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-The Project Gutenberg eBook of A nossa Gente, by Francisco Teixeira
-de Queiroz
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
-www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you
-will have to check the laws of the country where you are located before
-using this eBook.
-
-Title: A nossa Gente
-
-Author: Francisco Teixeira de Queiroz
-
-Release Date: March 4, 2022 [eBook #67561]
-
-Language: Portuguese
-
-Produced by: Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team
- at https://www.pgdp.net (This book was produced from
- scanned images of public domain material from the Google
- Books project.)
-
-*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A NOSSA GENTE ***
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- _COMEDIA DO CAMPO_
-
-
- A NOSSA GENTE
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-
- =Parceria Antonio Maria Pereira=|(LIVRARIA-EDITORA)|_50, 52—Rua
- Augusta—52, 54_
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- Obras de TEIXEIRA DE QUEIROZ
- (_Bento Moreno_)
-
-
- COMEDIA DO CAMPO
-
- (ROMANCES)
-
- I —Contos—1 vol. (ultimos exemplares) 500
-
- II —Amor Divino—1 vol. (ultimos exemplares) 500
-
- III —Antonio Fogueira—1 vol. 500
-
- IV —Novos contos—1 vol. 600
-
- V —Amores, amores...—1 vol. 600
-
- VI —A nossa gente—1 vol. 500
-
-
- COMEDIA BURGUEZA
-
- (ROMANCES)
-
- I —Os noivos—2 vol. (nova edição com o retrato do auctor) 1000
-
- II —Sallustio Nogueira (exgotado) 1 grosso vol. 1000
-
- III —D. Agostinho—1 vol. 600
-
- IV —Morte de D. Agostinho—1 vol. 600
-
- V— O famoso Galrão—1 vol. 600
-
-
- Arvoredos—(Contos escolhidos, edição diamante, com 800
- estampas)
-
-
- As minhas opiniões—(Estudos psychologicos e sociaes) 1 600
- vol.
-
-
- O Grande Homem—(Comedia, exgotada).
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- -------
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- EM PREPARAÇÃO
-
- (ROMANCE)
-
- =A Caridade em Lisboa=
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- (_Comedia burgueza_)
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- _COMEDIA DO CAMPO_
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- (SCENAS DO MINHO)
-
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-
- A nossa Gente
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-
- POR
- TEIXEIRA DE QUEIROZ
- (_Bento Moreno_)
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-
- LISBOA
- PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
- (_Livraria-editora_)
- 50, 52—Rua Augusta—52, 54
- 1900
-
-
-
-
- La plupart des drames sont dans les idées
- que nous nous formons des choses. Les événements
- qui nous paraissent dramatiques ne
- sont que les sujets que notre âme convertit en
- tragédie ou en comédie, au gré de notre caractère.
-
- H. DE BALZAC.—_Modeste Mignon._
-
-
- LISBOA
- Typographia da Parceria Antonio Maria Pereira
- _11—Apostolos—11_
- 1899
-
-
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- SANTA MARGARIDA
-
-
- PRIMEIRA PARTE
-
-
- I
-
-
-Era adoravel no berço pela sua tranquillidade feliz: esse primeiro anno
-de existencia passou-o a mammar e a dormir, deixando de mammar para
-dormir, e interrompendo o dormir só para mammar. Nos curtos intervallos
-d'estas occupações sérias mostrava pouca vivacidade de caracter: para
-tudo e para todos olhava com tal incomprehensão, que se julgou que fosse
-doente, ou de somenos intelligencia. Pouco mais do que a planta que
-vegéta apegada á terra, e que só estima a terra que a nutre; pois o
-unico apego ou affeição manifestado n'este primeiro periodo de vida, foi
-pela ama, a Antonia, mulher do caseiro, e desdenhava os afagos da mãe
-verdadeira, preferindo-lhe os d'aquella que a sustentava de leite. A boa
-creatura ufanava-se com isto e no intimo julgava-se com melhor parte na
-maternidade de Margarida do que a propria D. Claudina, que a déra á luz.
-Este ciume levou-a a dizer ao seu homem, que mais queria aquella menina
-do que ao seu Zé, cuja creação entregara a uma irmã, para tomar conta da
-filha dos patrões, como estava assente e ajustado que fosse, mesmo antes
-dos dois partos. E justificava-se:
-
-—Pois se ella é tão minha amiga, que não póde estar um só instantinho
-sem mim!... Meu rico anjo!... Se accorda e me não vê, logo chora que é
-grande matação. Lá o meu rapaz era muito mais bravo e até ruim. Dava-me
-cada dentada!... Havia noites, que eu não pregava olho por causa d'elle.
-
-Assim correu o primeiro anno; mas quando se entrou no seguinte e pela
-volta dos quatorze mezes, começaram para a misera Antonia noites
-difficeis e tormentosas com o rompimento das presas. Tudo que até ahi
-fôra doçura de caracter, se transformou em rabugem insupportavel.
-Quantas dôres não soffreria a pobre creança para chorar continuadamente,
-de dia e de noite, que nem se comprehendia como tivesse folego para
-tanto!... A ama aguentava com heroicidade e lagrimas as mordeduras no
-peito, que chegavam a fazer-lhe sangue. Os medicos prohibiram o desmamme
-n'esta grave crise, que foi tão violenta e alarmante, como qualquer
-perigosa molestia. Esperava-se que isto passasse; decerto havia de
-passar e passou, depois de ter durado tres longos mezes, com a creança
-entre a vida e a morte. Não lhe faltaram com nenhuma coisa que podesse
-minorar aquelle soffrimento horrivel: além dos medicos que vinham ambos
-todos os dias, foram requeridos os mais afamados e milagrosos santos da
-visinhança; e consultadas as feiticeiras mais sérias, que predisseram
-com grande tino e sagacidade, sobre cueiros e camisinhas da innocente
-Margarida. Mas n'esse periodo atroz dos tres mezes tudo parecera
-infructifero: as convulsões eram aterradoras, a febre continuada, o
-emagrecimento implacavel! As honras da victoria, por fim, couberam a
-santa Margarida, padroeira da capella da casa, cujo valimento
-imploraram, adiantando-lhe uma illuminação de velas de cera em oito dias
-e oito noites contadas hora a hora. As primeiras reconhecidas melhoras
-declararam-se exactamente no fim d'este espaço de tempo, e por tal
-motivo houve depois missa cantada em acção de graças e sermão, em que o
-padre José Pitança disse coisas maravilhosas ácerca do incontestavel
-milagre.
-
- * * * * *
-
-Passara o perigo e com elle todas as afflicções n'aquella casa. A
-creança melhorou, entrando n'uma phase de saude regular. Voltaram-lhe as
-bellas côres do rosto. Acordou d'esta especie de lethargia com
-vivacidade irrequieta nos olhos e signaes de esperteza em todo o
-semblante, o que até ahi se lhe não tinha notado. Os paes viviam mais
-contentes do que nunca, pois que a filha lhes fôra restituida
-accrescentada em espirito e saude. Antonia é que não seria completamente
-da mesma opinião, visto que a sua querida menina já não era tão meiga e
-docil de caracter. Estava uma insupportavel traquina: tinha muito genio,
-um frenesi permanente lhe dominava a vida infantil, custava muito a
-aturar. Os nervos ainda se lhe exacerbaram e o querer tornou-se mais
-irascivel, quando aos sete annos veio uma segunda crise de doença.
-Aquelle pequenino rosto, uma oval delicada que podia conter-se na exigua
-mão d'uma fada; aquella bocca pequenina e vermelha como um botão de
-rosa; os dois olhos negros como duas amoras... tudo se transformara a
-ponto de parecer um rosto feio, com dentes transitoriamente deseguaes e
-em posição cahotica, beiços grossos da inflammação, e olhares violentos
-e maus. A misera Antonia passou n'este periodo amarguras desconhecidas:
-eram mordedellas, beliscões e pancadas com que a mimoseava esta sua
-filha de leite. Não socegava, nem de dia nem de noite. O seu dormir
-d'agora, era tão vario e turbulento, que mesmo durante o somno seguia a
-encarniçada batalha da vida, com gargalhadas, choros, gritos, gestos e
-palavras de violencia, como se estivesse acordada. A paciente ama andava
-constantemente a pé com um frio de lobo, para a cobrir; pois
-considerava, que, se a pequena lhe apanhasse algum resfriamento, ella
-mais do que ninguem pagaria o mal com vigilias e canceiras. Durante
-essas longas horas de silencio, á luz tremula da lamparina que havia no
-quarto commum, escutando o vento que uivava nas carvalheiras da matta e
-a chuva que grazinava no telhado e nas vidraças, é que a humilde serva
-tinha os seus desabafos deante da imagem da Virgem, que estava no
-oratorio:
-
-—Mesmo uma cabrita!... Não é do meu leite... não! Isto... trocaram-m'a
-por outra. Se esta Nossa Senhora a levasse para a sua companhia...
-
-Mas vinham-lhe logo idéas de arrependimento, por causa de taes
-arrenegos. Creara-a ao seu peito e lembrava-se com amor das consolações,
-que Margarida lhe dera no primeiro anno de amammentação, quando era
-meiga como um cachorro recem-nascido, formosa como um anho de lã branca.
-Não se lhe desvanecera ainda da pelle a sensação deliciosa d'aquelle
-contacto setinoso; no mamillo sentia ainda o sugar angelico que lhe
-inebriara de caricias todo o corpo e até, por vezes, a tinha adormecido
-com deleites (como dizem que produz a cobra manhosa, que magnetisa a
-teta ubere de que se sustenta ás furtadelas). Então Margarida era uma
-bolinha de carne, que dava gosto mostrar a toda a gente, e com quem
-appetecia dormir quando ella se mettia pelo corpo da ama dentro, feita
-n'um novello, os joelhinhos proximo do queixo, as mãosinhas agarradas na
-mamma com medo que lhe fugisse. Taes coisas nunca esquecem, deixam, na
-memoria de todo o corpo, impressão de suavidade e doçura tal, que
-impossivel é olvidal-as, mesmo quando surjam novos factos de natureza
-varia a contradizel-as. Foi por causa da primeira crise de dentição, que
-Margarida mammou muito para além do anno; e ainda para maior mal,
-Antonia continuara-lhe este vicio bem mais tempo do que se suppunha. Já
-o peito estava sêcco; a menina, que dormia com ella, não pegava no somno
-sem que tivesse a chucha na bocca e fazia-o com tanto geito e goso que a
-ama lhe dizia:
-
-—Sua lambona! No dia em que se casar ainda ha de pedir d'isto... Caso é
-que parece correr-lhe...
-
-E corria e ella deixava correr, pois que n'esse sugar improficuo e
-vicioso, a boa mulher, além de não querer contrariar Margarida,
-encontrava a lembrança de tantas meiguices passadas, que até lhe vinham
-lagrimas de contentamento. Se ao despegar a creança a bocca, por cahir
-em somno, ella reconhecia no bico do peito algumas gottas tiradas do seu
-sangue, vinham-lhe assomos de ternura, em que perdoava todas as
-rabinices do dia. Foram n'este viver defezo até aos cinco annos da
-pequenita, pois Antonia só assim encontrava meio de lhe dominar as
-crises de genio violento. Quando a via com o diabo no corpo, fechava-se
-com ella no quarto ás escuras e lá perpetravam o seu crime. Mal pensava
-a ama, que com tal proceder, concorria para tornar aquelles nervos (já
-de sua natureza vibrantes e sempre álerta para explodirem como centelhas
-electricas) exigentes e melindrosos, logo no começo da vida! Pois assim
-se formou aquelle cerebro excentrico e phantasioso: ora illuminado de
-alacridade estrondosa e communicativa, ora obscurecido por tristeza
-bronca e inconvivente; hoje da suavidade doentia da rola amorosa, ámanhã
-da rudeza do milhafre accommettendo com as garras e o bico. Quando presa
-de melancolia, procurava escuras sombras nos arvoredos da matta contigua
-á habitação, secrestando-se assim do convivio de todos; n'outras
-occasiões, com a mente jubilosa praticava innumeras temeridades—subindo
-a arvores e a telhados, provocando os viçosos bezerros que pasciam no
-prado, soltando os sanhudos cães de guarda para accommetterem pacificos
-transeuntes e os pedintes que vinham ao portal. Porém alegrias ou
-tristezas eram-lhe de pouca dura: simples fulgurações de nervos, que
-logo se apagavam após ephemero clarão. Appareciam frequentes e
-ligavam-se taes estados de sentir contrarios, mostrando, no emtanto,
-accentuado pendor para tudo que fosse bulha. Traziam tambem essas
-rebeldias de nervos caracter de contagiosas ou suggestivas para as
-outras creanças, que a imitavam e seguiam com enthusiasmo e obcecação,
-collaborando com ella em obras destruidoras contra animaes, flores ou
-mobilia. Esta pequena imperatriz da maldade impunha auctoritariamente a
-imitação do seu procedimento tyrannico e contundente. Os paes eram
-ricos, queriam-lhe muito e consentiam-lhe tudo; por isso encontrava
-sempre como victimas para esgotar a turbulencia da sua alma um velho
-creado paciente e tonto, um cão gottoso e indefeso que dormia juncto da
-lareira, um pobre jumento aposentado, que soltavam para comer nos
-vallados. Porém a passividade soffredora, que taes entidades lhe
-offereciam, mais lhe fazia referver o sangue; não se ressentirem das
-suas provocações tomava-o como de pouca consideração pelo seu poder; o
-soffrimento alheio causava-lhe regosijos de que dava mostras com animo
-contente e satisfeito. Quem podia, evitava-lhe o contacto; mas os
-creados e dependentes faziam-lhe vontades e muitas festas deante dos
-paes; diziam-lhe palavras de carinho e agradaveis; louvavam-lhe a
-docilidade de genio e animo dadivoso; porém, não poucas vezes, Margarida
-lhes commentou os dizeres com esta que tal rabinice:
-
-—Tu dizes isso para a mamã te ouvir...
-
-E D. Claudina sempre a corrigia assim:
-
-—Bem sei que és ruim como as cobras; mas és minha filha...
-
-
- II
-
-
-Os doze annos de Margarida, coincidindo com o domingo de Paschoela, em
-que se celebrava o orago da capella da casa, foram festejados com
-demasiada pompa. Quem primeiro lembrou o ajustado d'essas duas datas foi
-Antonia, e D. Claudina assignalou a importancia do facto, por serem os
-doze annos a edade que marca a transicção da inconsciencia infantil,
-para a responsabilidade de quem já repara na sombra. Talvez ambas
-tivessem o pensamento reservado de pedir a collaboração da santa, com o
-fim de conseguirem qualquer mudança favoravel no caracter irrascivel da
-creança!... Tem-se visto milagres d'estes e maiores; nunca se deve
-desesperar da possibilidade da intervenção do poder divino nos destinos
-humanos. Posta a questão de assim conseguirem para a alma de Margarida
-uma correlação de belleza com a do seu rosto, que era, em certos
-instantes, d'uma belleza seraphica, não se pouparam os paes a larguesas.
-Formaram plano grandioso: haveria missa a tres padres, com Gloria e
-Credo cantados por côro escolhido; haveria sermão de circumstancia
-pregado por qualquer padre de nomeada, que viesse de Braga, onde os ha
-bons; haveria fogo preso e musica de vespera; romaria e procissão com
-anjinhos no dia. Isto pelo que toca ao divino: no que diz respeito ao
-profano, grande jantar com numerosos convivas, uma especie de baile no
-domingo á noite, que se realisaria na grande sala de ordinario destinada
-a estendal e armazem das fructas, batatas e feijão, que se guardavam
-para todo o anno.
-
-Quanto mais se martellava n'isto, mais se estendia e melhorava a
-primitiva idéa. João da Costa assentou em que, para celebrar
-condignamente a juncção da festa da padroeira da sua capella com os doze
-annos de sua filha, devia attrahir muito povo de perto e de longe e por
-tanto encommendou ao Zé Osti, o mais afamado fogueteiro do Alto Minho
-(onde se conhecem dos primeiros) um fogo preso chibante! Sabia elle
-muito bem que sendo conhecido este promenor, não ficariam em casa senão
-os muribundos; porque até os cegos e paralyticos haviam de concorrer.
-
-Não se enganara: era de vêr como dos campos em lavrada, se levantavam
-alaridos de alegria no dia em que atravessaram as aldeias visinhas o
-proprio filho do Zé Osti, capitaneando uma duzia de mulheres, que á
-cabeça transportavam as diversas figuras e o abundante fogo do ar.
-Tambem João da Costa se não esqueceu de mandal-os esperar pela musica
-que tinha contractada, e que á frente vinha annunciando o caso com o
-estrondo dos seus metaes, tocando grandiosa marcha. A galhardia dos
-trombones, figles e cornetins, lardeados pelos alegres clarinetes e
-flautas soprados com alma e coração, e tudo esfuziado por um soberbo
-requinta que fôra musico do tres de Vianna, formavam um tal conjuncto
-alegre e ostentoso, adeante dos bombos e pratos, que era de deixar bois,
-charrua e arado, para vir ao caminho gozar, admirar e applaudir! Tudo
-merecia a imaginação copiosa e deslumbradora do afamado fogueteiro! As
-formosas moçoilas que abandonavam, por momentos, as sacholas e vinham
-acompanhadas dos namorados ver as ricas peças, bem o demonstravam
-exclamando:
-
-«Olha a chieira d'aquella macaca de chapeu de flôres! Veremos se terá a
-mesma, quando lhe rebentarem as bombas por baixo da saia de balão.»
-
-«Olha o barbeiro a amolar as navalhas! No sabbado á noite é que as hade
-amolar depressa!...»
-
-«Olha o janota de chapeu alto, que grande charuto leva na bocca! Aquillo
-é que hade esguichar fogo, quando lh'o accenderem.»
-
-«E o painel de Santa Margarida cheio de lagrimas de côres á roda! É obra
-apilarada! Não vêdes gentes, como se parece com a morgadinha?!...»
-
-Do fogo do ar é que se presumiam coisas de espavento, pelo que se vira
-na passada romaria da Agonia. Então deitaram-se foguetes com cabeças
-maiores do que as de gente, e houve por momentos receio de que pudessem
-estremecer e toldar os vinhos que ainda estavam envasilhados, ou aluir
-qualquer penedo mal seguro! Todos tinham tamanho respeito aos monstros,
-que o Zé Osti, não encontrando nas localidades homem bastante corajoso
-para lhes chegar a murraca, nas occasiões se fazia acompanhar por um
-especial, que tinha o craneo por forma duro e resistente, que não
-haveria receio de que lhe rebentasse o sangue pelos ouvidos, ou se lhe
-voltasse a mioleira, se por acaso um dos foguetes não subisse e lhe
-estalasse aos pés.
-
-Era um sugeito atarracado e musculoso, que para exercer o mister tinha
-de arroxar o craneo com tres lenços em volta. No intuito de prevenir
-desgraças esses foguetes gigantes, deitavam-se sempre longe do ponto da
-romaria, e para agora haviam escolhido o conjuncto especial de penedos
-chamados o Castello, com o fim de que o estrondo não encommodasse.
-
- * * * * *
-
-Á chegada da musica e do fogo, a creadagem de João da Costa, logo
-appareceu no largo da entrada a distribuir copos de vinho, por toda
-aquella gente que vinha suada. Foi um despejar como nunca se vira: «e
-vivam os senhores fidalgos, por muitos annos e bons», «e viva a senhora
-morgadinha que ha de arranjar um namorado de truz!». Em quanto houve
-mollete nos cestos foi estacinhar e beber; achando-se já fartos,
-recomeçou a musica com tanta furia, que até parecia que se estava no dia
-da festa. O fogueteiro para mostrar a sua fazenda descarregou-a ali
-mesmo no quinteiro, pondo as figuras em correntesa, para que todos as
-vissem e admirassem. Havia realmente progresso e modernice quer nas
-attitudes, quer no vestuario, pois tudo era mais humano e natural. Os
-corpos com outros geitos e menos rigidos; nas roupas, os papeis
-semelhavam fazendas—de seda pareciam as saias e os corpetes, de casemira
-as calças e casacas. Até era pena que tão bellas coisas fossem
-destinadas a rasgões violentos de bombas e a arderem no meio da
-alacridade do povo! Tudo tinha, porém, o fim de augmentar a
-magnificencia da festa em honra de Santa Margarida e dos formosos doze
-annos da sua afilhada. João da Costa desceu com alguns amigos a apreciar
-de perto tanta maravilha e perfeição e com um gesto orgulhoso de cabeça,
-indicando um monte especial de foguetes perguntou:
-
-—São os taes?
-
-—Sim, senhor—respondeu o Osti.
-
-—Parecem cabeças de toiro! Subirão?
-
-—Como perdises que encastellem, verá! Iriam ao ceu se fosse preciso.
-
-Eram as faladas maravilhas, timbre e gloria do famoso artista. Os
-creados da casa, com as canecas vasias na mão pasmavam deante d'ellas,
-considerando absortos, que alma damnada teriam dentro, para com o
-estrondo ao rebentar, metterem medo a quem estivesse mesmo a grande
-distancia.
-
-Como fosse dia de sexta feira a musica retirou-se depois do beberete,
-para voltar na noite seguinte, que era a do arraial. Antes havia a
-ultimar os trabalhos de ornamentação da capella e escolher bem o sitio
-do fogo preso, para que fosse gosado por toda a gente. Porém com o fim
-de não haver descontinuidade no enthusiasmo pela apregoada festa,
-chegaram n'este dia pela volta das onze da manhã os tres zabumbas, as
-seis caixas e a respectiva gaita de folles, que João da Costa
-encommendara, e entraram na freguezia d'um modo ovante, tocando com
-verdadeira imponencia, para despertar a alegria nos corações.
-Atravessando o povoado em passo lento, solemne e compassado enchiam os
-ares com o estrondo magnifico dos seus instrumentos, e logo se dirigiram
-á casa de habitação dos festeiros para os saudar. Então ali é que foi o
-bom e o bonito, depois de despejarem mais de um cantaro de vinho sobre
-uma boa duzia de postas de bacalhau e brôa!... Como ficassem alegres e
-satisfeitos, quizeram mostrar melhor a sua gratidão e artes; por isso se
-proposeram a exhibir todos os segredos dos seus instrumentos. Bombos a
-um lado, caixas ao outro e gaita no centro, começou o grande apparato!
-Os zabumbas formavam um fundo de quadro de paisagem colossal e
-montanhosa; os seis tambores pareciam alegres comadres a chasquear e a
-ralhar; o da gaita de folles pavoneava-se desvanecido com ella nos
-braços, encostada ao hombro como um tropheu!... Veio a familia e vieram
-os convidados á janella; o rapazio gaudiáva dando cabriolas. N'um certo
-momento dois dos caixas, que andavam sempre em rixa, separaram-se dos
-companheiros para repenicarem com todo o primor, dobrando o rufo com
-elegancia e mestria. Era um florear de baquetas em tom cadenciado e
-tremulo sobre a pelle distendida das fallecidas cabras. Mostravam
-prestesa, pulso rijo e flexibilidade de musculos. Havia em tudo aquillo
-enthusiasmo e coração de valentes, o que se tirava da energia facial com
-que se combatiam, procurando reciprocamente cançar-se. No mais vivo da
-sequestra, um dos de zabumba, que tambem presumia de sua fama, saltou
-para o meio do terreiro e principiou muitas variações, saltando e
-pulando com mil requebros. Era homem agil e physionomia viva de olhos
-bugalhudos. Com a baqueta da mão direita feria o instrumento em todas as
-posições imaginaveis: por cima da cabeça, com elle horisontal á ilharga,
-suspenso nas costas, deitando-se no chão com elle sobre o ventre! Os
-companheiros seguiam-lhe a destresa de athlecta, com sorriso sceptico e
-molle, tirando dos seus bombos sons mais baços.
-
-O gaiteiro vendo applaudidos por todos os assistentes aquellas
-galhardias, não lhe consentiu o animo ficar em obscuridade. Era homem
-baixo e grosso, physionomia ossea, mas esperta. Filho d'outro de
-Compostella, herdara de seu pae o instrumento e a prenda de o tocar com
-distincção. Afastando-se dos zabumbas e caixas triviaes, principiou a
-rabear entre os tres que já se exhibiam com apparato e luxo de ademanes.
-Quiz tambem chamar sobre si a attenção dos festeiros. Com o ventre do
-instrumento impando, requebrava-se em passo cadenciado e dolente de
-dança gallega: tirava; ora sons plangentes e maguados como gemidos
-tristes; ora um psalmear monotono e roufenho, que ondulava no ar como o
-vôo pesado d'um ganço; ora guinchos agudos como estylêtes ou espinhos
-que entrassem nos ouvidos. Saracoteava-se com o instrumento ao collo,
-mechendo os dedos n'uma especie de canudo de flauta e soprando-lhe no
-ventre por um bico de cegonha.
-
-Os bombos a falar grosso, as caixas a rufar certo, o gaiteiro a tocar
-variado, tudo n'uma paisagem primaveril de folhas tenras, um bom e
-carinhoso sol de primavera a aquecer, era deveras divertido e
-excentrico! Uma atmosphera empregnada dos aromas de mil plantas, tornava
-esta sexta feira de Paschoela risonha e feliz, o que bem se reconhecia
-dos semblantes de toda essa gente, pois tinha alma para o sentir.
-
-
- III
-
-Por todas as disposições se reconhecia que este excepcional domingo e
-estes doze annos de Margarida viriam a marcar data na historia da
-familia. Os convidados, amigos e parentes de João da Costa, que já
-muitos tinham chegado para assistir ao arraial, mostravam-se
-interessados por verem tanta gente assim atarefada e remexida: eram
-todos os creados da casa, os armadores da capella com Zé Maximo á
-frente, que tambem mandava nas illuminações, o fogueteiro com os seus
-ajudantes a abrirem covas para o fogo preso, os dos zabumbas, os das
-caixas e o gaiteiro... todos a alarmarem a freguezia e redondezas. Uma
-balburdia, uma abundancia, uma grandeza sem par!... O amor, louco e
-incondiccional, d'aquelles paes por sua filha, explicava o turbulento
-apparato; mas, de todas as pessoas ali reunidas, uma parecia menos
-gostosa do que se passava e era a festejada creança. Agitava-se é certo,
-andava no meio d'aquellas coisas, com outras meninas e rapazes da sua
-egualha; porém reconheciam-n'a possuida d'uma das suas crises de
-tristeza e inconvivencia, como quando fugia para a matta, a esconder-se
-na espessura dos arvoredos, para evitar o contacto de gente, que lhe
-melindrasse a sensibilidade. A mãe, que a perscrutava, momento a
-momento, percebera, pelo arrepanhado das linhas faciaes, pelo seu olhar
-frenetico, que Margarida soffria uma sezão de impaciencia; no seio
-decerto lhe crescia um desejo inconstante, e logo que poude tel-a entre
-os braços perguntou-lhe:
-
-—Que tens tu, minha filha, que andas tão esquisita?! Falta-te alguma
-coisa?
-
-—Não sei... Falta!...
-
-—O que?...
-
-—Não sei... Falta...—repetiu desprendendo-se, para se ir misturar aos
-que admiravam o fogo disposto no quinteiro. As creanças faziam os seus
-commentarios, comparando estas com outras figuras que tinham visto arder
-em romarias, e dirigiam as suas observações a Margarida em tom
-bajulador, que ella acceitava com sobranceria de dona. João da Costa,
-homem prevenido, vendo-as assim zaranzar, e temendo qualquer semsaboria,
-disse ao filho do Zé Osti:
-
-—Olha lá. Não seria melhor recolher tudo na adega?! Póde estragar-se
-qualquer coisa, entendes?...
-
-—Mais que isso, póde haver trapalhada. Um lume prompto, a ponta d'um
-cigarro dentro d'aquelle cesto (indicou-o com o dedo), levava tudo pelos
-ares, emquanto o diabo esfrega um olho...
-
-Abriu-se a ampla porta, que tinha fechadura valente. Ali ninguem
-entraria sem consentimento e o morgado accrescentou para o fogueteiro:
-
-—Tu que és responsavel ficas com a chave. Ninguem mais tem que cheirar
-n'estas coisas.
-
-O filho de José Osti, com o seu pessoal, é que collocou dentro dos dois
-lagares o fogo, arrumando-o pela sua importancia. A um lado o que era
-figurame, bem separadas as peças, para se não destruirem os enfeites que
-seriam o encanto da vista; ao outro o fogo do ar, as taes abantesmas com
-bombas do tamanho de cabeças de toiro. O cesto mysterioso e suspeito, já
-assignalado como coisa de circumstancia e perigo, foi collocado a um
-canto com a seguinte recommendação do Osti, dita em tom de grande preço:
-
-—São os trincafios, a namite, as lagrimas, a polvora fina e outras
-coisas... Isso póde incendiar-se e será uma de mil demonios!...
-
-As creanças, na presença de quem a recommendação fôra feita, ficaram
-maravilhadas, medrosas e attentas. Que coisas terriveis e bellas não
-estariam debaixo d'aquella toalha de branco linho, cobertura do modesto
-cesto!... Os grandes olhos de Margarida haviam-se illuminado de fulgor
-cupido e excepcional, logo ao primeiro aviso no quinteiro; agora
-fixaram-se com uma absorpção intensa no logar onde haviam pousado o
-objecto defezo. Com um impulso que lhe guiava a vontade, a sua pequena
-mão dirigiu-se á toalha branca, para a levantar, mas o fogueteiro
-susteve-a, dizendo:
-
-—Ó menina! Ahi não se bole! Não ouviu?!...
-
-João da Costa incutiu-lhe maior curiosidade e pavor:
-
-—Ó filha! Nem te approximes sequer!...
-
-—O que aconteceria se eu bolisse?—perguntou com os olhos meigos e
-risonhos fitos no Osti.
-
-—Podia-se incendiar tudo, n'um instante, como um relampago—explicou.
-
-—Então havia de ser bonito...
-
-—Isso como um ceu aberto!—encareceu o artista.
-
-Todos sahiram. O grande portão, por onde podia entrar um carro com uma
-dorna, fechou-se com estrondo magestatico. João da Costa depois de, por
-sua propria mão ter dado volta á chave, entregou-a ao fogueteiro:
-
-—Toma-a, que és o responsavel.
-
-O rosto de Margarida soffreu nova transfiguração: não era de alegria,
-nem de tristeza o sentimento que exprimia, mas de reserva e idéa fixa
-que lhe obcecasse o cerebro. Fugiu para o seu quarto, abandonando os
-companheiros de brinquedos e ali se quedou com a vista absorta na cal
-branca da parede... Sorria deliciosamente a uma visão angelica, ou
-carregava o sobr'olho n'uma expressão voluntariosa. Sentada na borda da
-cama, o queixo levantado na pequenina mão, seguia miragem ou chimera,
-que lhe encantava a mente, levando-lh'a a voar pelos infinitos espaços.
-Como se houvesse tomado qualquer resolução, desceu de onde estava, bateu
-imperiosamente com o pé no chão e pronunciou:
-
-—Pois hei de ir lá vêr o que é!...
-
-Sabia perfeitamente como poderia entrar na adega, mesmo que a porta
-estivesse fechada. Quantas vezes, no jogo das escondidas com outras
-creanças, ali se sumira sem que ninguem a podesse encontrar!
-Ensinara-lhe o caminho uma cadella, que lá dentro tivera a sua ninhada,
-e que a occultas a ia amammentar, entrando por um postigo da face
-poente, que conservavam sempre aberto para arejo dos toneis. Trepando
-pela parede, como muitas vezes praticara, entraria no antro do mysterio,
-e sosinha (como era seu desejo) podia admirar o que fôra prohibido a
-toda a gente. Deviam ser maravilhas nunca vistas, deslumbramentos nunca
-apreciados!... Que intenso prazer lhe não dava, infringir ordens
-terminantes de seu pae e do fogueteiro! Um doce e longo effluvio lhe
-percorria todos os nervos; antegostava com delicia incomparavel o
-instante de poder tocar de leve os encantos que lhe fizeram conceber!
-Descobriria o segredo d'esses deslumbramentos, que recamavam o negro
-manto das noites d'arraial, com estrellas de côres! Saberia o que eram
-em germen as lagrimas, antes de escorrerem em escadeas de luz e de
-maravilharem a imaginação! E era-lhe devido este goso pela posição
-especial que occupava em tal festa. Não era ella a senhora, a festeira,
-a pessoa que deveria mandar sem estorvos em tudo? Estremecia de
-contentamento, ao delinear na mente o furtivo accesso pelo postigo
-grande, por onde entrava a cadella, quando ia amammentar os filhos.
-
-Realmente, ao lusco-fusco d'esse dia, no periodo em que as sombras
-principiavam a cahir solemnemente das montanhas com todo o seu poder de
-mysterio, Margarida sahiu de casa com a alma aguilhoada para aclarar o
-enigma. Munira-se d'um coto de vela de cêra que tirou do oratorio, d'uma
-caixa de lumes-promptos, e foi sem ser presentida. Logo que se encontrou
-dentro da adega, diluido o seu corpo na treva, accendeu a luz para
-retomar a propria individualidade. Á vista do pequeno cesto coberto de
-toalha lavada e branca (qual pacifico e substancial merendeiro) o
-entendimento entorpeceu-se-lhe com a força da curiosidade. Seria
-possivel estarem ali escondidos os maravilhosos lumes, que, abertos no
-escuro da noite, offuscavam o scintilar das estrellas?! Fontes de luz,
-variadas no brilho e nas côres; descenso de adornos do firmamento, que
-duram instantes; maravilhas de pequenos meteoros, que, ondulando no
-espaço como espiritos angelicos, buscam repouso glorioso; rebentos da
-treva como flores luminosas de cristal; adereços de pedras preciosas
-jorrando do interior do céu... era o que ella presumia sob a modesta
-toalha branca... Quantas vezes os olhos do seu corpo não haviam cegado
-com os deslumbramentos d'essas lampadas sagradas suspensas sobre a
-Terra! As radiantes lagrimas, quando brancas, parecem chuva de
-claridades ou pranto celeste brotando como rozeiral de diamantes e
-morrendo, depois, suavemente como beijos; quando de côres semelham
-rosarios de rubis, de topazios, de esmeraldas, que transformam a treva
-em interior illuminado de palacio encantado, habitação de fadas. Tudo
-isto, sabia-o Margarida porque lh'o tinham revelado na prohibição feita,
-e estava ali inerte sob a toalha branca. Não devia ver e averiguar o que
-fosse? Correria risco quem o tentasse... mas para aquelle espirito
-irrequieto e temerario, o perigo era um incitamento. Com a pequenina mão
-direita, tremula de commocção que não de susto, levantou a ponta da
-toalha alumiando-se com a vela acesa... O que viram os seus olhos
-cubiçosos e egoistas?!... Nada, ou pouco mais: embrulhos em papeis;
-alguns pequenos frascos com liquidos e tigelas com agua de onde se
-mergulhavam coisas; meadas de torcidas de algodão impregnadas de
-polvora, com envolucro de papel, a que chamam trincafios. Seria d'isto
-que sahiam esses lampadarios aereos, que deslumbravam os olhos de tanta
-gente?! Mal se podia acreditar, pois toda a apparencia era de objectos
-vulgares, inertes e sem flammancia. Cheia de confiança em si e minada do
-desejo de averiguação, principiou com os seus delicados dedos a remexer
-todas aquellas miudesas, emprestando-lhes alguma vida, para d'ahi sahir
-a acalmação da febre que lhe exacerbava a mente. Talvez que, ao seu
-contacto, das substancias mortas nascessem vivas faiscas, inicio de
-prodigios! Talvez!... Quem poderia dizer o contrario? Aquelle algodão
-embebido em polvora e envolto em papel, muitas vezes ella o vira
-encendiar-se, se lhe applicavam a morraca... Se agora lhe achegasse a
-luz, talvez ardesse um boccadinho e fosse este um começo de
-fascinações... Nos olhos vivos e sequiosos apparecia o signal de que tal
-desejo lhe crescia no cerebro, como lavareda dominadora. Com mão timida
-ainda, mas guiada por força que não podia contrariar, foi ajuntando a
-chamma da vela com o ponto negro do trincafio... Apparece o primeiro
-brilho e logo Margarida retira promptamente a pequenina mão, para que
-não continue a arder... Mas esse ponto luminoso foi logo maior e grande,
-propagou-se por todo o cesto, como um vaga-lume rabioso... Alarga-se
-n'uma luz azul e viva de relampago, seguem-se estoiros e logo pavoroso e
-infernal ruido, que tendo começado dentro do cesto, se propagou com a
-velocidade a todo o espaço da ampla adega. Que scena phantastica,
-maravilhosa, deslumbrante e cahotica, esta de um horrido estrepito no
-meio de lavaredas, que vomitavam raios, esfusiando de todos os lados!...
-Quem podera ver a graciosa figura de Margarida, n'esta confusão
-terrivel, consideral-a-hia apparição angelica, cheia de gloria e poder
-divino, dominando a confusão dos mundos, com a serenidade risonha d'um
-seraphim. Estava de pé na separação dos lagares, os braços levantados em
-prece sublime, olhos brilhantes e cheios de enthusiasmo, como os dos
-martyres que a Deus glorificavam sobre fogueiras! Que se passaria no seu
-craneo n'este instante unico!... Talvez sentisse a alma arrebatada em
-fogo! talvez se julgasse levada aos infinitos paramos em ondas de luz!
-talvez que esse estranho grito que da sua debil garganta sahiu, fosse a
-primeira nota d'um canto de gloria!...
-
-
- IV
-
-O pavor produsido pelo estrondo de bombas e morteiros a rebentarem
-dentro da adega grandemente illuminada, foi cruel e estupefaciente!
-Reconheceu-se o que tinha succedido; mas o que se não comprehendera
-logo, era como o caso se poderia ter passado, visto a chave andar no
-bolso do fogueteiro. Só espiritos malignos seriam capazes de ali ter
-penetrado; pois só elles podiam conceber a execução de tamanha
-catastrophe! Como as aguas das montanhas, quando collidem para um valle,
-correu toda a gente para o perigo. N'um momento foi aberto o largo
-portão, que semelhava a bocca de enorme forno, com o seu ventre em
-chammas! O creado mais resoluto atirou-se ao meio do incendio, subiu
-celere ao lagar e, de pé na borda, disse em voz tremenda:
-
-—Jesus!... A menina a arder!...
-
-O seu arrojo, que fôra temeridade, tornou-se loucura: sem attender a
-risco, abre caminho por entre linguas de lume e estrondo de bombas, e
-tomando o debil corpo da creança, como quem abraça um feixe de
-lavaredas, sae com ella para o exterior, por entre gente apavorada. Logo
-acudiram com mantas e cobertores, conseguindo apagar as chammas dos
-vestidos de Margarida e do homem que a salvara. Porém a desgraçada
-creança, sem accordo, parecia morta! Levaram-n'a para casa no meio das
-afflicções de todos, especialmente dos desditosos paes e logo a despiram
-com rapidez para se apreciar a extensão do mal. O debil e formoso corpo
-estava intacto, menos nas partes desprotegidas pelo vestuario. A face
-então!? Essa pequenina meniatura de face, que dois beijos poderiam
-cobrir, agora vermelha, empolada e disforme perdera a brancura nativa e
-a graciosidade de linhas, que a faziam comparar ao rosto das santas!
-Todos os delicados relevos de feições tinham desapparecido nivellados em
-massa confusa e pastosa, sem expressão humana. No que se transformava
-belleza tão delicada, d'uma correcção tão perfeita e harmonica!...
-Crestados os cabellos longos e finos, e os bem desenhados supracilios, e
-as formosas pestanas, que sombreavam as pupillas; avolumado pelas
-empolas o delgado e airoso pescoço... desapparecera toda a graça da viva
-cabeça de Margarida. Isso que fôra encantador, prendendo a vista da
-pessoa menos attenta, era massa informe e sem espiritualidade. Onde
-estava o riso gracioso de seus labios tantas vezes cheios de brisas de
-carinho, quantas de nuvens caliginosas de desejos?! Onde a expressão
-turbulenta e dominante das narinas, exprimindo apetites rebeldes, mas
-innocentes?! E as orelhas pequeninas, da transparencia da porcellana com
-veios escuros nas curvas complicadas, onde estavam?! E o breve mento,
-tão breve e gracioso como o da Venus de Millo?!... Tudo se desfizera e
-se confundira!... Essa interessante physionomia que era jubilo, que era
-rebeldia de sangue em fervura, que era signal de alvedrios intensos
-gerados no limpo coração e logo subidos aos labios e aos olhos... Os
-olhos!... É verdade, os olhos de pupillas inquietas, os olhos de iris
-escura, mas indefinida com laivos de ceu e de mar profundos, que tinham
-lampejos á noite, mysterio ao entardecer, alegria na alvorada, carinho á
-luz brilhantissima do dia... que era feito d'elles?! Jaziam sepultados
-sob a grossura das palpebras inflamadas. Teriam vista ao menos?...
-Ninguem o sabia. A mãe de Margarida, sem accordo, como morta sobre a
-cama; o pae, homem forte e vigoroso, diluia-se em pranto junto da filha
-adorada. Os dois medicos que tinham corrido ao toque d'essa grande
-desventura, davam consolações vagas, esperanças infundadas. O lindo
-rosto de Margarida poderia voltar ao que fôra, a ser outra vez pequenino
-e engraçado...—diziam. Ainda n'elle se havia de gosar a vista da mesma
-espiritual belleza, que enchera de ventura o coração dos paes infelizes.
-Tinham-se visto curas completas mais extraordinarias do que esta,
-verdadeiros milagres no entender do povo. Os casos feios é que melhor
-assignalam as victorias da sciencia. Não era já circumstancia favoravel,
-que a vida tivesse sido poupada em perigo tão violento? O gentil corpo
-da creança estava quasi intacto na pureza das suas linhas, na elegancia
-do seu porte, na brancura da sua pelle, quando o natural teria sido
-ficar reduzido a um negro carvão. Só o rosto fora principalmente
-prejudicado... Certo é que no rosto reside toda a formosura. O de
-Margarida era tudo que havia de mais immaterial: a bocca pequenina e
-vermelha, tinha a graça; os olhos meigos e turbulentos, a inquietação
-infantil; na sombra das pestanas e no desenho dos supracilios, estava o
-inigma do pensamento; na pelle rosea, a mocidade; no arrojo do nariz a
-constante revolta; na curva serena do mento a tenacidade... Se isto
-viesse a faltar, ou se se transmudasse a rara combinação, que valeria o
-conjuncto, ainda que fôra dez vezes mais perfeito do que o da estatua
-grega?!... Porem como a esperança é o riso da natureza humana, e o
-natural e o proprio dos que soffrem dores fundas, já os angustiados paes
-principiavam a escutar com bastante conformidade as palavras de quem os
-consolava. Os medicos, primeiro que tudo, pediram liberdade juncto da
-pequena enferma, para largamente applicarem os meios que a profissão
-lhes aconselhava. Certificaram desde o começo que Margarida não
-morreria, e tocados de piedade por aquelle incomparavel infortunio,
-ousaram affirmar que haviam de restituir á creança, a saude e a belleza.
-A longa falta de conhecimento em que após o accidente se conservara
-algum tempo Margarida, attribuiam-n'o a estado epileptico, despertado
-pelo assombro de scena tão extraordinaria, como teria sido a de se ver
-repentinamente cercada de chammas e de estoiros infernaes. Devia ter
-sido horrendo para uma creança de doze annos, que dentro de si só devia
-ter fontes de sonhos aureos e aspirações celestes.
-
-
-
-
- SEGUNDA PARTE
-
-
- I
-
-Passaram-se dias e passaram-se mezes. O soffrer longo e tormentoso
-seguia lento. A physionomia de Margarida era toda uma postula. Porém de
-informe nos primeiros tempos, foi adquirindo longes de vida e expressão
-com os inicios cicatriciaes. Margarida queixava-se pouco; parecia que os
-nervos se lhe tivessem insensibilisado, ou que na catastrophe houvesse
-adquirido coragem heroica para supportar a dôr. Até os medicos se
-admiravam de tanta paciencia nos curativos, pois lhe applicavam topicos
-que a deviam mortificar. Notava-se-lhe fundamental mudança no caracter:
-antes sempre inquieta e irascivel, agora conformada e paciente.
-
-O padecer raro e profundo, poderá transformar a sensibilidade e o
-pensamento? amollecel-os se eram duros, endurecel-os se eram ternos? Em
-Margarida parecia realmente ter-se operado essa metamorphose grave: na
-vida feliz e descuidosa de infancia mostrara-se sempre e sempre
-insatisfeita, nunca se lhe encontrando fim ao querer e ao desejo;
-chegada a desventura e martyrio excepcionaes, dormitava-lhe o espirito
-em calma angelica, como se gosasse de paz e doçura celestiaes. Alguns
-queixumes ainda se lhe ouviram de começo (murmureos de ave doente), em
-que recorria aos nomes de seus paes e da ama que a creara, como
-lenitivos e sacrarios de amor santo; porém, depois, entrou n'um periodo
-de resignação e calma e os seus doze annos mostravam o juizo e a
-conformidade das velhas experiencias. Em vez de confessar atroz
-soffrimento, dizia palavras de consolação e esperança aos que muito lhe
-queriam e eram ellas de tanto conceito e elevadas que nem pareciam da
-sua juventude. Entrara, pois, n'aquelle corpo alma nova com o
-infortunio: a tonalidade da voz mudara para submissa e melancolica, as
-idéas appareciam como florinhas correndo leves em veio d'agua limpida.
-Já não era a Margarida que sem motivo gritava, que sem razão chorava
-lagrimas, que martyrisava com goso os animaes e as pessoas, que se
-deliciava inventando collisões para atormentar os com quem vivia.
-Accommodado o seu magro corpo no leito de doentinha, todos lhe apeteciam
-o convivio pelo exemplo que dava de um existir sereno e venturoso no
-meio de penas. Quando a enorme chaga, que lhe abrangia todo o rosto,
-principiou a mostrar tendencias para cura, um phenomeno singular se
-verificou—o ressurgimento da expressão humana, que ia apparecendo
-lentamente como uma aurora. E o facto excepcional e maravilhoso dava-se,
-quando tudo ainda era informe e cahotico n'aquelle rosto: nem a pelle
-rosea e setinosa o purpureava, nem a bocca de gazella sorria, nem a
-graciosa linha do nariz o equilibrava, nem a perfeita oval o fechava,
-nem os formosos olhos... (não falemos agora dos antigos olhos de
-Margarida). O que se ia vendo era a cicatrisação, que no seu progresso
-confuso já mostrava larga costura com manchas lisas, enrugamentos
-complexos, tecidos arrepanhados formando sombras. Assim estava a testa,
-a face, o nariz, o mento, as mimosas orelhas, o airoso pescoço... Porém
-de tudo isso que era sem fórma e sem graça, resaltava tal suavidade de
-expressão, qualquer coisa de ethereo e sublime, de suprahumano e
-bondoso, que só pelo transluzir d'uma alma candida e pura n'um rosto, se
-póde comprehender. E ainda lhe faltava a belleza dos seus olhos, vivos
-feixes de luz sempre em ardencia, e não tinha a pupilla nervosa e sempre
-movediça na iris, tão variamente colorida; porque esses olhos, absolutos
-senhores n'aquelle semblante expressivo, eram agora apenas dois globos
-leitosos, rolando senilmente dentro das orbitas, por traz das palpebras
-densas. Os medicos, para não desilludirem os atormentados paes e a ama
-Antonia, que lhe queria tanto como se fôra mãe completa, ainda agora os
-consolavam com mentirosas esperanças. As bellidas, simples pannos
-brancos lançados deante da vista, poderiam desapparecer com o
-tempo—diziam. Quando elles não podessem ultimar a cura, outros medicos
-havia especialistas de taes molestias, que operavam maravilhas, que
-pareciam milagres. D. Claudina escutava-os, porém muito mais se fiava do
-alto poder divino, do que de homens grosseiros e barbaros, que se
-limitariam a rasgar com ferros os olhos de sua filha! Por isso
-comprehendendo como indispensavel a intervenção superior do ceu (a unica
-forte e valiosa) continuou com mais fervor as promessas de romarias, de
-festas, de offerendas a todos os afamados medianeiros celestes, que se
-nomeavam perto e longe do logar onde viviam. Informações que aos ouvidos
-lhes chegassem de curas de pequena ou grande monta por este meio
-obtidas, serviam logo a D. Claudina e a Antonia de pretexto para
-proporem mais resas e penitencias, jejuns e novenas, oblatas ao divino e
-á Virgem sua mãe, que cumpririam verificado o beneficio. Isto não
-obstava á assidua frequencia da capella da casa, onde se demoravam em
-oração fervorosa ao orago, Santa Margarida, e a todos os santos da
-celestial côrte. E tamanha e tanta era a fé, que em cada manhã lhes
-renascia no peito a doce esperança e logo que sentiam a doentinha
-acordada do seu longo repouso, vinha a interessada mãe perguntar-lhe:
-
-—Sentes-te melhor, filha?
-
-—Sinto, minha mãe.
-
-—E já me vês?
-
-—Vejo.
-
-—Com a tua vista?
-
-—Com a minha alma e... e tambem um pouquinho com a minha vista—rematava
-sorrindo.
-
-Era consolador ouvir-lhe isto, quando o sol raiava no ceu! Que affecto e
-que amor taes palavras continham! Porém amargava-lhes no final o
-desengano, ainda que suavisado pela ternura da voz. A dolorosa realidade
-permanecia. Era triste ver Margarida, com os dois olhos baços e leitosos
-como duas enormes perolas a moverem-se lentamente na busca de claridade
-e sem deixarem passar a vista, que estava por tras da nevoa!
-Compensava-os (bem insufficientemente) o reconhecerem que na larga
-cicatriz da ascosa chaga, havia uma vida nova e uma luz nova de vida
-superior. Quando a doentinha falava era de ver que as suas palavras
-semelhavam lampejos de luar n'um abysmo de trevas. Habito ou
-idealisação, certo era que esse rosto, sem feitio de rosto, tinha alguma
-coisa de raro e sublimemente espiritual. D'esta fórma suave, lenta e
-dôce, subtil como se fôra um sopro vital, em todos ia entrando a
-convicção de que a mente de Margarida, após a cegueira se sublimara,
-illuminando-se de divinos clarões, que a predestinavam para altissimos
-fins. Denunciava-o os seus conceitos serem de sentimento e bondade
-infinitas, e isto maravilhava pela precocidade. N'aquella voz
-percebia-se musica de suavidade angelica, cheia de ternuras e modolações
-aprasiveis. Encantava estar junto d'ella, escutal-a, conhecer como ella
-recebia a inspiração divina, que vinha como pomba esvoaçar-lhe sobre a
-cabeça. Não balbuciava uma queixa, nem uma saudade do mundo de que se
-conhecia separada para sempre. Ao contrario: confessava-se mais feliz e
-ditosa n'esta densa noite, do que o era na luz do tempo em que
-irrequieta, nervosa, exigente rebentava em lagrimas de cólera, á menor
-contrariedade. Agora nunca chorava!... Não saberão os cegos chorar? As
-lagrimas são a belleza dos olhos, quando como diamantes deslisam pelas
-faces dos que morrem d'amor; porém, as lagrimas tambem são signaes
-d'infortunio, se, como pingos quentes de chumbo escaldam a pelle de
-infelizes atormentados. Margarida não tinha nem edade para amar, nem
-experiencia para os grandes infortunios; por isso não precisava de
-lagrimas. Aquella mente, lago sereno em calma ventura, não tinha a
-encrespal-a ventos que só entram por ambiciosas e prescrutadoras
-pupillas.
-
-Dulcificavam-se, pois, para a convivencia dos seus achegados e amigos
-que a adoravam, aquella alma, o caracter, o temperamento. Lamentavel que
-taes olhos tivessem perdido o seu raro poder de fascinação; doloroso que
-a physionomia de Margarida, outr'ora tão harmonica das combinações que
-dão a formosura, se houvesse transformado em cicatriz... Existia, porém,
-pessoa que, por um lento labor, já conformada com o actual estado, a
-preferia como era e não a desejava como fôra. Quem? Antonia, a querida
-ama, para a qual esta fealdade era formosura, e que julgava a sua menina
-muito mais venturosa depois de feia. Coisa estranha e de maravilhar, que
-um rosto assim desfigurado, com manchas brancas n'um ponto, violaceas
-n'outro, liso e espelhento aqui, enrugado e baço acolá—um todo
-arrepanhado de linhas divergentes e crusadas—tivesse tamanha influencia
-e poderio sobre as almas; que esses olhos brancos, com um ponto
-cinzento, apenas, no sitio da pupilla, vissem coisas do ceu, que nenhuns
-outros olhos descobriam!... A sincera Antonia, que mais que ninguem
-permanecia junto de Margarida, soffrera mais que os outros do potencial
-ascendente. Ouvia-lhe as confidencias do pequenino coração, seguia com a
-mente todas as maravilhas que ella descrevia do interior da patria
-celestial, onde domina a magestade do Grande Deus, no meio do explendor
-e das harmonias dos anjos, archanjos e seraphins. Não podendo conter no
-rude peito a emmoção causada por tantas bellezas, dizia-as e
-commentava-as com pasmo deante de amigos e confidentes, exclamando com
-toda a sua alma nos labios: «Não vedes n'isto—ó gentes!—uma santa que
-ainda vos hade fazer milagres?»
-
-Era realmente o que todos viam, com verdadeiro jubilo e devocção. Já na
-mente collectiva, o alto problema da santidade de Margarida se resolvia
-e fixava. Correu d'isso o clamor e a fama, com a velocidade dos ventos
-que varrem nuvens do céu e não tardou que se referissem resultados
-beneficos de supplicas que Antonia lhe levara. Ainda sua mãe procurava
-no valimento celestial de patronos afamados meio de lhe restituir a
-vista, e já Margarida era grande protectora de infortunios alheios,
-juncto do Altissimo. Antonia que appresentava em segredo os pedidos de
-suas comadres, recebia os agradecimentos e tambem se engrandecia aos
-olhos do povo, com o seu nome envolvido em assumptos de tanta maravilha.
-Não tardou que aos ouvidos de D. Claudina e de João da Costa chegassem
-os côros dos favorecidos, já com novos pedidos e rogos instantes. Não
-poderam obstar, tambem, a que pessoas gradas se viessem ajoelhar juncto
-do leito da creança, fazendo-se directamente ouvir nas suas queixas e
-tocando-a nos magros dedos com o melindre com que se devem tocar as
-coisas divinas. Esses que de novo chegavam, ao verem-lhe transtornada a
-formosura, não recebiam desagradavel impressão, não achavam aquillo
-hediondez, antes para elles se confirmava a opinião de que Deus
-escolhera Margarida, para entrar no seu côro celestial de Virgens, e que
-para a separar do mundo sensual e peccador, se servira d'um meio que
-para muitos pareceria infortunio, mas que fôra na realidade Grande
-Ventura. Assim se consolavam os corações dos amargurados paes, que
-n'estas palavras encontravam compensador lenitivo.
-
-Haviam-se passado dois annos sobre o inolvidavel dia da catastrophe. A
-casa de João Costa estava sempre cercada de gente devota, que vinha
-abrigar-se sob a influencia benefica de sua filha; á capella concorriam
-offerendas que depositavam aos pés da padroeira, com a ceguinha irmanada
-no nome e no celestial prestigio. Até esta epocha raras pessoas haviam
-sido admittidas á presença da piedosa creança; porém augmentando os
-pedidos vehementes e não podendo ser contida a onda que se avolumava,
-necessario se tornou adoptar o expediente de Margarida assistir,
-domingos e dias santos, á missa da casa, onde os interessados podiam
-concorrer a contemplal-a e impetrar directamente o seu valioso auxilio,
-perante os altos julgamentos divinos. Para melhor ser vista collocaram a
-cadeira em que a assentavam juncto do altar, do lado do evangelho,
-voltada para o officiante.
-
-Assim todas as pessoas, recolhidas na sua fé, lhe podiam dirigir
-silenciosas preces, levantal-as fervorosas durante o santo sacrificio.
-Para a não fatigarem, pois a sua fraquesa era ainda grande, só áquelles
-que para isso tinham poderosos motivos, se consentia que no final da
-missa lhe beijassem o longo rosario e as santas reliquias que trazia ao
-pescoço. A esses dizia ella palavras consoladoras de promessa; e
-maravilhava aquella memoria, que a cegueira tinha tornado mais firme e
-vidente, pois aos antigos conhecidos mencionava circumstancias da vida e
-os nomes dos filhos, especialisando cada coisa nas suas referencias.
-Aquella voz encantava, era carinhosa e suavissima como as dos coros
-sagrados, que se ouvem em sonhos. Melodia que vinha do alto, as palavras
-que proferia eram recolhidas com avidez, uncção e respeito. A todos
-promettia incluir nas suas orações ao Senhor, e com tal voto lhes lavava
-o coração dos sentimentos maus e peccaminosos, que por desventura n'elle
-tivessem medrado.
-
-
- II
-
-
-Os paes de Margarida já pareciam conformados e até orgulhosos de sua
-filha. Seguiam o movimento geral das opiniões, admittiam-lhe a santidade
-e o poder sobrenatural, que sobre ella tivesse vindo como emanação de
-Deus, n'esse dia para sempre memorado da catastrophe. A Providencia
-impõe os seus designios aos homens pelos modos mais contraditorios: com
-uma penna d'ave mata, com um raio póde ressuscitar. Havia conformidade
-na crença geral: a cegueira de Margarida era irremediavel por ser de
-origem e vontade divinas. O não terem sido escutadas as supplicas
-endereçadas por intermedio dos mais famosos santos conhecidos, era prova
-e signal de que deviam submetter-se ao querer do Altissimo. E por
-ultimo—opinavam os confessores—o dom de santidade em vida, não vale mais
-do que a maior realeza da terra, ou do que todas as realezas da terra
-junctas?
-
-Concordavam e acreditavam-n'o os submissos paes, sentindo-se até
-enternecidos por haverem dado o ser a Margarida, ainda que se
-reconheciam differentes d'aquella carne, que depois que recebera o
-divino sopro, era de razão que tivesse mudado de natureza. Notavam
-tambem que Margarida vivia de cada vez mais encantada com os doirados
-quadros da sua imaginação, que lhe antecipavam a Bemaventurança, á
-morte. Tudo que dizia na sua voz dulcissima, encanto de todos os
-ouvidos, era risonho e alegre: via-se que d'uma grande desgraça, sahira
-a suprema ventura, a sublime pacificação da alma. Que encantadores
-esmeros de sentimento Margarida tinha para seus paes! E elles, os
-ditosos, escutavam-na, como se percebessem falas de anjos, ou sons de
-harpas divinas a desferirem hymnos no espaço! Tudo correu santamente em
-dois annos de vida gloriosa, que junctos aos dois primeiros de vida
-atormentada, formavam os quatro annos de reclusão, tanto de Margarida
-como de seus paes e de Antonia, que até os preceitos obrigatorios da
-religião satisfaziam na capella da casa. D'isto resultou que uma funda
-anemia, acompanhada de dôres craneanas e insomnias perturbadoras, se
-apoderou d'aquelle pobre e implume corpo. Os medicos impozeram então a
-necessidade de passeios ao ar livre, que a creança respirasse brisa
-balsamica de montanhas e pinheiraes. Era egualmente indispensavel a luz
-directa do sol para se não estiolar e morrer a mimosa e tenra planta. A
-ella mais do que a todos custou esta ordem dos medicos, pois todos e
-ella se tinham habituado a este existir sereno de vida santa, em
-convivencia de imaginação com o Ceu, de que Margarida dizia coisas de
-encantar. Antonia, tambem habituada á clausura da sua menina, vivendo
-sempre na contemplação do ente raro, que era o maior louvor do seu leite
-abençoado por Deus, arremetteu em palavras contra o mandado dos
-facultativos. Temia dissipar-lhe o encanto divino, entregando-a á
-convivencia de todos que lhe quizessem falar nos caminhos por onde
-passasse. Comprehendia que assim já não a podia conservar tão intima,
-nem tanto para si. Era o egoismo humano a rebentar no mimoso jardim de
-sentimentos tão elevados...—a rude Antonia apavorava-se com a idéa de
-que aquelle affecto, que ella creara com uma sugeição e uma dedicação de
-tantos annos, podesse diminuir. Mas tanto ella como D. Claudina e João
-da Costa, porque amavam incondicionalmente Margarida, era justo que se
-opposessem ao parecer dos medicos e assim consentissem que se esgotasse
-esse precioso e delgado fio de existencia, que em tamanho preço tinham?
-Não, até o proprio egoismo, coisa diversa aconselhava, pois a separação
-que a morte carnal viria definir, ser-lhes-hia milhões de vezes mais
-custosa do que o era a cegueira, quando a julgavam uma fatalidade.
-Acceitaram assim, o facto, tomando-o como todos os demais conselhos
-attinentes á existencia de Margarida, pois os julgavam de inspiração
-divina, por tenderem a não enfraquecer o tenue vigor d'aquelle fragil e
-delicado corpo.
-
- * * * * *
-
-Estava-se na primavera: nos valados rebentavam as flores, os gommos
-enfeitavam já as arvores despidas e tristes. Tempo alegre e soalheiro,
-atmosphera odorifera e excitante. Iam pelos caminhos pedregosos da
-aldeia, á procura de pontos altos, onde corresse viração. Margarida
-desaprendera de andar, trocava os pés como quando d'um anno principiara
-a correr na sala, queixava-se de que as pernas lhe não podessem com o
-corpo. O vestuario, apesar de reduzido ao minimo de agasalho, era-lhe
-d'um peso incomportavel. Fatigava-se e pedia frequentes repousos nas
-bordas da estrada, em muros baixos e sobre as pedras avulsas que
-encontrassem. Seus paes, ou Antonia, levavam-na pelo braço como uma
-convalescente, sentindo-lhe o contacto do corpo, leve como uma penna. E
-assim parecia pessoa vulgar que viesse trazer saudações á luz,
-amando-lhe o explendor; que viesse visitar a paisagem que tencionava
-gosar longamente. Cada dia seguiam destino differente; mas sempre para o
-alto d'onde se descobrisse o fertil e carinhoso valle. Após os primeiros
-passeios, sentindo-se mais vigorosa, pois tinha menos dôres e somnos
-mais tranquillos, Margarida, n'um resurgimento de memoria, é que
-mencionava os sitios que preferia visitar. Parecia este o caso trivial
-d'um ausente de muitos annos, que tornasse a viver nas paisagens
-queridas da infancia e procurasse confrontal-as com as sensações
-d'outr'ora... Passava-se n'aquelle cerebro um trabalho lento de
-rememoração, uma reviviscencia psychica. Nos pontos elevados, onde a
-respiração é mais livre, larga e substancial, todo o corpo se lhe
-aerificava, conhecia-se ligeira como qualquer ave voando.
-Amplificava-se-lhe o peito; excitada pela fragancia da brisa fresca e
-alpestre, vinham-lhe assomos de enthusiasmo, extasis de commoção perante
-o renascimento das plantas, a côr afagadora da verdura, que não podia
-apreciar com os olhos. «Como estão bonitos os campos!—exclamava. Para
-ali o Ramisco, para acolá a Cerdosa, em frente Refuinho! Como estão
-bellos estes campos já semeados, as arvores em flor, os bois a pastar
-nas hervas!»
-
-Parecia que tinham vista aquellas pupillas opacas, mas illuminante, como
-dois brancos seixos no fundo de limpida corrente. Se ellas estavam sem
-movimento, presas ao sol, o rosto de Margarida adquiria a inspiração do
-dos santos nos extasis contemplativos da magestade divina. Esses globos
-de leite coalhado, no meio das serziduras das feridas, eram duas
-candidas cecens em terreno arenoso. O riso, meigo e attractivo, mais
-bello do que o das rosas ao abrirem, illuminava-lhe os sentimentos. As
-falas murmurantes, como agua correndo em regatos, passavam nos ouvidos e
-eram gorgeios de ave: «Oh! que bom cheiro o das serras e dos campos,
-como é suave o aroma das flores, minha mãe!» «Não sentes os passaros a
-cantarem nos arvoredos, querida Antonia?!» «Quando iremos nós ao
-Ramisco, meu pae?! Ainda voltará, o tio Frei Jeronymo, á sua casa de
-Preste?»[1]
-
-Falando assim quedava-se silenciosa, rosto erguido ao ceu, a expressão
-vaga de cegueira suspensa sobre os campos da veiga, que se alastrava no
-sopé da montanha. Este goso espiritual que se adivinhava dentro d'ella
-ao contemplar o mundo material com a vista da memoria, enchia de prazer
-os carinhosos paes, que tinham n'esta filha um thesouro celestial, um
-tabernaculo de coisas puras e santas. Tão habituados já andavam a
-consideral-a um ser superior á misera contingencia humana, a ver-lhe na
-vida da alma uma vida transparente e etherea, que o doloroso
-acontecimento que a cegara, de desventura se havia transformado em obra
-de graça, pela santidade que lhe trouxera. Acreditavam piamente n'esse
-divino dom que sublimara aquelle corpo enfesadinho e anémico, que
-espiritualisara, com belleza nova, aquelle rosto transtornado pelas
-manchas de cicatriz, que dera áquelles olhos a visão de coisas sublimes.
-Enobrecia-os esta ligação carnal com quem já em vida pertencia ao Ceu.
-Por isso cercavam Margarida de esmeros e delicadesas devidas ás
-entidades superiores á rudesa commum; pois que essa parte material do
-ser que nutriam, tocavam e aconchegavam era apenas condicção transitoria
-de passagem no mundo d'uma alma immaterial, já moradora dos paramos sem
-fim, em convivencia de Bemaventurados. Aquellas imaginações recreavam-se
-em acompanhar Margarida a esses mundos d'Além, onde presumiam que ella
-ia nos periodos de somno. Se ao acordar pronunciava palavras vagas de
-sentido obscuro, n'isso encontravam o final das palestras que tivera com
-os anjos, seus irmãos. E como vereficassem que o seu falar era mais
-elevado e inaccessivel, quando rodeada de muitas e muitas flores,
-traziam-lhe diariamente molhos das mais raras embellesando-lhe assim o
-quarto, como se fôra uma egreja. Era apenas uma antecipação das
-homenagens que de futuro lhes seriam rendidas, pelos numerosos crentes
-que se acolheriam á sua protecção. Para todos era de saber conhecido,
-que os santos apreciam muito os subtis aromas das plantas, que são
-essencias evolando-se ao ceu e excitam a imaginação, para comprehender
-melhor o sublime e o celestial. E nem os conselhos dos medicos tinham
-auctoridade para impedir que Margarida vivesse constantemente respirando
-os delicados venenos, que lhe proporcionavam noites deliciosas de
-encanto em que a mente, ebria de goso, se lhe alargava em quadros
-deslumbrantes. Accentuavam-se-lhe, por isso, as turbulencias do coração
-e o depauperamento organico; porém o seu querer era terminante e
-exigente, para que a não separassem das suas queridas flores.
-Comprehendia bem que eram ellas que a ajudavam a levantar a alma em
-preces fervorosas, e que lhe incendiavam a mente em extasis divinos.
-
-Áquelles olhos que não viam, patenteava-se a celestial morada n'uma luz
-luarenga sempre egual. Mais que isto, os seus ouvidos escutavam n'esses
-instantes singulares, córos angelicos, em que a toada longa e plangente
-era como um balsamo, em que a alegria tomava fórma serena e augusta. E
-todos comprehendiam este viver de alma superior, esta sublimação dos
-sentidos para definir coisas ethereas, a descoberta do mundo dos
-encantos feita por uma creança em quem laborava a vontade de Deus. Esse
-dom subtil para comprehender era decerto a parte mais bella de tão
-gloriosa cegueira e para lh'o conservarem havia sempre abundancia de
-flores em volta do pequeno leito de Margarida. De longe e de perto
-chegavam offerendas copiosas—collocavam-nas em vasos, como nos altares,
-em açafates como aos pés da Virgem, no oratorio, em cima da commoda e
-juncavam-lhe com flores a propria coberta, que se lhe ajustava ao corpo
-doentinho. Assim podia ella sentil-as, com os magros dedos apreciar a
-maciesa das petalas, aspirar-lhes com mais avidez os energicos perfumes.
-E que riso de expressão tão estranha, illuminava aquelle semblante
-disforme, quando com o seu fino tacto, Margarida adivinhava as flores
-que ali tinha e as combinava em ramos e capellas, que pessoas de olhos
-sãos não saberiam entrançar com semelhante engenho! Se punha na sua
-propria cabeça essas corôas que fazia, todos notavam, quanto se parecia
-com as santas adoradas nas egrejas! Se dizia palavras de sentido
-transcendente, todos julgavam escutar sons que sahiam de mysteriosas
-nuvens. E ainda que fossem coisas que não comprehendessem, tal era a
-suavidade encantadora d'aquella voz incomparavel, tal o encanto musical
-da sua pronuncia maviosa, que os ouvidos profanos se sentiam
-magnetisados e as imaginações dos que escutavam iam voando, voando
-sempre, seguindo-a entre estrellas, n'uma região infinita e doirada pela
-vista fulgurante dos seres perfeitos e bellos que a habitavam. Aqui era
-o paiz encantado da visão e do mysterio, n'elle habitam entes
-immaculados e perfeitos! Vivia-se d'este modo na habitação terrena,
-fluctuando nas azas da maravilha, creada hora a hora. Uma continua
-apotheose d'um sonho, que só a crença na vida eterna podia gerar!...
-
-[1] _Amores, amores..._
-
-
- III
-
-
-Porém o estado melindroso da saude de Margarida aggravava-se de cada vez
-mais. Os facultativos que a vigiavam com a sua experiencia, assignalavam
-os progredimentos da molestia, cuja historia conheciam. Nunca
-funccionara bem aquelle pequenino coração: nos primeiros annos de vida
-fôra excitado pelos estovamentos dos brinquedos infantis e pela
-insaciabilidade da creança mimosa, que dava azas á imaginação inquieta;
-no terrivel dia da catastrophe quasi se quedara preste, talvez que no
-proposito de nunca mais funccionar, mas recomeçou o seu labor; no longo
-periodo de soffrimento, que se seguiu, teve alternativas de resignação e
-desesperos, desalentos e esperanças vivas!... Os carinhos maternos e a
-dedicação nunca desmentida de Antonia apasiguaram-no e fizeram abrir na
-mente de Margarida os alvores d'uma aurora. O tempo trouxe o desengano,
-a certeza e o habito da cegueira, e o pequenino coração adquiriu
-definitivamente conformidade para o infortunio, n'uma submissão aos
-ditames de Deus, propria dos eleitos tocados da divina graça. Abrira-se
-para elle uma existencia nova, adornada de bellezas e de encantos: eram
-explendores do ceu, não comparaveis aos terrenos, que são mesquinhos e
-transitorios. Tudo á mente vinha do coração, d'esse coração combalido,
-improprio para a vida commum, e no qual a morte se aninhara como em casa
-propria. Mas no rosto cicatricial em que os olhos baços se moviam como
-duas bolas de jaspe, despontava a luz que illuminaria a Margarida o
-caminho de Bemaventurança e ella desejava e não temia o final dos seus
-dias contingntes. No som da voz melodiosa, como será a dos anjos, e no
-sentido das palavras que pronunciava, já se reconhecia essa levantada
-aspiração, esse sentimento do divino, que linguas vulgares traduzem por
-santidade. Caminhava esta pobre existencia corporea abordoada a um
-coração doente e não podia prolongar muito a sua jornada. Margarida
-acamou de vez e no aconchego do quarto concentrou-se na paixão dominante
-das flores, d'esses aromas que lhe povoavam a mente de sublimes visões e
-lhe faziam antegostar o ceu. Despertara-se-lhe, primeiro, este amor, nos
-passeios aconselhados pelos medicos para se robustecer, agudara-se
-depois, na existencia da sua mente recolhida em convivio de anjos. As
-flores são bellas e assim como em vida lhe adornavam a paisagem da
-morte, depois lhe enfeitariam a sepultura. Morte e sepultura, idéas
-risonhas, que assignalariam o seu voar definitivo á patria celestial.
-Não as chamava, estas escuras imagens, para não ulcerar os corações de
-seus paes e de Antonia, a quem o momento da separação custaria, ainda
-que a vissem erguer-se sobre nuvens á gloria de Deus. Porém os seus
-ouvidos apurados já sentiam os passos magestosos da Morte, que vinha
-n'uma comprida estrada enfeitada de todas as galas, juncada de palmas
-victoriosas, acompanhada de musicas alegres. Festa superior á da entrada
-da primavera, nos campos e nos montes cobertos de boninas, com o ar
-empregnado de balsamos humados da terra, a omnipotencia da luz descendo
-do sol para tudo engrandecer! O coração doente consolava-se com os
-aspectos d'esta vida sonhada, alagava-se n'uma paz doce, larga e
-consoladora, que era um vislumbre da que se gosaria na presença de
-Deus!...
-
-Por isso ao presumir proximo o seu ultimo dia, sentindo por adivinhação
-que a alma se ia desprender do corpo em que reinara, que a materia
-resignava a força que a enobrecera, é que pedia mais flores, muitas
-flôres para embebedar com aromas a imaginação. Tinha a cama de virgem
-sempre coberta de rosas, de açucenas e de todas as flores campestres de
-belleza tão captiva e simples, de perfume tão casto e enebriante. Quando
-adormecesse no ultimo somno terreno, queria que fosse entre fragancias e
-côres, para nas azas d'essas coisas intangiveis subir ás alturas, onde
-habitam os anjos. Foi assim que veio para Margarida a feia morte,
-risonha amiga, como um carinhoso dom. N'esse dia assignalado
-cercavam-lhe o leito todos os queridos affectos que no mundo tivera. O
-bom cura Carvalhosa, de estola branca e oiro sobre a alva sobrepelliz,
-dizia-lhe em voz de uncção, palavras solemnes de esperança e ventura. O
-rosto sereno e quasi risonho do sacerdote espalhava no quarto, que era
-um sanctuario, coragem e tranquillidade, em todos os espiritos. Os paes
-de Margarida e Antonia ajoelhados aos pés da cama, voltados para a
-Virgem glorificada entre flores e luzes, no oratorio, tinham as faces
-innundadas de lagrimas silenciosas e votivas. Outras pessoas intimas,
-amigos e parentes, seguiam este ditoso despedir d'alma ao despegar-se do
-mundo. A illuminação astral do rosto da moribunda, com os olhos gelados
-a procurarem claridade n'uma risonha ancia de sublime, a todos animava.
