem. E os sobresaltos do banqueiro, imovel, mas de olhar esgazeado, +far-te-hão rir...</p> + +<p>—Que importa? Jogarei com os sorrisos que brincam nos beiços finos de +Livia. Ganharei sempre porque, quer ella sorria ou não, vel-a-hei e, por vel-a, +andarei contente...</p> + +<p>—Ensinar-te-hei os segredos das cotas, dir-te-hei as confidencias que a si +mesmos mal ousam segredar os financeiros internacionaes. E farás cair as +grandes emprezas que vão dar ao mundo um aspéto novo. Arruinarás povos +inteiros, farás baquear os tronos em que rainhas hirtas se assentam, no pavor +das revoltas. Serás o ordenador magnifico dos cracks, e, de paiz em paiz, o teu +nome correrá, nos fios dos telegrafos, espalhando o sobresalto e a ruina.<span +class="pn">{160}</span></p> + +<p>—Não quero. Basta que o meu nome seja pronunciado n'uma voz suave pela +Bem-Amada. Dito por ella, o meu nome vae, de flôr em flôr, espalhar o perfume +da sua bocca.</p> + +<p>—Amas a mulher? Dar-te-hei as cortezãs vestidas de joias, como idolos +antigos. Virão, de rojo, abraçar-te os joelhos, como escravas. E dos corpos +alvos e brilhantes subirão perfumes que entontecem... Dos seus braços frescos, +como as grinaldas que se entretecem com jasmins, fugirão as caricias. Terão +vozes magoadas a suplicar beijos. E, mais que as suas joias, brilharão os seus +grandes olhos...</p> + +<p>—As joias são flores mortas, retalhos de astros que sucumbiram... Essas +mulheres são como as joias: os beijos puzeram nos seus corações a dureza, a +frieza e a geometrica forma das pedras lapidadas. Prefiro, a todas ellas, o +gesto lento e curvo da Bem-Amada quando compõe o seu cabello preto.</p> + +<p>—A mulher carinhosa e pura é como uma flôr sem perfume. É preciso que o +vicio lhes ponha um estremecimento. Dar-te-hei aquellas que envenenam a sorrir, +que atraiçoam entre duas caricias, a amante que vae surpreender, n'um beijo, o +segredo do amante, o segredo que leva á Forca, aquellas que descobriram +ineditas lascivias, corrutas e artificiaes, que eu mesmo vestirei com tecidos +fantasticos, que espalham um amavío!<span class="pn">{161}</span></p> + +<p>—Que amavío maior do que ver a Bem-Amada quando descança a face branca +sobre as mãos cruzadas, n'um vagaroso gesto cheio de doçura?</p> + +<p>—Dar-te-hei a alegria e a insaciedade, a embriaguez que exalta, o +redomoinho dos desejos que estrangulam, as bocas avidas e perseguir-te com +beijos e dentadas, toda a loucura incendiaria, a profanação de todos os cultos, +o poder de corromper, os venenos subtis que matam lentamente e de longe, as +misteriosas aguas e misteriosos pós, que fazem definhar, como flores que se +fanam, as creaturas... Serás o senhor das almas e dos corpos.</p> + +<p>—Basta-me vel-a guardar, a sorrir-se, a carta que lhe escrevo...</p> + +<p>—Entregar-t'a-hei! Poderás tel-a entre os braços, morder a boca fina, +sentir sobre o teu peito o arfar apressado do seu collo amoroso, ver os olhos +cerrar-se como n'uma agonia doce... A sua figura fragil aconchegar-se-ha entre +os teus braços, aquecerás a sua frieza, será tua, reconhecida, amorosa, +fremente de paixão... Queres? Dá-me a tua alma!</p> + +<p>Tive um sobresalto, como quem, passeando n'um jardim florido, pisa um +sapo:</p> + +<p>—Não. Basta-me sentir nas noites claras, quando lhe fallo á varanda, o seu +olhar cair gotta a gotta sobre os meus olhos extacticos!<span +class="pn">{162}</span></p> + +<p>O creado veiu dizer-me que ia fechar-se o restaurante. A treva escorregava +pelo monte. Um clarão vinha da cidade estendida a meus pés. E vago, confuso, o +ruido da cidade com os seus vicios, seus tumultos, o cio que começava.</p> + +<p>Desci. E, a acompanhar-me, senti a Bem-Amada, perto de mim, carinhosa, a +olhar-me longamente com os seus largos olhos pretos.<span +class="pn">{163}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000140">A PRINCEZA PERDIDA</a></h1> + +<p class="assin">A<small>O SR. </small>J<small>OSÉ DE </small>S<small>OUSA +</small>M<small>ONTEIRO.</small></p> + +<p><span class="pn">{164}<br> +{165}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000141">A P<small>RINCEZA +</small>P<small>ERDIDA</small></a> </h2> + +<p>N'aquella serena tarde de primavera, a princeza descera com as pequeninas +aias e a camareira-mór as escadas de marmore branco e de marmore roseo do +sumptuoso palacio real.</p> + +<p>Era n'uma côrte de complicada pragmatica. Os movimentos eram feitos +consoante regras antigas; cada passo, cada mesura, cada sorriso, vinham +marcadas no grosso livro que um mordomo-mór colligira, a exemplo do que fizera +um imperador bysantino.</p> + +<p>Apesar d'isso, porém, na côrte esplendida havia um pouco de mocidade. E +detraz dos leques de varetas rendilhadas, os labios abriam-se em sorrisos os +olhos franziam-se, quando estava distante a hirta, camareira-mór.</p> + +<p>Os bailes tinham solemnidade como os officios divinos; mas as cores frescas +das raparigas, a ligeiresa com que dançavam, a graciosidade que florescia nas +suas atitudes rapidamente<span class="pn">{166}</span> desmanchadas, logo +substituidas, davam-lhes o ar de festas.</p> + +<p>No grande palacio brilhante, as gentes andavam lentamente, como em +procissão. No rosto do mais alegre era preciso espelhar-se, sombria, a tristeza +que emagrecia a face pallida do rei. Era mister que ninguem perturbasse, com o +tenir fresco d'um riso, a dôr real. Se alguma vez as donzellas deixavam passar +o riso atravez das rendas finas dos seus leques, logo a camareira-mór +intervinha, sevéra, a repreender. Nos tapetes morriam os sons dos passos; os +grossos reposteiros abafavam o ruido das vozes. O silencio era eterno, como +essa grande e aniquilladora magua que abatera a vigorosa mocidade do Rei.</p> + +<p>Em tempo, o palacio vibrára com o clamor das festas; as musicas saltitantes +riam nas amplas sallas. Os vestidos claros, em cujos decótes os peitos brancos +se mostram, sublinhavam a alegria. Um bobo pequenino e monstruoso punha um +chocalhar de guiso em cada frase. E junto da Rainha, loira, pallida, delgada, o +Rei tambem sorria, a olhar a flôr preciosa e fragil que pelo braço levava, em +movimentos musicaes, como uma ave.</p> + +<p>Junto á sua frescura luminosa, as joias pareciam flores. E o diadema pesado, +sobre os cabellos loiros, era como uma aureola maior n'essa cabeça fina.<span +class="pn">{167}</span></p> + +<p>Ella tambem sorria, olhando os olhos escuros do Rei. E pela bocca vermelha +havia como um palpitar de beijos. A festa continuava. Havia no ambiente claro +de tantas luzes, tantas joias, tantos olhos contentes, uma alegria maior. +Vaporisavam-se os movimentos. As rendas tremiam nos vestidos das mulheres, nos +gibões de seda dos gentishomens. As conversas d'amor faziam arfar os seios... O +Rei e a Rainha continuavam a sorrir-se, como dois amantes rusticos, que se +encontram na vinha, por um suave outomno.</p> + +<p>Uma noite, porém, a dôr entrou n'esse palacio claro. Ligeiros, para não +fazer ruido, como sombras, os cortesãos, as damas d'honor, as aias, passavam, +murmurando resas, ou trocando, baixinho, as impressões. Era como um ciciar leve +de brisa sobre um campo de flores. Os vultos cruzavam-se:</p> + +<p>—Então?</p> + +<p>—Na mesma...</p> + +<p>—Impossivel salvar-se...</p> + +<p>—O fisico não atina com o remedio...</p> + +<p>Era a Rainha, que, como certos arbustos que morrem, depois de florir, +finava-se ao dar á luz a pequena princeza.</p> + +<p>A dôr tragica e calada do moço Rei! Nem uma palavra se lhe ouviu da bocca +crispada. Nem um grito na luctuosa camara onde carpiam as senhoras da côrte. De +joelhos junto<span class="pn">{168}</span> ao leito magnifico, onde se postára +depois de ter cerrado os largos olhos garços, o Rei chorava em silencio. Os +frades diziam monotonamente, como um esvoaçar de insectos, as resas rituaes. Um +ou outro soluço, a desolação d'um ai, cortavam a funebre quietude; mas o rei, +entre as suas as mãos finas e amarellecidas da Rainha, não tinha um grito, nem +uma palavra. Nos labios da morta ainda havia o sorriso, esboçado a olhar para o +marido...</p> + +<p>O Rei mandou retirar a todos do quarto. Quiz elle proprio vestir aquella que +tanto amára. Beijou-lhe os olhos de palpebras azuladas, beijou os cabellos, que +na imprecisa penumbra, tinham um brilho d'oiro... Outra vez caiu de joelhos.</p> + +<p>Então as palavras de dôr, abundantes, sairam dos labios tanto tempo +represos. Disse-lhe o grande amôr e a grande magua. Prometteu-lhe viuvez +eterna; que a sua alma se conservaria fechada, como um relicario, a guardar a +imagem quasi divina da mulher primeira amada, unica...</p> + +<p>Longo tempo se conservou, as mãos frias da morta entre as suas, no quarto +silencioso, onde apenas os seus queixumes davam uma nota de vida. No lampadario +já se extinguiam as luzes, que, de quando em quando lançavam, altas, dentadas, +labaredas azues e d'oiro.</p> + +<p>A madrugada clara entrou pelas janellas,<span class="pn">{169}</span> como +um chilrear de passaros. A vida renascia, musical, da noite escura. No coração +do Rei a dôr fizera uma sombra eterna.</p> + +<p>Entre os brandões acesos levaram o cadaver, vestido por mãos mercenarias, +que as do Rei nem tinham forças para o peso dos anneis...</p> + +<p>Filas de bispos mitrados, graves e compungidos, seguiam o feretro atravez as +ruas da cidade e por estradas risonhas, até o convento magnifico em cuja egreja +jaziam todos os numerosos reis e rainhas da casa real; seguiram os fidalgos +como seus escudeiros de lucto; seguiu, commovido, o povo, que pranteou a morte +d'aquella que fôra linda e nas ruas sorria ás criancinhas pobres, que lhe +pediam a benção...</p> + +<p>Era uma comprida fila que se perdia nas corcôvas da estrada. As confrarias, +os conventos mandaram os irmãos e os frades, com as insignias. E áquelle +radioso sol d'agosto, que punha na athmosphera uma tremura, tudo resplandecia, +como uma apotheose. Brilhavam as lanças, brilhavam os ouros, brilhavam os +báculos e sobretudo refulgiam as insolitas pedrarias dos bispos, caminhando +magestosos e tristes. E o psalmejar dos padres, ouvido ao longe, perdia a nota +de lamento: era como o ultimo echo d'um canto de victoria, no dia +glorioso...</p> + +<p>No palacio quasi deserto, o Rei ficára no quarto vazio. Como arredal-o de +lá? De joelhos<span class="pn">{170}</span> ainda, pensava talvez ter entre as +suas mãos os dedos finos da Rainha morta. De quando em quando um soluço parecia +estalar a garganta. E as lagrimas desciam pela face, iam morrer na barba +perfumada.</p> + +<p>Olhava para o grande espelho, onde a Rainha costumava ageitar, á noite, os +cabellos fartos. Lembrava-se de ter alli visto o gesto gracil, aquelle pó +d'oiro, e o corpo que tinha a frescura e a elegancia d'uma flôr que vae a +desabrochar. Porque não guardam os espelhos as imagens reflectidas? Teria alli, +viva, a Rainha, na attitude de compôr as sedas das suas tranças... Mas os +espelhos deixam tudo escapar. Assim os lagos não guardam, no seio ligeiro, +voluvel, o vôo curvo das pombas que fogem...