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+The Project Gutenberg EBook of Flirts, by Henrique de Vasconcellos
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Flirts
+
+Author: Henrique de Vasconcellos
+
+Release Date: January 26, 2011 [EBook #35073]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
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+*Notas de transcrição:*
+
+O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1905.
+
+Foi mantida a grafia usada na edição original de 1905, tendo sido
+corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura
+do texto, e que por isso não foram assinalados.
+
+
+
+
+
+HENRIQUE DE VASCONCELLOS
+
+FLIRTS
+
+(CONTOS)
+
+LISBOA
+Ferreira & Oliveira, Lda.--Editores
+_132, Rua Aurea, 138_
+
+1905
+
+
+
+
+
+FLIRTS
+
+
+
+HENRIQUE DE VASCONCELLOS
+
+FLIRTS
+
+
+LISBOA
+Ferreira & Oliveira, Lda.--Editores
+_132, Rua do Ouro, 138_
+
+1905
+
+
+
+DE HENRIQUE DE VASCONCELLOS
+
+ _PRIMEIRAS POESIAS, EM QUATRO VOLUMES:_
+
+ FLORES CINZENTAS (exgotado)
+ OS ESOTERICOS (exgotado)
+ A HARPA DE VANADIO
+ AMÔR PERFEITO (exgotado)
+
+ _PROSA:_
+
+ A MENTIRA VITAL, um volume.
+ CONTOS NOVOS, um volume.
+
+
+
+ L'art et la science sont independants. La morale ne doit avoir
+ aucune prise sur eux; jamais l'artiste, avant de faire une statue,
+ jamais le philosophe avant de faire une loi, ne doivent se demander
+ si cette statue sera utile aux m½urs, si cette loi portera les
+ hommes à la vertu. L'artiste n'a pour but que de produire le beau,
+ le savant n'a pour but que de trouver le vrai. Les changer en
+ predicateurs, c'est les detruire. Il n'y a plus de science ni art
+ dès que l'art et la science devienent des instruments de pedagogie
+ et de gouvernement.
+
+ H. TAINE.
+
+ * * * * *
+
+A ESCOLA DE FLIRT
+
+ AO CONDE DE FIGUEIRÓ
+
+
+
+
+A ESCOLA DE FLIRT
+
+ O PROFESSOR.--Sem edade, 25 ou 40, tudo lhe convém. Uma mocidade que
+ envelheceu, ou mocidade que dura _quand même_, «je meurs où je
+ m'attache». Toda a pelle do rosto é sulcada por imperceptiveis rugas
+ finissimas; a boca tem um sorriso de cético, mas os olhos ainda
+ brilham. Parece ter conhecido tudo ou advinhado tudo. Se se olha
+ para a boca, sente-se que conheceu, para os olhos, pensa-se que
+ adivinhou.
+
+ Elegante, uma ponta de preciosismo,--muito pouco!--apenas presentida
+ na maneira como olha para as mãos deliciosamente cuidadas, como as
+ d'uma senhora, viajou por toda a parte, indo mais ás festas mundanas
+ do que aos museus, leu mais jornaes do que livros.
+
+ A DISCIPULA.--Uma ingenuidade, que quer conhecer tudo, ignorando
+ tudo. Vestida um pouco _à la diable_, seria positivamente _fagotée_
+ sem a elegancia do corpo fino e leve e o brilho e o riso dos olhos e
+ dos labios côr de rosa.
+
+ A discipula vae procurar o professor da Escola de Flirt,
+ discretamente annunciada por meio de circulares em papel lilaz com
+ dois corações em chamas estilisados à maneira moderna. É n'um
+ minusculo jardim seculo XVIII portuguez, com um delgado repuxo a
+ partir-se n'um pequeno tanque sem lavores e canteiros bordados por
+ buxeiros. No centro d'um, uma anagua forma uma copa verde-clara de
+ onde pendem as campanulas brancas que perfumam.
+
+
+O PROFESSOR--É v. ex.ª que...
+
+A DISCIPULA--Sim, senhor... Venho aqui tomar algumas lições. Fiz a minha
+educação no convento; não tive occasião de aprender os rendimentos
+do Flirt. Casei sem amor, sem noivado, sem lua de mel... Um casamento de
+conveniencia... para o meu tutor. Escusou de prestar contas. Vim ha
+pouco para Lisboa. Aqui, toda a gente flirtea um pouco. Troçam do meu
+acanhamento, chamam-me Pires, até Possidonia, dizem que sou «old style»,
+do tempo da rainha Anna... Recommendaram-me esta escola. Se não ensinam
+aqui as cortezias, dança, diversas maneiras de trazer as _mouches_, como
+no tempo de Moliére, mostram-nos como se conduz um flirt com a pericia
+com que o Jeronymo Condeixa guiava _four-in-hands_.
+
+O PROFESSOR--V. ex.ª é intelligente?
+
+A DISCIPULA--(_Modestamente_)--Sou.
+
+O PROFESSOR--Formosa, vejo que é. (_A discipula agradece_) Gosta de
+toilettes?
+
+A DISCIPULA--_Fagotée_ durante a minha interminavel mocidade--vinte
+annos na provincia!--não possuo a complicada arte da _fanfreluche_.
+
+O PROFESSOR--Mas tem tendencias?
+
+A DISCIPULA--Enormes! Passo horas ao espelho a compor o meu pobre
+cabello, a pôr uma fita...
+
+O PROFESSOR--Mais tout ça c'est l'affaire de la femme de chambre!
+
+A DISCIPULA--(_Indignada_) Entregar-me a mãos mercenarias?!
+
+O PROFESSOR--Mas minha senhora! Deve v. ex.ª fazer... permitta-me a
+expressão--as proprias meias? Passar as noites em compridos serões a
+alinhavar os corpetes com essas mãos que adivinho lindas sob a pellica
+da luva? (_A discipula agradece._) Com certeza que não. Bem o vejo nos
+seus olhos que são, deixe-me dizer-lhe, d'um brilho incomparavel. (_A
+discipula torna a agradecer._) Todos esses cuidados pertencem aos
+fornecedores. É por acaso a propria rosa que póda a roseira? Não! Ha
+jardineiros de mãos calosas e almas rudimentares que preparam a eclosão
+das orgulhosas flores que são o pasmo e o encantamento dos jardins. Ha
+creaturas que se dobram dias inteiros sobre sedas e rendas, pensando em
+cosinhadas e roes de roupa suja, e constroem fantasticas teias em que
+nos vamos prender, as deliciosas toilettes dos Redfern e dos Rouff...
+Porque se não deixa preparar por ellas? Ha cabelleireiras habeis que
+ageitam deliciosos penteados. Seja paciente, consinta que ellas a penteiem.
+
+A DISCIPULA--É absolutamente preciso? Não poderei prescindir?
+
+O PROFESSOR--Absolutamente... absolutamente... não... A formosura de v.
+ex.ª suppre muito... tudo... Mas é util.
+
+A DISCIPULA--Bem... E depois?
+
+O PROFESSOR--Sabe conversar?
+
+A DISCIPULA--Meu Deus! No convento, no que conversavamos mais era nas
+Irmãs... para dizer mal d'ellas.
+
+O PROFESSOR--Dizer mal... é bom... mas de quando em quando... Senão
+cae-se nas soirées do _Sporting_.--Lê?
+
+A DISCIPULA--O _Diario Illustrado_, todas as manhãs...
+
+O PROFESSOR--É pouco. Bourget--fala do coração. É um bom tema. Tudo o
+que se disser é verdadeiro e falso, de fórma que uma opinião é voltada
+do avesso com a maior facilidade. Falla de mulheres, _toilettes_ e
+almas, pezares e córtes _tailleurs_, amores e rendas de corpetes...--uma
+_macedoine_ que, para a conversação, tem o encanto da variedade.
+
+A DISCIPULA--Tenho o Larousse.
+
+O PROFESSOR--Bah! O Larousse é muito comprido. Não se pode falar em
+sociedade, como se não deve falar no diabo e em outras coisas do uso
+diario. Outro: Theuriet--é sentimental, cheio de lamurias; no campo, um
+chorão, n'uma sala, um piano. É optimo para as noites de luar, na praia,
+emquanto se faz a digestão.
+
+A DISCIPULA--Uma pastilha de Vichy em trezentas paginas.
+
+O PROFESSOR--Pouco mais ou menos. É um filho de Lamartine... Olhe, este
+é preciso cital-o... ás vezes... a troçar... Depois, todos os
+_vient-de-paraitre_. O _Figaro_ assignala-os. A proposito: são
+muitos. Leia dez paginas no começo, vinte no meio e as tres ultimas.
+Terá assim um verniz literario... completo.
+
+A DISCIPULA--Tenho entendido.
+
+O PROFESSOR--Mas isto é longo. Prefere entrar? Quer a primeira lição
+aqui ou na aula? Aqui?
+
+A DISCIPULA--Sim. Acho melhor. Sob as arvores, junto ás flores, a ouvir
+o murmurio dolente da agua que corre.
+
+O PROFESSOR--É poetica?
+
+A DISCIPULA--Quasi, ás vezes.
+
+O PROFESSOR--Não fica mal um pouco de poesia... Falar do mar e do
+estremecimento da lua sobre as aguas inquietas, comparar-se á agua
+movediça e infiel... Emfim são coisas para mais tarde. Vamos aos
+preliminares. Ah! Antes de mais nada: o nome de v. ex.ª?
+
+A DISCIPULA--Carmo... Maria do Carmo. As minhas amigas chamam-me
+a Carminho.
+
+O PROFESSOR--Um nome lindo...
+
+A DISCIPULA--Não se presta a madrigaes.
+
+O PROFESSOR--Um nome sabendo a flores silvestres...
+
+A DISCIPULA--Pires...
+
+O PROFESSOR--(_Vae tomando calor_)--Pelo contrario. Um nome que se
+desfaz na boca como um _fondant_, nome para murmurar nas horas
+perturbantes, nome que finalisa n'um franzir de labios, como para um
+beijo... Delicioso!
+
+A DISCIPULA--Muito obrigada.
+
+O PROFESSOR--Bem. Bem. Passemos á lição. (_Toma um falso ar amavel, faz
+brilhar na boca um sorriso, retorce o bigode loiro_).
+
+A DISCIPULA--Ouvil-o-hei com toda a attenção.
+
+O PROFESSOR--(_Agradece com um gesto largo._) _Flirt_ é uma palavra
+ingleza que deriva do francez. Já tem fóros de portugueza: Garrett
+empregou-a. É como uma batalha de flores entre duas pessoas de diferente
+sexo.
+
+A DISCIPULA--Com os espinhos?
+
+O PROFESSOR--Conforme: ha varias especies de flirt. Ha um em que as
+rosas são quasi todas guardadas por numerosos regimentos de espinhos: é
+o flirt agressivo, feito de recriminações. Ha quem lhe encontre encanto.
+Pff! Não lh'o aconselho. É bom para velhas de sessenta annos com os
+_vieux beaux_ que foram seus namoros. Ha o flirt sentimental, aquelle a
+quem me referi ha pouco, com _clair-de-lune_ e regatos prateados, o
+flirt com Theuriet e Alfred de Musset dos proverbios, um assucareiro em
+que caiu agua e vae entornando calda que pinga e lambusa. Horrivel! Mas
+tem os seus adoradores, misses _sur le retour_, tias, meninas da Baixa
+espremidas nos espartilhos de baleia e aço--crosta d'um peixe que a
+ichtyologia ignora; é muito usado lá para os lados excentricos da
+Estefania. Ha--tome toda a attenção, pois é o que convem ao seu
+genero de belleza...
+
+A DISCIPULA--V. Ex.ª confunde-me...
+
+O PROFESSOR--O que ha de mais sincero!... Ha um genero, o meu
+predilecto... (_Ageita-se no banco, torna a retorcer o bigode, olha
+amorosamente para as unhas rosadas_). É o flirt perfumado e finissimo, o
+fumo das cassoletas com perfumes leves, como se queimassem flores,
+petalas tremulas d'anemonas...
+
+A DISCIPULA--Como V. Ex.ª é eloquente!
+
+O PROFESSOR (_Baboso_)--É V. Ex.ª que me inspira!
+
+A DISCIPULA--Os seus olhos sublinham com tal calor as frases!
+
+O PROFESSOR--Um pouco de luz que vem dos seus!... Um reflexo do seu
+admiravel olhar! É por isso que falo assim. (_Approxima-se d'ella_). É o
+flirt em que o coração apenas perfuma... O que tem de bom uma flor? A
+propria materia? Não, que essa é unica, a mesma na couve lombarda e no
+lyrio. É o perfume e a côr. Do coração, tambem, só devemos permutar o
+perfume. Ora imagine: entregar um coração cheio de sangue, a palpitar
+como um peixe quando acaba de ser pescado!
+
+A DISCIPULA--Até mete medo!
+
+O PROFESSOR--Tem razão. Até mete medo. V. Ex.ª tem sempre razão.
+
+A DISCIPULA--Muito obrigada.
+
+O PROFESSOR--As pessoas formosas--e V. Ex.ª é divinamente
+formosa--teem sempre razão.
+
+A DISCIPULA--V. Ex.ª é muito lisonjeiro.
+
+O PROFESSOR--A lisonja é o aroma da verdade. V. Ex.ª merece tudo.
+
+A DISCIPULA--V. Ex.ª é extraordinariamente amavel.
+
+O PROFESSOR--Podesse eu ser amavel para que todas as senhoras bonitas me
+amassem!
+
+A DISCIPULA--Todas?
+
+O PROFESSOR--Quando digo todas... V. Ex.ª comprehende que me refiro a
+uma só.
+
+A DISCIPULA--Feliz aquella...
+
+O PROFESSOR--Acha feliz?
+
+A DISCIPULA--Deve sentir o peito em festa...
+
+O PROFESSOR--Oh minha senhora!
+
+A DISCIPULA--Lembrar-me-hei de si. Nas noites infindaveis, quando me
+sento ao piano e os meus dedos correm sem fito sobre o teclado...
+
+O PROFESSOR--Como nardos que andassem...
+
+A DISCIPULA--Como póde dizer isso, se nunca as viu?
+
+O PROFESSOR--Adivinho-as. Mas gostaria de as vêr (_Toma-lhe a mão_).
+Estas luvas são de Paris?
+
+A DISCIPULA--Não senhor: são dos Gatos.
+
+O PROFESSOR--(_Um pouco desapontado_). Não importa. As mãos são lindas.
+(_Vae desabotoando uma das luvas_).
+
+A DISCIPULA--(_Consentindo_). O que faz?
+
+O PROFESSOR--Estes botões são feios. Mas a pelle é finissima.
+
+A DISCIPULA--A da luva?
+
+O PROFESSOR--Não, a da mão.
+
+A DISCIPULA--Agradecida.
+
+O PROFESSOR--(_Curva mais a cabeça approximando-se mais, assim, da mão_).
+
+A DISCIPULA--(_Sem a retirar_). O que faz?
+
+O PROFESSOR--Nada, minha senhora... ia vêr melhor o grão da pelle.
+
+A DISCIPULA--(_Ligeiramente desapontada_). Ah! julguei...
+
+O PROFESSOR--Oh minha senhora! Pensar tal a meu respeito! Não sabe que o
+flirt é o amor sem desejo, a sombra do Amor? Eu não podia dar-lhe um
+beijo!
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+FLIRTS
+
+ A ANTONIO BANDEIRA
+
+
+FLIRTS
+
+ Maria do Carmo, curvada sobre a meza, folheia os ultimos _envois_ de
+ Paquin e Redfern. Um candieiro com um largo quebra-luz de seda e
+ rendas lança-lhe sobre o cabello uma aureola de oiro. O corpo está
+ mergulhado na penumbra. Na sala, os moveis tomam aspectos
+ fantasticos. Os espelhos teem um brilho pallido. Gonçalo, ao entrar,
+ beija a mão que Maria do Carmo lhe estende, sem levantar os olhos
+ dos papeis.
+
+ MARIA DO CARMO--trinta annos, com dez de casamento. Sem filhos. A
+ vida passa-se-lhe em visitas, _raouts_, recéções e bailes. Alguns
+ livros da moda, recommendados por Marcel Ballot, no _Figaro_, e Jean
+ Lorrain, por curiosidade. Interessante como um enigma, ás vezes
+ perversa. Não se lhe conhece um amante, mas indicam-se muitos. Não
+ toca piano.
+
+ GONÇALO--não tem uma branca, mas no meio da animação, ficticia,
+ vê-se um grande cançaço de viver, como se tivesse experimentado
+ tudo. Procura por toda a parte, como um _gourmet_, o manjar fino.
+ Epicurista, delicadamente depravado, como um _roué_ da Restauração,
+ ou um elegante do fim da republica romana.
+
+
+--Ainda bem que veiu!... Preciso do seu bom conselho...
+
+--Como sempre, depois de ter feito alguma tolice?...
+
+--Impertinente!
+
+--É sempre assim. Pede-me o conselho depois de não precisar d'elle! De
+resto, dá na mesma: ninguem segue conselhos.
+
+--Não. Tenho aqui estes dois albuns. De Paquin... De Redfern... São as
+ultimas creações. Estou tentada a escolher quasi tudo e a não escolher
+nenhum... Quer acreditar que tenho dias vazios na minha vida? Dias sem
+vontade, d'uma grande lassidão, em que nem sequer tenho forças para
+fingir que sorrío!...
+
+--Ame um pouco...
+
+--É coisa que se encommende? Acordo um dia, com a resolução de amar. É
+logo. O primeiro que me apparece na Avenida, aquelle que melhor dorme em
+S. Carlos, o caixeiro que me vende as fitas no Martins! Vê-se bem que
+nunca amou!
+
+--Não amei! Mas eu não _sou_, eu _amo_. É a minha maneira de existir. Um
+nasce cego; nasci amoroso...
+
+--Calle-se! Diga lá, qual d'estes vestidos prefere?
+
+--Sabe que é muito difficil escolher um vestido pelos desenhos feitos
+_d'après_ os manequins? O mesmo vestido toma aspectos differentes
+conforme as pessoas...
+
+--Não faça filosofia. Olhe este de Paquin: ligeiro, todo em rendas, em
+coisas leves, parece feito com flôres; o Redfern é mais hieratico; mesmo
+nos vestidos de baile conserva a _raideur_ dos córtes _tailleur_. São
+vestidos para a Bouro, que parece ameaçar-nos constantemente com a sua
+corôa de marqueza. Este?
+
+--Não lhe irá bem, talvez... O talhe da saia engrossa a sua figura, a
+que não vão bem...
+
+--O senhor treslê... Tudo me vae bem... Deixe lá os figurinos... Não
+sabe nada de vestidos... É como do coração. Aconselha-me a que ame...
+
+--E dou-lhe um bom conselho. Nem parece que sou seu amigo.
+
+--Trouxe hoje a alma de cinico?
+
+--Era a que tinha mais á mão. Estava ao cimo da gaveta...
+
+--Continuo a dizer: não percebe nada dos negocios do coração...
+
+--Não ha negocios do coração. O coração dá-se...
+
+--Não; troca-se...
+
+--Para quê? Não é preciso, no amor, ser-se correspondido. Basta amar. É
+possivel que para a felicidade seja necessaria a permuta...
+
+--O amor é o choque...
+
+--Muitas vezes o cheque.
+
+--Que _jeu de mots_ tão velho! É o choque de duas almas. É preciso que
+girem bem, no encontro. São duas electricidades que se combinam. Conhece
+a theoria das duas metades da maçã?
+
+--Conheço: é uma figura de rétorica...
+
+--Não é. Andam duas creaturas por esse mundo, ignorando o seu futuro,
+achando a vida sem rasão, idiota...
+
+--Escolhe uma mentira vital, como diz Ibsen. Conheço-lhe o _charabia_...
+
+--Deixe-me acabar. Corre mundos, faz tolices, fecha-se dias em casa, até
+vae ao circo ver as focas... E nada! Um dia, sem saber como nem porquê,
+uns olhos encontram-se com os seus, numa multidão. Ha a faisca... Pode
+ser um santo ou um bandido, lindo como o Rubempré, estupido como um
+tenor, candidato á grilheta ou futil como um janota. Fica-se presa;
+somos d'elle para toda a vida, ficamos amarradas a elle, como uma
+sombra... É assim o Amor, é feito de imprevistos... Não tem rasão alguma
+de ser, mas é.
+
+--Uma coisa fatal? Tem que ser?
+
+--Sim.
+
+--Permite-me que discorde?
+
+--É teimoso.
+
+--Sou. Já viu alguma discussão dar resultado? O amor é sempre creado por
+nós. Não amamos senão a pessoa que queremos amar. É, como tudo, um acto
+voluntario. Ha escolha. Vemos uma mulher, vinte, trinta vezes, sem nos
+fazer impressão alguma. Um dia ella repara em nós. Se é bonita,
+elegante, calça no Chapelle e veste na Lippman, pelo menos, a nossa
+vaidade sente-se satisfeita e começamos a descobrir-lhe encantos, a
+crear alguns, a afeiçoal-a ao nosso geito. Ao conversar com ella, pomos
+intensão nas frases ôcas que diz, vemos mysterio no seu sorriso...
+Estamos presos.--Um bello dia, porém, por qualquer motivo, torna-se util
+acabar com o pesadello da mulher que aparece em toda a parte: sae das
+brasas do fogão, a que nos aquecemos, da pagina que lemos, do fumo do
+cigarro, do papel em branco em que vamos escrever ao nosso procurador.
+Repara-se um pouco nella. Descobre-se o primeiro defeito. Exageramol-o
+para o grotesco. E da deusa perfeita tambem as flores e fica uma caração
+que faz rir.
+
+--Uma theoria...
+
+--Não é, creia. Acontece-me isso duas ou tres vezes por anno. Sabe que
+ando sempre com uma paixoneta... ou mais. Levo oito dias a fazel-as cair
+do peito.
+
+--E vive feliz?
+
+--Inteiramente feliz. Saber contentar-se não é a suprema sabedoria? Para
+que se inventou o _flirt?_
+
+--O _flirt?_ Que horrivel coisa? É a «sombra chineza» do Amor...
+
+--É melhor. É o perfume. Os delicados contentam-se. É preciso comer uma
+flor? Não, basta respirar-lhe o aroma. Ora essas conversas, meio
+sentimentaes, a um canto, ditas em voz baixa, sublinhadas pelos olhos
+que toda a alma illumina, são como o roçar de azas que fossem flores. Ha
+o ligeiro premir dos dedos, sob os leques, certos tremores de labios,
+como se os beijos n'elles esvoaçassem, uma concentração de todo o
+ser, que parece boiar no ether, leve... As phrases não se arrastam, n'um
+espasmo. Teem palpitações, lançam-se n'uma curva larga, até desapparecer
+em estrella. Não conhece o _flirt_. Todo o ser é livre e vae
+entregar-se, rendido... Cada palavra toma um sentido misterioso...
+Vou-lhe contar um _flirt_... Estava na Suissa.
+
+--Internacional?
+
+--Cosmopolita. N'um d'esses cantos, que ultimamente o Cook estraga, na
+Engadine. Paisagem de gelo, hotel de gente podre...
+
+--De chic?
+
+--De chic. Conheci uma americana, deliciosa como um fructo acre, que
+vivia fora da _coterie swell_. O americano vae-se tornando terrivelmente
+_rasta_. Trinta annos? Talvez... Mas trinta annos frescos, sem rugas,
+viuva depois de dois mezes de escasso matrimonio com um formidavel
+_brasseur d'affaires_ de New-York, cerebro em ebulição permanente que
+acabou n'uma neurasthenia aguda. Iamos passear sós, pelo gelo.
+Sentavamo-nos nos pontos de vista que o B½deker não indica, paisagens
+tristes de tanta brancura, sem uma mancha. Fugiamos dos _five-ó-clock_,
+das _parties_ bulhentas em complicada companhia. Comecei a amal-a.
+Tinhamos lido os mesmos livros, sobre elles fallavamos: gostavamos das
+mesmas musicas, d'esse Schumann cheio de côr, dolente e envenenado;
+preferiamos aos flamengos gordurosos e aos hespanhoes sombrios, o
+delicado misterio dos Vinci, a graça fina e brilhante de Raphael.
+
+A fallar de quadros e de romances, as nossas almas tocavam-se, porque um
+sentido novo brilhava em cada palavra; e parecia que cada frase
+terminava n'um beijo. Ás vezes, levemente, as nossas mãos tocavam-se.
+Era rapido e delicioso. D'esse contacto ficava uma lembrança, como d'um
+perfume. Amor platonico? Não. Um _flirt_. Sem arroubamentos. Sempre a
+Alma livre, sempre o beijo a tremer na bocca, sem cair... Uma ou outra
+vez, comprehende, por esquecimento...
+
+--Comprehendo. Sem malicia...
+
+--Essa mulher tinha realisado todo o meu sonho! De resto acontece-me
+isto muitas vezes. O sonho varía com as mulheres que nos interessam. Mas
+essa parecia realisar tudo. No seu corpo ambiguo, de egipcia, parecia
+conservar-se, como um fructo no gelo, uma adolescencia eterna. As suas
+mãos finas, pesadas de tantos anneis em que Vever pozera todo o seu
+genio estranho, floriam gestos d'uma caricia delicada e terna. A sua
+alma, que parecia ter visto tudo, ainda sentia a vida com frescura. As
+horas que passei junto d'ella! O perfume, uma mistura sabia
+d'Houbigants, então _dernier bateau_, perturbava... Longe d'ella, não
+pensava n'outra coisa. Recordava-me dos gestos, os pequenos detalhes
+da _toilette_ e da conversa, um rosar de pelle sob as rendas, uma
+palavra, um _grain de beauté_, que tinha na nuca. Sabe como acabou? Ella
+propoz-me casar. Fechei-me no quarto, horrorisado. Casar, eu? Uma mulher
+que me julgava capaz d'isso! Era preciso abater esse amor orgulhoso, que
+crescia no meu peito. Que defeito tinha ella? A principio não vi
+nenhum... Fui procurando. Tinha, ás vezes, quando fallavamos em francez,
+erros de grammatica deliciosos. Comecei a achar ridiculo essa
+ignorancia. D'ahi passou para os vestidos, para o corpo, o peito chato,
+sem ancas... Tudo caiu. Essa mulher pareceu-me horrorosa... Comecei a
+troçar d'ella, do seu _bas-bleuismo_... Por fim ella resolveu partir.
+Lembro-me perfeitamente. O gerente do hotel levou-lhe um enorme ramo de
+_bluets_, os raros amigos tambem lhe levaram flôres. Todo o carro estava
+cheio de flôres. Sentou-se entre ellas, afagava-as, cortára algumas para
+cheirar. Chorára. Ainda me deitou um molho, que tinha beijado. O carro
+partiu, como se fosse um açafate. E a sua face branca era como uma flôr
+triste... Não tive pena. O amor já caira. A gente ou gosta ou não gosta,
+conforme quer.--Vamos fazer um _flirt_ para experimentar?
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+LOGICA
+
+ A ANTONIO DA COSTA CABRAL (THOMAR)
+
+
+LOGICA
+
+ N'um _garden-party_. Emquanto no _tennis_ se cruzam as palavras
+ inglezas, e no kiosque, d'onde caem chuveiros de glicinias, se
+ discutem mãos de _bridge_, afastados, junto a um roseiral, Joanna,
+ Maria e Miguel veem jogar.
+
+ JOANNA--Toda a face branca é illuminada por dois largos olhos
+ negros. Casada ha dois annos com um _sportsman enragé_, que prefere
+ o cabo de uma _raquette_, o leme d'um _outrigger_, o _guidon_ d'um
+ automovel, á mais terna caricia da mulher. Usando e abusando do
+ flirt, um em cada dia, ás vezes dois, tem periodos de fidelidade:
+ quando quer torturar alguem. Provoca-o, chama-o, fal-o entontecer
+ com promessas. Quando o vê absolutamente rendido, foge, para pensar
+ n'outra coisa, ou em coisa alguma. Não vae ao fim de nada. Desenha,
+ mas nunca terminou um esboço; toca piano, mas deixa sempre o trecho
+ de musica suspenso a meio d'um compasso. Tem medo de acabar. É uma
+ natureza hesitante.
+
+ MIGUEL--Nada intellectual. Um bom animal intelligente. Tem viajado.
+ Mas prefere o _steeple-chase_ de Auteuil a uma _première_ no
+ Vaudeville. Admira a força. É um leal. Dá o seu coração sem
+ reservas. É, actualmente, o flirt fixo de Joanna.
+
+ MARIA--Vão-lhe falhando os admiradores. Os cabellos brancos não lhe
+ ficam bem. Não sente muito a falta, nem se irrita com a felicidade
+ alheia. Natureza simpatica, hoje rara.
+
+
+MARIA--... Encontrou o Cerqueira a passear d'um lado para o outro, no
+terraço do Hotel, a balbuciar phrases, os olhos fechados, um livro na
+mão.--Que estás tu a fazer?--Tenho hoje de fazer uma declaração á
+Clotilde. Estou a estudar aqui no Bourget duas phrases tezas!...
+
+(_Joanna e Miguel riem-se, mas deixam cair a conversa_).
+
+MARIA--A Clotilde merecia-o. Quando se começaram a usar os _flous_, para
+que é preciso _postiches_, ella tinha escrupulos e explicava:--«Sei lá
+se o cabello pertenceu a alguma creatura damnada! E hei-de pôr na minha
+cabeça uma coisa de alguem que hoje está a arder nas profundas dos
+infernos!» O que acham vocês?
+
+(_Joanna e Miguel tornam a rir-se, sem responder_).
+
+MARIA--Já comprehendo. Vocês querem ficar sós... (_levanta-se_).
+
+JOANNA (_sem convicção_)--Não. Deixa-te estar...
+
+MIGUEL (_a mesma coisa_)--Pelo amor de Deus!...
+
+(_Maria afasta-se, voltando ainda a cabeça para sorrir-lhes_).
+
+MIGUEL (a _principio, parece hesitar, por fim decide-se_)--Afinal, o que
+quer de mim, ao certo?
+
+JOANNA--Eu?
+
+MIGUEL--Sim. O que quer de mim?
+
+JOANNA--Não comprehendo...
+
+MIGUEL--É bem facil!...
+
+JOANNA--Quer chamar-me estupida? Ha de concordar que é pouco amavel!...
+
+MIGUEL--Não desvie a conversa. Sabe que mesmo que o pensasse não lh'o
+diria...
+
+JOANNA--Então pensa-o?
+
+MIGUEL--Não o penso; sabe isso muito bem.
+
+JOANNA--Uff! Respiro... Não poderia entrar na Academia, se fizesse tal
+conceito da minha intelectualidade... Não é assim que se diz, nos meios
+_très dernier bateau_?
+
+MIGUEL--Oh! por mim!...
+
+JOANNA--É o seu ambiente, o meio cosmopolita; é inseparavel dos
+diplomatas, delicia-se no Tyrol e em Roma...
+
+MIGUEL--Quer outra vez mudar a conversa. Não é verdade?
+
+JOANNA--Confesso-lhe que sim... Não percebo o que quer!...
+
+MIGUEL--Repito-lhe: é facil. O que quer de mim?
+
+JOANNA--Olhe: dê-me d'ali a minha sombrinha... N'este momento é a unica
+coisa que quero de si.
+
+(_Miguel traz-lhe a sombrinha vermelha, que ella abre. A luz parece
+incendiar-lhe o chapeu branco, e toda a face branca_).
+
+MIGUEL--Fallemos a serio, um pouco...
+
+JOANNA--Já me viu brincar? Na minha edade!...
+
+MIGUEL--Fishing for compliments?
+
+JOANNA--Será, se quizer... Oiço-lh'os tão poucas vezes!
+
+MIGUEL--Queria passar a vida, como um d'esses pagens antigos, sentado a
+seus pés a cantar-lhe endeixas. Mas o seu sorriso paralisa, na minha
+bocca, o amor que vae a sair.
+
+JOANNA--É o que o Cerqueira chamava uma phrase tesa!
+
+MIGUEL--Porque troça de mim? Porque faz de mim seu joguete? Eu andava
+feliz e livre, sem mulher alguma que me preocupasse. Nunca andei tão
+alegre. Vivia a minha vida, livremente. Todas as mulheres bonitas me
+pareciam eguaes. Joanna começou a chamar-me, a dizer-me phrases que me
+prendiam, que me entonteciam. Tinha olhares para mim tão cheios de
+promessas, que corri como um esfomeado, diante d'uma mão que se lhe
+estende, carregada de vitualhas. E junto de si senti-me perturbado.
+Foram para mim as palavras mais carinhosas, aquellas que tinham um
+sentido ambiguo, banal para os estranhos, para mim precioso e comovido.
+Parecia um flirt terno. Subitamente, tudo mudou. Parece escolher tudo o
+que possa desagradar para dizer-me. É o flirt agressivo, em que d'uma
+das partes não ha amor, ou o quer esconder. E a conversa é toda feita de
+botes de florete, que muitas vezes arranham e podem até matar o amor.
+
+JOANNA--Tout passe, tout casse, tout lasse... Porque não ha de ser assim
+o Amôr?...
+
+MIGUEL--Mas deixe-o acabar por si, como uma flôr n'um jardim
+deserto, que se desfolha aos poucos...
+
+JOANNA--Para apodrecer?...
+
+MIGUEL--Ó não, não apodrece. Evapora-se como uma essencia e deixa um
+perfume suave--uma recordação...
+
+JOANNA--Outra phrase tesa. Está terrivel!
+
+MIGUEL--Faça-me a justiça de pensar que não a li...
+
+JOANNA--Não. Ouviu-a em alguma peça... Você diz-me que não lê nada...
+
+MIGUEL--Leio o _Seculo_, todas as manhãs.
+
+JOANNA--Não acredito...
+
+MIGUEL--Palavra! Por causa das cotações da bolsa. Tenho uns dinheiros
+nos fundos russos... Mas não sobem... Ando infeliz em tudo: no jogo e
+nos amores.
+
+JOANNA--Nos amores? Diz isso a mim? Você é muito ingrato, Miguel!
+
+MIGUEL--Continua a brincar comigo!
+
+JOANNA--Agora é occasião de eu tambem fallar a serio. E faço-lhe a mesma
+pergunta que me fez ha pouco:--O que quer de mim?
+
+MIGUEL--(_não atina com a resposta_) Eu?
+
+JOANNA--Sim. O que quer? Tem um flirt comigo... É o meu preferido...
+
+MIGUEL--Diga antes favorito, como se tratasse d'um cavallo de corridas.
+
+JOANNA--É o meu favorito, seja. Gosta de mim? Muito. É o que ia a dizer,
+com alguma rétorica. Não gosto eu de si? Não me ponho pelos cantos a
+fallar comsigo, a sós? Não estou aqui a apanhar sol, só por sua causa,
+para poder estar comsigo, em liberdade, sem ter ninguem que nos oiça?
+Não vou á Avenida todas as tardes para o vêr? Não olho para si sempre no
+theatro? Não lhe digo os dias em que vou _shopping_ pelo Chiado? Para
+quê? Para estarmos juntos! Então que quer? Quer casar comigo? Mas sou
+casada e felizmente não ha o divorcio entre nós.
+
+MIGUEL (_tristemente_)--Felizmente?
+
+JOANNA--Sim! Felizmente. Primeiro, é contra a religião; depois, escusa a
+gente de se arrepender varias vezes de ter casado. Assim arrepende-se
+uma só. Não pode casar commigo. Então o que quer?
+
+(_Miguel olha-a estupefacto. Não encontra resposta. A expressão de
+Joanna é equivoca. Miguel não sabe se falla ingenuamente, se quer
+mystifical-o. Cala-se_).
+
+JOANNA--Então bem vê que não tem razão para se queixar de mim!
+
+MIGUEL (_Tem o ar de quem apanhou de surpresa uma grande pancada.
+Olha para Joanna, para si, para os outros. Pensa que o desfrutam.
+Acodem-lhe á boca frases energicas. Levanta-se, ageita o fraque e
+despede-se_).--Muito boa tarde!
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+ROMANTICO
+
+ AO CONDE DE ARNOSO
+
+
+ROMANTICO
+
+
+--Ajude-me a servir o chá, primo...
+
+Levantou-se. Na quasi obscuridade da sala, que tinha uma luz
+violacea--coada pelos vitraes onde se curvam lirios roxos--Clara parecia
+nascer dos tapetes, como uma graciosa e alta flôr de espuma. «Toilette»
+branca e ligeira, como pennas de ave, toda em musselinas, apenas
+indicando a elegancia do seu corpo fino, ia morrer no tapete branco...
+
+Ia por entre os moveis, offerecendo as chavenas onde fumegava o chá
+perfumado, que da China trazem lentas caravanas, por tortuosos caminhos.
+O seu corpo agil descrevia carinhosas curvas. O ruido das conversas
+continuava... Um «flirt» a um canto murmurava, como se as palavras
+ficassem nos labios. Paulo, de grupo em grupo, uma chavena na mão,
+contente por ser alguma coisa, junto d'ella, tinha na bôcca um sorriso
+beato.
+
+N'aquella tarde nem conversava. Entravam e saiam as visitas, umas
+apressadas,--«apenas para saber de ti, Clara»--outras morosas, dando
+«rendez-vous» no salão elegante e discreto, onde na meia luz quasi se
+não conheciam as pessoas, podia-se estar sem ser visto. E Paulo, calado,
+n'um fauteuil a um canto, sorria para si proprio, olhando a figura
+indecisa de Clara, os cabellos loiros, na sala como enevoada onde apenas
+o fogão, por baixo do para-feu, tinha um brilho vermelho.
+
+Lembrava-se de todo o comprido caminho percorrido desde aquella noite em
+Cascaes, em que o impressionara a graciosidade de Clara, o seu aspecto
+de flôr fresca, sempre em «toilettes» leves, abundantes em gazas,
+crepons tenues. Certamente que, companheiro e parente, admirára sempre a
+belleza da prima, mas seguira outros caminhos, nunca reparára bem para o
+enigma perturbante dos olhos verdes, para a elegancia moderna, feita de
+graça, a gentil figurinha de Boldini, princeza de cera e de seda, cujas
+mãos eram dignas de vêr florir entre os dedos os anneis mais preciosos
+que Vever e Lalique inventam, em combinações de moribundas gemas. Nunca
+olhára bem para ella com olhos de vêr. Habituára-se desde a puberdade a
+vêl-a. E seus cubiçosos olhares procuravam outras mais distantes, que
+julgava conhecer menos, pelo encanto do imprevisto.
+
+Mas essa noite! Como lhe apparecia ainda, depois de tantos mezes,
+nitidamente, essa noite d'um ceu leitoso, com uma lua enevoada, que se
+espalhava sobre o mar, sem brilho. Na varanda do Casino, quasi deserta,
+os Auers incidiam fortemente sobre Clara. No mar, em baixo, fogachos
+prateados tremiam. E além, as raras luzes da Cidadella; na Esplanada os
+focos esverdeados tiravam da sombra manchas de palmeiras e listravam de
+luz a agua inquieta, gemebunda e misteriosa.
+
+Paulo, recostado n'uma cadeira, olhava a mancha mais negra do yacht
+real, apagado, apezar das suas lanternas que tremeluziam no mar. O
+charuto caíra-lhe da boca. Foi uma frase preciosa de Clara que o acordou:
+
+--Quem me dirá um dia a cantilena do mar? Como ella embala! Como seria
+bom dormir a ouvir junto de nós a suave cantilena!
+
+Paulo olhou para ella surprehendido. Pois quê? Clara, a ultima
+florescencia dos _raouts_ e dos _teas_, teria phrases de heroina de
+Rosseti, seria leitora de Ruskin? Foi então que reparou nos olhos cheios
+de sonhos e de misterio, na bocca dolorosa, a vermelha e fina bocca, no
+seu collo de infanta apenas nubil, em toda a adolescencia que se
+conservava intacta no corpo precioso, como um fructo no gelo.
+
+Começou então a seguil-a. Dura lhe foi a vida em theatros, jantares e
+bailes. Não faltava a uma _sauterie_, a uma _party_, que d'antes o
+deixavam indifferente, ficando nas interminaveis partidas de _bluff_. A
+dolorosa expressão que na bocca se vincára n'aquella noite do Casino
+desapparecera; um grande contentamento da vida parecia boiar á flor dos
+olhos garços e os movimentos rythmicos, que ella fazia, como se fosse ao
+som d'uma musica, eram livres, felizes, sem promessas.
+
+Não voltar o abandono d'aquella noite! Paulo desejava que Clara outra
+vez abrisse a sua alma, para elle sentir a caricia deliciosa.
+
+Mas a mulher amada conservava-se indifferente, risonha, um pouco
+_coquette_.
+
+Para os seus madrigaes escolhidos, preparados com antecedencia, buscados
+em livros de auctores novos, phrases perturbantes de Lorrain, perfumados
+disticos de Henri de Regnier, licenciosas palavras de Lionel des Rieux,
+com um sabor antigo, até o proprio d'Annunzio servira para a
+pilhagem,--para todos esses periodos carinhosos ella tinha o mesmo riso,
+que abria a bocca fina, descórada, que o traço de carmim violentaria a
+macerada pallidez da sua face:
+
+--Ah! Paulo! Ah! Paulo! Apaixonado por mim! Tenho-lhe conhecido tantas
+paixões? Só na semana passada, tres!
+
+--Se não penso senão em si!
+
+--Quando está commigo? Nem isso!
+
+--Clara! Clara! Se me conhecesse bem, veria como a minha alma se fez
+para si um fresco bordão de assucenas...
+
+E outro riso claro cantava na bocca exangue, a troçar da phrase
+pretenciosa.
+
+Uma tarde, n'um _garden party_, emquanto no _court_ de _tennis_ as
+palavras inglezas crusavam-se e os jogadores corriam, a _raquette_ no
+ar, elles um pouco afastados, juntos a um macisso de jasmineiros que
+floria, cobrindo-se d'uma renda fina e branca de pequeninos jasmins,
+Paulo, esquecendo-se das phrases decoradas nos romances, deixou sair da
+bocca, livremente, toda a força e toda a anciedade do amor que parecia
+abrir-lhe uma chaga no peito, teve palavras em que fulgiam desejos, os
+olhos brilhavam, enternecidos, agarrou-lhe nas mãos, encheu de beijos as
+palmas roseas, puxou-a para si, e pôde dar-lhe, de surpresa, um grande
+beijo na bocca, soffrego, que Clara não pôde evitar.
+
+Voltada a si do pasmo, espantada pelo insolito atrevimento que a sua
+ligeira _coquetterie_ não permitira, quiz zangar-se; mas voltou a
+rir-se, como se esse beijo, que lhe deixara na boca um calor de chama,
+tivesse sido apenas uma phrase, das grandes phrases de Annunzio, tão
+cheias de volupia que entontecem, como os largos calices das magnolias
+n'um pequeno jardim fechado. E sempre a sentir na bocca a impressão
+ardente d'esse beijo, Clara correu para o _tennis_, a querer jogar
+tambem para esquecer-se.
+
+Era d'esse beijo que Paulo vivia, tomado de assalto, como n'uma pilhagem
+de egreja.
+
+E, apesar de Clara continuar a ser indifferente e risonha para elle,
+lembrava-se da perturbação que levára á alma ligeira da preciosa
+bonequinha de Nuremberg; olhos abertos, continuava a sonhar que esmagava
+os labios exangues sobre a pressão da sua bocca ávida.
+
+Paulo era um romantico. Paulo vivia de pouco, como as aves do ceu.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+A BISANTINA
+
+ A LUIZ FERREIRA DE CASTRO
+
+
+A Bisantina
+
+
+No café, diante do _cocktail_ vulgar, eu esperava um amigo. Fôra mais
+cedo para a entrevista, de maneira que antes da hora lêra os jornaes,
+folheára as revistas, olhára para o relogio, consultára até o barometro,
+interessado. Iam saindo os clientes, aos poucos. Conforme se levantavam
+das mezas, o criado, n'um _crac_ apagava a lampada electrica. Eu ficára
+já, n'um canto, quasi na meia luz. No fundo da sala as lampadas
+faiscavam nos espelhos, telintavam os pratos, as discussões cruzavam-se.
+
+Esperava em vão... Comecei a ceiar.
+
+D'ahi a pouco um rapaz veiu sentar-se ao pé de mim. Conhecia-o de o vêr
+nos cafés nocturnos, quasi sempre em companhia de mulheres faceis,
+estardalhando, contando façanhas de orgias nas _vadrouilles_ de
+Montmartre; de quando em quando, como n'uma expansão, falava de um
+quadro que entrevira n'um museu, alguma luminosa festa da
+Renascença, um nú veneziano, ou preciosas figurinhas dos primitivos,
+simples e mal desenhadas, entre brocados de oiro.
+
+Mas nunca me ligára, correndo a minha vida n'outra direcção. N'essa
+noite, admirei-me de elle deixar a bulhenta sociedade que _sabrait le
+champagne_, para se acolher ao silencio, á quasi obscuridade.
+
+A principio bebeu a pequenos goles o Bucellas que mandou buscar. Tinha o
+ar de quem hesita em praticar um acto, o recolhimento subito d'um gesto
+esboçado, ensimesmava-se, enchia novamente o copo, lia attentamente o
+rotulo da garrafa.
+
+Por fim debruçou-se para a minha meza:
+
+--O senhor gosta de coisas exoticas, das mulheres finamente perversas,
+do brilho das podridões...
+
+--Ó, não! Apenas do _faisandé_!...
+
+--É uma questão de palavras... Tudo o que é ambiguo, perturbante,
+insexual, tenta-o; compraz-se no esmiuçamento das taras, é o chronista
+do irregular, do _à coté_. Prefere as monstruosas orchideas ás rosas, o
+enigma dos Vincis, á belleza forte dos Rubens. Deixa-me contar-lhe uma
+historia?
+
+Por certo que a minha phisionomia traiu o receio da maçada eminente.
+Toda a gente imagina que a sua vida é um «motivo» interessante para
+um livro. E eu tenho deixado cair, como folhas secas, tantos casos que
+me contam, compridamente, com meandros de detalhes!
+
+--O senhor tem o dever de me ouvir e não se arrependerá! O senhor é um
+psicologo...
+
+--Não faço profissão...
+
+--Não importa. Tem obrigação.
+
+--N'esse caso...
+
+Resignei-me.
+
+O noctambulo começou a contar. Tinha a linguagem pittoresca, imageada,
+parecia comprazer-se com a sua phrase. Notei-lhe grande copia de
+estrangeirismos. Mas o caso pareceu-me interessante. Aqui o deixo
+registado.
+
+--Comprehende que eu, _fetard_ cançado, que tenho visto museus entre
+duas ceias no Maxim ou no Carlton, que aprecio mais o _tea-room_ do
+Grand Hotel, de Roma, que o _Salon Carré_ do Louvre ou a sala de
+Velasquez, no Prado, só lhe poderei fallar da mulher ou do amor. E das
+mulheres que tenho conhecido, um pouco por todo o mundo, d'aquellas que
+teem ficado com um pouco da minha mocidade entre os dentes brancos ou os
+dedos esguios, só me recordo da ultima, que é a melhor e a peior, a que
+faz rir e soluçar, curva-nos n'uma somnolencia em que nos apparece muito
+mais bella do que é realmente, cingida com todas as joias com que a
+nossa phantasia a enfeita, mais cruel tambem, porque o amor torna mais
+cruciante as dores, intensifica o desespero, cria a halucinação da
+Magua, inventa a Chiméra da turtura, essa Chimera de afiadas garras que
+nos retalham... Estou muito eloquente. Faça-me signal, quando lhe
+parecer Cicero...
+
+Imagine que conheci, n'uma pequena cidade italiana onde me fôra curar
+d'uma paixoneta recente, uma creatura singular, cujo encanto me prendeu
+quasi de subito. Era uma figura de bisantina, atavismo talvez,
+influencia das pinturas de Ravenna, onde passára a mocidade. E, artista,
+cultivava essa feição, arranjava penteados hieraticos, sem complicadas e
+rutilantes gemas, que o cofre do pae, mediscatro qualquer, não era
+abundante, mas com flores, essas rosas vermelhas de Pæstum, que ella
+propria cultivava, amorosamente, no pequeno jardim de sua casa. O que
+tinha de bisantina realmente, era a bocca fresca, a bocca innocente que
+sorria apenas, n'uma candura de primeira commungante, uma bocca que
+deixava em nós a impressão de que era um seraphim a sorrir. E não
+apetecia beijal-a: apenas quedar-se a gente deante d'ella á espera que
+nascesse a claridade auroral do sorriso, em que mostrava levemente o
+traço branco dos pequeninos dentes. Mas os olhos escuros desmentiam toda
+a infantilidade da bocca, o aspecto angelical do seu corpo magro
+d'adolescente, o collo branco e purissimo. Os olhos brilhavam como
+n'um assalto, a ferir, sem ternura, no fundo uma repulsão ou um
+escarneo...
+
+Essa mulher tentou-me. Largos mezes fui todos os dias á sua casa onde me
+recebeu com palavras dulcissimas. Estendia-me a mão deliciosa para
+beijar, dizia-me frases que entonteciam como um vinho aspero, fazia
+passar por mim o perfume forte que punha nos longos cabellos, que ás
+vezes caíam pesadamente da cabeça, estendiam-se pelas costas, como uma
+rosa que se desfolha, d'uma vez, da haste. Ás vezes furtivamente,
+apertava-me a mão com força. E sorria-se ingenuamente a face de perola,
+eu via a innocencia de toda aquella figura, porque ella fechava os
+olhos, como se todo o seu ser adormecesse n'um espasmo.
+
+Ao sair, tinha remorsos de não ter beijado a bocca fresquissima, de não
+ter, sob a pressão dos meus labios, maguado os olhos maus.
+
+E toda a noite soluçava, enraivecido a desejal-a, até que de tarde ia
+visital-a, encontrava-a estendida, n'uma atitude de imperatriz,
+bisantina, em sedas _moirées_, toda a gama do verde e do lilaz, a
+garganta descoberta. E n'um gesto estudado, estendia-me a mão, que eu
+beijava longamente, essa mão em que as gemas não brilhavam: escuras,
+opacas, pedras finas, opalas, como gottas de agua d'um lago envenenado.
+
+E a scena repetia-se. Eram perturbadores oaristos, que deixavam os
+nervos tensos e vibrantes. Na voz amortecida e doce, dizia as
+palavras magicas que accendem fogachos. E quando ella via toda a minha
+Alma arremessada para ella, tinha o fechar de olhos, abria o sorriso
+celeste, e eu fugia com medo de mim e com medo d'ella. Como? Uma creança
+ingenua! Era preciso fugir!
+
+Um dia tive que partir.
+
+Tinha, na pequena cidade, perdido largos mezes. Fui a uma ultima
+entrevista, chorei como uma creança ao dizer-lhe a magua immensa de a
+deixar. Contei-lhe toda a tortura d'aquelle tempo de infinita delicia e
+infinita tortura; pela primeira vez disse-lhe claramente, entre lagrimas
+tristes, quanto amára todo o seu ser, todo o seu corpo flexivel, todo o
+seu espirito cançado, mas mesmo assim brilhante. Que me dissesse uma
+palavra de esperança, que me deixasse levar uma harmonia divina, uma
+palavra de amor!
+
+Teve uma frase, apenas, com uma expressão de immenso sentimento:
+
+--E não trouxe um fonografo!
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+MÁ-LINGUA
+
+ A JOSÉ LEITE NOGUEIRA PINTO
+
+
+MÁ-LINGUA
+
+
+N'aquella mesa de _bluff_, era feroz a _debinage_... Apenas o Barros,
+que ganhava com uma _veine_ espantosa, sorria beatificamente, cheio de
+indulgencia, e para as arrojadas arremettidas dos parceiros, tinha
+sempre a mesma phrase:
+
+--Mais caridade, meus senhores...
+
+Eram sempre occasiões em que o Leite mostrava «quatro cartas» ou «street
+flesh.»
+
+O baile, na sala proxima, corria animado. As valsas, o pas-de-quatre e
+as quadrilhas martelladas ao piano, tinham concorrencia. E uma ou outra
+que fugia do calôr, para as salas de jogo, era apanhada na passagem,
+amarfanhada, esmiuçavam-lhe a chronica, apimentada de notas ineditas,
+calumnias talvez.
+
+--A Gracinda Fortes!
+
+O conde de Marvilla teve um sobresalto. Voltou-se para trás. A Gracinda
+vinha com um vestido de tonkin cinzento que mostrava toda a graça
+fragil do seu corpo magro. O conde commentou, eriçando mais o bigode
+loiro, cortado á ingleza:
+
+--Um cabide para vestidos!...
+
+--Mais caridade!...
+
+--Ah, já sei: tem pelo menos um flesh na mão... Passo!
+
+Depois, olhando ainda a figura esbelta que sahia...
+
+--Mas ella não é uma mulher--é uma boneca de Nuremberg!... Vejam o andar
+articulado, mechanico... Tudo aquillo se mexe por molas! E aquella
+cabeça d'arara a dar a dar, como se estivesse presa ás espaduas por um
+parafuso lasso? E depois, meus amigos, ella é toda postiça... O cabello
+loiro pertenceu já a tres cabeças... É uma mulher feita de collaboração
+por um cabelleireiro, um droguista e uma costureira. Tudo aquillo é
+sustentado por baleias e faixas, senão desabava, de lasso... Imaginam
+que o marido está arruinado por causa dos vestidos? Não: pelos
+cosmeticos... Á quantidade de drogas que anda por aquella pelle é
+inconcebivel. Já repararam em como se não decóta nunca, completamente,
+que o collo é sempre coberto por uma gaze ou uma renda? É que a pelle,
+estragada por uma pitiriasis qualquer, esfarella-se. Todas as manhãs a
+creada de quarto tira-lhe kilos de farellos da cama. E já não pode com o
+serviço de maquilhagem--tapar buracos, concertar rugas,
+pés-de-gallinha, disfarçar sardas e signaes de variola--manda chamar um
+trolha...
+
+--Seu amante?
+
+--Talvez... Para a rebocar. Para que ande, é preciso dar-lhe corda. Anda
+sempre da mesma maneira, ás continencias, cabeça para cima e para baixo,
+como um d'esses bonecos movidos por relojoarias. Imagina que aquillo é o
+andar rythmico das parisienses, esse andar leve e airoso como o d'um
+passaro... É parisiense, é: tambem são parisienses as macacas que nascem
+no _Jardin des Plantes_... Ainda por cima, velha. Não tem frescura nem
+mesmo nos olhos parados, conçados do espelho. A pelle despega-se da
+carne e na cara faz papeiras em feitio de bambinellas. E toda aquella
+pintura, ás chapadas, faz sombras, augmenta-lhe as papeiras...
+
+--Tens-lhe odio!...
+
+--Não, tenho olhos. Não é preciso mais. Por causa d'ella lá me fez você
+um _bluff_ sem eu dar por isso...--Conheço-a muito. Veiu da provincia e
+por ahi andou a mostrar ao Chiado e á Avenida as suas _toilettes_, como
+um manequim de loja de modas em furor de reclame. Ninguem a recebia,
+senão as casas em delirio de festas, onde a ida d'um conde, dos feitos
+ultimamente ás canastradas, enche de jubilo os amaveis donos da casa,
+como se diz nos jornaes. Mas a sua ambição era do podre-de-chic, e
+não podendo suppôr-se com sangue azul--a mercearia do pae, ainda lá está
+a falsificar--imaginava-se com o chá das cinco horas nas veias... Um chá
+requentado como o espirito d'ella, estudado em velhos almanachs.
+
+Emquanto não entrou na sociedade, vestia-se seis vezes ao dia, e nos
+intervallos injuriava o idiota do marido, essa bola de cebo com suissas
+brancas, que, atolambado, não lhe respondia que não tinha culpa de não
+convidarem uma amostra de cocotte do Maxim para casas de familias
+honestas. E era uma vida dura, atroz, n'aquella casa, ella de mau humôr,
+acre, dizendo horrores na voz impertinente, sem inflexões, monocorda, e
+elle angustiado, sempre em calculos diabolicos para saldar as contas
+monstruosas que lhe mandava o Goodefroy, dos cosmeticos e _postiches_
+com que se engalanava a mulher.
+
+A vida n'aquella casa! Vocês não calculam a expressão dura, injuriosa,
+que se estampava n'aquella cara agora risonha, quando recolhia, á tarde,
+cançada de fazer a Avenida, quasi sem um chapeu a comprimental-a, sem
+meios para ter uma carruagem, olhando, gulosa, as pessoas chics que
+passavam, sorrindo ás saudações. E na mesa de jantar, silenciosa, apenas
+se ouvia o tilintar dos talheres e uma ou outra phrase grosseira ao
+Fortes, que abanava a cabeça, todo elle se agachava, no receio,
+talvez, d'um prato ou d'um copo arremessado na furia.
+
+Depois das refeições, separavam-se, elle para a rua tomar ar, fugindo da
+perigosa visinhança, ella a arrastar-se nos quartos, a enfeitar-se de
+joias, punha-as todas, enchia as mãos d'anneis, rodeava a garganta magra
+com todos os collares, enchia os braços de pulseiras quasi até o
+cotovello e via-se ao espelho estudando sorrisos, gestos de comprimento
+para os grandes bailes a que havia de ser convidada um dia.
+
+--Para fallar d'esse modo é preciso ter sido _éconduit_...
+
+O conde córou, encolheu os hombros:
+
+--Ás vezes não se levantava da cama em dias de chuva em que se tornava
+impossivel fazer a parada nas ruas, _troteuse_ á cata d'olhares: vestia
+uma camisa de noite de que cahiam _valenciennes_ e cobria a cabeça com
+pentes e travessas d'oiro com pedras finas, e as mãos floriam-se de toda
+a collecção d'anneis. Era oiro por toda a parte, sem fallar nos dentes
+em que se combinavam todos os metaes e todas as massas. Ouvi que se lhe
+podia dirigir o epigramma de Marcial: Não te rias porque só tens tres
+dentes e esses mesmos são de buxo.
+
+--Conheces tão intimamente?
+
+--Pela creada do quarto... Agora, saracoteia-se, esqueleto feito
+manequim, arrebanhando os rapasolas inexperientes para _flirts_--ó
+só _flirts_! não por virtude ou amor conjugal, mas porque a pitiriasis
+não permitte o desnudamento--_flirts_ que acabavam logo que um mais
+affoito fallasse em beijar a pelle perfumada.
+
+--Schiu! Lá vem ella!
+
+O conde olhou para a porta, por onde entrára, fina e flexivel como haste
+florida, a Gracinda Fortes. A bocca pequena, que o cosmetico fazia
+sangrar, abria-se n'um sorriso fresco, que mostrava os dentes brancos. E
+de todo esse corpo magro exhalava-se, como um perfume que entontece, um
+encanto perturbante.
+
+E seguiu-a com os olhos, commovidamente, até que desappareceu, como um
+sonho...
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+A RAINHA DE SABÁ
+
+ A EUGENIO DE CASTRO
+
+
+A RAINHA DE SABÁ
+
+
+Balkis esperava. Entre as sumptuosidades do seu palacio de Mareb, a
+Rainha vivia, solitaria, escondida, só com a sua belleza.
+
+Em vão os povos e os senhores, ouvindo fallar da immaculada formosura
+accorriam dos remotos reinos onde a sua lei governava, Sabá, Mareb e
+Yemen, e, defronte do palacio immenso e fechado, pediam para vêr a
+deslumbrante adolescente. Em vão os sacerdotes quizeram vêr os olhos
+puros. Ninguem o conseguiu.
+
+Apenas uma velha ama a vira nua, quando menina. Era como um lirio o seu
+corpo.
+
+Sete aposentos eram os da Rainha. E cada uma das sete portas uma chave
+d'oiro fechava. E no ultimo, a rainha vivia. Grandes espelhos de cobre
+mandavam-se uns aos outros, como écos, a imagem quasi divina. E Balkis,
+apenas vestida de joias, passava os dias na contemplação dos
+intactos esplendores da sua adolescencia.
+
+Entravam pela janella que abria sobre o jardim fechado e callado, os
+pavões brancos e os pavões polichromos. Aquelles formavam, estendendo as
+caudas, pequenas luas macias; estes faziam fulgir constellações, doçuras
+de velludos, coruscantes gemmas. E Balkis era mais branca do que os
+pavões brancos, mais brilhavam as suas cinturas e manilhas pesadas do
+que as caudas scintillantes.
+
+Nas noites escuras sahia ao jardim. Deixava cair entre as moitas de
+flôres, a cintura, as manilhas, os anneis e o diadema. Soltavam-se-lhe
+os cabellos d'oiro, que eram, no ar azul escuro, como um cometa pallido;
+e nua, como uma flôr graciosa, dirigia-se para o tanque de marmore onde
+adormecera a agua perfumada. Os seus pés, ao entrar no tanque, eram como
+um raio de lua...
+
+Deitada no tanque, os braços abertos, as mãos á tona d'agua, como dois
+lótos brancos, Balkis espreitava o ceu onde se movia o doirado
+formigueiro d'astros. As estrellas vinham reproduzir-se na agua, como
+molhadas flôres d'oiro, em indecisos contornos; uma lhe brincava no
+seio, quasi á flôr d'agua. Era como uma joia a correr, com o movimento
+do corpo. Ás vezes, n'um gesto mais largo, a gemma cahia, para outra vez
+voltar, n'uma festa, a percorrer todo o corpo branco, que era, na
+agua escura, polvilhado de brilhos, como um nenuphar enorme, em que se
+agitassem grandes abelhas fulgentes.
+
+Depois, quieta, ouvindo sómente, de quando em quando, o ruido ligeiro
+das flôres que tombavam, murchas, na areia discreta do jardim, os braços
+a appoiar a cabeça, como um diadema feito de duas hastes d'açucenas, a
+Rainha pensava.
+
+E esperava...
+
+Balkis esperava o noivo que havia de vir.
+
+De todas as partes, chamados pela fama da sua belleza, dos seus
+thesouros ou dos seus exercitos, tinham acorrido os principes da Asia.
+Poetas uns, avaros outros, na maior parte guerreiros, todos vinham em
+cavalgadas surprehendentes, cobertos d'oiro e de joias. No seu throno
+altissimo d'oiro e prata, invisivel, mas a todos vendo, a Rainha ouvia
+as imagens aladas que fulgem e perfumam, a descripção dos poços
+profundos, abarrotados de barras d'oiro, de vasos de cobre, de moedas de
+todos os feitios, de pedrarias de todos os brilhos; diziam-lhe historias
+compridas de cruentas façanhas, batalhas mortiferas em que as flechas e
+as espadas, a bater contra os escudos, produziam chispas de incendio,
+contra os corpos, rios de sangue. Os guerreiros, com o desejo de
+augmentar os exercitos bellicosos, aprendiam uma eloquencia
+calorosa. Eram os que mais fallavam, regosijando-se com a recordação das
+chacinas. Mas a um signal da Rainha iam-se, despedidos, os poetas com as
+lagrimas nos olhos, as cabeças curvadas, como sobre o peso das mithras,
+os avaros e os guerreiros batendo com força, nos ladrilhos polichromos,
+as sandalias ligeiras.
+
+E Balkis voltava para o recuado aposento do seu palacio populoso. Alli,
+só, admirava nos espelhos a gracilidade do seu corpo esbelto e firme.
+Deixava cahir sobre o corpo branco, como uma flôr inundada de sol, o
+cabello loiro.
+
+Depois de admirar toda a sua belleza, Balkis dizia-se:
+
+--Aquelle que eu amar possuir-me-ha intacta, como uma flôr que vive no
+meio d'uma floresta guardada pelos Medos. Ninguem lhe aspirou o perfume,
+ninguem viu a côr deslumbrante, ninguem a maculou. N'esta terra cheia de
+sol, em que as côres não brilham, ardem, e as cassoletas não perfumam,
+estonteiam, eu sou branca, o sol nunca me viu. Entre os muros dourados
+dos meus sete aposentos, a vida é quieta e facil!
+
+Balkis esperava.
+
+Os mezes passavam ligeiros. No jardim fechado, as rosas desabrochavam,
+perfumavam e morriam. Outras vinham com egual brilho e egual frescura,
+enormes rosas escarlates, como boccas em que os beijos deixam
+feridas, do desejo intenso. Balkis conservava, no seu corpo nubil,
+intactos, os esplendores d'uma adolescencia eterna. Untava-se com oleos,
+alisava com pentes d'oiro os seus cabellos d'oiro. Vestia-se apenas com
+joias, joia ella mesma. E nos seus olhos azues, largos e serenos,
+brilhava a mocidade.
+
+Não a viam olhos humanos. Nenhum desejo maculou o seu corpo.
+
+E quando Salomão, filho de David, que no seu palacio de Jerusalem tinha
+mais concubinas que de estrellas ha no ceu n'uma noite de lua, quando
+Salomão a veiu buscar, ella entregou-se-lhe, pura, radiosa e immaculada,
+como uma flôr crescida n'uma floresta insondavel, cujo perfume ninguem
+aspirou.
+
+Virgens, guardae para o desconhecido Amado, o vosso corpo e a vossa
+alma, como, se é verdade a lenda arabe, para Salomão, filho de David,
+guardou Balkis, Rainha de Sabá!
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+CHIARA LILIAM
+
+ A VICENTE D'ARNOSO.
+
+
+CHIARA LILIAM
+
+
+Barcelona e o seu porto com incendiados espelhamentos de sol nas aguas
+que se agitam em pequenas ondas, aguas-fortes de mastros a distancia,
+toda a geometria do horizonte cinzento cortado pelos perfis dos vapores!
+Ha dorsos vermelhos de navios, nodoas negras das barcaças de carvão, até
+a florescencia d'um yacht que emerge entre a poeira negra da fumaraça, e
+os fardos, e as pipas, como uma delgada flôr de prata...
+
+Para alem da cinta da docka, ao rez do mar, o ceu toma tons brancos que
+se esbatem e degradam na ascenção, accentuando-se na cupula um azul
+fino. E os vapores passam, pequeninos, carregados de vagas multidões
+para Barcelonete.
+
+Para alem da formidavel estatua de Colombo, as Ramblas sacodem os ramos
+verdes dos platanos e o Tibidabo recorta-se, escalvado.
+
+--É ámanhã o vapor para Mallorca, informam-me.
+
+Volto para traz, deixando o ruido dos guindastes e das sereias, a bulha
+dos catraeiros e descarregadores, para entrar n'outro bulicio tão
+grande, o zumbido dos milhares de boccas que cruzam a Rambla, as
+campainhadas dos tranvias, a buzina dos automoveis, com gritos diversos,
+pragas, pregões, injurias guturaes dos catalães furiosos.
+
+Sentira desejos de vêr Palma de Mallorca em que me fallára Teixeira
+Gomes, as suas egrejas caladas, os seus palacios antigos. Por elle sabia
+que a cidade conservára-se immovel, tipica, como no principio do seculo
+XIX. E a sua conversa luminosa e pittoresca acirrara-me o desejo de
+visitar uma terra que, na convulsa marcha do seculo industrial,
+immobilisára-se nos seus antigos sonhos de pedra.
+
+Aborrecera-me já Barcelona, commercial, trabalhadora, respirando pelas
+mil boccas das suas chaminés; parecia que a alma da cidade andava
+triturada pelos poderosos engenhos das suas fabricas. Vira os seus
+theatros, os seus museus, Santa Maria de la Mar perdida entre o casario;
+mas em toda a parte o commercio abria ruas, estendia fazendas,
+crusavam-se os _camions_.