-Parecia-lhes este morrer, antes uma transfiguração da vida: não era o
-afastamento para sempre, pois acreditavam que esse espirito, que de
-muito pertencia ao ceu, continuaria a velar pelos que muito amara, para
-os proteger contra as miserias terrenas. Margarida entre elles,
-escutaria as suas supplicas, fortalecel-os-hia nos desalentos e como
-branca pomba espiritual, havia de pairar sobre o tecto que lhe abrigara
-o nascimento e a morte. Aqui se lhe dispertara a alma para as coisas
-sublimes, para as visões eternas; ao cahir gradual do corpo todos lhe
-viram corresponder uma crescente sublimação do espirito; as suas
-palavras que se adelgaçavam na fortaleza, eram de cada vez mais
-cristalinas no som e tinham de cada vez maior sublimidade no sentido. É
-que já as pronunciava do limiar da Bemaventurança, cujas portas se lhe
-abriam de par em par. Tudo concorrera de longe, para que as lagrimas
-choradas em volta d'este pequenino leito de moribunda, coberto de flores
-rescendentes, fossem lagrimas mais de goso, do que de amargura, de
-conformidade e não de desespero.
-
- * * * * *
-
-Rompia a tranquilla luz da alvorada d'um dia d'Abril, que promettia ser
-alegre e soalheiro. Estava-se na mesma semana de Paschoela na qual,
-annos antes, começara o glorioso martyrio de Margarida. Havia cá fóra as
-pompas da natureza, a reviviscencia da terra subia ao azul em hymnos de
-aromas e cores. A doentinha chamara para juncto de si seus paes,
-Antonia, e os parentes mais chegados, as de Refuinho e as do Ramisco.
-Com uma voz que era um cicio de resa, de todos se despediu com palavras
-confortativas, de tanta elevação e carinho e santidade, que bem se
-comprehendia que não fosse um espirito da Terra, que n'ella vivesse. Com
-os dedos magros de santa deixava a cada um a lembrança d'uma flor,
-beijava, amorosa e humilde, as mãos de seus paes e do cura,
-sorrindo-lhes com os olhos cegos.—E rematando a vida disse:
-
-—Pedirei ao Senhor, por todos. Perdoem a quem os fez soffrer!...
-
-Rebentaram torrentes de lagrimas e córos de soluços, quando viram que
-não mais pudera falar, e que reclinara de vez a resignada cabeça no
-largo travesseiro... Começara um longo e infinito somno: o rosto d'uma
-serenidade angelica parecia formoso e expressivo como nunca fôra! Ainda
-respirava o balsamo das plantas odoriferas, os brancos dedos ainda
-procuravam o setim das petalas de rosas e cecens; mas aquella
-imaginação, aquella alma diluia-se na amplidão infinita, subindo ao
-espaço como um subtil perfume. Margarida repousava na paz eterna do seu
-Deus! Terminara o ultimo anhelo do coração.
-
-—Está morta—disse com sentimento grave o medico pousando-lhe a mão na
-testa.
-
-—Está viva—pronunciou como em sonho, o padre Carvalhosa...
-
-Lisboa, Abril de 1899.
-
-
-
-
- PASTORAL
-
-
- I
-
-
-As cabras e as ovelhas, iam a meia encosta, todas n'um carreiro, como
-formigas. Tinha sido longa a noite d'abstinencia no curral e pelo
-caminho, ás furtadellas, aboccavam as hervagens avulsas, ruminando-as
-sofregamente. O Rabicho, sempre adiante, como explorador. Vivo e
-esperto, n'um relance conheceu a impaciencia da Tonia, por não andar
-mais depressa. «Lá p'ra riba, cão!»—gritára-lhe a pastora, e logo elle
-subiu a um penedo, deixando passar todo o rebanho, que depois impelliu
-para a frente, com duas boas torquezadas de seus dentes. Os animaes
-correram á porfia, vencendo-se uns aos outros. A rapariga ficou
-distanciada, a fiar a sua lã, cuja tarefa, para um dia, levava na abada
-junta com o presigo. E para não auctorisar novas investidas do rafeiro
-berregou-lhe de novo: «Tó, dianho! tens muito dente!...»
-
-N'esse dia, encaminhava-se ella para o Guidon. Perto de lá, na bouça de
-João-Paz, deixára escondida a tigela das sopas de leite. No caminho
-encontraria o Chico, pastor seu amado, e ambos juntos e unidos iriam
-espreguiçar-se por baixo das fragas ou no interior dos frescos giestaes.
-O Guidon, quando o maio é soalheiro e formoso, tem as melhores pastagens
-dos arredores. O tojo, nos sitios onde se fez queimada, borbulha, tenro
-e verde, como herva nos lameiros. Os gomos d'urze parecem microscopicos
-pampanos. O rosmaninho, o trevo, o rico e nutriente feno desabrocham em
-aromas e enfeitam a serra. Leite filho d'estas plantas silvestres,
-delicadas e cheirosas, é o mais gostoso e substancial. Por isso, ao
-pasto das terras baixas e frias, que não sobeja da boiada, n'esta épocha
-de lavradas, é preferido o dos pincaros, alegres e soberbos. Coisas da
-bruta experiencia, que os seculos teem garantido.
-
-Chegado o rabanho ao sitio onde na vespera o lobo roubára um timido
-cordeiro, a ovelha-mãe, na expressão de saudade, balou dolorosamente. Ao
-longe respondeu-lhe a voz tremula d'outra ovelha, como se fôra um echo.
-A pastora logo correu ao alto para alcançar mais com a vista. Imaginára
-estar p'r'áli aquelle a quem se votara. Ia ser um dia festival, ao
-encontrarem-se na suprema mudez da serra, protegidos do calor á sombra
-dos piornos, contemplando-se n'um vago absoluto. Em taes momentos
-accelera-se a imaginação; os ouvidos inattentos ensurdecem; a mente
-fica-se n'um pasmo; o mundo figura-se um lago tranquillo e morto; o azul
-do céo, onde se perde a vista, é d'um ferrete insondavel; o coração bate
-forte e rapido, como um bom potro, galopando solto na campina!...
-
-Porém, o que veria a Tonia de suspeito e desagradavel?! A expressão do
-seu rosto suave e louco, carregou-se de sombras; o gesto foi de
-arremesso e contrariedade; os olhos faiscaram de subita colera!...
-
-Ah!... Em vez do Chico, appareceu-lhe o outro, o Russo, um grande e
-forte, de cabellos vermelhos e physionomia diabolica. Coruscava-lhe a
-vista inquieta, pequeninas sardas picavam-lhe a pelle, a cabeça era uma
-tormenta de fogo!
-
-Quão differente o seu namorado, rapaz franzino, d'aspecto juvenil, rosto
-comprido á Nazareno, cabellos negros e mal cuidados, formando sobre a
-fronte um tufo revolto d'anneis. D'aquelle todo sahia a expressão que a
-enlevava; da expressão desdenhosa ou indifferente a superioridade com
-que a submettera; das palavras simples, a musica dos seus ouvidos e da
-sua alma inteira. Como era bello e encantador de costas sobre os
-penedos, a contemplar o céo n'um sonho de poeta! Como era amoroso e
-vago, quando tocava na flauta, coisas que não aprendera com viv'alma!
-
-O Russo decerto lhe queria com mais gana, com mais aquella, bem lá do
-fundo. Ao enxergal-a, desabrochando com a aurora no alto do monte, como
-subita e incomparavel flôr, todo se alvoroçou. Nos olhos e em todo o
-rosto mostrou um pasmo tonto, um riso sem valor, como aconteceria ao
-cego, cuja retina morta sentisse inesperadamente a gloriosa illuminação
-do sol. Correu para a abraçar no primeiro impulso; mas logo estacou
-contemplou-a a distancia. Ella, no alto onde se quedara, de roca á
-cinta, o lenço claro apanhando-lhe os cabellos, o recorte da sua figura
-desenhando-se no ar, era a pastora das lendas, calma e prophetica. O
-Russo percebendo o animo hostil com que a Tonia o recebia,
-accendeu-se-lhe n'alma a raiva e o ciume:
-
-—Querias ir só com o outro? Não, que não!...
-
-—Bem se me dá...—retorquiu desdenhosa. Tempo perdido, meu rico!
-
-—Que lh'achas tu? Um lesma, um gomitado. Cá, sou um home. Elle...
-
-A Tonia espertou-se:
-
-—Mal comparado! Tu és um diabo, um porco bravo. Estafermo! Elle é lindo
-como um anjo do céo!
-
-A furia do Russo cresceu:
-
-—Sou capaz de o esborrachar na unha, como um piolho, demonios me nunca
-levem!
-
-Tinha lagrimas de raiva, ao pronunciar a jura. Era paixão antiga e
-abrazadora. Desde os quinze annos, ainda aquelle corpo de rapariga era
-como um castanheiro novo, já elle a via constantemente na transparencia
-dos luares outonaes. As moles graniticas, penduradas eternamente dos
-pincaros, e resequidas pelo sol d'um infindavel agosto, não teriam mais
-firmeza, nem mais calor do que elle. O ciume era no seu corpo um moer
-lento e occulto, tal o fogo que mina a urze escondida na terra para a
-transformar em carvão. Condemnado por aquella repulsa constante,
-sentia-se desprezivel e desejava morte, em que soffresse muito. Comtudo
-não podia despegar a propria vida d'aquelle sonho malaventurado. Em
-presença da Tonia, a natureza ruiva e colerica aloirava-se-lhe n'uns
-cambiantes meigos e suaves. O mais tenro anho das suas ovelhas, não
-tinha para quem o aleitava tanto carinho e agradecimento, como elle
-mostrava áquella rapariga, n'uma submissão de coisa bruta. Comtanto que
-o amasse, se a sua vontade d'ella fôra vêl-o apodrecer no fundo d'uma
-córga, para ser alimento das aguias e corvos, ir-se-hia lá deitar
-voluntariamente e nunca mais comeria! A preferencia pelo outro é que o
-humilhava na sua consciencia de homem forte e magnifico. Quedava-se a
-scismar de noite no que teria de superior, esse engelhado, tão magro e
-pequeno como uma lavandisca. O corpo não, que o seu era grande como uma
-torre e devia inspirar sentimento de força. A paixão que lhe refervia lá
-dentro, longe de ser mollanqueirona, mostrava-se vehemente e feroz, tal
-a das lobas a defenderem os filhos. Aquella rapariga airosa, divina
-imagem de qualquer santa, voz musical como a dos passaros, tranquillo
-olhar como o da lua, aniquilava-o com a sua nervosa malquerença. Até
-ahi, nada a pudera abrandar: nem lagrimas soluçadas de bruços sobre os
-penedos; nem supplicas mais ferventes do que orações; nem juras e
-promessas inabalaveis como o céo. Diante das vontades e caprichos da
-pastora, era humilde e cego. Quantas vezes lhe ficára com a rez, para a
-deixar correr monte, talvez á procura do outro?! Quantas vezes lh'a fôra
-buscar ao curral e lh'a apascentara durante dias, para que ella fosse ás
-romarias, com os ranchos que passavam?! Até sacrificava o seu rebanho,
-pois dirigia o da Tonia para as melhores pastagens. Se tinha leite novo,
-logo lh'o offerecia como um presente; se encontrava tortulhos
-assava-lh'os e ella comia-os: para que não bebesse agua dos ribeiros,
-onde ha porcarias e animaes mortos, ia-lh'a buscar longe, trazendo-a na
-sua tigela, escrupulosamente lavada, como para uma rainha. Quando a
-Tonia acceitava de boa cara estes serviços, já o Russo se entendia muito
-bem pago. As recusas ou o mau modo, é que eram fundos golpes no seu
-torvo coração.
-
-Vivia uma vida negra e de sobresaltos continuos. Passavam-lhe incendios
-diante dos olhos e a sua imaginação ficava a trabalhar em desassocego. A
-fatidica _Pedra-suspensa_ (essa antiga ameaça!) parecia-lhe, ás vezes,
-que se ia desprender lá do alto, rolar pelos montes e destruir o mundo
-inteiro! Oh! visão amedrontadora de todas as existencias!... Só para a
-afastar, quantas vezes elle consentira o Chico deitado ao lado da Tonia!
-A moça fiava a lã da tarefa, cantava ou escutava-o enlevada. O
-magricellas, o ninguem, de papo para o ar, não tratava da rez. E o
-desprezado é que fazia o serviço de todos, guiando caridosamente as
-cabras e as ovelhas para a sombra das ramadas nos grandes calores, e á
-bebida antes de as recolher. Viviam assim pelos montes, perdidos entre
-tojaes e piornos, dormindo no verão debaixo das lapas e dos azevinhos.
-Havendo satisfação reciproca, tambem gostava de ouvir o tocador de
-flauta, que sabia muitas modas tiradas da sua cabeça. Era feliz nos
-momentos em que morava longe o ciume, isso a que não sabendo dar o nome,
-lhe queimava o peito, como tição ardente. Esquecia o desamor da Tonia
-n'essas horas gastas em somno tranquillo. A vida era visão suspensa dos
-ramos dos carvalhos, ou fluctuava brandamente como as folhas outonaes ao
-sabor d'um murmuro vento. Não havia quisilias, só desejo de felicidade,
-socego e gozo, em ventura calypsiaca. Raramente, porém, se passavam dias
-assim completos de ventura!...
-
-
- II
-
-Já tinham caminhado meia hora, n'um silencio inconvivente, quando
-chegaram ao ponto d'onde se descobria a Pedra-suspensa. Era o objecto da
-lenda mais famosa e conhecida nas povoações em redor. Visto de certo
-lado, aquelle granito, não se lhe encontrava o ponto de repouso, na lage
-subjacente; parecia um destaque de nuvem, no céo azul. Contavam, sempre
-em voz de medo, que logo no principio dos seculos, um mau genio e feio
-gigante, ali a depositara, como eterna ameaça a peccadores; porque a sua
-queda assignalaria o começo do fim do mundo. A instabilidade da
-Pedra-suspensa, tão reconhecida era, que ninguem duvidava de que uma
-creança de cinco annos a pudesse derrubar. Grande milagre, não a terem o
-vento e os trovões arremessado pelos espaços fóra!... O respeito que
-esse granito infundia, era o de um idolo vingador, ameaçando, dia e
-noite, as aldeias e o mundo!... Todos os dez annos se formava grande
-procissão de penitencia, com gente que partia de sitios mui distantes e
-ali se reunia afim de implorar misericordia. Recebida da tradição essa
-pratica, executavam-n'a com fervor d'alma religiosa e temente. Os homens
-ciliciavam as carnes, as mulheres erguiam clamores, as creanças berravam
-de amedrontadas, os bacamartes de bocca de sino troavam pelos caminhos e
-por entre os penedos... tudo para distanciar o pavoroso castigo!...
-
-Depois das preces, ficariam acalmadas as justas cóleras divinas? Ninguem
-o assegurava. A intangivel crença em que a famosa pedra cahiria, para
-assignalar enormes desgraças, conservava-se viva e forte. Poucos tinham
-animo para a encarar tranquillos e serenos. Ninguem ousava
-approximar-se-lhe, muito menos tocar-lhe, com medo da responsabilidade
-n'um cataclysmo. Seria provocar inconsideradamente as cóleras do céo.
-Uma penha que bastaria o roçar d'uma corça para a fazer cahir! Pairava
-assim no ar, suspensa como uma aguia, por determinação da vontade
-divina. A não ser isto já as bategas da chuva, o impulso dos vendavaes,
-o degelo das neves a teriam arrastado. Pois não era um verdadeiro
-milagre a sua estabilidade?!...
-
-A idéa de a escorar, diminuindo-se as probabilidades da catastrophe,
-fôra sempre repellida. Significaria desconfiança no alto poder que ali a
-conservava. Melhor é deixar o destino trabalhar por si. Está lá em cima
-quem tudo regula. O que tem de ser faz muita força... Pensavam d'este
-modo em palavras; mas no fundo, n'esse intimo sentir que até parece
-esconder-se á Providencia, se elles pudessem calçar a pedra para não
-cahir!... Contra as imprudencias brutas dos gados já se tinham
-prevenido, as gentes supersticiosas, sebando-a em volta com ramos e
-tojos. Porém as aguias, que vinham de longe, no seu vôo arqueado e
-solemne ali poisar? E os lobos famintos, que preferiam aquelle sitio
-para comer as suas prêsas? Só milagre e grande milagre é que a sustinha
-n'aquella direitura. Acreditavam-n'o camponezes e serranos, todos os que
-se desbarretavam e persignavam murmurando qualquer reza, mal a viam. Foi
-assim que procederam a Tonia e o Russo. Ambos quedos, ella com o fuso
-parado, elle com o barrete na mão, ciciaram orações. Mas o pastor, logo
-depois ameaçou a rapariga apontando:
-
-—Vêl-a? Ha de cahir. O mundo acaba-se e tu não serás p'ra mim, nem p'r'ó
-outro.
-
-—A Senhora da Peneda não ha de deixar—disse confiada.
-
-—Sou eu que a empurro. Verás.
-
-—Cala-te, hereje, que t'abro a cabeça.
-
-Irada, com os olhos em chamma, arremetteu-lhe com um pedregulho. Havia
-ancia de raiva dentro do seu peito soberbo. O Russo não lhe pôde
-supportar a vista de cólera e desprezo; curvou a fronte, os olhos
-marejaram-se-lhe. O seu destino era peor que o dos condemnados do
-Inferno.
-
-—Perdôa, não olhes assim! Tu é que me fazes dizer todos estes peccados.
-
-—Tenho culpa de não teres temor de Deus? Estás na caldeira de
-Pedro-Botelho, vestido e calçado! E é bem feito!—accrescentou vingativa.
-
-O cabreiro queria humildar-se até ao rasteiro das cobras e lagartos, só
-para lhe merecer uma sombra de perdão. Affligia-o mortalmente a idéa de
-que mais uma vez desagradara á Tonia. Como, logo adiante a rapariga
-vendo umas cabras se principiou a affirmar, para descobrir o Chico, foi
-elle que, no intento de se reconciliar com a pastora apontou:
-
-—Está acolá, em cima do penedo...
-
-—Assobia-lhe para vir p'r'áqui.
-
-—Bem nos vê, se quizer...
-
-Mas obedeceu, assobiou com os dedos na bocca. O outro não se importava,
-apenas mexeu a cabeça conservando-se na mesma posição.
-
-—Vae lá, que vamos p'r'ó Guidon,—disse-lhe a moça.
-
-Foi, humildemente, como um perdigueiro. Sentiu gozo em ser mandado; mas
-de raiva torcia nas mãos a grossa carapuça. Distante, a occultas para
-esconder a sua fraqueza, limpou duas lagrimas ao canhão da vestia. O
-outro não queria ir para o Guidon, estava ali muito bem. O Russo
-pediu-lhe que obedecesse, para a Tonia se não zangar mais.
-
-—Ora... se 'stou regalado!—respondeu o pastor. Vai tu mais ella.
-
-—Vem, moço—exorou o cabreiro. Olha que ella hoje, sempre te está! Anda,
-levo-te a rez.
-
-Consentiu o Chico em deixar ir o rebanho; mas elle ficou. A Tonia não se
-teve. Foi pressurosa tiral-o d'aquelle adormecimento. Com ligeiro
-sorriso de meiguice, pediu ao Russo:
-
-—Ó aquelle. Junta-me tamem as minhas, que eu vou trazel-o.
-
-
- III
-
-
-E lá foi, doida, feliz, correndo de fraga em fraga. O Russo assobiou ao
-Rabicho, reuniu todo o gado e partiu... Chorava lagrimas como punhos, e
-voltava-se para vêr de relance a Tonia, que chamava o Chico, com acenos
-e gritos. Bem se importava o preguiçoso com aquelle louco amor da
-rapariga!...
-
-—Eh! moço! vem-te d'ahi p'r'ó Guidon.
-
-Elle respondeu-lhe:
-
-—Eh! que 'stou' qui mui bem.
-
-Tirou do seio a flauta e sentando-se no penedo, principiou a tocar. O
-sol illuminava-o de frente, prateando-lhe os cabellos negros. O destaque
-da sua figura magra e enfezada sobre o escuro penedo, fazia-se como o
-d'uma miniatura em fundo esmaltado. A Tonia chamou-o:
-
-—Já lá vão as tuas cabras, maluco.
-
-Não se importava, encolheu os hombros. A musica absorvia-o
-completamente, era o seu destino. A pastora, dominada por esse respeito
-instinctivo e sagrado, que se deve ás coisas elevadas, parou a
-distancia, para o não interromper. O Russo, que já ia longe, tambem
-subiu a uma rocha com o fim de ouvir melhor. Escutava triste e
-absorvido. O seu grande corpo, esbatendo-se no verde escuro do monte,
-ainda ensombrado n'aquella parte, percebia-se mal, como as figuras dos
-baixo-relevos, e tinha a mesma immobilidade captiva. Era moda triste a
-que o rapaz tocava. Finda ella, a Tonia approximou-se quasi respeitosa.
-Para subir ao penedo onde estava o tocador e arrancal-o d'ali, teve
-difficuldades. A pedra era lisa e as tacholas dos sócos estavam gastas.
-Mas agarrou-se a um ramo de carvalho, inclinou-se para diante... Os
-magnificos e potentes quadris arquearam-se n'uma curva de mulher
-completa e fecunda, creada nos caminhos pedregosos. O Chico, vendo-a no
-empenho de subir, largou a flauta, tomou-a pelos braços roliços,
-attrahiu-a para o seu corpo e por momentos ambos ficaram unidos!... O
-Russo presenceava de longe tudo isto. Sahiu-lhe do peito um rugido de
-cólera e ciume que fez estremecer as montanhas. Os seus olhos, vermelhos
-de desespero, viram uma successão de calamidades sem fim, como as
-descrevem os missionarios para o dia de juizo. A Pedra-suspensa
-oscillara, já cahia pelos fortes declives d'um mundo em ruinas.
-Ennegrecera subitamente o céo azul, reuniram-se n'um instante nuvens
-prenhes de tempestades, os trovões abriram medonhas gargantas no céo de
-fogo, as pupillas dos raios rutilavam, as trombetas apocalypticas
-enchiam de pavor os reconcavos da terra, onde se escondiam
-desgraçados!... Tudo se ia acabar para todos!... O seu corpo miseravel,
-junto ao de outros reprobos, rolava pelos abysmos. A grita dos homens
-era pavorosa, formando um unisono infernal.
-
-Isto o que viu e ouviu n'um instante aquella imaginação turbulenta. Mas
-o Chico e a Tonia já tinham descido do penedo. Elles lá vinham a
-caminhar, amorosamente unidos, ella apoiando-se-lhe no hombro. Riam e
-folgavam, como um casal de pintasilgos em março, resumindo em si todas
-as venturas pelos homens sonhadas. Ella offereceu-lhe do seu presigo uma
-racha de bacalhau, que o rapaz acceitou para offerecer ao outro, que era
-muito pobre, não tendo mesmo, ás vezes, a brôa sufficiente. Logo que se
-juntaram deu-lh'a.
-
-—Toma—disse.
-
-—Não tenho fome—rejeitou.
-
-—É a Tonia que t'a dá.
-
-Arrancou-lh'a da mão. Estracinhou-a raivosamente com os dentes, como
-faria á carne d'aquelles corpos felizes, se os pudesse trincar.
-Excandecido seguiu com os rebanhos, separado dos dois. O semblante
-sombrio e transtornado, impressionaria quem lh'o encarasse. Os olhos
-gazeos expelliam chispas metallicas e tinham escurecido de cólera. Os
-beiços tremiam-lhe como signal da sua loucura. A pastora no momento em
-que se juntaram escarneceu-o:
-
-—Que feia carranca... Santo Nome!...
-
-O cabreiro voltou-se rapidamente para a aniquilar, com todo o poder da
-sua força herculea. Porém ao vêr aquelle rosto sereno e risonho, só
-disse:
-
-—Hoje ha de ser falado!...
-
-N'um relance pensou na famosa Pedra, symbolo de desventuras. Sahia-lhe
-do semblante uma expressão feroz: no craneo aninhou-se-lhe a idéa d'um
-aniquilamento geral de todas as felicidades terrenas.
-
-Mas a rapariga é que não estava de geito para o aturar. Conhecia-lhe a
-maluqueira de bode raivoso e ciumento. Tinha meio de o curar, sem pau
-nem pedra: era deixal-o ir só. Um porco bravo assim, um bruto cujo
-aspecto causava medo, não servia para viver entre christãos. Fosse lá
-p'r'ós lobos, que eram seus iguaes.
-
-Quão differente o outro, o seu querido! Timido e meigo como o cabrito
-d'um mez, assobiava e cantava modas mais bonitas que as dos melros e
-rouxinoes das mattas. Viver a vida com elle pelos montes, era o mesmo
-que passar os dias n'um céo. Ensinava tantas coisas, que não
-aprendera!... As cantigas da sua invenção produziam sempre tristeza
-branda e carinhosa. Descobria nas estrellas sitios de felicidade e
-apontava-os, convidando-a a voarem para lá. Podiam-se comparar os
-dois?... O Russo era escambroeiro aspero que rasgava as carnes; o Chico,
-ramo de giesta, bello, cheiroso, e flexivel. Por isso ella despediu o
-rude cabreiro, retorquindo-lhe á ameaça:
-
-—Elle é isso?! Pois vae-te sósinho com Deus. Nós levamos hoje o gado
-p'r'á Ralada.
-
-Chamaram o Rabicho e trataram de separar as suas cabras e ovelhas. O
-Russo, sob o castigo tremendo, mostrava-se submisso em todo o seu corpo.
-Pedia perdão, não dissera nada mau!... Se alguma palavra feia, se alguma
-ameaça ou jura a sua bocca cuspira, estava arrependido. Fossem com elle
-que tomaria conta dos rebanhos todo o dia. A comida para ali era a
-melhor dos sitios. Encontrava-se tojo tenro, como bicas de manteiga. A
-herva, apenas nascida, era a unica do appetite do gado. Havia agua
-corrente para os animaes e até uma fonte para a gente... Aquelle grande
-corpo, espadaúdo e alto, fazia-se pequeno com a humildade. Uma criança
-mostraria mais imponencia. As lagrimas cahiam-lhe em cachos e todo elle
-era uma supplica, de curvado e abatido.
-
-A Tonia foi cruel e inflexivel. Abandonou-o, desprezou-o como um trapo.
-Disse que os não acompanhasse para a Ralada, que isso os obrigaria a
-mudar. Fez-se imperiosa. O seu corpo d'ave, esbelto e franzino, teve
-coleamentos de panthera. O rosto de santa transformou-se pela cólera. A
-chamma do olhar e os cabellos mal juntos davam-lhe o aspecto d'uma leôa.
-O cabreiro tremia de medo, a cabeça sobre o peito, os braços pendentes.
-Separaram-se. Os dois lá foram, acintosamente abraçados. O Russo,
-desmoronada toda a sua existencia, dirigiu-se em passo tropego, adiante
-do gado, para o destino da sua má sorte!...
-
- IV
-
-Chorou longamente o seu infortunio, p'r'áli, a cara junto á terra. Do
-fundo mysterioso vinham-lhe palavras infernaes, que o aconselhavam a ser
-feroz e deshumano. Ergueu-se tendo o coração empedernido. Os seus olhos
-enxutos, viram nitidamente ao longe a Tonia e o Chico enlaçados,
-patenteando ás aves o seu amor. Era uma visão graciosa que sahia de
-entre as lavaredas da colina em fogo! Á sombra da fraga, sobre a qual
-estava a Pedra-suspensa, os loucos tinham-se ido deitar. Elle tocava
-flauta, ella contemplava-o, com o fio da roca parado. Justiceira a mão,
-que para lá os guiou!—pensou na sua rude mente o Russo.
-
-Desencadearam-se-lhe diante da phantasia sanguinea todas as tempestades
-dos seculos sem fim. Só a grande Dôr poderia burilar n'aquelle rude
-cerebro taes florescencias tenebrosas. O seu corpo levantou-se n'um
-desespero formidavel. Um violento fremito rugia no interior da montanha,
-chegando até ás nuvens. Era a voz torva do seu peito, a soluçar pelos
-reconcavos da Terra e do Céo!
-
-Ia tombar a Pedra-suspensa—resolveu.
-
-Os seus cabellos ruivos, atravessados pelo sol, faiscavam. Idéas de
-impiedade e vingança, como lh'as ensinára a religião e o ciume,
-fixaram-se-lhe na fronte d'um modo definitivo. A ventura e a bondade não
-cabiam na sua alma desgraçada, pois em volta tudo era escuridão e
-rancor. Nem a saudade da serra que estava a florir, nem a convivencia
-amoravel do gado, nem o abandono da mãe cega e pobrissima o detiveram.
-Não via os _outros_ abraçados n'um gozo sem limites? Palpitando d'amor á
-face do sol, pensavam acaso nas ovelhas? Que viesse o lobo e elles não
-seriam capazes de o perceber!... Aquelle embevecimento reciproco, era um
-peccado mortal, e nem o temor do inferno os separava! O aniquilamento, a
-morte rapida era o que mereciam! Clamava do céo vingança, uma tal falta
-de vergonha.
-
-Por isso ia elle empurrar a Pedra-suspensa!
-
-Doido, perdido, correu como um cabrão, de penedo em penedo. N'aquelle
-peito arquejante escondiam-se sentimentos de tigre. Era um demonio
-bruto; porém o instincto e o desespero tornaram-n'o sagaz. Para ser mais
-ligeiro e imperceptivel, abandonou os tamancos no caminho. Uma força de
-vendaval levava-o pelo ar. Podiam merecer-lhe piedade a desgraça do
-mundo e a eterna condemnação de todos os homens?! Algum vivente lhe
-mostrara sympathia, ou pensara em lhe prodigalisar carinhos?! O seu odio
-absoluto não distinguia a justiça da perversidade.
-
-Já em cima dos penhascos, ao lado do rude instrumento de vingança, olhou
-em volta. Um leve impulso de sua vontade bastaria para se produzir o
-formidavel castigo. Conheceu a verdade da lenda:—simples sopro de gente
-moveria aquelle penedo tamanho como elle! Um resto d'esperança, porém,
-obrigou-o a reflectir. Deitou-se de bruços, arrastou-se para diante... A
-cabelleira fulva e farta como uma juba, excedendo o rebordo da lage,
-appareceu no espaço. Desvairaram-se-lhe subitamente os olhos:—viu com
-todas as minudencias irrefutaveis, aquelle terno idyllio, que resumia
-toda a sua desventura. O Chico tinha a cabeça no regaço da pastora. Ella
-dava-lhe de beber agua fresca pela sua tigela de barro vermelho. Era o
-quadro da Samaritana, dessedentando o tranquillo Nazareno, junto do poço
-biblico, na velha Palestina. O rosto pallido do rapaz, emmoldurado em
-cabellos pretos, tinha a sonhadora expressão de Jesus. Embebidos um no
-outro, prolongavam a existencia, na intensidade do sentir!...
-
-Porém elle tambem era homem, tinha direito á felicidade como todo o sêr
-vivente. Se a Tonia lhe não havia de pertencer, melhor era acabar com a
-propria vida, que lhe não prestava! Havia de elle aniquillar-se, e os
-outros haviam de ficar n'aquellas serras queridas? Não lh'o acceitava a
-mente perturbada!
-
- * * * * *
-
-Os miseros estavam mesmo por baixo da Pedra-suspensa! A vingança
-n'aquelle cerebro, tomou fórma exacta o real, sem poeira de lendas.
-Podia esmagal-os, como dois sapos nojentos!... D'esta maneira, acabariam
-n'um instante duas vidas incompativeis com a sua felicidade. A morte
-para todos tres era uma solução de suprema justiça. A fé supersticiosa
-das montanhas tinha-o abandonado; o pobre ficara só, recolhido na sua
-dôr infinita!
-
-Mesmo de bruços, principiou a recuar. O seu olho calculador e vingativo
-vira, que impellido o penedo, os dois morreriam, estreitamente unidos,
-sem tempo para um ai! Havia de ser fulminante esse acabamento como o
-causado por um raio de cólera divina! Poz-se em pé, sobre a lapa, a
-parallelo do instrumento fatidico. Veiu de novo a visão sanguinea! O
-panorama em frente appareceu-lhe envolvido em linguas de chammas! Era o
-primeiro signal do tremendo castigo, ha seculos esperado! Um impulso de
-cyclone dominava-lhe a vontade. Decerto era Deus que assim o mandava
-castigar dois peccadores.
-
-Com a força nervosa e a serenidade d'um illuminado, applicou ao granito
-o largo e potente dorso. Demorou-se ainda alguns instantes!... Seria
-indecisão?... Era o gozo de ouvir estranhas vozes de coragem e applauso,
-bramindo-lhe dentro do craneo! Em volta, já começava claramente o
-desmoronamento do universo! E o impavido cabreiro, soltando um ronco
-selvagem—medonho grito de féra!—tombou a Pedra-maldita!
-
-
- V
-
-
-Não se descollaram do ultimo beijo os dois ternos amantes. A altura era
-enorme. No espaço produziu-se um som abafado e largo, que foi de
-quebrada em quebrada, pulsando até ao coração da Terra! O Russo
-conservou-se em cima da lage, firme, contemplativo, como o Stylita.
-Parecia tomado d'assombro! Os seus olhos de louco, viram pedaços de
-carne e o sangue atirados para o céo! Aquillo teria sido malvadez?!...
-Arrependeu-se de subito, ou quiz envolver-se no aniquilamento geral?!...
-Não poderia sobreviver a tamanho crime, ou eram os demonios que o
-reclamavam, como sua prêsa?!...
-
-Approximou-se resoluto da borda da fraga! Em baixo o mundo cambaleante e
-confuso, era um grande incendio, surgindo de trevas absolutas.
-Diabolicas figuras cruzavam os abysmos, á procura de victimas e
-sinistros. Gritos infernaes sahiam das boccas escancaradas dos pincaros,
-como jactos de lava! Olhos vermelhos de demonios fixavam-no ironicos e
-cubiçosos! Abriu os braços n'um gesto de supplica e perdão, atirou-se ao
-espaço como um abutre de amplas azas e o seu grande vulto, rolando pelo
-ar, parecia vir da eternidade, na primitiva condemnação! Sobre a mole
-granitica impellida pelo seu desespero, esmagaram-se-lhe as carnes e os
-ossos! O sangue espirrou, tingindo de vermelho a relva circumdante. Era
-tudo quanto restava, d'uma paixão desesperada e selvagem!...
-
- * * * * *
-
-A manhã de primavera, tranquilla e sumptuosa de luz, alegrava montes e
-campinas. Enfeitavam as encostas, o codeço e o tojo, rebentados d'entre
-as penhas, cuja negrura avivavam d'amarello. As myriades de flôres dos
-urzaes, formavam tufos d'aljofares e d'amethystas nas aridas córgas. O
-feto novo era como uma extensão de relva, pelo verde claro. O modesto
-trevo e o alegre malmequer, salpicavam a terra. Gottas d'orvalho como
-lagrimas, rebrilhavam penduradas das flôres da giesta. As mattas
-silenciosas iam acordando com o gorgeio dos passaros. Nos fundos abysmos
-das montanhas, formavam lagos os pardacentos nevoeiros. Passado o
-primeiro momento de susto, os rebanhos continuaram a retouçar nas
-hervas, diante da gloria do sol deslumbrante. As aguias pairavam
-magestosas, ao longe, sobre os mais altos cumes. Toda a natureza
-palpitava e se engrandecia, sob a acção impulsiva do calor. Nas serras,
-nas brandas, nos ribeiros, nos cabeços, nos valles... uma tranquillidade
-pathetica de vida natural. Sobre os telhados das aldeias levantavam-se
-os fumos domesticos, brandamente, como fumos de incenso sobre os
-altares. Em volta a muda altivez da soberba e impassivel montanha!...
-
-Só uma voz lamentosa se ouvia na socegada amplidão: era a do rafeiro, o
-amoravel Rabicho, que em redor da Pedra, chorava a pobre Tonia.
-
-E chorava a cortar a alma, como se fôra um christão, ganindo, uivando,
-aos saltos em volta dos cadaveres!... Amoravel rafeiro, pobre Tonia,
-desgraçados amantes!... Ah!...
-
-Lisboa—Novembro de 1888.
-
-
-
-
- FOGO DO CÉU
-
- (_a Sousa Martins._)
-
-
- I
-
-
-A meia encosta da montanha subia a estrada de macadam, qual longa facha
-branca collada em fundo escuro. Tarde nevoenta, atmosphera pesada e
-electrica! As pessoas nervosas sentiam-se impacientes, com desejos
-fulgurantes e insaciaveis de imaginações inquietas. A necessidade de
-movimento, a agitação do corpo tornava-se imperiosa. Cada um procurava o
-esgoto rapido da sensibilidade que o affligia, o aniquilamento do
-proprio ser, com o fim de se encontrar no remanso bonançoso de uma vida
-serena e repousada, como as aguas de uma lagoa. Mary logo de manhã se
-levantara mal disposta, a carne em sobresaltos, uma intensa vontade de
-chorar. Pediu de tarde a seu pae que a acompanhasse n'um largo passeio a
-cavallo, galopando para longe, á descoberta de novas sensações, em
-horisontes infinitos, onde a vista se perdesse.
-
-O velho cedeu apesar da ameaça de chuva. Mary precisava do rosto
-açoitado pelo ar fresco, sentir o arripio do vento nos cabellos, escutar
-o ribombo da trovoada desenvolvendo-se a distancia.
-
-Lá iam os dous, pela estrada de macadam, a par como namorados: elle com
-a sua barba branca collada ao peito, Mary olho febril, o rosto em
-desafogo, o véu azul fluctuando como flammula. Os cavallos ás upas,
-garbosos, correndo ao desafio: _Joe_, o de D. Francisco, calmo e
-magestoso; _Luck_, o de Mary, franzino, mais audaz, resfolegando
-impaciente.
-
-—Mary. Quando vier a chuva?!...—disse o receioso velho.
-
-Que importava! Não lhes tinha succedido isso d'outras vezes? Era um
-episodio, uma diversão da monotonia ordinaria da vetusta casa, entre
-carvalheiras, com o som plangente do orgão espraiando-se sobre os campos
-desertos. Os nervos imperiosos exigiam-lhe commoções, fortes balanços de
-galope, sacudidellas nos musculos entorpecidos, uma boa molhadela
-emfim...
-
-Continuavam intrepidamente para o cimo da montanha, distanciando-se do
-povoado. O horisonte de cada vez mais largo, a paisagem variando em
-cambiantes de luz; na ribeira os terrenos, ermos de cearas, ás arvores
-tristonhas e outomnaes, os fumos domesticos erguendo-se lentamente no
-ar, como louvor religioso.
-
-Era no mez de novembro: as folhas sêccas accumulavam-se nos recantos dos
-caminhos—despresadas depois de ephemera vida, e de terem com o seu viço
-de rebentos novos alegrado a encosta. Á maneira que os cavalleiros
-subiam para o alto, as montanhas desenrolavam-se-lhes n'um aspecto mais
-uniforme e esbatido, pela distancia de muitas leguas, como se fôra
-ondulado de mar subitamente solidificado n'um instante mais calmo. Os
-bosquesinhos de carvalhos, nascidos das aguas a rebentar nas quebradas,
-eram nodoas attestando a sensibilidade da vida, a circulação da seiva
-n'aquella aridez arrogante de terrenos ingratos, cobertos de tojo e de
-alcantiladas penedias. Os campanarios destacavam-se pela brancura da
-cal, tristes e solitarios, os sinos mudos. De cada vez se encastellavam
-mais nuvens no horisonte, tomando aspecto torvo de ameaça. O ribombo do
-trovão ennovelava por cima das cristas dos grandes outeiros. Havia no ar
-um sentimento de anciedade, uma como paralysação de vida, um spasmo em
-toda a natureza! Respirava-se mal, a accumulação electrica opprimia o
-peito:
-
-—Mary; seria melhor voltar!...
-
-—Só até lá cima, meu pae!...
-
-Os cavallos excitados pela corrida, de cada vez consumiam maiores
-distancias. Luck, delgado e nervoso, parecia o hippogriffo lendario,
-voando por sobre geleiras, levando a vaporosa fada n'um sonho
-scandinavo. Sentia a febre da mão que sustinha a redea; ao seu dorso
-arqueado communicavam-se as correntes nervosas do gracil corpo de Mary.
-Joe, o do fidalgo, apesar de mais pausado era valente, e acompanhava-o
-garboso.
-
-Caminhavam subindo sempre, no parecer ao desafio com as nuvens grossas e
-plumbeas, gravidas de trovões e raios, que passavam no espaço, n'uma
-jornada apocalyptica.
-
-Para onde iriam essas nuvens de tempestade? Onde pararia Mary, loira, o
-rosto animado, impetuosa, franzina, a imaginação ardente a pedir largas
-paisagens, o coração oppresso a desejar atmosphera mais leve, que os
-pulmões respirassem desafogadamente?!...
-
-Chegaram ao vertice da estrada. Para a esquerda havia montanhas sombrias
-e estereis; porém era completa a solidão e o desamparo!
-
-Descobriam aldeias e casas, a muita distancia, n'um ajuntamento de
-defeza contra os perigos dos ermos. Haviam caminhado em largo galope
-além de uma hora, distanciando-se sempre do povoado. A antiga morada
-d'onde tinham partido, só pelo tino acertariam onde ficava! Mary
-quedára-se a olhar com ousadia, para o céu e para a terra, o corpo mais
-livre, o querer amplo, a imaginação em maior tranquilidade. Esta
-uniforme paisagem de serranias que se pegavam umas nas outras, com um
-tom azulado e vesperal era de immensa pacificação. Porém as nuvens
-caliginosas condensavam-se já perto, o regougar do trovão aproximava-se
-a olhos vistos, a propria natureza parecia preoccupada, emquanto Mary
-sorria deliciosamente ao céu plumbeo, ás montanhas ondeantes, ao valle
-cheio de arvores amarellentas, que levantavam para o ar braços em
-supplica.
-
-Dous pequenos pastores, de certo irmãos, desciam apressados dos
-pincaros, trazendo o seu rebanho. Receiavam chuva grossa e trovoada,
-eram muito pequenos e supersticiosos, vinham com ancia de se recolherem
-á protecção de Santa Barbara bemdita, e de lhe resarem junto da lareira,
-onde arderia o canhoto do natal, amuleto contra as iras do céu. Irmão e
-irmã, teriam dez a doze annos, rotos e pobrissimos, aspecto triste e
-desconfiado. Os cabellos em desalinho, descalços, as pernas arroixadas
-do vento cortante dos montes! Desciam espavoridos, correndo pela encosta
-abaixo, acompanhados do cão e do rebanho, tudo juncto em grande
-confusão. A sua pobre choupana coberta de colmo estava no sopé da
-montanha. Conheciam o tempo, não havia que esperar, a trovoada
-aproximava-se, não tinham valor para a aguentar sósinhos lá em cima.
-Mary, com os olhos pregados n'elles, vendo-os a rebolar aos saltos pelo
-monte, encarecia, na sua boa alma, a conformidade, que adivinhava
-n'aquella vida humilde:
-
-—Meu pae, aquelles pastores, aqui sósinhos!...
-
-Já saltara do cavallo, esperava-os para lhes fallar, interrogal-os
-ácerca da sua pobreza que devia ser incommensuravel, dar-lhes alguma
-cousa para o agasalho do corpo.
-
-Cahiam ruidosamente as primeiras gottas de chuva. Grossas como landes
-varejadas de carvalheiras por ventania aspera, espapavam-se no pó da
-estrada. Havia forte ruido no ar; ao parecer, mão herculea impellia de
-grande distancia punhados de areia: era o bater secco do granizo sobre
-os terrenos, sobre as penedias e nas folhas amarellentas dos raros
-carvalhos. A turbação atmospherica augmentara subitamente, escurecera
-tudo em redor. Os trovões roncavam perto, semelhando o unissono cavo e
-amedrontador de milhares de carroças rodando juntas.
-
-—Onde nos havemos de recolher, Mary?—disse D. Francisco.
-
-Em qualquer parte. Sob aquelle frondoso castanheiro, que ali perto
-nascera isolado n'um tenue veio de agua que resumbrava na base de um
-penedo. Os cavallos tinham na pelle tremuras de susto; levavam-nos pela
-redea para o designado abrigo. Os miseros pastores chegavam n'esse
-momento á estrada, inquietos, receiosos de que as ovelhas se lhes
-trasmalhassem e como a chuva engrossasse rapida e subitamente,
-recolheram-se com o gado n'uma grande cova, de proposito aberta no
-flanco do monte, para estes casos, ali frequentes. Mary e seu pae,
-protegidos pelo velho castanheiro olhavam silenciosos e contristados
-para aquelles rotinhos e humildes, em monte com as ovelhas, cheios de
-inquietação com medo que o trovão apavorasse os animaes. E do interior
-da cova consideravam cheios de admiração aquelles senhores de aspecto
-tão rico e maravilhoso, mais bello do que o dos santos da igreja.
-
-As bategas de agua cresciam em força, o ribombo troava com arrogancia
-por cima dos pincaros eminentes. O fidalgo observava o ar com serenidade
-receiosa, a solemne barba branca de patriarcha biblico cobrindo-lhe o
-largo peito. O vento soprava com violencia, os movimentos ondulatorios
-da atmosphera formavam vagas, como n'um mar aereo. Tinham desapparecido
-as povoações, os campanarios, os cimos das montanhas por traz da
-densidade da chuva. Restringira-se-lhes a muito pouco a área visual,
-tudo estava coalhado n'uma densa nevoa, o aspecto das cousas era
-indefinido e vago.
-
-—Durará muito?—disse Mary apprehensiva.
-
-Estava a vêr que sim.
-
-Fizera mal em não ter cedido ao aviso de seu pae. N'aquella vasta
-solidão principiava a sentir-se n'um desamparo tenebroso. Ennegrecia-lhe
-o espirito com a apparencia lugubre das penedias suprajacentes. D.
-Francisco vendo-a pallida e contrariada, apparentava agora conformidade
-e riso, para a fortalecer. Tinha medo de algum desanimo, de qualquer
-crise de nervos. Era esta a querida filha da sua alma, o seu unico
-enlevo, a alegria, o conforto no despovoado da viuvez e da velhice. Mary
-sentia na alma a amargura de ter contrariado a previdencia do bom velho,
-de quem era a luz dos olhos. O aspecto do céu de cada vez mais orgulhoso
-e ameaçador.
-
-Os sons medonhos reforçados nas quebradas dos montes, rolavam como
-grandes e implacaveis penedias, que viessem lá do alto para tudo
-aniquilar. Já os trovões concorriam de todos os lados, arrogantes e
-magestosos, rebentando perto em estalidos breves e seccos, como milhões
-de taboas a baterem umas contra as outras. Laminas de fogo de coriscos
-rasgavam o ventre das nuvens e esta luz luarenga cobria a paisagem de um
-tom funereo. Havia no ar uma escuridão de caverna sem que a noite já
-começasse a abraçar o mundo no seu amplexo triste. A natureza em combate
-tinha olhar terrificante. Nem o conjunto de toda a artilheria do mundo,
-cem vezes augmentada, vomitando ao mesmo tempo granadas e materias
-inflamaveis pela bocca redonda dos seus canhões, daria ideia d'esta
-formidavel batalha, ferida nos paramos sombrios do ar.
-
-—Meu pae!... tenho medo!...—confessou a corajosa Mary.
-
-As ovelhas conservaram-se junto dos pastores mettidos na sua cova, como
-timidas creanças perto de sua mãe. Os pequenos de joelhos, as mãos
-erguidas, em lagrimas de receio pediam misericordia em altos gritos
-dirigidos a Deus clemente. Desejava D. Francisco animal-os,
-soccorrel-os, trazendo-os para juncto de si; porém não lh'o consentiam
-as catadupas de agua, que já vinham pelas gargantas dos montes sahir ali
-perto, em formidaveis ribeiros. Elle ainda conservava Joe pela redea;
-porém Mary já havia abandonado Luck, que de olho allucinado, e tremendo
-em todo o corpo, resfolegava com estrondo pelas narinas largas. O pavor
-crescia, o formidavel estalido do trovão rebentava quasi sobre o
-castanheiro, innumeros relampagos fuzilavam ao mesmo tempo pondo-lhes o
-espirito em confusão.
-
-—Tenho muito medo, meu pae!—confessou Mary, tremula e agitada.
-
-Como poderiam sahir d'ali? Impossivel!—ponderou o coração amargurado do
-velho. Esperava que a furia da tempestade diminuisse, que o horror do
-trovão abrandasse, que o fogo dos relampagos lhes não tirasse a vista,
-que a chuva fosse menos copiosa... A pobre Mary já o não ouvia, pallida
-e assustada, sentiam-se-lhe ranger os dentes, a ella que sempre fôra a
-ousadia, o denodo, o vigor moral de seu pae.
-
-Os dous corações batiam n'um ambiente de terrores, os ares incendiados
-por chammas infernaes, os ouvidos surdos por causa dos pavorosos sons
-que desciam do céu, ou resurgiam das corcovas da montanha. De toda a
-parte o mundo parecia ameaçado por castigos e invectivas de morte. No
-bojo largo e mysterioso das nuvens parecia esconder-se, ainda
-silenciosa, a suprema voz da infinita maldição! Vencendo espaços com o
-desespero dos demonios escorraçados do céu na noite biblica, essas
-nuvens pareciam que accarretavam do começo dos tempos a punição de
-crimes accumulados por seculos de perversidade!...
-
-Os aterrados pastores continuavam de joelhos, as mãos supplicantes,
-pedindo misericordia em agudos gritos. A convulsão do franzino e esbelto
-corpo de Mary communicava-se ao tronco do castanheiro frondoso e para
-ella todo o mundo se sentia abalado e tremente. D. Francisco
-abandonou-a, por um momento, emquanto procurava colher as redeas de
-Luck, que se ia separando encolhido e agitado.
-
-A confusão de todas as cousas attingira n'este instante imponencia
-d'assombrar! Um forte e vibrante estampido, acompanhado de illuminação
-subita de raio, rebentou sobre a arvore protectora. Luck então fugiu
-espavorido; Joe repuchou fortemente o braço do fidalgo, que se sentiu
-cahir, as pernas sem vigor. Instinctivamente, D. Francisco, lança os
-olhos para o castanheiro, e vê no rosto funereo de Mary extinguir-se a
-vista, o tronco flexivel como um vime inclinar-se, todo o corpo, qual
-estatua de alabastro, cahir sobre a terra n'uma compostura
-sepulchral!!...
-
-
- II
-
-
-Fora fulminada? estava morta?!... O rosto de seu pae era de um pavor
-dantesco!... Luck despenhara-se pelo monte, em saltos infernaes! Joe,
-menos nervoso, tremia humilde junto de seu dono.
-
-O desditoso velho atirou-se com desespero sobre o corpo livido de Mary,
-que vira pender como uma açucena, impellida por vento maldito.
-Encontrava-a sem energia corporea, o aspecto de completa ausencia de
-sensibilidade, os olhos meio cerrados. Queria aquecel-a com os seus
-carinhos, dar-lhe o movimento do proprio sangue! Estreitava-a nos
-braços, agitava-lhe o corpo, sacudia-a para lhe dar vida. De apavorado
-emmudecera, não tinha lagrimas para exprimir tamanha dôr; mas por fim a
-sua voz rugiu formidavel como a do leão, como a do mar, como a da
-tempestade:
-
-—Mary!... Mary!... Accorda, Mary!...
-
-As creanças tinham corrido n'um instincto de soccorro. Augmentavam a dôr
-do quadro com o chôro desesperado, que acresciam ao do inconsolavel pae,
-que chamava sua filha em altos brados dirigidos ao céu crudelissimo.
-
-D. Francisco erguera-se, com o corpo de Mary intimamente unido ao seu.
-Que loucura esta! Pensar em reanimal-a communicando-lhe o seu calor,
-dar-lhe sensibilidade com o vigor do affecto, fazel-a soffrer com a
-grande e immensa dôr que o suffocava! O corpo estava exanime;
-pendiam-lhe os braços, cahia-lhe a cabeça, as pernas sem energia, o
-tronco vergando-se como um junco. O ribombo do trovão continuava atroz:
-os relampagos successivos illuminavam as serras lugubres, as altas
-penedias de uma grandeza cyclopica, as humildes aldeias e campanarios,
-as veigas de uma passividade mortal.
-
-—Chamae gente!... Chamae gente!...—gritava D. Francisco aos pastores,
-que d'elle se tinham acercado n'um intento piedoso.
-
-As creanças identificadas com aquelle soffrer incomparavel, gritavam
-inutilmente! Quem as ouviria? O logar ficava longe, a sua casa distante,
-a magestosa garganta da tempestade engulia-lhes a voz.
-
-Talvez o velho cabreiro esperasse a primeira aberta para lhes vir em
-auxilio!... Unica e misera esperança!...
-
-Os enxurros desciam ovantes em catadupas pelas gargantas dos montes: os
-caminhos eram ribeiros, nas fundas corgas sussurravam as aguas como
-grandes rios, a ira do céu parecia crescer a todos os momentos.
-
-—Chamae gente!... Chamae gente!...—repetia o fidalgo com o corpo de Mary
-estreitamente abraçado, exprimindo no semblante a maior dôr que no mundo
-possa existir.
-
-Clamavam as creanças com maior desespero e força; porem as suas vozes
-perdiam-se no infinito espaço. Um instante houve em que esses gritos
-foram triumphaes, como se um soccorro afortunado viesse espavorir a
-desgraça.
-
-—Pae!... Pae!...—exclamaram com alvoroço.
-
-Era o robusto montanhez que despresando perigos, subia em corrida a
-encosta, para proteger os filhos, e livrar o rebanho das correntes
-impetuosas.
-
-Ao deparar com a scena horrivel que os pequenos lhe apontavam, como
-produzida pelo fogo sinistro do raio, a sua mudez e espanto eram
-formidaveis. Obedeceu como automato aos monossylabos de D. Francisco,
-ageitando-lhe o cavallo para elle montar.
-
-E emquanto montava, as suas rudes mãos e os braços negros de rachador,
-sustentaram por instantes o franzino e gracioso corpo de Mary, para o
-entregar ao velho, que o recebeu com sofreguidão e ainda com
-esperança!...
-
- * * * * *
-
-D. Francisco voltou n'um galope desesperado, a filha amantissima
-achegada ao seio caloroso. A sua ideia era alcançar em minutos o portal
-da querida habitação, mandar uma legião de criados á procura de
-soccorros que lhe restituissem Mary. Joe parecia identificado com a
-grandiosa tragedia que se passava na alma de seu dono! Era uma corrida
-de phantasma, atravez dos espaços do primitivo cahos! Um homem robusto,
-ainda que velho, cabello e barba sujeitos ao vento, despresando chuva,
-trovões e relampagos, galopando furiosamente com o corpo de uma donzella
-estreitado nos braços, era o que viam passar attonitos os raros
-viandantes. Paravam tranzidos de espanto, ninguem se oppunha a esta
-marcha do desespero, e só exclamações se ouviam:
-
-—É o fidalgo!... É o fidalgo!...
-
-Joe sentindo a força da alma lugubre que o guiava, vencia caminhos,
-voltava com lucidez, transpunha ribeiros aos saltos. O inconsolavel pae,
-ainda na crença de que d'aquelle deliquio Mary poderia acordar,
-animava-lhe com monossylabos energicos a vertiginosa carreira, na
-direcção da antiga morada de seus maiores. Ali chegou finalmente com o
-espolio querido. Portal largamente aberto, porque de longe os criados já
-tinham notado a infernal corrida. O corpo exanime de Mary foi estendido
-sobre a sua cama de donzella, e logo veio o medico que a olhou com
-aspecto dolorido de desanimo!...
-
-Ali estava como n'um leito de morta: a face pallida; os braços molles; o
-corpo exhausto, acceitando passivamente todos os impulsos. Não
-respirava, não lhe batia o coração, não lhe foi encontrado o pulso. Era
-desgraça irreparavel, todas as tentativas seriam infructiferas! Para que
-haviam de enfermeiras conspurcar aquelle corpo gracil, se Mary estava
-morta, definitivamente morta?! Um raio do céu fulminára a formosa
-donzella, flexivel como um vidoeiro novo, candida como o lyrio, risonha
-como um cravo! O medico que a vira nascer, e lhe queria como a propria
-filha, agarrou-se a D. Francisco, chorando, chorando, sem poder falar!
-
-É que Mary já não existia, o pavoroso raio consumira no seu fogo aquella
-rosea existencia! Nunca mais aquelle coração palpitaria de amor, nunca
-mais os seus dedos sublimes acordariam sons de musica religiosa no orgão
-antigo, nunca mais aquella voz clara como um veio d'agua pura, se
-levantaria em preces fervorosas.
-
-D. Francisco não lhe tornaria a ouvir dizer: «Meu pae! meu pae!» Mary
-estava morta, definitivamente morta, fulminara-a a colera das nuvens!...
-
-
-
-
- VOLTOU...
-
-
- I
-
-
-Bons velhinhos os que moram n'aquella casa! N'este domingo sereno de
-março, lá se veem sentados á porta, com o sorriso dos modestos e felizes
-a florir-lhes no rosto; tem as cabeças protegidas contra o mal da
-soalheira e os pés, fóra dos tamancos, para os aquecerem. A veiga, onde
-pastam bois, é tranquilla; a subida da encosta, onde rebentam urzes e
-codeçaes, está vistosa. Aquelles bons companheiros, casados ha cerca de
-cincoenta annos, tem um para o outro o mesmo olhar confortativo e
-amoroso do tempo de moços. Miguel conserva impressa na retina a imagem
-de quando Luiza era nova: não lhe percebera o nascer das rugas; nem o
-desmaiar da pelle; nem a queda dos dentes, que no riso ainda lhe
-appareciam como uma fiada branca e egual de rosario de pinhões. Os
-cabellos (talvez pela vista enfraquecida) eram as mesmas longas tranças,
-negras e colleantes, como lampreias no fundo de rio arenoso. O corpo de
-sua mulher mantivera para elle, sempre, a mesma puresa de
-linhas—consolidara-se na graça e gentilesa da juventude, não o tinham
-abandonado os elementos de frescura e mocidade.
-
-De egual modo, Luiza, via seu marido. Quem estava ali, a seu lado, com
-os joelhos ao sol e o lenço de Alcobaça na cabeça, era o mesmo rapaz
-valente, trabalhador e sadio, ligeiro como um lobo, que a namorara
-quando ella tinha vinte annos. Nem as molhadellas lhe tinham engrossado
-as articulações com o rheumatismo, nem as barbas e cabellos eram da
-brancura de linho sedoso, mas acastanhados e lustrosos como outr'ora.
-Não tivera a edade poder para lhe diminuir a vista: logo que o
-emperramento das pernas passasse, vel-o-hiam como o primeiro malho nas
-eiras, a primeira enxada no morder da terra, a melhor roçadoura para
-derrubar silvedos. Ella que o amparava da cama até a lareira e da
-lareira até ao sol, vivia na fé de que o seu Miguel tornaria a ser o
-mais celere e desembaraçado homem de todas as redondesas para atracar um
-touro que fugisse em descampado, para vencer, d'um pulo, o ribeiro da
-freguezia, para pôr em debandada uma feira de troquilhas bulhentos. Não
-o vira ella ludibriar magotes de adversarios, ora afastando-os para
-longe com um talho de varrer, ora safando-se-lhes com um salto, para
-fóra da muralha da gente com que o cercavam? Assim mesmo, meio
-entrevado, ainda se não poderiam chegar a elle, nem tres, nem quatro
-pimpões, se Miguel tivesse nas unhas o seu pau de carvalho e estivesse
-bem encostado a uma parede para só poderem atacal-o de frente.
-Experimentassem, querendo, e ver-se-hia se ella não dizia a verdade.
-
- * * * * *
-
-Á porta da casa estavam ambos silenciosos, n'esse secreto e intimo goso
-d'uma perpetua conformidade moral, imaginando-se na força do sentir e
-sem recearem a morte que podia separal-os, levando um e deixando o outro
-a vaguear no mundo, n'uma existencia de lamentos e saudades. Não
-pensavam n'este horror, visto que no céu havia um Deus, justo e bom, que
-não permittiria tal iniquidade. D'aquella somnolencia feliz,
-despertou-os o padre Clemente Carvalhosa, que ora vinha pelo estreito
-caminho rente á casa de Miguel.
-
-—É o senhor cura—disse Luiza, falando como se só comsigo falasse.
-
-—Ah! hoje demorou-se mais. É que os rapazes não sabiam a doutrina.
-Calaceiros!...—pronunciou o velho, sem levantar os olhos dos joelhos.
-
-O sacerdote adeantava-se com o seu habitual ar benevolente. A batina
-ecclesiastica dava-lhe solemnidade ao parecer, e só o passo energico era
-signal de que não vinha em boa disposição de espirito. Luiza, logo que o
-viu á voz, levantou-se para o saudar; Miguel que tinha, ao lado o pau a
-que se amparava, ia a fazer o primeiro esforço para se erguer, quando o
-cura, já com a mão na cancella para entrar, disse alto:
-
-—Eh! lá! Para doentes não ha ceremonias!...
-
-—Muito bom dia, senhor. Hoje mais tardinho. Os rapazes não a sabiam,
-está de vêr...
-
-—É verdade—informou o Carvalhosa com voz irritada. Talvez peior que no
-domingo passado e estamos no fim da quaresma.
-
-—Uma palmatoria senhor! Olhe que isso não vae sem lhes doer.
-
-—E é que o faço!—asseverou com energia o ecclesiastico. Se me obrigarem
-a sahir de mim, irá o diabo n'aquella sachristia.
-
-—Vossa Senhoria não é capaz d'isso...—opinou ironicamente Luiza.
-
-—Não sou capaz!? Estás enganadissima! É que vocês nunca me viram pelo
-lado do forro. Se me volto do avêsso, vae ahi o dia de juizo.
-
-Miguel offerecendo-lhe o bordão de paralytico aconselhou:
-
-—Com este é que elles se ensinavam. Já lá andam taludos, dos que não vão
-a palmatoria.
-
-—É o que elles mereciam, é—applaudiu Luiza.
-
-—Isso tambem não, mulher!—entendeu o cura. Um pau molesta de mais, pode
-fazer sangue ou quebrar algum osso. É bastante uma palmatoria puchada
-com valentia, como eu o sei fazer. Mando logo chamar o Corcunda para
-lh'a encommendar. Deixa que se elles virem, pendurada na sachristia, a
-santa Luzia de cinco olhos, não tornam a apparecer sem trazerem o recado
-na ponta da lingua.
-
-—Vossa Senhoria—commentou o Miguel—para essas coisas de bater... O
-senhor abbade, quando por ahi vinha, sabia-os tosar melhor, se os
-garotaços faltavam á obrigação...
-
-O Carvalhosa retomou a sua energia:
-
-—Estás parvo, homem! A questão é fazerem-me chegar a mostarda ao nariz.
-Mas vamos ao que serve—disse mudando de tom.—Do vosso Luiz, não tem
-havido noticia nenhuma... nenhuma?...
-
-—Nenhuma... nenhuma...—responderam os dois n'um unisono triste.
-
-—E tendes perguntado?
-
-—Se temos!—disse Miguel. Sempre que sei de alguem que chega do Brazil,
-se as dores das juntas me dão licença, lá vou ter com essa pessoa... Mas
-até agora nada, nada!...
-
-Luiza commentou chorosa:
-
-—São terras onde ha animaes que comem gente!... Quem sabe se alguma
-serpente me deu cabo d'elle...
-
-—É celebre!—entendeu o cura. Eu tambem tenho feito esforços para saber
-noticias, mas tudo em vão!... É celebre! Pois ainda ha dez annos vos
-mandou o dinheiro com que arranjastes esta casa e comprastes os bens por
-ahi abaixo e não torna a dar accordo de si! É celebre! muito celebre!
-Quem será o ladrão que disfruta, a esta hora, o que elle tanto lhe
-custaria a ganhar! Sim, porque elle fortuna havia de ter ganho!
-
-—Isso é o que menos importa—interferiu Luiza. Aqui ha que farte para
-elle e para nós. O que queriamos era vel-o vivo e são.
-
-—Pois apega-te com Nossa Senhora da Boa Viagem, que ella t'o trará. Eu
-vou-me até casa que são horas de minha irmã ter o caldo na tigella.
-Adeus e devoção, Luiza.
-
-—Ah! isso tenho eu, senhor! Promessas e resas olhe que as faço todos os
-dias.
-
-
- II
-
-
-Havia muitas pessoas na freguezia que se lembravam da partida do filho
-do Miguel. Era um rapasinho carinhoso, serviçal e bem comportado.
-Delgado de corpo, tez morena, sorriso sempre conformado, fazia gosto
-vel-o ajudar á missa; porque procedia com grande promptidão e esmero. No
-caracter era a mãe, sempre boa e humilde; no desembaraço o pae, sempre
-agil e resolvido. De quatorze annos não havia, por ali, outro para
-mandar á villa n'uma pressa de chamar o medico ou buscar um remedio.
-Quer fosse de dia ou de noite, quer os caminhos estivessem cheios de
-neve ou de lama, o Luiz nunca se escusava, nunca procurou uma desculpa.
-Nem o medo do lobo, nem o das trovoadas o impedia de ser prestimoso.
-Miguel todo se ufanava com este brio do rapaz, e com a atmosphera de
-sympathia de que o via cercado. E quanto a estudo? Isso dizia o mestre
-que nenhum lhe levava a melhor nos desafios á taboada, e na doutrina.
-Até era uma pena não ser possivel ordenal-o em Braga, para um dia vir
-ali dizer uma missa nova, e verem-no do pulpito lançar a voz da
-religião. Porém, o Luiz, ainda que o podesse conseguir com esmolas, lá
-para essa vida de padre não o chamava a inclinação e toda a sua idéa era
-embarcar, para tirar seus paes da pobreza em que viviam e da labuta
-constante em que se amofinavam. Apesar do Brazil ser a commum ambição da
-gente d'aquella provincia, isto não tinha prognostico favoravel das
-pessoas que lhe conheciam o genio perdulario, o gosto que fazia, já em
-creança, em dar tudo que possuisse. Um pedaço de pão e presigo com que
-lhe pagassem qualquer serviço prestado, logo o repartia com os rapazes
-da sua egualha, ou com algum pobre que encontrasse, ou mesmo com
-qualquer cão esfomeado que estivesse a olhar para elle quando comia. E
-não era porque em casa lhe sobrasse, pois Miguel, n'esse tempo, tinha
-mais tres filhos vivos e era elle só a trabalhar, moirejando nas terras
-que são ingratas para compensar o esforço rude do homem, que só tem a
-sua enxada para as servir. Estava na indole de Luiz dar tudo, repartir
-com quem quer que fosse. O coração não lhe soffria o possuir coisa de
-que os outros não compartilhassem. Os unicos motivos de zanga de sua mãe
-para com elle, vinham de conhecer que lhe roubava pão para os pobres que
-passavam, quando ella não tinha bastante para si.
-
-—Tu és tolo, rapaz!—reprehendia-o. Vês que esta fornada me não chega até
-á outra, e tiras-me a brôa da masseira! Olha que ainda podes andar como
-esses mandriões de pedintes, que só tem por seu mal, não se quererem
-achegar ao trabalho.
-
-Luiz ficava triste, por, a santa creatura que era sua mãe, não
-comprehender o intimo goso que elle sentia em fazer bem. Amargurava-o
-esta idéa, pois não admittia maior consolação do que a de dar, mesmo aos
-que não tivessem necessidade. O rosto de agradecimento que os
-beneficiados faziam ao receber, era o premio unico a que aspirava. Mas
-havia mais alguma coisa n'este animo dadivoso: era o pouco geito de
-possuir em proprio, o que quer que fosse. Angustiava-o a preoccupação de
-guardar. Viver sempre na abstracção, na inconsciencia do que valem as
-coisas materiaes, era a caracteristica do seu coração. O prestar
-serviços sem idéa de interesse ou recompensa completava-lhe a indole
-bondosa. Sua mãe estava sempre a prégar-lhe:
-
-—Nunca hasde juntar coisa que se veja. Como é que tu queres ir para o
-negocio com esse genio?
-
-E porque assim o entendiam todos na freguezia e os proprios paes, é que
-muito os maravilhou o receberem, na pobre casita onde os dois velhos
-moravam e viviam sós, a visita d'um amigo de Luiz, que lhes trazia uma
-ordem para receberem no Porto uma grande somma de dinheiro—uma somma,
-para elles tamanha, que os lançava repentinamente na opulencia. Porém,
-Luiza, ao apparecimento d'esse senhor todo aceiado, já homem grisalho e
-enegrecido na pelle da face pelas soalheiras dos sertões brazilicos, não
-se importou nada com a riqueza que elle annunciava e tomando-o como o
-precursor de seu filho, logo inquiriu:
-
-—E o senhor conhece-o, o meu Luiz? Está um homem assim alto como é o
-pae? E quando é que o temos a consoar com a gente?
-
-A todas as perguntas o mensageiro respondeu de maneira a arrancar-lhe
-lagrimas de contentamento. Miguel que, chamado, viera offegante da
-labuta dos campos, perguntou, primeiro que tudo, em voz meia
-reprehensiva, mas cheia de coração:
-
-—E elle não tem idéa de vêr a gente antes que nos levem para a cova? A
-riqueza estimamol-a muito; mas antes queremos a companhia.
-
-O amigo de Luiz enterneceu-se com esta insistencia e consolou os paes
-fazendo-lhes graciosamente promessas para que não estava auctorisado. O
-dinheiro enviado era o melhor signal de que o filho os visitaria em
-breve—disse. Trazia tambem recommendação de lhes lembrar que
-transformassem a casa de moradia para o receberem condignamente, e de
-que empregassem o restante na compra de algumas terras, que lhes
-garantissem uma mediania repousada e sem cuidados.
-
-—Isso—confessou Miguel—até vem a calhar, porque andam em bocca de venda
-estes bens aqui em redor.
-
-Para designar a grandeza das terras estendeu pela encosta que descia
-brandamente até ao ribeiro, um olhar commovido, acompanhado d'um gesto
-de opulencia. Fôra esta a ambição de toda a sua vida. Muitas vezes, só
-com Luiza, quando junto da lareira comiam o magro caldo da ceia, elle
-reprimia o prazer que o filho lhes daria se enviasse dinheiro para
-comprarem aquelles campos, que toda a vida haviam cultivado como
-caseiros. Era o seu suor d'elles accumulado sobre a terra, que os fazia
-fructificar e lh'os tornava queridos, como uma parte viva e nobre da
-propria existencia. Possuir a bella quinta que em volta do seu pequeno
-eido se estendia, abrir a agua das poças com a arrogancia de
-proprietario, levantar as videiras com a certeza de que eram seus
-aquelles braços flexiveis, e ao enterrar a enxada na terra negra e
-humosa sentir a convicção de que remexia no que ninguem lhe podia
-disputar, de que preparava o solo para resultados que não partilharia
-com outrem, era o maior goso que a boa fortuna podia trazer a Miguel. E
-tamanha commoção os dois manifestaram, na sua mudez, deante do hospede,
-quando designaram com o olhar essas terras, que o recemchegado
-perguntou:
-
-—São estes os bens que vocemecês trazem de casa?
-
-—Sim, senhor, aquelles mesmos em que Luiz trabalhou comnosco, indo á
-soga dos bois, quando lavravamos. Elle falou-lhe n'isto?
-
-A um signal affirmativo, os consortes, choraram copiosamente. Até
-parecia mal ver um homem sadio e forte, como era então Miguel, limpar os
-olhos á grosseira estopa das mangas da sua camisa e soluçar com a cara
-escondida. Porém aquelle contentamento era mais forte do que elle; em
-coração humano não presumia outro egual. Para se desculpar, perante o
-amigo de Luiz, ia dizendo por entre lagrimas:
-
-—O senhor não pode comprehender o que isto é. Se soubesse o que me vae
-cá por dentro... Estou capaz de estoirar de alegria.
-
-O feliz mensageiro sentia-se transitoriamente envolvido na mesma
-atmosphera de felicidade que respiravam os dois casados. Ligando-os a si
-n'um só abraço disse:
-
-—O que desejo é que por muitos e largos annos gosem o que tanto amam, e
-que isto seja na companhia de seu filho, que estou certo se não demorará
-muito.
-
-Depois combinou com elles a maneira de receberem o dinheiro que estava
-no Porto, á ordem de Miguel. Para lhes facilitar a empresa já tinha
-tractado da transferencia da quantia para a villa proxima, onde da mão
-de negociante honrado podiam recebel-a toda d'uma vez, ou parcelada,
-conforme melhor conviesse. N'esse mesmo dia, Miguel acompanhou o amigo
-de seu filho para pessoalmente ajustarem com o tal negociante o
-recebimento em questão.
-
-
- III
-
-
-Este notavel successo trouxe á memoria dos do logar o bom rapasinho que
-Luiz sempre fôra; como era geitoso no ajudar á missa, como, com
-desinteresse sympathico, se prestava a servir toda a gente. Não podia
-deixar de ser feliz, quem logo no começo da vida se mostrara tão
-diligente e bondoso. Deus, que é justo, ajuda de preferencia aquelles
-que o merecem, os que desde o principio se mostram attentos e
-respeitosos pelas coisas da religião. Entendiam-no assim e mostravam
-como exemplo d'isto a fortuna que acompanhara Luiz para poder alegrar a
-existencia de seus paes, garantindo-lhes um magnifico bem-estar, e
-proporcionando-lhes o goso de possuirem as terras que sempre haviam
-trabalhado.
-
-A proposito recordavam o bello dia de maio em que elle partira. Muitos
-faziam o apparato de mencionarem meudas circumstancias, que agora
-representavam como se as tivessem deante dos olhos. Repetiam palavras,
-apontavam pessoas, e reproduziam detalhes. Que formoso sol o d'esse
-tempo! como elle aquecia o corpo e alegrava o espirito! O padre Clemente
-Carvalhosa, já então curava a freguezia e, por assim dizer, era o
-parocho, pois que o verdadeiro estava frequentemente em Braga, junto do
-senhor arcebispo de quem era amigo, e havia annos que por ali não
-apparecia. Como Luiz não tivesse vocação para o estado ecclesiastico,
-fôra o Carvalhosa quem influira para o mandarem para o Brazil, ver
-mundo, fazer-se homem, ganhar a riqueza com que voltasse a engrandecer a
-sua familia e a sua terra. Se o bom velho fosse egoista, forcejaria por
-conserval-o para o ajudar á missa, tratar das coisas da egreja e
-auxiliar o mestre escola. Mais tarde poderia mesmo conseguir-se que
-ficasse substituindo José Fortunato, o que era alguma coisa de
-representativo. Porém, reconhecendo que aquella intelligencia
-naturalmente viva se acanharia na estreiteza d'uma aldeia, o bom cura é
-que promoveu, entre a melhor gente da freguezia, uma colheita de
-donativos para vestirem o Luiz do Miguel e pagarem-lhe a passagem para
-esse Brazil, terra prodigiosa, onde o oiro rebenta das arvores com a
-bondade dos fructos que alimentam o homem. Sentia no fundo do seu
-generoso coração, que era uma boa obra a que emprehendia. Quem sabia se
-não estava trabalhando para o esplendor das festas da sua egreja, para
-reformar e accrescentar materialmente a riqueza do templo, attenta a
-vocação que Luiz mostrava para as coisas santas? Não seria amesquinhar
-as bellas promessas de caracter de rapaz tão bom, tão docil, tão
-intelligente, o prendel-o entre aquellas montanhas de limitado
-horisonte?
