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-The Project Gutenberg eBook of Helena, by Machado de Assis
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
-www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you
-will have to check the laws of the country where you are located before
-using this eBook.
-
-Title: Helena
-
-Author: Machado de Assis
-
-Release Date: January 14, 2022 [eBook #67162]
-
-Language: Portuguese
-
-Produced by: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by
- the Biblioteca Brasiliana USP Digital.)
-
-*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HELENA ***
-
-
-BIBLIOTHECA UNIVERSAL
-
-Romances, Viagens, Política, Poesias, etc.
-
-Collecção in 8° a 2$000
-
-
-
-
-HELENA
-
-
-
-
-POR
-
-
-
-
-MACHADO DE ASSIS
-
-
-
-
-RIO DE JANEIRO
-
-B.L. GARNIER
-
-Livreiro-editor do Instituto Historico Brasileiro
-
-65--Rua do Ouvidor--65
-
-PORTO: Ernesto Chardon | BRAGA: Eugenio Chardon
-
-LISBOA: Carvalho & C.
-
-_1876_
-
-
-
-
-INDICE
-CAPITULO I
-CAPITULO II
-CAPITULO III
-CAPITULO IV
-CAPITULO V
-CAPITULO VI
-CAPITULO VII
-CAPITULO VIII
-CAPITULO IX
-CAPITULO X
-CAPITULO XI
-CAPITULO XII
-CAPITULO XIII
-CAPITULO XIV
-CAPITULO XV
-CAPITULO XVI
-CAPITULO XVII
-CAPITULO XVIII
-CAPITULO XIX
-CAPITULO XX
-CAPITULO XXI
-CAPITULO XXII
-CAPITULO XXIII
-CAPITULO XXIV
-CAPITULO XXV
-CAPITULO XXVI
-CAPITULO XXVII
-CAPITULO XXVIII
-
-
-
-
-HELENA
-
-
-CAPITULO I
-
-
-O conselheiro Vale morreu ás 7 horas da noite de 25 de abril de 1859.
-Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de _cochilar_ a
-sesta,--segundo costumava dizer,--e quando se preparava a ir jogar a
-usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr.
-Camargo, chamado á pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos
-da sciencia; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da
-religião: a morte fôra instantanea.
-
-No dia seguinte fez-se o entêrro, que foi um dos mais concorridos que
-ainda viram os moradores do Andarahy. Cêrca de duzentas pessoas
-acompanharam o fim do até a morada ultima, achando-se representadas
-entre ellas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não
-figurasse em nenhum grande cargo do Estado, occupava elevado logar na
-sociedade, pelas relações adquiridas, cabedaes, educação e
-tradicções de familia. Seu pae fora magistrado no tempo colonial, e
-figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado
-materno descendia de uma das mais distinctas familias paulistas. Elle
-proprio exercêra dous empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do
-que lhe adveiu a carta de conselho e a estima dos homens publicos. Sem
-embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos
-dous partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que alli se
-acharam na occasião de o dar á sepultura. Tinha, entretanto, taes ou
-quaes ideias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e
-liberaes, justamente no ponto em que os dous dominios podem
-confundir-se. Se nenhuma saudade partidaria lhe deitou a ultima pa de
-terra, matrona houve, e não só ama, que viu ir a enterrar com elle a
-melhor página de sua mocidade.
-
-A familia do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr.
-Estacio, e uma irmã, D. Ursula. Contava ésta cincoenta e poucos annos;
-era solteira; vivêra sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o
-fallecimento da cunhada. Estacio tinha vinte e sete annos, e era formado
-em mathematicas. O conselheiro tentára encarreiral-o na política,
-depois na diplomacia; mas nenhum desses projectos teve começo de
-execução.
-
-O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do
-entêrro, foi ter com Estacio, a quem encontrou no gabinete particular do
-finado, em companhia de D. Ursula. Tambem a dor tem suas
-voluptuosidades; tia e sobrinho queriam nutril-a com a presença dos
-objectos pessoaes do morto, no logar de suas predilecções quotidianas.
-Duas tristes luzes alumiavam aquella pequena sala. Alguns momentos
-correram de profundo silêncio entre os tres. O primeiro que o rompeu
-foi o médico.
-
---Seu pai deixou testamento?
-
---Não sei, respondeu Estacio.
-
-Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou tres vezes, gesto que lhe era
-habitual quando fazia alguma reflexão.
-
---É preciso procural-o,--continuou elle.--Quer que o ajude?
-
-Estacio apertou-lhe affectuosamente a mão.
-
---A morte de meu pai,--disse o moço, não alterou nada as nossas
-relações. Subsiste a confiança anterior do mesmo modo que a amizade,
-ja provada e antiga.
-
-A secretária estava fechada; Estacio deu a chave ao médico; este abriu
-o movel sem nenhuma commoção exterior. Interiormente estava abalado.
-O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão
-em que, aliás, nenhum dos outros reparou. Logo que começou a revolver
-os papeis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o
-testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que succedeu a
-serenidade habitual.
-
---É isso? perguntou Estacio.
-
-Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar
-o conteudo. O silêncio foi muito demorado para não fazer impressão no
-moço, que alias nada disse, porque o attribuíra á commoção natural
-do amigo, em tão dolorosas circumstâncias.
-
---Sabem o que estará aqui dentro? disse enfim Camargo. Talvez uma
-lacuna ou um grande excesso.
-
-Nem Estacio, nem D. Ursula, pediram ao médico a explicação de
-semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico
-pôde le-la nos olhos, de ambos. Não lhes disse nada; entregou o
-testamento a Estacio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido
-em suas proprias reflexões, ora arranjando machinalmente um livro da
-estante, ora mettendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista
-quêda, alheio de todo ao logar e ás pessoas.
-
-Estacio rompeu o silêncio:
-
---Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico.
-
-Camargo parou deante do moço.
-
---Não posso dizer nada, respondeu elle. Seria inconveniente antes de
-saber as últimas disposições de seu pai.
-
-D. Ursula foi menos discreta que o sobrinho; apos longa pausa, pediu ao
-médico a razão de suas palavras.
-
---Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de
-perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excellentes, Era seu
-amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem
-a confiança que ambos depositavamos um no outro. Não quizera pois, que
-o último acto de sua vida fôsse um êrro.
-
---Um êrro! exclamou D. Ursula.
-
---Talvez um êrro! suspirou Camargo.
-
---Mas, doutor, insistiu D. Ursula, porque motivo nos não tranquillisa o
-espirito? Estou certa de que não se trata de um acto que desdoure a meu
-irmão; allude naturalmente a algum êrro no modo de entender... alguma
-cousa, que eu ignoro o que seja. Porque não fala claramente?
-
-O médico viu que D. Ursula tinha razão; e que, a não dizer mais nada,
-melhor fôra ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de
-extranheza que deixára no ânimo dos dous; mas da hesitação com que
-falava concluiu Estacio que elle não podia ir além do que havia dito.
-
---Não precisamos de explicação nenhuma, interveiu o filho do
-conselheiro; amanhã saberemos tudo.
-
-Nessa occasião entrou o padre Melchior. O médico sahiu ás 10 horas,
-ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estacio, recolhendo-se a
-seu quarto, murmurava consigo:
-
---Que êrro será esse? E que necessidade tinha elle de vir lançar-me
-este enigma no coração?
-
-A resposta, se podesse ouvil-a, era dada nessa mesma occasião pelo
-proprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava á porta:
-
---Fiz bem em preparar-lhes o espirito, pensou elle; o golpe, si o
-houver, ha de ser mais facil de soffrer.
-
-O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguem pôde
-ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exhumou o
-passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu nada foi
-communicado a ouvidos extranhos.
-
-As relações do Dr. Camargo com a familia do conselheiro eram estreitas
-e antigas, como dissera Estacio. O médico e o conselheiro tinham a
-mesma edade: cincoenta e quatro annos. Conheceram-se logo depois de
-tomado o gráo, e nunca mais afrouxara o laço que os prendêra desde
-esse tempo.
-
-Camargo era pouco sympathico á primeira vista, Tinha as feições duras
-e frias, os olhos prescrustadores e sagazes, de uma sagacidade
-incommoda, para quem encarava com elles, o que o não fazia attrahente.
-Fallava pouco e sêcco. Seus sentimentos não vinham á flor do rosto.
-Tinha todos os visiveis signaes de um grande egoista; comtudo, posto que
-a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lagryma ou uma palavra de
-tristeza, é certo que a sentiu devéras. Além disso, amava sobre todas
-as cousas e pessoas uma creatura linda,--a linda Eugenia, como lhe
-chamava,--sua filha unica e a flor de seus olhos; mas amava-a de um amor
-calado e recondito. Era difficil saber se Camargo professava algumas
-opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se
-as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que
-fôra cheio o decennio anterior, conservara-se indifferente e neutral.
-Quanto aos sentimentos religiosos, a aferil-os pelas acções, ninguem
-os possuia mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom
-catholico. Mas só pontual; interiormente era incredulo.
-
-Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher,--D.
-Thomasia,--meio adormecida n'uma cadeira de balanço e Eugenia ao piano,
-executando um trecho de Bellini. Eugenia tocava com habilidade; e
-Camargo gostava de a ouvir. Naquella occasião, porém, disse ele,
-parecia pouco conveniente que a moça se entregasse a um genero de
-recreio qualquer. Eugenia obedeceu, algum tanto de ma vontade. O pai,
-que se achava ao pe do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ella se
-levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ella nunca
-lhe víra.
-
---Não fiquei triste pelo que me disse, papae,--observou a moça. Tocava
-por distrahir-me. D. Ursula como está? Ficou tão afflicta! Mamãe
-queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a
-tristeza daquella casa.
-
---Mas a tristeza é necessaria á vida,--acudiu D. Thomasia, que abrira
-os olhos logo á entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as
-proprias, e são um correctivo da alegria, cujo excesso póde engendrar
-o orgulho.
-
-Camargo temperou ésta philosophia, que lhe pareceu demasiado austera,
-com algumas ideias mais accommodadas e risonhas.
-
---Deixemos a cada edade a sua atmosphera propria, concluiu elle, e não
-antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não
-passaram do puro sentimento.
-
-Eugenia não comprehendeu o que os dous haviam dito. Seus olhos
-voltaram-se para o piano, com uma expressão de saudade irritada. Com a
-mão esquerda, assim mesmo de pe, extrahiu vagamente tres ou quatro
-notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fital-a com desusada
-ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação
-interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços delle; deixou-se ir.
-Mas a expansão era tão nova, que ella ficou assustada e perguntou com
-voz trémula.
-
---Aconteceu la alguma cousa?
-
---Absolutamente nada, respondeu Camargo dando-lhe um beijo na testa.
-
-Era o primeiro beijo,--ao menos o primeiro de que a moça tinha memoria.
-A caricia encheu-a de orgulho filial; mas a propria novidade della
-impressionou-a mais. Eugenia não creu no que lhe dissera seu pai. Viu-o
-ir sentar-se ao pe de D. Thomasia e conversarem em voz baixa.
-Approximando-se, não interrompeu a conversa, que elles continuaram no
-mesmo tom, e versava sobre assumptos puramente domesticos. Percebeu-o;
-contudo não ficou tranquilla. Na manhã seguinte escreveu um bilhete,
-que foi logo caminho do Andarahy. A resposta, que lhe chegou ás mãos
-no momento em que provava um vestido novo, teve a cortezia de esperar
-que ella terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os
-receios da vespera.
-
-
-
-
-CAPITULO II
-
-
-No dia seguinte foi aberto o testamento com todas as formalidades
-legaes. O conselheiro nomeava testamenteiros Estacio, o Dr. Camargo e o
-padre Melchior. As disposições geraes nada tinham que fôsse notavel:
-eram legados pios ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a
-afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes.
-
-Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O
-conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena,
-havida em D. Angela da Soledade. Ésta menina estava sendo educada em um
-collegio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de
-seus bens, e devia ir viver com a familia, a quem o conselheiro
-instantemente pedia que a tratasse com desvello e carinho, como se de
-seu matrimonio fôsse.
-
-A leitura desta disposição causou natural espanto á irmã e ao filho
-do finado. D. Ursula nunca soubéra de tal filha. Quanto a Estacio
-ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pae;
-mas tão vagamente que não podia esperar aquella disposição
-testamentária.
-
-Ao espanto succedeu em ambos outra e differente impressão. D. Ursula
-reprovou de todo o acto do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos
-impulsos naturaes o licenças juridicas, o reconhecimento de Helena era
-um acto de usurpação e um péssimo exemplo. A nova filha era, em seu
-entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando
-muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e
-deixal-a á porta. Recebel-a, porém, no seio da familia e de seus
-castos affectos, legitimal-a aos olhos da sociedade, como ella estava
-aos da lei, não o entendia D. Ursula, nem lhe parecia que alguem
-podesse entendel-o. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior
-quando lhe occorreu a origem possivel de Helena, Nada constava da mãe,
-além do nome; mas essa mulher quem era? em que atalho sombrio da vida a
-encontrára o conselheiro? Helena seria filha de um encontro fortuito
-entre duas voluptuosidades, ou nasceria de algum affecto, irregular
-embora, mas verdadeiro o unico? A éstas interrogações não podia
-responder D. Ursula; bastava porém, que lhe surgissem no espirito, para
-lançar nelle o tedio e a irritação.
-
-D. Ursula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do
-conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma
-página de catecismo; mas o acto final bem podia ser a reparação de
-leviandades amargas. Essa atenuante não a viu D. Ursula. Para ella, o
-principal era a entrada de uma pessoa extranha na familia.
-
-A impressão de Estacio foi muito outra. Elle percebêra a ma vontade
-com que a tia recebêra a noticia do reconhecimento de Helena, e não
-podia negar a si mesmo que semelhante facto creava para a familia uma
-nova situação. Contudo, qualquer que ella fôsse, uma vez que seu pai
-assim o ordenava, levado por sentimentos de equidade ou impulsos da
-natureza, elle a acceitava tal qual, sem pezar nem reserva. A questão
-pecuniaria pezou menos que tudo no espirito do moço; não pezou nada. A
-occasião era dolorosa de mais para dar entrada a considerações de
-ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estacio não lhe
-permittia inspirar-se dellas. Quanto á camada social a que pertencia a
-mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo que elles
-saberiam levantar a filha até á classe a que ella ia subir.
-
-No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do
-conselheiro, occorreu a Estacio a conversa que tivera com o Dr. Camargo.
-Provavelmente era aquelle o ponto a que alludíra o médico. Interrogado
-acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o
-filho do conselheiro:
-
---Aconteceu o que eu previa, um êrro, disse elle. Não houve lacuna,
-mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura,
-muito bonito; mas pouco prático. Um legado era sufficiente; nada mais.
-A estricta justiça.
-
---A estricta justiça é a vontade de meu pae, redarguiu Estacio.
-
---Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sel-o á
-custa de direitos alheios.
-
---Os meus? Não os allego.
-
---Se os allegasse seria pouco digno de memoria delle. O que está feito,
-está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa
-familia e affectos de familia. Persuado-me que ella sabera
-corresponder-lhes com verdadeira dedicação...
-
---Conhece-a? inqueriu Estacio, cravando no médico uns olhos impacientes
-de curiosidade.
-
---Via-a tres ou quatro vezes disse este no fim de alguns segundos; mas
-era então muito creança. Seu pae fallava-me della como de pessoa
-extremamente affectuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem
-olhos de pai.
-
-Estacio desejára ainda saber alguma cousa ácerca da mãe de Helena,
-mas repugnou-lhe entrar em novas indagações. Como os filhos de Noé,
-lançou uma capa sobre a nudez de seu pae, e tentou encarreirar a
-conversa para outro assumpto. Camargo, entretanto, insistiu:
-
---O conselheiro falou-me algumas vezes no projecto de reconhecer
-Helena; procurei dissuadil-o, mas sabe como elle era obstinado ás vezes
-em suas resoluções, accrescendo neste caso o natural impulso de amor
-paterno. O nosso ponto de viste era differente. Não me tenho por homem
-mau; contudo, entendo que a sensibilidade não póde usurpar o que
-pertence á razão.
-
-Camargo proferiu éstas palavras no tom sêcco e sentencioso, que tão
-natural e sem exforço lhe sabia. A velha amizade delle e do finado era
-sabida de todos; a intenção com que fallava podia ser hostil á
-familia? Estacio reflectiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir
-ao médico, curta reflexão, que por nenhum modo lhe abalou a opinião
-ja assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espirito
-que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor.
-
---Não quero saber--disse elle,--se ha excesso na disposição
-testamentária de meu pae. Se o ha, é legitimo, justificavel pelo
-menos; elle sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa
-irmã, como se fôra creada commigo. Minha mãe faria com certeza a
-mesma cousa.
-
-Camargo não insistiu. Sôbre ser exforço baldado dissuadir o moço
-daquelles sentimentos, que aproveitava ja agora discutir e condemnar
-theoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executal-a
-lealmente, sem hesitação nem pezar. Isso mesmo declarou elle a
-Estacio, que o abraçou cordialmente. O médico recebeu o abraço sem
-constrangimento, mas sem fervor.
-
-Estacio ficára satisfeito comsigo mesmo. Seu caracter vinha mais
-directamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a
-unica paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe
-acharemos, nenhuma outra saliente feição. A fidelidade aos amigos era
-antes resultado do costume que da consistencia dos affectos. A vida
-correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou occasião de
-experimentar a propria têmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha
-mediana.
-
-A mãe de Estacio era differente; possuíra em alto grau a paixão, a
-ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimentos, com seus
-toques de orgulho,--daquelle orgulho que é apenas irradiação da
-consciencia. Vinculada si um homem que, sem embargo do affecto que lhe
-tinha, despendia o coração em amores adventicios e passageiros, teve a
-fôrça de vontade necessaria para dominar a paixão e encerrar em si
-mesma todo o resentimento. As mulheres que são apenas mulheres choram,
-arrufam-se ou resignam-se; as que tem alguma cousa mais do que a
-debilidade feminina lutam ou recolhem-se á dignidade do silêncio.
-Aquella padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe
-permittia outra cousa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao
-mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial da sua organisação,
-concentrou-a toda naquelle unico filho, em quem parecia adivinhar o
-herdeiro de suas robustas qualidades.
-
-Estacio recebêra affectivamente de sua mãe uma boa parte destas. Não
-sendo grande talento, deveu á vontade e á paixão do saber a figura
-notavel que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se á
-sciencia com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indifferente ao
-ruido exterior. Educado á maneira antiga o com severidade o recato,
-passou da adolescencia á juventude sem conhecer as corrupções de
-espirito nem as influências delecterias da ociosidade; viveu a vida de
-familia, na edade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e
-perdiam em cousas infimas a virgindade das primeiras sensações. Dahi
-veiu que aos dezoito annos conservava elle tal ou qual timidez infantil,
-que só tarde perdeu de todo. Mas se perdeu a timidez, ficara-lhe certa
-gravidade não incompativel com os verdes annos e muito propria de
-organisações como a delle. Na política seria talvez meio caminho
-andado para subir aos cargos publicos; na sociedade, fazia com que lhe
-catassem respeito, o que o levantava a seus proprios olhos. Convem dizer
-que não era essa gravidade aquella cousa enfadonha, pesada e chata, que
-os moralistas asseveram ser quasi sempre um symptoma de espirito chocho;
-era uma gravidade jovial e familiar,--egualmente distante da frivolidade
-e do tedio, uma compostura do corpo e do espirito, temperada pelo viço
-dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e recto
-adornado de folhagens e flores. Junctava ás outras qualidades moraes
-uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sobria e forte; aspero
-comsigo, sabia ser terno e mavioso com os outros.
-
-Tal era o filho do conselheiro; e se alguma cousa ha ainda que
-accrescentar é que elle não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e
-deveres que lhe davam a edade e a classe em que nascêra. Elegante e
-polido, obedecia á lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes
-della. Ninguem entrava mais correctamente n'uma sala; ninguem saia mais
-opportunamente. Ignorava a sciencia das nugas, mas conhecia o segrêdo
-de tecer um comprimento.
-
-Na situação creada pela clausula testamentária do conselheiro,
-Estacio aceitou a causa da irmã, a quem ja via, sem a conhecer, com
-olhos differentes dos de Camargo e D. Ursula. Esta communicou ao
-sobrinho todas as impressões que lhe deixára o acto do irmão. Estacio
-procurou dissipar-lh'as; repetiu as reflexões oppostas ao médico;
-mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade
-de um morto.
-
---Bem sei que não ha ja agora outro remedio mais que aceitar essa
-menina e obedecer ás determinações solemnes de meu irmão, disse D.
-Ursula quando Estacio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ella os
-meus affectos não sei que possa nem deva fazer.
-
---Comtudo, ella é do nosso mesmo sangue.
-
-D. Ursula ergueu os hombros como repellindo semelhante consanguinidade.
-Estacio insistiu em trazel-a a mais benevolos sentimentos. Invocou,
-além da vontade, a rectidão do espirito de seu pae, que não havia
-dispor uma cousa contrária á boa fama da familia.
-
---Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que
-meu pae a legitimou, convem que não se ache aqui como engeitada. Que
-aproveitariam os com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da
-nossa vida interior. Vivamos na mesma communhão de affectos; e vejamos
-em Helena uma parte da alma de meu pae, que nos fica para não desfalcar
-de todo o patrimonio commum.
-
-Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estacio percebeu que não mudára
-os sentimentos da tia, nem era possivel consegui-lo por meio de
-palavras. Confiou do tempo essa tarefa. D. Ursula ficou triste e só.
-Apparecendo Camargo dahi a pouco, ella confiou-lhe todo o seu modo de
-sentir, que o médico interiormente approvava.
-
---Conheceu a mãe della? perguntou a irmã do conselheiro.
-
---Conheci.
-
---Que especie de mulher era?
-
---Fascinante.
-
---Não é isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem inferior, ou...
-
---Não sei; no tempo em que a vi não tinha classe e podia pertencer a
-todas; demais, não a tratei de perto.
-
---Doutor, disse D. Ursula, depois de hesitar algum tempo;--que me
-aconselha que faça?
-
---Que a ame, se ella o merecer, e se puder.
-
---Oh! confesso-lhe que me ha de custar muito! E merece-lo-ha? Alguma
-cousa me diz ao coração que essa menina vem complicar a nossa vida;
-além disso, não posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro...
-
---Seu sobrinho aceita as cousas philosophicamente e até com
-satisfação. Não comprehendo a satisfação, mas concordo que nada
-mais ha do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. Não se
-deliberam sentimentos; ama-se ou aborrece-se, conforme o coração quer.
-O que lhe digo é que a trate com benevolencia; e caso sinta em si algum
-affecto, não o suffoque; deixe-se ir com elle. Ja agora não se póde
-voltar atraz. Infelizmente!
-
-Helena estava a concluir seus estudos; semanas depois determinou a
-familia que ella viesse para casa. D. Ursula recusou a princípio ir
-buscal-a; convenceu-a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a
-incumbencia depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados
-os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moça
-transladada a Andarahy. D. Ursula metteu-se na carruagem, logo depois de
-jantar. Estacio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido.
-Voltou tarde. Ao penetrar na chacara deu com os olhos nas janellas do
-quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguem dentro. Pela
-primeira vez sentiu Estacio a extranheza da situação creada pela
-presença daquella meia-irmã e perguntou a si proprio se não era a tia
-quem tinha razão. Expelliu pouco depois esse sentimento; a memoria do
-pae restituiu-lhe a benevolencia anterior. Ao mesmo tempo, a ideia de
-ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e
-desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa
-creatura intermediaria, que elle ja amava sem conhecer, e que que seria
-a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estacio
-contemplou longo tempo as janellas; nem o vulto de Helena appareceu
-alli, nem elle viu passar a sombra da habitante nova.
-
-
-
-
-CAPITULO III
-
-
-Na seguinte manhã, Estacio levantou-se tarde e foi direito á sala de
-jantar, onde encontrou D. Ursula, pachorrentamente sentada na poltrona
-de seu uso, ao pe de uma janella, a ler um tomo do _Saint-Clair das
-Ilhas_, enternecida pela centesima vez com as tristezas dos desterrados
-da ilha da Barra; boa gente e moralissimo livro, ainda que enfadonho e
-massudo, como outros de seu tempo. Com elle matavam as matronas daquella
-quadra muitas horas compridas do inverno, com elle se encheu muito
-serão pacífico, com elle se desafogou o coração do muito lagryma
-sobresalente.
-
---Veiu? perguntou Estacio.
-
---Veiu, respondeu a boa senhora fechando o livro. O almôço
-esfria,--continuou ella dirigindo-se á mucama que alli estava de pe,
-juncto da mesa; já foram chamar... nhanhã Helena?
-
---Nhanhã Helena disse que ja vem.
-
---Ha dez minutos, observou D. Ursula ao sobrinho.
-
---Naturalmente não tarda, respondeu este. Que tal?
-
-D. Ursula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quasi não
-vira o rosto de Helena; e ésta, logo que alli chegou, recolheu-se ao
-aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D.
-Ursula pôde afiançar foi somente que a sobrinha era moça feita.
-
-Ouviu-se descer a escada um passo rapido, e não tardou que Helena
-apparecesse á porta da sala de jantar. Estacio estava então encostado
-á janella que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda,
-donde se viam os fundos da chacara. Olhou para a tia como esperando que
-ella os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao vel-o.
-
---Menina, disse D. Ursula com o tom mais doce que tinha na voz, este é
-meu sobrinho Estacio, seu irmão.
-
---Ah! disse Helena sorrindo e caminhando para elle.
-
-Estacio dera egualmente alguns passos.
-
---Espero merecer sua affeição, disse ella depois de curta pausa. Peço
-desculpa da demora; estavam á minha espera, creio eu.
-
---Iamos para a meza agora mesmo, interrompeu D. Ursula como protestando
-contra a ideia de que ella os fizesse esperar.
-
-Estacio procurou corrigir a rudez da tia.
-
---Tinhamos ouvido o seu passe na escada, disse elle. Sentemo-nos, que o
-almoço esfria.
-
-D. Ursula ja estava sentada á cabeceira da mesa; Helena ficou á
-direita, na cadeira que Estacio lhe indicou; este tomou logar do lado
-opposto. O almoço correu silencioso e desconsolado; raros monosyllabos,
-alguns gestos de assentimento ou recusa, tal foi o dispendio da conversa
-entre os tres parentes. A situação não era commoda nem vulgar.
-Helena, posto forcejasse por estar senhora de si, não conseguia vencer
-de todo o natural acanhamento da occasião. Mas, se o não vencia de
-todo, podiam ver-se atravez delle certos signaes de educação fina.
-Estacio examinou aos poucos a figura da irmã.
-
-Era uma moça de dezeseis a dezesete annos, delgada sem magreza,
-estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e attitudes modestas.
-A face, de um moreno-pecego, tinha a mesma imperceptivel penugem da
-fructa de que tirava a côr; naquella occasião tingiam-na uns longes
-côr de rosa, a principio mais rubros, natural effeito do abalo. As
-linhas puras e severas do rosto parecia que as traçára a arte
-religiosa. Se os cabellos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos
-em duas grossas tranças, lhe cahissem espalhadamente sôbre os hombros,
-e se os proprios olhos alçassem as pupillas ao ceu, dissereis um
-daquelles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do
-Senhor. Não exigiria a arte maior correcção e harmonia de feições,
-e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a
-gravidade do aspeto. Uma só cousa pareceu menos aprazivel ao irmão:
-eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e
-suspeitosa reserva foi o unico senão que lhe achou, e não era pequeno.
-
-Acabado o almôço, trocadas algumas palavras, poucas e sôltas, Helena
-retirou-se ao seu quarto, onde durante tres dias passou quasi todas as
-horas, a ler meia duzia de livros que trouxe comsigo, a escrever cartas,
-a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janellas.
-Alguma vez desceu a jantar com os olhos vermelhos e a fronte pezarosa,
-apenas com um sorriso pallido e fugitivo nos labios. Uma creança,
-subitamente transferida ao collegio, não desfolha mais tristemente as
-primeiras saudades da casa de seus paes. Mas a aza do tempo leva tudo; e
-ao cabo de tres dias, ja a physionomia de Helena trazia menos sombrio
-aspecto. O olhar perdeu a expressão que primeiro lhe achou o irmão,
-para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra
-sahia-lhe mais facil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar
-do acanhamento.
-
-No quarto dia, acabado o almôço, Estacio encetou uma conversa geral,
-que não passou de um simples _duo_, por que D. Ursula contava os fios
-da toalha ou brincava com as pontas do _fichu_ que trazia ao pescoço.
-Como falassem da casa, Estacio disse á irmã:
-
---Ésta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nascemos debaixo
-do mesmo tecto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu
-respeito; não o póde haver mais cordial.
-
-Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a
-chacara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Ursula que
-lh'as fôsse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e seccamente
-respondeu:
-
---Agora não, menina; tenho por hábito descançar e ler.
-
---Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moça com graça; não
-é bom cançar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a
-servil-a. Não acha? continuou ella voltando-se para Estacio.
-
---É nossa tia, respondeu o moço.
-
---Oh! ainda não é minha tia! interrompeu Helena. Hade sel-o quando me
-conhecer de todo. Por emquanto somos extranhas uma á outra; mas nenhuma
-de nós é ma; o coração e a convivencia apertarão de vez os laços
-que a natureza atou frouxamente.
-
-Éstas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com
-que ella as proferiu era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso,
-tinha um mysterioso encanto, a que a propria D. Ursula não pôde
-resistir.
-
---Pois deixe que a convivencia faça falar o coração, respondeu a
-irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o offerecimento da
-leitura, por que não entendo bem o que os outros me lêm; tenho os
-olhos mais intelligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa
-e a chacara, seu irmão póde conduzi-la.
-
-Estacio declarou-se prompto para acompanhar a irmã. Helena, entretanto,
-recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e ao que parece,
-a primeira que podia achar-se a sos com um homem que não seu pae. D.
-Ursula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe
-seccamente que fôsse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da
-casa, ouvindo a moça as explicações que lhe dava Estacio e inquirindo
-de tudo com zêlo e curiosidade de dona da casa. Quando chegaram á
-porta do gabinete do conselheiro, Estacio parou.
-
---Vamos entrar num logar triste para mim, disse elle.
-
---Que é?
-
---O gabinete de meu pae.
-
---Oh! deixe ver!
-
-Entraram os dous. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o
-conselheiro fallecêra. Estacio deu algumas indicações relativas ao
-theor da vida doméstica de seu pae; mostrou-lhe a cadeira em que elle
-costumava ler, de tarde e de manhã; os retratos de familia, a
-secretária, as estantes; falou de quanto podia interessal-a. Sobre a
-mesa, perto da janella, estava ainda o último livro que o conselheiro
-lêra: eram as _Maximas_ do marquez de Maricá. Helena pegou nelle e
-imprimiu um beijo na página aberta. Uma lagryma brotou-lhe dos olhos,
-como pingo do sereno que cahisse da aza da noite, não fria como elle,
-mas quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensivel; brotou,
-deslizou-se e foi cahir no papel.
-
---Coitado! murmurou ella.
-
-Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir
-alguns minutos depois do jantar, e olhou para fóra. O dia começava a
-aquecer. O arvoredo dos morros fronteiros estava coberto de flores de
-quaresma, com suas petalas roxas e tristemente bellas. O expectaculo ia
-com a situação de ambos. Estacio deixou-se levar ao sabor de suas
-recordações da meninice. De envolta com ellas, veiu pousar-lhe ao lado
-a figura de sua mãe; tornou a ve-la, tal qual se lhe fôra dos braços,
-uma crua noite de Outubro, quando elle contava dezoito annos de edade. A
-boa senhora morrêra quasi moça,--ainda bella, pelo menos,--daquella
-belleza sem outono, cuja primavera tem duas estações.
-
-Helena ergueu-se.
-
---Amava-o muito? perguntou ella,
-
---Quem o não amaria?
-
---Tem razão. Era uma alma grande e nobre; ou adorava-o. Reconheceu-me;
-deu-me familia e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus
-proprios. O resto depende de mim, do juizo que eu tiver,--ou talvez da
-fortuna.
-
-Ésta ultima palavra cahiu-lhe do coração com um suspiro. Depois de
-alguns segundos de silêncio, Helena enfiou o braço no do irmão e
-desceram â chacara. Fôsse influência do logar ou simples mobilidade
-de seu espirito, Helena tornou-se logo outra do que se revellára no
-gabinete de seu pae. Jovial, graciosa e travessa, perdêra aquella
-gravidade quieta e senhora de si com que apparecêra na sala de jantar;
-fez-se lepida e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora
-esvoaçavam por meio das árvores e por cima da gramma. A mudança
-causou certo espanto ao moço; mas elle a explicou de si para si, e em
-todo o caso não o impressionou mal. Helena pareceu-lhe naquella
-occasião, mais do que antes, o complemento da familia. O que alli
-faltava era justamente o gorgeio, a graça, a travessura, um elemento
-que temperasse a austeridade da casa e lhe désse todas as feições
-necessarias ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar.
-
-A excursão durou cêrca de meia hora. D. Ursula viu-os chegar, ao cabo
-desse tempo, familiares e amigos, como se houvessem criado junctos.
-As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contrairam-se e o labio
-inferior recebeu uma dentada de despeito.
-
---Titia, disse Estacio jovialmente; minha irmã conhece ja a casa toda e
-suas dependencias. Resta somente que lhe mostremos o coração.
-
-D. Ursula sorriu,--um sorriso amarello e acanhado, que apagou nos olhos
-da moça a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a ma
-impressão; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mãos,
-perguntou com toda a doçura da voz:
-
---Não quererá mostrar-me o seu?
-
---Não vale a pena! respondeu D. Ursula com affectada bonhomia;
-coração de velha é casa arruinada.
-
---Pois as casas velhas concertam-se, replicou Helena sorrindo.
-
-D. Ursula sorriu tambem; desta vez, porém, com expressão melhor. Ao
-mesmo tempo, fitou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a
-principio indifferente, manifestou logo depois a impressão que lhe
-causava a belleza da moça. D. Ursula retirou os olhos; porventura
-receiou que o influxo das graças de Helena lhe torcessem o coração,
-e ella queria ficar independente e inconciliavel.
-
-
-
-
-CAPITULO IV
-
-
-As primeiras semanas correram sem nenhum successo notavel, mas ainda
-assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de
-hesitação, de observação reciproca, um tactear de caracteres, em
-que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar
-posição. O proprio Estacio, não obstante a primeira impressão,
-recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o
-procedimento de Helena.
-
-Helena tinha os predicados proprios a captar a confiança e a affeição
-da familia. Era docil, affavel, intelligente. Não eram estes, comtudo,
-nem ainda a belleza, os seus dotes por excellencia efficazes. O que a
-tomava superior e lhe dava probabilidade de triumpho era a arte de
-accomodar-se ás circumstâncias do momento e a toda a casta de
-espiritos, arte preciosa, que faz habeis os homens e estimaveis as
-mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de
-arranjos de casa, com egual interesse e gôsto, frivola com os frivolos,
-grave com os que o eram, attenciosa e ouvida, sem entono nem
-vulgaridade. Havia nella a jovialidade da menina e a compostura da
-mulher feita, um accôrdo de virtudes domésticas e maneiras elegantes,
-complexo de cousas na apparencia oppostas, mas não inconciliaveis nem
-disparatadas entre si.
-
-Além das qualidades naturaes, possuia Helena algumas prendas de
-sociedade, que a tornavam acceita a todos, e mudaram em parte o theor da
-vida da familia. Não falo da magnifica voz de contralto, nem da
-correcção com que sabia usar della, por que ainda então, estando
-fresca a memoria do conselheiro, não tivera occasião de fazer-se
-ouvir. Era pianista distincta, sabia desenho, falava correntemente a
-lingua franceza, um pouco a ingleza e a italiana. Entendia de costura e
-bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e
-lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciencia, arte e
-resignação,--não humilde, mas digna,--conseguia polir os asperos,
-attrahir os indifferentes e domar os hostis.
-
-Pouco havia ganho no espirito de D. Ursula; mas a repulsa desta ja não
-era tão viva como nos primeiros dias. Estacio cedeu de todo, e era
-facil; seu coração tendia para ella, mais que nenhum outro. Não cedeu
-porém sem alguma hesitação e dúvida. A flexibilidade do espirito da
-irmã afigurou-se-lhe a principio mais calculada que expontanea. Mas foi
-impressão que passou. Dos proprios escravos não obteve Helena desde
-logo a sympathia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de
-D. Ursula. Servos de uma familia, viam com desaffecto e ciume a parenta
-nova, alli trazida por um acto de generosidade. Mas tambem a esses
-venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vel-a desde princípio com olhos
-amigos; era um rapaz de 16 annos, chamado Vicente, cria da casa e
-particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta ultima
-circunstância o ligou desde logo á filha do seu senhor. Despida de
-interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era
-precaria e remota, a affeição de Vicente não era menos viva e
-sincera; faltando-lhe os gozos proprios do affecto,--a familiaridade e o
-contacto,---condenado a viver da contemplação e da memoria, a não
-beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos
-costumes, pelo respeito e pelos instinctos, Vicente foi, não obstante,
-um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da
-senzala.
-
-Ás pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma
-hesitação de D. Ursula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e
-parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociaes,
-explicava-os e tratava de os torcer em seu favor,--tarefa em que se
-esmerou superando as obstaculos na familia; o resto viria de si mesmo.
-
-Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no
-procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era
-capellão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns annos
-antes uma excellente capella na chacara, onde muita gente da vizinhança
-ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta annos o padre; era homem de
-estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabellos, e uns olhos
-não menos sagazes que mansos. De compostura quieta, e grave, austero
-sem formalismo, sociavel sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o
-verdadeiro varão apostolico, homem de sua Egreja e de seu Deos, integro
-na fe, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecêra a
-familia do conselheiro algum tempo depois do consorcio deste. Seu olhar
-penetrante descobria a causa da tristeza que minou os ultimos annos da
-mãe de Estacio; respeitou a tristeza, mas attacou directamente a
-origem. O conselheiro era homem geralmente razoavel, salvo nas cousas do
-amor; ouviu o padre, prometteu o que este lhe exigia, mas foi promessa
-feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escriptura.
-Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as occasiões
-graves; e o voto de Melchior pesava em seu espirito. Morando na
-vizinhança daquella familia, tinha alli o padre todo o seu mundo. Se as
-obrigações ecclesiasticas não o chamavam a outro lugar, não se
-arredava elle de Andarahy, sítio de repouso apos trabalhosa mocidade.
-
-Das outras pessoas que frequentavam a casa e residiam no mesmo bairro de
-Andarahy, mencionaremos ainda o Dr. Mattos, sua mulher, o coronel Macedo
-e dous filhos.
-
-O Dr. Mattos era um velho advogado que, em compensação da sciencia do
-direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitaveis de
-meteorologia e botanica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da
-política. Era impossivel a ninguem queixar-se do calor ou do frio, sem
-ouvir delle a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das
-estações, a differença dos climas, influência destes, as chuvas, os
-ventos, a neve, as vasantes dos rios e suas enchentes, as marés e a
-pororoca. Elle fallava com egual abundancia das qualidades therapeuticas
-de uma herva, da nomenclatura scientifica de uma flor, da estructura de
-certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio ás nobres paixões da
-política, se abria a boca em tal assumpto era para criticar egualmente
-de luzias e saquaremas,--os quaes todos lhe pareciam abaixo do paiz. O
-jogo e a comida achavam-no menos sceptico; e nada lhe avivava tanto a
-physionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Éstas prendas
-faziam do Dr. Mattos um conviva interessante nas noites que o não eram,
-como o loto é o jogo por excellencia nas occasiões em que outro
-qualquer é impossivel. O Dr. Mattos era o loto da sociedade, com a
-mesma monotonia dos anexins. Posto soubesse effectivamente alguma cousa
-dos assumptos que lhe eram mais prezados, não ganhou o peculio que
-possuia, professando a botanica ou a meteorologia, mas applicando as
-regras do direito, que ignorou até á morte.
-
-A esposa do Dr. Mattos fôra uma das bellezas do primeiro reinado.
-Quando as graças physicas se alliam ás do espirito, a belleza póde
-esvair-se, que ainda lhe fica a alma. D. Leonor era uma rosa fanada, mas
-conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro
-ardêra aos pes da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas só era
-verdade a primeira parte do boato. Nem os principios moraes, nem o
-temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra cousa que não fosse
-repellir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez illudiu os
-malévolos; dahi o sussurro, ja agora esquecido e morto. A reputação
-dos homens amorosos parece-se muito como juro do dinheiro: alcançado
-certo capital, elle proprio se multiplica e avulta. O conselheiro
-desfructou essa vantagem, de maneira que se no outro mundo lhe levassem
-á collumna dos peccados todos os que lhe attribuiam na terra, receberia
-elle dobrado castigo do que mereceu.
-
-O coronel Macedo tinha a particularidade da não ser coronel. Era major.
-Alguns amigos, levados de um espirito de rectificação, começaram a
-dar-lhe o titulo de coronel, que a princípio recusou, mas que afinal
-foi compellido a acceitar, não podendo gastar a vida inteira a
-protestar contra elle. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sôbre o
-peculio da experiencia, possuia imaginação viva, fertil e agradavel.
-Era bom companheiro, folgazão e communicativo, pensando serio quando
-era preciso. Tinha dous filhos: um rapaz de vinte annos, que estudava em
-S. Paulo, e uma moça de vinte e tres, mais prendada que formosa.
-
-Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se
-consolidada. D. Ursula não cedêra de todo, mas a convivencia ia
-produzindo seus fructos. Camargo era o unico irreconciliavel; sentia-se
-atravez de suas maneiras cerimoniosas uma a versão profunda, prestes a
-converter-se em hostilidade, se fôsse preciso. As demais pessoas, não
-só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam ás boas com a filha do
-conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e
-gestos eram o assumpto da vizinhança e o prazer dos familiares da casa.
-Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas reminiscencias um
-fio biographico da moça; mas do inventário retrospectivo ninguem
-tirava elementos que podessem construir a verdade ou uma só parcella que
-fôsse. A origem da moça continuava mysteriosa; vantagem grande, porque
-o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia attribuir o nascimento de
-Helena a um amor illustre ou romanesco,--hypotheses admissiveis, e em
-todo o caso agradaveis a ambas as partes.
-
-
-
-
-CAPITULO V
-
-
-Por esse tempo resolveu Estacio dar um passo decisivo em sua vida.
-Ligado por amor á filha de Camargo, desde antes da morte do
-conselheiro, hesitára sempre em pedil-a ao pae, deferindo a resolução
-para quando fôsse propício o ensejo. A condição não era facil, por
-que o sentimento que elle nutria em relação a Eugenia tinha
-alternativas singulares de tibieza e fervor. A causa disso póde crer-se
-que estava tambem em seu coração; mas principalmente residia nella.
-N'um dos primeiros dias de Agosto, assentira Estacio de ir solicitar de
-Eugenia autorisação para fazer officialmente o pedido. Assim disposto,
-dirigiu-se á casa de Camargo.
-
-Mal o avistou de longe, desceu Eugenia á porta do jardim. O chapellinho
-de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do
-sol,--eram tres horas da tarde,--tornavam mais bella a figura da moça.
-Eugenia era uma das mais brilhantes estrêllas entre as menores do ceu
-fluminense. Agora mesmo, se o leitor, lhe descobrir o perfil, em
-camarote de theatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile,
-comprehenderá,--atravez de um quarto de seculo,--que os contemporaneos
-de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as graças que
-então alvoreciam, com o frescor e a pureza das primeiras horas.
-
-Era do pequena estatura; tinha os cabellos de um castanho escuro, e os
-olhos grandes e azues,--dous pedacinhos do ceu; abertos em rosto alvo o
-corado, os quaes nem sempre lembravam tão alta origem, pois se eram
-muita vez quietos e modestos, não poucas os desmaiava tal ou qual
-expressão de languidez lasciva. Seu corpo, levemente refeito, era
-naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até
-com arte, não possuia o dom de alcançar os maximos effeitos com os
-meios mais simples, dom preciosissimo, que faz as grandes elegantes, os
-grandes artistas e os grandes poetas.
-
-Estacio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que
-lhe ia sahir dos labios, era justamente o pedido que o levava alli. Mas
-Eugenia deteve-lh'a mostrando o anel que sua madrinha, uma fazendeira de
-Cantagallo, lhe remettêra na vespera. Era uma opala magnifica, a tal
-ponto que Eugenia dividia os olhos entre o namorado e ella. Ésta
-simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D.
-Thomasia os esperava. A mãe de Eugenia sabia combinar o decoro com os
-desejos de seu coração; não seria obstaculo aos dous namorados,
-infelizmente a presença de duas visitas veiu destruir o cálculo dos
-tres. Estacio espreitava uma occasião de pedir a Eugenia a
-autorisação que desejava; até o jantar não se lhe deparou nenhuma.
-
-Depois do jantar, desceram todos ao jardim. D. Thomasia entreteve uma
-das visitas; Camargo foi mostrar á outra a sua collecção de flores.
-Estacio e Eugenia affastaram-se cautellosamente dos dous grupos, a
-pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquelle dia. A flor
-existia; Eugenia colheu-a e deu a Estacio.
-
---Não va perdel-a; hade entregal-a a Helena da minha parte. Diga-lhe
-que estou com muitas saudades.
-
-Estacio collocou a flor na casa do paletó.
-
---Vai cahir! disse Eugenia. Quer que pregue um alfinete?
-
-Estacio não teve tempo de responder, por que a filha de Camargo,
-tirando um alfinete do cinto prendeu o pe da flor, gastando muito mais
-tempo do que o exigia a operação. A moça não era myope; todavia
-approximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve
-impetos de lhe beijar os cabellos, e seria a primeira vez que seus
-labios lhe tocassem. Não o deteve o risco de ser visto; mas o simples
-respeito daquella creatura.
-
---Prompto! disse ella. Diga a Helena que é a flor mais bonita, do nosso
-jardim. Sabe que eu gósto muito de sua irmã?
-
---Acredito.
-
---Supponho que é minha amiga, hade se-lo com certeza. Oh! eu preciso
-muito de uma amiga verdadeira!
-
---Sim?
-
---Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão
-desgostos, como Cecilia... Se soubesse o que ella me fez!
-
---Que foi?
-
-Eugenia desfiou uma historiazinha de toucador, que omitto em suas
-particularidades, por não interessar ao nosso caso, bastando saber que
-a razão capital da divergencia entre as duas amigas fôra uma opinião
-de Cecilia acerca da escolha de um chapeu.
-
-Estacio não escutou a história com a attenção que a moça desejára;
-limitou-se a ouvir a voz de Eugenia, que era na verdade angelica. Alguma
-cousa porém lhe ficou, e quando ella poz termo ás suas queixas:
-
---O que me parece, observou o sobrinho de D. Ursula, é que não valia a
-pena brigar por tão pouca cousa...
-
---Pouca cousa! exclamou Eugenia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa e
-de mau gôsto?
-
---Fez mal se o disse; em todo o caso...
-
-Estacio fez uma pausa e continuou a andar. Eugenia, mollemente recostada
-em seu braço, esperou que elle continuasse o que ia dizer; mas o
-silêncio prolongou-se mais do que era natural.
-
---Em todo o caso? repetiu a moça erguendo para elle os seus olhos
-limpidos e curiosos.
-
---Eugenia, disse Estacio, quer saber a verdadeira razão do mau successo
-de suas affeições? é deixar-se levar mais pelas apparencias que pela
-realidade; é porque dá menos apreço ás qualidades solidas do
-coração do que ás frivolas exterioridades da vida. Suas amizades são
-das que duram a roda de uma valsa, ou, quando muito, a moda de um
-chapeu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estereis para as
-necessidades do coração.
-
---Jesus! exclamou Eugenia estacando o passo um sermão por tão pouca
-cousa! Se tivesse algum pedaço de latim era o mesmo que estar ouvindo o
-padre Melchior.
-
-Estacio não respondeu; contentou-se com erguer os hombros, e os dous
-continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do
-outro. A differença é que o enfado de Eugenia manifestava-se por um
-movimento nervoso de impaciencia e despeito.
-
---Se o offendi, perdoe-me, disse ella--com um leve tom de ironia.
-
---Oh! exclamou elle apertando-lhe a mão, como quem só esperava um
-pretexto para reatar a conversa interrompida.
-
---Talvez offendesse, continuou a moça; eu sei dizer as cousas como
-ellas me vem á boca, e parece que não são as mais acertadas...
-
---Não digo que o sejam sempre, replicou Estacio sorrindo. Agora, pelo
-menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era
-justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade,
-ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapeu? Não vale
-a pena esperdiçar affectos, Eugenia; sentirá mais tarde que essa moeda
-do coração não se deve nunca reduzir a trocos miudos nem despender em
-quinquilharias.
-
-Eugenia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito.
-Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido;
-sobretudo não lhes sentiu a applicação. O que a irritou mais foi o
-tom pedagogo de Estacio; estouvada e voluntariosa, não admittia que
-ninguem lhe falasse sem submissão ou a reprehendesse por actos seus,
-que ella julgava legitimos e naturaes. A insistencia do moço foi o
-ponto de partida a um desses arrufos, não raros entre amantes, e
-communs entre aquelles dous. Os de Eugenia não eram simples silêncios;
-seu espirito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado;
-pelo contrário irritava-se e traduzia a irritação por meio de
-pirraças e accessos de mau humor. Estacio viu murmurar, crescer e
-desabar a tempestade. A moça deixava-lhe o braço e tornava a apoiar-se
-nelle, articulava algumas phrases sôltas, pedia a morte, batia no chão
-com o pesinho mimoso que por acaso esmagou uma pobre herva, alheia ás
-divergencias moraes daquellas duas creaturas. Ora parava ou desandava o
-caminho; mas logo se dirigia para o moço, com as palpebras trémulas de
-colera e um remoque nos labios; comprazia-se em torcer a ponta da manga
-até dilaceral-a, ou morder a ponta do dedo até imprimir-lhe o signal
-de seus dentes, côr de perola. Estacio, affeito a essas explosões,
-não lhes sabia remedio proprio, que tanto o silêncio como a réplica
-eram alli materias inflamaveis. Contudo, o silêncio era o menor dos
-dous perigos. Estacio limitava-se a ouvir calado, olhando á sorrelfa
-para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais bello, quando a raiva o
-coloria. Uma terceira pessoa era a unica esperança de pacificação;
-Estacio alongou o olhar pelo jardim em busca desse _deus ex-machina_.
-Appareceu elle enfim sob a forma de um Carlos Barreto,--estudante de
-medicina, que cultivava simultaneamente a pathologia e a comedia, mas
-promettia ser melhor Esculapio que Aristophanes. Mal os viu de longe,
-apertou o passo para o grupo.
-
---Vem gente, Eugenia,--disse Estacio; não demos expectaculos e...
-perdõe-me.
-
-Eugenia ergueu os hombros, procurou com os olhos o intruso, que dahi a
-pouco estenda-lhes a mão.
-
-O ceu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o
-sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a
-Eugenia a agradavel notícia de que trouxera a seu pae um convite para a
-_soirée_ que daria no sabbado proximo uma de suas parentas. A
-perspectiva da _soirée_ foi uma brisa salutar que dispersou o resto das
-nuvens que entenebreciam o ceu; Eugenia sorriu. _J'ai ri; me voilà
-desarmée_, como na comedia de Piron. Vinte minutos depois, não havia
-em Eugenia vestigio da scena do jardim. Mas a ideia do casamento estava
-adiada.
-
-O effeito foi agro e doce para Estacio. Estimando ver dissipada a
-colera, doia-lhe que a causa fôsse, não a propria virtude do amor,
-mas um motivo comparativamente futil. A resolução de a consultar
-sôbre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Sahiu
-dalli á noite, antes do cha, aborrecido e azedo. Mas esse estado não
-durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo sentiu
-alguma cousa semelhante á dentada de um remorso. O amor de Estacio
-tinha a particularidade de crescer e affirmar-se na ausencia e diminuir
-logo que estava ao pe da moça. De longe, via-a atravez da nevoa
-luminosa da imaginação; ao pe era difficil que Eugenia conservasse os
-dotes que elle lhe emprestava. Dahi, um dissentimento provavel e um
-remorso certo. Agora que a deixava, ia elle irritado contra si mesmo;
-achava-se ridiculo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade
-de Eugenia; concedia, alguma cousa á edade, á educação, aos
-costumes, á ignorancia da vida.
-
-Nesse estado de espirito entrou em casa, onde o esperava um incidente
-novo.
-
-
-
-
-CAPITULO VI
-
-
-Chegando a casa, achou Estacio um remedio a seu mau humor. Era uma carta
-de Luiz Mendonça, que dous annos antes partira para Europa, d'onde
-agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, annunciando-lhe que dentro
-de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça fora o seu melhor
-companheiro de aula. Havia entre elles certos contrastes de genio. O de
-Mendonça em mais folgazão e activo. Quando este partiu para Europa
-quiz que o antigo collega o acompanhasse, e o proprio conselheiro
-opinára nesse sentido. Estacio recusou pelo receio de que, sendo
-differente o espirito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao
-sacrificio de habitos e preferencias de um delles.
-
-A noticia da volta de Mendonça encheu de contentamento o sobrinho de D.
-Ursula. D. Ursula estava então na sala de costura, relendo algumas
-páginas do seu _Saint-Clair_, encostada a uma meza. Do outro lado
-desta, ficava Helena, a concluir uma obra de _crochet_.
-
---Titia, disse elle, dou-lhe uma novidade agradavel para mim.
-
---Que é?
-
---O Mendonça chegou a Pernambuco: está aqui dentro de pouco tempo.
-
---O Mendonça?
-
---Luiz Mendonça.
-
---O que foi para a Europa, sei. Ha quanto tempo?
-
---Dous annos,
-
---Dous annos! Parece que foi hontem.
-
---Não lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que
-devo ir tambem á Europa, quanto antes. Querem ir?
-
---Eu? disse D. Ursula marcando a página do livro com os oculos de prata
-que até então conservára sobre o nariz. Não são folias para gente
-velha. Daqui para a cova.
-
---A cova! exclamou Helena. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me
-ha de enterrar primeiro?
-
---Menina! exclamou D. Ursula em tom de reprehensão.
-
-Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de
-verdadeira sympathia que ouvia a D. Ursula. Bem o comprehendeu ésta; e
-talvez a mortificou aquella expontaneidade do coração. Mas era tarde.
-Não podia recolher a palavra, não podia sequer explical-a.
-
---Que tal virá o teu amigo? perguntou ella ao sobrinho. Era bom rapaz
-antes de ir; um pouco tonto, apenas.
-
---Ha de vir o mesmo, respondeu Estacio; ou ainda melhor. Melhor de
-certo, porque dous annos mais modificam o homem.
-
-Estacio fez aqui um panegyrico do amigo, intercallado com observações
-da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o cha.
-D. Ursula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o
-_crochet_ na cestinha de costura.
-
---Pensa que gastei toda a tarde em fazer _crochet_? perguntou ella ao
-irmão, caminhando para a sala do jantar.
-
---Não?
-
---Não, senhor; fiz um furto.
-
---Um furto!
-
---Fui procurar um livro na sua estante.
-
---E que livro foi?
-
---Um romance.
-
---_Paulo e Virginia_?
-
---_Manon Lescaut._
-
---Oh! exclamou Estacio. Esse livro.
-
---Exquisito, não é? Quando percebi que o ora, fechei-o e la o puz
-outra vez.
-
---Não é livro para moças solteiras...
-
---Não creio mesmo que seja para moças casadas, replicou Helena rindo e
-sentando-se á mesa. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois
-abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo.
-
---Imagino! interrompeu D. Ursula.
-
---O desejo de aprender a montar a cavallo, concluiu Helena.
-
-Estacio olhou espantado para a irmã. Aquella mistura de geometria e
-equitação não lhe pareceu sufficientemente clara e explicavel. Helena
-soltou uma risadinha alegre de menina que applaude a sua propria
-travessura.
-
---Eu lhe explico, disse ella; abri o livro, todo alastrado de riscos que
-não entendi. Ouvi porém um tropel de cavallos e cheguei á janella.
-Eram tres cavalleiros, dous homens e uma senhora. Oh! com que garbo
-montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco annos, alta,
-esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa
-cauda do vestido cahida a um lado. O cavallo era fogoso; mas a mão e o
-chicotinho da cavalleira quebravam-lhe os impetos. Tive pena, confesso,
-de não saber montar a cavallo...
-
---Quer aprender commigo?
-
---Titia consente?
-
-D. Ursula levantou os hombros com o ar mais indifferente que pôde achar
-no seu repertorio. Helena não esperou mais.
-
---Escolha voce o dia.
-
---Amanhã?
-
---Amanhã.
-
-Estacio costumava dar um passeio a cavallo quasi todas as manhãs. O do
-dia seguinte foi dispensado; começariam as licções de Helena. Antes
-disso, porém, escreveu Estacio á filha de Camargo uma carta
-rescendente a ternura e affecto. Pedia-lhe desculpa do que se passára
-na vespera; jurava-lhe amor eterno; cousas todas que lho dissera mais de
-uma vez, com o mesmo estylo, se não com as mesmas palavras. A carta
-dissipou-lhe a ultima sombra de remorso. Antes que ella chegasse ao seu
-destino, reconciliara-se elle comsigo mesmo. O portador sahiu para o Rio
-Comprido, e elle desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pe
-da qual estava situada a cavallariça. Naquelle lado da casa corria a
-varanda antiga, onde a familia costumava ás vezes tomar cafe ou
-conversar nas noites de luar, que alli penetrava pelas largas janellas.
-Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro.
-
-Ja alli estava Helena. D. Ursula enprestara-lhe um vestido de amazona,
-com que algumas vezes montára, antes da morte do irmão. O vestido
-ficava-lhe mal; era folgado de mais para o talhe delgado da moça. Mas a
-elegancia natural fazia esquecer o accessorio das roupas.
-
---Prompta! exclamou Helena apenas viu o irmão assomar no alto da
-escada.
-
---Oh! isso não vai assim! respondeu Estacio. Não supponha que hade
-montar ja hoje como a moça que hontem viu passar na estrada. Vença
-primeiramente o medo.
-
---Não sei o que é medo, interrompeu ella com ingenuidade.
-
---Sim? Não a suppunha valente. Pois eu sei o que elle é.
-
---O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito
-desfaz-se; basta a simples reflexão. Em pequena educaram-me com almas
-do outro mundo. Até a edade de dez annos era incapaz de penetrar n'uma
-sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possivel que uma pessoa
-morta voltasse á terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma
-cousa. Lavei o meu espirito de semelhante tolice e hoje era capaz de
-entrar, de noite, n'um cemiterio. E dahi talvez não: os corpos que alli
-dormem tem direito de não ouvir mais um só rumor de vida.
-
-Estacio chegára ao último degrau da escada. As derradeiras palavras
-ouviu-as elle com os olhos fitos na irmã e encostado ao poial do pedra.
-
---Quem lhe ensinou essas ideias? perguntou elle.
-
---Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no
-coração. Senhor geometra, continuou brandindo caprichosamente o
-chicote,--veja se transcreve em algum compendio éstas figuras de minha
-invenção, e ande cavalgar commigo.
-
-Com um movimento rapido travou da cauda do vestido, e caminhou para
-diante. Estacio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dois
-sentimentos differentes: a affeição que o prendia á irmã, e a
-extranha impressão que ella lhe fazia sentir. Quando chegou á porta da
-cavallariça, viu aparelhados dous animaes, o cavalo de seus passeios, e
-a egua que a tia cavalgava uma ou outra vez.
-
---Que é isso? disse elle. Por ora vamos a algumas indicações somente,
-aqui no terreiro.
-
---Justamente! respondeu a moça.
-
-Um escravo que alli estava trouxe um tamborete, Estacio approximou-se de
-Helena, que afagava com a mão alva e fina as crinas da egua.
-
---Como se chama? perguntou ella.
-
---_Moema._
-
---_Moema_!! Ora espere... é um nome indigena, não é?
-
-Estacio fez um signal affirmativo. Helena tinha um pe sobre o tamborete;
-repetiu ainda o nome da egua, como quem reflectia sobre elle, sem que o
-irmão percebesse que não era aquillo mais do que um disfarce. De
-repente; quando elle menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no
-selim. A egua alteou o collo, como vaidosa do peso que recebêra.
-Estacio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correcção do
-movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquillo. Helena inclinou-se
-para elle.
-
---Fui bem? perguntou sorrindo.
-
---Não podia ir melhor; mas o que me admira...
-
-As patas de _Moema_ interromperam a reflexão do moço. A cavalleira
-brandira o chicotinho, e o animal sahíra a trote largo pelo terreiro
-fora. Estacio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como
-para tomar a redea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou
-ver que ella não fazia alli os primeiros ensaios. Ficou parado, de
-longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos,
-Helena torceu a redea e regressou ao ponto donde sahíra.
-
---Que tal? disse ella logo que estacou. Terei geito para a equitação?
-
---Creança!
-
---Que é isso? Ja aprendeu? interveio D. Ursula do alto da varanda, onde
-acabava de chegar.
-
---Estava caçoando comnosco, disse Estacio. Ve como sabe montar?
-
---Ella sabe tudo, murmurou D. Ursula entre dentes.
-
-Estacio montou no seu cavallo. Consultou o relogio; eram sete horas e
-meia.
-
---Permitte que o acompanhe? perguntou Helena.
-
---Com uma condição, disse elle; é que hade ter juizo. Não quero
-temeridades; a egua é apparentemente mansa; convem não brincar com
-ella. Ja vejo que voce é capaz de muitas cousas mais...
-
---Prometto ir pacificamente.
-
-Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de redea ao animal
-e seguiu ao lado do irmão. Transposto o portão, seguiram os dous para
-o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã fresca.
-Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a agua, instigada
-por ella, adiantava-se alguns passos ao cavallo; Estacio reprehendia a
-irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudencia,
-gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ella
-conduzia o animal.
-
---Não me dirá voce, perguntou elle, porque motivo, sabendo montar,
-pedia-me hontem licções?
-
---A razão é clara, disse ella; foi uma simples travessura, um
-capricho... ou antes um cálculo.
-
---Um cálculo?
-
---Profundo, hediondo, diabolico, continuou a moça sorrindo. Eu queria
-passear algumas vezes a cavallo; não era possivel sahir só, e nesse
-caso...
-
---Bastava pedir-me que a acompanhasse.
-
---Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto era sahir commigo;
-era fingir que não sabia montar. A ideia momentanea de sua
-superioridade neste assumpto, era bastante para lhe inspirar uma
-dedicação decidida...
-
-Estacio sorriu do cálculo; mas foi um sorriso passageiro, porque dentro
-de poucos segundos, seu rosto ficou serio, e elle perguntou era tom
-sêcco:
-
---Ja lhe negamos algum prazer que desejasse?
-
-Helena estremeceu e ficou egualmente séria.
-
---Não! murmurou; minha dívida não tem limites.
-
-Ésta palavra sahiu-lhe do coração. As palpebras cahiram-lhe e um veu
-de tristeza lhe apagou o rosto. Estacio arrependeu-se do que dissera.
-Sua sensibilidade apurada comprehendeu a irmã; viu que, por mais
-innocentes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas á ma parte, e
-em tal caso o menos que se lhe podia arguir era a descortezia. Estacio
-timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ella e rompeu
-o silêncio.
-
---Voce ficou triste, disse Estacio; mas eu desculpo-a.
-
---Desculpa-me? perguntou a moça erguendo para o irmão seus bellos
-olhos humidos.
-
---Desculpo a injúria que me fez, suppondo-me grosseiro.
-
-Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições
-do mundo. Helena deu livre curso á imaginação e ao pensamento; suas
-falas exprimiam, ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da
-experiencia prematura, e iam direitas á alma do irmão, que se
-comprazia em ver nella a mulher como elle queria que fosse, uma Graça
-pensadora, uma sisudez amavel. De quando em quando faziam parar os
-animaes para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um
-accidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam fallando das vantagens
-da riqueza.
-
---Valem muito os bens da fortuna, dizia Estacio; elles dão a maior
-felicidade da terra, que é a independencia absoluta. Nunca experimentei
-a necessidade; mas imagino que o peor que há nella não é a
-privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitorios,
-mas sim essa escravidão moral que submette o homem aos outros homens. A
-riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que
-nos coube. Ve aquelle preto que alli está? Para fazer o mesmo trajecto
-que nós, terá de gastar, a pe, mais uma hora ou quasi.
-
-O preto de quem Estacio falára, estava sentado no capim, descascando
-uma laranja, emquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava
-philosophicamente para ele. O preto não attendia aos dous cavalleiros
-que se aproximavam. Ia esburgando a fructa e deitando os pedaços de
-casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça,
-com o que parecia alegra-lo infinitamente. Era homem de cêrca de
-quarenta annos, ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapeu que
-lhe cobria a cabeça, tinha ja uma côr inverossimil. No entanto, o
-rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade
-do espirito.
-
-Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrára. Ao
-passarem por elle, o preto tirou respeitosamente o chapeu e continuou na
-mesma posição e occupação que d'antes.
-
---Tem razão, disse Helena: aquelle homem gastará muito mais tempo do
-que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de
-vista? Em rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o experdicemos, quer
-o economisemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor prazo; é
-fazer muita cousa aprazivel ou util. Para aquelle preto o mais aprazivel
-é, talvez, esse mesmo caminhar a pe, que lhe alongará a jornada, e lhe
-fara esquecer o captiveiro, se é captivo. É uma hora de pura
-liberdade.
-
-Estacio soltou uma risada.
-
---Voce devia ter nascido...
-
---Homem?
-
---Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais
-melindrosas. Nem estou longe de crer que o proprio captiveiro lhe
-parecerá uma bemaventurança, se eu disser que é o peor estado do
-homem.
-
---Sim? retorquiu Helena sorrindo; estou quasi a fazer-lhe a vontade.
-Não faço; prefiro admirar a cabeça de _Moema_. Veja, veja como se vai
-faceirando. Ésta não maldiz o captiveiro; pelo contrário, parece que
-elle lhe dá glória. Pudera! Se não a tivessemos captiva, receberia
-ella o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só faceirice, é
-tambem impaciencia.
-
---De que?
-
---Impaciencia de correr por essa estrada da Tijuca fóra, e beber o
-vento da manhã, espreguiçando os musculos, e sentindo-se alguma cousa
-senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre egua? continuou a moça
-inclinando a cabeça até as orelhas do animal; vai aqui ao pe de nós
-um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu
-inimigo...
-
---Helena! interrompeu Estacio; voce é muito capaz de desparar a correr.
-
---E se fôsse?
-
---Eu deixava-a ir, e nunca a trazia em meus passeios. Voce monta bem;
-mas não desejo que faça temeridades. Nós somos responsaveis, não só
-por sua felicidade, mas tambem por sua vida.
-
-Helena refletiu um instante.
-
---Quer dizer, perguntou ella, que se eu fôsse victima de um desastre
-não faltaria quem o imputasse á minha familia?
-
---Justo.
-
---Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me
-lembrasse--é uma supposição--se eu me lembrasse de deixar a vida por
-aborrecimento ou capricho, seria voce accusado de me haver propinado o
-veneno? Não ha melhor modo de me fazer evitar a morte.
-
---Deixemos conversas lugubres, e voltemos para casa, interrompeu
-Estacio.
-
---Ja!
-
---Raras vezes passo d'aqui; e não pense voce que é perto.
-
---Parece-me que ainda agora sahimos de casa. Vamos uns cinco minutos
-adeante? Sim?
-
-Estacio consultou o relogio.
-
---Cinco minutos justos, disse elle.
-
---Até aquella casa que alli está com uma bandeira azul.
-
-Havia effectivamente, cêrca de quatro minutos adiante, á esquerda da
-estrada, uma casa de insignificante apparencia, sôbre cujo telhado
-fluctuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estacio conhecia a casa,
-mas era a primeira vez que via a bandeira. Helena pediu-lhe a
-explicação daquelle apendice.
-
---Va la saber, disse o irmão rindo.
-
-Helena deu de redea á egua e adeantou-se alguns passos. Estacio
-apertou o animal e alcançou-a.
-
---Não va fazer tolices! disse elle em tom de branda reprehensão.
-Aquillo é fantasia do morador, ou algum signal de passaros, ou qualquer
-outra cousa que não vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a
-manhã, que está deliciosa.
-
-Helena não attendeu á proposta do irmão e foi andando, a passo lento,
-na direcção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o
-alpendre antigo que lhe corria na frente. As collunnas deste estavam ja
-lascadas em muitas partes, apparecendo, aqui e alli, a ossada de tijolo.
-A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, apparente ao menos.
-Quando elles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguem
-espreitava por ella, ficou sumido na sombra, porque ninguem de fóra o
-viu.
-
-Cêrca de cinco braças adeante, Estacio resolveu definitivamente
-regressar, e Helena não oppoz objecção nenhuma. Torceram a redea aos
-animais e desceram.
-
---Não poderei falar á bandeira? perguntou a moça. Deixe-me ao menos
-dizer-lhe adeus.
-
-Tinha ja tirado da algibeira o seu fino lenço de cambraia; agitou-o na
-direcção da casa. Quiz o acaso que a bandeira, até então quieta, se
-movesse no sopro de uma aragem que passou.
-
---Ve como ella me respondeu? Não se póde ser mais cortez! exclamou
-Helena, rindo.
-
-Estacio riu tambem da lembrança da irmã, e ambos desceram, a passo
-lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Seus
-olhos, cravados nas orelhas de _Moema_, não pareciam ver sequer o
-caminho que o animal seguia, Estacio, para arrancal-a ao silêncio,
-fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena
-respondeu distrahidamente.
-
---Que tem voce? perguntou elle.
-
---Nada, disse ella; ia... ia embebida naquella toada. Não ouve?
-
-Ouvia-se effectivamente, a algumas braças adeante, uma cantiga da
-roça, meia alegre, meia plangente. O cantor appareceu, logo que os
-cavalleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquelle logar. Era o
-preto, que pouco tinham visto sentado no chão.
-
---Que lhe dizia eu? observou a irmã de Estacio. Alli vai o infeliz de
-ha pouco. Uma laranja chupada no capim e trez ou quatro quadras, é o
-bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar
-comprar o tempo. Nós poderiamos dizer o mesmo?
-
---Porque não?
-
-A moça recolheu-se ao silêncio.
-
---Helena, isso que voce acaba de dizer. Vamos, estamos sos; confesse
-alguma tristeza que tenha.
-
---Nenhuma, respondeu a moca. Peço-lhe, entretanto, uma cousa.
-
---Diga.
-
---Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu
-respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras,
-emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espirito esta
-verdade: é que sou uma pobre alma lançada n'um turbilhão.
-
-Estacio ia pedir explicação mais desenvolvida daquellas últimas
-palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote,
-e deitou a egua a correr. Estacio fez o mesmo ao cavallo; dahi a alguns
-minutos entravam na chacara, elle aturdido e curioso, ella com a face
-vermelha e a bater-lhe violentamente o coração.
-
-
-
-
-CAPITULO VII
-
-
-Apearam-se os dous no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter
-á varanda. Pizando o primeira degrau, disse Estacio:
-
---Helena, explique-me suas palavras de ha pouco.
-
---Quaes?
-
-E como Estacio levantasse os hombros, com ar de despeito, continuou
-Helena:
-
---Perdõe-me; sua pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do
-que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer
-meias confissões; mas neste caso a confissão inteira seria imprudencia
-maior. Se se tratasse de factos, creia que a ninguem melhor podia
-confia-los do que a voce; mas por que motivo irei perturbar-lhe o
-espirito com a narração de meus sentimentos, se eu propria não chego
-a entender-me?
-
-Estacio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e
-entraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula dando as ordens
-daquelle dia, a dous escravos. Estacio entrou pensativo; Helena mudou
-totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a
-melancholia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara a jovialidade
-de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma especie de comediante
-que recebêra da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que
-a obrigava a mudar continuamente de vestuario. D. Ursula viu-a entrar
-risonha e ir a ella dar-lhe os costumados--_bons dias_--que era sempre
-um beijo,--ou antes dous,--um na mão, outro na face.
-
---Demorei-me muito? perguntou ella voltando rapidamente o corpo, de
-maneira a ver o relogio que ficava do outro lado da sala. Nove horas!
-Que passeio, Sr. meu irmão!
-
-Estacio olhava para ella silencioso e não lhe respondeu. Seu olhar não
-era de censura, mas de curiosidade, pena e admiração. Os dous foram
-logo depois mudar de _toilette_, e o almôço reuniu a familia. D.
-Ursula propoz, durante elle, algumas mudanças na disposição da
-chacara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e
-aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Ursula desceu
-á chacara com Estacio. As alterações foram ainda estudadas e
-combinadas no proprio terreno, com assistencia do feitor. Logo que
-acabou a deliberação e que o projecto de D. Ursula foi definitivamente
-assentado, Estacio reteve-a e lhe disse:
-
---Preciso falar-lhe um instante.
-
---Tambem eu.
-
---Quaes são os seus sentimentos actuaes em relação a Helena? Oh! não
-precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são
-meras apparencias. Não creio que seja absolutamente amiga della; mas
-não póde negar que a antipathia desapareceu ou diminuiu muito.
-
---Diminuiu, talvez.
-
---E com razão. Pensa que tambem eu não tive repugnancias
-depois que ella aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem
-desaparecido,--desapareceriam hoje de manhã.
-
---Como?
-
-Estacio referiu á tia a scena do capitulo anterior e as palavras que
-lhe dissera Helena. D. Ursula sorriu ironicamente.
-
---Não a impressiona isto? perguntou Estacio.
-
---Não, respondeu D. Ursula com decisão; a phrase de Helena é achada
-em algum dos muitos livros que ella le. Helena não é tola; quer
-prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que
-começo a gostar della; é dedicada, affectuosa, diligente; tem
-maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é
-naturalmente sympatica. Ja vou gostando della; mas é um gostar sem fogo
-nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença
-de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cançada.
-Helena preenche essa lacuna. Se alguma cousa, entretanto, a podia
-prejudicar nas nossas relações é esse dito.
-
-Estacio tomou calorosamente a defesa da irmã.
-
---O que eu lhe contei, disse elle, foram apenas as palavras. Não pude
-nem poderei reproduzir a expressão sincera com que ella as proferiu e a
-profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vel-a
-mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de
-dúvida; mas passou logo. Sua natureza tem esse raro poder de concentrar
-a amargura no coração; tambem a dor tem suas hypocrisias...
-
---Mas que dor? que amargura? interrompeu: D. Ursula. A dor de ser
-legitimada? a amargura de uma herança?
-
-Estacio protestou calorosamente contra aquelle caminho que a tia dava a
-suas ideias; emfim pediu-lhe que interrogasse com cautella a irmã.
-
---Um homem, concluiu elle, é menos apto para obter taes confissões;
-uma senhora, respeitavel e parenta, está mais no caso de lhe captar a
-confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel?
-
---Pedes muito, respondeu D. Ursula. Verei se te posso dar metade disso.
-Era só o que tinhas para dizer?
-
---Só.
-
---Uma creancice! Eu tenho cousa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me:
-trata-se...
-
---Não precisa dizer mais nada, interrompeu Estacio; la vem elle.
-
-Camargo apparecêra effectivamente a vinte passos de distância.
-
---Doutor,--disse D. Ursula, logo que este se approximou delles, chega um
-pouco fóra de proposito. Eu mal tive tempo de assustar meu sobrinho,
-que ainda não sabe o que o senhor lhe quer.
-
---Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me approva.
-
---Completamente,
-
---Trata-se...--disse Estacio.
-
---De uma conspiração; todos conspiramos em seu beneficio.
-
-D. Ursula retirou-se para casa; os dous ficaram sos. Uma vez sos,
-Camargo pousou a mão no hombro de Estacio, fitou-o paternalmente, emfim
-perguntou-lhe se queria ser deputado. Estacio não pôde reprimir um
-gesto de sorpreza.
-
---Era isso? disse elle.
-
---Creio que não se trata de um supplício. Uma cadeira na camara! Não
-é a mesma cousa que um quarto no aljube.
-
---Mas a que proposito...
-
---Ésta ideia apoquentava-me ha algumas semanas. Doia-me ve-lo vegetar
-os seus mais bellos annos n'uma obscuridade relativa. A política é a
-melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrucção,
-caracter, riqueza; póde subir a posições invejaveis. Vendo isso,
-determinei-me a mettel-o na Cadeia... Velha. Fala-se em dissolução.
-Para facilitar-lhe o successo, entendi-me com duas influências
-dominantes, o negocio afigurasse-me em bom caminho.
-
-Estacio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico.
-
---Mas doutor, disse elle depois de curto silêncio, houve de sua parte
-alguma precipitação. Pelo menos, de via consultar-me. Do modo por que
-arranjou as cousas, quasi me acho desobrigado de lhe agradecer a
-intenção. Quanto a acceitar, não acceito.
-
-Camargo não perdeu a tramontana. Havia nelle a tenacidade do dogue e a
-tactica da serpente. Deixou passar por cima da cabeça a primeira onda
-de desagrado, surgiu fóra e insistiu tranquillamente:
-
---Vejamos as cousas com os oculos do senso-commum. Em primeiro logar,
-não creio que tenha outros projectos na cabeça.
-
---Talvez.
-
---Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A sciencia é ardua e
-seus resultados fazem menos ruido. Não tem vocação commercial nem
-industrial. Medita alguma ponte-pensil entre a Côrte e Nictheroy, uma
-estrada até Matto-Grosso ou uma linha de navegação para a China? É
-duvidoso. Seu futuro tem por ora dous limites unicos, alguns estudos de
-sciencia e os alugueis das casas que possue. Ora, a eleição nem lhe
-tira os alugueis nem obsta a que continue seus estudos; a eleição
-completa-o dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A unica objecção
-seria a falta de opinião política; mas ésta objecção não o póde
-ser. Hade ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades
-públicas, e...
-
---Supponha,--é mera hypothese,--que tenho alguns compromissos com a
-opposição.
-
---Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na camara--embora
-pela porta dos fundos. Se tem ideias especiaes e partidarias, a primeira
-necessidade é obter o meio de as expor e defender. O partido que lhe
-der a mão,--se não fôr o seu,--ficará, consolado com a ideia de ter
-ajudado a a um adversario talentoso o honesto. Mas a verdade é que não
-escolheu ainda entre os dous partidos; não tem opiniões feitas. Que
-importa? Grande numero de jovens politicos seguem, não uma opinião
-examinada, ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas affeições,
-a que seus paes ou amigos immediatos honraram e defenderam, a que as
-circumstâncias lhe impõem. Dahi vem algumas legítimas conversões
-posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circumstâncias da
-origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnifico lyrio
-saquarema ou luzia. Demais, a política é sciencia prática; e eu
-desconfio de theorias que só são theorias. Entre primeiro na camara; a
-experiencia e o estudo dos homens e das cousas lhe designarão a que
-lado se deve inclinar.
-
-Estacio ouviu attento éstas vozes com que a serpente lhe apontava para
-a árvore da sciencia do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a
-discutir philosophicamente com o reptil.
-
---Entra-se na política,--disse elle,--por vocação legítima,
-ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração.
-Nenhum desses motivos me impelle a dobrar o cabo Tormentorio.
-
---Da Boa Esperança,--emendou Camargo rindo;--não supprima tres seculos
-de navegação.
-
-Estacio riu-se tambem. Depois falou ao médico de sua indole e
-ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia
-políticas nem todas eram da mesma estatura. Os espiritos, disse elle,
-nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras especies intermedias. A
-uns é necessario o horisonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo
-batem as azas e sobem a encarar o sol; outros contentam-se com algumas
-longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho.
-Estes eram os obscuros, e, na opinião delle, os mais felizes. Não
-seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a história
-em suas páginas luminosas ou sombrias; o vão do telhado em que
-abrigaram a prole, a árvore em que pousaram, são as testemunhas
-unicas, e morredoras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os
-colhe, vão elles pousar no regaço commum da eternidade, onde dormem o
-mesmo perpétuo somno, tanta o capitão que subiu ao summo estagio por
-uma escala de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o
-esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão infimas como
-seriam as do cabreiro; eram as do proprietario do campo que o capitão
-atravessasse. Um bom peculio, a familia, alguns livros e amigos,--não
-iam além seus mais arrojados sonhos.
-
-Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico.
-
---Meu caro Estacio,--disse, elle depois,--esse trocadilho de andorinhas
-e cabreiros é a cousa mais extraordinaria que eu esperava ouvir a um
-mathematico. Saiba que detesto egualmente a philosophia da obscuridade e
-a rhetorica dos poetas. Sobretudo gósto que me respondam em prosa
-quando falo em prosa.
-
---Parece-lhe que poetei? perguntou Estacio rindo.
-
---Despropositamente! Ora, eu falo de cousas sérias; e convem não
-confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que
-são a parte ideológica e vã.
-
---Eu serei ideologo,
-
---Não tem direito de o ser.
-
---Pois bem, deixe-me com as minhas mathematicas, as minhas flôres, as
-minhas espingardas.
-
---Não! Ha de intercalar tudo isso com um pouco de política.
-
-Puxando-o familiarmente pela gola do paleto, Camargo fel-o sentar ao pe
-de si, no banco que alli estava mais proximo. Depois falou. O novo
-discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma
-das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma
-complacencia de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da
-política, e não só as reaes, mas as ficticias ou duvidosas, foram
-inventariadas, pintadas, douradas e illuminadas pelo médico. Sua palavra
-revellou um poder de evocação, uma vehemencia, uma energia, que
-ninguem era capaz de suppor-lhe. O taciturno desabrochou tagarella. Para
-falar tanto e com tal fôrça era preciso que o animasse um grande
-sentimento ou um grande interesse.
-
-Estacio, lisonjeado com a affeição que elle lhe mostrava, não teve
-ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa;
-adoptou o alvitre de deferir a resposta para outra occasião.
-
---Ja lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou prompto a
-reflectir, e a consultar o padre Melchior e Helena.
-
-O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente
-não passou o effeito de um sorriso sardonico e dissimulado. Interveiu
-uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a
-extrahir lentamente de uma boceta de tartaruga, presente do conselheiro
-Valle.
-
---Helena! disse elle com alguma hesitação. Que vem fazer sua irmã
-neste negocio?
-
---É um voto,--redarguiu Estacio; e menos leve do que lhe parece. Ha
-nella muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa
-harmonia com as suas outras qualidades feminis.
-
-Entre as sobrancelhas de Camargo projectou-se uma longa ruga, e foi toda
-a expressão de seu espanto e desgôsto. A resposta de Estacio
-revellara-lhe uma situação nova na familia: o voto de Helena,
-consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Ésta solução, que
-porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a
-previra o médico. Limitou-se a notal-a de si para si; e, terminando
-subitamente a conversa, disse:
-
---Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha
-opinião, não é seu amigo. Em todo o caso, ninguem lhe poderá
-affirmar que não é a amizade, a longa amizade.
-
-Estacio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe affectuosamente a mão.
-Tinham-se levantado. Era quasi meio dia; Camargo despediu-se alli mesmo;
-ia ver dous doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro
-atravessou sosinho a chacara; ia pensativo, e aborrecido. A política,
-na sua opinião, era uma noiva importuna; mas se todos conspirassem a
-favor della, não sería elle obrigado a desposal-a? A ésta reflexão
-respondeu a voz do padre Melchior, do alto de uma janella:
-
---Venha ca, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso?
-
-
-
-
-CAPITULO VIII
-
-
-D. Ursula tinha ja confiado ao velho capellão a proposta de Camargo.
-Consultado por Estacio, respondeu este que sua opinião era
-absolutamente inutil.
-
---Consulte suas fôrças e a responsabilidade do cargo, e escolha,
-concluiu o padre.
-
---Ja escolhi, disse Estacio; pedia seu conselho para apoiar melhor a
-minha propria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos?
-Decidi que não acceito a candidatura. A vida política é turbulenta de
-mais para o meu espirito. Estou prompto para a acção, mas não hade
-ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar á camara,
-além de algumas prerogativas e um papel accessorio? Eu só me meteria na
-política, se pudesse officiar; mas ser apenas sachristão...
-
---Entre o officiante e o sachristão, observou Melchior, está o
-prégador, que é cargo nobre e influente.
-
---Mas o thema do sermão, padre-mestre?--retorquiu Estacio rindo;
-falta-me o thema.
-
-D. Ursula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público
-em favor do sobrinho, viu naquellas razões um pretexto ou uma
-puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o
-sobrinho para que reflectisse maduramente, antes de qualquer resposta
-definitiva. Estacio prometteu como promettêra ao médico, por simples
-condescendencia; mas sobretudo para pôr termo ao assumpto e ir saber a
-causa do sorriso quasi imperceptivel que viu roçar os labios de Helena.
-A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janellas; Estacio foi até
-alli.
-
---Adivinhei pelo seu sorriso,--disse elle, que tudo isto lhe pareço
-pueril, e que eu faço bem em não acceitar o que se me offerece.
-
-Helena olhou um pouco espantada para elle; mas respondeu com
-tranquillidade:
-
---Pelo contrário, penso que deve acceitar. Além de haver consentimento
-de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugenia.