+
+Ah! Salamanca parada e quieta, a morrer n'uma agonia d'oiro! As saudades
+que tive da paz das suas ruas bordadas de egrejas e de palacios, das
+cathedraes sumptuosas e desertas, das pequeninas parochias, onde se
+descobrem ainda, atravez dos vandalismos, curvas d'arcos romanicos,
+flores de capiteis graciosos; de Santo Esteban e o seu claustro que a
+hera invadiu, do balneario, antigo claustro de convento e do Monterrey
+maravilhoso, da Universidade quasi sem estudantes!
+
+Aborrecia-me Barcelona, toda entre arvores, Barcelona e o soturno
+Monjuich com a lenda dos supplicios dos anarchistas.
+
+Ainda um dia! Era preciso depois de jantar subir á _Gran Via_ e ir ao
+tumultuoso café ouvir a gritaria ensurdecedora, passear pelas Ramblas
+entre uma multidão compacta que espairece, vêr as caras angustiosas dos
+operarios, sempre na vespera d'uma revolta, e os pobres que nos
+perseguem pela esmola, e as raparigas sujas, enrugadas, que se
+offerecem, n'um chale rôto.
+
+Ao entrar no «Paseo de la Aduana» para esperar um tranvia que me levasse
+ao Parque, vi passar n'uma carruagem, fresca, toda vestida de branco,
+como um ramo de goivos brancos, Chiara Liliam, a cantora italiana que
+mezes antes conhecera em Genebra, no Kursaal, e com quem passeára no
+Leman, pelas tardes quietas de agosto e pelas noites de luar, ouvindo-a
+cantar, não as operas transcendentes com que regalava os suissos e
+inglezes, mas ligeiras canções napolitanas, que tomavam na sua bocca uma
+voluptuosidade mais fina e adormeciam, envenenando-as, as nossas Almas.
+
+Ah! Chiara Liliam! As tardes limpidas e serenas em que vimos a paisagem
+doce, fecunda, do cantão de Genebra, no vapor da carreira, alheiados das
+inglezas de Cook, de dentes monumentaes e _canotiers_ ridiculos! E as
+noites frias, em que deixavamos o Kursaal e os _petits chevaux_ e iamos,
+costeando o caes illuminado, n'um pequeno bote que o ruivo barqueiro
+conduzia serenamente, respirar a delicia do luar pastoso, que parecia
+ter em si um pouco da neve do Monte Branco!
+
+Lord Carnehan, o seu amante, acompanhava-nos. A tristeza da sua face, de
+todo o seu corpo cançado! Parecia ter sentido, aquelle rapaz de trinta
+annos, todo o travo da vida, visto desfolhar-se, uma a uma, todas as
+illusões, as ambições murchar, como quem assistisse ao incendio de todos
+os seus haveres e dos proprios castellos no ar que a sua mente creára.
+
+Nem alcoolico, nem etheromano, abominando a morfina e a cocaina, tomando
+uma leve taça de café, apenas, resignára-se na vida, «deixava-se
+morrer», dizia.
+
+Andava com Chiara, porque era preciso ter uma amante, como uma _ecurie_,
+um palacio em Londres, um castello na Escocia e uma villa na
+Riviera, decorada por Burne Jones.
+
+Chiara Liliam era a sua vontade. Ia para onde ella quizesse, para fazer
+alguma coisa e não ficar, no hall do Metropole Hotel, de olhos pasmados
+para os decotes largos das _ladies_, que liam jornaes.
+
+Mas nenhum amor, nem mesmo sabia, talvez, se era macia a pelle da
+cantora. E assim viviam, ella feliz pela liberdade, risonha como um
+galho d'_eglantines_, elle, com uma razão de viver: acompanhar Chiara.
+
+Chiara, que viu o meu cumprimento, mandou-me subir para o trem.
+
+--Venha comigo ao parque... se não tem melhor...
+
+--Ia justamente para lá aborrecer-me...
+
+--Então venho a proposito...
+
+Perguntei-lhe por lord Carnehan.
+
+--Ó meu Deus! Lord Carnehan tornou-se para mim uma obsessão. Era como um
+vidro negro que me punham nos olhos para eu vêr a vida. Nada me parecia
+claro, luminoso, florido. Julgava olhar sempre para dentro d'um poço
+secco. Essa creatura estragou-me alguns mezes de existencia. A principio
+ainda eu ria, pelo movimento adquirido. Mais tarde, porém, o riso
+desappareceu. Sempre aquelle somnolento homem que só abria a bocca para
+perguntar pelas horas, como se tivesse pressa d'alguma coisa, elle
+que não fazia nada, ou para dizer alguma sentença, um aphorismo de
+Schopenhauer ou d'alguns dos fulminantes catholicos, á maneira
+hespanhola, sombrios, repulsivos. Comecei a olhar para o espelho, a vêr
+se sabia rir. Não sabia. Vinha uma careta ao contrahir a bocca;
+parecia-me de pedra os labios, ao querer abril-os n'um sorriso. Quiz
+mortifical-o, fazer com que, atraz de mim, os amorosos corressem;
+empreguei, ante os seus olhos pardos, o requinte do coquetismo; mostrei
+todo o artificio de mulher e de actriz. Nada. Sempre lord Carnehan
+indifferente, a cabeça sobre o peito, as mãos pendidas, a perguntar-me
+periodicamente:--Que horas são? De quando em quando, sem lhe dizer aonde
+ia, deixava-o todo o dia; ás vezes, aborrecida, nem ia á rua. Ficava no
+meu quarto, as lagrimas nos olhos, a vêr o movimento dos
+_bateaux-mouches_ a atravessar o Leman; os raros automoveis que passavam
+pela rua e alguns ranchos de forasteiros arregimentados pelas agencias.
+Arrastava-se o tempo; defronte de mim, o lago que á esquerda se curva,
+limpido, transparente. Na outra margem, o parque Jean Jacques, alinhado
+e limpo, como um desenho do concurso. E era alli, á direita, a arvore
+que dera sombra, na tarde criminosa, em que o anarchista matára a
+Imperatriz Isabel. Pensava no fim tragico que ali procurara, sob um
+pequeno platano viçoso, a alma aventureira e poetica, a dama de
+todas as viagens, que vira tantos ceus ensolados e tantos mares em
+procella... Quando voltava, de proposito despenteada, com muito rouge na
+face, a fingir córada, lord Carnehan levantava com esforço os olhos para
+mim e perguntava-me, na voz pausada, sem um estremecimento:
+
+--Que horas são?
+
+Eu era o relogio, para elle! N'essa terra fria, geometrica, regular no
+andamento como uma machina--a alma de Genebra é um relogio--eu não era
+nada mais do que um chronometro em que se tem confiança. Um dia,
+furiosa, comprei um relogio e offereci-lh'o. Imagina que acabou a
+historia? Não. Comecei a fazer-lhe scenas, a dizer-lhe improperios em
+calão dos bairros infimos de Londres--uma artista conhece tudo e o
+resto--phrases de marujo; elle ouvia, ouvia, e depois tirava o relogio
+da algibeira e dizia-me:
+
+--Por força que este relogio atraza! Que horas são?
+
+Quiz matal-o. Uma noite entrei no seu quarto. A lamparina envolvia tudo
+em penumbra. Até a dormir tinha o ar cançado. Levava uma mascara de
+cloroformio... Conhece o conto de Lorrain sobre as mascaras de Londres?
+foi n'elle que me inspirei... Ia para lh'a pôr na cara e acabar com
+elle. Tropecei n'uma cadeira. Carnehan acordou sem sobresalto. Olhou
+para mim:
+
+--O quê? já manhã? Que horas são?
+
+Não! Não era possivel! Pensei em atirar-me da janella abaixo. Não podia
+mais com a vida. O diabo é que estragava o penteado! Resolvi fugir. Fiz
+as malas, guardei joias e dinheiro, rompi a escriptura com o emprezario,
+perguntei por minha vez que horas eram a Carnehan--a cara que elle
+fez!--e metti-me n'um comboio e vim para a Hespanha, onde ha sol, ha
+muito sol e não quero nunca saber que horas são!»
+
+A sua face parecia uma flôr de perola, e na bocca fortemente pintada um
+sorriso brilhou...
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+A MARCIA
+
+ A SILVA GRAÇA.
+
+
+A MARCIA
+
+
+Aquella velha encarquilhada e ignobil que encontrei na estrada de
+Cascaes, pelo crepusculo suave, tinha uma historia.
+
+Estava bebeda. A bocca onde dois unicos dentes se mostravam, careados,
+no gargalhar, a bocca de beiços finos e roxos, sabendo a alcool e a
+podridão, tinha gritado dores, tinha tambem beijado.
+
+Contou-me tudo, como n'um vomito. Caiu-lhe d'um jacto toda a sua
+historia e toda a sua alma; e pareceu-me que o crepusculo que fazia de
+perola o horizonte longiquo e trazia a calma á ligeira inquietação do
+Mar, se enchia de gangrenas, extravasava lodo, manchava o Ceu purissimo
+em que nem um farrapo de nuvem a esgarçar-se perturbava o estranho socego.
+
+No mar azulado, pairavam, sem velas, as faluas da pesca. Ao longe
+esfumavam-se as montanhas que correm para o Espichel, mais
+acentuadas na poeira de cinza e de perola do horisonte. A baixo da
+estrada corre a fita d'oiro fosco do areal, que nas angras se alastra,
+para desapparecer nos cachopos violaceos. É toda debruada d'oiro a larga
+curva da Cidadella ao Hospital de Parede. As pequenas ondas, na tarde
+quieta, vinham franjar de renda branca a seda do areal.
+
+Eu seguia do Estoril para Cascaes. Queria vêr ainda o mar, fixar em
+imagens subtis a palpitação dos ultimos brilhos solares na agua,
+conhecer como vivem e estremecem, sob a agua azul, as longas petalas de
+luz multicôr e fina em que desabrocha o poente; diluir toda a minha alma
+na Paz da tarde, que, por ser tamanha, dava a illusão de ser eterna. E a
+velha não me deixava! Ia atraz de mim a gargalhar, desfiando, por entre
+os labios resequidos, palavras desconexas, chamando-me a attenção.
+
+O velho trapo! Na cabeça calva a cuia á banda era grotesca. E no
+movimento sacudido da embriaguez e do _delirium-tremens_, as vestes
+esgarçadas pareciam agitar bandeirolas, saia de farrapos, corpo de lona.
+
+E não me deixava! Comigo cruzou a linha ferrea, parando para, as mãos
+abertas sobre os olhos, espreitar se vinha algum comboio.
+
+Como sombra minha atravessou as ruellas de Cascaes, o passeio Maria
+Pia. Passámos a _villa_ Arnoso e a _villa_ O'Neill.
+
+A noite caía do Ceu resignadamente. O mar escurecia.
+
+Por certo que o ar fresco da tarde diminuira a embriaguez, porque as
+palavras formavam serie, embora as dissesse n'uma toada de cantilena.
+
+Sentei-me nos rochedos da Boca do Inferno. Ouvia-se o confuso lamento do
+mar na cova onde se agachava uma sombra mais densa.
+
+A velha não podia suster mais tempo a sua historia. Sentou-se ao pé de
+mim e contou-m'a. Ha pessoas que teem a alma pequena. As imagens
+intensas e poderosas não podem viver lá dentro. É preciso que as deitem
+para fóra. É por isso que os bebedos são em geral loquazes e
+indiscretos. A capacidade psychica conservando-se a mesma e
+engrandecendo-se as imagens pelo poder ampliatorio do vinho, elles
+fallam, confessam-se, vão sós pela rua a dizer os seus segredos; foi por
+isso que a velha me contou a historia, como a podia ter contado a um
+poste do telegrafo ou a um pedregulho da praia.
+
+--Se me visse quando eu era nova! Ih! Ih! Não tinha esta cara, não, nem
+só estes dois dentes--e um d'elles já abala! Era bonita! Era loira.
+Tinha os olhos azues. Que elles agora, de chorar pelas desgraças e de
+chorar com o vinho, já não teem côr. Olhe para elles, não tenha medo!
+
+Não tinham côr os olhos. Dentre as palpebras vermelhas e sem cilios eram
+deslavados e estupidos.
+
+--E os meus cabellos louros e finos! Tenho só algumas mechas brancas,
+porque começaram a cair aos punhados d'uma doença que tive. E fiquei
+assim com a cabeça... E embranqueceram-se os que ficaram...
+
+Tirou a cuia. Metia nojo essa bola em que luziam chagas. Raras mechas de
+cabello a enfeitavam. A velha tornou a rir-se, o mesmo ih! ih!
+contrafeito em que abria a bocca putrida.
+
+--O meu corpo era lindo, delgado e forte. Os seios eram brancos e
+firmes. Olhe como ficaram!
+
+Tirou, n'um sacão, da bluza encardida e rota, os seios murchos que
+bambolearam como dois figos a desprender-se d'um galho. E depois contou,
+atropellando as palavras, a querer acabar a historia, para se vêr livre
+d'ella, como se se esquecesse, m'a transmitisse, com o encargo da sua
+angustia, e podesse, sem esse pezo, caminhar mais ligeira, ferindo menos
+os pés descalços nas pedras das estradas e nas silvas dos atalhos.
+
+
+O pae era um pequeno lavrador, que vivia feliz entre as suas vinhas e os
+seus milhos.
+
+Um dia casou com a mãe, uma pobre rapariga da cidade, que cozia a dias.
+Louçã, fresca, de grandes olhos claros, gostava dos vestidos de seda,
+dos brincos d'oiro e das rendas. Depois do primeiro anno, tiveram
+Marcia, que poz no lar contente um ponto de luz. Em volta d'ella os
+carinhos adejaram. E as mãos habeis da mãe cançaram-se a arranjar-lhe
+touquinhas, camisinhas, pequenas coisas de linhos finos que iam á cidade
+comprar. Parecia uma filha de gente rica, tão garrida andava.
+
+E linda, com o seu cabellito loiro e os olhos azues muito largos, sempre
+abertos como a querer aprehender toda a vida, todo o mundo.
+
+Aos sete annos adoeceu gravemente. O medico ia duas e tres vezes a casa,
+cada dia. E á noite, depois de vêr a pequena, ficava ali, emquanto o pae
+somnoleava, a conversar com a mãe. O medico era novo, janota, tinha os
+bigodes pretos retorcidos e dizia versos. A mãe caiu-lhe nos braços, uma
+noite em que Marcia ficára livre de perigo.
+
+--O que eu vi! Vocemecê não acredita, mas vejo ainda! É como se
+estivesse diante d'elles na minha caminha! Elles punham-se aos beijos e
+aos abraços, pensando que eu dormia. Eu não dizia nada, nem sabia o que
+era. O pae ficava fóra, a dormitar, na salla de meza. Uma noite elle
+entrou e apanhou-os abraçados. Voltou sem fazer bulha para dentro.
+Trouxe uma foice comsigo. E degolou-os ali, o medico primeiro, a
+mãesinha depois.
+
+«Agarrou-o pelo cabello e foi como quem monda herva, só d'uma vez. E
+atirou para o chão a cabeça, de que escorria sangue. A mãe nem pôde
+gritar. Nem eu, que sentia um peso aqui, na garganta. Tambem degolou a
+mãe e atirou para o chão com a cabeça. A mãe custou mais. Foi aos sacões
+que a acabou. Depois poz as cabeças e os corpos fóra a pontapés. A
+pontapés! E então? Parecia doido! E o quarto parecia-me todo vermelho, e
+meu pae, e eu mesma sentia o sangue escorregar-me pelas mãos. E queria
+limpal-as e não podia. Parecia que tinha as mãos atadas e sangue na
+bocca! Depois, meu pae, que pensava que eu dormia, veiu lavar a casa,
+muito devagar, para não fazer bulha. Depois chamou os creados. Então
+todos choraram. Mas meu pae não chorou. Veiu para o pé de mim e passou
+toda a noite a vêr ao candieiro se tinha sangue nas mãos. Chegava-se
+muito á luz para vêr as unhas. Depois lavava as mãos e sentava-se,
+punha-se a olhar muito para ellas, a esfregal-as, e ia laval-as mais!
+
+A velha calou-se por momentos. Depois proseguiu:
+
+--É tal e qual! Vejo como se fosse vocemecê! As barbas do pae, que eram
+pretas, pareciam encarnadas. E tudo, tudo estava tingido de encarnado!
+
+«O pae foi preso, mas d'ahi a mezes saiu livre.»
+
+Olhou para mim, e com terror:
+
+--Parece que podia matar!
+
+«Fiquei em casa com a mulher que me servira d'ama e melhorei. Antes Deus
+me tivesse matado, que não tinha soffrido tanto! Lembro-me de tudo! De
+tudo! É por isso que bebo. Quando bebo muito, parece-me que os casos se
+deram com outros; parecem coisas que me contaram. E bebo muito, bebo
+sempre, mas nada me esquece, senão quando cáio na estrada a dormir!»
+
+E voltou á historia dolorosa da sua vida, sempre apressada, a querer
+acabal-a quanto antes.
+
+Ficára com o pae, sombrio sempre, que lhe dizia palavras severas d'uma
+moral cruel e sanguinaria. Foi crescendo sem alegria na casa de crime e
+de amor. Um dia alguem a possuiu tambem. Sentiu os beijos que são
+vermelhos como o sangue e como sangue embriagam, nas boccas amorosas.
+Sentiu os abraços que apertam como uma cadeia de flores venenosas. Não
+me disse o nome do amante, não me deu uma unica indicação. Tratava-o por
+«alguem», sem odio.
+
+Um dia sentiu que uma vida estranha se agitava dentro d'ella; confusa e
+alarmada, disse-o ao amante.
+
+--«Nunca mais appareceu. Escrevia-lhe, mas as minhas cartas ficavam sem
+resposta. Até que soube que «alguem» tinha abalado da terra.»
+
+Referiu-me com terror os mezes angustiosos que passou a querer esconder
+o seu «peccado», como ella dizia. Eram sobresaltos continuos. Não o
+queria confessar a ninguem, não queria confidentes. Mesmo na quaresma
+fingiu-se doente e não foi á desobriga. Até do padre tinha medo, não
+fosse elle dizel-o ao pae. Este não via nada, absorvido sempre,
+ensimesmado, como quem tinha dentro de si imagens sufficientes para não
+recorrer ao mundo exterior. Vivia do passado, enlisado na noite vermelha
+em que matára os amantes que se beijavam.
+
+Uma noite, no quarto escuro, onde não se atreveu a acender um candieiro,
+o filho nasceu entre estertores, ralos que Marcia mordia, para não
+despertar ninguem, para que ninguem suspeitasse do seu segredo. E n'essa
+noite, emquanto as dores do parto lhe rasgavam todas as fibras,
+estorciam todos os nervos e punham-lhe nos olhos a figura da morte
+horrivel, outras imagens se levantavam, nitidas, deante d'ella: o pae
+com a foice, os amantes que se abraçavam, e as cabeças decepadas a rolar
+no chão, com esguichos de sangue. O quarto era todo vermelho, outra vez,
+apezar da noite escura. E Marcia rasgava com os dentes os lençoes,
+mordia os travesseiros, e o linho tinha um gosto a sangue dos
+proprios labios, mas dos _outros_, pensava.
+
+O filho nasceu, n'um vagido. Marcia beijou-o, para o calar. Apezar de se
+sentir desmaiar, pegou n'elle amorosamente e embalou-o. Mas outro gemido
+saiu da massa informe. Parecia-lhe que era estridente, enchia todo o
+quarto, acordaria, talvez, a villa, como os sinos quando tocam,
+anciosos, a rebate.
+
+As suas mãos magras apertaram a garganta do pequenino ser. Nem um ai. O
+filho devia estar morto. Levantou-se, a cambalear. As pernas
+dobravam-se. Com o pequeno n'um braço, de rastos, os olhos cheios de
+sangue da allucinação, rojou-se pelo quarto, abriu a porta, desceu as
+escadas ás arrecuas, saiu á rua.
+
+Era uma noite clara, sem lua. As estrellas formigavam no ceu. A via
+latea, no azul escuro e transparente, era uma poeira de mica. As arvores
+faziam pastas de sombra na paisagem. Uma fonte doloridamente se
+lamentava, n'um tanque de pedra. Lembrava-se de todos os promenores. Na
+abegoaria mugiu uma vacca. E o cão veiu apressado e contente lamber-lhe
+as mãos. Ninguem sentira. Mas Marcia pensava ouvir passadas no estalido
+seco das folhas murchas que caíam e na brisa pelas ramadas, o mexer de
+vestes de pessoas a perseguil-a.
+
+Em cada canto mais denso de sombra, via olhos a espreital-a. E, em
+camisa, quiz correr, sem forças. De onde em onde, sentava-se, forçada,
+porque as pernas não podiam mais. Ouvia gritar a morta. E as suas unhas
+cravavam-se desvairadamente na garganta do innocente. Chegou ao fundo da
+quinta, um terreno de trigo já ceifado. Verão seco, a terra chistosa era
+dura.
+
+--Foi com as minhas mãos que cavei a terra. Como era dura! Parecia que
+eram pedras que eu partia com as mãos. E ellas encheram-se de sangue. E
+eu, no meio d'aquelle trabalho feroz, ainda ouvia o innocentinho gritar.
+E apertava-lhe mais a garganta. E voltava a cavar, queria cavar fundo,
+para que não dessem com o corpinho quando lavrassem a terra para semear
+de novo. E não havia maneira! Não tinha força nem coragem para ir
+procurar uma enxada, um ferro, qualquer coisa com que podesse abrir a
+terra tão dura, que me fazia doer tanto as mãos. Sentia que rasgava os
+dedos. E tinha medo de que amanhecesse. Olhava para o Ceu, a vêr se já
+despontava a claridade. E parecia-me sempre vêr o ceu mais claro, ás
+vezes até pensava que havia sol de meio dia. E voltava a cavar, os olhos
+fechados, com raiva, sem saber bem o que fazia!»
+
+Conseguiu fazer uma cova. Grande? Pequena? Não sabia dizel-o. Deitou
+terra por cima do cadaver ensanguentado, calcou-o com raiva, e então
+poude correr, por entre as arvores, a bater nos galhos e nos
+troncos, a rasgar a camisa e as carnes, até casa. Ia amanhecendo. Um
+traço alaranjado corria na nascente. Metteu-se na cama e dormiu.
+
+Calou-se. Estendeu-se nas pedras, de borco, a olhar fixamente para o
+mar. Era já noite. As estrellas palpitavam no céu transparente. O mar
+enchera-se de sombra. Os barcos tinham recolhido já. Ouvia-se apenas o
+quebrar das vagas na Bocca do Inferno.
+
+Marcia levantou-se e estendeu-me a mão, supplicante:
+
+--Dá-me um tostão para aguardente?!
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+O CEGO
+
+ A ALBERTO D'OLIVEIRA.
+
+
+O CEGO
+
+
+O Pintor, que vivera intensamente na luminosa communhão das coisas
+bellas, no culto da Fórma e da Côr, sorvendo a Belleza religiosamente,
+como se aprecia um vinho velho, de repente cegára.
+
+E no tumulo do seu atelier de que haviam fugido os modelos, errava
+angustiado, querendo com a mão sentir a linha das figuras que o seu
+divino pincel traçara, nas manhãs claras, entre tapetes que amorteciam
+os passos e ás vezes a queda dos corpos dos divans acolhedores.
+
+Sentava-se no mesmo escabello veneziano, marchetado, tendo diante de si,
+no cavallete, uma tela. E vagarosamente ia traçando linhas, julgando
+ainda desenhar figuras, compôr peitos firmes, contornar curvas musicaes
+de quadris, illuminar olhos abertos, cheios de sonho e de volupia.
+
+Mas o pincel empastava tintas, inexperiente na mão do grande mestre,
+como na d'uma creança de peito.
+
+Depois do inutil esforço, não podendo vêr, lançava ao chão, com raiva, a
+tela, e punha-se a passear, cambaleante, hesitante, como um ebrio, as
+mãos estendidas, como se da ponta dos dedos nascessem olhos, a guial-o.
+
+E vivia apenas com um velho servo. O _atelier_ morria ao abandono. Para
+quê a molleza dos tapetes persas, os brilhos dos espelhos de Veneza, os
+marmores das estatuas e a radiosa formosura dos seus proprios quadros
+divinisando a Vida? Para quê? Se tudo adormeceu sob a cinza que se
+acumulára nos seus olhos d'antes d'um tamanho brilho, esses olhos leaes,
+sem ironia, cheios d'amor por tudo o que tivesse uma particula de Belleza?
+
+Fôra um grande pintor afamado. Retratára as mais elegantes senhoras da
+côrte, em vestidos sumptuosos que mostravam, n'um decóte largo, o cóllo
+nu, como uma enorme flôr. E nos seus quadros punha tanta voluptuosidade
+que a marqueza de Bouro, devota e pudica, recusára com horror o retrato;
+apesar do pequeno decóte, da garganta alva pareciam nascer rubras
+florescencias de desejos.
+
+E nunca mais pintou retratos. Ideou quadros em que a mulher e a vida
+eram divinisados. Fez bacchanaes, em que as sacerdotisas nuas agitam
+tirsos enramados, coroadas de flôres, numa loucura divina. Compôz uma
+scena das vindimas em que as mulheres comem as uvas, sob as latadas
+viçosas, das boccas dos amantes. Fez Leda e o cysne, em que, n'um lago
+transparente, as virgens descuidosas se banham. Um cysne apparece,
+airoso, vagaroso, o macio pescoço n'uma curva larga. E ellas querem
+apanhal-o á porfia.
+
+E esses quadros d'uma athmosphera tão clara, d'um ceu tão luminoso, com
+carnaduras frescas, admiraveis seios que exhalavam, como uma flôr de
+tropico, um perfume estonteante, tinham-lhe dado a riqueza e a gloria.
+
+A multidão apontava-o, nas ruas, com reverencia. As mulheres
+lançavam-lhe ternamente cobiçosos olhares. E o pintor gosava a vida, sem
+se prender, beijando as bôccas, aspirando o aroma das cabelleiras
+fartas, que caiam sobre as nucas, sobre as costas, como mantos finissimos.
+
+Até que um dia cegou. Fechou a sua casa, como se tivesse partido para
+uma longa viagem, não querendo deixar vêr a ninguem o espectaculo
+turturante da sua angustia. E continuava a querer pintar, ainda o
+cerebro povoado pelas risonhas imagens, concupiscentes seios, rios
+translucidos, gemas coruscantes, dobras sensuaes de sedas, sobre o
+ambar da pelle das morenas, sobre a magnolia das epidermes branquissimas.
+
+Um dia, soube-se. Vagamente correu na cidade que o pintor magnifico
+cegára. A curiosidade durou tres dias. Os possuidores dos quadros viram
+com prazer a sua valorisação. Os collegas secretamente exultaram pelo
+desapparecimento do rival vencedor... E tudo caiu, tudo esqueceu.
+
+Uma apenas se lembrou d'elle. Carinhosa, amorosa, forçou a porta
+teimosamente fechada. E entregou-se ao cego.
+
+Dias passaram cruzados de angustias e de intensos prazeres. Até que um
+dia o pintor lhe disse:
+
+--Eu tinha que coroar de rosas--a minha mão inutil nem para isso
+serve--a tua cabeça. Devia ajoelhar diante de ti e dar-te todo o meu
+sangue, pois que te dei já todas as minhas lagrimas. Vieste accender uma
+aurora no crepusculo eterno da minha cegueira. Permittiste que eu
+revisse a Belleza da Fórma. Com os meus dedos pude sentir como é pura a
+curva do teu seio, a linha das tuas espaduas e lindos os teus dedos.
+Trouxeste-me o aroma da carne moça, como uma brisa benefica leva a um
+prisioneiro o cheiro do feno. Senti outra vez a musica deliciosa das
+palavras de amor. E no teu corpo pequeno e flexivel, o teu rosto
+deve ser como o luar d'um lirio sobre a sua haste...
+
+Calou-se. Hesitou alguns momentos. Pareceu encher-se de coragem
+e continuou:
+
+--Mas não posso vêr-te! Vivo comtigo, como n'uma somnolencia--um pouco
+de realidade e um pouco de sonho. Pode ser que os annos tenham feito
+brancos os teus cabellos compridos; que alguma doença má tenha
+esverdeado a tua pelle macia. Nas palavras que dizes, oiço ás vezes uma
+promessa, outras um retraimento. Não posso vêr nos teus olhos palpitar a
+tua alma. É como se todos os dias me apparecesses, ás escuras, com uma
+mascara na cara, um dominó a velar-te o corpo. Entrevistas em jardins
+frondosos, ás escuras. Tudo silencio, mesmo na minha alma. Chegaria até
+nós, lugubremente, o adormecimento da vida. E não serias inteiramente
+minha, apenas uma parte de ti me pertenceria, e a outra, uma promessa
+vaga. «Penso que nos encontraremos, dirias... Etheromana em busca de
+excitantes, romantica, caçando aventuras, feia sem remedio a esconder
+aleijões e a querer ouvir palavras que nunca ouviu, sou mais que tudo
+isso, acredita, e menos que uma illusão!» Que importariam as tuas
+palavras? No arroubamento dos beijos sentir-se-hia o travo do prazer
+incompleto. E beijo-te um pouco como se beija um phantasma. Se eu te
+podesse vêr, dir-te-ia que arrancasses a mascara, ou que te fosses
+para sempre. Quereria ver-te, ou realidade inteira, deliciosa na pureza
+da atmosphera, ou sonho puro, como sei sonhar. Não posso com a tortura
+do meio mysterio que a nevoa dos meus olhos cegos cria... Podesses ser
+toda minha, conseguisse eu deitar abaixo a mascara, vêr-te na gloria da
+tua formosura, mesmo na miseria de alguma incuravel doença, fixaria na
+tela, com estrellas fulgentes, com sucos magicos de flôres
+desconhecidas, essa radiosa Belleza, ou essa deformidade, que se
+illuminaria, subiria aos ceus, como S. Julião quando beijou a bocca
+gangrenada do leproso. Apparecesses tu! Mas não. Ficas na meia luz como
+um phantasma!
+
+E o cego, em passadas incertas, as mãos estendidas, saiu do atelier,
+onde a unica nota de vida era o soluçar da amante.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+A GLORIA
+
+ A CARLOS MALHEIRO DIAS.
+
+
+A GLORIA
+
+ Qu'est-ce que ça fait que je sois une grande artiste, si je ne suis
+ pas heureuse?
+
+ Anatole France--_Histoire Comique_.
+
+
+Gonçalo Freire, o escriptor que um romance intenso tornára celebre,
+estava triste e desanimado no seu gabinete de trabalho.
+
+Os candelabros Luiz XV brilhavam nas multiplas velas brancas, faziam
+saltar faiscas dos cobres doirados, das faianças onde corriam idilios em
+jardins frondosos. O seu _studio_ era sempre luminoso, quer de manhã,
+com as largas janellas abertas sobre o rio, quer de noite com as
+resplandecencias das luzes. Dizia que assim a imagem surgia mais
+precisa, mais clara, mais _latina_.
+
+Gonçalo não gostava do nevoeiro que os escriptores do Norte deixam entre
+os seus periodos. Amava o sol e os ceus macios, o mar incendiado,
+as praias do Algarve d'areia doirada, os rios transparentes, onde, á
+tarde sómente, boia um fumo tenue.
+
+Esse romance, «A Face do Homem» revelava esse amor da clareza e do
+equilibrio. Pondo de parte os intuitos sociaes que prevertiam a
+literatura moderna, ligára quadros d'uma emarcessivel belleza por um
+enredo forte, interessante e commovido.
+
+Pessimista á feição de Nietzche, descrevera a miseria da face humana,
+depois de arrancada a mascara; puzera o homem diante de si, n'um
+espelho, e o homem sentira-se asqueroso. Mas, crendo no culto dionisico,
+esperava pela Arte cobrir a fealdade da vida. E, perto do homem, a
+mulher, florida pelo amor, representava o Sonho, a Illusão que cobre com
+um veo azul, a distancia, os montes escarpados.
+
+O publico gostára. Seis edições successivas se tinham esgotado, entre
+aclamações, em dois mezes. Os jornaes tinham publicado o seu retrato com
+artigos encomiasticos, comparando-o a Camillo, pela riqueza e
+propriedade do vocabulario, a Eça pela ironia, a Fialho pelo vigor do
+descritivo, sendo superior a todos pelo interesse e pela suprema Belleza
+do seu ideal de latino.
+
+Era um d'Annunzio com mais sinthese.
+
+Todas as revistas e jornaes sollicitavam a preciosa colaboração; o
+_Suisso_ chamára-lhe plagiario e idiota, apontára-lhe seis erros de
+concordancia, descobrira que em Coimbra roubára versos a Anthero do
+Quental, n'um poemeto que correra impresso, _Sunt lacrimae rerum_, em
+que Gonçalo Freire acreditava no Inconsciente, segundo Hartman e na
+Vontade, segundo Schopenhauer.
+
+Quasi todos os dias o editor lhe mandava molhos de cartas de
+admiradoras, umas apenas a dizer a palavra quente da sua admiração,
+outras pedindo autografos e uma ou outra marcando, misteriosa, uma
+entrevista, n'um _coupé_, em sitio escuso.
+
+N'essa noite, ao entrar em casa depois d'uma _bridge party_, fora
+sentar-se, a querer trabalhar n'uma novella, de que esboçara já o plano.
+O creado levou-lhe a correspondencia que Gonçalo abriu, aborrecido. Uma
+carta d'um editor que lhe pedia um livro para lançar a sua livraria; uma
+actriz nova e elegante, que lhe lembrava a vaga promessa d'uma peça,
+duas amorosas a pedir-lhe entrevistas e um escriptor hespanhol que
+solicitava auctorisação para traduzir «A Face do Homem». A lapis azul,
+no summario do _Mercure de France_, chamavam-lhe a attenção para um
+longo artigo de Philéas Lebesgue, em que o critico entoava um hymno em
+seu louvôr, enaltecendo a harmoniosa belleza do romance, «mais subtil,
+como psychologia do que Bourget, mais moderno que Jean Lorrain, e
+tão puro de estylo como Anatole France». Recommendava-o a Herelle, como
+sendo a obra d'um Annunzio mais intenso.
+
+Era a gloria, vinda do anonymo, não a celebridade feita pelos amigos.
+
+Moço ainda, trinta annos, rico, representante d'uma casa antiquissima
+com o brazão registado muito antes de D. João III, parecia um d'aquelles
+principes que as fadas assistem no baptismo, dando-lhes todas as venturas.
+
+Mas, triste, Gonçalo foi á janella e rasgou cada uma d'aquellas cartas,
+lançando ao vento os pedaços de papel, que baixavam, pareciam hesitar e
+sumiam-se no escuro.
+
+Na noite sem lua pareciam nascer no espaço as luzes dos navios, que
+punham na agua um reflexo de estrella. Encostado ao parapeito, Gonçalo
+muito tempo olhou para a escuridão que enchia o rio. Um ou outro ruido
+de carro chegava até elle, sem o despertar; de quando em quando na rua,
+ao longe, brilhava por um instante um electrico, como um meteóro.
+
+E Gonçalo poz-se a pensar no amor que dentro de si trazia, sem
+esperanças, um amôr que tivera uma demorada cristalisação. Essa mulher
+surgia, luminosa e florida, deante d'elle, no escuro. Via o seu corpo
+magro e esbelto, a florescencia clara do rosto um pouco duro, o olhar
+indiferente. Era sempre assim. E, ensimesmando-se, a figura
+aparecia-lhe, como uma obsessão, para acentuar o alheiamento,
+atormental-o mais.
+
+Muitas vezes, quando compunha, largava a pena, porque a mulher vinha
+para defronte d'elle e não havia maneira de fechar-se no seu pensamento,
+continuar o periodo interrompido pela visita.
+
+E punha-se a recordar de como nascera aquelle amôr. Vira-a muitas vezes
+nas festas, nas ruas, nos theatros, indiferentemente. Uma mulher
+elegante e nada mais, feita talvez pelas costureiras que dispõem de
+espartilhos, de faixas que apertam os quadris, de _bouffants_ que
+disfarçam chatezas de peito, de tecidos leves, que dão a aparencia de
+ligeireza aos corpos.
+
+Não a conhecia. Nunca fôra forçoso conhecel-a e como não o interessava,
+não se aproximou. Era a Maria do Amparo. Quando ella passava pelo
+_Turf_, alguem dizia, ou o proprio Gonçalo:
+
+--A Ampáro vae hoje bem.
+
+--É uma mulher interessante.
+
+--Veste-se bem, principalmente.
+
+E tanto tempo a vêl-a, outras o chamaram, trouxe o seu coração envolvido
+em outros amores risonhos, quasi sem se prender. E a Maria do Amparo
+continuava a aparecer em toda a parte, elegante, um pouco preciosa,
+viva, um sorriso na boca fina que mordia para avivar o traço roseo dos
+labios.
+
+Uma noite, em S. Carlos, n'uma visita a um camarote, Gonçalo
+encontrou-a. Amparo falou-lhe nos artigos que Gonçalo publicara n'um
+jornal, chronicas vivas sobre o Culto da Belleza, a belleza na cidade,
+nos monumentos, nos jardins e nas praças, belleza no lar cheio de
+flores, com moveis elegantes e comodos, belleza na mulher,
+artificialmente rectificada, por maquilhagens habeis e vestidos
+sabiamente confeccionados por mãos peritas. Attraiu-o a conversa. Amparo
+tocou com intelligencia e tacto nos pontos mais originaes, mostrou
+comprehender e sentir a Belleza, rodeou-o de frases amaveis, em que
+havia, ora no sentido, ora na entoação, alguma coisa de carinhoso, poz
+em campo toda a seducção de mulher elegante, chamando-o a si,
+lançando-lhe a perturbante luz dos seus olhos claros. A conversa, apesar
+de curta, um entreacto e o começo d'um acto, acabara n'um _flirt_.
+
+Gonçalo procurou vêl-a. Esperou-a attento e ancioso no Chiado,
+frequentou as casas onde poderia encontral-a. E as tardes de recepções,
+os raouts, as sauteries, e mesmo as empertigadas recepções diplomaticas,
+eram leves _flirtations_, que o deixavam absorto, andando pelas ruas sem
+attender a nada, sorrindo-se ás vezes de alguma palavra dita por ella,
+de um gesto mais expontaneo.
+
+Todos os elementos de seducção foram postos em pratica por Amparo.
+E na alma de Gonçalo começara a cristalisação; a rede ia-o apertando,
+avassalava-o a mulher deliciosa, como os antigos retiarios os seus
+adversarios nos circos romanos.
+
+Gonçalo já não pensava em mais nada. Logo depois do almoço, em vez de
+sentar-se á meza, a trabalhar, ia para a rua sem destino, com a vaga
+esperança de a encontrar, de a vêr na carruagem. E em todas as festas se
+aborrecia até chegar a Amparo. No Gremio pedia todos os jornaes, sem
+poder lêr nenhum, porque se alheava, recordava os momentos felizes,
+idealisava impossiveis sonhos, uma fuga para algum paiz onde ninguem o
+conhecesse, e Amparo vivesse só para elle, esquecida do hediondo marido,
+de todas as caricias, de toda a vida interior. Se por acaso lhe passava
+pela mente a ideia justa de que Amparo nunca deixaria a vida mundana, a
+«consideração», a «situação», logo Gonçalo a sacudia por importuna, e
+enlevava-se no sonho.
+
+Era uma vida feliz, apesar do pouco que ella dava--olhares, commovidas
+palavras, promessas n'um futuro remoto e impreciso, e, um ou outro beijo
+nas mãos que tinha macias, palidas, mãos entre sensuaes e misticas da
+Gioconda, sem a aristocracia das mãos de Velasquez ou Van Dick, sem a
+luxuria que rosea os dedos das figuras do pintor de Verona.
+
+De repente, porém, começou a esquivar-se a Amparo. Houve palavras
+dubias, falou de consciencia e de dever; prometeu um amor eterno, mas
+ideal, sem pecado, um amor que lhes cubrisse a vida com uma gaze leve,
+como um zaimpho. E mais e mais se foi esquivando, emquanto em Gonçalo o
+amôr se tornava mais forte, enchia-lhe o peito de desespero,
+amachucava-lhe todas as energias e dava-lhe a sensação de ter, dentro de
+si a alma, como o chapeu alto d'um clown.
+
+E diante da noite, rasgando as cartas d'amor das outras e as aclamações
+do publico, Gonçalo, a chorar, repetia a frase da heroina da _Histoire
+Comique_:
+
+--Que importa que eu seja um grande artista, se não sou feliz?
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+A FESTA DE MAIO
+
+ A M. TEIXEIRA GOMES.
+
+
+A FESTA DE MAIO
+
+
+--Violante! Violante! gritou o marquez para o jardim.
+
+André, no cimo da escada, d'onde ageitava ramos no entablamento,
+conseguiu desenroscar-se dos molhos de madre-silvas que o coroavam, o
+envolviam, e voltou-se. Ao ver o pae sorriu-se.
+
+--Admira-se?
+
+--A estas horas, já levantado, e em casa?
+
+André abriu na bocca pallida um sorriso exangue; mesmo assim o sorriso
+brilhou nos olhos negros, fez viver toda aquella adolescencia, que
+parecia finar-se lentamente:
+
+--Não me deitei.
+
+--Ouves, Violante? Não se deitou!
+
+A marqueza apareceu á porta, n'uma blusa clara, tremente nas rendas
+amarelladas, ainda aberto o guarda-sol lilaz, por onde se filtrava o
+sol, que extranhamente lhe coloria o cabello.
+
+--Ó André! Que tolice!
+
+--Prometti vir ajudar-te, e mesmo que não promettesse, no dia da tua
+festa, eu não deixaria de vir arranjar a capella. Não está linda? Digam...
+
+--Lindissima.
+
+A pequena capella, em estylo da Renascença italiana, branca nos seus
+marmores puros, sobria d'ornatos, sorria nos festões de madre-silva, nas
+grinaldas de rosas, nos vasos trabalhados de que escorriam glicinias
+roxas, nas peanhas onde santos olhavam, suaves, os grandes lyrios
+abertos, em toda a florida vegetação que manchava a nitidez do marmore
+pallido, correndo sobre os frisos, despenhando-se pelas janellas largas,
+envolvendo-se ás columnas, vindo morrer no lagedo claro do chão.
+
+Toda aquella architectura, feminina, sensual,--até na figura do Baptista
+o esculptor puzera um quebranto--brilhava e vivia uma vida lasciva e
+fina, ornatos delicados, sem exhuberancias, curvas que lembravam a
+doçura calida de corpos nus, no tom ambarino do marmore velho.
+
+André desceu. A marqueza trazia nas mãos, ainda molhadas da rega, um
+molho de grandes orchideas d'um azul doente, listrado de esverdinhadas
+veias como feridas a apodrecer.
+
+--E estas orchideas, onde as hei de pôr?
+
+--Aqui não! Para o mez de Maria, para a festa de maio, orchideas não.
+Ponha-as no gabinete do papá, junto das estampas de Goya... Aqui não!
+
+--Tens razão, annuiu o marquez. Antes tragam maias...
+
+--Vou eu buscal-as, lembraram André e a marqueza.
+
+--Não.
+
+--Não. Vou eu, Violante! insistiu André.
+
+--Vamos ambos...
+
+--Querem que eu tambem vá? offereceu sem enthusiasmo o marquez.
+
+--Não. Deixe-se estar; vamos nós.
+
+Ao sahir da capella, passando os pinheiros mansos, em circulo, como a
+formar um adro, descia uma escada balaustrada, n'uma curva larga,
+ladeada de roseiras. Depois dois caminhos direitos, onde branquejavam
+estatuas, cantavam repuxos esguios que no alto se abriam, como lirios de
+cristal perpetuamente a florir e a quebrar n'um ruido claro.
+
+--Onde ha maias? perguntou André.
+
+--Não sabes? É alli no fim, uma grande encosta, por baixo do tanque dos
+tristões... Não conheces a quinta!
+
+--Como queres que a conheça? Não venho cá nunca!
+
+--Hei de mostrar-te a quinta, agora... Has de gostar. Vaes-lhe tomar
+gosto. Olha, é aqui...
+
+No fundo verde abriam-se, sorriam, na manhã clara, como pequenas
+estrellas, as maias d'oiro. Desde o caminho apertado entre fitas de
+marmores que as roseiras invadiam, marinhando pelas estatuas dos deuses
+e das graças, luziam maias.
+
+A fonte despejava, pelas buzinas brancas de tres tristões, cujas caudas
+se enroscavam, fitas d'agua.
+
+Tudo cantava, tudo era alegre, na manhã radiosa. A encosta descia, verde
+da relva, das arvores copadas, mosqueada pela brancura dos marmores,
+brilhos de flores, sobre tudo rosas-chá, enormes e delicadas, flores de
+cera e flores de carne, sensuaes e finas, como um beijo em que os labios
+mal se tocam, na pressa, mas em que as almas se confundem, n'uma
+vertigem. Em baixo continuava a descida rapida da colina, viam-se tectos
+angulosos de casas, faiscas que o sol levantava das janellas, linhas
+tortuosas de ruas, arvores de praças, o Rocio, como um lago de fogo a
+brilhar nas pedras claras, a Avenida n'uma chapada verde; vivamente um
+monte subia em apertadas casarias, alastrava-se por todos os lados a
+cidade, perdiam-se na perspectiva os telhados irregulares, até os montes
+violacios da Outra Banda, que se esbatiam no ceu claro, no ceu risonho e
+roseo da manhã de primavera. No rio embandeiravam-se navios ligeiros e
+airosos. Velas de faluas passavam, largas, pandas, como monstruosas
+gaivotas n'um vôo sereno. E do rio sahia uma grande alegria, como
+um fumo: fazia tremular as bandeiras, doirava mais o sol, percorria toda
+a cidade, extraía das ruas acordadas um ruido confuso, chiar de carros,
+pregões, coleras, risadas, que se misturavam, fundiam-se, e lá cima
+chegavam n'uma voz unica como um rumor de vaga.
+
+--Vamos a vêr quem apanha mais! E a marqueza deixando a sombrinha,
+desceu por entre as maias, afagando-as com as mãos brancas.--Que lindas
+são! Como sorriem para mim... Tenho pena de cortal-as.
+
+--Vê se caes... Eu dou-te o braço. E André alcançou-a.
+
+--Não. Não. Vamos apanhal-as! Vamos a vêr quem apanha mais! Vamos a vêr!
+
+Febrilmente, começaram a apanhal-as, a cortar grandes braçadas. Ás vezes
+as suas mãos encontravam-se, apertavam-as e riam-se.
+
+--Não são maias... são os meus dedos.
+
+E continuavam, já corados, a marqueza curvada, a cabeça d'um loiro
+quente quasi entre as maias.
+
+--Estou cançada. Estou cançada!
+
+--Que lindo quadro. Todo de flores! Espera, vou enfeitar-te. E André
+coroou-a de maias, toda a sua cabeça ficou florida. E a marqueza,
+risonha e córada, protestava a rir-se:
+
+--Olha que me despenteias!
+
+--Que importa? Que importa? Estás melhor assim... Agora este ramo
+para o peito... Mais estas... Um grande ramo... Como estás linda; oiro e
+lilaz! E o teu cabello é d'oiro. O papá vae ficar encantado quando te
+vir assim...
+
+Subiram, ainda a rir-se. André deu-lhe o braço e foram, quasi a correr.
+Ao passar por um repuxo:
+
+--Vamos molhar as flôres, ficam mais bonitas, como se tivesse acabado de
+cahir o rócio.
+
+--Pois sim, pois sim.
+
+O cristal dos repuxos altos cahiu sobre as grandes braçadas de maias.
+
+--Vamos lá, vamos lá, que se faz tarde para o almoço!
+
+No altar da Virgem estavam apenas largas rosas brancas, flôres d'um
+aroma subtil e angelico.
+
+--Onde pôr as maias?
+
+--No chão, junto ao altar. São as primicias da primavera oferecidas á
+Virgem.
+
+--Pagão! censurou a marqueza.
+
+--Não importa. Ficam bem. Aqui no chão, como um monte de estrellas, aos
+pés da Virgem:
+
+Para que fosses mais formosa Deus deu-te a lua por chapins e as
+estrellas por caminho.
+
+A sineta tocou para o almoço.
+
+Rodearam a casa e entraram pela estufa, cheia de begonias e de cravos.
+
+Emquanto André se vestia, o marquez perguntou se Violante se não
+admirava do seu procedimento.
+
+--Ha quantos annos não fica elle em casa? Tresnoitado, entrando muitas
+vezes quando eu já rodo pelo jardim, escondendo-me d'elle, para fingir
+ignorar os desatinos, elle dormia e almoçava aqui, fóra d'horas,
+escondido da Felicia, que resmunga contra elle coisas terriveis,
+chama-lhe perdido, sustenta que está possesso...
+
+--Uma paixoneta, que trata de curar... Disse-me tambem, que agora ia
+começar vida nova, talvez fosse para a Quinta dos Limoeiros, para se
+desaffeiçoar... Isto passa-lhe... Para a semana lá o teremos na mesma
+vida; theatros, actrizes, ceias...
+
+--E se o pudesses reter em casa! Vê se o divertes... Fal-o sahir
+comtigo. Agora que vou a Paris podias conseguir que te acompanhasse a
+visitas, bailes, _soirées_... Já o quiz interessar com as estampas, mas
+perguntou-me se eu julgava que havia de passar os dias a vêr bonecos...
+
+O almoço foi alegre. Violante e André fallaram no que era preciso fazer,
+nas passadeiras a pôr na egreja, nas cadeiras, na disposição dos bancos
+no adro, á sombra dos velhos pinheiros, até sob o arco dos limoeiros pôr
+cadeiras, que convidassem os flirts a recolherem-se na discreta
+arcada. André promptificou-se a tudo fazer; sahiu para o jardim,
+illuminado pelo sol, cantante nas aguas abundantes dos tanques e
+cascatas, misterioso nas sombras que o arvoredo formava, rico de côr,
+verdes diversos, vermelhos, azues, lilazes das flores, mosto fresco das
+olaias floridas; mas, sob a copa larga e tremente d'um choupo do Canadá,
+deitou-se e adormeceu profundamente.
+
+O jardim antigo, desenhado por um artista italiano, não tinha as placas
+relvosas dos parques inglezes e o seu frio alinhamento. Cresciam por
+toda a parte altas e poderosas arvores, que apertavam a architectura
+renascença do palacio; por toda a parte cantavam em fontes, em cascatas,
+em repuxos, aguas claras.
+
+Havia macissos de roseiras que cresciam livremente e se enrolavam aos
+marmores, aos soclos, iam florescer e perfumar nos collos brancos dos
+bustos, entre braços finos dos grupos mitologicos, rondas de estações,
+danças das Horas, cheias de movimento e de belleza. Escadas brancas de
+balaustradas ligavam as depressões de terreno; e por toda a parte uma
+grande alegria de flôres e de arvores viçosas, pinheiros, carvalhos,
+arbustos de folhas variados, jasmineiros trepadeiros, que sorriam,
+trementes, nos minusculos jasmins, entre a folhagem verde.
+
+Por toda a parte uma exhuberancia de flores, que nasciam em
+canteiros, amores perfeitos de velludos quentes, pequeninos myosotis,
+quasi brancos no seu azul virginal; outras que subiam pelas arvores;
+estrelavam-se clematites, umas roxas, outras brancas, enroscavam-se aos
+troncos, iam florir na copa larga dos castanheiros. Em pequenas sebes de
+cana os craveiros inclinavam-se, cravos vermelhos d'um perfume que
+entontece, cravos brancos, mosqueados de violeta, cravos estranhos como
+nodoas nas epidermes.
+
+Tudo sorria, tudo gritava, na confusão da manhã clara; estendia-se pelo
+ceu o sol, batia nos flocos de nuvens que se doiravam, extraindo de toda
+a terra uma alegria immensa, que subia no fumo, que cantava na viração
+leve arrastando-se pelas arvores altas, manifestava-se nas folhagens
+claras, envolvia tudo.
+
+Em grandes placas floresciam as maias e, no inverno, violetas de Parma,
+d'um lilaz moribundo. Por toda a parte flores, estendendo-se pela terra,
+ou subindo e perfumando. E as aguas cantavam, cristallinas, corriam, iam
+beijar nos regos abertos folhas viridentes. Era a Quinta Alegre, o
+jardim magico. Nos ornatos das janellas e das portas, nos baixos relevos
+e nas pinturas das salas, reproduziam-se em linhas puras os motivos de
+volupia e de belleza. Até na capela havia uma exuberancia de vida.
+Viam-se figuras nuas, como nas Loggias do Vaticano. Os monstros não
+tinham, como nos ornamentos goticos, uma aparencia terrivel: eram
+elegantes, d'uma aparencia risonha e as retorcidas caudas terminavam,
+estilisadas, em caules de flores. A vida era triunfante nos collos
+sensuaes das mulheres, nos cachos de fructos, romãs abertas de que sahia
+um riso vermelho, laranjas doiradas, cepas que subiam espalhando-se em
+ramos com grossas uvas, como a de Corinto, figuras aladas, sensuaes,
+antes amôres contentes, do que anjos misticos e salvadores.
+
+Havia uma volupia fina, uma delicada sensualidade cada um dos ornatos,
+como em cada um dos caminhos da Quinta Alegre. A mesma latada verde
+clara, em que se via a poeira dos cachos que cresciam, se reproduzia e
+multiplicava nos marmores das sallas e da capella; e os corpos alvos das
+ninfas, das graças, hamadriadas contentes, dos faunos lascivos
+levantavam-se e sorriam no marmore das estatuas.
+
+Era alli que todo o anno viviam os marquezes de Runa, salvo um mez na
+Bretanha, setembro, em alguma praia tranquilla e ensolada, d'onde
+voltavam, apressados, logo aos primeiros frios, apenas uma pequena
+paragem em Paris, para as necessarias visitas da marqueza a Redfern,
+Paquin, e pequenas e especialissimas lojas d'outros fornecedores.
+
+O marquez, Christiano Spinola d'Acciaioli, descendia de duas familias
+italianas, os marquezes Spinolas e os marquezes d'Acciaioli, que foram
+duques d'Athenas, de que vieram ramos para Portugal. No seculo XVII fôra
+um seu tio, Simão de Vasconcellos Acciaioli casar a Florença com a filha
+unica do marquez d'Acciaioli, para não acabar o nome. E d'ahi os dois
+ramos conservaram sempre relações intimas, visitas dos portuguezes e
+italianos, e mesmo o marquez passára parte da sua mocidade em Florença
+na casa senhorial de seus avós.
+
+Novo, voltára a Portugal e amára com um tranquillo amôr sua primeira
+mulher D. Estevaninha Henriques, descendente do celebre conde D.
+Henrique Henriques.
+
+Vira-a por uma manhã de sol a atravessar o pateo branco e calado do seu
+palacio de Sevilha. E a languidez do seu andar, o seu ar triste,
+n'aquella casa quasi morta--calado e morto é o tanque esbelto e branco e
+sobre os arcos apenas touristes passam, silenciosos--impressionavam. Os
+seus olhos habituaram-se a vêr nas praças, nas ruas ensombradas pelos
+toldos, a face branca, onde ardiam os grandes olhos pretos de D.
+Estevaninha, a risca sensual e fina dos labios vermelhos, como num traço
+de sangue, que a faziam mais pallida.
+
+Conhecendo os duques de Medina, facil lhe foi ajustar o casamento.
+
+Depois d'uma luzida boda, aberta de par em par a Puerta del Pardon da
+Catedral para a passagem dos convidados entre os quaes a infanta, que
+representava a Rainha, vieram para Lisboa esconder o seu amôr na Quinta
+Alegre, cheia de rumores d'aguas e de folhagens que gemiam e riam á
+passagem da brisa.
+
+Mas aquella casa alegre, onde tudo era voluptuoso, d'uma volupia fina,
+em que todos se tinham habituado a amar a vida em todas as suas
+manifestações, parecera hostil ao sentimento hespanhol da doce
+Estevaninha, na nudez dos corpos, até no desabrochar das flores de
+marmore, que pareciam tentar.
+
+Certamente, que junto de si, para a amparar e dirigir, estava sempre,
+rotundo e oleoso, o conego D. Benito, que com ella viera de Sevilha, e
+na capella risonha e branca constantemente ardiam lumes fumarentos de
+tochas; certamente, que as missas, as novenas, as trezenas,
+lausperennes--fôra difficilimo conseguir do Senhor Patriarcha um dia de
+lausperenne, cada mez, mas conseguira-o a protecção decidida da baronesa
+d'Angra--todas as festas e macerações da egreja se sucediam na capella
+clara; as confissões, as comunhões multiplicavam-se; um cilicio de crina
+fazia, ás sextas-feiras, gemer a branca noiva, mas tudo parecia falso,
+porque a capella tinha sempre o ar de rir e de tentar, nas volutas
+floridas dos seus capiteis, nas figuras nuas, que mostravam em cada
+ruga da pelle, em cada grão de marmore, um desejo impuro que era uma
+tentação e um escarneo.
+
+E a marqueza não se sentia feliz. Preferia o seu viver austero na sua
+casa d'Andaluzia, entre paisagens asperas, crueza de sol pelos desolados
+campos onde as piteiras aguçam as pontas de suas folhas curvas, e as
+egrejas hespanholas, severas e sem luz; em vão lhe dizia D. Benito que
+um sátiro confessára Christo a S. Jeronymo, e lhe trouxera flôres para
+enfeitar o altar do verdadeiro Deus; debalde lhe assegurou o frade
+affeiçoado ás sombras quietas da quinta, aos tuneis de verdura, onde a
+pretexto de ler o breviario, nas tardes calmosas de verão, adormecia
+ecclesiasticamente, que as apparencias nada eram e que a verdade estava
+em Deus--D. Estevaninha redobrava de supplicios, os jejuns, as
+penitencias rudes que abalavam o delicado corpo magro e gracil, que
+palpitava na aproximação do marido, cheia d'angustioso terror e de
+volupia; e pouco a pouco se definhou, e pela noite fria do Natal, á hora
+em que na egreja, entre resplendores de cirios e uma chuva de flores, se
+festeja o Nascimento de Christo, morreu aos gritos, ao dar á luz André.
+
+Para o marquez a morte de D. Estevaninha não foi um desastre dos que
+abrem no coração um vinco duradoiro.
+
+Gostára d'aquella face triste e habituára-se ao ardôr receoso do corpo
+fino e doirado da andaluza; mas a casa fina, elegante e pagã, ia tomando
+aspectos sombrios. Na ante-camara, como nos corredores episcopaes,
+murmuravam grupos de padres. E atravessaram a Quinta fallando baixo,
+olhando para as areias dos caminhos, dizendo sempre palavras unctuosas,
+a querer vender o ceu. Monsenhores de cintas arroxeadas, bispos
+imponentes, a cruz d'oiro a brilhar no peito, camareiros de S.
+Santidade, frades que batiam as sandalias n'um ruido surdo, cruzavam-se
+nas escadas, junctos sahiam, sempre a mesma maneira hypocrita d'olhar as
+coisas, sempre os mesmos labios mentirosos e distilar frases decoradas.
+O marquez recolhera-se á bibliotheca onde dispunha a sua collecção de
+estampas, por que dia a dia se apaixonara mais. Vinham da Italia e da
+Allemanha e da França e da Inglaterra em rolos, em caixotes, que os
+agentes enviavam, ás dezenas. Reunira uma preciosa collecção de
+aguas-fortes de Rembrandt e as gravuras de Dürer; tinha desenhos de
+Vinci, de Raphael, esboços de Ticiano e de Ribera. Tudo o que fosse
+arte, desde o balbuciar dos primeiros «primitivos», até á exuberancia
+formidavel de Rubens, misterios de sombra de Rembrandt, torcionarias
+figuras de Ribera, suaves santas carnudas de Murillo, extranhas mascaras
+de angustia ou de grotesco de Goya, tudo o que fosse arte e não
+tivesse côr o seduzia, proves avant la lettre, exemplares rotos, em que
+se visse uma mancha bem posta, elle os guardava, catalogando, apenas se
+distrahindo em passeios pelo parque, grandes voltas, descendo até o
+extremo da quinta, onde repousava, vendo o multiplo esguicho que saía
+das duplas flautas de tres aulitridas, n'um gesto elegante de dança nas
+transparentes tunicas que tornavam mais attrahentes a nudez dos
+seus corpos.
+
+Com a morte da marqueza, o palacio voltou a ser mais silencioso e mais
+claro. Parecia que na quinta as aves cantavam mais. Apenas D. Benito
+ficára, «por amor al niño de la señora marqueza», protestava, mas porque
+se afeiçoára ás sombras frescas, onde dormia.
+
+André foi crescendo livremente entre os creados e D. Benito. Aos tres
+annos andava pela quinta, arrancando flôres, quebrando vasos, e
+interrompendo com gritarias e surpresas as prolongadas séstas do conego.
+
+André foi crescendo livremente, em correrias doidas, traquinas e
+imprudentes, subindo ás arvores, despindo-se e atirando-se para as
+bacias de marmore, sempre perseguido pela miss loira e terna, que lhe
+ensinava inglez.
+
+As feições da mãe reproduziam-se, graciosas, no filho. O pae via, com
+inquietação o mesmo fallar da mãe, os mesmos olhos tristes, a mesma
+boca fina, apenas, em André, mais exangue. Teve medo que a
+intellectualidade desequilibrada da devota tivesse continuado no filho a
+vida de pavores christãos, e ao conego e á miss recommendou que o
+deixassem livre, que o fizessem um animal forte e feliz, com poucas
+resas e pouca grammatica. Quiz que elle aprendesse a ter o Amôr da Vida,
+que aquelles pulmões respirassem sem medo e sem pecado as grandes rosas
+que desabrochavam lentamente, petala a petala nos caminhos da quinta.
+Que visse no canto das aguas um hymno d'alegria, no chilrear dos
+passaros e no balançar dos ramos uma festa da Natureza, que elle proprio
+tivesse a alma constantemente em festa.
+
+Assim lhe foi ensinado o pensamento dos antigos. Disse-lhe a alegria
+imortal das fabulas gregas, os deuses que no vôo rapido desciam do
+recurvo Olympo e vinham á terra violar os corpos nubeis das filhas dos
+reis; a dança dos satyros e das faunezas nas clareiras das florestas
+quietas, as festas da lavoura, as procissões a Céres no tempo em que os
+trigaes amadurecem, a Dyonisos, quando os cachos são côr de rubim e de
+esmeralda.
+
+Levou-o ás suas terras do Douro a vêr as vindimas, quando elle tinha
+sete annos. Pelos montes verdes, onde a vinha ri, rasteira, curvada ao
+peso dos cachos, bandos de trabalhadores curvados cortam, cantando, os
+cachos e levantam-se um pouco para os lançar nos cestos; de quando
+em quando a fileira move-se, forma-se em semi-circulo, desdobrando-se
+como um exercito n'um movimento largo, agrupam-se para debandar outra
+vez, com rythmo e graça. E as camisas brancas contrastam com os lenços
+vermelhos, e riem as faces trigueiras, ha uma grande alegria, cantam as
+boccas, e o mesmo movimento regular dos bustos que se levantam, dos
+braços que deitam, n'um movimento largo a uva nos balseiros escuros.
+
+Depois das vindimas, os balseiros cheios despejam-se nas dornas, nos
+lagares. O vinho ferve, com um aroma forte. E os trabalhadores cantam,
+como no tempo da Hellada, glorificando a Terra e glorificando os Deuses.
+
+Habituou-o a vêr coisas bellas, a reparar nas minucias das plantas, na
+finura dos sarmentos, na delicadeza dos coloridos das flôres, quiz que
+elle amasse as paisagens quietas. E com o pae, André ia contente; não
+lhe ensinava resas, nem o obrigava a saber lições.
+
+O conego e a miss, por um momento accordados, esquecendo as rivalidades
+das Egrejas Catholica e Reformada, que os separavam e os traziam n'uma
+lucta constante, censuravam o marquez por aquella educação original, que
+seria muito bem cabida n'um gentio, mas não n'um cavalleiro portuguez. E
+o conego desolava-se:
+
+--É para admirar que a alma da senhora marqueza não tenha ainda
+apparecido... Que se ella vivesse, isto era tamanha mortificação, que
+morreria de desgosto.
+
+E miss Lucy, fazendo com a linda boca vermelha um gesto de desdem,
+terminava n'um tom cortante:
+
+--Improper!
+
+E André ia crescendo. Gostava da miss, porque era linda, tinha uns olhos
+verdes, côr do mar, e uma pelle fina, branca como as gardenias, e o
+cabello tão loiro, que André lhe perguntava se aquillo era oiro. Mas não
+gostava do conego, porque, em o apanhando nas correrias do costume pelo
+jardim, logo o prendia entre os joelhos e o fazia recitar, durante muito
+tempo tantos rosarios d'Avés, padrenossos, de credos, salve rainhas,
+actos de contricção que André chorava no fim. E D. Benito alegrava-se,
+dizia que era o Diabo que fugia do corpo del niño.
+
+André não se aventurava já a puxar pela batina enodoada do conego,
+quando elle dormitava no jardim: limitava-se a gritar de longe, e quando
+D. Benito sobresaltado acordava e voltava para elle a face gorda, André
+corria a esconder-se no regaço virginal da miss, que se fingia severa:
+
+--Aoh! Naughty boy! Very naughty boy. What did you do to D. Benito?
+
+Mas ria-se das partidas d'André e beijava a face pallida, os olhos tristes.
+
+De vez em quando apparecia a baroneza d'Angra a visitar o marquez. Mal a
+presentia, André ia esconder-se n'algum recanto misterioso do parque,
+atraz d'uma estatua, entre buxos altos. Não era que não achasse
+agradavel estar com a baroneza, pequenina e gentil, com uns lindos olhos
+frescos e em quem sentia, quando a beijava, um perfume doce; e mesmo os
+labios d'ella eram mais vermelhos ainda do que os da miss, que os tinha
+tão vermelhos e emanava d'elles tamanho ardor sensual, que a creança o
+sentia confusamente.
+
+Mas, passadas as primeiras ternuras, a baroneza fazia-lhe um minucioso
+exame de doutrina, diante do marquez que enrugava a testa, descontente.
+
+--Diga lá o menino os mandamentos!...
+
+André dizia contrafeito e arrastado.
+
+--E os artigos da fé?... E as virtudes cardeaes?... E os Novissimos do
+Homem?...
+
+--Mundo... Diabo... Carne...
+
+--Carne, não, interrompia o marquez. Osso! Não é verdade, prima?
+
+André não comprehendia, mas gostava, porque a baroneza deixava-o logo e
+voltando-se para o marquez:
+
+--O primo tem esta creança como um filho d'heretico. Já conheci um
+inglez, e era protestante, que ensinava o catecismo aos filhos! Mas
+o primo que tem papas na familia...
+
+--Chegam para salvar o resto. Escusamos nós de pensar nisso, sorria.
+
+--É pena ser seu filho. Tão lindo! Vê aquelles olhos tristes?...
+
+--Gostava mais que fossem alegres!...
+
+--Ora!... O primo não entende nada d'isto... Que lindos olhos!... Bem...
+Bem... Tenho de ir á novena.
+
+Ao sair, sempre a mesma frase a proposito da escada onde figuras nuas se
+perseguiam, num lavor elegante e sobrio:
+
+--O primo tem a casa cheia de indecencias! Acabo por não voltar cá!
