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If you are not located in the United States, you -will have to check the laws of the country where you are located before -using this eBook. - -Title: A nossa Gente - -Author: Francisco Teixeira de Queiroz - -Release Date: March 4, 2022 [eBook #67561] - -Language: Portuguese - -Produced by: Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team - at https://www.pgdp.net (This book was produced from - scanned images of public domain material from the Google - Books project.) - -*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A NOSSA GENTE *** - - ------------------------------------------------------------------------- - - - - - _COMEDIA DO CAMPO_ - - - A NOSSA GENTE - - - - - =Parceria Antonio Maria Pereira=|(LIVRARIA-EDITORA)|_50, 52—Rua - Augusta—52, 54_ - - - Obras de TEIXEIRA DE QUEIROZ - (_Bento Moreno_) - - - COMEDIA DO CAMPO - - (ROMANCES) - - I —Contos—1 vol. (ultimos exemplares) 500 - - II —Amor Divino—1 vol. (ultimos exemplares) 500 - - III —Antonio Fogueira—1 vol. 500 - - IV —Novos contos—1 vol. 600 - - V —Amores, amores...—1 vol. 600 - - VI —A nossa gente—1 vol. 500 - - - COMEDIA BURGUEZA - - (ROMANCES) - - I —Os noivos—2 vol. (nova edição com o retrato do auctor) 1000 - - II —Sallustio Nogueira (exgotado) 1 grosso vol. 1000 - - III —D. Agostinho—1 vol. 600 - - IV —Morte de D. Agostinho—1 vol. 600 - - V— O famoso Galrão—1 vol. 600 - - - Arvoredos—(Contos escolhidos, edição diamante, com 800 - estampas) - - - As minhas opiniões—(Estudos psychologicos e sociaes) 1 600 - vol. - - - O Grande Homem—(Comedia, exgotada). - - ------- - - EM PREPARAÇÃO - - (ROMANCE) - - =A Caridade em Lisboa= - - (_Comedia burgueza_) - - - - - _COMEDIA DO CAMPO_ - - (SCENAS DO MINHO) - - - - - A nossa Gente - - - POR - TEIXEIRA DE QUEIROZ - (_Bento Moreno_) - - - - - LISBOA - PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA - (_Livraria-editora_) - 50, 52—Rua Augusta—52, 54 - 1900 - - - - - La plupart des drames sont dans les idées - que nous nous formons des choses. Les événements - qui nous paraissent dramatiques ne - sont que les sujets que notre âme convertit en - tragédie ou en comédie, au gré de notre caractère. - - H. DE BALZAC.—_Modeste Mignon._ - - - LISBOA - Typographia da Parceria Antonio Maria Pereira - _11—Apostolos—11_ - 1899 - - - - - SANTA MARGARIDA - - - PRIMEIRA PARTE - - - I - - -Era adoravel no berço pela sua tranquillidade feliz: esse primeiro anno -de existencia passou-o a mammar e a dormir, deixando de mammar para -dormir, e interrompendo o dormir só para mammar. Nos curtos intervallos -d'estas occupações sérias mostrava pouca vivacidade de caracter: para -tudo e para todos olhava com tal incomprehensão, que se julgou que fosse -doente, ou de somenos intelligencia. Pouco mais do que a planta que -vegéta apegada á terra, e que só estima a terra que a nutre; pois o -unico apego ou affeição manifestado n'este primeiro periodo de vida, foi -pela ama, a Antonia, mulher do caseiro, e desdenhava os afagos da mãe -verdadeira, preferindo-lhe os d'aquella que a sustentava de leite. A boa -creatura ufanava-se com isto e no intimo julgava-se com melhor parte na -maternidade de Margarida do que a propria D. Claudina, que a déra á luz. -Este ciume levou-a a dizer ao seu homem, que mais queria aquella menina -do que ao seu Zé, cuja creação entregara a uma irmã, para tomar conta da -filha dos patrões, como estava assente e ajustado que fosse, mesmo antes -dos dois partos. E justificava-se: - -—Pois se ella é tão minha amiga, que não póde estar um só instantinho -sem mim!... Meu rico anjo!... Se accorda e me não vê, logo chora que é -grande matação. Lá o meu rapaz era muito mais bravo e até ruim. Dava-me -cada dentada!... Havia noites, que eu não pregava olho por causa d'elle. - -Assim correu o primeiro anno; mas quando se entrou no seguinte e pela -volta dos quatorze mezes, começaram para a misera Antonia noites -difficeis e tormentosas com o rompimento das presas. Tudo que até ahi -fôra doçura de caracter, se transformou em rabugem insupportavel. -Quantas dôres não soffreria a pobre creança para chorar continuadamente, -de dia e de noite, que nem se comprehendia como tivesse folego para -tanto!... A ama aguentava com heroicidade e lagrimas as mordeduras no -peito, que chegavam a fazer-lhe sangue. Os medicos prohibiram o desmamme -n'esta grave crise, que foi tão violenta e alarmante, como qualquer -perigosa molestia. Esperava-se que isto passasse; decerto havia de -passar e passou, depois de ter durado tres longos mezes, com a creança -entre a vida e a morte. Não lhe faltaram com nenhuma coisa que podesse -minorar aquelle soffrimento horrivel: além dos medicos que vinham ambos -todos os dias, foram requeridos os mais afamados e milagrosos santos da -visinhança; e consultadas as feiticeiras mais sérias, que predisseram -com grande tino e sagacidade, sobre cueiros e camisinhas da innocente -Margarida. Mas n'esse periodo atroz dos tres mezes tudo parecera -infructifero: as convulsões eram aterradoras, a febre continuada, o -emagrecimento implacavel! As honras da victoria, por fim, couberam a -santa Margarida, padroeira da capella da casa, cujo valimento -imploraram, adiantando-lhe uma illuminação de velas de cera em oito dias -e oito noites contadas hora a hora. As primeiras reconhecidas melhoras -declararam-se exactamente no fim d'este espaço de tempo, e por tal -motivo houve depois missa cantada em acção de graças e sermão, em que o -padre José Pitança disse coisas maravilhosas ácerca do incontestavel -milagre. - - * * * * * - -Passara o perigo e com elle todas as afflicções n'aquella casa. A -creança melhorou, entrando n'uma phase de saude regular. Voltaram-lhe as -bellas côres do rosto. Acordou d'esta especie de lethargia com -vivacidade irrequieta nos olhos e signaes de esperteza em todo o -semblante, o que até ahi se lhe não tinha notado. Os paes viviam mais -contentes do que nunca, pois que a filha lhes fôra restituida -accrescentada em espirito e saude. Antonia é que não seria completamente -da mesma opinião, visto que a sua querida menina já não era tão meiga e -docil de caracter. Estava uma insupportavel traquina: tinha muito genio, -um frenesi permanente lhe dominava a vida infantil, custava muito a -aturar. Os nervos ainda se lhe exacerbaram e o querer tornou-se mais -irascivel, quando aos sete annos veio uma segunda crise de doença. -Aquelle pequenino rosto, uma oval delicada que podia conter-se na exigua -mão d'uma fada; aquella bocca pequenina e vermelha como um botão de -rosa; os dois olhos negros como duas amoras... tudo se transformara a -ponto de parecer um rosto feio, com dentes transitoriamente deseguaes e -em posição cahotica, beiços grossos da inflammação, e olhares violentos -e maus. A misera Antonia passou n'este periodo amarguras desconhecidas: -eram mordedellas, beliscões e pancadas com que a mimoseava esta sua -filha de leite. Não socegava, nem de dia nem de noite. O seu dormir -d'agora, era tão vario e turbulento, que mesmo durante o somno seguia a -encarniçada batalha da vida, com gargalhadas, choros, gritos, gestos e -palavras de violencia, como se estivesse acordada. A paciente ama andava -constantemente a pé com um frio de lobo, para a cobrir; pois -considerava, que, se a pequena lhe apanhasse algum resfriamento, ella -mais do que ninguem pagaria o mal com vigilias e canceiras. Durante -essas longas horas de silencio, á luz tremula da lamparina que havia no -quarto commum, escutando o vento que uivava nas carvalheiras da matta e -a chuva que grazinava no telhado e nas vidraças, é que a humilde serva -tinha os seus desabafos deante da imagem da Virgem, que estava no -oratorio: - -—Mesmo uma cabrita!... Não é do meu leite... não! Isto... trocaram-m'a -por outra. Se esta Nossa Senhora a levasse para a sua companhia... - -Mas vinham-lhe logo idéas de arrependimento, por causa de taes -arrenegos. Creara-a ao seu peito e lembrava-se com amor das consolações, -que Margarida lhe dera no primeiro anno de amammentação, quando era -meiga como um cachorro recem-nascido, formosa como um anho de lã branca. -Não se lhe desvanecera ainda da pelle a sensação deliciosa d'aquelle -contacto setinoso; no mamillo sentia ainda o sugar angelico que lhe -inebriara de caricias todo o corpo e até, por vezes, a tinha adormecido -com deleites (como dizem que produz a cobra manhosa, que magnetisa a -teta ubere de que se sustenta ás furtadelas). Então Margarida era uma -bolinha de carne, que dava gosto mostrar a toda a gente, e com quem -appetecia dormir quando ella se mettia pelo corpo da ama dentro, feita -n'um novello, os joelhinhos proximo do queixo, as mãosinhas agarradas na -mamma com medo que lhe fugisse. Taes coisas nunca esquecem, deixam, na -memoria de todo o corpo, impressão de suavidade e doçura tal, que -impossivel é olvidal-as, mesmo quando surjam novos factos de natureza -varia a contradizel-as. Foi por causa da primeira crise de dentição, que -Margarida mammou muito para além do anno; e ainda para maior mal, -Antonia continuara-lhe este vicio bem mais tempo do que se suppunha. Já -o peito estava sêcco; a menina, que dormia com ella, não pegava no somno -sem que tivesse a chucha na bocca e fazia-o com tanto geito e goso que a -ama lhe dizia: - -—Sua lambona! No dia em que se casar ainda ha de pedir d'isto... Caso é -que parece correr-lhe... - -E corria e ella deixava correr, pois que n'esse sugar improficuo e -vicioso, a boa mulher, além de não querer contrariar Margarida, -encontrava a lembrança de tantas meiguices passadas, que até lhe vinham -lagrimas de contentamento. Se ao despegar a creança a bocca, por cahir -em somno, ella reconhecia no bico do peito algumas gottas tiradas do seu -sangue, vinham-lhe assomos de ternura, em que perdoava todas as -rabinices do dia. Foram n'este viver defezo até aos cinco annos da -pequenita, pois Antonia só assim encontrava meio de lhe dominar as -crises de genio violento. Quando a via com o diabo no corpo, fechava-se -com ella no quarto ás escuras e lá perpetravam o seu crime. Mal pensava -a ama, que com tal proceder, concorria para tornar aquelles nervos (já -de sua natureza vibrantes e sempre álerta para explodirem como centelhas -electricas) exigentes e melindrosos, logo no começo da vida! Pois assim -se formou aquelle cerebro excentrico e phantasioso: ora illuminado de -alacridade estrondosa e communicativa, ora obscurecido por tristeza -bronca e inconvivente; hoje da suavidade doentia da rola amorosa, ámanhã -da rudeza do milhafre accommettendo com as garras e o bico. Quando presa -de melancolia, procurava escuras sombras nos arvoredos da matta contigua -á habitação, secrestando-se assim do convivio de todos; n'outras -occasiões, com a mente jubilosa praticava innumeras temeridades—subindo -a arvores e a telhados, provocando os viçosos bezerros que pasciam no -prado, soltando os sanhudos cães de guarda para accommetterem pacificos -transeuntes e os pedintes que vinham ao portal. Porém alegrias ou -tristezas eram-lhe de pouca dura: simples fulgurações de nervos, que -logo se apagavam após ephemero clarão. Appareciam frequentes e -ligavam-se taes estados de sentir contrarios, mostrando, no emtanto, -accentuado pendor para tudo que fosse bulha. Traziam tambem essas -rebeldias de nervos caracter de contagiosas ou suggestivas para as -outras creanças, que a imitavam e seguiam com enthusiasmo e obcecação, -collaborando com ella em obras destruidoras contra animaes, flores ou -mobilia. Esta pequena imperatriz da maldade impunha auctoritariamente a -imitação do seu procedimento tyrannico e contundente. Os paes eram -ricos, queriam-lhe muito e consentiam-lhe tudo; por isso encontrava -sempre como victimas para esgotar a turbulencia da sua alma um velho -creado paciente e tonto, um cão gottoso e indefeso que dormia juncto da -lareira, um pobre jumento aposentado, que soltavam para comer nos -vallados. Porém a passividade soffredora, que taes entidades lhe -offereciam, mais lhe fazia referver o sangue; não se ressentirem das -suas provocações tomava-o como de pouca consideração pelo seu poder; o -soffrimento alheio causava-lhe regosijos de que dava mostras com animo -contente e satisfeito. Quem podia, evitava-lhe o contacto; mas os -creados e dependentes faziam-lhe vontades e muitas festas deante dos -paes; diziam-lhe palavras de carinho e agradaveis; louvavam-lhe a -docilidade de genio e animo dadivoso; porém, não poucas vezes, Margarida -lhes commentou os dizeres com esta que tal rabinice: - -—Tu dizes isso para a mamã te ouvir... - -E D. Claudina sempre a corrigia assim: - -—Bem sei que és ruim como as cobras; mas és minha filha... - - - II - - -Os doze annos de Margarida, coincidindo com o domingo de Paschoela, em -que se celebrava o orago da capella da casa, foram festejados com -demasiada pompa. Quem primeiro lembrou o ajustado d'essas duas datas foi -Antonia, e D. Claudina assignalou a importancia do facto, por serem os -doze annos a edade que marca a transicção da inconsciencia infantil, -para a responsabilidade de quem já repara na sombra. Talvez ambas -tivessem o pensamento reservado de pedir a collaboração da santa, com o -fim de conseguirem qualquer mudança favoravel no caracter irrascivel da -creança!... Tem-se visto milagres d'estes e maiores; nunca se deve -desesperar da possibilidade da intervenção do poder divino nos destinos -humanos. Posta a questão de assim conseguirem para a alma de Margarida -uma correlação de belleza com a do seu rosto, que era, em certos -instantes, d'uma belleza seraphica, não se pouparam os paes a larguesas. -Formaram plano grandioso: haveria missa a tres padres, com Gloria e -Credo cantados por côro escolhido; haveria sermão de circumstancia -pregado por qualquer padre de nomeada, que viesse de Braga, onde os ha -bons; haveria fogo preso e musica de vespera; romaria e procissão com -anjinhos no dia. Isto pelo que toca ao divino: no que diz respeito ao -profano, grande jantar com numerosos convivas, uma especie de baile no -domingo á noite, que se realisaria na grande sala de ordinario destinada -a estendal e armazem das fructas, batatas e feijão, que se guardavam -para todo o anno. - -Quanto mais se martellava n'isto, mais se estendia e melhorava a -primitiva idéa. João da Costa assentou em que, para celebrar -condignamente a juncção da festa da padroeira da sua capella com os doze -annos de sua filha, devia attrahir muito povo de perto e de longe e por -tanto encommendou ao Zé Osti, o mais afamado fogueteiro do Alto Minho -(onde se conhecem dos primeiros) um fogo preso chibante! Sabia elle -muito bem que sendo conhecido este promenor, não ficariam em casa senão -os muribundos; porque até os cegos e paralyticos haviam de concorrer. - -Não se enganara: era de vêr como dos campos em lavrada, se levantavam -alaridos de alegria no dia em que atravessaram as aldeias visinhas o -proprio filho do Zé Osti, capitaneando uma duzia de mulheres, que á -cabeça transportavam as diversas figuras e o abundante fogo do ar. -Tambem João da Costa se não esqueceu de mandal-os esperar pela musica -que tinha contractada, e que á frente vinha annunciando o caso com o -estrondo dos seus metaes, tocando grandiosa marcha. A galhardia dos -trombones, figles e cornetins, lardeados pelos alegres clarinetes e -flautas soprados com alma e coração, e tudo esfuziado por um soberbo -requinta que fôra musico do tres de Vianna, formavam um tal conjuncto -alegre e ostentoso, adeante dos bombos e pratos, que era de deixar bois, -charrua e arado, para vir ao caminho gozar, admirar e applaudir! Tudo -merecia a imaginação copiosa e deslumbradora do afamado fogueteiro! As -formosas moçoilas que abandonavam, por momentos, as sacholas e vinham -acompanhadas dos namorados ver as ricas peças, bem o demonstravam -exclamando: - -«Olha a chieira d'aquella macaca de chapeu de flôres! Veremos se terá a -mesma, quando lhe rebentarem as bombas por baixo da saia de balão.» - -«Olha o barbeiro a amolar as navalhas! No sabbado á noite é que as hade -amolar depressa!...» - -«Olha o janota de chapeu alto, que grande charuto leva na bocca! Aquillo -é que hade esguichar fogo, quando lh'o accenderem.» - -«E o painel de Santa Margarida cheio de lagrimas de côres á roda! É obra -apilarada! Não vêdes gentes, como se parece com a morgadinha?!...» - -Do fogo do ar é que se presumiam coisas de espavento, pelo que se vira -na passada romaria da Agonia. Então deitaram-se foguetes com cabeças -maiores do que as de gente, e houve por momentos receio de que pudessem -estremecer e toldar os vinhos que ainda estavam envasilhados, ou aluir -qualquer penedo mal seguro! Todos tinham tamanho respeito aos monstros, -que o Zé Osti, não encontrando nas localidades homem bastante corajoso -para lhes chegar a murraca, nas occasiões se fazia