-
-Era a primeira vez que Helena alludia ao amor de Estacio, e fazia-o por
-modo encoberto e obliquo. Estacio escapou dessa vez á regra de todos os
-corações amantes: resvalou pela allusão e discutiu gravemente o
-assumpto da candidatura. Era pesado de mais para cabeça feminina;
-Helena intercalou uma observação sobre dous passarinhos que bailavam
-no ar, e Estacio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores.
-
-Durante dous dias, não sahiu elle de casa. Tendo recebido alguns livros
-novos, gastou uma parte do tempo em os folhear, ler alguma página,
-collocal-os nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos
-anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliophilo. Helena ajudava-o
-nesse trabalho,--um pouco parecido com o de Penelope,--por que a ordem
-estabelecida ao meio dia era às vezes alterada às duas horas, e
-restaurada na seguinte manhã. Estacio, entretanto, não ficava todo
-entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado
-com que ella o auxiliava. Helena parecia não andar; seu vulto resvalava
-silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo a uma indicação do
-irmão, ou pondo em experiencia uma ideia sua. Estacio parava às vezes
-fatigado; ella continuava imperturbavelmente o serviço. Se elle lhe
-fazia alguma observação, a moça respondia com um movimento de hombros
-ou um sorriso, e proseguia. Então Estacio segurava-lhe nos pulsos e
-exclamava rindo:
-
---Socega, borboleta!
-
-Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a
-mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na
-intimidade mais doce, e que a reciproca affeição ia excluindo toda a
-preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as
-proporções de voto preponderante.
-
-No terceiro dia D. Thomasia e Eugenia foram jantar a Andarahy. Eugenia
-estava nesse dia mais sisuda e docil que nunca; dissera-se que trazia a
-alma tão nova como o vestido, e menos enfeitada que elle. Estacio
-sentiu-se satisfeito; o ideal reconciliava-se com o real. Poderam falar
-sosinhos mais de uma vez; todas as pessoas da casa pareciam conspiradas
-para lhes deixar a solidão. Foi ella quem recordou a proposta política
-do pai, da qual soubera casualmente, ouvindo a narração que este
-fizera a D. Thomasia. O desejo de Eugenia era pela affirmativa; e
-Estacio, receioso de despertar os caprichos adormecidos da moça,
-frouxamente resistiu, e consentiu ainda mais frouxamente em
-reconsiderar o assumpto.
-
---Deputado! exclamava Eugenia com os olhos no ceu.
-
-Estacio acompanhou Eugenia e D. Thomasia na carruagem que as levou ao
-Rio Comprido. O dia fôra mais ou menos alegre; a viagem foi divertida e
-palreira como um regresso de romaria. Os cavallos mostravam-se tão
-lepidos como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o
-caminho, com desgôsto de Eugenia.
-
-Voltando a Andarahy, Estacio trazia a alma pura de todas as más
-impressões, que lhe deixavam usualmente as visitas á casa de Camargo.
-Nenhum dissentimento houvera naquelle dia. Eugenia parecia modificada.
-Em casa esperava-o porém uma desagradavel noticia: a tia sentira-se
-incommodada pouco depois que elle sahíra e recolhera-se ao quarto. O
-caso affligiu-o; mas não tardou a apparecer Helena, que o tranquilisou,
-dizendo-lhe que D. Ursula tinha apenas uma forte dor de cabeça, ja
-diminuida com o emprêgo de um remedio cazeiro.
-
-No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia socegadamente,
-Estacio abriu uma das janellas do quarto e relanceou os olhos pela
-chacara. A alguns passos de distância, entre duas larangeiras, viu
-Helena a ler attentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as
-suas quatro laudas escriptas. Seria alguma mensagem amorosa?
-
-Ésta ideia molestou-o singularmente. Affastou-se da janella, conchegou
-as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena estava de
-pe, no mesmo logar, e percorria rapidamente as linhas, até o final da
-ultima página. Alli chegando, deu dous passos, tornou a parar volveu
-ao princípio da carta, para a ler de novo, não ja depressa, mas
-repousadamente. Estacio sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, á
-qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciume. A ideia de que
-Helena podia repartir seu coração com outra pessoa desconsolava-o ao
-mesmo tempo que o irritava. A razão de semelhante exclusivismo não a
-explicou elle, nem tentou investigal-a; sentiu-lhe somente os effeitos,
-e ficou alli sem saber que faria. Duas vezes sahiu da janella para ir
-ter com a irmã, mas recuou de ambas as vezes, reflectindo que a
-curiosidade pareceria impolidez, se não era talvez, tyrania. Ao cabo
-de alguns minutos de hesitação, sahiu do quarto e dirigiu-se á
-chacara.
-
-Quando alli chegou, Helena passeava lentamente com os olhos no chão.
-Estacio parou deante della.
-
---Ja fora de casa! exclamou em tom de gracejo.
-
-Helena tinha a carta na mão esquerda; instinctivamente a amarrotou como
-para escondel-a melhor. Estacio, a quem não escapou o gesto,
-perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa.
-
---Nota verdadeira, disse ella alisando tranquillamente o papel, e
-dobrando-o conforme recebêra; é uma carta.
-
---Segredos de moça?
-
---Quer lel-a? perguntou Helena apresentando-lh'a.
-
-Estacio fez-se vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente
-o papel e guardou-o na algibeira do vestido. A innocencia não teria
-mais puro rosto; a hypocrisia não encontraria mais impassivel máscara.
-Estacio contemplava-a a um tempo envergonhado e suspeitoso; a carta
-fazia-lhe cocegas; seu olhar ambicionava ser como o da Providencia que
-penetra nos mais intimos refolhos do coração. Vieram, entretanto,
-dizer a Helena que D. Ursula lhe pedia fôsse ter com ella. Estacio
-ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquerito mental sôbre a
-procedencia da mysteriosa missiva. Um indicio havia de que podia conter
-alguma cousa secreta; era o gesto com que ella a escondeu. Mas não
-podia ser de alguma antiga companheira do collegio, que lhe confiava
-segredos seus? Estacio abraçou com alvorôço ésta hypothese. Depois,
-occorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia tratar de
-algum idyllio de collegio, em que Helena fosse protagonista, idyllio
-vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso,
-que tinha elle com isso?
-
-Fazendo ésta ultima reflexão, Estacio sacudiu do espirito o assumpto
-e seguiu a examinar as novas obras da chacara, entre as quaes figurava
-um vasto tanque. Ja alli estavam os operarios; ia começar o trabalho do
-dia. Estacio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas
-eram contrárias ao plano assentado; como lhe fizessem tal observação,
-Estacio rectificou-as. Depois admirou-se de não ver um vaso, que alias
-dous dias antes mandara remover; emfim recommendou a rega de uma planta,
-ainda humida da agua que o feitor lhe deitára nessa manhã.
-
-D. Ursula não estava de todo boa, mas pôde almoçar á mesa commum. O
-sobrinho appareceu aborrecido; a sobrinha triste; o dialogo foi
-mastigado como o almôço. No fim deste, recebeu Estacio uma carta de
-Eugenia. Era uma tagarelice meia frivola, meia sentimental, mistura de
-risos e suspiros, sem objecto definido, a não ser pedir-lhe que
-escrevesse, se não pudesse ir vel-a.
-
-Acabava elle de ler a carta, quando Helena lhe appareceu á porta do
-gabinete. Não a escondeu; teve um pensamento singular: mostral-a à
-irmã, na esperança de que ésta, pagando-lhe com egual confiança, lhe
-mostrasse a sua,--ideia que revellava o seu nenhum conhecimento do
-espirito das mulheres, porquanto só a indiscrição masculina era capaz
-de cahir em semelhante laço. Helena percorreu com os olhos a carta de
-Eugenia e esteve algum tempo silenciosa.
-
---Permitte-me um conselho? perguntou ella.
-
-E como Estacio respondesse com um gesto de assentimento:
-
---Va ter com Eugenia, solicite licença para ir pedil-a a seu pai, e
-conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? della creio
-poder affirmar que sim; de voce...
-
---De mim?
-
---Penso que é mais duvidoso; ou voce é mais habil. Hade ser isso.
-Naturalmente parece-lhe fraqueza amar,--isto é, a cousa mais natural do
-mundo,--a mais bella,--não direi a mais sublime. Os homens serios tem
-preconceitos extravagantes. Confesse que ama,--que não é indifferente
-a esse sentimento inexprimivel que liga, ou para sempre, ou por algum
-tempo, duas creaturas humanas.
-
---Ou por algum tempo! repetiu mentalmente Estacio.
-
-E éstas quatro palavras tão naturaes e tão communs tinham ares de uma
-revellação nova no estado de espirito em que elle se achava. Se Helena
-tivesse proposito de lhe lançar a perplexidade na alma não empregaria
-mais efficaz conceito. Sería na verdade aquelle amor tão travado de
-desanimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu proprio
-coração, seria uma affeição destinada a perecer no occaso da
-primeira lua matrimonial?
-
---Pois bem, concordou elle, ao cabo de alguns instantes; é verdade.
-Eugenia não me é indifferente; mas poderei estar certo dos sentimentos
-della? Ella mesma poderá affirmar alguma cousa a tal respeito? Ha alli
-muita frivolidade que me assusta; illude-a talvez uma impressão
-passageira.
-
---Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão
-passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto
-de partida. O marido fara a mulher. Convenho que Eugenia não tem todas
-as qualidades que voce desejaria; mas não se póde exigir tudo; alguma
-cousa é preciso sacrificar, e do sacrificio recíproco é que nasce a
-felicidade doméstica.
-
-As reflexões eram exactos: por isso mesmo Estacio as interrompeu. O
-filho do conselheiro achava-se n'uma posição difficil. Caminhara para
-o casamento com os olhos fechados; ao abril-os viu-se á beira de uma
-cousa que lhe pareceu abysmo, e era simplesmente um fôsso estreito. De
-um pulo poderia transpol-o; mas, se não era irresoluto nem debil, tinha
-elle acaso vontade de dar esse salto?
-
-Insistindo Helena, prometteu elle que nessa tarde iria visitar Camargo.
-De tarde desabou um temporal violento. A fôrça do vento e da trovoada
-abrandou; mas a chuva continuou a cahir com a mesma violencia; era
-impossivel ir ao Rio Comprido. Estacio estimou aquelle obstaculo; era
-melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colhêr algum
-desgôsto juncto della.
-
-De pe, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via elle cahir
-os grossas toalhas de agua. A seu lado estava sentada Helena, não
-alegre, mas taciturna e melancholica.
-
---É tão bom ver chover quando estamos abrigados, exclamou elle. Tenho
-la na estante um poeta latino que diz alguma cousa neste sentido... Que
-tem voce?
-
---Estou pensando nos que não tem abrigo, ou o tem mau; nos que não tem
-neste momento nem tectos solidos nem corações amigos ao pe de si.
-
-A voz da moça era trémula; uma lagryma lhe brotou dos olhos, tão
-rapida que ella não teve tempo de a dissimular. Sorprehendida nessa
-manifestação de sensibilidade, inexplicavel talvez para o irmão,
-ergueu-se e procurou gracejar e rir. O riso parecia uma cristalisação
-da lagryma; e o gracejo tinha ares do responso. Estacio não se
-illudiu; nada daquillo era claro,--ou era tão claro como a carta. Seu
-olhar, severo e frio, interrogou mudamente a moça. Helena, que tivera
-tempo de tranquillisar-se, voltou o rosto para a rua, e começou a rufar
-com os dedos na vidraça.
-
-
-
-
-CAPITULO IX
-
-
-Naquella mesma noite D. Ursula, que não havia de todo melhorado,
-adoeceu devéras. A familia, mal convalecida da perda de seu velho
-chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso exposta a
-novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu
-principio a rigoroso tratamento.
-
-Helena era naquella occasião a natural enfermeira. Pela primeira vez
-patenteou-se em todo o explendor a dedicação filial da moça, sua
-constancia, solicitude e tino. As horas do dia, e não poucas noites
-inteiras, passava-as na alcova de D. Ursula, attenta a todos os cuidados
-que a gravidade da enfêrma exigia. Os remedios e o pouco alimento que
-ésta podia receber não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava
-á cabeceira durante o somno leve e interrompido da doente, achando em
-suas proprias fôrças a resistencia que a natureza confiou
-especialmente ás mães. Quando dava algum repouso ao corpo, não era
-elle ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do
-leito, collocado provisoriamente no quarto contiguo, para ir espreitar a
-mucama que em seu logar acompanhava a enfêrma. As prescripções do
-médico era ella quem as recebia e cumpria. A voz dura e sêcca com que
-Camargo lhe falava não era propria a tornal-o amavel e aceito, mas
-Helena cerrava os ouvidos á antipathia do homem para só obedecer ao
-médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos
-phenomemos da doença; nem podia achar quem melhor os observasse e
-referisse; fôrça lhe era acceital-a. Assim que, essas duas pessoas que
-se repeliam e detestavam, iam de accordo desde que se tratava da vida de
-um terceiro.
-
-O que completava a pessoa de Helena e ainda mais lhe mereceu o respeito
-de todos é que, no meio das occupações e preocupações daquelles
-dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ella regeu a
-familia e serviu a doente, com egual desvello e beneficio. A ordem das
-cousas não foi alterada nem esquecida fóra da alcova de D. Ursula;
-tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinario se
-houvesse dado. Helena sabia dividir a attenção sem dispersal-a, que é
-o principal segrêdo do trabalho fecundo.
-
-De si é que ella não curou muito. A _toilette_ era singella e
-descuidada. Os cabellos, colhidos á pressa e presos por um pente no
-alto da cabeça, não receberam de sua dona, em todo aquelle tempo, a
-fórma elegante e graciosa, com que ella os saiba realçar. Accrescia o
-abatimento e pallidez, que era impossivel evitar no meio de tanta
-fadiga, certo cançasso dos olhos, que os fazia molles e talvez mais
-adoraveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio attento e
-laborioso.
-
-A doença durou cêrca de vinte dias. Afinal, triumphou a sciencia e a
-propria natureza de D. Ursula, robusta apezar dos annos. A
-convalecença começou; com ella volveu a satisfação da familia. O
-papel de Helena não estava acabado; diminuia, contudo, e Estacio
-interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto
-repouso. Ella recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria
-aos poucos recuperado.
-
-Havia no coração de D. Ursula uma fonte de ternura, que Helena devia
-tocar, para jorrar livre e impetuosamente. Sua dedicação, em tal
-crise foi a vara mysteriosa daquella Oreb. A affeição da tia era até
-então frouxa, voluntaria e deliberada. Depois da molestia, avultou
-expontanea. A experiencia do caracter da moça dera esse resultado
-inevitavel. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou
-fortemente o que tantas circumstâncias anteriores pareciam separar.
-Não o occultou a irmã do conselheiro; suas maneiras não tinham ja
-acanhamento nem reserva; as palavras subiam do coração á boca sem
-atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe.
-
-No dia em que ella pôde sahir do quarto pela primeira vez, Helena
-deu-lhe o braço e levou-a até á sala de costura e das reuniões
-íntimas. Estacio amparou-a do outro lado. Alli chegando, foi ella
-sentada n'uma poltrona. Estacio abriu um pouco a janella, para penetrar
-além da luz, um pouco de ar. D. Ursula respirou á larga, como lavando
-o pulmão cora aquella primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos
-de Helena, que ficára de pe a seu lado, fel-a inclinar a fronte e
-imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estacio
-approximara-se; aquella manifestação encheu-o de júbilo.
-
---Bem merecido beijo!--exclamou elle. Helena foi um anjo em todo este
-tempo.
-
---Bem sei,--retorquiu D. Ursula; foi um verdadeiro anjo, foi mulher,
-mãe e filha. Obrigada, Helena! Póde ser que a medicina tenha ajudado a
-cura, mas o principal merito é só teu.
-
-Helena abraçou a convalecente.
-
---Estacio,--disse ésta; agradece a tua irmã, como eu fiz.
-
-Estacio inclinou-se para Helena afim de lhe pousar na fronte o casto
-ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena desviando o busto e
-reclinando a cabeça para traz, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e
-disse:
-
---Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um apêrto de mão e
-o affecto de todos.
-
-Estacio apertou-lhe a mão, e sentiu-lh'a trémula. Aquelle movimento de
-castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais
-bella. Uma creatura tão ciosa de si mesma que nem admittia a caricia do
-irmão, não era digna de honrar o nome da familia?
-
-A convalecença de D. Ursula foi lenta, e não a houve mais rodeada de
-cuidados e attenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante
-sosinha, e inventavam toda a sorte de recreio com que pudessem
-distrahil-a: jogos de familia ou leitura, musica ou simples palestra
-íntima. Uma vez lembraram-se de representar, só para ella, uma comedia
-de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que
-tomaram parte Eugenia Camargo, e mais tres moças da visinhança. Foi a
-primeira vez que a ouviram cantar. O successo não podia ser mais
-completo. Como o applauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a
-filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triumpho, fazendo-a
-executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estacio, que
-quasi não tirava os olhos da irmã, percebeu-lhe a intenção, e
-disse-lh'o. Helena esquivou-se à allusão; mas, insistindo elle:
-
---Não ha nada que admirar, disse ella; Eugenia toca perfeitamente; ora
-justo que tambem fosse applaudida. Se ha arte no que fiz, parece-me que
-é a mais singella do mundo. O melhor modo de viver em paz, é nutrir o
-amor proprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugenia nem
-precisa disso; tem a primazia da belleza. Veja se ha creatura mais
-deliciosa.
-
-Estacio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de
-duas moças e dous rapazes. Eugenia pelo braço de um delles, estava de
-pe, ouvindo sem attender as palavras, que alli diziam, por que seus
-olhos inquietos derramavam-se por toda ella e pela sala. Admirava-se e
-espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa;
-mas Estacio quizera-a mais inconsciente, menos preoccupada do effeito
-que produzia.
-
---Ha cem bellezas como aquella, disso elle.
-
---Estacio! exclamou Helena com ar de reprehensão.
-
---A belleza é como a bravura; vale mais se não a mettem á cara dos
-outros.
-
---Voce é um ingrato!
-
-Naquella noite ficou mais patente que nunca a preponderancia ganha por
-Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a directora ouvida e
-obedecida. D. Ursula cedêra, em poucas semanas, o que lhe negára
-durante mezes.
-
-Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguíra ella
-apressar o casamento de Estacio? Estacio continuava a hesitar, a recuar,
-a adiar; pedia tempo para reflectir. Suas ausencias no Rio Comprido
-iam-se tornando mais longas; os dias, quasi todos, eram desfiados no
-remanso da familia. Mas Helena insistiu tanto que elle prometteu fazer o
-solemne pedido no primeiro dia do anno.
-
-Estacio não havia esquecido a carta lida pela irmã; mas por mais que a
-espreitasse e a estudasse nada descobria que lhe fizesse suppor
-affeição encoberta. Nenhum dos homens que iam alli,--e eram
-poucos,--parecia receber de Helena mais do que a cortezia commum. D.
-Ursula, a quem elle incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras
-que ésta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve
-resposta mais decisiva.
-
-A promessa de ir pedir Eugenia, fel-a Estacio na segunda semana de
-Dezembro, em uma noite sem visitas que eram as melhores noites para
-elle. No dia seguinte de manha, erguendo-se tarde, soube que Helena
-sahíra a cavallo logo cedo.
-
---Sosinha?
-
---Com o Vicente.
-
-Vicente era o escravo que, como sabemos, se affeiçoára, primeiro que
-todos, a Helena; Estacio designara-o para servil-a. A notícia do
-passeio não lhe agradou. O tempo andava com o mesmo passo de costume;
-mas á anciedade do mancebo affigurava-se que era mais longo. Estacio
-chegava á janella, ia até o portão da chacara, cora ar de apparente
-indifferença, que a todos illudia, a começar por elle proprio. N'uma
-das vezes em que voltou a casa, achou levantada D. Ursula; falou-lhe; D.
-Ursula sorriu com tranquillidade.
-
---Que tem isso? disse ella. Ja uma vez sahiu a passeio com o Vicente e
-não aconteceu nada.
-
---Mas não é bonito, insistiu Estacio. Não está livre de um acto de
-desattenção.
-
---Qual! Toda a visinhança a conhece. Demais, Vicente ja não é tão
-creança. Tranquillisa-te, que ella não tarda. Que horas são?
-
---Oito.
-
---Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que ja ouço um tropel.
-
-Os dous estavam na sala de juntar: passaram á varanda, e viram
-effectivamente entrar no terreiro Helena e o pagem. Helena deu um salto
-e entregou a redea de _Moema_ ao pagem que acabava de apear-se. Depois
-subiu a escada da varanda. Ao collocar o pe no primeiro degrau, deu com
-os olhos nu irmão e na tia. Fez-lhes um comprimento com a mão, e subiu
-a ter com elles.
-
---Ja de pe! exclamou abraçando D. Ursula.
-
---Ja, para lhe ralhar,--disse ésta sorrindo. Que ideia foi essa de
-bater a linda plumagem? É a segunda vez que voce se lembra de sahir sem
-o urso do seu irmão.
-
---Não quiz incommodar o urso, replicou ella voltando-se para Estacio.
-Tinha immensa vontade, de dar um passeio, e _Moema_ tambem. Apenas hora
-e meia.
-
-Aquelle dia foi o de maior tristeza para a moça. Estacio passou quasi
-todo o tempo em seu gabinete; nas poucas occasiões em que se
-encontraram, elle só falou por monosyllabos, ás vezes por gestos. De
-tarde, acabado o jantar, Estacio desceu á chacara. Ja não era só o
-passeio de Helena que o mortificava; ao passeio jantava-se a carta.
-Teria razão a tia em suas primeiras repugnancias? Como elle fizesse
-essa pergunta a si mesmo, ouviu atraz de si um passo apressado e o
-farfalhar de um vestido.
-
---Está mal commigo? perguntou Helena com doçura.
-
-Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a colera do mancebo. Voltou-se; Helena
-estava deante delle, com os olhos submissos e puros. Estacio reflectiu
-um instante.
-
---Mal? disse elle.
-
---Parece que sim. Não me fala, não se importa commigo,--anda
-carrancudo... Seria por que eu sahi do manhã?
-
---Confesso que não gostei muito.
-
---Pois não sahirei mais.
-
---Não; póde sahir. Mas está certa de que não corre nenhum perigo
-indo só com seu pagem?
-
---Estou.
-
---E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim?
-
---Não sei se poderei obedecer. Nem sempre voce poderá acompanhar-me;
-além disso, indo com o pagem, é como se fosse só; e meu espirito gosta
-ás vezes de trotar livremente na solidão.
-
---Naturalmente a pensar de cousas amorosas... acrescentou Estacio
-cravando os olhos interrogadores na irmã.
-
-Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram
-silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estacio
-sentou-se; Helena ficou de pe diante delle. Olharam um para outro sem
-proferir palavra; mas o labio de Estacio tremêra duas ou tres vezes
-como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se.
-
---Helena, disse elle, voce ama.
-
-A moca estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si como assustada
-e pousou as mãos nos hombros de Estacio. Reflectiu ella no que disse
-depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa occasião parecia concentrar
-todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente:
-
---Muito! muito! muito!
-
-Estacio empallideceu. A moça recuou um passo, e, trémula, poz o dedo
-na boca como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava em seu rosto;
-Helena deu as costas ao irmão e affastou-se rapidamente. Ao mesmo
-tempo, a sineta do portão era agitada com fôrça, e uma voz atroava a
-chacara:
-
---Licença para o amigo que vem do outro mundo!
-
-
-
-
-CAPITULO X
-
-
-Estacio dirigiu-se ao portão. Abria-o; um moço que alli estava entrou
-precipitadamente. Era Mendonça. Os dous mancebos lançaram-se nos
-braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquella
-effusão, e não lhe foi difficil adivinhar quem era o recem-chegado.
-
-A effusão cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os
-dous rapazes se julgaram assaz abraçados, tomaram o caminho da casa.
-Helena, que estava um pouco adiante delles, foi apresentada a Mendonça.
-Ao ouvir que era irmã de Estacio, Mendonça ficou naturalmente
-espantado. Cortejou ceremoniosamente a moça, e os dous seguiram até a
-casa, onde pouco depois entrou Helena.
-
-Mendonça era da mesma estatura que Estacio, um pouco mais cheio,
-hombros largos, physionomia risonha e franca, natureza mobil e
-expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era,
-arrancado de fresco ao _boulevard_ de Gand, ao cafe Tortoni e ás
-recitas do Vaudeville. A mão larga e forte calçava fina luva côr de
-palha, e sôbre o cabello, penteado a capricho, pousava um chapeu de
-fabrica recente.
-
-Estacio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena,
-cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer
-comprehender o respeito e a affeição que ella de todos merecia. Helena
-adivinhou esse trabalho preparatorio do irmão logo que entrou na sala.
-
-Mendonça divertiu a familia uma parte da noite contando os melhores
-episodios da viagem. Era narrador agradavel, fluente e pitoresco,
-dotado de grande memoria e certa fôrça de observação. Seu espirito
-galhofeiro achava mais facilmente o lado comico das cousas; e mais se
-comprazia em dizer os accidentes de um jantar de hotel ou de uma noite
-de theatro que em descrever as bellezas da Suissa ou os destroços de
-Roma.
-
-A visita durou pouco mais do hora. Estacio quiz acompanhal-o até a
-cidade; elle não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a
-chacara, falaram do passado, e um pouco do futuro, a trechos soltos,
-como o lugar e a occasião lhes permittiam. Mendonça, vendo que Estacio
-não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o aventou.
-
---Fallaste-me em uma de tuas cartas de certa Eugenia...
-
---A filha do Camargo.
-
---Justo. Negocio roto?
-
---Quasi terminado.
-
---Terminado... na egreja, supponho?
-
---Tal qual.
-
---Quando?
-
---Brevemente.
-
---Marido, emfim! Era só o que te faltava. Nasceste com a bossa conjugal,
-como eu com a bossa viajante, e não sei qual de nós terá razão.
-
---Talvez ambos.
-
---Creio que sim. Tudo depende do gôsto de cada um. O casamento é a
-peor ou a melhor cousa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi
-algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não te pergunto se
-é um anjo...
-
---É um anjo.
-
---Como todas as noivas. Feliz Estacio! Segues a carreira de tua
-vocação, em quanto que eu...
-
---Tu?
-
---Interrompo a minha e talvez para sempre. Preciso cuidar da vida; não
-sou capitalista, nem meu pae tão pouco. Adeus, viagens!
-
---Tanto melhor! Arranjo-te noiva. Não é a tua vocação, mas não
-serás o primeiro que a erre, sim que dahi venha mal ao mundo.
-
---Pois arranja la isso. Em todo caso não será tua irmã.
-
---Oh! não, disse vivamente Estacio.
-
---Na verdade, é bonita; mas... se permittes a franqueza de outr'ora,
-acho-lhe uma costella de desdem...
-
---Que ideia! É a mais affavel creatura do mundo. Veras mais tarde; hoje
-estava talvez preoccupada. Em todo o caso, não havias de querer que
-ella saltasse a dansar contigo na sala, de mais a mais sem musica.
-
-Mendonça acabava de accender um charuto; apertou a mão de Estacio e
-sahiu. Estacio accordou de um sonho. A realidade poz-lhe suas mãos de
-chumbo e repetiu-lhe ao ouvido a confissão interrompida de Helena.
-Ancioso por saber o resto, entrou elle immediatamente em casa. A
-diligencia foi esteril, por que a irmã recolhera-se a seu aposento.
-Estacio imitou-a. Era forçoso esperar uma noite inteira, demora que o
-affligia, porque, dizia elle consigo mesmo, cumpria-lhe velar pela sorte
-de Helena, como irmão e chefe de familia, indagar de seus sentimentos,
-e ordenar o que fôsse melhor. Uma noite não em muito; comtudo, a
-preoccupação retardou-lhe o somno. A confissão subita, laconica e
-eloquente da irmã ficara-lhe no espirito como se fôra o echo perpétuo
-de uma voz extincta.
-
-Nem no dia seguinte nem nos subsequentes alcançou o que esperava.
-Helena, ou evitava ficar a sos com elle, ou esquivava-se a maior
-explicação. Nos passeios matinaes, que eram frequentes, procurou
-Estacio mais de uma vez enterreirar a conversa no assumpto que, mais que
-nenhum outro, o preoccupava. Helena ouvia com um sorriso, e respondia
-com uma gracejo; depois dava de redea á conversação e galopada na
-direcção opposta. Como a fantasia era campo vasto, nunca mais o moço
-lograva trazel-a ao ponto de partida.
-
-Um dia, a insistencia de Estacio teve tal caracter de autoridade, que
-pareceu constranger e molestar Helena. Ella replicou com remoque; elle
-redarguiu com uma advertencia aspera. Iam ambos a pe, levando os animaes
-pela redea. Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e
-fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das
-estrêllas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estacio possuia
-essas duas cousas que nunca hão de conhecer corações mediocres: a
-nobre retratação do êrro e a generosidade do perdão. Viu que cedêra
-a um mau impulso, e confessou-o; mas confessou-o com palavras taes, que
-Helena travou-lhe da mão e lhe disse:
-
---Obrigada! Se me não dissesse isso, ver-me-hia desparar por este
-caminho fóra até o fim do mundo ou até o fim da vida.
-
---Helena!
-
---Oh! não é vão melindre, é a propria necessidade da minha
-posição. Voce póde encaral-a com olhos benignos; mas a verdade é que
-só as azas do favor me protegera. Pois bem, seja sempre generoso, como
-foi agora; não procure violar o sacrario de minha alma. Não insista em
-pedir a explicação de palavras mal pensadas e ditas em ma hora...
-
---Mal pensadas? Póde ser; mas por isso é que são verdadeiras; se
-voce tivera tempo de as meditar, guardal-as-hia comsigo, avara de seus
-segredos e suspeitosa de corações amigos. Meu fim era somente ajudal-a
-a ser venturosa, destruir...
-
---É tarde! interrompeu a moça consultando o reloginho preso á
-cintura. Vamos?
-
-Estacio sorriu melancholicamente; offereceu-lhe o joelho, ella pousou
-nelle o pesinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi menos
-alegre do que costumava ser. Elles falavam, mas a palavra vinha aos
-labios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma colera, mas nenhuma
-animação. Assim correu aquelle dia; assim correriam outros, se não
-fôra a vara magica de Helena. Seu natural influxo era tão forte, que o
-irmão voltou desde logo ás boas, sendo as melhores horas as que
-passava ao pe della, a escutal-a e a vel-a, ambos contentes e felizes. O
-episodio da confissão vinha as vezes, como hóspede importuno,
-projectar entre elles seu nebuloso perfil; mas o espirito de Estacio
-repellia-o, e a alegria da irmã fazia o resto.
-
-Entretanto, graças ao amigo recem-chegado, o filho do conselheiro sahiu
-um pouco de suas regras habituaes, e começou a provar alguma cousa mais
-da vida exterior. Mendonça buscava realizar, em miniatura, o seu
-esvaido ideal parisiense; havia nelle o movimento, a agitação, a
-galhofa, que absolutamente faltavam a Estacio, e vieram dar-lhe á vida
-a variedade que ella não tinha. Alguns expectaculos e passeios, uma ou
-outra ceia alegre, mas casta, tal foi o programma de uma parte infima da
-existencia de Estacio. Para contrastar com ella, tinha elle as manhãs do
-Andarahy e algumas noites do Rio Comprido. Ao amigo e á sua
-consciencia, dizia o moço que estava a despedir-se da liberdade.
-
-A influência de Mendonça estendeu-se á propria casa de Estacio.
-Mendonça gostava sobretudo da variedade ao viver; não tolerava os
-mesmos prazeres, nem os mesmos charutos; para os apreciar tinha
-necessidade do os alternar frequentemente. Se fôsse possivel, era capaz
-de fazer-se monge durante um mez, antes do carnaval, trocar o hábito
-por um dominó, e atar as últimas notas das matinas com os preludios da
-contradança. Sua fidelidade á moda custava-lhe um pouco quando ésta
-não ia a passo com a sua impaciencia. Em sua opinião o que distinguia
-o homem do cão era a faculdade de fazer com que uma noite se não
-parecesse com outra. O Rio de Janeiro não lhe offerecia a mesma
-variedade de recursos que Paris; mas seu genio era inventivo e fertil, e
-não lhe faltaria meio de fugir á uniformidade dos habitos.
-
-O peor que lhe acontecia era a disparidade entre os desejos e os meios.
-Filho de um commerciante, apenas remediado, não teria elle podido
-realizar a viagem á Europa, nas proporções largas em que o fez, a
-não ser a intervenção benefica de uma parenta velha, que se incumbira
-de lhe ministrar os recursos de que elle carecesse durante aquella longa
-ausencia. Nem a parenta continuaria a abrir-lhe a bolsa, nem pae queria
-crear-lhe habitos de ociosidade. Tratava este, portanto, de obter-lhe um
-emprêgo público. Mendonça estava longe de recusar; pedia somente que
-o emprêgo o não deslocasse da Côrte.
-
-Inquieto, amigo da vida ruidosa e facil, intelligente sem largos
-horisontes, possuindo apenas a instrucção precisa para desempenhar-se
-regularmente de qualquer commissão de certa ordem, Mendonça, com todos
-os seus defeitos e boas qualidades, era homem agradavel e acceito. Seus
-defeitos eram antes do espirito que do coração. A variedade que elle
-pedia para as cousas externas e de menor tomo, não a praticava em suas
-affeições, que eram geralmente inalteraveis e fieis. Era capaz de
-sacrificio e dedicação; sobretudo, se lhe não pedissem o sacrificio
-deliberado ou a dedicação reflectida, mas aquelles que exige uma
-circumstância imprevista e subita.
-
-Não admira que a presença de tal homem viesse modificar o tom da
-sociedade de que era centro a familia de Estacio, quando elle alli fazia
-alguma apparição. Era o sal daquella terra. Não tinha a rijeza do
-figurino, nem a _morgue_ do estrangeirado. A tesoura do alfaiate não
-lhe dissimulára a indole expansiva e franca. Acolhido como um filho,
-tinha alli uma porção de sua casa. Que melhor aspecto podia ter a vida
-em taes condições, naquella familia ligada por um sentimento de amor?
-
-A noite do ultimo dia do anno veiu turvar a limpidez das aguas.
-
-
-
-
-CAPITULO XI
-
-
-Naquelle dia fazia annos Estacio, e D. Ursula assentira receber algumas
-pessoas a jantar, e outras mais á noite, em reunião íntima. Ella e
-Helena tomavam a peito fazer com que a pequena festa de familia fosse
-digna do objecto. Estacio opinou pela suppressão do sarau; mas era
-difficil alcançar a desistencia de corações que o amavam.
-
-Logo de manhã, como elle se levantasse cedo, encontrou Helena que o
-convidou a seguil-a á sala de costura.
-
---Quero dar-lhe o meu presente de annos, disse ella.
-
-Alli entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só,
-mas significativo: era uma parte da estrada de Andarahy--a mesma por
-onde elles costumavam passear, mas com algumas particularidades do
-primeiro dia. Dous cavalleiros, elle e ella, iam subindo a passo lento;
-ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro
-plano, desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data; _25 de
-Julho de 1850_.
-
-Estacio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça
-retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria.
-Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das
-linhas, a exacção das circumstâncias locaes, as impressões de uma
-hora fugitiva que o lapis da irmã tivera a arte de fixar no papel.
-
---Não podia fazer-me presente melhor, disse elle; da-me uma parte de si
-mesma, um fructo de seu espirito. E que fructo! Não ha muita moça que
-desenhe assim. Era talvez por isso que voce sahia algumas vezes sosinha
-com o pagem?
-
-Estacio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos labios
-e beijou-o. O ósculo acertou de cahir na cabeça da cavalleira. Foi o
-original que corou.
-
---Andavam a gabar meus talentos,--disse Helena apos um instante; tive a
-vaidade de dar uma pequena amostra...
-
---Excellente amostra! Não acha, titia? disse, o moço a D. Ursula, que
-nesse instante apparecêra á porta, trazendo o seu presente, n'uma
-bocetinha de joalheiro.
-
-D. Ursula não tinha, de certo, o instincto da arte; mas o amor da
-familia lhe ensinára uma esthetica do coração, e essa bastou a
-fazel-a admirar o trabalho de Helena.
-
---Mas que digo eu todos os dias? exclamou D. Ursula. Ésta pequena sabe
-tudo!
-
---Quasi tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei de
-agradecer...
-
---O que, tontinha? interrompeu a tia. Algum, disparate, naturalmente,
-improprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje.
-
-Em quanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia,
-Estacio mandou sellar o cavallo e sahiu. Queria comparar ainda uma vez o
-desenho do Helena com o sitio copiado. A fidelidade era completa, e o
-quadro seria absolutamente o mesmo, se dessem algumas circumstâncias
-da primeira occasião. Helena não ia ao lado delle; mas a vinte braças
-de distância fluctuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estacio
-afrouxou o passo do cavallo, como saboreando as recordações da
-primeira manhã, quando Helena se lhe mostrára tão singularmente
-commovida. Volveu a reflectir na situação della, e na paixão que lhe
-confessára, dias antes, com tamanha vehemencia. Se se tratava de uma
-felicidade possivel, embora difficil, Estacio prometteu a si mesmo
-alcançar-lh'a. Não era isso servir o sangue do seu sangue?
-
-A casa do alpendre, até alli indifferente a Estacio, creava agora para
-elle um interesse especial. Á medida que se approximava, ia achando no
-edificio a fiel reproducção do desenho. Este não apresentava todas as
-particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições
-exteriores, como se fôra feita deante do original.
-
-A uma das janellas estava um homem, com a cabeça inclinada, attento a
-ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa attitude não era facil
-examinal-o; affigurava-se, entretanto, uma creatura mascula e bella. A
-duas braças de distância, o individuo levantou a cabeça, e cravou em
-Estacio um par de olhos grandes e serenos; immediatamente os retirou,
-baixando-os ao livro.
-
---Mal sabes tu, philosopho matinal, disse Estacio comsigo,--mal sabes tu
-que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bella mão do
-universo!
-
-O philosopho continuou a ler, e o cavallo continuou a andar. Quando
-Estacio regressou dahi a alguns minutos, achou somente a casa; o morador
-desaparecêra; circumstância indifferente, que escapou de todo à
-attenção do moço. Nem elle pensava mais naquillo; seu pensamento
-trotava largo, á ingleza, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como
-anciosos de chegar ao ponto da partida.
-
-
-
-
-CAPITULO XII
-
-
-A festa correu animada, posto o reunião fôsse restricta. Algumas
-voltas da valsa, duas ou tres quadrilhas, jogo e musica, muita conversa
-e muito riso, tal foi o programma da noite, que a encheu e fez mais
-curta.
-
-Se as honras da casa foram feitas por Helena, a alma da festa era
-Mendonça, cujo espirito havia ja recebido e colhido o suffragio
-universal. Eugenia dera-lhe, antes de todos, o seu voto. Havia entre
-ambos tal ou qual afinidade de indole, que naturalmente os approximava.
-Mendonça lisongeava os caprichos de Eugenia, applaudia-a,
-comprehendia-a, obedecia-lhe sem constrangimento nem reparo. Quando
-Mendonça valsava com Eugenia, todos os olhos se concentravam nelles.
-Eram valsitas de primeira ordem. As ondulações voluptuosas do corpo de
-Eugenia e a serenidade e segurança de seus passos, adaptavam-se
-maravilhosamente áquella especie de dança,--a unica que nossos
-costumes formalistas possuem. Era bello vel-os percorrer o vasto
-círculo deixado a seus movimentos; vel-os emfim parar com a mesma
-precisão e sem o menor symptoma de cançasso. Eugenia punha toda a sua
-attenção naquelle gesto de braço com que as mulheres, logo que
-interrompem ou cessam de todo a valsa, conchegam ao corpo a saia do
-vestido, cujo movimento rotatorio póde dar lugar a alguma
-indiscrição. O prazer com que ella fazia esse gesto, e a graça com
-que o acompanhava de uma leve inclinação do corpo mostravam que, mais
-ainda a faceirice do que a necessidade, lhe movia o corpo e a mão.
-
-Ésta sorte de triumphos enchia a alma de Eugenia; e, porque ella não
-possuia nem a modestia nem a arte de o simular, via-se-lhe no rosto o
-orgulho e a satisfação. A dança não era para a filha de Camargo um
-goso ou um recreio somente; era tambem um adorno e uma arma. Dahi vinha
-que o valsista mais intrepido e constante era tambem o principal
-parceiro do seu espirito; e ninguem disputava esse papel ao filho do
-commerciante.
-
---Sua filha é a rainha da noite, murmurou o Dr. Mattos ao ouvido de
-Camargo, em um intervallo do voltarete.
-
---Não é verdade? acudiu o médico.
-
-E a alma do pae voava enrolada nas pontas da fita que apertava a cintura
-de Eugenia, não regressando ao domicilio se não quando a moça parava.
-Então volvia Camargo um olhar em torno de si, como pedindo egual
-admiração. Depois ficava sombrio, e mais do que usualmente, cahia em
-longos e mortaes silêncios. Tres ou quatro vezes approximára-se de
-Helena sem lograr detel-a, nem adiarem si mais que duas palavras
-triviaes. Insistia; não a perdia de vista, parecia ancioso de a
-conversar sôbre alguma cousa.
-
-Helena repartia-se entre todas as pessoas, attenta aos mil cuidados que
-a noite requeria. Cantou uma vez, dansou uma quadrilha, e não valsou.
-Em vão Mendonça insistira com ella; a moça desculpou-se dizendo que a
-valsa lhe fazia vertigens. Na opinião do filho do coronel-major ésta
-razão encobria somente a ignorancia de Helena. Estacio pensava antes
-que era a castidade selvagem da irmã que lhe não permittia o contacto
-de um homem, ideia que lhe fez bem ao coração.
-
-Pela volta da meia noite, terminada a ceia, começou aquella hora de
-repouso, que precede a total dispersão. As senhoras trocavam
-impressões e commentarios, os rapazes fumavam, os jogadores decidiam as
-últimas remissas. A noite não refrescara, e a agitação augmentára o
-calor. Helena, tão cançada como D. Ursula, retirára-se por alguns
-instantes para a sala contigua á principal; alli sentou-se n'um sopha,
-e derreou levemente o corpo, deixando cahir os cilios, não sei se
-pensativos, se pesados de somno. Seu espirito não tivera tempo de
-encadear duas ideias ou esboçar um sonho, quando uma voz a accordou:
-
---Ja dormindo!
-
-Era Camargo.
-
-Helena abriu os olhos sobresaltada. A voz de Camargo, produzira-lhe a
-impressão de desagrado, que lhe fazia sempre. Sorriu a moca
-contrafeitamente, e vendo que elle se dispunha a sentar-se no sopha,
-não arredou o vestido, como se quizesse deixar entre ambos larga
-distância: Camargo sentou-se.
-
---Parece que se assustou? disse elle.
-
---Um pouco.
-
-Camargo agitou entre as mãos os perendengues do relogio,--tão
-numerosos como elles se usavam naquelle tempo; depois pegou
-familiarmente no leque da moça, abriu-o, contou as varetas, tornou a
-fechal-o e restituiu-o com um elogio. Helena respondeu-lhe com um
-sorriso. Ia levantar-se, quando elle a deteve com éstas palavras:
-
---Estimei achal-a só, por que precisava pedir-lhe um conselho.
-
-A testa de Helena contrahiu-se interrogativamente.
-
---Um conselho e um favor, continuou o médico. Não será, creio eu, a
-primeira vez que a velhice consulte a mocidade. Demais, trata-se de
-assumpto em que a gente moça lê de cadeira.
-
-Helena olhou para elle desconfiada. Nunca vim o médico tão affavel, e
-essa mudança de maneiras e de tom é que lhe fazia medo. Verdade é que
-elle ia pedir-lhe alguma cousa; e a experiencia ensina que o interesse
-é muito mais eloquente que o vinho e muito mais meigo que o amor.
-Camargo não se deteve. Fez uma exposição rapida de suas relações
-com a familia do conselheiro, do sentimento de amizade que o ligava a
-ella.
-
---A perda do meu finado amigo,--concluiu elle, não póde ser supprida
-por nenhuma cousa; mas ha alguma compensação na affeição que
-sobrevive e me faz considerar ésta familia como minha propria. Estou
-certo de que seu irmão e D. Ursula sentem a meu respeito do mesmo modo.
-Quanto á senhora, é recente na familia, mas não tem menor direito que
-ella. Vi-a tão pequena!
-
---A mim? perguntou Helena.
-
-Camargo fez um gesto affirmativo, em quanto a moça olhava em volta da
-sala, receiosa de que alguem tivesse entrado e ouvido. Uma vez segura de
-que ninguem havia, recebeu impressão contrária á primeira;
-envergonhou-se daquelle receio. A vergonha augmentou quando o médico
-accrescentou em voz baixinha:
-
---Não falemos nisso...
-
---Pelo contrário! exclamou ella. Pode falar com franqueza; diga tudo.
-Era minha mãe. Não sei o que foi para o mundo; mas se me perdoaram a
-irregularidade do nascimento, não creio que me pedissem em troca a
-renúncia do meu amor de filha; a lei que o poz em meu coração é
-anterior á lei dos homens. Não repudio uma só das minhas recordações
-de outro tempo. Sei e sinto que a sociedade tem leis e regras dignas de
-respeito; aceito-as taes quaes; mas deixem-me ao menos o direito de amar
-o que morreu. Minha pobre mãe! Vi-a expirar em meus braços; recolhi o
-seu último suspiro. Tinha apenas doze annos; contudo, não consenti,
-que outra pessoa velasse á cabeceira a ultima noite que passou sobre a
-terra... Oh! não a esquecerei nunca! nunca! nunca!
-
-Helena proferiu éstas palavras n'um estado de exaltação que até alli
-se lhe não vira. Em vão Camargo procurou duas ou tres vezes
-interrompel-a, receioso de que a ouvissem fóra, por que a moça tinha
-levantado a voz. Helena não obedeceu; não viu se quer o gesto
-supplicante do médico. O seio, castamente velado pelo corpinho, que
-subia até ao pescoço, estava offegante e onduloso como a agua do mar
-batida pelo vento. Á ultima palavra sahiu-lhe como um soluço. Camargo
-sentiu-se sorprehendido com aquella explosão de ternura. Era evidente
-que elle esperava outra cousa. Seguiu-se um breve silêncio, durante o
-qual Helena mordia a ponta do lenço, como para conter a palavra que lhe
-tumultuava no coração. O médico proseguiu emfim:
-
---Ninguem lhe pede que a esqueça, disse elle; todos respeitam esses
-sentimentos de piedade filial. O passado morreu, e o menos que se deve
-aos mortos é o silêncio. A senhora tem o direito de lhe dar o amor e a
-saudade. Mas falemos dos vivos; e perdoe-me se lhe toquei, sem querer,
-em tão dolorosa recordação.
-
---Não! não é dolorosa! disse ella abanando a cabeça.
-
---Falemos dos vivos. Não está certa do amor de sua familia?
-
-Helena fez um gesto affirmativo.
-
---Não poderia encontrar outra melhor nem tão boa. D. Ursula é uma
-sancta senhora; Estacio um caracter austero e digno. Venhamos agora ao
-conselho. Ha muito tempo ando com ideia de ir á Europa; estou
-caminhando para a velhice; não quero deixar de ir ver alguma cousa
-além do nosso Pão d'Assucar. Ja desfiz o projecto mais de uma vez.
-Cuido que agora vou definitivamente realisal-o. Dá-se porém uma
-circumstância grave. Sabe que minha filha ama seu irmão? Meus olhos
-descobriram desde muito essa inclinação de um e outro, por que tambem
-seu irmão ama minha filha. Merecem-se; e de algum modo continuam si
-affeição dos paes; a natureza completa a natureza. Ésta é a
-situação. O que eu desejava, porém, é que me dissesse se devo partir
-ja, levando-a; ou se é melhor esperar que elles se casem.
-
-Helena ouvira o médico sem olhar para elle; quando elle acabou, fitou-o
-admirada e curiosa. A puerilidade da pergunta era tão evidente que a
-moça procurou ler no rosto do interlocutor o pensamento verdadeiro e
-occulto. Camargo apressou-se a explicar-se.
-
---Estacio,--disse elle,--póde amar Eugenia com ideias matrimoniaes; mas
-tambem pode não passar isso de um capítulo de romance, como o que se
-lê em uma viagem da Corte a Nictheroy. Seu caracter é serio; mas o
-coração tem leis especiaes. Confesso que o procedimento de Estacio
-nada me affirma a tal respeito. Ha nelle umas mudanças pouco
-explicaveis. O tempo decorrido é mais que muito sufficiente para que...
-Está reflectindo!
-
---Estou.
-
---E...
-
---Supponho que pede mais do que me disse. Quer que eu indague a tal
-respeito as intenções, de Estacio!
-
---Isso.
-
---Mas porque não se dirige a elle mesmo?
-
---Não havia inconveniente; estabeleceu-se porém que um pae não deve
-ser o primeiro a falar em taes cousas. É preciso respeitar a dignidade
-paterna. Accresce que Estacio é rico, e tal circumstância podia fazer
-suppor de minha parte um sentimento de cobiça, que está longe de meu
-coração. Podia falar a D. Ursula; creio porém que ella não tem a
-sua habilidade, e... porque o não direi? a sua influência no espirito
-de Estacio.
-
---Eu!
-
---Oh! influência incontestavel! A senhora veiu completar a alma de seu
-irmão. É visivel a affeição e o respeito que elle lhe tem. Demais,
-em taes assumptos urna irmã é natural confidente e conselheira.
-
-Helena deu tres pancadinhas no joelho com a ponta do leque, e enfiou os
-olhos pela porta de communicação entre aquella e a salla principal.
-Depois voltou-se para o médico.
-
---Sei que elles se amam,--disse ella,--e ja dei a minha opinião a tal
-respeito. Eugenia parece ser minha amiga; meu irmão é meu irmão;
-desejo-lhes todas as felicidades. Ha porém um limite á intervenção
-de uma irmã; e não desejo ir além. Demais, seu pedido é ocioso.
-
---Porque?
-
---Annuncie a viagem; e Estacio, se apressará a pedir-lhe sua filha. Se
-o não fizer, é por que a não ama, conforme ella merece, e em tal caso
-mais vale perder um casamento que fazel-o mau.
-
---Sim? perguntou Camargo.
-
---Naturalmente.
-
---O conselho é excellente,--disse o médico depois de um instante, mas
-tem o defeito substancial de supprimir a sua intervenção, que me é
-necessaria. Vejamos o meio de combinar as cousas. Supponhamos que,
-annunciada a viagem, Estacio não corresponde ás minhas esperanças.
-Que devo fazer?
-
---Embarcar.
-
---Embarcar é arriscar o casamento. Ora, este casamento... é um de meus
-sonhos. Desejo que os filhos continuem a affeição dos paes. Se Estacio
-recuar, minhas esperanças esvaem-se-me como fumo; o tempo cavará um
-abysmo entre os dous; Eugenia amará outro... Emfim, conto com a
-senhora.
-
---Commigo?
-
---A senhora tem uma fôrça de resolução, uma fertilidade de
-expedientes, um espirito capaz de emprezas delicadas, e, tratando-se da
-felicidade de um irmão. Creio que empenhará todas as fôrças para
-levar a cabo a mais pura das ambições. Não lhe peço um absurdo,
-peço-lhe a felicidade de minha filha.
-
-Helena não respondeu; olhou de revez para elle, e cravou depois os
-olhos no aguia branca tecido no tapete, sobre o qual pousava seu pe
-impaciente e colerico. Podia referir mais detidamente qual o seu papel
-juncto de Estacio, a respeito de Eugenia, seus pedidos, e a promessa do
-irmão, que deveria ser cumprida, se o fosse, em algum dos seguintes
-dias. Mas nem quiz dar esperanças que os acontecimentos podiam
-dissipar, nem o coração lhe consentia mais larga confidencia. Ambos
-elles viam que se detestavam cordialmente; mas se em Helena havia colera
-abafada, em Camargo havia tranquillidade e observação. Elle contemplava
-a moça, com o olhar fixo e metalico dos gatos; a mão esquerda, pousada
-sobre o joelho, rufava com os dedos magros e pelludos. Nada dizia; mas
-todo elle em uma interrogação imperiosa. Helena olhou ainda uma vez
-para o médico.
-
---Dá-me o seu braço até á sala? perguntou.
-
-Camargo sorriu.
-
---Só isso? Eu dizia commigo outra cousa.
-
---Que dizia então? perguntou Helena com aquelle ar de esmagadora
-indifferença que só as mulheres possuem.
-
---Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma moça, que acha
-meio de visitar ás seis horas da manhã uma casa velha e pobre, não
-tão pobre, que a não adorne garridamente uma flamula azul..
-
-Helena fez-se livida; sua mão apertou nervosamente o pulso de Camargo.
-Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o terror, a colera e a
-vergonha. Atravez dos dentes cerrados Helena gemeu ésta palavra unica:
-
---Cale-se!
-
---Falo entre nós e Deus, disse Camargo.
-
-Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma rapidez com que
-ella lhe empallidecêra. Helena quiz erguer-se; mas sentiu-se exhausta.
-Ninguem da sala pôde perceber a impressão e o movimento; ninguem
-olhava para alli. Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e
-proferiu algumas palavras de animação, que ella interrompeu,
-murmurando com amargura:
-
---O senhor é cruel!
-
---Sou pae, respondeu o médico; pae extremoso e discreto, mais discreto
-ainda que extremoso, Conto com a senhora.
-
-
-
-
-CAPITULO XIII
-
-
-Dissolvida a reunião, Helena recolheu-se à pressa, com o pretexto de
-que estava a cahir de somno, mas realmente para dar á natureza o
-tributo de suas lagrymas. O desespêro comprimido tumultuava no
-coração, prestes a irromper. Helena entrou no quarto, fechou a porta,
-soltou um grito e lançou-se de golpe á cama, a chorar e a soluçar.
-
-A belleza dolorida é dos mais patheticos expectaculos que a natureza e
-a fortuna podem offerecer á contemplação do homem. Helena torcia-se
-no leito como se todos os ventos do infortunio se houvessem desencadeado
-sôbre ella. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no
-travesseiro. Gemia, intercortava o pranto com exclamações sôltas,
-enrolava no pescoço os cabellos deslaçados pela violencia da
-afflicção, buscando na morte o mais prompto dos remedios. Colerica,
-rompeu com as mãos o corpinho do vestido, e o joven seio, livre de sua.
-casta prisão, pode á larga desaffogar-se dos suspiros que o enchiam.
-Chorou muito; chorou todas as lagrymas poupadas durante aquelles mezes
-placidos e felizes,--leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os
-vagidos de sua dor.
-
-Calar somente, não adormecel-a, por que ella ahi lhe ficou,--companheira
-daquella noite cruel, para velarem ambas. Quando os olhos cançaram, e
-foram mais intervallados os soluços, Helena jazeu immovel no leito, com
-o rosto sobre o travesseiro, fugindo com a vista á realidade exterior.
-Uma hora esteve assim, muda, prostrada, quasi morta, uma hora longa,
-longa, longa,--como só as tem o relogio da afflicção e da esperança.
-
-Quando a tormenta pareceu extincta, a moça sentou-se na cama e olhou
-vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se tropega á
-_toilette_, que communicava com a alcova por uma porta; alli parou
-deante do espelho, mas fugiu logo, como se lhe pesasse encarar consigo
-mesma. Uma das janellas estava aberta; Helena foi alli aspirar um pouco
-do ar da noite. Ésta era clara, tranquilla e quente. As estrêllas
-tinham uma scintillação viva que as fazia parecer alegres. Helena
-enfiou um olhar por entre ellas como procurando o caminho da felicidade.
-Esteve á janella cêrca de meia hora; depois entrou, sentou-se e
-escreveu uma carta.
-
-A carta era longa, escripta a golphadas, sem nexo nem ordem; continha
-muitas queixas e imprecações; uma ternura expansiva de mistura com um
-desespêro profundo; fallava daquelles que, tendo nascido sob a
-influência de ma estrêlla, só tem felicidades intermittentes e
-mutaveis; dizia que para ella a propria felicidade era um germen de
-morte e dissolução,--ideia que repetia tres vezes, como se tal
-observação fosse o transumpto de suas experiencias certas. A carta
-fallava tambem de um homem, cujo egoismo de pae não conhecia limites, e
-que a todo o trance queria que a filha desposasse uma grande riqueza e
-uma grande posição,--«homem--dizia ella, que me viu a principio com
-olhos avessos, pela diminuição que eu trazia á herança.» No fim
-dizia que havia naquellas linhas muito de obscuro e incompleto; que
-opportunamente contaria tudo; mas que desde ja podia dar a triste
-notícia de que lhe era forçoso abster-se de sahir.
-
-Helena releu o escripto e meditou longo tempo sôbre elle; accrescentou
-ainda algumas linhas; depois, rasgou o papel em dous pedaços, chegou-os
-á vela, e os destruiu. Como arrependida, voltou a escrever outra carta,
-mas não chegou a acabar seis linhas; rasgou-a como fizera á primeira,
-e só então recorreu ao remedio melhor de uma alma ulcerada e pia:
-rezou. A prece é a escada mysteriosa de Jacob: por ella sobem os
-pensamentos ao ceu; por ella descem as divinas consolações.
-
-Entretanto, a noite começava a inclinar a urna das horas ás mãos da
-madrugada. O somno fugira dos olhos de Helena; mas era forçoso
-repousar. Assim mesmo vestida atirou-se sôbre o leito. Não dormiu,
-não se póde dizer que dormisse; ficou alli n'um estado, que não era
-vigilia nem somno, até que a manhã rompeu inteiramente. Abrindo os
-olhos, pareceu accordar de um sonho; sua imaginação recompoz as phases
-todas do acontecimento da vespera. Depois suspirou, e ficou longo tempo
-a olhar para o chão, com a fixidez tragica e solemne da morte.
-
---Era justo! murmurava de quando em quando.
-
-Levantou-se emfim; levantou-se abatida e cançada. Viu-se ao espelho; a
-descorada face e a linha roxa que lhe circulava as palpebras
-difficilmente podiam deixar de impressionar a familia. Helena disfarçou
-como pôde esses vestígios da tempestade; explicou-os do modo mais
-verosimil: o cançasso da vespera e a insomnia de toda uma noite. A
-explicação não achou obstaculo no ânimo da tia e do irmão. Somente
-o padre Melchior, presente a ella, fitou na moça um olhar dubitativo,
-que a obrigou a baixar os cilios.
-
-Se Helena padecia, o logar de Estacio não era ao pe della? Assim o
-pensou o sobrinho de D. Ursula, que em todo esse dia resolveu não sahir
-de casa. Cercou-a de cuidados, buscou distrahil-a, pediu-lhe que fosse
-repousar um instante. Para justificar a explicação que dera, Helena
-obedeceu ás instrucções do irmão. Este foi encerrar-se no gabinete,
-onde se occupou em examinar e colleccionar alguns papeis. Era o dia
-marcado para solicitar de Eugenia o consentimento matrimonial, e elle
-não cogitava em ir ao Rio Comprido. Na irmã, sim; na irmã pensava
-elle, ora relendo as páginas de sua predilecção, ora mandando saber
-se dormia socegada, ora contemplando o desenho com que ella o
-presenteára na vespera. Sentia-se tão feliz naquella aurora do anno!
-
-Pouco antes do jantar ouviu no corredor um rumor de saias, e não tardou
-que a irmã apparecesse á porta. Vinha como fôra; mas a Estacio
-pareceu que effectivamente o descanço e o somno lhe haviam restaurado
-as fôrças. A razão era o sorriso estudado que lhe avivava o rosto.
-Helena parou e Estacio foi ter com ella, travou-lhe da mão, fel-a
-entrar.
-
---Estás melhor? perguntou.
-
---Estou boa.
-
---Não dizia eu que era melhor desistir da ideia da reunião? Éstas
-festas prolongam-se, e fatigaram, sobretudo as pessoas franzinas...
-
-Helena ergueu os hombros.
-
---Anda sentar-te um pouco.
-
---Primeiro hade responder-me a uma cousa.
-
---Que é?
-
---Que dia é hoje? perguntou ella.
-
---Anno bom.
-
---Lembra-se do que me prometteu?
-
---Perfeitamente. Ves estes papeis? disse elle mostrando sôbre a
-secretária uma porção de papeis classificados e postos por ordem.
-Occupei-me até agora em liquidar o passado; faltam-me umas últimas
-contas, que o procurador hade trazer amanhã. Depois, irei...
-
-Helena abanou a cabeça com ar de desaprovação.
-
---Não, disse ella; não hade ir depois, hade ir hoje mesmo. Que tem as
-contas com a autorisação que deve pedir a Eugenia? Va logo de noite.
-Sou supersticiosa; creio que o pedido feito no dia de hoje é de
-excellente agouro. Dará um anno feliz.
-
---Minha intenção era ir dentro de quatro ou cinco dias, respondeu
-Estacio depois de silêncio; mas não tenho dúvida em fazel-o ja. Uma
-vez preenchida a formalidade.
-
---Pedil-a-ha immediatamente ao pae.
-
---Não!
-
---Porque?
-
---Porque precisarei meditar ainda vinte e quatro horas, pelo menos.
-Vinte e quatro horas não é muito para quem tem de amarrar-se
-eternamente. Quero sondar meu proprio espirito, e...
-
---Mas tudo isso é uma estravagancia! interrompeu Helena sentando-se na
-borda da rede em que Estacio costumava ler. Pretenderá voce recuar
-depois de lhe falar a ella?
-
---Oh! não! Mas uma vez que caminho para solução tão grave, não ha
-inconveniente em ir pe ante pe. Admiras-te? perguntou elle vendo que a
-irmã fazia um gesto de impaciencia.
-
---Zango-me.
-
---Mas...
-
---Voce é insupportavel. Falta ao que prometteu.
-
---Ja disse que hei de cumprir.
-
---Não recuará?
-
---Não.
-
---Irá pedil-a hoje mesmo?
-
---A ella.
-
---A ella e ao pae.
-
---Ao pae escreverei uma carta.
-
---Pois seja uma carta! Contanto que acabe com isso. O casamento será...
-
---Quando convier ao Dr. Camargo.
-
---Antes do fim do mez.
-
---Tão cedo!
-
---Dou-lhe mez e meio. Nem uma hora mais! Estou morta por vel-os casados,
-tanto por voce como por ella, coitada! que o ama tanto...
-
---Cres? perguntou vivamente Estacio.
-
---Se creio! Posso affirmal-o. Não será amor como voce quizera que
-fôsse, mas é o amor que ella lhe pode dar, e é muito. Está dito!
-Palavra?
-
-Estacio estendeu silenciosamente a mão, que Helena apertou.
-
---Vou confiar todo o meu destino á cabeça mais leve do universo, disse
-Estacio com os olhos fitos no chão. Não é de seu coração que me
-queixo; mas de seu espirito, que nunca deixou as roupas da infancia.
-Demais, á medida que me approximo da hora solemne, sinto que me repugna
-o estado conjugal. É tão boa a minha vida de solteiro! tão cheios os
-meus dias...
-
-Helena tapou-lhe a boca com uma das mãos; com a outra fez-lhe um gesto
-para que se calasse. Depois, fugiu. Uma vez só, Estacio reflectiu
-longamente na situação em que se achava; reconheceu que estava
-moralmente obrigado a pedir Eugenia, desde que seus corações se tinham
-aberto um para o outro, celebrando um contracto, que elle só não podia
-romper. A consciencia rebellou-se contra as resoluções do coração,
-e a decisão foi curta.
-
-Naquella mesma noite, ouviu Eugenia a esperada palavra. A alegria que se
-lhe derramou nos olhos foi immensa e caracteristica. Um pouco mais de
-recato não era descabido em tal occasião. Não houve nenhum; seu
-primeiro acto de mulher foi uma meninice. Eugenia ignorava tudo, até a
-dissimulação de seu sexo. Concedendo a mão a Estacio, não era uma
-castellã que entregava o premio, mas um cavalleiro que o recebia com
-alvorôço e submissão.
-
-Transposto o Rubicon, não havia mais que caminhar direito á cidade
-eterna do matrimonio. Estacio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr.
-Camargo pedindo-lhe a mão de Eugenia, carta sêcca e digna, como as
-circumstâncias a pediam. Antes de a remetter, mostrou-a a Helena, que
-recusou lel-a. Não a leu, nem lhe pegou. Elle teve-a alguns instantes
-na mão, sem atrever-se a dal-a ao escravo que esperava por ella. Por
-fim, deitou-a sôbre a secretária.
-
---Amanhã, disse elle sorrindo para Helena.
-
-Helena lançou mão da carta e deu-a ao escravo.
-
---Leva á casa do Sr. Dr. Camargo, ordenou a moça. Não tem resposta.
-
-
-
-
-CAPITULO XIV
-
-
-Camargo ia sentar-se á mesa quando lhe entregaram a carta de Estacio;
-leu-a pura si, mas a filha leu-a nos olhos delle. Uma aura de
-bemaventurança desrugou a fronte do médico; seus labios,--cousa
-pasmosa!— abriram-se n'um sorriso perenne e franco, sorriso que uma
-vez chegou a desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Thomasia lhe
-ouviu. Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido á mulher, e os
-dous paes chamaram a filha á sala. Eugenia ouviu a notícia sem baixar
-os olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o
-casamento.
-
---Sim? perguntou Camargo simulando um espanto que não sentia.
-
-Eugenia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia
-não acreditar no espanto do pae. Este pegou nas mãos da filha e
-puxou-a para si.
-
---Assim, pois, meu anjo,--disse elle,--casas-te por tua livre vontade?
-Estacio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, que não podia
-ser mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, que te proponho
-como o melhor modelo da terra.
-
---O mais consciencioso pelo menos, acudiu D. Thomasia satisfeita e
-vaidosa do louvor do marido. Ha de ser boa espôsa, modesta, solicita,
-e economica.
-
---Economica, sem avareza,--emendou Camargo. A riqueza não deve ser
-dissipada; mas é certo que impõe obrigações imprescindiveis, e seria
-da maior inconveniencia viver a gente abaixo de seus meios. Não farás
-isso, nem cahirás no extremo opposto; procura um meio termo, que é a
-posição do bom senso. Nem dissipada, nem miseravel.
-
-D. Thomasia concordou com ésta explicação do marido, em quanto
-Eugenia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes dar a
-minima attenção. Seu pensamento estava em Andarahy; ella viaja na
-imaginação, a cerimonia do consorcio, as carruagens, o apuro do noivo,
-a sua propria graça, a coroa de flores de larangeira, que a havia de
-adornar, emfim talhava ja o vestido branco e pregava as rendas de
-Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do genero
-humano. Daquelle sonho foi despertada pelo pae, que lhe imprimiu na
-testa o seu segundo beijo, o primeiro, como o leitor se hade lembrar,
-foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria
-provavelmente no dia em que ella casasse.
-
---Sabes que te amo, Eugenia? disse Camargo olhando para ella.
-
---Papae!
-
-Camargo não pôde dizer mais nada. Seu amor, um instante expansivo,
-volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estiveram. A
-satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para
-saborear-se. Foi então que Eugenia passou ás mãos de D. Thomasia. A
-mulher do Dr. Camargo via aquelle casamento com olhos differentes do
-marido. O que ella sobretudo viu eram as vantagens moraes da filha.
-Sentou-a ao pe de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e costumes,
-que Eugenia interrompia de quando em quando, com exclamações de
-obediencia filial:
-
---Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe hade ver!...
-
-D. Thomasia sentia-se feliz. Seu rosto, cuja expressão era vulgar,
-tinha naquella occasião alguma cousa que o tornava sublime. Ella fez
-com que a filha se lhe sentasse ao collo; e ésta, sentindo que a
-molestava, deixou-se lentamente cahir de joelhos, ficando entre os
-della, a olhar para ella.
-
-Camargo, entretanto, ja não era daquelle mundo. Passeava de um para
-outro lado, com as mãos para traz, a morder a ponta do bigode. De
-quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras, mas era
-só machinalmente; seu olhar baço indicava que elle ia mergulhado em
-profundas cogitações.
-
-Naquelle homem sceptico, moderado e taciturno, havia uma paixão
-verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava Eugenia:
-era a sua religião. Concentrára esforços e pensamentos em fazel-a
-feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessario fôsse,
-a violencia, a perfidia e a dissimulação. Nem antes nem depois sentira
-egual sentimento; não amou a mulher; casou por que o matrimonio é uma
-condição de gravidade. O maior amigo que teve foi o conselheiro Valle;
-mas essa mesma amizade que o ligára ao pae de Estacio nunca recebêra a
-contra-prova do sacrificio; alias appareceria em toda a sinceridade a
-natureza do médico. Elle só conhecia os affectos por assim dizer
-caseiros e inertes, os que não sabem nem podem afrontar as intemperies
-da vida. Nas relações moraes dos homens possuia somente o trôco miudo
-da polidez; a moeda de ouro dos grandes affectos nunca lhe entrára nas
-arcas do coração. Um só existia alli: o amor de Eugenia.
-
-Mas esse mesmo amor, alias violento, escravo e cego, era uma maneira que
-o pae tinha de amar-se a si proprio. Entrava naquillo uma somma larga de
-fatuidade. Menos graciosa, Eugenia seria talvez menos amada. Elle
-contemplava a com o mesmo orgulho, com que o joalheiro admira o
-aderêço que lhe sahiu das mãos. Era a ternura do egoista: amava-se na
-propria obra. Caprichosa, rebelde, superficial. Eugenia não teve a
-fortuna de ver emendados seus defeitos, antes fui a educação que lh'os
-deu. Dos labios de Camargo nunca sahiu a expressão correctiva; nenhum
-de seus actos revellou esse procedimento vigilante e director, que é a
-nobre attribuição da paternidade. Se a indole da filha fosse ma, a
-complicidade do pae fal-a-hia pessima.
-
-Não era felizmente; seu coração conhecia as doçuras da bondade; sua
-rebeldia era um hábito, não um vicio nativo. A propria frivolidade
-foi-lhe desenvolvida pela educação, nada podendo o zelo da mãe contra
-as complacencias do pae. Ésta era a explicação tambem da fascinação
-que exercia nella o tumulto exterior da vida. Quasi se póde dizer que
-ella não conhecêra o vestido curto: a modista a desmamou; uma
-contradança foi a sua primeira communhão.
-
-Não era facil dar a Eugenia a felicidade que o pae ambicionava e a que
-mais lhe apetecia a ella. Posto não fosse perdulario, eram poucos os
-haveres do médico, de modo que á filha não podia caber peculio
-sufficiente a satisfazer todas as velleidades. Elle espreitou durante
-longo tempo um noivo, armando com algum dispendio a gaiola em que o
-passaro devia cahir. No dia em que percebeu a inclinação de Estacio,
-fez quanto pode para prendel-o de vez. Esperou muitos mezes a iniciativa
-de Estacio; e quando ella lhe entrou a fugir para a região das cousas
-problematicas, suspeitou a influência de Helena. Ja era muito que ésta
-moça diminuisse a herança do futuro genro; arrancar-lhe o genro era de
-mais. Camargo não hesitou um instante; foi direito ao fim. O resultado
-confirmou-lhe a suspeita.
-
-O casamento era muito, mas não bastava. Camargo cuidára na carreira
-política de Estacio, como um meio de dar certo relevo público ao marido
-da filha, e, por um effeito retroactivo, a elle proprio, cuja vida fora
-tanto ou quanto obscura. Se o marido de Eugenia se confinasse no repouso
-doméstico, entre a horta e a algebra, a ambição de Camargo padeceria
-immenso. Vimol-o apresentar a Estacio a maçan política; recusada a
-princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente acceita com a
-noiva. Ésta dupla victória foi o momento maximo da vida do médico.
-Elle ouvia ja o rumor público; sentia-se maior,--ante-gostava as
-delícias da notoriedade;--via-se como que sogro do Estacio e pae das
-instituições.
-
---Vou entrar na cova dos leões, sem a convicção de Daniel,--suspirou
-Estacio na occasião em que cedeu ás instancias de Camargo.
-
---Seu talento amansará os leões,--acudiu este.
-
-Assentou-se logo alli que o casamento seria celebrado na primeira semana
-de março. Os dous mezes de intervallo foram destinados ás formalidades
-ecclesiasticas e ao preparo do enxoval. Estacio aceitou tudo sem
-objecção. D. Ursula e Helena approvaram o plano. A primeira
-accrescentou uma clausula:--os noivos viriam morar com ellas em
-Andarahy.
-
-O padre Melchior, consultado sôbre o casamento, deu-lhe inteira
-approvação, e só lhe pareceu que o prazo era longo de mais. A effusão
-com que abraçou Estacio, as palavras de applauso que lhe disse
-impressionaram vivamente o mancebo.
-
---Desejava muito este casamento? perguntou elle.
-
---Muito! Seu pae ha de approval-o no ceu!
-
-Até os mortos conspiravam contra elle; Estacio aceitou resolutamente
-seu destino. A alegria do padre, ordinariamente contida e digna,
-transpoz os limites do costume, para se mostrar quasi infantil; D.
-Ursula não cabia em si do contente; Helena parecia colhêr naquelle
-casamento a sua propria felicidade. Era a bemaventurança universal que
-Estacio ia comprar a trôco de um vínculo eterno.
-
-Surgiu, entretanto, um obstaculo temporario. A madrinha de Eugenia, a
-fazendeira que lhe mandara um dia a opala, que a moça admirou namorando
-ao mesmo tempo os olhos do futuro noivo, a madrinha de Eugenia adoeceu
-gravemente, menos ainda da molestia que a accommetteu que dos annos que
-lhe pesavam nos hombros. Era senhora rica, viuva, flanqueada por duas
-sobrinhas solteiras, uma cunhada, um primo, dous filhos destes e uma
-vintena de afilhados. Ja daqui se póde inferir a estreiteza das
-esperanças de Camargo. Posto que elle não tivesse nunca preterido os
-deveres que lhe impunha o vínculo espiritual, dando á fazendeira todas
-as provas possiveis de um grande affecto, ainda assim era de recear que
-a ultima vontade da moribunda não trouxesse o cunho da estricta
-justiça, ou, quando menos, de razoavel equidade. Nestas
-circumstâncias, a viagem a Cantagallo era urgentissima, e cumpria
-realizal-a á custa dos maiores incommodos. Todo o incommodo é
-aprazivel quando termina em legado. Camargo não perdia a esperança
-desse desenlace egualmente affectuoso e pecuniario. Resolveu ir com a
-familia toda, e avisou por carta ao futuro genro.
-
-Estacio estimou o obstaculo, mas não contou com o que elle trazia no
-bojo. Chegando ao Rio Comprido achou afflictos o médico e D. Thomasia;
-Eugenia recusava sair da Corte. Em vão lhe mostravam a conveniencia de
-corresponder, em occasião tão grave, á affeição da madrinha;
-debalde lhe diziam que era ser ingrata não ir recolher o último
-suspiro da veneravel senhora, sua mãe espiritual. Eugenia recusava a
-pes junctos.
-
-Assistiu o noivo á ultima phase da lucta entre os paes e a filha. Ésta
-trazia os olhos vermelhos de chorar; batia com as mãos uma na outra,
-declarando que só iria á fôrça. Estacio procurou chamal-a á razão,
-apoiando as reflexões do pae, sem alcançar mais do que elle. Emfim,
-Eugenia poz uma condição á sua acquiescencia:
-
---Irei, se o Dr. Estacio fôr comnosco.
-
-Camargo approvou a condição _in petto_; verbalmente, oppoz-se ao
-sacrificio. Estacio enfiára; posto entre a espada e a parede, ja a
-viagem de Eugenia lhe parecia superflua.
-
---Acompanha-nos? insistiu a moça,
-
---Não é possivel, acudiu o médico; tamanho incommodo por um simples
-capricho.
-
---Pois então não vou!
-
-D. Thomasia ficou um tanto vexada com a teima de Eugenia. Estacio mordia
-o labio, olhando para a moça, cujo rosto o interrogava instantemente.
-Venceu-o o decoro; considerando Eugenia sua mulher, quiz cortar por uma
-scena que lhe parecia ridicula.
-
---Acompanhal-os-hei,--disse elle sem enthusiasmo.
-
-A solução era favoravel a todos: os tres aceitaram de boa feição.
-Marcou-se a viagem para dous dias depois. D. Ursula, apezar dos bons
-olhos com que via o casamento, achou desnecessaria a ida do sobrinho,
-mas não emprehendeu dissuadil-o. Helena approvou tudo. Elle fez sentir
-ás duas parentes a extensão do sacrificio, e esteve a ponto de retirar
-a palavra. Era tarde. A ultima noite passada em Andarahy foi cruel para
-elle; as horas voaram ligeiras como nunca. Como devia sahir no dia
-seguinte, logo cedo, alli mesmo se despediu da tia e da irmã, despedida
-de alguns dias que lhe custou como si fôra de annos. Prometteu,
-entretanto, que o regresso seria breve.
-
-O que elle não podia prometter era conjurar o drama que se lhes
-preparava, drama que ia em fim devolver-se, intenso, funesto e
-irremediavel,--do qual não o consolariam jamais nem as doçuras da paz
-doméstica, nem as glórias da vida pública.
-
-
-
-
-CAPITULO XV
-
-
-Estacio levantou-se ao amanhecer. Uma vez prompto, quiz sorprehender a
-tia e a irmã com uma lembrança sua, e escreveu n'uma folha de papel
-éstas simples palavras: «Até á volta; 6 horas da manha.» Dobrou-a
-e foi pol-a sôbre a mesa de costura de D. Ursula. Dalli passou á sala
-de jantar, depois á varanda. Aqui chegando deu com os olhos em Helena,
-que o esperava ao pe da escada.
-
---Silêncio! disse graciosamente a moça. Não faça espantos que póde
-accordar titia. Vim saber se voce precisa de alguma cousa.
-
---De nada, respondeu Estacio commovido. Mas que imprudencia foi essa
-de se levantar tão cedo?
-
---Cedo! O sol não tarda comprimentar-nos. Adeus! muitas
-recommendações a Eugenia. Não lhe falta nada, não é?
-
---Nada.
-
-Estacio recebeu a mão que Helena lhe estendêra e ficou a olhar para
-ella.
-
---Olhe que é tarde!
-
-Dizendo isto, Helena apertou-lhe a mão e procurou retirar a sua;
-Estacio reteve-a.
-
---Se soubesses como me custa ir!
-
---São apenas alguns dias...
-
---Valem por mezes, Helena! Adeus, não te esqueças de mim. Escreve-me;
-eu escreverei logo que chegar. Não faças imprudencias; não saias a
-passeio em quanto eu estiver ausente.
-
---Adeus!
-
---Adeus!
-
-Estacio quiz dar-lhe o abraço da despedida; mas a moça, menos ainda
-com a palavra que com o gesto, fel-o recuar.
-
---Não, disse ella affastando-se; as despedidas mais longas são as mais
-difficeis de supportar.
-
-Recuou até á porta da sala de jantar, fez um gesto de despedida e
-entrou. Estacio desceu a custo as escadas. Helena viu-o descer e sahir;
-depois subiu cautellosamente ao seu aposento. Alli sentou-se alguns
-minutos, pensativa e triste. Ergueu-se enfim, vestiu rapidamente as
-roupas de montar; collocou o chapellinho preto sôbre os cabellos
-penteados á ligeira, e desceu. Na chacara esperava-a Vicente, com a
-egua ajaezada e prompta. Helena montou sem demora; o pagem cavalgou uma
-das duas mulas que havia na cavallariça e os dous sahiram a trote na
-direcção da casa do alpendre e da bandeira azul.
-
-A casa estava ainda silenciosa; porta e janellas conservavam-se
-hermeticamente fechadas. Helena apeou-se e bateu de mansinho; repetiu as
-pancadas progressivamente mais fortes. Ninguem lhe respondeu. Helena
-impaciente rodeou a casa; mas parece que achou egualmente fechadas as
-portas do fundo, por que volveu logo. Collou o ouvido á porta e
-esperou. Quando lhe pareceu que era baldado o esfôrço, tirou da
-algibeira um lapis e um pedacinho de papel; collocou o pe no degrau de
-tijolo e sôbre o joelho escreveu algumas palavras; dobrou depois o
-papel e introduziu-o por baixo da porta. Esperou ainda alguns minutos,
-caminhou para a egua, montou e regressou a casa.
-
-Vinha triste e pensativa. A egua, a passo vagaroso, não sentia o
-esfôrço da cavalleira, que a deixava ir, frouxa a redea, inutil o
-chicote. O pagem levava os olhos na moça com um ar de adoração
-visivel; mas, ao mesmo tempo, com a liberdade que dá a confiança e a
-complicidade, fumava um grosso charuto havanez, tirado ás caixas do
-senhor.
-
-D. Ursula não estava ainda levantada; mas Helena não lhe occultou o
-passeio. O dia correu triste e solitario, como os seguintes, sem embargo
-da companhia que iam fazer ás duas senhoras as pessoas mais íntimas.
-Mendonça, a quem Estacio as recommendára, era alli pontual; seu
-espirito conseguia disfarçar um pouco as saudades do moço ausente. O
-padre Melchior prolongava suas visitas quotidianas; um mesmo sentimento
-ligava a todas as pessoas.
-
-O mesmo era, e não unico, por que outro e mais egoista e pessoal veiu
-alli viçar tambem. Mendonça sentiu que metade de seu destino estava
-acabada, e que a outra metade ia começar, mais circunspecta que a
-primeira. O relogio em que elle viu bater essa hora fatidica foram os
-olhos, de Helena. Mendonça começava a amar, Estouvado, e não
-corrupto, atravessára o delirio dos primeiros annos sem perder a flor
-dos castos affectos, sem sequer a haver colhido. Helena sentiu nascer e
-crescer essa adoração silenciosa, sem parecer que a descobrira. Não
-animou o mancebo nem o repelliu; redobrou de confiança,--dessa
-confiança, que só se dá aos simples familiares, e que mostra
-claramente a um namorado a inanidade de suas esperanças. Ao parecer de
-extranhos, a situação affigurava-se de perfeita concordia. O
-coronel-major piscou um dia os olhos ao Dr. Mattos; o Dr. Mattos
-proferiu um--_latet anguis in herba_--e ambos foram repartir o pão das
-conjecturas com a espôsa do advogado, senhora muito perspicaz nos
-namoros de salão. A opinião dos tres é que o casamento era cousa
-provavel e talvez certa. Um só obstaculo podia haver; eram os escrupulos
-do pae de Mendonça. Esse mesmo obstaculo não existia, por quanto,
-além das qualidades estimaveis da moça, havia o reconhecimento legal e
-social, público e doméstico; accrescendo (observação do Dr. Mattos)
-que duzentas e tantas apolices mereciam um comprimento de chapeu e não
-davam logar a cinco minutos de reflexão.
-
-As primeiras cartas de Estacio chegaram uma tarde, em que as duas
-senhoras e Mendonça se achavam na varanda, acabado o jantar, bebendo as
-últimas gotas de cafe. D. Ursula, depois de pôr em actividade tres
-mucamas para lhe irem procurar os oculos, levantou-se e foi ella propria
-á cata delles, coma sua carta na mão. Helena ficou com a que lhe era
-dirigida estava sentada juncto a uma das janellas; abriu-a e leu-a para
-si:
-
-
-ESTACIO A HELENA.
-
-«Quando ésta carta te chegar ás mãos estarei morto, morto de
-saudades de minha tia e de ti. Nasci para os meus, para a minha casa, os
-meus livros, os meus habitos de todos os dias. Nunca o senti tanto como
-agora, que estou longe do que ha mais caro neste mundo. Poucos dias la
-vão, e ja me parecem mezes. Que seria se a separação não fosse tão
-limitada?
-
-«Na carta que escrevo a ti tia dou conta de nossa viagem e da saúde de
-todos. D. Clara está, na verdade, á beira da morte; mas pode durar
-ainda alguns dias, e o Dr. Camargo resolveu esperar até dar-lhe os
-ultimos adeuses. A recepção que nos fez a familia foi cordialissima.
-Ha aqui uma cunhada da enfêrma, um primo, tres sobrinhos, outros
-parentes e varios afilhados. O primo é commendador e tenente-coronel;
-elle e os outros são a gente mais affavel do mundo. Os homens da
-familia são influências eleitoraes; quando souberam da minha
-candidatura, offereceram-me logo os seus serviços, com a clausula unica
-de que haja prévia recommendação do Rio do Janeiro. Agradeci o favor,
-com muita abundancia d'alma porque a tal candidatura, que não me
-seduzia nem seduz, não ha remedio se não cuidar della, de modo que o
-meu nome não padeça, a injúria da derrota. Que te parece ésta
-pontasinha de vaidade?