</p> + +<p>E para alli se quedava, vivendo do passado, como um velho... Que importava +que as guerras na fronteira distante assolassem o paiz? Que tinha que os povos +gemessem, que as catastrophes aluissem as cidades fulgentes ao luar e ao sol +nas suas cathedraes preciosas, que os rios, saltando os leitos, invadissem as +aldeias claras? Que importava a vida se elle só vivia da morte? Mergulhassem os +outros no passado os olhos cubiçosos e vivessem de tanto explendor de batalhas +e de riquezas que listravam de clarões a historia do reino afortunado. Na +miseria presente, que se recordassem!<span class="pn">{171}</span></p> + +<p>A propria princeza entre as mãos das açafatas, delicada e linda, ia vivendo, +nos grandes olhos verdes, uma tristeza, como quem sabia... No palacio sevéro, +lugubre, sem os tinidos das alabardas e os mantos que formavam lagôas, nas +alcatifas, ninguem se via. E ella, a pequena princeza, não aprendera a rir e +tambem não chorava.</p> + +<p>Uma vez ou outra, ao atravessar silencioso e só as camaras, o Rei via a +princeza; machinalmente as suas mãos pallidas passavam pelos cabellos loiros da +filha. E seguia, taciturno, sempre diante de si a imagem d'aquella que morrera +a sorrir e o esperava na crípta silenciosa do austero templo gothico.</p> + +<p>Ensinavam as aias á princezinha, não relatos crueis de contendas, nomes +temidos dos reis seus avós, mas historias maravilhosas. Diziam-lhe que á noite, +os grandes calices das magnolias abriam-se, com um ruido musical. E de dentro +saiam côrtes de fadas minusculas, vestidas com mantos tecidos com raios de +luas-cheias. Pelo parque andavam livremente entre as roseiras explendidas... +Contavam-lhe que á meia-noite, as arvores se desprendem da terra e vão beber, +como os gados, ás limpidas ribeiras. Ella sabia que entre si os animaes +falavam, as andorinhas nos bicos dos telhados, os cisnes brancos nas lagôas +azues, os pavões sobre as arvores, quando espalmam as enjoalhadas<span +class="pn">{172}</span> caudas, as pombas brancas á beira dos poços, sobre o +marmore polido.</p> + +<p>Conhecia os trabalhos ligeiros dos gnomos, que nas cavernas escuras +trabalhavam o oiro e o ferro; distinguia os alfagemes, que afiam as espadas +mortiferas, e os ourives, que afilagranam os metaes.</p> + +<p>Diziam-lhe as lendas floridas dos amantes, de cujos tumulos saem sorrisos +carregados de rosas, que n'um arco perfumado se abraçam a misturar os +perfumes...</p> + +<p>Mas a pobre princeza, apenas nubil, não conhecia a Vida, nem o Amor, nem o +Riso.</p> + +<p>Um dia, pois, a princeza, com as pequenas aias, desceu ao jardim do +sumptuoso palacio.</p> + +<p>Misterioso por tantas sombras, tantos caminhos que se contorciam por entre +rugosos troncos, tantas aguas que cantavam nos marmores brancos, tantas flores +que dentre a verdura perfumavam...</p> + +<p>De socalco em socalco abriam-se, em leques, as escadarias; saltavam as aguas +das cascatas, despenhavam-se as trepadeiras floridas, rastejavam as hervas, +rosas de toucar e jasmins lançavam os ramos frageis.</p> + +<p>Junto ao palacio o jardim era cuidado, como uma cabeça garrida. As largas +flores espargiam os aromas; os repuxos finos esguichavam fios de prata, pelas +ruas areiadas passavam, magestosos os pavões solemnes... Mas depois, +começava<span class="pn">{173}</span> a floresta. As altas arvores luctavam, +estorcidas: algumas subiam, magras como pedintes, n'uma aspiração, muito +direitas para o sol. Outras torciam-se, esta sem forças, esgarçava-se mirrada. +E a hera crescia, vestia os troncos, até nas arvores secas vicejava, como uma +mascara risonha n'uma face de morto. Alguns troncos de seculares carvalhos +continham grutas escuras. E os passaros, dentre os galhos, ao ruido dos passos, +levantavam vôo, alvoroçados.</p> + +<p>Era o «Caminho das Rosas», que alli levava. Rosas de toda a côr: +ensanguentadas, brancas, côr de mel e de marfim, côr de carne, rosas para +florir peitos de danados e para tranças de primeiras commungantes, rosas que +abrem chagas no verde das roseiras, outras que chamam beijos, como colos nus em +festas illuminadas, rosas que teem toda a pureza d'uma noiva, outras toda a +garridice d'uma amante, rosas para tumulos, brancas, mortas quasi, rosas cheias +de vida, que pareciam querer saltar das hastes, e offerecer-se, lascivas...</p> + +<p>Vinha do seu conjuncto um perfume entontecedor. Por tanto aroma lançarem no +ar, nas noites quentes d'agosto, algumas damas da côrte caiam, em deliquio. E +todas tinham medo d'aquelle portico encantado, que parecia abrir para um +paraiso, mas que podia descer a algum abismo.<span class="pn">{174}</span></p> + +<p>Foi para ali, que, correndo atraz d'uma borboleta, se dirigiu a princeza. Em +vão lhe prenderam as vestes de seda os espinhos das roseiras, em vão a chamaram +as pequenas aias; mesmo foi debalde que a voz secca da camareira-mór gritou por +ella, entre respeitosa e auctoritaria. A princeza, a rir, córada, continuava +atraz da grande borboleta, deixando tiras de seda nos galhos em flôr que, +sacudidos, lançavam sobre a sua cabeça petalas finas.</p> + +<p>Ninguem, comtudo, se atreveu a ir atraz d'ella.</p> + +<p>Corria no palacio e na cidade uma lenda extranha sobre a floresta, que +continuava o jardim, depois do perfumado «Caminho das Rosas».</p> + +<p>Dizia-se que n'uma epoca remota, no tempo em que pela cidade luminosa e +culpada ainda passavam os santos ensinando a Lei e edificando as gentes, +governava o reino uma rainha pagã. No jardim murmuroso e claro havia fremitos +de beijos. Nas aguas dos tanques brilhavam corpos ligeiros. Nas sallas que as +tochas e os lampadarios illuminavam, mulheres quasi nuas dançavam levemente ao +som de musicas alegres. E o vinho levava das taças lavradas ás boccas vermelhas +a alegria e o Amôr.</p> + +<p>Por toda a parte havia flores, havia risos, havia festas. Os cavalleiros, +nas justas, paravam; morriam as scentelhas em que ardem as espadas no choque +dos combates, e das boccas<span class="pn">{175}</span> frescas saíam vozes a +cantar a formosura das florestas, a elegancia das mulheres, a limpidez das +aguas cantantes.</p> + +<p>Um dia, um santo bispo entrou, andrajoso e cançado, a pedir pousada; a +rainha, ao vel-o tão miseravel, mandou-o recolher no canil, com os creados das +matilhas. Os cães, piedosamente, foram lamber os pés em sangue do santo +homem.</p> + +<p>Mas a Rainha não o quiz receber. Como de S. João Baptista, as palavras +subiam para as portas, asperas e condemnatorias. Toda a noite a sua voz rude +annunciava o castigo.</p> + +<p>A Rainha, cançada de ouvir a voz rouca, mandou-o açoitar e expulsar do +palacio, em que reviveu a alegria. Mas durou pouco, porque um dia uma lingua de +fogo saiu da terra, e agitou-se no ar, de sangue e oiro; espavorida, toda a +côrte fugiu, para não mais voltar, para a floresta misteriosa, que ninguem +sabia ao certo onde acabava.</p> + +<p>E todo o reino teve medo, como d'um inferno, d'essa floresta que começava +por uma extranha floração de rosas e terminava porventura pelos eternos gelos, +pelas labaredas, talvez...</p> + +<p>Por ali seguira a princeza, a rir-se. Em vão o Medo guardou durante seculos +a misteriosa entrada. Em vão as rosas se agitaram, como turibulos, para a +entontecer com o perfume, e os galhos a prenderam, e os espinhos lhe +rasgaram<span class="pn">{176}</span> as rendas e as sedas. Foi correndo. A +borboleta enorme parecia uma joia a fugir por entre as flores. A princeza era +como uma ave, delgada e linda, atraz d'ella.</p> + +<p>Subitamente a paisagem modificou-se. Do dia glorioso que estava no jardim do +palacio, nasceu um crepusculo doirado, como um velho damasco amarello.</p> + +<p>A luz parecia um convalescente a rir-se por cima das arvores, pelos tanques +quietos, pelos marmores. E as folhas das arvores tremiam fazendo brilhar os +filamentos d'oiro. As flores tinham todas um aroma ligeiro, como os frascos de +perfumes, que durante longos annos se guardam, vasios, nos armarios fechados. +Eram brancas todas as rosas e as petalas enrugadas, como pelles finas de +velhas, que viveram nos claustros, entre cosmeticos.</p> + +<p>Quando a princeza deu pela mudança da luz e da paisagem lembrou-se da lenda +pavorosa que afastava as gentes da floresta e do Caminho das Rosas.</p> + +<p>—Onde estão as linguas avidas do fogo? perguntava-se. Onde os gelos que +prendem e matam? Onde os dragões?</p> + +<p>A paisagem era toda serena e d'um riso triste. Dir-se-iam anemicas as flores +palidas, as anemonas de seda velha, de cera transparente, que por toda a parte +deixavam cair, de cançadas, as petalas finas. E nos caminhos a areia preta<span +class="pn">{177}</span> era crusada pelos veios das hervas rasteiras, coberta +pelos galhos dos arbustos, aqui sacudiam-se rosas, alem os geranios frescos. +Pelos troncos direitos das arvores a hera enroscava-se, a subir. Nas curvas dos +tanques, dormiam os nenuphares. Nos marmores dos poços as trepadeiras cobriam +os lavores. Havia um silencio leve, por onde perpassava o espirito d'um canto, +como um aroma que a brisa traz de longe.</p> + +<p>Os templos tinham as portas abertas. A princeza para elles entrou, a medo, a +espreitar, afastando os loureiros e os mirtos, que quasi fechavam a entrada.</p> + +<p>Ninguem. Apenas os deuses de marmore, calmos, esperavam as oferendas. Mas as +aras dos sacrificios tinham humidade da lavagem recente. As cinzas eram +quentes; no templo d'uma deusa havia grinaldas de rosas e pennas de pombas +brancas soltas pelo chão.</p> + +<p>Alguem ali vivia, pensava a princeza. Mas quem? Genio malfazejo, que a +mataria, ou fada carinhosa? Seria ali que nas noites claras virião passear as +côrtes sumptuosas que moram nos calices das magnolias?</p> + +<p>Habituada ao silencio sombrio da côrte não a inquietava aquelle silencio +leve. E continuava a explorar a encantada floresta, onde parecia agitar-se um +simulacro de vida.</p> + +<p>Como um coração que vive da saudade dos<span class="pn">{178}</span> tempos +remotos, assim ali parecia existir a repercursão d'uma vida antiga. A cada +passo a princeza encontrava signaes de sandalias, flores cortadas, uma fita, +indicios de vida. Mas d'onde partiam? Quem os deixava?</p> + +<p>Viveria ali, n'aquelle paiz de luz anemica, uma côrte de feiticeiras +tragicas, que esperam, para sair das cavernas, as badaladas lugubres da +meia-noite? Mas não. As feiticeiras escolhem as montanhas altas e escarpadas +onde chegue o canto soturno do mar revolto, sem arvores que impeçam o vôo +incendiario das blasphemias e das imprecações para o ceu sem lua e sem +estrellas.