acompanhar por um -especial, que tinha o craneo por forma duro e resistente, que não -haveria receio de que lhe rebentasse o sangue pelos ouvidos, ou se lhe -voltasse a mioleira, se por acaso um dos foguetes não subisse e lhe -estalasse aos pés. - -Era um sugeito atarracado e musculoso, que para exercer o mister tinha -de arroxar o craneo com tres lenços em volta. No intuito de prevenir -desgraças esses foguetes gigantes, deitavam-se sempre longe do ponto da -romaria, e para agora haviam escolhido o conjuncto especial de penedos -chamados o Castello, com o fim de que o estrondo não encommodasse. - - * * * * * - -Á chegada da musica e do fogo, a creadagem de João da Costa, logo -appareceu no largo da entrada a distribuir copos de vinho, por toda -aquella gente que vinha suada. Foi um despejar como nunca se vira: «e -vivam os senhores fidalgos, por muitos annos e bons», «e viva a senhora -morgadinha que ha de arranjar um namorado de truz!». Em quanto houve -mollete nos cestos foi estacinhar e beber; achando-se já fartos, -recomeçou a musica com tanta furia, que até parecia que se estava no dia -da festa. O fogueteiro para mostrar a sua fazenda descarregou-a ali -mesmo no quinteiro, pondo as figuras em correntesa, para que todos as -vissem e admirassem. Havia realmente progresso e modernice quer nas -attitudes, quer no vestuario, pois tudo era mais humano e natural. Os -corpos com outros geitos e menos rigidos; nas roupas, os papeis -semelhavam fazendas—de seda pareciam as saias e os corpetes, de casemira -as calças e casacas. Até era pena que tão bellas coisas fossem -destinadas a rasgões violentos de bombas e a arderem no meio da -alacridade do povo! Tudo tinha, porém, o fim de augmentar a -magnificencia da festa em honra de Santa Margarida e dos formosos doze -annos da sua afilhada. João da Costa desceu com alguns amigos a apreciar -de perto tanta maravilha e perfeição e com um gesto orgulhoso de cabeça, -indicando um monte especial de foguetes perguntou: - -—São os taes? - -—Sim, senhor—respondeu o Osti. - -—Parecem cabeças de toiro! Subirão? - -—Como perdises que encastellem, verá! Iriam ao ceu se fosse preciso. - -Eram as faladas maravilhas, timbre e gloria do famoso artista. Os -creados da casa, com as canecas vasias na mão pasmavam deante d'ellas, -considerando absortos, que alma damnada teriam dentro, para com o -estrondo ao rebentar, metterem medo a quem estivesse mesmo a grande -distancia. - -Como fosse dia de sexta feira a musica retirou-se depois do beberete, -para voltar na noite seguinte, que era a do arraial. Antes havia a -ultimar os trabalhos de ornamentação da capella e escolher bem o sitio -do fogo preso, para que fosse gosado por toda a gente. Porém com o fim -de não haver descontinuidade no enthusiasmo pela apregoada festa, -chegaram n'este dia pela volta das onze da manhã os tres zabumbas, as -seis caixas e a respectiva gaita de folles, que João da Costa -encommendara, e entraram na freguezia d'um modo ovante, tocando com -verdadeira imponencia, para despertar a alegria nos corações. -Atravessando o povoado em passo lento, solemne e compassado enchiam os -ares com o estrondo magnifico dos seus instrumentos, e logo se dirigiram -á casa de habitação dos festeiros para os saudar. Então ali é que foi o -bom e o bonito, depois de despejarem mais de um cantaro de vinho sobre -uma boa duzia de postas de bacalhau e brôa!... Como ficassem alegres e -satisfeitos, quizeram mostrar melhor a sua gratidão e artes; por isso se -proposeram a exhibir todos os segredos dos seus instrumentos. Bombos a -um lado, caixas ao outro e gaita no centro, começou o grande apparato! -Os zabumbas formavam um fundo de quadro de paisagem colossal e -montanhosa; os seis tambores pareciam alegres comadres a chasquear e a -ralhar; o da gaita de folles pavoneava-se desvanecido com ella nos -braços, encostada ao hombro como um tropheu!... Veio a familia e vieram -os convidados á janella; o rapazio gaudiáva dando cabriolas. N'um certo -momento dois dos caixas, que andavam sempre em rixa, separaram-se dos -companheiros para repenicarem com todo o primor, dobrando o rufo com -elegancia e mestria. Era um florear de baquetas em tom cadenciado e -tremulo sobre a pelle distendida das fallecidas cabras. Mostravam -prestesa, pulso rijo e flexibilidade de musculos. Havia em tudo aquillo -enthusiasmo e coração de valentes, o que se tirava da energia facial com -que se combatiam, procurando reciprocamente cançar-se. No mais vivo da -sequestra, um dos de zabumba, que tambem presumia de sua fama, saltou -para o meio do terreiro e principiou muitas variações, saltando e -pulando com mil requebros. Era homem agil e physionomia viva de olhos -bugalhudos. Com a baqueta da mão direita feria o instrumento em todas as -posições imaginaveis: por cima da cabeça, com elle horisontal á ilharga, -suspenso nas costas, deitando-se no chão com elle sobre o ventre! Os -companheiros seguiam-lhe a destresa de athlecta, com sorriso sceptico e -molle, tirando dos seus bombos sons mais baços. - -O gaiteiro vendo applaudidos por todos os assistentes aquellas -galhardias, não lhe consentiu o animo ficar em obscuridade. Era homem -baixo e grosso, physionomia ossea, mas esperta. Filho d'outro de -Compostella, herdara de seu pae o instrumento e a prenda de o tocar com -distincção. Afastando-se dos zabumbas e caixas triviaes, principiou a -rabear entre os tres que já se exhibiam com apparato e luxo de ademanes. -Quiz tambem chamar sobre si a attenção dos festeiros. Com o ventre do -instrumento impando, requebrava-se em passo cadenciado e dolente de -dança gallega: tirava; ora sons plangentes e maguados como gemidos -tristes; ora um psalmear monotono e roufenho, que ondulava no ar como o -vôo pesado d'um ganço; ora guinchos agudos como estylêtes ou espinhos -que entrassem nos ouvidos. Saracoteava-se com o instrumento ao collo, -mechendo os dedos n'uma especie de canudo de flauta e soprando-lhe no -ventre por um bico de cegonha. - -Os bombos a falar grosso, as caixas a rufar certo, o gaiteiro a tocar -variado, tudo n'uma paisagem primaveril de folhas tenras, um bom e -carinhoso sol de primavera a aquecer, era deveras divertido e -excentrico! Uma atmosphera empregnada dos aromas de mil plantas, tornava -esta sexta feira de Paschoela risonha e feliz, o que bem se reconhecia -dos semblantes de toda essa gente, pois tinha alma para o sentir. - - - III - -Por todas as disposições se reconhecia que este excepcional domingo e -estes doze annos de Margarida viriam a marcar data na historia da -familia. Os convidados, amigos e parentes de João da Costa, que já -muitos tinham chegado para assistir ao arraial, mostravam-se -interessados por verem tanta gente assim atarefada e remexida: eram -todos os creados da casa, os armadores da capella com Zé Maximo á -frente, que tambem mandava nas illuminações, o fogueteiro com os seus -ajudantes a abrirem covas para o fogo preso, os dos zabumbas, os das -caixas e o gaiteiro... todos a alarmarem a freguezia e redondezas. Uma -balburdia, uma abundancia, uma grandeza sem par!... O amor, louco e -incondiccional, d'aquelles paes por sua filha, explicava o turbulento -apparato; mas, de todas as pessoas ali reunidas, uma parecia menos -gostosa do que se passava e era a festejada creança. Agitava-se é certo, -andava no meio d'aquellas coisas, com outras meninas e rapazes da sua -egualha; porém reconheciam-n'a possuida d'uma das suas crises de -tristeza e inconvivencia, como quando fugia para a matta, a esconder-se -na espessura dos arvoredos, para evitar o contacto de gente, que lhe -melindrasse a sensibilidade. A mãe, que a perscrutava, momento a -momento, percebera, pelo arrepanhado das linhas faciaes, pelo seu olhar -frenetico, que Margarida soffria uma sezão de impaciencia; no seio -decerto lhe crescia um desejo inconstante, e logo que poude tel-a entre -os braços perguntou-lhe: - -—Que tens tu, minha filha, que andas tão esquisita?! Falta-te alguma -coisa? - -—Não sei... Falta!... - -—O que?... - -—Não sei... Falta...—repetiu desprendendo-se, para se ir misturar aos -que admiravam o fogo disposto no quinteiro. As creanças faziam os seus -commentarios, comparando estas com outras figuras que tinham visto arder -em romarias, e dirigiam as suas observações a Margarida em tom -bajulador, que ella acceitava com sobranceria de dona. João da Costa, -homem prevenido, vendo-as assim zaranzar, e temendo qualquer semsaboria, -disse ao filho do Zé Osti: - -—Olha lá. Não seria melhor recolher tudo na adega?! Póde estragar-se -qualquer coisa, entendes?... - -—Mais que isso, póde haver trapalhada. Um lume prompto, a ponta d'um -cigarro dentro d'aquelle cesto (indicou-o com o dedo), levava tudo pelos -ares, emquanto o diabo esfrega um olho... - -Abriu-se a ampla porta, que tinha fechadura valente. Ali ninguem -entraria sem consentimento e o morgado accrescentou para o fogueteiro: - -—Tu que és responsavel ficas com a chave. Ninguem mais tem que cheirar -n'estas coisas. - -O filho de José Osti, com o seu pessoal, é que collocou dentro dos dois -lagares o fogo, arrumando-o pela sua importancia. A um lado o que era -figurame, bem separadas as peças, para se não destruirem os enfeites que -seriam o encanto da vista; ao outro o fogo do ar, as taes abantesmas com -bombas do tamanho de cabeças de toiro. O cesto mysterioso e suspeito, já -assignalado como coisa de circumstancia e perigo, foi collocado a um -canto com a seguinte recommendação do Osti, dita em tom de grande preço: - -—São os trincafios, a namite, as lagrimas, a polvora fina e outras -coisas... Isso póde incendiar-se e será uma de mil demonios!... - -As creanças, na presença de quem a recommendação fôra feita, ficaram -maravilhadas, medrosas e attentas. Que coisas terriveis e bellas não -estariam debaixo d'aquella toalha de branco linho, cobertura do modesto -cesto!... Os grandes olhos de Margarida haviam-se illuminado de fulgor -cupido e excepcional, logo ao primeiro aviso no quinteiro; agora -fixaram-se com uma absorpção intensa no logar onde haviam pousado o -objecto defezo. Com um impulso que lhe guiava a vontade, a sua pequena -mão dirigiu-se á toalha branca, para a levantar, mas o fogueteiro -susteve-a, dizendo: - -—Ó menina! Ahi não se bole! Não ouviu?!... - -João da Costa incutiu-lhe maior curiosidade e pavor: - -—Ó filha! Nem te approximes sequer!... - -—O que aconteceria se eu bolisse?—perguntou com os olhos meigos e -risonhos fitos no Osti. - -—Podia-se incendiar tudo, n'um instante, como um relampago—explicou. - -—Então havia de ser bonito... - -—Isso como um ceu aberto!—encareceu o artista. - -Todos sahiram. O grande portão, por onde podia entrar um carro com uma -dorna, fechou-se com estrondo magestatico. João da Costa depois de, por -sua propria mão ter dado volta á chave, entregou-a ao fogueteiro: - -—Toma-a, que és o responsavel. - -O rosto de Margarida soffreu nova transfiguração: não era de alegria, -nem de tristeza o sentimento que exprimia, mas de reserva e idéa fixa -que lhe obcecasse o cerebro. Fugiu para o seu quarto, abandonando os -companheiros de brinquedos e ali se quedou com a vista absorta na cal -branca da parede... Sorria deliciosamente a uma visão angelica, ou -carregava o sobr'olho n'uma expressão voluntariosa. Sentada na borda da -cama, o queixo levantado na pequenina mão, seguia miragem ou chimera, -que lhe encantava a mente, levando-lh'a a voar pelos infinitos espaços. -Como se houvesse tomado qualquer resolução, desceu de onde estava, bateu -imperiosamente com o pé no chão e pronunciou: - -—Pois hei de ir lá vêr o que é!... - -Sabia perfeitamente como poderia entrar na adega, mesmo que a porta -estivesse fechada. Quantas vezes, no jogo das escondidas com outras -creanças, ali se sumira sem que ninguem a podesse encontrar! -Ensinara-lhe o caminho uma cadella, que lá dentro tivera a sua ninhada, -e que a occultas a ia amammentar, entrando por um postigo da face -poente, que conservavam sempre aberto para arejo dos toneis. Trepando -pela parede, como muitas vezes praticara, entraria no antro do mysterio, -e sosinha (como era seu desejo) podia admirar o que fôra prohibido a -toda a gente. Deviam ser maravilhas nunca vistas, deslumbramentos nunca -apreciados!... Que intenso prazer lhe não dava, infringir ordens -terminantes de seu pae e do fogueteiro! Um doce e longo effluvio lhe -percorria todos os nervos; antegostava com delicia incomparavel o -instante de poder tocar de leve os encantos que lhe fizeram conceber! -Descobriria o segredo d'esses deslumbramentos, que recamavam o negro -manto das noites d'arraial, com estrellas de côres! Saberia o que eram -em germen as lagrimas, antes de escorrerem em escadeas de luz e de -maravilharem a imaginação! E era-lhe devido este goso pela posição -especial que occupava em tal festa. Não era ella a senhora, a festeira, -a pessoa que deveria mandar sem estorvos em tudo? Estremecia de -contentamento, ao delinear na mente o furtivo accesso pelo postigo -grande, por onde entrava a cadella, quando ia amammentar os filhos. - -Realmente, ao lusco-fusco d'esse dia, no periodo em que as sombras -principiavam a cahir solemnemente das montanhas com todo o seu poder de -mysterio, Margarida sahiu de casa com a alma aguilhoada para aclarar o -enigma. Munira-se d'um coto de vela de cêra que tirou do oratorio, d'uma -caixa de lumes-promptos, e foi sem ser presentida. Logo que se encontrou -dentro da adega, diluido o seu corpo na treva, accendeu a luz para -retomar a propria individualidade. Á vista do pequeno cesto coberto de -toalha lavada e branca (qual pacifico e substancial merendeiro) o -entendimento entorpeceu-se-lhe com a força da curiosidade. Seria -possivel estarem ali escondidos os maravilhosos lumes, que, abertos no -escuro da noite, offuscavam o scintilar das estrellas?! Fontes de luz, -variadas no brilho e nas côres; descenso de adornos do firmamento, que -duram instantes; maravilhas de pequenos meteoros, que, ondulando no -espaço como espiritos angelicos, buscam repouso glorioso; rebentos da -treva como flores luminosas de cristal; adereços de pedras preciosas -jorrando do interior do céu... era o que ella presumia sob a modesta -toalha branca... Quantas vezes os olhos do seu corpo não haviam cegado -com os deslumbramentos d'essas lampadas sagradas suspensas sobre a -Terra! As radiantes lagrimas, quando brancas, parecem chuva de -claridades ou pranto celeste brotando como rozeiral de diamantes e -morrendo, depois, suavemente como beijos; quando de côres semelham -rosarios de rubis, de topazios, de esmeraldas, que transformam a treva -em interior illuminado de palacio encantado, habitação de fadas. Tudo -isto, sabia-o Margarida porque lh'o tinham revelado na prohibição feita, -e estava ali inerte sob a toalha branca. Não devia ver e averiguar o que -fosse? Correria risco quem o tentasse... mas para aquelle espirito -irrequieto e temerario, o perigo era um incitamento. Com a pequenina mão -direita, tremula de commocção que não de susto, levantou a ponta da -toalha alumiando-se com a vela acesa... O que viram os seus olhos -cubiçosos e egoistas?!... Nada, ou pouco mais: embrulhos em papeis; -alguns pequenos frascos com liquidos e tigelas com agua de onde se -mergulhavam coisas; meadas de torcidas de algodão impregnadas de -polvora, com envolucro de papel, a que chamam trincafios. Seria d'isto -que sahiam esses lampadarios aereos, que deslumbravam os olhos de tanta -gente?! Mal se podia acreditar, pois toda a apparencia era de objectos -vulgares, inertes e sem flammancia. Cheia de confiança em si e minada do -desejo de averiguação, principiou com os seus delicados dedos a remexer -todas aquellas miudesas, emprestando-lhes alguma vida, para d'ahi sahir -a acalmação da febre que lhe exacerbava a mente. Talvez que, ao seu -contacto, das substancias mortas nascessem vivas faiscas, inicio de -prodigios! Talvez!... Quem poderia dizer o contrario? Aquelle algodão -embebido em polvora e envolto em papel, muitas vezes ella o vira -encendiar-se, se lhe applicavam a morraca... Se agora lhe achegasse a -luz, talvez ardesse um boccadinho e fosse este um começo de -fascinações... Nos olhos vivos e sequiosos apparecia o signal de que tal -desejo lhe crescia no cerebro, como lavareda dominadora. Com mão timida -ainda, mas guiada por força que não podia contrariar, foi ajuntando a -chamma da vela com o ponto negro do trincafio... Apparece o primeiro -brilho e logo Margarida retira promptamente a pequenina mão, para que -não continue a arder... Mas esse ponto luminoso foi logo maior e grande, -propagou-se por todo o cesto, como um vaga-lume rabioso... Alarga-se -n'uma luz azul e viva de relampago, seguem-se estoiros e logo pavoroso e -infernal ruido, que tendo começado dentro do cesto, se propagou com a -velocidade a todo o espaço da ampla adega. Que scena