-
-«Mudemos de assumpto, que este me afflige, e não quero philosofar sem
-ti, que es a minha companheira nestas vadiações de espirito. Ahi não
-te lembrarás, talvez, das nossas palestras; aqui lembra-me tudo. De
-manhã, dou o meu passeio equestre, como la; mas que differença! Quem
-vae a meu lado é o tenente-coronel, excellente homem, coração de
-pomba, com o defeito unico e enorme de se não chamar D. Helena do
-Valle, a minha boa Helena, que la está na Côrte a divertir-se sem seu
-irmão. Elle fala de tudo e muito: do cafe, do governo, das eleições,
-dos escravos, dos impostos. Eu ouço-o, que é o menos que posso fazer,
-e deixo-o ir sem interrupção. Ás vezes, como que desconfiado,
-recolhe-se ao silêncio; eu ato o fio da conversa e elle encarrega-se de
-desenrolar o novello. Tão pouca cousa o faz feliz! Já cacei uma vez;
-confesso-te que é o que me pode distrahir um pouco. Pensava ter perdido
-o costume; mas não perdi. A modestia impede-me dizer mais.
-
-«A fazenda é vasta e a casa excellente. Não te direi que gósto da
-vida agricola; não gósto, não me dou com ella. Mas viver num recanto
-como este, a dous passos do mato, a tantas legoas da rua do Ouvidor,
-isso creio que se dá com a minha indole. Consultaremos titia. Eu não
-sei o que é amar o tumulto exterior; acho que é dispersar a alma e
-crestar a flor dos sentimentos. Nasci para monge... e creio que tambem
-para despota, porque estou a planear uma vida ignorada e deserta, sem
-consultar tuas preferencias. Sou um Cromwell com tendencias de frade;
-ou, por dizer tudo n'uma só palavra: sou um Lutero... muito inferior.
-
-«Pobre Helena! Ja la vão quatro páginas só a falar de mim. Vejamos ó
-que tens feito. Andas muito triste? passeas? lês? jogas? tocas? Conta-me
-a tua vida o mais miudamente que puderes; conta-me a vida de todos. Não
-me escondas nada; se, por exemplo, ao abrir um livro ou tocar uma tecla
-do piano, pensares em mim, escreve isso mesmo, marcando o dia e até a
-hora, se puder ser. E depois dou-te o direito de perguntar onde ficou a
-minha gravidade, e responderei que ha uma puerilidade séria, e que os
-extremos tocam-se. Quando assim não seja, a culpa é do ceu, que me
-não deu uma irmã creança; agora é preciso que comecemos pela
-primeira phase da vida.
-
-«Deixei muito recommendado ao Mendonça que fôsse a nossa casa com
-frequencia. Não sei se elle se terá lembrado e cumprido a promessa que
-me fez. Se não tiver cumprido, has de mandar-lhe dizer que eu o detesto
-e abomino, que elle é o maior traidor que o ceu cobre; que tudo fica
-acabado entre mim e elle; que a amizade é um culto, etc. Dize o que te
-parecer e pelo modo que te é usual.
-
-«Lembro-me de ti a proposito de tudo. Hoje de tarde, por exemplo, o
-terreiro offerecia ura aspecto bonito e caracteristico. Se ella
-estivesse aqui, disse commigo, faria um magnifico desenho. Peguei de um
-lapis que trouxe, meia folha de papel, e quiz reproduzir o panorama.
-Escrevi um problema algebrico! Foi um conselho que me deu o lapis:
-ninguem se metta a fazer aquillo que ignora. Eu ignorava o que era estar
-ausente da familia; por que motivo me determinei a tental-o?
-
-«Interrompi ésta carta para receber o Dr. Froes, que é o médico de D.
-Clara; veiu ao meu quarto para me dizer que o estado da doente é
-perdido; que a morte é certa; mas que a vida póde prolongar-se ainda
-por muitos dias. Ve que perspectiva! Estou com raiva de mim mesmo; esses
-ultimos dias da enfêrma pesam sôbre mim como se fôra o punho fechado
-do destino. Se a morte é certa, por que viver alguns dias mais? E é
-vida isso, ou é morrer aos goles, sem consciencia do que se perde nem
-do que se vae ganhar?
-
-«Está decidido; posso ir daqui a seis dias ou daqui a um mez. Sera o
-que Deus quizer. Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só
-achei um _Manual de medicina prática_. Manda-me alguma cousa que me
-faça lembrar Andarahy. Tira da estante oito ou dez volumes, á tua
-escolha. Manda tambem algum trabalho de agulha teu; quero mostral-o á
-cunhada de D. Clara, a quem gabei muito os teus talentos. Se puderes
-desenhar alguma cousa, á pressa, o tanque, a varanda, ou qualquer outro
-logar, faze-o, e manda com o resto. Escreve-me longamente; conta-me tudo
-o que houver interessante; fala-me de ti, que é o meio de consolar
-minhas saudades, que são immensas, immensas como este amor que tenho a
-minha familia toda. Vou fazer por voltar breve. Adeus, minha boa Helena;
-adeus, minha vida, adeus, ó mais bella e doce de todas as irmãs!
-
-«_P.S._ Reli a carta, e fiquei envergonhado do trecho a respeito da
-vida da doente. Perdoa-me a ferocidade, e leva-a em conta da solidão.»
-
-
-
-
-CAPITULO XVI
-
-
-Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa a olhar para as
-folhas da trepadeira, que do lado de fóra viera a subir pela muralha da
-varanda, e a debruçar-se emfim do parapeito para dentro. A carta
-ficára aberta sôbre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos,
-olhava para ésta, sem ousar falar-lhe.
-
-Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da intelligencia
-humana. Póde dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da
-graça feminil. Mendonça o sentiu contemplando o busto de Helena e a
-casta ondulação da espadua e do seio, cobertos pela caça fina do
-vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do logar em que ficava,
-Mendonça via-lhe o perfil correcto e pensativo, a curva molle do
-braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ella
-trazia. A attitude convinha á belleza melancholica de Helena. O rapaz
-olhava para ella sem movimento nem voz.
-
-A tarde expirava; a côr verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto
-cinzento-escuro que precede a côr fechada da noite. A propria noite
-desceu; e um escravo entrou na varanda, a accender as duas lampadas que
-pendiam do tecto. Ésta circumstância accordou a moça, e bastou-lhe
-voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estacio a alguns passos de
-distância.
-
---Estava ahi? perguntou Helena estremecendo.
-
---D. Ursula não voltou, respondeu Mendonça com timidez; não quiz
-interromper a leitura que a senhora fazia.
-
---A leitura? A leitura acabou ha muito tempo.
-
---Mas tambem se lê com o espirito.
-
-Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso.
-
---Não sei ler de cór, disse ella, erguendo-se e sahindo da varanda.
-
-Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera elle tão grave que a pudesse
-offender? Repetiu suas proprias palavras e não lhes achou sentido mau.
-Certo, porém, de que a molestára, alli ficou aborrecido de si mesmo,
-desejoso de lhe explicar tudo, se alguma cousa houvesse explicavel. Apos
-alguns instantes, resolveu entrar tambem. Entrou; Helena não estava nem
-na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Ursula com o Dr. Mattos
-e o coronel-major. Dalli passou á sala de visitas. Helena não o viu
-entrar; estava mergulhada n'uma poltrona com a cabeça nas mãos.
-Commovido, deteve-se alguns instantes a contemplal-a; depois caminhou
-para ella e falou-lhe.
-
-Helena ergueu a cabeça.
-
---Perdõe-me, disse elle, se alguma cousa lhe disse que a magoou.
-Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou
-triste por isso?
-
-A moca cravou nelle um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu
-logo. Mendonça adoptou o melhor dos alvitres naquella occasião;
-inclinou-se e recuou para sahir. Helena chamou-o; elle approximou-se
-outra vez, com um ar de tão doce resignação, que lisonjearia o mais
-levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; elle apertou-a e teve
-impetos de a beijar uma e muitas vezes, triumphando naquelle unico
-instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena
-mostrou-lhe o trecho da carta em que Estacio se referia a elle; falaram
-dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assumpto que
-exclusivamente preoccupava o moço. Elle sahiu dalli sem ter dito nada
-de seu coração. Chegando á rua achou-se poltrão e ridiculo, disse
-mil nomes feios a si proprio; emfim, prometteu declarar tudo a Helena no
-dia seguinte.
-
-No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se á capella a ouvir a
-missa do padre Melchior. Acabada a cerimonia, não seguiu para casa, com
-D. Ursula, mas foi ter á sacristia, onde o padre acabava de tirar os
-paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estacio, nessa manha,
-pedira a Helena que lh'a deixasse ver.
-
---Falam sempre ao coração as lettras dos amigos, dissera elle.
-
-Helena deu-lhe a carta, que o padre recebeu com uma expressão antes de
-curiosidade que de affecto. Leu-a vagarosamente, como escrutando o
-sentido e as palavras; e sendo longa a epistola, longo foi o tempo que
-elle despendeu em a interpretar. Durante esse tempo, Helena admirava-lhe
-a figura austera, a serenidade religiosa, que é a coroa mystica do
-verdadeiro ecclesiastico. A sacristia era pequena; duas altas janellas
-deixavam entrar a luz, o ar e o aroma das folhas e das flôres da
-chacara. Entre a cimalha e o telhado algumas andorinhas haviam fabricado
-os ninhos, donde sabiam, como pensamentos de juventude, a adejar ao sol
-da manha. Ao pe daquelle quadro exterior de alegria e verdura, a
-sacristia tinha certo ar melancholico e severo, que lançava n'alma o
-esquecimento das vicissitudes humanas. Helena deixou-se captivar desse
-sentimento de abstenção e elevação; se alguma dor ou remorso a
-pungia, esqueceu-os, por um minuto ao menos, entra aquellas paredes
-desataviadas, deante de um padre, entre uma imagem de Jesus e as obras
-vivas do Creador.
-
-Lida a carta, Melchior dobrou-a com ar pensativo; depois entregou-a á
-moça.
-
---Ja respondeu? perguntou elle.
-
---Ja; trouxe-lhe a carta que vou mandar hoje mesmo.
-
-Melchior abriu-a e leu; não gastou menos tempo, ainda que era de
-menores dimensões. O estylo era affectuoso, mas muito menos exhuberante
-que o da carta de Estacio. Ella contava-lhe, em suas feições geraes, a
-vida que alli passavam, desde que elle partira, as occupações de cada
-dia e as distrações da noite.
-
-«Vivemos, dizia a moça, como podem viver duas creaturas que sabem a
-affeição que lhes tem um parente amigo, ausente embora, mas não
-esquecido,--nem ingrato. O padre Melchior, algum dos visinhos, e o Dr.
-Mendonça são as nossas visitas habituaes. Voce sabe o que vale o
-padre; é a mais bella alma que Deus mandou ao mundo. Os risinhos são
-affaveis, como sempre. O Dr. Mendonça é verdadeiramente digno da nossa
-affeição e confiança. Disse-lhe o que voce me escreveu; elle riu,
-como homem seguro de escapar á punição.
-
-«Pena é que voce tenha de se demorar ahi tanto tempo; mas, se alguma
-esperança pode haver de salvar a doente, damo-nos por bem pagas da
-demora. É verdade que voce não é médico; mas ha ahi outra doente,
-para quem é, não só médico, mas até toda a medicina. Porque razão
-me não escreveu Eugenia? Eu não cuidei que essa amiga me esquecesse na
-vespera de ser rainha cunhada. Se estivessemos mais perto ia puxar-lhe
-as orelhas. Diga-lhe isto; e se tiver occasião de emprestar-me os seus
-dedos, applique-lhe o castigo, declarando-lhe o delicto commettido e o
-juiz que a sentenciou.
-
-«O que voce diz da vida solitaria é muito justo, mas impraticavel. Os
-amigos não nos iriam ver; e poderiamos nós dispensal-os? Tal é a
-opinião de titia e a minha. O melhor de tudo é este meio termo de
-Andarahy; nem estamos fóra do mundo, nem, no meio delle. O ruido
-externo pode ter os effeitos de que voce fala; mas elle é ás vezes
-preciso para aturdir e distrahir o espirito. Tambem a solidão tem suas
-dores, e fundas: tambem ella abala o coração. Nem um extrema nem
-outro.»
-
-A carta continha alguns periodos mais, não muitos; tres ou quatro vezes
-falava em Eugenia, com tamanha insistencia que punha em relevo o
-silêncio a tal respeito conservado por Estacio; falava-lhe da belleza
-da noiva, do casamento proximo, do amor que os faria felizes, e da
-ventura que ambos dariam a todos os seus.
-
-Quando o padre acabou de ler a resposta; abriu os braços a Helena;
-depois abrangeu com as mãos a cabeça da moça e contemplou-a durante
-alguns segundos.
-
---Toda a sua alma está nesse escripto, disse elle; vejo ahi a reflexão
-e o affecto. Tanto melhor! Ha comtudo uma lacuna: não transmitte a seu
-irmão as minhas saudades; mas ha tambem uma excrescencia: louva meritos
-que não possuo. Embora! Mande-a...
-
---Escreverei duas linhas mais.
-
---Pois sim. Diga-lhe que se apresse porque estou velho e posso morrer
-antes.
-
---Oh! protestou Helena.
-
-Melchior olhou para ella silenciosamente.
-
---Cre que Estacio seja feliz? perguntou elle emfim.
-
---Creio.
-
---Tambem eu.
-
-Outro silêncio. O primeiro que o rompeu foi o padre.
-
---Por que se não casa tambem? disse elle.
-
---Eu?
-
---De certo. Póde ser que muito breve, talvez...
-
---Talvez, nunca.
-
-Melchior franziu a testa; sua physionomia, de ordinario meiga, tornou-se
-severa, como a consciencia delle. O padre tinha uma das mãos de Helena
-entre as suas; deixou-a insensivelmente cair. Entre os dous
-estabeleceu-se um silêncio que os acabrunhava e que não ousavam
-romper; como subjugados por um mysterio, receiava cada um delles que o
-outro lh'o lesse na fronte; instinctivamente desviaram os olhos.
-
-Melchior foi o primeiro que voltou a si. A reflexão corrigiu a
-expontaneidade; e o padre reassumiu o gesto usual, com essa
-dissimulação, que é um dever, quando a sinceridade é um perigo.
-
---Vamos la, disse elle; ninguem póde decidir o que hade fazer amanhã;
-Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais do que
-transcrevel-as na terra.
-
---É verdade! confirmou ella com um gesto de cabeça, e sem erguer os
-olhos.
-
---Amanhã, continuou o padre, o acaso,--isso que os incredulos chamam
-acaso, e que é a deliberação da vontade infinita,--lhe apontará um
-homem digno da senhora; e seu coração lhe dirá; é este; e o suspiro
-desalentado de hoje converter-se-ha n'um olhar de graças ao ceu. Ora, o
-que eu lhe peço, o que eu desejo, é que se apresse tanto que eu possa
-casal-os...
-
---Oh! mas não vae morrer amanhã, interrompeu Helena.
-
---Estou velho, minha filha; estes cabellos brancos são ja a neve desse
-mar polar para onde navegamos todos. Conto sessenta annos. A morte póde
-colher-me um dia proximo...
-
---Vamos almoçar, disse Helena sorrindo.
-
-Sahiram da sacristia, atravessaram a capella, e penetraram na chacara.
-Na occasião em que iam transpor a porta da capella, viram Mendonça
-entrar em casa. Melchior estacou, e olhou para Helena. Ésta ia como
-acabrunhada e absorta. O gesto do padre, quando ella lhe declarou que
-não se casaria talvez nunca, ficára-lhe gravado na memoria, como um
-enigma, que talvez receiava decifrar. Poucos minutos eram passados;
-contudo, ella pôde reflectir, e colligir os elementos de uma
-resolução. Detendo-se, com o padre, á porta da capella, viu tambem
-entrar Mendonça, Os olhos da moca e do padre interrogaram-se de novo,
-mas desta vez nenhum delles os desviou.
-
---Vê aquelle homem? perguntou Helena. Parece-lhe que seria bom marido?
-
---Excellente, de certo, disse vivamente Melchior; caracter, educação,
-sentimentos.
-
---Tem ainda uma virtude particular: ama-me.
-
---Sei.
-
---Elle lh'o disse?
-
---Não, mas ve-se. É sabido de todos os que frequentam ésta casa. A
-probabilidade do casamento é objecto de commentarios; e a opinião
-geral é que elle se fara dentro de pouco tempo. Confessou-lhe alguma
-cousa?
-
---Nada; mas os olhos da mulher amada não são menos sagazes que os dos
-padres amigos. Acha que devo confirmar a opinião dos outros?
-
---Acho; consulte porém seu coração.
-
---Ja consultei.
-
---Neste unico instante?
-
---Nada menos.
-
---Devéras? disse Melchior derramando um olhar de paternal ternura no
-rosto serio de Helena.
-
---Não digo que o ame desde ja; mas a affeição que elle me tem
-reflectirá em meu coração, e eu virei a amal-o. O que importa saber
-é que é digno de mim. De todos os que me pretendessem nenhum lhe seria
-superior.
-
---Ainda bem! Contudo, repare que vae contrahir uma obrigação
-perpétua, e que um contracto destes não póde ser deliberado em poucos
-instantes.
-
---Oh! nesse ponto a minha ignorancia sabe mais do que a sua theologia.
-Que são minutos e que são mezes? Paixões de largos annos, chegando ao
-casamento, acabam muitas vezes pela separação ou pelo odio, quando
-menos pela indifferença. O amor não é mais que um instrumento de
-escolha; amar é eleger a creatura que hade ser companheira na vida,
-não é afiançar a perpétua felicidade de duas pessoas, por que essa
-póde exvair-se ou corromper-se. Que resta à maior parte dos
-casamentos, logo apos os annos da paixão? Uma affeição pacifica, a
-estima, a intimidade. Não peço mais ao casamento, nem lhe posso dar
-mais do que isso.
-
---Não gósto de tanta reflexão era tão verde edade, replicou
-benevolamente Melchior; todavia encanta-me esse raciocinio, que ao cabo
-de tudo póde ser verdadeiro. Mas não me desdigo; alguns minutos é
-pouco tempo; reflicta ainda vinte e quatro horas.
-
---Nem um instante mais, insistiu Helena. Minhas reflexões são lentas
-ou subitas: ou cinco minutos ou um anno; escolha.
-
---Pois reflicta cinco minutos, replicou o padre sorrindo.
-
---Ja la vão quatro; aproveitarei o último para lhe dizer que em nada
-disto falaria se não fossem as qualidades notaveis desse moço; e para
-accrescentar que a elle me liga certa sympathia de genios... é talvez a
-semente do amor.
-
-Tinham chegado ao primeiro degrau da escada da varanda. Subiram e
-penetraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula e Mendonça, este
-a percorrer com os olhos um jornal do dia. O almoço serviu-se
-immediatamente.
-
---Padre-mestre, disse D. Ursula, demorou-se tanto que cuidei... tivesse
-ideia de me arrebatar Helena.
-
---Estive-a ouvindo de confissão, respondeu Melchior.
-
---E pode absolvel-a?
-
---De certo.
-
---Mas com grande penitencia, não?
-
---A mais facil de todas, acudiu Helena olhando para o padre.
-
---Oh! então é que os peccados são leves! concluiu D. Ursula. Não lhe
-parece?
-
-Éstas ultimas palavras foram dirigidas a Mendonça, na occasião em que
-todos caminhavam para a mesa. Mendonça não disse nada. Seus olhos
-ousavam apenas resvalar pela moça; contra o costume, elle falava
-pouco,--menos ainda que na vespera e nos dias anteriores. D. Ursula via
-a differença, mas não a comprehendia.
-
---Não quero saber que peccados confessou,--disse ella sentando-se; mas
-estou certa que o maior delles não levaria ninguem ao purgatorio.
-
---Veja o que é uma tia indulgente, observou Helena a Mendonça,
-sentando-se a seu lado.
-
-Preoccupado com a conversa que acabava de ter na sacristia e na chacara,
-Melchior pouca attenção prestou a principio ao filho do commerciante.
-Seu espirito analysava as circumstâncias do momento e pesava a
-responsabilidade que lhe podia vir de qualquer resolução que
-adoptasse. Apos um longo dialogo com a sua consciencia, o velho
-sacerdote inclinou os olhos ao mancebo, que lhe ficava defronte, ao lado
-de Helena. Viu-os conversar com essa familiaridade de bom gôsto, que é
-a pedra de toque dos costumes polidos. Ella mostrava-se graciosa,
-solicita e attenta, como uma espôsa amante; elle parecia enamorado da
-voz e das falas da donzella; como que um clarão interior lhe
-desvendára à alma os horizontes infinitos da esperança. Familiarisado
-com Helena, tratado por ella com exquisita attenção, era comtudo a
-primeira vez que ella lhe falava, não como a um confidente amigo, mas
-como a um homem que poderia vir a ser seu esposo. Alguma seriedade, um
-olhar submisso, uma attenção continuada, fizeram essa differença que
-antes foi sentida pelo coração do que descoberta pelos olhos.
-
-No fim do almôço, Melchior dirigiu-se para a sala de visitas, com
-Helena. Mendonça acompanhou-os. A resolução do padre estava assentada
-de raiz; elle acceitava aquelle casamento como um presente do ceu.
-Apenas entrados ha sala, travou das mãos de um e outro e lhes disse,
-com voz commovida:
-
---Promettem não zangar-se commigo?
-
---Por que? interrogou Mendonça com os olhos.
-
-Helena baixára os seus.
-
---Promettem?
-
---Padre-mestre... começou Mendonça sem poder concluir a phrase.
-
-O padre olhou silenciosamente para um e outro. Talvez hesitava falar;
-talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração. Urgia
-romper o silêncio; fel-o com solemnidade:
-
---Serei duas vezes padre: segundo a natureza e segundo o Evangelho.
-Quando duas creaturas se merecem, é servir a Deus emprestar a voz ao
-coração que não ousa falar. O senhor ama ésta menina; leio-lhe dos
-olhos o sentimento que o arrasta para ella; são dignos um do outro. Se
-é a timidez que lhe fecha os labios, eu sou a voz da verdade e do amor
-infinito; se outro motivo, serei juiz complacente para escutal-o.
-
-Ouvindo éstas palavras, Mendonça ficou aturdido e mudo. Não só a
-fortuna lhe chegava ás mãos, quando elle menos esperava, mas até
-escolhêra um caminho desusado e extranho. A realidade confundia-se alli
-cora o sonho. A presença de um terceiro era sufficiente motivo para
-acanhar os mais resolutos; accrescia a veste sacra do sacerdote que dava
-aquillo um ar de solemnidade e consagração. Mendonça recobrou enfim
-o uso dos sentidos; sua resposta unica e eloquente, foi estender a mão
-a Helena, gesto a que a moça correspondeu com simplesa e naturalidade.
-
---Não se enganaram meus olhos, disse o padre. Ama-a, e póde dar-lhe a
-felicidade que lhe desejo a ella. Tambem Helena o fara venturoso, não?
-perguntou elle voltando-se para á moça.
-
---Mas é isto um sonho? perguntou enfim Mendonça.
-
---A vida não é outra cousa, retorquiu o capellão; velho pensamento e
-velha verdade. Façamos por que o sonho seja agradavel e não arido ou
-triste. Promettem-me que se farão felizes?
-
---Não ambiciono outra cousa, disse o rapaz; será o meu cuidado e a
-minha glória.
-
---Seu amor, continuou Melchior, é mais forte que o de Helena; eu
-consultei-a antes, e li em seu coração. Elege-o com prazer, embora sem
-enthusiasmo. Não é a paixão cega que a faz falar é um sentimento
-brando e singello, por isso mesmo duradouro. A reflexão de um corrigirá
-a violencia do outro, e os dous sentimentos se completarão pela virtude
-especial de cada um.
-
-Ésta explicação franca de Melchior teve o condão de ser agradavel
-aos dous. Helena estimou que elle nem lisonjeasse as illusões de
-Mendonça, nem a désse como acceitando indifferente e estouvada o
-casamento proposto. Pela sua parte, Mendonça viu nas palavras do padre
-um indicio da sinceridade de Helena, e aceitou o pouco offerecido, com a
-certeza de multiplical-o. O caracter de Melchior e a veneração que
-mereciam suas virtudes, eram fianças de veracidade e davam ao acto
-singello que alli se passava um forte cunho de santidade e elevação.
-Não era uma vulgar declaração de amor, sugeita ás variações do
-espirito ou do interesse; mas verdadeiros esponsaes, em que a religião
-era inspiradora e testemunha.
-
-
-
-
-CAPITULO XVII
-
-
-Aquelle dia foi marcado no calendario de Mendonça com lettras de ouro e
-setim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Elle viveu essas horas
-todas n'um estado de somnambulismo e extasis. Tencionava referir tudo á
-mãe, logo que entrou em casa ao meio dia; mas não se atreveu, porque
-elle mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas azas
-de uma chimera. De noite voltou a Andarahy; achou em Helena o mesmo modo
-affectuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva,
-nenhuma contemplação namorada; um meio termo que o continha a elle
-proprio, e não era menos aprazivel ao coração. A nova situação era,
-entretanto, sensivel, porque os vigilantes de fóra, trocaram entre si
-olhares profundos e inundados de graves descobertas; um delles, o
-coronel-major, chegou a proferir uma allusão, que os interessados
-fingiram não perceber.
-
-Quando Mendonça chegou a casa, nessa noite, ia mais que nunca cheio de
-commoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas ahi entrou,
-pareceu-lhe transformada por uma vara magica; elle viu-a povoada de
-seres phantasticos e rutilantes que iam e vinham do ceu á terra e da
-terra ao ceu. A côr deste era unica entre todas as da palheta do divino
-scenographo. As estrêllas, mais vivas que nunca, pareciam saudal-o de
-cima com ventarolas electricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e
-despeito. Azas invisiveis lhe roçavam os cabellos, e umas vozes sem
-boca lhe falavam ao coração. Seus pes como que não pousavam no solo;
-elle ia extatico e sem consciencia de si. Era aquelle o galhofeiro de ha
-pouco? O amor fizera esse milagre mais.
-
-Um dos theatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era
-desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que alias expirava de
-parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de ater-se á
-realidade das cousas, tão chimerico se lhe affigurava tudo o que se
-passára desde manhã.
-
-Um expectador,--o filho do coronel-major,--viu-o a alguma distância e
-foi sentar-se ao pe delle.
-
---O senhor que tem melhor vista,--disse o academico--desengane-me;
-aquella moça que alli está, naquelle camarote, não é a andorinha
-viajante?
-
---A andorinha viajante? repetiu Mendonça olhando para elle; que quer
-dizer esse nome?
-
---É a alcunha da irmã de Estacio. Sera ella que está alli, com uma
-senhora edosa?
-
---Mas porque lhe chamam assim?
-
---Eu sei! Naturalmente porque sae á rua todos os dias. Na verdade, é
-um passear! Mal amanhece, la vae trepada no cavallinho, com o pagem
-atraz...
-
---Quem lhe poz essa alcunha?
-
---As alcunhas são como as mofinas; não tem autor.
-
-Cahíra o panno; Mendonça despediu-se alli mesmo e sahíu. Na rua
-repetiu mentalmente as palavras do joven academico. Ao cabo de alguns
-minutos sorriu; comprehendêra que, apenas suspeitada a sua felicidade,
-ja a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os hombros,
-resoluto a supportar tranquillo essa livida companheira do successo.
-
-Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvêra a occupal-o
-exclusivamente. So, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos
-daquelle dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com
-alguem, escreveu uma longa carta a Estacio, narrando-lhe toda a
-história do seu coração, suas esperanças e a prompta realisação
-dellas. A alma derramou-se no papel impetuosa e exhuberante. O estylo
-era irregular, a phrase incorrecta; mas havia alli a eloquencia e a
-sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia
-dar ao amigo, logo que ella lhe chegasse ás mãos, levando a notícia
-de que as vinculos atados na aula iam apertar se na familia. «Vem
-quanto antes, dizia elle ao terminar a missiva; tenho ancia de
-abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fara o mais feliz
-dos homens!»
-
-Quando esta carta chegou a Cantagallo, Estacio voltava de uma pequena
-excursão, que fizera com o pae de Eugenia. Conheceu a letra do
-sobrescripto; abriu negligentemente a carta; leu-a com assombro. Á
-impressão foi tão visivel, que Camargo lhe perguntou de que se
-tratava.
-
---Recebo uma noticia que me obriga a partir amanhã, disse elle.
-
---Negocio grave?
-
---Grave.
-
---Ainda assim, nesta occasião.
-
---Que tem? D. Clara póde ainda resistir á morte alguns dias; e posto
-que a minha ausencia não prejudique nada do facto a que alludo, comtudo
-é mister que me informe e providencie.
-
---Algum negocio relativo ao inventário?--aventurou Camargo, que nada
-conhecia mais grave que o dinheiro.
-
---Justamente, respondeu machinalmente Estacio.
-
-Camargo consolou a filha do desgôsto que lhe causava a partida do
-noivo; falou-lhe a linguagem da razão; disse que havia assumptos
-praticos, a que os sentimentos tinham de ceder o passo alguma vez. No
-dia seguinte de manhã partiu Estacio na direcção da Corte, não sem
-prometter que voltaria, se a molestia ou qualquer outro motivo obrigasse
-a familia a demorar-se em Cantagallo.
-
-Ninguem esperava por elle em Andarahy. Entrando na chacara,--era de
-noite,--viu Estacio que a sala que ficava no angulo esquerdo da frente
-da casa estava allumiada e tinha gente. A sala ficava ao rez do chão, e
-as janellas estavam abertas. Elle parou a pouca distância, e pôde
-distinguir o coronel-major e o Dr. Mattos a jogarem o gamão; a mulher
-do advogado falava a D. Ursula e Melchior, em um dos lados; do outro
-estava assentada Helena, tendo Mendonça deante de si.
-
-Estacio deu volta aos fundos da chacara, e entrou pela varanda. Os
-escravos que o virara chegar deram signal da novidade, com vozes de
-alegria, que alias não chegaram até ás pessoas da sala. Estas só
-souberam do recem-chegado quando este assomou á porta. A satisfação
-de o ver foi geral e sincera em todos. Estacio distribuiu abraços e
-apertos de mão. Melchior, que se deixára ficar de lado, foi o último
-com quem elle falou.
-
---O Dr. Camargo veiu? perguntou D. Ursula ao sobrinho logo depois que
-este comprimentára a todos.
-
---Não, respondeu Estacio, a doente não póde escapar, mas ainda a
-deixei com vida.
-
---Imagino a impaciencia dos herdeiros.
-
-Ésta observação philosophica do coronel-major não teve nenhum
-effeito. Melchior, que a reprovára anteriormente, fez mudar a conversa,
-informando-se da familia de Camargo. Estacio deu todas as notícias que
-podiam interessar; depois falou de alguns incidentes da viagem; afinal
-obteve licença para ir mudar de _toilette_.
-
-Mendonça acompanhou o amigo, alcançando-o ainda na escada. Subiram
-junctos e junctos entraram no quarto.
-
---Agora que estamos sos, perguntou Mendonça, houve por la alguma cousa?
-
---Nada.
-
---Tanto melhor!
-
-Um escravo entrou no quarto, afim de servir a Estacio; Mendonça,
-ancioso por lhe falar de Helena, contentou-se com trocar algumas vagas
-indicações.
-
---Recebeste a minha carta? disse elle.
-
---Recebi.
-
---Não esperavas por ella, aposto?
-
---Não.
-
---Como eu não esperava escrevel-a. Estás aborrecido, continuou elle
-depois de um silêncio.
-
---Estou cançado.
-
---Naturalmente, assentiu Mendonça abrindo um livro que achou sobre a
-mesa e tornando-o a fechar.
-
-O silêncio prolongou-se alguns minutos, durante os quaes Mendonça
-tornou a abrir o livro, examinou uma espingarda de caça, preparou um
-cigarro e fumou. O escravo servia o senhor com a pontualidade de quem
-lhe conhecia os costumes. Estacio continuava mortalmente silencioso;
-Mendonça falou algumas vezes, sobre cousas indifferentes, e o tempo
-não correu, andou com a lentidão que lhe é natural quando trata com
-impacientes. Logo que Estacio se deu por pro rapto, e o escravo sahiu,
-Mendonça voltou directamente ao assumpto que o preoccupava.
-
---Estava ancioso por ver-te, disse elle. Não nos é possivel falar
-agora: não temos tempo. Mas quero dar-te um abraço, ao menos, um
-abraço de agradecimento pela felicidade...
-
---Parece que só esperavas a minha ausencia?
-
---Creio que não. Ja antes de seguires, começava a sentir alguma cousa
-nova, que vim a descobrir ser paixão violenta.
-
---Helena ama-te?
-
---Com egual amor, não creio; mas aceita-me; tem-me algum affecto.
-
---Tratarei de consultal-a.
-
-Mendonça não pôde continuar, por que Estacio descia a escada ao
-dar-lhe a ultima resposta. Mendonça desceu tambem. Na sala estavam
-ainda as mesmas pessoas. Perto de uma janella conversava Helena com o
-padre. O cha foi logo servido; e a conversa tornou-se geral, mas sem
-grande animação. Melchior falou menos que todos.
-
-Nem por isso foi o primeiro que sahiu; foi o último. Na chacara,
-dirigindo-se ao portão, ergueu os olhos ao firmamento, não para ver a
-lua e as estrêllas, mas para subir a região mais alta. O que disse
-ninguem o soube; mas o anjo das rogativas humanas por ventura colheu em
-seu regaço os pensamentos do ancião e os levou aos pes do eterno e
-casto amor.
-
-
-
-
-CAPITULO XVIII
-
-
---Helena, disse Estacio no dia seguinte, logo que pôde falar a sos á
-irmã,--sabes porque vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça
-escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento.
-
---É verdade.
-
---É verdade?
-
---Até o ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por
-mim só nada posso decidir; mas não creio que voce se opponha de nenhum
-modo. Não é certo que deseja a minha felicidade?
-
-Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estacio
-ficou algum tempo a olhar para a agua.
-
---Não entendo, disse elle enfim.
-
---Porque?
-
---Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão
-que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor unico e
-forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu
-coração, é caso não vulgar e muita vez justificavel. Mas que este
-casamento seja para ella a felicidade, confesso que não o poderei
-entender nunca.
-
---Recusa então o seu consentimento?
-
---Não recuso; desejo comprehender.
-
---Nada mais simples, retorquiu a moça.
-
---Ah!
-
---Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extincto naquelle tempo,
-mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas phantasias uma
-vez ao menos? A phantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso
-desposar um homem digno, que me ame. Não casar, foi algum tempo o meu
-desejo; não o é hoje, desde que voce, titia e o padre Melchior
-ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do
-casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e
-os melhores affectos de seu coração.
-
---De maneira que sacrificas-te a um desejo nosso?
-
---Quando fôsse sacrificio, fal-o-hia de boa cara; mas não é.
-
---Não se trata do um sacrificio repugnante e odioso; mas cumpre
-examinar o que perdes. Dizes que a phantasia passou; não creio. Helena,
-não creio que ella passasse. Tu amas de certo; amas violentamente
-alguem; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa do teu
-marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e
-inimigo...
-
-Helena quiz interrompel-o.
-
---Ouve, continuou Estacio. Esse sentimento, se vier a extinguir-se, e se
-fôr substituido pela affeição que creares a teu marido, não te fara
-desventurosa; mas suppõe que não morre esse amor, qual será a tua
-situação?
-
---Tudo isso é um castello no ar,--disse Helena sorrindo; eu amei, não
-amo; ou amo somente a meu futuro marido.
-
-Estacio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no
-rosto placido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão
-silenciosa. Os della, firmes e tranquillos, crusavam o olhar com os
-delle. Estacio conhecia ja o dominio que a moça exercia sôbre si
-mesma; sua tranquillidade não o convenceu. Assim o pensava, assim o
-disse--sem rebuço.
-
---Por que razão negaria eu a verdade? retorquiu Helena.
-
-Estacio ergueu os hombros.
-
---Suppondo que voce tenha razão, tornou ella; não deverei casar nunca?
-
---Não digo isso; mas ha dous caminhos para a felicidade, além de
-Mendonça.
-
---Não os vejo.
-
---Esse amor mysterioso será realmente sem esperança? Nada ha definitivo
-no mundo, nem o infortunio nem a prosperidade. O que a tua imaginação
-suppõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou occulto...
-
---Adivinho o segundo caminho, atalhou Helena; não casando agora, posso
-vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como
-elle.
-
---Parece-te absurdo isso?
-
---Não, mas é uma loteria; perco um bem certo, por outro duvidoso. O
-jogador não faz cálculo differente. Essa felicidade póde não vir; eu
-contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me devéras; senti-o
-desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino
-que os dous me offerecem. Ésta é a razão e a realidade; o mais é
-illusão e phantasia.
-
-Em quanto ella falava, Estacio, que tirára o chapeu de Chile,
-occupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve
-entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa
-carreira de formigas, conduzindo as mais dellas trechos de folhas
-verdes. Com um galho sêcco, Estacio distrahia-se em perturbar a marcha
-silenciosa e laboriosa dos pobres animaes. Fugiam todas, umas para o
-lado da terra, outras para o lado da agua, era quanto as restantes
-apressavam a jornada na direcção do domicilio. Helena arrancou-lhe o
-galho da mão; Estacio pareceu accordar de largas reflexões; ergueu-se,
-deu alguns passos e voltou a ella.
-
---Helena,--declarou elle,--não creio nada do que voce me diz; voce
-sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu dever
-oppor-me a semelhante cousa...
-
-Helena ergueu-se tambem.
-
---Mendonça começa a ser o fructo prohibido, observou ella sorrindo; é
-o meio seguro de o fazer amado.
-
-A moça affastou-se na direcção da casa. Estacio via-a desaparecer
-por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As
-formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no
-primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e
-comparou-as a suas ideias, tambem necessitadas de que um galho,
-invisivel as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões
-lembrou-lhe o padre; Estacio atravessou a chacara, sahiu á rua e
-dirigiu-se á casa de Melchior.
-
-Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto,
-a algumas braças da residencia de Estacio. Tinha duas salas o predio,
-janellas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A
-da frente abria entre duas janellas de venezianas. A sala de visitas era
-ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobilia,
-nenhuns adornos, uma estante de jacaranda, com livros grossos in-quarto
-e in-folio; uma secretária, duas cadeiras de repouso, e pouco mais.
-
-Na occasião em que Estacio alli entrou, Melchior passeava de um para
-outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou
-Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura, por que o padre amava
-contemplar os grandes espiritos do passado, quando não encarava os
-mysterios do futuro. Naquelle corpo mediano havia uma aguia captiva.
-Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as
-flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço,
-vivendo a vida retrospectiva ou prophetica, doce e mysteriosa volupia
-das almas solitarias. Melchior era um solitario; sem embargo das
-relações sociaes, que elle cultivava, amava sobretudo estar separado
-dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou
-meditava, esquecido ou extranho a todas as cousas do seu seculo.
-
-Naquella occasião lia. Vendo assomar á porta o vulto de Estacio,
-Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o affavelmente.
-
---Vim interrompel-o, disse Estacio; mas era preciso.
-
-Melchior depoz o livro sôbre a mesa redonda que havia no meio da sala,
-marcando a lauda com uma telha estampa. Depois sentaram-se ao pe de uma
-das janellas lateraes. Então não se atreveu a dizer logo o motivo que
-o levara alli; mas de sua propria hesitação, deduziu Melchior qual
-era elle.
-
---Era preciso? repetiu o padre.
-
---Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo; confio em seu conselho e
-discrição. Como deseja a felicidade da minha familia, buscou facilitar
-o casamento de Helena e Mendonça...
-
---Contando com a sim approvação, explicou o padre.
-
---Hesito em dal-a.
-
---Por que?
-
-Estacio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe
-propunha, ao que Melchior respondeu referindo singellamente a verdade.
-
---É certo que o não ama ardentemente; concluiu elle, mas aceita-o,
-aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar.
-
---Ha uma difficuldade, padre-mestre; é que ella ama a outro.
-
-Melchior empallideceu; seu olhar escrutador, como o de um juiz,
-cravou-se immovel e afiado no rosto de Estacio. A fronte severa do moço
-não se alterou, nem seus olhos baixaram a terra.
-
---Ama a outro, continuou elle; paixão violenta, mas sem esperança, e
-tão real qual mysteriosa. Uma ou duas vezes alludiu a ella; mas nada
-mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito,
-desviou dahi o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei porém que
-ama, e casar com outro em taes circumstâncias, dá dous inconvenientes
-egualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o
-homem que interiormente elegeu, e leva para casa do marido um sentimento
-de pezar e de remorso. Parece-lhe isso toleravel?
-
---Não ha remorso não ha pezar, onde não ha esperança, redarguiu o
-padre. Helena aceita o Mendonça por expontanea vontade; e conheço-a
-tanto que não acho ja possivel que ella recuse.
-
---Salvo o meu consentimento.
-
---É claro; mas por que o não daria?
-
---Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou seu
-coração. Talvez ella ache impossivel aquillo que é simplesmente
-difficil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezesete annos.
-
---Valem por vinte e cinco.
-
---Pode ser; mas convem não aceitar de coração leve uma
-condescendencia ou um capricho, ou qualquer outro motivo occulto que a
-inspira nesta resolução.
-
---Que motivo seria?
-
---Eu sei! Talvez a suspeita de que estimassemos vel-a affastar-se de
-casa.
-
---Não a calumnie; Helena tem perfeita sciencia e consciencia dos
-affectos que a rodeam e da estima em que é tida. Suas objecções não
-valem nada deante da declaração que ella propria fez. Não
-compliquemos uma situação simples e definida.
-
-Melchior proferiu éstas palavras com voz branda, mas em tom firme;
-Estacio não se animou a responder logo. Voltou porém ao primeiro
-argumento; depois aventurou uma objecção nova.
-
---Mendonça é bom coração, disse elle; mas não possue as qualidades
-que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca
-exercerá, sôbre ella a influência que deve ter um marido. Entre os
-dois inverte-se a pyramide. Mas isto, ao menos, se destruia uma das
-condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O
-perigo maior é outro; é vir elle a perder a estima da mulher. Nesse
-caso que lhe dariamos nós a ella? Um casamento apparente e um divorcio
-real.
-
-Não olhava pura elle o padre, mas para fóra, com uns olhos dolorosos e
-o gesto impaciente. Quando elle acabou, fitou-o com resolução;
-disse-lhe que se tratava de casar Helena, não com um marido especial,
-mas com o que ella propria escolhêra de sua vontade livre; casamento
-que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de familia,
-Estacio podia oppor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem
-convinha isso ao interesse de Helena nem ao proprio interesse da
-familia.
-
-Estacio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e
-pensativo. No fim de alguns segundos, o padre foi a elle.
-
---Va contar tudo a sua tia, disse; approve sua irmã; casal-os-hei a
-todos no mesmo dia.
-
---Pois bem, disse Estacio como concluindo um raciocinio interior;
-consinto em que Helena se case; procuremos outro marido. Mendonça.
-não; hade ser outro. Vou casar tambem; receberei todas as semanas;
-algum rapaz apparecerá que a mereça e de quem ella venha a gostar
-seriamente... é a minha ultima resolução.
-
-
-
-
-CAPITULO XIX
-
-
-No momento em que Estacio proferia éstas palavras, transpunha Mendonça
-a porta do jardim do capellão. Preoccupado com a frieza de Estacio,
-lembrara-lhe expor a Melchior suas impressões e pedir-lhe conselho,
-Melchior ia responder ao sobrinho de D. Ursula, quando ouviu rumor de
-passos na areia do jardim.
-
---Ahi vem o noivo, disse elle.
-
-Estacio deu dous passos para pegar no chapeu; mas reconsiderou e foi
-sentar-se ao pe da mesa redonda. Havia alli um exemplar das Escripturas.
-Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos _Proverbios_;
-seus olhos cahiram neste versiculo: «Quem quer abrir mão de seu amigo,
-busca-lhe as occasiões; elle será coberto de opprobrio.» Envergonhado,
-voltou a folha. Mendonça, entrára na sala. Não contava com Estacio,
-mas estimou vel-o alli.
-
---Venha, disse Melchior; tratavamos justamente seu casamento.
-
-Estacio lançou ao padre um olhar de exprobação. O padre não o viu;
-olhava para Mendonça, que immediatamente lhe respondeu:
-
---Não venho ca para outra cousa. Uma vez que a fortuna o fez nosso
-confidente, desejo constituil-o meu conselheiro e director.
-
---Antes de tudo sou advogado de sua causa, disse Melchior: estava
-expondo agora as vantagens della.
-
-Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa:
-
---Rejeitas ou aceitas o noivo? perguntou elle.
-
-Posto entre a espada e a parede, Estacio não soube logo que
-respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receioso de encontrar a
-vista dos dous. O silêncio era peor que a resposta; e nem o caso nem as
-pessoas permittiam tão grande pausa. Estacio fechou do golpe o livro e
-ergueu-se.
-
---Discutia somente as vantagens do casamento, disse elle.
-
---E qual é a tua opinião?
-
---Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só
-essa, nem é a principal; o uso em todo o caso é a favor do casamento.
-A principal razão é o teu proprio crédito.
-
---Meu crédito?
-
---Helena póde vir a amar-te como lhe mereces: mas a verdade é que não
-sente ainda hoje egual paixão á tua; foi o padre-mestre que m'o disse.
-Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão; e eu creio que a
-flor do sentimento é muito mais propria no canteiro do matrimonio.
-
---Ha muita flor nesse ramalhete de rhetorica, interrompeu benevolamente
-o padre. Falemos linguagem singella e nua. Não creia litteralmente o
-que lhe diz este philosopho, proseguiu elle voltando-se para Mendonça;
-elle ama-os e quer vel-os felizes; é o proprio zêlo quem lhe faz falar
-assim. N'uma palavra; deseja que o senhor a conquiste depois de campanha
-formal...
-
-Mendonça respondeu ao capellão com um sorriso pallido, que lhe
-arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso e
-frio. Seu rosto ficára carregado e pensativo; a lingua de Estacio
-tocara-lhe o coração. Disposto a aceitar a estima e a sympathia de
-Helena com a esperança de converter esse pequeno dote em avultado
-capital, não lhe occorrêra que a olhos extranhos podia parecer que seu
-fim exclusivo era a riqueza da moça. Estacio rompêra o veu a essa
-probabilidade. Uma só palavra desfizera a illusão de poucos dias.
-
---Vamos la,--disse o padre,--abracem-se como irmãos.
-
-Nenhum delles se mexeu, Melchior sentiu toda a gravidade da situação;
-viu perdidos seus esforços, desfeita a união assentada, um abysmo
-cavado entre os dous amigos, incerto o destino de Helena. Interveiu
-outra vez com palavras de brandura, que os dous ouviram sem interromper.
-Quando acabou:
-
---O Estacio tem razão, disse Mendonça; meu crédito padecerá desde
-que alguem se lembre de dizer que o casamento foi arranjado sem nenhuma
-preoccupação das preferencias de D. Helena. Ella me desobrigará, em
-troca da palavra que lhe restituo.
-
-A phrase brotou-lhe dolorida, mas sem hesitação nem fraqueza. Estacio
-olhava para elle e sentia alguma cousa semelhante a um remorso. Uma voz
-interior parecia dizer-lhe:--«Somnambulo, abre os olhos, tem
-consciencia de tuas acções; teu abraço enforca; teus escrupulos fazem-te
-odioso; tua solicitude é peor do que a colera.» Via o mancebo
-cortejar o padre; deteve-o pelo braço.
-
---Onde vaes? disse elle.
-
---Vou aonde me leva o pundonor, disse singellamente Mendonça.
-
---Pobres rapazes! exclamou o padre. São dous estouvados, nada mais; um
-quer catar argumentos onde sua irmã só achou nobre o franca
-resolução; o outro rompe de coração leve uma promessa feita em
-presença de um sacerdote! Estouvados disse eu? São mais do que isso;
-são dous dementes. Ora, como só eu tenho juizo e consequente
-autoridade, digo que nem um ha de sahir assim desenganado, nem o outro
-ha de recusar a acquiescencia que lhe peço em nome de seu finado pae.
-
-Estacio estremeceu; Mendonça conservou-se frio. A arma era rija, mas o
-golpe excedia a necessidade; Mendonça não quereria dever a espôsa á
-evocação do nome do conselheiro: equivalia a um rapto. Percebeu-o
-Melchior, quando viu Estacio estender a mão ao amigo, mão que este
-recebeu com dignidade e frieza. Contaria Estacio com essa mesma repulsa
-do pretendente? O certo é que lhe disse sem a menor sombra de
-hesitação:
-
---Meu zêlo foi talvez excessivo; mas a intenção é boa e pura. Que
-posso eu desejar senão ver felizes os meus? Amem-se; será a remate de
-minhas aspirações. Promettes fazel-a feliz?
-
---Não prometto nada, disse Mendonça; o casamento é ja impossivel. Tu
-abriste-me os olhos; não te quero mal por isso. Perco muito, é certo;
-mas não me exponho á lingua dos maus.
-
-Mendonça foi buscar o chapeu e dispoz-se a sahir, não obstante a
-intervenção de Melchior, que procurou trazel-o a sentimentos de
-reconciliação. Não insistiu o padre; viu no rosto do mancebo uma
-resolução digna e firme, que era impossivel dobrar naquelle momento.
-Quando Mendonça, lhe estendeu a mão em despedida, elle apertou-lh'a
-com ternura e esperança. Estacio tentou ainda retel-o; foi inutil;
-Mendonça sahiu dalli sem rancor, mas sem pezar. O coração
-sangrava-lhe; mas a consciencia ia contente.
-
-Melchior foi até á porta, a despedir-se do Mendonça. Quando este
-sahiu, elle voltou o rosto para dentro, cruzou os braços e fitou o
-sobrinho de D. Ursula. O moço desviou as olhos; não foi o medo que os
-torceu, mas a vergonha.
-
---Viu? perguntou o padre. Não sei qual seja a sua resolução; mais
-prometto-lhe que serei como Mahomet,--Deus me perdoe!--ainda que veja o
-sol á minha direita e a lua á minha esquerda, não deixarei de
-executar o meu designio. Va ter com sua familia; deixe-me alguns
-instantes com o meu breviario.
-
-Estacio não pôde resistir á intimação do sacerdote; não achou uma
-palavra para lhe dizer. Sahiu aturdido, desconsolado, colerico. Na rua e
-na chacara, ia pensando na scena daquella ultima hora, e parecia apenas
-reconstruir um sonho. Desconhecia-se, apalpava a intelligencia, chamava
-em seu auxilio todas as fôrças da realidade; olhava para o chão
-suspeitoso de que ia calcando as nuvens. Quando a razão tomou pe no
-meio de lembranças tão desconcertadas, elle viu claramente o resultado
-de suas acções: perdia um amigo de longos annos e abdicava a
-direcção da familia, pelo menos em relação ao casamento da irmã. Se
-ésta lhe agradecesse a resistencia, Estacio dar-se-hia por bem pago de
-tudo. Não era em seu favor que elle conspirara? Este pensamento
-levantou-lhe o ânimo; tivesse a approvação de Helena, pouco lhe
-importaria o resto.
-
-Helena ouviu-lhe a narração fiel do que se passára em casa de
-Melchior. Ouviu-a commovida; no fim reprovou tudo o que elle fizera.
-
---Mendonça é ja o fructo prohihido, concluiu a moça; começo a
-amal-o. Se ainda assim me obrigar a desistir do casamento, adoral-o-hei.
-
---Chegamos ao capricho! exclamou elle; é o fundo do coração de todas
-as mulheres.
-
-Helena sorriu e voltou-lhe as costas. Subiu a seu quarto, travou de uma
-penna e escreveu um bilhetinho. A tinta seccou primeiro que duas grossas
-lagrymas cahidas no papel; mas as lagrymas seccaram tambem. Antes de
-fechar o bilhete, desceu Helena a mostral-o ao irmão.
-
-Quando a moça entrou no gabinete, Estacio ia ter com ella. Sua
-resolução estava assentada. Uma vez que a irmã aceitava de boa
-feição o casamento, não havia mais que approval-o e celebral-o.
-Encontraram-se na porta; Estacio recuou para dentro.
-
---Helena, disse elle, faça-se a tua vontade.
-
---Consente?
-
-Estacio fez um gesto affirmativo.
-
---Não basta isso, tornou a moça; Mendonça não voltará ca depois do
-que se passou. Peço-lhe a remessa deste bilhete.
-
-Estacio abriu o bilhete; continha éstas poucas palavras: «Venha hoje a
-Andarahy; é o meu coração que o pede e a nossa felicidade que o
-exige.» Cinco minutos gastou o moço a ler as duas linhas; leu o que
-estava escripto e o que não estava. Helena desarmava os escrupulos de
-Mendonça, tirando á futura união qualquer suspeita de interesse. Leu
-e fechou lentamente o papel.
-
---Approva? perguntou a moça.
-
---Assim, pois, disse o moço tristemente, a tua felicidade exige que
-esse homem venha ca, que te cases com elle, que nos fujas? Não te basta
-a familia, a affeição de nossa tia, a minha propria affeição? Estes
-mezes de doce intimidade vão ser esquecidos em um só instante,
-sacrificados aos pes do primeiro homem que te apraz escolher e seguir?
-No dia em que penetraste nesta casa, entrou contigo um raio de luz nova,
-alguma cousa que nos faltava e que tu trouxeste contigo; nossa familia
-completou-se; nossos corações receberam um sentimento ultimo.
-Pensavamos que isto seria duradouro, e era simplesmente fugaz. Oh!
-Helena, melhor fôra não ter vindo!
-
-Helena quiz responder; mas a voz travou-se-lhe na garganta, e a palavra
-retrocedeu ao coração. Apontou para o papel como pedindo-lhe ainda uma
-vez que o enviasse e saiu.
-
-De tarde, appareceu Melchior; ia tranquillo e e resoluto a dar um golpe
-decisivo. Estacio rendeu-se antes que elle falasse.
-
---Padre-mestre, disse o moço logo que o viu; a reflexão venceu-me;
-faça-se a vontade de todos.
-
---Fala de coração?
-
---De coração.
-
---Pois bem, seja completo; tomou o padre. Sou ministro de uma religião
-que condemna o orgulho. Não ha dezar em curar as feridas de um amigo;
-va ter com o seu amigo; traga-o a esta casa como irmão.
-
---Irei amanhã.
-
---Não; va hoje mesmo.
-
-A noite cahiu logo; Estacio foi dalli vestir-se. Não tendo enviado o
-bilhete de Helena, metteu-o na algibeira para entregal-o elle proprio;
-depois tirou-o e releu-o; tendo-o relido, fez um gesto para rasgal-o,
-mas conteve-se e perpassou-o ainda uma vez pelos olhos. A mão, á
-semelhança de mariposa indiscreta, parecia attrahida pela luz;
-resistiu, resistiu algum tempo; emfim chegou o bilhete, á vela e
-queimou-o.
-
-
-
-
-CAPITULO XX
-
-
-A visita de Estacio não causou nenhum espanto a Mendonça; elle a
-esperava com a confiança das indoles ingenuas e avessas ao odio. Não
-era crivel que um amigo de longos annos dormisse sobre a injustiça de
-um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estacio procurou o
-pretendente de Helena.
-
-Entrou elle naturalmente em casa de Mendonça; sem expansão nem secura.
-A entrevista foi breve, mas cordial; houveram-se os dous com affectuosa
-dignidade. Estacio explicou seus escrupulos; declarou-se contente com a
-alliança. O contentamento podia existir; todavia a manifestação foi
-parca e sêcca. Houve mais calor e expansão quando elle lhe pediu que
-désse vida feliz á irmã.
-
---Sera para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada,
-disse elle. Não tivemos o mesmo berço; vivemos nossa infancia debaixo
-de tecto differente; não aprendemos a falar pelos labios da mesma
-mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pae recommendou-a
-a nossa familia e ella correspondeu ao sentimento que dictou essa
-ultima e solemne vontade.
-
-Mendonça nas respondeu nada; elle reflectira durante a noite nas
-palavras que ouvira a Estacio no dia anterior;--palavras que bem podiam
-ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem
-de seu casamento. Helena viria a amal-o, talvez; mas desde logo lhe
-levava para casa a chave da independencia. Mendonça recuou. Quando o
-padre Melchior o soube, não pode conter um gesto de admiração; mas se
-louvou o escrupulo, não approvou a resolução, que vinha derrubar
-tudo.
-
---Não tapará nunca a boca aos maus, disse o padre; elles acharão meio
-de envenenar sua propria generosidade.
-
---Paciencia! tornou o moço; é menor esse perigo. Se casar, dirão que
-faço uma operação vantajosa; talvez sua familia o supponha; talvez
-ella propria o pense.
-
-Helena teve noticia dos receios de seu pretendente e da resolução a
-que parecia inclinar o coração. Foi a elle; perguntou-lhe se era
-verdade. Mendonça affirmou que sim. Ella contemplou-o longamente sem
-dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com effusão; elle
-persistiu.
-
-No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de
-faceirice,--dessa que rara vez deixa de enfeitar os mais puros e nobres
-sentimentos. A moça o percebeu, mas nem por isso deixou de crer na
-sinceridade do rapaz. Creu; tentou dissuadil-o; e posto nada alcançasse
-nos primeiros minutos, estava certa de que triumpharia afinal do
-derradeiro obstaculo. Seus olhos seriam mais habeis e felizes que os
-labios do padre. Foi o que ella disse ao capellão.
-
---Tomo á minha conta effectuar este casamento, continuou Helena.
-
---Resolvida a tudo?
-
---A tudo.
-
---Mas se elle insistir...
-
---Se elle insistir, vencel-o-hei, ou por um modo ou por outro. Uma moça
-que quer ser noiva vale por um exercito; eu sou um exercito.
-
---Muito bem! Contudo, sua dignidade.
-
---Oh! em último caso abro mão da herança.
-
---Era capaz disso? perguntou Melchior.
-
---Se era capaz? Desejo-o até,--disse a moça com vehemencia.
-
-E accrescentou em tom mais brando:
-
---Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a minima
-desconfiança.
-
-Tal era a situação, dous dias depois da volta de Estacio. O casamento
-podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao nobre desinteresse de
-Helena. D. Ursula approvou tudo com effusão e amor, nada sabendo das
-incertezas e contradições dos ultimos dias.
-
-Na noite desse dia, Estacio escreveu para Cantagallo dando notícias
-suas. Do casamento de Helena falou pouco; quasi nada. Tudo o
-descontentava: tanto o que elle fizera e dissera, sem proveito, como o
-desenlace da situação. Não soubera oppor-se com efficacia nem
-applaudir opportunamente.
-
-Posto fôsse tarde o somno teimava em fugir-lhe dos olhos e elle velou
-até muito além de meia noite. Occupado, sem dúvida em adormecer
-organisações menos sensiveis e existencias menos complicadas, o somno
-fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas de manhã, Estacio
-accordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quasi toda a familia
-dormia. Estacio desceu; o unico escravo que achou levantado preparou-lhe
-uma chicara de cafe. Não tendo ainda chegado os jornaes, bebeu-a sem a
-leitura do costume.
-
-Quem sabe o que é fortuito ou providencial, e por que fios tenues se
-prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estacio ouviu o som
-longinquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a supposição deu-lhe
-ideia de ir caçar. Elle não era um Nemrod na habilidade, mas era-o na
-vocação. Foi buscar a espingarda, proveu-se de polvora e chumbo, e
-sahiu.
-
-Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuido naquella
-manhã, ou por que a mão estivesse menos firme, ou por que a vista
-andasse menos segura. Estacio caminhára longo tempo sem pensar no fim
-que o levava; ia absorto,--alheio ao logar e ás cousas. Fez algumas
-tentativas de caça; mas deixou de mão o recreio. Quando cançou de
-errar, consultou o relogio e viu que não era cedo. Tinha o braço
-cançado de suster a espingarda; só então reparou que uso trouxera cm
-pagem consigo. Dispoz-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a
-intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de nupcias.
-Depois desceu, em caminho para casa.
-
-Vinha descendo, com a espingarda debaixo do braço, e os olhos no chão,
-a passo lento, apezar de serem oito horas dadas. De uma vez que ergueu
-os olhos viu um caso extranho que lhe fez deter o passo. Um pouco
-abaixo, sahia de traz de uma casa velha, o pagem de Helena, conduzindo a
-mola e a egua. Estacio não soube que pensar daquillo; mas, cedendo a um
-impulso que não pôde dominar, deu um salto por cima de uma cêrca do
-espinhos, agachou-se e esperou o resto.
-
-O resto não se demorou muito. Assomou á porta da frente a figura de
-Helena. Depois de olhar cautellosamente para um e outro lado, sahiu e
-montou na egua; o pagem cavalgou a mula e os dous desceram a trote.
-
-Estacio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo apertava o
-primeiro objecto que achou debaixo das mãos; era a cêrca de espinhos.
-A dor fel-o voltar a si; tinha a mão ensanguentada. Ao longe cavalgavam
-Helena e o pagem. Logo que os viu desaparecer, Estacio saltou de novo á
-estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direcção á casa
-d'onde vira sahir a irmã. Era a mesma da bandeirinha azul, que Helena
-comprimentá-la de longe, alguns mezes antes, e não esquecera de
-reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos annos delle. Estas
-circumstâncias, antes indifferentes, appareciam-lhe agora como outros
-tantos artigos de um libello.
-
-O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a
-caliça das paredes e das columnas ia cahindo, e o esqueleto de tijolo
-estava a nu em mais de um logar. Alguma herva mofina brotava a custo
-juncto ás paredes, cobrindo com suas folhas descoloridas o chão
-desegual e humido. Por baixo de uma das janellas havia um banco de pau,
-gretado pelo tempo, com as bordas roliças do longo uso. Tudo alli
-respirava penuria e senilidade.
-
---Não, dizia Estacio consigo, não é este o asylo de um Romeo de
-contrabando. Mora aqui alguma familia pobre, que a caridade engenhosa de
-Helena vem afagar de longe em longe.
-
-A solução do enigma pareceu-lhe tão natural, que o moço resolveu
-parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para traz. Mas a
-suspeita é a tenia do espirito; não perece em quanto lhe resta a
-cabeça. Estacio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquillo era,
-e voltou sôbre seus passos. Para entrar alli era necessario um motivo
-ou ura pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos.
-Olhou para a mão ferida e ensanguentada, e foi bater á porta.
-
-
-
-
-CAPITULO XXI
-
-
-Poucos instantes esperou Estacio. Veiu um homem abrir-lhe a porta; era o
-mesmo que elle vira alli uma vez. Entre ambos houve meio minuto de
-silêncio, durante o qual nem Estacio se lembrou de dizer o que queria,
-nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro.
-
---Que desejava? disse enfim o dono da casa.
-
---Um favor, respondeu Estacio, mostrando-lhe a mão ferida. Ia a cahir
-ha pouco; procurando amparar-me, n'uma cêrca de espinhos, feri-me, como
-ve. Podia dar-me um pouco d'agua para lavar este sangue, e...
-
---Pois não, interrompeu o outro. Queira sentar-se ahi no banco,--ou, se
-prefere, entrar... É melhor entrar, concluiu abrindo-lhe caminho.
-
-Em qualquer outra occasião, Estacio teria recusado o convite, porque o
-expectaculo da miseria repugnava aos olhos saturados de opulencia.
-Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu
-uma das janellas para dar mais alguma luz, offereceu ao hóspede a melhor
-cadeira e foi por um instante ao interior.
-
-Estacio pôde então examinar, á pressa, a sala em que se achava. Era
-pequena e escura. A parede, pintada a colla, ja de longa data, tinha em
-si todos os signaes do tempo; primitivamente de uma só côr, a pintura
-apresentava agora uma variedade triste e desagradavel. Aqui o bolor,
-alli uma grêta, acola o rasgão produzido por um movel; cada accidente
-do tempo ou do uso dava áquellas quatro paredes o aspecto de um asylo
-da desgraça. A mobilia era pouca, velha, mesquinha e desegual. Cinco ou
-seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma commoda e uma
-marqueza, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de
-latão, sôbre a mesa um vaso de louça com flôres, e na parede dous
-pequenos quadros cobertos de escomilha encardida, taes eram as alfaias
-da sala. So as flôres davam alli um ar de vida. Eram frescas, colhidas
-de pouco. Atentando nellas, Estacio estremeceu: pareceu-lhe reconhecer
-uma acacia plantada em sua chacara. Quando a suspeita germina na alma, o
-menor incidente assume um aspecto decisivo. Estacio sentiu um calafrio
-por todo o corpo.
-
-Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma
-toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a côr da parede e o
-aspecto senil da casa. Estacio ergueu-se.
-
---Deixe-se estar, disse o desconhecido.
-
---Estou perfeitamente bem.
-
---Nesse caso, faça o favor de chegar á janella.
-
-A bacia foi posta na janella; o desconhecido quis lavar elle proprio a
-mão do hóspede; mas o moço não lh'o consentiu.
-
---Ao menos, disse o dono da casa, hade consentir que a enxugue. Eu
-entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui nenhum medicamento
-caseiro para applicar.
-
-Estacio aceitou o offerecimento. O dono da casa abriu a toalha e
-começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D. Ursula pôde
-então examiná-lo á vontade.
-
-Era um homem de trinta e seis a trinta e oito annos, forte de membros,
-alto e bem proporcionado. Uma cabelleira espessa e comprida, de um
-castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quasi tocar nos hombros. A
-fronte elevada, tinha um ar de serenidade olympica. Os olhos eram
-grandes, e geralmente quietos, mas riam-se, quando sorriam os labios,
-animando-se então de um brilho intenso, ainda que passageiro. Havia
-naquella cabeça,--salvo as suiças,--certo ar de tenor italiano. O
-pescoço, cheio e forte, surgia d'entre dous hombros largos, e, pela
-abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo,
-podia Estacio ver-lhe a alva côr e a rija musculatura. Vestía pobre,
-mas limpamente, um rodaque branco, calça de ganga e collete de brim
-pardo. A _toilette_ mas que disparatada e mesquinha, não diminuia a
-belleza mascula da pessoa; accusava somente a penuria de meios.
-
-Quando elle acabou de lavar os arranhões de Estacio,--eram pouco mais
-do que isso,--propoz-se a ir buscar um pedaço de panno afim de atar-lhe
-a mão; Estacio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que
-trazia, e o dono da casa completou o summario curativo.
-
---Prompto! disse elle. Se tiver em casa algum medicamento apropriado,
-será conveniente applical-o. Toda a cautella é pouca; convem evitar
-alguma inflammação.
-
---Obrigado, respondeu Estacio. Realmente, vim dar-lhe uma massada, sem
-grande necessidade talvez.
-
---Porque?
-
---Podia fazer isto mesmo quando chegasse a casa.
-
---Mora perto?
-
---Um pedaço abaixo.
-
---Foi conveniente curar ja; nenhuma precaução é inutil em cousa,
-nenhuma da vida.
-
---Maxima de prudencia, observou Estacio procurando sorrir.
-
---Que só aprende tarde quem não a traz na massa do sangue, replicou o
-outro suspirando.
-
-A não ser indiscreto ou fallador, era difficil levar a conversa por
-diante. O favor estava feito, o assumpto exgotado. Restava agradecer,
-despedir-se e sahir. Estacio, entretanto, tinha necessidade de mais
-tempo; queria arrancar áquelle homem uma palavra menos indifferente á
-situação, ou conhecer-lhe, se fôsse possivel, o caracter e os
-costumes. Para isso havia talvez um meio; contrafazer-se, affectar
-maneiras extranhas ás suas, apegar-se á occasião por todas as bordas.
-Estacio determinou-se a isso, confiando o resto do acaso. Voltou á
-cadeira e sentou-se.
-
---Consente que descance um pouco? Estou fatigadissimo.
-
---Não pelo que caçou, disse o desconhecido rindo.
-
---Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador; e tenho, não
-obstante, a mania de atirar aos passaros.
-
---Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de
-cousas? Eu fui victima desse defeito mortal.
-
---Ah! exclamou Estacio com certa entonação interrogativa.
-
-O dono da casa sorria levemente; mas não pareceu molestal-o a
-curiosidade do hóspede;--talvez mesmo não desejasse outra cousa.
-
---É verdade,--disse elle; devo a minha actual penuria ao erro de teimar
-em cousas extranhas á minha indole e aptidão, extranhas e totalmente
-oppostas...
-
---Hade perdoar-me,--interrompeu Estacio com um ar de familiaridade
-indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que um homem, forte,
-moço e intelligente não tem o direito de cahir na penuria.
-
---Sua observação,--disse o dono da casa sorrindo,--traz o sabor do
-chocolate que o senhor bebeu naturalmente ésta manhã antes de sahir
-para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossivel
-comprehender as lutas da miseria; e a maxima de que todo o homem póde,
-com esfôrço, chegar ao mesmo brilhante resultado, hade sempre parecer
-uma grande verdade á pessoa que estiver trinchando um peru. Pois não
-é assim; ha excepções. Nas cousas deste mundo não é tão livre o
-homem como suppõe; e uma cousa, que uns chamam mau fado, outros
-concurso de circumstâncias, e que nós baptisámos com o genuino nome
-brazileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fructo de seus mais
-herculeos esforços. Cesar e sua fortuna! toda a sabedoria humana está
-contida nestas quatro palavras.
-
-O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo,
-e uma facilidade de elocução, que Estacio mal lhe podia suppor. Era
-aquillo uma comedia ou a expressão da verdade? Estacio olhou fixamente
-para elle, como a querer penetral-o. Ao mesmo tempo ouviu-se um rumor na
-parte da casa que ficava além da sala; Estacio voltou a cabeça com um
-gesto de desconfiança. A porta abriu-se e appareceu uma preta velha
-trajando nas mãos uma bandeja. A creada estacou a meio caminho.
-
---Põe em cima da mesa, disse o dono da casa. É o meu
-almôço,--continuou elle, voltando-se para Estacio; almôço parco e
-hygienico. Ousarei offerecer-lh'o?
-
-Estacio fez um gesto negativo, e dispoz-se a sahir.
-
---Ja! Não é meu intento despedil-o; almoçarei conversando. Vivo tão
-solitario, que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto.
-
-Estacio aceitou sem difficuldade o convite; sentou-se defronte do homem,
-ao pe da mesa, e assistiu ao almôço, que não podia ser mais escasso:
-um pão, duas hostias de queijo duro, e uma chavena de cafe. O que mais
-valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que
-ostentava aos olhos de um extranho a simplicidade de seus habitos.
-
---Não é refeição de principe,--dizia elle,--mas satisfaz todas as
-ambições de um estomago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e a
-sala de jantar; a cosinha é contigua; além, ficam duas braças de
-quintal; para la do quintal... o infinito da indifferença humana.
-
-E depois de um silêncio:
-
---Não digo bem, emendou elle; nem sempre acho indifferença. Meu
-trabalho não me dá mais do que o escasso pão de cada dia; mas tenho
-algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresma; e essas recebo-as
-de mãos caridosas e puras.
-
-Dizendo isto, o desconhecido exgotou a chavena, e reclinou-se sôbre a
-cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede. Estacio reflectiu nas
-últimas palavras, e um raio de esperança veiu rasgar-lhe a nuvem que
-lhe entenebrecia a fronte. Os dous homens pareciam interrogar-se. O
-filho do conselheiro saccou do bolso um charuto e offereceu-o ao dono da
-casa.
-
---Obrigado, disse este.
-
---Não fuma?
-
---Ja fumei; hoje economiso esse vicio. Nem por isso faço mais
-lentamente a digestão.
-
---Mora só?
-
---Só.
-
---Não tem familia?
-
---Nenhuma.
-
---Hade achar-me singularmente indiscreto.
-
---Não; supponho que sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima.
-
---Acertou; sua pessoa inspira-me sympathia; e se eu conhecesse alguma
-dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte...
-
---Dar-me-hia, por intermedio dellas, o seu obolo?...
-
---Se o não offendesse...
-
---Não offendia, mas eu recusava, se soubesse; e peço-lhe desde ja que
-o não faça ás escondidas...
-
-Estacio fez um gesto de assentimento.
-
---Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a
-pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obsequio, um simples dever
-de visinho... Pareceria que o senhor m'o pagava com um beneficio. O
-beneficio seria menos expontaneo de sua parte, e menos agradavel para
-mim. Agradavel não exprime, talvez, toda a minha ideia; mas o senhor
-facilmente comprehenderá o que quero dizer.
-
---Entendeu-me mal; o meu obolo não seria na especie a que o senhor
-allude. Tenho amigos, e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor
-posição.
-
-O desconhecido reflectiu um instante.
-
---Aceitaria? perguntou Estacio.
-
---Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale, Eu
-vexar-me-hia eternamente de dever qualquer melhoria da sorte ao
-cumprimento de um dever de caridade.
-
---Ja me não admira a vida pobre que tem tido.
-
---Excessivo escrupulo, talvez?
-
---Escrupulo desarrazoado.
-
---Antes de mais que de menos.
-
---Nem de menos nem de mais; mas só a porção justa.
-
---A porção varia conforme as necessidades moraes de cada um. Mas, eu
-mesmo, que lhe estou a falar nem sempre tive ésta virtude intratavel; e
-por ventura alguma vez fraqueei.
-
-A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos labios,
-e os olhos cahiram naquella atonia que exprime uma grande concentração
-de espirito. Era occasião de interrogal-o directamente ou sahir.
-Estacio preferiu o último alvitre.
-
---Não o quero demorar mais,--disse o dono da casa quando o mancebo
-proferiu as palavras de despedida. Ja é tarde, e sua mãe talvez esteja
-anciosa...
-
-Estacio limitou-se a olhar para elle em cheio,--dizendo:
-
---Se alguma vez resolver dar de mão a seu a escrupulos, mande
-procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andarahy pela--casa do
-Conselheiro Valle...
-
-O desconhecido, era cujo rosto Estacio esperou ver um signal qualquer de
-abalo ou sorpresa, conservou-se impassivel e risonho. Curvou-se em
-signal de agradecimento; e como Estacio hesitasse em estender-lhe a
-mão, elle metteu as suas nas algibeiras.
-
---Talvez nos vejamos ainda, disse Estacio ja fóra da porta.
-
---Sim?
-
---Passeio algumas vezes por estes lados.
-
---Nem sempre estou em casa; mas ainda estando, conservo fechadas as
-cousas. Quando quizer descançar, bata; a casa é pobre, mas será amiga.
-
-Estacio affastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; elle
-não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino,
-achava-se no meio de uma seiva escura, a egual distância da estrada
-recta,--_diritta via_--e da fatal porta, onde temia ser despojado de
-todas as esperanças. Nada sabia; nada conjecturava; eram tudo novas
-dúvidas e oscillações. O homem com quem acabava de conversar
-parecia-lhe sincero; sua pobreza era authêntica; sensivel a nota de
-melancholia que por vezes lhe afrouxava a palavra. Mas onde cessava alli
-a realidade e começava a apparencia? Vinha de tratar com um infeliz ou
-um hypocrita? Estacio rememorou todos os incidentes da manhã, e todas
-as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação
-suspeitos e irrespondiveis. Seu espirito repellia com horror a ideia do
-mal; mas custava-lhe a acceitar a ideia do bem; e a peor das
-angústias,--a dúvida,--continha-o todo e agitava-o, em suas mãos
-felinas. O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de perolas de suor;
-ao offego da marcha apressada juntava-se o da violenta commoção.
-Estacio não via os objectos que ia costeando, nem as pessoas que lhe
-passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o
-despertasse.
-
-Chegou enfim a casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a
-espingarda. Sua demora causára alguma inquietação á familia; logo
-que as duas senhoras souberam de seu regresso correram a recebel-o,
-ficando D. Ursula a uma janella, e descendo Helena até meio caminho. A
-apparição subita da moça, a alegria e o amor, que pareciam
-impelli-la, como duas azas sanctas, a perfeita ingenuidade de seu gesto,
-tudo produziu nelle a necessaria reacção,--reacção de um
-instante,--mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estacio
-apertou as mãos da moça com a energia do náufrago. Um fluido subtil
-percorreu as fibras de Helena; e aquelle rapido instante teve toda a
-doçura de uma reconciliação.
-
-Estacio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem suas ideias,
-comparal-as, extrahir uma conjectura pelo menos, e verifical-a ou
-desmentil-a. Mas nem a tia nem a irmã haviam almoçado, á espera
-delle; e forçoso lhe foi acompanhal-as na satisfação de uma
-necessidade que não sentia. Durante o almôço, Estacio procurou
-observar Helena; trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma
-cousa trahia nessa occasião, eram as alegrias ineffaveis da familia.
-Ella propria servia por suas mãos a Estacio e D. Ursula; inexcedivel na
-attenção com que sabia repartir-se entre os convivas não o era menos
-no carinho e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorancia do mal,
-e o sorriso em o das almas candidas. Poder-se-hia attribuir áquella
-creatura de dezesete annos corrupção e hypocrisia? Estacio
-envergonhou-se de tal ideia; sua alma sentiu as vertigens do remorso.
-
-Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao
-gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estacio buscou
-dominar a situação. Elle não ia ao ponto de suppor em Helena a
-completa perversão dos sentimentos; o limite do mal, que se lhe podia
-attribuir, era o de uma culposa leviandade. Se em vez de um acto
-leviano, fôsse aquillo um simples estratagema de caridade, Helena não
-mereceria menos uma advertencia, mas a pureza da intenção salvava
-tudo, e a paz da familia, não menos que o seu decoro, se restabeleceria
-inteira. Estacio examinou um por um todos os indicios de culpabilidade
-e de innocencia; buscou sinceramente os elementos de prova; não
-esqueceu um só argumento de inducção. Nesse trabalho despendeu longas
-horas, sem resultado apreciavel, pela razão de que, se a sentença era
-difficil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a
-dignidade e a affeição, seu espirito balouçava incerto.
-
-Quasi á hora do jantar, Estacio, que não sahira uma só vez do
-gabinete, chegou a uma das janellas, e viu atravessar a chacara a mais
-humilde figura daquelle enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o
-pagem. O pagem appareceu-lhe como uma ideia nova; até aquelle instante
-não cogitára nelle uma só vez. Era o confidente e o complice. Ao vel-o
-recordou-se que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquelle escravo.
-A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a colera cedeu á angústia, e
-elle sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lagryma.
-
-Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos.
-
-
-
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-CAPITULO XXII
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-Não era preciso grande esfôrço para adivinhar a dona das mãos.
-Estacio, com as suas, affastou as mãos de Helena, segurando-lhe os
-pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os
-olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche:
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---Voce é muito mau! Pagou-me a caricia com um apertão. Deixe estar que
-nunca mais cahirei em outra. Vim vel-o, por que voce hoje não se
-lembrou ainda de dar á gente um ar de sua graça... Doeu-me!--continuou
-ella olhando para os pulsos.--Mas... tenho os dedos molhados; seria...
-voce estaria... que é? que foi?
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-Estacio, que ouviu a discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar
-ancioso, não lhe respondeu ás últimas interrogações, e continuou a
-olhar para ella, como a querer ler na physionomia da moça a
-explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, atterrada
-e afflicta. Indo pegar-lhe nas mãos, Estacio desviou o corpo,
-dirigiu-se á parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia
-de seus annos, e approximou-se da moça.
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---Que é? repetiu ésta admirada.
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-A unica resposta de Estacio foi estender o dedo sôbre a mysteriosa casa
-reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e
-para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste, fel-a
-attentar no ponto indicado. Subito empallideceu; seus labios tremeram
-como a murmurar alguma cousa, mas a alma falou tão baixo que a palavra
-não chegou á boca. Durou aquillo poucos instantes. A angústia lia-se
-no rosto dos dous; a moça, para occultar a sua, cobriu os olhos com as
-mãos. O gesto era eloquente; Estacio lançou para longe de si o quadro,
-com um movimento de colera. Helena atirou-se para o corredor.
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-D. Ursula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes,
-dirigiu-se ella propria ao gabinete de Estacio. A porta estava aberta;
-D. Ursula entrou e deu com elle, sentado n'uma poltrona, com o lenço na
-cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permittiam
-os annos. Estacio não a ouviu entrar; só deu por ella quando as mãos
-da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos. O assombro de D. Ursula
-foi indescriptivel, sobretudo quando Estacio, erguendo-se, atirou-se-lhe
-aos braços, exclamando:
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---Que fatalidade!
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---Mas... que é?... explica-te.
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-Estacio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com o
-gesto decidido de um homem que se envergonha de um acto de debilidade.
-O vestigio das lagrymas dava-lhe aquelle cunho tocante e severo, que as
-grandes dores imprimem no rosto humano. A explosão desabafara-lhe o
-espirito; elle podia enfim ser homem, o era preciso que o fôsse. D.
-Ursula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicavel
-afflicção em que viera achal-o. Estacio recusou dizel-a.
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---Saberá tudo amanhã, ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e eu
-sei o que elle me ha custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu
-conselho e apoio.
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-D. Ursula resignou-se á demora. Quando chegou á sala de jantar achou
-um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira repentinamente
-incommodada e que a dispensasse naquella tarde e noite. D. Ursula
-suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a
-afflicção de Estacio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meia
-inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada e o corpo tranquillo e
-como morto. Ao sentir os passos de D. Ursula, ergueu a cabeça. A
-pallidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lagrymas.
-A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificado naquella face
-immovel e fria como o granito. O que restava ainda vivo na figura da
-moça eram os olhos, que não perderam o fulgor natural. Ella ergueu-os
-a medo, e abraçou a tia com um olhar de súpplica e de amor. D. Ursula
-travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou:
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---Conta-me tudo.
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---Saberá depois! suspirou a moça.
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---Não tens confiança em tua tia?
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-Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lagrymas
-rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que elles verteram
-naquella meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura:
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---Póde receber estes beijos,--disse ella,--os anjos não os tem mais
-puros.
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-Foram as últimas palavras que D. Ursula pôde arrancar-lhe; a moça
-recolheu-se ao profundo silêncio em que ella a encontrou. D. Ursula
-sahiu; e foi dalli ter com Estacio. O sobrinho encaminhava-se para a
-sala de jantar.
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---Vamos para a mesa, disse elle,--não convem que os escravos saibam de
-taes crises.
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-D. Ursula referiu o estado em que achára Helena e as palavras que
-trocára com ella. Estacio ouviu-a sem nenhuma expressão de sympathia.
-O jantar foi um simulacro; era um meio de illudir a perspicacia dos
-escravos, que alias não cahiam naquelle embuste. Elles conheceram
-perfeitamente que algum acontecimento occulto trazia suspensos e
-concentrados os espiritos. As iguarias voltavam quasi intactas; as
-palavras eram trocadas com esfôrço entre a sinhá velha e o senhor
-moço. A causa daquillo era com certeza nanhã Helena, que estava
-ausente.
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-Estacio deu ordem para que a todas as pessoas extranhas se declarasse
-estar ausente a familia. A unica excepção era o padre Melchior. A esse
-escreveu pedindo-lhe que os fôsse ver.
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---Não posso esperar até amanhã, disse D. Ursula; se tens de revellar
-alguma cousa a um extranho, por que o não fazes a mim primeiro? Dize-me
-o que ha. Não posso ver padecer Helena; quero consolal-a e animal-a.
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---O que tenho para dizer é longo e triste,--retorquiu Estacio; mas, se
-deseja sabel-o desde ja, peço-lhe ao menos que espere a presença do
-padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas cousas; seria
-revolver o punhal na ferida.
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-A curiosidade de D. Ursula cresceu com éstas meias palavras do
-sobrinho; mas era forçoso esperar e esperou. Foi dalli ao quarto de
-Helena, Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena
-escrevia. Ésta nova circumstância veiu complicar as impressões de D.
-Ursula.
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---Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ella ao sobrinho.
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---Naturalmente, respondeu este com sequidão.
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-O padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estacio. O
-bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia
-ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; elle o
-reconheceu desde logo, não só no aspecto lugubre da familia, como na
-ancia com que era esperado. Os tres recolheram-se a uma das salas
-interiores.
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---Helena? perguntou Melchior.
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---Vamos tratar della, respondeu Estacio.
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-Referir o que se passára naquella fatal manhã era mais facil de
-planear que de executar. No momento de expor a situação e as
-circumstâncias della, Estacio sentiu que a lingua rebelde não obedecia
-á intenção. Achava-se n'um tribunal doméstico, e o que até então
-fôra conflicto interior entre a affeição e a dignidade, cumpria agora
-reduzil-o ás proporções de um libello, claro, sêcco e decidido.
-Innocente ou culpada, Helena apparecia-lhe naquelle momento como uma
-recordação das horas felizes,--doce recordação, que os successos
-presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não
-destruiriam nunca, porque é esse o mysterioso privilegio do passado.
-Reagiu, entretanto, sôbre si mesmo; e ainda que a custo referiu
-minuciosa e sinceramente o que se passára desde aquella manhã.
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-Não fôra talhado para tão melindrosas revellações o coração de D.
-Ursula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que
-dão os grandes golpes. Esperava, de certo, um grande infortunio de
-Helena, um episodio de sua familia anterior, alguma cousa que desafiasse
-a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente
-o contrário; a estima era impossivel e a compaixão tornava-se apenas
-provavel.
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---Mas não! é impossível! exclamou ella dahi a pouco, logo que a razão
-obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz--não! eu a vi ha
-pouco; senti-lhe as lagrymas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a
-innocencia póde proferir. E, além disso, seu procedimento
-irreprehensivel, um anno quasi de convivencia sem mácula, a elevação
-de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre
-Helena! Vamos chamal-a; ella explicará tudo. Interroguemos o Vicente.