</p> + +<p>Ia caminhando a princeza. Via ribeiros claros que escorregavam sobre seixos +brancos; lagôas azues, fachadas de templos, quincuncios bordados por buxos +altos. E as ruas seguiam entre filas d'altas arvores formando tunel, até serem +cortadas por novas ruas, com arvores ou flores.</p> + +<p>Cançou-se a pequena princeza. Um vago terror a invadiu. Quiz regressar ao +palacio, mas não podia. As ruas d'arvores, os templos, os ribeiros, as +estatuas, sucediam-se. Parecia-lhe estar n'um complicado labirintho. Como +conseguir o magico fio?</p> + +<p>Uma noite, que parecia artificial, espalhara-se pelo ceu e envolvia as +coisas. Á tonalidade doirada, succedia uma tonalidade branca,<span +class="pn">{179}</span> como se tudo fosse feito de prata. A princeza sentou-se +n'um banco, a chorar.</p> + +<p>Ouviu de longe como um passar de brisa leve por harpas suspensas em arvores. +Escutou. Era um canto que um côro fazia subir, ligeiro como um fumo. Mais se +approximava. As vozes eram cançadas, mas limpidas. Cantavam a vida e as festas, +o rir das flôres, a alegria das arvores na primavera.</p> + +<p>Cada vez se approximavam mais. Dirigiam-se, certamente, para o sitio onde +ficára a princeza, um jardim junto d'um templo de marmore verde.</p> + +<p>Já via as canephoras, com açafates de flores, seguidas pelas escravas com +tamboretes; depois a numerosa theoria de mulheres, com archotes, que, ao +queimar-se, illuminavam e perfumavam. Não havia homens. Certamente que vinham +para a festa atheniense das Thesmophorias.</p> + +<p>Eram as habitantes da floresta. Caminhavam lentamente, as cunharicas +fluctuantes sobre as tunicas amarellas. As hidrophoras traziam as urnas na +cabeça. N'um gesto gracioso, seguravam-as com uma das mãos; os braços nus eram +tão brancos como os marmores transparentes das urnas.</p> + +<p>Quando viram a princeza, medrosa, a esconder-se entre as arvores, a +procissão parou, as vozes calaram-se, a meio do canto.<span +class="pn">{180}</span></p> + +<p>Em voz baixa concertavam entre si a resolução a tomar. A princeza ouvia +apenas um zumbido confuso, como os das abelhas, quando nos dias quentes se +cruzam pelos jardins floridos. Colada a um tronco, palida como um ex-voto de +cera, viu com pavor approximar-se d'ella uma das habitantes da floresta. Era +porém, tamanha a sua beleza e a sua gracilidade, que o medo tombou do espirito +da princeza. Pensava-se ver uma haste florida a andar. Vagarosa, os seus gestos +curvos e lentos pareciam fazer nascer no ar quieto uma harmonia...</p> + +<p>—Perdi-me aqui! Perdi-me aqui!</p> + +<p>—D'onde vens?</p> + +<p>—Do palacio. Sou a princeza. As minhas aias não se atreveram. Eu corri para +apanhar uma borboleta. A borboleta fugiu. Fiquei sem saber onde estava, que +caminho tomar. Isto é tão lindo! Mas faz tanto medo não se saber onde se +está!</p> + +<p>—E queres voltar? Deixaste teu pae e tua mãe...</p> + +<p>—Minha mãe morreu. Meu pae não o vejo... quasi nunca. É um velho triste e +duro, que não fala... Tenho medo da camareira-mór. E as aias estão a chorar ás +escondidas d'ella como sempre... A vida é triste, triste, no palacio...</p> + +<p>—Preferes ficar comnosco?</p> + +<p>A boca fina pareceu sorrir-se. A princeza olhava para as mais que se tinham +acercado.<span class="pn">{181}</span> Eram todas lindas e moças, mas sem +frescura, como as rosas que abrem pelas chuvas e ventanias.</p> + +<p>—Se me quiserem. Se me quiserem.</p> + +<p>—Pois ficarás! Ficarás! Vem comnosco!</p> + +<p>Poz-se em marcha o cortejo, novamente. Entraram no templo com a princeza.</p> + +<p> </p> + +<p>E a princeza ali ficou, porque nos rostos se conservava a mocidade e não +havia a dôr, nem o constrangimento. Tudo era claro e sereno. E não voltou mais +ao palacio, onde as aias choravam e a camareira-mór, seca e hirta, tinha uma +voz esganiçada e autoritaria.<span class="pn">{182}<br> +{183}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000150">NOITE DE FESTA</a></h1> + +<p class="assin">A A<small>RMANDO </small>N<small>AVARRO.</small></p> + +<p><span class="pn">{184}<br> +{185}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000151">N<small>OITE DE +</small>F<small>ESTA</small></a></h2> + +<p>Era o jantar de despedida de Dowanov, que partia para o Mexico, promovido a +ministro. Jantar de secretarios de legação, que formam uma confraria, para, na +critica dos chefes, tirar uma consolação do exilio, correra um pouco triste.</p> + +<p>A minha intimidade com o novo plenipotenciario, que viera da communidade de +vistas sobre a numismatica bisantina, abrira em meu favor uma excepção.</p> + +<p>No pequeno gabinete do Avenida Palace, a conversa versára sobre diplomatas e +postos. Dowanov, como todo o bom russo, suspirava por Paris, onde estivera +adido. Contava as suas tribulações junto do embaixador solemne e desdenhoso, +que, sabendo-o apaixonado por corridas, nos dias de steeples e handicaps +sensacionaes, sob pretexto de serviço o mandava chamar com urgencia, mas +realmente para o impedir de divertir-se em Auteil e Longchamps.<span +class="pn">{186}</span> Apesar de tudo, porem, sorriam-se-lhe os olhos ao +lembrar-se das pequenas colhidas <em>un peu partout</em>.</p> + +<p>A minha presença não permitia as confidencias sobre a monotonia da pequena +cidade da provincia que é Lisboa. Havia um constrangimento. Por isso falaram de +companheiros, indicaram silhuetas vistas um momento, logo esquecidas.</p> + +<p>—O que será feito d'esse roliço Kordst, que estava, no meu tempo, +encarregado de negocios em Bucharest? Nunca mais soube d'elle? Devia ter +morrido da falta d'um bilhete. Lembro-me que ia provocando uma questão +internacional, porque o ministro d'Austria, ao apresentar-lhe o adido russo, +disse primeiro o nome de Kordst. Moravamos no mesmo hotel. Foi procurar-me +apoplético:</p> + +<p>—O que terá contra mim o ministro d'Austria? Não lhe fiz coisa alguma!... +Não me lembro. Ainda hontem, na recepção, lhe dei o meu logar no sofá!...</p> + +<p>—Kordst? Com o amor que tinha aos bilhetes de visita, fez-se litografo, +provavelmente... Sabem de Camusot, o adido militar francez, que tinha uma +mulher que andava aos saltos, como uma pêga? Não conheceram? Você, Poliano? Não +me disse que tinha estado com elle em Vienna?...</p> + +<p>—Não. Encontrei-o em Roma. A mulher realisava<span class="pn">{187}</span> +o typo perfeito da <em>gaffeuse</em>... Em que liquidou?</p> + +<p>—<em>Croupier</em> de batota, em Spa... Tinha ar... Um dia, no Jockey, +perceberam que corrigia a sorte, no baccará.</p> + +<p>—E Blumen, o chanceller da embaixada allemã, que conheci, de relance, em +Madrid?</p> + +<p>—Em missão junto de Menelick. Emborracha-se com o Negus, formidavelmente, +com cerveja de Munich. Tem a simpatia dos ras; ouvi que iam crear em sua honra +a ordem do Bock, na Abyssinia...</p> + +<p>—Era o intimo do conde de Strifforth... Que é feito de Strifforth? Herdou +já o <em>peerage</em>? Diziam-o muito considerado no Foreign Office. Pensou-se +n'elle para sub-secretario de Estado...</p> + +<p>—Nunca lhes contei a morte de Strifforth?</p> + +<p>—Morreu?</p> + +<p>—Vi-o suicidar-se. Acompanhei-o nos ultimos dias. Foi em Sevilha. Tinha-o +conhecido em Londres, no seu ultimo <em>congé</em>; quando fui promovido para +Madrid démo-nos muito ali. Morreu d'uma maneira singular, n'uma festa da +marqueza de Carrillos, na sua quinta de Eritaña... A melhor festa de +Hespanha... A mais elegante e romanesca; dava a sensação da embriaguez d'uma +boneca de Saxe, n'um Walpurgis. Havia feiticeiras novas, ou melhor, ninfas. A +quinta é deliciosa, um pouco acima<span class="pn">{188}</span> de Sevilha; o +rio corta-a e para passar d'um lado a outro ha pequenas gondolas com camaras +para duas pessoas sómente. A Carrillos, um pouco artista, um quasi nada doida, +levou uma ranchada de gente para o seu palacio, do tempo de Pedro, o Cru, para +uma festa de mascaras pela Piñata. Era tudo gente nova, salvo uma ou outra mãe +que ia fazer a decencia. Mas achavam-se deslocadas no meio da nossa alegria e, +intelligentemente, retiravam-se para sensacionaes partidas de bridge. Só nos +viamos ás refeições. Uma <em>party</em> deliciosa, que acabou n'uma tragedia, +um pouco de <em>guignol dernier bateau</em>, entre musicas leves... É melhor +contar tudo, ab ovo...</p> + +<p>—Sim... Desde o congresso de Vienna. O pae foi secretario d'um dos +plenipotenciarios inglezes...</p> + +<p>—Ainda de peito?</p> + +<p>—Não. Strifforth era filho de velho... Isso explica muito o seu +temperamento.</p> + +<p>—Vá, psicologo!</p> + +<p>—Este Mumm não me diz nada! Traga Montebello! É um pouco da Carreira.</p> + +<p>—Por afinidade?</p> + +<p>—Então o antigo embaixador?</p> + +<p>—<em>En disgrace?</em></p> + +<p>—Sim. Ao quarto filho da czarina elle criticou:—«Ce n'est pas une +femme—c'est une pondeuse!»<span class="pn">{189}</span></p> + +<p>—Conta a historia tragica!</p> + +<p>—A marqueza de Carrillos levára a sua filha, aquella inquieta Mathilde, +noiva por sport, tecendo e desarranjando os casamentos, como Penelope a famosa +teia. Para ella não havia flirts: tudo noivados. É possivel que, de a +experimentar tanto, a grinalda nupcial estivesse já enxovalhada. Conheceu a +Carrillos? Você? Você? Ninguem? Fina como uma <em>flûte</em> de cristal cheia +de champagne <em>mousseux</em>, ondulosa, sempre pronta para o ataque e para a +resposta, fazia a chuva e o bom tempo na sociedade, e tinha um dom especial +para pôr alcunhas que logo faziam o giro de Madrid e crismavam as creaturas. +N'um dos seus numerosos noivados a mãe, oppondo-se, disse-lhe:—«Que sogra vaes +ter!» A Mathilde, sem pestanejar:—«E elle, mamã? E elle?» A marqueza ria-se +perdidamente com os ditos da filha, regosijando-se:—És digna de mim!</p> + +<p>—E Strifforth?</p> + +<p>—Lá vae. Ora fez-se a festa. O costume Luiz XV era de rigor. Por uma noite +estrellada, espalhámo-nos pelo jardim. Pelas janellas do palacio corriam +grinaldas de fogo das <em>bandes souples</em> que as ligavam. Eram tulipas de +todos os córtes que d'entre a folhagem se uniam, pondo um traço florido entre o +incendio que vinha das multiplas janellas abertas sobre o parque e sobre o +caes. Pelos troncos<span class="pn">{190}</span> das arvores envolviam-se em +espiras as serpentes luminosas, marchetadas, e abriam-se em mil luzes nas +copas, davam, ao longe, o aspecto de uma joalheria que ardesse na noite quieta +e calada, essas noites amorosas da Andaluzia em que tudo parece estacar n'um +beijo supremo... Pela margem do rio a mesma florescencia, mergulhando na agua, +dando ao rio a aparencia fantastica de um ceu que se afundasse.</p> + +<p>De repente musicas invisiveis tocaram as melodias leves, <em>gavottes</em> +suspiradas, em que ha um pouco de amor, um pouco de dança, como num flirt. E do +escuro d'uma angra moveram-se gondolas ligeiras, em que ardiam e estremeciam +largos balões venezianos.