+
+André, porem, ia a fazer doze annos; não podia continuar entre o
+catecismo de D. Benito e o inglez doce da miss. O marquez mandou-o
+para o colégio. Mas á tarde, quando o conego o trouxe para casa, André
+abraçou-se ao pae a chorar e a pedir-lhe para não voltar ali.
+
+A disciplina escolar, os olhos curiosos dos camaradas que o troçavam, o
+olhar duro dos mestres, o mau cheiro, a falta d'ar fizeram-lhe ter medo
+do colégio. E prometeu ao pae tudo, para não voltar.
+
+--Até aprender as resas de D. Benito e as da tia Angra!
+
+Com grande escandalo de D. Benito, o marquez anuiu.
+
+--Escusas de aprender resas. Vou-te arranjar, quando a miss se fôr
+embora, uma mestra franceza e professores que virão a casa dar-te lições.
+
+André ficou admirado. Então a miss ia-se embora? Porquê?
+
+--Acaba o seu contracto...
+
+André foi, a correr, perguntar á miss. Cheio d'angustia, com uma suplica
+na voz:
+
+--Então vae deixar-me?
+
+--Yes, yes, my little André... E afagou-lhe os cabelos.
+
+André agarrou-se a miss Lucy a soluçar nervosamente. A miss
+acariciava-o, queria beijal-o, chorava tambem, comovida, lagrimas de
+prata que se prendiam nos compridos cilios d'oiro.
+
+Fôra a miss, até então, a unica mulher de que André gostára. A ella
+fazia as suas confidencias, contava-lhe as proezas de brigas terriveis
+com os amigos, as diabruras feitas ao conego. E a miss tinha sempre um
+sorriso e um afago para a creança, nunca lhe ensinára orações, não o
+castigava por não saber a lição, falta que se repetia a miudo; apenas
+lhe dera uma biblia com gravuras recomendando-lhe a leitura--sem resultado.
+
+Á noite contava-lhe lendas poeticas da Inglaterra, castelãs brancas e
+tristes, almas de mortos que vagueiam e a voz dorida dos pagens
+soluçando d'amor...
+
+Muitas vezes, quando era mais mocinho, fôra a miss, no inverno,
+aconchegar-lhe a roupa no pequenino leito. Ao adormecer, a sensação
+branda das mãos delgadas de Lucy na sua face. E cantava como uma musica,
+a voz que dizia, ao fechar mansamente a porta:
+
+--Good night, my little André.
+
+Mas a miss partiu em lagrimas dolorosas. André foi acompanhal-a ao vapor
+com o velho «footman». Já ia longe o navio e ainda André acenava, os
+olhos molhados, o soluço a contrair a garganta; a miss tambem agitava o
+lenço, chorando...
+
+Tempo depois apareceu em casa, de manhã cedo, quando André andava a
+regar os seus canteiros, a professora franceza que chegára de Paris. O
+seu andar era ligeiro e miudo como o dum passaro e evolavam-se d'ella
+uma gracilidade suave, desde os cabellos palidos até a curva rapida da
+cinta delgada. Tinha nos pequenos olhos cinzentos uma malicia e um riso.
+André, que se voltára, ficou boquiaberto. Certamente que a miss era
+linda como uma santa e doces as suas mãos e a tia Angra tinha os labios
+vermelhos e um perfume delicioso; mas nunca vira creatura assim airosa,
+alta e delgada, que balançava o seu corpo quando andava, como se fosse
+uma flôr, como um bloco de gracilidade a deslocar-se.
+
+Ao saber, porém, que era a mestra franceza, não a quiz vêr mais;
+nem a cumprimentou. Estava persuadido de que era culpada da partida da
+miss e guardava-lhe no peito, antes de a conhecer, um grande rancor.
+Fugiu, a correr, para o fundo da quinta e ali ficou a chorar com
+saudades da miss.
+
+Ao almoço André foi repreendido. Ficou calado, os olhos baixos sem
+explicar o procedimento. O marquez disse-lhe que ia ter outros mestres,
+pois não podia ficar a saber apenas o latim, as vagas e erroneas noções
+de coisas que lhe dera D. Benito e as poeticas baladas de miss Lucy.
+
+A principio a vida foi dura para André entre os professores
+indifferentes que tomavam as lições sonoleando, e mademoiselle Renée,
+hostil, que, pensava elle, tinha causado a partida da miss, linda como
+uma dessas santas serenas e indulgentes, que teem sempre, nos dedos em
+fuso, o gesto da benção.
+
+André olhava para Renée, disfarçadamente; admirava a graça do seu corpo
+de que saia um perfume tenue, as mãos brancas, as unhas cuidadosamente
+tratadas, e, quando ella se abaixava, o palido reflexo da sua nuca
+doirada. O perfume era subtil e perturbante. Respondia com maneiras
+bruscas ás perguntas feitas numa voz macia e quente, falava-lhe muitas
+vezes inglez, fingindo ignorar os termos franceses, para lhe ser
+desagradavel. Mas Renée Viardot tudo suportava com paciencia,
+lançava-lhe olhares enternecidos, queria afagal-o até, beijal-o num
+impeto em que brilhavam os seus olhos claros; mas André fugia logo,
+apesar dos quatorze annos, como uma creança indocil.
+
+No verão davam as lições na quinta, em baixo, junto aos tritões, numa
+rotunda assombreada. Numa tarde quieta e quente, como estivessem juntos
+e Renée tivesse ao cólo um livro que interessava André e de que lhe
+explicava uma passagem, elle inclinou-se mais sobre o seu braço, quasi a
+tocar-lhe na musselina transparente da blusa, poude sentir o perfume
+brando e sensual e, interrompendo mademoiselle, perguntou-lhe bruscamente:
+
+--Que perfume usa?
+
+Nos seus olhos negros havia um quebranto e na face palida duas rosas
+vivas despertaram.
+
+Renée agarrou-lhe na cabeça e mergulhando-lh'a na musselina da blusa:
+
+--Est-ce que tu aimes mon parfum? Dis!
+
+A impressão foi demasiadamente violenta. André fugiu, a tremer; foi
+sentar-se sobre o arco verde e doirado dos limoeiros, a tremer, os olhos
+parados, pensando na sensação deliciosa e rude que tivera.
+
+O aroma das rosas que lentamente se desfolhavam, o perfume dos lilazes
+brancos e dos lilazes roxos que punham nos lilazeiros uma espuma branca
+e uma espuma roxa, mesmo o cheiro acre dos limões maduros não
+conseguiram vencer o aroma subtil e sensual do peito farto de mademoiselle.
+
+Dias seguidos, André pretextou enxaquecas, fugiu de Renée, espreitando-a
+de longe com receio e com desejo de se approximar d'ella, outra vez
+mergulhar a cara na frescura da musselina e muito tempo sorver o
+inibriante aroma. Um dia, na estufa aberta, examinava langorosamente os
+cravos que iam já a murchar. Havia-os de toda a côr. Todos os vermelhos,
+desde a purpura sombria, até ás descolorações das rosas anemicas;
+gritavam alguns côr de vinho, surgiam roseos e triumphantes, até que
+desmaiavam rosados puros de geraneos, como bocas novas que querem beijar.
+
+E aos vermelhos, quer heroicos, quer tenues, uniam-se outras côres,
+outras n'elles se fundiam ou se embutiam, perpassavam em alguns laivos
+fortes de violetas, n'outros espraiava-se um branco que hesitava em ser
+rosa; aqui um, desesperado, as petalas revoltas, como em arrepelos, era
+d'um violeta ardido, além outro era todo branco, d'uma quasi irreal
+alvura, como se anjos os houvessem beijado nas horas suaves em que do
+ceu cae o rócio... Outro, tambem branco, beijos de abelhas o tinham
+mordido, n'elle gotejava um sangue avermelhado; mas os vermelhos
+combatiam, aqui vinho, além quasi roxo, havia como uma lucta de que
+resaltavam gotejos, que pareciam cristalisar em coraes; em certos,
+o vermelho do fundo degradava-se, triunfava fortalecido, até que nas
+pontas recurvas se franjava de roxo. Havia retalhos de tunica do Senhor
+dos Passos, carnes a apodrecer, pedaços de pelles virginaes, estriados,
+franzidos, sempre frizados, raiados de côres diversas: aquelles eram
+«modern style» em côres estranhas que se reuniam, certos cremes onde se
+dilue o vermelho, tons sem brilho, onde a luz morre, côres de tijollo,
+esverdeados longiquos que pareciam dormir sob os roseos.
+
+Mas todos tinham frescura, todos viviam uma vida impertinente que se
+affirmava no odor sensual, perturbante e voluptuoso, todos eram d'uma
+ardente mocidade, quer saissem dos tubos, entre folhas de musgo, quer
+baloiçassem em hastes longas de craveiros, como que ejaculados, tal a
+sua soberba. E mesmo os que eram enormes e faziam vergar a haste, como
+um corpo cançado, na seda fina das petalas tinham sempre sorrisos, um
+sorriso que excitava.
+
+Eram todos sensuaes. Faziam lembrar _croupes_ fortes de espanholas
+d'olhos languidos e cabeleiras negras mordidas por pentes d'oiro.
+
+O langor das flôres, junto á puberdade que nascia e se afirmava e
+entontecia, como as grandes olaias de marfineo calice, pelos jardins
+calados nas noites d'agosto, perturbavam, embriagavam André, tal um copo
+de capitoso vinho que se bebe d'um trago n'uma convalescença.
+
+Pé ante pé, Renée entrou e, curvando o corpo n'uma atitude provocante,
+agarrou-lhe na mão e segredou-lhe:
+
+--Quer saber o meu perfume?
+
+A bocca vermelha e seca ria-se, contrafeita.
+
+--Ha dias, não tive tempo para lhe dizer...
+
+Aproximou-se d'André, apertou-lhe as mãos, deitava-lhe, ao falar, um
+halito perfumado e quente.
+
+--Quer saber?--insistiu.
+
+André córou e quiz fugir; mas mademoiselle agarrou-o mais, tomou-lhe a
+outra mão e apertando-lh'as, n'uma caricia sabia, palma com palma:
+
+--Não faço segredo: é uma mistura de resedá e jasmim do cabo. Quer vêr?
+
+Sem que lhe désse tempo para responder, poz-se nos bicos dos pés, mãos
+nas mãos, olhos nos olhos, e approximou-lhe da face o cólo tremente.
+Largando-lhe as mãos deitou para trás a cabeça palida de adolescente e
+reavivou com um longo beijo a flôr exangue dos seus labios virgens.
+
+André beijou-a tambem, os olhos fechados, os corpos unidos, arcobotados
+um contra o outro.
+
+Quando terminou o demorado abraço, André olhou para ella a medo. E por
+sua vez agarrou na cabecita linda e beijou-lhe a boca longamente,
+sofregamente...
+
+A noite, para André, foi toda de revoltas no leito, olhos abertos,
+labios em febre, franzidos, a procurar outros labios que não vinham, a
+desejar beijos, como se elles adejassem esparsos pelo ar e podessem
+pousar na sua boca. Comparava os beijos suaves da miss com os beijos de
+fogo que lhe dera Renée. E como era doce dormir depois de sentir as mãos
+alvas de Lucy a afagar-lhe os cabellos n'um somno tranquillo e doce! e
+como lhe era difficil adormecer, a revirar-se na cama, apagava e acendia
+a luz, sempre a lembrar-se da caricia extranha e inedita, do perfume
+estonteante, do calor dos labios secos, da macieza do cabello loiro,
+como se fosse de seda, de todo o corpo fino e flexivel que se colára ao
+seu, e n'elle deixára como cauterisadas placas de feridas, era bom e era
+terrivel. E toda a noite passou assim, até que de madrugada adormeceu
+murmurando em segredo o nome de Renée.
+
+Era a puberdade que aparecia subitamente, irrompendo d'um jacto, como um
+poço artesiano de repente aberto.
+
+Longo tempo durou esse noivado vermelho.
+
+Certa tarde, D. Benito que ainda se arrastava pelo palacio, achacoso e
+velho, fazendo do dia uma comprida sésta, surprehendeu-os a
+beijarem-se.
+
+Clamando contra as iniquidades da terra, foi-se encontrar com o marquez,
+que á sombra d'uma tilia meditava Marco Aurelio, e contou-lhe, vermelho,
+esquecido do reumatismo que lhe tolhia as pernas, entremelando a lingua
+numa algaravia inconcebivel, a abominação das abominações.
+
+O marquez, que pousára sobre o banco de marmore o livro antigo,
+mostrou-lhe uma haste toda coberta de goivos brancos:
+
+--Vê esta planta, D. Benito? É algum peccado que na época propria se
+cubra de flôres? Repare para ellas. Com que voluptuosidade mergulham-se
+na atmosfera! Riem n'uma alegria clara e vívida por terem nascido. Da
+raiz sobe, triunfante, a seiva para as alimentar. Perfumam hoje,
+morrerão ámanhã, sem pecado, felizes por terem integralmente vivido. O
+seu polen voará para fecundar outras flores, D. Benito. Deixe que a vida
+se manifeste, deixe que todos sejam felizes!
+
+O conego arriscou uma apoplexia ao ouvir a blasfemia do fidalgo. Teve
+forças para ir para casa embrulhar as escassas roupas e na mesma noite
+partiu para Sevilha--queria morrer entre gente cristã, dizia. Não se
+despediu d'André, nem de mademoiselle, apenas um comprimento seco ao
+marquez.
+
+Fingiu este ignorar o que entre o filho e a mestra se passava.
+Continuavam no seu idilio. Mas os annos passavam, André fez os seus
+estudos e o marquez mandou-o para Florença.
+
+Renée regressou a França. Partiram juntos, por mar, para Barcelona.
+
+Foi entre beijos, que sulcaram o Mediterraneo calmo e transparente, aqui
+azul-ferrete, além verde-claro, logo ensolado e doirado, sempre
+transparente. E de noite iam vêr, sós, as mãos nas cintas, muitas vezes
+os braços se uniam--a fosforescencia que se levantava na prôa,
+brilhante, n'uma espuma fina, como uma poeira de mica.
+
+Como dois amorosos que acabam de dar o primeiro beijo, e logo, na ancia,
+querem contar mais de mil, mal viram Cadiz branca e pequena, a luzir no
+recurvo golfo azul; em Malaga não repararam no ar dolente das flamencas,
+que cantam cheias de volupia, e mesmo no _Paseo_ sacodem as ancas, como
+n'um convite para uma volupia triste, e os seus vinhedos claros; apenas
+na cathedral feia e banal, se extasiaram diante d'um quadro, imagem de
+uma santa. Qual? Não o souberam e chamaram-lhe Nossa Senhora do Desejo
+insatisfeito. N'uma pequena tela um busto de mulher trigueira, andaluza,
+forte, pelle doirada, olha para o ceu. Os olhos teem a expressão
+dolorosa de quem muito deseja. E o vermelho dos labios carnudos, as
+narinas dilatadas, dizem o que ha de sensual n'aquella expressão
+ardente. O collo é aberto. E as mãos, ao tapal-o com um lenço
+vermelho, ainda mais aquecem o tom quente do collo doirado.
+
+Indifferentes, viram Valencia entre vergeis, clara e voluptuosa na
+planicie fertil e o Grao rumoroso, onde moirejam descarregadores nas
+docas e operarios nas fabricas. E Barcelona que se alastra em renques de
+arvores nas ruas largas, com seus palacios, suas avenidas, as Ramblas
+onde se apertam catalães silenciosos, os mercados de flôres cheios de
+gardenias, de jasmins e rosas, pareceu-lhes triste, porque alli se
+deviam separar.
+
+Em vão subiram ao Tibidabo; donde se vê toda a Barcelona estendida, como
+um tapete, cortada de ruas; correm, ora direitas, ora em sinuosidades,
+linhas claras de platanos. Estendem-se as casas até junto ao mar azul,
+de onde em onde raras torres se levantam e entre ellas sobresahe o vulto
+gothico e afilado de Santa Maria de la Mar.
+
+A ligeira neblina que se levanta do porto e envolve a estatua de
+Colombo, negra sobre a pedra branca da doca, parecia que envolvia tudo,
+que dava ás coisas a tristeza que estava n'elles. E Renée chorava,
+abraçava-se muito a André, obrigava-o a prometer-lhe longas e amiudadas
+cartas e uma viagem a Paris, quando voltasse, no anno seguinte,
+de Florença.
+
+E assim, por uma tarde triste, conseguiu André leval-a, pelo
+passeio da Aduana fóra, entre as palmeiras, á estação.
+
+E os beijos cantaram, demorados e angustiosos, nas bocas dos amantes,
+até que uma voz rouca gritou:--Viajeros, al tren!--e o comboio silvou e
+partiu. André ficou a vêr o lenço de Renée e o comboio que se perdeu
+n'uma curva, fumegando.
+
+Dolorosa foi, para André, essa noite.
+
+Pareceu-lhe vasia e silenciosa a pequena alcova onde durante uma semana
+tinham dormido. Perseguia-o a lembrança do perfume, a macieza e a côr do
+cabello d'um loiro palido como um sol convalescente, a frescura da pelle
+fina, todo o encanto e todo o Amôr da deliciosa Renée que o iniciára e
+que o amára e de quem sentia ainda as lagrimas amargas que se misturavam
+aos beijos tristes que ella lhe dera nos curtos dias da despedida. E
+André chorou.
+
+Na manhã seguinte partiu para Genova n'um _liner_ da Liguria. Com elle
+regressavam á Italia cantoras do Liceu. Notou uma comprimaria delgada de
+cabellos e olhos pretos, que trazia do mercado da Rambla um grande mólho
+de flôres. Olhou para ella com desejo e n'esse desejo se surpreendeu,
+quasi esquecido de Renée. Facilmente feito o conhecimento, os dois dias
+de viagem foram rapidos em inconsequentes flirts, alegrias de dança na
+tolda e leves concertos no salão. Em Genova se separaram e André
+partiu para Florença ligeiro e esquecido, com um certo prazer de se ter
+separado de Renée, que, agora o sentia, começava a pesar-lhe.
+
+Em Italia a vida foi-lhe facil entre monumentos e mulheres, em cujos
+olhos boia uma grande alegria de viver.
+
+Teve paixões e conquistas; quiz realisar quadros dos mestres florentinos
+que diariamente via no Pitti e nos Uffizi; procurou por toda a parte os
+typos ambiguos, perturbantes no seu enigma, entre efebos e mulheres,
+adolescentes sempre, ovaes perfeitos de rostos brancos, bocas sensuaes e
+vermelhas.
+
+Nos _corsos_ da Italia passeou em cavallos inglezes; em Veneza poetisou,
+no Grande Canal, pelas noites claras, sentindo humidade e paixão, até
+que aos dezoito annos voltou a Lisboa sempre a mesma palôr na face, os
+mesmos olhos tristes e boca exangue.
+
+O marquez aprestava o seu casamento com Violante Cerquedo, filha dos
+condes de Cerquedo.
+
+Só no palacio, sem os risos do filho, procurou distrações na vida
+mundana. Novo ainda, puzera-se a amar Violante, graciosa e intelligente,
+cujos vinte annos cantavam triunfantes, como uma primavera florida.
+Seduziu Violante a intelligencia do marquez, a sua figura aristocratica
+e a maneira amorosa como a olhava, como se fosse uma obra d'arte.
+
+Pouco tempo depois do regresso de André, por um inverno chuvoso e frio,
+a capella do palacio encheu-se de lumes e casaram.
+
+André não deixou os costumes que trouxera de Italia. Paixonetas diversas
+amorteciam-lhe o coração, até que um dia, perseguindo Martha, uma actriz
+loura e chique, que lhe fugia um pouco, a tornar-se difficil e desejada,
+julgou ter «a verdadeira paixão da sua vida», como confessára, depois
+d'uma ceia fausta e turbulenta, a Jacintho Roquette, seu irmão em letras
+e seu confidente.
+
+André lançára-se, á volta de Italia, doidamente na literatura.
+Frequentava redações e jornaes, theatros e cafés onde se reuniam jovens
+escriptores cheios de esperanças e de imprecações, revolvendo as ideias
+e os livros sem cerimonia, com o ar de quem, do alto d'uma montanha
+inaccessivel á plebe, residencia olimpica de escolhidos, considerou já
+os homens e as coisas.
+
+Instintivamente fugira d'elles, da sua imperturbavel confiança, do
+azedume que d'elles suava quando se lembravam d'um exito. Ligou-se ainda
+mais com Jacintho Roquette, caustico e risonho, com um real talento que
+desperdiçava em cavaqueiras de café e em artigos feitos a trouxe-mouxe
+para jornaes e revistas, sempre a luzirem, atravez da luneta, os olhos
+azues, que dir-se-hiam infantis, no fundo uma grande bondade e um
+caracter firme.
+
+As primeiras impressões d'André tinham tido um certo exito pelo seu
+paganismo, uma maneira leve de escrever, lembrando a finura que teem os
+mestres florentinos nas suas medalhas nitidas.
+
+Dissera recantos de paisagens, brilhos de mares azues, figurinhas que
+tinham passado, subtis, pela sua vista, desaparecendo logo, na rapidez
+das viagens, no imprevisto das caminhadas pelos campos serenos da Toscana.
+
+Ser delicado e cético, saboreou a ironia viva e o céticismo escarnica de
+Jacintho Roquette e juntos andavam pelos theatros, vendo retalhos de
+peças e demorando-se pelos camarins em flirts com actrizes, ceias
+pacatas, que as companheiras não supportavam, by their own
+respectability, orgias triunfaes, até que se apaixonou por Martha, essa
+actriz magrisella, que guerreava a velhice com pastas de cosmeticos e
+massagens, a unica mesmo que conhecia e usava os processos parisienses
+para a guerra da galanteria.
+
+Martha tinha uma vida irregular, tecida em mentiras, misterios, certos
+hiatos de treva, na sua vida, até para os mais intimos.
+
+Nunca um só amante, nunca num trimestre inteiro o seu leito conheceu o
+mesmo corpo, antes variavam, mudavam, com sinceros _beguins_, ás
+vezes o seu coração e o seu corpo pareciam uma estalagem de
+entroncamento, como um vertiginoso vae-vem de passageiros.
+
+André, n'uma noite feliz, em que uma joia brilhou ante os olhos de
+Martha, teve a ventura de a acompanhar a casa n'um trem que se
+desarticulava, guiado por um batedor experimentado.
+
+E de manhã, ao almoço, satisfez, contente uma pequena conta de chapeus.
+
+Reconhecida a uma generosidade tal, Martha, durante tres dias, foi fiel
+a André. Mas ao quarto dia, pretextando enxaqueca, recusou-lhe o leito
+de pau santo e os braços brancos, ferteis em caricias.
+
+As enxaquecas repetiram-se e André entrou a desconfiar, a carpir-se
+tristemente da infidelidade de Martha, a Jacintho Roquette que chasqueava:
+
+--Ella recebe-os ambos ao mesmo tempo? Não. Que te importa então? Os
+beijos que ella te dá teem o mesmo sabôr? Teem. Que te importa o resto?
+Encontras um perfume estranho no seu corpo? Mas é uma _coquetterie_ o
+querer variar de perfume. Então?
+
+As rasões aduzidas não convenciam André e, lentamente, o que fôra talvez
+um capricho, o desejo infantil de possuir a mulher da moda que era chic
+possuir, foi-se transformando em obsessão, em ideia fixa, tinha a
+necessidade de estar com ella constantemente, rondar-lhe o camarim,
+espreitava-a entre os bastidores á espera da _deixa_, ia ao meio dia
+esperal-a á porta do theatro, quando entrava para o ensaio, e, nas
+noites de enxaqueca, desolado, nervoso, ia com o Roquette dizer mal
+d'ella, pôr-lhe a nu todos os defeitos, inventando alguns, mas tendo
+sempre um secreto desejo de a possuir, mesmo nas passagens mais
+verrinosas surgia a imagem de Martha, nua, a bocca pequena espremida
+n'um beijo, a offerecer-se-lhe.
+
+E André redobrava de violencia, dizia a vida postiça e infame da amante,
+a teia de mentiras que urdia, as suas baixezas, com um prazer cruel
+enumerava o rol comprido dos amantes, e terminava quasi a soluçar:
+
+--C'est une catin; il faut la tuer; «morte la catin, mort le chagrin.»
+
+--Mais uma filipica! concluiu, rindo-se, o Roquette. Vou-te apresentar
+hoje uma das minhas amigas, a Princeza das Botas Cambadas. Curar-te-hei
+pela hom½pathia: dentada de cabra, com pello de cabra se cura.
+
+Mas Miguel sentia-se frio e aborrecido, e triste, diante das princesas
+do Roquette, até que um dia, sem dizer nada, decidiu-se a recolher-se á
+Quinta Alegre, onde havia cinco annos não se demorava, pois depois da
+sua viagem, tivera uma vida de estroina, que o fazia fugir de casa após
+o almoço tardio, para só recolher a altas horas ou noite, até
+madrugada clara.
+
+Fizera de Violante sua confidente, e a ella contou, polidas as
+asperezas, o mal d'amor de que soffria, e o desejo de o curar.
+
+--Vou ser teu medico. Deste-te mal com as mulheres... Experimenta as
+flôres. São mais lindas e fazem sofrer menos. Dirigirás o jardim. Manda
+fazer as obras que quizeres. Precisamente tens aqui no «Studio» um
+artigo sobre a architectura dos jardins. Faze modificações á tua
+vontade. O teu pae concorda; eu ajudo-te, travamos relações, porque,
+para dizer a verdade, mal nos conhecemos. Desde que foste para Florença
+que não fallo comtigo, senão á pressa, quando te preparas para sahir.
+Ainda te vejo menos do que quando eu era uma menina grave e te batia em
+casa da tia Talleiros, pelas tuas partidas. Olha, ámanhã começa o mez de
+Maria... Enfeita a capella. Tens ás tuas ordens o jardineiro e o jardim
+todo. Tens invenção e gosto... olha que eu exijo genio!...
+
+--Oh! Genio... sabes?...
+
+--Bom; contento-me com talento.
+
+--Vá lá, prometto...
+
+Apanhando um grande ramo de lilazes brancos, poz-lh'o na cabeça, como um
+diadema:
+
+--Está enfeitada a Santa!
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+TIBIDABO
+
+ AO SR. BARÃO DE S. PEDRO.
+
+
+TIBIDABO
+
+
+Na tarde de agosto quente, fugira de Barcelona para a escalvada montanha
+que a fanfarronada hespanhola bátisou de Tibidabo, o sitio da Judeia
+onde Satan prometeu a Christo as grandezas do Mundo e os fulgores do
+Peccado.
+
+O monte levanta-se, precipitadamente, do fundo da planicie em que
+Barcelona ondeia. E querem dizer talvez na sua os catalães, que Satanaz
+ergue as creaturas que quer tentar e, firmando-as nos cimos d'este
+monte, oferece-lhes a cidade, imagem brilhante dos esplendores mundanos.
+
+Sob o toldo do restaurante deserto me acolhi, a sentir a brisa
+preguiçosa. Espalmava-se em baixo a cidade. Corriam as suas avenidas
+arborisadas, as «Ramblas» que se seguem como uma bicha, e a «Gran-Via»,
+a infindavel «Cortes», que corta Barcelona em diagonal. Quedava-se o
+Parque enorme e, ao fundo, n'um vago de nevoeiro, o mar azul,
+riscado pela linha cinzenta da doca, onde os navios acolhidos eram imoveis.
+
+Vinha caindo a tarde sobre as raras torres das egrejas. Brilhavam um a
+um os bicos de gaz e as janellas em que o poente puzera uma luz de oiro.
+
+Longo tempo ali estive. Sonhei? Foi real? Não sei.
+
+
+
+Um mancebo pallido e triste abeirou-se de mim:
+
+--Vês a noite a cair? D'aqui a pouco as ruas vão brilhar do fremito
+luminoso dos desejos das multidões. A cubiça e a luxuria porão brazas
+nas almas que incendiarão os olhos. As mulheres mostrarão nos bailes e
+nos theatros o maculado esplendor dos seios perfumados. Nos mostradores
+das lojas, á luz das lampadas electricas, as joias farão percorrer nas
+mãos desejos de roubo. A Besta ergue-se--olha como se ilumina a cidade!
+Vês um clarão que nasce, sobe e se perde no Ceu? Julgas que é dos
+candieiros? Não, é das almas! é toda debruada de vermelho como as chamas
+dos incendios. Como é bella a cidade quando é culpada!
+
+Voltei-me para o mancebo, tranquilamente. Vi que era o Diabo. Não que
+tivesse chifres ou cheirasse a enxofre, mas pela belleza triste, de quem
+conhece tudo. Não lhe tive horror. O Diabo é o gnomo subtil que
+trabalha na sombra as filagranas das tentações. É o Diabo que amontôa as
+cidades, inspira os artistas, empurra o homem para as civilisações que
+apodrecem e brilham.
+
+Não lhe respondi... N'um fogacho violaceo, o sol apagára-se no mar. Era
+tudo cinzento. Pelos canaes das ruas, por entre as arvores, n'uma sombra
+mais densa, cintillavam os bicos e os mostradores das lojas.
+
+O Diabo continuou:
+
+--Quero a tua alma...
+
+Olhei-o atonito. Para quê a minha Alma? O grande colecionador tinha um
+museu estranho em que brilhavam todas as taras possiveis. Assassinos
+vulgares, ladrões de taberna, mães que vendem as filhas, incestuosos,
+ganindo de luxuria, velhos abades macerados e corroidos pelas
+disciplinas, que as ilusões vãs de Satanaz venceram, bispos, cardeaes
+simoniacos, todos os pecados que se engastam como gemas e possuem um
+fulgor lugubre, como se as pedras dos diademas ardessem nas cabeças, as
+gargantilhas nos pescoços, as manilhas e pulseiras nos braços, os
+compridos cintos nas cinturas! Satan tudo possuia, tragicos homicidas,
+capitães que entregam os seus soldados, reis que mancham os altares,
+velhas dementes que ululam nas monstruosas orgias, rojando pelo chão os
+cabellos pintados, crispando as boccas maquilhadas nos espasmos
+lancinantes, poetas que arrastam a lira pelos lameiros, virgens que se
+vendem sem amor e sem vicio, toda a constelação dos sete pecados, como
+sete soes nocturnos, envenenados pela treva, corroidos pela lepra, um
+museu formidavel, sombrio, apesar de todos os brilhos, frio e
+angustiante, como um corredor que leva a presentida cilada--era tudo de
+Satan e queria-me!
+
+O pasmo pintou-se na minha cara.
+
+--Quero a tua alma! Falta-me na coléção. É por isso que hoje abandonei
+as ruas das cidades e seus encobertos vicios para subir a esta montanha,
+que tem o nome de outra, onde prometi tudo e tudo me recusaram. É o nome
+da derrota. Não sou supersticioso. Tens uma alma de amoroso. Amas pelo
+Amor. Idealista e sensual, a Fórma bella comove-te como um poema e mais
+nada. Não tens as crispações dos lascivos. Amas uma mulher e uma estatua
+da mesma maneira profunda, serena e harmoniosa. O amor não rebenta em
+beijos violentos, como as folhas das arvores pelas primaveras
+risonhas--floresce em imagens. Eu, que não posso amar, que soluço
+angustiosamente pela minha impotencia, quero a tua alma!
+
+Quando o Diabo fallou do amor, do negrume da noite que se apoiara já
+fortemente sobre a cidade e o monte, vi passar, no seu andar musical e
+casto, tal uma deusa, a Bem-Amada. Foi como se uma via-lactea suave
+se accendesse e florissem as flôres da terra sobre as estrelas do Ceu...
+
+--Não te dou a minha alma.
+
+--Vão abrir-se, d'aqui a pouco, na cidade enigmatica, as portas escuras
+das casas de jogo. Dar-te-hei o segredo de sempre ganhar. Farei correr
+por ti os cubos amarelecidos dos dados. As pintas pretas far-se-hão
+olhos e verão onde apontas. As bolas das roletas saltarão por ti nas
+arestas de cobre... Conhecerás o prazer de ver amontoar na tua frente as
+notas e as moedas de oiro, de observar, ironico, os rostos, que a
+angustia encarquilha, dos jogadores que perdem. E os sobresaltos do
+banqueiro, imovel, mas de olhar esgazeado, far-te-hão rir...
+
+--Que importa? Jogarei com os sorrisos que brincam nos beiços finos de
+Livia. Ganharei sempre porque, quer ella sorria ou não, vel-a-hei e, por
+vel-a, andarei contente...
+
+--Ensinar-te-hei os segredos das cotas, dir-te-hei as confidencias que a
+si mesmos mal ousam segredar os financeiros internacionaes. E farás cair
+as grandes emprezas que vão dar ao mundo um aspéto novo. Arruinarás
+povos inteiros, farás baquear os tronos em que rainhas hirtas se
+assentam, no pavor das revoltas. Serás o ordenador magnifico dos cracks,
+e, de paiz em paiz, o teu nome correrá, nos fios dos telegrafos,
+espalhando o sobresalto e a ruina.
+
+--Não quero. Basta que o meu nome seja pronunciado n'uma voz suave pela
+Bem-Amada. Dito por ella, o meu nome vae, de flôr em flôr, espalhar o
+perfume da sua bocca.
+
+--Amas a mulher? Dar-te-hei as cortezãs vestidas de joias, como idolos
+antigos. Virão, de rojo, abraçar-te os joelhos, como escravas. E dos
+corpos alvos e brilhantes subirão perfumes que entontecem... Dos seus
+braços frescos, como as grinaldas que se entretecem com jasmins, fugirão
+as caricias. Terão vozes magoadas a suplicar beijos. E, mais que as suas
+joias, brilharão os seus grandes olhos...
+
+--As joias são flores mortas, retalhos de astros que sucumbiram... Essas
+mulheres são como as joias: os beijos puzeram nos seus corações a
+dureza, a frieza e a geometrica forma das pedras lapidadas. Prefiro, a
+todas ellas, o gesto lento e curvo da Bem-Amada quando compõe o seu
+cabello preto.
+
+--A mulher carinhosa e pura é como uma flôr sem perfume. É preciso que o
+vicio lhes ponha um estremecimento. Dar-te-hei aquellas que envenenam a
+sorrir, que atraiçoam entre duas caricias, a amante que vae surpreender,
+n'um beijo, o segredo do amante, o segredo que leva á Forca, aquellas
+que descobriram ineditas lascivias, corrutas e artificiaes, que eu mesmo
+vestirei com tecidos fantasticos, que espalham um amavío!
+
+--Que amavío maior do que ver a Bem-Amada quando descança a face branca
+sobre as mãos cruzadas, n'um vagaroso gesto cheio de doçura?
+
+--Dar-te-hei a alegria e a insaciedade, a embriaguez que exalta, o
+redomoinho dos desejos que estrangulam, as bocas avidas e perseguir-te
+com beijos e dentadas, toda a loucura incendiaria, a profanação de todos
+os cultos, o poder de corromper, os venenos subtis que matam lentamente
+e de longe, as misteriosas aguas e misteriosos pós, que fazem definhar,
+como flores que se fanam, as creaturas... Serás o senhor das almas e dos
+corpos.
+
+--Basta-me vel-a guardar, a sorrir-se, a carta que lhe escrevo...
+
+--Entregar-t'a-hei! Poderás tel-a entre os braços, morder a boca fina,
+sentir sobre o teu peito o arfar apressado do seu collo amoroso, ver os
+olhos cerrar-se como n'uma agonia doce... A sua figura fragil
+aconchegar-se-ha entre os teus braços, aquecerás a sua frieza, será tua,
+reconhecida, amorosa, fremente de paixão... Queres? Dá-me a tua alma!
+
+Tive um sobresalto, como quem, passeando n'um jardim florido, pisa um sapo:
+
+--Não. Basta-me sentir nas noites claras, quando lhe fallo á varanda, o
+seu olhar cair gotta a gotta sobre os meus olhos extacticos!
+
+O creado veiu dizer-me que ia fechar-se o restaurante. A treva
+escorregava pelo monte. Um clarão vinha da cidade estendida a meus pés.
+E vago, confuso, o ruido da cidade com os seus vicios, seus tumultos, o
+cio que começava.
+
+Desci. E, a acompanhar-me, senti a Bem-Amada, perto de mim, carinhosa, a
+olhar-me longamente com os seus largos olhos pretos.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+A PRINCEZA PERDIDA
+
+ AO SR. JOSÉ DE SOUSA MONTEIRO.
+
+
+A PRINCEZA PERDIDA
+
+
+N'aquella serena tarde de primavera, a princeza descera com as
+pequeninas aias e a camareira-mór as escadas de marmore branco e de
+marmore roseo do sumptuoso palacio real.
+
+Era n'uma côrte de complicada pragmatica. Os movimentos eram feitos
+consoante regras antigas; cada passo, cada mesura, cada sorriso, vinham
+marcadas no grosso livro que um mordomo-mór colligira, a exemplo do que
+fizera um imperador bysantino.
+
+Apesar d'isso, porém, na côrte esplendida havia um pouco de mocidade. E
+detraz dos leques de varetas rendilhadas, os labios abriam-se em
+sorrisos os olhos franziam-se, quando estava distante a hirta,
+camareira-mór.
+
+Os bailes tinham solemnidade como os officios divinos; mas as cores
+frescas das raparigas, a ligeiresa com que dançavam, a graciosidade que
+florescia nas suas atitudes rapidamente desmanchadas, logo
+substituidas, davam-lhes o ar de festas.
+
+No grande palacio brilhante, as gentes andavam lentamente, como em
+procissão. No rosto do mais alegre era preciso espelhar-se, sombria, a
+tristeza que emagrecia a face pallida do rei. Era mister que ninguem
+perturbasse, com o tenir fresco d'um riso, a dôr real. Se alguma vez as
+donzellas deixavam passar o riso atravez das rendas finas dos seus
+leques, logo a camareira-mór intervinha, sevéra, a repreender. Nos
+tapetes morriam os sons dos passos; os grossos reposteiros abafavam o
+ruido das vozes. O silencio era eterno, como essa grande e aniquilladora
+magua que abatera a vigorosa mocidade do Rei.
+
+Em tempo, o palacio vibrára com o clamor das festas; as musicas
+saltitantes riam nas amplas sallas. Os vestidos claros, em cujos decótes
+os peitos brancos se mostram, sublinhavam a alegria. Um bobo pequenino e
+monstruoso punha um chocalhar de guiso em cada frase. E junto da Rainha,
+loira, pallida, delgada, o Rei tambem sorria, a olhar a flôr preciosa e
+fragil que pelo braço levava, em movimentos musicaes, como uma ave.
+
+Junto á sua frescura luminosa, as joias pareciam flores. E o diadema
+pesado, sobre os cabellos loiros, era como uma aureola maior n'essa
+cabeça fina.
+
+Ella tambem sorria, olhando os olhos escuros do Rei. E pela bocca
+vermelha havia como um palpitar de beijos. A festa continuava. Havia no
+ambiente claro de tantas luzes, tantas joias, tantos olhos contentes,
+uma alegria maior. Vaporisavam-se os movimentos. As rendas tremiam nos
+vestidos das mulheres, nos gibões de seda dos gentishomens. As conversas
+d'amor faziam arfar os seios... O Rei e a Rainha continuavam a
+sorrir-se, como dois amantes rusticos, que se encontram na vinha, por um
+suave outomno.
+
+Uma noite, porém, a dôr entrou n'esse palacio claro. Ligeiros, para não
+fazer ruido, como sombras, os cortesãos, as damas d'honor, as aias,
+passavam, murmurando resas, ou trocando, baixinho, as impressões. Era
+como um ciciar leve de brisa sobre um campo de flores. Os vultos
+cruzavam-se:
+
+--Então?
+
+--Na mesma...
+
+--Impossivel salvar-se...
+
+--O fisico não atina com o remedio...
+
+Era a Rainha, que, como certos arbustos que morrem, depois de florir,
+finava-se ao dar á luz a pequena princeza.
+
+A dôr tragica e calada do moço Rei! Nem uma palavra se lhe ouviu da
+bocca crispada. Nem um grito na luctuosa camara onde carpiam as senhoras
+da côrte. De joelhos junto ao leito magnifico, onde se postára
+depois de ter cerrado os largos olhos garços, o Rei chorava em silencio.
+Os frades diziam monotonamente, como um esvoaçar de insectos, as resas
+rituaes. Um ou outro soluço, a desolação d'um ai, cortavam a funebre
+quietude; mas o rei, entre as suas as mãos finas e amarellecidas da
+Rainha, não tinha um grito, nem uma palavra. Nos labios da morta ainda
+havia o sorriso, esboçado a olhar para o marido...
+
+O Rei mandou retirar a todos do quarto. Quiz elle proprio vestir aquella
+que tanto amára. Beijou-lhe os olhos de palpebras azuladas, beijou os
+cabellos, que na imprecisa penumbra, tinham um brilho d'oiro... Outra
+vez caiu de joelhos.
+
+Então as palavras de dôr, abundantes, sairam dos labios tanto tempo
+represos. Disse-lhe o grande amôr e a grande magua. Prometteu-lhe viuvez
+eterna; que a sua alma se conservaria fechada, como um relicario, a
+guardar a imagem quasi divina da mulher primeira amada, unica...
+
+Longo tempo se conservou, as mãos frias da morta entre as suas, no
+quarto silencioso, onde apenas os seus queixumes davam uma nota de vida.
+No lampadario já se extinguiam as luzes, que, de quando em quando
+lançavam, altas, dentadas, labaredas azues e d'oiro.
+
+A madrugada clara entrou pelas janellas, como um chilrear de
+passaros. A vida renascia, musical, da noite escura. No coração do Rei a
+dôr fizera uma sombra eterna.
+
+Entre os brandões acesos levaram o cadaver, vestido por mãos
+mercenarias, que as do Rei nem tinham forças para o peso dos anneis...
+
+Filas de bispos mitrados, graves e compungidos, seguiam o feretro
+atravez as ruas da cidade e por estradas risonhas, até o convento
+magnifico em cuja egreja jaziam todos os numerosos reis e rainhas da
+casa real; seguiram os fidalgos como seus escudeiros de lucto; seguiu,
+commovido, o povo, que pranteou a morte d'aquella que fôra linda e nas
+ruas sorria ás criancinhas pobres, que lhe pediam a benção...
+
+Era uma comprida fila que se perdia nas corcôvas da estrada. As
+confrarias, os conventos mandaram os irmãos e os frades, com as
+insignias. E áquelle radioso sol d'agosto, que punha na athmosphera uma
+tremura, tudo resplandecia, como uma apotheose. Brilhavam as lanças,
+brilhavam os ouros, brilhavam os báculos e sobretudo refulgiam as
+insolitas pedrarias dos bispos, caminhando magestosos e tristes. E o
+psalmejar dos padres, ouvido ao longe, perdia a nota de lamento: era
+como o ultimo echo d'um canto de victoria, no dia glorioso...
+
+No palacio quasi deserto, o Rei ficára no quarto vazio. Como arredal-o
+de lá? De joelhos ainda, pensava talvez ter entre as suas mãos os
+dedos finos da Rainha morta. De quando em quando um soluço parecia
+estalar a garganta. E as lagrimas desciam pela face, iam morrer na barba
+perfumada.
+
+Olhava para o grande espelho, onde a Rainha costumava ageitar, á noite,
+os cabellos fartos. Lembrava-se de ter alli visto o gesto gracil,
+aquelle pó d'oiro, e o corpo que tinha a frescura e a elegancia d'uma
+flôr que vae a desabrochar. Porque não guardam os espelhos as imagens
+reflectidas? Teria alli, viva, a Rainha, na attitude de compôr as sedas
+das suas tranças... Mas os espelhos deixam tudo escapar. Assim os lagos
+não guardam, no seio ligeiro, voluvel, o vôo curvo das pombas que fogem...
+
+E para alli se quedava, vivendo do passado, como um velho... Que
+importava que as guerras na fronteira distante assolassem o paiz? Que
+tinha que os povos gemessem, que as catastrophes aluissem as cidades
+fulgentes ao luar e ao sol nas suas cathedraes preciosas, que os rios,
+saltando os leitos, invadissem as aldeias claras? Que importava a vida
+se elle só vivia da morte? Mergulhassem os outros no passado os olhos
+cubiçosos e vivessem de tanto explendor de batalhas e de riquezas que
+listravam de clarões a historia do reino afortunado. Na miseria
+presente, que se recordassem!
+
+A propria princeza entre as mãos das açafatas, delicada e linda, ia
+vivendo, nos grandes olhos verdes, uma tristeza, como quem sabia... No
+palacio sevéro, lugubre, sem os tinidos das alabardas e os mantos que
+formavam lagôas, nas alcatifas, ninguem se via. E ella, a pequena
+princeza, não aprendera a rir e tambem não chorava.
+
+Uma vez ou outra, ao atravessar silencioso e só as camaras, o Rei via a
+princeza; machinalmente as suas mãos pallidas passavam pelos cabellos
+loiros da filha. E seguia, taciturno, sempre diante de si a imagem
+d'aquella que morrera a sorrir e o esperava na crípta silenciosa do
+austero templo gothico.
+
+Ensinavam as aias á princezinha, não relatos crueis de contendas, nomes
+temidos dos reis seus avós, mas historias maravilhosas. Diziam-lhe que á
+noite, os grandes calices das magnolias abriam-se, com um ruido musical.
+E de dentro saiam côrtes de fadas minusculas, vestidas com mantos
+tecidos com raios de luas-cheias. Pelo parque andavam livremente entre
+as roseiras explendidas... Contavam-lhe que á meia-noite, as arvores se
+desprendem da terra e vão beber, como os gados, ás limpidas ribeiras.
+Ella sabia que entre si os animaes falavam, as andorinhas nos bicos dos
+telhados, os cisnes brancos nas lagôas azues, os pavões sobre as
+arvores, quando espalmam as enjoalhadas caudas, as pombas brancas á
+beira dos poços, sobre o marmore polido.
+
+Conhecia os trabalhos ligeiros dos gnomos, que nas cavernas escuras
+trabalhavam o oiro e o ferro; distinguia os alfagemes, que afiam as
+espadas mortiferas, e os ourives, que afilagranam os metaes.
+
+Diziam-lhe as lendas floridas dos amantes, de cujos tumulos saem
+sorrisos carregados de rosas, que n'um arco perfumado se abraçam a
+misturar os perfumes...
+
+Mas a pobre princeza, apenas nubil, não conhecia a Vida, nem o Amor, nem
+o Riso.
+
+Um dia, pois, a princeza, com as pequenas aias, desceu ao jardim do
+sumptuoso palacio.
+
+Misterioso por tantas sombras, tantos caminhos que se contorciam por
+entre rugosos troncos, tantas aguas que cantavam nos marmores brancos,
+tantas flores que dentre a verdura perfumavam...
+
+De socalco em socalco abriam-se, em leques, as escadarias; saltavam as
+aguas das cascatas, despenhavam-se as trepadeiras floridas, rastejavam
+as hervas, rosas de toucar e jasmins lançavam os ramos frageis.
+
+Junto ao palacio o jardim era cuidado, como uma cabeça garrida. As
+largas flores espargiam os aromas; os repuxos finos esguichavam fios de
+prata, pelas ruas areiadas passavam, magestosos os pavões solemnes...
+Mas depois, começava a floresta. As altas arvores luctavam,
+estorcidas: algumas subiam, magras como pedintes, n'uma aspiração, muito
+direitas para o sol. Outras torciam-se, esta sem forças, esgarçava-se
+mirrada. E a hera crescia, vestia os troncos, até nas arvores secas
+vicejava, como uma mascara risonha n'uma face de morto. Alguns troncos
+de seculares carvalhos continham grutas escuras. E os passaros, dentre
+os galhos, ao ruido dos passos, levantavam vôo, alvoroçados.
+
+Era o «Caminho das Rosas», que alli levava. Rosas de toda a côr:
+ensanguentadas, brancas, côr de mel e de marfim, côr de carne, rosas
+para florir peitos de danados e para tranças de primeiras commungantes,
+rosas que abrem chagas no verde das roseiras, outras que chamam beijos,
+como colos nus em festas illuminadas, rosas que teem toda a pureza d'uma
+noiva, outras toda a garridice d'uma amante, rosas para tumulos,
+brancas, mortas quasi, rosas cheias de vida, que pareciam querer saltar
+das hastes, e offerecer-se, lascivas...
+
+Vinha do seu conjuncto um perfume entontecedor. Por tanto aroma lançarem
+no ar, nas noites quentes d'agosto, algumas damas da côrte caiam, em
+deliquio. E todas tinham medo d'aquelle portico encantado, que parecia
+abrir para um paraiso, mas que podia descer a algum abismo.
+
+Foi para ali, que, correndo atraz d'uma borboleta, se dirigiu a
+princeza. Em vão lhe prenderam as vestes de seda os espinhos das
+roseiras, em vão a chamaram as pequenas aias; mesmo foi debalde que a
+voz secca da camareira-mór gritou por ella, entre respeitosa e
+auctoritaria. A princeza, a rir, córada, continuava atraz da grande
+borboleta, deixando tiras de seda nos galhos em flôr que, sacudidos,
+lançavam sobre a sua cabeça petalas finas.
+
+Ninguem, comtudo, se atreveu a ir atraz d'ella.
+
+Corria no palacio e na cidade uma lenda extranha sobre a floresta, que
+continuava o jardim, depois do perfumado «Caminho das Rosas».
+
+Dizia-se que n'uma epoca remota, no tempo em que pela cidade luminosa e
+culpada ainda passavam os santos ensinando a Lei e edificando as gentes,
+governava o reino uma rainha pagã. No jardim murmuroso e claro havia
+fremitos de beijos. Nas aguas dos tanques brilhavam corpos ligeiros. Nas
+sallas que as tochas e os lampadarios illuminavam, mulheres quasi nuas
+dançavam levemente ao som de musicas alegres. E o vinho levava das taças
+lavradas ás boccas vermelhas a alegria e o Amôr.
+
+Por toda a parte havia flores, havia risos, havia festas. Os
+cavalleiros, nas justas, paravam; morriam as scentelhas em que ardem as
+espadas no choque dos combates, e das boccas frescas saíam vozes a
+cantar a formosura das florestas, a elegancia das mulheres, a limpidez
+das aguas cantantes.
+
+Um dia, um santo bispo entrou, andrajoso e cançado, a pedir pousada; a
+rainha, ao vel-o tão miseravel, mandou-o recolher no canil, com os
+creados das matilhas. Os cães, piedosamente, foram lamber os pés em
+sangue do santo homem.
+
+Mas a Rainha não o quiz receber. Como de S. João Baptista, as palavras
+subiam para as portas, asperas e condemnatorias. Toda a noite a sua voz
+rude annunciava o castigo.
+
+A Rainha, cançada de ouvir a voz rouca, mandou-o açoitar e expulsar do
+palacio, em que reviveu a alegria. Mas durou pouco, porque um dia uma
+lingua de fogo saiu da terra, e agitou-se no ar, de sangue e oiro;
+espavorida, toda a côrte fugiu, para não mais voltar, para a floresta
+misteriosa, que ninguem sabia ao certo onde acabava.
+
+E todo o reino teve medo, como d'um inferno, d'essa floresta que
+começava por uma extranha floração de rosas e terminava porventura pelos
+eternos gelos, pelas labaredas, talvez...
+
+Por ali seguira a princeza, a rir-se. Em vão o Medo guardou durante
+seculos a misteriosa entrada. Em vão as rosas se agitaram, como
+turibulos, para a entontecer com o perfume, e os galhos a prenderam, e
+os espinhos lhe rasgaram as rendas e as sedas. Foi correndo. A
+borboleta enorme parecia uma joia a fugir por entre as flores. A
+princeza era como uma ave, delgada e linda, atraz d'ella.
+
+Subitamente a paisagem modificou-se. Do dia glorioso que estava no
+jardim do palacio, nasceu um crepusculo doirado, como um velho damasco
+amarello.
+
+A luz parecia um convalescente a rir-se por cima das arvores, pelos
+tanques quietos, pelos marmores. E as folhas das arvores tremiam fazendo
+brilhar os filamentos d'oiro. As flores tinham todas um aroma ligeiro,
+como os frascos de perfumes, que durante longos annos se guardam,
+vasios, nos armarios fechados. Eram brancas todas as rosas e as petalas
+enrugadas, como pelles finas de velhas, que viveram nos claustros, entre
+cosmeticos.
+
+Quando a princeza deu pela mudança da luz e da paisagem lembrou-se da
+lenda pavorosa que afastava as gentes da floresta e do Caminho das Rosas.
+
+--Onde estão as linguas avidas do fogo? perguntava-se. Onde os gelos que
+prendem e matam? Onde os dragões?
+
+A paisagem era toda serena e d'um riso triste. Dir-se-iam anemicas as
+flores palidas, as anemonas de seda velha, de cera transparente, que por
+toda a parte deixavam cair, de cançadas, as petalas finas. E nos
+caminhos a areia preta era crusada pelos veios das hervas
+rasteiras, coberta pelos galhos dos arbustos, aqui sacudiam-se rosas,
+alem os geranios frescos. Pelos troncos direitos das arvores a hera
+enroscava-se, a subir. Nas curvas dos tanques, dormiam os nenuphares.
+Nos marmores dos poços as trepadeiras cobriam os lavores. Havia um
+silencio leve, por onde perpassava o espirito d'um canto, como um aroma
+que a brisa traz de longe.
+
+Os templos tinham as portas abertas. A princeza para elles entrou, a
+medo, a espreitar, afastando os loureiros e os mirtos, que quasi
+fechavam a entrada.
+
+Ninguem. Apenas os deuses de marmore, calmos, esperavam as oferendas.
+Mas as aras dos sacrificios tinham humidade da lavagem recente. As
+cinzas eram quentes; no templo d'uma deusa havia grinaldas de rosas e
+pennas de pombas brancas soltas pelo chão.
+
+Alguem ali vivia, pensava a princeza. Mas quem? Genio malfazejo, que a
+mataria, ou fada carinhosa? Seria ali que nas noites claras virião
+passear as côrtes sumptuosas que moram nos calices das magnolias?
+
+Habituada ao silencio sombrio da côrte não a inquietava aquelle silencio
+leve. E continuava a explorar a encantada floresta, onde parecia
+agitar-se um simulacro de vida.
+
+Como um coração que vive da saudade dos tempos remotos, assim ali
+parecia existir a repercursão d'uma vida antiga. A cada passo a princeza
+encontrava signaes de sandalias, flores cortadas, uma fita, indicios de
+vida. Mas d'onde partiam? Quem os deixava?
+
+Viveria ali, n'aquelle paiz de luz anemica, uma côrte de feiticeiras
+tragicas, que esperam, para sair das cavernas, as badaladas lugubres da
+meia-noite? Mas não. As feiticeiras escolhem as montanhas altas e
+escarpadas onde chegue o canto soturno do mar revolto, sem arvores que
+impeçam o vôo incendiario das blasphemias e das imprecações para o ceu
+sem lua e sem estrellas.
+
+Ia caminhando a princeza. Via ribeiros claros que escorregavam sobre
+seixos brancos; lagôas azues, fachadas de templos, quincuncios bordados
+por buxos altos. E as ruas seguiam entre filas d'altas arvores formando
+tunel, até serem cortadas por novas ruas, com arvores ou flores.
+
+Cançou-se a pequena princeza. Um vago terror a invadiu. Quiz regressar
+ao palacio, mas não podia. As ruas d'arvores, os templos, os ribeiros,
+as estatuas, sucediam-se. Parecia-lhe estar n'um complicado labirintho.
+Como conseguir o magico fio?
+
+Uma noite, que parecia artificial, espalhara-se pelo ceu e envolvia as
+coisas. Á tonalidade doirada, succedia uma tonalidade branca, como
+se tudo fosse feito de prata. A princeza sentou-se n'um banco, a chorar.
+
+Ouviu de longe como um passar de brisa leve por harpas suspensas em
+arvores. Escutou. Era um canto que um côro fazia subir, ligeiro como um
+fumo. Mais se approximava. As vozes eram cançadas, mas limpidas.
+Cantavam a vida e as festas, o rir das flôres, a alegria das arvores na
+primavera.
+
+Cada vez se approximavam mais. Dirigiam-se, certamente, para o sitio
+onde ficára a princeza, um jardim junto d'um templo de marmore verde.
+
+Já via as canephoras, com açafates de flores, seguidas pelas escravas
+com tamboretes; depois a numerosa theoria de mulheres, com archotes,
+que, ao queimar-se, illuminavam e perfumavam. Não havia homens.
+Certamente que vinham para a festa atheniense das Thesmophorias.
+
+Eram as habitantes da floresta. Caminhavam lentamente, as cunharicas
+fluctuantes sobre as tunicas amarellas. As hidrophoras traziam as urnas
+na cabeça. N'um gesto gracioso, seguravam-as com uma das mãos; os braços
+nus eram tão brancos como os marmores transparentes das urnas.
+
+Quando viram a princeza, medrosa, a esconder-se entre as arvores, a
+procissão parou, as vozes calaram-se, a meio do canto.
+
+Em voz baixa concertavam entre si a resolução a tomar. A princeza ouvia
+apenas um zumbido confuso, como os das abelhas, quando nos dias quentes
+se cruzam pelos jardins floridos. Colada a um tronco, palida como um
+ex-voto de cera, viu com pavor approximar-se d'ella uma das habitantes
+da floresta. Era porém, tamanha a sua beleza e a sua gracilidade, que o
+medo tombou do espirito da princeza. Pensava-se ver uma haste florida a
+andar. Vagarosa, os seus gestos curvos e lentos pareciam fazer nascer no
+ar quieto uma harmonia...
+
+--Perdi-me aqui! Perdi-me aqui!
+
+--D'onde vens?
+
+--Do palacio. Sou a princeza. As minhas aias não se atreveram. Eu corri
+para apanhar uma borboleta. A borboleta fugiu. Fiquei sem saber onde
+estava, que caminho tomar. Isto é tão lindo! Mas faz tanto medo não se
+saber onde se está!
+
+--E queres voltar? Deixaste teu pae e tua mãe...
+
+--Minha mãe morreu. Meu pae não o vejo... quasi nunca. É um velho triste
+e duro, que não fala... Tenho medo da camareira-mór. E as aias estão a
+chorar ás escondidas d'ella como sempre... A vida é triste, triste, no
+palacio...
+
+--Preferes ficar comnosco?
+
+A boca fina pareceu sorrir-se. A princeza olhava para as mais que se
+tinham acercado. Eram todas lindas e moças, mas sem frescura, como
+as rosas que abrem pelas chuvas e ventanias.
+
+--Se me quiserem. Se me quiserem.
+
+--Pois ficarás! Ficarás! Vem comnosco!
+
+Poz-se em marcha o cortejo, novamente. Entraram no templo com a princeza.
+
+
+E a princeza ali ficou, porque nos rostos se conservava a mocidade e não
+havia a dôr, nem o constrangimento. Tudo era claro e sereno. E não
+voltou mais ao palacio, onde as aias choravam e a camareira-mór, seca e
+hirta, tinha uma voz esganiçada e autoritaria.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+NOITE DE FESTA
+
+ A ARMANDO NAVARRO.
+
+
+NOITE DE FESTA
+
+
+Era o jantar de despedida de Dowanov, que partia para o Mexico,
+promovido a ministro. Jantar de secretarios de legação, que formam uma
+confraria, para, na critica dos chefes, tirar uma consolação do exilio,
+correra um pouco triste.
+
+A minha intimidade com o novo plenipotenciario, que viera da communidade
+de vistas sobre a numismatica bisantina, abrira em meu favor uma excepção.
+
+No pequeno gabinete do Avenida Palace, a conversa versára sobre
+diplomatas e postos. Dowanov, como todo o bom russo, suspirava por
+Paris, onde estivera adido. Contava as suas tribulações junto do
+embaixador solemne e desdenhoso, que, sabendo-o apaixonado por corridas,
+nos dias de steeples e handicaps sensacionaes, sob pretexto de serviço o
+mandava chamar com urgencia, mas realmente para o impedir de divertir-se
+em Auteil e Longchamps. Apesar de tudo, porem, sorriam-se-lhe os
+olhos ao lembrar-se das pequenas colhidas _un peu partout_.
+
+A minha presença não permitia as confidencias sobre a monotonia da
+pequena cidade da provincia que é Lisboa. Havia um constrangimento. Por
+isso falaram de companheiros, indicaram silhuetas vistas um momento,
+logo esquecidas.
+
+--O que será feito d'esse roliço Kordst, que estava, no meu tempo,
+encarregado de negocios em Bucharest? Nunca mais soube d'elle? Devia ter
+morrido da falta d'um bilhete. Lembro-me que ia provocando uma questão
+internacional, porque o ministro d'Austria, ao apresentar-lhe o adido
+russo, disse primeiro o nome de Kordst. Moravamos no mesmo hotel. Foi
+procurar-me apoplético:
+
+--O que terá contra mim o ministro d'Austria? Não lhe fiz coisa
+alguma!... Não me lembro. Ainda hontem, na recepção, lhe dei o meu logar
+no sofá!...
+
+--Kordst? Com o amor que tinha aos bilhetes de visita, fez-se litografo,
+provavelmente... Sabem de Camusot, o adido militar francez, que tinha
+uma mulher que andava aos saltos, como uma pêga? Não conheceram? Você,
+Poliano? Não me disse que tinha estado com elle em Vienna?...
+
+--Não. Encontrei-o em Roma. A mulher realisava o typo perfeito da
+_gaffeuse_... Em que liquidou?
+
+--_Croupier_ de batota, em Spa... Tinha ar... Um dia, no Jockey,
+perceberam que corrigia a sorte, no baccará.
+
+--E Blumen, o chanceller da embaixada allemã, que conheci, de relance,
+em Madrid?
+
+--Em missão junto de Menelick. Emborracha-se com o Negus,
+formidavelmente, com cerveja de Munich. Tem a simpatia dos ras; ouvi que
+iam crear em sua honra a ordem do Bock, na Abyssinia...
+
+--Era o intimo do conde de Strifforth... Que é feito de Strifforth?
+Herdou já o _peerage_? Diziam-o muito considerado no Foreign Office.
+Pensou-se n'elle para sub-secretario de Estado...
+
+--Nunca lhes contei a morte de Strifforth?
+
+--Morreu?
+
+--Vi-o suicidar-se. Acompanhei-o nos ultimos dias. Foi em Sevilha.
+Tinha-o conhecido em Londres, no seu ultimo _congé_; quando fui
+promovido para Madrid démo-nos muito ali. Morreu d'uma maneira singular,
+n'uma festa da marqueza de Carrillos, na sua quinta de Eritaña... A
+melhor festa de Hespanha... A mais elegante e romanesca; dava a sensação
+da embriaguez d'uma boneca de Saxe, n'um Walpurgis. Havia feiticeiras
+novas, ou melhor, ninfas. A quinta é deliciosa, um pouco acima de
+Sevilha; o rio corta-a e para passar d'um lado a outro ha pequenas
+gondolas com camaras para duas pessoas sómente. A Carrillos, um pouco
+artista, um quasi nada doida, levou uma ranchada de gente para o seu
+palacio, do tempo de Pedro, o Cru, para uma festa de mascaras pela
+Piñata. Era tudo gente nova, salvo uma ou outra mãe que ia fazer a
+decencia. Mas achavam-se deslocadas no meio da nossa alegria e,
+intelligentemente, retiravam-se para sensacionaes partidas de bridge. Só
+nos viamos ás refeições. Uma _party_ deliciosa, que acabou n'uma
+tragedia, um pouco de _guignol dernier bateau_, entre musicas leves... É
+melhor contar tudo, ab ovo...
+
+--Sim... Desde o congresso de Vienna. O pae foi secretario d'um dos
+plenipotenciarios inglezes...
+
+--Ainda de peito?
+
+--Não. Strifforth era filho de velho... Isso explica muito o seu
+temperamento.
+
+--Vá, psicologo!
+
+--Este Mumm não me diz nada! Traga Montebello! É um pouco da Carreira.
+
+--Por afinidade?
+
+--Então o antigo embaixador?
+
+--_En disgrace?_
+
+--Sim. Ao quarto filho da czarina elle criticou:--«Ce n'est pas une
+femme--c'est une pondeuse!»
+
+--Conta a historia tragica!
+
+--A marqueza de Carrillos levára a sua filha, aquella inquieta Mathilde,
+noiva por sport, tecendo e desarranjando os casamentos, como Penelope a
+famosa teia. Para ella não havia flirts: tudo noivados. É possivel que,
+de a experimentar tanto, a grinalda nupcial estivesse já enxovalhada.
+Conheceu a Carrillos? Você? Você? Ninguem? Fina como uma _flûte_ de
+cristal cheia de champagne _mousseux_, ondulosa, sempre pronta para o
+ataque e para a resposta, fazia a chuva e o bom tempo na sociedade, e
+tinha um dom especial para pôr alcunhas que logo faziam o giro de Madrid
+e crismavam as creaturas. N'um dos seus numerosos noivados a mãe,
+oppondo-se, disse-lhe:--«Que sogra vaes ter!» A Mathilde, sem
+pestanejar:--«E elle, mamã? E elle?» A marqueza ria-se perdidamente com
+os ditos da filha, regosijando-se:--És digna de mim!
+
+--E Strifforth?
+
+--Lá vae. Ora fez-se a festa. O costume Luiz XV era de rigor. Por uma
+noite estrellada, espalhámo-nos pelo jardim. Pelas janellas do palacio
+corriam grinaldas de fogo das _bandes souples_ que as ligavam. Eram
+tulipas de todos os córtes que d'entre a folhagem se uniam, pondo um
+traço florido entre o incendio que vinha das multiplas janellas abertas
+sobre o parque e sobre o caes. Pelos troncos das arvores
+envolviam-se em espiras as serpentes luminosas, marchetadas, e abriam-se
+em mil luzes nas copas, davam, ao longe, o aspecto de uma joalheria que
+ardesse na noite quieta e calada, essas noites amorosas da Andaluzia em
+que tudo parece estacar n'um beijo supremo... Pela margem do rio a mesma
+florescencia, mergulhando na agua, dando ao rio a aparencia fantastica
+de um ceu que se afundasse.
+
+De repente musicas invisiveis tocaram as melodias leves, _gavottes_
+suspiradas, em que ha um pouco de amor, um pouco de dança, como num
+flirt. E do escuro d'uma angra moveram-se gondolas ligeiras, em que
+ardiam e estremeciam largos balões venezianos.
+
+Os remadores, ensaiados, iam quasi ao compasso ligeiro das _gavottes_.
+Tinhamos a impressão d'uma dança de gondolas, um sonho estranho de
+veneziano, pelas horas misteriosas em que as coisas inanimadas tomam
+vida. Do levantar dos remos das aguas, saltavam cintillações de
+pedrarias. E a linha tortuosa de balões augmentava o incendio, na
+vibração de tantas reluzentes joias a agitarem-se na agua do rio...
+Fomo-nos metendo nas gondolas. Os _novios_ acolheram-se prestes ás
+gondolas mais pequenas. Uma maior levou muitos de nós, descazalados, a
+Mathilde Carrillos, Strifforth, a condessa de Valdelar...
+
+--Conheci-a em Roma...
+
+--O marido foi gentil-homem do Papa. Preciso falar d'ella. Foi a
+principal figura d'este drama. Typo de hespanhola? Não. Mais italiana do
+que hespanhola, com uns largos olhos pretos, cheios de doçura. O seu
+gesto era harmonioso e curvo, sem uma aresta, sem um angulo, uns
+nascendo dos outros sem solução, como as frases d'uma melodia. Tinha-se,
+ao vêl-a, a sensação de que se ouvia uma musica dolente, vagarosa. E os
+proprios olhos moviam-se lentamente, como pesados de tanta luz e tanta
+belleza...