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-Um gesto dos dous homens mostrou que nenhum delles julgava digno este
-último recurso para conhecer a verdade.
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-D. Ursula cahíra em prostração, recordava suas apprehensões do
-primeiro dia, e recuava com horror á ideia de ter acertado. Defronte
-della, Estacio occupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os
-cotovellos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma
-ruminava a dor.
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-Um só dos tres vingada a dignidade da situação. O padre Melchior não
-sentira menor assombro que os dous parentes de Helena, nem padeceu menos
-profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e
-conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dous corações
-ulcerados e sem fôrça, comprehendeu Melchior que lhe cabia a principal
-acção, e não recuou ante a responsabilidade que dahi poderia deduzir.
-Viu de um lance a extensão possivel do mal, a desunião da familia, os
-desesperos da occasião, os odios do dia seguinte, as amarguras
-indeleveis e talvez as indeleveis saudades; mas nem este quadro o
-aterrou, nem elle o aceitou sem exame. Melchior não condemnava nem
-absolvia; esperava. Elle pertencia ao numero dessas virtudes singellas
-para as quaes o vicio é uma rara excepção; natureza sincera e franca,
-era-lhe difficil crer na hypocrisia. Em quanto Estacio proseguia calado
-e pensativo, e D. Ursula, ora sentada, ora de pe, intercalava o
-silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e reflectia
-tambem comsigo. Emfim, proferiu éstas palavras de animação:
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---Socegue, D. Ursula; a verdade hade apparecer, e não estamos certos
-que seja o que nos parece. Em todo o caso não antecipemos a
-afflicção. Seria padecer duas vezes. Ha tempo de chorar á larga.
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-Melchior levantou-se:
-
---Convem sacudir o abatimento, continuou dirigindo-se a Estacio; é a
-hora da acção e do vigor. Sobretudo é necessario não boquejar de
-semelhante assumpto por agora; daria azo ás vozes extranhas e seus
-naturaes commentarios. Eu tomarei nesta collisão o logar que me compete,
-se m'o não contestam...
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---Oh! exclamou Estacio.
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---... Mas desejo que desde ja se compenetrem bem de que, se a dignidade
-pede uma cousa, a caridade pede outra, e que o dever stricto é
-concilial-as. Nada do odios; perdão ou esquecimento.
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---Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Ursula com anciedade.
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---D. Ursula, disse o padre; é preciso agora que a razão fale e
-trabalhe; o sentimento deve retrahir-se e esperar. Examinarei o caso, e
-aconselharei o necessario remedio. Talvez estejamos a debater-nos no
-vacuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma apparencia...
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---Oh! ella confessou tudo! interrompeu Estacio. Vi-lhe a expressão da
-culpa nos olhos. Mas, emfim, estou prompto para tudo, continuou elle
-erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pae? Não o
-é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer
-melhor. Na singular situação em que nos achamos nenhum de nós temos o
-espirito bastante senhor de si para colhêr os elementos da verdade,
-apural-a e resolver. Esse papel é seu.
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-Vieram trazer a Estacio uma carta. Era do Dr. Camargo, annunciando-lhe
-que a madrinha do Eugenia fallecêra, e que elle no prazo de alguns dias
-estaria na Corte. Era o peor momento para semelhante vinda; Estacio não
-pôde reprimir um gesto de desgôsto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de
-que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no
-regresso do Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o
-assumpto que os affligia.
-
---D. Ursula,--continuou elle,--deixe-nos agora sos alguns instantes; va
-tranquilla, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguem o que se
-passa nesta casa.
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-D. Ursula obedeceu. Logo que ella sahiu. Melchior fechou a porta.
-Estacio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capellão. Este deu alguns
-passos entre a porta e uma das janellas. Ia anoitecendo; Estacio
-accendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pe delle, sem lhe falar
-nem voltar-lhe sequer os olhos. Meditava ou luctava comsigo mesmo; a
-fronte pesada e merencoria traduzia a agitação interior. Ja não era a
-inalteravel placidez, reflexo de uma consciencia religiosa e pura. Se a
-consciencia era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise
-nova. Apos dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou.
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-
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-CAPITULO XXIII
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---És forte? perguntou o padre.
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---Sou.
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---Cres em Deus?
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-Estacio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior
-insistiu:
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---Cres?
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---Essa pergunta...
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---É menos ociosa do que parece. Não basta suppor que se cre; nem basta
-crer á ligeira, como na existencia de uma região obscura da Asia, onde
-nunca se pretende pôr os pes. O Deus de que te fallo não é só essa
-sublima necessidade do espirito, que apenas contenta alguns philosophos;
-fallo-te do Deus creador e remunerador, do Deus que le no fundo de
-nossas consciencias, que nos deu a vida, que nos hade dar a morte, e
-além da morte o premio ou o castigo. Cres?
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---Creio.
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---Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o
-saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura,
-rebella-se, vaga á feição de um instincto mal expresso e mal
-comprehendido. O mal persegue-te, tentaste, envolve-te em seus liames
-dourados e occultos; tu não o sentes, não o ves; tens horror de ti
-mesmo, quando deres com elle de rosto. Deus que te lê, sabe
-perfeitamente que entre teu coração e tua consciencia ha com o um veu
-espesso que os separa, que impede esse accôrdo gerador do delicto.
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---Mas que é, padre-mestre?
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-Melchior inclinou-se e encarou o moço. Seus olhos, fitos nelle, eram
-como tum espelho polido e frio, destinado a reproduzir a impressão do
-que lhe ia dizer.
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---Estacio,--disse Melchior pausadamente,--tu amas tua irmã.
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-O gesto mesclado de horror, assombro e remorso, com que Estacio ouvira
-aquella palavra, mostrou ao padre, não só que elle estava de posse da
-verdade, mas tambem que acabava de a revellar ao mancebo. O que a
-consciencia deste ignorava, sabia-o o coração, e só lh'o disse
-naquella hora solemne. A consciencia, depois de tactear nas trevas,
-recuou apavorada, como affastando de si o clarão subito que accendêra
-nella a palavra do sacerdote. Estacio não respondeu nada: não podia
-responder nada. Com que vocabulo e em que lingua humana esprimiria elle
-a commoção nova e terrivel que lhe abalára a alma toda? que fio
-podéra atar-lhe as ideias rôtas e dispersas? Nem falou, nem se
-atreveu a erguer os olhos; ficou como estupido e morto, Melchior
-contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Seus olhos, que
-eram de aguia para os mysterios da vida, eram de pomba para os grandes
-infortunios. Abaixo da cabeça mascula, havia um coração feminino.
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-A mudez de Estacio cessou emfim; o corpo agitou-se; o labio articulou
-algumas phrases desconcertadas. Vago era o sentido dellas; podia
-concluir-se que elle não cria na revellação de Melchior, que o
-supposto sentimento era tão absurdo e desnatural, que só a maus
-instinctos devia ser attribuido. Melchior ouviu-o e sorriu com
-satisfação. Não era aquillo mesmo um protesto de consciencia honrada?
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---Maus instinctos, não,--respondeu Melchior; um desvio da lei social e
-religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Estacio;
-revolve-lhe os mais intimos recantos, e la acharás esse germen funesto:
-lança-o fóra de ti, que é o preceito do Eterno Mestre. Não o
-sentiste nunca: a tentação usa essa tactica serpentina e dolosa; é
-insinuante, como a calúmnia, e pertinaz, como a suspeita. Mas eu sou a
-verdade, que affirma, e a caridade, que consola. Digo-te, não que
-peccaste, mas que ficaste á beira do peccado; e estendo-te a mão para
-que recues do abysmo.
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---Padre-mestre! murmurou Estacio cujo coração recebia a influência da
-palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga.
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---Não fales, continuou o padre; negal-o é mentir; confessal-o é
-ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quiz a
-fortuna que entre voces dous não houvesse a imagem da infancia e a
-communhão dos primeiros annos; que, em plena mocidade, passassem do
-total desconhecimento um do outro, para a intimidade do todos os dias.
-Ésta foi a raiz do mal. Helena appareceu-te mulher, com todas as
-seduções proprias da mulher, e mais ainda com as de seu proprio
-espirito, por que a natureza e a educação accordaram em a fazer
-original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou
-em ti, nem podias comprehendel-a. S. Paulo o disse: para os corações
-limpos, todas as cousas são limpas. Vias a affeição legitimo
-naquillo que era ja affeição espuria; dahi vieram os zelos, a
-suspicacia, um egoismo exigente, cujo resultado seria subtrahir a alma
-de Helena a todos as alegrias da terra, unicamente para o fim de a
-contemplares sosinho, como um avaro.
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-Ouvindo a palavra do padre, Estacio soletrava o proprio coração e lia
-claramente o que até então era para elle como um livro fechado. A
-situação tornava-se, entretanto, por demais afflictiva, profunda a
-vergonha, intenso o remorso. Estacio ergueu-se; erguendo-se deu com os
-olhos no retrato do Conselheiro, que, na penumbra em que ficava, parecia
-olhar para o filho, e interrogal-o. Ésta circumstância desorientou o
-moço.
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---Não, padre-mestre! exclamou elle deixando-se cahir na cadeira.--É
-impossivel! isto que me está dizendo é um sonho mau, é um funesto
-equívoco; é impossivel; juro-lhe que é impossível. É certo que a
-amo... que a amava, com sentimento de irmão; mas esquecer-me, aninhar
-em minha alma tão odioso affecto... oh! era impossivel!
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-Melchior erguera-se. Apos meia duzia de passos, approximou-se de
-Estacio, sôbre cuja cabeça estendeu a mão direita, em quanto com a
-outra lhe erguia a barba, obrigando-o a olhar para elle.
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---Digo-te que teus uma raiz de ma herva no coração; ésta é a cruel
-verdade. Ha no homem uma ligação de sentimento, ás vezes
-inexplicavel. Productos de climas oppostos ahi se alternam ou se
-confundem... Mas queres saber o resto?
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---O resto?
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---Ouve,--continuou o padre sentando-se. A planta ruim bracejou um ramo
-para o coração virgem e casto de Helena, e o mesmo sentimento os ligou
-em seus fios invisiveis. Nem tu o vias, nem ella; mas eu vi, eu fui o
-triste expectador dessa violenta e miseravel situação. São irmãos e
-amam-se. A poesia tragica póde fazer do assumpto uma acção theatral;
-mas o que a moral e a religião reprovam não deve achar guarida na alma
-de um homem honesto e christão.
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---Impossivel! impossivel! exclamou Estacio. Mas, dado que assim fosse,
-por que accumular á difficuldade presente o horror de semelhante
-revellação?
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---Por que a revellação explica a difficuldade. Helena não sabera que
-ama, mas ama. Ora, um amor clandestino, de parceria com esse outro amor
-incestuoso, embora inconsciente, provaria da parte de Helena uma
-perversão, que ella não póde ter, e que, em tal edade, faria della um
-monstro. Sera Helena esse monstro? Se o fosse, eu desesperaria da
-natureza humana. Não! essa casa, onde a viste entrar, é com certeza
-asylo de miseria; o que ella ahi vae levar é a esmola e a compaixão.
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-Um raio de esperança alumiou a fronte de Estacio. O raciocinio do padre
-era exacto; e por mais perigosa que fôsse a situação revellada por
-elle, ja agora não se podia desejar outra cousa; a dignidade da familia
-ficava intacta. Estacio reflectiu largo tempo no que acabava de ouvir.
-Mas, a esperança foi curta, embora a necessidade della grande.
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---Helena continua recolhida? perguntou o padre.
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-Estacio fez um leve signal affirmativo.
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---Falar-lhe-hei amanhã; por hoje convem não dizer palavra nem deixar
-transpirar cousa nenhuma.
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-Dizendo isto, Melchior recolheu-se ao silêncio, como se reflectisse
-ainda alguma cousa. Estacio erguera-se e entrára a passear lentamente.
-De quando em quando apertava a cabeça entre as mãos; tantas
-commoções bastavam para atordoar mais forte espirito. O mysterio o
-cercava de todos os lados. Elle ia até á janella, dahi até à porta,
-intercalando as reflexões interiores com sacudimentos nervosos do
-braço ou da cabeça. A intervallos, olhava a furto e de travez para o
-capellão, como o criminoso olha para a consciencia; não podia evitar o
-sentimento de terror, e ao mesmo tempo de respeito, que lhe infundia
-aquelle investigador exacto e profundo de seus sentimentos mais
-reconditos e inaccessiveis. Ruminava o que o padre lhe dissera; cada
-minuto lhe ia tornando mais clara a verdade revellada; e o que era
-obscuro fizera-se-lhe emfim transparente. É assim que a luz de um
-astro, accesa desde seculos, chega finalmente a ferir a retina de nossos
-olhos mortaes.
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-Uma vez, interrompendo os passos, ergueu os olhos para o retrato do
-Conselheiro. Não os retirou atterrado; cravou-os com um ar de reproche
-e de amargura, em que o padre reparou e que o fez sorrir tristemente. O
-olhar do filho pedia contas ao pae.
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---Paz aos mortos! observou Melchior. Os actos de seu pae já não
-pertencem á jurisdicção deste seculo.
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-Melchior proferiu éstas palavras ja de pe.
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---O Dr. Camargo, disse elle mudando de tom,--deve chegar um dia destes,
-segundo annuncia. Ha alguma razão para demorar o casamento?
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---Nenhuma.
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---Convem realisal-o immediatamente.
-
---Immediatamente.
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-Melchior caminhou para a porta. Ia dar volta á chave, e deteve-se.
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---Antes de nos separarmos, disse elle,--desejo a promessa de que não
-falarás a Helena antes de amanhã.
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---Prometto.
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-O padre reflectiu um instante; Estacio pareceu adivinhal-o.
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---Quer ainda outra promessa? perguntou elle. Quer que a evite da todos
-os modos.
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---Sim; que a considere como pessoa totalmente extranha.
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---Poderia ser de outra maneira? observou melancholicamente Estacio. Os
-successos destes dias são, por em quanto ao menos, uma barreira entre
-ella e sua familia. Demais, eu seria destituido de todo o senso moral...
-
---Jura?
-
---Juro.
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-Melchior desabrochou a camisa, e aventou um crucifixo de marfim, que lhe
-pendia de uma fita preta, ao pescoço.
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---Este, disse elle cora voz singella, é a effigie do teu Deus. Tão
-puro exemplo de castidade não viram os seculos nem antes nem depois que
-elle desceu á terra. Jura o que me promettes.
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---Padre-mestre,--retorquiu Estacio; minha palavra era bastante. Mas, se
-é preciso affirmação mais solemne, eu a darei tal qual me pede.
-
-Estacio inclinou a cabeça sôbre o crucifixo e beijou-o
-respeitosamente; depois beijou a mão ao padre. Melchior abençou-o e
-sahiu.
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-Sahindo do gabinete de Estacio, dirigiu-se para a sala de costura, onde
-achou D. Ursula um pouco menos agitada.
-
---Falou a Helena? perguntou ella dirigindo-se ao padre.
-
---Ainda não; sei que não quer sahir do quarto; deixemos passar a
-primeira commoção. Amanhã virei saber tudo. Por hoje é preciso que a
-senhora socegue.
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---Oh! estou socegada! Não perdi a confiança.
-
-D. Ursula proferiu éstas palavras com tamanha serenidade e tão
-profunda convicção que fortaleceu o espirito do proprio Melchior,
-alias não inclinado a crer no mal. O ancião deteve-se alguns instantes
-a contemplar o rosto placido de D. Ursula, a admirar a fôrça secreta
-que a tornava surda ao clamor da realidade,--pelo menos, da realidade
-apparente. Contemplou-a silencioso, e desceu á chacara.
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-
-CAPITULO XXIV
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-A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da
-chacara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre
-feliz, mas geralmente quieto, dessa quietação que é tanta vez a
-superficie da vida. Mais de uma vez buscára dissipar a sombra pezarosa
-que alguns erros do conselheiro accumularam na fronte da consorte.
-Haveria naquella casa uma geração de dores, destinadas a abater o
-orgulho da riqueza com o irremediavel expectaculo da debilidade humana?
-
---Não, dizia elle comsigo mesmo. A verdade é que tudo se encadeia e
-desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos
-abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortunio calado e
-profundo daquella senhora que se foi em pleno meio dia; o fructo hade
-ser tão amargo como a árvore; seu sabor é travado de remorsos.
-
-Neste ponto chegava ao portão. Ahi deteve-se um instante. O passo
-cautelloso e timido de alguem fel-o voltar a cabeça. Um vulto, cujo
-rosto não via, tão escuro como a noite, alli estava e lhe tocava
-respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pagem de Helena.
-
---Seu padre,--disse este,--diga-me por favor o que aconteceu em casa.
-Vejo todos tristes; nhanhã Helena não apparece; fechou-se no quarto...
-Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu?
-
---Nada, respondeu Melchior.
-
---Oh! é impossivel! Alguma cousa ha por fôrça. Seu padre não tem
-confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente?
-
---Socega; não ha nada.
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---Um! gemeu incredulamente o pagem. Ha alguma cousa que o escravo não
-pode saber; mas tambem o escravo póde saber alguma cousa que os brancos
-tenham vontade de ouvir...
-
-Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permittia examinar
-o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A ideia de
-interrogal-o passou pela mente, do padre, mas não fez mais do que
-passar; elle a regeitou logo, como a regeitára algumas horas antes.
-Melchior preferia a linha recta; não quizera empregar um meio tortuoso.
-Iria pedir a Helena a solução das difficuldades. Entretanto, o pagem,
-como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote,
-continuou:
-
---Nhanhã Helena é uma sancta. Se alguem a accusa, accusa o bom
-procedimento della. Eu lhe direi tudo...
-
-Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pagem,
-contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se
-passos; era um escravo que vinha fechar o portão.
-
---Vem gente,--disse Vicente,--amanhã...
-
-O pagem tacteou nas trevas em procura da dextra do capellão; achou-a
-emfim, imprimiu-lhe um ósculo do respeito e affastou-se. Melchior
-seguia para casa, abalado com a meia revellação que acabava de ouvir.
-Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo;
-podia suppor que o acto delle em menos expontaneo do que parecia; emfim,
-que a propria Helena suggeríra aquelle meio de transviar a expectação
-e congraçar os sentimentos. A interpretação era verosimil; mas o
-padre não cogitou de tal cousa. A elle é principalmente applicavel a
-maxima apostolica; para os corações limpos, todas as cousas são
-limpas.
-
-A seguinte aurora alumiou um ceu puro de nuvens. Estacio accordou com
-ella, depois de uma noite mal dormida. Nunca a manhã, lhe pareceu mais
-rumorosa e jovial; nunca o ar apresentára tão fina transparencia, nem
-a folhagem tão lustrosa, côr. Da janella a que se encostára via as
-flôres de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e
-enviando-lhe a elle uma nuvem invisivel de seus aromas: aspecto de festa
-e ironia da natureza. Estacio achava-se alli como um sahimento em horas
-de carnaval.
-
-Almoçou sosinho; D. Ursula estava com Helena. Logo depois do almôço
-recebeu uma carta de Mendonça, que tendo ido na vespera a Andarahy,
-recebêra a resposta dada a todos, e mandava saber se havia molestia em
-casa. Estacio respondeu affirmativamente, accrescentando que, posto não
-se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois. A resposta
-podia ser mais circumspecta; no estado em que elle se achava,
-pareceu-lhe excellente.
-
-Pela volta do meio dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D.
-Ursula, que o espreitava de uma das janellas.
-
---Helena? perguntou elle ancioso.
-
---Ja hoje desceu,--respondeu D. Ursula. Está mais tranquilla. Não lhe
-perguntei nada, mas dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe,
-mostrou-se anciosa por vel-o, e pediu-me até que o mandasse chamar.
-
-Seguiram os dous até á saleta que ficava ao pe da sala de jantar.
-Helena estava sentada, com a cabeça cahida sôbre as costas da cadeira,
-e os olhos meios cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os
-olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pallidas
-da vigilia e da afflicção. Ergueu-se e deu dous passos para o padre,
-que lhe apertou as mãos entre as suas.
-
---Imprudente! murmurou Melchior.
-
-Helena sorriu, um sorriso pallido e tão passageiro como a côr que lhe
-tingira o rosto, D. Ursula dispoz-se a ir chamar Estacio, que estava no
-andar de cima. Apenas a viu sahir, Helena segurou em uma das mãos do
-padre.
-
---Queria vel-o! disse ella. Não tenho ânimo de falar a ninguem mais,
-de dizer tudo...
-
---É inutil; tudo sei, interrompeu Melchior sorrindo. O Vicente foi
-hoje de manhã á minha casa; foi de movimento proprio; relatou-me
-quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia
-ver, a occultas, não podendo ou não querendo apresental-o em casa de
-seus parentes. O escrupulo era excessivo, e o acto leviano. Porque
-motivo dar apparencia incorrecta a um sentimento natural? Teria poupado
-muita afflicção e muita lagryma a si e aos seus, se tomasse antes o
-caminho direito, que é sempre o melhor.
-
-Helena ouvia éstas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos.
-Não parecia sequer respirar. Quando elle acabou, perguntou soffrega:
-
---Com que intento lhe falou elle?
-
---Com o mais puro do todos; desconfiou que a senhora padecia por isso e
-veiu contar-me tudo.
-
-Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quiz
-interromper nessa ascenção mental ao ceu; limitou-se a contemplal-a.
-A belleza de Helena nunca lhe parecêra mais tocante do que nessa
-attitude implorativa. A contemplação não durou muito, por que a
-oração foi breve.
-
---Orei a Deus,--disse ella, descendo as mãos,--por que infundiu ahi no
-corpo vil do escravo tão nobre espirito do dedicação. Delatou-me para
-restituir-me a estima da familia. Aquillo que ninguem lhe arrancaria do
-coração, tirou-o elle mesmo no dia em que viu em perigo o meu nome e a
-paz de meu espirito. Infelizmente, mentiu.
-
-Melchior empallideceu.
-
---Mentiu sem o saber, continuou a moça. Disse o que suppunha ser
-verdade,--o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem.
-
-Melchior inclinou-se para a moça e pegando-lhe nos pulsos, disse
-imperiosamente.
-
---Então quem é? Seu silêncio é uma delação; não tem ja direito de
-hesitar.
-
---Não hesito, replicou Helena; em taes situações uma creatura, como
-eu, caminha direito a um rochedo ou a um abysmo; despedaça-se ou
-some-se. Não ha escolha. Este papel,--continuou, tirando da algibeira
-uma carta,--este papel lhe dira tudo; leia e refira tudo a Estacio e a
-D. Ursula. Não tenho ânimo de os encarar nesta occasião.
-
-Melchior, atordoado, fez um leve signal de cabeça.
-
---Lido esse papel,--estão rotos os vínculos que me prendem a ésta
-casa. A culpa do que me acontece não é minha, é de outros; aceitarei
-contudo ás consequencias. Poderei contar ao menos com a sua benção?
-
-A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de
-absolvição ou de clemencia, que ella lhe pagou com muitos na dextra
-enrugada e trémula de commoção. Helena precipitou-se depois para o
-corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abril-a,
-receioso dos males que iam dalli sahir, sem certeza ao menos de que
-ficaria no fundo a esperança. Ia abril-a, e hesitou se o devia fazer na
-ausencia de Estacio e D. Ursula; venceu o escrupulo e leu.
-
-D. Ursula, que entrou na occasião em que elle fechava a carta, recuou
-aterrada. Melchior estava pallido como um defuncto. Antes que nenhum,
-delles falasse, entrou Estacio na saleta. Melchior dirigiu-se a elle e
-entregou a carta. Leu-a Estacio e dizia assim:
-
-«Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa ahi ha que te
-afflige. Presumo adivinhar o que é. O Estacio esteve commigo, logo
-depois que daqui sahiste a ultima vez. Entrou desconfiado, e deu como
-razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na
-mão. Talvez elle proprio as fizesse para entrar aqui em casa.
-Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Suppondo que elle
-soubesse de tuas visitas, não lhe occultei a minha pobreza; era o meio
-de attribuil-as a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de
-capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o theor da
-vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o
-espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente receio que assim
-acontecesse. Conta-me o que ha, pobre filha do coração; não me
-escondas nada. Em todo o caso, procede com cautella. Não provoques
-nenhum rompimento. Se fôr preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou
-mezes. Contentar-me-ha a ideia de saber que vives em paz e feliz.
-Abençoo-te, Helena, com quanta effusão pode haver no peito do mais
-venturoso dos paes, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gôsto
-de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me.--_Salvador_.»
-
-_P.S._ Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não
-saias dahi; seria um escandalo.»
-
-Estacio não comprehendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade
-parecia inverossimil. Seu primeiro movimento foi sahir dalli e ter com
-Helena. Melchior deteve-o a tempo.
-
---Não precipitemos nada, disse elle. Socegue primeiro.
-
-Estacio deixou-se cahir n'uma cadeira; Melchior communicou o conteudo da
-carta a D. Ursula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho,
-porque ella não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar
-estupidamente para o papel. Houve então entre aquelles tres personagens
-dez minutos de mortal silêncio. D. Ursula não pensava; olhava para a
-carta, logo depois para o sobrinho e o padre, como a esperar uma
-conclusão que seu proprio espirito não podia deduzir dos
-acontecimentos. Estacio ficára desorientado; em vão procurava um fio
-de deducção entre suas ideias; a revellação nova era uma
-complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração
-testamentária de seu pae? Se o não era, como explicar a audacia de
-semelhante invenção? Elle não podia discernir o que era favoravel a
-Helena, nem ousava affirmar o que lhe era adverso.
-
-No meio daquella familia, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava
-a superioridade da morte sobre alguns lances terriveis da vida. Se o
-obito de Helena tomára o logar da carta, a dor seria violenta; mas o
-irremediavel desfecho e o consolo da religião teriam contribuido para
-sarar a alma dos que ficassem e converter o desespêro de alguns dias na
-saudade da vida inteira. Em vez disto, estava elle talvez diante de um
-destino aniquillado; via um abysmo possivel entre corações que a
-vontade de um morto vinculára. Qualquer que fôsse a veracidade da
-carta, o resultado era talvez esse.
-
-Melchior foi dalli ter com Helena, para alcançar mais detida
-explicação do quê acabava de ler. Ella ergueu-se quando o viu, e
-pareceu reviver ao contemplar o gesto benevolo com que elle lhe falou.
-Um longo suspiro de alivio rompeu-lhe do coração; seus braços cahiram
-sobre os hombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou
-emfim,--um minuto--das dores que a affligiam.
-
---Perdoaram-me? disse ella.
-
---Hão de perdoar; conte-me tudo.
-
---Oh! não posso, não sei; sei que é meu pae.
-
-O capellão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na
-posição em que os deixára. Interrogaram-n'o com os olhos.
-
---Nada, disse elle. Seu coração não possue nesta occasião a
-necessaria fôrça para responder a quanto se lhe devia perguntar;
-demais não sabera tudo. Temos a primeira confissão da verdade....
-
---Da verdade? interrompeu melancholicamemte Estacio. Quem sabe se é
-verdade o que lemos nesse papel?
-
---É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração;
-mas eu incumbo-me de ir buscal-os.
-
---Iremos ambos.
-
-D. Ursula quiz dissuadir o sobrinho de ir á casa do homem, causa dos
-desastres da familia; não tanto por que lhe parecia que entre Estacio e
-elle nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo por que ella
-precisava de alguem que a acompanhasse em tão graves circumstâncias.
-Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Ursula.
-
---Irei eu só, disse elle; depois conduzil-o-hei até ca, se fôr
-preciso.
-
---Não posso esperar, insistiu Estacio; preciso falar a esse homem,
-ouvil-o, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o
-decoro da familia exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração
-goteja sangue.
-
-Era impossivel dissuadil-o; Melchior tratou somente de o moderar. De
-resto, a crise era violenta; cumpria resolvel-a sem demora nem
-hesitação. O padre animou D. Ursula, e sahiu acompanhado de Estacio,
-cujo coração, convalecido do primeiro abalo, deixava as regiões da
-dúvida para entrar na atmosphera da verdade,--pelo menos da esperança.
-Quaesquer que fossem as consequencias da nova revellação, vinha ésta
-como um balsamo, apos tão dolorosas commoções; era um rasgão azul no
-ceu tempestuoso daquelles dias. Ia elle pensando assim,--ou antes
-sentindo,--por que o pensamento não ousava regel-o, desde que a vida
-inteira do moço se lhe concentrára no coração.
-
-Chegando em frente da casa, Estacio desviou os olhos; custava-lhe
-encaral-a, mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se ésta
-emfim, e a figura do dono da casa appareceu aos dous. Vendo-os,
-empallideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão.
-Estacio foi direito ao fim.
-
---Supponho que se lembra de mim? disse elle.
-
---Perfeitamente.
-
---Sabe que motivo nos traz a sua casa?
-
---Não, senhor.
-
---Confessa a autoria desta carta?
-
-Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto affirmativo.
-
---Pretende que Helena é sua filha, disse o moço depois de um instante.
-Confirma verbalmente o que escreveu?
-
---Helena é minha filha.
-
-Melchior interveiu.
-
---Ha um anno, fallecendo, o meu velho amigo conselheiro Valle,
-reconheceu Helena, por uma clausula testamentária; recommendava á
-familia que a tratasse com affecto e carinho e designava o collegio em
-que ella estava sendo educada. O facto do reconhecimento e as
-circumstâncias que apontou dão toda a veracidade á palavra do morto.
-Que prova apresenta o senhor em contrário a ella?
-
---Nenhuma, disse Salvador; não tenho prova de nenhuma natureza.
-
---Na falta de provas, proseguiu o capellão, poderia dizer-nos como
-suppor da parte do conselheiro uma falsificação tratando-se de
-disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa extranha na
-familia?
-
-Salvador sorria amargamente.
-
---Supponha,--disse elle,--que eu havia illudido a confiança do
-conselheiro, e que elle acreditava ser pae de Helena.
-
---Era isso?
-
---Não era. Na posição em que nos achamos já não ha logar para meias
-palavras. Fôrça é referir tudo. Dez minutos apenas.
-
-Os tres sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a
-persistencia e a curiosidade naturaes da occasião. Salvador esteve
-alguns instantes calado; emfim voltou-se para o capellão.
-
---Estimo, disse elle, que o Sr. padre viesse; sua caridade temperará a
-legítima indignação deste mancebo; e eu farei as declarações
-indispensaveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de
-Helena.
-
---Queira falar, disse seccamente Estacio.
-
-
-
-
-CAPITULO XXV
-
-
---A mãe de Helena, disse Salvador, cuja belleza foi a causa, a um
-tempo, da sua ma e boa fortuna, era filha de um pobre lavrador do Rio
-Grande do Sul, onde tambem nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pae
-oppoz-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria
-ver-me em posição brilhante. Angela podia ser obstaculo á minha
-carreira, dizia elle. Oppoz-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na
-campanha oriental, d'onde passamos a Montevideo, e mais tarde ao Rio de
-Janeiro. Tinha vinte annos quando deixei a casa paterna; possuia alguns
-estudos poucos, meio duzia de patacões, muito amor e muita esperança.
-Era de sobra para a minha edade, mas insuficiente para o meu futuro. A
-lua de mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha
-vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me veem, fui
-mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operario,
-estalajadeiro, escrevente de cartorio; algumas semanas vivi de tirar
-cópias de peças e papeis para theatro. Trabalhava com energia, mas a
-fortuna não correspondia á constancia, e o melhor dos annos gastei-o
-em luta aspera e desegual. Uma compensação havia, a mais doce de
-todas: era o amor e o contentamento de Angela, a egualdade de animo com
-que ella encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa
-fuga havia outra compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em
-um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe
-foram obtidos por favor de uma mulher da visinhança. Mas nasceu, em boa
-hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um
-ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava
-com alma, luctava resoluto contra todas as fôrças adversas, certo de
-encontrar á noite a solicitude da mãe e as ingenuas caricias da filha.
-Os senhores não são paes; não podem avaliar a fôrça que possue o
-sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas accumuladas na
-fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte da
-noite, e eu, apezar de robusto, me sentia cançado, erguia-me, ia ao
-berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar fôrças
-novas, Se o proprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de
-alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a
-adormecer metade da minha felicidade na terra.
-
-Salvador interrompeu-se commovido.
-
---Perdoem-me,--continuou elle depois de alguns instantes, se éstas
-memorias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje.
-Desse tempo só resta um echo doloroso e consolador. Crescia Helena e
-cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue.
-Quando pôde aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras
-licções; assisti pasmado á aurora daquella intelligencia que os
-senhores veem hoje tão desenvolvida e lucida. Aprendia com facilidade,
-por que estudava com amor. Angela e eu construiamos os mais lindos
-castellos do mundo. Nós a viamos ja mulher, formosa como viria a ser,
-porque ja o era, intelligente e prendada, espôsa de algum homem que a
-adorasse e elevasse. Viviamos dessa antecipação, que era apenas um
-sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna.
-
---Porque razão,--perguntou Melchior,--dado esse amor e nascida uma
-filha, não sanctificou o senhor a situação singular em que se
-achavam?
-
---A curiosidade é justa, replicou Salvador, mas a resposta é decisiva.
-Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o resentimento
-de meu pae. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grande a propria
-embriaguez da felicidade desviou qualquer ideia de sanctificar e
-legalisar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os
-trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao
-dever que tomára em meus hombros, ia adiando o acto de mez para mez, de
-anno para anno. Afinal o projecto esvaiu-se de todo. Estavamos ligados
-pela miseria e pelo coração, não pretendiamos o respeito da
-sociedade; triste desculpa, e ainda mais triste recordação, por que o
-casamento teria talvez obstado aos acontecimentos posteriores. Helena
-contava seis annos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermittencias
-favoraveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida,
-quando uma circumstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pae
-adoecêra; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fôsse ver sem
-demora. Obedeci promptamente. Do que elle me remetteu para as despezas
-dr viagem e outras, deixei alguma cousa a Angela e Helena, e parti.
-Vinte e quatro horas depois de ver meu pae, tive a dor de o perder. A
-liquidação dos negocios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo
-aos credores; restavam-me alguns patações. Recebi esse golpe novo com
-a philosophia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do
-acontecimento? Os negocios entretanto, apezar de curtos, demoraram-me
-mais do que eu pretendia e convinha. A ancia de voltar cresceu desde que
-não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Angela. Enfim,
-pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança
-menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pae.
-
-Estacio desviou os olhos.
-
---Logo que cheguei,--continuou Salvador,--corri a casa; achei-a fechada.
-Um visinho, testemunha da minha afflicção, deu-me notícia de que
-Angela se mudára para S. Christovão. Não sabia nem o numero nem a
-rua; mas deu-me algumas indicações, que me guiaram. Ainda hoje tenho
-ante os olhos o sorriso com que aquelle homem me respondia. Era um
-sorrir de compaixão que humiliava. Sem nunca haver recebido de mim a
-menor offensa, vejo que elle tinha um prazer secreto com o meu
-infortunio. Porque? Deixo aos philosophos liquidarem esse enigma da
-natureza humana. Voei a S. Christovão; gastei tempo em procurar a casa,
-mas dei com ella. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das
-indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio
-de um pequeno jardim. Podia ser aquella a residencia da companheira de
-minha miseria? Receioso de ir bater alli, vi assomar ao portão um
-homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a
-quem dei o seu proprio nome, dizendo que lhe desejava falar. «A senhora
-sahiu,» respondeu elle distrahidamente. Dispuz-me a esperar, mas o
-jardineiro observou-me que ia sahir e fechar o portão, e que a senhora
-só voltaria á noite. «Esperarei até a noite», redargui. O jardineiro
-mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cautelloso pela rua e
-disse-me baixinho: «Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não
-hade gostar.» Não escrevo um romance; dispenso-me de lhes pintar o
-efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a
-descripção. Ha catastrophes mais solemnes, ha situações mais
-patheticas; mas naquella occasião parecia-me que todas as dores do
-mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era
-verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o effeito de suas
-palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro.
-Convidou-me com brandura a sahir; obedeci machinalmente. Podendo
-informar-me acerca de Angela, não o fiz. A febre reteve-me tres dias
-de cama, n'uma pobre cama alugada em pessima estalagem da Cidade Nova.
-No terceiro dia recebi uma carta de Angela. Pedia-me que lhe perdoasse o
-passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que,
-se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a
-carta, tive impeto de ir ter com ella e esganal-a; mas o impeto passou,
-e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um
-engenheiro inglez que vinha do Rio Grande para esta Côrte, emprestara-me
-um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglez que
-aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que alli achei fez-me
-estremecer, na occasião, como uma profecia; recordei-a depois quando
-Angela me escreveu. «Ella enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de
-enganar-te a ti tambem.» Era justo; pelo menos, era explicavel. Dous
-dias depois da carta de Angela, escrevi-lhe pedindo meia hora de
-conversação; nada mais. Angela concedeu-me a entrevista. Meu plano era
-arrebatar-lhe Helena; ela parece que o previu, recebendo-me sosinha, no
-jardim, ás nove horas da noite.
-
---Por que razão recorda todas essas minucias? interrompeu Melchior com
-brandura; nós desejamos somente saber o essencial.
-
---Tudo é essencial na minha narração, disse Salvador. Aquella
-entrevista mostrou-me a toda a luz o caracter de Angela. Que outra
-mulher se arriscaria, em taes circumstâncias, a affrontar a colera do
-homem desprezado? Angela era um complexo de qualidades singulares. Capaz
-de supportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das maximas
-privações, esqueceu n'um instante as virtudes que tinha para correr
-atraz de uma fantasia do amor. Não foi a riqueza que a seduziu; ella
-iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miseria. Angela nasceu
-metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro,
-não o era menos das pompas da scena. E dahi... não fui eu mesmo que a
-desviei da estrada real para mettel-a por um atalho obscuro? Disse-lh'o
-naquella noite em que procurei ser tranquillo e superior aos
-acontecimentos. «Meu fim,--declarei eu,--é só um: levar Helena; Helena
-é minha filha, não quero deixal-a entregue a seus maus exemplos.» As
-lagrymas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada
-a meus pes, para que lhe deixasse Helena, não ha negar que foi tudo
-sincero. Cedi apparentemente. Minha resolução estava assentada; sem
-Helena a vida parecia-me impossivel. Que outro vínculo me prendia ao
-mundo? A morte e a miseria tinham feito em redor de mim completa
-solidão. A unica felicidade sobrevivente era ella.
-
---Segundo rapto, observou o padre. O senhor condemnava-se a só adquirir
-um vislumbre de felicidade por meios violentos.
-
---Tem razão, respondeu Salvador com tristeza; um abysmo chamava outro
-abysmo... Felizes os que sabem o caminho recto da vida, e nunca se
-arredaram delle! Quiz arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a
-via nunca; a propria casa rara vez tinha uma porta ou janella aberta.
-Havia alli o recato e o mysterio. Um dia resolvi ir ter com o protector
-de Angela. A noticia que me deram do conselheiro Valle era a mais
-honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos.
-O demonio do orgulho impediu a execução do plano. Quasi a entrar em
-casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cêrca de dous mezes.
-Emmagreci; as longas vigilias fizeram-me pallido; o trabalho não me
-attrahia; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um
-pungir delicioso não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é
-certo que a ella misturava-se a colera, a colera da impotencia e o
-desgôsto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para S. Christovão,
-disposto a empregar a violencia, com tanto que trouxesse Helena ou
-fôsse dalli para o Aljube. Era á tardinha. Approximei-me do jardim de
-Angela, ouvi a voz de minha filha. Era a primeira vez depois de longos
-mezes! Parou-me o sangue todo. Passado o primeiro abalo, caminhei
-cautelloso encostado á cêrca, Helena falava a alguem. Por uma abertura
-da cêrca, pude espreital-a. Estava ao collo de um homem. Esse homem era
-o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a
-minha Helena. Helena acariciava as barbas delle; este sorria para ella
-com um ar de ternura, que o absolvia quasi da offensa a mim feita. O
-coração porém apertou-se-me, ao ver dar a outro, affagos a que só eu
-tinha direito. Era um roubo feito á natureza; mas, se meu proprio
-sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Dahi a
-algum tempo,--não sei se foi curto ou longo, por que eu ficára a olhar
-para ambos, pasmado de amor e de colera, ouvi que falavam de mim.
-«Mas, olhe,--dizia Helena,--papae quando vem?» O conselheiro deu um
-beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairara
-sôbre a cabeça della. As creanças porém são implacaveis; aquella
-repetiu a pergunta. «Papae não volta» respondeu o conselheiro. Helena
-ficou muito séria. «Não volta? porque?» «Tua mamãe disse hontem
-que papae está ao ceu.» Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe
-rebentaram lagrymas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos, tentei
-dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha
-filha. Os musculos não corresponderam á intenção; senti fraqueza nas
-pernas; achei-me de bruços. Quando dei accôrdo de mim, volvi de novo
-os olhos para o logar onde os víra. Ainda alli estavam, mas a attitude
-era differente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que
-ja não chorava. Elle beijava-lhe as mãosinhas e dizia-lhe: «Se papae
-foi para o ceu, fiquei eu no logar delle, para dar-te muito beijo, muito
-doce e muita boneca. Queres ser minha filha?» A resposta de Helena foi
-a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se
-dissesse; «Se não tenho ninguem mais no mundo!» O gesto foi tão
-eloquente que eu vi borbulhar uma lagryma nos olhos do conselheiro. Essa
-lagryma decidia do meu destino; vi que elle a amava, e de todos os
-sacrificios que o coração humano póde fazer, aceitei o maior e mais
-doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da unica herança que
-tinha na terra, fôrça da minha juventude, consolo de minha miseria,
-coroa de minha velhice, e voltei á solidão mais abatido que nunca!
-
-Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por
-entre seus dedos escorreram algumas lagrymas, que elle, de envergonhado,
-enxugou rapidamente.
-
---Essas recordações são penosas, disse o padre; não convem
-despertal-as de uma vez; seria abrir feridas que o tempo cicatrisou.
-Sabemos o essencial...
-
---Não, resta ainda alguma cousa, disse Salvador.
-
-Estacio erguera-se. Visivelmente commovido, procurava luctar contra o
-sentimento que o dominava, afim de conservar a necessaria independencia
-de espirito para julgar da narrativa e do alcance que ella podia ter.
-Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as
-últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia
-parecer uma absolvição summaria. A verdade é que elle não reflectia
-nem sentia claramente; sua mente e seu coração eram um campo de ideias
-e commoções contrárias.
-
---Vou acabar,--disse Salvador depois de alguns minutos. Resta explicar o
-procedimento de Helena.
-
-
-
-
-CAPITULO XXVI
-
-
---Seu pae,--continuou Salvador dirigindo-se a Estacio, que, para acabar
-de compor o rosto, tinha ido até á janella e voltára a sentar-se, seu
-pae era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Angela, não me trahiu, por
-que não me vira nunca; não contribuiu directamente para a traição
-della, por que suppunha cortadas nossas relações. Soube depois que
-Angela, quando elles se apaixonaram um pelo outro, lhe occultára
-completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim.
-Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido, O
-conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso,
-não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma suggestão de amor ou
-um esquecimento; foi talvez um modo de respeitar-me: no segundo caso,
-houve cálculo; era o de redobrar o affecto que o conselheiro tinha a
-Helena. Assim aconteceu, por que o conselheiro sentiu-se pae de Helena,
-e assumiu esse caracter desde aquella tarde. Do contracto, feito alli
-entre o homem e a creança, cumpriu elle toda as clausulas com generosa
-pontualidade. Póde crer que lhe fiquei profundamente grato. Uma vez,
-passando por uma lithographia, vi um retrato delle; comprei-o e
-conservo-o alli ao lado do de Helena.
-
-Melchior e Estacio olharam para a parede, onde pendiam dous quadrinhos,
-ainda cobertos, conforme Estacio os vira, no primeiro dia em que alli
-foi.
-
---Os mezes e os annos passaram,--continuou Salvador,--Helena deu entrada
-em um collegio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O
-conselheiro a levou alli, dando-a como orphã de um amigo, de Minas;
-Angela, que se dera por sua tia, ia buscal-a aos sabbados. Omitto mil
-circumstâncias intermediarias, e as vezes, poucas, em que pude ver
-minha filha, de passagem e a occultas. Se o tempo houvesse produzido em
-mim os seus naturaes effeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer
-contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade,
-é possivel que eu achasse meio de empregar-me no collegio ou nas
-immediações, afim de ver mais frequentemente Helena. Mas eu era o
-mesmo: passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a
-côr, e eu era e mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena
-podia reconhecer-me; e eu faltava á convenção tacita que fizera com o
-conselheiro. Um sabbado, porém, tinha Helena doze annos, vindo ambas do
-collegio, parou o carro defronte do Passeio Publico. Vi-as descer e
-entrar. Levado por um impulso irresistivel, entrei tambem. Queria
-contemplal-as de longe sem lhes falar; mas a resolução estava acima
-das minhas fôrças. Que pae não faria outro tanto? No logar mais
-solitario do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não
-reconhecer-me logo; mas attentou um pouco, recuou espavorida e
-agarrou-se á mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava
-alli um pae, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia
-affastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar á mãe: «Papae?»
-Voltei-me. Angela envolvêra o rosto da creança entre seus vestidos. O
-gesto equivalia a uma confissão; mas ésta foi ainda mais clara quando
-a mãe, cedendo á boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os
-hombros, descobriu o rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa,
-fitou-a e fez com a cabeça um gesto affirmativo. A menina não exibiu
-mais; correu para mim e atirou se me nos braços. Angela não se atreveu
-a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrificio falavam em meu
-favor. Abracei Helena e beijei-a como doudo. Angela interveio:
-«Basta!» disse ella. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua.
-Apertei-a machinalmente; meus olhos estavam pregados na creança. Era
-tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabellos enlaçadas com
-fitas azues, um chapellinho de palha e os pesinhos calçados com botinas
-de seda! «Fez bem, disse eu a Angela, depois de alguns instantes;
-deu-lhe um pae melhor do que eu.» Reparei então que ella propria se
-transformára; trajava com elegancia e estava superiormente bella. A
-abastança aperfeiçoára a natureza. Olhei-a sem inveja nem
-colera,--mas com saudade,--dessa vez deliciosa, porque rememorei os bons
-tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um peculio para os que
-ja não esperam nada do presente ou do futuro; ha alli sensações vivas
-que preenchem as lacunas de todo o tempo. «Fez mal,»--disse-me ella
-baixinho. E suspirou. «Sei que morri,--disse eu, e não pretendo
-resuscitar.» Depois voltei-me para Helena:--«Minha filha, faze de
-conta que me não viste; morri, para ti e para o mundo. Teu pae é
-outro. Promettes que não dirás nada?» Helena fez um leve signal de
-cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quizesse ser vista de
-Angela. Nesse simples gesto reconheci que ella ia obedecer-me; mas a
-tristeza que lhe ficou foi o castigo de sua mãe. Pediamos á natureza
-mais do que ella podia dar.
-
-Salvador fez uma pausa, ergueu-se foi à commoda, e de uma das gavetas
-tirou uma caixinha, que collocou sôbre a mesa. Melchior e Estacio
-trocaram um olhar de curiosidade. Salvador sentara-se de novo.
-
---Angela morreu,--proseguiu elle,--dahi a um anno. Seu pae e alguns
-amigos poucos foram leval-a á sepultura. Tambem eu la me achei. A
-differença é que elle enterrava uma aventura, e eu via enterrar o meu
-passado. Vi-o triste e taciturno, como sinceramente pezaroso da creatura
-que perdéra. Helena, entretanto, não podendo estar só na mesma casa,
-foi removida para o collegio, onde ficou residindo definitivamente. O
-conselheiro ia visital-a todas as semanas. Pela minha parte, certo da
-discrição de minha filha, encetei com ella uma correspondencia que era
-toda a consolação que me podia caber. Uma escrava do collegio servia
-de intermediaria entre nós. Então, como hoje, achei uma alma
-compassiva que me ajudou a ser feliz com mysterio; a differença é que
-naquelle tempo era precisa a intervenção pecuniaria. Eu tinha pouco,
-mas dava o jantar de um dia para ler cartas de Helena. Conservo-as
-todas, tanto as de outr'ora, como as destes últimos mezes; estão
-fechadas aqui.
-
-Salvador mostrou a caixinha que collocára sôbre a mesa.
-
---Um dia, almoçando em um botequim, li a notícia da morte do
-conselheiro. O facto consternou-me; mas eu peço licença para lhes
-dizer tudo; de envolta com o sentimento, de pezar, houve em mim alguma
-cousa semelhante a uma satisfação. Respirava enfim! O contracto
-expirava com elle; eu ia entrar na posse de minha filha. Não escrevi
-desde logo a Helena; fil-o ao cabo de alguns dias. Tive duas respostas:
-a primeira era no sentido da minha carta; a segunda annunciava-me que o
-conselheiro a reconhecêra por testamento. Podia procurar e ler-lhes a
-segunda carta: é um documento da elevação dos sentimentos daquella
-menina. Exprimia-se com a maior gratidão e saudade a respeito do
-conselheiro; mas negava-se a aceitar o favor posthumo. Sabendo a
-verdade, não queria escondel-a ao mundo. Acceitando o reconhecimento,
-entendia que prejudicava direitos do terceiro, além de repudiar-me
-solennemente, o que não queria fazer desde que adquiria a liberdade de
-acção. Entre a herança e o dever, dizia ella, escolho o que é
-honesto, justo e natural. Esta carta tirou-me o somno uma noite inteira,
-perplexo como fiquei entre o acto do finado e a resolução da herdeira.
-Que mão invisivel tocára no coração do conselheiro essa corda de
-sensibilidade? Melhor fora que elle houvesse traduzido era uma simples
-lembrança a affeição que tinha a Helena. Longo tempo reflecti nisso;
-o pae luctava com o pae. Tel-a commigo era a minha ventura, o meu sonho,
-a minha ambição; era a realidade que eu chegára a tocar com as mãos.
-Mas podia atal-a ao carro decrepito da minha fortuna, dar-lhe o pão
-amargo, que era o meu lote de todos os dias? A familia do conselheiro ia
-afiançar-lhe futuro, respeito, prestigio; a lei ia amparal-a. Perguntei
-a mim mesmo, se depois de haver morrido para o mundo, me era licito
-resuscitar para reclamar e rehaver um titulo de que me havia despojado;
-finalmente se possuia ja o direito de fazer um escandalo. Éstas
-reflexões, se viessem sos, teriam triumphado desde logo; mas, em
-opposição a ellas, vieram as suggestões do coração. Adverti que,
-cedendo á vontade do morto, cavaria um abysmo entre mim e Helena, e que
-não mais, ou só raramente e a o occultas, podia desfructar, a felicidade
-de lhe dizer que a amava, de ouvir a mesma palavra de seu coração.
-Nessa lucta gastei tres longos dias. Helena escreveu-me outra carta,
-insistindo na resolução que dizia haver tomado. Urgindo responder-lhe,
-fil-o sacrificando-me, não a convenci. Procurei ter uma entrevista com
-ella. Não era facil; mas o interesse venceu tudo; a escrava
-intermediaria augmentou o preço da complacencia. O que se passou entre
-nós não o poderei repetir agora; curto era o prazo concedido, mas a
-lucta foi renhida e longa. Busquei persuadil-a com reflexões e
-súpplicas; ella resistiu com indignação e lagrymas. Sua nobre alma
-repudiava a complicidade e o lucro de uma usurpação. Eu não via
-usurpação, por que a meus olhos nem os interesses da familia do
-conselheiro, nem as noções da simples moral prevaleciam: eu via minha
-filha e seu futuro: nada mais. Talvez os culpados desse meu proceder
-fossem somente Angela e seu bemfeitor. Elles me acostumaram a amal-a de
-longe, a não disputar a outrem o beneficio que ella recebia. Emfim, meu
-coração, egoista e ulcerado, entendia que o reconhecimento daquella
-pobre creança era o simples retorno das caricias de que eu havia sido
-defraudado; taes foram os motivos da minha consciencia. Helena resistiu
-até á ultima; cedeu somente á necessidade da obediencia, á imagem
-de sua mãe que eu invoquei, como um supremo esfôrço, á fiança que
-lhe dei de que a acompanharia sempre, de que iria viver perto della,
-onde quer que o destino a levasse; cedeu exhausta, sem convicção nem
-fervor. Se nesse acto decisivo de Helena ha culpa, é toda minha, por
-que eu fui o o autor unico; ella não passou de simples instrumento,
-instrumento rebelde e passivo. Seu êrro foi não ter a prudencia
-necessaria para não transpor o abysmo que nos separava. Eu devia contar
-com na resoluções subitas e promptas dessa menina; ha alli uma
-costella de sua mãe. Mandando-lhe dizer com as indicações precisas,
-onde morava, estava longe de esperar que ella viesse ver-me. A principio
-fiquei atterrado com as possiveis consequencias; mas se o homem se
-habitua ao mal e á dor, por que se não hade acostumar ao prazer e ao
-bem? Helena veiu mais vezes; o gôsto de a ver fez olvidar o perigo, e
-eu bebi, em horas escassas e furtivas, a unica felicidade que mo restava
-na terra, a de ser pae e a de me sentir amado por minha filha.
-
-
-
-
-CAPITULO XXVII
-
-
-Tinha acabado; grossas lagrymas, retidas a custo, emfim lhe rebentaram
-dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A commoção não
-ficou só nelle; seus dous ouvintes a sentiram tambem. Acabára; e o peor
-que podia acontecer era isso mesmo. Uma vez finda a narração, ficaram
-os dous calados e perplexos, sem que ousassem contradizel-o. Depois de
-curta pausa, Salvador rematou assim:
-
---De tudo o que lhes disse não tenho outras provas, além destas
-cartas, que seriam bastantes, o de minhas lagrymas, que hão de ser
-eternas. Mas ainda quando haja outras, creio que não serão precisas.
-Na situação em que estamos só ha duas soluções possiveis; ou nada se
-altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as
-consequencias da sorte, desaparecendo; ou a familia regeita Helena, e eu
-a levarei commigo. Dir-se-ha que a lei a protege a todo trance? Pois
-ella assignará todas as desistencias necessarias.
-
-Estacio cortou-lhe a palavra dizendo que opportunamente lhe dariam sua
-resolução. Sahiram elle e Melchior logo depois; não trocaram uma só
-palavra; cada um delles ia absorto. Comtudo, o padre observava de quando
-em quando o sobrinho de D. Ursula, buscando adivinhar-lhe os
-pensamentos.
-
-Chegando á porta da chacara, o padre perguntou ao moço:
-
---Que pretende fazer?
-
---Não sei ainda.
-
---Sei eu o que deve fazer: nada.
-
---Conservar ésta situação?
-
---De certo. Helena obedeceu á vontade de seus dous paes, aceitando o
-equívoco em que ambos a vieram collocar. Obedeceu á fôrça. Agora,
-está reconhecida; é um facto que não podemos discutir nem alterar.
-
-Estacio esteve silencioso alguns instantes.
-
---Mas posso eu, á vista do que acabamos de ouvir, conservar a Helena um
-titulo que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é minha irmã;
-é absolutamente extranha á nossa familia; o titulo que nos ligava
-desaparece. Por que motivo continuariamos nós uma falsificação...
-
---De seu pae? atalhou Melchior.
-
---Padre-mestre!
-
---Aquelle homem falou verdade; mas nem a lei nem a Egreja se contentam
-com essa simples verdade. Em opposição a ella, ha a declaração
-derradeira do um morto. A justiça civil exige mais do que palavras e
-lagrymas; a ecclesiastica não extingue, com um traço de penna, a
-affirmação posthuma. Demais, não espere que esse homem reproduza
-perante ninguem as declarações de ha pouco; só o fará quando perder a
-ultima esperança. É evidente que elle nada quer alterar do que seu
-pae estabeleceu, e antes se sacrificará do que envergonhará a filha.
-Sente-se disposto a fazer o que elle recusa?
-
-Estacio não respondeu; tinham entrado na chacara, e caminhavam
-lentamente na direcção da casa. Melchior deteve-o.
-
---Estacio! disse o padre depois de olhar para elle um instante. Eu leio
-no fundo de seu pensamento; quizera despojar Helena do titulo que seu
-pae lhe deixou para lhe dar outro, e ligal-a á sua familia por
-differente vínculo...
-
-Estacio fez um gesto como protestando.
-
---Esquece duas cousas graves; o escandalo e o casamento de um e outro;
-ja se não pertence, nem ella se pertence a si. Vamos la; seja homem.
-Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio; e a situação
-de hontem será a mesma de amanhã.
-
-Quando Estacio e Melchior entraram era casa, ja D. Ursula sabia tudo;
-lográra desatar a lingua de Helena. Abatida com a leitura da carta,
-não lhe levantára o ânimo a narração verbal da moça; seu coração
-preferia talvez que Helena fôsse verdadeiramente filha do conselheiro.
-Alguns mezes de espaço e a convivencia affectuosa produziram a
-differença de sentimento entre o primeiro e o último dia.
-
---Nada podemos fazer ja agora, disse o padre; provocariamos um escandalo
-sem esperança do resultado.
-
-D. Ursula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvil-os. Helena
-desceu dahi a alguns minutos. A côr da vergonha tingiu-lhe a face logo
-que ella deu com Estacio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos
-calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Apos um silêncio
-longo e abafado, Estacio communicou a Helena a resolução da familia e
-seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que
-sôbre todas as cousas prevalecia a vontade derradeira de seu pae.
-Helena empallideceu e cerrou os olhos; D. Ursula correu a amparal-a. O
-organismo debilitado pelas vigilias e commoções das últimas horas
-não pudera resistir; mas o deliquio foi leve e curto. Voltando a si,
-Helena beijou ardentemente as mãos de D. Ursula e as do padre, estendeu
-a dextra a Estacio, que a apertou; depois, com voz trémula, mais firme
-resolução, disse:
-
---Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não
-perdi; mas a situação mudou, e fôrça é mudar com ella. Não quero a
-protecção da lei, nem poderia receber a complacencia de corações
-amigos. Commetti um erro, e devo expial-o. Emquanto a vergonha vivia só
-commigo, era possivel continuar nesta casa; eu atordoava-me para
-esquecel-a; mas agora, que é patente, vel-a-hei nos olhos de todos e no
-sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não
-devêra ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu
-me habituára a amar de longe, com o prestigio de mysterio, e o encanto
-do fructo prohibido. De hoje em diante, amal-os-lei de longe ou de
-perto, mas extranha... e perdoada!
-
-Dizendo isto, Helena abraçou D. Ursula como a pedir o beneficio da sua
-intervenção. D. Ursula abraçou-a egualmente, mas fez com a cabeça um
-gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo menos um
-symptoma de desprendimento pouco explicavel em relação á familia,
-que, sem embargo dos ultimos successos, não lhe retirára nem a estima
-nem a protecção.
-
---Herdou o orgulho de seu pae! murmurou Estacio.
-
-A phrase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos
-fulgiram de momentanea satisfação. Attribuir a orgulho, o que era
-vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava
-não ter naquelle lance. Protestou em favor de seus sentimentos de
-gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos tres lhe
-conheciam, mas interrompida a intervallos pela commoção interior, e
-pelos lagrymas que lhe escorriam dos olhos, quasi exhaustos de chorar.
-Estacio poz termo a todas as hesitações.
-
---Pois bem, disse elle, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa
-vontade é que nos obedeça.
-
-Helena mordeu o labio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça
-descahiu-lhe lentamente como ao pêso de uma ideia a mais e mais
-oppressora. Depois ergueu-a; seus olhos tristes, mas animados dos
-ultimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estacio, que
-nessa occasião pareciam falar as dores todas da paixão suffocada e
-rebelde. Ambos elles os baixaram á terra, medrosos de si mesmos.
-
---Não creio que ella aceite facilmente a sua decisão,--disse Melchior
-a Estacio, logo que pôde achar-se só com elle. Acautele-se: é capaz de
-fugir-nos.
-
---Cre?
-
---Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a
-deixaram repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miseria á vergonha; e a
-ideia de que interiormente não a absolvemos, é o verniz que lhe fica
-no coração.
-
-De noite, recebeu Estacio uma carta de Salvador, acompanhada de um
-pacote.
-
-«Reflecti muito durante éstas duas horas,--dizia elle,--e cheguei a
-uma conclusão unica. Elimino-me; é o meio de conservar a Helena a
-consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quanto ésta carta lhe
-chegar ás mãos, terei desaparecido e para sempre. Não me procure, que
-é inutil. Irei abençoal-o de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo
-o resentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as
-cartas de Helena; guardo tres apenas, como recordação da felicidade
-que perdi.»
-
-Estacio teve vontade de ler as cartas de Helena; mas a tempo recusou;
-mandou-a dar á moça. Helena, que estava com D. Ursula, entregou-as a
-ésta.
-
---São a minha história, disse ella; peço-lhe que as leia e me julgue.
-
-Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se
-immediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta,
-sinistra, o corpo atirado em um sopha, a alma sabe Deus em que regiões
-de infinito desespêro.
-
-
-
-
-CAPITULO XXVIII
-
-
-Naquella noite, a segunda de tão singulares successos, foi que Estacio
-sentiu toda a violencia do amor que lhe inspirára Helena. Em quanto os
-detinha um vínculo sagrado, amára sem consciencia; e ainda depois de
-esclarecido pelo padre, o esfôrço empregado em vencer-se, e a propria
-natureza da catastrophe, não lhe permmittiram ver a extensão do mal.
-Agora, sim: roto o vínculo, restituida a verdade, elle conhecia que a
-voz da natureza, maia sincera e forte que as combinações humanas, os
-chamava um para o outro; e que a mulher destinada a amal-o e ser amada,
-era justamente a unica que as leis sociaes lhe vedavam possuir.
-
-Durante as primeiras horas seu coração mordeu rebelde o freio da
-necessidade. A vigilia foi longa e crua; e a reflexão veiu emfim
-dominar a tempestade interior, ou antes alumiar seus destroços. Elle
-viu que o padre tinha razão; que era fôrça desfolhar a esperança de
-um dia. Ao mesmo tempo, o exemplo de Helena deu-lhe ânimo. Senhora do
-segrêdo de seu nascimento, e consciente de amar sem crime, a moça
-apressára, não obstante, o casamento de Estacio e escolhêra para si
-um noivo estimado apenas. Se uma vez a palavra delatora lhe rompeu dos
-labios, ella a retrahiu logo, fazendo o mais obscuro dos sacrificios.
-
-Não quiz Estacio ser menos generoso. Logo de manhã escreveu a
-Mendonça, pedindo-lhe que não deixasse de os ir visitar nesse dia.
-Não o fez sem custo, mas fel-o sem arrependimento. Tinha por fim
-apressar o casamento de Helena e o seu, condemnando-se a soffrer calado
-os golpes do avêsso destino.
-
-A manhã, entretanto, não trouxe a Helena o esquecimento e a paz. A
-noite não lhe serviu de remedio, antes legou á aurora toda a sua
-mortal angústia. Debilitada, nervosa, impaciente, não podia a moça
-vencer-se nem supportar-se. Ora repellia com sequidão as boas palavras
-de D. Ursula; ora lhe pedia intercedesse com Estacio para a resolução
-que ella admittia como unico meio de a poupar á vergonha. A excitação
-moral era grande; cumpria aquietal-a por meios persuasivos. Helena fugia
-a todos: não encarava Estacio e D. Ursula sem que o pêjo lhe colorisse
-a face, mudança tanto mais visivel, quanto que a vigilia e a dor a
-tinham empallidecido singularmente. Diziam-lhe que a vontade do
-conselheiro estatuira uma lei na familia, segundo a qual ella continuava
-a ser parenta como d'antes, e tão amada como era. A moça agradecia a
-generosidade, mas não podia fugir á ideia de haver contribuido para
-uma usurpação. Seu desejo capital era que a deixassem ir ter com o
-pae, ao pe de quem a natureza e sua consciencia lhe indicavam que
-poderia estar sem remorso. Estacio e D. Ursula respondiam-lhe com
-affagos e protestos; mas quando viram que estes eram inuteis, não houve
-mais que revellar-lhe a carta de Salvador.
-
-O padre Melchior incumbiu-se de lhe fazer essa delicada communicação.
-
---Seu pae, disse elle, praticou em seu favor um acto heroico; fugiu para
-lhe não fazer perder a consideração e o futuro. Leia ésta carta, e
-veja se ella lhe dá a fôrça necessaria para resistir.
-
-Helena pegou na carta com soffreguidão; leu-a de um lance d'olhos. O
-gemido que lhe rompeu do coração mostrou bem a profundez da ferida
-que acabava de receber. O padre acolheu-a lacrymosa e esvaecida em seus
-braços; disse-lhe palavras de conforto e de esperança. Nos primeiros
-minutos, Helena nada pôde ouvir; o golpe ensurdecêra a alma. Melchior
-fel-a sentar ao pe de si; ella obedeceu sem consciencia. Apos alguns
-minutos de silêncio e concentração, a moça dirigiu a palavra ao
-padre, e agradeceu-lhe a caridade. Depois referiu-lhe os acontecimentos
-de sua infancia, os mesmos que o capellão ouvira. A sagacidade natural
-de seu espirito cedo lhe fizera ver que a posição de sua mãe não era
-a mesma das outras mães; essa descoberta porém não teve outra virtude
-mais que communicar a seu amor de filha uma intensidade e energia
-capazes de affrontar os mais fortes obstaculos, como se ella quizesse
-reunir em si toda a somma de affectos e respeitos que a sociedade
-afiança ás situações regulares. Melchior ouviu-a commovido; seu
-coração, nutrido da medulla do Evangelho, reconheceu um effeito da
-graça divina nesse amor immaculado, que valia por todas as
-absolvições da terra. Elle a applaudiu e confortou; falou-lhe do
-futuro, do carinho de sua familia,--sua, a despeito de tudo; emfim da
-obrigação em que ella estava de corresponder a tanta confiança.
-
-Talvez Helena, em sua razão, correspondesse aos conselhos de Melchior;
-mas a razão é o que menos a dirigia naquellas circumstâncias
-afflictivas. Ella deixou o padre para recolher-se a seus aposentos,
-Quando D. Ursula alli foi, meia hora depois, achou-a profundamente
-abatida; a violencia da crise passára. A linguagem que lhe falou foi
-maternal, ungida de amor e perdão; Helena ouviu-a agradecida, mas um
-sorriso descorado e sem convicção lhe entre-abria os labios. Suppunha
-ler commiseração onde havia affecto e respeito; e seu orgulho
-rebellava-se de inspirar o unico sentimento que a consciencia lhe dizia
-merecer.
-
-As instancias de D. Ursula para que Helena se alimentasse foram inuteis;
-ella apenas recebia o que bastava para não sucumbir á fome. A
-companhia repugnava-lhe; assim, poucas vezes a viram desde os dias que
-se seguiram áquella funesta manhã. Mendonça não conseguiu mais do
-que os outros. A familia teve o cuidado de annunciar que Helena se
-achava enferma. A afflicção do noivo foi grande; mas todos buscaram
-tranquilizal-o. Nada havendo transpirado do acontecimento, facil foi
-sustentar aquella explicação.
-
-Melchior encommendára muito á familia que vigiaste a moça, cujo
-espirito lhe parecia atrevido e tenaz; elle receiava que Helena ou
-fugisse de casa, ou recorresse a algum acto de desespêro. O summo padre
-desvellou-se em trazer a alma de Helena ao sentimento da resignação, A
-autoridade de seu caracter religioso, a influência que elle tinha no
-espirito de Helena eram armas poderosas, temperadas como amor verdadeiro
-e paternal que o ligava á donzella. Nada poupou; mas seus esforços
-não tiveram mais fructo, que os da familia. Helena mal podia tolerar a
-situação.
-
-Uma vez, como ella descesse á chacara, sahiu Estacio a procural-a, não
-a encontrando senão ao cabo de alguns minutos. Achou-a ao pe do tanque,
-no lugar em que lhe falára poucos dias antes, sentada no mesmo banco de
-pau. Vendo-o, estremeceu; elle approximou-se contente de a haver
-encontrado emfim. O dia estava feio; grossas nuvens negras pejavam o ar,
-humidas de temporal proximo. Estacio convidou-a a recolher-se.
-
---Deixe-me estar aqui um instante mais, respondeu ella.
-
---Dous minutos apenas.
-
-Sentou-se ao pe della e ficaram calados. Helena tinha uma taquara na
-mão; Estacio quiz tomar-lh'a; ella arremessou-a para longe. Ergueu-se
-então o moço e foi buscal-a; só então viu que estava molhada até
-certa altura; calculou que seria o fundo do tanque. O tanque era raso;
-não poderia dar a morte; mas a suspeita de que Helena não recuaria
-deante do suicidio aterrou naturalmente o espirito de Estacio.
-Parecendo-lhe que a causa não comportava o effeito, perguntou a si
-mesmo se os successos daquelles dias não teriam velado a consciencia da
-moça. Sentou-se de novo e falou-lhe com brandura.
-
-Ao escutal-o, sentiu Helena como uma ressurreição de outras horas, que
-ella julgava escoadas para sempre; um sorriso lhe animou os labios sem
-côr, ao passo que os olhos doridos e murchos pareciam reviver de um
-resto de luz. Estacio falou-lhe de si, da tia, do padre e de Mendonça,
-dos proximos casamentos, da felicidade futura. Depois insistiu com ella
-para que entrasse. Uma brisa mais forte começava a agitar as árvores,
-e a tempestade ameaçava cahir de repente.
-
---Ainda não,--disse a moça; alguns minutos mais.
-
---Mas póde adoecer...
-
---Talvez, se todos quizerem a minha saude. Ha creaturas tão malfadadas,
-que aquelles mesmos que as desejam fazer venturosas não alcançam mais
-do que preparar-lhe o infortunio. Tal foi o meu destino. Seu pae e minha
-mãe não tiveram outro pensamento; meu proprio pae foi levado do mesmo
-impulso, quando me obrigou a ser complice de uma generosa mentira. Agora
-mesmo que elle me foge, com o fim unico de me não tolher a felicidade,
-arranca-me o ultimo recurso em que eu tinha posto a esperança.
-
---Helena! interrompeu Estacio.
-
---O ultimo, repetiu a moça.
-
-Esvaira-se-lhe o sorriso, e o olhar tornara a ser opaco. Estacio teve
-medo daquella atonia e concentração; travou-lhe do braço; a moca
-estremeceu toda e olhou para elle.
-
-A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas dentro de alguns
-instantes era alguma cousa mais. Era a primeira revellação, tacita mas
-consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum delles procurára esse
-contacto de suas almas, mas nenhum fugiu. O que elles disseram um ao
-outro, com os simples olhos, não se escreve no papel, não se póde
-repetir ao ouvido; confissão mysteriosa e secreta, feita de um a outro
-coração, que só ao ceu cabia ouvir, por que não eram vozes da terra,
-nem para a terra as diziam elles. As mãos, de impulso proprio,
-uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum receio, nenhuma
-consideração deteve essa fusão de duas creaturas nascidas para formar
-uma existencia unica.
-
-O vento tornara-se mais rijo; uma lufada os despertou,--em ma hora, por
-que ha sonhos que deviam acabar na realidade do outro seculo. Estacio
-ergueu-se; sacudiu valorosamente o torpor da felicidade, e reassumiu o
-papel que seu pae lhe assignára ao pe de Helena. Ésta desviou os olhos
-e cravou-os na agua, fascinada e absorta. A ideia do suicidio roçaria
-devéras sua aza invisivel pela fronte da moça? Estacio foi a ella,
-pegou-lhe nas mãos e convidou-a a sahir dalli.
-
---Entremos,--disse elle pela terceira vez, olhe que vae chover.
-
-Helena deixou-se levantar; um calafrio percorreu-lhe o corpo todo, e as
-mãos, que o moço ainda tinha entre as suas, estavam muito mais quentes
-que o natural.
-
---Ande repousar, continuou Estacio; póde adoecer, e não tem direito
-para tanto; nossa affeição não o consentirá nunca. Vamos.
-
---Amar-me-hão sempre? perguntou Helena.
-
---Oh! sempre!
-
---Impossivel! Ha uma voz no fundo de seu coração, que lhe dirá, de
-quando em quando, ésta triste palavra: aventureira!
-
---Helena!
-
---Não posso ser outra cousa a seus olhos, proseguiu a moça
-tristemente. Quem o convencerá de que a declaração de seu pae não
-foi obtida por artificios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que,
-cedendo aos rogos de meu pae, não fiz mais do que executor ura plano
-preparado ja? São dúvidas que lhe hão de envenenar o sentimento e
-tornar-me suspeita a seus olhos. Resista quem puder; é me impossivel
-encarar semelhante futuro!
-
-Helena cahíra offegante no banco. Estacio falou-lhe com abundancia e
-ternura; jurou-lhe que sua familia era incapaz da minima suspeita;
-pediu-lhe por seu pae que não julgasse mal delles. Ella sorriu, mas foi
-um sorrir de incredula.
-
-Grossos pingos de chuva começavam a rufar nas árvores. Estacio pegou
-na mão de Helena para conduzil-a a casa. A moça fugiu-lhe, indo
-collocar-se alguns passos adeante, onde a chuva lhe cabia mais em cheio
-na cabeça nua e no corpo levemente coberto. Quando Estacio, desvairado
-de terror, correu para ella, Helena affastou-se delle; mas nem seus pes
-o poderiam vencer nunca, nem lh'o permittiam agora as fôrças quebradas
-por tantas e tão profundas commoções. Elle alcançou-a; estendeu o
-braço em volta da cintura da moça, dizendo:
-
---Que capricho é esse? Vamos embora; eu quero que venha commigo para
-dentro.
-
-Ao sentir o braço de Estacio, Helena estremeceu e fez um movimento para
-arredal-o de si; mas a fraqueza trahiu-lhe o instincto de seu melindroso
-pudor. Ella fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas
-fraquearam, e o corpo esmorecido iria a terra, se lh'o não sustivessem
-as mãos de Estacio.
-
---Deixe-me morrer! murmurou ella.
-
---Não! bradou o mancebo.
-
-Com um gesto rapido, tomou nos braços, estendida, o corpo exhausto de
-Helena, e caminhou na direcção da casa. O vento flagellava-os; a
-chuva, que subitamente cahia a jorros, alagava-os sem misericordia; elle
-ia andando, o mais depressa que lhe permittia o pêso de Helena, cuja
-cabeça pendia para a terra, e de cujos labios brotavam trechos soltos
-de phrases sem sentido.
-
-D. Ursula viu entrar aquelle doloroso expectaculo; correu a receber
-Helena, que Estacio depositou em um sopha, donde foi transferida ao
-leito. A febre, ja começada antes della sahir, tomára conta emfim da
-pobre moça. Um médico foi chamado á pressa; o padre Melchior correu
-por baixo d'agua até a casa de Estacio. As primeiras horas foram de
-anciedade e susto; o estado da doente era grave; assim o disse o
-médico; assim o tinham já sentido os corações amigos.
-
-D. Ursula pagou naquella occasião os serviços que, em caso analogo,
-lhe prestára Helena, mau grado e pêso dos annos, que lhe não
-permittiam longas vigilias nem aturado trabalho. Velou a boa senhora á
-cabeceira da enferma, durante essa primeira noite de incerteza e terror.
-Mendonça, que alli fôra sem suspeitar nada, por que a doença que lhe
-disseram ter padecido Helena, suppunha elle ser passageira, e em tudo
-caso, estar quasi extincta, Mendonça recebeu essa triste notícia com a
-morte no coração.
-
-Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que
-lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas
-horas houve de delirio, durante o qual dous nomes volviam frequentemente
-aos labios da enfêrma,--o de Estacio e o de seu pae. Nas horas da
-razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que
-ella queria ver juncto de si. O capellão obedecia docilmente. Ao pe
-della, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, por que
-elle aceitava sem murmurio os decretos da vontade divina; depois, porque
-não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a
-morte. Em todo o caso consolava-a; e suas palavras cahiam no coração de
-Helena como um orvalho do ceu.
-
-No quarto dia chegou a familia de Camargo, sabendo da doença de Helena
-apressou-se a ir a Andarahy. Ao ver Eugenia, a moça sorriu tristemente,
-lampejo de inveja, que para logo se apagou e morreu no coração.
-
-Estacio mal ousava entrar na alcova da doente e não podia viver fóra
-della. Sua afflicção era patente. Elle promettia a si mesmo todos os
-sacrificios em troca da vida de Helena, espreitava uma esperança no
-rosto do médico, e interrogava o coração da tia e do padre. Na noite
-do setimo dia da scena do jardim, D. Ursula, que ficára ao pe de
-Helena, mandou chamar á pressa o sobrinho e o padre Melchior, que
-estavam na sala contigua. Accorreram os dous. Helena tivera uma syncope,
-que D. Ursula cuidára ser a morte. Voltando a si, leu a moça a sua
-sentença no rosto de todos tres.
-
---Ainda não, murmurou ella: ainda não é a morte.
-
-D. Ursula chegou-se-lhe mais perto, beijou-a, disse-lhe algumas palavras
-de conforto.
-
---Deixe estar, respondeu ella, deixe que eu não morro; estou só muito
-doente.
-
-Estacio buscou animal-a, mas a voz morreu-lhe ás primeiras expressões,
-e elle sahiu. Melchior acompanhou-o.
-
---Uma cousa poderia talvez saval-a, disse afflicto o moço; era o
-presença do pae. Vou mandal-o procurar por toda a parte. Havemos de
-achal-o; é preciso que o achemos.
-
-Melchior approvou a ideia do mancebo: e não lhe disse que o remedio
-viria talvez tarde, se viesse. Estacio ordenou as cousas para a seguinte
-manhã. Voltaram á alcova da enferma. Ésta fechara os olhos como se
-dormisse. Houve então entre aquellas quatro paredes meia hora de
-silêncio, interrompido apenas, de quando em quando, pelos movimentos
-que a doente fazia, como a querer mudar de posição. No fim desse
-tempo, abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Chegou o médico,
-viu-a e desenganou a familia.
-
-Em quanto Melchior dava as ordens precisas para que Helena tivesse os
-socorros espirituaes, Estacio sahiu dalli, para ir, longe, desabafar
-seu desespêro; desceu á chacara, vagou por ella delirante, a soluçar
-como uma creança, ora abraçado a uma árvore, ora ajoelhado e pedindo
-a Deus a vida de Helena. Seu coração não conhecia o fervor religioso;
-mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levára, e elle rezou,
-rezou sosinho, sem hypocrisia nem dúvida. Mendonça veiu achal-o nessa
-lucta derradeira entre a realidade e a esperança. Não o consolou; seu
-peito não tinha consolações que distribuir, porque tambem a dor lhe
-devastára o coração. Nos braços um do outro, choraram o mesmo bem
-que se lhes ia embora.
-
-Um escravo veiu chamar Estacio á pressa; elle subiu tropego as escadas,
-atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cahir de
-joelhos, quasi de bruços, juncto ao leito do Helena. Os alhos desta, ja
-volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e
-foi Estacio que o recebeu,--olhar de amor, do saudade e de promessa. A
-mão pallida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo;
-elle inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lagrymas e não se
-atrevendo a encarar o final instante. Adeus!--suspirou a alma de Helena
-rompendo o envolucro gentil. Era defuncta.
-
-A noite foi cruel para todos. D. Ursula, profundamente abatida pela dor
-e pelas vigilias, não consentiu, ainda assim, que outras mãos
-amortalhassem Helena; ella mesma lhe prestou esse derradeiro e triste
-obsequio. A morte não diminuíra a belleza da donzella; pelo contrário,
-o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto mysterioso e novo.
-Estacio contemplou-a com os olhos exhaustos, o padre com os seus
-humidos. Melchior supportára a dor até o momento da definitiva
-separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater emfim, ao
-pe daquelles pallidos restos, despôjo último de generosas illusões.
-
-No dia seguinte, prestes a sahir o entêrro, as senhoras deram á
-donzella morta as despedidas derradeiras. D. Ursula foi a primeira que
-lhe prestou esse dever; seguiu-se Eugenia e seguiram as outras. Estacio
-viu-as subir, uma a uma, o estrado em que repousava a eça. Depois,
-quando ia fechar-se o feretro, caminhou lentamente para elle; trepou ao
-estrado, e pela ultima vez contemplou aquelle rosto,--séde ha pouco de
-tanta vida,--e a coroa de saudades que lhe cingia a cabeça, em vez de
-outra, que seu coração tinha direito de pousar nella. Emfim
-inclinou-se tambem, e a fronte do cadaver recebeu o primeiro beijo de
-amor.
-
-Fecharam o feretro; ao moço pareceu que o encerravam a elle proprio.
-Sahindo o entêrro, deixou-se Estacio cahir n'uma cadeira, sem pensar
-nada, sem sentir nada. Pouco a pouco despovoou-se a casa; os amigos
-sahiram; um só de tantos ainda alli ficou, a lastimar consigo a noiva,
-tão cedo promettida e tão cedo roubada. Esse mesmo sahiu, emfim, não
-ficando mais do que a familia, cujo pae espiritual era Melchior.
-
-Sosinho com Estacio, o capellão contemplou-o longo tempo; depois,
-alçou os olhos ao retrato do conselheiro, sorriu melancholicamente,
-voltou-se para o moço, ergueu-o e abraçou com ternura.
-
---Animo, meu filho! disse elle.
-
---Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estacio.
-
-Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de Estacio, consternada
-com a morte de Helena, e aturdida com a lugubre cerimonia, recolhia-se
-tristemente ao quarto de dormir, e recebia á porta o terceiro beijo de
-seu pae.
-
-
-
-
-FIM
-
-*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HELENA ***
-
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- The Project Gutenberg eBook of Helena, by Machado de Assis.
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-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<p style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of <span lang='pt' xml:lang='pt'>Helena</span>, by Machado de Assis</p>
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online
-at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you
-are not located in the United States, you will have to check the laws of the
-country where you are located before using this eBook.
-</div>
-</div>
-
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:1em; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Title: <span lang='pt' xml:lang='pt'>Helena</span></p>
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Author: Machado de Assis</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Release Date: January 14, 2022 [eBook #67162]</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Language: Portuguese</p>
- <p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em; text-align:left'>Produced by: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by the Biblioteca Brasiliana USP Digital.)</p>
-<div style='margin-top:2em; margin-bottom:4em'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>HELENA</span> ***</div>
-
-<div class="figcenter" style="width: 500px;">
-<img src="images/helena_cover.jpg" width="500" alt="" />
-</div>
-
-
-<h3>BIBLIOTHECA UNIVERSAL</h3>
-
-<h5>Romances, Viagens, Política, Poesias, etc.</h5>
-
-<h5>Collecção in 8° a 2$000</h5>
-
-<p><br /></p>
-
-<h1>HELENA</h1>
-
-<p><br /></p>
-
-<h5>POR</h5>
-
-<p><br /></p>
-
-<h2>MACHADO DE ASSIS</h2>
-
-<p><br /></p>
-
-<h4>RIO DE JANEIRO</h4>
-
-<h5>B.L. GARNIER</h5>
-
-<h4>Livreiro-editor do Instituto Historico Brasileiro</h4>
-
-<h5>65&mdash;Rua do Ouvidor&mdash;65</h5>
-
-<h4>PORTO: Ernesto Chardon | BRAGA: Eugenio Chardon</h4>
-
-<h4>LISBOA: Carvalho &amp; C.</h4>
-
-<h5><i>1876</i></h5>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4>INDICE</h4>
-<p class="nind"><a href="#I">CAPITULO I</a><br />
-<a href="#II">CAPITULO II</a><br />
-<a href="#III">CAPITULO III</a><br />
-<a href="#IV">CAPITULO IV</a><br />
-<a href="#V">CAPITULO V</a><br />
-<a href="#VI">CAPITULO VI</a><br />
-<a href="#VII">CAPITULO VII</a><br />
-<a href="#VIII">CAPITULO VIII</a><br />
-<a href="#IX">CAPITULO IX</a><br />
-<a href="#X">CAPITULO X</a><br />
-<a href="#XI">CAPITULO XI</a><br />
-<a href="#XII">CAPITULO XII</a><br />
-<a href="#XIII">CAPITULO XIII</a><br />
-<a href="#XIV">CAPITULO XIV</a><br />
-<a href="#XV">CAPITULO XV</a><br />
-<a href="#XVI">CAPITULO XVI</a><br />
-<a href="#XVII">CAPITULO XVII</a><br />
-<a href="#XVIII">CAPITULO XVIII</a><br />
-<a href="#XIX">CAPITULO XIX</a><br />
-<a href="#XX">CAPITULO XX</a><br />
-<a href="#XXI">CAPITULO XXI</a><br />
-<a href="#XXII">CAPITULO XXII</a><br />
-<a href="#XXIII">CAPITULO XXIII</a><br />
-<a href="#XXIV">CAPITULO XXIV</a><br />
-<a href="#XXV">CAPITULO XXV</a><br />
-<a href="#XXVI">CAPITULO XXVI</a><br />
-<a href="#XXVII">CAPITULO XXVII</a><br />
-<a href="#XXVIII">CAPITULO XXVIII</a></p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4>HELENA</h4>
-
-<p><br /></p>
-
-<h4><a id="I">CAPITULO I</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-O conselheiro Vale morreu ás 7 horas da noite de 25 de abril de 1859.
-Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de <i>cochilar</i> a
-sesta,&mdash;segundo costumava dizer,&mdash;e quando se preparava a ir
-jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo.
-O Dr. Camargo, chamado á pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos
-da sciencia; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da
-religião: a morte fôra instantanea.
-</p>
-
-<p>
-No dia seguinte fez-se o entêrro, que foi um dos mais concorridos que
-ainda viram os moradores do Andarahy. Cêrca de duzentas pessoas
-acompanharam o fim do até a morada ultima, achando-se representadas
-entre ellas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não
-figurasse em nenhum grande cargo do Estado, occupava elevado logar na
-sociedade, pelas relações adquiridas, cabedaes, educação e
-tradicções de familia. Seu pae fora magistrado no tempo colonial, e
-figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado
-materno descendia de uma das mais distinctas familias paulistas. Elle
-proprio exercêra dous empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do
-que lhe adveiu a carta de conselho e a estima dos homens publicos. Sem
-embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos
-dous partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que alli se
-acharam na occasião de o dar á sepultura. Tinha, entretanto, taes ou
-quaes ideias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e
-liberaes, justamente no ponto em que os dous dominios podem
-confundir-se. Se nenhuma saudade partidaria lhe deitou a ultima pa de
-terra, matrona houve, e não só ama, que viu ir a enterrar com elle a
-melhor página de sua mocidade.
-</p>
-
-<p>
-A familia do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr.
-Estacio, e uma irmã, D. Ursula. Contava ésta cincoenta e poucos annos;
-era solteira; vivêra sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o
-fallecimento da cunhada. Estacio tinha vinte e sete annos, e era formado
-em mathematicas. O conselheiro tentára encarreiral-o na política,
-depois na diplomacia; mas nenhum desses projectos teve começo de
-execução.
-</p>
-
-<p>
-O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do
-entêrro, foi ter com Estacio, a quem encontrou no gabinete particular do
-finado, em companhia de D. Ursula. Tambem a dor tem suas
-voluptuosidades; tia e sobrinho queriam nutril-a com a presença dos
-objectos pessoaes do morto, no logar de suas predilecções quotidianas.
-Duas tristes luzes alumiavam aquella pequena sala. Alguns momentos
-correram de profundo silêncio entre os tres. O primeiro que o rompeu
-foi o médico.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu pai deixou testamento?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não sei, respondeu Estacio.
-</p>
-
-<p>
-Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou tres vezes, gesto que lhe era
-habitual quando fazia alguma reflexão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É preciso procural-o,&mdash;continuou elle.&mdash;Quer que o ajude?
-</p>
-
-<p>
-Estacio apertou-lhe affectuosamente a mão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A morte de meu pai,&mdash;disse o moço, não alterou nada as nossas
-relações. Subsiste a confiança anterior do mesmo modo que a amizade,
-ja provada e antiga.
-</p>
-
-<p>
-A secretária estava fechada; Estacio deu a chave ao médico; este abriu
-o movel sem nenhuma commoção exterior. Interiormente estava abalado.
-O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão
-em que, aliás, nenhum dos outros reparou. Logo que começou a revolver
-os papeis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o
-testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que succedeu a
-serenidade habitual.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É isso? perguntou Estacio.
-</p>
-
-<p>
-Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar
-o conteudo. O silêncio foi muito demorado para não fazer impressão no
-moço, que alias nada disse, porque o attribuíra á commoção natural
-do amigo, em tão dolorosas circumstâncias.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sabem o que estará aqui dentro? disse enfim Camargo. Talvez uma
-lacuna ou um grande excesso.
-</p>
-
-<p>
-Nem Estacio, nem D. Ursula, pediram ao médico a explicação de
-semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico
-pôde le-la nos olhos, de ambos. Não lhes disse nada; entregou o
-testamento a Estacio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido
-em suas proprias reflexões, ora arranjando machinalmente um livro da
-estante, ora mettendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista
-quêda, alheio de todo ao logar e ás pessoas.
-</p>
-
-<p>
-Estacio rompeu o silêncio:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico.
-</p>
-
-<p>
-Camargo parou deante do moço.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não posso dizer nada, respondeu elle. Seria inconveniente antes de
-saber as últimas disposições de seu pai.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula foi menos discreta que o sobrinho; apos longa pausa, pediu ao
-médico a razão de suas palavras.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de
-perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excellentes, Era seu
-amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem
-a confiança que ambos depositavamos um no outro. Não quizera pois, que
-o último acto de sua vida fôsse um êrro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um êrro! exclamou D. Ursula.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Talvez um êrro! suspirou Camargo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas, doutor, insistiu D. Ursula, porque motivo nos não tranquillisa
-o espirito? Estou certa de que não se trata de um acto que desdoure a meu
-irmão; allude naturalmente a algum êrro no modo de entender... alguma
-cousa, que eu ignoro o que seja. Porque não fala claramente?
-</p>
-
-<p>
-O médico viu que D. Ursula tinha razão; e que, a não dizer mais nada,
-melhor fôra ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de
-extranheza que deixára no ânimo dos dous; mas da hesitação com que
-falava concluiu Estacio que elle não podia ir além do que havia dito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não precisamos de explicação nenhuma, interveiu o filho do
-conselheiro; amanhã saberemos tudo.
-</p>
-
-<p>
-Nessa occasião entrou o padre Melchior. O médico sahiu ás 10 horas,
-ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estacio, recolhendo-se a
-seu quarto, murmurava consigo:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que êrro será esse? E que necessidade tinha elle de vir lançar-me
-este enigma no coração?
-</p>
-
-<p>
-A resposta, se podesse ouvil-a, era dada nessa mesma occasião pelo
-proprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava á porta:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Fiz bem em preparar-lhes o espirito, pensou elle; o golpe, si o
-houver, ha de ser mais facil de soffrer.
-</p>
-
-<p>
-O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguem pôde
-ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exhumou o
-passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu nada foi
-communicado a ouvidos extranhos.
-</p>
-
-<p>
-As relações do Dr. Camargo com a familia do conselheiro eram estreitas
-e antigas, como dissera Estacio. O médico e o conselheiro tinham a
-mesma edade: cincoenta e quatro annos. Conheceram-se logo depois de
-tomado o gráo, e nunca mais afrouxara o laço que os prendêra desde
-esse tempo.
-</p>
-
-<p>
-Camargo era pouco sympathico á primeira vista, Tinha as feições duras
-e frias, os olhos prescrustadores e sagazes, de uma sagacidade
-incommoda, para quem encarava com elles, o que o não fazia attrahente.
-Fallava pouco e sêcco. Seus sentimentos não vinham á flor do rosto.
-Tinha todos os visiveis signaes de um grande egoista; comtudo, posto que
-a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lagryma ou uma palavra de
-tristeza, é certo que a sentiu devéras. Além disso, amava sobre todas
-as cousas e pessoas uma creatura linda,&mdash;a linda Eugenia, como lhe
-chamava,&mdash;sua filha unica e a flor de seus olhos; mas amava-a de um
-amor calado e recondito. Era difficil saber se Camargo professava algumas
-opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se
-as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que
-fôra cheio o decennio anterior, conservara-se indifferente e neutral.
-Quanto aos sentimentos religiosos, a aferil-os pelas acções, ninguem
-os possuia mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom
-catholico. Mas só pontual; interiormente era incredulo.
-</p>
-
-<p>
-Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher,&mdash;D.
-Thomasia,&mdash;meio adormecida n'uma cadeira de balanço e Eugenia ao
-piano, executando um trecho de Bellini. Eugenia tocava com habilidade; e
-Camargo gostava de a ouvir. Naquella occasião, porém, disse ele,
-parecia pouco conveniente que a moça se entregasse a um genero de
-recreio qualquer. Eugenia obedeceu, algum tanto de ma vontade. O pai,
-que se achava ao pe do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ella se
-levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ella nunca
-lhe víra.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não fiquei triste pelo que me disse, papae,&mdash;observou a moça.
-Tocava por distrahir-me. D. Ursula como está? Ficou tão afflicta! Mamãe
-queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a
-tristeza daquella casa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas a tristeza é necessaria á vida,&mdash;acudiu D. Thomasia, que
-abrira os olhos logo á entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as
-proprias, e são um correctivo da alegria, cujo excesso póde engendrar
-o orgulho.
-</p>
-
-<p>
-Camargo temperou ésta philosophia, que lhe pareceu demasiado austera,
-com algumas ideias mais accommodadas e risonhas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Deixemos a cada edade a sua atmosphera propria, concluiu elle, e não
-antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não
-passaram do puro sentimento.
-</p>
-
-<p>
-Eugenia não comprehendeu o que os dous haviam dito. Seus olhos
-voltaram-se para o piano, com uma expressão de saudade irritada. Com a
-mão esquerda, assim mesmo de pe, extrahiu vagamente tres ou quatro
-notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fital-a com desusada
-ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação
-interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços delle; deixou-se ir.
-Mas a expansão era tão nova, que ella ficou assustada e perguntou com
-voz trémula.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Aconteceu la alguma cousa?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Absolutamente nada, respondeu Camargo dando-lhe um beijo na testa.
-</p>
-
-<p>
-Era o primeiro beijo,&mdash;ao menos o primeiro de que a moça tinha
-memoria. A caricia encheu-a de orgulho filial; mas a propria novidade della
-impressionou-a mais. Eugenia não creu no que lhe dissera seu pai. Viu-o
-ir sentar-se ao pe de D. Thomasia e conversarem em voz baixa.
-Approximando-se, não interrompeu a conversa, que elles continuaram no
-mesmo tom, e versava sobre assumptos puramente domesticos. Percebeu-o;
-contudo não ficou tranquilla. Na manhã seguinte escreveu um bilhete,
-que foi logo caminho do Andarahy. A resposta, que lhe chegou ás mãos
-no momento em que provava um vestido novo, teve a cortezia de esperar
-que ella terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os
-receios da vespera.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="II">CAPITULO II</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-No dia seguinte foi aberto o testamento com todas as formalidades
-legaes. O conselheiro nomeava testamenteiros Estacio, o Dr. Camargo e o
-padre Melchior. As disposições geraes nada tinham que fôsse notavel:
-eram legados pios ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a
-afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes.
-</p>
-
-<p>
-Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O
-conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena,
-havida em D. Angela da Soledade. Ésta menina estava sendo educada em um
-collegio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de
-seus bens, e devia ir viver com a familia, a quem o conselheiro
-instantemente pedia que a tratasse com desvello e carinho, como se de
-seu matrimonio fôsse.
-</p>
-
-<p>
-A leitura desta disposição causou natural espanto á irmã e ao filho
-do finado. D. Ursula nunca soubéra de tal filha. Quanto a Estacio
-ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pae;
-mas tão vagamente que não podia esperar aquella disposição
-testamentária.
-</p>
-
-<p>
-Ao espanto succedeu em ambos outra e differente impressão. D. Ursula
-reprovou de todo o acto do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos
-impulsos naturaes o licenças juridicas, o reconhecimento de Helena era
-um acto de usurpação e um péssimo exemplo. A nova filha era, em seu
-entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando
-muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e
-deixal-a á porta. Recebel-a, porém, no seio da familia e de seus
-castos affectos, legitimal-a aos olhos da sociedade, como ella estava
-aos da lei, não o entendia D. Ursula, nem lhe parecia que alguem
-podesse entendel-o. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior
-quando lhe occorreu a origem possivel de Helena, Nada constava da mãe,
-além do nome; mas essa mulher quem era? em que atalho sombrio da vida a
-encontrára o conselheiro? Helena seria filha de um encontro fortuito
-entre duas voluptuosidades, ou nasceria de algum affecto, irregular
-embora, mas verdadeiro o unico? A éstas interrogações não podia
-responder D. Ursula; bastava porém, que lhe surgissem no espirito, para
-lançar nelle o tedio e a irritação.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do
-conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma
-página de catecismo; mas o acto final bem podia ser a reparação de
-leviandades amargas. Essa atenuante não a viu D. Ursula. Para ella, o
-principal era a entrada de uma pessoa extranha na familia.
-</p>
-
-<p>
-A impressão de Estacio foi muito outra. Elle percebêra a ma vontade
-com que a tia recebêra a noticia do reconhecimento de Helena, e não
-podia negar a si mesmo que semelhante facto creava para a familia uma
-nova situação. Contudo, qualquer que ella fôsse, uma vez que seu pai
-assim o ordenava, levado por sentimentos de equidade ou impulsos da
-natureza, elle a acceitava tal qual, sem pezar nem reserva. A questão
-pecuniaria pezou menos que tudo no espirito do moço; não pezou nada. A
-occasião era dolorosa de mais para dar entrada a considerações de
-ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estacio não lhe
-permittia inspirar-se dellas. Quanto á camada social a que pertencia a
-mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo que elles
-saberiam levantar a filha até á classe a que ella ia subir.
-</p>
-
-<p>
-No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do
-conselheiro, occorreu a Estacio a conversa que tivera com o Dr. Camargo.
-Provavelmente era aquelle o ponto a que alludíra o médico. Interrogado
-acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o
-filho do conselheiro:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Aconteceu o que eu previa, um êrro, disse elle. Não houve lacuna,
-mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura,
-muito bonito; mas pouco prático. Um legado era sufficiente; nada mais.
-A estricta justiça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A estricta justiça é a vontade de meu pae, redarguiu Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sel-o á
-custa de direitos alheios.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Os meus? Não os allego.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se os allegasse seria pouco digno de memoria delle. O que está
-feito, está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa
-familia e affectos de familia. Persuado-me que ella sabera
-corresponder-lhes com verdadeira dedicação...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Conhece-a? inqueriu Estacio, cravando no médico uns olhos
-impacientes de curiosidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Via-a tres ou quatro vezes disse este no fim de alguns segundos; mas
-era então muito creança. Seu pae fallava-me della como de pessoa
-extremamente affectuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem
-olhos de pai.
-</p>
-
-<p>
-Estacio desejára ainda saber alguma cousa ácerca da mãe de Helena,
-mas repugnou-lhe entrar em novas indagações. Como os filhos de Noé,
-lançou uma capa sobre a nudez de seu pae, e tentou encarreirar a
-conversa para outro assumpto. Camargo, entretanto, insistiu:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O conselheiro falou-me algumas vezes no projecto de reconhecer
-Helena; procurei dissuadil-o, mas sabe como elle era obstinado ás vezes
-em suas resoluções, accrescendo neste caso o natural impulso de amor
-paterno. O nosso ponto de viste era differente. Não me tenho por homem
-mau; contudo, entendo que a sensibilidade não póde usurpar o que
-pertence á razão.
-</p>
-
-<p>
-Camargo proferiu éstas palavras no tom sêcco e sentencioso, que tão
-natural e sem exforço lhe sabia. A velha amizade delle e do finado era
-sabida de todos; a intenção com que fallava podia ser hostil á
-familia? Estacio reflectiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir
-ao médico, curta reflexão, que por nenhum modo lhe abalou a opinião
-ja assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espirito
-que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não quero saber&mdash;disse elle,&mdash;se ha excesso na disposição
-testamentária de meu pae. Se o ha, é legitimo, justificavel pelo
-menos; elle sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa
-irmã, como se fôra creada commigo. Minha mãe faria com certeza a
-mesma cousa.
-</p>
-
-<p>
-Camargo não insistiu. Sôbre ser exforço baldado dissuadir o moço
-daquelles sentimentos, que aproveitava ja agora discutir e condemnar
-theoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executal-a
-lealmente, sem hesitação nem pezar. Isso mesmo declarou elle a
-Estacio, que o abraçou cordialmente. O médico recebeu o abraço sem
-constrangimento, mas sem fervor.
-</p>
-
-<p>
-Estacio ficára satisfeito comsigo mesmo. Seu caracter vinha mais
-directamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a
-unica paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe
-acharemos, nenhuma outra saliente feição. A fidelidade aos amigos era
-antes resultado do costume que da consistencia dos affectos. A vida
-correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou occasião de
-experimentar a propria têmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha
-mediana.
-</p>
-
-<p>
-A mãe de Estacio era differente; possuíra em alto grau a paixão, a
-ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimentos, com seus
-toques de orgulho,&mdash;daquelle orgulho que é apenas irradiação da
-consciencia. Vinculada si um homem que, sem embargo do affecto que lhe
-tinha, despendia o coração em amores adventicios e passageiros, teve a
-fôrça de vontade necessaria para dominar a paixão e encerrar em si
-mesma todo o resentimento. As mulheres que são apenas mulheres choram,
-arrufam-se ou resignam-se; as que tem alguma cousa mais do que a
-debilidade feminina lutam ou recolhem-se á dignidade do silêncio.
-Aquella padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe
-permittia outra cousa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao
-mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial da sua organisação,
-concentrou-a toda naquelle unico filho, em quem parecia adivinhar o
-herdeiro de suas robustas qualidades.
-</p>
-
-<p>
-Estacio recebêra affectivamente de sua mãe uma boa parte destas. Não
-sendo grande talento, deveu á vontade e á paixão do saber a figura
-notavel que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se á
-sciencia com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indifferente ao
-ruido exterior. Educado á maneira antiga o com severidade o recato,
-passou da adolescencia á juventude sem conhecer as corrupções de
-espirito nem as influências delecterias da ociosidade; viveu a vida de
-familia, na edade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e
-perdiam em cousas infimas a virgindade das primeiras sensações. Dahi
-veiu que aos dezoito annos conservava elle tal ou qual timidez infantil,
-que só tarde perdeu de todo. Mas se perdeu a timidez, ficara-lhe certa
-gravidade não incompativel com os verdes annos e muito propria de
-organisações como a delle. Na política seria talvez meio caminho
-andado para subir aos cargos publicos; na sociedade, fazia com que lhe
-catassem respeito, o que o levantava a seus proprios olhos. Convem dizer
-que não era essa gravidade aquella cousa enfadonha, pesada e chata, que
-os moralistas asseveram ser quasi sempre um symptoma de espirito chocho;
-era uma gravidade jovial e familiar,&mdash;egualmente distante da
-frivolidade e do tedio, uma compostura do corpo e do espirito, temperada
-pelo viço dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e
-recto adornado de folhagens e flores. Junctava ás outras qualidades moraes
-uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sobria e forte; aspero
-comsigo, sabia ser terno e mavioso com os outros.
-</p>
-
-<p>
-Tal era o filho do conselheiro; e se alguma cousa ha ainda que
-accrescentar é que elle não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e
-deveres que lhe davam a edade e a classe em que nascêra. Elegante e
-polido, obedecia á lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes
-della. Ninguem entrava mais correctamente n'uma sala; ninguem saia mais
-opportunamente. Ignorava a sciencia das nugas, mas conhecia o segrêdo
-de tecer um comprimento.
-</p>
-
-<p>
-Na situação creada pela clausula testamentária do conselheiro,
-Estacio aceitou a causa da irmã, a quem ja via, sem a conhecer, com
-olhos differentes dos de Camargo e D. Ursula. Esta communicou ao
-sobrinho todas as impressões que lhe deixára o acto do irmão. Estacio
-procurou dissipar-lh'as; repetiu as reflexões oppostas ao médico;
-mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade
-de um morto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Bem sei que não ha ja agora outro remedio mais que aceitar essa
-menina e obedecer ás determinações solemnes de meu irmão, disse D.
-Ursula quando Estacio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ella os
-meus affectos não sei que possa nem deva fazer.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Comtudo, ella é do nosso mesmo sangue.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula ergueu os hombros como repellindo semelhante consanguinidade.
-Estacio insistiu em trazel-a a mais benevolos sentimentos. Invocou,
-além da vontade, a rectidão do espirito de seu pae, que não havia
-dispor uma cousa contrária á boa fama da familia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que
-meu pae a legitimou, convem que não se ache aqui como engeitada. Que
-aproveitariam os com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da
-nossa vida interior. Vivamos na mesma communhão de affectos; e vejamos
-em Helena uma parte da alma de meu pae, que nos fica para não desfalcar
-de todo o patrimonio commum.
-</p>
-
-<p>
-Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estacio percebeu que não mudára
-os sentimentos da tia, nem era possivel consegui-lo por meio de
-palavras. Confiou do tempo essa tarefa. D. Ursula ficou triste e só.
-Apparecendo Camargo dahi a pouco, ella confiou-lhe todo o seu modo de
-sentir, que o médico interiormente approvava.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Conheceu a mãe della? perguntou a irmã do conselheiro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Conheci.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que especie de mulher era?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Fascinante.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não é isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem inferior, ou...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não sei; no tempo em que a vi não tinha classe e podia pertencer a
-todas; demais, não a tratei de perto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Doutor, disse D. Ursula, depois de hesitar algum tempo;&mdash;que me
-aconselha que faça?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que a ame, se ella o merecer, e se puder.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! confesso-lhe que me ha de custar muito! E merece-lo-ha? Alguma
-cousa me diz ao coração que essa menina vem complicar a nossa vida;
-além disso, não posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu sobrinho aceita as cousas philosophicamente e até com
-satisfação. Não comprehendo a satisfação, mas concordo que nada
-mais ha do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. Não se
-deliberam sentimentos; ama-se ou aborrece-se, conforme o coração quer.
-O que lhe digo é que a trate com benevolencia; e caso sinta em si algum
-affecto, não o suffoque; deixe-se ir com elle. Ja agora não se póde
-voltar atraz. Infelizmente!
-</p>
-
-<p>
-Helena estava a concluir seus estudos; semanas depois determinou a
-familia que ella viesse para casa. D. Ursula recusou a princípio ir
-buscal-a; convenceu-a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a
-incumbencia depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados
-os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moça
-transladada a Andarahy. D. Ursula metteu-se na carruagem, logo depois de
-jantar. Estacio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido.
-Voltou tarde. Ao penetrar na chacara deu com os olhos nas janellas do
-quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguem dentro. Pela
-primeira vez sentiu Estacio a extranheza da situação creada pela
-presença daquella meia-irmã e perguntou a si proprio se não era a tia
-quem tinha razão. Expelliu pouco depois esse sentimento; a memoria do
-pae restituiu-lhe a benevolencia anterior. Ao mesmo tempo, a ideia de
-ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e
-desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa
-creatura intermediaria, que elle ja amava sem conhecer, e que que seria
-a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estacio
-contemplou longo tempo as janellas; nem o vulto de Helena appareceu
-alli, nem elle viu passar a sombra da habitante nova.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="III">CAPITULO III</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Na seguinte manhã, Estacio levantou-se tarde e foi direito á sala de
-jantar, onde encontrou D. Ursula, pachorrentamente sentada na poltrona
-de seu uso, ao pe de uma janella, a ler um tomo do <i>Saint-Clair das
-Ilhas</i>, enternecida pela centesima vez com as tristezas dos desterrados
-da ilha da Barra; boa gente e moralissimo livro, ainda que enfadonho e
-massudo, como outros de seu tempo. Com elle matavam as matronas daquella
-quadra muitas horas compridas do inverno, com elle se encheu muito
-serão pacífico, com elle se desafogou o coração do muito lagryma
-sobresalente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Veiu? perguntou Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Veiu, respondeu a boa senhora fechando o livro. O almôço
-esfria,&mdash;continuou ella dirigindo-se á mucama que alli estava de pe,
-juncto da mesa; já foram chamar... nhanhã Helena?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nhanhã Helena disse que ja vem.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ha dez minutos, observou D. Ursula ao sobrinho.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Naturalmente não tarda, respondeu este. Que tal?
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quasi não
-vira o rosto de Helena; e ésta, logo que alli chegou, recolheu-se ao
-aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D.
-Ursula pôde afiançar foi somente que a sobrinha era moça feita.
-</p>
-
-<p>
-Ouviu-se descer a escada um passo rapido, e não tardou que Helena
-apparecesse á porta da sala de jantar. Estacio estava então encostado
-á janella que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda,
-donde se viam os fundos da chacara. Olhou para a tia como esperando que
-ella os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao vel-o.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Menina, disse D. Ursula com o tom mais doce que tinha na voz, este é
-meu sobrinho Estacio, seu irmão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ah! disse Helena sorrindo e caminhando para elle.
-</p>
-
-<p>
-Estacio dera egualmente alguns passos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Espero merecer sua affeição, disse ella depois de curta pausa. Peço
-desculpa da demora; estavam á minha espera, creio eu.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Iamos para a meza agora mesmo, interrompeu D. Ursula como
-protestando contra a ideia de que ella os fizesse esperar.
-</p>
-
-<p>
-Estacio procurou corrigir a rudez da tia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tinhamos ouvido o seu passe na escada, disse elle. Sentemo-nos, que
-o almoço esfria.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula ja estava sentada á cabeceira da mesa; Helena ficou á
-direita, na cadeira que Estacio lhe indicou; este tomou logar do lado
-opposto. O almoço correu silencioso e desconsolado; raros monosyllabos,
-alguns gestos de assentimento ou recusa, tal foi o dispendio da conversa
-entre os tres parentes. A situação não era commoda nem vulgar.
-Helena, posto forcejasse por estar senhora de si, não conseguia vencer
-de todo o natural acanhamento da occasião. Mas, se o não vencia de
-todo, podiam ver-se atravez delle certos signaes de educação fina.
-Estacio examinou aos poucos a figura da irmã.
-</p>
-
-<p>
-Era uma moça de dezeseis a dezesete annos, delgada sem magreza,
-estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e attitudes modestas.
-A face, de um moreno-pecego, tinha a mesma imperceptivel penugem da
-fructa de que tirava a côr; naquella occasião tingiam-na uns longes
-côr de rosa, a principio mais rubros, natural effeito do abalo. As
-linhas puras e severas do rosto parecia que as traçára a arte
-religiosa. Se os cabellos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos
-em duas grossas tranças, lhe cahissem espalhadamente sôbre os hombros,
-e se os proprios olhos alçassem as pupillas ao ceu, dissereis um
-daquelles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do
-Senhor. Não exigiria a arte maior correcção e harmonia de feições,
-e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a
-gravidade do aspeto. Uma só cousa pareceu menos aprazivel ao irmão:
-eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e
-suspeitosa reserva foi o unico senão que lhe achou, e não era pequeno.
-</p>
-
-<p>
-Acabado o almôço, trocadas algumas palavras, poucas e sôltas, Helena
-retirou-se ao seu quarto, onde durante tres dias passou quasi todas as
-horas, a ler meia duzia de livros que trouxe comsigo, a escrever cartas,
-a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janellas.
-Alguma vez desceu a jantar com os olhos vermelhos e a fronte pezarosa,
-apenas com um sorriso pallido e fugitivo nos labios. Uma creança,
-subitamente transferida ao collegio, não desfolha mais tristemente as
-primeiras saudades da casa de seus paes. Mas a aza do tempo leva tudo; e
-ao cabo de tres dias, ja a physionomia de Helena trazia menos sombrio
-aspecto. O olhar perdeu a expressão que primeiro lhe achou o irmão,
-para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra
-sahia-lhe mais facil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar
-do acanhamento.
-</p>
-
-<p>
-No quarto dia, acabado o almôço, Estacio encetou uma conversa geral,
-que não passou de um simples <i>duo</i>, por que D. Ursula contava os fios
-da toalha ou brincava com as pontas do <i>fichu</i> que trazia ao pescoço.
-Como falassem da casa, Estacio disse á irmã:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ésta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nascemos debaixo
-do mesmo tecto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu
-respeito; não o póde haver mais cordial.
-</p>
-
-<p>
-Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a
-chacara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Ursula que
-lh'as fôsse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e seccamente
-respondeu:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Agora não, menina; tenho por hábito descançar e ler.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moça com graça; não
-é bom cançar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a
-servil-a. Não acha? continuou ella voltando-se para Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É nossa tia, respondeu o moço.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! ainda não é minha tia! interrompeu Helena. Hade sel-o quando me
-conhecer de todo. Por emquanto somos extranhas uma á outra; mas nenhuma
-de nós é ma; o coração e a convivencia apertarão de vez os laços
-que a natureza atou frouxamente.
-</p>
-
-<p>
-Éstas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com
-que ella as proferiu era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso,
-tinha um mysterioso encanto, a que a propria D. Ursula não pôde
-resistir.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois deixe que a convivencia faça falar o coração, respondeu a
-irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o offerecimento da
-leitura, por que não entendo bem o que os outros me lêm; tenho os
-olhos mais intelligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa
-e a chacara, seu irmão póde conduzi-la.
-</p>
-
-<p>
-Estacio declarou-se prompto para acompanhar a irmã. Helena, entretanto,
-recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e ao que parece,
-a primeira que podia achar-se a sos com um homem que não seu pae. D.
-Ursula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe
-seccamente que fôsse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da
-casa, ouvindo a moça as explicações que lhe dava Estacio e inquirindo
-de tudo com zêlo e curiosidade de dona da casa. Quando chegaram á
-porta do gabinete do conselheiro, Estacio parou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vamos entrar num logar triste para mim, disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que é?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O gabinete de meu pae.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! deixe ver!
-</p>
-
-<p>
-Entraram os dous. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o
-conselheiro fallecêra. Estacio deu algumas indicações relativas ao
-theor da vida doméstica de seu pae; mostrou-lhe a cadeira em que elle
-costumava ler, de tarde e de manhã; os retratos de familia, a
-secretária, as estantes; falou de quanto podia interessal-a. Sobre a
-mesa, perto da janella, estava ainda o último livro que o conselheiro
-lêra: eram as <i>Maximas</i> do marquez de Maricá. Helena pegou nelle e
-imprimiu um beijo na página aberta. Uma lagryma brotou-lhe dos olhos,
-como pingo do sereno que cahisse da aza da noite, não fria como elle,
-mas quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensivel; brotou,
-deslizou-se e foi cahir no papel.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Coitado! murmurou ella.
-</p>
-
-<p>
-Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir
-alguns minutos depois do jantar, e olhou para fóra. O dia começava a
-aquecer. O arvoredo dos morros fronteiros estava coberto de flores de
-quaresma, com suas petalas roxas e tristemente bellas. O expectaculo ia
-com a situação de ambos. Estacio deixou-se levar ao sabor de suas
-recordações da meninice. De envolta com ellas, veiu pousar-lhe ao lado
-a figura de sua mãe; tornou a ve-la, tal qual se lhe fôra dos braços,
-uma crua noite de Outubro, quando elle contava dezoito annos de
-edade. A boa senhora morrêra quasi moça,&mdash;ainda bella, pelo
-menos,&mdash;daquella belleza sem outono, cuja primavera tem duas
-estações.
-</p>
-
-<p>
-Helena ergueu-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Amava-o muito? perguntou ella,
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quem o não amaria?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tem razão. Era uma alma grande e nobre; ou adorava-o. Reconheceu-me;
-deu-me familia e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus
-proprios. O resto depende de mim, do juizo que eu tiver,&mdash;ou talvez da
-fortuna.
-</p>
-
-<p>
-Ésta ultima palavra cahiu-lhe do coração com um suspiro. Depois de
-alguns segundos de silêncio, Helena enfiou o braço no do irmão e
-desceram â chacara. Fôsse influência do logar ou simples mobilidade
-de seu espirito, Helena tornou-se logo outra do que se revellára no
-gabinete de seu pae. Jovial, graciosa e travessa, perdêra aquella
-gravidade quieta e senhora de si com que apparecêra na sala de jantar;
-fez-se lepida e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora
-esvoaçavam por meio das árvores e por cima da gramma. A mudança
-causou certo espanto ao moço; mas elle a explicou de si para si, e em
-todo o caso não o impressionou mal. Helena pareceu-lhe naquella
-occasião, mais do que antes, o complemento da familia. O que alli
-faltava era justamente o gorgeio, a graça, a travessura, um elemento
-que temperasse a austeridade da casa e lhe désse todas as feições
-necessarias ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar.
-</p>
-
-<p>
-A excursão durou cêrca de meia hora. D. Ursula viu-os chegar, ao cabo
-desse tempo, familiares e amigos, como se houvessem criado junctos.
-As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contrairam-se e o labio
-inferior recebeu uma dentada de despeito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Titia, disse Estacio jovialmente; minha irmã conhece ja a casa toda
-e suas dependencias. Resta somente que lhe mostremos o coração.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula sorriu,&mdash;um sorriso amarello e acanhado, que apagou nos
-olhos da moça a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a ma
-impressão; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mãos,
-perguntou com toda a doçura da voz:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não quererá mostrar-me o seu?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não vale a pena! respondeu D. Ursula com affectada bonhomia;
-coração de velha é casa arruinada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois as casas velhas concertam-se, replicou Helena sorrindo.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula sorriu tambem; desta vez, porém, com expressão melhor. Ao
-mesmo tempo, fitou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a
-principio indifferente, manifestou logo depois a impressão que lhe
-causava a belleza da moça. D. Ursula retirou os olhos; porventura
-receiou que o influxo das graças de Helena lhe torcessem o coração,
-e ella queria ficar independente e inconciliavel.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="IV">CAPITULO IV</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-As primeiras semanas correram sem nenhum successo notavel, mas ainda
-assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de
-hesitação, de observação reciproca, um tactear de caracteres, em
-que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar
-posição. O proprio Estacio, não obstante a primeira impressão,
-recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o
-procedimento de Helena.
-</p>
-
-<p>
-Helena tinha os predicados proprios a captar a confiança e a affeição
-da familia. Era docil, affavel, intelligente. Não eram estes, comtudo,
-nem ainda a belleza, os seus dotes por excellencia efficazes. O que a
-tomava superior e lhe dava probabilidade de triumpho era a arte de
-accomodar-se ás circumstâncias do momento e a toda a casta de
-espiritos, arte preciosa, que faz habeis os homens e estimaveis as
-mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de
-arranjos de casa, com egual interesse e gôsto, frivola com os frivolos,
-grave com os que o eram, attenciosa e ouvida, sem entono nem
-vulgaridade. Havia nella a jovialidade da menina e a compostura da
-mulher feita, um accôrdo de virtudes domésticas e maneiras elegantes,
-complexo de cousas na apparencia oppostas, mas não inconciliaveis nem
-disparatadas entre si.
-</p>
-
-<p>
-Além das qualidades naturaes, possuia Helena algumas prendas de
-sociedade, que a tornavam acceita a todos, e mudaram em parte o theor da
-vida da familia. Não falo da magnifica voz de contralto, nem da
-correcção com que sabia usar della, por que ainda então, estando
-fresca a memoria do conselheiro, não tivera occasião de fazer-se
-ouvir. Era pianista distincta, sabia desenho, falava correntemente a
-lingua franceza, um pouco a ingleza e a italiana. Entendia de costura e
-bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e
-lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciencia, arte e
-resignação,&mdash;não humilde, mas digna,&mdash;conseguia polir os asperos,
-attrahir os indifferentes e domar os hostis.
-</p>
-
-<p>
-Pouco havia ganho no espirito de D. Ursula; mas a repulsa desta ja não
-era tão viva como nos primeiros dias. Estacio cedeu de todo, e era
-facil; seu coração tendia para ella, mais que nenhum outro. Não cedeu
-porém sem alguma hesitação e dúvida. A flexibilidade do espirito da
-irmã afigurou-se-lhe a principio mais calculada que expontanea. Mas foi
-impressão que passou. Dos proprios escravos não obteve Helena desde
-logo a sympathia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de
-D. Ursula. Servos de uma familia, viam com desaffecto e ciume a parenta
-nova, alli trazida por um acto de generosidade. Mas tambem a esses
-venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vel-a desde princípio com olhos
-amigos; era um rapaz de 16 annos, chamado Vicente, cria da casa e
-particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta ultima
-circunstância o ligou desde logo á filha do seu senhor. Despida de
-interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era
-precaria e remota, a affeição de Vicente não era menos viva e
-sincera; faltando-lhe os gozos proprios do affecto,&mdash;a familiaridade
-e o contacto,&mdash;-condenado a viver da contemplação e da memoria, a não
-beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos
-costumes, pelo respeito e pelos instinctos, Vicente foi, não obstante,
-um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da
-senzala.
-</p>
-
-<p>
-Ás pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma
-hesitação de D. Ursula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e
-parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociaes,
-explicava-os e tratava de os torcer em seu favor,&mdash;tarefa em que se
-esmerou superando as obstaculos na familia; o resto viria de si mesmo.
-</p>
-
-<p>
-Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no
-procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era
-capellão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns annos
-antes uma excellente capella na chacara, onde muita gente da vizinhança
-ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta annos o padre; era homem de
-estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabellos, e uns olhos
-não menos sagazes que mansos. De compostura quieta, e grave, austero
-sem formalismo, sociavel sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o
-verdadeiro varão apostolico, homem de sua Egreja e de seu Deos, integro
-na fe, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecêra a
-familia do conselheiro algum tempo depois do consorcio deste. Seu olhar
-penetrante descobria a causa da tristeza que minou os ultimos annos da
-mãe de Estacio; respeitou a tristeza, mas attacou directamente a
-origem. O conselheiro era homem geralmente razoavel, salvo nas cousas do
-amor; ouviu o padre, prometteu o que este lhe exigia, mas foi promessa
-feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escriptura.
-Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as occasiões
-graves; e o voto de Melchior pesava em seu espirito. Morando na
-vizinhança daquella familia, tinha alli o padre todo o seu mundo. Se as
-obrigações ecclesiasticas não o chamavam a outro lugar, não se
-arredava elle de Andarahy, sítio de repouso apos trabalhosa mocidade.
-</p>
-
-<p>
-Das outras pessoas que frequentavam a casa e residiam no mesmo bairro de
-Andarahy, mencionaremos ainda o Dr. Mattos, sua mulher, o coronel Macedo
-e dous filhos.
-</p>
-
-<p>
-O Dr. Mattos era um velho advogado que, em compensação da sciencia do
-direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitaveis de
-meteorologia e botanica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da
-política. Era impossivel a ninguem queixar-se do calor ou do frio, sem
-ouvir delle a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das
-estações, a differença dos climas, influência destes, as chuvas, os
-ventos, a neve, as vasantes dos rios e suas enchentes, as marés e a
-pororoca. Elle fallava com egual abundancia das qualidades therapeuticas
-de uma herva, da nomenclatura scientifica de uma flor, da estructura de
-certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio ás nobres paixões da
-política, se abria a boca em tal assumpto era para criticar egualmente
-de luzias e saquaremas,&mdash;os quaes todos lhe pareciam abaixo do paiz. O
-jogo e a comida achavam-no menos sceptico; e nada lhe avivava tanto a
-physionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Éstas prendas
-faziam do Dr. Mattos um conviva interessante nas noites que o não eram,
-como o loto é o jogo por excellencia nas occasiões em que outro
-qualquer é impossivel. O Dr. Mattos era o loto da sociedade, com a
-mesma monotonia dos anexins. Posto soubesse effectivamente alguma cousa
-dos assumptos que lhe eram mais prezados, não ganhou o peculio que
-possuia, professando a botanica ou a meteorologia, mas applicando as
-regras do direito, que ignorou até á morte.
-</p>
-
-<p>
-A esposa do Dr. Mattos fôra uma das bellezas do primeiro reinado.
-Quando as graças physicas se alliam ás do espirito, a belleza póde
-esvair-se, que ainda lhe fica a alma. D. Leonor era uma rosa fanada, mas
-conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro
-ardêra aos pes da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas só era
-verdade a primeira parte do boato. Nem os principios moraes, nem o
-temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra cousa que não fosse
-repellir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez illudiu os
-malévolos; dahi o sussurro, ja agora esquecido e morto. A reputação
-dos homens amorosos parece-se muito como juro do dinheiro: alcançado
-certo capital, elle proprio se multiplica e avulta. O conselheiro
-desfructou essa vantagem, de maneira que se no outro mundo lhe levassem
-á collumna dos peccados todos os que lhe attribuiam na terra, receberia
-elle dobrado castigo do que mereceu.
-</p>
-
-<p>
-O coronel Macedo tinha a particularidade da não ser coronel. Era major.
-Alguns amigos, levados de um espirito de rectificação, começaram a
-dar-lhe o titulo de coronel, que a princípio recusou, mas que afinal
-foi compellido a acceitar, não podendo gastar a vida inteira a
-protestar contra elle. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sôbre o
-peculio da experiencia, possuia imaginação viva, fertil e agradavel.
-Era bom companheiro, folgazão e communicativo, pensando serio quando
-era preciso. Tinha dous filhos: um rapaz de vinte annos, que estudava em
-S. Paulo, e uma moça de vinte e tres, mais prendada que formosa.
-</p>
-
-<p>
-Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se
-consolidada. D. Ursula não cedêra de todo, mas a convivencia ia
-produzindo seus fructos. Camargo era o unico irreconciliavel; sentia-se
-atravez de suas maneiras cerimoniosas uma a versão profunda, prestes a
-converter-se em hostilidade, se fôsse preciso. As demais pessoas, não
-só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam ás boas com a filha do
-conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e
-gestos eram o assumpto da vizinhança e o prazer dos familiares da casa.
-Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas reminiscencias um
-fio biographico da moça; mas do inventário retrospectivo ninguem
-tirava elementos que podessem construir a verdade ou uma só parcella que
-fôsse. A origem da moça continuava mysteriosa; vantagem grande, porque
-o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia attribuir o nascimento de
-Helena a um amor illustre ou romanesco,&mdash;hypotheses admissiveis, e em
-todo o caso agradaveis a ambas as partes.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="V">CAPITULO V</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Por esse tempo resolveu Estacio dar um passo decisivo em sua vida.
-Ligado por amor á filha de Camargo, desde antes da morte do
-conselheiro, hesitára sempre em pedil-a ao pae, deferindo a resolução
-para quando fôsse propício o ensejo. A condição não era facil, por
-que o sentimento que elle nutria em relação a Eugenia tinha
-alternativas singulares de tibieza e fervor. A causa disso póde crer-se
-que estava tambem em seu coração; mas principalmente residia nella.
-N'um dos primeiros dias de Agosto, assentira Estacio de ir solicitar de
-Eugenia autorisação para fazer officialmente o pedido. Assim disposto,
-dirigiu-se á casa de Camargo.
-</p>
-
-<p>
-Mal o avistou de longe, desceu Eugenia á porta do jardim. O chapellinho
-de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do
-sol,&mdash;eram tres horas da tarde,&mdash;tornavam mais bella a figura da
-moça. Eugenia era uma das mais brilhantes estrêllas entre as menores do ceu
-fluminense. Agora mesmo, se o leitor, lhe descobrir o perfil, em
-camarote de theatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile,
-comprehenderá,&mdash;atravez de um quarto de seculo,&mdash;que os
-contemporaneos de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as
-graças que então alvoreciam, com o frescor e a pureza das primeiras horas.
-</p>
-
-<p>
-Era do pequena estatura; tinha os cabellos de um castanho escuro, e os
-olhos grandes e azues,&mdash;dous pedacinhos do ceu; abertos em rosto alvo
-o corado, os quaes nem sempre lembravam tão alta origem, pois se eram
-muita vez quietos e modestos, não poucas os desmaiava tal ou qual
-expressão de languidez lasciva. Seu corpo, levemente refeito, era
-naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até
-com arte, não possuia o dom de alcançar os maximos effeitos com os
-meios mais simples, dom preciosissimo, que faz as grandes elegantes, os
-grandes artistas e os grandes poetas.
-</p>
-
-<p>
-Estacio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que
-lhe ia sahir dos labios, era justamente o pedido que o levava alli. Mas
-Eugenia deteve-lh'a mostrando o anel que sua madrinha, uma fazendeira de
-Cantagallo, lhe remettêra na vespera. Era uma opala magnifica, a tal
-ponto que Eugenia dividia os olhos entre o namorado e ella. Ésta
-simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D.
-Thomasia os esperava. A mãe de Eugenia sabia combinar o decoro com os
-desejos de seu coração; não seria obstaculo aos dous namorados,
-infelizmente a presença de duas visitas veiu destruir o cálculo dos
-tres. Estacio espreitava uma occasião de pedir a Eugenia a
-autorisação que desejava; até o jantar não se lhe deparou nenhuma.
-</p>
-
-<p>
-Depois do jantar, desceram todos ao jardim. D. Thomasia entreteve uma
-das visitas; Camargo foi mostrar á outra a sua collecção de flores.
-Estacio e Eugenia affastaram-se cautellosamente dos dous grupos, a
-pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquelle dia. A flor
-existia; Eugenia colheu-a e deu a Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não va perdel-a; hade entregal-a a Helena da minha parte. Diga-lhe
-que estou com muitas saudades.
-</p>
-
-<p>
-Estacio collocou a flor na casa do paletó.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vai cahir! disse Eugenia. Quer que pregue um alfinete?
-</p>
-
-<p>
-Estacio não teve tempo de responder, por que a filha de Camargo,
-tirando um alfinete do cinto prendeu o pe da flor, gastando muito mais
-tempo do que o exigia a operação. A moça não era myope; todavia
-approximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve
-impetos de lhe beijar os cabellos, e seria a primeira vez que seus
-labios lhe tocassem. Não o deteve o risco de ser visto; mas o simples
-respeito daquella creatura.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Prompto! disse ella. Diga a Helena que é a flor mais bonita, do
-nosso jardim. Sabe que eu gósto muito de sua irmã?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Acredito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Supponho que é minha amiga, hade se-lo com certeza. Oh! eu preciso
-muito de uma amiga verdadeira!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão
-desgostos, como Cecilia... Se soubesse o que ella me fez!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que foi?
-</p>
-
-<p>
-Eugenia desfiou uma historiazinha de toucador, que omitto em suas
-particularidades, por não interessar ao nosso caso, bastando saber que
-a razão capital da divergencia entre as duas amigas fôra uma opinião
-de Cecilia acerca da escolha de um chapeu.
-</p>
-
-<p>
-Estacio não escutou a história com a attenção que a moça desejára;
-limitou-se a ouvir a voz de Eugenia, que era na verdade angelica. Alguma
-cousa porém lhe ficou, e quando ella poz termo ás suas queixas:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O que me parece, observou o sobrinho de D. Ursula, é que não valia a
-pena brigar por tão pouca cousa...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pouca cousa! exclamou Eugenia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa
-e de mau gôsto?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Fez mal se o disse; em todo o caso...
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez uma pausa e continuou a andar. Eugenia, mollemente recostada
-em seu braço, esperou que elle continuasse o que ia dizer; mas o
-silêncio prolongou-se mais do que era natural.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Em todo o caso? repetiu a moça erguendo para elle os seus olhos
-limpidos e curiosos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eugenia, disse Estacio, quer saber a verdadeira razão do mau
-successo de suas affeições? é deixar-se levar mais pelas apparencias que
-pela realidade; é porque dá menos apreço ás qualidades solidas do
-coração do que ás frivolas exterioridades da vida. Suas amizades são
-das que duram a roda de uma valsa, ou, quando muito, a moda de um
-chapeu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estereis para as
-necessidades do coração.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Jesus! exclamou Eugenia estacando o passo um sermão por tão pouca
-cousa! Se tivesse algum pedaço de latim era o mesmo que estar ouvindo o
-padre Melchior.
-</p>
-
-<p>
-Estacio não respondeu; contentou-se com erguer os hombros, e os dous
-continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do
-outro. A differença é que o enfado de Eugenia manifestava-se por um
-movimento nervoso de impaciencia e despeito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se o offendi, perdoe-me, disse ella&mdash;com um leve tom de ironia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! exclamou elle apertando-lhe a mão, como quem só esperava um
-pretexto para reatar a conversa interrompida.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Talvez offendesse, continuou a moça; eu sei dizer as cousas como
-ellas me vem á boca, e parece que não são as mais acertadas...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não digo que o sejam sempre, replicou Estacio sorrindo. Agora, pelo
-menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era
-justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade,
-ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapeu? Não vale
-a pena esperdiçar affectos, Eugenia; sentirá mais tarde que essa moeda
-do coração não se deve nunca reduzir a trocos miudos nem despender em
-quinquilharias.
-</p>
-
-<p>
-Eugenia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito.
-Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido;
-sobretudo não lhes sentiu a applicação. O que a irritou mais foi o
-tom pedagogo de Estacio; estouvada e voluntariosa, não admittia que
-ninguem lhe falasse sem submissão ou a reprehendesse por actos seus,
-que ella julgava legitimos e naturaes. A insistencia do moço foi o
-ponto de partida a um desses arrufos, não raros entre amantes, e
-communs entre aquelles dous. Os de Eugenia não eram simples silêncios;
-seu espirito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado;
-pelo contrário irritava-se e traduzia a irritação por meio de
-pirraças e accessos de mau humor. Estacio viu murmurar, crescer e
-desabar a tempestade. A moça deixava-lhe o braço e tornava a apoiar-se
-nelle, articulava algumas phrases sôltas, pedia a morte, batia no chão
-com o pesinho mimoso que por acaso esmagou uma pobre herva, alheia ás
-divergencias moraes daquellas duas creaturas. Ora parava ou desandava o
-caminho; mas logo se dirigia para o moço, com as palpebras trémulas de
-colera e um remoque nos labios; comprazia-se em torcer a ponta da manga
-até dilaceral-a, ou morder a ponta do dedo até imprimir-lhe o signal
-de seus dentes, côr de perola. Estacio, affeito a essas explosões,
-não lhes sabia remedio proprio, que tanto o silêncio como a réplica
-eram alli materias inflamaveis. Contudo, o silêncio era o menor dos
-dous perigos. Estacio limitava-se a ouvir calado, olhando á sorrelfa
-para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais bello, quando a raiva o
-coloria. Uma terceira pessoa era a unica esperança de pacificação;
-Estacio alongou o olhar pelo jardim em busca desse <i>deus ex-machina</i>.
-Appareceu elle enfim sob a forma de um Carlos Barreto,&mdash;estudante de
-medicina, que cultivava simultaneamente a pathologia e a comedia, mas
-promettia ser melhor Esculapio que Aristophanes. Mal os viu de longe,
-apertou o passo para o grupo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vem gente, Eugenia,&mdash;disse Estacio; não demos expectaculos
-e... perdõe-me.
-</p>
-
-<p>
-Eugenia ergueu os hombros, procurou com os olhos o intruso, que dahi a
-pouco estenda-lhes a mão.
-</p>
-
-<p>
-O ceu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o
-sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a
-Eugenia a agradavel notícia de que trouxera a seu pae um convite para a
-<i>soirée</i> que daria no sabbado proximo uma de suas parentas. A
-perspectiva da <i>soirée</i> foi uma brisa salutar que dispersou o resto
-das nuvens que entenebreciam o ceu; Eugenia sorriu. <i>J'ai ri; me voilà
-desarmée</i>, como na comedia de Piron. Vinte minutos depois, não havia
-em Eugenia vestigio da scena do jardim. Mas a ideia do casamento estava
-adiada.
-</p>
-
-<p>
-O effeito foi agro e doce para Estacio. Estimando ver dissipada a
-colera, doia-lhe que a causa fôsse, não a propria virtude do amor,
-mas um motivo comparativamente futil. A resolução de a consultar
-sôbre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Sahiu
-dalli á noite, antes do cha, aborrecido e azedo. Mas esse estado não
-durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo sentiu
-alguma cousa semelhante á dentada de um remorso. O amor de Estacio
-tinha a particularidade de crescer e affirmar-se na ausencia e diminuir
-logo que estava ao pe da moça. De longe, via-a atravez da nevoa
-luminosa da imaginação; ao pe era difficil que Eugenia conservasse os
-dotes que elle lhe emprestava. Dahi, um dissentimento provavel e um
-remorso certo. Agora que a deixava, ia elle irritado contra si mesmo;
-achava-se ridiculo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade
-de Eugenia; concedia, alguma cousa á edade, á educação, aos
-costumes, á ignorancia da vida.
-</p>
-
-<p>
-Nesse estado de espirito entrou em casa, onde o esperava um incidente
-novo.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="VI">CAPITULO VI</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Chegando a casa, achou Estacio um remedio a seu mau humor. Era uma carta
-de Luiz Mendonça, que dous annos antes partira para Europa, d'onde
-agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, annunciando-lhe que dentro
-de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça fora o seu melhor
-companheiro de aula. Havia entre elles certos contrastes de genio. O de
-Mendonça em mais folgazão e activo. Quando este partiu para Europa
-quiz que o antigo collega o acompanhasse, e o proprio conselheiro
-opinára nesse sentido. Estacio recusou pelo receio de que, sendo
-differente o espirito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao
-sacrificio de habitos e preferencias de um delles.
-</p>
-
-<p>
-A noticia da volta de Mendonça encheu de contentamento o sobrinho de D.
-Ursula. D. Ursula estava então na sala de costura, relendo algumas
-páginas do seu <i>Saint-Clair</i>, encostada a uma meza. Do outro lado
-desta, ficava Helena, a concluir uma obra de <i>crochet</i>.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Titia, disse elle, dou-lhe uma novidade agradavel para mim.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que é?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O Mendonça chegou a Pernambuco: está aqui dentro de pouco tempo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O Mendonça?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Luiz Mendonça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O que foi para a Europa, sei. Ha quanto tempo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dous annos,
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dous annos! Parece que foi hontem.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que
-devo ir tambem á Europa, quanto antes. Querem ir?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu? disse D. Ursula marcando a página do livro com os oculos de
-prata que até então conservára sobre o nariz. Não são folias para gente
-velha. Daqui para a cova.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A cova! exclamou Helena. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me
-ha de enterrar primeiro?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Menina! exclamou D. Ursula em tom de reprehensão.
-</p>
-
-<p>
-Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de
-verdadeira sympathia que ouvia a D. Ursula. Bem o comprehendeu ésta; e
-talvez a mortificou aquella expontaneidade do coração. Mas era tarde.
-Não podia recolher a palavra, não podia sequer explical-a.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que tal virá o teu amigo? perguntou ella ao sobrinho. Era bom rapaz
-antes de ir; um pouco tonto, apenas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ha de vir o mesmo, respondeu Estacio; ou ainda melhor. Melhor de
-certo, porque dous annos mais modificam o homem.
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez aqui um panegyrico do amigo, intercallado com observações
-da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o cha.
-D. Ursula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o
-<i>crochet</i> na cestinha de costura.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pensa que gastei toda a tarde em fazer <i>crochet</i>? perguntou
-ella ao irmão, caminhando para a sala do jantar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, senhor; fiz um furto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um furto!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Fui procurar um livro na sua estante.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;E que livro foi?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um romance.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;<i>Paulo e Virginia</i>?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;<i>Manon Lescaut.</i>
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! exclamou Estacio. Esse livro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Exquisito, não é? Quando percebi que o ora, fechei-o e la o puz
-outra vez.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não é livro para moças solteiras...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não creio mesmo que seja para moças casadas, replicou Helena rindo e
-sentando-se á mesa. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois
-abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Imagino! interrompeu D. Ursula.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O desejo de aprender a montar a cavallo, concluiu Helena.
-</p>
-
-<p>
-Estacio olhou espantado para a irmã. Aquella mistura de geometria e
-equitação não lhe pareceu sufficientemente clara e explicavel. Helena
-soltou uma risadinha alegre de menina que applaude a sua propria
-travessura.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu lhe explico, disse ella; abri o livro, todo alastrado de riscos
-que não entendi. Ouvi porém um tropel de cavallos e cheguei á janella.
-Eram tres cavalleiros, dous homens e uma senhora. Oh! com que garbo
-montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco annos, alta,
-esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa
-cauda do vestido cahida a um lado. O cavallo era fogoso; mas a mão e o
-chicotinho da cavalleira quebravam-lhe os impetos. Tive pena, confesso,
-de não saber montar a cavallo...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quer aprender commigo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Titia consente?
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula levantou os hombros com o ar mais indifferente que pôde achar
-no seu repertorio. Helena não esperou mais.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Escolha voce o dia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Amanhã?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Amanhã.
-</p>
-
-<p>
-Estacio costumava dar um passeio a cavallo quasi todas as manhãs. O do
-dia seguinte foi dispensado; começariam as licções de Helena. Antes
-disso, porém, escreveu Estacio á filha de Camargo uma carta
-rescendente a ternura e affecto. Pedia-lhe desculpa do que se passára
-na vespera; jurava-lhe amor eterno; cousas todas que lho dissera mais de
-uma vez, com o mesmo estylo, se não com as mesmas palavras. A carta
-dissipou-lhe a ultima sombra de remorso. Antes que ella chegasse ao seu
-destino, reconciliara-se elle comsigo mesmo. O portador sahiu para o Rio
-Comprido, e elle desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pe
-da qual estava situada a cavallariça. Naquelle lado da casa corria a
-varanda antiga, onde a familia costumava ás vezes tomar cafe ou
-conversar nas noites de luar, que alli penetrava pelas largas janellas.
-Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro.
-</p>
-
-<p>
-Ja alli estava Helena. D. Ursula enprestara-lhe um vestido de amazona,
-com que algumas vezes montára, antes da morte do irmão. O vestido
-ficava-lhe mal; era folgado de mais para o talhe delgado da moça. Mas a
-elegancia natural fazia esquecer o accessorio das roupas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Prompta! exclamou Helena apenas viu o irmão assomar no alto da
-escada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! isso não vai assim! respondeu Estacio. Não supponha que hade
-montar ja hoje como a moça que hontem viu passar na estrada. Vença
-primeiramente o medo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não sei o que é medo, interrompeu ella com ingenuidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim? Não a suppunha valente. Pois eu sei o que elle é.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito
-desfaz-se; basta a simples reflexão. Em pequena educaram-me com almas
-do outro mundo. Até a edade de dez annos era incapaz de penetrar n'uma
-sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possivel que uma pessoa
-morta voltasse á terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma
-cousa. Lavei o meu espirito de semelhante tolice e hoje era capaz de
-entrar, de noite, n'um cemiterio. E dahi talvez não: os corpos que alli
-dormem tem direito de não ouvir mais um só rumor de vida.
-</p>
-
-<p>
-Estacio chegára ao último degrau da escada. As derradeiras palavras
-ouviu-as elle com os olhos fitos na irmã e encostado ao poial do pedra.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quem lhe ensinou essas ideias? perguntou elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no
-coração. Senhor geometra, continuou brandindo caprichosamente o
-chicote,&mdash;veja se transcreve em algum compendio éstas figuras de minha
-invenção, e ande cavalgar commigo.
-</p>
-
-<p>
-Com um movimento rapido travou da cauda do vestido, e caminhou para
-diante. Estacio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dois
-sentimentos differentes: a affeição que o prendia á irmã, e a
-extranha impressão que ella lhe fazia sentir. Quando chegou á porta da
-cavallariça, viu aparelhados dous animaes, o cavalo de seus passeios, e
-a egua que a tia cavalgava uma ou outra vez.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que é isso? disse elle. Por ora vamos a algumas indicações somente,
-aqui no terreiro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Justamente! respondeu a moça.
-</p>
-
-<p>
-Um escravo que alli estava trouxe um tamborete, Estacio approximou-se de
-Helena, que afagava com a mão alva e fina as crinas da egua.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Como se chama? perguntou ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;<i>Moema.</i>
-</p>
-
-<p>
-&mdash;<i>Moema</i>!! Ora espere... é um nome indigena, não é?
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez um signal affirmativo. Helena tinha um pe sobre o tamborete;
-repetiu ainda o nome da egua, como quem reflectia sobre elle, sem que o
-irmão percebesse que não era aquillo mais do que um disfarce. De
-repente; quando elle menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no
-selim. A egua alteou o collo, como vaidosa do peso que recebêra.
-Estacio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correcção do
-movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquillo. Helena inclinou-se
-para elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Fui bem? perguntou sorrindo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não podia ir melhor; mas o que me admira...
-</p>
-
-<p>
-As patas de <i>Moema</i> interromperam a reflexão do moço. A cavalleira
-brandira o chicotinho, e o animal sahíra a trote largo pelo terreiro
-fora. Estacio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como
-para tomar a redea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou
-ver que ella não fazia alli os primeiros ensaios. Ficou parado, de
-longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos,
-Helena torceu a redea e regressou ao ponto donde sahíra.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que tal? disse ella logo que estacou. Terei geito para a equitação?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Creança!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que é isso? Ja aprendeu? interveio D. Ursula do alto da varanda,
-onde acabava de chegar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estava caçoando comnosco, disse Estacio. Ve como sabe montar?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ella sabe tudo, murmurou D. Ursula entre dentes.
-</p>
-
-<p>
-Estacio montou no seu cavallo. Consultou o relogio; eram sete horas e
-meia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Permitte que o acompanhe? perguntou Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Com uma condição, disse elle; é que hade ter juizo. Não quero
-temeridades; a egua é apparentemente mansa; convem não brincar com
-ella. Ja vejo que voce é capaz de muitas cousas mais...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Prometto ir pacificamente.
-</p>
-
-<p>
-Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de redea ao animal
-e seguiu ao lado do irmão. Transposto o portão, seguiram os dous para
-o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã fresca.
-Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a agua, instigada
-por ella, adiantava-se alguns passos ao cavallo; Estacio reprehendia a
-irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudencia,
-gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ella
-conduzia o animal.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não me dirá voce, perguntou elle, porque motivo, sabendo montar,
-pedia-me hontem licções?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A razão é clara, disse ella; foi uma simples travessura, um
-capricho... ou antes um cálculo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um cálculo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Profundo, hediondo, diabolico, continuou a moça sorrindo. Eu queria
-passear algumas vezes a cavallo; não era possivel sahir só, e nesse
-caso...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Bastava pedir-me que a acompanhasse.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto era sahir commigo;
-era fingir que não sabia montar. A ideia momentanea de sua
-superioridade neste assumpto, era bastante para lhe inspirar uma
-dedicação decidida...
-</p>
-
-<p>
-Estacio sorriu do cálculo; mas foi um sorriso passageiro, porque dentro
-de poucos segundos, seu rosto ficou serio, e elle perguntou era tom
-sêcco:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja lhe negamos algum prazer que desejasse?
-</p>
-
-<p>
-Helena estremeceu e ficou egualmente séria.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não! murmurou; minha dívida não tem limites.
-</p>
-
-<p>
-Ésta palavra sahiu-lhe do coração. As palpebras cahiram-lhe e um veu
-de tristeza lhe apagou o rosto. Estacio arrependeu-se do que dissera.
-Sua sensibilidade apurada comprehendeu a irmã; viu que, por mais
-innocentes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas á ma parte, e
-em tal caso o menos que se lhe podia arguir era a descortezia. Estacio
-timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ella e rompeu
-o silêncio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Voce ficou triste, disse Estacio; mas eu desculpo-a.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Desculpa-me? perguntou a moça erguendo para o irmão seus bellos
-olhos humidos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Desculpo a injúria que me fez, suppondo-me grosseiro.
-</p>
-
-<p>
-Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições
-do mundo. Helena deu livre curso á imaginação e ao pensamento; suas
-falas exprimiam, ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da
-experiencia prematura, e iam direitas á alma do irmão, que se
-comprazia em ver nella a mulher como elle queria que fosse, uma Graça
-pensadora, uma sisudez amavel. De quando em quando faziam parar os
-animaes para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um
-accidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam fallando das vantagens
-da riqueza.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Valem muito os bens da fortuna, dizia Estacio; elles dão a maior
-felicidade da terra, que é a independencia absoluta. Nunca experimentei
-a necessidade; mas imagino que o peor que há nella não é a
-privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitorios,
-mas sim essa escravidão moral que submette o homem aos outros homens. A
-riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que
-nos coube. Ve aquelle preto que alli está? Para fazer o mesmo trajecto
-que nós, terá de gastar, a pe, mais uma hora ou quasi.
-</p>
-
-<p>
-O preto de quem Estacio falára, estava sentado no capim, descascando
-uma laranja, emquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava
-philosophicamente para ele. O preto não attendia aos dous cavalleiros
-que se aproximavam. Ia esburgando a fructa e deitando os pedaços de
-casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça,
-com o que parecia alegra-lo infinitamente. Era homem de cêrca de
-quarenta annos, ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapeu que
-lhe cobria a cabeça, tinha ja uma côr inverossimil. No entanto, o
-rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade
-do espirito.
-</p>
-
-<p>
-Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrára. Ao
-passarem por elle, o preto tirou respeitosamente o chapeu e continuou na
-mesma posição e occupação que d'antes.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tem razão, disse Helena: aquelle homem gastará muito mais tempo do
-que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de
-vista? Em rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o experdicemos, quer
-o economisemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor prazo; é
-fazer muita cousa aprazivel ou util. Para aquelle preto o mais aprazivel
-é, talvez, esse mesmo caminhar a pe, que lhe alongará a jornada, e lhe
-fara esquecer o captiveiro, se é captivo. É uma hora de pura
-liberdade.
-</p>
-
-<p>
-Estacio soltou uma risada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Voce devia ter nascido...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Homem?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais
-melindrosas. Nem estou longe de crer que o proprio captiveiro lhe
-parecerá uma bemaventurança, se eu disser que é o peor estado do
-homem.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim? retorquiu Helena sorrindo; estou quasi a fazer-lhe a vontade.
-Não faço; prefiro admirar a cabeça de <i>Moema</i>. Veja, veja como se vai
-faceirando. Ésta não maldiz o captiveiro; pelo contrário, parece que
-elle lhe dá glória. Pudera! Se não a tivessemos captiva, receberia
-ella o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só faceirice, é
-tambem impaciencia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De que?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Impaciencia de correr por essa estrada da Tijuca fóra, e beber o
-vento da manhã, espreguiçando os musculos, e sentindo-se alguma cousa
-senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre egua? continuou a moça
-inclinando a cabeça até as orelhas do animal; vai aqui ao pe de nós
-um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu
-inimigo...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena! interrompeu Estacio; voce é muito capaz de desparar a
-correr.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;E se fôsse?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu deixava-a ir, e nunca a trazia em meus passeios. Voce monta bem;
-mas não desejo que faça temeridades. Nós somos responsaveis, não só
-por sua felicidade, mas tambem por sua vida.
-</p>
-
-<p>
-Helena refletiu um instante.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quer dizer, perguntou ella, que se eu fôsse victima de um desastre
-não faltaria quem o imputasse á minha familia?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Justo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me
-lembrasse&mdash;é uma supposição&mdash;se eu me lembrasse de deixar a vida
-por aborrecimento ou capricho, seria voce accusado de me haver propinado o
-veneno? Não ha melhor modo de me fazer evitar a morte.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Deixemos conversas lugubres, e voltemos para casa, interrompeu
-Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Raras vezes passo d'aqui; e não pense voce que é perto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Parece-me que ainda agora sahimos de casa. Vamos uns cinco minutos
-adeante? Sim?
-</p>
-
-<p>
-Estacio consultou o relogio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cinco minutos justos, disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Até aquella casa que alli está com uma bandeira azul.
-</p>
-
-<p>
-Havia effectivamente, cêrca de quatro minutos adiante, á esquerda da
-estrada, uma casa de insignificante apparencia, sôbre cujo telhado
-fluctuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estacio conhecia a casa,
-mas era a primeira vez que via a bandeira. Helena pediu-lhe a
-explicação daquelle apendice.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Va la saber, disse o irmão rindo.
-</p>
-
-<p>
-Helena deu de redea á egua e adeantou-se alguns passos. Estacio
-apertou o animal e alcançou-a.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não va fazer tolices! disse elle em tom de branda reprehensão.
-Aquillo é fantasia do morador, ou algum signal de passaros, ou qualquer
-outra cousa que não vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a
-manhã, que está deliciosa.
-</p>
-
-<p>
-Helena não attendeu á proposta do irmão e foi andando, a passo lento,
-na direcção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o
-alpendre antigo que lhe corria na frente. As collunnas deste estavam ja
-lascadas em muitas partes, apparecendo, aqui e alli, a ossada de tijolo.
-A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, apparente ao menos.
-Quando elles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguem
-espreitava por ella, ficou sumido na sombra, porque ninguem de fóra o
-viu.
-</p>
-
-<p>
-Cêrca de cinco braças adeante, Estacio resolveu definitivamente
-regressar, e Helena não oppoz objecção nenhuma. Torceram a redea aos
-animais e desceram.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não poderei falar á bandeira? perguntou a moça. Deixe-me ao menos
-dizer-lhe adeus.
-</p>
-
-<p>
-Tinha ja tirado da algibeira o seu fino lenço de cambraia; agitou-o na
-direcção da casa. Quiz o acaso que a bandeira, até então quieta, se
-movesse no sopro de uma aragem que passou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ve como ella me respondeu? Não se póde ser mais cortez! exclamou
-Helena, rindo.
-</p>
-
-<p>
-Estacio riu tambem da lembrança da irmã, e ambos desceram, a passo
-lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Seus
-olhos, cravados nas orelhas de <i>Moema</i>, não pareciam ver sequer o
-caminho que o animal seguia, Estacio, para arrancal-a ao silêncio,
-fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena
-respondeu distrahidamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que tem voce? perguntou elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada, disse ella; ia... ia embebida naquella toada. Não ouve?
-</p>
-
-<p>
-Ouvia-se effectivamente, a algumas braças adeante, uma cantiga da
-roça, meia alegre, meia plangente. O cantor appareceu, logo que os
-cavalleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquelle logar. Era o
-preto, que pouco tinham visto sentado no chão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que lhe dizia eu? observou a irmã de Estacio. Alli vai o infeliz de
-ha pouco. Uma laranja chupada no capim e trez ou quatro quadras, é o
-bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar
-comprar o tempo. Nós poderiamos dizer o mesmo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque não?
-</p>
-
-<p>
-A moça recolheu-se ao silêncio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena, isso que voce acaba de dizer. Vamos, estamos sos; confesse
-alguma tristeza que tenha.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nenhuma, respondeu a moca. Peço-lhe, entretanto, uma cousa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Diga.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu
-respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras,
-emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espirito esta
-verdade: é que sou uma pobre alma lançada n'um turbilhão.
-</p>
-
-<p>
-Estacio ia pedir explicação mais desenvolvida daquellas últimas
-palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote,
-e deitou a egua a correr. Estacio fez o mesmo ao cavallo; dahi a alguns
-minutos entravam na chacara, elle aturdido e curioso, ella com a face
-vermelha e a bater-lhe violentamente o coração.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="VII">CAPITULO VII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Apearam-se os dous no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter
-á varanda. Pizando o primeira degrau, disse Estacio:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena, explique-me suas palavras de ha pouco.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quaes?
-</p>
-
-<p>
-E como Estacio levantasse os hombros, com ar de despeito, continuou
-Helena:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Perdõe-me; sua pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do
-que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer
-meias confissões; mas neste caso a confissão inteira seria imprudencia
-maior. Se se tratasse de factos, creia que a ninguem melhor podia
-confia-los do que a voce; mas por que motivo irei perturbar-lhe o
-espirito com a narração de meus sentimentos, se eu propria não chego
-a entender-me?
-</p>
-
-<p>
-Estacio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e
-entraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula dando as ordens
-daquelle dia, a dous escravos. Estacio entrou pensativo; Helena mudou
-totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a
-melancholia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara a jovialidade
-de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma especie de comediante
-que recebêra da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que
-a obrigava a mudar continuamente de vestuario. D. Ursula viu-a entrar
-risonha e ir a ella dar-lhe os costumados&mdash;<i>bons dias</i>&mdash;que
-era sempre um beijo,&mdash;ou antes dous,&mdash;um na mão, outro na face.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Demorei-me muito? perguntou ella voltando rapidamente o corpo, de
-maneira a ver o relogio que ficava do outro lado da sala. Nove horas!
-Que passeio, Sr. meu irmão!
-</p>
-
-<p>
-Estacio olhava para ella silencioso e não lhe respondeu. Seu olhar não
-era de censura, mas de curiosidade, pena e admiração. Os dous foram
-logo depois mudar de <i>toilette</i>, e o almôço reuniu a familia. D.
-Ursula propoz, durante elle, algumas mudanças na disposição da
-chacara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e
-aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Ursula desceu
-á chacara com Estacio. As alterações foram ainda estudadas e
-combinadas no proprio terreno, com assistencia do feitor. Logo que
-acabou a deliberação e que o projecto de D. Ursula foi definitivamente
-assentado, Estacio reteve-a e lhe disse:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Preciso falar-lhe um instante.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tambem eu.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quaes são os seus sentimentos actuaes em relação a Helena? Oh! não
-precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são
-meras apparencias. Não creio que seja absolutamente amiga della; mas
-não póde negar que a antipathia desapareceu ou diminuiu muito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Diminuiu, talvez.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;E com razão. Pensa que tambem eu não tive repugnancias
-depois que ella aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem
-desaparecido,&mdash;desapareceriam hoje de manhã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Como?
-</p>
-
-<p>
-Estacio referiu á tia a scena do capitulo anterior e as palavras que
-lhe dissera Helena. D. Ursula sorriu ironicamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não a impressiona isto? perguntou Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, respondeu D. Ursula com decisão; a phrase de Helena é achada
-em algum dos muitos livros que ella le. Helena não é tola; quer
-prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que
-começo a gostar della; é dedicada, affectuosa, diligente; tem
-maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é
-naturalmente sympatica. Ja vou gostando della; mas é um gostar sem fogo
-nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença
-de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cançada.
-Helena preenche essa lacuna. Se alguma cousa, entretanto, a podia
-prejudicar nas nossas relações é esse dito.
-</p>
-
-<p>
-Estacio tomou calorosamente a defesa da irmã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O que eu lhe contei, disse elle, foram apenas as palavras. Não pude
-nem poderei reproduzir a expressão sincera com que ella as proferiu e a
-profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vel-a
-mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de
-dúvida; mas passou logo. Sua natureza tem esse raro poder de concentrar
-a amargura no coração; tambem a dor tem suas hypocrisias...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas que dor? que amargura? interrompeu: D. Ursula. A dor de ser
-legitimada? a amargura de uma herança?
-</p>
-
-<p>
-Estacio protestou calorosamente contra aquelle caminho que a tia dava a
-suas ideias; emfim pediu-lhe que interrogasse com cautella a irmã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um homem, concluiu elle, é menos apto para obter taes confissões;
-uma senhora, respeitavel e parenta, está mais no caso de lhe captar a
-confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pedes muito, respondeu D. Ursula. Verei se te posso dar metade
-disso. Era só o que tinhas para dizer?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Só.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Uma creancice! Eu tenho cousa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me:
-trata-se...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não precisa dizer mais nada, interrompeu Estacio; la vem elle.
-</p>
-
-<p>
-Camargo apparecêra effectivamente a vinte passos de distância.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Doutor,&mdash;disse D. Ursula, logo que este se approximou delles,
-chega um pouco fóra de proposito. Eu mal tive tempo de assustar meu
-sobrinho, que ainda não sabe o que o senhor lhe quer.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me approva.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Completamente,
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Trata-se...&mdash;disse Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De uma conspiração; todos conspiramos em seu beneficio.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula retirou-se para casa; os dous ficaram sos. Uma vez sos,
-Camargo pousou a mão no hombro de Estacio, fitou-o paternalmente, emfim
-perguntou-lhe se queria ser deputado. Estacio não pôde reprimir um
-gesto de sorpreza.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Era isso? disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Creio que não se trata de um supplício. Uma cadeira na camara! Não
-é a mesma cousa que um quarto no aljube.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas a que proposito...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ésta ideia apoquentava-me ha algumas semanas. Doia-me ve-lo vegetar
-os seus mais bellos annos n'uma obscuridade relativa. A política é a
-melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrucção,
-caracter, riqueza; póde subir a posições invejaveis. Vendo isso,
-determinei-me a mettel-o na Cadeia... Velha. Fala-se em dissolução.
-Para facilitar-lhe o successo, entendi-me com duas influências
-dominantes, o negocio afigurasse-me em bom caminho.
-</p>
-
-<p>
-Estacio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas doutor, disse elle depois de curto silêncio, houve de sua parte
-alguma precipitação. Pelo menos, de via consultar-me. Do modo por que
-arranjou as cousas, quasi me acho desobrigado de lhe agradecer a
-intenção. Quanto a acceitar, não acceito.
-</p>
-
-<p>
-Camargo não perdeu a tramontana. Havia nelle a tenacidade do dogue e a
-tactica da serpente. Deixou passar por cima da cabeça a primeira onda
-de desagrado, surgiu fóra e insistiu tranquillamente:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vejamos as cousas com os oculos do senso-commum. Em primeiro logar,
-não creio que tenha outros projectos na cabeça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Talvez.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A sciencia é ardua e
-seus resultados fazem menos ruido. Não tem vocação commercial nem
-industrial. Medita alguma ponte-pensil entre a Côrte e Nictheroy, uma
-estrada até Matto-Grosso ou uma linha de navegação para a China? É
-duvidoso. Seu futuro tem por ora dous limites unicos, alguns estudos de
-sciencia e os alugueis das casas que possue. Ora, a eleição nem lhe
-tira os alugueis nem obsta a que continue seus estudos; a eleição
-completa-o dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A unica objecção
-seria a falta de opinião política; mas ésta objecção não o póde
-ser. Hade ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades
-públicas, e...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Supponha,&mdash;é mera hypothese,&mdash;que tenho alguns
-compromissos com a opposição.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na
-camara&mdash;embora pela porta dos fundos. Se tem ideias especiaes e
-partidarias, a primeira necessidade é obter o meio de as expor e
-defender. O partido que lhe der a mão,&mdash;se não fôr o
-seu,&mdash;ficará, consolado com a ideia de ter ajudado a a um
-adversario talentoso o honesto. Mas a verdade é que não escolheu ainda
-entre os dous partidos; não tem opiniões feitas. Que importa? Grande
-numero de jovens politicos seguem, não uma opinião examinada,
-ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas affeições, a que seus
-paes ou amigos immediatos honraram e defenderam, a que as
-circumstâncias lhe impõem. Dahi vem algumas legítimas conversões
-posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circumstâncias da
-origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnifico lyrio
-saquarema ou luzia. Demais, a política é sciencia prática; e eu
-desconfio de theorias que só são theorias. Entre primeiro na camara; a
-experiencia e o estudo dos homens e das cousas lhe designarão a que
-lado se deve inclinar.
-</p>
-
-<p>
-Estacio ouviu attento éstas vozes com que a serpente lhe apontava para
-a árvore da sciencia do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a
-discutir philosophicamente com o reptil.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Entra-se na política,&mdash;disse elle,&mdash;por vocação legítima,
-ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração.
-Nenhum desses motivos me impelle a dobrar o cabo Tormentorio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Da Boa Esperança,&mdash;emendou Camargo rindo;&mdash;não supprima
-tres seculos de navegação.
-</p>
-
-<p>
-Estacio riu-se tambem. Depois falou ao médico de sua indole e
-ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia
-políticas nem todas eram da mesma estatura. Os espiritos, disse elle,
-nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras especies intermedias. A
-uns é necessario o horisonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo
-batem as azas e sobem a encarar o sol; outros contentam-se com algumas
-longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho.
-Estes eram os obscuros, e, na opinião delle, os mais felizes. Não
-seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a história
-em suas páginas luminosas ou sombrias; o vão do telhado em que
-abrigaram a prole, a árvore em que pousaram, são as testemunhas
-unicas, e morredoras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os
-colhe, vão elles pousar no regaço commum da eternidade, onde dormem o
-mesmo perpétuo somno, tanta o capitão que subiu ao summo estagio por
-uma escala de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o
-esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão infimas como
-seriam as do cabreiro; eram as do proprietario do campo que o capitão
-atravessasse. Um bom peculio, a familia, alguns livros e amigos,&mdash;não
-iam além seus mais arrojados sonhos.
-</p>
-
-<p>
-Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Meu caro Estacio,&mdash;disse, elle depois,&mdash;esse trocadilho de
-andorinhas e cabreiros é a cousa mais extraordinaria que eu esperava ouvir
-a um mathematico. Saiba que detesto egualmente a philosophia da obscuridade
-e a rhetorica dos poetas. Sobretudo gósto que me respondam em prosa
-quando falo em prosa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Parece-lhe que poetei? perguntou Estacio rindo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Despropositamente! Ora, eu falo de cousas sérias; e convem não
-confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que
-são a parte ideológica e vã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu serei ideologo,
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não tem direito de o ser.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois bem, deixe-me com as minhas mathematicas, as minhas flôres, as
-minhas espingardas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não! Ha de intercalar tudo isso com um pouco de política.
-</p>
-
-<p>
-Puxando-o familiarmente pela gola do paleto, Camargo fel-o sentar ao pe
-de si, no banco que alli estava mais proximo. Depois falou. O novo
-discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma
-das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma
-complacencia de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da
-política, e não só as reaes, mas as ficticias ou duvidosas, foram
-inventariadas, pintadas, douradas e illuminadas pelo médico. Sua palavra
-revellou um poder de evocação, uma vehemencia, uma energia, que
-ninguem era capaz de suppor-lhe. O taciturno desabrochou tagarella. Para
-falar tanto e com tal fôrça era preciso que o animasse um grande
-sentimento ou um grande interesse.
-</p>
-
-<p>
-Estacio, lisonjeado com a affeição que elle lhe mostrava, não teve
-ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa;
-adoptou o alvitre de deferir a resposta para outra occasião.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou prompto a
-reflectir, e a consultar o padre Melchior e Helena.
-</p>
-
-<p>
-O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente
-não passou o effeito de um sorriso sardonico e dissimulado. Interveiu
-uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a
-extrahir lentamente de uma boceta de tartaruga, presente do conselheiro
-Valle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena! disse elle com alguma hesitação. Que vem fazer sua irmã
-neste negocio?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É um voto,&mdash;redarguiu Estacio; e menos leve do que lhe parece.
-Ha nella muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa
-harmonia com as suas outras qualidades feminis.
-</p>
-
-<p>
-Entre as sobrancelhas de Camargo projectou-se uma longa ruga, e foi toda
-a expressão de seu espanto e desgôsto. A resposta de Estacio
-revellara-lhe uma situação nova na familia: o voto de Helena,
-consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Ésta solução, que
-porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a
-previra o médico. Limitou-se a notal-a de si para si; e, terminando
-subitamente a conversa, disse:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha
-opinião, não é seu amigo. Em todo o caso, ninguem lhe poderá
-affirmar que não é a amizade, a longa amizade.
-</p>
-
-<p>
-Estacio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe affectuosamente a mão.
-Tinham-se levantado. Era quasi meio dia; Camargo despediu-se alli mesmo;
-ia ver dous doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro
-atravessou sosinho a chacara; ia pensativo, e aborrecido. A política,
-na sua opinião, era uma noiva importuna; mas se todos conspirassem a
-favor della, não sería elle obrigado a desposal-a? A ésta reflexão
-respondeu a voz do padre Melchior, do alto de uma janella:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Venha ca, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso?
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="VIII">CAPITULO VIII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-D. Ursula tinha ja confiado ao velho capellão a proposta de Camargo.
-Consultado por Estacio, respondeu este que sua opinião era
-absolutamente inutil.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Consulte suas fôrças e a responsabilidade do cargo, e escolha,
-concluiu o padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja escolhi, disse Estacio; pedia seu conselho para apoiar melhor a
-minha propria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos?
-Decidi que não acceito a candidatura. A vida política é turbulenta de
-mais para o meu espirito. Estou prompto para a acção, mas não hade
-ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar á camara,
-além de algumas prerogativas e um papel accessorio? Eu só me meteria na
-política, se pudesse officiar; mas ser apenas sachristão...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Entre o officiante e o sachristão, observou Melchior, está o
-prégador, que é cargo nobre e influente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas o thema do sermão, padre-mestre?&mdash;retorquiu Estacio rindo;
-falta-me o thema.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público
-em favor do sobrinho, viu naquellas razões um pretexto ou uma
-puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o
-sobrinho para que reflectisse maduramente, antes de qualquer resposta
-definitiva. Estacio prometteu como promettêra ao médico, por simples
-condescendencia; mas sobretudo para pôr termo ao assumpto e ir saber a
-causa do sorriso quasi imperceptivel que viu roçar os labios de Helena.
-A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janellas; Estacio foi até
-alli.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Adivinhei pelo seu sorriso,&mdash;disse elle, que tudo isto lhe
-pareço pueril, e que eu faço bem em não acceitar o que se me offerece.
-</p>
-
-<p>
-Helena olhou um pouco espantada para elle; mas respondeu com
-tranquillidade:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pelo contrário, penso que deve acceitar. Além de haver consentimento
-de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugenia.
-</p>
-
-<p>
-Era a primeira vez que Helena alludia ao amor de Estacio, e fazia-o por
-modo encoberto e obliquo. Estacio escapou dessa vez á regra de todos os
-corações amantes: resvalou pela allusão e discutiu gravemente o
-assumpto da candidatura. Era pesado de mais para cabeça feminina;
-Helena intercalou uma observação sobre dous passarinhos que bailavam
-no ar, e Estacio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores.