-
-—Mas, senhor,—entendia a mãe—olhe que elle para conservar dinheiro não
-lhe serve. Quanto ganhar, quanto dá!
-
-—Cala-te, mulher,—contestou Miguel—deixa ir o rapaz que no mundo é que
-elles se armam gente. Tenho-lhe amor, pois é meu filho, mas o senhor
-cura é que diz bem.
-
-Aquelle que assim falara com desapego, é a quem mais custou o
-desprender-se de Luiz, no assignalado dia da partida, n'esse bello maio
-em que o sol aquecia o corpo e alegrava o espirito d'um modo differente
-do actual. Luiz com o seu caracter submisso ia de vontade; mas não tinha
-n'essa occasião, propriamente idéa de ambição ou opulencia, nenhum
-proposito de no futuro deslumbrar os simples da sua aldeia. Commovido e
-sem fala, as lagrimas rebentavam-lhe dos olhos, como pingos de seiva
-d'uma arvore quando chora. Se seu pae se não podia desagarrar d'elle,
-tambem elle se não podia desagarrar de seu pae, nem de sua mãe, nem dos
-rapazes que ficavam. No fundo da sua retina estampara-se indelevelmente
-e para sempre, toda aquella paizagem da sua alma—a modesta egreja, com o
-campanario exterior d'um só sino; o musgo das paredes dos caminhos
-estreitos; a largura dos campos onde rebentava a herva; a sobranceria
-dos montes altos, artilhados de penedias temerosas! Sentira que a alma,
-n'esse dia de sol encantador, se lhe dividira em duas partes: uma ali
-ficava pendurada dos galhos das arvores que se enfolhavam, dentro da
-pobrissima casa onde nascera, e nas encostas a escutar o gemer das
-fontes e dos regos d'agua; a outra, a mais dura e resistente levava-a
-comsigo. O cura Clemente Carvalhosa, ainda no vigor da vida e saude,
-abençoara-o no limitte da freguezia, até onde o acompanhara, e n'esse
-momento, Luiz, supplicante e com as mãos erguidas pediu-lhe:
-
-—Quando a Russa tiver a cria, senhor, peço-lhe que a deixe crescer e que
-a não venda, que eu mando dinheiro para a pagar.
-
-A Russa era a egua do cura. O rapasito tinha-lhe grande affecto,
-adquirido no habito de a levar a beber, e de a acompanhar quando o
-sacerdote ia para algum officio, no que substituira o creado Simão.
-
-Na villa é que se apartou de sua mãe e de seu pae, pois d'ali em deante
-seguia na companhia d'outros emigrantes que levavam identico destino. Na
-volta, a excellente Luiza, veio considerando se aquella dôr que soffrera
-no apartamento incluiria a redempção da sua pobresa. Valeria a pena
-tental-a, para quem desde o nascimento fôra destinada á vida do trabalho
-e das privações? Quando ella o dera á luz, bem como aos outros que lhe
-tinham morrido de bexigas, já fôra na perspectiva de os prender á terra
-negra, cavando-a com a enxada, para d'ella tirarem o pão duro de que se
-alimentariam. Isto era a vida assente na pobreza e conformidade: o que
-Luiz ia buscar longe, o que seria? Com os olhos razos d'agua, a pobre
-mulher, só percebia o esbatido d'um mar ennevoado e sem fim, a negrura
-d'um mysterio lugubre que formava esse porvir incerto...
-
-
- IV
-
-
-Nos primeiros tempos d'ausencia, receberam frequentes cartas repassadas
-de affecto e saudade, ás vezes com signaes de lagrimas que ennodoavam o
-papel a ponto de se tornarem inintelligiveis algumas palavras. Porém,
-passados tres annos, a correspondencia cessou quasi de repente e
-espalhou-se o boato de que Luiz morrera, sendo depois isto desmentido
-por outros dizeres, egualmente sem base. N'estas alternativas, de luto e
-contentamento, passaram-se os dias longos e as noites infinitas,
-limitando-se os dois paes a reverem-se no seu passado, modesto e feliz,
-acreditando Miguel na eterna formosura de Luiza e esta no garbo e
-valentia perpetua de Miguel. Até que um dia chegou esse bom mensageiro,
-que lhes trouxe os meios para reformarem a moradia e comprarem as
-terras, e com este facto lhes voltou a esperança, sempre risonha e
-carinhosa, de que seu filho havia de chegar em breve. Além das palavras
-de bom agouro, que o desconhecido deante d'elles pronunciara, receberam,
-logo após, carta de Luiz, em que lhes falava com ternura do possivel
-regresso e insistia especialmente na velhice tranquilla e abastada que
-procurava garantir-lhes. Porém, depois d'este promettedor acontecimento,
-que lhes deu annos de prazer emquanto reedificaram a casa,
-levantando-lhe um andar, emquanto plantaram videiras e enfeitaram a
-quinta, com arvores novas e um bello muro em volta; Luiz nunca mais
-escreveu, estabelecendo-se completo silencio, similhante ao primeiro que
-parecera de morte definitiva. Fartou-se o padre Clemente Carvalhosa de
-lhe escrever sentidas cartas, falando de tudo quanto podia haver de mais
-amoravel e terno no coração: a velhice dos paes, que não poderiam
-aguentar-se por muitos annos; a commodidade da habitação, que elles
-tinham arranjado ostentosamente para o receberem; a belleza e
-transformação dos campos em que elle labutara e brincara quando creança.
-Até lembrava a recommendação, que Luiz fizera no dia da partida, para
-não vender a cria da Russa: a esse proposito notificava-lhe que, tanto
-esse animal como a mãe, haviam morrido de velhos, em grande
-tranquillidade e ventura; mas que na mesma côrte da residencia havia
-outra egua descendente da segunda, que era a estampa viva das saudosas
-extinctas. Nenhuma d'estas amoraveis e longas dissertações teve
-resposta, o coração de Luiz tinha-se de certo ressequido, pois já não
-vivia para tão commoventes memorias. Receberia elle as cartas? Não lhe
-seriam entregues por ter mudado de terra?!... É no que assentavam,
-afastando sempre a hypothese da morte, como castigo cruel e immerecido.
-Mas ao fim d'um crescido periodo de annos, sem noticias de nenhuma
-especie, experimentados por muitos e successivos desenganos,
-atormentados pelos pensamentos negros que traz a velhice, Miguel disse,
-um dia, em voz sumida, para não assustar a companheira:
-
-—Talvez elle morresse... talvez....
-
-Quem sabe?! Ha diversas maneiras de morrer. O corpo póde andar, no
-mundo, aos solavancos e encontrões, e ter desapparecido a vida com a
-alegria da alma. N'este domingo de março soalheiro, os dois velhos
-estavam á porta de sua casa, serenos e meditativos, mas conformados; foi
-o bom cura que lhes veiu incautamente turvar o coração, recordando-lhes
-o filho morto, ou eternamente desapparecido, o que para elles valia o
-mesmo. E quando ambos retomavam a tranquillidade em que estavam antes da
-chegada do sacerdote, ficando mudos, com os pés extendidos ao sol e a
-cabeça resguardada para que o calor os não adoecesse, sentiram passos no
-caminho que bordeja a quinta e viram que um estrangeiro se encaminhava
-para elles. Quem seria? Era um homem andrajoso, qualquer viajante pobre
-em caminhada para longe. O seu aspecto de miseria commovia... Trazia as
-botas cambadas, a camisa suja, as calças roidas; n'um saquito enfiado
-n'um pau, levava ás costas, toda a sua riqueza. Que ar esmorecido e
-doente! que longa barba mal tratada! como vinha dorido dos pés! Ao
-approximar-se da cancella, que dava ingresso no quinteiro, parou
-saudando com o chapeu esburacado. Miguel, com vista mais fraca do que
-Luiza, perguntou a esta:
-
-—O que é?
-
-O recemchegado é que respondeu em voz de cançado:
-
-—Um pobre viandante que pede uma sede de agua. Dão-m'a senhores?
-
-A velha disse com expressão de carinho:
-
-—Entre, faz favor?... Quanta agua quizer!...
-
-Não mostrou medo, nem repellencia, nem suspeitas d'aquelle homem roto,
-que podia ser um ladrão assassino. Foi ella mesma que veiu levantar a
-caravelha da cancella, para que elle entrasse, pois que o via sem forças
-para tão pouco... Conhecia-se que estava enfraquecido pela fome e pela
-longa jornada. Quem seria este misero de aspecto tão soffredor? Algum
-d'esses infelizes que vivem afastados durante muitos annos de todas as
-affeições e carinhos, e voltam ao seu lar depois de longa e dolorosa
-penitencia. O recem-vindo sentou-se n'uma tosca pedra que estava perto
-de Miguel, pousando ao lado o pobre saquito, que era a sua riqueza. O
-penoso suspiro que do peito lhe sahiu ao descançar, condensava, de
-certo, uma vida aspera de soffrimento e exprimia talvez o desejo d'um
-periodo de socego, ainda que fosse na sepultura. Quando Luiza veiu de
-dentro de casa, com a malga, branca de jaspe, cheia d'agua limpida e
-fresca, elle tomou-a nas duas mãos, emborcou-a com satisfação, tendo no
-fim de beber um respirar de saciedade. Os seus olhos amortecidos pela
-desgraça, tiveram brilho carinhoso e contente ao restituir a malga.
-Agradeceu este favor com um sentimento que lhe veiu do fundo d'alma:
-
-—Deus-lh'o pague!—disse.
-
-Conservou-se silencioso durante muito tempo, a cabeça curvada para o
-peito, como um vagabundo que na alma procurasse o seu destino. Os dois
-velhos contemplavam-no compadecidos: nos seus corações amoraveis e bons
-apparecera um sentimento de infinda piedade. Não tinham elles tambem um
-filho, que assim andava perdido no mundo, vagueando por longes terras? O
-bem que elles, a este desconhecido, podessem fazer, outrem, no ponto
-distante onde estivesse Luiz, o retribuiria, soccorrendo-o se elle
-necessitasse. Com o instincto dos que são captivos do infortunio alheio,
-advinhavam que junto d'elles estava um infeliz precocemente avelhentado.
-Não procuravam, com perguntas desnecessarias, perturbar-lhe a paz que
-elle parecia ter encontrado sentando-se n'aquella pedra, a olhar
-meditativamente o chão do quinteiro. Adivinhavam-lhe, pelo aspecto,
-soffrimento que na sua vida obscura e modesta, elles nunca tinham
-sentido. Por esse mundo fóra, as desgraças engrossam, ás vezes, tão
-rapidamente, como o ribeiro que passa no fundo da aldeia, quando recebe
-as torrentes pluviaes, vindas a roncar pelas encostas e pelos caminhos.
-Que significaria o silencio dolorido d'este desgraçado, que nos restos
-do seu vestuario deixava perceber signaes de que no mundo tinha sido
-alguma coisa mais do que aquillo que ora apparentava?!...
-
-O viandante levantou lentamente a cabeça. Primeiro fixou a vista
-agradecida, amoravel e sem reservas nos que lhe tinham morto a sêde.
-Apesar da estranheza d'aquelle semblante, não causou aos dois velhos
-impressão, de que fosse o de algum doido que andasse desgarrado pelos
-caminhos da aldeia. O seu olhar era absorto, mas tranquillo e bondoso.
-Ainda que estranho ali, não lhes causava receio, nem pavor. Ao
-contrario: do imo da sua sensibilidade subia-lhes, a favor do misero, um
-formoso grito de benevolencia e compaixão. Aquella testa sulcada pela
-desventura, o rosto macerado pela desgraça, dizia alguma coisa de
-pacifico e sublime, como a luz sahindo de entre nuvens caliginosas no
-meio de rude tempestade. Os dois septuagenarios reconheciam que a
-apparição de tal infortunio estava tomando sympathico logar na sua
-pacifica existencia... «Este desconhecido —pensavam—ainda que em
-qualquer tempo de sua vida, tenha sido mau e perverso, agora só parece
-ser desventurado!» Isto originara-lhes no seio a mesma piedade que
-sentiriam se áquella casa se viesse recolher um lobo ferido, ou mesmo,
-se um abutre lhes cahisse exanime junto da capoeira de que fôra o
-flagello. Esses animaes, tantas vezes escorraçados com alaridos de
-colera, teriam elles animo de os acabar, quando os reconhecessem
-indefezos e supplicantes nas vascas da morte?! Não: o findar da vida
-merece sempre compaixão; a desgraça redime de todas as culpas perante os
-corações bons e sensiveis.
-
-
- V
-
-
-Mas este pobresinho não era perigoso e não poderia nunca ter sido
-perverso: tamanha era a uncção maguada e soffredora que exprimia o seu
-rosto retalhado pelas rugas, o seu olhar extincto pela longa miseria!
-Havia n'elle tanta meiguice e affecto que só lhes provocava misericordia
-e caridade. Se o pedisse não lhe recusariam agasalho em sua casa. Que
-valia um logar junto da lareira, uma manta para cobrir os lassos membros
-sobre um pouco de colmo, uma tigella de caldo para aconchegar e
-fortalecer o estomago? De mais tinham elles, sem pessoa a quem o
-legassem. Uma obra de misericordia, offerecida por intenção d'aquelle
-que lhes dera o bem-estar de que gosavam, era acto meritorio que lhes
-consolaria o espirito e teria certo apreço perante Deus. Uma voz
-interior affirmava-lhes que ali estava um infeliz digno de piedade: e
-sem muito saberem porque, ia-lhes dispertando sympathia o sorriso lento
-que na sua expressão se abria, á maneira que contemplava os dois velhos,
-que examinava a casa toda caiada de fresco, a latada que cobria o
-quinteiro, e o saudavel aspecto dos campos da propriedade em redor. A
-horta, ali mesmo ao lado, estava opulenta de couves e grellos; as
-borbulhas das videiras principiavam a engrossar; a temperatura era
-tepida e carinhosa; o misero parecia respirar, n'este ar, felicidade
-nova e paradisiaca. Similhava um cego, desde muito privado do goso da
-vista, que readquirindo-a de surpreza, entrasse gradualmente n'um
-periodo de enthusiasmo lento; ou então, o homem que recolhido, por
-longos annos, em lugubre masmorra, fosse restituido á liberdade e á luz
-durante um somno, achando-se incredulo pela ventura reconquistada.
-
-Este silencio demorado, e o demorado exame que o estranho estava fazendo
-de tudo quanto em volta se via, principiava a enredar em pensamentos
-vagos Luiza e Miguel. Primeiro passeara em volta com os olhos do corpo;
-mas depois, uma alegria crescente, lhe fôra desabrochando no rosto
-escalavrado, a custo, como rebenta a bonina em terreno duro. Os velhos,
-apesar de suggestionados por aquelle todo de bondade e infortunio, houve
-um instante em que na mente lhes passaram receios, julgando-se agora na
-presença d'um louco. Pois que podia significar esta mudez, quasi
-familiar, da parte de quem ali era estranho e entrara sob pretexto de
-pedir uma sêde d'agua? Não se atreviam a interrogal-o, pois grande é a
-timidez da decrepitude. Annos antes já tudo estaria aclarado: pois que
-Miguel sempre fôra homem de grande desembaraço e não teria papas na
-lingua para perguntar quem era e o que queria do mais. Agora, porem, a
-edade e o corpo paralytico influiam no acanhamento do animo. Os
-septuagenarios entreolharam-se, volvendo ambos, depois, a vista para o
-peregrino ao qual Luiza disse:
-
-—Parece gostar muito d'este sitio...
-
-—Oh! muito!—exclamou. Tudo isto lhes pertence?
-
-Circumdou de novo o olhar pelo eido e pelos campos, extendendo-o até ao
-pinhal que se erguia n'uma ligeira collina.
-
-—Em quanto Deus quizer—respondeu Miguel. E vocemecê d'onde é? para onde
-vae?
-
-O desconhecido teve no rosto uma expressão de infinita paz e
-tranquilidade, que não deu idéa clara do seu pensar e destino. Sorria
-ligeiramente, com a incomparavel doçura d'uma creança a sonhar. Olhou os
-dois como se olham amigos e, Miguel, animado por esta expressão
-confortativa, ponderou:
-
-—Sim; porque vocemecê ha de ter por força uma terra...
-
-—Tenho, tenho uma terra...
-
-E ficou attento para o chão inculto do quinteiro, como se sentisse
-difficuldade em designar o ponto do globo, onde essa terra se talhava.
-
-Recahiu no silencio carinhoso que até ali conservara, mas com rosto tão
-aberto em bondade que, de todo, deixou de causar receios. Examinou a
-limpeza da casa em que os velhos moravam, e pensou na conformidade de
-existencia que dentro d'ella se passaria. Reinava, decerto, n'aquelles
-entes, a feliz paz da consciencia; desconheciam as perturbações agitadas
-da vida das cidades. Não pensavam em alardes, nem tinham ambições:
-talvez durante todos os seus annos, nem uma só noite tivessem abandonado
-aquella ditosa morada. Quem sabe o que o estrangeiro estaria calculando
-na sua mente, que pensamentos de felicidade o estariam a encantar!?...
-Talvez, depois de vida desventurosa, viesse encontrar n'aquelle quadro
-simples o primeiro refrigerio para as suas dores, a primeira idéa clara
-do que é a ventura. Os pacificos septuagenarios, pareciam comprehender,
-que o seu viver ditoso estava reconfortando a alma do misero que tinham
-na sua presença. Além de não ser rasoavel negarem-lhe um tal balsamo,
-encantava-os que assim fosse. Por isso, orgulhosos da sua modestia,
-deixavam que o homem andrajoso tudo apreciasse, sorridente e sem inveja.
-A casa juncto da qual se encontravam tinha aspecto de nova, as janellas
-com vidraças viam sobre a latada do quinteiro, o alpendre, debaixo da
-varanda deitava para o lado do caminho, uma escada exterior mostrava
-ingresso ao andar de cima—accrescente feito para a chegada de Luiz, se a
-Deus prouvera, guial-o um dia para ali. Como fossem inimigos de
-grandezas, apesar da casa assim reformada, nunca abandonaram a parte
-terrea conservando ahi a sua moradia. A cosinha, á porta da qual
-estavam, era a mesma em que viveram com os filhos; ao lado havia o
-quarto soalhado em que dormiam agora, como sempre. As transformações
-n'este pavimento consistiam em que o que d'antes fôra côrte de gado
-servia agora para adega, salgadeira e casa de recolher a lenha no
-inverno. Ao fundo d'um telheiro, armado cá fóra, é que guardavam as duas
-juntas de nedios bois, os mais bellos do logar. O chiqueiro do porco e a
-capoeira das gallinhas ficavam encostados ao muro, rente com a casa.
-Tudo designava certo bem estar, conforto, e até opulencia, dentro da
-modestia de camponezes.
-
-Para onde iria o infeliz, que tinham deante dos olhos não o sabiam,
-visto que elle o não quizera dizer; mas o que sentiam, com a intuição
-das almas simples, pouco habituadas a luctas, é que sendo a sua figura,
-quando o viram entrar a cancella, a d'um infeliz retorcido pela miseria,
-agora, ao fim de pouco tempo, e depois de reconfortado na contemplação
-de todas aquellas coisas bem arranjadas, parecia mais alliviado do
-soffrimento que lhe alquebrava o corpo e a alma. Era outro, tinha-lhe
-feito bem o repouso sobre a tosca pedra, refrigerara-o a malga de agua
-limpida, consolara-o o aspecto feliz dos velhos que estavam ao sol,
-esperando, n'este santo domingo, a hora do jantar parcimonioso, apesar
-de na panella haver carne e salpicão que elles ambos comeriam regalados,
-agradecendo a Deus tamanho beneficio na velhice. Ao quinteiro chegava o
-suave odor do caldo gordo e fumegante, e não tardaria que Luiza se
-levantasse para ir á adega buscar o excellente vinho, para o beber de
-parceria com o seu homem e pela mesma infusa. Como elles seriam felizes,
-se n'esse bello e glorioso dia podessem compartilhar com o seu Luiz, que
-uma voz intima lhes dizia ainda viver, este bom jantar! Se tal
-felicidade lhes fosse dado poderem gozar morreriam contentes, não
-duvidando de que iriam direitinhos para o céu!
-
-
- VI
-
-
-O descanço sobre a pedra tosca; o sabor da agua com que o tinham
-alliviado da sede do caminho; o banho de luz e tranquilidade em que todo
-o seu ser se mergulhara durante longos minutos; e principalmente a
-ventura que adivinhava na existencia sempre egual d'aquelles casados de
-tantos annos, haviam transformado em pouco tempo o aspecto do infeliz.
-Sorvia deleitado o ar que aqui se respirava, sorriam-lhe os olhos na
-contemplação d'esta paizagem carinhosa e melancolica, desfaziam-se-lhe
-as rugas da face ao renascer-lhe na alma a alegria que, por certo,
-n'elle se finara havia muito. Como Miguel o visse mais tractavel e
-familiar no aspecto, ponderou:
-
-—Vocemecê estava tão moido, que decerto vem de muitissimo longe.
-
-—Oh! de muitissimo longe!...—repetiu o forasteiro com accento de grande
-amargura.
-
-—Talvez d'essa Lisboa!...—entendeu o paralytico.
-
-—Muito mais para lá!...
-
-E fez um gesto largo, d'uma amplidão infinita, acompanhando-o com um
-olhar que fôra até aos confins do mundo.
-
-—Do Brazil?—indagou Luiza com ancia e soffreguidão no rosto inquieto.
-
-Um simples aceno affirmativo de cabeça, deu resposta á pergunta. E logo
-os rostos dos dois septuagenarios se alegraram, como se em crepusculo
-matinal vissem surgir d'entre as penedias o sol nascente. Ao mesmo tempo
-tiveram a mesma lembrança. «Quem sabe se este desconhecido nos poderá
-dar noticias do nosso Luiz?!...»—pensaram. Porém, antes de o inquirirem,
-sustiveram-se n'este pensamento triste: «Como se pode voltar do paiz do
-oiro, da opulencia e da ventura, assim pobre, mal trajado e n'um aspecto
-tão miseravel e desvalido!» E Luiza, compadecida, considerou com as
-lagrimas a rebentarem-lhe:
-
-—Então é que não foi feliz, por lá... Nem todos o podem ser...
-
-—Nem todos... nem todos...—disse o estrangeiro, apparecendo-lhe no rosto
-um fulgor de alegria velada por amargura.
-
-—E conheceria por lá o nosso filho?...—perguntou a velha.
-
-—O seu filho! Tem um filho no Brazil?—indagou, o mal trajado, n'uma voz
-que se esforçava por ser corajosa e serena.
-
-—Temos—esclareceu Miguel inclinando-se para o interlocutor. Chama-se
-Luiz da Silva; mas lá puzeram-lhe o nome de Luiz da Tóca, por ser o nome
-d'este logar em que nasceu. Foi e nunca mais voltou—concluiu o velho,
-por sua vez, com os olhos rasos d'agua.
-
-Um rubor de incendio subiu á face do desconhecido, que com fingido
-esforço, como de quem se recorda disse:
-
-—Luiz da Tóca... Luiz da Tóca... Lembro-me muito bem; vivi muito com
-elle, e somos amigos.
-
-No primeiro momento, os velhos quasi se julgaram ludibriados com esta
-resposta: tão grande era a inverosimilhança do que escutavam! Pois não
-haviam dado resultado as instantes e repetidas diligencias do cura
-Carvalhosa, para descobrir o paradeiro de Luiz, e o acaso trazia-lhes ao
-pé da porta uma testemunha, que em tudo os podia esclarecer! Porém, a
-crença de seus corações n'uma Suprema Vontade, providencial e divina,
-era forte, e não duvidaram de que Deus e os santos com quem se tinham
-apegado, pudessem mais do que o virtuoso sacerdote. O accento de
-sinceridade com que aquellas palavras foram ditas, a expressão de
-bondade e espontanea satisfação do rosto do homem que tinham deante
-d'elles, excluiam a possibilidade de qualquer ignobil mentira. O velho
-Miguel, apesar de meio paralytico, logo se abordoou ao seu pau, para
-erguer o corpo doente, com a energia dos antigos tempos; mas a commoção
-tornava-lhe insufficiente o esforço. Mesmo sentado ainda poude dizer:
-
-—Pois, o senhor, é que já não sae d'esta casa. Se conhece o Luiz, se é
-seu amigo, fica aqui comnosco para nos ajudar a saber d'elle e a
-encontral-o.
-
-Luiza, apesar de a lingua se lhe recusar a exprimir tudo quanto lhe ia
-na alma, attonita como estava, perguntou em voz tremula:
-
-—E em que terra encontrou vocemecê o nosso filho? Sabe onde estará
-agora?
-
-O estranho não respondeu logo. A sua phisionomia denunciava excepcional
-perturbação de contentamento, que os velhos não podiam apreciar por
-causa da nevoa de lagrimas que tinham nos olhos. Approximando-se, porem,
-dos dois, que uniu no mesmo abraço, disse soluçante:
-
-—Seu filho está aqui, meus queridos paes!...
-
-E passada que foi a primeira onda de alegria accrescentou:
-
-—Mas venho muito pobre! Só possuo estes farrapos que me cobrem. Se
-soubessem quanto tenho soffrido!
-
-—Pobre!—bradou Miguel com a sua antiga energia, sahindo-lhe a voz do
-peito, como o ronco d'um trovão do interior d'uma nuvem. Então de quem é
-tudo quanto aqui temos? Não fostes tu que o ganhastes, homem!?
-
-E n'um gesto do seu braço revigorado pelo acontecimento, mostrava a
-riqueza que havia: a casa afidalgada, a horta abundante, os campos
-relvados que se extendiam para além, as videiras em promessas de
-rebentação, e o bello muro que circumdava a quinta todo caiado de novo.
-
-Luiza, voltando os olhos ao céu, pronunciou com as lagrimas a
-correrem-lhe em fio:
-
-—Nossa Senhora do Amparo ouviu as minhas rezas. Já podemos morrer em
-paz.
-
-
-
-
- CRESCE O MAR!...
-
-
- (a Antonio Candido).
-
-
-Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono! Azul amortecido no ceu e
-a briza leve como o pensamento a perpassar na superficie da areia e a
-arripiar-se nas penedias que debruam a praia. Baixamar socegado!
-Balançam-se nos ares as brancas azas das gaivotas, que vão para o norte;
-e as velas dos barcos dos pescadores parecem ao longe outras gaivotas a
-emergir das aguas. Está deserto o areal; principia a nascer o marulho do
-vago infinito, que vem rolando á superficie como voz cariciosa e meiga.
-Avoluma-se de momento para momento, uiva, no começo como um leão
-pequeno, principia a dar côr ao silencio, que desce com a tarde lá do
-infinito céu. O magestoso sol fulgura, inclinando o facho de luz sobre
-as aguas; a poeira d'oiro que o cerca, forma-lhe a fofa cama, onde
-repousará durante a noite.
-
-Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono, que, gerando sensações
-amoraveis em toda a natureza, attrahiu duas tenras creanças á admiração
-do mar argentado, e do mysterio formado de tranquillidade e luz, que no
-ar pairava. Eram dois irmãos, filhos de uma viuva, cujo marido o mar
-escondera para não mais lh'o restituir, e que morava em frente das
-ondas, na esperança de ainda ouvir a voz que a enamorara. O rapasito
-teria sete annos, e a pequena talvez cinco... não mais de certo.
-Enlevados na serena paz do universo, os leves corações palpitando de
-satisfação intima, viviam juntos nas sublimes regiões do absoluto, os
-innocentes, olhos pregados no reverbero prateado das aguas, os ouvidos
-attentos ao marulho cantante que os chamava como se fôra a voz de seu
-pae. Não era a primeira vez que na praia se encontravam escutando
-aquella voz suave, d'um rythmo dominante pela dolencia; e até já em
-muitas occasiões, a carinhosa mãe os prevenira contra as incontestaveis
-maldades, que as ondas encerram. Porem todo esse pavor artificial se
-tinha apagado na convivencia do mar, essas ondas que de longe vinham
-crescendo em ameaças, desfaziam-se impotentes contra as penedias
-dentadas da praia e a espuma branca e leve, como uma illusão, vinha-lhes
-lamber a elles, humildemente, os pequeninos pés enterrados na areia.
-
-N'essa tarde calma e deleitosa, emquanto a mãe se demorava na sua labuta
-de camponeza, Tone e a Zefa, contemplavam o mar, o pavoroso mar que lhes
-prendera o pae, e reconheciam n'aquella tranquillidade bondosa um amigo
-que lhes sorria para os namorar. Mostrava-se carinhoso e terno, as aguas
-claras deixavam vêr no fundo branco as mais bellas das suas joias:
-seixos semelhantes a ovos de pomba; pequeninas conchas vazias e cavas,
-como petalas de rosas; algas multicores e rendilhadas; molluscos boiando
-agarrados ao musgo das penedias uns, outros presos á pedra formando com
-ella um só corpo inabalavel e insensivel. O anteparo dos rochedos
-negros, que elles costumavam respeitar nos dias de nevoeiro como
-phantasmas que se erguessem do abysmo, e que nas noites tempestuosas ali
-permaneciam afrontando impavidamente o perigo, n'este dia e n'esta tarde
-calma e deleitosa, eram serenos e fortes arrimos que os defenderiam
-contra as ciladas das ondas. As repetidas provas que tinham da sua
-estabilidade e solidez afoutavam-nos a consideral-os como protectores
-devotados. Pois não era instavel a luz que desapparecia, o céu que
-desmaiava, as aguas que se remechiam, a movediça areia que cedia ao peso
-dos seus pequeninos pés? Era. Só a rocha, a rocha escura e aspera, lhes
-merecia confiança; só ella reconheciam como bastante forte para resistir
-ao mar e á furia das tempestades. Para aquellas consciencias nascentes e
-timidas as pedras feias eram arrimo unico e protecção contra os receios
-escondidos nas palavras de sua mãe, que sempre procurara inimisal-os
-contra o mar.
-
-No areal extenso, branco como uma longa teia de linho, Tone levava Zefa
-pela mão. Principiava o sol a avermelhar no horisonte. Mais uma vez os
-seus inexperientes olhos soffreram o singular deslumbramento de vêrem no
-meio da gloriosa chama, os anjos do paraiso com toda a sua bella
-legenda; era para lá d'aquella entrada em fogo que existia o céu, o
-logar escolhido para o Maravilhoso e Innarravel. Assim o indicou Tone
-com a magnificencia do seu saber:
-
-—Olha Zefa: é o céu onde estão os anjos de Nosso Senhor.
-
-A pequenita ficou mais uma vez presa na contemplação da patria
-celestial. O seu olhar azul prolongou-se para o infinito, n'uma visão
-sublime de candura. O seu imaginar via todas as maravilhas na
-athmosphera subtil e impalpavel, no doirado da luz, na angelical
-brancura de figuras meigas como a sua alma innocente.
-
-—Como é lindo!—exclamou Zefa.
-
-Foram caminhando, pela branca areia, as mãos reciprocamente apertadas,
-sentindo n'este contacto amoravel realidade de existencia e protecção
-mutua. Dirigiram-se a um rochedo que se lhes offerecia em suave e branda
-subida e d'onde podiam intemeratamente gozar tudo que os maravilhava.
-
-No mais alto d'essa pedra escura, roida pelas ondas, a grata aragem
-agitava as leves camisinhas de pobre linho com que cobriam a sua nudez.
-Como o dia estivera calido, sentiam agradavelmente a benefica sensação
-de frescura passar-lhe nos cabellos, a amaciar-lhes a pelle. Do alto da
-enorme penedia, que lhes era pedestal, lançavam olhos ao largo e
-aspiravam o cheiro acre e forte que vinha das aguas que sussurravam.
-Impavidos e cheios de toda aquella grandeza que se lhes impunha,
-reconheciam-se enlevados nas maravilhas, que os sentidos percebiam nas
-ondas e no céu. E Tone disse com effusão:
-
-—Olha o mar Zefa! É ali que está o pae!
-
-Apontou vagamente para esse infinito d'Além, que o olhar azul da
-pequenita abraçou n'uma sombra de tristeza e saudade. Havia na sua
-expressão de limpidez seraphica, alguma coisa de dôr ou meiga ternura,
-que se espalhou pelo ar fóra escurecendo-o. Era ali que estava o pae! E
-o que seria _ali_?!...
-
-O sol semelhava fogo voraz que incendiasse o céu. Parecia um instante de
-perigo, tremendo para o universo, esse em que a immensa chamma irradiava
-do horisonte. Só o grande poder de Deus, com um gesto formidavel e
-omnipotente, poderia extinguir o brazido ameaçador! Se assim não fosse,
-o que poderia acontecer á terra, ao mar e ás estrellas se essa cólera de
-lume se estendesse a toda a amplidão infinita? Seria uma grande desgraça
-reduzir a Nada tudo quanto era bello e grande e os maravilhava
-enchendo-lhes a alma de grandiosas aspirações. A briza agitava-lhes as
-camisinhas de grosso linho, os cabellos incultos fluctuavam e as duas
-creancinhas viveram um momento em grande terror!
-
-Porem a intervenção providencial manifestou-se: o que era incendio
-foi-se apagando, a luz tornara-se d'um deslumbrante alaranjado primeiro,
-depois d'um roxo terno que franjava o azul. Uma nuvem que ao longe
-estava suspensa sorria-lhes do alto com o seu roseo carinho. Parecia um
-resto de tunica d'anjo, que andasse perdida no ar.
-
-Tamanho encanto sentiam as duas creanças, que nem davam pelo marulho das
-ondas, que já se agitavam perto. E quando os seus bellos olhos sobre as
-aguas desceram, entertiveram-se a contemplar o redomoinho variado que
-ellas faziam, subindo lentamente até ao sopé do rochedo, para depois se
-retirarem com humildade. Havia n'isto carinho e não cólera; a espuma,
-tão bella e tão branca, vinha tremendo sobre o dorso da vaga até se
-desfazer; as algas vermelhas, verdes e azuladas fluctuavam dormentes
-como n'um berço; os lindos seixos que formavam mosaico no fundo
-encrespavam-se, como se fossem de cera molle. Muito unidos, encontrando
-no corpo um do outro mutuo apoio, observavam interessados aquelle
-crescer do mar, posto que muitas vezes tivessem visto um tal phenomeno
-que sempre os encantava. A onda é constantemente nova: nunca tem a mesma
-força em dois momentos successivos, nem o seu enrolar é de forma egual,
-em duas d'estas irmãs gemeas nascidas par a par; o facto de se fazer e
-refazer perpetuamente dá a sensação d'um inicio de vida que surge. Por
-isso Tone e Zefa, mudos e risonhos, vendo uma vaga avolumar-se sobre
-outra vaga, consideravam quanto havia de carinhoso e amigo n'estes
-beijos da espuma á penedia onde estavam. O marulho grosso que vinha lá
-de longe inchando sempre, até rebentar na praia, entorpecia-os
-deliciosamente, deixando-lhes nos ouvidos uma ressonancia plangente. Era
-musica suave e rara, cuja melancolia se casava de modo admiravel com
-esse gradual escurecimento do céu, da terra e do mar, que os envolvia
-como n'um mysterio.
-
-A tenue sombra que vinha do horisonte em redor, diluida em tenue
-orvalho, cercava-os d'uma atmosphera de goso triste que lhes desmaiava a
-expressão por sentirem muito.
-
-Crescia o mar, a luz do sol apagava-se, já o pestanejar das estrellas no
-céu apparecia. Perto, mui perto, conheciam o bater das ondas na base do
-rochedo e o galgar das aguas pelo areal acima. Aquellas pequeninas almas
-voavam na amplidão, como serenas e doiradas nuvens, que levassem todas
-as celestiaes chimeras que haviam sonhado. O que os seus olhos ainda
-viam, e o que os seus ouvidos percebiam eram coisas que lhes embalavam o
-entendimento levando-o para mundos sidereos e encantadores. Esse gemer
-da sombra que escurecia o mar immenso, o rebrilhar da abobada celeste na
-grande festa da noite outomnal, faziam-lhes caricias no cerebro, sem
-lhes causar pavor. Esquecidas as existencias terrenas, só viviam na
-amplidão infinita, as pobres almas ingenuas!...
-
-Os seus corpos sem peso, vagueavam suspensos no mundo ethereo; a
-imaginação alargava-se-lhes como o fumo do incenso ao evolar-se dos
-thuribulos sagrados na festa paschal. Iam intemeratamente por essa
-amplidão do mar, fortalecidos pelas idéas de mysterio com que a noite
-estrellada seduz as mentes infantis.
-
-A sombra espessa cahira pesada e egual sobre a rugosa superficie das
-aguas, dissolvendo os rochedos da praia, esfumando, em tenue esbatido, o
-terreno onde estava a casa de moradia. Encantava-os a phosphorescencia
-das ondas, enfeitiçava-os o lacrimar argenteo do ceu, sentiam os
-corações subir em extasis... De todas as realidades só a brancura da
-areia percebiam estendida como um lençol e o ruido do mar que regougava
-a seus pés. Os ouvidos, porém, já de muito habituados a este som tantas
-vezes ameaçador, quantas muitas carinhoso e meigo, não presentiram que
-elle lhes rugia de todos os lados. Estavam cercados pelas aguas em
-revolta e só d'isto tiveram a primeira suspeita, quando pelo rochedo
-subiu uma onda, cuja espuma em flocos lhes voou para os cabellos
-incultos que fluctuavam ao sabor da brisa. A pequenina Zefa soffreu um
-rebate de susto, e agarrando-se mais fortemente a seu pequeno irmão,
-gemeu receiosa:
-
-—Tenho medo!...
-
-Tone despertou do sonho de poeta em que vivera! Como tivesse mais dois
-annos, sentiu o peso das suas responsabilidades. Era escuro e o bramido
-erguia-se energico e temeroso. Lembrou se então de descer da rocha e
-fugir ao perigo; mas, circumvagando o olhar inquieto, logo reconheceu o
-bloqueio que o mar lhes estabelecera. Titubeante, mas querendo fingir
-coragem, disse:
-
-—Não tens medo Zefa. A gente vae-se já embora...
-
-Que especie de soccorro esperaria Tone, sabendo que todos os dias
-aquelles rochedos da praia se escondiam nas aguas, amedrontados pela
-furia do protentoso mar?! Talvez o não soubesse dizer; porém o coração
-esperançado, sempre ouvira que, para lá da abobada celeste, existia o
-omnipotente Deus que valia aos desgraçados nas horas dos grandes
-infortunios. Um acto simples do seu querer, manifestado sobre o mundo
-n'um gesto formidavel, seria logo obedecido pelos mares e pelos montes,
-pelas estrellas e pelo sol! Era só apegarem-se com elle, levantarem o
-pensamento até junto do seu throno celestial, todo oiro e luz, e ali
-supplicarem cheios de vehemencia e fé!
-
-Precisavam fazer um grande esforço, pois tinham de ir para além de tudo
-quanto se via no espaço infinito. E logo que o Pae-do-céu os ouvisse,
-aquelle mar enfurecido se tornaria bonançoso, a sua voz horrenda seria
-apenas um cantico, as aguas recuariam mansas até os confins do mundo, e
-elles veriam desenrollar-se diante dos seus pequeninos pés uma estrada
-singella e vulgar, que os conduziria ao seu casal. E o coração
-amargurado e inquieto de Tone, tumefeito de consoladora esperança, voou
-pelos espaços, em quanto cahia supplice sobre a rocha erguendo as mãos e
-aconselhando:
-
-—Resa muito, ao Senhor, Zefa!
-
-A pequenita ajoelhou como elle ajoelhara; pôz as mãosinhas, fitou nas
-estrellas os olhos cheios de lagrimas. Não sabia ainda resar, mas os
-seus labios delgadinhos imitavam n'um anceio as palavras fervorosas que
-seu irmão dizia alto: «Padre nosso, que estaes no ceu...»
-
-O mar não se apiedava. Os seus bramidos eram violentos e colericos. De
-onda a onda as aguas subiam mais. A todos os momentos os corpos lhes
-eram salpicados de espuma e as pobres camisinhas de linho grosso já
-estavam encharcadas. Zefa, d'um primeiro lamento timido e perigoso, foi
-subindo a um pranto sentido. Chorava copiosamente em gritos, mas a
-vontade energica de Tone ainda procurava sustental-a contra esta
-fraqueza. Sem uma lagrima, sem uma ruga de pavor no rosto e com voz
-clara animou-a:
-
-—Cala Zefa, não chores. O pae está ali—(apontou o vasto oceano)—e vem
-buscar a gente para irmos todos para a nossa mãe.
-
-Acreditaria Tone, n'este providencial soccorro?! A furia do mar
-augmentava de instante a instante, as vagas ameaçavam-no de mais perto,
-elle continuava com a irmãsinha estreitada contra o seu corpo valoroso.
-Ambos esperavam, com os cabellos empastados e as camisas colladas á
-pelle, que da infinita bondade do céu viesse o soccorro que os
-restituisse aos braços de sua mãe. Do mysterio insondavel da noite é que
-viria a voz salvadora, ou fosse na vontade protentosa de Deus abrandando
-a inclemencia do mar, ou na força amorosa de seu pae cuja sombra tantas
-vezes conheceram a vaguear sobre os rochedos e sobre as aguas!...
-
-E sua mãe? aquella boa alma consoladora que os aconchegava ao seio nas
-crises das doenças?! Zefa entregava-se á protecção de Tone; este, de
-animo varonil, alguma coisa via surgir ou do ceu omnipotente, ou do mar
-mysterioso, ou da terra sempre querida.
-
-Da terra querida chegou-lhes realmente o primeiro som d'uma voz
-fortalecedora e meiga, quando estavam no maior desespero.
-«Tone!»...«Zefa!»...—dizia um grito sahido do medonho seio da noite.
-Havia n'esse grito mais desespero e mais lagrimas do que furia no
-bramido do mar, e gottas d'agua nos seus abysmos insondaveis. Era a voz
-da Mãe que procurava seus filhos na praia e que no meio d'angustias os
-pedia á immensa escuridão. Aquelle som carinhoso e desesperado chegou
-aos ouvidos dos apavorados innocentes, quando os seus pequeninos pés já
-se mergulhavam na agua, que recuando mais uma vez pareceria arrependida
-da propria crueldade.
-
-«Mãe!... Mãe!»...—clamaram tranzidos de medo, com o ultimo vislumbre de
-esperança posto na voz imprecativa e meiga, que atravessara o medonho
-falar das ondas. Ouvil-os-hia a desventurada? Parece que sim, por certo
-guiada pelo coração, pois que n'um fugaz momento de calmaria clamou com
-mais força ainda:
-
-—Onde estaes filhos!...
-
-Elles responderam em desfalecido choro, mas vehementes com a energia do
-desespero:
-
-—Aqui mãe!...
-
-Sem duvida aquelles olhos d'amor adivinharam o lugar; e o perigo, que
-era eminente. Para os filhos se dirigiu, como uma loba, como uma leôa,
-energica, impetuosa, inconsiderada, guiando-se apenas pelo instincto que
-vinha do fundo das suas entranhas. Do rochedo onde os filhos estavam
-estreitados n'um supremo abraço, separava-a o mar que se balouçava
-dolentemente, crescendo a cada nova onda, ameaçando-a com dentes e
-garras sanhozas de tigre. Na limpidez do céu estrellado via os dois
-pequeninos corpos muito unidos, fortalecendo-se cada um na fraqueza do
-outro.
-
-A mãe, impellida pela energia da sua amoravel loucura, entrou
-resolutamente na agua animando as creanças com a palavra clara,
-encorajando-as com o denodado exemplo.
-
-—Esperae, esperae! Não vos atireis por ora, filhos!
-
-Suppunha ter ainda tempo de se approximar do rochedo e recebel-os nos
-braços para com elles fugir para o humilde tegurio. A frialdade da agua
-não lhe diminuia o calor do sangue em fervura, o impeto das ondas não
-lhe quebrava a força dos musculos, o terror do abysmo não a cançava.
-
-Ia avançando com prudencia, já immerso o corpo até aos hombros, os
-braços levantados para animar os filhos, com a sua approximação. Fazia
-todos os esforços de valor moral, para que elles acreditassem na
-efficacia d'aquelle auxilio. As criancinhas, silenciosas, com o terror
-vago nos olhos, percebiam o lento chegar d'aquella mulher fragil,
-sublimada por uma coragem indomita. Mas a valentia do mar augmentava de
-instante para instante. Quando a mãe sentiu que se ia afundar, atirou-se
-n'um arranco sublime contra as encapelladas ondas. Os filhos, por
-instincto, logo a imitaram para serem recolhidos n'aquelles braços de
-caricias. Estreitaram-se fortemente, uniram-se n'um supremo esforço;
-porem, a furia impiedosa do mar separou-os logo. Os corpos fluctuaram
-até que uma vaga soberba e altaneira os cobriu, envolvendo-os n'um
-sudario de espuma, levando-os para o negro abysmo, onde iam encontrar a
-sombra querida do pae que por lá vagueava.
-
-
-
-
- O GAMARRÃO
-
-
-Dia de finados, dia lugubre, dia triste!... Pelas oito horas da noute,
-dos lados de Serpins, sentiu-se grande reboliço. Muita gente a correr.
-Francisca, a criada do morgado, pedindo soccorro n'uma voz esganiçada.
-Seriam ladrões? pegaria algum fogo? armar-se-hia qualquer desordem?
-Ninguem o sabia. Para lá se dirigiam em tropel homens armados de
-roçadoiras, espingardas velhas e varapaus—todos n'uma attitude
-combatente, falando alto! O sacristão direito á torre para tocar a
-rebate, mulheres e creanças alarmando a villa correndo e gritando, os
-prudentes a fecharem as janellas para se não metterem em barulhos, nem
-servirem de testemunhas... era o que se via.
-
-Averiguou-se, por fim, que o morgado Gamarrão se encontrara
-repentinamente mal com uma colica, resultado de uma copiosa ceia de
-castanhas com geropiga. Homem sanguineo, rebolava-se pelo chão da
-cosinha como uma pipa, dava urros que nem um touro, os olhos
-esbogalhados rebentavam-lhe das orbitas. Dous valentes creados sopesaram
-o moribundo como um sacco de trigo e atiraram-n'o sobre a cama. O
-cirurgião Mendonça, seu velho inimigo, veio quando elle já nem respirava
-e dirigindo-lhe a ponteira da bengala, desprezou-o:
-
-—Resem-lhe por alma, se é que a tinha. Está prompto, não torna a dizer
-asneiras.
-
-O mulherio, em volta da Francisca, acompanhava-a na sua grande dôr,
-chorando com ella, consolando-a com delicadeza. Não se comprehendia o
-sentimento da rapariga por este mastodonte avaro e gordo, o mais
-embirrento homem das redondezas; porém ella, recusando consolações,
-explicou:
-
-—Não que era muito meu amigo. Tinha-me promettido umas arrecadas para o
-Natal. Ai! meu rico amo!
-
-Porém todos estavam certos que o morgado lh'as não daria. Era uma alma
-de presunto, como dizia o Mendonça, não tinha amor a vivente. Durante um
-longo periodo, talvez de trinta annos, ninguem soube que o Gamarrão
-escrevesse ou recebesse uma carta. Orphãos, viuvas e necessitados que á
-sua riqueza fossem buscar amparo, em vez de beneficio, tinham como certo
-o abraço selvagem d'este urso indomavel.
-
-O seu unico herdeiro vinha a ser um sobrinho residente em Trancoso. O
-administrador do concelho, o Menezes, promptificou-se a escrever ao
-collega de lá, participando-lhe o occorrido. Não se fez esperar a
-resposta telegraphica, dizendo que em breve chegaria a Serpins o dr.
-João Gama, sobrinho do morgado.
-
-Gente credula em demasia! Sem nenhuma especie de informações, logo se
-deitaram a imaginar este homem differente do fallecido. Que seria
-risonho e condescendente, esmoler e affavel.
-
-Prepararam-se para o receber, affectuosamente nos braços, logo que elle
-chegasse e resolveram consideral-o como o bemvindo.
-
-A tarde em que elle appareceu era lamacenta e chuvosa; as pessoas, as
-arvores e o ar mostravam-se fuscos e encebados. Quando viram o dr. Gama,
-julgaram assistir á ressurreição do tio—anafado, soberbão e de tal
-volume que lhe custou a sahir da diligencia. O cocheiro commentou:
-
-—Devia pagar dous lugares. Já em Braga foi a mesma chalaça, para o
-metter dentro.
-
-Porém, elle, ao encontrar-se fóra d'aquella velha arca de Noé, sentiu a
-ampla sensação da liberdade conquistada e mostrou-se sorridente,
-benevolo e acariciador. A primeira impressão foi boa e não desmanchou o
-que tinham presumido.
-
-O administrador, ao voltar de Serpins, affirmou na botica:
-
-—Temos homem. Talvez se faça alguma cousa.
-
-Ao que o Mendonça retorquiu, chupando o cigarro:
-
-—Elles são parentes, meu amigo!...
-
-Increparam-n'o pela duvida.
-
-—Então você não admitte...
-
-—Admitto tudo... mas não me cheira.
-
-Que deixassem a cousa por sua conta, pediu o Menezes, premeditando um
-golpe de grande politico. A questão era de geito. Todos comem palha, o
-caso é saber-lh'a dar. Má impressão não lhe fizera, e uma carta que
-recebera do collega de Trancoso, avivara-lhe as esperanças. E logo no
-dia seguinte de manhã apresentou-se em casa do _novo conterraneo_,
-palavras estas que pronunciou de modo a imprimir-lhes a ideia de
-naturalisação official, de uma especie de carta de cidadão, passada ali
-mesmo por elle.
-
-De tudo se fallou. O Menezes gostava de ostentar importancia—que tinha
-relações, que recebia muitas cartas, que em Lisboa falava com ministros.
-Sendo ferrenho regenerador, affirmava que o Lopo, o Barjona e o proprio
-Fontes o tratavam affavelmente e o recebiam em cavaqueiras intimas.
-Fazia gestos largos, conquistando, dirigindo, aconselhando.
-
-—Seu tio—disse depois de conveniente preparação—era muito estimado entre
-nós. Esmoler, chão no tracto, bondoso, o que se chama um coração aberto.
-A sua piedade e religião eram proverbiaes.
-
-O dr. Gama limpou duas lagrimas que lhe humedeceram as palpebras.
-Conservou-se silencioso por momentos e em tom compungido respondeu:
-
-—Agradeço-lhe as suas palavras, que sei verdadeiras. Conheci esse
-coração magnanimo, esse homem antigo, esse tio admiravel! Era tal como
-diz, um santo, um bom.
-
-—Julguei que nunca vira seu tio...—balbuciou timidamente.
-
-—Durante estes ultimos vinte annos carteamo-nos sobejamente. Os nossos
-corações uniram-se em bellas paginas, como só elle as sabia escrever.
-
-—Não o apreciei debaixo d'esse ponto de vista, mas sim na convivencia.
-Era um homem altamente religioso e não d'esses modernos que chasqueiam
-dos bons principios. Uma festa, aqui popularissima, á Senhora do Regaço,
-e que elle todos os annos fazia á sua custa, com pompa e luzimento,
-dera-lhe entre a nossa gente verdadeira nomeada de bom catholico. N'este
-ponto julgo adivinhar que v. s.ª não quebrará a tradicção...
-
-O dr. Gama concentrou-se. Tomou aspecto reflexivo, enguliu em sêcco duas
-vezes.
-
-—Se meu religioso tio—respondeu—a cuja memoria tanto devo, costumava
-fazer a festa da Senhora do Regaço, com pompa e luzimento, não serei eu
-que venha interromper essa piedosa pratica. Preciso, porém, consultar os
-seus livros e papeis secretos, para conhecer os precisos termos em que
-elle procedia, e da mesmissima fórma eu proceder tambem.
-
-—Deixaria elle apontamento a tal respeito?— —observou o duvidoso
-Menezes—Isso não offenderia a sua modestia?...
-
-—Não, de certo não. Conheço a fundo a alma de meu tio, pela nossa
-activissima correspondencia. Esses documentos e livros devem existir;
-estou certo que existem.
-
-Causou estranheza tal revelação. Teve, porém, o valor de alegrar e
-alimpar a embirrenta e sordida memoria do avaro Gamarrão. Quantas
-virtudes n'este mundo se mascaram de vicio, para não as offender a luz
-crúa da publicidade!—consideravam philosophicamente alguns homens
-meditativos d'aquella terra.
-
-Affluiu muita gente a visitar o novo morgado de Serpins.
-
-De aldeias proximas vieram, por caminhos pedregosos, varios
-ecclesiasticos e proprietarios montados nas suas eguas lanzudas.
-
-Falaram n'elle para deputado do circulo e d'ahi cada um tirava
-esperanças de engrandecimento pessoal. O provedor da Misericordia,
-animado pelo bom acolhimento que tivera o Menezes, procurou estar só com
-o homem, para lhe recommendar á generosidade o hospital, cuja vigilancia
-a seu cargo tinha.
-
-—Seu caridoso tio, meu velho amigo, era o melhor protector da Santa
-Casa. Nas festas do anno e no anniversario da morte da senhora morgada,
-tinhamos sempre presentes de roupas, gallinhas e dinheiro. Sem um tal
-auxilio não poderiamos viver, e ouso pensar que o seu continuador, o seu
-herdeiro, não nos faltará igualmente com a sua protecção.
-
-—Se meu caridoso tio—retorquiu solemne—cuja memoria tanto respeito,
-auxiliava o hospital d'esta terra com roupas, gallinhas e dinheiro, não
-serei eu que lhe desmereça a santa memoria, deixando de o fazer.
-Preciso, porém, de consultar os seus livros e papeis secretos, para
-conhecer os precisos termos em que essas dadivas eram feitas, para as
-continuar.
-
-—E haverá, porventura, esses documentos?
-
-—Decerto! Oh! quasi que o posso jurar! Eu conhecia-lhe profundamente os
-habitos.
-
-Depois d'isto os cavalheiros mais grados reuniram-se na idéa grandiosa
-de solemnes exequias por alma do morgado de Serpins. O presidente da
-camara, homem circumspecto e idoso, foi encarregado de levar este
-projecto ao regozijo funebre do dr. Gama, que se mostrou sensivel a taes
-provas de affecto, confessando:
-
-—É bem certo que a virtude sempre terá o condigno premio, digam o que
-disserem scepticos e maldizentes!
-
-O presidente ponderou:
-
-—Muito esperavamos d'este querido conterraneo. Ainda ha bem pouco tinha
-promettido auxiliar-me n'uma empreza difficil. Ha aqui uma rua que é a
-grande arteria da nossa circulação. Estreita n'um ponto, para se alargar
-é necessario demolir um pequeno predio, que pertencia ao senhor seu tio
-e presentemente a v. s.ª pertence. Promettera me elle que essa
-expropriação seria gratuita e a camara da minha presidencia, para
-perpetuar tão valioso feito, tinha resolvido dar á arteria em questão,
-que será no futuro uma especie de avenida, o nome do doador. A
-Providencia mandou outra coisa e agora é o nome de v. s.ª que está na
-nossa ideia...
-
-—Isso não! o nome d'elle é que será perpetuado! Se meu generoso tio, a
-cuja memoria tanto devo, havia decidido concorrer para essa obra pela
-fórma que me diz, não serei eu que deixe de completar o seu pensamento.
-Preciso, porém, lêr os seus livros e papeis secretos, para conhecer os
-precisos termos em que esse tio patriota desejava fazer a cedencia. Todo
-o meu empenho é cumprir á risca a sua vontade... para mim sagrada e para
-todos saudosa!
-
-—Modo de pensar e proceder verdadeiramente fidalgo! Receio, porém, que o
-senhor morgado não tenha deixado escripto... que...
-
-—Tudo escrevia. Durante mais de vinte annos eu conhecio-o no intimo. Era
-um verdadeiro litterato, para a familia. Eu tenho quasi a certeza, ia-o
-mesmo jurar sobre umas Horas, se necessario fosse, que meu chorado tio
-deixou alguma cousa a esse respeito... Escrevia tudo, mesmo tudo, não
-imagina! Ando em busca das suas memorias e vontades e hei de
-encontral-as. Já mesmo alguma coisa encontrei—o rol das suas rendas em
-divida. Escrevia tudo, creia...
-
- * * * * *
-
-O dr. Gama agradecera individualmente as homenagens prestadas ao nome do
-seu antecessor. Exequias magnificas; concorrencia de todo o clero do
-concelho; missa a tres padres; no côro rabecas, clarinetes e flauta; um
-sermão do afamado padre Carapeta, exalçando por ahi além as virtudes do
-fallecido!...
-
-Um poeta de veia funebre escreveu uma elegia que foi impressa e
-divulgada. Um tabellião e o escrevente da fazenda organisaram
-correspondencias para os jornaes do Porto, avultando os factos. N'uma
-terra pequena não se podia fazer mais e o juiz de direito, homem
-entendido, affirmou que nas grandes se não faria melhor.
-
-Todo o mundo julgava o dr. Gama contente e sazonado. Foi, porém,
-justamente depois d'esta solemne demonstração que elle começou a
-mostrar-se sibyllino e rijo. Não dava occasião a largas conversas, e as
-que não podia evitar, guiava-as para um campo generico, pronunciando
-sonoramente as palavras do alto do seu magnifico busto. Uma vez que
-manhosamente o levaram, n'uma especie de visita, ao predio a demolir
-para o alargamento da rua, elle deixou-se conduzir, achou magnifica a
-idéa, mas evitou fazer qualquer promessa compromettedora.
-
-Quereria este Gama faltar áquillo em que já concordara? Não podia ser...
-julgavam-n'o incapaz... era talvez feitio... No emtanto tornava-se
-urgente uma aclaração e para a obterem concertaram-se o Menezes, o
-Provedor e o Presidente, fazendo-se acompanhar do Mendonça, que era
-desembaraçado e não tinha papas na lingua. Vestiram se apparatosamente
-de sobrecasaca, chapéu alto, luva... tudo como o caso requeria. Entraram
-n'aquella sala humida e fria da casa de Serpins. As janellas davam sobre
-um laranjal, cujo verde escuro entenebrecia o ambiente. O tecto
-abahulava-se n'uma intenção de amplitude, concentrando a claridade. As
-cadeiras dormitavam aos lados, quasi em abandono!
-
-Palraram sobre todas as cousas—lavoura, demandas, politica,
-melhoramentos... e n'um a proposito bem aproveitado, o presidente pôz
-timidamente a questão:
-
-—V. s.ª bem sabe... Temos os nossos orçamentos a mandar para cima...
-Quereriamos alguma cousa de certo. As suas promessas...
-
-—Promessas, promessas... Eu por mim ainda não tive tempo de pensar a
-sério nos objectos das nossas ponderações...
-
-—Mas os nossos compromissos... a festa da Senhora do Regaço á
-porta...—insufflou o Menezes.
-
-O provedor accrescentou:
-
-—Os doentes necessitados não pódem esperar. V. s.ª comprehende...
-
-—Comprehendo, porém são cousas difficeis. Immenso que fazer! Uma casa
-grande e muito embrulhada na administração. Caseiros, rendas, generos,
-gados, o diabo! Ainda não pude... realmente ainda não pude...
-
-O Mendonça, que era azedo, esperto e embirrava com o morto, aproveitou o
-momento para desbravar o terreno e ao mesmo tempo lançar grossa mancha
-em todos os Gamarrões, pois fôra sempre seu parecer que este sobrinho
-equivalia á besta do tio. N'um tom que, á primeira vista, se poderia
-julgar inconveniente disse:
-
-—Meu caro senhor, cartas na mesa. Estes cavalheiros tiveram de v. s.ª
-solemnes promettimentos. Fundados n'elles fizeram declarações lá fóra e
-com todo o direito vêem exigir que v. s.ª cumpra a sua palavra. Ora eis
-ahi está o que é, sem mais refolhos.
-
-—A memoria de seu tio tudo merece—insinuou o presidente, para avelludar
-a dura arremetida do Mendonça.
-
-O sobrinho do Gamarrão atirando solemnemente com o busto para diante,
-ergueu a cabeça, e de palpebras meio cerradas, affirmou:
-
-—Se meu nobre tio, cuja memoria eu venero e acato no mais alto grau,
-costumasse fazer todas essas dadivas, que os senhores dizem, de tal
-teria deixado apontamento ou lembrança que ainda não encontrei. Porém
-que encontrasse ou que encontre, eu desde este momento solemne declaro
-que acho abominavel, (abominavel é o termo!) este procedimento de
-quererem influir no tribunal da minha consciencia! É cousa que se faça,
-o perturbar uma consciencia, seja ella de quem fôr, de um rei ou de um
-mendigo?! A um homem delicado e quasi timido, como eu, impôr-lhe um tal
-onus e n'esses termos! Não se poderá taxar de indelicadeza, de violencia
-e até de coacção!? Eu recuso e recuso terminantemente.
-
-Foi terrivel o assombro!
-
-Os quatro olharam-se sem comprehender! Depois das exequias, do sermão,
-da poesia, das correspondencias, sahir-se com esta! O Mendonça, azedo e
-ironico, atirando com a ponta do cigarro para o sophá, retorquiu em voz
-levantada:
-
-—Lérias, cantigas!... O que você não quer é dar nada, eis ahi está. Por
-força havia de ser um avarento como o jumento de seu tio. Pela cara se
-lhe tiram as obras. É um Gamarrão segundo.
-
-E retirando-se após os outros, que já se dirigiam para a porta,
-accrescentou:
-
-—Um alarve d'estes só se ensinava com meia duzia de lambadas. É o que
-elle merecia. Grandissimo pulha!
-
-O dr. Gama ficou estarrecido e apopletico. Que procedimento inaudito!
-Que formidavel canalha! Correu á varanda trasbordando de impetuosa raiva
-e vendo-os ainda no quinteiro gritou lhes:
-
-—Comedores! Nem vintem! Ouviram seus comedores!?
-
-O Mendonça voltou-se e n'um gesto de punhos cerrados aggrediu-o:
-
-—N'essas ventas, n'essa cara de cabaça é que devia ser! Grandissima
-cavalgadura!
-
-E todas as bellas esperanças e promessas foram poeira levada pelo vento
-d'esta discordia, derivada d'uma velhacaria dupla.
-
-
-
-
- O CALVARIO DO AMOR
-
-
- I
-
-
-Seriam duas horas d'uma fria noite de março, quando a cavalgada sahia o
-largo portal do Corcovado, em direitura á egreja da freguezia, que
-ficava a uma boa hora de distancia.
-
-A noiva, joven e formosa, com vestido de seda clara semeado de florinhas
-azues, montava soberba mula, ajaezada á hespanhola e coberta de valioso
-teliz de veludo encarnado com brilhos d'oiro, peça antiga na casa de D.
-Bento d'Osma, o ditoso noivo, que aos sessenta annos ia receber como
-esposa a encantadora Maria. Pelo caminho aspero e pedregoso, ladeado de
-pinheiraes sombrios, de penedias soberbas, de campos ferteis, de
-precipicios fundos onde grasnavam aguas tumultuosas, sentia-se a
-animação da extensa cavalgada. As lumieiras, que os creados sustentavam
-altas, erguendo os braços para aclararem maior area do caminho,
-produziam sombras phantasticas que se espalmavam nos muros e deitavam
-nos campos, dando a este quadro de vida commum, aspecto tão singular que
-ao longe pareceria festa de demonios em delirio. As aves silvestres e os
-animaes bravios que tal presenceassem, acordados do seu repouso, assim o
-deviam pensar, pois fugiam uns voando, outros correndo e sumindo-se
-todos no denso negrume da noite. Ia na frente a noiva, delgada e airosa,
-dentro do seu vestido claro, os cabellos negros e fartos ornados de
-flores naturaes, as mais bellas flores dos jardins d'Osma, onde as havia
-raras e viçosas todo o anno. Ao lado de Maria, D. Bento, ainda vigoroso,
-montava magnifico cavallo baio adrede comprado para este acto solemne. E
-logo a seguir o pae da airosa menina, o José Pereira do Corcovado, da
-conhecida casa do Corcovado e seus quatro filhos, Manuel, Thomaz,
-Vicente e José, rapazes valentes e destemidos, pimpões de varrer tudo em
-romarias e feiras, quando se junctassem os quatro. Cercava-os o maior
-numero das lumieiras, para acautelarem a noiva contra qualquer estorvo
-do caminho turtuoso e difficil, e assim assegurarem tambem aos que
-vinham atraz, transito livre. Estes eram pessoas de differentes edades e
-feitios; senhoras velhas de vestidos serios de seda preta e meninas
-novas todas de claro, desde a cor de rosa virginal até ao verde-prado
-que é esperança. Os homens antigos estadeavam as suas casacas de gollas
-altas e bofes nos peitilhos das camisas; os rapazes d'agora vestuario
-delambido e collarinhos pegados á pelle do pescoço. Havia alguns padres
-na extensa cavalgada, de sobrecasaca grave, bota eclesiastica de borla
-no joelho, ou bute simples nos mais pobres que não tinham para
-abastanças, volta no pescoço, e deitando a sua sentença latina do alto
-das suas eguas de farta cauda e largo ventre prolifero. Os da
-rectaguarda mofavam do velho D. Bento, pela desproporção na edade com
-Maria, e alludindo á violenta e conhecida paixão, que por ella tinha, o
-João da Cunha, da casa da Maceira, disse um conceituosamente:
-
-—Póde muito bem ser um segundo tomo do velho D. Thomaz que se casou com
-a D. Paulina, morgada da Cerdosa[2].
-
-—Que lhe preste—accrescentou Frei Ignacio pitadeando-se.
-
- * * * * *
-
-Era realmente coisa sabida que João da Cunha amava perdidamente Maria; e
-tão perdidamente a amava e tão de receiar era uma vingança dos rapazes
-da Maceira (que tambem eram quatro e não inferiores em valentia aos do
-Corcovado), que os irmãos da noiva iam adeante a guardal-a e promptos
-para tudo. Arrebatando-a ao amado preferido, levavam-na juncto do altar
-para a entregarem ao morgado d'Osma, senhor de Osma e de muitas
-propriedades de Minho e Douro. João só podia alardear boa linhagem e
-muito amor, quanto a haveres a casa era pequena e filhos muitos. Quando
-n'isto falaram ao velho do Corcovado desatou n'um berreiro de espantar
-lobos: «que amor sem riqueza era bonito, mas julgava-o destempero; que
-se lhe queria a filha viesse pedil-a trazendo titulos de propriedade
-para a merecer. Elle por sua parte, tinha boa casa; mas herdeiros
-cinco».
-
-—Portanto, que tire d'ahi o sentido—rematou para o enviado.
-
-O da Maceira que era ousado e temerario approximou-se um dia do velho e
-perguntou-lhe de cabeça alta:
-
-—Como quer o senhor José Pereira que eu arranje assim de repente
-dinheiro?
-
-—Isso é comtigo e não commigo.
-
-—E com quanto se contenta?—disse sarcastico.
-
-—Com muito; dinheiro quanto mais melhor—respondeu o velho no mesmo tom.
-
-—E quanto tempo me dá para arranjar isso com que lhe possa comprar
-Maria?
-
-—Ella não é negra. Não te me faças birbante que se os meus rapazes
-ouvem...
-
-—Bem me importo com ameaças! Peço um anno, para ir ao Brazil entender-me
-com meu tio Antonio, que lá tenho. Acceita?
-
-—Vae ao Brazil, vae onde quizeres, eu já falei.
-
-E voltou-lhe as costas sem mais ceremonias.
-
-O rapaz sahiu o portal do Corcovado com uma batalha no cerebro. A sua
-idéa n'aquelle instante, foi roubar violentamente Maria, fugir com ella
-para sitio alpestre e ignorado, e lá viverem vida selvatica d'amor,
-sustentando-se de leite e fructos da terra. Chamava-o, a grandes vozes,
-o coração, para essa existencia poetica, altiva e nomada, querida da
-imaginação de todos os independentes, como apropriada á vida feliz.
-Alimentarem-se de caça, do mel das abelhas, de medronhos e hervas;
-beberem o leite, a limpida agua das fontes por escudellas de madeiras ou
-de cortiça; vaguearem no silencio magestoso das mattas escuras, pouco
-conhecidas dos homens; suspirarem juncto das estrellas na amplidão das
-serras altas, absorverem a largos pulmões o ar fresco e aromatico das
-brizas que vem dos codeçaes floridos e das urzes sempre verdes... era o
-que lhes deleitaria a sensibilidade, irmanando-os com os pastores, com
-os anjos e com os poetas. Nos primeiros colloquios d'amor, que tivera
-com Maria, quando ainda eram creanças e simples, já detalhavam a vida
-dos ermos, baseando-a no aspecto ditoso e feliz dos pegureiros, que na
-primavera subiam ás montanhas com os seus rebanhos, e no que sabiam de
-contos de fadas e moiras encantadas. Era essa existencia que lhes
-convinha: uma cabana e dormir entre a lã das ovelhas, imaginar ao som
-gemente dos regatos e deleitar os olhos no azul infinito que não tem
-fim—um viver só pelo goso de existir e nada mais.
-
-Então ninguem sabia ainda que elles se amavam, a flor doente de
-sensibilidade que lhes estava rebentando no coração era apenas
-presentida pelas ingenuas creanças. A modo que iam crescendo tomava esse
-sentimento vago uma fórma mais definida e concreta, os olhos do corpo,
-ensinados pela experiencia, iam corrigindo as incertas aspirações da
-alma contemplativa e um dia disse João a Maria: «Quando nos casaremos
-nós?»; ficando absortos n'um spasmo de mente a voarem pelos espaços
-sidereos.
-
-Casar! palavra magica e dolente em que tudo se comprehende e pouco se
-diz. Seria só a união dos corpos? Seria a harmonia dos corações? Seria a
-orchestração das palavras melodicas que sentiam nos ouvidos, quando de
-noite pensavam um no outro? Que seria?!... O contacto das suas pelles,
-quando se abraçavam e beijavam nos brinquedos infantis, dispertava-lhes,
-por vezes, fulgurações no cerebro, chispas nos nervos, deleites
-celestiaes. Casar seria a absorpção de dois entes n'um ente novo e mais
-complexo; mas o casar ideal, a completação ambiccionada era fugir, não
-ver homens, nem casas, nem mares turbulentos, e só conhecer serras
-tranquillas, arvoredos mysteriosos, e animaes amigos. Poderiam realisar
-estas sublimes aspirações?...
-
-Foram crescendo os corpos; adelgaçava-se a nuvem em que divinamente
-viviam occultos; era mais palpavel a realidade, João e Maria para
-casarem precisavam merecer-se. Por isso elle foi principiar os estudos,
-com idéa de seguir uma carreira, que lhe desse no mundo uma situação.
-Maria ficou na aldeia, entre as mesmas arvores, contemplando os mesmos
-penhascos e o mesmo céu, e, quando não teve comsigo João, cruciante foi
-a sua dôr. Porém logo nas primeiras férias todas as saudades se diluiram
-e a alegria d'esse primeiro encontro e dos seguintes compensara-os da
-magua da primeira separação.
-
-O velho da casa do Corcovado, mais experiente e sagaz do que os filhos,
-foi quem primeiro deu pelo caso. Não lhe convinha: determinou acabar
-aquillo d'uma vez. Formou uma assembléa com os seus rapazes: fechando-se
-n'um quarto com elles, expoz o caso e pediu-lhes alvitre no modo de
-proceder.
-
-—Isso dá-se cabo d'elle, é o melhor—disse Thomaz, o de genio mais
-violento.
-
-E o Vicente secundou-o:
-
-—Sahe-se-lhe ao caminho longe d'aqui, quando vier a férias;
-arruma-se-lhe um estalo na cabeça e enterra-se bem fundo n'um campo,
-onde ninguem o encontrará.
-
-—Não é preciso tanto—disse o velho concentrado e tenaz. O D. Bento
-d'Osma gosta da pequena; porque já m'o disse. Maria fez desoito;
-arranjam-se os papeis em segredo, chama-se aqui sem ella o esperar,
-fala-se-lhe tezo, e casam-se sem dar tempo a que o marmanjo consulte os
-irmãos.
-
-—Que nós não tememos—disse o Manuel, o mais velho, applaudido pelos mais
-novos.
-
-Maria por um acaso feliz estava no quarto contiguo e como falassem alto
-ouviu a conversa. Foi grande a sua perturbação, mas simulou o contrario
-para a defesa. Descobriu meio de tudo communicar ao mais velho da
-Maceira, o Gonsalo, para o tornar conhecido do irmão, asseverando-lhe
-que, por sua parte, estava prompta para quanto João entendesse
-necessario fazer-se com o fim de defenderem o seu amor. Foi n'essa
-occasião, que o namorado desejando levar as coisas a bem anunciou ao
-velho José Pereira, primeiro por um enviado, depois directamente, os
-projectos em que estava de conquistar no mundo posição que lhe desse
-direito á mão de Maria, terminando pela affirmativa de ir ao Brazil. Tal
-viagem, porém, nunca pensou em realisal-a e a promessa era apenas um
-estratagema de ganhar tempo, para concertar um plano de fugir com a sua
-amada.
-
-[2] Amores, amores...
-
-
- II
-
-Simulou-se na Maceira o caso da partida de João para a companhia do tio
-que tinha no Brazil, tudo com o apparato do estylo: enxoval, despedidas,
-choros, a sahida do rapaz acompanhado de seus irmãos, e até um
-telegramma do Porto, que participava o embarque. Fez-se a representação
-com a maior verosimilhança. O namorado desappareceu da aldeia e
-falava-se d'elle com saudade e sympathia. Os do Corcovado, acreditando
-só metade do que viam, principiaram logo a dispor as coisas para o
-enlace de Maria com D. Bento.
-
-O Manoel, que era o de mais tino, sahiu uma noite a cavallo levando
-comsigo dois creados só até ao limite da aldeia: ia tractar com o
-morgado d'Osma de coisas de escriptura e dote; informal-o do que havia e
-do que seu pae com todos elles tinha accordado. Assentes as bases do
-contracto com o noivo, que não offereceu difficuldades, pois toda a sua
-ambição era obter a mocidade de Maria para caldear com a sua velhice,
-logo se despacharam os dois mais novos, Vicente e José, para irem a
-Braga tractar secretamente dos papeis do casamento. No entretanto,
-dentro do Corcovado não se dormia descançado: havia armas promptas, e
-esculcas de noite no velho casarão. Conheciam bem os da Maceira:
-sabiam-nos ousados, valentes e até loucos d'audacia. Ainda que João
-houvesse partido (do que não tinham absoluta certeza), ficavam os outros
-que eram capazes de armarem uma batalha campal, para garantirem ao irmão
-ausente, uma desaffronta e uma vingança estrondosa. Dispunham os seus
-meios de resistencia para se defenderem, ainda que preferiam que tudo se
-passasse com normalidade e socego. Esconderam, pois, entre si e D. Bento
-o plano urdido, simularam vida tranquilla e ordinaria, simularam mesmo a
-crença no descuido dos da Maceira, na partida de João, e já em Braga
-corria velozmente o processo ecclesiastico com todas as licenças
-necessarias para em vinte e quatro horas, logo que taes licenças
-chegassem, se realisarem as nupcias.