+
+Enigmatica, guardando n'um jardim encantado a sua alma, ninguem prudente
+ousára definil-a... Poetica talvez, ou simplesmente aborrecida, fugia em
+S. Sebastian do Casino e do Hotel du Palais e ia, á tarde, só, vêr as
+crispações do poente nas vagas que eriçam de espuma o mar azul.
+
+Sentava-se n'um dos rochedos, ás vezes desenhando, outras a cabeça a
+descançar na mão, e ali se quedava a tarde inteira, alma talvez de
+sereia a chorar pelo mar, a querer aprehender no perfume da brisa,
+alguma palpitação do oceano.
+
+Nenhum de nós se atreveu nunca a interrompel-a, apezar da attracção que
+todos sentiamos pela sua figura gracil como uma amphora, da sua
+_toilette_, de toda a elegancia pessoal e do misterio da alma
+ávidamente guardada... Strifforth apaixonou-se por ella. E, solitario,
+deixando as excursões amiudadas que fazia ao Casino de Biarritz, andava
+de barco para vêr, isolada no rochedo, sem uma tristesa na face, a
+condessa de Valdelar, certamente a mais formosa, a mais perturbante das
+senhoras de Madrid.
+
+O conde de Valdelar ficava no hotel, gottoso, na leitura de livros
+licenciosos, que salpicava de casquinadas nervosas, irritantes,
+indifferente á belleza e á alma da mulher. Strifforth conhecia-a e
+procurava todos os raros momentos em que ella apparecia, de manhã na
+praia, á tarde no boulevard e, uma ou outra vez, pelas grandes festas,
+no Casino, que atravessava n'um andar leve, dando-nos a sensação que
+tinha azas que a sustentavam. Nada lhe permitira ainda uma declaração. A
+condessa fallava-lhe, como a todos nós, em coisas indifferentes, em
+festas, touradas, partidas de tennis, impressões rapidas de viagem e
+deixava-o sem pressa, mas sem pezar, absoluctamente correcta. Elle
+fallava-lhe do mar, mas a condessa tinha uma phrase banal, mudava
+d'assunto, como se tivesse pudor d'esse sentimento, que parecia absorver
+toda a sua vida. Foi n'esse tempo que Strifforth começou a picar-se com
+morphina difficilmente adquirida, a beber perfumes, com horror aos
+cognacs, e a arrastar uma vida d'automato, sempre com esperança de
+a vêr, de lhe fallar. E, em a encontrando, pousava sobre ella os olhos
+tristes, largas horas, inconvenientemente.
+
+Em Madrid, todo o inverno foi assim, com menos occasiões de a vêr,
+porque a condessa frequentava pouco o Retiro e a Castellana e raramente
+aparecia na sociedade, demorando-se o bastante para não parecer
+aborrecida, mas saindo logo, com um tacto perfeito. Á vida escondida da
+condessa correspondia uma outra vida secreta de Strifforth, ebrio, em
+desesperos que o alcool longe de adormecer intensificava, fugindo a tudo
+o que fôra d'antes o seu enlevo, até do Museu do Prado, onde ia todas as
+manhãs--á minha missa, dizia elle--para vêr os Velasquez e os Grecos...
+Mas, quando tinha que ir a alguma parte com esperança de encontrar a
+condessa, o meu amigo não bebia para poder gozar inteiramente a presença
+e a voz d'aquella que amava. Depois a embriaguez exagerava a impressão,
+dava-lhe, quasi real, a presença da Valdelar. Meteu-se no ether, alem da
+morphina e dos frascos de perfume--Parece que como flores,
+explicou-me--arruinando por completo a saude, tornando mais agudas as
+crises de desesperos, mais asperas, pelo enigma que para todos nós era
+essa mulher esplendidamente artificial, que trazia uma mascara na sua
+face calada. Coquette? Decerto, mas egualmente para todos, porque
+os seus movimentos eram regrados por uma musica ineffavel. Mas talvez
+coquette só para si, porque nem um só olhar ou palavra auctorisou
+ninguem a dizer-lhe um galanteio atrevido.
+
+Fallou-se na festa da Carrillos, organisou-se a lista, e Strifforth, que
+não tinha relações com a marqueza, logo que soube que a Valdeler era da
+partida, solicitou, pondo de parte sem hesitação o seu orgulho
+exagerado, uma apresentação e um convite, logo alcançados, não só por
+ser muito _choyé_, mas tambem porque transpirára a paixão e todos se
+interessavam pelo pobre rapaz, havendo até censuras á Valdelar, que de
+nada era culpada.
+
+Fomos n'um expresso vagaroso, atravessando desoladas paisagens, até
+Sevilha. Não conhecem Sevilha? É a cidade mais feminina e voluptuosa que
+conheço.
+
+Á tarde, vista da Giralda, ella se nos oferece, nua, ondulosa, apenas
+com a cinta azul do seu rio e as joias das cupulas e das janellas que
+scintillam ao poente. Parece que estaca o movimento, e que, na alcova
+enorme que é a planicie, Sevilha se estende, com flôres no cabello e uma
+volupia extrema em todo o seu ser. Anda no ar um amavio. Tudo nos falla
+d'amor sensual e quente, até os olhos largos das sevilhanas, que parecem
+recortados n'esses enormes amôres perfeitos de velludo.
+
+Foi ali que tivemos a festa de que lhes fallei. Imaginem que na margem
+esquerda, a dois kilometros da quinta da Carrillos, ha uma _venta_, cuja
+varanda se debruça entre trepadeiras, sobre o rio. A marqueza tomára-a
+sem custo por sua conta e alli varias musicas nos tocaram, não
+_gavottes_ leves, mas doridas malagueñas em que se arrasta um langor,
+como um beijo em que toda a alma succumbe. Um jacto de luz inundou a
+gondola. A condessa levava as mãos dentro de agua, curvada ella propria
+para o rio. Strifforth ia sentado sobre a borda. Deixou-se escoar
+vagarosamente.
+
+--Caiu um!
+
+--Strifforth!
+
+Logo os braços se estenderam, um dos gondoleiros deitou-se á agua e
+poude tirar Strifforth, todo ensopado no seu fato de seda.--Borracho!
+Borracho! _Mais vous êtez ivre! Dites_!--Strifforth, não bebera uma
+gotta. Eu ficára proximo d'elle. Os musicos não tinham dado por nada. A
+musica continuava dolorosa e amorosa. A gondola seguiu, deixando o traço
+de luz que brilhava e se quebrava d'encontro ás leves vagas. Houve
+risos. Rodearam-o com grinaldas. A Valdelar teve, como os outros um
+riso.--Escorreguei!... explicou apenas o conde. Mais adiante, porem, já
+a musica se ouvia em surdina, Strifforth deixou-se cair outra vez.--É
+demais! Está bebedo! gritaram. As cabeças empoadas inclinaram-se
+novamente para a agua. A Valdelar, que tornára a mergulhar no rio os
+braços nus em que escorriam as rendas molhadas, ao sentir a queda,
+agarrou-o por um braço, indiferente. Strifforth, porem, deu um vigoroso
+impulso e desprendeu-se d'ella...
+
+Houve um panico. Foram buscar archotes. Não calculam o macabro das
+nossas figuras de _petits-abbés_ e gentishomens procurando, nos barcos,
+que de tanta luz pareciam incendiados, um homem que se queria suicidar.
+Os gritos cruzavam. Das pequenas gondolas surgiam vultos negros
+iluminados á maneira d'um Rembrandt que tivesse adivinhado Turner e
+Whistler, em chapadas de luz multicôr. Na nossa gondola um borborinho
+correra. Alguem desmaiára, até. As cabeças empoadas agitavam-se. Ao
+longe, as malagueñas continuavam num suspiro lascivo e preguiçoso. A
+Valdelar voltára á sua primitiva posição: brincava com a agua, que lhe
+passava entre os dedos abertos, pondo-lhe aneis que fugiam, logo
+substituidos. Não tornamos a saber de Strifforth. O cadaver nunca
+apareceu.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+CLARA
+
+ A JULIO DE SOUSA.
+
+
+CLARA
+
+
+Friorenta, encolhida no fundo do coupé, tudo era indeciso na figurinha
+que passou rapidamente, na tarde a escurecer.
+
+Nascia da penumbra, sem presisão nos contornos, como certos retratos de
+Columbano e de Henner. E entre o chapeu preto e a face branca, o cabello
+loiro punha uma esmaecida aureola como uma tenue poeira d'ambar. A boa,
+de _renard bleu_, ainda aumentava o indeciso, o fluctuante d'essa
+mulher; os olhos claros não brilhavam; o vermelho da bocca desmaiava...
+Figurinha de cera e de seda, que passava, olhando para a rua sem
+attentar talvez em ninguem, levando o nosso desejo de decifrar enigmas,
+indefferente, graciosa, impressionou-me... Ao amigo que me acompanhava
+recorri para saber d'ella. Quando me voltei para perguntar, vi que
+Roberto se pusera pallido; parecia que á bocca se lhe afivelára uma
+boqueira de pedra, mascara trágica a emudecer.
+
+Seguiu com os olhos a carruagem que trotava pela Avenida até se perder
+entre as arvores em Valle de Pereiro.
+
+--Quem é? gaguejou. Alguma aventureira cosmopolita que veiu _faire le
+Portugal_. Um pastel de Antonio de la Gandara, maquilhada como uma
+infanta de Velasquez, mais artificial que uma boneca de Nuremberg, sem
+vicio, talvez, amante enternecida d'algum _croupier_ de _Cercle_
+ordinario... Sei lá!... encolheu, impaciente, os hombros, a concluir.
+
+Houve um silencio. Raras carruagens passavam. Estava triste a Avenida.
+Descemos. Abriam, simultaneamente, as grandes flôres geladas e luminosas
+das lampadas electricas. Rapidos, fulgiam os americanos. Outra vez a
+mulher passou, mais indeciso o vulto, apenas destincto o palôr da face
+branca no _coupé_ escuro.
+
+--Porque teria vindo cá, essa mulher? perguntou Roberto, colerico.
+
+--Conhecel-a?
+
+--Se a conheço?! Tenho querido arrancal-a de mim, como se arranca d'um
+boi uma farpa--violentamente. Tenho querido fugir de mim, para a
+esquecer! E quando estou quasi a conseguil-o, quando a tortura da sua
+lembrança é em mim apenas uma cicatriz, eil-a que apparece a reavivar a
+chaga antiga, a tornal-a mais dolorosa! Clara veiu aqui só por minha
+causa, ouves? Para fazer-me soffrer!
+
+Agarrava-se-me ao braço, a apertal-o violentamente. Na bocca
+accentuava-se-lhe, aspero, o vinco da amargura.
+
+--Foi esta mulher que me fez fugir de tudo, perder o amor a tudo,
+desterrar-me para esta passividade, eu que amava a vida dolorosamente,
+gosando com tudo, intensamente!
+
+«Conhecia-a em Hespanha! N'um inverno humido deixei Lisboa e acolhi-me a
+Sevilha. Os dias gloriosos de sol que lá gosei pelas margens do
+Guadalquivir azul! Andava ebrio de tanta luz que enchia d'oiro e de
+triumpho a cidade alegre. Saia para os campos, logo de manhã, a rir-me
+com os trigaes e com as flôres. Ia ao parque vêr o sol fulgir nas caudas
+abertas dos pavões orgulhosos; descia ao caes para vêr brilhar na agua
+incendiada os cobres polidos dos navios; enchiam-me de prazer a
+barulheira dos carregadores, o chiar aspero dos guindastes, o estridulo
+das sereias, nos vapores que partiam... Tudo era alegria na cidade
+maravilhosa mesmo á noite, as lampadas incendiavam a _Sierpee_
+brilhante, onde se apertava uma multidão palradora. Das janellas dos
+casinos, das portas dos cafés, dos mostradores das lojas, vinham
+chapadas de luz. Misturava-me a toda aquella vida insolente, ria com
+todos os risos, todos os labios frescos me chamavam, rodeavam-me todas
+as cabelleiras fartas, cheias de flôres. O donaire das andaluzas d'olhar
+de volupia fazia-me achar mais bella a Vida. Era como um poema a
+enaltecer a obra de Deus. Por todos amar, não amava nenhuma.
+
+Comprei o sineiro da Cathedral. Do alto da Giralda, uma noite, possui a
+cidade, senti que todo o tumulto confuso que até mim chegava, era o seu
+sangue que pulsava por mim nas suas arterias; aquella resplandecencia,
+brilho de joias com que cobria a nudez. Os tranvias iluminados, cortando
+em mil direcções a cidade, eram pedrarias, aqui se apagando uma, para
+alem se accender outra, conforme as ia eu tocando com os meus olhos
+amorosos. Ella, em baixo, abria os seus braços, entregava todo o seu
+corpo, a morena Sevilha, offegante e lasciva!
+
+«Era feliz, poderosamente feliz. Sentia, em cada palpitação cardiaca, o
+sangue remoçado que se espraiava pelo corpo. Foi então que conheci
+Clara. Ella passava pela _Sierpes_, junto ao _Credit_, enygmatica, como
+a viste. A elegancia do seu porte, ultima florescencia da moda franceza,
+quasi immaterial, contrastava com a forte humanidade das sevilhanas
+cheias de vida, de sangue e de desejos. Todos se voltaram para ella e
+lhe abriram caminho, como se passasse um andor. Fui logo preso pelo
+encanto decadente e artificial, esqueci a Vida e a gloria de viver ao
+sol nos campos fecundos. Regressei á hyper-civilisação; segui-a e alegre
+entrei, atraz d'ella, para o seu e meu hotel.
+
+«Vergonhosamente a segui como um cão fiel. Vergonhosamente mendiguei um
+olhar dos seus olhos parados; e contente fiquei ao vel-a um dia no salão
+da leitura, por que pude dirigir-lhe a palavra e pedir-lhe licença para
+fumar. Apesar da resposta secca, insisti e entabolámos conhecimento.
+
+«Doces foram para mim os dias, em que visitámos Sevilha. A casa de
+Pilatos e as suas penumbras em que esmaecem estuques e o patio claro de
+marmores harmoniosos ouviram as palavras aladas que lhe disse; diante
+das Assumpções do Murillo e dos frades de Zurbaran, no museu deserto,
+contei-lhe o poema do meu desejo; na _Caridad_, a mostrar-lhe a estatua
+de Herrera, ouviu a perfumada e embaladora cantilena. Na Giralda, a vêr
+Sevilha doirada, deitada na planicie que ondulava, até perder-se no
+horisonte circular, offereci-lhe toda a minha alma e toda a minha vida.
+Houve momentos em que seus braços foram a levantar-se para apertar o meu
+pescoço; julguei sentir o seu peito leve arfar de commoção: muitas vezes
+a boca se apertou para a florescencia dos beijos e seus olhos verdes se
+encheram de luz; mas rapido, tudo se desmanchava, e um sorriso tremia na
+boca desmaiada, a mostrar a linha branca dos dentes.
+
+O flirt desabrochava. Uma tarde, nos jardins do Alcaçar, á porta dos
+banhos de Maria Padilla, passou por mim o corpo delgado, agil, pela
+cara roçou o cabello que tinha um perfume penetrante; fallou-me do seu
+corpo e, sentados no salão dos Embaixadores, estendia a perna, para
+mostrar o tornosello fino e a meia _ajourée_, que deixou vêr a pele
+branquissima. Todas as noites eu pensava, que no dia seguinte beijaria a
+boca perfumada. E todas as manhãs via cair a minha esperança, como as
+folhas murchas que o vento sacode dos ramos seccos.
+
+«Certamente que as minhas palavras deviam ser perturbantes, porque
+sahiam d'um coração perturbado. E, pesadas de tanto amor, cahiam da boca
+vagarosamente. Ás vezes os cilios de oiro abatiam-se sobre os olhos,
+como n'um espasmo. Mas logo o sorriso abria-lhe a pequenina boca!
+
+«Longos dias, longas semanas, durou o encantado oaristo. Já não cuidava
+da gloria da natureza; das apoteóses do sol sobre as aguas azues do rio.
+Só pensava n'ella, só vivia d'ella.
+
+«Um dia, porem, eu soube! Alguem, com palavras que julgou caridosas,
+veiu pôr no meu coração as sete espadas! A creaturinha delicada e
+deliciosa, princeza de balada d'hoje, urna de perfume, a quem me
+entregava como um collegial, era uma aventureira das que frequentam a
+_Riviera_ no inverno, Aix no verão, Paris na primavera, e que a Sevilha
+viera atraz d'um clown, que no circo fazia rebentar estrépitos de
+gargalhadas... Ao seu morbido encanto me prendera, e atraz d'ella me fui
+a soluçar, flor de lameiro em que puz todo o perfume suave... Fôra nas
+mãos d'ella um saxe fragil como que se brinca!
+
+«Ah, meu amigo! O desespero e a raiva puzeram mãos assassinas a
+estrangular-me! N'um impeto, como uma aura que se nos levanta do peito e
+nos atira para o ataque epileptico, decidi-me. Levei-a n'um trem para o
+campo, para alem da Cartuja, com um cocheiro de confiança. E alli,
+desapiedadamente, bati-lhe, arranquei-lhe as sedas e as rendas--parecia,
+nua entre os trigaes verdes, uma magnolia enorme!--e o seu corpo
+cobriu-se todo de sangue. Clara gemeu, implorando; as lagrimas
+empastavam a maquilhagem; via-a sordida, enrolando-se para escapar ás
+chicotadas, e fugi, ebrio, doido, a correr, diante do cocheiro espantado
+que me metteu no trem e me levou a Sevilha.
+
+--Senorito, la navaja era mejor, aconselhou-me.
+
+«Parti. Nunca mais soube d'ella. Trouxe-a dentro de mim como um espinho.
+A dôr que lhe causei augmentou a minha pena. De ter visto o corpo magro
+e branco, ficou-me a ancia de o beijar. Andei de noite, pelas ruas, a
+correr sem forças para fugir de mim e d'ella, porque a figura surgia
+deante dos meus olhos, bella de toda a perversidade e de toda a
+lascivia, como uma invencivel tentação, a que o maior santo succumbe.
+
+«Ás vezes conseguia distrahir-me; de repente ella surgia, sentava-se na
+minha frente, mostrava os vergões das chicotadas, todo o corpo impudico
+perfumava e brilhava, e a boca sorria a escarnecer de mim!
+
+«Foi algum philtro que me deu.
+
+«Ia a esquecel-a e eil-a que novamente me apparece, a prender-me, a
+levar-me, outra vez para a allucinação, a atiçar o incendio que me
+queimava!
+
+«Talvez queira vingar-se!
+
+
+Não. Não queria vingar-se. Clara veiu a Lisbôa, soube-o mais tarde,
+atraz d'um comprimario de S. Carlos, seu _amant de coeur_.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+IDILIO TRISTE
+
+ A EDUARDO VALERIO VILLAÇA.
+
+
+IDILIO TRISTE
+
+
+No jardim, a tarde de oiro era perfumada pelas rosas e pelos cravos. Nos
+canteiros, os cravos levantavam-se impertinentes, risonhos, em delgadas
+hastes. E, por toda a parte, entremeiando-se com os buxos, enroscando-se
+a uma macieira em flôr, serpenteando pelos muros, subindo pelas sebes,
+uma opulenta floração de rosas de toda a côr, rosas de oiro pallido,
+rosas roseas, rosas vermelhas a estremecer, como labios de que vão cair
+os beijos, rosas escuras, enormes, sensuaes e dolorosas, umas ainda em
+botão, misteriosas como as adolescentes, outras já totalmente abertas,
+sem enigma, como as amantes antigas--todas ellas misturavam o seu
+perfume no jardim quieto, em que as pombas arrulhavam, beijavam-se e
+depois partiam em vôos curvos, as azas brancas a brilhar ao sol.
+
+Os dois amantes iam calados, elle a olhal-a intensamente, como a querer
+apreendel-a, como se os olhos fossem bocas e podessem beijar,
+braços e conseguissem abraçar--ella um pouco aborrecida, a desfazer
+entre os dedos longos uma orchidea azul listrada de vergões esverdinhados.
+
+--Pensei em ti sempre, dizia elle. No Prado, diante dos tapetes de Goya,
+disse o teu louvor. As raparigas esbeltas, que vão á fonte, as bilhas
+esguias á cabeça, como as princezas de Homero, não tinham a tua
+elegancia... Ás infantas de Velazquez, artificiaes, cadaveres de
+bonecas, em que apenas os olhos attonitos teem vida, faltava a tua
+belleza. As santas hirtas de Memling não tinham na bôca a primavera que
+ruboresce os teus labios... Só na curva do braço de Danae, de Ticiano,
+pude ver uma attitude como tens... Por todo o museu me perseguia a tua
+imagem, como um canon, para avaliar as obras. As gordurosas flamengas de
+Rubens, as cigarreiras sensuaes e extaticas de Murillo, as energicas
+mulheres de salteadores em que Ribera se compraz, eram muito diferentes
+de ti, d'ellas fugia o meu olhar. Em Raphael havia alguma coisa da tua
+doçura risonha, mas demasiado passiva; em Greco, a tua distincção, mas
+severa; apenas Leonardo te saberia pintar, quasi irreal por seres tão
+bella, indecifravel, como uma esfinge sem segredos... Como uma esfinge
+sem segredos... Que segredos teria a suave mulher do Jocondo? Que
+segredos terás, alheia a tudo, passando pela vida, ligeiramente,
+como a agua que vae n'um ribeiro, correndo e cantando? Vi-te em toda a
+parte. Levei-te sempre commigo! Talvez o Moro te tivesse pintado...
+
+--Viste bem o museu...
+
+--Vi, porque te buscava... Um dia, ao aproximar-me da escadaria, vi
+fugir, n'um automovel ligeiro, uma mulher, que se parecia comtigo... Era
+um carro vermelho... Por toda a parte tive a _hantise_ dos automoveis
+vermelhos. No _Retiro_ e na _Castellana_, o meu olhar prescrutava,
+revolvia todos os automoveis, todas as carruagens, a ver se te
+encontrava. Todas as manhãs, pelo museu, andava á tua espera, embora te
+soubesse aqui, indiferente. Como te não encontrava, procurei vêr o teu
+retrato, n'algum quadro antigo. E puz, em muitos, o reflexo da tua
+belleza, porque n'uma atitude, n'um olhar, havia alguma coisa de ti...
+
+--O governo hespanhol agradeceu-te a valorisação dos quadros?
+
+--Ri-te. Ri-te de mim... A tua boca, ao abrir-se n'um riso, é uma flor
+de nácar e prata...--A principio, procurei-te... Depois, como a tortura
+fosse muita, quiz fugir da tua imagem. Fui para Sevilha onde tudo é Amor
+e resplandece. Deixáras de escrever-me... Só sabia que não pensavas em
+mim. Ali, tudo é alegre e luminoso. O sol é o sangue da cidade... Doira
+a planicie e as palmeiras de S. Fernando. Levanta scintillações do
+calado Guadalquivir azul e da cupula inflamada da Torre del Oro. Enche
+de vida o jardim do Alcazar, com seus repuxos com enjoalhadas lagrimas.
+Tudo é luminoso e perfumado. O amor, ali, não aniquilla, escalda. Entre
+os cravos que guarnecem as grades das janellas, as mulheres olham os
+seus namorados com um olhar d'assalto. Ha uma voluptuosidade suspensa no
+ar. Tudo vive, tudo ama, parece que tudo é feliz. Ha uma embriaguez de
+côr. E nas varetas dos leques saltitam os beijos que caem das bocas. A
+Sierpes, á noite, palpita com todo o anceio de tumultuosa cidade... Nos
+pateos, sob as pequenas palmeiras e musas, os flirts sussurram palavras
+de entontecer... Como tudo brilha! Só o meu coração se apagava e
+murchava com saudades... Nos banhos silenciosos de Maria Padilla, pensei
+no afortunado amor de favorita, nos lentos passeios pelo jardim, nas
+casas de fresca sombra, onde luzem os estuques policromos e os
+azulejos... E não deixei de sentir-te ao meu lado...
+
+--Acredita que não foi por minha culpa...
+
+--Fugias-me. Deixavas-me a tua imagem, para torturar-me. Mandavas-m'a, a
+envenenar-me de longe... A belladona é doce e envenena... Muito mel
+embriaga... Tão real a sentia, que, á noite, olhos fechados, queria
+abraçar-te, e tinha a desillusão de Pan, quando perseguiu a ninfa
+Seringe... Como quem corre atraz do sol e se encontra encerrado
+n'um bêco. Nunca mais me escreveste!
+
+Deixaste cair o teu amor do peito, como as flores que levaste ao baile...
+
+--Depois d'uma noite de baile, as flores já não perfumam. O amor precisa
+do viço. É necessario podar o coração...
+
+--Bem sei. Não te recrimino. Lamento-me...
+
+--Lamartiniano!... Julgava-te mais forte e mais moderno. Parecia-me que
+a cultura intensiva do Eu tornava impossivel um amor sem esperanças...
+Filosofos!...
+
+--Amar-te, não é para mim uma função: é a propria essencia do meu ser.
+Julgo ás vezes que não existes, material e tangivel, que existes mais
+real: nasceste e vives no meu cerebro, tanto se casa a tua figura ao meu
+sonho de belleza. Pintor, se idealisasse uma mulher, o meu quadro
+pareceria o teu retrato, embora nunca te tivesse visto. Poeta, o teu
+misterio seduz-me, alma que se guarda, avidamente, sem que ninguem a
+adivinhe. Todos passam por ti, sem a possuir, como as quilhas dos navios
+que cortam as ondas não maculam a eterna virgindade do mar... Foi ao ver
+o mar, que mais pensei em ti. Pelo Mediterraneo socegado, estudei a
+onda, sem conseguir conhecel-a. As ondas são graciosas, as suas curvas
+teem ternos desenvolvimentos: dir-se-iam mulheres que brincam na relva
+fresca. E desfazem-se em flocos de espuma, quebram-se umas contra
+as outras com fragilidade de cristaes, são leves como leques, e no
+emtanto matam, levantam-se em vagalhões que sacodem os couraçados,
+despedaçam os navios. Carinhosas, riem e fogem, como tu; a onda de
+esmeralda que saltita, enfeitada de rendas, subitamente é uma gigantesca
+aza d'abutre que se curva, para apreender... É um abismo que ri... As
+mutações rapidas do mar fizeram-me lembrar o teu amor que desapareceu
+sem se saber porquê...
+
+Nem sequer recrimino. «Não me esqueço», prometeste. E as tuas palavras
+que guardei, como guardaria uma estrella, ainda cantam nos meus ouvidos.
+E ha tanto que te esqueceste! Vivo do passado. Vive o meu coração do
+passado, como as velhinhas, que foram actrizes, e no asilo se lembram
+das aclamações quando faziam papeis de rainhas sumptuosas com luzidas
+cortes a seguil-as e galãs esbeltos a segredar frases d'amor...
+
+Mas o passado esgota-se, como as cisternas, quando durante muito tempo
+não chove...»
+
+Ella cortara e desfolhára as margaridas de uma moita viridente. O sol ia
+a morrer, n'uma catástrofe... Um rebanho de nuvens encharcava-se em
+sangue. N'uma fita delgada, um repuxo subia, dobrava-se e estilhaçava-se
+na agua do tanque.
+
+O amante chorava...
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+PERFIL D'AVENTUREIRO
+
+ A EDUARDO DE MAYA CARDOZO.
+
+
+PERFIL D'AVENTUREIRO
+
+
+Desvairada, a ministra da Esclavonia perseguia sir Arnold Davis, que, de
+sala para sala, passava em revista as senhoras em toilettes de baile.
+Ia-lhe na piugada, metia-se pelos corredores, apressadamente, para
+crusar-se com elle, receber um olhar, fazel-o parar, prendel-o no vão
+d'uma janella, onde os seus olhos pareciam tomar d'assalto o rosto
+glabro de sir Arnold, mordia a boca fortemente carminada, como para
+reter os beijos, que queriam saír.
+
+As suas mãos magras e longas, as mãos que teem as doadoras e as santas
+nos quadros góticos, tremiam ao apertar as de sir Arnold onde opalas
+desmaiavam, maléficas e misteriosas.
+
+Carlota von Hameghen não via o baile, não se rodeava, como de costume,
+de politicos e diplomatas, a sondal-os, a irrital-os, _allumeuse_
+internacional á cata de segredos, para vender a todas as chancelarias
+que pagassem, generosas e discretas.
+
+A condessa Carlota von Hameghen, mulher do ministro de Esclavonia, era
+quasi fiel ao marido. Apenas grande necessidade, um aperto de dinheiro,
+um segredo muito importante, que só se confia nas horas de completo
+aniquilamento, depois dos beijos, é que a faziam esquecer o marido,
+ainda novo, que trepára na «Carreira» empurrado pela mulher, apesar de
+morphimano e um pouco imbecil. Fóra disto, esposa exemplar. Espirito
+d'honestidade? Não: impassibilidade; a cirurgia, com uma operação
+dolorosa, em Londres, tirára-lhe o vigor da sensação. Vivia para a
+ambição, uma vida farta, proporcionada pelos cheques de varias
+embaixadas e legações, menos a de Esclavonia que pagava pouco e, por
+complicações de finanças internas, a más horas.
+
+Alguns diplomatas, ao facto do temperamento da condessa, estranhavam
+aquelle assalto insistente ao moço inglez, alheio aos segredos das
+chancelarias, pouco rico para a condessa, servedoiro de milhões.
+
+O ministro da Dinamarca, ageitando, como de costume a unica farripa de
+cabello que lhe guarnecia o craneo rubro:
+
+--Ha de ser uma desforra! Sir Arnold vingar-nos-ha...
+
+--Não ha de levar a melhor...
+
+--Aposto! Não sabem a força de sir Arnold. Conheço-o muito bem.
+
+--A Hameghen é uma fortaleza inexpugnavel.
+
+--Praça sitiada, praça tomada...
+
+--Mas quem sitía é a condessa!...
+
+--Estão enganados. Com o ar de quem se defende, sir Arnold ataca
+vigorosamente. Conheço-lhe a tática. É toda de sapa. Minas e conminas. O
+campo parece tranquilo e mil picaretes abrem galerias. É de primeira
+força! Praça a saque, d'aqui a duas semanas, o maximo.
+
+--Não seja como Port-Arthur que todos os dias é tomado...
+
+--Verão. Vae custar á condessa, coisa d'um milhão. Sir Arnold lança
+pesadas contribuições de guerra.
+
+--Que paiz pagará?
+
+--Mr. Alphonse?
+
+--Il faut vivre. Il n'y a pas de sot metier. A Mariam Ringen...
+
+--Aquella judia fanhosa?
+
+--Sim. E que tinha seis dedos em cada pé... Gastou mais de dez mil
+libras em tres mezes.
+
+--É ante-semita. É _bien né_, o ser-se ante-semita! O começo da
+liquidação... E depois, douze dedos. Parecia-lhe menos.
+
+--Contava muito depressa... 12 de cada vez...
+
+--Se é que contava pelos pés!
+
+--Sir Arnold interessa-me. Tenho-o examinado, na batalha. É impassivel.
+Nunca procura primeiro uma mulher. Aquelle bello corpo d'Apollo
+adrescente fascina. Os olhos claros, misteriosos, desequilibram os
+nervos das nossas mulheres. E as opalas cheias de maleficios, que para
+elle são _porte-bonheur_, dão um quebranto magico. A terrivel fama de
+que tão justamente gosa e o precede como uma tenebrosa arauto faz-lhe um
+halo. Luz do inferno, que importa? É uma aureola. Se não tivesse motivos
+para ter um tal nome, caluniar-se-ia. É capaz de tudo, até d'uma boa
+ação... que o não prejudique. Não faz o mal por arte. Para fazer o mal
+por principio é necessario afirmar. Sir Arnold nada afirma nem nega.
+Negar é, d'alguma fórma, afirmar. E isso é um esforço que elle se não
+permite. Se quizesse ser diplomata, estaria hoje embaixador, membro do
+Tribunal da Haya, ministro dos negocios estrangeiros. Encaminharia a
+politica ingleza com menos soberba que Salisbury e mais firmeza que
+Lansdowne, sem a literatura, o romantismo de Rosebery. Nos tempos da
+vadiagem diplomatica, dos verdadeiros plenipotenciarios--hoje os nossos
+plenos poderes ficam na secretaria, que nol-os vae mandando por conta e
+pelo telegrafo--nesse tempo, talharia um imperio para o soberano que o
+empregasse. Não, para si. Sir Arnold é um egoista formidavel. Julga-se o
+centro do Universo. Nihil humani a me alienum puto. Nada do que
+pertence ao homem lhe é alheio, isto é tem direitos sobre tudo, traduz
+elle. Não tem outra moral.
+
+Nietzche estabeleceu os principios que nelle eram instinto. Cuido que
+nunca se deu ao trabalho de ler um só volume do discipulo de Stirner...
+
+A conversa não interessava já. O dinamarquez tinha um pouco a mania
+oratoria. O grupo dispersou-se, pelas salas, onde os pares deslisavam ao
+som d'uma valsa da moda, langorosa e morbida... Fiquei com elle.
+Fomo-nos dirigindo para a estufa. O ministro continuou:
+
+--Gósto de sir Arnold... pelo lado scientifico, como filósofo. É um
+poderoso dissolvente. Todas as dissoluções apressam a evolução. Davis é
+um força social.
+
+--Na boca d'um ministro d'um paiz monarchico, essas palavras são
+imprevistas, sorri-me.
+
+--Tenho uma opinião como diplomata e outra como filósofo. Como
+diplomata, sou conservador, como filósofo, anarchista... mas anarchista
+com palacios, festas, condecorações... Quando quero pensar como
+diplomata, visto a farda, ponho duas gran-cruzes, uma para cada
+lado--tenho a Corôa da Prussia--e todas as placas. Quando me decido a
+pensar como filósofo, cólo umas barbas postiças, fico em
+_robe-de-chambre_. Defronte da minha psyché imperio, dou-me a ideia
+d'uma Diogenes limpo. O mais usual, porem, é não pensar... Estou
+dispepético: o pensamento é terrivel para nós. Isto não impede que lhe
+conte um episodio da vida de Davis. Simpatiso com elle, dou-me até com
+elle. Conheci-o em Aix-les-Bains ha seis ou sete annos. Estavamos no
+mesmo hotel. Os nossos aposentos eram seguidos. A sacada era a mesma.
+Conversavamos muito. Venha para aqui.
+
+Fomos para um canto isolado da estufa onde agonisavam, minadas por um
+mal estranho, orchideas esverdeadas. Nasciam chagas nas suas petalas
+recurvas, torcidas, listradas de vergões, varioladas. Sentamo-nos num
+sofá. O ministro ofereceu-me um cigarro de Nestor Gianaclis, perfumado e
+adormecedor. Escutei-o.
+
+--Como lhe disse, sir Arnold é um egoista. Quer aumentar o poder, para
+empregar a formula de Nietzche. Desenvolve energicamente a
+personalidade, segundo ou contra a moral, é-lhe indiferente, torneando
+os preceitos dos codigos penaes e os usos sociaes, de maneira a se lhe
+não fecharem os palcos onde se exibe, os salões cosmopolitas, mais
+faceis e, sobre tudo, mais indulgentes. Elle não diz como o poeta: «je
+porte fiérement la honte d'être beau»; não, para Davis não é uma
+vergonha, pelo contrario, trata de fazer valer, por toilettes e atitudes
+longamente estudadas, por meios artificiaes, a sua belleza clara, loira,
+a que os olhos transparentes dão um encanto misterioso, uma sedução
+que empolga, fascina, arrasta os pobres mulheres que desmaiam, sucumbem,
+diante desse Apollo adolescente e terno, cuja força se adivinha apenas
+nas mãos, de dedos firmes, de pelle, apesar dos cosmeticos, um pouco
+aspera. Viu-o bem? Reparou em como todo o seu corpo harmonioso d'atléta
+toma atitudes cançadas, como os seus olhos pareciam dissolver-se, ao
+olhar para a pequena Von Hameghen e a sua boca de labios finos e
+imberbes, se contraíam para o espasmo d'um beijo? Ha sete annos era o
+mesmo. Parece que para elle o mundo e os dias se conservam imoveis.
+Dir-se-hia que essa adolescencia se guarda no gelo. Que pacto teria
+feito este homem com o demonio?
+
+--Talvez o mesmo que Dorian Grey...
+
+--Bah! Dorian Grey matou Basil... Julga que será Sargent, realista,
+amando a força concentrada e não a belleza, quem fará o novo retrato
+magico! Ou Lazló?
+
+Já não ha Basil. Talvez em Hespanha... Sorolla ou Zuloaga... Mas os
+hespanhoes são naturalistas e republicanos. Veja Ibañez... A «Catedral»
+liquida em artigo de fundo.
+
+--E Davis? atalhei, pondo um dique á divagação abundante.
+
+O ministro sorriu-se. Certamente que se lembrou do epigrama de Marcial.
+
+--Ah, sim! Davis e Aix-les-Bains. Estou prolixo como o bom Tito
+Livio. Entro em materia.
+
+Ali, no canto da estufa, abaixando a voz quando alguem se aproximava,
+para o afastar, o dinamarquez contou:
+
+--Estava no «Splendide» lady Hanswell, que depois de tratar do
+reumatismo, com massagens e duchas, chorava poeticamente, pelas alturas
+vicejantes do Bourget, os dez annos de casamento feliz com lord Vivian
+Hanswell esse extraordinario homem, misto de Heroe, de Poeta e de doido,
+que, começando por fazer odes extranhas aos venenos, aos assassinios e
+ás traições, acabára em Middlefontain, voluntario da Rainha, o primeiro
+na escalada d'uma collina, o monoculo entalado no olho, um livro de
+versos na algibeira do kaki enlameado e a cartucheira já vasia, de
+tantos tiros dados friamente, como nas suas coutadas ferteis da Irlanda.
+
+A viuva amára em seu marido a belleza adolescente, todo aquelle ar
+gracioso como o d'uma mulher, os largos olhos claros, transparentes,
+como gotas d'agua azul; amára o seu espirito extranho de comedor d'opio,
+cambiante e misterioso, deleitando-se na posse de coisas frageis, de
+flôres que, mal cortadas se fanam, os cristaes finos, as filigranas, as
+ceras, os linhos que envolvem, fumos, as mumias egipcias e quasi se
+pulverisam ao tocar-se-lhes, os leques de rendas; o imprevisto das suas
+áções sem logica, que nada faziam prever, quasi sem realidade, como
+essas arvores que teem um metro de raizes fóra da terra.
+
+Lady Hanswell, já passado o segundo anno de viuvez ainda carpia nas
+palavras baixas em que recordava o marido, nos olhos que de tantas
+lagrimas regadas eram frescos como fetos nascidos á beira dos regatos,
+nas toilettes lilas, com que se vestia, foncées de manhã, claras á
+noite, nas perolas cinsentas com que se enfeitava, gargantilhas pesadas,
+collares multiplos, caindo sobre o collo, anneis de castães largos, que,
+á luz, pareciam cinzas...
+
+Foi sobre ella que Davis se lançou, decidido, acirrado não só pelos seus
+dois milhões de libras, mas tambem pela pelle fina, mate, macerada em
+banhos prolongados de perfumes, pelos olhos em que brilhava uma volupia
+indecisa, a afogar-se na tristeza, como um reflexo impreciso de estrella
+num tanque.
+
+--A mulher deve ser como o Champagne: _extra dry_.
+
+Vi-o n'esse cerco, a sitiar a praça, a fazer-se valer, fugindo de lady
+Hanswell, de todos, indo pouco ao Grand Cercle e á Villa des Fleurs,
+tomando, de manhã, nos Banhos, e á meza, atitudes d'uma tristeza
+profunda, maniaca, que interessasse.
+
+Só á noite, quando fumavamos o derradeiro charuto na varanda, sacudia a
+mascara e falava-me do desenvolvimento da personalidade, toda a
+theoria de Spencer e de Stirner, poetisada e dramatisada por Nietzche,
+nelle menos literaria, menos filosofica, mas mais sincera, floração
+inconsciente do seu Ego, sumula emfim da sua maneira de ser, animal
+forte, que sabe que a Vida existe e quer apreender sem esforço,
+desenvolver-se avidamente, até com detrimento dos outros.
+
+--É necessario viver a nossa vida, disse-me.
+
+N'essa noite, Davis, que era d'uma sobriedade exemplar, por calculo
+talvez, para impressionar byronicamente lady Hanswell ou por impulso
+atavico--gerações a alascar-se em Port-Wine pesam esmagadoramente--por
+qualquer motivo, Davis acompanhou todo o jantar de Cliquot. Saimos
+juntos, tomamos pelo _Boulevard des Côtes_, que vae contornando a
+montanha e mostrando-nos, em cada curva, um aspecto novo d'Aix e do
+campo, aqui a massa d'arvores illuminadas dos parques dos dois casinos,
+alem a rua de _Genéve_, apagada e quieta, mais alem as montanhas cujos
+perfis se recortam docemente no ceu enluarado, n'um outro cotovello o
+lago do Bourget, que parece, na noite clara, de mercurio incendiado.
+Caminhavamos apressados, subindo sempre, até á nascente d'essa agua
+choca que os medicos nos fazem beber de manhã, em jejum.
+
+Sir Arnold falava com fluencia:
+
+--Todas as creaturas devem ser, para nós, elementos de desenvolvimento
+do poder, utilidades. Extraido d'ellas o que nos pode servir devemos
+pol-as á margem. É o que o organismo faz, inconscientemente... Quem
+sobrecarrega com sentimentos inuteis o seu coração, apodrece, morre.
+Devo todo este ensinamento filosofico, não aos livros, nem ás
+conferencias, mas a uma pobre _caissière_, Eva Farland, d'um pequeno
+restaurante do Strand onde eu jantava economicamente nos dias em que não
+encontrava emprego para o meu mister agradavel de _pique-assietes_. Ali,
+por um shelling e meio tinha uma boa talhada de _mutton_ e uma caneca de
+cerveja, para desalterar.
+
+Essa pobre rapariga prendeu-se nos olhos azues de Davis; prenderam-a
+seus braços fortes, a sua boca que ao beijar mordia. E foi para elle
+como uma escrava, atenta, paciente, devotada, gastando o seu ultimo
+penny em futilidades que Davis atirava para o lado, com desdem,
+dando-lhe quarto, copiando á noite escritas, para pagar a luz, a lenha,
+a agua, porque Davis fôra viver com ella, por economia--era um periodo
+de _guigne_ extraordinaria!--persuadindo-se a pobre Eva que era por
+amôr. Doce e abençoada mentira que a tornava feliz, dava-lhe coragem
+para continuar a vida dura, fornecia-lhe a energia necessaria para estar
+á caixa todo o longo dia, esperar, ás vezes, por elle toda a
+inferminavel noite, quando o jogo o segurava com a caricia aspera das
+suas mãos de aço; resignar-se ás longas ausencias, porque Sir Arnold, em
+ganhando alguns guineus, reentrava na sociedade, ia jantar ao club,
+frequentava os _music-halls_ nos camarotes do club, reencadernava-se,
+emfim, de gentleman.
+
+Eva era o seu cão, mas cão de cego, util, chorando ás escondidas e
+pouco, para não afear o soberbo rosto, não avermelhar os grandes olhos
+sensuaes e tristes.
+
+N'um periodo mais largo de miseria, não chegando para os dois o salario
+da amante, nem as copias, ella punha o chapeu, á noite, e ia pelo
+Picadilly, misturando-se aos soldados, a fazer-lhes concorrencia, á caça
+do guineu pondo em cada sorriso, um soluço.
+
+Davis via-a sofrer, indiferente, achando rasoavel que por elle outrem
+penasse, continuando descuidado, até que um dia a fortuna sorriu-lhe
+pela boca desdentada d'uma rainha de qualquer coisa na America, porco
+salgado ou azeite de fóca. Nunca mais soube d'Eva, de quem nem sequer se
+despediu, e que, se não morreu de dor--o que é pouco provavel--teve com
+certeza uma lancinante crise de desespero.
+
+Ora essa mulher, que por elle fez todos os sacrificios, incluindo o do
+pudor da amante, considerava-a elle o seu mestre de egoismo, pois
+habituára-o a pensar que o amôr pode ser um modo de vida e a
+belleza extranha e fascinante suprir as aptidões para a lucta pela vida.
+
+Foi a confissão que me fez n'uma noite de vinho, em que o Cliquot d'oiro
+levára ao seu coração impassivel o desejo de expandir-se.
+
+Não tornámos a falar no assunto, persuadi-me até de que elle não tinha
+consciencia da propria indiscrição e continuei a examinal-o no
+interessante combate travado com lady Hanswell.
+
+Parece que a embriaguez produziu o seu efeito, porque lady Hanswell
+começou a lançar-lhe, por vezes, obliquamente, olhares em que punha
+alguma coisa de caloroso, as lagrimas deixaram de borbulhar-lhe nos
+olhos, que andavam secos do desejo que ardia dentro.
+
+Ao começo d'ataque da ingleza, respondeu sir Arnold com um simulacro de
+retirada, um mergulho na sua aparente tristeza, abstinencia de comida,
+que o levava ás escondidas ao American Bar todas as noites, a leitura
+constante do resignado Shelley e do desesperado Byron, cujos livros
+deixava ficar sobre as mezas com marcas nos versos adequados á
+circunstancia pensando que lady Hanswell não deixaria de ir folhear os
+volumes.
+
+Ia realmente, sofrega, já esquecida do marido, estudando toilettes, não
+já ruskinianas, com toda a tristeza doce das figuras dos primitivos, mas
+as que fizessem realçar a sua elegancia, largos decótes que
+mostravam a flor nevada do seu cólo opulento, fulgiam-lhe nas mãos os
+largos costões esverdeados de berilos que Lalique lançára n'esse anno,
+remoçava a sua boca escarlate uma primavera de beijos, que se ofereciam,
+como as laranjeiras que nos quintaes murados veem sacudir para a estrada
+as laranjas d'oiro.
+
+Lady Hanswell atacava vigorosamente, num assalto de desespero, pondo na
+conquista de Davis toda a pertinacia da raça, toda a galantaria e
+vaidade do sexo.
+
+Davis fugia, mas forneceu-lhe a ocasião d'ella se lhe dirigir,
+entabolaram relações, elle mais dobrou a sua alma, melancolicamente,
+falara-lhe de amôres purissimos, que vicejam nas almas candidas, como
+desbotadas flores nas planicies geladas da Noruega.
+
+Falou-lhe n'uma especie de amor duplo, um amôr platonico por uma, em que
+a alma vae em primeira cumungante, e o desejo se dirige para outra.
+
+E, diante d'ella, passeou pelas alamedas da Villa des Fleurs com Blanche
+Lely, e, ostensivamente, durante alguns dias recolheu de manhã, a hora
+em que lady Hanswell costumava sair para o banho.
+
+A tristeza voltou á face branca da ingleza. Durante o jantar olhava para
+a porta constantemente, a cada movimento do _paravent_ estremecia,
+lançava nos olhares para mim curiosas innterrogações que a minha face
+muda deixava sem resposta. Voltou a chorar depois das ducha e das
+massagens, como antigamente pelo defunto marido, e, de manhã, quando se
+encontrava com sir Arnold o seu olhar tinha caricias, parecia que lhe
+lambia a face linda.
+
+Foi ella que o levou, fremente, na ancia de não perder a presa, já no
+carro a cerral-o entre os braços, para as Gorges du Sierroz, onde,
+depois do almoço, no gabinete do restaurante rustico, os beijos arderam
+e ella poude morder a boca em sangue de sir Arnold.
+
+Quanto custaram á consolada viuva esses beijos?
+
+
+N'esse momento, sir Arnold Davis passou, levando pelo braço a franzina
+Carlota Von Hameghen, que lhe encostava a cabeça ao hombro olhando para
+elle n'uma suplica, que o sorriso dos labios finos apoiava fortemente.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+FUMO
+
+ A LUIZ O'NEIL.
+
+
+FUMO
+
+
+Para fugir da exotica humanidade que enchia as salas do Kursaal de
+Genebra, saimos, apezar da noite fria, para o amplo terraço sobre o
+Léman tranquillo.
+
+Eu levára Roberto ali para mostrar-lhe Chiara, a dançarina italiana, que
+nas suas danças bisantinas me surpreendera e comovera no Alhambra de
+Londres.
+
+Era a Volupia feita luz e feita dança. N'um _maillot_ de seda, parecia
+nua. Uma cintura de oiro, marchetada de largas pedras brilhantes
+segurava-lhe os seios firmes. Grossas manilhas mordiam os braços finos e
+os tornozellos. Um diadema apertava a massa luminosa dos seus cabellos
+loiros. E, na face branca, eram d'um brilho de gema os olhos azues,
+quasi violeta-de-Parma. A musica que a acompanhava tinha um envenenado
+langor. Chiara deslisava, mal pousando os pés nús sobre o tapete de
+Smyrna. E do brilho das joias, como da florescencia musical dos
+gestos, brotavam lascivias, ardiam desejos, que faziam correr fremitos
+por toda a sala incendiada por lampadas poderosas.
+
+Aquella dança sabia, apenas ritmada pelas vozes das flautas e das liras
+que tocadoras de flauta e tocadoras de lira, vestidas á grega, no
+palco tocavam! Uma ou outra vez um pé nú fazia vibrar o bronze dos
+crotalos. Era como um grito de vitória, um beijo mordido n'uma boca
+sedenta. Chiara tomava então uma atitude de entrega, todo o seu corpo
+flexivel e delgado parecia tombar, como uma haste fragil que cede ao
+explendor de uma enorme rosa vermelha, e verga e sucumbe.
+
+A grande flôr d'oiro e luz, em que as abelhas das joias picavam e
+pareciam morder, fixas nas lhamas dos engastes! Como a vejo ainda
+nitidamente, ramo d'oiro e de rosas, fazendo nascer desejos
+cintillantes, chuveiros d'elles, rapidos, fulgentes, descendo como
+estrellas d'oiro, como os bocados de astros que voam no ar escuro, nas
+noites quietas d'agosto!
+
+E preso á tentação de vêr a dançarina, deixei Aix e as duchas, _Villa
+des Fleurs_ e o seu rebanho de cocottes e, com Roberto, á pressa
+envergados os smokings, fomos para o Kursaal. Mas no salão, um aviso e
+um certificado medico diziam a doença de Chiara. Um grande desanimo
+abateu-me as espaduas. Como passar uma noite na cidade alinhada e
+mecanica como um relogio? Em todo o Kursaal, nem um rosto interessante.
+Ranchos do Cook, das segundas classes, lyonezas rotundas e vermelhas,
+suissas frescas, que parecem esculpidas em manteiga e em cujas faces
+contentes os olhos são parados e azues... Caixeiros de Lyon,
+aproveitando comboios a preços reduzidos, apertavam-se em volta das
+compridas mezas dos _petits chevaux_. Dois americanos silenciosos
+chupavam por palhinhas os violentos cocktails.
+
+Fugimos.
+
+Na noite escura, o lago era azul escuro. Os focos electricos dos caes
+punham na agua fitas brancas, que dançavam e se quebravam contra as
+ondas. Pareciam pestanejar as pequenas lanternas vermelhas dos
+_bateaux-mouches_. Tudo parecia dormir. Uma brisa ligeira trazia até
+junto de nós o silencio da cidade. Apenas do Kursaal as luzes coavam-se
+pelas ramadas e, amortecidas, as walsas que acompanhavam mimambos e
+acrobatas.
+
+Um de nós disse:
+
+--Talvez fosse melhor não ter visto Chiara. Um com a recordação, de que
+viu, outro com a imaginação, teem uma imagem mais bella, por incompleta,
+e em parte mentirosa, da dançarina e do seu bailado. A melhor maneira de
+gosar é criar imagens, viver dentro de nós, alheio ao mundo. Recordando,
+vive-se na imprecisão, sem as arestas. Tudo mergulha num nevoeiro,
+que, deformando a real aparencia, nimba de misterio; desejando,
+ilumina-se mais. Viver deve ser recordar e desejar.
+
+--Pode-se viver recordando e desejando apenas, no momento presente; mas
+para recordar é necessario ter vivido, para desejar é preciso conhecer.
+O desejo ilimitado põe a angustia na alma. É mister alguma coisa de
+definido a desejar.
+
+--Quando chegamos á nossa edade, já vivemos tudo. Conhecemos o efemero
+feminino. Andámos com o coração por todos os amores, por todas as
+angustias. Provámos todos os _crús_, atravessámos mares, dormimos sob
+todos os ceus. Podemos recordar. E, como conhecemos tudo, podemos
+escolher e desejar.
+
+--A vida do homem é, como a de toda a natureza, um continuo movimento,
+fluxo e refluxo permanentes.
+
+--Então é preciso agir?
+
+--É fatal.
+
+--S. Simeão Stylita gastou anos sobre uma coluna, a orar. Vinham de
+desencontradas partes os crentes á espera de milagres. Esposas estereis
+tocavam no plinto, certas de que tempo depois amamentariam o filho
+desejado; os leprosos, os cegos, os atacados do «mal divino»,
+arrastavam-se pelos desertos queimados, até á coluna onde o santo
+resava... E elle, indiferente, como indiferente era aos soes
+asperos, ás ventanias e ás chuvas, continuava a orar. Viveu dentro de
+si. A vida deve ser toda interior.
+
+--A vida do espirito é toda interior, como a vida digestiva. Precisamos
+do mundo exterior para d'elle apreendermos as imagens e os alimentos.
+
+--_Ter comido_, é melhor que _comer_. _Ter gosado_ é melhor que _gosar_.
+O momento da posse é doloroso e vão. É melhor recordar.
+
+--Recordar implica esquecer. E quando das imagens não ficar senão uma
+mancha, como preencher a vida?
+
+--Desejando.
+
+--Mas a faculdade de desejar desapparece com os annos. O velho dos
+Goncourt, quando no restaurante lhe perguntam:--O que deseja?
+responde:--Desejava ter um desejo. Viver é agir. Colher todas flores e
+todos os espinhos, violar todos os cimos, mergulhar em todos os lodos,
+sentir intensamente, pensar todas as doutrinas, apreender do Universo
+tudo o que fôr possivel, ver tudo, ouvir tudo! Viver é entrar na
+harmonia do Mundo! É ser como o eucalipto, subir para o sol,
+triunfalmente, lançar ramadas por todos os lados, espalhar avidas raizes
+egoistas e crueis!
+
+--Viver é recordar e desejar. A vida deve ser feita por nós, como a
+composição d'um quadro é arranjada por um pintor. Não devemos ser o
+espelho de mostrador que refléte toda a rua, mas a psiché do _boudoir_
+d'uma mulher elegante que só refléte atitudes graciosas, sedas, rendas,
+brilhos de pedrarias...
+
+--Viver...
+
+Despejava-se o Kursaal. Apagaram-se as lampadas. Fomos para a estação
+esperar o expresso de Paris.
+
+
+FIM
+
+
+
+INDICE
+
+ A escola de flirt
+ Flirts
+ Logica
+ Romantico
+ A Bisantina
+ Má-lingua
+ A rainha de Sabá
+ Chiara Liliam
+ A Marcia
+ O cego
+ A gloria
+ A festa de maio
+ Tibidabo
+ A princeza perdida
+ Noite de festa
+ Clara
+ Idilio triste
+ Perfil d'aventureiro
+ Fumo
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Flirts, by Henrique de Vasconcellos
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS ***
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+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
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+
+
+Updated editions will replace the previous one--the old editions
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+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
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+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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+
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
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+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
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+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
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+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
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+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
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+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
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+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
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+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
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+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
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+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
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+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
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+<head>
+ <title>Flirts, por Henrique de Vasconcellos</title>
+ <meta name="Author" content="Henrique de Vasconcellos">
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+
+
+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of Flirts, by Henrique de Vasconcellos
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Flirts
+
+Author: Henrique de Vasconcellos
+
+Release Date: January 26, 2011 [EBook #35073]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div>
+<p> </p>
+
+<div class="ntransc">
+<p><b>Notas de transcrição:</b></p>
+
+<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1905.</p>
+
+<p>Foi mantida a grafia usada na edição original de 1905, tendo sido corrigidos
+apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que
+por isso não foram assinalados.</p>
+</div>
+
+<p> </p>
+
+<p><span class="pn">{1}</span></p>
+
+<div class="capa">
+<p style="font-size: 1.2em;">H<small>ENRIQUE DE </small>V<small>ASCONCELLOS</small></p>
+
+<p style="font-size: 3em;">FLIRTS</p>
+
+<p>(CONTOS)</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>LISBOA <br>
+<small>Ferreira &amp; Oliveira, L.<sup>da</sup>&mdash;Editores <br>
+<em>132, Rua Aurea, 138</em></small><br>
+&mdash;<br>
+1905</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn">{2}<br>{3}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p style="text-align:center; font-size: 1.6em;">FLIRTS</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><span class="pn">{4}<br>{5}</span></p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p style="font-size: 1.2em;">H<small>ENRIQUE DE </small>V<small>ASCONCELLOS</small></p>
+
+<p style="font-size: 3em;">FLIRTS</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>LISBOA <br>
+<small>Ferreira &amp; Oliveira, L.<sup>da</sup>&mdash;Editores <br>
+<em>132, Rua Aurea, 138</em></small><br>
+&mdash;<br>
+1905</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><span class="pn">{6}</span></p>
+
+<div style="margin:4em;">
+<p style="text-align:center;">D<small>E </small>H<small>ENRIQUE DE </small>V<small>ASCONCELLOS</small></p>
+
+<p>&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;<em>P<small>RIMEIRAS POESIAS, EM QUATRO VOLUMES:</small></em></p>
+
+<p>F<small>LORES CINZENTAS</small> (exgotado)<br>
+
+O<small>S ESOTERICOS</small> (exgotado)<br>
+
+A H<small>ARPA DE </small>V<small>ANADIO</small><br>
+
+A<small>MÔR PERFEITO</small> (exgotado)</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;<em>P<small>ROSA:</small></em></p>
+
+<p>A M<small>ENTIRA </small>V<small>ITAL</small>, um volume.<br>
+
+C<small>ONTOS </small>N<small>OVOS</small>, um volume.</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn">{7}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+
+<blockquote>
+ <p>L'art et la science sont independants. La morale ne doit avoir aucune
+ prise sur eux; jamais l'artiste, avant de faire une statue, jamais le
+ philosophe avant de faire une loi, ne doivent se demander si cette statue
+ sera utile aux m½urs, si cette loi portera les hommes à la vertu. L'artiste
+ n'a pour but que de produire le beau, le savant n'a pour but que de trouver
+ le vrai. Les changer en predicateurs, c'est les detruire. Il n'y a plus de
+ science ni art dès que l'art et la science devienent des instruments de
+ pedagogie et de gouvernement.</p>
+
+ <p>           H. T<small>AINE.</small></p>
+</blockquote>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><span class="pn">{8}<br>
+{9}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00010">A ESCOLA DE FLIRT</a></h1>
+
+<p class="assin">A<small>O </small>C<small>ONDE DE
+</small>F<small>IGUEIRÓ</small></p>
+
+<p><span class="pn">{10}<br>
+{11}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00011">A <small>ESCOLA DE
+</small>F<small>LIRT</small></a></h2>
+
+<blockquote>
+ <p>O <small>PROFESSOR</small>.&mdash;Sem edade, 25 ou 40, tudo lhe convém. Uma
+ mocidade que envelheceu, ou mocidade que dura <em>quand même</em>, «je meurs
+ où je m'attache». Toda a pelle do rosto é sulcada por imperceptiveis rugas
+ finissimas; a boca tem um sorriso de cético, mas os olhos ainda brilham.
+ Parece ter conhecido tudo ou advinhado tudo. Se se olha para a boca, sente-se
+ que conheceu, para os olhos, pensa-se que adivinhou.</p>
+
+ <p>Elegante, uma ponta de preciosismo,&mdash;muito pouco!&mdash;apenas presentida na
+ maneira como olha para as mãos deliciosamente cuidadas, como as d'uma
+ senhora, viajou por toda a parte, indo mais ás festas mundanas do que aos
+ museus, leu mais jornaes do que livros.</p>
+
+ <p>A <small>DISCIPULA</small>.&mdash;Uma ingenuidade, que quer conhecer tudo,
+ ignorando tudo. Vestida um pouco <em>à la diable</em>, seria positivamente
+ <em>fagotée</em> sem a elegancia do corpo fino e leve e o brilho e o riso dos
+ olhos e dos labios côr de rosa.</p>
+
+ <p>A discipula vae procurar o professor da Escola de Flirt, discretamente
+ annunciada por meio de circulares em papel lilaz com dois corações em chamas
+ estilisados à maneira moderna. É n'um minusculo jardim seculo
+ <small>XVIII</small> portuguez, com um delgado repuxo a partir-se n'um
+ pequeno tanque sem lavores e canteiros bordados por buxeiros. No centro d'um,
+ uma anagua forma uma copa verde-clara de onde pendem as campanulas brancas
+ que perfumam.</p>
+</blockquote>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;É v. ex.ª que...</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Sim, senhor... Venho aqui tomar algumas lições.
+Fiz a minha educação<span class="pn">{12}</span> no convento; não tive occasião
+de aprender os rendimentos do Flirt. Casei sem amor, sem noivado, sem lua de
+mel... Um casamento de conveniencia... para o meu tutor. Escusou de prestar
+contas. Vim ha pouco para Lisboa. Aqui, toda a gente flirtea um pouco. Troçam
+do meu acanhamento, chamam-me Pires, até Possidonia, dizem que sou «old style»,
+do tempo da rainha Anna... Recommendaram-me esta escola. Se não ensinam aqui as
+cortezias, dança, diversas maneiras de trazer as <em>mouches</em>, como no
+tempo de Moliére, mostram-nos como se conduz um flirt com a pericia com que o
+Jeronymo Condeixa guiava <em>four-in-hands</em>.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;V. ex.ª é intelligente?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;(<em>Modestamente</em>)&mdash;Sou.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Formosa, vejo que é. (<em>A discipula
+agradece</em>) Gosta de toilettes?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;<em>Fagotée</em> durante a minha interminavel
+mocidade&mdash;vinte annos na provincia!&mdash;não possuo a complicada arte da
+<em>fanfreluche</em>.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Mas tem tendencias?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Enormes! Passo horas ao espelho a compor o meu
+pobre cabello, a pôr uma fita...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Mais tout ça c'est l'affaire de la femme de
+chambre!</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;(<em>Indignada</em>) Entregar-me a mãos
+mercenarias?!<span class="pn">{13}</span></p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Mas minha senhora! Deve v. ex.ª fazer...
+permitta-me a expressão&mdash;as proprias meias? Passar as noites em compridos
+serões a alinhavar os corpetes com essas mãos que adivinho lindas sob a pellica
+da luva? (<em>A discipula agradece.</em>) Com certeza que não. Bem o vejo nos
+seus olhos que são, deixe-me dizer-lhe, d'um brilho incomparavel. (<em>A
+discipula torna a agradecer.</em>) Todos esses cuidados pertencem aos
+fornecedores. É por acaso a propria rosa que póda a roseira? Não! Ha
+jardineiros de mãos calosas e almas rudimentares que preparam a eclosão das
+orgulhosas flores que são o pasmo e o encantamento dos jardins. Ha creaturas
+que se dobram dias inteiros sobre sedas e rendas, pensando em cosinhadas e roes
+de roupa suja, e constroem fantasticas teias em que nos vamos prender, as
+deliciosas toilettes dos Redfern e dos Rouff... Porque se não deixa preparar
+por ellas? Ha cabelleireiras habeis que ageitam deliciosos penteados. Seja
+paciente, consinta que ellas a penteiem.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;É absolutamente preciso? Não poderei
+prescindir?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Absolutamente... absolutamente... não... A
+formosura de v. ex.ª suppre muito... tudo... Mas é util.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Bem... E depois?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Sabe conversar?<span class="pn">{14}</span></p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Meu Deus! No convento, no que conversavamos mais
+era nas Irmãs... para dizer mal d'ellas.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Dizer mal... é bom... mas de quando em quando...
+Senão cae-se nas soirées do <em>Sporting</em>.&mdash;Lê?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;O <em>Diario Illustrado</em>, todas as
+manhãs...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;É pouco. Bourget&mdash;fala do coração. É um bom
+tema. Tudo o que se disser é verdadeiro e falso, de fórma que uma opinião é
+voltada do avesso com a maior facilidade. Falla de mulheres, <em>toilettes</em>
+e almas, pezares e córtes <em>tailleurs</em>, amores e rendas de
+corpetes...&mdash;uma <em>macedoine</em> que, para a conversação, tem o encanto da
+variedade.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Tenho o Larousse.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Bah! O Larousse é muito comprido. Não se pode
+falar em sociedade, como se não deve falar no diabo e em outras coisas do uso
+diario. Outro: Theuriet&mdash;é sentimental, cheio de lamurias; no campo, um chorão,
+n'uma sala, um piano. É optimo para as noites de luar, na praia, emquanto se
+faz a digestão.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Uma pastilha de Vichy em trezentas paginas.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Pouco mais ou menos. É um filho de Lamartine...
+Olhe, este é preciso cital-o... ás vezes... a troçar... Depois, todos os
+<em>vient-de-paraitre</em>. O <em>Figaro</em> assignala-os.<span
+class="pn">{15}</span> A proposito: são muitos. Leia dez paginas no começo,
+vinte no meio e as tres ultimas. Terá assim um verniz literario... completo.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Tenho entendido.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Mas isto é longo. Prefere entrar? Quer a
+primeira lição aqui ou na aula? Aqui?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Sim. Acho melhor. Sob as arvores, junto ás
+flores, a ouvir o murmurio dolente da agua que corre.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;É poetica?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Quasi, ás vezes.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Não fica mal um pouco de poesia... Falar do mar
+e do estremecimento da lua sobre as aguas inquietas, comparar-se á agua
+movediça e infiel... Emfim são coisas para mais tarde. Vamos aos preliminares.
+Ah! Antes de mais nada: o nome de v. ex.ª?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Carmo... Maria do Carmo. As minhas amigas
+chamam-me a Carminho.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Um nome lindo...</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Não se presta a madrigaes.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Um nome sabendo a flores silvestres...</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Pires...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;(<em>Vae tomando calor</em>)&mdash;Pelo contrario. Um
+nome que se desfaz na boca como um <em>fondant</em>, nome para murmurar nas
+horas perturbantes, nome que finalisa n'um franzir de labios, como para um
+beijo... Delicioso!<span class="pn">{16}</span></p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Muito obrigada.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Bem. Bem. Passemos á lição. (<em>Toma um falso
+ar amavel, faz brilhar na boca um sorriso, retorce o bigode loiro.</em>)</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Ouvil-o-hei com toda a attenção.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;(<em>Agradece com um gesto largo</em>).
+<em>Flirt</em> é uma palavra ingleza que deriva do francez. Já tem fóros de
+portugueza: Garrett empregou-a. É como uma batalha de flores entre duas pessoas
+de diferente sexo.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Com os espinhos?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Conforme: ha varias especies de flirt. Ha um em
+que as rosas são quasi todas guardadas por numerosos regimentos de espinhos: é
+o flirt agressivo, feito de recriminações. Ha quem lhe encontre encanto. Pff!