</p> + +<p>Os remadores, ensaiados, iam quasi ao compasso ligeiro das +<em>gavottes</em>. Tinhamos a impressão d'uma dança de gondolas, um sonho +estranho de veneziano, pelas horas misteriosas em que as coisas inanimadas +tomam vida. Do levantar dos remos das aguas, saltavam cintillações de +pedrarias. E a linha tortuosa de balões augmentava o incendio, na vibração de +tantas reluzentes joias a agitarem-se na agua do rio... Fomo-nos metendo nas +gondolas. Os <em>novios</em> acolheram-se prestes ás gondolas mais pequenas. +Uma maior levou muitos de nós, descazalados, a Mathilde Carrillos, Strifforth, +a condessa de Valdelar...<span class="pn">{191}</span></p> + +<p>—Conheci-a em Roma...</p> + +<p>—O marido foi gentil-homem do Papa. Preciso falar d'ella. Foi a principal +figura d'este drama. Typo de hespanhola? Não. Mais italiana do que hespanhola, +com uns largos olhos pretos, cheios de doçura. O seu gesto era harmonioso e +curvo, sem uma aresta, sem um angulo, uns nascendo dos outros sem solução, como +as frases d'uma melodia. Tinha-se, ao vêl-a, a sensação de que se ouvia uma +musica dolente, vagarosa. E os proprios olhos moviam-se lentamente, como +pesados de tanta luz e tanta belleza...</p> + +<p>Enigmatica, guardando n'um jardim encantado a sua alma, ninguem prudente +ousára definil-a... Poetica talvez, ou simplesmente aborrecida, fugia em S. +Sebastian do Casino e do Hotel du Palais e ia, á tarde, só, vêr as crispações +do poente nas vagas que eriçam de espuma o mar azul.</p> + +<p>Sentava-se n'um dos rochedos, ás vezes desenhando, outras a cabeça a +descançar na mão, e ali se quedava a tarde inteira, alma talvez de sereia a +chorar pelo mar, a querer aprehender no perfume da brisa, alguma palpitação do +oceano.</p> + +<p>Nenhum de nós se atreveu nunca a interrompel-a, apezar da attracção que +todos sentiamos pela sua figura gracil como uma amphora, da sua +<em>toilette</em>, de toda a elegancia pessoal e do<span +class="pn">{192}</span> misterio da alma ávidamente guardada... Strifforth +apaixonou-se por ella. E, solitario, deixando as excursões amiudadas que fazia +ao Casino de Biarritz, andava de barco para vêr, isolada no rochedo, sem uma +tristesa na face, a condessa de Valdelar, certamente a mais formosa, a mais +perturbante das senhoras de Madrid.</p> + +<p>O conde de Valdelar ficava no hotel, gottoso, na leitura de livros +licenciosos, que salpicava de casquinadas nervosas, irritantes, indifferente á +belleza e á alma da mulher. Strifforth conhecia-a e procurava todos os raros +momentos em que ella apparecia, de manhã na praia, á tarde no boulevard e, uma +ou outra vez, pelas grandes festas, no Casino, que atravessava n'um andar leve, +dando-nos a sensação que tinha azas que a sustentavam. Nada lhe permitira ainda +uma declaração. A condessa fallava-lhe, como a todos nós, em coisas +indifferentes, em festas, touradas, partidas de tennis, impressões rapidas de +viagem e deixava-o sem pressa, mas sem pezar, absoluctamente correcta. Elle +fallava-lhe do mar, mas a condessa tinha uma phrase banal, mudava d'assunto, +como se tivesse pudor d'esse sentimento, que parecia absorver toda a sua vida. +Foi n'esse tempo que Strifforth começou a picar-se com morphina difficilmente +adquirida, a beber perfumes, com horror aos cognacs,<span +class="pn">{193}</span> e a arrastar uma vida d'automato, sempre com esperança +de a vêr, de lhe fallar. E, em a encontrando, pousava sobre ella os olhos +tristes, largas horas, inconvenientemente.</p> + +<p>Em Madrid, todo o inverno foi assim, com menos occasiões de a vêr, porque a +condessa frequentava pouco o Retiro e a Castellana e raramente aparecia na +sociedade, demorando-se o bastante para não parecer aborrecida, mas saindo +logo, com um tacto perfeito. Á vida escondida da condessa correspondia uma +outra vida secreta de Strifforth, ebrio, em desesperos que o alcool longe de +adormecer intensificava, fugindo a tudo o que fôra d'antes o seu enlevo, até do +Museu do Prado, onde ia todas as manhãs—á minha missa, dizia elle—para vêr os +Velasquez e os Grecos... Mas, quando tinha que ir a alguma parte com esperança +de encontrar a condessa, o meu amigo não bebia para poder gozar inteiramente a +presença e a voz d'aquella que amava. Depois a embriaguez exagerava a +impressão, dava-lhe, quasi real, a presença da Valdelar. Meteu-se no ether, +alem da morphina e dos frascos de perfume—Parece que como flores, +explicou-me—arruinando por completo a saude, tornando mais agudas as crises de +desesperos, mais asperas, pelo enigma que para todos nós era essa mulher +esplendidamente artificial, que trazia uma mascara na sua face calada. +Coquette? Decerto,<span class="pn">{194}</span> mas egualmente para todos, +porque os seus movimentos eram regrados por uma musica ineffavel. Mas talvez +coquette só para si, porque nem um só olhar ou palavra auctorisou ninguem a +dizer-lhe um galanteio atrevido.</p> + +<p>Fallou-se na festa da Carrillos, organisou-se a lista, e Strifforth, que não +tinha relações com a marqueza, logo que soube que a Valdeler era da partida, +solicitou, pondo de parte sem hesitação o seu orgulho exagerado, uma +apresentação e um convite, logo alcançados, não só por ser muito +<em>choyé</em>, mas tambem porque transpirára a paixão e todos se interessavam +pelo pobre rapaz, havendo até censuras á Valdelar, que de nada era culpada.</p> + +<p>Fomos n'um expresso vagaroso, atravessando desoladas paisagens, até Sevilha. +Não conhecem Sevilha? É a cidade mais feminina e voluptuosa que conheço.</p> + +<p>Á tarde, vista da Giralda, ella se nos oferece, nua, ondulosa, apenas com a +cinta azul do seu rio e as joias das cupulas e das janellas que scintillam ao +poente. Parece que estaca o movimento, e que, na alcova enorme que é a +planicie, Sevilha se estende, com flôres no cabello e uma volupia extrema em +todo o seu ser. Anda no ar um amavio. Tudo nos falla d'amor sensual e quente, +até os olhos largos das sevilhanas, que parecem recortados n'esses enormes +amôres perfeitos de velludo.<span class="pn">{195}</span></p> + +<p>Foi ali que tivemos a festa de que lhes fallei. Imaginem que na margem +esquerda, a dois kilometros da quinta da Carrillos, ha uma <em>venta</em>, cuja +varanda se debruça entre trepadeiras, sobre o rio. A marqueza tomára-a sem +custo por sua conta e alli varias musicas nos tocaram, não <em>gavottes</em> +leves, mas doridas malagueñas em que se arrasta um langor, como um beijo em que +toda a alma succumbe. Um jacto de luz inundou a gondola. A condessa levava as +mãos dentro de agua, curvada ella propria para o rio. Strifforth ia sentado +sobre a borda. Deixou-se escoar vagarosamente.</p> + +<p>—Caiu um!</p> + +<p>—Strifforth!</p> + +<p>Logo os braços se estenderam, um dos gondoleiros deitou-se á agua e poude +tirar Strifforth, todo ensopado no seu fato de seda.—Borracho! Borracho! +<em>Mais vous êtez ivre! Dites</em>!—Strifforth, não bebera uma gotta. Eu +ficára proximo d'elle. Os musicos não tinham dado por nada. A musica continuava +dolorosa e amorosa. A gondola seguiu, deixando o traço de luz que brilhava e se +quebrava d'encontro ás leves vagas. Houve risos. Rodearam-o com grinaldas. A +Valdelar teve, como os outros um riso.—Escorreguei!... explicou apenas o +conde. Mais adiante, porem, já a musica se ouvia em surdina, Strifforth +deixou-se cair outra vez.—É demais! Está bebedo! gritaram. As<span +class="pn">{196}</span> cabeças empoadas inclinaram-se novamente para a agua. A +Valdelar, que tornára a mergulhar no rio os braços nus em que escorriam as +rendas molhadas, ao sentir a queda, agarrou-o por um braço, indiferente. +Strifforth, porem, deu um vigoroso impulso e desprendeu-se d'ella...</p> + +<p>Houve um panico. Foram buscar archotes. Não calculam o macabro das nossas +figuras de <em>petits-abbés</em> e gentishomens procurando, nos barcos, que de +tanta luz pareciam incendiados, um homem que se queria suicidar. Os gritos +cruzavam. Das pequenas gondolas surgiam vultos negros iluminados á maneira d'um +Rembrandt que tivesse adivinhado Turner e Whistler, em chapadas de luz +multicôr. Na nossa gondola um borborinho correra. Alguem desmaiára, até. As +cabeças empoadas agitavam-se. Ao longe, as malagueñas continuavam num suspiro +lascivo e preguiçoso. A Valdelar voltára á sua primitiva posição: brincava com +a agua, que lhe passava entre os dedos abertos, pondo-lhe aneis que fugiam, +logo substituidos. Não tornamos a saber de Strifforth. O cadaver nunca +apareceu.<span class="pn">{197}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000160">CLARA</a></h1> + +<p class="assin">A J<small>ULIO DE </small>S<small>OUSA.</small></p> + +<p><span class="pn">{198}<br> +{199}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000161">C<small>LARA</small></a> </h2> + +<p>Friorenta, encolhida no fundo do coupé, tudo era indeciso na figurinha que +passou rapidamente, na tarde a escurecer.</p> + +<p>Nascia da penumbra, sem presisão nos contornos, como certos retratos de +Columbano e de Henner. E entre o chapeu preto e a face branca, o cabello loiro +punha uma esmaecida aureola como uma tenue poeira d'ambar. A boa, de <em>renard +bleu</em>, ainda aumentava o indeciso, o fluctuante d'essa mulher; os olhos +claros não brilhavam; o vermelho da bocca desmaiava... Figurinha de cera e de +seda, que passava, olhando para a rua sem attentar talvez em ninguem, levando o +nosso desejo de decifrar enigmas, indefferente, graciosa, impressionou-me... Ao +amigo que me acompanhava recorri para saber d'ella. Quando me voltei para +perguntar, vi que Roberto se pusera pallido; parecia que á bocca se lhe +afivelára uma boqueira de pedra, mascara trágica a emudecer.<span +class="pn">{200}</span></p> + +<p>Seguiu com os olhos a carruagem que trotava pela Avenida até se perder entre +as arvores em Valle de Pereiro.</p> + +<p>—Quem é? gaguejou. Alguma aventureira cosmopolita que veiu <em>faire le +Portugal</em>. Um pastel de Antonio de la Gandara, maquilhada como uma infanta +de Velasquez, mais artificial que uma boneca de Nuremberg, sem vicio, talvez, +amante enternecida d'algum <em>croupier</em> de <em>Cercle</em> ordinario... +Sei lá!... encolheu, impaciente, os hombros, a concluir.</p> + +<p>Houve um silencio. Raras carruagens passavam. Estava triste a Avenida. +Descemos. Abriam, simultaneamente, as grandes flôres geladas e luminosas das +lampadas electricas. Rapidos, fulgiam os americanos. Outra vez a mulher passou, +mais indeciso o vulto, apenas destincto o palôr da face branca no +<em>coupé</em> escuro.</p> + +<p>—Porque teria vindo cá, essa mulher? perguntou Roberto, colerico.</p> + +<p>—Conhecel-a?</p> + +<p>—Se a conheço?! Tenho querido arrancal-a de mim, como se arranca d'um boi +uma farpa—violentamente. Tenho querido fugir de mim, para a esquecer! E quando +estou quasi a conseguil-o, quando a tortura da sua lembrança é em mim apenas +uma cicatriz, eil-a que apparece a reavivar a chaga antiga, a tornal-a mais +dolorosa! Clara veiu aqui só por minha causa, ouves? Para fazer-me +soffrer!