phantastica, -maravilhosa, deslumbrante e cahotica, esta de um horrido estrepito no -meio de lavaredas, que vomitavam raios, esfusiando de todos os lados!... -Quem podera ver a graciosa figura de Margarida, n'esta confusão -terrivel, consideral-a-hia apparição angelica, cheia de gloria e poder -divino, dominando a confusão dos mundos, com a serenidade risonha d'um -seraphim. Estava de pé na separação dos lagares, os braços levantados em -prece sublime, olhos brilhantes e cheios de enthusiasmo, como os dos -martyres que a Deus glorificavam sobre fogueiras! Que se passaria no seu -craneo n'este instante unico!... Talvez sentisse a alma arrebatada em -fogo! talvez se julgasse levada aos infinitos paramos em ondas de luz! -talvez que esse estranho grito que da sua debil garganta sahiu, fosse a -primeira nota d'um canto de gloria!... - - - IV - -O pavor produsido pelo estrondo de bombas e morteiros a rebentarem -dentro da adega grandemente illuminada, foi cruel e estupefaciente! -Reconheceu-se o que tinha succedido; mas o que se não comprehendera -logo, era como o caso se poderia ter passado, visto a chave andar no -bolso do fogueteiro. Só espiritos malignos seriam capazes de ali ter -penetrado; pois só elles podiam conceber a execução de tamanha -catastrophe! Como as aguas das montanhas, quando collidem para um valle, -correu toda a gente para o perigo. N'um momento foi aberto o largo -portão, que semelhava a bocca de enorme forno, com o seu ventre em -chammas! O creado mais resoluto atirou-se ao meio do incendio, subiu -celere ao lagar e, de pé na borda, disse em voz tremenda: - -—Jesus!... A menina a arder!... - -O seu arrojo, que fôra temeridade, tornou-se loucura: sem attender a -risco, abre caminho por entre linguas de lume e estrondo de bombas, e -tomando o debil corpo da creança, como quem abraça um feixe de -lavaredas, sae com ella para o exterior, por entre gente apavorada. Logo -acudiram com mantas e cobertores, conseguindo apagar as chammas dos -vestidos de Margarida e do homem que a salvara. Porém a desgraçada -creança, sem accordo, parecia morta! Levaram-n'a para casa no meio das -afflicções de todos, especialmente dos desditosos paes e logo a despiram -com rapidez para se apreciar a extensão do mal. O debil e formoso corpo -estava intacto, menos nas partes desprotegidas pelo vestuario. A face -então!? Essa pequenina meniatura de face, que dois beijos poderiam -cobrir, agora vermelha, empolada e disforme perdera a brancura nativa e -a graciosidade de linhas, que a faziam comparar ao rosto das santas! -Todos os delicados relevos de feições tinham desapparecido nivellados em -massa confusa e pastosa, sem expressão humana. No que se transformava -belleza tão delicada, d'uma correcção tão perfeita e harmonica!... -Crestados os cabellos longos e finos, e os bem desenhados supracilios, e -as formosas pestanas, que sombreavam as pupillas; avolumado pelas -empolas o delgado e airoso pescoço... desapparecera toda a graça da viva -cabeça de Margarida. Isso que fôra encantador, prendendo a vista da -pessoa menos attenta, era massa informe e sem espiritualidade. Onde -estava o riso gracioso de seus labios tantas vezes cheios de brisas de -carinho, quantas de nuvens caliginosas de desejos?! Onde a expressão -turbulenta e dominante das narinas, exprimindo apetites rebeldes, mas -innocentes?! E as orelhas pequeninas, da transparencia da porcellana com -veios escuros nas curvas complicadas, onde estavam?! E o breve mento, -tão breve e gracioso como o da Venus de Millo?!... Tudo se desfizera e -se confundira!... Essa interessante physionomia que era jubilo, que era -rebeldia de sangue em fervura, que era signal de alvedrios intensos -gerados no limpo coração e logo subidos aos labios e aos olhos... Os -olhos!... É verdade, os olhos de pupillas inquietas, os olhos de iris -escura, mas indefinida com laivos de ceu e de mar profundos, que tinham -lampejos á noite, mysterio ao entardecer, alegria na alvorada, carinho á -luz brilhantissima do dia... que era feito d'elles?! Jaziam sepultados -sob a grossura das palpebras inflamadas. Teriam vista ao menos?... -Ninguem o sabia. A mãe de Margarida, sem accordo, como morta sobre a -cama; o pae, homem forte e vigoroso, diluia-se em pranto junto da filha -adorada. Os dois medicos que tinham corrido ao toque d'essa grande -desventura, davam consolações vagas, esperanças infundadas. O lindo -rosto de Margarida poderia voltar ao que fôra, a ser outra vez pequenino -e engraçado...—diziam. Ainda n'elle se havia de gosar a vista da mesma -espiritual belleza, que enchera de ventura o coração dos paes infelizes. -Tinham-se visto curas completas mais extraordinarias do que esta, -verdadeiros milagres no entender do povo. Os casos feios é que melhor -assignalam as victorias da sciencia. Não era já circumstancia favoravel, -que a vida tivesse sido poupada em perigo tão violento? O gentil corpo -da creança estava quasi intacto na pureza das suas linhas, na elegancia -do seu porte, na brancura da sua pelle, quando o natural teria sido -ficar reduzido a um negro carvão. Só o rosto fora principalmente -prejudicado... Certo é que no rosto reside toda a formosura. O de -Margarida era tudo que havia de mais immaterial: a bocca pequenina e -vermelha, tinha a graça; os olhos meigos e turbulentos, a inquietação -infantil; na sombra das pestanas e no desenho dos supracilios, estava o -inigma do pensamento; na pelle rosea, a mocidade; no arrojo do nariz a -constante revolta; na curva serena do mento a tenacidade... Se isto -viesse a faltar, ou se se transmudasse a rara combinação, que valeria o -conjuncto, ainda que fôra dez vezes mais perfeito do que o da estatua -grega?!... Porem como a esperança é o riso da natureza humana, e o -natural e o proprio dos que soffrem dores fundas, já os angustiados paes -principiavam a escutar com bastante conformidade as palavras de quem os -consolava. Os medicos, primeiro que tudo, pediram liberdade juncto da -pequena enferma, para largamente applicarem os meios que a profissão -lhes aconselhava. Certificaram desde o começo que Margarida não -morreria, e tocados de piedade por aquelle incomparavel infortunio, -ousaram affirmar que haviam de restituir á creança, a saude e a belleza. -A longa falta de conhecimento em que após o accidente se conservara -algum tempo Margarida, attribuiam-n'o a estado epileptico, despertado -pelo assombro de scena tão extraordinaria, como teria sido a de se ver -repentinamente cercada de chammas e de estoiros infernaes. Devia ter -sido horrendo para uma creança de doze annos, que dentro de si só devia -ter fontes de sonhos aureos e aspirações celestes. - - - - - SEGUNDA PARTE - - - I - -Passaram-se dias e passaram-se mezes. O soffrer longo e tormentoso -seguia lento. A physionomia de Margarida era toda uma postula. Porém de -informe nos primeiros tempos, foi adquirindo longes de vida e expressão -com os inicios cicatriciaes. Margarida queixava-se pouco; parecia que os -nervos se lhe tivessem insensibilisado, ou que na catastrophe houvesse -adquirido coragem heroica para supportar a dôr. Até os medicos se -admiravam de tanta paciencia nos curativos, pois lhe applicavam topicos -que a deviam mortificar. Notava-se-lhe fundamental mudança no caracter: -antes sempre inquieta e irascivel, agora conformada e paciente. - -O padecer raro e profundo, poderá transformar a sensibilidade e o -pensamento? amollecel-os se eram duros, endurecel-os se eram ternos? Em -Margarida parecia realmente ter-se operado essa metamorphose grave: na -vida feliz e descuidosa de infancia mostrara-se sempre e sempre -insatisfeita, nunca se lhe encontrando fim ao querer e ao desejo; -chegada a desventura e martyrio excepcionaes, dormitava-lhe o espirito -em calma angelica, como se gosasse de paz e doçura celestiaes. Alguns -queixumes ainda se lhe ouviram de começo (murmureos de ave doente), em -que recorria aos nomes de seus paes e da ama que a creara, como -lenitivos e sacrarios de amor santo; porém, depois, entrou n'um periodo -de resignação e calma e os seus doze annos mostravam o juizo e a -conformidade das velhas experiencias. Em vez de confessar atroz -soffrimento, dizia palavras de consolação e esperança aos que muito lhe -queriam e eram ellas de tanto conceito e elevadas que nem pareciam da -sua juventude. Entrara, pois, n'aquelle corpo alma nova com o -infortunio: a tonalidade da voz mudara para submissa e melancolica, as -idéas appareciam como florinhas correndo leves em veio d'agua limpida. -Já não era a Margarida que sem motivo gritava, que sem razão chorava -lagrimas, que martyrisava com goso os animaes e as pessoas, que se -deliciava inventando collisões para atormentar os com quem vivia. -Accommodado o seu magro corpo no leito de doentinha, todos lhe apeteciam -o convivio pelo exemplo que dava de um existir sereno e venturoso no -meio de penas. Quando a enorme chaga, que lhe abrangia todo o rosto, -principiou a mostrar tendencias para cura, um phenomeno singular se -verificou—o ressurgimento da expressão humana, que ia apparecendo -lentamente como uma aurora. E o facto excepcional e maravilhoso dava-se, -quando tudo ainda era informe e cahotico n'aquelle rosto: nem a pelle -rosea e setinosa o purpureava, nem a bocca de gazella sorria, nem a -graciosa linha do nariz o equilibrava, nem a perfeita oval o fechava, -nem os formosos olhos... (não falemos agora dos antigos olhos de -Margarida). O que se ia vendo era a cicatrisação, que no seu progresso -confuso já mostrava larga costura com manchas lisas, enrugamentos -complexos, tecidos arrepanhados formando sombras. Assim estava a testa, -a face, o nariz, o mento, as mimosas orelhas, o airoso pescoço... Porém -de tudo isso que era sem fórma e sem graça, resaltava tal suavidade de -expressão, qualquer coisa de ethereo e sublime, de suprahumano e -bondoso, que só pelo transluzir d'uma alma candida e pura n'um rosto, se -póde comprehender. E ainda lhe faltava a belleza dos seus olhos, vivos -feixes de luz sempre em ardencia, e não tinha a pupilla nervosa e sempre -movediça na iris, tão variamente colorida; porque esses olhos, absolutos -senhores n'aquelle semblante expressivo, eram agora apenas dois globos -leitosos, rolando senilmente dentro das orbitas, por traz das palpebras -densas. Os medicos, para não desilludirem os atormentados paes e a ama -Antonia, que lhe queria tanto como se fôra mãe completa, ainda agora os -consolavam com mentirosas esperanças. As bellidas, simples pannos -brancos lançados deante da vista, poderiam desapparecer com o -tempo—diziam. Quando elles não podessem ultimar a cura, outros medicos -havia especialistas de taes molestias, que operavam maravilhas, que -pareciam milagres. D. Claudina escutava-os, porém muito mais se fiava do -alto poder divino, do que de homens grosseiros e barbaros, que se -limitariam a rasgar com ferros os olhos de sua filha! Por isso -comprehendendo como indispensavel a intervenção superior do ceu (a unica -forte e valiosa) continuou com mais fervor as promessas de romarias, de -festas, de offerendas a todos os afamados medianeiros celestes, que se -nomeavam perto e longe do logar onde viviam. Informações que aos ouvidos -lhes chegassem de curas de pequena ou grande monta por este meio -obtidas, serviam logo a D. Claudina e a Antonia de pretexto para -proporem mais resas e penitencias, jejuns e novenas, oblatas ao divino e -á Virgem sua mãe, que cumpririam verificado o beneficio. Isto não -obstava á assidua frequencia da capella da casa, onde se demoravam em -oração fervorosa ao orago, Santa Margarida, e a todos os santos da -celestial côrte. E tamanha e tanta era a fé, que em cada manhã lhes -renascia no peito a doce esperança e logo que sentiam a doentinha -acordada do seu longo repouso, vinha a interessada mãe perguntar-lhe: - -—Sentes-te melhor, filha? - -—Sinto, minha mãe. - -—E já me vês? - -—Vejo. - -—Com a tua vista? - -—Com a minha alma e... e tambem um pouquinho com a minha vista—rematava -sorrindo. - -Era consolador ouvir-lhe isto, quando o sol raiava no ceu! Que affecto e -que amor taes palavras continham! Porém amargava-lhes no final o -desengano, ainda que suavisado pela ternura da voz. A dolorosa realidade -permanecia. Era triste ver Margarida, com os dois olhos baços e leitosos -como duas enormes perolas a moverem-se lentamente na busca de claridade -e sem deixarem passar a vista, que estava por tras da nevoa! -Compensava-os (bem insufficientemente) o reconhecerem que na larga -cicatriz da ascosa chaga, havia uma vida nova e uma luz nova de vida -superior. Quando a doentinha falava era de ver que as suas palavras -semelhavam lampejos de luar n'um abysmo de trevas. Habito ou -idealisação, certo era que esse rosto, sem feitio de rosto, tinha alguma -coisa de raro e sublimemente espiritual. D'esta fórma suave, lenta e -dôce, subtil como se fôra um sopro vital, em todos ia entrando a -convicção de que a mente de Margarida, após a cegueira se sublimara, -illuminando-se de divinos clarões, que a predestinavam para altissimos -fins. Denunciava-o os seus conceitos serem de sentimento e bondade -infinitas, e isto maravilhava pela precocidade. N'aquella voz -percebia-se musica de suavidade angelica, cheia de ternuras e modolações -aprasiveis. Encantava estar junto d'ella, escutal-a, conhecer como ella -recebia a inspiração divina, que vinha como pomba esvoaçar-lhe sobre a -cabeça. Não balbuciava uma queixa, nem uma saudade do mundo de que se -conhecia separada para sempre. Ao contrario: confessava-se mais feliz e -ditosa n'esta densa noite, do que o era na luz do tempo em que -irrequieta, nervosa, exigente rebentava em lagrimas de cólera, á menor -contrariedade. Agora nunca chorava!... Não saberão os cegos chorar? As -lagrimas são a belleza dos olhos, quando como diamantes deslisam pelas -faces dos que morrem d'amor; porém, as lagrimas tambem são signaes -d'infortunio, se, como pingos quentes de chumbo escaldam a pelle de -infelizes atormentados. Margarida não tinha nem edade para amar, nem -experiencia para os grandes infortunios; por isso não precisava de -lagrimas. Aquella mente, lago sereno em calma ventura, não tinha a -encrespal-a ventos que só entram por ambiciosas e prescrutadoras -pupillas. - -Dulcificavam-se, pois, para a convivencia dos seus achegados e amigos -que a adoravam, aquella alma, o caracter, o temperamento. Lamentavel que -taes olhos tivessem perdido o seu raro poder de fascinação; doloroso que -a physionomia de Margarida, outr'ora tão harmonica das combinações que -dão a formosura, se houvesse transformado em cicatriz... Existia, porém, -pessoa que, por um lento labor, já conformada com o actual estado, a -preferia como era e não a desejava como fôra. Quem? Antonia, a querida -ama, para a qual esta fealdade era formosura, e que julgava a sua menina -muito mais venturosa depois de feia. Coisa estranha e de maravilhar, que -um rosto assim desfigurado, com manchas brancas n'um ponto, violaceas -n'outro, liso e espelhento aqui, enrugado e baço acolá—um todo -arrepanhado de linhas divergentes e crusadas—tivesse tamanha influencia -e poderio sobre as almas; que esses olhos brancos, com um ponto -cinzento, apenas, no sitio da pupilla, vissem coisas do ceu, que nenhuns -outros olhos descobriam!... A sincera Antonia, que mais que ninguem -permanecia junto de Margarida, soffrera mais que os outros do potencial -ascendente. Ouvia-lhe as confidencias do pequenino coração, seguia com a -mente todas as maravilhas que ella descrevia do interior da patria -celestial, onde domina a magestade do Grande Deus, no meio do explendor -e das harmonias dos anjos, archanjos e seraphins. Não podendo conter no -rude peito a emmoção causada por tantas bellezas, dizia-as e -commentava-as com pasmo deante de amigos e confidentes, exclamando com -toda a sua alma nos labios: «Não vedes n'isto—ó gentes!