+Não lh'o aconselho. É bom para velhas de sessenta annos com os <em>vieux
+beaux</em> que foram seus namoros. Ha o flirt sentimental, aquelle a quem me
+referi ha pouco, com <em>clair-de-lune</em> e regatos prateados, o flirt com
+Theuriet e Alfred de Musset dos proverbios, um assucareiro em que caiu agua e
+vae entornando calda que pinga e lambusa. Horrivel! Mas tem os seus adoradores,
+misses <em>sur le retour</em>, tias, meninas da Baixa espremidas nos
+espartilhos de baleia e aço&mdash;crosta d'um peixe que a ichtyologia ignora; é
+muito usado lá para os lados excentricos da Estefania. Ha&mdash;tome toda a
+attenção, pois<span class="pn">{17}</span> é o que convem ao seu genero de
+belleza...</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;V. Ex.ª confunde-me...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;O que ha de mais sincero!... Ha um genero, o meu
+predilecto... (<em>Ageita-se no banco, torna a retorcer o bigode, olha
+amorosamente para as unhas rosadas</em>). É o flirt perfumado e finissimo, o
+fumo das cassoletas com perfumes leves, como se queimassem flores, petalas
+tremulas d'anemonas...</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Como V. Ex.ª é eloquente!</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small> (<em>Baboso</em>)&mdash;É V. Ex.ª que me inspira!</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Os seus olhos sublinham com tal calor as
+frases!</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Um pouco de luz que vem dos seus!... Um reflexo
+do seu admiravel olhar! É por isso que falo assim. (<em>Approxima-se
+d'ella</em>). É o flirt em que o coração apenas perfuma... O que tem de bom uma
+flor? A propria materia? Não, que essa é unica, a mesma na couve lombarda e no
+lyrio. É o perfume e a côr. Do coração, tambem, só devemos permutar o perfume.
+Ora imagine: entregar um coração cheio de sangue, a palpitar como um peixe
+quando acaba de ser pescado!</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Até mete medo!</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Tem razão. Até mete medo. V. Ex.ª tem sempre
+razão.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Muito obrigada.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;As pessoas formosas&mdash;e V.<span
+class="pn">{18}</span> Ex.ª é divinamente formosa&mdash;teem sempre razão.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;V. Ex.ª é muito lisonjeiro.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;A lisonja é o aroma da verdade. V. Ex.ª merece
+tudo.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;V. Ex.ª é extraordinariamente amavel.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Podesse eu ser amavel para que todas as senhoras
+bonitas me amassem!</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Todas?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Quando digo todas... V. Ex.ª comprehende que me
+refiro a uma só.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Feliz aquella...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Acha feliz?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Deve sentir o peito em festa...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Oh minha senhora!</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Lembrar-me-hei de si. Nas noites infindaveis,
+quando me sento ao piano e os meus dedos correm sem fito sobre o teclado...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Como nardos que andassem...</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Como póde dizer isso, se nunca as viu?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Adivinho-as. Mas gostaria de as vêr
+(<em>Toma-lhe a mão</em>). Estas luvas são de Paris?</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Não senhor: são dos Gatos.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;(<em>Um pouco desapontado</em>). Não importa. As
+mãos são lindas. (<em>Vae desabotoando uma das luvas</em>).<span
+class="pn">{19}</span></p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;(<em>Consentindo</em>). O que faz?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Estes botões são feios. Mas a pelle é
+finissima.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;A da luva?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Não, a da mão.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;Agradecida.</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;(<em>Curva mais a cabeça approximando-se mais,
+assim, da mão</em>).</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;(<em>Sem a retirar</em>). O que faz?</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Nada, minha senhora... ia vêr melhor o grão da
+pelle.</p>
+
+<p>A <small>DISCIPULA</small>&mdash;(<em>Ligeiramente desapontada</em>). Ah!
+julguei...</p>
+
+<p>O <small>PROFESSOR</small>&mdash;Oh minha senhora! Pensar tal a meu respeito! Não
+sabe que o flirt é o amor sem desejo, a sombra do Amor? Eu não podia dar-lhe um
+beijo!<span class="pn">{20}<br>
+{21}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00020">FLIRTS</a></h1>
+
+<p class="assin">A A<small>NTONIO </small>B<small>ANDEIRA</small></p>
+
+<p><span class="pn">{22}<br>
+{23}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00021">F<small>LIRTS</small></a> </h2>
+
+<blockquote>
+ <p>Maria do Carmo, curvada sobre a meza, folheia os ultimos <em>envois</em>
+ de Paquin e Redfern. Um candieiro com um largo quebra-luz de seda e rendas
+ lança-lhe sobre o cabello uma aureola de oiro. O corpo está mergulhado na
+ penumbra. Na sala, os moveis tomam aspectos fantasticos. Os espelhos teem um
+ brilho pallido. Gonçalo, ao entrar, beija a mão que Maria do Carmo lhe
+ estende, sem levantar os olhos dos papeis.</p>
+
+ <p>M<small>ARIA DO CARMO</small>&mdash;trinta annos, com dez de casamento. Sem
+ filhos. A vida passa-se-lhe em visitas, <em>raouts</em>, recéções e bailes.
+ Alguns livros da moda, recommendados por Marcel Ballot, no <em>Figaro</em>, e
+ Jean Lorrain, por curiosidade. Interessante como um enigma, ás vezes
+ perversa. Não se lhe conhece um amante, mas indicam-se muitos. Não toca
+ piano.</p>
+
+ <p>G<small>ONÇALO</small>&mdash;não tem uma branca, mas no meio da animação,
+ ficticia, vê-se um grande cançaço de viver, como se tivesse experimentado
+ tudo. Procura por toda a parte, como um <em>gourmet</em>, o manjar fino.
+ Epicurista, delicadamente depravado, como um <em>roué</em> da Restauração, ou
+ um elegante do fim da republica romana.</p>
+</blockquote>
+
+<p>&mdash;Ainda bem que veiu!... Preciso do seu bom conselho... </p>
+
+<p>&mdash;Como sempre, depois de ter feito alguma tolice?...</p>
+
+<p>&mdash;Impertinente!</p>
+
+<p>&mdash;É sempre assim. Pede-me o conselho depois de não precisar d'elle! De
+resto, dá na mesma: ninguem segue conselhos.<span class="pn">{24}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não. Tenho aqui estes dois albuns. De Paquin... De Redfern... São as
+ultimas creações. Estou tentada a escolher quasi tudo e a não escolher
+nenhum... Quer acreditar que tenho dias vazios na minha vida? Dias sem vontade,
+d'uma grande lassidão, em que nem sequer tenho forças para fingir que
+sorrío!...</p>
+
+<p>&mdash;Ame um pouco...</p>
+
+<p>&mdash;É coisa que se encommende? Acordo um dia, com a resolução de amar. É logo.
+O primeiro que me apparece na Avenida, aquelle que melhor dorme em S. Carlos, o
+caixeiro que me vende as fitas no Martins! Vê-se bem que nunca amou!</p>
+
+<p>&mdash;Não amei! Mas eu não <em>sou</em>, eu <em>amo</em>. É a minha maneira de
+existir. Um nasce cego; nasci amoroso...</p>
+
+<p>&mdash;Calle-se! Diga lá, qual d'estes vestidos prefere?</p>
+
+<p>&mdash;Sabe que é muito difficil escolher um vestido pelos desenhos feitos
+<em>d'après</em> os manequins? O mesmo vestido toma aspectos differentes
+conforme as pessoas...</p>
+
+<p>&mdash;Não faça filosofia. Olhe este de Paquin: ligeiro, todo em rendas, em
+coisas leves, parece feito com flôres; o Redfern é mais hieratico; mesmo nos
+vestidos de baile conserva a <em>raideur</em> dos córtes <em>tailleur</em>. São
+vestidos para a Bouro, que parece ameaçar-nos constantemente com a sua corôa de
+marqueza. Este?<span class="pn">{25}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não lhe irá bem, talvez... O talhe da saia engrossa a sua figura, a que
+não vão bem...</p>
+
+<p>&mdash;O senhor treslê... Tudo me vae bem... Deixe lá os figurinos... Não sabe
+nada de vestidos... É como do coração. Aconselha-me a que ame...</p>
+
+<p>&mdash;E dou-lhe um bom conselho. Nem parece que sou seu amigo.</p>
+
+<p>&mdash;Trouxe hoje a alma de cinico?</p>
+
+<p>&mdash;Era a que tinha mais á mão. Estava ao cimo da gaveta...</p>
+
+<p>&mdash;Continuo a dizer: não percebe nada dos negocios do coração...</p>
+
+<p>&mdash;Não ha negocios do coração. O coração dá-se...</p>
+
+<p>&mdash;Não; troca-se...</p>
+
+<p>&mdash;Para quê? Não é preciso, no amor, ser-se correspondido. Basta amar. É
+possivel que para a felicidade seja necessaria a permuta...</p>
+
+<p>&mdash;O amor é o choque...</p>
+
+<p>&mdash;Muitas vezes o cheque.</p>
+
+<p>&mdash;Que <em>jeu de mots</em> tão velho! É o choque de duas almas. É preciso
+que girem bem, no encontro. São duas electricidades que se combinam. Conhece a
+theoria das duas metades da maçã?</p>
+
+<p>&mdash;Conheço: é uma figura de rétorica...</p>
+
+<p>&mdash;Não é. Andam duas creaturas por esse mundo, ignorando o seu futuro,
+achando a vida sem rasão, idiota...<span class="pn">{26}</span></p>
+
+<p>&mdash;Escolhe uma mentira vital, como diz Ibsen. Conheço-lhe o
+<em>charabia</em>...</p>
+
+<p>&mdash;Deixe-me acabar. Corre mundos, faz tolices, fecha-se dias em casa, até vae
+ao circo ver as focas... E nada! Um dia, sem saber como nem porquê, uns olhos
+encontram-se com os seus, numa multidão. Ha a faisca... Pode ser um santo ou um
+bandido, lindo como o Rubempré, estupido como um tenor, candidato á grilheta ou
+futil como um janota. Fica-se presa; somos d'elle para toda a vida, ficamos
+amarradas a elle, como uma sombra... É assim o Amor, é feito de imprevistos...
+Não tem rasão alguma de ser, mas é.</p>
+
+<p>&mdash;Uma coisa fatal? Tem que ser?</p>
+
+<p>&mdash;Sim.</p>
+
+<p>&mdash;Permite-me que discorde?</p>
+
+<p>&mdash;É teimoso.</p>
+
+<p>&mdash;Sou. Já viu alguma discussão dar resultado? O amor é sempre creado por
+nós. Não amamos senão a pessoa que queremos amar. É, como tudo, um acto
+voluntario. Ha escolha. Vemos uma mulher, vinte, trinta vezes, sem nos fazer
+impressão alguma. Um dia ella repara em nós. Se é bonita, elegante, calça no
+Chapelle e veste na Lippman, pelo menos, a nossa vaidade sente-se satisfeita e
+começamos a descobrir-lhe encantos, a crear alguns, a afeiçoal-a ao nosso
+geito. Ao conversar com ella, pomos intensão nas frases ôcas que diz, vemos
+mysterio<span class="pn">{27}</span> no seu sorriso... Estamos presos.&mdash;Um
+bello dia, porém, por qualquer motivo, torna-se util acabar com o pesadello da
+mulher que aparece em toda a parte: sae das brasas do fogão, a que nos
+aquecemos, da pagina que lemos, do fumo do cigarro, do papel em branco em que
+vamos escrever ao nosso procurador. Repara-se um pouco nella. Descobre-se o
+primeiro defeito. Exageramol-o para o grotesco. E da deusa perfeita tambem as
+flores e fica uma caração que faz rir.</p>
+
+<p>&mdash;Uma theoria...</p>
+
+<p>&mdash;Não é, creia. Acontece-me isso duas ou tres vezes por anno. Sabe que ando
+sempre com uma paixoneta... ou mais. Levo oito dias a fazel-as cair do
+peito.</p>
+
+<p>&mdash;E vive feliz?</p>
+
+<p>&mdash;Inteiramente feliz. Saber contentar-se não é a suprema sabedoria? Para que
+se inventou o <em>flirt?</em></p>
+
+<p>&mdash;O <em>flirt?</em> Que horrivel coisa? É a «sombra chineza» do Amor...</p>
+
+<p>&mdash;É melhor. É o perfume. Os delicados contentam-se. É preciso comer uma
+flor? Não, basta respirar-lhe o aroma. Ora essas conversas, meio sentimentaes,
+a um canto, ditas em voz baixa, sublinhadas pelos olhos que toda a alma
+illumina, são como o roçar de azas que fossem flores. Ha o ligeiro premir dos
+dedos, sob os leques, certos tremores de labios, como se os beijos n'elles
+esvoaçassem, uma concentração<span class="pn">{28}</span> de todo o ser, que
+parece boiar no ether, leve... As phrases não se arrastam, n'um espasmo. Teem
+palpitações, lançam-se n'uma curva larga, até desapparecer em estrella. Não
+conhece o <em>flirt</em>. Todo o ser é livre e vae entregar-se, rendido... Cada
+palavra toma um sentido misterioso... Vou-lhe contar um <em>flirt</em>...
+Estava na Suissa.</p>
+
+<p>&mdash;Internacional?</p>
+
+<p>&mdash;Cosmopolita. N'um d'esses cantos, que ultimamente o Cook estraga, na
+Engadine. Paisagem de gelo, hotel de gente podre...</p>
+
+<p>&mdash;De chic?</p>
+
+<p>&mdash;De chic. Conheci uma americana, deliciosa como um fructo acre, que vivia
+fora da <em>coterie swell</em>. O americano vae-se tornando terrivelmente
+<em>rasta</em>. Trinta annos? Talvez... Mas trinta annos frescos, sem rugas,
+viuva depois de dois mezes de escasso matrimonio com um formidavel <em>brasseur
+d'affaires</em> de New-York, cerebro em ebulição permanente que acabou n'uma
+neurasthenia aguda. Iamos passear sós, pelo gelo. Sentavamo-nos nos pontos de
+vista que o B½deker não indica, paisagens tristes de tanta brancura, sem uma
+mancha. Fugiamos dos <em>five-ó-clock</em>, das <em>parties</em> bulhentas em
+complicada companhia. Comecei a amal-a. Tinhamos lido os mesmos livros, sobre
+elles fallavamos: gostavamos das mesmas musicas, d'esse Schumann cheio de côr,
+dolente e envenenado;<span class="pn">{29}</span> preferiamos aos flamengos
+gordurosos e aos hespanhoes sombrios, o delicado misterio dos Vinci, a graça
+fina e brilhante de Raphael.</p>
+
+<p>A fallar de quadros e de romances, as nossas almas tocavam-se, porque um
+sentido novo brilhava em cada palavra; e parecia que cada frase terminava n'um
+beijo. Ás vezes, levemente, as nossas mãos tocavam-se. Era rapido e delicioso.
+D'esse contacto ficava uma lembrança, como d'um perfume. Amor platonico? Não.
+Um <em>flirt</em>. Sem arroubamentos. Sempre a Alma livre, sempre o beijo a
+tremer na bocca, sem cair... Uma ou outra vez, comprehende, por
+esquecimento...</p>
+
+<p>&mdash;Comprehendo. Sem malicia...</p>
+
+<p>&mdash;Essa mulher tinha realisado todo o meu sonho! De resto acontece-me isto
+muitas vezes. O sonho varía com as mulheres que nos interessam. Mas essa
+parecia realisar tudo. No seu corpo ambiguo, de egipcia, parecia conservar-se,
+como um fructo no gelo, uma adolescencia eterna. As suas mãos finas, pesadas de
+tantos anneis em que Vever pozera todo o seu genio estranho, floriam gestos
+d'uma caricia delicada e terna. A sua alma, que parecia ter visto tudo, ainda
+sentia a vida com frescura. As horas que passei junto d'ella! O perfume, uma
+mistura sabia d'Houbigants, então <em>dernier bateau</em>, perturbava... Longe
+d'ella, não pensava n'outra coisa. Recordava-me dos gestos, os pequenos<span
+class="pn">{30}</span> detalhes da <em>toilette</em> e da conversa, um rosar de
+pelle sob as rendas, uma palavra, um <em>grain de beauté</em>, que tinha na
+nuca. Sabe como acabou? Ella propoz-me casar. Fechei-me no quarto, horrorisado.
+Casar, eu? Uma mulher que me julgava capaz d'isso! Era preciso abater esse amor
+orgulhoso, que crescia no meu peito. Que defeito tinha ella? A principio não vi
+nenhum... Fui procurando. Tinha, ás vezes, quando fallavamos em francez, erros
+de grammatica deliciosos. Comecei a achar ridiculo essa ignorancia. D'ahi
+passou para os vestidos, para o corpo, o peito chato, sem ancas... Tudo caiu.
+Essa mulher pareceu-me horrorosa... Comecei a troçar d'ella, do seu
+<em>bas-bleuismo</em>... Por fim ella resolveu partir. Lembro-me perfeitamente.
+O gerente do hotel levou-lhe um enorme ramo de <em>bluets</em>, os raros amigos
+tambem lhe levaram flôres. Todo o carro estava cheio de flôres. Sentou-se entre
+ellas, afagava-as, cortára algumas para cheirar. Chorára. Ainda me deitou um
+molho, que tinha beijado. O carro partiu, como se fosse um açafate. E a sua
+face branca era como uma flôr triste... Não tive pena. O amor já caira. A gente
+ou gosta ou não gosta, conforme quer.&mdash;Vamos fazer um <em>flirt</em> para
+experimentar?<span class="pn">{31}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00030">LOGICA</a></h1>
+
+<p class="assin">A A<small>NTONIO DA </small>C<small>OSTA </small>C<small>ABRAL
+(</small>T<small>HOMAR)</small></p>
+
+<p><span class="pn">{32}<br>
+{33}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00031">L<small>OGICA</small></a> </h2>
+
+<blockquote>
+ <p>N'um <em>garden-party</em>. Emquanto no <em>tennis</em> se cruzam as
+ palavras inglezas, e no kiosque, d'onde caem chuveiros de glicinias, se
+ discutem mãos de <em>bridge</em>, afastados, junto a um roseiral, Joanna,
+ Maria e Miguel veem jogar.</p>
+
+ <p>J<small>OANNA</small>&mdash;Toda a face branca é illuminada por dois largos
+ olhos negros. Casada ha dois annos com um <em>sportsman enragé</em>, que
+ prefere o cabo de uma <em>raquette</em>, o leme d'um <em>outrigger</em>, o
+ <em>guidon</em> d'um automovel, á mais terna caricia da mulher. Usando e
+ abusando do flirt, um em cada dia, ás vezes dois, tem periodos de fidelidade:
+ quando quer torturar alguem. Provoca-o, chama-o, fal-o entontecer com
+ promessas. Quando o vê absolutamente rendido, foge, para pensar n'outra
+ coisa, ou em coisa alguma. Não vae ao fim de nada. Desenha, mas nunca
+ terminou um esboço; toca piano, mas deixa sempre o trecho de musica suspenso
+ a meio d'um compasso. Tem medo de acabar. É uma natureza hesitante.</p>
+
+ <p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Nada intellectual. Um bom animal intelligente. Tem
+ viajado. Mas prefere o <em>steeple-chase</em> de Auteuil a uma
+ <em>première</em> no Vaudeville. Admira a força. É um leal. Dá o seu coração
+ sem reservas. É, actualmente, o flirt fixo de Joanna.</p>
+
+ <p>M<small>ARIA</small>&mdash;Vão-lhe falhando os admiradores. Os cabellos brancos
+ não lhe ficam bem. Não sente muito a falta, nem se irrita com a felicidade
+ alheia. Natureza simpatica, hoje rara. </p>
+</blockquote>
+
+<p>M<small>ARIA</small>&mdash;... Encontrou o Cerqueira a passear d'um lado para o
+outro, no terraço do Hotel, a balbuciar phrases, os olhos fechados, um livro na
+mão.&mdash;Que estás tu a fazer?&mdash;Tenho<span class="pn">{34}</span> hoje de fazer
+uma declaração á Clotilde. Estou a estudar aqui no Bourget duas phrases
+tezas!... </p>
+
+<p>(<em>Joanna e Miguel riem-se, mas deixam cair a conversa</em>).</p>
+
+<p>M<small>ARIA</small>&mdash;A Clotilde merecia-o. Quando se começaram a usar os
+<em>flous</em>, para que é preciso <em>postiches</em>, ella tinha escrupulos e
+explicava:&mdash;«Sei lá se o cabello pertenceu a alguma creatura damnada! E hei-de
+pôr na minha cabeça uma coisa de alguem que hoje está a arder nas profundas dos
+infernos!» O que acham vocês?</p>
+
+<p>(<em>Joanna e Miguel tornam a rir-se, sem responder</em>).</p>
+
+<p>M<small>ARIA</small>&mdash;Já comprehendo. Vocês querem ficar sós...
+(<em>levanta-se</em>).</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small> (<em>sem convicção</em>)&mdash;Não. Deixa-te estar...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small> (<em>a mesma coisa</em>)&mdash;Pelo amor de Deus!...</p>
+
+<p>(<em>Maria afasta-se, voltando ainda a cabeça para sorrir-lhes</em>).</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small> (a <em>principio, parece hesitar, por fim
+decide-se</em>)&mdash;Afinal, o que quer de mim, ao certo?</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Eu?</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Sim. O que quer de mim?</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Não comprehendo...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;É bem facil!...</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Quer chamar-me estupida? Ha de concordar que é pouco
+amavel!...<span class="pn">{35}</span></p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Não desvie a conversa. Sabe que mesmo que o pensasse
+não lh'o diria...</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Então pensa-o?</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Não o penso; sabe isso muito bem.</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Uff! Respiro... Não poderia entrar na Academia, se
+fizesse tal conceito da minha intelectualidade... Não é assim que se diz, nos
+meios <em>très dernier bateau</em>?</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Oh! por mim!...</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;É o seu ambiente, o meio cosmopolita; é inseparavel
+dos diplomatas, delicia-se no Tyrol e em Roma...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Quer outra vez mudar a conversa. Não é verdade?</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Confesso-lhe que sim... Não percebo o que quer!...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Repito-lhe: é facil. O que quer de mim?</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Olhe: dê-me d'ali a minha sombrinha... N'este momento
+é a unica coisa que quero de si.</p>
+
+<p>(<em>Miguel traz-lhe a sombrinha vermelha, que ella abre. A luz parece
+incendiar-lhe o chapeu branco, e toda a face branca</em>).</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Fallemos a serio, um pouco...</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Já me viu brincar? Na minha edade!...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Fishing for compliments?</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Será, se quizer... Oiço-lh'os tão poucas vezes!<span
+class="pn">{36}</span></p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Queria passar a vida, como um d'esses pagens antigos,
+sentado a seus pés a cantar-lhe endeixas. Mas o seu sorriso paralisa, na minha
+bocca, o amor que vae a sair.</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;É o que o Cerqueira chamava uma phrase tesa!</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Porque troça de mim? Porque faz de mim seu joguete?
+Eu andava feliz e livre, sem mulher alguma que me preocupasse. Nunca andei tão
+alegre. Vivia a minha vida, livremente. Todas as mulheres bonitas me pareciam
+eguaes. Joanna começou a chamar-me, a dizer-me phrases que me prendiam, que me
+entonteciam. Tinha olhares para mim tão cheios de promessas, que corri como um
+esfomeado, diante d'uma mão que se lhe estende, carregada de vitualhas. E junto
+de si senti-me perturbado. Foram para mim as palavras mais carinhosas, aquellas
+que tinham um sentido ambiguo, banal para os estranhos, para mim precioso e
+comovido. Parecia um flirt terno. Subitamente, tudo mudou. Parece escolher tudo
+o que possa desagradar para dizer-me. É o flirt agressivo, em que d'uma das
+partes não ha amor, ou o quer esconder. E a conversa é toda feita de botes de
+florete, que muitas vezes arranham e podem até matar o amor.</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Tout passe, tout casse, tout lasse... Porque não ha
+de ser assim o Amôr?...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Mas deixe-o acabar por si, como<span
+class="pn">{37}</span> uma flôr n'um jardim deserto, que se desfolha aos
+poucos...</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Para apodrecer?...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Ó não, não apodrece. Evapora-se como uma essencia e
+deixa um perfume suave&mdash;uma recordação...</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Outra phrase tesa. Está terrivel!</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Faça-me a justiça de pensar que não a li...</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Não. Ouviu-a em alguma peça... Você diz-me que não lê
+nada...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Leio o <em>Seculo</em>, todas as manhãs.</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Não acredito...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Palavra! Por causa das cotações da bolsa. Tenho uns
+dinheiros nos fundos russos... Mas não sobem... Ando infeliz em tudo: no jogo e
+nos amores.</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Nos amores? Diz isso a mim? Você é muito ingrato,
+Miguel!</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Continua a brincar comigo!</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Agora é occasião de eu tambem fallar a serio. E
+faço-lhe a mesma pergunta que me fez ha pouco:&mdash;O que quer de mim?</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;(<em>não atina com a resposta</em>) Eu?</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Sim. O que quer? Tem um flirt comigo... É o meu
+preferido...</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small>&mdash;Diga antes favorito, como se tratasse d'um cavallo de
+corridas.</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;É o meu favorito, seja. Gosta de mim? Muito. É o que
+ia a dizer, com alguma<span class="pn">{38}</span> rétorica. Não gosto eu de
+si? Não me ponho pelos cantos a fallar comsigo, a sós? Não estou aqui a apanhar
+sol, só por sua causa, para poder estar comsigo, em liberdade, sem ter ninguem
+que nos oiça? Não vou á Avenida todas as tardes para o vêr? Não olho para si
+sempre no theatro? Não lhe digo os dias em que vou <em>shopping</em> pelo
+Chiado? Para quê? Para estarmos juntos! Então que quer? Quer casar comigo? Mas
+sou casada e felizmente não ha o divorcio entre nós.</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small> (<em>tristemente</em>)&mdash;Felizmente?</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Sim! Felizmente. Primeiro, é contra a religião;
+depois, escusa a gente de se arrepender varias vezes de ter casado. Assim
+arrepende-se uma só. Não pode casar commigo. Então o que quer?</p>
+
+<p>(<em>Miguel olha-a estupefacto. Não encontra resposta. A expressão de Joanna
+é equivoca. Miguel não sabe se falla ingenuamente, se quer mystifical-o.
+Cala-se</em>).</p>
+
+<p>J<small>OANNA</small>&mdash;Então bem vê que não tem razão para se queixar de
+mim!</p>
+
+<p>M<small>IGUEL</small> (<em>Tem o ar de quem apanhou de surpresa uma grande
+pancada. Olha para Joanna, para si, para os outros. Pensa que o desfrutam.
+Acodem-lhe á boca frases energicas. Levanta-se, ageita o fraque e
+despede-se</em>).&mdash;Muito boa tarde!<span class="pn">{39}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00040">ROMANTICO</a></h1>
+
+<p class="assin">A<small>O CONDE DE </small>A<small>RNOSO</small></p>
+
+<p><span class="pn">{40}<br>
+{41}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00041">R<small>OMANTICO</small></a> </h2>
+
+<p>&mdash;Ajude-me a servir o chá, primo...</p>
+
+<p>Levantou-se. Na quasi obscuridade da sala, que tinha uma luz violacea&mdash;coada
+pelos vitraes onde se curvam lirios roxos&mdash;Clara parecia nascer dos tapetes,
+como uma graciosa e alta flôr de espuma. «Toilette» branca e ligeira, como
+pennas de ave, toda em musselinas, apenas indicando a elegancia do seu corpo
+fino, ia morrer no tapete branco...</p>
+
+<p>Ia por entre os moveis, offerecendo as chavenas onde fumegava o chá
+perfumado, que da China trazem lentas caravanas, por tortuosos caminhos. O seu
+corpo agil descrevia carinhosas curvas. O ruido das conversas continuava... Um
+«flirt» a um canto murmurava, como se as palavras ficassem nos labios. Paulo,
+de grupo em grupo, uma chavena na mão, contente por ser alguma coisa, junto
+d'ella, tinha na bôcca um sorriso beato.</p>
+
+<p>N'aquella tarde nem conversava. Entravam<span class="pn">{42}</span> e saiam
+as visitas, umas apressadas,&mdash;«apenas para saber de ti, Clara»&mdash;outras morosas,
+dando «rendez-vous» no salão elegante e discreto, onde na meia luz quasi se não
+conheciam as pessoas, podia-se estar sem ser visto. E Paulo, calado, n'um
+fauteuil a um canto, sorria para si proprio, olhando a figura indecisa de
+Clara, os cabellos loiros, na sala como enevoada onde apenas o fogão, por baixo
+do para-feu, tinha um brilho vermelho.</p>
+
+<p>Lembrava-se de todo o comprido caminho percorrido desde aquella noite em
+Cascaes, em que o impressionara a graciosidade de Clara, o seu aspecto de flôr
+fresca, sempre em «toilettes» leves, abundantes em gazas, crepons tenues.
+Certamente que, companheiro e parente, admirára sempre a belleza da prima, mas
+seguira outros caminhos, nunca reparára bem para o enigma perturbante dos olhos
+verdes, para a elegancia moderna, feita de graça, a gentil figurinha de
+Boldini, princeza de cera e de seda, cujas mãos eram dignas de vêr florir entre
+os dedos os anneis mais preciosos que Vever e Lalique inventam, em combinações
+de moribundas gemas. Nunca olhára bem para ella com olhos de vêr. Habituára-se
+desde a puberdade a vêl-a. E seus cubiçosos olhares procuravam outras mais
+distantes, que julgava conhecer menos, pelo encanto do imprevisto.</p>
+
+<p>Mas essa noite! Como lhe apparecia ainda,<span class="pn">{43}</span> depois
+de tantos mezes, nitidamente, essa noite d'um ceu leitoso, com uma lua
+enevoada, que se espalhava sobre o mar, sem brilho. Na varanda do Casino, quasi
+deserta, os Auers incidiam fortemente sobre Clara. No mar, em baixo, fogachos
+prateados tremiam. E além, as raras luzes da Cidadella; na Esplanada os focos
+esverdeados tiravam da sombra manchas de palmeiras e listravam de luz a agua
+inquieta, gemebunda e misteriosa.</p>
+
+<p>Paulo, recostado n'uma cadeira, olhava a mancha mais negra do yacht real,
+apagado, apezar das suas lanternas que tremeluziam no mar. O charuto caíra-lhe
+da boca. Foi uma frase preciosa de Clara que o acordou:</p>
+
+<p>&mdash;Quem me dirá um dia a cantilena do mar? Como ella embala! Como seria bom
+dormir a ouvir junto de nós a suave cantilena!</p>
+
+<p>Paulo olhou para ella surprehendido. Pois quê? Clara, a ultima florescencia
+dos <em>raouts</em> e dos <em>teas</em>, teria phrases de heroina de Rosseti,
+seria leitora de Ruskin? Foi então que reparou nos olhos cheios de sonhos e de
+misterio, na bocca dolorosa, a vermelha e fina bocca, no seu collo de infanta
+apenas nubil, em toda a adolescencia que se conservava intacta no corpo
+precioso, como um fructo no gelo.</p>
+
+<p>Começou então a seguil-a. Dura lhe foi a vida em theatros, jantares e
+bailes. Não faltava a uma <em>sauterie</em>, a uma <em>party</em>, que
+d'antes<span class="pn">{44}</span> o deixavam indifferente, ficando nas
+interminaveis partidas de <em>bluff</em>. A dolorosa expressão que na bocca se
+vincára n'aquella noite do Casino desapparecera; um grande contentamento da
+vida parecia boiar á flor dos olhos garços e os movimentos rythmicos, que ella
+fazia, como se fosse ao som d'uma musica, eram livres, felizes, sem
+promessas.</p>
+
+<p>Não voltar o abandono d'aquella noite! Paulo desejava que Clara outra vez
+abrisse a sua alma, para elle sentir a caricia deliciosa.</p>
+
+<p>Mas a mulher amada conservava-se indifferente, risonha, um pouco
+<em>coquette</em>.</p>
+
+<p>Para os seus madrigaes escolhidos, preparados com antecedencia, buscados em
+livros de auctores novos, phrases perturbantes de Lorrain, perfumados disticos
+de Henri de Regnier, licenciosas palavras de Lionel des Rieux, com um sabor
+antigo, até o proprio d'Annunzio servira para a pilhagem,&mdash;para todos esses
+periodos carinhosos ella tinha o mesmo riso, que abria a bocca fina, descórada,
+que o traço de carmim violentaria a macerada pallidez da sua face:</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Paulo! Ah! Paulo! Apaixonado por mim! Tenho-lhe conhecido tantas
+paixões? Só na semana passada, tres!</p>
+
+<p>&mdash;Se não penso senão em si!</p>
+
+<p>&mdash;Quando está commigo? Nem isso!</p>
+
+<p>&mdash;Clara! Clara! Se me conhecesse bem, veria<span class="pn">{45}</span> como
+a minha alma se fez para si um fresco bordão de assucenas...</p>
+
+<p>E outro riso claro cantava na bocca exangue, a troçar da phrase
+pretenciosa.</p>
+
+<p>Uma tarde, n'um <em>garden party</em>, emquanto no <em>court</em> de
+<em>tennis</em> as palavras inglezas crusavam-se e os jogadores corriam, a
+<em>raquette</em> no ar, elles um pouco afastados, juntos a um macisso de
+jasmineiros que floria, cobrindo-se d'uma renda fina e branca de pequeninos
+jasmins, Paulo, esquecendo-se das phrases decoradas nos romances, deixou sair
+da bocca, livremente, toda a força e toda a anciedade do amor que parecia
+abrir-lhe uma chaga no peito, teve palavras em que fulgiam desejos, os olhos
+brilhavam, enternecidos, agarrou-lhe nas mãos, encheu de beijos as palmas
+roseas, puxou-a para si, e pôde dar-lhe, de surpresa, um grande beijo na bocca,
+soffrego, que Clara não pôde evitar.</p>
+
+<p>Voltada a si do pasmo, espantada pelo insolito atrevimento que a sua ligeira
+<em>coquetterie</em> não permitira, quiz zangar-se; mas voltou a rir-se, como
+se esse beijo, que lhe deixara na boca um calor de chama, tivesse sido apenas
+uma phrase, das grandes phrases de Annunzio, tão cheias de volupia que
+entontecem, como os largos calices das magnolias n'um pequeno jardim fechado. E
+sempre a sentir na bocca a impressão ardente d'esse beijo, Clara correu<span
+class="pn">{46}</span> para o <em>tennis</em>, a querer jogar tambem para
+esquecer-se.</p>
+
+<p>Era d'esse beijo que Paulo vivia, tomado de assalto, como n'uma pilhagem de
+egreja.</p>
+
+<p>E, apesar de Clara continuar a ser indifferente e risonha para elle,
+lembrava-se da perturbação que levára á alma ligeira da preciosa bonequinha de
+Nuremberg; olhos abertos, continuava a sonhar que esmagava os labios exangues
+sobre a pressão da sua bocca ávida.</p>
+
+<p>Paulo era um romantico. Paulo vivia de pouco, como as aves do ceu.<span
+class="pn">{47}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00050">A BISANTINA</a></h1>
+
+<p class="assin">A L<small>UIZ </small>F<small>ERREIRA DE
+</small>C<small>ASTRO</small></p>
+
+<p><span class="pn">{48}<br>
+{49}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00051">A Bisantina</a> </h2>
+
+<p>No café, diante do <em>cocktail</em> vulgar, eu esperava um amigo. Fôra mais
+cedo para a entrevista, de maneira que antes da hora lêra os jornaes, folheára
+as revistas, olhára para o relogio, consultára até o barometro, interessado.
+Iam saindo os clientes, aos poucos. Conforme se levantavam das mezas, o criado,
+n'um <em>crac</em> apagava a lampada electrica. Eu ficára já, n'um canto, quasi
+na meia luz. No fundo da sala as lampadas faiscavam nos espelhos, telintavam os
+pratos, as discussões cruzavam-se.</p>
+
+<p>Esperava em vão... Comecei a ceiar.</p>
+
+<p>D'ahi a pouco um rapaz veiu sentar-se ao pé de mim. Conhecia-o de o vêr nos
+cafés nocturnos, quasi sempre em companhia de mulheres faceis, estardalhando,
+contando façanhas de orgias nas <em>vadrouilles</em> de Montmartre; de quando
+em quando, como n'uma expansão, falava de um quadro que entrevira n'um museu,
+alguma<span class="pn">{50}</span> luminosa festa da Renascença, um nú
+veneziano, ou preciosas figurinhas dos primitivos, simples e mal desenhadas,
+entre brocados de oiro.</p>
+
+<p>Mas nunca me ligára, correndo a minha vida n'outra direcção. N'essa noite,
+admirei-me de elle deixar a bulhenta sociedade que <em>sabrait le
+champagne</em>, para se acolher ao silencio, á quasi obscuridade.</p>
+
+<p>A principio bebeu a pequenos goles o Bucellas que mandou buscar. Tinha o ar
+de quem hesita em praticar um acto, o recolhimento subito d'um gesto esboçado,
+ensimesmava-se, enchia novamente o copo, lia attentamente o rotulo da
+garrafa.</p>
+
+<p>Por fim debruçou-se para a minha meza:</p>
+
+<p>&mdash;O senhor gosta de coisas exoticas, das mulheres finamente perversas, do
+brilho das podridões...</p>
+
+<p>&mdash;Ó, não! Apenas do <em>faisandé</em>!...</p>
+
+<p>&mdash;É uma questão de palavras... Tudo o que é ambiguo, perturbante, insexual,
+tenta-o; compraz-se no esmiuçamento das taras, é o chronista do irregular, do
+<em>à coté</em>. Prefere as monstruosas orchideas ás rosas, o enigma dos
+Vincis, á belleza forte dos Rubens. Deixa-me contar-lhe uma historia?</p>
+
+<p>Por certo que a minha phisionomia traiu o receio da maçada eminente. Toda a
+gente imagina que a sua vida é um «motivo» interessante<span
+class="pn">{51}</span> para um livro. E eu tenho deixado cair, como folhas
+secas, tantos casos que me contam, compridamente, com meandros de detalhes!</p>
+
+<p>&mdash;O senhor tem o dever de me ouvir e não se arrependerá! O senhor é um
+psicologo...</p>
+
+<p>&mdash;Não faço profissão...</p>
+
+<p>&mdash;Não importa. Tem obrigação.</p>
+
+<p>&mdash;N'esse caso...</p>
+
+<p>Resignei-me.</p>
+
+<p>O noctambulo começou a contar. Tinha a linguagem pittoresca, imageada,
+parecia comprazer-se com a sua phrase. Notei-lhe grande copia de
+estrangeirismos. Mas o caso pareceu-me interessante. Aqui o deixo registado.</p>
+
+<p>&mdash;Comprehende que eu, <em>fetard</em> cançado, que tenho visto museus entre
+duas ceias no Maxim ou no Carlton, que aprecio mais o <em>tea-room</em> do
+Grand Hotel, de Roma, que o <em>Salon Carré</em> do Louvre ou a sala de
+Velasquez, no Prado, só lhe poderei fallar da mulher ou do amor. E das mulheres
+que tenho conhecido, um pouco por todo o mundo, d'aquellas que teem ficado com
+um pouco da minha mocidade entre os dentes brancos ou os dedos esguios, só me
+recordo da ultima, que é a melhor e a peior, a que faz rir e soluçar, curva-nos
+n'uma somnolencia em que nos apparece muito mais bella do que é realmente,
+cingida com todas as joias com que a nossa phantasia a enfeita, mais cruel
+tambem, porque o amor torna mais cruciante<span class="pn">{52}</span> as
+dores, intensifica o desespero, cria a halucinação da Magua, inventa a Chiméra
+da turtura, essa Chimera de afiadas garras que nos retalham... Estou muito
+eloquente. Faça-me signal, quando lhe parecer Cicero...</p>
+
+<p>Imagine que conheci, n'uma pequena cidade italiana onde me fôra curar d'uma
+paixoneta recente, uma creatura singular, cujo encanto me prendeu quasi de
+subito. Era uma figura de bisantina, atavismo talvez, influencia das pinturas
+de Ravenna, onde passára a mocidade. E, artista, cultivava essa feição,
+arranjava penteados hieraticos, sem complicadas e rutilantes gemas, que o cofre
+do pae, mediscatro qualquer, não era abundante, mas com flores, essas rosas
+vermelhas de Pæstum, que ella propria cultivava, amorosamente, no pequeno
+jardim de sua casa. O que tinha de bisantina realmente, era a bocca fresca, a
+bocca innocente que sorria apenas, n'uma candura de primeira commungante, uma
+bocca que deixava em nós a impressão de que era um seraphim a sorrir. E não
+apetecia beijal-a: apenas quedar-se a gente deante d'ella á espera que nascesse
+a claridade auroral do sorriso, em que mostrava levemente o traço branco dos
+pequeninos dentes. Mas os olhos escuros desmentiam toda a infantilidade da
+bocca, o aspecto angelical do seu corpo magro d'adolescente, o collo branco e
+purissimo. Os olhos brilhavam como n'um<span class="pn">{53}</span> assalto, a
+ferir, sem ternura, no fundo uma repulsão ou um escarneo...</p>
+
+<p>Essa mulher tentou-me. Largos mezes fui todos os dias á sua casa onde me
+recebeu com palavras dulcissimas. Estendia-me a mão deliciosa para beijar,
+dizia-me frases que entonteciam como um vinho aspero, fazia passar por mim o
+perfume forte que punha nos longos cabellos, que ás vezes caíam pesadamente da
+cabeça, estendiam-se pelas costas, como uma rosa que se desfolha, d'uma vez, da
+haste. Ás vezes furtivamente, apertava-me a mão com força. E sorria-se
+ingenuamente a face de perola, eu via a innocencia de toda aquella figura,
+porque ella fechava os olhos, como se todo o seu ser adormecesse n'um
+espasmo.</p>
+
+<p>Ao sair, tinha remorsos de não ter beijado a bocca fresquissima, de não ter,
+sob a pressão dos meus labios, maguado os olhos maus.</p>
+
+<p>E toda a noite soluçava, enraivecido a desejal-a, até que de tarde ia
+visital-a, encontrava-a estendida, n'uma atitude de imperatriz, bisantina, em
+sedas <em>moirées</em>, toda a gama do verde e do lilaz, a garganta descoberta.
+E n'um gesto estudado, estendia-me a mão, que eu beijava longamente, essa mão
+em que as gemas não brilhavam: escuras, opacas, pedras finas, opalas, como
+gottas de agua d'um lago envenenado.</p>
+
+<p>E a scena repetia-se. Eram perturbadores oaristos, que deixavam os nervos
+tensos e vibrantes.<span class="pn">{54}</span> Na voz amortecida e doce, dizia
+as palavras magicas que accendem fogachos. E quando ella via toda a minha Alma
+arremessada para ella, tinha o fechar de olhos, abria o sorriso celeste, e eu
+fugia com medo de mim e com medo d'ella. Como? Uma creança ingenua! Era preciso
+fugir!</p>
+
+<p>Um dia tive que partir.</p>
+
+<p>Tinha, na pequena cidade, perdido largos mezes. Fui a uma ultima entrevista,
+chorei como uma creança ao dizer-lhe a magua immensa de a deixar. Contei-lhe
+toda a tortura d'aquelle tempo de infinita delicia e infinita tortura; pela
+primeira vez disse-lhe claramente, entre lagrimas tristes, quanto amára todo o
+seu ser, todo o seu corpo flexivel, todo o seu espirito cançado, mas mesmo
+assim brilhante. Que me dissesse uma palavra de esperança, que me deixasse
+levar uma harmonia divina, uma palavra de amor!</p>
+
+<p>Teve uma frase, apenas, com uma expressão de immenso sentimento:</p>
+
+<p>&mdash;E não trouxe um fonografo!<span class="pn">{55}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00060">MÁ-LINGUA</a></h1>
+
+<p class="assin">A J<small>OSÉ </small>L<small>EITE </small>N<small>OGUEIRA
+</small>P<small>INTO</small></p>
+
+<p><span class="pn">{56}<br>
+{57}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00061">M<small>Á-LINGUA</small></a> </h2>
+
+<p>N'aquella mesa de <em>bluff</em>, era feroz a <em>debinage</em>... Apenas o
+Barros, que ganhava com uma <em>veine</em> espantosa, sorria beatificamente,
+cheio de indulgencia, e para as arrojadas arremettidas dos parceiros, tinha
+sempre a mesma phrase:</p>
+
+<p>&mdash;Mais caridade, meus senhores...</p>
+
+<p>Eram sempre occasiões em que o Leite mostrava «quatro cartas» ou «street
+flesh.»</p>
+
+<p>O baile, na sala proxima, corria animado. As valsas, o pas-de-quatre e as
+quadrilhas martelladas ao piano, tinham concorrencia. E uma ou outra que fugia
+do calôr, para as salas de jogo, era apanhada na passagem, amarfanhada,
+esmiuçavam-lhe a chronica, apimentada de notas ineditas, calumnias talvez.</p>
+
+<p>&mdash;A Gracinda Fortes!</p>
+
+<p>O conde de Marvilla teve um sobresalto. Voltou-se para trás. A Gracinda
+vinha com um vestido de tonkin cinzento que mostrava toda a<span
+class="pn">{58}</span> graça fragil do seu corpo magro. O conde commentou,
+eriçando mais o bigode loiro, cortado á ingleza:</p>
+
+<p>&mdash;Um cabide para vestidos!...</p>
+
+<p>&mdash;Mais caridade!...</p>
+
+<p>&mdash;Ah, já sei: tem pelo menos um flesh na mão... Passo!</p>
+
+<p>Depois, olhando ainda a figura esbelta que sahia...</p>
+
+<p>&mdash;Mas ella não é uma mulher&mdash;é uma boneca de Nuremberg!... Vejam o andar
+articulado, mechanico... Tudo aquillo se mexe por molas! E aquella cabeça
+d'arara a dar a dar, como se estivesse presa ás espaduas por um parafuso lasso?
+E depois, meus amigos, ella é toda postiça... O cabello loiro pertenceu já a
+tres cabeças... É uma mulher feita de collaboração por um cabelleireiro, um
+droguista e uma costureira. Tudo aquillo é sustentado por baleias e faixas,
+senão desabava, de lasso... Imaginam que o marido está arruinado por causa dos
+vestidos? Não: pelos cosmeticos... Á quantidade de drogas que anda por aquella
+pelle é inconcebivel. Já repararam em como se não decóta nunca, completamente,
+que o collo é sempre coberto por uma gaze ou uma renda? É que a pelle,
+estragada por uma pitiriasis qualquer, esfarella-se. Todas as manhãs a creada
+de quarto tira-lhe kilos de farellos da cama. E já não pode com o serviço de
+maquilhagem&mdash;tapar<span class="pn">{59}</span> buracos, concertar rugas,
+pés-de-gallinha, disfarçar sardas e signaes de variola&mdash;manda chamar um
+trolha...</p>
+
+<p>&mdash;Seu amante?</p>
+
+<p>&mdash;Talvez... Para a rebocar. Para que ande, é preciso dar-lhe corda. Anda
+sempre da mesma maneira, ás continencias, cabeça para cima e para baixo, como
+um d'esses bonecos movidos por relojoarias. Imagina que aquillo é o andar
+rythmico das parisienses, esse andar leve e airoso como o d'um passaro... É
+parisiense, é: tambem são parisienses as macacas que nascem no <em>Jardin des
+Plantes</em>... Ainda por cima, velha. Não tem frescura nem mesmo nos olhos
+parados, conçados do espelho. A pelle despega-se da carne e na cara faz
+papeiras em feitio de bambinellas. E toda aquella pintura, ás chapadas, faz
+sombras, augmenta-lhe as papeiras...</p>
+
+<p>&mdash;Tens-lhe odio!...</p>
+
+<p>&mdash;Não, tenho olhos. Não é preciso mais. Por causa d'ella lá me fez você um
+<em>bluff</em> sem eu dar por isso...&mdash;Conheço-a muito. Veiu da provincia e por
+ahi andou a mostrar ao Chiado e á Avenida as suas <em>toilettes</em>, como um
+manequim de loja de modas em furor de reclame. Ninguem a recebia, senão as
+casas em delirio de festas, onde a ida d'um conde, dos feitos ultimamente ás
+canastradas, enche de jubilo os amaveis donos da casa, como se diz nos
+jornaes.<span class="pn">{60}</span> Mas a sua ambição era do podre-de-chic, e
+não podendo suppôr-se com sangue azul&mdash;a mercearia do pae, ainda lá está a
+falsificar&mdash;imaginava-se com o chá das cinco horas nas veias... Um chá
+requentado como o espirito d'ella, estudado em velhos almanachs.</p>
+
+<p>Emquanto não entrou na sociedade, vestia-se seis vezes ao dia, e nos
+intervallos injuriava o idiota do marido, essa bola de cebo com suissas
+brancas, que, atolambado, não lhe respondia que não tinha culpa de não
+convidarem uma amostra de cocotte do Maxim para casas de familias honestas. E
+era uma vida dura, atroz, n'aquella casa, ella de mau humôr, acre, dizendo
+horrores na voz impertinente, sem inflexões, monocorda, e elle angustiado,
+sempre em calculos diabolicos para saldar as contas monstruosas que lhe mandava
+o Goodefroy, dos cosmeticos e <em>postiches</em> com que se engalanava a
+mulher.</p>
+
+<p>A vida n'aquella casa! Vocês não calculam a expressão dura, injuriosa, que
+se estampava n'aquella cara agora risonha, quando recolhia, á tarde, cançada de
+fazer a Avenida, quasi sem um chapeu a comprimental-a, sem meios para ter uma
+carruagem, olhando, gulosa, as pessoas chics que passavam, sorrindo ás
+saudações. E na mesa de jantar, silenciosa, apenas se ouvia o tilintar dos
+talheres e uma ou outra phrase grosseira ao Fortes, que abanava a cabeça,<span
+class="pn">{61}</span> todo elle se agachava, no receio, talvez, d'um prato ou
+d'um copo arremessado na furia.</p>
+
+<p>Depois das refeições, separavam-se, elle para a rua tomar ar, fugindo da
+perigosa visinhança, ella a arrastar-se nos quartos, a enfeitar-se de joias,
+punha-as todas, enchia as mãos d'anneis, rodeava a garganta magra com todos os
+collares, enchia os braços de pulseiras quasi até o cotovello e via-se ao
+espelho estudando sorrisos, gestos de comprimento para os grandes bailes a que
+havia de ser convidada um dia.</p>
+
+<p>&mdash;Para fallar d'esse modo é preciso ter sido <em>éconduit</em>...</p>
+
+<p>O conde córou, encolheu os hombros:</p>
+
+<p>&mdash;Ás vezes não se levantava da cama em dias de chuva em que se tornava
+impossivel fazer a parada nas ruas, <em>troteuse</em> á cata d'olhares: vestia
+uma camisa de noite de que cahiam <em>valenciennes</em> e cobria a cabeça com
+pentes e travessas d'oiro com pedras finas, e as mãos floriam-se de toda a
+collecção d'anneis. Era oiro por toda a parte, sem fallar nos dentes em que se
+combinavam todos os metaes e todas as massas. Ouvi que se lhe podia dirigir o
+epigramma de Marcial: Não te rias porque só tens tres dentes e esses mesmos são
+de buxo.</p>
+
+<p>&mdash;Conheces tão intimamente?</p>
+
+<p>&mdash;Pela creada do quarto... Agora, saracoteia-se, esqueleto feito manequim,
+arrebanhando os rapasolas inexperientes para <em>flirts</em>&mdash;ó<span
+class="pn">{62}</span> só <em>flirts</em>! não por virtude ou amor conjugal,
+mas porque a pitiriasis não permitte o desnudamento&mdash;<em>flirts</em> que
+acabavam logo que um mais affoito fallasse em beijar a pelle perfumada.</p>
+
+<p>&mdash;Schiu! Lá vem ella!</p>
+
+<p>O conde olhou para a porta, por onde entrára, fina e flexivel como haste
+florida, a Gracinda Fortes. A bocca pequena, que o cosmetico fazia sangrar,
+abria-se n'um sorriso fresco, que mostrava os dentes brancos. E de todo esse
+corpo magro exhalava-se, como um perfume que entontece, um encanto
+perturbante.</p>
+
+<p>E seguiu-a com os olhos, commovidamente, até que desappareceu, como um
+sonho... <span class="pn">{63}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00070">A RAINHA DE SABÁ</a></h1>
+
+<p class="assin">A E<small>UGENIO DE </small>C<small>ASTRO</small></p>
+
+<p><span class="pn">{64}<br>
+{65}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00071">A R<small>AINHA DE </small>S<small>ABÁ</small></a>
+</h2>
+
+<p>Balkis esperava. Entre as sumptuosidades do seu palacio de Mareb, a Rainha
+vivia, solitaria, escondida, só com a sua belleza.</p>
+
+<p>Em vão os povos e os senhores, ouvindo fallar da immaculada formosura
+accorriam dos remotos reinos onde a sua lei governava, Sabá, Mareb e Yemen, e,
+defronte do palacio immenso e fechado, pediam para vêr a deslumbrante
+adolescente. Em vão os sacerdotes quizeram vêr os olhos puros. Ninguem o
+conseguiu.</p>
+
+<p>Apenas uma velha ama a vira nua, quando menina. Era como um lirio o seu
+corpo.</p>
+
+<p>Sete aposentos eram os da Rainha. E cada uma das sete portas uma chave
+d'oiro fechava. E no ultimo, a rainha vivia. Grandes espelhos de cobre
+mandavam-se uns aos outros, como écos, a imagem quasi divina. E Balkis, apenas
+vestida de joias, passava os dias na contemplação<span class="pn">{66}</span>
+dos intactos esplendores da sua adolescencia.</p>
+
+<p>Entravam pela janella que abria sobre o jardim fechado e callado, os pavões
+brancos e os pavões polichromos. Aquelles formavam, estendendo as caudas,
+pequenas luas macias; estes faziam fulgir constellações, doçuras de velludos,
+coruscantes gemmas. E Balkis era mais branca do que os pavões brancos, mais
+brilhavam as suas cinturas e manilhas pesadas do que as caudas
+scintillantes.</p>
+
+<p>Nas noites escuras sahia ao jardim. Deixava cair entre as moitas de flôres,
+a cintura, as manilhas, os anneis e o diadema. Soltavam-se-lhe os cabellos
+d'oiro, que eram, no ar azul escuro, como um cometa pallido; e nua, como uma
+flôr graciosa, dirigia-se para o tanque de marmore onde adormecera a agua
+perfumada. Os seus pés, ao entrar no tanque, eram como um raio de lua...</p>
+
+<p>Deitada no tanque, os braços abertos, as mãos á tona d'agua, como dois lótos
+brancos, Balkis espreitava o ceu onde se movia o doirado formigueiro d'astros.
+As estrellas vinham reproduzir-se na agua, como molhadas flôres d'oiro, em
+indecisos contornos; uma lhe brincava no seio, quasi á flôr d'agua. Era como
+uma joia a correr, com o movimento do corpo. Ás vezes, n'um gesto mais largo, a
+gemma cahia, para outra vez voltar, n'uma festa, a percorrer<span
+class="pn">{67}</span> todo o corpo branco, que era, na agua escura, polvilhado
+de brilhos, como um nenuphar enorme, em que se agitassem grandes abelhas
+fulgentes.</p>
+
+<p>Depois, quieta, ouvindo sómente, de quando em quando, o ruido ligeiro das
+flôres que tombavam, murchas, na areia discreta do jardim, os braços a appoiar
+a cabeça, como um diadema feito de duas hastes d'açucenas, a Rainha pensava.</p>
+
+<p>E esperava...</p>
+
+<p>Balkis esperava o noivo que havia de vir.</p>
+
+<p>De todas as partes, chamados pela fama da sua belleza, dos seus thesouros ou
+dos seus exercitos, tinham acorrido os principes da Asia. Poetas uns, avaros
+outros, na maior parte guerreiros, todos vinham em cavalgadas surprehendentes,
+cobertos d'oiro e de joias. No seu throno altissimo d'oiro e prata, invisivel,
+mas a todos vendo, a Rainha ouvia as imagens aladas que fulgem e perfumam, a
+descripção dos poços profundos, abarrotados de barras d'oiro, de vasos de
+cobre, de moedas de todos os feitios, de pedrarias de todos os brilhos;
+diziam-lhe historias compridas de cruentas façanhas, batalhas mortiferas em que
+as flechas e as espadas, a bater contra os escudos, produziam chispas de
+incendio, contra os corpos, rios de sangue. Os guerreiros, com o desejo de
+augmentar os exercitos bellicosos, aprendiam<span class="pn">{68}</span> uma
+eloquencia calorosa. Eram os que mais fallavam, regosijando-se com a recordação
+das chacinas. Mas a um signal da Rainha iam-se, despedidos, os poetas com as
+lagrimas nos olhos, as cabeças curvadas, como sobre o peso das mithras, os
+avaros e os guerreiros batendo com força, nos ladrilhos polichromos, as
+sandalias ligeiras.</p>
+
+<p>E Balkis voltava para o recuado aposento do seu palacio populoso. Alli, só,
+admirava nos espelhos a gracilidade do seu corpo esbelto e firme. Deixava cahir
+sobre o corpo branco, como uma flôr inundada de sol, o cabello loiro.</p>
+
+<p>Depois de admirar toda a sua belleza, Balkis dizia-se:</p>
+
+<p>&mdash;Aquelle que eu amar possuir-me-ha intacta, como uma flôr que vive no meio
+d'uma floresta guardada pelos Medos. Ninguem lhe aspirou o perfume, ninguem viu
+a côr deslumbrante, ninguem a maculou. N'esta terra cheia de sol, em que as
+côres não brilham, ardem, e as cassoletas não perfumam, estonteiam, eu sou
+branca, o sol nunca me viu. Entre os muros dourados dos meus sete aposentos, a
+vida é quieta e facil!</p>
+
+<p>Balkis esperava.</p>
+
+<p>Os mezes passavam ligeiros. No jardim fechado, as rosas desabrochavam,
+perfumavam e morriam. Outras vinham com egual brilho e egual frescura, enormes
+rosas escarlates, como<span class="pn">{69}</span> boccas em que os beijos
+deixam feridas, do desejo intenso. Balkis conservava, no seu corpo nubil,
+intactos, os esplendores d'uma adolescencia eterna. Untava-se com oleos,
+alisava com pentes d'oiro os seus cabellos d'oiro. Vestia-se apenas com joias,
+joia ella mesma. E nos seus olhos azues, largos e serenos, brilhava a
+mocidade.</p>
+
+<p>Não a viam olhos humanos. Nenhum desejo maculou o seu corpo.</p>
+
+<p>E quando Salomão, filho de David, que no seu palacio de Jerusalem tinha mais
+concubinas que de estrellas ha no ceu n'uma noite de lua, quando Salomão a veiu
+buscar, ella entregou-se-lhe, pura, radiosa e immaculada, como uma flôr
+crescida n'uma floresta insondavel, cujo perfume ninguem aspirou.</p>
+
+<p>Virgens, guardae para o desconhecido Amado, o vosso corpo e a vossa alma,
+como, se é verdade a lenda arabe, para Salomão, filho de David, guardou Balkis,
+Rainha de Sabá!<span class="pn">{70}<br>
+{71}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00080">CHIARA LILIAM</a></h1>
+
+<p class="assin">A V<small>ICENTE D'</small>A<small>RNOSO.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{72}<br>
+{73}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00081">C<small>HIARA </small>L<small>ILIAM</small></a> </h2>
+
+<p>Barcelona e o seu porto com incendiados espelhamentos de sol nas aguas que
+se agitam em pequenas ondas, aguas-fortes de mastros a distancia, toda a
+geometria do horizonte cinzento cortado pelos perfis dos vapores! Ha dorsos
+vermelhos de navios, nodoas negras das barcaças de carvão, até a florescencia
+d'um yacht que emerge entre a poeira negra da fumaraça, e os fardos, e as
+pipas, como uma delgada flôr de prata...</p>
+
+<p>Para alem da cinta da docka, ao rez do mar, o ceu toma tons brancos que se
+esbatem e degradam na ascenção, accentuando-se na cupula um azul fino. E os
+vapores passam, pequeninos, carregados de vagas multidões para Barcelonete.</p>
+
+<p>Para alem da formidavel estatua de Colombo, as Ramblas sacodem os ramos
+verdes dos platanos e o Tibidabo recorta-se, escalvado.<span
+class="pn">{74}</span></p>
+
+<p>&mdash;É ámanhã o vapor para Mallorca, informam-me.</p>
+
+<p>Volto para traz, deixando o ruido dos guindastes e das sereias, a bulha dos
+catraeiros e descarregadores, para entrar n'outro bulicio tão grande, o zumbido
+dos milhares de boccas que cruzam a Rambla, as campainhadas dos tranvias, a
+buzina dos automoveis, com gritos diversos, pragas, pregões, injurias guturaes
+dos catalães furiosos.</p>
+
+<p>Sentira desejos de vêr Palma de Mallorca em que me fallára Teixeira Gomes,
+as suas egrejas caladas, os seus palacios antigos. Por elle sabia que a cidade
+conservára-se immovel, tipica, como no principio do seculo XIX. E a sua
+conversa luminosa e pittoresca acirrara-me o desejo de visitar uma terra que,
+na convulsa marcha do seculo industrial, immobilisára-se nos seus antigos
+sonhos de pedra.</p>
+
+<p>Aborrecera-me já Barcelona, commercial, trabalhadora, respirando pelas mil
+boccas das suas chaminés; parecia que a alma da cidade andava triturada pelos
+poderosos engenhos das suas fabricas. Vira os seus theatros, os seus museus,
+Santa Maria de la Mar perdida entre o casario; mas em toda a parte o commercio
+abria ruas, estendia fazendas, crusavam-se os <em>camions</em>.</p>
+
+<p>Ah! Salamanca parada e quieta, a morrer n'uma agonia d'oiro! As saudades que
+tive da<span class="pn">{75}</span> paz das suas ruas bordadas de egrejas e de
+palacios, das cathedraes sumptuosas e desertas, das pequeninas parochias, onde
+se descobrem ainda, atravez dos vandalismos, curvas d'arcos romanicos, flores
+de capiteis graciosos; de Santo Esteban e o seu claustro que a hera invadiu, do
+balneario, antigo claustro de convento e do Monterrey maravilhoso, da
+Universidade quasi sem estudantes!</p>
+
+<p>Aborrecia-me Barcelona, toda entre arvores, Barcelona e o soturno Monjuich
+com a lenda dos supplicios dos anarchistas.</p>
+
+<p>Ainda um dia! Era preciso depois de jantar subir á <em>Gran Via</em> e ir ao
+tumultuoso café ouvir a gritaria ensurdecedora, passear pelas Ramblas entre uma
+multidão compacta que espairece, vêr as caras angustiosas dos operarios, sempre
+na vespera d'uma revolta, e os pobres que nos perseguem pela esmola, e as
+raparigas sujas, enrugadas, que se offerecem, n'um chale rôto.</p>
+
+<p>Ao entrar no «Paseo de la Aduana» para esperar um tranvia que me levasse ao
+Parque, vi passar n'uma carruagem, fresca, toda vestida de branco, como um ramo
+de goivos brancos, Chiara Liliam, a cantora italiana que mezes antes conhecera
+em Genebra, no Kursaal, e com quem passeára no Leman, pelas tardes quietas de
+agosto e pelas noites de luar, ouvindo-a cantar, não as operas transcendentes
+com<span class="pn">{76}</span> que regalava os suissos e inglezes, mas
+ligeiras canções napolitanas, que tomavam na sua bocca uma voluptuosidade mais
+fina e adormeciam, envenenando-as, as nossas Almas.</p>
+
+<p>Ah! Chiara Liliam! As tardes limpidas e serenas em que vimos a paisagem
+doce, fecunda, do cantão de Genebra, no vapor da carreira, alheiados das
+inglezas de Cook, de dentes monumentaes e <em>canotiers</em> ridiculos! E as
+noites frias, em que deixavamos o Kursaal e os <em>petits chevaux</em> e iamos,
+costeando o caes illuminado, n'um pequeno bote que o ruivo barqueiro conduzia
+serenamente, respirar a delicia do luar pastoso, que parecia ter em si um pouco
+da neve do Monte Branco!</p>
+
+<p>Lord Carnehan, o seu amante, acompanhava-nos. A tristeza da sua face, de
+todo o seu corpo cançado! Parecia ter sentido, aquelle rapaz de trinta annos,
+todo o travo da vida, visto desfolhar-se, uma a uma, todas as illusões, as
+ambições murchar, como quem assistisse ao incendio de todos os seus haveres e
+dos proprios castellos no ar que a sua mente creára.</p>
+
+<p>Nem alcoolico, nem etheromano, abominando a morfina e a cocaina, tomando uma
+leve taça de café, apenas, resignára-se na vida, «deixava-se morrer», dizia.</p>
+
+<p>Andava com Chiara, porque era preciso ter uma amante, como uma
+<em>ecurie</em>, um palacio em<span class="pn">{77}</span> Londres, um castello
+na Escocia e uma villa na Riviera, decorada por Burne Jones.</p>
+
+<p>Chiara Liliam era a sua vontade. Ia para onde ella quizesse, para fazer
+alguma coisa e não ficar, no hall do Metropole Hotel, de olhos pasmados para os
+decotes largos das <em>ladies</em>, que liam jornaes.</p>
+
+<p>Mas nenhum amor, nem mesmo sabia, talvez, se era macia a pelle da cantora. E
+assim viviam, ella feliz pela liberdade, risonha como um galho
+d'<em>eglantines</em>, elle, com uma razão de viver: acompanhar Chiara.</p>
+
+<p>Chiara, que viu o meu cumprimento, mandou-me subir para o trem.</p>
+
+<p>&mdash;Venha comigo ao parque... se não tem melhor...</p>
+
+<p>&mdash;Ia justamente para lá aborrecer-me...</p>
+
+<p>&mdash;Então venho a proposito...</p>
+
+<p>Perguntei-lhe por lord Carnehan.</p>
+
+<p>&mdash;Ó meu Deus! Lord Carnehan tornou-se para mim uma obsessão. Era como um
+vidro negro que me punham nos olhos para eu vêr a vida. Nada me parecia claro,
+luminoso, florido. Julgava olhar sempre para dentro d'um poço secco. Essa
+creatura estragou-me alguns mezes de existencia. A principio ainda eu ria, pelo
+movimento adquirido. Mais tarde, porém, o riso desappareceu. Sempre aquelle
+somnolento homem que só abria a bocca para perguntar pelas horas, como se
+tivesse pressa<span class="pn">{78}</span> d'alguma coisa, elle que não fazia
+nada, ou para dizer alguma sentença, um aphorismo de Schopenhauer ou d'alguns
+dos fulminantes catholicos, á maneira hespanhola, sombrios, repulsivos. Comecei
+a olhar para o espelho, a vêr se sabia rir. Não sabia. Vinha uma careta ao
+contrahir a bocca; parecia-me de pedra os labios, ao querer abril-os n'um
+sorriso. Quiz mortifical-o, fazer com que, atraz de mim, os amorosos corressem;
+empreguei, ante os seus olhos pardos, o requinte do coquetismo; mostrei todo o
+artificio de mulher e de actriz. Nada. Sempre lord Carnehan indifferente, a
+cabeça sobre o peito, as mãos pendidas, a perguntar-me periodicamente:&mdash;Que
+horas são? De quando em quando, sem lhe dizer aonde ia, deixava-o todo o dia;
+ás vezes, aborrecida, nem ia á rua. Ficava no meu quarto, as lagrimas nos
+olhos, a vêr o movimento dos <em>bateaux-mouches</em> a atravessar o Leman; os
+raros automoveis que passavam pela rua e alguns ranchos de forasteiros
+arregimentados pelas agencias. Arrastava-se o tempo; defronte de mim, o lago
+que á esquerda se curva, limpido, transparente. Na outra margem, o parque Jean
+Jacques, alinhado e limpo, como um desenho do concurso. E era alli, á direita,
+a arvore que dera sombra, na tarde criminosa, em que o anarchista matára a
+Imperatriz Isabel. Pensava no fim tragico que ali procurara, sob um pequeno
+platano viçoso,<span class="pn">{79}</span> a alma aventureira e poetica, a
+dama de todas as viagens, que vira tantos ceus ensolados e tantos mares em
+procella... Quando voltava, de proposito despenteada, com muito rouge na face,
+a fingir córada, lord Carnehan levantava com esforço os olhos para mim e
+perguntava-me, na voz pausada, sem um estremecimento:</p>
+
+<p>&mdash;Que horas são?</p>
+
+<p>Eu era o relogio, para elle! N'essa terra fria, geometrica, regular no
+andamento como uma machina&mdash;a alma de Genebra é um relogio&mdash;eu não era nada
+mais do que um chronometro em que se tem confiança. Um dia, furiosa, comprei um
+relogio e offereci-lh'o. Imagina que acabou a historia? Não. Comecei a
+fazer-lhe scenas, a dizer-lhe improperios em calão dos bairros infimos de
+Londres&mdash;uma artista conhece tudo e o resto&mdash;phrases de marujo; elle ouvia,
+ouvia, e depois tirava o relogio da algibeira e dizia-me:</p>
+
+<p>&mdash;Por força que este relogio atraza! Que horas são?</p>
+
+<p>Quiz matal-o. Uma noite entrei no seu quarto. A lamparina envolvia tudo em
+penumbra. Até a dormir tinha o ar cançado. Levava uma mascara de cloroformio...