<span class="pn">{201}</span></p> + +<p>Agarrava-se-me ao braço, a apertal-o violentamente. Na bocca +accentuava-se-lhe, aspero, o vinco da amargura.</p> + +<p>—Foi esta mulher que me fez fugir de tudo, perder o amor a tudo, +desterrar-me para esta passividade, eu que amava a vida dolorosamente, gosando +com tudo, intensamente!</p> + +<p>«Conhecia-a em Hespanha! N'um inverno humido deixei Lisboa e acolhi-me a +Sevilha. Os dias gloriosos de sol que lá gosei pelas margens do Guadalquivir +azul! Andava ebrio de tanta luz que enchia d'oiro e de triumpho a cidade +alegre. Saia para os campos, logo de manhã, a rir-me com os trigaes e com as +flôres. Ia ao parque vêr o sol fulgir nas caudas abertas dos pavões orgulhosos; +descia ao caes para vêr brilhar na agua incendiada os cobres polidos dos +navios; enchiam-me de prazer a barulheira dos carregadores, o chiar aspero dos +guindastes, o estridulo das sereias, nos vapores que partiam... Tudo era +alegria na cidade maravilhosa mesmo á noite, as lampadas incendiavam a +<em>Sierpee</em> brilhante, onde se apertava uma multidão palradora. Das +janellas dos casinos, das portas dos cafés, dos mostradores das lojas, vinham +chapadas de luz. Misturava-me a toda aquella vida insolente, ria com todos os +risos, todos os labios frescos me chamavam, rodeavam-me todas as cabelleiras +fartas, cheias de flôres. O donaire das andaluzas d'olhar de volupia +fazia-me<span class="pn">{202}</span> achar mais bella a Vida. Era como um +poema a enaltecer a obra de Deus. Por todos amar, não amava nenhuma.</p> + +<p>Comprei o sineiro da Cathedral. Do alto da Giralda, uma noite, possui a +cidade, senti que todo o tumulto confuso que até mim chegava, era o seu sangue +que pulsava por mim nas suas arterias; aquella resplandecencia, brilho de joias +com que cobria a nudez. Os tranvias iluminados, cortando em mil direcções a +cidade, eram pedrarias, aqui se apagando uma, para alem se accender outra, +conforme as ia eu tocando com os meus olhos amorosos. Ella, em baixo, abria os +seus braços, entregava todo o seu corpo, a morena Sevilha, offegante e +lasciva!</p> + +<p>«Era feliz, poderosamente feliz. Sentia, em cada palpitação cardiaca, o +sangue remoçado que se espraiava pelo corpo. Foi então que conheci Clara. Ella +passava pela <em>Sierpes</em>, junto ao <em>Credit</em>, enygmatica, como a +viste. A elegancia do seu porte, ultima florescencia da moda franceza, quasi +immaterial, contrastava com a forte humanidade das sevilhanas cheias de vida, +de sangue e de desejos. Todos se voltaram para ella e lhe abriram caminho, como +se passasse um andor. Fui logo preso pelo encanto decadente e artificial, +esqueci a Vida e a gloria de viver ao sol nos campos fecundos. Regressei á +hyper-civilisação; segui-a e alegre entrei, atraz d'ella, para o seu e meu +hotel.<span class="pn">{203}</span></p> + +<p>«Vergonhosamente a segui como um cão fiel. Vergonhosamente mendiguei um +olhar dos seus olhos parados; e contente fiquei ao vel-a um dia no salão da +leitura, por que pude dirigir-lhe a palavra e pedir-lhe licença para fumar. +Apesar da resposta secca, insisti e entabolámos conhecimento.</p> + +<p>«Doces foram para mim os dias, em que visitámos Sevilha. A casa de Pilatos e +as suas penumbras em que esmaecem estuques e o patio claro de marmores +harmoniosos ouviram as palavras aladas que lhe disse; diante das Assumpções do +Murillo e dos frades de Zurbaran, no museu deserto, contei-lhe o poema do meu +desejo; na <em>Caridad</em>, a mostrar-lhe a estatua de Herrera, ouviu a +perfumada e embaladora cantilena. Na Giralda, a vêr Sevilha doirada, deitada na +planicie que ondulava, até perder-se no horisonte circular, offereci-lhe toda a +minha alma e toda a minha vida. Houve momentos em que seus braços foram a +levantar-se para apertar o meu pescoço; julguei sentir o seu peito leve arfar +de commoção: muitas vezes a boca se apertou para a florescencia dos beijos e +seus olhos verdes se encheram de luz; mas rapido, tudo se desmanchava, e um +sorriso tremia na boca desmaiada, a mostrar a linha branca dos dentes.</p> + +<p>O flirt desabrochava. Uma tarde, nos jardins do Alcaçar, á porta dos banhos +de Maria Padilla,<span class="pn">{204}</span> passou por mim o corpo delgado, +agil, pela cara roçou o cabello que tinha um perfume penetrante; fallou-me do +seu corpo e, sentados no salão dos Embaixadores, estendia a perna, para mostrar +o tornosello fino e a meia <em>ajourée</em>, que deixou vêr a pele +branquissima. Todas as noites eu pensava, que no dia seguinte beijaria a boca +perfumada. E todas as manhãs via cair a minha esperança, como as folhas murchas +que o vento sacode dos ramos seccos.</p> + +<p>«Certamente que as minhas palavras deviam ser perturbantes, porque sahiam +d'um coração perturbado. E, pesadas de tanto amor, cahiam da boca +vagarosamente. Ás vezes os cilios de oiro abatiam-se sobre os olhos, como n'um +espasmo. Mas logo o sorriso abria-lhe a pequenina boca!</p> + +<p>«Longos dias, longas semanas, durou o encantado oaristo. Já não cuidava da +gloria da natureza; das apoteóses do sol sobre as aguas azues do rio. Só +pensava n'ella, só vivia d'ella.</p> + +<p>«Um dia, porem, eu soube! Alguem, com palavras que julgou caridosas, veiu +pôr no meu coração as sete espadas! A creaturinha delicada e deliciosa, +princeza de balada d'hoje, urna de perfume, a quem me entregava como um +collegial, era uma aventureira das que frequentam a <em>Riviera</em> no +inverno, Aix no verão, Paris na primavera, e que a Sevilha viera atraz +d'um<span class="pn">{205}</span> clown, que no circo fazia rebentar estrépitos +de gargalhadas... Ao seu morbido encanto me prendera, e atraz d'ella me fui a +soluçar, flor de lameiro em que puz todo o perfume suave... Fôra nas mãos +d'ella um saxe fragil como que se brinca!</p> + +<p>«Ah, meu amigo! O desespero e a raiva puzeram mãos assassinas a +estrangular-me! N'um impeto, como uma aura que se nos levanta do peito e nos +atira para o ataque epileptico, decidi-me. Levei-a n'um trem para o campo, para +alem da Cartuja, com um cocheiro de confiança. E alli, desapiedadamente, +bati-lhe, arranquei-lhe as sedas e as rendas—parecia, nua entre os trigaes +verdes, uma magnolia enorme!—e o seu corpo cobriu-se todo de sangue. Clara +gemeu, implorando; as lagrimas empastavam a maquilhagem; via-a sordida, +enrolando-se para escapar ás chicotadas, e fugi, ebrio, doido, a correr, diante +do cocheiro espantado que me metteu no trem e me levou a Sevilha.</p> + +<p>—Senorito, la navaja era mejor, aconselhou-me.</p> + +<p>«Parti. Nunca mais soube d'ella. Trouxe-a dentro de mim como um espinho. A +dôr que lhe causei augmentou a minha pena. De ter visto o corpo magro e branco, +ficou-me a ancia de o beijar. Andei de noite, pelas ruas, a correr sem forças +para fugir de mim e d'ella, porque a figura surgia deante dos meus olhos,<span +class="pn">{206}</span> bella de toda a perversidade e de toda a lascivia, como +uma invencivel tentação, a que o maior santo succumbe.</p> + +<p>«Ás vezes conseguia distrahir-me; de repente ella surgia, sentava-se na +minha frente, mostrava os vergões das chicotadas, todo o corpo impudico +perfumava e brilhava, e a boca sorria a escarnecer de mim!</p> + +<p>«Foi algum philtro que me deu.</p> + +<p>«Ia a esquecel-a e eil-a que novamente me apparece, a prender-me, a +levar-me, outra vez para a allucinação, a atiçar o incendio que me queimava!</p> + +<p>«Talvez queira vingar-se!</p> + +<p> </p> + +<p>Não. Não queria vingar-se. Clara veiu a Lisbôa, soube-o mais tarde, atraz +d'um comprimario de S. Carlos, seu <em>amant de coeur</em>.<span +class="pn">{207}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000170">IDILIO TRISTE</a></h1> + +<p class="assin">A E<small>DUARDO </small>V<small>ALERIO +</small>V<small>ILLAÇA</small>.</p> + +<p><span class="pn">{208}<br> +{209}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000171">I<small>DILIO TRISTE</small></a> </h2> + +<p>No jardim, a tarde de oiro era perfumada pelas rosas e pelos cravos. Nos +canteiros, os cravos levantavam-se impertinentes, risonhos, em delgadas hastes. +E, por toda a parte, entremeiando-se com os buxos, enroscando-se a uma macieira +em flôr, serpenteando pelos muros, subindo pelas sebes, uma opulenta floração +de rosas de toda a côr, rosas de oiro pallido, rosas roseas, rosas vermelhas a +estremecer, como labios de que vão cair os beijos, rosas escuras, enormes, +sensuaes e dolorosas, umas ainda em botão, misteriosas como as adolescentes, +outras já totalmente abertas, sem enigma, como as amantes antigas—todas ellas +misturavam o seu perfume no jardim quieto, em que as pombas arrulhavam, +beijavam-se e depois partiam em vôos curvos, as azas brancas a brilhar ao +sol.</p> + +<p>Os dois amantes iam calados, elle a olhal-a intensamente, como a querer +apreendel-a, como se os olhos fossem bocas e podessem beijar,<span +class="pn">{210}</span> braços e conseguissem abraçar—ella um pouco +aborrecida, a desfazer entre os dedos longos uma orchidea azul listrada de +vergões esverdinhados.</p> + +<p>—Pensei em ti sempre, dizia elle. No Prado, diante dos tapetes de Goya, +disse o teu louvor. As raparigas esbeltas, que vão á fonte, as bilhas esguias á +cabeça, como as princezas de Homero, não tinham a tua elegancia... Ás infantas +de Velazquez, artificiaes, cadaveres de bonecas, em que apenas os olhos +attonitos teem vida, faltava a tua belleza. As santas hirtas de Memling não +tinham na bôca a primavera que ruboresce os teus labios... Só na curva do braço +de Danae, de Ticiano, pude ver uma attitude como tens... Por todo o museu me +perseguia a tua imagem, como um canon, para avaliar as obras. As gordurosas +flamengas de Rubens, as cigarreiras sensuaes e extaticas de Murillo, as +energicas mulheres de salteadores em que Ribera se compraz, eram muito +diferentes de ti, d'ellas fugia o meu olhar. Em Raphael havia alguma coisa da +tua doçura risonha, mas demasiado passiva; em Greco, a tua distincção, mas +severa; apenas Leonardo te saberia pintar, quasi irreal por seres tão bella, +indecifravel, como uma esfinge sem segredos... Como uma esfinge sem segredos... +Que segredos teria a suave mulher do Jocondo? Que segredos terás, alheia a +tudo, passando pela vida, ligeiramente,<span class="pn">{211}</span> como a +agua que vae n'um ribeiro, correndo e cantando? Vi-te em toda a parte. Levei-te +sempre commigo! Talvez o Moro te tivesse pintado...</p> + +<p>—Viste bem o museu...</p> + +<p>—Vi, porque te buscava... Um dia, ao aproximar-me da escadaria, vi fugir, +n'um automovel ligeiro, uma mulher, que se parecia comtigo... Era um carro +vermelho... Por toda a parte tive a <em>hantise</em> dos automoveis vermelhos. +No <em>Retiro</em> e na <em>Castellana</em>, o meu olhar prescrutava, revolvia +todos os automoveis, todas as carruagens, a ver se te encontrava. Todas as +manhãs, pelo museu, andava á tua espera, embora te soubesse aqui, indiferente. +Como te não encontrava, procurei vêr o teu retrato, n'algum quadro antigo. E +puz, em muitos, o reflexo da tua belleza, porque n'uma atitude, n'um olhar, +havia alguma coisa de ti...