-
-Em Braga era tambem onde estava João da Cunha, á espera de aviso dos
-irmãos, para regressar á aldeia na opportunidade conveniente, e aqui foi
-avisado por um amigo, de que os papeis andavam em segredo, nas mãos do
-senhor Arcebispo. Logo comprehendeu tudo e na manhã seguinte, depois de
-andar duas noites a cavallo, chegou á Maceira, onde entrou tanto a
-occultas, que só os irmãos e o pae d'isto tiveram conhecimento, pois
-elle tomara a precaução de despedir o arreeiro com a cavalgadura fora do
-logar, que atravessou a pé, não seguindo veredas nem caminhos, mas
-atravessando campos e saltando muros. O que logo ficou assente entre
-todos foi que Maria não casaria com D. Bento d'Osma, ainda que fosse
-necessario matarem e morrerem.
-
-A pobre menina, vigiada e guardada, como se sentia, não pôde, durante
-esses dias crueis, mandar nenhum enviado ao Corcovado. Vivia em grande
-amargura e afflicção por suspeitar coisas tenebrosas do que em volta
-d'ella se tramava. O seu amor e a exaltação do seu espirito eram
-tamanhos, que pensou em suicidar-se, antes que ceder a quaesquer
-conselhos ou pressão de pae e irmãos, para preferir outro homem a João.
-Porém era alma juvenil e crente, não podia comprehender que a
-Providencia divina, e Maria Santissima, de quem sempre fôra tão devota,
-podessem concordar em tal iniquidade. Ora não querendo Deus e não o
-consentindo a Virgem, nada podiam os homens—pensava ella.
-
-Os papeis chegaram de Braga ao mesmo tempo que vestidos e enfeites para
-o dia solemne das bodas, que podiam realisar-se d'um para o outro
-momento. D'isto foi avisado D. Bento d'Osma, por uma carta, emquanto
-Maria era chamada á presença de seu pae e irmãos, que sisudos e graves
-como juizes a sentencear, lhe disseram a resolução em que tinham
-assente. O pae rematou o longo arrazoado dizendo:
-
-—De modo que tu vaes ser senhora d'uma das maiores casas da provincia e
-mulher d'um dos maiores fidalgos conhecidos.
-
-—Mas se eu não gosto d'elle, que é um velho e antes quero João da Cunha,
-apezar de pobre!...
-
-—Tolices dos desoito annos—commentou sarcasticamente o velho. Com esse
-não te dava eu consentimento, nem com um bacamarte cheio de zagalotes
-assente no meu peito.
-
-—Pois com outro não caso—disse resoluta e sem lagrimas.
-
-—Isso veremos—disse Manoel, o mais velho dos irmãos. Ainda que tenhamos
-de te levar para a egreja atada de pés e mãos, has de ir.
-
-—Não será preciso...—acrescentou o Thomaz, pronunciando as palavras com
-ironia feroz. Irá muito bem a cavallo e nós veremos.
-
-—Carrascos!—pronunciou Maria, cahindo redondamente no chão, rigida como
-um cadaver.
-
- * * * * *
-
-A este tempo os da Maceira já estavam conhecedores do resolvido
-matrimonio de Maria com D. Bento d'Osma. Essa informação trouxera-a de
-Braga o proprio namorado. Mostravam-se, porém, naturaes no trato e
-despreoccupados do que se passava; mas entre si assentaram o raptar
-Maria antes do casamento, no proprio acto nupcial, ou até dos braços de
-D. Bento, se não pudesse ser d'outro modo. Quem os conhecesse bem, sabia
-que tentariam o supremo golpe, atravez de difficuldades, que outros
-pudessem julgar invenciveis. Entregar Maria intacta ao irmão era o
-supremo desejo de Gonçalo, Antonio e Thomé. Porém, vencer, á valentona,
-todos os obstaculos que os do Corcovado teriam accumulado em volta da
-desejada rapariga, para que não fosse tocada por mãos impuras, é que não
-poderiam... Necessario era, pois, servirem se do engenho, primeiro que
-da força; e tiveram artes de fazer chegar ás mãos da fraca creatura, as
-palavras animadoras d'uma carta que João lhe escreveu, em que explicava
-o proposito em que estava. Esse papel foi levado á casa do Corcovado por
-um pedinte de classica barba longa, curvado e de voz lamentosa quando
-pedia. Abeirou-se da porta da cosinha, e como fosse desconhecido e
-significasse vir de longe (talvez de romagem a S. Thiago de Compostella,
-pois trazia conchas cosidas nos andrajos) as creadas interessaram-se por
-elle e attenderam-n'o. Vinha esfomeado e friorento; pedia o caldo da
-esmola e o agasalho do palheiro; como soubesse contar historias e ler a
-signa, entreteve os creados e ficou por ali coisa de tres dias. Os
-proprios irmãos de Maria gostaram do pobre e escutaram-lhe os casos; o
-velho José Pereira, ouvindo-lhe dizer que fôra soldado no tempo dos
-francezes, que acompanhara o general inglez pela Hespanha dentro,
-conversou com elle e mandou dar-lhe uma tigella de vinho. Maria, a quem
-o misero, lendo nas linhas da mão aberta predestinou alegre e risonho
-futuro, sorriu-lhe no meio das suas amarguras. Foi n'este acto que o
-pedinte lhe introduziu na manga do vestido a carta de João da Cunha, o
-que tanto alvoroçou a pobre menina, que só por um milagre de energia não
-cahiu com um desmaio. Assim ficou ella instruida do plano concertado
-pelo seu namorado.
-
-
- III
-
-Ia a cavalgada pelo tortuoso caminho que do Corcovado segue para a
-egreja, onde a festa nupcial de Maria com D. Bento d'Osma se ia
-realisar. Apesar das lumieiras (que só adeante, junto da noiva, faziam
-grande illuminação) aquelle acompanhamento de tão longa enfiada de gente
-de cavallo, atravez da noite escura, semelhava uma forte corrente de
-ferro de muitos e grossos elos, obrigada a repetidas curvas n'um
-subterraneo; ou, então, qualquer monstro de cobra-crotal curveteando em
-numerosos accidentes de terreno, para escapar a um perigo que receasse,
-ou attingir a presa que lhe fugisse. Os que cercavam a noiva tinham
-entre si poucas falas, como se fôra avançada de numerosas forças que
-temessem qualquer cilada. Intrigava-os o aspecto sereno e a alma
-resignada de Maria, que sabiam coagida para aquelle acto. Jactanciosos,
-como eram os do Corcovado, passou-lhes pela mente que o animo da irmã se
-tivesse submettido á dura necessidade, logo que reconhecera o inane de
-qualquer resistencia. Essa mudança no espirito da namorada poderia ter
-desenganado os da Maceira, não sendo até impossivel que realmente João
-estivesse já além dos mares. Maria apenas mostrara furtivas lagrimas ao
-paramentar-se para a festa com o seu ultimo vestido de virgem, e antes
-de sahir de casa esteve no oratorio resando ferverosamente a Nossa
-Senhora dos Desamparados, de quem era devota. Conservara-se bastante
-tempo estranha, absorvida, quasi extatica, com os olhos sofregos na
-imagem querida, talvez pedindo-lhe fortaleza ou confessando-lhe os
-ultimos peccados de pensamento. Tudo parecia natural e simples e
-indicava que estivesse resignada. Porem, seus irmãos, por um resto de
-precaução, aperceberam-se para o caminho até á egreja, pois era longo,
-máu e iam de noite; ainda que este estado d'alma lhes parecesse logico,
-pois sabiam o espirito de piedade religiosa, com que sua santa mãe
-fallecida, a tinha educado. Em tão supremo lance da vida d'uma rapariga
-de desoito annos, era natural profunda commoção, pelo quanto
-apresentaria de desconhecido e nevoento o novo dia que se lhe ia abrir
-na existencia. O seu silencio era o fructo de todos os sentimentos
-desencontrados, que lhe moravam no peito, o fructo da curta e variada
-historia da sua vida, com um amor precoce e violento, que vira
-desfolhado no cumprimento do sagrado dever da obediencia ao pae, severo
-mas bom. Assim o presumiam todos; por isso a desconfiança não era
-absoluta e os meios de defesa eram incompletos.
-
-Scintillavam as estrellas no firmamento, n'essa immensa aboboda negra
-como o veludo, em que grandes e bellos diamantes estivessem collados
-desde infinitos tempos, e tremelusissem por um movimento ondulatorio do
-proprio céu. Fendiam as lumieiras, com alegres chammas, a sombra
-compacta da noite. O estrepito da cavalgada, perturbava o silencio, tal
-um caminhar de tropas. As sombras iam a grandes passos parecendo
-espectros. A amplitude da treva absorvente tornava mesquinha a
-existencia do homem. Os que se dirigiam na tortuosa estrada sentiam-se
-oprimidos no peito, mas a vista alegrou-se-lhes quando, vencida uma
-corcunda de caminho, descobriram a egreja rural, lá no fundo, com as
-vidraças a jorrarem luz, como se fôra noite faustosa de romaria. Quadro
-ao mesmo tempo phantastico e jubiloso, este apparecimento subito do
-modesto templo, assim illuminado, surgindo do infinito ventre da
-escuridade infinita. Era como um facho espetado n'uma grande caldeira de
-breu. Em todos os corações houve sobresalto de gozo, até mesmo no de
-Maria. D. Bento d'Osma descobrira o sacrario da sua felicidade; o velho
-do Corcovado o remate das suas aspirações de grandeza; seus filhos,
-julgaram afastados os receios de mau encontro dos da Maceira, que mesmo
-que fossem vencidos lhe aguariam o prazer da festa. E Maria o que
-descobrira para sorrir?...—Alguma esperança?... era aquelle luzeiro,
-alegria na tristeza das suas amarguras?...
-
-De todos os corações se levantara um peso; amplificara-se o sentir e o
-desejo de cada um; etherisara-se-lhes a imaginação em hymnos triumphaes.
-Os formosos olhos de Maria sorriram á profunda escuridade, talvez por á
-sua mente ter chegado em recordação, qualquer promessa do seu amado.
-Desciam para o valle onde brilhava a egreja, lentamente, no meio do fogo
-das lumieiras. Ao chegarem á borda do adro, o leve corpo da noiva, para
-ser tirado de cima da mula, ricamente ajaesada á hespanhola com teliz de
-veludo encarnado lampejando oiros, cahiu nos braços de Manoel, seu irmão
-mais velho. Repicaram faustosamente os sinos n'este instante,
-annunciando o momentoso acontecimento, ás estrellas que luziam, aos
-montes silenciosos, aos animaes bravios escondidos nas suas tocas. As
-aves occultas na espessura das mattas e no interior dos silvedos, quando
-ao romper da manhã viessem gorgear as suas impressões, decerto
-relatariam o acontecimento singular que lhes fizera abrir os olhos para
-a egreja illuminada, e os ouvidos para o jocundo repicar dos sinos. Que
-necessidade de perturbar a escuridão infinita e solemne, o silencio
-augusto e magestoso com signaes de festa humana?—perguntariam ao
-recomeçarem os seus amores, ebrios de rosea alvorada.
-
-Pela porta do templo, amplamente aberta, entraram os convidados. No
-interior, grande perfusão de lumes em todos os altares, para se celebrar
-a sumptuosa festa. Sorriam os santos, o rosto da Virgem era expressivo e
-carinhoso, os anjos, os seraphins e cherubins, que nas columnas do altar
-mór se suspendiam entre nuvens, brincavam alegremente.
-
-A luz espancara a tetrica escuridade; o cheiro do incenso e da cera do
-qual as paredes estavam impregnadas espiritualisara-se com o calor das
-velas. Os numerosos convidados sentiam-se satisfeitos e communicativos,
-tinham abundancia de palavras para encher a conversação. A modesta
-egreja rural, mais uma vez era perturbada na sua tranquillidade: assim
-cheia de movimento e sussurro de festa, deixava de escutar a musica do
-ribeiro, agora crescido d'aguas, e de ligar o seu viver obscuro ao das
-arvores amigas que lhe cresciam em volta, enfolhando-se todos os annos
-na primavera para a festejar...
-
-Maria subiu o corpo do templo, até ao altar mór, ao lado de seu pae, um
-velho robusto, de barba em volta da cara sadia, altos collarinhos em
-camisa de bofes, a casaca das suas bodas (quarenta annos antes)
-tapando-lhe a nuca com a alta golla. Ao passar em frente da imagem de
-Nossa Senhora, da qual era solicita devota, ajoelhou orando com fervor,
-o que fez com que muitos assistentes entrassem em piedoso recolhimento
-espiritual, imitando-a na mystica submissão. Pediria coragem para o
-difficil transe?... confessar-se-hia humilde peccadora por ter tido idéa
-de resistencia á vontade de seu pae?!... No alto da egreja, onde de novo
-se curvou reverente para fazer as suas supplicas ao Altissimo,
-cercavam-na as senhoras mais gradas da visinhança, amigas e parentas, as
-de Refuinho, da Torre Velha, do Ramisco... que todas como ella resavam
-com recolhimento e fervor. Davam assim tempo a que o padre Pitança se
-revestisse na sacristia acompanhado d'outros padres. O cura Clemente
-Carvalhosa, já velho, alquebrado e doente, não podia vir a estas festas
-de noite, por causa do seu rheumatismo: substituia-o o corpolento
-Pitança. Quando este reappareceu juncto do arco cruzeiro, coberto com a
-longa capa d'asperges, a batina occulta sob a alva de celebrante, a
-estola cahindo-lhe serenamente sobre o amplo peito de caçador e occulta
-pelo solemne pluvial, o grande vulto do sacerdote assim paramentado,
-tinha a magestade do d'um bispo da edade-média, guerreiro, soberbo e
-forte. Um absoluto silencio se estabeleceu rapidamente, em respeito ao
-acto momentoso que se ia celebrar. D. Bento d'Osma, radiante dentro
-d'uma farda de fidalgo em que se não encontrava muito á vontade, sorria
-d'um modo incaracteristico, trabalhado interiormente por grande confusão
-de idéas e sentimentos. Maria estava pallida, mas o seu rosto mostrava
-serenidade e o seu olhar firmeza. Quando os nubentes davam o primeiro
-passo para o celebrante, no meio do silencio de tanta gente, attenta e
-commovida, no meio da gloria de luzes que transformavam o ambito da
-modesta egreja n'um templo de apotheose... é que um avejão, phantasma ou
-demonio, ou muitos demonios juntos se lembraram de lançar pela egreja
-fóra os seus gritos lamentosos, terriveis, amedrontadores, e tão
-lamentosos, terriveis e amedrontadores, que rebentaram simultaneamente
-no tecto e nas campas, por traz do altar mór e no côro! Não eram vozes
-com semelhança de humanas, era um como fremito horrendo que se sentisse
-ao mesmo tempo no céu e no cimo da terra, que surgisse da profundeza dos
-abysmos infernaes e tivesse a mesma natureza e raiva das imprecações dos
-condemnados. Todos ficaram transidos de mêdo, e se sentiram faltos do
-sentimento da realidade: deante dos olhos desvairados dos assistentes,
-assim colhidos de surpreza, e n'este primeiro momento, parecera-lhes que
-os mortos haviam rompido o lagedo das sepulturas ao clangor da trombeta
-final, ou que eram os santos que desciam espavoridos dos altares para
-recolherem ao logar seguro da celeste morada. Viam o tecto do templo
-vergar sob o peso da vontade divina, que procuraria assim castigar algum
-grande peccado, ou impedir tremenda iniquidade. A confusão de todos os
-cerebros foi completa quando no pulpito, no côro, e no recanto da pia
-baptismal appareceram tres grandes fogueiras com fumo de polvora e
-reboar de estoiros, como n'um incendio de magica. Da primeira
-perturbação logo se passou ao terror fundado na evidencia de um fogo no
-sanctuario. As vozes em grita, supplicantes e desvairadas, junctavam-se
-ás das aventesmas e ao rebate dos sinos. A maioria procurou fugir pela
-porta principal que estava aberta de par em par; os mais serenos, os que
-poderiam formular raciocinio no meio d'esta grande confusão foram
-levados na onda. Os rapazes do Corcovado, paraliticos na vontade,
-tiveram um vislumbre da possibilidade d'um acto de vingança dos da
-Maceira, mas não se poderam concertar para a defeza. Muitas senhoras
-fugiram para a sacristia, e no meio d'ellas foi Maria. A sacristia
-estava ás escuras e a porta para o adro viam-n'a aberta... Por ali
-entrara um vulto humano que rapidamente tomou nos braços a noiva,
-decerto para a salvar do pavoroso castigo que a todos ameaçava. O seu
-corpo gentil, dentro do vestido de casamento, a cabeça enfeitada de
-flores, os olhos bellos que tantas lagrimas amargas tinham chorado, o
-peito ancioso que em silencio suspirara sentidas endeixas d'amor... tudo
-levou esse salvador providencial e ambos se sumiram no negrume d'essa
-noite fria de Março. Festejavam-na do céu as estrellas, acompanhava-a o
-murmurio das fontes, cantava-lhe aos ouvidos a ligeira brisa, e a
-escuridade amiga e silenciosa encobria estes amores deleitosos. João da
-Cunha, celere como um gamo, saltou primeiro o muro do adro levando
-comsigo a penna leve do corpo da sua amada, atravessou veloz um campo,
-saltou outro muro e no caminho d'além, atirou Maria para sobre uma egua
-valente, montando depois n'um cavallo fiel. E como se isto fôra um vôo
-de lendas scandinavas, lá foram os dois vencendo encostas, galgando
-ribeiros, entranhando-se de cada vez mais no seio protector e cumplice
-da noite calada e escura. Escutavam de vez em quando para ver se outro
-tropel de cavallos os seguiria; mas João confiava sereno na promessa de
-seus irmãos, que lhe haviam offerecido as vidas para o livrar de
-perseguidores.
-
-
- IV
-
-A perturbação de todos os que assistiam á ceremonia matrimonial foi
-maior do que podiam esperar os inventores do estratagema. Alarmados pelo
-subitaneo alarido de vozes de duendes, almas-penadas, diabos ou o que
-quer que era, em furia e delirio; accrescentado o primeiro barulho com o
-reboliço que se sentira no telhado da egreja, que parecia derruir-se;
-levado ao auge o desconcerto com o rapido apparecimento da chama azulada
-do incendio, com o cheiro da polvora e estrondo de bombas, acompanhados
-do toque desesperado de sinos a rebate... produziu-se em todos os
-cerebros um movimento de terror e assombro facil de comprehender. O povo
-casual e os creados das lumieiras, que tinham deixado as cavalgaduras no
-caminho para assistirem á festa, foram os primeiros a fugir e
-encontraram-se desvairados no adro, cegos no meio da escuridade pelo
-brilho que nos olhos traziam da farta illuminação das tochas. A sua
-grita e clamor acabou de apavorar os proprios animaes, que, n'um tropel
-desvairado, correram pelos caminhos e atravez dos campos, como fugidos
-d'uma casa em chamas. Os convidados, apesar de numerosos, não eram
-bastantes para acudir ás supplicas das senhoras, presas d'um
-extraordinario medo e algumas desmaiadas. Os minutos que durou a
-intensidade do perigo, pareceram annos de castigo e tormentos, a todos
-que se encontraram no meio do horrivel drama. Os homens mais resolutos,
-serenos, e affeitos a perigos julgaram que este era o seu ultimo
-instante de vida terrena e já sob os proprios pés sentiam
-abrirem-se-lhes escancaradas as verdadeiras gargantas do inferno. Ás
-vozes rogativas das senhoras, acudiram alguns: o padre Pitança, caçador
-e temerario, encontrou-se entre ellas de capa d'asperges, falando alto,
-dizendo palavras incoherentes, mas que davam sentimento de realidade; os
-do Corcovado correram em busca de Maria... D. Bento d'Osma, esse cahira
-de joelhos no sitio em que estava na capella mór—tinha as mãos erguidas,
-os olhos espantados, no semblante o esgar dos epilepticos, e murmurava
-palavras de prece batendo os dentes. Estava inerte, não procurava evitar
-a condemnação que o abatera, não pensava em resistir á divina vontade,
-que o punia sem misericordia.
-
-Porém os do Corcovado procurando sua irmã gritavam por ella na egreja,
-no adro, na sacristia... por toda a parte. Não a encontrando vieram á
-fala para cerzirem as suas idéas, e facil lhes foi concordarem no que
-poderia ter sido aquella emboscada. Sentiram-se realmente apavorados e
-grotescos.
-
-—Nada! é lá possivel!—ainda teimou o mais velho—procuremol-a melhor, que
-estará por ahi cahida sem sentidos...
-
-Procuraram com vellas e tochas acesas, que arrancaram dos proprios
-altares, e de momento a momento a suspeita d'uma cilada dos da Maceira
-tomava maior vulto e lhes enchia o espirito d'uma colera crescente. A
-elles se juntaram o velho pae e o D. Bento d'Osma, que os creados haviam
-arrancado á sua paralisia, e todos chamavam por Maria e pronunciavam o
-seu doce nome, com ancia e carinho, atirando-o para o ventre mysterioso
-d'aquella negra e hostil noite de Março. Nem acordada, nem desmaiada,
-nem viva, nem morta a encontravam, por mais que empregassem vozes
-supplices ou de desespero. Agruparam-se com os parentes e o noivo de
-Maria, os convidados e os proprios creados. Assim todos reunidos, de
-tochas na mão, em volta da modesta egreja rural semelhavam multidão
-imprecativa de povo e não gente na ancia d'um interesse terreno. A noiva
-não respondera, nem ás primeiras vozes carinhosas do pae e do noivo, nem
-ás palavras já cheias de ira de seus irmãos. Na egreja, na sachristia,
-no adro não a descobriam... logo, Maria, ou voava para celesteaes
-alturas com as suas azas de pomba virgem, ou fugira nos braços do seu
-amado, o João da Cunha da Maceira.
-
-—Com dez mil demonios, que sou capaz de trincar o coração a esse
-malvado, como Pedro, o Crú, fez aos carrascos de sua mulher—rugiu o
-velho do Corcovado, com a face incendiada em desespero.
-
-—Rapazes!—berrou D. Bento d'Osma á multidão dos seus creados—mil
-cruzados novos aquelle que os pilhar.
-
-E os irmãos de Maria, concertados em identico pensamento de vindicta e
-com a imagem sarcastica e victoriosa dos da Maceira deante dos olhos,
-clamaram:
-
-—Os nossos cavallos depressa que não os deixaremos descançar, nem nas
-profundezas do inferno!
-
-Não era muito facil encontrar os cavallos, pois quasi todos tinham
-fugido espavoridos. Como se poderia ir ter com elles atravez da vaga
-escuridão da noite, por caminhos e veredas incertas? Correram os
-creados, que os conheciam e a cujo chamamento e vozes os animaes estavam
-habituados. Partiram do adro, cada um com a sua lumieira erguida como um
-tropheu, chamando e assobiando, em direcções diversas. Que coisa esta de
-homens com vozes bradantes, armados de fogachos furando a espessa treva,
-a saltarem muros, e a correr pelos campos, estradas e atalhos! Seria ás
-arvores hirtas e silenciosas, ás estrellas sorridentes e alegres, aos
-espaços mudos e infinitos que elles supplicavam? Lá iam com assobios e
-palavras semeando a negrura torva. Ao fim d'algum tempo alguns voltaram
-com os animaes que buscavam e lhes haviam obedecido, reconhecendo-lhes o
-imperio a que estavam sujeitos. Já se tinha passado talvez mais de uma
-hora, quando os parceaes de D. Bento e os rapazes do Corcovado poderam
-montar os seus fieis cavallos, para irem no alcance dos
-fugitivos—duração infinita para os apaixonados corações se distancearem
-no goso d'uma felicidade tão rudemente conquistada.
-
-Mas para que lado correriam os perseguidores, se os terrenos eram tão
-vastos, as montanhas tão silvestres e asperas? Como nortear a marcha em
-noite escura de breu, por veredas multiplas e perigosas? Reuniram
-conselho para deliberar.
-
-—Para a Maceira?—lembraram os rapazes do Corcovado.
-
-—Não seriam tão asnos que em tal ratoeira cahissem—observou o prudente
-José Pereira.
-
-—Para o Cerdal, pois são amigos de Cesario.—opinou uma voz.
-
-—Meu primo não me faria o aggravo de lá os receber—inteirou D. Bento
-d'Osma.
-
-—Sigam para os montes—ordenou o padre José Pitança, de estola sobre o
-amplo peito, mas já sem pluvial, que largara para se desembaraçar em
-qualquer lucta de braço a braço, se necessidade houvesse de a sustentar.
-
-—E se elle a fosse depositar respeitosamente e intacta no Ramisco, para
-depois seguir o processo judicial!?—aventou com a sua voz meliflua o
-desembargador João Xavier.
-
-Esta lembrança esdruxula, deixou perplexos e irritadas todas as vontades
-e corações que desejavam uma acção violenta e immediata de assignalada
-desforra. O sangue dos do Corcovado borbulhava em fremente cachoeira e
-Thomaz, que era dos quatro o de animo mais ardente e vingativo, disse:
-
-—Qual asneira! Vamos lá para cima que até me parece que já os estou
-sentindo correr adeante.
-
-E esporeou energicamente o seu cavallo, que lhe respondeu com um salto,
-vencendo á desfillada a ladeira, onde as ferraduras feriam lume nas
-lages. Manoel o mais velho ainda teve tempo para ordenar, gritando:
-
-—Cada um pelo seu caminho e por edades. Eu á direita.
-
-Abalaram encosta acima, acicatando com violencia os animaes. Alguns dos
-amigos e convidados de D. Bento d'Osma seguiram-nos animados d'um
-generoso espirito de desforra. No pavor da noite, este galope de
-combate, amplificou-se primeiro, foi esmorecendo gradualmente, restando
-por fim nos ouvidos dos que tinham ficado, uma ressonancia como de sons
-repercutidos no fundo d'um poço. O padre José Pitança, de alva e estola,
-no meio do adro, estendeu com vigor os braços, increpando no vago com os
-punhos apontados ao céu:
-
-—Grandissimo patife! Que o esborrachava...
-
-—Uma costa d'Africa é que precisa—ameaçou o velho José Pereira.
-
-—Uma costa d'Africa!—rugiu D. Bento d'Osma. Uma forca! mil forcas é que
-merecia.
-
-Porem quasi todos entenderam que deviam ir para o Corcovado, onde estava
-a mesa preparada para o começo do festim da boda. Ali aguardariam os
-acontecimentos. Muitos porfiavam em acreditar que os fugitivos seriam
-alcançados. Porem a maioria das senhoras, cujos nervos tinham sido
-desorientados com a commoção causada por tão estranho, quanto
-inesperado, successo, preferiram as suas proprias casas, onde melhor se
-aquietariam com rezas e com descanço ao seu conchego habitual.
-
-
- V
-
-Noite escura e triste; noite, cheia de negruras no céu e no coração!
-Pouco depois de João da Cunha e Maria partirem a gallope para o seu
-louco destino, entraram com elles pavorosos receios, tremendo um por
-causa do outro. Durante muito tempo os acompanhou o alarme de vozes em
-grita, que se produzira na egreja e no adro, e que se fôra estendendo
-pela aldeia, tal onda de revolta popular. Como fossem subindo a céu
-amplo sobre o valle, onde a agitação se alastrava, ouviram, até muito
-longe, esse rumor sinistro, perseguidor e amaldiçoante; mas depois que
-venceram o primeiro cabeço de monte, era antes um sussurro de mar a
-bater em rochas escarpadas, isso que lhes chegava aos ouvidos. Mais
-além, só conheciam a impressão arquejante que lhes ficara vibrando no
-cerebro perturbado. De vez em quando sonhavam tropel de cavallos que
-lhes viessem no encalce e paravam attonitos com o ouvido á escuta;
-conhecido o erro continuavam animados pela doce esperança de viverem no
-seu amor absoluto, reciproco e vehemente. Maria, apesar de animosa e a
-tudo resolvida, não deixava de temer a vindicta de seus irmãos, e no
-escuro da noite mysteriosa murmurou como n'uma prece: «Deus nos proteja!
-Se nos apanham está tudo acabado!» Ao que o intrepido amante oppoz, com
-voz decisiva: «Nada receies. O meu corpo será mais difficil de
-trespassar, que um duro penedo!» Continuavam a rasgar a treva densa, por
-caminhos perigosos e pouco calcados de gente. João conhecia todos
-aquelles montes como os campos da sua aldeia; palmilhara-os, durante
-annos, acompanhado do seu perdigueiro, em todos os carreiros e veredas.
-Cego que elle se houvera tornado, determinaria a posição dos ribeiros e
-rochedos e as nodoas das bouças. Por tanto, para se dirigir na selva
-escura d'esta noite espessa, bastava-lhe o sorrir das estrellas do céu e
-a ditosa ventura de ter a seu lado aquella a quem amava. Eram favoraveis
-as circumstancias para não serem encontrados e para chegarem ao ponto
-ditoso, onde descançariam longe da furia e perversidade humana. Trazia
-esse quadro na menina dos olhos; era uma casinha alpestre, armada entre
-fragoas. Porém, como estivesse ainda muito distante e os montes fossem
-largos, só quando se annunciasse a luz solar poderia definitivamente
-nortear-se, para chegar em direitura, ao paraiso onde podiam florir os
-seus amores. Por agora só pensava em distanciar-se de onde estavam os
-seus temiveis inimigos; queria apenas retirar-se do perigo, livrar a sua
-felicidade da furia dos irmãos de Maria, que seria cruenta se se viessem
-a encontrar, n'essa noite, face a face. Armara-se para chegar a todos os
-extremos d'um combate sanguinoso: preso no arção trazeiro levava duas
-clavinas carregadas com zagalotes, nos coldres duas magnificas pistolas
-de cavallaria com balas, no bolso interior um acerado punhal de lamina
-triangular. Preparara-se para uma rude empresa de morte e amor, venderia
-muito cara a vida e a fortuna de viver. Mas distancear a hypothese
-horrenda e desgraçada d'um encontro funesto com qualquer dos que o
-perseguiriam, era o seu anhelo, o seu unico desejo. Por isso procurava
-com ancia ganhar distancias, mettia por atalhos perigosos, evitava
-quanto podia a proximidade de casas e povoados, onde se podesse dar
-indicio da sua passagem. Nem sempre o pudéra conseguir e n'um logar que
-atravessaram, o ruido dos cavallos devia ter sido percebido por um grupo
-de mulheres, que enfornavam a broa da semana. Cresceram os pavores e
-receios que enegreciam a imaginação de Maria; porém João aquietou-a
-dizendo-lhe que, aquelle caminho era forçado para muitos logares
-distantes, uns dos outros. Continuaram silenciosos e cheios d'esperança
-na negrura cumplice da noite, porém o sussurro dos ribeiros que iam
-grossos d'aguas, o acordar repentino d'algum animal bravio que fugisse
-por entre carrascos e tojos, a propria voz do vento que passava nos
-codeçaes e bouças se transformavam na mente de Maria em signaes de gente
-amotinada que os perseguia, em prenuncios de embuscadas que seus crueis
-irmãos tivessem armado contra o seu unico, verdadeiro e sentido amor. A
-aldeia ficava-lhes de cada vez mais distante, lá em baixo, em fundo
-valle. Demonstrava-o o passo mais lento das cavalgaduras que era já de
-fadiga. Tambem agora tinham de caminhar com maior prudencia, pois João
-confessava-se no limite dos montes seus conhecidos e familiares. Podiam
-esbarrar com algum ribeiro que os obrigasse a retroceder, por isso
-procurava sempre os pontos mais altos, onde essa contraria probabilidade
-diminuia. Ás montanhas succediam outras montanhas, sempre n'um
-levantamento gigante que parecia ter limite no céu, onde talvez fossem
-cravar seus dentes de penedias asperas. Só as estrellas os acompanhavam
-com riso carinhoso e só estas é que davam a luz tenue, que lhes deixava
-distinguir os asperos carreiros, brancos sobre a terra negra. O ar
-tambem era mais leve e mais cortante, a modo que a sombra da noite se ia
-adelgaçando. Ao nascente, para onde levavam voltados os rostos, já viam
-com antecedencia a promettedora chegada do sol, essa alegria sumptuosa
-do mundo!... Eram menos inquietas e vibrateis as pestanas argenteas dos
-astros, que se sentiam cançados da continuada vigilancia durante a longa
-noite. Visto não terem podido combater victoriosamente a treva densa,
-deixavam essa encantadora tarefa ao seu glorioso avô, que traria a
-brilhante poeira de oiro fino, para enfeitar as cristas das montanhas,
-enchendo de luz a profundeza dos valles e os recessos das penedias.
-Maria anciosa por encontrar o limite no seu caminhar perguntou:
-
-—Estamos ainda muito longe?
-
-—Andaremos, com dia, talvez uma hora.
-
-—E a gente que nos encontrar?...
-
-—Só pastores e ovelhas poderemos encontrar.
-
-—Santo Deus! Esses pastores não nos denunciarão?
-
-—Os teus irmãos não nos fazem, decerto, para este lado, e daremos
-informações erradas a quem falarmos.
-
-—Em todo o caso fujamos sempre...—rematou inquieta.
-
-Seguiam, já n'uma penumbra fofa, o carreiro aberto, ao longo da espinha
-d'um monte amplo, pelos pés senhoris das ovelhas e cabras que ali
-passavam diariamente. Um bufo, que levantou o seu vôo pesado, de entre
-um massiço de penedos, gerou subito alarme no peito de Maria, denunciado
-n'um grito de susto, que o seu amado acalmou com a explicação prompta do
-facto. A luz do sol, ainda distante, provocava este e ainda outros
-signaes de renascimento da vida terrestre. Já a massa espessa das
-montanhas se definia em formas comprehensiveis á vista: agigantavam-se
-os penedos com aspecto de homens associados em conversa; as arvores,
-dispersas nos terrenos aridos, recortavam-se no céu que se ia
-acinzentando; as aguas da chuva que se tinham accumulado em covas
-naturaes, eram espelhentas. Com taes prenuncios de dia entrava nos
-corações amantes, a fé e a esperança na felicidade do amor. Tão de breu
-fôra essa noite, que só agora sentiam a posse completa das proprias
-individualidades, até então amalgamadas com a espessura da treva.
-
-A proxima chegada do sol aclarando o firmamento, que parecia de vidro
-fosco, apagava gradualmente todos os luzeiros pendurados pelo ar.
-Formara-se um nimbo lacteo sobre o horisonte. Pipillavam as timidas
-calhandras erguendo-se do seu leito, entre carquejas, com as pennas
-irriçadas pelo frio, o que lhes avultava o tamanho. Das bouças já sahiam
-gaios, grasnando como patos selvagens; levantavam-se melros cortando o
-crepusculo com o seu vôo rectilineo e silvo agudo; surgiam pêgas a
-palrar como velhas dementes. Era a gloria da luz e da vida que renascia
-e animava a solemne mudez das montanhas crespas. Um ligeiro sorrir dos
-labios de Maria denunciou que o coração se lhe descomprimia, que a sua
-alma ingenua e pura, aceitava de boamente os perigos do dia, em troca da
-escuridade protectora da noite. Não assim João da Cunha, receioso dos
-males que podiam agora nascer. Se os do Corcovado houvessem acertado na
-perseguição, se os visse apparecer na volta d'um monte ou do meio d'um
-matagal, seria tamanha a desgraça, que só a morte a podia definir.
-Correria o seu sangue e o sangue dos de Maria. Todo o que se vertesse
-havia de ser em desproveito da sua ventura, que não mais poderia brotar.
-Mas com um movimento energico de cabeça afastou para longe ideias
-tetricas; de novo no amplo e corajoso peito entrou a esperança risonha e
-cariciosa. As montanhas eram largas, os caminhos muitos e intrincados,
-só um grande infortunio o levaria ao encontro dos seus algozes.
-Consumidos os dias de gozo, doces como o mel, que viessem as
-perseguições e os flagellos crueis, pois o encontrariam resoluto e
-altivo, como era natural do seu animo levantado e temerario.
-
-Subiam, subiam ainda na encosta d'um monte, que tinha outros mais altos
-para os lados do céu. Os já andados escorriam lá para o fundo, em
-successão de valles, n'um dos quaes assentava a risonha aldeia d'onde
-haviam partido. Ao vencerem um alto cabeço deram de frente com o olho
-redondo do sol, que os fitava impavido e dominador.
-
-—Ainda é muito longe?—perguntou Maria.
-
-—Mais uma legua para andar.
-
-Desciam na vertente d'além: n'esse alvorecer encontraram a primeira
-pastagem de boa relva, mosqueada de malmequeres, goivos e junquilhos
-nascidos no sopé d'uma penedia d'onde brotava agua, e o primeiro rebanho
-guardado por um pequeno pastor. Era um rapaz franzino e sujo: ao ver
-aquella formosa senhora, vestida de claro e com flores na cabeça como
-qualquer santa, acompanhada por tão garboso cavalleiro, logo se levantou
-da lage onde estava sentado, conservando-se com o grosso barrete na mão,
-até que elles chegassem.
-
-—Bom dia rapaz—saudou João da Cunha.
-
-—Bô dia—respondeu em voz rouquenha. Agora não ha romaria: eh! voncês
-p'ra onde vão?
-
-—Levar uma promessa á Senhora Apparecida—respondeu João.
-
-—Tão linda como a Senhora Apparecida é essa senhora. É sua?
-
-—É minha, é Joaquim. Chamas-te Joaquim?
-
-—Não senhor, sou Zé.
-
-—Pois toma lá este dinheiro e dá-o á tua mãe para te mercar uma camisa.
-Se por aqui vierem uns senhores a cavallo diz-lhes que não viste passar
-ninguem.
-
-—Se voncê quer, digo. Hei de rezar por vós, que não ides bem p'ra
-Senhora Apparecida, mas p'ro Senhor Bô-Home.
-
-—É que vamos primeiro ao Senhor Bom-Homem e depois á Senhora
-Apparecida—explicou.
-
-—Antão, havendes de tornar para traz.
-
-—Pois tornamos.
-
-—Isso é falar. Deus os acompanhe.
-
-Ficaram receiosos d'este encontro, como já o vinham das mulheres que
-enfornavam o pão. O convivio humano era-lhes n'este momento antipathico.
-Da intelligencia alheia, só perigos lhes poderiam advir. Maria levava o
-rosto palido e fatigado; desejava chegar breve ao ponto da terra, onde
-pudesse repousar e esconder-se. O seu amado comprehendeu-lhe este
-secreto pensamento tão legitimo e natural. Chegados a um sitio d'onde se
-lhes desdobrava aos olhos um largo ondeado de montanhas, João apontou a
-brancura d'uma ermida, que se destacava sobre a mancha negra d'uma matta
-e disse:
-
-—Acolá, vês?
-
-—É uma capella!
-
-—Para além da capella está a casa.
-
-—Quanto tempo?
-
-—Pouco tempo.
-
-Metteram por uma esplanada coberta de penedias em cujas anfractuosidades
-podiam esconder a sua marcha. A luz do sol já enchia os montes e até os
-valles cobertos pelo nevoeiro matinal. O ar rescendia a aromas, que se
-levantavam da terra, das flores e hervas alpestres. Passavam no céu,
-azul palido, aves de grande corpulencia, abutres e aguias, que pousavam
-nos pincaros mais levantados. Os negros corvos crocitavam perto, subindo
-do chão para os penhascos. Apparecia aqui um coelho que rebolava pela
-terra arenosa; rompia adeante um par de perdizes, já acasaladas no
-começo d'amores; erguia-se uma lebre, veloz na carreira, corveteando de
-orelha guicha. Maria, certa do limite da sua jornada, mostrava rosto
-mais desanuveado; todo o seu desejo e ambição era, n'este momento,
-esconder-se como timida corsa no denso matagal, que fazia mysteriosa
-negrura, juncto da alva capella que João lhe apontara. Não tardou muito
-que aportassem ao carinhoso abrigo. Bem mereciam este repouso, depois de
-tão longas horas atormentadas pelo esforço corporeo e pelas preocupações
-do espirito. As horas, muitas ou poucas, que ali permanecessem,
-ignorados e tranquillos, enchel-os-hiam de amor ardente, para
-entorpecerem a sensibilidade, emquanto não vinha o desenlace da arrojada
-aventura.
-
-—Ninguem nos supporá aqui, meu amor—suspirou João ao saltar do seu
-cavallo.
-
-—E de quem é esta casa?—perguntou Maria ao cahir-lhe nos braços, para
-descer da egua.
-
-—D'um amigo de longe, que só vem aqui, de anno a anno, fazer as suas
-caçadas.
-
-Depois de recolher as cavalgaduras, entraram na modesta cabana, coberta
-de colmo. Logo fecharam a porta sobre os seus corpos cançados. João ao
-apertar Maria nos braços nervosos exclamou desvairado.
-
-—Até que emfim! Podem agora vir todos os tormentos da terra!...
-
-
- VI
-
-
-Dia venturoso, primeiro dia d'amor, em casa modesta e simples, cercados
-do silencio dos ermos, bafejados pela brisa balsamica e leve, aquecidos
-pela chama copiosa do bello sol de primavera. Da terra humilde dos
-montes nasciam flores, abrindo no vasto azul o sorriso, que de noite
-cubiçara o brilho das estrellas. As aves simples, que a floresta enchiam
-de seus encantos, ignoravam a apotheose que estavam fazendo d'aquella
-felicidade. Tudo que havia de rescendente nas duas almas, ditosas e
-bellas como os lyrios brancos, subia em anhelos para as celestiaes
-alturas, enchendo os espaços infinitos de sua fragancia.
-
-O dedicado amigo de João da Cunha, que lhe cedera este sagrado abrigo,
-havia-lh'o provisionado de modo que não fosse necessario, logo de
-entrada, qualquer contacto com gente do povoado. Por isso n'este
-primeiro dia, nem as janellas descerraram, vivendo os dois na escuridade
-que mais os unia no seu amor immenso. Os serranos, que por acaso
-passavam, não presumiriam viv'alma dentro d'aquella casa simples,
-construida entre penhascos approveitados como tractos de paredes. As
-duas unicas janellas eram aberturas naturais das fragas: por ali
-entravam outr'ora as aves de presa, que nos reconcavos faziam seus
-ninhos. As duas portas collocadas no afastamento mais largo dos penedos
-aglomerados, davam entrada uma para a cosinha, outra para a casa de
-jantar e dormitorio. As cavalgaduras arrumavam-se n'uma loja aberta na
-espessura da terra no ponto inferior do fraguedo. O telhado de colmo era
-preso, para resistir ás ventanias invernaes, com pedras e paus
-atravessados. As aberturas desnecessarias tinham sido tapadas
-grosseiramente com pedra avulsa, sem o esmero de rebouco de argamassa
-exterior. Esta rustica morada assentava a mais de meia encosta, por cima
-da afamada matta do Medronhal. As duas janellas abriam para o declive
-dos montes e via-se, em corrida extensão, a severa e funda garganta, por
-onde sussurravam as grandes aguas, que vinham de longe, formando o
-ribeiro da Marnoca, celebre pelas suas trutas. O inverno tinha sido
-aspero e copioso, o desgelo das neves altas, ainda em principio,
-engrossava a corrente que n'um fragor de trovão se despenhava de rochedo
-em rochedo, por entre togeiras virgens, onde não pousaria o pé rustico
-do pegureiro, se para ali se lhe extraviasse a rez. Havia até sitios
-perigosos, aos quaes é duvidoso que pudesse chegar, lobo esfomeado em
-procura de presa. Eram brenhas selvaticas e dantescas onde, só no
-torrido estio, entrava o sol para calcinar as pedras. O contemplal-a
-apenas, enchia a alma de pavores e mysterio. Os dois amados, na
-escuridade da sua cabana e cercados do silencio do ermo, que este aspero
-ruido tornava mais completo, sentiam-se tão fóra do mundo e dos homens,
-que os seus corações já palpitavam unisonos e sem receio. Era sua
-aspiração e desejo, viverem, assim infinitamente, n'esta paz tranquilla
-de sepultura, formando um ser de dois seres, com um unico sentir e uma
-só vontade—louca aspiração de juvenil egoismo, de que só pode dar razão
-a immensa felicidade que fruiam. Eram como essas aves que outr'ora ali
-tinham formado seus ninhos toscos, na ignorancia de tudo que não fossem
-montes e estrellas. Independencia absoluta da vida esquecida dos que se
-persuadem que no amplo universo, nada mais existe do que o amor.
-Veio-lhes a fadiga e o somno, que mais dilatada lhes tornou a ventura,
-continuando-a pelo sonho em céus deslumbrantes. Quando acordaram já o
-sol declinava no horisonte, arrastando a resplendente juba loira pelo
-cume das montanhas. Abriram então uma das janellas para se despedirem do
-astro que, fulgurando, deixava o mundo e levava comsigo a alegria da
-terra.
-
-N'uma d'essas toscas aberturas a poente, appareceram amarellecidos pela
-ultima luz d'esse venturoso dia, as duas cabeças unidas, os dois corpos
-enlaçados. Demorando-se na contemplação do formoso espectaculo, Maria,
-tinha ainda o seu vestido de noiva e na cabeça as flores com que lh'a
-haviam enfeitado. O crepusculo cobriu-a lentamente com o seu veu de gaze
-fino, como a uma creança que dormisse, sombreando-lhe o rosto com tintas
-de melancolia.
-
-E para orchestrar este quadro de simplicidade antiga e paradisiaca,
-subia do fundo da garganta escura da floresta o som magnifico e potente
-das aguas, como um hymno religioso, que se amplificasse solemne nas
-abobadas d'uma cathedral. Fechava-se assim este primeiro dia enebriante
-e ditoso: viera a noite alargar o vasio de todas as existencias, afofar
-com sombras os meandros da vida universal.
-
-Accenderam lume, para se aquecerem.
-
-Em frente um do outro, sentados em toscos escabellos de carvalho annoso,
-estavam em silencio, enredando os seus pensamentos. Presas as suas
-linguas nas circumstancias d'esta existencia anomala e feliz,
-communicavam-se por meio de sorrisos e beijos. Maria, porém, rompeu o
-encanto da sua mudez, considerando:
-
-—Até quando durará isto?!
-
-—Hade durar sempre—affirmou João.
-
-—Talvez bem pouco dure...
-
-—Teu pae perdoa-nos...
-
-—Nunca nos perdoará—disse repassada d'angustia. Não o conheces.
-
-—Seremos do mesmo modo felizes.
-
-—Porém como!?...
-
-João fez um gesto amplo e vago de quem acredita no céu clemente e
-mysterioso, dentro do qual se conservam em amalgama todas as soluções
-felizes da existencia humana. Apesar d'isto, continuaram tristes e
-absorvidos na sua tristeza, deante do lume alegre e crepitante, com
-chamas que se levantavam e diluiam como as esperanças. É assim toda a
-ventura: ergue-se com impeto, flameja triumphal, desaparece como a
-chama, como ella deixando a treva e o frio. Porém estes amores apenas
-começados estariam, por certo, bem distantes do seu fim: no querido
-ermo, protegidos pela treva densa, principiava a primeira noite fecunda
-e bella. Fecunda e bella foi, mas tinha de acabar como o dia. E acabou:
-já no ambiente se sentia o acordar de existencias chamadas pelo
-reapparecimento do sol, o qual, os ditosos amantes, tambem de novo
-vieram saudar.
-
-Abriram a porta que dava para nascente, e abraçados como duas estatuas
-em grupo, appareceram risonhos deante do sol:—Maria com o seu vestido de
-noiva machucado, as flores da cabeça emmurchecidas; João o rosto mais
-severo e palido do que ao findar o precedente dia.
-
-Rompeu o grande astro por entre penedias: primeiro como uma gema d'ovo,
-amarella e redonda; depois com a irradiação d'uma enorme fornalha que
-estivesse no infinito. A todos a luz patentearia a realidade da Terra: a
-Maria e a João mostrava-lhes a extensão aspera e vaga da montanha, um
-chão arenoso e safaro, cheio de granitos e pobres plantas, sempre
-açoitadas de ventanias e chuvas, crestadas pelas neves duradoras, roidas
-do dente damninho das cabras. Contemplavam essa aridez impressionante e
-forte das serranias, que educa as vontades para a victoria e para o
-sacrificio, que prepara o cerebro para extremos de abnegação até á
-morte. Sentiam essa grave austeridade contrastando com a terna ventura
-dos seus corações, jovens e amantes, com o sentir mais delicado das suas
-organisações creadas na tranquilidade e maciesa das veigas floridas, de
-culturas abundantes que agudam a sensibilidade. O bello sol reunia-lhes
-os dois corpos n'um feixe de luz, atando-os com os seus raios d'oiro; o
-seu magnificente beijo matinal sellava a incomparavel ventura d'este
-amor incomparavel. Tão descuidados e seguros se encontravam em momento
-tão ditoso, que João não teve duvida em propor á sua amada o sahirem á
-procura d'um rebanho, que lhes désse leite para o almoço.
-
-Foram enlaçados, como dois ramos nascidos do mesmo tronco. Rostos
-alegres e corações abertos á aventura iam pelo monte além, descendo para
-sitios onde presumiam pastos. Amplificavam-se-lhes os pulmões para
-n'elles entrar o ar fresco; dilatavam-se as narinas excitadas pelos
-aromas da brisa silvestre. Andaram bastante para encontrar o primeiro
-rebanho: quando voltavam, ao ninho d'amor, com a caneca a transbordar de
-grosso leite, é que ouviram latidos d'uma matilha, que de longe vinha
-batendo a serra para o Medronhal. Continuava a subir aparatosamente o
-sol, no céu tranquillo e mudo, desdobrando pelas corcovas das montanhas,
-pelo apertado das gargantas, e pelos ferteis valles o seu lençol de luz.
-Os cães ladravam ainda longe, porém a revoada dos seus ganidos,
-misturados a tiros de espingarda e a gritos de batedores, subia pela
-encosta acima, como o fumo d'uma nevoa, que o vento sul levantasse. O
-rosto de Maria alterou-se, parou com o ouvido á escuta e perguntou:
-
-—Que será?
-
-—Alguma batida ao bicho bravo. O fogo é lá p'ra baixo—explicou João.
-
-—Vamos depressa para casa!...—pediu receiosa.
-
-—Pois vamos—concordou abraçando-a pela cintura, para andarem mais
-depressa.
-
-Caminhavam diligentes e celeres, não reparando que se lhes vertia o
-leite da infusa. Dominava-os apenas a idéa de não serem vistos de
-viv'alma, de se esconderem na modesta choupana, com portas e janellas
-fechadas, n'uma escuridade completa. Porém, os seus passos deseguaes e
-nervosos foram sustidos n'um momento, pela apparição d'uma sombra...
-d'um phantasma... d'um homem a cavallo, que apparecendo ao norte se
-dirigia como elles, para o lado da ermida branca.
-
-—Olha gente!—exclamou Maria. Se nos vê, santo Deus!...
-
-Esconderam-se por traz d'um macisso do urzal virgem, que pegava com o
-Medronhal. D'ali queriam observar o destino do cavalleiro. O silencio de
-João, as linhas do seu rosto contrahido e pallido, o peito tão quieto
-que nem respirava, denunciavam a negrura do seu coração. Comprehendeu o
-perigo: ainda que aquelle homem fosse um estranho, que os não
-conhecesse, havia de causar-lhe surpresa o encontral-os n'aquellas rudes
-paragens, sósinhos, tão jovens, tão namorados e tão dignos um do outro.
-Levaria a noticia do singular encontro e estariam logo descobertos. Pelo
-menos seriam obrigados a mudar d'abrigo e a esgotar depressa o primeiro
-calix da sua ventura.
-
-—Talvez passe para deante—ciciou-lhe, quasi ao ouvido, o namorado de
-Maria.
-
-Mas o cavalleiro, caminhando devagar e cautelloso, como avançada na
-observação de campo inimigo, estava ainda bastante longe para só se
-distinguir o seu vulto com o chapeu desabado, a espingarda atravessada
-nos joelhos, o grosso tronco, firme sobre a sella.
-
-—Peor é—considerou João—se ha por aqui alguma porta de espera; porque
-então fica.
-
-—O que é uma porta de espera?—perguntou anciosa Maria.
-
-—O ponto onde pode romper a caça—esclareceu.
-
-Do lado esquerdo surgiu outro cavalleiro com o egual aspecto de
-descanço, da mesma forma vestido e armado, convergindo tambem para o
-sitio da ermida. Viam-no mais perto, sem que pudessem ainda definir
-particularidades. Porém, quando chegou a um altinho, onde o recorte do
-seu corpo e da cavalgadura se fez com maior precisão e nitidez, Maria
-deu um grito, que pela intensidade da dôr que exprimia, seria capaz de
-acordar lastimas nos reconcavos d'aquellas montanhas.
-
-—É meu irmão Thomaz!
-
-A João da Cunha cahiu-lhe da mão o tarro de leite, que se verteu pela
-terra. Affirmando-se com acuidade de vista, levou a mão ao punhal que
-tinha no bolso rugindo:
-
-—Pois matto-o.
-
-Em casa é que tinha as armas, com que poderia fazer frente aos seus
-inimigos; mas a casa estava distante, e tinham de subir um pedaço de
-encosta aspera. Chegariam a tempo se corressem; porém, as pernas de
-Maria, recusavam-se a andar. Era mortal a pallidez do seu bello rosto,
-tremula de commoção a sua voz melodica, pavorosa a angustia da sua alma;
-o seu corpo sem energia, deixava-se desfallecer sobre o chão. João da
-Cunha, o valente rapaz, principiou a tremer como um vidoeiro, açoitado
-por ventos furiosos. Maria agarrando-se fortemente ao seu corpo
-supplicava-lhe:
-
-—Esconde-me, esconde-me. Que me não vejam!
-
-Subia, magestoso e grave do fundo da matta, o sussurro do ribeiro da
-Marnoca, cujas grandes aguas se despenhavam, avolumando-se-lhes o som,
-com as ressonancias da montanha. Essa voz rouca e solemne attrahia os
-dois corações amantes, que só poderiam encontrar refugio nas covas
-fundas, onde a corrente uivava e onde o javali se escondia. N'essa
-tetrica escuridade de noite haveria por ventura, abrigo e defesa contra
-a furia e colera dos irmãos de Maria?
-
-—Vamos, vamos para baixo e se lá ainda nos encontrarem, jura-me que me
-has de mattar com esse punhal, antes que elles me toquem!—clamava a
-amada, enleando-se ao tronco do seu amado.
-
-
- VII
-
-Conservava-se silencioso João da Cunha, porem tinha o semblante
-terrivelmente tetrico. Já se ouviam mais perto os tiros de espingarda e
-os gritos d'alarme dos batedores, e com este novo perigo mais se
-estreitavam os corpos dos dois namorados. Obedecendo ao chamamento da
-voz em supplica e reconhecendo a inutilidade de quaesquer esforços para
-se deffender, João deixava-se arrastar por Maria para o fundo abysmo da
-garganta escura da montanha, onde se despenhavam as aguas em
-precipicios. No ultimo relance em que viu, por entre o urzal virgem que
-os occultava, os dois cavalleiros, reconheceu serem Thomaz e Vicente, os
-dois mais temiveis dos do Corcovado. Aproximava-se portanto, o fim do
-seu tragico amor. Com a robustez do seu corpo agil, ia amparando o corpo
-delicioso de Maria, que já se entregava sem animo. A cada paragem
-indispensavel para refazer forças ella solicitava de João, com
-verdadeiras lagrimas, que a deixasse esconder-se mais na escuridade. Já
-tinha os pés e os braços ensanguentados de roçarem nos silvedos e nas
-arestas vivas do granito; o vestido rasgado pelos espinhos dos abrolhos
-e das tojeiras! João, apesar de toda a solicitude, não conseguia afastar
-com as suas mãos piedosas todos esses duros obstaculos. Tambem elle
-tinha a carne dilacerada e dos olhos vermelhos e vehementes sahiam-lhe
-expressões alternadas de colera e de pavor. Mas iam descendo sempre,
-amparando-se para não rebolarem pelo ingreme declive, do fundo do qual
-vinha o bravio ronco das aguas, que se precipitavam de penedo em penedo,
-por entre nuvens de espuma branca. O espirito de Maria sentia consolação
-em embrenhar-se n'esta sombra de noite, cada vez mais espessa; mas o
-barulho dos batedores e dos cães chegava-lhe de muito perto. E quando se
-encontrou á borda do ribeiro gemebundo, com a pelle rasgada em feridas,
-o vestido de noiva em farrapos, os cabellos desgrenhados e sem flores,
-disse com expressão de alivio e desafogo:
-
-—Podemos morrer. Aqui não nos verão!
-
-O seu amado estava silencioso e rigido no meio da desventura, que por
-todos os lados o cercava. Em breve ali chegaria a sofrega matilha, que
-podia denunciar a estada d'elles n'aquelle mattagal aspero, escondidos
-no reconcavo d'um penedo, abraçados n'um ultimo alento d'amor. João que
-já uma vez batera aquellas brenhas, em alegre e bulhenta companhia,
-via-se agora como o timido veado, occulto por medronheiros, altas
-giestas e urzes seculares, com o fim de se furtar á impertinencia de
-miseros rafeiros!... Do peito sahiam-lhe impetos de coragem, tinha
-subitaneos repellões de musculos que o animavam a mostrar-se aos seus
-inimigos, tal como era, indomito e sem temôr. Poderia subir n'um
-arranco, qual outro cabrito montez, aquellas rochas escarpadas; poderia
-haver ás mãos as clavinas e as pistolas: depois em campo claro, peito a
-peito, combater com denodo, matando e morrendo. O seu coração ousado era
-uma cachoeira de sangue n'estes momentos; exaltava-se-lhe a mente n'uma
-febre de lucta. Erguendo-se, alto como um gigante, exclamou com os
-braços para o céu:
-
-—Sem ao menos ter aqui as minhas armas com que te possa defender!...
-
-Maria dedusindo d'estas palavras do seu amado, que elle tivesse o
-pensamento de se ir aperceber para a lucta supplicou:
-
-—Não me deixes só! Ninguem nos imaginará n'esta cova.
-
-—Depois de darem busca á casa e encontrarem cavallos e mais coisas que
-nos pertencem, como não adivinharão?...
-
-—Falta-lhes ainda descobrir-nos.
-
-—Bastam os cães para nos denunciarem, como se fossemos bicho medroso...
-
-Humilhou-se, abatendo de novo o seu corpo sobre a terra humosa. Havia
-gemer de raiva n'aquelle peito ancioso. Com aspecto torvo e fronte
-livida, olhava com vista negra para a espessura da matta, onde o vivo
-sol da manhã, apenas gerava uma penumbra. Zumbiam abelhas colhendo o
-alimento do rosmaninho, da flôr do tojo e dos sargaços; os innocentes
-piscos de peito vermelho volitavam de galho em galho; passara uma cobra
-entre o folhedo, que tapetava o chão. A espessura do medronhal já se
-enfeitava com rebentos novos; a vida universal, independente e
-descuidosa, crescia, remoçava-se á vista d'aquelles corações
-desfallecidos e sem esperança.
-
-A grita dos batedores avultava em intensidade. A matilha em busca accesa
-estava perto, subia e descia as penedias, entrava nas covas e na negrura
-dos mattos. Os dois amantes, ouviam perto os latidos; sentiam o ganir e
-o choro proprio da canzoada na ancia da procura. João da Cunha,
-paralytico na sua vontade e remettido á impotencia do seu aspero
-desespero, não falava: fechou os olhos para não ver, tapou os ouvidos
-para não ouvir. Maria, com a sua alma candida cheia ainda de fé e
-esperança, estava de joelhos, as mãos erguidas, orando fervorosa e
-supplicante, o pallido rosto innundado de lagrimas. Deu um grito e
-interrompeu a prece, ao ver por entre a espessura da velha urze que
-tapava a bocca do antro onde se tinham escondido, o negro focinho d'um
-valente cão do Crasto, que rosnava. João ergueu-se de repente, apurando
-todos os seus sentidos, e ficou ameaçador com o punhal na mão. O animal
-recuou, subindo para um penedo d'onde principiou a ladrar e a arremetter
-com ferocidade. Era um animal medeano, mas de cabeça poderosa: tinha o
-focinho agudo, a bocca rasgada como a dos lobos, as orelhas cortadas, em
-volta do pescoço uma colleira de pregos. O corpo zebrado de negro, em
-fundo pardacento, lembrava a pelle da hyena. O pello do dorso, mais
-cerdoso, estava erriçado pela colera; os olhos sanguineos, em circulo
-negro, olhavam com ferocidade; os dentes brancos, fortes, eguaes,
-arreganhavam-se deixando ver a lingua comprida, como uma chamma. Ladrava
-com desespero, resfolgando-lhe as narinas, pois via João da Cunha, com o
-punhal na mão, em attitude aggressiva. Outros cães da matilha vieram
-junctar as suas vozes ás do denunciante; os batedores, suppondo peça de
-caça renitente, algum javalli encurralado entre penedos, animavam com
-gritos os animaes, em quanto se iam approximando.
-
-O lance era de extremos perigos. João da Cunha, palido como a morte,
-estreitava ao seu valente corpo, o leve corpo de Maria, cujos irmãos, ao
-suspeitarem do valor do signal dado pelos cães se tinham já reunido
-juncto da ermida para conferenciarem.
-
-—São elles—disse Thomaz, o de coração mais duro. Examinei aquella casa,
-tem coisas que lhes pertencem. Ha um cavallo da Maceira.
-
-—Não nos fugirão agora—disse rancorosamente Vicente.
-
-N'estas palavras havia alegria e impiedade. Concertaram o seu plano, que
-consistia em descerem, ao mesmo tempo, de quatro pontos differentes,
-convergindo para o sitio onde o ladrido se accentuava mais vivo e feroz.
-Porfiavam por chegar primeiro que os batedores, para só por si
-liquidarem este pleito. Tinham calma no aspecto, mas levavam no coração,
-muito mais goso e ferocidade, do que teriam para desalojar a mais
-temivel das féras.
-
-Tamanha era a perseguição que os mastins lhes faziam que João e Maria
-tiveram de sahir do seu esconderijo, para ficarem em terreno aberto,
-onde se pudessem defender. Os cães do Corcovado, ouvindo a voz carinhosa
-da sua ama, tinham-se afastado da contenda; mas os restantes,
-especialmente o que primeiro os descobrira, mostravam-se de cada vez
-mais inimigos. Houve um instante em que o assedio se tornou tão violento
-que João da Cunha pronunciou alto:
-
-—Maus raios! Eu sem lhes poder chegar!...
-
-N'este apertado lance é que Maria descobriu, n'uma clareira, cercada de
-urzes e medronheiros, passar seu irmão mais velho, o Manuel, com a
-espingarda ao hombro, dirigindo-se para o sitio onde os cães ladravam.
-
-—Estamos descobertos!—disse apontando.
-
-—Inferno!—bramou João da Cunha. Não ter comigo as clavinas!
-
-Este apparecimento levou Maria para as visões da loucura. Pelo ramalhar
-das arvores, em cujos braços as espingardas se prendiam, pelo ondear dos
-mattos, percebia-se claramente que tambem os outros do Corcovado para o
-mesmo ponto convergiam.
-
-Maria pensou em encontrar sitio, ainda mais inaccessivel, lá para o
-fundo do precipicio. João desvairado, acompanhava-a, amparando-a, para a
-não deixar cahir. Nenhum d'elles sabia para onde era levado pelo
-destino, pela força interior que os impellia, mas ambos comprehendiam
-que mais para baixo era mais cavernoso o marulho da corrente, mais denso
-o arvoredo. Havia ahi uma queda de muitos metros, onde a agua levantava
-alegres nuvens de espuma, e depois se expraiava em larguesa de bahia
-tranquilla. Sem conhecerem o risco, para ahi se dirigiram, attrahidos
-pela escuridade e para se livrarem da perseguição crescente da matilha.
-Entraram n'uma passagem estreita, onde o ribeiro corria precipitado. O
-negrume do logar e o fragor da corrente cegava-os e ensurdecia-os.
-Chegaram á fraga d'onde a catadupa se precipita no fundo barathro. Ahi
-apareceram abraçados um ao outro, tão meigos e sorridentes, como no
-primeiro momento d'amor, e n'esse supremo instante é que uma voz de
-vingança se lhes levantou fronteira, ameaçando-os:
-
-—Nem mais um passo, que os varo!...
-
-Era o Thomaz, que os apontava com a arma aperrada.
-
-Maria deu um grito de pavor desprendendo-se dos braços do seu amado.
-Tapou os olhos para não ver e correndo pela lage fóra, precipitou-se na
-cachoeira fremente. João com os dentes cerrados de desespero, os olhos
-em chammas de loucura, ainda tentou agarral-a; porém acompanhou-a na
-queda, sem poder tocar-lhe no vestido de noiva.
-
- * * * * *
-
-O cadaver de João da Cunha, foi encontrado, depois, entre as penedias,
-com o craneo esmigalhado. Já os corvos crocitavam em volta da sua misera
-podridão. O de Maria, colhido amorosamente pela massa das aguas ao cahir
-appareceu boiando no remanso limpido, como o de Ophelia, retido por um
-innocente ramo d'urze. Foi d'esta humilde planta, que o seu corpo gentil
-recebeu o ultimo beijo de carinho.
-
-
- FIM
-
-
-
-
- INDICE
-
- Santa Margarida 1
-
- Pastoral 63
-
- Fogo do Céu 95
-
- Voltou 113
-
- Cresce o Mar 155
-
- O Gamarrão 171
-
- O Calvario do Amor 187
-
-*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A NOSSA GENTE ***
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- A nossa Gente, by Teixeira de Quieroz&mdash;A Project Gutenberg eBook
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-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<p style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of <span lang='pt' xml:lang='pt'>A nossa Gente</span>, by Francisco Teixeira de Queiroz</p>
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
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-</div>
-</div>
-
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:1em; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Title: <span lang='pt' xml:lang='pt'>A nossa Gente</span></p>
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Author: Francisco Teixeira de Queiroz</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Release Date: March 4, 2022 [eBook #67561]</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Language: Portuguese</p>
- <p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em; text-align:left'>Produced by: Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.)</p>
-<div style='margin-top:2em; margin-bottom:4em'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>A NOSSA GENTE</span> ***</div>
-
-
-<p class="center p0 big"><i>COMEDIA DO CAMPO</i></p>
-
-<hr class="r5" />
-<h1>A NOSSA GENTE</h1>
-
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p class="center p0"><strong><span class="big">Parceria Antonio Maria Pereira</span></strong><br />
-(LIVRARIA-EDITORA)<br />
-<i>50, 52—Rua Augusta—52, 54</i></p>
-<hr class="r5" />
-
-<p class="center p0 big">Obras de TEIXEIRA DE QUEIROZ<br />
-(<i>Bento Moreno</i>)</p>
-<hr class="r5" />
-
-<p class="center p0">COMEDIA DO CAMPO<br />
-(ROMANCES)</p>
-
-<table class="autotable">
-<tr>
-<td>
-I —Contos—1 vol. (ultimos exemplares)
-</td>
-<td class="tdr">
-500
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-II —Amor Divino—1 vol. (ultimos exemplares)
-</td>
-<td class="tdr">
-500
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-III —Antonio Fogueira—1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-500
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-IV —Novos contos—1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-600
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-V —Amores, amores...—1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-600
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-VI —A nossa gente—1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-500
-</td></tr>
-</table>
-
-<hr class="r5" />
-<p class="center p0">COMEDIA BURGUEZA<br />
-(ROMANCES)</p>
-<table class="autotable">
-<tr>
-<td>
-I —Os noivos—2 vol. (nova edição com o retrato do auctor)
-</td>
-<td class="tdr">
-1000
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-II —Sallustio Nogueira (exgotado) 1 grosso vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-1000
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-III —D. Agostinho—1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-600
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-IV —Morte de D. Agostinho—1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-600
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-V— O famoso Galrão—1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">
-600
-</td>
-</tr>
-</table>
-
-<hr class="r5" />
-
-<table class="autotable">
-<tr>
-<td>Arvoredos—(Contos escolhidos, edição diamante, com estampas)
-</td>
-<td class="tdr">
-800</td>
-</tr>
-</table>
-
-<hr class="r5" />
-
-<table class="autotable">
-<tr>
-<td>
-As minhas opiniões—(Estudos psychologicos e sociaes) 1 vol.
-</td>
-<td class="tdr">600</td>
-</tr>
-</table>
-
-<hr class="r5" />
-
-<table class="autotable">
-<tr>
-<td>
-O Grande Homem—(Comedia, exgotada).
-</td>
-</tr>
-</table>
-
-<hr class="r5" />
-
-<p class="center p0">EM PREPARAÇÃO<br />
-(ROMANCE)<br />
-<strong>A Caridade em Lisboa</strong><br />
-(<i>Comedia burgueza</i>)</p>
-
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p class="center p0 big"><i>COMEDIA DO CAMPO</i></p>
-
-<p class="center p0">(SCENAS DO MINHO)</p>
-
-<hr class="r5" />
-
-
-<p class="center p0 xxbig">A nossa Gente</p>
-
-
-<p class="center p0 p2">POR</p>
-<p class="center p0 big">TEIXEIRA DE QUEIROZ<br />
-(<i>Bento Moreno</i>)</p>
-
-<p class="center p0 p2"><span class="figcenter" id="img001">
- <img src="images/001.jpg" class="w10" alt="Imagem da editora" />
-</span></p>
-
-
-<p class="center p0"><span class="big">LISBOA</span><br />
-PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA<br />
-(<i>Livraria-editora</i>)<br />
-50, 52—Rua Augusta—52, 54<br />
-1900</p>
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p class="poetry p0 p2" xml:lang="fr" lang="fr">
-La plupart des drames sont dans les idées<br />
-que nous nous formons des choses. Les événements<br />
-qui nous paraissent dramatiques ne<br />
-sont que les sujets que notre âme convertit en<br />
-tragédie ou en comédie, au gré de notre caractère.</p>
-
-<p class="poetry">H. DE BALZAC.—<i>Modeste Mignon.</i></p>
-
-<hr class="r65" />
-<p class="center p0">LISBOA<br />
-Typographia da Parceria Antonio Maria Pereira<br />
-<i>11—Apostolos—11</i><br />
-1899</p>
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_249">[Pg 249]</span></p>
-<h2>INDICE</h2>
-<table class="autotable">
-<tr>
-<td>
-Santa Margarida
-</td>
-<td class="tdr page">
-<a href="#Page_1">1</a>
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>Pastoral
-</td>
-<td class="tdr page">
-<a href="#Page_63">63</a>
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-Fogo do Céu
-</td>
-<td class="tdr page">
-<a href="#Page_95">95</a>
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-Voltou
-</td>
-<td class="tdr page">
-<a href="#Page_113">113</a>
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-Cresce o Mar
-</td>
-<td class="tdr page">
-<a href="#Page_155">155</a>
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-O Gamarrão
-</td>
-<td class="tdr page">
-<a href="#Page_171">171</a>
-</td>
-</tr>
-<tr>
-<td>
-O Calvario do Amor
-</td>
-<td class="tdr page">
-<a href="#Page_187">187</a>
-</td>
-</tr>
-</table>
-</div>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_1">[Pg 1]</span></p><h2>SANTA MARGARIDA</h2>
-
-
-<h3>PRIMEIRA PARTE</h3>
-
-
-<h4>I</h4>
-
-
-<p>Era adoravel no berço pela sua tranquillidade feliz: esse primeiro anno
-de existencia passou-o a mammar e a dormir, deixando de mammar para
-dormir, e interrompendo o dormir só para mammar. Nos curtos intervallos
-d'estas occupações sérias mostrava pouca vivacidade de caracter: para
-tudo e para todos olhava com tal incomprehensão, que se julgou que fosse
-doente, ou de somenos intelligencia. Pouco mais do que a planta que
-vegéta apegada á terra, e que só estima a terra que a nutre; pois o
-unico apego ou affeição manifestado n'este primeiro periodo de vida, foi
-pela ama, a Antonia, mulher do caseiro, e desdenhava os afagos da mãe
-verdadeira, preferindo-lhe os d'aquella que a sustentava <span class="pagenum" id="Page_4">[Pg 4]</span>de leite. A boa
-creatura ufanava-se com isto e no intimo julgava-se com melhor parte na
-maternidade de Margarida do que a propria D. Claudina, que a déra á luz.
-Este ciume levou-a a dizer ao seu homem, que mais queria aquella menina
-do que ao seu Zé, cuja creação entregara a uma irmã, para tomar conta da
-filha dos patrões, como estava assente e ajustado que fosse, mesmo antes
-dos dois partos. E justificava-se:</p>
-
-<p>—Pois se ella é tão minha amiga, que não póde estar um só instantinho
-sem mim!... Meu rico anjo!... Se accorda e me não vê, logo chora que é
-grande matação. Lá o meu rapaz era muito mais bravo e até ruim. Dava-me
-cada dentada!... Havia noites, que eu não pregava olho por causa d'elle.</p>
-
-<p>Assim correu o primeiro anno; mas quando se entrou no seguinte e pela
-volta dos quatorze mezes, começaram para a misera Antonia noites
-difficeis e tormentosas com o rompimento das presas. Tudo que até ahi
-fôra doçura de caracter, se transformou em rabugem insupportavel.
-Quantas dôres não soffreria a pobre creança para chorar continuadamente,
-de dia e de noite, que nem se comprehendia como tivesse folego para
-tanto!... A ama aguentava com heroicidade e lagrimas as mordeduras no
-peito, que chegavam a fazer-lhe sangue. Os medicos prohibiram o desmamme
-n'esta grave crise, que foi tão violenta e alarmante, como qualquer
-perigosa molestia. Esperava-se que isto <span class="pagenum" id="Page_5">[Pg 5]</span>passasse; decerto havia de
-passar e passou, depois de ter durado tres longos mezes, com a creança
-entre a vida e a morte. Não lhe faltaram com nenhuma coisa que podesse
-minorar aquelle soffrimento horrivel: além dos medicos que vinham ambos
-todos os dias, foram requeridos os mais afamados e milagrosos santos da
-visinhança; e consultadas as feiticeiras mais sérias, que predisseram
-com grande tino e sagacidade, sobre cueiros e camisinhas da innocente
-Margarida. Mas n'esse periodo atroz dos tres mezes tudo parecera
-infructifero: as convulsões eram aterradoras, a febre continuada, o
-emagrecimento implacavel! As honras da victoria, por fim, couberam a
-santa Margarida, padroeira da capella da casa, cujo valimento
-imploraram, adiantando-lhe uma illuminação de velas de cera em oito dias
-e oito noites contadas hora a hora. As primeiras reconhecidas melhoras
-declararam-se exactamente no fim d'este espaço de tempo, e por tal
-motivo houve depois missa cantada em acção de graças e sermão, em que o
-padre José Pitança disse coisas maravilhosas ácerca do incontestavel
-milagre.</p>
-
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Passara o perigo e com elle todas as afflicções n'aquella casa. A
-creança melhorou, entrando n'uma phase de saude regular. Voltaram-lhe as
-<span class="pagenum" id="Page_6">[Pg 6]</span>bellas côres do rosto. Acordou d'esta especie de lethargia com
-vivacidade irrequieta nos olhos e signaes de esperteza em todo o
-semblante, o que até ahi se lhe não tinha notado. Os paes viviam mais
-contentes do que nunca, pois que a filha lhes fôra restituida
-accrescentada em espirito e saude. Antonia é que não seria completamente
-da mesma opinião, visto que a sua querida menina já não era tão meiga e
-docil de caracter. Estava uma insupportavel traquina: tinha muito genio,
-um frenesi permanente lhe dominava a vida infantil, custava muito a
-aturar. Os nervos ainda se lhe exacerbaram e o querer tornou-se mais
-irascivel, quando aos sete annos veio uma segunda crise de doença.