+Conhece o conto de Lorrain sobre as mascaras de Londres? foi n'elle que me
+inspirei... Ia para lh'a pôr na cara e acabar com elle. Tropecei n'uma
+cadeira.<span class="pn">{80}</span> Carnehan acordou sem sobresalto. Olhou
+para mim:</p>
+
+<p>&mdash;O quê? já manhã? Que horas são?</p>
+
+<p>Não! Não era possivel! Pensei em atirar-me da janella abaixo. Não podia mais
+com a vida. O diabo é que estragava o penteado! Resolvi fugir. Fiz as malas,
+guardei joias e dinheiro, rompi a escriptura com o emprezario, perguntei por
+minha vez que horas eram a Carnehan&mdash;a cara que elle fez!&mdash;e metti-me n'um
+comboio e vim para a Hespanha, onde ha sol, ha muito sol e não quero nunca
+saber que horas são!»</p>
+
+<p>A sua face parecia uma flôr de perola, e na bocca fortemente pintada um
+sorriso brilhou...<span class="pn">{81}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00090">A MARCIA</a></h1>
+
+<p class="assin">A S<small>ILVA </small>G<small>RAÇA.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{82}<br>
+{83}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00091">A M<small>ARCIA</small></a> </h2>
+
+<p>Aquella velha encarquilhada e ignobil que encontrei na estrada de Cascaes,
+pelo crepusculo suave, tinha uma historia.</p>
+
+<p>Estava bebeda. A bocca onde dois unicos dentes se mostravam, careados, no
+gargalhar, a bocca de beiços finos e roxos, sabendo a alcool e a podridão,
+tinha gritado dores, tinha tambem beijado.</p>
+
+<p>Contou-me tudo, como n'um vomito. Caiu-lhe d'um jacto toda a sua historia e
+toda a sua alma; e pareceu-me que o crepusculo que fazia de perola o horizonte
+longiquo e trazia a calma á ligeira inquietação do Mar, se enchia de gangrenas,
+extravasava lodo, manchava o Ceu purissimo em que nem um farrapo de nuvem a
+esgarçar-se perturbava o estranho socego.</p>
+
+<p>No mar azulado, pairavam, sem velas, as faluas da pesca. Ao longe
+esfumavam-se as<span class="pn">{84}</span> montanhas que correm para o
+Espichel, mais acentuadas na poeira de cinza e de perola do horisonte. A baixo
+da estrada corre a fita d'oiro fosco do areal, que nas angras se alastra, para
+desapparecer nos cachopos violaceos. É toda debruada d'oiro a larga curva da
+Cidadella ao Hospital de Parede. As pequenas ondas, na tarde quieta, vinham
+franjar de renda branca a seda do areal.</p>
+
+<p>Eu seguia do Estoril para Cascaes. Queria vêr ainda o mar, fixar em imagens
+subtis a palpitação dos ultimos brilhos solares na agua, conhecer como vivem e
+estremecem, sob a agua azul, as longas petalas de luz multicôr e fina em que
+desabrocha o poente; diluir toda a minha alma na Paz da tarde, que, por ser
+tamanha, dava a illusão de ser eterna. E a velha não me deixava! Ia atraz de
+mim a gargalhar, desfiando, por entre os labios resequidos, palavras
+desconexas, chamando-me a attenção.</p>
+
+<p>O velho trapo! Na cabeça calva a cuia á banda era grotesca. E no movimento
+sacudido da embriaguez e do <em>delirium-tremens</em>, as vestes esgarçadas
+pareciam agitar bandeirolas, saia de farrapos, corpo de lona.</p>
+
+<p>E não me deixava! Comigo cruzou a linha ferrea, parando para, as mãos
+abertas sobre os olhos, espreitar se vinha algum comboio.</p>
+
+<p>Como sombra minha atravessou as ruellas<span class="pn">{85}</span> de
+Cascaes, o passeio Maria Pia. Passámos a <em>villa</em> Arnoso e a
+<em>villa</em> O'Neill.</p>
+
+<p>A noite caía do Ceu resignadamente. O mar escurecia.</p>
+
+<p>Por certo que o ar fresco da tarde diminuira a embriaguez, porque as
+palavras formavam serie, embora as dissesse n'uma toada de cantilena.</p>
+
+<p>Sentei-me nos rochedos da Boca do Inferno. Ouvia-se o confuso lamento do mar
+na cova onde se agachava uma sombra mais densa.</p>
+
+<p>A velha não podia suster mais tempo a sua historia. Sentou-se ao pé de mim e
+contou-m'a. Ha pessoas que teem a alma pequena. As imagens intensas e poderosas
+não podem viver lá dentro. É preciso que as deitem para fóra. É por isso que os
+bebedos são em geral loquazes e indiscretos. A capacidade psychica
+conservando-se a mesma e engrandecendo-se as imagens pelo poder ampliatorio do
+vinho, elles fallam, confessam-se, vão sós pela rua a dizer os seus segredos;
+foi por isso que a velha me contou a historia, como a podia ter contado a um
+poste do telegrafo ou a um pedregulho da praia.</p>
+
+<p>&mdash;Se me visse quando eu era nova! Ih! Ih! Não tinha esta cara, não, nem só
+estes dois dentes&mdash;e um d'elles já abala! Era bonita! Era loira. Tinha os olhos
+azues. Que elles agora, de chorar pelas desgraças e de chorar com o<span
+class="pn">{86}</span> vinho, já não teem côr. Olhe para elles, não tenha
+medo!</p>
+
+<p>Não tinham côr os olhos. Dentre as palpebras vermelhas e sem cilios eram
+deslavados e estupidos.</p>
+
+<p>&mdash;E os meus cabellos louros e finos! Tenho só algumas mechas brancas, porque
+começaram a cair aos punhados d'uma doença que tive. E fiquei assim com a
+cabeça... E embranqueceram-se os que ficaram...</p>
+
+<p>Tirou a cuia. Metia nojo essa bola em que luziam chagas. Raras mechas de
+cabello a enfeitavam. A velha tornou a rir-se, o mesmo ih! ih! contrafeito em
+que abria a bocca putrida.</p>
+
+<p>&mdash;O meu corpo era lindo, delgado e forte. Os seios eram brancos e firmes.
+Olhe como ficaram!</p>
+
+<p>Tirou, n'um sacão, da bluza encardida e rota, os seios murchos que
+bambolearam como dois figos a desprender-se d'um galho. E depois contou,
+atropellando as palavras, a querer acabar a historia, para se vêr livre d'ella,
+como se se esquecesse, m'a transmitisse, com o encargo da sua angustia, e
+podesse, sem esse pezo, caminhar mais ligeira, ferindo menos os pés descalços
+nas pedras das estradas e nas silvas dos atalhos.</p>
+
+<p> </p>
+
+<p>O pae era um pequeno lavrador, que vivia feliz entre as suas vinhas e os
+seus milhos.<span class="pn">{87}</span></p>
+
+<p>Um dia casou com a mãe, uma pobre rapariga da cidade, que cozia a dias.
+Louçã, fresca, de grandes olhos claros, gostava dos vestidos de seda, dos
+brincos d'oiro e das rendas. Depois do primeiro anno, tiveram Marcia, que poz
+no lar contente um ponto de luz. Em volta d'ella os carinhos adejaram. E as
+mãos habeis da mãe cançaram-se a arranjar-lhe touquinhas, camisinhas, pequenas
+coisas de linhos finos que iam á cidade comprar. Parecia uma filha de gente
+rica, tão garrida andava.</p>
+
+<p>E linda, com o seu cabellito loiro e os olhos azues muito largos, sempre
+abertos como a querer aprehender toda a vida, todo o mundo.</p>
+
+<p>Aos sete annos adoeceu gravemente. O medico ia duas e tres vezes a casa,
+cada dia. E á noite, depois de vêr a pequena, ficava ali, emquanto o pae
+somnoleava, a conversar com a mãe. O medico era novo, janota, tinha os bigodes
+pretos retorcidos e dizia versos. A mãe caiu-lhe nos braços, uma noite em que
+Marcia ficára livre de perigo.</p>
+
+<p>&mdash;O que eu vi! Vocemecê não acredita, mas vejo ainda! É como se estivesse
+diante d'elles na minha caminha! Elles punham-se aos beijos e aos abraços,
+pensando que eu dormia. Eu não dizia nada, nem sabia o que era. O pae ficava
+fóra, a dormitar, na salla de meza. Uma noite elle entrou e apanhou-os
+abraçados. Voltou<span class="pn">{88}</span> sem fazer bulha para dentro.
+Trouxe uma foice comsigo. E degolou-os ali, o medico primeiro, a mãesinha
+depois.</p>
+
+<p>«Agarrou-o pelo cabello e foi como quem monda herva, só d'uma vez. E atirou
+para o chão a cabeça, de que escorria sangue. A mãe nem pôde gritar. Nem eu,
+que sentia um peso aqui, na garganta. Tambem degolou a mãe e atirou para o chão
+com a cabeça. A mãe custou mais. Foi aos sacões que a acabou. Depois poz as
+cabeças e os corpos fóra a pontapés. A pontapés! E então? Parecia doido! E o
+quarto parecia-me todo vermelho, e meu pae, e eu mesma sentia o sangue
+escorregar-me pelas mãos. E queria limpal-as e não podia. Parecia que tinha as
+mãos atadas e sangue na bocca! Depois, meu pae, que pensava que eu dormia, veiu
+lavar a casa, muito devagar, para não fazer bulha. Depois chamou os creados.
+Então todos choraram. Mas meu pae não chorou. Veiu para o pé de mim e passou
+toda a noite a vêr ao candieiro se tinha sangue nas mãos. Chegava-se muito á
+luz para vêr as unhas. Depois lavava as mãos e sentava-se, punha-se a olhar
+muito para ellas, a esfregal-as, e ia laval-as mais!</p>
+
+<p>A velha calou-se por momentos. Depois proseguiu:</p>
+
+<p>&mdash;É tal e qual! Vejo como se fosse vocemecê! As barbas do pae, que eram
+pretas, pareciam<span class="pn">{89}</span> encarnadas. E tudo, tudo estava
+tingido de encarnado!</p>
+
+<p>«O pae foi preso, mas d'ahi a mezes saiu livre.»</p>
+
+<p>Olhou para mim, e com terror:</p>
+
+<p>&mdash;Parece que podia matar!</p>
+
+<p>«Fiquei em casa com a mulher que me servira d'ama e melhorei. Antes Deus me
+tivesse matado, que não tinha soffrido tanto! Lembro-me de tudo! De tudo! É por
+isso que bebo. Quando bebo muito, parece-me que os casos se deram com outros;
+parecem coisas que me contaram. E bebo muito, bebo sempre, mas nada me esquece,
+senão quando cáio na estrada a dormir!»</p>
+
+<p>E voltou á historia dolorosa da sua vida, sempre apressada, a querer
+acabal-a quanto antes.</p>
+
+<p>Ficára com o pae, sombrio sempre, que lhe dizia palavras severas d'uma moral
+cruel e sanguinaria. Foi crescendo sem alegria na casa de crime e de amor. Um
+dia alguem a possuiu tambem. Sentiu os beijos que são vermelhos como o sangue e
+como sangue embriagam, nas boccas amorosas. Sentiu os abraços que apertam como
+uma cadeia de flores venenosas. Não me disse o nome do amante, não me deu uma
+unica indicação. Tratava-o por «alguem», sem odio.</p>
+
+<p>Um dia sentiu que uma vida estranha se agitava dentro d'ella; confusa e
+alarmada, disse-o ao amante.<span class="pn">{90}</span></p>
+
+<p>&mdash;«Nunca mais appareceu. Escrevia-lhe, mas as minhas cartas ficavam sem
+resposta. Até que soube que «alguem» tinha abalado da terra.»</p>
+
+<p>Referiu-me com terror os mezes angustiosos que passou a querer esconder o
+seu «peccado», como ella dizia. Eram sobresaltos continuos. Não o queria
+confessar a ninguem, não queria confidentes. Mesmo na quaresma fingiu-se doente
+e não foi á desobriga. Até do padre tinha medo, não fosse elle dizel-o ao pae.
+Este não via nada, absorvido sempre, ensimesmado, como quem tinha dentro de si
+imagens sufficientes para não recorrer ao mundo exterior. Vivia do passado,
+enlisado na noite vermelha em que matára os amantes que se beijavam.</p>
+
+<p>Uma noite, no quarto escuro, onde não se atreveu a acender um candieiro, o
+filho nasceu entre estertores, ralos que Marcia mordia, para não despertar
+ninguem, para que ninguem suspeitasse do seu segredo. E n'essa noite, emquanto
+as dores do parto lhe rasgavam todas as fibras, estorciam todos os nervos e
+punham-lhe nos olhos a figura da morte horrivel, outras imagens se levantavam,
+nitidas, deante d'ella: o pae com a foice, os amantes que se abraçavam, e as
+cabeças decepadas a rolar no chão, com esguichos de sangue. O quarto era todo
+vermelho, outra vez, apezar da noite escura. E Marcia rasgava com os dentes os
+lençoes, mordia<span class="pn">{91}</span> os travesseiros, e o linho tinha um
+gosto a sangue dos proprios labios, mas dos <em>outros</em>, pensava.</p>
+
+<p>O filho nasceu, n'um vagido. Marcia beijou-o, para o calar. Apezar de se
+sentir desmaiar, pegou n'elle amorosamente e embalou-o. Mas outro gemido saiu
+da massa informe. Parecia-lhe que era estridente, enchia todo o quarto,
+acordaria, talvez, a villa, como os sinos quando tocam, anciosos, a rebate.</p>
+
+<p>As suas mãos magras apertaram a garganta do pequenino ser. Nem um ai. O
+filho devia estar morto. Levantou-se, a cambalear. As pernas dobravam-se. Com o
+pequeno n'um braço, de rastos, os olhos cheios de sangue da allucinação,
+rojou-se pelo quarto, abriu a porta, desceu as escadas ás arrecuas, saiu á
+rua.</p>
+
+<p>Era uma noite clara, sem lua. As estrellas formigavam no ceu. A via latea,
+no azul escuro e transparente, era uma poeira de mica. As arvores faziam pastas
+de sombra na paisagem. Uma fonte doloridamente se lamentava, n'um tanque de
+pedra. Lembrava-se de todos os promenores. Na abegoaria mugiu uma vacca. E o
+cão veiu apressado e contente lamber-lhe as mãos. Ninguem sentira. Mas Marcia
+pensava ouvir passadas no estalido seco das folhas murchas que caíam e na brisa
+pelas ramadas, o mexer de vestes de pessoas a perseguil-a.</p>
+
+<p>Em cada canto mais denso de sombra, via<span class="pn">{92}</span> olhos a
+espreital-a. E, em camisa, quiz correr, sem forças. De onde em onde,
+sentava-se, forçada, porque as pernas não podiam mais. Ouvia gritar a morta. E
+as suas unhas cravavam-se desvairadamente na garganta do innocente. Chegou ao
+fundo da quinta, um terreno de trigo já ceifado. Verão seco, a terra chistosa
+era dura.</p>
+
+<p>&mdash;Foi com as minhas mãos que cavei a terra. Como era dura! Parecia que eram
+pedras que eu partia com as mãos. E ellas encheram-se de sangue. E eu, no meio
+d'aquelle trabalho feroz, ainda ouvia o innocentinho gritar. E apertava-lhe
+mais a garganta. E voltava a cavar, queria cavar fundo, para que não dessem com
+o corpinho quando lavrassem a terra para semear de novo. E não havia maneira!
+Não tinha força nem coragem para ir procurar uma enxada, um ferro, qualquer
+coisa com que podesse abrir a terra tão dura, que me fazia doer tanto as mãos.
+Sentia que rasgava os dedos. E tinha medo de que amanhecesse. Olhava para o
+Ceu, a vêr se já despontava a claridade. E parecia-me sempre vêr o ceu mais
+claro, ás vezes até pensava que havia sol de meio dia. E voltava a cavar, os
+olhos fechados, com raiva, sem saber bem o que fazia!»</p>
+
+<p>Conseguiu fazer uma cova. Grande? Pequena? Não sabia dizel-o. Deitou terra
+por cima do cadaver ensanguentado, calcou-o com raiva, e então poude correr,
+por entre as arvores, a<span class="pn">{93}</span> bater nos galhos e nos
+troncos, a rasgar a camisa e as carnes, até casa. Ia amanhecendo. Um traço
+alaranjado corria na nascente. Metteu-se na cama e dormiu.</p>
+
+<p>Calou-se. Estendeu-se nas pedras, de borco, a olhar fixamente para o mar.
+Era já noite. As estrellas palpitavam no céu transparente. O mar enchera-se de
+sombra. Os barcos tinham recolhido já. Ouvia-se apenas o quebrar das vagas na
+Bocca do Inferno.</p>
+
+<p>Marcia levantou-se e estendeu-me a mão, supplicante:</p>
+
+<p>&mdash;Dá-me um tostão para aguardente?!<span class="pn">{94}<br>
+{95}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000100">O CEGO</a></h1>
+
+<p class="assin">A A<small>LBERTO D'</small>O<small>LIVEIRA.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{96}<br>
+{97}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000101">O C<small>EGO</small></a> </h2>
+
+<p>O Pintor, que vivera intensamente na luminosa communhão das coisas bellas,
+no culto da Fórma e da Côr, sorvendo a Belleza religiosamente, como se aprecia
+um vinho velho, de repente cegára.</p>
+
+<p>E no tumulo do seu atelier de que haviam fugido os modelos, errava
+angustiado, querendo com a mão sentir a linha das figuras que o seu divino
+pincel traçara, nas manhãs claras, entre tapetes que amorteciam os passos e ás
+vezes a queda dos corpos dos divans acolhedores.</p>
+
+<p>Sentava-se no mesmo escabello veneziano, marchetado, tendo diante de si, no
+cavallete, uma tela. E vagarosamente ia traçando linhas, julgando ainda
+desenhar figuras, compôr peitos firmes, contornar curvas musicaes de
+quadris,<span class="pn">{98}</span> illuminar olhos abertos, cheios de sonho e
+de volupia.</p>
+
+<p>Mas o pincel empastava tintas, inexperiente na mão do grande mestre, como na
+d'uma creança de peito.</p>
+
+<p>Depois do inutil esforço, não podendo vêr, lançava ao chão, com raiva, a
+tela, e punha-se a passear, cambaleante, hesitante, como um ebrio, as mãos
+estendidas, como se da ponta dos dedos nascessem olhos, a guial-o.</p>
+
+<p>E vivia apenas com um velho servo. O <em>atelier</em> morria ao abandono.
+Para quê a molleza dos tapetes persas, os brilhos dos espelhos de Veneza, os
+marmores das estatuas e a radiosa formosura dos seus proprios quadros
+divinisando a Vida? Para quê? Se tudo adormeceu sob a cinza que se acumulára
+nos seus olhos d'antes d'um tamanho brilho, esses olhos leaes, sem ironia,
+cheios d'amor por tudo o que tivesse uma particula de Belleza?</p>
+
+<p>Fôra um grande pintor afamado. Retratára as mais elegantes senhoras da
+côrte, em vestidos sumptuosos que mostravam, n'um decóte largo, o cóllo nu,
+como uma enorme flôr. E nos seus quadros punha tanta voluptuosidade que a
+marqueza de Bouro, devota e pudica, recusára com horror o retrato; apesar do
+pequeno decóte, da garganta alva pareciam nascer rubras florescencias de
+desejos.</p>
+
+<p>E nunca mais pintou retratos. Ideou quadros<span class="pn">{99}</span> em
+que a mulher e a vida eram divinisados. Fez bacchanaes, em que as sacerdotisas
+nuas agitam tirsos enramados, coroadas de flôres, numa loucura divina. Compôz
+uma scena das vindimas em que as mulheres comem as uvas, sob as latadas
+viçosas, das boccas dos amantes. Fez Leda e o cysne, em que, n'um lago
+transparente, as virgens descuidosas se banham. Um cysne apparece, airoso,
+vagaroso, o macio pescoço n'uma curva larga. E ellas querem apanhal-o á
+porfia.</p>
+
+<p>E esses quadros d'uma athmosphera tão clara, d'um ceu tão luminoso, com
+carnaduras frescas, admiraveis seios que exhalavam, como uma flôr de tropico,
+um perfume estonteante, tinham-lhe dado a riqueza e a gloria.</p>
+
+<p>A multidão apontava-o, nas ruas, com reverencia. As mulheres lançavam-lhe
+ternamente cobiçosos olhares. E o pintor gosava a vida, sem se prender,
+beijando as bôccas, aspirando o aroma das cabelleiras fartas, que caiam sobre
+as nucas, sobre as costas, como mantos finissimos.</p>
+
+<p>Até que um dia cegou. Fechou a sua casa, como se tivesse partido para uma
+longa viagem, não querendo deixar vêr a ninguem o espectaculo turturante da sua
+angustia. E continuava a querer pintar, ainda o cerebro povoado pelas risonhas
+imagens, concupiscentes seios, rios translucidos, gemas coruscantes,<span
+class="pn">{100}</span> dobras sensuaes de sedas, sobre o ambar da pelle das
+morenas, sobre a magnolia das epidermes branquissimas.</p>
+
+<p>Um dia, soube-se. Vagamente correu na cidade que o pintor magnifico cegára.
+A curiosidade durou tres dias. Os possuidores dos quadros viram com prazer a
+sua valorisação. Os collegas secretamente exultaram pelo desapparecimento do
+rival vencedor... E tudo caiu, tudo esqueceu.</p>
+
+<p>Uma apenas se lembrou d'elle. Carinhosa, amorosa, forçou a porta
+teimosamente fechada. E entregou-se ao cego.</p>
+
+<p>Dias passaram cruzados de angustias e de intensos prazeres. Até que um dia o
+pintor lhe disse:</p>
+
+<p>&mdash;Eu tinha que coroar de rosas&mdash;a minha mão inutil nem para isso serve&mdash;a
+tua cabeça. Devia ajoelhar diante de ti e dar-te todo o meu sangue, pois que te
+dei já todas as minhas lagrimas. Vieste accender uma aurora no crepusculo
+eterno da minha cegueira. Permittiste que eu revisse a Belleza da Fórma. Com os
+meus dedos pude sentir como é pura a curva do teu seio, a linha das tuas
+espaduas e lindos os teus dedos. Trouxeste-me o aroma da carne moça, como uma
+brisa benefica leva a um prisioneiro o cheiro do feno. Senti outra vez a musica
+deliciosa das palavras de amor. E no teu corpo pequeno e flexivel, o teu rosto
+deve<span class="pn">{101}</span> ser como o luar d'um lirio sobre a sua
+haste...</p>
+
+<p>Calou-se. Hesitou alguns momentos. Pareceu encher-se de coragem e
+continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Mas não posso vêr-te! Vivo comtigo, como n'uma somnolencia&mdash;um pouco de
+realidade e um pouco de sonho. Pode ser que os annos tenham feito brancos os
+teus cabellos compridos; que alguma doença má tenha esverdeado a tua pelle
+macia. Nas palavras que dizes, oiço ás vezes uma promessa, outras um
+retraimento. Não posso vêr nos teus olhos palpitar a tua alma. É como se todos
+os dias me apparecesses, ás escuras, com uma mascara na cara, um dominó a
+velar-te o corpo. Entrevistas em jardins frondosos, ás escuras. Tudo silencio,
+mesmo na minha alma. Chegaria até nós, lugubremente, o adormecimento da vida. E
+não serias inteiramente minha, apenas uma parte de ti me pertenceria, e a
+outra, uma promessa vaga. «Penso que nos encontraremos, dirias... Etheromana em
+busca de excitantes, romantica, caçando aventuras, feia sem remedio a esconder
+aleijões e a querer ouvir palavras que nunca ouviu, sou mais que tudo isso,
+acredita, e menos que uma illusão!» Que importariam as tuas palavras? No
+arroubamento dos beijos sentir-se-hia o travo do prazer incompleto. E beijo-te
+um pouco como se beija um phantasma. Se eu te podesse vêr, dir-te-ia que
+arrancasses a mascara,<span class="pn">{102}</span> ou que te fosses para
+sempre. Quereria ver-te, ou realidade inteira, deliciosa na pureza da
+atmosphera, ou sonho puro, como sei sonhar. Não posso com a tortura do meio
+mysterio que a nevoa dos meus olhos cegos cria... Podesses ser toda minha,
+conseguisse eu deitar abaixo a mascara, vêr-te na gloria da tua formosura,
+mesmo na miseria de alguma incuravel doença, fixaria na tela, com estrellas
+fulgentes, com sucos magicos de flôres desconhecidas, essa radiosa Belleza, ou
+essa deformidade, que se illuminaria, subiria aos ceus, como S. Julião quando
+beijou a bocca gangrenada do leproso. Apparecesses tu! Mas não. Ficas na meia
+luz como um phantasma!</p>
+
+<p>E o cego, em passadas incertas, as mãos estendidas, saiu do atelier, onde a
+unica nota de vida era o soluçar da amante.<span class="pn">{103}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000110">A GLORIA</a></h1>
+
+<p class="assin">A C<small>ARLOS </small>M<small>ALHEIRO
+</small>D<small>IAS.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{104}<br>
+{105}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000111">A G<small>LORIA</small></a> </h2>
+
+<blockquote>
+ <p>Qu'est-ce que ça fait que je sois une grande artiste, si je ne suis pas
+ heureuse?</p>
+
+ <p>           Anatole France&mdash;<em>Histoire Comique</em>. </p>
+</blockquote>
+
+<p>Gonçalo Freire, o escriptor que um romance intenso tornára celebre, estava
+triste e desanimado no seu gabinete de trabalho.</p>
+
+<p>Os candelabros Luiz XV brilhavam nas multiplas velas brancas, faziam saltar
+faiscas dos cobres doirados, das faianças onde corriam idilios em jardins
+frondosos. O seu <em>studio</em> era sempre luminoso, quer de manhã, com as
+largas janellas abertas sobre o rio, quer de noite com as resplandecencias das
+luzes. Dizia que assim a imagem surgia mais precisa, mais clara, mais
+<em>latina</em>.</p>
+
+<p>Gonçalo não gostava do nevoeiro que os escriptores do Norte deixam entre os
+seus periodos. Amava o sol e os ceus macios, o mar<span class="pn">{106}</span>
+incendiado, as praias do Algarve d'areia doirada, os rios transparentes, onde,
+á tarde sómente, boia um fumo tenue.</p>
+
+<p>Esse romance, «A Face do Homem» revelava esse amor da clareza e do
+equilibrio. Pondo de parte os intuitos sociaes que prevertiam a literatura
+moderna, ligára quadros d'uma emarcessivel belleza por um enredo forte,
+interessante e commovido.</p>
+
+<p>Pessimista á feição de Nietzche, descrevera a miseria da face humana, depois
+de arrancada a mascara; puzera o homem diante de si, n'um espelho, e o homem
+sentira-se asqueroso. Mas, crendo no culto dionisico, esperava pela Arte cobrir
+a fealdade da vida. E, perto do homem, a mulher, florida pelo amor,
+representava o Sonho, a Illusão que cobre com um veo azul, a distancia, os
+montes escarpados.</p>
+
+<p>O publico gostára. Seis edições successivas se tinham esgotado, entre
+aclamações, em dois mezes. Os jornaes tinham publicado o seu retrato com
+artigos encomiasticos, comparando-o a Camillo, pela riqueza e propriedade do
+vocabulario, a Eça pela ironia, a Fialho pelo vigor do descritivo, sendo
+superior a todos pelo interesse e pela suprema Belleza do seu ideal de
+latino.</p>
+
+<p>Era um d'Annunzio com mais sinthese.</p>
+
+<p>Todas as revistas e jornaes sollicitavam a preciosa colaboração; o
+<em>Suisso</em> chamára-lhe<span class="pn">{107}</span> plagiario e idiota,
+apontára-lhe seis erros de concordancia, descobrira que em Coimbra roubára
+versos a Anthero do Quental, n'um poemeto que correra impresso, <em>Sunt
+lacrimae rerum</em>, em que Gonçalo Freire acreditava no Inconsciente, segundo
+Hartman e na Vontade, segundo Schopenhauer.</p>
+
+<p>Quasi todos os dias o editor lhe mandava molhos de cartas de admiradoras,
+umas apenas a dizer a palavra quente da sua admiração, outras pedindo
+autografos e uma ou outra marcando, misteriosa, uma entrevista, n'um
+<em>coupé</em>, em sitio escuso.</p>
+
+<p>N'essa noite, ao entrar em casa depois d'uma <em>bridge party</em>, fora
+sentar-se, a querer trabalhar n'uma novella, de que esboçara já o plano. O
+creado levou-lhe a correspondencia que Gonçalo abriu, aborrecido. Uma carta
+d'um editor que lhe pedia um livro para lançar a sua livraria; uma actriz nova
+e elegante, que lhe lembrava a vaga promessa d'uma peça, duas amorosas a
+pedir-lhe entrevistas e um escriptor hespanhol que solicitava auctorisação para
+traduzir «A Face do Homem». A lapis azul, no summario do <em>Mercure de
+France</em>, chamavam-lhe a attenção para um longo artigo de Philéas Lebesgue,
+em que o critico entoava um hymno em seu louvôr, enaltecendo a harmoniosa
+belleza do romance, «mais subtil, como psychologia do que Bourget, mais moderno
+que Jean<span class="pn">{108}</span> Lorrain, e tão puro de estylo como
+Anatole France». Recommendava-o a Herelle, como sendo a obra d'um Annunzio mais
+intenso.</p>
+
+<p>Era a gloria, vinda do anonymo, não a celebridade feita pelos amigos.</p>
+
+<p>Moço ainda, trinta annos, rico, representante d'uma casa antiquissima com o
+brazão registado muito antes de D. João III, parecia um d'aquelles principes
+que as fadas assistem no baptismo, dando-lhes todas as venturas.</p>
+
+<p>Mas, triste, Gonçalo foi á janella e rasgou cada uma d'aquellas cartas,
+lançando ao vento os pedaços de papel, que baixavam, pareciam hesitar e
+sumiam-se no escuro.</p>
+
+<p>Na noite sem lua pareciam nascer no espaço as luzes dos navios, que punham
+na agua um reflexo de estrella. Encostado ao parapeito, Gonçalo muito tempo
+olhou para a escuridão que enchia o rio. Um ou outro ruido de carro chegava até
+elle, sem o despertar; de quando em quando na rua, ao longe, brilhava por um
+instante um electrico, como um meteóro.</p>
+
+<p>E Gonçalo poz-se a pensar no amor que dentro de si trazia, sem esperanças,
+um amôr que tivera uma demorada cristalisação. Essa mulher surgia, luminosa e
+florida, deante d'elle, no escuro. Via o seu corpo magro e esbelto, a
+florescencia clara do rosto um pouco duro, o olhar indiferente. Era sempre
+assim. E, ensimesmando-se, a figura aparecia-lhe, como uma<span
+class="pn">{109}</span> obsessão, para acentuar o alheiamento, atormental-o
+mais.</p>
+
+<p>Muitas vezes, quando compunha, largava a pena, porque a mulher vinha para
+defronte d'elle e não havia maneira de fechar-se no seu pensamento, continuar o
+periodo interrompido pela visita.</p>
+
+<p>E punha-se a recordar de como nascera aquelle amôr. Vira-a muitas vezes nas
+festas, nas ruas, nos theatros, indiferentemente. Uma mulher elegante e nada
+mais, feita talvez pelas costureiras que dispõem de espartilhos, de faixas que
+apertam os quadris, de <em>bouffants</em> que disfarçam chatezas de peito, de
+tecidos leves, que dão a aparencia de ligeireza aos corpos.</p>
+
+<p>Não a conhecia. Nunca fôra forçoso conhecel-a e como não o interessava, não
+se aproximou. Era a Maria do Amparo. Quando ella passava pelo <em>Turf</em>,
+alguem dizia, ou o proprio Gonçalo:</p>
+
+<p>&mdash;A Ampáro vae hoje bem.</p>
+
+<p>&mdash;É uma mulher interessante.</p>
+
+<p>&mdash;Veste-se bem, principalmente.</p>
+
+<p>E tanto tempo a vêl-a, outras o chamaram, trouxe o seu coração envolvido em
+outros amores risonhos, quasi sem se prender. E a Maria do Amparo continuava a
+aparecer em toda a parte, elegante, um pouco preciosa, viva, um sorriso na boca
+fina que mordia para avivar o traço roseo dos labios.<span
+class="pn">{110}</span></p>
+
+<p>Uma noite, em S. Carlos, n'uma visita a um camarote, Gonçalo encontrou-a.
+Amparo falou-lhe nos artigos que Gonçalo publicara n'um jornal, chronicas vivas
+sobre o Culto da Belleza, a belleza na cidade, nos monumentos, nos jardins e
+nas praças, belleza no lar cheio de flores, com moveis elegantes e comodos,
+belleza na mulher, artificialmente rectificada, por maquilhagens habeis e
+vestidos sabiamente confeccionados por mãos peritas. Attraiu-o a conversa.
+Amparo tocou com intelligencia e tacto nos pontos mais originaes, mostrou
+comprehender e sentir a Belleza, rodeou-o de frases amaveis, em que havia, ora
+no sentido, ora na entoação, alguma coisa de carinhoso, poz em campo toda a
+seducção de mulher elegante, chamando-o a si, lançando-lhe a perturbante luz
+dos seus olhos claros. A conversa, apesar de curta, um entreacto e o começo
+d'um acto, acabara n'um <em>flirt</em>.</p>
+
+<p>Gonçalo procurou vêl-a. Esperou-a attento e ancioso no Chiado, frequentou as
+casas onde poderia encontral-a. E as tardes de recepções, os raouts, as
+sauteries, e mesmo as empertigadas recepções diplomaticas, eram leves
+<em>flirtations</em>, que o deixavam absorto, andando pelas ruas sem attender a
+nada, sorrindo-se ás vezes de alguma palavra dita por ella, de um gesto mais
+expontaneo.</p>
+
+<p>Todos os elementos de seducção foram postos<span class="pn">{111}</span> em
+pratica por Amparo. E na alma de Gonçalo começara a cristalisação; a rede ia-o
+apertando, avassalava-o a mulher deliciosa, como os antigos retiarios os seus
+adversarios nos circos romanos.</p>
+
+<p>Gonçalo já não pensava em mais nada. Logo depois do almoço, em vez de
+sentar-se á meza, a trabalhar, ia para a rua sem destino, com a vaga esperança
+de a encontrar, de a vêr na carruagem. E em todas as festas se aborrecia até
+chegar a Amparo. No Gremio pedia todos os jornaes, sem poder lêr nenhum, porque
+se alheava, recordava os momentos felizes, idealisava impossiveis sonhos, uma
+fuga para algum paiz onde ninguem o conhecesse, e Amparo vivesse só para elle,
+esquecida do hediondo marido, de todas as caricias, de toda a vida interior. Se
+por acaso lhe passava pela mente a ideia justa de que Amparo nunca deixaria a
+vida mundana, a «consideração», a «situação», logo Gonçalo a sacudia por
+importuna, e enlevava-se no sonho.</p>
+
+<p>Era uma vida feliz, apesar do pouco que ella dava&mdash;olhares, commovidas
+palavras, promessas n'um futuro remoto e impreciso, e, um ou outro beijo nas
+mãos que tinha macias, palidas, mãos entre sensuaes e misticas da Gioconda, sem
+a aristocracia das mãos de Velasquez ou Van Dick, sem a luxuria que rosea os
+dedos das figuras do pintor de Verona.<span class="pn">{112}</span></p>
+
+<p>De repente, porém, começou a esquivar-se a Amparo. Houve palavras dubias,
+falou de consciencia e de dever; prometeu um amor eterno, mas ideal, sem
+pecado, um amor que lhes cubrisse a vida com uma gaze leve, como um zaimpho. E
+mais e mais se foi esquivando, emquanto em Gonçalo o amôr se tornava mais
+forte, enchia-lhe o peito de desespero, amachucava-lhe todas as energias e
+dava-lhe a sensação de ter, dentro de si a alma, como o chapeu alto d'um
+clown.</p>
+
+<p>E diante da noite, rasgando as cartas d'amor das outras e as aclamações do
+publico, Gonçalo, a chorar, repetia a frase da heroina da <em>Histoire
+Comique</em>:</p>
+
+<p>&mdash;Que importa que eu seja um grande artista, se não sou feliz?<span
+class="pn">{113}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000120">A FESTA DE MAIO</a></h1>
+
+<p class="assin">A M. T<small>EIXEIRA </small>G<small>OMES.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{114}<br>
+{115}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000121">A F<small>ESTA DE
+</small>M<small>AIO</small></a></h2>
+
+<p>&mdash;Violante! Violante! gritou o marquez para o jardim.</p>
+
+<p>André, no cimo da escada, d'onde ageitava ramos no entablamento, conseguiu
+desenroscar-se dos molhos de madre-silvas que o coroavam, o envolviam, e
+voltou-se. Ao ver o pae sorriu-se.</p>
+
+<p>&mdash;Admira-se?</p>
+
+<p>&mdash;A estas horas, já levantado, e em casa?</p>
+
+<p>André abriu na bocca pallida um sorriso exangue; mesmo assim o sorriso
+brilhou nos olhos negros, fez viver toda aquella adolescencia, que parecia
+finar-se lentamente:</p>
+
+<p>&mdash;Não me deitei.</p>
+
+<p>&mdash;Ouves, Violante? Não se deitou!</p>
+
+<p>A marqueza apareceu á porta, n'uma blusa clara, tremente nas rendas
+amarelladas, ainda aberto o guarda-sol lilaz, por onde se filtrava o sol, que
+extranhamente lhe coloria o cabello.</p>
+
+<p>&mdash;Ó André! Que tolice!<span class="pn">{116}</span></p>
+
+<p>&mdash;Prometti vir ajudar-te, e mesmo que não promettesse, no dia da tua festa,
+eu não deixaria de vir arranjar a capella. Não está linda? Digam...</p>
+
+<p>&mdash;Lindissima.</p>
+
+<p>A pequena capella, em estylo da Renascença italiana, branca nos seus
+marmores puros, sobria d'ornatos, sorria nos festões de madre-silva, nas
+grinaldas de rosas, nos vasos trabalhados de que escorriam glicinias roxas, nas
+peanhas onde santos olhavam, suaves, os grandes lyrios abertos, em toda a
+florida vegetação que manchava a nitidez do marmore pallido, correndo sobre os
+frisos, despenhando-se pelas janellas largas, envolvendo-se ás columnas, vindo
+morrer no lagedo claro do chão.</p>
+
+<p>Toda aquella architectura, feminina, sensual,&mdash;até na figura do Baptista o
+esculptor puzera um quebranto&mdash;brilhava e vivia uma vida lasciva e fina,
+ornatos delicados, sem exhuberancias, curvas que lembravam a doçura calida de
+corpos nus, no tom ambarino do marmore velho.</p>
+
+<p>André desceu. A marqueza trazia nas mãos, ainda molhadas da rega, um molho
+de grandes orchideas d'um azul doente, listrado de esverdinhadas veias como
+feridas a apodrecer.</p>
+
+<p>&mdash;E estas orchideas, onde as hei de pôr?</p>
+
+<p>&mdash;Aqui não! Para o mez de Maria, para a festa de maio, orchideas não.
+Ponha-as no gabinete<span class="pn">{117}</span> do papá, junto das estampas
+de Goya... Aqui não!</p>
+
+<p>&mdash;Tens razão, annuiu o marquez. Antes tragam maias...</p>
+
+<p>&mdash;Vou eu buscal-as, lembraram André e a marqueza.</p>
+
+<p>&mdash;Não.</p>
+
+<p>&mdash;Não. Vou eu, Violante! insistiu André.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos ambos...</p>
+
+<p>&mdash;Querem que eu tambem vá? offereceu sem enthusiasmo o marquez.</p>
+
+<p>&mdash;Não. Deixe-se estar; vamos nós.</p>
+
+<p>Ao sahir da capella, passando os pinheiros mansos, em circulo, como a formar
+um adro, descia uma escada balaustrada, n'uma curva larga, ladeada de roseiras.
+Depois dois caminhos direitos, onde branquejavam estatuas, cantavam repuxos
+esguios que no alto se abriam, como lirios de cristal perpetuamente a florir e
+a quebrar n'um ruido claro.</p>
+
+<p>&mdash;Onde ha maias? perguntou André.</p>
+
+<p>&mdash;Não sabes? É alli no fim, uma grande encosta, por baixo do tanque dos
+tristões... Não conheces a quinta!</p>
+
+<p>&mdash;Como queres que a conheça? Não venho cá nunca!</p>
+
+<p>&mdash;Hei de mostrar-te a quinta, agora... Has de gostar. Vaes-lhe tomar gosto.
+Olha, é aqui...</p>
+
+<p>No fundo verde abriam-se, sorriam, na manhã clara, como pequenas estrellas,
+as maias<span class="pn">{118}</span> d'oiro. Desde o caminho apertado entre
+fitas de marmores que as roseiras invadiam, marinhando pelas estatuas dos
+deuses e das graças, luziam maias.</p>
+
+<p>A fonte despejava, pelas buzinas brancas de tres tristões, cujas caudas se
+enroscavam, fitas d'agua.</p>
+
+<p>Tudo cantava, tudo era alegre, na manhã radiosa. A encosta descia, verde da
+relva, das arvores copadas, mosqueada pela brancura dos marmores, brilhos de
+flores, sobre tudo rosas-chá, enormes e delicadas, flores de cera e flores de
+carne, sensuaes e finas, como um beijo em que os labios mal se tocam, na
+pressa, mas em que as almas se confundem, n'uma vertigem. Em baixo continuava a
+descida rapida da colina, viam-se tectos angulosos de casas, faiscas que o sol
+levantava das janellas, linhas tortuosas de ruas, arvores de praças, o Rocio,
+como um lago de fogo a brilhar nas pedras claras, a Avenida n'uma chapada
+verde; vivamente um monte subia em apertadas casarias, alastrava-se por todos
+os lados a cidade, perdiam-se na perspectiva os telhados irregulares, até os
+montes violacios da Outra Banda, que se esbatiam no ceu claro, no ceu risonho e
+roseo da manhã de primavera. No rio embandeiravam-se navios ligeiros e airosos.
+Velas de faluas passavam, largas, pandas, como monstruosas gaivotas n'um vôo
+sereno. E do rio sahia uma<span class="pn">{119}</span> grande alegria, como um
+fumo: fazia tremular as bandeiras, doirava mais o sol, percorria toda a cidade,
+extraía das ruas acordadas um ruido confuso, chiar de carros, pregões, coleras,
+risadas, que se misturavam, fundiam-se, e lá cima chegavam n'uma voz unica como
+um rumor de vaga.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos a vêr quem apanha mais! E a marqueza deixando a sombrinha, desceu
+por entre as maias, afagando-as com as mãos brancas.&mdash;Que lindas são! Como
+sorriem para mim... Tenho pena de cortal-as.</p>
+
+<p>&mdash;Vê se caes... Eu dou-te o braço. E André alcançou-a.</p>
+
+<p>&mdash;Não. Não. Vamos apanhal-as! Vamos a vêr quem apanha mais! Vamos a vêr!</p>
+
+<p>Febrilmente, começaram a apanhal-as, a cortar grandes braçadas. Ás vezes as
+suas mãos encontravam-se, apertavam-as e riam-se.</p>
+
+<p>&mdash;Não são maias... são os meus dedos.</p>
+
+<p>E continuavam, já corados, a marqueza curvada, a cabeça d'um loiro quente
+quasi entre as maias.</p>
+
+<p>&mdash;Estou cançada. Estou cançada!</p>
+
+<p>&mdash;Que lindo quadro. Todo de flores! Espera, vou enfeitar-te. E André
+coroou-a de maias, toda a sua cabeça ficou florida. E a marqueza, risonha e
+córada, protestava a rir-se:</p>
+
+<p>&mdash;Olha que me despenteias!</p>
+
+<p>&mdash;Que importa? Que importa? Estás melhor<span class="pn">{120}</span>
+assim... Agora este ramo para o peito... Mais estas... Um grande ramo... Como
+estás linda; oiro e lilaz! E o teu cabello é d'oiro. O papá vae ficar encantado
+quando te vir assim...</p>
+
+<p>Subiram, ainda a rir-se. André deu-lhe o braço e foram, quasi a correr. Ao
+passar por um repuxo:</p>
+
+<p>&mdash;Vamos molhar as flôres, ficam mais bonitas, como se tivesse acabado de
+cahir o rócio.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, pois sim.</p>
+
+<p>O cristal dos repuxos altos cahiu sobre as grandes braçadas de maias.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos lá, vamos lá, que se faz tarde para o almoço!</p>
+
+<p>No altar da Virgem estavam apenas largas rosas brancas, flôres d'um aroma
+subtil e angelico.</p>
+
+<p>&mdash;Onde pôr as maias?</p>
+
+<p>&mdash;No chão, junto ao altar. São as primicias da primavera oferecidas á
+Virgem.</p>
+
+<p>&mdash;Pagão! censurou a marqueza.</p>
+
+<p>&mdash;Não importa. Ficam bem. Aqui no chão, como um monte de estrellas, aos pés
+da Virgem:</p>
+
+<p>Para que fosses mais formosa Deus deu-te a lua por chapins e as estrellas
+por caminho.</p>
+
+<p>A sineta tocou para o almoço.</p>
+
+<p>Rodearam a casa e entraram pela estufa, cheia de begonias e de cravos.<span
+class="pn">{121}</span></p>
+
+<p>Emquanto André se vestia, o marquez perguntou se Violante se não admirava do
+seu procedimento.</p>
+
+<p>&mdash;Ha quantos annos não fica elle em casa? Tresnoitado, entrando muitas vezes
+quando eu já rodo pelo jardim, escondendo-me d'elle, para fingir ignorar os
+desatinos, elle dormia e almoçava aqui, fóra d'horas, escondido da Felicia, que
+resmunga contra elle coisas terriveis, chama-lhe perdido, sustenta que está
+possesso...</p>
+
+<p>&mdash;Uma paixoneta, que trata de curar... Disse-me tambem, que agora ia começar
+vida nova, talvez fosse para a Quinta dos Limoeiros, para se desaffeiçoar...
+Isto passa-lhe... Para a semana lá o teremos na mesma vida; theatros, actrizes,
+ceias...</p>
+
+<p>&mdash;E se o pudesses reter em casa! Vê se o divertes... Fal-o sahir comtigo.
+Agora que vou a Paris podias conseguir que te acompanhasse a visitas, bailes,
+<em>soirées</em>... Já o quiz interessar com as estampas, mas perguntou-me se
+eu julgava que havia de passar os dias a vêr bonecos...</p>
+
+<p>O almoço foi alegre. Violante e André fallaram no que era preciso fazer, nas
+passadeiras a pôr na egreja, nas cadeiras, na disposição dos bancos no adro, á
+sombra dos velhos pinheiros, até sob o arco dos limoeiros pôr cadeiras, que
+convidassem os flirts a recolherem-se<span class="pn">{122}</span> na discreta
+arcada. André promptificou-se a tudo fazer; sahiu para o jardim, illuminado
+pelo sol, cantante nas aguas abundantes dos tanques e cascatas, misterioso nas
+sombras que o arvoredo formava, rico de côr, verdes diversos, vermelhos, azues,
+lilazes das flores, mosto fresco das olaias floridas; mas, sob a copa larga e
+tremente d'um choupo do Canadá, deitou-se e adormeceu profundamente.</p>
+
+<p>O jardim antigo, desenhado por um artista italiano, não tinha as placas
+relvosas dos parques inglezes e o seu frio alinhamento. Cresciam por toda a
+parte altas e poderosas arvores, que apertavam a architectura renascença do
+palacio; por toda a parte cantavam em fontes, em cascatas, em repuxos, aguas
+claras.</p>
+
+<p>Havia macissos de roseiras que cresciam livremente e se enrolavam aos
+marmores, aos soclos, iam florescer e perfumar nos collos brancos dos bustos,
+entre braços finos dos grupos mitologicos, rondas de estações, danças das
+Horas, cheias de movimento e de belleza. Escadas brancas de balaustradas
+ligavam as depressões de terreno; e por toda a parte uma grande alegria de
+flôres e de arvores viçosas, pinheiros, carvalhos, arbustos de folhas variados,
+jasmineiros trepadeiros, que sorriam, trementes, nos minusculos jasmins, entre
+a folhagem verde.</p>
+
+<p>Por toda a parte uma exhuberancia de flores,<span class="pn">{123}</span>
+que nasciam em canteiros, amores perfeitos de velludos quentes, pequeninos
+myosotis, quasi brancos no seu azul virginal; outras que subiam pelas arvores;
+estrelavam-se clematites, umas roxas, outras brancas, enroscavam-se aos
+troncos, iam florir na copa larga dos castanheiros. Em pequenas sebes de cana
+os craveiros inclinavam-se, cravos vermelhos d'um perfume que entontece, cravos
+brancos, mosqueados de violeta, cravos estranhos como nodoas nas epidermes.</p>
+
+<p>Tudo sorria, tudo gritava, na confusão da manhã clara; estendia-se pelo ceu
+o sol, batia nos flocos de nuvens que se doiravam, extraindo de toda a terra
+uma alegria immensa, que subia no fumo, que cantava na viração leve
+arrastando-se pelas arvores altas, manifestava-se nas folhagens claras,
+envolvia tudo.</p>
+
+<p>Em grandes placas floresciam as maias e, no inverno, violetas de Parma, d'um
+lilaz moribundo. Por toda a parte flores, estendendo-se pela terra, ou subindo
+e perfumando. E as aguas cantavam, cristallinas, corriam, iam beijar nos regos
+abertos folhas viridentes. Era a Quinta Alegre, o jardim magico. Nos ornatos
+das janellas e das portas, nos baixos relevos e nas pinturas das salas,
+reproduziam-se em linhas puras os motivos de volupia e de belleza. Até na
+capela havia uma exuberancia de vida. Viam-se figuras nuas, como nas
+Loggias<span class="pn">{124}</span> do Vaticano. Os monstros não tinham, como
+nos ornamentos goticos, uma aparencia terrivel: eram elegantes, d'uma aparencia
+risonha e as retorcidas caudas terminavam, estilisadas, em caules de flores. A
+vida era triunfante nos collos sensuaes das mulheres, nos cachos de fructos,
+romãs abertas de que sahia um riso vermelho, laranjas doiradas, cepas que
+subiam espalhando-se em ramos com grossas uvas, como a de Corinto, figuras
+aladas, sensuaes, antes amôres contentes, do que anjos misticos e
+salvadores.</p>
+
+<p>Havia uma volupia fina, uma delicada sensualidade cada um dos ornatos, como
+em cada um dos caminhos da Quinta Alegre. A mesma latada verde clara, em que se
+via a poeira dos cachos que cresciam, se reproduzia e multiplicava nos marmores
+das sallas e da capella; e os corpos alvos das ninfas, das graças, hamadriadas
+contentes, dos faunos lascivos levantavam-se e sorriam no marmore das
+estatuas.</p>
+
+<p>Era alli que todo o anno viviam os marquezes de Runa, salvo um mez na
+Bretanha, setembro, em alguma praia tranquilla e ensolada, d'onde voltavam,
+apressados, logo aos primeiros frios, apenas uma pequena paragem em Paris, para
+as necessarias visitas da marqueza a Redfern, Paquin, e pequenas e
+especialissimas lojas d'outros fornecedores.<span class="pn">{125}</span></p>
+
+<p>O marquez, Christiano Spinola d'Acciaioli, descendia de duas familias
+italianas, os marquezes Spinolas e os marquezes d'Acciaioli, que foram duques
+d'Athenas, de que vieram ramos para Portugal. No seculo XVII fôra um seu tio,
+Simão de Vasconcellos Acciaioli casar a Florença com a filha unica do marquez
+d'Acciaioli, para não acabar o nome. E d'ahi os dois ramos conservaram sempre
+relações intimas, visitas dos portuguezes e italianos, e mesmo o marquez
+passára parte da sua mocidade em Florença na casa senhorial de seus avós.</p>
+
+<p>Novo, voltára a Portugal e amára com um tranquillo amôr sua primeira mulher
+D. Estevaninha Henriques, descendente do celebre conde D. Henrique
+Henriques.</p>
+
+<p>Vira-a por uma manhã de sol a atravessar o pateo branco e calado do seu
+palacio de Sevilha. E a languidez do seu andar, o seu ar triste, n'aquella casa
+quasi morta&mdash;calado e morto é o tanque esbelto e branco e sobre os arcos apenas
+touristes passam, silenciosos&mdash;impressionavam. Os seus olhos habituaram-se a
+vêr nas praças, nas ruas ensombradas pelos toldos, a face branca, onde ardiam
+os grandes olhos pretos de D. Estevaninha, a risca sensual e fina dos labios
+vermelhos, como num traço de sangue, que a faziam mais pallida.</p>
+
+<p>Conhecendo os duques de Medina, facil lhe foi ajustar o casamento.<span
+class="pn">{126}</span></p>
+
+<p>Depois d'uma luzida boda, aberta de par em par a Puerta del Pardon da
+Catedral para a passagem dos convidados entre os quaes a infanta, que
+representava a Rainha, vieram para Lisboa esconder o seu amôr na Quinta Alegre,
+cheia de rumores d'aguas e de folhagens que gemiam e riam á passagem da
+brisa.</p>
+
+<p>Mas aquella casa alegre, onde tudo era voluptuoso, d'uma volupia fina, em
+que todos se tinham habituado a amar a vida em todas as suas manifestações,
+parecera hostil ao sentimento hespanhol da doce Estevaninha, na nudez dos
+corpos, até no desabrochar das flores de marmore, que pareciam tentar.</p>
+
+<p>Certamente, que junto de si, para a amparar e dirigir, estava sempre,
+rotundo e oleoso, o conego D. Benito, que com ella viera de Sevilha, e na
+capella risonha e branca constantemente ardiam lumes fumarentos de tochas;
+certamente, que as missas, as novenas, as trezenas, lausperennes&mdash;fôra
+difficilimo conseguir do Senhor Patriarcha um dia de lausperenne, cada mez, mas
+conseguira-o a protecção decidida da baronesa d'Angra&mdash;todas as festas e
+macerações da egreja se sucediam na capella clara; as confissões, as comunhões
+multiplicavam-se; um cilicio de crina fazia, ás sextas-feiras, gemer a branca
+noiva, mas tudo parecia falso, porque a capella tinha sempre o ar de rir e de
+tentar, nas volutas floridas dos seus capiteis, nas<span
+class="pn">{127}</span> figuras nuas, que mostravam em cada ruga da pelle, em
+cada grão de marmore, um desejo impuro que era uma tentação e um escarneo.</p>
+
+<p>E a marqueza não se sentia feliz. Preferia o seu viver austero na sua casa
+d'Andaluzia, entre paisagens asperas, crueza de sol pelos desolados campos onde
+as piteiras aguçam as pontas de suas folhas curvas, e as egrejas hespanholas,
+severas e sem luz; em vão lhe dizia D. Benito que um sátiro confessára Christo
+a S. Jeronymo, e lhe trouxera flôres para enfeitar o altar do verdadeiro Deus;
+debalde lhe assegurou o frade affeiçoado ás sombras quietas da quinta, aos
+tuneis de verdura, onde a pretexto de ler o breviario, nas tardes calmosas de
+verão, adormecia ecclesiasticamente, que as apparencias nada eram e que a
+verdade estava em Deus&mdash;D. Estevaninha redobrava de supplicios, os jejuns, as
+penitencias rudes que abalavam o delicado corpo magro e gracil, que palpitava
+na aproximação do marido, cheia d'angustioso terror e de volupia; e pouco a
+pouco se definhou, e pela noite fria do Natal, á hora em que na egreja, entre
+resplendores de cirios e uma chuva de flores, se festeja o Nascimento de
+Christo, morreu aos gritos, ao dar á luz André.</p>
+
+<p>Para o marquez a morte de D. Estevaninha não foi um desastre dos que abrem
+no coração um vinco duradoiro.<span class="pn">{128}</span></p>
+
+<p>Gostára d'aquella face triste e habituára-se ao ardôr receoso do corpo fino
+e doirado da andaluza; mas a casa fina, elegante e pagã, ia tomando aspectos
+sombrios. Na ante-camara, como nos corredores episcopaes, murmuravam grupos de
+padres. E atravessaram a Quinta fallando baixo, olhando para as areias dos
+caminhos, dizendo sempre palavras unctuosas, a querer vender o ceu. Monsenhores
+de cintas arroxeadas, bispos imponentes, a cruz d'oiro a brilhar no peito,
+camareiros de S. Santidade, frades que batiam as sandalias n'um ruido surdo,
+cruzavam-se nas escadas, junctos sahiam, sempre a mesma maneira hypocrita
+d'olhar as coisas, sempre os mesmos labios mentirosos e distilar frases
+decoradas. O marquez recolhera-se á bibliotheca onde dispunha a sua collecção
+de estampas, por que dia a dia se apaixonara mais. Vinham da Italia e da
+Allemanha e da França e da Inglaterra em rolos, em caixotes, que os agentes
+enviavam, ás dezenas. Reunira uma preciosa collecção de aguas-fortes de
+Rembrandt e as gravuras de Dürer; tinha desenhos de Vinci, de Raphael, esboços
+de Ticiano e de Ribera. Tudo o que fosse arte, desde o balbuciar dos primeiros
+«primitivos», até á exuberancia formidavel de Rubens, misterios de sombra de
+Rembrandt, torcionarias figuras de Ribera, suaves santas carnudas de Murillo,
+extranhas mascaras de angustia ou de grotesco<span class="pn">{129}</span> de
+Goya, tudo o que fosse arte e não tivesse côr o seduzia, proves avant la
+lettre, exemplares rotos, em que se visse uma mancha bem posta, elle os
+guardava, catalogando, apenas se distrahindo em passeios pelo parque, grandes
+voltas, descendo até o extremo da quinta, onde repousava, vendo o multiplo
+esguicho que saía das duplas flautas de tres aulitridas, n'um gesto elegante de
+dança nas transparentes tunicas que tornavam mais attrahentes a nudez dos seus
+corpos.</p>
+
+<p>Com a morte da marqueza, o palacio voltou a ser mais silencioso e mais
+claro. Parecia que na quinta as aves cantavam mais. Apenas D. Benito ficára,
+«por amor al niño de la señora marqueza», protestava, mas porque se afeiçoára
+ás sombras frescas, onde dormia.</p>
+
+<p>André foi crescendo livremente entre os creados e D. Benito. Aos tres annos
+andava pela quinta, arrancando flôres, quebrando vasos, e interrompendo com
+gritarias e surpresas as prolongadas séstas do conego.</p>
+
+<p>André foi crescendo livremente, em correrias doidas, traquinas e
+imprudentes, subindo ás arvores, despindo-se e atirando-se para as bacias de
+marmore, sempre perseguido pela miss loira e terna, que lhe ensinava inglez.</p>
+
+<p>As feições da mãe reproduziam-se, graciosas, no filho. O pae via, com
+inquietação o mesmo fallar da mãe, os mesmos olhos tristes, a mesma<span
+class="pn">{130}</span> boca fina, apenas, em André, mais exangue. Teve medo
+que a intellectualidade desequilibrada da devota tivesse continuado no filho a
+vida de pavores christãos, e ao conego e á miss recommendou que o deixassem
+livre, que o fizessem um animal forte e feliz, com poucas resas e pouca
+grammatica. Quiz que elle aprendesse a ter o Amôr da Vida, que aquelles pulmões
+respirassem sem medo e sem pecado as grandes rosas que desabrochavam
+lentamente, petala a petala nos caminhos da quinta. Que visse no canto das
+aguas um hymno d'alegria, no chilrear dos passaros e no balançar dos ramos uma
+festa da Natureza, que elle proprio tivesse a alma constantemente em festa.</p>
+
+<p>Assim lhe foi ensinado o pensamento dos antigos. Disse-lhe a alegria imortal
+das fabulas gregas, os deuses que no vôo rapido desciam do recurvo Olympo e
+vinham á terra violar os corpos nubeis das filhas dos reis; a dança dos satyros
+e das faunezas nas clareiras das florestas quietas, as festas da lavoura, as
+procissões a Céres no tempo em que os trigaes amadurecem, a Dyonisos, quando os
+cachos são côr de rubim e de esmeralda.</p>
+
+<p>Levou-o ás suas terras do Douro a vêr as vindimas, quando elle tinha sete
+annos. Pelos montes verdes, onde a vinha ri, rasteira, curvada ao peso dos
+cachos, bandos de trabalhadores curvados cortam, cantando, os cachos e
+levantam-se<span class="pn">{131}</span> um pouco para os lançar nos cestos; de
+quando em quando a fileira move-se, forma-se em semi-circulo, desdobrando-se
+como um exercito n'um movimento largo, agrupam-se para debandar outra vez, com
+rythmo e graça. E as camisas brancas contrastam com os lenços vermelhos, e riem
+as faces trigueiras, ha uma grande alegria, cantam as boccas, e o mesmo
+movimento regular dos bustos que se levantam, dos braços que deitam, n'um
+movimento largo a uva nos balseiros escuros.</p>
+
+<p>Depois das vindimas, os balseiros cheios despejam-se nas dornas, nos
+lagares. O vinho ferve, com um aroma forte. E os trabalhadores cantam, como no
+tempo da Hellada, glorificando a Terra e glorificando os Deuses.</p>
+
+<p>Habituou-o a vêr coisas bellas, a reparar nas minucias das plantas, na
+finura dos sarmentos, na delicadeza dos coloridos das flôres, quiz que elle
+amasse as paisagens quietas. E com o pae, André ia contente; não lhe ensinava
+resas, nem o obrigava a saber lições.</p>
+
+<p>O conego e a miss, por um momento accordados, esquecendo as rivalidades das
+Egrejas Catholica e Reformada, que os separavam e os traziam n'uma lucta
+constante, censuravam o marquez por aquella educação original, que seria muito
+bem cabida n'um gentio, mas não n'um cavalleiro portuguez. E o conego
+desolava-se:<span class="pn">{132}</span></p>
+
+<p>&mdash;É para admirar que a alma da senhora marqueza não tenha ainda
+apparecido... Que se ella vivesse, isto era tamanha mortificação, que morreria
+de desgosto.</p>
+
+<p>E miss Lucy, fazendo com a linda boca vermelha um gesto de desdem, terminava
+n'um tom cortante:</p>
+
+<p>&mdash;Improper!</p>
+
+<p>E André ia crescendo. Gostava da miss, porque era linda, tinha uns olhos
+verdes, côr do mar, e uma pelle fina, branca como as gardenias, e o cabello tão
+loiro, que André lhe perguntava se aquillo era oiro. Mas não gostava do conego,
+porque, em o apanhando nas correrias do costume pelo jardim, logo o prendia
+entre os joelhos e o fazia recitar, durante muito tempo tantos rosarios d'Avés,
+padrenossos, de credos, salve rainhas, actos de contricção que André chorava no
+fim. E D. Benito alegrava-se, dizia que era o Diabo que fugia do corpo del
+niño.</p>
+
+<p>André não se aventurava já a puxar pela batina enodoada do conego, quando
+elle dormitava no jardim: limitava-se a gritar de longe, e quando D. Benito
+sobresaltado acordava e voltava para elle a face gorda, André corria a
+esconder-se no regaço virginal da miss, que se fingia severa:</p>
+
+<p>&mdash;Aoh! Naughty boy! Very naughty boy. What did you do to D. Benito?<span
+class="pn">{133}</span></p>
+
+<p>Mas ria-se das partidas d'André e beijava a face pallida, os olhos
+tristes.</p>
+
+<p>De vez em quando apparecia a baroneza d'Angra a visitar o marquez. Mal a
+presentia, André ia esconder-se n'algum recanto misterioso do parque, atraz
+d'uma estatua, entre buxos altos. Não era que não achasse agradavel estar com a
+baroneza, pequenina e gentil, com uns lindos olhos frescos e em quem sentia,
+quando a beijava, um perfume doce; e mesmo os labios d'ella eram mais vermelhos
+ainda do que os da miss, que os tinha tão vermelhos e emanava d'elles tamanho
+ardor sensual, que a creança o sentia confusamente.</p>
+
+<p>Mas, passadas as primeiras ternuras, a baroneza fazia-lhe um minucioso exame
+de doutrina, diante do marquez que enrugava a testa, descontente.</p>
+
+<p>&mdash;Diga lá o menino os mandamentos!...</p>
+
+<p>André dizia contrafeito e arrastado.</p>
+
+<p>&mdash;E os artigos da fé?... E as virtudes cardeaes?... E os Novissimos do
+Homem?...</p>
+
+<p>&mdash;Mundo... Diabo... Carne...</p>
+
+<p>&mdash;Carne, não, interrompia o marquez. Osso! Não é verdade, prima?</p>
+
+<p>André não comprehendia, mas gostava, porque a baroneza deixava-o logo e
+voltando-se para o marquez:</p>
+
+<p>&mdash;O primo tem esta creança como um filho d'heretico. Já conheci um inglez, e
+era protestante,<span class="pn">{134}</span> que ensinava o catecismo aos
+filhos! Mas o primo que tem papas na familia...</p>
+
+<p>&mdash;Chegam para salvar o resto. Escusamos nós de pensar nisso, sorria.</p>
+
+<p>&mdash;É pena ser seu filho. Tão lindo! Vê aquelles olhos tristes?...</p>
+
+<p>&mdash;Gostava mais que fossem alegres!...</p>
+
+<p>&mdash;Ora!... O primo não entende nada d'isto... Que lindos olhos!... Bem...