</p> + +<p>—O governo hespanhol agradeceu-te a valorisação dos quadros?</p> + +<p>—Ri-te. Ri-te de mim... A tua boca, ao abrir-se n'um riso, é uma flor de +nácar e prata...—A principio, procurei-te... Depois, como a tortura fosse +muita, quiz fugir da tua imagem. Fui para Sevilha onde tudo é Amor e +resplandece. Deixáras de escrever-me... Só sabia que não pensavas em mim. Ali, +tudo é alegre e luminoso. O sol é o sangue da cidade... Doira a planicie e as +palmeiras de S. Fernando. Levanta<span class="pn">{212}</span> scintillações do +calado Guadalquivir azul e da cupula inflamada da Torre del Oro. Enche de vida +o jardim do Alcazar, com seus repuxos com enjoalhadas lagrimas. Tudo é luminoso +e perfumado. O amor, ali, não aniquilla, escalda. Entre os cravos que guarnecem +as grades das janellas, as mulheres olham os seus namorados com um olhar +d'assalto. Ha uma voluptuosidade suspensa no ar. Tudo vive, tudo ama, parece +que tudo é feliz. Ha uma embriaguez de côr. E nas varetas dos leques saltitam +os beijos que caem das bocas. A Sierpes, á noite, palpita com todo o anceio de +tumultuosa cidade... Nos pateos, sob as pequenas palmeiras e musas, os flirts +sussurram palavras de entontecer... Como tudo brilha! Só o meu coração se +apagava e murchava com saudades... Nos banhos silenciosos de Maria Padilla, +pensei no afortunado amor de favorita, nos lentos passeios pelo jardim, nas +casas de fresca sombra, onde luzem os estuques policromos e os azulejos... E +não deixei de sentir-te ao meu lado...</p> + +<p>—Acredita que não foi por minha culpa...</p> + +<p>—Fugias-me. Deixavas-me a tua imagem, para torturar-me. Mandavas-m'a, a +envenenar-me de longe... A belladona é doce e envenena... Muito mel embriaga... +Tão real a sentia, que, á noite, olhos fechados, queria abraçar-te, e tinha a +desillusão de Pan, quando perseguiu a ninfa Seringe... Como quem corre atraz do +sol<span class="pn">{213}</span> e se encontra encerrado n'um bêco. Nunca mais +me escreveste!</p> + +<p>Deixaste cair o teu amor do peito, como as flores que levaste ao baile...</p> + +<p>—Depois d'uma noite de baile, as flores já não perfumam. O amor precisa do +viço. É necessario podar o coração...</p> + +<p>—Bem sei. Não te recrimino. Lamento-me...</p> + +<p>—Lamartiniano!... Julgava-te mais forte e mais moderno. Parecia-me que a +cultura intensiva do Eu tornava impossivel um amor sem esperanças... +Filosofos!...</p> + +<p>—Amar-te, não é para mim uma função: é a propria essencia do meu ser. Julgo +ás vezes que não existes, material e tangivel, que existes mais real: nasceste +e vives no meu cerebro, tanto se casa a tua figura ao meu sonho de belleza. +Pintor, se idealisasse uma mulher, o meu quadro pareceria o teu retrato, embora +nunca te tivesse visto. Poeta, o teu misterio seduz-me, alma que se guarda, +avidamente, sem que ninguem a adivinhe. Todos passam por ti, sem a possuir, +como as quilhas dos navios que cortam as ondas não maculam a eterna virgindade +do mar... Foi ao ver o mar, que mais pensei em ti. Pelo Mediterraneo socegado, +estudei a onda, sem conseguir conhecel-a. As ondas são graciosas, as suas +curvas teem ternos desenvolvimentos: dir-se-iam mulheres que brincam na relva +fresca. E desfazem-se em flocos de espuma,<span class="pn">{214}</span> +quebram-se umas contra as outras com fragilidade de cristaes, são leves como +leques, e no emtanto matam, levantam-se em vagalhões que sacodem os couraçados, +despedaçam os navios. Carinhosas, riem e fogem, como tu; a onda de esmeralda +que saltita, enfeitada de rendas, subitamente é uma gigantesca aza d'abutre que +se curva, para apreender... É um abismo que ri... As mutações rapidas do mar +fizeram-me lembrar o teu amor que desapareceu sem se saber porquê...</p> + +<p>Nem sequer recrimino. «Não me esqueço», prometeste. E as tuas palavras que +guardei, como guardaria uma estrella, ainda cantam nos meus ouvidos. E ha tanto +que te esqueceste! Vivo do passado. Vive o meu coração do passado, como as +velhinhas, que foram actrizes, e no asilo se lembram das aclamações quando +faziam papeis de rainhas sumptuosas com luzidas cortes a seguil-as e galãs +esbeltos a segredar frases d'amor...</p> + +<p>Mas o passado esgota-se, como as cisternas, quando durante muito tempo não +chove...»</p> + +<p>Ella cortara e desfolhára as margaridas de uma moita viridente. O sol ia a +morrer, n'uma catástrofe... Um rebanho de nuvens encharcava-se em sangue. N'uma +fita delgada, um repuxo subia, dobrava-se e estilhaçava-se na agua do +tanque.</p> + +<p>O amante chorava...<span class="pn">{215}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000180">PERFIL D'AVENTUREIRO</a></h1> + +<p class="assin">A E<small>DUARDO DE </small>M<small>AYA +</small>C<small>ARDOZO</small>.</p> + +<p><span class="pn">{216}<br> +{217}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000181">P<small>ERFIL +D'</small>A<small>VENTUREIRO</small></a> </h2> + +<p>Desvairada, a ministra da Esclavonia perseguia sir Arnold Davis, que, de +sala para sala, passava em revista as senhoras em toilettes de baile. Ia-lhe na +piugada, metia-se pelos corredores, apressadamente, para crusar-se com elle, +receber um olhar, fazel-o parar, prendel-o no vão d'uma janella, onde os seus +olhos pareciam tomar d'assalto o rosto glabro de sir Arnold, mordia a boca +fortemente carminada, como para reter os beijos, que queriam saír.</p> + +<p>As suas mãos magras e longas, as mãos que teem as doadoras e as santas nos +quadros góticos, tremiam ao apertar as de sir Arnold onde opalas desmaiavam, +maléficas e misteriosas.</p> + +<p>Carlota von Hameghen não via o baile, não se rodeava, como de costume, de +politicos e diplomatas, a sondal-os, a irrital-os, <em>allumeuse</em> +internacional á cata de segredos, para vender a todas as chancelarias que +pagassem, generosas e discretas.<span class="pn">{218}</span></p> + +<p>A condessa Carlota von Hameghen, mulher do ministro de Esclavonia, era quasi +fiel ao marido. Apenas grande necessidade, um aperto de dinheiro, um segredo +muito importante, que só se confia nas horas de completo aniquilamento, depois +dos beijos, é que a faziam esquecer o marido, ainda novo, que trepára na +«Carreira» empurrado pela mulher, apesar de morphimano e um pouco imbecil. Fóra +disto, esposa exemplar. Espirito d'honestidade? Não: impassibilidade; a +cirurgia, com uma operação dolorosa, em Londres, tirára-lhe o vigor da +sensação. Vivia para a ambição, uma vida farta, proporcionada pelos cheques de +varias embaixadas e legações, menos a de Esclavonia que pagava pouco e, por +complicações de finanças internas, a más horas.</p> + +<p>Alguns diplomatas, ao facto do temperamento da condessa, estranhavam aquelle +assalto insistente ao moço inglez, alheio aos segredos das chancelarias, pouco +rico para a condessa, servedoiro de milhões.</p> + +<p>O ministro da Dinamarca, ageitando, como de costume a unica farripa de +cabello que lhe guarnecia o craneo rubro:</p> + +<p>—Ha de ser uma desforra! Sir Arnold vingar-nos-ha...</p> + +<p>—Não ha de levar a melhor...</p> + +<p>—Aposto! Não sabem a força de sir Arnold. Conheço-o muito bem.<span +class="pn">{219}</span></p> + +<p>—A Hameghen é uma fortaleza inexpugnavel.</p> + +<p>—Praça sitiada, praça tomada...</p> + +<p>—Mas quem sitía é a condessa!...</p> + +<p>—Estão enganados. Com o ar de quem se defende, sir Arnold ataca +vigorosamente. Conheço-lhe a tática. É toda de sapa. Minas e conminas. O campo +parece tranquilo e mil picaretes abrem galerias. É de primeira força! Praça a +saque, d'aqui a duas semanas, o maximo.</p> + +<p>—Não seja como Port-Arthur que todos os dias é tomado...</p> + +<p>—Verão. Vae custar á condessa, coisa d'um milhão. Sir Arnold lança pesadas +contribuições de guerra.</p> + +<p>—Que paiz pagará?</p> + +<p>—Mr. Alphonse?</p> + +<p>—Il faut vivre. Il n'y a pas de sot metier. A Mariam Ringen...</p> + +<p>—Aquella judia fanhosa?</p> + +<p>—Sim. E que tinha seis dedos em cada pé... Gastou mais de dez mil libras em +tres mezes.</p> + +<p>—É ante-semita. É <em>bien né</em>, o ser-se ante-semita! O começo da +liquidação... E depois, douze dedos. Parecia-lhe menos.</p> + +<p>—Contava muito depressa... 12 de cada vez...</p> + +<p>—Se é que contava pelos pés!<span class="pn">{220}</span></p> + +<p>—Sir Arnold interessa-me. Tenho-o examinado, na batalha. É impassivel. +Nunca procura primeiro uma mulher. Aquelle bello corpo d'Apollo adrescente +fascina. Os olhos claros, misteriosos, desequilibram os nervos das nossas +mulheres. E as opalas cheias de maleficios, que para elle são +<em>porte-bonheur</em>, dão um quebranto magico. A terrivel fama de que tão +justamente gosa e o precede como uma tenebrosa arauto faz-lhe um halo. Luz do +inferno, que importa? É uma aureola. Se não tivesse motivos para ter um tal +nome, caluniar-se-ia. É capaz de tudo, até d'uma boa ação... que o não +prejudique. Não faz o mal por arte. Para fazer o mal por principio é necessario +afirmar. Sir Arnold nada afirma nem nega. Negar é, d'alguma fórma, afirmar. E +isso é um esforço que elle se não permite. Se quizesse ser diplomata, estaria +hoje embaixador, membro do Tribunal da Haya, ministro dos negocios +estrangeiros. Encaminharia a politica ingleza com menos soberba que Salisbury e +mais firmeza que Lansdowne, sem a literatura, o romantismo de Rosebery. Nos +tempos da vadiagem diplomatica, dos verdadeiros plenipotenciarios—hoje os +nossos plenos poderes ficam na secretaria, que nol-os vae mandando por conta e +pelo telegrafo—nesse tempo, talharia um imperio para o soberano que o +empregasse. Não, para si. Sir Arnold é um egoista formidavel. Julga-se o centro +do Universo. Nihil<span class="pn">{221}</span> humani a me alienum puto. Nada +do que pertence ao homem lhe é alheio, isto é tem direitos sobre tudo, traduz +elle. Não tem outra moral.</p> + +<p>Nietzche estabeleceu os principios que nelle eram instinto. Cuido que nunca +se deu ao trabalho de ler um só volume do discipulo de Stirner...</p> + +<p>A conversa não interessava já. O dinamarquez tinha um pouco a mania +oratoria. O grupo dispersou-se, pelas salas, onde os pares deslisavam ao som +d'uma valsa da moda, langorosa e morbida... Fiquei com elle. Fomo-nos dirigindo +para a estufa. O ministro continuou:</p> + +<p>—Gósto de sir Arnold... pelo lado scientifico, como filósofo. É um poderoso +dissolvente. Todas as dissoluções apressam a evolução. Davis é um força +social.</p> + +<p>—Na boca d'um ministro d'um paiz monarchico, essas palavras são +imprevistas, sorri-me.