-</p>
-
-<p>
-Durante dous dias, não sahiu elle de casa. Tendo recebido alguns livros
-novos, gastou uma parte do tempo em os folhear, ler alguma página,
-collocal-os nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos
-anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliophilo. Helena ajudava-o
-nesse trabalho,&mdash;um pouco parecido com o de Penelope,&mdash;por que a
-ordem estabelecida ao meio dia era às vezes alterada às duas horas, e
-restaurada na seguinte manhã. Estacio, entretanto, não ficava todo
-entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado
-com que ella o auxiliava. Helena parecia não andar; seu vulto resvalava
-silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo a uma indicação do
-irmão, ou pondo em experiencia uma ideia sua. Estacio parava às vezes
-fatigado; ella continuava imperturbavelmente o serviço. Se elle lhe
-fazia alguma observação, a moça respondia com um movimento de hombros
-ou um sorriso, e proseguia. Então Estacio segurava-lhe nos pulsos e
-exclamava rindo:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Socega, borboleta!
-</p>
-
-<p>
-Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a
-mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na
-intimidade mais doce, e que a reciproca affeição ia excluindo toda a
-preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as
-proporções de voto preponderante.
-</p>
-
-<p>
-No terceiro dia D. Thomasia e Eugenia foram jantar a Andarahy. Eugenia
-estava nesse dia mais sisuda e docil que nunca; dissera-se que trazia a
-alma tão nova como o vestido, e menos enfeitada que elle. Estacio
-sentiu-se satisfeito; o ideal reconciliava-se com o real. Poderam falar
-sosinhos mais de uma vez; todas as pessoas da casa pareciam conspiradas
-para lhes deixar a solidão. Foi ella quem recordou a proposta política
-do pai, da qual soubera casualmente, ouvindo a narração que este
-fizera a D. Thomasia. O desejo de Eugenia era pela affirmativa; e
-Estacio, receioso de despertar os caprichos adormecidos da moça,
-frouxamente resistiu, e consentiu ainda mais frouxamente em
-reconsiderar o assumpto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Deputado! exclamava Eugenia com os olhos no ceu.
-</p>
-
-<p>
-Estacio acompanhou Eugenia e D. Thomasia na carruagem que as levou ao
-Rio Comprido. O dia fôra mais ou menos alegre; a viagem foi divertida e
-palreira como um regresso de romaria. Os cavallos mostravam-se tão
-lepidos como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o
-caminho, com desgôsto de Eugenia.
-</p>
-
-<p>
-Voltando a Andarahy, Estacio trazia a alma pura de todas as más
-impressões, que lhe deixavam usualmente as visitas á casa de Camargo.
-Nenhum dissentimento houvera naquelle dia. Eugenia parecia modificada.
-Em casa esperava-o porém uma desagradavel noticia: a tia sentira-se
-incommodada pouco depois que elle sahíra e recolhera-se ao quarto. O
-caso affligiu-o; mas não tardou a apparecer Helena, que o tranquilisou,
-dizendo-lhe que D. Ursula tinha apenas uma forte dor de cabeça, ja
-diminuida com o emprêgo de um remedio cazeiro.
-</p>
-
-<p>
-No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia socegadamente,
-Estacio abriu uma das janellas do quarto e relanceou os olhos pela
-chacara. A alguns passos de distância, entre duas larangeiras, viu
-Helena a ler attentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as
-suas quatro laudas escriptas. Seria alguma mensagem amorosa?
-</p>
-
-<p>
-Ésta ideia molestou-o singularmente. Affastou-se da janella, conchegou
-as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena estava de
-pe, no mesmo logar, e percorria rapidamente as linhas, até o final da
-ultima página. Alli chegando, deu dous passos, tornou a parar volveu
-ao princípio da carta, para a ler de novo, não ja depressa, mas
-repousadamente. Estacio sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, á
-qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciume. A ideia de que
-Helena podia repartir seu coração com outra pessoa desconsolava-o ao
-mesmo tempo que o irritava. A razão de semelhante exclusivismo não a
-explicou elle, nem tentou investigal-a; sentiu-lhe somente os effeitos,
-e ficou alli sem saber que faria. Duas vezes sahiu da janella para ir
-ter com a irmã, mas recuou de ambas as vezes, reflectindo que a
-curiosidade pareceria impolidez, se não era talvez, tyrania. Ao cabo
-de alguns minutos de hesitação, sahiu do quarto e dirigiu-se á
-chacara.
-</p>
-
-<p>
-Quando alli chegou, Helena passeava lentamente com os olhos no chão.
-Estacio parou deante della.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja fora de casa! exclamou em tom de gracejo.
-</p>
-
-<p>
-Helena tinha a carta na mão esquerda; instinctivamente a amarrotou como
-para escondel-a melhor. Estacio, a quem não escapou o gesto,
-perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nota verdadeira, disse ella alisando tranquillamente o papel, e
-dobrando-o conforme recebêra; é uma carta.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Segredos de moça?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quer lel-a? perguntou Helena apresentando-lh'a.
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez-se vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente
-o papel e guardou-o na algibeira do vestido. A innocencia não teria
-mais puro rosto; a hypocrisia não encontraria mais impassivel máscara.
-Estacio contemplava-a a um tempo envergonhado e suspeitoso; a carta
-fazia-lhe cocegas; seu olhar ambicionava ser como o da Providencia que
-penetra nos mais intimos refolhos do coração. Vieram, entretanto,
-dizer a Helena que D. Ursula lhe pedia fôsse ter com ella. Estacio
-ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquerito mental sôbre a
-procedencia da mysteriosa missiva. Um indicio havia de que podia conter
-alguma cousa secreta; era o gesto com que ella a escondeu. Mas não
-podia ser de alguma antiga companheira do collegio, que lhe confiava
-segredos seus? Estacio abraçou com alvorôço ésta hypothese. Depois,
-occorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia tratar de
-algum idyllio de collegio, em que Helena fosse protagonista, idyllio
-vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso,
-que tinha elle com isso?
-</p>
-
-<p>
-Fazendo ésta ultima reflexão, Estacio sacudiu do espirito o assumpto
-e seguiu a examinar as novas obras da chacara, entre as quaes figurava
-um vasto tanque. Ja alli estavam os operarios; ia começar o trabalho do
-dia. Estacio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas
-eram contrárias ao plano assentado; como lhe fizessem tal observação,
-Estacio rectificou-as. Depois admirou-se de não ver um vaso, que alias
-dous dias antes mandara remover; emfim recommendou a rega de uma planta,
-ainda humida da agua que o feitor lhe deitára nessa manhã.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula não estava de todo boa, mas pôde almoçar á mesa commum. O
-sobrinho appareceu aborrecido; a sobrinha triste; o dialogo foi
-mastigado como o almôço. No fim deste, recebeu Estacio uma carta de
-Eugenia. Era uma tagarelice meia frivola, meia sentimental, mistura de
-risos e suspiros, sem objecto definido, a não ser pedir-lhe que
-escrevesse, se não pudesse ir vel-a.
-</p>
-
-<p>
-Acabava elle de ler a carta, quando Helena lhe appareceu á porta do
-gabinete. Não a escondeu; teve um pensamento singular: mostral-a à
-irmã, na esperança de que ésta, pagando-lhe com egual confiança, lhe
-mostrasse a sua,&mdash;ideia que revellava o seu nenhum conhecimento do
-espirito das mulheres, porquanto só a indiscrição masculina era capaz
-de cahir em semelhante laço. Helena percorreu com os olhos a carta de
-Eugenia e esteve algum tempo silenciosa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Permitte-me um conselho? perguntou ella.
-</p>
-
-<p>
-E como Estacio respondesse com um gesto de assentimento:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Va ter com Eugenia, solicite licença para ir pedil-a a seu pai, e
-conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? della creio
-poder affirmar que sim; de voce...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De mim?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Penso que é mais duvidoso; ou voce é mais habil. Hade ser isso.
-Naturalmente parece-lhe fraqueza amar,&mdash;isto é, a cousa mais natural
-do mundo,&mdash;a mais bella,&mdash;não direi a mais sublime. Os homens
-serios tem preconceitos extravagantes. Confesse que ama,&mdash;que não é
-indifferente a esse sentimento inexprimivel que liga, ou para sempre, ou
-por algum tempo, duas creaturas humanas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ou por algum tempo! repetiu mentalmente Estacio.
-</p>
-
-<p>
-E éstas quatro palavras tão naturaes e tão communs tinham ares de uma
-revellação nova no estado de espirito em que elle se achava. Se Helena
-tivesse proposito de lhe lançar a perplexidade na alma não empregaria
-mais efficaz conceito. Sería na verdade aquelle amor tão travado de
-desanimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu proprio
-coração, seria uma affeição destinada a perecer no occaso da
-primeira lua matrimonial?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois bem, concordou elle, ao cabo de alguns instantes; é verdade.
-Eugenia não me é indifferente; mas poderei estar certo dos sentimentos
-della? Ella mesma poderá affirmar alguma cousa a tal respeito? Ha alli
-muita frivolidade que me assusta; illude-a talvez uma impressão
-passageira.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão
-passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto
-de partida. O marido fara a mulher. Convenho que Eugenia não tem todas
-as qualidades que voce desejaria; mas não se póde exigir tudo; alguma
-cousa é preciso sacrificar, e do sacrificio recíproco é que nasce a
-felicidade doméstica.
-</p>
-
-<p>
-As reflexões eram exactos: por isso mesmo Estacio as interrompeu. O
-filho do conselheiro achava-se n'uma posição difficil. Caminhara para
-o casamento com os olhos fechados; ao abril-os viu-se á beira de uma
-cousa que lhe pareceu abysmo, e era simplesmente um fôsso estreito. De
-um pulo poderia transpol-o; mas, se não era irresoluto nem debil, tinha
-elle acaso vontade de dar esse salto?
-</p>
-
-<p>
-Insistindo Helena, prometteu elle que nessa tarde iria visitar Camargo.
-De tarde desabou um temporal violento. A fôrça do vento e da trovoada
-abrandou; mas a chuva continuou a cahir com a mesma violencia; era
-impossivel ir ao Rio Comprido. Estacio estimou aquelle obstaculo; era
-melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colhêr algum
-desgôsto juncto della.
-</p>
-
-<p>
-De pe, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via elle cahir
-os grossas toalhas de agua. A seu lado estava sentada Helena, não
-alegre, mas taciturna e melancholica.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É tão bom ver chover quando estamos abrigados, exclamou elle. Tenho
-la na estante um poeta latino que diz alguma cousa neste sentido... Que
-tem voce?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou pensando nos que não tem abrigo, ou o tem mau; nos que não tem
-neste momento nem tectos solidos nem corações amigos ao pe de si.
-</p>
-
-<p>
-A voz da moça era trémula; uma lagryma lhe brotou dos olhos, tão
-rapida que ella não teve tempo de a dissimular. Sorprehendida nessa
-manifestação de sensibilidade, inexplicavel talvez para o irmão,
-ergueu-se e procurou gracejar e rir. O riso parecia uma cristalisação
-da lagryma; e o gracejo tinha ares do responso. Estacio não se
-illudiu; nada daquillo era claro,&mdash;ou era tão claro como a carta. Seu
-olhar, severo e frio, interrogou mudamente a moça. Helena, que tivera
-tempo de tranquillisar-se, voltou o rosto para a rua, e começou a rufar
-com os dedos na vidraça.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="IX">CAPITULO IX</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Naquella mesma noite D. Ursula, que não havia de todo melhorado,
-adoeceu devéras. A familia, mal convalecida da perda de seu velho
-chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso exposta a
-novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu
-principio a rigoroso tratamento.
-</p>
-
-<p>
-Helena era naquella occasião a natural enfermeira. Pela primeira vez
-patenteou-se em todo o explendor a dedicação filial da moça, sua
-constancia, solicitude e tino. As horas do dia, e não poucas noites
-inteiras, passava-as na alcova de D. Ursula, attenta a todos os cuidados
-que a gravidade da enfêrma exigia. Os remedios e o pouco alimento que
-ésta podia receber não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava
-á cabeceira durante o somno leve e interrompido da doente, achando em
-suas proprias fôrças a resistencia que a natureza confiou
-especialmente ás mães. Quando dava algum repouso ao corpo, não era
-elle ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do
-leito, collocado provisoriamente no quarto contiguo, para ir espreitar a
-mucama que em seu logar acompanhava a enfêrma. As prescripções do
-médico era ella quem as recebia e cumpria. A voz dura e sêcca com que
-Camargo lhe falava não era propria a tornal-o amavel e aceito, mas
-Helena cerrava os ouvidos á antipathia do homem para só obedecer ao
-médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos
-phenomemos da doença; nem podia achar quem melhor os observasse e
-referisse; fôrça lhe era acceital-a. Assim que, essas duas pessoas que
-se repeliam e detestavam, iam de accordo desde que se tratava da vida de
-um terceiro.
-</p>
-
-<p>
-O que completava a pessoa de Helena e ainda mais lhe mereceu o respeito
-de todos é que, no meio das occupações e preocupações daquelles
-dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ella regeu a
-familia e serviu a doente, com egual desvello e beneficio. A ordem das
-cousas não foi alterada nem esquecida fóra da alcova de D. Ursula;
-tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinario se
-houvesse dado. Helena sabia dividir a attenção sem dispersal-a, que é
-o principal segrêdo do trabalho fecundo.
-</p>
-
-<p>
-De si é que ella não curou muito. A <i>toilette</i> era singella e
-descuidada. Os cabellos, colhidos á pressa e presos por um pente no
-alto da cabeça, não receberam de sua dona, em todo aquelle tempo, a
-fórma elegante e graciosa, com que ella os saiba realçar. Accrescia o
-abatimento e pallidez, que era impossivel evitar no meio de tanta
-fadiga, certo cançasso dos olhos, que os fazia molles e talvez mais
-adoraveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio attento e
-laborioso.
-</p>
-
-<p>
-A doença durou cêrca de vinte dias. Afinal, triumphou a sciencia e a
-propria natureza de D. Ursula, robusta apezar dos annos. A
-convalecença começou; com ella volveu a satisfação da familia. O
-papel de Helena não estava acabado; diminuia, contudo, e Estacio
-interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto
-repouso. Ella recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria
-aos poucos recuperado.
-</p>
-
-<p>
-Havia no coração de D. Ursula uma fonte de ternura, que Helena devia
-tocar, para jorrar livre e impetuosamente. Sua dedicação, em tal
-crise foi a vara mysteriosa daquella Oreb. A affeição da tia era até
-então frouxa, voluntaria e deliberada. Depois da molestia, avultou
-expontanea. A experiencia do caracter da moça dera esse resultado
-inevitavel. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou
-fortemente o que tantas circumstâncias anteriores pareciam separar.
-Não o occultou a irmã do conselheiro; suas maneiras não tinham ja
-acanhamento nem reserva; as palavras subiam do coração á boca sem
-atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe.
-</p>
-
-<p>
-No dia em que ella pôde sahir do quarto pela primeira vez, Helena
-deu-lhe o braço e levou-a até á sala de costura e das reuniões
-íntimas. Estacio amparou-a do outro lado. Alli chegando, foi ella
-sentada n'uma poltrona. Estacio abriu um pouco a janella, para penetrar
-além da luz, um pouco de ar. D. Ursula respirou á larga, como lavando
-o pulmão cora aquella primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos
-de Helena, que ficára de pe a seu lado, fel-a inclinar a fronte e
-imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estacio
-approximara-se; aquella manifestação encheu-o de júbilo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Bem merecido beijo!&mdash;exclamou elle. Helena foi um anjo em todo
-este tempo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Bem sei,&mdash;retorquiu D. Ursula; foi um verdadeiro anjo, foi
-mulher, mãe e filha. Obrigada, Helena! Póde ser que a medicina tenha
-ajudado a cura, mas o principal merito é só teu.
-</p>
-
-<p>
-Helena abraçou a convalecente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estacio,&mdash;disse ésta; agradece a tua irmã, como eu fiz.
-</p>
-
-<p>
-Estacio inclinou-se para Helena afim de lhe pousar na fronte o casto
-ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena desviando o busto e
-reclinando a cabeça para traz, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e
-disse:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um apêrto de mão e
-o affecto de todos.
-</p>
-
-<p>
-Estacio apertou-lhe a mão, e sentiu-lh'a trémula. Aquelle movimento de
-castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais
-bella. Uma creatura tão ciosa de si mesma que nem admittia a caricia do
-irmão, não era digna de honrar o nome da familia?
-</p>
-
-<p>
-A convalecença de D. Ursula foi lenta, e não a houve mais rodeada de
-cuidados e attenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante
-sosinha, e inventavam toda a sorte de recreio com que pudessem
-distrahil-a: jogos de familia ou leitura, musica ou simples palestra
-íntima. Uma vez lembraram-se de representar, só para ella, uma comedia
-de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que
-tomaram parte Eugenia Camargo, e mais tres moças da visinhança. Foi a
-primeira vez que a ouviram cantar. O successo não podia ser mais
-completo. Como o applauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a
-filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triumpho, fazendo-a
-executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estacio, que
-quasi não tirava os olhos da irmã, percebeu-lhe a intenção, e
-disse-lh'o. Helena esquivou-se à allusão; mas, insistindo elle:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não ha nada que admirar, disse ella; Eugenia toca perfeitamente; ora
-justo que tambem fosse applaudida. Se ha arte no que fiz, parece-me que
-é a mais singella do mundo. O melhor modo de viver em paz, é nutrir o
-amor proprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugenia nem
-precisa disso; tem a primazia da belleza. Veja se ha creatura mais
-deliciosa.
-</p>
-
-<p>
-Estacio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de
-duas moças e dous rapazes. Eugenia pelo braço de um delles, estava de
-pe, ouvindo sem attender as palavras, que alli diziam, por que seus
-olhos inquietos derramavam-se por toda ella e pela sala. Admirava-se e
-espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa;
-mas Estacio quizera-a mais inconsciente, menos preoccupada do effeito
-que produzia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ha cem bellezas como aquella, disso elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estacio! exclamou Helena com ar de reprehensão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A belleza é como a bravura; vale mais se não a mettem á cara dos
-outros.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Voce é um ingrato!
-</p>
-
-<p>
-Naquella noite ficou mais patente que nunca a preponderancia ganha por
-Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a directora ouvida e
-obedecida. D. Ursula cedêra, em poucas semanas, o que lhe negára
-durante mezes.
-</p>
-
-<p>
-Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguíra ella
-apressar o casamento de Estacio? Estacio continuava a hesitar, a recuar,
-a adiar; pedia tempo para reflectir. Suas ausencias no Rio Comprido
-iam-se tornando mais longas; os dias, quasi todos, eram desfiados no
-remanso da familia. Mas Helena insistiu tanto que elle prometteu fazer o
-solemne pedido no primeiro dia do anno.
-</p>
-
-<p>
-Estacio não havia esquecido a carta lida pela irmã; mas por mais que a
-espreitasse e a estudasse nada descobria que lhe fizesse suppor
-affeição encoberta. Nenhum dos homens que iam alli,&mdash;e eram
-poucos,&mdash;parecia receber de Helena mais do que a cortezia commum. D.
-Ursula, a quem elle incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras
-que ésta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve
-resposta mais decisiva.
-</p>
-
-<p>
-A promessa de ir pedir Eugenia, fel-a Estacio na segunda semana de
-Dezembro, em uma noite sem visitas que eram as melhores noites para
-elle. No dia seguinte de manha, erguendo-se tarde, soube que Helena
-sahíra a cavallo logo cedo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sosinha?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Com o Vicente.
-</p>
-
-<p>
-Vicente era o escravo que, como sabemos, se affeiçoára, primeiro que
-todos, a Helena; Estacio designara-o para servil-a. A notícia do
-passeio não lhe agradou. O tempo andava com o mesmo passo de costume;
-mas á anciedade do mancebo affigurava-se que era mais longo. Estacio
-chegava á janella, ia até o portão da chacara, cora ar de apparente
-indifferença, que a todos illudia, a começar por elle proprio. N'uma
-das vezes em que voltou a casa, achou levantada D. Ursula; falou-lhe; D.
-Ursula sorriu com tranquillidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que tem isso? disse ella. Ja uma vez sahiu a passeio com o Vicente e
-não aconteceu nada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas não é bonito, insistiu Estacio. Não está livre de um acto de
-desattenção.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Qual! Toda a visinhança a conhece. Demais, Vicente ja não é tão
-creança. Tranquillisa-te, que ella não tarda. Que horas são?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que ja ouço um tropel.
-</p>
-
-<p>
-Os dous estavam na sala de juntar: passaram á varanda, e viram
-effectivamente entrar no terreiro Helena e o pagem. Helena deu um salto
-e entregou a redea de <i>Moema</i> ao pagem que acabava de apear-se. Depois
-subiu a escada da varanda. Ao collocar o pe no primeiro degrau, deu com
-os olhos nu irmão e na tia. Fez-lhes um comprimento com a mão, e subiu
-a ter com elles.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja de pe! exclamou abraçando D. Ursula.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja, para lhe ralhar,&mdash;disse ésta sorrindo. Que ideia foi essa
-de bater a linda plumagem? É a segunda vez que voce se lembra de sahir sem
-o urso do seu irmão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não quiz incommodar o urso, replicou ella voltando-se para Estacio.
-Tinha immensa vontade, de dar um passeio, e <i>Moema</i> tambem. Apenas
-hora e meia.
-</p>
-
-<p>
-Aquelle dia foi o de maior tristeza para a moça. Estacio passou quasi
-todo o tempo em seu gabinete; nas poucas occasiões em que se
-encontraram, elle só falou por monosyllabos, ás vezes por gestos. De
-tarde, acabado o jantar, Estacio desceu á chacara. Ja não era só o
-passeio de Helena que o mortificava; ao passeio jantava-se a carta.
-Teria razão a tia em suas primeiras repugnancias? Como elle fizesse
-essa pergunta a si mesmo, ouviu atraz de si um passo apressado e o
-farfalhar de um vestido.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Está mal commigo? perguntou Helena com doçura.
-</p>
-
-<p>
-Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a colera do mancebo. Voltou-se; Helena
-estava deante delle, com os olhos submissos e puros. Estacio reflectiu
-um instante.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mal? disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Parece que sim. Não me fala, não se importa commigo,&mdash;anda
-carrancudo... Seria por que eu sahi do manhã?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Confesso que não gostei muito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois não sahirei mais.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não; póde sahir. Mas está certa de que não corre nenhum perigo
-indo só com seu pagem?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não sei se poderei obedecer. Nem sempre voce poderá acompanhar-me;
-além disso, indo com o pagem, é como se fosse só; e meu espirito gosta
-ás vezes de trotar livremente na solidão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Naturalmente a pensar de cousas amorosas... acrescentou Estacio
-cravando os olhos interrogadores na irmã.
-</p>
-
-<p>
-Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram
-silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estacio
-sentou-se; Helena ficou de pe diante delle. Olharam um para outro sem
-proferir palavra; mas o labio de Estacio tremêra duas ou tres vezes
-como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena, disse elle, voce ama.
-</p>
-
-<p>
-A moca estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si como assustada
-e pousou as mãos nos hombros de Estacio. Reflectiu ella no que disse
-depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa occasião parecia concentrar
-todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Muito! muito! muito!
-</p>
-
-<p>
-Estacio empallideceu. A moça recuou um passo, e, trémula, poz o dedo
-na boca como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava em seu rosto;
-Helena deu as costas ao irmão e affastou-se rapidamente. Ao mesmo
-tempo, a sineta do portão era agitada com fôrça, e uma voz atroava a
-chacara:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Licença para o amigo que vem do outro mundo!
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="X">CAPITULO X</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Estacio dirigiu-se ao portão. Abria-o; um moço que alli estava entrou
-precipitadamente. Era Mendonça. Os dous mancebos lançaram-se nos
-braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquella
-effusão, e não lhe foi difficil adivinhar quem era o recem-chegado.
-</p>
-
-<p>
-A effusão cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os
-dous rapazes se julgaram assaz abraçados, tomaram o caminho da casa.
-Helena, que estava um pouco adiante delles, foi apresentada a Mendonça.
-Ao ouvir que era irmã de Estacio, Mendonça ficou naturalmente
-espantado. Cortejou ceremoniosamente a moça, e os dous seguiram até a
-casa, onde pouco depois entrou Helena.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça era da mesma estatura que Estacio, um pouco mais cheio,
-hombros largos, physionomia risonha e franca, natureza mobil e
-expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era,
-arrancado de fresco ao <i>boulevard</i> de Gand, ao cafe Tortoni e ás
-recitas do Vaudeville. A mão larga e forte calçava fina luva côr de
-palha, e sôbre o cabello, penteado a capricho, pousava um chapeu de
-fabrica recente.
-</p>
-
-<p>
-Estacio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena,
-cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer
-comprehender o respeito e a affeição que ella de todos merecia. Helena
-adivinhou esse trabalho preparatorio do irmão logo que entrou na sala.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça divertiu a familia uma parte da noite contando os melhores
-episodios da viagem. Era narrador agradavel, fluente e pitoresco,
-dotado de grande memoria e certa fôrça de observação. Seu espirito
-galhofeiro achava mais facilmente o lado comico das cousas; e mais se
-comprazia em dizer os accidentes de um jantar de hotel ou de uma noite
-de theatro que em descrever as bellezas da Suissa ou os destroços de
-Roma.
-</p>
-
-<p>
-A visita durou pouco mais do hora. Estacio quiz acompanhal-o até a
-cidade; elle não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a
-chacara, falaram do passado, e um pouco do futuro, a trechos soltos,
-como o lugar e a occasião lhes permittiam. Mendonça, vendo que Estacio
-não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o aventou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Fallaste-me em uma de tuas cartas de certa Eugenia...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A filha do Camargo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Justo. Negocio roto?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quasi terminado.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Terminado... na egreja, supponho?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tal qual.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quando?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Brevemente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Marido, emfim! Era só o que te faltava. Nasceste com a bossa
-conjugal, como eu com a bossa viajante, e não sei qual de nós terá razão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Talvez ambos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Creio que sim. Tudo depende do gôsto de cada um. O casamento é a
-peor ou a melhor cousa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi
-algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não te pergunto se
-é um anjo...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É um anjo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Como todas as noivas. Feliz Estacio! Segues a carreira de tua
-vocação, em quanto que eu...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tu?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Interrompo a minha e talvez para sempre. Preciso cuidar da vida; não
-sou capitalista, nem meu pae tão pouco. Adeus, viagens!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tanto melhor! Arranjo-te noiva. Não é a tua vocação, mas não
-serás o primeiro que a erre, sim que dahi venha mal ao mundo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois arranja la isso. Em todo caso não será tua irmã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! não, disse vivamente Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Na verdade, é bonita; mas... se permittes a franqueza de outr'ora,
-acho-lhe uma costella de desdem...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que ideia! É a mais affavel creatura do mundo. Veras mais tarde;
-hoje estava talvez preoccupada. Em todo o caso, não havias de querer que
-ella saltasse a dansar contigo na sala, de mais a mais sem musica.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça acabava de accender um charuto; apertou a mão de Estacio e
-sahiu. Estacio accordou de um sonho. A realidade poz-lhe suas mãos de
-chumbo e repetiu-lhe ao ouvido a confissão interrompida de Helena.
-Ancioso por saber o resto, entrou elle immediatamente em casa. A
-diligencia foi esteril, por que a irmã recolhera-se a seu aposento.
-Estacio imitou-a. Era forçoso esperar uma noite inteira, demora que o
-affligia, porque, dizia elle consigo mesmo, cumpria-lhe velar pela sorte
-de Helena, como irmão e chefe de familia, indagar de seus sentimentos,
-e ordenar o que fôsse melhor. Uma noite não em muito; comtudo, a
-preoccupação retardou-lhe o somno. A confissão subita, laconica e
-eloquente da irmã ficara-lhe no espirito como se fôra o echo perpétuo
-de uma voz extincta.
-</p>
-
-<p>
-Nem no dia seguinte nem nos subsequentes alcançou o que esperava.
-Helena, ou evitava ficar a sos com elle, ou esquivava-se a maior
-explicação. Nos passeios matinaes, que eram frequentes, procurou
-Estacio mais de uma vez enterreirar a conversa no assumpto que, mais que
-nenhum outro, o preoccupava. Helena ouvia com um sorriso, e respondia
-com uma gracejo; depois dava de redea á conversação e galopada na
-direcção opposta. Como a fantasia era campo vasto, nunca mais o moço
-lograva trazel-a ao ponto de partida.
-</p>
-
-<p>
-Um dia, a insistencia de Estacio teve tal caracter de autoridade, que
-pareceu constranger e molestar Helena. Ella replicou com remoque; elle
-redarguiu com uma advertencia aspera. Iam ambos a pe, levando os animaes
-pela redea. Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e
-fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das
-estrêllas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estacio possuia
-essas duas cousas que nunca hão de conhecer corações mediocres: a
-nobre retratação do êrro e a generosidade do perdão. Viu que cedêra
-a um mau impulso, e confessou-o; mas confessou-o com palavras taes, que
-Helena travou-lhe da mão e lhe disse:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Obrigada! Se me não dissesse isso, ver-me-hia desparar por este
-caminho fóra até o fim do mundo ou até o fim da vida.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! não é vão melindre, é a propria necessidade da minha
-posição. Voce póde encaral-a com olhos benignos; mas a verdade é que
-só as azas do favor me protegera. Pois bem, seja sempre generoso, como
-foi agora; não procure violar o sacrario de minha alma. Não insista em
-pedir a explicação de palavras mal pensadas e ditas em ma hora...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mal pensadas? Póde ser; mas por isso é que são verdadeiras; se
-voce tivera tempo de as meditar, guardal-as-hia comsigo, avara de seus
-segredos e suspeitosa de corações amigos. Meu fim era somente ajudal-a
-a ser venturosa, destruir...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É tarde! interrompeu a moça consultando o reloginho preso á
-cintura. Vamos?
-</p>
-
-<p>
-Estacio sorriu melancholicamente; offereceu-lhe o joelho, ella pousou
-nelle o pesinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi menos
-alegre do que costumava ser. Elles falavam, mas a palavra vinha aos
-labios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma colera, mas nenhuma
-animação. Assim correu aquelle dia; assim correriam outros, se não
-fôra a vara magica de Helena. Seu natural influxo era tão forte, que o
-irmão voltou desde logo ás boas, sendo as melhores horas as que
-passava ao pe della, a escutal-a e a vel-a, ambos contentes e felizes. O
-episodio da confissão vinha as vezes, como hóspede importuno,
-projectar entre elles seu nebuloso perfil; mas o espirito de Estacio
-repellia-o, e a alegria da irmã fazia o resto.
-</p>
-
-<p>
-Entretanto, graças ao amigo recem-chegado, o filho do conselheiro sahiu
-um pouco de suas regras habituaes, e começou a provar alguma cousa mais
-da vida exterior. Mendonça buscava realizar, em miniatura, o seu
-esvaido ideal parisiense; havia nelle o movimento, a agitação, a
-galhofa, que absolutamente faltavam a Estacio, e vieram dar-lhe á vida
-a variedade que ella não tinha. Alguns expectaculos e passeios, uma ou
-outra ceia alegre, mas casta, tal foi o programma de uma parte infima da
-existencia de Estacio. Para contrastar com ella, tinha elle as manhãs do
-Andarahy e algumas noites do Rio Comprido. Ao amigo e á sua
-consciencia, dizia o moço que estava a despedir-se da liberdade.
-</p>
-
-<p>
-A influência de Mendonça estendeu-se á propria casa de Estacio.
-Mendonça gostava sobretudo da variedade ao viver; não tolerava os
-mesmos prazeres, nem os mesmos charutos; para os apreciar tinha
-necessidade do os alternar frequentemente. Se fôsse possivel, era capaz
-de fazer-se monge durante um mez, antes do carnaval, trocar o hábito
-por um dominó, e atar as últimas notas das matinas com os preludios da
-contradança. Sua fidelidade á moda custava-lhe um pouco quando ésta
-não ia a passo com a sua impaciencia. Em sua opinião o que distinguia
-o homem do cão era a faculdade de fazer com que uma noite se não
-parecesse com outra. O Rio de Janeiro não lhe offerecia a mesma
-variedade de recursos que Paris; mas seu genio era inventivo e fertil, e
-não lhe faltaria meio de fugir á uniformidade dos habitos.
-</p>
-
-<p>
-O peor que lhe acontecia era a disparidade entre os desejos e os meios.
-Filho de um commerciante, apenas remediado, não teria elle podido
-realizar a viagem á Europa, nas proporções largas em que o fez, a
-não ser a intervenção benefica de uma parenta velha, que se incumbira
-de lhe ministrar os recursos de que elle carecesse durante aquella longa
-ausencia. Nem a parenta continuaria a abrir-lhe a bolsa, nem pae queria
-crear-lhe habitos de ociosidade. Tratava este, portanto, de obter-lhe um
-emprêgo público. Mendonça estava longe de recusar; pedia somente que
-o emprêgo o não deslocasse da Côrte.
-</p>
-
-<p>
-Inquieto, amigo da vida ruidosa e facil, intelligente sem largos
-horisontes, possuindo apenas a instrucção precisa para desempenhar-se
-regularmente de qualquer commissão de certa ordem, Mendonça, com todos
-os seus defeitos e boas qualidades, era homem agradavel e acceito. Seus
-defeitos eram antes do espirito que do coração. A variedade que elle
-pedia para as cousas externas e de menor tomo, não a praticava em suas
-affeições, que eram geralmente inalteraveis e fieis. Era capaz de
-sacrificio e dedicação; sobretudo, se lhe não pedissem o sacrificio
-deliberado ou a dedicação reflectida, mas aquelles que exige uma
-circumstância imprevista e subita.
-</p>
-
-<p>
-Não admira que a presença de tal homem viesse modificar o tom da
-sociedade de que era centro a familia de Estacio, quando elle alli fazia
-alguma apparição. Era o sal daquella terra. Não tinha a rijeza do
-figurino, nem a <i>morgue</i> do estrangeirado. A tesoura do alfaiate não
-lhe dissimulára a indole expansiva e franca. Acolhido como um filho,
-tinha alli uma porção de sua casa. Que melhor aspecto podia ter a vida
-em taes condições, naquella familia ligada por um sentimento de amor?
-</p>
-
-<p>
-A noite do ultimo dia do anno veiu turvar a limpidez das aguas.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XI">CAPITULO XI</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Naquelle dia fazia annos Estacio, e D. Ursula assentira receber algumas
-pessoas a jantar, e outras mais á noite, em reunião íntima. Ella e
-Helena tomavam a peito fazer com que a pequena festa de familia fosse
-digna do objecto. Estacio opinou pela suppressão do sarau; mas era
-difficil alcançar a desistencia de corações que o amavam.
-</p>
-
-<p>
-Logo de manhã, como elle se levantasse cedo, encontrou Helena que o
-convidou a seguil-a á sala de costura.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quero dar-lhe o meu presente de annos, disse ella.
-</p>
-
-<p>
-Alli entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só,
-mas significativo: era uma parte da estrada de Andarahy&mdash;a mesma por
-onde elles costumavam passear, mas com algumas particularidades do
-primeiro dia. Dous cavalleiros, elle e ella, iam subindo a passo lento;
-ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro
-plano, desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data; <i>25 de
-Julho de 1850</i>.
-</p>
-
-<p>
-Estacio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça
-retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria.
-Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das
-linhas, a exacção das circumstâncias locaes, as impressões de uma
-hora fugitiva que o lapis da irmã tivera a arte de fixar no papel.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não podia fazer-me presente melhor, disse elle; da-me uma parte de
-si mesma, um fructo de seu espirito. E que fructo! Não ha muita moça que
-desenhe assim. Era talvez por isso que voce sahia algumas vezes sosinha
-com o pagem?
-</p>
-
-<p>
-Estacio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos labios
-e beijou-o. O ósculo acertou de cahir na cabeça da cavalleira. Foi o
-original que corou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Andavam a gabar meus talentos,&mdash;disse Helena apos um instante;
-tive a vaidade de dar uma pequena amostra...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Excellente amostra! Não acha, titia? disse, o moço a D. Ursula, que
-nesse instante apparecêra á porta, trazendo o seu presente, n'uma
-bocetinha de joalheiro.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula não tinha, de certo, o instincto da arte; mas o amor da
-familia lhe ensinára uma esthetica do coração, e essa bastou a
-fazel-a admirar o trabalho de Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas que digo eu todos os dias? exclamou D. Ursula. Ésta pequena sabe
-tudo!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quasi tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei de
-agradecer...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O que, tontinha? interrompeu a tia. Algum, disparate, naturalmente,
-improprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje.
-</p>
-
-<p>
-Em quanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia,
-Estacio mandou sellar o cavallo e sahiu. Queria comparar ainda uma vez o
-desenho do Helena com o sitio copiado. A fidelidade era completa, e o
-quadro seria absolutamente o mesmo, se dessem algumas circumstâncias
-da primeira occasião. Helena não ia ao lado delle; mas a vinte braças
-de distância fluctuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estacio
-afrouxou o passo do cavallo, como saboreando as recordações da
-primeira manhã, quando Helena se lhe mostrára tão singularmente
-commovida. Volveu a reflectir na situação della, e na paixão que lhe
-confessára, dias antes, com tamanha vehemencia. Se se tratava de uma
-felicidade possivel, embora difficil, Estacio prometteu a si mesmo
-alcançar-lh'a. Não era isso servir o sangue do seu sangue?
-</p>
-
-<p>
-A casa do alpendre, até alli indifferente a Estacio, creava agora para
-elle um interesse especial. Á medida que se approximava, ia achando no
-edificio a fiel reproducção do desenho. Este não apresentava todas as
-particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições
-exteriores, como se fôra feita deante do original.
-</p>
-
-<p>
-A uma das janellas estava um homem, com a cabeça inclinada, attento a
-ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa attitude não era facil
-examinal-o; affigurava-se, entretanto, uma creatura mascula e bella. A
-duas braças de distância, o individuo levantou a cabeça, e cravou em
-Estacio um par de olhos grandes e serenos; immediatamente os retirou,
-baixando-os ao livro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mal sabes tu, philosopho matinal, disse Estacio comsigo,&mdash;mal
-sabes tu que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bella
-mão do universo!
-</p>
-
-<p>
-O philosopho continuou a ler, e o cavallo continuou a andar. Quando
-Estacio regressou dahi a alguns minutos, achou somente a casa; o morador
-desaparecêra; circumstância indifferente, que escapou de todo à
-attenção do moço. Nem elle pensava mais naquillo; seu pensamento
-trotava largo, á ingleza, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como
-anciosos de chegar ao ponto da partida.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XII">CAPITULO XII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-A festa correu animada, posto o reunião fôsse restricta. Algumas
-voltas da valsa, duas ou tres quadrilhas, jogo e musica, muita conversa
-e muito riso, tal foi o programma da noite, que a encheu e fez mais
-curta.
-</p>
-
-<p>
-Se as honras da casa foram feitas por Helena, a alma da festa era
-Mendonça, cujo espirito havia ja recebido e colhido o suffragio
-universal. Eugenia dera-lhe, antes de todos, o seu voto. Havia entre
-ambos tal ou qual afinidade de indole, que naturalmente os approximava.
-Mendonça lisongeava os caprichos de Eugenia, applaudia-a,
-comprehendia-a, obedecia-lhe sem constrangimento nem reparo. Quando
-Mendonça valsava com Eugenia, todos os olhos se concentravam nelles.
-Eram valsitas de primeira ordem. As ondulações voluptuosas do corpo de
-Eugenia e a serenidade e segurança de seus passos, adaptavam-se
-maravilhosamente áquella especie de dança,&mdash;a unica que nossos
-costumes formalistas possuem. Era bello vel-os percorrer o vasto
-círculo deixado a seus movimentos; vel-os emfim parar com a mesma
-precisão e sem o menor symptoma de cançasso. Eugenia punha toda a sua
-attenção naquelle gesto de braço com que as mulheres, logo que
-interrompem ou cessam de todo a valsa, conchegam ao corpo a saia do
-vestido, cujo movimento rotatorio póde dar lugar a alguma
-indiscrição. O prazer com que ella fazia esse gesto, e a graça com
-que o acompanhava de uma leve inclinação do corpo mostravam que, mais
-ainda a faceirice do que a necessidade, lhe movia o corpo e a mão.
-</p>
-
-<p>
-Ésta sorte de triumphos enchia a alma de Eugenia; e, porque ella não
-possuia nem a modestia nem a arte de o simular, via-se-lhe no rosto o
-orgulho e a satisfação. A dança não era para a filha de Camargo um
-goso ou um recreio somente; era tambem um adorno e uma arma. Dahi vinha
-que o valsista mais intrepido e constante era tambem o principal
-parceiro do seu espirito; e ninguem disputava esse papel ao filho do
-commerciante.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sua filha é a rainha da noite, murmurou o Dr. Mattos ao ouvido de
-Camargo, em um intervallo do voltarete.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não é verdade? acudiu o médico.
-</p>
-
-<p>
-E a alma do pae voava enrolada nas pontas da fita que apertava a cintura
-de Eugenia, não regressando ao domicilio se não quando a moça parava.
-Então volvia Camargo um olhar em torno de si, como pedindo egual
-admiração. Depois ficava sombrio, e mais do que usualmente, cahia em
-longos e mortaes silêncios. Tres ou quatro vezes approximára-se de
-Helena sem lograr detel-a, nem adiarem si mais que duas palavras
-triviaes. Insistia; não a perdia de vista, parecia ancioso de a
-conversar sôbre alguma cousa.
-</p>
-
-<p>
-Helena repartia-se entre todas as pessoas, attenta aos mil cuidados que
-a noite requeria. Cantou uma vez, dansou uma quadrilha, e não valsou.
-Em vão Mendonça insistira com ella; a moça desculpou-se dizendo que a
-valsa lhe fazia vertigens. Na opinião do filho do coronel-major ésta
-razão encobria somente a ignorancia de Helena. Estacio pensava antes
-que era a castidade selvagem da irmã que lhe não permittia o contacto
-de um homem, ideia que lhe fez bem ao coração.
-</p>
-
-<p>
-Pela volta da meia noite, terminada a ceia, começou aquella hora de
-repouso, que precede a total dispersão. As senhoras trocavam
-impressões e commentarios, os rapazes fumavam, os jogadores decidiam as
-últimas remissas. A noite não refrescara, e a agitação augmentára o
-calor. Helena, tão cançada como D. Ursula, retirára-se por alguns
-instantes para a sala contigua á principal; alli sentou-se n'um sopha,
-e derreou levemente o corpo, deixando cahir os cilios, não sei se
-pensativos, se pesados de somno. Seu espirito não tivera tempo de
-encadear duas ideias ou esboçar um sonho, quando uma voz a accordou:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja dormindo!
-</p>
-
-<p>
-Era Camargo.
-</p>
-
-<p>
-Helena abriu os olhos sobresaltada. A voz de Camargo, produzira-lhe a
-impressão de desagrado, que lhe fazia sempre. Sorriu a moca
-contrafeitamente, e vendo que elle se dispunha a sentar-se no sopha,
-não arredou o vestido, como se quizesse deixar entre ambos larga
-distância: Camargo sentou-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Parece que se assustou? disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um pouco.
-</p>
-
-<p>
-Camargo agitou entre as mãos os perendengues do relogio,&mdash;tão
-numerosos como elles se usavam naquelle tempo; depois pegou
-familiarmente no leque da moça, abriu-o, contou as varetas, tornou a
-fechal-o e restituiu-o com um elogio. Helena respondeu-lhe com um
-sorriso. Ia levantar-se, quando elle a deteve com éstas palavras:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estimei achal-a só, por que precisava pedir-lhe um conselho.
-</p>
-
-<p>
-A testa de Helena contrahiu-se interrogativamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um conselho e um favor, continuou o médico. Não será, creio eu, a
-primeira vez que a velhice consulte a mocidade. Demais, trata-se de
-assumpto em que a gente moça lê de cadeira.
-</p>
-
-<p>
-Helena olhou para elle desconfiada. Nunca vim o médico tão affavel, e
-essa mudança de maneiras e de tom é que lhe fazia medo. Verdade é que
-elle ia pedir-lhe alguma cousa; e a experiencia ensina que o interesse
-é muito mais eloquente que o vinho e muito mais meigo que o amor.
-Camargo não se deteve. Fez uma exposição rapida de suas relações
-com a familia do conselheiro, do sentimento de amizade que o ligava a
-ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A perda do meu finado amigo,&mdash;concluiu elle, não póde ser
-supprida por nenhuma cousa; mas ha alguma compensação na affeição que
-sobrevive e me faz considerar ésta familia como minha propria. Estou
-certo de que seu irmão e D. Ursula sentem a meu respeito do mesmo modo.
-Quanto á senhora, é recente na familia, mas não tem menor direito que
-ella. Vi-a tão pequena!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A mim? perguntou Helena.
-</p>
-
-<p>
-Camargo fez um gesto affirmativo, em quanto a moça olhava em volta da
-sala, receiosa de que alguem tivesse entrado e ouvido. Uma vez segura de
-que ninguem havia, recebeu impressão contrária á primeira;
-envergonhou-se daquelle receio. A vergonha augmentou quando o médico
-accrescentou em voz baixinha:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não falemos nisso...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pelo contrário! exclamou ella. Pode falar com franqueza; diga tudo.
-Era minha mãe. Não sei o que foi para o mundo; mas se me perdoaram a
-irregularidade do nascimento, não creio que me pedissem em troca a
-renúncia do meu amor de filha; a lei que o poz em meu coração é
-anterior á lei dos homens. Não repudio uma só das minhas recordações
-de outro tempo. Sei e sinto que a sociedade tem leis e regras dignas de
-respeito; aceito-as taes quaes; mas deixem-me ao menos o direito de amar
-o que morreu. Minha pobre mãe! Vi-a expirar em meus braços; recolhi o
-seu último suspiro. Tinha apenas doze annos; contudo, não consenti,
-que outra pessoa velasse á cabeceira a ultima noite que passou sobre a
-terra... Oh! não a esquecerei nunca! nunca! nunca!
-</p>
-
-<p>
-Helena proferiu éstas palavras n'um estado de exaltação que até alli
-se lhe não vira. Em vão Camargo procurou duas ou tres vezes
-interrompel-a, receioso de que a ouvissem fóra, por que a moça tinha
-levantado a voz. Helena não obedeceu; não viu se quer o gesto
-supplicante do médico. O seio, castamente velado pelo corpinho, que
-subia até ao pescoço, estava offegante e onduloso como a agua do mar
-batida pelo vento. Á ultima palavra sahiu-lhe como um soluço. Camargo
-sentiu-se sorprehendido com aquella explosão de ternura. Era evidente
-que elle esperava outra cousa. Seguiu-se um breve silêncio, durante o
-qual Helena mordia a ponta do lenço, como para conter a palavra que lhe
-tumultuava no coração. O médico proseguiu emfim:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ninguem lhe pede que a esqueça, disse elle; todos respeitam esses
-sentimentos de piedade filial. O passado morreu, e o menos que se deve
-aos mortos é o silêncio. A senhora tem o direito de lhe dar o amor e a
-saudade. Mas falemos dos vivos; e perdoe-me se lhe toquei, sem querer,
-em tão dolorosa recordação.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não! não é dolorosa! disse ella abanando a cabeça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Falemos dos vivos. Não está certa do amor de sua familia?
-</p>
-
-<p>
-Helena fez um gesto affirmativo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não poderia encontrar outra melhor nem tão boa. D. Ursula é uma
-sancta senhora; Estacio um caracter austero e digno. Venhamos agora ao
-conselho. Ha muito tempo ando com ideia de ir á Europa; estou
-caminhando para a velhice; não quero deixar de ir ver alguma cousa
-além do nosso Pão d'Assucar. Ja desfiz o projecto mais de uma vez.
-Cuido que agora vou definitivamente realisal-o. Dá-se porém uma
-circumstância grave. Sabe que minha filha ama seu irmão? Meus olhos
-descobriram desde muito essa inclinação de um e outro, por que tambem
-seu irmão ama minha filha. Merecem-se; e de algum modo continuam si
-affeição dos paes; a natureza completa a natureza. Ésta é a
-situação. O que eu desejava, porém, é que me dissesse se devo partir
-ja, levando-a; ou se é melhor esperar que elles se casem.
-</p>
-
-<p>
-Helena ouvira o médico sem olhar para elle; quando elle acabou, fitou-o
-admirada e curiosa. A puerilidade da pergunta era tão evidente que a
-moça procurou ler no rosto do interlocutor o pensamento verdadeiro e
-occulto. Camargo apressou-se a explicar-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estacio,&mdash;disse elle,&mdash;póde amar Eugenia com ideias
-matrimoniaes; mas tambem pode não passar isso de um capítulo de
-romance, como o que se lê em uma viagem da Corte a Nictheroy. Seu
-caracter é serio; mas o coração tem leis especiaes. Confesso que o
-procedimento de Estacio nada me affirma a tal respeito. Ha nelle umas
-mudanças pouco explicaveis. O tempo decorrido é mais que muito
-sufficiente para que... Está reflectindo!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;E...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Supponho que pede mais do que me disse. Quer que eu indague a tal
-respeito as intenções, de Estacio!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Isso.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas porque não se dirige a elle mesmo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não havia inconveniente; estabeleceu-se porém que um pae não deve
-ser o primeiro a falar em taes cousas. É preciso respeitar a dignidade
-paterna. Accresce que Estacio é rico, e tal circumstância podia fazer
-suppor de minha parte um sentimento de cobiça, que está longe de meu
-coração. Podia falar a D. Ursula; creio porém que ella não tem a
-sua habilidade, e... porque o não direi? a sua influência no espirito
-de Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! influência incontestavel! A senhora veiu completar a alma de seu
-irmão. É visivel a affeição e o respeito que elle lhe tem. Demais,
-em taes assumptos urna irmã é natural confidente e conselheira.
-</p>
-
-<p>
-Helena deu tres pancadinhas no joelho com a ponta do leque, e enfiou os
-olhos pela porta de communicação entre aquella e a salla principal.
-Depois voltou-se para o médico.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sei que elles se amam,&mdash;disse ella,&mdash;e ja dei a minha
-opinião a tal respeito. Eugenia parece ser minha amiga; meu irmão é
-meu irmão; desejo-lhes todas as felicidades. Ha porém um limite á
-intervenção de uma irmã; e não desejo ir além. Demais, seu pedido
-é ocioso.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Annuncie a viagem; e Estacio, se apressará a pedir-lhe sua filha. Se
-o não fizer, é por que a não ama, conforme ella merece, e em tal caso
-mais vale perder um casamento que fazel-o mau.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim? perguntou Camargo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Naturalmente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O conselho é excellente,&mdash;disse o médico depois de um instante,
-mas tem o defeito substancial de supprimir a sua intervenção, que me é
-necessaria. Vejamos o meio de combinar as cousas. Supponhamos que,
-annunciada a viagem, Estacio não corresponde ás minhas esperanças.
-Que devo fazer?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Embarcar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Embarcar é arriscar o casamento. Ora, este casamento... é um de meus
-sonhos. Desejo que os filhos continuem a affeição dos paes. Se Estacio
-recuar, minhas esperanças esvaem-se-me como fumo; o tempo cavará um
-abysmo entre os dous; Eugenia amará outro... Emfim, conto com a
-senhora.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Commigo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A senhora tem uma fôrça de resolução, uma fertilidade de
-expedientes, um espirito capaz de emprezas delicadas, e, tratando-se da
-felicidade de um irmão. Creio que empenhará todas as fôrças para
-levar a cabo a mais pura das ambições. Não lhe peço um absurdo,
-peço-lhe a felicidade de minha filha.
-</p>
-
-<p>
-Helena não respondeu; olhou de revez para elle, e cravou depois os
-olhos no aguia branca tecido no tapete, sobre o qual pousava seu pe
-impaciente e colerico. Podia referir mais detidamente qual o seu papel
-juncto de Estacio, a respeito de Eugenia, seus pedidos, e a promessa do
-irmão, que deveria ser cumprida, se o fosse, em algum dos seguintes
-dias. Mas nem quiz dar esperanças que os acontecimentos podiam
-dissipar, nem o coração lhe consentia mais larga confidencia. Ambos
-elles viam que se detestavam cordialmente; mas se em Helena havia colera
-abafada, em Camargo havia tranquillidade e observação. Elle contemplava
-a moça, com o olhar fixo e metalico dos gatos; a mão esquerda, pousada
-sobre o joelho, rufava com os dedos magros e pelludos. Nada dizia; mas
-todo elle em uma interrogação imperiosa. Helena olhou ainda uma vez
-para o médico.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dá-me o seu braço até á sala? perguntou.
-</p>
-
-<p>
-Camargo sorriu.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Só isso? Eu dizia commigo outra cousa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que dizia então? perguntou Helena com aquelle ar de esmagadora
-indifferença que só as mulheres possuem.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma moça, que acha
-meio de visitar ás seis horas da manhã uma casa velha e pobre, não
-tão pobre, que a não adorne garridamente uma flamula azul..
-</p>
-
-<p>
-Helena fez-se livida; sua mão apertou nervosamente o pulso de Camargo.
-Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o terror, a colera e a
-vergonha. Atravez dos dentes cerrados Helena gemeu ésta palavra unica:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cale-se!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Falo entre nós e Deus, disse Camargo.
-</p>
-
-<p>
-Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma rapidez com que
-ella lhe empallidecêra. Helena quiz erguer-se; mas sentiu-se exhausta.
-Ninguem da sala pôde perceber a impressão e o movimento; ninguem
-olhava para alli. Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e
-proferiu algumas palavras de animação, que ella interrompeu,
-murmurando com amargura:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O senhor é cruel!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sou pae, respondeu o médico; pae extremoso e discreto, mais discreto
-ainda que extremoso, Conto com a senhora.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XIII">CAPITULO XIII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Dissolvida a reunião, Helena recolheu-se à pressa, com o pretexto de
-que estava a cahir de somno, mas realmente para dar á natureza o
-tributo de suas lagrymas. O desespêro comprimido tumultuava no
-coração, prestes a irromper. Helena entrou no quarto, fechou a porta,
-soltou um grito e lançou-se de golpe á cama, a chorar e a soluçar.
-</p>
-
-<p>
-A belleza dolorida é dos mais patheticos expectaculos que a natureza e
-a fortuna podem offerecer á contemplação do homem. Helena torcia-se
-no leito como se todos os ventos do infortunio se houvessem desencadeado
-sôbre ella. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no
-travesseiro. Gemia, intercortava o pranto com exclamações sôltas,
-enrolava no pescoço os cabellos deslaçados pela violencia da
-afflicção, buscando na morte o mais prompto dos remedios. Colerica,
-rompeu com as mãos o corpinho do vestido, e o joven seio, livre de sua.
-casta prisão, pode á larga desaffogar-se dos suspiros que o enchiam.
-Chorou muito; chorou todas as lagrymas poupadas durante aquelles mezes
-placidos e felizes,&mdash;leite da alma com que fez calar a pouco e pouco
-os vagidos de sua dor.
-</p>
-
-<p>
-Calar somente, não adormecel-a, por que ella ahi lhe
-ficou,&mdash;companheira daquella noite cruel, para velarem ambas.
-Quando os olhos cançaram, e foram mais intervallados os soluços,
-Helena jazeu immovel no leito, com o rosto sobre o travesseiro, fugindo
-com a vista á realidade exterior. Uma hora esteve assim, muda,
-prostrada, quasi morta, uma hora longa, longa, longa,&mdash;como só as
-tem o relogio da afflicção e da esperança.
-</p>
-
-<p>
-Quando a tormenta pareceu extincta, a moça sentou-se na cama e olhou
-vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se tropega á
-<i>toilette</i>, que communicava com a alcova por uma porta; alli parou
-deante do espelho, mas fugiu logo, como se lhe pesasse encarar consigo
-mesma. Uma das janellas estava aberta; Helena foi alli aspirar um pouco
-do ar da noite. Ésta era clara, tranquilla e quente. As estrêllas
-tinham uma scintillação viva que as fazia parecer alegres. Helena
-enfiou um olhar por entre ellas como procurando o caminho da felicidade.
-Esteve á janella cêrca de meia hora; depois entrou, sentou-se e
-escreveu uma carta.
-</p>
-
-<p>
-A carta era longa, escripta a golphadas, sem nexo nem ordem; continha
-muitas queixas e imprecações; uma ternura expansiva de mistura com um
-desespêro profundo; fallava daquelles que, tendo nascido sob a
-influência de ma estrêlla, só tem felicidades intermittentes e
-mutaveis; dizia que para ella a propria felicidade era um germen de
-morte e dissolução,&mdash;ideia que repetia tres vezes, como se tal
-observação fosse o transumpto de suas experiencias certas. A carta
-fallava tambem de um homem, cujo egoismo de pae não conhecia limites, e
-que a todo o trance queria que a filha desposasse uma grande riqueza e
-uma grande posição,&mdash;«homem&mdash;dizia ella, que me viu a principio
-com olhos avessos, pela diminuição que eu trazia á herança.» No fim
-dizia que havia naquellas linhas muito de obscuro e incompleto; que
-opportunamente contaria tudo; mas que desde ja podia dar a triste
-notícia de que lhe era forçoso abster-se de sahir.
-</p>
-
-<p>
-Helena releu o escripto e meditou longo tempo sôbre elle; accrescentou
-ainda algumas linhas; depois, rasgou o papel em dous pedaços, chegou-os
-á vela, e os destruiu. Como arrependida, voltou a escrever outra carta,
-mas não chegou a acabar seis linhas; rasgou-a como fizera á primeira,
-e só então recorreu ao remedio melhor de uma alma ulcerada e pia:
-rezou. A prece é a escada mysteriosa de Jacob: por ella sobem os
-pensamentos ao ceu; por ella descem as divinas consolações.
-</p>
-
-<p>
-Entretanto, a noite começava a inclinar a urna das horas ás mãos da
-madrugada. O somno fugira dos olhos de Helena; mas era forçoso
-repousar. Assim mesmo vestida atirou-se sôbre o leito. Não dormiu,
-não se póde dizer que dormisse; ficou alli n'um estado, que não era
-vigilia nem somno, até que a manhã rompeu inteiramente. Abrindo os
-olhos, pareceu accordar de um sonho; sua imaginação recompoz as phases
-todas do acontecimento da vespera. Depois suspirou, e ficou longo tempo
-a olhar para o chão, com a fixidez tragica e solemne da morte.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Era justo! murmurava de quando em quando.
-</p>
-
-<p>
-Levantou-se emfim; levantou-se abatida e cançada. Viu-se ao espelho; a
-descorada face e a linha roxa que lhe circulava as palpebras
-difficilmente podiam deixar de impressionar a familia. Helena disfarçou
-como pôde esses vestígios da tempestade; explicou-os do modo mais
-verosimil: o cançasso da vespera e a insomnia de toda uma noite. A
-explicação não achou obstaculo no ânimo da tia e do irmão. Somente
-o padre Melchior, presente a ella, fitou na moça um olhar dubitativo,
-que a obrigou a baixar os cilios.
-</p>
-
-<p>
-Se Helena padecia, o logar de Estacio não era ao pe della? Assim o
-pensou o sobrinho de D. Ursula, que em todo esse dia resolveu não sahir
-de casa. Cercou-a de cuidados, buscou distrahil-a, pediu-lhe que fosse
-repousar um instante. Para justificar a explicação que dera, Helena
-obedeceu ás instrucções do irmão. Este foi encerrar-se no gabinete,
-onde se occupou em examinar e colleccionar alguns papeis. Era o dia
-marcado para solicitar de Eugenia o consentimento matrimonial, e elle
-não cogitava em ir ao Rio Comprido. Na irmã, sim; na irmã pensava
-elle, ora relendo as páginas de sua predilecção, ora mandando saber
-se dormia socegada, ora contemplando o desenho com que ella o
-presenteára na vespera. Sentia-se tão feliz naquella aurora do anno!
-</p>
-
-<p>
-Pouco antes do jantar ouviu no corredor um rumor de saias, e não tardou
-que a irmã apparecesse á porta. Vinha como fôra; mas a Estacio
-pareceu que effectivamente o descanço e o somno lhe haviam restaurado
-as fôrças. A razão era o sorriso estudado que lhe avivava o rosto.
-Helena parou e Estacio foi ter com ella, travou-lhe da mão, fel-a
-entrar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estás melhor? perguntou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou boa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não dizia eu que era melhor desistir da ideia da reunião? Éstas
-festas prolongam-se, e fatigaram, sobretudo as pessoas franzinas...
-</p>
-
-<p>
-Helena ergueu os hombros.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Anda sentar-te um pouco.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Primeiro hade responder-me a uma cousa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que é?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que dia é hoje? perguntou ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Anno bom.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Lembra-se do que me prometteu?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Perfeitamente. Ves estes papeis? disse elle mostrando sôbre a
-secretária uma porção de papeis classificados e postos por ordem.
-Occupei-me até agora em liquidar o passado; faltam-me umas últimas
-contas, que o procurador hade trazer amanhã. Depois, irei...
-</p>
-
-<p>
-Helena abanou a cabeça com ar de desaprovação.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, disse ella; não hade ir depois, hade ir hoje mesmo. Que tem as
-contas com a autorisação que deve pedir a Eugenia? Va logo de noite.
-Sou supersticiosa; creio que o pedido feito no dia de hoje é de
-excellente agouro. Dará um anno feliz.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Minha intenção era ir dentro de quatro ou cinco dias, respondeu
-Estacio depois de silêncio; mas não tenho dúvida em fazel-o ja. Uma
-vez preenchida a formalidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pedil-a-ha immediatamente ao pae.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque precisarei meditar ainda vinte e quatro horas, pelo menos.
-Vinte e quatro horas não é muito para quem tem de amarrar-se
-eternamente. Quero sondar meu proprio espirito, e...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas tudo isso é uma estravagancia! interrompeu Helena sentando-se na
-borda da rede em que Estacio costumava ler. Pretenderá voce recuar
-depois de lhe falar a ella?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! não! Mas uma vez que caminho para solução tão grave, não ha
-inconveniente em ir pe ante pe. Admiras-te? perguntou elle vendo que a
-irmã fazia um gesto de impaciencia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Zango-me.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Voce é insupportavel. Falta ao que prometteu.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja disse que hei de cumprir.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não recuará?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Irá pedil-a hoje mesmo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A ella e ao pae.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ao pae escreverei uma carta.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois seja uma carta! Contanto que acabe com isso. O casamento
-será...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quando convier ao Dr. Camargo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Antes do fim do mez.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tão cedo!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dou-lhe mez e meio. Nem uma hora mais! Estou morta por vel-os
-casados, tanto por voce como por ella, coitada! que o ama tanto...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cres? perguntou vivamente Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se creio! Posso affirmal-o. Não será amor como voce quizera que
-fôsse, mas é o amor que ella lhe pode dar, e é muito. Está dito!
-Palavra?
-</p>
-
-<p>
-Estacio estendeu silenciosamente a mão, que Helena apertou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vou confiar todo o meu destino á cabeça mais leve do universo, disse
-Estacio com os olhos fitos no chão. Não é de seu coração que me
-queixo; mas de seu espirito, que nunca deixou as roupas da infancia.
-Demais, á medida que me approximo da hora solemne, sinto que me repugna
-o estado conjugal. É tão boa a minha vida de solteiro! tão cheios os
-meus dias...
-</p>
-
-<p>
-Helena tapou-lhe a boca com uma das mãos; com a outra fez-lhe um gesto
-para que se calasse. Depois, fugiu. Uma vez só, Estacio reflectiu
-longamente na situação em que se achava; reconheceu que estava
-moralmente obrigado a pedir Eugenia, desde que seus corações se tinham
-aberto um para o outro, celebrando um contracto, que elle só não podia
-romper. A consciencia rebellou-se contra as resoluções do coração,
-e a decisão foi curta.
-</p>
-
-<p>
-Naquella mesma noite, ouviu Eugenia a esperada palavra. A alegria que se
-lhe derramou nos olhos foi immensa e caracteristica. Um pouco mais de
-recato não era descabido em tal occasião. Não houve nenhum; seu
-primeiro acto de mulher foi uma meninice. Eugenia ignorava tudo, até a
-dissimulação de seu sexo. Concedendo a mão a Estacio, não era uma
-castellã que entregava o premio, mas um cavalleiro que o recebia com
-alvorôço e submissão.
-</p>
-
-<p>
-Transposto o Rubicon, não havia mais que caminhar direito á cidade
-eterna do matrimonio. Estacio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr.
-Camargo pedindo-lhe a mão de Eugenia, carta sêcca e digna, como as
-circumstâncias a pediam. Antes de a remetter, mostrou-a a Helena, que
-recusou lel-a. Não a leu, nem lhe pegou. Elle teve-a alguns instantes
-na mão, sem atrever-se a dal-a ao escravo que esperava por ella. Por
-fim, deitou-a sôbre a secretária.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Amanhã, disse elle sorrindo para Helena.
-</p>
-
-<p>
-Helena lançou mão da carta e deu-a ao escravo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Leva á casa do Sr. Dr. Camargo, ordenou a moça. Não tem resposta.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XIV">CAPITULO XIV</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Camargo ia sentar-se á mesa quando lhe entregaram a carta de Estacio;
-leu-a pura si, mas a filha leu-a nos olhos delle. Uma aura de
-bemaventurança desrugou a fronte do médico; seus labios,&mdash;cousa
-pasmosa!— abriram-se n'um sorriso perenne e franco, sorriso que uma
-vez chegou a desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Thomasia lhe
-ouviu. Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido á mulher, e os
-dous paes chamaram a filha á sala. Eugenia ouviu a notícia sem baixar
-os olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o
-casamento.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim? perguntou Camargo simulando um espanto que não sentia.
-</p>
-
-<p>
-Eugenia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia
-não acreditar no espanto do pae. Este pegou nas mãos da filha e
-puxou-a para si.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Assim, pois, meu anjo,&mdash;disse elle,&mdash;casas-te por tua
-livre vontade? Estacio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha,
-que não podia ser mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe,
-que te proponho como o melhor modelo da terra.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O mais consciencioso pelo menos, acudiu D. Thomasia satisfeita e
-vaidosa do louvor do marido. Ha de ser boa espôsa, modesta, solicita,
-e economica.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Economica, sem avareza,&mdash;emendou Camargo. A riqueza não deve
-ser dissipada; mas é certo que impõe obrigações imprescindiveis, e seria
-da maior inconveniencia viver a gente abaixo de seus meios. Não farás
-isso, nem cahirás no extremo opposto; procura um meio termo, que é a
-posição do bom senso. Nem dissipada, nem miseravel.
-</p>
-
-<p>
-D. Thomasia concordou com ésta explicação do marido, em quanto
-Eugenia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes dar a
-minima attenção. Seu pensamento estava em Andarahy; ella viaja na
-imaginação, a cerimonia do consorcio, as carruagens, o apuro do noivo,
-a sua propria graça, a coroa de flores de larangeira, que a havia de
-adornar, emfim talhava ja o vestido branco e pregava as rendas de
-Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do genero
-humano. Daquelle sonho foi despertada pelo pae, que lhe imprimiu na
-testa o seu segundo beijo, o primeiro, como o leitor se hade lembrar,
-foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria
-provavelmente no dia em que ella casasse.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sabes que te amo, Eugenia? disse Camargo olhando para ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Papae!
-</p>
-
-<p>
-Camargo não pôde dizer mais nada. Seu amor, um instante expansivo,
-volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estiveram. A
-satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para
-saborear-se. Foi então que Eugenia passou ás mãos de D. Thomasia. A
-mulher do Dr. Camargo via aquelle casamento com olhos differentes do
-marido. O que ella sobretudo viu eram as vantagens moraes da filha.
-Sentou-a ao pe de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e costumes,
-que Eugenia interrompia de quando em quando, com exclamações de
-obediencia filial:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe hade ver!...
-</p>
-
-<p>
-D. Thomasia sentia-se feliz. Seu rosto, cuja expressão era vulgar,
-tinha naquella occasião alguma cousa que o tornava sublime. Ella fez
-com que a filha se lhe sentasse ao collo; e ésta, sentindo que a
-molestava, deixou-se lentamente cahir de joelhos, ficando entre os
-della, a olhar para ella.
-</p>
-
-<p>
-Camargo, entretanto, ja não era daquelle mundo. Passeava de um para
-outro lado, com as mãos para traz, a morder a ponta do bigode. De
-quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras, mas era
-só machinalmente; seu olhar baço indicava que elle ia mergulhado em
-profundas cogitações.
-</p>
-
-<p>
-Naquelle homem sceptico, moderado e taciturno, havia uma paixão
-verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava Eugenia:
-era a sua religião. Concentrára esforços e pensamentos em fazel-a
-feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessario fôsse,
-a violencia, a perfidia e a dissimulação. Nem antes nem depois sentira
-egual sentimento; não amou a mulher; casou por que o matrimonio é uma
-condição de gravidade. O maior amigo que teve foi o conselheiro Valle;
-mas essa mesma amizade que o ligára ao pae de Estacio nunca recebêra a
-contra-prova do sacrificio; alias appareceria em toda a sinceridade a
-natureza do médico. Elle só conhecia os affectos por assim dizer
-caseiros e inertes, os que não sabem nem podem afrontar as intemperies
-da vida. Nas relações moraes dos homens possuia somente o trôco miudo
-da polidez; a moeda de ouro dos grandes affectos nunca lhe entrára nas
-arcas do coração. Um só existia alli: o amor de Eugenia.
-</p>
-
-<p>
-Mas esse mesmo amor, alias violento, escravo e cego, era uma maneira que
-o pae tinha de amar-se a si proprio. Entrava naquillo uma somma larga de
-fatuidade. Menos graciosa, Eugenia seria talvez menos amada. Elle
-contemplava a com o mesmo orgulho, com que o joalheiro admira o
-aderêço que lhe sahiu das mãos. Era a ternura do egoista: amava-se na
-propria obra. Caprichosa, rebelde, superficial. Eugenia não teve a
-fortuna de ver emendados seus defeitos, antes fui a educação que lh'os
-deu. Dos labios de Camargo nunca sahiu a expressão correctiva; nenhum
-de seus actos revellou esse procedimento vigilante e director, que é a
-nobre attribuição da paternidade. Se a indole da filha fosse ma, a
-complicidade do pae fal-a-hia pessima.
-</p>
-
-<p>
-Não era felizmente; seu coração conhecia as doçuras da bondade; sua
-rebeldia era um hábito, não um vicio nativo. A propria frivolidade
-foi-lhe desenvolvida pela educação, nada podendo o zelo da mãe contra
-as complacencias do pae. Ésta era a explicação tambem da fascinação
-que exercia nella o tumulto exterior da vida. Quasi se póde dizer que
-ella não conhecêra o vestido curto: a modista a desmamou; uma
-contradança foi a sua primeira communhão.
-</p>
-
-<p>
-Não era facil dar a Eugenia a felicidade que o pae ambicionava e a que
-mais lhe apetecia a ella. Posto não fosse perdulario, eram poucos os
-haveres do médico, de modo que á filha não podia caber peculio
-sufficiente a satisfazer todas as velleidades. Elle espreitou durante
-longo tempo um noivo, armando com algum dispendio a gaiola em que o
-passaro devia cahir. No dia em que percebeu a inclinação de Estacio,
-fez quanto pode para prendel-o de vez. Esperou muitos mezes a iniciativa
-de Estacio; e quando ella lhe entrou a fugir para a região das cousas
-problematicas, suspeitou a influência de Helena. Ja era muito que ésta
-moça diminuisse a herança do futuro genro; arrancar-lhe o genro era de
-mais. Camargo não hesitou um instante; foi direito ao fim. O resultado
-confirmou-lhe a suspeita.
-</p>
-
-<p>
-O casamento era muito, mas não bastava. Camargo cuidára na carreira
-política de Estacio, como um meio de dar certo relevo público ao marido
-da filha, e, por um effeito retroactivo, a elle proprio, cuja vida fora
-tanto ou quanto obscura. Se o marido de Eugenia se confinasse no repouso
-doméstico, entre a horta e a algebra, a ambição de Camargo padeceria
-immenso. Vimol-o apresentar a Estacio a maçan política; recusada a
-princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente acceita com a
-noiva. Ésta dupla victória foi o momento maximo da vida do médico.
-Elle ouvia ja o rumor público; sentia-se maior,&mdash;ante-gostava as
-delícias da notoriedade;&mdash;via-se como que sogro do Estacio e pae das
-instituições.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vou entrar na cova dos leões, sem a convicção de
-Daniel,&mdash;suspirou Estacio na occasião em que cedeu ás instancias
-de Camargo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu talento amansará os leões,&mdash;acudiu este.
-</p>
-
-<p>
-Assentou-se logo alli que o casamento seria celebrado na primeira semana
-de março. Os dous mezes de intervallo foram destinados ás formalidades
-ecclesiasticas e ao preparo do enxoval. Estacio aceitou tudo sem
-objecção. D. Ursula e Helena approvaram o plano. A primeira
-accrescentou uma clausula:&mdash;os noivos viriam morar com ellas em
-Andarahy.
-</p>
-
-<p>
-O padre Melchior, consultado sôbre o casamento, deu-lhe inteira
-approvação, e só lhe pareceu que o prazo era longo de mais. A effusão
-com que abraçou Estacio, as palavras de applauso que lhe disse
-impressionaram vivamente o mancebo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Desejava muito este casamento? perguntou elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Muito! Seu pae ha de approval-o no ceu!
-</p>
-
-<p>
-Até os mortos conspiravam contra elle; Estacio aceitou resolutamente
-seu destino. A alegria do padre, ordinariamente contida e digna,
-transpoz os limites do costume, para se mostrar quasi infantil; D.
-Ursula não cabia em si do contente; Helena parecia colhêr naquelle
-casamento a sua propria felicidade. Era a bemaventurança universal que
-Estacio ia comprar a trôco de um vínculo eterno.
-</p>
-
-<p>
-Surgiu, entretanto, um obstaculo temporario. A madrinha de Eugenia, a
-fazendeira que lhe mandara um dia a opala, que a moça admirou namorando
-ao mesmo tempo os olhos do futuro noivo, a madrinha de Eugenia adoeceu
-gravemente, menos ainda da molestia que a accommetteu que dos annos que
-lhe pesavam nos hombros. Era senhora rica, viuva, flanqueada por duas
-sobrinhas solteiras, uma cunhada, um primo, dous filhos destes e uma
-vintena de afilhados. Ja daqui se póde inferir a estreiteza das
-esperanças de Camargo. Posto que elle não tivesse nunca preterido os
-deveres que lhe impunha o vínculo espiritual, dando á fazendeira todas
-as provas possiveis de um grande affecto, ainda assim era de recear que
-a ultima vontade da moribunda não trouxesse o cunho da estricta
-justiça, ou, quando menos, de razoavel equidade. Nestas
-circumstâncias, a viagem a Cantagallo era urgentissima, e cumpria
-realizal-a á custa dos maiores incommodos. Todo o incommodo é
-aprazivel quando termina em legado. Camargo não perdia a esperança
-desse desenlace egualmente affectuoso e pecuniario. Resolveu ir com a
-familia toda, e avisou por carta ao futuro genro.
-</p>
-
-<p>
-Estacio estimou o obstaculo, mas não contou com o que elle trazia no
-bojo. Chegando ao Rio Comprido achou afflictos o médico e D. Thomasia;
-Eugenia recusava sair da Corte. Em vão lhe mostravam a conveniencia de
-corresponder, em occasião tão grave, á affeição da madrinha;
-debalde lhe diziam que era ser ingrata não ir recolher o último
-suspiro da veneravel senhora, sua mãe espiritual. Eugenia recusava a
-pes junctos.
-</p>
-
-<p>
-Assistiu o noivo á ultima phase da lucta entre os paes e a filha. Ésta
-trazia os olhos vermelhos de chorar; batia com as mãos uma na outra,
-declarando que só iria á fôrça. Estacio procurou chamal-a á razão,
-apoiando as reflexões do pae, sem alcançar mais do que elle. Emfim,
-Eugenia poz uma condição á sua acquiescencia:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Irei, se o Dr. Estacio fôr comnosco.
-</p>
-
-<p>
-Camargo approvou a condição <i>in petto</i>; verbalmente, oppoz-se ao
-sacrificio. Estacio enfiára; posto entre a espada e a parede, ja a
-viagem de Eugenia lhe parecia superflua.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Acompanha-nos? insistiu a moça,
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não é possivel, acudiu o médico; tamanho incommodo por um simples
-capricho.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois então não vou!
-</p>
-
-<p>
-D. Thomasia ficou um tanto vexada com a teima de Eugenia. Estacio mordia
-o labio, olhando para a moça, cujo rosto o interrogava instantemente.
-Venceu-o o decoro; considerando Eugenia sua mulher, quiz cortar por uma
-scena que lhe parecia ridicula.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Acompanhal-os-hei,&mdash;disse elle sem enthusiasmo.
-</p>
-
-<p>
-A solução era favoravel a todos: os tres aceitaram de boa feição.
-Marcou-se a viagem para dous dias depois. D. Ursula, apezar dos bons
-olhos com que via o casamento, achou desnecessaria a ida do sobrinho,
-mas não emprehendeu dissuadil-o. Helena approvou tudo. Elle fez sentir
-ás duas parentes a extensão do sacrificio, e esteve a ponto de retirar
-a palavra. Era tarde. A ultima noite passada em Andarahy foi cruel para
-elle; as horas voaram ligeiras como nunca. Como devia sahir no dia
-seguinte, logo cedo, alli mesmo se despediu da tia e da irmã, despedida
-de alguns dias que lhe custou como si fôra de annos. Prometteu,
-entretanto, que o regresso seria breve.
-</p>
-
-<p>
-O que elle não podia prometter era conjurar o drama que se lhes
-preparava, drama que ia em fim devolver-se, intenso, funesto e
-irremediavel,&mdash;do qual não o consolariam jamais nem as doçuras da paz
-doméstica, nem as glórias da vida pública.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XV">CAPITULO XV</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Estacio levantou-se ao amanhecer. Uma vez prompto, quiz sorprehender a
-tia e a irmã com uma lembrança sua, e escreveu n'uma folha de papel
-éstas simples palavras: «Até á volta; 6 horas da manha.» Dobrou-a
-e foi pol-a sôbre a mesa de costura de D. Ursula. Dalli passou á sala
-de jantar, depois á varanda. Aqui chegando deu com os olhos em Helena,
-que o esperava ao pe da escada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Silêncio! disse graciosamente a moça. Não faça espantos que póde
-accordar titia. Vim saber se voce precisa de alguma cousa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De nada, respondeu Estacio commovido. Mas que imprudencia foi essa
-de se levantar tão cedo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cedo! O sol não tarda comprimentar-nos. Adeus! muitas
-recommendações a Eugenia. Não lhe falta nada, não é?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada.
-</p>
-
-<p>
-Estacio recebeu a mão que Helena lhe estendêra e ficou a olhar para
-ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Olhe que é tarde!
-</p>
-
-<p>
-Dizendo isto, Helena apertou-lhe a mão e procurou retirar a sua;
-Estacio reteve-a.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se soubesses como me custa ir!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;São apenas alguns dias...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Valem por mezes, Helena! Adeus, não te esqueças de mim. Escreve-me;
-eu escreverei logo que chegar. Não faças imprudencias; não saias a
-passeio em quanto eu estiver ausente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Adeus!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Adeus!
-</p>
-
-<p>
-Estacio quiz dar-lhe o abraço da despedida; mas a moça, menos ainda
-com a palavra que com o gesto, fel-o recuar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, disse ella affastando-se; as despedidas mais longas são as mais
-difficeis de supportar.
-</p>
-
-<p>
-Recuou até á porta da sala de jantar, fez um gesto de despedida e
-entrou. Estacio desceu a custo as escadas. Helena viu-o descer e sahir;
-depois subiu cautellosamente ao seu aposento. Alli sentou-se alguns
-minutos, pensativa e triste. Ergueu-se enfim, vestiu rapidamente as
-roupas de montar; collocou o chapellinho preto sôbre os cabellos
-penteados á ligeira, e desceu. Na chacara esperava-a Vicente, com a
-egua ajaezada e prompta. Helena montou sem demora; o pagem cavalgou uma
-das duas mulas que havia na cavallariça e os dous sahiram a trote na
-direcção da casa do alpendre e da bandeira azul.
-</p>
-
-<p>
-A casa estava ainda silenciosa; porta e janellas conservavam-se
-hermeticamente fechadas. Helena apeou-se e bateu de mansinho; repetiu as
-pancadas progressivamente mais fortes. Ninguem lhe respondeu. Helena
-impaciente rodeou a casa; mas parece que achou egualmente fechadas as
-portas do fundo, por que volveu logo. Collou o ouvido á porta e
-esperou. Quando lhe pareceu que era baldado o esfôrço, tirou da
-algibeira um lapis e um pedacinho de papel; collocou o pe no degrau de
-tijolo e sôbre o joelho escreveu algumas palavras; dobrou depois o
-papel e introduziu-o por baixo da porta. Esperou ainda alguns minutos,
-caminhou para a egua, montou e regressou a casa.
-</p>
-
-<p>
-Vinha triste e pensativa. A egua, a passo vagaroso, não sentia o
-esfôrço da cavalleira, que a deixava ir, frouxa a redea, inutil o
-chicote. O pagem levava os olhos na moça com um ar de adoração
-visivel; mas, ao mesmo tempo, com a liberdade que dá a confiança e a
-complicidade, fumava um grosso charuto havanez, tirado ás caixas do
-senhor.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula não estava ainda levantada; mas Helena não lhe occultou o
-passeio. O dia correu triste e solitario, como os seguintes, sem embargo
-da companhia que iam fazer ás duas senhoras as pessoas mais íntimas.
-Mendonça, a quem Estacio as recommendára, era alli pontual; seu
-espirito conseguia disfarçar um pouco as saudades do moço ausente. O
-padre Melchior prolongava suas visitas quotidianas; um mesmo sentimento
-ligava a todas as pessoas.
-</p>
-
-<p>
-O mesmo era, e não unico, por que outro e mais egoista e pessoal veiu
-alli viçar tambem. Mendonça sentiu que metade de seu destino estava
-acabada, e que a outra metade ia começar, mais circunspecta que a
-primeira. O relogio em que elle viu bater essa hora fatidica foram os
-olhos, de Helena. Mendonça começava a amar, Estouvado, e não
-corrupto, atravessára o delirio dos primeiros annos sem perder a flor
-dos castos affectos, sem sequer a haver colhido. Helena sentiu nascer e
-crescer essa adoração silenciosa, sem parecer que a descobrira. Não
-animou o mancebo nem o repelliu; redobrou de confiança,&mdash;dessa
-confiança, que só se dá aos simples familiares, e que mostra
-claramente a um namorado a inanidade de suas esperanças. Ao parecer de
-extranhos, a situação affigurava-se de perfeita concordia. O
-coronel-major piscou um dia os olhos ao Dr. Mattos; o Dr. Mattos proferiu
-um&mdash;<i>latet anguis in herba</i>&mdash;e ambos foram repartir o pão
-das conjecturas com a espôsa do advogado, senhora muito perspicaz nos
-namoros de salão. A opinião dos tres é que o casamento era cousa
-provavel e talvez certa. Um só obstaculo podia haver; eram os escrupulos
-do pae de Mendonça. Esse mesmo obstaculo não existia, por quanto,
-além das qualidades estimaveis da moça, havia o reconhecimento legal e
-social, público e doméstico; accrescendo (observação do Dr. Mattos)
-que duzentas e tantas apolices mereciam um comprimento de chapeu e não
-davam logar a cinco minutos de reflexão.
-</p>
-
-<p>
-As primeiras cartas de Estacio chegaram uma tarde, em que as duas
-senhoras e Mendonça se achavam na varanda, acabado o jantar, bebendo as
-últimas gotas de cafe. D. Ursula, depois de pôr em actividade tres
-mucamas para lhe irem procurar os oculos, levantou-se e foi ella propria
-á cata delles, coma sua carta na mão. Helena ficou com a que lhe era
-dirigida estava sentada juncto a uma das janellas; abriu-a e leu-a para
-si:
-</p>
-
-<p><br /></p>
-
-<p style="margin-left: 10%;">
-ESTACIO A HELENA.
-</p>
-
-<p>
-«Quando ésta carta te chegar ás mãos estarei morto, morto de
-saudades de minha tia e de ti. Nasci para os meus, para a minha casa, os
-meus livros, os meus habitos de todos os dias. Nunca o senti tanto como
-agora, que estou longe do que ha mais caro neste mundo. Poucos dias la
-vão, e ja me parecem mezes. Que seria se a separação não fosse tão
-limitada?
-</p>
-
-<p>
-«Na carta que escrevo a ti tia dou conta de nossa viagem e da saúde de
-todos. D. Clara está, na verdade, á beira da morte; mas pode durar
-ainda alguns dias, e o Dr. Camargo resolveu esperar até dar-lhe os
-ultimos adeuses. A recepção que nos fez a familia foi cordialissima.
-Ha aqui uma cunhada da enfêrma, um primo, tres sobrinhos, outros
-parentes e varios afilhados. O primo é commendador e tenente-coronel;
-elle e os outros são a gente mais affavel do mundo. Os homens da
-familia são influências eleitoraes; quando souberam da minha
-candidatura, offereceram-me logo os seus serviços, com a clausula unica
-de que haja prévia recommendação do Rio do Janeiro. Agradeci o favor,
-com muita abundancia d'alma porque a tal candidatura, que não me
-seduzia nem seduz, não ha remedio se não cuidar della, de modo que o
-meu nome não padeça, a injúria da derrota. Que te parece ésta
-pontasinha de vaidade?