—uma santa que -ainda vos hade fazer milagres?» - -Era realmente o que todos viam, com verdadeiro jubilo e devocção. Já na -mente collectiva, o alto problema da santidade de Margarida se resolvia -e fixava. Correu d'isso o clamor e a fama, com a velocidade dos ventos -que varrem nuvens do céu e não tardou que se referissem resultados -beneficos de supplicas que Antonia lhe levara. Ainda sua mãe procurava -no valimento celestial de patronos afamados meio de lhe restituir a -vista, e já Margarida era grande protectora de infortunios alheios, -juncto do Altissimo. Antonia que appresentava em segredo os pedidos de -suas comadres, recebia os agradecimentos e tambem se engrandecia aos -olhos do povo, com o seu nome envolvido em assumptos de tanta maravilha. -Não tardou que aos ouvidos de D. Claudina e de João da Costa chegassem -os côros dos favorecidos, já com novos pedidos e rogos instantes. Não -poderam obstar, tambem, a que pessoas gradas se viessem ajoelhar juncto -do leito da creança, fazendo-se directamente ouvir nas suas queixas e -tocando-a nos magros dedos com o melindre com que se devem tocar as -coisas divinas. Esses que de novo chegavam, ao verem-lhe transtornada a -formosura, não recebiam desagradavel impressão, não achavam aquillo -hediondez, antes para elles se confirmava a opinião de que Deus -escolhera Margarida, para entrar no seu côro celestial de Virgens, e que -para a separar do mundo sensual e peccador, se servira d'um meio que -para muitos pareceria infortunio, mas que fôra na realidade Grande -Ventura. Assim se consolavam os corações dos amargurados paes, que -n'estas palavras encontravam compensador lenitivo. - -Haviam-se passado dois annos sobre o inolvidavel dia da catastrophe. A -casa de João Costa estava sempre cercada de gente devota, que vinha -abrigar-se sob a influencia benefica de sua filha; á capella concorriam -offerendas que depositavam aos pés da padroeira, com a ceguinha irmanada -no nome e no celestial prestigio. Até esta epocha raras pessoas haviam -sido admittidas á presença da piedosa creança; porém augmentando os -pedidos vehementes e não podendo ser contida a onda que se avolumava, -necessario se tornou adoptar o expediente de Margarida assistir, -domingos e dias santos, á missa da casa, onde os interessados podiam -concorrer a contemplal-a e impetrar directamente o seu valioso auxilio, -perante os altos julgamentos divinos. Para melhor ser vista collocaram a -cadeira em que a assentavam juncto do altar, do lado do evangelho, -voltada para o officiante. - -Assim todas as pessoas, recolhidas na sua fé, lhe podiam dirigir -silenciosas preces, levantal-as fervorosas durante o santo sacrificio. -Para a não fatigarem, pois a sua fraquesa era ainda grande, só áquelles -que para isso tinham poderosos motivos, se consentia que no final da -missa lhe beijassem o longo rosario e as santas reliquias que trazia ao -pescoço. A esses dizia ella palavras consoladoras de promessa; e -maravilhava aquella memoria, que a cegueira tinha tornado mais firme e -vidente, pois aos antigos conhecidos mencionava circumstancias da vida e -os nomes dos filhos, especialisando cada coisa nas suas referencias. -Aquella voz encantava, era carinhosa e suavissima como as dos coros -sagrados, que se ouvem em sonhos. Melodia que vinha do alto, as palavras -que proferia eram recolhidas com avidez, uncção e respeito. A todos -promettia incluir nas suas orações ao Senhor, e com tal voto lhes lavava -o coração dos sentimentos maus e peccaminosos, que por desventura n'elle -tivessem medrado. - - - II - - -Os paes de Margarida já pareciam conformados e até orgulhosos de sua -filha. Seguiam o movimento geral das opiniões, admittiam-lhe a santidade -e o poder sobrenatural, que sobre ella tivesse vindo como emanação de -Deus, n'esse dia para sempre memorado da catastrophe. A Providencia -impõe os seus designios aos homens pelos modos mais contraditorios: com -uma penna d'ave mata, com um raio póde ressuscitar. Havia conformidade -na crença geral: a cegueira de Margarida era irremediavel por ser de -origem e vontade divinas. O não terem sido escutadas as supplicas -endereçadas por intermedio dos mais famosos santos conhecidos, era prova -e signal de que deviam submetter-se ao querer do Altissimo. E por -ultimo—opinavam os confessores—o dom de santidade em vida, não vale mais -do que a maior realeza da terra, ou do que todas as realezas da terra -junctas? - -Concordavam e acreditavam-n'o os submissos paes, sentindo-se até -enternecidos por haverem dado o ser a Margarida, ainda que se -reconheciam differentes d'aquella carne, que depois que recebera o -divino sopro, era de razão que tivesse mudado de natureza. Notavam -tambem que Margarida vivia de cada vez mais encantada com os doirados -quadros da sua imaginação, que lhe antecipavam a Bemaventurança, á -morte. Tudo que dizia na sua voz dulcissima, encanto de todos os -ouvidos, era risonho e alegre: via-se que d'uma grande desgraça, sahira -a suprema ventura, a sublime pacificação da alma. Que encantadores -esmeros de sentimento Margarida tinha para seus paes! E elles, os -ditosos, escutavam-na, como se percebessem falas de anjos, ou sons de -harpas divinas a desferirem hymnos no espaço! Tudo correu santamente em -dois annos de vida gloriosa, que junctos aos dois primeiros de vida -atormentada, formavam os quatro annos de reclusão, tanto de Margarida -como de seus paes e de Antonia, que até os preceitos obrigatorios da -religião satisfaziam na capella da casa. D'isto resultou que uma funda -anemia, acompanhada de dôres craneanas e insomnias perturbadoras, se -apoderou d'aquelle pobre e implume corpo. Os medicos impozeram então a -necessidade de passeios ao ar livre, que a creança respirasse brisa -balsamica de montanhas e pinheiraes. Era egualmente indispensavel a luz -directa do sol para se não estiolar e morrer a mimosa e tenra planta. A -ella mais do que a todos custou esta ordem dos medicos, pois todos e -ella se tinham habituado a este existir sereno de vida santa, em -convivencia de imaginação com o Ceu, de que Margarida dizia coisas de -encantar. Antonia, tambem habituada á clausura da sua menina, vivendo -sempre na contemplação do ente raro, que era o maior louvor do seu leite -abençoado por Deus, arremetteu em palavras contra o mandado dos -facultativos. Temia dissipar-lhe o encanto divino, entregando-a á -convivencia de todos que lhe quizessem falar nos caminhos por onde -passasse. Comprehendia que assim já não a podia conservar tão intima, -nem tanto para si. Era o egoismo humano a rebentar no mimoso jardim de -sentimentos tão elevados...—a rude Antonia apavorava-se com a idéa de -que aquelle affecto, que ella creara com uma sugeição e uma dedicação de -tantos annos, podesse diminuir. Mas tanto ella como D. Claudina e João -da Costa, porque amavam incondicionalmente Margarida, era justo que se -opposessem ao parecer dos medicos e assim consentissem que se esgotasse -esse precioso e delgado fio de existencia, que em tamanho preço tinham? -Não, até o proprio egoismo, coisa diversa aconselhava, pois a separação -que a morte carnal viria definir, ser-lhes-hia milhões de vezes mais -custosa do que o era a cegueira, quando a julgavam uma fatalidade. -Acceitaram assim, o facto, tomando-o como todos os demais conselhos -attinentes á existencia de Margarida, pois os julgavam de inspiração -divina, por tenderem a não enfraquecer o tenue vigor d'aquelle fragil e -delicado corpo. - - * * * * * - -Estava-se na primavera: nos valados rebentavam as flores, os gommos -enfeitavam já as arvores despidas e tristes. Tempo alegre e soalheiro, -atmosphera odorifera e excitante. Iam pelos caminhos pedregosos da -aldeia, á procura de pontos altos, onde corresse viração. Margarida -desaprendera de andar, trocava os pés como quando d'um anno principiara -a correr na sala, queixava-se de que as pernas lhe não podessem com o -corpo. O vestuario, apesar de reduzido ao minimo de agasalho, era-lhe -d'um peso incomportavel. Fatigava-se e pedia frequentes repousos nas -bordas da estrada, em muros baixos e sobre as pedras avulsas que -encontrassem. Seus paes, ou Antonia, levavam-na pelo braço como uma -convalescente, sentindo-lhe o contacto do corpo, leve como uma penna. E -assim parecia pessoa vulgar que viesse trazer saudações á luz, -amando-lhe o explendor; que viesse visitar a paisagem que tencionava -gosar longamente. Cada dia seguiam destino differente; mas sempre para o -alto d'onde se descobrisse o fertil e carinhoso valle. Após os primeiros -passeios, sentindo-se mais vigorosa, pois tinha menos dôres e somnos -mais tranquillos, Margarida, n'um resurgimento de memoria, é que -mencionava os sitios que preferia visitar. Parecia este o caso trivial -d'um ausente de muitos annos, que tornasse a viver nas paisagens -queridas da infancia e procurasse confrontal-as com as sensações -d'outr'ora... Passava-se n'aquelle cerebro um trabalho lento de -rememoração, uma reviviscencia psychica. Nos pontos elevados, onde a -respiração é mais livre, larga e substancial, todo o corpo se lhe -aerificava, conhecia-se ligeira como qualquer ave voando. -Amplificava-se-lhe o peito; excitada pela fragancia da brisa fresca e -alpestre, vinham-lhe assomos de enthusiasmo, extasis de commoção perante -o renascimento das plantas, a côr afagadora da verdura, que não podia -apreciar com os olhos. «Como estão bonitos os campos!—exclamava. Para -ali o Ramisco, para acolá a Cerdosa, em frente Refuinho! Como estão -bellos estes campos já semeados, as arvores em flor, os bois a pastar -nas hervas!» - -Parecia que tinham vista aquellas pupillas opacas, mas illuminante, como -dois brancos seixos no fundo de limpida corrente. Se ellas estavam sem -movimento, presas ao sol, o rosto de Margarida adquiria a inspiração do -dos santos nos extasis contemplativos da magestade divina. Esses globos -de leite coalhado, no meio das serziduras das feridas, eram duas -candidas cecens em terreno arenoso. O riso, meigo e attractivo, mais -bello do que o das rosas ao abrirem, illuminava-lhe os sentimentos. As -falas murmurantes, como agua correndo em regatos, passavam nos ouvidos e -eram gorgeios de ave: «Oh! que bom cheiro o das serras e dos campos, -como é suave o aroma das flores, minha mãe!» «Não sentes os passaros a -cantarem nos arvoredos, querida Antonia?!» «Quando iremos nós ao -Ramisco, meu pae?! Ainda voltará, o tio Frei Jeronymo, á sua casa de -Preste?»[1] - -Falando assim quedava-se silenciosa, rosto erguido ao ceu, a expressão -vaga de cegueira suspensa sobre os campos da veiga, que se alastrava no -sopé da montanha. Este goso espiritual que se adivinhava dentro d'ella -ao contemplar o mundo material com a vista da memoria, enchia de prazer -os carinhosos paes, que tinham n'esta filha um thesouro celestial, um -tabernaculo de coisas puras e santas. Tão habituados já andavam a -consideral-a um ser superior á misera contingencia humana, a ver-lhe na -vida da alma uma vida transparente e etherea, que o doloroso -acontecimento que a cegara, de desventura se havia transformado em obra -de graça, pela santidade que lhe trouxera. Acreditavam piamente n'esse -divino dom que sublimara aquelle corpo enfesadinho e anémico, que -espiritualisara, com belleza nova, aquelle rosto transtornado pelas -manchas de cicatriz, que dera áquelles olhos a visão de coisas sublimes. -Enobrecia-os esta ligação carnal com quem já em vida pertencia ao Ceu. -Por isso cercavam Margarida de esmeros e delicadesas devidas ás -entidades superiores á rudesa commum; pois que essa parte material do -ser que nutriam, tocavam e aconchegavam era apenas condicção transitoria -de passagem no mundo d'uma alma immaterial, já moradora dos paramos sem -fim, em convivencia de Bemaventurados. Aquellas imaginações recreavam-se -em acompanhar Margarida a esses mundos d'Além, onde presumiam que ella -ia nos periodos de somno. Se ao acordar pronunciava palavras vagas de -sentido obscuro, n'isso encontravam o final das palestras que tivera com -os anjos, seus irmãos. E como vereficassem que o seu falar era mais -elevado e inaccessivel, quando rodeada de muitas e muitas flores, -traziam-lhe diariamente molhos das mais raras embellesando-lhe assim o -quarto, como se fôra uma egreja. Era apenas uma antecipação das -homenagens que de futuro lhes seriam rendidas, pelos numerosos crentes -que se acolheriam á sua protecção. Para todos era de saber conhecido, -que os santos apreciam muito os subtis aromas das plantas, que são -essencias evolando-se ao ceu e excitam a imaginação, para comprehender -melhor o sublime e o celestial. E nem os conselhos dos medicos tinham -auctoridade para impedir que Margarida vivesse constantemente respirando -os delicados venenos, que lhe proporcionavam noites deliciosas de -encanto em que a mente, ebria de goso, se lhe alargava em quadros -deslumbrantes. Accentuavam-se-lhe, por isso, as turbulencias do coração -e o depauperamento organico; porém o seu querer era terminante e -exigente, para que a não separassem das suas queridas flores. -Comprehendia bem que eram ellas que a ajudavam a levantar a alma em -preces fervorosas, e que lhe incendiavam a mente em extasis divinos. - -Áquelles olhos que não viam, patenteava-se a celestial morada n'uma luz -luarenga sempre egual. Mais que isto, os seus ouvidos escutavam n'esses -instantes singulares, córos angelicos, em que a toada longa e plangente -era como um balsamo, em que a alegria tomava fórma serena e augusta. E -todos comprehendiam este viver de alma superior, esta sublimação dos -sentidos para definir coisas ethereas, a descoberta do mundo dos -encantos feita por uma creança em quem laborava a vontade de Deus. Esse -dom subtil para comprehender era decerto a parte mais bella de tão -gloriosa cegueira e para lh'o conservarem havia sempre abundancia de -flores em volta do pequeno leito de Margarida. De longe e de perto -chegavam offerendas copiosas—collocavam-nas em vasos, como nos altares, -em açafates como aos pés da Virgem, no oratorio, em cima da commoda e -juncavam-lhe com flores a propria coberta, que se lhe ajustava ao corpo -doentinho. Assim podia ella sentil-as, com os magros dedos apreciar a -maciesa das petalas, aspirar-lhes com mais avidez os energicos perfumes. -E que riso de expressão tão estranha, illuminava aquelle semblante -disforme, quando com o seu fino tacto, Margarida adivinhava as flores -que ali tinha e as combinava em ramos e capellas, que pessoas de olhos -sãos não saberiam entrançar com semelhante engenho! Se punha na sua -propria cabeça essas corôas que fazia, todos notavam, quanto se parecia -com as santas adoradas nas egrejas! Se dizia palavras de sentido -transcendente, todos julgavam escutar sons que sahiam de mysteriosas -nuvens. E ainda que fossem coisas que não comprehendessem, tal era a -suavidade encantadora d'aquella voz incomparavel, tal o encanto musical -da sua pronuncia maviosa, que os ouvidos profanos se sentiam -magnetisados e as imaginações dos que escutavam iam voando, voando -sempre, seguindo-a entre estrellas, n'uma região infinita e doirada pela -vista fulgurante dos seres perfeitos e bellos que a habitavam. Aqui era -o paiz encantado da visão e do mysterio, n'elle habitam entes -immaculados e perfeitos! Vivia-se d'este modo na habitação terrena, -fluctuando nas azas da maravilha, creada hora a hora. Uma continua -apotheose d'um sonho, que só a crença na vida eterna podia gerar!... - -[1] _Amores, amores..._ - - - III - - -Porém o estado melindroso da saude de Margarida aggravava-se de cada vez -mais. Os facultativos que a vigiavam com a sua experiencia, assignalavam -os progredimentos da molestia, cuja historia conheciam. Nunca -funccionara bem aquelle pequenino coração: nos primeiros annos de vida -fôra excitado pelos estovamentos dos brinquedos infantis e pela -insaciabilidade da creança mimosa, que dava azas á imaginação inquieta; -no terrivel dia da catastrophe quasi se quedara preste, talvez que no -proposito de nunca mais funccionar, mas recomeçou o seu labor; no longo -periodo de soffrimento, que se seguiu, teve alternativas de resignação e -desesperos, desalentos e esperanças vivas!... Os carinhos maternos e a -dedicação nunca desmentida de Antonia apasiguaram-no e fizeram abrir na -mente de Margarida os alvores d'uma aurora. O tempo trouxe o desengano, -a certeza e o habito da cegueira, e o pequenino coração adquiriu -definitivamente conformidade para o infortunio, n'uma submissão aos -ditames de Deus, propria dos eleitos tocados da divina graça. Abrira-se -para elle uma existencia nova, adornada de bellezas e de encantos: eram -explendores do ceu, não comparaveis aos terrenos, que são mesquinhos e -transitorios. Tudo á mente vinha do coração, d'esse coração combalido, -improprio para a vida commum, e no qual a morte se aninhara como em casa -propria. Mas no rosto cicatricial em que os olhos baços se moviam como -duas bolas de jaspe, despontava a luz que illuminaria a Margarida o -caminho de Bemaventurança e ella desejava e não temia o final dos seus -dias contingntes. No som da voz melodiosa, como será a dos anjos, e no -sentido das palavras que pronunciava, já se reconhecia essa levantada -aspiração, esse sentimento do divino, que linguas vulgares traduzem por -santidade. Caminhava esta pobre existencia corporea abordoada a um -coração doente e não podia prolongar muito a sua jornada. Margarida -acamou de vez e no aconchego do quarto concentrou-se na paixão dominante -das flores, d'esses aromas que lhe povoavam a mente de sublimes visões e -lhe faziam antegostar o ceu. Despertara-se-lhe, primeiro, este amor, nos -passeios aconselhados pelos medicos para se robustecer, agudara-se -depois, na existencia da sua mente recolhida em convivio de anjos. As -flores são bellas e assim como em vida lhe adornavam a paisagem da -morte, depois lhe enfeitariam a sepultura. Morte e sepultura, idéas -risonhas, que assignalariam o seu voar definitivo á patria celestial. -Não as chamava, estas escuras imagens, para não ulcerar os corações de -seus paes e de Antonia, a quem o momento da separação custaria, ainda -que a vissem erguer-se sobre nuvens á gloria de Deus. Porém os seus -ouvidos apurados já sentiam os passos magestosos da Morte, que vinha -n'uma comprida estrada enfeitada de todas as galas, juncada de palmas -victoriosas, acompanhada de musicas alegres. Festa superior á da entrada -da primavera, nos campos e nos montes cobertos de boninas, com o ar -empregnado de balsamos humados da terra, a omnipotencia da luz descendo -do sol para tudo engrandecer! O coração doente consolava-se com os -aspectos d'esta vida sonhada, alagava-se n'uma paz doce, larga e -consoladora, que era um vislumbre da que se gosaria na presença de -Deus!... - -Por isso ao presumir proximo o seu ultimo dia, sentindo por adivinhação -que a alma se ia desprender do corpo em que reinara, que a materia -resignava a força que a enobrecera, é que pedia mais flores, muitas -flôres para embebedar com aromas a imaginação. Tinha a cama de virgem -sempre coberta de rosas, de açucenas e de todas as flores campestres de -belleza tão captiva e simples, de perfume tão casto e enebriante. Quando -adormecesse no ultimo somno terreno, queria que fosse entre fragancias e -côres, para nas azas d'essas coisas intangiveis subir ás alturas, onde -habitam os anjos. Foi assim que veio para Margarida a feia morte, -risonha amiga, como um carinhoso dom. N'esse dia assignalado -cercavam-lhe o leito todos os queridos affectos que no mundo tivera. O -bom cura Carvalhosa, de estola branca e oiro sobre a alva sobrepelliz, -dizia-lhe em voz de uncção, palavras solemnes de esperança e ventura. O -rosto sereno e quasi risonho do sacerdote espalhava no quarto, que era -um sanctuario, coragem e tranquillidade, em todos os espiritos. Os paes -de Margarida e Antonia ajoelhados aos pés da cama, voltados para a -Virgem glorificada entre flores e luzes, no oratorio, tinham as faces -innundadas de lagrimas silenciosas e votivas. Outras pessoas intimas, -amigos e parentes, seguiam este ditoso despedir d'alma ao despegar-se do -mundo. A illuminação astral do rosto da moribunda, com os olhos gelados -a procurarem claridade n'uma risonha ancia de sublime, a todos animava. -Parecia-lhes este morrer, antes uma transfiguração da vida: não era o -afastamento para sempre, pois acreditavam que esse espirito, que de -muito pertencia ao ceu, continuaria a velar pelos que muito amara, para -os proteger contra as miserias terrenas. Margarida entre elles, -escutaria as suas supplicas, fortalecel-os-hia nos desalentos e como -branca pomba espiritual, havia de pairar sobre o tecto que lhe abrigara -o nascimento e a morte. Aqui se lhe dispertara a alma para as coisas -sublimes, para as visões eternas; ao cahir gradual do corpo todos lhe -viram corresponder uma crescente sublimação do espirito; as suas -palavras que se adelgaçavam na fortaleza, eram de cada vez mais -cristalinas no som e tinham de cada vez maior sublimidade no sentido. É -que já as pronunciava do limiar da Bemaventurança, cujas portas se lhe -abriam de par em par. Tudo concorrera de longe, para que as lagrimas -choradas em volta d'este pequenino leito de moribunda, coberto de flores -rescendentes, fossem lagrimas mais de goso, do que de amargura, de -conformidade e não de desespero. - - * * * * * - -Rompia a tranquilla luz da alvorada d'um dia d'Abril, que promettia ser -alegre e soalheiro. Estava-se na mesma semana de Paschoela na qual, -annos antes, começara o glorioso martyrio de Margarida. Havia cá fóra as -pompas da natureza, a reviviscencia da terra subia ao azul em hymnos de -aromas e cores. A doentinha chamara para juncto de si seus paes, -Antonia, e os parentes mais chegados, as de Refuinho e as do Ramisco. -Com uma voz que era um cicio de resa, de todos se despediu com palavras -confortativas, de tanta elevação e carinho e santidade, que bem se -comprehendia que não fosse um espirito da Terra, que n'ella vivesse. Com -os dedos magros de santa deixava a cada um a lembrança d'uma flor, -beijava, amorosa e humilde, as mãos de seus paes e do cura, -sorrindo-lhes com os olhos cegos.—E rematando a vida disse: - -—Pedirei ao Senhor, por todos. Perdoem a quem os fez soffrer!... - -Rebentaram torrentes de lagrimas e córos de soluços, quando viram que -não mais pudera falar, e que reclinara de vez a resignada cabeça no -largo travesseiro... Começara um longo e infinito somno: o rosto d'uma -serenidade angelica parecia formoso e expressivo como nunca fôra! Ainda -respirava o balsamo das plantas odoriferas, os brancos dedos ainda -procuravam o setim das petalas de rosas e cecens; mas aquella -imaginação, aquella alma diluia-se na amplidão infinita, subindo ao -espaço como um subtil perfume. Margarida repousava na paz eterna do seu -Deus! Terminara o ultimo anhelo do coração. - -—Está morta—disse com sentimento grave o medico pousando-lhe a mão na -testa. - -—Está viva—pronunciou como em sonho, o padre Carvalhosa... - -Lisboa, Abril de 1899. - - - - - PASTORAL - - - I - - -As cabras e as ovelhas, iam a meia encosta, todas n'um carreiro, como -formigas. Tinha sido longa a noite d'abstinencia no curral e pelo -caminho, ás furtadellas, aboccavam as hervagens avulsas, ruminando-as -sofregamente. O Rabicho, sempre adiante, como explorador. Vivo e -esperto, n'um relance conheceu a impaciencia da Tonia, por não andar -mais depressa. «Lá p'ra riba, cão!»—gritára-lhe a pastora, e logo elle -subiu a um penedo, deixando passar todo o rebanho, que depois impelliu -para a frente, com duas boas torquezadas de seus dentes. Os animaes -correram á porfia, vencendo-se uns aos outros. A rapariga ficou -distanciada, a fiar a sua lã, cuja tarefa, para um dia, levava na abada -junta com o presigo. E para não auctorisar novas investidas do rafeiro -berregou-lhe de novo: «Tó, dianho! tens muito dente!...» - -N'esse dia, encaminhava-se ella para o Guidon. Perto de lá, na bouça de -João-Paz, deixára escondida a tigela das sopas de leite. No caminho -encontraria o Chico, pastor seu amado, e ambos juntos e unidos iriam -espreguiçar-se por baixo das fragas ou no interior dos frescos giestaes. -O Guidon, quando o maio é soalheiro e formoso, tem as melhores pastagens -dos arredores. O tojo, nos sitios onde se fez queimada, borbulha, tenro -e verde, como herva nos lameiros. Os gomos d'urze parecem microscopicos -pampanos. O rosmaninho, o trevo, o rico e nutriente feno desabrocham em -aromas e enfeitam a serra. Leite filho d'estas plantas silvestres, -delicadas e cheirosas, é o mais gostoso e substancial. Por isso, ao -pasto das terras baixas e frias, que não sobeja da boiada, n'esta épocha -de lavradas, é preferido o dos pincaros, alegres e soberbos. Coisas da -bruta experiencia, que os seculos teem garantido. - -Chegado o rabanho ao sitio onde na vespera o lobo roubára um timido -cordeiro, a ovelha-mãe, na expressão de saudade, balou dolorosamente. Ao -longe respondeu-lhe a voz tremula d'outra ovelha, como se fôra um echo. -A pastora logo correu ao alto para alcançar mais com a vista. Imaginára -estar p'r'áli aquelle a quem se votara. Ia ser um dia festival, ao -encontrarem-se na suprema mudez da serra, protegidos do calor á sombra -dos piornos, contemplando-se n'um vago absoluto. Em taes momentos -accelera-se a imaginação; os ouvidos inattentos ensurdecem; a mente -fica-se n'um pasmo; o mundo figura-se um lago tranquillo e morto; o azul -do céo, onde se perde a vista, é d'um ferrete insondavel; o coração bate -forte e rapido, como um bom potro, galopando solto na campina!... - -Porém, o que veria a Tonia de suspeito e desagradavel?! A expressão do -seu rosto suave e louco, carregou-se de sombras; o gesto foi de -arremesso e contrariedade; os olhos faiscaram de subita colera!... - -Ah!... Em vez do Chico, appareceu-lhe o outro, o Russo, um grande e -forte, de cabellos vermelhos e physionomia diabolica. Coruscava-lhe a -vista inquieta, pequeninas sardas picavam-lhe a pelle, a cabeça era uma -tormenta de fogo! - -Quão differente o seu namorado, rapaz franzino, d'aspecto juvenil, rosto -comprido á Nazareno, cabellos negros e mal cuidados, formando sobre a -fronte um tufo revolto d'anneis. D'aquelle todo sahia a expressão que a -enlevava; da expressão desdenhosa ou indifferente a superioridade com -que a submettera; das palavras simples, a musica dos seus ouvidos e da -sua alma inteira. Como era bello e encantador de costas sobre os -penedos, a contemplar o céo n'um sonho de poeta! Como era amoroso e -vago, quando tocava na flauta, coisas que não aprendera com viv'alma! - -O Russo decerto lhe queria com mais gana, com mais aquella, bem lá do -fundo. Ao enxergal-a, desabrochando com a aurora no alto do monte, como -subita e incomparavel flôr, todo se alvoroçou. Nos olhos e em todo o -rosto mostrou um pasmo tonto, um riso sem valor, como aconteceria ao -cego, cuja retina morta sentisse inesperadamente a gloriosa illuminação -do sol. Correu para a abraçar no primeiro impulso; mas logo estacou -contemplou-a a distancia. Ella, no alto onde se quedara, de roca á -cinta, o lenço claro apanhando-lhe os cabellos, o recorte da sua figura -desenhando-se no ar, era a pastora das lendas, calma e prophetica. O -Russo percebendo o animo hostil com que a Tonia o recebia, -accendeu-se-lhe n'alma a raiva e o ciume: - -—Querias ir só com o outro? Não, que não!... - -—Bem se me dá...—retorquiu desdenhosa. Tempo perdido, meu rico! - -—Que lh'achas tu? Um lesma, um gomitado. Cá, sou um home. Elle... - -A Tonia espertou-se: - -—Mal comparado! Tu és um diabo, um porco bravo. Estafermo! Elle é lindo -como um anjo do céo! - -A furia do Russo cresceu: - -—Sou capaz de o esborrachar na unha, como um piolho, demonios me nunca -levem! - -Tinha lagrimas de raiva, ao pronunciar a jura. Era paixão antiga e -abrazadora. Desde os quinze annos, ainda aquelle corpo de rapariga era -como um castanheiro novo, já elle a via constantemente na transparencia -dos luares outonaes. As moles graniticas, penduradas eternamente dos -pincaros, e resequidas pelo sol d'um infindavel agosto, não teriam mais -firmeza, nem mais calor do que elle. O ciume era no seu corpo um moer -lento e occulto, tal o fogo que mina a urze escondida na terra para a -transformar em carvão. Condemnado por aquella repulsa constante, -sentia-se desprezivel e desejava morte, em que soffresse muito. Comtudo -não podia despegar a propria vida d'aquelle sonho malaventurado. Em -presença da Tonia, a natureza ruiva e colerica aloirava-se-lhe n'uns -cambiantes meigos e suaves. O mais tenro anho das suas ovelhas, não -tinha para quem o aleitava tanto carinho e agradecimento, como elle -mostrava áquella rapariga, n'uma submissão de coisa bruta. Comtanto que -o amasse, se a sua vontade d'ella fôra vêl-o apodrecer no fundo d'uma -córga, para ser alimento das aguias e corvos, ir-se-hia lá deitar -voluntariamente e nunca mais comeria! A preferencia pelo outro é que o -humilhava na sua consciencia de homem forte e magnifico. Quedava-se a -scismar de noite no que teria de superior, esse engelhado, tão magro e -pequeno como uma lavandisca. O corpo não, que o seu era grande como uma -torre e devia inspirar sentimento de força. A paixão que lhe refervia lá -dentro, longe de ser mollanqueirona, mostrava-se vehemente e feroz, tal -a das lobas a defenderem os filhos. Aquella rapariga airosa, divina -imagem de qualquer santa, voz musical como a dos passaros, tranquillo -olhar como o da lua, aniquilava-o com a sua nervosa malquerença. Até -ahi, nada a pudera abrandar: nem lagrimas soluçadas de bruços sobre os -penedos; nem supplicas mais ferventes do que orações; nem juras e -promessas inabalaveis como o céo. Diante das vontades e caprichos da -pastora, era humilde e cego. Quantas vezes lhe ficára com a rez, para a -deixar correr monte, talvez á procura do outro?! Quantas vezes lh'a fôra -buscar ao curral e lh'a apascentara durante dias, para que ella fosse ás -romarias, com os ranchos que passavam?! Até sacrificava o seu rebanho, -pois dirigia o da Tonia para as melhores pastagens. Se tinha leite novo, -logo lh'o offerecia como um presente; se encontrava tortulhos -assava-lh'os e ella comia-os: para que não bebesse agua dos ribeiros, -onde ha porcarias e animaes mortos, ia-lh'a buscar longe, trazendo-a na -sua tigela, escrupulosamente lavada, como para uma rainha. Quando a -Tonia acceitava de boa cara estes serviços, já o Russo se entendia muito -bem pago. As recusas ou o mau modo, é que eram fundos golpes no seu -torvo coração. - -Vivia uma vida negra e de sobresaltos continuos. Passavam-lhe incendios -diante dos olhos e a sua imaginação ficava a trabalhar em desassocego. A -fatidica _Pedra-suspensa_ (essa antiga ameaça!) parecia-lhe, ás vezes, -que se ia desprender lá do alto, rolar pelos montes e destruir o mundo -inteiro! Oh! visão amedrontadora de todas as existencias!... Só para a -afastar, quantas vezes elle consentira o Chico deitado ao lado da Tonia! -A moça fiava a lã da tarefa, cantava ou escutava-o enlevada. O -magricellas, o ninguem, de papo para o ar, não tratava da rez. E o -desprezado é que fazia o serviço de todos, guiando caridosamente as -cabras e as ovelhas para a sombra das ramadas nos grandes calores, e á -bebida antes de as recolher. Viviam assim pelos montes, perdidos entre -tojaes e piornos, dormindo no verão debaixo das lapas e dos azevinhos. -Havendo satisfação reciproca, tambem gostava de ouvir o tocador de -flauta, que sabia muitas modas tiradas da sua cabeça. Era feliz nos -momentos em que morava longe o ciume, isso a que não sabendo dar o nome, -lhe queimava o peito, como tição ardente. Esquecia o desamor da Tonia -n'essas horas gastas em somno tranquillo. A vida era visão suspensa dos -ramos dos carvalhos, ou fluctuava brandamente como as folhas outonaes ao -sabor d'um murmuro vento. Não havia quisilias, só desejo de felicidade, -socego e gozo, em ventura calypsiaca. Raramente, porém, se passavam dias -assim completos de ventura!... - - - II - -Já tinham caminhado meia hora, n'um silencio inconvivente, quando -chegaram ao ponto d'onde se descobria a Pedra-suspensa. Era o objecto da -lenda mais famosa e conhecida nas povoações em redor. Visto de certo -lado, aquelle granito, não se lhe encontrava o ponto de repouso, na lage -subjacente; parecia um destaque de nuvem, no céo azul. Contavam, sempre -em voz de medo, que logo no principio dos seculos, um mau genio e feio -gigante, ali a depositara, como eterna ameaça a peccadores; porque a sua -queda assignalaria o começo do fim do mundo. A instabilidade da -Pedra-suspensa, tão reconhecida era, que ninguem duvidava de que uma -creança de cinco annos a pudesse derrubar. Grande milagre, não a terem o -vento e os trovões arremessado pelos espaços fóra!... O respeito que -esse granito infundia, era o de um idolo vingador, ameaçando, dia e -noite, as aldeias e o mundo!... Todos os dez annos se formava grande -procissão de penitencia, com gente que partia de sitios mui distantes e -ali se reunia afim de implorar misericordia. Recebida da tradição essa -pratica, executavam-n'a com fervor d'alma religiosa e temente. Os homens -ciliciavam as carnes, as mulheres erguiam clamores, as creanças berravam -de amedrontadas, os bacamartes de bocca de sino troavam pelos caminhos e -por entre os penedos... tudo para distanciar o pavoroso castigo!... - -Depois das preces, ficariam acalmadas as justas cóleras divinas? Ninguem -o assegurava. A intangivel crença em que a famosa pedra cahiria, para -assignalar enormes desgraças, conservava-se viva e forte. Poucos tinham -animo para a encarar tranquillos e serenos. Ninguem ousava -approximar-se-lhe, muito menos tocar-lhe, com medo da responsabilidade -n'um cataclysmo. Seria provocar inconsideradamente as cóleras do céo. -Uma penha que bastaria o roçar d'uma corça para a fazer cahir! Pairava -assim no ar, suspensa como uma aguia, por determinação da vontade -divina. A não ser isto já as bategas da chuva, o impulso dos vendavaes, -o degelo das neves a teriam arrastado. Pois não era um verdadeiro -milagre a sua estabilidade?!... - -A idéa de a escorar, diminuindo-se as probabilidades da catastrophe, -fôra sempre repellida. Significaria desconfiança no alto poder que ali a -conservava. Melhor é deixar o destino trabalhar por si. Está lá em cima -quem tudo regula. O que tem de ser faz muita força... Pensavam d'este -modo em palavras; mas no fundo, n'esse intimo sentir que até parece -esconder-se á Providencia, se elles pudessem calçar a pedra para não -cahir!... Contra as imprudencias brutas dos gados já se tinham -prevenido, as gentes supersticiosas, sebando-a em volta com ramos e -tojos. Porém as aguias, que vinham de longe, no seu vôo arqueado e -solemne ali poisar? E os lobos famintos, que preferiam aquelle sitio -para comer as suas prêsas? Só milagre e grande milagre é que a sustinha -n'aquella direitura. Acreditavam-n'o camponezes e serranos, todos os que -se desbarretavam e persignavam murmurando qualquer reza, mal a viam. Foi -assim que procederam a Tonia e o Russo. Ambos quedos, ella com o fuso -parado, elle com o barrete na mão, ciciaram orações. Mas o pastor, logo -depois ameaçou a rapariga apontando: - -—Vêl-a? Ha de cahir. O mundo acaba-se e tu não serás p'ra mim, nem p'r'ó -outro. - -—A Senhora da Peneda não ha de deixar—disse confiada. - -—Sou eu que a empurro. Verás. - -—Cala-te, hereje, que t'abro a cabeça. - -Irada, com os olhos em chamma, arremetteu-lhe com um pedregulho. Havia -ancia de raiva dentro do seu peito soberbo. O Russo não lhe pôde -supportar a vista de cólera e desprezo; curvou a fronte, os olhos -marejaram-se-lhe. O seu destino era peor que o dos condemnados do -Inferno. - -—Perdôa, não olhes assim! Tu é que me fazes dizer todos estes peccados. - -—Tenho culpa de não teres temor de Deus? Estás na caldeira de -Pedro-Botelho, vestido e calçado! E é bem feito!