-Aquelle pequenino rosto, uma oval delicada que podia conter-se na exigua
-mão d'uma fada; aquella bocca pequenina e vermelha como um botão de
-rosa; os dois olhos negros como duas amoras... tudo se transformara a
-ponto de parecer um rosto feio, com dentes transitoriamente deseguaes e
-em posição cahotica, beiços grossos da inflammação, e olhares violentos
-e maus. A misera Antonia passou n'este periodo amarguras desconhecidas:
-eram mordedellas, beliscões e pancadas com que a mimoseava esta sua
-filha de leite. Não socegava, nem de dia nem de noite. O seu dormir
-d'agora, era tão vario e turbulento, que mesmo durante o somno seguia a
-encarniçada batalha da vida, com gargalhadas, choros, gritos, gestos e
-palavras de violencia, como se estivesse acordada. A paciente ama <span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span>andava
-constantemente a pé com um frio de lobo, para a cobrir; pois
-considerava, que, se a pequena lhe apanhasse algum resfriamento, ella
-mais do que ninguem pagaria o mal com vigilias e canceiras. Durante
-essas longas horas de silencio, á luz tremula da lamparina que havia no
-quarto commum, escutando o vento que uivava nas carvalheiras da matta e
-a chuva que grazinava no telhado e nas vidraças, é que a humilde serva
-tinha os seus desabafos deante da imagem da Virgem, que estava no
-oratorio:</p>
-
-<p>—Mesmo uma cabrita!... Não é do meu leite... não! Isto... trocaram-m'a
-por outra. Se esta Nossa Senhora a levasse para a sua companhia...</p>
-
-<p>Mas vinham-lhe logo idéas de arrependimento, por causa de taes
-arrenegos. Creara-a ao seu peito e lembrava-se com amor das consolações,
-que Margarida lhe dera no primeiro anno de amammentação, quando era
-meiga como um cachorro recem-nascido, formosa como um anho de lã branca.
-Não se lhe desvanecera ainda da pelle a sensação deliciosa d'aquelle
-contacto setinoso; no mamillo sentia ainda o sugar angelico que lhe
-inebriara de caricias todo o corpo e até, por vezes, a tinha adormecido
-com deleites (como dizem que produz a cobra manhosa, que magnetisa a
-teta ubere de que se sustenta ás furtadelas). Então Margarida era uma
-bolinha de carne, que dava gosto mostrar a toda a gente, e com quem
-appetecia dormir quando ella se mettia pelo corpo da ama dentro, feita
-<span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span>n'um novello, os joelhinhos proximo do queixo, as mãosinhas agarradas na
-mamma com medo que lhe fugisse. Taes coisas nunca esquecem, deixam, na
-memoria de todo o corpo, impressão de suavidade e doçura tal, que
-impossivel é olvidal-as, mesmo quando surjam novos factos de natureza
-varia a contradizel-as. Foi por causa da primeira crise de dentição, que
-Margarida mammou muito para além do anno; e ainda para maior mal,
-Antonia continuara-lhe este vicio bem mais tempo do que se suppunha. Já
-o peito estava sêcco; a menina, que dormia com ella, não pegava no somno
-sem que tivesse a chucha na bocca e fazia-o com tanto geito e goso que a
-ama lhe dizia:</p>
-
-<p>—Sua lambona! No dia em que se casar ainda ha de pedir d'isto... Caso é
-que parece correr-lhe...</p>
-
-<p>E corria e ella deixava correr, pois que n'esse sugar improficuo e
-vicioso, a boa mulher, além de não querer contrariar Margarida,
-encontrava a lembrança de tantas meiguices passadas, que até lhe vinham
-lagrimas de contentamento. Se ao despegar a creança a bocca, por cahir
-em somno, ella reconhecia no bico do peito algumas gottas tiradas do seu
-sangue, vinham-lhe assomos de ternura, em que perdoava todas as
-rabinices do dia. Foram n'este viver defezo até aos cinco annos da
-pequenita, pois Antonia só assim encontrava meio de lhe dominar as
-crises de genio violento. Quando a via com o diabo no corpo, fechava-se
-<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span>com ella no quarto ás escuras e lá perpetravam o seu crime. Mal pensava
-a ama, que com tal proceder, concorria para tornar aquelles nervos (já
-de sua natureza vibrantes e sempre álerta para explodirem como centelhas
-electricas) exigentes e melindrosos, logo no começo da vida! Pois assim
-se formou aquelle cerebro excentrico e phantasioso: ora illuminado de
-alacridade estrondosa e communicativa, ora obscurecido por tristeza
-bronca e inconvivente; hoje da suavidade doentia da rola amorosa, ámanhã
-da rudeza do milhafre accommettendo com as garras e o bico. Quando presa
-de melancolia, procurava escuras sombras nos arvoredos da matta contigua
-á habitação, secrestando-se assim do convivio de todos; n'outras
-occasiões, com a mente jubilosa praticava innumeras temeridades—subindo
-a arvores e a telhados, provocando os viçosos bezerros que pasciam no
-prado, soltando os sanhudos cães de guarda para accommetterem pacificos
-transeuntes e os pedintes que vinham ao portal. Porém alegrias ou
-tristezas eram-lhe de pouca dura: simples fulgurações de nervos, que
-logo se apagavam após ephemero clarão. Appareciam frequentes e
-ligavam-se taes estados de sentir contrarios, mostrando, no emtanto,
-accentuado pendor para tudo que fosse bulha. Traziam tambem essas
-rebeldias de nervos caracter de contagiosas ou suggestivas para as
-outras creanças, que a imitavam e seguiam com enthusiasmo e obcecação,
-collaborando com ella em <span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span>obras destruidoras contra animaes, flores ou
-mobilia. Esta pequena imperatriz da maldade impunha auctoritariamente a
-imitação do seu procedimento tyrannico e contundente. Os paes eram
-ricos, queriam-lhe muito e consentiam-lhe tudo; por isso encontrava
-sempre como victimas para esgotar a turbulencia da sua alma um velho
-creado paciente e tonto, um cão gottoso e indefeso que dormia juncto da
-lareira, um pobre jumento aposentado, que soltavam para comer nos
-vallados. Porém a passividade soffredora, que taes entidades lhe
-offereciam, mais lhe fazia referver o sangue; não se ressentirem das
-suas provocações tomava-o como de pouca consideração pelo seu poder; o
-soffrimento alheio causava-lhe regosijos de que dava mostras com animo
-contente e satisfeito. Quem podia, evitava-lhe o contacto; mas os
-creados e dependentes faziam-lhe vontades e muitas festas deante dos
-paes; diziam-lhe palavras de carinho e agradaveis; louvavam-lhe a
-docilidade de genio e animo dadivoso; porém, não poucas vezes, Margarida
-lhes commentou os dizeres com esta que tal rabinice:</p>
-
-<p>—Tu dizes isso para a mamã te ouvir...</p>
-
-<p>E D. Claudina sempre a corrigia assim:</p>
-
-<p>—Bem sei que és ruim como as cobras; mas és minha filha...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span></p>
-
-
-<h4>II</h4>
-
-
-<p>Os doze annos de Margarida, coincidindo com o domingo de Paschoela, em
-que se celebrava o orago da capella da casa, foram festejados com
-demasiada pompa. Quem primeiro lembrou o ajustado d'essas duas datas foi
-Antonia, e D. Claudina assignalou a importancia do facto, por serem os
-doze annos a edade que marca a transicção da inconsciencia infantil,
-para a responsabilidade de quem já repara na sombra. Talvez ambas
-tivessem o pensamento reservado de pedir a collaboração da santa, com o
-fim de conseguirem qualquer mudança favoravel no caracter irrascivel da
-creança!... Tem-se visto milagres d'estes e maiores; nunca se deve
-desesperar da possibilidade da intervenção do poder divino <span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span>nos destinos
-humanos. Posta a questão de assim conseguirem para a alma de Margarida
-uma correlação de belleza com a do seu rosto, que era, em certos
-instantes, d'uma belleza seraphica, não se pouparam os paes a larguesas.
-Formaram plano grandioso: haveria missa a tres padres, com Gloria e
-Credo cantados por côro escolhido; haveria sermão de circumstancia
-pregado por qualquer padre de nomeada, que viesse de Braga, onde os ha
-bons; haveria fogo preso e musica de vespera; romaria e procissão com
-anjinhos no dia. Isto pelo que toca ao divino: no que diz respeito ao
-profano, grande jantar com numerosos convivas, uma especie de baile no
-domingo á noite, que se realisaria na grande sala de ordinario destinada
-a estendal e armazem das fructas, batatas e feijão, que se guardavam
-para todo o anno.</p>
-
-<p>Quanto mais se martellava n'isto, mais se estendia e melhorava a
-primitiva idéa. João da Costa assentou em que, para celebrar
-condignamente a juncção da festa da padroeira da sua capella com os doze
-annos de sua filha, devia attrahir muito povo de perto e de longe e por
-tanto encommendou ao Zé Osti, o mais afamado fogueteiro do Alto Minho
-(onde se conhecem dos primeiros) um fogo preso chibante! Sabia elle
-muito bem que sendo conhecido este promenor, não ficariam em casa senão
-os muribundos; porque até os cegos e paralyticos haviam de concorrer.</p>
-
-<p>Não se enganara: era de vêr como dos campos <span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span>em lavrada, se levantavam
-alaridos de alegria no dia em que atravessaram as aldeias visinhas o
-proprio filho do Zé Osti, capitaneando uma duzia de mulheres, que á
-cabeça transportavam as diversas figuras e o abundante fogo do ar.
-Tambem João da Costa se não esqueceu de mandal-os esperar pela musica
-que tinha contractada, e que á frente vinha annunciando o caso com o
-estrondo dos seus metaes, tocando grandiosa marcha. A galhardia dos
-trombones, figles e cornetins, lardeados pelos alegres clarinetes e
-flautas soprados com alma e coração, e tudo esfuziado por um soberbo
-requinta que fôra musico do tres de Vianna, formavam um tal conjuncto
-alegre e ostentoso, adeante dos bombos e pratos, que era de deixar bois,
-charrua e arado, para vir ao caminho gozar, admirar e applaudir! Tudo
-merecia a imaginação copiosa e deslumbradora do afamado fogueteiro! As
-formosas moçoilas que abandonavam, por momentos, as sacholas e vinham
-acompanhadas dos namorados ver as ricas peças, bem o demonstravam
-exclamando:</p>
-
-<p>«Olha a chieira d'aquella macaca de chapeu de flôres! Veremos se terá a
-mesma, quando lhe rebentarem as bombas por baixo da saia de balão.»</p>
-
-<p>«Olha o barbeiro a amolar as navalhas! No sabbado á noite é que as hade
-amolar depressa!...»</p>
-
-<p>«Olha o janota de chapeu alto, que grande charuto leva na bocca! Aquillo
-é que hade esguichar fogo, quando lh'o accenderem.»</p>
-
-<p>«E o painel de Santa Margarida cheio de lagrimas <span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span>de côres á roda! É obra
-apilarada! Não vêdes gentes, como se parece com a morgadinha?!...»</p>
-
-<p>Do fogo do ar é que se presumiam coisas de espavento, pelo que se vira
-na passada romaria da Agonia. Então deitaram-se foguetes com cabeças
-maiores do que as de gente, e houve por momentos receio de que pudessem
-estremecer e toldar os vinhos que ainda estavam envasilhados, ou aluir
-qualquer penedo mal seguro! Todos tinham tamanho respeito aos monstros,
-que o Zé Osti, não encontrando nas localidades homem bastante corajoso
-para lhes chegar a murraca, nas occasiões se fazia acompanhar por um
-especial, que tinha o craneo por forma duro e resistente, que não
-haveria receio de que lhe rebentasse o sangue pelos ouvidos, ou se lhe
-voltasse a mioleira, se por acaso um dos foguetes não subisse e lhe
-estalasse aos pés.</p>
-
-<p>Era um sugeito atarracado e musculoso, que para exercer o mister tinha
-de arroxar o craneo com tres lenços em volta. No intuito de prevenir
-desgraças esses foguetes gigantes, deitavam-se sempre longe do ponto da
-romaria, e para agora haviam escolhido o conjuncto especial de penedos
-chamados o Castello, com o fim de que o estrondo não encommodasse.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Á chegada da musica e do fogo, a creadagem de João da Costa, logo
-appareceu no largo da entrada a distribuir copos de vinho, por toda
-aquella gente que vinha suada. Foi um despejar como nunca se vira: «e
-vivam os senhores fidalgos, por muitos annos e bons», «e viva a senhora
-morgadinha que ha de arranjar um namorado de truz!». Em quanto houve
-mollete nos cestos foi estacinhar e beber; achando-se já fartos,
-recomeçou a musica com tanta furia, que até parecia que se estava no dia
-da festa. O fogueteiro para mostrar a sua fazenda descarregou-a ali
-mesmo no quinteiro, pondo as figuras em correntesa, para que todos as
-vissem e admirassem. Havia realmente progresso e modernice quer nas
-attitudes, quer no vestuario, pois tudo era mais humano e natural. Os
-corpos com outros geitos e menos rigidos; nas roupas, os papeis
-semelhavam fazendas—de seda pareciam as saias e os corpetes, de casemira
-as calças e casacas. Até era pena que tão bellas coisas fossem
-destinadas a rasgões violentos de bombas e a arderem no meio da
-alacridade do povo! Tudo tinha, porém, o fim de augmentar a
-magnificencia da festa em honra de Santa Margarida e dos formosos doze
-annos da sua afilhada. João da Costa desceu com alguns amigos a apreciar
-de perto tanta maravilha e perfeição <span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span>e com um gesto orgulhoso de cabeça,
-indicando um monte especial de foguetes perguntou:</p>
-
-<p>—São os taes?</p>
-
-<p>—Sim, senhor—respondeu o Osti.</p>
-
-<p>—Parecem cabeças de toiro! Subirão?</p>
-
-<p>—Como perdises que encastellem, verá! Iriam ao ceu se fosse preciso.</p>
-
-<p>Eram as faladas maravilhas, timbre e gloria do famoso artista. Os
-creados da casa, com as canecas vasias na mão pasmavam deante d'ellas,
-considerando absortos, que alma damnada teriam dentro, para com o
-estrondo ao rebentar, metterem medo a quem estivesse mesmo a grande
-distancia.</p>
-
-<p>Como fosse dia de sexta feira a musica retirou-se depois do beberete,
-para voltar na noite seguinte, que era a do arraial. Antes havia a
-ultimar os trabalhos de ornamentação da capella e escolher bem o sitio
-do fogo preso, para que fosse gosado por toda a gente. Porém com o fim
-de não haver descontinuidade no enthusiasmo pela apregoada festa,
-chegaram n'este dia pela volta das onze da manhã os tres zabumbas, as
-seis caixas e a respectiva gaita de folles, que João da Costa
-encommendara, e entraram na freguezia d'um modo ovante, tocando com
-verdadeira imponencia, para despertar a alegria nos corações.
-Atravessando o povoado em passo lento, solemne e compassado enchiam os
-ares com o estrondo magnifico dos seus instrumentos, e logo se dirigiram
-á casa de habitação dos festeiros para os saudar. Então ali é que foi o
-bom <span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span>e o bonito, depois de despejarem mais de um cantaro de vinho sobre
-uma boa duzia de postas de bacalhau e brôa!... Como ficassem alegres e
-satisfeitos, quizeram mostrar melhor a sua gratidão e artes; por isso se
-proposeram a exhibir todos os segredos dos seus instrumentos. Bombos a
-um lado, caixas ao outro e gaita no centro, começou o grande apparato!
-Os zabumbas formavam um fundo de quadro de paisagem colossal e
-montanhosa; os seis tambores pareciam alegres comadres a chasquear e a
-ralhar; o da gaita de folles pavoneava-se desvanecido com ella nos
-braços, encostada ao hombro como um tropheu!... Veio a familia e vieram
-os convidados á janella; o rapazio gaudiáva dando cabriolas. N'um certo
-momento dois dos caixas, que andavam sempre em rixa, separaram-se dos
-companheiros para repenicarem com todo o primor, dobrando o rufo com
-elegancia e mestria. Era um florear de baquetas em tom cadenciado e
-tremulo sobre a pelle distendida das fallecidas cabras. Mostravam
-prestesa, pulso rijo e flexibilidade de musculos. Havia em tudo aquillo
-enthusiasmo e coração de valentes, o que se tirava da energia facial com
-que se combatiam, procurando reciprocamente cançar-se. No mais vivo da
-sequestra, um dos de zabumba, que tambem presumia de sua fama, saltou
-para o meio do terreiro e principiou muitas variações, saltando e
-pulando com mil requebros. Era homem agil e physionomia viva de olhos
-bugalhudos. Com a <span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span>baqueta da mão direita feria o instrumento em todas as
-posições imaginaveis: por cima da cabeça, com elle horisontal á ilharga,
-suspenso nas costas, deitando-se no chão com elle sobre o ventre! Os
-companheiros seguiam-lhe a destresa de athlecta, com sorriso sceptico e
-molle, tirando dos seus bombos sons mais baços.</p>
-
-<p>O gaiteiro vendo applaudidos por todos os assistentes aquellas
-galhardias, não lhe consentiu o animo ficar em obscuridade. Era homem
-baixo e grosso, physionomia ossea, mas esperta. Filho d'outro de
-Compostella, herdara de seu pae o instrumento e a prenda de o tocar com
-distincção. Afastando-se dos zabumbas e caixas triviaes, principiou a
-rabear entre os tres que já se exhibiam com apparato e luxo de ademanes.
-Quiz tambem chamar sobre si a attenção dos festeiros. Com o ventre do
-instrumento impando, requebrava-se em passo cadenciado e dolente de
-dança gallega: tirava; ora sons plangentes e maguados como gemidos
-tristes; ora um psalmear monotono e roufenho, que ondulava no ar como o
-vôo pesado d'um ganço; ora guinchos agudos como estylêtes ou espinhos
-que entrassem nos ouvidos. Saracoteava-se com o instrumento ao collo,
-mechendo os dedos n'uma especie de canudo de flauta e soprando-lhe no
-ventre por um bico de cegonha.</p>
-
-<p>Os bombos a falar grosso, as caixas a rufar certo, o gaiteiro a tocar
-variado, tudo n'uma paisagem primaveril de folhas tenras, um bom e
-carinhoso <span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span>sol de primavera a aquecer, era deveras divertido e
-excentrico! Uma atmosphera empregnada dos aromas de mil plantas, tornava
-esta sexta feira de Paschoela risonha e feliz, o que bem se reconhecia
-dos semblantes de toda essa gente, pois tinha alma para o sentir.</p>
-
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span></p><h4>III</h4>
-
-<p>Por todas as disposições se reconhecia que este excepcional domingo e
-estes doze annos de Margarida viriam a marcar data na historia da
-familia. Os convidados, amigos e parentes de João da Costa, que já
-muitos tinham chegado para assistir ao arraial, mostravam-se
-interessados por verem tanta gente assim atarefada e remexida: eram
-todos os creados da casa, os armadores da capella com Zé Maximo á
-frente, que tambem mandava nas illuminações, o fogueteiro com os seus
-ajudantes a abrirem covas para o fogo preso, os dos zabumbas, os das
-caixas e o gaiteiro... todos a alarmarem a freguezia e redondezas. Uma
-balburdia, uma abundancia, uma grandeza sem par!... O amor, louco e
-incondiccional, <span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span>d'aquelles paes por sua filha, explicava o turbulento
-apparato; mas, de todas as pessoas ali reunidas, uma parecia menos
-gostosa do que se passava e era a festejada creança. Agitava-se é certo,
-andava no meio d'aquellas coisas, com outras meninas e rapazes da sua
-egualha; porém reconheciam-n'a possuida d'uma das suas crises de
-tristeza e inconvivencia, como quando fugia para a matta, a esconder-se
-na espessura dos arvoredos, para evitar o contacto de gente, que lhe
-melindrasse a sensibilidade. A mãe, que a perscrutava, momento a
-momento, percebera, pelo arrepanhado das linhas faciaes, pelo seu olhar
-frenetico, que Margarida soffria uma sezão de impaciencia; no seio
-decerto lhe crescia um desejo inconstante, e logo que poude tel-a entre
-os braços perguntou-lhe:</p>
-
-<p>—Que tens tu, minha filha, que andas tão esquisita?! Falta-te alguma
-coisa?</p>
-
-<p>—Não sei... Falta!...</p>
-
-<p>—O que?...</p>
-
-<p>—Não sei... Falta...—repetiu desprendendo-se, para se ir misturar aos
-que admiravam o fogo disposto no quinteiro. As creanças faziam os seus
-commentarios, comparando estas com outras figuras que tinham visto arder
-em romarias, e dirigiam as suas observações a Margarida em tom
-bajulador, que ella acceitava com sobranceria de dona. João da Costa,
-homem prevenido, vendo-as assim zaranzar, e temendo qualquer semsaboria,
-disse ao filho do Zé Osti:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span></p>
-
-<p>—Olha lá. Não seria melhor recolher tudo na adega?! Póde estragar-se
-qualquer coisa, entendes?...</p>
-
-<p>—Mais que isso, póde haver trapalhada. Um lume prompto, a ponta d'um
-cigarro dentro d'aquelle cesto (indicou-o com o dedo), levava tudo pelos
-ares, emquanto o diabo esfrega um olho...</p>
-
-<p>Abriu-se a ampla porta, que tinha fechadura valente. Ali ninguem
-entraria sem consentimento e o morgado accrescentou para o fogueteiro:</p>
-
-<p>—Tu que és responsavel ficas com a chave. Ninguem mais tem que cheirar
-n'estas coisas.</p>
-
-<p>O filho de José Osti, com o seu pessoal, é que collocou dentro dos dois
-lagares o fogo, arrumando-o pela sua importancia. A um lado o que era
-figurame, bem separadas as peças, para se não destruirem os enfeites que
-seriam o encanto da vista; ao outro o fogo do ar, as taes abantesmas com
-bombas do tamanho de cabeças de toiro. O cesto mysterioso e suspeito, já
-assignalado como coisa de circumstancia e perigo, foi collocado a um
-canto com a seguinte recommendação do Osti, dita em tom de grande preço:</p>
-
-<p>—São os trincafios, a namite, as lagrimas, a polvora fina e outras
-coisas... Isso póde incendiar-se e será uma de mil demonios!...</p>
-
-<p>As creanças, na presença de quem a recommendação fôra feita, ficaram
-maravilhadas, medrosas e attentas. Que coisas terriveis e bellas não
-estariam debaixo d'aquella toalha de branco linho, cobertura <span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span>do modesto
-cesto!... Os grandes olhos de Margarida haviam-se illuminado de fulgor
-cupido e excepcional, logo ao primeiro aviso no quinteiro; agora
-fixaram-se com uma absorpção intensa no logar onde haviam pousado o
-objecto defezo. Com um impulso que lhe guiava a vontade, a sua pequena
-mão dirigiu-se á toalha branca, para a levantar, mas o fogueteiro
-susteve-a, dizendo:</p>
-
-<p>—Ó menina! Ahi não se bole! Não ouviu?!...</p>
-
-<p>João da Costa incutiu-lhe maior curiosidade e pavor:</p>
-
-<p>—Ó filha! Nem te approximes sequer!...</p>
-
-<p>—O que aconteceria se eu bolisse?—perguntou com os olhos meigos e
-risonhos fitos no Osti.</p>
-
-<p>—Podia-se incendiar tudo, n'um instante, como um relampago—explicou.</p>
-
-<p>—Então havia de ser bonito...</p>
-
-<p>—Isso como um ceu aberto!—encareceu o artista.</p>
-
-<p>Todos sahiram. O grande portão, por onde podia entrar um carro com uma
-dorna, fechou-se com estrondo magestatico. João da Costa depois de, por
-sua propria mão ter dado volta á chave, entregou-a ao fogueteiro:</p>
-
-<p>—Toma-a, que és o responsavel.</p>
-
-<p>O rosto de Margarida soffreu nova transfiguração: não era de alegria,
-nem de tristeza o sentimento que exprimia, mas de reserva e idéa fixa
-que lhe obcecasse o cerebro. Fugiu para o seu quarto, abandonando os
-companheiros de brinquedos e ali <span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span>se quedou com a vista absorta na cal
-branca da parede... Sorria deliciosamente a uma visão angelica, ou
-carregava o sobr'olho n'uma expressão voluntariosa. Sentada na borda da
-cama, o queixo levantado na pequenina mão, seguia miragem ou chimera,
-que lhe encantava a mente, levando-lh'a a voar pelos infinitos espaços.
-Como se houvesse tomado qualquer resolução, desceu de onde estava, bateu
-imperiosamente com o pé no chão e pronunciou:</p>
-
-<p>—Pois hei de ir lá vêr o que é!...</p>
-
-<p>Sabia perfeitamente como poderia entrar na adega, mesmo que a porta
-estivesse fechada. Quantas vezes, no jogo das escondidas com outras
-creanças, ali se sumira sem que ninguem a podesse encontrar!
-Ensinara-lhe o caminho uma cadella, que lá dentro tivera a sua ninhada,
-e que a occultas a ia amammentar, entrando por um postigo da face
-poente, que conservavam sempre aberto para arejo dos toneis. Trepando
-pela parede, como muitas vezes praticara, entraria no antro do mysterio,
-e sosinha (como era seu desejo) podia admirar o que fôra prohibido a
-toda a gente. Deviam ser maravilhas nunca vistas, deslumbramentos nunca
-apreciados!... Que intenso prazer lhe não dava, infringir ordens
-terminantes de seu pae e do fogueteiro! Um doce e longo effluvio lhe
-percorria todos os nervos; antegostava com delicia incomparavel o
-instante de poder tocar de leve os encantos que lhe fizeram conceber!
-Descobriria o segredo d'esses <span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span>deslumbramentos, que recamavam o negro
-manto das noites d'arraial, com estrellas de côres! Saberia o que eram
-em germen as lagrimas, antes de escorrerem em escadeas de luz e de
-maravilharem a imaginação! E era-lhe devido este goso pela posição
-especial que occupava em tal festa. Não era ella a senhora, a festeira,
-a pessoa que deveria mandar sem estorvos em tudo? Estremecia de
-contentamento, ao delinear na mente o furtivo accesso pelo postigo
-grande, por onde entrava a cadella, quando ia amammentar os filhos.</p>
-
-<p>Realmente, ao lusco-fusco d'esse dia, no periodo em que as sombras
-principiavam a cahir solemnemente das montanhas com todo o seu poder de
-mysterio, Margarida sahiu de casa com a alma aguilhoada para aclarar o
-enigma. Munira-se d'um coto de vela de cêra que tirou do oratorio, d'uma
-caixa de lumes-promptos, e foi sem ser presentida. Logo que se encontrou
-dentro da adega, diluido o seu corpo na treva, accendeu a luz para
-retomar a propria individualidade. Á vista do pequeno cesto coberto de
-toalha lavada e branca (qual pacifico e substancial merendeiro) o
-entendimento entorpeceu-se-lhe com a força da curiosidade. Seria
-possivel estarem ali escondidos os maravilhosos lumes, que, abertos no
-escuro da noite, offuscavam o scintilar das estrellas?! Fontes de luz,
-variadas no brilho e nas côres; descenso de adornos do firmamento, que
-duram instantes; maravilhas de pequenos meteoros, que, ondulando no
-espaço como <span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span>espiritos angelicos, buscam repouso glorioso; rebentos da
-treva como flores luminosas de cristal; adereços de pedras preciosas
-jorrando do interior do céu... era o que ella presumia sob a modesta
-toalha branca... Quantas vezes os olhos do seu corpo não haviam cegado
-com os deslumbramentos d'essas lampadas sagradas suspensas sobre a
-Terra! As radiantes lagrimas, quando brancas, parecem chuva de
-claridades ou pranto celeste brotando como rozeiral de diamantes e
-morrendo, depois, suavemente como beijos; quando de côres semelham
-rosarios de rubis, de topazios, de esmeraldas, que transformam a treva
-em interior illuminado de palacio encantado, habitação de fadas. Tudo
-isto, sabia-o Margarida porque lh'o tinham revelado na prohibição feita,
-e estava ali inerte sob a toalha branca. Não devia ver e averiguar o que
-fosse? Correria risco quem o tentasse... mas para aquelle espirito
-irrequieto e temerario, o perigo era um incitamento. Com a pequenina mão
-direita, tremula de commocção que não de susto, levantou a ponta da
-toalha alumiando-se com a vela acesa... O que viram os seus olhos
-cubiçosos e egoistas?!... Nada, ou pouco mais: embrulhos em papeis;
-alguns pequenos frascos com liquidos e tigelas com agua de onde se
-mergulhavam coisas; meadas de torcidas de algodão impregnadas de
-polvora, com envolucro de papel, a que chamam trincafios. Seria d'isto
-que sahiam esses lampadarios aereos, que deslumbravam os olhos de tanta
-gente?! Mal se podia acreditar, <span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span>pois toda a apparencia era de objectos
-vulgares, inertes e sem flammancia. Cheia de confiança em si e minada do
-desejo de averiguação, principiou com os seus delicados dedos a remexer
-todas aquellas miudesas, emprestando-lhes alguma vida, para d'ahi sahir
-a acalmação da febre que lhe exacerbava a mente. Talvez que, ao seu
-contacto, das substancias mortas nascessem vivas faiscas, inicio de
-prodigios! Talvez!... Quem poderia dizer o contrario? Aquelle algodão
-embebido em polvora e envolto em papel, muitas vezes ella o vira
-encendiar-se, se lhe applicavam a morraca... Se agora lhe achegasse a
-luz, talvez ardesse um boccadinho e fosse este um começo de
-fascinações... Nos olhos vivos e sequiosos apparecia o signal de que tal
-desejo lhe crescia no cerebro, como lavareda dominadora. Com mão timida
-ainda, mas guiada por força que não podia contrariar, foi ajuntando a
-chamma da vela com o ponto negro do trincafio... Apparece o primeiro
-brilho e logo Margarida retira promptamente a pequenina mão, para que
-não continue a arder... Mas esse ponto luminoso foi logo maior e grande,
-propagou-se por todo o cesto, como um vaga-lume rabioso... Alarga-se
-n'uma luz azul e viva de relampago, seguem-se estoiros e logo pavoroso e
-infernal ruido, que tendo começado dentro do cesto, se propagou com a
-velocidade a todo o espaço da ampla adega. Que scena phantastica,
-maravilhosa, deslumbrante e cahotica, esta de um horrido estrepito no
-meio de lavaredas, que <span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span>vomitavam raios, esfusiando de todos os lados!...
-Quem podera ver a graciosa figura de Margarida, n'esta confusão
-terrivel, consideral-a-hia apparição angelica, cheia de gloria e poder
-divino, dominando a confusão dos mundos, com a serenidade risonha d'um
-seraphim. Estava de pé na separação dos lagares, os braços levantados em
-prece sublime, olhos brilhantes e cheios de enthusiasmo, como os dos
-martyres que a Deus glorificavam sobre fogueiras! Que se passaria no seu
-craneo n'este instante unico!... Talvez sentisse a alma arrebatada em
-fogo! talvez se julgasse levada aos infinitos paramos em ondas de luz!
-talvez que esse estranho grito que da sua debil garganta sahiu, fosse a
-primeira nota d'um canto de gloria!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span></p>
-
-
-<h4>IV</h4>
-
-<p>O pavor produsido pelo estrondo de bombas e morteiros a rebentarem
-dentro da adega grandemente illuminada, foi cruel e estupefaciente!
-Reconheceu-se o que tinha succedido; mas o que se não comprehendera
-logo, era como o caso se poderia ter passado, visto a chave andar no
-bolso do fogueteiro. Só espiritos malignos seriam capazes de ali ter
-penetrado; pois só elles podiam conceber a execução de tamanha
-catastrophe! Como as aguas das montanhas, quando collidem para um valle,
-correu toda a gente para o perigo. N'um momento foi aberto o largo
-portão, que semelhava a bocca de enorme forno, com o seu ventre em
-chammas! O creado mais resoluto atirou-se ao meio do incendio, subiu
-celere <span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span>ao lagar e, de pé na borda, disse em voz tremenda:</p>
-
-<p>—Jesus!... A menina a arder!...</p>
-
-<p>O seu arrojo, que fôra temeridade, tornou-se loucura: sem attender a
-risco, abre caminho por entre linguas de lume e estrondo de bombas, e
-tomando o debil corpo da creança, como quem abraça um feixe de
-lavaredas, sae com ella para o exterior, por entre gente apavorada. Logo
-acudiram com mantas e cobertores, conseguindo apagar as chammas dos
-vestidos de Margarida e do homem que a salvara. Porém a desgraçada
-creança, sem accordo, parecia morta! Levaram-n'a para casa no meio das
-afflicções de todos, especialmente dos desditosos paes e logo a despiram
-com rapidez para se apreciar a extensão do mal. O debil e formoso corpo
-estava intacto, menos nas partes desprotegidas pelo vestuario. A face
-então!? Essa pequenina meniatura de face, que dois beijos poderiam
-cobrir, agora vermelha, empolada e disforme perdera a brancura nativa e
-a graciosidade de linhas, que a faziam comparar ao rosto das santas!
-Todos os delicados relevos de feições tinham desapparecido nivellados em
-massa confusa e pastosa, sem expressão humana. No que se transformava
-belleza tão delicada, d'uma correcção tão perfeita e harmonica!...
-Crestados os cabellos longos e finos, e os bem desenhados supracilios, e
-as formosas pestanas, que sombreavam as pupillas; avolumado pelas
-empolas o delgado e airoso pescoço... <span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span>desapparecera toda a graça da viva
-cabeça de Margarida. Isso que fôra encantador, prendendo a vista da
-pessoa menos attenta, era massa informe e sem espiritualidade. Onde
-estava o riso gracioso de seus labios tantas vezes cheios de brisas de
-carinho, quantas de nuvens caliginosas de desejos?! Onde a expressão
-turbulenta e dominante das narinas, exprimindo apetites rebeldes, mas
-innocentes?! E as orelhas pequeninas, da transparencia da porcellana com
-veios escuros nas curvas complicadas, onde estavam?! E o breve mento,
-tão breve e gracioso como o da Venus de Millo?!... Tudo se desfizera e
-se confundira!... Essa interessante physionomia que era jubilo, que era
-rebeldia de sangue em fervura, que era signal de alvedrios intensos
-gerados no limpo coração e logo subidos aos labios e aos olhos... Os
-olhos!... É verdade, os olhos de pupillas inquietas, os olhos de iris
-escura, mas indefinida com laivos de ceu e de mar profundos, que tinham
-lampejos á noite, mysterio ao entardecer, alegria na alvorada, carinho á
-luz brilhantissima do dia... que era feito d'elles?! Jaziam sepultados
-sob a grossura das palpebras inflamadas. Teriam vista ao menos?...
-Ninguem o sabia. A mãe de Margarida, sem accordo, como morta sobre a
-cama; o pae, homem forte e vigoroso, diluia-se em pranto junto da filha
-adorada. Os dois medicos que tinham corrido ao toque d'essa grande
-desventura, davam consolações vagas, esperanças infundadas. O lindo
-rosto de Margarida <span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span>poderia voltar ao que fôra, a ser outra vez pequenino
-e engraçado...—diziam. Ainda n'elle se havia de gosar a vista da mesma
-espiritual belleza, que enchera de ventura o coração dos paes infelizes.
-Tinham-se visto curas completas mais extraordinarias do que esta,
-verdadeiros milagres no entender do povo. Os casos feios é que melhor
-assignalam as victorias da sciencia. Não era já circumstancia favoravel,
-que a vida tivesse sido poupada em perigo tão violento? O gentil corpo
-da creança estava quasi intacto na pureza das suas linhas, na elegancia
-do seu porte, na brancura da sua pelle, quando o natural teria sido
-ficar reduzido a um negro carvão. Só o rosto fora principalmente
-prejudicado... Certo é que no rosto reside toda a formosura. O de
-Margarida era tudo que havia de mais immaterial: a bocca pequenina e
-vermelha, tinha a graça; os olhos meigos e turbulentos, a inquietação
-infantil; na sombra das pestanas e no desenho dos supracilios, estava o
-inigma do pensamento; na pelle rosea, a mocidade; no arrojo do nariz a
-constante revolta; na curva serena do mento a tenacidade... Se isto
-viesse a faltar, ou se se transmudasse a rara combinação, que valeria o
-conjuncto, ainda que fôra dez vezes mais perfeito do que o da estatua
-grega?!... Porem como a esperança é o riso da natureza humana, e o
-natural e o proprio dos que soffrem dores fundas, já os angustiados paes
-principiavam a escutar com bastante conformidade as palavras de quem os
-consolava. <span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span>Os medicos, primeiro que tudo, pediram liberdade juncto da
-pequena enferma, para largamente applicarem os meios que a profissão
-lhes aconselhava. Certificaram desde o começo que Margarida não
-morreria, e tocados de piedade por aquelle incomparavel infortunio,
-ousaram affirmar que haviam de restituir á creança, a saude e a belleza.
-A longa falta de conhecimento em que após o accidente se conservara
-algum tempo Margarida, attribuiam-n'o a estado epileptico, despertado
-pelo assombro de scena tão extraordinaria, como teria sido a de se ver
-repentinamente cercada de chammas e de estoiros infernaes. Devia ter
-sido horrendo para uma creança de doze annos, que dentro de si só devia
-ter fontes de sonhos aureos e aspirações celestes.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span></p>
-
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<h3>SEGUNDA PARTE</h3>
-
-
-<h4>I</h4>
-
-<p>Passaram-se dias e passaram-se mezes. O soffrer longo e tormentoso
-seguia lento. A physionomia de Margarida era toda uma postula. Porém de
-informe nos primeiros tempos, foi adquirindo longes de vida e expressão
-com os inicios cicatriciaes. Margarida queixava-se pouco; parecia que os
-nervos se lhe tivessem insensibilisado, ou que na catastrophe houvesse
-adquirido coragem heroica para supportar a dôr. Até os medicos se
-admiravam de tanta paciencia nos curativos, pois lhe applicavam topicos
-que a deviam mortificar. Notava-se-lhe fundamental mudança no caracter:
-antes sempre inquieta e irascivel, agora conformada e paciente.</p>
-
-<p>O padecer raro e profundo, poderá transformar <span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span>a sensibilidade e o
-pensamento? amollecel-os se eram duros, endurecel-os se eram ternos? Em
-Margarida parecia realmente ter-se operado essa metamorphose grave: na
-vida feliz e descuidosa de infancia mostrara-se sempre e sempre
-insatisfeita, nunca se lhe encontrando fim ao querer e ao desejo;
-chegada a desventura e martyrio excepcionaes, dormitava-lhe o espirito
-em calma angelica, como se gosasse de paz e doçura celestiaes. Alguns
-queixumes ainda se lhe ouviram de começo (murmureos de ave doente), em
-que recorria aos nomes de seus paes e da ama que a creara, como
-lenitivos e sacrarios de amor santo; porém, depois, entrou n'um periodo
-de resignação e calma e os seus doze annos mostravam o juizo e a
-conformidade das velhas experiencias. Em vez de confessar atroz
-soffrimento, dizia palavras de consolação e esperança aos que muito lhe
-queriam e eram ellas de tanto conceito e elevadas que nem pareciam da
-sua juventude. Entrara, pois, n'aquelle corpo alma nova com o
-infortunio: a tonalidade da voz mudara para submissa e melancolica, as
-idéas appareciam como florinhas correndo leves em veio d'agua limpida.
-Já não era a Margarida que sem motivo gritava, que sem razão chorava
-lagrimas, que martyrisava com goso os animaes e as pessoas, que se
-deliciava inventando collisões para atormentar os com quem vivia.
-Accommodado o seu magro corpo no leito de doentinha, todos lhe apeteciam
-o convivio pelo exemplo que dava de um <span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span>existir sereno e venturoso no
-meio de penas. Quando a enorme chaga, que lhe abrangia todo o rosto,
-principiou a mostrar tendencias para cura, um phenomeno singular se
-verificou—o ressurgimento da expressão humana, que ia apparecendo
-lentamente como uma aurora. E o facto excepcional e maravilhoso dava-se,
-quando tudo ainda era informe e cahotico n'aquelle rosto: nem a pelle
-rosea e setinosa o purpureava, nem a bocca de gazella sorria, nem a
-graciosa linha do nariz o equilibrava, nem a perfeita oval o fechava,
-nem os formosos olhos... (não falemos agora dos antigos olhos de
-Margarida). O que se ia vendo era a cicatrisação, que no seu progresso
-confuso já mostrava larga costura com manchas lisas, enrugamentos
-complexos, tecidos arrepanhados formando sombras. Assim estava a testa,
-a face, o nariz, o mento, as mimosas orelhas, o airoso pescoço... Porém
-de tudo isso que era sem fórma e sem graça, resaltava tal suavidade de
-expressão, qualquer coisa de ethereo e sublime, de suprahumano e
-bondoso, que só pelo transluzir d'uma alma candida e pura n'um rosto, se
-póde comprehender. E ainda lhe faltava a belleza dos seus olhos, vivos
-feixes de luz sempre em ardencia, e não tinha a pupilla nervosa e sempre
-movediça na iris, tão variamente colorida; porque esses olhos, absolutos
-senhores n'aquelle semblante expressivo, eram agora apenas dois globos
-leitosos, rolando senilmente dentro das orbitas, por traz das palpebras
-<span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span>densas. Os medicos, para não desilludirem os atormentados paes e a ama
-Antonia, que lhe queria tanto como se fôra mãe completa, ainda agora os
-consolavam com mentirosas esperanças. As bellidas, simples pannos
-brancos lançados deante da vista, poderiam desapparecer com o
-tempo—diziam. Quando elles não podessem ultimar a cura, outros medicos
-havia especialistas de taes molestias, que operavam maravilhas, que
-pareciam milagres. D. Claudina escutava-os, porém muito mais se fiava do
-alto poder divino, do que de homens grosseiros e barbaros, que se
-limitariam a rasgar com ferros os olhos de sua filha! Por isso
-comprehendendo como indispensavel a intervenção superior do ceu (a unica
-forte e valiosa) continuou com mais fervor as promessas de romarias, de
-festas, de offerendas a todos os afamados medianeiros celestes, que se
-nomeavam perto e longe do logar onde viviam. Informações que aos ouvidos
-lhes chegassem de curas de pequena ou grande monta por este meio
-obtidas, serviam logo a D. Claudina e a Antonia de pretexto para
-proporem mais resas e penitencias, jejuns e novenas, oblatas ao divino e
-á Virgem sua mãe, que cumpririam verificado o beneficio. Isto não
-obstava á assidua frequencia da capella da casa, onde se demoravam em
-oração fervorosa ao orago, Santa Margarida, e a todos os santos da
-celestial côrte. E tamanha e tanta era a fé, que em cada manhã lhes
-renascia no peito a doce esperança e logo que <span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span>sentiam a doentinha
-acordada do seu longo repouso, vinha a interessada mãe perguntar-lhe:</p>
-
-<p>—Sentes-te melhor, filha?</p>
-
-<p>—Sinto, minha mãe.</p>
-
-<p>—E já me vês?</p>
-
-<p>—Vejo.</p>
-
-<p>—Com a tua vista?</p>
-
-<p>—Com a minha alma e... e tambem um pouquinho com a minha vista—rematava
-sorrindo.</p>
-
-<p>Era consolador ouvir-lhe isto, quando o sol raiava no ceu! Que affecto e
-que amor taes palavras continham! Porém amargava-lhes no final o
-desengano, ainda que suavisado pela ternura da voz. A dolorosa realidade
-permanecia. Era triste ver Margarida, com os dois olhos baços e leitosos
-como duas enormes perolas a moverem-se lentamente na busca de claridade
-e sem deixarem passar a vista, que estava por tras da nevoa!
-Compensava-os (bem insufficientemente) o reconhecerem que na larga
-cicatriz da ascosa chaga, havia uma vida nova e uma luz nova de vida
-superior. Quando a doentinha falava era de ver que as suas palavras
-semelhavam lampejos de luar n'um abysmo de trevas. Habito ou
-idealisação, certo era que esse rosto, sem feitio de rosto, tinha alguma
-coisa de raro e sublimemente espiritual. D'esta fórma suave, lenta e
-dôce, subtil como se fôra um sopro vital, em todos ia entrando a
-convicção de que a mente de Margarida, após a cegueira se sublimara,
-illuminando-se de divinos clarões, que a predestinavam para <span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span>altissimos
-fins. Denunciava-o os seus conceitos serem de sentimento e bondade
-infinitas, e isto maravilhava pela precocidade. N'aquella voz
-percebia-se musica de suavidade angelica, cheia de ternuras e modolações
-aprasiveis. Encantava estar junto d'ella, escutal-a, conhecer como ella
-recebia a inspiração divina, que vinha como pomba esvoaçar-lhe sobre a
-cabeça. Não balbuciava uma queixa, nem uma saudade do mundo de que se
-conhecia separada para sempre. Ao contrario: confessava-se mais feliz e
-ditosa n'esta densa noite, do que o era na luz do tempo em que
-irrequieta, nervosa, exigente rebentava em lagrimas de cólera, á menor
-contrariedade. Agora nunca chorava!... Não saberão os cegos chorar? As
-lagrimas são a belleza dos olhos, quando como diamantes deslisam pelas
-faces dos que morrem d'amor; porém, as lagrimas tambem são signaes
-d'infortunio, se, como pingos quentes de chumbo escaldam a pelle de
-infelizes atormentados. Margarida não tinha nem edade para amar, nem
-experiencia para os grandes infortunios; por isso não precisava de
-lagrimas. Aquella mente, lago sereno em calma ventura, não tinha a
-encrespal-a ventos que só entram por ambiciosas e prescrutadoras
-pupillas.</p>
-
-<p>Dulcificavam-se, pois, para a convivencia dos seus achegados e amigos
-que a adoravam, aquella alma, o caracter, o temperamento. Lamentavel que
-taes olhos tivessem perdido o seu raro poder de fascinação; doloroso que
-a physionomia de Margarida, <span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span>outr'ora tão harmonica das combinações que
-dão a formosura, se houvesse transformado em cicatriz... Existia, porém,
-pessoa que, por um lento labor, já conformada com o actual estado, a
-preferia como era e não a desejava como fôra. Quem? Antonia, a querida
-ama, para a qual esta fealdade era formosura, e que julgava a sua menina
-muito mais venturosa depois de feia. Coisa estranha e de maravilhar, que
-um rosto assim desfigurado, com manchas brancas n'um ponto, violaceas
-n'outro, liso e espelhento aqui, enrugado e baço acolá—um todo
-arrepanhado de linhas divergentes e crusadas—tivesse tamanha influencia
-e poderio sobre as almas; que esses olhos brancos, com um ponto
-cinzento, apenas, no sitio da pupilla, vissem coisas do ceu, que nenhuns
-outros olhos descobriam!... A sincera Antonia, que mais que ninguem
-permanecia junto de Margarida, soffrera mais que os outros do potencial
-ascendente. Ouvia-lhe as confidencias do pequenino coração, seguia com a
-mente todas as maravilhas que ella descrevia do interior da patria
-celestial, onde domina a magestade do Grande Deus, no meio do explendor
-e das harmonias dos anjos, archanjos e seraphins. Não podendo conter no
-rude peito a emmoção causada por tantas bellezas, dizia-as e
-commentava-as com pasmo deante de amigos e confidentes, exclamando com
-toda a sua alma nos labios: «Não vedes n'isto—ó gentes!—uma santa que
-ainda vos hade fazer milagres?»</p>
-
-<p>Era realmente o que todos viam, com verdadeiro <span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span>jubilo e devocção. Já na
-mente collectiva, o alto problema da santidade de Margarida se resolvia
-e fixava. Correu d'isso o clamor e a fama, com a velocidade dos ventos
-que varrem nuvens do céu e não tardou que se referissem resultados
-beneficos de supplicas que Antonia lhe levara. Ainda sua mãe procurava
-no valimento celestial de patronos afamados meio de lhe restituir a
-vista, e já Margarida era grande protectora de infortunios alheios,
-juncto do Altissimo. Antonia que appresentava em segredo os pedidos de
-suas comadres, recebia os agradecimentos e tambem se engrandecia aos
-olhos do povo, com o seu nome envolvido em assumptos de tanta maravilha.
-Não tardou que aos ouvidos de D. Claudina e de João da Costa chegassem
-os côros dos favorecidos, já com novos pedidos e rogos instantes. Não
-poderam obstar, tambem, a que pessoas gradas se viessem ajoelhar juncto
-do leito da creança, fazendo-se directamente ouvir nas suas queixas e
-tocando-a nos magros dedos com o melindre com que se devem tocar as
-coisas divinas. Esses que de novo chegavam, ao verem-lhe transtornada a
-formosura, não recebiam desagradavel impressão, não achavam aquillo
-hediondez, antes para elles se confirmava a opinião de que Deus
-escolhera Margarida, para entrar no seu côro celestial de Virgens, e que
-para a separar do mundo sensual e peccador, se servira d'um meio que
-para muitos pareceria infortunio, mas que fôra na realidade Grande
-Ventura. Assim se consolavam os corações dos amargurados <span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span>paes, que
-n'estas palavras encontravam compensador lenitivo.</p>
-
-<p>Haviam-se passado dois annos sobre o inolvidavel dia da catastrophe. A
-casa de João Costa estava sempre cercada de gente devota, que vinha
-abrigar-se sob a influencia benefica de sua filha; á capella concorriam
-offerendas que depositavam aos pés da padroeira, com a ceguinha irmanada
-no nome e no celestial prestigio. Até esta epocha raras pessoas haviam
-sido admittidas á presença da piedosa creança; porém augmentando os
-pedidos vehementes e não podendo ser contida a onda que se avolumava,
-necessario se tornou adoptar o expediente de Margarida assistir,
-domingos e dias santos, á missa da casa, onde os interessados podiam
-concorrer a contemplal-a e impetrar directamente o seu valioso auxilio,
-perante os altos julgamentos divinos. Para melhor ser vista collocaram a
-cadeira em que a assentavam juncto do altar, do lado do evangelho,
-voltada para o officiante.</p>
-
-<p>Assim todas as pessoas, recolhidas na sua fé, lhe podiam dirigir
-silenciosas preces, levantal-as fervorosas durante o santo sacrificio.
-Para a não fatigarem, pois a sua fraquesa era ainda grande, só áquelles
-que para isso tinham poderosos motivos, se consentia que no final da
-missa lhe beijassem o longo rosario e as santas reliquias que trazia ao
-pescoço. A esses dizia ella palavras consoladoras de promessa; e
-maravilhava aquella memoria, que a cegueira tinha tornado mais firme e
-vidente, pois aos <span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span>antigos conhecidos mencionava circumstancias da vida e
-os nomes dos filhos, especialisando cada coisa nas suas referencias.
-Aquella voz encantava, era carinhosa e suavissima como as dos coros
-sagrados, que se ouvem em sonhos. Melodia que vinha do alto, as palavras
-que proferia eram recolhidas com avidez, uncção e respeito. A todos
-promettia incluir nas suas orações ao Senhor, e com tal voto lhes lavava
-o coração dos sentimentos maus e peccaminosos, que por desventura n'elle
-tivessem medrado.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span></p>
-
-
-<h4>II</h4>
-
-
-<p>Os paes de Margarida já pareciam conformados e até orgulhosos de sua
-filha. Seguiam o movimento geral das opiniões, admittiam-lhe a santidade
-e o poder sobrenatural, que sobre ella tivesse vindo como emanação de
-Deus, n'esse dia para sempre memorado da catastrophe. A Providencia
-impõe os seus designios aos homens pelos modos mais contraditorios: com
-uma penna d'ave mata, com um raio póde ressuscitar. Havia conformidade
-na crença geral: a cegueira de Margarida era irremediavel por ser de
-origem e vontade divinas. O não terem sido escutadas as supplicas
-endereçadas por intermedio dos mais famosos santos conhecidos, era prova
-e signal de que deviam submetter-se ao querer <span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span>do Altissimo. E por
-ultimo—opinavam os confessores—o dom de santidade em vida, não vale mais
-do que a maior realeza da terra, ou do que todas as realezas da terra
-junctas?</p>
-
-<p>Concordavam e acreditavam-n'o os submissos paes, sentindo-se até
-enternecidos por haverem dado o ser a Margarida, ainda que se
-reconheciam differentes d'aquella carne, que depois que recebera o
-divino sopro, era de razão que tivesse mudado de natureza. Notavam
-tambem que Margarida vivia de cada vez mais encantada com os doirados
-quadros da sua imaginação, que lhe antecipavam a Bemaventurança, á
-morte. Tudo que dizia na sua voz dulcissima, encanto de todos os
-ouvidos, era risonho e alegre: via-se que d'uma grande desgraça, sahira
-a suprema ventura, a sublime pacificação da alma. Que encantadores
-esmeros de sentimento Margarida tinha para seus paes! E elles, os
-ditosos, escutavam-na, como se percebessem falas de anjos, ou sons de
-harpas divinas a desferirem hymnos no espaço! Tudo correu santamente em
-dois annos de vida gloriosa, que junctos aos dois primeiros de vida
-atormentada, formavam os quatro annos de reclusão, tanto de Margarida
-como de seus paes e de Antonia, que até os preceitos obrigatorios da
-religião satisfaziam na capella da casa. D'isto resultou que uma funda
-anemia, acompanhada de dôres craneanas e insomnias perturbadoras, se
-apoderou d'aquelle pobre e implume corpo. Os medicos impozeram <span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span>então a
-necessidade de passeios ao ar livre, que a creança respirasse brisa
-balsamica de montanhas e pinheiraes. Era egualmente indispensavel a luz
-directa do sol para se não estiolar e morrer a mimosa e tenra planta. A
-ella mais do que a todos custou esta ordem dos medicos, pois todos e
-ella se tinham habituado a este existir sereno de vida santa, em
-convivencia de imaginação com o Ceu, de que Margarida dizia coisas de
-encantar. Antonia, tambem habituada á clausura da sua menina, vivendo
-sempre na contemplação do ente raro, que era o maior louvor do seu leite
-abençoado por Deus, arremetteu em palavras contra o mandado dos
-facultativos. Temia dissipar-lhe o encanto divino, entregando-a á
-convivencia de todos que lhe quizessem falar nos caminhos por onde
-passasse. Comprehendia que assim já não a podia conservar tão intima,
-nem tanto para si. Era o egoismo humano a rebentar no mimoso jardim de
-sentimentos tão elevados...—a rude Antonia apavorava-se com a idéa de
-que aquelle affecto, que ella creara com uma sugeição e uma dedicação de
-tantos annos, podesse diminuir. Mas tanto ella como D. Claudina e João
-da Costa, porque amavam incondicionalmente Margarida, era justo que se
-opposessem ao parecer dos medicos e assim consentissem que se esgotasse
-esse precioso e delgado fio de existencia, que em tamanho preço tinham?
-Não, até o proprio egoismo, coisa diversa aconselhava, pois a separação
-que a morte <span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span>carnal viria definir, ser-lhes-hia milhões de vezes mais
-custosa do que o era a cegueira, quando a julgavam uma fatalidade.
-Acceitaram assim, o facto, tomando-o como todos os demais conselhos
-attinentes á existencia de Margarida, pois os julgavam de inspiração
-divina, por tenderem a não enfraquecer o tenue vigor d'aquelle fragil e
-delicado corpo.</p>
-
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Estava-se na primavera: nos valados rebentavam as flores, os gommos
-enfeitavam já as arvores despidas e tristes. Tempo alegre e soalheiro,
-atmosphera odorifera e excitante. Iam pelos caminhos pedregosos da
-aldeia, á procura de pontos altos, onde corresse viração. Margarida
-desaprendera de andar, trocava os pés como quando d'um anno principiara
-a correr na sala, queixava-se de que as pernas lhe não podessem com o
-corpo. O vestuario, apesar de reduzido ao minimo de agasalho, era-lhe
-d'um peso incomportavel. Fatigava-se e pedia frequentes repousos nas
-bordas da estrada, em muros baixos e sobre as pedras avulsas que
-encontrassem. Seus paes, ou Antonia, levavam-na pelo braço como uma
-convalescente, sentindo-lhe o contacto do corpo, leve como uma penna. E
-assim parecia pessoa vulgar que viesse trazer saudações á luz,
-amando-lhe o explendor; que viesse <span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span>visitar a paisagem que tencionava
-gosar longamente. Cada dia seguiam destino differente; mas sempre para o
-alto d'onde se descobrisse o fertil e carinhoso valle. Após os primeiros
-passeios, sentindo-se mais vigorosa, pois tinha menos dôres e somnos
-mais tranquillos, Margarida, n'um resurgimento de memoria, é que
-mencionava os sitios que preferia visitar. Parecia este o caso trivial
-d'um ausente de muitos annos, que tornasse a viver nas paisagens
-queridas da infancia e procurasse confrontal-as com as sensações
-d'outr'ora... Passava-se n'aquelle cerebro um trabalho lento de
-rememoração, uma reviviscencia psychica. Nos pontos elevados, onde a
-respiração é mais livre, larga e substancial, todo o corpo se lhe
-aerificava, conhecia-se ligeira como qualquer ave voando.
-Amplificava-se-lhe o peito; excitada pela fragancia da brisa fresca e
-alpestre, vinham-lhe assomos de enthusiasmo, extasis de commoção perante
-o renascimento das plantas, a côr afagadora da verdura, que não podia
-apreciar com os olhos. «Como estão bonitos os campos!—exclamava. Para
-ali o Ramisco, para acolá a Cerdosa, em frente Refuinho! Como estão
-bellos estes campos já semeados, as arvores em flor, os bois a pastar
-nas hervas!»</p>
-
-<p>Parecia que tinham vista aquellas pupillas opacas, mas illuminante, como
-dois brancos seixos no fundo de limpida corrente. Se ellas estavam sem
-movimento, presas ao sol, o rosto de Margarida adquiria a inspiração do
-dos santos nos extasis <span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span>contemplativos da magestade divina. Esses globos
-de leite coalhado, no meio das serziduras das feridas, eram duas
-candidas cecens em terreno arenoso. O riso, meigo e attractivo, mais
-bello do que o das rosas ao abrirem, illuminava-lhe os sentimentos. As
-falas murmurantes, como agua correndo em regatos, passavam nos ouvidos e
-eram gorgeios de ave: «Oh! que bom cheiro o das serras e dos campos,
-como é suave o aroma das flores, minha mãe!» «Não sentes os passaros a
-cantarem nos arvoredos, querida Antonia?!» «Quando iremos nós ao
-Ramisco, meu pae?! Ainda voltará, o tio Frei Jeronymo, á sua casa de
-Preste?»<span class="fnanchor" id="fna1"><a href="#fn1">[1]</a></span></p>
-
-<p>Falando assim quedava-se silenciosa, rosto erguido ao ceu, a expressão
-vaga de cegueira suspensa sobre os campos da veiga, que se alastrava no
-sopé da montanha. Este goso espiritual que se adivinhava dentro d'ella
-ao contemplar o mundo material com a vista da memoria, enchia de prazer
-os carinhosos paes, que tinham n'esta filha um thesouro celestial, um
-tabernaculo de coisas puras e santas. Tão habituados já andavam a
-consideral-a um ser superior á misera contingencia humana, a ver-lhe na
-vida da alma uma vida transparente e etherea, que o doloroso
-acontecimento que a cegara, de desventura se havia transformado em obra
-de graça, pela santidade que lhe trouxera. Acreditavam <span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span>piamente n'esse
-divino dom que sublimara aquelle corpo enfesadinho e anémico, que
-espiritualisara, com belleza nova, aquelle rosto transtornado pelas
-manchas de cicatriz, que dera áquelles olhos a visão de coisas sublimes.
-Enobrecia-os esta ligação carnal com quem já em vida pertencia ao Ceu.
-Por isso cercavam Margarida de esmeros e delicadesas devidas ás
-entidades superiores á rudesa commum; pois que essa parte material do
-ser que nutriam, tocavam e aconchegavam era apenas condicção transitoria
-de passagem no mundo d'uma alma immaterial, já moradora dos paramos sem
-fim, em convivencia de Bemaventurados. Aquellas imaginações recreavam-se
-em acompanhar Margarida a esses mundos d'Além, onde presumiam que ella
-ia nos periodos de somno. Se ao acordar pronunciava palavras vagas de
-sentido obscuro, n'isso encontravam o final das palestras que tivera com
-os anjos, seus irmãos. E como vereficassem que o seu falar era mais
-elevado e inaccessivel, quando rodeada de muitas e muitas flores,
-traziam-lhe diariamente molhos das mais raras embellesando-lhe assim o
-quarto, como se fôra uma egreja. Era apenas uma antecipação das
-homenagens que de futuro lhes seriam rendidas, pelos numerosos crentes
-que se acolheriam á sua protecção. Para todos era de saber conhecido,
-que os santos apreciam muito os subtis aromas das plantas, que são
-essencias evolando-se ao ceu e excitam a imaginação, para comprehender
-melhor o sublime e o celestial. E nem os conselhos <span class="pagenum" id="Page_54">[Pg 54]</span>dos medicos tinham
-auctoridade para impedir que Margarida vivesse constantemente respirando
-os delicados venenos, que lhe proporcionavam noites deliciosas de
-encanto em que a mente, ebria de goso, se lhe alargava em quadros
-deslumbrantes. Accentuavam-se-lhe, por isso, as turbulencias do coração
-e o depauperamento organico; porém o seu querer era terminante e
-exigente, para que a não separassem das suas queridas flores.
-Comprehendia bem que eram ellas que a ajudavam a levantar a alma em
-preces fervorosas, e que lhe incendiavam a mente em extasis divinos.</p>
-
-<p>Áquelles olhos que não viam, patenteava-se a celestial morada n'uma luz
-luarenga sempre egual. Mais que isto, os seus ouvidos escutavam n'esses
-instantes singulares, córos angelicos, em que a toada longa e plangente
-era como um balsamo, em que a alegria tomava fórma serena e augusta. E
-todos comprehendiam este viver de alma superior, esta sublimação dos
-sentidos para definir coisas ethereas, a descoberta do mundo dos
-encantos feita por uma creança em quem laborava a vontade de Deus. Esse
-dom subtil para comprehender era decerto a parte mais bella de tão
-gloriosa cegueira e para lh'o conservarem havia sempre abundancia de
-flores em volta do pequeno leito de Margarida. De longe e de perto
-chegavam offerendas copiosas—collocavam-nas em vasos, como nos altares,
-em açafates como aos pés da Virgem, no oratorio, em cima da commoda e
-juncavam-lhe com <span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span>flores a propria coberta, que se lhe ajustava ao corpo
-doentinho. Assim podia ella sentil-as, com os magros dedos apreciar a
-maciesa das petalas, aspirar-lhes com mais avidez os energicos perfumes.
-E que riso de expressão tão estranha, illuminava aquelle semblante
-disforme, quando com o seu fino tacto, Margarida adivinhava as flores
-que ali tinha e as combinava em ramos e capellas, que pessoas de olhos
-sãos não saberiam entrançar com semelhante engenho! Se punha na sua
-propria cabeça essas corôas que fazia, todos notavam, quanto se parecia
-com as santas adoradas nas egrejas! Se dizia palavras de sentido
-transcendente, todos julgavam escutar sons que sahiam de mysteriosas
-nuvens. E ainda que fossem coisas que não comprehendessem, tal era a
-suavidade encantadora d'aquella voz incomparavel, tal o encanto musical
-da sua pronuncia maviosa, que os ouvidos profanos se sentiam
-magnetisados e as imaginações dos que escutavam iam voando, voando
-sempre, seguindo-a entre estrellas, n'uma região infinita e doirada pela
-vista fulgurante dos seres perfeitos e bellos que a habitavam. Aqui era
-o paiz encantado da visão e do mysterio, n'elle habitam entes
-immaculados e perfeitos! Vivia-se d'este modo na habitação terrena,
-fluctuando nas azas da maravilha, creada hora a hora. Uma continua
-apotheose d'um sonho, que só a crença na vida eterna podia gerar!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span></p>
-
-<p class="footnote" id="fn1"><a href="#fna1">[1]</a> <i>Amores, amores...</i></p>
-
-
-<h4>III</h4>
-
-
-<p>Porém o estado melindroso da saude de Margarida aggravava-se de cada vez
-mais. Os facultativos que a vigiavam com a sua experiencia, assignalavam
-os progredimentos da molestia, cuja historia conheciam. Nunca
-funccionara bem aquelle pequenino coração: nos primeiros annos de vida
-fôra excitado pelos estovamentos dos brinquedos infantis e pela
-insaciabilidade da creança mimosa, que dava azas á imaginação inquieta;
-no terrivel dia da catastrophe quasi se quedara preste, talvez que no
-proposito de nunca mais funccionar, mas recomeçou o seu labor; no longo
-periodo de soffrimento, que se seguiu, teve alternativas de resignação e
-desesperos, desalentos e esperanças vivas!... <span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span>Os carinhos maternos e a
-dedicação nunca desmentida de Antonia apasiguaram-no e fizeram abrir na
-mente de Margarida os alvores d'uma aurora. O tempo trouxe o desengano,
-a certeza e o habito da cegueira, e o pequenino coração adquiriu
-definitivamente conformidade para o infortunio, n'uma submissão aos
-ditames de Deus, propria dos eleitos tocados da divina graça. Abrira-se
-para elle uma existencia nova, adornada de bellezas e de encantos: eram
-explendores do ceu, não comparaveis aos terrenos, que são mesquinhos e
-transitorios. Tudo á mente vinha do coração, d'esse coração combalido,
-improprio para a vida commum, e no qual a morte se aninhara como em casa
-propria. Mas no rosto cicatricial em que os olhos baços se moviam como
-duas bolas de jaspe, despontava a luz que illuminaria a Margarida o
-caminho de Bemaventurança e ella desejava e não temia o final dos seus
-dias contingntes. No som da voz melodiosa, como será a dos anjos, e no
-sentido das palavras que pronunciava, já se reconhecia essa levantada
-aspiração, esse sentimento do divino, que linguas vulgares traduzem por
-santidade. Caminhava esta pobre existencia corporea abordoada a um
-coração doente e não podia prolongar muito a sua jornada. Margarida
-acamou de vez e no aconchego do quarto concentrou-se na paixão dominante
-das flores, d'esses aromas que lhe povoavam a mente de sublimes visões e
-lhe faziam antegostar o ceu. Despertara-se-lhe, primeiro, este amor, nos
-passeios <span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span>aconselhados pelos medicos para se robustecer, agudara-se
-depois, na existencia da sua mente recolhida em convivio de anjos. As
-flores são bellas e assim como em vida lhe adornavam a paisagem da
-morte, depois lhe enfeitariam a sepultura. Morte e sepultura, idéas
-risonhas, que assignalariam o seu voar definitivo á patria celestial.
-Não as chamava, estas escuras imagens, para não ulcerar os corações de
-seus paes e de Antonia, a quem o momento da separação custaria, ainda
-que a vissem erguer-se sobre nuvens á gloria de Deus. Porém os seus
-ouvidos apurados já sentiam os passos magestosos da Morte, que vinha
-n'uma comprida estrada enfeitada de todas as galas, juncada de palmas
-victoriosas, acompanhada de musicas alegres. Festa superior á da entrada
-da primavera, nos campos e nos montes cobertos de boninas, com o ar
-empregnado de balsamos humados da terra, a omnipotencia da luz descendo
-do sol para tudo engrandecer! O coração doente consolava-se com os
-aspectos d'esta vida sonhada, alagava-se n'uma paz doce, larga e
-consoladora, que era um vislumbre da que se gosaria na presença de
-Deus!...</p>
-
-<p>Por isso ao presumir proximo o seu ultimo dia, sentindo por adivinhação
-que a alma se ia desprender do corpo em que reinara, que a materia
-resignava a força que a enobrecera, é que pedia mais flores, muitas
-flôres para embebedar com aromas a imaginação. Tinha a cama de virgem
-sempre coberta de rosas, de açucenas e de todas as flores <span class="pagenum" id="Page_60">[Pg 60]</span>campestres de
-belleza tão captiva e simples, de perfume tão casto e enebriante. Quando
-adormecesse no ultimo somno terreno, queria que fosse entre fragancias e
-côres, para nas azas d'essas coisas intangiveis subir ás alturas, onde
-habitam os anjos. Foi assim que veio para Margarida a feia morte,
-risonha amiga, como um carinhoso dom. N'esse dia assignalado
-cercavam-lhe o leito todos os queridos affectos que no mundo tivera. O
-bom cura Carvalhosa, de estola branca e oiro sobre a alva sobrepelliz,
-dizia-lhe em voz de uncção, palavras solemnes de esperança e ventura. O
-rosto sereno e quasi risonho do sacerdote espalhava no quarto, que era
-um sanctuario, coragem e tranquillidade, em todos os espiritos. Os paes
-de Margarida e Antonia ajoelhados aos pés da cama, voltados para a
-Virgem glorificada entre flores e luzes, no oratorio, tinham as faces
-innundadas de lagrimas silenciosas e votivas. Outras pessoas intimas,
-amigos e parentes, seguiam este ditoso despedir d'alma ao despegar-se do
-mundo. A illuminação astral do rosto da moribunda, com os olhos gelados
-a procurarem claridade n'uma risonha ancia de sublime, a todos animava.
-Parecia-lhes este morrer, antes uma transfiguração da vida: não era o
-afastamento para sempre, pois acreditavam que esse espirito, que de
-muito pertencia ao ceu, continuaria a velar pelos que muito amara, para
-os proteger contra as miserias terrenas. Margarida entre elles,
-escutaria as suas supplicas, fortalecel-os-hia nos desalentos e <span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span>como
-branca pomba espiritual, havia de pairar sobre o tecto que lhe abrigara
-o nascimento e a morte. Aqui se lhe dispertara a alma para as coisas
-sublimes, para as visões eternas; ao cahir gradual do corpo todos lhe
-viram corresponder uma crescente sublimação do espirito; as suas
-palavras que se adelgaçavam na fortaleza, eram de cada vez mais
-cristalinas no som e tinham de cada vez maior sublimidade no sentido. É
-que já as pronunciava do limiar da Bemaventurança, cujas portas se lhe
-abriam de par em par. Tudo concorrera de longe, para que as lagrimas
-choradas em volta d'este pequenino leito de moribunda, coberto de flores
-rescendentes, fossem lagrimas mais de goso, do que de amargura, de
-conformidade e não de desespero.</p>
-
-<hr class="tb" /><br />
-
-<p>Rompia a tranquilla luz da alvorada d'um dia d'Abril, que promettia ser
-alegre e soalheiro. Estava-se na mesma semana de Paschoela na qual,
-annos antes, começara o glorioso martyrio de Margarida. Havia cá fóra as
-pompas da natureza, a reviviscencia da terra subia ao azul em hymnos de
-aromas e cores. A doentinha chamara para juncto de si seus paes,
-Antonia, e os parentes mais chegados, as de Refuinho e as do Ramisco.
-Com uma voz que era um cicio de resa, de todos se despediu <span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span>com palavras
-confortativas, de tanta elevação e carinho e santidade, que bem se
-comprehendia que não fosse um espirito da Terra, que n'ella vivesse. Com
-os dedos magros de santa deixava a cada um a lembrança d'uma flor,
-beijava, amorosa e humilde, as mãos de seus paes e do cura,
-sorrindo-lhes com os olhos cegos.—E rematando a vida disse:</p>
-
-<p>—Pedirei ao Senhor, por todos. Perdoem a quem os fez soffrer!...</p>
-
-<p>Rebentaram torrentes de lagrimas e córos de soluços, quando viram que
-não mais pudera falar, e que reclinara de vez a resignada cabeça no
-largo travesseiro... Começara um longo e infinito somno: o rosto d'uma
-serenidade angelica parecia formoso e expressivo como nunca fôra! Ainda
-respirava o balsamo das plantas odoriferas, os brancos dedos ainda
-procuravam o setim das petalas de rosas e cecens; mas aquella
-imaginação, aquella alma diluia-se na amplidão infinita, subindo ao
-espaço como um subtil perfume. Margarida repousava na paz eterna do seu
-Deus! Terminara o ultimo anhelo do coração.</p>
-
-<p>—Está morta—disse com sentimento grave o medico pousando-lhe a mão na
-testa.</p>
-
-<p>—Está viva—pronunciou como em sonho, o padre Carvalhosa...</p>
-
-<p>Lisboa, Abril de 1899.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span></p>
-
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<h2>PASTORAL</h2>
-
-
-<h3>I</h3>
-
-
-<p>As cabras e as ovelhas, iam a meia encosta, todas n'um carreiro, como
-formigas. Tinha sido longa a noite d'abstinencia no curral e pelo
-caminho, ás furtadellas, aboccavam as hervagens avulsas, ruminando-as
-sofregamente. O Rabicho, sempre adiante, como explorador. Vivo e
-esperto, n'um relance conheceu a impaciencia da Tonia, por não andar
-mais depressa. «Lá p'ra riba, cão!»—gritára-lhe a pastora, e logo elle
-subiu a um penedo, deixando passar todo o rebanho, que depois impelliu
-para a frente, com duas boas torquezadas de seus dentes. Os animaes
-correram á porfia, vencendo-se uns aos outros. A rapariga ficou
-distanciada, a fiar a sua lã, cuja tarefa, para <span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span>um dia, levava na abada
-junta com o presigo. E para não auctorisar novas investidas do rafeiro
-berregou-lhe de novo: «Tó, dianho! tens muito dente!...»</p>
-
-<p>N'esse dia, encaminhava-se ella para o Guidon. Perto de lá, na bouça de
-João-Paz, deixára escondida a tigela das sopas de leite. No caminho
-encontraria o Chico, pastor seu amado, e ambos juntos e unidos iriam
-espreguiçar-se por baixo das fragas ou no interior dos frescos giestaes.