-</p>
-
-<p>
-«Mudemos de assumpto, que este me afflige, e não quero philosofar sem
-ti, que es a minha companheira nestas vadiações de espirito. Ahi não
-te lembrarás, talvez, das nossas palestras; aqui lembra-me tudo. De
-manhã, dou o meu passeio equestre, como la; mas que differença! Quem
-vae a meu lado é o tenente-coronel, excellente homem, coração de
-pomba, com o defeito unico e enorme de se não chamar D. Helena do
-Valle, a minha boa Helena, que la está na Côrte a divertir-se sem seu
-irmão. Elle fala de tudo e muito: do cafe, do governo, das eleições,
-dos escravos, dos impostos. Eu ouço-o, que é o menos que posso fazer,
-e deixo-o ir sem interrupção. Ás vezes, como que desconfiado,
-recolhe-se ao silêncio; eu ato o fio da conversa e elle encarrega-se de
-desenrolar o novello. Tão pouca cousa o faz feliz! Já cacei uma vez;
-confesso-te que é o que me pode distrahir um pouco. Pensava ter perdido
-o costume; mas não perdi. A modestia impede-me dizer mais.
-</p>
-
-<p>
-«A fazenda é vasta e a casa excellente. Não te direi que gósto da
-vida agricola; não gósto, não me dou com ella. Mas viver num recanto
-como este, a dous passos do mato, a tantas legoas da rua do Ouvidor,
-isso creio que se dá com a minha indole. Consultaremos titia. Eu não
-sei o que é amar o tumulto exterior; acho que é dispersar a alma e
-crestar a flor dos sentimentos. Nasci para monge... e creio que tambem
-para despota, porque estou a planear uma vida ignorada e deserta, sem
-consultar tuas preferencias. Sou um Cromwell com tendencias de frade;
-ou, por dizer tudo n'uma só palavra: sou um Lutero... muito inferior.
-</p>
-
-<p>
-«Pobre Helena! Ja la vão quatro páginas só a falar de mim. Vejamos ó
-que tens feito. Andas muito triste? passeas? lês? jogas? tocas? Conta-me
-a tua vida o mais miudamente que puderes; conta-me a vida de todos. Não
-me escondas nada; se, por exemplo, ao abrir um livro ou tocar uma tecla
-do piano, pensares em mim, escreve isso mesmo, marcando o dia e até a
-hora, se puder ser. E depois dou-te o direito de perguntar onde ficou a
-minha gravidade, e responderei que ha uma puerilidade séria, e que os
-extremos tocam-se. Quando assim não seja, a culpa é do ceu, que me
-não deu uma irmã creança; agora é preciso que comecemos pela
-primeira phase da vida.
-</p>
-
-<p>
-«Deixei muito recommendado ao Mendonça que fôsse a nossa casa com
-frequencia. Não sei se elle se terá lembrado e cumprido a promessa que
-me fez. Se não tiver cumprido, has de mandar-lhe dizer que eu o detesto
-e abomino, que elle é o maior traidor que o ceu cobre; que tudo fica
-acabado entre mim e elle; que a amizade é um culto, etc. Dize o que te
-parecer e pelo modo que te é usual.
-</p>
-
-<p>
-«Lembro-me de ti a proposito de tudo. Hoje de tarde, por exemplo, o
-terreiro offerecia ura aspecto bonito e caracteristico. Se ella
-estivesse aqui, disse commigo, faria um magnifico desenho. Peguei de um
-lapis que trouxe, meia folha de papel, e quiz reproduzir o panorama.
-Escrevi um problema algebrico! Foi um conselho que me deu o lapis:
-ninguem se metta a fazer aquillo que ignora. Eu ignorava o que era estar
-ausente da familia; por que motivo me determinei a tental-o?
-</p>
-
-<p>
-«Interrompi ésta carta para receber o Dr. Froes, que é o médico de D.
-Clara; veiu ao meu quarto para me dizer que o estado da doente é
-perdido; que a morte é certa; mas que a vida póde prolongar-se ainda
-por muitos dias. Ve que perspectiva! Estou com raiva de mim mesmo; esses
-ultimos dias da enfêrma pesam sôbre mim como se fôra o punho fechado
-do destino. Se a morte é certa, por que viver alguns dias mais? E é
-vida isso, ou é morrer aos goles, sem consciencia do que se perde nem
-do que se vae ganhar?
-</p>
-
-<p>
-«Está decidido; posso ir daqui a seis dias ou daqui a um mez. Sera o
-que Deus quizer. Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só
-achei um <i>Manual de medicina prática</i>. Manda-me alguma cousa que me
-faça lembrar Andarahy. Tira da estante oito ou dez volumes, á tua
-escolha. Manda tambem algum trabalho de agulha teu; quero mostral-o á
-cunhada de D. Clara, a quem gabei muito os teus talentos. Se puderes
-desenhar alguma cousa, á pressa, o tanque, a varanda, ou qualquer outro
-logar, faze-o, e manda com o resto. Escreve-me longamente; conta-me tudo
-o que houver interessante; fala-me de ti, que é o meio de consolar
-minhas saudades, que são immensas, immensas como este amor que tenho a
-minha familia toda. Vou fazer por voltar breve. Adeus, minha boa Helena;
-adeus, minha vida, adeus, ó mais bella e doce de todas as irmãs!
-</p>
-
-<p>
-«<i>P.S.</i> Reli a carta, e fiquei envergonhado do trecho a respeito da
-vida da doente. Perdoa-me a ferocidade, e leva-a em conta da solidão.»
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XVI">CAPITULO XVI</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa a olhar para as
-folhas da trepadeira, que do lado de fóra viera a subir pela muralha da
-varanda, e a debruçar-se emfim do parapeito para dentro. A carta
-ficára aberta sôbre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos,
-olhava para ésta, sem ousar falar-lhe.
-</p>
-
-<p>
-Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da intelligencia
-humana. Póde dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da
-graça feminil. Mendonça o sentiu contemplando o busto de Helena e a
-casta ondulação da espadua e do seio, cobertos pela caça fina do
-vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do logar em que ficava,
-Mendonça via-lhe o perfil correcto e pensativo, a curva molle do
-braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ella
-trazia. A attitude convinha á belleza melancholica de Helena. O rapaz
-olhava para ella sem movimento nem voz.
-</p>
-
-<p>
-A tarde expirava; a côr verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto
-cinzento-escuro que precede a côr fechada da noite. A propria noite
-desceu; e um escravo entrou na varanda, a accender as duas lampadas que
-pendiam do tecto. Ésta circumstância accordou a moça, e bastou-lhe
-voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estacio a alguns passos de
-distância.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estava ahi? perguntou Helena estremecendo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;D. Ursula não voltou, respondeu Mendonça com timidez; não quiz
-interromper a leitura que a senhora fazia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A leitura? A leitura acabou ha muito tempo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas tambem se lê com o espirito.
-</p>
-
-<p>
-Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não sei ler de cór, disse ella, erguendo-se e sahindo da varanda.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera elle tão grave que a pudesse
-offender? Repetiu suas proprias palavras e não lhes achou sentido mau.
-Certo, porém, de que a molestára, alli ficou aborrecido de si mesmo,
-desejoso de lhe explicar tudo, se alguma cousa houvesse explicavel. Apos
-alguns instantes, resolveu entrar tambem. Entrou; Helena não estava nem
-na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Ursula com o Dr. Mattos
-e o coronel-major. Dalli passou á sala de visitas. Helena não o viu
-entrar; estava mergulhada n'uma poltrona com a cabeça nas mãos.
-Commovido, deteve-se alguns instantes a contemplal-a; depois caminhou
-para ella e falou-lhe.
-</p>
-
-<p>
-Helena ergueu a cabeça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Perdõe-me, disse elle, se alguma cousa lhe disse que a magoou.
-Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou
-triste por isso?
-</p>
-
-<p>
-A moca cravou nelle um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu
-logo. Mendonça adoptou o melhor dos alvitres naquella occasião;
-inclinou-se e recuou para sahir. Helena chamou-o; elle approximou-se
-outra vez, com um ar de tão doce resignação, que lisonjearia o mais
-levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; elle apertou-a e teve
-impetos de a beijar uma e muitas vezes, triumphando naquelle unico
-instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena
-mostrou-lhe o trecho da carta em que Estacio se referia a elle; falaram
-dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assumpto que
-exclusivamente preoccupava o moço. Elle sahiu dalli sem ter dito nada
-de seu coração. Chegando á rua achou-se poltrão e ridiculo, disse
-mil nomes feios a si proprio; emfim, prometteu declarar tudo a Helena no
-dia seguinte.
-</p>
-
-<p>
-No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se á capella a ouvir a
-missa do padre Melchior. Acabada a cerimonia, não seguiu para casa, com
-D. Ursula, mas foi ter á sacristia, onde o padre acabava de tirar os
-paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estacio, nessa manha,
-pedira a Helena que lh'a deixasse ver.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Falam sempre ao coração as lettras dos amigos, dissera elle.
-</p>
-
-<p>
-Helena deu-lhe a carta, que o padre recebeu com uma expressão antes de
-curiosidade que de affecto. Leu-a vagarosamente, como escrutando o
-sentido e as palavras; e sendo longa a epistola, longo foi o tempo que
-elle despendeu em a interpretar. Durante esse tempo, Helena admirava-lhe
-a figura austera, a serenidade religiosa, que é a coroa mystica do
-verdadeiro ecclesiastico. A sacristia era pequena; duas altas janellas
-deixavam entrar a luz, o ar e o aroma das folhas e das flôres da
-chacara. Entre a cimalha e o telhado algumas andorinhas haviam fabricado
-os ninhos, donde sabiam, como pensamentos de juventude, a adejar ao sol
-da manha. Ao pe daquelle quadro exterior de alegria e verdura, a
-sacristia tinha certo ar melancholico e severo, que lançava n'alma o
-esquecimento das vicissitudes humanas. Helena deixou-se captivar desse
-sentimento de abstenção e elevação; se alguma dor ou remorso a
-pungia, esqueceu-os, por um minuto ao menos, entra aquellas paredes
-desataviadas, deante de um padre, entre uma imagem de Jesus e as obras
-vivas do Creador.
-</p>
-
-<p>
-Lida a carta, Melchior dobrou-a com ar pensativo; depois entregou-a á
-moça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja respondeu? perguntou elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja; trouxe-lhe a carta que vou mandar hoje mesmo.
-</p>
-
-<p>
-Melchior abriu-a e leu; não gastou menos tempo, ainda que era de
-menores dimensões. O estylo era affectuoso, mas muito menos exhuberante
-que o da carta de Estacio. Ella contava-lhe, em suas feições geraes, a
-vida que alli passavam, desde que elle partira, as occupações de cada
-dia e as distrações da noite.
-</p>
-
-<p>
-«Vivemos, dizia a moça, como podem viver duas creaturas que sabem a
-affeição que lhes tem um parente amigo, ausente embora, mas não
-esquecido,&mdash;nem ingrato. O padre Melchior, algum dos visinhos, e o Dr.
-Mendonça são as nossas visitas habituaes. Voce sabe o que vale o
-padre; é a mais bella alma que Deus mandou ao mundo. Os risinhos são
-affaveis, como sempre. O Dr. Mendonça é verdadeiramente digno da nossa
-affeição e confiança. Disse-lhe o que voce me escreveu; elle riu,
-como homem seguro de escapar á punição.
-</p>
-
-<p>
-«Pena é que voce tenha de se demorar ahi tanto tempo; mas, se alguma
-esperança pode haver de salvar a doente, damo-nos por bem pagas da
-demora. É verdade que voce não é médico; mas ha ahi outra doente,
-para quem é, não só médico, mas até toda a medicina. Porque razão
-me não escreveu Eugenia? Eu não cuidei que essa amiga me esquecesse na
-vespera de ser rainha cunhada. Se estivessemos mais perto ia puxar-lhe
-as orelhas. Diga-lhe isto; e se tiver occasião de emprestar-me os seus
-dedos, applique-lhe o castigo, declarando-lhe o delicto commettido e o
-juiz que a sentenciou.
-</p>
-
-<p>
-«O que voce diz da vida solitaria é muito justo, mas impraticavel. Os
-amigos não nos iriam ver; e poderiamos nós dispensal-os? Tal é a
-opinião de titia e a minha. O melhor de tudo é este meio termo de
-Andarahy; nem estamos fóra do mundo, nem, no meio delle. O ruido
-externo pode ter os effeitos de que voce fala; mas elle é ás vezes
-preciso para aturdir e distrahir o espirito. Tambem a solidão tem suas
-dores, e fundas: tambem ella abala o coração. Nem um extrema nem
-outro.»
-</p>
-
-<p>
-A carta continha alguns periodos mais, não muitos; tres ou quatro vezes
-falava em Eugenia, com tamanha insistencia que punha em relevo o
-silêncio a tal respeito conservado por Estacio; falava-lhe da belleza
-da noiva, do casamento proximo, do amor que os faria felizes, e da
-ventura que ambos dariam a todos os seus.
-</p>
-
-<p>
-Quando o padre acabou de ler a resposta; abriu os braços a Helena;
-depois abrangeu com as mãos a cabeça da moça e contemplou-a durante
-alguns segundos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Toda a sua alma está nesse escripto, disse elle; vejo ahi a reflexão
-e o affecto. Tanto melhor! Ha comtudo uma lacuna: não transmitte a seu
-irmão as minhas saudades; mas ha tambem uma excrescencia: louva meritos
-que não possuo. Embora! Mande-a...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Escreverei duas linhas mais.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois sim. Diga-lhe que se apresse porque estou velho e posso morrer
-antes.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! protestou Helena.
-</p>
-
-<p>
-Melchior olhou para ella silenciosamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cre que Estacio seja feliz? perguntou elle emfim.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Creio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tambem eu.
-</p>
-
-<p>
-Outro silêncio. O primeiro que o rompeu foi o padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Por que se não casa tambem? disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De certo. Póde ser que muito breve, talvez...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Talvez, nunca.
-</p>
-
-<p>
-Melchior franziu a testa; sua physionomia, de ordinario meiga, tornou-se
-severa, como a consciencia delle. O padre tinha uma das mãos de Helena
-entre as suas; deixou-a insensivelmente cair. Entre os dous
-estabeleceu-se um silêncio que os acabrunhava e que não ousavam
-romper; como subjugados por um mysterio, receiava cada um delles que o
-outro lh'o lesse na fronte; instinctivamente desviaram os olhos.
-</p>
-
-<p>
-Melchior foi o primeiro que voltou a si. A reflexão corrigiu a
-expontaneidade; e o padre reassumiu o gesto usual, com essa
-dissimulação, que é um dever, quando a sinceridade é um perigo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vamos la, disse elle; ninguem póde decidir o que hade fazer amanhã;
-Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais do que
-transcrevel-as na terra.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É verdade! confirmou ella com um gesto de cabeça, e sem erguer os
-olhos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Amanhã, continuou o padre, o acaso,&mdash;isso que os incredulos
-chamam acaso, e que é a deliberação da vontade infinita,&mdash;lhe
-apontará um homem digno da senhora; e seu coração lhe dirá; é este;
-e o suspiro desalentado de hoje converter-se-ha n'um olhar de graças ao
-ceu. Ora, o que eu lhe peço, o que eu desejo, é que se apresse tanto
-que eu possa casal-os...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! mas não vae morrer amanhã, interrompeu Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou velho, minha filha; estes cabellos brancos são ja a neve desse
-mar polar para onde navegamos todos. Conto sessenta annos. A morte póde
-colher-me um dia proximo...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vamos almoçar, disse Helena sorrindo.
-</p>
-
-<p>
-Sahiram da sacristia, atravessaram a capella, e penetraram na chacara.
-Na occasião em que iam transpor a porta da capella, viram Mendonça
-entrar em casa. Melchior estacou, e olhou para Helena. Ésta ia como
-acabrunhada e absorta. O gesto do padre, quando ella lhe declarou que
-não se casaria talvez nunca, ficára-lhe gravado na memoria, como um
-enigma, que talvez receiava decifrar. Poucos minutos eram passados;
-contudo, ella pôde reflectir, e colligir os elementos de uma
-resolução. Detendo-se, com o padre, á porta da capella, viu tambem
-entrar Mendonça, Os olhos da moca e do padre interrogaram-se de novo,
-mas desta vez nenhum delles os desviou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vê aquelle homem? perguntou Helena. Parece-lhe que seria bom marido?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Excellente, de certo, disse vivamente Melchior; caracter, educação,
-sentimentos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tem ainda uma virtude particular: ama-me.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sei.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Elle lh'o disse?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, mas ve-se. É sabido de todos os que frequentam ésta casa. A
-probabilidade do casamento é objecto de commentarios; e a opinião
-geral é que elle se fara dentro de pouco tempo. Confessou-lhe alguma
-cousa?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada; mas os olhos da mulher amada não são menos sagazes que os dos
-padres amigos. Acha que devo confirmar a opinião dos outros?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Acho; consulte porém seu coração.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja consultei.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Neste unico instante?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada menos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Devéras? disse Melchior derramando um olhar de paternal ternura no
-rosto serio de Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não digo que o ame desde ja; mas a affeição que elle me tem
-reflectirá em meu coração, e eu virei a amal-o. O que importa saber
-é que é digno de mim. De todos os que me pretendessem nenhum lhe seria
-superior.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ainda bem! Contudo, repare que vae contrahir uma obrigação
-perpétua, e que um contracto destes não póde ser deliberado em poucos
-instantes.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! nesse ponto a minha ignorancia sabe mais do que a sua theologia.
-Que são minutos e que são mezes? Paixões de largos annos, chegando ao
-casamento, acabam muitas vezes pela separação ou pelo odio, quando
-menos pela indifferença. O amor não é mais que um instrumento de
-escolha; amar é eleger a creatura que hade ser companheira na vida,
-não é afiançar a perpétua felicidade de duas pessoas, por que essa
-póde exvair-se ou corromper-se. Que resta à maior parte dos
-casamentos, logo apos os annos da paixão? Uma affeição pacifica, a
-estima, a intimidade. Não peço mais ao casamento, nem lhe posso dar
-mais do que isso.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não gósto de tanta reflexão era tão verde edade, replicou
-benevolamente Melchior; todavia encanta-me esse raciocinio, que ao cabo
-de tudo póde ser verdadeiro. Mas não me desdigo; alguns minutos é
-pouco tempo; reflicta ainda vinte e quatro horas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nem um instante mais, insistiu Helena. Minhas reflexões são lentas
-ou subitas: ou cinco minutos ou um anno; escolha.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois reflicta cinco minutos, replicou o padre sorrindo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja la vão quatro; aproveitarei o último para lhe dizer que em nada
-disto falaria se não fossem as qualidades notaveis desse moço; e para
-accrescentar que a elle me liga certa sympathia de genios... é talvez a
-semente do amor.
-</p>
-
-<p>
-Tinham chegado ao primeiro degrau da escada da varanda. Subiram e
-penetraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula e Mendonça, este
-a percorrer com os olhos um jornal do dia. O almoço serviu-se
-immediatamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Padre-mestre, disse D. Ursula, demorou-se tanto que
-cuidei... tivesse ideia de me arrebatar Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estive-a ouvindo de confissão, respondeu Melchior.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;E pode absolvel-a?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De certo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas com grande penitencia, não?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A mais facil de todas, acudiu Helena olhando para o padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! então é que os peccados são leves! concluiu D. Ursula. Não lhe
-parece?
-</p>
-
-<p>
-Éstas ultimas palavras foram dirigidas a Mendonça, na occasião em que
-todos caminhavam para a mesa. Mendonça não disse nada. Seus olhos
-ousavam apenas resvalar pela moça; contra o costume, elle falava
-pouco,&mdash;menos ainda que na vespera e nos dias anteriores. D. Ursula
-via a differença, mas não a comprehendia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não quero saber que peccados confessou,&mdash;disse ella
-sentando-se; mas estou certa que o maior delles não levaria ninguem ao
-purgatorio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Veja o que é uma tia indulgente, observou Helena a Mendonça,
-sentando-se a seu lado.
-</p>
-
-<p>
-Preoccupado com a conversa que acabava de ter na sacristia e na chacara,
-Melchior pouca attenção prestou a principio ao filho do commerciante.
-Seu espirito analysava as circumstâncias do momento e pesava a
-responsabilidade que lhe podia vir de qualquer resolução que
-adoptasse. Apos um longo dialogo com a sua consciencia, o velho
-sacerdote inclinou os olhos ao mancebo, que lhe ficava defronte, ao lado
-de Helena. Viu-os conversar com essa familiaridade de bom gôsto, que é
-a pedra de toque dos costumes polidos. Ella mostrava-se graciosa,
-solicita e attenta, como uma espôsa amante; elle parecia enamorado da
-voz e das falas da donzella; como que um clarão interior lhe
-desvendára à alma os horizontes infinitos da esperança. Familiarisado
-com Helena, tratado por ella com exquisita attenção, era comtudo a
-primeira vez que ella lhe falava, não como a um confidente amigo, mas
-como a um homem que poderia vir a ser seu esposo. Alguma seriedade, um
-olhar submisso, uma attenção continuada, fizeram essa differença que
-antes foi sentida pelo coração do que descoberta pelos olhos.
-</p>
-
-<p>
-No fim do almôço, Melchior dirigiu-se para a sala de visitas, com
-Helena. Mendonça acompanhou-os. A resolução do padre estava assentada
-de raiz; elle acceitava aquelle casamento como um presente do ceu.
-Apenas entrados ha sala, travou das mãos de um e outro e lhes disse,
-com voz commovida:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Promettem não zangar-se commigo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Por que? interrogou Mendonça com os olhos.
-</p>
-
-<p>
-Helena baixára os seus.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Promettem?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Padre-mestre... começou Mendonça sem poder concluir a phrase.
-</p>
-
-<p>
-O padre olhou silenciosamente para um e outro. Talvez hesitava falar;
-talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração. Urgia
-romper o silêncio; fel-o com solemnidade:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Serei duas vezes padre: segundo a natureza e segundo o Evangelho.
-Quando duas creaturas se merecem, é servir a Deus emprestar a voz ao
-coração que não ousa falar. O senhor ama ésta menina; leio-lhe dos
-olhos o sentimento que o arrasta para ella; são dignos um do outro. Se
-é a timidez que lhe fecha os labios, eu sou a voz da verdade e do amor
-infinito; se outro motivo, serei juiz complacente para escutal-o.
-</p>
-
-<p>
-Ouvindo éstas palavras, Mendonça ficou aturdido e mudo. Não só a
-fortuna lhe chegava ás mãos, quando elle menos esperava, mas até
-escolhêra um caminho desusado e extranho. A realidade confundia-se alli
-cora o sonho. A presença de um terceiro era sufficiente motivo para
-acanhar os mais resolutos; accrescia a veste sacra do sacerdote que dava
-aquillo um ar de solemnidade e consagração. Mendonça recobrou enfim
-o uso dos sentidos; sua resposta unica e eloquente, foi estender a mão
-a Helena, gesto a que a moça correspondeu com simplesa e naturalidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não se enganaram meus olhos, disse o padre. Ama-a, e póde dar-lhe a
-felicidade que lhe desejo a ella. Tambem Helena o fara venturoso, não?
-perguntou elle voltando-se para á moça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas é isto um sonho? perguntou enfim Mendonça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A vida não é outra cousa, retorquiu o capellão; velho pensamento e
-velha verdade. Façamos por que o sonho seja agradavel e não arido ou
-triste. Promettem-me que se farão felizes?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não ambiciono outra cousa, disse o rapaz; será o meu cuidado e a
-minha glória.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu amor, continuou Melchior, é mais forte que o de Helena; eu
-consultei-a antes, e li em seu coração. Elege-o com prazer, embora sem
-enthusiasmo. Não é a paixão cega que a faz falar é um sentimento
-brando e singello, por isso mesmo duradouro. A reflexão de um corrigirá
-a violencia do outro, e os dous sentimentos se completarão pela virtude
-especial de cada um.
-</p>
-
-<p>
-Ésta explicação franca de Melchior teve o condão de ser agradavel
-aos dous. Helena estimou que elle nem lisonjeasse as illusões de
-Mendonça, nem a désse como acceitando indifferente e estouvada o
-casamento proposto. Pela sua parte, Mendonça viu nas palavras do padre
-um indicio da sinceridade de Helena, e aceitou o pouco offerecido, com a
-certeza de multiplical-o. O caracter de Melchior e a veneração que
-mereciam suas virtudes, eram fianças de veracidade e davam ao acto
-singello que alli se passava um forte cunho de santidade e elevação.
-Não era uma vulgar declaração de amor, sugeita ás variações do
-espirito ou do interesse; mas verdadeiros esponsaes, em que a religião
-era inspiradora e testemunha.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XVII">CAPITULO XVII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Aquelle dia foi marcado no calendario de Mendonça com lettras de ouro e
-setim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Elle viveu essas horas
-todas n'um estado de somnambulismo e extasis. Tencionava referir tudo á
-mãe, logo que entrou em casa ao meio dia; mas não se atreveu, porque
-elle mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas azas
-de uma chimera. De noite voltou a Andarahy; achou em Helena o mesmo modo
-affectuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva,
-nenhuma contemplação namorada; um meio termo que o continha a elle
-proprio, e não era menos aprazivel ao coração. A nova situação era,
-entretanto, sensivel, porque os vigilantes de fóra, trocaram entre si
-olhares profundos e inundados de graves descobertas; um delles, o
-coronel-major, chegou a proferir uma allusão, que os interessados
-fingiram não perceber.
-</p>
-
-<p>
-Quando Mendonça chegou a casa, nessa noite, ia mais que nunca cheio de
-commoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas ahi entrou,
-pareceu-lhe transformada por uma vara magica; elle viu-a povoada de
-seres phantasticos e rutilantes que iam e vinham do ceu á terra e da
-terra ao ceu. A côr deste era unica entre todas as da palheta do divino
-scenographo. As estrêllas, mais vivas que nunca, pareciam saudal-o de
-cima com ventarolas electricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e
-despeito. Azas invisiveis lhe roçavam os cabellos, e umas vozes sem
-boca lhe falavam ao coração. Seus pes como que não pousavam no solo;
-elle ia extatico e sem consciencia de si. Era aquelle o galhofeiro de ha
-pouco? O amor fizera esse milagre mais.
-</p>
-
-<p>
-Um dos theatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era
-desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que alias expirava de
-parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de ater-se á
-realidade das cousas, tão chimerico se lhe affigurava tudo o que se
-passára desde manhã.
-</p>
-
-<p>
-Um expectador,&mdash;o filho do coronel-major,&mdash;viu-o a alguma
-distância e foi sentar-se ao pe delle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O senhor que tem melhor vista,&mdash;disse o
-academico&mdash;desengane-me; aquella moça que alli está, naquelle
-camarote, não é a andorinha viajante?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A andorinha viajante? repetiu Mendonça olhando para elle; que quer
-dizer esse nome?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É a alcunha da irmã de Estacio. Sera ella que está alli, com uma
-senhora edosa?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas porque lhe chamam assim?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu sei! Naturalmente porque sae á rua todos os dias. Na verdade, é
-um passear! Mal amanhece, la vae trepada no cavallinho, com o pagem
-atraz...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quem lhe poz essa alcunha?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;As alcunhas são como as mofinas; não tem autor.
-</p>
-
-<p>
-Cahíra o panno; Mendonça despediu-se alli mesmo e sahíu. Na rua
-repetiu mentalmente as palavras do joven academico. Ao cabo de alguns
-minutos sorriu; comprehendêra que, apenas suspeitada a sua felicidade,
-ja a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os hombros,
-resoluto a supportar tranquillo essa livida companheira do successo.
-</p>
-
-<p>
-Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvêra a occupal-o
-exclusivamente. So, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos
-daquelle dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com
-alguem, escreveu uma longa carta a Estacio, narrando-lhe toda a
-história do seu coração, suas esperanças e a prompta realisação
-dellas. A alma derramou-se no papel impetuosa e exhuberante. O estylo
-era irregular, a phrase incorrecta; mas havia alli a eloquencia e a
-sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia
-dar ao amigo, logo que ella lhe chegasse ás mãos, levando a notícia
-de que as vinculos atados na aula iam apertar se na familia. «Vem
-quanto antes, dizia elle ao terminar a missiva; tenho ancia de
-abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fara o mais feliz
-dos homens!»
-</p>
-
-<p>
-Quando esta carta chegou a Cantagallo, Estacio voltava de uma pequena
-excursão, que fizera com o pae de Eugenia. Conheceu a letra do
-sobrescripto; abriu negligentemente a carta; leu-a com assombro. Á
-impressão foi tão visivel, que Camargo lhe perguntou de que se
-tratava.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Recebo uma noticia que me obriga a partir amanhã, disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Negocio grave?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Grave.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ainda assim, nesta occasião.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que tem? D. Clara póde ainda resistir á morte alguns dias; e posto
-que a minha ausencia não prejudique nada do facto a que alludo, comtudo
-é mister que me informe e providencie.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Algum negocio relativo ao inventário?&mdash;aventurou Camargo, que
-nada conhecia mais grave que o dinheiro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Justamente, respondeu machinalmente Estacio.
-</p>
-
-<p>
-Camargo consolou a filha do desgôsto que lhe causava a partida do
-noivo; falou-lhe a linguagem da razão; disse que havia assumptos
-praticos, a que os sentimentos tinham de ceder o passo alguma vez. No
-dia seguinte de manhã partiu Estacio na direcção da Corte, não sem
-prometter que voltaria, se a molestia ou qualquer outro motivo obrigasse
-a familia a demorar-se em Cantagallo.
-</p>
-
-<p>
-Ninguem esperava por elle em Andarahy. Entrando na chacara,&mdash;era de
-noite,&mdash;viu Estacio que a sala que ficava no angulo esquerdo da frente
-da casa estava allumiada e tinha gente. A sala ficava ao rez do chão, e
-as janellas estavam abertas. Elle parou a pouca distância, e pôde
-distinguir o coronel-major e o Dr. Mattos a jogarem o gamão; a mulher
-do advogado falava a D. Ursula e Melchior, em um dos lados; do outro
-estava assentada Helena, tendo Mendonça deante de si.
-</p>
-
-<p>
-Estacio deu volta aos fundos da chacara, e entrou pela varanda. Os
-escravos que o virara chegar deram signal da novidade, com vozes de
-alegria, que alias não chegaram até ás pessoas da sala. Estas só
-souberam do recem-chegado quando este assomou á porta. A satisfação
-de o ver foi geral e sincera em todos. Estacio distribuiu abraços e
-apertos de mão. Melchior, que se deixára ficar de lado, foi o último
-com quem elle falou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O Dr. Camargo veiu? perguntou D. Ursula ao sobrinho logo depois que
-este comprimentára a todos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, respondeu Estacio, a doente não póde escapar, mas ainda a
-deixei com vida.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Imagino a impaciencia dos herdeiros.
-</p>
-
-<p>
-Ésta observação philosophica do coronel-major não teve nenhum
-effeito. Melchior, que a reprovára anteriormente, fez mudar a conversa,
-informando-se da familia de Camargo. Estacio deu todas as notícias que
-podiam interessar; depois falou de alguns incidentes da viagem; afinal
-obteve licença para ir mudar de <i>toilette</i>.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça acompanhou o amigo, alcançando-o ainda na escada. Subiram
-junctos e junctos entraram no quarto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Agora que estamos sos, perguntou Mendonça, houve por la alguma
-cousa?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tanto melhor!
-</p>
-
-<p>
-Um escravo entrou no quarto, afim de servir a Estacio; Mendonça,
-ancioso por lhe falar de Helena, contentou-se com trocar algumas vagas
-indicações.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Recebeste a minha carta? disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Recebi.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não esperavas por ella, aposto?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Como eu não esperava escrevel-a. Estás aborrecido, continuou elle
-depois de um silêncio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou cançado.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Naturalmente, assentiu Mendonça abrindo um livro que achou sobre a
-mesa e tornando-o a fechar.
-</p>
-
-<p>
-O silêncio prolongou-se alguns minutos, durante os quaes Mendonça
-tornou a abrir o livro, examinou uma espingarda de caça, preparou um
-cigarro e fumou. O escravo servia o senhor com a pontualidade de quem
-lhe conhecia os costumes. Estacio continuava mortalmente silencioso;
-Mendonça falou algumas vezes, sobre cousas indifferentes, e o tempo
-não correu, andou com a lentidão que lhe é natural quando trata com
-impacientes. Logo que Estacio se deu por pro rapto, e o escravo sahiu,
-Mendonça voltou directamente ao assumpto que o preoccupava.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estava ancioso por ver-te, disse elle. Não nos é possivel falar
-agora: não temos tempo. Mas quero dar-te um abraço, ao menos, um
-abraço de agradecimento pela felicidade...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Parece que só esperavas a minha ausencia?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Creio que não. Ja antes de seguires, começava a sentir alguma cousa
-nova, que vim a descobrir ser paixão violenta.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena ama-te?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Com egual amor, não creio; mas aceita-me; tem-me algum affecto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tratarei de consultal-a.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça não pôde continuar, por que Estacio descia a escada ao
-dar-lhe a ultima resposta. Mendonça desceu tambem. Na sala estavam
-ainda as mesmas pessoas. Perto de uma janella conversava Helena com o
-padre. O cha foi logo servido; e a conversa tornou-se geral, mas sem
-grande animação. Melchior falou menos que todos.
-</p>
-
-<p>
-Nem por isso foi o primeiro que sahiu; foi o último. Na chacara,
-dirigindo-se ao portão, ergueu os olhos ao firmamento, não para ver a
-lua e as estrêllas, mas para subir a região mais alta. O que disse
-ninguem o soube; mas o anjo das rogativas humanas por ventura colheu em
-seu regaço os pensamentos do ancião e os levou aos pes do eterno e
-casto amor.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XVIII">CAPITULO XVIII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-&mdash;Helena, disse Estacio no dia seguinte, logo que pôde falar a sos á
-irmã,&mdash;sabes porque vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça
-escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É verdade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É verdade?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Até o ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por
-mim só nada posso decidir; mas não creio que voce se opponha de nenhum
-modo. Não é certo que deseja a minha felicidade?
-</p>
-
-<p>
-Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estacio
-ficou algum tempo a olhar para a agua.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não entendo, disse elle enfim.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão
-que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor unico e
-forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu
-coração, é caso não vulgar e muita vez justificavel. Mas que este
-casamento seja para ella a felicidade, confesso que não o poderei
-entender nunca.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Recusa então o seu consentimento?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não recuso; desejo comprehender.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada mais simples, retorquiu a moça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ah!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extincto naquelle tempo,
-mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas phantasias uma
-vez ao menos? A phantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso
-desposar um homem digno, que me ame. Não casar, foi algum tempo o meu
-desejo; não o é hoje, desde que voce, titia e o padre Melchior
-ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do
-casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e
-os melhores affectos de seu coração.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De maneira que sacrificas-te a um desejo nosso?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quando fôsse sacrificio, fal-o-hia de boa cara; mas não é.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não se trata do um sacrificio repugnante e odioso; mas cumpre
-examinar o que perdes. Dizes que a phantasia passou; não creio. Helena,
-não creio que ella passasse. Tu amas de certo; amas violentamente
-alguem; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa do teu
-marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e
-inimigo...
-</p>
-
-<p>
-Helena quiz interrompel-o.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ouve, continuou Estacio. Esse sentimento, se vier a extinguir-se, e
-se fôr substituido pela affeição que creares a teu marido, não te fara
-desventurosa; mas suppõe que não morre esse amor, qual será a tua
-situação?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tudo isso é um castello no ar,&mdash;disse Helena sorrindo; eu
-amei, não amo; ou amo somente a meu futuro marido.
-</p>
-
-<p>
-Estacio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no
-rosto placido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão
-silenciosa. Os della, firmes e tranquillos, crusavam o olhar com os
-delle. Estacio conhecia ja o dominio que a moça exercia sôbre si
-mesma; sua tranquillidade não o convenceu. Assim o pensava, assim o
-disse&mdash;sem rebuço.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Por que razão negaria eu a verdade? retorquiu Helena.
-</p>
-
-<p>
-Estacio ergueu os hombros.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Suppondo que voce tenha razão, tornou ella; não deverei casar nunca?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não digo isso; mas ha dous caminhos para a felicidade, além de
-Mendonça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não os vejo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Esse amor mysterioso será realmente sem esperança? Nada ha
-definitivo no mundo, nem o infortunio nem a prosperidade. O que a tua
-imaginação suppõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou
-occulto...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Adivinho o segundo caminho, atalhou Helena; não casando agora, posso
-vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como
-elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Parece-te absurdo isso?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, mas é uma loteria; perco um bem certo, por outro duvidoso. O
-jogador não faz cálculo differente. Essa felicidade póde não vir; eu
-contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me devéras; senti-o
-desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino
-que os dous me offerecem. Ésta é a razão e a realidade; o mais é
-illusão e phantasia.
-</p>
-
-<p>
-Em quanto ella falava, Estacio, que tirára o chapeu de Chile,
-occupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve
-entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa
-carreira de formigas, conduzindo as mais dellas trechos de folhas
-verdes. Com um galho sêcco, Estacio distrahia-se em perturbar a marcha
-silenciosa e laboriosa dos pobres animaes. Fugiam todas, umas para o
-lado da terra, outras para o lado da agua, era quanto as restantes
-apressavam a jornada na direcção do domicilio. Helena arrancou-lhe o
-galho da mão; Estacio pareceu accordar de largas reflexões; ergueu-se,
-deu alguns passos e voltou a ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena,&mdash;declarou elle,&mdash;não creio nada do que voce me
-diz; voce sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu
-dever oppor-me a semelhante cousa...
-</p>
-
-<p>
-Helena ergueu-se tambem.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mendonça começa a ser o fructo prohibido, observou ella sorrindo; é
-o meio seguro de o fazer amado.
-</p>
-
-<p>
-A moça affastou-se na direcção da casa. Estacio via-a desaparecer
-por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As
-formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no
-primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e
-comparou-as a suas ideias, tambem necessitadas de que um galho,
-invisivel as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões
-lembrou-lhe o padre; Estacio atravessou a chacara, sahiu á rua e
-dirigiu-se á casa de Melchior.
-</p>
-
-<p>
-Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto,
-a algumas braças da residencia de Estacio. Tinha duas salas o predio,
-janellas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A
-da frente abria entre duas janellas de venezianas. A sala de visitas era
-ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobilia,
-nenhuns adornos, uma estante de jacaranda, com livros grossos in-quarto
-e in-folio; uma secretária, duas cadeiras de repouso, e pouco mais.
-</p>
-
-<p>
-Na occasião em que Estacio alli entrou, Melchior passeava de um para
-outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou
-Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura, por que o padre amava
-contemplar os grandes espiritos do passado, quando não encarava os
-mysterios do futuro. Naquelle corpo mediano havia uma aguia captiva.
-Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as
-flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço,
-vivendo a vida retrospectiva ou prophetica, doce e mysteriosa volupia
-das almas solitarias. Melchior era um solitario; sem embargo das
-relações sociaes, que elle cultivava, amava sobretudo estar separado
-dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou
-meditava, esquecido ou extranho a todas as cousas do seu seculo.
-</p>
-
-<p>
-Naquella occasião lia. Vendo assomar á porta o vulto de Estacio,
-Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o affavelmente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vim interrompel-o, disse Estacio; mas era preciso.
-</p>
-
-<p>
-Melchior depoz o livro sôbre a mesa redonda que havia no meio da sala,
-marcando a lauda com uma telha estampa. Depois sentaram-se ao pe de uma
-das janellas lateraes. Então não se atreveu a dizer logo o motivo que
-o levara alli; mas de sua propria hesitação, deduziu Melchior qual
-era elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Era preciso? repetiu o padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo; confio em seu conselho e
-discrição. Como deseja a felicidade da minha familia, buscou facilitar
-o casamento de Helena e Mendonça...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Contando com a sim approvação, explicou o padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Hesito em dal-a.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Por que?
-</p>
-
-<p>
-Estacio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe
-propunha, ao que Melchior respondeu referindo singellamente a verdade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É certo que o não ama ardentemente; concluiu elle, mas aceita-o,
-aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ha uma difficuldade, padre-mestre; é que ella ama a outro.
-</p>
-
-<p>
-Melchior empallideceu; seu olhar escrutador, como o de um juiz,
-cravou-se immovel e afiado no rosto de Estacio. A fronte severa do moço
-não se alterou, nem seus olhos baixaram a terra.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ama a outro, continuou elle; paixão violenta, mas sem esperança, e
-tão real qual mysteriosa. Uma ou duas vezes alludiu a ella; mas nada
-mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito,
-desviou dahi o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei porém que
-ama, e casar com outro em taes circumstâncias, dá dous inconvenientes
-egualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o
-homem que interiormente elegeu, e leva para casa do marido um sentimento
-de pezar e de remorso. Parece-lhe isso toleravel?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não ha remorso não ha pezar, onde não ha esperança, redarguiu o
-padre. Helena aceita o Mendonça por expontanea vontade; e conheço-a
-tanto que não acho ja possivel que ella recuse.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Salvo o meu consentimento.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É claro; mas por que o não daria?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou seu
-coração. Talvez ella ache impossivel aquillo que é simplesmente
-difficil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezesete annos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Valem por vinte e cinco.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pode ser; mas convem não aceitar de coração leve uma
-condescendencia ou um capricho, ou qualquer outro motivo occulto que a
-inspira nesta resolução.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que motivo seria?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Eu sei! Talvez a suspeita de que estimassemos vel-a affastar-se de
-casa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não a calumnie; Helena tem perfeita sciencia e consciencia dos
-affectos que a rodeam e da estima em que é tida. Suas objecções não
-valem nada deante da declaração que ella propria fez. Não
-compliquemos uma situação simples e definida.
-</p>
-
-<p>
-Melchior proferiu éstas palavras com voz branda, mas em tom firme;
-Estacio não se animou a responder logo. Voltou porém ao primeiro
-argumento; depois aventurou uma objecção nova.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mendonça é bom coração, disse elle; mas não possue as qualidades
-que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca
-exercerá, sôbre ella a influência que deve ter um marido. Entre os
-dois inverte-se a pyramide. Mas isto, ao menos, se destruia uma das
-condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O
-perigo maior é outro; é vir elle a perder a estima da mulher. Nesse
-caso que lhe dariamos nós a ella? Um casamento apparente e um divorcio
-real.
-</p>
-
-<p>
-Não olhava pura elle o padre, mas para fóra, com uns olhos dolorosos e
-o gesto impaciente. Quando elle acabou, fitou-o com resolução;
-disse-lhe que se tratava de casar Helena, não com um marido especial,
-mas com o que ella propria escolhêra de sua vontade livre; casamento
-que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de familia,
-Estacio podia oppor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem
-convinha isso ao interesse de Helena nem ao proprio interesse da
-familia.
-</p>
-
-<p>
-Estacio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e
-pensativo. No fim de alguns segundos, o padre foi a elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Va contar tudo a sua tia, disse; approve sua irmã; casal-os-hei a
-todos no mesmo dia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois bem, disse Estacio como concluindo um raciocinio interior;
-consinto em que Helena se case; procuremos outro marido. Mendonça.
-não; hade ser outro. Vou casar tambem; receberei todas as semanas;
-algum rapaz apparecerá que a mereça e de quem ella venha a gostar
-seriamente... é a minha ultima resolução.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XIX">CAPITULO XIX</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-No momento em que Estacio proferia éstas palavras, transpunha Mendonça
-a porta do jardim do capellão. Preoccupado com a frieza de Estacio,
-lembrara-lhe expor a Melchior suas impressões e pedir-lhe conselho,
-Melchior ia responder ao sobrinho de D. Ursula, quando ouviu rumor de
-passos na areia do jardim.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ahi vem o noivo, disse elle.
-</p>
-
-<p>
-Estacio deu dous passos para pegar no chapeu; mas reconsiderou e foi
-sentar-se ao pe da mesa redonda. Havia alli um exemplar das Escripturas.
-Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos <i>Proverbios</i>;
-seus olhos cahiram neste versiculo: «Quem quer abrir mão de seu amigo,
-busca-lhe as occasiões; elle será coberto de opprobrio.» Envergonhado,
-voltou a folha. Mendonça, entrára na sala. Não contava com Estacio,
-mas estimou vel-o alli.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Venha, disse Melchior; tratavamos justamente seu casamento.
-</p>
-
-<p>
-Estacio lançou ao padre um olhar de exprobação. O padre não o viu;
-olhava para Mendonça, que immediatamente lhe respondeu:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não venho ca para outra cousa. Uma vez que a fortuna o fez nosso
-confidente, desejo constituil-o meu conselheiro e director.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Antes de tudo sou advogado de sua causa, disse Melchior: estava
-expondo agora as vantagens della.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Rejeitas ou aceitas o noivo? perguntou elle.
-</p>
-
-<p>
-Posto entre a espada e a parede, Estacio não soube logo que
-respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receioso de encontrar a
-vista dos dous. O silêncio era peor que a resposta; e nem o caso nem as
-pessoas permittiam tão grande pausa. Estacio fechou do golpe o livro e
-ergueu-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Discutia somente as vantagens do casamento, disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;E qual é a tua opinião?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só
-essa, nem é a principal; o uso em todo o caso é a favor do casamento.
-A principal razão é o teu proprio crédito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Meu crédito?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena póde vir a amar-te como lhe mereces: mas a verdade é que não
-sente ainda hoje egual paixão á tua; foi o padre-mestre que m'o disse.
-Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão; e eu creio que a
-flor do sentimento é muito mais propria no canteiro do matrimonio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ha muita flor nesse ramalhete de rhetorica, interrompeu
-benevolamente o padre. Falemos linguagem singella e nua. Não creia
-litteralmente o que lhe diz este philosopho, proseguiu elle voltando-se
-para Mendonça; elle ama-os e quer vel-os felizes; é o proprio zêlo
-quem lhe faz falar assim. N'uma palavra; deseja que o senhor a conquiste
-depois de campanha formal...
-</p>
-
-<p>
-Mendonça respondeu ao capellão com um sorriso pallido, que lhe
-arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso e
-frio. Seu rosto ficára carregado e pensativo; a lingua de Estacio
-tocara-lhe o coração. Disposto a aceitar a estima e a sympathia de
-Helena com a esperança de converter esse pequeno dote em avultado
-capital, não lhe occorrêra que a olhos extranhos podia parecer que seu
-fim exclusivo era a riqueza da moça. Estacio rompêra o veu a essa
-probabilidade. Uma só palavra desfizera a illusão de poucos dias.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vamos la,&mdash;disse o padre,&mdash;abracem-se como irmãos.
-</p>
-
-<p>
-Nenhum delles se mexeu, Melchior sentiu toda a gravidade da situação;
-viu perdidos seus esforços, desfeita a união assentada, um abysmo
-cavado entre os dous amigos, incerto o destino de Helena. Interveiu
-outra vez com palavras de brandura, que os dous ouviram sem interromper.
-Quando acabou:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O Estacio tem razão, disse Mendonça; meu crédito padecerá desde
-que alguem se lembre de dizer que o casamento foi arranjado sem nenhuma
-preoccupação das preferencias de D. Helena. Ella me desobrigará, em
-troca da palavra que lhe restituo.
-</p>
-
-<p>
-A phrase brotou-lhe dolorida, mas sem hesitação nem fraqueza. Estacio
-olhava para elle e sentia alguma cousa semelhante a um remorso. Uma voz
-interior parecia dizer-lhe:&mdash;«Somnambulo, abre os olhos, tem
-consciencia de tuas acções; teu abraço enforca; teus escrupulos fazem-te
-odioso; tua solicitude é peor do que a colera.» Via o mancebo
-cortejar o padre; deteve-o pelo braço.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Onde vaes? disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vou aonde me leva o pundonor, disse singellamente Mendonça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pobres rapazes! exclamou o padre. São dous estouvados, nada mais; um
-quer catar argumentos onde sua irmã só achou nobre o franca
-resolução; o outro rompe de coração leve uma promessa feita em
-presença de um sacerdote! Estouvados disse eu? São mais do que isso;
-são dous dementes. Ora, como só eu tenho juizo e consequente
-autoridade, digo que nem um ha de sahir assim desenganado, nem o outro
-ha de recusar a acquiescencia que lhe peço em nome de seu finado pae.
-</p>
-
-<p>
-Estacio estremeceu; Mendonça conservou-se frio. A arma era rija, mas o
-golpe excedia a necessidade; Mendonça não quereria dever a espôsa á
-evocação do nome do conselheiro: equivalia a um rapto. Percebeu-o
-Melchior, quando viu Estacio estender a mão ao amigo, mão que este
-recebeu com dignidade e frieza. Contaria Estacio com essa mesma repulsa
-do pretendente? O certo é que lhe disse sem a menor sombra de
-hesitação:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Meu zêlo foi talvez excessivo; mas a intenção é boa e pura. Que
-posso eu desejar senão ver felizes os meus? Amem-se; será a remate de
-minhas aspirações. Promettes fazel-a feliz?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não prometto nada, disse Mendonça; o casamento é ja impossivel. Tu
-abriste-me os olhos; não te quero mal por isso. Perco muito, é certo;
-mas não me exponho á lingua dos maus.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça foi buscar o chapeu e dispoz-se a sahir, não obstante a
-intervenção de Melchior, que procurou trazel-o a sentimentos de
-reconciliação. Não insistiu o padre; viu no rosto do mancebo uma
-resolução digna e firme, que era impossivel dobrar naquelle momento.
-Quando Mendonça, lhe estendeu a mão em despedida, elle apertou-lh'a
-com ternura e esperança. Estacio tentou ainda retel-o; foi inutil;
-Mendonça sahiu dalli sem rancor, mas sem pezar. O coração
-sangrava-lhe; mas a consciencia ia contente.
-</p>
-
-<p>
-Melchior foi até á porta, a despedir-se do Mendonça. Quando este
-sahiu, elle voltou o rosto para dentro, cruzou os braços e fitou o
-sobrinho de D. Ursula. O moço desviou as olhos; não foi o medo que os
-torceu, mas a vergonha.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Viu? perguntou o padre. Não sei qual seja a sua resolução; mais
-prometto-lhe que serei como Mahomet,&mdash;Deus me perdoe!&mdash;ainda que
-veja o sol á minha direita e a lua á minha esquerda, não deixarei de
-executar o meu designio. Va ter com sua familia; deixe-me alguns
-instantes com o meu breviario.
-</p>
-
-<p>
-Estacio não pôde resistir á intimação do sacerdote; não achou uma
-palavra para lhe dizer. Sahiu aturdido, desconsolado, colerico. Na rua e
-na chacara, ia pensando na scena daquella ultima hora, e parecia apenas
-reconstruir um sonho. Desconhecia-se, apalpava a intelligencia, chamava
-em seu auxilio todas as fôrças da realidade; olhava para o chão
-suspeitoso de que ia calcando as nuvens. Quando a razão tomou pe no
-meio de lembranças tão desconcertadas, elle viu claramente o resultado
-de suas acções: perdia um amigo de longos annos e abdicava a
-direcção da familia, pelo menos em relação ao casamento da irmã. Se
-ésta lhe agradecesse a resistencia, Estacio dar-se-hia por bem pago de
-tudo. Não era em seu favor que elle conspirara? Este pensamento
-levantou-lhe o ânimo; tivesse a approvação de Helena, pouco lhe
-importaria o resto.
-</p>
-
-<p>
-Helena ouviu-lhe a narração fiel do que se passára em casa de
-Melchior. Ouviu-a commovida; no fim reprovou tudo o que elle fizera.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mendonça é ja o fructo prohihido, concluiu a moça; começo a
-amal-o. Se ainda assim me obrigar a desistir do casamento, adoral-o-hei.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Chegamos ao capricho! exclamou elle; é o fundo do coração de todas
-as mulheres.
-</p>
-
-<p>
-Helena sorriu e voltou-lhe as costas. Subiu a seu quarto, travou de uma
-penna e escreveu um bilhetinho. A tinta seccou primeiro que duas grossas
-lagrymas cahidas no papel; mas as lagrymas seccaram tambem. Antes de
-fechar o bilhete, desceu Helena a mostral-o ao irmão.
-</p>
-
-<p>
-Quando a moça entrou no gabinete, Estacio ia ter com ella. Sua
-resolução estava assentada. Uma vez que a irmã aceitava de boa
-feição o casamento, não havia mais que approval-o e celebral-o.
-Encontraram-se na porta; Estacio recuou para dentro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena, disse elle, faça-se a tua vontade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Consente?
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez um gesto affirmativo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não basta isso, tornou a moça; Mendonça não voltará ca depois do
-que se passou. Peço-lhe a remessa deste bilhete.
-</p>
-
-<p>
-Estacio abriu o bilhete; continha éstas poucas palavras: «Venha hoje a
-Andarahy; é o meu coração que o pede e a nossa felicidade que o
-exige.» Cinco minutos gastou o moço a ler as duas linhas; leu o que
-estava escripto e o que não estava. Helena desarmava os escrupulos de
-Mendonça, tirando á futura união qualquer suspeita de interesse. Leu
-e fechou lentamente o papel.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Approva? perguntou a moça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Assim, pois, disse o moço tristemente, a tua felicidade exige que
-esse homem venha ca, que te cases com elle, que nos fujas? Não te basta
-a familia, a affeição de nossa tia, a minha propria affeição? Estes
-mezes de doce intimidade vão ser esquecidos em um só instante,
-sacrificados aos pes do primeiro homem que te apraz escolher e seguir?
-No dia em que penetraste nesta casa, entrou contigo um raio de luz nova,
-alguma cousa que nos faltava e que tu trouxeste contigo; nossa familia
-completou-se; nossos corações receberam um sentimento ultimo.
-Pensavamos que isto seria duradouro, e era simplesmente fugaz. Oh!
-Helena, melhor fôra não ter vindo!
-</p>
-
-<p>
-Helena quiz responder; mas a voz travou-se-lhe na garganta, e a palavra
-retrocedeu ao coração. Apontou para o papel como pedindo-lhe ainda uma
-vez que o enviasse e saiu.
-</p>
-
-<p>
-De tarde, appareceu Melchior; ia tranquillo e e resoluto a dar um golpe
-decisivo. Estacio rendeu-se antes que elle falasse.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Padre-mestre, disse o moço logo que o viu; a reflexão venceu-me;
-faça-se a vontade de todos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Fala de coração?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De coração.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois bem, seja completo; tomou o padre. Sou ministro de uma religião
-que condemna o orgulho. Não ha dezar em curar as feridas de um amigo;
-va ter com o seu amigo; traga-o a esta casa como irmão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Irei amanhã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não; va hoje mesmo.
-</p>
-
-<p>
-A noite cahiu logo; Estacio foi dalli vestir-se. Não tendo enviado o
-bilhete de Helena, metteu-o na algibeira para entregal-o elle proprio;
-depois tirou-o e releu-o; tendo-o relido, fez um gesto para rasgal-o,
-mas conteve-se e perpassou-o ainda uma vez pelos olhos. A mão, á
-semelhança de mariposa indiscreta, parecia attrahida pela luz;
-resistiu, resistiu algum tempo; emfim chegou o bilhete, á vela e
-queimou-o.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XX">CAPITULO XX</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-A visita de Estacio não causou nenhum espanto a Mendonça; elle a
-esperava com a confiança das indoles ingenuas e avessas ao odio. Não
-era crivel que um amigo de longos annos dormisse sobre a injustiça de
-um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estacio procurou o
-pretendente de Helena.
-</p>
-
-<p>
-Entrou elle naturalmente em casa de Mendonça; sem expansão nem secura.
-A entrevista foi breve, mas cordial; houveram-se os dous com affectuosa
-dignidade. Estacio explicou seus escrupulos; declarou-se contente com a
-alliança. O contentamento podia existir; todavia a manifestação foi
-parca e sêcca. Houve mais calor e expansão quando elle lhe pediu que
-désse vida feliz á irmã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sera para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada,
-disse elle. Não tivemos o mesmo berço; vivemos nossa infancia debaixo
-de tecto differente; não aprendemos a falar pelos labios da mesma
-mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pae recommendou-a
-a nossa familia e ella correspondeu ao sentimento que dictou essa
-ultima e solemne vontade.
-</p>
-
-<p>
-Mendonça nas respondeu nada; elle reflectira durante a noite nas palavras
-que ouvira a Estacio no dia anterior;&mdash;palavras que bem podiam
-ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem
-de seu casamento. Helena viria a amal-o, talvez; mas desde logo lhe
-levava para casa a chave da independencia. Mendonça recuou. Quando o
-padre Melchior o soube, não pode conter um gesto de admiração; mas se
-louvou o escrupulo, não approvou a resolução, que vinha derrubar
-tudo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não tapará nunca a boca aos maus, disse o padre; elles acharão meio
-de envenenar sua propria generosidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Paciencia! tornou o moço; é menor esse perigo. Se casar, dirão que
-faço uma operação vantajosa; talvez sua familia o supponha; talvez
-ella propria o pense.
-</p>
-
-<p>
-Helena teve noticia dos receios de seu pretendente e da resolução a
-que parecia inclinar o coração. Foi a elle; perguntou-lhe se era
-verdade. Mendonça affirmou que sim. Ella contemplou-o longamente sem
-dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com effusão; elle
-persistiu.
-</p>
-
-<p>
-No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de
-faceirice,&mdash;dessa que rara vez deixa de enfeitar os mais puros e
-nobres sentimentos. A moça o percebeu, mas nem por isso deixou de crer na
-sinceridade do rapaz. Creu; tentou dissuadil-o; e posto nada alcançasse
-nos primeiros minutos, estava certa de que triumpharia afinal do
-derradeiro obstaculo. Seus olhos seriam mais habeis e felizes que os
-labios do padre. Foi o que ella disse ao capellão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tomo á minha conta effectuar este casamento, continuou Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Resolvida a tudo?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A tudo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas se elle insistir...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se elle insistir, vencel-o-hei, ou por um modo ou por outro. Uma
-moça que quer ser noiva vale por um exercito; eu sou um exercito.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Muito bem! Contudo, sua dignidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! em último caso abro mão da herança.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Era capaz disso? perguntou Melchior.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se era capaz? Desejo-o até,&mdash;disse a moça com vehemencia.
-</p>
-
-<p>
-E accrescentou em tom mais brando:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a minima
-desconfiança.
-</p>
-
-<p>
-Tal era a situação, dous dias depois da volta de Estacio. O casamento
-podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao nobre desinteresse de
-Helena. D. Ursula approvou tudo com effusão e amor, nada sabendo das
-incertezas e contradições dos ultimos dias.
-</p>
-
-<p>
-Na noite desse dia, Estacio escreveu para Cantagallo dando notícias
-suas. Do casamento de Helena falou pouco; quasi nada. Tudo o
-descontentava: tanto o que elle fizera e dissera, sem proveito, como o
-desenlace da situação. Não soubera oppor-se com efficacia nem
-applaudir opportunamente.
-</p>
-
-<p>
-Posto fôsse tarde o somno teimava em fugir-lhe dos olhos e elle velou
-até muito além de meia noite. Occupado, sem dúvida em adormecer
-organisações menos sensiveis e existencias menos complicadas, o somno
-fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas de manhã, Estacio
-accordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quasi toda a familia
-dormia. Estacio desceu; o unico escravo que achou levantado preparou-lhe
-uma chicara de cafe. Não tendo ainda chegado os jornaes, bebeu-a sem a
-leitura do costume.
-</p>
-
-<p>
-Quem sabe o que é fortuito ou providencial, e por que fios tenues se
-prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estacio ouviu o som
-longinquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a supposição deu-lhe
-ideia de ir caçar. Elle não era um Nemrod na habilidade, mas era-o na
-vocação. Foi buscar a espingarda, proveu-se de polvora e chumbo, e
-sahiu.
-</p>
-
-<p>
-Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuido naquella
-manhã, ou por que a mão estivesse menos firme, ou por que a vista
-andasse menos segura. Estacio caminhára longo tempo sem pensar no fim
-que o levava; ia absorto,&mdash;alheio ao logar e ás cousas. Fez algumas
-tentativas de caça; mas deixou de mão o recreio. Quando cançou de
-errar, consultou o relogio e viu que não era cedo. Tinha o braço
-cançado de suster a espingarda; só então reparou que uso trouxera cm
-pagem consigo. Dispoz-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a
-intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de nupcias.
-Depois desceu, em caminho para casa.
-</p>
-
-<p>
-Vinha descendo, com a espingarda debaixo do braço, e os olhos no chão,
-a passo lento, apezar de serem oito horas dadas. De uma vez que ergueu
-os olhos viu um caso extranho que lhe fez deter o passo. Um pouco
-abaixo, sahia de traz de uma casa velha, o pagem de Helena, conduzindo a
-mola e a egua. Estacio não soube que pensar daquillo; mas, cedendo a um
-impulso que não pôde dominar, deu um salto por cima de uma cêrca do
-espinhos, agachou-se e esperou o resto.
-</p>
-
-<p>
-O resto não se demorou muito. Assomou á porta da frente a figura de
-Helena. Depois de olhar cautellosamente para um e outro lado, sahiu e
-montou na egua; o pagem cavalgou a mula e os dous desceram a trote.
-</p>
-
-<p>
-Estacio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo apertava o
-primeiro objecto que achou debaixo das mãos; era a cêrca de espinhos.
-A dor fel-o voltar a si; tinha a mão ensanguentada. Ao longe cavalgavam
-Helena e o pagem. Logo que os viu desaparecer, Estacio saltou de novo á
-estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direcção á casa
-d'onde vira sahir a irmã. Era a mesma da bandeirinha azul, que Helena
-comprimentá-la de longe, alguns mezes antes, e não esquecera de
-reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos annos delle. Estas
-circumstâncias, antes indifferentes, appareciam-lhe agora como outros
-tantos artigos de um libello.
-</p>
-
-<p>
-O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a
-caliça das paredes e das columnas ia cahindo, e o esqueleto de tijolo
-estava a nu em mais de um logar. Alguma herva mofina brotava a custo
-juncto ás paredes, cobrindo com suas folhas descoloridas o chão
-desegual e humido. Por baixo de uma das janellas havia um banco de pau,
-gretado pelo tempo, com as bordas roliças do longo uso. Tudo alli
-respirava penuria e senilidade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, dizia Estacio consigo, não é este o asylo de um Romeo de
-contrabando. Mora aqui alguma familia pobre, que a caridade engenhosa de
-Helena vem afagar de longe em longe.
-</p>
-
-<p>
-A solução do enigma pareceu-lhe tão natural, que o moço resolveu
-parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para traz. Mas a
-suspeita é a tenia do espirito; não perece em quanto lhe resta a
-cabeça. Estacio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquillo era,
-e voltou sôbre seus passos. Para entrar alli era necessario um motivo
-ou ura pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos.
-Olhou para a mão ferida e ensanguentada, e foi bater á porta.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXI">CAPITULO XXI</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Poucos instantes esperou Estacio. Veiu um homem abrir-lhe a porta; era o
-mesmo que elle vira alli uma vez. Entre ambos houve meio minuto de
-silêncio, durante o qual nem Estacio se lembrou de dizer o que queria,
-nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que desejava? disse enfim o dono da casa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um favor, respondeu Estacio, mostrando-lhe a mão ferida. Ia a cahir
-ha pouco; procurando amparar-me, n'uma cêrca de espinhos, feri-me, como
-ve. Podia dar-me um pouco d'agua para lavar este sangue, e...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois não, interrompeu o outro. Queira sentar-se ahi no
-banco,&mdash;ou, se prefere, entrar... É melhor entrar, concluiu
-abrindo-lhe caminho.
-</p>
-
-<p>
-Em qualquer outra occasião, Estacio teria recusado o convite, porque o
-expectaculo da miseria repugnava aos olhos saturados de opulencia.
-Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu
-uma das janellas para dar mais alguma luz, offereceu ao hóspede a melhor
-cadeira e foi por um instante ao interior.
-</p>
-
-<p>
-Estacio pôde então examinar, á pressa, a sala em que se achava. Era
-pequena e escura. A parede, pintada a colla, ja de longa data, tinha em
-si todos os signaes do tempo; primitivamente de uma só côr, a pintura
-apresentava agora uma variedade triste e desagradavel. Aqui o bolor,
-alli uma grêta, acola o rasgão produzido por um movel; cada accidente
-do tempo ou do uso dava áquellas quatro paredes o aspecto de um asylo
-da desgraça. A mobilia era pouca, velha, mesquinha e desegual. Cinco ou
-seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma commoda e uma
-marqueza, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de
-latão, sôbre a mesa um vaso de louça com flôres, e na parede dous
-pequenos quadros cobertos de escomilha encardida, taes eram as alfaias
-da sala. So as flôres davam alli um ar de vida. Eram frescas, colhidas
-de pouco. Atentando nellas, Estacio estremeceu: pareceu-lhe reconhecer
-uma acacia plantada em sua chacara. Quando a suspeita germina na alma, o
-menor incidente assume um aspecto decisivo. Estacio sentiu um calafrio
-por todo o corpo.
-</p>
-
-<p>
-Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma
-toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a côr da parede e o
-aspecto senil da casa. Estacio ergueu-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Deixe-se estar, disse o desconhecido.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou perfeitamente bem.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nesse caso, faça o favor de chegar á janella.
-</p>
-
-<p>
-A bacia foi posta na janella; o desconhecido quis lavar elle proprio a
-mão do hóspede; mas o moço não lh'o consentiu.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ao menos, disse o dono da casa, hade consentir que a enxugue. Eu
-entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui nenhum medicamento
-caseiro para applicar.
-</p>
-
-<p>
-Estacio aceitou o offerecimento. O dono da casa abriu a toalha e
-começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D. Ursula pôde
-então examiná-lo á vontade.
-</p>
-
-<p>
-Era um homem de trinta e seis a trinta e oito annos, forte de membros,
-alto e bem proporcionado. Uma cabelleira espessa e comprida, de um
-castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quasi tocar nos hombros. A
-fronte elevada, tinha um ar de serenidade olympica. Os olhos eram
-grandes, e geralmente quietos, mas riam-se, quando sorriam os labios,
-animando-se então de um brilho intenso, ainda que passageiro. Havia
-naquella cabeça,&mdash;salvo as suiças,&mdash;certo ar de tenor italiano. O
-pescoço, cheio e forte, surgia d'entre dous hombros largos, e, pela
-abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo,
-podia Estacio ver-lhe a alva côr e a rija musculatura. Vestía pobre,
-mas limpamente, um rodaque branco, calça de ganga e collete de brim
-pardo. A <i>toilette</i> mas que disparatada e mesquinha, não diminuia a
-belleza mascula da pessoa; accusava somente a penuria de meios.
-</p>
-
-<p>
-Quando elle acabou de lavar os arranhões de Estacio,&mdash;eram pouco mais
-do que isso,&mdash;propoz-se a ir buscar um pedaço de panno afim de
-atar-lhe a mão; Estacio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que
-trazia, e o dono da casa completou o summario curativo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Prompto! disse elle. Se tiver em casa algum medicamento apropriado,
-será conveniente applical-o. Toda a cautella é pouca; convem evitar
-alguma inflammação.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Obrigado, respondeu Estacio. Realmente, vim dar-lhe uma massada, sem
-grande necessidade talvez.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Podia fazer isto mesmo quando chegasse a casa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mora perto?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um pedaço abaixo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Foi conveniente curar ja; nenhuma precaução é inutil em cousa,
-nenhuma da vida.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Maxima de prudencia, observou Estacio procurando sorrir.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que só aprende tarde quem não a traz na massa do sangue, replicou o
-outro suspirando.
-</p>
-
-<p>
-A não ser indiscreto ou fallador, era difficil levar a conversa por
-diante. O favor estava feito, o assumpto exgotado. Restava agradecer,
-despedir-se e sahir. Estacio, entretanto, tinha necessidade de mais
-tempo; queria arrancar áquelle homem uma palavra menos indifferente á
-situação, ou conhecer-lhe, se fôsse possivel, o caracter e os
-costumes. Para isso havia talvez um meio; contrafazer-se, affectar
-maneiras extranhas ás suas, apegar-se á occasião por todas as bordas.
-Estacio determinou-se a isso, confiando o resto do acaso. Voltou á
-cadeira e sentou-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Consente que descance um pouco? Estou fatigadissimo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não pelo que caçou, disse o desconhecido rindo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador; e tenho, não
-obstante, a mania de atirar aos passaros.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de
-cousas? Eu fui victima desse defeito mortal.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ah! exclamou Estacio com certa entonação interrogativa.
-</p>
-
-<p>
-O dono da casa sorria levemente; mas não pareceu molestal-o a
-curiosidade do hóspede;&mdash;talvez mesmo não desejasse outra cousa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É verdade,&mdash;disse elle; devo a minha actual penuria ao erro de
-teimar em cousas extranhas á minha indole e aptidão, extranhas e totalmente
-oppostas...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Hade perdoar-me,&mdash;interrompeu Estacio com um ar de
-familiaridade indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que um homem,
-forte, moço e intelligente não tem o direito de cahir na penuria.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sua observação,&mdash;disse o dono da casa sorrindo,&mdash;traz o
-sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente ésta manhã antes de
-sahir para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossivel
-comprehender as lutas da miseria; e a maxima de que todo o homem póde,
-com esfôrço, chegar ao mesmo brilhante resultado, hade sempre parecer
-uma grande verdade á pessoa que estiver trinchando um peru. Pois não
-é assim; ha excepções. Nas cousas deste mundo não é tão livre o
-homem como suppõe; e uma cousa, que uns chamam mau fado, outros
-concurso de circumstâncias, e que nós baptisámos com o genuino nome
-brazileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fructo de seus mais
-herculeos esforços. Cesar e sua fortuna! toda a sabedoria humana está
-contida nestas quatro palavras.
-</p>
-
-<p>
-O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo,
-e uma facilidade de elocução, que Estacio mal lhe podia suppor. Era
-aquillo uma comedia ou a expressão da verdade? Estacio olhou fixamente
-para elle, como a querer penetral-o. Ao mesmo tempo ouviu-se um rumor na
-parte da casa que ficava além da sala; Estacio voltou a cabeça com um
-gesto de desconfiança. A porta abriu-se e appareceu uma preta velha
-trajando nas mãos uma bandeja. A creada estacou a meio caminho.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Põe em cima da mesa, disse o dono da casa. É o meu
-almôço,&mdash;continuou elle, voltando-se para Estacio; almôço parco e
-hygienico. Ousarei offerecer-lh'o?
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez um gesto negativo, e dispoz-se a sahir.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja! Não é meu intento despedil-o; almoçarei conversando. Vivo tão
-solitario, que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto.
-</p>
-
-<p>
-Estacio aceitou sem difficuldade o convite; sentou-se defronte do homem,
-ao pe da mesa, e assistiu ao almôço, que não podia ser mais escasso:
-um pão, duas hostias de queijo duro, e uma chavena de cafe. O que mais
-valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que
-ostentava aos olhos de um extranho a simplicidade de seus habitos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não é refeição de principe,&mdash;dizia elle,&mdash;mas satisfaz
-todas as ambições de um estomago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e
-a sala de jantar; a cosinha é contigua; além, ficam duas braças de
-quintal; para la do quintal... o infinito da indifferença humana.
-</p>
-
-<p>
-E depois de um silêncio:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não digo bem, emendou elle; nem sempre acho indifferença. Meu
-trabalho não me dá mais do que o escasso pão de cada dia; mas tenho
-algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresma; e essas recebo-as
-de mãos caridosas e puras.
-</p>
-
-<p>
-Dizendo isto, o desconhecido exgotou a chavena, e reclinou-se sôbre a
-cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede. Estacio reflectiu nas
-últimas palavras, e um raio de esperança veiu rasgar-lhe a nuvem que
-lhe entenebrecia a fronte. Os dous homens pareciam interrogar-se. O
-filho do conselheiro saccou do bolso um charuto e offereceu-o ao dono da
-casa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Obrigado, disse este.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não fuma?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja fumei; hoje economiso esse vicio. Nem por isso faço mais
-lentamente a digestão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mora só?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Só.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não tem familia?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nenhuma.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Hade achar-me singularmente indiscreto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não; supponho que sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Acertou; sua pessoa inspira-me sympathia; e se eu conhecesse alguma
-dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dar-me-hia, por intermedio dellas, o seu obolo?...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se o não offendesse...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não offendia, mas eu recusava, se soubesse; e peço-lhe desde ja que
-o não faça ás escondidas...
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez um gesto de assentimento.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a
-pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obsequio, um simples dever
-de visinho... Pareceria que o senhor m'o pagava com um beneficio. O
-beneficio seria menos expontaneo de sua parte, e menos agradavel para
-mim. Agradavel não exprime, talvez, toda a minha ideia; mas o senhor
-facilmente comprehenderá o que quero dizer.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Entendeu-me mal; o meu obolo não seria na especie a que o senhor
-allude. Tenho amigos, e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor
-posição.
-</p>
-
-<p>
-O desconhecido reflectiu um instante.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Aceitaria? perguntou Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale, Eu
-vexar-me-hia eternamente de dever qualquer melhoria da sorte ao
-cumprimento de um dever de caridade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja me não admira a vida pobre que tem tido.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Excessivo escrupulo, talvez?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Escrupulo desarrazoado.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Antes de mais que de menos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nem de menos nem de mais; mas só a porção justa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A porção varia conforme as necessidades moraes de cada um. Mas, eu
-mesmo, que lhe estou a falar nem sempre tive ésta virtude intratavel; e
-por ventura alguma vez fraqueei.
-</p>
-
-<p>
-A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos labios,
-e os olhos cahiram naquella atonia que exprime uma grande concentração
-de espirito. Era occasião de interrogal-o directamente ou sahir.
-Estacio preferiu o último alvitre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não o quero demorar mais,&mdash;disse o dono da casa quando o
-mancebo proferiu as palavras de despedida. Ja é tarde, e sua mãe talvez
-esteja anciosa...
-</p>
-
-<p>
-Estacio limitou-se a olhar para elle em cheio,&mdash;dizendo:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Se alguma vez resolver dar de mão a seu a escrupulos, mande
-procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andarahy pela&mdash;casa do
-Conselheiro Valle...
-</p>
-
-<p>
-O desconhecido, era cujo rosto Estacio esperou ver um signal qualquer de
-abalo ou sorpresa, conservou-se impassivel e risonho. Curvou-se em
-signal de agradecimento; e como Estacio hesitasse em estender-lhe a
-mão, elle metteu as suas nas algibeiras.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Talvez nos vejamos ainda, disse Estacio ja fóra da porta.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Passeio algumas vezes por estes lados.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nem sempre estou em casa; mas ainda estando, conservo fechadas as
-cousas. Quando quizer descançar, bata; a casa é pobre, mas será amiga.
-</p>
-
-<p>
-Estacio affastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; elle
-não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino,
-achava-se no meio de uma seiva escura, a egual distância da estrada
-recta,&mdash;<i>diritta via</i>&mdash;e da fatal porta, onde temia ser
-despojado de todas as esperanças. Nada sabia; nada conjecturava; eram tudo
-novas dúvidas e oscillações. O homem com quem acabava de conversar
-parecia-lhe sincero; sua pobreza era authêntica; sensivel a nota de
-melancholia que por vezes lhe afrouxava a palavra. Mas onde cessava alli
-a realidade e começava a apparencia? Vinha de tratar com um infeliz ou
-um hypocrita? Estacio rememorou todos os incidentes da manhã, e todas
-as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação
-suspeitos e irrespondiveis. Seu espirito repellia com horror a ideia do
-mal; mas custava-lhe a acceitar a ideia do bem; e a peor das
-angústias,&mdash;a dúvida,&mdash;continha-o todo e agitava-o, em suas mãos
-felinas. O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de perolas de suor;
-ao offego da marcha apressada juntava-se o da violenta commoção.
-Estacio não via os objectos que ia costeando, nem as pessoas que lhe
-passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o
-despertasse.
-</p>
-
-<p>
-Chegou enfim a casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a
-espingarda. Sua demora causára alguma inquietação á familia; logo
-que as duas senhoras souberam de seu regresso correram a recebel-o,
-ficando D. Ursula a uma janella, e descendo Helena até meio caminho. A
-apparição subita da moça, a alegria e o amor, que pareciam
-impelli-la, como duas azas sanctas, a perfeita ingenuidade de seu gesto,
-tudo produziu nelle a necessaria reacção,&mdash;reacção de um
-instante,&mdash;mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estacio
-apertou as mãos da moça com a energia do náufrago. Um fluido subtil
-percorreu as fibras de Helena; e aquelle rapido instante teve toda a
-doçura de uma reconciliação.
-</p>
-
-<p>
-Estacio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem suas ideias,
-comparal-as, extrahir uma conjectura pelo menos, e verifical-a ou
-desmentil-a. Mas nem a tia nem a irmã haviam almoçado, á espera
-delle; e forçoso lhe foi acompanhal-as na satisfação de uma
-necessidade que não sentia. Durante o almôço, Estacio procurou
-observar Helena; trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma
-cousa trahia nessa occasião, eram as alegrias ineffaveis da familia.
-Ella propria servia por suas mãos a Estacio e D. Ursula; inexcedivel na
-attenção com que sabia repartir-se entre os convivas não o era menos
-no carinho e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorancia do mal,
-e o sorriso em o das almas candidas. Poder-se-hia attribuir áquella
-creatura de dezesete annos corrupção e hypocrisia? Estacio
-envergonhou-se de tal ideia; sua alma sentiu as vertigens do remorso.
-</p>
-
-<p>
-Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao
-gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estacio buscou
-dominar a situação. Elle não ia ao ponto de suppor em Helena a
-completa perversão dos sentimentos; o limite do mal, que se lhe podia
-attribuir, era o de uma culposa leviandade. Se em vez de um acto
-leviano, fôsse aquillo um simples estratagema de caridade, Helena não
-mereceria menos uma advertencia, mas a pureza da intenção salvava
-tudo, e a paz da familia, não menos que o seu decoro, se restabeleceria
-inteira. Estacio examinou um por um todos os indicios de culpabilidade
-e de innocencia; buscou sinceramente os elementos de prova; não
-esqueceu um só argumento de inducção. Nesse trabalho despendeu longas
-horas, sem resultado apreciavel, pela razão de que, se a sentença era
-difficil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a
-dignidade e a affeição, seu espirito balouçava incerto.
-</p>
-
-<p>
-Quasi á hora do jantar, Estacio, que não sahira uma só vez do
-gabinete, chegou a uma das janellas, e viu atravessar a chacara a mais
-humilde figura daquelle enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o
-pagem. O pagem appareceu-lhe como uma ideia nova; até aquelle instante
-não cogitára nelle uma só vez. Era o confidente e o complice. Ao vel-o
-recordou-se que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquelle escravo.
-A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a colera cedeu á angústia, e
-elle sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lagryma.
-</p>
-
-<p>
-Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXII">CAPITULO XXII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Não era preciso grande esfôrço para adivinhar a dona das mãos.
-Estacio, com as suas, affastou as mãos de Helena, segurando-lhe os
-pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os
-olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Voce é muito mau! Pagou-me a caricia com um apertão. Deixe estar que
-nunca mais cahirei em outra. Vim vel-o, por que voce hoje não se
-lembrou ainda de dar á gente um ar de sua graça... Doeu-me!&mdash;continuou
-ella olhando para os pulsos.&mdash;Mas... tenho os dedos molhados;
-seria... voce estaria... que é? que foi?
-</p>
-
-<p>
-Estacio, que ouviu a discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar
-ancioso, não lhe respondeu ás últimas interrogações, e continuou a
-olhar para ella, como a querer ler na physionomia da moça a
-explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, atterrada
-e afflicta. Indo pegar-lhe nas mãos, Estacio desviou o corpo,
-dirigiu-se á parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia
-de seus annos, e approximou-se da moça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que é? repetiu ésta admirada.
-</p>
-
-<p>
-A unica resposta de Estacio foi estender o dedo sôbre a mysteriosa casa
-reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e
-para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste, fel-a
-attentar no ponto indicado. Subito empallideceu; seus labios tremeram
-como a murmurar alguma cousa, mas a alma falou tão baixo que a palavra
-não chegou á boca. Durou aquillo poucos instantes. A angústia lia-se
-no rosto dos dous; a moça, para occultar a sua, cobriu os olhos com as
-mãos. O gesto era eloquente; Estacio lançou para longe de si o quadro,
-com um movimento de colera. Helena atirou-se para o corredor.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes,
-dirigiu-se ella propria ao gabinete de Estacio. A porta estava aberta;
-D. Ursula entrou e deu com elle, sentado n'uma poltrona, com o lenço na
-cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permittiam
-os annos. Estacio não a ouviu entrar; só deu por ella quando as mãos
-da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos. O assombro de D. Ursula
-foi indescriptivel, sobretudo quando Estacio, erguendo-se, atirou-se-lhe
-aos braços, exclamando:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que fatalidade!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas... que é?... explica-te.
-</p>
-
-<p>
-Estacio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com o
-gesto decidido de um homem que se envergonha de um acto de debilidade.
-O vestigio das lagrymas dava-lhe aquelle cunho tocante e severo, que as
-grandes dores imprimem no rosto humano. A explosão desabafara-lhe o
-espirito; elle podia enfim ser homem, o era preciso que o fôsse. D.
-Ursula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicavel
-afflicção em que viera achal-o. Estacio recusou dizel-a.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Saberá tudo amanhã, ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e
-eu sei o que elle me ha custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu
-conselho e apoio.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula resignou-se á demora. Quando chegou á sala de jantar achou
-um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira repentinamente
-incommodada e que a dispensasse naquella tarde e noite. D. Ursula
-suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a
-afflicção de Estacio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meia
-inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada e o corpo tranquillo e
-como morto. Ao sentir os passos de D. Ursula, ergueu a cabeça. A
-pallidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lagrymas.
-A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificado naquella face
-immovel e fria como o granito. O que restava ainda vivo na figura da
-moça eram os olhos, que não perderam o fulgor natural. Ella ergueu-os
-a medo, e abraçou a tia com um olhar de súpplica e de amor. D. Ursula
-travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Conta-me tudo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Saberá depois! suspirou a moça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não tens confiança em tua tia?
-</p>
-
-<p>
-Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lagrymas
-rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que elles verteram
-naquella meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Póde receber estes beijos,&mdash;disse ella,&mdash;os anjos não os
-tem mais puros.
-</p>
-
-<p>
-Foram as últimas palavras que D. Ursula pôde arrancar-lhe; a moça
-recolheu-se ao profundo silêncio em que ella a encontrou. D. Ursula
-sahiu; e foi dalli ter com Estacio. O sobrinho encaminhava-se para a
-sala de jantar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vamos para a mesa, disse elle,&mdash;não convem que os escravos
-saibam de taes crises.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula referiu o estado em que achára Helena e as palavras que
-trocára com ella. Estacio ouviu-a sem nenhuma expressão de sympathia.
-O jantar foi um simulacro; era um meio de illudir a perspicacia dos
-escravos, que alias não cahiam naquelle embuste. Elles conheceram
-perfeitamente que algum acontecimento occulto trazia suspensos e
-concentrados os espiritos. As iguarias voltavam quasi intactas; as
-palavras eram trocadas com esfôrço entre a sinhá velha e o senhor
-moço. A causa daquillo era com certeza nanhã Helena, que estava
-ausente.
-</p>
-
-<p>
-Estacio deu ordem para que a todas as pessoas extranhas se declarasse
-estar ausente a familia. A unica excepção era o padre Melchior. A esse
-escreveu pedindo-lhe que os fôsse ver.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não posso esperar até amanhã, disse D. Ursula; se tens de revellar
-alguma cousa a um extranho, por que o não fazes a mim primeiro? Dize-me
-o que ha. Não posso ver padecer Helena; quero consolal-a e animal-a.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O que tenho para dizer é longo e triste,&mdash;retorquiu Estacio;
-mas, se deseja sabel-o desde ja, peço-lhe ao menos que espere a presença do
-padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas cousas; seria
-revolver o punhal na ferida.
-</p>
-
-<p>
-A curiosidade de D. Ursula cresceu com éstas meias palavras do
-sobrinho; mas era forçoso esperar e esperou. Foi dalli ao quarto de
-Helena, Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena
-escrevia. Ésta nova circumstância veiu complicar as impressões de D.
-Ursula.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ella ao sobrinho.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Naturalmente, respondeu este com sequidão.
-</p>
-
-<p>
-O padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estacio. O
-bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia
-ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; elle o
-reconheceu desde logo, não só no aspecto lugubre da familia, como na
-ancia com que era esperado. Os tres recolheram-se a uma das salas
-interiores.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena? perguntou Melchior.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vamos tratar della, respondeu Estacio.
