diff options
| -rw-r--r-- | .gitattributes | 4 | ||||
| -rw-r--r-- | LICENSE.txt | 11 | ||||
| -rw-r--r-- | README.md | 2 | ||||
| -rw-r--r-- | old/67162-0.txt | 7554 | ||||
| -rw-r--r-- | old/67162-0.zip | bin | 142278 -> 0 bytes | |||
| -rw-r--r-- | old/67162-h.zip | bin | 194815 -> 0 bytes | |||
| -rw-r--r-- | old/67162-h/67162-h.htm | 10566 | ||||
| -rw-r--r-- | old/67162-h/images/helena_cover.jpg | bin | 51577 -> 0 bytes |
8 files changed, 17 insertions, 18120 deletions
diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..d7b82bc --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,4 @@ +*.txt text eol=lf +*.htm text eol=lf +*.html text eol=lf +*.md text eol=lf diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize +this eBook outside of the United States should confirm copyright +status under the laws that apply to them. diff --git a/README.md b/README.md new file mode 100644 index 0000000..4ab2c7d --- /dev/null +++ b/README.md @@ -0,0 +1,2 @@ +Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for +eBook #67162 (https://www.gutenberg.org/ebooks/67162) diff --git a/old/67162-0.txt b/old/67162-0.txt deleted file mode 100644 index 114e446..0000000 --- a/old/67162-0.txt +++ /dev/null @@ -1,7554 +0,0 @@ -The Project Gutenberg eBook of Helena, by Machado de Assis - -This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and -most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions -whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms -of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at -www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you -will have to check the laws of the country where you are located before -using this eBook. - -Title: Helena - -Author: Machado de Assis - -Release Date: January 14, 2022 [eBook #67162] - -Language: Portuguese - -Produced by: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by - the Biblioteca Brasiliana USP Digital.) - -*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HELENA *** - - -BIBLIOTHECA UNIVERSAL - -Romances, Viagens, Política, Poesias, etc. - -Collecção in 8° a 2$000 - - - - -HELENA - - - - -POR - - - - -MACHADO DE ASSIS - - - - -RIO DE JANEIRO - -B.L. GARNIER - -Livreiro-editor do Instituto Historico Brasileiro - -65--Rua do Ouvidor--65 - -PORTO: Ernesto Chardon | BRAGA: Eugenio Chardon - -LISBOA: Carvalho & C. - -_1876_ - - - - -INDICE -CAPITULO I -CAPITULO II -CAPITULO III -CAPITULO IV -CAPITULO V -CAPITULO VI -CAPITULO VII -CAPITULO VIII -CAPITULO IX -CAPITULO X -CAPITULO XI -CAPITULO XII -CAPITULO XIII -CAPITULO XIV -CAPITULO XV -CAPITULO XVI -CAPITULO XVII -CAPITULO XVIII -CAPITULO XIX -CAPITULO XX -CAPITULO XXI -CAPITULO XXII -CAPITULO XXIII -CAPITULO XXIV -CAPITULO XXV -CAPITULO XXVI -CAPITULO XXVII -CAPITULO XXVIII - - - - -HELENA - - -CAPITULO I - - -O conselheiro Vale morreu ás 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. -Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de _cochilar_ a -sesta,--segundo costumava dizer,--e quando se preparava a ir jogar a -usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. -Camargo, chamado á pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos -da sciencia; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da -religião: a morte fôra instantanea. - -No dia seguinte fez-se o entêrro, que foi um dos mais concorridos que -ainda viram os moradores do Andarahy. Cêrca de duzentas pessoas -acompanharam o fim do até a morada ultima, achando-se representadas -entre ellas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não -figurasse em nenhum grande cargo do Estado, occupava elevado logar na -sociedade, pelas relações adquiridas, cabedaes, educação e -tradicções de familia. Seu pae fora magistrado no tempo colonial, e -figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado -materno descendia de uma das mais distinctas familias paulistas. Elle -proprio exercêra dous empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do -que lhe adveiu a carta de conselho e a estima dos homens publicos. Sem -embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos -dous partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que alli se -acharam na occasião de o dar á sepultura. Tinha, entretanto, taes ou -quaes ideias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e -liberaes, justamente no ponto em que os dous dominios podem -confundir-se. Se nenhuma saudade partidaria lhe deitou a ultima pa de -terra, matrona houve, e não só ama, que viu ir a enterrar com elle a -melhor página de sua mocidade. - -A familia do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr. -Estacio, e uma irmã, D. Ursula. Contava ésta cincoenta e poucos annos; -era solteira; vivêra sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o -fallecimento da cunhada. Estacio tinha vinte e sete annos, e era formado -em mathematicas. O conselheiro tentára encarreiral-o na política, -depois na diplomacia; mas nenhum desses projectos teve começo de -execução. - -O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do -entêrro, foi ter com Estacio, a quem encontrou no gabinete particular do -finado, em companhia de D. Ursula. Tambem a dor tem suas -voluptuosidades; tia e sobrinho queriam nutril-a com a presença dos -objectos pessoaes do morto, no logar de suas predilecções quotidianas. -Duas tristes luzes alumiavam aquella pequena sala. Alguns momentos -correram de profundo silêncio entre os tres. O primeiro que o rompeu -foi o médico. - ---Seu pai deixou testamento? - ---Não sei, respondeu Estacio. - -Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou tres vezes, gesto que lhe era -habitual quando fazia alguma reflexão. - ---É preciso procural-o,--continuou elle.--Quer que o ajude? - -Estacio apertou-lhe affectuosamente a mão. - ---A morte de meu pai,--disse o moço, não alterou nada as nossas -relações. Subsiste a confiança anterior do mesmo modo que a amizade, -ja provada e antiga. - -A secretária estava fechada; Estacio deu a chave ao médico; este abriu -o movel sem nenhuma commoção exterior. Interiormente estava abalado. -O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão -em que, aliás, nenhum dos outros reparou. Logo que começou a revolver -os papeis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o -testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que succedeu a -serenidade habitual. - ---É isso? perguntou Estacio. - -Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar -o conteudo. O silêncio foi muito demorado para não fazer impressão no -moço, que alias nada disse, porque o attribuíra á commoção natural -do amigo, em tão dolorosas circumstâncias. - ---Sabem o que estará aqui dentro? disse enfim Camargo. Talvez uma -lacuna ou um grande excesso. - -Nem Estacio, nem D. Ursula, pediram ao médico a explicação de -semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico -pôde le-la nos olhos, de ambos. Não lhes disse nada; entregou o -testamento a Estacio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido -em suas proprias reflexões, ora arranjando machinalmente um livro da -estante, ora mettendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista -quêda, alheio de todo ao logar e ás pessoas. - -Estacio rompeu o silêncio: - ---Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico. - -Camargo parou deante do moço. - ---Não posso dizer nada, respondeu elle. Seria inconveniente antes de -saber as últimas disposições de seu pai. - -D. Ursula foi menos discreta que o sobrinho; apos longa pausa, pediu ao -médico a razão de suas palavras. - ---Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de -perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excellentes, Era seu -amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem -a confiança que ambos depositavamos um no outro. Não quizera pois, que -o último acto de sua vida fôsse um êrro. - ---Um êrro! exclamou D. Ursula. - ---Talvez um êrro! suspirou Camargo. - ---Mas, doutor, insistiu D. Ursula, porque motivo nos não tranquillisa o -espirito? Estou certa de que não se trata de um acto que desdoure a meu -irmão; allude naturalmente a algum êrro no modo de entender... alguma -cousa, que eu ignoro o que seja. Porque não fala claramente? - -O médico viu que D. Ursula tinha razão; e que, a não dizer mais nada, -melhor fôra ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de -extranheza que deixára no ânimo dos dous; mas da hesitação com que -falava concluiu Estacio que elle não podia ir além do que havia dito. - ---Não precisamos de explicação nenhuma, interveiu o filho do -conselheiro; amanhã saberemos tudo. - -Nessa occasião entrou o padre Melchior. O médico sahiu ás 10 horas, -ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estacio, recolhendo-se a -seu quarto, murmurava consigo: - ---Que êrro será esse? E que necessidade tinha elle de vir lançar-me -este enigma no coração? - -A resposta, se podesse ouvil-a, era dada nessa mesma occasião pelo -proprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava á porta: - ---Fiz bem em preparar-lhes o espirito, pensou elle; o golpe, si o -houver, ha de ser mais facil de soffrer. - -O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguem pôde -ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exhumou o -passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu nada foi -communicado a ouvidos extranhos. - -As relações do Dr. Camargo com a familia do conselheiro eram estreitas -e antigas, como dissera Estacio. O médico e o conselheiro tinham a -mesma edade: cincoenta e quatro annos. Conheceram-se logo depois de -tomado o gráo, e nunca mais afrouxara o laço que os prendêra desde -esse tempo. - -Camargo era pouco sympathico á primeira vista, Tinha as feições duras -e frias, os olhos prescrustadores e sagazes, de uma sagacidade -incommoda, para quem encarava com elles, o que o não fazia attrahente. -Fallava pouco e sêcco. Seus sentimentos não vinham á flor do rosto. -Tinha todos os visiveis signaes de um grande egoista; comtudo, posto que -a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lagryma ou uma palavra de -tristeza, é certo que a sentiu devéras. Além disso, amava sobre todas -as cousas e pessoas uma creatura linda,--a linda Eugenia, como lhe -chamava,--sua filha unica e a flor de seus olhos; mas amava-a de um amor -calado e recondito. Era difficil saber se Camargo professava algumas -opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se -as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que -fôra cheio o decennio anterior, conservara-se indifferente e neutral. -Quanto aos sentimentos religiosos, a aferil-os pelas acções, ninguem -os possuia mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom -catholico. Mas só pontual; interiormente era incredulo. - -Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher,--D. -Thomasia,--meio adormecida n'uma cadeira de balanço e Eugenia ao piano, -executando um trecho de Bellini. Eugenia tocava com habilidade; e -Camargo gostava de a ouvir. Naquella occasião, porém, disse ele, -parecia pouco conveniente que a moça se entregasse a um genero de -recreio qualquer. Eugenia obedeceu, algum tanto de ma vontade. O pai, -que se achava ao pe do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ella se -levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ella nunca -lhe víra. - ---Não fiquei triste pelo que me disse, papae,--observou a moça. Tocava -por distrahir-me. D. Ursula como está? Ficou tão afflicta! Mamãe -queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a -tristeza daquella casa. - ---Mas a tristeza é necessaria á vida,--acudiu D. Thomasia, que abrira -os olhos logo á entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as -proprias, e são um correctivo da alegria, cujo excesso póde engendrar -o orgulho. - -Camargo temperou ésta philosophia, que lhe pareceu demasiado austera, -com algumas ideias mais accommodadas e risonhas. - ---Deixemos a cada edade a sua atmosphera propria, concluiu elle, e não -antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não -passaram do puro sentimento. - -Eugenia não comprehendeu o que os dous haviam dito. Seus olhos -voltaram-se para o piano, com uma expressão de saudade irritada. Com a -mão esquerda, assim mesmo de pe, extrahiu vagamente tres ou quatro -notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fital-a com desusada -ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação -interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços delle; deixou-se ir. -Mas a expansão era tão nova, que ella ficou assustada e perguntou com -voz trémula. - ---Aconteceu la alguma cousa? - ---Absolutamente nada, respondeu Camargo dando-lhe um beijo na testa. - -Era o primeiro beijo,--ao menos o primeiro de que a moça tinha memoria. -A caricia encheu-a de orgulho filial; mas a propria novidade della -impressionou-a mais. Eugenia não creu no que lhe dissera seu pai. Viu-o -ir sentar-se ao pe de D. Thomasia e conversarem em voz baixa. -Approximando-se, não interrompeu a conversa, que elles continuaram no -mesmo tom, e versava sobre assumptos puramente domesticos. Percebeu-o; -contudo não ficou tranquilla. Na manhã seguinte escreveu um bilhete, -que foi logo caminho do Andarahy. A resposta, que lhe chegou ás mãos -no momento em que provava um vestido novo, teve a cortezia de esperar -que ella terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os -receios da vespera. - - - - -CAPITULO II - - -No dia seguinte foi aberto o testamento com todas as formalidades -legaes. O conselheiro nomeava testamenteiros Estacio, o Dr. Camargo e o -padre Melchior. As disposições geraes nada tinham que fôsse notavel: -eram legados pios ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a -afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes. - -Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O -conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, -havida em D. Angela da Soledade. Ésta menina estava sendo educada em um -collegio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de -seus bens, e devia ir viver com a familia, a quem o conselheiro -instantemente pedia que a tratasse com desvello e carinho, como se de -seu matrimonio fôsse. - -A leitura desta disposição causou natural espanto á irmã e ao filho -do finado. D. Ursula nunca soubéra de tal filha. Quanto a Estacio -ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pae; -mas tão vagamente que não podia esperar aquella disposição -testamentária. - -Ao espanto succedeu em ambos outra e differente impressão. D. Ursula -reprovou de todo o acto do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos -impulsos naturaes o licenças juridicas, o reconhecimento de Helena era -um acto de usurpação e um péssimo exemplo. A nova filha era, em seu -entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando -muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e -deixal-a á porta. Recebel-a, porém, no seio da familia e de seus -castos affectos, legitimal-a aos olhos da sociedade, como ella estava -aos da lei, não o entendia D. Ursula, nem lhe parecia que alguem -podesse entendel-o. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior -quando lhe occorreu a origem possivel de Helena, Nada constava da mãe, -além do nome; mas essa mulher quem era? em que atalho sombrio da vida a -encontrára o conselheiro? Helena seria filha de um encontro fortuito -entre duas voluptuosidades, ou nasceria de algum affecto, irregular -embora, mas verdadeiro o unico? A éstas interrogações não podia -responder D. Ursula; bastava porém, que lhe surgissem no espirito, para -lançar nelle o tedio e a irritação. - -D. Ursula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do -conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma -página de catecismo; mas o acto final bem podia ser a reparação de -leviandades amargas. Essa atenuante não a viu D. Ursula. Para ella, o -principal era a entrada de uma pessoa extranha na familia. - -A impressão de Estacio foi muito outra. Elle percebêra a ma vontade -com que a tia recebêra a noticia do reconhecimento de Helena, e não -podia negar a si mesmo que semelhante facto creava para a familia uma -nova situação. Contudo, qualquer que ella fôsse, uma vez que seu pai -assim o ordenava, levado por sentimentos de equidade ou impulsos da -natureza, elle a acceitava tal qual, sem pezar nem reserva. A questão -pecuniaria pezou menos que tudo no espirito do moço; não pezou nada. A -occasião era dolorosa de mais para dar entrada a considerações de -ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estacio não lhe -permittia inspirar-se dellas. Quanto á camada social a que pertencia a -mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo que elles -saberiam levantar a filha até á classe a que ella ia subir. - -No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do -conselheiro, occorreu a Estacio a conversa que tivera com o Dr. Camargo. -Provavelmente era aquelle o ponto a que alludíra o médico. Interrogado -acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o -filho do conselheiro: - ---Aconteceu o que eu previa, um êrro, disse elle. Não houve lacuna, -mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura, -muito bonito; mas pouco prático. Um legado era sufficiente; nada mais. -A estricta justiça. - ---A estricta justiça é a vontade de meu pae, redarguiu Estacio. - ---Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sel-o á -custa de direitos alheios. - ---Os meus? Não os allego. - ---Se os allegasse seria pouco digno de memoria delle. O que está feito, -está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa -familia e affectos de familia. Persuado-me que ella sabera -corresponder-lhes com verdadeira dedicação... - ---Conhece-a? inqueriu Estacio, cravando no médico uns olhos impacientes -de curiosidade. - ---Via-a tres ou quatro vezes disse este no fim de alguns segundos; mas -era então muito creança. Seu pae fallava-me della como de pessoa -extremamente affectuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem -olhos de pai. - -Estacio desejára ainda saber alguma cousa ácerca da mãe de Helena, -mas repugnou-lhe entrar em novas indagações. Como os filhos de Noé, -lançou uma capa sobre a nudez de seu pae, e tentou encarreirar a -conversa para outro assumpto. Camargo, entretanto, insistiu: - ---O conselheiro falou-me algumas vezes no projecto de reconhecer -Helena; procurei dissuadil-o, mas sabe como elle era obstinado ás vezes -em suas resoluções, accrescendo neste caso o natural impulso de amor -paterno. O nosso ponto de viste era differente. Não me tenho por homem -mau; contudo, entendo que a sensibilidade não póde usurpar o que -pertence á razão. - -Camargo proferiu éstas palavras no tom sêcco e sentencioso, que tão -natural e sem exforço lhe sabia. A velha amizade delle e do finado era -sabida de todos; a intenção com que fallava podia ser hostil á -familia? Estacio reflectiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir -ao médico, curta reflexão, que por nenhum modo lhe abalou a opinião -ja assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espirito -que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor. - ---Não quero saber--disse elle,--se ha excesso na disposição -testamentária de meu pae. Se o ha, é legitimo, justificavel pelo -menos; elle sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa -irmã, como se fôra creada commigo. Minha mãe faria com certeza a -mesma cousa. - -Camargo não insistiu. Sôbre ser exforço baldado dissuadir o moço -daquelles sentimentos, que aproveitava ja agora discutir e condemnar -theoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executal-a -lealmente, sem hesitação nem pezar. Isso mesmo declarou elle a -Estacio, que o abraçou cordialmente. O médico recebeu o abraço sem -constrangimento, mas sem fervor. - -Estacio ficára satisfeito comsigo mesmo. Seu caracter vinha mais -directamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a -unica paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe -acharemos, nenhuma outra saliente feição. A fidelidade aos amigos era -antes resultado do costume que da consistencia dos affectos. A vida -correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou occasião de -experimentar a propria têmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha -mediana. - -A mãe de Estacio era differente; possuíra em alto grau a paixão, a -ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimentos, com seus -toques de orgulho,--daquelle orgulho que é apenas irradiação da -consciencia. Vinculada si um homem que, sem embargo do affecto que lhe -tinha, despendia o coração em amores adventicios e passageiros, teve a -fôrça de vontade necessaria para dominar a paixão e encerrar em si -mesma todo o resentimento. As mulheres que são apenas mulheres choram, -arrufam-se ou resignam-se; as que tem alguma cousa mais do que a -debilidade feminina lutam ou recolhem-se á dignidade do silêncio. -Aquella padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe -permittia outra cousa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao -mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial da sua organisação, -concentrou-a toda naquelle unico filho, em quem parecia adivinhar o -herdeiro de suas robustas qualidades. - -Estacio recebêra affectivamente de sua mãe uma boa parte destas. Não -sendo grande talento, deveu á vontade e á paixão do saber a figura -notavel que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se á -sciencia com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indifferente ao -ruido exterior. Educado á maneira antiga o com severidade o recato, -passou da adolescencia á juventude sem conhecer as corrupções de -espirito nem as influências delecterias da ociosidade; viveu a vida de -familia, na edade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e -perdiam em cousas infimas a virgindade das primeiras sensações. Dahi -veiu que aos dezoito annos conservava elle tal ou qual timidez infantil, -que só tarde perdeu de todo. Mas se perdeu a timidez, ficara-lhe certa -gravidade não incompativel com os verdes annos e muito propria de -organisações como a delle. Na política seria talvez meio caminho -andado para subir aos cargos publicos; na sociedade, fazia com que lhe -catassem respeito, o que o levantava a seus proprios olhos. Convem dizer -que não era essa gravidade aquella cousa enfadonha, pesada e chata, que -os moralistas asseveram ser quasi sempre um symptoma de espirito chocho; -era uma gravidade jovial e familiar,--egualmente distante da frivolidade -e do tedio, uma compostura do corpo e do espirito, temperada pelo viço -dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e recto -adornado de folhagens e flores. Junctava ás outras qualidades moraes -uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sobria e forte; aspero -comsigo, sabia ser terno e mavioso com os outros. - -Tal era o filho do conselheiro; e se alguma cousa ha ainda que -accrescentar é que elle não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e -deveres que lhe davam a edade e a classe em que nascêra. Elegante e -polido, obedecia á lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes -della. Ninguem entrava mais correctamente n'uma sala; ninguem saia mais -opportunamente. Ignorava a sciencia das nugas, mas conhecia o segrêdo -de tecer um comprimento. - -Na situação creada pela clausula testamentária do conselheiro, -Estacio aceitou a causa da irmã, a quem ja via, sem a conhecer, com -olhos differentes dos de Camargo e D. Ursula. Esta communicou ao -sobrinho todas as impressões que lhe deixára o acto do irmão. Estacio -procurou dissipar-lh'as; repetiu as reflexões oppostas ao médico; -mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade -de um morto. - ---Bem sei que não ha ja agora outro remedio mais que aceitar essa -menina e obedecer ás determinações solemnes de meu irmão, disse D. -Ursula quando Estacio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ella os -meus affectos não sei que possa nem deva fazer. - ---Comtudo, ella é do nosso mesmo sangue. - -D. Ursula ergueu os hombros como repellindo semelhante consanguinidade. -Estacio insistiu em trazel-a a mais benevolos sentimentos. Invocou, -além da vontade, a rectidão do espirito de seu pae, que não havia -dispor uma cousa contrária á boa fama da familia. - ---Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que -meu pae a legitimou, convem que não se ache aqui como engeitada. Que -aproveitariam os com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da -nossa vida interior. Vivamos na mesma communhão de affectos; e vejamos -em Helena uma parte da alma de meu pae, que nos fica para não desfalcar -de todo o patrimonio commum. - -Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estacio percebeu que não mudára -os sentimentos da tia, nem era possivel consegui-lo por meio de -palavras. Confiou do tempo essa tarefa. D. Ursula ficou triste e só. -Apparecendo Camargo dahi a pouco, ella confiou-lhe todo o seu modo de -sentir, que o médico interiormente approvava. - ---Conheceu a mãe della? perguntou a irmã do conselheiro. - ---Conheci. - ---Que especie de mulher era? - ---Fascinante. - ---Não é isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem inferior, ou... - ---Não sei; no tempo em que a vi não tinha classe e podia pertencer a -todas; demais, não a tratei de perto. - ---Doutor, disse D. Ursula, depois de hesitar algum tempo;--que me -aconselha que faça? - ---Que a ame, se ella o merecer, e se puder. - ---Oh! confesso-lhe que me ha de custar muito! E merece-lo-ha? Alguma -cousa me diz ao coração que essa menina vem complicar a nossa vida; -além disso, não posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro... - ---Seu sobrinho aceita as cousas philosophicamente e até com -satisfação. Não comprehendo a satisfação, mas concordo que nada -mais ha do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. Não se -deliberam sentimentos; ama-se ou aborrece-se, conforme o coração quer. -O que lhe digo é que a trate com benevolencia; e caso sinta em si algum -affecto, não o suffoque; deixe-se ir com elle. Ja agora não se póde -voltar atraz. Infelizmente! - -Helena estava a concluir seus estudos; semanas depois determinou a -familia que ella viesse para casa. D. Ursula recusou a princípio ir -buscal-a; convenceu-a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a -incumbencia depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados -os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moça -transladada a Andarahy. D. Ursula metteu-se na carruagem, logo depois de -jantar. Estacio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. -Voltou tarde. Ao penetrar na chacara deu com os olhos nas janellas do -quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguem dentro. Pela -primeira vez sentiu Estacio a extranheza da situação creada pela -presença daquella meia-irmã e perguntou a si proprio se não era a tia -quem tinha razão. Expelliu pouco depois esse sentimento; a memoria do -pae restituiu-lhe a benevolencia anterior. Ao mesmo tempo, a ideia de -ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e -desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa -creatura intermediaria, que elle ja amava sem conhecer, e que que seria -a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estacio -contemplou longo tempo as janellas; nem o vulto de Helena appareceu -alli, nem elle viu passar a sombra da habitante nova. - - - - -CAPITULO III - - -Na seguinte manhã, Estacio levantou-se tarde e foi direito á sala de -jantar, onde encontrou D. Ursula, pachorrentamente sentada na poltrona -de seu uso, ao pe de uma janella, a ler um tomo do _Saint-Clair das -Ilhas_, enternecida pela centesima vez com as tristezas dos desterrados -da ilha da Barra; boa gente e moralissimo livro, ainda que enfadonho e -massudo, como outros de seu tempo. Com elle matavam as matronas daquella -quadra muitas horas compridas do inverno, com elle se encheu muito -serão pacífico, com elle se desafogou o coração do muito lagryma -sobresalente. - ---Veiu? perguntou Estacio. - ---Veiu, respondeu a boa senhora fechando o livro. O almôço -esfria,--continuou ella dirigindo-se á mucama que alli estava de pe, -juncto da mesa; já foram chamar... nhanhã Helena? - ---Nhanhã Helena disse que ja vem. - ---Ha dez minutos, observou D. Ursula ao sobrinho. - ---Naturalmente não tarda, respondeu este. Que tal? - -D. Ursula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quasi não -vira o rosto de Helena; e ésta, logo que alli chegou, recolheu-se ao -aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D. -Ursula pôde afiançar foi somente que a sobrinha era moça feita. - -Ouviu-se descer a escada um passo rapido, e não tardou que Helena -apparecesse á porta da sala de jantar. Estacio estava então encostado -á janella que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda, -donde se viam os fundos da chacara. Olhou para a tia como esperando que -ella os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao vel-o. - ---Menina, disse D. Ursula com o tom mais doce que tinha na voz, este é -meu sobrinho Estacio, seu irmão. - ---Ah! disse Helena sorrindo e caminhando para elle. - -Estacio dera egualmente alguns passos. - ---Espero merecer sua affeição, disse ella depois de curta pausa. Peço -desculpa da demora; estavam á minha espera, creio eu. - ---Iamos para a meza agora mesmo, interrompeu D. Ursula como protestando -contra a ideia de que ella os fizesse esperar. - -Estacio procurou corrigir a rudez da tia. - ---Tinhamos ouvido o seu passe na escada, disse elle. Sentemo-nos, que o -almoço esfria. - -D. Ursula ja estava sentada á cabeceira da mesa; Helena ficou á -direita, na cadeira que Estacio lhe indicou; este tomou logar do lado -opposto. O almoço correu silencioso e desconsolado; raros monosyllabos, -alguns gestos de assentimento ou recusa, tal foi o dispendio da conversa -entre os tres parentes. A situação não era commoda nem vulgar. -Helena, posto forcejasse por estar senhora de si, não conseguia vencer -de todo o natural acanhamento da occasião. Mas, se o não vencia de -todo, podiam ver-se atravez delle certos signaes de educação fina. -Estacio examinou aos poucos a figura da irmã. - -Era uma moça de dezeseis a dezesete annos, delgada sem magreza, -estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e attitudes modestas. -A face, de um moreno-pecego, tinha a mesma imperceptivel penugem da -fructa de que tirava a côr; naquella occasião tingiam-na uns longes -côr de rosa, a principio mais rubros, natural effeito do abalo. As -linhas puras e severas do rosto parecia que as traçára a arte -religiosa. Se os cabellos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos -em duas grossas tranças, lhe cahissem espalhadamente sôbre os hombros, -e se os proprios olhos alçassem as pupillas ao ceu, dissereis um -daquelles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do -Senhor. Não exigiria a arte maior correcção e harmonia de feições, -e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a -gravidade do aspeto. Uma só cousa pareceu menos aprazivel ao irmão: -eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e -suspeitosa reserva foi o unico senão que lhe achou, e não era pequeno. - -Acabado o almôço, trocadas algumas palavras, poucas e sôltas, Helena -retirou-se ao seu quarto, onde durante tres dias passou quasi todas as -horas, a ler meia duzia de livros que trouxe comsigo, a escrever cartas, -a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janellas. -Alguma vez desceu a jantar com os olhos vermelhos e a fronte pezarosa, -apenas com um sorriso pallido e fugitivo nos labios. Uma creança, -subitamente transferida ao collegio, não desfolha mais tristemente as -primeiras saudades da casa de seus paes. Mas a aza do tempo leva tudo; e -ao cabo de tres dias, ja a physionomia de Helena trazia menos sombrio -aspecto. O olhar perdeu a expressão que primeiro lhe achou o irmão, -para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra -sahia-lhe mais facil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar -do acanhamento. - -No quarto dia, acabado o almôço, Estacio encetou uma conversa geral, -que não passou de um simples _duo_, por que D. Ursula contava os fios -da toalha ou brincava com as pontas do _fichu_ que trazia ao pescoço. -Como falassem da casa, Estacio disse á irmã: - ---Ésta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nascemos debaixo -do mesmo tecto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu -respeito; não o póde haver mais cordial. - -Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a -chacara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Ursula que -lh'as fôsse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e seccamente -respondeu: - ---Agora não, menina; tenho por hábito descançar e ler. - ---Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moça com graça; não -é bom cançar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a -servil-a. Não acha? continuou ella voltando-se para Estacio. - ---É nossa tia, respondeu o moço. - ---Oh! ainda não é minha tia! interrompeu Helena. Hade sel-o quando me -conhecer de todo. Por emquanto somos extranhas uma á outra; mas nenhuma -de nós é ma; o coração e a convivencia apertarão de vez os laços -que a natureza atou frouxamente. - -Éstas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com -que ella as proferiu era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso, -tinha um mysterioso encanto, a que a propria D. Ursula não pôde -resistir. - ---Pois deixe que a convivencia faça falar o coração, respondeu a -irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o offerecimento da -leitura, por que não entendo bem o que os outros me lêm; tenho os -olhos mais intelligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa -e a chacara, seu irmão póde conduzi-la. - -Estacio declarou-se prompto para acompanhar a irmã. Helena, entretanto, -recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e ao que parece, -a primeira que podia achar-se a sos com um homem que não seu pae. D. -Ursula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe -seccamente que fôsse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da -casa, ouvindo a moça as explicações que lhe dava Estacio e inquirindo -de tudo com zêlo e curiosidade de dona da casa. Quando chegaram á -porta do gabinete do conselheiro, Estacio parou. - ---Vamos entrar num logar triste para mim, disse elle. - ---Que é? - ---O gabinete de meu pae. - ---Oh! deixe ver! - -Entraram os dous. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o -conselheiro fallecêra. Estacio deu algumas indicações relativas ao -theor da vida doméstica de seu pae; mostrou-lhe a cadeira em que elle -costumava ler, de tarde e de manhã; os retratos de familia, a -secretária, as estantes; falou de quanto podia interessal-a. Sobre a -mesa, perto da janella, estava ainda o último livro que o conselheiro -lêra: eram as _Maximas_ do marquez de Maricá. Helena pegou nelle e -imprimiu um beijo na página aberta. Uma lagryma brotou-lhe dos olhos, -como pingo do sereno que cahisse da aza da noite, não fria como elle, -mas quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensivel; brotou, -deslizou-se e foi cahir no papel. - ---Coitado! murmurou ella. - -Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir -alguns minutos depois do jantar, e olhou para fóra. O dia começava a -aquecer. O arvoredo dos morros fronteiros estava coberto de flores de -quaresma, com suas petalas roxas e tristemente bellas. O expectaculo ia -com a situação de ambos. Estacio deixou-se levar ao sabor de suas -recordações da meninice. De envolta com ellas, veiu pousar-lhe ao lado -a figura de sua mãe; tornou a ve-la, tal qual se lhe fôra dos braços, -uma crua noite de Outubro, quando elle contava dezoito annos de edade. A -boa senhora morrêra quasi moça,--ainda bella, pelo menos,--daquella -belleza sem outono, cuja primavera tem duas estações. - -Helena ergueu-se. - ---Amava-o muito? perguntou ella, - ---Quem o não amaria? - ---Tem razão. Era uma alma grande e nobre; ou adorava-o. Reconheceu-me; -deu-me familia e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus -proprios. O resto depende de mim, do juizo que eu tiver,--ou talvez da -fortuna. - -Ésta ultima palavra cahiu-lhe do coração com um suspiro. Depois de -alguns segundos de silêncio, Helena enfiou o braço no do irmão e -desceram â chacara. Fôsse influência do logar ou simples mobilidade -de seu espirito, Helena tornou-se logo outra do que se revellára no -gabinete de seu pae. Jovial, graciosa e travessa, perdêra aquella -gravidade quieta e senhora de si com que apparecêra na sala de jantar; -fez-se lepida e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora -esvoaçavam por meio das árvores e por cima da gramma. A mudança -causou certo espanto ao moço; mas elle a explicou de si para si, e em -todo o caso não o impressionou mal. Helena pareceu-lhe naquella -occasião, mais do que antes, o complemento da familia. O que alli -faltava era justamente o gorgeio, a graça, a travessura, um elemento -que temperasse a austeridade da casa e lhe désse todas as feições -necessarias ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar. - -A excursão durou cêrca de meia hora. D. Ursula viu-os chegar, ao cabo -desse tempo, familiares e amigos, como se houvessem criado junctos. -As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contrairam-se e o labio -inferior recebeu uma dentada de despeito. - ---Titia, disse Estacio jovialmente; minha irmã conhece ja a casa toda e -suas dependencias. Resta somente que lhe mostremos o coração. - -D. Ursula sorriu,--um sorriso amarello e acanhado, que apagou nos olhos -da moça a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a ma -impressão; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mãos, -perguntou com toda a doçura da voz: - ---Não quererá mostrar-me o seu? - ---Não vale a pena! respondeu D. Ursula com affectada bonhomia; -coração de velha é casa arruinada. - ---Pois as casas velhas concertam-se, replicou Helena sorrindo. - -D. Ursula sorriu tambem; desta vez, porém, com expressão melhor. Ao -mesmo tempo, fitou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a -principio indifferente, manifestou logo depois a impressão que lhe -causava a belleza da moça. D. Ursula retirou os olhos; porventura -receiou que o influxo das graças de Helena lhe torcessem o coração, -e ella queria ficar independente e inconciliavel. - - - - -CAPITULO IV - - -As primeiras semanas correram sem nenhum successo notavel, mas ainda -assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de -hesitação, de observação reciproca, um tactear de caracteres, em -que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar -posição. O proprio Estacio, não obstante a primeira impressão, -recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o -procedimento de Helena. - -Helena tinha os predicados proprios a captar a confiança e a affeição -da familia. Era docil, affavel, intelligente. Não eram estes, comtudo, -nem ainda a belleza, os seus dotes por excellencia efficazes. O que a -tomava superior e lhe dava probabilidade de triumpho era a arte de -accomodar-se ás circumstâncias do momento e a toda a casta de -espiritos, arte preciosa, que faz habeis os homens e estimaveis as -mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de -arranjos de casa, com egual interesse e gôsto, frivola com os frivolos, -grave com os que o eram, attenciosa e ouvida, sem entono nem -vulgaridade. Havia nella a jovialidade da menina e a compostura da -mulher feita, um accôrdo de virtudes domésticas e maneiras elegantes, -complexo de cousas na apparencia oppostas, mas não inconciliaveis nem -disparatadas entre si. - -Além das qualidades naturaes, possuia Helena algumas prendas de -sociedade, que a tornavam acceita a todos, e mudaram em parte o theor da -vida da familia. Não falo da magnifica voz de contralto, nem da -correcção com que sabia usar della, por que ainda então, estando -fresca a memoria do conselheiro, não tivera occasião de fazer-se -ouvir. Era pianista distincta, sabia desenho, falava correntemente a -lingua franceza, um pouco a ingleza e a italiana. Entendia de costura e -bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e -lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciencia, arte e -resignação,--não humilde, mas digna,--conseguia polir os asperos, -attrahir os indifferentes e domar os hostis. - -Pouco havia ganho no espirito de D. Ursula; mas a repulsa desta ja não -era tão viva como nos primeiros dias. Estacio cedeu de todo, e era -facil; seu coração tendia para ella, mais que nenhum outro. Não cedeu -porém sem alguma hesitação e dúvida. A flexibilidade do espirito da -irmã afigurou-se-lhe a principio mais calculada que expontanea. Mas foi -impressão que passou. Dos proprios escravos não obteve Helena desde -logo a sympathia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de -D. Ursula. Servos de uma familia, viam com desaffecto e ciume a parenta -nova, alli trazida por um acto de generosidade. Mas tambem a esses -venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vel-a desde princípio com olhos -amigos; era um rapaz de 16 annos, chamado Vicente, cria da casa e -particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta ultima -circunstância o ligou desde logo á filha do seu senhor. Despida de -interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era -precaria e remota, a affeição de Vicente não era menos viva e -sincera; faltando-lhe os gozos proprios do affecto,--a familiaridade e o -contacto,---condenado a viver da contemplação e da memoria, a não -beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos -costumes, pelo respeito e pelos instinctos, Vicente foi, não obstante, -um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da -senzala. - -Ás pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma -hesitação de D. Ursula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e -parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociaes, -explicava-os e tratava de os torcer em seu favor,--tarefa em que se -esmerou superando as obstaculos na familia; o resto viria de si mesmo. - -Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no -procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era -capellão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns annos -antes uma excellente capella na chacara, onde muita gente da vizinhança -ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta annos o padre; era homem de -estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabellos, e uns olhos -não menos sagazes que mansos. De compostura quieta, e grave, austero -sem formalismo, sociavel sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o -verdadeiro varão apostolico, homem de sua Egreja e de seu Deos, integro -na fe, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecêra a -familia do conselheiro algum tempo depois do consorcio deste. Seu olhar -penetrante descobria a causa da tristeza que minou os ultimos annos da -mãe de Estacio; respeitou a tristeza, mas attacou directamente a -origem. O conselheiro era homem geralmente razoavel, salvo nas cousas do -amor; ouviu o padre, prometteu o que este lhe exigia, mas foi promessa -feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escriptura. -Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as occasiões -graves; e o voto de Melchior pesava em seu espirito. Morando na -vizinhança daquella familia, tinha alli o padre todo o seu mundo. Se as -obrigações ecclesiasticas não o chamavam a outro lugar, não se -arredava elle de Andarahy, sítio de repouso apos trabalhosa mocidade. - -Das outras pessoas que frequentavam a casa e residiam no mesmo bairro de -Andarahy, mencionaremos ainda o Dr. Mattos, sua mulher, o coronel Macedo -e dous filhos. - -O Dr. Mattos era um velho advogado que, em compensação da sciencia do -direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitaveis de -meteorologia e botanica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da -política. Era impossivel a ninguem queixar-se do calor ou do frio, sem -ouvir delle a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das -estações, a differença dos climas, influência destes, as chuvas, os -ventos, a neve, as vasantes dos rios e suas enchentes, as marés e a -pororoca. Elle fallava com egual abundancia das qualidades therapeuticas -de uma herva, da nomenclatura scientifica de uma flor, da estructura de -certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio ás nobres paixões da -política, se abria a boca em tal assumpto era para criticar egualmente -de luzias e saquaremas,--os quaes todos lhe pareciam abaixo do paiz. O -jogo e a comida achavam-no menos sceptico; e nada lhe avivava tanto a -physionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Éstas prendas -faziam do Dr. Mattos um conviva interessante nas noites que o não eram, -como o loto é o jogo por excellencia nas occasiões em que outro -qualquer é impossivel. O Dr. Mattos era o loto da sociedade, com a -mesma monotonia dos anexins. Posto soubesse effectivamente alguma cousa -dos assumptos que lhe eram mais prezados, não ganhou o peculio que -possuia, professando a botanica ou a meteorologia, mas applicando as -regras do direito, que ignorou até á morte. - -A esposa do Dr. Mattos fôra uma das bellezas do primeiro reinado. -Quando as graças physicas se alliam ás do espirito, a belleza póde -esvair-se, que ainda lhe fica a alma. D. Leonor era uma rosa fanada, mas -conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro -ardêra aos pes da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas só era -verdade a primeira parte do boato. Nem os principios moraes, nem o -temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra cousa que não fosse -repellir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez illudiu os -malévolos; dahi o sussurro, ja agora esquecido e morto. A reputação -dos homens amorosos parece-se muito como juro do dinheiro: alcançado -certo capital, elle proprio se multiplica e avulta. O conselheiro -desfructou essa vantagem, de maneira que se no outro mundo lhe levassem -á collumna dos peccados todos os que lhe attribuiam na terra, receberia -elle dobrado castigo do que mereceu. - -O coronel Macedo tinha a particularidade da não ser coronel. Era major. -Alguns amigos, levados de um espirito de rectificação, começaram a -dar-lhe o titulo de coronel, que a princípio recusou, mas que afinal -foi compellido a acceitar, não podendo gastar a vida inteira a -protestar contra elle. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sôbre o -peculio da experiencia, possuia imaginação viva, fertil e agradavel. -Era bom companheiro, folgazão e communicativo, pensando serio quando -era preciso. Tinha dous filhos: um rapaz de vinte annos, que estudava em -S. Paulo, e uma moça de vinte e tres, mais prendada que formosa. - -Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se -consolidada. D. Ursula não cedêra de todo, mas a convivencia ia -produzindo seus fructos. Camargo era o unico irreconciliavel; sentia-se -atravez de suas maneiras cerimoniosas uma a versão profunda, prestes a -converter-se em hostilidade, se fôsse preciso. As demais pessoas, não -só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam ás boas com a filha do -conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e -gestos eram o assumpto da vizinhança e o prazer dos familiares da casa. -Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas reminiscencias um -fio biographico da moça; mas do inventário retrospectivo ninguem -tirava elementos que podessem construir a verdade ou uma só parcella que -fôsse. A origem da moça continuava mysteriosa; vantagem grande, porque -o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia attribuir o nascimento de -Helena a um amor illustre ou romanesco,--hypotheses admissiveis, e em -todo o caso agradaveis a ambas as partes. - - - - -CAPITULO V - - -Por esse tempo resolveu Estacio dar um passo decisivo em sua vida. -Ligado por amor á filha de Camargo, desde antes da morte do -conselheiro, hesitára sempre em pedil-a ao pae, deferindo a resolução -para quando fôsse propício o ensejo. A condição não era facil, por -que o sentimento que elle nutria em relação a Eugenia tinha -alternativas singulares de tibieza e fervor. A causa disso póde crer-se -que estava tambem em seu coração; mas principalmente residia nella. -N'um dos primeiros dias de Agosto, assentira Estacio de ir solicitar de -Eugenia autorisação para fazer officialmente o pedido. Assim disposto, -dirigiu-se á casa de Camargo. - -Mal o avistou de longe, desceu Eugenia á porta do jardim. O chapellinho -de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do -sol,--eram tres horas da tarde,--tornavam mais bella a figura da moça. -Eugenia era uma das mais brilhantes estrêllas entre as menores do ceu -fluminense. Agora mesmo, se o leitor, lhe descobrir o perfil, em -camarote de theatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile, -comprehenderá,--atravez de um quarto de seculo,--que os contemporaneos -de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as graças que -então alvoreciam, com o frescor e a pureza das primeiras horas. - -Era do pequena estatura; tinha os cabellos de um castanho escuro, e os -olhos grandes e azues,--dous pedacinhos do ceu; abertos em rosto alvo o -corado, os quaes nem sempre lembravam tão alta origem, pois se eram -muita vez quietos e modestos, não poucas os desmaiava tal ou qual -expressão de languidez lasciva. Seu corpo, levemente refeito, era -naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até -com arte, não possuia o dom de alcançar os maximos effeitos com os -meios mais simples, dom preciosissimo, que faz as grandes elegantes, os -grandes artistas e os grandes poetas. - -Estacio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que -lhe ia sahir dos labios, era justamente o pedido que o levava alli. Mas -Eugenia deteve-lh'a mostrando o anel que sua madrinha, uma fazendeira de -Cantagallo, lhe remettêra na vespera. Era uma opala magnifica, a tal -ponto que Eugenia dividia os olhos entre o namorado e ella. Ésta -simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D. -Thomasia os esperava. A mãe de Eugenia sabia combinar o decoro com os -desejos de seu coração; não seria obstaculo aos dous namorados, -infelizmente a presença de duas visitas veiu destruir o cálculo dos -tres. Estacio espreitava uma occasião de pedir a Eugenia a -autorisação que desejava; até o jantar não se lhe deparou nenhuma. - -Depois do jantar, desceram todos ao jardim. D. Thomasia entreteve uma -das visitas; Camargo foi mostrar á outra a sua collecção de flores. -Estacio e Eugenia affastaram-se cautellosamente dos dous grupos, a -pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquelle dia. A flor -existia; Eugenia colheu-a e deu a Estacio. - ---Não va perdel-a; hade entregal-a a Helena da minha parte. Diga-lhe -que estou com muitas saudades. - -Estacio collocou a flor na casa do paletó. - ---Vai cahir! disse Eugenia. Quer que pregue um alfinete? - -Estacio não teve tempo de responder, por que a filha de Camargo, -tirando um alfinete do cinto prendeu o pe da flor, gastando muito mais -tempo do que o exigia a operação. A moça não era myope; todavia -approximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve -impetos de lhe beijar os cabellos, e seria a primeira vez que seus -labios lhe tocassem. Não o deteve o risco de ser visto; mas o simples -respeito daquella creatura. - ---Prompto! disse ella. Diga a Helena que é a flor mais bonita, do nosso -jardim. Sabe que eu gósto muito de sua irmã? - ---Acredito. - ---Supponho que é minha amiga, hade se-lo com certeza. Oh! eu preciso -muito de uma amiga verdadeira! - ---Sim? - ---Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão -desgostos, como Cecilia... Se soubesse o que ella me fez! - ---Que foi? - -Eugenia desfiou uma historiazinha de toucador, que omitto em suas -particularidades, por não interessar ao nosso caso, bastando saber que -a razão capital da divergencia entre as duas amigas fôra uma opinião -de Cecilia acerca da escolha de um chapeu. - -Estacio não escutou a história com a attenção que a moça desejára; -limitou-se a ouvir a voz de Eugenia, que era na verdade angelica. Alguma -cousa porém lhe ficou, e quando ella poz termo ás suas queixas: - ---O que me parece, observou o sobrinho de D. Ursula, é que não valia a -pena brigar por tão pouca cousa... - ---Pouca cousa! exclamou Eugenia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa e -de mau gôsto? - ---Fez mal se o disse; em todo o caso... - -Estacio fez uma pausa e continuou a andar. Eugenia, mollemente recostada -em seu braço, esperou que elle continuasse o que ia dizer; mas o -silêncio prolongou-se mais do que era natural. - ---Em todo o caso? repetiu a moça erguendo para elle os seus olhos -limpidos e curiosos. - ---Eugenia, disse Estacio, quer saber a verdadeira razão do mau successo -de suas affeições? é deixar-se levar mais pelas apparencias que pela -realidade; é porque dá menos apreço ás qualidades solidas do -coração do que ás frivolas exterioridades da vida. Suas amizades são -das que duram a roda de uma valsa, ou, quando muito, a moda de um -chapeu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estereis para as -necessidades do coração. - ---Jesus! exclamou Eugenia estacando o passo um sermão por tão pouca -cousa! Se tivesse algum pedaço de latim era o mesmo que estar ouvindo o -padre Melchior. - -Estacio não respondeu; contentou-se com erguer os hombros, e os dous -continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do -outro. A differença é que o enfado de Eugenia manifestava-se por um -movimento nervoso de impaciencia e despeito. - ---Se o offendi, perdoe-me, disse ella--com um leve tom de ironia. - ---Oh! exclamou elle apertando-lhe a mão, como quem só esperava um -pretexto para reatar a conversa interrompida. - ---Talvez offendesse, continuou a moça; eu sei dizer as cousas como -ellas me vem á boca, e parece que não são as mais acertadas... - ---Não digo que o sejam sempre, replicou Estacio sorrindo. Agora, pelo -menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era -justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade, -ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapeu? Não vale -a pena esperdiçar affectos, Eugenia; sentirá mais tarde que essa moeda -do coração não se deve nunca reduzir a trocos miudos nem despender em -quinquilharias. - -Eugenia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito. -Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido; -sobretudo não lhes sentiu a applicação. O que a irritou mais foi o -tom pedagogo de Estacio; estouvada e voluntariosa, não admittia que -ninguem lhe falasse sem submissão ou a reprehendesse por actos seus, -que ella julgava legitimos e naturaes. A insistencia do moço foi o -ponto de partida a um desses arrufos, não raros entre amantes, e -communs entre aquelles dous. Os de Eugenia não eram simples silêncios; -seu espirito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado; -pelo contrário irritava-se e traduzia a irritação por meio de -pirraças e accessos de mau humor. Estacio viu murmurar, crescer e -desabar a tempestade. A moça deixava-lhe o braço e tornava a apoiar-se -nelle, articulava algumas phrases sôltas, pedia a morte, batia no chão -com o pesinho mimoso que por acaso esmagou uma pobre herva, alheia ás -divergencias moraes daquellas duas creaturas. Ora parava ou desandava o -caminho; mas logo se dirigia para o moço, com as palpebras trémulas de -colera e um remoque nos labios; comprazia-se em torcer a ponta da manga -até dilaceral-a, ou morder a ponta do dedo até imprimir-lhe o signal -de seus dentes, côr de perola. Estacio, affeito a essas explosões, -não lhes sabia remedio proprio, que tanto o silêncio como a réplica -eram alli materias inflamaveis. Contudo, o silêncio era o menor dos -dous perigos. Estacio limitava-se a ouvir calado, olhando á sorrelfa -para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais bello, quando a raiva o -coloria. Uma terceira pessoa era a unica esperança de pacificação; -Estacio alongou o olhar pelo jardim em busca desse _deus ex-machina_. -Appareceu elle enfim sob a forma de um Carlos Barreto,--estudante de -medicina, que cultivava simultaneamente a pathologia e a comedia, mas -promettia ser melhor Esculapio que Aristophanes. Mal os viu de longe, -apertou o passo para o grupo. - ---Vem gente, Eugenia,--disse Estacio; não demos expectaculos e... -perdõe-me. - -Eugenia ergueu os hombros, procurou com os olhos o intruso, que dahi a -pouco estenda-lhes a mão. - -O ceu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o -sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a -Eugenia a agradavel notícia de que trouxera a seu pae um convite para a -_soirée_ que daria no sabbado proximo uma de suas parentas. A -perspectiva da _soirée_ foi uma brisa salutar que dispersou o resto das -nuvens que entenebreciam o ceu; Eugenia sorriu. _J'ai ri; me voilà -desarmée_, como na comedia de Piron. Vinte minutos depois, não havia -em Eugenia vestigio da scena do jardim. Mas a ideia do casamento estava -adiada. - -O effeito foi agro e doce para Estacio. Estimando ver dissipada a -colera, doia-lhe que a causa fôsse, não a propria virtude do amor, -mas um motivo comparativamente futil. A resolução de a consultar -sôbre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Sahiu -dalli á noite, antes do cha, aborrecido e azedo. Mas esse estado não -durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo sentiu -alguma cousa semelhante á dentada de um remorso. O amor de Estacio -tinha a particularidade de crescer e affirmar-se na ausencia e diminuir -logo que estava ao pe da moça. De longe, via-a atravez da nevoa -luminosa da imaginação; ao pe era difficil que Eugenia conservasse os -dotes que elle lhe emprestava. Dahi, um dissentimento provavel e um -remorso certo. Agora que a deixava, ia elle irritado contra si mesmo; -achava-se ridiculo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade -de Eugenia; concedia, alguma cousa á edade, á educação, aos -costumes, á ignorancia da vida. - -Nesse estado de espirito entrou em casa, onde o esperava um incidente -novo. - - - - -CAPITULO VI - - -Chegando a casa, achou Estacio um remedio a seu mau humor. Era uma carta -de Luiz Mendonça, que dous annos antes partira para Europa, d'onde -agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, annunciando-lhe que dentro -de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça fora o seu melhor -companheiro de aula. Havia entre elles certos contrastes de genio. O de -Mendonça em mais folgazão e activo. Quando este partiu para Europa -quiz que o antigo collega o acompanhasse, e o proprio conselheiro -opinára nesse sentido. Estacio recusou pelo receio de que, sendo -differente o espirito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao -sacrificio de habitos e preferencias de um delles. - -A noticia da volta de Mendonça encheu de contentamento o sobrinho de D. -Ursula. D. Ursula estava então na sala de costura, relendo algumas -páginas do seu _Saint-Clair_, encostada a uma meza. Do outro lado -desta, ficava Helena, a concluir uma obra de _crochet_. - ---Titia, disse elle, dou-lhe uma novidade agradavel para mim. - ---Que é? - ---O Mendonça chegou a Pernambuco: está aqui dentro de pouco tempo. - ---O Mendonça? - ---Luiz Mendonça. - ---O que foi para a Europa, sei. Ha quanto tempo? - ---Dous annos, - ---Dous annos! Parece que foi hontem. - ---Não lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que -devo ir tambem á Europa, quanto antes. Querem ir? - ---Eu? disse D. Ursula marcando a página do livro com os oculos de prata -que até então conservára sobre o nariz. Não são folias para gente -velha. Daqui para a cova. - ---A cova! exclamou Helena. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me -ha de enterrar primeiro? - ---Menina! exclamou D. Ursula em tom de reprehensão. - -Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de -verdadeira sympathia que ouvia a D. Ursula. Bem o comprehendeu ésta; e -talvez a mortificou aquella expontaneidade do coração. Mas era tarde. -Não podia recolher a palavra, não podia sequer explical-a. - ---Que tal virá o teu amigo? perguntou ella ao sobrinho. Era bom rapaz -antes de ir; um pouco tonto, apenas. - ---Ha de vir o mesmo, respondeu Estacio; ou ainda melhor. Melhor de -certo, porque dous annos mais modificam o homem. - -Estacio fez aqui um panegyrico do amigo, intercallado com observações -da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o cha. -D. Ursula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o -_crochet_ na cestinha de costura. - ---Pensa que gastei toda a tarde em fazer _crochet_? perguntou ella ao -irmão, caminhando para a sala do jantar. - ---Não? - ---Não, senhor; fiz um furto. - ---Um furto! - ---Fui procurar um livro na sua estante. - ---E que livro foi? - ---Um romance. - ---_Paulo e Virginia_? - ---_Manon Lescaut._ - ---Oh! exclamou Estacio. Esse livro. - ---Exquisito, não é? Quando percebi que o ora, fechei-o e la o puz -outra vez. - ---Não é livro para moças solteiras... - ---Não creio mesmo que seja para moças casadas, replicou Helena rindo e -sentando-se á mesa. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois -abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo. - ---Imagino! interrompeu D. Ursula. - ---O desejo de aprender a montar a cavallo, concluiu Helena. - -Estacio olhou espantado para a irmã. Aquella mistura de geometria e -equitação não lhe pareceu sufficientemente clara e explicavel. Helena -soltou uma risadinha alegre de menina que applaude a sua propria -travessura. - ---Eu lhe explico, disse ella; abri o livro, todo alastrado de riscos que -não entendi. Ouvi porém um tropel de cavallos e cheguei á janella. -Eram tres cavalleiros, dous homens e uma senhora. Oh! com que garbo -montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco annos, alta, -esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa -cauda do vestido cahida a um lado. O cavallo era fogoso; mas a mão e o -chicotinho da cavalleira quebravam-lhe os impetos. Tive pena, confesso, -de não saber montar a cavallo... - ---Quer aprender commigo? - ---Titia consente? - -D. Ursula levantou os hombros com o ar mais indifferente que pôde achar -no seu repertorio. Helena não esperou mais. - ---Escolha voce o dia. - ---Amanhã? - ---Amanhã. - -Estacio costumava dar um passeio a cavallo quasi todas as manhãs. O do -dia seguinte foi dispensado; começariam as licções de Helena. Antes -disso, porém, escreveu Estacio á filha de Camargo uma carta -rescendente a ternura e affecto. Pedia-lhe desculpa do que se passára -na vespera; jurava-lhe amor eterno; cousas todas que lho dissera mais de -uma vez, com o mesmo estylo, se não com as mesmas palavras. A carta -dissipou-lhe a ultima sombra de remorso. Antes que ella chegasse ao seu -destino, reconciliara-se elle comsigo mesmo. O portador sahiu para o Rio -Comprido, e elle desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pe -da qual estava situada a cavallariça. Naquelle lado da casa corria a -varanda antiga, onde a familia costumava ás vezes tomar cafe ou -conversar nas noites de luar, que alli penetrava pelas largas janellas. -Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro. - -Ja alli estava Helena. D. Ursula enprestara-lhe um vestido de amazona, -com que algumas vezes montára, antes da morte do irmão. O vestido -ficava-lhe mal; era folgado de mais para o talhe delgado da moça. Mas a -elegancia natural fazia esquecer o accessorio das roupas. - ---Prompta! exclamou Helena apenas viu o irmão assomar no alto da -escada. - ---Oh! isso não vai assim! respondeu Estacio. Não supponha que hade -montar ja hoje como a moça que hontem viu passar na estrada. Vença -primeiramente o medo. - ---Não sei o que é medo, interrompeu ella com ingenuidade. - ---Sim? Não a suppunha valente. Pois eu sei o que elle é. - ---O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito -desfaz-se; basta a simples reflexão. Em pequena educaram-me com almas -do outro mundo. Até a edade de dez annos era incapaz de penetrar n'uma -sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possivel que uma pessoa -morta voltasse á terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma -cousa. Lavei o meu espirito de semelhante tolice e hoje era capaz de -entrar, de noite, n'um cemiterio. E dahi talvez não: os corpos que alli -dormem tem direito de não ouvir mais um só rumor de vida. - -Estacio chegára ao último degrau da escada. As derradeiras palavras -ouviu-as elle com os olhos fitos na irmã e encostado ao poial do pedra. - ---Quem lhe ensinou essas ideias? perguntou elle. - ---Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no -coração. Senhor geometra, continuou brandindo caprichosamente o -chicote,--veja se transcreve em algum compendio éstas figuras de minha -invenção, e ande cavalgar commigo. - -Com um movimento rapido travou da cauda do vestido, e caminhou para -diante. Estacio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dois -sentimentos differentes: a affeição que o prendia á irmã, e a -extranha impressão que ella lhe fazia sentir. Quando chegou á porta da -cavallariça, viu aparelhados dous animaes, o cavalo de seus passeios, e -a egua que a tia cavalgava uma ou outra vez. - ---Que é isso? disse elle. Por ora vamos a algumas indicações somente, -aqui no terreiro. - ---Justamente! respondeu a moça. - -Um escravo que alli estava trouxe um tamborete, Estacio approximou-se de -Helena, que afagava com a mão alva e fina as crinas da egua. - ---Como se chama? perguntou ella. - ---_Moema._ - ---_Moema_!! Ora espere... é um nome indigena, não é? - -Estacio fez um signal affirmativo. Helena tinha um pe sobre o tamborete; -repetiu ainda o nome da egua, como quem reflectia sobre elle, sem que o -irmão percebesse que não era aquillo mais do que um disfarce. De -repente; quando elle menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no -selim. A egua alteou o collo, como vaidosa do peso que recebêra. -Estacio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correcção do -movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquillo. Helena inclinou-se -para elle. - ---Fui bem? perguntou sorrindo. - ---Não podia ir melhor; mas o que me admira... - -As patas de _Moema_ interromperam a reflexão do moço. A cavalleira -brandira o chicotinho, e o animal sahíra a trote largo pelo terreiro -fora. Estacio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como -para tomar a redea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou -ver que ella não fazia alli os primeiros ensaios. Ficou parado, de -longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos, -Helena torceu a redea e regressou ao ponto donde sahíra. - ---Que tal? disse ella logo que estacou. Terei geito para a equitação? - ---Creança! - ---Que é isso? Ja aprendeu? interveio D. Ursula do alto da varanda, onde -acabava de chegar. - ---Estava caçoando comnosco, disse Estacio. Ve como sabe montar? - ---Ella sabe tudo, murmurou D. Ursula entre dentes. - -Estacio montou no seu cavallo. Consultou o relogio; eram sete horas e -meia. - ---Permitte que o acompanhe? perguntou Helena. - ---Com uma condição, disse elle; é que hade ter juizo. Não quero -temeridades; a egua é apparentemente mansa; convem não brincar com -ella. Ja vejo que voce é capaz de muitas cousas mais... - ---Prometto ir pacificamente. - -Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de redea ao animal -e seguiu ao lado do irmão. Transposto o portão, seguiram os dous para -o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã fresca. -Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a agua, instigada -por ella, adiantava-se alguns passos ao cavallo; Estacio reprehendia a -irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudencia, -gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ella -conduzia o animal. - ---Não me dirá voce, perguntou elle, porque motivo, sabendo montar, -pedia-me hontem licções? - ---A razão é clara, disse ella; foi uma simples travessura, um -capricho... ou antes um cálculo. - ---Um cálculo? - ---Profundo, hediondo, diabolico, continuou a moça sorrindo. Eu queria -passear algumas vezes a cavallo; não era possivel sahir só, e nesse -caso... - ---Bastava pedir-me que a acompanhasse. - ---Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto era sahir commigo; -era fingir que não sabia montar. A ideia momentanea de sua -superioridade neste assumpto, era bastante para lhe inspirar uma -dedicação decidida... - -Estacio sorriu do cálculo; mas foi um sorriso passageiro, porque dentro -de poucos segundos, seu rosto ficou serio, e elle perguntou era tom -sêcco: - ---Ja lhe negamos algum prazer que desejasse? - -Helena estremeceu e ficou egualmente séria. - ---Não! murmurou; minha dívida não tem limites. - -Ésta palavra sahiu-lhe do coração. As palpebras cahiram-lhe e um veu -de tristeza lhe apagou o rosto. Estacio arrependeu-se do que dissera. -Sua sensibilidade apurada comprehendeu a irmã; viu que, por mais -innocentes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas á ma parte, e -em tal caso o menos que se lhe podia arguir era a descortezia. Estacio -timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ella e rompeu -o silêncio. - ---Voce ficou triste, disse Estacio; mas eu desculpo-a. - ---Desculpa-me? perguntou a moça erguendo para o irmão seus bellos -olhos humidos. - ---Desculpo a injúria que me fez, suppondo-me grosseiro. - -Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições -do mundo. Helena deu livre curso á imaginação e ao pensamento; suas -falas exprimiam, ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da -experiencia prematura, e iam direitas á alma do irmão, que se -comprazia em ver nella a mulher como elle queria que fosse, uma Graça -pensadora, uma sisudez amavel. De quando em quando faziam parar os -animaes para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um -accidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam fallando das vantagens -da riqueza. - ---Valem muito os bens da fortuna, dizia Estacio; elles dão a maior -felicidade da terra, que é a independencia absoluta. Nunca experimentei -a necessidade; mas imagino que o peor que há nella não é a -privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitorios, -mas sim essa escravidão moral que submette o homem aos outros homens. A -riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que -nos coube. Ve aquelle preto que alli está? Para fazer o mesmo trajecto -que nós, terá de gastar, a pe, mais uma hora ou quasi. - -O preto de quem Estacio falára, estava sentado no capim, descascando -uma laranja, emquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava -philosophicamente para ele. O preto não attendia aos dous cavalleiros -que se aproximavam. Ia esburgando a fructa e deitando os pedaços de -casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, -com o que parecia alegra-lo infinitamente. Era homem de cêrca de -quarenta annos, ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapeu que -lhe cobria a cabeça, tinha ja uma côr inverossimil. No entanto, o -rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade -do espirito. - -Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrára. Ao -passarem por elle, o preto tirou respeitosamente o chapeu e continuou na -mesma posição e occupação que d'antes. - ---Tem razão, disse Helena: aquelle homem gastará muito mais tempo do -que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de -vista? Em rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o experdicemos, quer -o economisemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor prazo; é -fazer muita cousa aprazivel ou util. Para aquelle preto o mais aprazivel -é, talvez, esse mesmo caminhar a pe, que lhe alongará a jornada, e lhe -fara esquecer o captiveiro, se é captivo. É uma hora de pura -liberdade. - -Estacio soltou uma risada. - ---Voce devia ter nascido... - ---Homem? - ---Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais -melindrosas. Nem estou longe de crer que o proprio captiveiro lhe -parecerá uma bemaventurança, se eu disser que é o peor estado do -homem. - ---Sim? retorquiu Helena sorrindo; estou quasi a fazer-lhe a vontade. -Não faço; prefiro admirar a cabeça de _Moema_. Veja, veja como se vai -faceirando. Ésta não maldiz o captiveiro; pelo contrário, parece que -elle lhe dá glória. Pudera! Se não a tivessemos captiva, receberia -ella o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só faceirice, é -tambem impaciencia. - ---De que? - ---Impaciencia de correr por essa estrada da Tijuca fóra, e beber o -vento da manhã, espreguiçando os musculos, e sentindo-se alguma cousa -senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre egua? continuou a moça -inclinando a cabeça até as orelhas do animal; vai aqui ao pe de nós -um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu -inimigo... - ---Helena! interrompeu Estacio; voce é muito capaz de desparar a correr. - ---E se fôsse? - ---Eu deixava-a ir, e nunca a trazia em meus passeios. Voce monta bem; -mas não desejo que faça temeridades. Nós somos responsaveis, não só -por sua felicidade, mas tambem por sua vida. - -Helena refletiu um instante. - ---Quer dizer, perguntou ella, que se eu fôsse victima de um desastre -não faltaria quem o imputasse á minha familia? - ---Justo. - ---Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me -lembrasse--é uma supposição--se eu me lembrasse de deixar a vida por -aborrecimento ou capricho, seria voce accusado de me haver propinado o -veneno? Não ha melhor modo de me fazer evitar a morte. - ---Deixemos conversas lugubres, e voltemos para casa, interrompeu -Estacio. - ---Ja! - ---Raras vezes passo d'aqui; e não pense voce que é perto. - ---Parece-me que ainda agora sahimos de casa. Vamos uns cinco minutos -adeante? Sim? - -Estacio consultou o relogio. - ---Cinco minutos justos, disse elle. - ---Até aquella casa que alli está com uma bandeira azul. - -Havia effectivamente, cêrca de quatro minutos adiante, á esquerda da -estrada, uma casa de insignificante apparencia, sôbre cujo telhado -fluctuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estacio conhecia a casa, -mas era a primeira vez que via a bandeira. Helena pediu-lhe a -explicação daquelle apendice. - ---Va la saber, disse o irmão rindo. - -Helena deu de redea á egua e adeantou-se alguns passos. Estacio -apertou o animal e alcançou-a. - ---Não va fazer tolices! disse elle em tom de branda reprehensão. -Aquillo é fantasia do morador, ou algum signal de passaros, ou qualquer -outra cousa que não vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a -manhã, que está deliciosa. - -Helena não attendeu á proposta do irmão e foi andando, a passo lento, -na direcção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o -alpendre antigo que lhe corria na frente. As collunnas deste estavam ja -lascadas em muitas partes, apparecendo, aqui e alli, a ossada de tijolo. -A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, apparente ao menos. -Quando elles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguem -espreitava por ella, ficou sumido na sombra, porque ninguem de fóra o -viu. - -Cêrca de cinco braças adeante, Estacio resolveu definitivamente -regressar, e Helena não oppoz objecção nenhuma. Torceram a redea aos -animais e desceram. - ---Não poderei falar á bandeira? perguntou a moça. Deixe-me ao menos -dizer-lhe adeus. - -Tinha ja tirado da algibeira o seu fino lenço de cambraia; agitou-o na -direcção da casa. Quiz o acaso que a bandeira, até então quieta, se -movesse no sopro de uma aragem que passou. - ---Ve como ella me respondeu? Não se póde ser mais cortez! exclamou -Helena, rindo. - -Estacio riu tambem da lembrança da irmã, e ambos desceram, a passo -lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Seus -olhos, cravados nas orelhas de _Moema_, não pareciam ver sequer o -caminho que o animal seguia, Estacio, para arrancal-a ao silêncio, -fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena -respondeu distrahidamente. - ---Que tem voce? perguntou elle. - ---Nada, disse ella; ia... ia embebida naquella toada. Não ouve? - -Ouvia-se effectivamente, a algumas braças adeante, uma cantiga da -roça, meia alegre, meia plangente. O cantor appareceu, logo que os -cavalleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquelle logar. Era o -preto, que pouco tinham visto sentado no chão. - ---Que lhe dizia eu? observou a irmã de Estacio. Alli vai o infeliz de -ha pouco. Uma laranja chupada no capim e trez ou quatro quadras, é o -bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar -comprar o tempo. Nós poderiamos dizer o mesmo? - ---Porque não? - -A moça recolheu-se ao silêncio. - ---Helena, isso que voce acaba de dizer. Vamos, estamos sos; confesse -alguma tristeza que tenha. - ---Nenhuma, respondeu a moca. Peço-lhe, entretanto, uma cousa. - ---Diga. - ---Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu -respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras, -emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espirito esta -verdade: é que sou uma pobre alma lançada n'um turbilhão. - -Estacio ia pedir explicação mais desenvolvida daquellas últimas -palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote, -e deitou a egua a correr. Estacio fez o mesmo ao cavallo; dahi a alguns -minutos entravam na chacara, elle aturdido e curioso, ella com a face -vermelha e a bater-lhe violentamente o coração. - - - - -CAPITULO VII - - -Apearam-se os dous no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter -á varanda. Pizando o primeira degrau, disse Estacio: - ---Helena, explique-me suas palavras de ha pouco. - ---Quaes? - -E como Estacio levantasse os hombros, com ar de despeito, continuou -Helena: - ---Perdõe-me; sua pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do -que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer -meias confissões; mas neste caso a confissão inteira seria imprudencia -maior. Se se tratasse de factos, creia que a ninguem melhor podia -confia-los do que a voce; mas por que motivo irei perturbar-lhe o -espirito com a narração de meus sentimentos, se eu propria não chego -a entender-me? - -Estacio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e -entraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula dando as ordens -daquelle dia, a dous escravos. Estacio entrou pensativo; Helena mudou -totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a -melancholia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara a jovialidade -de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma especie de comediante -que recebêra da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que -a obrigava a mudar continuamente de vestuario. D. Ursula viu-a entrar -risonha e ir a ella dar-lhe os costumados--_bons dias_--que era sempre -um beijo,--ou antes dous,--um na mão, outro na face. - ---Demorei-me muito? perguntou ella voltando rapidamente o corpo, de -maneira a ver o relogio que ficava do outro lado da sala. Nove horas! -Que passeio, Sr. meu irmão! - -Estacio olhava para ella silencioso e não lhe respondeu. Seu olhar não -era de censura, mas de curiosidade, pena e admiração. Os dous foram -logo depois mudar de _toilette_, e o almôço reuniu a familia. D. -Ursula propoz, durante elle, algumas mudanças na disposição da -chacara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e -aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Ursula desceu -á chacara com Estacio. As alterações foram ainda estudadas e -combinadas no proprio terreno, com assistencia do feitor. Logo que -acabou a deliberação e que o projecto de D. Ursula foi definitivamente -assentado, Estacio reteve-a e lhe disse: - ---Preciso falar-lhe um instante. - ---Tambem eu. - ---Quaes são os seus sentimentos actuaes em relação a Helena? Oh! não -precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são -meras apparencias. Não creio que seja absolutamente amiga della; mas -não póde negar que a antipathia desapareceu ou diminuiu muito. - ---Diminuiu, talvez. - ---E com razão. Pensa que tambem eu não tive repugnancias -depois que ella aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem -desaparecido,--desapareceriam hoje de manhã. - ---Como? - -Estacio referiu á tia a scena do capitulo anterior e as palavras que -lhe dissera Helena. D. Ursula sorriu ironicamente. - ---Não a impressiona isto? perguntou Estacio. - ---Não, respondeu D. Ursula com decisão; a phrase de Helena é achada -em algum dos muitos livros que ella le. Helena não é tola; quer -prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que -começo a gostar della; é dedicada, affectuosa, diligente; tem -maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é -naturalmente sympatica. Ja vou gostando della; mas é um gostar sem fogo -nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença -de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cançada. -Helena preenche essa lacuna. Se alguma cousa, entretanto, a podia -prejudicar nas nossas relações é esse dito. - -Estacio tomou calorosamente a defesa da irmã. - ---O que eu lhe contei, disse elle, foram apenas as palavras. Não pude -nem poderei reproduzir a expressão sincera com que ella as proferiu e a -profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vel-a -mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de -dúvida; mas passou logo. Sua natureza tem esse raro poder de concentrar -a amargura no coração; tambem a dor tem suas hypocrisias... - ---Mas que dor? que amargura? interrompeu: D. Ursula. A dor de ser -legitimada? a amargura de uma herança? - -Estacio protestou calorosamente contra aquelle caminho que a tia dava a -suas ideias; emfim pediu-lhe que interrogasse com cautella a irmã. - ---Um homem, concluiu elle, é menos apto para obter taes confissões; -uma senhora, respeitavel e parenta, está mais no caso de lhe captar a -confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel? - ---Pedes muito, respondeu D. Ursula. Verei se te posso dar metade disso. -Era só o que tinhas para dizer? - ---Só. - ---Uma creancice! Eu tenho cousa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me: -trata-se... - ---Não precisa dizer mais nada, interrompeu Estacio; la vem elle. - -Camargo apparecêra effectivamente a vinte passos de distância. - ---Doutor,--disse D. Ursula, logo que este se approximou delles, chega um -pouco fóra de proposito. Eu mal tive tempo de assustar meu sobrinho, -que ainda não sabe o que o senhor lhe quer. - ---Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me approva. - ---Completamente, - ---Trata-se...--disse Estacio. - ---De uma conspiração; todos conspiramos em seu beneficio. - -D. Ursula retirou-se para casa; os dous ficaram sos. Uma vez sos, -Camargo pousou a mão no hombro de Estacio, fitou-o paternalmente, emfim -perguntou-lhe se queria ser deputado. Estacio não pôde reprimir um -gesto de sorpreza. - ---Era isso? disse elle. - ---Creio que não se trata de um supplício. Uma cadeira na camara! Não -é a mesma cousa que um quarto no aljube. - ---Mas a que proposito... - ---Ésta ideia apoquentava-me ha algumas semanas. Doia-me ve-lo vegetar -os seus mais bellos annos n'uma obscuridade relativa. A política é a -melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrucção, -caracter, riqueza; póde subir a posições invejaveis. Vendo isso, -determinei-me a mettel-o na Cadeia... Velha. Fala-se em dissolução. -Para facilitar-lhe o successo, entendi-me com duas influências -dominantes, o negocio afigurasse-me em bom caminho. - -Estacio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico. - ---Mas doutor, disse elle depois de curto silêncio, houve de sua parte -alguma precipitação. Pelo menos, de via consultar-me. Do modo por que -arranjou as cousas, quasi me acho desobrigado de lhe agradecer a -intenção. Quanto a acceitar, não acceito. - -Camargo não perdeu a tramontana. Havia nelle a tenacidade do dogue e a -tactica da serpente. Deixou passar por cima da cabeça a primeira onda -de desagrado, surgiu fóra e insistiu tranquillamente: - ---Vejamos as cousas com os oculos do senso-commum. Em primeiro logar, -não creio que tenha outros projectos na cabeça. - ---Talvez. - ---Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A sciencia é ardua e -seus resultados fazem menos ruido. Não tem vocação commercial nem -industrial. Medita alguma ponte-pensil entre a Côrte e Nictheroy, uma -estrada até Matto-Grosso ou uma linha de navegação para a China? É -duvidoso. Seu futuro tem por ora dous limites unicos, alguns estudos de -sciencia e os alugueis das casas que possue. Ora, a eleição nem lhe -tira os alugueis nem obsta a que continue seus estudos; a eleição -completa-o dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A unica objecção -seria a falta de opinião política; mas ésta objecção não o póde -ser. Hade ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades -públicas, e... - ---Supponha,--é mera hypothese,--que tenho alguns compromissos com a -opposição. - ---Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na camara--embora -pela porta dos fundos. Se tem ideias especiaes e partidarias, a primeira -necessidade é obter o meio de as expor e defender. O partido que lhe -der a mão,--se não fôr o seu,--ficará, consolado com a ideia de ter -ajudado a a um adversario talentoso o honesto. Mas a verdade é que não -escolheu ainda entre os dous partidos; não tem opiniões feitas. Que -importa? Grande numero de jovens politicos seguem, não uma opinião -examinada, ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas affeições, -a que seus paes ou amigos immediatos honraram e defenderam, a que as -circumstâncias lhe impõem. Dahi vem algumas legítimas conversões -posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circumstâncias da -origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnifico lyrio -saquarema ou luzia. Demais, a política é sciencia prática; e eu -desconfio de theorias que só são theorias. Entre primeiro na camara; a -experiencia e o estudo dos homens e das cousas lhe designarão a que -lado se deve inclinar. - -Estacio ouviu attento éstas vozes com que a serpente lhe apontava para -a árvore da sciencia do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a -discutir philosophicamente com o reptil. - ---Entra-se na política,--disse elle,--por vocação legítima, -ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração. -Nenhum desses motivos me impelle a dobrar o cabo Tormentorio. - ---Da Boa Esperança,--emendou Camargo rindo;--não supprima tres seculos -de navegação. - -Estacio riu-se tambem. Depois falou ao médico de sua indole e -ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia -políticas nem todas eram da mesma estatura. Os espiritos, disse elle, -nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras especies intermedias. A -uns é necessario o horisonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo -batem as azas e sobem a encarar o sol; outros contentam-se com algumas -longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho. -Estes eram os obscuros, e, na opinião delle, os mais felizes. Não -seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a história -em suas páginas luminosas ou sombrias; o vão do telhado em que -abrigaram a prole, a árvore em que pousaram, são as testemunhas -unicas, e morredoras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os -colhe, vão elles pousar no regaço commum da eternidade, onde dormem o -mesmo perpétuo somno, tanta o capitão que subiu ao summo estagio por -uma escala de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o -esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão infimas como -seriam as do cabreiro; eram as do proprietario do campo que o capitão -atravessasse. Um bom peculio, a familia, alguns livros e amigos,--não -iam além seus mais arrojados sonhos. - -Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico. - ---Meu caro Estacio,--disse, elle depois,--esse trocadilho de andorinhas -e cabreiros é a cousa mais extraordinaria que eu esperava ouvir a um -mathematico. Saiba que detesto egualmente a philosophia da obscuridade e -a rhetorica dos poetas. Sobretudo gósto que me respondam em prosa -quando falo em prosa. - ---Parece-lhe que poetei? perguntou Estacio rindo. - ---Despropositamente! Ora, eu falo de cousas sérias; e convem não -confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que -são a parte ideológica e vã. - ---Eu serei ideologo, - ---Não tem direito de o ser. - ---Pois bem, deixe-me com as minhas mathematicas, as minhas flôres, as -minhas espingardas. - ---Não! Ha de intercalar tudo isso com um pouco de política. - -Puxando-o familiarmente pela gola do paleto, Camargo fel-o sentar ao pe -de si, no banco que alli estava mais proximo. Depois falou. O novo -discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma -das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma -complacencia de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da -política, e não só as reaes, mas as ficticias ou duvidosas, foram -inventariadas, pintadas, douradas e illuminadas pelo médico. Sua palavra -revellou um poder de evocação, uma vehemencia, uma energia, que -ninguem era capaz de suppor-lhe. O taciturno desabrochou tagarella. Para -falar tanto e com tal fôrça era preciso que o animasse um grande -sentimento ou um grande interesse. - -Estacio, lisonjeado com a affeição que elle lhe mostrava, não teve -ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa; -adoptou o alvitre de deferir a resposta para outra occasião. - ---Ja lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou prompto a -reflectir, e a consultar o padre Melchior e Helena. - -O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente -não passou o effeito de um sorriso sardonico e dissimulado. Interveiu -uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a -extrahir lentamente de uma boceta de tartaruga, presente do conselheiro -Valle. - ---Helena! disse elle com alguma hesitação. Que vem fazer sua irmã -neste negocio? - ---É um voto,--redarguiu Estacio; e menos leve do que lhe parece. Ha -nella muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa -harmonia com as suas outras qualidades feminis. - -Entre as sobrancelhas de Camargo projectou-se uma longa ruga, e foi toda -a expressão de seu espanto e desgôsto. A resposta de Estacio -revellara-lhe uma situação nova na familia: o voto de Helena, -consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Ésta solução, que -porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a -previra o médico. Limitou-se a notal-a de si para si; e, terminando -subitamente a conversa, disse: - ---Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha -opinião, não é seu amigo. Em todo o caso, ninguem lhe poderá -affirmar que não é a amizade, a longa amizade. - -Estacio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe affectuosamente a mão. -Tinham-se levantado. Era quasi meio dia; Camargo despediu-se alli mesmo; -ia ver dous doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro -atravessou sosinho a chacara; ia pensativo, e aborrecido. A política, -na sua opinião, era uma noiva importuna; mas se todos conspirassem a -favor della, não sería elle obrigado a desposal-a? A ésta reflexão -respondeu a voz do padre Melchior, do alto de uma janella: - ---Venha ca, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso? - - - - -CAPITULO VIII - - -D. Ursula tinha ja confiado ao velho capellão a proposta de Camargo. -Consultado por Estacio, respondeu este que sua opinião era -absolutamente inutil. - ---Consulte suas fôrças e a responsabilidade do cargo, e escolha, -concluiu o padre. - ---Ja escolhi, disse Estacio; pedia seu conselho para apoiar melhor a -minha propria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos? -Decidi que não acceito a candidatura. A vida política é turbulenta de -mais para o meu espirito. Estou prompto para a acção, mas não hade -ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar á camara, -além de algumas prerogativas e um papel accessorio? Eu só me meteria na -política, se pudesse officiar; mas ser apenas sachristão... - ---Entre o officiante e o sachristão, observou Melchior, está o -prégador, que é cargo nobre e influente. - ---Mas o thema do sermão, padre-mestre?