</p> + +<p>—Tenho uma opinião como diplomata e outra como filósofo. Como diplomata, +sou conservador, como filósofo, anarchista... mas anarchista com palacios, +festas, condecorações... Quando quero pensar como diplomata, visto a farda, +ponho duas gran-cruzes, uma para cada lado—tenho a Corôa da Prussia—e todas +as placas. Quando me decido a pensar como filósofo, cólo umas barbas postiças, +fico em <em>robe-de-chambre</em>. Defronte da minha psyché<span +class="pn">{222}</span> imperio, dou-me a ideia d'uma Diogenes limpo. O mais +usual, porem, é não pensar... Estou dispepético: o pensamento é terrivel para +nós. Isto não impede que lhe conte um episodio da vida de Davis. Simpatiso com +elle, dou-me até com elle. Conheci-o em Aix-les-Bains ha seis ou sete annos. +Estavamos no mesmo hotel. Os nossos aposentos eram seguidos. A sacada era a +mesma. Conversavamos muito. Venha para aqui.</p> + +<p>Fomos para um canto isolado da estufa onde agonisavam, minadas por um mal +estranho, orchideas esverdeadas. Nasciam chagas nas suas petalas recurvas, +torcidas, listradas de vergões, varioladas. Sentamo-nos num sofá. O ministro +ofereceu-me um cigarro de Nestor Gianaclis, perfumado e adormecedor. +Escutei-o.</p> + +<p>—Como lhe disse, sir Arnold é um egoista. Quer aumentar o poder, para +empregar a formula de Nietzche. Desenvolve energicamente a personalidade, +segundo ou contra a moral, é-lhe indiferente, torneando os preceitos dos +codigos penaes e os usos sociaes, de maneira a se lhe não fecharem os palcos +onde se exibe, os salões cosmopolitas, mais faceis e, sobre tudo, mais +indulgentes. Elle não diz como o poeta: «je porte fiérement la honte d'être +beau»; não, para Davis não é uma vergonha, pelo contrario, trata de fazer +valer, por toilettes e atitudes longamente estudadas, por meios artificiaes, a +sua belleza clara, loira, a que os olhos transparentes<span +class="pn">{223}</span> dão um encanto misterioso, uma sedução que empolga, +fascina, arrasta os pobres mulheres que desmaiam, sucumbem, diante desse Apollo +adolescente e terno, cuja força se adivinha apenas nas mãos, de dedos firmes, +de pelle, apesar dos cosmeticos, um pouco aspera. Viu-o bem? Reparou em como +todo o seu corpo harmonioso d'atléta toma atitudes cançadas, como os seus olhos +pareciam dissolver-se, ao olhar para a pequena Von Hameghen e a sua boca de +labios finos e imberbes, se contraíam para o espasmo d'um beijo? Ha sete annos +era o mesmo. Parece que para elle o mundo e os dias se conservam imoveis. +Dir-se-hia que essa adolescencia se guarda no gelo. Que pacto teria feito este +homem com o demonio?</p> + +<p>—Talvez o mesmo que Dorian Grey...</p> + +<p>—Bah! Dorian Grey matou Basil... Julga que será Sargent, realista, amando a +força concentrada e não a belleza, quem fará o novo retrato magico! Ou +Lazló?</p> + +<p>Já não ha Basil. Talvez em Hespanha... Sorolla ou Zuloaga... Mas os +hespanhoes são naturalistas e republicanos. Veja Ibañez... A «Catedral» liquida +em artigo de fundo.</p> + +<p>—E Davis? atalhei, pondo um dique á divagação abundante.</p> + +<p>O ministro sorriu-se. Certamente que se lembrou do epigrama de Marcial.</p> + +<p>—Ah, sim! Davis e Aix-les-Bains. Estou<span class="pn">{224}</span> prolixo +como o bom Tito Livio. Entro em materia.</p> + +<p>Ali, no canto da estufa, abaixando a voz quando alguem se aproximava, para o +afastar, o dinamarquez contou:</p> + +<p>—Estava no «Splendide» lady Hanswell, que depois de tratar do reumatismo, +com massagens e duchas, chorava poeticamente, pelas alturas vicejantes do +Bourget, os dez annos de casamento feliz com lord Vivian Hanswell esse +extraordinario homem, misto de Heroe, de Poeta e de doido, que, começando por +fazer odes extranhas aos venenos, aos assassinios e ás traições, acabára em +Middlefontain, voluntario da Rainha, o primeiro na escalada d'uma collina, o +monoculo entalado no olho, um livro de versos na algibeira do kaki enlameado e +a cartucheira já vasia, de tantos tiros dados friamente, como nas suas coutadas +ferteis da Irlanda.</p> + +<p>A viuva amára em seu marido a belleza adolescente, todo aquelle ar gracioso +como o d'uma mulher, os largos olhos claros, transparentes, como gotas d'agua +azul; amára o seu espirito extranho de comedor d'opio, cambiante e misterioso, +deleitando-se na posse de coisas frageis, de flôres que, mal cortadas se fanam, +os cristaes finos, as filigranas, as ceras, os linhos que envolvem, fumos, as +mumias egipcias e quasi se pulverisam ao tocar-se-lhes, os leques de rendas; o +imprevisto das suas áções sem logica,<span class="pn">{225}</span> que nada +faziam prever, quasi sem realidade, como essas arvores que teem um metro de +raizes fóra da terra.</p> + +<p>Lady Hanswell, já passado o segundo anno de viuvez ainda carpia nas palavras +baixas em que recordava o marido, nos olhos que de tantas lagrimas regadas eram +frescos como fetos nascidos á beira dos regatos, nas toilettes lilas, com que +se vestia, foncées de manhã, claras á noite, nas perolas cinsentas com que se +enfeitava, gargantilhas pesadas, collares multiplos, caindo sobre o collo, +anneis de castães largos, que, á luz, pareciam cinzas...</p> + +<p>Foi sobre ella que Davis se lançou, decidido, acirrado não só pelos seus +dois milhões de libras, mas tambem pela pelle fina, mate, macerada em banhos +prolongados de perfumes, pelos olhos em que brilhava uma volupia indecisa, a +afogar-se na tristeza, como um reflexo impreciso de estrella num tanque.</p> + +<p>—A mulher deve ser como o Champagne: <em>extra dry</em>.</p> + +<p>Vi-o n'esse cerco, a sitiar a praça, a fazer-se valer, fugindo de lady +Hanswell, de todos, indo pouco ao Grand Cercle e á Villa des Fleurs, tomando, +de manhã, nos Banhos, e á meza, atitudes d'uma tristeza profunda, maniaca, que +interessasse.</p> + +<p>Só á noite, quando fumavamos o derradeiro charuto na varanda, sacudia a +mascara e falava-me<span class="pn">{226}</span> do desenvolvimento da +personalidade, toda a theoria de Spencer e de Stirner, poetisada e dramatisada +por Nietzche, nelle menos literaria, menos filosofica, mas mais sincera, +floração inconsciente do seu Ego, sumula emfim da sua maneira de ser, animal +forte, que sabe que a Vida existe e quer apreender sem esforço, desenvolver-se +avidamente, até com detrimento dos outros.</p> + +<p>—É necessario viver a nossa vida, disse-me.</p> + +<p>N'essa noite, Davis, que era d'uma sobriedade exemplar, por calculo talvez, +para impressionar byronicamente lady Hanswell ou por impulso atavico—gerações +a alascar-se em Port-Wine pesam esmagadoramente—por qualquer motivo, Davis +acompanhou todo o jantar de Cliquot. Saimos juntos, tomamos pelo <em>Boulevard +des Côtes</em>, que vae contornando a montanha e mostrando-nos, em cada curva, +um aspecto novo d'Aix e do campo, aqui a massa d'arvores illuminadas dos +parques dos dois casinos, alem a rua de <em>Genéve</em>, apagada e quieta, mais +alem as montanhas cujos perfis se recortam docemente no ceu enluarado, n'um +outro cotovello o lago do Bourget, que parece, na noite clara, de mercurio +incendiado. Caminhavamos apressados, subindo sempre, até á nascente d'essa agua +choca que os medicos nos fazem beber de manhã, em jejum.</p> + +<p>Sir Arnold falava com fluencia:<span class="pn">{227}</span></p> + +<p>—Todas as creaturas devem ser, para nós, elementos de desenvolvimento do +poder, utilidades. Extraido d'ellas o que nos pode servir devemos pol-as á +margem. É o que o organismo faz, inconscientemente... Quem sobrecarrega com +sentimentos inuteis o seu coração, apodrece, morre. Devo todo este ensinamento +filosofico, não aos livros, nem ás conferencias, mas a uma pobre +<em>caissière</em>, Eva Farland, d'um pequeno restaurante do Strand onde eu +jantava economicamente nos dias em que não encontrava emprego para o meu mister +agradavel de <em>pique-assietes</em>. Ali, por um shelling e meio tinha uma boa +talhada de <em>mutton</em> e uma caneca de cerveja, para desalterar.</p> + +<p>Essa pobre rapariga prendeu-se nos olhos azues de Davis; prenderam-a seus +braços fortes, a sua boca que ao beijar mordia. E foi para elle como uma +escrava, atenta, paciente, devotada, gastando o seu ultimo penny em futilidades +que Davis atirava para o lado, com desdem, dando-lhe quarto, copiando á noite +escritas, para pagar a luz, a lenha, a agua, porque Davis fôra viver com ella, +por economia—era um periodo de <em>guigne</em> extraordinaria!—persuadindo-se +a pobre Eva que era por amôr. Doce e abençoada mentira que a tornava feliz, +dava-lhe coragem para continuar a vida dura, fornecia-lhe a energia necessaria +para estar á caixa todo o longo dia, esperar, ás vezes, por elle<span +class="pn">{228}</span> toda a inferminavel noite, quando o jogo o segurava com +a caricia aspera das suas mãos de aço; resignar-se ás longas ausencias, porque +Sir Arnold, em ganhando alguns guineus, reentrava na sociedade, ia jantar ao +club, frequentava os <em>music-halls</em> nos camarotes do club, +reencadernava-se, emfim, de gentleman.</p> + +<p>Eva era o seu cão, mas cão de cego, util, chorando ás escondidas e pouco, +para não afear o soberbo rosto, não avermelhar os grandes olhos sensuaes e +tristes.</p> + +<p>N'um periodo mais largo de miseria, não chegando para os dois o salario da +amante, nem as copias, ella punha o chapeu, á noite, e ia pelo Picadilly, +misturando-se aos soldados, a fazer-lhes concorrencia, á caça do guineu pondo +em cada sorriso, um soluço.</p> + +<p>Davis via-a sofrer, indiferente, achando rasoavel que por elle outrem +penasse, continuando descuidado, até que um dia a fortuna sorriu-lhe pela boca +desdentada d'uma rainha de qualquer coisa na America, porco salgado ou azeite +de fóca. Nunca mais soube d'Eva, de quem nem sequer se despediu, e que, se não +morreu de dor—o que é pouco provavel—teve com certeza uma lancinante crise de +desespero.</p> + +<p>Ora essa mulher, que por elle fez todos os sacrificios, incluindo o do pudor +da amante, considerava-a elle o seu mestre de egoismo, pois habituára-o a +pensar que o amôr pode ser um<span class="pn">{229}</span> modo de vida e a +belleza extranha e fascinante suprir as aptidões para a lucta pela vida.</p> + +<p>Foi a confissão que me fez n'uma noite de vinho, em que o Cliquot d'oiro +levára ao seu coração impassivel o desejo de expandir-se.</p> + +<p>Não tornámos a falar no assunto, persuadi-me até de que elle não tinha +consciencia da propria indiscrição e continuei a examinal-o no interessante +combate travado com lady Hanswell.</p> + +<p>Parece que a embriaguez produziu o seu efeito, porque lady Hanswell começou +a lançar-lhe, por vezes, obliquamente, olhares em que punha alguma coisa de +caloroso, as lagrimas deixaram de borbulhar-lhe nos olhos, que andavam secos do +desejo que ardia dentro.</p> + +<p>Ao começo d'ataque da ingleza, respondeu sir Arnold com um simulacro de +retirada, um mergulho na sua aparente tristeza, abstinencia de comida, que o +levava ás escondidas ao American Bar todas as noites, a leitura constante do +resignado Shelley e do desesperado Byron, cujos livros deixava ficar sobre as +mezas com marcas nos versos adequados á circunstancia pensando que lady +Hanswell não deixaria de ir folhear os volumes.