—accrescentou vingativa. - -O cabreiro queria humildar-se até ao rasteiro das cobras e lagartos, só -para lhe merecer uma sombra de perdão. Affligia-o mortalmente a idéa de -que mais uma vez desagradara á Tonia. Como, logo adiante a rapariga -vendo umas cabras se principiou a affirmar, para descobrir o Chico, foi -elle que, no intento de se reconciliar com a pastora apontou: - -—Está acolá, em cima do penedo... - -—Assobia-lhe para vir p'r'áqui. - -—Bem nos vê, se quizer... - -Mas obedeceu, assobiou com os dedos na bocca. O outro não se importava, -apenas mexeu a cabeça conservando-se na mesma posição. - -—Vae lá, que vamos p'r'ó Guidon,—disse-lhe a moça. - -Foi, humildemente, como um perdigueiro. Sentiu gozo em ser mandado; mas -de raiva torcia nas mãos a grossa carapuça. Distante, a occultas para -esconder a sua fraqueza, limpou duas lagrimas ao canhão da vestia. O -outro não queria ir para o Guidon, estava ali muito bem. O Russo -pediu-lhe que obedecesse, para a Tonia se não zangar mais. - -—Ora... se 'stou regalado!—respondeu o pastor. Vai tu mais ella. - -—Vem, moço—exorou o cabreiro. Olha que ella hoje, sempre te está! Anda, -levo-te a rez. - -Consentiu o Chico em deixar ir o rebanho; mas elle ficou. A Tonia não se -teve. Foi pressurosa tiral-o d'aquelle adormecimento. Com ligeiro -sorriso de meiguice, pediu ao Russo: - -—Ó aquelle. Junta-me tamem as minhas, que eu vou trazel-o. - - - III - - -E lá foi, doida, feliz, correndo de fraga em fraga. O Russo assobiou ao -Rabicho, reuniu todo o gado e partiu... Chorava lagrimas como punhos, e -voltava-se para vêr de relance a Tonia, que chamava o Chico, com acenos -e gritos. Bem se importava o preguiçoso com aquelle louco amor da -rapariga!... - -—Eh! moço! vem-te d'ahi p'r'ó Guidon. - -Elle respondeu-lhe: - -—Eh! que 'stou' qui mui bem. - -Tirou do seio a flauta e sentando-se no penedo, principiou a tocar. O -sol illuminava-o de frente, prateando-lhe os cabellos negros. O destaque -da sua figura magra e enfezada sobre o escuro penedo, fazia-se como o -d'uma miniatura em fundo esmaltado. A Tonia chamou-o: - -—Já lá vão as tuas cabras, maluco. - -Não se importava, encolheu os hombros. A musica absorvia-o -completamente, era o seu destino. A pastora, dominada por esse respeito -instinctivo e sagrado, que se deve ás coisas elevadas, parou a -distancia, para o não interromper. O Russo, que já ia longe, tambem -subiu a uma rocha com o fim de ouvir melhor. Escutava triste e -absorvido. O seu grande corpo, esbatendo-se no verde escuro do monte, -ainda ensombrado n'aquella parte, percebia-se mal, como as figuras dos -baixo-relevos, e tinha a mesma immobilidade captiva. Era moda triste a -que o rapaz tocava. Finda ella, a Tonia approximou-se quasi respeitosa. -Para subir ao penedo onde estava o tocador e arrancal-o d'ali, teve -difficuldades. A pedra era lisa e as tacholas dos sócos estavam gastas. -Mas agarrou-se a um ramo de carvalho, inclinou-se para diante... Os -magnificos e potentes quadris arquearam-se n'uma curva de mulher -completa e fecunda, creada nos caminhos pedregosos. O Chico, vendo-a no -empenho de subir, largou a flauta, tomou-a pelos braços roliços, -attrahiu-a para o seu corpo e por momentos ambos ficaram unidos!... O -Russo presenceava de longe tudo isto. Sahiu-lhe do peito um rugido de -cólera e ciume que fez estremecer as montanhas. Os seus olhos, vermelhos -de desespero, viram uma successão de calamidades sem fim, como as -descrevem os missionarios para o dia de juizo. A Pedra-suspensa -oscillara, já cahia pelos fortes declives d'um mundo em ruinas. -Ennegrecera subitamente o céo azul, reuniram-se n'um instante nuvens -prenhes de tempestades, os trovões abriram medonhas gargantas no céo de -fogo, as pupillas dos raios rutilavam, as trombetas apocalypticas -enchiam de pavor os reconcavos da terra, onde se escondiam -desgraçados!... Tudo se ia acabar para todos!... O seu corpo miseravel, -junto ao de outros reprobos, rolava pelos abysmos. A grita dos homens -era pavorosa, formando um unisono infernal. - -Isto o que viu e ouviu n'um instante aquella imaginação turbulenta. Mas -o Chico e a Tonia já tinham descido do penedo. Elles lá vinham a -caminhar, amorosamente unidos, ella apoiando-se-lhe no hombro. Riam e -folgavam, como um casal de pintasilgos em março, resumindo em si todas -as venturas pelos homens sonhadas. Ella offereceu-lhe do seu presigo uma -racha de bacalhau, que o rapaz acceitou para offerecer ao outro, que era -muito pobre, não tendo mesmo, ás vezes, a brôa sufficiente. Logo que se -juntaram deu-lh'a. - -—Toma—disse. - -—Não tenho fome—rejeitou. - -—É a Tonia que t'a dá. - -Arrancou-lh'a da mão. Estracinhou-a raivosamente com os dentes, como -faria á carne d'aquelles corpos felizes, se os pudesse trincar. -Excandecido seguiu com os rebanhos, separado dos dois. O semblante -sombrio e transtornado, impressionaria quem lh'o encarasse. Os olhos -gazeos expelliam chispas metallicas e tinham escurecido de cólera. Os -beiços tremiam-lhe como signal da sua loucura. A pastora no momento em -que se juntaram escarneceu-o: - -—Que feia carranca... Santo Nome!... - -O cabreiro voltou-se rapidamente para a aniquilar, com todo o poder da -sua força herculea. Porém ao vêr aquelle rosto sereno e risonho, só -disse: - -—Hoje ha de ser falado!... - -N'um relance pensou na famosa Pedra, symbolo de desventuras. Sahia-lhe -do semblante uma expressão feroz: no craneo aninhou-se-lhe a idéa d'um -aniquilamento geral de todas as felicidades terrenas. - -Mas a rapariga é que não estava de geito para o aturar. Conhecia-lhe a -maluqueira de bode raivoso e ciumento. Tinha meio de o curar, sem pau -nem pedra: era deixal-o ir só. Um porco bravo assim, um bruto cujo -aspecto causava medo, não servia para viver entre christãos. Fosse lá -p'r'ós lobos, que eram seus iguaes. - -Quão differente o outro, o seu querido! Timido e meigo como o cabrito -d'um mez, assobiava e cantava modas mais bonitas que as dos melros e -rouxinoes das mattas. Viver a vida com elle pelos montes, era o mesmo -que passar os dias n'um céo. Ensinava tantas coisas, que não -aprendera!... As cantigas da sua invenção produziam sempre tristeza -branda e carinhosa. Descobria nas estrellas sitios de felicidade e -apontava-os, convidando-a a voarem para lá. Podiam-se comparar os -dois?... O Russo era escambroeiro aspero que rasgava as carnes; o Chico, -ramo de giesta, bello, cheiroso, e flexivel. Por isso ella despediu o -rude cabreiro, retorquindo-lhe á ameaça: - -—Elle é isso?! Pois vae-te sósinho com Deus. Nós levamos hoje o gado -p'r'á Ralada. - -Chamaram o Rabicho e trataram de separar as suas cabras e ovelhas. O -Russo, sob o castigo tremendo, mostrava-se submisso em todo o seu corpo. -Pedia perdão, não dissera nada mau!... Se alguma palavra feia, se alguma -ameaça ou jura a sua bocca cuspira, estava arrependido. Fossem com elle -que tomaria conta dos rebanhos todo o dia. A comida para ali era a -melhor dos sitios. Encontrava-se tojo tenro, como bicas de manteiga. A -herva, apenas nascida, era a unica do appetite do gado. Havia agua -corrente para os animaes e até uma fonte para a gente... Aquelle grande -corpo, espadaúdo e alto, fazia-se pequeno com a humildade. Uma criança -mostraria mais imponencia. As lagrimas cahiam-lhe em cachos e todo elle -era uma supplica, de curvado e abatido. - -A Tonia foi cruel e inflexivel. Abandonou-o, desprezou-o como um trapo. -Disse que os não acompanhasse para a Ralada, que isso os obrigaria a -mudar. Fez-se imperiosa. O seu corpo d'ave, esbelto e franzino, teve -coleamentos de panthera. O rosto de santa transformou-se pela cólera. A -chamma do olhar e os cabellos mal juntos davam-lhe o aspecto d'uma leôa. -O cabreiro tremia de medo, a cabeça sobre o peito, os braços pendentes. -Separaram-se. Os dois lá foram, acintosamente abraçados. O Russo, -desmoronada toda a sua existencia, dirigiu-se em passo tropego, adiante -do gado, para o destino da sua má sorte!... - - IV - -Chorou longamente o seu infortunio, p'r'áli, a cara junto á terra. Do -fundo mysterioso vinham-lhe palavras infernaes, que o aconselhavam a ser -feroz e deshumano. Ergueu-se tendo o coração empedernido. Os seus olhos -enxutos, viram nitidamente ao longe a Tonia e o Chico enlaçados, -patenteando ás aves o seu amor. Era uma visão graciosa que sahia de -entre as lavaredas da colina em fogo! Á sombra da fraga, sobre a qual -estava a Pedra-suspensa, os loucos tinham-se ido deitar. Elle tocava -flauta, ella contemplava-o, com o fio da roca parado. Justiceira a mão, -que para lá os guiou!—pensou na sua rude mente o Russo. - -Desencadearam-se-lhe diante da phantasia sanguinea todas as tempestades -dos seculos sem fim. Só a grande Dôr poderia burilar n'aquelle rude -cerebro taes florescencias tenebrosas. O seu corpo levantou-se n'um -desespero formidavel. Um violento fremito rugia no interior da montanha, -chegando até ás nuvens. Era a voz torva do seu peito, a soluçar pelos -reconcavos da Terra e do Céo! - -Ia tombar a Pedra-suspensa—resolveu. - -Os seus cabellos ruivos, atravessados pelo sol, faiscavam. Idéas de -impiedade e vingança, como lh'as ensinára a religião e o ciume, -fixaram-se-lhe na fronte d'um modo definitivo. A ventura e a bondade não -cabiam na sua alma desgraçada, pois em volta tudo era escuridão e -rancor. Nem a saudade da serra que estava a florir, nem a convivencia -amoravel do gado, nem o abandono da mãe cega e pobrissima o detiveram. -Não via os _outros_ abraçados n'um gozo sem limites? Palpitando d'amor á -face do sol, pensavam acaso nas ovelhas? Que viesse o lobo e elles não -seriam capazes de o perceber!... Aquelle embevecimento reciproco, era um -peccado mortal, e nem o temor do inferno os separava! O aniquilamento, a -morte rapida era o que mereciam! Clamava do céo vingança, uma tal falta -de vergonha. - -Por isso ia elle empurrar a Pedra-suspensa! - -Doido, perdido, correu como um cabrão, de penedo em penedo. N'aquelle -peito arquejante escondiam-se sentimentos de tigre. Era um demonio -bruto; porém o instincto e o desespero tornaram-n'o sagaz. Para ser mais -ligeiro e imperceptivel, abandonou os tamancos no caminho. Uma força de -vendaval levava-o pelo ar. Podiam merecer-lhe piedade a desgraça do -mundo e a eterna condemnação de todos os homens?! Algum vivente lhe -mostrara sympathia, ou pensara em lhe prodigalisar carinhos?! O seu odio -absoluto não distinguia a justiça da perversidade. - -Já em cima dos penhascos, ao lado do rude instrumento de vingança, olhou -em volta. Um leve impulso de sua vontade bastaria para se produzir o -formidavel castigo. Conheceu a verdade da lenda:—simples sopro de gente -moveria aquelle penedo tamanho como elle! Um resto d'esperança, porém, -obrigou-o a reflectir. Deitou-se de bruços, arrastou-se para diante... A -cabelleira fulva e farta como uma juba, excedendo o rebordo da lage, -appareceu no espaço. Desvairaram-se-lhe subitamente os olhos:—viu com -todas as minudencias irrefutaveis, aquelle terno idyllio, que resumia -toda a sua desventura. O Chico tinha a cabeça no regaço da pastora. Ella -dava-lhe de beber agua fresca pela sua tigela de barro vermelho. Era o -quadro da Samaritana, dessedentando o tranquillo Nazareno, junto do poço -biblico, na velha Palestina. O rosto pallido do rapaz, emmoldurado em -cabellos pretos, tinha a sonhadora expressão de Jesus. Embebidos um no -outro, prolongavam a existencia, na intensidade do sentir!... - -Porém elle tambem era homem, tinha direito á felicidade como todo o sêr -vivente. Se a Tonia lhe não havia de pertencer, melhor era acabar com a -propria vida, que lhe não prestava! Havia de elle aniquillar-se, e os -outros haviam de ficar n'aquellas serras queridas? Não lh'o acceitava a -mente perturbada! - - * * * * * - -Os miseros estavam mesmo por baixo da Pedra-suspensa! A vingança -n'aquelle cerebro, tomou fórma exacta o real, sem poeira de lendas. -Podia esmagal-os, como dois sapos nojentos!... D'esta maneira, acabariam -n'um instante duas vidas incompativeis com a sua felicidade. A morte -para todos tres era uma solução de suprema justiça. A fé supersticiosa -das montanhas tinha-o abandonado; o pobre ficara só, recolhido na sua -dôr infinita! - -Mesmo de bruços, principiou a recuar. O seu olho calculador e vingativo -vira, que impellido o penedo, os dois morreriam, estreitamente unidos, -sem tempo para um ai! Havia de ser fulminante esse acabamento como o -causado por um raio de cólera divina! Poz-se em pé, sobre a lapa, a -parallelo do instrumento fatidico. Veiu de novo a visão sanguinea! O -panorama em frente appareceu-lhe envolvido em linguas de chammas! Era o -primeiro signal do tremendo castigo, ha seculos esperado! Um impulso de -cyclone dominava-lhe a vontade. Decerto era Deus que assim o mandava -castigar dois peccadores. - -Com a força nervosa e a serenidade d'um illuminado, applicou ao granito -o largo e potente dorso. Demorou-se ainda alguns instantes!... Seria -indecisão?... Era o gozo de ouvir estranhas vozes de coragem e applauso, -bramindo-lhe dentro do craneo! Em volta, já começava claramente o -desmoronamento do universo! E o impavido cabreiro, soltando um ronco -selvagem—medonho grito de féra!—tombou a Pedra-maldita! - - - V - - -Não se descollaram do ultimo beijo os dois ternos amantes. A altura era -enorme. No espaço produziu-se um som abafado e largo, que foi de -quebrada em quebrada, pulsando até ao coração da Terra! O Russo -conservou-se em cima da lage, firme, contemplativo, como o Stylita. -Parecia tomado d'assombro! Os seus olhos de louco, viram pedaços de -carne e o sangue atirados para o céo! Aquillo teria sido malvadez?!... -Arrependeu-se de subito, ou quiz envolver-se no aniquilamento geral?!... -Não poderia sobreviver a tamanho crime, ou eram os demonios que o -reclamavam, como sua prêsa?!... - -Approximou-se resoluto da borda da fraga! Em baixo o mundo cambaleante e -confuso, era um grande incendio, surgindo de trevas absolutas. -Diabolicas figuras cruzavam os abysmos, á procura de victimas e -sinistros. Gritos infernaes sahiam das boccas escancaradas dos pincaros, -como jactos de lava! Olhos vermelhos de demonios fixavam-no ironicos e -cubiçosos! Abriu os braços n'um gesto de supplica e perdão, atirou-se ao -espaço como um abutre de amplas azas e o seu grande vulto, rolando pelo -ar, parecia vir da eternidade, na primitiva condemnação! Sobre a mole -granitica impellida pelo seu desespero, esmagaram-se-lhe as carnes e os -ossos! O sangue espirrou, tingindo de vermelho a relva circumdante. Era -tudo quanto restava, d'uma paixão desesperada e selvagem!... - - * * * * * - -A manhã de primavera, tranquilla e sumptuosa de luz, alegrava montes e -campinas. Enfeitavam as encostas, o codeço e o tojo, rebentados d'entre -as penhas, cuja negrura avivavam d'amarello. As myriades de flôres dos -urzaes, formavam tufos d'aljofares e d'amethystas nas aridas córgas. O -feto novo era como uma extensão de relva, pelo verde claro. O modesto -trevo e o alegre malmequer, salpicavam a terra. Gottas d'orvalho como -lagrimas, rebrilhavam penduradas das flôres da giesta. As mattas -silenciosas iam acordando com o gorgeio dos passaros. Nos fundos abysmos -das montanhas, formavam lagos os pardacentos nevoeiros. Passado o -primeiro momento de susto, os rebanhos continuaram a retouçar nas -hervas, diante da gloria do sol deslumbrante. As aguias pairavam -magestosas, ao longe, sobre os mais altos cumes. Toda a natureza -palpitava e se engrandecia, sob a acção impulsiva do calor. Nas serras, -nas brandas, nos ribeiros, nos cabeços, nos valles... uma tranquillidade -pathetica de vida natural. Sobre os telhados das aldeias levantavam-se -os fumos domesticos, brandamente, como fumos de incenso sobre os -altares. Em volta a muda altivez da soberba e impassivel montanha!... - -Só uma voz lamentosa se ouvia na socegada amplidão: era a do rafeiro, o -amoravel Rabicho, que em redor da Pedra, chorava a pobre Tonia. - -E chorava a cortar a alma, como se fôra um christão, ganindo, uivando, -aos saltos em volta dos cadaveres!... Amoravel rafeiro, pobre Tonia, -desgraçados amantes!... Ah!... - -Lisboa—Novembro de 1888. - - - - - FOGO DO CÉU - - (_a Sousa Martins._) - - - I - - -A meia encosta da montanha subia a estrada de macadam, qual longa facha -branca collada em fundo escuro. Tarde nevoenta, atmosphera pesada e -electrica! As pessoas nervosas sentiam-se impacientes, com desejos -fulgurantes e insaciaveis de imaginações inquietas. A necessidade de -movimento, a agitação do corpo tornava-se imperiosa. Cada um procurava o -esgoto rapido da sensibilidade que o affligia, o aniquilamento do -proprio ser, com o fim de se encontrar no remanso bonançoso de uma vida -serena e repousada, como as aguas de uma lagoa. Mary logo de manhã se -levantara mal disposta, a carne em sobresaltos, uma intensa vontade de -chorar. Pediu de tarde a seu pae que a acompanhasse n'um largo passeio a -cavallo, galopando para longe, á descoberta de novas sensações, em -horisontes infinitos, onde a vista se perdesse. - -O velho cedeu apesar da ameaça de chuva. Mary precisava do rosto -açoitado pelo ar fresco, sentir o arripio do vento nos cabellos, escutar -o ribombo da trovoada desenvolvendo-se a distancia. - -Lá iam os dous, pela estrada de macadam, a par como namorados: elle com -a sua barba branca collada ao peito, Mary olho febril, o rosto em -desafogo, o véu azul fluctuando como flammula. Os cavallos ás upas, -garbosos, correndo ao desafio: _Joe_, o de D. Francisco, calmo e -magestoso; _Luck_, o de Mary, franzino, mais audaz, resfolegando -impaciente. - -—Mary. Quando vier a chuva?!...