--retorquiu Estacio rindo; -falta-me o thema. - -D. Ursula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público -em favor do sobrinho, viu naquellas razões um pretexto ou uma -puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o -sobrinho para que reflectisse maduramente, antes de qualquer resposta -definitiva. Estacio prometteu como promettêra ao médico, por simples -condescendencia; mas sobretudo para pôr termo ao assumpto e ir saber a -causa do sorriso quasi imperceptivel que viu roçar os labios de Helena. -A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janellas; Estacio foi até -alli. - ---Adivinhei pelo seu sorriso,--disse elle, que tudo isto lhe pareço -pueril, e que eu faço bem em não acceitar o que se me offerece. - -Helena olhou um pouco espantada para elle; mas respondeu com -tranquillidade: - ---Pelo contrário, penso que deve acceitar. Além de haver consentimento -de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugenia. - -Era a primeira vez que Helena alludia ao amor de Estacio, e fazia-o por -modo encoberto e obliquo. Estacio escapou dessa vez á regra de todos os -corações amantes: resvalou pela allusão e discutiu gravemente o -assumpto da candidatura. Era pesado de mais para cabeça feminina; -Helena intercalou uma observação sobre dous passarinhos que bailavam -no ar, e Estacio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores. - -Durante dous dias, não sahiu elle de casa. Tendo recebido alguns livros -novos, gastou uma parte do tempo em os folhear, ler alguma página, -collocal-os nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos -anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliophilo. Helena ajudava-o -nesse trabalho,--um pouco parecido com o de Penelope,--por que a ordem -estabelecida ao meio dia era às vezes alterada às duas horas, e -restaurada na seguinte manhã. Estacio, entretanto, não ficava todo -entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado -com que ella o auxiliava. Helena parecia não andar; seu vulto resvalava -silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo a uma indicação do -irmão, ou pondo em experiencia uma ideia sua. Estacio parava às vezes -fatigado; ella continuava imperturbavelmente o serviço. Se elle lhe -fazia alguma observação, a moça respondia com um movimento de hombros -ou um sorriso, e proseguia. Então Estacio segurava-lhe nos pulsos e -exclamava rindo: - ---Socega, borboleta! - -Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a -mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na -intimidade mais doce, e que a reciproca affeição ia excluindo toda a -preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as -proporções de voto preponderante. - -No terceiro dia D. Thomasia e Eugenia foram jantar a Andarahy. Eugenia -estava nesse dia mais sisuda e docil que nunca; dissera-se que trazia a -alma tão nova como o vestido, e menos enfeitada que elle. Estacio -sentiu-se satisfeito; o ideal reconciliava-se com o real. Poderam falar -sosinhos mais de uma vez; todas as pessoas da casa pareciam conspiradas -para lhes deixar a solidão. Foi ella quem recordou a proposta política -do pai, da qual soubera casualmente, ouvindo a narração que este -fizera a D. Thomasia. O desejo de Eugenia era pela affirmativa; e -Estacio, receioso de despertar os caprichos adormecidos da moça, -frouxamente resistiu, e consentiu ainda mais frouxamente em -reconsiderar o assumpto. - ---Deputado! exclamava Eugenia com os olhos no ceu. - -Estacio acompanhou Eugenia e D. Thomasia na carruagem que as levou ao -Rio Comprido. O dia fôra mais ou menos alegre; a viagem foi divertida e -palreira como um regresso de romaria. Os cavallos mostravam-se tão -lepidos como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o -caminho, com desgôsto de Eugenia. - -Voltando a Andarahy, Estacio trazia a alma pura de todas as más -impressões, que lhe deixavam usualmente as visitas á casa de Camargo. -Nenhum dissentimento houvera naquelle dia. Eugenia parecia modificada. -Em casa esperava-o porém uma desagradavel noticia: a tia sentira-se -incommodada pouco depois que elle sahíra e recolhera-se ao quarto. O -caso affligiu-o; mas não tardou a apparecer Helena, que o tranquilisou, -dizendo-lhe que D. Ursula tinha apenas uma forte dor de cabeça, ja -diminuida com o emprêgo de um remedio cazeiro. - -No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia socegadamente, -Estacio abriu uma das janellas do quarto e relanceou os olhos pela -chacara. A alguns passos de distância, entre duas larangeiras, viu -Helena a ler attentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as -suas quatro laudas escriptas. Seria alguma mensagem amorosa? - -Ésta ideia molestou-o singularmente. Affastou-se da janella, conchegou -as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena estava de -pe, no mesmo logar, e percorria rapidamente as linhas, até o final da -ultima página. Alli chegando, deu dous passos, tornou a parar volveu -ao princípio da carta, para a ler de novo, não ja depressa, mas -repousadamente. Estacio sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, á -qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciume. A ideia de que -Helena podia repartir seu coração com outra pessoa desconsolava-o ao -mesmo tempo que o irritava. A razão de semelhante exclusivismo não a -explicou elle, nem tentou investigal-a; sentiu-lhe somente os effeitos, -e ficou alli sem saber que faria. Duas vezes sahiu da janella para ir -ter com a irmã, mas recuou de ambas as vezes, reflectindo que a -curiosidade pareceria impolidez, se não era talvez, tyrania. Ao cabo -de alguns minutos de hesitação, sahiu do quarto e dirigiu-se á -chacara. - -Quando alli chegou, Helena passeava lentamente com os olhos no chão. -Estacio parou deante della. - ---Ja fora de casa! exclamou em tom de gracejo. - -Helena tinha a carta na mão esquerda; instinctivamente a amarrotou como -para escondel-a melhor. Estacio, a quem não escapou o gesto, -perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa. - ---Nota verdadeira, disse ella alisando tranquillamente o papel, e -dobrando-o conforme recebêra; é uma carta. - ---Segredos de moça? - ---Quer lel-a? perguntou Helena apresentando-lh'a. - -Estacio fez-se vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente -o papel e guardou-o na algibeira do vestido. A innocencia não teria -mais puro rosto; a hypocrisia não encontraria mais impassivel máscara. -Estacio contemplava-a a um tempo envergonhado e suspeitoso; a carta -fazia-lhe cocegas; seu olhar ambicionava ser como o da Providencia que -penetra nos mais intimos refolhos do coração. Vieram, entretanto, -dizer a Helena que D. Ursula lhe pedia fôsse ter com ella. Estacio -ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquerito mental sôbre a -procedencia da mysteriosa missiva. Um indicio havia de que podia conter -alguma cousa secreta; era o gesto com que ella a escondeu. Mas não -podia ser de alguma antiga companheira do collegio, que lhe confiava -segredos seus? Estacio abraçou com alvorôço ésta hypothese. Depois, -occorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia tratar de -algum idyllio de collegio, em que Helena fosse protagonista, idyllio -vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso, -que tinha elle com isso? - -Fazendo ésta ultima reflexão, Estacio sacudiu do espirito o assumpto -e seguiu a examinar as novas obras da chacara, entre as quaes figurava -um vasto tanque. Ja alli estavam os operarios; ia começar o trabalho do -dia. Estacio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas -eram contrárias ao plano assentado; como lhe fizessem tal observação, -Estacio rectificou-as. Depois admirou-se de não ver um vaso, que alias -dous dias antes mandara remover; emfim recommendou a rega de uma planta, -ainda humida da agua que o feitor lhe deitára nessa manhã. - -D. Ursula não estava de todo boa, mas pôde almoçar á mesa commum. O -sobrinho appareceu aborrecido; a sobrinha triste; o dialogo foi -mastigado como o almôço. No fim deste, recebeu Estacio uma carta de -Eugenia. Era uma tagarelice meia frivola, meia sentimental, mistura de -risos e suspiros, sem objecto definido, a não ser pedir-lhe que -escrevesse, se não pudesse ir vel-a. - -Acabava elle de ler a carta, quando Helena lhe appareceu á porta do -gabinete. Não a escondeu; teve um pensamento singular: mostral-a à -irmã, na esperança de que ésta, pagando-lhe com egual confiança, lhe -mostrasse a sua,--ideia que revellava o seu nenhum conhecimento do -espirito das mulheres, porquanto só a indiscrição masculina era capaz -de cahir em semelhante laço. Helena percorreu com os olhos a carta de -Eugenia e esteve algum tempo silenciosa. - ---Permitte-me um conselho? perguntou ella. - -E como Estacio respondesse com um gesto de assentimento: - ---Va ter com Eugenia, solicite licença para ir pedil-a a seu pai, e -conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? della creio -poder affirmar que sim; de voce... - ---De mim? - ---Penso que é mais duvidoso; ou voce é mais habil. Hade ser isso. -Naturalmente parece-lhe fraqueza amar,--isto é, a cousa mais natural do -mundo,--a mais bella,--não direi a mais sublime. Os homens serios tem -preconceitos extravagantes. Confesse que ama,--que não é indifferente -a esse sentimento inexprimivel que liga, ou para sempre, ou por algum -tempo, duas creaturas humanas. - ---Ou por algum tempo! repetiu mentalmente Estacio. - -E éstas quatro palavras tão naturaes e tão communs tinham ares de uma -revellação nova no estado de espirito em que elle se achava. Se Helena -tivesse proposito de lhe lançar a perplexidade na alma não empregaria -mais efficaz conceito. Sería na verdade aquelle amor tão travado de -desanimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu proprio -coração, seria uma affeição destinada a perecer no occaso da -primeira lua matrimonial? - ---Pois bem, concordou elle, ao cabo de alguns instantes; é verdade. -Eugenia não me é indifferente; mas poderei estar certo dos sentimentos -della? Ella mesma poderá affirmar alguma cousa a tal respeito? Ha alli -muita frivolidade que me assusta; illude-a talvez uma impressão -passageira. - ---Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão -passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto -de partida. O marido fara a mulher. Convenho que Eugenia não tem todas -as qualidades que voce desejaria; mas não se póde exigir tudo; alguma -cousa é preciso sacrificar, e do sacrificio recíproco é que nasce a -felicidade doméstica. - -As reflexões eram exactos: por isso mesmo Estacio as interrompeu. O -filho do conselheiro achava-se n'uma posição difficil. Caminhara para -o casamento com os olhos fechados; ao abril-os viu-se á beira de uma -cousa que lhe pareceu abysmo, e era simplesmente um fôsso estreito. De -um pulo poderia transpol-o; mas, se não era irresoluto nem debil, tinha -elle acaso vontade de dar esse salto? - -Insistindo Helena, prometteu elle que nessa tarde iria visitar Camargo. -De tarde desabou um temporal violento. A fôrça do vento e da trovoada -abrandou; mas a chuva continuou a cahir com a mesma violencia; era -impossivel ir ao Rio Comprido. Estacio estimou aquelle obstaculo; era -melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colhêr algum -desgôsto juncto della. - -De pe, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via elle cahir -os grossas toalhas de agua. A seu lado estava sentada Helena, não -alegre, mas taciturna e melancholica. - ---É tão bom ver chover quando estamos abrigados, exclamou elle. Tenho -la na estante um poeta latino que diz alguma cousa neste sentido... Que -tem voce? - ---Estou pensando nos que não tem abrigo, ou o tem mau; nos que não tem -neste momento nem tectos solidos nem corações amigos ao pe de si. - -A voz da moça era trémula; uma lagryma lhe brotou dos olhos, tão -rapida que ella não teve tempo de a dissimular. Sorprehendida nessa -manifestação de sensibilidade, inexplicavel talvez para o irmão, -ergueu-se e procurou gracejar e rir. O riso parecia uma cristalisação -da lagryma; e o gracejo tinha ares do responso. Estacio não se -illudiu; nada daquillo era claro,--ou era tão claro como a carta. Seu -olhar, severo e frio, interrogou mudamente a moça. Helena, que tivera -tempo de tranquillisar-se, voltou o rosto para a rua, e começou a rufar -com os dedos na vidraça. - - - - -CAPITULO IX - - -Naquella mesma noite D. Ursula, que não havia de todo melhorado, -adoeceu devéras. A familia, mal convalecida da perda de seu velho -chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso exposta a -novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu -principio a rigoroso tratamento. - -Helena era naquella occasião a natural enfermeira. Pela primeira vez -patenteou-se em todo o explendor a dedicação filial da moça, sua -constancia, solicitude e tino. As horas do dia, e não poucas noites -inteiras, passava-as na alcova de D. Ursula, attenta a todos os cuidados -que a gravidade da enfêrma exigia. Os remedios e o pouco alimento que -ésta podia receber não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava -á cabeceira durante o somno leve e interrompido da doente, achando em -suas proprias fôrças a resistencia que a natureza confiou -especialmente ás mães. Quando dava algum repouso ao corpo, não era -elle ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do -leito, collocado provisoriamente no quarto contiguo, para ir espreitar a -mucama que em seu logar acompanhava a enfêrma. As prescripções do -médico era ella quem as recebia e cumpria. A voz dura e sêcca com que -Camargo lhe falava não era propria a tornal-o amavel e aceito, mas -Helena cerrava os ouvidos á antipathia do homem para só obedecer ao -médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos -phenomemos da doença; nem podia achar quem melhor os observasse e -referisse; fôrça lhe era acceital-a. Assim que, essas duas pessoas que -se repeliam e detestavam, iam de accordo desde que se tratava da vida de -um terceiro. - -O que completava a pessoa de Helena e ainda mais lhe mereceu o respeito -de todos é que, no meio das occupações e preocupações daquelles -dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ella regeu a -familia e serviu a doente, com egual desvello e beneficio. A ordem das -cousas não foi alterada nem esquecida fóra da alcova de D. Ursula; -tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinario se -houvesse dado. Helena sabia dividir a attenção sem dispersal-a, que é -o principal segrêdo do trabalho fecundo. - -De si é que ella não curou muito. A _toilette_ era singella e -descuidada. Os cabellos, colhidos á pressa e presos por um pente no -alto da cabeça, não receberam de sua dona, em todo aquelle tempo, a -fórma elegante e graciosa, com que ella os saiba realçar. Accrescia o -abatimento e pallidez, que era impossivel evitar no meio de tanta -fadiga, certo cançasso dos olhos, que os fazia molles e talvez mais -adoraveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio attento e -laborioso. - -A doença durou cêrca de vinte dias. Afinal, triumphou a sciencia e a -propria natureza de D. Ursula, robusta apezar dos annos. A -convalecença começou; com ella volveu a satisfação da familia. O -papel de Helena não estava acabado; diminuia, contudo, e Estacio -interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto -repouso. Ella recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria -aos poucos recuperado. - -Havia no coração de D. Ursula uma fonte de ternura, que Helena devia -tocar, para jorrar livre e impetuosamente. Sua dedicação, em tal -crise foi a vara mysteriosa daquella Oreb. A affeição da tia era até -então frouxa, voluntaria e deliberada. Depois da molestia, avultou -expontanea. A experiencia do caracter da moça dera esse resultado -inevitavel. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou -fortemente o que tantas circumstâncias anteriores pareciam separar. -Não o occultou a irmã do conselheiro; suas maneiras não tinham ja -acanhamento nem reserva; as palavras subiam do coração á boca sem -atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe. - -No dia em que ella pôde sahir do quarto pela primeira vez, Helena -deu-lhe o braço e levou-a até á sala de costura e das reuniões -íntimas. Estacio amparou-a do outro lado. Alli chegando, foi ella -sentada n'uma poltrona. Estacio abriu um pouco a janella, para penetrar -além da luz, um pouco de ar. D. Ursula respirou á larga, como lavando -o pulmão cora aquella primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos -de Helena, que ficára de pe a seu lado, fel-a inclinar a fronte e -imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estacio -approximara-se; aquella manifestação encheu-o de júbilo. - ---Bem merecido beijo!--exclamou elle. Helena foi um anjo em todo este -tempo. - ---Bem sei,--retorquiu D. Ursula; foi um verdadeiro anjo, foi mulher, -mãe e filha. Obrigada, Helena! Póde ser que a medicina tenha ajudado a -cura, mas o principal merito é só teu. - -Helena abraçou a convalecente. - ---Estacio,--disse ésta; agradece a tua irmã, como eu fiz. - -Estacio inclinou-se para Helena afim de lhe pousar na fronte o casto -ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena desviando o busto e -reclinando a cabeça para traz, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e -disse: - ---Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um apêrto de mão e -o affecto de todos. - -Estacio apertou-lhe a mão, e sentiu-lh'a trémula. Aquelle movimento de -castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais -bella. Uma creatura tão ciosa de si mesma que nem admittia a caricia do -irmão, não era digna de honrar o nome da familia? - -A convalecença de D. Ursula foi lenta, e não a houve mais rodeada de -cuidados e attenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante -sosinha, e inventavam toda a sorte de recreio com que pudessem -distrahil-a: jogos de familia ou leitura, musica ou simples palestra -íntima. Uma vez lembraram-se de representar, só para ella, uma comedia -de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que -tomaram parte Eugenia Camargo, e mais tres moças da visinhança. Foi a -primeira vez que a ouviram cantar. O successo não podia ser mais -completo. Como o applauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a -filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triumpho, fazendo-a -executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estacio, que -quasi não tirava os olhos da irmã, percebeu-lhe a intenção, e -disse-lh'o. Helena esquivou-se à allusão; mas, insistindo elle: - ---Não ha nada que admirar, disse ella; Eugenia toca perfeitamente; ora -justo que tambem fosse applaudida. Se ha arte no que fiz, parece-me que -é a mais singella do mundo. O melhor modo de viver em paz, é nutrir o -amor proprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugenia nem -precisa disso; tem a primazia da belleza. Veja se ha creatura mais -deliciosa. - -Estacio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de -duas moças e dous rapazes. Eugenia pelo braço de um delles, estava de -pe, ouvindo sem attender as palavras, que alli diziam, por que seus -olhos inquietos derramavam-se por toda ella e pela sala. Admirava-se e -espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa; -mas Estacio quizera-a mais inconsciente, menos preoccupada do effeito -que produzia. - ---Ha cem bellezas como aquella, disso elle. - ---Estacio! exclamou Helena com ar de reprehensão. - ---A belleza é como a bravura; vale mais se não a mettem á cara dos -outros. - ---Voce é um ingrato! - -Naquella noite ficou mais patente que nunca a preponderancia ganha por -Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a directora ouvida e -obedecida. D. Ursula cedêra, em poucas semanas, o que lhe negára -durante mezes. - -Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguíra ella -apressar o casamento de Estacio? Estacio continuava a hesitar, a recuar, -a adiar; pedia tempo para reflectir. Suas ausencias no Rio Comprido -iam-se tornando mais longas; os dias, quasi todos, eram desfiados no -remanso da familia. Mas Helena insistiu tanto que elle prometteu fazer o -solemne pedido no primeiro dia do anno. - -Estacio não havia esquecido a carta lida pela irmã; mas por mais que a -espreitasse e a estudasse nada descobria que lhe fizesse suppor -affeição encoberta. Nenhum dos homens que iam alli,--e eram -poucos,--parecia receber de Helena mais do que a cortezia commum. D. -Ursula, a quem elle incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras -que ésta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve -resposta mais decisiva. - -A promessa de ir pedir Eugenia, fel-a Estacio na segunda semana de -Dezembro, em uma noite sem visitas que eram as melhores noites para -elle. No dia seguinte de manha, erguendo-se tarde, soube que Helena -sahíra a cavallo logo cedo. - ---Sosinha? - ---Com o Vicente. - -Vicente era o escravo que, como sabemos, se affeiçoára, primeiro que -todos, a Helena; Estacio designara-o para servil-a. A notícia do -passeio não lhe agradou. O tempo andava com o mesmo passo de costume; -mas á anciedade do mancebo affigurava-se que era mais longo. Estacio -chegava á janella, ia até o portão da chacara, cora ar de apparente -indifferença, que a todos illudia, a começar por elle proprio. N'uma -das vezes em que voltou a casa, achou levantada D. Ursula; falou-lhe; D. -Ursula sorriu com tranquillidade. - ---Que tem isso? disse ella. Ja uma vez sahiu a passeio com o Vicente e -não aconteceu nada. - ---Mas não é bonito, insistiu Estacio. Não está livre de um acto de -desattenção. - ---Qual! Toda a visinhança a conhece. Demais, Vicente ja não é tão -creança. Tranquillisa-te, que ella não tarda. Que horas são? - ---Oito. - ---Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que ja ouço um tropel. - -Os dous estavam na sala de juntar: passaram á varanda, e viram -effectivamente entrar no terreiro Helena e o pagem. Helena deu um salto -e entregou a redea de _Moema_ ao pagem que acabava de apear-se. Depois -subiu a escada da varanda. Ao collocar o pe no primeiro degrau, deu com -os olhos nu irmão e na tia. Fez-lhes um comprimento com a mão, e subiu -a ter com elles. - ---Ja de pe! exclamou abraçando D. Ursula. - ---Ja, para lhe ralhar,--disse ésta sorrindo. Que ideia foi essa de -bater a linda plumagem? É a segunda vez que voce se lembra de sahir sem -o urso do seu irmão. - ---Não quiz incommodar o urso, replicou ella voltando-se para Estacio. -Tinha immensa vontade, de dar um passeio, e _Moema_ tambem. Apenas hora -e meia. - -Aquelle dia foi o de maior tristeza para a moça. Estacio passou quasi -todo o tempo em seu gabinete; nas poucas occasiões em que se -encontraram, elle só falou por monosyllabos, ás vezes por gestos. De -tarde, acabado o jantar, Estacio desceu á chacara. Ja não era só o -passeio de Helena que o mortificava; ao passeio jantava-se a carta. -Teria razão a tia em suas primeiras repugnancias? Como elle fizesse -essa pergunta a si mesmo, ouviu atraz de si um passo apressado e o -farfalhar de um vestido. - ---Está mal commigo? perguntou Helena com doçura. - -Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a colera do mancebo. Voltou-se; Helena -estava deante delle, com os olhos submissos e puros. Estacio reflectiu -um instante. - ---Mal? disse elle. - ---Parece que sim. Não me fala, não se importa commigo,--anda -carrancudo... Seria por que eu sahi do manhã? - ---Confesso que não gostei muito. - ---Pois não sahirei mais. - ---Não; póde sahir. Mas está certa de que não corre nenhum perigo -indo só com seu pagem? - ---Estou. - ---E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim? - ---Não sei se poderei obedecer. Nem sempre voce poderá acompanhar-me; -além disso, indo com o pagem, é como se fosse só; e meu espirito gosta -ás vezes de trotar livremente na solidão. - ---Naturalmente a pensar de cousas amorosas... acrescentou Estacio -cravando os olhos interrogadores na irmã. - -Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram -silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estacio -sentou-se; Helena ficou de pe diante delle. Olharam um para outro sem -proferir palavra; mas o labio de Estacio tremêra duas ou tres vezes -como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se. - ---Helena, disse elle, voce ama. - -A moca estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si como assustada -e pousou as mãos nos hombros de Estacio. Reflectiu ella no que disse -depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa occasião parecia concentrar -todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente: - ---Muito! muito! muito! - -Estacio empallideceu. A moça recuou um passo, e, trémula, poz o dedo -na boca como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava em seu rosto; -Helena deu as costas ao irmão e affastou-se rapidamente. Ao mesmo -tempo, a sineta do portão era agitada com fôrça, e uma voz atroava a -chacara: - ---Licença para o amigo que vem do outro mundo! - - - - -CAPITULO X - - -Estacio dirigiu-se ao portão. Abria-o; um moço que alli estava entrou -precipitadamente. Era Mendonça. Os dous mancebos lançaram-se nos -braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquella -effusão, e não lhe foi difficil adivinhar quem era o recem-chegado. - -A effusão cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os -dous rapazes se julgaram assaz abraçados, tomaram o caminho da casa. -Helena, que estava um pouco adiante delles, foi apresentada a Mendonça. -Ao ouvir que era irmã de Estacio, Mendonça ficou naturalmente -espantado. Cortejou ceremoniosamente a moça, e os dous seguiram até a -casa, onde pouco depois entrou Helena. - -Mendonça era da mesma estatura que Estacio, um pouco mais cheio, -hombros largos, physionomia risonha e franca, natureza mobil e -expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era, -arrancado de fresco ao _boulevard_ de Gand, ao cafe Tortoni e ás -recitas do Vaudeville. A mão larga e forte calçava fina luva côr de -palha, e sôbre o cabello, penteado a capricho, pousava um chapeu de -fabrica recente. - -Estacio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena, -cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer -comprehender o respeito e a affeição que ella de todos merecia. Helena -adivinhou esse trabalho preparatorio do irmão logo que entrou na sala. - -Mendonça divertiu a familia uma parte da noite contando os melhores -episodios da viagem. Era narrador agradavel, fluente e pitoresco, -dotado de grande memoria e certa fôrça de observação. Seu espirito -galhofeiro achava mais facilmente o lado comico das cousas; e mais se -comprazia em dizer os accidentes de um jantar de hotel ou de uma noite -de theatro que em descrever as bellezas da Suissa ou os destroços de -Roma. - -A visita durou pouco mais do hora. Estacio quiz acompanhal-o até a -cidade; elle não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a -chacara, falaram do passado, e um pouco do futuro, a trechos soltos, -como o lugar e a occasião lhes permittiam. Mendonça, vendo que Estacio -não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o aventou. - ---Fallaste-me em uma de tuas cartas de certa Eugenia... - ---A filha do Camargo. - ---Justo. Negocio roto? - ---Quasi terminado. - ---Terminado... na egreja, supponho? - ---Tal qual. - ---Quando? - ---Brevemente. - ---Marido, emfim! Era só o que te faltava. Nasceste com a bossa conjugal, -como eu com a bossa viajante, e não sei qual de nós terá razão. - ---Talvez ambos. - ---Creio que sim. Tudo depende do gôsto de cada um. O casamento é a -peor ou a melhor cousa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi -algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não te pergunto se -é um anjo... - ---É um anjo. - ---Como todas as noivas. Feliz Estacio! Segues a carreira de tua -vocação, em quanto que eu... - ---Tu? - ---Interrompo a minha e talvez para sempre. Preciso cuidar da vida; não -sou capitalista, nem meu pae tão pouco. Adeus, viagens! - ---Tanto melhor! Arranjo-te noiva. Não é a tua vocação, mas não -serás o primeiro que a erre, sim que dahi venha mal ao mundo. - ---Pois arranja la isso. Em todo caso não será tua irmã. - ---Oh! não, disse vivamente Estacio. - ---Na verdade, é bonita; mas... se permittes a franqueza de outr'ora, -acho-lhe uma costella de desdem... - ---Que ideia! É a mais affavel creatura do mundo. Veras mais tarde; hoje -estava talvez preoccupada. Em todo o caso, não havias de querer que -ella saltasse a dansar contigo na sala, de mais a mais sem musica. - -Mendonça acabava de accender um charuto; apertou a mão de Estacio e -sahiu. Estacio accordou de um sonho. A realidade poz-lhe suas mãos de -chumbo e repetiu-lhe ao ouvido a confissão interrompida de Helena. -Ancioso por saber o resto, entrou elle immediatamente em casa. A -diligencia foi esteril, por que a irmã recolhera-se a seu aposento. -Estacio imitou-a. Era forçoso esperar uma noite inteira, demora que o -affligia, porque, dizia elle consigo mesmo, cumpria-lhe velar pela sorte -de Helena, como irmão e chefe de familia, indagar de seus sentimentos, -e ordenar o que fôsse melhor. Uma noite não em muito; comtudo, a -preoccupação retardou-lhe o somno. A confissão subita, laconica e -eloquente da irmã ficara-lhe no espirito como se fôra o echo perpétuo -de uma voz extincta. - -Nem no dia seguinte nem nos subsequentes alcançou o que esperava. -Helena, ou evitava ficar a sos com elle, ou esquivava-se a maior -explicação. Nos passeios matinaes, que eram frequentes, procurou -Estacio mais de uma vez enterreirar a conversa no assumpto que, mais que -nenhum outro, o preoccupava. Helena ouvia com um sorriso, e respondia -com uma gracejo; depois dava de redea á conversação e galopada na -direcção opposta. Como a fantasia era campo vasto, nunca mais o moço -lograva trazel-a ao ponto de partida. - -Um dia, a insistencia de Estacio teve tal caracter de autoridade, que -pareceu constranger e molestar Helena. Ella replicou com remoque; elle -redarguiu com uma advertencia aspera. Iam ambos a pe, levando os animaes -pela redea. Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e -fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das -estrêllas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estacio possuia -essas duas cousas que nunca hão de conhecer corações mediocres: a -nobre retratação do êrro e a generosidade do perdão. Viu que cedêra -a um mau impulso, e confessou-o; mas confessou-o com palavras taes, que -Helena travou-lhe da mão e lhe disse: - ---Obrigada! Se me não dissesse isso, ver-me-hia desparar por este -caminho fóra até o fim do mundo ou até o fim da vida. - ---Helena! - ---Oh! não é vão melindre, é a propria necessidade da minha -posição. Voce póde encaral-a com olhos benignos; mas a verdade é que -só as azas do favor me protegera. Pois bem, seja sempre generoso, como -foi agora; não procure violar o sacrario de minha alma. Não insista em -pedir a explicação de palavras mal pensadas e ditas em ma hora... - ---Mal pensadas? Póde ser; mas por isso é que são verdadeiras; se -voce tivera tempo de as meditar, guardal-as-hia comsigo, avara de seus -segredos e suspeitosa de corações amigos. Meu fim era somente ajudal-a -a ser venturosa, destruir... - ---É tarde! interrompeu a moça consultando o reloginho preso á -cintura. Vamos? - -Estacio sorriu melancholicamente; offereceu-lhe o joelho, ella pousou -nelle o pesinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi menos -alegre do que costumava ser. Elles falavam, mas a palavra vinha aos -labios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma colera, mas nenhuma -animação. Assim correu aquelle dia; assim correriam outros, se não -fôra a vara magica de Helena. Seu natural influxo era tão forte, que o -irmão voltou desde logo ás boas, sendo as melhores horas as que -passava ao pe della, a escutal-a e a vel-a, ambos contentes e felizes. O -episodio da confissão vinha as vezes, como hóspede importuno, -projectar entre elles seu nebuloso perfil; mas o espirito de Estacio -repellia-o, e a alegria da irmã fazia o resto. - -Entretanto, graças ao amigo recem-chegado, o filho do conselheiro sahiu -um pouco de suas regras habituaes, e começou a provar alguma cousa mais -da vida exterior. Mendonça buscava realizar, em miniatura, o seu -esvaido ideal parisiense; havia nelle o movimento, a agitação, a -galhofa, que absolutamente faltavam a Estacio, e vieram dar-lhe á vida -a variedade que ella não tinha. Alguns expectaculos e passeios, uma ou -outra ceia alegre, mas casta, tal foi o programma de uma parte infima da -existencia de Estacio. Para contrastar com ella, tinha elle as manhãs do -Andarahy e algumas noites do Rio Comprido. Ao amigo e á sua -consciencia, dizia o moço que estava a despedir-se da liberdade. - -A influência de Mendonça estendeu-se á propria casa de Estacio. -Mendonça gostava sobretudo da variedade ao viver; não tolerava os -mesmos prazeres, nem os mesmos charutos; para os apreciar tinha -necessidade do os alternar frequentemente. Se fôsse possivel, era capaz -de fazer-se monge durante um mez, antes do carnaval, trocar o hábito -por um dominó, e atar as últimas notas das matinas com os preludios da -contradança. Sua fidelidade á moda custava-lhe um pouco quando ésta -não ia a passo com a sua impaciencia. Em sua opinião o que distinguia -o homem do cão era a faculdade de fazer com que uma noite se não -parecesse com outra. O Rio de Janeiro não lhe offerecia a mesma -variedade de recursos que Paris; mas seu genio era inventivo e fertil, e -não lhe faltaria meio de fugir á uniformidade dos habitos. - -O peor que lhe acontecia era a disparidade entre os desejos e os meios. -Filho de um commerciante, apenas remediado, não teria elle podido -realizar a viagem á Europa, nas proporções largas em que o fez, a -não ser a intervenção benefica de uma parenta velha, que se incumbira -de lhe ministrar os recursos de que elle carecesse durante aquella longa -ausencia. Nem a parenta continuaria a abrir-lhe a bolsa, nem pae queria -crear-lhe habitos de ociosidade. Tratava este, portanto, de obter-lhe um -emprêgo público. Mendonça estava longe de recusar; pedia somente que -o emprêgo o não deslocasse da Côrte. - -Inquieto, amigo da vida ruidosa e facil, intelligente sem largos -horisontes, possuindo apenas a instrucção precisa para desempenhar-se -regularmente de qualquer commissão de certa ordem, Mendonça, com todos -os seus defeitos e boas qualidades, era homem agradavel e acceito. Seus -defeitos eram antes do espirito que do coração. A variedade que elle -pedia para as cousas externas e de menor tomo, não a praticava em suas -affeições, que eram geralmente inalteraveis e fieis. Era capaz de -sacrificio e dedicação; sobretudo, se lhe não pedissem o sacrificio -deliberado ou a dedicação reflectida, mas aquelles que exige uma -circumstância imprevista e subita. - -Não admira que a presença de tal homem viesse modificar o tom da -sociedade de que era centro a familia de Estacio, quando elle alli fazia -alguma apparição. Era o sal daquella terra. Não tinha a rijeza do -figurino, nem a _morgue_ do estrangeirado. A tesoura do alfaiate não -lhe dissimulára a indole expansiva e franca. Acolhido como um filho, -tinha alli uma porção de sua casa. Que melhor aspecto podia ter a vida -em taes condições, naquella familia ligada por um sentimento de amor? - -A noite do ultimo dia do anno veiu turvar a limpidez das aguas. - - - - -CAPITULO XI - - -Naquelle dia fazia annos Estacio, e D. Ursula assentira receber algumas -pessoas a jantar, e outras mais á noite, em reunião íntima. Ella e -Helena tomavam a peito fazer com que a pequena festa de familia fosse -digna do objecto. Estacio opinou pela suppressão do sarau; mas era -difficil alcançar a desistencia de corações que o amavam. - -Logo de manhã, como elle se levantasse cedo, encontrou Helena que o -convidou a seguil-a á sala de costura. - ---Quero dar-lhe o meu presente de annos, disse ella. - -Alli entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só, -mas significativo: era uma parte da estrada de Andarahy--a mesma por -onde elles costumavam passear, mas com algumas particularidades do -primeiro dia. Dous cavalleiros, elle e ella, iam subindo a passo lento; -ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro -plano, desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data; _25 de -Julho de 1850_. - -Estacio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça -retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria. -Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das -linhas, a exacção das circumstâncias locaes, as impressões de uma -hora fugitiva que o lapis da irmã tivera a arte de fixar no papel. - ---Não podia fazer-me presente melhor, disse elle; da-me uma parte de si -mesma, um fructo de seu espirito. E que fructo! Não ha muita moça que -desenhe assim. Era talvez por isso que voce sahia algumas vezes sosinha -com o pagem? - -Estacio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos labios -e beijou-o. O ósculo acertou de cahir na cabeça da cavalleira. Foi o -original que corou. - ---Andavam a gabar meus talentos,--disse Helena apos um instante; tive a -vaidade de dar uma pequena amostra... - ---Excellente amostra! Não acha, titia? disse, o moço a D. Ursula, que -nesse instante apparecêra á porta, trazendo o seu presente, n'uma -bocetinha de joalheiro. - -D. Ursula não tinha, de certo, o instincto da arte; mas o amor da -familia lhe ensinára uma esthetica do coração, e essa bastou a -fazel-a admirar o trabalho de Helena. - ---Mas que digo eu todos os dias? exclamou D. Ursula. Ésta pequena sabe -tudo! - ---Quasi tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei de -agradecer... - ---O que, tontinha? interrompeu a tia. Algum, disparate, naturalmente, -improprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje. - -Em quanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia, -Estacio mandou sellar o cavallo e sahiu. Queria comparar ainda uma vez o -desenho do Helena com o sitio copiado. A fidelidade era completa, e o -quadro seria absolutamente o mesmo, se dessem algumas circumstâncias -da primeira occasião. Helena não ia ao lado delle; mas a vinte braças -de distância fluctuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estacio -afrouxou o passo do cavallo, como saboreando as recordações da -primeira manhã, quando Helena se lhe mostrára tão singularmente -commovida. Volveu a reflectir na situação della, e na paixão que lhe -confessára, dias antes, com tamanha vehemencia. Se se tratava de uma -felicidade possivel, embora difficil, Estacio prometteu a si mesmo -alcançar-lh'a. Não era isso servir o sangue do seu sangue? - -A casa do alpendre, até alli indifferente a Estacio, creava agora para -elle um interesse especial. Á medida que se approximava, ia achando no -edificio a fiel reproducção do desenho. Este não apresentava todas as -particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições -exteriores, como se fôra feita deante do original. - -A uma das janellas estava um homem, com a cabeça inclinada, attento a -ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa attitude não era facil -examinal-o; affigurava-se, entretanto, uma creatura mascula e bella. A -duas braças de distância, o individuo levantou a cabeça, e cravou em -Estacio um par de olhos grandes e serenos; immediatamente os retirou, -baixando-os ao livro. - ---Mal sabes tu, philosopho matinal, disse Estacio comsigo,--mal sabes tu -que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bella mão do -universo! - -O philosopho continuou a ler, e o cavallo continuou a andar. Quando -Estacio regressou dahi a alguns minutos, achou somente a casa; o morador -desaparecêra; circumstância indifferente, que escapou de todo à -attenção do moço. Nem elle pensava mais naquillo; seu pensamento -trotava largo, á ingleza, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como -anciosos de chegar ao ponto da partida. - - - - -CAPITULO XII - - -A festa correu animada, posto o reunião fôsse restricta. Algumas -voltas da valsa, duas ou tres quadrilhas, jogo e musica, muita conversa -e muito riso, tal foi o programma da noite, que a encheu e fez mais -curta. - -Se as honras da casa foram feitas por Helena, a alma da festa era -Mendonça, cujo espirito havia ja recebido e colhido o suffragio -universal. Eugenia dera-lhe, antes de todos, o seu voto. Havia entre -ambos tal ou qual afinidade de indole, que naturalmente os approximava. -Mendonça lisongeava os caprichos de Eugenia, applaudia-a, -comprehendia-a, obedecia-lhe sem constrangimento nem reparo. Quando -Mendonça valsava com Eugenia, todos os olhos se concentravam nelles. -Eram valsitas de primeira ordem. As ondulações voluptuosas do corpo de -Eugenia e a serenidade e segurança de seus passos, adaptavam-se -maravilhosamente áquella especie de dança,--a unica que nossos -costumes formalistas possuem. Era bello vel-os percorrer o vasto -círculo deixado a seus movimentos; vel-os emfim parar com a mesma -precisão e sem o menor symptoma de cançasso. Eugenia punha toda a sua -attenção naquelle gesto de braço com que as mulheres, logo que -interrompem ou cessam de todo a valsa, conchegam ao corpo a saia do -vestido, cujo movimento rotatorio póde dar lugar a alguma -indiscrição. O prazer com que ella fazia esse gesto, e a graça com -que o acompanhava de uma leve inclinação do corpo mostravam que, mais -ainda a faceirice do que a necessidade, lhe movia o corpo e a mão. - -Ésta sorte de triumphos enchia a alma de Eugenia; e, porque ella não -possuia nem a modestia nem a arte de o simular, via-se-lhe no rosto o -orgulho e a satisfação. A dança não era para a filha de Camargo um -goso ou um recreio somente; era tambem um adorno e uma arma. Dahi vinha -que o valsista mais intrepido e constante era tambem o principal -parceiro do seu espirito; e ninguem disputava esse papel ao filho do -commerciante. - ---Sua filha é a rainha da noite, murmurou o Dr. Mattos ao ouvido de -Camargo, em um intervallo do voltarete. - ---Não é verdade? acudiu o médico. - -E a alma do pae voava enrolada nas pontas da fita que apertava a cintura -de Eugenia, não regressando ao domicilio se não quando a moça parava. -Então volvia Camargo um olhar em torno de si, como pedindo egual -admiração. Depois ficava sombrio, e mais do que usualmente, cahia em -longos e mortaes silêncios. Tres ou quatro vezes approximára-se de -Helena sem lograr detel-a, nem adiarem si mais que duas palavras -triviaes. Insistia; não a perdia de vista, parecia ancioso de a -conversar sôbre alguma cousa. - -Helena repartia-se entre todas as pessoas, attenta aos mil cuidados que -a noite requeria. Cantou uma vez, dansou uma quadrilha, e não valsou. -Em vão Mendonça insistira com ella; a moça desculpou-se dizendo que a -valsa lhe fazia vertigens. Na opinião do filho do coronel-major ésta -razão encobria somente a ignorancia de Helena. Estacio pensava antes -que era a castidade selvagem da irmã que lhe não permittia o contacto -de um homem, ideia que lhe fez bem ao coração. - -Pela volta da meia noite, terminada a ceia, começou aquella hora de -repouso, que precede a total dispersão. As senhoras trocavam -impressões e commentarios, os rapazes fumavam, os jogadores decidiam as -últimas remissas. A noite não refrescara, e a agitação augmentára o -calor. Helena, tão cançada como D. Ursula, retirára-se por alguns -instantes para a sala contigua á principal; alli sentou-se n'um sopha, -e derreou levemente o corpo, deixando cahir os cilios, não sei se -pensativos, se pesados de somno. Seu espirito não tivera tempo de -encadear duas ideias ou esboçar um sonho, quando uma voz a accordou: - ---Ja dormindo! - -Era Camargo. - -Helena abriu os olhos sobresaltada. A voz de Camargo, produzira-lhe a -impressão de desagrado, que lhe fazia sempre. Sorriu a moca -contrafeitamente, e vendo que elle se dispunha a sentar-se no sopha, -não arredou o vestido, como se quizesse deixar entre ambos larga -distância: Camargo sentou-se. - ---Parece que se assustou? disse elle. - ---Um pouco. - -Camargo agitou entre as mãos os perendengues do relogio,--tão -numerosos como elles se usavam naquelle tempo; depois pegou -familiarmente no leque da moça, abriu-o, contou as varetas, tornou a -fechal-o e restituiu-o com um elogio. Helena respondeu-lhe com um -sorriso. Ia levantar-se, quando elle a deteve com éstas palavras: - ---Estimei achal-a só, por que precisava pedir-lhe um conselho. - -A testa de Helena contrahiu-se interrogativamente. - ---Um conselho e um favor, continuou o médico. Não será, creio eu, a -primeira vez que a velhice consulte a mocidade. Demais, trata-se de -assumpto em que a gente moça lê de cadeira. - -Helena olhou para elle desconfiada. Nunca vim o médico tão affavel, e -essa mudança de maneiras e de tom é que lhe fazia medo. Verdade é que -elle ia pedir-lhe alguma cousa; e a experiencia ensina que o interesse -é muito mais eloquente que o vinho e muito mais meigo que o amor. -Camargo não se deteve. Fez uma exposição rapida de suas relações -com a familia do conselheiro, do sentimento de amizade que o ligava a -ella. - ---A perda do meu finado amigo,--concluiu elle, não póde ser supprida -por nenhuma cousa; mas ha alguma compensação na affeição que -sobrevive e me faz considerar ésta familia como minha propria. Estou -certo de que seu irmão e D. Ursula sentem a meu respeito do mesmo modo. -Quanto á senhora, é recente na familia, mas não tem menor direito que -ella. Vi-a tão pequena! - ---A mim? perguntou Helena. - -Camargo fez um gesto affirmativo, em quanto a moça olhava em volta da -sala, receiosa de que alguem tivesse entrado e ouvido. Uma vez segura de -que ninguem havia, recebeu impressão contrária á primeira; -envergonhou-se daquelle receio. A vergonha augmentou quando o médico -accrescentou em voz baixinha: - ---Não falemos nisso... - ---Pelo contrário! exclamou ella. Pode falar com franqueza; diga tudo. -Era minha mãe. Não sei o que foi para o mundo; mas se me perdoaram a -irregularidade do nascimento, não creio que me pedissem em troca a -renúncia do meu amor de filha; a lei que o poz em meu coração é -anterior á lei dos homens. Não repudio uma só das minhas recordações -de outro tempo. Sei e sinto que a sociedade tem leis e regras dignas de -respeito; aceito-as taes quaes; mas deixem-me ao menos o direito de amar -o que morreu. Minha pobre mãe! Vi-a expirar em meus braços; recolhi o -seu último suspiro. Tinha apenas doze annos; contudo, não consenti, -que outra pessoa velasse á cabeceira a ultima noite que passou sobre a -terra... Oh! não a esquecerei nunca! nunca! nunca! - -Helena proferiu éstas palavras n'um estado de exaltação que até alli -se lhe não vira. Em vão Camargo procurou duas ou tres vezes -interrompel-a, receioso de que a ouvissem fóra, por que a moça tinha -levantado a voz. Helena não obedeceu; não viu se quer o gesto -supplicante do médico. O seio, castamente velado pelo corpinho, que -subia até ao pescoço, estava offegante e onduloso como a agua do mar -batida pelo vento. Á ultima palavra sahiu-lhe como um soluço. Camargo -sentiu-se sorprehendido com aquella explosão de ternura. Era evidente -que elle esperava outra cousa. Seguiu-se um breve silêncio, durante o -qual Helena mordia a ponta do lenço, como para conter a palavra que lhe -tumultuava no coração. O médico proseguiu emfim: - ---Ninguem lhe pede que a esqueça, disse elle; todos respeitam esses -sentimentos de piedade filial. O passado morreu, e o menos que se deve -aos mortos é o silêncio. A senhora tem o direito de lhe dar o amor e a -saudade. Mas falemos dos vivos; e perdoe-me se lhe toquei, sem querer, -em tão dolorosa recordação. - ---Não! não é dolorosa! disse ella abanando a cabeça. - ---Falemos dos vivos. Não está certa do amor de sua familia? - -Helena fez um gesto affirmativo. - ---Não poderia encontrar outra melhor nem tão boa. D. Ursula é uma -sancta senhora; Estacio um caracter austero e digno. Venhamos agora ao -conselho. Ha muito tempo ando com ideia de ir á Europa; estou -caminhando para a velhice; não quero deixar de ir ver alguma cousa -além do nosso Pão d'Assucar. Ja desfiz o projecto mais de uma vez. -Cuido que agora vou definitivamente realisal-o. Dá-se porém uma -circumstância grave. Sabe que minha filha ama seu irmão? Meus olhos -descobriram desde muito essa inclinação de um e outro, por que tambem -seu irmão ama minha filha. Merecem-se; e de algum modo continuam si -affeição dos paes; a natureza completa a natureza. Ésta é a -situação. O que eu desejava, porém, é que me dissesse se devo partir -ja, levando-a; ou se é melhor esperar que elles se casem. - -Helena ouvira o médico sem olhar para elle; quando elle acabou, fitou-o -admirada e curiosa. A puerilidade da pergunta era tão evidente que a -moça procurou ler no rosto do interlocutor o pensamento verdadeiro e -occulto. Camargo apressou-se a explicar-se. - ---Estacio,--disse elle,--póde amar Eugenia com ideias matrimoniaes; mas -tambem pode não passar isso de um capítulo de romance, como o que se -lê em uma viagem da Corte a Nictheroy. Seu caracter é serio; mas o -coração tem leis especiaes. Confesso que o procedimento de Estacio -nada me affirma a tal respeito. Ha nelle umas mudanças pouco -explicaveis. O tempo decorrido é mais que muito sufficiente para que... -Está reflectindo! - ---Estou. - ---E... - ---Supponho que pede mais do que me disse. Quer que eu indague a tal -respeito as intenções, de Estacio! - ---Isso. - ---Mas porque não se dirige a elle mesmo? - ---Não havia inconveniente; estabeleceu-se porém que um pae não deve -ser o primeiro a falar em taes cousas. É preciso respeitar a dignidade -paterna. Accresce que Estacio é rico, e tal circumstância podia fazer -suppor de minha parte um sentimento de cobiça, que está longe de meu -coração. Podia falar a D. Ursula; creio porém que ella não tem a -sua habilidade, e... porque o não direi? a sua influência no espirito -de Estacio. - ---Eu! - ---Oh! influência incontestavel! A senhora veiu completar a alma de seu -irmão. É visivel a affeição e o respeito que elle lhe tem. Demais, -em taes assumptos urna irmã é natural confidente e conselheira. - -Helena deu tres pancadinhas no joelho com a ponta do leque, e enfiou os -olhos pela porta de communicação entre aquella e a salla principal. -Depois voltou-se para o médico. - ---Sei que elles se amam,--disse ella,--e ja dei a minha opinião a tal -respeito. Eugenia parece ser minha amiga; meu irmão é meu irmão; -desejo-lhes todas as felicidades. Ha porém um limite á intervenção -de uma irmã; e não desejo ir além. Demais, seu pedido é ocioso. - ---Porque? - ---Annuncie a viagem; e Estacio, se apressará a pedir-lhe sua filha. Se -o não fizer, é por que a não ama, conforme ella merece, e em tal caso -mais vale perder um casamento que fazel-o mau. - ---Sim? perguntou Camargo. - ---Naturalmente. - ---O conselho é excellente,--disse o médico depois de um instante, mas -tem o defeito substancial de supprimir a sua intervenção, que me é -necessaria. Vejamos o meio de combinar as cousas. Supponhamos que, -annunciada a viagem, Estacio não corresponde ás minhas esperanças. -Que devo fazer? - ---Embarcar. - ---Embarcar é arriscar o casamento. Ora, este casamento... é um de meus -sonhos. Desejo que os filhos continuem a affeição dos paes. Se Estacio -recuar, minhas esperanças esvaem-se-me como fumo; o tempo cavará um -abysmo entre os dous; Eugenia amará outro... Emfim, conto com a -senhora. - ---Commigo? - ---A senhora tem uma fôrça de resolução, uma fertilidade de -expedientes, um espirito capaz de emprezas delicadas, e, tratando-se da -felicidade de um irmão. Creio que empenhará todas as fôrças para -levar a cabo a mais pura das ambições. Não lhe peço um absurdo, -peço-lhe a felicidade de minha filha. - -Helena não respondeu; olhou de revez para elle, e cravou depois os -olhos no aguia branca tecido no tapete, sobre o qual pousava seu pe -impaciente e colerico. Podia referir mais detidamente qual o seu papel -juncto de Estacio, a respeito de Eugenia, seus pedidos, e a promessa do -irmão, que deveria ser cumprida, se o fosse, em algum dos seguintes -dias. Mas nem quiz dar esperanças que os acontecimentos podiam -dissipar, nem o coração lhe consentia mais larga confidencia. Ambos -elles viam que se detestavam cordialmente; mas se em Helena havia colera -abafada, em Camargo havia tranquillidade e observação. Elle contemplava -a moça, com o olhar fixo e metalico dos gatos; a mão esquerda, pousada -sobre o joelho, rufava com os dedos magros e pelludos. Nada dizia; mas -todo elle em uma interrogação imperiosa. Helena olhou ainda uma vez -para o médico. - ---Dá-me o seu braço até á sala? perguntou. - -Camargo sorriu. - ---Só isso? Eu dizia commigo outra cousa. - ---Que dizia então? perguntou Helena com aquelle ar de esmagadora -indifferença que só as mulheres possuem. - ---Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma moça, que acha -meio de visitar ás seis horas da manhã uma casa velha e pobre, não -tão pobre, que a não adorne garridamente uma flamula azul.. - -Helena fez-se livida; sua mão apertou nervosamente o pulso de Camargo. -Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o terror, a colera e a -vergonha. Atravez dos dentes cerrados Helena gemeu ésta palavra unica: - ---Cale-se! - ---Falo entre nós e Deus, disse Camargo. - -Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma rapidez com que -ella lhe empallidecêra. Helena quiz erguer-se; mas sentiu-se exhausta. -Ninguem da sala pôde perceber a impressão e o movimento; ninguem -olhava para alli. Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e -proferiu algumas palavras de animação, que ella interrompeu, -murmurando com amargura: - ---O senhor é cruel! - ---Sou pae, respondeu o médico; pae extremoso e discreto, mais discreto -ainda que extremoso, Conto com a senhora. - - - - -CAPITULO XIII - - -Dissolvida a reunião, Helena recolheu-se à pressa, com o pretexto de -que estava a cahir de somno, mas realmente para dar á natureza o -tributo de suas lagrymas. O desespêro comprimido tumultuava no -coração, prestes a irromper. Helena entrou no quarto, fechou a porta, -soltou um grito e lançou-se de golpe á cama, a chorar e a soluçar. - -A belleza dolorida é dos mais patheticos expectaculos que a natureza e -a fortuna podem offerecer á contemplação do homem. Helena torcia-se -no leito como se todos os ventos do infortunio se houvessem desencadeado -sôbre ella. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no -travesseiro. Gemia, intercortava o pranto com exclamações sôltas, -enrolava no pescoço os cabellos deslaçados pela violencia da -afflicção, buscando na morte o mais prompto dos remedios. Colerica, -rompeu com as mãos o corpinho do vestido, e o joven seio, livre de sua. -casta prisão, pode á larga desaffogar-se dos suspiros que o enchiam. -Chorou muito; chorou todas as lagrymas poupadas durante aquelles mezes -placidos e felizes,--leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os -vagidos de sua dor. - -Calar somente, não adormecel-a, por que ella ahi lhe ficou,--companheira -daquella noite cruel, para velarem ambas. Quando os olhos cançaram, e -foram mais intervallados os soluços, Helena jazeu immovel no leito, com -o rosto sobre o travesseiro, fugindo com a vista á realidade exterior. -Uma hora esteve assim, muda, prostrada, quasi morta, uma hora longa, -longa, longa,--como só as tem o relogio da afflicção e da esperança. - -Quando a tormenta pareceu extincta, a moça sentou-se na cama e olhou -vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se tropega á -_toilette_, que communicava com a alcova por uma porta; alli parou -deante do espelho, mas fugiu logo, como se lhe pesasse encarar consigo -mesma. Uma das janellas estava aberta; Helena foi alli aspirar um pouco -do ar da noite. Ésta era clara, tranquilla e quente. As estrêllas -tinham uma scintillação viva que as fazia parecer alegres. Helena -enfiou um olhar por entre ellas como procurando o caminho da felicidade. -Esteve á janella cêrca de meia hora; depois entrou, sentou-se e -escreveu uma carta. - -A carta era longa, escripta a golphadas, sem nexo nem ordem; continha -muitas queixas e imprecações; uma ternura expansiva de mistura com um -desespêro profundo; fallava daquelles que, tendo nascido sob a -influência de ma estrêlla, só tem felicidades intermittentes e -mutaveis; dizia que para ella a propria felicidade era um germen de -morte e dissolução,--ideia que repetia tres vezes, como se tal -observação fosse o transumpto de suas experiencias certas. A carta -fallava tambem de um homem, cujo egoismo de pae não conhecia limites, e -que a todo o trance queria que a filha desposasse uma grande riqueza e -uma grande posição,--«homem--dizia ella, que me viu a principio com -olhos avessos, pela diminuição que eu trazia á herança.» No fim -dizia que havia naquellas linhas muito de obscuro e incompleto; que -opportunamente contaria tudo; mas que desde ja podia dar a triste -notícia de que lhe era forçoso abster-se de sahir. - -Helena releu o escripto e meditou longo tempo sôbre elle; accrescentou -ainda algumas linhas; depois, rasgou o papel em dous pedaços, chegou-os -á vela, e os destruiu. Como arrependida, voltou a escrever outra carta, -mas não chegou a acabar seis linhas; rasgou-a como fizera á primeira, -e só então recorreu ao remedio melhor de uma alma ulcerada e pia: -rezou. A prece é a escada mysteriosa de Jacob: por ella sobem os -pensamentos ao ceu; por ella descem as divinas consolações. - -Entretanto, a noite começava a inclinar a urna das horas ás mãos da -madrugada. O somno fugira dos olhos de Helena; mas era forçoso -repousar. Assim mesmo vestida atirou-se sôbre o leito. Não dormiu, -não se póde dizer que dormisse; ficou alli n'um estado, que não era -vigilia nem somno, até que a manhã rompeu inteiramente. Abrindo os -olhos, pareceu accordar de um sonho; sua imaginação recompoz as phases -todas do acontecimento da vespera. Depois suspirou, e ficou longo tempo -a olhar para o chão, com a fixidez tragica e solemne da morte. - ---Era justo! murmurava de quando em quando. - -Levantou-se emfim; levantou-se abatida e cançada. Viu-se ao espelho; a -descorada face e a linha roxa que lhe circulava as palpebras -difficilmente podiam deixar de impressionar a familia. Helena disfarçou -como pôde esses vestígios da tempestade; explicou-os do modo mais -verosimil: o cançasso da vespera e a insomnia de toda uma noite. A -explicação não achou obstaculo no ânimo da tia e do irmão. Somente -o padre Melchior, presente a ella, fitou na moça um olhar dubitativo, -que a obrigou a baixar os cilios. - -Se Helena padecia, o logar de Estacio não era ao pe della? Assim o -pensou o sobrinho de D. Ursula, que em todo esse dia resolveu não sahir -de casa. Cercou-a de cuidados, buscou distrahil-a, pediu-lhe que fosse -repousar um instante. Para justificar a explicação que dera, Helena -obedeceu ás instrucções do irmão. Este foi encerrar-se no gabinete, -onde se occupou em examinar e colleccionar alguns papeis. Era o dia -marcado para solicitar de Eugenia o consentimento matrimonial, e elle -não cogitava em ir ao Rio Comprido. Na irmã, sim; na irmã pensava -elle, ora relendo as páginas de sua predilecção, ora mandando saber -se dormia socegada, ora contemplando o desenho com que ella o -presenteára na vespera. Sentia-se tão feliz naquella aurora do anno! - -Pouco antes do jantar ouviu no corredor um rumor de saias, e não tardou -que a irmã apparecesse á porta. Vinha como fôra; mas a Estacio -pareceu que effectivamente o descanço e o somno lhe haviam restaurado -as fôrças. A razão era o sorriso estudado que lhe avivava o rosto. -Helena parou e Estacio foi ter com ella, travou-lhe da mão, fel-a -entrar. - ---Estás melhor? perguntou. - ---Estou boa. - ---Não dizia eu que era melhor desistir da ideia da reunião? Éstas -festas prolongam-se, e fatigaram, sobretudo as pessoas franzinas... - -Helena ergueu os hombros. - ---Anda sentar-te um pouco. - ---Primeiro hade responder-me a uma cousa. - ---Que é? - ---Que dia é hoje? perguntou ella. - ---Anno bom. - ---Lembra-se do que me prometteu? - ---Perfeitamente. Ves estes papeis? disse elle mostrando sôbre a -secretária uma porção de papeis classificados e postos por ordem. -Occupei-me até agora em liquidar o passado; faltam-me umas últimas -contas, que o procurador hade trazer amanhã. Depois, irei... - -Helena abanou a cabeça com ar de desaprovação. - ---Não, disse ella; não hade ir depois, hade ir hoje mesmo. Que tem as -contas com a autorisação que deve pedir a Eugenia? Va logo de noite. -Sou supersticiosa; creio que o pedido feito no dia de hoje é de -excellente agouro. Dará um anno feliz. - ---Minha intenção era ir dentro de quatro ou cinco dias, respondeu -Estacio depois de silêncio; mas não tenho dúvida em fazel-o ja. Uma -vez preenchida a formalidade. - ---Pedil-a-ha immediatamente ao pae. - ---Não! - ---Porque? - ---Porque precisarei meditar ainda vinte e quatro horas, pelo menos. -Vinte e quatro horas não é muito para quem tem de amarrar-se -eternamente. Quero sondar meu proprio espirito, e... - ---Mas tudo isso é uma estravagancia! interrompeu Helena sentando-se na -borda da rede em que Estacio costumava ler. Pretenderá voce recuar -depois de lhe falar a ella? - ---Oh! não! Mas uma vez que caminho para solução tão grave, não ha -inconveniente em ir pe ante pe. Admiras-te? perguntou elle vendo que a -irmã fazia um gesto de impaciencia. - ---Zango-me. - ---Mas... - ---Voce é insupportavel. Falta ao que prometteu. - ---Ja disse que hei de cumprir. - ---Não recuará? - ---Não. - ---Irá pedil-a hoje mesmo? - ---A ella. - ---A ella e ao pae. - ---Ao pae escreverei uma carta. - ---Pois seja uma carta! Contanto que acabe com isso. O casamento será... - ---Quando convier ao Dr. Camargo. - ---Antes do fim do mez. - ---Tão cedo! - ---Dou-lhe mez e meio. Nem uma hora mais! Estou morta por vel-os casados, -tanto por voce como por ella, coitada! que o ama tanto... - ---Cres? perguntou vivamente Estacio. - ---Se creio! Posso affirmal-o. Não será amor como voce quizera que -fôsse, mas é o amor que ella lhe pode dar, e é muito. Está dito! -Palavra? - -Estacio estendeu silenciosamente a mão, que Helena apertou. - ---Vou confiar todo o meu destino á cabeça mais leve do universo, disse -Estacio com os olhos fitos no chão. Não é de seu coração que me -queixo; mas de seu espirito, que nunca deixou as roupas da infancia. -Demais, á medida que me approximo da hora solemne, sinto que me repugna -o estado conjugal. É tão boa a minha vida de solteiro! tão cheios os -meus dias... - -Helena tapou-lhe a boca com uma das mãos; com a outra fez-lhe um gesto -para que se calasse. Depois, fugiu. Uma vez só, Estacio reflectiu -longamente na situação em que se achava; reconheceu que estava -moralmente obrigado a pedir Eugenia, desde que seus corações se tinham -aberto um para o outro, celebrando um contracto, que elle só não podia -romper. A consciencia rebellou-se contra as resoluções do coração, -e a decisão foi curta. - -Naquella mesma noite, ouviu Eugenia a esperada palavra. A alegria que se -lhe derramou nos olhos foi immensa e caracteristica. Um pouco mais de -recato não era descabido em tal occasião. Não houve nenhum; seu -primeiro acto de mulher foi uma meninice. Eugenia ignorava tudo, até a -dissimulação de seu sexo. Concedendo a mão a Estacio, não era uma -castellã que entregava o premio, mas um cavalleiro que o recebia com -alvorôço e submissão. - -Transposto o Rubicon, não havia mais que caminhar direito á cidade -eterna do matrimonio. Estacio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr. -Camargo pedindo-lhe a mão de Eugenia, carta sêcca e digna, como as -circumstâncias a pediam. Antes de a remetter, mostrou-a a Helena, que -recusou lel-a. Não a leu, nem lhe pegou. Elle teve-a alguns instantes -na mão, sem atrever-se a dal-a ao escravo que esperava por ella. Por -fim, deitou-a sôbre a secretária. - ---Amanhã, disse elle sorrindo para Helena. - -Helena lançou mão da carta e deu-a ao escravo. - ---Leva á casa do Sr. Dr. Camargo, ordenou a moça. Não tem resposta. - - - - -CAPITULO XIV - - -Camargo ia sentar-se á mesa quando lhe entregaram a carta de Estacio; -leu-a pura si, mas a filha leu-a nos olhos delle. Uma aura de -bemaventurança desrugou a fronte do médico; seus labios,--cousa -pasmosa!— abriram-se n'um sorriso perenne e franco, sorriso que uma -vez chegou a desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Thomasia lhe -ouviu. Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido á mulher, e os -dous paes chamaram a filha á sala. Eugenia ouviu a notícia sem baixar -os olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o -casamento. - ---Sim? perguntou Camargo simulando um espanto que não sentia. - -Eugenia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia -não acreditar no espanto do pae. Este pegou nas mãos da filha e -puxou-a para si. - ---Assim, pois, meu anjo,--disse elle,--casas-te por tua livre vontade? -Estacio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, que não podia -ser mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, que te proponho -como o melhor modelo da terra. - ---O mais consciencioso pelo menos, acudiu D. Thomasia satisfeita e -vaidosa do louvor do marido. Ha de ser boa espôsa, modesta, solicita, -e economica. - ---Economica, sem avareza,--emendou Camargo. A riqueza não deve ser -dissipada; mas é certo que impõe obrigações imprescindiveis, e seria -da maior inconveniencia viver a gente abaixo de seus meios. Não farás -isso, nem cahirás no extremo opposto; procura um meio termo, que é a -posição do bom senso. Nem dissipada, nem miseravel. - -D. Thomasia concordou com ésta explicação do marido, em quanto -Eugenia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes dar a -minima attenção. Seu pensamento estava em Andarahy; ella viaja na -imaginação, a cerimonia do consorcio, as carruagens, o apuro do noivo, -a sua propria graça, a coroa de flores de larangeira, que a havia de -adornar, emfim talhava ja o vestido branco e pregava as rendas de -Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do genero -humano. Daquelle sonho foi despertada pelo pae, que lhe imprimiu na -testa o seu segundo beijo, o primeiro, como o leitor se hade lembrar, -foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria -provavelmente no dia em que ella casasse. - ---Sabes que te amo, Eugenia? disse Camargo olhando para ella. - ---Papae! - -Camargo não pôde dizer mais nada. Seu amor, um instante expansivo, -volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estiveram. A -satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para -saborear-se. Foi então que Eugenia passou ás mãos de D. Thomasia. A -mulher do Dr. Camargo via aquelle casamento com olhos differentes do -marido. O que ella sobretudo viu eram as vantagens moraes da filha. -Sentou-a ao pe de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e costumes, -que Eugenia interrompia de quando em quando, com exclamações de -obediencia filial: - ---Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe hade ver!... - -D. Thomasia sentia-se feliz. Seu rosto, cuja expressão era vulgar, -tinha naquella occasião alguma cousa que o tornava sublime. Ella fez -com que a filha se lhe sentasse ao collo; e ésta, sentindo que a -molestava, deixou-se lentamente cahir de joelhos, ficando entre os -della, a olhar para ella. - -Camargo, entretanto, ja não era daquelle mundo. Passeava de um para -outro lado, com as mãos para traz, a morder a ponta do bigode. De -quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras, mas era -só machinalmente; seu olhar baço indicava que elle ia mergulhado em -profundas cogitações. - -Naquelle homem sceptico, moderado e taciturno, havia uma paixão -verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava Eugenia: -era a sua religião. Concentrára esforços e pensamentos em fazel-a -feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessario fôsse, -a violencia, a perfidia e a dissimulação. Nem antes nem depois sentira -egual sentimento; não amou a mulher; casou por que o matrimonio é uma -condição de gravidade. O maior amigo que teve foi o conselheiro Valle; -mas essa mesma amizade que o ligára ao pae de Estacio nunca recebêra a -contra-prova do sacrificio; alias appareceria em toda a sinceridade a -natureza do médico. Elle só conhecia os affectos por assim dizer -caseiros e inertes, os que não sabem nem podem afrontar as intemperies -da vida. Nas relações moraes dos homens possuia somente o trôco miudo -da polidez; a moeda de ouro dos grandes affectos nunca lhe entrára nas -arcas do coração. Um só existia alli: o amor de Eugenia. - -Mas esse mesmo amor, alias violento, escravo e cego, era uma maneira que -o pae tinha de amar-se a si proprio. Entrava naquillo uma somma larga de -fatuidade. Menos graciosa, Eugenia seria talvez menos amada. Elle -contemplava a com o mesmo orgulho, com que o joalheiro admira o -aderêço que lhe sahiu das mãos. Era a ternura do egoista: amava-se na -propria obra. Caprichosa, rebelde, superficial. Eugenia não teve a -fortuna de ver emendados seus defeitos, antes fui a educação que lh'os -deu. Dos labios de Camargo nunca sahiu a expressão correctiva; nenhum -de seus actos revellou esse procedimento vigilante e director, que é a -nobre attribuição da paternidade. Se a indole da filha fosse ma, a -complicidade do pae fal-a-hia pessima. - -Não era felizmente; seu coração conhecia as doçuras da bondade; sua -rebeldia era um hábito, não um vicio nativo. A propria frivolidade -foi-lhe desenvolvida pela educação, nada podendo o zelo da mãe contra -as complacencias do pae. Ésta era a explicação tambem da fascinação -que exercia nella o tumulto exterior da vida. Quasi se póde dizer que -ella não conhecêra o vestido curto: a modista a desmamou; uma -contradança foi a sua primeira communhão. - -Não era facil dar a Eugenia a felicidade que o pae ambicionava e a que -mais lhe apetecia a ella. Posto não fosse perdulario, eram poucos os -haveres do médico, de modo que á filha não podia caber peculio -sufficiente a satisfazer todas as velleidades. Elle espreitou durante -longo tempo um noivo, armando com algum dispendio a gaiola em que o -passaro devia cahir. No dia em que percebeu a inclinação de Estacio, -fez quanto pode para prendel-o de vez. Esperou muitos mezes a iniciativa -de Estacio; e quando ella lhe entrou a fugir para a região das cousas -problematicas, suspeitou a influência de Helena. Ja era muito que ésta -moça diminuisse a herança do futuro genro; arrancar-lhe o genro era de -mais. Camargo não hesitou um instante; foi direito ao fim. O resultado -confirmou-lhe a suspeita. - -O casamento era muito, mas não bastava. Camargo cuidára na carreira -política de Estacio, como um meio de dar certo relevo público ao marido -da filha, e, por um effeito retroactivo, a elle proprio, cuja vida fora -tanto ou quanto obscura. Se o marido de Eugenia se confinasse no repouso -doméstico, entre a horta e a algebra, a ambição de Camargo padeceria -immenso. Vimol-o apresentar a Estacio a maçan política; recusada a -princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente acceita com a -noiva. Ésta dupla victória foi o momento maximo da vida do médico. -Elle ouvia ja o rumor público; sentia-se maior,--ante-gostava as -delícias da notoriedade;--via-se como que sogro do Estacio e pae das -instituições. - ---Vou entrar na cova dos leões, sem a convicção de Daniel,--suspirou -Estacio na occasião em que cedeu ás instancias de Camargo. - ---Seu talento amansará os leões,--acudiu este. - -Assentou-se logo alli que o casamento seria celebrado na primeira semana -de março. Os dous mezes de intervallo foram destinados ás formalidades -ecclesiasticas e ao preparo do enxoval. Estacio aceitou tudo sem -objecção. D. Ursula e Helena approvaram o plano. A primeira -accrescentou uma clausula:--os noivos viriam morar com ellas em -Andarahy. - -O padre Melchior, consultado sôbre o casamento, deu-lhe inteira -approvação, e só lhe pareceu que o prazo era longo de mais. A effusão -com que abraçou Estacio, as palavras de applauso que lhe disse -impressionaram vivamente o mancebo. - ---Desejava muito este casamento? perguntou elle. - ---Muito! Seu pae ha de approval-o no ceu! - -Até os mortos conspiravam contra elle; Estacio aceitou resolutamente -seu destino. A alegria do padre, ordinariamente contida e digna, -transpoz os limites do costume, para se mostrar quasi infantil; D. -Ursula não cabia em si do contente; Helena parecia colhêr naquelle -casamento a sua propria felicidade. Era a bemaventurança universal que -Estacio ia comprar a trôco de um vínculo eterno. - -Surgiu, entretanto, um obstaculo temporario. A madrinha de Eugenia, a -fazendeira que lhe mandara um dia a opala, que a moça admirou namorando -ao mesmo tempo os olhos do futuro noivo, a madrinha de Eugenia adoeceu -gravemente, menos ainda da molestia que a accommetteu que dos annos que -lhe pesavam nos hombros. Era senhora rica, viuva, flanqueada por duas -sobrinhas solteiras, uma cunhada, um primo, dous filhos destes e uma -vintena de afilhados. Ja daqui se póde inferir a estreiteza das -esperanças de Camargo. Posto que elle não tivesse nunca preterido os -deveres que lhe impunha o vínculo espiritual, dando á fazendeira todas -as provas possiveis de um grande affecto, ainda assim era de recear que -a ultima vontade da moribunda não trouxesse o cunho da estricta -justiça, ou, quando menos, de razoavel equidade. Nestas -circumstâncias, a viagem a Cantagallo era urgentissima, e cumpria -realizal-a á custa dos maiores incommodos. Todo o incommodo é -aprazivel quando termina em legado. Camargo não perdia a esperança -desse desenlace egualmente affectuoso e pecuniario. Resolveu ir com a -familia toda, e avisou por carta ao futuro genro. - -Estacio estimou o obstaculo, mas não contou com o que elle trazia no -bojo. Chegando ao Rio Comprido achou afflictos o médico e D. Thomasia; -Eugenia recusava sair da Corte. Em vão lhe mostravam a conveniencia de -corresponder, em occasião tão grave, á affeição da madrinha; -debalde lhe diziam que era ser ingrata não ir recolher o último -suspiro da veneravel senhora, sua mãe espiritual. Eugenia recusava a -pes junctos. - -Assistiu o noivo á ultima phase da lucta entre os paes e a filha. Ésta -trazia os olhos vermelhos de chorar; batia com as mãos uma na outra, -declarando que só iria á fôrça. Estacio procurou chamal-a á razão, -apoiando as reflexões do pae, sem alcançar mais do que elle. Emfim, -Eugenia poz uma condição á sua acquiescencia: - ---Irei, se o Dr. Estacio fôr comnosco. - -Camargo approvou a condição _in petto_; verbalmente, oppoz-se ao -sacrificio. Estacio enfiára; posto entre a espada e a parede, ja a -viagem de Eugenia lhe parecia superflua. - ---Acompanha-nos? insistiu a moça, - ---Não é possivel, acudiu o médico; tamanho incommodo por um simples -capricho. - ---Pois então não vou! - -D. Thomasia ficou um tanto vexada com a teima de Eugenia. Estacio mordia -o labio, olhando para a moça, cujo rosto o interrogava instantemente. -Venceu-o o decoro; considerando Eugenia sua mulher, quiz cortar por uma -scena que lhe parecia ridicula. - ---Acompanhal-os-hei,--disse elle sem enthusiasmo. - -A solução era favoravel a todos: os tres aceitaram de boa feição. -Marcou-se a viagem para dous dias depois. D. Ursula, apezar dos bons -olhos com que via o casamento, achou desnecessaria a ida do sobrinho, -mas não emprehendeu dissuadil-o. Helena approvou tudo. Elle fez sentir -ás duas parentes a extensão do sacrificio, e esteve a ponto de retirar -a palavra. Era tarde. A ultima noite passada em Andarahy foi cruel para -elle; as horas voaram ligeiras como nunca. Como devia sahir no dia -seguinte, logo cedo, alli mesmo se despediu da tia e da irmã, despedida -de alguns dias que lhe custou como si fôra de annos. Prometteu, -entretanto, que o regresso seria breve. - -O que elle não podia prometter era conjurar o drama que se lhes -preparava, drama que ia em fim devolver-se, intenso, funesto e -irremediavel,--do qual não o consolariam jamais nem as doçuras da paz -doméstica, nem as glórias da vida pública. - - - - -CAPITULO XV - - -Estacio levantou-se ao amanhecer. Uma vez prompto, quiz sorprehender a -tia e a irmã com uma lembrança sua, e escreveu n'uma folha de papel -éstas simples palavras: «Até á volta; 6 horas da manha.» Dobrou-a -e foi pol-a sôbre a mesa de costura de D. Ursula. Dalli passou á sala -de jantar, depois á varanda. Aqui chegando deu com os olhos em Helena, -que o esperava ao pe da escada. - ---Silêncio! disse graciosamente a moça. Não faça espantos que póde -accordar titia. Vim saber se voce precisa de alguma cousa. - ---De nada, respondeu Estacio commovido. Mas que imprudencia foi essa -de se levantar tão cedo? - ---Cedo! O sol não tarda comprimentar-nos. Adeus! muitas -recommendações a Eugenia. Não lhe falta nada, não é? - ---Nada. - -Estacio recebeu a mão que Helena lhe estendêra e ficou a olhar para -ella. - ---Olhe que é tarde! - -Dizendo isto, Helena apertou-lhe a mão e procurou retirar a sua; -Estacio reteve-a. - ---Se soubesses como me custa ir! - ---São apenas alguns dias... - ---Valem por mezes, Helena! Adeus, não te esqueças de mim. Escreve-me; -eu escreverei logo que chegar. Não faças imprudencias; não saias a -passeio em quanto eu estiver ausente. - ---Adeus! - ---Adeus! - -Estacio quiz dar-lhe o abraço da despedida; mas a moça, menos ainda -com a palavra que com o gesto, fel-o recuar. - ---Não, disse ella affastando-se; as despedidas mais longas são as mais -difficeis de supportar. - -Recuou até á porta da sala de jantar, fez um gesto de despedida e -entrou. Estacio desceu a custo as escadas. Helena viu-o descer e sahir; -depois subiu cautellosamente ao seu aposento. Alli sentou-se alguns -minutos, pensativa e triste. Ergueu-se enfim, vestiu rapidamente as -roupas de montar; collocou o chapellinho preto sôbre os cabellos -penteados á ligeira, e desceu. Na chacara esperava-a Vicente, com a -egua ajaezada e prompta. Helena montou sem demora; o pagem cavalgou uma -das duas mulas que havia na cavallariça e os dous sahiram a trote na -direcção da casa do alpendre e da bandeira azul. - -A casa estava ainda silenciosa; porta e janellas conservavam-se -hermeticamente fechadas. Helena apeou-se e bateu de mansinho; repetiu as -pancadas progressivamente mais fortes. Ninguem lhe respondeu. Helena -impaciente rodeou a casa; mas parece que achou egualmente fechadas as -portas do fundo, por que volveu logo. Collou o ouvido á porta e -esperou. Quando lhe pareceu que era baldado o esfôrço, tirou da -algibeira um lapis e um pedacinho de papel; collocou o pe no degrau de -tijolo e sôbre o joelho escreveu algumas palavras; dobrou depois o -papel e introduziu-o por baixo da porta. Esperou ainda alguns minutos, -caminhou para a egua, montou e regressou a casa. - -Vinha triste e pensativa. A egua, a passo vagaroso, não sentia o -esfôrço da cavalleira, que a deixava ir, frouxa a redea, inutil o -chicote. O pagem levava os olhos na moça com um ar de adoração -visivel; mas, ao mesmo tempo, com a liberdade que dá a confiança e a -complicidade, fumava um grosso charuto havanez, tirado ás caixas do -senhor. - -D. Ursula não estava ainda levantada; mas Helena não lhe occultou o -passeio. O dia correu triste e solitario, como os seguintes, sem embargo -da companhia que iam fazer ás duas senhoras as pessoas mais íntimas. -Mendonça, a quem Estacio as recommendára, era alli pontual; seu -espirito conseguia disfarçar um pouco as saudades do moço ausente. O -padre Melchior prolongava suas visitas quotidianas; um mesmo sentimento -ligava a todas as pessoas. - -O mesmo era, e não unico, por que outro e mais egoista e pessoal veiu -alli viçar tambem. Mendonça sentiu que metade de seu destino estava -acabada, e que a outra metade ia começar, mais circunspecta que a -primeira. O relogio em que elle viu bater essa hora fatidica foram os -olhos, de Helena. Mendonça começava a amar, Estouvado, e não -corrupto, atravessára o delirio dos primeiros annos sem perder a flor -dos castos affectos, sem sequer a haver colhido. Helena sentiu nascer e -crescer essa adoração silenciosa, sem parecer que a descobrira. Não -animou o mancebo nem o repelliu; redobrou de confiança,--dessa -confiança, que só se dá aos simples familiares, e que mostra -claramente a um namorado a inanidade de suas esperanças. Ao parecer de -extranhos, a situação affigurava-se de perfeita concordia. O -coronel-major piscou um dia os olhos ao Dr. Mattos; o Dr. Mattos -proferiu um--_latet anguis in herba_--e ambos foram repartir o pão das -conjecturas com a espôsa do advogado, senhora muito perspicaz nos -namoros de salão. A opinião dos tres é que o casamento era cousa -provavel e talvez certa. Um só obstaculo podia haver; eram os escrupulos -do pae de Mendonça. Esse mesmo obstaculo não existia, por quanto, -além das qualidades estimaveis da moça, havia o reconhecimento legal e -social, público e doméstico; accrescendo (observação do Dr. Mattos) -que duzentas e tantas apolices mereciam um comprimento de chapeu e não -davam logar a cinco minutos de reflexão. - -As primeiras cartas de Estacio chegaram uma tarde, em que as duas -senhoras e Mendonça se achavam na varanda, acabado o jantar, bebendo as -últimas gotas de cafe. D. Ursula, depois de pôr em actividade tres -mucamas para lhe irem procurar os oculos, levantou-se e foi ella propria -á cata delles, coma sua carta na mão. Helena ficou com a que lhe era -dirigida estava sentada juncto a uma das janellas; abriu-a e leu-a para -si: - - -ESTACIO A HELENA. - -«Quando ésta carta te chegar ás mãos estarei morto, morto de -saudades de minha tia e de ti. Nasci para os meus, para a minha casa, os -meus livros, os meus habitos de todos os dias. Nunca o senti tanto como -agora, que estou longe do que ha mais caro neste mundo. Poucos dias la -vão, e ja me parecem mezes. Que seria se a separação não fosse tão -limitada? - -«Na carta que escrevo a ti tia dou conta de nossa viagem e da saúde de -todos. D. Clara está, na verdade, á beira da morte; mas pode durar -ainda alguns dias, e o Dr. Camargo resolveu esperar até dar-lhe os -ultimos adeuses. A recepção que nos fez a familia foi cordialissima. -Ha aqui uma cunhada da enfêrma, um primo, tres sobrinhos, outros -parentes e varios afilhados. O primo é commendador e tenente-coronel; -elle e os outros são a gente mais affavel do mundo. Os homens da -familia são influências eleitoraes; quando souberam da minha -candidatura, offereceram-me logo os seus serviços, com a clausula unica -de que haja prévia recommendação do Rio do Janeiro. Agradeci o favor, -com muita abundancia d'alma porque a tal candidatura, que não me -seduzia nem seduz, não ha remedio se não cuidar della, de modo que o -meu nome não padeça, a injúria da derrota. Que te parece ésta -pontasinha de vaidade? - -«Mudemos de assumpto, que este me afflige, e não quero philosofar sem -ti, que es a minha companheira nestas vadiações de espirito. Ahi não -te lembrarás, talvez, das nossas palestras; aqui lembra-me tudo. De -manhã, dou o meu passeio equestre, como la; mas que differença! Quem -vae a meu lado é o tenente-coronel, excellente homem, coração de -pomba, com o defeito unico e enorme de se não chamar D. Helena do -Valle, a minha boa Helena, que la está na Côrte a divertir-se sem seu -irmão. Elle fala de tudo e muito: do cafe, do governo, das eleições, -dos escravos, dos impostos. Eu ouço-o, que é o menos que posso fazer, -e deixo-o ir sem interrupção. Ás vezes, como que desconfiado, -recolhe-se ao silêncio; eu ato o fio da conversa e elle encarrega-se de -desenrolar o novello. Tão pouca cousa o faz feliz! Já cacei uma vez; -confesso-te que é o que me pode distrahir um pouco. Pensava ter perdido -o costume; mas não perdi. A modestia impede-me dizer mais. - -«A fazenda é vasta e a casa excellente. Não te direi que gósto da -vida agricola; não gósto, não me dou com ella. Mas viver num recanto -como este, a dous passos do mato, a tantas legoas da rua do Ouvidor, -isso creio que se dá com a minha indole. Consultaremos titia. Eu não -sei o que é amar o tumulto exterior; acho que é dispersar a alma e -crestar a flor dos sentimentos. Nasci para monge... e creio que tambem -para despota, porque estou a planear uma vida ignorada e deserta, sem -consultar tuas preferencias. Sou um Cromwell com tendencias de frade; -ou, por dizer tudo n'uma só palavra: sou um Lutero... muito inferior. - -«Pobre Helena! Ja la vão quatro páginas só a falar de mim. Vejamos ó -que tens feito. Andas muito triste? passeas? lês? jogas? tocas? Conta-me -a tua vida o mais miudamente que puderes; conta-me a vida de todos. Não -me escondas nada; se, por exemplo, ao abrir um livro ou tocar uma tecla -do piano, pensares em mim, escreve isso mesmo, marcando o dia e até a -hora, se puder ser. E depois dou-te o direito de perguntar onde ficou a -minha gravidade, e responderei que ha uma puerilidade séria, e que os -extremos tocam-se. Quando assim não seja, a culpa é do ceu, que me -não deu uma irmã creança; agora é preciso que comecemos pela -primeira phase da vida. - -«Deixei muito recommendado ao Mendonça que fôsse a nossa casa com -frequencia. Não sei se elle se terá lembrado e cumprido a promessa que -me fez. Se não tiver cumprido, has de mandar-lhe dizer que eu o detesto -e abomino, que elle é o maior traidor que o ceu cobre; que tudo fica -acabado entre mim e elle; que a amizade é um culto, etc. Dize o que te -parecer e pelo modo que te é usual. - -«Lembro-me de ti a proposito de tudo. Hoje de tarde, por exemplo, o -terreiro offerecia ura aspecto bonito e caracteristico. Se ella -estivesse aqui, disse commigo, faria um magnifico desenho. Peguei de um -lapis que trouxe, meia folha de papel, e quiz reproduzir o panorama. -Escrevi um problema algebrico! Foi um conselho que me deu o lapis: -ninguem se metta a fazer aquillo que ignora. Eu ignorava o que era estar -ausente da familia; por que motivo me determinei a tental-o? - -«Interrompi ésta carta para receber o Dr. Froes, que é o médico de D. -Clara; veiu ao meu quarto para me dizer que o estado da doente é -perdido; que a morte é certa; mas que a vida póde prolongar-se ainda -por muitos dias. Ve que perspectiva! Estou com raiva de mim mesmo; esses -ultimos dias da enfêrma pesam sôbre mim como se fôra o punho fechado -do destino. Se a morte é certa, por que viver alguns dias mais? E é -vida isso, ou é morrer aos goles, sem consciencia do que se perde nem -do que se vae ganhar? - -«Está decidido; posso ir daqui a seis dias ou daqui a um mez. Sera o -que Deus quizer. Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só -achei um _Manual de medicina prática_. Manda-me alguma cousa que me -faça lembrar Andarahy. Tira da estante oito ou dez volumes, á tua -escolha. Manda tambem algum trabalho de agulha teu; quero mostral-o á -cunhada de D. Clara, a quem gabei muito os teus talentos. Se puderes -desenhar alguma cousa, á pressa, o tanque, a varanda, ou qualquer outro -logar, faze-o, e manda com o resto. Escreve-me longamente; conta-me tudo -o que houver interessante; fala-me de ti, que é o meio de consolar -minhas saudades, que são immensas, immensas como este amor que tenho a -minha familia toda. Vou fazer por voltar breve. Adeus, minha boa Helena; -adeus, minha vida, adeus, ó mais bella e doce de todas as irmãs! - -«_P.S._ Reli a carta, e fiquei envergonhado do trecho a respeito da -vida da doente. Perdoa-me a ferocidade, e leva-a em conta da solidão.» - - - - -CAPITULO XVI - - -Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa a olhar para as -folhas da trepadeira, que do lado de fóra viera a subir pela muralha da -varanda, e a debruçar-se emfim do parapeito para dentro. A carta -ficára aberta sôbre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos, -olhava para ésta, sem ousar falar-lhe. - -Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da intelligencia -humana. Póde dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da -graça feminil. Mendonça o sentiu contemplando o busto de Helena e a -casta ondulação da espadua e do seio, cobertos pela caça fina do -vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do logar em que ficava, -Mendonça via-lhe o perfil correcto e pensativo, a curva molle do -braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ella -trazia. A attitude convinha á belleza melancholica de Helena. O rapaz -olhava para ella sem movimento nem voz. - -A tarde expirava; a côr verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto -cinzento-escuro que precede a côr fechada da noite. A propria noite -desceu; e um escravo entrou na varanda, a accender as duas lampadas que -pendiam do tecto. Ésta circumstância accordou a moça, e bastou-lhe -voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estacio a alguns passos de -distância. - ---Estava ahi? perguntou Helena estremecendo. - ---D. Ursula não voltou, respondeu Mendonça com timidez; não quiz -interromper a leitura que a senhora fazia. - ---A leitura? A leitura acabou ha muito tempo. - ---Mas tambem se lê com o espirito. - -Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso. - ---Não sei ler de cór, disse ella, erguendo-se e sahindo da varanda. - -Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera elle tão grave que a pudesse -offender? Repetiu suas proprias palavras e não lhes achou sentido mau. -Certo, porém, de que a molestára, alli ficou aborrecido de si mesmo, -desejoso de lhe explicar tudo, se alguma cousa houvesse explicavel. Apos -alguns instantes, resolveu entrar tambem. Entrou; Helena não estava nem -na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Ursula com o Dr. Mattos -e o coronel-major. Dalli passou á sala de visitas. Helena não o viu -entrar; estava mergulhada n'uma poltrona com a cabeça nas mãos. -Commovido, deteve-se alguns instantes a contemplal-a; depois caminhou -para ella e falou-lhe. - -Helena ergueu a cabeça. - ---Perdõe-me, disse elle, se alguma cousa lhe disse que a magoou. -Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou -triste por isso? - -A moca cravou nelle um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu -logo. Mendonça adoptou o melhor dos alvitres naquella occasião; -inclinou-se e recuou para sahir. Helena chamou-o; elle approximou-se -outra vez, com um ar de tão doce resignação, que lisonjearia o mais -levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; elle apertou-a e teve -impetos de a beijar uma e muitas vezes, triumphando naquelle unico -instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena -mostrou-lhe o trecho da carta em que Estacio se referia a elle; falaram -dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assumpto que -exclusivamente preoccupava o moço. Elle sahiu dalli sem ter dito nada -de seu coração. Chegando á rua achou-se poltrão e ridiculo, disse -mil nomes feios a si proprio; emfim, prometteu declarar tudo a Helena no -dia seguinte. - -No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se á capella a ouvir a -missa do padre Melchior. Acabada a cerimonia, não seguiu para casa, com -D. Ursula, mas foi ter á sacristia, onde o padre acabava de tirar os -paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estacio, nessa manha, -pedira a Helena que lh'a deixasse ver. - ---Falam sempre ao coração as lettras dos amigos, dissera elle. - -Helena deu-lhe a carta, que o padre recebeu com uma expressão antes de -curiosidade que de affecto. Leu-a vagarosamente, como escrutando o -sentido e as palavras; e sendo longa a epistola, longo foi o tempo que -elle despendeu em a interpretar. Durante esse tempo, Helena admirava-lhe -a figura austera, a serenidade religiosa, que é a coroa mystica do -verdadeiro ecclesiastico. A sacristia era pequena; duas altas janellas -deixavam entrar a luz, o ar e o aroma das folhas e das flôres da -chacara. Entre a cimalha e o telhado algumas andorinhas haviam fabricado -os ninhos, donde sabiam, como pensamentos de juventude, a adejar ao sol -da manha. Ao pe daquelle quadro exterior de alegria e verdura, a -sacristia tinha certo ar melancholico e severo, que lançava n'alma o -esquecimento das vicissitudes humanas. Helena deixou-se captivar desse -sentimento de abstenção e elevação; se alguma dor ou remorso a -pungia, esqueceu-os, por um minuto ao menos, entra aquellas paredes -desataviadas, deante de um padre, entre uma imagem de Jesus e as obras -vivas do Creador. - -Lida a carta, Melchior dobrou-a com ar pensativo; depois entregou-a á -moça. - ---Ja respondeu? perguntou elle. - ---Ja; trouxe-lhe a carta que vou mandar hoje mesmo. - -Melchior abriu-a e leu; não gastou menos tempo, ainda que era de -menores dimensões. O estylo era affectuoso, mas muito menos exhuberante -que o da carta de Estacio. Ella contava-lhe, em suas feições geraes, a -vida que alli passavam, desde que elle partira, as occupações de cada -dia e as distrações da noite. - -«Vivemos, dizia a moça, como podem viver duas creaturas que sabem a -affeição que lhes tem um parente amigo, ausente embora, mas não -esquecido,--nem ingrato. O padre Melchior, algum dos visinhos, e o Dr. -Mendonça são as nossas visitas habituaes. Voce sabe o que vale o -padre; é a mais bella alma que Deus mandou ao mundo. Os risinhos são -affaveis, como sempre. O Dr. Mendonça é verdadeiramente digno da nossa -affeição e confiança. Disse-lhe o que voce me escreveu; elle riu, -como homem seguro de escapar á punição. - -«Pena é que voce tenha de se demorar ahi tanto tempo; mas, se alguma -esperança pode haver de salvar a doente, damo-nos por bem pagas da -demora. É verdade que voce não é médico; mas ha ahi outra doente, -para quem é, não só médico, mas até toda a medicina. Porque razão -me não escreveu Eugenia? Eu não cuidei que essa amiga me esquecesse na -vespera de ser rainha cunhada. Se estivessemos mais perto ia puxar-lhe -as orelhas. Diga-lhe isto; e se tiver occasião de emprestar-me os seus -dedos, applique-lhe o castigo, declarando-lhe o delicto commettido e o -juiz que a sentenciou. - -«O que voce diz da vida solitaria é muito justo, mas impraticavel. Os -amigos não nos iriam ver; e poderiamos nós dispensal-os? Tal é a -opinião de titia e a minha. O melhor de tudo é este meio termo de -Andarahy; nem estamos fóra do mundo, nem, no meio delle. O ruido -externo pode ter os effeitos de que voce fala; mas elle é ás vezes -preciso para aturdir e distrahir o espirito. Tambem a solidão tem suas -dores, e fundas: tambem ella abala o coração. Nem um extrema nem -outro.» - -A carta continha alguns periodos mais, não muitos; tres ou quatro vezes -falava em Eugenia, com tamanha insistencia que punha em relevo o -silêncio a tal respeito conservado por Estacio; falava-lhe da belleza -da noiva, do casamento proximo, do amor que os faria felizes, e da -ventura que ambos dariam a todos os seus. - -Quando o padre acabou de ler a resposta; abriu os braços a Helena; -depois abrangeu com as mãos a cabeça da moça e contemplou-a durante -alguns segundos. - ---Toda a sua alma está nesse escripto, disse elle; vejo ahi a reflexão -e o affecto. Tanto melhor! Ha comtudo uma lacuna: não transmitte a seu -irmão as minhas saudades; mas ha tambem uma excrescencia: louva meritos -que não possuo. Embora! Mande-a... - ---Escreverei duas linhas mais. - ---Pois sim. Diga-lhe que se apresse porque estou velho e posso morrer -antes. - ---Oh! protestou Helena. - -Melchior olhou para ella silenciosamente. - ---Cre que Estacio seja feliz? perguntou elle emfim. - ---Creio. - ---Tambem eu. - -Outro silêncio. O primeiro que o rompeu foi o padre. - ---Por que se não casa tambem? disse elle. - ---Eu? - ---De certo. Póde ser que muito breve, talvez... - ---Talvez, nunca. - -Melchior franziu a testa; sua physionomia, de ordinario meiga, tornou-se -severa, como a consciencia delle. O padre tinha uma das mãos de Helena -entre as suas; deixou-a insensivelmente cair. Entre os dous -estabeleceu-se um silêncio que os acabrunhava e que não ousavam -romper; como subjugados por um mysterio, receiava cada um delles que o -outro lh'o lesse na fronte; instinctivamente desviaram os olhos. - -Melchior foi o primeiro que voltou a si. A reflexão corrigiu a -expontaneidade; e o padre reassumiu o gesto usual, com essa -dissimulação, que é um dever, quando a sinceridade é um perigo. - ---Vamos la, disse elle; ninguem póde decidir o que hade fazer amanhã; -Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais do que -transcrevel-as na terra. - ---É verdade! confirmou ella com um gesto de cabeça, e sem erguer os -olhos. - ---Amanhã, continuou o padre, o acaso,--isso que os incredulos chamam -acaso, e que é a deliberação da vontade infinita,--lhe apontará um -homem digno da senhora; e seu coração lhe dirá; é este; e o suspiro -desalentado de hoje converter-se-ha n'um olhar de graças ao ceu. Ora, o -que eu lhe peço, o que eu desejo, é que se apresse tanto que eu possa -casal-os... - ---Oh! mas não vae morrer amanhã, interrompeu Helena. - ---Estou velho, minha filha; estes cabellos brancos são ja a neve desse -mar polar para onde navegamos todos. Conto sessenta annos. A morte póde -colher-me um dia proximo... - ---Vamos almoçar, disse Helena sorrindo. - -Sahiram da sacristia, atravessaram a capella, e penetraram na chacara. -Na occasião em que iam transpor a porta da capella, viram Mendonça -entrar em casa. Melchior estacou, e olhou para Helena. Ésta ia como -acabrunhada e absorta. O gesto do padre, quando ella lhe declarou que -não se casaria talvez nunca, ficára-lhe gravado na memoria, como um -enigma, que talvez receiava decifrar. Poucos minutos eram passados; -contudo, ella pôde reflectir, e colligir os elementos de uma -resolução. Detendo-se, com o padre, á porta da capella, viu tambem -entrar Mendonça, Os olhos da moca e do padre interrogaram-se de novo, -mas desta vez nenhum delles os desviou. - ---Vê aquelle homem? perguntou Helena. Parece-lhe que seria bom marido? - ---Excellente, de certo, disse vivamente Melchior; caracter, educação, -sentimentos. - ---Tem ainda uma virtude particular: ama-me. - ---Sei. - ---Elle lh'o disse? - ---Não, mas ve-se. É sabido de todos os que frequentam ésta casa. A -probabilidade do casamento é objecto de commentarios; e a opinião -geral é que elle se fara dentro de pouco tempo. Confessou-lhe alguma -cousa? - ---Nada; mas os olhos da mulher amada não são menos sagazes que os dos -padres amigos. Acha que devo confirmar a opinião dos outros? - ---Acho; consulte porém seu coração. - ---Ja consultei. - ---Neste unico instante? - ---Nada menos. - ---Devéras? disse Melchior derramando um olhar de paternal ternura no -rosto serio de Helena. - ---Não digo que o ame desde ja; mas a affeição que elle me tem -reflectirá em meu coração, e eu virei a amal-o. O que importa saber -é que é digno de mim. De todos os que me pretendessem nenhum lhe seria -superior. - ---Ainda bem! Contudo, repare que vae contrahir uma obrigação -perpétua, e que um contracto destes não póde ser deliberado em poucos -instantes. - ---Oh! nesse ponto a minha ignorancia sabe mais do que a sua theologia. -Que são minutos e que são mezes? Paixões de largos annos, chegando ao -casamento, acabam muitas vezes pela separação ou pelo odio, quando -menos pela indifferença. O amor não é mais que um instrumento de -escolha; amar é eleger a creatura que hade ser companheira na vida, -não é afiançar a perpétua felicidade de duas pessoas, por que essa -póde exvair-se ou corromper-se. Que resta à maior parte dos -casamentos, logo apos os annos da paixão? Uma affeição pacifica, a -estima, a intimidade. Não peço mais ao casamento, nem lhe posso dar -mais do que isso. - ---Não gósto de tanta reflexão era tão verde edade, replicou -benevolamente Melchior; todavia encanta-me esse raciocinio, que ao cabo -de tudo póde ser verdadeiro. Mas não me desdigo; alguns minutos é -pouco tempo; reflicta ainda vinte e quatro horas. - ---Nem um instante mais, insistiu Helena. Minhas reflexões são lentas -ou subitas: ou cinco minutos ou um anno; escolha. - ---Pois reflicta cinco minutos, replicou o padre sorrindo. - ---Ja la vão quatro; aproveitarei o último para lhe dizer que em nada -disto falaria se não fossem as qualidades notaveis desse moço; e para -accrescentar que a elle me liga certa sympathia de genios... é talvez a -semente do amor. - -Tinham chegado ao primeiro degrau da escada da varanda. Subiram e -penetraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula e Mendonça, este -a percorrer com os olhos um jornal do dia. O almoço serviu-se -immediatamente. - ---Padre-mestre, disse D. Ursula, demorou-se tanto que cuidei... tivesse -ideia de me arrebatar Helena. - ---Estive-a ouvindo de confissão, respondeu Melchior. - ---E pode absolvel-a? - ---De certo. - ---Mas com grande penitencia, não? - ---A mais facil de todas, acudiu Helena olhando para o padre. - ---Oh! então é que os peccados são leves! concluiu D. Ursula. Não lhe -parece? - -Éstas ultimas palavras foram dirigidas a Mendonça, na occasião em que -todos caminhavam para a mesa. Mendonça não disse nada. Seus olhos -ousavam apenas resvalar pela moça; contra o costume, elle falava -pouco,--menos ainda que na vespera e nos dias anteriores. D. Ursula via -a differença, mas não a comprehendia. - ---Não quero saber que peccados confessou,--disse ella sentando-se; mas -estou certa que o maior delles não levaria ninguem ao purgatorio. - ---Veja o que é uma tia indulgente, observou Helena a Mendonça, -sentando-se a seu lado. - -Preoccupado com a conversa que acabava de ter na sacristia e na chacara, -Melchior pouca attenção prestou a principio ao filho do commerciante. -Seu espirito analysava as circumstâncias do momento e pesava a -responsabilidade que lhe podia vir de qualquer resolução que -adoptasse. Apos um longo dialogo com a sua consciencia, o velho -sacerdote inclinou os olhos ao mancebo, que lhe ficava defronte, ao lado -de Helena. Viu-os conversar com essa familiaridade de bom gôsto, que é -a pedra de toque dos costumes polidos. Ella mostrava-se graciosa, -solicita e attenta, como uma espôsa amante; elle parecia enamorado da -voz e das falas da donzella; como que um clarão interior lhe -desvendára à alma os horizontes infinitos da esperança. Familiarisado -com Helena, tratado por ella com exquisita attenção, era comtudo a -primeira vez que ella lhe falava, não como a um confidente amigo, mas -como a um homem que poderia vir a ser seu esposo. Alguma seriedade, um -olhar submisso, uma attenção continuada, fizeram essa differença que -antes foi sentida pelo coração do que descoberta pelos olhos. - -No fim do almôço, Melchior dirigiu-se para a sala de visitas, com -Helena. Mendonça acompanhou-os. A resolução do padre estava assentada -de raiz; elle acceitava aquelle casamento como um presente do ceu. -Apenas entrados ha sala, travou das mãos de um e outro e lhes disse, -com voz commovida: - ---Promettem não zangar-se commigo? - ---Por que? interrogou Mendonça com os olhos. - -Helena baixára os seus. - ---Promettem? - ---Padre-mestre... começou Mendonça sem poder concluir a phrase. - -O padre olhou silenciosamente para um e outro. Talvez hesitava falar; -talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração. Urgia -romper o silêncio; fel-o com solemnidade: - ---Serei duas vezes padre: segundo a natureza e segundo o Evangelho. -Quando duas creaturas se merecem, é servir a Deus emprestar a voz ao -coração que não ousa falar. O senhor ama ésta menina; leio-lhe dos -olhos o sentimento que o arrasta para ella; são dignos um do outro. Se -é a timidez que lhe fecha os labios, eu sou a voz da verdade e do amor -infinito; se outro motivo, serei juiz complacente para escutal-o. - -Ouvindo éstas palavras, Mendonça ficou aturdido e mudo. Não só a -fortuna lhe chegava ás mãos, quando elle menos esperava, mas até -escolhêra um caminho desusado e extranho. A realidade confundia-se alli -cora o sonho. A presença de um terceiro era sufficiente motivo para -acanhar os mais resolutos; accrescia a veste sacra do sacerdote que dava -aquillo um ar de solemnidade e consagração. Mendonça recobrou enfim -o uso dos sentidos; sua resposta unica e eloquente, foi estender a mão -a Helena, gesto a que a moça correspondeu com simplesa e naturalidade. - ---Não se enganaram meus olhos, disse o padre. Ama-a, e póde dar-lhe a -felicidade que lhe desejo a ella. Tambem Helena o fara venturoso, não? -perguntou elle voltando-se para á moça. - ---Mas é isto um sonho? perguntou enfim Mendonça. - ---A vida não é outra cousa, retorquiu o capellão; velho pensamento e -velha verdade. Façamos por que o sonho seja agradavel e não arido ou -triste. Promettem-me que se farão felizes? - ---Não ambiciono outra cousa, disse o rapaz; será o meu cuidado e a -minha glória. - ---Seu amor, continuou Melchior, é mais forte que o de Helena; eu -consultei-a antes, e li em seu coração. Elege-o com prazer, embora sem -enthusiasmo. Não é a paixão cega que a faz falar é um sentimento -brando e singello, por isso mesmo duradouro. A reflexão de um corrigirá -a violencia do outro, e os dous sentimentos se completarão pela virtude -especial de cada um. - -Ésta explicação franca de Melchior teve o condão de ser agradavel -aos dous. Helena estimou que elle nem lisonjeasse as illusões de -Mendonça, nem a désse como acceitando indifferente e estouvada o -casamento proposto. Pela sua parte, Mendonça viu nas palavras do padre -um indicio da sinceridade de Helena, e aceitou o pouco offerecido, com a -certeza de multiplical-o. O caracter de Melchior e a veneração que -mereciam suas virtudes, eram fianças de veracidade e davam ao acto -singello que alli se passava um forte cunho de santidade e elevação. -Não era uma vulgar declaração de amor, sugeita ás variações do -espirito ou do interesse; mas verdadeiros esponsaes, em que a religião -era inspiradora e testemunha. - - - - -CAPITULO XVII - - -Aquelle dia foi marcado no calendario de Mendonça com lettras de ouro e -setim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Elle viveu essas horas -todas n'um estado de somnambulismo e extasis. Tencionava referir tudo á -mãe, logo que entrou em casa ao meio dia; mas não se atreveu, porque -elle mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas azas -de uma chimera. De noite voltou a Andarahy; achou em Helena o mesmo modo -affectuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva, -nenhuma contemplação namorada; um meio termo que o continha a elle -proprio, e não era menos aprazivel ao coração. A nova situação era, -entretanto, sensivel, porque os vigilantes de fóra, trocaram entre si -olhares profundos e inundados de graves descobertas; um delles, o -coronel-major, chegou a proferir uma allusão, que os interessados -fingiram não perceber. - -Quando Mendonça chegou a casa, nessa noite, ia mais que nunca cheio de -commoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas ahi entrou, -pareceu-lhe transformada por uma vara magica; elle viu-a povoada de -seres phantasticos e rutilantes que iam e vinham do ceu á terra e da -terra ao ceu. A côr deste era unica entre todas as da palheta do divino -scenographo. As estrêllas, mais vivas que nunca, pareciam saudal-o de -cima com ventarolas electricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e -despeito. Azas invisiveis lhe roçavam os cabellos, e umas vozes sem -boca lhe falavam ao coração. Seus pes como que não pousavam no solo; -elle ia extatico e sem consciencia de si. Era aquelle o galhofeiro de ha -pouco? O amor fizera esse milagre mais. - -Um dos theatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era -desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que alias expirava de -parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de ater-se á -realidade das cousas, tão chimerico se lhe affigurava tudo o que se -passára desde manhã. - -Um expectador,--o filho do coronel-major,--viu-o a alguma distância e -foi sentar-se ao pe delle. - ---O senhor que tem melhor vista,--disse o academico--desengane-me; -aquella moça que alli está, naquelle camarote, não é a andorinha -viajante? - ---A andorinha viajante? repetiu Mendonça olhando para elle; que quer -dizer esse nome? - ---É a alcunha da irmã de Estacio. Sera ella que está alli, com uma -senhora edosa? - ---Mas porque lhe chamam assim? - ---Eu sei! Naturalmente porque sae á rua todos os dias. Na verdade, é -um passear! Mal amanhece, la vae trepada no cavallinho, com o pagem -atraz... - ---Quem lhe poz essa alcunha? - ---As alcunhas são como as mofinas; não tem autor. - -Cahíra o panno; Mendonça despediu-se alli mesmo e sahíu. Na rua -repetiu mentalmente as palavras do joven academico. Ao cabo de alguns -minutos sorriu; comprehendêra que, apenas suspeitada a sua felicidade, -ja a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os hombros, -resoluto a supportar tranquillo essa livida companheira do successo. - -Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvêra a occupal-o -exclusivamente. So, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos -daquelle dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com -alguem, escreveu uma longa carta a Estacio, narrando-lhe toda a -história do seu coração, suas esperanças e a prompta realisação -dellas. A alma derramou-se no papel impetuosa e exhuberante. O estylo -era irregular, a phrase incorrecta; mas havia alli a eloquencia e a -sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia -dar ao amigo, logo que ella lhe chegasse ás mãos, levando a notícia -de que as vinculos atados na aula iam apertar se na familia. «Vem -quanto antes, dizia elle ao terminar a missiva; tenho ancia de -abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fara o mais feliz -dos homens!» - -Quando esta carta chegou a Cantagallo, Estacio voltava de uma pequena -excursão, que fizera com o pae de Eugenia. Conheceu a letra do -sobrescripto; abriu negligentemente a carta; leu-a com assombro. Á -impressão foi tão visivel, que Camargo lhe perguntou de que se -tratava. - ---Recebo uma noticia que me obriga a partir amanhã, disse elle. - ---Negocio grave? - ---Grave. - ---Ainda assim, nesta occasião. - ---Que tem? D. Clara póde ainda resistir á morte alguns dias; e posto -que a minha ausencia não prejudique nada do facto a que alludo, comtudo -é mister que me informe e providencie. - ---Algum negocio relativo ao inventário?--aventurou Camargo, que nada -conhecia mais grave que o dinheiro. - ---Justamente, respondeu machinalmente Estacio. - -Camargo consolou a filha do desgôsto que lhe causava a partida do -noivo; falou-lhe a linguagem da razão; disse que havia assumptos -praticos, a que os sentimentos tinham de ceder o passo alguma vez. No -dia seguinte de manhã partiu Estacio na direcção da Corte, não sem -prometter que voltaria, se a molestia ou qualquer outro motivo obrigasse -a familia a demorar-se em Cantagallo. - -Ninguem esperava por elle em Andarahy. Entrando na chacara,--era de -noite,--viu Estacio que a sala que ficava no angulo esquerdo da frente -da casa estava allumiada e tinha gente. A sala ficava ao rez do chão, e -as janellas estavam abertas. Elle parou a pouca distância, e pôde -distinguir o coronel-major e o Dr. Mattos a jogarem o gamão; a mulher -do advogado falava a D. Ursula e Melchior, em um dos lados; do outro -estava assentada Helena, tendo Mendonça deante de si. - -Estacio deu volta aos fundos da chacara, e entrou pela varanda. Os -escravos que o virara chegar deram signal da novidade, com vozes de -alegria, que alias não chegaram até ás pessoas da sala. Estas só -souberam do recem-chegado quando este assomou á porta. A satisfação -de o ver foi geral e sincera em todos. Estacio distribuiu abraços e -apertos de mão. Melchior, que se deixára ficar de lado, foi o último -com quem elle falou. - ---O Dr. Camargo veiu? perguntou D. Ursula ao sobrinho logo depois que -este comprimentára a todos. - ---Não, respondeu Estacio, a doente não póde escapar, mas ainda a -deixei com vida. - ---Imagino a impaciencia dos herdeiros. - -Ésta observação philosophica do coronel-major não teve nenhum -effeito. Melchior, que a reprovára anteriormente, fez mudar a conversa, -informando-se da familia de Camargo. Estacio deu todas as notícias que -podiam interessar; depois falou de alguns incidentes da viagem; afinal -obteve licença para ir mudar de _toilette_. - -Mendonça acompanhou o amigo, alcançando-o ainda na escada. Subiram -junctos e junctos entraram no quarto. - ---Agora que estamos sos, perguntou Mendonça, houve por la alguma cousa? - ---Nada. - ---Tanto melhor! - -Um escravo entrou no quarto, afim de servir a Estacio; Mendonça, -ancioso por lhe falar de Helena, contentou-se com trocar algumas vagas -indicações. - ---Recebeste a minha carta? disse elle. - ---Recebi. - ---Não esperavas por ella, aposto? - ---Não. - ---Como eu não esperava escrevel-a. Estás aborrecido, continuou elle -depois de um silêncio. - ---Estou cançado. - ---Naturalmente, assentiu Mendonça abrindo um livro que achou sobre a -mesa e tornando-o a fechar. - -O silêncio prolongou-se alguns minutos, durante os quaes Mendonça -tornou a abrir o livro, examinou uma espingarda de caça, preparou um -cigarro e fumou. O escravo servia o senhor com a pontualidade de quem -lhe conhecia os costumes. Estacio continuava mortalmente silencioso; -Mendonça falou algumas vezes, sobre cousas indifferentes, e o tempo -não correu, andou com a lentidão que lhe é natural quando trata com -impacientes. Logo que Estacio se deu por pro rapto, e o escravo sahiu, -Mendonça voltou directamente ao assumpto que o preoccupava. - ---Estava ancioso por ver-te, disse elle. Não nos é possivel falar -agora: não temos tempo. Mas quero dar-te um abraço, ao menos, um -abraço de agradecimento pela felicidade... - ---Parece que só esperavas a minha ausencia? - ---Creio que não. Ja antes de seguires, começava a sentir alguma cousa -nova, que vim a descobrir ser paixão violenta. - ---Helena ama-te? - ---Com egual amor, não creio; mas aceita-me; tem-me algum affecto. - ---Tratarei de consultal-a. - -Mendonça não pôde continuar, por que Estacio descia a escada ao -dar-lhe a ultima resposta. Mendonça desceu tambem. Na sala estavam -ainda as mesmas pessoas. Perto de uma janella conversava Helena com o -padre. O cha foi logo servido; e a conversa tornou-se geral, mas sem -grande animação. Melchior falou menos que todos. - -Nem por isso foi o primeiro que sahiu; foi o último. Na chacara, -dirigindo-se ao portão, ergueu os olhos ao firmamento, não para ver a -lua e as estrêllas, mas para subir a região mais alta. O que disse -ninguem o soube; mas o anjo das rogativas humanas por ventura colheu em -seu regaço os pensamentos do ancião e os levou aos pes do eterno e -casto amor. - - - - -CAPITULO XVIII - - ---Helena, disse Estacio no dia seguinte, logo que pôde falar a sos á -irmã,--sabes porque vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça -escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento. - ---É verdade. - ---É verdade? - ---Até o ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por -mim só nada posso decidir; mas não creio que voce se opponha de nenhum -modo. Não é certo que deseja a minha felicidade? - -Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estacio -ficou algum tempo a olhar para a agua. - ---Não entendo, disse elle enfim. - ---Porque? - ---Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão -que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor unico e -forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu -coração, é caso não vulgar e muita vez justificavel. Mas que este -casamento seja para ella a felicidade, confesso que não o poderei -entender nunca. - ---Recusa então o seu consentimento? - ---Não recuso; desejo comprehender. - ---Nada mais simples, retorquiu a moça. - ---Ah! - ---Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extincto naquelle tempo, -mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas phantasias uma -vez ao menos? A phantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso -desposar um homem digno, que me ame. Não casar, foi algum tempo o meu -desejo; não o é hoje, desde que voce, titia e o padre Melchior -ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do -casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e -os melhores affectos de seu coração. - ---De maneira que sacrificas-te a um desejo nosso? - ---Quando fôsse sacrificio, fal-o-hia de boa cara; mas não é. - ---Não se trata do um sacrificio repugnante e odioso; mas cumpre -examinar o que perdes. Dizes que a phantasia passou; não creio. Helena, -não creio que ella passasse. Tu amas de certo; amas violentamente -alguem; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa do teu -marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e -inimigo... - -Helena quiz interrompel-o. - ---Ouve, continuou Estacio. Esse sentimento, se vier a extinguir-se, e se -fôr substituido pela affeição que creares a teu marido, não te fara -desventurosa; mas suppõe que não morre esse amor, qual será a tua -situação? - ---Tudo isso é um castello no ar,--disse Helena sorrindo; eu amei, não -amo; ou amo somente a meu futuro marido. - -Estacio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no -rosto placido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão -silenciosa. Os della, firmes e tranquillos, crusavam o olhar com os -delle. Estacio conhecia ja o dominio que a moça exercia sôbre si -mesma; sua tranquillidade não o convenceu. Assim o pensava, assim o -disse--sem rebuço. - ---Por que razão negaria eu a verdade? retorquiu Helena. - -Estacio ergueu os hombros. - ---Suppondo que voce tenha razão, tornou ella; não deverei casar nunca? - ---Não digo isso; mas ha dous caminhos para a felicidade, além de -Mendonça. - ---Não os vejo. - ---Esse amor mysterioso será realmente sem esperança? Nada ha definitivo -no mundo, nem o infortunio nem a prosperidade. O que a tua imaginação -suppõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou occulto... - ---Adivinho o segundo caminho, atalhou Helena; não casando agora, posso -vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como -elle. - ---Parece-te absurdo isso? - ---Não, mas é uma loteria; perco um bem certo, por outro duvidoso. O -jogador não faz cálculo differente. Essa felicidade póde não vir; eu -contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me devéras; senti-o -desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino -que os dous me offerecem. Ésta é a razão e a realidade; o mais é -illusão e phantasia. - -Em quanto ella falava, Estacio, que tirára o chapeu de Chile, -occupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve -entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa -carreira de formigas, conduzindo as mais dellas trechos de folhas -verdes. Com um galho sêcco, Estacio distrahia-se em perturbar a marcha -silenciosa e laboriosa dos pobres animaes. Fugiam todas, umas para o -lado da terra, outras para o lado da agua, era quanto as restantes -apressavam a jornada na direcção do domicilio. Helena arrancou-lhe o -galho da mão; Estacio pareceu accordar de largas reflexões; ergueu-se, -deu alguns passos e voltou a ella. - ---Helena,--declarou elle,--não creio nada do que voce me diz; voce -sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu dever -oppor-me a semelhante cousa... - -Helena ergueu-se tambem. - ---Mendonça começa a ser o fructo prohibido, observou ella sorrindo; é -o meio seguro de o fazer amado. - -A moça affastou-se na direcção da casa. Estacio via-a desaparecer -por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As -formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no -primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e -comparou-as a suas ideias, tambem necessitadas de que um galho, -invisivel as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões -lembrou-lhe o padre; Estacio atravessou a chacara, sahiu á rua e -dirigiu-se á casa de Melchior. - -Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto, -a algumas braças da residencia de Estacio. Tinha duas salas o predio, -janellas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A -da frente abria entre duas janellas de venezianas. A sala de visitas era -ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobilia, -nenhuns adornos, uma estante de jacaranda, com livros grossos in-quarto -e in-folio; uma secretária, duas cadeiras de repouso, e pouco mais. - -Na occasião em que Estacio alli entrou, Melchior passeava de um para -outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou -Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura, por que o padre amava -contemplar os grandes espiritos do passado, quando não encarava os -mysterios do futuro. Naquelle corpo mediano havia uma aguia captiva. -Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as -flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço, -vivendo a vida retrospectiva ou prophetica, doce e mysteriosa volupia -das almas solitarias. Melchior era um solitario; sem embargo das -relações sociaes, que elle cultivava, amava sobretudo estar separado -dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou -meditava, esquecido ou extranho a todas as cousas do seu seculo. - -Naquella occasião lia. Vendo assomar á porta o vulto de Estacio, -Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o affavelmente. - ---Vim interrompel-o, disse Estacio; mas era preciso. - -Melchior depoz o livro sôbre a mesa redonda que havia no meio da sala, -marcando a lauda com uma telha estampa. Depois sentaram-se ao pe de uma -das janellas lateraes. Então não se atreveu a dizer logo o motivo que -o levara alli; mas de sua propria hesitação, deduziu Melchior qual -era elle. - ---Era preciso? repetiu o padre. - ---Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo; confio em seu conselho e -discrição. Como deseja a felicidade da minha familia, buscou facilitar -o casamento de Helena e Mendonça... - ---Contando com a sim approvação, explicou o padre. - ---Hesito em dal-a. - ---Por que? - -Estacio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe -propunha, ao que Melchior respondeu referindo singellamente a verdade. - ---É certo que o não ama ardentemente; concluiu elle, mas aceita-o, -aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar. - ---Ha uma difficuldade, padre-mestre; é que ella ama a outro. - -Melchior empallideceu; seu olhar escrutador, como o de um juiz, -cravou-se immovel e afiado no rosto de Estacio. A fronte severa do moço -não se alterou, nem seus olhos baixaram a terra. - ---Ama a outro, continuou elle; paixão violenta, mas sem esperança, e -tão real qual mysteriosa. Uma ou duas vezes alludiu a ella; mas nada -mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito, -desviou dahi o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei porém que -ama, e casar com outro em taes circumstâncias, dá dous inconvenientes -egualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o -homem que interiormente elegeu, e leva para casa do marido um sentimento -de pezar e de remorso. Parece-lhe isso toleravel? - ---Não ha remorso não ha pezar, onde não ha esperança, redarguiu o -padre. Helena aceita o Mendonça por expontanea vontade; e conheço-a -tanto que não acho ja possivel que ella recuse. - ---Salvo o meu consentimento. - ---É claro; mas por que o não daria? - ---Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou seu -coração. Talvez ella ache impossivel aquillo que é simplesmente -difficil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezesete annos. - ---Valem por vinte e cinco. - ---Pode ser; mas convem não aceitar de coração leve uma -condescendencia ou um capricho, ou qualquer outro motivo occulto que a -inspira nesta resolução. - ---Que motivo seria? - ---Eu sei! Talvez a suspeita de que estimassemos vel-a affastar-se de -casa. - ---Não a calumnie; Helena tem perfeita sciencia e consciencia dos -affectos que a rodeam e da estima em que é tida. Suas objecções não -valem nada deante da declaração que ella propria fez. Não -compliquemos uma situação simples e definida. - -Melchior proferiu éstas palavras com voz branda, mas em tom firme; -Estacio não se animou a responder logo. Voltou porém ao primeiro -argumento; depois aventurou uma objecção nova. - ---Mendonça é bom coração, disse elle; mas não possue as qualidades -que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca -exercerá, sôbre ella a influência que deve ter um marido. Entre os -dois inverte-se a pyramide. Mas isto, ao menos, se destruia uma das -condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O -perigo maior é outro; é vir elle a perder a estima da mulher. Nesse -caso que lhe dariamos nós a ella? Um casamento apparente e um divorcio -real. - -Não olhava pura elle o padre, mas para fóra, com uns olhos dolorosos e -o gesto impaciente. Quando elle acabou, fitou-o com resolução; -disse-lhe que se tratava de casar Helena, não com um marido especial, -mas com o que ella propria escolhêra de sua vontade livre; casamento -que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de familia, -Estacio podia oppor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem -convinha isso ao interesse de Helena nem ao proprio interesse da -familia. - -Estacio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e -pensativo. No fim de alguns segundos, o padre foi a elle. - ---Va contar tudo a sua tia, disse; approve sua irmã; casal-os-hei a -todos no mesmo dia. - ---Pois bem, disse Estacio como concluindo um raciocinio interior; -consinto em que Helena se case; procuremos outro marido. Mendonça. -não; hade ser outro. Vou casar tambem; receberei todas as semanas; -algum rapaz apparecerá que a mereça e de quem ella venha a gostar -seriamente... é a minha ultima resolução. - - - - -CAPITULO XIX - - -No momento em que Estacio proferia éstas palavras, transpunha Mendonça -a porta do jardim do capellão. Preoccupado com a frieza de Estacio, -lembrara-lhe expor a Melchior suas impressões e pedir-lhe conselho, -Melchior ia responder ao sobrinho de D. Ursula, quando ouviu rumor de -passos na areia do jardim. - ---Ahi vem o noivo, disse elle. - -Estacio deu dous passos para pegar no chapeu; mas reconsiderou e foi -sentar-se ao pe da mesa redonda. Havia alli um exemplar das Escripturas. -Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos _Proverbios_; -seus olhos cahiram neste versiculo: «Quem quer abrir mão de seu amigo, -busca-lhe as occasiões; elle será coberto de opprobrio.» Envergonhado, -voltou a folha. Mendonça, entrára na sala. Não contava com Estacio, -mas estimou vel-o alli. - ---Venha, disse Melchior; tratavamos justamente seu casamento. - -Estacio lançou ao padre um olhar de exprobação. O padre não o viu; -olhava para Mendonça, que immediatamente lhe respondeu: - ---Não venho ca para outra cousa. Uma vez que a fortuna o fez nosso -confidente, desejo constituil-o meu conselheiro e director. - ---Antes de tudo sou advogado de sua causa, disse Melchior: estava -expondo agora as vantagens della. - -Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa: - ---Rejeitas ou aceitas o noivo? perguntou elle. - -Posto entre a espada e a parede, Estacio não soube logo que -respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receioso de encontrar a -vista dos dous. O silêncio era peor que a resposta; e nem o caso nem as -pessoas permittiam tão grande pausa. Estacio fechou do golpe o livro e -ergueu-se. - ---Discutia somente as vantagens do casamento, disse elle. - ---E qual é a tua opinião? - ---Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só -essa, nem é a principal; o uso em todo o caso é a favor do casamento. -A principal razão é o teu proprio crédito. - ---Meu crédito? - ---Helena póde vir a amar-te como lhe mereces: mas a verdade é que não -sente ainda hoje egual paixão á tua; foi o padre-mestre que m'o disse. -Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão; e eu creio que a -flor do sentimento é muito mais propria no canteiro do matrimonio. - ---Ha muita flor nesse ramalhete de rhetorica, interrompeu benevolamente -o padre. Falemos linguagem singella e nua. Não creia litteralmente o -que lhe diz este philosopho, proseguiu elle voltando-se para Mendonça; -elle ama-os e quer vel-os felizes; é o proprio zêlo quem lhe faz falar -assim. N'uma palavra; deseja que o senhor a conquiste depois de campanha -formal... - -Mendonça respondeu ao capellão com um sorriso pallido, que lhe -arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso e -frio. Seu rosto ficára carregado e pensativo; a lingua de Estacio -tocara-lhe o coração. Disposto a aceitar a estima e a sympathia de -Helena com a esperança de converter esse pequeno dote em avultado -capital, não lhe occorrêra que a olhos extranhos podia parecer que seu -fim exclusivo era a riqueza da moça. Estacio rompêra o veu a essa -probabilidade. Uma só palavra desfizera a illusão de poucos dias. - ---Vamos la,--disse o padre,--abracem-se como irmãos. - -Nenhum delles se mexeu, Melchior sentiu toda a gravidade da situação; -viu perdidos seus esforços, desfeita a união assentada, um abysmo -cavado entre os dous amigos, incerto o destino de Helena. Interveiu -outra vez com palavras de brandura, que os dous ouviram sem interromper. -Quando acabou: - ---O Estacio tem razão, disse Mendonça; meu crédito padecerá desde -que alguem se lembre de dizer que o casamento foi arranjado sem nenhuma -preoccupação das preferencias de D. Helena. Ella me desobrigará, em -troca da palavra que lhe restituo. - -A phrase brotou-lhe dolorida, mas sem hesitação nem fraqueza. Estacio -olhava para elle e sentia alguma cousa semelhante a um remorso. Uma voz -interior parecia dizer-lhe:--«Somnambulo, abre os olhos, tem -consciencia de tuas acções; teu abraço enforca; teus escrupulos fazem-te -odioso; tua solicitude é peor do que a colera.» Via o mancebo -cortejar o padre; deteve-o pelo braço. - ---Onde vaes? disse elle. - ---Vou aonde me leva o pundonor, disse singellamente Mendonça. - ---Pobres rapazes! exclamou o padre. São dous estouvados, nada mais; um -quer catar argumentos onde sua irmã só achou nobre o franca -resolução; o outro rompe de coração leve uma promessa feita em -presença de um sacerdote! Estouvados disse eu? São mais do que isso; -são dous dementes. Ora, como só eu tenho juizo e consequente -autoridade, digo que nem um ha de sahir assim desenganado, nem o outro -ha de recusar a acquiescencia que lhe peço em nome de seu finado pae. - -Estacio estremeceu; Mendonça conservou-se frio. A arma era rija, mas o -golpe excedia a necessidade; Mendonça não quereria dever a espôsa á -evocação do nome do conselheiro: equivalia a um rapto. Percebeu-o -Melchior, quando viu Estacio estender a mão ao amigo, mão que este -recebeu com dignidade e frieza. Contaria Estacio com essa mesma repulsa -do pretendente? O certo é que lhe disse sem a menor sombra de -hesitação: - ---Meu zêlo foi talvez excessivo; mas a intenção é boa e pura. Que -posso eu desejar senão ver felizes os meus? Amem-se; será a remate de -minhas aspirações. Promettes fazel-a feliz? - ---Não prometto nada, disse Mendonça; o casamento é ja impossivel. Tu -abriste-me os olhos; não te quero mal por isso. Perco muito, é certo; -mas não me exponho á lingua dos maus. - -Mendonça foi buscar o chapeu e dispoz-se a sahir, não obstante a -intervenção de Melchior, que procurou trazel-o a sentimentos de -reconciliação. Não insistiu o padre; viu no rosto do mancebo uma -resolução digna e firme, que era impossivel dobrar naquelle momento. -Quando Mendonça, lhe estendeu a mão em despedida, elle apertou-lh'a -com ternura e esperança. Estacio tentou ainda retel-o; foi inutil; -Mendonça sahiu dalli sem rancor, mas sem pezar. O coração -sangrava-lhe; mas a consciencia ia contente. - -Melchior foi até á porta, a despedir-se do Mendonça. Quando este -sahiu, elle voltou o rosto para dentro, cruzou os braços e fitou o -sobrinho de D. Ursula. O moço desviou as olhos; não foi o medo que os -torceu, mas a vergonha. - ---Viu? perguntou o padre. Não sei qual seja a sua resolução; mais -prometto-lhe que serei como Mahomet,--Deus me perdoe!--ainda que veja o -sol á minha direita e a lua á minha esquerda, não deixarei de -executar o meu designio. Va ter com sua familia; deixe-me alguns -instantes com o meu breviario. - -Estacio não pôde resistir á intimação do sacerdote; não achou uma -palavra para lhe dizer. Sahiu aturdido, desconsolado, colerico. Na rua e -na chacara, ia pensando na scena daquella ultima hora, e parecia apenas -reconstruir um sonho. Desconhecia-se, apalpava a intelligencia, chamava -em seu auxilio todas as fôrças da realidade; olhava para o chão -suspeitoso de que ia calcando as nuvens. Quando a razão tomou pe no -meio de lembranças tão desconcertadas, elle viu claramente o resultado -de suas acções: perdia um amigo de longos annos e abdicava a -direcção da familia, pelo menos em relação ao casamento da irmã. Se -ésta lhe agradecesse a resistencia, Estacio dar-se-hia por bem pago de -tudo. Não era em seu favor que elle conspirara? Este pensamento -levantou-lhe o ânimo; tivesse a approvação de Helena, pouco lhe -importaria o resto. - -Helena ouviu-lhe a narração fiel do que se passára em casa de -Melchior. Ouviu-a commovida; no fim reprovou tudo o que elle fizera. - ---Mendonça é ja o fructo prohihido, concluiu a moça; começo a -amal-o. Se ainda assim me obrigar a desistir do casamento, adoral-o-hei. - ---Chegamos ao capricho! exclamou elle; é o fundo do coração de todas -as mulheres. - -Helena sorriu e voltou-lhe as costas. Subiu a seu quarto, travou de uma -penna e escreveu um bilhetinho. A tinta seccou primeiro que duas grossas -lagrymas cahidas no papel; mas as lagrymas seccaram tambem. Antes de -fechar o bilhete, desceu Helena a mostral-o ao irmão. - -Quando a moça entrou no gabinete, Estacio ia ter com ella. Sua -resolução estava assentada. Uma vez que a irmã aceitava de boa -feição o casamento, não havia mais que approval-o e celebral-o. -Encontraram-se na porta; Estacio recuou para dentro. - ---Helena, disse elle, faça-se a tua vontade. - ---Consente? - -Estacio fez um gesto affirmativo. - ---Não basta isso, tornou a moça; Mendonça não voltará ca depois do -que se passou. Peço-lhe a remessa deste bilhete. - -Estacio abriu o bilhete; continha éstas poucas palavras: «Venha hoje a -Andarahy; é o meu coração que o pede e a nossa felicidade que o -exige.» Cinco minutos gastou o moço a ler as duas linhas; leu o que -estava escripto e o que não estava. Helena desarmava os escrupulos de -Mendonça, tirando á futura união qualquer suspeita de interesse. Leu -e fechou lentamente o papel. - ---Approva? perguntou a moça. - ---Assim, pois, disse o moço tristemente, a tua felicidade exige que -esse homem venha ca, que te cases com elle, que nos fujas? Não te basta -a familia, a affeição de nossa tia, a minha propria affeição? Estes -mezes de doce intimidade vão ser esquecidos em um só instante, -sacrificados aos pes do primeiro homem que te apraz escolher e seguir? -No dia em que penetraste nesta casa, entrou contigo um raio de luz nova, -alguma cousa que nos faltava e que tu trouxeste contigo; nossa familia -completou-se; nossos corações receberam um sentimento ultimo. -Pensavamos que isto seria duradouro, e era simplesmente fugaz. Oh! -Helena, melhor fôra não ter vindo! - -Helena quiz responder; mas a voz travou-se-lhe na garganta, e a palavra -retrocedeu ao coração. Apontou para o papel como pedindo-lhe ainda uma -vez que o enviasse e saiu. - -De tarde, appareceu Melchior; ia tranquillo e e resoluto a dar um golpe -decisivo. Estacio rendeu-se antes que elle falasse. - ---Padre-mestre, disse o moço logo que o viu; a reflexão venceu-me; -faça-se a vontade de todos. - ---Fala de coração? - ---De coração. - ---Pois bem, seja completo; tomou o padre. Sou ministro de uma religião -que condemna o orgulho. Não ha dezar em curar as feridas de um amigo; -va ter com o seu amigo; traga-o a esta casa como irmão. - ---Irei amanhã. - ---Não; va hoje mesmo. - -A noite cahiu logo; Estacio foi dalli vestir-se. Não tendo enviado o -bilhete de Helena, metteu-o na algibeira para entregal-o elle proprio; -depois tirou-o e releu-o; tendo-o relido, fez um gesto para rasgal-o, -mas conteve-se e perpassou-o ainda uma vez pelos olhos. A mão, á -semelhança de mariposa indiscreta, parecia attrahida pela luz; -resistiu, resistiu algum tempo; emfim chegou o bilhete, á vela e -queimou-o. - - - - -CAPITULO XX - - -A visita de Estacio não causou nenhum espanto a Mendonça; elle a -esperava com a confiança das indoles ingenuas e avessas ao odio. Não -era crivel que um amigo de longos annos dormisse sobre a injustiça de -um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estacio procurou o -pretendente de Helena. - -Entrou elle naturalmente em casa de Mendonça; sem expansão nem secura. -A entrevista foi breve, mas cordial; houveram-se os dous com affectuosa -dignidade. Estacio explicou seus escrupulos; declarou-se contente com a -alliança. O contentamento podia existir; todavia a manifestação foi -parca e sêcca. Houve mais calor e expansão quando elle lhe pediu que -désse vida feliz á irmã. - ---Sera para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada, -disse elle. Não tivemos o mesmo berço; vivemos nossa infancia debaixo -de tecto differente; não aprendemos a falar pelos labios da mesma -mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pae recommendou-a -a nossa familia e ella correspondeu ao sentimento que dictou essa -ultima e solemne vontade. - -Mendonça nas respondeu nada; elle reflectira durante a noite nas -palavras que ouvira a Estacio no dia anterior;--palavras que bem podiam -ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem -de seu casamento. Helena viria a amal-o, talvez; mas desde logo lhe -levava para casa a chave da independencia. Mendonça recuou. Quando o -padre Melchior o soube, não pode conter um gesto de admiração; mas se -louvou o escrupulo, não approvou a resolução, que vinha derrubar -tudo. - ---Não tapará nunca a boca aos maus, disse o padre; elles acharão meio -de envenenar sua propria generosidade. - ---Paciencia! tornou o moço; é menor esse perigo. Se casar, dirão que -faço uma operação vantajosa; talvez sua familia o supponha; talvez -ella propria o pense. - -Helena teve noticia dos receios de seu pretendente e da resolução a -que parecia inclinar o coração. Foi a elle; perguntou-lhe se era -verdade. Mendonça affirmou que sim. Ella contemplou-o longamente sem -dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com effusão; elle -persistiu. - -No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de -faceirice,--dessa que rara vez deixa de enfeitar os mais puros e nobres -sentimentos. A moça o percebeu, mas nem por isso deixou de crer na -sinceridade do rapaz. Creu; tentou dissuadil-o; e posto nada alcançasse -nos primeiros minutos, estava certa de que triumpharia afinal do -derradeiro obstaculo. Seus olhos seriam mais habeis e felizes que os -labios do padre. Foi o que ella disse ao capellão. - ---Tomo á minha conta effectuar este casamento, continuou Helena. - ---Resolvida a tudo? - ---A tudo. - ---Mas se elle insistir... - ---Se elle insistir, vencel-o-hei, ou por um modo ou por outro. Uma moça -que quer ser noiva vale por um exercito; eu sou um exercito. - ---Muito bem! Contudo, sua dignidade. - ---Oh! em último caso abro mão da herança. - ---Era capaz disso? perguntou Melchior. - ---Se era capaz? Desejo-o até,--disse a moça com vehemencia. - -E accrescentou em tom mais brando: - ---Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a minima -desconfiança. - -Tal era a situação, dous dias depois da volta de Estacio. O casamento -podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao nobre desinteresse de -Helena. D. Ursula approvou tudo com effusão e amor, nada sabendo das -incertezas e contradições dos ultimos dias. - -Na noite desse dia, Estacio escreveu para Cantagallo dando notícias -suas. Do casamento de Helena falou pouco; quasi nada. Tudo o -descontentava: tanto o que elle fizera e dissera, sem proveito, como o -desenlace da situação. Não soubera oppor-se com efficacia nem -applaudir opportunamente. - -Posto fôsse tarde o somno teimava em fugir-lhe dos olhos e elle velou -até muito além de meia noite. Occupado, sem dúvida em adormecer -organisações menos sensiveis e existencias menos complicadas, o somno -fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas de manhã, Estacio -accordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quasi toda a familia -dormia. Estacio desceu; o unico escravo que achou levantado preparou-lhe -uma chicara de cafe. Não tendo ainda chegado os jornaes, bebeu-a sem a -leitura do costume. - -Quem sabe o que é fortuito ou providencial, e por que fios tenues se -prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estacio ouviu o som -longinquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a supposição deu-lhe -ideia de ir caçar. Elle não era um Nemrod na habilidade, mas era-o na -vocação. Foi buscar a espingarda, proveu-se de polvora e chumbo, e -sahiu. - -Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuido naquella -manhã, ou por que a mão estivesse menos firme, ou por que a vista -andasse menos segura. Estacio caminhára longo tempo sem pensar no fim -que o levava; ia absorto,--alheio ao logar e ás cousas. Fez algumas -tentativas de caça; mas deixou de mão o recreio. Quando cançou de -errar, consultou o relogio e viu que não era cedo. Tinha o braço -cançado de suster a espingarda; só então reparou que uso trouxera cm -pagem consigo. Dispoz-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a -intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de nupcias. -Depois desceu, em caminho para casa. - -Vinha descendo, com a espingarda debaixo do braço, e os olhos no chão, -a passo lento, apezar de serem oito horas dadas. De uma vez que ergueu -os olhos viu um caso extranho que lhe fez deter o passo. Um pouco -abaixo, sahia de traz de uma casa velha, o pagem de Helena, conduzindo a -mola e a egua. Estacio não soube que pensar daquillo; mas, cedendo a um -impulso que não pôde dominar, deu um salto por cima de uma cêrca do -espinhos, agachou-se e esperou o resto. - -O resto não se demorou muito. Assomou á porta da frente a figura de -Helena. Depois de olhar cautellosamente para um e outro lado, sahiu e -montou na egua; o pagem cavalgou a mula e os dous desceram a trote. - -Estacio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo apertava o -primeiro objecto que achou debaixo das mãos; era a cêrca de espinhos. -A dor fel-o voltar a si; tinha a mão ensanguentada. Ao longe cavalgavam -Helena e o pagem. Logo que os viu desaparecer, Estacio saltou de novo á -estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direcção á casa -d'onde vira sahir a irmã. Era a mesma da bandeirinha azul, que Helena -comprimentá-la de longe, alguns mezes antes, e não esquecera de -reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos annos delle. Estas -circumstâncias, antes indifferentes, appareciam-lhe agora como outros -tantos artigos de um libello. - -O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a -caliça das paredes e das columnas ia cahindo, e o esqueleto de tijolo -estava a nu em mais de um logar. Alguma herva mofina brotava a custo -juncto ás paredes, cobrindo com suas folhas descoloridas o chão -desegual e humido. Por baixo de uma das janellas havia um banco de pau, -gretado pelo tempo, com as bordas roliças do longo uso. Tudo alli -respirava penuria e senilidade. - ---Não, dizia Estacio consigo, não é este o asylo de um Romeo de -contrabando. Mora aqui alguma familia pobre, que a caridade engenhosa de -Helena vem afagar de longe em longe. - -A solução do enigma pareceu-lhe tão natural, que o moço resolveu -parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para traz. Mas a -suspeita é a tenia do espirito; não perece em quanto lhe resta a -cabeça. Estacio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquillo era, -e voltou sôbre seus passos. Para entrar alli era necessario um motivo -ou ura pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos. -Olhou para a mão ferida e ensanguentada, e foi bater á porta. - - - - -CAPITULO XXI - - -Poucos instantes esperou Estacio. Veiu um homem abrir-lhe a porta; era o -mesmo que elle vira alli uma vez. Entre ambos houve meio minuto de -silêncio, durante o qual nem Estacio se lembrou de dizer o que queria, -nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro. - ---Que desejava? disse enfim o dono da casa. - ---Um favor, respondeu Estacio, mostrando-lhe a mão ferida. Ia a cahir -ha pouco; procurando amparar-me, n'uma cêrca de espinhos, feri-me, como -ve. Podia dar-me um pouco d'agua para lavar este sangue, e... - ---Pois não, interrompeu o outro. Queira sentar-se ahi no banco,--ou, se -prefere, entrar... É melhor entrar, concluiu abrindo-lhe caminho. - -Em qualquer outra occasião, Estacio teria recusado o convite, porque o -expectaculo da miseria repugnava aos olhos saturados de opulencia. -Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu -uma das janellas para dar mais alguma luz, offereceu ao hóspede a melhor -cadeira e foi por um instante ao interior. - -Estacio pôde então examinar, á pressa, a sala em que se achava. Era -pequena e escura. A parede, pintada a colla, ja de longa data, tinha em -si todos os signaes do tempo; primitivamente de uma só côr, a pintura -apresentava agora uma variedade triste e desagradavel. Aqui o bolor, -alli uma grêta, acola o rasgão produzido por um movel; cada accidente -do tempo ou do uso dava áquellas quatro paredes o aspecto de um asylo -da desgraça. A mobilia era pouca, velha, mesquinha e desegual. Cinco ou -seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma commoda e uma -marqueza, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de -latão, sôbre a mesa um vaso de louça com flôres, e na parede dous -pequenos quadros cobertos de escomilha encardida, taes eram as alfaias -da sala. So as flôres davam alli um ar de vida. Eram frescas, colhidas -de pouco. Atentando nellas, Estacio estremeceu: pareceu-lhe reconhecer -uma acacia plantada em sua chacara. Quando a suspeita germina na alma, o -menor incidente assume um aspecto decisivo. Estacio sentiu um calafrio -por todo o corpo. - -Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma -toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a côr da parede e o -aspecto senil da casa. Estacio ergueu-se. - ---Deixe-se estar, disse o desconhecido. - ---Estou perfeitamente bem. - ---Nesse caso, faça o favor de chegar á janella. - -A bacia foi posta na janella; o desconhecido quis lavar elle proprio a -mão do hóspede; mas o moço não lh'o consentiu. - ---Ao menos, disse o dono da casa, hade consentir que a enxugue. Eu -entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui nenhum medicamento -caseiro para applicar. - -Estacio aceitou o offerecimento. O dono da casa abriu a toalha e -começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D. Ursula pôde -então examiná-lo á vontade. - -Era um homem de trinta e seis a trinta e oito annos, forte de membros, -alto e bem proporcionado. Uma cabelleira espessa e comprida, de um -castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quasi tocar nos hombros. A -fronte elevada, tinha um ar de serenidade olympica. Os olhos eram -grandes, e geralmente quietos, mas riam-se, quando sorriam os labios, -animando-se então de um brilho intenso, ainda que passageiro. Havia -naquella cabeça,--salvo as suiças,--certo ar de tenor italiano. O -pescoço, cheio e forte, surgia d'entre dous hombros largos, e, pela -abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo, -podia Estacio ver-lhe a alva côr e a rija musculatura. Vestía pobre, -mas limpamente, um rodaque branco, calça de ganga e collete de brim -pardo. A _toilette_ mas que disparatada e mesquinha, não diminuia a -belleza mascula da pessoa; accusava somente a penuria de meios. - -Quando elle acabou de lavar os arranhões de Estacio,--eram pouco mais -do que isso,--propoz-se a ir buscar um pedaço de panno afim de atar-lhe -a mão; Estacio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que -trazia, e o dono da casa completou o summario curativo. - ---Prompto! disse elle. Se tiver em casa algum medicamento apropriado, -será conveniente applical-o. Toda a cautella é pouca; convem evitar -alguma inflammação. - ---Obrigado, respondeu Estacio. Realmente, vim dar-lhe uma massada, sem -grande necessidade talvez. - ---Porque? - ---Podia fazer isto mesmo quando chegasse a casa. - ---Mora perto? - ---Um pedaço abaixo. - ---Foi conveniente curar ja; nenhuma precaução é inutil em cousa, -nenhuma da vida. - ---Maxima de prudencia, observou Estacio procurando sorrir. - ---Que só aprende tarde quem não a traz na massa do sangue, replicou o -outro suspirando. - -A não ser indiscreto ou fallador, era difficil levar a conversa por -diante. O favor estava feito, o assumpto exgotado. Restava agradecer, -despedir-se e sahir. Estacio, entretanto, tinha necessidade de mais -tempo; queria arrancar áquelle homem uma palavra menos indifferente á -situação, ou conhecer-lhe, se fôsse possivel, o caracter e os -costumes. Para isso havia talvez um meio; contrafazer-se, affectar -maneiras extranhas ás suas, apegar-se á occasião por todas as bordas. -Estacio determinou-se a isso, confiando o resto do acaso. Voltou á -cadeira e sentou-se. - ---Consente que descance um pouco? Estou fatigadissimo. - ---Não pelo que caçou, disse o desconhecido rindo. - ---Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador; e tenho, não -obstante, a mania de atirar aos passaros. - ---Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de -cousas? Eu fui victima desse defeito mortal. - ---Ah! exclamou Estacio com certa entonação interrogativa. - -O dono da casa sorria levemente; mas não pareceu molestal-o a -curiosidade do hóspede;--talvez mesmo não desejasse outra cousa. - ---É verdade,--disse elle; devo a minha actual penuria ao erro de teimar -em cousas extranhas á minha indole e aptidão, extranhas e totalmente -oppostas... - ---Hade perdoar-me,--interrompeu Estacio com um ar de familiaridade -indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que um homem, forte, -moço e intelligente não tem o direito de cahir na penuria. - ---Sua observação,--disse o dono da casa sorrindo,--traz o sabor do -chocolate que o senhor bebeu naturalmente ésta manhã antes de sahir -para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossivel -comprehender as lutas da miseria; e a maxima de que todo o homem póde, -com esfôrço, chegar ao mesmo brilhante resultado, hade sempre parecer -uma grande verdade á pessoa que estiver trinchando um peru. Pois não -é assim; ha excepções. Nas cousas deste mundo não é tão livre o -homem como suppõe; e uma cousa, que uns chamam mau fado, outros -concurso de circumstâncias, e que nós baptisámos com o genuino nome -brazileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fructo de seus mais -herculeos esforços. Cesar e sua fortuna! toda a sabedoria humana está -contida nestas quatro palavras. - -O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo, -e uma facilidade de elocução, que Estacio mal lhe podia suppor. Era -aquillo uma comedia ou a expressão da verdade? Estacio olhou fixamente -para elle, como a querer penetral-o. Ao mesmo tempo ouviu-se um rumor na -parte da casa que ficava além da sala; Estacio voltou a cabeça com um -gesto de desconfiança. A porta abriu-se e appareceu uma preta velha -trajando nas mãos uma bandeja. A creada estacou a meio caminho. - ---Põe em cima da mesa, disse o dono da casa. É o meu -almôço,--continuou elle, voltando-se para Estacio; almôço parco e -hygienico. Ousarei offerecer-lh'o? - -Estacio fez um gesto negativo, e dispoz-se a sahir. - ---Ja! Não é meu intento despedil-o; almoçarei conversando. Vivo tão -solitario, que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto. - -Estacio aceitou sem difficuldade o convite; sentou-se defronte do homem, -ao pe da mesa, e assistiu ao almôço, que não podia ser mais escasso: -um pão, duas hostias de queijo duro, e uma chavena de cafe. O que mais -valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que -ostentava aos olhos de um extranho a simplicidade de seus habitos. - ---Não é refeição de principe,--dizia elle,--mas satisfaz todas as -ambições de um estomago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e a -sala de jantar; a cosinha é contigua; além, ficam duas braças de -quintal; para la do quintal... o infinito da indifferença humana. - -E depois de um silêncio: - ---Não digo bem, emendou elle; nem sempre acho indifferença. Meu -trabalho não me dá mais do que o escasso pão de cada dia; mas tenho -algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresma; e essas recebo-as -de mãos caridosas e puras. - -Dizendo isto, o desconhecido exgotou a chavena, e reclinou-se sôbre a -cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede. Estacio reflectiu nas -últimas palavras, e um raio de esperança veiu rasgar-lhe a nuvem que -lhe entenebrecia a fronte. Os dous homens pareciam interrogar-se. O -filho do conselheiro saccou do bolso um charuto e offereceu-o ao dono da -casa. - ---Obrigado, disse este. - ---Não fuma? - ---Ja fumei; hoje economiso esse vicio. Nem por isso faço mais -lentamente a digestão. - ---Mora só? - ---Só. - ---Não tem familia? - ---Nenhuma. - ---Hade achar-me singularmente indiscreto. - ---Não; supponho que sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima. - ---Acertou; sua pessoa inspira-me sympathia; e se eu conhecesse alguma -dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte... - ---Dar-me-hia, por intermedio dellas, o seu obolo?... - ---Se o não offendesse... - ---Não offendia, mas eu recusava, se soubesse; e peço-lhe desde ja que -o não faça ás escondidas... - -Estacio fez um gesto de assentimento. - ---Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a -pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obsequio, um simples dever -de visinho... Pareceria que o senhor m'o pagava com um beneficio. O -beneficio seria menos expontaneo de sua parte, e menos agradavel para -mim. Agradavel não exprime, talvez, toda a minha ideia; mas o senhor -facilmente comprehenderá o que quero dizer. - ---Entendeu-me mal; o meu obolo não seria na especie a que o senhor -allude. Tenho amigos, e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor -posição. - -O desconhecido reflectiu um instante. - ---Aceitaria? perguntou Estacio. - ---Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale, Eu -vexar-me-hia eternamente de dever qualquer melhoria da sorte ao -cumprimento de um dever de caridade. - ---Ja me não admira a vida pobre que tem tido. - ---Excessivo escrupulo, talvez? - ---Escrupulo desarrazoado. - ---Antes de mais que de menos. - ---Nem de menos nem de mais; mas só a porção justa. - ---A porção varia conforme as necessidades moraes de cada um. Mas, eu -mesmo, que lhe estou a falar nem sempre tive ésta virtude intratavel; e -por ventura alguma vez fraqueei. - -A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos labios, -e os olhos cahiram naquella atonia que exprime uma grande concentração -de espirito. Era occasião de interrogal-o directamente ou sahir. -Estacio preferiu o último alvitre. - ---Não o quero demorar mais,--disse o dono da casa quando o mancebo -proferiu as palavras de despedida. Ja é tarde, e sua mãe talvez esteja -anciosa... - -Estacio limitou-se a olhar para elle em cheio,--dizendo: - ---Se alguma vez resolver dar de mão a seu a escrupulos, mande -procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andarahy pela--casa do -Conselheiro Valle... - -O desconhecido, era cujo rosto Estacio esperou ver um signal qualquer de -abalo ou sorpresa, conservou-se impassivel e risonho. Curvou-se em -signal de agradecimento; e como Estacio hesitasse em estender-lhe a -mão, elle metteu as suas nas algibeiras. - ---Talvez nos vejamos ainda, disse Estacio ja fóra da porta. - ---Sim? - ---Passeio algumas vezes por estes lados. - ---Nem sempre estou em casa; mas ainda estando, conservo fechadas as -cousas. Quando quizer descançar, bata; a casa é pobre, mas será amiga. - -Estacio affastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; elle -não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino, -achava-se no meio de uma seiva escura, a egual distância da estrada -recta,--_diritta via_--e da fatal porta, onde temia ser despojado de -todas as esperanças. Nada sabia; nada conjecturava; eram tudo novas -dúvidas e oscillações. O homem com quem acabava de conversar -parecia-lhe sincero; sua pobreza era authêntica; sensivel a nota de -melancholia que por vezes lhe afrouxava a palavra. Mas onde cessava alli -a realidade e começava a apparencia? Vinha de tratar com um infeliz ou -um hypocrita? Estacio rememorou todos os incidentes da manhã, e todas -as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação -suspeitos e irrespondiveis. Seu espirito repellia com horror a ideia do -mal; mas custava-lhe a acceitar a ideia do bem; e a peor das -angústias,--a dúvida,--continha-o todo e agitava-o, em suas mãos -felinas. O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de perolas de suor; -ao offego da marcha apressada juntava-se o da violenta commoção. -Estacio não via os objectos que ia costeando, nem as pessoas que lhe -passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o -despertasse. - -Chegou enfim a casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a -espingarda. Sua demora causára alguma inquietação á familia; logo -que as duas senhoras souberam de seu regresso correram a recebel-o, -ficando D. Ursula a uma janella, e descendo Helena até meio caminho. A -apparição subita da moça, a alegria e o amor, que pareciam -impelli-la, como duas azas sanctas, a perfeita ingenuidade de seu gesto, -tudo produziu nelle a necessaria reacção,--reacção de um -instante,--mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estacio -apertou as mãos da moça com a energia do náufrago. Um fluido subtil -percorreu as fibras de Helena; e aquelle rapido instante teve toda a -doçura de uma reconciliação. - -Estacio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem suas ideias, -comparal-as, extrahir uma conjectura pelo menos, e verifical-a ou -desmentil-a. Mas nem a tia nem a irmã haviam almoçado, á espera -delle; e forçoso lhe foi acompanhal-as na satisfação de uma -necessidade que não sentia. Durante o almôço, Estacio procurou -observar Helena; trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma -cousa trahia nessa occasião, eram as alegrias ineffaveis da familia. -Ella propria servia por suas mãos a Estacio e D. Ursula; inexcedivel na -attenção com que sabia repartir-se entre os convivas não o era menos -no carinho e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorancia do mal, -e o sorriso em o das almas candidas. Poder-se-hia attribuir áquella -creatura de dezesete annos corrupção e hypocrisia? Estacio -envergonhou-se de tal ideia; sua alma sentiu as vertigens do remorso. - -Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao -gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estacio buscou -dominar a situação. Elle não ia ao ponto de suppor em Helena a -completa perversão dos sentimentos; o limite do mal, que se lhe podia -attribuir, era o de uma culposa leviandade. Se em vez de um acto -leviano, fôsse aquillo um simples estratagema de caridade, Helena não -mereceria menos uma advertencia, mas a pureza da intenção salvava -tudo, e a paz da familia, não menos que o seu decoro, se restabeleceria -inteira. Estacio examinou um por um todos os indicios de culpabilidade -e de innocencia; buscou sinceramente os elementos de prova; não -esqueceu um só argumento de inducção. Nesse trabalho despendeu longas -horas, sem resultado apreciavel, pela razão de que, se a sentença era -difficil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a -dignidade e a affeição, seu espirito balouçava incerto. - -Quasi á hora do jantar, Estacio, que não sahira uma só vez do -gabinete, chegou a uma das janellas, e viu atravessar a chacara a mais -humilde figura daquelle enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o -pagem. O pagem appareceu-lhe como uma ideia nova; até aquelle instante -não cogitára nelle uma só vez. Era o confidente e o complice. Ao vel-o -recordou-se que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquelle escravo. -A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a colera cedeu á angústia, e -elle sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lagryma. - -Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos. - - - - -CAPITULO XXII - - -Não era preciso grande esfôrço para adivinhar a dona das mãos. -Estacio, com as suas, affastou as mãos de Helena, segurando-lhe os -pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os -olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche: - ---Voce é muito mau! Pagou-me a caricia com um apertão. Deixe estar que -nunca mais cahirei em outra. Vim vel-o, por que voce hoje não se -lembrou ainda de dar á gente um ar de sua graça... Doeu-me!--continuou -ella olhando para os pulsos.--Mas... tenho os dedos molhados; seria... -voce estaria... que é? que foi? - -Estacio, que ouviu a discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar -ancioso, não lhe respondeu ás últimas interrogações, e continuou a -olhar para ella, como a querer ler na physionomia da moça a -explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, atterrada -e afflicta. Indo pegar-lhe nas mãos, Estacio desviou o corpo, -dirigiu-se á parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia -de seus annos, e approximou-se da moça. - ---Que é? repetiu ésta admirada. - -A unica resposta de Estacio foi estender o dedo sôbre a mysteriosa casa -reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e -para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste, fel-a -attentar no ponto indicado. Subito empallideceu; seus labios tremeram -como a murmurar alguma cousa, mas a alma falou tão baixo que a palavra -não chegou á boca. Durou aquillo poucos instantes. A angústia lia-se -no rosto dos dous; a moça, para occultar a sua, cobriu os olhos com as -mãos. O gesto era eloquente; Estacio lançou para longe de si o quadro, -com um movimento de colera. Helena atirou-se para o corredor. - -D. Ursula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes, -dirigiu-se ella propria ao gabinete de Estacio. A porta estava aberta; -D. Ursula entrou e deu com elle, sentado n'uma poltrona, com o lenço na -cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permittiam -os annos. Estacio não a ouviu entrar; só deu por ella quando as mãos -da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos. O assombro de D. Ursula -foi indescriptivel, sobretudo quando Estacio, erguendo-se, atirou-se-lhe -aos braços, exclamando: - ---Que fatalidade! - ---Mas... que é?... explica-te. - -Estacio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com o -gesto decidido de um homem que se envergonha de um acto de debilidade. -O vestigio das lagrymas dava-lhe aquelle cunho tocante e severo, que as -grandes dores imprimem no rosto humano. A explosão desabafara-lhe o -espirito; elle podia enfim ser homem, o era preciso que o fôsse. D. -Ursula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicavel -afflicção em que viera achal-o. Estacio recusou dizel-a. - ---Saberá tudo amanhã, ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e eu -sei o que elle me ha custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu -conselho e apoio. - -D. Ursula resignou-se á demora. Quando chegou á sala de jantar achou -um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira repentinamente -incommodada e que a dispensasse naquella tarde e noite. D. Ursula -suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a -afflicção de Estacio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meia -inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada e o corpo tranquillo e -como morto. Ao sentir os passos de D. Ursula, ergueu a cabeça. A -pallidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lagrymas. -A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificado naquella face -immovel e fria como o granito. O que restava ainda vivo na figura da -moça eram os olhos, que não perderam o fulgor natural. Ella ergueu-os -a medo, e abraçou a tia com um olhar de súpplica e de amor. D. Ursula -travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou: - ---Conta-me tudo. - ---Saberá depois! suspirou a moça. - ---Não tens confiança em tua tia? - -Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lagrymas -rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que elles verteram -naquella meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura: - ---Póde receber estes beijos,--disse ella,--os anjos não os tem mais -puros. - -Foram as últimas palavras que D. Ursula pôde arrancar-lhe; a moça -recolheu-se ao profundo silêncio em que ella a encontrou. D. Ursula -sahiu; e foi dalli ter com Estacio. O sobrinho encaminhava-se para a -sala de jantar. - ---Vamos para a mesa, disse elle,--não convem que os escravos saibam de -taes crises. - -D. Ursula referiu o estado em que achára Helena e as palavras que -trocára com ella. Estacio ouviu-a sem nenhuma expressão de sympathia. -O jantar foi um simulacro; era um meio de illudir a perspicacia dos -escravos, que alias não cahiam naquelle embuste. Elles conheceram -perfeitamente que algum acontecimento occulto trazia suspensos e -concentrados os espiritos. As iguarias voltavam quasi intactas; as -palavras eram trocadas com esfôrço entre a sinhá velha e o senhor -moço. A causa daquillo era com certeza nanhã Helena, que estava -ausente. - -Estacio deu ordem para que a todas as pessoas extranhas se declarasse -estar ausente a familia. A unica excepção era o padre Melchior. A esse -escreveu pedindo-lhe que os fôsse ver. - ---Não posso esperar até amanhã, disse D. Ursula; se tens de revellar -alguma cousa a um extranho, por que o não fazes a mim primeiro? Dize-me -o que ha. Não posso ver padecer Helena; quero consolal-a e animal-a. - ---O que tenho para dizer é longo e triste,--retorquiu Estacio; mas, se -deseja sabel-o desde ja, peço-lhe ao menos que espere a presença do -padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas cousas; seria -revolver o punhal na ferida. - -A curiosidade de D. Ursula cresceu com éstas meias palavras do -sobrinho; mas era forçoso esperar e esperou. Foi dalli ao quarto de -Helena, Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena -escrevia. Ésta nova circumstância veiu complicar as impressões de D. -Ursula. - ---Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ella ao sobrinho. - ---Naturalmente, respondeu este com sequidão. - -O padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estacio. O -bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia -ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; elle o -reconheceu desde logo, não só no aspecto lugubre da familia, como na -ancia com que era esperado. Os tres recolheram-se a uma das salas -interiores. - ---Helena? perguntou Melchior. - ---Vamos tratar della, respondeu Estacio. - -Referir o que se passára naquella fatal manhã era mais facil de -planear que de executar. No momento de expor a situação e as -circumstâncias della, Estacio sentiu que a lingua rebelde não obedecia -á intenção. Achava-se n'um tribunal doméstico, e o que até então -fôra conflicto interior entre a affeição e a dignidade, cumpria agora -reduzil-o ás proporções de um libello, claro, sêcco e decidido. -Innocente ou culpada, Helena apparecia-lhe naquelle momento como uma -recordação das horas felizes,--doce recordação, que os successos -presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não -destruiriam nunca, porque é esse o mysterioso privilegio do passado. -Reagiu, entretanto, sôbre si mesmo; e ainda que a custo referiu -minuciosa e sinceramente o que se passára desde aquella manhã. - -Não fôra talhado para tão melindrosas revellações o coração de D. -Ursula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que -dão os grandes golpes. Esperava, de certo, um grande infortunio de -Helena, um episodio de sua familia anterior, alguma cousa que desafiasse -a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente -o contrário; a estima era impossivel e a compaixão tornava-se apenas -provavel. - ---Mas não! é impossível! exclamou ella dahi a pouco, logo que a razão -obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz--não! eu a vi ha -pouco; senti-lhe as lagrymas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a -innocencia póde proferir. E, além disso, seu procedimento -irreprehensivel, um anno quasi de convivencia sem mácula, a elevação -de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre -Helena! Vamos chamal-a; ella explicará tudo. Interroguemos o Vicente. - -Um gesto dos dous homens mostrou que nenhum delles julgava digno este -último recurso para conhecer a verdade. - -D. Ursula cahíra em prostração, recordava suas apprehensões do -primeiro dia, e recuava com horror á ideia de ter acertado. Defronte -della, Estacio occupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os -cotovellos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma -ruminava a dor. - -Um só dos tres vingada a dignidade da situação. O padre Melchior não -sentira menor assombro que os dous parentes de Helena, nem padeceu menos -profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e -conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dous corações -ulcerados e sem fôrça, comprehendeu Melchior que lhe cabia a principal -acção, e não recuou ante a responsabilidade que dahi poderia deduzir. -Viu de um lance a extensão possivel do mal, a desunião da familia, os -desesperos da occasião, os odios do dia seguinte, as amarguras -indeleveis e talvez as indeleveis saudades; mas nem este quadro o -aterrou, nem elle o aceitou sem exame. Melchior não condemnava nem -absolvia; esperava. Elle pertencia ao numero dessas virtudes singellas -para as quaes o vicio é uma rara excepção; natureza sincera e franca, -era-lhe difficil crer na hypocrisia. Em quanto Estacio proseguia calado -e pensativo, e D. Ursula, ora sentada, ora de pe, intercalava o -silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e reflectia -tambem comsigo. Emfim, proferiu éstas palavras de animação: - ---Socegue, D. Ursula; a verdade hade apparecer, e não estamos certos -que seja o que nos parece. Em todo o caso não antecipemos a -afflicção. Seria padecer duas vezes. Ha tempo de chorar á larga. - -Melchior levantou-se: - ---Convem sacudir o abatimento, continuou dirigindo-se a Estacio; é a -hora da acção e do vigor. Sobretudo é necessario não boquejar de -semelhante assumpto por agora; daria azo ás vozes extranhas e seus -naturaes commentarios. Eu tomarei nesta collisão o logar que me compete, -se m'o não contestam... - ---Oh! exclamou Estacio. - ---... Mas desejo que desde ja se compenetrem bem de que, se a dignidade -pede uma cousa, a caridade pede outra, e que o dever stricto é -concilial-as. Nada do odios; perdão ou esquecimento. - ---Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Ursula com anciedade. - ---D. Ursula, disse o padre; é preciso agora que a razão fale e -trabalhe; o sentimento deve retrahir-se e esperar. Examinarei o caso, e -aconselharei o necessario remedio. Talvez estejamos a debater-nos no -vacuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma apparencia... - ---Oh! ella confessou tudo! interrompeu Estacio. Vi-lhe a expressão da -culpa nos olhos. Mas, emfim, estou prompto para tudo, continuou elle -erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pae? Não o -é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer -melhor. Na singular situação em que nos achamos nenhum de nós temos o -espirito bastante senhor de si para colhêr os elementos da verdade, -apural-a e resolver. Esse papel é seu. - -Vieram trazer a Estacio uma carta. Era do Dr. Camargo, annunciando-lhe -que a madrinha do Eugenia fallecêra, e que elle no prazo de alguns dias -estaria na Corte. Era o peor momento para semelhante vinda; Estacio não -pôde reprimir um gesto de desgôsto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de -que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no -regresso do Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o -assumpto que os affligia. - ---D. Ursula,--continuou elle,--deixe-nos agora sos alguns instantes; va -tranquilla, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguem o que se -passa nesta casa. - -D. Ursula obedeceu. Logo que ella sahiu. Melchior fechou a porta. -Estacio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capellão. Este deu alguns -passos entre a porta e uma das janellas. Ia anoitecendo; Estacio -accendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pe delle, sem lhe falar -nem voltar-lhe sequer os olhos. Meditava ou luctava comsigo mesmo; a -fronte pesada e merencoria traduzia a agitação interior. Ja não era a -inalteravel placidez, reflexo de uma consciencia religiosa e pura. Se a -consciencia era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise -nova. Apos dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou. - - - - -CAPITULO XXIII - - ---És forte? perguntou o padre. - ---Sou. - ---Cres em Deus? - -Estacio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior -insistiu: - ---Cres? - ---Essa pergunta... - ---É menos ociosa do que parece. Não basta suppor que se cre; nem basta -crer á ligeira, como na existencia de uma região obscura da Asia, onde -nunca se pretende pôr os pes. O Deus de que te fallo não é só essa -sublima necessidade do espirito, que apenas contenta alguns philosophos; -fallo-te do Deus creador e remunerador, do Deus que le no fundo de -nossas consciencias, que nos deu a vida, que nos hade dar a morte, e -além da morte o premio ou o castigo. Cres? - ---Creio. - ---Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o -saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura, -rebella-se, vaga á feição de um instincto mal expresso e mal -comprehendido. O mal persegue-te, tentaste, envolve-te em seus liames -dourados e occultos; tu não o sentes, não o ves; tens horror de ti -mesmo, quando deres com elle de rosto. Deus que te lê, sabe -perfeitamente que entre teu coração e tua consciencia ha com o um veu -espesso que os separa, que impede esse accôrdo gerador do delicto. - ---Mas que é, padre-mestre? - -Melchior inclinou-se e encarou o moço. Seus olhos, fitos nelle, eram -como tum espelho polido e frio, destinado a reproduzir a impressão do -que lhe ia dizer. - ---Estacio,--disse Melchior pausadamente,--tu amas tua irmã. - -O gesto mesclado de horror, assombro e remorso, com que Estacio ouvira -aquella palavra, mostrou ao padre, não só que elle estava de posse da -verdade, mas tambem que acabava de a revellar ao mancebo. O que a -consciencia deste ignorava, sabia-o o coração, e só lh'o disse -naquella hora solemne. A consciencia, depois de tactear nas trevas, -recuou apavorada, como affastando de si o clarão subito que accendêra -nella a palavra do sacerdote. Estacio não respondeu nada: não podia -responder nada. Com que vocabulo e em que lingua humana esprimiria elle -a commoção nova e terrivel que lhe abalára a alma toda? que fio -podéra atar-lhe as ideias rôtas e dispersas? Nem falou, nem se -atreveu a erguer os olhos; ficou como estupido e morto, Melchior -contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Seus olhos, que -eram de aguia para os mysterios da vida, eram de pomba para os grandes -infortunios. Abaixo da cabeça mascula, havia um coração feminino. - -A mudez de Estacio cessou emfim; o corpo agitou-se; o labio articulou -algumas phrases desconcertadas. Vago era o sentido dellas; podia -concluir-se que elle não cria na revellação de Melchior, que o -supposto sentimento era tão absurdo e desnatural, que só a maus -instinctos devia ser attribuido. Melchior ouviu-o e sorriu com -satisfação. Não era aquillo mesmo um protesto de consciencia honrada? - ---Maus instinctos, não,--respondeu Melchior; um desvio da lei social e -religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Estacio; -revolve-lhe os mais intimos recantos, e la acharás esse germen funesto: -lança-o fóra de ti, que é o preceito do Eterno Mestre. Não o -sentiste nunca: a tentação usa essa tactica serpentina e dolosa; é -insinuante, como a calúmnia, e pertinaz, como a suspeita. Mas eu sou a -verdade, que affirma, e a caridade, que consola. Digo-te, não que -peccaste, mas que ficaste á beira do peccado; e estendo-te a mão para -que recues do abysmo. - ---Padre-mestre! murmurou Estacio cujo coração recebia a influência da -palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga. - ---Não fales, continuou o padre; negal-o é mentir; confessal-o é -ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quiz a -fortuna que entre voces dous não houvesse a imagem da infancia e a -communhão dos primeiros annos; que, em plena mocidade, passassem do -total desconhecimento um do outro, para a intimidade do todos os dias. -Ésta foi a raiz do mal. Helena appareceu-te mulher, com todas as -seduções proprias da mulher, e mais ainda com as de seu proprio -espirito, por que a natureza e a educação accordaram em a fazer -original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou -em ti, nem podias comprehendel-a. S. Paulo o disse: para os corações -limpos, todas as cousas são limpas. Vias a affeição legitimo -naquillo que era ja affeição espuria; dahi vieram os zelos, a -suspicacia, um egoismo exigente, cujo resultado seria subtrahir a alma -de Helena a todos as alegrias da terra, unicamente para o fim de a -contemplares sosinho, como um avaro. - -Ouvindo a palavra do padre, Estacio soletrava o proprio coração e lia -claramente o que até então era para elle como um livro fechado. A -situação tornava-se, entretanto, por demais afflictiva, profunda a -vergonha, intenso o remorso. Estacio ergueu-se; erguendo-se deu com os -olhos no retrato do Conselheiro, que, na penumbra em que ficava, parecia -olhar para o filho, e interrogal-o. Ésta circumstância desorientou o -moço. - ---Não, padre-mestre! exclamou elle deixando-se cahir na cadeira.