+Bem... Tenho de ir á novena.</p>
+
+<p>Ao sair, sempre a mesma frase a proposito da escada onde figuras nuas se
+perseguiam, num lavor elegante e sobrio:</p>
+
+<p>&mdash;O primo tem a casa cheia de indecencias! Acabo por não voltar cá!</p>
+
+<p>André, porem, ia a fazer doze annos; não podia continuar entre o catecismo
+de D. Benito e o inglez doce da miss. O marquez mandou-o para o colégio. Mas
+á tarde, quando o conego o trouxe para casa, André abraçou-se ao pae a chorar e
+a pedir-lhe para não voltar ali.</p>
+
+<p>A disciplina escolar, os olhos curiosos dos camaradas que o troçavam, o
+olhar duro dos mestres, o mau cheiro, a falta d'ar fizeram-lhe ter medo do
+colégio. E prometeu ao pae tudo, para não voltar.</p>
+
+<p>&mdash;Até aprender as resas de D. Benito e as da tia Angra!</p>
+
+<p>Com grande escandalo de D. Benito, o marquez anuiu.<span
+class="pn">{135}</span></p>
+
+<p>&mdash;Escusas de aprender resas. Vou-te arranjar, quando a miss se fôr embora,
+uma mestra franceza e professores que virão a casa dar-te lições.</p>
+
+<p>André ficou admirado. Então a miss ia-se embora? Porquê?</p>
+
+<p>&mdash;Acaba o seu contracto...</p>
+
+<p>André foi, a correr, perguntar á miss. Cheio d'angustia, com uma suplica na
+voz:</p>
+
+<p>&mdash;Então vae deixar-me?</p>
+
+<p>&mdash;Yes, yes, my little André... E afagou-lhe os cabelos.</p>
+
+<p>André agarrou-se a miss Lucy a soluçar nervosamente. A miss acariciava-o,
+queria beijal-o, chorava tambem, comovida, lagrimas de prata que se prendiam
+nos compridos cilios d'oiro.</p>
+
+<p>Fôra a miss, até então, a unica mulher de que André gostára. A ella fazia as
+suas confidencias, contava-lhe as proezas de brigas terriveis com os amigos, as
+diabruras feitas ao conego. E a miss tinha sempre um sorriso e um afago para a
+creança, nunca lhe ensinára orações, não o castigava por não saber a lição,
+falta que se repetia a miudo; apenas lhe dera uma biblia com gravuras
+recomendando-lhe a leitura&mdash;sem resultado.</p>
+
+<p>Á noite contava-lhe lendas poeticas da Inglaterra, castelãs brancas e
+tristes, almas de mortos que vagueiam e a voz dorida dos pagens soluçando
+d'amor...<span class="pn">{136}</span></p>
+
+<p>Muitas vezes, quando era mais mocinho, fôra a miss, no inverno,
+aconchegar-lhe a roupa no pequenino leito. Ao adormecer, a sensação branda das
+mãos delgadas de Lucy na sua face. E cantava como uma musica, a voz que dizia,
+ao fechar mansamente a porta:</p>
+
+<p>&mdash;Good night, my little André.</p>
+
+<p>Mas a miss partiu em lagrimas dolorosas. André foi acompanhal-a ao vapor com
+o velho «footman». Já ia longe o navio e ainda André acenava, os olhos
+molhados, o soluço a contrair a garganta; a miss tambem agitava o lenço,
+chorando...</p>
+
+<p>Tempo depois apareceu em casa, de manhã cedo, quando André andava a regar os
+seus canteiros, a professora franceza que chegára de Paris. O seu andar era
+ligeiro e miudo como o dum passaro e evolavam-se d'ella uma gracilidade suave,
+desde os cabellos palidos até a curva rapida da cinta delgada. Tinha nos
+pequenos olhos cinzentos uma malicia e um riso. André, que se voltára, ficou
+boquiaberto. Certamente que a miss era linda como uma santa e doces as suas
+mãos e a tia Angra tinha os labios vermelhos e um perfume delicioso; mas nunca
+vira creatura assim airosa, alta e delgada, que balançava o seu corpo quando
+andava, como se fosse uma flôr, como um bloco de gracilidade a deslocar-se.</p>
+
+<p>Ao saber, porém, que era a mestra franceza,<span class="pn">{137}</span> não
+a quiz vêr mais; nem a cumprimentou. Estava persuadido de que era culpada da
+partida da miss e guardava-lhe no peito, antes de a conhecer, um grande rancor.
+Fugiu, a correr, para o fundo da quinta e ali ficou a chorar com saudades da
+miss.</p>
+
+<p>Ao almoço André foi repreendido. Ficou calado, os olhos baixos sem explicar
+o procedimento. O marquez disse-lhe que ia ter outros mestres, pois não podia
+ficar a saber apenas o latim, as vagas e erroneas noções de coisas que lhe dera
+D. Benito e as poeticas baladas de miss Lucy.</p>
+
+<p>A principio a vida foi dura para André entre os professores indifferentes
+que tomavam as lições sonoleando, e mademoiselle Renée, hostil, que, pensava
+elle, tinha causado a partida da miss, linda como uma dessas santas serenas e
+indulgentes, que teem sempre, nos dedos em fuso, o gesto da benção.</p>
+
+<p>André olhava para Renée, disfarçadamente; admirava a graça do seu corpo de
+que saia um perfume tenue, as mãos brancas, as unhas cuidadosamente tratadas,
+e, quando ella se abaixava, o palido reflexo da sua nuca doirada. O perfume era
+subtil e perturbante. Respondia com maneiras bruscas ás perguntas feitas numa
+voz macia e quente, falava-lhe muitas vezes inglez, fingindo ignorar os termos
+franceses, para lhe ser desagradavel. Mas Renée Viardot tudo<span
+class="pn">{138}</span> suportava com paciencia, lançava-lhe olhares
+enternecidos, queria afagal-o até, beijal-o num impeto em que brilhavam os seus
+olhos claros; mas André fugia logo, apesar dos quatorze annos, como uma creança
+indocil.</p>
+
+<p>No verão davam as lições na quinta, em baixo, junto aos tritões, numa
+rotunda assombreada. Numa tarde quieta e quente, como estivessem juntos e Renée
+tivesse ao cólo um livro que interessava André e de que lhe explicava uma
+passagem, elle inclinou-se mais sobre o seu braço, quasi a tocar-lhe na
+musselina transparente da blusa, poude sentir o perfume brando e sensual e,
+interrompendo mademoiselle, perguntou-lhe bruscamente:</p>
+
+<p>&mdash;Que perfume usa?</p>
+
+<p>Nos seus olhos negros havia um quebranto e na face palida duas rosas vivas
+despertaram.</p>
+
+<p>Renée agarrou-lhe na cabeça e mergulhando-lh'a na musselina da blusa:</p>
+
+<p>&mdash;Est-ce que tu aimes mon parfum? Dis!</p>
+
+<p>A impressão foi demasiadamente violenta. André fugiu, a tremer; foi
+sentar-se sobre o arco verde e doirado dos limoeiros, a tremer, os olhos
+parados, pensando na sensação deliciosa e rude que tivera.</p>
+
+<p>O aroma das rosas que lentamente se desfolhavam, o perfume dos lilazes
+brancos e dos lilazes roxos que punham nos lilazeiros uma espuma branca e uma
+espuma roxa, mesmo o<span class="pn">{139}</span> cheiro acre dos limões
+maduros não conseguiram vencer o aroma subtil e sensual do peito farto de
+mademoiselle.</p>
+
+<p>Dias seguidos, André pretextou enxaquecas, fugiu de Renée, espreitando-a de
+longe com receio e com desejo de se approximar d'ella, outra vez mergulhar a
+cara na frescura da musselina e muito tempo sorver o inibriante aroma. Um dia,
+na estufa aberta, examinava langorosamente os cravos que iam já a murchar.
+Havia-os de toda a côr. Todos os vermelhos, desde a purpura sombria, até ás
+descolorações das rosas anemicas; gritavam alguns côr de vinho, surgiam roseos
+e triumphantes, até que desmaiavam rosados puros de geraneos, como bocas novas
+que querem beijar.</p>
+
+<p>E aos vermelhos, quer heroicos, quer tenues, uniam-se outras côres, outras
+n'elles se fundiam ou se embutiam, perpassavam em alguns laivos fortes de
+violetas, n'outros espraiava-se um branco que hesitava em ser rosa; aqui um,
+desesperado, as petalas revoltas, como em arrepelos, era d'um violeta ardido,
+além outro era todo branco, d'uma quasi irreal alvura, como se anjos os
+houvessem beijado nas horas suaves em que do ceu cae o rócio... Outro, tambem
+branco, beijos de abelhas o tinham mordido, n'elle gotejava um sangue
+avermelhado; mas os vermelhos combatiam, aqui vinho, além quasi roxo, havia
+como uma lucta de que resaltavam<span class="pn">{140}</span> gotejos, que
+pareciam cristalisar em coraes; em certos, o vermelho do fundo degradava-se,
+triunfava fortalecido, até que nas pontas recurvas se franjava de roxo. Havia
+retalhos de tunica do Senhor dos Passos, carnes a apodrecer, pedaços de pelles
+virginaes, estriados, franzidos, sempre frizados, raiados de côres diversas:
+aquelles eram «modern style» em côres estranhas que se reuniam, certos cremes
+onde se dilue o vermelho, tons sem brilho, onde a luz morre, côres de tijollo,
+esverdeados longiquos que pareciam dormir sob os roseos.</p>
+
+<p>Mas todos tinham frescura, todos viviam uma vida impertinente que se
+affirmava no odor sensual, perturbante e voluptuoso, todos eram d'uma ardente
+mocidade, quer saissem dos tubos, entre folhas de musgo, quer baloiçassem em
+hastes longas de craveiros, como que ejaculados, tal a sua soberba. E mesmo os
+que eram enormes e faziam vergar a haste, como um corpo cançado, na seda fina
+das petalas tinham sempre sorrisos, um sorriso que excitava.</p>
+
+<p>Eram todos sensuaes. Faziam lembrar <em>croupes</em> fortes de espanholas
+d'olhos languidos e cabeleiras negras mordidas por pentes d'oiro.</p>
+
+<p>O langor das flôres, junto á puberdade que nascia e se afirmava e
+entontecia, como as grandes olaias de marfineo calice, pelos jardins calados
+nas noites d'agosto, perturbavam, embriagavam André, tal um copo de capitoso
+vinho<span class="pn">{141}</span> que se bebe d'um trago n'uma
+convalescença.</p>
+
+<p>Pé ante pé, Renée entrou e, curvando o corpo n'uma atitude provocante,
+agarrou-lhe na mão e segredou-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Quer saber o meu perfume?</p>
+
+<p>A bocca vermelha e seca ria-se, contrafeita.</p>
+
+<p>&mdash;Ha dias, não tive tempo para lhe dizer...</p>
+
+<p>Aproximou-se d'André, apertou-lhe as mãos, deitava-lhe, ao falar, um halito
+perfumado e quente.</p>
+
+<p>&mdash;Quer saber?&mdash;insistiu.</p>
+
+<p>André córou e quiz fugir; mas mademoiselle agarrou-o mais, tomou-lhe a outra
+mão e apertando-lh'as, n'uma caricia sabia, palma com palma:</p>
+
+<p>&mdash;Não faço segredo: é uma mistura de resedá e jasmim do cabo. Quer vêr?</p>
+
+<p>Sem que lhe désse tempo para responder, poz-se nos bicos dos pés, mãos nas
+mãos, olhos nos olhos, e approximou-lhe da face o cólo tremente. Largando-lhe
+as mãos deitou para trás a cabeça palida de adolescente e reavivou com um longo
+beijo a flôr exangue dos seus labios virgens.</p>
+
+<p>André beijou-a tambem, os olhos fechados, os corpos unidos, arcobotados um
+contra o outro.</p>
+
+<p>Quando terminou o demorado abraço, André olhou para ella a medo. E por sua
+vez agarrou<span class="pn">{142}</span> na cabecita linda e beijou-lhe a boca
+longamente, sofregamente...</p>
+
+<p>A noite, para André, foi toda de revoltas no leito, olhos abertos, labios em
+febre, franzidos, a procurar outros labios que não vinham, a desejar beijos,
+como se elles adejassem esparsos pelo ar e podessem pousar na sua boca.
+Comparava os beijos suaves da miss com os beijos de fogo que lhe dera Renée. E
+como era doce dormir depois de sentir as mãos alvas de Lucy a afagar-lhe os
+cabellos n'um somno tranquillo e doce! e como lhe era difficil adormecer, a
+revirar-se na cama, apagava e acendia a luz, sempre a lembrar-se da caricia
+extranha e inedita, do perfume estonteante, do calor dos labios secos, da
+macieza do cabello loiro, como se fosse de seda, de todo o corpo fino e
+flexivel que se colára ao seu, e n'elle deixára como cauterisadas placas de
+feridas, era bom e era terrivel. E toda a noite passou assim, até que de
+madrugada adormeceu murmurando em segredo o nome de Renée.</p>
+
+<p>Era a puberdade que aparecia subitamente, irrompendo d'um jacto, como um
+poço artesiano de repente aberto.</p>
+
+<p>Longo tempo durou esse noivado vermelho.</p>
+
+<p>Certa tarde, D. Benito que ainda se arrastava pelo palacio, achacoso e
+velho, fazendo do dia uma comprida sésta, surprehendeu-os a beijarem-se.<span
+class="pn">{143}</span></p>
+
+<p>Clamando contra as iniquidades da terra, foi-se encontrar com o marquez, que
+á sombra d'uma tilia meditava Marco Aurelio, e contou-lhe, vermelho, esquecido
+do reumatismo que lhe tolhia as pernas, entremelando a lingua numa algaravia
+inconcebivel, a abominação das abominações.</p>
+
+<p>O marquez, que pousára sobre o banco de marmore o livro antigo, mostrou-lhe
+uma haste toda coberta de goivos brancos:</p>
+
+<p>&mdash;Vê esta planta, D. Benito? É algum peccado que na época propria se cubra
+de flôres? Repare para ellas. Com que voluptuosidade mergulham-se na atmosfera!
+Riem n'uma alegria clara e vívida por terem nascido. Da raiz sobe, triunfante,
+a seiva para as alimentar. Perfumam hoje, morrerão ámanhã, sem pecado, felizes
+por terem integralmente vivido. O seu polen voará para fecundar outras flores,
+D. Benito. Deixe que a vida se manifeste, deixe que todos sejam felizes!</p>
+
+<p>O conego arriscou uma apoplexia ao ouvir a blasfemia do fidalgo. Teve forças
+para ir para casa embrulhar as escassas roupas e na mesma noite partiu para
+Sevilha&mdash;queria morrer entre gente cristã, dizia. Não se despediu d'André, nem
+de mademoiselle, apenas um comprimento seco ao marquez.</p>
+
+<p>Fingiu este ignorar o que entre o filho e a mestra se passava. Continuavam
+no seu idilio.<span class="pn">{144}</span> Mas os annos passavam, André fez os
+seus estudos e o marquez mandou-o para Florença.</p>
+
+<p>Renée regressou a França. Partiram juntos, por mar, para Barcelona.</p>
+
+<p>Foi entre beijos, que sulcaram o Mediterraneo calmo e transparente, aqui
+azul-ferrete, além verde-claro, logo ensolado e doirado, sempre transparente. E
+de noite iam vêr, sós, as mãos nas cintas, muitas vezes os braços se uniam&mdash;a
+fosforescencia que se levantava na prôa, brilhante, n'uma espuma fina, como uma
+poeira de mica.</p>
+
+<p>Como dois amorosos que acabam de dar o primeiro beijo, e logo, na ancia,
+querem contar mais de mil, mal viram Cadiz branca e pequena, a luzir no recurvo
+golfo azul; em Malaga não repararam no ar dolente das flamencas, que cantam
+cheias de volupia, e mesmo no <em>Paseo</em> sacodem as ancas, como n'um
+convite para uma volupia triste, e os seus vinhedos claros; apenas na cathedral
+feia e banal, se extasiaram diante d'um quadro, imagem de uma santa. Qual? Não
+o souberam e chamaram-lhe Nossa Senhora do Desejo insatisfeito. N'uma pequena
+tela um busto de mulher trigueira, andaluza, forte, pelle doirada, olha para o
+ceu. Os olhos teem a expressão dolorosa de quem muito deseja. E o vermelho dos
+labios carnudos, as narinas dilatadas, dizem o que ha de sensual n'aquella
+expressão ardente. O collo é aberto.<span class="pn">{145}</span> E as mãos, ao
+tapal-o com um lenço vermelho, ainda mais aquecem o tom quente do collo
+doirado.</p>
+
+<p>Indifferentes, viram Valencia entre vergeis, clara e voluptuosa na planicie
+fertil e o Grao rumoroso, onde moirejam descarregadores nas docas e operarios
+nas fabricas. E Barcelona que se alastra em renques de arvores nas ruas largas,
+com seus palacios, suas avenidas, as Ramblas onde se apertam catalães
+silenciosos, os mercados de flôres cheios de gardenias, de jasmins e rosas,
+pareceu-lhes triste, porque alli se deviam separar.</p>
+
+<p>Em vão subiram ao Tibidabo; donde se vê toda a Barcelona estendida, como um
+tapete, cortada de ruas; correm, ora direitas, ora em sinuosidades, linhas
+claras de platanos. Estendem-se as casas até junto ao mar azul, de onde em onde
+raras torres se levantam e entre ellas sobresahe o vulto gothico e afilado de
+Santa Maria de la Mar.</p>
+
+<p>A ligeira neblina que se levanta do porto e envolve a estatua de Colombo,
+negra sobre a pedra branca da doca, parecia que envolvia tudo, que dava ás
+coisas a tristeza que estava n'elles. E Renée chorava, abraçava-se muito a
+André, obrigava-o a prometer-lhe longas e amiudadas cartas e uma viagem a
+Paris, quando voltasse, no anno seguinte, de Florença.</p>
+
+<p>E assim, por uma tarde triste, conseguiu André<span class="pn">{146}</span>
+leval-a, pelo passeio da Aduana fóra, entre as palmeiras, á estação.</p>
+
+<p>E os beijos cantaram, demorados e angustiosos, nas bocas dos amantes, até
+que uma voz rouca gritou:&mdash;Viajeros, al tren!&mdash;e o comboio silvou e partiu.
+André ficou a vêr o lenço de Renée e o comboio que se perdeu n'uma curva,
+fumegando.</p>
+
+<p>Dolorosa foi, para André, essa noite.</p>
+
+<p>Pareceu-lhe vasia e silenciosa a pequena alcova onde durante uma semana
+tinham dormido. Perseguia-o a lembrança do perfume, a macieza e a côr do
+cabello d'um loiro palido como um sol convalescente, a frescura da pelle fina,
+todo o encanto e todo o Amôr da deliciosa Renée que o iniciára e que o amára e
+de quem sentia ainda as lagrimas amargas que se misturavam aos beijos tristes
+que ella lhe dera nos curtos dias da despedida. E André chorou.</p>
+
+<p>Na manhã seguinte partiu para Genova n'um <em>liner</em> da Liguria. Com
+elle regressavam á Italia cantoras do Liceu. Notou uma comprimaria delgada de
+cabellos e olhos pretos, que trazia do mercado da Rambla um grande mólho de
+flôres. Olhou para ella com desejo e n'esse desejo se surpreendeu, quasi
+esquecido de Renée. Facilmente feito o conhecimento, os dois dias de viagem
+foram rapidos em inconsequentes flirts, alegrias de dança na tolda e leves
+concertos no salão. Em Genova se separaram e André<span class="pn">{147}</span>
+partiu para Florença ligeiro e esquecido, com um certo prazer de se ter
+separado de Renée, que, agora o sentia, começava a pesar-lhe.</p>
+
+<p>Em Italia a vida foi-lhe facil entre monumentos e mulheres, em cujos olhos
+boia uma grande alegria de viver.</p>
+
+<p>Teve paixões e conquistas; quiz realisar quadros dos mestres florentinos que
+diariamente via no Pitti e nos Uffizi; procurou por toda a parte os typos
+ambiguos, perturbantes no seu enigma, entre efebos e mulheres, adolescentes
+sempre, ovaes perfeitos de rostos brancos, bocas sensuaes e vermelhas.</p>
+
+<p>Nos <em>corsos</em> da Italia passeou em cavallos inglezes; em Veneza
+poetisou, no Grande Canal, pelas noites claras, sentindo humidade e paixão, até
+que aos dezoito annos voltou a Lisboa sempre a mesma palôr na face, os mesmos
+olhos tristes e boca exangue.</p>
+
+<p>O marquez aprestava o seu casamento com Violante Cerquedo, filha dos condes
+de Cerquedo.</p>
+
+<p>Só no palacio, sem os risos do filho, procurou distrações na vida mundana.
+Novo ainda, puzera-se a amar Violante, graciosa e intelligente, cujos vinte
+annos cantavam triunfantes, como uma primavera florida. Seduziu Violante a
+intelligencia do marquez, a sua figura aristocratica e a maneira amorosa como a
+olhava, como se fosse uma obra d'arte.<span class="pn">{148}</span></p>
+
+<p>Pouco tempo depois do regresso de André, por um inverno chuvoso e frio, a
+capella do palacio encheu-se de lumes e casaram.</p>
+
+<p>André não deixou os costumes que trouxera de Italia. Paixonetas diversas
+amorteciam-lhe o coração, até que um dia, perseguindo Martha, uma actriz loura
+e chique, que lhe fugia um pouco, a tornar-se difficil e desejada, julgou ter
+«a verdadeira paixão da sua vida», como confessára, depois d'uma ceia fausta e
+turbulenta, a Jacintho Roquette, seu irmão em letras e seu confidente.</p>
+
+<p>André lançára-se, á volta de Italia, doidamente na literatura. Frequentava
+redações e jornaes, theatros e cafés onde se reuniam jovens escriptores cheios
+de esperanças e de imprecações, revolvendo as ideias e os livros sem cerimonia,
+com o ar de quem, do alto d'uma montanha inaccessivel á plebe, residencia
+olimpica de escolhidos, considerou já os homens e as coisas.</p>
+
+<p>Instintivamente fugira d'elles, da sua imperturbavel confiança, do azedume
+que d'elles suava quando se lembravam d'um exito. Ligou-se ainda mais com
+Jacintho Roquette, caustico e risonho, com um real talento que desperdiçava em
+cavaqueiras de café e em artigos feitos a trouxe-mouxe para jornaes e revistas,
+sempre a luzirem, atravez da luneta, os olhos azues, que dir-se-hiam infantis,
+no<span class="pn">{149}</span> fundo uma grande bondade e um caracter
+firme.</p>
+
+<p>As primeiras impressões d'André tinham tido um certo exito pelo seu
+paganismo, uma maneira leve de escrever, lembrando a finura que teem os mestres
+florentinos nas suas medalhas nitidas.</p>
+
+<p>Dissera recantos de paisagens, brilhos de mares azues, figurinhas que tinham
+passado, subtis, pela sua vista, desaparecendo logo, na rapidez das viagens, no
+imprevisto das caminhadas pelos campos serenos da Toscana.</p>
+
+<p>Ser delicado e cético, saboreou a ironia viva e o céticismo escarnica de
+Jacintho Roquette e juntos andavam pelos theatros, vendo retalhos de peças e
+demorando-se pelos camarins em flirts com actrizes, ceias pacatas, que as
+companheiras não supportavam, by their own respectability, orgias triunfaes, até
+que se apaixonou por Martha, essa actriz magrisella, que guerreava a velhice
+com pastas de cosmeticos e massagens, a unica mesmo que conhecia e usava os
+processos parisienses para a guerra da galanteria.</p>
+
+<p>Martha tinha uma vida irregular, tecida em mentiras, misterios, certos
+hiatos de treva, na sua vida, até para os mais intimos.</p>
+
+<p>Nunca um só amante, nunca num trimestre inteiro o seu leito conheceu o mesmo
+corpo, antes variavam, mudavam, com sinceros <em>beguins</em>,<span
+class="pn">{150}</span> ás vezes o seu coração e o seu corpo pareciam uma
+estalagem de entroncamento, como um vertiginoso vae-vem de passageiros.</p>
+
+<p>André, n'uma noite feliz, em que uma joia brilhou ante os olhos de Martha,
+teve a ventura de a acompanhar a casa n'um trem que se desarticulava, guiado
+por um batedor experimentado.</p>
+
+<p>E de manhã, ao almoço, satisfez, contente uma pequena conta de chapeus.</p>
+
+<p>Reconhecida a uma generosidade tal, Martha, durante tres dias, foi fiel a
+André. Mas ao quarto dia, pretextando enxaqueca, recusou-lhe o leito de pau
+santo e os braços brancos, ferteis em caricias.</p>
+
+<p>As enxaquecas repetiram-se e André entrou a desconfiar, a carpir-se
+tristemente da infidelidade de Martha, a Jacintho Roquette que chasqueava:</p>
+
+<p>&mdash;Ella recebe-os ambos ao mesmo tempo? Não. Que te importa então? Os beijos
+que ella te dá teem o mesmo sabôr? Teem. Que te importa o resto? Encontras um
+perfume estranho no seu corpo? Mas é uma <em>coquetterie</em> o querer variar
+de perfume. Então?</p>
+
+<p>As rasões aduzidas não convenciam André e, lentamente, o que fôra talvez um
+capricho, o desejo infantil de possuir a mulher da moda que era chic possuir,
+foi-se transformando em obsessão, em ideia fixa, tinha a necessidade de<span
+class="pn">{151}</span> estar com ella constantemente, rondar-lhe o camarim,
+espreitava-a entre os bastidores á espera da <em>deixa</em>, ia ao meio dia
+esperal-a á porta do theatro, quando entrava para o ensaio, e, nas noites de
+enxaqueca, desolado, nervoso, ia com o Roquette dizer mal d'ella, pôr-lhe a nu
+todos os defeitos, inventando alguns, mas tendo sempre um secreto desejo de a
+possuir, mesmo nas passagens mais verrinosas surgia a imagem de Martha, nua, a
+bocca pequena espremida n'um beijo, a offerecer-se-lhe.</p>
+
+<p>E André redobrava de violencia, dizia a vida postiça e infame da amante, a
+teia de mentiras que urdia, as suas baixezas, com um prazer cruel enumerava o
+rol comprido dos amantes, e terminava quasi a soluçar:</p>
+
+<p>&mdash;C'est une catin; il faut la tuer; «morte la catin, mort le chagrin.»</p>
+
+<p>&mdash;Mais uma filipica! concluiu, rindo-se, o Roquette. Vou-te apresentar hoje
+uma das minhas amigas, a Princeza das Botas Cambadas. Curar-te-hei pela
+hom½pathia: dentada de cabra, com pello de cabra se cura.</p>
+
+<p>Mas Miguel sentia-se frio e aborrecido, e triste, diante das princesas do
+Roquette, até que um dia, sem dizer nada, decidiu-se a recolher-se á Quinta
+Alegre, onde havia cinco annos não se demorava, pois depois da sua viagem,
+tivera uma vida de estroina, que o fazia fugir de casa após o almoço tardio,
+para só recolher<span class="pn">{152}</span> a altas horas ou noite, até
+madrugada clara.</p>
+
+<p>Fizera de Violante sua confidente, e a ella contou, polidas as asperezas, o
+mal d'amor de que soffria, e o desejo de o curar.</p>
+
+<p>&mdash;Vou ser teu medico. Deste-te mal com as mulheres... Experimenta as flôres.
+São mais lindas e fazem sofrer menos. Dirigirás o jardim. Manda fazer as obras
+que quizeres. Precisamente tens aqui no «Studio» um artigo sobre a architectura
+dos jardins. Faze modificações á tua vontade. O teu pae concorda; eu ajudo-te,
+travamos relações, porque, para dizer a verdade, mal nos conhecemos. Desde que
+foste para Florença que não fallo comtigo, senão á pressa, quando te preparas
+para sahir. Ainda te vejo menos do que quando eu era uma menina grave e te
+batia em casa da tia Talleiros, pelas tuas partidas. Olha, ámanhã começa o mez
+de Maria... Enfeita a capella. Tens ás tuas ordens o jardineiro e o jardim
+todo. Tens invenção e gosto... olha que eu exijo genio!...</p>
+
+<p>&mdash;Oh! Genio... sabes?...</p>
+
+<p>&mdash;Bom; contento-me com talento.</p>
+
+<p>&mdash;Vá lá, prometto...</p>
+
+<p>Apanhando um grande ramo de lilazes brancos, poz-lh'o na cabeça, como um
+diadema:</p>
+
+<p>&mdash;Está enfeitada a Santa!<span class="pn">{153}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000130">TIBIDABO</a></h1>
+
+<p class="assin">A<small>O SR. </small>B<small>ARÃO DE </small>S.
+P<small>EDRO.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{154}<br>
+{155}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000131">T<small>IBIDABO</small></a> </h2>
+
+<p>Na tarde de agosto quente, fugira de Barcelona para a escalvada montanha que
+a fanfarronada hespanhola bátisou de Tibidabo, o sitio da Judeia onde Satan
+prometeu a Christo as grandezas do Mundo e os fulgores do Peccado.</p>
+
+<p>O monte levanta-se, precipitadamente, do fundo da planicie em que Barcelona
+ondeia. E querem dizer talvez na sua os catalães, que Satanaz ergue as
+creaturas que quer tentar e, firmando-as nos cimos d'este monte, oferece-lhes a
+cidade, imagem brilhante dos esplendores mundanos.</p>
+
+<p>Sob o toldo do restaurante deserto me acolhi, a sentir a brisa preguiçosa.
+Espalmava-se em baixo a cidade. Corriam as suas avenidas arborisadas, as
+«Ramblas» que se seguem como uma bicha, e a «Gran-Via», a infindavel «Cortes»,
+que corta Barcelona em diagonal. Quedava-se o Parque enorme e, ao fundo, n'um
+vago de nevoeiro,<span class="pn">{156}</span> o mar azul, riscado pela linha
+cinzenta da doca, onde os navios acolhidos eram imoveis.</p>
+
+<p>Vinha caindo a tarde sobre as raras torres das egrejas. Brilhavam um a um os
+bicos de gaz e as janellas em que o poente puzera uma luz de oiro.</p>
+
+<p>Longo tempo ali estive. Sonhei? Foi real? Não sei.</p>
+
+<p> </p>
+
+<p>Um mancebo pallido e triste abeirou-se de mim:</p>
+
+<p>&mdash;Vês a noite a cair? D'aqui a pouco as ruas vão brilhar do fremito luminoso
+dos desejos das multidões. A cubiça e a luxuria porão brazas nas almas que
+incendiarão os olhos. As mulheres mostrarão nos bailes e nos theatros o
+maculado esplendor dos seios perfumados. Nos mostradores das lojas, á luz das
+lampadas electricas, as joias farão percorrer nas mãos desejos de roubo. A
+Besta ergue-se&mdash;olha como se ilumina a cidade! Vês um clarão que nasce, sobe e
+se perde no Ceu? Julgas que é dos candieiros? Não, é das almas! é toda debruada
+de vermelho como as chamas dos incendios. Como é bella a cidade quando é
+culpada!</p>
+
+<p>Voltei-me para o mancebo, tranquilamente. Vi que era o Diabo. Não que
+tivesse chifres ou cheirasse a enxofre, mas pela belleza triste, de quem
+conhece tudo. Não lhe tive horror. O Diabo<span class="pn">{157}</span> é o
+gnomo subtil que trabalha na sombra as filagranas das tentações. É o Diabo que
+amontôa as cidades, inspira os artistas, empurra o homem para as civilisações
+que apodrecem e brilham.</p>
+
+<p>Não lhe respondi... N'um fogacho violaceo, o sol apagára-se no mar. Era tudo
+cinzento. Pelos canaes das ruas, por entre as arvores, n'uma sombra mais densa,
+cintillavam os bicos e os mostradores das lojas.</p>
+
+<p>O Diabo continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Quero a tua alma...</p>
+
+<p>Olhei-o atonito. Para quê a minha Alma? O grande colecionador tinha um museu
+estranho em que brilhavam todas as taras possiveis. Assassinos vulgares,
+ladrões de taberna, mães que vendem as filhas, incestuosos, ganindo de luxuria,
+velhos abades macerados e corroidos pelas disciplinas, que as ilusões vãs de
+Satanaz venceram, bispos, cardeaes simoniacos, todos os pecados que se engastam
+como gemas e possuem um fulgor lugubre, como se as pedras dos diademas ardessem
+nas cabeças, as gargantilhas nos pescoços, as manilhas e pulseiras nos braços,
+os compridos cintos nas cinturas! Satan tudo possuia, tragicos homicidas,
+capitães que entregam os seus soldados, reis que mancham os altares, velhas
+dementes que ululam nas monstruosas orgias, rojando pelo chão os cabellos
+pintados, crispando as boccas maquilhadas<span class="pn">{158}</span> nos
+espasmos lancinantes, poetas que arrastam a lira pelos lameiros, virgens que se
+vendem sem amor e sem vicio, toda a constelação dos sete pecados, como sete
+soes nocturnos, envenenados pela treva, corroidos pela lepra, um museu
+formidavel, sombrio, apesar de todos os brilhos, frio e angustiante, como um
+corredor que leva a presentida cilada&mdash;era tudo de Satan e queria-me!</p>
+
+<p>O pasmo pintou-se na minha cara.</p>
+
+<p>&mdash;Quero a tua alma! Falta-me na coléção. É por isso que hoje abandonei as
+ruas das cidades e seus encobertos vicios para subir a esta montanha, que tem o
+nome de outra, onde prometi tudo e tudo me recusaram. É o nome da derrota. Não
+sou supersticioso. Tens uma alma de amoroso. Amas pelo Amor. Idealista e
+sensual, a Fórma bella comove-te como um poema e mais nada. Não tens as
+crispações dos lascivos. Amas uma mulher e uma estatua da mesma maneira
+profunda, serena e harmoniosa. O amor não rebenta em beijos violentos, como as
+folhas das arvores pelas primaveras risonhas&mdash;floresce em imagens. Eu, que não
+posso amar, que soluço angustiosamente pela minha impotencia, quero a tua
+alma!</p>
+
+<p>Quando o Diabo fallou do amor, do negrume da noite que se apoiara já
+fortemente sobre a cidade e o monte, vi passar, no seu andar musical e casto,
+tal uma deusa, a Bem-Amada. Foi<span class="pn">{159}</span> como se uma
+via-lactea suave se accendesse e florissem as flôres da terra sobre as estrelas
+do Ceu...</p>
+
+<p>&mdash;Não te dou a minha alma.</p>
+
+<p>&mdash;Vão abrir-se, d'aqui a pouco, na cidade enigmatica, as portas escuras das
+casas de jogo. Dar-te-hei o segredo de sempre ganhar. Farei correr por ti os
+cubos amarelecidos dos dados. As pintas pretas far-se-hão olhos e verão onde
+apontas. As bolas das roletas saltarão por ti nas arestas de cobre...
+Conhecerás o prazer de ver amontoar na tua frente as notas e as moedas de oiro,
+de observar, ironico, os rostos, que a angustia encarquilha, dos jogadores que
+perdem. E os sobresaltos do banqueiro, imovel, mas de olhar esgazeado,
+far-te-hão rir...</p>
+
+<p>&mdash;Que importa? Jogarei com os sorrisos que brincam nos beiços finos de
+Livia. Ganharei sempre porque, quer ella sorria ou não, vel-a-hei e, por vel-a,
+andarei contente...</p>
+
+<p>&mdash;Ensinar-te-hei os segredos das cotas, dir-te-hei as confidencias que a si
+mesmos mal ousam segredar os financeiros internacionaes. E farás cair as
+grandes emprezas que vão dar ao mundo um aspéto novo. Arruinarás povos
+inteiros, farás baquear os tronos em que rainhas hirtas se assentam, no pavor
+das revoltas. Serás o ordenador magnifico dos cracks, e, de paiz em paiz, o teu
+nome correrá, nos fios dos telegrafos, espalhando o sobresalto e a ruina.<span
+class="pn">{160}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não quero. Basta que o meu nome seja pronunciado n'uma voz suave pela
+Bem-Amada. Dito por ella, o meu nome vae, de flôr em flôr, espalhar o perfume
+da sua bocca.</p>
+
+<p>&mdash;Amas a mulher? Dar-te-hei as cortezãs vestidas de joias, como idolos
+antigos. Virão, de rojo, abraçar-te os joelhos, como escravas. E dos corpos
+alvos e brilhantes subirão perfumes que entontecem... Dos seus braços frescos,
+como as grinaldas que se entretecem com jasmins, fugirão as caricias. Terão
+vozes magoadas a suplicar beijos. E, mais que as suas joias, brilharão os seus
+grandes olhos...</p>
+
+<p>&mdash;As joias são flores mortas, retalhos de astros que sucumbiram... Essas
+mulheres são como as joias: os beijos puzeram nos seus corações a dureza, a
+frieza e a geometrica forma das pedras lapidadas. Prefiro, a todas ellas, o
+gesto lento e curvo da Bem-Amada quando compõe o seu cabello preto.</p>
+
+<p>&mdash;A mulher carinhosa e pura é como uma flôr sem perfume. É preciso que o
+vicio lhes ponha um estremecimento. Dar-te-hei aquellas que envenenam a sorrir,
+que atraiçoam entre duas caricias, a amante que vae surpreender, n'um beijo, o
+segredo do amante, o segredo que leva á Forca, aquellas que descobriram
+ineditas lascivias, corrutas e artificiaes, que eu mesmo vestirei com tecidos
+fantasticos, que espalham um amavío!<span class="pn">{161}</span></p>
+
+<p>&mdash;Que amavío maior do que ver a Bem-Amada quando descança a face branca
+sobre as mãos cruzadas, n'um vagaroso gesto cheio de doçura?</p>
+
+<p>&mdash;Dar-te-hei a alegria e a insaciedade, a embriaguez que exalta, o
+redomoinho dos desejos que estrangulam, as bocas avidas e perseguir-te com
+beijos e dentadas, toda a loucura incendiaria, a profanação de todos os cultos,
+o poder de corromper, os venenos subtis que matam lentamente e de longe, as
+misteriosas aguas e misteriosos pós, que fazem definhar, como flores que se
+fanam, as creaturas... Serás o senhor das almas e dos corpos.</p>
+
+<p>&mdash;Basta-me vel-a guardar, a sorrir-se, a carta que lhe escrevo...</p>
+
+<p>&mdash;Entregar-t'a-hei! Poderás tel-a entre os braços, morder a boca fina,
+sentir sobre o teu peito o arfar apressado do seu collo amoroso, ver os olhos
+cerrar-se como n'uma agonia doce... A sua figura fragil aconchegar-se-ha entre
+os teus braços, aquecerás a sua frieza, será tua, reconhecida, amorosa,
+fremente de paixão... Queres? Dá-me a tua alma!</p>
+
+<p>Tive um sobresalto, como quem, passeando n'um jardim florido, pisa um
+sapo:</p>
+
+<p>&mdash;Não. Basta-me sentir nas noites claras, quando lhe fallo á varanda, o seu
+olhar cair gotta a gotta sobre os meus olhos extacticos!<span
+class="pn">{162}</span></p>
+
+<p>O creado veiu dizer-me que ia fechar-se o restaurante. A treva escorregava
+pelo monte. Um clarão vinha da cidade estendida a meus pés. E vago, confuso, o
+ruido da cidade com os seus vicios, seus tumultos, o cio que começava.</p>
+
+<p>Desci. E, a acompanhar-me, senti a Bem-Amada, perto de mim, carinhosa, a
+olhar-me longamente com os seus largos olhos pretos.<span
+class="pn">{163}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000140">A PRINCEZA PERDIDA</a></h1>
+
+<p class="assin">A<small>O SR. </small>J<small>OSÉ DE </small>S<small>OUSA
+</small>M<small>ONTEIRO.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{164}<br>
+{165}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000141">A P<small>RINCEZA
+</small>P<small>ERDIDA</small></a> </h2>
+
+<p>N'aquella serena tarde de primavera, a princeza descera com as pequeninas
+aias e a camareira-mór as escadas de marmore branco e de marmore roseo do
+sumptuoso palacio real.</p>
+
+<p>Era n'uma côrte de complicada pragmatica. Os movimentos eram feitos
+consoante regras antigas; cada passo, cada mesura, cada sorriso, vinham
+marcadas no grosso livro que um mordomo-mór colligira, a exemplo do que fizera
+um imperador bysantino.</p>
+
+<p>Apesar d'isso, porém, na côrte esplendida havia um pouco de mocidade. E
+detraz dos leques de varetas rendilhadas, os labios abriam-se em sorrisos os
+olhos franziam-se, quando estava distante a hirta, camareira-mór.</p>
+
+<p>Os bailes tinham solemnidade como os officios divinos; mas as cores frescas
+das raparigas, a ligeiresa com que dançavam, a graciosidade que florescia nas
+suas atitudes rapidamente<span class="pn">{166}</span> desmanchadas, logo
+substituidas, davam-lhes o ar de festas.</p>
+
+<p>No grande palacio brilhante, as gentes andavam lentamente, como em
+procissão. No rosto do mais alegre era preciso espelhar-se, sombria, a tristeza
+que emagrecia a face pallida do rei. Era mister que ninguem perturbasse, com o
+tenir fresco d'um riso, a dôr real. Se alguma vez as donzellas deixavam passar
+o riso atravez das rendas finas dos seus leques, logo a camareira-mór
+intervinha, sevéra, a repreender. Nos tapetes morriam os sons dos passos; os
+grossos reposteiros abafavam o ruido das vozes. O silencio era eterno, como
+essa grande e aniquilladora magua que abatera a vigorosa mocidade do Rei.</p>
+
+<p>Em tempo, o palacio vibrára com o clamor das festas; as musicas saltitantes
+riam nas amplas sallas. Os vestidos claros, em cujos decótes os peitos brancos
+se mostram, sublinhavam a alegria. Um bobo pequenino e monstruoso punha um
+chocalhar de guiso em cada frase. E junto da Rainha, loira, pallida, delgada, o
+Rei tambem sorria, a olhar a flôr preciosa e fragil que pelo braço levava, em
+movimentos musicaes, como uma ave.</p>
+
+<p>Junto á sua frescura luminosa, as joias pareciam flores. E o diadema pesado,
+sobre os cabellos loiros, era como uma aureola maior n'essa cabeça fina.<span
+class="pn">{167}</span></p>
+
+<p>Ella tambem sorria, olhando os olhos escuros do Rei. E pela bocca vermelha
+havia como um palpitar de beijos. A festa continuava. Havia no ambiente claro
+de tantas luzes, tantas joias, tantos olhos contentes, uma alegria maior.
+Vaporisavam-se os movimentos. As rendas tremiam nos vestidos das mulheres, nos
+gibões de seda dos gentishomens. As conversas d'amor faziam arfar os seios... O
+Rei e a Rainha continuavam a sorrir-se, como dois amantes rusticos, que se
+encontram na vinha, por um suave outomno.</p>
+
+<p>Uma noite, porém, a dôr entrou n'esse palacio claro. Ligeiros, para não
+fazer ruido, como sombras, os cortesãos, as damas d'honor, as aias, passavam,
+murmurando resas, ou trocando, baixinho, as impressões. Era como um ciciar leve
+de brisa sobre um campo de flores. Os vultos cruzavam-se:</p>
+
+<p>&mdash;Então?</p>
+
+<p>&mdash;Na mesma...</p>
+
+<p>&mdash;Impossivel salvar-se...</p>
+
+<p>&mdash;O fisico não atina com o remedio...</p>
+
+<p>Era a Rainha, que, como certos arbustos que morrem, depois de florir,
+finava-se ao dar á luz a pequena princeza.</p>
+
+<p>A dôr tragica e calada do moço Rei! Nem uma palavra se lhe ouviu da bocca
+crispada. Nem um grito na luctuosa camara onde carpiam as senhoras da côrte. De
+joelhos junto<span class="pn">{168}</span> ao leito magnifico, onde se postára
+depois de ter cerrado os largos olhos garços, o Rei chorava em silencio. Os
+frades diziam monotonamente, como um esvoaçar de insectos, as resas rituaes. Um
+ou outro soluço, a desolação d'um ai, cortavam a funebre quietude; mas o rei,
+entre as suas as mãos finas e amarellecidas da Rainha, não tinha um grito, nem
+uma palavra. Nos labios da morta ainda havia o sorriso, esboçado a olhar para o
+marido...</p>
+
+<p>O Rei mandou retirar a todos do quarto. Quiz elle proprio vestir aquella que
+tanto amára. Beijou-lhe os olhos de palpebras azuladas, beijou os cabellos, que
+na imprecisa penumbra, tinham um brilho d'oiro... Outra vez caiu de joelhos.</p>
+
+<p>Então as palavras de dôr, abundantes, sairam dos labios tanto tempo
+represos. Disse-lhe o grande amôr e a grande magua. Prometteu-lhe viuvez
+eterna; que a sua alma se conservaria fechada, como um relicario, a guardar a
+imagem quasi divina da mulher primeira amada, unica...</p>
+
+<p>Longo tempo se conservou, as mãos frias da morta entre as suas, no quarto
+silencioso, onde apenas os seus queixumes davam uma nota de vida. No lampadario
+já se extinguiam as luzes, que, de quando em quando lançavam, altas, dentadas,
+labaredas azues e d'oiro.</p>
+
+<p>A madrugada clara entrou pelas janellas,<span class="pn">{169}</span> como
+um chilrear de passaros. A vida renascia, musical, da noite escura. No coração
+do Rei a dôr fizera uma sombra eterna.</p>
+
+<p>Entre os brandões acesos levaram o cadaver, vestido por mãos mercenarias,
+que as do Rei nem tinham forças para o peso dos anneis...</p>
+
+<p>Filas de bispos mitrados, graves e compungidos, seguiam o feretro atravez as
+ruas da cidade e por estradas risonhas, até o convento magnifico em cuja egreja
+jaziam todos os numerosos reis e rainhas da casa real; seguiram os fidalgos
+como seus escudeiros de lucto; seguiu, commovido, o povo, que pranteou a morte
+d'aquella que fôra linda e nas ruas sorria ás criancinhas pobres, que lhe
+pediam a benção...</p>
+
+<p>Era uma comprida fila que se perdia nas corcôvas da estrada. As confrarias,
+os conventos mandaram os irmãos e os frades, com as insignias. E áquelle
+radioso sol d'agosto, que punha na athmosphera uma tremura, tudo resplandecia,
+como uma apotheose. Brilhavam as lanças, brilhavam os ouros, brilhavam os
+báculos e sobretudo refulgiam as insolitas pedrarias dos bispos, caminhando
+magestosos e tristes. E o psalmejar dos padres, ouvido ao longe, perdia a nota
+de lamento: era como o ultimo echo d'um canto de victoria, no dia
+glorioso...</p>
+
+<p>No palacio quasi deserto, o Rei ficára no quarto vazio. Como arredal-o de
+lá? De joelhos<span class="pn">{170}</span> ainda, pensava talvez ter entre as
+suas mãos os dedos finos da Rainha morta. De quando em quando um soluço parecia
+estalar a garganta. E as lagrimas desciam pela face, iam morrer na barba
+perfumada.</p>
+
+<p>Olhava para o grande espelho, onde a Rainha costumava ageitar, á noite, os
+cabellos fartos. Lembrava-se de ter alli visto o gesto gracil, aquelle pó
+d'oiro, e o corpo que tinha a frescura e a elegancia d'uma flôr que vae a
+desabrochar. Porque não guardam os espelhos as imagens reflectidas? Teria alli,
+viva, a Rainha, na attitude de compôr as sedas das suas tranças... Mas os
+espelhos deixam tudo escapar. Assim os lagos não guardam, no seio ligeiro,
+voluvel, o vôo curvo das pombas que fogem...</p>
+
+<p>E para alli se quedava, vivendo do passado, como um velho... Que importava
+que as guerras na fronteira distante assolassem o paiz? Que tinha que os povos
+gemessem, que as catastrophes aluissem as cidades fulgentes ao luar e ao sol
+nas suas cathedraes preciosas, que os rios, saltando os leitos, invadissem as
+aldeias claras? Que importava a vida se elle só vivia da morte? Mergulhassem os
+outros no passado os olhos cubiçosos e vivessem de tanto explendor de batalhas
+e de riquezas que listravam de clarões a historia do reino afortunado. Na
+miseria presente, que se recordassem!<span class="pn">{171}</span></p>
+
+<p>A propria princeza entre as mãos das açafatas, delicada e linda, ia vivendo,
+nos grandes olhos verdes, uma tristeza, como quem sabia... No palacio sevéro,
+lugubre, sem os tinidos das alabardas e os mantos que formavam lagôas, nas
+alcatifas, ninguem se via. E ella, a pequena princeza, não aprendera a rir e
+tambem não chorava.</p>
+
+<p>Uma vez ou outra, ao atravessar silencioso e só as camaras, o Rei via a
+princeza; machinalmente as suas mãos pallidas passavam pelos cabellos loiros da
+filha. E seguia, taciturno, sempre diante de si a imagem d'aquella que morrera
+a sorrir e o esperava na crípta silenciosa do austero templo gothico.</p>
+
+<p>Ensinavam as aias á princezinha, não relatos crueis de contendas, nomes
+temidos dos reis seus avós, mas historias maravilhosas. Diziam-lhe que á noite,
+os grandes calices das magnolias abriam-se, com um ruido musical. E de dentro
+saiam côrtes de fadas minusculas, vestidas com mantos tecidos com raios de
+luas-cheias. Pelo parque andavam livremente entre as roseiras explendidas...
+Contavam-lhe que á meia-noite, as arvores se desprendem da terra e vão beber,
+como os gados, ás limpidas ribeiras. Ella sabia que entre si os animaes
+falavam, as andorinhas nos bicos dos telhados, os cisnes brancos nas lagôas
+azues, os pavões sobre as arvores, quando espalmam as enjoalhadas<span
+class="pn">{172}</span> caudas, as pombas brancas á beira dos poços, sobre o
+marmore polido.</p>
+
+<p>Conhecia os trabalhos ligeiros dos gnomos, que nas cavernas escuras
+trabalhavam o oiro e o ferro; distinguia os alfagemes, que afiam as espadas
+mortiferas, e os ourives, que afilagranam os metaes.</p>
+
+<p>Diziam-lhe as lendas floridas dos amantes, de cujos tumulos saem sorrisos
+carregados de rosas, que n'um arco perfumado se abraçam a misturar os
+perfumes...</p>
+
+<p>Mas a pobre princeza, apenas nubil, não conhecia a Vida, nem o Amor, nem o
+Riso.</p>
+
+<p>Um dia, pois, a princeza, com as pequenas aias, desceu ao jardim do
+sumptuoso palacio.</p>
+
+<p>Misterioso por tantas sombras, tantos caminhos que se contorciam por entre
+rugosos troncos, tantas aguas que cantavam nos marmores brancos, tantas flores
+que dentre a verdura perfumavam...</p>
+
+<p>De socalco em socalco abriam-se, em leques, as escadarias; saltavam as aguas
+das cascatas, despenhavam-se as trepadeiras floridas, rastejavam as hervas,
+rosas de toucar e jasmins lançavam os ramos frageis.</p>
+
+<p>Junto ao palacio o jardim era cuidado, como uma cabeça garrida. As largas
+flores espargiam os aromas; os repuxos finos esguichavam fios de prata, pelas
+ruas areiadas passavam, magestosos os pavões solemnes... Mas depois,
+começava<span class="pn">{173}</span> a floresta. As altas arvores luctavam,
+estorcidas: algumas subiam, magras como pedintes, n'uma aspiração, muito
+direitas para o sol. Outras torciam-se, esta sem forças, esgarçava-se mirrada.
+E a hera crescia, vestia os troncos, até nas arvores secas vicejava, como uma
+mascara risonha n'uma face de morto. Alguns troncos de seculares carvalhos
+continham grutas escuras. E os passaros, dentre os galhos, ao ruido dos passos,
+levantavam vôo, alvoroçados.</p>
+
+<p>Era o «Caminho das Rosas», que alli levava. Rosas de toda a côr:
+ensanguentadas, brancas, côr de mel e de marfim, côr de carne, rosas para
+florir peitos de danados e para tranças de primeiras commungantes, rosas que
+abrem chagas no verde das roseiras, outras que chamam beijos, como colos nus em
+festas illuminadas, rosas que teem toda a pureza d'uma noiva, outras toda a
+garridice d'uma amante, rosas para tumulos, brancas, mortas quasi, rosas cheias
+de vida, que pareciam querer saltar das hastes, e offerecer-se, lascivas...</p>
+
+<p>Vinha do seu conjuncto um perfume entontecedor. Por tanto aroma lançarem no
+ar, nas noites quentes d'agosto, algumas damas da côrte caiam, em deliquio. E
+todas tinham medo d'aquelle portico encantado, que parecia abrir para um
+paraiso, mas que podia descer a algum abismo.<span class="pn">{174}</span></p>
+
+<p>Foi para ali, que, correndo atraz d'uma borboleta, se dirigiu a princeza. Em
+vão lhe prenderam as vestes de seda os espinhos das roseiras, em vão a chamaram
+as pequenas aias; mesmo foi debalde que a voz secca da camareira-mór gritou por
+ella, entre respeitosa e auctoritaria. A princeza, a rir, córada, continuava
+atraz da grande borboleta, deixando tiras de seda nos galhos em flôr que,
+sacudidos, lançavam sobre a sua cabeça petalas finas.</p>
+
+<p>Ninguem, comtudo, se atreveu a ir atraz d'ella.</p>
+
+<p>Corria no palacio e na cidade uma lenda extranha sobre a floresta, que
+continuava o jardim, depois do perfumado «Caminho das Rosas».</p>
+
+<p>Dizia-se que n'uma epoca remota, no tempo em que pela cidade luminosa e
+culpada ainda passavam os santos ensinando a Lei e edificando as gentes,
+governava o reino uma rainha pagã. No jardim murmuroso e claro havia fremitos
+de beijos. Nas aguas dos tanques brilhavam corpos ligeiros. Nas sallas que as
+tochas e os lampadarios illuminavam, mulheres quasi nuas dançavam levemente ao
+som de musicas alegres. E o vinho levava das taças lavradas ás boccas vermelhas
+a alegria e o Amôr.</p>
+
+<p>Por toda a parte havia flores, havia risos, havia festas. Os cavalleiros,
+nas justas, paravam; morriam as scentelhas em que ardem as espadas no choque
+dos combates, e das boccas<span class="pn">{175}</span> frescas saíam vozes a
+cantar a formosura das florestas, a elegancia das mulheres, a limpidez das
+aguas cantantes.</p>
+
+<p>Um dia, um santo bispo entrou, andrajoso e cançado, a pedir pousada; a
+rainha, ao vel-o tão miseravel, mandou-o recolher no canil, com os creados das
+matilhas. Os cães, piedosamente, foram lamber os pés em sangue do santo
+homem.</p>
+
+<p>Mas a Rainha não o quiz receber. Como de S. João Baptista, as palavras
+subiam para as portas, asperas e condemnatorias. Toda a noite a sua voz rude
+annunciava o castigo.</p>
+
+<p>A Rainha, cançada de ouvir a voz rouca, mandou-o açoitar e expulsar do
+palacio, em que reviveu a alegria. Mas durou pouco, porque um dia uma lingua de
+fogo saiu da terra, e agitou-se no ar, de sangue e oiro; espavorida, toda a
+côrte fugiu, para não mais voltar, para a floresta misteriosa, que ninguem
+sabia ao certo onde acabava.</p>
+
+<p>E todo o reino teve medo, como d'um inferno, d'essa floresta que começava
+por uma extranha floração de rosas e terminava porventura pelos eternos gelos,
+pelas labaredas, talvez...</p>
+
+<p>Por ali seguira a princeza, a rir-se. Em vão o Medo guardou durante seculos
+a misteriosa entrada. Em vão as rosas se agitaram, como turibulos, para a
+entontecer com o perfume, e os galhos a prenderam, e os espinhos lhe
+rasgaram<span class="pn">{176}</span> as rendas e as sedas. Foi correndo. A
+borboleta enorme parecia uma joia a fugir por entre as flores. A princeza era
+como uma ave, delgada e linda, atraz d'ella.</p>
+
+<p>Subitamente a paisagem modificou-se. Do dia glorioso que estava no jardim do
+palacio, nasceu um crepusculo doirado, como um velho damasco amarello.</p>
+
+<p>A luz parecia um convalescente a rir-se por cima das arvores, pelos tanques
+quietos, pelos marmores. E as folhas das arvores tremiam fazendo brilhar os
+filamentos d'oiro. As flores tinham todas um aroma ligeiro, como os frascos de
+perfumes, que durante longos annos se guardam, vasios, nos armarios fechados.
+Eram brancas todas as rosas e as petalas enrugadas, como pelles finas de
+velhas, que viveram nos claustros, entre cosmeticos.</p>
+
+<p>Quando a princeza deu pela mudança da luz e da paisagem lembrou-se da lenda
+pavorosa que afastava as gentes da floresta e do Caminho das Rosas.</p>
+
+<p>&mdash;Onde estão as linguas avidas do fogo? perguntava-se. Onde os gelos que
+prendem e matam? Onde os dragões?</p>
+
+<p>A paisagem era toda serena e d'um riso triste. Dir-se-iam anemicas as flores
+palidas, as anemonas de seda velha, de cera transparente, que por toda a parte
+deixavam cair, de cançadas, as petalas finas. E nos caminhos a areia preta<span
+class="pn">{177}</span> era crusada pelos veios das hervas rasteiras, coberta
+pelos galhos dos arbustos, aqui sacudiam-se rosas, alem os geranios frescos.
+Pelos troncos direitos das arvores a hera enroscava-se, a subir. Nas curvas dos
+tanques, dormiam os nenuphares. Nos marmores dos poços as trepadeiras cobriam
+os lavores. Havia um silencio leve, por onde perpassava o espirito d'um canto,
+como um aroma que a brisa traz de longe.</p>
+
+<p>Os templos tinham as portas abertas. A princeza para elles entrou, a medo, a
+espreitar, afastando os loureiros e os mirtos, que quasi fechavam a entrada.</p>
+
+<p>Ninguem. Apenas os deuses de marmore, calmos, esperavam as oferendas. Mas as
+aras dos sacrificios tinham humidade da lavagem recente. As cinzas eram
+quentes; no templo d'uma deusa havia grinaldas de rosas e pennas de pombas
+brancas soltas pelo chão.</p>
+
+<p>Alguem ali vivia, pensava a princeza. Mas quem? Genio malfazejo, que a
+mataria, ou fada carinhosa? Seria ali que nas noites claras virião passear as
+côrtes sumptuosas que moram nos calices das magnolias?</p>
+
+<p>Habituada ao silencio sombrio da côrte não a inquietava aquelle silencio
+leve. E continuava a explorar a encantada floresta, onde parecia agitar-se um
+simulacro de vida.</p>
+
+<p>Como um coração que vive da saudade dos<span class="pn">{178}</span> tempos
+remotos, assim ali parecia existir a repercursão d'uma vida antiga. A cada
+passo a princeza encontrava signaes de sandalias, flores cortadas, uma fita,
+indicios de vida. Mas d'onde partiam? Quem os deixava?</p>
+
+<p>Viveria ali, n'aquelle paiz de luz anemica, uma côrte de feiticeiras
+tragicas, que esperam, para sair das cavernas, as badaladas lugubres da
+meia-noite? Mas não. As feiticeiras escolhem as montanhas altas e escarpadas
+onde chegue o canto soturno do mar revolto, sem arvores que impeçam o vôo
+incendiario das blasphemias e das imprecações para o ceu sem lua e sem
+estrellas.</p>
+
+<p>Ia caminhando a princeza. Via ribeiros claros que escorregavam sobre seixos
+brancos; lagôas azues, fachadas de templos, quincuncios bordados por buxos
+altos. E as ruas seguiam entre filas d'altas arvores formando tunel, até serem
+cortadas por novas ruas, com arvores ou flores.</p>
+
+<p>Cançou-se a pequena princeza. Um vago terror a invadiu. Quiz regressar ao
+palacio, mas não podia. As ruas d'arvores, os templos, os ribeiros, as
+estatuas, sucediam-se. Parecia-lhe estar n'um complicado labirintho. Como
+conseguir o magico fio?</p>
+
+<p>Uma noite, que parecia artificial, espalhara-se pelo ceu e envolvia as
+coisas. Á tonalidade doirada, succedia uma tonalidade branca,<span
+class="pn">{179}</span> como se tudo fosse feito de prata. A princeza sentou-se
+n'um banco, a chorar.</p>
+
+<p>Ouviu de longe como um passar de brisa leve por harpas suspensas em arvores.
+Escutou. Era um canto que um côro fazia subir, ligeiro como um fumo. Mais se
+approximava. As vozes eram cançadas, mas limpidas. Cantavam a vida e as festas,
+o rir das flôres, a alegria das arvores na primavera.</p>
+
+<p>Cada vez se approximavam mais. Dirigiam-se, certamente, para o sitio onde
+ficára a princeza, um jardim junto d'um templo de marmore verde.</p>
+
+<p>Já via as canephoras, com açafates de flores, seguidas pelas escravas com
+tamboretes; depois a numerosa theoria de mulheres, com archotes, que, ao
+queimar-se, illuminavam e perfumavam. Não havia homens. Certamente que vinham
+para a festa atheniense das Thesmophorias.</p>
+
+<p>Eram as habitantes da floresta. Caminhavam lentamente, as cunharicas
+fluctuantes sobre as tunicas amarellas. As hidrophoras traziam as urnas na
+cabeça. N'um gesto gracioso, seguravam-as com uma das mãos; os braços nus eram
+tão brancos como os marmores transparentes das urnas.</p>
+
+<p>Quando viram a princeza, medrosa, a esconder-se entre as arvores, a
+procissão parou, as vozes calaram-se, a meio do canto.<span
+class="pn">{180}</span></p>
+
+<p>Em voz baixa concertavam entre si a resolução a tomar. A princeza ouvia
+apenas um zumbido confuso, como os das abelhas, quando nos dias quentes se
+cruzam pelos jardins floridos. Colada a um tronco, palida como um ex-voto de
+cera, viu com pavor approximar-se d'ella uma das habitantes da floresta. Era
+porém, tamanha a sua beleza e a sua gracilidade, que o medo tombou do espirito
+da princeza. Pensava-se ver uma haste florida a andar. Vagarosa, os seus gestos
+curvos e lentos pareciam fazer nascer no ar quieto uma harmonia...</p>
+
+<p>&mdash;Perdi-me aqui! Perdi-me aqui!</p>
+
+<p>&mdash;D'onde vens?</p>
+
+<p>&mdash;Do palacio. Sou a princeza. As minhas aias não se atreveram. Eu corri para
+apanhar uma borboleta. A borboleta fugiu. Fiquei sem saber onde estava, que
+caminho tomar. Isto é tão lindo! Mas faz tanto medo não se saber onde se
+está!</p>
+
+<p>&mdash;E queres voltar? Deixaste teu pae e tua mãe...</p>
+
+<p>&mdash;Minha mãe morreu. Meu pae não o vejo... quasi nunca. É um velho triste e
+duro, que não fala... Tenho medo da camareira-mór. E as aias estão a chorar ás
+escondidas d'ella como sempre... A vida é triste, triste, no palacio...</p>
+
+<p>&mdash;Preferes ficar comnosco?</p>
+
+<p>A boca fina pareceu sorrir-se. A princeza olhava para as mais que se tinham
+acercado.<span class="pn">{181}</span> Eram todas lindas e moças, mas sem
+frescura, como as rosas que abrem pelas chuvas e ventanias.</p>
+
+<p>&mdash;Se me quiserem. Se me quiserem.</p>
+
+<p>&mdash;Pois ficarás! Ficarás! Vem comnosco!</p>
+
+<p>Poz-se em marcha o cortejo, novamente. Entraram no templo com a princeza.</p>
+
+<p> </p>
+
+<p>E a princeza ali ficou, porque nos rostos se conservava a mocidade e não
+havia a dôr, nem o constrangimento. Tudo era claro e sereno. E não voltou mais
+ao palacio, onde as aias choravam e a camareira-mór, seca e hirta, tinha uma
+voz esganiçada e autoritaria.<span class="pn">{182}<br>
+{183}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000150">NOITE DE FESTA</a></h1>
+
+<p class="assin">A A<small>RMANDO </small>N<small>AVARRO.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{184}<br>
+{185}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000151">N<small>OITE DE
+</small>F<small>ESTA</small></a></h2>
+
+<p>Era o jantar de despedida de Dowanov, que partia para o Mexico, promovido a
+ministro. Jantar de secretarios de legação, que formam uma confraria, para, na
+critica dos chefes, tirar uma consolação do exilio, correra um pouco triste.</p>
+
+<p>A minha intimidade com o novo plenipotenciario, que viera da communidade de
+vistas sobre a numismatica bisantina, abrira em meu favor uma excepção.</p>
+
+<p>No pequeno gabinete do Avenida Palace, a conversa versára sobre diplomatas e
+postos. Dowanov, como todo o bom russo, suspirava por Paris, onde estivera
+adido. Contava as suas tribulações junto do embaixador solemne e desdenhoso,
+que, sabendo-o apaixonado por corridas, nos dias de steeples e handicaps
+sensacionaes, sob pretexto de serviço o mandava chamar com urgencia, mas
+realmente para o impedir de divertir-se em Auteil e Longchamps.<span
+class="pn">{186}</span> Apesar de tudo, porem, sorriam-se-lhe os olhos ao
+lembrar-se das pequenas colhidas <em>un peu partout</em>.</p>
+
+<p>A minha presença não permitia as confidencias sobre a monotonia da pequena
+cidade da provincia que é Lisboa. Havia um constrangimento. Por isso falaram de
+companheiros, indicaram silhuetas vistas um momento, logo esquecidas.</p>
+
+<p>&mdash;O que será feito d'esse roliço Kordst, que estava, no meu tempo,
+encarregado de negocios em Bucharest? Nunca mais soube d'elle? Devia ter
+morrido da falta d'um bilhete. Lembro-me que ia provocando uma questão
+internacional, porque o ministro d'Austria, ao apresentar-lhe o adido russo,
+disse primeiro o nome de Kordst. Moravamos no mesmo hotel. Foi procurar-me
+apoplético:</p>
+
+<p>&mdash;O que terá contra mim o ministro d'Austria? Não lhe fiz coisa alguma!...