—disse o receioso velho. - -Que importava! Não lhes tinha succedido isso d'outras vezes? Era um -episodio, uma diversão da monotonia ordinaria da vetusta casa, entre -carvalheiras, com o som plangente do orgão espraiando-se sobre os campos -desertos. Os nervos imperiosos exigiam-lhe commoções, fortes balanços de -galope, sacudidellas nos musculos entorpecidos, uma boa molhadela -emfim... - -Continuavam intrepidamente para o cimo da montanha, distanciando-se do -povoado. O horisonte de cada vez mais largo, a paisagem variando em -cambiantes de luz; na ribeira os terrenos, ermos de cearas, ás arvores -tristonhas e outomnaes, os fumos domesticos erguendo-se lentamente no -ar, como louvor religioso. - -Era no mez de novembro: as folhas sêccas accumulavam-se nos recantos dos -caminhos—despresadas depois de ephemera vida, e de terem com o seu viço -de rebentos novos alegrado a encosta. Á maneira que os cavalleiros -subiam para o alto, as montanhas desenrolavam-se-lhes n'um aspecto mais -uniforme e esbatido, pela distancia de muitas leguas, como se fôra -ondulado de mar subitamente solidificado n'um instante mais calmo. Os -bosquesinhos de carvalhos, nascidos das aguas a rebentar nas quebradas, -eram nodoas attestando a sensibilidade da vida, a circulação da seiva -n'aquella aridez arrogante de terrenos ingratos, cobertos de tojo e de -alcantiladas penedias. Os campanarios destacavam-se pela brancura da -cal, tristes e solitarios, os sinos mudos. De cada vez se encastellavam -mais nuvens no horisonte, tomando aspecto torvo de ameaça. O ribombo do -trovão ennovelava por cima das cristas dos grandes outeiros. Havia no ar -um sentimento de anciedade, uma como paralysação de vida, um spasmo em -toda a natureza! Respirava-se mal, a accumulação electrica opprimia o -peito: - -—Mary; seria melhor voltar!... - -—Só até lá cima, meu pae!... - -Os cavallos excitados pela corrida, de cada vez consumiam maiores -distancias. Luck, delgado e nervoso, parecia o hippogriffo lendario, -voando por sobre geleiras, levando a vaporosa fada n'um sonho -scandinavo. Sentia a febre da mão que sustinha a redea; ao seu dorso -arqueado communicavam-se as correntes nervosas do gracil corpo de Mary. -Joe, o do fidalgo, apesar de mais pausado era valente, e acompanhava-o -garboso. - -Caminhavam subindo sempre, no parecer ao desafio com as nuvens grossas e -plumbeas, gravidas de trovões e raios, que passavam no espaço, n'uma -jornada apocalyptica. - -Para onde iriam essas nuvens de tempestade? Onde pararia Mary, loira, o -rosto animado, impetuosa, franzina, a imaginação ardente a pedir largas -paisagens, o coração oppresso a desejar atmosphera mais leve, que os -pulmões respirassem desafogadamente?!... - -Chegaram ao vertice da estrada. Para a esquerda havia montanhas sombrias -e estereis; porém era completa a solidão e o desamparo! - -Descobriam aldeias e casas, a muita distancia, n'um ajuntamento de -defeza contra os perigos dos ermos. Haviam caminhado em largo galope -além de uma hora, distanciando-se sempre do povoado. A antiga morada -d'onde tinham partido, só pelo tino acertariam onde ficava! Mary -quedára-se a olhar com ousadia, para o céu e para a terra, o corpo mais -livre, o querer amplo, a imaginação em maior tranquilidade. Esta -uniforme paisagem de serranias que se pegavam umas nas outras, com um -tom azulado e vesperal era de immensa pacificação. Porém as nuvens -caliginosas condensavam-se já perto, o regougar do trovão aproximava-se -a olhos vistos, a propria natureza parecia preoccupada, emquanto Mary -sorria deliciosamente ao céu plumbeo, ás montanhas ondeantes, ao valle -cheio de arvores amarellentas, que levantavam para o ar braços em -supplica. - -Dous pequenos pastores, de certo irmãos, desciam apressados dos -pincaros, trazendo o seu rebanho. Receiavam chuva grossa e trovoada, -eram muito pequenos e supersticiosos, vinham com ancia de se recolherem -á protecção de Santa Barbara bemdita, e de lhe resarem junto da lareira, -onde arderia o canhoto do natal, amuleto contra as iras do céu. Irmão e -irmã, teriam dez a doze annos, rotos e pobrissimos, aspecto triste e -desconfiado. Os cabellos em desalinho, descalços, as pernas arroixadas -do vento cortante dos montes! Desciam espavoridos, correndo pela encosta -abaixo, acompanhados do cão e do rebanho, tudo juncto em grande -confusão. A sua pobre choupana coberta de colmo estava no sopé da -montanha. Conheciam o tempo, não havia que esperar, a trovoada -aproximava-se, não tinham valor para a aguentar sósinhos lá em cima. -Mary, com os olhos pregados n'elles, vendo-os a rebolar aos saltos pelo -monte, encarecia, na sua boa alma, a conformidade, que adivinhava -n'aquella vida humilde: - -—Meu pae, aquelles pastores, aqui sósinhos!... - -Já saltara do cavallo, esperava-os para lhes fallar, interrogal-os -ácerca da sua pobreza que devia ser incommensuravel, dar-lhes alguma -cousa para o agasalho do corpo. - -Cahiam ruidosamente as primeiras gottas de chuva. Grossas como landes -varejadas de carvalheiras por ventania aspera, espapavam-se no pó da -estrada. Havia forte ruido no ar; ao parecer, mão herculea impellia de -grande distancia punhados de areia: era o bater secco do granizo sobre -os terrenos, sobre as penedias e nas folhas amarellentas dos raros -carvalhos. A turbação atmospherica augmentara subitamente, escurecera -tudo em redor. Os trovões roncavam perto, semelhando o unissono cavo e -amedrontador de milhares de carroças rodando juntas. - -—Onde nos havemos de recolher, Mary?—disse D. Francisco. - -Em qualquer parte. Sob aquelle frondoso castanheiro, que ali perto -nascera isolado n'um tenue veio de agua que resumbrava na base de um -penedo. Os cavallos tinham na pelle tremuras de susto; levavam-nos pela -redea para o designado abrigo. Os miseros pastores chegavam n'esse -momento á estrada, inquietos, receiosos de que as ovelhas se lhes -trasmalhassem e como a chuva engrossasse rapida e subitamente, -recolheram-se com o gado n'uma grande cova, de proposito aberta no -flanco do monte, para estes casos, ali frequentes. Mary e seu pae, -protegidos pelo velho castanheiro olhavam silenciosos e contristados -para aquelles rotinhos e humildes, em monte com as ovelhas, cheios de -inquietação com medo que o trovão apavorasse os animaes. E do interior -da cova consideravam cheios de admiração aquelles senhores de aspecto -tão rico e maravilhoso, mais bello do que o dos santos da igreja. - -As bategas de agua cresciam em força, o ribombo troava com arrogancia -por cima dos pincaros eminentes. O fidalgo observava o ar com serenidade -receiosa, a solemne barba branca de patriarcha biblico cobrindo-lhe o -largo peito. O vento soprava com violencia, os movimentos ondulatorios -da atmosphera formavam vagas, como n'um mar aereo. Tinham desapparecido -as povoações, os campanarios, os cimos das montanhas por traz da -densidade da chuva. Restringira-se-lhes a muito pouco a área visual, -tudo estava coalhado n'uma densa nevoa, o aspecto das cousas era -indefinido e vago. - -—Durará muito?—disse Mary apprehensiva. - -Estava a vêr que sim. - -Fizera mal em não ter cedido ao aviso de seu pae. N'aquella vasta -solidão principiava a sentir-se n'um desamparo tenebroso. Ennegrecia-lhe -o espirito com a apparencia lugubre das penedias suprajacentes. D. -Francisco vendo-a pallida e contrariada, apparentava agora conformidade -e riso, para a fortalecer. Tinha medo de algum desanimo, de qualquer -crise de nervos. Era esta a querida filha da sua alma, o seu unico -enlevo, a alegria, o conforto no despovoado da viuvez e da velhice. Mary -sentia na alma a amargura de ter contrariado a previdencia do bom velho, -de quem era a luz dos olhos. O aspecto do céu de cada vez mais orgulhoso -e ameaçador. - -Os sons medonhos reforçados nas quebradas dos montes, rolavam como -grandes e implacaveis penedias, que viessem lá do alto para tudo -aniquilar. Já os trovões concorriam de todos os lados, arrogantes e -magestosos, rebentando perto em estalidos breves e seccos, como milhões -de taboas a baterem umas contra as outras. Laminas de fogo de coriscos -rasgavam o ventre das nuvens e esta luz luarenga cobria a paisagem de um -tom funereo. Havia no ar uma escuridão de caverna sem que a noite já -começasse a abraçar o mundo no seu amplexo triste. A natureza em combate -tinha olhar terrificante. Nem o conjunto de toda a artilheria do mundo, -cem vezes augmentada, vomitando ao mesmo tempo granadas e materias -inflamaveis pela bocca redonda dos seus canhões, daria ideia d'esta -formidavel batalha, ferida nos paramos sombrios do ar. - -—Meu pae!... tenho medo!...—confessou a corajosa Mary. - -As ovelhas conservaram-se junto dos pastores mettidos na sua cova, como -timidas creanças perto de sua mãe. Os pequenos de joelhos, as mãos -erguidas, em lagrimas de receio pediam misericordia em altos gritos -dirigidos a Deus clemente. Desejava D. Francisco animal-os, -soccorrel-os, trazendo-os para juncto de si; porém não lh'o consentiam -as catadupas de agua, que já vinham pelas gargantas dos montes sahir ali -perto, em formidaveis ribeiros. Elle ainda conservava Joe pela redea; -porém Mary já havia abandonado Luck, que de olho allucinado, e tremendo -em todo o corpo, resfolegava com estrondo pelas narinas largas. O pavor -crescia, o formidavel estalido do trovão rebentava quasi sobre o -castanheiro, innumeros relampagos fuzilavam ao mesmo tempo pondo-lhes o -espirito em confusão. - -—Tenho muito medo, meu pae!—confessou Mary, tremula e agitada. - -Como poderiam sahir d'ali? Impossivel!—ponderou o coração amargurado do -velho. Esperava que a furia da tempestade diminuisse, que o horror do -trovão abrandasse, que o fogo dos relampagos lhes não tirasse a vista, -que a chuva fosse menos copiosa... A pobre Mary já o não ouvia, pallida -e assustada, sentiam-se-lhe ranger os dentes, a ella que sempre fôra a -ousadia, o denodo, o vigor moral de seu pae. - -Os dous corações batiam n'um ambiente de terrores, os ares incendiados -por chammas infernaes, os ouvidos surdos por causa dos pavorosos sons -que desciam do céu, ou resurgiam das corcovas da montanha. De toda a -parte o mundo parecia ameaçado por castigos e invectivas de morte. No -bojo largo e mysterioso das nuvens parecia esconder-se, ainda -silenciosa, a suprema voz da infinita maldição! Vencendo espaços com o -desespero dos demonios escorraçados do céu na noite biblica, essas -nuvens pareciam que accarretavam do começo dos tempos a punição de -crimes accumulados por seculos de perversidade!... - -Os aterrados pastores continuavam de joelhos, as mãos supplicantes, -pedindo misericordia em agudos gritos. A convulsão do franzino e esbelto -corpo de Mary communicava-se ao tronco do castanheiro frondoso e para -ella todo o mundo se sentia abalado e tremente. D. Francisco -abandonou-a, por um momento, emquanto procurava colher as redeas de -Luck, que se ia separando encolhido e agitado. - -A confusão de todas as cousas attingira n'este instante imponencia -d'assombrar! Um forte e vibrante estampido, acompanhado de illuminação -subita de raio, rebentou sobre a arvore protectora. Luck então fugiu -espavorido; Joe repuchou fortemente o braço do fidalgo, que se sentiu -cahir, as pernas sem vigor. Instinctivamente, D. Francisco, lança os -olhos para o castanheiro, e vê no rosto funereo de Mary extinguir-se a -vista, o tronco flexivel como um vime inclinar-se, todo o corpo, qual -estatua de alabastro, cahir sobre a terra n'uma compostura -sepulchral!!... - - - II - - -Fora fulminada? estava morta?!... O rosto de seu pae era de um pavor -dantesco!... Luck despenhara-se pelo monte, em saltos infernaes! Joe, -menos nervoso, tremia humilde junto de seu dono. - -O desditoso velho atirou-se com desespero sobre o corpo livido de Mary, -que vira pender como uma açucena, impellida por vento maldito. -Encontrava-a sem energia corporea, o aspecto de completa ausencia de -sensibilidade, os olhos meio cerrados. Queria aquecel-a com os seus -carinhos, dar-lhe o movimento do proprio sangue! Estreitava-a nos -braços, agitava-lhe o corpo, sacudia-a para lhe dar vida. De apavorado -emmudecera, não tinha lagrimas para exprimir tamanha dôr; mas por fim a -sua voz rugiu formidavel como a do leão, como a do mar, como a da -tempestade: - -—Mary!... Mary!... Accorda, Mary!... - -As creanças tinham corrido n'um instincto de soccorro. Augmentavam a dôr -do quadro com o chôro desesperado, que acresciam ao do inconsolavel pae, -que chamava sua filha em altos brados dirigidos ao céu crudelissimo. - -D. Francisco erguera-se, com o corpo de Mary intimamente unido ao seu. -Que loucura esta! Pensar em reanimal-a communicando-lhe o seu calor, -dar-lhe sensibilidade com o vigor do affecto, fazel-a soffrer com a -grande e immensa dôr que o suffocava! O corpo estava exanime; -pendiam-lhe os braços, cahia-lhe a cabeça, as pernas sem energia, o -tronco vergando-se como um junco. O ribombo do trovão continuava atroz: -os relampagos successivos illuminavam as serras lugubres, as altas -penedias de uma grandeza cyclopica, as humildes aldeias e campanarios, -as veigas de uma passividade mortal. - -—Chamae gente!... Chamae gente!...—gritava D. Francisco aos pastores, -que d'elle se tinham acercado n'um intento piedoso. - -As creanças identificadas com aquelle soffrer incomparavel, gritavam -inutilmente! Quem as ouviria? O logar ficava longe, a sua casa distante, -a magestosa garganta da tempestade engulia-lhes a voz. - -Talvez o velho cabreiro esperasse a primeira aberta para lhes vir em -auxilio!... Unica e misera esperança!... - -Os enxurros desciam ovantes em catadupas pelas gargantas dos montes: os -caminhos eram ribeiros, nas fundas corgas sussurravam as aguas como -grandes rios, a ira do céu parecia crescer a todos os momentos. - -—Chamae gente!... Chamae gente!...—repetia o fidalgo com o corpo de Mary -estreitamente abraçado, exprimindo no semblante a maior dôr que no mundo -possa existir. - -Clamavam as creanças com maior desespero e força; porem as suas vozes -perdiam-se no infinito espaço. Um instante houve em que esses gritos -foram triumphaes, como se um soccorro afortunado viesse espavorir a -desgraça. - -—Pae!... Pae!...