--É -impossivel! isto que me está dizendo é um sonho mau, é um funesto -equívoco; é impossivel; juro-lhe que é impossível. É certo que a -amo... que a amava, com sentimento de irmão; mas esquecer-me, aninhar -em minha alma tão odioso affecto... oh! era impossivel! - -Melchior erguera-se. Apos meia duzia de passos, approximou-se de -Estacio, sôbre cuja cabeça estendeu a mão direita, em quanto com a -outra lhe erguia a barba, obrigando-o a olhar para elle. - ---Digo-te que teus uma raiz de ma herva no coração; ésta é a cruel -verdade. Ha no homem uma ligação de sentimento, ás vezes -inexplicavel. Productos de climas oppostos ahi se alternam ou se -confundem... Mas queres saber o resto? - ---O resto? - ---Ouve,--continuou o padre sentando-se. A planta ruim bracejou um ramo -para o coração virgem e casto de Helena, e o mesmo sentimento os ligou -em seus fios invisiveis. Nem tu o vias, nem ella; mas eu vi, eu fui o -triste expectador dessa violenta e miseravel situação. São irmãos e -amam-se. A poesia tragica póde fazer do assumpto uma acção theatral; -mas o que a moral e a religião reprovam não deve achar guarida na alma -de um homem honesto e christão. - ---Impossivel! impossivel! exclamou Estacio. Mas, dado que assim fosse, -por que accumular á difficuldade presente o horror de semelhante -revellação? - ---Por que a revellação explica a difficuldade. Helena não sabera que -ama, mas ama. Ora, um amor clandestino, de parceria com esse outro amor -incestuoso, embora inconsciente, provaria da parte de Helena uma -perversão, que ella não póde ter, e que, em tal edade, faria della um -monstro. Sera Helena esse monstro? Se o fosse, eu desesperaria da -natureza humana. Não! essa casa, onde a viste entrar, é com certeza -asylo de miseria; o que ella ahi vae levar é a esmola e a compaixão. - -Um raio de esperança alumiou a fronte de Estacio. O raciocinio do padre -era exacto; e por mais perigosa que fôsse a situação revellada por -elle, ja agora não se podia desejar outra cousa; a dignidade da familia -ficava intacta. Estacio reflectiu largo tempo no que acabava de ouvir. -Mas, a esperança foi curta, embora a necessidade della grande. - ---Helena continua recolhida? perguntou o padre. - -Estacio fez um leve signal affirmativo. - ---Falar-lhe-hei amanhã; por hoje convem não dizer palavra nem deixar -transpirar cousa nenhuma. - -Dizendo isto, Melchior recolheu-se ao silêncio, como se reflectisse -ainda alguma cousa. Estacio erguera-se e entrára a passear lentamente. -De quando em quando apertava a cabeça entre as mãos; tantas -commoções bastavam para atordoar mais forte espirito. O mysterio o -cercava de todos os lados. Elle ia até á janella, dahi até à porta, -intercalando as reflexões interiores com sacudimentos nervosos do -braço ou da cabeça. A intervallos, olhava a furto e de travez para o -capellão, como o criminoso olha para a consciencia; não podia evitar o -sentimento de terror, e ao mesmo tempo de respeito, que lhe infundia -aquelle investigador exacto e profundo de seus sentimentos mais -reconditos e inaccessiveis. Ruminava o que o padre lhe dissera; cada -minuto lhe ia tornando mais clara a verdade revellada; e o que era -obscuro fizera-se-lhe emfim transparente. É assim que a luz de um -astro, accesa desde seculos, chega finalmente a ferir a retina de nossos -olhos mortaes. - -Uma vez, interrompendo os passos, ergueu os olhos para o retrato do -Conselheiro. Não os retirou atterrado; cravou-os com um ar de reproche -e de amargura, em que o padre reparou e que o fez sorrir tristemente. O -olhar do filho pedia contas ao pae. - ---Paz aos mortos! observou Melchior. Os actos de seu pae já não -pertencem á jurisdicção deste seculo. - -Melchior proferiu éstas palavras ja de pe. - ---O Dr. Camargo, disse elle mudando de tom,--deve chegar um dia destes, -segundo annuncia. Ha alguma razão para demorar o casamento? - ---Nenhuma. - ---Convem realisal-o immediatamente. - ---Immediatamente. - -Melchior caminhou para a porta. Ia dar volta á chave, e deteve-se. - ---Antes de nos separarmos, disse elle,--desejo a promessa de que não -falarás a Helena antes de amanhã. - ---Prometto. - -O padre reflectiu um instante; Estacio pareceu adivinhal-o. - ---Quer ainda outra promessa? perguntou elle. Quer que a evite da todos -os modos. - ---Sim; que a considere como pessoa totalmente extranha. - ---Poderia ser de outra maneira? observou melancholicamente Estacio. Os -successos destes dias são, por em quanto ao menos, uma barreira entre -ella e sua familia. Demais, eu seria destituido de todo o senso moral... - ---Jura? - ---Juro. - -Melchior desabrochou a camisa, e aventou um crucifixo de marfim, que lhe -pendia de uma fita preta, ao pescoço. - ---Este, disse elle cora voz singella, é a effigie do teu Deus. Tão -puro exemplo de castidade não viram os seculos nem antes nem depois que -elle desceu á terra. Jura o que me promettes. - ---Padre-mestre,--retorquiu Estacio; minha palavra era bastante. Mas, se -é preciso affirmação mais solemne, eu a darei tal qual me pede. - -Estacio inclinou a cabeça sôbre o crucifixo e beijou-o -respeitosamente; depois beijou a mão ao padre. Melchior abençou-o e -sahiu. - -Sahindo do gabinete de Estacio, dirigiu-se para a sala de costura, onde -achou D. Ursula um pouco menos agitada. - ---Falou a Helena? perguntou ella dirigindo-se ao padre. - ---Ainda não; sei que não quer sahir do quarto; deixemos passar a -primeira commoção. Amanhã virei saber tudo. Por hoje é preciso que a -senhora socegue. - ---Oh! estou socegada! Não perdi a confiança. - -D. Ursula proferiu éstas palavras com tamanha serenidade e tão -profunda convicção que fortaleceu o espirito do proprio Melchior, -alias não inclinado a crer no mal. O ancião deteve-se alguns instantes -a contemplar o rosto placido de D. Ursula, a admirar a fôrça secreta -que a tornava surda ao clamor da realidade,--pelo menos, da realidade -apparente. Contemplou-a silencioso, e desceu á chacara. - - - - -CAPITULO XXIV - - -A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da -chacara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre -feliz, mas geralmente quieto, dessa quietação que é tanta vez a -superficie da vida. Mais de uma vez buscára dissipar a sombra pezarosa -que alguns erros do conselheiro accumularam na fronte da consorte. -Haveria naquella casa uma geração de dores, destinadas a abater o -orgulho da riqueza com o irremediavel expectaculo da debilidade humana? - ---Não, dizia elle comsigo mesmo. A verdade é que tudo se encadeia e -desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos -abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortunio calado e -profundo daquella senhora que se foi em pleno meio dia; o fructo hade -ser tão amargo como a árvore; seu sabor é travado de remorsos. - -Neste ponto chegava ao portão. Ahi deteve-se um instante. O passo -cautelloso e timido de alguem fel-o voltar a cabeça. Um vulto, cujo -rosto não via, tão escuro como a noite, alli estava e lhe tocava -respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pagem de Helena. - ---Seu padre,--disse este,--diga-me por favor o que aconteceu em casa. -Vejo todos tristes; nhanhã Helena não apparece; fechou-se no quarto... -Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu? - ---Nada, respondeu Melchior. - ---Oh! é impossivel! Alguma cousa ha por fôrça. Seu padre não tem -confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente? - ---Socega; não ha nada. - ---Um! gemeu incredulamente o pagem. Ha alguma cousa que o escravo não -pode saber; mas tambem o escravo póde saber alguma cousa que os brancos -tenham vontade de ouvir... - -Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permittia examinar -o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A ideia de -interrogal-o passou pela mente, do padre, mas não fez mais do que -passar; elle a regeitou logo, como a regeitára algumas horas antes. -Melchior preferia a linha recta; não quizera empregar um meio tortuoso. -Iria pedir a Helena a solução das difficuldades. Entretanto, o pagem, -como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote, -continuou: - ---Nhanhã Helena é uma sancta. Se alguem a accusa, accusa o bom -procedimento della. Eu lhe direi tudo... - -Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pagem, -contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se -passos; era um escravo que vinha fechar o portão. - ---Vem gente,--disse Vicente,--amanhã... - -O pagem tacteou nas trevas em procura da dextra do capellão; achou-a -emfim, imprimiu-lhe um ósculo do respeito e affastou-se. Melchior -seguia para casa, abalado com a meia revellação que acabava de ouvir. -Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo; -podia suppor que o acto delle em menos expontaneo do que parecia; emfim, -que a propria Helena suggeríra aquelle meio de transviar a expectação -e congraçar os sentimentos. A interpretação era verosimil; mas o -padre não cogitou de tal cousa. A elle é principalmente applicavel a -maxima apostolica; para os corações limpos, todas as cousas são -limpas. - -A seguinte aurora alumiou um ceu puro de nuvens. Estacio accordou com -ella, depois de uma noite mal dormida. Nunca a manhã, lhe pareceu mais -rumorosa e jovial; nunca o ar apresentára tão fina transparencia, nem -a folhagem tão lustrosa, côr. Da janella a que se encostára via as -flôres de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e -enviando-lhe a elle uma nuvem invisivel de seus aromas: aspecto de festa -e ironia da natureza. Estacio achava-se alli como um sahimento em horas -de carnaval. - -Almoçou sosinho; D. Ursula estava com Helena. Logo depois do almôço -recebeu uma carta de Mendonça, que tendo ido na vespera a Andarahy, -recebêra a resposta dada a todos, e mandava saber se havia molestia em -casa. Estacio respondeu affirmativamente, accrescentando que, posto não -se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois. A resposta -podia ser mais circumspecta; no estado em que elle se achava, -pareceu-lhe excellente. - -Pela volta do meio dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D. -Ursula, que o espreitava de uma das janellas. - ---Helena? perguntou elle ancioso. - ---Ja hoje desceu,--respondeu D. Ursula. Está mais tranquilla. Não lhe -perguntei nada, mas dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe, -mostrou-se anciosa por vel-o, e pediu-me até que o mandasse chamar. - -Seguiram os dous até á saleta que ficava ao pe da sala de jantar. -Helena estava sentada, com a cabeça cahida sôbre as costas da cadeira, -e os olhos meios cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os -olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pallidas -da vigilia e da afflicção. Ergueu-se e deu dous passos para o padre, -que lhe apertou as mãos entre as suas. - ---Imprudente! murmurou Melchior. - -Helena sorriu, um sorriso pallido e tão passageiro como a côr que lhe -tingira o rosto, D. Ursula dispoz-se a ir chamar Estacio, que estava no -andar de cima. Apenas a viu sahir, Helena segurou em uma das mãos do -padre. - ---Queria vel-o! disse ella. Não tenho ânimo de falar a ninguem mais, -de dizer tudo... - ---É inutil; tudo sei, interrompeu Melchior sorrindo. O Vicente foi -hoje de manhã á minha casa; foi de movimento proprio; relatou-me -quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia -ver, a occultas, não podendo ou não querendo apresental-o em casa de -seus parentes. O escrupulo era excessivo, e o acto leviano. Porque -motivo dar apparencia incorrecta a um sentimento natural? Teria poupado -muita afflicção e muita lagryma a si e aos seus, se tomasse antes o -caminho direito, que é sempre o melhor. - -Helena ouvia éstas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos. -Não parecia sequer respirar. Quando elle acabou, perguntou soffrega: - ---Com que intento lhe falou elle? - ---Com o mais puro do todos; desconfiou que a senhora padecia por isso e -veiu contar-me tudo. - -Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quiz -interromper nessa ascenção mental ao ceu; limitou-se a contemplal-a. -A belleza de Helena nunca lhe parecêra mais tocante do que nessa -attitude implorativa. A contemplação não durou muito, por que a -oração foi breve. - ---Orei a Deus,--disse ella, descendo as mãos,--por que infundiu ahi no -corpo vil do escravo tão nobre espirito do dedicação. Delatou-me para -restituir-me a estima da familia. Aquillo que ninguem lhe arrancaria do -coração, tirou-o elle mesmo no dia em que viu em perigo o meu nome e a -paz de meu espirito. Infelizmente, mentiu. - -Melchior empallideceu. - ---Mentiu sem o saber, continuou a moça. Disse o que suppunha ser -verdade,--o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem. - -Melchior inclinou-se para a moça e pegando-lhe nos pulsos, disse -imperiosamente. - ---Então quem é? Seu silêncio é uma delação; não tem ja direito de -hesitar. - ---Não hesito, replicou Helena; em taes situações uma creatura, como -eu, caminha direito a um rochedo ou a um abysmo; despedaça-se ou -some-se. Não ha escolha. Este papel,--continuou, tirando da algibeira -uma carta,--este papel lhe dira tudo; leia e refira tudo a Estacio e a -D. Ursula. Não tenho ânimo de os encarar nesta occasião. - -Melchior, atordoado, fez um leve signal de cabeça. - ---Lido esse papel,--estão rotos os vínculos que me prendem a ésta -casa. A culpa do que me acontece não é minha, é de outros; aceitarei -contudo ás consequencias. Poderei contar ao menos com a sua benção? - -A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de -absolvição ou de clemencia, que ella lhe pagou com muitos na dextra -enrugada e trémula de commoção. Helena precipitou-se depois para o -corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abril-a, -receioso dos males que iam dalli sahir, sem certeza ao menos de que -ficaria no fundo a esperança. Ia abril-a, e hesitou se o devia fazer na -ausencia de Estacio e D. Ursula; venceu o escrupulo e leu. - -D. Ursula, que entrou na occasião em que elle fechava a carta, recuou -aterrada. Melchior estava pallido como um defuncto. Antes que nenhum, -delles falasse, entrou Estacio na saleta. Melchior dirigiu-se a elle e -entregou a carta. Leu-a Estacio e dizia assim: - -«Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa ahi ha que te -afflige. Presumo adivinhar o que é. O Estacio esteve commigo, logo -depois que daqui sahiste a ultima vez. Entrou desconfiado, e deu como -razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na -mão. Talvez elle proprio as fizesse para entrar aqui em casa. -Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Suppondo que elle -soubesse de tuas visitas, não lhe occultei a minha pobreza; era o meio -de attribuil-as a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de -capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o theor da -vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o -espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente receio que assim -acontecesse. Conta-me o que ha, pobre filha do coração; não me -escondas nada. Em todo o caso, procede com cautella. Não provoques -nenhum rompimento. Se fôr preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou -mezes. Contentar-me-ha a ideia de saber que vives em paz e feliz. -Abençoo-te, Helena, com quanta effusão pode haver no peito do mais -venturoso dos paes, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gôsto -de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me.--_Salvador_.» - -_P.S._ Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não -saias dahi; seria um escandalo.» - -Estacio não comprehendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade -parecia inverossimil. Seu primeiro movimento foi sahir dalli e ter com -Helena. Melchior deteve-o a tempo. - ---Não precipitemos nada, disse elle. Socegue primeiro. - -Estacio deixou-se cahir n'uma cadeira; Melchior communicou o conteudo da -carta a D. Ursula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho, -porque ella não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar -estupidamente para o papel. Houve então entre aquelles tres personagens -dez minutos de mortal silêncio. D. Ursula não pensava; olhava para a -carta, logo depois para o sobrinho e o padre, como a esperar uma -conclusão que seu proprio espirito não podia deduzir dos -acontecimentos. Estacio ficára desorientado; em vão procurava um fio -de deducção entre suas ideias; a revellação nova era uma -complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração -testamentária de seu pae? Se o não era, como explicar a audacia de -semelhante invenção? Elle não podia discernir o que era favoravel a -Helena, nem ousava affirmar o que lhe era adverso. - -No meio daquella familia, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava -a superioridade da morte sobre alguns lances terriveis da vida. Se o -obito de Helena tomára o logar da carta, a dor seria violenta; mas o -irremediavel desfecho e o consolo da religião teriam contribuido para -sarar a alma dos que ficassem e converter o desespêro de alguns dias na -saudade da vida inteira. Em vez disto, estava elle talvez diante de um -destino aniquillado; via um abysmo possivel entre corações que a -vontade de um morto vinculára. Qualquer que fôsse a veracidade da -carta, o resultado era talvez esse. - -Melchior foi dalli ter com Helena, para alcançar mais detida -explicação do quê acabava de ler. Ella ergueu-se quando o viu, e -pareceu reviver ao contemplar o gesto benevolo com que elle lhe falou. -Um longo suspiro de alivio rompeu-lhe do coração; seus braços cahiram -sobre os hombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou -emfim,--um minuto--das dores que a affligiam. - ---Perdoaram-me? disse ella. - ---Hão de perdoar; conte-me tudo. - ---Oh! não posso, não sei; sei que é meu pae. - -O capellão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na -posição em que os deixára. Interrogaram-n'o com os olhos. - ---Nada, disse elle. Seu coração não possue nesta occasião a -necessaria fôrça para responder a quanto se lhe devia perguntar; -demais não sabera tudo. Temos a primeira confissão da verdade.... - ---Da verdade? interrompeu melancholicamemte Estacio. Quem sabe se é -verdade o que lemos nesse papel? - ---É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração; -mas eu incumbo-me de ir buscal-os. - ---Iremos ambos. - -D. Ursula quiz dissuadir o sobrinho de ir á casa do homem, causa dos -desastres da familia; não tanto por que lhe parecia que entre Estacio e -elle nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo por que ella -precisava de alguem que a acompanhasse em tão graves circumstâncias. -Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Ursula. - ---Irei eu só, disse elle; depois conduzil-o-hei até ca, se fôr -preciso. - ---Não posso esperar, insistiu Estacio; preciso falar a esse homem, -ouvil-o, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o -decoro da familia exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração -goteja sangue. - -Era impossivel dissuadil-o; Melchior tratou somente de o moderar. De -resto, a crise era violenta; cumpria resolvel-a sem demora nem -hesitação. O padre animou D. Ursula, e sahiu acompanhado de Estacio, -cujo coração, convalecido do primeiro abalo, deixava as regiões da -dúvida para entrar na atmosphera da verdade,--pelo menos da esperança. -Quaesquer que fossem as consequencias da nova revellação, vinha ésta -como um balsamo, apos tão dolorosas commoções; era um rasgão azul no -ceu tempestuoso daquelles dias. Ia elle pensando assim,--ou antes -sentindo,--por que o pensamento não ousava regel-o, desde que a vida -inteira do moço se lhe concentrára no coração. - -Chegando em frente da casa, Estacio desviou os olhos; custava-lhe -encaral-a, mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se ésta -emfim, e a figura do dono da casa appareceu aos dous. Vendo-os, -empallideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão. -Estacio foi direito ao fim. - ---Supponho que se lembra de mim? disse elle. - ---Perfeitamente. - ---Sabe que motivo nos traz a sua casa? - ---Não, senhor. - ---Confessa a autoria desta carta? - -Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto affirmativo. - ---Pretende que Helena é sua filha, disse o moço depois de um instante. -Confirma verbalmente o que escreveu? - ---Helena é minha filha. - -Melchior interveiu. - ---Ha um anno, fallecendo, o meu velho amigo conselheiro Valle, -reconheceu Helena, por uma clausula testamentária; recommendava á -familia que a tratasse com affecto e carinho e designava o collegio em -que ella estava sendo educada. O facto do reconhecimento e as -circumstâncias que apontou dão toda a veracidade á palavra do morto. -Que prova apresenta o senhor em contrário a ella? - ---Nenhuma, disse Salvador; não tenho prova de nenhuma natureza. - ---Na falta de provas, proseguiu o capellão, poderia dizer-nos como -suppor da parte do conselheiro uma falsificação tratando-se de -disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa extranha na -familia? - -Salvador sorria amargamente. - ---Supponha,--disse elle,--que eu havia illudido a confiança do -conselheiro, e que elle acreditava ser pae de Helena. - ---Era isso? - ---Não era. Na posição em que nos achamos já não ha logar para meias -palavras. Fôrça é referir tudo. Dez minutos apenas. - -Os tres sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a -persistencia e a curiosidade naturaes da occasião. Salvador esteve -alguns instantes calado; emfim voltou-se para o capellão. - ---Estimo, disse elle, que o Sr. padre viesse; sua caridade temperará a -legítima indignação deste mancebo; e eu farei as declarações -indispensaveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de -Helena. - ---Queira falar, disse seccamente Estacio. - - - - -CAPITULO XXV - - ---A mãe de Helena, disse Salvador, cuja belleza foi a causa, a um -tempo, da sua ma e boa fortuna, era filha de um pobre lavrador do Rio -Grande do Sul, onde tambem nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pae -oppoz-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria -ver-me em posição brilhante. Angela podia ser obstaculo á minha -carreira, dizia elle. Oppoz-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na -campanha oriental, d'onde passamos a Montevideo, e mais tarde ao Rio de -Janeiro. Tinha vinte annos quando deixei a casa paterna; possuia alguns -estudos poucos, meio duzia de patacões, muito amor e muita esperança. -Era de sobra para a minha edade, mas insuficiente para o meu futuro. A -lua de mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha -vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me veem, fui -mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operario, -estalajadeiro, escrevente de cartorio; algumas semanas vivi de tirar -cópias de peças e papeis para theatro. Trabalhava com energia, mas a -fortuna não correspondia á constancia, e o melhor dos annos gastei-o -em luta aspera e desegual. Uma compensação havia, a mais doce de -todas: era o amor e o contentamento de Angela, a egualdade de animo com -que ella encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa -fuga havia outra compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em -um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe -foram obtidos por favor de uma mulher da visinhança. Mas nasceu, em boa -hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um -ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava -com alma, luctava resoluto contra todas as fôrças adversas, certo de -encontrar á noite a solicitude da mãe e as ingenuas caricias da filha. -Os senhores não são paes; não podem avaliar a fôrça que possue o -sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas accumuladas na -fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte da -noite, e eu, apezar de robusto, me sentia cançado, erguia-me, ia ao -berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar fôrças -novas, Se o proprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de -alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a -adormecer metade da minha felicidade na terra. - -Salvador interrompeu-se commovido. - ---Perdoem-me,--continuou elle depois de alguns instantes, se éstas -memorias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje. -Desse tempo só resta um echo doloroso e consolador. Crescia Helena e -cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue. -Quando pôde aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras -licções; assisti pasmado á aurora daquella intelligencia que os -senhores veem hoje tão desenvolvida e lucida. Aprendia com facilidade, -por que estudava com amor. Angela e eu construiamos os mais lindos -castellos do mundo. Nós a viamos ja mulher, formosa como viria a ser, -porque ja o era, intelligente e prendada, espôsa de algum homem que a -adorasse e elevasse. Viviamos dessa antecipação, que era apenas um -sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna. - ---Porque razão,--perguntou Melchior,--dado esse amor e nascida uma -filha, não sanctificou o senhor a situação singular em que se -achavam? - ---A curiosidade é justa, replicou Salvador, mas a resposta é decisiva. -Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o resentimento -de meu pae. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grande a propria -embriaguez da felicidade desviou qualquer ideia de sanctificar e -legalisar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os -trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao -dever que tomára em meus hombros, ia adiando o acto de mez para mez, de -anno para anno. Afinal o projecto esvaiu-se de todo. Estavamos ligados -pela miseria e pelo coração, não pretendiamos o respeito da -sociedade; triste desculpa, e ainda mais triste recordação, por que o -casamento teria talvez obstado aos acontecimentos posteriores. Helena -contava seis annos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermittencias -favoraveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida, -quando uma circumstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pae -adoecêra; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fôsse ver sem -demora. Obedeci promptamente. Do que elle me remetteu para as despezas -dr viagem e outras, deixei alguma cousa a Angela e Helena, e parti. -Vinte e quatro horas depois de ver meu pae, tive a dor de o perder. A -liquidação dos negocios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo -aos credores; restavam-me alguns patações. Recebi esse golpe novo com -a philosophia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do -acontecimento? Os negocios entretanto, apezar de curtos, demoraram-me -mais do que eu pretendia e convinha. A ancia de voltar cresceu desde que -não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Angela. Enfim, -pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança -menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pae. - -Estacio desviou os olhos. - ---Logo que cheguei,--continuou Salvador,--corri a casa; achei-a fechada. -Um visinho, testemunha da minha afflicção, deu-me notícia de que -Angela se mudára para S. Christovão. Não sabia nem o numero nem a -rua; mas deu-me algumas indicações, que me guiaram. Ainda hoje tenho -ante os olhos o sorriso com que aquelle homem me respondia. Era um -sorrir de compaixão que humiliava. Sem nunca haver recebido de mim a -menor offensa, vejo que elle tinha um prazer secreto com o meu -infortunio. Porque? Deixo aos philosophos liquidarem esse enigma da -natureza humana. Voei a S. Christovão; gastei tempo em procurar a casa, -mas dei com ella. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das -indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio -de um pequeno jardim. Podia ser aquella a residencia da companheira de -minha miseria? Receioso de ir bater alli, vi assomar ao portão um -homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a -quem dei o seu proprio nome, dizendo que lhe desejava falar. «A senhora -sahiu,» respondeu elle distrahidamente. Dispuz-me a esperar, mas o -jardineiro observou-me que ia sahir e fechar o portão, e que a senhora -só voltaria á noite. «Esperarei até a noite», redargui. O jardineiro -mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cautelloso pela rua e -disse-me baixinho: «Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não -hade gostar.» Não escrevo um romance; dispenso-me de lhes pintar o -efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a -descripção. Ha catastrophes mais solemnes, ha situações mais -patheticas; mas naquella occasião parecia-me que todas as dores do -mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era -verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o effeito de suas -palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro. -Convidou-me com brandura a sahir; obedeci machinalmente. Podendo -informar-me acerca de Angela, não o fiz. A febre reteve-me tres dias -de cama, n'uma pobre cama alugada em pessima estalagem da Cidade Nova. -No terceiro dia recebi uma carta de Angela. Pedia-me que lhe perdoasse o -passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que, -se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a -carta, tive impeto de ir ter com ella e esganal-a; mas o impeto passou, -e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um -engenheiro inglez que vinha do Rio Grande para esta Côrte, emprestara-me -um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglez que -aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que alli achei fez-me -estremecer, na occasião, como uma profecia; recordei-a depois quando -Angela me escreveu. «Ella enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de -enganar-te a ti tambem.» Era justo; pelo menos, era explicavel. Dous -dias depois da carta de Angela, escrevi-lhe pedindo meia hora de -conversação; nada mais. Angela concedeu-me a entrevista. Meu plano era -arrebatar-lhe Helena; ela parece que o previu, recebendo-me sosinha, no -jardim, ás nove horas da noite. - ---Por que razão recorda todas essas minucias? interrompeu Melchior com -brandura; nós desejamos somente saber o essencial. - ---Tudo é essencial na minha narração, disse Salvador. Aquella -entrevista mostrou-me a toda a luz o caracter de Angela. Que outra -mulher se arriscaria, em taes circumstâncias, a affrontar a colera do -homem desprezado? Angela era um complexo de qualidades singulares. Capaz -de supportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das maximas -privações, esqueceu n'um instante as virtudes que tinha para correr -atraz de uma fantasia do amor. Não foi a riqueza que a seduziu; ella -iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miseria. Angela nasceu -metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro, -não o era menos das pompas da scena. E dahi... não fui eu mesmo que a -desviei da estrada real para mettel-a por um atalho obscuro? Disse-lh'o -naquella noite em que procurei ser tranquillo e superior aos -acontecimentos. «Meu fim,--declarei eu,--é só um: levar Helena; Helena -é minha filha, não quero deixal-a entregue a seus maus exemplos.» As -lagrymas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada -a meus pes, para que lhe deixasse Helena, não ha negar que foi tudo -sincero. Cedi apparentemente. Minha resolução estava assentada; sem -Helena a vida parecia-me impossivel. Que outro vínculo me prendia ao -mundo? A morte e a miseria tinham feito em redor de mim completa -solidão. A unica felicidade sobrevivente era ella. - ---Segundo rapto, observou o padre. O senhor condemnava-se a só adquirir -um vislumbre de felicidade por meios violentos. - ---Tem razão, respondeu Salvador com tristeza; um abysmo chamava outro -abysmo... Felizes os que sabem o caminho recto da vida, e nunca se -arredaram delle! Quiz arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a -via nunca; a propria casa rara vez tinha uma porta ou janella aberta. -Havia alli o recato e o mysterio. Um dia resolvi ir ter com o protector -de Angela. A noticia que me deram do conselheiro Valle era a mais -honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos. -O demonio do orgulho impediu a execução do plano. Quasi a entrar em -casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cêrca de dous mezes. -Emmagreci; as longas vigilias fizeram-me pallido; o trabalho não me -attrahia; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um -pungir delicioso não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é -certo que a ella misturava-se a colera, a colera da impotencia e o -desgôsto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para S. Christovão, -disposto a empregar a violencia, com tanto que trouxesse Helena ou -fôsse dalli para o Aljube. Era á tardinha. Approximei-me do jardim de -Angela, ouvi a voz de minha filha. Era a primeira vez depois de longos -mezes! Parou-me o sangue todo. Passado o primeiro abalo, caminhei -cautelloso encostado á cêrca, Helena falava a alguem. Por uma abertura -da cêrca, pude espreital-a. Estava ao collo de um homem. Esse homem era -o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a -minha Helena. Helena acariciava as barbas delle; este sorria para ella -com um ar de ternura, que o absolvia quasi da offensa a mim feita. O -coração porém apertou-se-me, ao ver dar a outro, affagos a que só eu -tinha direito. Era um roubo feito á natureza; mas, se meu proprio -sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Dahi a -algum tempo,--não sei se foi curto ou longo, por que eu ficára a olhar -para ambos, pasmado de amor e de colera, ouvi que falavam de mim. -«Mas, olhe,--dizia Helena,--papae quando vem?» O conselheiro deu um -beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairara -sôbre a cabeça della. As creanças porém são implacaveis; aquella -repetiu a pergunta. «Papae não volta» respondeu o conselheiro. Helena -ficou muito séria. «Não volta? porque?» «Tua mamãe disse hontem -que papae está ao ceu.» Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe -rebentaram lagrymas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos, tentei -dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha -filha. Os musculos não corresponderam á intenção; senti fraqueza nas -pernas; achei-me de bruços. Quando dei accôrdo de mim, volvi de novo -os olhos para o logar onde os víra. Ainda alli estavam, mas a attitude -era differente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que -ja não chorava. Elle beijava-lhe as mãosinhas e dizia-lhe: «Se papae -foi para o ceu, fiquei eu no logar delle, para dar-te muito beijo, muito -doce e muita boneca. Queres ser minha filha?» A resposta de Helena foi -a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se -dissesse; «Se não tenho ninguem mais no mundo!» O gesto foi tão -eloquente que eu vi borbulhar uma lagryma nos olhos do conselheiro. Essa -lagryma decidia do meu destino; vi que elle a amava, e de todos os -sacrificios que o coração humano póde fazer, aceitei o maior e mais -doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da unica herança que -tinha na terra, fôrça da minha juventude, consolo de minha miseria, -coroa de minha velhice, e voltei á solidão mais abatido que nunca! - -Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por -entre seus dedos escorreram algumas lagrymas, que elle, de envergonhado, -enxugou rapidamente. - ---Essas recordações são penosas, disse o padre; não convem -despertal-as de uma vez; seria abrir feridas que o tempo cicatrisou. -Sabemos o essencial... - ---Não, resta ainda alguma cousa, disse Salvador. - -Estacio erguera-se. Visivelmente commovido, procurava luctar contra o -sentimento que o dominava, afim de conservar a necessaria independencia -de espirito para julgar da narrativa e do alcance que ella podia ter. -Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as -últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia -parecer uma absolvição summaria. A verdade é que elle não reflectia -nem sentia claramente; sua mente e seu coração eram um campo de ideias -e commoções contrárias. - ---Vou acabar,--disse Salvador depois de alguns minutos. Resta explicar o -procedimento de Helena. - - - - -CAPITULO XXVI - - ---Seu pae,--continuou Salvador dirigindo-se a Estacio, que, para acabar -de compor o rosto, tinha ido até á janella e voltára a sentar-se, seu -pae era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Angela, não me trahiu, por -que não me vira nunca; não contribuiu directamente para a traição -della, por que suppunha cortadas nossas relações. Soube depois que -Angela, quando elles se apaixonaram um pelo outro, lhe occultára -completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim. -Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido, O -conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso, -não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma suggestão de amor ou -um esquecimento; foi talvez um modo de respeitar-me: no segundo caso, -houve cálculo; era o de redobrar o affecto que o conselheiro tinha a -Helena. Assim aconteceu, por que o conselheiro sentiu-se pae de Helena, -e assumiu esse caracter desde aquella tarde. Do contracto, feito alli -entre o homem e a creança, cumpriu elle toda as clausulas com generosa -pontualidade. Póde crer que lhe fiquei profundamente grato. Uma vez, -passando por uma lithographia, vi um retrato delle; comprei-o e -conservo-o alli ao lado do de Helena. - -Melchior e Estacio olharam para a parede, onde pendiam dous quadrinhos, -ainda cobertos, conforme Estacio os vira, no primeiro dia em que alli -foi. - ---Os mezes e os annos passaram,--continuou Salvador,--Helena deu entrada -em um collegio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O -conselheiro a levou alli, dando-a como orphã de um amigo, de Minas; -Angela, que se dera por sua tia, ia buscal-a aos sabbados. Omitto mil -circumstâncias intermediarias, e as vezes, poucas, em que pude ver -minha filha, de passagem e a occultas. Se o tempo houvesse produzido em -mim os seus naturaes effeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer -contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade, -é possivel que eu achasse meio de empregar-me no collegio ou nas -immediações, afim de ver mais frequentemente Helena. Mas eu era o -mesmo: passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a -côr, e eu era e mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena -podia reconhecer-me; e eu faltava á convenção tacita que fizera com o -conselheiro. Um sabbado, porém, tinha Helena doze annos, vindo ambas do -collegio, parou o carro defronte do Passeio Publico. Vi-as descer e -entrar. Levado por um impulso irresistivel, entrei tambem. Queria -contemplal-as de longe sem lhes falar; mas a resolução estava acima -das minhas fôrças. Que pae não faria outro tanto? No logar mais -solitario do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não -reconhecer-me logo; mas attentou um pouco, recuou espavorida e -agarrou-se á mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava -alli um pae, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia -affastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar á mãe: «Papae?» -Voltei-me. Angela envolvêra o rosto da creança entre seus vestidos. O -gesto equivalia a uma confissão; mas ésta foi ainda mais clara quando -a mãe, cedendo á boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os -hombros, descobriu o rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa, -fitou-a e fez com a cabeça um gesto affirmativo. A menina não exibiu -mais; correu para mim e atirou se me nos braços. Angela não se atreveu -a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrificio falavam em meu -favor. Abracei Helena e beijei-a como doudo. Angela interveio: -«Basta!» disse ella. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua. -Apertei-a machinalmente; meus olhos estavam pregados na creança. Era -tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabellos enlaçadas com -fitas azues, um chapellinho de palha e os pesinhos calçados com botinas -de seda! «Fez bem, disse eu a Angela, depois de alguns instantes; -deu-lhe um pae melhor do que eu.» Reparei então que ella propria se -transformára; trajava com elegancia e estava superiormente bella. A -abastança aperfeiçoára a natureza. Olhei-a sem inveja nem -colera,--mas com saudade,--dessa vez deliciosa, porque rememorei os bons -tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um peculio para os que -ja não esperam nada do presente ou do futuro; ha alli sensações vivas -que preenchem as lacunas de todo o tempo. «Fez mal,»--disse-me ella -baixinho. E suspirou. «Sei que morri,--disse eu, e não pretendo -resuscitar.» Depois voltei-me para Helena:--«Minha filha, faze de -conta que me não viste; morri, para ti e para o mundo. Teu pae é -outro. Promettes que não dirás nada?» Helena fez um leve signal de -cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quizesse ser vista de -Angela. Nesse simples gesto reconheci que ella ia obedecer-me; mas a -tristeza que lhe ficou foi o castigo de sua mãe. Pediamos á natureza -mais do que ella podia dar. - -Salvador fez uma pausa, ergueu-se foi à commoda, e de uma das gavetas -tirou uma caixinha, que collocou sôbre a mesa. Melchior e Estacio -trocaram um olhar de curiosidade. Salvador sentara-se de novo. - ---Angela morreu,--proseguiu elle,--dahi a um anno. Seu pae e alguns -amigos poucos foram leval-a á sepultura. Tambem eu la me achei. A -differença é que elle enterrava uma aventura, e eu via enterrar o meu -passado. Vi-o triste e taciturno, como sinceramente pezaroso da creatura -que perdéra. Helena, entretanto, não podendo estar só na mesma casa, -foi removida para o collegio, onde ficou residindo definitivamente. O -conselheiro ia visital-a todas as semanas. Pela minha parte, certo da -discrição de minha filha, encetei com ella uma correspondencia que era -toda a consolação que me podia caber. Uma escrava do collegio servia -de intermediaria entre nós. Então, como hoje, achei uma alma -compassiva que me ajudou a ser feliz com mysterio; a differença é que -naquelle tempo era precisa a intervenção pecuniaria. Eu tinha pouco, -mas dava o jantar de um dia para ler cartas de Helena. Conservo-as -todas, tanto as de outr'ora, como as destes últimos mezes; estão -fechadas aqui. - -Salvador mostrou a caixinha que collocára sôbre a mesa. - ---Um dia, almoçando em um botequim, li a notícia da morte do -conselheiro. O facto consternou-me; mas eu peço licença para lhes -dizer tudo; de envolta com o sentimento, de pezar, houve em mim alguma -cousa semelhante a uma satisfação. Respirava enfim! O contracto -expirava com elle; eu ia entrar na posse de minha filha. Não escrevi -desde logo a Helena; fil-o ao cabo de alguns dias. Tive duas respostas: -a primeira era no sentido da minha carta; a segunda annunciava-me que o -conselheiro a reconhecêra por testamento. Podia procurar e ler-lhes a -segunda carta: é um documento da elevação dos sentimentos daquella -menina. Exprimia-se com a maior gratidão e saudade a respeito do -conselheiro; mas negava-se a aceitar o favor posthumo. Sabendo a -verdade, não queria escondel-a ao mundo. Acceitando o reconhecimento, -entendia que prejudicava direitos do terceiro, além de repudiar-me -solennemente, o que não queria fazer desde que adquiria a liberdade de -acção. Entre a herança e o dever, dizia ella, escolho o que é -honesto, justo e natural. Esta carta tirou-me o somno uma noite inteira, -perplexo como fiquei entre o acto do finado e a resolução da herdeira. -Que mão invisivel tocára no coração do conselheiro essa corda de -sensibilidade? Melhor fora que elle houvesse traduzido era uma simples -lembrança a affeição que tinha a Helena. Longo tempo reflecti nisso; -o pae luctava com o pae. Tel-a commigo era a minha ventura, o meu sonho, -a minha ambição; era a realidade que eu chegára a tocar com as mãos. -Mas podia atal-a ao carro decrepito da minha fortuna, dar-lhe o pão -amargo, que era o meu lote de todos os dias? A familia do conselheiro ia -afiançar-lhe futuro, respeito, prestigio; a lei ia amparal-a. Perguntei -a mim mesmo, se depois de haver morrido para o mundo, me era licito -resuscitar para reclamar e rehaver um titulo de que me havia despojado; -finalmente se possuia ja o direito de fazer um escandalo. Éstas -reflexões, se viessem sos, teriam triumphado desde logo; mas, em -opposição a ellas, vieram as suggestões do coração. Adverti que, -cedendo á vontade do morto, cavaria um abysmo entre mim e Helena, e que -não mais, ou só raramente e a o occultas, podia desfructar, a felicidade -de lhe dizer que a amava, de ouvir a mesma palavra de seu coração. -Nessa lucta gastei tres longos dias. Helena escreveu-me outra carta, -insistindo na resolução que dizia haver tomado. Urgindo responder-lhe, -fil-o sacrificando-me, não a convenci. Procurei ter uma entrevista com -ella. Não era facil; mas o interesse venceu tudo; a escrava -intermediaria augmentou o preço da complacencia. O que se passou entre -nós não o poderei repetir agora; curto era o prazo concedido, mas a -lucta foi renhida e longa. Busquei persuadil-a com reflexões e -súpplicas; ella resistiu com indignação e lagrymas. Sua nobre alma -repudiava a complicidade e o lucro de uma usurpação. Eu não via -usurpação, por que a meus olhos nem os interesses da familia do -conselheiro, nem as noções da simples moral prevaleciam: eu via minha -filha e seu futuro: nada mais. Talvez os culpados desse meu proceder -fossem somente Angela e seu bemfeitor. Elles me acostumaram a amal-a de -longe, a não disputar a outrem o beneficio que ella recebia. Emfim, meu -coração, egoista e ulcerado, entendia que o reconhecimento daquella -pobre creança era o simples retorno das caricias de que eu havia sido -defraudado; taes foram os motivos da minha consciencia. Helena resistiu -até á ultima; cedeu somente á necessidade da obediencia, á imagem -de sua mãe que eu invoquei, como um supremo esfôrço, á fiança que -lhe dei de que a acompanharia sempre, de que iria viver perto della, -onde quer que o destino a levasse; cedeu exhausta, sem convicção nem -fervor. Se nesse acto decisivo de Helena ha culpa, é toda minha, por -que eu fui o o autor unico; ella não passou de simples instrumento, -instrumento rebelde e passivo. Seu êrro foi não ter a prudencia -necessaria para não transpor o abysmo que nos separava. Eu devia contar -com na resoluções subitas e promptas dessa menina; ha alli uma -costella de sua mãe. Mandando-lhe dizer com as indicações precisas, -onde morava, estava longe de esperar que ella viesse ver-me. A principio -fiquei atterrado com as possiveis consequencias; mas se o homem se -habitua ao mal e á dor, por que se não hade acostumar ao prazer e ao -bem? Helena veiu mais vezes; o gôsto de a ver fez olvidar o perigo, e -eu bebi, em horas escassas e furtivas, a unica felicidade que mo restava -na terra, a de ser pae e a de me sentir amado por minha filha. - - - - -CAPITULO XXVII - - -Tinha acabado; grossas lagrymas, retidas a custo, emfim lhe rebentaram -dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A commoção não -ficou só nelle; seus dous ouvintes a sentiram tambem. Acabára; e o peor -que podia acontecer era isso mesmo. Uma vez finda a narração, ficaram -os dous calados e perplexos, sem que ousassem contradizel-o. Depois de -curta pausa, Salvador rematou assim: - ---De tudo o que lhes disse não tenho outras provas, além destas -cartas, que seriam bastantes, o de minhas lagrymas, que hão de ser -eternas. Mas ainda quando haja outras, creio que não serão precisas. -Na situação em que estamos só ha duas soluções possiveis; ou nada se -altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as -consequencias da sorte, desaparecendo; ou a familia regeita Helena, e eu -a levarei commigo. Dir-se-ha que a lei a protege a todo trance? Pois -ella assignará todas as desistencias necessarias. - -Estacio cortou-lhe a palavra dizendo que opportunamente lhe dariam sua -resolução. Sahiram elle e Melchior logo depois; não trocaram uma só -palavra; cada um delles ia absorto. Comtudo, o padre observava de quando -em quando o sobrinho de D. Ursula, buscando adivinhar-lhe os -pensamentos. - -Chegando á porta da chacara, o padre perguntou ao moço: - ---Que pretende fazer? - ---Não sei ainda. - ---Sei eu o que deve fazer: nada. - ---Conservar ésta situação? - ---De certo. Helena obedeceu á vontade de seus dous paes, aceitando o -equívoco em que ambos a vieram collocar. Obedeceu á fôrça. Agora, -está reconhecida; é um facto que não podemos discutir nem alterar. - -Estacio esteve silencioso alguns instantes. - ---Mas posso eu, á vista do que acabamos de ouvir, conservar a Helena um -titulo que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é minha irmã; -é absolutamente extranha á nossa familia; o titulo que nos ligava -desaparece. Por que motivo continuariamos nós uma falsificação... - ---De seu pae? atalhou Melchior. - ---Padre-mestre! - ---Aquelle homem falou verdade; mas nem a lei nem a Egreja se contentam -com essa simples verdade. Em opposição a ella, ha a declaração -derradeira do um morto. A justiça civil exige mais do que palavras e -lagrymas; a ecclesiastica não extingue, com um traço de penna, a -affirmação posthuma. Demais, não espere que esse homem reproduza -perante ninguem as declarações de ha pouco; só o fará quando perder a -ultima esperança. É evidente que elle nada quer alterar do que seu -pae estabeleceu, e antes se sacrificará do que envergonhará a filha. -Sente-se disposto a fazer o que elle recusa? - -Estacio não respondeu; tinham entrado na chacara, e caminhavam -lentamente na direcção da casa. Melchior deteve-o. - ---Estacio! disse o padre depois de olhar para elle um instante. Eu leio -no fundo de seu pensamento; quizera despojar Helena do titulo que seu -pae lhe deixou para lhe dar outro, e ligal-a á sua familia por -differente vínculo... - -Estacio fez um gesto como protestando. - ---Esquece duas cousas graves; o escandalo e o casamento de um e outro; -ja se não pertence, nem ella se pertence a si. Vamos la; seja homem. -Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio; e a situação -de hontem será a mesma de amanhã. - -Quando Estacio e Melchior entraram era casa, ja D. Ursula sabia tudo; -lográra desatar a lingua de Helena. Abatida com a leitura da carta, -não lhe levantára o ânimo a narração verbal da moça; seu coração -preferia talvez que Helena fôsse verdadeiramente filha do conselheiro. -Alguns mezes de espaço e a convivencia affectuosa produziram a -differença de sentimento entre o primeiro e o último dia. - ---Nada podemos fazer ja agora, disse o padre; provocariamos um escandalo -sem esperança do resultado. - -D. Ursula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvil-os. Helena -desceu dahi a alguns minutos. A côr da vergonha tingiu-lhe a face logo -que ella deu com Estacio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos -calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Apos um silêncio -longo e abafado, Estacio communicou a Helena a resolução da familia e -seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que -sôbre todas as cousas prevalecia a vontade derradeira de seu pae. -Helena empallideceu e cerrou os olhos; D. Ursula correu a amparal-a. O -organismo debilitado pelas vigilias e commoções das últimas horas -não pudera resistir; mas o deliquio foi leve e curto. Voltando a si, -Helena beijou ardentemente as mãos de D. Ursula e as do padre, estendeu -a dextra a Estacio, que a apertou; depois, com voz trémula, mais firme -resolução, disse: - ---Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não -perdi; mas a situação mudou, e fôrça é mudar com ella. Não quero a -protecção da lei, nem poderia receber a complacencia de corações -amigos. Commetti um erro, e devo expial-o. Emquanto a vergonha vivia só -commigo, era possivel continuar nesta casa; eu atordoava-me para -esquecel-a; mas agora, que é patente, vel-a-hei nos olhos de todos e no -sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não -devêra ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu -me habituára a amar de longe, com o prestigio de mysterio, e o encanto -do fructo prohibido. De hoje em diante, amal-os-lei de longe ou de -perto, mas extranha... e perdoada! - -Dizendo isto, Helena abraçou D. Ursula como a pedir o beneficio da sua -intervenção. D. Ursula abraçou-a egualmente, mas fez com a cabeça um -gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo menos um -symptoma de desprendimento pouco explicavel em relação á familia, -que, sem embargo dos ultimos successos, não lhe retirára nem a estima -nem a protecção. - ---Herdou o orgulho de seu pae! murmurou Estacio. - -A phrase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos -fulgiram de momentanea satisfação. Attribuir a orgulho, o que era -vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava -não ter naquelle lance. Protestou em favor de seus sentimentos de -gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos tres lhe -conheciam, mas interrompida a intervallos pela commoção interior, e -pelos lagrymas que lhe escorriam dos olhos, quasi exhaustos de chorar. -Estacio poz termo a todas as hesitações. - ---Pois bem, disse elle, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa -vontade é que nos obedeça. - -Helena mordeu o labio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça -descahiu-lhe lentamente como ao pêso de uma ideia a mais e mais -oppressora. Depois ergueu-a; seus olhos tristes, mas animados dos -ultimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estacio, que -nessa occasião pareciam falar as dores todas da paixão suffocada e -rebelde. Ambos elles os baixaram á terra, medrosos de si mesmos. - ---Não creio que ella aceite facilmente a sua decisão,--disse Melchior -a Estacio, logo que pôde achar-se só com elle. Acautele-se: é capaz de -fugir-nos. - ---Cre? - ---Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a -deixaram repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miseria á vergonha; e a -ideia de que interiormente não a absolvemos, é o verniz que lhe fica -no coração. - -De noite, recebeu Estacio uma carta de Salvador, acompanhada de um -pacote. - -«Reflecti muito durante éstas duas horas,--dizia elle,--e cheguei a -uma conclusão unica. Elimino-me; é o meio de conservar a Helena a -consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quanto ésta carta lhe -chegar ás mãos, terei desaparecido e para sempre. Não me procure, que -é inutil. Irei abençoal-o de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo -o resentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as -cartas de Helena; guardo tres apenas, como recordação da felicidade -que perdi.» - -Estacio teve vontade de ler as cartas de Helena; mas a tempo recusou; -mandou-a dar á moça. Helena, que estava com D. Ursula, entregou-as a -ésta. - ---São a minha história, disse ella; peço-lhe que as leia e me julgue. - -Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se -immediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta, -sinistra, o corpo atirado em um sopha, a alma sabe Deus em que regiões -de infinito desespêro. - - - - -CAPITULO XXVIII - - -Naquella noite, a segunda de tão singulares successos, foi que Estacio -sentiu toda a violencia do amor que lhe inspirára Helena. Em quanto os -detinha um vínculo sagrado, amára sem consciencia; e ainda depois de -esclarecido pelo padre, o esfôrço empregado em vencer-se, e a propria -natureza da catastrophe, não lhe permmittiram ver a extensão do mal. -Agora, sim: roto o vínculo, restituida a verdade, elle conhecia que a -voz da natureza, maia sincera e forte que as combinações humanas, os -chamava um para o outro; e que a mulher destinada a amal-o e ser amada, -era justamente a unica que as leis sociaes lhe vedavam possuir. - -Durante as primeiras horas seu coração mordeu rebelde o freio da -necessidade. A vigilia foi longa e crua; e a reflexão veiu emfim -dominar a tempestade interior, ou antes alumiar seus destroços. Elle -viu que o padre tinha razão; que era fôrça desfolhar a esperança de -um dia. Ao mesmo tempo, o exemplo de Helena deu-lhe ânimo. Senhora do -segrêdo de seu nascimento, e consciente de amar sem crime, a moça -apressára, não obstante, o casamento de Estacio e escolhêra para si -um noivo estimado apenas. Se uma vez a palavra delatora lhe rompeu dos -labios, ella a retrahiu logo, fazendo o mais obscuro dos sacrificios. - -Não quiz Estacio ser menos generoso. Logo de manhã escreveu a -Mendonça, pedindo-lhe que não deixasse de os ir visitar nesse dia. -Não o fez sem custo, mas fel-o sem arrependimento. Tinha por fim -apressar o casamento de Helena e o seu, condemnando-se a soffrer calado -os golpes do avêsso destino. - -A manhã, entretanto, não trouxe a Helena o esquecimento e a paz. A -noite não lhe serviu de remedio, antes legou á aurora toda a sua -mortal angústia. Debilitada, nervosa, impaciente, não podia a moça -vencer-se nem supportar-se. Ora repellia com sequidão as boas palavras -de D. Ursula; ora lhe pedia intercedesse com Estacio para a resolução -que ella admittia como unico meio de a poupar á vergonha. A excitação -moral era grande; cumpria aquietal-a por meios persuasivos. Helena fugia -a todos: não encarava Estacio e D. Ursula sem que o pêjo lhe colorisse -a face, mudança tanto mais visivel, quanto que a vigilia e a dor a -tinham empallidecido singularmente. Diziam-lhe que a vontade do -conselheiro estatuira uma lei na familia, segundo a qual ella continuava -a ser parenta como d'antes, e tão amada como era. A moça agradecia a -generosidade, mas não podia fugir á ideia de haver contribuido para -uma usurpação. Seu desejo capital era que a deixassem ir ter com o -pae, ao pe de quem a natureza e sua consciencia lhe indicavam que -poderia estar sem remorso. Estacio e D. Ursula respondiam-lhe com -affagos e protestos; mas quando viram que estes eram inuteis, não houve -mais que revellar-lhe a carta de Salvador. - -O padre Melchior incumbiu-se de lhe fazer essa delicada communicação. - ---Seu pae, disse elle, praticou em seu favor um acto heroico; fugiu para -lhe não fazer perder a consideração e o futuro. Leia ésta carta, e -veja se ella lhe dá a fôrça necessaria para resistir. - -Helena pegou na carta com soffreguidão; leu-a de um lance d'olhos. O -gemido que lhe rompeu do coração mostrou bem a profundez da ferida -que acabava de receber. O padre acolheu-a lacrymosa e esvaecida em seus -braços; disse-lhe palavras de conforto e de esperança. Nos primeiros -minutos, Helena nada pôde ouvir; o golpe ensurdecêra a alma. Melchior -fel-a sentar ao pe de si; ella obedeceu sem consciencia. Apos alguns -minutos de silêncio e concentração, a moça dirigiu a palavra ao -padre, e agradeceu-lhe a caridade. Depois referiu-lhe os acontecimentos -de sua infancia, os mesmos que o capellão ouvira. A sagacidade natural -de seu espirito cedo lhe fizera ver que a posição de sua mãe não era -a mesma das outras mães; essa descoberta porém não teve outra virtude -mais que communicar a seu amor de filha uma intensidade e energia -capazes de affrontar os mais fortes obstaculos, como se ella quizesse -reunir em si toda a somma de affectos e respeitos que a sociedade -afiança ás situações regulares. Melchior ouviu-a commovido; seu -coração, nutrido da medulla do Evangelho, reconheceu um effeito da -graça divina nesse amor immaculado, que valia por todas as -absolvições da terra. Elle a applaudiu e confortou; falou-lhe do -futuro, do carinho de sua familia,--sua, a despeito de tudo; emfim da -obrigação em que ella estava de corresponder a tanta confiança. - -Talvez Helena, em sua razão, correspondesse aos conselhos de Melchior; -mas a razão é o que menos a dirigia naquellas circumstâncias -afflictivas. Ella deixou o padre para recolher-se a seus aposentos, -Quando D. Ursula alli foi, meia hora depois, achou-a profundamente -abatida; a violencia da crise passára. A linguagem que lhe falou foi -maternal, ungida de amor e perdão; Helena ouviu-a agradecida, mas um -sorriso descorado e sem convicção lhe entre-abria os labios. Suppunha -ler commiseração onde havia affecto e respeito; e seu orgulho -rebellava-se de inspirar o unico sentimento que a consciencia lhe dizia -merecer. - -As instancias de D. Ursula para que Helena se alimentasse foram inuteis; -ella apenas recebia o que bastava para não sucumbir á fome. A -companhia repugnava-lhe; assim, poucas vezes a viram desde os dias que -se seguiram áquella funesta manhã. Mendonça não conseguiu mais do -que os outros. A familia teve o cuidado de annunciar que Helena se -achava enferma. A afflicção do noivo foi grande; mas todos buscaram -tranquilizal-o. Nada havendo transpirado do acontecimento, facil foi -sustentar aquella explicação. - -Melchior encommendára muito á familia que vigiaste a moça, cujo -espirito lhe parecia atrevido e tenaz; elle receiava que Helena ou -fugisse de casa, ou recorresse a algum acto de desespêro. O summo padre -desvellou-se em trazer a alma de Helena ao sentimento da resignação, A -autoridade de seu caracter religioso, a influência que elle tinha no -espirito de Helena eram armas poderosas, temperadas como amor verdadeiro -e paternal que o ligava á donzella. Nada poupou; mas seus esforços -não tiveram mais fructo, que os da familia. Helena mal podia tolerar a -situação. - -Uma vez, como ella descesse á chacara, sahiu Estacio a procural-a, não -a encontrando senão ao cabo de alguns minutos. Achou-a ao pe do tanque, -no lugar em que lhe falára poucos dias antes, sentada no mesmo banco de -pau. Vendo-o, estremeceu; elle approximou-se contente de a haver -encontrado emfim. O dia estava feio; grossas nuvens negras pejavam o ar, -humidas de temporal proximo. Estacio convidou-a a recolher-se. - ---Deixe-me estar aqui um instante mais, respondeu ella. - ---Dous minutos apenas. - -Sentou-se ao pe della e ficaram calados. Helena tinha uma taquara na -mão; Estacio quiz tomar-lh'a; ella arremessou-a para longe. Ergueu-se -então o moço e foi buscal-a; só então viu que estava molhada até -certa altura; calculou que seria o fundo do tanque. O tanque era raso; -não poderia dar a morte; mas a suspeita de que Helena não recuaria -deante do suicidio aterrou naturalmente o espirito de Estacio. -Parecendo-lhe que a causa não comportava o effeito, perguntou a si -mesmo se os successos daquelles dias não teriam velado a consciencia da -moça. Sentou-se de novo e falou-lhe com brandura. - -Ao escutal-o, sentiu Helena como uma ressurreição de outras horas, que -ella julgava escoadas para sempre; um sorriso lhe animou os labios sem -côr, ao passo que os olhos doridos e murchos pareciam reviver de um -resto de luz. Estacio falou-lhe de si, da tia, do padre e de Mendonça, -dos proximos casamentos, da felicidade futura. Depois insistiu com ella -para que entrasse. Uma brisa mais forte começava a agitar as árvores, -e a tempestade ameaçava cahir de repente. - ---Ainda não,--disse a moça; alguns minutos mais. - ---Mas póde adoecer... - ---Talvez, se todos quizerem a minha saude. Ha creaturas tão malfadadas, -que aquelles mesmos que as desejam fazer venturosas não alcançam mais -do que preparar-lhe o infortunio. Tal foi o meu destino. Seu pae e minha -mãe não tiveram outro pensamento; meu proprio pae foi levado do mesmo -impulso, quando me obrigou a ser complice de uma generosa mentira. Agora -mesmo que elle me foge, com o fim unico de me não tolher a felicidade, -arranca-me o ultimo recurso em que eu tinha posto a esperança. - ---Helena! interrompeu Estacio. - ---O ultimo, repetiu a moça. - -Esvaira-se-lhe o sorriso, e o olhar tornara a ser opaco. Estacio teve -medo daquella atonia e concentração; travou-lhe do braço; a moca -estremeceu toda e olhou para elle. - -A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas dentro de alguns -instantes era alguma cousa mais. Era a primeira revellação, tacita mas -consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum delles procurára esse -contacto de suas almas, mas nenhum fugiu. O que elles disseram um ao -outro, com os simples olhos, não se escreve no papel, não se póde -repetir ao ouvido; confissão mysteriosa e secreta, feita de um a outro -coração, que só ao ceu cabia ouvir, por que não eram vozes da terra, -nem para a terra as diziam elles. As mãos, de impulso proprio, -uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum receio, nenhuma -consideração deteve essa fusão de duas creaturas nascidas para formar -uma existencia unica. - -O vento tornara-se mais rijo; uma lufada os despertou,--em ma hora, por -que ha sonhos que deviam acabar na realidade do outro seculo. Estacio -ergueu-se; sacudiu valorosamente o torpor da felicidade, e reassumiu o -papel que seu pae lhe assignára ao pe de Helena. Ésta desviou os olhos -e cravou-os na agua, fascinada e absorta. A ideia do suicidio roçaria -devéras sua aza invisivel pela fronte da moça? Estacio foi a ella, -pegou-lhe nas mãos e convidou-a a sahir dalli. - ---Entremos,--disse elle pela terceira vez, olhe que vae chover. - -Helena deixou-se levantar; um calafrio percorreu-lhe o corpo todo, e as -mãos, que o moço ainda tinha entre as suas, estavam muito mais quentes -que o natural. - ---Ande repousar, continuou Estacio; póde adoecer, e não tem direito -para tanto; nossa affeição não o consentirá nunca. Vamos. - ---Amar-me-hão sempre? perguntou Helena. - ---Oh! sempre! - ---Impossivel! Ha uma voz no fundo de seu coração, que lhe dirá, de -quando em quando, ésta triste palavra: aventureira! - ---Helena! - ---Não posso ser outra cousa a seus olhos, proseguiu a moça -tristemente. Quem o convencerá de que a declaração de seu pae não -foi obtida por artificios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que, -cedendo aos rogos de meu pae, não fiz mais do que executor ura plano -preparado ja? São dúvidas que lhe hão de envenenar o sentimento e -tornar-me suspeita a seus olhos. Resista quem puder; é me impossivel -encarar semelhante futuro! - -Helena cahíra offegante no banco. Estacio falou-lhe com abundancia e -ternura; jurou-lhe que sua familia era incapaz da minima suspeita; -pediu-lhe por seu pae que não julgasse mal delles. Ella sorriu, mas foi -um sorrir de incredula. - -Grossos pingos de chuva começavam a rufar nas árvores. Estacio pegou -na mão de Helena para conduzil-a a casa. A moça fugiu-lhe, indo -collocar-se alguns passos adeante, onde a chuva lhe cabia mais em cheio -na cabeça nua e no corpo levemente coberto. Quando Estacio, desvairado -de terror, correu para ella, Helena affastou-se delle; mas nem seus pes -o poderiam vencer nunca, nem lh'o permittiam agora as fôrças quebradas -por tantas e tão profundas commoções. Elle alcançou-a; estendeu o -braço em volta da cintura da moça, dizendo: - ---Que capricho é esse? Vamos embora; eu quero que venha commigo para -dentro. - -Ao sentir o braço de Estacio, Helena estremeceu e fez um movimento para -arredal-o de si; mas a fraqueza trahiu-lhe o instincto de seu melindroso -pudor. Ella fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas -fraquearam, e o corpo esmorecido iria a terra, se lh'o não sustivessem -as mãos de Estacio. - ---Deixe-me morrer! murmurou ella. - ---Não! bradou o mancebo. - -Com um gesto rapido, tomou nos braços, estendida, o corpo exhausto de -Helena, e caminhou na direcção da casa. O vento flagellava-os; a -chuva, que subitamente cahia a jorros, alagava-os sem misericordia; elle -ia andando, o mais depressa que lhe permittia o pêso de Helena, cuja -cabeça pendia para a terra, e de cujos labios brotavam trechos soltos -de phrases sem sentido. - -D. Ursula viu entrar aquelle doloroso expectaculo; correu a receber -Helena, que Estacio depositou em um sopha, donde foi transferida ao -leito. A febre, ja começada antes della sahir, tomára conta emfim da -pobre moça. Um médico foi chamado á pressa; o padre Melchior correu -por baixo d'agua até a casa de Estacio. As primeiras horas foram de -anciedade e susto; o estado da doente era grave; assim o disse o -médico; assim o tinham já sentido os corações amigos. - -D. Ursula pagou naquella occasião os serviços que, em caso analogo, -lhe prestára Helena, mau grado e pêso dos annos, que lhe não -permittiam longas vigilias nem aturado trabalho. Velou a boa senhora á -cabeceira da enferma, durante essa primeira noite de incerteza e terror. -Mendonça, que alli fôra sem suspeitar nada, por que a doença que lhe -disseram ter padecido Helena, suppunha elle ser passageira, e em tudo -caso, estar quasi extincta, Mendonça recebeu essa triste notícia com a -morte no coração. - -Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que -lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas -horas houve de delirio, durante o qual dous nomes volviam frequentemente -aos labios da enfêrma,--o de Estacio e o de seu pae. Nas horas da -razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que -ella queria ver juncto de si. O capellão obedecia docilmente. Ao pe -della, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, por que -elle aceitava sem murmurio os decretos da vontade divina; depois, porque -não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a -morte. Em todo o caso consolava-a; e suas palavras cahiam no coração de -Helena como um orvalho do ceu. - -No quarto dia chegou a familia de Camargo, sabendo da doença de Helena -apressou-se a ir a Andarahy. Ao ver Eugenia, a moça sorriu tristemente, -lampejo de inveja, que para logo se apagou e morreu no coração. - -Estacio mal ousava entrar na alcova da doente e não podia viver fóra -della. Sua afflicção era patente. Elle promettia a si mesmo todos os -sacrificios em troca da vida de Helena, espreitava uma esperança no -rosto do médico, e interrogava o coração da tia e do padre. Na noite -do setimo dia da scena do jardim, D. Ursula, que ficára ao pe de -Helena, mandou chamar á pressa o sobrinho e o padre Melchior, que -estavam na sala contigua. Accorreram os dous. Helena tivera uma syncope, -que D. Ursula cuidára ser a morte. Voltando a si, leu a moça a sua -sentença no rosto de todos tres. - ---Ainda não, murmurou ella: ainda não é a morte. - -D. Ursula chegou-se-lhe mais perto, beijou-a, disse-lhe algumas palavras -de conforto. - ---Deixe estar, respondeu ella, deixe que eu não morro; estou só muito -doente. - -Estacio buscou animal-a, mas a voz morreu-lhe ás primeiras expressões, -e elle sahiu. Melchior acompanhou-o. - ---Uma cousa poderia talvez saval-a, disse afflicto o moço; era o -presença do pae. Vou mandal-o procurar por toda a parte. Havemos de -achal-o; é preciso que o achemos. - -Melchior approvou a ideia do mancebo: e não lhe disse que o remedio -viria talvez tarde, se viesse. Estacio ordenou as cousas para a seguinte -manhã. Voltaram á alcova da enferma. Ésta fechara os olhos como se -dormisse. Houve então entre aquellas quatro paredes meia hora de -silêncio, interrompido apenas, de quando em quando, pelos movimentos -que a doente fazia, como a querer mudar de posição. No fim desse -tempo, abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Chegou o médico, -viu-a e desenganou a familia. - -Em quanto Melchior dava as ordens precisas para que Helena tivesse os -socorros espirituaes, Estacio sahiu dalli, para ir, longe, desabafar -seu desespêro; desceu á chacara, vagou por ella delirante, a soluçar -como uma creança, ora abraçado a uma árvore, ora ajoelhado e pedindo -a Deus a vida de Helena. Seu coração não conhecia o fervor religioso; -mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levára, e elle rezou, -rezou sosinho, sem hypocrisia nem dúvida. Mendonça veiu achal-o nessa -lucta derradeira entre a realidade e a esperança. Não o consolou; seu -peito não tinha consolações que distribuir, porque tambem a dor lhe -devastára o coração. Nos braços um do outro, choraram o mesmo bem -que se lhes ia embora. - -Um escravo veiu chamar Estacio á pressa; elle subiu tropego as escadas, -atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cahir de -joelhos, quasi de bruços, juncto ao leito do Helena. Os alhos desta, ja -volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e -foi Estacio que o recebeu,--olhar de amor, do saudade e de promessa. A -mão pallida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo; -elle inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lagrymas e não se -atrevendo a encarar o final instante. Adeus!--suspirou a alma de Helena -rompendo o envolucro gentil. Era defuncta. - -A noite foi cruel para todos. D. Ursula, profundamente abatida pela dor -e pelas vigilias, não consentiu, ainda assim, que outras mãos -amortalhassem Helena; ella mesma lhe prestou esse derradeiro e triste -obsequio. A morte não diminuíra a belleza da donzella; pelo contrário, -o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto mysterioso e novo. -Estacio contemplou-a com os olhos exhaustos, o padre com os seus -humidos. Melchior supportára a dor até o momento da definitiva -separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater emfim, ao -pe daquelles pallidos restos, despôjo último de generosas illusões. - -No dia seguinte, prestes a sahir o entêrro, as senhoras deram á -donzella morta as despedidas derradeiras. D. Ursula foi a primeira que -lhe prestou esse dever; seguiu-se Eugenia e seguiram as outras. Estacio -viu-as subir, uma a uma, o estrado em que repousava a eça. Depois, -quando ia fechar-se o feretro, caminhou lentamente para elle; trepou ao -estrado, e pela ultima vez contemplou aquelle rosto,--séde ha pouco de -tanta vida,--e a coroa de saudades que lhe cingia a cabeça, em vez de -outra, que seu coração tinha direito de pousar nella. Emfim -inclinou-se tambem, e a fronte do cadaver recebeu o primeiro beijo de -amor. - -Fecharam o feretro; ao moço pareceu que o encerravam a elle proprio. -Sahindo o entêrro, deixou-se Estacio cahir n'uma cadeira, sem pensar -nada, sem sentir nada. Pouco a pouco despovoou-se a casa; os amigos -sahiram; um só de tantos ainda alli ficou, a lastimar consigo a noiva, -tão cedo promettida e tão cedo roubada. Esse mesmo sahiu, emfim, não -ficando mais do que a familia, cujo pae espiritual era Melchior. - -Sosinho com Estacio, o capellão contemplou-o longo tempo; depois, -alçou os olhos ao retrato do conselheiro, sorriu melancholicamente, -voltou-se para o moço, ergueu-o e abraçou com ternura. - ---Animo, meu filho! disse elle. - ---Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estacio. - -Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de Estacio, consternada -com a morte de Helena, e aturdida com a lugubre cerimonia, recolhia-se -tristemente ao quarto de dormir, e recebia á porta o terceiro beijo de -seu pae. - - - - -FIM - -*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HELENA *** - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the -United States without permission and without paying copyright -royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part -of this license, apply to copying and distributing Project -Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm -concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, -and may not be used if you charge for an eBook, except by following -the terms of the trademark license, including paying royalties for use -of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for -copies of this eBook, complying with the trademark license is very -easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation -of derivative works, reports, performances and research. Project -Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away--you may -do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected -by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. - -START: FULL LICENSE - -THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK - -To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase "Project -Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg-tm License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. - -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project -Gutenberg-tm electronic works - -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the -person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph -1.E.8. - -1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be -used on or associated in any way with an electronic work by people who -agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few -things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works -even without complying with the full terms of this agreement. See -paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project -Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this -agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm -electronic works. See paragraph 1.E below. - -1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the -Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection -of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual -works in the collection are in the public domain in the United -States. If an individual work is unprotected by copyright law in the -United States and you are located in the United States, we do not -claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, -displaying or creating derivative works based on the work as long as -all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope -that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting -free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm -works in compliance with the terms of this agreement for keeping the -Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily -comply with the terms of this agreement by keeping this work in the -same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when -you share it without charge with others. - -1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern -what you can do with this work. Copyright laws in most countries are -in a constant state of change. If you are outside the United States, -check the laws of your country in addition to the terms of this -agreement before downloading, copying, displaying, performing, -distributing or creating derivative works based on this work or any -other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no -representations concerning the copyright status of any work in any -country other than the United States. - -1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: - -1.E.1. The following sentence, with active links to, or other -immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear -prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work -on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the -phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, -performed, viewed, copied or distributed: - - This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and - most other parts of the world at no cost and with almost no - restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it - under the terms of the Project Gutenberg License included with this - eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the - United States, you will have to check the laws of the country where - you are located before using this eBook. - -1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is -derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not -contain a notice indicating that it is posted with permission of the -copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in -the United States without paying any fees or charges. If you are -redistributing or providing access to a work with the phrase "Project -Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply -either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or -obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm -trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. - -1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted -with the permission of the copyright holder, your use and distribution -must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any -additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms -will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works -posted with the permission of the copyright holder found at the -beginning of this work. - -1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm -License terms from this work, or any files containing a part of this -work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. - -1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this -electronic work, or any part of this electronic work, without -prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with -active links or immediate access to the full terms of the Project -Gutenberg-tm License. - -1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, -compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including -any word processing or hypertext form. However, if you provide access -to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format -other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official -version posted on the official Project Gutenberg-tm website -(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense -to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means -of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain -Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the -full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. - -1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, -performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works -unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. - -1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing -access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works -provided that: - -* You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from - the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method - you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed - to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has - agreed to donate royalties under this paragraph to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid - within 60 days following each date on which you prepare (or are - legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty - payments should be clearly marked as such and sent to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in - Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg - Literary Archive Foundation." - -* You provide a full refund of any money paid by a user who notifies - you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he - does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm - License. You must require such a user to return or destroy all - copies of the works possessed in a physical medium and discontinue - all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm - works. - -* You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of - any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the - electronic work is discovered and reported to you within 90 days of - receipt of the work. - -* You comply with all other terms of this agreement for free - distribution of Project Gutenberg-tm works. - -1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project -Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than -are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing -from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of -the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set -forth in Section 3 below. - -1.F. - -1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable -effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread -works not protected by U.S. copyright law in creating the Project -Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm -electronic works, and the medium on which they may be stored, may -contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate -or corrupt data, transcription errors, a copyright or other -intellectual property infringement, a defective or damaged disk or -other medium, a computer virus, or computer codes that damage or -cannot be read by your equipment. - -1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right -of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project -Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project -Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all -liability to you for damages, costs and expenses, including legal -fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT -LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE -PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE -TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE -LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR -INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH -DAMAGE. - -1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a -defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can -receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a -written explanation to the person you received the work from. If you -received the work on a physical medium, you must return the medium -with your written explanation. The person or entity that provided you -with the defective work may elect to provide a replacement copy in -lieu of a refund. If you received the work electronically, the person -or entity providing it to you may choose to give you a second -opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If -the second copy is also defective, you may demand a refund in writing -without further opportunities to fix the problem. - -1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth -in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO -OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT -LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. - -1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied -warranties or the exclusion or limitation of certain types of -damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement -violates the law of the state applicable to this agreement, the -agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or -limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or -unenforceability of any provision of this agreement shall not void the -remaining provisions. - -1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the -trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone -providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in -accordance with this agreement, and any volunteers associated with the -production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm -electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, -including legal fees, that arise directly or indirectly from any of -the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this -or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or -additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any -Defect you cause. - -Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm - -Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. - -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's -goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg-tm and future -generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see -Sections 3 and 4 and the Foundation information page at -www.gutenberg.org - -Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation - -The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit -501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the -state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal -Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification -number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by -U.S. federal laws and your state's laws. - -The Foundation's business office is located at 809 North 1500 West, -Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up -to date contact information can be found at the Foundation's website -and official page at www.gutenberg.org/contact - -Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg -Literary Archive Foundation - -Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without -widespread public support and donations to carry out its mission of -increasing the number of public domain and licensed works that can be -freely distributed in machine-readable form accessible by the widest -array of equipment including outdated equipment. Many small donations -($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt -status with the IRS. - -The Foundation is committed to complying with the laws regulating -charities and charitable donations in all 50 states of the United -States. Compliance requirements are not uniform and it takes a -considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up -with these requirements. We do not solicit donations in locations -where we have not received written confirmation of compliance. To SEND -DONATIONS or determine the status of compliance for any particular -state visit www.gutenberg.org/donate - -While we cannot and do not solicit contributions from states where we -have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition -against accepting unsolicited donations from donors in such states who -approach us with offers to donate. - -International donations are gratefully accepted, but we cannot make -any statements concerning tax treatment of donations received from -outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. - -Please check the Project Gutenberg web pages for current donation -methods and addresses. Donations are accepted in a number of other -ways including checks, online payments and credit card donations. To -donate, please visit: www.gutenberg.org/donate - -Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works - -Professor Michael S. Hart was the originator of the Project -Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of -volunteer support. - -Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. - -Most people start at our website which has the main PG search -facility: www.gutenberg.org - -This website includes information about Project Gutenberg-tm, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/old/67162-0.zip b/old/67162-0.zip Binary files differdeleted file mode 100644 index e52a7dc..0000000 --- a/old/67162-0.zip +++ /dev/null diff --git a/old/67162-h.zip b/old/67162-h.zip Binary files differdeleted file mode 100644 index c1c2e25..0000000 --- a/old/67162-h.zip +++ /dev/null diff --git a/old/67162-h/67162-h.htm b/old/67162-h/67162-h.htm deleted file mode 100644 index ade1491..0000000 --- a/old/67162-h/67162-h.htm +++ /dev/null @@ -1,10566 +0,0 @@ -<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" - "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> -<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml" xml:lang="pt" lang="pt"> - <head> - <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=utf-8" /> - <meta http-equiv="Content-Style-Type" content="text/css" /> - <title> - The Project Gutenberg eBook of Helena, by Machado de Assis. - </title> - <style type="text/css"> - -body { - margin-left: 10%; - margin-right: 10%; -} - - h1,h2,h3,h4,h5,h6 { - text-align: center; /* all headings centered */ - clear: both; -} - -p { - margin-top: .51em; - text-align: justify; - margin-bottom: .49em; - text-indent:4%; -} - -.p2 {margin-top: 2em;} -.p4 {margin-top: 4em;} -.p6 {margin-top: 6em;} - -.nind {text-indent:0%;} - -hr { - width: 33%; - margin-top: 2em; - margin-bottom: 2em; - margin-left: auto; - margin-right: auto; - clear: both; -} - -hr.tb {width: 45%;} -hr.chap {width: 65%} -hr.full {width: 95%;} - -hr.r5 {width: 5%; margin-top: 1em; margin-bottom: 1em;} -hr.r65 {width: 65%; margin-top: 3em; margin-bottom: 3em;} - -ul.index { list-style-type: none; } -li.ifrst { margin-top: 1em; } -li.indx { margin-top: .5em; } -li.isub1 {text-indent: 1em;} -li.isub2 {text-indent: 2em;} -li.isub3 {text-indent: 3em;} - -table { - margin-left: auto; - margin-right: auto; -} - - .tdl {text-align: left;} - .tdr {text-align: right;} - .tdc {text-align: center;} - - -.linenum { - position: absolute; - top: auto; - right: 10%; -} /* poetry number */ - -.blockquot { - margin-left: 5%; - margin-right: 10%; -} - - -.bb {border-bottom: solid 2px;} - -.bl {border-left: solid 2px;} - -.bt {border-top: solid 2px;} - -.br {border-right: solid 2px;} - -.bbox {border: solid 2px;} - -.center {text-align: center;} - -.right {text-align: right;} - -.smcap {font-variant: small-caps;} - -.u {text-decoration: underline;} - -.tb { - text-align: center; - padding-top: .76em; - padding-bottom: .24em; - letter-spacing: 1.5em; - margin-right: -1.5em; -} - -.gesperrt -{ - letter-spacing: 0.2em; - margin-right: -0.2em; -} - -em.gesperrt -{ - font-style: normal; -} - -.caption {font-weight: bold;} - -/* Images */ -.figcenter { - margin: auto; - text-align: center; -} - -/* Notes */ -.footnotes {border: dashed 1px;} - -.footnote {margin-left: 10%; margin-right: 10%; font-size: 0.9em;} - -.footnote .label {position: absolute; right: 84%; text-align: right;} - -.fnanchor { - vertical-align: super; - font-size: .8em; - text-decoration: - none; -} - -/* Poetry */ -.poem { - margin-left:10%; - margin-right:10%; - text-align: left; -} - -.poem br {display: none;} -.poetry-container { text-align: center; } -.poem { display: inline-block; text-align: left; } -.poem .stanza {margin: 1em 0em 1em 0em;} - -/* Transcriber's notes */ -.transnote {background-color: #E6E6FA; - color: black; - font-size:smaller; - padding:0.5em; - margin-bottom:5em; - font-family:sans-serif, serif; } - </style> - </head> -<body> -<div lang='en' xml:lang='en'> -<p style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of <span lang='pt' xml:lang='pt'>Helena</span>, by Machado de Assis</p> -<div style='display:block; margin:1em 0'> -This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and -most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions -whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms -of the Project Gutenberg License included with this eBook or online -at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you -are not located in the United States, you will have to check the laws of the -country where you are located before using this eBook. -</div> -</div> - -<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:1em; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Title: <span lang='pt' xml:lang='pt'>Helena</span></p> -<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Author: Machado de Assis</p> -<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Release Date: January 14, 2022 [eBook #67162]</p> -<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Language: Portuguese</p> - <p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em; text-align:left'>Produced by: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by the Biblioteca Brasiliana USP Digital.)</p> -<div style='margin-top:2em; margin-bottom:4em'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>HELENA</span> ***</div> - -<div class="figcenter" style="width: 500px;"> -<img src="images/helena_cover.jpg" width="500" alt="" /> -</div> - - -<h3>BIBLIOTHECA UNIVERSAL</h3> - -<h5>Romances, Viagens, Política, Poesias, etc.</h5> - -<h5>Collecção in 8° a 2$000</h5> - -<p><br /></p> - -<h1>HELENA</h1> - -<p><br /></p> - -<h5>POR</h5> - -<p><br /></p> - -<h2>MACHADO DE ASSIS</h2> - -<p><br /></p> - -<h4>RIO DE JANEIRO</h4> - -<h5>B.L. GARNIER</h5> - -<h4>Livreiro-editor do Instituto Historico Brasileiro</h4> - -<h5>65—Rua do Ouvidor—65</h5> - -<h4>PORTO: Ernesto Chardon | BRAGA: Eugenio Chardon</h4> - -<h4>LISBOA: Carvalho & C.</h4> - -<h5><i>1876</i></h5> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4>INDICE</h4> -<p class="nind"><a href="#I">CAPITULO I</a><br /> -<a href="#II">CAPITULO II</a><br /> -<a href="#III">CAPITULO III</a><br /> -<a href="#IV">CAPITULO IV</a><br /> -<a href="#V">CAPITULO V</a><br /> -<a href="#VI">CAPITULO VI</a><br /> -<a href="#VII">CAPITULO VII</a><br /> -<a href="#VIII">CAPITULO VIII</a><br /> -<a href="#IX">CAPITULO IX</a><br /> -<a href="#X">CAPITULO X</a><br /> -<a href="#XI">CAPITULO XI</a><br /> -<a href="#XII">CAPITULO XII</a><br /> -<a href="#XIII">CAPITULO XIII</a><br /> -<a href="#XIV">CAPITULO XIV</a><br /> -<a href="#XV">CAPITULO XV</a><br /> -<a href="#XVI">CAPITULO XVI</a><br /> -<a href="#XVII">CAPITULO XVII</a><br /> -<a href="#XVIII">CAPITULO XVIII</a><br /> -<a href="#XIX">CAPITULO XIX</a><br /> -<a href="#XX">CAPITULO XX</a><br /> -<a href="#XXI">CAPITULO XXI</a><br /> -<a href="#XXII">CAPITULO XXII</a><br /> -<a href="#XXIII">CAPITULO XXIII</a><br /> -<a href="#XXIV">CAPITULO XXIV</a><br /> -<a href="#XXV">CAPITULO XXV</a><br /> -<a href="#XXVI">CAPITULO XXVI</a><br /> -<a href="#XXVII">CAPITULO XXVII</a><br /> -<a href="#XXVIII">CAPITULO XXVIII</a></p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4>HELENA</h4> - -<p><br /></p> - -<h4><a id="I">CAPITULO I</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -O conselheiro Vale morreu ás 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. -Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de <i>cochilar</i> a -sesta,—segundo costumava dizer,—e quando se preparava a ir -jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. -O Dr. Camargo, chamado á pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos -da sciencia; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da -religião: a morte fôra instantanea. -</p> - -<p> -No dia seguinte fez-se o entêrro, que foi um dos mais concorridos que -ainda viram os moradores do Andarahy. Cêrca de duzentas pessoas -acompanharam o fim do até a morada ultima, achando-se representadas -entre ellas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não -figurasse em nenhum grande cargo do Estado, occupava elevado logar na -sociedade, pelas relações adquiridas, cabedaes, educação e -tradicções de familia. Seu pae fora magistrado no tempo colonial, e -figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado -materno descendia de uma das mais distinctas familias paulistas. Elle -proprio exercêra dous empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do -que lhe adveiu a carta de conselho e a estima dos homens publicos. Sem -embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos -dous partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que alli se -acharam na occasião de o dar á sepultura. Tinha, entretanto, taes ou -quaes ideias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e -liberaes, justamente no ponto em que os dous dominios podem -confundir-se. Se nenhuma saudade partidaria lhe deitou a ultima pa de -terra, matrona houve, e não só ama, que viu ir a enterrar com elle a -melhor página de sua mocidade. -</p> - -<p> -A familia do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr. -Estacio, e uma irmã, D. Ursula. Contava ésta cincoenta e poucos annos; -era solteira; vivêra sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o -fallecimento da cunhada. Estacio tinha vinte e sete annos, e era formado -em mathematicas. O conselheiro tentára encarreiral-o na política, -depois na diplomacia; mas nenhum desses projectos teve começo de -execução. -</p> - -<p> -O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do -entêrro, foi ter com Estacio, a quem encontrou no gabinete particular do -finado, em companhia de D. Ursula. Tambem a dor tem suas -voluptuosidades; tia e sobrinho queriam nutril-a com a presença dos -objectos pessoaes do morto, no logar de suas predilecções quotidianas. -Duas tristes luzes alumiavam aquella pequena sala. Alguns momentos -correram de profundo silêncio entre os tres. O primeiro que o rompeu -foi o médico. -</p> - -<p> -—Seu pai deixou testamento? -</p> - -<p> -—Não sei, respondeu Estacio. -</p> - -<p> -Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou tres vezes, gesto que lhe era -habitual quando fazia alguma reflexão. -</p> - -<p> -—É preciso procural-o,—continuou elle.