</p> + +<p>Ia realmente, sofrega, já esquecida do marido, estudando toilettes, não já +ruskinianas, com toda a tristeza doce das figuras dos primitivos, mas as que +fizessem realçar a sua elegancia,<span class="pn">{230}</span> largos decótes +que mostravam a flor nevada do seu cólo opulento, fulgiam-lhe nas mãos os +largos costões esverdeados de berilos que Lalique lançára n'esse anno, remoçava +a sua boca escarlate uma primavera de beijos, que se ofereciam, como as +laranjeiras que nos quintaes murados veem sacudir para a estrada as laranjas +d'oiro.</p> + +<p>Lady Hanswell atacava vigorosamente, num assalto de desespero, pondo na +conquista de Davis toda a pertinacia da raça, toda a galantaria e vaidade do +sexo.</p> + +<p>Davis fugia, mas forneceu-lhe a ocasião d'ella se lhe dirigir, entabolaram +relações, elle mais dobrou a sua alma, melancolicamente, falara-lhe de amôres +purissimos, que vicejam nas almas candidas, como desbotadas flores nas +planicies geladas da Noruega.</p> + +<p>Falou-lhe n'uma especie de amor duplo, um amôr platonico por uma, em que a +alma vae em primeira cumungante, e o desejo se dirige para outra.</p> + +<p>E, diante d'ella, passeou pelas alamedas da Villa des Fleurs com Blanche +Lely, e, ostensivamente, durante alguns dias recolheu de manhã, a hora em que +lady Hanswell costumava sair para o banho.</p> + +<p>A tristeza voltou á face branca da ingleza. Durante o jantar olhava para a +porta constantemente, a cada movimento do <em>paravent</em> estremecia,<span +class="pn">{231}</span> lançava nos olhares para mim curiosas innterrogações +que a minha face muda deixava sem resposta. Voltou a chorar depois das ducha e +das massagens, como antigamente pelo defunto marido, e, de manhã, quando se +encontrava com sir Arnold o seu olhar tinha caricias, parecia que lhe lambia a +face linda.</p> + +<p>Foi ella que o levou, fremente, na ancia de não perder a presa, já no carro +a cerral-o entre os braços, para as Gorges du Sierroz, onde, depois do almoço, +no gabinete do restaurante rustico, os beijos arderam e ella poude morder a +boca em sangue de sir Arnold.</p> + +<p>Quanto custaram á consolada viuva esses beijos?</p> + +<p> </p> + +<p>N'esse momento, sir Arnold Davis passou, levando pelo braço a franzina +Carlota Von Hameghen, que lhe encostava a cabeça ao hombro olhando para elle +n'uma suplica, que o sorriso dos labios finos apoiava fortemente.<span +class="pn">{232}<br> +{233}</span></p> + +<h1><a name="SECTION000190">FUMO</a></h1> + +<p class="assin">A L<small>UIZ </small>O'N<small>EIL</small>.</p> + +<p><span class="pn">{234}<br> +{235}</span></p> + +<h2><a name="SECTION000191">F<small>UMO</small></a> </h2> + +<p>Para fugir da exotica humanidade que enchia as salas do Kursaal de Genebra, +saimos, apezar da noite fria, para o amplo terraço sobre o Léman tranquillo.</p> + +<p>Eu levára Roberto ali para mostrar-lhe Chiara, a dançarina italiana, que nas +suas danças bisantinas me surpreendera e comovera no Alhambra de Londres.</p> + +<p>Era a Volupia feita luz e feita dança. N'um <em>maillot</em> de seda, +parecia nua. Uma cintura de oiro, marchetada de largas pedras brilhantes +segurava-lhe os seios firmes. Grossas manilhas mordiam os braços finos e os +tornozellos. Um diadema apertava a massa luminosa dos seus cabellos loiros. E, +na face branca, eram d'um brilho de gema os olhos azues, quasi +violeta-de-Parma. A musica que a acompanhava tinha um envenenado langor. Chiara +deslisava, mal pousando os pés nús sobre o tapete de Smyrna.<span +class="pn">{236}</span> E do brilho das joias, como da florescencia musical dos +gestos, brotavam lascivias, ardiam desejos, que faziam correr fremitos por toda +a sala incendiada por lampadas poderosas.</p> + +<p>Aquella dança sabia, apenas ritmada pelas vozes das flautas e das liras que +tocadoras de flauta e tocadoras de lira, vestidas á grega, no palco tocavam! +Uma ou outra vez um pé nú fazia vibrar o bronze dos crotalos. Era como um grito +de vitória, um beijo mordido n'uma boca sedenta. Chiara tomava então uma +atitude de entrega, todo o seu corpo flexivel e delgado parecia tombar, como +uma haste fragil que cede ao explendor de uma enorme rosa vermelha, e verga e +sucumbe.</p> + +<p>A grande flôr d'oiro e luz, em que as abelhas das joias picavam e pareciam +morder, fixas nas lhamas dos engastes! Como a vejo ainda nitidamente, ramo +d'oiro e de rosas, fazendo nascer desejos cintillantes, chuveiros d'elles, +rapidos, fulgentes, descendo como estrellas d'oiro, como os bocados de astros +que voam no ar escuro, nas noites quietas d'agosto!</p> + +<p>E preso á tentação de vêr a dançarina, deixei Aix e as duchas, <em>Villa des +Fleurs</em> e o seu rebanho de cocottes e, com Roberto, á pressa envergados os +smokings, fomos para o Kursaal. Mas no salão, um aviso e um certificado medico +diziam a doença de Chiara. Um grande desanimo abateu-me as espaduas. Como +passar<span class="pn">{237}</span> uma noite na cidade alinhada e mecanica +como um relogio? Em todo o Kursaal, nem um rosto interessante. Ranchos do Cook, +das segundas classes, lyonezas rotundas e vermelhas, suissas frescas, que +parecem esculpidas em manteiga e em cujas faces contentes os olhos são parados +e azues... Caixeiros de Lyon, aproveitando comboios a preços reduzidos, +apertavam-se em volta das compridas mezas dos <em>petits chevaux</em>. Dois +americanos silenciosos chupavam por palhinhas os violentos cocktails.</p> + +<p>Fugimos.</p> + +<p>Na noite escura, o lago era azul escuro. Os focos electricos dos caes punham +na agua fitas brancas, que dançavam e se quebravam contra as ondas. Pareciam +pestanejar as pequenas lanternas vermelhas dos <em>bateaux-mouches</em>. Tudo +parecia dormir. Uma brisa ligeira trazia até junto de nós o silencio da cidade. +Apenas do Kursaal as luzes coavam-se pelas ramadas e, amortecidas, as walsas +que acompanhavam mimambos e acrobatas.</p> + +<p>Um de nós disse:</p> + +<p>—Talvez fosse melhor não ter visto Chiara. Um com a recordação, de que viu, +outro com a imaginação, teem uma imagem mais bella, por incompleta, e em parte +mentirosa, da dançarina e do seu bailado. A melhor maneira de gosar é criar +imagens, viver dentro de nós, alheio ao mundo. Recordando, vive-se na +imprecisão,<span class="pn">{238}</span> sem as arestas. Tudo mergulha num +nevoeiro, que, deformando a real aparencia, nimba de misterio; desejando, +ilumina-se mais. Viver deve ser recordar e desejar.</p> + +<p>—Pode-se viver recordando e desejando apenas, no momento presente; mas para +recordar é necessario ter vivido, para desejar é preciso conhecer. O desejo +ilimitado põe a angustia na alma. É mister alguma coisa de definido a +desejar.</p> + +<p>—Quando chegamos á nossa edade, já vivemos tudo. Conhecemos o efemero +feminino. Andámos com o coração por todos os amores, por todas as angustias. +Provámos todos os <em>crús</em>, atravessámos mares, dormimos sob todos os +ceus. Podemos recordar. E, como conhecemos tudo, podemos escolher e desejar.</p> + +<p>—A vida do homem é, como a de toda a natureza, um continuo movimento, fluxo +e refluxo permanentes.</p> + +<p>—Então é preciso agir?</p> + +<p>—É fatal.</p> + +<p>—S. Simeão Stylita gastou anos sobre uma coluna, a orar. Vinham de +desencontradas partes os crentes á espera de milagres. Esposas estereis tocavam +no plinto, certas de que tempo depois amamentariam o filho desejado; os +leprosos, os cegos, os atacados do «mal divino», arrastavam-se pelos desertos +queimados, até á coluna onde o santo resava... E elle, indiferente,<span +class="pn">{239}</span> como indiferente era aos soes asperos, ás ventanias e +ás chuvas, continuava a orar. Viveu dentro de si. A vida deve ser toda +interior.</p> + +<p>—A vida do espirito é toda interior, como a vida digestiva. Precisamos do +mundo exterior para d'elle apreendermos as imagens e os alimentos.</p> + +<p>—<em>Ter comido</em>, é melhor que <em>comer</em>. <em>Ter gosado</em> é +melhor que <em>gosar</em>. O momento da posse é doloroso e vão. É melhor +recordar.</p> + +<p>—Recordar implica esquecer. E quando das imagens não ficar senão uma +mancha, como preencher a vida?</p> + +<p>—Desejando.</p> + +<p>—Mas a faculdade de desejar desapparece com os annos. O velho dos Goncourt, +quando no restaurante lhe perguntam:—O que deseja? responde:—Desejava ter um +desejo. Viver é agir. Colher todas flores e todos os espinhos, violar todos os +cimos, mergulhar em todos os lodos, sentir intensamente, pensar todas as +doutrinas, apreender do Universo tudo o que fôr possivel, ver tudo, ouvir tudo! +Viver é entrar na harmonia do Mundo! É ser como o eucalipto, subir para o sol, +triunfalmente, lançar ramadas por todos os lados, espalhar avidas raizes +egoistas e crueis!</p> + +<p>—Viver é recordar e desejar. A vida deve ser feita por nós, como a +composição d'um quadro<span class="pn">{240}</span> é arranjada por um pintor. +Não devemos ser o espelho de mostrador que refléte toda a rua, mas a psiché do +<em>boudoir</em> d'uma mulher elegante que só refléte atitudes graciosas, +sedas, rendas, brilhos de pedrarias...</p> + +<p>—Viver...</p> + +<p>Despejava-se o Kursaal. Apagaram-se as lampadas. Fomos para a estação +esperar o expresso de Paris.</p> + +<p> </p> + +<p class="centrado">FIM</p> +</div> + +<p><span class="pn">{241}</span></p> + +<div style="text-align:center;"> +<p>INDICE</p> + +<p><a href="#SECTION00010">A escola de flirt</a></p> + +<p><a href="#SECTION00020">Flirts</a></p> + +<p><a href="#SECTION00030">Logica</a></p> + +<p><a href="#SECTION00040">Romantico</a></p> + +<p><a href="#SECTION00050">A Bisantina</a></p> + +<p><a href="#SECTION00060">Má-lingua</a></p> + +<p><a href="#SECTION00070">A rainha de Sabá</a></p> + +<p><a href="#SECTION00080">Chiara Liliam</a></p> + +<p><a href="#SECTION00090">A Marcia</a></p> + +<p><a href="#SECTION000100">O cego</a></p> + +<p><a href="#SECTION000110">A gloria</a></p> + +<p><a href="#SECTION000120">A festa de maio</a></p> + +<p><a href="#SECTION000130">Tibidabo</a></p> + +<p><a href="#SECTION000140">A princeza perdida</a></p> + +<p><a href="#SECTION000150">Noite de festa</a></p> + +<p><a href="#SECTION000160">Clara</a></p> + +<p><a href="#SECTION000170">Idilio triste</a></p> + +<p><a href="#SECTION000180">Perfil d'aventureiro</a></p> + +<p><a href="#SECTION000190">Fumo</a></p> +</div> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Flirts, by Henrique de Vasconcellos + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS *** + +***** This file should be named 35073-h.htm or 35073-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/5/0/7/35073/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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