-O Guidon, quando o maio é soalheiro e formoso, tem as melhores pastagens
-dos arredores. O tojo, nos sitios onde se fez queimada, borbulha, tenro
-e verde, como herva nos lameiros. Os gomos d'urze parecem microscopicos
-pampanos. O rosmaninho, o trevo, o rico e nutriente feno desabrocham em
-aromas e enfeitam a serra. Leite filho d'estas plantas silvestres,
-delicadas e cheirosas, é o mais gostoso e substancial. Por isso, ao
-pasto das terras baixas e frias, que não sobeja da boiada, n'esta épocha
-de lavradas, é preferido o dos pincaros, alegres e soberbos. Coisas da
-bruta experiencia, que os seculos teem garantido.</p>
-
-<p>Chegado o rabanho ao sitio onde na vespera o lobo roubára um timido
-cordeiro, a ovelha-mãe, na expressão de saudade, balou dolorosamente. Ao
-longe respondeu-lhe a voz tremula d'outra ovelha, como se fôra um echo.
-A pastora logo correu ao alto para alcançar mais com a vista. Imaginára
-estar p'r'áli aquelle a quem se votara. Ia ser um <span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span>dia festival, ao
-encontrarem-se na suprema mudez da serra, protegidos do calor á sombra
-dos piornos, contemplando-se n'um vago absoluto. Em taes momentos
-accelera-se a imaginação; os ouvidos inattentos ensurdecem; a mente
-fica-se n'um pasmo; o mundo figura-se um lago tranquillo e morto; o azul
-do céo, onde se perde a vista, é d'um ferrete insondavel; o coração bate
-forte e rapido, como um bom potro, galopando solto na campina!...</p>
-
-<p>Porém, o que veria a Tonia de suspeito e desagradavel?! A expressão do
-seu rosto suave e louco, carregou-se de sombras; o gesto foi de
-arremesso e contrariedade; os olhos faiscaram de subita colera!...</p>
-
-<p>Ah!... Em vez do Chico, appareceu-lhe o outro, o Russo, um grande e
-forte, de cabellos vermelhos e physionomia diabolica. Coruscava-lhe a
-vista inquieta, pequeninas sardas picavam-lhe a pelle, a cabeça era uma
-tormenta de fogo!</p>
-
-<p>Quão differente o seu namorado, rapaz franzino, d'aspecto juvenil, rosto
-comprido á Nazareno, cabellos negros e mal cuidados, formando sobre a
-fronte um tufo revolto d'anneis. D'aquelle todo sahia a expressão que a
-enlevava; da expressão desdenhosa ou indifferente a superioridade com
-que a submettera; das palavras simples, a musica dos seus ouvidos e da
-sua alma inteira. Como era bello e encantador de costas sobre os
-penedos, a contemplar o céo n'um sonho de poeta! Como era amoroso <span class="pagenum" id="Page_68">[Pg 68]</span>e
-vago, quando tocava na flauta, coisas que não aprendera com viv'alma!</p>
-
-<p>O Russo decerto lhe queria com mais gana, com mais aquella, bem lá do
-fundo. Ao enxergal-a, desabrochando com a aurora no alto do monte, como
-subita e incomparavel flôr, todo se alvoroçou. Nos olhos e em todo o
-rosto mostrou um pasmo tonto, um riso sem valor, como aconteceria ao
-cego, cuja retina morta sentisse inesperadamente a gloriosa illuminação
-do sol. Correu para a abraçar no primeiro impulso; mas logo estacou
-contemplou-a a distancia. Ella, no alto onde se quedara, de roca á
-cinta, o lenço claro apanhando-lhe os cabellos, o recorte da sua figura
-desenhando-se no ar, era a pastora das lendas, calma e prophetica. O
-Russo percebendo o animo hostil com que a Tonia o recebia,
-accendeu-se-lhe n'alma a raiva e o ciume:</p>
-
-<p>—Querias ir só com o outro? Não, que não!...</p>
-
-<p>—Bem se me dá...—retorquiu desdenhosa. Tempo perdido, meu rico!</p>
-
-<p>—Que lh'achas tu? Um lesma, um gomitado. Cá, sou um home. Elle...</p>
-
-<p>A Tonia espertou-se:</p>
-
-<p>—Mal comparado! Tu és um diabo, um porco bravo. Estafermo! Elle é lindo
-como um anjo do céo!</p>
-
-<p>A furia do Russo cresceu:</p>
-
-<p>—Sou capaz de o esborrachar na unha, como um piolho, demonios me nunca
-levem!</p>
-
-<p>Tinha lagrimas de raiva, ao pronunciar a jura. <span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span>Era paixão antiga e
-abrazadora. Desde os quinze annos, ainda aquelle corpo de rapariga era
-como um castanheiro novo, já elle a via constantemente na transparencia
-dos luares outonaes. As moles graniticas, penduradas eternamente dos
-pincaros, e resequidas pelo sol d'um infindavel agosto, não teriam mais
-firmeza, nem mais calor do que elle. O ciume era no seu corpo um moer
-lento e occulto, tal o fogo que mina a urze escondida na terra para a
-transformar em carvão. Condemnado por aquella repulsa constante,
-sentia-se desprezivel e desejava morte, em que soffresse muito. Comtudo
-não podia despegar a propria vida d'aquelle sonho malaventurado. Em
-presença da Tonia, a natureza ruiva e colerica aloirava-se-lhe n'uns
-cambiantes meigos e suaves. O mais tenro anho das suas ovelhas, não
-tinha para quem o aleitava tanto carinho e agradecimento, como elle
-mostrava áquella rapariga, n'uma submissão de coisa bruta. Comtanto que
-o amasse, se a sua vontade d'ella fôra vêl-o apodrecer no fundo d'uma
-córga, para ser alimento das aguias e corvos, ir-se-hia lá deitar
-voluntariamente e nunca mais comeria! A preferencia pelo outro é que o
-humilhava na sua consciencia de homem forte e magnifico. Quedava-se a
-scismar de noite no que teria de superior, esse engelhado, tão magro e
-pequeno como uma lavandisca. O corpo não, que o seu era grande como uma
-torre e devia inspirar sentimento de força. A paixão que lhe refervia lá
-dentro, longe de ser mollanqueirona, <span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span>mostrava-se vehemente e feroz, tal
-a das lobas a defenderem os filhos. Aquella rapariga airosa, divina
-imagem de qualquer santa, voz musical como a dos passaros, tranquillo
-olhar como o da lua, aniquilava-o com a sua nervosa malquerença. Até
-ahi, nada a pudera abrandar: nem lagrimas soluçadas de bruços sobre os
-penedos; nem supplicas mais ferventes do que orações; nem juras e
-promessas inabalaveis como o céo. Diante das vontades e caprichos da
-pastora, era humilde e cego. Quantas vezes lhe ficára com a rez, para a
-deixar correr monte, talvez á procura do outro?! Quantas vezes lh'a fôra
-buscar ao curral e lh'a apascentara durante dias, para que ella fosse ás
-romarias, com os ranchos que passavam?! Até sacrificava o seu rebanho,
-pois dirigia o da Tonia para as melhores pastagens. Se tinha leite novo,
-logo lh'o offerecia como um presente; se encontrava tortulhos
-assava-lh'os e ella comia-os: para que não bebesse agua dos ribeiros,
-onde ha porcarias e animaes mortos, ia-lh'a buscar longe, trazendo-a na
-sua tigela, escrupulosamente lavada, como para uma rainha. Quando a
-Tonia acceitava de boa cara estes serviços, já o Russo se entendia muito
-bem pago. As recusas ou o mau modo, é que eram fundos golpes no seu
-torvo coração.</p>
-
-<p>Vivia uma vida negra e de sobresaltos continuos. Passavam-lhe incendios
-diante dos olhos e a sua imaginação ficava a trabalhar em desassocego. A
-fatidica <em>Pedra-suspensa</em> (essa antiga ameaça!) parecia-lhe, <span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span>ás vezes,
-que se ia desprender lá do alto, rolar pelos montes e destruir o mundo
-inteiro! Oh! visão amedrontadora de todas as existencias!... Só para a
-afastar, quantas vezes elle consentira o Chico deitado ao lado da Tonia!
-A moça fiava a lã da tarefa, cantava ou escutava-o enlevada. O
-magricellas, o ninguem, de papo para o ar, não tratava da rez. E o
-desprezado é que fazia o serviço de todos, guiando caridosamente as
-cabras e as ovelhas para a sombra das ramadas nos grandes calores, e á
-bebida antes de as recolher. Viviam assim pelos montes, perdidos entre
-tojaes e piornos, dormindo no verão debaixo das lapas e dos azevinhos.
-Havendo satisfação reciproca, tambem gostava de ouvir o tocador de
-flauta, que sabia muitas modas tiradas da sua cabeça. Era feliz nos
-momentos em que morava longe o ciume, isso a que não sabendo dar o nome,
-lhe queimava o peito, como tição ardente. Esquecia o desamor da Tonia
-n'essas horas gastas em somno tranquillo. A vida era visão suspensa dos
-ramos dos carvalhos, ou fluctuava brandamente como as folhas outonaes ao
-sabor d'um murmuro vento. Não havia quisilias, só desejo de felicidade,
-socego e gozo, em ventura calypsiaca. Raramente, porém, se passavam dias
-assim completos de ventura!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span></p>
-
-
-<h3>II</h3>
-
-<p>Já tinham caminhado meia hora, n'um silencio inconvivente, quando
-chegaram ao ponto d'onde se descobria a Pedra-suspensa. Era o objecto da
-lenda mais famosa e conhecida nas povoações em redor. Visto de certo
-lado, aquelle granito, não se lhe encontrava o ponto de repouso, na lage
-subjacente; parecia um destaque de nuvem, no céo azul. Contavam, sempre
-em voz de medo, que logo no principio dos seculos, um mau genio e feio
-gigante, ali a depositara, como eterna ameaça a peccadores; porque a sua
-queda assignalaria o começo do fim do mundo. A instabilidade da
-Pedra-suspensa, tão reconhecida era, que ninguem duvidava de que uma
-creança de cinco annos a pudesse derrubar. Grande milagre, <span class="pagenum" id="Page_74">[Pg 74]</span>não a terem o
-vento e os trovões arremessado pelos espaços fóra!... O respeito que
-esse granito infundia, era o de um idolo vingador, ameaçando, dia e
-noite, as aldeias e o mundo!... Todos os dez annos se formava grande
-procissão de penitencia, com gente que partia de sitios mui distantes e
-ali se reunia afim de implorar misericordia. Recebida da tradição essa
-pratica, executavam-n'a com fervor d'alma religiosa e temente. Os homens
-ciliciavam as carnes, as mulheres erguiam clamores, as creanças berravam
-de amedrontadas, os bacamartes de bocca de sino troavam pelos caminhos e
-por entre os penedos... tudo para distanciar o pavoroso castigo!...</p>
-
-<p>Depois das preces, ficariam acalmadas as justas cóleras divinas? Ninguem
-o assegurava. A intangivel crença em que a famosa pedra cahiria, para
-assignalar enormes desgraças, conservava-se viva e forte. Poucos tinham
-animo para a encarar tranquillos e serenos. Ninguem ousava
-approximar-se-lhe, muito menos tocar-lhe, com medo da responsabilidade
-n'um cataclysmo. Seria provocar inconsideradamente as cóleras do céo.
-Uma penha que bastaria o roçar d'uma corça para a fazer cahir! Pairava
-assim no ar, suspensa como uma aguia, por determinação da vontade
-divina. A não ser isto já as bategas da chuva, o impulso dos vendavaes,
-o degelo das neves a teriam arrastado. Pois não era um verdadeiro
-milagre a sua estabilidade?!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span></p>
-
-<p>A idéa de a escorar, diminuindo-se as probabilidades da catastrophe,
-fôra sempre repellida. Significaria desconfiança no alto poder que ali a
-conservava. Melhor é deixar o destino trabalhar por si. Está lá em cima
-quem tudo regula. O que tem de ser faz muita força... Pensavam d'este
-modo em palavras; mas no fundo, n'esse intimo sentir que até parece
-esconder-se á Providencia, se elles pudessem calçar a pedra para não
-cahir!... Contra as imprudencias brutas dos gados já se tinham
-prevenido, as gentes supersticiosas, sebando-a em volta com ramos e
-tojos. Porém as aguias, que vinham de longe, no seu vôo arqueado e
-solemne ali poisar? E os lobos famintos, que preferiam aquelle sitio
-para comer as suas prêsas? Só milagre e grande milagre é que a sustinha
-n'aquella direitura. Acreditavam-n'o camponezes e serranos, todos os que
-se desbarretavam e persignavam murmurando qualquer reza, mal a viam. Foi
-assim que procederam a Tonia e o Russo. Ambos quedos, ella com o fuso
-parado, elle com o barrete na mão, ciciaram orações. Mas o pastor, logo
-depois ameaçou a rapariga apontando:</p>
-
-<p>—Vêl-a? Ha de cahir. O mundo acaba-se e tu não serás p'ra mim, nem p'r'ó
-outro.</p>
-
-<p>—A Senhora da Peneda não ha de deixar—disse confiada.</p>
-
-<p>—Sou eu que a empurro. Verás.</p>
-
-<p>—Cala-te, hereje, que t'abro a cabeça.</p>
-
-<p>Irada, com os olhos em chamma, arremetteu-lhe <span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span>com um pedregulho. Havia
-ancia de raiva dentro do seu peito soberbo. O Russo não lhe pôde
-supportar a vista de cólera e desprezo; curvou a fronte, os olhos
-marejaram-se-lhe. O seu destino era peor que o dos condemnados do
-Inferno.</p>
-
-<p>—Perdôa, não olhes assim! Tu é que me fazes dizer todos estes peccados.</p>
-
-<p>—Tenho culpa de não teres temor de Deus? Estás na caldeira de
-Pedro-Botelho, vestido e calçado! E é bem feito!—accrescentou vingativa.</p>
-
-<p>O cabreiro queria humildar-se até ao rasteiro das cobras e lagartos, só
-para lhe merecer uma sombra de perdão. Affligia-o mortalmente a idéa de
-que mais uma vez desagradara á Tonia. Como, logo adiante a rapariga
-vendo umas cabras se principiou a affirmar, para descobrir o Chico, foi
-elle que, no intento de se reconciliar com a pastora apontou:</p>
-
-<p>—Está acolá, em cima do penedo...</p>
-
-<p>—Assobia-lhe para vir p'r'áqui.</p>
-
-<p>—Bem nos vê, se quizer...</p>
-
-<p>Mas obedeceu, assobiou com os dedos na bocca. O outro não se importava,
-apenas mexeu a cabeça conservando-se na mesma posição.</p>
-
-<p>—Vae lá, que vamos p'r'ó Guidon,—disse-lhe a moça.</p>
-
-<p>Foi, humildemente, como um perdigueiro. Sentiu gozo em ser mandado; mas
-de raiva torcia nas mãos a grossa carapuça. Distante, a occultas para
-esconder a sua fraqueza, limpou duas lagrimas ao <span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span>canhão da vestia. O
-outro não queria ir para o Guidon, estava ali muito bem. O Russo
-pediu-lhe que obedecesse, para a Tonia se não zangar mais.</p>
-
-<p>—Ora... se 'stou regalado!—respondeu o pastor. Vai tu mais ella.</p>
-
-<p>—Vem, moço—exorou o cabreiro. Olha que ella hoje, sempre te está! Anda,
-levo-te a rez.</p>
-
-<p>Consentiu o Chico em deixar ir o rebanho; mas elle ficou. A Tonia não se
-teve. Foi pressurosa tiral-o d'aquelle adormecimento. Com ligeiro
-sorriso de meiguice, pediu ao Russo:</p>
-
-<p>—Ó aquelle. Junta-me tamem as minhas, que eu vou trazel-o.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span></p>
-
-
-<h3>III</h3>
-
-
-<p>E lá foi, doida, feliz, correndo de fraga em fraga. O Russo assobiou ao
-Rabicho, reuniu todo o gado e partiu... Chorava lagrimas como punhos, e
-voltava-se para vêr de relance a Tonia, que chamava o Chico, com acenos
-e gritos. Bem se importava o preguiçoso com aquelle louco amor da
-rapariga!...</p>
-
-<p>—Eh! moço! vem-te d'ahi p'r'ó Guidon.</p>
-
-<p>Elle respondeu-lhe:</p>
-
-<p>—Eh! que 'stou' qui mui bem.</p>
-
-<p>Tirou do seio a flauta e sentando-se no penedo, principiou a tocar. O
-sol illuminava-o de frente, prateando-lhe os cabellos negros. O destaque
-da sua figura magra e enfezada sobre o escuro penedo, fazia-se como o
-d'uma miniatura em fundo esmaltado. A Tonia chamou-o:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span></p>
-
-<p>—Já lá vão as tuas cabras, maluco.</p>
-
-<p>Não se importava, encolheu os hombros. A musica absorvia-o
-completamente, era o seu destino. A pastora, dominada por esse respeito
-instinctivo e sagrado, que se deve ás coisas elevadas, parou a
-distancia, para o não interromper. O Russo, que já ia longe, tambem
-subiu a uma rocha com o fim de ouvir melhor. Escutava triste e
-absorvido. O seu grande corpo, esbatendo-se no verde escuro do monte,
-ainda ensombrado n'aquella parte, percebia-se mal, como as figuras dos
-baixo-relevos, e tinha a mesma immobilidade captiva. Era moda triste a
-que o rapaz tocava. Finda ella, a Tonia approximou-se quasi respeitosa.
-Para subir ao penedo onde estava o tocador e arrancal-o d'ali, teve
-difficuldades. A pedra era lisa e as tacholas dos sócos estavam gastas.
-Mas agarrou-se a um ramo de carvalho, inclinou-se para diante... Os
-magnificos e potentes quadris arquearam-se n'uma curva de mulher
-completa e fecunda, creada nos caminhos pedregosos. O Chico, vendo-a no
-empenho de subir, largou a flauta, tomou-a pelos braços roliços,
-attrahiu-a para o seu corpo e por momentos ambos ficaram unidos!... O
-Russo presenceava de longe tudo isto. Sahiu-lhe do peito um rugido de
-cólera e ciume que fez estremecer as montanhas. Os seus olhos, vermelhos
-de desespero, viram uma successão de calamidades sem fim, como as
-descrevem os missionarios para o dia de juizo. A Pedra-suspensa
-oscillara, já cahia pelos fortes <span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span>declives d'um mundo em ruinas.
-Ennegrecera subitamente o céo azul, reuniram-se n'um instante nuvens
-prenhes de tempestades, os trovões abriram medonhas gargantas no céo de
-fogo, as pupillas dos raios rutilavam, as trombetas apocalypticas
-enchiam de pavor os reconcavos da terra, onde se escondiam
-desgraçados!... Tudo se ia acabar para todos!... O seu corpo miseravel,
-junto ao de outros reprobos, rolava pelos abysmos. A grita dos homens
-era pavorosa, formando um unisono infernal.</p>
-
-<p>Isto o que viu e ouviu n'um instante aquella imaginação turbulenta. Mas
-o Chico e a Tonia já tinham descido do penedo. Elles lá vinham a
-caminhar, amorosamente unidos, ella apoiando-se-lhe no hombro. Riam e
-folgavam, como um casal de pintasilgos em março, resumindo em si todas
-as venturas pelos homens sonhadas. Ella offereceu-lhe do seu presigo uma
-racha de bacalhau, que o rapaz acceitou para offerecer ao outro, que era
-muito pobre, não tendo mesmo, ás vezes, a brôa sufficiente. Logo que se
-juntaram deu-lh'a.</p>
-
-<p>—Toma—disse.</p>
-
-<p>—Não tenho fome—rejeitou.</p>
-
-<p>—É a Tonia que t'a dá.</p>
-
-<p>Arrancou-lh'a da mão. Estracinhou-a raivosamente com os dentes, como
-faria á carne d'aquelles corpos felizes, se os pudesse trincar.
-Excandecido seguiu com os rebanhos, separado dos dois. O semblante
-sombrio e transtornado, impressionaria <span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span>quem lh'o encarasse. Os olhos
-gazeos expelliam chispas metallicas e tinham escurecido de cólera. Os
-beiços tremiam-lhe como signal da sua loucura. A pastora no momento em
-que se juntaram escarneceu-o:</p>
-
-<p>—Que feia carranca... Santo Nome!...</p>
-
-<p>O cabreiro voltou-se rapidamente para a aniquilar, com todo o poder da
-sua força herculea. Porém ao vêr aquelle rosto sereno e risonho, só
-disse:</p>
-
-<p>—Hoje ha de ser falado!...</p>
-
-<p>N'um relance pensou na famosa Pedra, symbolo de desventuras. Sahia-lhe
-do semblante uma expressão feroz: no craneo aninhou-se-lhe a idéa d'um
-aniquilamento geral de todas as felicidades terrenas.</p>
-
-<p>Mas a rapariga é que não estava de geito para o aturar. Conhecia-lhe a
-maluqueira de bode raivoso e ciumento. Tinha meio de o curar, sem pau
-nem pedra: era deixal-o ir só. Um porco bravo assim, um bruto cujo
-aspecto causava medo, não servia para viver entre christãos. Fosse lá
-p'r'ós lobos, que eram seus iguaes.</p>
-
-<p>Quão differente o outro, o seu querido! Timido e meigo como o cabrito
-d'um mez, assobiava e cantava modas mais bonitas que as dos melros e
-rouxinoes das mattas. Viver a vida com elle pelos montes, era o mesmo
-que passar os dias n'um céo. Ensinava tantas coisas, que não
-aprendera!... As cantigas da sua invenção produziam sempre tristeza
-<span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span>branda e carinhosa. Descobria nas estrellas sitios de felicidade e
-apontava-os, convidando-a a voarem para lá. Podiam-se comparar os
-dois?... O Russo era escambroeiro aspero que rasgava as carnes; o Chico,
-ramo de giesta, bello, cheiroso, e flexivel. Por isso ella despediu o
-rude cabreiro, retorquindo-lhe á ameaça:</p>
-
-<p>—Elle é isso?! Pois vae-te sósinho com Deus. Nós levamos hoje o gado
-p'r'á Ralada.</p>
-
-<p>Chamaram o Rabicho e trataram de separar as suas cabras e ovelhas. O
-Russo, sob o castigo tremendo, mostrava-se submisso em todo o seu corpo.
-Pedia perdão, não dissera nada mau!... Se alguma palavra feia, se alguma
-ameaça ou jura a sua bocca cuspira, estava arrependido. Fossem com elle
-que tomaria conta dos rebanhos todo o dia. A comida para ali era a
-melhor dos sitios. Encontrava-se tojo tenro, como bicas de manteiga. A
-herva, apenas nascida, era a unica do appetite do gado. Havia agua
-corrente para os animaes e até uma fonte para a gente... Aquelle grande
-corpo, espadaúdo e alto, fazia-se pequeno com a humildade. Uma criança
-mostraria mais imponencia. As lagrimas cahiam-lhe em cachos e todo elle
-era uma supplica, de curvado e abatido.</p>
-
-<p>A Tonia foi cruel e inflexivel. Abandonou-o, desprezou-o como um trapo.
-Disse que os não acompanhasse para a Ralada, que isso os obrigaria a
-mudar. Fez-se imperiosa. O seu corpo d'ave, esbelto e franzino, teve
-coleamentos de panthera. O <span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span>rosto de santa transformou-se pela cólera. A
-chamma do olhar e os cabellos mal juntos davam-lhe o aspecto d'uma leôa.
-O cabreiro tremia de medo, a cabeça sobre o peito, os braços pendentes.
-Separaram-se. Os dois lá foram, acintosamente abraçados. O Russo,
-desmoronada toda a sua existencia, dirigiu-se em passo tropego, adiante
-do gado, para o destino da sua má sorte!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span></p>
-
-<h3>IV</h3>
-
-<p>Chorou longamente o seu infortunio, p'r'áli, a cara junto á terra. Do
-fundo mysterioso vinham-lhe palavras infernaes, que o aconselhavam a ser
-feroz e deshumano. Ergueu-se tendo o coração empedernido. Os seus olhos
-enxutos, viram nitidamente ao longe a Tonia e o Chico enlaçados,
-patenteando ás aves o seu amor. Era uma visão graciosa que sahia de
-entre as lavaredas da colina em fogo! Á sombra da fraga, sobre a qual
-estava a Pedra-suspensa, os loucos tinham-se ido deitar. Elle tocava
-flauta, ella contemplava-o, com o fio da roca parado. Justiceira a mão,
-que para lá os guiou!—pensou na sua rude mente o Russo.</p>
-
-<p>Desencadearam-se-lhe diante da phantasia sanguinea <span class="pagenum" id="Page_86">[Pg 86]</span>todas as tempestades
-dos seculos sem fim. Só a grande Dôr poderia burilar n'aquelle rude
-cerebro taes florescencias tenebrosas. O seu corpo levantou-se n'um
-desespero formidavel. Um violento fremito rugia no interior da montanha,
-chegando até ás nuvens. Era a voz torva do seu peito, a soluçar pelos
-reconcavos da Terra e do Céo!</p>
-
-<p>Ia tombar a Pedra-suspensa—resolveu.</p>
-
-<p>Os seus cabellos ruivos, atravessados pelo sol, faiscavam. Idéas de
-impiedade e vingança, como lh'as ensinára a religião e o ciume,
-fixaram-se-lhe na fronte d'um modo definitivo. A ventura e a bondade não
-cabiam na sua alma desgraçada, pois em volta tudo era escuridão e
-rancor. Nem a saudade da serra que estava a florir, nem a convivencia
-amoravel do gado, nem o abandono da mãe cega e pobrissima o detiveram.
-Não via os <em>outros</em> abraçados n'um gozo sem limites? Palpitando d'amor á
-face do sol, pensavam acaso nas ovelhas? Que viesse o lobo e elles não
-seriam capazes de o perceber!... Aquelle embevecimento reciproco, era um
-peccado mortal, e nem o temor do inferno os separava! O aniquilamento, a
-morte rapida era o que mereciam! Clamava do céo vingança, uma tal falta
-de vergonha.</p>
-
-<p>Por isso ia elle empurrar a Pedra-suspensa!</p>
-
-<p>Doido, perdido, correu como um cabrão, de penedo em penedo. N'aquelle
-peito arquejante escondiam-se sentimentos de tigre. Era um demonio
-bruto; porém o instincto e o desespero tornaram-n'o <span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span>sagaz. Para ser mais
-ligeiro e imperceptivel, abandonou os tamancos no caminho. Uma força de
-vendaval levava-o pelo ar. Podiam merecer-lhe piedade a desgraça do
-mundo e a eterna condemnação de todos os homens?! Algum vivente lhe
-mostrara sympathia, ou pensara em lhe prodigalisar carinhos?! O seu odio
-absoluto não distinguia a justiça da perversidade.</p>
-
-<p>Já em cima dos penhascos, ao lado do rude instrumento de vingança, olhou
-em volta. Um leve impulso de sua vontade bastaria para se produzir o
-formidavel castigo. Conheceu a verdade da lenda:—simples sopro de gente
-moveria aquelle penedo tamanho como elle! Um resto d'esperança, porém,
-obrigou-o a reflectir. Deitou-se de bruços, arrastou-se para diante... A
-cabelleira fulva e farta como uma juba, excedendo o rebordo da lage,
-appareceu no espaço. Desvairaram-se-lhe subitamente os olhos:—viu com
-todas as minudencias irrefutaveis, aquelle terno idyllio, que resumia
-toda a sua desventura. O Chico tinha a cabeça no regaço da pastora. Ella
-dava-lhe de beber agua fresca pela sua tigela de barro vermelho. Era o
-quadro da Samaritana, dessedentando o tranquillo Nazareno, junto do poço
-biblico, na velha Palestina. O rosto pallido do rapaz, emmoldurado em
-cabellos pretos, tinha a sonhadora expressão de Jesus. Embebidos um no
-outro, prolongavam a existencia, na intensidade do sentir!...</p>
-
-<p>Porém elle tambem era homem, tinha direito á <span class="pagenum" id="Page_88">[Pg 88]</span>felicidade como todo o sêr
-vivente. Se a Tonia lhe não havia de pertencer, melhor era acabar com a
-propria vida, que lhe não prestava! Havia de elle aniquillar-se, e os
-outros haviam de ficar n'aquellas serras queridas? Não lh'o acceitava a
-mente perturbada!</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Os miseros estavam mesmo por baixo da Pedra-suspensa! A vingança
-n'aquelle cerebro, tomou fórma exacta o real, sem poeira de lendas.
-Podia esmagal-os, como dois sapos nojentos!... D'esta maneira, acabariam
-n'um instante duas vidas incompativeis com a sua felicidade. A morte
-para todos tres era uma solução de suprema justiça. A fé supersticiosa
-das montanhas tinha-o abandonado; o pobre ficara só, recolhido na sua
-dôr infinita!</p>
-
-<p>Mesmo de bruços, principiou a recuar. O seu olho calculador e vingativo
-vira, que impellido o penedo, os dois morreriam, estreitamente unidos,
-sem tempo para um ai! Havia de ser fulminante esse acabamento como o
-causado por um raio de cólera divina! Poz-se em pé, sobre a lapa, a
-parallelo do instrumento fatidico. Veiu de novo a visão sanguinea! O
-panorama em frente appareceu-lhe envolvido em linguas de chammas! Era o
-primeiro signal do tremendo castigo, ha seculos esperado! Um impulso de
-cyclone dominava-lhe a vontade. Decerto era Deus que assim o mandava
-castigar dois peccadores.</p>
-
-<p>Com a força nervosa e a serenidade d'um illuminado, <span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span>applicou ao granito
-o largo e potente dorso. Demorou-se ainda alguns instantes!... Seria
-indecisão?... Era o gozo de ouvir estranhas vozes de coragem e applauso,
-bramindo-lhe dentro do craneo! Em volta, já começava claramente o
-desmoronamento do universo! E o impavido cabreiro, soltando um ronco
-selvagem—medonho grito de féra!—tombou a Pedra-maldita!</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span></p>
-
-
-<h3>V</h3>
-
-
-<p>Não se descollaram do ultimo beijo os dois ternos amantes. A altura era
-enorme. No espaço produziu-se um som abafado e largo, que foi de
-quebrada em quebrada, pulsando até ao coração da Terra! O Russo
-conservou-se em cima da lage, firme, contemplativo, como o Stylita.
-Parecia tomado d'assombro! Os seus olhos de louco, viram pedaços de
-carne e o sangue atirados para o céo! Aquillo teria sido malvadez?!...
-Arrependeu-se de subito, ou quiz envolver-se no aniquilamento geral?!...
-Não poderia sobreviver a tamanho crime, ou eram os demonios que o
-reclamavam, como sua prêsa?!...</p>
-
-<p>Approximou-se resoluto da borda da fraga! Em baixo o mundo cambaleante e
-confuso, era um grande <span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span>incendio, surgindo de trevas absolutas.
-Diabolicas figuras cruzavam os abysmos, á procura de victimas e
-sinistros. Gritos infernaes sahiam das boccas escancaradas dos pincaros,
-como jactos de lava! Olhos vermelhos de demonios fixavam-no ironicos e
-cubiçosos! Abriu os braços n'um gesto de supplica e perdão, atirou-se ao
-espaço como um abutre de amplas azas e o seu grande vulto, rolando pelo
-ar, parecia vir da eternidade, na primitiva condemnação! Sobre a mole
-granitica impellida pelo seu desespero, esmagaram-se-lhe as carnes e os
-ossos! O sangue espirrou, tingindo de vermelho a relva circumdante. Era
-tudo quanto restava, d'uma paixão desesperada e selvagem!...</p>
-
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A manhã de primavera, tranquilla e sumptuosa de luz, alegrava montes e
-campinas. Enfeitavam as encostas, o codeço e o tojo, rebentados d'entre
-as penhas, cuja negrura avivavam d'amarello. As myriades de flôres dos
-urzaes, formavam tufos d'aljofares e d'amethystas nas aridas córgas. O
-feto novo era como uma extensão de relva, pelo verde claro. O modesto
-trevo e o alegre malmequer, salpicavam a terra. Gottas d'orvalho como
-lagrimas, rebrilhavam penduradas das flôres da giesta. As mattas
-silenciosas iam acordando com o gorgeio dos passaros. Nos fundos abysmos
-das montanhas, formavam lagos os pardacentos nevoeiros. Passado o
-primeiro momento de susto, os rebanhos continuaram <span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span>a retouçar nas
-hervas, diante da gloria do sol deslumbrante. As aguias pairavam
-magestosas, ao longe, sobre os mais altos cumes. Toda a natureza
-palpitava e se engrandecia, sob a acção impulsiva do calor. Nas serras,
-nas brandas, nos ribeiros, nos cabeços, nos valles... uma tranquillidade
-pathetica de vida natural. Sobre os telhados das aldeias levantavam-se
-os fumos domesticos, brandamente, como fumos de incenso sobre os
-altares. Em volta a muda altivez da soberba e impassivel montanha!...</p>
-
-<p>Só uma voz lamentosa se ouvia na socegada amplidão: era a do rafeiro, o
-amoravel Rabicho, que em redor da Pedra, chorava a pobre Tonia.</p>
-
-<p>E chorava a cortar a alma, como se fôra um christão, ganindo, uivando,
-aos saltos em volta dos cadaveres!... Amoravel rafeiro, pobre Tonia,
-desgraçados amantes!... Ah!...</p>
-
-<p>Lisboa—Novembro de 1888.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span></p>
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span></p>
-
-<h2>FOGO DO CÉU</h2>
-
-<p class="center p0">(<i>a Sousa Martins.</i>)</p>
-
-
-<h3>I</h3>
-
-
-<p>A meia encosta da montanha subia a estrada de macadam, qual longa facha
-branca collada em fundo escuro. Tarde nevoenta, atmosphera pesada e
-electrica! As pessoas nervosas sentiam-se impacientes, com desejos
-fulgurantes e insaciaveis de imaginações inquietas. A necessidade de
-movimento, a agitação do corpo tornava-se imperiosa. Cada um procurava o
-esgoto rapido da sensibilidade que o affligia, o aniquilamento do
-proprio ser, com o fim de se encontrar no remanso bonançoso de uma vida
-serena e repousada, como as aguas de uma lagoa. Mary logo de manhã se
-levantara mal disposta, a carne em sobresaltos, uma intensa vontade de
-chorar. Pediu <span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span>de tarde a seu pae que a acompanhasse n'um largo passeio a
-cavallo, galopando para longe, á descoberta de novas sensações, em
-horisontes infinitos, onde a vista se perdesse.</p>
-
-<p>O velho cedeu apesar da ameaça de chuva. Mary precisava do rosto
-açoitado pelo ar fresco, sentir o arripio do vento nos cabellos, escutar
-o ribombo da trovoada desenvolvendo-se a distancia.</p>
-
-<p>Lá iam os dous, pela estrada de macadam, a par como namorados: elle com
-a sua barba branca collada ao peito, Mary olho febril, o rosto em
-desafogo, o véu azul fluctuando como flammula. Os cavallos ás upas,
-garbosos, correndo ao desafio: <em>Joe</em>, o de D. Francisco, calmo e
-magestoso; <em>Luck</em>, o de Mary, franzino, mais audaz, resfolegando
-impaciente.</p>
-
-<p>—Mary. Quando vier a chuva?!...—disse o receioso velho.</p>
-
-<p>Que importava! Não lhes tinha succedido isso d'outras vezes? Era um
-episodio, uma diversão da monotonia ordinaria da vetusta casa, entre
-carvalheiras, com o som plangente do orgão espraiando-se sobre os campos
-desertos. Os nervos imperiosos exigiam-lhe commoções, fortes balanços de
-galope, sacudidellas nos musculos entorpecidos, uma boa molhadela
-emfim...</p>
-
-<p>Continuavam intrepidamente para o cimo da montanha, distanciando-se do
-povoado. O horisonte de cada vez mais largo, a paisagem variando em
-cambiantes de luz; na ribeira os terrenos, ermos <span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span>de cearas, ás arvores
-tristonhas e outomnaes, os fumos domesticos erguendo-se lentamente no
-ar, como louvor religioso.</p>
-
-<p>Era no mez de novembro: as folhas sêccas accumulavam-se nos recantos dos
-caminhos—despresadas depois de ephemera vida, e de terem com o seu viço
-de rebentos novos alegrado a encosta. Á maneira que os cavalleiros
-subiam para o alto, as montanhas desenrolavam-se-lhes n'um aspecto mais
-uniforme e esbatido, pela distancia de muitas leguas, como se fôra
-ondulado de mar subitamente solidificado n'um instante mais calmo. Os
-bosquesinhos de carvalhos, nascidos das aguas a rebentar nas quebradas,
-eram nodoas attestando a sensibilidade da vida, a circulação da seiva
-n'aquella aridez arrogante de terrenos ingratos, cobertos de tojo e de
-alcantiladas penedias. Os campanarios destacavam-se pela brancura da
-cal, tristes e solitarios, os sinos mudos. De cada vez se encastellavam
-mais nuvens no horisonte, tomando aspecto torvo de ameaça. O ribombo do
-trovão ennovelava por cima das cristas dos grandes outeiros. Havia no ar
-um sentimento de anciedade, uma como paralysação de vida, um spasmo em
-toda a natureza! Respirava-se mal, a accumulação electrica opprimia o
-peito:</p>
-
-<p>—Mary; seria melhor voltar!...</p>
-
-<p>—Só até lá cima, meu pae!...</p>
-
-<p>Os cavallos excitados pela corrida, de cada vez consumiam maiores
-distancias. Luck, delgado e nervoso, parecia o hippogriffo lendario,
-voando <span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span>por sobre geleiras, levando a vaporosa fada n'um sonho
-scandinavo. Sentia a febre da mão que sustinha a redea; ao seu dorso
-arqueado communicavam-se as correntes nervosas do gracil corpo de Mary.
-Joe, o do fidalgo, apesar de mais pausado era valente, e acompanhava-o
-garboso.</p>
-
-<p>Caminhavam subindo sempre, no parecer ao desafio com as nuvens grossas e
-plumbeas, gravidas de trovões e raios, que passavam no espaço, n'uma
-jornada apocalyptica.</p>
-
-<p>Para onde iriam essas nuvens de tempestade? Onde pararia Mary, loira, o
-rosto animado, impetuosa, franzina, a imaginação ardente a pedir largas
-paisagens, o coração oppresso a desejar atmosphera mais leve, que os
-pulmões respirassem desafogadamente?!...</p>
-
-<p>Chegaram ao vertice da estrada. Para a esquerda havia montanhas sombrias
-e estereis; porém era completa a solidão e o desamparo!</p>
-
-<p>Descobriam aldeias e casas, a muita distancia, n'um ajuntamento de
-defeza contra os perigos dos ermos. Haviam caminhado em largo galope
-além de uma hora, distanciando-se sempre do povoado. A antiga morada
-d'onde tinham partido, só pelo tino acertariam onde ficava! Mary
-quedára-se a olhar com ousadia, para o céu e para a terra, o corpo mais
-livre, o querer amplo, a imaginação em maior tranquilidade. Esta
-uniforme paisagem de serranias que se pegavam umas nas outras, com um
-tom azulado e vesperal era de immensa pacificação. <span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span>Porém as nuvens
-caliginosas condensavam-se já perto, o regougar do trovão aproximava-se
-a olhos vistos, a propria natureza parecia preoccupada, emquanto Mary
-sorria deliciosamente ao céu plumbeo, ás montanhas ondeantes, ao valle
-cheio de arvores amarellentas, que levantavam para o ar braços em
-supplica.</p>
-
-<p>Dous pequenos pastores, de certo irmãos, desciam apressados dos
-pincaros, trazendo o seu rebanho. Receiavam chuva grossa e trovoada,
-eram muito pequenos e supersticiosos, vinham com ancia de se recolherem
-á protecção de Santa Barbara bemdita, e de lhe resarem junto da lareira,
-onde arderia o canhoto do natal, amuleto contra as iras do céu. Irmão e
-irmã, teriam dez a doze annos, rotos e pobrissimos, aspecto triste e
-desconfiado. Os cabellos em desalinho, descalços, as pernas arroixadas
-do vento cortante dos montes! Desciam espavoridos, correndo pela encosta
-abaixo, acompanhados do cão e do rebanho, tudo juncto em grande
-confusão. A sua pobre choupana coberta de colmo estava no sopé da
-montanha. Conheciam o tempo, não havia que esperar, a trovoada
-aproximava-se, não tinham valor para a aguentar sósinhos lá em cima.
-Mary, com os olhos pregados n'elles, vendo-os a rebolar aos saltos pelo
-monte, encarecia, na sua boa alma, a conformidade, que adivinhava
-n'aquella vida humilde:</p>
-
-<p>—Meu pae, aquelles pastores, aqui sósinhos!...</p>
-
-<p>Já saltara do cavallo, esperava-os para lhes fallar, <span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span>interrogal-os
-ácerca da sua pobreza que devia ser incommensuravel, dar-lhes alguma
-cousa para o agasalho do corpo.</p>
-
-<p>Cahiam ruidosamente as primeiras gottas de chuva. Grossas como landes
-varejadas de carvalheiras por ventania aspera, espapavam-se no pó da
-estrada. Havia forte ruido no ar; ao parecer, mão herculea impellia de
-grande distancia punhados de areia: era o bater secco do granizo sobre
-os terrenos, sobre as penedias e nas folhas amarellentas dos raros
-carvalhos. A turbação atmospherica augmentara subitamente, escurecera
-tudo em redor. Os trovões roncavam perto, semelhando o unissono cavo e
-amedrontador de milhares de carroças rodando juntas.</p>
-
-<p>—Onde nos havemos de recolher, Mary?—disse D. Francisco.</p>
-
-<p>Em qualquer parte. Sob aquelle frondoso castanheiro, que ali perto
-nascera isolado n'um tenue veio de agua que resumbrava na base de um
-penedo. Os cavallos tinham na pelle tremuras de susto; levavam-nos pela
-redea para o designado abrigo. Os miseros pastores chegavam n'esse
-momento á estrada, inquietos, receiosos de que as ovelhas se lhes
-trasmalhassem e como a chuva engrossasse rapida e subitamente,
-recolheram-se com o gado n'uma grande cova, de proposito aberta no
-flanco do monte, para estes casos, ali frequentes. Mary e seu pae,
-protegidos pelo velho castanheiro olhavam silenciosos e contristados
-para aquelles <span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span>rotinhos e humildes, em monte com as ovelhas, cheios de
-inquietação com medo que o trovão apavorasse os animaes. E do interior
-da cova consideravam cheios de admiração aquelles senhores de aspecto
-tão rico e maravilhoso, mais bello do que o dos santos da igreja.</p>
-
-<p>As bategas de agua cresciam em força, o ribombo troava com arrogancia
-por cima dos pincaros eminentes. O fidalgo observava o ar com serenidade
-receiosa, a solemne barba branca de patriarcha biblico cobrindo-lhe o
-largo peito. O vento soprava com violencia, os movimentos ondulatorios
-da atmosphera formavam vagas, como n'um mar aereo. Tinham desapparecido
-as povoações, os campanarios, os cimos das montanhas por traz da
-densidade da chuva. Restringira-se-lhes a muito pouco a área visual,
-tudo estava coalhado n'uma densa nevoa, o aspecto das cousas era
-indefinido e vago.</p>
-
-<p>—Durará muito?—disse Mary apprehensiva.</p>
-
-<p>Estava a vêr que sim.</p>
-
-<p>Fizera mal em não ter cedido ao aviso de seu pae. N'aquella vasta
-solidão principiava a sentir-se n'um desamparo tenebroso. Ennegrecia-lhe
-o espirito com a apparencia lugubre das penedias suprajacentes. D.
-Francisco vendo-a pallida e contrariada, apparentava agora conformidade
-e riso, para a fortalecer. Tinha medo de algum desanimo, de qualquer
-crise de nervos. Era esta a querida filha da sua alma, o seu unico
-enlevo, a alegria, <span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span>o conforto no despovoado da viuvez e da velhice. Mary
-sentia na alma a amargura de ter contrariado a previdencia do bom velho,
-de quem era a luz dos olhos. O aspecto do céu de cada vez mais orgulhoso
-e ameaçador.</p>
-
-<p>Os sons medonhos reforçados nas quebradas dos montes, rolavam como
-grandes e implacaveis penedias, que viessem lá do alto para tudo
-aniquilar. Já os trovões concorriam de todos os lados, arrogantes e
-magestosos, rebentando perto em estalidos breves e seccos, como milhões
-de taboas a baterem umas contra as outras. Laminas de fogo de coriscos
-rasgavam o ventre das nuvens e esta luz luarenga cobria a paisagem de um
-tom funereo. Havia no ar uma escuridão de caverna sem que a noite já
-começasse a abraçar o mundo no seu amplexo triste. A natureza em combate
-tinha olhar terrificante. Nem o conjunto de toda a artilheria do mundo,
-cem vezes augmentada, vomitando ao mesmo tempo granadas e materias
-inflamaveis pela bocca redonda dos seus canhões, daria ideia d'esta
-formidavel batalha, ferida nos paramos sombrios do ar.</p>
-
-<p>—Meu pae!... tenho medo!...—confessou a corajosa Mary.</p>
-
-<p>As ovelhas conservaram-se junto dos pastores mettidos na sua cova, como
-timidas creanças perto de sua mãe. Os pequenos de joelhos, as mãos
-erguidas, em lagrimas de receio pediam misericordia em altos gritos
-dirigidos a Deus clemente. <span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span>Desejava D. Francisco animal-os,
-soccorrel-os, trazendo-os para juncto de si; porém não lh'o consentiam
-as catadupas de agua, que já vinham pelas gargantas dos montes sahir ali
-perto, em formidaveis ribeiros. Elle ainda conservava Joe pela redea;
-porém Mary já havia abandonado Luck, que de olho allucinado, e tremendo
-em todo o corpo, resfolegava com estrondo pelas narinas largas. O pavor
-crescia, o formidavel estalido do trovão rebentava quasi sobre o
-castanheiro, innumeros relampagos fuzilavam ao mesmo tempo pondo-lhes o
-espirito em confusão.</p>
-
-<p>—Tenho muito medo, meu pae!—confessou Mary, tremula e agitada.</p>
-
-<p>Como poderiam sahir d'ali? Impossivel!—ponderou o coração amargurado do
-velho. Esperava que a furia da tempestade diminuisse, que o horror do
-trovão abrandasse, que o fogo dos relampagos lhes não tirasse a vista,
-que a chuva fosse menos copiosa... A pobre Mary já o não ouvia, pallida
-e assustada, sentiam-se-lhe ranger os dentes, a ella que sempre fôra a
-ousadia, o denodo, o vigor moral de seu pae.</p>
-
-<p>Os dous corações batiam n'um ambiente de terrores, os ares incendiados
-por chammas infernaes, os ouvidos surdos por causa dos pavorosos sons
-que desciam do céu, ou resurgiam das corcovas da montanha. De toda a
-parte o mundo parecia ameaçado por castigos e invectivas de morte. No
-bojo largo e mysterioso das nuvens parecia esconder-se, <span class="pagenum" id="Page_106">[Pg 106]</span>ainda
-silenciosa, a suprema voz da infinita maldição! Vencendo espaços com o
-desespero dos demonios escorraçados do céu na noite biblica, essas
-nuvens pareciam que accarretavam do começo dos tempos a punição de
-crimes accumulados por seculos de perversidade!...</p>
-
-<p>Os aterrados pastores continuavam de joelhos, as mãos supplicantes,
-pedindo misericordia em agudos gritos. A convulsão do franzino e esbelto
-corpo de Mary communicava-se ao tronco do castanheiro frondoso e para
-ella todo o mundo se sentia abalado e tremente. D. Francisco
-abandonou-a, por um momento, emquanto procurava colher as redeas de
-Luck, que se ia separando encolhido e agitado.</p>
-
-<p>A confusão de todas as cousas attingira n'este instante imponencia
-d'assombrar! Um forte e vibrante estampido, acompanhado de illuminação
-subita de raio, rebentou sobre a arvore protectora. Luck então fugiu
-espavorido; Joe repuchou fortemente o braço do fidalgo, que se sentiu
-cahir, as pernas sem vigor. Instinctivamente, D. Francisco, lança os
-olhos para o castanheiro, e vê no rosto funereo de Mary extinguir-se a
-vista, o tronco flexivel como um vime inclinar-se, todo o corpo, qual
-estatua de alabastro, cahir sobre a terra n'uma compostura
-sepulchral!!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span></p>
-
-
-<h3>II</h3>
-
-
-<p>Fora fulminada? estava morta?!... O rosto de seu pae era de um pavor
-dantesco!... Luck despenhara-se pelo monte, em saltos infernaes! Joe,
-menos nervoso, tremia humilde junto de seu dono.</p>
-
-<p>O desditoso velho atirou-se com desespero sobre o corpo livido de Mary,
-que vira pender como uma açucena, impellida por vento maldito.
-Encontrava-a sem energia corporea, o aspecto de completa ausencia de
-sensibilidade, os olhos meio cerrados. Queria aquecel-a com os seus
-carinhos, dar-lhe o movimento do proprio sangue! Estreitava-a nos
-braços, agitava-lhe o corpo, sacudia-a para lhe dar vida. De apavorado
-emmudecera, não tinha lagrimas <span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span>para exprimir tamanha dôr; mas por fim a
-sua voz rugiu formidavel como a do leão, como a do mar, como a da
-tempestade:</p>
-
-<p>—Mary!... Mary!... Accorda, Mary!...</p>
-
-<p>As creanças tinham corrido n'um instincto de soccorro. Augmentavam a dôr
-do quadro com o chôro desesperado, que acresciam ao do inconsolavel pae,
-que chamava sua filha em altos brados dirigidos ao céu crudelissimo.</p>
-
-<p>D. Francisco erguera-se, com o corpo de Mary intimamente unido ao seu.
-Que loucura esta! Pensar em reanimal-a communicando-lhe o seu calor,
-dar-lhe sensibilidade com o vigor do affecto, fazel-a soffrer com a
-grande e immensa dôr que o suffocava! O corpo estava exanime;
-pendiam-lhe os braços, cahia-lhe a cabeça, as pernas sem energia, o
-tronco vergando-se como um junco. O ribombo do trovão continuava atroz:
-os relampagos successivos illuminavam as serras lugubres, as altas
-penedias de uma grandeza cyclopica, as humildes aldeias e campanarios,
-as veigas de uma passividade mortal.</p>
-
-<p>—Chamae gente!... Chamae gente!...—gritava D. Francisco aos pastores,
-que d'elle se tinham acercado n'um intento piedoso.</p>
-
-<p>As creanças identificadas com aquelle soffrer incomparavel, gritavam
-inutilmente! Quem as ouviria? O logar ficava longe, a sua casa distante,
-a magestosa garganta da tempestade engulia-lhes a voz.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span></p>
-
-<p>Talvez o velho cabreiro esperasse a primeira aberta para lhes vir em
-auxilio!... Unica e misera esperança!...</p>
-
-<p>Os enxurros desciam ovantes em catadupas pelas gargantas dos montes: os
-caminhos eram ribeiros, nas fundas corgas sussurravam as aguas como
-grandes rios, a ira do céu parecia crescer a todos os momentos.</p>
-
-<p>—Chamae gente!... Chamae gente!...—repetia o fidalgo com o corpo de Mary
-estreitamente abraçado, exprimindo no semblante a maior dôr que no mundo
-possa existir.</p>
-
-<p>Clamavam as creanças com maior desespero e força; porem as suas vozes
-perdiam-se no infinito espaço. Um instante houve em que esses gritos
-foram triumphaes, como se um soccorro afortunado viesse espavorir a
-desgraça.</p>
-
-<p>—Pae!... Pae!...—exclamaram com alvoroço.</p>
-
-<p>Era o robusto montanhez que despresando perigos, subia em corrida a
-encosta, para proteger os filhos, e livrar o rebanho das correntes
-impetuosas.</p>
-
-<p>Ao deparar com a scena horrivel que os pequenos lhe apontavam, como
-produzida pelo fogo sinistro do raio, a sua mudez e espanto eram
-formidaveis. Obedeceu como automato aos monossylabos de D. Francisco,
-ageitando-lhe o cavallo para elle montar.</p>
-
-<p>E emquanto montava, as suas rudes mãos e os <span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span>braços negros de rachador,
-sustentaram por instantes o franzino e gracioso corpo de Mary, para o
-entregar ao velho, que o recebeu com sofreguidão e ainda com
-esperança!...</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>D. Francisco voltou n'um galope desesperado, a filha amantissima
-achegada ao seio caloroso. A sua ideia era alcançar em minutos o portal
-da querida habitação, mandar uma legião de criados á procura de
-soccorros que lhe restituissem Mary. Joe parecia identificado com a
-grandiosa tragedia que se passava na alma de seu dono! Era uma corrida
-de phantasma, atravez dos espaços do primitivo cahos! Um homem robusto,
-ainda que velho, cabello e barba sujeitos ao vento, despresando chuva,
-trovões e relampagos, galopando furiosamente com o corpo de uma donzella
-estreitado nos braços, era o que viam passar attonitos os raros
-viandantes. Paravam tranzidos de espanto, ninguem se oppunha a esta
-marcha do desespero, e só exclamações se ouviam:</p>
-
-<p>—É o fidalgo!... É o fidalgo!...</p>
-
-<p>Joe sentindo a força da alma lugubre que o guiava, vencia caminhos,
-voltava com lucidez, <span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span>transpunha ribeiros aos saltos. O inconsolavel pae,
-ainda na crença de que d'aquelle deliquio Mary poderia acordar,
-animava-lhe com monossylabos energicos a vertiginosa carreira, na
-direcção da antiga morada de seus maiores. Ali chegou finalmente com o
-espolio querido. Portal largamente aberto, porque de longe os criados já
-tinham notado a infernal corrida. O corpo exanime de Mary foi estendido
-sobre a sua cama de donzella, e logo veio o medico que a olhou com
-aspecto dolorido de desanimo!...</p>
-
-<p>Ali estava como n'um leito de morta: a face pallida; os braços molles; o
-corpo exhausto, acceitando passivamente todos os impulsos. Não
-respirava, não lhe batia o coração, não lhe foi encontrado o pulso. Era
-desgraça irreparavel, todas as tentativas seriam infructiferas! Para que
-haviam de enfermeiras conspurcar aquelle corpo gracil, se Mary estava
-morta, definitivamente morta?! Um raio do céu fulminára a formosa
-donzella, flexivel como um vidoeiro novo, candida como o lyrio, risonha
-como um cravo! O medico que a vira nascer, e lhe queria como a propria
-filha, agarrou-se a D. Francisco, chorando, chorando, sem poder falar!</p>
-
-<p>É que Mary já não existia, o pavoroso raio consumira no seu fogo aquella
-rosea existencia! Nunca mais aquelle coração palpitaria de amor, nunca
-mais os seus dedos sublimes acordariam sons de musica religiosa no orgão
-antigo, nunca <span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span>mais aquella voz clara como um veio d'agua pura, se
-levantaria em preces fervorosas.</p>
-
-<p>D. Francisco não lhe tornaria a ouvir dizer: «Meu pae! meu pae!» Mary
-estava morta, definitivamente morta, fulminara-a a colera das nuvens!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span></p>
-
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<h2>VOLTOU...</h2>
-
-
-<h3>I</h3>
-
-
-<p>Bons velhinhos os que moram n'aquella casa! N'este domingo sereno de
-março, lá se veem sentados á porta, com o sorriso dos modestos e felizes
-a florir-lhes no rosto; tem as cabeças protegidas contra o mal da
-soalheira e os pés, fóra dos tamancos, para os aquecerem. A veiga, onde
-pastam bois, é tranquilla; a subida da encosta, onde rebentam urzes e
-codeçaes, está vistosa. Aquelles bons companheiros, casados ha cerca de
-cincoenta annos, tem um para o outro o mesmo olhar confortativo e
-amoroso do tempo de moços. Miguel conserva impressa na retina a imagem
-de quando Luiza era nova: não lhe percebera o nascer das rugas; nem o
-desmaiar da pelle; <span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span>nem a queda dos dentes, que no riso ainda lhe
-appareciam como uma fiada branca e egual de rosario de pinhões. Os
-cabellos (talvez pela vista enfraquecida) eram as mesmas longas tranças,
-negras e colleantes, como lampreias no fundo de rio arenoso. O corpo de
-sua mulher mantivera para elle, sempre, a mesma puresa de
-linhas—consolidara-se na graça e gentilesa da juventude, não o tinham
-abandonado os elementos de frescura e mocidade.</p>
-
-<p>De egual modo, Luiza, via seu marido. Quem estava ali, a seu lado, com
-os joelhos ao sol e o lenço de Alcobaça na cabeça, era o mesmo rapaz
-valente, trabalhador e sadio, ligeiro como um lobo, que a namorara
-quando ella tinha vinte annos. Nem as molhadellas lhe tinham engrossado
-as articulações com o rheumatismo, nem as barbas e cabellos eram da
-brancura de linho sedoso, mas acastanhados e lustrosos como outr'ora.
-Não tivera a edade poder para lhe diminuir a vista: logo que o
-emperramento das pernas passasse, vel-o-hiam como o primeiro malho nas
-eiras, a primeira enxada no morder da terra, a melhor roçadoura para
-derrubar silvedos. Ella que o amparava da cama até a lareira e da
-lareira até ao sol, vivia na fé de que o seu Miguel tornaria a ser o
-mais celere e desembaraçado homem de todas as redondesas para atracar um
-touro que fugisse em descampado, para vencer, d'um pulo, o ribeiro da
-freguezia, para pôr em debandada uma feira de troquilhas bulhentos. Não
-o vira ella ludibriar magotes de <span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span>adversarios, ora afastando-os para
-longe com um talho de varrer, ora safando-se-lhes com um salto, para
-fóra da muralha da gente com que o cercavam? Assim mesmo, meio
-entrevado, ainda se não poderiam chegar a elle, nem tres, nem quatro
-pimpões, se Miguel tivesse nas unhas o seu pau de carvalho e estivesse
-bem encostado a uma parede para só poderem atacal-o de frente.
-Experimentassem, querendo, e ver-se-hia se ella não dizia a verdade.</p>
-
-
-<hr class="tb" />
-<p>Á porta da casa estavam ambos silenciosos, n'esse secreto e intimo goso
-d'uma perpetua conformidade moral, imaginando-se na força do sentir e
-sem recearem a morte que podia separal-os, levando um e deixando o outro
-a vaguear no mundo, n'uma existencia de lamentos e saudades. Não
-pensavam n'este horror, visto que no céu havia um Deus, justo e bom, que
-não permittiria tal iniquidade. D'aquella somnolencia feliz,
-despertou-os o padre Clemente Carvalhosa, que ora vinha pelo estreito
-caminho rente á casa de Miguel.</p>
-
-<p>—É o senhor cura—disse Luiza, falando como se só comsigo falasse.</p>
-
-<p>—Ah! hoje demorou-se mais. É que os rapazes não sabiam a doutrina.
-Calaceiros!...—pronunciou o velho, sem levantar os olhos dos joelhos.</p>
-
-<p>O sacerdote adeantava-se com o seu habitual ar <span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span>benevolente. A batina
-ecclesiastica dava-lhe solemnidade ao parecer, e só o passo energico era
-signal de que não vinha em boa disposição de espirito. Luiza, logo que o
-viu á voz, levantou-se para o saudar; Miguel que tinha, ao lado o pau a
-que se amparava, ia a fazer o primeiro esforço para se erguer, quando o
-cura, já com a mão na cancella para entrar, disse alto:</p>
-
-<p>—Eh! lá! Para doentes não ha ceremonias!...</p>
-
-<p>—Muito bom dia, senhor. Hoje mais tardinho. Os rapazes não a sabiam,
-está de vêr...</p>
-
-<p>—É verdade—informou o Carvalhosa com voz irritada. Talvez peior que no
-domingo passado e estamos no fim da quaresma.</p>
-
-<p>—Uma palmatoria senhor! Olhe que isso não vae sem lhes doer.</p>
-
-<p>—E é que o faço!—asseverou com energia o ecclesiastico. Se me obrigarem
-a sahir de mim, irá o diabo n'aquella sachristia.</p>
-
-<p>—Vossa Senhoria não é capaz d'isso...—opinou ironicamente Luiza.</p>
-
-<p>—Não sou capaz!? Estás enganadissima! É que vocês nunca me viram pelo
-lado do forro. Se me volto do avêsso, vae ahi o dia de juizo.</p>
-
-<p>Miguel offerecendo-lhe o bordão de paralytico aconselhou:</p>
-
-<p>—Com este é que elles se ensinavam. Já lá andam taludos, dos que não vão
-a palmatoria.</p>
-
-<p>—É o que elles mereciam, é—applaudiu Luiza.</p>
-
-<p>—Isso tambem não, mulher!—entendeu o cura. <span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span>Um pau molesta de mais, pode
-fazer sangue ou quebrar algum osso. É bastante uma palmatoria puchada
-com valentia, como eu o sei fazer. Mando logo chamar o Corcunda para
-lh'a encommendar. Deixa que se elles virem, pendurada na sachristia, a
-santa Luzia de cinco olhos, não tornam a apparecer sem trazerem o recado
-na ponta da lingua.</p>
-
-<p>—Vossa Senhoria—commentou o Miguel—para essas coisas de bater... O
-senhor abbade, quando por ahi vinha, sabia-os tosar melhor, se os
-garotaços faltavam á obrigação...</p>
-
-<p>O Carvalhosa retomou a sua energia:</p>
-
-<p>—Estás parvo, homem! A questão é fazerem-me chegar a mostarda ao nariz.
-Mas vamos ao que serve—disse mudando de tom.—Do vosso Luiz, não tem
-havido noticia nenhuma... nenhuma?...</p>
-
-<p>—Nenhuma... nenhuma...—responderam os dois n'um unisono triste.</p>
-
-<p>—E tendes perguntado?</p>
-
-<p>—Se temos!—disse Miguel. Sempre que sei de alguem que chega do Brazil,
-se as dores das juntas me dão licença, lá vou ter com essa pessoa... Mas
-até agora nada, nada!...</p>
-
-<p>Luiza commentou chorosa:</p>
-
-<p>—São terras onde ha animaes que comem gente!... Quem sabe se alguma
-serpente me deu cabo d'elle...</p>
-
-<p>—É celebre!—entendeu o cura. Eu tambem tenho feito esforços para saber
-noticias, mas tudo em vão!... É celebre! Pois ainda ha dez annos <span class="pagenum" id="Page_120">[Pg 120]</span>vos
-mandou o dinheiro com que arranjastes esta casa e comprastes os bens por
-ahi abaixo e não torna a dar accordo de si! É celebre! muito celebre!
-Quem será o ladrão que disfruta, a esta hora, o que elle tanto lhe
-custaria a ganhar! Sim, porque elle fortuna havia de ter ganho!</p>
-
-<p>—Isso é o que menos importa—interferiu Luiza. Aqui ha que farte para
-elle e para nós. O que queriamos era vel-o vivo e são.</p>
-
-<p>—Pois apega-te com Nossa Senhora da Boa Viagem, que ella t'o trará. Eu
-vou-me até casa que são horas de minha irmã ter o caldo na tigella.
-Adeus e devoção, Luiza.</p>
-
-<p>—Ah! isso tenho eu, senhor! Promessas e resas olhe que as faço todos os
-dias.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span></p>
-
-
-<h3>II</h3>
-
-
-<p>Havia muitas pessoas na freguezia que se lembravam da partida do filho
-do Miguel. Era um rapasinho carinhoso, serviçal e bem comportado.
-Delgado de corpo, tez morena, sorriso sempre conformado, fazia gosto
-vel-o ajudar á missa; porque procedia com grande promptidão e esmero. No
-caracter era a mãe, sempre boa e humilde; no desembaraço o pae, sempre
-agil e resolvido. De quatorze annos não havia, por ali, outro para
-mandar á villa n'uma pressa de chamar o medico ou buscar um remedio.
-Quer fosse de dia ou de noite, quer os caminhos estivessem cheios de
-neve ou de lama, o Luiz nunca se escusava, nunca procurou uma desculpa.
-Nem o medo <span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span>do lobo, nem o das trovoadas o impedia de ser prestimoso.
-Miguel todo se ufanava com este brio do rapaz, e com a atmosphera de
-sympathia de que o via cercado. E quanto a estudo? Isso dizia o mestre
-que nenhum lhe levava a melhor nos desafios á taboada, e na doutrina.
-Até era uma pena não ser possivel ordenal-o em Braga, para um dia vir
-ali dizer uma missa nova, e verem-no do pulpito lançar a voz da
-religião. Porém, o Luiz, ainda que o podesse conseguir com esmolas, lá
-para essa vida de padre não o chamava a inclinação e toda a sua idéa era
-embarcar, para tirar seus paes da pobreza em que viviam e da labuta
-constante em que se amofinavam. Apesar do Brazil ser a commum ambição da
-gente d'aquella provincia, isto não tinha prognostico favoravel das
-pessoas que lhe conheciam o genio perdulario, o gosto que fazia, já em
-creança, em dar tudo que possuisse. Um pedaço de pão e presigo com que
-lhe pagassem qualquer serviço prestado, logo o repartia com os rapazes
-da sua egualha, ou com algum pobre que encontrasse, ou mesmo com
-qualquer cão esfomeado que estivesse a olhar para elle quando comia. E
-não era porque em casa lhe sobrasse, pois Miguel, n'esse tempo, tinha
-mais tres filhos vivos e era elle só a trabalhar, moirejando nas terras
-que são ingratas para compensar o esforço rude do homem, que só tem a
-sua enxada para as servir. Estava na indole de Luiz dar tudo, repartir
-com quem quer que fosse. O coração não lhe soffria o possuir coisa de
-que <span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span>os outros não compartilhassem. Os unicos motivos de zanga de sua mãe
-para com elle, vinham de conhecer que lhe roubava pão para os pobres que
-passavam, quando ella não tinha bastante para si.</p>
-
-<p>—Tu és tolo, rapaz!—reprehendia-o. Vês que esta fornada me não chega até
-á outra, e tiras-me a brôa da masseira! Olha que ainda podes andar como
-esses mandriões de pedintes, que só tem por seu mal, não se quererem
-achegar ao trabalho.</p>
-
-<p>Luiz ficava triste, por, a santa creatura que era sua mãe, não
-comprehender o intimo goso que elle sentia em fazer bem. Amargurava-o
-esta idéa, pois não admittia maior consolação do que a de dar, mesmo aos
-que não tivessem necessidade. O rosto de agradecimento que os
-beneficiados faziam ao receber, era o premio unico a que aspirava. Mas
-havia mais alguma coisa n'este animo dadivoso: era o pouco geito de
-possuir em proprio, o que quer que fosse. Angustiava-o a preoccupação de
-guardar. Viver sempre na abstracção, na inconsciencia do que valem as
-coisas materiaes, era a caracteristica do seu coração. O prestar
-serviços sem idéa de interesse ou recompensa completava-lhe a indole
-bondosa. Sua mãe estava sempre a prégar-lhe:</p>
-
-<p>—Nunca hasde juntar coisa que se veja. Como é que tu queres ir para o
-negocio com esse genio?</p>
-
-<p>E porque assim o entendiam todos na freguezia <span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span>e os proprios paes, é que
-muito os maravilhou o receberem, na pobre casita onde os dois velhos
-moravam e viviam sós, a visita d'um amigo de Luiz, que lhes trazia uma
-ordem para receberem no Porto uma grande somma de dinheiro—uma somma,
-para elles tamanha, que os lançava repentinamente na opulencia. Porém,
-Luiza, ao apparecimento d'esse senhor todo aceiado, já homem grisalho e
-enegrecido na pelle da face pelas soalheiras dos sertões brazilicos, não
-se importou nada com a riqueza que elle annunciava e tomando-o como o
-precursor de seu filho, logo inquiriu:</p>
-
-<p>—E o senhor conhece-o, o meu Luiz? Está um homem assim alto como é o
-pae? E quando é que o temos a consoar com a gente?</p>
-
-<p>A todas as perguntas o mensageiro respondeu de maneira a arrancar-lhe
-lagrimas de contentamento. Miguel que, chamado, viera offegante da
-labuta dos campos, perguntou, primeiro que tudo, em voz meia
-reprehensiva, mas cheia de coração:</p>
-
-<p>—E elle não tem idéa de vêr a gente antes que nos levem para a cova? A
-riqueza estimamol-a muito; mas antes queremos a companhia.</p>
-
-<p>O amigo de Luiz enterneceu-se com esta insistencia e consolou os paes
-fazendo-lhes graciosamente promessas para que não estava auctorisado. O
-dinheiro enviado era o melhor signal de que o filho os visitaria em
-breve—disse. Trazia tambem recommendação de lhes lembrar que
-transformassem <span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span>a casa de moradia para o receberem condignamente, e de
-que empregassem o restante na compra de algumas terras, que lhes
-garantissem uma mediania repousada e sem cuidados.</p>
-
-<p>—Isso—confessou Miguel—até vem a calhar, porque andam em bocca de venda
-estes bens aqui em redor.</p>
-
-<p>Para designar a grandeza das terras estendeu pela encosta que descia
-brandamente até ao ribeiro, um olhar commovido, acompanhado d'um gesto
-de opulencia. Fôra esta a ambição de toda a sua vida. Muitas vezes, só
-com Luiza, quando junto da lareira comiam o magro caldo da ceia, elle
-reprimia o prazer que o filho lhes daria se enviasse dinheiro para
-comprarem aquelles campos, que toda a vida haviam cultivado como
-caseiros. Era o seu suor d'elles accumulado sobre a terra, que os fazia
-fructificar e lh'os tornava queridos, como uma parte viva e nobre da
-propria existencia. Possuir a bella quinta que em volta do seu pequeno
-eido se estendia, abrir a agua das poças com a arrogancia de
-proprietario, levantar as videiras com a certeza de que eram seus
-aquelles braços flexiveis, e ao enterrar a enxada na terra negra e
-humosa sentir a convicção de que remexia no que ninguem lhe podia
-disputar, de que preparava o solo para resultados que não partilharia
-com outrem, era o maior goso que a boa fortuna podia trazer a Miguel. E
-tamanha commoção os dois manifestaram, na sua mudez, deante do hospede,
-<span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span>quando designaram com o olhar essas terras, que o recemchegado
-perguntou:</p>
-
-<p>—São estes os bens que vocemecês trazem de casa?</p>
-
-<p>—Sim, senhor, aquelles mesmos em que Luiz trabalhou comnosco, indo á
-soga dos bois, quando lavravamos. Elle falou-lhe n'isto?</p>
-
-<p>A um signal affirmativo, os consortes, choraram copiosamente. Até
-parecia mal ver um homem sadio e forte, como era então Miguel, limpar os
-olhos á grosseira estopa das mangas da sua camisa e soluçar com a cara
-escondida. Porém aquelle contentamento era mais forte do que elle; em
-coração humano não presumia outro egual. Para se desculpar, perante o
-amigo de Luiz, ia dizendo por entre lagrimas:</p>
-
-<p>—O senhor não pode comprehender o que isto é. Se soubesse o que me vae
-cá por dentro... Estou capaz de estoirar de alegria.</p>
-
-<p>O feliz mensageiro sentia-se transitoriamente envolvido na mesma
-atmosphera de felicidade que respiravam os dois casados. Ligando-os a si
-n'um só abraço disse:</p>
-
-<p>—O que desejo é que por muitos e largos annos gosem o que tanto amam, e
-que isto seja na companhia de seu filho, que estou certo se não demorará
-muito.</p>
-
-<p>Depois combinou com elles a maneira de receberem o dinheiro que estava
-no Porto, á ordem de Miguel. Para lhes facilitar a empresa já tinha
-tractado <span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span>da transferencia da quantia para a villa proxima, onde da mão
-de negociante honrado podiam recebel-a toda d'uma vez, ou parcelada,
-conforme melhor conviesse. N'esse mesmo dia, Miguel acompanhou o amigo
-de seu filho para pessoalmente ajustarem com o tal negociante o
-recebimento em questão.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span></p>
-
-
-<h3>III</h3>
-
-
-<p>Este notavel successo trouxe á memoria dos do logar o bom rapasinho que
-Luiz sempre fôra; como era geitoso no ajudar á missa, como, com
-desinteresse sympathico, se prestava a servir toda a gente. Não podia
-deixar de ser feliz, quem logo no começo da vida se mostrara tão
-diligente e bondoso. Deus, que é justo, ajuda de preferencia aquelles
-que o merecem, os que desde o principio se mostram attentos e
-respeitosos pelas coisas da religião. Entendiam-no assim e mostravam
-como exemplo d'isto a fortuna que acompanhara Luiz para poder alegrar a
-existencia de seus paes, garantindo-lhes um magnifico bem-estar, e
-proporcionando-lhes o goso de possuirem as terras que sempre haviam
-trabalhado.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span></p>
-
-<p>A proposito recordavam o bello dia de maio em que elle partira. Muitos
-faziam o apparato de mencionarem meudas circumstancias, que agora
-representavam como se as tivessem deante dos olhos. Repetiam palavras,
-apontavam pessoas, e reproduziam detalhes. Que formoso sol o d'esse
-tempo! como elle aquecia o corpo e alegrava o espirito! O padre Clemente
-Carvalhosa, já então curava a freguezia e, por assim dizer, era o
-parocho, pois que o verdadeiro estava frequentemente em Braga, junto do
-senhor arcebispo de quem era amigo, e havia annos que por ali não
-apparecia. Como Luiz não tivesse vocação para o estado ecclesiastico,
-fôra o Carvalhosa quem influira para o mandarem para o Brazil, ver
-mundo, fazer-se homem, ganhar a riqueza com que voltasse a engrandecer a
-sua familia e a sua terra. Se o bom velho fosse egoista, forcejaria por
-conserval-o para o ajudar á missa, tratar das coisas da egreja e
-auxiliar o mestre escola. Mais tarde poderia mesmo conseguir-se que
-ficasse substituindo José Fortunato, o que era alguma coisa de
-representativo. Porém, reconhecendo que aquella intelligencia
-naturalmente viva se acanharia na estreiteza d'uma aldeia, o bom cura é
-que promoveu, entre a melhor gente da freguezia, uma colheita de
-donativos para vestirem o Luiz do Miguel e pagarem-lhe a passagem para
-esse Brazil, terra prodigiosa, onde o oiro rebenta das arvores com a
-bondade dos fructos que alimentam o homem. Sentia no <span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span>fundo do seu
-generoso coração, que era uma boa obra a que emprehendia. Quem sabia se
-não estava trabalhando para o esplendor das festas da sua egreja, para
-reformar e accrescentar materialmente a riqueza do templo, attenta a
-vocação que Luiz mostrava para as coisas santas? Não seria amesquinhar
-as bellas promessas de caracter de rapaz tão bom, tão docil, tão
-intelligente, o prendel-o entre aquellas montanhas de limitado
-horisonte?</p>
-
-<p>—Mas, senhor,—entendia a mãe—olhe que elle para conservar dinheiro não
-lhe serve. Quanto ganhar, quanto dá!</p>
-
-<p>—Cala-te, mulher,—contestou Miguel—deixa ir o rapaz que no mundo é que
-elles se armam gente. Tenho-lhe amor, pois é meu filho, mas o senhor
-cura é que diz bem.</p>
-
-<p>Aquelle que assim falara com desapego, é a quem mais custou o
-desprender-se de Luiz, no assignalado dia da partida, n'esse bello maio
-em que o sol aquecia o corpo e alegrava o espirito d'um modo differente
-do actual. Luiz com o seu caracter submisso ia de vontade; mas não tinha
-n'essa occasião, propriamente idéa de ambição ou opulencia, nenhum
-proposito de no futuro deslumbrar os simples da sua aldeia. Commovido e
-sem fala, as lagrimas rebentavam-lhe dos olhos, como pingos de seiva
-d'uma arvore quando chora. Se seu pae se não podia desagarrar d'elle,
-tambem elle se não podia desagarrar de seu pae, nem de sua mãe, <span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span>nem dos
-rapazes que ficavam. No fundo da sua retina estampara-se indelevelmente
-e para sempre, toda aquella paizagem da sua alma—a modesta egreja, com o
-campanario exterior d'um só sino; o musgo das paredes dos caminhos
-estreitos; a largura dos campos onde rebentava a herva; a sobranceria
-dos montes altos, artilhados de penedias temerosas! Sentira que a alma,
-n'esse dia de sol encantador, se lhe dividira em duas partes: uma ali
-ficava pendurada dos galhos das arvores que se enfolhavam, dentro da
-pobrissima casa onde nascera, e nas encostas a escutar o gemer das
-fontes e dos regos d'agua; a outra, a mais dura e resistente levava-a
-comsigo. O cura Clemente Carvalhosa, ainda no vigor da vida e saude,
-abençoara-o no limitte da freguezia, até onde o acompanhara, e n'esse
-momento, Luiz, supplicante e com as mãos erguidas pediu-lhe:</p>
-
-<p>—Quando a Russa tiver a cria, senhor, peço-lhe que a deixe crescer e que
-a não venda, que eu mando dinheiro para a pagar.</p>
-
-<p>A Russa era a egua do cura. O rapasito tinha-lhe grande affecto,
-adquirido no habito de a levar a beber, e de a acompanhar quando o
-sacerdote ia para algum officio, no que substituira o creado Simão.</p>
-
-<p>Na villa é que se apartou de sua mãe e de seu pae, pois d'ali em deante
-seguia na companhia d'outros emigrantes que levavam identico destino. Na
-volta, a excellente Luiza, veio considerando <span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span>se aquella dôr que soffrera
-no apartamento incluiria a redempção da sua pobresa. Valeria a pena
-tental-a, para quem desde o nascimento fôra destinada á vida do trabalho
-e das privações? Quando ella o dera á luz, bem como aos outros que lhe
-tinham morrido de bexigas, já fôra na perspectiva de os prender á terra
-negra, cavando-a com a enxada, para d'ella tirarem o pão duro de que se
-alimentariam. Isto era a vida assente na pobreza e conformidade: o que
-Luiz ia buscar longe, o que seria? Com os olhos razos d'agua, a pobre
-mulher, só percebia o esbatido d'um mar ennevoado e sem fim, a negrura
-d'um mysterio lugubre que formava esse porvir incerto...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span></p>
-
-
-<h3>IV</h3>
-
-
-<p>Nos primeiros tempos d'ausencia, receberam frequentes cartas repassadas
-de affecto e saudade, ás vezes com signaes de lagrimas que ennodoavam o
-papel a ponto de se tornarem inintelligiveis algumas palavras. Porém,
-passados tres annos, a correspondencia cessou quasi de repente e
-espalhou-se o boato de que Luiz morrera, sendo depois isto desmentido
-por outros dizeres, egualmente sem base. N'estas alternativas, de luto e
-contentamento, passaram-se os dias longos e as noites infinitas,
-limitando-se os dois paes a reverem-se no seu passado, modesto e feliz,
-acreditando Miguel na eterna formosura de Luiza e esta no garbo e
-valentia perpetua de Miguel. Até que um dia chegou esse bom mensageiro,
-que lhes trouxe os meios para reformarem <span class="pagenum" id="Page_136">[Pg 136]</span>a moradia e comprarem as
-terras, e com este facto lhes voltou a esperança, sempre risonha e
-carinhosa, de que seu filho havia de chegar em breve. Além das palavras
-de bom agouro, que o desconhecido deante d'elles pronunciara, receberam,
-logo após, carta de Luiz, em que lhes falava com ternura do possivel
-regresso e insistia especialmente na velhice tranquilla e abastada que
-procurava garantir-lhes. Porém, depois d'este promettedor acontecimento,
-que lhes deu annos de prazer emquanto reedificaram a casa,
-levantando-lhe um andar, emquanto plantaram videiras e enfeitaram a
-quinta, com arvores novas e um bello muro em volta; Luiz nunca mais
-escreveu, estabelecendo-se completo silencio, similhante ao primeiro que
-parecera de morte definitiva. Fartou-se o padre Clemente Carvalhosa de
-lhe escrever sentidas cartas, falando de tudo quanto podia haver de mais
-amoravel e terno no coração: a velhice dos paes, que não poderiam
-aguentar-se por muitos annos; a commodidade da habitação, que elles
-tinham arranjado ostentosamente para o receberem; a belleza e
-transformação dos campos em que elle labutara e brincara quando creança.