—Quer que o ajude? -</p> - -<p> -Estacio apertou-lhe affectuosamente a mão. -</p> - -<p> -—A morte de meu pai,—disse o moço, não alterou nada as nossas -relações. Subsiste a confiança anterior do mesmo modo que a amizade, -ja provada e antiga. -</p> - -<p> -A secretária estava fechada; Estacio deu a chave ao médico; este abriu -o movel sem nenhuma commoção exterior. Interiormente estava abalado. -O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão -em que, aliás, nenhum dos outros reparou. Logo que começou a revolver -os papeis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o -testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que succedeu a -serenidade habitual. -</p> - -<p> -—É isso? perguntou Estacio. -</p> - -<p> -Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar -o conteudo. O silêncio foi muito demorado para não fazer impressão no -moço, que alias nada disse, porque o attribuíra á commoção natural -do amigo, em tão dolorosas circumstâncias. -</p> - -<p> -—Sabem o que estará aqui dentro? disse enfim Camargo. Talvez uma -lacuna ou um grande excesso. -</p> - -<p> -Nem Estacio, nem D. Ursula, pediram ao médico a explicação de -semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico -pôde le-la nos olhos, de ambos. Não lhes disse nada; entregou o -testamento a Estacio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido -em suas proprias reflexões, ora arranjando machinalmente um livro da -estante, ora mettendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista -quêda, alheio de todo ao logar e ás pessoas. -</p> - -<p> -Estacio rompeu o silêncio: -</p> - -<p> -—Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico. -</p> - -<p> -Camargo parou deante do moço. -</p> - -<p> -—Não posso dizer nada, respondeu elle. Seria inconveniente antes de -saber as últimas disposições de seu pai. -</p> - -<p> -D. Ursula foi menos discreta que o sobrinho; apos longa pausa, pediu ao -médico a razão de suas palavras. -</p> - -<p> -—Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de -perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excellentes, Era seu -amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem -a confiança que ambos depositavamos um no outro. Não quizera pois, que -o último acto de sua vida fôsse um êrro. -</p> - -<p> -—Um êrro! exclamou D. Ursula. -</p> - -<p> -—Talvez um êrro! suspirou Camargo. -</p> - -<p> -—Mas, doutor, insistiu D. Ursula, porque motivo nos não tranquillisa -o espirito? Estou certa de que não se trata de um acto que desdoure a meu -irmão; allude naturalmente a algum êrro no modo de entender... alguma -cousa, que eu ignoro o que seja. Porque não fala claramente? -</p> - -<p> -O médico viu que D. Ursula tinha razão; e que, a não dizer mais nada, -melhor fôra ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de -extranheza que deixára no ânimo dos dous; mas da hesitação com que -falava concluiu Estacio que elle não podia ir além do que havia dito. -</p> - -<p> -—Não precisamos de explicação nenhuma, interveiu o filho do -conselheiro; amanhã saberemos tudo. -</p> - -<p> -Nessa occasião entrou o padre Melchior. O médico sahiu ás 10 horas, -ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estacio, recolhendo-se a -seu quarto, murmurava consigo: -</p> - -<p> -—Que êrro será esse? E que necessidade tinha elle de vir lançar-me -este enigma no coração? -</p> - -<p> -A resposta, se podesse ouvil-a, era dada nessa mesma occasião pelo -proprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava á porta: -</p> - -<p> -—Fiz bem em preparar-lhes o espirito, pensou elle; o golpe, si o -houver, ha de ser mais facil de soffrer. -</p> - -<p> -O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguem pôde -ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exhumou o -passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu nada foi -communicado a ouvidos extranhos. -</p> - -<p> -As relações do Dr. Camargo com a familia do conselheiro eram estreitas -e antigas, como dissera Estacio. O médico e o conselheiro tinham a -mesma edade: cincoenta e quatro annos. Conheceram-se logo depois de -tomado o gráo, e nunca mais afrouxara o laço que os prendêra desde -esse tempo. -</p> - -<p> -Camargo era pouco sympathico á primeira vista, Tinha as feições duras -e frias, os olhos prescrustadores e sagazes, de uma sagacidade -incommoda, para quem encarava com elles, o que o não fazia attrahente. -Fallava pouco e sêcco. Seus sentimentos não vinham á flor do rosto. -Tinha todos os visiveis signaes de um grande egoista; comtudo, posto que -a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lagryma ou uma palavra de -tristeza, é certo que a sentiu devéras. Além disso, amava sobre todas -as cousas e pessoas uma creatura linda,—a linda Eugenia, como lhe -chamava,—sua filha unica e a flor de seus olhos; mas amava-a de um -amor calado e recondito. Era difficil saber se Camargo professava algumas -opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se -as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que -fôra cheio o decennio anterior, conservara-se indifferente e neutral. -Quanto aos sentimentos religiosos, a aferil-os pelas acções, ninguem -os possuia mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom -catholico. Mas só pontual; interiormente era incredulo. -</p> - -<p> -Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher,—D. -Thomasia,—meio adormecida n'uma cadeira de balanço e Eugenia ao -piano, executando um trecho de Bellini. Eugenia tocava com habilidade; e -Camargo gostava de a ouvir. Naquella occasião, porém, disse ele, -parecia pouco conveniente que a moça se entregasse a um genero de -recreio qualquer. Eugenia obedeceu, algum tanto de ma vontade. O pai, -que se achava ao pe do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ella se -levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ella nunca -lhe víra. -</p> - -<p> -—Não fiquei triste pelo que me disse, papae,—observou a moça. -Tocava por distrahir-me. D. Ursula como está? Ficou tão afflicta! Mamãe -queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a -tristeza daquella casa. -</p> - -<p> -—Mas a tristeza é necessaria á vida,—acudiu D. Thomasia, que -abrira os olhos logo á entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as -proprias, e são um correctivo da alegria, cujo excesso póde engendrar -o orgulho. -</p> - -<p> -Camargo temperou ésta philosophia, que lhe pareceu demasiado austera, -com algumas ideias mais accommodadas e risonhas. -</p> - -<p> -—Deixemos a cada edade a sua atmosphera propria, concluiu elle, e não -antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não -passaram do puro sentimento. -</p> - -<p> -Eugenia não comprehendeu o que os dous haviam dito. Seus olhos -voltaram-se para o piano, com uma expressão de saudade irritada. Com a -mão esquerda, assim mesmo de pe, extrahiu vagamente tres ou quatro -notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fital-a com desusada -ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação -interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços delle; deixou-se ir. -Mas a expansão era tão nova, que ella ficou assustada e perguntou com -voz trémula. -</p> - -<p> -—Aconteceu la alguma cousa? -</p> - -<p> -—Absolutamente nada, respondeu Camargo dando-lhe um beijo na testa. -</p> - -<p> -Era o primeiro beijo,—ao menos o primeiro de que a moça tinha -memoria. A caricia encheu-a de orgulho filial; mas a propria novidade della -impressionou-a mais. Eugenia não creu no que lhe dissera seu pai. Viu-o -ir sentar-se ao pe de D. Thomasia e conversarem em voz baixa. -Approximando-se, não interrompeu a conversa, que elles continuaram no -mesmo tom, e versava sobre assumptos puramente domesticos. Percebeu-o; -contudo não ficou tranquilla. Na manhã seguinte escreveu um bilhete, -que foi logo caminho do Andarahy. A resposta, que lhe chegou ás mãos -no momento em que provava um vestido novo, teve a cortezia de esperar -que ella terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os -receios da vespera. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="II">CAPITULO II</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -No dia seguinte foi aberto o testamento com todas as formalidades -legaes. O conselheiro nomeava testamenteiros Estacio, o Dr. Camargo e o -padre Melchior. As disposições geraes nada tinham que fôsse notavel: -eram legados pios ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a -afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes. -</p> - -<p> -Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O -conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, -havida em D. Angela da Soledade. Ésta menina estava sendo educada em um -collegio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de -seus bens, e devia ir viver com a familia, a quem o conselheiro -instantemente pedia que a tratasse com desvello e carinho, como se de -seu matrimonio fôsse. -</p> - -<p> -A leitura desta disposição causou natural espanto á irmã e ao filho -do finado. D. Ursula nunca soubéra de tal filha. Quanto a Estacio -ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pae; -mas tão vagamente que não podia esperar aquella disposição -testamentária. -</p> - -<p> -Ao espanto succedeu em ambos outra e differente impressão. D. Ursula -reprovou de todo o acto do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos -impulsos naturaes o licenças juridicas, o reconhecimento de Helena era -um acto de usurpação e um péssimo exemplo. A nova filha era, em seu -entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando -muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e -deixal-a á porta. Recebel-a, porém, no seio da familia e de seus -castos affectos, legitimal-a aos olhos da sociedade, como ella estava -aos da lei, não o entendia D. Ursula, nem lhe parecia que alguem -podesse entendel-o. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior -quando lhe occorreu a origem possivel de Helena, Nada constava da mãe, -além do nome; mas essa mulher quem era? em que atalho sombrio da vida a -encontrára o conselheiro? Helena seria filha de um encontro fortuito -entre duas voluptuosidades, ou nasceria de algum affecto, irregular -embora, mas verdadeiro o unico? A éstas interrogações não podia -responder D. Ursula; bastava porém, que lhe surgissem no espirito, para -lançar nelle o tedio e a irritação. -</p> - -<p> -D. Ursula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do -conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma -página de catecismo; mas o acto final bem podia ser a reparação de -leviandades amargas. Essa atenuante não a viu D. Ursula. Para ella, o -principal era a entrada de uma pessoa extranha na familia. -</p> - -<p> -A impressão de Estacio foi muito outra. Elle percebêra a ma vontade -com que a tia recebêra a noticia do reconhecimento de Helena, e não -podia negar a si mesmo que semelhante facto creava para a familia uma -nova situação. Contudo, qualquer que ella fôsse, uma vez que seu pai -assim o ordenava, levado por sentimentos de equidade ou impulsos da -natureza, elle a acceitava tal qual, sem pezar nem reserva. A questão -pecuniaria pezou menos que tudo no espirito do moço; não pezou nada. A -occasião era dolorosa de mais para dar entrada a considerações de -ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estacio não lhe -permittia inspirar-se dellas. Quanto á camada social a que pertencia a -mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo que elles -saberiam levantar a filha até á classe a que ella ia subir. -</p> - -<p> -No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do -conselheiro, occorreu a Estacio a conversa que tivera com o Dr. Camargo. -Provavelmente era aquelle o ponto a que alludíra o médico. Interrogado -acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o -filho do conselheiro: -</p> - -<p> -—Aconteceu o que eu previa, um êrro, disse elle. Não houve lacuna, -mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura, -muito bonito; mas pouco prático. Um legado era sufficiente; nada mais. -A estricta justiça. -</p> - -<p> -—A estricta justiça é a vontade de meu pae, redarguiu Estacio. -</p> - -<p> -—Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sel-o á -custa de direitos alheios. -</p> - -<p> -—Os meus? Não os allego. -</p> - -<p> -—Se os allegasse seria pouco digno de memoria delle. O que está -feito, está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa -familia e affectos de familia. Persuado-me que ella sabera -corresponder-lhes com verdadeira dedicação... -</p> - -<p> -—Conhece-a? inqueriu Estacio, cravando no médico uns olhos -impacientes de curiosidade. -</p> - -<p> -—Via-a tres ou quatro vezes disse este no fim de alguns segundos; mas -era então muito creança. Seu pae fallava-me della como de pessoa -extremamente affectuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem -olhos de pai. -</p> - -<p> -Estacio desejára ainda saber alguma cousa ácerca da mãe de Helena, -mas repugnou-lhe entrar em novas indagações. Como os filhos de Noé, -lançou uma capa sobre a nudez de seu pae, e tentou encarreirar a -conversa para outro assumpto. Camargo, entretanto, insistiu: -</p> - -<p> -—O conselheiro falou-me algumas vezes no projecto de reconhecer -Helena; procurei dissuadil-o, mas sabe como elle era obstinado ás vezes -em suas resoluções, accrescendo neste caso o natural impulso de amor -paterno. O nosso ponto de viste era differente. Não me tenho por homem -mau; contudo, entendo que a sensibilidade não póde usurpar o que -pertence á razão. -</p> - -<p> -Camargo proferiu éstas palavras no tom sêcco e sentencioso, que tão -natural e sem exforço lhe sabia. A velha amizade delle e do finado era -sabida de todos; a intenção com que fallava podia ser hostil á -familia? Estacio reflectiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir -ao médico, curta reflexão, que por nenhum modo lhe abalou a opinião -ja assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espirito -que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor. -</p> - -<p> -—Não quero saber—disse elle,—se ha excesso na disposição -testamentária de meu pae. Se o ha, é legitimo, justificavel pelo -menos; elle sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa -irmã, como se fôra creada commigo. Minha mãe faria com certeza a -mesma cousa. -</p> - -<p> -Camargo não insistiu. Sôbre ser exforço baldado dissuadir o moço -daquelles sentimentos, que aproveitava ja agora discutir e condemnar -theoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executal-a -lealmente, sem hesitação nem pezar. Isso mesmo declarou elle a -Estacio, que o abraçou cordialmente. O médico recebeu o abraço sem -constrangimento, mas sem fervor. -</p> - -<p> -Estacio ficára satisfeito comsigo mesmo. Seu caracter vinha mais -directamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a -unica paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe -acharemos, nenhuma outra saliente feição. A fidelidade aos amigos era -antes resultado do costume que da consistencia dos affectos. A vida -correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou occasião de -experimentar a propria têmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha -mediana. -</p> - -<p> -A mãe de Estacio era differente; possuíra em alto grau a paixão, a -ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimentos, com seus -toques de orgulho,—daquelle orgulho que é apenas irradiação da -consciencia. Vinculada si um homem que, sem embargo do affecto que lhe -tinha, despendia o coração em amores adventicios e passageiros, teve a -fôrça de vontade necessaria para dominar a paixão e encerrar em si -mesma todo o resentimento. As mulheres que são apenas mulheres choram, -arrufam-se ou resignam-se; as que tem alguma cousa mais do que a -debilidade feminina lutam ou recolhem-se á dignidade do silêncio. -Aquella padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe -permittia outra cousa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao -mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial da sua organisação, -concentrou-a toda naquelle unico filho, em quem parecia adivinhar o -herdeiro de suas robustas qualidades. -</p> - -<p> -Estacio recebêra affectivamente de sua mãe uma boa parte destas. Não -sendo grande talento, deveu á vontade e á paixão do saber a figura -notavel que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se á -sciencia com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indifferente ao -ruido exterior. Educado á maneira antiga o com severidade o recato, -passou da adolescencia á juventude sem conhecer as corrupções de -espirito nem as influências delecterias da ociosidade; viveu a vida de -familia, na edade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e -perdiam em cousas infimas a virgindade das primeiras sensações. Dahi -veiu que aos dezoito annos conservava elle tal ou qual timidez infantil, -que só tarde perdeu de todo. Mas se perdeu a timidez, ficara-lhe certa -gravidade não incompativel com os verdes annos e muito propria de -organisações como a delle. Na política seria talvez meio caminho -andado para subir aos cargos publicos; na sociedade, fazia com que lhe -catassem respeito, o que o levantava a seus proprios olhos. Convem dizer -que não era essa gravidade aquella cousa enfadonha, pesada e chata, que -os moralistas asseveram ser quasi sempre um symptoma de espirito chocho; -era uma gravidade jovial e familiar,—egualmente distante da -frivolidade e do tedio, uma compostura do corpo e do espirito, temperada -pelo viço dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e -recto adornado de folhagens e flores. Junctava ás outras qualidades moraes -uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sobria e forte; aspero -comsigo, sabia ser terno e mavioso com os outros. -</p> - -<p> -Tal era o filho do conselheiro; e se alguma cousa ha ainda que -accrescentar é que elle não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e -deveres que lhe davam a edade e a classe em que nascêra. Elegante e -polido, obedecia á lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes -della. Ninguem entrava mais correctamente n'uma sala; ninguem saia mais -opportunamente. Ignorava a sciencia das nugas, mas conhecia o segrêdo -de tecer um comprimento. -</p> - -<p> -Na situação creada pela clausula testamentária do conselheiro, -Estacio aceitou a causa da irmã, a quem ja via, sem a conhecer, com -olhos differentes dos de Camargo e D. Ursula. Esta communicou ao -sobrinho todas as impressões que lhe deixára o acto do irmão. Estacio -procurou dissipar-lh'as; repetiu as reflexões oppostas ao médico; -mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade -de um morto. -</p> - -<p> -—Bem sei que não ha ja agora outro remedio mais que aceitar essa -menina e obedecer ás determinações solemnes de meu irmão, disse D. -Ursula quando Estacio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ella os -meus affectos não sei que possa nem deva fazer. -</p> - -<p> -—Comtudo, ella é do nosso mesmo sangue. -</p> - -<p> -D. Ursula ergueu os hombros como repellindo semelhante consanguinidade. -Estacio insistiu em trazel-a a mais benevolos sentimentos. Invocou, -além da vontade, a rectidão do espirito de seu pae, que não havia -dispor uma cousa contrária á boa fama da familia. -</p> - -<p> -—Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que -meu pae a legitimou, convem que não se ache aqui como engeitada. Que -aproveitariam os com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da -nossa vida interior. Vivamos na mesma communhão de affectos; e vejamos -em Helena uma parte da alma de meu pae, que nos fica para não desfalcar -de todo o patrimonio commum. -</p> - -<p> -Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estacio percebeu que não mudára -os sentimentos da tia, nem era possivel consegui-lo por meio de -palavras. Confiou do tempo essa tarefa. D. Ursula ficou triste e só. -Apparecendo Camargo dahi a pouco, ella confiou-lhe todo o seu modo de -sentir, que o médico interiormente approvava. -</p> - -<p> -—Conheceu a mãe della? perguntou a irmã do conselheiro. -</p> - -<p> -—Conheci. -</p> - -<p> -—Que especie de mulher era? -</p> - -<p> -—Fascinante. -</p> - -<p> -—Não é isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem inferior, ou... -</p> - -<p> -—Não sei; no tempo em que a vi não tinha classe e podia pertencer a -todas; demais, não a tratei de perto. -</p> - -<p> -—Doutor, disse D. Ursula, depois de hesitar algum tempo;—que me -aconselha que faça? -</p> - -<p> -—Que a ame, se ella o merecer, e se puder. -</p> - -<p> -—Oh! confesso-lhe que me ha de custar muito! E merece-lo-ha? Alguma -cousa me diz ao coração que essa menina vem complicar a nossa vida; -além disso, não posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro... -</p> - -<p> -—Seu sobrinho aceita as cousas philosophicamente e até com -satisfação. Não comprehendo a satisfação, mas concordo que nada -mais ha do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. Não se -deliberam sentimentos; ama-se ou aborrece-se, conforme o coração quer. -O que lhe digo é que a trate com benevolencia; e caso sinta em si algum -affecto, não o suffoque; deixe-se ir com elle. Ja agora não se póde -voltar atraz. Infelizmente! -</p> - -<p> -Helena estava a concluir seus estudos; semanas depois determinou a -familia que ella viesse para casa. D. Ursula recusou a princípio ir -buscal-a; convenceu-a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a -incumbencia depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados -os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moça -transladada a Andarahy. D. Ursula metteu-se na carruagem, logo depois de -jantar. Estacio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. -Voltou tarde. Ao penetrar na chacara deu com os olhos nas janellas do -quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguem dentro. Pela -primeira vez sentiu Estacio a extranheza da situação creada pela -presença daquella meia-irmã e perguntou a si proprio se não era a tia -quem tinha razão. Expelliu pouco depois esse sentimento; a memoria do -pae restituiu-lhe a benevolencia anterior. Ao mesmo tempo, a ideia de -ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e -desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa -creatura intermediaria, que elle ja amava sem conhecer, e que que seria -a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estacio -contemplou longo tempo as janellas; nem o vulto de Helena appareceu -alli, nem elle viu passar a sombra da habitante nova. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="III">CAPITULO III</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Na seguinte manhã, Estacio levantou-se tarde e foi direito á sala de -jantar, onde encontrou D. Ursula, pachorrentamente sentada na poltrona -de seu uso, ao pe de uma janella, a ler um tomo do <i>Saint-Clair das -Ilhas</i>, enternecida pela centesima vez com as tristezas dos desterrados -da ilha da Barra; boa gente e moralissimo livro, ainda que enfadonho e -massudo, como outros de seu tempo. Com elle matavam as matronas daquella -quadra muitas horas compridas do inverno, com elle se encheu muito -serão pacífico, com elle se desafogou o coração do muito lagryma -sobresalente. -</p> - -<p> -—Veiu? perguntou Estacio. -</p> - -<p> -—Veiu, respondeu a boa senhora fechando o livro. O almôço -esfria,—continuou ella dirigindo-se á mucama que alli estava de pe, -juncto da mesa; já foram chamar... nhanhã Helena? -</p> - -<p> -—Nhanhã Helena disse que ja vem. -</p> - -<p> -—Ha dez minutos, observou D. Ursula ao sobrinho. -</p> - -<p> -—Naturalmente não tarda, respondeu este. Que tal? -</p> - -<p> -D. Ursula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quasi não -vira o rosto de Helena; e ésta, logo que alli chegou, recolheu-se ao -aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D. -Ursula pôde afiançar foi somente que a sobrinha era moça feita. -</p> - -<p> -Ouviu-se descer a escada um passo rapido, e não tardou que Helena -apparecesse á porta da sala de jantar. Estacio estava então encostado -á janella que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda, -donde se viam os fundos da chacara. Olhou para a tia como esperando que -ella os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao vel-o. -</p> - -<p> -—Menina, disse D. Ursula com o tom mais doce que tinha na voz, este é -meu sobrinho Estacio, seu irmão. -</p> - -<p> -—Ah! disse Helena sorrindo e caminhando para elle. -</p> - -<p> -Estacio dera egualmente alguns passos. -</p> - -<p> -—Espero merecer sua affeição, disse ella depois de curta pausa. Peço -desculpa da demora; estavam á minha espera, creio eu. -</p> - -<p> -—Iamos para a meza agora mesmo, interrompeu D. Ursula como -protestando contra a ideia de que ella os fizesse esperar. -</p> - -<p> -Estacio procurou corrigir a rudez da tia. -</p> - -<p> -—Tinhamos ouvido o seu passe na escada, disse elle. Sentemo-nos, que -o almoço esfria. -</p> - -<p> -D. Ursula ja estava sentada á cabeceira da mesa; Helena ficou á -direita, na cadeira que Estacio lhe indicou; este tomou logar do lado -opposto. O almoço correu silencioso e desconsolado; raros monosyllabos, -alguns gestos de assentimento ou recusa, tal foi o dispendio da conversa -entre os tres parentes. A situação não era commoda nem vulgar. -Helena, posto forcejasse por estar senhora de si, não conseguia vencer -de todo o natural acanhamento da occasião. Mas, se o não vencia de -todo, podiam ver-se atravez delle certos signaes de educação fina. -Estacio examinou aos poucos a figura da irmã. -</p> - -<p> -Era uma moça de dezeseis a dezesete annos, delgada sem magreza, -estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e attitudes modestas. -A face, de um moreno-pecego, tinha a mesma imperceptivel penugem da -fructa de que tirava a côr; naquella occasião tingiam-na uns longes -côr de rosa, a principio mais rubros, natural effeito do abalo. As -linhas puras e severas do rosto parecia que as traçára a arte -religiosa. Se os cabellos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos -em duas grossas tranças, lhe cahissem espalhadamente sôbre os hombros, -e se os proprios olhos alçassem as pupillas ao ceu, dissereis um -daquelles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do -Senhor. Não exigiria a arte maior correcção e harmonia de feições, -e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a -gravidade do aspeto. Uma só cousa pareceu menos aprazivel ao irmão: -eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e -suspeitosa reserva foi o unico senão que lhe achou, e não era pequeno. -</p> - -<p> -Acabado o almôço, trocadas algumas palavras, poucas e sôltas, Helena -retirou-se ao seu quarto, onde durante tres dias passou quasi todas as -horas, a ler meia duzia de livros que trouxe comsigo, a escrever cartas, -a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janellas. -Alguma vez desceu a jantar com os olhos vermelhos e a fronte pezarosa, -apenas com um sorriso pallido e fugitivo nos labios. Uma creança, -subitamente transferida ao collegio, não desfolha mais tristemente as -primeiras saudades da casa de seus paes. Mas a aza do tempo leva tudo; e -ao cabo de tres dias, ja a physionomia de Helena trazia menos sombrio -aspecto. O olhar perdeu a expressão que primeiro lhe achou o irmão, -para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra -sahia-lhe mais facil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar -do acanhamento. -</p> - -<p> -No quarto dia, acabado o almôço, Estacio encetou uma conversa geral, -que não passou de um simples <i>duo</i>, por que D. Ursula contava os fios -da toalha ou brincava com as pontas do <i>fichu</i> que trazia ao pescoço. -Como falassem da casa, Estacio disse á irmã: -</p> - -<p> -—Ésta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nascemos debaixo -do mesmo tecto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu -respeito; não o póde haver mais cordial. -</p> - -<p> -Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a -chacara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Ursula que -lh'as fôsse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e seccamente -respondeu: -</p> - -<p> -—Agora não, menina; tenho por hábito descançar e ler. -</p> - -<p> -—Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moça com graça; não -é bom cançar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a -servil-a. Não acha? continuou ella voltando-se para Estacio. -</p> - -<p> -—É nossa tia, respondeu o moço. -</p> - -<p> -—Oh! ainda não é minha tia! interrompeu Helena. Hade sel-o quando me -conhecer de todo. Por emquanto somos extranhas uma á outra; mas nenhuma -de nós é ma; o coração e a convivencia apertarão de vez os laços -que a natureza atou frouxamente. -</p> - -<p> -Éstas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com -que ella as proferiu era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso, -tinha um mysterioso encanto, a que a propria D. Ursula não pôde -resistir. -</p> - -<p> -—Pois deixe que a convivencia faça falar o coração, respondeu a -irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o offerecimento da -leitura, por que não entendo bem o que os outros me lêm; tenho os -olhos mais intelligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa -e a chacara, seu irmão póde conduzi-la. -</p> - -<p> -Estacio declarou-se prompto para acompanhar a irmã. Helena, entretanto, -recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e ao que parece, -a primeira que podia achar-se a sos com um homem que não seu pae. D. -Ursula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe -seccamente que fôsse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da -casa, ouvindo a moça as explicações que lhe dava Estacio e inquirindo -de tudo com zêlo e curiosidade de dona da casa. Quando chegaram á -porta do gabinete do conselheiro, Estacio parou. -</p> - -<p> -—Vamos entrar num logar triste para mim, disse elle. -</p> - -<p> -—Que é? -</p> - -<p> -—O gabinete de meu pae. -</p> - -<p> -—Oh! deixe ver! -</p> - -<p> -Entraram os dous. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o -conselheiro fallecêra. Estacio deu algumas indicações relativas ao -theor da vida doméstica de seu pae; mostrou-lhe a cadeira em que elle -costumava ler, de tarde e de manhã; os retratos de familia, a -secretária, as estantes; falou de quanto podia interessal-a. Sobre a -mesa, perto da janella, estava ainda o último livro que o conselheiro -lêra: eram as <i>Maximas</i> do marquez de Maricá. Helena pegou nelle e -imprimiu um beijo na página aberta. Uma lagryma brotou-lhe dos olhos, -como pingo do sereno que cahisse da aza da noite, não fria como elle, -mas quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensivel; brotou, -deslizou-se e foi cahir no papel. -</p> - -<p> -—Coitado! murmurou ella. -</p> - -<p> -Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir -alguns minutos depois do jantar, e olhou para fóra. O dia começava a -aquecer. O arvoredo dos morros fronteiros estava coberto de flores de -quaresma, com suas petalas roxas e tristemente bellas. O expectaculo ia -com a situação de ambos. Estacio deixou-se levar ao sabor de suas -recordações da meninice. De envolta com ellas, veiu pousar-lhe ao lado -a figura de sua mãe; tornou a ve-la, tal qual se lhe fôra dos braços, -uma crua noite de Outubro, quando elle contava dezoito annos de -edade. A boa senhora morrêra quasi moça,—ainda bella, pelo -menos,—daquella belleza sem outono, cuja primavera tem duas -estações. -</p> - -<p> -Helena ergueu-se. -</p> - -<p> -—Amava-o muito? perguntou ella, -</p> - -<p> -—Quem o não amaria? -</p> - -<p> -—Tem razão. Era uma alma grande e nobre; ou adorava-o. Reconheceu-me; -deu-me familia e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus -proprios. O resto depende de mim, do juizo que eu tiver,—ou talvez da -fortuna. -</p> - -<p> -Ésta ultima palavra cahiu-lhe do coração com um suspiro. Depois de -alguns segundos de silêncio, Helena enfiou o braço no do irmão e -desceram â chacara. Fôsse influência do logar ou simples mobilidade -de seu espirito, Helena tornou-se logo outra do que se revellára no -gabinete de seu pae. Jovial, graciosa e travessa, perdêra aquella -gravidade quieta e senhora de si com que apparecêra na sala de jantar; -fez-se lepida e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora -esvoaçavam por meio das árvores e por cima da gramma. A mudança -causou certo espanto ao moço; mas elle a explicou de si para si, e em -todo o caso não o impressionou mal. Helena pareceu-lhe naquella -occasião, mais do que antes, o complemento da familia. O que alli -faltava era justamente o gorgeio, a graça, a travessura, um elemento -que temperasse a austeridade da casa e lhe désse todas as feições -necessarias ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar. -</p> - -<p> -A excursão durou cêrca de meia hora. D. Ursula viu-os chegar, ao cabo -desse tempo, familiares e amigos, como se houvessem criado junctos. -As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contrairam-se e o labio -inferior recebeu uma dentada de despeito. -</p> - -<p> -—Titia, disse Estacio jovialmente; minha irmã conhece ja a casa toda -e suas dependencias. Resta somente que lhe mostremos o coração. -</p> - -<p> -D. Ursula sorriu,—um sorriso amarello e acanhado, que apagou nos -olhos da moça a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a ma -impressão; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mãos, -perguntou com toda a doçura da voz: -</p> - -<p> -—Não quererá mostrar-me o seu? -</p> - -<p> -—Não vale a pena! respondeu D. Ursula com affectada bonhomia; -coração de velha é casa arruinada. -</p> - -<p> -—Pois as casas velhas concertam-se, replicou Helena sorrindo. -</p> - -<p> -D. Ursula sorriu tambem; desta vez, porém, com expressão melhor. Ao -mesmo tempo, fitou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a -principio indifferente, manifestou logo depois a impressão que lhe -causava a belleza da moça. D. Ursula retirou os olhos; porventura -receiou que o influxo das graças de Helena lhe torcessem o coração, -e ella queria ficar independente e inconciliavel. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="IV">CAPITULO IV</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -As primeiras semanas correram sem nenhum successo notavel, mas ainda -assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de -hesitação, de observação reciproca, um tactear de caracteres, em -que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar -posição. O proprio Estacio, não obstante a primeira impressão, -recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o -procedimento de Helena. -</p> - -<p> -Helena tinha os predicados proprios a captar a confiança e a affeição -da familia. Era docil, affavel, intelligente. Não eram estes, comtudo, -nem ainda a belleza, os seus dotes por excellencia efficazes. O que a -tomava superior e lhe dava probabilidade de triumpho era a arte de -accomodar-se ás circumstâncias do momento e a toda a casta de -espiritos, arte preciosa, que faz habeis os homens e estimaveis as -mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de -arranjos de casa, com egual interesse e gôsto, frivola com os frivolos, -grave com os que o eram, attenciosa e ouvida, sem entono nem -vulgaridade. Havia nella a jovialidade da menina e a compostura da -mulher feita, um accôrdo de virtudes domésticas e maneiras elegantes, -complexo de cousas na apparencia oppostas, mas não inconciliaveis nem -disparatadas entre si. -</p> - -<p> -Além das qualidades naturaes, possuia Helena algumas prendas de -sociedade, que a tornavam acceita a todos, e mudaram em parte o theor da -vida da familia. Não falo da magnifica voz de contralto, nem da -correcção com que sabia usar della, por que ainda então, estando -fresca a memoria do conselheiro, não tivera occasião de fazer-se -ouvir. Era pianista distincta, sabia desenho, falava correntemente a -lingua franceza, um pouco a ingleza e a italiana. Entendia de costura e -bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e -lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciencia, arte e -resignação,—não humilde, mas digna,—conseguia polir os asperos, -attrahir os indifferentes e domar os hostis. -</p> - -<p> -Pouco havia ganho no espirito de D. Ursula; mas a repulsa desta ja não -era tão viva como nos primeiros dias. Estacio cedeu de todo, e era -facil; seu coração tendia para ella, mais que nenhum outro. Não cedeu -porém sem alguma hesitação e dúvida. A flexibilidade do espirito da -irmã afigurou-se-lhe a principio mais calculada que expontanea. Mas foi -impressão que passou. Dos proprios escravos não obteve Helena desde -logo a sympathia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de -D. Ursula. Servos de uma familia, viam com desaffecto e ciume a parenta -nova, alli trazida por um acto de generosidade. Mas tambem a esses -venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vel-a desde princípio com olhos -amigos; era um rapaz de 16 annos, chamado Vicente, cria da casa e -particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta ultima -circunstância o ligou desde logo á filha do seu senhor. Despida de -interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era -precaria e remota, a affeição de Vicente não era menos viva e -sincera; faltando-lhe os gozos proprios do affecto,—a familiaridade -e o contacto,—-condenado a viver da contemplação e da memoria, a não -beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos -costumes, pelo respeito e pelos instinctos, Vicente foi, não obstante, -um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da -senzala. -</p> - -<p> -Ás pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma -hesitação de D. Ursula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e -parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociaes, -explicava-os e tratava de os torcer em seu favor,—tarefa em que se -esmerou superando as obstaculos na familia; o resto viria de si mesmo. -</p> - -<p> -Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no -procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era -capellão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns annos -antes uma excellente capella na chacara, onde muita gente da vizinhança -ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta annos o padre; era homem de -estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabellos, e uns olhos -não menos sagazes que mansos. De compostura quieta, e grave, austero -sem formalismo, sociavel sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o -verdadeiro varão apostolico, homem de sua Egreja e de seu Deos, integro -na fe, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecêra a -familia do conselheiro algum tempo depois do consorcio deste. Seu olhar -penetrante descobria a causa da tristeza que minou os ultimos annos da -mãe de Estacio; respeitou a tristeza, mas attacou directamente a -origem. O conselheiro era homem geralmente razoavel, salvo nas cousas do -amor; ouviu o padre, prometteu o que este lhe exigia, mas foi promessa -feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escriptura. -Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as occasiões -graves; e o voto de Melchior pesava em seu espirito. Morando na -vizinhança daquella familia, tinha alli o padre todo o seu mundo. Se as -obrigações ecclesiasticas não o chamavam a outro lugar, não se -arredava elle de Andarahy, sítio de repouso apos trabalhosa mocidade. -</p> - -<p> -Das outras pessoas que frequentavam a casa e residiam no mesmo bairro de -Andarahy, mencionaremos ainda o Dr. Mattos, sua mulher, o coronel Macedo -e dous filhos. -</p> - -<p> -O Dr. Mattos era um velho advogado que, em compensação da sciencia do -direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitaveis de -meteorologia e botanica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da -política. Era impossivel a ninguem queixar-se do calor ou do frio, sem -ouvir delle a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das -estações, a differença dos climas, influência destes, as chuvas, os -ventos, a neve, as vasantes dos rios e suas enchentes, as marés e a -pororoca. Elle fallava com egual abundancia das qualidades therapeuticas -de uma herva, da nomenclatura scientifica de uma flor, da estructura de -certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio ás nobres paixões da -política, se abria a boca em tal assumpto era para criticar egualmente -de luzias e saquaremas,—os quaes todos lhe pareciam abaixo do paiz. O -jogo e a comida achavam-no menos sceptico; e nada lhe avivava tanto a -physionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Éstas prendas -faziam do Dr. Mattos um conviva interessante nas noites que o não eram, -como o loto é o jogo por excellencia nas occasiões em que outro -qualquer é impossivel. O Dr. Mattos era o loto da sociedade, com a -mesma monotonia dos anexins. Posto soubesse effectivamente alguma cousa -dos assumptos que lhe eram mais prezados, não ganhou o peculio que -possuia, professando a botanica ou a meteorologia, mas applicando as -regras do direito, que ignorou até á morte. -</p> - -<p> -A esposa do Dr. Mattos fôra uma das bellezas do primeiro reinado. -Quando as graças physicas se alliam ás do espirito, a belleza póde -esvair-se, que ainda lhe fica a alma. D. Leonor era uma rosa fanada, mas -conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro -ardêra aos pes da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas só era -verdade a primeira parte do boato. Nem os principios moraes, nem o -temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra cousa que não fosse -repellir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez illudiu os -malévolos; dahi o sussurro, ja agora esquecido e morto. A reputação -dos homens amorosos parece-se muito como juro do dinheiro: alcançado -certo capital, elle proprio se multiplica e avulta. O conselheiro -desfructou essa vantagem, de maneira que se no outro mundo lhe levassem -á collumna dos peccados todos os que lhe attribuiam na terra, receberia -elle dobrado castigo do que mereceu. -</p> - -<p> -O coronel Macedo tinha a particularidade da não ser coronel. Era major. -Alguns amigos, levados de um espirito de rectificação, começaram a -dar-lhe o titulo de coronel, que a princípio recusou, mas que afinal -foi compellido a acceitar, não podendo gastar a vida inteira a -protestar contra elle. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sôbre o -peculio da experiencia, possuia imaginação viva, fertil e agradavel. -Era bom companheiro, folgazão e communicativo, pensando serio quando -era preciso. Tinha dous filhos: um rapaz de vinte annos, que estudava em -S. Paulo, e uma moça de vinte e tres, mais prendada que formosa. -</p> - -<p> -Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se -consolidada. D. Ursula não cedêra de todo, mas a convivencia ia -produzindo seus fructos. Camargo era o unico irreconciliavel; sentia-se -atravez de suas maneiras cerimoniosas uma a versão profunda, prestes a -converter-se em hostilidade, se fôsse preciso. As demais pessoas, não -só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam ás boas com a filha do -conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e -gestos eram o assumpto da vizinhança e o prazer dos familiares da casa. -Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas reminiscencias um -fio biographico da moça; mas do inventário retrospectivo ninguem -tirava elementos que podessem construir a verdade ou uma só parcella que -fôsse. A origem da moça continuava mysteriosa; vantagem grande, porque -o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia attribuir o nascimento de -Helena a um amor illustre ou romanesco,—hypotheses admissiveis, e em -todo o caso agradaveis a ambas as partes. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="V">CAPITULO V</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Por esse tempo resolveu Estacio dar um passo decisivo em sua vida. -Ligado por amor á filha de Camargo, desde antes da morte do -conselheiro, hesitára sempre em pedil-a ao pae, deferindo a resolução -para quando fôsse propício o ensejo. A condição não era facil, por -que o sentimento que elle nutria em relação a Eugenia tinha -alternativas singulares de tibieza e fervor. A causa disso póde crer-se -que estava tambem em seu coração; mas principalmente residia nella. -N'um dos primeiros dias de Agosto, assentira Estacio de ir solicitar de -Eugenia autorisação para fazer officialmente o pedido. Assim disposto, -dirigiu-se á casa de Camargo. -</p> - -<p> -Mal o avistou de longe, desceu Eugenia á porta do jardim. O chapellinho -de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do -sol,—eram tres horas da tarde,—tornavam mais bella a figura da -moça. Eugenia era uma das mais brilhantes estrêllas entre as menores do ceu -fluminense. Agora mesmo, se o leitor, lhe descobrir o perfil, em -camarote de theatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile, -comprehenderá,—atravez de um quarto de seculo,—que os -contemporaneos de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as -graças que então alvoreciam, com o frescor e a pureza das primeiras horas. -</p> - -<p> -Era do pequena estatura; tinha os cabellos de um castanho escuro, e os -olhos grandes e azues,—dous pedacinhos do ceu; abertos em rosto alvo -o corado, os quaes nem sempre lembravam tão alta origem, pois se eram -muita vez quietos e modestos, não poucas os desmaiava tal ou qual -expressão de languidez lasciva. Seu corpo, levemente refeito, era -naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até -com arte, não possuia o dom de alcançar os maximos effeitos com os -meios mais simples, dom preciosissimo, que faz as grandes elegantes, os -grandes artistas e os grandes poetas. -</p> - -<p> -Estacio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que -lhe ia sahir dos labios, era justamente o pedido que o levava alli. Mas -Eugenia deteve-lh'a mostrando o anel que sua madrinha, uma fazendeira de -Cantagallo, lhe remettêra na vespera. Era uma opala magnifica, a tal -ponto que Eugenia dividia os olhos entre o namorado e ella. Ésta -simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D. -Thomasia os esperava. A mãe de Eugenia sabia combinar o decoro com os -desejos de seu coração; não seria obstaculo aos dous namorados, -infelizmente a presença de duas visitas veiu destruir o cálculo dos -tres. Estacio espreitava uma occasião de pedir a Eugenia a -autorisação que desejava; até o jantar não se lhe deparou nenhuma. -</p> - -<p> -Depois do jantar, desceram todos ao jardim. D. Thomasia entreteve uma -das visitas; Camargo foi mostrar á outra a sua collecção de flores. -Estacio e Eugenia affastaram-se cautellosamente dos dous grupos, a -pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquelle dia. A flor -existia; Eugenia colheu-a e deu a Estacio. -</p> - -<p> -—Não va perdel-a; hade entregal-a a Helena da minha parte. Diga-lhe -que estou com muitas saudades. -</p> - -<p> -Estacio collocou a flor na casa do paletó. -</p> - -<p> -—Vai cahir! disse Eugenia. Quer que pregue um alfinete? -</p> - -<p> -Estacio não teve tempo de responder, por que a filha de Camargo, -tirando um alfinete do cinto prendeu o pe da flor, gastando muito mais -tempo do que o exigia a operação. A moça não era myope; todavia -approximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve -impetos de lhe beijar os cabellos, e seria a primeira vez que seus -labios lhe tocassem. Não o deteve o risco de ser visto; mas o simples -respeito daquella creatura. -</p> - -<p> -—Prompto! disse ella. Diga a Helena que é a flor mais bonita, do -nosso jardim. Sabe que eu gósto muito de sua irmã? -</p> - -<p> -—Acredito. -</p> - -<p> -—Supponho que é minha amiga, hade se-lo com certeza. Oh! eu preciso -muito de uma amiga verdadeira! -</p> - -<p> -—Sim? -</p> - -<p> -—Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão -desgostos, como Cecilia... Se soubesse o que ella me fez! -</p> - -<p> -—Que foi? -</p> - -<p> -Eugenia desfiou uma historiazinha de toucador, que omitto em suas -particularidades, por não interessar ao nosso caso, bastando saber que -a razão capital da divergencia entre as duas amigas fôra uma opinião -de Cecilia acerca da escolha de um chapeu. -</p> - -<p> -Estacio não escutou a história com a attenção que a moça desejára; -limitou-se a ouvir a voz de Eugenia, que era na verdade angelica. Alguma -cousa porém lhe ficou, e quando ella poz termo ás suas queixas: -</p> - -<p> -—O que me parece, observou o sobrinho de D. Ursula, é que não valia a -pena brigar por tão pouca cousa... -</p> - -<p> -—Pouca cousa! exclamou Eugenia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa -e de mau gôsto? -</p> - -<p> -—Fez mal se o disse; em todo o caso... -</p> - -<p> -Estacio fez uma pausa e continuou a andar. Eugenia, mollemente recostada -em seu braço, esperou que elle continuasse o que ia dizer; mas o -silêncio prolongou-se mais do que era natural. -</p> - -<p> -—Em todo o caso? repetiu a moça erguendo para elle os seus olhos -limpidos e curiosos. -</p> - -<p> -—Eugenia, disse Estacio, quer saber a verdadeira razão do mau -successo de suas affeições? é deixar-se levar mais pelas apparencias que -pela realidade; é porque dá menos apreço ás qualidades solidas do -coração do que ás frivolas exterioridades da vida. Suas amizades são -das que duram a roda de uma valsa, ou, quando muito, a moda de um -chapeu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estereis para as -necessidades do coração. -</p> - -<p> -—Jesus! exclamou Eugenia estacando o passo um sermão por tão pouca -cousa! Se tivesse algum pedaço de latim era o mesmo que estar ouvindo o -padre Melchior. -</p> - -<p> -Estacio não respondeu; contentou-se com erguer os hombros, e os dous -continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do -outro. A differença é que o enfado de Eugenia manifestava-se por um -movimento nervoso de impaciencia e despeito. -</p> - -<p> -—Se o offendi, perdoe-me, disse ella—com um leve tom de ironia. -</p> - -<p> -—Oh! exclamou elle apertando-lhe a mão, como quem só esperava um -pretexto para reatar a conversa interrompida. -</p> - -<p> -—Talvez offendesse, continuou a moça; eu sei dizer as cousas como -ellas me vem á boca, e parece que não são as mais acertadas... -</p> - -<p> -—Não digo que o sejam sempre, replicou Estacio sorrindo. Agora, pelo -menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era -justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade, -ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapeu? Não vale -a pena esperdiçar affectos, Eugenia; sentirá mais tarde que essa moeda -do coração não se deve nunca reduzir a trocos miudos nem despender em -quinquilharias. -</p> - -<p> -Eugenia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito. -Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido; -sobretudo não lhes sentiu a applicação. O que a irritou mais foi o -tom pedagogo de Estacio; estouvada e voluntariosa, não admittia que -ninguem lhe falasse sem submissão ou a reprehendesse por actos seus, -que ella julgava legitimos e naturaes. A insistencia do moço foi o -ponto de partida a um desses arrufos, não raros entre amantes, e -communs entre aquelles dous. Os de Eugenia não eram simples silêncios; -seu espirito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado; -pelo contrário irritava-se e traduzia a irritação por meio de -pirraças e accessos de mau humor. Estacio viu murmurar, crescer e -desabar a tempestade. A moça deixava-lhe o braço e tornava a apoiar-se -nelle, articulava algumas phrases sôltas, pedia a morte, batia no chão -com o pesinho mimoso que por acaso esmagou uma pobre herva, alheia ás -divergencias moraes daquellas duas creaturas. Ora parava ou desandava o -caminho; mas logo se dirigia para o moço, com as palpebras trémulas de -colera e um remoque nos labios; comprazia-se em torcer a ponta da manga -até dilaceral-a, ou morder a ponta do dedo até imprimir-lhe o signal -de seus dentes, côr de perola. Estacio, affeito a essas explosões, -não lhes sabia remedio proprio, que tanto o silêncio como a réplica -eram alli materias inflamaveis. Contudo, o silêncio era o menor dos -dous perigos. Estacio limitava-se a ouvir calado, olhando á sorrelfa -para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais bello, quando a raiva o -coloria. Uma terceira pessoa era a unica esperança de pacificação; -Estacio alongou o olhar pelo jardim em busca desse <i>deus ex-machina</i>. -Appareceu elle enfim sob a forma de um Carlos Barreto,—estudante de -medicina, que cultivava simultaneamente a pathologia e a comedia, mas -promettia ser melhor Esculapio que Aristophanes. Mal os viu de longe, -apertou o passo para o grupo. -</p> - -<p> -—Vem gente, Eugenia,—disse Estacio; não demos expectaculos -e... perdõe-me. -</p> - -<p> -Eugenia ergueu os hombros, procurou com os olhos o intruso, que dahi a -pouco estenda-lhes a mão. -</p> - -<p> -O ceu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o -sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a -Eugenia a agradavel notícia de que trouxera a seu pae um convite para a -<i>soirée</i> que daria no sabbado proximo uma de suas parentas. A -perspectiva da <i>soirée</i> foi uma brisa salutar que dispersou o resto -das nuvens que entenebreciam o ceu; Eugenia sorriu. <i>J'ai ri; me voilà -desarmée</i>, como na comedia de Piron. Vinte minutos depois, não havia -em Eugenia vestigio da scena do jardim. Mas a ideia do casamento estava -adiada. -</p> - -<p> -O effeito foi agro e doce para Estacio. Estimando ver dissipada a -colera, doia-lhe que a causa fôsse, não a propria virtude do amor, -mas um motivo comparativamente futil. A resolução de a consultar -sôbre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Sahiu -dalli á noite, antes do cha, aborrecido e azedo. Mas esse estado não -durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo sentiu -alguma cousa semelhante á dentada de um remorso. O amor de Estacio -tinha a particularidade de crescer e affirmar-se na ausencia e diminuir -logo que estava ao pe da moça. De longe, via-a atravez da nevoa -luminosa da imaginação; ao pe era difficil que Eugenia conservasse os -dotes que elle lhe emprestava. Dahi, um dissentimento provavel e um -remorso certo. Agora que a deixava, ia elle irritado contra si mesmo; -achava-se ridiculo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade -de Eugenia; concedia, alguma cousa á edade, á educação, aos -costumes, á ignorancia da vida. -</p> - -<p> -Nesse estado de espirito entrou em casa, onde o esperava um incidente -novo. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="VI">CAPITULO VI</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Chegando a casa, achou Estacio um remedio a seu mau humor. Era uma carta -de Luiz Mendonça, que dous annos antes partira para Europa, d'onde -agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, annunciando-lhe que dentro -de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça fora o seu melhor -companheiro de aula. Havia entre elles certos contrastes de genio. O de -Mendonça em mais folgazão e activo. Quando este partiu para Europa -quiz que o antigo collega o acompanhasse, e o proprio conselheiro -opinára nesse sentido. Estacio recusou pelo receio de que, sendo -differente o espirito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao -sacrificio de habitos e preferencias de um delles. -</p> - -<p> -A noticia da volta de Mendonça encheu de contentamento o sobrinho de D. -Ursula. D. Ursula estava então na sala de costura, relendo algumas -páginas do seu <i>Saint-Clair</i>, encostada a uma meza. Do outro lado -desta, ficava Helena, a concluir uma obra de <i>crochet</i>. -</p> - -<p> -—Titia, disse elle, dou-lhe uma novidade agradavel para mim. -</p> - -<p> -—Que é? -</p> - -<p> -—O Mendonça chegou a Pernambuco: está aqui dentro de pouco tempo. -</p> - -<p> -—O Mendonça? -</p> - -<p> -—Luiz Mendonça. -</p> - -<p> -—O que foi para a Europa, sei. Ha quanto tempo? -</p> - -<p> -—Dous annos, -</p> - -<p> -—Dous annos! Parece que foi hontem. -</p> - -<p> -—Não lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que -devo ir tambem á Europa, quanto antes. Querem ir? -</p> - -<p> -—Eu? disse D. Ursula marcando a página do livro com os oculos de -prata que até então conservára sobre o nariz. Não são folias para gente -velha. Daqui para a cova. -</p> - -<p> -—A cova! exclamou Helena. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me -ha de enterrar primeiro? -</p> - -<p> -—Menina! exclamou D. Ursula em tom de reprehensão. -</p> - -<p> -Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de -verdadeira sympathia que ouvia a D. Ursula. Bem o comprehendeu ésta; e -talvez a mortificou aquella expontaneidade do coração. Mas era tarde. -Não podia recolher a palavra, não podia sequer explical-a. -</p> - -<p> -—Que tal virá o teu amigo? perguntou ella ao sobrinho. Era bom rapaz -antes de ir; um pouco tonto, apenas. -</p> - -<p> -—Ha de vir o mesmo, respondeu Estacio; ou ainda melhor. Melhor de -certo, porque dous annos mais modificam o homem. -</p> - -<p> -Estacio fez aqui um panegyrico do amigo, intercallado com observações -da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o cha. -D. Ursula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o -<i>crochet</i> na cestinha de costura. -</p> - -<p> -—Pensa que gastei toda a tarde em fazer <i>crochet</i>? perguntou -ella ao irmão, caminhando para a sala do jantar. -</p> - -<p> -—Não? -</p> - -<p> -—Não, senhor; fiz um furto. -</p> - -<p> -—Um furto! -</p> - -<p> -—Fui procurar um livro na sua estante. -</p> - -<p> -—E que livro foi? -</p> - -<p> -—Um romance. -</p> - -<p> -—<i>Paulo e Virginia</i>? -</p> - -<p> -—<i>Manon Lescaut.</i> -</p> - -<p> -—Oh! exclamou Estacio. Esse livro. -</p> - -<p> -—Exquisito, não é? Quando percebi que o ora, fechei-o e la o puz -outra vez. -</p> - -<p> -—Não é livro para moças solteiras... -</p> - -<p> -—Não creio mesmo que seja para moças casadas, replicou Helena rindo e -sentando-se á mesa. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois -abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo. -</p> - -<p> -—Imagino! interrompeu D. Ursula. -</p> - -<p> -—O desejo de aprender a montar a cavallo, concluiu Helena. -</p> - -<p> -Estacio olhou espantado para a irmã. Aquella mistura de geometria e -equitação não lhe pareceu sufficientemente clara e explicavel. Helena -soltou uma risadinha alegre de menina que applaude a sua propria -travessura. -</p> - -<p> -—Eu lhe explico, disse ella; abri o livro, todo alastrado de riscos -que não entendi. Ouvi porém um tropel de cavallos e cheguei á janella. -Eram tres cavalleiros, dous homens e uma senhora. Oh! com que garbo -montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco annos, alta, -esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa -cauda do vestido cahida a um lado. O cavallo era fogoso; mas a mão e o -chicotinho da cavalleira quebravam-lhe os impetos. Tive pena, confesso, -de não saber montar a cavallo... -</p> - -<p> -—Quer aprender commigo? -</p> - -<p> -—Titia consente? -</p> - -<p> -D. Ursula levantou os hombros com o ar mais indifferente que pôde achar -no seu repertorio. Helena não esperou mais. -</p> - -<p> -—Escolha voce o dia. -</p> - -<p> -—Amanhã? -</p> - -<p> -—Amanhã. -</p> - -<p> -Estacio costumava dar um passeio a cavallo quasi todas as manhãs. O do -dia seguinte foi dispensado; começariam as licções de Helena. Antes -disso, porém, escreveu Estacio á filha de Camargo uma carta -rescendente a ternura e affecto. Pedia-lhe desculpa do que se passára -na vespera; jurava-lhe amor eterno; cousas todas que lho dissera mais de -uma vez, com o mesmo estylo, se não com as mesmas palavras. A carta -dissipou-lhe a ultima sombra de remorso. Antes que ella chegasse ao seu -destino, reconciliara-se elle comsigo mesmo. O portador sahiu para o Rio -Comprido, e elle desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pe -da qual estava situada a cavallariça. Naquelle lado da casa corria a -varanda antiga, onde a familia costumava ás vezes tomar cafe ou -conversar nas noites de luar, que alli penetrava pelas largas janellas. -Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro. -</p> - -<p> -Ja alli estava Helena. D. Ursula enprestara-lhe um vestido de amazona, -com que algumas vezes montára, antes da morte do irmão. O vestido -ficava-lhe mal; era folgado de mais para o talhe delgado da moça. Mas a -elegancia natural fazia esquecer o accessorio das roupas. -</p> - -<p> -—Prompta! exclamou Helena apenas viu o irmão assomar no alto da -escada. -</p> - -<p> -—Oh! isso não vai assim! respondeu Estacio. Não supponha que hade -montar ja hoje como a moça que hontem viu passar na estrada. Vença -primeiramente o medo. -</p> - -<p> -—Não sei o que é medo, interrompeu ella com ingenuidade. -</p> - -<p> -—Sim? Não a suppunha valente. Pois eu sei o que elle é. -</p> - -<p> -—O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito -desfaz-se; basta a simples reflexão. Em pequena educaram-me com almas -do outro mundo. Até a edade de dez annos era incapaz de penetrar n'uma -sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possivel que uma pessoa -morta voltasse á terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma -cousa. Lavei o meu espirito de semelhante tolice e hoje era capaz de -entrar, de noite, n'um cemiterio. E dahi talvez não: os corpos que alli -dormem tem direito de não ouvir mais um só rumor de vida. -</p> - -<p> -Estacio chegára ao último degrau da escada. As derradeiras palavras -ouviu-as elle com os olhos fitos na irmã e encostado ao poial do pedra. -</p> - -<p> -—Quem lhe ensinou essas ideias? perguntou elle. -</p> - -<p> -—Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no -coração. Senhor geometra, continuou brandindo caprichosamente o -chicote,—veja se transcreve em algum compendio éstas figuras de minha -invenção, e ande cavalgar commigo. -</p> - -<p> -Com um movimento rapido travou da cauda do vestido, e caminhou para -diante. Estacio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dois -sentimentos differentes: a affeição que o prendia á irmã, e a -extranha impressão que ella lhe fazia sentir. Quando chegou á porta da -cavallariça, viu aparelhados dous animaes, o cavalo de seus passeios, e -a egua que a tia cavalgava uma ou outra vez. -</p> - -<p> -—Que é isso? disse elle. Por ora vamos a algumas indicações somente, -aqui no terreiro. -</p> - -<p> -—Justamente! respondeu a moça. -</p> - -<p> -Um escravo que alli estava trouxe um tamborete, Estacio approximou-se de -Helena, que afagava com a mão alva e fina as crinas da egua. -</p> - -<p> -—Como se chama? perguntou ella. -</p> - -<p> -—<i>Moema.</i> -</p> - -<p> -—<i>Moema</i>!! Ora espere... é um nome indigena, não é? -</p> - -<p> -Estacio fez um signal affirmativo. Helena tinha um pe sobre o tamborete; -repetiu ainda o nome da egua, como quem reflectia sobre elle, sem que o -irmão percebesse que não era aquillo mais do que um disfarce. De -repente; quando elle menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no -selim. A egua alteou o collo, como vaidosa do peso que recebêra. -Estacio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correcção do -movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquillo. Helena inclinou-se -para elle. -</p> - -<p> -—Fui bem? perguntou sorrindo. -</p> - -<p> -—Não podia ir melhor; mas o que me admira... -</p> - -<p> -As patas de <i>Moema</i> interromperam a reflexão do moço. A cavalleira -brandira o chicotinho, e o animal sahíra a trote largo pelo terreiro -fora. Estacio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como -para tomar a redea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou -ver que ella não fazia alli os primeiros ensaios. Ficou parado, de -longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos, -Helena torceu a redea e regressou ao ponto donde sahíra. -</p> - -<p> -—Que tal? disse ella logo que estacou. Terei geito para a equitação? -</p> - -<p> -—Creança! -</p> - -<p> -—Que é isso? Ja aprendeu? interveio D. Ursula do alto da varanda, -onde acabava de chegar. -</p> - -<p> -—Estava caçoando comnosco, disse Estacio. Ve como sabe montar? -</p> - -<p> -—Ella sabe tudo, murmurou D. Ursula entre dentes. -</p> - -<p> -Estacio montou no seu cavallo. Consultou o relogio; eram sete horas e -meia. -</p> - -<p> -—Permitte que o acompanhe? perguntou Helena. -</p> - -<p> -—Com uma condição, disse elle; é que hade ter juizo. Não quero -temeridades; a egua é apparentemente mansa; convem não brincar com -ella. Ja vejo que voce é capaz de muitas cousas mais... -</p> - -<p> -—Prometto ir pacificamente. -</p> - -<p> -Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de redea ao animal -e seguiu ao lado do irmão. Transposto o portão, seguiram os dous para -o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã fresca. -Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a agua, instigada -por ella, adiantava-se alguns passos ao cavallo; Estacio reprehendia a -irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudencia, -gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ella -conduzia o animal. -</p> - -<p> -—Não me dirá voce, perguntou elle, porque motivo, sabendo montar, -pedia-me hontem licções? -</p> - -<p> -—A razão é clara, disse ella; foi uma simples travessura, um -capricho... ou antes um cálculo. -</p> - -<p> -—Um cálculo? -</p> - -<p> -—Profundo, hediondo, diabolico, continuou a moça sorrindo. Eu queria -passear algumas vezes a cavallo; não era possivel sahir só, e nesse -caso... -</p> - -<p> -—Bastava pedir-me que a acompanhasse. -</p> - -<p> -—Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto era sahir commigo; -era fingir que não sabia montar. A ideia momentanea de sua -superioridade neste assumpto, era bastante para lhe inspirar uma -dedicação decidida... -</p> - -<p> -Estacio sorriu do cálculo; mas foi um sorriso passageiro, porque dentro -de poucos segundos, seu rosto ficou serio, e elle perguntou era tom -sêcco: -</p> - -<p> -—Ja lhe negamos algum prazer que desejasse? -</p> - -<p> -Helena estremeceu e ficou egualmente séria. -</p> - -<p> -—Não! murmurou; minha dívida não tem limites. -</p> - -<p> -Ésta palavra sahiu-lhe do coração. As palpebras cahiram-lhe e um veu -de tristeza lhe apagou o rosto. Estacio arrependeu-se do que dissera. -Sua sensibilidade apurada comprehendeu a irmã; viu que, por mais -innocentes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas á ma parte, e -em tal caso o menos que se lhe podia arguir era a descortezia. Estacio -timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ella e rompeu -o silêncio. -</p> - -<p> -—Voce ficou triste, disse Estacio; mas eu desculpo-a. -</p> - -<p> -—Desculpa-me? perguntou a moça erguendo para o irmão seus bellos -olhos humidos. -</p> - -<p> -—Desculpo a injúria que me fez, suppondo-me grosseiro. -</p> - -<p> -Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições -do mundo. Helena deu livre curso á imaginação e ao pensamento; suas -falas exprimiam, ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da -experiencia prematura, e iam direitas á alma do irmão, que se -comprazia em ver nella a mulher como elle queria que fosse, uma Graça -pensadora, uma sisudez amavel. De quando em quando faziam parar os -animaes para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um -accidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam fallando das vantagens -da riqueza. -</p> - -<p> -—Valem muito os bens da fortuna, dizia Estacio; elles dão a maior -felicidade da terra, que é a independencia absoluta. Nunca experimentei -a necessidade; mas imagino que o peor que há nella não é a -privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitorios, -mas sim essa escravidão moral que submette o homem aos outros homens. A -riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que -nos coube. Ve aquelle preto que alli está? Para fazer o mesmo trajecto -que nós, terá de gastar, a pe, mais uma hora ou quasi. -</p> - -<p> -O preto de quem Estacio falára, estava sentado no capim, descascando -uma laranja, emquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava -philosophicamente para ele. O preto não attendia aos dous cavalleiros -que se aproximavam. Ia esburgando a fructa e deitando os pedaços de -casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, -com o que parecia alegra-lo infinitamente. Era homem de cêrca de -quarenta annos, ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapeu que -lhe cobria a cabeça, tinha ja uma côr inverossimil. No entanto, o -rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade -do espirito. -</p> - -<p> -Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrára. Ao -passarem por elle, o preto tirou respeitosamente o chapeu e continuou na -mesma posição e occupação que d'antes. -</p> - -<p> -—Tem razão, disse Helena: aquelle homem gastará muito mais tempo do -que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de -vista? Em rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o experdicemos, quer -o economisemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor prazo; é -fazer muita cousa aprazivel ou util. Para aquelle preto o mais aprazivel -é, talvez, esse mesmo caminhar a pe, que lhe alongará a jornada, e lhe -fara esquecer o captiveiro, se é captivo. É uma hora de pura -liberdade. -</p> - -<p> -Estacio soltou uma risada. -</p> - -<p> -—Voce devia ter nascido... -</p> - -<p> -—Homem? -</p> - -<p> -—Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais -melindrosas. Nem estou longe de crer que o proprio captiveiro lhe -parecerá uma bemaventurança, se eu disser que é o peor estado do -homem. -</p> - -<p> -—Sim? retorquiu Helena sorrindo; estou quasi a fazer-lhe a vontade. -Não faço; prefiro admirar a cabeça de <i>Moema</i>. Veja, veja como se vai -faceirando. Ésta não maldiz o captiveiro; pelo contrário, parece que -elle lhe dá glória. Pudera! Se não a tivessemos captiva, receberia -ella o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só faceirice, é -tambem impaciencia. -</p> - -<p> -—De que? -</p> - -<p> -—Impaciencia de correr por essa estrada da Tijuca fóra, e beber o -vento da manhã, espreguiçando os musculos, e sentindo-se alguma cousa -senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre egua? continuou a moça -inclinando a cabeça até as orelhas do animal; vai aqui ao pe de nós -um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu -inimigo... -</p> - -<p> -—Helena! interrompeu Estacio; voce é muito capaz de desparar a -correr. -</p> - -<p> -—E se fôsse? -</p> - -<p> -—Eu deixava-a ir, e nunca a trazia em meus passeios. Voce monta bem; -mas não desejo que faça temeridades. Nós somos responsaveis, não só -por sua felicidade, mas tambem por sua vida. -</p> - -<p> -Helena refletiu um instante. -</p> - -<p> -—Quer dizer, perguntou ella, que se eu fôsse victima de um desastre -não faltaria quem o imputasse á minha familia? -</p> - -<p> -—Justo. -</p> - -<p> -—Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me -lembrasse—é uma supposição—se eu me lembrasse de deixar a vida -por aborrecimento ou capricho, seria voce accusado de me haver propinado o -veneno? Não ha melhor modo de me fazer evitar a morte. -</p> - -<p> -—Deixemos conversas lugubres, e voltemos para casa, interrompeu -Estacio. -</p> - -<p> -—Ja! -</p> - -<p> -—Raras vezes passo d'aqui; e não pense voce que é perto. -</p> - -<p> -—Parece-me que ainda agora sahimos de casa. Vamos uns cinco minutos -adeante? Sim? -</p> - -<p> -Estacio consultou o relogio. -</p> - -<p> -—Cinco minutos justos, disse elle. -</p> - -<p> -—Até aquella casa que alli está com uma bandeira azul. -</p> - -<p> -Havia effectivamente, cêrca de quatro minutos adiante, á esquerda da -estrada, uma casa de insignificante apparencia, sôbre cujo telhado -fluctuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estacio conhecia a casa, -mas era a primeira vez que via a bandeira. Helena pediu-lhe a -explicação daquelle apendice. -</p> - -<p> -—Va la saber, disse o irmão rindo. -</p> - -<p> -Helena deu de redea á egua e adeantou-se alguns passos. Estacio -apertou o animal e alcançou-a. -</p> - -<p> -—Não va fazer tolices! disse elle em tom de branda reprehensão. -Aquillo é fantasia do morador, ou algum signal de passaros, ou qualquer -outra cousa que não vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a -manhã, que está deliciosa. -</p> - -<p> -Helena não attendeu á proposta do irmão e foi andando, a passo lento, -na direcção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o -alpendre antigo que lhe corria na frente. As collunnas deste estavam ja -lascadas em muitas partes, apparecendo, aqui e alli, a ossada de tijolo. -A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, apparente ao menos. -Quando elles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguem -espreitava por ella, ficou sumido na sombra, porque ninguem de fóra o -viu. -</p> - -<p> -Cêrca de cinco braças adeante, Estacio resolveu definitivamente -regressar, e Helena não oppoz objecção nenhuma. Torceram a redea aos -animais e desceram. -</p> - -<p> -—Não poderei falar á bandeira? perguntou a moça. Deixe-me ao menos -dizer-lhe adeus. -</p> - -<p> -Tinha ja tirado da algibeira o seu fino lenço de cambraia; agitou-o na -direcção da casa. Quiz o acaso que a bandeira, até então quieta, se -movesse no sopro de uma aragem que passou. -</p> - -<p> -—Ve como ella me respondeu? Não se póde ser mais cortez! exclamou -Helena, rindo. -</p> - -<p> -Estacio riu tambem da lembrança da irmã, e ambos desceram, a passo -lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Seus -olhos, cravados nas orelhas de <i>Moema</i>, não pareciam ver sequer o -caminho que o animal seguia, Estacio, para arrancal-a ao silêncio, -fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena -respondeu distrahidamente. -</p> - -<p> -—Que tem voce? perguntou elle. -</p> - -<p> -—Nada, disse ella; ia... ia embebida naquella toada. Não ouve? -</p> - -<p> -Ouvia-se effectivamente, a algumas braças adeante, uma cantiga da -roça, meia alegre, meia plangente. O cantor appareceu, logo que os -cavalleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquelle logar. Era o -preto, que pouco tinham visto sentado no chão. -</p> - -<p> -—Que lhe dizia eu? observou a irmã de Estacio. Alli vai o infeliz de -ha pouco. Uma laranja chupada no capim e trez ou quatro quadras, é o -bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar -comprar o tempo. Nós poderiamos dizer o mesmo? -</p> - -<p> -—Porque não? -</p> - -<p> -A moça recolheu-se ao silêncio. -</p> - -<p> -—Helena, isso que voce acaba de dizer. Vamos, estamos sos; confesse -alguma tristeza que tenha. -</p> - -<p> -—Nenhuma, respondeu a moca. Peço-lhe, entretanto, uma cousa. -</p> - -<p> -—Diga. -</p> - -<p> -—Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu -respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras, -emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espirito esta -verdade: é que sou uma pobre alma lançada n'um turbilhão. -</p> - -<p> -Estacio ia pedir explicação mais desenvolvida daquellas últimas -palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote, -e deitou a egua a correr. Estacio fez o mesmo ao cavallo; dahi a alguns -minutos entravam na chacara, elle aturdido e curioso, ella com a face -vermelha e a bater-lhe violentamente o coração. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="VII">CAPITULO VII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Apearam-se os dous no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter -á varanda. Pizando o primeira degrau, disse Estacio: -</p> - -<p> -—Helena, explique-me suas palavras de ha pouco. -</p> - -<p> -—Quaes? -</p> - -<p> -E como Estacio levantasse os hombros, com ar de despeito, continuou -Helena: -</p> - -<p> -—Perdõe-me; sua pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do -que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer -meias confissões; mas neste caso a confissão inteira seria imprudencia -maior. Se se tratasse de factos, creia que a ninguem melhor podia -confia-los do que a voce; mas por que motivo irei perturbar-lhe o -espirito com a narração de meus sentimentos, se eu propria não chego -a entender-me? -</p> - -<p> -Estacio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e -entraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula dando as ordens -daquelle dia, a dous escravos. Estacio entrou pensativo; Helena mudou -totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a -melancholia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara a jovialidade -de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma especie de comediante -que recebêra da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que -a obrigava a mudar continuamente de vestuario. D. Ursula viu-a entrar -risonha e ir a ella dar-lhe os costumados—<i>bons dias</i>—que -era sempre um beijo,—ou antes dous,—um na mão, outro na face. -</p> - -<p> -—Demorei-me muito? perguntou ella voltando rapidamente o corpo, de -maneira a ver o relogio que ficava do outro lado da sala. Nove horas! -Que passeio, Sr. meu irmão! -</p> - -<p> -Estacio olhava para ella silencioso e não lhe respondeu. Seu olhar não -era de censura, mas de curiosidade, pena e admiração. Os dous foram -logo depois mudar de <i>toilette</i>, e o almôço reuniu a familia. D. -Ursula propoz, durante elle, algumas mudanças na disposição da -chacara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e -aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Ursula desceu -á chacara com Estacio. As alterações foram ainda estudadas e -combinadas no proprio terreno, com assistencia do feitor. Logo que -acabou a deliberação e que o projecto de D. Ursula foi definitivamente -assentado, Estacio reteve-a e lhe disse: -</p> - -<p> -—Preciso falar-lhe um instante. -</p> - -<p> -—Tambem eu. -</p> - -<p> -—Quaes são os seus sentimentos actuaes em relação a Helena? Oh! não -precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são -meras apparencias. Não creio que seja absolutamente amiga della; mas -não póde negar que a antipathia desapareceu ou diminuiu muito. -</p> - -<p> -—Diminuiu, talvez. -</p> - -<p> -—E com razão. Pensa que tambem eu não tive repugnancias -depois que ella aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem -desaparecido,—desapareceriam hoje de manhã. -</p> - -<p> -—Como? -</p> - -<p> -Estacio referiu á tia a scena do capitulo anterior e as palavras que -lhe dissera Helena. D. Ursula sorriu ironicamente. -</p> - -<p> -—Não a impressiona isto? perguntou Estacio. -</p> - -<p> -—Não, respondeu D. Ursula com decisão; a phrase de Helena é achada -em algum dos muitos livros que ella le. Helena não é tola; quer -prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que -começo a gostar della; é dedicada, affectuosa, diligente; tem -maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é -naturalmente sympatica. Ja vou gostando della; mas é um gostar sem fogo -nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença -de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cançada. -Helena preenche essa lacuna. Se alguma cousa, entretanto, a podia -prejudicar nas nossas relações é esse dito. -</p> - -<p> -Estacio tomou calorosamente a defesa da irmã. -</p> - -<p> -—O que eu lhe contei, disse elle, foram apenas as palavras. Não pude -nem poderei reproduzir a expressão sincera com que ella as proferiu e a -profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vel-a -mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de -dúvida; mas passou logo. Sua natureza tem esse raro poder de concentrar -a amargura no coração; tambem a dor tem suas hypocrisias... -</p> - -<p> -—Mas que dor? que amargura? interrompeu: D. Ursula. A dor de ser -legitimada? a amargura de uma herança? -</p> - -<p> -Estacio protestou calorosamente contra aquelle caminho que a tia dava a -suas ideias; emfim pediu-lhe que interrogasse com cautella a irmã. -</p> - -<p> -—Um homem, concluiu elle, é menos apto para obter taes confissões; -uma senhora, respeitavel e parenta, está mais no caso de lhe captar a -confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel? -</p> - -<p> -—Pedes muito, respondeu D. Ursula. Verei se te posso dar metade -disso. Era só o que tinhas para dizer? -</p> - -<p> -—Só. -</p> - -<p> -—Uma creancice! Eu tenho cousa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me: -trata-se... -</p> - -<p> -—Não precisa dizer mais nada, interrompeu Estacio; la vem elle. -</p> - -<p> -Camargo apparecêra effectivamente a vinte passos de distância. -</p> - -<p> -—Doutor,—disse D. Ursula, logo que este se approximou delles, -chega um pouco fóra de proposito. Eu mal tive tempo de assustar meu -sobrinho, que ainda não sabe o que o senhor lhe quer. -</p> - -<p> -—Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me approva. -</p> - -<p> -—Completamente, -</p> - -<p> -—Trata-se...—disse Estacio. -</p> - -<p> -—De uma conspiração; todos conspiramos em seu beneficio. -</p> - -<p> -D. Ursula retirou-se para casa; os dous ficaram sos. Uma vez sos, -Camargo pousou a mão no hombro de Estacio, fitou-o paternalmente, emfim -perguntou-lhe se queria ser deputado. Estacio não pôde reprimir um -gesto de sorpreza. -</p> - -<p> -—Era isso? disse elle. -</p> - -<p> -—Creio que não se trata de um supplício. Uma cadeira na camara! Não -é a mesma cousa que um quarto no aljube. -</p> - -<p> -—Mas a que proposito... -</p> - -<p> -—Ésta ideia apoquentava-me ha algumas semanas. Doia-me ve-lo vegetar -os seus mais bellos annos n'uma obscuridade relativa. A política é a -melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrucção, -caracter, riqueza; póde subir a posições invejaveis. Vendo isso, -determinei-me a mettel-o na Cadeia... Velha. Fala-se em dissolução. -Para facilitar-lhe o successo, entendi-me com duas influências -dominantes, o negocio afigurasse-me em bom caminho. -</p> - -<p> -Estacio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico. -</p> - -<p> -—Mas doutor, disse elle depois de curto silêncio, houve de sua parte -alguma precipitação. Pelo menos, de via consultar-me. Do modo por que -arranjou as cousas, quasi me acho desobrigado de lhe agradecer a -intenção. Quanto a acceitar, não acceito. -</p> - -<p> -Camargo não perdeu a tramontana. Havia nelle a tenacidade do dogue e a -tactica da serpente. Deixou passar por cima da cabeça a primeira onda -de desagrado, surgiu fóra e insistiu tranquillamente: -</p> - -<p> -—Vejamos as cousas com os oculos do senso-commum. Em primeiro logar, -não creio que tenha outros projectos na cabeça. -</p> - -<p> -—Talvez. -</p> - -<p> -—Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A sciencia é ardua e -seus resultados fazem menos ruido. Não tem vocação commercial nem -industrial. Medita alguma ponte-pensil entre a Côrte e Nictheroy, uma -estrada até Matto-Grosso ou uma linha de navegação para a China? É -duvidoso. Seu futuro tem por ora dous limites unicos, alguns estudos de -sciencia e os alugueis das casas que possue. Ora, a eleição nem lhe -tira os alugueis nem obsta a que continue seus estudos; a eleição -completa-o dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A unica objecção -seria a falta de opinião política; mas ésta objecção não o póde -ser. Hade ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades -públicas, e... -</p> - -<p> -—Supponha,—é mera hypothese,—que tenho alguns -compromissos com a opposição. -</p> - -<p> -—Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na -camara—embora pela porta dos fundos. Se tem ideias especiaes e -partidarias, a primeira necessidade é obter o meio de as expor e -defender. O partido que lhe der a mão,—se não fôr o -seu,—ficará, consolado com a ideia de ter ajudado a a um -adversario talentoso o honesto. Mas a verdade é que não escolheu ainda -entre os dous partidos; não tem opiniões feitas. Que importa? Grande -numero de jovens politicos seguem, não uma opinião examinada, -ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas affeições, a que seus -paes ou amigos immediatos honraram e defenderam, a que as -circumstâncias lhe impõem. Dahi vem algumas legítimas conversões -posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circumstâncias da -origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnifico lyrio -saquarema ou luzia. Demais, a política é sciencia prática; e eu -desconfio de theorias que só são theorias. Entre primeiro na camara; a -experiencia e o estudo dos homens e das cousas lhe designarão a que -lado se deve inclinar. -</p> - -<p> -Estacio ouviu attento éstas vozes com que a serpente lhe apontava para -a árvore da sciencia do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a -discutir philosophicamente com o reptil. -</p> - -<p> -—Entra-se na política,—disse elle,—por vocação legítima, -ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração. -Nenhum desses motivos me impelle a dobrar o cabo Tormentorio. -</p> - -<p> -—Da Boa Esperança,—emendou Camargo rindo;—não supprima -tres seculos de navegação. -</p> - -<p> -Estacio riu-se tambem. Depois falou ao médico de sua indole e -ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia -políticas nem todas eram da mesma estatura. Os espiritos, disse elle, -nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras especies intermedias. A -uns é necessario o horisonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo -batem as azas e sobem a encarar o sol; outros contentam-se com algumas -longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho. -Estes eram os obscuros, e, na opinião delle, os mais felizes. Não -seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a história -em suas páginas luminosas ou sombrias; o vão do telhado em que -abrigaram a prole, a árvore em que pousaram, são as testemunhas -unicas, e morredoras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os -colhe, vão elles pousar no regaço commum da eternidade, onde dormem o -mesmo perpétuo somno, tanta o capitão que subiu ao summo estagio por -uma escala de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o -esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão infimas como -seriam as do cabreiro; eram as do proprietario do campo que o capitão -atravessasse. Um bom peculio, a familia, alguns livros e amigos,—não -iam além seus mais arrojados sonhos. -</p> - -<p> -Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico. -</p> - -<p> -—Meu caro Estacio,—disse, elle depois,—esse trocadilho de -andorinhas e cabreiros é a cousa mais extraordinaria que eu esperava ouvir -a um mathematico. Saiba que detesto egualmente a philosophia da obscuridade -e a rhetorica dos poetas. Sobretudo gósto que me respondam em prosa -quando falo em prosa. -</p> - -<p> -—Parece-lhe que poetei? perguntou Estacio rindo. -</p> - -<p> -—Despropositamente! Ora, eu falo de cousas sérias; e convem não -confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que -são a parte ideológica e vã. -</p> - -<p> -—Eu serei ideologo, -</p> - -<p> -—Não tem direito de o ser. -</p> - -<p> -—Pois bem, deixe-me com as minhas mathematicas, as minhas flôres, as -minhas espingardas. -</p> - -<p> -—Não! Ha de intercalar tudo isso com um pouco de política. -</p> - -<p> -Puxando-o familiarmente pela gola do paleto, Camargo fel-o sentar ao pe -de si, no banco que alli estava mais proximo. Depois falou. O novo -discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma -das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma -complacencia de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da -política, e não só as reaes, mas as ficticias ou duvidosas, foram -inventariadas, pintadas, douradas e illuminadas pelo médico. Sua palavra -revellou um poder de evocação, uma vehemencia, uma energia, que -ninguem era capaz de suppor-lhe. O taciturno desabrochou tagarella. Para -falar tanto e com tal fôrça era preciso que o animasse um grande -sentimento ou um grande interesse. -</p> - -<p> -Estacio, lisonjeado com a affeição que elle lhe mostrava, não teve -ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa; -adoptou o alvitre de deferir a resposta para outra occasião. -</p> - -<p> -—Ja lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou prompto a -reflectir, e a consultar o padre Melchior e Helena. -</p> - -<p> -O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente -não passou o effeito de um sorriso sardonico e dissimulado. Interveiu -uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a -extrahir lentamente de uma boceta de tartaruga, presente do conselheiro -Valle. -</p> - -<p> -—Helena! disse elle com alguma hesitação. Que vem fazer sua irmã -neste negocio? -</p> - -<p> -—É um voto,—redarguiu Estacio; e menos leve do que lhe parece. -Ha nella muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa -harmonia com as suas outras qualidades feminis. -</p> - -<p> -Entre as sobrancelhas de Camargo projectou-se uma longa ruga, e foi toda -a expressão de seu espanto e desgôsto. A resposta de Estacio -revellara-lhe uma situação nova na familia: o voto de Helena, -consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Ésta solução, que -porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a -previra o médico. Limitou-se a notal-a de si para si; e, terminando -subitamente a conversa, disse: -</p> - -<p> -—Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha -opinião, não é seu amigo. Em todo o caso, ninguem lhe poderá -affirmar que não é a amizade, a longa amizade. -</p> - -<p> -Estacio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe affectuosamente a mão. -Tinham-se levantado. Era quasi meio dia; Camargo despediu-se alli mesmo; -ia ver dous doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro -atravessou sosinho a chacara; ia pensativo, e aborrecido. A política, -na sua opinião, era uma noiva importuna; mas se todos conspirassem a -favor della, não sería elle obrigado a desposal-a? A ésta reflexão -respondeu a voz do padre Melchior, do alto de uma janella: -</p> - -<p> -—Venha ca, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso? -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="VIII">CAPITULO VIII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -D. Ursula tinha ja confiado ao velho capellão a proposta de Camargo. -Consultado por Estacio, respondeu este que sua opinião era -absolutamente inutil. -</p> - -<p> -—Consulte suas fôrças e a responsabilidade do cargo, e escolha, -concluiu o padre. -</p> - -<p> -—Ja escolhi, disse Estacio; pedia seu conselho para apoiar melhor a -minha propria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos? -Decidi que não acceito a candidatura. A vida política é turbulenta de -mais para o meu espirito. Estou prompto para a acção, mas não hade -ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar á camara, -além de algumas prerogativas e um papel accessorio? Eu só me meteria na -política, se pudesse officiar; mas ser apenas sachristão... -</p> - -<p> -—Entre o officiante e o sachristão, observou Melchior, está o -prégador, que é cargo nobre e influente. -</p> - -<p> -—Mas o thema do sermão, padre-mestre?