+Não me lembro. Ainda hontem, na recepção, lhe dei o meu logar no sofá!...</p>
+
+<p>&mdash;Kordst? Com o amor que tinha aos bilhetes de visita, fez-se litografo,
+provavelmente... Sabem de Camusot, o adido militar francez, que tinha uma
+mulher que andava aos saltos, como uma pêga? Não conheceram? Você, Poliano? Não
+me disse que tinha estado com elle em Vienna?...</p>
+
+<p>&mdash;Não. Encontrei-o em Roma. A mulher realisava<span class="pn">{187}</span>
+o typo perfeito da <em>gaffeuse</em>... Em que liquidou?</p>
+
+<p>&mdash;<em>Croupier</em> de batota, em Spa... Tinha ar... Um dia, no Jockey,
+perceberam que corrigia a sorte, no baccará.</p>
+
+<p>&mdash;E Blumen, o chanceller da embaixada allemã, que conheci, de relance, em
+Madrid?</p>
+
+<p>&mdash;Em missão junto de Menelick. Emborracha-se com o Negus, formidavelmente,
+com cerveja de Munich. Tem a simpatia dos ras; ouvi que iam crear em sua honra
+a ordem do Bock, na Abyssinia...</p>
+
+<p>&mdash;Era o intimo do conde de Strifforth... Que é feito de Strifforth? Herdou
+já o <em>peerage</em>? Diziam-o muito considerado no Foreign Office. Pensou-se
+n'elle para sub-secretario de Estado...</p>
+
+<p>&mdash;Nunca lhes contei a morte de Strifforth?</p>
+
+<p>&mdash;Morreu?</p>
+
+<p>&mdash;Vi-o suicidar-se. Acompanhei-o nos ultimos dias. Foi em Sevilha. Tinha-o
+conhecido em Londres, no seu ultimo <em>congé</em>; quando fui promovido para
+Madrid démo-nos muito ali. Morreu d'uma maneira singular, n'uma festa da
+marqueza de Carrillos, na sua quinta de Eritaña... A melhor festa de
+Hespanha... A mais elegante e romanesca; dava a sensação da embriaguez d'uma
+boneca de Saxe, n'um Walpurgis. Havia feiticeiras novas, ou melhor, ninfas. A
+quinta é deliciosa, um pouco acima<span class="pn">{188}</span> de Sevilha; o
+rio corta-a e para passar d'um lado a outro ha pequenas gondolas com camaras
+para duas pessoas sómente. A Carrillos, um pouco artista, um quasi nada doida,
+levou uma ranchada de gente para o seu palacio, do tempo de Pedro, o Cru, para
+uma festa de mascaras pela Piñata. Era tudo gente nova, salvo uma ou outra mãe
+que ia fazer a decencia. Mas achavam-se deslocadas no meio da nossa alegria e,
+intelligentemente, retiravam-se para sensacionaes partidas de bridge. Só nos
+viamos ás refeições. Uma <em>party</em> deliciosa, que acabou n'uma tragedia,
+um pouco de <em>guignol dernier bateau</em>, entre musicas leves... É melhor
+contar tudo, ab ovo...</p>
+
+<p>&mdash;Sim... Desde o congresso de Vienna. O pae foi secretario d'um dos
+plenipotenciarios inglezes...</p>
+
+<p>&mdash;Ainda de peito?</p>
+
+<p>&mdash;Não. Strifforth era filho de velho... Isso explica muito o seu
+temperamento.</p>
+
+<p>&mdash;Vá, psicologo!</p>
+
+<p>&mdash;Este Mumm não me diz nada! Traga Montebello! É um pouco da Carreira.</p>
+
+<p>&mdash;Por afinidade?</p>
+
+<p>&mdash;Então o antigo embaixador?</p>
+
+<p>&mdash;<em>En disgrace?</em></p>
+
+<p>&mdash;Sim. Ao quarto filho da czarina elle criticou:&mdash;«Ce n'est pas une
+femme&mdash;c'est une pondeuse!»<span class="pn">{189}</span></p>
+
+<p>&mdash;Conta a historia tragica!</p>
+
+<p>&mdash;A marqueza de Carrillos levára a sua filha, aquella inquieta Mathilde,
+noiva por sport, tecendo e desarranjando os casamentos, como Penelope a famosa
+teia. Para ella não havia flirts: tudo noivados. É possivel que, de a
+experimentar tanto, a grinalda nupcial estivesse já enxovalhada. Conheceu a
+Carrillos? Você? Você? Ninguem? Fina como uma <em>flûte</em> de cristal cheia
+de champagne <em>mousseux</em>, ondulosa, sempre pronta para o ataque e para a
+resposta, fazia a chuva e o bom tempo na sociedade, e tinha um dom especial
+para pôr alcunhas que logo faziam o giro de Madrid e crismavam as creaturas.
+N'um dos seus numerosos noivados a mãe, oppondo-se, disse-lhe:&mdash;«Que sogra vaes
+ter!» A Mathilde, sem pestanejar:&mdash;«E elle, mamã? E elle?» A marqueza ria-se
+perdidamente com os ditos da filha, regosijando-se:&mdash;És digna de mim!</p>
+
+<p>&mdash;E Strifforth?</p>
+
+<p>&mdash;Lá vae. Ora fez-se a festa. O costume Luiz XV era de rigor. Por uma noite
+estrellada, espalhámo-nos pelo jardim. Pelas janellas do palacio corriam
+grinaldas de fogo das <em>bandes souples</em> que as ligavam. Eram tulipas de
+todos os córtes que d'entre a folhagem se uniam, pondo um traço florido entre o
+incendio que vinha das multiplas janellas abertas sobre o parque e sobre o
+caes. Pelos troncos<span class="pn">{190}</span> das arvores envolviam-se em
+espiras as serpentes luminosas, marchetadas, e abriam-se em mil luzes nas
+copas, davam, ao longe, o aspecto de uma joalheria que ardesse na noite quieta
+e calada, essas noites amorosas da Andaluzia em que tudo parece estacar n'um
+beijo supremo... Pela margem do rio a mesma florescencia, mergulhando na agua,
+dando ao rio a aparencia fantastica de um ceu que se afundasse.</p>
+
+<p>De repente musicas invisiveis tocaram as melodias leves, <em>gavottes</em>
+suspiradas, em que ha um pouco de amor, um pouco de dança, como num flirt. E do
+escuro d'uma angra moveram-se gondolas ligeiras, em que ardiam e estremeciam
+largos balões venezianos.</p>
+
+<p>Os remadores, ensaiados, iam quasi ao compasso ligeiro das
+<em>gavottes</em>. Tinhamos a impressão d'uma dança de gondolas, um sonho
+estranho de veneziano, pelas horas misteriosas em que as coisas inanimadas
+tomam vida. Do levantar dos remos das aguas, saltavam cintillações de
+pedrarias. E a linha tortuosa de balões augmentava o incendio, na vibração de
+tantas reluzentes joias a agitarem-se na agua do rio... Fomo-nos metendo nas
+gondolas. Os <em>novios</em> acolheram-se prestes ás gondolas mais pequenas.
+Uma maior levou muitos de nós, descazalados, a Mathilde Carrillos, Strifforth,
+a condessa de Valdelar...<span class="pn">{191}</span></p>
+
+<p>&mdash;Conheci-a em Roma...</p>
+
+<p>&mdash;O marido foi gentil-homem do Papa. Preciso falar d'ella. Foi a principal
+figura d'este drama. Typo de hespanhola? Não. Mais italiana do que hespanhola,
+com uns largos olhos pretos, cheios de doçura. O seu gesto era harmonioso e
+curvo, sem uma aresta, sem um angulo, uns nascendo dos outros sem solução, como
+as frases d'uma melodia. Tinha-se, ao vêl-a, a sensação de que se ouvia uma
+musica dolente, vagarosa. E os proprios olhos moviam-se lentamente, como
+pesados de tanta luz e tanta belleza...</p>
+
+<p>Enigmatica, guardando n'um jardim encantado a sua alma, ninguem prudente
+ousára definil-a... Poetica talvez, ou simplesmente aborrecida, fugia em S.
+Sebastian do Casino e do Hotel du Palais e ia, á tarde, só, vêr as crispações
+do poente nas vagas que eriçam de espuma o mar azul.</p>
+
+<p>Sentava-se n'um dos rochedos, ás vezes desenhando, outras a cabeça a
+descançar na mão, e ali se quedava a tarde inteira, alma talvez de sereia a
+chorar pelo mar, a querer aprehender no perfume da brisa, alguma palpitação do
+oceano.</p>
+
+<p>Nenhum de nós se atreveu nunca a interrompel-a, apezar da attracção que
+todos sentiamos pela sua figura gracil como uma amphora, da sua
+<em>toilette</em>, de toda a elegancia pessoal e do<span
+class="pn">{192}</span> misterio da alma ávidamente guardada... Strifforth
+apaixonou-se por ella. E, solitario, deixando as excursões amiudadas que fazia
+ao Casino de Biarritz, andava de barco para vêr, isolada no rochedo, sem uma
+tristesa na face, a condessa de Valdelar, certamente a mais formosa, a mais
+perturbante das senhoras de Madrid.</p>
+
+<p>O conde de Valdelar ficava no hotel, gottoso, na leitura de livros
+licenciosos, que salpicava de casquinadas nervosas, irritantes, indifferente á
+belleza e á alma da mulher. Strifforth conhecia-a e procurava todos os raros
+momentos em que ella apparecia, de manhã na praia, á tarde no boulevard e, uma
+ou outra vez, pelas grandes festas, no Casino, que atravessava n'um andar leve,
+dando-nos a sensação que tinha azas que a sustentavam. Nada lhe permitira ainda
+uma declaração. A condessa fallava-lhe, como a todos nós, em coisas
+indifferentes, em festas, touradas, partidas de tennis, impressões rapidas de
+viagem e deixava-o sem pressa, mas sem pezar, absoluctamente correcta. Elle
+fallava-lhe do mar, mas a condessa tinha uma phrase banal, mudava d'assunto,
+como se tivesse pudor d'esse sentimento, que parecia absorver toda a sua vida.
+Foi n'esse tempo que Strifforth começou a picar-se com morphina difficilmente
+adquirida, a beber perfumes, com horror aos cognacs,<span
+class="pn">{193}</span> e a arrastar uma vida d'automato, sempre com esperança
+de a vêr, de lhe fallar. E, em a encontrando, pousava sobre ella os olhos
+tristes, largas horas, inconvenientemente.</p>
+
+<p>Em Madrid, todo o inverno foi assim, com menos occasiões de a vêr, porque a
+condessa frequentava pouco o Retiro e a Castellana e raramente aparecia na
+sociedade, demorando-se o bastante para não parecer aborrecida, mas saindo
+logo, com um tacto perfeito. Á vida escondida da condessa correspondia uma
+outra vida secreta de Strifforth, ebrio, em desesperos que o alcool longe de
+adormecer intensificava, fugindo a tudo o que fôra d'antes o seu enlevo, até do
+Museu do Prado, onde ia todas as manhãs&mdash;á minha missa, dizia elle&mdash;para vêr os
+Velasquez e os Grecos... Mas, quando tinha que ir a alguma parte com esperança
+de encontrar a condessa, o meu amigo não bebia para poder gozar inteiramente a
+presença e a voz d'aquella que amava. Depois a embriaguez exagerava a
+impressão, dava-lhe, quasi real, a presença da Valdelar. Meteu-se no ether,
+alem da morphina e dos frascos de perfume&mdash;Parece que como flores,
+explicou-me&mdash;arruinando por completo a saude, tornando mais agudas as crises de
+desesperos, mais asperas, pelo enigma que para todos nós era essa mulher
+esplendidamente artificial, que trazia uma mascara na sua face calada.
+Coquette? Decerto,<span class="pn">{194}</span> mas egualmente para todos,
+porque os seus movimentos eram regrados por uma musica ineffavel. Mas talvez
+coquette só para si, porque nem um só olhar ou palavra auctorisou ninguem a
+dizer-lhe um galanteio atrevido.</p>
+
+<p>Fallou-se na festa da Carrillos, organisou-se a lista, e Strifforth, que não
+tinha relações com a marqueza, logo que soube que a Valdeler era da partida,
+solicitou, pondo de parte sem hesitação o seu orgulho exagerado, uma
+apresentação e um convite, logo alcançados, não só por ser muito
+<em>choyé</em>, mas tambem porque transpirára a paixão e todos se interessavam
+pelo pobre rapaz, havendo até censuras á Valdelar, que de nada era culpada.</p>
+
+<p>Fomos n'um expresso vagaroso, atravessando desoladas paisagens, até Sevilha.
+Não conhecem Sevilha? É a cidade mais feminina e voluptuosa que conheço.</p>
+
+<p>Á tarde, vista da Giralda, ella se nos oferece, nua, ondulosa, apenas com a
+cinta azul do seu rio e as joias das cupulas e das janellas que scintillam ao
+poente. Parece que estaca o movimento, e que, na alcova enorme que é a
+planicie, Sevilha se estende, com flôres no cabello e uma volupia extrema em
+todo o seu ser. Anda no ar um amavio. Tudo nos falla d'amor sensual e quente,
+até os olhos largos das sevilhanas, que parecem recortados n'esses enormes
+amôres perfeitos de velludo.<span class="pn">{195}</span></p>
+
+<p>Foi ali que tivemos a festa de que lhes fallei. Imaginem que na margem
+esquerda, a dois kilometros da quinta da Carrillos, ha uma <em>venta</em>, cuja
+varanda se debruça entre trepadeiras, sobre o rio. A marqueza tomára-a sem
+custo por sua conta e alli varias musicas nos tocaram, não <em>gavottes</em>
+leves, mas doridas malagueñas em que se arrasta um langor, como um beijo em que
+toda a alma succumbe. Um jacto de luz inundou a gondola. A condessa levava as
+mãos dentro de agua, curvada ella propria para o rio. Strifforth ia sentado
+sobre a borda. Deixou-se escoar vagarosamente.</p>
+
+<p>&mdash;Caiu um!</p>
+
+<p>&mdash;Strifforth!</p>
+
+<p>Logo os braços se estenderam, um dos gondoleiros deitou-se á agua e poude
+tirar Strifforth, todo ensopado no seu fato de seda.&mdash;Borracho! Borracho!
+<em>Mais vous êtez ivre! Dites</em>!&mdash;Strifforth, não bebera uma gotta. Eu
+ficára proximo d'elle. Os musicos não tinham dado por nada. A musica continuava
+dolorosa e amorosa. A gondola seguiu, deixando o traço de luz que brilhava e se
+quebrava d'encontro ás leves vagas. Houve risos. Rodearam-o com grinaldas. A
+Valdelar teve, como os outros um riso.&mdash;Escorreguei!... explicou apenas o
+conde. Mais adiante, porem, já a musica se ouvia em surdina, Strifforth
+deixou-se cair outra vez.&mdash;É demais! Está bebedo! gritaram. As<span
+class="pn">{196}</span> cabeças empoadas inclinaram-se novamente para a agua. A
+Valdelar, que tornára a mergulhar no rio os braços nus em que escorriam as
+rendas molhadas, ao sentir a queda, agarrou-o por um braço, indiferente.
+Strifforth, porem, deu um vigoroso impulso e desprendeu-se d'ella...</p>
+
+<p>Houve um panico. Foram buscar archotes. Não calculam o macabro das nossas
+figuras de <em>petits-abbés</em> e gentishomens procurando, nos barcos, que de
+tanta luz pareciam incendiados, um homem que se queria suicidar. Os gritos
+cruzavam. Das pequenas gondolas surgiam vultos negros iluminados á maneira d'um
+Rembrandt que tivesse adivinhado Turner e Whistler, em chapadas de luz
+multicôr. Na nossa gondola um borborinho correra. Alguem desmaiára, até. As
+cabeças empoadas agitavam-se. Ao longe, as malagueñas continuavam num suspiro
+lascivo e preguiçoso. A Valdelar voltára á sua primitiva posição: brincava com
+a agua, que lhe passava entre os dedos abertos, pondo-lhe aneis que fugiam,
+logo substituidos. Não tornamos a saber de Strifforth. O cadaver nunca
+apareceu.<span class="pn">{197}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000160">CLARA</a></h1>
+
+<p class="assin">A J<small>ULIO DE </small>S<small>OUSA.</small></p>
+
+<p><span class="pn">{198}<br>
+{199}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000161">C<small>LARA</small></a> </h2>
+
+<p>Friorenta, encolhida no fundo do coupé, tudo era indeciso na figurinha que
+passou rapidamente, na tarde a escurecer.</p>
+
+<p>Nascia da penumbra, sem presisão nos contornos, como certos retratos de
+Columbano e de Henner. E entre o chapeu preto e a face branca, o cabello loiro
+punha uma esmaecida aureola como uma tenue poeira d'ambar. A boa, de <em>renard
+bleu</em>, ainda aumentava o indeciso, o fluctuante d'essa mulher; os olhos
+claros não brilhavam; o vermelho da bocca desmaiava... Figurinha de cera e de
+seda, que passava, olhando para a rua sem attentar talvez em ninguem, levando o
+nosso desejo de decifrar enigmas, indefferente, graciosa, impressionou-me... Ao
+amigo que me acompanhava recorri para saber d'ella. Quando me voltei para
+perguntar, vi que Roberto se pusera pallido; parecia que á bocca se lhe
+afivelára uma boqueira de pedra, mascara trágica a emudecer.<span
+class="pn">{200}</span></p>
+
+<p>Seguiu com os olhos a carruagem que trotava pela Avenida até se perder entre
+as arvores em Valle de Pereiro.</p>
+
+<p>&mdash;Quem é? gaguejou. Alguma aventureira cosmopolita que veiu <em>faire le
+Portugal</em>. Um pastel de Antonio de la Gandara, maquilhada como uma infanta
+de Velasquez, mais artificial que uma boneca de Nuremberg, sem vicio, talvez,
+amante enternecida d'algum <em>croupier</em> de <em>Cercle</em> ordinario...
+Sei lá!... encolheu, impaciente, os hombros, a concluir.</p>
+
+<p>Houve um silencio. Raras carruagens passavam. Estava triste a Avenida.
+Descemos. Abriam, simultaneamente, as grandes flôres geladas e luminosas das
+lampadas electricas. Rapidos, fulgiam os americanos. Outra vez a mulher passou,
+mais indeciso o vulto, apenas destincto o palôr da face branca no
+<em>coupé</em> escuro.</p>
+
+<p>&mdash;Porque teria vindo cá, essa mulher? perguntou Roberto, colerico.</p>
+
+<p>&mdash;Conhecel-a?</p>
+
+<p>&mdash;Se a conheço?! Tenho querido arrancal-a de mim, como se arranca d'um boi
+uma farpa&mdash;violentamente. Tenho querido fugir de mim, para a esquecer! E quando
+estou quasi a conseguil-o, quando a tortura da sua lembrança é em mim apenas
+uma cicatriz, eil-a que apparece a reavivar a chaga antiga, a tornal-a mais
+dolorosa! Clara veiu aqui só por minha causa, ouves? Para fazer-me
+soffrer!<span class="pn">{201}</span></p>
+
+<p>Agarrava-se-me ao braço, a apertal-o violentamente. Na bocca
+accentuava-se-lhe, aspero, o vinco da amargura.</p>
+
+<p>&mdash;Foi esta mulher que me fez fugir de tudo, perder o amor a tudo,
+desterrar-me para esta passividade, eu que amava a vida dolorosamente, gosando
+com tudo, intensamente!</p>
+
+<p>«Conhecia-a em Hespanha! N'um inverno humido deixei Lisboa e acolhi-me a
+Sevilha. Os dias gloriosos de sol que lá gosei pelas margens do Guadalquivir
+azul! Andava ebrio de tanta luz que enchia d'oiro e de triumpho a cidade
+alegre. Saia para os campos, logo de manhã, a rir-me com os trigaes e com as
+flôres. Ia ao parque vêr o sol fulgir nas caudas abertas dos pavões orgulhosos;
+descia ao caes para vêr brilhar na agua incendiada os cobres polidos dos
+navios; enchiam-me de prazer a barulheira dos carregadores, o chiar aspero dos
+guindastes, o estridulo das sereias, nos vapores que partiam... Tudo era
+alegria na cidade maravilhosa mesmo á noite, as lampadas incendiavam a
+<em>Sierpee</em> brilhante, onde se apertava uma multidão palradora. Das
+janellas dos casinos, das portas dos cafés, dos mostradores das lojas, vinham
+chapadas de luz. Misturava-me a toda aquella vida insolente, ria com todos os
+risos, todos os labios frescos me chamavam, rodeavam-me todas as cabelleiras
+fartas, cheias de flôres. O donaire das andaluzas d'olhar de volupia
+fazia-me<span class="pn">{202}</span> achar mais bella a Vida. Era como um
+poema a enaltecer a obra de Deus. Por todos amar, não amava nenhuma.</p>
+
+<p>Comprei o sineiro da Cathedral. Do alto da Giralda, uma noite, possui a
+cidade, senti que todo o tumulto confuso que até mim chegava, era o seu sangue
+que pulsava por mim nas suas arterias; aquella resplandecencia, brilho de joias
+com que cobria a nudez. Os tranvias iluminados, cortando em mil direcções a
+cidade, eram pedrarias, aqui se apagando uma, para alem se accender outra,
+conforme as ia eu tocando com os meus olhos amorosos. Ella, em baixo, abria os
+seus braços, entregava todo o seu corpo, a morena Sevilha, offegante e
+lasciva!</p>
+
+<p>«Era feliz, poderosamente feliz. Sentia, em cada palpitação cardiaca, o
+sangue remoçado que se espraiava pelo corpo. Foi então que conheci Clara. Ella
+passava pela <em>Sierpes</em>, junto ao <em>Credit</em>, enygmatica, como a
+viste. A elegancia do seu porte, ultima florescencia da moda franceza, quasi
+immaterial, contrastava com a forte humanidade das sevilhanas cheias de vida,
+de sangue e de desejos. Todos se voltaram para ella e lhe abriram caminho, como
+se passasse um andor. Fui logo preso pelo encanto decadente e artificial,
+esqueci a Vida e a gloria de viver ao sol nos campos fecundos. Regressei á
+hyper-civilisação; segui-a e alegre entrei, atraz d'ella, para o seu e meu
+hotel.<span class="pn">{203}</span></p>
+
+<p>«Vergonhosamente a segui como um cão fiel. Vergonhosamente mendiguei um
+olhar dos seus olhos parados; e contente fiquei ao vel-a um dia no salão da
+leitura, por que pude dirigir-lhe a palavra e pedir-lhe licença para fumar.
+Apesar da resposta secca, insisti e entabolámos conhecimento.</p>
+
+<p>«Doces foram para mim os dias, em que visitámos Sevilha. A casa de Pilatos e
+as suas penumbras em que esmaecem estuques e o patio claro de marmores
+harmoniosos ouviram as palavras aladas que lhe disse; diante das Assumpções do
+Murillo e dos frades de Zurbaran, no museu deserto, contei-lhe o poema do meu
+desejo; na <em>Caridad</em>, a mostrar-lhe a estatua de Herrera, ouviu a
+perfumada e embaladora cantilena. Na Giralda, a vêr Sevilha doirada, deitada na
+planicie que ondulava, até perder-se no horisonte circular, offereci-lhe toda a
+minha alma e toda a minha vida. Houve momentos em que seus braços foram a
+levantar-se para apertar o meu pescoço; julguei sentir o seu peito leve arfar
+de commoção: muitas vezes a boca se apertou para a florescencia dos beijos e
+seus olhos verdes se encheram de luz; mas rapido, tudo se desmanchava, e um
+sorriso tremia na boca desmaiada, a mostrar a linha branca dos dentes.</p>
+
+<p>O flirt desabrochava. Uma tarde, nos jardins do Alcaçar, á porta dos banhos
+de Maria Padilla,<span class="pn">{204}</span> passou por mim o corpo delgado,
+agil, pela cara roçou o cabello que tinha um perfume penetrante; fallou-me do
+seu corpo e, sentados no salão dos Embaixadores, estendia a perna, para mostrar
+o tornosello fino e a meia <em>ajourée</em>, que deixou vêr a pele
+branquissima. Todas as noites eu pensava, que no dia seguinte beijaria a boca
+perfumada. E todas as manhãs via cair a minha esperança, como as folhas murchas
+que o vento sacode dos ramos seccos.</p>
+
+<p>«Certamente que as minhas palavras deviam ser perturbantes, porque sahiam
+d'um coração perturbado. E, pesadas de tanto amor, cahiam da boca
+vagarosamente. Ás vezes os cilios de oiro abatiam-se sobre os olhos, como n'um
+espasmo. Mas logo o sorriso abria-lhe a pequenina boca!</p>
+
+<p>«Longos dias, longas semanas, durou o encantado oaristo. Já não cuidava da
+gloria da natureza; das apoteóses do sol sobre as aguas azues do rio. Só
+pensava n'ella, só vivia d'ella.</p>
+
+<p>«Um dia, porem, eu soube! Alguem, com palavras que julgou caridosas, veiu
+pôr no meu coração as sete espadas! A creaturinha delicada e deliciosa,
+princeza de balada d'hoje, urna de perfume, a quem me entregava como um
+collegial, era uma aventureira das que frequentam a <em>Riviera</em> no
+inverno, Aix no verão, Paris na primavera, e que a Sevilha viera atraz
+d'um<span class="pn">{205}</span> clown, que no circo fazia rebentar estrépitos
+de gargalhadas... Ao seu morbido encanto me prendera, e atraz d'ella me fui a
+soluçar, flor de lameiro em que puz todo o perfume suave... Fôra nas mãos
+d'ella um saxe fragil como que se brinca!</p>
+
+<p>«Ah, meu amigo! O desespero e a raiva puzeram mãos assassinas a
+estrangular-me! N'um impeto, como uma aura que se nos levanta do peito e nos
+atira para o ataque epileptico, decidi-me. Levei-a n'um trem para o campo, para
+alem da Cartuja, com um cocheiro de confiança. E alli, desapiedadamente,
+bati-lhe, arranquei-lhe as sedas e as rendas&mdash;parecia, nua entre os trigaes
+verdes, uma magnolia enorme!&mdash;e o seu corpo cobriu-se todo de sangue. Clara
+gemeu, implorando; as lagrimas empastavam a maquilhagem; via-a sordida,
+enrolando-se para escapar ás chicotadas, e fugi, ebrio, doido, a correr, diante
+do cocheiro espantado que me metteu no trem e me levou a Sevilha.</p>
+
+<p>&mdash;Senorito, la navaja era mejor, aconselhou-me.</p>
+
+<p>«Parti. Nunca mais soube d'ella. Trouxe-a dentro de mim como um espinho. A
+dôr que lhe causei augmentou a minha pena. De ter visto o corpo magro e branco,
+ficou-me a ancia de o beijar. Andei de noite, pelas ruas, a correr sem forças
+para fugir de mim e d'ella, porque a figura surgia deante dos meus olhos,<span
+class="pn">{206}</span> bella de toda a perversidade e de toda a lascivia, como
+uma invencivel tentação, a que o maior santo succumbe.</p>
+
+<p>«Ás vezes conseguia distrahir-me; de repente ella surgia, sentava-se na
+minha frente, mostrava os vergões das chicotadas, todo o corpo impudico
+perfumava e brilhava, e a boca sorria a escarnecer de mim!</p>
+
+<p>«Foi algum philtro que me deu.</p>
+
+<p>«Ia a esquecel-a e eil-a que novamente me apparece, a prender-me, a
+levar-me, outra vez para a allucinação, a atiçar o incendio que me queimava!</p>
+
+<p>«Talvez queira vingar-se!</p>
+
+<p> </p>
+
+<p>Não. Não queria vingar-se. Clara veiu a Lisbôa, soube-o mais tarde, atraz
+d'um comprimario de S. Carlos, seu <em>amant de coeur</em>.<span
+class="pn">{207}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000170">IDILIO TRISTE</a></h1>
+
+<p class="assin">A E<small>DUARDO </small>V<small>ALERIO
+</small>V<small>ILLAÇA</small>.</p>
+
+<p><span class="pn">{208}<br>
+{209}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000171">I<small>DILIO TRISTE</small></a> </h2>
+
+<p>No jardim, a tarde de oiro era perfumada pelas rosas e pelos cravos. Nos
+canteiros, os cravos levantavam-se impertinentes, risonhos, em delgadas hastes.
+E, por toda a parte, entremeiando-se com os buxos, enroscando-se a uma macieira
+em flôr, serpenteando pelos muros, subindo pelas sebes, uma opulenta floração
+de rosas de toda a côr, rosas de oiro pallido, rosas roseas, rosas vermelhas a
+estremecer, como labios de que vão cair os beijos, rosas escuras, enormes,
+sensuaes e dolorosas, umas ainda em botão, misteriosas como as adolescentes,
+outras já totalmente abertas, sem enigma, como as amantes antigas&mdash;todas ellas
+misturavam o seu perfume no jardim quieto, em que as pombas arrulhavam,
+beijavam-se e depois partiam em vôos curvos, as azas brancas a brilhar ao
+sol.</p>
+
+<p>Os dois amantes iam calados, elle a olhal-a intensamente, como a querer
+apreendel-a, como se os olhos fossem bocas e podessem beijar,<span
+class="pn">{210}</span> braços e conseguissem abraçar&mdash;ella um pouco
+aborrecida, a desfazer entre os dedos longos uma orchidea azul listrada de
+vergões esverdinhados.</p>
+
+<p>&mdash;Pensei em ti sempre, dizia elle. No Prado, diante dos tapetes de Goya,
+disse o teu louvor. As raparigas esbeltas, que vão á fonte, as bilhas esguias á
+cabeça, como as princezas de Homero, não tinham a tua elegancia... Ás infantas
+de Velazquez, artificiaes, cadaveres de bonecas, em que apenas os olhos
+attonitos teem vida, faltava a tua belleza. As santas hirtas de Memling não
+tinham na bôca a primavera que ruboresce os teus labios... Só na curva do braço
+de Danae, de Ticiano, pude ver uma attitude como tens... Por todo o museu me
+perseguia a tua imagem, como um canon, para avaliar as obras. As gordurosas
+flamengas de Rubens, as cigarreiras sensuaes e extaticas de Murillo, as
+energicas mulheres de salteadores em que Ribera se compraz, eram muito
+diferentes de ti, d'ellas fugia o meu olhar. Em Raphael havia alguma coisa da
+tua doçura risonha, mas demasiado passiva; em Greco, a tua distincção, mas
+severa; apenas Leonardo te saberia pintar, quasi irreal por seres tão bella,
+indecifravel, como uma esfinge sem segredos... Como uma esfinge sem segredos...
+Que segredos teria a suave mulher do Jocondo? Que segredos terás, alheia a
+tudo, passando pela vida, ligeiramente,<span class="pn">{211}</span> como a
+agua que vae n'um ribeiro, correndo e cantando? Vi-te em toda a parte. Levei-te
+sempre commigo! Talvez o Moro te tivesse pintado...</p>
+
+<p>&mdash;Viste bem o museu...</p>
+
+<p>&mdash;Vi, porque te buscava... Um dia, ao aproximar-me da escadaria, vi fugir,
+n'um automovel ligeiro, uma mulher, que se parecia comtigo... Era um carro
+vermelho... Por toda a parte tive a <em>hantise</em> dos automoveis vermelhos.
+No <em>Retiro</em> e na <em>Castellana</em>, o meu olhar prescrutava, revolvia
+todos os automoveis, todas as carruagens, a ver se te encontrava. Todas as
+manhãs, pelo museu, andava á tua espera, embora te soubesse aqui, indiferente.
+Como te não encontrava, procurei vêr o teu retrato, n'algum quadro antigo. E
+puz, em muitos, o reflexo da tua belleza, porque n'uma atitude, n'um olhar,
+havia alguma coisa de ti...</p>
+
+<p>&mdash;O governo hespanhol agradeceu-te a valorisação dos quadros?</p>
+
+<p>&mdash;Ri-te. Ri-te de mim... A tua boca, ao abrir-se n'um riso, é uma flor de
+nácar e prata...&mdash;A principio, procurei-te... Depois, como a tortura fosse
+muita, quiz fugir da tua imagem. Fui para Sevilha onde tudo é Amor e
+resplandece. Deixáras de escrever-me... Só sabia que não pensavas em mim. Ali,
+tudo é alegre e luminoso. O sol é o sangue da cidade... Doira a planicie e as
+palmeiras de S. Fernando. Levanta<span class="pn">{212}</span> scintillações do
+calado Guadalquivir azul e da cupula inflamada da Torre del Oro. Enche de vida
+o jardim do Alcazar, com seus repuxos com enjoalhadas lagrimas. Tudo é luminoso
+e perfumado. O amor, ali, não aniquilla, escalda. Entre os cravos que guarnecem
+as grades das janellas, as mulheres olham os seus namorados com um olhar
+d'assalto. Ha uma voluptuosidade suspensa no ar. Tudo vive, tudo ama, parece
+que tudo é feliz. Ha uma embriaguez de côr. E nas varetas dos leques saltitam
+os beijos que caem das bocas. A Sierpes, á noite, palpita com todo o anceio de
+tumultuosa cidade... Nos pateos, sob as pequenas palmeiras e musas, os flirts
+sussurram palavras de entontecer... Como tudo brilha! Só o meu coração se
+apagava e murchava com saudades... Nos banhos silenciosos de Maria Padilla,
+pensei no afortunado amor de favorita, nos lentos passeios pelo jardim, nas
+casas de fresca sombra, onde luzem os estuques policromos e os azulejos... E
+não deixei de sentir-te ao meu lado...</p>
+
+<p>&mdash;Acredita que não foi por minha culpa...</p>
+
+<p>&mdash;Fugias-me. Deixavas-me a tua imagem, para torturar-me. Mandavas-m'a, a
+envenenar-me de longe... A belladona é doce e envenena... Muito mel embriaga...
+Tão real a sentia, que, á noite, olhos fechados, queria abraçar-te, e tinha a
+desillusão de Pan, quando perseguiu a ninfa Seringe... Como quem corre atraz do
+sol<span class="pn">{213}</span> e se encontra encerrado n'um bêco. Nunca mais
+me escreveste!</p>
+
+<p>Deixaste cair o teu amor do peito, como as flores que levaste ao baile...</p>
+
+<p>&mdash;Depois d'uma noite de baile, as flores já não perfumam. O amor precisa do
+viço. É necessario podar o coração...</p>
+
+<p>&mdash;Bem sei. Não te recrimino. Lamento-me...</p>
+
+<p>&mdash;Lamartiniano!... Julgava-te mais forte e mais moderno. Parecia-me que a
+cultura intensiva do Eu tornava impossivel um amor sem esperanças...
+Filosofos!...</p>
+
+<p>&mdash;Amar-te, não é para mim uma função: é a propria essencia do meu ser. Julgo
+ás vezes que não existes, material e tangivel, que existes mais real: nasceste
+e vives no meu cerebro, tanto se casa a tua figura ao meu sonho de belleza.
+Pintor, se idealisasse uma mulher, o meu quadro pareceria o teu retrato, embora
+nunca te tivesse visto. Poeta, o teu misterio seduz-me, alma que se guarda,
+avidamente, sem que ninguem a adivinhe. Todos passam por ti, sem a possuir,
+como as quilhas dos navios que cortam as ondas não maculam a eterna virgindade
+do mar... Foi ao ver o mar, que mais pensei em ti. Pelo Mediterraneo socegado,
+estudei a onda, sem conseguir conhecel-a. As ondas são graciosas, as suas
+curvas teem ternos desenvolvimentos: dir-se-iam mulheres que brincam na relva
+fresca. E desfazem-se em flocos de espuma,<span class="pn">{214}</span>
+quebram-se umas contra as outras com fragilidade de cristaes, são leves como
+leques, e no emtanto matam, levantam-se em vagalhões que sacodem os couraçados,
+despedaçam os navios. Carinhosas, riem e fogem, como tu; a onda de esmeralda
+que saltita, enfeitada de rendas, subitamente é uma gigantesca aza d'abutre que
+se curva, para apreender... É um abismo que ri... As mutações rapidas do mar
+fizeram-me lembrar o teu amor que desapareceu sem se saber porquê...</p>
+
+<p>Nem sequer recrimino. «Não me esqueço», prometeste. E as tuas palavras que
+guardei, como guardaria uma estrella, ainda cantam nos meus ouvidos. E ha tanto
+que te esqueceste! Vivo do passado. Vive o meu coração do passado, como as
+velhinhas, que foram actrizes, e no asilo se lembram das aclamações quando
+faziam papeis de rainhas sumptuosas com luzidas cortes a seguil-as e galãs
+esbeltos a segredar frases d'amor...</p>
+
+<p>Mas o passado esgota-se, como as cisternas, quando durante muito tempo não
+chove...»</p>
+
+<p>Ella cortara e desfolhára as margaridas de uma moita viridente. O sol ia a
+morrer, n'uma catástrofe... Um rebanho de nuvens encharcava-se em sangue. N'uma
+fita delgada, um repuxo subia, dobrava-se e estilhaçava-se na agua do
+tanque.</p>
+
+<p>O amante chorava...<span class="pn">{215}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000180">PERFIL D'AVENTUREIRO</a></h1>
+
+<p class="assin">A E<small>DUARDO DE </small>M<small>AYA
+</small>C<small>ARDOZO</small>.</p>
+
+<p><span class="pn">{216}<br>
+{217}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000181">P<small>ERFIL
+D'</small>A<small>VENTUREIRO</small></a> </h2>
+
+<p>Desvairada, a ministra da Esclavonia perseguia sir Arnold Davis, que, de
+sala para sala, passava em revista as senhoras em toilettes de baile. Ia-lhe na
+piugada, metia-se pelos corredores, apressadamente, para crusar-se com elle,
+receber um olhar, fazel-o parar, prendel-o no vão d'uma janella, onde os seus
+olhos pareciam tomar d'assalto o rosto glabro de sir Arnold, mordia a boca
+fortemente carminada, como para reter os beijos, que queriam saír.</p>
+
+<p>As suas mãos magras e longas, as mãos que teem as doadoras e as santas nos
+quadros góticos, tremiam ao apertar as de sir Arnold onde opalas desmaiavam,
+maléficas e misteriosas.</p>
+
+<p>Carlota von Hameghen não via o baile, não se rodeava, como de costume, de
+politicos e diplomatas, a sondal-os, a irrital-os, <em>allumeuse</em>
+internacional á cata de segredos, para vender a todas as chancelarias que
+pagassem, generosas e discretas.<span class="pn">{218}</span></p>
+
+<p>A condessa Carlota von Hameghen, mulher do ministro de Esclavonia, era quasi
+fiel ao marido. Apenas grande necessidade, um aperto de dinheiro, um segredo
+muito importante, que só se confia nas horas de completo aniquilamento, depois
+dos beijos, é que a faziam esquecer o marido, ainda novo, que trepára na
+«Carreira» empurrado pela mulher, apesar de morphimano e um pouco imbecil. Fóra
+disto, esposa exemplar. Espirito d'honestidade? Não: impassibilidade; a
+cirurgia, com uma operação dolorosa, em Londres, tirára-lhe o vigor da
+sensação. Vivia para a ambição, uma vida farta, proporcionada pelos cheques de
+varias embaixadas e legações, menos a de Esclavonia que pagava pouco e, por
+complicações de finanças internas, a más horas.</p>
+
+<p>Alguns diplomatas, ao facto do temperamento da condessa, estranhavam aquelle
+assalto insistente ao moço inglez, alheio aos segredos das chancelarias, pouco
+rico para a condessa, servedoiro de milhões.</p>
+
+<p>O ministro da Dinamarca, ageitando, como de costume a unica farripa de
+cabello que lhe guarnecia o craneo rubro:</p>
+
+<p>&mdash;Ha de ser uma desforra! Sir Arnold vingar-nos-ha...</p>
+
+<p>&mdash;Não ha de levar a melhor...</p>
+
+<p>&mdash;Aposto! Não sabem a força de sir Arnold. Conheço-o muito bem.<span
+class="pn">{219}</span></p>
+
+<p>&mdash;A Hameghen é uma fortaleza inexpugnavel.</p>
+
+<p>&mdash;Praça sitiada, praça tomada...</p>
+
+<p>&mdash;Mas quem sitía é a condessa!...</p>
+
+<p>&mdash;Estão enganados. Com o ar de quem se defende, sir Arnold ataca
+vigorosamente. Conheço-lhe a tática. É toda de sapa. Minas e conminas. O campo
+parece tranquilo e mil picaretes abrem galerias. É de primeira força! Praça a
+saque, d'aqui a duas semanas, o maximo.</p>
+
+<p>&mdash;Não seja como Port-Arthur que todos os dias é tomado...</p>
+
+<p>&mdash;Verão. Vae custar á condessa, coisa d'um milhão. Sir Arnold lança pesadas
+contribuições de guerra.</p>
+
+<p>&mdash;Que paiz pagará?</p>
+
+<p>&mdash;Mr. Alphonse?</p>
+
+<p>&mdash;Il faut vivre. Il n'y a pas de sot metier. A Mariam Ringen...</p>
+
+<p>&mdash;Aquella judia fanhosa?</p>
+
+<p>&mdash;Sim. E que tinha seis dedos em cada pé... Gastou mais de dez mil libras em
+tres mezes.</p>
+
+<p>&mdash;É ante-semita. É <em>bien né</em>, o ser-se ante-semita! O começo da
+liquidação... E depois, douze dedos. Parecia-lhe menos.</p>
+
+<p>&mdash;Contava muito depressa... 12 de cada vez...</p>
+
+<p>&mdash;Se é que contava pelos pés!<span class="pn">{220}</span></p>
+
+<p>&mdash;Sir Arnold interessa-me. Tenho-o examinado, na batalha. É impassivel.
+Nunca procura primeiro uma mulher. Aquelle bello corpo d'Apollo adrescente
+fascina. Os olhos claros, misteriosos, desequilibram os nervos das nossas
+mulheres. E as opalas cheias de maleficios, que para elle são
+<em>porte-bonheur</em>, dão um quebranto magico. A terrivel fama de que tão
+justamente gosa e o precede como uma tenebrosa arauto faz-lhe um halo. Luz do
+inferno, que importa? É uma aureola. Se não tivesse motivos para ter um tal
+nome, caluniar-se-ia. É capaz de tudo, até d'uma boa ação... que o não
+prejudique. Não faz o mal por arte. Para fazer o mal por principio é necessario
+afirmar. Sir Arnold nada afirma nem nega. Negar é, d'alguma fórma, afirmar. E
+isso é um esforço que elle se não permite. Se quizesse ser diplomata, estaria
+hoje embaixador, membro do Tribunal da Haya, ministro dos negocios
+estrangeiros. Encaminharia a politica ingleza com menos soberba que Salisbury e
+mais firmeza que Lansdowne, sem a literatura, o romantismo de Rosebery. Nos
+tempos da vadiagem diplomatica, dos verdadeiros plenipotenciarios&mdash;hoje os
+nossos plenos poderes ficam na secretaria, que nol-os vae mandando por conta e
+pelo telegrafo&mdash;nesse tempo, talharia um imperio para o soberano que o
+empregasse. Não, para si. Sir Arnold é um egoista formidavel. Julga-se o centro
+do Universo. Nihil<span class="pn">{221}</span> humani a me alienum puto. Nada
+do que pertence ao homem lhe é alheio, isto é tem direitos sobre tudo, traduz
+elle. Não tem outra moral.</p>
+
+<p>Nietzche estabeleceu os principios que nelle eram instinto. Cuido que nunca
+se deu ao trabalho de ler um só volume do discipulo de Stirner...</p>
+
+<p>A conversa não interessava já. O dinamarquez tinha um pouco a mania
+oratoria. O grupo dispersou-se, pelas salas, onde os pares deslisavam ao som
+d'uma valsa da moda, langorosa e morbida... Fiquei com elle. Fomo-nos dirigindo
+para a estufa. O ministro continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Gósto de sir Arnold... pelo lado scientifico, como filósofo. É um poderoso
+dissolvente. Todas as dissoluções apressam a evolução. Davis é um força
+social.</p>
+
+<p>&mdash;Na boca d'um ministro d'um paiz monarchico, essas palavras são
+imprevistas, sorri-me.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho uma opinião como diplomata e outra como filósofo. Como diplomata,
+sou conservador, como filósofo, anarchista... mas anarchista com palacios,
+festas, condecorações... Quando quero pensar como diplomata, visto a farda,
+ponho duas gran-cruzes, uma para cada lado&mdash;tenho a Corôa da Prussia&mdash;e todas
+as placas. Quando me decido a pensar como filósofo, cólo umas barbas postiças,
+fico em <em>robe-de-chambre</em>. Defronte da minha psyché<span
+class="pn">{222}</span> imperio, dou-me a ideia d'uma Diogenes limpo. O mais
+usual, porem, é não pensar... Estou dispepético: o pensamento é terrivel para
+nós. Isto não impede que lhe conte um episodio da vida de Davis. Simpatiso com
+elle, dou-me até com elle. Conheci-o em Aix-les-Bains ha seis ou sete annos.
+Estavamos no mesmo hotel. Os nossos aposentos eram seguidos. A sacada era a
+mesma. Conversavamos muito. Venha para aqui.</p>
+
+<p>Fomos para um canto isolado da estufa onde agonisavam, minadas por um mal
+estranho, orchideas esverdeadas. Nasciam chagas nas suas petalas recurvas,
+torcidas, listradas de vergões, varioladas. Sentamo-nos num sofá. O ministro
+ofereceu-me um cigarro de Nestor Gianaclis, perfumado e adormecedor.
+Escutei-o.</p>
+
+<p>&mdash;Como lhe disse, sir Arnold é um egoista. Quer aumentar o poder, para
+empregar a formula de Nietzche. Desenvolve energicamente a personalidade,
+segundo ou contra a moral, é-lhe indiferente, torneando os preceitos dos
+codigos penaes e os usos sociaes, de maneira a se lhe não fecharem os palcos
+onde se exibe, os salões cosmopolitas, mais faceis e, sobre tudo, mais
+indulgentes. Elle não diz como o poeta: «je porte fiérement la honte d'être
+beau»; não, para Davis não é uma vergonha, pelo contrario, trata de fazer
+valer, por toilettes e atitudes longamente estudadas, por meios artificiaes, a
+sua belleza clara, loira, a que os olhos transparentes<span
+class="pn">{223}</span> dão um encanto misterioso, uma sedução que empolga,
+fascina, arrasta os pobres mulheres que desmaiam, sucumbem, diante desse Apollo
+adolescente e terno, cuja força se adivinha apenas nas mãos, de dedos firmes,
+de pelle, apesar dos cosmeticos, um pouco aspera. Viu-o bem? Reparou em como
+todo o seu corpo harmonioso d'atléta toma atitudes cançadas, como os seus olhos
+pareciam dissolver-se, ao olhar para a pequena Von Hameghen e a sua boca de
+labios finos e imberbes, se contraíam para o espasmo d'um beijo? Ha sete annos
+era o mesmo. Parece que para elle o mundo e os dias se conservam imoveis.
+Dir-se-hia que essa adolescencia se guarda no gelo. Que pacto teria feito este
+homem com o demonio?</p>
+
+<p>&mdash;Talvez o mesmo que Dorian Grey...</p>
+
+<p>&mdash;Bah! Dorian Grey matou Basil... Julga que será Sargent, realista, amando a
+força concentrada e não a belleza, quem fará o novo retrato magico! Ou
+Lazló?</p>
+
+<p>Já não ha Basil. Talvez em Hespanha... Sorolla ou Zuloaga... Mas os
+hespanhoes são naturalistas e republicanos. Veja Ibañez... A «Catedral» liquida
+em artigo de fundo.</p>
+
+<p>&mdash;E Davis? atalhei, pondo um dique á divagação abundante.</p>
+
+<p>O ministro sorriu-se. Certamente que se lembrou do epigrama de Marcial.</p>
+
+<p>&mdash;Ah, sim! Davis e Aix-les-Bains. Estou<span class="pn">{224}</span> prolixo
+como o bom Tito Livio. Entro em materia.</p>
+
+<p>Ali, no canto da estufa, abaixando a voz quando alguem se aproximava, para o
+afastar, o dinamarquez contou:</p>
+
+<p>&mdash;Estava no «Splendide» lady Hanswell, que depois de tratar do reumatismo,
+com massagens e duchas, chorava poeticamente, pelas alturas vicejantes do
+Bourget, os dez annos de casamento feliz com lord Vivian Hanswell esse
+extraordinario homem, misto de Heroe, de Poeta e de doido, que, começando por
+fazer odes extranhas aos venenos, aos assassinios e ás traições, acabára em
+Middlefontain, voluntario da Rainha, o primeiro na escalada d'uma collina, o
+monoculo entalado no olho, um livro de versos na algibeira do kaki enlameado e
+a cartucheira já vasia, de tantos tiros dados friamente, como nas suas coutadas
+ferteis da Irlanda.</p>
+
+<p>A viuva amára em seu marido a belleza adolescente, todo aquelle ar gracioso
+como o d'uma mulher, os largos olhos claros, transparentes, como gotas d'agua
+azul; amára o seu espirito extranho de comedor d'opio, cambiante e misterioso,
+deleitando-se na posse de coisas frageis, de flôres que, mal cortadas se fanam,
+os cristaes finos, as filigranas, as ceras, os linhos que envolvem, fumos, as
+mumias egipcias e quasi se pulverisam ao tocar-se-lhes, os leques de rendas; o
+imprevisto das suas áções sem logica,<span class="pn">{225}</span> que nada
+faziam prever, quasi sem realidade, como essas arvores que teem um metro de
+raizes fóra da terra.</p>
+
+<p>Lady Hanswell, já passado o segundo anno de viuvez ainda carpia nas palavras
+baixas em que recordava o marido, nos olhos que de tantas lagrimas regadas eram
+frescos como fetos nascidos á beira dos regatos, nas toilettes lilas, com que
+se vestia, foncées de manhã, claras á noite, nas perolas cinsentas com que se
+enfeitava, gargantilhas pesadas, collares multiplos, caindo sobre o collo,
+anneis de castães largos, que, á luz, pareciam cinzas...</p>
+
+<p>Foi sobre ella que Davis se lançou, decidido, acirrado não só pelos seus
+dois milhões de libras, mas tambem pela pelle fina, mate, macerada em banhos
+prolongados de perfumes, pelos olhos em que brilhava uma volupia indecisa, a
+afogar-se na tristeza, como um reflexo impreciso de estrella num tanque.</p>
+
+<p>&mdash;A mulher deve ser como o Champagne: <em>extra dry</em>.</p>
+
+<p>Vi-o n'esse cerco, a sitiar a praça, a fazer-se valer, fugindo de lady
+Hanswell, de todos, indo pouco ao Grand Cercle e á Villa des Fleurs, tomando,
+de manhã, nos Banhos, e á meza, atitudes d'uma tristeza profunda, maniaca, que
+interessasse.</p>
+
+<p>Só á noite, quando fumavamos o derradeiro charuto na varanda, sacudia a
+mascara e falava-me<span class="pn">{226}</span> do desenvolvimento da
+personalidade, toda a theoria de Spencer e de Stirner, poetisada e dramatisada
+por Nietzche, nelle menos literaria, menos filosofica, mas mais sincera,
+floração inconsciente do seu Ego, sumula emfim da sua maneira de ser, animal
+forte, que sabe que a Vida existe e quer apreender sem esforço, desenvolver-se
+avidamente, até com detrimento dos outros.</p>
+
+<p>&mdash;É necessario viver a nossa vida, disse-me.</p>
+
+<p>N'essa noite, Davis, que era d'uma sobriedade exemplar, por calculo talvez,
+para impressionar byronicamente lady Hanswell ou por impulso atavico&mdash;gerações
+a alascar-se em Port-Wine pesam esmagadoramente&mdash;por qualquer motivo, Davis
+acompanhou todo o jantar de Cliquot. Saimos juntos, tomamos pelo <em>Boulevard
+des Côtes</em>, que vae contornando a montanha e mostrando-nos, em cada curva,
+um aspecto novo d'Aix e do campo, aqui a massa d'arvores illuminadas dos
+parques dos dois casinos, alem a rua de <em>Genéve</em>, apagada e quieta, mais
+alem as montanhas cujos perfis se recortam docemente no ceu enluarado, n'um
+outro cotovello o lago do Bourget, que parece, na noite clara, de mercurio
+incendiado. Caminhavamos apressados, subindo sempre, até á nascente d'essa agua
+choca que os medicos nos fazem beber de manhã, em jejum.</p>
+
+<p>Sir Arnold falava com fluencia:<span class="pn">{227}</span></p>
+
+<p>&mdash;Todas as creaturas devem ser, para nós, elementos de desenvolvimento do
+poder, utilidades. Extraido d'ellas o que nos pode servir devemos pol-as á
+margem. É o que o organismo faz, inconscientemente... Quem sobrecarrega com
+sentimentos inuteis o seu coração, apodrece, morre. Devo todo este ensinamento
+filosofico, não aos livros, nem ás conferencias, mas a uma pobre
+<em>caissière</em>, Eva Farland, d'um pequeno restaurante do Strand onde eu
+jantava economicamente nos dias em que não encontrava emprego para o meu mister
+agradavel de <em>pique-assietes</em>. Ali, por um shelling e meio tinha uma boa
+talhada de <em>mutton</em> e uma caneca de cerveja, para desalterar.</p>
+
+<p>Essa pobre rapariga prendeu-se nos olhos azues de Davis; prenderam-a seus
+braços fortes, a sua boca que ao beijar mordia. E foi para elle como uma
+escrava, atenta, paciente, devotada, gastando o seu ultimo penny em futilidades
+que Davis atirava para o lado, com desdem, dando-lhe quarto, copiando á noite
+escritas, para pagar a luz, a lenha, a agua, porque Davis fôra viver com ella,
+por economia&mdash;era um periodo de <em>guigne</em> extraordinaria!&mdash;persuadindo-se
+a pobre Eva que era por amôr. Doce e abençoada mentira que a tornava feliz,
+dava-lhe coragem para continuar a vida dura, fornecia-lhe a energia necessaria
+para estar á caixa todo o longo dia, esperar, ás vezes, por elle<span
+class="pn">{228}</span> toda a inferminavel noite, quando o jogo o segurava com
+a caricia aspera das suas mãos de aço; resignar-se ás longas ausencias, porque
+Sir Arnold, em ganhando alguns guineus, reentrava na sociedade, ia jantar ao
+club, frequentava os <em>music-halls</em> nos camarotes do club,
+reencadernava-se, emfim, de gentleman.</p>
+
+<p>Eva era o seu cão, mas cão de cego, util, chorando ás escondidas e pouco,
+para não afear o soberbo rosto, não avermelhar os grandes olhos sensuaes e
+tristes.</p>
+
+<p>N'um periodo mais largo de miseria, não chegando para os dois o salario da
+amante, nem as copias, ella punha o chapeu, á noite, e ia pelo Picadilly,
+misturando-se aos soldados, a fazer-lhes concorrencia, á caça do guineu pondo
+em cada sorriso, um soluço.</p>
+
+<p>Davis via-a sofrer, indiferente, achando rasoavel que por elle outrem
+penasse, continuando descuidado, até que um dia a fortuna sorriu-lhe pela boca
+desdentada d'uma rainha de qualquer coisa na America, porco salgado ou azeite
+de fóca. Nunca mais soube d'Eva, de quem nem sequer se despediu, e que, se não
+morreu de dor&mdash;o que é pouco provavel&mdash;teve com certeza uma lancinante crise de
+desespero.</p>
+
+<p>Ora essa mulher, que por elle fez todos os sacrificios, incluindo o do pudor
+da amante, considerava-a elle o seu mestre de egoismo, pois habituára-o a
+pensar que o amôr pode ser um<span class="pn">{229}</span> modo de vida e a
+belleza extranha e fascinante suprir as aptidões para a lucta pela vida.</p>
+
+<p>Foi a confissão que me fez n'uma noite de vinho, em que o Cliquot d'oiro
+levára ao seu coração impassivel o desejo de expandir-se.</p>
+
+<p>Não tornámos a falar no assunto, persuadi-me até de que elle não tinha
+consciencia da propria indiscrição e continuei a examinal-o no interessante
+combate travado com lady Hanswell.</p>
+
+<p>Parece que a embriaguez produziu o seu efeito, porque lady Hanswell começou
+a lançar-lhe, por vezes, obliquamente, olhares em que punha alguma coisa de
+caloroso, as lagrimas deixaram de borbulhar-lhe nos olhos, que andavam secos do
+desejo que ardia dentro.</p>
+
+<p>Ao começo d'ataque da ingleza, respondeu sir Arnold com um simulacro de
+retirada, um mergulho na sua aparente tristeza, abstinencia de comida, que o
+levava ás escondidas ao American Bar todas as noites, a leitura constante do
+resignado Shelley e do desesperado Byron, cujos livros deixava ficar sobre as
+mezas com marcas nos versos adequados á circunstancia pensando que lady
+Hanswell não deixaria de ir folhear os volumes.</p>
+
+<p>Ia realmente, sofrega, já esquecida do marido, estudando toilettes, não já
+ruskinianas, com toda a tristeza doce das figuras dos primitivos, mas as que
+fizessem realçar a sua elegancia,<span class="pn">{230}</span> largos decótes
+que mostravam a flor nevada do seu cólo opulento, fulgiam-lhe nas mãos os
+largos costões esverdeados de berilos que Lalique lançára n'esse anno, remoçava
+a sua boca escarlate uma primavera de beijos, que se ofereciam, como as
+laranjeiras que nos quintaes murados veem sacudir para a estrada as laranjas
+d'oiro.</p>
+
+<p>Lady Hanswell atacava vigorosamente, num assalto de desespero, pondo na
+conquista de Davis toda a pertinacia da raça, toda a galantaria e vaidade do
+sexo.</p>
+
+<p>Davis fugia, mas forneceu-lhe a ocasião d'ella se lhe dirigir, entabolaram
+relações, elle mais dobrou a sua alma, melancolicamente, falara-lhe de amôres
+purissimos, que vicejam nas almas candidas, como desbotadas flores nas
+planicies geladas da Noruega.</p>
+
+<p>Falou-lhe n'uma especie de amor duplo, um amôr platonico por uma, em que a
+alma vae em primeira cumungante, e o desejo se dirige para outra.</p>
+
+<p>E, diante d'ella, passeou pelas alamedas da Villa des Fleurs com Blanche
+Lely, e, ostensivamente, durante alguns dias recolheu de manhã, a hora em que
+lady Hanswell costumava sair para o banho.</p>
+
+<p>A tristeza voltou á face branca da ingleza. Durante o jantar olhava para a
+porta constantemente, a cada movimento do <em>paravent</em> estremecia,<span
+class="pn">{231}</span> lançava nos olhares para mim curiosas innterrogações
+que a minha face muda deixava sem resposta. Voltou a chorar depois das ducha e
+das massagens, como antigamente pelo defunto marido, e, de manhã, quando se
+encontrava com sir Arnold o seu olhar tinha caricias, parecia que lhe lambia a
+face linda.</p>
+
+<p>Foi ella que o levou, fremente, na ancia de não perder a presa, já no carro
+a cerral-o entre os braços, para as Gorges du Sierroz, onde, depois do almoço,
+no gabinete do restaurante rustico, os beijos arderam e ella poude morder a
+boca em sangue de sir Arnold.</p>
+
+<p>Quanto custaram á consolada viuva esses beijos?</p>
+
+<p> </p>
+
+<p>N'esse momento, sir Arnold Davis passou, levando pelo braço a franzina
+Carlota Von Hameghen, que lhe encostava a cabeça ao hombro olhando para elle
+n'uma suplica, que o sorriso dos labios finos apoiava fortemente.<span
+class="pn">{232}<br>
+{233}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION000190">FUMO</a></h1>
+
+<p class="assin">A L<small>UIZ </small>O'N<small>EIL</small>.</p>
+
+<p><span class="pn">{234}<br>
+{235}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION000191">F<small>UMO</small></a> </h2>
+
+<p>Para fugir da exotica humanidade que enchia as salas do Kursaal de Genebra,
+saimos, apezar da noite fria, para o amplo terraço sobre o Léman tranquillo.</p>
+
+<p>Eu levára Roberto ali para mostrar-lhe Chiara, a dançarina italiana, que nas
+suas danças bisantinas me surpreendera e comovera no Alhambra de Londres.</p>
+
+<p>Era a Volupia feita luz e feita dança. N'um <em>maillot</em> de seda,
+parecia nua. Uma cintura de oiro, marchetada de largas pedras brilhantes
+segurava-lhe os seios firmes. Grossas manilhas mordiam os braços finos e os
+tornozellos. Um diadema apertava a massa luminosa dos seus cabellos loiros. E,
+na face branca, eram d'um brilho de gema os olhos azues, quasi
+violeta-de-Parma. A musica que a acompanhava tinha um envenenado langor. Chiara
+deslisava, mal pousando os pés nús sobre o tapete de Smyrna.<span
+class="pn">{236}</span> E do brilho das joias, como da florescencia musical dos
+gestos, brotavam lascivias, ardiam desejos, que faziam correr fremitos por toda
+a sala incendiada por lampadas poderosas.</p>
+
+<p>Aquella dança sabia, apenas ritmada pelas vozes das flautas e das liras que
+tocadoras de flauta e tocadoras de lira, vestidas á grega, no palco tocavam!
+Uma ou outra vez um pé nú fazia vibrar o bronze dos crotalos. Era como um grito
+de vitória, um beijo mordido n'uma boca sedenta. Chiara tomava então uma
+atitude de entrega, todo o seu corpo flexivel e delgado parecia tombar, como
+uma haste fragil que cede ao explendor de uma enorme rosa vermelha, e verga e
+sucumbe.</p>
+
+<p>A grande flôr d'oiro e luz, em que as abelhas das joias picavam e pareciam
+morder, fixas nas lhamas dos engastes! Como a vejo ainda nitidamente, ramo
+d'oiro e de rosas, fazendo nascer desejos cintillantes, chuveiros d'elles,
+rapidos, fulgentes, descendo como estrellas d'oiro, como os bocados de astros
+que voam no ar escuro, nas noites quietas d'agosto!</p>
+
+<p>E preso á tentação de vêr a dançarina, deixei Aix e as duchas, <em>Villa des
+Fleurs</em> e o seu rebanho de cocottes e, com Roberto, á pressa envergados os
+smokings, fomos para o Kursaal. Mas no salão, um aviso e um certificado medico
+diziam a doença de Chiara. Um grande desanimo abateu-me as espaduas. Como
+passar<span class="pn">{237}</span> uma noite na cidade alinhada e mecanica
+como um relogio? Em todo o Kursaal, nem um rosto interessante. Ranchos do Cook,
+das segundas classes, lyonezas rotundas e vermelhas, suissas frescas, que
+parecem esculpidas em manteiga e em cujas faces contentes os olhos são parados
+e azues... Caixeiros de Lyon, aproveitando comboios a preços reduzidos,
+apertavam-se em volta das compridas mezas dos <em>petits chevaux</em>. Dois
+americanos silenciosos chupavam por palhinhas os violentos cocktails.</p>
+
+<p>Fugimos.</p>
+
+<p>Na noite escura, o lago era azul escuro. Os focos electricos dos caes punham
+na agua fitas brancas, que dançavam e se quebravam contra as ondas. Pareciam
+pestanejar as pequenas lanternas vermelhas dos <em>bateaux-mouches</em>. Tudo
+parecia dormir. Uma brisa ligeira trazia até junto de nós o silencio da cidade.
+Apenas do Kursaal as luzes coavam-se pelas ramadas e, amortecidas, as walsas
+que acompanhavam mimambos e acrobatas.</p>
+
+<p>Um de nós disse:</p>
+
+<p>&mdash;Talvez fosse melhor não ter visto Chiara. Um com a recordação, de que viu,
+outro com a imaginação, teem uma imagem mais bella, por incompleta, e em parte
+mentirosa, da dançarina e do seu bailado. A melhor maneira de gosar é criar
+imagens, viver dentro de nós, alheio ao mundo. Recordando, vive-se na
+imprecisão,<span class="pn">{238}</span> sem as arestas. Tudo mergulha num
+nevoeiro, que, deformando a real aparencia, nimba de misterio; desejando,
+ilumina-se mais. Viver deve ser recordar e desejar.</p>
+
+<p>&mdash;Pode-se viver recordando e desejando apenas, no momento presente; mas para
+recordar é necessario ter vivido, para desejar é preciso conhecer. O desejo
+ilimitado põe a angustia na alma. É mister alguma coisa de definido a
+desejar.</p>
+
+<p>&mdash;Quando chegamos á nossa edade, já vivemos tudo. Conhecemos o efemero
+feminino. Andámos com o coração por todos os amores, por todas as angustias.
+Provámos todos os <em>crús</em>, atravessámos mares, dormimos sob todos os
+ceus. Podemos recordar. E, como conhecemos tudo, podemos escolher e desejar.</p>
+
+<p>&mdash;A vida do homem é, como a de toda a natureza, um continuo movimento, fluxo
+e refluxo permanentes.</p>
+
+<p>&mdash;Então é preciso agir?</p>
+
+<p>&mdash;É fatal.</p>
+
+<p>&mdash;S. Simeão Stylita gastou anos sobre uma coluna, a orar. Vinham de
+desencontradas partes os crentes á espera de milagres. Esposas estereis tocavam
+no plinto, certas de que tempo depois amamentariam o filho desejado; os
+leprosos, os cegos, os atacados do «mal divino», arrastavam-se pelos desertos
+queimados, até á coluna onde o santo resava... E elle, indiferente,<span
+class="pn">{239}</span> como indiferente era aos soes asperos, ás ventanias e
+ás chuvas, continuava a orar. Viveu dentro de si. A vida deve ser toda
+interior.</p>
+
+<p>&mdash;A vida do espirito é toda interior, como a vida digestiva. Precisamos do
+mundo exterior para d'elle apreendermos as imagens e os alimentos.</p>
+
+<p>&mdash;<em>Ter comido</em>, é melhor que <em>comer</em>. <em>Ter gosado</em> é
+melhor que <em>gosar</em>. O momento da posse é doloroso e vão. É melhor
+recordar.</p>
+
+<p>&mdash;Recordar implica esquecer. E quando das imagens não ficar senão uma
+mancha, como preencher a vida?</p>
+
+<p>&mdash;Desejando.</p>
+
+<p>&mdash;Mas a faculdade de desejar desapparece com os annos. O velho dos Goncourt,
+quando no restaurante lhe perguntam:&mdash;O que deseja? responde:&mdash;Desejava ter um
+desejo. Viver é agir. Colher todas flores e todos os espinhos, violar todos os
+cimos, mergulhar em todos os lodos, sentir intensamente, pensar todas as
+doutrinas, apreender do Universo tudo o que fôr possivel, ver tudo, ouvir tudo!
+Viver é entrar na harmonia do Mundo! É ser como o eucalipto, subir para o sol,
+triunfalmente, lançar ramadas por todos os lados, espalhar avidas raizes
+egoistas e crueis!</p>
+
+<p>&mdash;Viver é recordar e desejar. A vida deve ser feita por nós, como a
+composição d'um quadro<span class="pn">{240}</span> é arranjada por um pintor.
+Não devemos ser o espelho de mostrador que refléte toda a rua, mas a psiché do
+<em>boudoir</em> d'uma mulher elegante que só refléte atitudes graciosas,
+sedas, rendas, brilhos de pedrarias...</p>
+
+<p>&mdash;Viver...</p>
+
+<p>Despejava-se o Kursaal. Apagaram-se as lampadas. Fomos para a estação
+esperar o expresso de Paris.</p>
+
+<p> </p>
+
+<p class="centrado">FIM</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn">{241}</span></p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p>INDICE</p>
+
+<p><a href="#SECTION00010">A escola de flirt</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00020">Flirts</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00030">Logica</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00040">Romantico</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00050">A Bisantina</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00060">Má-lingua</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00070">A rainha de Sabá</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00080">Chiara Liliam</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION00090">A Marcia</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000100">O cego</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000110">A gloria</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000120">A festa de maio</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000130">Tibidabo</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000140">A princeza perdida</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000150">Noite de festa</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000160">Clara</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000170">Idilio triste</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000180">Perfil d'aventureiro</a></p>
+
+<p><a href="#SECTION000190">Fumo</a></p>
+</div>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Flirts, by Henrique de Vasconcellos
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS ***
+
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+works. See paragraph 1.E below.
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+
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
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+
+
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+
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+
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