-Até lembrava a recommendação, que Luiz fizera no dia da partida, para
-não vender a cria da Russa: a esse proposito notificava-lhe que, tanto
-esse animal como a mãe, haviam morrido de velhos, em grande
-tranquillidade e ventura; mas que na mesma côrte da residencia havia
-outra egua descendente da segunda, <span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span>que era a estampa viva das saudosas
-extinctas. Nenhuma d'estas amoraveis e longas dissertações teve
-resposta, o coração de Luiz tinha-se de certo ressequido, pois já não
-vivia para tão commoventes memorias. Receberia elle as cartas? Não lhe
-seriam entregues por ter mudado de terra?!... É no que assentavam,
-afastando sempre a hypothese da morte, como castigo cruel e immerecido.
-Mas ao fim d'um crescido periodo de annos, sem noticias de nenhuma
-especie, experimentados por muitos e successivos desenganos,
-atormentados pelos pensamentos negros que traz a velhice, Miguel disse,
-um dia, em voz sumida, para não assustar a companheira:</p>
-
-<p>—Talvez elle morresse... talvez....</p>
-
-<p>Quem sabe?! Ha diversas maneiras de morrer. O corpo póde andar, no
-mundo, aos solavancos e encontrões, e ter desapparecido a vida com a
-alegria da alma. N'este domingo de março soalheiro, os dois velhos
-estavam á porta de sua casa, serenos e meditativos, mas conformados; foi
-o bom cura que lhes veiu incautamente turvar o coração, recordando-lhes
-o filho morto, ou eternamente desapparecido, o que para elles valia o
-mesmo. E quando ambos retomavam a tranquillidade em que estavam antes da
-chegada do sacerdote, ficando mudos, com os pés extendidos ao sol e a
-cabeça resguardada para que o calor os não adoecesse, sentiram passos no
-caminho que bordeja a quinta e viram que um estrangeiro se encaminhava
-<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span>para elles. Quem seria? Era um homem andrajoso, qualquer viajante pobre
-em caminhada para longe. O seu aspecto de miseria commovia... Trazia as
-botas cambadas, a camisa suja, as calças roidas; n'um saquito enfiado
-n'um pau, levava ás costas, toda a sua riqueza. Que ar esmorecido e
-doente! que longa barba mal tratada! como vinha dorido dos pés! Ao
-approximar-se da cancella, que dava ingresso no quinteiro, parou
-saudando com o chapeu esburacado. Miguel, com vista mais fraca do que
-Luiza, perguntou a esta:</p>
-
-<p>—O que é?</p>
-
-<p>O recemchegado é que respondeu em voz de cançado:</p>
-
-<p>—Um pobre viandante que pede uma sede de agua. Dão-m'a senhores?</p>
-
-<p>A velha disse com expressão de carinho:</p>
-
-<p>—Entre, faz favor?... Quanta agua quizer!...</p>
-
-<p>Não mostrou medo, nem repellencia, nem suspeitas d'aquelle homem roto,
-que podia ser um ladrão assassino. Foi ella mesma que veiu levantar a
-caravelha da cancella, para que elle entrasse, pois que o via sem forças
-para tão pouco... Conhecia-se que estava enfraquecido pela fome e pela
-longa jornada. Quem seria este misero de aspecto tão soffredor? Algum
-d'esses infelizes que vivem afastados durante muitos annos de todas as
-affeições e carinhos, e voltam ao seu lar depois de longa e dolorosa
-penitencia. O recem-vindo sentou-se n'uma tosca pedra que estava perto
-de Miguel, <span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span>pousando ao lado o pobre saquito, que era a sua riqueza. O
-penoso suspiro que do peito lhe sahiu ao descançar, condensava, de
-certo, uma vida aspera de soffrimento e exprimia talvez o desejo d'um
-periodo de socego, ainda que fosse na sepultura. Quando Luiza veiu de
-dentro de casa, com a malga, branca de jaspe, cheia d'agua limpida e
-fresca, elle tomou-a nas duas mãos, emborcou-a com satisfação, tendo no
-fim de beber um respirar de saciedade. Os seus olhos amortecidos pela
-desgraça, tiveram brilho carinhoso e contente ao restituir a malga.
-Agradeceu este favor com um sentimento que lhe veiu do fundo d'alma:</p>
-
-<p>—Deus-lh'o pague!—disse.</p>
-
-<p>Conservou-se silencioso durante muito tempo, a cabeça curvada para o
-peito, como um vagabundo que na alma procurasse o seu destino. Os dois
-velhos contemplavam-no compadecidos: nos seus corações amoraveis e bons
-apparecera um sentimento de infinda piedade. Não tinham elles tambem um
-filho, que assim andava perdido no mundo, vagueando por longes terras? O
-bem que elles, a este desconhecido, podessem fazer, outrem, no ponto
-distante onde estivesse Luiz, o retribuiria, soccorrendo-o se elle
-necessitasse. Com o instincto dos que são captivos do infortunio alheio,
-advinhavam que junto d'elles estava um infeliz precocemente avelhentado.
-Não procuravam, com perguntas desnecessarias, perturbar-lhe a paz que
-elle parecia ter encontrado sentando-se n'aquella <span class="pagenum" id="Page_140">[Pg 140]</span>pedra, a olhar
-meditativamente o chão do quinteiro. Adivinhavam-lhe, pelo aspecto,
-soffrimento que na sua vida obscura e modesta, elles nunca tinham
-sentido. Por esse mundo fóra, as desgraças engrossam, ás vezes, tão
-rapidamente, como o ribeiro que passa no fundo da aldeia, quando recebe
-as torrentes pluviaes, vindas a roncar pelas encostas e pelos caminhos.
-Que significaria o silencio dolorido d'este desgraçado, que nos restos
-do seu vestuario deixava perceber signaes de que no mundo tinha sido
-alguma coisa mais do que aquillo que ora apparentava?!...</p>
-
-<p>O viandante levantou lentamente a cabeça. Primeiro fixou a vista
-agradecida, amoravel e sem reservas nos que lhe tinham morto a sêde.
-Apesar da estranheza d'aquelle semblante, não causou aos dois velhos
-impressão, de que fosse o de algum doido que andasse desgarrado pelos
-caminhos da aldeia. O seu olhar era absorto, mas tranquillo e bondoso.
-Ainda que estranho ali, não lhes causava receio, nem pavor. Ao
-contrario: do imo da sua sensibilidade subia-lhes, a favor do misero, um
-formoso grito de benevolencia e compaixão. Aquella testa sulcada pela
-desventura, o rosto macerado pela desgraça, dizia alguma coisa de
-pacifico e sublime, como a luz sahindo de entre nuvens caliginosas no
-meio de rude tempestade. Os dois septuagenarios reconheciam que a
-apparição de tal infortunio estava tomando sympathico logar na sua
-pacifica existencia... «Este desconhecido <span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span>—pensavam—ainda que em
-qualquer tempo de sua vida, tenha sido mau e perverso, agora só parece
-ser desventurado!» Isto originara-lhes no seio a mesma piedade que
-sentiriam se áquella casa se viesse recolher um lobo ferido, ou mesmo,
-se um abutre lhes cahisse exanime junto da capoeira de que fôra o
-flagello. Esses animaes, tantas vezes escorraçados com alaridos de
-colera, teriam elles animo de os acabar, quando os reconhecessem
-indefezos e supplicantes nas vascas da morte?! Não: o findar da vida
-merece sempre compaixão; a desgraça redime de todas as culpas perante os
-corações bons e sensiveis.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span></p>
-
-
-<h3>V</h3>
-
-
-<p>Mas este pobresinho não era perigoso e não poderia nunca ter sido
-perverso: tamanha era a uncção maguada e soffredora que exprimia o seu
-rosto retalhado pelas rugas, o seu olhar extincto pela longa miseria!
-Havia n'elle tanta meiguice e affecto que só lhes provocava misericordia
-e caridade. Se o pedisse não lhe recusariam agasalho em sua casa. Que
-valia um logar junto da lareira, uma manta para cobrir os lassos membros
-sobre um pouco de colmo, uma tigella de caldo para aconchegar e
-fortalecer o estomago? De mais tinham elles, sem pessoa a quem o
-legassem. Uma obra de misericordia, offerecida por intenção d'aquelle
-que lhes dera o bem-estar de que gosavam, era acto <span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span>meritorio que lhes
-consolaria o espirito e teria certo apreço perante Deus. Uma voz
-interior affirmava-lhes que ali estava um infeliz digno de piedade: e
-sem muito saberem porque, ia-lhes dispertando sympathia o sorriso lento
-que na sua expressão se abria, á maneira que contemplava os dois velhos,
-que examinava a casa toda caiada de fresco, a latada que cobria o
-quinteiro, e o saudavel aspecto dos campos da propriedade em redor. A
-horta, ali mesmo ao lado, estava opulenta de couves e grellos; as
-borbulhas das videiras principiavam a engrossar; a temperatura era
-tepida e carinhosa; o misero parecia respirar, n'este ar, felicidade
-nova e paradisiaca. Similhava um cego, desde muito privado do goso da
-vista, que readquirindo-a de surpreza, entrasse gradualmente n'um
-periodo de enthusiasmo lento; ou então, o homem que recolhido, por
-longos annos, em lugubre masmorra, fosse restituido á liberdade e á luz
-durante um somno, achando-se incredulo pela ventura reconquistada.</p>
-
-<p>Este silencio demorado, e o demorado exame que o estranho estava fazendo
-de tudo quanto em volta se via, principiava a enredar em pensamentos
-vagos Luiza e Miguel. Primeiro passeara em volta com os olhos do corpo;
-mas depois, uma alegria crescente, lhe fôra desabrochando no rosto
-escalavrado, a custo, como rebenta a bonina em terreno duro. Os velhos,
-apesar de suggestionados por aquelle todo de bondade e infortunio, houve
-<span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span>um instante em que na mente lhes passaram receios, julgando-se agora na
-presença d'um louco. Pois que podia significar esta mudez, quasi
-familiar, da parte de quem ali era estranho e entrara sob pretexto de
-pedir uma sêde d'agua? Não se atreviam a interrogal-o, pois grande é a
-timidez da decrepitude. Annos antes já tudo estaria aclarado: pois que
-Miguel sempre fôra homem de grande desembaraço e não teria papas na
-lingua para perguntar quem era e o que queria do mais. Agora, porem, a
-edade e o corpo paralytico influiam no acanhamento do animo. Os
-septuagenarios entreolharam-se, volvendo ambos, depois, a vista para o
-peregrino ao qual Luiza disse:</p>
-
-<p>—Parece gostar muito d'este sitio...</p>
-
-<p>—Oh! muito!—exclamou. Tudo isto lhes pertence?</p>
-
-<p>Circumdou de novo o olhar pelo eido e pelos campos, extendendo-o até ao
-pinhal que se erguia n'uma ligeira collina.</p>
-
-<p>—Em quanto Deus quizer—respondeu Miguel. E vocemecê d'onde é? para onde
-vae?</p>
-
-<p>O desconhecido teve no rosto uma expressão de infinita paz e
-tranquilidade, que não deu idéa clara do seu pensar e destino. Sorria
-ligeiramente, com a incomparavel doçura d'uma creança a sonhar. Olhou os
-dois como se olham amigos e, Miguel, animado por esta expressão
-confortativa, ponderou:</p>
-
-<p>—Sim; porque vocemecê ha de ter por força uma terra...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span></p>
-
-<p>—Tenho, tenho uma terra...</p>
-
-<p>E ficou attento para o chão inculto do quinteiro, como se sentisse
-difficuldade em designar o ponto do globo, onde essa terra se talhava.</p>
-
-<p>Recahiu no silencio carinhoso que até ali conservara, mas com rosto tão
-aberto em bondade que, de todo, deixou de causar receios. Examinou a
-limpeza da casa em que os velhos moravam, e pensou na conformidade de
-existencia que dentro d'ella se passaria. Reinava, decerto, n'aquelles
-entes, a feliz paz da consciencia; desconheciam as perturbações agitadas
-da vida das cidades. Não pensavam em alardes, nem tinham ambições:
-talvez durante todos os seus annos, nem uma só noite tivessem abandonado
-aquella ditosa morada. Quem sabe o que o estrangeiro estaria calculando
-na sua mente, que pensamentos de felicidade o estariam a encantar!?...
-Talvez, depois de vida desventurosa, viesse encontrar n'aquelle quadro
-simples o primeiro refrigerio para as suas dores, a primeira idéa clara
-do que é a ventura. Os pacificos septuagenarios, pareciam comprehender,
-que o seu viver ditoso estava reconfortando a alma do misero que tinham
-na sua presença. Além de não ser rasoavel negarem-lhe um tal balsamo,
-encantava-os que assim fosse. Por isso, orgulhosos da sua modestia,
-deixavam que o homem andrajoso tudo apreciasse, sorridente e sem inveja.
-A casa juncto da qual se encontravam tinha aspecto de nova, as janellas
-com vidraças viam sobre a latada do quinteiro, o alpendre, <span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span>debaixo da
-varanda deitava para o lado do caminho, uma escada exterior mostrava
-ingresso ao andar de cima—accrescente feito para a chegada de Luiz, se a
-Deus prouvera, guial-o um dia para ali. Como fossem inimigos de
-grandezas, apesar da casa assim reformada, nunca abandonaram a parte
-terrea conservando ahi a sua moradia. A cosinha, á porta da qual
-estavam, era a mesma em que viveram com os filhos; ao lado havia o
-quarto soalhado em que dormiam agora, como sempre. As transformações
-n'este pavimento consistiam em que o que d'antes fôra côrte de gado
-servia agora para adega, salgadeira e casa de recolher a lenha no
-inverno. Ao fundo d'um telheiro, armado cá fóra, é que guardavam as duas
-juntas de nedios bois, os mais bellos do logar. O chiqueiro do porco e a
-capoeira das gallinhas ficavam encostados ao muro, rente com a casa.
-Tudo designava certo bem estar, conforto, e até opulencia, dentro da
-modestia de camponezes.</p>
-
-<p>Para onde iria o infeliz, que tinham deante dos olhos não o sabiam,
-visto que elle o não quizera dizer; mas o que sentiam, com a intuição
-das almas simples, pouco habituadas a luctas, é que sendo a sua figura,
-quando o viram entrar a cancella, a d'um infeliz retorcido pela miseria,
-agora, ao fim de pouco tempo, e depois de reconfortado na contemplação
-de todas aquellas coisas bem arranjadas, parecia mais alliviado do
-soffrimento que lhe alquebrava o corpo e a alma. Era outro, tinha-lhe
-<span class="pagenum" id="Page_148">[Pg 148]</span>feito bem o repouso sobre a tosca pedra, refrigerara-o a malga de agua
-limpida, consolara-o o aspecto feliz dos velhos que estavam ao sol,
-esperando, n'este santo domingo, a hora do jantar parcimonioso, apesar
-de na panella haver carne e salpicão que elles ambos comeriam regalados,
-agradecendo a Deus tamanho beneficio na velhice. Ao quinteiro chegava o
-suave odor do caldo gordo e fumegante, e não tardaria que Luiza se
-levantasse para ir á adega buscar o excellente vinho, para o beber de
-parceria com o seu homem e pela mesma infusa. Como elles seriam felizes,
-se n'esse bello e glorioso dia podessem compartilhar com o seu Luiz, que
-uma voz intima lhes dizia ainda viver, este bom jantar! Se tal
-felicidade lhes fosse dado poderem gozar morreriam contentes, não
-duvidando de que iriam direitinhos para o céu!</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span></p>
-
-
-<h3>VI</h3>
-
-
-<p>O descanço sobre a pedra tosca; o sabor da agua com que o tinham
-alliviado da sede do caminho; o banho de luz e tranquilidade em que todo
-o seu ser se mergulhara durante longos minutos; e principalmente a
-ventura que adivinhava na existencia sempre egual d'aquelles casados de
-tantos annos, haviam transformado em pouco tempo o aspecto do infeliz.
-Sorvia deleitado o ar que aqui se respirava, sorriam-lhe os olhos na
-contemplação d'esta paizagem carinhosa e melancolica, desfaziam-se-lhe
-as rugas da face ao renascer-lhe na alma a alegria que, por certo,
-n'elle se finara havia muito. Como Miguel o visse mais tractavel e
-familiar no aspecto, ponderou:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_150">[Pg 150]</span></p>
-
-<p>—Vocemecê estava tão moido, que decerto vem de muitissimo longe.</p>
-
-<p>—Oh! de muitissimo longe!...—repetiu o forasteiro com accento de grande
-amargura.</p>
-
-<p>—Talvez d'essa Lisboa!...—entendeu o paralytico.</p>
-
-<p>—Muito mais para lá!...</p>
-
-<p>E fez um gesto largo, d'uma amplidão infinita, acompanhando-o com um
-olhar que fôra até aos confins do mundo.</p>
-
-<p>—Do Brazil?—indagou Luiza com ancia e soffreguidão no rosto inquieto.</p>
-
-<p>Um simples aceno affirmativo de cabeça, deu resposta á pergunta. E logo
-os rostos dos dois septuagenarios se alegraram, como se em crepusculo
-matinal vissem surgir d'entre as penedias o sol nascente. Ao mesmo tempo
-tiveram a mesma lembrança. «Quem sabe se este desconhecido nos poderá
-dar noticias do nosso Luiz?!...»—pensaram. Porém, antes de o inquirirem,
-sustiveram-se n'este pensamento triste: «Como se pode voltar do paiz do
-oiro, da opulencia e da ventura, assim pobre, mal trajado e n'um aspecto
-tão miseravel e desvalido!» E Luiza, compadecida, considerou com as
-lagrimas a rebentarem-lhe:</p>
-
-<p>—Então é que não foi feliz, por lá... Nem todos o podem ser...</p>
-
-<p>—Nem todos... nem todos...—disse o estrangeiro, apparecendo-lhe no rosto
-um fulgor de alegria velada por amargura.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span></p>
-
-<p>—E conheceria por lá o nosso filho?...—perguntou a velha.</p>
-
-<p>—O seu filho! Tem um filho no Brazil?—indagou, o mal trajado, n'uma voz
-que se esforçava por ser corajosa e serena.</p>
-
-<p>—Temos—esclareceu Miguel inclinando-se para o interlocutor. Chama-se
-Luiz da Silva; mas lá puzeram-lhe o nome de Luiz da Tóca, por ser o nome
-d'este logar em que nasceu. Foi e nunca mais voltou—concluiu o velho,
-por sua vez, com os olhos rasos d'agua.</p>
-
-<p>Um rubor de incendio subiu á face do desconhecido, que com fingido
-esforço, como de quem se recorda disse:</p>
-
-<p>—Luiz da Tóca... Luiz da Tóca... Lembro-me muito bem; vivi muito com
-elle, e somos amigos.</p>
-
-<p>No primeiro momento, os velhos quasi se julgaram ludibriados com esta
-resposta: tão grande era a inverosimilhança do que escutavam! Pois não
-haviam dado resultado as instantes e repetidas diligencias do cura
-Carvalhosa, para descobrir o paradeiro de Luiz, e o acaso trazia-lhes ao
-pé da porta uma testemunha, que em tudo os podia esclarecer! Porém, a
-crença de seus corações n'uma Suprema Vontade, providencial e divina,
-era forte, e não duvidaram de que Deus e os santos com quem se tinham
-apegado, pudessem mais do que o virtuoso sacerdote. O accento de
-sinceridade com que aquellas palavras foram <span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span>ditas, a expressão de
-bondade e espontanea satisfação do rosto do homem que tinham deante
-d'elles, excluiam a possibilidade de qualquer ignobil mentira. O velho
-Miguel, apesar de meio paralytico, logo se abordoou ao seu pau, para
-erguer o corpo doente, com a energia dos antigos tempos; mas a commoção
-tornava-lhe insufficiente o esforço. Mesmo sentado ainda poude dizer:</p>
-
-<p>—Pois, o senhor, é que já não sae d'esta casa. Se conhece o Luiz, se é
-seu amigo, fica aqui comnosco para nos ajudar a saber d'elle e a
-encontral-o.</p>
-
-<p>Luiza, apesar de a lingua se lhe recusar a exprimir tudo quanto lhe ia
-na alma, attonita como estava, perguntou em voz tremula:</p>
-
-<p>—E em que terra encontrou vocemecê o nosso filho? Sabe onde estará
-agora?</p>
-
-<p>O estranho não respondeu logo. A sua phisionomia denunciava excepcional
-perturbação de contentamento, que os velhos não podiam apreciar por
-causa da nevoa de lagrimas que tinham nos olhos. Approximando-se, porem,
-dos dois, que uniu no mesmo abraço, disse soluçante:</p>
-
-<p>—Seu filho está aqui, meus queridos paes!...</p>
-
-<p>E passada que foi a primeira onda de alegria accrescentou:</p>
-
-<p>—Mas venho muito pobre! Só possuo estes farrapos que me cobrem. Se
-soubessem quanto tenho soffrido!</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span></p>
-
-<p>—Pobre!—bradou Miguel com a sua antiga energia, sahindo-lhe a voz do
-peito, como o ronco d'um trovão do interior d'uma nuvem. Então de quem é
-tudo quanto aqui temos? Não fostes tu que o ganhastes, homem!?</p>
-
-<p>E n'um gesto do seu braço revigorado pelo acontecimento, mostrava a
-riqueza que havia: a casa afidalgada, a horta abundante, os campos
-relvados que se extendiam para além, as videiras em promessas de
-rebentação, e o bello muro que circumdava a quinta todo caiado de novo.</p>
-
-<p>Luiza, voltando os olhos ao céu, pronunciou com as lagrimas a
-correrem-lhe em fio:</p>
-
-<p>—Nossa Senhora do Amparo ouviu as minhas rezas. Já podemos morrer em
-paz.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span></p>
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span></p>
-<h2>CRESCE O MAR!...</h2>
-
-
-<p class="center p0">(a Antonio Candido).</p>
-
-
-<p>Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono! Azul amortecido no ceu e
-a briza leve como o pensamento a perpassar na superficie da areia e a
-arripiar-se nas penedias que debruam a praia. Baixamar socegado!
-Balançam-se nos ares as brancas azas das gaivotas, que vão para o norte;
-e as velas dos barcos dos pescadores parecem ao longe outras gaivotas a
-emergir das aguas. Está deserto o areal; principia a nascer o marulho do
-vago infinito, que vem rolando á superficie como voz cariciosa e meiga.
-Avoluma-se de momento para momento, uiva, no começo como um leão
-pequeno, principia a dar côr ao silencio, que desce com a tarde lá do
-infinito <span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span>céu. O magestoso sol fulgura, inclinando o facho de luz sobre
-as aguas; a poeira d'oiro que o cerca, forma-lhe a fofa cama, onde
-repousará durante a noite.</p>
-
-<p>Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono, que, gerando sensações
-amoraveis em toda a natureza, attrahiu duas tenras creanças á admiração
-do mar argentado, e do mysterio formado de tranquillidade e luz, que no
-ar pairava. Eram dois irmãos, filhos de uma viuva, cujo marido o mar
-escondera para não mais lh'o restituir, e que morava em frente das
-ondas, na esperança de ainda ouvir a voz que a enamorara. O rapasito
-teria sete annos, e a pequena talvez cinco... não mais de certo.
-Enlevados na serena paz do universo, os leves corações palpitando de
-satisfação intima, viviam juntos nas sublimes regiões do absoluto, os
-innocentes, olhos pregados no reverbero prateado das aguas, os ouvidos
-attentos ao marulho cantante que os chamava como se fôra a voz de seu
-pae. Não era a primeira vez que na praia se encontravam escutando
-aquella voz suave, d'um rythmo dominante pela dolencia; e até já em
-muitas occasiões, a carinhosa mãe os prevenira contra as incontestaveis
-maldades, que as ondas encerram. Porem todo esse pavor artificial se
-tinha apagado na convivencia do mar, essas ondas que de longe vinham
-crescendo em ameaças, desfaziam-se impotentes contra as penedias
-dentadas da praia e a espuma branca e leve, como uma illusão, vinha-lhes
-<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span>lamber a elles, humildemente, os pequeninos pés enterrados na areia.</p>
-
-<p>N'essa tarde calma e deleitosa, emquanto a mãe se demorava na sua labuta
-de camponeza, Tone e a Zefa, contemplavam o mar, o pavoroso mar que lhes
-prendera o pae, e reconheciam n'aquella tranquillidade bondosa um amigo
-que lhes sorria para os namorar. Mostrava-se carinhoso e terno, as aguas
-claras deixavam vêr no fundo branco as mais bellas das suas joias:
-seixos semelhantes a ovos de pomba; pequeninas conchas vazias e cavas,
-como petalas de rosas; algas multicores e rendilhadas; molluscos boiando
-agarrados ao musgo das penedias uns, outros presos á pedra formando com
-ella um só corpo inabalavel e insensivel. O anteparo dos rochedos
-negros, que elles costumavam respeitar nos dias de nevoeiro como
-phantasmas que se erguessem do abysmo, e que nas noites tempestuosas ali
-permaneciam afrontando impavidamente o perigo, n'este dia e n'esta tarde
-calma e deleitosa, eram serenos e fortes arrimos que os defenderiam
-contra as ciladas das ondas. As repetidas provas que tinham da sua
-estabilidade e solidez afoutavam-nos a consideral-os como protectores
-devotados. Pois não era instavel a luz que desapparecia, o céu que
-desmaiava, as aguas que se remechiam, a movediça areia que cedia ao peso
-dos seus pequeninos pés? Era. Só a rocha, a rocha escura e aspera, lhes
-merecia confiança; só ella reconheciam como bastante forte para resistir
-<span class="pagenum" id="Page_160">[Pg 160]</span>ao mar e á furia das tempestades. Para aquellas consciencias nascentes e
-timidas as pedras feias eram arrimo unico e protecção contra os receios
-escondidos nas palavras de sua mãe, que sempre procurara inimisal-os
-contra o mar.</p>
-
-<p>No areal extenso, branco como uma longa teia de linho, Tone levava Zefa
-pela mão. Principiava o sol a avermelhar no horisonte. Mais uma vez os
-seus inexperientes olhos soffreram o singular deslumbramento de vêrem no
-meio da gloriosa chama, os anjos do paraiso com toda a sua bella
-legenda; era para lá d'aquella entrada em fogo que existia o céu, o
-logar escolhido para o Maravilhoso e Innarravel. Assim o indicou Tone
-com a magnificencia do seu saber:</p>
-
-<p>—Olha Zefa: é o céu onde estão os anjos de Nosso Senhor.</p>
-
-<p>A pequenita ficou mais uma vez presa na contemplação da patria
-celestial. O seu olhar azul prolongou-se para o infinito, n'uma visão
-sublime de candura. O seu imaginar via todas as maravilhas na
-athmosphera subtil e impalpavel, no doirado da luz, na angelical
-brancura de figuras meigas como a sua alma innocente.</p>
-
-<p>—Como é lindo!—exclamou Zefa.</p>
-
-<p>Foram caminhando, pela branca areia, as mãos reciprocamente apertadas,
-sentindo n'este contacto amoravel realidade de existencia e protecção
-mutua. Dirigiram-se a um rochedo que se lhes offerecia em suave e branda
-subida e d'onde podiam <span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span>intemeratamente gozar tudo que os maravilhava.</p>
-
-<p>No mais alto d'essa pedra escura, roida pelas ondas, a grata aragem
-agitava as leves camisinhas de pobre linho com que cobriam a sua nudez.
-Como o dia estivera calido, sentiam agradavelmente a benefica sensação
-de frescura passar-lhe nos cabellos, a amaciar-lhes a pelle. Do alto da
-enorme penedia, que lhes era pedestal, lançavam olhos ao largo e
-aspiravam o cheiro acre e forte que vinha das aguas que sussurravam.
-Impavidos e cheios de toda aquella grandeza que se lhes impunha,
-reconheciam-se enlevados nas maravilhas, que os sentidos percebiam nas
-ondas e no céu. E Tone disse com effusão:</p>
-
-<p>—Olha o mar Zefa! É ali que está o pae!</p>
-
-<p>Apontou vagamente para esse infinito d'Além, que o olhar azul da
-pequenita abraçou n'uma sombra de tristeza e saudade. Havia na sua
-expressão de limpidez seraphica, alguma coisa de dôr ou meiga ternura,
-que se espalhou pelo ar fóra escurecendo-o. Era ali que estava o pae! E
-o que seria <em>ali</em>?!...</p>
-
-<p>O sol semelhava fogo voraz que incendiasse o céu. Parecia um instante de
-perigo, tremendo para o universo, esse em que a immensa chamma irradiava
-do horisonte. Só o grande poder de Deus, com um gesto formidavel e
-omnipotente, poderia extinguir o brazido ameaçador! Se assim não fosse,
-o que poderia acontecer á terra, ao mar e ás estrellas se essa cólera de
-lume se estendesse a toda a amplidão infinita? Seria uma grande desgraça
-reduzir a <span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span>Nada tudo quanto era bello e grande e os maravilhava
-enchendo-lhes a alma de grandiosas aspirações. A briza agitava-lhes as
-camisinhas de grosso linho, os cabellos incultos fluctuavam e as duas
-creancinhas viveram um momento em grande terror!</p>
-
-<p>Porem a intervenção providencial manifestou-se: o que era incendio
-foi-se apagando, a luz tornara-se d'um deslumbrante alaranjado primeiro,
-depois d'um roxo terno que franjava o azul. Uma nuvem que ao longe
-estava suspensa sorria-lhes do alto com o seu roseo carinho. Parecia um
-resto de tunica d'anjo, que andasse perdida no ar.</p>
-
-<p>Tamanho encanto sentiam as duas creanças, que nem davam pelo marulho das
-ondas, que já se agitavam perto. E quando os seus bellos olhos sobre as
-aguas desceram, entertiveram-se a contemplar o redomoinho variado que
-ellas faziam, subindo lentamente até ao sopé do rochedo, para depois se
-retirarem com humildade. Havia n'isto carinho e não cólera; a espuma,
-tão bella e tão branca, vinha tremendo sobre o dorso da vaga até se
-desfazer; as algas vermelhas, verdes e azuladas fluctuavam dormentes
-como n'um berço; os lindos seixos que formavam mosaico no fundo
-encrespavam-se, como se fossem de cera molle. Muito unidos, encontrando
-no corpo um do outro mutuo apoio, observavam interessados aquelle
-crescer do mar, posto que muitas vezes tivessem visto um tal phenomeno
-que sempre os encantava. A onda é constantemente nova: <span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span>nunca tem a mesma
-força em dois momentos successivos, nem o seu enrolar é de forma egual,
-em duas d'estas irmãs gemeas nascidas par a par; o facto de se fazer e
-refazer perpetuamente dá a sensação d'um inicio de vida que surge. Por
-isso Tone e Zefa, mudos e risonhos, vendo uma vaga avolumar-se sobre
-outra vaga, consideravam quanto havia de carinhoso e amigo n'estes
-beijos da espuma á penedia onde estavam. O marulho grosso que vinha lá
-de longe inchando sempre, até rebentar na praia, entorpecia-os
-deliciosamente, deixando-lhes nos ouvidos uma ressonancia plangente. Era
-musica suave e rara, cuja melancolia se casava de modo admiravel com
-esse gradual escurecimento do céu, da terra e do mar, que os envolvia
-como n'um mysterio.</p>
-
-<p>A tenue sombra que vinha do horisonte em redor, diluida em tenue
-orvalho, cercava-os d'uma atmosphera de goso triste que lhes desmaiava a
-expressão por sentirem muito.</p>
-
-<p>Crescia o mar, a luz do sol apagava-se, já o pestanejar das estrellas no
-céu apparecia. Perto, mui perto, conheciam o bater das ondas na base do
-rochedo e o galgar das aguas pelo areal acima. Aquellas pequeninas almas
-voavam na amplidão, como serenas e doiradas nuvens, que levassem todas
-as celestiaes chimeras que haviam sonhado. O que os seus olhos ainda
-viam, e o que os seus ouvidos percebiam eram coisas que lhes embalavam o
-entendimento levando-o para mundos sidereos e <span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span>encantadores. Esse gemer
-da sombra que escurecia o mar immenso, o rebrilhar da abobada celeste na
-grande festa da noite outomnal, faziam-lhes caricias no cerebro, sem
-lhes causar pavor. Esquecidas as existencias terrenas, só viviam na
-amplidão infinita, as pobres almas ingenuas!...</p>
-
-<p>Os seus corpos sem peso, vagueavam suspensos no mundo ethereo; a
-imaginação alargava-se-lhes como o fumo do incenso ao evolar-se dos
-thuribulos sagrados na festa paschal. Iam intemeratamente por essa
-amplidão do mar, fortalecidos pelas idéas de mysterio com que a noite
-estrellada seduz as mentes infantis.</p>
-
-<p>A sombra espessa cahira pesada e egual sobre a rugosa superficie das
-aguas, dissolvendo os rochedos da praia, esfumando, em tenue esbatido, o
-terreno onde estava a casa de moradia. Encantava-os a phosphorescencia
-das ondas, enfeitiçava-os o lacrimar argenteo do ceu, sentiam os
-corações subir em extasis... De todas as realidades só a brancura da
-areia percebiam estendida como um lençol e o ruido do mar que regougava
-a seus pés. Os ouvidos, porém, já de muito habituados a este som tantas
-vezes ameaçador, quantas muitas carinhoso e meigo, não presentiram que
-elle lhes rugia de todos os lados. Estavam cercados pelas aguas em
-revolta e só d'isto tiveram a primeira suspeita, quando pelo rochedo
-subiu uma onda, cuja espuma em flocos lhes voou para os cabellos
-incultos que fluctuavam ao sabor da brisa. A pequenina Zefa soffreu <span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span>um
-rebate de susto, e agarrando-se mais fortemente a seu pequeno irmão,
-gemeu receiosa:</p>
-
-<p>—Tenho medo!...</p>
-
-<p>Tone despertou do sonho de poeta em que vivera! Como tivesse mais dois
-annos, sentiu o peso das suas responsabilidades. Era escuro e o bramido
-erguia-se energico e temeroso. Lembrou se então de descer da rocha e
-fugir ao perigo; mas, circumvagando o olhar inquieto, logo reconheceu o
-bloqueio que o mar lhes estabelecera. Titubeante, mas querendo fingir
-coragem, disse:</p>
-
-<p>—Não tens medo Zefa. A gente vae-se já embora...</p>
-
-<p>Que especie de soccorro esperaria Tone, sabendo que todos os dias
-aquelles rochedos da praia se escondiam nas aguas, amedrontados pela
-furia do protentoso mar?! Talvez o não soubesse dizer; porém o coração
-esperançado, sempre ouvira que, para lá da abobada celeste, existia o
-omnipotente Deus que valia aos desgraçados nas horas dos grandes
-infortunios. Um acto simples do seu querer, manifestado sobre o mundo
-n'um gesto formidavel, seria logo obedecido pelos mares e pelos montes,
-pelas estrellas e pelo sol! Era só apegarem-se com elle, levantarem o
-pensamento até junto do seu throno celestial, todo oiro e luz, e ali
-supplicarem cheios de vehemencia e fé!</p>
-
-<p>Precisavam fazer um grande esforço, pois tinham de ir para além de tudo
-quanto se via no espaço infinito. E logo que o Pae-do-céu os ouvisse,
-aquelle mar enfurecido se tornaria bonançoso, a sua voz <span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span>horrenda seria
-apenas um cantico, as aguas recuariam mansas até os confins do mundo, e
-elles veriam desenrollar-se diante dos seus pequeninos pés uma estrada
-singella e vulgar, que os conduziria ao seu casal. E o coração
-amargurado e inquieto de Tone, tumefeito de consoladora esperança, voou
-pelos espaços, em quanto cahia supplice sobre a rocha erguendo as mãos e
-aconselhando:</p>
-
-<p>—Resa muito, ao Senhor, Zefa!</p>
-
-<p>A pequenita ajoelhou como elle ajoelhara; pôz as mãosinhas, fitou nas
-estrellas os olhos cheios de lagrimas. Não sabia ainda resar, mas os
-seus labios delgadinhos imitavam n'um anceio as palavras fervorosas que
-seu irmão dizia alto: «Padre nosso, que estaes no ceu...»</p>
-
-<p>O mar não se apiedava. Os seus bramidos eram violentos e colericos. De
-onda a onda as aguas subiam mais. A todos os momentos os corpos lhes
-eram salpicados de espuma e as pobres camisinhas de linho grosso já
-estavam encharcadas. Zefa, d'um primeiro lamento timido e perigoso, foi
-subindo a um pranto sentido. Chorava copiosamente em gritos, mas a
-vontade energica de Tone ainda procurava sustental-a contra esta
-fraqueza. Sem uma lagrima, sem uma ruga de pavor no rosto e com voz
-clara animou-a:</p>
-
-<p>—Cala Zefa, não chores. O pae está ali—(apontou o vasto oceano)—e vem
-buscar a gente para irmos todos para a nossa mãe.</p>
-
-<p>Acreditaria Tone, n'este providencial soccorro?! <span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span>A furia do mar
-augmentava de instante a instante, as vagas ameaçavam-no de mais perto,
-elle continuava com a irmãsinha estreitada contra o seu corpo valoroso.
-Ambos esperavam, com os cabellos empastados e as camisas colladas á
-pelle, que da infinita bondade do céu viesse o soccorro que os
-restituisse aos braços de sua mãe. Do mysterio insondavel da noite é que
-viria a voz salvadora, ou fosse na vontade protentosa de Deus abrandando
-a inclemencia do mar, ou na força amorosa de seu pae cuja sombra tantas
-vezes conheceram a vaguear sobre os rochedos e sobre as aguas!...</p>
-
-<p>E sua mãe? aquella boa alma consoladora que os aconchegava ao seio nas
-crises das doenças?! Zefa entregava-se á protecção de Tone; este, de
-animo varonil, alguma coisa via surgir ou do ceu omnipotente, ou do mar
-mysterioso, ou da terra sempre querida.</p>
-
-<p>Da terra querida chegou-lhes realmente o primeiro som d'uma voz
-fortalecedora e meiga, quando estavam no maior desespero.
-«Tone!»...«Zefa!»...—dizia um grito sahido do medonho seio da noite.
-Havia n'esse grito mais desespero e mais lagrimas do que furia no
-bramido do mar, e gottas d'agua nos seus abysmos insondaveis. Era a voz
-da Mãe que procurava seus filhos na praia e que no meio d'angustias os
-pedia á immensa escuridão. Aquelle som carinhoso e desesperado chegou
-aos ouvidos dos apavorados innocentes, quando os seus pequeninos pés já
-se mergulhavam na agua, <span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span>que recuando mais uma vez pareceria arrependida
-da propria crueldade.</p>
-
-<p>«Mãe!... Mãe!»...—clamaram tranzidos de medo, com o ultimo vislumbre de
-esperança posto na voz imprecativa e meiga, que atravessara o medonho
-falar das ondas. Ouvil-os-hia a desventurada? Parece que sim, por certo
-guiada pelo coração, pois que n'um fugaz momento de calmaria clamou com
-mais força ainda:</p>
-
-<p>—Onde estaes filhos!...</p>
-
-<p>Elles responderam em desfalecido choro, mas vehementes com a energia do
-desespero:</p>
-
-<p>—Aqui mãe!...</p>
-
-<p>Sem duvida aquelles olhos d'amor adivinharam o lugar; e o perigo, que
-era eminente. Para os filhos se dirigiu, como uma loba, como uma leôa,
-energica, impetuosa, inconsiderada, guiando-se apenas pelo instincto que
-vinha do fundo das suas entranhas. Do rochedo onde os filhos estavam
-estreitados n'um supremo abraço, separava-a o mar que se balouçava
-dolentemente, crescendo a cada nova onda, ameaçando-a com dentes e
-garras sanhozas de tigre. Na limpidez do céu estrellado via os dois
-pequeninos corpos muito unidos, fortalecendo-se cada um na fraqueza do
-outro.</p>
-
-<p>A mãe, impellida pela energia da sua amoravel loucura, entrou
-resolutamente na agua animando as creanças com a palavra clara,
-encorajando-as com o denodado exemplo.</p>
-
-<p>—Esperae, esperae! Não vos atireis por ora, filhos!</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span></p>
-
-<p>Suppunha ter ainda tempo de se approximar do rochedo e recebel-os nos
-braços para com elles fugir para o humilde tegurio. A frialdade da agua
-não lhe diminuia o calor do sangue em fervura, o impeto das ondas não
-lhe quebrava a força dos musculos, o terror do abysmo não a cançava.</p>
-
-<p>Ia avançando com prudencia, já immerso o corpo até aos hombros, os
-braços levantados para animar os filhos, com a sua approximação. Fazia
-todos os esforços de valor moral, para que elles acreditassem na
-efficacia d'aquelle auxilio. As criancinhas, silenciosas, com o terror
-vago nos olhos, percebiam o lento chegar d'aquella mulher fragil,
-sublimada por uma coragem indomita. Mas a valentia do mar augmentava de
-instante para instante. Quando a mãe sentiu que se ia afundar, atirou-se
-n'um arranco sublime contra as encapelladas ondas. Os filhos, por
-instincto, logo a imitaram para serem recolhidos n'aquelles braços de
-caricias. Estreitaram-se fortemente, uniram-se n'um supremo esforço;
-porem, a furia impiedosa do mar separou-os logo. Os corpos fluctuaram
-até que uma vaga soberba e altaneira os cobriu, envolvendo-os n'um
-sudario de espuma, levando-os para o negro abysmo, onde iam encontrar a
-sombra querida do pae que por lá vagueava.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span></p>
-
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span></p><h2>O GAMARRÃO</h2>
-
-
-<p>Dia de finados, dia lugubre, dia triste!... Pelas oito horas da noute,
-dos lados de Serpins, sentiu-se grande reboliço. Muita gente a correr.
-Francisca, a criada do morgado, pedindo soccorro n'uma voz esganiçada.
-Seriam ladrões? pegaria algum fogo? armar-se-hia qualquer desordem?
-Ninguem o sabia. Para lá se dirigiam em tropel homens armados de
-roçadoiras, espingardas velhas e varapaus—todos n'uma attitude
-combatente, falando alto! O sacristão direito á torre para tocar a
-rebate, mulheres e creanças alarmando a villa correndo e gritando, os
-prudentes a fecharem as janellas para se não metterem em barulhos, nem
-servirem de testemunhas... era o que se via.</p>
-
-<p>Averiguou-se, por fim, que o morgado Gamarrão se encontrara
-repentinamente mal com uma <span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span>colica, resultado de uma copiosa ceia de
-castanhas com geropiga. Homem sanguineo, rebolava-se pelo chão da
-cosinha como uma pipa, dava urros que nem um touro, os olhos
-esbogalhados rebentavam-lhe das orbitas. Dous valentes creados sopesaram
-o moribundo como um sacco de trigo e atiraram-n'o sobre a cama. O
-cirurgião Mendonça, seu velho inimigo, veio quando elle já nem respirava
-e dirigindo-lhe a ponteira da bengala, desprezou-o:</p>
-
-<p>—Resem-lhe por alma, se é que a tinha. Está prompto, não torna a dizer
-asneiras.</p>
-
-<p>O mulherio, em volta da Francisca, acompanhava-a na sua grande dôr,
-chorando com ella, consolando-a com delicadeza. Não se comprehendia o
-sentimento da rapariga por este mastodonte avaro e gordo, o mais
-embirrento homem das redondezas; porém ella, recusando consolações,
-explicou:</p>
-
-<p>—Não que era muito meu amigo. Tinha-me promettido umas arrecadas para o
-Natal. Ai! meu rico amo!</p>
-
-<p>Porém todos estavam certos que o morgado lh'as não daria. Era uma alma
-de presunto, como dizia o Mendonça, não tinha amor a vivente. Durante um
-longo periodo, talvez de trinta annos, ninguem soube que o Gamarrão
-escrevesse ou recebesse uma carta. Orphãos, viuvas e necessitados que á
-sua riqueza fossem buscar amparo, em vez de beneficio, tinham como certo
-o abraço selvagem d'este urso indomavel.</p>
-
-<p>O seu unico herdeiro vinha a ser um sobrinho <span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span>residente em Trancoso. O
-administrador do concelho, o Menezes, promptificou-se a escrever ao
-collega de lá, participando-lhe o occorrido. Não se fez esperar a
-resposta telegraphica, dizendo que em breve chegaria a Serpins o dr.
-João Gama, sobrinho do morgado.</p>
-
-<p>Gente credula em demasia! Sem nenhuma especie de informações, logo se
-deitaram a imaginar este homem differente do fallecido. Que seria
-risonho e condescendente, esmoler e affavel.</p>
-
-<p>Prepararam-se para o receber, affectuosamente nos braços, logo que elle
-chegasse e resolveram consideral-o como o bemvindo.</p>
-
-<p>A tarde em que elle appareceu era lamacenta e chuvosa; as pessoas, as
-arvores e o ar mostravam-se fuscos e encebados. Quando viram o dr. Gama,
-julgaram assistir á ressurreição do tio—anafado, soberbão e de tal
-volume que lhe custou a sahir da diligencia. O cocheiro commentou:</p>
-
-<p>—Devia pagar dous lugares. Já em Braga foi a mesma chalaça, para o
-metter dentro.</p>
-
-<p>Porém, elle, ao encontrar-se fóra d'aquella velha arca de Noé, sentiu a
-ampla sensação da liberdade conquistada e mostrou-se sorridente,
-benevolo e acariciador. A primeira impressão foi boa e não desmanchou o
-que tinham presumido.</p>
-
-<p>O administrador, ao voltar de Serpins, affirmou na botica:</p>
-
-<p>—Temos homem. Talvez se faça alguma cousa.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span></p>
-
-<p>Ao que o Mendonça retorquiu, chupando o cigarro:</p>
-
-<p>—Elles são parentes, meu amigo!...</p>
-
-<p>Increparam-n'o pela duvida.</p>
-
-<p>—Então você não admitte...</p>
-
-<p>—Admitto tudo... mas não me cheira.</p>
-
-<p>Que deixassem a cousa por sua conta, pediu o Menezes, premeditando um
-golpe de grande politico. A questão era de geito. Todos comem palha, o
-caso é saber-lh'a dar. Má impressão não lhe fizera, e uma carta que
-recebera do collega de Trancoso, avivara-lhe as esperanças. E logo no
-dia seguinte de manhã apresentou-se em casa do <em>novo conterraneo</em>,
-palavras estas que pronunciou de modo a imprimir-lhes a ideia de
-naturalisação official, de uma especie de carta de cidadão, passada ali
-mesmo por elle.</p>
-
-<p>De tudo se fallou. O Menezes gostava de ostentar importancia—que tinha
-relações, que recebia muitas cartas, que em Lisboa falava com ministros.
-Sendo ferrenho regenerador, affirmava que o Lopo, o Barjona e o proprio
-Fontes o tratavam affavelmente e o recebiam em cavaqueiras intimas.
-Fazia gestos largos, conquistando, dirigindo, aconselhando.</p>
-
-<p>—Seu tio—disse depois de conveniente preparação—era muito estimado entre
-nós. Esmoler, chão no tracto, bondoso, o que se chama um coração aberto.
-A sua piedade e religião eram proverbiaes.</p>
-
-<p>O dr. Gama limpou duas lagrimas que lhe humedeceram as palpebras.
-Conservou-se silencioso <span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span>por momentos e em tom compungido respondeu:</p>
-
-<p>—Agradeço-lhe as suas palavras, que sei verdadeiras. Conheci esse
-coração magnanimo, esse homem antigo, esse tio admiravel! Era tal como
-diz, um santo, um bom.</p>
-
-<p>—Julguei que nunca vira seu tio...—balbuciou timidamente.</p>
-
-<p>—Durante estes ultimos vinte annos carteamo-nos sobejamente. Os nossos
-corações uniram-se em bellas paginas, como só elle as sabia escrever.</p>
-
-<p>—Não o apreciei debaixo d'esse ponto de vista, mas sim na convivencia.
-Era um homem altamente religioso e não d'esses modernos que chasqueiam
-dos bons principios. Uma festa, aqui popularissima, á Senhora do Regaço,
-e que elle todos os annos fazia á sua custa, com pompa e luzimento,
-dera-lhe entre a nossa gente verdadeira nomeada de bom catholico. N'este
-ponto julgo adivinhar que v. s.ª não quebrará a tradicção...</p>
-
-<p>O dr. Gama concentrou-se. Tomou aspecto reflexivo, enguliu em sêcco duas
-vezes.</p>
-
-<p>—Se meu religioso tio—respondeu—a cuja memoria tanto devo, costumava
-fazer a festa da Senhora do Regaço, com pompa e luzimento, não serei eu
-que venha interromper essa piedosa pratica. Preciso, porém, consultar os
-seus livros e papeis secretos, para conhecer os precisos termos em que
-elle procedia, e da mesmissima fórma eu proceder tambem.</p>
-
-<p>—Deixaria elle apontamento a tal respeito?— <span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span>—observou o duvidoso
-Menezes—Isso não offenderia a sua modestia?...</p>
-
-<p>—Não, de certo não. Conheço a fundo a alma de meu tio, pela nossa
-activissima correspondencia. Esses documentos e livros devem existir;
-estou certo que existem.</p>
-
-<p>Causou estranheza tal revelação. Teve, porém, o valor de alegrar e
-alimpar a embirrenta e sordida memoria do avaro Gamarrão. Quantas
-virtudes n'este mundo se mascaram de vicio, para não as offender a luz
-crúa da publicidade!—consideravam philosophicamente alguns homens
-meditativos d'aquella terra.</p>
-
-<p>Affluiu muita gente a visitar o novo morgado de Serpins.</p>
-
-<p>De aldeias proximas vieram, por caminhos pedregosos, varios
-ecclesiasticos e proprietarios montados nas suas eguas lanzudas.</p>
-
-<p>Falaram n'elle para deputado do circulo e d'ahi cada um tirava
-esperanças de engrandecimento pessoal. O provedor da Misericordia,
-animado pelo bom acolhimento que tivera o Menezes, procurou estar só com
-o homem, para lhe recommendar á generosidade o hospital, cuja vigilancia
-a seu cargo tinha.</p>
-
-<p>—Seu caridoso tio, meu velho amigo, era o melhor protector da Santa
-Casa. Nas festas do anno e no anniversario da morte da senhora morgada,
-tinhamos sempre presentes de roupas, gallinhas e dinheiro. Sem um tal
-auxilio não poderiamos <span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span>viver, e ouso pensar que o seu continuador, o seu
-herdeiro, não nos faltará igualmente com a sua protecção.</p>
-
-<p>—Se meu caridoso tio—retorquiu solemne—cuja memoria tanto respeito,
-auxiliava o hospital d'esta terra com roupas, gallinhas e dinheiro, não
-serei eu que lhe desmereça a santa memoria, deixando de o fazer.
-Preciso, porém, de consultar os seus livros e papeis secretos, para
-conhecer os precisos termos em que essas dadivas eram feitas, para as
-continuar.</p>
-
-<p>—E haverá, porventura, esses documentos?</p>
-
-<p>—Decerto! Oh! quasi que o posso jurar! Eu conhecia-lhe profundamente os
-habitos.</p>
-
-<p>Depois d'isto os cavalheiros mais grados reuniram-se na idéa grandiosa
-de solemnes exequias por alma do morgado de Serpins. O presidente da
-camara, homem circumspecto e idoso, foi encarregado de levar este
-projecto ao regozijo funebre do dr. Gama, que se mostrou sensivel a taes
-provas de affecto, confessando:</p>
-
-<p>—É bem certo que a virtude sempre terá o condigno premio, digam o que
-disserem scepticos e maldizentes!</p>
-
-<p>O presidente ponderou:</p>
-
-<p>—Muito esperavamos d'este querido conterraneo. Ainda ha bem pouco tinha
-promettido auxiliar-me n'uma empreza difficil. Ha aqui uma rua que é a
-grande arteria da nossa circulação. Estreita n'um ponto, para se alargar
-é necessario <span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span>demolir um pequeno predio, que pertencia ao senhor seu tio
-e presentemente a v. s.ª pertence. Promettera me elle que essa
-expropriação seria gratuita e a camara da minha presidencia, para
-perpetuar tão valioso feito, tinha resolvido dar á arteria em questão,
-que será no futuro uma especie de avenida, o nome do doador. A
-Providencia mandou outra coisa e agora é o nome de v. s.ª que está na
-nossa ideia...</p>
-
-<p>—Isso não! o nome d'elle é que será perpetuado! Se meu generoso tio, a
-cuja memoria tanto devo, havia decidido concorrer para essa obra pela
-fórma que me diz, não serei eu que deixe de completar o seu pensamento.
-Preciso, porém, lêr os seus livros e papeis secretos, para conhecer os
-precisos termos em que esse tio patriota desejava fazer a cedencia. Todo
-o meu empenho é cumprir á risca a sua vontade... para mim sagrada e para
-todos saudosa!</p>
-
-<p>—Modo de pensar e proceder verdadeiramente fidalgo! Receio, porém, que o
-senhor morgado não tenha deixado escripto... que...</p>
-
-<p>—Tudo escrevia. Durante mais de vinte annos eu conhecio-o no intimo. Era
-um verdadeiro litterato, para a familia. Eu tenho quasi a certeza, ia-o
-mesmo jurar sobre umas Horas, se necessario fosse, que meu chorado tio
-deixou alguma cousa a esse respeito... Escrevia tudo, mesmo tudo, não
-imagina! Ando em busca das suas memorias e vontades e hei de
-encontral-as. Já mesmo alguma coisa <span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span>encontrei—o rol das suas rendas em
-divida. Escrevia tudo, creia...</p>
-
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O dr. Gama agradecera individualmente as homenagens prestadas ao nome do
-seu antecessor. Exequias magnificas; concorrencia de todo o clero do
-concelho; missa a tres padres; no côro rabecas, clarinetes e flauta; um
-sermão do afamado padre Carapeta, exalçando por ahi além as virtudes do
-fallecido!...</p>
-
-<p>Um poeta de veia funebre escreveu uma elegia que foi impressa e
-divulgada. Um tabellião e o escrevente da fazenda organisaram
-correspondencias para os jornaes do Porto, avultando os factos. N'uma
-terra pequena não se podia fazer mais e o juiz de direito, homem
-entendido, affirmou que nas grandes se não faria melhor.</p>
-
-<p>Todo o mundo julgava o dr. Gama contente e sazonado. Foi, porém,
-justamente depois d'esta solemne demonstração que elle começou a
-mostrar-se sibyllino e rijo. Não dava occasião a largas conversas, e as
-que não podia evitar, guiava-as para um campo generico, pronunciando
-sonoramente as palavras do alto do seu magnifico busto. Uma vez que
-manhosamente o levaram, n'uma especie de visita, ao predio a demolir
-para o alargamento da rua, elle deixou-se conduzir, achou <span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span>magnifica a
-idéa, mas evitou fazer qualquer promessa compromettedora.</p>
-
-<p>Quereria este Gama faltar áquillo em que já concordara? Não podia ser...
-julgavam-n'o incapaz... era talvez feitio... No emtanto tornava-se
-urgente uma aclaração e para a obterem concertaram-se o Menezes, o
-Provedor e o Presidente, fazendo-se acompanhar do Mendonça, que era
-desembaraçado e não tinha papas na lingua. Vestiram se apparatosamente
-de sobrecasaca, chapéu alto, luva... tudo como o caso requeria. Entraram
-n'aquella sala humida e fria da casa de Serpins. As janellas davam sobre
-um laranjal, cujo verde escuro entenebrecia o ambiente. O tecto
-abahulava-se n'uma intenção de amplitude, concentrando a claridade. As
-cadeiras dormitavam aos lados, quasi em abandono!</p>
-
-<p>Palraram sobre todas as cousas—lavoura, demandas, politica,
-melhoramentos... e n'um a proposito bem aproveitado, o presidente pôz
-timidamente a questão:</p>
-
-<p>—V. s.ª bem sabe... Temos os nossos orçamentos a mandar para cima...
-Quereriamos alguma cousa de certo. As suas promessas...</p>
-
-<p>—Promessas, promessas... Eu por mim ainda não tive tempo de pensar a
-sério nos objectos das nossas ponderações...</p>
-
-<p>—Mas os nossos compromissos... a festa da Senhora do Regaço á
-porta...—insufflou o Menezes.</p>
-
-<p>O provedor accrescentou:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span></p>
-
-<p>—Os doentes necessitados não pódem esperar. V. s.ª comprehende...</p>
-
-<p>—Comprehendo, porém são cousas difficeis. Immenso que fazer! Uma casa
-grande e muito embrulhada na administração. Caseiros, rendas, generos,
-gados, o diabo! Ainda não pude... realmente ainda não pude...</p>
-
-<p>O Mendonça, que era azedo, esperto e embirrava com o morto, aproveitou o
-momento para desbravar o terreno e ao mesmo tempo lançar grossa mancha
-em todos os Gamarrões, pois fôra sempre seu parecer que este sobrinho
-equivalia á besta do tio. N'um tom que, á primeira vista, se poderia
-julgar inconveniente disse:</p>
-
-<p>—Meu caro senhor, cartas na mesa. Estes cavalheiros tiveram de v. s.ª
-solemnes promettimentos. Fundados n'elles fizeram declarações lá fóra e
-com todo o direito vêem exigir que v. s.ª cumpra a sua palavra. Ora eis
-ahi está o que é, sem mais refolhos.</p>
-
-<p>—A memoria de seu tio tudo merece—insinuou o presidente, para avelludar
-a dura arremetida do Mendonça.</p>
-
-<p>O sobrinho do Gamarrão atirando solemnemente com o busto para diante,
-ergueu a cabeça, e de palpebras meio cerradas, affirmou:</p>
-
-<p>—Se meu nobre tio, cuja memoria eu venero e acato no mais alto grau,
-costumasse fazer todas essas dadivas, que os senhores dizem, de tal
-teria deixado apontamento ou lembrança que ainda não <span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span>encontrei. Porém
-que encontrasse ou que encontre, eu desde este momento solemne declaro
-que acho abominavel, (abominavel é o termo!) este procedimento de
-quererem influir no tribunal da minha consciencia! É cousa que se faça,
-o perturbar uma consciencia, seja ella de quem fôr, de um rei ou de um
-mendigo?! A um homem delicado e quasi timido, como eu, impôr-lhe um tal
-onus e n'esses termos! Não se poderá taxar de indelicadeza, de violencia
-e até de coacção!? Eu recuso e recuso terminantemente.</p>
-
-<p>Foi terrivel o assombro!</p>
-
-<p>Os quatro olharam-se sem comprehender! Depois das exequias, do sermão,
-da poesia, das correspondencias, sahir-se com esta! O Mendonça, azedo e
-ironico, atirando com a ponta do cigarro para o sophá, retorquiu em voz
-levantada:</p>
-
-<p>—Lérias, cantigas!... O que você não quer é dar nada, eis ahi está. Por
-força havia de ser um avarento como o jumento de seu tio. Pela cara se
-lhe tiram as obras. É um Gamarrão segundo.</p>
-
-<p>E retirando-se após os outros, que já se dirigiam para a porta,
-accrescentou:</p>
-
-<p>—Um alarve d'estes só se ensinava com meia duzia de lambadas. É o que
-elle merecia. Grandissimo pulha!</p>
-
-<p>O dr. Gama ficou estarrecido e apopletico. Que procedimento inaudito!
-Que formidavel canalha! Correu á varanda trasbordando de impetuosa raiva
-e vendo-os ainda no quinteiro gritou lhes:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span></p>
-
-<p>—Comedores! Nem vintem! Ouviram seus comedores!?</p>
-
-<p>O Mendonça voltou-se e n'um gesto de punhos cerrados aggrediu-o:</p>
-
-<p>—N'essas ventas, n'essa cara de cabaça é que devia ser! Grandissima
-cavalgadura!</p>
-
-<p>E todas as bellas esperanças e promessas foram poeira levada pelo vento
-d'esta discordia, derivada d'uma velhacaria dupla.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span></p>
-
-</div>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span></p><h2>O CALVARIO DO AMOR</h2>
-
-
-<h3>I</h3>
-
-
-<p>Seriam duas horas d'uma fria noite de março, quando a cavalgada sahia o
-largo portal do Corcovado, em direitura á egreja da freguezia, que
-ficava a uma boa hora de distancia.</p>
-
-<p>A noiva, joven e formosa, com vestido de seda clara semeado de florinhas
-azues, montava soberba mula, ajaezada á hespanhola e coberta de valioso
-teliz de veludo encarnado com brilhos d'oiro, peça antiga na casa de D.
-Bento d'Osma, o ditoso noivo, que aos sessenta annos ia receber como
-esposa a encantadora Maria. Pelo caminho aspero e pedregoso, ladeado de
-pinheiraes sombrios, de penedias soberbas, de campos ferteis, de
-precipicios fundos onde grasnavam aguas tumultuosas, sentia-se <span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span>a
-animação da extensa cavalgada. As lumieiras, que os creados sustentavam
-altas, erguendo os braços para aclararem maior area do caminho,
-produziam sombras phantasticas que se espalmavam nos muros e deitavam
-nos campos, dando a este quadro de vida commum, aspecto tão singular que
-ao longe pareceria festa de demonios em delirio. As aves silvestres e os
-animaes bravios que tal presenceassem, acordados do seu repouso, assim o
-deviam pensar, pois fugiam uns voando, outros correndo e sumindo-se
-todos no denso negrume da noite. Ia na frente a noiva, delgada e airosa,
-dentro do seu vestido claro, os cabellos negros e fartos ornados de
-flores naturaes, as mais bellas flores dos jardins d'Osma, onde as havia
-raras e viçosas todo o anno. Ao lado de Maria, D. Bento, ainda vigoroso,
-montava magnifico cavallo baio adrede comprado para este acto solemne. E
-logo a seguir o pae da airosa menina, o José Pereira do Corcovado, da
-conhecida casa do Corcovado e seus quatro filhos, Manuel, Thomaz,
-Vicente e José, rapazes valentes e destemidos, pimpões de varrer tudo em
-romarias e feiras, quando se junctassem os quatro. Cercava-os o maior
-numero das lumieiras, para acautelarem a noiva contra qualquer estorvo
-do caminho turtuoso e difficil, e assim assegurarem tambem aos que
-vinham atraz, transito livre. Estes eram pessoas de differentes edades e
-feitios; senhoras velhas de vestidos serios de seda preta e meninas
-novas todas de claro, desde a cor <span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span>de rosa virginal até ao verde-prado
-que é esperança. Os homens antigos estadeavam as suas casacas de gollas
-altas e bofes nos peitilhos das camisas; os rapazes d'agora vestuario
-delambido e collarinhos pegados á pelle do pescoço. Havia alguns padres
-na extensa cavalgada, de sobrecasaca grave, bota eclesiastica de borla
-no joelho, ou bute simples nos mais pobres que não tinham para
-abastanças, volta no pescoço, e deitando a sua sentença latina do alto
-das suas eguas de farta cauda e largo ventre prolifero. Os da
-rectaguarda mofavam do velho D. Bento, pela desproporção na edade com
-Maria, e alludindo á violenta e conhecida paixão, que por ella tinha, o
-João da Cunha, da casa da Maceira, disse um conceituosamente:</p>
-
-<p>—Póde muito bem ser um segundo tomo do velho D. Thomaz que se casou com
-a D. Paulina, morgada da Cerdosa<span class="fnanchor" id="fna2"><a href="#fn2">[2]</a></span>.</p>
-
-<p>—Que lhe preste—accrescentou Frei Ignacio pitadeando-se.</p>
-
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Era realmente coisa sabida que João da Cunha amava perdidamente Maria; e
-tão perdidamente a amava e tão de receiar era uma vingança dos rapazes
-da Maceira (que tambem eram quatro e <span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span>não inferiores em valentia aos do
-Corcovado), que os irmãos da noiva iam adeante a guardal-a e promptos
-para tudo. Arrebatando-a ao amado preferido, levavam-na juncto do altar
-para a entregarem ao morgado d'Osma, senhor de Osma e de muitas
-propriedades de Minho e Douro. João só podia alardear boa linhagem e
-muito amor, quanto a haveres a casa era pequena e filhos muitos. Quando
-n'isto falaram ao velho do Corcovado desatou n'um berreiro de espantar
-lobos: «que amor sem riqueza era bonito, mas julgava-o destempero; que
-se lhe queria a filha viesse pedil-a trazendo titulos de propriedade
-para a merecer. Elle por sua parte, tinha boa casa; mas herdeiros
-cinco».</p>
-
-<p>—Portanto, que tire d'ahi o sentido—rematou para o enviado.</p>
-
-<p>O da Maceira que era ousado e temerario approximou-se um dia do velho e
-perguntou-lhe de cabeça alta:</p>
-
-<p>—Como quer o senhor José Pereira que eu arranje assim de repente
-dinheiro?</p>
-
-<p>—Isso é comtigo e não commigo.</p>
-
-<p>—E com quanto se contenta?—disse sarcastico.</p>
-
-<p>—Com muito; dinheiro quanto mais melhor—respondeu o velho no mesmo tom.</p>
-
-<p>—E quanto tempo me dá para arranjar isso com que lhe possa comprar
-Maria?</p>
-
-<p>—Ella não é negra. Não te me faças birbante que se os meus rapazes
-ouvem...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span></p>
-
-<p>—Bem me importo com ameaças! Peço um anno, para ir ao Brazil entender-me
-com meu tio Antonio, que lá tenho. Acceita?</p>
-
-<p>—Vae ao Brazil, vae onde quizeres, eu já falei.</p>
-
-<p>E voltou-lhe as costas sem mais ceremonias.</p>
-
-<p>O rapaz sahiu o portal do Corcovado com uma batalha no cerebro. A sua
-idéa n'aquelle instante, foi roubar violentamente Maria, fugir com ella
-para sitio alpestre e ignorado, e lá viverem vida selvatica d'amor,
-sustentando-se de leite e fructos da terra. Chamava-o, a grandes vozes,
-o coração, para essa existencia poetica, altiva e nomada, querida da
-imaginação de todos os independentes, como apropriada á vida feliz.
-Alimentarem-se de caça, do mel das abelhas, de medronhos e hervas;
-beberem o leite, a limpida agua das fontes por escudellas de madeiras ou
-de cortiça; vaguearem no silencio magestoso das mattas escuras, pouco
-conhecidas dos homens; suspirarem juncto das estrellas na amplidão das
-serras altas, absorverem a largos pulmões o ar fresco e aromatico das
-brizas que vem dos codeçaes floridos e das urzes sempre verdes... era o
-que lhes deleitaria a sensibilidade, irmanando-os com os pastores, com
-os anjos e com os poetas. Nos primeiros colloquios d'amor, que tivera
-com Maria, quando ainda eram creanças e simples, já detalhavam a vida
-dos ermos, baseando-a no aspecto ditoso e feliz dos pegureiros, <span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span>que na
-primavera subiam ás montanhas com os seus rebanhos, e no que sabiam de
-contos de fadas e moiras encantadas. Era essa existencia que lhes
-convinha: uma cabana e dormir entre a lã das ovelhas, imaginar ao som
-gemente dos regatos e deleitar os olhos no azul infinito que não tem
-fim—um viver só pelo goso de existir e nada mais.</p>
-
-<p>Então ninguem sabia ainda que elles se amavam, a flor doente de
-sensibilidade que lhes estava rebentando no coração era apenas
-presentida pelas ingenuas creanças. A modo que iam crescendo tomava esse
-sentimento vago uma fórma mais definida e concreta, os olhos do corpo,
-ensinados pela experiencia, iam corrigindo as incertas aspirações da
-alma contemplativa e um dia disse João a Maria: «Quando nos casaremos
-nós?»; ficando absortos n'um spasmo de mente a voarem pelos espaços
-sidereos.</p>
-
-<p>Casar! palavra magica e dolente em que tudo se comprehende e pouco se
-diz. Seria só a união dos corpos? Seria a harmonia dos corações? Seria a
-orchestração das palavras melodicas que sentiam nos ouvidos, quando de
-noite pensavam um no outro? Que seria?!... O contacto das suas pelles,
-quando se abraçavam e beijavam nos brinquedos infantis, dispertava-lhes,
-por vezes, fulgurações no cerebro, chispas nos nervos, deleites
-celestiaes. Casar seria a absorpção de dois entes n'um ente novo e mais
-complexo; mas o <span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span>casar ideal, a completação ambiccionada era fugir, não
-ver homens, nem casas, nem mares turbulentos, e só conhecer serras
-tranquillas, arvoredos mysteriosos, e animaes amigos. Poderiam realisar
-estas sublimes aspirações?...</p>
-
-<p>Foram crescendo os corpos; adelgaçava-se a nuvem em que divinamente
-viviam occultos; era mais palpavel a realidade, João e Maria para
-casarem precisavam merecer-se. Por isso elle foi principiar os estudos,
-com idéa de seguir uma carreira, que lhe desse no mundo uma situação.