—retorquiu Estacio rindo; -falta-me o thema. -</p> - -<p> -D. Ursula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público -em favor do sobrinho, viu naquellas razões um pretexto ou uma -puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o -sobrinho para que reflectisse maduramente, antes de qualquer resposta -definitiva. Estacio prometteu como promettêra ao médico, por simples -condescendencia; mas sobretudo para pôr termo ao assumpto e ir saber a -causa do sorriso quasi imperceptivel que viu roçar os labios de Helena. -A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janellas; Estacio foi até -alli. -</p> - -<p> -—Adivinhei pelo seu sorriso,—disse elle, que tudo isto lhe -pareço pueril, e que eu faço bem em não acceitar o que se me offerece. -</p> - -<p> -Helena olhou um pouco espantada para elle; mas respondeu com -tranquillidade: -</p> - -<p> -—Pelo contrário, penso que deve acceitar. Além de haver consentimento -de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugenia. -</p> - -<p> -Era a primeira vez que Helena alludia ao amor de Estacio, e fazia-o por -modo encoberto e obliquo. Estacio escapou dessa vez á regra de todos os -corações amantes: resvalou pela allusão e discutiu gravemente o -assumpto da candidatura. Era pesado de mais para cabeça feminina; -Helena intercalou uma observação sobre dous passarinhos que bailavam -no ar, e Estacio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores. -</p> - -<p> -Durante dous dias, não sahiu elle de casa. Tendo recebido alguns livros -novos, gastou uma parte do tempo em os folhear, ler alguma página, -collocal-os nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos -anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliophilo. Helena ajudava-o -nesse trabalho,—um pouco parecido com o de Penelope,—por que a -ordem estabelecida ao meio dia era às vezes alterada às duas horas, e -restaurada na seguinte manhã. Estacio, entretanto, não ficava todo -entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado -com que ella o auxiliava. Helena parecia não andar; seu vulto resvalava -silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo a uma indicação do -irmão, ou pondo em experiencia uma ideia sua. Estacio parava às vezes -fatigado; ella continuava imperturbavelmente o serviço. Se elle lhe -fazia alguma observação, a moça respondia com um movimento de hombros -ou um sorriso, e proseguia. Então Estacio segurava-lhe nos pulsos e -exclamava rindo: -</p> - -<p> -—Socega, borboleta! -</p> - -<p> -Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a -mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na -intimidade mais doce, e que a reciproca affeição ia excluindo toda a -preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as -proporções de voto preponderante. -</p> - -<p> -No terceiro dia D. Thomasia e Eugenia foram jantar a Andarahy. Eugenia -estava nesse dia mais sisuda e docil que nunca; dissera-se que trazia a -alma tão nova como o vestido, e menos enfeitada que elle. Estacio -sentiu-se satisfeito; o ideal reconciliava-se com o real. Poderam falar -sosinhos mais de uma vez; todas as pessoas da casa pareciam conspiradas -para lhes deixar a solidão. Foi ella quem recordou a proposta política -do pai, da qual soubera casualmente, ouvindo a narração que este -fizera a D. Thomasia. O desejo de Eugenia era pela affirmativa; e -Estacio, receioso de despertar os caprichos adormecidos da moça, -frouxamente resistiu, e consentiu ainda mais frouxamente em -reconsiderar o assumpto. -</p> - -<p> -—Deputado! exclamava Eugenia com os olhos no ceu. -</p> - -<p> -Estacio acompanhou Eugenia e D. Thomasia na carruagem que as levou ao -Rio Comprido. O dia fôra mais ou menos alegre; a viagem foi divertida e -palreira como um regresso de romaria. Os cavallos mostravam-se tão -lepidos como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o -caminho, com desgôsto de Eugenia. -</p> - -<p> -Voltando a Andarahy, Estacio trazia a alma pura de todas as más -impressões, que lhe deixavam usualmente as visitas á casa de Camargo. -Nenhum dissentimento houvera naquelle dia. Eugenia parecia modificada. -Em casa esperava-o porém uma desagradavel noticia: a tia sentira-se -incommodada pouco depois que elle sahíra e recolhera-se ao quarto. O -caso affligiu-o; mas não tardou a apparecer Helena, que o tranquilisou, -dizendo-lhe que D. Ursula tinha apenas uma forte dor de cabeça, ja -diminuida com o emprêgo de um remedio cazeiro. -</p> - -<p> -No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia socegadamente, -Estacio abriu uma das janellas do quarto e relanceou os olhos pela -chacara. A alguns passos de distância, entre duas larangeiras, viu -Helena a ler attentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as -suas quatro laudas escriptas. Seria alguma mensagem amorosa? -</p> - -<p> -Ésta ideia molestou-o singularmente. Affastou-se da janella, conchegou -as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena estava de -pe, no mesmo logar, e percorria rapidamente as linhas, até o final da -ultima página. Alli chegando, deu dous passos, tornou a parar volveu -ao princípio da carta, para a ler de novo, não ja depressa, mas -repousadamente. Estacio sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, á -qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciume. A ideia de que -Helena podia repartir seu coração com outra pessoa desconsolava-o ao -mesmo tempo que o irritava. A razão de semelhante exclusivismo não a -explicou elle, nem tentou investigal-a; sentiu-lhe somente os effeitos, -e ficou alli sem saber que faria. Duas vezes sahiu da janella para ir -ter com a irmã, mas recuou de ambas as vezes, reflectindo que a -curiosidade pareceria impolidez, se não era talvez, tyrania. Ao cabo -de alguns minutos de hesitação, sahiu do quarto e dirigiu-se á -chacara. -</p> - -<p> -Quando alli chegou, Helena passeava lentamente com os olhos no chão. -Estacio parou deante della. -</p> - -<p> -—Ja fora de casa! exclamou em tom de gracejo. -</p> - -<p> -Helena tinha a carta na mão esquerda; instinctivamente a amarrotou como -para escondel-a melhor. Estacio, a quem não escapou o gesto, -perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa. -</p> - -<p> -—Nota verdadeira, disse ella alisando tranquillamente o papel, e -dobrando-o conforme recebêra; é uma carta. -</p> - -<p> -—Segredos de moça? -</p> - -<p> -—Quer lel-a? perguntou Helena apresentando-lh'a. -</p> - -<p> -Estacio fez-se vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente -o papel e guardou-o na algibeira do vestido. A innocencia não teria -mais puro rosto; a hypocrisia não encontraria mais impassivel máscara. -Estacio contemplava-a a um tempo envergonhado e suspeitoso; a carta -fazia-lhe cocegas; seu olhar ambicionava ser como o da Providencia que -penetra nos mais intimos refolhos do coração. Vieram, entretanto, -dizer a Helena que D. Ursula lhe pedia fôsse ter com ella. Estacio -ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquerito mental sôbre a -procedencia da mysteriosa missiva. Um indicio havia de que podia conter -alguma cousa secreta; era o gesto com que ella a escondeu. Mas não -podia ser de alguma antiga companheira do collegio, que lhe confiava -segredos seus? Estacio abraçou com alvorôço ésta hypothese. Depois, -occorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia tratar de -algum idyllio de collegio, em que Helena fosse protagonista, idyllio -vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso, -que tinha elle com isso? -</p> - -<p> -Fazendo ésta ultima reflexão, Estacio sacudiu do espirito o assumpto -e seguiu a examinar as novas obras da chacara, entre as quaes figurava -um vasto tanque. Ja alli estavam os operarios; ia começar o trabalho do -dia. Estacio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas -eram contrárias ao plano assentado; como lhe fizessem tal observação, -Estacio rectificou-as. Depois admirou-se de não ver um vaso, que alias -dous dias antes mandara remover; emfim recommendou a rega de uma planta, -ainda humida da agua que o feitor lhe deitára nessa manhã. -</p> - -<p> -D. Ursula não estava de todo boa, mas pôde almoçar á mesa commum. O -sobrinho appareceu aborrecido; a sobrinha triste; o dialogo foi -mastigado como o almôço. No fim deste, recebeu Estacio uma carta de -Eugenia. Era uma tagarelice meia frivola, meia sentimental, mistura de -risos e suspiros, sem objecto definido, a não ser pedir-lhe que -escrevesse, se não pudesse ir vel-a. -</p> - -<p> -Acabava elle de ler a carta, quando Helena lhe appareceu á porta do -gabinete. Não a escondeu; teve um pensamento singular: mostral-a à -irmã, na esperança de que ésta, pagando-lhe com egual confiança, lhe -mostrasse a sua,—ideia que revellava o seu nenhum conhecimento do -espirito das mulheres, porquanto só a indiscrição masculina era capaz -de cahir em semelhante laço. Helena percorreu com os olhos a carta de -Eugenia e esteve algum tempo silenciosa. -</p> - -<p> -—Permitte-me um conselho? perguntou ella. -</p> - -<p> -E como Estacio respondesse com um gesto de assentimento: -</p> - -<p> -—Va ter com Eugenia, solicite licença para ir pedil-a a seu pai, e -conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? della creio -poder affirmar que sim; de voce... -</p> - -<p> -—De mim? -</p> - -<p> -—Penso que é mais duvidoso; ou voce é mais habil. Hade ser isso. -Naturalmente parece-lhe fraqueza amar,—isto é, a cousa mais natural -do mundo,—a mais bella,—não direi a mais sublime. Os homens -serios tem preconceitos extravagantes. Confesse que ama,—que não é -indifferente a esse sentimento inexprimivel que liga, ou para sempre, ou -por algum tempo, duas creaturas humanas. -</p> - -<p> -—Ou por algum tempo! repetiu mentalmente Estacio. -</p> - -<p> -E éstas quatro palavras tão naturaes e tão communs tinham ares de uma -revellação nova no estado de espirito em que elle se achava. Se Helena -tivesse proposito de lhe lançar a perplexidade na alma não empregaria -mais efficaz conceito. Sería na verdade aquelle amor tão travado de -desanimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu proprio -coração, seria uma affeição destinada a perecer no occaso da -primeira lua matrimonial? -</p> - -<p> -—Pois bem, concordou elle, ao cabo de alguns instantes; é verdade. -Eugenia não me é indifferente; mas poderei estar certo dos sentimentos -della? Ella mesma poderá affirmar alguma cousa a tal respeito? Ha alli -muita frivolidade que me assusta; illude-a talvez uma impressão -passageira. -</p> - -<p> -—Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão -passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto -de partida. O marido fara a mulher. Convenho que Eugenia não tem todas -as qualidades que voce desejaria; mas não se póde exigir tudo; alguma -cousa é preciso sacrificar, e do sacrificio recíproco é que nasce a -felicidade doméstica. -</p> - -<p> -As reflexões eram exactos: por isso mesmo Estacio as interrompeu. O -filho do conselheiro achava-se n'uma posição difficil. Caminhara para -o casamento com os olhos fechados; ao abril-os viu-se á beira de uma -cousa que lhe pareceu abysmo, e era simplesmente um fôsso estreito. De -um pulo poderia transpol-o; mas, se não era irresoluto nem debil, tinha -elle acaso vontade de dar esse salto? -</p> - -<p> -Insistindo Helena, prometteu elle que nessa tarde iria visitar Camargo. -De tarde desabou um temporal violento. A fôrça do vento e da trovoada -abrandou; mas a chuva continuou a cahir com a mesma violencia; era -impossivel ir ao Rio Comprido. Estacio estimou aquelle obstaculo; era -melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colhêr algum -desgôsto juncto della. -</p> - -<p> -De pe, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via elle cahir -os grossas toalhas de agua. A seu lado estava sentada Helena, não -alegre, mas taciturna e melancholica. -</p> - -<p> -—É tão bom ver chover quando estamos abrigados, exclamou elle. Tenho -la na estante um poeta latino que diz alguma cousa neste sentido... Que -tem voce? -</p> - -<p> -—Estou pensando nos que não tem abrigo, ou o tem mau; nos que não tem -neste momento nem tectos solidos nem corações amigos ao pe de si. -</p> - -<p> -A voz da moça era trémula; uma lagryma lhe brotou dos olhos, tão -rapida que ella não teve tempo de a dissimular. Sorprehendida nessa -manifestação de sensibilidade, inexplicavel talvez para o irmão, -ergueu-se e procurou gracejar e rir. O riso parecia uma cristalisação -da lagryma; e o gracejo tinha ares do responso. Estacio não se -illudiu; nada daquillo era claro,—ou era tão claro como a carta. Seu -olhar, severo e frio, interrogou mudamente a moça. Helena, que tivera -tempo de tranquillisar-se, voltou o rosto para a rua, e começou a rufar -com os dedos na vidraça. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="IX">CAPITULO IX</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Naquella mesma noite D. Ursula, que não havia de todo melhorado, -adoeceu devéras. A familia, mal convalecida da perda de seu velho -chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso exposta a -novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu -principio a rigoroso tratamento. -</p> - -<p> -Helena era naquella occasião a natural enfermeira. Pela primeira vez -patenteou-se em todo o explendor a dedicação filial da moça, sua -constancia, solicitude e tino. As horas do dia, e não poucas noites -inteiras, passava-as na alcova de D. Ursula, attenta a todos os cuidados -que a gravidade da enfêrma exigia. Os remedios e o pouco alimento que -ésta podia receber não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava -á cabeceira durante o somno leve e interrompido da doente, achando em -suas proprias fôrças a resistencia que a natureza confiou -especialmente ás mães. Quando dava algum repouso ao corpo, não era -elle ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do -leito, collocado provisoriamente no quarto contiguo, para ir espreitar a -mucama que em seu logar acompanhava a enfêrma. As prescripções do -médico era ella quem as recebia e cumpria. A voz dura e sêcca com que -Camargo lhe falava não era propria a tornal-o amavel e aceito, mas -Helena cerrava os ouvidos á antipathia do homem para só obedecer ao -médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos -phenomemos da doença; nem podia achar quem melhor os observasse e -referisse; fôrça lhe era acceital-a. Assim que, essas duas pessoas que -se repeliam e detestavam, iam de accordo desde que se tratava da vida de -um terceiro. -</p> - -<p> -O que completava a pessoa de Helena e ainda mais lhe mereceu o respeito -de todos é que, no meio das occupações e preocupações daquelles -dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ella regeu a -familia e serviu a doente, com egual desvello e beneficio. A ordem das -cousas não foi alterada nem esquecida fóra da alcova de D. Ursula; -tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinario se -houvesse dado. Helena sabia dividir a attenção sem dispersal-a, que é -o principal segrêdo do trabalho fecundo. -</p> - -<p> -De si é que ella não curou muito. A <i>toilette</i> era singella e -descuidada. Os cabellos, colhidos á pressa e presos por um pente no -alto da cabeça, não receberam de sua dona, em todo aquelle tempo, a -fórma elegante e graciosa, com que ella os saiba realçar. Accrescia o -abatimento e pallidez, que era impossivel evitar no meio de tanta -fadiga, certo cançasso dos olhos, que os fazia molles e talvez mais -adoraveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio attento e -laborioso. -</p> - -<p> -A doença durou cêrca de vinte dias. Afinal, triumphou a sciencia e a -propria natureza de D. Ursula, robusta apezar dos annos. A -convalecença começou; com ella volveu a satisfação da familia. O -papel de Helena não estava acabado; diminuia, contudo, e Estacio -interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto -repouso. Ella recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria -aos poucos recuperado. -</p> - -<p> -Havia no coração de D. Ursula uma fonte de ternura, que Helena devia -tocar, para jorrar livre e impetuosamente. Sua dedicação, em tal -crise foi a vara mysteriosa daquella Oreb. A affeição da tia era até -então frouxa, voluntaria e deliberada. Depois da molestia, avultou -expontanea. A experiencia do caracter da moça dera esse resultado -inevitavel. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou -fortemente o que tantas circumstâncias anteriores pareciam separar. -Não o occultou a irmã do conselheiro; suas maneiras não tinham ja -acanhamento nem reserva; as palavras subiam do coração á boca sem -atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe. -</p> - -<p> -No dia em que ella pôde sahir do quarto pela primeira vez, Helena -deu-lhe o braço e levou-a até á sala de costura e das reuniões -íntimas. Estacio amparou-a do outro lado. Alli chegando, foi ella -sentada n'uma poltrona. Estacio abriu um pouco a janella, para penetrar -além da luz, um pouco de ar. D. Ursula respirou á larga, como lavando -o pulmão cora aquella primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos -de Helena, que ficára de pe a seu lado, fel-a inclinar a fronte e -imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estacio -approximara-se; aquella manifestação encheu-o de júbilo. -</p> - -<p> -—Bem merecido beijo!—exclamou elle. Helena foi um anjo em todo -este tempo. -</p> - -<p> -—Bem sei,—retorquiu D. Ursula; foi um verdadeiro anjo, foi -mulher, mãe e filha. Obrigada, Helena! Póde ser que a medicina tenha -ajudado a cura, mas o principal merito é só teu. -</p> - -<p> -Helena abraçou a convalecente. -</p> - -<p> -—Estacio,—disse ésta; agradece a tua irmã, como eu fiz. -</p> - -<p> -Estacio inclinou-se para Helena afim de lhe pousar na fronte o casto -ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena desviando o busto e -reclinando a cabeça para traz, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e -disse: -</p> - -<p> -—Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um apêrto de mão e -o affecto de todos. -</p> - -<p> -Estacio apertou-lhe a mão, e sentiu-lh'a trémula. Aquelle movimento de -castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais -bella. Uma creatura tão ciosa de si mesma que nem admittia a caricia do -irmão, não era digna de honrar o nome da familia? -</p> - -<p> -A convalecença de D. Ursula foi lenta, e não a houve mais rodeada de -cuidados e attenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante -sosinha, e inventavam toda a sorte de recreio com que pudessem -distrahil-a: jogos de familia ou leitura, musica ou simples palestra -íntima. Uma vez lembraram-se de representar, só para ella, uma comedia -de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que -tomaram parte Eugenia Camargo, e mais tres moças da visinhança. Foi a -primeira vez que a ouviram cantar. O successo não podia ser mais -completo. Como o applauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a -filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triumpho, fazendo-a -executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estacio, que -quasi não tirava os olhos da irmã, percebeu-lhe a intenção, e -disse-lh'o. Helena esquivou-se à allusão; mas, insistindo elle: -</p> - -<p> -—Não ha nada que admirar, disse ella; Eugenia toca perfeitamente; ora -justo que tambem fosse applaudida. Se ha arte no que fiz, parece-me que -é a mais singella do mundo. O melhor modo de viver em paz, é nutrir o -amor proprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugenia nem -precisa disso; tem a primazia da belleza. Veja se ha creatura mais -deliciosa. -</p> - -<p> -Estacio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de -duas moças e dous rapazes. Eugenia pelo braço de um delles, estava de -pe, ouvindo sem attender as palavras, que alli diziam, por que seus -olhos inquietos derramavam-se por toda ella e pela sala. Admirava-se e -espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa; -mas Estacio quizera-a mais inconsciente, menos preoccupada do effeito -que produzia. -</p> - -<p> -—Ha cem bellezas como aquella, disso elle. -</p> - -<p> -—Estacio! exclamou Helena com ar de reprehensão. -</p> - -<p> -—A belleza é como a bravura; vale mais se não a mettem á cara dos -outros. -</p> - -<p> -—Voce é um ingrato! -</p> - -<p> -Naquella noite ficou mais patente que nunca a preponderancia ganha por -Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a directora ouvida e -obedecida. D. Ursula cedêra, em poucas semanas, o que lhe negára -durante mezes. -</p> - -<p> -Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguíra ella -apressar o casamento de Estacio? Estacio continuava a hesitar, a recuar, -a adiar; pedia tempo para reflectir. Suas ausencias no Rio Comprido -iam-se tornando mais longas; os dias, quasi todos, eram desfiados no -remanso da familia. Mas Helena insistiu tanto que elle prometteu fazer o -solemne pedido no primeiro dia do anno. -</p> - -<p> -Estacio não havia esquecido a carta lida pela irmã; mas por mais que a -espreitasse e a estudasse nada descobria que lhe fizesse suppor -affeição encoberta. Nenhum dos homens que iam alli,—e eram -poucos,—parecia receber de Helena mais do que a cortezia commum. D. -Ursula, a quem elle incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras -que ésta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve -resposta mais decisiva. -</p> - -<p> -A promessa de ir pedir Eugenia, fel-a Estacio na segunda semana de -Dezembro, em uma noite sem visitas que eram as melhores noites para -elle. No dia seguinte de manha, erguendo-se tarde, soube que Helena -sahíra a cavallo logo cedo. -</p> - -<p> -—Sosinha? -</p> - -<p> -—Com o Vicente. -</p> - -<p> -Vicente era o escravo que, como sabemos, se affeiçoára, primeiro que -todos, a Helena; Estacio designara-o para servil-a. A notícia do -passeio não lhe agradou. O tempo andava com o mesmo passo de costume; -mas á anciedade do mancebo affigurava-se que era mais longo. Estacio -chegava á janella, ia até o portão da chacara, cora ar de apparente -indifferença, que a todos illudia, a começar por elle proprio. N'uma -das vezes em que voltou a casa, achou levantada D. Ursula; falou-lhe; D. -Ursula sorriu com tranquillidade. -</p> - -<p> -—Que tem isso? disse ella. Ja uma vez sahiu a passeio com o Vicente e -não aconteceu nada. -</p> - -<p> -—Mas não é bonito, insistiu Estacio. Não está livre de um acto de -desattenção. -</p> - -<p> -—Qual! Toda a visinhança a conhece. Demais, Vicente ja não é tão -creança. Tranquillisa-te, que ella não tarda. Que horas são? -</p> - -<p> -—Oito. -</p> - -<p> -—Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que ja ouço um tropel. -</p> - -<p> -Os dous estavam na sala de juntar: passaram á varanda, e viram -effectivamente entrar no terreiro Helena e o pagem. Helena deu um salto -e entregou a redea de <i>Moema</i> ao pagem que acabava de apear-se. Depois -subiu a escada da varanda. Ao collocar o pe no primeiro degrau, deu com -os olhos nu irmão e na tia. Fez-lhes um comprimento com a mão, e subiu -a ter com elles. -</p> - -<p> -—Ja de pe! exclamou abraçando D. Ursula. -</p> - -<p> -—Ja, para lhe ralhar,—disse ésta sorrindo. Que ideia foi essa -de bater a linda plumagem? É a segunda vez que voce se lembra de sahir sem -o urso do seu irmão. -</p> - -<p> -—Não quiz incommodar o urso, replicou ella voltando-se para Estacio. -Tinha immensa vontade, de dar um passeio, e <i>Moema</i> tambem. Apenas -hora e meia. -</p> - -<p> -Aquelle dia foi o de maior tristeza para a moça. Estacio passou quasi -todo o tempo em seu gabinete; nas poucas occasiões em que se -encontraram, elle só falou por monosyllabos, ás vezes por gestos. De -tarde, acabado o jantar, Estacio desceu á chacara. Ja não era só o -passeio de Helena que o mortificava; ao passeio jantava-se a carta. -Teria razão a tia em suas primeiras repugnancias? Como elle fizesse -essa pergunta a si mesmo, ouviu atraz de si um passo apressado e o -farfalhar de um vestido. -</p> - -<p> -—Está mal commigo? perguntou Helena com doçura. -</p> - -<p> -Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a colera do mancebo. Voltou-se; Helena -estava deante delle, com os olhos submissos e puros. Estacio reflectiu -um instante. -</p> - -<p> -—Mal? disse elle. -</p> - -<p> -—Parece que sim. Não me fala, não se importa commigo,—anda -carrancudo... Seria por que eu sahi do manhã? -</p> - -<p> -—Confesso que não gostei muito. -</p> - -<p> -—Pois não sahirei mais. -</p> - -<p> -—Não; póde sahir. Mas está certa de que não corre nenhum perigo -indo só com seu pagem? -</p> - -<p> -—Estou. -</p> - -<p> -—E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim? -</p> - -<p> -—Não sei se poderei obedecer. Nem sempre voce poderá acompanhar-me; -além disso, indo com o pagem, é como se fosse só; e meu espirito gosta -ás vezes de trotar livremente na solidão. -</p> - -<p> -—Naturalmente a pensar de cousas amorosas... acrescentou Estacio -cravando os olhos interrogadores na irmã. -</p> - -<p> -Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram -silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estacio -sentou-se; Helena ficou de pe diante delle. Olharam um para outro sem -proferir palavra; mas o labio de Estacio tremêra duas ou tres vezes -como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se. -</p> - -<p> -—Helena, disse elle, voce ama. -</p> - -<p> -A moca estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si como assustada -e pousou as mãos nos hombros de Estacio. Reflectiu ella no que disse -depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa occasião parecia concentrar -todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente: -</p> - -<p> -—Muito! muito! muito! -</p> - -<p> -Estacio empallideceu. A moça recuou um passo, e, trémula, poz o dedo -na boca como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava em seu rosto; -Helena deu as costas ao irmão e affastou-se rapidamente. Ao mesmo -tempo, a sineta do portão era agitada com fôrça, e uma voz atroava a -chacara: -</p> - -<p> -—Licença para o amigo que vem do outro mundo! -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="X">CAPITULO X</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Estacio dirigiu-se ao portão. Abria-o; um moço que alli estava entrou -precipitadamente. Era Mendonça. Os dous mancebos lançaram-se nos -braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquella -effusão, e não lhe foi difficil adivinhar quem era o recem-chegado. -</p> - -<p> -A effusão cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os -dous rapazes se julgaram assaz abraçados, tomaram o caminho da casa. -Helena, que estava um pouco adiante delles, foi apresentada a Mendonça. -Ao ouvir que era irmã de Estacio, Mendonça ficou naturalmente -espantado. Cortejou ceremoniosamente a moça, e os dous seguiram até a -casa, onde pouco depois entrou Helena. -</p> - -<p> -Mendonça era da mesma estatura que Estacio, um pouco mais cheio, -hombros largos, physionomia risonha e franca, natureza mobil e -expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era, -arrancado de fresco ao <i>boulevard</i> de Gand, ao cafe Tortoni e ás -recitas do Vaudeville. A mão larga e forte calçava fina luva côr de -palha, e sôbre o cabello, penteado a capricho, pousava um chapeu de -fabrica recente. -</p> - -<p> -Estacio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena, -cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer -comprehender o respeito e a affeição que ella de todos merecia. Helena -adivinhou esse trabalho preparatorio do irmão logo que entrou na sala. -</p> - -<p> -Mendonça divertiu a familia uma parte da noite contando os melhores -episodios da viagem. Era narrador agradavel, fluente e pitoresco, -dotado de grande memoria e certa fôrça de observação. Seu espirito -galhofeiro achava mais facilmente o lado comico das cousas; e mais se -comprazia em dizer os accidentes de um jantar de hotel ou de uma noite -de theatro que em descrever as bellezas da Suissa ou os destroços de -Roma. -</p> - -<p> -A visita durou pouco mais do hora. Estacio quiz acompanhal-o até a -cidade; elle não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a -chacara, falaram do passado, e um pouco do futuro, a trechos soltos, -como o lugar e a occasião lhes permittiam. Mendonça, vendo que Estacio -não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o aventou. -</p> - -<p> -—Fallaste-me em uma de tuas cartas de certa Eugenia... -</p> - -<p> -—A filha do Camargo. -</p> - -<p> -—Justo. Negocio roto? -</p> - -<p> -—Quasi terminado. -</p> - -<p> -—Terminado... na egreja, supponho? -</p> - -<p> -—Tal qual. -</p> - -<p> -—Quando? -</p> - -<p> -—Brevemente. -</p> - -<p> -—Marido, emfim! Era só o que te faltava. Nasceste com a bossa -conjugal, como eu com a bossa viajante, e não sei qual de nós terá razão. -</p> - -<p> -—Talvez ambos. -</p> - -<p> -—Creio que sim. Tudo depende do gôsto de cada um. O casamento é a -peor ou a melhor cousa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi -algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não te pergunto se -é um anjo... -</p> - -<p> -—É um anjo. -</p> - -<p> -—Como todas as noivas. Feliz Estacio! Segues a carreira de tua -vocação, em quanto que eu... -</p> - -<p> -—Tu? -</p> - -<p> -—Interrompo a minha e talvez para sempre. Preciso cuidar da vida; não -sou capitalista, nem meu pae tão pouco. Adeus, viagens! -</p> - -<p> -—Tanto melhor! Arranjo-te noiva. Não é a tua vocação, mas não -serás o primeiro que a erre, sim que dahi venha mal ao mundo. -</p> - -<p> -—Pois arranja la isso. Em todo caso não será tua irmã. -</p> - -<p> -—Oh! não, disse vivamente Estacio. -</p> - -<p> -—Na verdade, é bonita; mas... se permittes a franqueza de outr'ora, -acho-lhe uma costella de desdem... -</p> - -<p> -—Que ideia! É a mais affavel creatura do mundo. Veras mais tarde; -hoje estava talvez preoccupada. Em todo o caso, não havias de querer que -ella saltasse a dansar contigo na sala, de mais a mais sem musica. -</p> - -<p> -Mendonça acabava de accender um charuto; apertou a mão de Estacio e -sahiu. Estacio accordou de um sonho. A realidade poz-lhe suas mãos de -chumbo e repetiu-lhe ao ouvido a confissão interrompida de Helena. -Ancioso por saber o resto, entrou elle immediatamente em casa. A -diligencia foi esteril, por que a irmã recolhera-se a seu aposento. -Estacio imitou-a. Era forçoso esperar uma noite inteira, demora que o -affligia, porque, dizia elle consigo mesmo, cumpria-lhe velar pela sorte -de Helena, como irmão e chefe de familia, indagar de seus sentimentos, -e ordenar o que fôsse melhor. Uma noite não em muito; comtudo, a -preoccupação retardou-lhe o somno. A confissão subita, laconica e -eloquente da irmã ficara-lhe no espirito como se fôra o echo perpétuo -de uma voz extincta. -</p> - -<p> -Nem no dia seguinte nem nos subsequentes alcançou o que esperava. -Helena, ou evitava ficar a sos com elle, ou esquivava-se a maior -explicação. Nos passeios matinaes, que eram frequentes, procurou -Estacio mais de uma vez enterreirar a conversa no assumpto que, mais que -nenhum outro, o preoccupava. Helena ouvia com um sorriso, e respondia -com uma gracejo; depois dava de redea á conversação e galopada na -direcção opposta. Como a fantasia era campo vasto, nunca mais o moço -lograva trazel-a ao ponto de partida. -</p> - -<p> -Um dia, a insistencia de Estacio teve tal caracter de autoridade, que -pareceu constranger e molestar Helena. Ella replicou com remoque; elle -redarguiu com uma advertencia aspera. Iam ambos a pe, levando os animaes -pela redea. Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e -fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das -estrêllas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estacio possuia -essas duas cousas que nunca hão de conhecer corações mediocres: a -nobre retratação do êrro e a generosidade do perdão. Viu que cedêra -a um mau impulso, e confessou-o; mas confessou-o com palavras taes, que -Helena travou-lhe da mão e lhe disse: -</p> - -<p> -—Obrigada! Se me não dissesse isso, ver-me-hia desparar por este -caminho fóra até o fim do mundo ou até o fim da vida. -</p> - -<p> -—Helena! -</p> - -<p> -—Oh! não é vão melindre, é a propria necessidade da minha -posição. Voce póde encaral-a com olhos benignos; mas a verdade é que -só as azas do favor me protegera. Pois bem, seja sempre generoso, como -foi agora; não procure violar o sacrario de minha alma. Não insista em -pedir a explicação de palavras mal pensadas e ditas em ma hora... -</p> - -<p> -—Mal pensadas? Póde ser; mas por isso é que são verdadeiras; se -voce tivera tempo de as meditar, guardal-as-hia comsigo, avara de seus -segredos e suspeitosa de corações amigos. Meu fim era somente ajudal-a -a ser venturosa, destruir... -</p> - -<p> -—É tarde! interrompeu a moça consultando o reloginho preso á -cintura. Vamos? -</p> - -<p> -Estacio sorriu melancholicamente; offereceu-lhe o joelho, ella pousou -nelle o pesinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi menos -alegre do que costumava ser. Elles falavam, mas a palavra vinha aos -labios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma colera, mas nenhuma -animação. Assim correu aquelle dia; assim correriam outros, se não -fôra a vara magica de Helena. Seu natural influxo era tão forte, que o -irmão voltou desde logo ás boas, sendo as melhores horas as que -passava ao pe della, a escutal-a e a vel-a, ambos contentes e felizes. O -episodio da confissão vinha as vezes, como hóspede importuno, -projectar entre elles seu nebuloso perfil; mas o espirito de Estacio -repellia-o, e a alegria da irmã fazia o resto. -</p> - -<p> -Entretanto, graças ao amigo recem-chegado, o filho do conselheiro sahiu -um pouco de suas regras habituaes, e começou a provar alguma cousa mais -da vida exterior. Mendonça buscava realizar, em miniatura, o seu -esvaido ideal parisiense; havia nelle o movimento, a agitação, a -galhofa, que absolutamente faltavam a Estacio, e vieram dar-lhe á vida -a variedade que ella não tinha. Alguns expectaculos e passeios, uma ou -outra ceia alegre, mas casta, tal foi o programma de uma parte infima da -existencia de Estacio. Para contrastar com ella, tinha elle as manhãs do -Andarahy e algumas noites do Rio Comprido. Ao amigo e á sua -consciencia, dizia o moço que estava a despedir-se da liberdade. -</p> - -<p> -A influência de Mendonça estendeu-se á propria casa de Estacio. -Mendonça gostava sobretudo da variedade ao viver; não tolerava os -mesmos prazeres, nem os mesmos charutos; para os apreciar tinha -necessidade do os alternar frequentemente. Se fôsse possivel, era capaz -de fazer-se monge durante um mez, antes do carnaval, trocar o hábito -por um dominó, e atar as últimas notas das matinas com os preludios da -contradança. Sua fidelidade á moda custava-lhe um pouco quando ésta -não ia a passo com a sua impaciencia. Em sua opinião o que distinguia -o homem do cão era a faculdade de fazer com que uma noite se não -parecesse com outra. O Rio de Janeiro não lhe offerecia a mesma -variedade de recursos que Paris; mas seu genio era inventivo e fertil, e -não lhe faltaria meio de fugir á uniformidade dos habitos. -</p> - -<p> -O peor que lhe acontecia era a disparidade entre os desejos e os meios. -Filho de um commerciante, apenas remediado, não teria elle podido -realizar a viagem á Europa, nas proporções largas em que o fez, a -não ser a intervenção benefica de uma parenta velha, que se incumbira -de lhe ministrar os recursos de que elle carecesse durante aquella longa -ausencia. Nem a parenta continuaria a abrir-lhe a bolsa, nem pae queria -crear-lhe habitos de ociosidade. Tratava este, portanto, de obter-lhe um -emprêgo público. Mendonça estava longe de recusar; pedia somente que -o emprêgo o não deslocasse da Côrte. -</p> - -<p> -Inquieto, amigo da vida ruidosa e facil, intelligente sem largos -horisontes, possuindo apenas a instrucção precisa para desempenhar-se -regularmente de qualquer commissão de certa ordem, Mendonça, com todos -os seus defeitos e boas qualidades, era homem agradavel e acceito. Seus -defeitos eram antes do espirito que do coração. A variedade que elle -pedia para as cousas externas e de menor tomo, não a praticava em suas -affeições, que eram geralmente inalteraveis e fieis. Era capaz de -sacrificio e dedicação; sobretudo, se lhe não pedissem o sacrificio -deliberado ou a dedicação reflectida, mas aquelles que exige uma -circumstância imprevista e subita. -</p> - -<p> -Não admira que a presença de tal homem viesse modificar o tom da -sociedade de que era centro a familia de Estacio, quando elle alli fazia -alguma apparição. Era o sal daquella terra. Não tinha a rijeza do -figurino, nem a <i>morgue</i> do estrangeirado. A tesoura do alfaiate não -lhe dissimulára a indole expansiva e franca. Acolhido como um filho, -tinha alli uma porção de sua casa. Que melhor aspecto podia ter a vida -em taes condições, naquella familia ligada por um sentimento de amor? -</p> - -<p> -A noite do ultimo dia do anno veiu turvar a limpidez das aguas. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XI">CAPITULO XI</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Naquelle dia fazia annos Estacio, e D. Ursula assentira receber algumas -pessoas a jantar, e outras mais á noite, em reunião íntima. Ella e -Helena tomavam a peito fazer com que a pequena festa de familia fosse -digna do objecto. Estacio opinou pela suppressão do sarau; mas era -difficil alcançar a desistencia de corações que o amavam. -</p> - -<p> -Logo de manhã, como elle se levantasse cedo, encontrou Helena que o -convidou a seguil-a á sala de costura. -</p> - -<p> -—Quero dar-lhe o meu presente de annos, disse ella. -</p> - -<p> -Alli entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só, -mas significativo: era uma parte da estrada de Andarahy—a mesma por -onde elles costumavam passear, mas com algumas particularidades do -primeiro dia. Dous cavalleiros, elle e ella, iam subindo a passo lento; -ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro -plano, desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data; <i>25 de -Julho de 1850</i>. -</p> - -<p> -Estacio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça -retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria. -Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das -linhas, a exacção das circumstâncias locaes, as impressões de uma -hora fugitiva que o lapis da irmã tivera a arte de fixar no papel. -</p> - -<p> -—Não podia fazer-me presente melhor, disse elle; da-me uma parte de -si mesma, um fructo de seu espirito. E que fructo! Não ha muita moça que -desenhe assim. Era talvez por isso que voce sahia algumas vezes sosinha -com o pagem? -</p> - -<p> -Estacio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos labios -e beijou-o. O ósculo acertou de cahir na cabeça da cavalleira. Foi o -original que corou. -</p> - -<p> -—Andavam a gabar meus talentos,—disse Helena apos um instante; -tive a vaidade de dar uma pequena amostra... -</p> - -<p> -—Excellente amostra! Não acha, titia? disse, o moço a D. Ursula, que -nesse instante apparecêra á porta, trazendo o seu presente, n'uma -bocetinha de joalheiro. -</p> - -<p> -D. Ursula não tinha, de certo, o instincto da arte; mas o amor da -familia lhe ensinára uma esthetica do coração, e essa bastou a -fazel-a admirar o trabalho de Helena. -</p> - -<p> -—Mas que digo eu todos os dias? exclamou D. Ursula. Ésta pequena sabe -tudo! -</p> - -<p> -—Quasi tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei de -agradecer... -</p> - -<p> -—O que, tontinha? interrompeu a tia. Algum, disparate, naturalmente, -improprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje. -</p> - -<p> -Em quanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia, -Estacio mandou sellar o cavallo e sahiu. Queria comparar ainda uma vez o -desenho do Helena com o sitio copiado. A fidelidade era completa, e o -quadro seria absolutamente o mesmo, se dessem algumas circumstâncias -da primeira occasião. Helena não ia ao lado delle; mas a vinte braças -de distância fluctuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estacio -afrouxou o passo do cavallo, como saboreando as recordações da -primeira manhã, quando Helena se lhe mostrára tão singularmente -commovida. Volveu a reflectir na situação della, e na paixão que lhe -confessára, dias antes, com tamanha vehemencia. Se se tratava de uma -felicidade possivel, embora difficil, Estacio prometteu a si mesmo -alcançar-lh'a. Não era isso servir o sangue do seu sangue? -</p> - -<p> -A casa do alpendre, até alli indifferente a Estacio, creava agora para -elle um interesse especial. Á medida que se approximava, ia achando no -edificio a fiel reproducção do desenho. Este não apresentava todas as -particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições -exteriores, como se fôra feita deante do original. -</p> - -<p> -A uma das janellas estava um homem, com a cabeça inclinada, attento a -ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa attitude não era facil -examinal-o; affigurava-se, entretanto, uma creatura mascula e bella. A -duas braças de distância, o individuo levantou a cabeça, e cravou em -Estacio um par de olhos grandes e serenos; immediatamente os retirou, -baixando-os ao livro. -</p> - -<p> -—Mal sabes tu, philosopho matinal, disse Estacio comsigo,—mal -sabes tu que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bella -mão do universo! -</p> - -<p> -O philosopho continuou a ler, e o cavallo continuou a andar. Quando -Estacio regressou dahi a alguns minutos, achou somente a casa; o morador -desaparecêra; circumstância indifferente, que escapou de todo à -attenção do moço. Nem elle pensava mais naquillo; seu pensamento -trotava largo, á ingleza, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como -anciosos de chegar ao ponto da partida. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XII">CAPITULO XII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -A festa correu animada, posto o reunião fôsse restricta. Algumas -voltas da valsa, duas ou tres quadrilhas, jogo e musica, muita conversa -e muito riso, tal foi o programma da noite, que a encheu e fez mais -curta. -</p> - -<p> -Se as honras da casa foram feitas por Helena, a alma da festa era -Mendonça, cujo espirito havia ja recebido e colhido o suffragio -universal. Eugenia dera-lhe, antes de todos, o seu voto. Havia entre -ambos tal ou qual afinidade de indole, que naturalmente os approximava. -Mendonça lisongeava os caprichos de Eugenia, applaudia-a, -comprehendia-a, obedecia-lhe sem constrangimento nem reparo. Quando -Mendonça valsava com Eugenia, todos os olhos se concentravam nelles. -Eram valsitas de primeira ordem. As ondulações voluptuosas do corpo de -Eugenia e a serenidade e segurança de seus passos, adaptavam-se -maravilhosamente áquella especie de dança,—a unica que nossos -costumes formalistas possuem. Era bello vel-os percorrer o vasto -círculo deixado a seus movimentos; vel-os emfim parar com a mesma -precisão e sem o menor symptoma de cançasso. Eugenia punha toda a sua -attenção naquelle gesto de braço com que as mulheres, logo que -interrompem ou cessam de todo a valsa, conchegam ao corpo a saia do -vestido, cujo movimento rotatorio póde dar lugar a alguma -indiscrição. O prazer com que ella fazia esse gesto, e a graça com -que o acompanhava de uma leve inclinação do corpo mostravam que, mais -ainda a faceirice do que a necessidade, lhe movia o corpo e a mão. -</p> - -<p> -Ésta sorte de triumphos enchia a alma de Eugenia; e, porque ella não -possuia nem a modestia nem a arte de o simular, via-se-lhe no rosto o -orgulho e a satisfação. A dança não era para a filha de Camargo um -goso ou um recreio somente; era tambem um adorno e uma arma. Dahi vinha -que o valsista mais intrepido e constante era tambem o principal -parceiro do seu espirito; e ninguem disputava esse papel ao filho do -commerciante. -</p> - -<p> -—Sua filha é a rainha da noite, murmurou o Dr. Mattos ao ouvido de -Camargo, em um intervallo do voltarete. -</p> - -<p> -—Não é verdade? acudiu o médico. -</p> - -<p> -E a alma do pae voava enrolada nas pontas da fita que apertava a cintura -de Eugenia, não regressando ao domicilio se não quando a moça parava. -Então volvia Camargo um olhar em torno de si, como pedindo egual -admiração. Depois ficava sombrio, e mais do que usualmente, cahia em -longos e mortaes silêncios. Tres ou quatro vezes approximára-se de -Helena sem lograr detel-a, nem adiarem si mais que duas palavras -triviaes. Insistia; não a perdia de vista, parecia ancioso de a -conversar sôbre alguma cousa. -</p> - -<p> -Helena repartia-se entre todas as pessoas, attenta aos mil cuidados que -a noite requeria. Cantou uma vez, dansou uma quadrilha, e não valsou. -Em vão Mendonça insistira com ella; a moça desculpou-se dizendo que a -valsa lhe fazia vertigens. Na opinião do filho do coronel-major ésta -razão encobria somente a ignorancia de Helena. Estacio pensava antes -que era a castidade selvagem da irmã que lhe não permittia o contacto -de um homem, ideia que lhe fez bem ao coração. -</p> - -<p> -Pela volta da meia noite, terminada a ceia, começou aquella hora de -repouso, que precede a total dispersão. As senhoras trocavam -impressões e commentarios, os rapazes fumavam, os jogadores decidiam as -últimas remissas. A noite não refrescara, e a agitação augmentára o -calor. Helena, tão cançada como D. Ursula, retirára-se por alguns -instantes para a sala contigua á principal; alli sentou-se n'um sopha, -e derreou levemente o corpo, deixando cahir os cilios, não sei se -pensativos, se pesados de somno. Seu espirito não tivera tempo de -encadear duas ideias ou esboçar um sonho, quando uma voz a accordou: -</p> - -<p> -—Ja dormindo! -</p> - -<p> -Era Camargo. -</p> - -<p> -Helena abriu os olhos sobresaltada. A voz de Camargo, produzira-lhe a -impressão de desagrado, que lhe fazia sempre. Sorriu a moca -contrafeitamente, e vendo que elle se dispunha a sentar-se no sopha, -não arredou o vestido, como se quizesse deixar entre ambos larga -distância: Camargo sentou-se. -</p> - -<p> -—Parece que se assustou? disse elle. -</p> - -<p> -—Um pouco. -</p> - -<p> -Camargo agitou entre as mãos os perendengues do relogio,—tão -numerosos como elles se usavam naquelle tempo; depois pegou -familiarmente no leque da moça, abriu-o, contou as varetas, tornou a -fechal-o e restituiu-o com um elogio. Helena respondeu-lhe com um -sorriso. Ia levantar-se, quando elle a deteve com éstas palavras: -</p> - -<p> -—Estimei achal-a só, por que precisava pedir-lhe um conselho. -</p> - -<p> -A testa de Helena contrahiu-se interrogativamente. -</p> - -<p> -—Um conselho e um favor, continuou o médico. Não será, creio eu, a -primeira vez que a velhice consulte a mocidade. Demais, trata-se de -assumpto em que a gente moça lê de cadeira. -</p> - -<p> -Helena olhou para elle desconfiada. Nunca vim o médico tão affavel, e -essa mudança de maneiras e de tom é que lhe fazia medo. Verdade é que -elle ia pedir-lhe alguma cousa; e a experiencia ensina que o interesse -é muito mais eloquente que o vinho e muito mais meigo que o amor. -Camargo não se deteve. Fez uma exposição rapida de suas relações -com a familia do conselheiro, do sentimento de amizade que o ligava a -ella. -</p> - -<p> -—A perda do meu finado amigo,—concluiu elle, não póde ser -supprida por nenhuma cousa; mas ha alguma compensação na affeição que -sobrevive e me faz considerar ésta familia como minha propria. Estou -certo de que seu irmão e D. Ursula sentem a meu respeito do mesmo modo. -Quanto á senhora, é recente na familia, mas não tem menor direito que -ella. Vi-a tão pequena! -</p> - -<p> -—A mim? perguntou Helena. -</p> - -<p> -Camargo fez um gesto affirmativo, em quanto a moça olhava em volta da -sala, receiosa de que alguem tivesse entrado e ouvido. Uma vez segura de -que ninguem havia, recebeu impressão contrária á primeira; -envergonhou-se daquelle receio. A vergonha augmentou quando o médico -accrescentou em voz baixinha: -</p> - -<p> -—Não falemos nisso... -</p> - -<p> -—Pelo contrário! exclamou ella. Pode falar com franqueza; diga tudo. -Era minha mãe. Não sei o que foi para o mundo; mas se me perdoaram a -irregularidade do nascimento, não creio que me pedissem em troca a -renúncia do meu amor de filha; a lei que o poz em meu coração é -anterior á lei dos homens. Não repudio uma só das minhas recordações -de outro tempo. Sei e sinto que a sociedade tem leis e regras dignas de -respeito; aceito-as taes quaes; mas deixem-me ao menos o direito de amar -o que morreu. Minha pobre mãe! Vi-a expirar em meus braços; recolhi o -seu último suspiro. Tinha apenas doze annos; contudo, não consenti, -que outra pessoa velasse á cabeceira a ultima noite que passou sobre a -terra... Oh! não a esquecerei nunca! nunca! nunca! -</p> - -<p> -Helena proferiu éstas palavras n'um estado de exaltação que até alli -se lhe não vira. Em vão Camargo procurou duas ou tres vezes -interrompel-a, receioso de que a ouvissem fóra, por que a moça tinha -levantado a voz. Helena não obedeceu; não viu se quer o gesto -supplicante do médico. O seio, castamente velado pelo corpinho, que -subia até ao pescoço, estava offegante e onduloso como a agua do mar -batida pelo vento. Á ultima palavra sahiu-lhe como um soluço. Camargo -sentiu-se sorprehendido com aquella explosão de ternura. Era evidente -que elle esperava outra cousa. Seguiu-se um breve silêncio, durante o -qual Helena mordia a ponta do lenço, como para conter a palavra que lhe -tumultuava no coração. O médico proseguiu emfim: -</p> - -<p> -—Ninguem lhe pede que a esqueça, disse elle; todos respeitam esses -sentimentos de piedade filial. O passado morreu, e o menos que se deve -aos mortos é o silêncio. A senhora tem o direito de lhe dar o amor e a -saudade. Mas falemos dos vivos; e perdoe-me se lhe toquei, sem querer, -em tão dolorosa recordação. -</p> - -<p> -—Não! não é dolorosa! disse ella abanando a cabeça. -</p> - -<p> -—Falemos dos vivos. Não está certa do amor de sua familia? -</p> - -<p> -Helena fez um gesto affirmativo. -</p> - -<p> -—Não poderia encontrar outra melhor nem tão boa. D. Ursula é uma -sancta senhora; Estacio um caracter austero e digno. Venhamos agora ao -conselho. Ha muito tempo ando com ideia de ir á Europa; estou -caminhando para a velhice; não quero deixar de ir ver alguma cousa -além do nosso Pão d'Assucar. Ja desfiz o projecto mais de uma vez. -Cuido que agora vou definitivamente realisal-o. Dá-se porém uma -circumstância grave. Sabe que minha filha ama seu irmão? Meus olhos -descobriram desde muito essa inclinação de um e outro, por que tambem -seu irmão ama minha filha. Merecem-se; e de algum modo continuam si -affeição dos paes; a natureza completa a natureza. Ésta é a -situação. O que eu desejava, porém, é que me dissesse se devo partir -ja, levando-a; ou se é melhor esperar que elles se casem. -</p> - -<p> -Helena ouvira o médico sem olhar para elle; quando elle acabou, fitou-o -admirada e curiosa. A puerilidade da pergunta era tão evidente que a -moça procurou ler no rosto do interlocutor o pensamento verdadeiro e -occulto. Camargo apressou-se a explicar-se. -</p> - -<p> -—Estacio,—disse elle,—póde amar Eugenia com ideias -matrimoniaes; mas tambem pode não passar isso de um capítulo de -romance, como o que se lê em uma viagem da Corte a Nictheroy. Seu -caracter é serio; mas o coração tem leis especiaes. Confesso que o -procedimento de Estacio nada me affirma a tal respeito. Ha nelle umas -mudanças pouco explicaveis. O tempo decorrido é mais que muito -sufficiente para que... Está reflectindo! -</p> - -<p> -—Estou. -</p> - -<p> -—E... -</p> - -<p> -—Supponho que pede mais do que me disse. Quer que eu indague a tal -respeito as intenções, de Estacio! -</p> - -<p> -—Isso. -</p> - -<p> -—Mas porque não se dirige a elle mesmo? -</p> - -<p> -—Não havia inconveniente; estabeleceu-se porém que um pae não deve -ser o primeiro a falar em taes cousas. É preciso respeitar a dignidade -paterna. Accresce que Estacio é rico, e tal circumstância podia fazer -suppor de minha parte um sentimento de cobiça, que está longe de meu -coração. Podia falar a D. Ursula; creio porém que ella não tem a -sua habilidade, e... porque o não direi? a sua influência no espirito -de Estacio. -</p> - -<p> -—Eu! -</p> - -<p> -—Oh! influência incontestavel! A senhora veiu completar a alma de seu -irmão. É visivel a affeição e o respeito que elle lhe tem. Demais, -em taes assumptos urna irmã é natural confidente e conselheira. -</p> - -<p> -Helena deu tres pancadinhas no joelho com a ponta do leque, e enfiou os -olhos pela porta de communicação entre aquella e a salla principal. -Depois voltou-se para o médico. -</p> - -<p> -—Sei que elles se amam,—disse ella,—e ja dei a minha -opinião a tal respeito. Eugenia parece ser minha amiga; meu irmão é -meu irmão; desejo-lhes todas as felicidades. Ha porém um limite á -intervenção de uma irmã; e não desejo ir além. Demais, seu pedido -é ocioso. -</p> - -<p> -—Porque? -</p> - -<p> -—Annuncie a viagem; e Estacio, se apressará a pedir-lhe sua filha. Se -o não fizer, é por que a não ama, conforme ella merece, e em tal caso -mais vale perder um casamento que fazel-o mau. -</p> - -<p> -—Sim? perguntou Camargo. -</p> - -<p> -—Naturalmente. -</p> - -<p> -—O conselho é excellente,—disse o médico depois de um instante, -mas tem o defeito substancial de supprimir a sua intervenção, que me é -necessaria. Vejamos o meio de combinar as cousas. Supponhamos que, -annunciada a viagem, Estacio não corresponde ás minhas esperanças. -Que devo fazer? -</p> - -<p> -—Embarcar. -</p> - -<p> -—Embarcar é arriscar o casamento. Ora, este casamento... é um de meus -sonhos. Desejo que os filhos continuem a affeição dos paes. Se Estacio -recuar, minhas esperanças esvaem-se-me como fumo; o tempo cavará um -abysmo entre os dous; Eugenia amará outro... Emfim, conto com a -senhora. -</p> - -<p> -—Commigo? -</p> - -<p> -—A senhora tem uma fôrça de resolução, uma fertilidade de -expedientes, um espirito capaz de emprezas delicadas, e, tratando-se da -felicidade de um irmão. Creio que empenhará todas as fôrças para -levar a cabo a mais pura das ambições. Não lhe peço um absurdo, -peço-lhe a felicidade de minha filha. -</p> - -<p> -Helena não respondeu; olhou de revez para elle, e cravou depois os -olhos no aguia branca tecido no tapete, sobre o qual pousava seu pe -impaciente e colerico. Podia referir mais detidamente qual o seu papel -juncto de Estacio, a respeito de Eugenia, seus pedidos, e a promessa do -irmão, que deveria ser cumprida, se o fosse, em algum dos seguintes -dias. Mas nem quiz dar esperanças que os acontecimentos podiam -dissipar, nem o coração lhe consentia mais larga confidencia. Ambos -elles viam que se detestavam cordialmente; mas se em Helena havia colera -abafada, em Camargo havia tranquillidade e observação. Elle contemplava -a moça, com o olhar fixo e metalico dos gatos; a mão esquerda, pousada -sobre o joelho, rufava com os dedos magros e pelludos. Nada dizia; mas -todo elle em uma interrogação imperiosa. Helena olhou ainda uma vez -para o médico. -</p> - -<p> -—Dá-me o seu braço até á sala? perguntou. -</p> - -<p> -Camargo sorriu. -</p> - -<p> -—Só isso? Eu dizia commigo outra cousa. -</p> - -<p> -—Que dizia então? perguntou Helena com aquelle ar de esmagadora -indifferença que só as mulheres possuem. -</p> - -<p> -—Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma moça, que acha -meio de visitar ás seis horas da manhã uma casa velha e pobre, não -tão pobre, que a não adorne garridamente uma flamula azul.. -</p> - -<p> -Helena fez-se livida; sua mão apertou nervosamente o pulso de Camargo. -Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o terror, a colera e a -vergonha. Atravez dos dentes cerrados Helena gemeu ésta palavra unica: -</p> - -<p> -—Cale-se! -</p> - -<p> -—Falo entre nós e Deus, disse Camargo. -</p> - -<p> -Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma rapidez com que -ella lhe empallidecêra. Helena quiz erguer-se; mas sentiu-se exhausta. -Ninguem da sala pôde perceber a impressão e o movimento; ninguem -olhava para alli. Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e -proferiu algumas palavras de animação, que ella interrompeu, -murmurando com amargura: -</p> - -<p> -—O senhor é cruel! -</p> - -<p> -—Sou pae, respondeu o médico; pae extremoso e discreto, mais discreto -ainda que extremoso, Conto com a senhora. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XIII">CAPITULO XIII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Dissolvida a reunião, Helena recolheu-se à pressa, com o pretexto de -que estava a cahir de somno, mas realmente para dar á natureza o -tributo de suas lagrymas. O desespêro comprimido tumultuava no -coração, prestes a irromper. Helena entrou no quarto, fechou a porta, -soltou um grito e lançou-se de golpe á cama, a chorar e a soluçar. -</p> - -<p> -A belleza dolorida é dos mais patheticos expectaculos que a natureza e -a fortuna podem offerecer á contemplação do homem. Helena torcia-se -no leito como se todos os ventos do infortunio se houvessem desencadeado -sôbre ella. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no -travesseiro. Gemia, intercortava o pranto com exclamações sôltas, -enrolava no pescoço os cabellos deslaçados pela violencia da -afflicção, buscando na morte o mais prompto dos remedios. Colerica, -rompeu com as mãos o corpinho do vestido, e o joven seio, livre de sua. -casta prisão, pode á larga desaffogar-se dos suspiros que o enchiam. -Chorou muito; chorou todas as lagrymas poupadas durante aquelles mezes -placidos e felizes,—leite da alma com que fez calar a pouco e pouco -os vagidos de sua dor. -</p> - -<p> -Calar somente, não adormecel-a, por que ella ahi lhe -ficou,—companheira daquella noite cruel, para velarem ambas. -Quando os olhos cançaram, e foram mais intervallados os soluços, -Helena jazeu immovel no leito, com o rosto sobre o travesseiro, fugindo -com a vista á realidade exterior. Uma hora esteve assim, muda, -prostrada, quasi morta, uma hora longa, longa, longa,—como só as -tem o relogio da afflicção e da esperança. -</p> - -<p> -Quando a tormenta pareceu extincta, a moça sentou-se na cama e olhou -vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se tropega á -<i>toilette</i>, que communicava com a alcova por uma porta; alli parou -deante do espelho, mas fugiu logo, como se lhe pesasse encarar consigo -mesma. Uma das janellas estava aberta; Helena foi alli aspirar um pouco -do ar da noite. Ésta era clara, tranquilla e quente. As estrêllas -tinham uma scintillação viva que as fazia parecer alegres. Helena -enfiou um olhar por entre ellas como procurando o caminho da felicidade. -Esteve á janella cêrca de meia hora; depois entrou, sentou-se e -escreveu uma carta. -</p> - -<p> -A carta era longa, escripta a golphadas, sem nexo nem ordem; continha -muitas queixas e imprecações; uma ternura expansiva de mistura com um -desespêro profundo; fallava daquelles que, tendo nascido sob a -influência de ma estrêlla, só tem felicidades intermittentes e -mutaveis; dizia que para ella a propria felicidade era um germen de -morte e dissolução,—ideia que repetia tres vezes, como se tal -observação fosse o transumpto de suas experiencias certas. A carta -fallava tambem de um homem, cujo egoismo de pae não conhecia limites, e -que a todo o trance queria que a filha desposasse uma grande riqueza e -uma grande posição,—«homem—dizia ella, que me viu a principio -com olhos avessos, pela diminuição que eu trazia á herança.» No fim -dizia que havia naquellas linhas muito de obscuro e incompleto; que -opportunamente contaria tudo; mas que desde ja podia dar a triste -notícia de que lhe era forçoso abster-se de sahir. -</p> - -<p> -Helena releu o escripto e meditou longo tempo sôbre elle; accrescentou -ainda algumas linhas; depois, rasgou o papel em dous pedaços, chegou-os -á vela, e os destruiu. Como arrependida, voltou a escrever outra carta, -mas não chegou a acabar seis linhas; rasgou-a como fizera á primeira, -e só então recorreu ao remedio melhor de uma alma ulcerada e pia: -rezou. A prece é a escada mysteriosa de Jacob: por ella sobem os -pensamentos ao ceu; por ella descem as divinas consolações. -</p> - -<p> -Entretanto, a noite começava a inclinar a urna das horas ás mãos da -madrugada. O somno fugira dos olhos de Helena; mas era forçoso -repousar. Assim mesmo vestida atirou-se sôbre o leito. Não dormiu, -não se póde dizer que dormisse; ficou alli n'um estado, que não era -vigilia nem somno, até que a manhã rompeu inteiramente. Abrindo os -olhos, pareceu accordar de um sonho; sua imaginação recompoz as phases -todas do acontecimento da vespera. Depois suspirou, e ficou longo tempo -a olhar para o chão, com a fixidez tragica e solemne da morte. -</p> - -<p> -—Era justo! murmurava de quando em quando. -</p> - -<p> -Levantou-se emfim; levantou-se abatida e cançada. Viu-se ao espelho; a -descorada face e a linha roxa que lhe circulava as palpebras -difficilmente podiam deixar de impressionar a familia. Helena disfarçou -como pôde esses vestígios da tempestade; explicou-os do modo mais -verosimil: o cançasso da vespera e a insomnia de toda uma noite. A -explicação não achou obstaculo no ânimo da tia e do irmão. Somente -o padre Melchior, presente a ella, fitou na moça um olhar dubitativo, -que a obrigou a baixar os cilios. -</p> - -<p> -Se Helena padecia, o logar de Estacio não era ao pe della? Assim o -pensou o sobrinho de D. Ursula, que em todo esse dia resolveu não sahir -de casa. Cercou-a de cuidados, buscou distrahil-a, pediu-lhe que fosse -repousar um instante. Para justificar a explicação que dera, Helena -obedeceu ás instrucções do irmão. Este foi encerrar-se no gabinete, -onde se occupou em examinar e colleccionar alguns papeis. Era o dia -marcado para solicitar de Eugenia o consentimento matrimonial, e elle -não cogitava em ir ao Rio Comprido. Na irmã, sim; na irmã pensava -elle, ora relendo as páginas de sua predilecção, ora mandando saber -se dormia socegada, ora contemplando o desenho com que ella o -presenteára na vespera. Sentia-se tão feliz naquella aurora do anno! -</p> - -<p> -Pouco antes do jantar ouviu no corredor um rumor de saias, e não tardou -que a irmã apparecesse á porta. Vinha como fôra; mas a Estacio -pareceu que effectivamente o descanço e o somno lhe haviam restaurado -as fôrças. A razão era o sorriso estudado que lhe avivava o rosto. -Helena parou e Estacio foi ter com ella, travou-lhe da mão, fel-a -entrar. -</p> - -<p> -—Estás melhor? perguntou. -</p> - -<p> -—Estou boa. -</p> - -<p> -—Não dizia eu que era melhor desistir da ideia da reunião? Éstas -festas prolongam-se, e fatigaram, sobretudo as pessoas franzinas... -</p> - -<p> -Helena ergueu os hombros. -</p> - -<p> -—Anda sentar-te um pouco. -</p> - -<p> -—Primeiro hade responder-me a uma cousa. -</p> - -<p> -—Que é? -</p> - -<p> -—Que dia é hoje? perguntou ella. -</p> - -<p> -—Anno bom. -</p> - -<p> -—Lembra-se do que me prometteu? -</p> - -<p> -—Perfeitamente. Ves estes papeis? disse elle mostrando sôbre a -secretária uma porção de papeis classificados e postos por ordem. -Occupei-me até agora em liquidar o passado; faltam-me umas últimas -contas, que o procurador hade trazer amanhã. Depois, irei... -</p> - -<p> -Helena abanou a cabeça com ar de desaprovação. -</p> - -<p> -—Não, disse ella; não hade ir depois, hade ir hoje mesmo. Que tem as -contas com a autorisação que deve pedir a Eugenia? Va logo de noite. -Sou supersticiosa; creio que o pedido feito no dia de hoje é de -excellente agouro. Dará um anno feliz. -</p> - -<p> -—Minha intenção era ir dentro de quatro ou cinco dias, respondeu -Estacio depois de silêncio; mas não tenho dúvida em fazel-o ja. Uma -vez preenchida a formalidade. -</p> - -<p> -—Pedil-a-ha immediatamente ao pae. -</p> - -<p> -—Não! -</p> - -<p> -—Porque? -</p> - -<p> -—Porque precisarei meditar ainda vinte e quatro horas, pelo menos. -Vinte e quatro horas não é muito para quem tem de amarrar-se -eternamente. Quero sondar meu proprio espirito, e... -</p> - -<p> -—Mas tudo isso é uma estravagancia! interrompeu Helena sentando-se na -borda da rede em que Estacio costumava ler. Pretenderá voce recuar -depois de lhe falar a ella? -</p> - -<p> -—Oh! não! Mas uma vez que caminho para solução tão grave, não ha -inconveniente em ir pe ante pe. Admiras-te? perguntou elle vendo que a -irmã fazia um gesto de impaciencia. -</p> - -<p> -—Zango-me. -</p> - -<p> -—Mas... -</p> - -<p> -—Voce é insupportavel. Falta ao que prometteu. -</p> - -<p> -—Ja disse que hei de cumprir. -</p> - -<p> -—Não recuará? -</p> - -<p> -—Não. -</p> - -<p> -—Irá pedil-a hoje mesmo? -</p> - -<p> -—A ella. -</p> - -<p> -—A ella e ao pae. -</p> - -<p> -—Ao pae escreverei uma carta. -</p> - -<p> -—Pois seja uma carta! Contanto que acabe com isso. O casamento -será... -</p> - -<p> -—Quando convier ao Dr. Camargo. -</p> - -<p> -—Antes do fim do mez. -</p> - -<p> -—Tão cedo! -</p> - -<p> -—Dou-lhe mez e meio. Nem uma hora mais! Estou morta por vel-os -casados, tanto por voce como por ella, coitada! que o ama tanto... -</p> - -<p> -—Cres? perguntou vivamente Estacio. -</p> - -<p> -—Se creio! Posso affirmal-o. Não será amor como voce quizera que -fôsse, mas é o amor que ella lhe pode dar, e é muito. Está dito! -Palavra? -</p> - -<p> -Estacio estendeu silenciosamente a mão, que Helena apertou. -</p> - -<p> -—Vou confiar todo o meu destino á cabeça mais leve do universo, disse -Estacio com os olhos fitos no chão. Não é de seu coração que me -queixo; mas de seu espirito, que nunca deixou as roupas da infancia. -Demais, á medida que me approximo da hora solemne, sinto que me repugna -o estado conjugal. É tão boa a minha vida de solteiro! tão cheios os -meus dias... -</p> - -<p> -Helena tapou-lhe a boca com uma das mãos; com a outra fez-lhe um gesto -para que se calasse. Depois, fugiu. Uma vez só, Estacio reflectiu -longamente na situação em que se achava; reconheceu que estava -moralmente obrigado a pedir Eugenia, desde que seus corações se tinham -aberto um para o outro, celebrando um contracto, que elle só não podia -romper. A consciencia rebellou-se contra as resoluções do coração, -e a decisão foi curta. -</p> - -<p> -Naquella mesma noite, ouviu Eugenia a esperada palavra. A alegria que se -lhe derramou nos olhos foi immensa e caracteristica. Um pouco mais de -recato não era descabido em tal occasião. Não houve nenhum; seu -primeiro acto de mulher foi uma meninice. Eugenia ignorava tudo, até a -dissimulação de seu sexo. Concedendo a mão a Estacio, não era uma -castellã que entregava o premio, mas um cavalleiro que o recebia com -alvorôço e submissão. -</p> - -<p> -Transposto o Rubicon, não havia mais que caminhar direito á cidade -eterna do matrimonio. Estacio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr. -Camargo pedindo-lhe a mão de Eugenia, carta sêcca e digna, como as -circumstâncias a pediam. Antes de a remetter, mostrou-a a Helena, que -recusou lel-a. Não a leu, nem lhe pegou. Elle teve-a alguns instantes -na mão, sem atrever-se a dal-a ao escravo que esperava por ella. Por -fim, deitou-a sôbre a secretária. -</p> - -<p> -—Amanhã, disse elle sorrindo para Helena. -</p> - -<p> -Helena lançou mão da carta e deu-a ao escravo. -</p> - -<p> -—Leva á casa do Sr. Dr. Camargo, ordenou a moça. Não tem resposta. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XIV">CAPITULO XIV</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Camargo ia sentar-se á mesa quando lhe entregaram a carta de Estacio; -leu-a pura si, mas a filha leu-a nos olhos delle. Uma aura de -bemaventurança desrugou a fronte do médico; seus labios,—cousa -pasmosa!— abriram-se n'um sorriso perenne e franco, sorriso que uma -vez chegou a desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Thomasia lhe -ouviu. Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido á mulher, e os -dous paes chamaram a filha á sala. Eugenia ouviu a notícia sem baixar -os olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o -casamento. -</p> - -<p> -—Sim? perguntou Camargo simulando um espanto que não sentia. -</p> - -<p> -Eugenia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia -não acreditar no espanto do pae. Este pegou nas mãos da filha e -puxou-a para si. -</p> - -<p> -—Assim, pois, meu anjo,—disse elle,—casas-te por tua -livre vontade? Estacio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, -que não podia ser mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, -que te proponho como o melhor modelo da terra. -</p> - -<p> -—O mais consciencioso pelo menos, acudiu D. Thomasia satisfeita e -vaidosa do louvor do marido. Ha de ser boa espôsa, modesta, solicita, -e economica. -</p> - -<p> -—Economica, sem avareza,—emendou Camargo. A riqueza não deve -ser dissipada; mas é certo que impõe obrigações imprescindiveis, e seria -da maior inconveniencia viver a gente abaixo de seus meios. Não farás -isso, nem cahirás no extremo opposto; procura um meio termo, que é a -posição do bom senso. Nem dissipada, nem miseravel. -</p> - -<p> -D. Thomasia concordou com ésta explicação do marido, em quanto -Eugenia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes dar a -minima attenção. Seu pensamento estava em Andarahy; ella viaja na -imaginação, a cerimonia do consorcio, as carruagens, o apuro do noivo, -a sua propria graça, a coroa de flores de larangeira, que a havia de -adornar, emfim talhava ja o vestido branco e pregava as rendas de -Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do genero -humano. Daquelle sonho foi despertada pelo pae, que lhe imprimiu na -testa o seu segundo beijo, o primeiro, como o leitor se hade lembrar, -foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria -provavelmente no dia em que ella casasse. -</p> - -<p> -—Sabes que te amo, Eugenia? disse Camargo olhando para ella. -</p> - -<p> -—Papae! -</p> - -<p> -Camargo não pôde dizer mais nada. Seu amor, um instante expansivo, -volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estiveram. A -satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para -saborear-se. Foi então que Eugenia passou ás mãos de D. Thomasia. A -mulher do Dr. Camargo via aquelle casamento com olhos differentes do -marido. O que ella sobretudo viu eram as vantagens moraes da filha. -Sentou-a ao pe de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e costumes, -que Eugenia interrompia de quando em quando, com exclamações de -obediencia filial: -</p> - -<p> -—Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe hade ver!... -</p> - -<p> -D. Thomasia sentia-se feliz. Seu rosto, cuja expressão era vulgar, -tinha naquella occasião alguma cousa que o tornava sublime. Ella fez -com que a filha se lhe sentasse ao collo; e ésta, sentindo que a -molestava, deixou-se lentamente cahir de joelhos, ficando entre os -della, a olhar para ella. -</p> - -<p> -Camargo, entretanto, ja não era daquelle mundo. Passeava de um para -outro lado, com as mãos para traz, a morder a ponta do bigode. De -quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras, mas era -só machinalmente; seu olhar baço indicava que elle ia mergulhado em -profundas cogitações. -</p> - -<p> -Naquelle homem sceptico, moderado e taciturno, havia uma paixão -verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava Eugenia: -era a sua religião. Concentrára esforços e pensamentos em fazel-a -feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessario fôsse, -a violencia, a perfidia e a dissimulação. Nem antes nem depois sentira -egual sentimento; não amou a mulher; casou por que o matrimonio é uma -condição de gravidade. O maior amigo que teve foi o conselheiro Valle; -mas essa mesma amizade que o ligára ao pae de Estacio nunca recebêra a -contra-prova do sacrificio; alias appareceria em toda a sinceridade a -natureza do médico. Elle só conhecia os affectos por assim dizer -caseiros e inertes, os que não sabem nem podem afrontar as intemperies -da vida. Nas relações moraes dos homens possuia somente o trôco miudo -da polidez; a moeda de ouro dos grandes affectos nunca lhe entrára nas -arcas do coração. Um só existia alli: o amor de Eugenia. -</p> - -<p> -Mas esse mesmo amor, alias violento, escravo e cego, era uma maneira que -o pae tinha de amar-se a si proprio. Entrava naquillo uma somma larga de -fatuidade. Menos graciosa, Eugenia seria talvez menos amada. Elle -contemplava a com o mesmo orgulho, com que o joalheiro admira o -aderêço que lhe sahiu das mãos. Era a ternura do egoista: amava-se na -propria obra. Caprichosa, rebelde, superficial. Eugenia não teve a -fortuna de ver emendados seus defeitos, antes fui a educação que lh'os -deu. Dos labios de Camargo nunca sahiu a expressão correctiva; nenhum -de seus actos revellou esse procedimento vigilante e director, que é a -nobre attribuição da paternidade. Se a indole da filha fosse ma, a -complicidade do pae fal-a-hia pessima. -</p> - -<p> -Não era felizmente; seu coração conhecia as doçuras da bondade; sua -rebeldia era um hábito, não um vicio nativo. A propria frivolidade -foi-lhe desenvolvida pela educação, nada podendo o zelo da mãe contra -as complacencias do pae. Ésta era a explicação tambem da fascinação -que exercia nella o tumulto exterior da vida. Quasi se póde dizer que -ella não conhecêra o vestido curto: a modista a desmamou; uma -contradança foi a sua primeira communhão. -</p> - -<p> -Não era facil dar a Eugenia a felicidade que o pae ambicionava e a que -mais lhe apetecia a ella. Posto não fosse perdulario, eram poucos os -haveres do médico, de modo que á filha não podia caber peculio -sufficiente a satisfazer todas as velleidades. Elle espreitou durante -longo tempo um noivo, armando com algum dispendio a gaiola em que o -passaro devia cahir. No dia em que percebeu a inclinação de Estacio, -fez quanto pode para prendel-o de vez. Esperou muitos mezes a iniciativa -de Estacio; e quando ella lhe entrou a fugir para a região das cousas -problematicas, suspeitou a influência de Helena. Ja era muito que ésta -moça diminuisse a herança do futuro genro; arrancar-lhe o genro era de -mais. Camargo não hesitou um instante; foi direito ao fim. O resultado -confirmou-lhe a suspeita. -</p> - -<p> -O casamento era muito, mas não bastava. Camargo cuidára na carreira -política de Estacio, como um meio de dar certo relevo público ao marido -da filha, e, por um effeito retroactivo, a elle proprio, cuja vida fora -tanto ou quanto obscura. Se o marido de Eugenia se confinasse no repouso -doméstico, entre a horta e a algebra, a ambição de Camargo padeceria -immenso. Vimol-o apresentar a Estacio a maçan política; recusada a -princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente acceita com a -noiva. Ésta dupla victória foi o momento maximo da vida do médico. -Elle ouvia ja o rumor público; sentia-se maior,—ante-gostava as -delícias da notoriedade;—via-se como que sogro do Estacio e pae das -instituições. -</p> - -<p> -—Vou entrar na cova dos leões, sem a convicção de -Daniel,—suspirou Estacio na occasião em que cedeu ás instancias -de Camargo. -</p> - -<p> -—Seu talento amansará os leões,—acudiu este. -</p> - -<p> -Assentou-se logo alli que o casamento seria celebrado na primeira semana -de março. Os dous mezes de intervallo foram destinados ás formalidades -ecclesiasticas e ao preparo do enxoval. Estacio aceitou tudo sem -objecção. D. Ursula e Helena approvaram o plano. A primeira -accrescentou uma clausula:—os noivos viriam morar com ellas em -Andarahy. -</p> - -<p> -O padre Melchior, consultado sôbre o casamento, deu-lhe inteira -approvação, e só lhe pareceu que o prazo era longo de mais. A effusão -com que abraçou Estacio, as palavras de applauso que lhe disse -impressionaram vivamente o mancebo. -</p> - -<p> -—Desejava muito este casamento? perguntou elle. -</p> - -<p> -—Muito! Seu pae ha de approval-o no ceu! -</p> - -<p> -Até os mortos conspiravam contra elle; Estacio aceitou resolutamente -seu destino. A alegria do padre, ordinariamente contida e digna, -transpoz os limites do costume, para se mostrar quasi infantil; D. -Ursula não cabia em si do contente; Helena parecia colhêr naquelle -casamento a sua propria felicidade. Era a bemaventurança universal que -Estacio ia comprar a trôco de um vínculo eterno. -</p> - -<p> -Surgiu, entretanto, um obstaculo temporario. A madrinha de Eugenia, a -fazendeira que lhe mandara um dia a opala, que a moça admirou namorando -ao mesmo tempo os olhos do futuro noivo, a madrinha de Eugenia adoeceu -gravemente, menos ainda da molestia que a accommetteu que dos annos que -lhe pesavam nos hombros. Era senhora rica, viuva, flanqueada por duas -sobrinhas solteiras, uma cunhada, um primo, dous filhos destes e uma -vintena de afilhados. Ja daqui se póde inferir a estreiteza das -esperanças de Camargo. Posto que elle não tivesse nunca preterido os -deveres que lhe impunha o vínculo espiritual, dando á fazendeira todas -as provas possiveis de um grande affecto, ainda assim era de recear que -a ultima vontade da moribunda não trouxesse o cunho da estricta -justiça, ou, quando menos, de razoavel equidade. Nestas -circumstâncias, a viagem a Cantagallo era urgentissima, e cumpria -realizal-a á custa dos maiores incommodos. Todo o incommodo é -aprazivel quando termina em legado. Camargo não perdia a esperança -desse desenlace egualmente affectuoso e pecuniario. Resolveu ir com a -familia toda, e avisou por carta ao futuro genro. -</p> - -<p> -Estacio estimou o obstaculo, mas não contou com o que elle trazia no -bojo. Chegando ao Rio Comprido achou afflictos o médico e D. Thomasia; -Eugenia recusava sair da Corte. Em vão lhe mostravam a conveniencia de -corresponder, em occasião tão grave, á affeição da madrinha; -debalde lhe diziam que era ser ingrata não ir recolher o último -suspiro da veneravel senhora, sua mãe espiritual. Eugenia recusava a -pes junctos. -</p> - -<p> -Assistiu o noivo á ultima phase da lucta entre os paes e a filha. Ésta -trazia os olhos vermelhos de chorar; batia com as mãos uma na outra, -declarando que só iria á fôrça. Estacio procurou chamal-a á razão, -apoiando as reflexões do pae, sem alcançar mais do que elle. Emfim, -Eugenia poz uma condição á sua acquiescencia: -</p> - -<p> -—Irei, se o Dr. Estacio fôr comnosco. -</p> - -<p> -Camargo approvou a condição <i>in petto</i>; verbalmente, oppoz-se ao -sacrificio. Estacio enfiára; posto entre a espada e a parede, ja a -viagem de Eugenia lhe parecia superflua. -</p> - -<p> -—Acompanha-nos? insistiu a moça, -</p> - -<p> -—Não é possivel, acudiu o médico; tamanho incommodo por um simples -capricho. -</p> - -<p> -—Pois então não vou! -</p> - -<p> -D. Thomasia ficou um tanto vexada com a teima de Eugenia. Estacio mordia -o labio, olhando para a moça, cujo rosto o interrogava instantemente. -Venceu-o o decoro; considerando Eugenia sua mulher, quiz cortar por uma -scena que lhe parecia ridicula. -</p> - -<p> -—Acompanhal-os-hei,—disse elle sem enthusiasmo. -</p> - -<p> -A solução era favoravel a todos: os tres aceitaram de boa feição. -Marcou-se a viagem para dous dias depois. D. Ursula, apezar dos bons -olhos com que via o casamento, achou desnecessaria a ida do sobrinho, -mas não emprehendeu dissuadil-o. Helena approvou tudo. Elle fez sentir -ás duas parentes a extensão do sacrificio, e esteve a ponto de retirar -a palavra. Era tarde. A ultima noite passada em Andarahy foi cruel para -elle; as horas voaram ligeiras como nunca. Como devia sahir no dia -seguinte, logo cedo, alli mesmo se despediu da tia e da irmã, despedida -de alguns dias que lhe custou como si fôra de annos. Prometteu, -entretanto, que o regresso seria breve. -</p> - -<p> -O que elle não podia prometter era conjurar o drama que se lhes -preparava, drama que ia em fim devolver-se, intenso, funesto e -irremediavel,—do qual não o consolariam jamais nem as doçuras da paz -doméstica, nem as glórias da vida pública. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XV">CAPITULO XV</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Estacio levantou-se ao amanhecer. Uma vez prompto, quiz sorprehender a -tia e a irmã com uma lembrança sua, e escreveu n'uma folha de papel -éstas simples palavras: «Até á volta; 6 horas da manha.» Dobrou-a -e foi pol-a sôbre a mesa de costura de D. Ursula. Dalli passou á sala -de jantar, depois á varanda. Aqui chegando deu com os olhos em Helena, -que o esperava ao pe da escada. -</p> - -<p> -—Silêncio! disse graciosamente a moça. Não faça espantos que póde -accordar titia. Vim saber se voce precisa de alguma cousa. -</p> - -<p> -—De nada, respondeu Estacio commovido. Mas que imprudencia foi essa -de se levantar tão cedo? -</p> - -<p> -—Cedo! O sol não tarda comprimentar-nos. Adeus! muitas -recommendações a Eugenia. Não lhe falta nada, não é? -</p> - -<p> -—Nada. -</p> - -<p> -Estacio recebeu a mão que Helena lhe estendêra e ficou a olhar para -ella. -</p> - -<p> -—Olhe que é tarde! -</p> - -<p> -Dizendo isto, Helena apertou-lhe a mão e procurou retirar a sua; -Estacio reteve-a. -</p> - -<p> -—Se soubesses como me custa ir! -</p> - -<p> -—São apenas alguns dias... -</p> - -<p> -—Valem por mezes, Helena! Adeus, não te esqueças de mim. Escreve-me; -eu escreverei logo que chegar. Não faças imprudencias; não saias a -passeio em quanto eu estiver ausente. -</p> - -<p> -—Adeus! -</p> - -<p> -—Adeus! -</p> - -<p> -Estacio quiz dar-lhe o abraço da despedida; mas a moça, menos ainda -com a palavra que com o gesto, fel-o recuar. -</p> - -<p> -—Não, disse ella affastando-se; as despedidas mais longas são as mais -difficeis de supportar. -</p> - -<p> -Recuou até á porta da sala de jantar, fez um gesto de despedida e -entrou. Estacio desceu a custo as escadas. Helena viu-o descer e sahir; -depois subiu cautellosamente ao seu aposento. Alli sentou-se alguns -minutos, pensativa e triste. Ergueu-se enfim, vestiu rapidamente as -roupas de montar; collocou o chapellinho preto sôbre os cabellos -penteados á ligeira, e desceu. Na chacara esperava-a Vicente, com a -egua ajaezada e prompta. Helena montou sem demora; o pagem cavalgou uma -das duas mulas que havia na cavallariça e os dous sahiram a trote na -direcção da casa do alpendre e da bandeira azul. -</p> - -<p> -A casa estava ainda silenciosa; porta e janellas conservavam-se -hermeticamente fechadas. Helena apeou-se e bateu de mansinho; repetiu as -pancadas progressivamente mais fortes. Ninguem lhe respondeu. Helena -impaciente rodeou a casa; mas parece que achou egualmente fechadas as -portas do fundo, por que volveu logo. Collou o ouvido á porta e -esperou. Quando lhe pareceu que era baldado o esfôrço, tirou da -algibeira um lapis e um pedacinho de papel; collocou o pe no degrau de -tijolo e sôbre o joelho escreveu algumas palavras; dobrou depois o -papel e introduziu-o por baixo da porta. Esperou ainda alguns minutos, -caminhou para a egua, montou e regressou a casa. -</p> - -<p> -Vinha triste e pensativa. A egua, a passo vagaroso, não sentia o -esfôrço da cavalleira, que a deixava ir, frouxa a redea, inutil o -chicote. O pagem levava os olhos na moça com um ar de adoração -visivel; mas, ao mesmo tempo, com a liberdade que dá a confiança e a -complicidade, fumava um grosso charuto havanez, tirado ás caixas do -senhor. -</p> - -<p> -D. Ursula não estava ainda levantada; mas Helena não lhe occultou o -passeio. O dia correu triste e solitario, como os seguintes, sem embargo -da companhia que iam fazer ás duas senhoras as pessoas mais íntimas. -Mendonça, a quem Estacio as recommendára, era alli pontual; seu -espirito conseguia disfarçar um pouco as saudades do moço ausente. O -padre Melchior prolongava suas visitas quotidianas; um mesmo sentimento -ligava a todas as pessoas. -</p> - -<p> -O mesmo era, e não unico, por que outro e mais egoista e pessoal veiu -alli viçar tambem. Mendonça sentiu que metade de seu destino estava -acabada, e que a outra metade ia começar, mais circunspecta que a -primeira. O relogio em que elle viu bater essa hora fatidica foram os -olhos, de Helena. Mendonça começava a amar, Estouvado, e não -corrupto, atravessára o delirio dos primeiros annos sem perder a flor -dos castos affectos, sem sequer a haver colhido. Helena sentiu nascer e -crescer essa adoração silenciosa, sem parecer que a descobrira. Não -animou o mancebo nem o repelliu; redobrou de confiança,—dessa -confiança, que só se dá aos simples familiares, e que mostra -claramente a um namorado a inanidade de suas esperanças. Ao parecer de -extranhos, a situação affigurava-se de perfeita concordia. O -coronel-major piscou um dia os olhos ao Dr. Mattos; o Dr. Mattos proferiu -um—<i>latet anguis in herba</i>—e ambos foram repartir o pão -das conjecturas com a espôsa do advogado, senhora muito perspicaz nos -namoros de salão. A opinião dos tres é que o casamento era cousa -provavel e talvez certa. Um só obstaculo podia haver; eram os escrupulos -do pae de Mendonça. Esse mesmo obstaculo não existia, por quanto, -além das qualidades estimaveis da moça, havia o reconhecimento legal e -social, público e doméstico; accrescendo (observação do Dr. Mattos) -que duzentas e tantas apolices mereciam um comprimento de chapeu e não -davam logar a cinco minutos de reflexão. -</p> - -<p> -As primeiras cartas de Estacio chegaram uma tarde, em que as duas -senhoras e Mendonça se achavam na varanda, acabado o jantar, bebendo as -últimas gotas de cafe. D. Ursula, depois de pôr em actividade tres -mucamas para lhe irem procurar os oculos, levantou-se e foi ella propria -á cata delles, coma sua carta na mão. Helena ficou com a que lhe era -dirigida estava sentada juncto a uma das janellas; abriu-a e leu-a para -si: -</p> - -<p><br /></p> - -<p style="margin-left: 10%;"> -ESTACIO A HELENA. -</p> - -<p> -«Quando ésta carta te chegar ás mãos estarei morto, morto de -saudades de minha tia e de ti. Nasci para os meus, para a minha casa, os -meus livros, os meus habitos de todos os dias. Nunca o senti tanto como -agora, que estou longe do que ha mais caro neste mundo. Poucos dias la -vão, e ja me parecem mezes. Que seria se a separação não fosse tão -limitada? -</p> - -<p> -«Na carta que escrevo a ti tia dou conta de nossa viagem e da saúde de -todos. D. Clara está, na verdade, á beira da morte; mas pode durar -ainda alguns dias, e o Dr. Camargo resolveu esperar até dar-lhe os -ultimos adeuses. A recepção que nos fez a familia foi cordialissima. -Ha aqui uma cunhada da enfêrma, um primo, tres sobrinhos, outros -parentes e varios afilhados. O primo é commendador e tenente-coronel; -elle e os outros são a gente mais affavel do mundo. Os homens da -familia são influências eleitoraes; quando souberam da minha -candidatura, offereceram-me logo os seus serviços, com a clausula unica -de que haja prévia recommendação do Rio do Janeiro. Agradeci o favor, -com muita abundancia d'alma porque a tal candidatura, que não me -seduzia nem seduz, não ha remedio se não cuidar della, de modo que o -meu nome não padeça, a injúria da derrota. Que te parece ésta -pontasinha de vaidade? -</p> - -<p> -«Mudemos de assumpto, que este me afflige, e não quero philosofar sem -ti, que es a minha companheira nestas vadiações de espirito. Ahi não -te lembrarás, talvez, das nossas palestras; aqui lembra-me tudo. De -manhã, dou o meu passeio equestre, como la; mas que differença! Quem -vae a meu lado é o tenente-coronel, excellente homem, coração de -pomba, com o defeito unico e enorme de se não chamar D. Helena do -Valle, a minha boa Helena, que la está na Côrte a divertir-se sem seu -irmão. Elle fala de tudo e muito: do cafe, do governo, das eleições, -dos escravos, dos impostos. Eu ouço-o, que é o menos que posso fazer, -e deixo-o ir sem interrupção. Ás vezes, como que desconfiado, -recolhe-se ao silêncio; eu ato o fio da conversa e elle encarrega-se de -desenrolar o novello. Tão pouca cousa o faz feliz! Já cacei uma vez; -confesso-te que é o que me pode distrahir um pouco. Pensava ter perdido -o costume; mas não perdi. A modestia impede-me dizer mais. -</p> - -<p> -«A fazenda é vasta e a casa excellente. Não te direi que gósto da -vida agricola; não gósto, não me dou com ella. Mas viver num recanto -como este, a dous passos do mato, a tantas legoas da rua do Ouvidor, -isso creio que se dá com a minha indole. Consultaremos titia. Eu não -sei o que é amar o tumulto exterior; acho que é dispersar a alma e -crestar a flor dos sentimentos. Nasci para monge... e creio que tambem -para despota, porque estou a planear uma vida ignorada e deserta, sem -consultar tuas preferencias. Sou um Cromwell com tendencias de frade; -ou, por dizer tudo n'uma só palavra: sou um Lutero... muito inferior. -</p> - -<p> -«Pobre Helena! Ja la vão quatro páginas só a falar de mim. Vejamos ó -que tens feito. Andas muito triste? passeas? lês? jogas? tocas? Conta-me -a tua vida o mais miudamente que puderes; conta-me a vida de todos. Não -me escondas nada; se, por exemplo, ao abrir um livro ou tocar uma tecla -do piano, pensares em mim, escreve isso mesmo, marcando o dia e até a -hora, se puder ser. E depois dou-te o direito de perguntar onde ficou a -minha gravidade, e responderei que ha uma puerilidade séria, e que os -extremos tocam-se. Quando assim não seja, a culpa é do ceu, que me -não deu uma irmã creança; agora é preciso que comecemos pela -primeira phase da vida. -</p> - -<p> -«Deixei muito recommendado ao Mendonça que fôsse a nossa casa com -frequencia. Não sei se elle se terá lembrado e cumprido a promessa que -me fez. Se não tiver cumprido, has de mandar-lhe dizer que eu o detesto -e abomino, que elle é o maior traidor que o ceu cobre; que tudo fica -acabado entre mim e elle; que a amizade é um culto, etc. Dize o que te -parecer e pelo modo que te é usual. -</p> - -<p> -«Lembro-me de ti a proposito de tudo. Hoje de tarde, por exemplo, o -terreiro offerecia ura aspecto bonito e caracteristico. Se ella -estivesse aqui, disse commigo, faria um magnifico desenho. Peguei de um -lapis que trouxe, meia folha de papel, e quiz reproduzir o panorama. -Escrevi um problema algebrico! Foi um conselho que me deu o lapis: -ninguem se metta a fazer aquillo que ignora. Eu ignorava o que era estar -ausente da familia; por que motivo me determinei a tental-o? -</p> - -<p> -«Interrompi ésta carta para receber o Dr. Froes, que é o médico de D. -Clara; veiu ao meu quarto para me dizer que o estado da doente é -perdido; que a morte é certa; mas que a vida póde prolongar-se ainda -por muitos dias. Ve que perspectiva! Estou com raiva de mim mesmo; esses -ultimos dias da enfêrma pesam sôbre mim como se fôra o punho fechado -do destino. Se a morte é certa, por que viver alguns dias mais? E é -vida isso, ou é morrer aos goles, sem consciencia do que se perde nem -do que se vae ganhar? -</p> - -<p> -«Está decidido; posso ir daqui a seis dias ou daqui a um mez. Sera o -que Deus quizer. Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só -achei um <i>Manual de medicina prática</i>. Manda-me alguma cousa que me -faça lembrar Andarahy. Tira da estante oito ou dez volumes, á tua -escolha. Manda tambem algum trabalho de agulha teu; quero mostral-o á -cunhada de D. Clara, a quem gabei muito os teus talentos. Se puderes -desenhar alguma cousa, á pressa, o tanque, a varanda, ou qualquer outro -logar, faze-o, e manda com o resto. Escreve-me longamente; conta-me tudo -o que houver interessante; fala-me de ti, que é o meio de consolar -minhas saudades, que são immensas, immensas como este amor que tenho a -minha familia toda. Vou fazer por voltar breve. Adeus, minha boa Helena; -adeus, minha vida, adeus, ó mais bella e doce de todas as irmãs! -</p> - -<p> -«<i>P.S.