-</p>
-
-<p>
-Referir o que se passára naquella fatal manhã era mais facil de
-planear que de executar. No momento de expor a situação e as
-circumstâncias della, Estacio sentiu que a lingua rebelde não obedecia
-á intenção. Achava-se n'um tribunal doméstico, e o que até então
-fôra conflicto interior entre a affeição e a dignidade, cumpria agora
-reduzil-o ás proporções de um libello, claro, sêcco e decidido.
-Innocente ou culpada, Helena apparecia-lhe naquelle momento como uma
-recordação das horas felizes,&mdash;doce recordação, que os successos
-presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não
-destruiriam nunca, porque é esse o mysterioso privilegio do passado.
-Reagiu, entretanto, sôbre si mesmo; e ainda que a custo referiu
-minuciosa e sinceramente o que se passára desde aquella manhã.
-</p>
-
-<p>
-Não fôra talhado para tão melindrosas revellações o coração de D.
-Ursula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que
-dão os grandes golpes. Esperava, de certo, um grande infortunio de
-Helena, um episodio de sua familia anterior, alguma cousa que desafiasse
-a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente
-o contrário; a estima era impossivel e a compaixão tornava-se apenas
-provavel.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas não! é impossível! exclamou ella dahi a pouco, logo que a razão
-obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz&mdash;não! eu a vi ha
-pouco; senti-lhe as lagrymas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a
-innocencia póde proferir. E, além disso, seu procedimento
-irreprehensivel, um anno quasi de convivencia sem mácula, a elevação
-de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre
-Helena! Vamos chamal-a; ella explicará tudo. Interroguemos o Vicente.
-</p>
-
-<p>
-Um gesto dos dous homens mostrou que nenhum delles julgava digno este
-último recurso para conhecer a verdade.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula cahíra em prostração, recordava suas apprehensões do
-primeiro dia, e recuava com horror á ideia de ter acertado. Defronte
-della, Estacio occupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os
-cotovellos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma
-ruminava a dor.
-</p>
-
-<p>
-Um só dos tres vingada a dignidade da situação. O padre Melchior não
-sentira menor assombro que os dous parentes de Helena, nem padeceu menos
-profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e
-conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dous corações
-ulcerados e sem fôrça, comprehendeu Melchior que lhe cabia a principal
-acção, e não recuou ante a responsabilidade que dahi poderia deduzir.
-Viu de um lance a extensão possivel do mal, a desunião da familia, os
-desesperos da occasião, os odios do dia seguinte, as amarguras
-indeleveis e talvez as indeleveis saudades; mas nem este quadro o
-aterrou, nem elle o aceitou sem exame. Melchior não condemnava nem
-absolvia; esperava. Elle pertencia ao numero dessas virtudes singellas
-para as quaes o vicio é uma rara excepção; natureza sincera e franca,
-era-lhe difficil crer na hypocrisia. Em quanto Estacio proseguia calado
-e pensativo, e D. Ursula, ora sentada, ora de pe, intercalava o
-silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e reflectia
-tambem comsigo. Emfim, proferiu éstas palavras de animação:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Socegue, D. Ursula; a verdade hade apparecer, e não estamos certos
-que seja o que nos parece. Em todo o caso não antecipemos a
-afflicção. Seria padecer duas vezes. Ha tempo de chorar á larga.
-</p>
-
-<p>
-Melchior levantou-se:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Convem sacudir o abatimento, continuou dirigindo-se a Estacio; é a
-hora da acção e do vigor. Sobretudo é necessario não boquejar de
-semelhante assumpto por agora; daria azo ás vozes extranhas e seus
-naturaes commentarios. Eu tomarei nesta collisão o logar que me compete,
-se m'o não contestam...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! exclamou Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;... Mas desejo que desde ja se compenetrem bem de que, se a
-dignidade pede uma cousa, a caridade pede outra, e que o dever stricto é
-concilial-as. Nada do odios; perdão ou esquecimento.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Ursula com
-anciedade.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;D. Ursula, disse o padre; é preciso agora que a razão fale e
-trabalhe; o sentimento deve retrahir-se e esperar. Examinarei o caso, e
-aconselharei o necessario remedio. Talvez estejamos a debater-nos no
-vacuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma apparencia...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! ella confessou tudo! interrompeu Estacio. Vi-lhe a expressão da
-culpa nos olhos. Mas, emfim, estou prompto para tudo, continuou elle
-erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pae? Não o
-é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer
-melhor. Na singular situação em que nos achamos nenhum de nós temos o
-espirito bastante senhor de si para colhêr os elementos da verdade,
-apural-a e resolver. Esse papel é seu.
-</p>
-
-<p>
-Vieram trazer a Estacio uma carta. Era do Dr. Camargo, annunciando-lhe
-que a madrinha do Eugenia fallecêra, e que elle no prazo de alguns dias
-estaria na Corte. Era o peor momento para semelhante vinda; Estacio não
-pôde reprimir um gesto de desgôsto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de
-que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no
-regresso do Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o
-assumpto que os affligia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;D. Ursula,&mdash;continuou elle,&mdash;deixe-nos agora sos alguns
-instantes; va tranquilla, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguem o
-que se passa nesta casa.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula obedeceu. Logo que ella sahiu. Melchior fechou a porta.
-Estacio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capellão. Este deu alguns
-passos entre a porta e uma das janellas. Ia anoitecendo; Estacio
-accendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pe delle, sem lhe falar
-nem voltar-lhe sequer os olhos. Meditava ou luctava comsigo mesmo; a
-fronte pesada e merencoria traduzia a agitação interior. Ja não era a
-inalteravel placidez, reflexo de uma consciencia religiosa e pura. Se a
-consciencia era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise
-nova. Apos dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXIII">CAPITULO XXIII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-&mdash;És forte? perguntou o padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sou.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cres em Deus?
-</p>
-
-<p>
-Estacio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior
-insistiu:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cres?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Essa pergunta...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É menos ociosa do que parece. Não basta suppor que se cre; nem basta
-crer á ligeira, como na existencia de uma região obscura da Asia, onde
-nunca se pretende pôr os pes. O Deus de que te fallo não é só essa
-sublima necessidade do espirito, que apenas contenta alguns philosophos;
-fallo-te do Deus creador e remunerador, do Deus que le no fundo de
-nossas consciencias, que nos deu a vida, que nos hade dar a morte, e
-além da morte o premio ou o castigo. Cres?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Creio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o
-saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura,
-rebella-se, vaga á feição de um instincto mal expresso e mal
-comprehendido. O mal persegue-te, tentaste, envolve-te em seus liames
-dourados e occultos; tu não o sentes, não o ves; tens horror de ti
-mesmo, quando deres com elle de rosto. Deus que te lê, sabe
-perfeitamente que entre teu coração e tua consciencia ha com o um veu
-espesso que os separa, que impede esse accôrdo gerador do delicto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas que é, padre-mestre?
-</p>
-
-<p>
-Melchior inclinou-se e encarou o moço. Seus olhos, fitos nelle, eram
-como tum espelho polido e frio, destinado a reproduzir a impressão do
-que lhe ia dizer.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estacio,&mdash;disse Melchior pausadamente,&mdash;tu amas tua irmã.
-</p>
-
-<p>
-O gesto mesclado de horror, assombro e remorso, com que Estacio ouvira
-aquella palavra, mostrou ao padre, não só que elle estava de posse da
-verdade, mas tambem que acabava de a revellar ao mancebo. O que a
-consciencia deste ignorava, sabia-o o coração, e só lh'o disse
-naquella hora solemne. A consciencia, depois de tactear nas trevas,
-recuou apavorada, como affastando de si o clarão subito que accendêra
-nella a palavra do sacerdote. Estacio não respondeu nada: não podia
-responder nada. Com que vocabulo e em que lingua humana esprimiria elle
-a commoção nova e terrivel que lhe abalára a alma toda? que fio
-podéra atar-lhe as ideias rôtas e dispersas? Nem falou, nem se
-atreveu a erguer os olhos; ficou como estupido e morto, Melchior
-contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Seus olhos, que
-eram de aguia para os mysterios da vida, eram de pomba para os grandes
-infortunios. Abaixo da cabeça mascula, havia um coração feminino.
-</p>
-
-<p>
-A mudez de Estacio cessou emfim; o corpo agitou-se; o labio articulou
-algumas phrases desconcertadas. Vago era o sentido dellas; podia
-concluir-se que elle não cria na revellação de Melchior, que o
-supposto sentimento era tão absurdo e desnatural, que só a maus
-instinctos devia ser attribuido. Melchior ouviu-o e sorriu com
-satisfação. Não era aquillo mesmo um protesto de consciencia honrada?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Maus instinctos, não,&mdash;respondeu Melchior; um desvio da lei
-social e religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Estacio;
-revolve-lhe os mais intimos recantos, e la acharás esse germen funesto:
-lança-o fóra de ti, que é o preceito do Eterno Mestre. Não o
-sentiste nunca: a tentação usa essa tactica serpentina e dolosa; é
-insinuante, como a calúmnia, e pertinaz, como a suspeita. Mas eu sou a
-verdade, que affirma, e a caridade, que consola. Digo-te, não que
-peccaste, mas que ficaste á beira do peccado; e estendo-te a mão para
-que recues do abysmo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Padre-mestre! murmurou Estacio cujo coração recebia a influência da
-palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não fales, continuou o padre; negal-o é mentir; confessal-o é
-ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quiz a
-fortuna que entre voces dous não houvesse a imagem da infancia e a
-communhão dos primeiros annos; que, em plena mocidade, passassem do
-total desconhecimento um do outro, para a intimidade do todos os dias.
-Ésta foi a raiz do mal. Helena appareceu-te mulher, com todas as
-seduções proprias da mulher, e mais ainda com as de seu proprio
-espirito, por que a natureza e a educação accordaram em a fazer
-original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou
-em ti, nem podias comprehendel-a. S. Paulo o disse: para os corações
-limpos, todas as cousas são limpas. Vias a affeição legitimo
-naquillo que era ja affeição espuria; dahi vieram os zelos, a
-suspicacia, um egoismo exigente, cujo resultado seria subtrahir a alma
-de Helena a todos as alegrias da terra, unicamente para o fim de a
-contemplares sosinho, como um avaro.
-</p>
-
-<p>
-Ouvindo a palavra do padre, Estacio soletrava o proprio coração e lia
-claramente o que até então era para elle como um livro fechado. A
-situação tornava-se, entretanto, por demais afflictiva, profunda a
-vergonha, intenso o remorso. Estacio ergueu-se; erguendo-se deu com os
-olhos no retrato do Conselheiro, que, na penumbra em que ficava, parecia
-olhar para o filho, e interrogal-o. Ésta circumstância desorientou o
-moço.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, padre-mestre! exclamou elle deixando-se cahir na
-cadeira.&mdash;É impossivel! isto que me está dizendo é um sonho mau,
-é um funesto equívoco; é impossivel; juro-lhe que é impossível. É
-certo que a amo... que a amava, com sentimento de irmão; mas
-esquecer-me, aninhar em minha alma tão odioso affecto... oh! era
-impossivel!
-</p>
-
-<p>
-Melchior erguera-se. Apos meia duzia de passos, approximou-se de
-Estacio, sôbre cuja cabeça estendeu a mão direita, em quanto com a
-outra lhe erguia a barba, obrigando-o a olhar para elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Digo-te que teus uma raiz de ma herva no coração; ésta é a cruel
-verdade. Ha no homem uma ligação de sentimento, ás vezes
-inexplicavel. Productos de climas oppostos ahi se alternam ou se
-confundem... Mas queres saber o resto?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O resto?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ouve,&mdash;continuou o padre sentando-se. A planta ruim bracejou
-um ramo para o coração virgem e casto de Helena, e o mesmo sentimento
-os ligou em seus fios invisiveis. Nem tu o vias, nem ella; mas eu vi, eu
-fui o triste expectador dessa violenta e miseravel situação. São
-irmãos e amam-se. A poesia tragica póde fazer do assumpto uma acção
-theatral; mas o que a moral e a religião reprovam não deve achar
-guarida na alma de um homem honesto e christão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Impossivel! impossivel! exclamou Estacio. Mas, dado que assim fosse,
-por que accumular á difficuldade presente o horror de semelhante
-revellação?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Por que a revellação explica a difficuldade. Helena não sabera que
-ama, mas ama. Ora, um amor clandestino, de parceria com esse outro amor
-incestuoso, embora inconsciente, provaria da parte de Helena uma
-perversão, que ella não póde ter, e que, em tal edade, faria della um
-monstro. Sera Helena esse monstro? Se o fosse, eu desesperaria da
-natureza humana. Não! essa casa, onde a viste entrar, é com certeza
-asylo de miseria; o que ella ahi vae levar é a esmola e a compaixão.
-</p>
-
-<p>
-Um raio de esperança alumiou a fronte de Estacio. O raciocinio do padre
-era exacto; e por mais perigosa que fôsse a situação revellada por
-elle, ja agora não se podia desejar outra cousa; a dignidade da familia
-ficava intacta. Estacio reflectiu largo tempo no que acabava de ouvir.
-Mas, a esperança foi curta, embora a necessidade della grande.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena continua recolhida? perguntou o padre.
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez um leve signal affirmativo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Falar-lhe-hei amanhã; por hoje convem não dizer palavra nem deixar
-transpirar cousa nenhuma.
-</p>
-
-<p>
-Dizendo isto, Melchior recolheu-se ao silêncio, como se reflectisse
-ainda alguma cousa. Estacio erguera-se e entrára a passear lentamente.
-De quando em quando apertava a cabeça entre as mãos; tantas
-commoções bastavam para atordoar mais forte espirito. O mysterio o
-cercava de todos os lados. Elle ia até á janella, dahi até à porta,
-intercalando as reflexões interiores com sacudimentos nervosos do
-braço ou da cabeça. A intervallos, olhava a furto e de travez para o
-capellão, como o criminoso olha para a consciencia; não podia evitar o
-sentimento de terror, e ao mesmo tempo de respeito, que lhe infundia
-aquelle investigador exacto e profundo de seus sentimentos mais
-reconditos e inaccessiveis. Ruminava o que o padre lhe dissera; cada
-minuto lhe ia tornando mais clara a verdade revellada; e o que era
-obscuro fizera-se-lhe emfim transparente. É assim que a luz de um
-astro, accesa desde seculos, chega finalmente a ferir a retina de nossos
-olhos mortaes.
-</p>
-
-<p>
-Uma vez, interrompendo os passos, ergueu os olhos para o retrato do
-Conselheiro. Não os retirou atterrado; cravou-os com um ar de reproche
-e de amargura, em que o padre reparou e que o fez sorrir tristemente. O
-olhar do filho pedia contas ao pae.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Paz aos mortos! observou Melchior. Os actos de seu pae já não
-pertencem á jurisdicção deste seculo.
-</p>
-
-<p>
-Melchior proferiu éstas palavras ja de pe.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O Dr. Camargo, disse elle mudando de tom,&mdash;deve chegar um dia
-destes, segundo annuncia. Ha alguma razão para demorar o casamento?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nenhuma.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Convem realisal-o immediatamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Immediatamente.
-</p>
-
-<p>
-Melchior caminhou para a porta. Ia dar volta á chave, e deteve-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Antes de nos separarmos, disse elle,&mdash;desejo a promessa de que
-não falarás a Helena antes de amanhã.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Prometto.
-</p>
-
-<p>
-O padre reflectiu um instante; Estacio pareceu adivinhal-o.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Quer ainda outra promessa? perguntou elle. Quer que a evite da todos
-os modos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sim; que a considere como pessoa totalmente extranha.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Poderia ser de outra maneira? observou melancholicamente Estacio. Os
-successos destes dias são, por em quanto ao menos, uma barreira entre
-ella e sua familia. Demais, eu seria destituido de todo o senso moral...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Jura?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Juro.
-</p>
-
-<p>
-Melchior desabrochou a camisa, e aventou um crucifixo de marfim, que lhe
-pendia de uma fita preta, ao pescoço.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Este, disse elle cora voz singella, é a effigie do teu Deus. Tão
-puro exemplo de castidade não viram os seculos nem antes nem depois que
-elle desceu á terra. Jura o que me promettes.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Padre-mestre,&mdash;retorquiu Estacio; minha palavra era bastante.
-Mas, se é preciso affirmação mais solemne, eu a darei tal qual me pede.
-</p>
-
-<p>
-Estacio inclinou a cabeça sôbre o crucifixo e beijou-o
-respeitosamente; depois beijou a mão ao padre. Melchior abençou-o e
-sahiu.
-</p>
-
-<p>
-Sahindo do gabinete de Estacio, dirigiu-se para a sala de costura, onde
-achou D. Ursula um pouco menos agitada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Falou a Helena? perguntou ella dirigindo-se ao padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ainda não; sei que não quer sahir do quarto; deixemos passar a
-primeira commoção. Amanhã virei saber tudo. Por hoje é preciso que a
-senhora socegue.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! estou socegada! Não perdi a confiança.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula proferiu éstas palavras com tamanha serenidade e tão
-profunda convicção que fortaleceu o espirito do proprio Melchior,
-alias não inclinado a crer no mal. O ancião deteve-se alguns instantes
-a contemplar o rosto placido de D. Ursula, a admirar a fôrça secreta
-que a tornava surda ao clamor da realidade,&mdash;pelo menos, da realidade
-apparente. Contemplou-a silencioso, e desceu á chacara.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXIV">CAPITULO XXIV</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da
-chacara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre
-feliz, mas geralmente quieto, dessa quietação que é tanta vez a
-superficie da vida. Mais de uma vez buscára dissipar a sombra pezarosa
-que alguns erros do conselheiro accumularam na fronte da consorte.
-Haveria naquella casa uma geração de dores, destinadas a abater o
-orgulho da riqueza com o irremediavel expectaculo da debilidade humana?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, dizia elle comsigo mesmo. A verdade é que tudo se encadeia e
-desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos
-abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortunio calado e
-profundo daquella senhora que se foi em pleno meio dia; o fructo hade
-ser tão amargo como a árvore; seu sabor é travado de remorsos.
-</p>
-
-<p>
-Neste ponto chegava ao portão. Ahi deteve-se um instante. O passo
-cautelloso e timido de alguem fel-o voltar a cabeça. Um vulto, cujo
-rosto não via, tão escuro como a noite, alli estava e lhe tocava
-respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pagem de Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu padre,&mdash;disse este,&mdash;diga-me por favor o que aconteceu
-em casa. Vejo todos tristes; nhanhã Helena não apparece; fechou-se no
-quarto... Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada, respondeu Melchior.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! é impossivel! Alguma cousa ha por fôrça. Seu padre não tem
-confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Socega; não ha nada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um! gemeu incredulamente o pagem. Ha alguma cousa que o escravo não
-pode saber; mas tambem o escravo póde saber alguma cousa que os brancos
-tenham vontade de ouvir...
-</p>
-
-<p>
-Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permittia examinar
-o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A ideia de
-interrogal-o passou pela mente, do padre, mas não fez mais do que
-passar; elle a regeitou logo, como a regeitára algumas horas antes.
-Melchior preferia a linha recta; não quizera empregar um meio tortuoso.
-Iria pedir a Helena a solução das difficuldades. Entretanto, o pagem,
-como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote,
-continuou:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nhanhã Helena é uma sancta. Se alguem a accusa, accusa o bom
-procedimento della. Eu lhe direi tudo...
-</p>
-
-<p>
-Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pagem,
-contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se
-passos; era um escravo que vinha fechar o portão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vem gente,&mdash;disse Vicente,&mdash;amanhã...
-</p>
-
-<p>
-O pagem tacteou nas trevas em procura da dextra do capellão; achou-a
-emfim, imprimiu-lhe um ósculo do respeito e affastou-se. Melchior
-seguia para casa, abalado com a meia revellação que acabava de ouvir.
-Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo;
-podia suppor que o acto delle em menos expontaneo do que parecia; emfim,
-que a propria Helena suggeríra aquelle meio de transviar a expectação
-e congraçar os sentimentos. A interpretação era verosimil; mas o
-padre não cogitou de tal cousa. A elle é principalmente applicavel a
-maxima apostolica; para os corações limpos, todas as cousas são
-limpas.
-</p>
-
-<p>
-A seguinte aurora alumiou um ceu puro de nuvens. Estacio accordou com
-ella, depois de uma noite mal dormida. Nunca a manhã, lhe pareceu mais
-rumorosa e jovial; nunca o ar apresentára tão fina transparencia, nem
-a folhagem tão lustrosa, côr. Da janella a que se encostára via as
-flôres de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e
-enviando-lhe a elle uma nuvem invisivel de seus aromas: aspecto de festa
-e ironia da natureza. Estacio achava-se alli como um sahimento em horas
-de carnaval.
-</p>
-
-<p>
-Almoçou sosinho; D. Ursula estava com Helena. Logo depois do almôço
-recebeu uma carta de Mendonça, que tendo ido na vespera a Andarahy,
-recebêra a resposta dada a todos, e mandava saber se havia molestia em
-casa. Estacio respondeu affirmativamente, accrescentando que, posto não
-se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois. A resposta
-podia ser mais circumspecta; no estado em que elle se achava,
-pareceu-lhe excellente.
-</p>
-
-<p>
-Pela volta do meio dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D.
-Ursula, que o espreitava de uma das janellas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena? perguntou elle ancioso.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ja hoje desceu,&mdash;respondeu D. Ursula. Está mais tranquilla. Não
-lhe perguntei nada, mas dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe,
-mostrou-se anciosa por vel-o, e pediu-me até que o mandasse chamar.
-</p>
-
-<p>
-Seguiram os dous até á saleta que ficava ao pe da sala de jantar.
-Helena estava sentada, com a cabeça cahida sôbre as costas da cadeira,
-e os olhos meios cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os
-olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pallidas
-da vigilia e da afflicção. Ergueu-se e deu dous passos para o padre,
-que lhe apertou as mãos entre as suas.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Imprudente! murmurou Melchior.
-</p>
-
-<p>
-Helena sorriu, um sorriso pallido e tão passageiro como a côr que lhe
-tingira o rosto, D. Ursula dispoz-se a ir chamar Estacio, que estava no
-andar de cima. Apenas a viu sahir, Helena segurou em uma das mãos do
-padre.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Queria vel-o! disse ella. Não tenho ânimo de falar a ninguem mais,
-de dizer tudo...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É inutil; tudo sei, interrompeu Melchior sorrindo. O Vicente foi
-hoje de manhã á minha casa; foi de movimento proprio; relatou-me
-quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia
-ver, a occultas, não podendo ou não querendo apresental-o em casa de
-seus parentes. O escrupulo era excessivo, e o acto leviano. Porque
-motivo dar apparencia incorrecta a um sentimento natural? Teria poupado
-muita afflicção e muita lagryma a si e aos seus, se tomasse antes o
-caminho direito, que é sempre o melhor.
-</p>
-
-<p>
-Helena ouvia éstas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos.
-Não parecia sequer respirar. Quando elle acabou, perguntou soffrega:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Com que intento lhe falou elle?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Com o mais puro do todos; desconfiou que a senhora padecia por isso
-e veiu contar-me tudo.
-</p>
-
-<p>
-Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quiz
-interromper nessa ascenção mental ao ceu; limitou-se a contemplal-a.
-A belleza de Helena nunca lhe parecêra mais tocante do que nessa
-attitude implorativa. A contemplação não durou muito, por que a
-oração foi breve.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Orei a Deus,&mdash;disse ella, descendo as mãos,&mdash;por que
-infundiu ahi no corpo vil do escravo tão nobre espirito do dedicação.
-Delatou-me para restituir-me a estima da familia. Aquillo que ninguem
-lhe arrancaria do coração, tirou-o elle mesmo no dia em que viu em
-perigo o meu nome e a paz de meu espirito. Infelizmente, mentiu.
-</p>
-
-<p>
-Melchior empallideceu.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mentiu sem o saber, continuou a moça. Disse o que suppunha ser
-verdade,&mdash;o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem.
-</p>
-
-<p>
-Melchior inclinou-se para a moça e pegando-lhe nos pulsos, disse
-imperiosamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Então quem é? Seu silêncio é uma delação; não tem ja direito de
-hesitar.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não hesito, replicou Helena; em taes situações uma creatura, como
-eu, caminha direito a um rochedo ou a um abysmo; despedaça-se ou
-some-se. Não ha escolha. Este papel,&mdash;continuou, tirando da algibeira
-uma carta,&mdash;este papel lhe dira tudo; leia e refira tudo a Estacio e a
-D. Ursula. Não tenho ânimo de os encarar nesta occasião.
-</p>
-
-<p>
-Melchior, atordoado, fez um leve signal de cabeça.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Lido esse papel,&mdash;estão rotos os vínculos que me prendem a ésta
-casa. A culpa do que me acontece não é minha, é de outros; aceitarei
-contudo ás consequencias. Poderei contar ao menos com a sua benção?
-</p>
-
-<p>
-A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de
-absolvição ou de clemencia, que ella lhe pagou com muitos na dextra
-enrugada e trémula de commoção. Helena precipitou-se depois para o
-corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abril-a,
-receioso dos males que iam dalli sahir, sem certeza ao menos de que
-ficaria no fundo a esperança. Ia abril-a, e hesitou se o devia fazer na
-ausencia de Estacio e D. Ursula; venceu o escrupulo e leu.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula, que entrou na occasião em que elle fechava a carta, recuou
-aterrada. Melchior estava pallido como um defuncto. Antes que nenhum,
-delles falasse, entrou Estacio na saleta. Melchior dirigiu-se a elle e
-entregou a carta. Leu-a Estacio e dizia assim:
-</p>
-
-<p>
-«Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa ahi ha que te
-afflige. Presumo adivinhar o que é. O Estacio esteve commigo, logo
-depois que daqui sahiste a ultima vez. Entrou desconfiado, e deu como
-razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na
-mão. Talvez elle proprio as fizesse para entrar aqui em casa.
-Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Suppondo que elle
-soubesse de tuas visitas, não lhe occultei a minha pobreza; era o meio
-de attribuil-as a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de
-capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o theor da
-vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o
-espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente receio que assim
-acontecesse. Conta-me o que ha, pobre filha do coração; não me
-escondas nada. Em todo o caso, procede com cautella. Não provoques
-nenhum rompimento. Se fôr preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou
-mezes. Contentar-me-ha a ideia de saber que vives em paz e feliz.
-Abençoo-te, Helena, com quanta effusão pode haver no peito do mais
-venturoso dos paes, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gôsto
-de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me.&mdash;<i>Salvador</i>.»
-</p>
-
-<p>
-<i>P.S.</i> Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não
-saias dahi; seria um escandalo.»
-</p>
-
-<p>
-Estacio não comprehendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade
-parecia inverossimil. Seu primeiro movimento foi sahir dalli e ter com
-Helena. Melchior deteve-o a tempo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não precipitemos nada, disse elle. Socegue primeiro.
-</p>
-
-<p>
-Estacio deixou-se cahir n'uma cadeira; Melchior communicou o conteudo da
-carta a D. Ursula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho,
-porque ella não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar
-estupidamente para o papel. Houve então entre aquelles tres personagens
-dez minutos de mortal silêncio. D. Ursula não pensava; olhava para a
-carta, logo depois para o sobrinho e o padre, como a esperar uma
-conclusão que seu proprio espirito não podia deduzir dos
-acontecimentos. Estacio ficára desorientado; em vão procurava um fio
-de deducção entre suas ideias; a revellação nova era uma
-complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração
-testamentária de seu pae? Se o não era, como explicar a audacia de
-semelhante invenção? Elle não podia discernir o que era favoravel a
-Helena, nem ousava affirmar o que lhe era adverso.
-</p>
-
-<p>
-No meio daquella familia, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava
-a superioridade da morte sobre alguns lances terriveis da vida. Se o
-obito de Helena tomára o logar da carta, a dor seria violenta; mas o
-irremediavel desfecho e o consolo da religião teriam contribuido para
-sarar a alma dos que ficassem e converter o desespêro de alguns dias na
-saudade da vida inteira. Em vez disto, estava elle talvez diante de um
-destino aniquillado; via um abysmo possivel entre corações que a
-vontade de um morto vinculára. Qualquer que fôsse a veracidade da
-carta, o resultado era talvez esse.
-</p>
-
-<p>
-Melchior foi dalli ter com Helena, para alcançar mais detida
-explicação do quê acabava de ler. Ella ergueu-se quando o viu, e
-pareceu reviver ao contemplar o gesto benevolo com que elle lhe falou.
-Um longo suspiro de alivio rompeu-lhe do coração; seus braços cahiram
-sobre os hombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou
-emfim,&mdash;um minuto&mdash;das dores que a affligiam.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Perdoaram-me? disse ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Hão de perdoar; conte-me tudo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! não posso, não sei; sei que é meu pae.
-</p>
-
-<p>
-O capellão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na
-posição em que os deixára. Interrogaram-n'o com os olhos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada, disse elle. Seu coração não possue nesta occasião a
-necessaria fôrça para responder a quanto se lhe devia perguntar;
-demais não sabera tudo. Temos a primeira confissão da verdade....
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Da verdade? interrompeu melancholicamemte Estacio. Quem sabe se é
-verdade o que lemos nesse papel?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração;
-mas eu incumbo-me de ir buscal-os.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Iremos ambos.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula quiz dissuadir o sobrinho de ir á casa do homem, causa dos
-desastres da familia; não tanto por que lhe parecia que entre Estacio e
-elle nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo por que ella
-precisava de alguem que a acompanhasse em tão graves circumstâncias.
-Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Ursula.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Irei eu só, disse elle; depois conduzil-o-hei até ca, se fôr
-preciso.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não posso esperar, insistiu Estacio; preciso falar a esse homem,
-ouvil-o, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o
-decoro da familia exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração
-goteja sangue.
-</p>
-
-<p>
-Era impossivel dissuadil-o; Melchior tratou somente de o moderar. De
-resto, a crise era violenta; cumpria resolvel-a sem demora nem
-hesitação. O padre animou D. Ursula, e sahiu acompanhado de Estacio,
-cujo coração, convalecido do primeiro abalo, deixava as regiões da
-dúvida para entrar na atmosphera da verdade,&mdash;pelo menos da esperança.
-Quaesquer que fossem as consequencias da nova revellação, vinha ésta
-como um balsamo, apos tão dolorosas commoções; era um rasgão azul no
-ceu tempestuoso daquelles dias. Ia elle pensando assim,&mdash;ou antes
-sentindo,&mdash;por que o pensamento não ousava regel-o, desde que a vida
-inteira do moço se lhe concentrára no coração.
-</p>
-
-<p>
-Chegando em frente da casa, Estacio desviou os olhos; custava-lhe
-encaral-a, mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se ésta
-emfim, e a figura do dono da casa appareceu aos dous. Vendo-os,
-empallideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão.
-Estacio foi direito ao fim.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Supponho que se lembra de mim? disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Perfeitamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sabe que motivo nos traz a sua casa?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, senhor.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Confessa a autoria desta carta?
-</p>
-
-<p>
-Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto affirmativo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pretende que Helena é sua filha, disse o moço depois de um instante.
-Confirma verbalmente o que escreveu?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena é minha filha.
-</p>
-
-<p>
-Melchior interveiu.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ha um anno, fallecendo, o meu velho amigo conselheiro Valle,
-reconheceu Helena, por uma clausula testamentária; recommendava á
-familia que a tratasse com affecto e carinho e designava o collegio em
-que ella estava sendo educada. O facto do reconhecimento e as
-circumstâncias que apontou dão toda a veracidade á palavra do morto.
-Que prova apresenta o senhor em contrário a ella?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nenhuma, disse Salvador; não tenho prova de nenhuma natureza.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Na falta de provas, proseguiu o capellão, poderia dizer-nos como
-suppor da parte do conselheiro uma falsificação tratando-se de
-disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa extranha na
-familia?
-</p>
-
-<p>
-Salvador sorria amargamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Supponha,&mdash;disse elle,&mdash;que eu havia illudido a confiança
-do conselheiro, e que elle acreditava ser pae de Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Era isso?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não era. Na posição em que nos achamos já não ha logar para meias
-palavras. Fôrça é referir tudo. Dez minutos apenas.
-</p>
-
-<p>
-Os tres sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a
-persistencia e a curiosidade naturaes da occasião. Salvador esteve
-alguns instantes calado; emfim voltou-se para o capellão.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estimo, disse elle, que o Sr. padre viesse; sua caridade temperará a
-legítima indignação deste mancebo; e eu farei as declarações
-indispensaveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de
-Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Queira falar, disse seccamente Estacio.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXV">CAPITULO XXV</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-&mdash;A mãe de Helena, disse Salvador, cuja belleza foi a causa, a um
-tempo, da sua ma e boa fortuna, era filha de um pobre lavrador do Rio
-Grande do Sul, onde tambem nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pae
-oppoz-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria
-ver-me em posição brilhante. Angela podia ser obstaculo á minha
-carreira, dizia elle. Oppoz-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na
-campanha oriental, d'onde passamos a Montevideo, e mais tarde ao Rio de
-Janeiro. Tinha vinte annos quando deixei a casa paterna; possuia alguns
-estudos poucos, meio duzia de patacões, muito amor e muita esperança.
-Era de sobra para a minha edade, mas insuficiente para o meu futuro. A
-lua de mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha
-vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me veem, fui
-mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operario,
-estalajadeiro, escrevente de cartorio; algumas semanas vivi de tirar
-cópias de peças e papeis para theatro. Trabalhava com energia, mas a
-fortuna não correspondia á constancia, e o melhor dos annos gastei-o
-em luta aspera e desegual. Uma compensação havia, a mais doce de
-todas: era o amor e o contentamento de Angela, a egualdade de animo com
-que ella encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa
-fuga havia outra compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em
-um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe
-foram obtidos por favor de uma mulher da visinhança. Mas nasceu, em boa
-hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um
-ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava
-com alma, luctava resoluto contra todas as fôrças adversas, certo de
-encontrar á noite a solicitude da mãe e as ingenuas caricias da filha.
-Os senhores não são paes; não podem avaliar a fôrça que possue o
-sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas accumuladas na
-fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte da
-noite, e eu, apezar de robusto, me sentia cançado, erguia-me, ia ao
-berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar fôrças
-novas, Se o proprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de
-alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a
-adormecer metade da minha felicidade na terra.
-</p>
-
-<p>
-Salvador interrompeu-se commovido.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Perdoem-me,&mdash;continuou elle depois de alguns instantes, se
-éstas memorias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje.
-Desse tempo só resta um echo doloroso e consolador. Crescia Helena e
-cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue.
-Quando pôde aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras
-licções; assisti pasmado á aurora daquella intelligencia que os
-senhores veem hoje tão desenvolvida e lucida. Aprendia com facilidade,
-por que estudava com amor. Angela e eu construiamos os mais lindos
-castellos do mundo. Nós a viamos ja mulher, formosa como viria a ser,
-porque ja o era, intelligente e prendada, espôsa de algum homem que a
-adorasse e elevasse. Viviamos dessa antecipação, que era apenas um
-sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Porque razão,&mdash;perguntou Melchior,&mdash;dado esse amor e
-nascida uma filha, não sanctificou o senhor a situação singular em que se
-achavam?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;A curiosidade é justa, replicou Salvador, mas a resposta é decisiva.
-Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o resentimento
-de meu pae. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grande a propria
-embriaguez da felicidade desviou qualquer ideia de sanctificar e
-legalisar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os
-trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao
-dever que tomára em meus hombros, ia adiando o acto de mez para mez, de
-anno para anno. Afinal o projecto esvaiu-se de todo. Estavamos ligados
-pela miseria e pelo coração, não pretendiamos o respeito da
-sociedade; triste desculpa, e ainda mais triste recordação, por que o
-casamento teria talvez obstado aos acontecimentos posteriores. Helena
-contava seis annos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermittencias
-favoraveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida,
-quando uma circumstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pae
-adoecêra; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fôsse ver sem
-demora. Obedeci promptamente. Do que elle me remetteu para as despezas
-dr viagem e outras, deixei alguma cousa a Angela e Helena, e parti.
-Vinte e quatro horas depois de ver meu pae, tive a dor de o perder. A
-liquidação dos negocios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo
-aos credores; restavam-me alguns patações. Recebi esse golpe novo com
-a philosophia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do
-acontecimento? Os negocios entretanto, apezar de curtos, demoraram-me
-mais do que eu pretendia e convinha. A ancia de voltar cresceu desde que
-não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Angela. Enfim,
-pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança
-menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pae.
-</p>
-
-<p>
-Estacio desviou os olhos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Logo que cheguei,&mdash;continuou Salvador,&mdash;corri a casa;
-achei-a fechada. Um visinho, testemunha da minha afflicção, deu-me notícia
-de que Angela se mudára para S. Christovão. Não sabia nem o numero nem a
-rua; mas deu-me algumas indicações, que me guiaram. Ainda hoje tenho
-ante os olhos o sorriso com que aquelle homem me respondia. Era um
-sorrir de compaixão que humiliava. Sem nunca haver recebido de mim a
-menor offensa, vejo que elle tinha um prazer secreto com o meu
-infortunio. Porque? Deixo aos philosophos liquidarem esse enigma da
-natureza humana. Voei a S. Christovão; gastei tempo em procurar a casa,
-mas dei com ella. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das
-indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio
-de um pequeno jardim. Podia ser aquella a residencia da companheira de
-minha miseria? Receioso de ir bater alli, vi assomar ao portão um
-homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a
-quem dei o seu proprio nome, dizendo que lhe desejava falar. «A senhora
-sahiu,» respondeu elle distrahidamente. Dispuz-me a esperar, mas o
-jardineiro observou-me que ia sahir e fechar o portão, e que a senhora
-só voltaria á noite. «Esperarei até a noite», redargui. O jardineiro
-mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cautelloso pela rua e
-disse-me baixinho: «Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não
-hade gostar.» Não escrevo um romance; dispenso-me de lhes pintar o
-efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a
-descripção. Ha catastrophes mais solemnes, ha situações mais
-patheticas; mas naquella occasião parecia-me que todas as dores do
-mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era
-verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o effeito de suas
-palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro.
-Convidou-me com brandura a sahir; obedeci machinalmente. Podendo
-informar-me acerca de Angela, não o fiz. A febre reteve-me tres dias
-de cama, n'uma pobre cama alugada em pessima estalagem da Cidade Nova.
-No terceiro dia recebi uma carta de Angela. Pedia-me que lhe perdoasse o
-passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que,
-se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a
-carta, tive impeto de ir ter com ella e esganal-a; mas o impeto passou,
-e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um
-engenheiro inglez que vinha do Rio Grande para esta Côrte, emprestara-me
-um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglez que
-aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que alli achei fez-me
-estremecer, na occasião, como uma profecia; recordei-a depois quando
-Angela me escreveu. «Ella enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de
-enganar-te a ti tambem.» Era justo; pelo menos, era explicavel. Dous
-dias depois da carta de Angela, escrevi-lhe pedindo meia hora de
-conversação; nada mais. Angela concedeu-me a entrevista. Meu plano era
-arrebatar-lhe Helena; ela parece que o previu, recebendo-me sosinha, no
-jardim, ás nove horas da noite.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Por que razão recorda todas essas minucias? interrompeu Melchior com
-brandura; nós desejamos somente saber o essencial.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tudo é essencial na minha narração, disse Salvador. Aquella
-entrevista mostrou-me a toda a luz o caracter de Angela. Que outra
-mulher se arriscaria, em taes circumstâncias, a affrontar a colera do
-homem desprezado? Angela era um complexo de qualidades singulares. Capaz
-de supportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das maximas
-privações, esqueceu n'um instante as virtudes que tinha para correr
-atraz de uma fantasia do amor. Não foi a riqueza que a seduziu; ella
-iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miseria. Angela nasceu
-metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro,
-não o era menos das pompas da scena. E dahi... não fui eu mesmo que a
-desviei da estrada real para mettel-a por um atalho obscuro? Disse-lh'o
-naquella noite em que procurei ser tranquillo e superior aos
-acontecimentos. «Meu fim,&mdash;declarei eu,&mdash;é só um: levar Helena;
-Helena é minha filha, não quero deixal-a entregue a seus maus exemplos.» As
-lagrymas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada
-a meus pes, para que lhe deixasse Helena, não ha negar que foi tudo
-sincero. Cedi apparentemente. Minha resolução estava assentada; sem
-Helena a vida parecia-me impossivel. Que outro vínculo me prendia ao
-mundo? A morte e a miseria tinham feito em redor de mim completa
-solidão. A unica felicidade sobrevivente era ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Segundo rapto, observou o padre. O senhor condemnava-se a só
-adquirir um vislumbre de felicidade por meios violentos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Tem razão, respondeu Salvador com tristeza; um abysmo chamava outro
-abysmo... Felizes os que sabem o caminho recto da vida, e nunca se
-arredaram delle! Quiz arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a
-via nunca; a propria casa rara vez tinha uma porta ou janella aberta.
-Havia alli o recato e o mysterio. Um dia resolvi ir ter com o protector
-de Angela. A noticia que me deram do conselheiro Valle era a mais
-honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos.
-O demonio do orgulho impediu a execução do plano. Quasi a entrar em
-casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cêrca de dous mezes.
-Emmagreci; as longas vigilias fizeram-me pallido; o trabalho não me
-attrahia; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um
-pungir delicioso não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é
-certo que a ella misturava-se a colera, a colera da impotencia e o
-desgôsto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para S. Christovão,
-disposto a empregar a violencia, com tanto que trouxesse Helena ou
-fôsse dalli para o Aljube. Era á tardinha. Approximei-me do jardim de
-Angela, ouvi a voz de minha filha. Era a primeira vez depois de longos
-mezes! Parou-me o sangue todo. Passado o primeiro abalo, caminhei
-cautelloso encostado á cêrca, Helena falava a alguem. Por uma abertura
-da cêrca, pude espreital-a. Estava ao collo de um homem. Esse homem era
-o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a
-minha Helena. Helena acariciava as barbas delle; este sorria para ella
-com um ar de ternura, que o absolvia quasi da offensa a mim feita. O
-coração porém apertou-se-me, ao ver dar a outro, affagos a que só eu
-tinha direito. Era um roubo feito á natureza; mas, se meu proprio
-sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Dahi a
-algum tempo,&mdash;não sei se foi curto ou longo, por que eu ficára a olhar
-para ambos, pasmado de amor e de colera, ouvi que falavam de mim.
-«Mas, olhe,&mdash;dizia Helena,&mdash;papae quando vem?» O conselheiro deu
-um beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairara
-sôbre a cabeça della. As creanças porém são implacaveis; aquella
-repetiu a pergunta. «Papae não volta» respondeu o conselheiro. Helena
-ficou muito séria. «Não volta? porque?» «Tua mamãe disse hontem
-que papae está ao ceu.» Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe
-rebentaram lagrymas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos, tentei
-dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha
-filha. Os musculos não corresponderam á intenção; senti fraqueza nas
-pernas; achei-me de bruços. Quando dei accôrdo de mim, volvi de novo
-os olhos para o logar onde os víra. Ainda alli estavam, mas a attitude
-era differente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que
-ja não chorava. Elle beijava-lhe as mãosinhas e dizia-lhe: «Se papae
-foi para o ceu, fiquei eu no logar delle, para dar-te muito beijo, muito
-doce e muita boneca. Queres ser minha filha?» A resposta de Helena foi
-a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se
-dissesse; «Se não tenho ninguem mais no mundo!» O gesto foi tão
-eloquente que eu vi borbulhar uma lagryma nos olhos do conselheiro. Essa
-lagryma decidia do meu destino; vi que elle a amava, e de todos os
-sacrificios que o coração humano póde fazer, aceitei o maior e mais
-doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da unica herança que
-tinha na terra, fôrça da minha juventude, consolo de minha miseria,
-coroa de minha velhice, e voltei á solidão mais abatido que nunca!
-</p>
-
-<p>
-Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por
-entre seus dedos escorreram algumas lagrymas, que elle, de envergonhado,
-enxugou rapidamente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Essas recordações são penosas, disse o padre; não convem
-despertal-as de uma vez; seria abrir feridas que o tempo cicatrisou.
-Sabemos o essencial...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não, resta ainda alguma cousa, disse Salvador.
-</p>
-
-<p>
-Estacio erguera-se. Visivelmente commovido, procurava luctar contra o
-sentimento que o dominava, afim de conservar a necessaria independencia
-de espirito para julgar da narrativa e do alcance que ella podia ter.
-Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as
-últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia
-parecer uma absolvição summaria. A verdade é que elle não reflectia
-nem sentia claramente; sua mente e seu coração eram um campo de ideias
-e commoções contrárias.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Vou acabar,&mdash;disse Salvador depois de alguns minutos. Resta
-explicar o procedimento de Helena.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXVI">CAPITULO XXVI</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-&mdash;Seu pae,&mdash;continuou Salvador dirigindo-se a Estacio, que, para
-acabar de compor o rosto, tinha ido até á janella e voltára a sentar-se,
-seu pae era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Angela, não me trahiu, por
-que não me vira nunca; não contribuiu directamente para a traição
-della, por que suppunha cortadas nossas relações. Soube depois que
-Angela, quando elles se apaixonaram um pelo outro, lhe occultára
-completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim.
-Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido, O
-conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso,
-não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma suggestão de amor ou
-um esquecimento; foi talvez um modo de respeitar-me: no segundo caso,
-houve cálculo; era o de redobrar o affecto que o conselheiro tinha a
-Helena. Assim aconteceu, por que o conselheiro sentiu-se pae de Helena,
-e assumiu esse caracter desde aquella tarde. Do contracto, feito alli
-entre o homem e a creança, cumpriu elle toda as clausulas com generosa
-pontualidade. Póde crer que lhe fiquei profundamente grato. Uma vez,
-passando por uma lithographia, vi um retrato delle; comprei-o e
-conservo-o alli ao lado do de Helena.
-</p>
-
-<p>
-Melchior e Estacio olharam para a parede, onde pendiam dous quadrinhos,
-ainda cobertos, conforme Estacio os vira, no primeiro dia em que alli
-foi.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Os mezes e os annos passaram,&mdash;continuou Salvador,&mdash;Helena
-deu entrada em um collegio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O
-conselheiro a levou alli, dando-a como orphã de um amigo, de Minas;
-Angela, que se dera por sua tia, ia buscal-a aos sabbados. Omitto mil
-circumstâncias intermediarias, e as vezes, poucas, em que pude ver
-minha filha, de passagem e a occultas. Se o tempo houvesse produzido em
-mim os seus naturaes effeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer
-contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade,
-é possivel que eu achasse meio de empregar-me no collegio ou nas
-immediações, afim de ver mais frequentemente Helena. Mas eu era o
-mesmo: passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a
-côr, e eu era e mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena
-podia reconhecer-me; e eu faltava á convenção tacita que fizera com o
-conselheiro. Um sabbado, porém, tinha Helena doze annos, vindo ambas do
-collegio, parou o carro defronte do Passeio Publico. Vi-as descer e
-entrar. Levado por um impulso irresistivel, entrei tambem. Queria
-contemplal-as de longe sem lhes falar; mas a resolução estava acima
-das minhas fôrças. Que pae não faria outro tanto? No logar mais
-solitario do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não
-reconhecer-me logo; mas attentou um pouco, recuou espavorida e
-agarrou-se á mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava
-alli um pae, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia
-affastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar á mãe: «Papae?»
-Voltei-me. Angela envolvêra o rosto da creança entre seus vestidos. O
-gesto equivalia a uma confissão; mas ésta foi ainda mais clara quando
-a mãe, cedendo á boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os
-hombros, descobriu o rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa,
-fitou-a e fez com a cabeça um gesto affirmativo. A menina não exibiu
-mais; correu para mim e atirou se me nos braços. Angela não se atreveu
-a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrificio falavam em meu
-favor. Abracei Helena e beijei-a como doudo. Angela interveio:
-«Basta!» disse ella. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua.
-Apertei-a machinalmente; meus olhos estavam pregados na creança. Era
-tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabellos enlaçadas com
-fitas azues, um chapellinho de palha e os pesinhos calçados com botinas
-de seda! «Fez bem, disse eu a Angela, depois de alguns instantes;
-deu-lhe um pae melhor do que eu.» Reparei então que ella propria se
-transformára; trajava com elegancia e estava superiormente bella. A
-abastança aperfeiçoára a natureza. Olhei-a sem inveja nem
-colera,&mdash;mas com saudade,&mdash;dessa vez deliciosa, porque rememorei
-os bons tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um peculio para os
-que ja não esperam nada do presente ou do futuro; ha alli sensações vivas
-que preenchem as lacunas de todo o tempo. «Fez mal,»&mdash;disse-me ella
-baixinho. E suspirou. «Sei que morri,&mdash;disse eu, e não pretendo
-resuscitar.» Depois voltei-me para Helena:&mdash;«Minha filha, faze de
-conta que me não viste; morri, para ti e para o mundo. Teu pae é
-outro. Promettes que não dirás nada?» Helena fez um leve signal de
-cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quizesse ser vista de
-Angela. Nesse simples gesto reconheci que ella ia obedecer-me; mas a
-tristeza que lhe ficou foi o castigo de sua mãe. Pediamos á natureza
-mais do que ella podia dar.
-</p>
-
-<p>
-Salvador fez uma pausa, ergueu-se foi à commoda, e de uma das gavetas
-tirou uma caixinha, que collocou sôbre a mesa. Melchior e Estacio
-trocaram um olhar de curiosidade. Salvador sentara-se de novo.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Angela morreu,&mdash;proseguiu elle,&mdash;dahi a um anno. Seu pae
-e alguns amigos poucos foram leval-a á sepultura. Tambem eu la me achei. A
-differença é que elle enterrava uma aventura, e eu via enterrar o meu
-passado. Vi-o triste e taciturno, como sinceramente pezaroso da creatura
-que perdéra. Helena, entretanto, não podendo estar só na mesma casa,
-foi removida para o collegio, onde ficou residindo definitivamente. O
-conselheiro ia visital-a todas as semanas. Pela minha parte, certo da
-discrição de minha filha, encetei com ella uma correspondencia que era
-toda a consolação que me podia caber. Uma escrava do collegio servia
-de intermediaria entre nós. Então, como hoje, achei uma alma
-compassiva que me ajudou a ser feliz com mysterio; a differença é que
-naquelle tempo era precisa a intervenção pecuniaria. Eu tinha pouco,
-mas dava o jantar de um dia para ler cartas de Helena. Conservo-as
-todas, tanto as de outr'ora, como as destes últimos mezes; estão
-fechadas aqui.
-</p>
-
-<p>
-Salvador mostrou a caixinha que collocára sôbre a mesa.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Um dia, almoçando em um botequim, li a notícia da morte do
-conselheiro. O facto consternou-me; mas eu peço licença para lhes
-dizer tudo; de envolta com o sentimento, de pezar, houve em mim alguma
-cousa semelhante a uma satisfação. Respirava enfim! O contracto
-expirava com elle; eu ia entrar na posse de minha filha. Não escrevi
-desde logo a Helena; fil-o ao cabo de alguns dias. Tive duas respostas:
-a primeira era no sentido da minha carta; a segunda annunciava-me que o
-conselheiro a reconhecêra por testamento. Podia procurar e ler-lhes a
-segunda carta: é um documento da elevação dos sentimentos daquella
-menina. Exprimia-se com a maior gratidão e saudade a respeito do
-conselheiro; mas negava-se a aceitar o favor posthumo. Sabendo a
-verdade, não queria escondel-a ao mundo. Acceitando o reconhecimento,
-entendia que prejudicava direitos do terceiro, além de repudiar-me
-solennemente, o que não queria fazer desde que adquiria a liberdade de
-acção. Entre a herança e o dever, dizia ella, escolho o que é
-honesto, justo e natural. Esta carta tirou-me o somno uma noite inteira,
-perplexo como fiquei entre o acto do finado e a resolução da herdeira.
-Que mão invisivel tocára no coração do conselheiro essa corda de
-sensibilidade? Melhor fora que elle houvesse traduzido era uma simples
-lembrança a affeição que tinha a Helena. Longo tempo reflecti nisso;
-o pae luctava com o pae. Tel-a commigo era a minha ventura, o meu sonho,
-a minha ambição; era a realidade que eu chegára a tocar com as mãos.
-Mas podia atal-a ao carro decrepito da minha fortuna, dar-lhe o pão
-amargo, que era o meu lote de todos os dias? A familia do conselheiro ia
-afiançar-lhe futuro, respeito, prestigio; a lei ia amparal-a. Perguntei
-a mim mesmo, se depois de haver morrido para o mundo, me era licito
-resuscitar para reclamar e rehaver um titulo de que me havia despojado;
-finalmente se possuia ja o direito de fazer um escandalo. Éstas
-reflexões, se viessem sos, teriam triumphado desde logo; mas, em
-opposição a ellas, vieram as suggestões do coração. Adverti que,
-cedendo á vontade do morto, cavaria um abysmo entre mim e Helena, e que
-não mais, ou só raramente e a o occultas, podia desfructar, a felicidade
-de lhe dizer que a amava, de ouvir a mesma palavra de seu coração.
-Nessa lucta gastei tres longos dias. Helena escreveu-me outra carta,
-insistindo na resolução que dizia haver tomado. Urgindo responder-lhe,
-fil-o sacrificando-me, não a convenci. Procurei ter uma entrevista com
-ella. Não era facil; mas o interesse venceu tudo; a escrava
-intermediaria augmentou o preço da complacencia. O que se passou entre
-nós não o poderei repetir agora; curto era o prazo concedido, mas a
-lucta foi renhida e longa. Busquei persuadil-a com reflexões e
-súpplicas; ella resistiu com indignação e lagrymas. Sua nobre alma
-repudiava a complicidade e o lucro de uma usurpação. Eu não via
-usurpação, por que a meus olhos nem os interesses da familia do
-conselheiro, nem as noções da simples moral prevaleciam: eu via minha
-filha e seu futuro: nada mais. Talvez os culpados desse meu proceder
-fossem somente Angela e seu bemfeitor. Elles me acostumaram a amal-a de
-longe, a não disputar a outrem o beneficio que ella recebia. Emfim, meu
-coração, egoista e ulcerado, entendia que o reconhecimento daquella
-pobre creança era o simples retorno das caricias de que eu havia sido
-defraudado; taes foram os motivos da minha consciencia. Helena resistiu
-até á ultima; cedeu somente á necessidade da obediencia, á imagem
-de sua mãe que eu invoquei, como um supremo esfôrço, á fiança que
-lhe dei de que a acompanharia sempre, de que iria viver perto della,
-onde quer que o destino a levasse; cedeu exhausta, sem convicção nem
-fervor. Se nesse acto decisivo de Helena ha culpa, é toda minha, por
-que eu fui o o autor unico; ella não passou de simples instrumento,
-instrumento rebelde e passivo. Seu êrro foi não ter a prudencia
-necessaria para não transpor o abysmo que nos separava. Eu devia contar
-com na resoluções subitas e promptas dessa menina; ha alli uma
-costella de sua mãe. Mandando-lhe dizer com as indicações precisas,
-onde morava, estava longe de esperar que ella viesse ver-me. A principio
-fiquei atterrado com as possiveis consequencias; mas se o homem se
-habitua ao mal e á dor, por que se não hade acostumar ao prazer e ao
-bem? Helena veiu mais vezes; o gôsto de a ver fez olvidar o perigo, e
-eu bebi, em horas escassas e furtivas, a unica felicidade que mo restava
-na terra, a de ser pae e a de me sentir amado por minha filha.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXVII">CAPITULO XXVII</a></h4>
-<p><br /></p>
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-<p>
-Tinha acabado; grossas lagrymas, retidas a custo, emfim lhe rebentaram
-dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A commoção não
-ficou só nelle; seus dous ouvintes a sentiram tambem. Acabára; e o peor
-que podia acontecer era isso mesmo. Uma vez finda a narração, ficaram
-os dous calados e perplexos, sem que ousassem contradizel-o. Depois de
-curta pausa, Salvador rematou assim:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De tudo o que lhes disse não tenho outras provas, além destas
-cartas, que seriam bastantes, o de minhas lagrymas, que hão de ser
-eternas. Mas ainda quando haja outras, creio que não serão precisas.
-Na situação em que estamos só ha duas soluções possiveis; ou nada se
-altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as
-consequencias da sorte, desaparecendo; ou a familia regeita Helena, e eu
-a levarei commigo. Dir-se-ha que a lei a protege a todo trance? Pois
-ella assignará todas as desistencias necessarias.
-</p>
-
-<p>
-Estacio cortou-lhe a palavra dizendo que opportunamente lhe dariam sua
-resolução. Sahiram elle e Melchior logo depois; não trocaram uma só
-palavra; cada um delles ia absorto. Comtudo, o padre observava de quando
-em quando o sobrinho de D. Ursula, buscando adivinhar-lhe os
-pensamentos.
-</p>
-
-<p>
-Chegando á porta da chacara, o padre perguntou ao moço:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que pretende fazer?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não sei ainda.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Sei eu o que deve fazer: nada.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Conservar ésta situação?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De certo. Helena obedeceu á vontade de seus dous paes, aceitando o
-equívoco em que ambos a vieram collocar. Obedeceu á fôrça. Agora,
-está reconhecida; é um facto que não podemos discutir nem alterar.
-</p>
-
-<p>
-Estacio esteve silencioso alguns instantes.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas posso eu, á vista do que acabamos de ouvir, conservar a Helena
-um titulo que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é minha irmã;
-é absolutamente extranha á nossa familia; o titulo que nos ligava
-desaparece. Por que motivo continuariamos nós uma falsificação...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;De seu pae? atalhou Melchior.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Padre-mestre!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Aquelle homem falou verdade; mas nem a lei nem a Egreja se contentam
-com essa simples verdade. Em opposição a ella, ha a declaração
-derradeira do um morto. A justiça civil exige mais do que palavras e
-lagrymas; a ecclesiastica não extingue, com um traço de penna, a
-affirmação posthuma. Demais, não espere que esse homem reproduza
-perante ninguem as declarações de ha pouco; só o fará quando perder a
-ultima esperança. É evidente que elle nada quer alterar do que seu
-pae estabeleceu, e antes se sacrificará do que envergonhará a filha.
-Sente-se disposto a fazer o que elle recusa?
-</p>
-
-<p>
-Estacio não respondeu; tinham entrado na chacara, e caminhavam
-lentamente na direcção da casa. Melchior deteve-o.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Estacio! disse o padre depois de olhar para elle um instante. Eu
-leio no fundo de seu pensamento; quizera despojar Helena do titulo que seu
-pae lhe deixou para lhe dar outro, e ligal-a á sua familia por
-differente vínculo...
-</p>
-
-<p>
-Estacio fez um gesto como protestando.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Esquece duas cousas graves; o escandalo e o casamento de um e outro;
-ja se não pertence, nem ella se pertence a si. Vamos la; seja homem.
-Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio; e a situação
-de hontem será a mesma de amanhã.
-</p>
-
-<p>
-Quando Estacio e Melchior entraram era casa, ja D. Ursula sabia tudo;
-lográra desatar a lingua de Helena. Abatida com a leitura da carta,
-não lhe levantára o ânimo a narração verbal da moça; seu coração
-preferia talvez que Helena fôsse verdadeiramente filha do conselheiro.
-Alguns mezes de espaço e a convivencia affectuosa produziram a
-differença de sentimento entre o primeiro e o último dia.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Nada podemos fazer ja agora, disse o padre; provocariamos um
-escandalo sem esperança do resultado.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvil-os. Helena
-desceu dahi a alguns minutos. A côr da vergonha tingiu-lhe a face logo
-que ella deu com Estacio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos
-calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Apos um silêncio
-longo e abafado, Estacio communicou a Helena a resolução da familia e
-seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que
-sôbre todas as cousas prevalecia a vontade derradeira de seu pae.
-Helena empallideceu e cerrou os olhos; D. Ursula correu a amparal-a. O
-organismo debilitado pelas vigilias e commoções das últimas horas
-não pudera resistir; mas o deliquio foi leve e curto. Voltando a si,
-Helena beijou ardentemente as mãos de D. Ursula e as do padre, estendeu
-a dextra a Estacio, que a apertou; depois, com voz trémula, mais firme
-resolução, disse:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não
-perdi; mas a situação mudou, e fôrça é mudar com ella. Não quero a
-protecção da lei, nem poderia receber a complacencia de corações
-amigos. Commetti um erro, e devo expial-o. Emquanto a vergonha vivia só
-commigo, era possivel continuar nesta casa; eu atordoava-me para
-esquecel-a; mas agora, que é patente, vel-a-hei nos olhos de todos e no
-sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não
-devêra ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu
-me habituára a amar de longe, com o prestigio de mysterio, e o encanto
-do fructo prohibido. De hoje em diante, amal-os-lei de longe ou de
-perto, mas extranha... e perdoada!
-</p>
-
-<p>
-Dizendo isto, Helena abraçou D. Ursula como a pedir o beneficio da sua
-intervenção. D. Ursula abraçou-a egualmente, mas fez com a cabeça um
-gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo menos um
-symptoma de desprendimento pouco explicavel em relação á familia,
-que, sem embargo dos ultimos successos, não lhe retirára nem a estima
-nem a protecção.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Herdou o orgulho de seu pae! murmurou Estacio.
-</p>
-
-<p>
-A phrase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos
-fulgiram de momentanea satisfação. Attribuir a orgulho, o que era
-vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava
-não ter naquelle lance. Protestou em favor de seus sentimentos de
-gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos tres lhe
-conheciam, mas interrompida a intervallos pela commoção interior, e
-pelos lagrymas que lhe escorriam dos olhos, quasi exhaustos de chorar.
-Estacio poz termo a todas as hesitações.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Pois bem, disse elle, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa
-vontade é que nos obedeça.
-</p>
-
-<p>
-Helena mordeu o labio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça
-descahiu-lhe lentamente como ao pêso de uma ideia a mais e mais
-oppressora. Depois ergueu-a; seus olhos tristes, mas animados dos
-ultimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estacio, que
-nessa occasião pareciam falar as dores todas da paixão suffocada e
-rebelde. Ambos elles os baixaram á terra, medrosos de si mesmos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não creio que ella aceite facilmente a sua decisão,&mdash;disse
-Melchior a Estacio, logo que pôde achar-se só com elle. Acautele-se: é
-capaz de fugir-nos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Cre?
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a
-deixaram repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miseria á vergonha; e a
-ideia de que interiormente não a absolvemos, é o verniz que lhe fica
-no coração.
-</p>
-
-<p>
-De noite, recebeu Estacio uma carta de Salvador, acompanhada de um
-pacote.
-</p>
-
-<p>
-«Reflecti muito durante éstas duas horas,&mdash;dizia elle,&mdash;e cheguei
-a uma conclusão unica. Elimino-me; é o meio de conservar a Helena a
-consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quanto ésta carta lhe
-chegar ás mãos, terei desaparecido e para sempre. Não me procure, que
-é inutil. Irei abençoal-o de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo
-o resentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as
-cartas de Helena; guardo tres apenas, como recordação da felicidade
-que perdi.»
-</p>
-
-<p>
-Estacio teve vontade de ler as cartas de Helena; mas a tempo recusou;
-mandou-a dar á moça. Helena, que estava com D. Ursula, entregou-as a
-ésta.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;São a minha história, disse ella; peço-lhe que as leia e me julgue.
-</p>
-
-<p>
-Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se
-immediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta,
-sinistra, o corpo atirado em um sopha, a alma sabe Deus em que regiões
-de infinito desespêro.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4><a id="XXVIII">CAPITULO XXVIII</a></h4>
-<p><br /></p>
-
-<p>
-Naquella noite, a segunda de tão singulares successos, foi que Estacio
-sentiu toda a violencia do amor que lhe inspirára Helena. Em quanto os
-detinha um vínculo sagrado, amára sem consciencia; e ainda depois de
-esclarecido pelo padre, o esfôrço empregado em vencer-se, e a propria
-natureza da catastrophe, não lhe permmittiram ver a extensão do mal.
-Agora, sim: roto o vínculo, restituida a verdade, elle conhecia que a
-voz da natureza, maia sincera e forte que as combinações humanas, os
-chamava um para o outro; e que a mulher destinada a amal-o e ser amada,
-era justamente a unica que as leis sociaes lhe vedavam possuir.
-</p>
-
-<p>
-Durante as primeiras horas seu coração mordeu rebelde o freio da
-necessidade. A vigilia foi longa e crua; e a reflexão veiu emfim
-dominar a tempestade interior, ou antes alumiar seus destroços. Elle
-viu que o padre tinha razão; que era fôrça desfolhar a esperança de
-um dia. Ao mesmo tempo, o exemplo de Helena deu-lhe ânimo. Senhora do
-segrêdo de seu nascimento, e consciente de amar sem crime, a moça
-apressára, não obstante, o casamento de Estacio e escolhêra para si
-um noivo estimado apenas. Se uma vez a palavra delatora lhe rompeu dos
-labios, ella a retrahiu logo, fazendo o mais obscuro dos sacrificios.
-</p>
-
-<p>
-Não quiz Estacio ser menos generoso. Logo de manhã escreveu a
-Mendonça, pedindo-lhe que não deixasse de os ir visitar nesse dia.
-Não o fez sem custo, mas fel-o sem arrependimento. Tinha por fim
-apressar o casamento de Helena e o seu, condemnando-se a soffrer calado
-os golpes do avêsso destino.
-</p>
-
-<p>
-A manhã, entretanto, não trouxe a Helena o esquecimento e a paz. A
-noite não lhe serviu de remedio, antes legou á aurora toda a sua
-mortal angústia. Debilitada, nervosa, impaciente, não podia a moça
-vencer-se nem supportar-se. Ora repellia com sequidão as boas palavras
-de D. Ursula; ora lhe pedia intercedesse com Estacio para a resolução
-que ella admittia como unico meio de a poupar á vergonha. A excitação
-moral era grande; cumpria aquietal-a por meios persuasivos. Helena fugia
-a todos: não encarava Estacio e D. Ursula sem que o pêjo lhe colorisse
-a face, mudança tanto mais visivel, quanto que a vigilia e a dor a
-tinham empallidecido singularmente. Diziam-lhe que a vontade do
-conselheiro estatuira uma lei na familia, segundo a qual ella continuava
-a ser parenta como d'antes, e tão amada como era. A moça agradecia a
-generosidade, mas não podia fugir á ideia de haver contribuido para
-uma usurpação. Seu desejo capital era que a deixassem ir ter com o
-pae, ao pe de quem a natureza e sua consciencia lhe indicavam que
-poderia estar sem remorso. Estacio e D. Ursula respondiam-lhe com
-affagos e protestos; mas quando viram que estes eram inuteis, não houve
-mais que revellar-lhe a carta de Salvador.
-</p>
-
-<p>
-O padre Melchior incumbiu-se de lhe fazer essa delicada communicação.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Seu pae, disse elle, praticou em seu favor um acto heroico; fugiu
-para lhe não fazer perder a consideração e o futuro. Leia ésta carta, e
-veja se ella lhe dá a fôrça necessaria para resistir.
-</p>
-
-<p>
-Helena pegou na carta com soffreguidão; leu-a de um lance d'olhos. O
-gemido que lhe rompeu do coração mostrou bem a profundez da ferida
-que acabava de receber. O padre acolheu-a lacrymosa e esvaecida em seus
-braços; disse-lhe palavras de conforto e de esperança. Nos primeiros
-minutos, Helena nada pôde ouvir; o golpe ensurdecêra a alma. Melchior
-fel-a sentar ao pe de si; ella obedeceu sem consciencia. Apos alguns
-minutos de silêncio e concentração, a moça dirigiu a palavra ao
-padre, e agradeceu-lhe a caridade. Depois referiu-lhe os acontecimentos
-de sua infancia, os mesmos que o capellão ouvira. A sagacidade natural
-de seu espirito cedo lhe fizera ver que a posição de sua mãe não era
-a mesma das outras mães; essa descoberta porém não teve outra virtude
-mais que communicar a seu amor de filha uma intensidade e energia
-capazes de affrontar os mais fortes obstaculos, como se ella quizesse
-reunir em si toda a somma de affectos e respeitos que a sociedade
-afiança ás situações regulares. Melchior ouviu-a commovido; seu
-coração, nutrido da medulla do Evangelho, reconheceu um effeito da
-graça divina nesse amor immaculado, que valia por todas as
-absolvições da terra. Elle a applaudiu e confortou; falou-lhe do
-futuro, do carinho de sua familia,&mdash;sua, a despeito de tudo; emfim da
-obrigação em que ella estava de corresponder a tanta confiança.
-</p>
-
-<p>
-Talvez Helena, em sua razão, correspondesse aos conselhos de Melchior;
-mas a razão é o que menos a dirigia naquellas circumstâncias
-afflictivas. Ella deixou o padre para recolher-se a seus aposentos,
-Quando D. Ursula alli foi, meia hora depois, achou-a profundamente
-abatida; a violencia da crise passára. A linguagem que lhe falou foi
-maternal, ungida de amor e perdão; Helena ouviu-a agradecida, mas um
-sorriso descorado e sem convicção lhe entre-abria os labios. Suppunha
-ler commiseração onde havia affecto e respeito; e seu orgulho
-rebellava-se de inspirar o unico sentimento que a consciencia lhe dizia
-merecer.
-</p>
-
-<p>
-As instancias de D. Ursula para que Helena se alimentasse foram inuteis;
-ella apenas recebia o que bastava para não sucumbir á fome. A
-companhia repugnava-lhe; assim, poucas vezes a viram desde os dias que
-se seguiram áquella funesta manhã. Mendonça não conseguiu mais do
-que os outros. A familia teve o cuidado de annunciar que Helena se
-achava enferma. A afflicção do noivo foi grande; mas todos buscaram
-tranquilizal-o. Nada havendo transpirado do acontecimento, facil foi
-sustentar aquella explicação.
-</p>
-
-<p>
-Melchior encommendára muito á familia que vigiaste a moça, cujo
-espirito lhe parecia atrevido e tenaz; elle receiava que Helena ou
-fugisse de casa, ou recorresse a algum acto de desespêro. O summo padre
-desvellou-se em trazer a alma de Helena ao sentimento da resignação, A
-autoridade de seu caracter religioso, a influência que elle tinha no
-espirito de Helena eram armas poderosas, temperadas como amor verdadeiro
-e paternal que o ligava á donzella. Nada poupou; mas seus esforços
-não tiveram mais fructo, que os da familia. Helena mal podia tolerar a
-situação.
-</p>
-
-<p>
-Uma vez, como ella descesse á chacara, sahiu Estacio a procural-a, não
-a encontrando senão ao cabo de alguns minutos. Achou-a ao pe do tanque,
-no lugar em que lhe falára poucos dias antes, sentada no mesmo banco de
-pau. Vendo-o, estremeceu; elle approximou-se contente de a haver
-encontrado emfim. O dia estava feio; grossas nuvens negras pejavam o ar,
-humidas de temporal proximo. Estacio convidou-a a recolher-se.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Deixe-me estar aqui um instante mais, respondeu ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Dous minutos apenas.
-</p>
-
-<p>
-Sentou-se ao pe della e ficaram calados. Helena tinha uma taquara na
-mão; Estacio quiz tomar-lh'a; ella arremessou-a para longe. Ergueu-se
-então o moço e foi buscal-a; só então viu que estava molhada até
-certa altura; calculou que seria o fundo do tanque. O tanque era raso;
-não poderia dar a morte; mas a suspeita de que Helena não recuaria
-deante do suicidio aterrou naturalmente o espirito de Estacio.
-Parecendo-lhe que a causa não comportava o effeito, perguntou a si
-mesmo se os successos daquelles dias não teriam velado a consciencia da
-moça. Sentou-se de novo e falou-lhe com brandura.
-</p>
-
-<p>
-Ao escutal-o, sentiu Helena como uma ressurreição de outras horas, que
-ella julgava escoadas para sempre; um sorriso lhe animou os labios sem
-côr, ao passo que os olhos doridos e murchos pareciam reviver de um
-resto de luz. Estacio falou-lhe de si, da tia, do padre e de Mendonça,
-dos proximos casamentos, da felicidade futura. Depois insistiu com ella
-para que entrasse. Uma brisa mais forte começava a agitar as árvores,
-e a tempestade ameaçava cahir de repente.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ainda não,&mdash;disse a moça; alguns minutos mais.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Mas póde adoecer...
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Talvez, se todos quizerem a minha saude. Ha creaturas tão
-malfadadas, que aquelles mesmos que as desejam fazer venturosas não
-alcançam mais do que preparar-lhe o infortunio. Tal foi o meu destino.
-Seu pae e minha mãe não tiveram outro pensamento; meu proprio pae foi
-levado do mesmo impulso, quando me obrigou a ser complice de uma
-generosa mentira. Agora mesmo que elle me foge, com o fim unico de me
-não tolher a felicidade, arranca-me o ultimo recurso em que eu tinha
-posto a esperança.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena! interrompeu Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;O ultimo, repetiu a moça.
-</p>
-
-<p>
-Esvaira-se-lhe o sorriso, e o olhar tornara a ser opaco. Estacio teve
-medo daquella atonia e concentração; travou-lhe do braço; a moca
-estremeceu toda e olhou para elle.
-</p>
-
-<p>
-A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas dentro de alguns
-instantes era alguma cousa mais. Era a primeira revellação, tacita mas
-consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum delles procurára esse
-contacto de suas almas, mas nenhum fugiu. O que elles disseram um ao
-outro, com os simples olhos, não se escreve no papel, não se póde
-repetir ao ouvido; confissão mysteriosa e secreta, feita de um a outro
-coração, que só ao ceu cabia ouvir, por que não eram vozes da terra,
-nem para a terra as diziam elles. As mãos, de impulso proprio,
-uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum receio, nenhuma
-consideração deteve essa fusão de duas creaturas nascidas para formar
-uma existencia unica.
-</p>
-
-<p>
-O vento tornara-se mais rijo; uma lufada os despertou,&mdash;em ma hora,
-por que ha sonhos que deviam acabar na realidade do outro seculo. Estacio
-ergueu-se; sacudiu valorosamente o torpor da felicidade, e reassumiu o
-papel que seu pae lhe assignára ao pe de Helena. Ésta desviou os olhos
-e cravou-os na agua, fascinada e absorta. A ideia do suicidio roçaria
-devéras sua aza invisivel pela fronte da moça? Estacio foi a ella,
-pegou-lhe nas mãos e convidou-a a sahir dalli.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Entremos,&mdash;disse elle pela terceira vez, olhe que vae chover.
-</p>
-
-<p>
-Helena deixou-se levantar; um calafrio percorreu-lhe o corpo todo, e as
-mãos, que o moço ainda tinha entre as suas, estavam muito mais quentes
-que o natural.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ande repousar, continuou Estacio; póde adoecer, e não tem direito
-para tanto; nossa affeição não o consentirá nunca. Vamos.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Amar-me-hão sempre? perguntou Helena.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Oh! sempre!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Impossivel! Ha uma voz no fundo de seu coração, que lhe dirá, de
-quando em quando, ésta triste palavra: aventureira!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Helena!
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não posso ser outra cousa a seus olhos, proseguiu a moça
-tristemente. Quem o convencerá de que a declaração de seu pae não
-foi obtida por artificios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que,
-cedendo aos rogos de meu pae, não fiz mais do que executor ura plano
-preparado ja? São dúvidas que lhe hão de envenenar o sentimento e
-tornar-me suspeita a seus olhos. Resista quem puder; é me impossivel
-encarar semelhante futuro!
-</p>
-
-<p>
-Helena cahíra offegante no banco. Estacio falou-lhe com abundancia e
-ternura; jurou-lhe que sua familia era incapaz da minima suspeita;
-pediu-lhe por seu pae que não julgasse mal delles. Ella sorriu, mas foi
-um sorrir de incredula.
-</p>
-
-<p>
-Grossos pingos de chuva começavam a rufar nas árvores. Estacio pegou
-na mão de Helena para conduzil-a a casa. A moça fugiu-lhe, indo
-collocar-se alguns passos adeante, onde a chuva lhe cabia mais em cheio
-na cabeça nua e no corpo levemente coberto. Quando Estacio, desvairado
-de terror, correu para ella, Helena affastou-se delle; mas nem seus pes
-o poderiam vencer nunca, nem lh'o permittiam agora as fôrças quebradas
-por tantas e tão profundas commoções. Elle alcançou-a; estendeu o
-braço em volta da cintura da moça, dizendo:
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Que capricho é esse? Vamos embora; eu quero que venha commigo para
-dentro.
-</p>
-
-<p>
-Ao sentir o braço de Estacio, Helena estremeceu e fez um movimento para
-arredal-o de si; mas a fraqueza trahiu-lhe o instincto de seu melindroso
-pudor. Ella fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas
-fraquearam, e o corpo esmorecido iria a terra, se lh'o não sustivessem
-as mãos de Estacio.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Deixe-me morrer! murmurou ella.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Não! bradou o mancebo.
-</p>
-
-<p>
-Com um gesto rapido, tomou nos braços, estendida, o corpo exhausto de
-Helena, e caminhou na direcção da casa. O vento flagellava-os; a
-chuva, que subitamente cahia a jorros, alagava-os sem misericordia; elle
-ia andando, o mais depressa que lhe permittia o pêso de Helena, cuja
-cabeça pendia para a terra, e de cujos labios brotavam trechos soltos
-de phrases sem sentido.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula viu entrar aquelle doloroso expectaculo; correu a receber
-Helena, que Estacio depositou em um sopha, donde foi transferida ao
-leito. A febre, ja começada antes della sahir, tomára conta emfim da
-pobre moça. Um médico foi chamado á pressa; o padre Melchior correu
-por baixo d'agua até a casa de Estacio. As primeiras horas foram de
-anciedade e susto; o estado da doente era grave; assim o disse o
-médico; assim o tinham já sentido os corações amigos.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula pagou naquella occasião os serviços que, em caso analogo,
-lhe prestára Helena, mau grado e pêso dos annos, que lhe não
-permittiam longas vigilias nem aturado trabalho. Velou a boa senhora á
-cabeceira da enferma, durante essa primeira noite de incerteza e terror.
-Mendonça, que alli fôra sem suspeitar nada, por que a doença que lhe
-disseram ter padecido Helena, suppunha elle ser passageira, e em tudo
-caso, estar quasi extincta, Mendonça recebeu essa triste notícia com a
-morte no coração.
-</p>
-
-<p>
-Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que
-lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas
-horas houve de delirio, durante o qual dous nomes volviam frequentemente
-aos labios da enfêrma,&mdash;o de Estacio e o de seu pae. Nas horas da
-razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que
-ella queria ver juncto de si. O capellão obedecia docilmente. Ao pe
-della, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, por que
-elle aceitava sem murmurio os decretos da vontade divina; depois, porque
-não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a
-morte. Em todo o caso consolava-a; e suas palavras cahiam no coração de
-Helena como um orvalho do ceu.
-</p>
-
-<p>
-No quarto dia chegou a familia de Camargo, sabendo da doença de Helena
-apressou-se a ir a Andarahy. Ao ver Eugenia, a moça sorriu tristemente,
-lampejo de inveja, que para logo se apagou e morreu no coração.
-</p>
-
-<p>
-Estacio mal ousava entrar na alcova da doente e não podia viver fóra
-della. Sua afflicção era patente. Elle promettia a si mesmo todos os
-sacrificios em troca da vida de Helena, espreitava uma esperança no
-rosto do médico, e interrogava o coração da tia e do padre. Na noite
-do setimo dia da scena do jardim, D. Ursula, que ficára ao pe de
-Helena, mandou chamar á pressa o sobrinho e o padre Melchior, que
-estavam na sala contigua. Accorreram os dous. Helena tivera uma syncope,
-que D. Ursula cuidára ser a morte. Voltando a si, leu a moça a sua
-sentença no rosto de todos tres.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Ainda não, murmurou ella: ainda não é a morte.
-</p>
-
-<p>
-D. Ursula chegou-se-lhe mais perto, beijou-a, disse-lhe algumas palavras
-de conforto.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Deixe estar, respondeu ella, deixe que eu não morro; estou só muito
-doente.
-</p>
-
-<p>
-Estacio buscou animal-a, mas a voz morreu-lhe ás primeiras expressões,
-e elle sahiu. Melchior acompanhou-o.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Uma cousa poderia talvez saval-a, disse afflicto o moço; era o
-presença do pae. Vou mandal-o procurar por toda a parte. Havemos de
-achal-o; é preciso que o achemos.
-</p>
-
-<p>
-Melchior approvou a ideia do mancebo: e não lhe disse que o remedio
-viria talvez tarde, se viesse. Estacio ordenou as cousas para a seguinte
-manhã. Voltaram á alcova da enferma. Ésta fechara os olhos como se
-dormisse. Houve então entre aquellas quatro paredes meia hora de
-silêncio, interrompido apenas, de quando em quando, pelos movimentos
-que a doente fazia, como a querer mudar de posição. No fim desse
-tempo, abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Chegou o médico,
-viu-a e desenganou a familia.
-</p>
-
-<p>
-Em quanto Melchior dava as ordens precisas para que Helena tivesse os
-socorros espirituaes, Estacio sahiu dalli, para ir, longe, desabafar
-seu desespêro; desceu á chacara, vagou por ella delirante, a soluçar
-como uma creança, ora abraçado a uma árvore, ora ajoelhado e pedindo
-a Deus a vida de Helena. Seu coração não conhecia o fervor religioso;
-mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levára, e elle rezou,
-rezou sosinho, sem hypocrisia nem dúvida. Mendonça veiu achal-o nessa
-lucta derradeira entre a realidade e a esperança. Não o consolou; seu
-peito não tinha consolações que distribuir, porque tambem a dor lhe
-devastára o coração. Nos braços um do outro, choraram o mesmo bem
-que se lhes ia embora.
-</p>
-
-<p>
-Um escravo veiu chamar Estacio á pressa; elle subiu tropego as escadas,
-atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cahir de
-joelhos, quasi de bruços, juncto ao leito do Helena. Os alhos desta, ja
-volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e
-foi Estacio que o recebeu,&mdash;olhar de amor, do saudade e de promessa. A
-mão pallida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo;
-elle inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lagrymas e não se
-atrevendo a encarar o final instante. Adeus!&mdash;suspirou a alma de
-Helena rompendo o envolucro gentil. Era defuncta.
-</p>
-
-<p>
-A noite foi cruel para todos. D. Ursula, profundamente abatida pela dor
-e pelas vigilias, não consentiu, ainda assim, que outras mãos
-amortalhassem Helena; ella mesma lhe prestou esse derradeiro e triste
-obsequio. A morte não diminuíra a belleza da donzella; pelo contrário,
-o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto mysterioso e novo.
-Estacio contemplou-a com os olhos exhaustos, o padre com os seus
-humidos. Melchior supportára a dor até o momento da definitiva
-separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater emfim, ao
-pe daquelles pallidos restos, despôjo último de generosas illusões.
-</p>
-
-<p>
-No dia seguinte, prestes a sahir o entêrro, as senhoras deram á
-donzella morta as despedidas derradeiras. D. Ursula foi a primeira que
-lhe prestou esse dever; seguiu-se Eugenia e seguiram as outras. Estacio
-viu-as subir, uma a uma, o estrado em que repousava a eça. Depois,
-quando ia fechar-se o feretro, caminhou lentamente para elle; trepou ao
-estrado, e pela ultima vez contemplou aquelle rosto,&mdash;séde ha pouco de
-tanta vida,&mdash;e a coroa de saudades que lhe cingia a cabeça, em vez de
-outra, que seu coração tinha direito de pousar nella. Emfim
-inclinou-se tambem, e a fronte do cadaver recebeu o primeiro beijo de
-amor.
-</p>
-
-<p>
-Fecharam o feretro; ao moço pareceu que o encerravam a elle proprio.
-Sahindo o entêrro, deixou-se Estacio cahir n'uma cadeira, sem pensar
-nada, sem sentir nada. Pouco a pouco despovoou-se a casa; os amigos
-sahiram; um só de tantos ainda alli ficou, a lastimar consigo a noiva,
-tão cedo promettida e tão cedo roubada. Esse mesmo sahiu, emfim, não
-ficando mais do que a familia, cujo pae espiritual era Melchior.
-</p>
-
-<p>
-Sosinho com Estacio, o capellão contemplou-o longo tempo; depois,
-alçou os olhos ao retrato do conselheiro, sorriu melancholicamente,
-voltou-se para o moço, ergueu-o e abraçou com ternura.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Animo, meu filho! disse elle.
-</p>
-
-<p>
-&mdash;Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estacio.
-</p>
-
-<p>
-Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de Estacio, consternada
-com a morte de Helena, e aturdida com a lugubre cerimonia, recolhia-se
-tristemente ao quarto de dormir, e recebia á porta o terceiro beijo de
-seu pae.
-</p>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<h4>FIM</h4>
-
-<p><br /><br /><br /></p>
-
-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>HELENA</span> ***</div>
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-Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg&#8482;
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-Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.
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-Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
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-state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
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-</div>
-
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-The Foundation&#8217;s business office is located at 809 North 1500 West,
-Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
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-and official page at www.gutenberg.org/contact
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
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-</div>
-
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-States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
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-
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-</div>
-
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-</div>
-
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-Section 5. General Information About Project Gutenberg&#8482; electronic works
-</div>
-
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-freely shared with anyone. For forty years, he produced and
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-</div>
-
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-
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