-Maria ficou na aldeia, entre as mesmas arvores, contemplando os mesmos
-penhascos e o mesmo céu, e, quando não teve comsigo João, cruciante foi
-a sua dôr. Porém logo nas primeiras férias todas as saudades se diluiram
-e a alegria d'esse primeiro encontro e dos seguintes compensara-os da
-magua da primeira separação.</p>
-
-<p>O velho da casa do Corcovado, mais experiente e sagaz do que os filhos,
-foi quem primeiro deu pelo caso. Não lhe convinha: determinou acabar
-aquillo d'uma vez. Formou uma assembléa com os seus rapazes: fechando-se
-n'um quarto com elles, expoz o caso e pediu-lhes alvitre no modo de
-proceder.</p>
-
-<p>—Isso dá-se cabo d'elle, é o melhor—disse Thomaz, o de genio mais
-violento.</p>
-
-<p>E o Vicente secundou-o:</p>
-
-<p>—Sahe-se-lhe ao caminho longe d'aqui, quando vier a férias;
-arruma-se-lhe um estalo na cabeça <span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span>e enterra-se bem fundo n'um campo,
-onde ninguem o encontrará.</p>
-
-<p>—Não é preciso tanto—disse o velho concentrado e tenaz. O D. Bento
-d'Osma gosta da pequena; porque já m'o disse. Maria fez desoito;
-arranjam-se os papeis em segredo, chama-se aqui sem ella o esperar,
-fala-se-lhe tezo, e casam-se sem dar tempo a que o marmanjo consulte os
-irmãos.</p>
-
-<p>—Que nós não tememos—disse o Manuel, o mais velho, applaudido pelos mais
-novos.</p>
-
-<p>Maria por um acaso feliz estava no quarto contiguo e como falassem alto
-ouviu a conversa. Foi grande a sua perturbação, mas simulou o contrario
-para a defesa. Descobriu meio de tudo communicar ao mais velho da
-Maceira, o Gonsalo, para o tornar conhecido do irmão, asseverando-lhe
-que, por sua parte, estava prompta para quanto João entendesse
-necessario fazer-se com o fim de defenderem o seu amor. Foi n'essa
-occasião, que o namorado desejando levar as coisas a bem anunciou ao
-velho José Pereira, primeiro por um enviado, depois directamente, os
-projectos em que estava de conquistar no mundo posição que lhe desse
-direito á mão de Maria, terminando pela affirmativa de ir ao Brazil. Tal
-viagem, porém, nunca pensou em realisal-a e a promessa era apenas um
-estratagema de ganhar tempo, para concertar um plano de fugir com a sua
-amada.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span></p>
-
-<p class="footnote" id="fn2"><a href="#fna2">[2]</a> Amores, amores...</p>
-
-
-<h3>II</h3>
-
-<p>Simulou-se na Maceira o caso da partida de João para a companhia do tio
-que tinha no Brazil, tudo com o apparato do estylo: enxoval, despedidas,
-choros, a sahida do rapaz acompanhado de seus irmãos, e até um
-telegramma do Porto, que participava o embarque. Fez-se a representação
-com a maior verosimilhança. O namorado desappareceu da aldeia e
-falava-se d'elle com saudade e sympathia. Os do Corcovado, acreditando
-só metade do que viam, principiaram logo a dispor as coisas para o
-enlace de Maria com D. Bento.</p>
-
-<p>O Manoel, que era o de mais tino, sahiu uma noite a cavallo levando
-comsigo dois creados só até ao limite da aldeia: ia tractar com o
-morgado <span class="pagenum" id="Page_198">[Pg 198]</span>d'Osma de coisas de escriptura e dote; informal-o do que havia e
-do que seu pae com todos elles tinha accordado. Assentes as bases do
-contracto com o noivo, que não offereceu difficuldades, pois toda a sua
-ambição era obter a mocidade de Maria para caldear com a sua velhice,
-logo se despacharam os dois mais novos, Vicente e José, para irem a
-Braga tractar secretamente dos papeis do casamento. No entretanto,
-dentro do Corcovado não se dormia descançado: havia armas promptas, e
-esculcas de noite no velho casarão. Conheciam bem os da Maceira:
-sabiam-nos ousados, valentes e até loucos d'audacia. Ainda que João
-houvesse partido (do que não tinham absoluta certeza), ficavam os outros
-que eram capazes de armarem uma batalha campal, para garantirem ao irmão
-ausente, uma desaffronta e uma vingança estrondosa. Dispunham os seus
-meios de resistencia para se defenderem, ainda que preferiam que tudo se
-passasse com normalidade e socego. Esconderam, pois, entre si e D. Bento
-o plano urdido, simularam vida tranquilla e ordinaria, simularam mesmo a
-crença no descuido dos da Maceira, na partida de João, e já em Braga
-corria velozmente o processo ecclesiastico com todas as licenças
-necessarias para em vinte e quatro horas, logo que taes licenças
-chegassem, se realisarem as nupcias.</p>
-
-<p>Em Braga era tambem onde estava João da Cunha, á espera de aviso dos
-irmãos, para regressar á aldeia na opportunidade conveniente, e aqui foi
-<span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span>avisado por um amigo, de que os papeis andavam em segredo, nas mãos do
-senhor Arcebispo. Logo comprehendeu tudo e na manhã seguinte, depois de
-andar duas noites a cavallo, chegou á Maceira, onde entrou tanto a
-occultas, que só os irmãos e o pae d'isto tiveram conhecimento, pois
-elle tomara a precaução de despedir o arreeiro com a cavalgadura fora do
-logar, que atravessou a pé, não seguindo veredas nem caminhos, mas
-atravessando campos e saltando muros. O que logo ficou assente entre
-todos foi que Maria não casaria com D. Bento d'Osma, ainda que fosse
-necessario matarem e morrerem.</p>
-
-<p>A pobre menina, vigiada e guardada, como se sentia, não pôde, durante
-esses dias crueis, mandar nenhum enviado ao Corcovado. Vivia em grande
-amargura e afflicção por suspeitar coisas tenebrosas do que em volta
-d'ella se tramava. O seu amor e a exaltação do seu espirito eram
-tamanhos, que pensou em suicidar-se, antes que ceder a quaesquer
-conselhos ou pressão de pae e irmãos, para preferir outro homem a João.
-Porém era alma juvenil e crente, não podia comprehender que a
-Providencia divina, e Maria Santissima, de quem sempre fôra tão devota,
-podessem concordar em tal iniquidade. Ora não querendo Deus e não o
-consentindo a Virgem, nada podiam os homens—pensava ella.</p>
-
-<p>Os papeis chegaram de Braga ao mesmo tempo que vestidos e enfeites para
-o dia solemne das <span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span>bodas, que podiam realisar-se d'um para o outro
-momento. D'isto foi avisado D. Bento d'Osma, por uma carta, emquanto
-Maria era chamada á presença de seu pae e irmãos, que sisudos e graves
-como juizes a sentencear, lhe disseram a resolução em que tinham
-assente. O pae rematou o longo arrazoado dizendo:</p>
-
-<p>—De modo que tu vaes ser senhora d'uma das maiores casas da provincia e
-mulher d'um dos maiores fidalgos conhecidos.</p>
-
-<p>—Mas se eu não gosto d'elle, que é um velho e antes quero João da Cunha,
-apezar de pobre!...</p>
-
-<p>—Tolices dos desoito annos—commentou sarcasticamente o velho. Com esse
-não te dava eu consentimento, nem com um bacamarte cheio de zagalotes
-assente no meu peito.</p>
-
-<p>—Pois com outro não caso—disse resoluta e sem lagrimas.</p>
-
-<p>—Isso veremos—disse Manoel, o mais velho dos irmãos. Ainda que tenhamos
-de te levar para a egreja atada de pés e mãos, has de ir.</p>
-
-<p>—Não será preciso...—acrescentou o Thomaz, pronunciando as palavras com
-ironia feroz. Irá muito bem a cavallo e nós veremos.</p>
-
-<p>—Carrascos!—pronunciou Maria, cahindo redondamente no chão, rigida como
-um cadaver.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span></p>
-
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A este tempo os da Maceira já estavam conhecedores do resolvido
-matrimonio de Maria com D. Bento d'Osma. Essa informação trouxera-a de
-Braga o proprio namorado. Mostravam-se, porém, naturaes no trato e
-despreoccupados do que se passava; mas entre si assentaram o raptar
-Maria antes do casamento, no proprio acto nupcial, ou até dos braços de
-D. Bento, se não pudesse ser d'outro modo. Quem os conhecesse bem, sabia
-que tentariam o supremo golpe, atravez de difficuldades, que outros
-pudessem julgar invenciveis. Entregar Maria intacta ao irmão era o
-supremo desejo de Gonçalo, Antonio e Thomé. Porém, vencer, á valentona,
-todos os obstaculos que os do Corcovado teriam accumulado em volta da
-desejada rapariga, para que não fosse tocada por mãos impuras, é que não
-poderiam... Necessario era, pois, servirem se do engenho, primeiro que
-da força; e tiveram artes de fazer chegar ás mãos da fraca creatura, as
-palavras animadoras d'uma carta que João lhe escreveu, em que explicava
-o proposito em que estava. Esse papel foi levado á casa do Corcovado por
-um pedinte de classica barba longa, curvado e de voz lamentosa quando
-pedia. Abeirou-se da porta da cosinha, e como fosse desconhecido e
-significasse vir de longe (talvez de romagem a S. Thiago de Compostella,
-pois trazia <span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span>conchas cosidas nos andrajos) as creadas interessaram-se por
-elle e attenderam-n'o. Vinha esfomeado e friorento; pedia o caldo da
-esmola e o agasalho do palheiro; como soubesse contar historias e ler a
-signa, entreteve os creados e ficou por ali coisa de tres dias. Os
-proprios irmãos de Maria gostaram do pobre e escutaram-lhe os casos; o
-velho José Pereira, ouvindo-lhe dizer que fôra soldado no tempo dos
-francezes, que acompanhara o general inglez pela Hespanha dentro,
-conversou com elle e mandou dar-lhe uma tigella de vinho. Maria, a quem
-o misero, lendo nas linhas da mão aberta predestinou alegre e risonho
-futuro, sorriu-lhe no meio das suas amarguras. Foi n'este acto que o
-pedinte lhe introduziu na manga do vestido a carta de João da Cunha, o
-que tanto alvoroçou a pobre menina, que só por um milagre de energia não
-cahiu com um desmaio. Assim ficou ella instruida do plano concertado
-pelo seu namorado.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span></p>
-
-
-<h3>III</h3>
-
-<p>Ia a cavalgada pelo tortuoso caminho que do Corcovado segue para a
-egreja, onde a festa nupcial de Maria com D. Bento d'Osma se ia
-realisar. Apesar das lumieiras (que só adeante, junto da noiva, faziam
-grande illuminação) aquelle acompanhamento de tão longa enfiada de gente
-de cavallo, atravez da noite escura, semelhava uma forte corrente de
-ferro de muitos e grossos elos, obrigada a repetidas curvas n'um
-subterraneo; ou, então, qualquer monstro de cobra-crotal curveteando em
-numerosos accidentes de terreno, para escapar a um perigo que receasse,
-ou attingir a presa que lhe fugisse. Os que cercavam a noiva tinham
-entre si poucas falas, como se fôra avançada de numerosas forças que
-<span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span>temessem qualquer cilada. Intrigava-os o aspecto sereno e a alma
-resignada de Maria, que sabiam coagida para aquelle acto. Jactanciosos,
-como eram os do Corcovado, passou-lhes pela mente que o animo da irmã se
-tivesse submettido á dura necessidade, logo que reconhecera o inane de
-qualquer resistencia. Essa mudança no espirito da namorada poderia ter
-desenganado os da Maceira, não sendo até impossivel que realmente João
-estivesse já além dos mares. Maria apenas mostrara furtivas lagrimas ao
-paramentar-se para a festa com o seu ultimo vestido de virgem, e antes
-de sahir de casa esteve no oratorio resando ferverosamente a Nossa
-Senhora dos Desamparados, de quem era devota. Conservara-se bastante
-tempo estranha, absorvida, quasi extatica, com os olhos sofregos na
-imagem querida, talvez pedindo-lhe fortaleza ou confessando-lhe os
-ultimos peccados de pensamento. Tudo parecia natural e simples e
-indicava que estivesse resignada. Porem, seus irmãos, por um resto de
-precaução, aperceberam-se para o caminho até á egreja, pois era longo,
-máu e iam de noite; ainda que este estado d'alma lhes parecesse logico,
-pois sabiam o espirito de piedade religiosa, com que sua santa mãe
-fallecida, a tinha educado. Em tão supremo lance da vida d'uma rapariga
-de desoito annos, era natural profunda commoção, pelo quanto
-apresentaria de desconhecido e nevoento o novo dia que se lhe ia abrir
-na existencia. O seu silencio era o fructo de <span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span>todos os sentimentos
-desencontrados, que lhe moravam no peito, o fructo da curta e variada
-historia da sua vida, com um amor precoce e violento, que vira
-desfolhado no cumprimento do sagrado dever da obediencia ao pae, severo
-mas bom. Assim o presumiam todos; por isso a desconfiança não era
-absoluta e os meios de defesa eram incompletos.</p>
-
-<p>Scintillavam as estrellas no firmamento, n'essa immensa aboboda negra
-como o veludo, em que grandes e bellos diamantes estivessem collados
-desde infinitos tempos, e tremelusissem por um movimento ondulatorio do
-proprio céu. Fendiam as lumieiras, com alegres chammas, a sombra
-compacta da noite. O estrepito da cavalgada, perturbava o silencio, tal
-um caminhar de tropas. As sombras iam a grandes passos parecendo
-espectros. A amplitude da treva absorvente tornava mesquinha a
-existencia do homem. Os que se dirigiam na tortuosa estrada sentiam-se
-oprimidos no peito, mas a vista alegrou-se-lhes quando, vencida uma
-corcunda de caminho, descobriram a egreja rural, lá no fundo, com as
-vidraças a jorrarem luz, como se fôra noite faustosa de romaria. Quadro
-ao mesmo tempo phantastico e jubiloso, este apparecimento subito do
-modesto templo, assim illuminado, surgindo do infinito ventre da
-escuridade infinita. Era como um facho espetado n'uma grande caldeira de
-breu. Em todos os corações houve sobresalto de gozo, até mesmo no de
-Maria. D. Bento <span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span>d'Osma descobrira o sacrario da sua felicidade; o velho
-do Corcovado o remate das suas aspirações de grandeza; seus filhos,
-julgaram afastados os receios de mau encontro dos da Maceira, que mesmo
-que fossem vencidos lhe aguariam o prazer da festa. E Maria o que
-descobrira para sorrir?...—Alguma esperança?... era aquelle luzeiro,
-alegria na tristeza das suas amarguras?...</p>
-
-<p>De todos os corações se levantara um peso; amplificara-se o sentir e o
-desejo de cada um; etherisara-se-lhes a imaginação em hymnos triumphaes.
-Os formosos olhos de Maria sorriram á profunda escuridade, talvez por á
-sua mente ter chegado em recordação, qualquer promessa do seu amado.
-Desciam para o valle onde brilhava a egreja, lentamente, no meio do fogo
-das lumieiras. Ao chegarem á borda do adro, o leve corpo da noiva, para
-ser tirado de cima da mula, ricamente ajaesada á hespanhola com teliz de
-veludo encarnado lampejando oiros, cahiu nos braços de Manoel, seu irmão
-mais velho. Repicaram faustosamente os sinos n'este instante,
-annunciando o momentoso acontecimento, ás estrellas que luziam, aos
-montes silenciosos, aos animaes bravios escondidos nas suas tocas. As
-aves occultas na espessura das mattas e no interior dos silvedos, quando
-ao romper da manhã viessem gorgear as suas impressões, decerto
-relatariam o acontecimento singular que lhes fizera abrir os olhos para
-a egreja illuminada, e os ouvidos para o jocundo repicar dos sinos. Que
-necessidade <span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span>de perturbar a escuridão infinita e solemne, o silencio
-augusto e magestoso com signaes de festa humana?—perguntariam ao
-recomeçarem os seus amores, ebrios de rosea alvorada.</p>
-
-<p>Pela porta do templo, amplamente aberta, entraram os convidados. No
-interior, grande perfusão de lumes em todos os altares, para se celebrar
-a sumptuosa festa. Sorriam os santos, o rosto da Virgem era expressivo e
-carinhoso, os anjos, os seraphins e cherubins, que nas columnas do altar
-mór se suspendiam entre nuvens, brincavam alegremente.</p>
-
-<p>A luz espancara a tetrica escuridade; o cheiro do incenso e da cera do
-qual as paredes estavam impregnadas espiritualisara-se com o calor das
-velas. Os numerosos convidados sentiam-se satisfeitos e communicativos,
-tinham abundancia de palavras para encher a conversação. A modesta
-egreja rural, mais uma vez era perturbada na sua tranquillidade: assim
-cheia de movimento e sussurro de festa, deixava de escutar a musica do
-ribeiro, agora crescido d'aguas, e de ligar o seu viver obscuro ao das
-arvores amigas que lhe cresciam em volta, enfolhando-se todos os annos
-na primavera para a festejar...</p>
-
-<p>Maria subiu o corpo do templo, até ao altar mór, ao lado de seu pae, um
-velho robusto, de barba em volta da cara sadia, altos collarinhos em
-camisa de bofes, a casaca das suas bodas (quarenta annos antes)
-tapando-lhe a nuca com a alta golla. Ao passar <span class="pagenum" id="Page_208">[Pg 208]</span>em frente da imagem de
-Nossa Senhora, da qual era solicita devota, ajoelhou orando com fervor,
-o que fez com que muitos assistentes entrassem em piedoso recolhimento
-espiritual, imitando-a na mystica submissão. Pediria coragem para o
-difficil transe?... confessar-se-hia humilde peccadora por ter tido idéa
-de resistencia á vontade de seu pae?!... No alto da egreja, onde de novo
-se curvou reverente para fazer as suas supplicas ao Altissimo,
-cercavam-na as senhoras mais gradas da visinhança, amigas e parentas, as
-de Refuinho, da Torre Velha, do Ramisco... que todas como ella resavam
-com recolhimento e fervor. Davam assim tempo a que o padre Pitança se
-revestisse na sacristia acompanhado d'outros padres. O cura Clemente
-Carvalhosa, já velho, alquebrado e doente, não podia vir a estas festas
-de noite, por causa do seu rheumatismo: substituia-o o corpolento
-Pitança. Quando este reappareceu juncto do arco cruzeiro, coberto com a
-longa capa d'asperges, a batina occulta sob a alva de celebrante, a
-estola cahindo-lhe serenamente sobre o amplo peito de caçador e occulta
-pelo solemne pluvial, o grande vulto do sacerdote assim paramentado,
-tinha a magestade do d'um bispo da edade-média, guerreiro, soberbo e
-forte. Um absoluto silencio se estabeleceu rapidamente, em respeito ao
-acto momentoso que se ia celebrar. D. Bento d'Osma, radiante dentro
-d'uma farda de fidalgo em que se não encontrava muito á vontade, sorria
-d'um modo incaracteristico, trabalhado interiormente <span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span>por grande confusão
-de idéas e sentimentos. Maria estava pallida, mas o seu rosto mostrava
-serenidade e o seu olhar firmeza. Quando os nubentes davam o primeiro
-passo para o celebrante, no meio do silencio de tanta gente, attenta e
-commovida, no meio da gloria de luzes que transformavam o ambito da
-modesta egreja n'um templo de apotheose... é que um avejão, phantasma ou
-demonio, ou muitos demonios juntos se lembraram de lançar pela egreja
-fóra os seus gritos lamentosos, terriveis, amedrontadores, e tão
-lamentosos, terriveis e amedrontadores, que rebentaram simultaneamente
-no tecto e nas campas, por traz do altar mór e no côro! Não eram vozes
-com semelhança de humanas, era um como fremito horrendo que se sentisse
-ao mesmo tempo no céu e no cimo da terra, que surgisse da profundeza dos
-abysmos infernaes e tivesse a mesma natureza e raiva das imprecações dos
-condemnados. Todos ficaram transidos de mêdo, e se sentiram faltos do
-sentimento da realidade: deante dos olhos desvairados dos assistentes,
-assim colhidos de surpreza, e n'este primeiro momento, parecera-lhes que
-os mortos haviam rompido o lagedo das sepulturas ao clangor da trombeta
-final, ou que eram os santos que desciam espavoridos dos altares para
-recolherem ao logar seguro da celeste morada. Viam o tecto do templo
-vergar sob o peso da vontade divina, que procuraria assim castigar algum
-grande peccado, ou impedir tremenda iniquidade. A confusão de todos os
-cerebros <span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span>foi completa quando no pulpito, no côro, e no recanto da pia
-baptismal appareceram tres grandes fogueiras com fumo de polvora e
-reboar de estoiros, como n'um incendio de magica. Da primeira
-perturbação logo se passou ao terror fundado na evidencia de um fogo no
-sanctuario. As vozes em grita, supplicantes e desvairadas, junctavam-se
-ás das aventesmas e ao rebate dos sinos. A maioria procurou fugir pela
-porta principal que estava aberta de par em par; os mais serenos, os que
-poderiam formular raciocinio no meio d'esta grande confusão foram
-levados na onda. Os rapazes do Corcovado, paraliticos na vontade,
-tiveram um vislumbre da possibilidade d'um acto de vingança dos da
-Maceira, mas não se poderam concertar para a defeza. Muitas senhoras
-fugiram para a sacristia, e no meio d'ellas foi Maria. A sacristia
-estava ás escuras e a porta para o adro viam-n'a aberta... Por ali
-entrara um vulto humano que rapidamente tomou nos braços a noiva,
-decerto para a salvar do pavoroso castigo que a todos ameaçava. O seu
-corpo gentil, dentro do vestido de casamento, a cabeça enfeitada de
-flores, os olhos bellos que tantas lagrimas amargas tinham chorado, o
-peito ancioso que em silencio suspirara sentidas endeixas d'amor... tudo
-levou esse salvador providencial e ambos se sumiram no negrume d'essa
-noite fria de Março. Festejavam-na do céu as estrellas, acompanhava-a o
-murmurio das fontes, cantava-lhe aos ouvidos a ligeira brisa, e a
-escuridade <span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span>amiga e silenciosa encobria estes amores deleitosos. João da
-Cunha, celere como um gamo, saltou primeiro o muro do adro levando
-comsigo a penna leve do corpo da sua amada, atravessou veloz um campo,
-saltou outro muro e no caminho d'além, atirou Maria para sobre uma egua
-valente, montando depois n'um cavallo fiel. E como se isto fôra um vôo
-de lendas scandinavas, lá foram os dois vencendo encostas, galgando
-ribeiros, entranhando-se de cada vez mais no seio protector e cumplice
-da noite calada e escura. Escutavam de vez em quando para ver se outro
-tropel de cavallos os seguiria; mas João confiava sereno na promessa de
-seus irmãos, que lhe haviam offerecido as vidas para o livrar de
-perseguidores.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p>
-
-
-<h3>IV</h3>
-
-<p>A perturbação de todos os que assistiam á ceremonia matrimonial foi
-maior do que podiam esperar os inventores do estratagema. Alarmados pelo
-subitaneo alarido de vozes de duendes, almas-penadas, diabos ou o que
-quer que era, em furia e delirio; accrescentado o primeiro barulho com o
-reboliço que se sentira no telhado da egreja, que parecia derruir-se;
-levado ao auge o desconcerto com o rapido apparecimento da chama azulada
-do incendio, com o cheiro da polvora e estrondo de bombas, acompanhados
-do toque desesperado de sinos a rebate... produziu-se em todos os
-cerebros um movimento de terror e assombro facil de comprehender. O povo
-casual e os creados das lumieiras, que tinham deixado as cavalgaduras no
-caminho para assistirem á festa, foram <span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span>os primeiros a fugir e
-encontraram-se desvairados no adro, cegos no meio da escuridade pelo
-brilho que nos olhos traziam da farta illuminação das tochas. A sua
-grita e clamor acabou de apavorar os proprios animaes, que, n'um tropel
-desvairado, correram pelos caminhos e atravez dos campos, como fugidos
-d'uma casa em chamas. Os convidados, apesar de numerosos, não eram
-bastantes para acudir ás supplicas das senhoras, presas d'um
-extraordinario medo e algumas desmaiadas. Os minutos que durou a
-intensidade do perigo, pareceram annos de castigo e tormentos, a todos
-que se encontraram no meio do horrivel drama. Os homens mais resolutos,
-serenos, e affeitos a perigos julgaram que este era o seu ultimo
-instante de vida terrena e já sob os proprios pés sentiam
-abrirem-se-lhes escancaradas as verdadeiras gargantas do inferno. Ás
-vozes rogativas das senhoras, acudiram alguns: o padre Pitança, caçador
-e temerario, encontrou-se entre ellas de capa d'asperges, falando alto,
-dizendo palavras incoherentes, mas que davam sentimento de realidade; os
-do Corcovado correram em busca de Maria... D. Bento d'Osma, esse cahira
-de joelhos no sitio em que estava na capella mór—tinha as mãos erguidas,
-os olhos espantados, no semblante o esgar dos epilepticos, e murmurava
-palavras de prece batendo os dentes. Estava inerte, não procurava evitar
-a condemnação que o abatera, não pensava em resistir á divina vontade,
-que o punia sem misericordia.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span></p>
-
-<p>Porém os do Corcovado procurando sua irmã gritavam por ella na egreja,
-no adro, na sacristia... por toda a parte. Não a encontrando vieram á
-fala para cerzirem as suas idéas, e facil lhes foi concordarem no que
-poderia ter sido aquella emboscada. Sentiram-se realmente apavorados e
-grotescos.</p>
-
-<p>—Nada! é lá possivel!—ainda teimou o mais velho—procuremol-a melhor, que
-estará por ahi cahida sem sentidos...</p>
-
-<p>Procuraram com vellas e tochas acesas, que arrancaram dos proprios
-altares, e de momento a momento a suspeita d'uma cilada dos da Maceira
-tomava maior vulto e lhes enchia o espirito d'uma colera crescente. A
-elles se juntaram o velho pae e o D. Bento d'Osma, que os creados haviam
-arrancado á sua paralisia, e todos chamavam por Maria e pronunciavam o
-seu doce nome, com ancia e carinho, atirando-o para o ventre mysterioso
-d'aquella negra e hostil noite de Março. Nem acordada, nem desmaiada,
-nem viva, nem morta a encontravam, por mais que empregassem vozes
-supplices ou de desespero. Agruparam-se com os parentes e o noivo de
-Maria, os convidados e os proprios creados. Assim todos reunidos, de
-tochas na mão, em volta da modesta egreja rural semelhavam multidão
-imprecativa de povo e não gente na ancia d'um interesse terreno. A noiva
-não respondera, nem ás primeiras vozes carinhosas do pae e do noivo, nem
-ás palavras já cheias de ira de seus irmãos. Na egreja, na sachristia,
-no adro não a descobriam... <span class="pagenum" id="Page_216">[Pg 216]</span>logo, Maria, ou voava para celesteaes
-alturas com as suas azas de pomba virgem, ou fugira nos braços do seu
-amado, o João da Cunha da Maceira.</p>
-
-<p>—Com dez mil demonios, que sou capaz de trincar o coração a esse
-malvado, como Pedro, o Crú, fez aos carrascos de sua mulher—rugiu o
-velho do Corcovado, com a face incendiada em desespero.</p>
-
-<p>—Rapazes!—berrou D. Bento d'Osma á multidão dos seus creados—mil
-cruzados novos aquelle que os pilhar.</p>
-
-<p>E os irmãos de Maria, concertados em identico pensamento de vindicta e
-com a imagem sarcastica e victoriosa dos da Maceira deante dos olhos,
-clamaram:</p>
-
-<p>—Os nossos cavallos depressa que não os deixaremos descançar, nem nas
-profundezas do inferno!</p>
-
-<p>Não era muito facil encontrar os cavallos, pois quasi todos tinham
-fugido espavoridos. Como se poderia ir ter com elles atravez da vaga
-escuridão da noite, por caminhos e veredas incertas? Correram os
-creados, que os conheciam e a cujo chamamento e vozes os animaes estavam
-habituados. Partiram do adro, cada um com a sua lumieira erguida como um
-tropheu, chamando e assobiando, em direcções diversas. Que coisa esta de
-homens com vozes bradantes, armados de fogachos furando a espessa treva,
-a saltarem muros, e a correr pelos <span class="pagenum" id="Page_217">[Pg 217]</span>campos, estradas e atalhos! Seria ás
-arvores hirtas e silenciosas, ás estrellas sorridentes e alegres, aos
-espaços mudos e infinitos que elles supplicavam? Lá iam com assobios e
-palavras semeando a negrura torva. Ao fim d'algum tempo alguns voltaram
-com os animaes que buscavam e lhes haviam obedecido, reconhecendo-lhes o
-imperio a que estavam sujeitos. Já se tinha passado talvez mais de uma
-hora, quando os parceaes de D. Bento e os rapazes do Corcovado poderam
-montar os seus fieis cavallos, para irem no alcance dos
-fugitivos—duração infinita para os apaixonados corações se distancearem
-no goso d'uma felicidade tão rudemente conquistada.</p>
-
-<p>Mas para que lado correriam os perseguidores, se os terrenos eram tão
-vastos, as montanhas tão silvestres e asperas? Como nortear a marcha em
-noite escura de breu, por veredas multiplas e perigosas? Reuniram
-conselho para deliberar.</p>
-
-<p>—Para a Maceira?—lembraram os rapazes do Corcovado.</p>
-
-<p>—Não seriam tão asnos que em tal ratoeira cahissem—observou o prudente
-José Pereira.</p>
-
-<p>—Para o Cerdal, pois são amigos de Cesario.—opinou uma voz.</p>
-
-<p>—Meu primo não me faria o aggravo de lá os receber—inteirou D. Bento
-d'Osma.</p>
-
-<p>—Sigam para os montes—ordenou o padre José Pitança, de estola sobre o
-amplo peito, mas já sem pluvial, que largara para se desembaraçar <span class="pagenum" id="Page_218">[Pg 218]</span>em
-qualquer lucta de braço a braço, se necessidade houvesse de a sustentar.</p>
-
-<p>—E se elle a fosse depositar respeitosamente e intacta no Ramisco, para
-depois seguir o processo judicial!?—aventou com a sua voz meliflua o
-desembargador João Xavier.</p>
-
-<p>Esta lembrança esdruxula, deixou perplexos e irritadas todas as vontades
-e corações que desejavam uma acção violenta e immediata de assignalada
-desforra. O sangue dos do Corcovado borbulhava em fremente cachoeira e
-Thomaz, que era dos quatro o de animo mais ardente e vingativo, disse:</p>
-
-<p>—Qual asneira! Vamos lá para cima que até me parece que já os estou
-sentindo correr adeante.</p>
-
-<p>E esporeou energicamente o seu cavallo, que lhe respondeu com um salto,
-vencendo á desfillada a ladeira, onde as ferraduras feriam lume nas
-lages. Manoel o mais velho ainda teve tempo para ordenar, gritando:</p>
-
-<p>—Cada um pelo seu caminho e por edades. Eu á direita.</p>
-
-<p>Abalaram encosta acima, acicatando com violencia os animaes. Alguns dos
-amigos e convidados de D. Bento d'Osma seguiram-nos animados d'um
-generoso espirito de desforra. No pavor da noite, este galope de
-combate, amplificou-se primeiro, foi esmorecendo gradualmente, restando
-por fim nos ouvidos dos que tinham ficado, uma ressonancia como de sons
-repercutidos no fundo <span class="pagenum" id="Page_219">[Pg 219]</span>d'um poço. O padre José Pitança, de alva e estola,
-no meio do adro, estendeu com vigor os braços, increpando no vago com os
-punhos apontados ao céu:</p>
-
-<p>—Grandissimo patife! Que o esborrachava...</p>
-
-<p>—Uma costa d'Africa é que precisa—ameaçou o velho José Pereira.</p>
-
-<p>—Uma costa d'Africa!—rugiu D. Bento d'Osma. Uma forca! mil forcas é que
-merecia.</p>
-
-<p>Porem quasi todos entenderam que deviam ir para o Corcovado, onde estava
-a mesa preparada para o começo do festim da boda. Ali aguardariam os
-acontecimentos. Muitos porfiavam em acreditar que os fugitivos seriam
-alcançados. Porem a maioria das senhoras, cujos nervos tinham sido
-desorientados com a commoção causada por tão estranho, quanto
-inesperado, successo, preferiram as suas proprias casas, onde melhor se
-aquietariam com rezas e com descanço ao seu conchego habitual.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_221">[Pg 221]</span></p>
-
-
-<h3>V</h3>
-
-<p>Noite escura e triste; noite, cheia de negruras no céu e no coração!
-Pouco depois de João da Cunha e Maria partirem a gallope para o seu
-louco destino, entraram com elles pavorosos receios, tremendo um por
-causa do outro. Durante muito tempo os acompanhou o alarme de vozes em
-grita, que se produzira na egreja e no adro, e que se fôra estendendo
-pela aldeia, tal onda de revolta popular. Como fossem subindo a céu
-amplo sobre o valle, onde a agitação se alastrava, ouviram, até muito
-longe, esse rumor sinistro, perseguidor e amaldiçoante; mas depois que
-venceram o primeiro cabeço de monte, era antes um sussurro de mar a
-bater em rochas escarpadas, isso que lhes chegava <span class="pagenum" id="Page_222">[Pg 222]</span>aos ouvidos. Mais
-além, só conheciam a impressão arquejante que lhes ficara vibrando no
-cerebro perturbado. De vez em quando sonhavam tropel de cavallos que
-lhes viessem no encalce e paravam attonitos com o ouvido á escuta;
-conhecido o erro continuavam animados pela doce esperança de viverem no
-seu amor absoluto, reciproco e vehemente. Maria, apesar de animosa e a
-tudo resolvida, não deixava de temer a vindicta de seus irmãos, e no
-escuro da noite mysteriosa murmurou como n'uma prece: «Deus nos proteja!
-Se nos apanham está tudo acabado!» Ao que o intrepido amante oppoz, com
-voz decisiva: «Nada receies. O meu corpo será mais difficil de
-trespassar, que um duro penedo!» Continuavam a rasgar a treva densa, por
-caminhos perigosos e pouco calcados de gente. João conhecia todos
-aquelles montes como os campos da sua aldeia; palmilhara-os, durante
-annos, acompanhado do seu perdigueiro, em todos os carreiros e veredas.
-Cego que elle se houvera tornado, determinaria a posição dos ribeiros e
-rochedos e as nodoas das bouças. Por tanto, para se dirigir na selva
-escura d'esta noite espessa, bastava-lhe o sorrir das estrellas do céu e
-a ditosa ventura de ter a seu lado aquella a quem amava. Eram favoraveis
-as circumstancias para não serem encontrados e para chegarem ao ponto
-ditoso, onde descançariam longe da furia e perversidade humana. Trazia
-esse quadro na menina dos olhos; era uma casinha alpestre, armada entre
-fragoas. <span class="pagenum" id="Page_223">[Pg 223]</span>Porém, como estivesse ainda muito distante e os montes fossem
-largos, só quando se annunciasse a luz solar poderia definitivamente
-nortear-se, para chegar em direitura, ao paraiso onde podiam florir os
-seus amores. Por agora só pensava em distanciar-se de onde estavam os
-seus temiveis inimigos; queria apenas retirar-se do perigo, livrar a sua
-felicidade da furia dos irmãos de Maria, que seria cruenta se se viessem
-a encontrar, n'essa noite, face a face. Armara-se para chegar a todos os
-extremos d'um combate sanguinoso: preso no arção trazeiro levava duas
-clavinas carregadas com zagalotes, nos coldres duas magnificas pistolas
-de cavallaria com balas, no bolso interior um acerado punhal de lamina
-triangular. Preparara-se para uma rude empresa de morte e amor, venderia
-muito cara a vida e a fortuna de viver. Mas distancear a hypothese
-horrenda e desgraçada d'um encontro funesto com qualquer dos que o
-perseguiriam, era o seu anhelo, o seu unico desejo. Por isso procurava
-com ancia ganhar distancias, mettia por atalhos perigosos, evitava
-quanto podia a proximidade de casas e povoados, onde se podesse dar
-indicio da sua passagem. Nem sempre o pudéra conseguir e n'um logar que
-atravessaram, o ruido dos cavallos devia ter sido percebido por um grupo
-de mulheres, que enfornavam a broa da semana. Cresceram os pavores e
-receios que enegreciam a imaginação de Maria; porém João aquietou-a
-dizendo-lhe que, aquelle caminho era forçado para muitos <span class="pagenum" id="Page_224">[Pg 224]</span>logares
-distantes, uns dos outros. Continuaram silenciosos e cheios d'esperança
-na negrura cumplice da noite, porém o sussurro dos ribeiros que iam
-grossos d'aguas, o acordar repentino d'algum animal bravio que fugisse
-por entre carrascos e tojos, a propria voz do vento que passava nos
-codeçaes e bouças se transformavam na mente de Maria em signaes de gente
-amotinada que os perseguia, em prenuncios de embuscadas que seus crueis
-irmãos tivessem armado contra o seu unico, verdadeiro e sentido amor. A
-aldeia ficava-lhes de cada vez mais distante, lá em baixo, em fundo
-valle. Demonstrava-o o passo mais lento das cavalgaduras que era já de
-fadiga. Tambem agora tinham de caminhar com maior prudencia, pois João
-confessava-se no limite dos montes seus conhecidos e familiares. Podiam
-esbarrar com algum ribeiro que os obrigasse a retroceder, por isso
-procurava sempre os pontos mais altos, onde essa contraria probabilidade
-diminuia. Ás montanhas succediam outras montanhas, sempre n'um
-levantamento gigante que parecia ter limite no céu, onde talvez fossem
-cravar seus dentes de penedias asperas. Só as estrellas os acompanhavam
-com riso carinhoso e só estas é que davam a luz tenue, que lhes deixava
-distinguir os asperos carreiros, brancos sobre a terra negra. O ar
-tambem era mais leve e mais cortante, a modo que a sombra da noite se ia
-adelgaçando. Ao nascente, para onde levavam voltados os rostos, já viam
-com antecedencia a promettedora chegada <span class="pagenum" id="Page_225">[Pg 225]</span>do sol, essa alegria sumptuosa
-do mundo!... Eram menos inquietas e vibrateis as pestanas argenteas dos
-astros, que se sentiam cançados da continuada vigilancia durante a longa
-noite. Visto não terem podido combater victoriosamente a treva densa,
-deixavam essa encantadora tarefa ao seu glorioso avô, que traria a
-brilhante poeira de oiro fino, para enfeitar as cristas das montanhas,
-enchendo de luz a profundeza dos valles e os recessos das penedias.
-Maria anciosa por encontrar o limite no seu caminhar perguntou:</p>
-
-<p>—Estamos ainda muito longe?</p>
-
-<p>—Andaremos, com dia, talvez uma hora.</p>
-
-<p>—E a gente que nos encontrar?...</p>
-
-<p>—Só pastores e ovelhas poderemos encontrar.</p>
-
-<p>—Santo Deus! Esses pastores não nos denunciarão?</p>
-
-<p>—Os teus irmãos não nos fazem, decerto, para este lado, e daremos
-informações erradas a quem falarmos.</p>
-
-<p>—Em todo o caso fujamos sempre...—rematou inquieta.</p>
-
-<p>Seguiam, já n'uma penumbra fofa, o carreiro aberto, ao longo da espinha
-d'um monte amplo, pelos pés senhoris das ovelhas e cabras que ali
-passavam diariamente. Um bufo, que levantou o seu vôo pesado, de entre
-um massiço de penedos, gerou subito alarme no peito de Maria, denunciado
-n'um grito de susto, que o seu amado acalmou com a explicação prompta do
-facto. A <span class="pagenum" id="Page_226">[Pg 226]</span>luz do sol, ainda distante, provocava este e ainda outros
-signaes de renascimento da vida terrestre. Já a massa espessa das
-montanhas se definia em formas comprehensiveis á vista: agigantavam-se
-os penedos com aspecto de homens associados em conversa; as arvores,
-dispersas nos terrenos aridos, recortavam-se no céu que se ia
-acinzentando; as aguas da chuva que se tinham accumulado em covas
-naturaes, eram espelhentas. Com taes prenuncios de dia entrava nos
-corações amantes, a fé e a esperança na felicidade do amor. Tão de breu
-fôra essa noite, que só agora sentiam a posse completa das proprias
-individualidades, até então amalgamadas com a espessura da treva.</p>
-
-<p>A proxima chegada do sol aclarando o firmamento, que parecia de vidro
-fosco, apagava gradualmente todos os luzeiros pendurados pelo ar.
-Formara-se um nimbo lacteo sobre o horisonte. Pipillavam as timidas
-calhandras erguendo-se do seu leito, entre carquejas, com as pennas
-irriçadas pelo frio, o que lhes avultava o tamanho. Das bouças já sahiam
-gaios, grasnando como patos selvagens; levantavam-se melros cortando o
-crepusculo com o seu vôo rectilineo e silvo agudo; surgiam pêgas a
-palrar como velhas dementes. Era a gloria da luz e da vida que renascia
-e animava a solemne mudez das montanhas crespas. Um ligeiro sorrir dos
-labios de Maria denunciou que o coração se lhe descomprimia, que a sua
-alma ingenua e pura, aceitava <span class="pagenum" id="Page_227">[Pg 227]</span>de boamente os perigos do dia, em troca da
-escuridade protectora da noite. Não assim João da Cunha, receioso dos
-males que podiam agora nascer. Se os do Corcovado houvessem acertado na
-perseguição, se os visse apparecer na volta d'um monte ou do meio d'um
-matagal, seria tamanha a desgraça, que só a morte a podia definir.
-Correria o seu sangue e o sangue dos de Maria. Todo o que se vertesse
-havia de ser em desproveito da sua ventura, que não mais poderia brotar.
-Mas com um movimento energico de cabeça afastou para longe ideias
-tetricas; de novo no amplo e corajoso peito entrou a esperança risonha e
-cariciosa. As montanhas eram largas, os caminhos muitos e intrincados,
-só um grande infortunio o levaria ao encontro dos seus algozes.
-Consumidos os dias de gozo, doces como o mel, que viessem as
-perseguições e os flagellos crueis, pois o encontrariam resoluto e
-altivo, como era natural do seu animo levantado e temerario.</p>
-
-<p>Subiam, subiam ainda na encosta d'um monte, que tinha outros mais altos
-para os lados do céu. Os já andados escorriam lá para o fundo, em
-successão de valles, n'um dos quaes assentava a risonha aldeia d'onde
-haviam partido. Ao vencerem um alto cabeço deram de frente com o olho
-redondo do sol, que os fitava impavido e dominador.</p>
-
-<p>—Ainda é muito longe?—perguntou Maria.</p>
-
-<p>—Mais uma legua para andar.</p>
-
-<p>Desciam na vertente d'além: n'esse alvorecer <span class="pagenum" id="Page_228">[Pg 228]</span>encontraram a primeira
-pastagem de boa relva, mosqueada de malmequeres, goivos e junquilhos
-nascidos no sopé d'uma penedia d'onde brotava agua, e o primeiro rebanho
-guardado por um pequeno pastor. Era um rapaz franzino e sujo: ao ver
-aquella formosa senhora, vestida de claro e com flores na cabeça como
-qualquer santa, acompanhada por tão garboso cavalleiro, logo se levantou
-da lage onde estava sentado, conservando-se com o grosso barrete na mão,
-até que elles chegassem.</p>
-
-<p>—Bom dia rapaz—saudou João da Cunha.</p>
-
-<p>—Bô dia—respondeu em voz rouquenha. Agora não ha romaria: eh! voncês
-p'ra onde vão?</p>
-
-<p>—Levar uma promessa á Senhora Apparecida—respondeu João.</p>
-
-<p>—Tão linda como a Senhora Apparecida é essa senhora. É sua?</p>
-
-<p>—É minha, é Joaquim. Chamas-te Joaquim?</p>
-
-<p>—Não senhor, sou Zé.</p>
-
-<p>—Pois toma lá este dinheiro e dá-o á tua mãe para te mercar uma camisa.
-Se por aqui vierem uns senhores a cavallo diz-lhes que não viste passar
-ninguem.</p>
-
-<p>—Se voncê quer, digo. Hei de rezar por vós, que não ides bem p'ra
-Senhora Apparecida, mas p'ro Senhor Bô-Home.</p>
-
-<p>—É que vamos primeiro ao Senhor Bom-Homem e depois á Senhora
-Apparecida—explicou.</p>
-
-<p>—Antão, havendes de tornar para traz.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_229">[Pg 229]</span></p>
-
-<p>—Pois tornamos.</p>
-
-<p>—Isso é falar. Deus os acompanhe.</p>
-
-<p>Ficaram receiosos d'este encontro, como já o vinham das mulheres que
-enfornavam o pão. O convivio humano era-lhes n'este momento antipathico.
-Da intelligencia alheia, só perigos lhes poderiam advir. Maria levava o
-rosto palido e fatigado; desejava chegar breve ao ponto da terra, onde
-pudesse repousar e esconder-se. O seu amado comprehendeu-lhe este
-secreto pensamento tão legitimo e natural. Chegados a um sitio d'onde se
-lhes desdobrava aos olhos um largo ondeado de montanhas, João apontou a
-brancura d'uma ermida, que se destacava sobre a mancha negra d'uma matta
-e disse:</p>
-
-<p>—Acolá, vês?</p>
-
-<p>—É uma capella!</p>
-
-<p>—Para além da capella está a casa.</p>
-
-<p>—Quanto tempo?</p>
-
-<p>—Pouco tempo.</p>
-
-<p>Metteram por uma esplanada coberta de penedias em cujas anfractuosidades
-podiam esconder a sua marcha. A luz do sol já enchia os montes e até os
-valles cobertos pelo nevoeiro matinal. O ar rescendia a aromas, que se
-levantavam da terra, das flores e hervas alpestres. Passavam no céu,
-azul palido, aves de grande corpulencia, abutres e aguias, que pousavam
-nos pincaros mais levantados. Os negros corvos crocitavam perto, subindo
-do chão para os penhascos. Apparecia aqui um <span class="pagenum" id="Page_230">[Pg 230]</span>coelho que rebolava pela
-terra arenosa; rompia adeante um par de perdizes, já acasaladas no
-começo d'amores; erguia-se uma lebre, veloz na carreira, corveteando de
-orelha guicha. Maria, certa do limite da sua jornada, mostrava rosto
-mais desanuveado; todo o seu desejo e ambição era, n'este momento,
-esconder-se como timida corsa no denso matagal, que fazia mysteriosa
-negrura, juncto da alva capella que João lhe apontara. Não tardou muito
-que aportassem ao carinhoso abrigo. Bem mereciam este repouso, depois de
-tão longas horas atormentadas pelo esforço corporeo e pelas preocupações
-do espirito. As horas, muitas ou poucas, que ali permanecessem,
-ignorados e tranquillos, enchel-os-hiam de amor ardente, para
-entorpecerem a sensibilidade, emquanto não vinha o desenlace da arrojada
-aventura.</p>
-
-<p>—Ninguem nos supporá aqui, meu amor—suspirou João ao saltar do seu
-cavallo.</p>
-
-<p>—E de quem é esta casa?—perguntou Maria ao cahir-lhe nos braços, para
-descer da egua.</p>
-
-<p>—D'um amigo de longe, que só vem aqui, de anno a anno, fazer as suas
-caçadas.</p>
-
-<p>Depois de recolher as cavalgaduras, entraram na modesta cabana, coberta
-de colmo. Logo fecharam a porta sobre os seus corpos cançados. João ao
-apertar Maria nos braços nervosos exclamou desvairado.</p>
-
-<p>—Até que emfim! Podem agora vir todos os tormentos da terra!...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_231">[Pg 231]</span></p>
-
-
-<h3>VI</h3>
-
-
-<p>Dia venturoso, primeiro dia d'amor, em casa modesta e simples, cercados
-do silencio dos ermos, bafejados pela brisa balsamica e leve, aquecidos
-pela chama copiosa do bello sol de primavera. Da terra humilde dos
-montes nasciam flores, abrindo no vasto azul o sorriso, que de noite
-cubiçara o brilho das estrellas. As aves simples, que a floresta enchiam
-de seus encantos, ignoravam a apotheose que estavam fazendo d'aquella
-felicidade. Tudo que havia de rescendente nas duas almas, ditosas e
-bellas como os lyrios brancos, subia em anhelos para as celestiaes
-alturas, enchendo os espaços infinitos de sua fragancia.</p>
-
-<p>O dedicado amigo de João da Cunha, que lhe cedera este sagrado abrigo,
-havia-lh'o provisionado <span class="pagenum" id="Page_232">[Pg 232]</span>de modo que não fosse necessario, logo de
-entrada, qualquer contacto com gente do povoado. Por isso n'este
-primeiro dia, nem as janellas descerraram, vivendo os dois na escuridade
-que mais os unia no seu amor immenso. Os serranos, que por acaso
-passavam, não presumiriam viv'alma dentro d'aquella casa simples,
-construida entre penhascos approveitados como tractos de paredes. As
-duas unicas janellas eram aberturas naturais das fragas: por ali
-entravam outr'ora as aves de presa, que nos reconcavos faziam seus
-ninhos. As duas portas collocadas no afastamento mais largo dos penedos
-aglomerados, davam entrada uma para a cosinha, outra para a casa de
-jantar e dormitorio. As cavalgaduras arrumavam-se n'uma loja aberta na
-espessura da terra no ponto inferior do fraguedo. O telhado de colmo era
-preso, para resistir ás ventanias invernaes, com pedras e paus
-atravessados. As aberturas desnecessarias tinham sido tapadas
-grosseiramente com pedra avulsa, sem o esmero de rebouco de argamassa
-exterior. Esta rustica morada assentava a mais de meia encosta, por cima
-da afamada matta do Medronhal. As duas janellas abriam para o declive
-dos montes e via-se, em corrida extensão, a severa e funda garganta, por
-onde sussurravam as grandes aguas, que vinham de longe, formando o
-ribeiro da Marnoca, celebre pelas suas trutas. O inverno tinha sido
-aspero e copioso, o desgelo das neves altas, ainda em principio,
-engrossava a corrente que n'um <span class="pagenum" id="Page_233">[Pg 233]</span>fragor de trovão se despenhava de rochedo
-em rochedo, por entre togeiras virgens, onde não pousaria o pé rustico
-do pegureiro, se para ali se lhe extraviasse a rez. Havia até sitios
-perigosos, aos quaes é duvidoso que pudesse chegar, lobo esfomeado em
-procura de presa. Eram brenhas selvaticas e dantescas onde, só no
-torrido estio, entrava o sol para calcinar as pedras. O contemplal-a
-apenas, enchia a alma de pavores e mysterio. Os dois amados, na
-escuridade da sua cabana e cercados do silencio do ermo, que este aspero
-ruido tornava mais completo, sentiam-se tão fóra do mundo e dos homens,
-que os seus corações já palpitavam unisonos e sem receio. Era sua
-aspiração e desejo, viverem, assim infinitamente, n'esta paz tranquilla
-de sepultura, formando um ser de dois seres, com um unico sentir e uma
-só vontade—louca aspiração de juvenil egoismo, de que só pode dar razão
-a immensa felicidade que fruiam. Eram como essas aves que outr'ora ali
-tinham formado seus ninhos toscos, na ignorancia de tudo que não fossem
-montes e estrellas. Independencia absoluta da vida esquecida dos que se
-persuadem que no amplo universo, nada mais existe do que o amor.
-Veio-lhes a fadiga e o somno, que mais dilatada lhes tornou a ventura,
-continuando-a pelo sonho em céus deslumbrantes. Quando acordaram já o
-sol declinava no horisonte, arrastando a resplendente juba loira pelo
-cume das montanhas. Abriram então uma das janellas para se despedirem do
-astro que, fulgurando, deixava <span class="pagenum" id="Page_234">[Pg 234]</span>o mundo e levava comsigo a alegria da
-terra.</p>
-
-<p>N'uma d'essas toscas aberturas a poente, appareceram amarellecidos pela
-ultima luz d'esse venturoso dia, as duas cabeças unidas, os dois corpos
-enlaçados. Demorando-se na contemplação do formoso espectaculo, Maria,
-tinha ainda o seu vestido de noiva e na cabeça as flores com que lh'a
-haviam enfeitado. O crepusculo cobriu-a lentamente com o seu veu de gaze
-fino, como a uma creança que dormisse, sombreando-lhe o rosto com tintas
-de melancolia.</p>
-
-<p>E para orchestrar este quadro de simplicidade antiga e paradisiaca,
-subia do fundo da garganta escura da floresta o som magnifico e potente
-das aguas, como um hymno religioso, que se amplificasse solemne nas
-abobadas d'uma cathedral. Fechava-se assim este primeiro dia enebriante
-e ditoso: viera a noite alargar o vasio de todas as existencias, afofar
-com sombras os meandros da vida universal.</p>
-
-<p>Accenderam lume, para se aquecerem.</p>
-
-<p>Em frente um do outro, sentados em toscos escabellos de carvalho annoso,
-estavam em silencio, enredando os seus pensamentos. Presas as suas
-linguas nas circumstancias d'esta existencia anomala e feliz,
-communicavam-se por meio de sorrisos e beijos. Maria, porém, rompeu o
-encanto da sua mudez, considerando:</p>
-
-<p>—Até quando durará isto?!</p>
-
-<p>—Hade durar sempre—affirmou João.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_235">[Pg 235]</span></p>
-
-<p>—Talvez bem pouco dure...</p>
-
-<p>—Teu pae perdoa-nos...</p>
-
-<p>—Nunca nos perdoará—disse repassada d'angustia. Não o conheces.</p>
-
-<p>—Seremos do mesmo modo felizes.</p>
-
-<p>—Porém como!?...</p>
-
-<p>João fez um gesto amplo e vago de quem acredita no céu clemente e
-mysterioso, dentro do qual se conservam em amalgama todas as soluções
-felizes da existencia humana. Apesar d'isto, continuaram tristes e
-absorvidos na sua tristeza, deante do lume alegre e crepitante, com
-chamas que se levantavam e diluiam como as esperanças. É assim toda a
-ventura: ergue-se com impeto, flameja triumphal, desaparece como a
-chama, como ella deixando a treva e o frio. Porém estes amores apenas
-começados estariam, por certo, bem distantes do seu fim: no querido
-ermo, protegidos pela treva densa, principiava a primeira noite fecunda
-e bella. Fecunda e bella foi, mas tinha de acabar como o dia. E acabou:
-já no ambiente se sentia o acordar de existencias chamadas pelo
-reapparecimento do sol, o qual, os ditosos amantes, tambem de novo
-vieram saudar.</p>
-
-<p>Abriram a porta que dava para nascente, e abraçados como duas estatuas
-em grupo, appareceram risonhos deante do sol:—Maria com o seu vestido de
-noiva machucado, as flores da cabeça emmurchecidas; João o rosto mais
-severo e palido do que ao findar o precedente dia.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_236">[Pg 236]</span></p>
-
-<p>Rompeu o grande astro por entre penedias: primeiro como uma gema d'ovo,
-amarella e redonda; depois com a irradiação d'uma enorme fornalha que
-estivesse no infinito. A todos a luz patentearia a realidade da Terra: a
-Maria e a João mostrava-lhes a extensão aspera e vaga da montanha, um
-chão arenoso e safaro, cheio de granitos e pobres plantas, sempre
-açoitadas de ventanias e chuvas, crestadas pelas neves duradoras, roidas
-do dente damninho das cabras. Contemplavam essa aridez impressionante e
-forte das serranias, que educa as vontades para a victoria e para o
-sacrificio, que prepara o cerebro para extremos de abnegação até á
-morte. Sentiam essa grave austeridade contrastando com a terna ventura
-dos seus corações, jovens e amantes, com o sentir mais delicado das suas
-organisações creadas na tranquilidade e maciesa das veigas floridas, de
-culturas abundantes que agudam a sensibilidade. O bello sol reunia-lhes
-os dois corpos n'um feixe de luz, atando-os com os seus raios d'oiro; o
-seu magnificente beijo matinal sellava a incomparavel ventura d'este
-amor incomparavel. Tão descuidados e seguros se encontravam em momento
-tão ditoso, que João não teve duvida em propor á sua amada o sahirem á
-procura d'um rebanho, que lhes désse leite para o almoço.</p>
-
-<p>Foram enlaçados, como dois ramos nascidos do mesmo tronco. Rostos
-alegres e corações abertos á aventura iam pelo monte além, descendo <span class="pagenum" id="Page_237">[Pg 237]</span>para
-sitios onde presumiam pastos. Amplificavam-se-lhes os pulmões para
-n'elles entrar o ar fresco; dilatavam-se as narinas excitadas pelos
-aromas da brisa silvestre. Andaram bastante para encontrar o primeiro
-rebanho: quando voltavam, ao ninho d'amor, com a caneca a transbordar de
-grosso leite, é que ouviram latidos d'uma matilha, que de longe vinha
-batendo a serra para o Medronhal. Continuava a subir aparatosamente o
-sol, no céu tranquillo e mudo, desdobrando pelas corcovas das montanhas,
-pelo apertado das gargantas, e pelos ferteis valles o seu lençol de luz.
-Os cães ladravam ainda longe, porém a revoada dos seus ganidos,
-misturados a tiros de espingarda e a gritos de batedores, subia pela
-encosta acima, como o fumo d'uma nevoa, que o vento sul levantasse. O
-rosto de Maria alterou-se, parou com o ouvido á escuta e perguntou:</p>
-
-<p>—Que será?</p>
-
-<p>—Alguma batida ao bicho bravo. O fogo é lá p'ra baixo—explicou João.</p>
-
-<p>—Vamos depressa para casa!...—pediu receiosa.</p>
-
-<p>—Pois vamos—concordou abraçando-a pela cintura, para andarem mais
-depressa.</p>
-
-<p>Caminhavam diligentes e celeres, não reparando que se lhes vertia o
-leite da infusa. Dominava-os apenas a idéa de não serem vistos de
-viv'alma, de se esconderem na modesta choupana, com portas e janellas
-fechadas, n'uma escuridade completa. Porém, os seus passos deseguaes e
-nervosos foram <span class="pagenum" id="Page_238">[Pg 238]</span>sustidos n'um momento, pela apparição d'uma sombra...
-d'um phantasma... d'um homem a cavallo, que apparecendo ao norte se
-dirigia como elles, para o lado da ermida branca.</p>
-
-<p>—Olha gente!—exclamou Maria. Se nos vê, santo Deus!...</p>
-
-<p>Esconderam-se por traz d'um macisso do urzal virgem, que pegava com o
-Medronhal. D'ali queriam observar o destino do cavalleiro. O silencio de
-João, as linhas do seu rosto contrahido e pallido, o peito tão quieto
-que nem respirava, denunciavam a negrura do seu coração. Comprehendeu o
-perigo: ainda que aquelle homem fosse um estranho, que os não
-conhecesse, havia de causar-lhe surpresa o encontral-os n'aquellas rudes
-paragens, sósinhos, tão jovens, tão namorados e tão dignos um do outro.
-Levaria a noticia do singular encontro e estariam logo descobertos. Pelo
-menos seriam obrigados a mudar d'abrigo e a esgotar depressa o primeiro
-calix da sua ventura.</p>
-
-<p>—Talvez passe para deante—ciciou-lhe, quasi ao ouvido, o namorado de
-Maria.</p>
-
-<p>Mas o cavalleiro, caminhando devagar e cautelloso, como avançada na
-observação de campo inimigo, estava ainda bastante longe para só se
-distinguir o seu vulto com o chapeu desabado, a espingarda atravessada
-nos joelhos, o grosso tronco, firme sobre a sella.</p>
-
-<p>—Peor é—considerou João—se ha por aqui alguma porta de espera; porque
-então fica.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_239">[Pg 239]</span></p>
-
-<p>—O que é uma porta de espera?—perguntou anciosa Maria.</p>
-
-<p>—O ponto onde pode romper a caça—esclareceu.</p>
-
-<p>Do lado esquerdo surgiu outro cavalleiro com o egual aspecto de
-descanço, da mesma forma vestido e armado, convergindo tambem para o
-sitio da ermida. Viam-no mais perto, sem que pudessem ainda definir
-particularidades. Porém, quando chegou a um altinho, onde o recorte do
-seu corpo e da cavalgadura se fez com maior precisão e nitidez, Maria
-deu um grito, que pela intensidade da dôr que exprimia, seria capaz de
-acordar lastimas nos reconcavos d'aquellas montanhas.</p>
-
-<p>—É meu irmão Thomaz!</p>
-
-<p>A João da Cunha cahiu-lhe da mão o tarro de leite, que se verteu pela
-terra. Affirmando-se com acuidade de vista, levou a mão ao punhal que
-tinha no bolso rugindo:</p>
-
-<p>—Pois matto-o.</p>
-
-<p>Em casa é que tinha as armas, com que poderia fazer frente aos seus
-inimigos; mas a casa estava distante, e tinham de subir um pedaço de
-encosta aspera. Chegariam a tempo se corressem; porém, as pernas de
-Maria, recusavam-se a andar. Era mortal a pallidez do seu bello rosto,
-tremula de commoção a sua voz melodica, pavorosa a angustia da sua alma;
-o seu corpo sem energia, deixava-se desfallecer sobre o chão. João da
-Cunha, o valente rapaz, principiou a tremer como um vidoeiro, <span class="pagenum" id="Page_240">[Pg 240]</span>açoitado
-por ventos furiosos. Maria agarrando-se fortemente ao seu corpo
-supplicava-lhe:</p>
-
-<p>—Esconde-me, esconde-me. Que me não vejam!</p>
-
-<p>Subia, magestoso e grave do fundo da matta, o sussurro do ribeiro da
-Marnoca, cujas grandes aguas se despenhavam, avolumando-se-lhes o som,
-com as ressonancias da montanha. Essa voz rouca e solemne attrahia os
-dois corações amantes, que só poderiam encontrar refugio nas covas
-fundas, onde a corrente uivava e onde o javali se escondia. N'essa
-tetrica escuridade de noite haveria por ventura, abrigo e defesa contra
-a furia e colera dos irmãos de Maria?</p>
-
-<p>—Vamos, vamos para baixo e se lá ainda nos encontrarem, jura-me que me
-has de mattar com esse punhal, antes que elles me toquem!—clamava a
-amada, enleando-se ao tronco do seu amado.</p>
-
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_241">[Pg 241]</span></p>
-<h3>VII</h3>
-
-<p>Conservava-se silencioso João da Cunha, porem tinha o semblante
-terrivelmente tetrico. Já se ouviam mais perto os tiros de espingarda e
-os gritos d'alarme dos batedores, e com este novo perigo mais se
-estreitavam os corpos dos dois namorados. Obedecendo ao chamamento da
-voz em supplica e reconhecendo a inutilidade de quaesquer esforços para
-se deffender, João deixava-se arrastar por Maria para o fundo abysmo da
-garganta escura da montanha, onde se despenhavam as aguas em
-precipicios. No ultimo relance em que viu, por entre o urzal virgem que
-os occultava, os dois cavalleiros, reconheceu serem Thomaz e Vicente, os
-dois mais temiveis dos do Corcovado. Aproximava-se portanto, <span class="pagenum" id="Page_242">[Pg 242]</span>o fim do
-seu tragico amor. Com a robustez do seu corpo agil, ia amparando o corpo
-delicioso de Maria, que já se entregava sem animo. A cada paragem
-indispensavel para refazer forças ella solicitava de João, com
-verdadeiras lagrimas, que a deixasse esconder-se mais na escuridade. Já
-tinha os pés e os braços ensanguentados de roçarem nos silvedos e nas
-arestas vivas do granito; o vestido rasgado pelos espinhos dos abrolhos
-e das tojeiras! João, apesar de toda a solicitude, não conseguia afastar
-com as suas mãos piedosas todos esses duros obstaculos. Tambem elle
-tinha a carne dilacerada e dos olhos vermelhos e vehementes sahiam-lhe
-expressões alternadas de colera e de pavor. Mas iam descendo sempre,
-amparando-se para não rebolarem pelo ingreme declive, do fundo do qual
-vinha o bravio ronco das aguas, que se precipitavam de penedo em penedo,
-por entre nuvens de espuma branca. O espirito de Maria sentia consolação
-em embrenhar-se n'esta sombra de noite, cada vez mais espessa; mas o
-barulho dos batedores e dos cães chegava-lhe de muito perto. E quando se
-encontrou á borda do ribeiro gemebundo, com a pelle rasgada em feridas,
-o vestido de noiva em farrapos, os cabellos desgrenhados e sem flores,
-disse com expressão de alivio e desafogo:</p>
-
-<p>—Podemos morrer. Aqui não nos verão!</p>
-
-<p>O seu amado estava silencioso e rigido no meio da desventura, que por
-todos os lados o cercava. Em breve ali chegaria a sofrega matilha, que
-<span class="pagenum" id="Page_243">[Pg 243]</span>podia denunciar a estada d'elles n'aquelle mattagal aspero, escondidos
-no reconcavo d'um penedo, abraçados n'um ultimo alento d'amor. João que
-já uma vez batera aquellas brenhas, em alegre e bulhenta companhia,
-via-se agora como o timido veado, occulto por medronheiros, altas
-giestas e urzes seculares, com o fim de se furtar á impertinencia de
-miseros rafeiros!... Do peito sahiam-lhe impetos de coragem, tinha
-subitaneos repellões de musculos que o animavam a mostrar-se aos seus
-inimigos, tal como era, indomito e sem temôr. Poderia subir n'um
-arranco, qual outro cabrito montez, aquellas rochas escarpadas; poderia
-haver ás mãos as clavinas e as pistolas: depois em campo claro, peito a
-peito, combater com denodo, matando e morrendo. O seu coração ousado era
-uma cachoeira de sangue n'estes momentos; exaltava-se-lhe a mente n'uma
-febre de lucta. Erguendo-se, alto como um gigante, exclamou com os
-braços para o céu:</p>
-
-<p>—Sem ao menos ter aqui as minhas armas com que te possa defender!...</p>
-
-<p>Maria dedusindo d'estas palavras do seu amado, que elle tivesse o
-pensamento de se ir aperceber para a lucta supplicou:</p>
-
-<p>—Não me deixes só! Ninguem nos imaginará n'esta cova.</p>
-
-<p>—Depois de darem busca á casa e encontrarem cavallos e mais coisas que
-nos pertencem, como não adivinharão?...</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_244">[Pg 244]</span></p>
-
-<p>—Falta-lhes ainda descobrir-nos.</p>
-
-<p>—Bastam os cães para nos denunciarem, como se fossemos bicho medroso...</p>
-
-<p>Humilhou-se, abatendo de novo o seu corpo sobre a terra humosa. Havia
-gemer de raiva n'aquelle peito ancioso. Com aspecto torvo e fronte
-livida, olhava com vista negra para a espessura da matta, onde o vivo
-sol da manhã, apenas gerava uma penumbra. Zumbiam abelhas colhendo o
-alimento do rosmaninho, da flôr do tojo e dos sargaços; os innocentes
-piscos de peito vermelho volitavam de galho em galho; passara uma cobra
-entre o folhedo, que tapetava o chão. A espessura do medronhal já se
-enfeitava com rebentos novos; a vida universal, independente e
-descuidosa, crescia, remoçava-se á vista d'aquelles corações
-desfallecidos e sem esperança.</p>
-
-<p>A grita dos batedores avultava em intensidade. A matilha em busca accesa
-estava perto, subia e descia as penedias, entrava nas covas e na negrura
-dos mattos. Os dois amantes, ouviam perto os latidos; sentiam o ganir e
-o choro proprio da canzoada na ancia da procura. João da Cunha,
-paralytico na sua vontade e remettido á impotencia do seu aspero
-desespero, não falava: fechou os olhos para não ver, tapou os ouvidos
-para não ouvir. Maria, com a sua alma candida cheia ainda de fé e
-esperança, estava de joelhos, as mãos erguidas, orando fervorosa e
-supplicante, o pallido rosto innundado de lagrimas. Deu um grito e
-interrompeu <span class="pagenum" id="Page_245">[Pg 245]</span>a prece, ao ver por entre a espessura da velha urze que
-tapava a bocca do antro onde se tinham escondido, o negro focinho d'um
-valente cão do Crasto, que rosnava. João ergueu-se de repente, apurando
-todos os seus sentidos, e ficou ameaçador com o punhal na mão. O animal
-recuou, subindo para um penedo d'onde principiou a ladrar e a arremetter
-com ferocidade. Era um animal medeano, mas de cabeça poderosa: tinha o
-focinho agudo, a bocca rasgada como a dos lobos, as orelhas cortadas, em
-volta do pescoço uma colleira de pregos. O corpo zebrado de negro, em
-fundo pardacento, lembrava a pelle da hyena. O pello do dorso, mais
-cerdoso, estava erriçado pela colera; os olhos sanguineos, em circulo
-negro, olhavam com ferocidade; os dentes brancos, fortes, eguaes,
-arreganhavam-se deixando ver a lingua comprida, como uma chamma. Ladrava
-com desespero, resfolgando-lhe as narinas, pois via João da Cunha, com o
-punhal na mão, em attitude aggressiva. Outros cães da matilha vieram
-junctar as suas vozes ás do denunciante; os batedores, suppondo peça de
-caça renitente, algum javalli encurralado entre penedos, animavam com
-gritos os animaes, em quanto se iam approximando.</p>
-
-<p>O lance era de extremos perigos. João da Cunha, palido como a morte,
-estreitava ao seu valente corpo, o leve corpo de Maria, cujos irmãos, ao
-suspeitarem do valor do signal dado pelos cães <span class="pagenum" id="Page_246">[Pg 246]</span>se tinham já reunido
-juncto da ermida para conferenciarem.</p>
-
-<p>—São elles—disse Thomaz, o de coração mais duro. Examinei aquella casa,
-tem coisas que lhes pertencem. Ha um cavallo da Maceira.</p>
-
-<p>—Não nos fugirão agora—disse rancorosamente Vicente.</p>
-
-<p>N'estas palavras havia alegria e impiedade. Concertaram o seu plano, que
-consistia em descerem, ao mesmo tempo, de quatro pontos differentes,
-convergindo para o sitio onde o ladrido se accentuava mais vivo e feroz.
-Porfiavam por chegar primeiro que os batedores, para só por si
-liquidarem este pleito. Tinham calma no aspecto, mas levavam no coração,
-muito mais goso e ferocidade, do que teriam para desalojar a mais
-temivel das féras.</p>
-
-<p>Tamanha era a perseguição que os mastins lhes faziam que João e Maria
-tiveram de sahir do seu esconderijo, para ficarem em terreno aberto,
-onde se pudessem defender. Os cães do Corcovado, ouvindo a voz carinhosa
-da sua ama, tinham-se afastado da contenda; mas os restantes,
-especialmente o que primeiro os descobrira, mostravam-se de cada vez
-mais inimigos. Houve um instante em que o assedio se tornou tão violento
-que João da Cunha pronunciou alto:</p>
-
-<p>—Maus raios! Eu sem lhes poder chegar!...</p>
-
-<p>N'este apertado lance é que Maria descobriu, n'uma clareira, cercada de
-urzes e medronheiros, passar seu irmão mais velho, o Manuel, com a
-espingarda <span class="pagenum" id="Page_247">[Pg 247]</span>ao hombro, dirigindo-se para o sitio onde os cães ladravam.</p>
-
-<p>—Estamos descobertos!—disse apontando.</p>
-
-<p>—Inferno!—bramou João da Cunha. Não ter comigo as clavinas!</p>
-
-<p>Este apparecimento levou Maria para as visões da loucura. Pelo ramalhar
-das arvores, em cujos braços as espingardas se prendiam, pelo ondear dos
-mattos, percebia-se claramente que tambem os outros do Corcovado para o
-mesmo ponto convergiam.</p>
-
-<p>Maria pensou em encontrar sitio, ainda mais inaccessivel, lá para o
-fundo do precipicio. João desvairado, acompanhava-a, amparando-a, para a
-não deixar cahir. Nenhum d'elles sabia para onde era levado pelo
-destino, pela força interior que os impellia, mas ambos comprehendiam
-que mais para baixo era mais cavernoso o marulho da corrente, mais denso
-o arvoredo. Havia ahi uma queda de muitos metros, onde a agua levantava
-alegres nuvens de espuma, e depois se expraiava em larguesa de bahia
-tranquilla. Sem conhecerem o risco, para ahi se dirigiram, attrahidos
-pela escuridade e para se livrarem da perseguição crescente da matilha.
-Entraram n'uma passagem estreita, onde o ribeiro corria precipitado. O
-negrume do logar e o fragor da corrente cegava-os e ensurdecia-os.
-Chegaram á fraga d'onde a catadupa se precipita no fundo barathro. Ahi
-apareceram abraçados um ao outro, tão meigos e sorridentes, como no
-primeiro momento <span class="pagenum" id="Page_248">[Pg 248]</span>d'amor, e n'esse supremo instante é que uma voz de
-vingança se lhes levantou fronteira, ameaçando-os:</p>
-
-<p>—Nem mais um passo, que os varo!...</p>
-
-<p>Era o Thomaz, que os apontava com a arma aperrada.</p>
-
-<p>Maria deu um grito de pavor desprendendo-se dos braços do seu amado.
-Tapou os olhos para não ver e correndo pela lage fóra, precipitou-se na
-cachoeira fremente. João com os dentes cerrados de desespero, os olhos
-em chammas de loucura, ainda tentou agarral-a; porém acompanhou-a na
-queda, sem poder tocar-lhe no vestido de noiva.</p>
-
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O cadaver de João da Cunha, foi encontrado, depois, entre as penedias,
-com o craneo esmigalhado. Já os corvos crocitavam em volta da sua misera
-podridão. O de Maria, colhido amorosamente pela massa das aguas ao cahir
-appareceu boiando no remanso limpido, como o de Ophelia, retido por um
-innocente ramo d'urze. Foi d'esta humilde planta, que o seu corpo gentil
-recebeu o ultimo beijo de carinho.</p>
-
-
-<p class="center p0 p2 big">FIM</p>
-
-
-
-
-</div>
-
-
-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>A NOSSA GENTE</span> ***</div>
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-Defect you cause.
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-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg&#8482;
-</div>
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-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; is synonymous with the free distribution of
-electronic works in formats readable by the widest variety of
-computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
-exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
-from people in all walks of life.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Volunteers and financial support to provide volunteers with the
-assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg&#8482;&#8217;s
-goals and ensuring that the Project Gutenberg&#8482; collection will
-remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
-Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
-and permanent future for Project Gutenberg&#8482; and future
-generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
-Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
-501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
-state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
-Revenue Service. The Foundation&#8217;s EIN or federal tax identification
-number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
-U.S. federal laws and your state&#8217;s laws.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation&#8217;s business office is located at 809 North 1500 West,
-Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
-to date contact information can be found at the Foundation&#8217;s website
-and official page at www.gutenberg.org/contact
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; depends upon and cannot survive without widespread
-public support and donations to carry out its mission of
-increasing the number of public domain and licensed works that can be
-freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
-array of equipment including outdated equipment. Many small donations
-($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
-status with the IRS.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation is committed to complying with the laws regulating
-charities and charitable donations in all 50 states of the United
-States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
-considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
-with these requirements. We do not solicit donations in locations
-where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
-DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state
-visit <a href="https://www.gutenberg.org/donate/">www.gutenberg.org/donate</a>.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-While we cannot and do not solicit contributions from states where we
-have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
-against accepting unsolicited donations from donors in such states who
-approach us with offers to donate.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-International donations are gratefully accepted, but we cannot make
-any statements concerning tax treatment of donations received from
-outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
-methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
-ways including checks, online payments and credit card donations. To
-donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 5. General Information About Project Gutenberg&#8482; electronic works
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
-Gutenberg&#8482; concept of a library of electronic works that could be
-freely shared with anyone. For forty years, he produced and
-distributed Project Gutenberg&#8482; eBooks with only a loose network of
-volunteer support.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; eBooks are often created from several printed
-editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
-the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
-necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
-edition.
-</div>
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-Most people start at our website which has the main PG search
-facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>.
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-Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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