</i> Reli a carta, e fiquei envergonhado do trecho a respeito da -vida da doente. Perdoa-me a ferocidade, e leva-a em conta da solidão.» -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XVI">CAPITULO XVI</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa a olhar para as -folhas da trepadeira, que do lado de fóra viera a subir pela muralha da -varanda, e a debruçar-se emfim do parapeito para dentro. A carta -ficára aberta sôbre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos, -olhava para ésta, sem ousar falar-lhe. -</p> - -<p> -Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da intelligencia -humana. Póde dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da -graça feminil. Mendonça o sentiu contemplando o busto de Helena e a -casta ondulação da espadua e do seio, cobertos pela caça fina do -vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do logar em que ficava, -Mendonça via-lhe o perfil correcto e pensativo, a curva molle do -braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ella -trazia. A attitude convinha á belleza melancholica de Helena. O rapaz -olhava para ella sem movimento nem voz. -</p> - -<p> -A tarde expirava; a côr verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto -cinzento-escuro que precede a côr fechada da noite. A propria noite -desceu; e um escravo entrou na varanda, a accender as duas lampadas que -pendiam do tecto. Ésta circumstância accordou a moça, e bastou-lhe -voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estacio a alguns passos de -distância. -</p> - -<p> -—Estava ahi? perguntou Helena estremecendo. -</p> - -<p> -—D. Ursula não voltou, respondeu Mendonça com timidez; não quiz -interromper a leitura que a senhora fazia. -</p> - -<p> -—A leitura? A leitura acabou ha muito tempo. -</p> - -<p> -—Mas tambem se lê com o espirito. -</p> - -<p> -Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso. -</p> - -<p> -—Não sei ler de cór, disse ella, erguendo-se e sahindo da varanda. -</p> - -<p> -Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera elle tão grave que a pudesse -offender? Repetiu suas proprias palavras e não lhes achou sentido mau. -Certo, porém, de que a molestára, alli ficou aborrecido de si mesmo, -desejoso de lhe explicar tudo, se alguma cousa houvesse explicavel. Apos -alguns instantes, resolveu entrar tambem. Entrou; Helena não estava nem -na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Ursula com o Dr. Mattos -e o coronel-major. Dalli passou á sala de visitas. Helena não o viu -entrar; estava mergulhada n'uma poltrona com a cabeça nas mãos. -Commovido, deteve-se alguns instantes a contemplal-a; depois caminhou -para ella e falou-lhe. -</p> - -<p> -Helena ergueu a cabeça. -</p> - -<p> -—Perdõe-me, disse elle, se alguma cousa lhe disse que a magoou. -Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou -triste por isso? -</p> - -<p> -A moca cravou nelle um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu -logo. Mendonça adoptou o melhor dos alvitres naquella occasião; -inclinou-se e recuou para sahir. Helena chamou-o; elle approximou-se -outra vez, com um ar de tão doce resignação, que lisonjearia o mais -levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; elle apertou-a e teve -impetos de a beijar uma e muitas vezes, triumphando naquelle unico -instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena -mostrou-lhe o trecho da carta em que Estacio se referia a elle; falaram -dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assumpto que -exclusivamente preoccupava o moço. Elle sahiu dalli sem ter dito nada -de seu coração. Chegando á rua achou-se poltrão e ridiculo, disse -mil nomes feios a si proprio; emfim, prometteu declarar tudo a Helena no -dia seguinte. -</p> - -<p> -No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se á capella a ouvir a -missa do padre Melchior. Acabada a cerimonia, não seguiu para casa, com -D. Ursula, mas foi ter á sacristia, onde o padre acabava de tirar os -paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estacio, nessa manha, -pedira a Helena que lh'a deixasse ver. -</p> - -<p> -—Falam sempre ao coração as lettras dos amigos, dissera elle. -</p> - -<p> -Helena deu-lhe a carta, que o padre recebeu com uma expressão antes de -curiosidade que de affecto. Leu-a vagarosamente, como escrutando o -sentido e as palavras; e sendo longa a epistola, longo foi o tempo que -elle despendeu em a interpretar. Durante esse tempo, Helena admirava-lhe -a figura austera, a serenidade religiosa, que é a coroa mystica do -verdadeiro ecclesiastico. A sacristia era pequena; duas altas janellas -deixavam entrar a luz, o ar e o aroma das folhas e das flôres da -chacara. Entre a cimalha e o telhado algumas andorinhas haviam fabricado -os ninhos, donde sabiam, como pensamentos de juventude, a adejar ao sol -da manha. Ao pe daquelle quadro exterior de alegria e verdura, a -sacristia tinha certo ar melancholico e severo, que lançava n'alma o -esquecimento das vicissitudes humanas. Helena deixou-se captivar desse -sentimento de abstenção e elevação; se alguma dor ou remorso a -pungia, esqueceu-os, por um minuto ao menos, entra aquellas paredes -desataviadas, deante de um padre, entre uma imagem de Jesus e as obras -vivas do Creador. -</p> - -<p> -Lida a carta, Melchior dobrou-a com ar pensativo; depois entregou-a á -moça. -</p> - -<p> -—Ja respondeu? perguntou elle. -</p> - -<p> -—Ja; trouxe-lhe a carta que vou mandar hoje mesmo. -</p> - -<p> -Melchior abriu-a e leu; não gastou menos tempo, ainda que era de -menores dimensões. O estylo era affectuoso, mas muito menos exhuberante -que o da carta de Estacio. Ella contava-lhe, em suas feições geraes, a -vida que alli passavam, desde que elle partira, as occupações de cada -dia e as distrações da noite. -</p> - -<p> -«Vivemos, dizia a moça, como podem viver duas creaturas que sabem a -affeição que lhes tem um parente amigo, ausente embora, mas não -esquecido,—nem ingrato. O padre Melchior, algum dos visinhos, e o Dr. -Mendonça são as nossas visitas habituaes. Voce sabe o que vale o -padre; é a mais bella alma que Deus mandou ao mundo. Os risinhos são -affaveis, como sempre. O Dr. Mendonça é verdadeiramente digno da nossa -affeição e confiança. Disse-lhe o que voce me escreveu; elle riu, -como homem seguro de escapar á punição. -</p> - -<p> -«Pena é que voce tenha de se demorar ahi tanto tempo; mas, se alguma -esperança pode haver de salvar a doente, damo-nos por bem pagas da -demora. É verdade que voce não é médico; mas ha ahi outra doente, -para quem é, não só médico, mas até toda a medicina. Porque razão -me não escreveu Eugenia? Eu não cuidei que essa amiga me esquecesse na -vespera de ser rainha cunhada. Se estivessemos mais perto ia puxar-lhe -as orelhas. Diga-lhe isto; e se tiver occasião de emprestar-me os seus -dedos, applique-lhe o castigo, declarando-lhe o delicto commettido e o -juiz que a sentenciou. -</p> - -<p> -«O que voce diz da vida solitaria é muito justo, mas impraticavel. Os -amigos não nos iriam ver; e poderiamos nós dispensal-os? Tal é a -opinião de titia e a minha. O melhor de tudo é este meio termo de -Andarahy; nem estamos fóra do mundo, nem, no meio delle. O ruido -externo pode ter os effeitos de que voce fala; mas elle é ás vezes -preciso para aturdir e distrahir o espirito. Tambem a solidão tem suas -dores, e fundas: tambem ella abala o coração. Nem um extrema nem -outro.» -</p> - -<p> -A carta continha alguns periodos mais, não muitos; tres ou quatro vezes -falava em Eugenia, com tamanha insistencia que punha em relevo o -silêncio a tal respeito conservado por Estacio; falava-lhe da belleza -da noiva, do casamento proximo, do amor que os faria felizes, e da -ventura que ambos dariam a todos os seus. -</p> - -<p> -Quando o padre acabou de ler a resposta; abriu os braços a Helena; -depois abrangeu com as mãos a cabeça da moça e contemplou-a durante -alguns segundos. -</p> - -<p> -—Toda a sua alma está nesse escripto, disse elle; vejo ahi a reflexão -e o affecto. Tanto melhor! Ha comtudo uma lacuna: não transmitte a seu -irmão as minhas saudades; mas ha tambem uma excrescencia: louva meritos -que não possuo. Embora! Mande-a... -</p> - -<p> -—Escreverei duas linhas mais. -</p> - -<p> -—Pois sim. Diga-lhe que se apresse porque estou velho e posso morrer -antes. -</p> - -<p> -—Oh! protestou Helena. -</p> - -<p> -Melchior olhou para ella silenciosamente. -</p> - -<p> -—Cre que Estacio seja feliz? perguntou elle emfim. -</p> - -<p> -—Creio. -</p> - -<p> -—Tambem eu. -</p> - -<p> -Outro silêncio. O primeiro que o rompeu foi o padre. -</p> - -<p> -—Por que se não casa tambem? disse elle. -</p> - -<p> -—Eu? -</p> - -<p> -—De certo. Póde ser que muito breve, talvez... -</p> - -<p> -—Talvez, nunca. -</p> - -<p> -Melchior franziu a testa; sua physionomia, de ordinario meiga, tornou-se -severa, como a consciencia delle. O padre tinha uma das mãos de Helena -entre as suas; deixou-a insensivelmente cair. Entre os dous -estabeleceu-se um silêncio que os acabrunhava e que não ousavam -romper; como subjugados por um mysterio, receiava cada um delles que o -outro lh'o lesse na fronte; instinctivamente desviaram os olhos. -</p> - -<p> -Melchior foi o primeiro que voltou a si. A reflexão corrigiu a -expontaneidade; e o padre reassumiu o gesto usual, com essa -dissimulação, que é um dever, quando a sinceridade é um perigo. -</p> - -<p> -—Vamos la, disse elle; ninguem póde decidir o que hade fazer amanhã; -Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais do que -transcrevel-as na terra. -</p> - -<p> -—É verdade! confirmou ella com um gesto de cabeça, e sem erguer os -olhos. -</p> - -<p> -—Amanhã, continuou o padre, o acaso,—isso que os incredulos -chamam acaso, e que é a deliberação da vontade infinita,—lhe -apontará um homem digno da senhora; e seu coração lhe dirá; é este; -e o suspiro desalentado de hoje converter-se-ha n'um olhar de graças ao -ceu. Ora, o que eu lhe peço, o que eu desejo, é que se apresse tanto -que eu possa casal-os... -</p> - -<p> -—Oh! mas não vae morrer amanhã, interrompeu Helena. -</p> - -<p> -—Estou velho, minha filha; estes cabellos brancos são ja a neve desse -mar polar para onde navegamos todos. Conto sessenta annos. A morte póde -colher-me um dia proximo... -</p> - -<p> -—Vamos almoçar, disse Helena sorrindo. -</p> - -<p> -Sahiram da sacristia, atravessaram a capella, e penetraram na chacara. -Na occasião em que iam transpor a porta da capella, viram Mendonça -entrar em casa. Melchior estacou, e olhou para Helena. Ésta ia como -acabrunhada e absorta. O gesto do padre, quando ella lhe declarou que -não se casaria talvez nunca, ficára-lhe gravado na memoria, como um -enigma, que talvez receiava decifrar. Poucos minutos eram passados; -contudo, ella pôde reflectir, e colligir os elementos de uma -resolução. Detendo-se, com o padre, á porta da capella, viu tambem -entrar Mendonça, Os olhos da moca e do padre interrogaram-se de novo, -mas desta vez nenhum delles os desviou. -</p> - -<p> -—Vê aquelle homem? perguntou Helena. Parece-lhe que seria bom marido? -</p> - -<p> -—Excellente, de certo, disse vivamente Melchior; caracter, educação, -sentimentos. -</p> - -<p> -—Tem ainda uma virtude particular: ama-me. -</p> - -<p> -—Sei. -</p> - -<p> -—Elle lh'o disse? -</p> - -<p> -—Não, mas ve-se. É sabido de todos os que frequentam ésta casa. A -probabilidade do casamento é objecto de commentarios; e a opinião -geral é que elle se fara dentro de pouco tempo. Confessou-lhe alguma -cousa? -</p> - -<p> -—Nada; mas os olhos da mulher amada não são menos sagazes que os dos -padres amigos. Acha que devo confirmar a opinião dos outros? -</p> - -<p> -—Acho; consulte porém seu coração. -</p> - -<p> -—Ja consultei. -</p> - -<p> -—Neste unico instante? -</p> - -<p> -—Nada menos. -</p> - -<p> -—Devéras? disse Melchior derramando um olhar de paternal ternura no -rosto serio de Helena. -</p> - -<p> -—Não digo que o ame desde ja; mas a affeição que elle me tem -reflectirá em meu coração, e eu virei a amal-o. O que importa saber -é que é digno de mim. De todos os que me pretendessem nenhum lhe seria -superior. -</p> - -<p> -—Ainda bem! Contudo, repare que vae contrahir uma obrigação -perpétua, e que um contracto destes não póde ser deliberado em poucos -instantes. -</p> - -<p> -—Oh! nesse ponto a minha ignorancia sabe mais do que a sua theologia. -Que são minutos e que são mezes? Paixões de largos annos, chegando ao -casamento, acabam muitas vezes pela separação ou pelo odio, quando -menos pela indifferença. O amor não é mais que um instrumento de -escolha; amar é eleger a creatura que hade ser companheira na vida, -não é afiançar a perpétua felicidade de duas pessoas, por que essa -póde exvair-se ou corromper-se. Que resta à maior parte dos -casamentos, logo apos os annos da paixão? Uma affeição pacifica, a -estima, a intimidade. Não peço mais ao casamento, nem lhe posso dar -mais do que isso. -</p> - -<p> -—Não gósto de tanta reflexão era tão verde edade, replicou -benevolamente Melchior; todavia encanta-me esse raciocinio, que ao cabo -de tudo póde ser verdadeiro. Mas não me desdigo; alguns minutos é -pouco tempo; reflicta ainda vinte e quatro horas. -</p> - -<p> -—Nem um instante mais, insistiu Helena. Minhas reflexões são lentas -ou subitas: ou cinco minutos ou um anno; escolha. -</p> - -<p> -—Pois reflicta cinco minutos, replicou o padre sorrindo. -</p> - -<p> -—Ja la vão quatro; aproveitarei o último para lhe dizer que em nada -disto falaria se não fossem as qualidades notaveis desse moço; e para -accrescentar que a elle me liga certa sympathia de genios... é talvez a -semente do amor. -</p> - -<p> -Tinham chegado ao primeiro degrau da escada da varanda. Subiram e -penetraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula e Mendonça, este -a percorrer com os olhos um jornal do dia. O almoço serviu-se -immediatamente. -</p> - -<p> -—Padre-mestre, disse D. Ursula, demorou-se tanto que -cuidei... tivesse ideia de me arrebatar Helena. -</p> - -<p> -—Estive-a ouvindo de confissão, respondeu Melchior. -</p> - -<p> -—E pode absolvel-a? -</p> - -<p> -—De certo. -</p> - -<p> -—Mas com grande penitencia, não? -</p> - -<p> -—A mais facil de todas, acudiu Helena olhando para o padre. -</p> - -<p> -—Oh! então é que os peccados são leves! concluiu D. Ursula. Não lhe -parece? -</p> - -<p> -Éstas ultimas palavras foram dirigidas a Mendonça, na occasião em que -todos caminhavam para a mesa. Mendonça não disse nada. Seus olhos -ousavam apenas resvalar pela moça; contra o costume, elle falava -pouco,—menos ainda que na vespera e nos dias anteriores. D. Ursula -via a differença, mas não a comprehendia. -</p> - -<p> -—Não quero saber que peccados confessou,—disse ella -sentando-se; mas estou certa que o maior delles não levaria ninguem ao -purgatorio. -</p> - -<p> -—Veja o que é uma tia indulgente, observou Helena a Mendonça, -sentando-se a seu lado. -</p> - -<p> -Preoccupado com a conversa que acabava de ter na sacristia e na chacara, -Melchior pouca attenção prestou a principio ao filho do commerciante. -Seu espirito analysava as circumstâncias do momento e pesava a -responsabilidade que lhe podia vir de qualquer resolução que -adoptasse. Apos um longo dialogo com a sua consciencia, o velho -sacerdote inclinou os olhos ao mancebo, que lhe ficava defronte, ao lado -de Helena. Viu-os conversar com essa familiaridade de bom gôsto, que é -a pedra de toque dos costumes polidos. Ella mostrava-se graciosa, -solicita e attenta, como uma espôsa amante; elle parecia enamorado da -voz e das falas da donzella; como que um clarão interior lhe -desvendára à alma os horizontes infinitos da esperança. Familiarisado -com Helena, tratado por ella com exquisita attenção, era comtudo a -primeira vez que ella lhe falava, não como a um confidente amigo, mas -como a um homem que poderia vir a ser seu esposo. Alguma seriedade, um -olhar submisso, uma attenção continuada, fizeram essa differença que -antes foi sentida pelo coração do que descoberta pelos olhos. -</p> - -<p> -No fim do almôço, Melchior dirigiu-se para a sala de visitas, com -Helena. Mendonça acompanhou-os. A resolução do padre estava assentada -de raiz; elle acceitava aquelle casamento como um presente do ceu. -Apenas entrados ha sala, travou das mãos de um e outro e lhes disse, -com voz commovida: -</p> - -<p> -—Promettem não zangar-se commigo? -</p> - -<p> -—Por que? interrogou Mendonça com os olhos. -</p> - -<p> -Helena baixára os seus. -</p> - -<p> -—Promettem? -</p> - -<p> -—Padre-mestre... começou Mendonça sem poder concluir a phrase. -</p> - -<p> -O padre olhou silenciosamente para um e outro. Talvez hesitava falar; -talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração. Urgia -romper o silêncio; fel-o com solemnidade: -</p> - -<p> -—Serei duas vezes padre: segundo a natureza e segundo o Evangelho. -Quando duas creaturas se merecem, é servir a Deus emprestar a voz ao -coração que não ousa falar. O senhor ama ésta menina; leio-lhe dos -olhos o sentimento que o arrasta para ella; são dignos um do outro. Se -é a timidez que lhe fecha os labios, eu sou a voz da verdade e do amor -infinito; se outro motivo, serei juiz complacente para escutal-o. -</p> - -<p> -Ouvindo éstas palavras, Mendonça ficou aturdido e mudo. Não só a -fortuna lhe chegava ás mãos, quando elle menos esperava, mas até -escolhêra um caminho desusado e extranho. A realidade confundia-se alli -cora o sonho. A presença de um terceiro era sufficiente motivo para -acanhar os mais resolutos; accrescia a veste sacra do sacerdote que dava -aquillo um ar de solemnidade e consagração. Mendonça recobrou enfim -o uso dos sentidos; sua resposta unica e eloquente, foi estender a mão -a Helena, gesto a que a moça correspondeu com simplesa e naturalidade. -</p> - -<p> -—Não se enganaram meus olhos, disse o padre. Ama-a, e póde dar-lhe a -felicidade que lhe desejo a ella. Tambem Helena o fara venturoso, não? -perguntou elle voltando-se para á moça. -</p> - -<p> -—Mas é isto um sonho? perguntou enfim Mendonça. -</p> - -<p> -—A vida não é outra cousa, retorquiu o capellão; velho pensamento e -velha verdade. Façamos por que o sonho seja agradavel e não arido ou -triste. Promettem-me que se farão felizes? -</p> - -<p> -—Não ambiciono outra cousa, disse o rapaz; será o meu cuidado e a -minha glória. -</p> - -<p> -—Seu amor, continuou Melchior, é mais forte que o de Helena; eu -consultei-a antes, e li em seu coração. Elege-o com prazer, embora sem -enthusiasmo. Não é a paixão cega que a faz falar é um sentimento -brando e singello, por isso mesmo duradouro. A reflexão de um corrigirá -a violencia do outro, e os dous sentimentos se completarão pela virtude -especial de cada um. -</p> - -<p> -Ésta explicação franca de Melchior teve o condão de ser agradavel -aos dous. Helena estimou que elle nem lisonjeasse as illusões de -Mendonça, nem a désse como acceitando indifferente e estouvada o -casamento proposto. Pela sua parte, Mendonça viu nas palavras do padre -um indicio da sinceridade de Helena, e aceitou o pouco offerecido, com a -certeza de multiplical-o. O caracter de Melchior e a veneração que -mereciam suas virtudes, eram fianças de veracidade e davam ao acto -singello que alli se passava um forte cunho de santidade e elevação. -Não era uma vulgar declaração de amor, sugeita ás variações do -espirito ou do interesse; mas verdadeiros esponsaes, em que a religião -era inspiradora e testemunha. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XVII">CAPITULO XVII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Aquelle dia foi marcado no calendario de Mendonça com lettras de ouro e -setim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Elle viveu essas horas -todas n'um estado de somnambulismo e extasis. Tencionava referir tudo á -mãe, logo que entrou em casa ao meio dia; mas não se atreveu, porque -elle mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas azas -de uma chimera. De noite voltou a Andarahy; achou em Helena o mesmo modo -affectuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva, -nenhuma contemplação namorada; um meio termo que o continha a elle -proprio, e não era menos aprazivel ao coração. A nova situação era, -entretanto, sensivel, porque os vigilantes de fóra, trocaram entre si -olhares profundos e inundados de graves descobertas; um delles, o -coronel-major, chegou a proferir uma allusão, que os interessados -fingiram não perceber. -</p> - -<p> -Quando Mendonça chegou a casa, nessa noite, ia mais que nunca cheio de -commoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas ahi entrou, -pareceu-lhe transformada por uma vara magica; elle viu-a povoada de -seres phantasticos e rutilantes que iam e vinham do ceu á terra e da -terra ao ceu. A côr deste era unica entre todas as da palheta do divino -scenographo. As estrêllas, mais vivas que nunca, pareciam saudal-o de -cima com ventarolas electricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e -despeito. Azas invisiveis lhe roçavam os cabellos, e umas vozes sem -boca lhe falavam ao coração. Seus pes como que não pousavam no solo; -elle ia extatico e sem consciencia de si. Era aquelle o galhofeiro de ha -pouco? O amor fizera esse milagre mais. -</p> - -<p> -Um dos theatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era -desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que alias expirava de -parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de ater-se á -realidade das cousas, tão chimerico se lhe affigurava tudo o que se -passára desde manhã. -</p> - -<p> -Um expectador,—o filho do coronel-major,—viu-o a alguma -distância e foi sentar-se ao pe delle. -</p> - -<p> -—O senhor que tem melhor vista,—disse o -academico—desengane-me; aquella moça que alli está, naquelle -camarote, não é a andorinha viajante? -</p> - -<p> -—A andorinha viajante? repetiu Mendonça olhando para elle; que quer -dizer esse nome? -</p> - -<p> -—É a alcunha da irmã de Estacio. Sera ella que está alli, com uma -senhora edosa? -</p> - -<p> -—Mas porque lhe chamam assim? -</p> - -<p> -—Eu sei! Naturalmente porque sae á rua todos os dias. Na verdade, é -um passear! Mal amanhece, la vae trepada no cavallinho, com o pagem -atraz... -</p> - -<p> -—Quem lhe poz essa alcunha? -</p> - -<p> -—As alcunhas são como as mofinas; não tem autor. -</p> - -<p> -Cahíra o panno; Mendonça despediu-se alli mesmo e sahíu. Na rua -repetiu mentalmente as palavras do joven academico. Ao cabo de alguns -minutos sorriu; comprehendêra que, apenas suspeitada a sua felicidade, -ja a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os hombros, -resoluto a supportar tranquillo essa livida companheira do successo. -</p> - -<p> -Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvêra a occupal-o -exclusivamente. So, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos -daquelle dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com -alguem, escreveu uma longa carta a Estacio, narrando-lhe toda a -história do seu coração, suas esperanças e a prompta realisação -dellas. A alma derramou-se no papel impetuosa e exhuberante. O estylo -era irregular, a phrase incorrecta; mas havia alli a eloquencia e a -sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia -dar ao amigo, logo que ella lhe chegasse ás mãos, levando a notícia -de que as vinculos atados na aula iam apertar se na familia. «Vem -quanto antes, dizia elle ao terminar a missiva; tenho ancia de -abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fara o mais feliz -dos homens!» -</p> - -<p> -Quando esta carta chegou a Cantagallo, Estacio voltava de uma pequena -excursão, que fizera com o pae de Eugenia. Conheceu a letra do -sobrescripto; abriu negligentemente a carta; leu-a com assombro. Á -impressão foi tão visivel, que Camargo lhe perguntou de que se -tratava. -</p> - -<p> -—Recebo uma noticia que me obriga a partir amanhã, disse elle. -</p> - -<p> -—Negocio grave? -</p> - -<p> -—Grave. -</p> - -<p> -—Ainda assim, nesta occasião. -</p> - -<p> -—Que tem? D. Clara póde ainda resistir á morte alguns dias; e posto -que a minha ausencia não prejudique nada do facto a que alludo, comtudo -é mister que me informe e providencie. -</p> - -<p> -—Algum negocio relativo ao inventário?—aventurou Camargo, que -nada conhecia mais grave que o dinheiro. -</p> - -<p> -—Justamente, respondeu machinalmente Estacio. -</p> - -<p> -Camargo consolou a filha do desgôsto que lhe causava a partida do -noivo; falou-lhe a linguagem da razão; disse que havia assumptos -praticos, a que os sentimentos tinham de ceder o passo alguma vez. No -dia seguinte de manhã partiu Estacio na direcção da Corte, não sem -prometter que voltaria, se a molestia ou qualquer outro motivo obrigasse -a familia a demorar-se em Cantagallo. -</p> - -<p> -Ninguem esperava por elle em Andarahy. Entrando na chacara,—era de -noite,—viu Estacio que a sala que ficava no angulo esquerdo da frente -da casa estava allumiada e tinha gente. A sala ficava ao rez do chão, e -as janellas estavam abertas. Elle parou a pouca distância, e pôde -distinguir o coronel-major e o Dr. Mattos a jogarem o gamão; a mulher -do advogado falava a D. Ursula e Melchior, em um dos lados; do outro -estava assentada Helena, tendo Mendonça deante de si. -</p> - -<p> -Estacio deu volta aos fundos da chacara, e entrou pela varanda. Os -escravos que o virara chegar deram signal da novidade, com vozes de -alegria, que alias não chegaram até ás pessoas da sala. Estas só -souberam do recem-chegado quando este assomou á porta. A satisfação -de o ver foi geral e sincera em todos. Estacio distribuiu abraços e -apertos de mão. Melchior, que se deixára ficar de lado, foi o último -com quem elle falou. -</p> - -<p> -—O Dr. Camargo veiu? perguntou D. Ursula ao sobrinho logo depois que -este comprimentára a todos. -</p> - -<p> -—Não, respondeu Estacio, a doente não póde escapar, mas ainda a -deixei com vida. -</p> - -<p> -—Imagino a impaciencia dos herdeiros. -</p> - -<p> -Ésta observação philosophica do coronel-major não teve nenhum -effeito. Melchior, que a reprovára anteriormente, fez mudar a conversa, -informando-se da familia de Camargo. Estacio deu todas as notícias que -podiam interessar; depois falou de alguns incidentes da viagem; afinal -obteve licença para ir mudar de <i>toilette</i>. -</p> - -<p> -Mendonça acompanhou o amigo, alcançando-o ainda na escada. Subiram -junctos e junctos entraram no quarto. -</p> - -<p> -—Agora que estamos sos, perguntou Mendonça, houve por la alguma -cousa? -</p> - -<p> -—Nada. -</p> - -<p> -—Tanto melhor! -</p> - -<p> -Um escravo entrou no quarto, afim de servir a Estacio; Mendonça, -ancioso por lhe falar de Helena, contentou-se com trocar algumas vagas -indicações. -</p> - -<p> -—Recebeste a minha carta? disse elle. -</p> - -<p> -—Recebi. -</p> - -<p> -—Não esperavas por ella, aposto? -</p> - -<p> -—Não. -</p> - -<p> -—Como eu não esperava escrevel-a. Estás aborrecido, continuou elle -depois de um silêncio. -</p> - -<p> -—Estou cançado. -</p> - -<p> -—Naturalmente, assentiu Mendonça abrindo um livro que achou sobre a -mesa e tornando-o a fechar. -</p> - -<p> -O silêncio prolongou-se alguns minutos, durante os quaes Mendonça -tornou a abrir o livro, examinou uma espingarda de caça, preparou um -cigarro e fumou. O escravo servia o senhor com a pontualidade de quem -lhe conhecia os costumes. Estacio continuava mortalmente silencioso; -Mendonça falou algumas vezes, sobre cousas indifferentes, e o tempo -não correu, andou com a lentidão que lhe é natural quando trata com -impacientes. Logo que Estacio se deu por pro rapto, e o escravo sahiu, -Mendonça voltou directamente ao assumpto que o preoccupava. -</p> - -<p> -—Estava ancioso por ver-te, disse elle. Não nos é possivel falar -agora: não temos tempo. Mas quero dar-te um abraço, ao menos, um -abraço de agradecimento pela felicidade... -</p> - -<p> -—Parece que só esperavas a minha ausencia? -</p> - -<p> -—Creio que não. Ja antes de seguires, começava a sentir alguma cousa -nova, que vim a descobrir ser paixão violenta. -</p> - -<p> -—Helena ama-te? -</p> - -<p> -—Com egual amor, não creio; mas aceita-me; tem-me algum affecto. -</p> - -<p> -—Tratarei de consultal-a. -</p> - -<p> -Mendonça não pôde continuar, por que Estacio descia a escada ao -dar-lhe a ultima resposta. Mendonça desceu tambem. Na sala estavam -ainda as mesmas pessoas. Perto de uma janella conversava Helena com o -padre. O cha foi logo servido; e a conversa tornou-se geral, mas sem -grande animação. Melchior falou menos que todos. -</p> - -<p> -Nem por isso foi o primeiro que sahiu; foi o último. Na chacara, -dirigindo-se ao portão, ergueu os olhos ao firmamento, não para ver a -lua e as estrêllas, mas para subir a região mais alta. O que disse -ninguem o soube; mas o anjo das rogativas humanas por ventura colheu em -seu regaço os pensamentos do ancião e os levou aos pes do eterno e -casto amor. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XVIII">CAPITULO XVIII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -—Helena, disse Estacio no dia seguinte, logo que pôde falar a sos á -irmã,—sabes porque vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça -escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento. -</p> - -<p> -—É verdade. -</p> - -<p> -—É verdade? -</p> - -<p> -—Até o ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por -mim só nada posso decidir; mas não creio que voce se opponha de nenhum -modo. Não é certo que deseja a minha felicidade? -</p> - -<p> -Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estacio -ficou algum tempo a olhar para a agua. -</p> - -<p> -—Não entendo, disse elle enfim. -</p> - -<p> -—Porque? -</p> - -<p> -—Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão -que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor unico e -forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu -coração, é caso não vulgar e muita vez justificavel. Mas que este -casamento seja para ella a felicidade, confesso que não o poderei -entender nunca. -</p> - -<p> -—Recusa então o seu consentimento? -</p> - -<p> -—Não recuso; desejo comprehender. -</p> - -<p> -—Nada mais simples, retorquiu a moça. -</p> - -<p> -—Ah! -</p> - -<p> -—Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extincto naquelle tempo, -mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas phantasias uma -vez ao menos? A phantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso -desposar um homem digno, que me ame. Não casar, foi algum tempo o meu -desejo; não o é hoje, desde que voce, titia e o padre Melchior -ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do -casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e -os melhores affectos de seu coração. -</p> - -<p> -—De maneira que sacrificas-te a um desejo nosso? -</p> - -<p> -—Quando fôsse sacrificio, fal-o-hia de boa cara; mas não é. -</p> - -<p> -—Não se trata do um sacrificio repugnante e odioso; mas cumpre -examinar o que perdes. Dizes que a phantasia passou; não creio. Helena, -não creio que ella passasse. Tu amas de certo; amas violentamente -alguem; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa do teu -marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e -inimigo... -</p> - -<p> -Helena quiz interrompel-o. -</p> - -<p> -—Ouve, continuou Estacio. Esse sentimento, se vier a extinguir-se, e -se fôr substituido pela affeição que creares a teu marido, não te fara -desventurosa; mas suppõe que não morre esse amor, qual será a tua -situação? -</p> - -<p> -—Tudo isso é um castello no ar,—disse Helena sorrindo; eu -amei, não amo; ou amo somente a meu futuro marido. -</p> - -<p> -Estacio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no -rosto placido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão -silenciosa. Os della, firmes e tranquillos, crusavam o olhar com os -delle. Estacio conhecia ja o dominio que a moça exercia sôbre si -mesma; sua tranquillidade não o convenceu. Assim o pensava, assim o -disse—sem rebuço. -</p> - -<p> -—Por que razão negaria eu a verdade? retorquiu Helena. -</p> - -<p> -Estacio ergueu os hombros. -</p> - -<p> -—Suppondo que voce tenha razão, tornou ella; não deverei casar nunca? -</p> - -<p> -—Não digo isso; mas ha dous caminhos para a felicidade, além de -Mendonça. -</p> - -<p> -—Não os vejo. -</p> - -<p> -—Esse amor mysterioso será realmente sem esperança? Nada ha -definitivo no mundo, nem o infortunio nem a prosperidade. O que a tua -imaginação suppõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou -occulto... -</p> - -<p> -—Adivinho o segundo caminho, atalhou Helena; não casando agora, posso -vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como -elle. -</p> - -<p> -—Parece-te absurdo isso? -</p> - -<p> -—Não, mas é uma loteria; perco um bem certo, por outro duvidoso. O -jogador não faz cálculo differente. Essa felicidade póde não vir; eu -contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me devéras; senti-o -desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino -que os dous me offerecem. Ésta é a razão e a realidade; o mais é -illusão e phantasia. -</p> - -<p> -Em quanto ella falava, Estacio, que tirára o chapeu de Chile, -occupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve -entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa -carreira de formigas, conduzindo as mais dellas trechos de folhas -verdes. Com um galho sêcco, Estacio distrahia-se em perturbar a marcha -silenciosa e laboriosa dos pobres animaes. Fugiam todas, umas para o -lado da terra, outras para o lado da agua, era quanto as restantes -apressavam a jornada na direcção do domicilio. Helena arrancou-lhe o -galho da mão; Estacio pareceu accordar de largas reflexões; ergueu-se, -deu alguns passos e voltou a ella. -</p> - -<p> -—Helena,—declarou elle,—não creio nada do que voce me -diz; voce sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu -dever oppor-me a semelhante cousa... -</p> - -<p> -Helena ergueu-se tambem. -</p> - -<p> -—Mendonça começa a ser o fructo prohibido, observou ella sorrindo; é -o meio seguro de o fazer amado. -</p> - -<p> -A moça affastou-se na direcção da casa. Estacio via-a desaparecer -por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As -formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no -primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e -comparou-as a suas ideias, tambem necessitadas de que um galho, -invisivel as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões -lembrou-lhe o padre; Estacio atravessou a chacara, sahiu á rua e -dirigiu-se á casa de Melchior. -</p> - -<p> -Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto, -a algumas braças da residencia de Estacio. Tinha duas salas o predio, -janellas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A -da frente abria entre duas janellas de venezianas. A sala de visitas era -ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobilia, -nenhuns adornos, uma estante de jacaranda, com livros grossos in-quarto -e in-folio; uma secretária, duas cadeiras de repouso, e pouco mais. -</p> - -<p> -Na occasião em que Estacio alli entrou, Melchior passeava de um para -outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou -Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura, por que o padre amava -contemplar os grandes espiritos do passado, quando não encarava os -mysterios do futuro. Naquelle corpo mediano havia uma aguia captiva. -Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as -flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço, -vivendo a vida retrospectiva ou prophetica, doce e mysteriosa volupia -das almas solitarias. Melchior era um solitario; sem embargo das -relações sociaes, que elle cultivava, amava sobretudo estar separado -dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou -meditava, esquecido ou extranho a todas as cousas do seu seculo. -</p> - -<p> -Naquella occasião lia. Vendo assomar á porta o vulto de Estacio, -Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o affavelmente. -</p> - -<p> -—Vim interrompel-o, disse Estacio; mas era preciso. -</p> - -<p> -Melchior depoz o livro sôbre a mesa redonda que havia no meio da sala, -marcando a lauda com uma telha estampa. Depois sentaram-se ao pe de uma -das janellas lateraes. Então não se atreveu a dizer logo o motivo que -o levara alli; mas de sua propria hesitação, deduziu Melchior qual -era elle. -</p> - -<p> -—Era preciso? repetiu o padre. -</p> - -<p> -—Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo; confio em seu conselho e -discrição. Como deseja a felicidade da minha familia, buscou facilitar -o casamento de Helena e Mendonça... -</p> - -<p> -—Contando com a sim approvação, explicou o padre. -</p> - -<p> -—Hesito em dal-a. -</p> - -<p> -—Por que? -</p> - -<p> -Estacio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe -propunha, ao que Melchior respondeu referindo singellamente a verdade. -</p> - -<p> -—É certo que o não ama ardentemente; concluiu elle, mas aceita-o, -aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar. -</p> - -<p> -—Ha uma difficuldade, padre-mestre; é que ella ama a outro. -</p> - -<p> -Melchior empallideceu; seu olhar escrutador, como o de um juiz, -cravou-se immovel e afiado no rosto de Estacio. A fronte severa do moço -não se alterou, nem seus olhos baixaram a terra. -</p> - -<p> -—Ama a outro, continuou elle; paixão violenta, mas sem esperança, e -tão real qual mysteriosa. Uma ou duas vezes alludiu a ella; mas nada -mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito, -desviou dahi o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei porém que -ama, e casar com outro em taes circumstâncias, dá dous inconvenientes -egualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o -homem que interiormente elegeu, e leva para casa do marido um sentimento -de pezar e de remorso. Parece-lhe isso toleravel? -</p> - -<p> -—Não ha remorso não ha pezar, onde não ha esperança, redarguiu o -padre. Helena aceita o Mendonça por expontanea vontade; e conheço-a -tanto que não acho ja possivel que ella recuse. -</p> - -<p> -—Salvo o meu consentimento. -</p> - -<p> -—É claro; mas por que o não daria? -</p> - -<p> -—Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou seu -coração. Talvez ella ache impossivel aquillo que é simplesmente -difficil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezesete annos. -</p> - -<p> -—Valem por vinte e cinco. -</p> - -<p> -—Pode ser; mas convem não aceitar de coração leve uma -condescendencia ou um capricho, ou qualquer outro motivo occulto que a -inspira nesta resolução. -</p> - -<p> -—Que motivo seria? -</p> - -<p> -—Eu sei! Talvez a suspeita de que estimassemos vel-a affastar-se de -casa. -</p> - -<p> -—Não a calumnie; Helena tem perfeita sciencia e consciencia dos -affectos que a rodeam e da estima em que é tida. Suas objecções não -valem nada deante da declaração que ella propria fez. Não -compliquemos uma situação simples e definida. -</p> - -<p> -Melchior proferiu éstas palavras com voz branda, mas em tom firme; -Estacio não se animou a responder logo. Voltou porém ao primeiro -argumento; depois aventurou uma objecção nova. -</p> - -<p> -—Mendonça é bom coração, disse elle; mas não possue as qualidades -que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca -exercerá, sôbre ella a influência que deve ter um marido. Entre os -dois inverte-se a pyramide. Mas isto, ao menos, se destruia uma das -condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O -perigo maior é outro; é vir elle a perder a estima da mulher. Nesse -caso que lhe dariamos nós a ella? Um casamento apparente e um divorcio -real. -</p> - -<p> -Não olhava pura elle o padre, mas para fóra, com uns olhos dolorosos e -o gesto impaciente. Quando elle acabou, fitou-o com resolução; -disse-lhe que se tratava de casar Helena, não com um marido especial, -mas com o que ella propria escolhêra de sua vontade livre; casamento -que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de familia, -Estacio podia oppor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem -convinha isso ao interesse de Helena nem ao proprio interesse da -familia. -</p> - -<p> -Estacio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e -pensativo. No fim de alguns segundos, o padre foi a elle. -</p> - -<p> -—Va contar tudo a sua tia, disse; approve sua irmã; casal-os-hei a -todos no mesmo dia. -</p> - -<p> -—Pois bem, disse Estacio como concluindo um raciocinio interior; -consinto em que Helena se case; procuremos outro marido. Mendonça. -não; hade ser outro. Vou casar tambem; receberei todas as semanas; -algum rapaz apparecerá que a mereça e de quem ella venha a gostar -seriamente... é a minha ultima resolução. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XIX">CAPITULO XIX</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -No momento em que Estacio proferia éstas palavras, transpunha Mendonça -a porta do jardim do capellão. Preoccupado com a frieza de Estacio, -lembrara-lhe expor a Melchior suas impressões e pedir-lhe conselho, -Melchior ia responder ao sobrinho de D. Ursula, quando ouviu rumor de -passos na areia do jardim. -</p> - -<p> -—Ahi vem o noivo, disse elle. -</p> - -<p> -Estacio deu dous passos para pegar no chapeu; mas reconsiderou e foi -sentar-se ao pe da mesa redonda. Havia alli um exemplar das Escripturas. -Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos <i>Proverbios</i>; -seus olhos cahiram neste versiculo: «Quem quer abrir mão de seu amigo, -busca-lhe as occasiões; elle será coberto de opprobrio.» Envergonhado, -voltou a folha. Mendonça, entrára na sala. Não contava com Estacio, -mas estimou vel-o alli. -</p> - -<p> -—Venha, disse Melchior; tratavamos justamente seu casamento. -</p> - -<p> -Estacio lançou ao padre um olhar de exprobação. O padre não o viu; -olhava para Mendonça, que immediatamente lhe respondeu: -</p> - -<p> -—Não venho ca para outra cousa. Uma vez que a fortuna o fez nosso -confidente, desejo constituil-o meu conselheiro e director. -</p> - -<p> -—Antes de tudo sou advogado de sua causa, disse Melchior: estava -expondo agora as vantagens della. -</p> - -<p> -Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa: -</p> - -<p> -—Rejeitas ou aceitas o noivo? perguntou elle. -</p> - -<p> -Posto entre a espada e a parede, Estacio não soube logo que -respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receioso de encontrar a -vista dos dous. O silêncio era peor que a resposta; e nem o caso nem as -pessoas permittiam tão grande pausa. Estacio fechou do golpe o livro e -ergueu-se. -</p> - -<p> -—Discutia somente as vantagens do casamento, disse elle. -</p> - -<p> -—E qual é a tua opinião? -</p> - -<p> -—Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só -essa, nem é a principal; o uso em todo o caso é a favor do casamento. -A principal razão é o teu proprio crédito. -</p> - -<p> -—Meu crédito? -</p> - -<p> -—Helena póde vir a amar-te como lhe mereces: mas a verdade é que não -sente ainda hoje egual paixão á tua; foi o padre-mestre que m'o disse. -Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão; e eu creio que a -flor do sentimento é muito mais propria no canteiro do matrimonio. -</p> - -<p> -—Ha muita flor nesse ramalhete de rhetorica, interrompeu -benevolamente o padre. Falemos linguagem singella e nua. Não creia -litteralmente o que lhe diz este philosopho, proseguiu elle voltando-se -para Mendonça; elle ama-os e quer vel-os felizes; é o proprio zêlo -quem lhe faz falar assim. N'uma palavra; deseja que o senhor a conquiste -depois de campanha formal... -</p> - -<p> -Mendonça respondeu ao capellão com um sorriso pallido, que lhe -arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso e -frio. Seu rosto ficára carregado e pensativo; a lingua de Estacio -tocara-lhe o coração. Disposto a aceitar a estima e a sympathia de -Helena com a esperança de converter esse pequeno dote em avultado -capital, não lhe occorrêra que a olhos extranhos podia parecer que seu -fim exclusivo era a riqueza da moça. Estacio rompêra o veu a essa -probabilidade. Uma só palavra desfizera a illusão de poucos dias. -</p> - -<p> -—Vamos la,—disse o padre,—abracem-se como irmãos. -</p> - -<p> -Nenhum delles se mexeu, Melchior sentiu toda a gravidade da situação; -viu perdidos seus esforços, desfeita a união assentada, um abysmo -cavado entre os dous amigos, incerto o destino de Helena. Interveiu -outra vez com palavras de brandura, que os dous ouviram sem interromper. -Quando acabou: -</p> - -<p> -—O Estacio tem razão, disse Mendonça; meu crédito padecerá desde -que alguem se lembre de dizer que o casamento foi arranjado sem nenhuma -preoccupação das preferencias de D. Helena. Ella me desobrigará, em -troca da palavra que lhe restituo. -</p> - -<p> -A phrase brotou-lhe dolorida, mas sem hesitação nem fraqueza. Estacio -olhava para elle e sentia alguma cousa semelhante a um remorso. Uma voz -interior parecia dizer-lhe:—«Somnambulo, abre os olhos, tem -consciencia de tuas acções; teu abraço enforca; teus escrupulos fazem-te -odioso; tua solicitude é peor do que a colera.» Via o mancebo -cortejar o padre; deteve-o pelo braço. -</p> - -<p> -—Onde vaes? disse elle. -</p> - -<p> -—Vou aonde me leva o pundonor, disse singellamente Mendonça. -</p> - -<p> -—Pobres rapazes! exclamou o padre. São dous estouvados, nada mais; um -quer catar argumentos onde sua irmã só achou nobre o franca -resolução; o outro rompe de coração leve uma promessa feita em -presença de um sacerdote! Estouvados disse eu? São mais do que isso; -são dous dementes. Ora, como só eu tenho juizo e consequente -autoridade, digo que nem um ha de sahir assim desenganado, nem o outro -ha de recusar a acquiescencia que lhe peço em nome de seu finado pae. -</p> - -<p> -Estacio estremeceu; Mendonça conservou-se frio. A arma era rija, mas o -golpe excedia a necessidade; Mendonça não quereria dever a espôsa á -evocação do nome do conselheiro: equivalia a um rapto. Percebeu-o -Melchior, quando viu Estacio estender a mão ao amigo, mão que este -recebeu com dignidade e frieza. Contaria Estacio com essa mesma repulsa -do pretendente? O certo é que lhe disse sem a menor sombra de -hesitação: -</p> - -<p> -—Meu zêlo foi talvez excessivo; mas a intenção é boa e pura. Que -posso eu desejar senão ver felizes os meus? Amem-se; será a remate de -minhas aspirações. Promettes fazel-a feliz? -</p> - -<p> -—Não prometto nada, disse Mendonça; o casamento é ja impossivel. Tu -abriste-me os olhos; não te quero mal por isso. Perco muito, é certo; -mas não me exponho á lingua dos maus. -</p> - -<p> -Mendonça foi buscar o chapeu e dispoz-se a sahir, não obstante a -intervenção de Melchior, que procurou trazel-o a sentimentos de -reconciliação. Não insistiu o padre; viu no rosto do mancebo uma -resolução digna e firme, que era impossivel dobrar naquelle momento. -Quando Mendonça, lhe estendeu a mão em despedida, elle apertou-lh'a -com ternura e esperança. Estacio tentou ainda retel-o; foi inutil; -Mendonça sahiu dalli sem rancor, mas sem pezar. O coração -sangrava-lhe; mas a consciencia ia contente. -</p> - -<p> -Melchior foi até á porta, a despedir-se do Mendonça. Quando este -sahiu, elle voltou o rosto para dentro, cruzou os braços e fitou o -sobrinho de D. Ursula. O moço desviou as olhos; não foi o medo que os -torceu, mas a vergonha. -</p> - -<p> -—Viu? perguntou o padre. Não sei qual seja a sua resolução; mais -prometto-lhe que serei como Mahomet,—Deus me perdoe!—ainda que -veja o sol á minha direita e a lua á minha esquerda, não deixarei de -executar o meu designio. Va ter com sua familia; deixe-me alguns -instantes com o meu breviario. -</p> - -<p> -Estacio não pôde resistir á intimação do sacerdote; não achou uma -palavra para lhe dizer. Sahiu aturdido, desconsolado, colerico. Na rua e -na chacara, ia pensando na scena daquella ultima hora, e parecia apenas -reconstruir um sonho. Desconhecia-se, apalpava a intelligencia, chamava -em seu auxilio todas as fôrças da realidade; olhava para o chão -suspeitoso de que ia calcando as nuvens. Quando a razão tomou pe no -meio de lembranças tão desconcertadas, elle viu claramente o resultado -de suas acções: perdia um amigo de longos annos e abdicava a -direcção da familia, pelo menos em relação ao casamento da irmã. Se -ésta lhe agradecesse a resistencia, Estacio dar-se-hia por bem pago de -tudo. Não era em seu favor que elle conspirara? Este pensamento -levantou-lhe o ânimo; tivesse a approvação de Helena, pouco lhe -importaria o resto. -</p> - -<p> -Helena ouviu-lhe a narração fiel do que se passára em casa de -Melchior. Ouviu-a commovida; no fim reprovou tudo o que elle fizera. -</p> - -<p> -—Mendonça é ja o fructo prohihido, concluiu a moça; começo a -amal-o. Se ainda assim me obrigar a desistir do casamento, adoral-o-hei. -</p> - -<p> -—Chegamos ao capricho! exclamou elle; é o fundo do coração de todas -as mulheres. -</p> - -<p> -Helena sorriu e voltou-lhe as costas. Subiu a seu quarto, travou de uma -penna e escreveu um bilhetinho. A tinta seccou primeiro que duas grossas -lagrymas cahidas no papel; mas as lagrymas seccaram tambem. Antes de -fechar o bilhete, desceu Helena a mostral-o ao irmão. -</p> - -<p> -Quando a moça entrou no gabinete, Estacio ia ter com ella. Sua -resolução estava assentada. Uma vez que a irmã aceitava de boa -feição o casamento, não havia mais que approval-o e celebral-o. -Encontraram-se na porta; Estacio recuou para dentro. -</p> - -<p> -—Helena, disse elle, faça-se a tua vontade. -</p> - -<p> -—Consente? -</p> - -<p> -Estacio fez um gesto affirmativo. -</p> - -<p> -—Não basta isso, tornou a moça; Mendonça não voltará ca depois do -que se passou. Peço-lhe a remessa deste bilhete. -</p> - -<p> -Estacio abriu o bilhete; continha éstas poucas palavras: «Venha hoje a -Andarahy; é o meu coração que o pede e a nossa felicidade que o -exige.» Cinco minutos gastou o moço a ler as duas linhas; leu o que -estava escripto e o que não estava. Helena desarmava os escrupulos de -Mendonça, tirando á futura união qualquer suspeita de interesse. Leu -e fechou lentamente o papel. -</p> - -<p> -—Approva? perguntou a moça. -</p> - -<p> -—Assim, pois, disse o moço tristemente, a tua felicidade exige que -esse homem venha ca, que te cases com elle, que nos fujas? Não te basta -a familia, a affeição de nossa tia, a minha propria affeição? Estes -mezes de doce intimidade vão ser esquecidos em um só instante, -sacrificados aos pes do primeiro homem que te apraz escolher e seguir? -No dia em que penetraste nesta casa, entrou contigo um raio de luz nova, -alguma cousa que nos faltava e que tu trouxeste contigo; nossa familia -completou-se; nossos corações receberam um sentimento ultimo. -Pensavamos que isto seria duradouro, e era simplesmente fugaz. Oh! -Helena, melhor fôra não ter vindo! -</p> - -<p> -Helena quiz responder; mas a voz travou-se-lhe na garganta, e a palavra -retrocedeu ao coração. Apontou para o papel como pedindo-lhe ainda uma -vez que o enviasse e saiu. -</p> - -<p> -De tarde, appareceu Melchior; ia tranquillo e e resoluto a dar um golpe -decisivo. Estacio rendeu-se antes que elle falasse. -</p> - -<p> -—Padre-mestre, disse o moço logo que o viu; a reflexão venceu-me; -faça-se a vontade de todos. -</p> - -<p> -—Fala de coração? -</p> - -<p> -—De coração. -</p> - -<p> -—Pois bem, seja completo; tomou o padre. Sou ministro de uma religião -que condemna o orgulho. Não ha dezar em curar as feridas de um amigo; -va ter com o seu amigo; traga-o a esta casa como irmão. -</p> - -<p> -—Irei amanhã. -</p> - -<p> -—Não; va hoje mesmo. -</p> - -<p> -A noite cahiu logo; Estacio foi dalli vestir-se. Não tendo enviado o -bilhete de Helena, metteu-o na algibeira para entregal-o elle proprio; -depois tirou-o e releu-o; tendo-o relido, fez um gesto para rasgal-o, -mas conteve-se e perpassou-o ainda uma vez pelos olhos. A mão, á -semelhança de mariposa indiscreta, parecia attrahida pela luz; -resistiu, resistiu algum tempo; emfim chegou o bilhete, á vela e -queimou-o. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XX">CAPITULO XX</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -A visita de Estacio não causou nenhum espanto a Mendonça; elle a -esperava com a confiança das indoles ingenuas e avessas ao odio. Não -era crivel que um amigo de longos annos dormisse sobre a injustiça de -um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estacio procurou o -pretendente de Helena. -</p> - -<p> -Entrou elle naturalmente em casa de Mendonça; sem expansão nem secura. -A entrevista foi breve, mas cordial; houveram-se os dous com affectuosa -dignidade. Estacio explicou seus escrupulos; declarou-se contente com a -alliança. O contentamento podia existir; todavia a manifestação foi -parca e sêcca. Houve mais calor e expansão quando elle lhe pediu que -désse vida feliz á irmã. -</p> - -<p> -—Sera para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada, -disse elle. Não tivemos o mesmo berço; vivemos nossa infancia debaixo -de tecto differente; não aprendemos a falar pelos labios da mesma -mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pae recommendou-a -a nossa familia e ella correspondeu ao sentimento que dictou essa -ultima e solemne vontade. -</p> - -<p> -Mendonça nas respondeu nada; elle reflectira durante a noite nas palavras -que ouvira a Estacio no dia anterior;—palavras que bem podiam -ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem -de seu casamento. Helena viria a amal-o, talvez; mas desde logo lhe -levava para casa a chave da independencia. Mendonça recuou. Quando o -padre Melchior o soube, não pode conter um gesto de admiração; mas se -louvou o escrupulo, não approvou a resolução, que vinha derrubar -tudo. -</p> - -<p> -—Não tapará nunca a boca aos maus, disse o padre; elles acharão meio -de envenenar sua propria generosidade. -</p> - -<p> -—Paciencia! tornou o moço; é menor esse perigo. Se casar, dirão que -faço uma operação vantajosa; talvez sua familia o supponha; talvez -ella propria o pense. -</p> - -<p> -Helena teve noticia dos receios de seu pretendente e da resolução a -que parecia inclinar o coração. Foi a elle; perguntou-lhe se era -verdade. Mendonça affirmou que sim. Ella contemplou-o longamente sem -dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com effusão; elle -persistiu. -</p> - -<p> -No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de -faceirice,—dessa que rara vez deixa de enfeitar os mais puros e -nobres sentimentos. A moça o percebeu, mas nem por isso deixou de crer na -sinceridade do rapaz. Creu; tentou dissuadil-o; e posto nada alcançasse -nos primeiros minutos, estava certa de que triumpharia afinal do -derradeiro obstaculo. Seus olhos seriam mais habeis e felizes que os -labios do padre. Foi o que ella disse ao capellão. -</p> - -<p> -—Tomo á minha conta effectuar este casamento, continuou Helena. -</p> - -<p> -—Resolvida a tudo? -</p> - -<p> -—A tudo. -</p> - -<p> -—Mas se elle insistir... -</p> - -<p> -—Se elle insistir, vencel-o-hei, ou por um modo ou por outro. Uma -moça que quer ser noiva vale por um exercito; eu sou um exercito. -</p> - -<p> -—Muito bem! Contudo, sua dignidade. -</p> - -<p> -—Oh! em último caso abro mão da herança. -</p> - -<p> -—Era capaz disso? perguntou Melchior. -</p> - -<p> -—Se era capaz? Desejo-o até,—disse a moça com vehemencia. -</p> - -<p> -E accrescentou em tom mais brando: -</p> - -<p> -—Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a minima -desconfiança. -</p> - -<p> -Tal era a situação, dous dias depois da volta de Estacio. O casamento -podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao nobre desinteresse de -Helena. D. Ursula approvou tudo com effusão e amor, nada sabendo das -incertezas e contradições dos ultimos dias. -</p> - -<p> -Na noite desse dia, Estacio escreveu para Cantagallo dando notícias -suas. Do casamento de Helena falou pouco; quasi nada. Tudo o -descontentava: tanto o que elle fizera e dissera, sem proveito, como o -desenlace da situação. Não soubera oppor-se com efficacia nem -applaudir opportunamente. -</p> - -<p> -Posto fôsse tarde o somno teimava em fugir-lhe dos olhos e elle velou -até muito além de meia noite. Occupado, sem dúvida em adormecer -organisações menos sensiveis e existencias menos complicadas, o somno -fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas de manhã, Estacio -accordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quasi toda a familia -dormia. Estacio desceu; o unico escravo que achou levantado preparou-lhe -uma chicara de cafe. Não tendo ainda chegado os jornaes, bebeu-a sem a -leitura do costume. -</p> - -<p> -Quem sabe o que é fortuito ou providencial, e por que fios tenues se -prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estacio ouviu o som -longinquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a supposição deu-lhe -ideia de ir caçar. Elle não era um Nemrod na habilidade, mas era-o na -vocação. Foi buscar a espingarda, proveu-se de polvora e chumbo, e -sahiu. -</p> - -<p> -Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuido naquella -manhã, ou por que a mão estivesse menos firme, ou por que a vista -andasse menos segura. Estacio caminhára longo tempo sem pensar no fim -que o levava; ia absorto,—alheio ao logar e ás cousas. Fez algumas -tentativas de caça; mas deixou de mão o recreio. Quando cançou de -errar, consultou o relogio e viu que não era cedo. Tinha o braço -cançado de suster a espingarda; só então reparou que uso trouxera cm -pagem consigo. Dispoz-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a -intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de nupcias. -Depois desceu, em caminho para casa. -</p> - -<p> -Vinha descendo, com a espingarda debaixo do braço, e os olhos no chão, -a passo lento, apezar de serem oito horas dadas. De uma vez que ergueu -os olhos viu um caso extranho que lhe fez deter o passo. Um pouco -abaixo, sahia de traz de uma casa velha, o pagem de Helena, conduzindo a -mola e a egua. Estacio não soube que pensar daquillo; mas, cedendo a um -impulso que não pôde dominar, deu um salto por cima de uma cêrca do -espinhos, agachou-se e esperou o resto. -</p> - -<p> -O resto não se demorou muito. Assomou á porta da frente a figura de -Helena. Depois de olhar cautellosamente para um e outro lado, sahiu e -montou na egua; o pagem cavalgou a mula e os dous desceram a trote. -</p> - -<p> -Estacio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo apertava o -primeiro objecto que achou debaixo das mãos; era a cêrca de espinhos. -A dor fel-o voltar a si; tinha a mão ensanguentada. Ao longe cavalgavam -Helena e o pagem. Logo que os viu desaparecer, Estacio saltou de novo á -estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direcção á casa -d'onde vira sahir a irmã. Era a mesma da bandeirinha azul, que Helena -comprimentá-la de longe, alguns mezes antes, e não esquecera de -reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos annos delle. Estas -circumstâncias, antes indifferentes, appareciam-lhe agora como outros -tantos artigos de um libello. -</p> - -<p> -O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a -caliça das paredes e das columnas ia cahindo, e o esqueleto de tijolo -estava a nu em mais de um logar. Alguma herva mofina brotava a custo -juncto ás paredes, cobrindo com suas folhas descoloridas o chão -desegual e humido. Por baixo de uma das janellas havia um banco de pau, -gretado pelo tempo, com as bordas roliças do longo uso. Tudo alli -respirava penuria e senilidade. -</p> - -<p> -—Não, dizia Estacio consigo, não é este o asylo de um Romeo de -contrabando. Mora aqui alguma familia pobre, que a caridade engenhosa de -Helena vem afagar de longe em longe. -</p> - -<p> -A solução do enigma pareceu-lhe tão natural, que o moço resolveu -parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para traz. Mas a -suspeita é a tenia do espirito; não perece em quanto lhe resta a -cabeça. Estacio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquillo era, -e voltou sôbre seus passos. Para entrar alli era necessario um motivo -ou ura pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos. -Olhou para a mão ferida e ensanguentada, e foi bater á porta. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXI">CAPITULO XXI</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Poucos instantes esperou Estacio. Veiu um homem abrir-lhe a porta; era o -mesmo que elle vira alli uma vez. Entre ambos houve meio minuto de -silêncio, durante o qual nem Estacio se lembrou de dizer o que queria, -nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro. -</p> - -<p> -—Que desejava? disse enfim o dono da casa. -</p> - -<p> -—Um favor, respondeu Estacio, mostrando-lhe a mão ferida. Ia a cahir -ha pouco; procurando amparar-me, n'uma cêrca de espinhos, feri-me, como -ve. Podia dar-me um pouco d'agua para lavar este sangue, e... -</p> - -<p> -—Pois não, interrompeu o outro. Queira sentar-se ahi no -banco,—ou, se prefere, entrar... É melhor entrar, concluiu -abrindo-lhe caminho. -</p> - -<p> -Em qualquer outra occasião, Estacio teria recusado o convite, porque o -expectaculo da miseria repugnava aos olhos saturados de opulencia. -Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu -uma das janellas para dar mais alguma luz, offereceu ao hóspede a melhor -cadeira e foi por um instante ao interior. -</p> - -<p> -Estacio pôde então examinar, á pressa, a sala em que se achava. Era -pequena e escura. A parede, pintada a colla, ja de longa data, tinha em -si todos os signaes do tempo; primitivamente de uma só côr, a pintura -apresentava agora uma variedade triste e desagradavel. Aqui o bolor, -alli uma grêta, acola o rasgão produzido por um movel; cada accidente -do tempo ou do uso dava áquellas quatro paredes o aspecto de um asylo -da desgraça. A mobilia era pouca, velha, mesquinha e desegual. Cinco ou -seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma commoda e uma -marqueza, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de -latão, sôbre a mesa um vaso de louça com flôres, e na parede dous -pequenos quadros cobertos de escomilha encardida, taes eram as alfaias -da sala. So as flôres davam alli um ar de vida. Eram frescas, colhidas -de pouco. Atentando nellas, Estacio estremeceu: pareceu-lhe reconhecer -uma acacia plantada em sua chacara. Quando a suspeita germina na alma, o -menor incidente assume um aspecto decisivo. Estacio sentiu um calafrio -por todo o corpo. -</p> - -<p> -Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma -toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a côr da parede e o -aspecto senil da casa. Estacio ergueu-se. -</p> - -<p> -—Deixe-se estar, disse o desconhecido. -</p> - -<p> -—Estou perfeitamente bem. -</p> - -<p> -—Nesse caso, faça o favor de chegar á janella. -</p> - -<p> -A bacia foi posta na janella; o desconhecido quis lavar elle proprio a -mão do hóspede; mas o moço não lh'o consentiu. -</p> - -<p> -—Ao menos, disse o dono da casa, hade consentir que a enxugue. Eu -entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui nenhum medicamento -caseiro para applicar. -</p> - -<p> -Estacio aceitou o offerecimento. O dono da casa abriu a toalha e -começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D. Ursula pôde -então examiná-lo á vontade. -</p> - -<p> -Era um homem de trinta e seis a trinta e oito annos, forte de membros, -alto e bem proporcionado. Uma cabelleira espessa e comprida, de um -castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quasi tocar nos hombros. A -fronte elevada, tinha um ar de serenidade olympica. Os olhos eram -grandes, e geralmente quietos, mas riam-se, quando sorriam os labios, -animando-se então de um brilho intenso, ainda que passageiro. Havia -naquella cabeça,—salvo as suiças,—certo ar de tenor italiano. O -pescoço, cheio e forte, surgia d'entre dous hombros largos, e, pela -abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo, -podia Estacio ver-lhe a alva côr e a rija musculatura. Vestía pobre, -mas limpamente, um rodaque branco, calça de ganga e collete de brim -pardo. A <i>toilette</i> mas que disparatada e mesquinha, não diminuia a -belleza mascula da pessoa; accusava somente a penuria de meios. -</p> - -<p> -Quando elle acabou de lavar os arranhões de Estacio,—eram pouco mais -do que isso,—propoz-se a ir buscar um pedaço de panno afim de -atar-lhe a mão; Estacio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que -trazia, e o dono da casa completou o summario curativo. -</p> - -<p> -—Prompto! disse elle. Se tiver em casa algum medicamento apropriado, -será conveniente applical-o. Toda a cautella é pouca; convem evitar -alguma inflammação. -</p> - -<p> -—Obrigado, respondeu Estacio. Realmente, vim dar-lhe uma massada, sem -grande necessidade talvez. -</p> - -<p> -—Porque? -</p> - -<p> -—Podia fazer isto mesmo quando chegasse a casa. -</p> - -<p> -—Mora perto? -</p> - -<p> -—Um pedaço abaixo. -</p> - -<p> -—Foi conveniente curar ja; nenhuma precaução é inutil em cousa, -nenhuma da vida. -</p> - -<p> -—Maxima de prudencia, observou Estacio procurando sorrir. -</p> - -<p> -—Que só aprende tarde quem não a traz na massa do sangue, replicou o -outro suspirando. -</p> - -<p> -A não ser indiscreto ou fallador, era difficil levar a conversa por -diante. O favor estava feito, o assumpto exgotado. Restava agradecer, -despedir-se e sahir. Estacio, entretanto, tinha necessidade de mais -tempo; queria arrancar áquelle homem uma palavra menos indifferente á -situação, ou conhecer-lhe, se fôsse possivel, o caracter e os -costumes. Para isso havia talvez um meio; contrafazer-se, affectar -maneiras extranhas ás suas, apegar-se á occasião por todas as bordas. -Estacio determinou-se a isso, confiando o resto do acaso. Voltou á -cadeira e sentou-se. -</p> - -<p> -—Consente que descance um pouco? Estou fatigadissimo. -</p> - -<p> -—Não pelo que caçou, disse o desconhecido rindo. -</p> - -<p> -—Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador; e tenho, não -obstante, a mania de atirar aos passaros. -</p> - -<p> -—Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de -cousas? Eu fui victima desse defeito mortal. -</p> - -<p> -—Ah! exclamou Estacio com certa entonação interrogativa. -</p> - -<p> -O dono da casa sorria levemente; mas não pareceu molestal-o a -curiosidade do hóspede;—talvez mesmo não desejasse outra cousa. -</p> - -<p> -—É verdade,—disse elle; devo a minha actual penuria ao erro de -teimar em cousas extranhas á minha indole e aptidão, extranhas e totalmente -oppostas... -</p> - -<p> -—Hade perdoar-me,—interrompeu Estacio com um ar de -familiaridade indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que um homem, -forte, moço e intelligente não tem o direito de cahir na penuria. -</p> - -<p> -—Sua observação,—disse o dono da casa sorrindo,—traz o -sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente ésta manhã antes de -sahir para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossivel -comprehender as lutas da miseria; e a maxima de que todo o homem póde, -com esfôrço, chegar ao mesmo brilhante resultado, hade sempre parecer -uma grande verdade á pessoa que estiver trinchando um peru. Pois não -é assim; ha excepções. Nas cousas deste mundo não é tão livre o -homem como suppõe; e uma cousa, que uns chamam mau fado, outros -concurso de circumstâncias, e que nós baptisámos com o genuino nome -brazileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fructo de seus mais -herculeos esforços. Cesar e sua fortuna! toda a sabedoria humana está -contida nestas quatro palavras. -</p> - -<p> -O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo, -e uma facilidade de elocução, que Estacio mal lhe podia suppor. Era -aquillo uma comedia ou a expressão da verdade? Estacio olhou fixamente -para elle, como a querer penetral-o. Ao mesmo tempo ouviu-se um rumor na -parte da casa que ficava além da sala; Estacio voltou a cabeça com um -gesto de desconfiança. A porta abriu-se e appareceu uma preta velha -trajando nas mãos uma bandeja. A creada estacou a meio caminho. -</p> - -<p> -—Põe em cima da mesa, disse o dono da casa. É o meu -almôço,—continuou elle, voltando-se para Estacio; almôço parco e -hygienico. Ousarei offerecer-lh'o? -</p> - -<p> -Estacio fez um gesto negativo, e dispoz-se a sahir. -</p> - -<p> -—Ja! Não é meu intento despedil-o; almoçarei conversando. Vivo tão -solitario, que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto. -</p> - -<p> -Estacio aceitou sem difficuldade o convite; sentou-se defronte do homem, -ao pe da mesa, e assistiu ao almôço, que não podia ser mais escasso: -um pão, duas hostias de queijo duro, e uma chavena de cafe. O que mais -valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que -ostentava aos olhos de um extranho a simplicidade de seus habitos. -</p> - -<p> -—Não é refeição de principe,—dizia elle,—mas satisfaz -todas as ambições de um estomago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e -a sala de jantar; a cosinha é contigua; além, ficam duas braças de -quintal; para la do quintal... o infinito da indifferença humana. -</p> - -<p> -E depois de um silêncio: -</p> - -<p> -—Não digo bem, emendou elle; nem sempre acho indifferença. Meu -trabalho não me dá mais do que o escasso pão de cada dia; mas tenho -algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresma; e essas recebo-as -de mãos caridosas e puras. -</p> - -<p> -Dizendo isto, o desconhecido exgotou a chavena, e reclinou-se sôbre a -cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede. Estacio reflectiu nas -últimas palavras, e um raio de esperança veiu rasgar-lhe a nuvem que -lhe entenebrecia a fronte. Os dous homens pareciam interrogar-se. O -filho do conselheiro saccou do bolso um charuto e offereceu-o ao dono da -casa. -</p> - -<p> -—Obrigado, disse este. -</p> - -<p> -—Não fuma? -</p> - -<p> -—Ja fumei; hoje economiso esse vicio. Nem por isso faço mais -lentamente a digestão. -</p> - -<p> -—Mora só? -</p> - -<p> -—Só. -</p> - -<p> -—Não tem familia? -</p> - -<p> -—Nenhuma. -</p> - -<p> -—Hade achar-me singularmente indiscreto. -</p> - -<p> -—Não; supponho que sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima. -</p> - -<p> -—Acertou; sua pessoa inspira-me sympathia; e se eu conhecesse alguma -dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte... -</p> - -<p> -—Dar-me-hia, por intermedio dellas, o seu obolo?... -</p> - -<p> -—Se o não offendesse... -</p> - -<p> -—Não offendia, mas eu recusava, se soubesse; e peço-lhe desde ja que -o não faça ás escondidas... -</p> - -<p> -Estacio fez um gesto de assentimento. -</p> - -<p> -—Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a -pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obsequio, um simples dever -de visinho... Pareceria que o senhor m'o pagava com um beneficio. O -beneficio seria menos expontaneo de sua parte, e menos agradavel para -mim. Agradavel não exprime, talvez, toda a minha ideia; mas o senhor -facilmente comprehenderá o que quero dizer. -</p> - -<p> -—Entendeu-me mal; o meu obolo não seria na especie a que o senhor -allude. Tenho amigos, e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor -posição. -</p> - -<p> -O desconhecido reflectiu um instante. -</p> - -<p> -—Aceitaria? perguntou Estacio. -</p> - -<p> -—Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale, Eu -vexar-me-hia eternamente de dever qualquer melhoria da sorte ao -cumprimento de um dever de caridade. -</p> - -<p> -—Ja me não admira a vida pobre que tem tido. -</p> - -<p> -—Excessivo escrupulo, talvez? -</p> - -<p> -—Escrupulo desarrazoado. -</p> - -<p> -—Antes de mais que de menos. -</p> - -<p> -—Nem de menos nem de mais; mas só a porção justa. -</p> - -<p> -—A porção varia conforme as necessidades moraes de cada um. Mas, eu -mesmo, que lhe estou a falar nem sempre tive ésta virtude intratavel; e -por ventura alguma vez fraqueei. -</p> - -<p> -A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos labios, -e os olhos cahiram naquella atonia que exprime uma grande concentração -de espirito. Era occasião de interrogal-o directamente ou sahir. -Estacio preferiu o último alvitre. -</p> - -<p> -—Não o quero demorar mais,—disse o dono da casa quando o -mancebo proferiu as palavras de despedida. Ja é tarde, e sua mãe talvez -esteja anciosa... -</p> - -<p> -Estacio limitou-se a olhar para elle em cheio,—dizendo: -</p> - -<p> -—Se alguma vez resolver dar de mão a seu a escrupulos, mande -procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andarahy pela—casa do -Conselheiro Valle... -</p> - -<p> -O desconhecido, era cujo rosto Estacio esperou ver um signal qualquer de -abalo ou sorpresa, conservou-se impassivel e risonho. Curvou-se em -signal de agradecimento; e como Estacio hesitasse em estender-lhe a -mão, elle metteu as suas nas algibeiras. -</p> - -<p> -—Talvez nos vejamos ainda, disse Estacio ja fóra da porta. -</p> - -<p> -—Sim? -</p> - -<p> -—Passeio algumas vezes por estes lados. -</p> - -<p> -—Nem sempre estou em casa; mas ainda estando, conservo fechadas as -cousas. Quando quizer descançar, bata; a casa é pobre, mas será amiga. -</p> - -<p> -Estacio affastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; elle -não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino, -achava-se no meio de uma seiva escura, a egual distância da estrada -recta,—<i>diritta via</i>—e da fatal porta, onde temia ser -despojado de todas as esperanças. Nada sabia; nada conjecturava; eram tudo -novas dúvidas e oscillações. O homem com quem acabava de conversar -parecia-lhe sincero; sua pobreza era authêntica; sensivel a nota de -melancholia que por vezes lhe afrouxava a palavra. Mas onde cessava alli -a realidade e começava a apparencia? Vinha de tratar com um infeliz ou -um hypocrita? Estacio rememorou todos os incidentes da manhã, e todas -as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação -suspeitos e irrespondiveis. Seu espirito repellia com horror a ideia do -mal; mas custava-lhe a acceitar a ideia do bem; e a peor das -angústias,—a dúvida,—continha-o todo e agitava-o, em suas mãos -felinas. O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de perolas de suor; -ao offego da marcha apressada juntava-se o da violenta commoção. -Estacio não via os objectos que ia costeando, nem as pessoas que lhe -passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o -despertasse. -</p> - -<p> -Chegou enfim a casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a -espingarda. Sua demora causára alguma inquietação á familia; logo -que as duas senhoras souberam de seu regresso correram a recebel-o, -ficando D. Ursula a uma janella, e descendo Helena até meio caminho. A -apparição subita da moça, a alegria e o amor, que pareciam -impelli-la, como duas azas sanctas, a perfeita ingenuidade de seu gesto, -tudo produziu nelle a necessaria reacção,—reacção de um -instante,—mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estacio -apertou as mãos da moça com a energia do náufrago. Um fluido subtil -percorreu as fibras de Helena; e aquelle rapido instante teve toda a -doçura de uma reconciliação. -</p> - -<p> -Estacio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem suas ideias, -comparal-as, extrahir uma conjectura pelo menos, e verifical-a ou -desmentil-a. Mas nem a tia nem a irmã haviam almoçado, á espera -delle; e forçoso lhe foi acompanhal-as na satisfação de uma -necessidade que não sentia. Durante o almôço, Estacio procurou -observar Helena; trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma -cousa trahia nessa occasião, eram as alegrias ineffaveis da familia. -Ella propria servia por suas mãos a Estacio e D. Ursula; inexcedivel na -attenção com que sabia repartir-se entre os convivas não o era menos -no carinho e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorancia do mal, -e o sorriso em o das almas candidas. Poder-se-hia attribuir áquella -creatura de dezesete annos corrupção e hypocrisia? Estacio -envergonhou-se de tal ideia; sua alma sentiu as vertigens do remorso. -</p> - -<p> -Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao -gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estacio buscou -dominar a situação. Elle não ia ao ponto de suppor em Helena a -completa perversão dos sentimentos; o limite do mal, que se lhe podia -attribuir, era o de uma culposa leviandade. Se em vez de um acto -leviano, fôsse aquillo um simples estratagema de caridade, Helena não -mereceria menos uma advertencia, mas a pureza da intenção salvava -tudo, e a paz da familia, não menos que o seu decoro, se restabeleceria -inteira. Estacio examinou um por um todos os indicios de culpabilidade -e de innocencia; buscou sinceramente os elementos de prova; não -esqueceu um só argumento de inducção. Nesse trabalho despendeu longas -horas, sem resultado apreciavel, pela razão de que, se a sentença era -difficil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a -dignidade e a affeição, seu espirito balouçava incerto. -</p> - -<p> -Quasi á hora do jantar, Estacio, que não sahira uma só vez do -gabinete, chegou a uma das janellas, e viu atravessar a chacara a mais -humilde figura daquelle enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o -pagem. O pagem appareceu-lhe como uma ideia nova; até aquelle instante -não cogitára nelle uma só vez. Era o confidente e o complice. Ao vel-o -recordou-se que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquelle escravo. -A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a colera cedeu á angústia, e -elle sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lagryma. -</p> - -<p> -Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXII">CAPITULO XXII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Não era preciso grande esfôrço para adivinhar a dona das mãos. -Estacio, com as suas, affastou as mãos de Helena, segurando-lhe os -pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os -olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche: -</p> - -<p> -—Voce é muito mau! Pagou-me a caricia com um apertão. Deixe estar que -nunca mais cahirei em outra. Vim vel-o, por que voce hoje não se -lembrou ainda de dar á gente um ar de sua graça... Doeu-me!—continuou -ella olhando para os pulsos.—Mas... tenho os dedos molhados; -seria... voce estaria... que é? que foi? -</p> - -<p> -Estacio, que ouviu a discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar -ancioso, não lhe respondeu ás últimas interrogações, e continuou a -olhar para ella, como a querer ler na physionomia da moça a -explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, atterrada -e afflicta. Indo pegar-lhe nas mãos, Estacio desviou o corpo, -dirigiu-se á parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia -de seus annos, e approximou-se da moça. -</p> - -<p> -—Que é? repetiu ésta admirada. -</p> - -<p> -A unica resposta de Estacio foi estender o dedo sôbre a mysteriosa casa -reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e -para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste, fel-a -attentar no ponto indicado. Subito empallideceu; seus labios tremeram -como a murmurar alguma cousa, mas a alma falou tão baixo que a palavra -não chegou á boca. Durou aquillo poucos instantes. A angústia lia-se -no rosto dos dous; a moça, para occultar a sua, cobriu os olhos com as -mãos. O gesto era eloquente; Estacio lançou para longe de si o quadro, -com um movimento de colera. Helena atirou-se para o corredor. -</p> - -<p> -D. Ursula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes, -dirigiu-se ella propria ao gabinete de Estacio. A porta estava aberta; -D. Ursula entrou e deu com elle, sentado n'uma poltrona, com o lenço na -cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permittiam -os annos. Estacio não a ouviu entrar; só deu por ella quando as mãos -da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos. O assombro de D. Ursula -foi indescriptivel, sobretudo quando Estacio, erguendo-se, atirou-se-lhe -aos braços, exclamando: -</p> - -<p> -—Que fatalidade! -</p> - -<p> -—Mas... que é?... explica-te. -</p> - -<p> -Estacio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com o -gesto decidido de um homem que se envergonha de um acto de debilidade. -O vestigio das lagrymas dava-lhe aquelle cunho tocante e severo, que as -grandes dores imprimem no rosto humano. A explosão desabafara-lhe o -espirito; elle podia enfim ser homem, o era preciso que o fôsse. D. -Ursula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicavel -afflicção em que viera achal-o. Estacio recusou dizel-a. -</p> - -<p> -—Saberá tudo amanhã, ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e -eu sei o que elle me ha custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu -conselho e apoio. -</p> - -<p> -D. Ursula resignou-se á demora. Quando chegou á sala de jantar achou -um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira repentinamente -incommodada e que a dispensasse naquella tarde e noite. D. Ursula -suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a -afflicção de Estacio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meia -inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada e o corpo tranquillo e -como morto. Ao sentir os passos de D. Ursula, ergueu a cabeça. A -pallidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lagrymas. -A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificado naquella face -immovel e fria como o granito. O que restava ainda vivo na figura da -moça eram os olhos, que não perderam o fulgor natural. Ella ergueu-os -a medo, e abraçou a tia com um olhar de súpplica e de amor. D. Ursula -travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou: -</p> - -<p> -—Conta-me tudo. -</p> - -<p> -—Saberá depois! suspirou a moça. -</p> - -<p> -—Não tens confiança em tua tia? -</p> - -<p> -Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lagrymas -rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que elles verteram -naquella meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura: -</p> - -<p> -—Póde receber estes beijos,—disse ella,—os anjos não os -tem mais puros. -</p> - -<p> -Foram as últimas palavras que D. Ursula pôde arrancar-lhe; a moça -recolheu-se ao profundo silêncio em que ella a encontrou. D. Ursula -sahiu; e foi dalli ter com Estacio. O sobrinho encaminhava-se para a -sala de jantar. -</p> - -<p> -—Vamos para a mesa, disse elle,—não convem que os escravos -saibam de taes crises. -</p> - -<p> -D. Ursula referiu o estado em que achára Helena e as palavras que -trocára com ella. Estacio ouviu-a sem nenhuma expressão de sympathia. -O jantar foi um simulacro; era um meio de illudir a perspicacia dos -escravos, que alias não cahiam naquelle embuste. Elles conheceram -perfeitamente que algum acontecimento occulto trazia suspensos e -concentrados os espiritos. As iguarias voltavam quasi intactas; as -palavras eram trocadas com esfôrço entre a sinhá velha e o senhor -moço. A causa daquillo era com certeza nanhã Helena, que estava -ausente. -</p> - -<p> -Estacio deu ordem para que a todas as pessoas extranhas se declarasse -estar ausente a familia. A unica excepção era o padre Melchior. A esse -escreveu pedindo-lhe que os fôsse ver. -</p> - -<p> -—Não posso esperar até amanhã, disse D. Ursula; se tens de revellar -alguma cousa a um extranho, por que o não fazes a mim primeiro? Dize-me -o que ha. Não posso ver padecer Helena; quero consolal-a e animal-a. -</p> - -<p> -—O que tenho para dizer é longo e triste,—retorquiu Estacio; -mas, se deseja sabel-o desde ja, peço-lhe ao menos que espere a presença do -padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas cousas; seria -revolver o punhal na ferida. -</p> - -<p> -A curiosidade de D. Ursula cresceu com éstas meias palavras do -sobrinho; mas era forçoso esperar e esperou. Foi dalli ao quarto de -Helena, Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena -escrevia. Ésta nova circumstância veiu complicar as impressões de D. -Ursula. -</p> - -<p> -—Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ella ao sobrinho. -</p> - -<p> -—Naturalmente, respondeu este com sequidão. -</p> - -<p> -O padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estacio. O -bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia -ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; elle o -reconheceu desde logo, não só no aspecto lugubre da familia, como na -ancia com que era esperado. Os tres recolheram-se a uma das salas -interiores. -</p> - -<p> -—Helena? perguntou Melchior. -</p> - -<p> -—Vamos tratar della, respondeu Estacio. -</p> - -<p> -Referir o que se passára naquella fatal manhã era mais facil de -planear que de executar. No momento de expor a situação e as -circumstâncias della, Estacio sentiu que a lingua rebelde não obedecia -á intenção. Achava-se n'um tribunal doméstico, e o que até então -fôra conflicto interior entre a affeição e a dignidade, cumpria agora -reduzil-o ás proporções de um libello, claro, sêcco e decidido. -Innocente ou culpada, Helena apparecia-lhe naquelle momento como uma -recordação das horas felizes,—doce recordação, que os successos -presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não -destruiriam nunca, porque é esse o mysterioso privilegio do passado. -Reagiu, entretanto, sôbre si mesmo; e ainda que a custo referiu -minuciosa e sinceramente o que se passára desde aquella manhã. -</p> - -<p> -Não fôra talhado para tão melindrosas revellações o coração de D. -Ursula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que -dão os grandes golpes. Esperava, de certo, um grande infortunio de -Helena, um episodio de sua familia anterior, alguma cousa que desafiasse -a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente -o contrário; a estima era impossivel e a compaixão tornava-se apenas -provavel. -</p> - -<p> -—Mas não! é impossível! exclamou ella dahi a pouco, logo que a razão -obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz—não! eu a vi ha -pouco; senti-lhe as lagrymas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a -innocencia póde proferir. E, além disso, seu procedimento -irreprehensivel, um anno quasi de convivencia sem mácula, a elevação -de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre -Helena! Vamos chamal-a; ella explicará tudo. Interroguemos o Vicente. -</p> - -<p> -Um gesto dos dous homens mostrou que nenhum delles julgava digno este -último recurso para conhecer a verdade. -</p> - -<p> -D. Ursula cahíra em prostração, recordava suas apprehensões do -primeiro dia, e recuava com horror á ideia de ter acertado. Defronte -della, Estacio occupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os -cotovellos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma -ruminava a dor. -</p> - -<p> -Um só dos tres vingada a dignidade da situação. O padre Melchior não -sentira menor assombro que os dous parentes de Helena, nem padeceu menos -profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e -conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dous corações -ulcerados e sem fôrça, comprehendeu Melchior que lhe cabia a principal -acção, e não recuou ante a responsabilidade que dahi poderia deduzir. -Viu de um lance a extensão possivel do mal, a desunião da familia, os -desesperos da occasião, os odios do dia seguinte, as amarguras -indeleveis e talvez as indeleveis saudades; mas nem este quadro o -aterrou, nem elle o aceitou sem exame. Melchior não condemnava nem -absolvia; esperava. Elle pertencia ao numero dessas virtudes singellas -para as quaes o vicio é uma rara excepção; natureza sincera e franca, -era-lhe difficil crer na hypocrisia. Em quanto Estacio proseguia calado -e pensativo, e D. Ursula, ora sentada, ora de pe, intercalava o -silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e reflectia -tambem comsigo. Emfim, proferiu éstas palavras de animação: -</p> - -<p> -—Socegue, D. Ursula; a verdade hade apparecer, e não estamos certos -que seja o que nos parece. Em todo o caso não antecipemos a -afflicção. Seria padecer duas vezes. Ha tempo de chorar á larga. -</p> - -<p> -Melchior levantou-se: -</p> - -<p> -—Convem sacudir o abatimento, continuou dirigindo-se a Estacio; é a -hora da acção e do vigor. Sobretudo é necessario não boquejar de -semelhante assumpto por agora; daria azo ás vozes extranhas e seus -naturaes commentarios. Eu tomarei nesta collisão o logar que me compete, -se m'o não contestam... -</p> - -<p> -—Oh! exclamou Estacio. -</p> - -<p> -—... Mas desejo que desde ja se compenetrem bem de que, se a -dignidade pede uma cousa, a caridade pede outra, e que o dever stricto é -concilial-as. Nada do odios; perdão ou esquecimento. -</p> - -<p> -—Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Ursula com -anciedade. -</p> - -<p> -—D. Ursula, disse o padre; é preciso agora que a razão fale e -trabalhe; o sentimento deve retrahir-se e esperar. Examinarei o caso, e -aconselharei o necessario remedio. Talvez estejamos a debater-nos no -vacuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma apparencia... -</p> - -<p> -—Oh! ella confessou tudo! interrompeu Estacio. Vi-lhe a expressão da -culpa nos olhos. Mas, emfim, estou prompto para tudo, continuou elle -erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pae? Não o -é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer -melhor. Na singular situação em que nos achamos nenhum de nós temos o -espirito bastante senhor de si para colhêr os elementos da verdade, -apural-a e resolver. Esse papel é seu. -</p> - -<p> -Vieram trazer a Estacio uma carta. Era do Dr. Camargo, annunciando-lhe -que a madrinha do Eugenia fallecêra, e que elle no prazo de alguns dias -estaria na Corte. Era o peor momento para semelhante vinda; Estacio não -pôde reprimir um gesto de desgôsto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de -que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no -regresso do Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o -assumpto que os affligia. -</p> - -<p> -—D. Ursula,—continuou elle,—deixe-nos agora sos alguns -instantes; va tranquilla, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguem o -que se passa nesta casa. -</p> - -<p> -D. Ursula obedeceu. Logo que ella sahiu. Melchior fechou a porta. -Estacio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capellão. Este deu alguns -passos entre a porta e uma das janellas. Ia anoitecendo; Estacio -accendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pe delle, sem lhe falar -nem voltar-lhe sequer os olhos. Meditava ou luctava comsigo mesmo; a -fronte pesada e merencoria traduzia a agitação interior. Ja não era a -inalteravel placidez, reflexo de uma consciencia religiosa e pura. Se a -consciencia era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise -nova. Apos dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXIII">CAPITULO XXIII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -—És forte? perguntou o padre. -</p> - -<p> -—Sou. -</p> - -<p> -—Cres em Deus? -</p> - -<p> -Estacio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior -insistiu: -</p> - -<p> -—Cres? -</p> - -<p> -—Essa pergunta... -</p> - -<p> -—É menos ociosa do que parece. Não basta suppor que se cre; nem basta -crer á ligeira, como na existencia de uma região obscura da Asia, onde -nunca se pretende pôr os pes. O Deus de que te fallo não é só essa -sublima necessidade do espirito, que apenas contenta alguns philosophos; -fallo-te do Deus creador e remunerador, do Deus que le no fundo de -nossas consciencias, que nos deu a vida, que nos hade dar a morte, e -além da morte o premio ou o castigo. Cres? -</p> - -<p> -—Creio. -</p> - -<p> -—Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o -saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura, -rebella-se, vaga á feição de um instincto mal expresso e mal -comprehendido. O mal persegue-te, tentaste, envolve-te em seus liames -dourados e occultos; tu não o sentes, não o ves; tens horror de ti -mesmo, quando deres com elle de rosto. Deus que te lê, sabe -perfeitamente que entre teu coração e tua consciencia ha com o um veu -espesso que os separa, que impede esse accôrdo gerador do delicto. -</p> - -<p> -—Mas que é, padre-mestre? -</p> - -<p> -Melchior inclinou-se e encarou o moço. Seus olhos, fitos nelle, eram -como tum espelho polido e frio, destinado a reproduzir a impressão do -que lhe ia dizer. -</p> - -<p> -—Estacio,—disse Melchior pausadamente,—tu amas tua irmã. -</p> - -<p> -O gesto mesclado de horror, assombro e remorso, com que Estacio ouvira -aquella palavra, mostrou ao padre, não só que elle estava de posse da -verdade, mas tambem que acabava de a revellar ao mancebo. O que a -consciencia deste ignorava, sabia-o o coração, e só lh'o disse -naquella hora solemne. A consciencia, depois de tactear nas trevas, -recuou apavorada, como affastando de si o clarão subito que accendêra -nella a palavra do sacerdote. Estacio não respondeu nada: não podia -responder nada. Com que vocabulo e em que lingua humana esprimiria elle -a commoção nova e terrivel que lhe abalára a alma toda? que fio -podéra atar-lhe as ideias rôtas e dispersas? Nem falou, nem se -atreveu a erguer os olhos; ficou como estupido e morto, Melchior -contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Seus olhos, que -eram de aguia para os mysterios da vida, eram de pomba para os grandes -infortunios. Abaixo da cabeça mascula, havia um coração feminino. -</p> - -<p> -A mudez de Estacio cessou emfim; o corpo agitou-se; o labio articulou -algumas phrases desconcertadas. Vago era o sentido dellas; podia -concluir-se que elle não cria na revellação de Melchior, que o -supposto sentimento era tão absurdo e desnatural, que só a maus -instinctos devia ser attribuido. Melchior ouviu-o e sorriu com -satisfação. Não era aquillo mesmo um protesto de consciencia honrada? -</p> - -<p> -—Maus instinctos, não,—respondeu Melchior; um desvio da lei -social e religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Estacio; -revolve-lhe os mais intimos recantos, e la acharás esse germen funesto: -lança-o fóra de ti, que é o preceito do Eterno Mestre. Não o -sentiste nunca: a tentação usa essa tactica serpentina e dolosa; é -insinuante, como a calúmnia, e pertinaz, como a suspeita. Mas eu sou a -verdade, que affirma, e a caridade, que consola. Digo-te, não que -peccaste, mas que ficaste á beira do peccado; e estendo-te a mão para -que recues do abysmo. -</p> - -<p> -—Padre-mestre! murmurou Estacio cujo coração recebia a influência da -palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga. -</p> - -<p> -—Não fales, continuou o padre; negal-o é mentir; confessal-o é -ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quiz a -fortuna que entre voces dous não houvesse a imagem da infancia e a -communhão dos primeiros annos; que, em plena mocidade, passassem do -total desconhecimento um do outro, para a intimidade do todos os dias. -Ésta foi a raiz do mal. Helena appareceu-te mulher, com todas as -seduções proprias da mulher, e mais ainda com as de seu proprio -espirito, por que a natureza e a educação accordaram em a fazer -original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou -em ti, nem podias comprehendel-a. S. Paulo o disse: para os corações -limpos, todas as cousas são limpas. Vias a affeição legitimo -naquillo que era ja affeição espuria; dahi vieram os zelos, a -suspicacia, um egoismo exigente, cujo resultado seria subtrahir a alma -de Helena a todos as alegrias da terra, unicamente para o fim de a -contemplares sosinho, como um avaro. -</p> - -<p> -Ouvindo a palavra do padre, Estacio soletrava o proprio coração e lia -claramente o que até então era para elle como um livro fechado. A -situação tornava-se, entretanto, por demais afflictiva, profunda a -vergonha, intenso o remorso. Estacio ergueu-se; erguendo-se deu com os -olhos no retrato do Conselheiro, que, na penumbra em que ficava, parecia -olhar para o filho, e interrogal-o. Ésta circumstância desorientou o -moço. -</p> - -<p> -—Não, padre-mestre! exclamou elle deixando-se cahir na -cadeira.—É impossivel! isto que me está dizendo é um sonho mau, -é um funesto equívoco; é impossivel; juro-lhe que é impossível. É -certo que a amo... que a amava, com sentimento de irmão; mas -esquecer-me, aninhar em minha alma tão odioso affecto... oh! era -impossivel! -</p> - -<p> -Melchior erguera-se. Apos meia duzia de passos, approximou-se de -Estacio, sôbre cuja cabeça estendeu a mão direita, em quanto com a -outra lhe erguia a barba, obrigando-o a olhar para elle. -</p> - -<p> -—Digo-te que teus uma raiz de ma herva no coração; ésta é a cruel -verdade. Ha no homem uma ligação de sentimento, ás vezes -inexplicavel. Productos de climas oppostos ahi se alternam ou se -confundem... Mas queres saber o resto? -</p> - -<p> -—O resto? -</p> - -<p> -—Ouve,—continuou o padre sentando-se. A planta ruim bracejou -um ramo para o coração virgem e casto de Helena, e o mesmo sentimento -os ligou em seus fios invisiveis. Nem tu o vias, nem ella; mas eu vi, eu -fui o triste expectador dessa violenta e miseravel situação. São -irmãos e amam-se. A poesia tragica póde fazer do assumpto uma acção -theatral; mas o que a moral e a religião reprovam não deve achar -guarida na alma de um homem honesto e christão. -</p> - -<p> -—Impossivel! impossivel! exclamou Estacio. Mas, dado que assim fosse, -por que accumular á difficuldade presente o horror de semelhante -revellação? -</p> - -<p> -—Por que a revellação explica a difficuldade. Helena não sabera que -ama, mas ama. Ora, um amor clandestino, de parceria com esse outro amor -incestuoso, embora inconsciente, provaria da parte de Helena uma -perversão, que ella não póde ter, e que, em tal edade, faria della um -monstro. Sera Helena esse monstro? Se o fosse, eu desesperaria da -natureza humana. Não! essa casa, onde a viste entrar, é com certeza -asylo de miseria; o que ella ahi vae levar é a esmola e a compaixão. -</p> - -<p> -Um raio de esperança alumiou a fronte de Estacio. O raciocinio do padre -era exacto; e por mais perigosa que fôsse a situação revellada por -elle, ja agora não se podia desejar outra cousa; a dignidade da familia -ficava intacta. Estacio reflectiu largo tempo no que acabava de ouvir. -Mas, a esperança foi curta, embora a necessidade della grande. -</p> - -<p> -—Helena continua recolhida? perguntou o padre. -</p> - -<p> -Estacio fez um leve signal affirmativo. -</p> - -<p> -—Falar-lhe-hei amanhã; por hoje convem não dizer palavra nem deixar -transpirar cousa nenhuma. -</p> - -<p> -Dizendo isto, Melchior recolheu-se ao silêncio, como se reflectisse -ainda alguma cousa. Estacio erguera-se e entrára a passear lentamente. -De quando em quando apertava a cabeça entre as mãos; tantas -commoções bastavam para atordoar mais forte espirito. O mysterio o -cercava de todos os lados. Elle ia até á janella, dahi até à porta, -intercalando as reflexões interiores com sacudimentos nervosos do -braço ou da cabeça. A intervallos, olhava a furto e de travez para o -capellão, como o criminoso olha para a consciencia; não podia evitar o -sentimento de terror, e ao mesmo tempo de respeito, que lhe infundia -aquelle investigador exacto e profundo de seus sentimentos mais -reconditos e inaccessiveis. Ruminava o que o padre lhe dissera; cada -minuto lhe ia tornando mais clara a verdade revellada; e o que era -obscuro fizera-se-lhe emfim transparente. É assim que a luz de um -astro, accesa desde seculos, chega finalmente a ferir a retina de nossos -olhos mortaes. -</p> - -<p> -Uma vez, interrompendo os passos, ergueu os olhos para o retrato do -Conselheiro. Não os retirou atterrado; cravou-os com um ar de reproche -e de amargura, em que o padre reparou e que o fez sorrir tristemente. O -olhar do filho pedia contas ao pae. -</p> - -<p> -—Paz aos mortos! observou Melchior. Os actos de seu pae já não -pertencem á jurisdicção deste seculo. -</p> - -<p> -Melchior proferiu éstas palavras ja de pe. -</p> - -<p> -—O Dr. Camargo, disse elle mudando de tom,—deve chegar um dia -destes, segundo annuncia. Ha alguma razão para demorar o casamento? -</p> - -<p> -—Nenhuma. -</p> - -<p> -—Convem realisal-o immediatamente. -</p> - -<p> -—Immediatamente. -</p> - -<p> -Melchior caminhou para a porta. Ia dar volta á chave, e deteve-se. -</p> - -<p> -—Antes de nos separarmos, disse elle,—desejo a promessa de que -não falarás a Helena antes de amanhã. -</p> - -<p> -—Prometto. -</p> - -<p> -O padre reflectiu um instante; Estacio pareceu adivinhal-o. -</p> - -<p> -—Quer ainda outra promessa? perguntou elle. Quer que a evite da todos -os modos. -</p> - -<p> -—Sim; que a considere como pessoa totalmente extranha. -</p> - -<p> -—Poderia ser de outra maneira? observou melancholicamente Estacio. Os -successos destes dias são, por em quanto ao menos, uma barreira entre -ella e sua familia. Demais, eu seria destituido de todo o senso moral... -</p> - -<p> -—Jura? -</p> - -<p> -—Juro. -</p> - -<p> -Melchior desabrochou a camisa, e aventou um crucifixo de marfim, que lhe -pendia de uma fita preta, ao pescoço. -</p> - -<p> -—Este, disse elle cora voz singella, é a effigie do teu Deus. Tão -puro exemplo de castidade não viram os seculos nem antes nem depois que -elle desceu á terra. Jura o que me promettes. -</p> - -<p> -—Padre-mestre,—retorquiu Estacio; minha palavra era bastante. -Mas, se é preciso affirmação mais solemne, eu a darei tal qual me pede. -</p> - -<p> -Estacio inclinou a cabeça sôbre o crucifixo e beijou-o -respeitosamente; depois beijou a mão ao padre. Melchior abençou-o e -sahiu. -</p> - -<p> -Sahindo do gabinete de Estacio, dirigiu-se para a sala de costura, onde -achou D. Ursula um pouco menos agitada. -</p> - -<p> -—Falou a Helena? perguntou ella dirigindo-se ao padre. -</p> - -<p> -—Ainda não; sei que não quer sahir do quarto; deixemos passar a -primeira commoção. Amanhã virei saber tudo. Por hoje é preciso que a -senhora socegue. -</p> - -<p> -—Oh! estou socegada! Não perdi a confiança. -</p> - -<p> -D. Ursula proferiu éstas palavras com tamanha serenidade e tão -profunda convicção que fortaleceu o espirito do proprio Melchior, -alias não inclinado a crer no mal. O ancião deteve-se alguns instantes -a contemplar o rosto placido de D. Ursula, a admirar a fôrça secreta -que a tornava surda ao clamor da realidade,—pelo menos, da realidade -apparente. Contemplou-a silencioso, e desceu á chacara. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXIV">CAPITULO XXIV</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da -chacara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre -feliz, mas geralmente quieto, dessa quietação que é tanta vez a -superficie da vida. Mais de uma vez buscára dissipar a sombra pezarosa -que alguns erros do conselheiro accumularam na fronte da consorte. -Haveria naquella casa uma geração de dores, destinadas a abater o -orgulho da riqueza com o irremediavel expectaculo da debilidade humana? -</p> - -<p> -—Não, dizia elle comsigo mesmo. A verdade é que tudo se encadeia e -desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos -abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortunio calado e -profundo daquella senhora que se foi em pleno meio dia; o fructo hade -ser tão amargo como a árvore; seu sabor é travado de remorsos. -</p> - -<p> -Neste ponto chegava ao portão. Ahi deteve-se um instante. O passo -cautelloso e timido de alguem fel-o voltar a cabeça. Um vulto, cujo -rosto não via, tão escuro como a noite, alli estava e lhe tocava -respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pagem de Helena. -</p> - -<p> -—Seu padre,—disse este,—diga-me por favor o que aconteceu -em casa. Vejo todos tristes; nhanhã Helena não apparece; fechou-se no -quarto... Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu? -</p> - -<p> -—Nada, respondeu Melchior. -</p> - -<p> -—Oh! é impossivel! Alguma cousa ha por fôrça. Seu padre não tem -confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente? -</p> - -<p> -—Socega; não ha nada. -</p> - -<p> -—Um! gemeu incredulamente o pagem. Ha alguma cousa que o escravo não -pode saber; mas tambem o escravo póde saber alguma cousa que os brancos -tenham vontade de ouvir... -</p> - -<p> -Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permittia examinar -o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A ideia de -interrogal-o passou pela mente, do padre, mas não fez mais do que -passar; elle a regeitou logo, como a regeitára algumas horas antes. -Melchior preferia a linha recta; não quizera empregar um meio tortuoso. -Iria pedir a Helena a solução das difficuldades. Entretanto, o pagem, -como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote, -continuou: -</p> - -<p> -—Nhanhã Helena é uma sancta. Se alguem a accusa, accusa o bom -procedimento della. Eu lhe direi tudo... -</p> - -<p> -Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pagem, -contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se -passos; era um escravo que vinha fechar o portão. -</p> - -<p> -—Vem gente,—disse Vicente,—amanhã... -</p> - -<p> -O pagem tacteou nas trevas em procura da dextra do capellão; achou-a -emfim, imprimiu-lhe um ósculo do respeito e affastou-se. Melchior -seguia para casa, abalado com a meia revellação que acabava de ouvir. -Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo; -podia suppor que o acto delle em menos expontaneo do que parecia; emfim, -que a propria Helena suggeríra aquelle meio de transviar a expectação -e congraçar os sentimentos. A interpretação era verosimil; mas o -padre não cogitou de tal cousa. A elle é principalmente applicavel a -maxima apostolica; para os corações limpos, todas as cousas são -limpas. -</p> - -<p> -A seguinte aurora alumiou um ceu puro de nuvens. Estacio accordou com -ella, depois de uma noite mal dormida. Nunca a manhã, lhe pareceu mais -rumorosa e jovial; nunca o ar apresentára tão fina transparencia, nem -a folhagem tão lustrosa, côr. Da janella a que se encostára via as -flôres de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e -enviando-lhe a elle uma nuvem invisivel de seus aromas: aspecto de festa -e ironia da natureza. Estacio achava-se alli como um sahimento em horas -de carnaval. -</p> - -<p> -Almoçou sosinho; D. Ursula estava com Helena. Logo depois do almôço -recebeu uma carta de Mendonça, que tendo ido na vespera a Andarahy, -recebêra a resposta dada a todos, e mandava saber se havia molestia em -casa. Estacio respondeu affirmativamente, accrescentando que, posto não -se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois. A resposta -podia ser mais circumspecta; no estado em que elle se achava, -pareceu-lhe excellente. -</p> - -<p> -Pela volta do meio dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D. -Ursula, que o espreitava de uma das janellas. -</p> - -<p> -—Helena? perguntou elle ancioso. -</p> - -<p> -—Ja hoje desceu,—respondeu D. Ursula. Está mais tranquilla. Não -lhe perguntei nada, mas dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe, -mostrou-se anciosa por vel-o, e pediu-me até que o mandasse chamar. -</p> - -<p> -Seguiram os dous até á saleta que ficava ao pe da sala de jantar. -Helena estava sentada, com a cabeça cahida sôbre as costas da cadeira, -e os olhos meios cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os -olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pallidas -da vigilia e da afflicção. Ergueu-se e deu dous passos para o padre, -que lhe apertou as mãos entre as suas. -</p> - -<p> -—Imprudente! murmurou Melchior. -</p> - -<p> -Helena sorriu, um sorriso pallido e tão passageiro como a côr que lhe -tingira o rosto, D. Ursula dispoz-se a ir chamar Estacio, que estava no -andar de cima. Apenas a viu sahir, Helena segurou em uma das mãos do -padre. -</p> - -<p> -—Queria vel-o! disse ella. Não tenho ânimo de falar a ninguem mais, -de dizer tudo... -</p> - -<p> -—É inutil; tudo sei, interrompeu Melchior sorrindo. O Vicente foi -hoje de manhã á minha casa; foi de movimento proprio; relatou-me -quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia -ver, a occultas, não podendo ou não querendo apresental-o em casa de -seus parentes. O escrupulo era excessivo, e o acto leviano. Porque -motivo dar apparencia incorrecta a um sentimento natural? Teria poupado -muita afflicção e muita lagryma a si e aos seus, se tomasse antes o -caminho direito, que é sempre o melhor. -</p> - -<p> -Helena ouvia éstas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos. -Não parecia sequer respirar. Quando elle acabou, perguntou soffrega: -</p> - -<p> -—Com que intento lhe falou elle? -</p> - -<p> -—Com o mais puro do todos; desconfiou que a senhora padecia por isso -e veiu contar-me tudo. -</p> - -<p> -Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quiz -interromper nessa ascenção mental ao ceu; limitou-se a contemplal-a. -A belleza de Helena nunca lhe parecêra mais tocante do que nessa -attitude implorativa. A contemplação não durou muito, por que a -oração foi breve. -</p> - -<p> -—Orei a Deus,—disse ella, descendo as mãos,—por que -infundiu ahi no corpo vil do escravo tão nobre espirito do dedicação. -Delatou-me para restituir-me a estima da familia. Aquillo que ninguem -lhe arrancaria do coração, tirou-o elle mesmo no dia em que viu em -perigo o meu nome e a paz de meu espirito. Infelizmente, mentiu. -</p> - -<p> -Melchior empallideceu. -</p> - -<p> -—Mentiu sem o saber, continuou a moça. Disse o que suppunha ser -verdade,—o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem. -</p> - -<p> -Melchior inclinou-se para a moça e pegando-lhe nos pulsos, disse -imperiosamente. -</p> - -<p> -—Então quem é? Seu silêncio é uma delação; não tem ja direito de -hesitar. -</p> - -<p> -—Não hesito, replicou Helena; em taes situações uma creatura, como -eu, caminha direito a um rochedo ou a um abysmo; despedaça-se ou -some-se. Não ha escolha. Este papel,—continuou, tirando da algibeira -uma carta,—este papel lhe dira tudo; leia e refira tudo a Estacio e a -D. Ursula. Não tenho ânimo de os encarar nesta occasião. -</p> - -<p> -Melchior, atordoado, fez um leve signal de cabeça. -</p> - -<p> -—Lido esse papel,—estão rotos os vínculos que me prendem a ésta -casa. A culpa do que me acontece não é minha, é de outros; aceitarei -contudo ás consequencias. Poderei contar ao menos com a sua benção? -</p> - -<p> -A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de -absolvição ou de clemencia, que ella lhe pagou com muitos na dextra -enrugada e trémula de commoção. Helena precipitou-se depois para o -corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abril-a, -receioso dos males que iam dalli sahir, sem certeza ao menos de que -ficaria no fundo a esperança. Ia abril-a, e hesitou se o devia fazer na -ausencia de Estacio e D. Ursula; venceu o escrupulo e leu. -</p> - -<p> -D. Ursula, que entrou na occasião em que elle fechava a carta, recuou -aterrada. Melchior estava pallido como um defuncto. Antes que nenhum, -delles falasse, entrou Estacio na saleta. Melchior dirigiu-se a elle e -entregou a carta. Leu-a Estacio e dizia assim: -</p> - -<p> -«Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa ahi ha que te -afflige. Presumo adivinhar o que é. O Estacio esteve commigo, logo -depois que daqui sahiste a ultima vez. Entrou desconfiado, e deu como -razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na -mão. Talvez elle proprio as fizesse para entrar aqui em casa. -Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Suppondo que elle -soubesse de tuas visitas, não lhe occultei a minha pobreza; era o meio -de attribuil-as a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de -capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o theor da -vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o -espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente receio que assim -acontecesse. Conta-me o que ha, pobre filha do coração; não me -escondas nada. Em todo o caso, procede com cautella. Não provoques -nenhum rompimento. Se fôr preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou -mezes. Contentar-me-ha a ideia de saber que vives em paz e feliz. -Abençoo-te, Helena, com quanta effusão pode haver no peito do mais -venturoso dos paes, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gôsto -de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me.—<i>Salvador</i>.» -</p> - -<p> -<i>P.S.</i> Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não -saias dahi; seria um escandalo.» -</p> - -<p> -Estacio não comprehendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade -parecia inverossimil. Seu primeiro movimento foi sahir dalli e ter com -Helena. Melchior deteve-o a tempo. -</p> - -<p> -—Não precipitemos nada, disse elle. Socegue primeiro. -</p> - -<p> -Estacio deixou-se cahir n'uma cadeira; Melchior communicou o conteudo da -carta a D. Ursula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho, -porque ella não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar -estupidamente para o papel. Houve então entre aquelles tres personagens -dez minutos de mortal silêncio. D. Ursula não pensava; olhava para a -carta, logo depois para o sobrinho e o padre, como a esperar uma -conclusão que seu proprio espirito não podia deduzir dos -acontecimentos. Estacio ficára desorientado; em vão procurava um fio -de deducção entre suas ideias; a revellação nova era uma -complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração -testamentária de seu pae? Se o não era, como explicar a audacia de -semelhante invenção? Elle não podia discernir o que era favoravel a -Helena, nem ousava affirmar o que lhe era adverso. -</p> - -<p> -No meio daquella familia, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava -a superioridade da morte sobre alguns lances terriveis da vida. Se o -obito de Helena tomára o logar da carta, a dor seria violenta; mas o -irremediavel desfecho e o consolo da religião teriam contribuido para -sarar a alma dos que ficassem e converter o desespêro de alguns dias na -saudade da vida inteira. Em vez disto, estava elle talvez diante de um -destino aniquillado; via um abysmo possivel entre corações que a -vontade de um morto vinculára. Qualquer que fôsse a veracidade da -carta, o resultado era talvez esse. -</p> - -<p> -Melchior foi dalli ter com Helena, para alcançar mais detida -explicação do quê acabava de ler. Ella ergueu-se quando o viu, e -pareceu reviver ao contemplar o gesto benevolo com que elle lhe falou. -Um longo suspiro de alivio rompeu-lhe do coração; seus braços cahiram -sobre os hombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou -emfim,—um minuto—das dores que a affligiam. -</p> - -<p> -—Perdoaram-me? disse ella. -</p> - -<p> -—Hão de perdoar; conte-me tudo. -</p> - -<p> -—Oh! não posso, não sei; sei que é meu pae. -</p> - -<p> -O capellão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na -posição em que os deixára. Interrogaram-n'o com os olhos. -</p> - -<p> -—Nada, disse elle. Seu coração não possue nesta occasião a -necessaria fôrça para responder a quanto se lhe devia perguntar; -demais não sabera tudo. Temos a primeira confissão da verdade.... -</p> - -<p> -—Da verdade? interrompeu melancholicamemte Estacio. Quem sabe se é -verdade o que lemos nesse papel? -</p> - -<p> -—É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração; -mas eu incumbo-me de ir buscal-os. -</p> - -<p> -—Iremos ambos. -</p> - -<p> -D. Ursula quiz dissuadir o sobrinho de ir á casa do homem, causa dos -desastres da familia; não tanto por que lhe parecia que entre Estacio e -elle nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo por que ella -precisava de alguem que a acompanhasse em tão graves circumstâncias. -Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Ursula. -</p> - -<p> -—Irei eu só, disse elle; depois conduzil-o-hei até ca, se fôr -preciso. -</p> - -<p> -—Não posso esperar, insistiu Estacio; preciso falar a esse homem, -ouvil-o, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o -decoro da familia exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração -goteja sangue. -</p> - -<p> -Era impossivel dissuadil-o; Melchior tratou somente de o moderar. De -resto, a crise era violenta; cumpria resolvel-a sem demora nem -hesitação. O padre animou D. Ursula, e sahiu acompanhado de Estacio, -cujo coração, convalecido do primeiro abalo, deixava as regiões da -dúvida para entrar na atmosphera da verdade,—pelo menos da esperança. -Quaesquer que fossem as consequencias da nova revellação, vinha ésta -como um balsamo, apos tão dolorosas commoções; era um rasgão azul no -ceu tempestuoso daquelles dias. Ia elle pensando assim,—ou antes -sentindo,—por que o pensamento não ousava regel-o, desde que a vida -inteira do moço se lhe concentrára no coração. -</p> - -<p> -Chegando em frente da casa, Estacio desviou os olhos; custava-lhe -encaral-a, mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se ésta -emfim, e a figura do dono da casa appareceu aos dous. Vendo-os, -empallideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão. -Estacio foi direito ao fim. -</p> - -<p> -—Supponho que se lembra de mim? disse elle. -</p> - -<p> -—Perfeitamente. -</p> - -<p> -—Sabe que motivo nos traz a sua casa? -</p> - -<p> -—Não, senhor. -</p> - -<p> -—Confessa a autoria desta carta? -</p> - -<p> -Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto affirmativo. -</p> - -<p> -—Pretende que Helena é sua filha, disse o moço depois de um instante. -Confirma verbalmente o que escreveu? -</p> - -<p> -—Helena é minha filha. -</p> - -<p> -Melchior interveiu. -</p> - -<p> -—Ha um anno, fallecendo, o meu velho amigo conselheiro Valle, -reconheceu Helena, por uma clausula testamentária; recommendava á -familia que a tratasse com affecto e carinho e designava o collegio em -que ella estava sendo educada. O facto do reconhecimento e as -circumstâncias que apontou dão toda a veracidade á palavra do morto. -Que prova apresenta o senhor em contrário a ella? -</p> - -<p> -—Nenhuma, disse Salvador; não tenho prova de nenhuma natureza. -</p> - -<p> -—Na falta de provas, proseguiu o capellão, poderia dizer-nos como -suppor da parte do conselheiro uma falsificação tratando-se de -disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa extranha na -familia? -</p> - -<p> -Salvador sorria amargamente. -</p> - -<p> -—Supponha,—disse elle,—que eu havia illudido a confiança -do conselheiro, e que elle acreditava ser pae de Helena. -</p> - -<p> -—Era isso? -</p> - -<p> -—Não era. Na posição em que nos achamos já não ha logar para meias -palavras. Fôrça é referir tudo. Dez minutos apenas. -</p> - -<p> -Os tres sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a -persistencia e a curiosidade naturaes da occasião. Salvador esteve -alguns instantes calado; emfim voltou-se para o capellão. -</p> - -<p> -—Estimo, disse elle, que o Sr. padre viesse; sua caridade temperará a -legítima indignação deste mancebo; e eu farei as declarações -indispensaveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de -Helena. -</p> - -<p> -—Queira falar, disse seccamente Estacio. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXV">CAPITULO XXV</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -—A mãe de Helena, disse Salvador, cuja belleza foi a causa, a um -tempo, da sua ma e boa fortuna, era filha de um pobre lavrador do Rio -Grande do Sul, onde tambem nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pae -oppoz-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria -ver-me em posição brilhante. Angela podia ser obstaculo á minha -carreira, dizia elle. Oppoz-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na -campanha oriental, d'onde passamos a Montevideo, e mais tarde ao Rio de -Janeiro. Tinha vinte annos quando deixei a casa paterna; possuia alguns -estudos poucos, meio duzia de patacões, muito amor e muita esperança. -Era de sobra para a minha edade, mas insuficiente para o meu futuro. A -lua de mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha -vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me veem, fui -mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operario, -estalajadeiro, escrevente de cartorio; algumas semanas vivi de tirar -cópias de peças e papeis para theatro. Trabalhava com energia, mas a -fortuna não correspondia á constancia, e o melhor dos annos gastei-o -em luta aspera e desegual. Uma compensação havia, a mais doce de -todas: era o amor e o contentamento de Angela, a egualdade de animo com -que ella encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa -fuga havia outra compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em -um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe -foram obtidos por favor de uma mulher da visinhança. Mas nasceu, em boa -hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um -ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava -com alma, luctava resoluto contra todas as fôrças adversas, certo de -encontrar á noite a solicitude da mãe e as ingenuas caricias da filha. -Os senhores não são paes; não podem avaliar a fôrça que possue o -sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas accumuladas na -fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte da -noite, e eu, apezar de robusto, me sentia cançado, erguia-me, ia ao -berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar fôrças -novas, Se o proprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de -alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a -adormecer metade da minha felicidade na terra. -</p> - -<p> -Salvador interrompeu-se commovido. -</p> - -<p> -—Perdoem-me,—continuou elle depois de alguns instantes, se -éstas memorias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje. -Desse tempo só resta um echo doloroso e consolador. Crescia Helena e -cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue. -Quando pôde aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras -licções; assisti pasmado á aurora daquella intelligencia que os -senhores veem hoje tão desenvolvida e lucida. Aprendia com facilidade, -por que estudava com amor. Angela e eu construiamos os mais lindos -castellos do mundo. Nós a viamos ja mulher, formosa como viria a ser, -porque ja o era, intelligente e prendada, espôsa de algum homem que a -adorasse e elevasse. Viviamos dessa antecipação, que era apenas um -sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna. -</p> - -<p> -—Porque razão,—perguntou Melchior,—dado esse amor e -nascida uma filha, não sanctificou o senhor a situação singular em que se -achavam? -</p> - -<p> -—A curiosidade é justa, replicou Salvador, mas a resposta é decisiva. -Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o resentimento -de meu pae. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grande a propria -embriaguez da felicidade desviou qualquer ideia de sanctificar e -legalisar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os -trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao -dever que tomára em meus hombros, ia adiando o acto de mez para mez, de -anno para anno. Afinal o projecto esvaiu-se de todo. Estavamos ligados -pela miseria e pelo coração, não pretendiamos o respeito da -sociedade; triste desculpa, e ainda mais triste recordação, por que o -casamento teria talvez obstado aos acontecimentos posteriores. Helena -contava seis annos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermittencias -favoraveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida, -quando uma circumstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pae -adoecêra; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fôsse ver sem -demora. Obedeci promptamente. Do que elle me remetteu para as despezas -dr viagem e outras, deixei alguma cousa a Angela e Helena, e parti. -Vinte e quatro horas depois de ver meu pae, tive a dor de o perder. A -liquidação dos negocios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo -aos credores; restavam-me alguns patações. Recebi esse golpe novo com -a philosophia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do -acontecimento? Os negocios entretanto, apezar de curtos, demoraram-me -mais do que eu pretendia e convinha. A ancia de voltar cresceu desde que -não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Angela. Enfim, -pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança -menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pae. -</p> - -<p> -Estacio desviou os olhos. -</p> - -<p> -—Logo que cheguei,—continuou Salvador,—corri a casa; -achei-a fechada. Um visinho, testemunha da minha afflicção, deu-me notícia -de que Angela se mudára para S. Christovão. Não sabia nem o numero nem a -rua; mas deu-me algumas indicações, que me guiaram. Ainda hoje tenho -ante os olhos o sorriso com que aquelle homem me respondia. Era um -sorrir de compaixão que humiliava. Sem nunca haver recebido de mim a -menor offensa, vejo que elle tinha um prazer secreto com o meu -infortunio. Porque? Deixo aos philosophos liquidarem esse enigma da -natureza humana. Voei a S. Christovão; gastei tempo em procurar a casa, -mas dei com ella. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das -indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio -de um pequeno jardim. Podia ser aquella a residencia da companheira de -minha miseria? Receioso de ir bater alli, vi assomar ao portão um -homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a -quem dei o seu proprio nome, dizendo que lhe desejava falar. «A senhora -sahiu,» respondeu elle distrahidamente. Dispuz-me a esperar, mas o -jardineiro observou-me que ia sahir e fechar o portão, e que a senhora -só voltaria á noite. «Esperarei até a noite», redargui. O jardineiro -mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cautelloso pela rua e -disse-me baixinho: «Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não -hade gostar.» Não escrevo um romance; dispenso-me de lhes pintar o -efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a -descripção. Ha catastrophes mais solemnes, ha situações mais -patheticas; mas naquella occasião parecia-me que todas as dores do -mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era -verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o effeito de suas -palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro. -Convidou-me com brandura a sahir; obedeci machinalmente. Podendo -informar-me acerca de Angela, não o fiz. A febre reteve-me tres dias -de cama, n'uma pobre cama alugada em pessima estalagem da Cidade Nova. -No terceiro dia recebi uma carta de Angela. Pedia-me que lhe perdoasse o -passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que, -se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a -carta, tive impeto de ir ter com ella e esganal-a; mas o impeto passou, -e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um -engenheiro inglez que vinha do Rio Grande para esta Côrte, emprestara-me -um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglez que -aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que alli achei fez-me -estremecer, na occasião, como uma profecia; recordei-a depois quando -Angela me escreveu. «Ella enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de -enganar-te a ti tambem.» Era justo; pelo menos, era explicavel. Dous -dias depois da carta de Angela, escrevi-lhe pedindo meia hora de -conversação; nada mais. Angela concedeu-me a entrevista. Meu plano era -arrebatar-lhe Helena; ela parece que o previu, recebendo-me sosinha, no -jardim, ás nove horas da noite. -</p> - -<p> -—Por que razão recorda todas essas minucias? interrompeu Melchior com -brandura; nós desejamos somente saber o essencial. -</p> - -<p> -—Tudo é essencial na minha narração, disse Salvador. Aquella -entrevista mostrou-me a toda a luz o caracter de Angela. Que outra -mulher se arriscaria, em taes circumstâncias, a affrontar a colera do -homem desprezado? Angela era um complexo de qualidades singulares. Capaz -de supportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das maximas -privações, esqueceu n'um instante as virtudes que tinha para correr -atraz de uma fantasia do amor. Não foi a riqueza que a seduziu; ella -iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miseria. Angela nasceu -metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro, -não o era menos das pompas da scena. E dahi... não fui eu mesmo que a -desviei da estrada real para mettel-a por um atalho obscuro? Disse-lh'o -naquella noite em que procurei ser tranquillo e superior aos -acontecimentos. «Meu fim,—declarei eu,—é só um: levar Helena; -Helena é minha filha, não quero deixal-a entregue a seus maus exemplos.» As -lagrymas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada -a meus pes, para que lhe deixasse Helena, não ha negar que foi tudo -sincero. Cedi apparentemente. Minha resolução estava assentada; sem -Helena a vida parecia-me impossivel. Que outro vínculo me prendia ao -mundo? A morte e a miseria tinham feito em redor de mim completa -solidão. A unica felicidade sobrevivente era ella. -</p> - -<p> -—Segundo rapto, observou o padre. O senhor condemnava-se a só -adquirir um vislumbre de felicidade por meios violentos. -</p> - -<p> -—Tem razão, respondeu Salvador com tristeza; um abysmo chamava outro -abysmo... Felizes os que sabem o caminho recto da vida, e nunca se -arredaram delle! Quiz arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a -via nunca; a propria casa rara vez tinha uma porta ou janella aberta. -Havia alli o recato e o mysterio. Um dia resolvi ir ter com o protector -de Angela. A noticia que me deram do conselheiro Valle era a mais -honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos. -O demonio do orgulho impediu a execução do plano. Quasi a entrar em -casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cêrca de dous mezes. -Emmagreci; as longas vigilias fizeram-me pallido; o trabalho não me -attrahia; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um -pungir delicioso não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é -certo que a ella misturava-se a colera, a colera da impotencia e o -desgôsto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para S. Christovão, -disposto a empregar a violencia, com tanto que trouxesse Helena ou -fôsse dalli para o Aljube. Era á tardinha. Approximei-me do jardim de -Angela, ouvi a voz de minha filha. Era a primeira vez depois de longos -mezes! Parou-me o sangue todo. Passado o primeiro abalo, caminhei -cautelloso encostado á cêrca, Helena falava a alguem. Por uma abertura -da cêrca, pude espreital-a. Estava ao collo de um homem. Esse homem era -o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a -minha Helena. Helena acariciava as barbas delle; este sorria para ella -com um ar de ternura, que o absolvia quasi da offensa a mim feita. O -coração porém apertou-se-me, ao ver dar a outro, affagos a que só eu -tinha direito. Era um roubo feito á natureza; mas, se meu proprio -sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Dahi a -algum tempo,—não sei se foi curto ou longo, por que eu ficára a olhar -para ambos, pasmado de amor e de colera, ouvi que falavam de mim. -«Mas, olhe,—dizia Helena,—papae quando vem?» O conselheiro deu -um beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairara -sôbre a cabeça della. As creanças porém são implacaveis; aquella -repetiu a pergunta. «Papae não volta» respondeu o conselheiro. Helena -ficou muito séria. «Não volta? porque?» «Tua mamãe disse hontem -que papae está ao ceu.» Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe -rebentaram lagrymas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos, tentei -dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha -filha. Os musculos não corresponderam á intenção; senti fraqueza nas -pernas; achei-me de bruços. Quando dei accôrdo de mim, volvi de novo -os olhos para o logar onde os víra. Ainda alli estavam, mas a attitude -era differente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que -ja não chorava. Elle beijava-lhe as mãosinhas e dizia-lhe: «Se papae -foi para o ceu, fiquei eu no logar delle, para dar-te muito beijo, muito -doce e muita boneca. Queres ser minha filha?» A resposta de Helena foi -a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se -dissesse; «Se não tenho ninguem mais no mundo!» O gesto foi tão -eloquente que eu vi borbulhar uma lagryma nos olhos do conselheiro. Essa -lagryma decidia do meu destino; vi que elle a amava, e de todos os -sacrificios que o coração humano póde fazer, aceitei o maior e mais -doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da unica herança que -tinha na terra, fôrça da minha juventude, consolo de minha miseria, -coroa de minha velhice, e voltei á solidão mais abatido que nunca! -</p> - -<p> -Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por -entre seus dedos escorreram algumas lagrymas, que elle, de envergonhado, -enxugou rapidamente. -</p> - -<p> -—Essas recordações são penosas, disse o padre; não convem -despertal-as de uma vez; seria abrir feridas que o tempo cicatrisou. -Sabemos o essencial... -</p> - -<p> -—Não, resta ainda alguma cousa, disse Salvador. -</p> - -<p> -Estacio erguera-se. Visivelmente commovido, procurava luctar contra o -sentimento que o dominava, afim de conservar a necessaria independencia -de espirito para julgar da narrativa e do alcance que ella podia ter. -Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as -últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia -parecer uma absolvição summaria. A verdade é que elle não reflectia -nem sentia claramente; sua mente e seu coração eram um campo de ideias -e commoções contrárias. -</p> - -<p> -—Vou acabar,—disse Salvador depois de alguns minutos. Resta -explicar o procedimento de Helena. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXVI">CAPITULO XXVI</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -—Seu pae,—continuou Salvador dirigindo-se a Estacio, que, para -acabar de compor o rosto, tinha ido até á janella e voltára a sentar-se, -seu pae era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Angela, não me trahiu, por -que não me vira nunca; não contribuiu directamente para a traição -della, por que suppunha cortadas nossas relações. Soube depois que -Angela, quando elles se apaixonaram um pelo outro, lhe occultára -completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim. -Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido, O -conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso, -não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma suggestão de amor ou -um esquecimento; foi talvez um modo de respeitar-me: no segundo caso, -houve cálculo; era o de redobrar o affecto que o conselheiro tinha a -Helena. Assim aconteceu, por que o conselheiro sentiu-se pae de Helena, -e assumiu esse caracter desde aquella tarde. Do contracto, feito alli -entre o homem e a creança, cumpriu elle toda as clausulas com generosa -pontualidade. Póde crer que lhe fiquei profundamente grato. Uma vez, -passando por uma lithographia, vi um retrato delle; comprei-o e -conservo-o alli ao lado do de Helena. -</p> - -<p> -Melchior e Estacio olharam para a parede, onde pendiam dous quadrinhos, -ainda cobertos, conforme Estacio os vira, no primeiro dia em que alli -foi. -</p> - -<p> -—Os mezes e os annos passaram,—continuou Salvador,—Helena -deu entrada em um collegio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O -conselheiro a levou alli, dando-a como orphã de um amigo, de Minas; -Angela, que se dera por sua tia, ia buscal-a aos sabbados. Omitto mil -circumstâncias intermediarias, e as vezes, poucas, em que pude ver -minha filha, de passagem e a occultas. Se o tempo houvesse produzido em -mim os seus naturaes effeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer -contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade, -é possivel que eu achasse meio de empregar-me no collegio ou nas -immediações, afim de ver mais frequentemente Helena. Mas eu era o -mesmo: passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a -côr, e eu era e mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena -podia reconhecer-me; e eu faltava á convenção tacita que fizera com o -conselheiro. Um sabbado, porém, tinha Helena doze annos, vindo ambas do -collegio, parou o carro defronte do Passeio Publico. Vi-as descer e -entrar. Levado por um impulso irresistivel, entrei tambem. Queria -contemplal-as de longe sem lhes falar; mas a resolução estava acima -das minhas fôrças. Que pae não faria outro tanto? No logar mais -solitario do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não -reconhecer-me logo; mas attentou um pouco, recuou espavorida e -agarrou-se á mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava -alli um pae, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia -affastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar á mãe: «Papae?» -Voltei-me. Angela envolvêra o rosto da creança entre seus vestidos. O -gesto equivalia a uma confissão; mas ésta foi ainda mais clara quando -a mãe, cedendo á boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os -hombros, descobriu o rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa, -fitou-a e fez com a cabeça um gesto affirmativo. A menina não exibiu -mais; correu para mim e atirou se me nos braços. Angela não se atreveu -a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrificio falavam em meu -favor. Abracei Helena e beijei-a como doudo. Angela interveio: -«Basta!» disse ella. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua. -Apertei-a machinalmente; meus olhos estavam pregados na creança. Era -tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabellos enlaçadas com -fitas azues, um chapellinho de palha e os pesinhos calçados com botinas -de seda! «Fez bem, disse eu a Angela, depois de alguns instantes; -deu-lhe um pae melhor do que eu.» Reparei então que ella propria se -transformára; trajava com elegancia e estava superiormente bella. A -abastança aperfeiçoára a natureza. Olhei-a sem inveja nem -colera,—mas com saudade,—dessa vez deliciosa, porque rememorei -os bons tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um peculio para os -que ja não esperam nada do presente ou do futuro; ha alli sensações vivas -que preenchem as lacunas de todo o tempo. «Fez mal,»—disse-me ella -baixinho. E suspirou. «Sei que morri,—disse eu, e não pretendo -resuscitar.» Depois voltei-me para Helena:—«Minha filha, faze de -conta que me não viste; morri, para ti e para o mundo. Teu pae é -outro. Promettes que não dirás nada?» Helena fez um leve signal de -cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quizesse ser vista de -Angela. Nesse simples gesto reconheci que ella ia obedecer-me; mas a -tristeza que lhe ficou foi o castigo de sua mãe. Pediamos á natureza -mais do que ella podia dar. -</p> - -<p> -Salvador fez uma pausa, ergueu-se foi à commoda, e de uma das gavetas -tirou uma caixinha, que collocou sôbre a mesa. Melchior e Estacio -trocaram um olhar de curiosidade. Salvador sentara-se de novo. -</p> - -<p> -—Angela morreu,—proseguiu elle,—dahi a um anno. Seu pae -e alguns amigos poucos foram leval-a á sepultura. Tambem eu la me achei. A -differença é que elle enterrava uma aventura, e eu via enterrar o meu -passado. Vi-o triste e taciturno, como sinceramente pezaroso da creatura -que perdéra. Helena, entretanto, não podendo estar só na mesma casa, -foi removida para o collegio, onde ficou residindo definitivamente. O -conselheiro ia visital-a todas as semanas. Pela minha parte, certo da -discrição de minha filha, encetei com ella uma correspondencia que era -toda a consolação que me podia caber. Uma escrava do collegio servia -de intermediaria entre nós. Então, como hoje, achei uma alma -compassiva que me ajudou a ser feliz com mysterio; a differença é que -naquelle tempo era precisa a intervenção pecuniaria. Eu tinha pouco, -mas dava o jantar de um dia para ler cartas de Helena. Conservo-as -todas, tanto as de outr'ora, como as destes últimos mezes; estão -fechadas aqui. -</p> - -<p> -Salvador mostrou a caixinha que collocára sôbre a mesa. -</p> - -<p> -—Um dia, almoçando em um botequim, li a notícia da morte do -conselheiro. O facto consternou-me; mas eu peço licença para lhes -dizer tudo; de envolta com o sentimento, de pezar, houve em mim alguma -cousa semelhante a uma satisfação. Respirava enfim! O contracto -expirava com elle; eu ia entrar na posse de minha filha. Não escrevi -desde logo a Helena; fil-o ao cabo de alguns dias. Tive duas respostas: -a primeira era no sentido da minha carta; a segunda annunciava-me que o -conselheiro a reconhecêra por testamento. Podia procurar e ler-lhes a -segunda carta: é um documento da elevação dos sentimentos daquella -menina. Exprimia-se com a maior gratidão e saudade a respeito do -conselheiro; mas negava-se a aceitar o favor posthumo. Sabendo a -verdade, não queria escondel-a ao mundo. Acceitando o reconhecimento, -entendia que prejudicava direitos do terceiro, além de repudiar-me -solennemente, o que não queria fazer desde que adquiria a liberdade de -acção. Entre a herança e o dever, dizia ella, escolho o que é -honesto, justo e natural. Esta carta tirou-me o somno uma noite inteira, -perplexo como fiquei entre o acto do finado e a resolução da herdeira. -Que mão invisivel tocára no coração do conselheiro essa corda de -sensibilidade? Melhor fora que elle houvesse traduzido era uma simples -lembrança a affeição que tinha a Helena. Longo tempo reflecti nisso; -o pae luctava com o pae. Tel-a commigo era a minha ventura, o meu sonho, -a minha ambição; era a realidade que eu chegára a tocar com as mãos. -Mas podia atal-a ao carro decrepito da minha fortuna, dar-lhe o pão -amargo, que era o meu lote de todos os dias? A familia do conselheiro ia -afiançar-lhe futuro, respeito, prestigio; a lei ia amparal-a. Perguntei -a mim mesmo, se depois de haver morrido para o mundo, me era licito -resuscitar para reclamar e rehaver um titulo de que me havia despojado; -finalmente se possuia ja o direito de fazer um escandalo. Éstas -reflexões, se viessem sos, teriam triumphado desde logo; mas, em -opposição a ellas, vieram as suggestões do coração. Adverti que, -cedendo á vontade do morto, cavaria um abysmo entre mim e Helena, e que -não mais, ou só raramente e a o occultas, podia desfructar, a felicidade -de lhe dizer que a amava, de ouvir a mesma palavra de seu coração. -Nessa lucta gastei tres longos dias. Helena escreveu-me outra carta, -insistindo na resolução que dizia haver tomado. Urgindo responder-lhe, -fil-o sacrificando-me, não a convenci. Procurei ter uma entrevista com -ella. Não era facil; mas o interesse venceu tudo; a escrava -intermediaria augmentou o preço da complacencia. O que se passou entre -nós não o poderei repetir agora; curto era o prazo concedido, mas a -lucta foi renhida e longa. Busquei persuadil-a com reflexões e -súpplicas; ella resistiu com indignação e lagrymas. Sua nobre alma -repudiava a complicidade e o lucro de uma usurpação. Eu não via -usurpação, por que a meus olhos nem os interesses da familia do -conselheiro, nem as noções da simples moral prevaleciam: eu via minha -filha e seu futuro: nada mais. Talvez os culpados desse meu proceder -fossem somente Angela e seu bemfeitor. Elles me acostumaram a amal-a de -longe, a não disputar a outrem o beneficio que ella recebia. Emfim, meu -coração, egoista e ulcerado, entendia que o reconhecimento daquella -pobre creança era o simples retorno das caricias de que eu havia sido -defraudado; taes foram os motivos da minha consciencia. Helena resistiu -até á ultima; cedeu somente á necessidade da obediencia, á imagem -de sua mãe que eu invoquei, como um supremo esfôrço, á fiança que -lhe dei de que a acompanharia sempre, de que iria viver perto della, -onde quer que o destino a levasse; cedeu exhausta, sem convicção nem -fervor. Se nesse acto decisivo de Helena ha culpa, é toda minha, por -que eu fui o o autor unico; ella não passou de simples instrumento, -instrumento rebelde e passivo. Seu êrro foi não ter a prudencia -necessaria para não transpor o abysmo que nos separava. Eu devia contar -com na resoluções subitas e promptas dessa menina; ha alli uma -costella de sua mãe. Mandando-lhe dizer com as indicações precisas, -onde morava, estava longe de esperar que ella viesse ver-me. A principio -fiquei atterrado com as possiveis consequencias; mas se o homem se -habitua ao mal e á dor, por que se não hade acostumar ao prazer e ao -bem? Helena veiu mais vezes; o gôsto de a ver fez olvidar o perigo, e -eu bebi, em horas escassas e furtivas, a unica felicidade que mo restava -na terra, a de ser pae e a de me sentir amado por minha filha. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXVII">CAPITULO XXVII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Tinha acabado; grossas lagrymas, retidas a custo, emfim lhe rebentaram -dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A commoção não -ficou só nelle; seus dous ouvintes a sentiram tambem. Acabára; e o peor -que podia acontecer era isso mesmo. Uma vez finda a narração, ficaram -os dous calados e perplexos, sem que ousassem contradizel-o. Depois de -curta pausa, Salvador rematou assim: -</p> - -<p> -—De tudo o que lhes disse não tenho outras provas, além destas -cartas, que seriam bastantes, o de minhas lagrymas, que hão de ser -eternas. Mas ainda quando haja outras, creio que não serão precisas. -Na situação em que estamos só ha duas soluções possiveis; ou nada se -altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as -consequencias da sorte, desaparecendo; ou a familia regeita Helena, e eu -a levarei commigo. Dir-se-ha que a lei a protege a todo trance? Pois -ella assignará todas as desistencias necessarias. -</p> - -<p> -Estacio cortou-lhe a palavra dizendo que opportunamente lhe dariam sua -resolução. Sahiram elle e Melchior logo depois; não trocaram uma só -palavra; cada um delles ia absorto. Comtudo, o padre observava de quando -em quando o sobrinho de D. Ursula, buscando adivinhar-lhe os -pensamentos. -</p> - -<p> -Chegando á porta da chacara, o padre perguntou ao moço: -</p> - -<p> -—Que pretende fazer? -</p> - -<p> -—Não sei ainda. -</p> - -<p> -—Sei eu o que deve fazer: nada. -</p> - -<p> -—Conservar ésta situação? -</p> - -<p> -—De certo. Helena obedeceu á vontade de seus dous paes, aceitando o -equívoco em que ambos a vieram collocar. Obedeceu á fôrça. Agora, -está reconhecida; é um facto que não podemos discutir nem alterar. -</p> - -<p> -Estacio esteve silencioso alguns instantes. -</p> - -<p> -—Mas posso eu, á vista do que acabamos de ouvir, conservar a Helena -um titulo que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é minha irmã; -é absolutamente extranha á nossa familia; o titulo que nos ligava -desaparece. Por que motivo continuariamos nós uma falsificação... -</p> - -<p> -—De seu pae? atalhou Melchior. -</p> - -<p> -—Padre-mestre! -</p> - -<p> -—Aquelle homem falou verdade; mas nem a lei nem a Egreja se contentam -com essa simples verdade. Em opposição a ella, ha a declaração -derradeira do um morto. A justiça civil exige mais do que palavras e -lagrymas; a ecclesiastica não extingue, com um traço de penna, a -affirmação posthuma. Demais, não espere que esse homem reproduza -perante ninguem as declarações de ha pouco; só o fará quando perder a -ultima esperança. É evidente que elle nada quer alterar do que seu -pae estabeleceu, e antes se sacrificará do que envergonhará a filha. -Sente-se disposto a fazer o que elle recusa? -</p> - -<p> -Estacio não respondeu; tinham entrado na chacara, e caminhavam -lentamente na direcção da casa. Melchior deteve-o. -</p> - -<p> -—Estacio! disse o padre depois de olhar para elle um instante. Eu -leio no fundo de seu pensamento; quizera despojar Helena do titulo que seu -pae lhe deixou para lhe dar outro, e ligal-a á sua familia por -differente vínculo... -</p> - -<p> -Estacio fez um gesto como protestando. -</p> - -<p> -—Esquece duas cousas graves; o escandalo e o casamento de um e outro; -ja se não pertence, nem ella se pertence a si. Vamos la; seja homem. -Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio; e a situação -de hontem será a mesma de amanhã. -</p> - -<p> -Quando Estacio e Melchior entraram era casa, ja D. Ursula sabia tudo; -lográra desatar a lingua de Helena. Abatida com a leitura da carta, -não lhe levantára o ânimo a narração verbal da moça; seu coração -preferia talvez que Helena fôsse verdadeiramente filha do conselheiro. -Alguns mezes de espaço e a convivencia affectuosa produziram a -differença de sentimento entre o primeiro e o último dia. -</p> - -<p> -—Nada podemos fazer ja agora, disse o padre; provocariamos um -escandalo sem esperança do resultado. -</p> - -<p> -D. Ursula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvil-os. Helena -desceu dahi a alguns minutos. A côr da vergonha tingiu-lhe a face logo -que ella deu com Estacio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos -calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Apos um silêncio -longo e abafado, Estacio communicou a Helena a resolução da familia e -seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que -sôbre todas as cousas prevalecia a vontade derradeira de seu pae. -Helena empallideceu e cerrou os olhos; D. Ursula correu a amparal-a. O -organismo debilitado pelas vigilias e commoções das últimas horas -não pudera resistir; mas o deliquio foi leve e curto. Voltando a si, -Helena beijou ardentemente as mãos de D. Ursula e as do padre, estendeu -a dextra a Estacio, que a apertou; depois, com voz trémula, mais firme -resolução, disse: -</p> - -<p> -—Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não -perdi; mas a situação mudou, e fôrça é mudar com ella. Não quero a -protecção da lei, nem poderia receber a complacencia de corações -amigos. Commetti um erro, e devo expial-o. Emquanto a vergonha vivia só -commigo, era possivel continuar nesta casa; eu atordoava-me para -esquecel-a; mas agora, que é patente, vel-a-hei nos olhos de todos e no -sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não -devêra ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu -me habituára a amar de longe, com o prestigio de mysterio, e o encanto -do fructo prohibido. De hoje em diante, amal-os-lei de longe ou de -perto, mas extranha... e perdoada! -</p> - -<p> -Dizendo isto, Helena abraçou D. Ursula como a pedir o beneficio da sua -intervenção. D. Ursula abraçou-a egualmente, mas fez com a cabeça um -gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo menos um -symptoma de desprendimento pouco explicavel em relação á familia, -que, sem embargo dos ultimos successos, não lhe retirára nem a estima -nem a protecção. -</p> - -<p> -—Herdou o orgulho de seu pae! murmurou Estacio. -</p> - -<p> -A phrase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos -fulgiram de momentanea satisfação. Attribuir a orgulho, o que era -vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava -não ter naquelle lance. Protestou em favor de seus sentimentos de -gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos tres lhe -conheciam, mas interrompida a intervallos pela commoção interior, e -pelos lagrymas que lhe escorriam dos olhos, quasi exhaustos de chorar. -Estacio poz termo a todas as hesitações. -</p> - -<p> -—Pois bem, disse elle, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa -vontade é que nos obedeça. -</p> - -<p> -Helena mordeu o labio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça -descahiu-lhe lentamente como ao pêso de uma ideia a mais e mais -oppressora. Depois ergueu-a; seus olhos tristes, mas animados dos -ultimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estacio, que -nessa occasião pareciam falar as dores todas da paixão suffocada e -rebelde. Ambos elles os baixaram á terra, medrosos de si mesmos. -</p> - -<p> -—Não creio que ella aceite facilmente a sua decisão,—disse -Melchior a Estacio, logo que pôde achar-se só com elle. Acautele-se: é -capaz de fugir-nos. -</p> - -<p> -—Cre? -</p> - -<p> -—Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a -deixaram repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miseria á vergonha; e a -ideia de que interiormente não a absolvemos, é o verniz que lhe fica -no coração. -</p> - -<p> -De noite, recebeu Estacio uma carta de Salvador, acompanhada de um -pacote. -</p> - -<p> -«Reflecti muito durante éstas duas horas,—dizia elle,—e cheguei -a uma conclusão unica. Elimino-me; é o meio de conservar a Helena a -consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quanto ésta carta lhe -chegar ás mãos, terei desaparecido e para sempre. Não me procure, que -é inutil. Irei abençoal-o de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo -o resentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as -cartas de Helena; guardo tres apenas, como recordação da felicidade -que perdi.» -</p> - -<p> -Estacio teve vontade de ler as cartas de Helena; mas a tempo recusou; -mandou-a dar á moça. Helena, que estava com D. Ursula, entregou-as a -ésta. -</p> - -<p> -—São a minha história, disse ella; peço-lhe que as leia e me julgue. -</p> - -<p> -Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se -immediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta, -sinistra, o corpo atirado em um sopha, a alma sabe Deus em que regiões -de infinito desespêro. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4><a id="XXVIII">CAPITULO XXVIII</a></h4> -<p><br /></p> - -<p> -Naquella noite, a segunda de tão singulares successos, foi que Estacio -sentiu toda a violencia do amor que lhe inspirára Helena. Em quanto os -detinha um vínculo sagrado, amára sem consciencia; e ainda depois de -esclarecido pelo padre, o esfôrço empregado em vencer-se, e a propria -natureza da catastrophe, não lhe permmittiram ver a extensão do mal. -Agora, sim: roto o vínculo, restituida a verdade, elle conhecia que a -voz da natureza, maia sincera e forte que as combinações humanas, os -chamava um para o outro; e que a mulher destinada a amal-o e ser amada, -era justamente a unica que as leis sociaes lhe vedavam possuir. -</p> - -<p> -Durante as primeiras horas seu coração mordeu rebelde o freio da -necessidade. A vigilia foi longa e crua; e a reflexão veiu emfim -dominar a tempestade interior, ou antes alumiar seus destroços. Elle -viu que o padre tinha razão; que era fôrça desfolhar a esperança de -um dia. Ao mesmo tempo, o exemplo de Helena deu-lhe ânimo. Senhora do -segrêdo de seu nascimento, e consciente de amar sem crime, a moça -apressára, não obstante, o casamento de Estacio e escolhêra para si -um noivo estimado apenas. Se uma vez a palavra delatora lhe rompeu dos -labios, ella a retrahiu logo, fazendo o mais obscuro dos sacrificios. -</p> - -<p> -Não quiz Estacio ser menos generoso. Logo de manhã escreveu a -Mendonça, pedindo-lhe que não deixasse de os ir visitar nesse dia. -Não o fez sem custo, mas fel-o sem arrependimento. Tinha por fim -apressar o casamento de Helena e o seu, condemnando-se a soffrer calado -os golpes do avêsso destino. -</p> - -<p> -A manhã, entretanto, não trouxe a Helena o esquecimento e a paz. A -noite não lhe serviu de remedio, antes legou á aurora toda a sua -mortal angústia. Debilitada, nervosa, impaciente, não podia a moça -vencer-se nem supportar-se. Ora repellia com sequidão as boas palavras -de D. Ursula; ora lhe pedia intercedesse com Estacio para a resolução -que ella admittia como unico meio de a poupar á vergonha. A excitação -moral era grande; cumpria aquietal-a por meios persuasivos. Helena fugia -a todos: não encarava Estacio e D. Ursula sem que o pêjo lhe colorisse -a face, mudança tanto mais visivel, quanto que a vigilia e a dor a -tinham empallidecido singularmente. Diziam-lhe que a vontade do -conselheiro estatuira uma lei na familia, segundo a qual ella continuava -a ser parenta como d'antes, e tão amada como era. A moça agradecia a -generosidade, mas não podia fugir á ideia de haver contribuido para -uma usurpação. Seu desejo capital era que a deixassem ir ter com o -pae, ao pe de quem a natureza e sua consciencia lhe indicavam que -poderia estar sem remorso. Estacio e D. Ursula respondiam-lhe com -affagos e protestos; mas quando viram que estes eram inuteis, não houve -mais que revellar-lhe a carta de Salvador. -</p> - -<p> -O padre Melchior incumbiu-se de lhe fazer essa delicada communicação. -</p> - -<p> -—Seu pae, disse elle, praticou em seu favor um acto heroico; fugiu -para lhe não fazer perder a consideração e o futuro. Leia ésta carta, e -veja se ella lhe dá a fôrça necessaria para resistir. -</p> - -<p> -Helena pegou na carta com soffreguidão; leu-a de um lance d'olhos. O -gemido que lhe rompeu do coração mostrou bem a profundez da ferida -que acabava de receber. O padre acolheu-a lacrymosa e esvaecida em seus -braços; disse-lhe palavras de conforto e de esperança. Nos primeiros -minutos, Helena nada pôde ouvir; o golpe ensurdecêra a alma. Melchior -fel-a sentar ao pe de si; ella obedeceu sem consciencia. Apos alguns -minutos de silêncio e concentração, a moça dirigiu a palavra ao -padre, e agradeceu-lhe a caridade. Depois referiu-lhe os acontecimentos -de sua infancia, os mesmos que o capellão ouvira. A sagacidade natural -de seu espirito cedo lhe fizera ver que a posição de sua mãe não era -a mesma das outras mães; essa descoberta porém não teve outra virtude -mais que communicar a seu amor de filha uma intensidade e energia -capazes de affrontar os mais fortes obstaculos, como se ella quizesse -reunir em si toda a somma de affectos e respeitos que a sociedade -afiança ás situações regulares. Melchior ouviu-a commovido; seu -coração, nutrido da medulla do Evangelho, reconheceu um effeito da -graça divina nesse amor immaculado, que valia por todas as -absolvições da terra. Elle a applaudiu e confortou; falou-lhe do -futuro, do carinho de sua familia,—sua, a despeito de tudo; emfim da -obrigação em que ella estava de corresponder a tanta confiança. -</p> - -<p> -Talvez Helena, em sua razão, correspondesse aos conselhos de Melchior; -mas a razão é o que menos a dirigia naquellas circumstâncias -afflictivas. Ella deixou o padre para recolher-se a seus aposentos, -Quando D. Ursula alli foi, meia hora depois, achou-a profundamente -abatida; a violencia da crise passára. A linguagem que lhe falou foi -maternal, ungida de amor e perdão; Helena ouviu-a agradecida, mas um -sorriso descorado e sem convicção lhe entre-abria os labios. Suppunha -ler commiseração onde havia affecto e respeito; e seu orgulho -rebellava-se de inspirar o unico sentimento que a consciencia lhe dizia -merecer. -</p> - -<p> -As instancias de D. Ursula para que Helena se alimentasse foram inuteis; -ella apenas recebia o que bastava para não sucumbir á fome. A -companhia repugnava-lhe; assim, poucas vezes a viram desde os dias que -se seguiram áquella funesta manhã. Mendonça não conseguiu mais do -que os outros. A familia teve o cuidado de annunciar que Helena se -achava enferma. A afflicção do noivo foi grande; mas todos buscaram -tranquilizal-o. Nada havendo transpirado do acontecimento, facil foi -sustentar aquella explicação. -</p> - -<p> -Melchior encommendára muito á familia que vigiaste a moça, cujo -espirito lhe parecia atrevido e tenaz; elle receiava que Helena ou -fugisse de casa, ou recorresse a algum acto de desespêro. O summo padre -desvellou-se em trazer a alma de Helena ao sentimento da resignação, A -autoridade de seu caracter religioso, a influência que elle tinha no -espirito de Helena eram armas poderosas, temperadas como amor verdadeiro -e paternal que o ligava á donzella. Nada poupou; mas seus esforços -não tiveram mais fructo, que os da familia. Helena mal podia tolerar a -situação. -</p> - -<p> -Uma vez, como ella descesse á chacara, sahiu Estacio a procural-a, não -a encontrando senão ao cabo de alguns minutos. Achou-a ao pe do tanque, -no lugar em que lhe falára poucos dias antes, sentada no mesmo banco de -pau. Vendo-o, estremeceu; elle approximou-se contente de a haver -encontrado emfim. O dia estava feio; grossas nuvens negras pejavam o ar, -humidas de temporal proximo. Estacio convidou-a a recolher-se. -</p> - -<p> -—Deixe-me estar aqui um instante mais, respondeu ella. -</p> - -<p> -—Dous minutos apenas. -</p> - -<p> -Sentou-se ao pe della e ficaram calados. Helena tinha uma taquara na -mão; Estacio quiz tomar-lh'a; ella arremessou-a para longe. Ergueu-se -então o moço e foi buscal-a; só então viu que estava molhada até -certa altura; calculou que seria o fundo do tanque. O tanque era raso; -não poderia dar a morte; mas a suspeita de que Helena não recuaria -deante do suicidio aterrou naturalmente o espirito de Estacio. -Parecendo-lhe que a causa não comportava o effeito, perguntou a si -mesmo se os successos daquelles dias não teriam velado a consciencia da -moça. Sentou-se de novo e falou-lhe com brandura. -</p> - -<p> -Ao escutal-o, sentiu Helena como uma ressurreição de outras horas, que -ella julgava escoadas para sempre; um sorriso lhe animou os labios sem -côr, ao passo que os olhos doridos e murchos pareciam reviver de um -resto de luz. Estacio falou-lhe de si, da tia, do padre e de Mendonça, -dos proximos casamentos, da felicidade futura. Depois insistiu com ella -para que entrasse. Uma brisa mais forte começava a agitar as árvores, -e a tempestade ameaçava cahir de repente. -</p> - -<p> -—Ainda não,—disse a moça; alguns minutos mais. -</p> - -<p> -—Mas póde adoecer... -</p> - -<p> -—Talvez, se todos quizerem a minha saude. Ha creaturas tão -malfadadas, que aquelles mesmos que as desejam fazer venturosas não -alcançam mais do que preparar-lhe o infortunio. Tal foi o meu destino. -Seu pae e minha mãe não tiveram outro pensamento; meu proprio pae foi -levado do mesmo impulso, quando me obrigou a ser complice de uma -generosa mentira. Agora mesmo que elle me foge, com o fim unico de me -não tolher a felicidade, arranca-me o ultimo recurso em que eu tinha -posto a esperança. -</p> - -<p> -—Helena! interrompeu Estacio. -</p> - -<p> -—O ultimo, repetiu a moça. -</p> - -<p> -Esvaira-se-lhe o sorriso, e o olhar tornara a ser opaco. Estacio teve -medo daquella atonia e concentração; travou-lhe do braço; a moca -estremeceu toda e olhou para elle. -</p> - -<p> -A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas dentro de alguns -instantes era alguma cousa mais. Era a primeira revellação, tacita mas -consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum delles procurára esse -contacto de suas almas, mas nenhum fugiu. O que elles disseram um ao -outro, com os simples olhos, não se escreve no papel, não se póde -repetir ao ouvido; confissão mysteriosa e secreta, feita de um a outro -coração, que só ao ceu cabia ouvir, por que não eram vozes da terra, -nem para a terra as diziam elles. As mãos, de impulso proprio, -uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum receio, nenhuma -consideração deteve essa fusão de duas creaturas nascidas para formar -uma existencia unica. -</p> - -<p> -O vento tornara-se mais rijo; uma lufada os despertou,—em ma hora, -por que ha sonhos que deviam acabar na realidade do outro seculo. Estacio -ergueu-se; sacudiu valorosamente o torpor da felicidade, e reassumiu o -papel que seu pae lhe assignára ao pe de Helena. Ésta desviou os olhos -e cravou-os na agua, fascinada e absorta. A ideia do suicidio roçaria -devéras sua aza invisivel pela fronte da moça? Estacio foi a ella, -pegou-lhe nas mãos e convidou-a a sahir dalli. -</p> - -<p> -—Entremos,—disse elle pela terceira vez, olhe que vae chover. -</p> - -<p> -Helena deixou-se levantar; um calafrio percorreu-lhe o corpo todo, e as -mãos, que o moço ainda tinha entre as suas, estavam muito mais quentes -que o natural. -</p> - -<p> -—Ande repousar, continuou Estacio; póde adoecer, e não tem direito -para tanto; nossa affeição não o consentirá nunca. Vamos. -</p> - -<p> -—Amar-me-hão sempre? perguntou Helena. -</p> - -<p> -—Oh! sempre! -</p> - -<p> -—Impossivel! Ha uma voz no fundo de seu coração, que lhe dirá, de -quando em quando, ésta triste palavra: aventureira! -</p> - -<p> -—Helena! -</p> - -<p> -—Não posso ser outra cousa a seus olhos, proseguiu a moça -tristemente. Quem o convencerá de que a declaração de seu pae não -foi obtida por artificios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que, -cedendo aos rogos de meu pae, não fiz mais do que executor ura plano -preparado ja? São dúvidas que lhe hão de envenenar o sentimento e -tornar-me suspeita a seus olhos. Resista quem puder; é me impossivel -encarar semelhante futuro! -</p> - -<p> -Helena cahíra offegante no banco. Estacio falou-lhe com abundancia e -ternura; jurou-lhe que sua familia era incapaz da minima suspeita; -pediu-lhe por seu pae que não julgasse mal delles. Ella sorriu, mas foi -um sorrir de incredula. -</p> - -<p> -Grossos pingos de chuva começavam a rufar nas árvores. Estacio pegou -na mão de Helena para conduzil-a a casa. A moça fugiu-lhe, indo -collocar-se alguns passos adeante, onde a chuva lhe cabia mais em cheio -na cabeça nua e no corpo levemente coberto. Quando Estacio, desvairado -de terror, correu para ella, Helena affastou-se delle; mas nem seus pes -o poderiam vencer nunca, nem lh'o permittiam agora as fôrças quebradas -por tantas e tão profundas commoções. Elle alcançou-a; estendeu o -braço em volta da cintura da moça, dizendo: -</p> - -<p> -—Que capricho é esse? Vamos embora; eu quero que venha commigo para -dentro. -</p> - -<p> -Ao sentir o braço de Estacio, Helena estremeceu e fez um movimento para -arredal-o de si; mas a fraqueza trahiu-lhe o instincto de seu melindroso -pudor. Ella fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas -fraquearam, e o corpo esmorecido iria a terra, se lh'o não sustivessem -as mãos de Estacio. -</p> - -<p> -—Deixe-me morrer! murmurou ella. -</p> - -<p> -—Não! bradou o mancebo. -</p> - -<p> -Com um gesto rapido, tomou nos braços, estendida, o corpo exhausto de -Helena, e caminhou na direcção da casa. O vento flagellava-os; a -chuva, que subitamente cahia a jorros, alagava-os sem misericordia; elle -ia andando, o mais depressa que lhe permittia o pêso de Helena, cuja -cabeça pendia para a terra, e de cujos labios brotavam trechos soltos -de phrases sem sentido. -</p> - -<p> -D. Ursula viu entrar aquelle doloroso expectaculo; correu a receber -Helena, que Estacio depositou em um sopha, donde foi transferida ao -leito. A febre, ja começada antes della sahir, tomára conta emfim da -pobre moça. Um médico foi chamado á pressa; o padre Melchior correu -por baixo d'agua até a casa de Estacio. As primeiras horas foram de -anciedade e susto; o estado da doente era grave; assim o disse o -médico; assim o tinham já sentido os corações amigos. -</p> - -<p> -D. Ursula pagou naquella occasião os serviços que, em caso analogo, -lhe prestára Helena, mau grado e pêso dos annos, que lhe não -permittiam longas vigilias nem aturado trabalho. Velou a boa senhora á -cabeceira da enferma, durante essa primeira noite de incerteza e terror. -Mendonça, que alli fôra sem suspeitar nada, por que a doença que lhe -disseram ter padecido Helena, suppunha elle ser passageira, e em tudo -caso, estar quasi extincta, Mendonça recebeu essa triste notícia com a -morte no coração. -</p> - -<p> -Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que -lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas -horas houve de delirio, durante o qual dous nomes volviam frequentemente -aos labios da enfêrma,—o de Estacio e o de seu pae. Nas horas da -razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que -ella queria ver juncto de si. O capellão obedecia docilmente. Ao pe -della, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, por que -elle aceitava sem murmurio os decretos da vontade divina; depois, porque -não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a -morte. Em todo o caso consolava-a; e suas palavras cahiam no coração de -Helena como um orvalho do ceu. -</p> - -<p> -No quarto dia chegou a familia de Camargo, sabendo da doença de Helena -apressou-se a ir a Andarahy. Ao ver Eugenia, a moça sorriu tristemente, -lampejo de inveja, que para logo se apagou e morreu no coração. -</p> - -<p> -Estacio mal ousava entrar na alcova da doente e não podia viver fóra -della. Sua afflicção era patente. Elle promettia a si mesmo todos os -sacrificios em troca da vida de Helena, espreitava uma esperança no -rosto do médico, e interrogava o coração da tia e do padre. Na noite -do setimo dia da scena do jardim, D. Ursula, que ficára ao pe de -Helena, mandou chamar á pressa o sobrinho e o padre Melchior, que -estavam na sala contigua. Accorreram os dous. Helena tivera uma syncope, -que D. Ursula cuidára ser a morte. Voltando a si, leu a moça a sua -sentença no rosto de todos tres. -</p> - -<p> -—Ainda não, murmurou ella: ainda não é a morte. -</p> - -<p> -D. Ursula chegou-se-lhe mais perto, beijou-a, disse-lhe algumas palavras -de conforto. -</p> - -<p> -—Deixe estar, respondeu ella, deixe que eu não morro; estou só muito -doente. -</p> - -<p> -Estacio buscou animal-a, mas a voz morreu-lhe ás primeiras expressões, -e elle sahiu. Melchior acompanhou-o. -</p> - -<p> -—Uma cousa poderia talvez saval-a, disse afflicto o moço; era o -presença do pae. Vou mandal-o procurar por toda a parte. Havemos de -achal-o; é preciso que o achemos. -</p> - -<p> -Melchior approvou a ideia do mancebo: e não lhe disse que o remedio -viria talvez tarde, se viesse. Estacio ordenou as cousas para a seguinte -manhã. Voltaram á alcova da enferma. Ésta fechara os olhos como se -dormisse. Houve então entre aquellas quatro paredes meia hora de -silêncio, interrompido apenas, de quando em quando, pelos movimentos -que a doente fazia, como a querer mudar de posição. No fim desse -tempo, abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Chegou o médico, -viu-a e desenganou a familia. -</p> - -<p> -Em quanto Melchior dava as ordens precisas para que Helena tivesse os -socorros espirituaes, Estacio sahiu dalli, para ir, longe, desabafar -seu desespêro; desceu á chacara, vagou por ella delirante, a soluçar -como uma creança, ora abraçado a uma árvore, ora ajoelhado e pedindo -a Deus a vida de Helena. Seu coração não conhecia o fervor religioso; -mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levára, e elle rezou, -rezou sosinho, sem hypocrisia nem dúvida. Mendonça veiu achal-o nessa -lucta derradeira entre a realidade e a esperança. Não o consolou; seu -peito não tinha consolações que distribuir, porque tambem a dor lhe -devastára o coração. Nos braços um do outro, choraram o mesmo bem -que se lhes ia embora. -</p> - -<p> -Um escravo veiu chamar Estacio á pressa; elle subiu tropego as escadas, -atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cahir de -joelhos, quasi de bruços, juncto ao leito do Helena. Os alhos desta, ja -volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e -foi Estacio que o recebeu,—olhar de amor, do saudade e de promessa. A -mão pallida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo; -elle inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lagrymas e não se -atrevendo a encarar o final instante. Adeus!—suspirou a alma de -Helena rompendo o envolucro gentil. Era defuncta. -</p> - -<p> -A noite foi cruel para todos. D. Ursula, profundamente abatida pela dor -e pelas vigilias, não consentiu, ainda assim, que outras mãos -amortalhassem Helena; ella mesma lhe prestou esse derradeiro e triste -obsequio. A morte não diminuíra a belleza da donzella; pelo contrário, -o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto mysterioso e novo. -Estacio contemplou-a com os olhos exhaustos, o padre com os seus -humidos. Melchior supportára a dor até o momento da definitiva -separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater emfim, ao -pe daquelles pallidos restos, despôjo último de generosas illusões. -</p> - -<p> -No dia seguinte, prestes a sahir o entêrro, as senhoras deram á -donzella morta as despedidas derradeiras. D. Ursula foi a primeira que -lhe prestou esse dever; seguiu-se Eugenia e seguiram as outras. Estacio -viu-as subir, uma a uma, o estrado em que repousava a eça. Depois, -quando ia fechar-se o feretro, caminhou lentamente para elle; trepou ao -estrado, e pela ultima vez contemplou aquelle rosto,—séde ha pouco de -tanta vida,—e a coroa de saudades que lhe cingia a cabeça, em vez de -outra, que seu coração tinha direito de pousar nella. Emfim -inclinou-se tambem, e a fronte do cadaver recebeu o primeiro beijo de -amor. -</p> - -<p> -Fecharam o feretro; ao moço pareceu que o encerravam a elle proprio. -Sahindo o entêrro, deixou-se Estacio cahir n'uma cadeira, sem pensar -nada, sem sentir nada. Pouco a pouco despovoou-se a casa; os amigos -sahiram; um só de tantos ainda alli ficou, a lastimar consigo a noiva, -tão cedo promettida e tão cedo roubada. Esse mesmo sahiu, emfim, não -ficando mais do que a familia, cujo pae espiritual era Melchior. -</p> - -<p> -Sosinho com Estacio, o capellão contemplou-o longo tempo; depois, -alçou os olhos ao retrato do conselheiro, sorriu melancholicamente, -voltou-se para o moço, ergueu-o e abraçou com ternura. -</p> - -<p> -—Animo, meu filho! disse elle. -</p> - -<p> -—Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estacio. -</p> - -<p> -Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de Estacio, consternada -com a morte de Helena, e aturdida com a lugubre cerimonia, recolhia-se -tristemente ao quarto de dormir, e recebia á porta o terceiro beijo de -seu pae. -</p> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<h4>FIM</h4> - -<p><br /><br /><br /></p> - -<div lang='en' xml:lang='en'> -<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>HELENA</span> ***</div> -<div style='text-align:left'> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Updated editions will replace the previous one—the old editions will -be renamed. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part -of this license, apply to copying and distributing Project -Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ -concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, -and may not be used if you charge for an eBook, except by following -the terms of the trademark license, including paying royalties for use -of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for -copies of this eBook, complying with the trademark license is very -easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation -of derivative works, reports, performances and research. Project -Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away--you may -do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected -by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. -</div> - -<div style='margin:0.83em 0; font-size:1.1em; text-align:center'>START: FULL LICENSE<br /> -<span style='font-size:smaller'>THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE<br /> -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK</span> -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase “Project -Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg™ License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person -or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be -used on or associated in any way with an electronic work by people who -agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few -things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works -even without complying with the full terms of this agreement. See -paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project -Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this -agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ -electronic works. See paragraph 1.E below. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the -Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection -of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual -works in the collection are in the public domain in the United -States. If an individual work is unprotected by copyright law in the -United States and you are located in the United States, we do not -claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, -displaying or creating derivative works based on the work as long as -all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope -that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting -free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ -works in compliance with the terms of this agreement for keeping the -Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily -comply with the terms of this agreement by keeping this work in the -same format with its attached full Project Gutenberg™ License when -you share it without charge with others. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern -what you can do with this work. Copyright laws in most countries are -in a constant state of change. If you are outside the United States, -check the laws of your country in addition to the terms of this -agreement before downloading, copying, displaying, performing, -distributing or creating derivative works based on this work or any -other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no -representations concerning the copyright status of any work in any -country other than the United States. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.1. The following sentence, with active links to, or other -immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear -prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work -on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the -phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, -performed, viewed, copied or distributed: -</div> - -<blockquote> - <div style='display:block; margin:1em 0'> - This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most - other parts of the world at no cost and with almost no restrictions - whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms - of the Project Gutenberg License included with this eBook or online - at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you - are not located in the United States, you will have to check the laws - of the country where you are located before using this eBook. - </div> -</blockquote> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is -derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not -contain a notice indicating that it is posted with permission of the -copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in -the United States without paying any fees or charges. If you are -redistributing or providing access to a work with the phrase “Project -Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply -either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or -obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ -trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted -with the permission of the copyright holder, your use and distribution -must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any -additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms -will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works -posted with the permission of the copyright holder found at the -beginning of this work. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ -License terms from this work, or any files containing a part of this -work or any other work associated with Project Gutenberg™. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this -electronic work, or any part of this electronic work, without -prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with -active links or immediate access to the full terms of the Project -Gutenberg™ License. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, -compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including -any word processing or hypertext form. However, if you provide access -to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format -other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official -version posted on the official Project Gutenberg™ website -(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense -to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means -of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain -Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the -full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, -performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works -unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing -access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works -provided that: -</div> - -<div style='margin-left:0.7em;'> - <div style='text-indent:-0.7em'> - • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from - the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method - you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed - to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has - agreed to donate royalties under this paragraph to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid - within 60 days following each date on which you prepare (or are - legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty - payments should be clearly marked as such and sent to the Project - Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in - Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg - Literary Archive Foundation.” - </div> - - <div style='text-indent:-0.7em'> - • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies - you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he - does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ - License. You must require such a user to return or destroy all - copies of the works possessed in a physical medium and discontinue - all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ - works. - </div> - - <div style='text-indent:-0.7em'> - • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of - any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the - electronic work is discovered and reported to you within 90 days of - receipt of the work. - </div> - - <div style='text-indent:-0.7em'> - • You comply with all other terms of this agreement for free - distribution of Project Gutenberg™ works. - </div> -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project -Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than -are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing -from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of -the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set -forth in Section 3 below. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable -effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread -works not protected by U.S. copyright law in creating the Project -Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ -electronic works, and the medium on which they may be stored, may -contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate -or corrupt data, transcription errors, a copyright or other -intellectual property infringement, a defective or damaged disk or -other medium, a computer virus, or computer codes that damage or -cannot be read by your equipment. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right -of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project -Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project -Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all -liability to you for damages, costs and expenses, including legal -fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT -LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE -PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE -TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE -LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR -INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH -DAMAGE. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a -defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can -receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a -written explanation to the person you received the work from. If you -received the work on a physical medium, you must return the medium -with your written explanation. The person or entity that provided you -with the defective work may elect to provide a replacement copy in -lieu of a refund. If you received the work electronically, the person -or entity providing it to you may choose to give you a second -opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If -the second copy is also defective, you may demand a refund in writing -without further opportunities to fix the problem. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth -in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO -OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT -LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied -warranties or the exclusion or limitation of certain types of -damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement -violates the law of the state applicable to this agreement, the -agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or -limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or -unenforceability of any provision of this agreement shall not void the -remaining provisions. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the -trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone -providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in -accordance with this agreement, and any volunteers associated with the -production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ -electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, -including legal fees, that arise directly or indirectly from any of -the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this -or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or -additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any -Defect you cause. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s -goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg™ and future -generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see -Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit -501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the -state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal -Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification -number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by -U.S. federal laws and your state’s laws. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, -Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up -to date contact information can be found at the Foundation’s website -and official page at www.gutenberg.org/contact -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread -public support and donations to carry out its mission of -increasing the number of public domain and licensed works that can be -freely distributed in machine-readable form accessible by the widest -array of equipment including outdated equipment. Many small donations -($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt -status with the IRS. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Foundation is committed to complying with the laws regulating -charities and charitable donations in all 50 states of the United -States. Compliance requirements are not uniform and it takes a -considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up -with these requirements. We do not solicit donations in locations -where we have not received written confirmation of compliance. To SEND -DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state -visit <a href="https://www.gutenberg.org/donate/">www.gutenberg.org/donate</a>. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -While we cannot and do not solicit contributions from states where we -have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition -against accepting unsolicited donations from donors in such states who -approach us with offers to donate. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -International donations are gratefully accepted, but we cannot make -any statements concerning tax treatment of donations received from -outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Please check the Project Gutenberg web pages for current donation -methods and addresses. Donations are accepted in a number of other -ways including checks, online payments and credit card donations. To -donate, please visit: www.gutenberg.org/donate -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Professor Michael S. Hart was the originator of the Project -Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of -volunteer support. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Most people start at our website which has the main PG search -facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -This website includes information about Project Gutenberg™, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. -</div> - -</div> -</div> -</body> - -</html> diff --git a/old/67162-h/images/helena_cover.jpg b/old/67162-h/images/helena_cover.jpg Binary files differdeleted file mode 100644 index 19f07c4..0000000 --- a/old/67162-h/images/helena_cover.jpg +++ /dev/null |