—exclamaram com alvoroço. - -Era o robusto montanhez que despresando perigos, subia em corrida a -encosta, para proteger os filhos, e livrar o rebanho das correntes -impetuosas. - -Ao deparar com a scena horrivel que os pequenos lhe apontavam, como -produzida pelo fogo sinistro do raio, a sua mudez e espanto eram -formidaveis. Obedeceu como automato aos monossylabos de D. Francisco, -ageitando-lhe o cavallo para elle montar. - -E emquanto montava, as suas rudes mãos e os braços negros de rachador, -sustentaram por instantes o franzino e gracioso corpo de Mary, para o -entregar ao velho, que o recebeu com sofreguidão e ainda com -esperança!... - - * * * * * - -D. Francisco voltou n'um galope desesperado, a filha amantissima -achegada ao seio caloroso. A sua ideia era alcançar em minutos o portal -da querida habitação, mandar uma legião de criados á procura de -soccorros que lhe restituissem Mary. Joe parecia identificado com a -grandiosa tragedia que se passava na alma de seu dono! Era uma corrida -de phantasma, atravez dos espaços do primitivo cahos! Um homem robusto, -ainda que velho, cabello e barba sujeitos ao vento, despresando chuva, -trovões e relampagos, galopando furiosamente com o corpo de uma donzella -estreitado nos braços, era o que viam passar attonitos os raros -viandantes. Paravam tranzidos de espanto, ninguem se oppunha a esta -marcha do desespero, e só exclamações se ouviam: - -—É o fidalgo!... É o fidalgo!... - -Joe sentindo a força da alma lugubre que o guiava, vencia caminhos, -voltava com lucidez, transpunha ribeiros aos saltos. O inconsolavel pae, -ainda na crença de que d'aquelle deliquio Mary poderia acordar, -animava-lhe com monossylabos energicos a vertiginosa carreira, na -direcção da antiga morada de seus maiores. Ali chegou finalmente com o -espolio querido. Portal largamente aberto, porque de longe os criados já -tinham notado a infernal corrida. O corpo exanime de Mary foi estendido -sobre a sua cama de donzella, e logo veio o medico que a olhou com -aspecto dolorido de desanimo!... - -Ali estava como n'um leito de morta: a face pallida; os braços molles; o -corpo exhausto, acceitando passivamente todos os impulsos. Não -respirava, não lhe batia o coração, não lhe foi encontrado o pulso. Era -desgraça irreparavel, todas as tentativas seriam infructiferas! Para que -haviam de enfermeiras conspurcar aquelle corpo gracil, se Mary estava -morta, definitivamente morta?! Um raio do céu fulminára a formosa -donzella, flexivel como um vidoeiro novo, candida como o lyrio, risonha -como um cravo! O medico que a vira nascer, e lhe queria como a propria -filha, agarrou-se a D. Francisco, chorando, chorando, sem poder falar! - -É que Mary já não existia, o pavoroso raio consumira no seu fogo aquella -rosea existencia! Nunca mais aquelle coração palpitaria de amor, nunca -mais os seus dedos sublimes acordariam sons de musica religiosa no orgão -antigo, nunca mais aquella voz clara como um veio d'agua pura, se -levantaria em preces fervorosas. - -D. Francisco não lhe tornaria a ouvir dizer: «Meu pae! meu pae!» Mary -estava morta, definitivamente morta, fulminara-a a colera das nuvens!... - - - - - VOLTOU... - - - I - - -Bons velhinhos os que moram n'aquella casa! N'este domingo sereno de -março, lá se veem sentados á porta, com o sorriso dos modestos e felizes -a florir-lhes no rosto; tem as cabeças protegidas contra o mal da -soalheira e os pés, fóra dos tamancos, para os aquecerem. A veiga, onde -pastam bois, é tranquilla; a subida da encosta, onde rebentam urzes e -codeçaes, está vistosa. Aquelles bons companheiros, casados ha cerca de -cincoenta annos, tem um para o outro o mesmo olhar confortativo e -amoroso do tempo de moços. Miguel conserva impressa na retina a imagem -de quando Luiza era nova: não lhe percebera o nascer das rugas; nem o -desmaiar da pelle; nem a queda dos dentes, que no riso ainda lhe -appareciam como uma fiada branca e egual de rosario de pinhões. Os -cabellos (talvez pela vista enfraquecida) eram as mesmas longas tranças, -negras e colleantes, como lampreias no fundo de rio arenoso. O corpo de -sua mulher mantivera para elle, sempre, a mesma puresa de -linhas—consolidara-se na graça e gentilesa da juventude, não o tinham -abandonado os elementos de frescura e mocidade. - -De egual modo, Luiza, via seu marido. Quem estava ali, a seu lado, com -os joelhos ao sol e o lenço de Alcobaça na cabeça, era o mesmo rapaz -valente, trabalhador e sadio, ligeiro como um lobo, que a namorara -quando ella tinha vinte annos. Nem as molhadellas lhe tinham engrossado -as articulações com o rheumatismo, nem as barbas e cabellos eram da -brancura de linho sedoso, mas acastanhados e lustrosos como outr'ora. -Não tivera a edade poder para lhe diminuir a vista: logo que o -emperramento das pernas passasse, vel-o-hiam como o primeiro malho nas -eiras, a primeira enxada no morder da terra, a melhor roçadoura para -derrubar silvedos. Ella que o amparava da cama até a lareira e da -lareira até ao sol, vivia na fé de que o seu Miguel tornaria a ser o -mais celere e desembaraçado homem de todas as redondesas para atracar um -touro que fugisse em descampado, para vencer, d'um pulo, o ribeiro da -freguezia, para pôr em debandada uma feira de troquilhas bulhentos. Não -o vira ella ludibriar magotes de adversarios, ora afastando-os para -longe com um talho de varrer, ora safando-se-lhes com um salto, para -fóra da muralha da gente com que o cercavam? Assim mesmo, meio -entrevado, ainda se não poderiam chegar a elle, nem tres, nem quatro -pimpões, se Miguel tivesse nas unhas o seu pau de carvalho e estivesse -bem encostado a uma parede para só poderem atacal-o de frente. -Experimentassem, querendo, e ver-se-hia se ella não dizia a verdade. - - * * * * * - -Á porta da casa estavam ambos silenciosos, n'esse secreto e intimo goso -d'uma perpetua conformidade moral, imaginando-se na força do sentir e -sem recearem a morte que podia separal-os, levando um e deixando o outro -a vaguear no mundo, n'uma existencia de lamentos e saudades. Não -pensavam n'este horror, visto que no céu havia um Deus, justo e bom, que -não permittiria tal iniquidade. D'aquella somnolencia feliz, -despertou-os o padre Clemente Carvalhosa, que ora vinha pelo estreito -caminho rente á casa de Miguel. - -—É o senhor cura—disse Luiza, falando como se só comsigo falasse. - -—Ah! hoje demorou-se mais. É que os rapazes não sabiam a doutrina. -Calaceiros!...—pronunciou o velho, sem levantar os olhos dos joelhos. - -O sacerdote adeantava-se com o seu habitual ar benevolente. A batina -ecclesiastica dava-lhe solemnidade ao parecer, e só o passo energico era -signal de que não vinha em boa disposição de espirito. Luiza, logo que o -viu á voz, levantou-se para o saudar; Miguel que tinha, ao lado o pau a -que se amparava, ia a fazer o primeiro esforço para se erguer, quando o -cura, já com a mão na cancella para entrar, disse alto: - -—Eh! lá! Para doentes não ha ceremonias!... - -—Muito bom dia, senhor. Hoje mais tardinho. Os rapazes não a sabiam, -está de vêr... - -—É verdade—informou o Carvalhosa com voz irritada. Talvez peior que no -domingo passado e estamos no fim da quaresma. - -—Uma palmatoria senhor! Olhe que isso não vae sem lhes doer. - -—E é que o faço!—asseverou com energia o ecclesiastico. Se me obrigarem -a sahir de mim, irá o diabo n'aquella sachristia. - -—Vossa Senhoria não é capaz d'isso...—opinou ironicamente Luiza. - -—Não sou capaz!? Estás enganadissima! É que vocês nunca me viram pelo -lado do forro. Se me volto do avêsso, vae ahi o dia de juizo. - -Miguel offerecendo-lhe o bordão de paralytico aconselhou: - -—Com este é que elles se ensinavam. Já lá andam taludos, dos que não vão -a palmatoria. - -—É o que elles mereciam, é—applaudiu Luiza. - -—Isso tambem não, mulher!—entendeu o cura. Um pau molesta de mais, pode -fazer sangue ou quebrar algum osso. É bastante uma palmatoria puchada -com valentia, como eu o sei fazer. Mando logo chamar o Corcunda para -lh'a encommendar. Deixa que se elles virem, pendurada na sachristia, a -santa Luzia de cinco olhos, não tornam a apparecer sem trazerem o recado -na ponta da lingua. - -—Vossa Senhoria—commentou o Miguel—para essas coisas de bater... O -senhor abbade, quando por ahi vinha, sabia-os tosar melhor, se os -garotaços faltavam á obrigação... - -O Carvalhosa retomou a sua energia: - -—Estás parvo, homem! A questão é fazerem-me chegar a mostarda ao nariz. -Mas vamos ao que serve—disse mudando de tom.—Do vosso Luiz, não tem -havido noticia nenhuma... nenhuma?... - -—Nenhuma... nenhuma...—responderam os dois n'um unisono triste. - -—E tendes perguntado? - -—Se temos!—disse Miguel. Sempre que sei de alguem que chega do Brazil, -se as dores das juntas me dão licença, lá vou ter com essa pessoa... Mas -até agora nada, nada!... - -Luiza commentou chorosa: - -—São terras onde ha animaes que comem gente!... Quem sabe se alguma -serpente me deu cabo d'elle... - -—É celebre!—entendeu o cura. Eu tambem tenho feito esforços para saber -noticias, mas tudo em vão!... É celebre! Pois ainda ha dez annos vos -mandou o dinheiro com que arranjastes esta casa e comprastes os bens por -ahi abaixo e não torna a dar accordo de si! É celebre! muito celebre! -Quem será o ladrão que disfruta, a esta hora, o que elle tanto lhe -custaria a ganhar! Sim, porque elle fortuna havia de ter ganho! - -—Isso é o que menos importa—interferiu Luiza. Aqui ha que farte para -elle e para nós. O que queriamos era vel-o vivo e são. - -—Pois apega-te com Nossa Senhora da Boa Viagem, que ella t'o trará. Eu -vou-me até casa que são horas de minha irmã ter o caldo na tigella. -Adeus e devoção, Luiza. - -—Ah! isso tenho eu, senhor! Promessas e resas olhe que as faço todos os -dias. - - - II - - -Havia muitas pessoas na freguezia que se lembravam da partida do filho -do Miguel. Era um rapasinho carinhoso, serviçal e bem comportado. -Delgado de corpo, tez morena, sorriso sempre conformado, fazia gosto -vel-o ajudar á missa; porque procedia com grande promptidão e esmero. No -caracter era a mãe, sempre boa e humilde; no desembaraço o pae, sempre -agil e resolvido. De quatorze annos não havia, por ali, outro para -mandar á villa n'uma pressa de chamar o medico ou buscar um remedio. -Quer fosse de dia ou de noite, quer os caminhos estivessem cheios de -neve ou de lama, o Luiz nunca se escusava, nunca procurou uma desculpa. -Nem o medo do lobo, nem o das trovoadas o impedia de ser prestimoso. -Miguel todo se ufanava com este brio do rapaz, e com a atmosphera de -sympathia de que o via cercado. E quanto a estudo? Isso dizia o mestre -que nenhum lhe levava a melhor nos desafios á taboada, e na doutrina. -Até era uma pena não ser possivel ordenal-o em Braga, para um dia vir -ali dizer uma missa nova, e verem-no do pulpito lançar a voz da -religião. Porém, o Luiz, ainda que o podesse conseguir com esmolas, lá -para essa vida de padre não o chamava a inclinação e toda a sua idéa era -embarcar, para tirar seus paes da pobreza em que viviam e da labuta -constante em que se amofinavam. Apesar do Brazil ser a commum ambição da -gente d'aquella provincia, isto não tinha prognostico favoravel das -pessoas que lhe conheciam o genio perdulario, o gosto que fazia, já em -creança, em dar tudo que possuisse. Um pedaço de pão e presigo com que -lhe pagassem qualquer serviço prestado, logo o repartia com os rapazes -da sua egualha, ou com algum pobre que encontrasse, ou mesmo com -qualquer cão esfomeado que estivesse a olhar para elle quando comia. E -não era porque em casa lhe sobrasse, pois Miguel, n'esse tempo, tinha -mais tres filhos vivos e era elle só a trabalhar, moirejando nas terras -que são ingratas para compensar o esforço rude do homem, que só tem a -sua enxada para as servir. Estava na indole de Luiz dar tudo, repartir -com quem quer que fosse. O coração não lhe soffria o possuir coisa de -que os outros não compartilhassem. Os unicos motivos de zanga de sua mãe -para com elle, vinham de conhecer que lhe roubava pão para os pobres que -passavam, quando ella não tinha bastante para si. - -—Tu és tolo, rapaz!—reprehendia-o. Vês que esta fornada me não chega até -á outra, e tiras-me a brôa da masseira! Olha que ainda podes andar como -esses mandriões de pedintes, que só tem por seu mal, não se quererem -achegar ao trabalho. - -Luiz ficava triste, por, a santa creatura que era sua mãe, não -comprehender o intimo goso que elle sentia em fazer bem. Amargurava-o -esta idéa, pois não admittia maior consolação do que a de dar, mesmo aos -que não tivessem necessidade. O rosto de agradecimento que os -beneficiados faziam ao receber, era o premio unico a que aspirava. Mas -havia mais alguma coisa n'este animo dadivoso: era o pouco geito de -possuir em proprio, o que quer que fosse. Angustiava-o a preoccupação de -guardar. Viver sempre na abstracção, na inconsciencia do que valem as -coisas materiaes, era a caracteristica do seu coração. O prestar -serviços sem idéa de interesse ou recompensa completava-lhe a indole -bondosa. Sua mãe estava sempre a prégar-lhe: - -—Nunca hasde juntar coisa que se veja. Como é que tu queres ir para o -negocio com esse genio? - -E porque assim o entendiam todos na freguezia e os proprios paes, é que -muito os maravilhou o receberem, na pobre casita onde os dois velhos -moravam e viviam sós, a visita d'um amigo de Luiz, que lhes trazia uma -ordem para receberem no Porto uma grande somma de dinheiro—uma somma, -para elles tamanha, que os lançava repentinamente na opulencia. Porém, -Luiza, ao apparecimento d'esse senhor todo aceiado, já homem grisalho e -enegrecido na pelle da face pelas soalheiras dos sertões brazilicos, não -se importou nada com a riqueza que elle annunciava e tomando-o como o -precursor de seu filho, logo inquiriu: - -—E o senhor conhece-o, o meu Luiz? Está um homem assim alto como é o -pae? E quando é que o temos a consoar com a gente? - -A todas as perguntas o mensageiro respondeu de maneira a arrancar-lhe -lagrimas de contentamento. Miguel que, chamado, viera offegante da -labuta dos campos, perguntou, primeiro que tudo, em voz meia -reprehensiva, mas cheia de coração: - -—E elle não tem idéa de vêr a gente antes que nos levem para a cova? A -riqueza estimamol-a muito; mas antes queremos a companhia. - -O amigo de Luiz enterneceu-se com esta insistencia e consolou os paes -fazendo-lhes graciosamente promessas para que não estava auctorisado. O -dinheiro enviado era o melhor signal de que o filho os visitaria em -breve—disse. Trazia tambem recommendação de lhes lembrar que -transformassem a casa de moradia para o receberem condignamente, e de -que empregassem o restante na compra de algumas terras, que lhes -garantissem uma mediania repousada e sem cuidados. - -—Isso—confessou Miguel—até vem a calhar, porque andam em bocca de venda -estes bens aqui em redor. - -Para designar a grandeza das terras estendeu pela encosta que descia -brandamente até ao ribeiro, um olhar commovido, acompanhado d'um gesto -de opulencia. Fôra esta a ambição de toda a sua vida. Muitas vezes, só -com Luiza, quando junto da lareira comiam o magro caldo da ceia, elle -reprimia o prazer que o filho lhes daria se enviasse dinheiro para -comprarem aquelles campos, que toda a vida haviam cultivado como -caseiros. Era o seu suor d'elles accumulado sobre a terra, que os fazia -fructificar e lh'os tornava queridos, como uma parte viva e nobre da -propria existencia. Possuir a bella quinta que em volta do seu pequeno -eido se estendia, abrir a agua das poças com a arrogancia de -proprietario, levantar as videiras com a certeza de que eram seus -aquelles braços flexiveis, e ao enterrar a enxada na terra negra e -humosa sentir a convicção de que remexia no que ninguem lhe podia -disputar, de que preparava o solo para resultados que não partilharia -com outrem, era o maior goso que a boa fortuna podia trazer a Miguel. E -tamanha commoção os dois manifestaram, na sua mudez, deante do hospede, -quando designaram com o olhar essas terras, que o recemchegado -perguntou: - -—São estes os bens que vocemecês trazem de casa? - -—Sim, senhor, aquelles mesmos em que Luiz trabalhou comnosco, indo á -soga dos bois, quando lavravamos. Elle falou-lhe n'isto? - -A um signal affirmativo, os consortes, choraram copiosamente. Até -parecia mal ver um homem sadio e forte, como era então Miguel, limpar os -olhos á grosseira estopa das mangas da sua camisa e soluçar com a cara -escondida. Porém aquelle contentamento era mais forte do que elle; em -coração humano não presumia outro egual. Para se desculpar, perante o -amigo de Luiz, ia dizendo por entre lagrimas: - -—O senhor não pode comprehender o que isto é. Se soubesse o que me vae -cá por dentro... Estou capaz de estoirar de alegria. - -O feliz mensageiro sentia-se transitoriamente envolvido na mesma -atmosphera de felicidade que respiravam os dois casados. Ligando-os a si -n'um só abraço disse: - -—O que desejo é que por muitos e largos annos gosem o que tanto amam, e -que isto seja na companhia de seu filho, que estou certo se não demorará -muito. - -Depois combinou com elles a maneira de receberem o dinheiro que estava -no Porto, á ordem de Miguel. Para lhes facilitar a empresa já tinha -tractado da transferencia da quantia para a villa proxima, onde da mão -de negociante honrado podiam recebel-a toda d'uma vez, ou parcelada, -conforme melhor conviesse. N'esse mesmo dia, Miguel acompanhou o amigo -de seu filho para pessoalmente ajustarem com o tal negociante o -recebimento em questão. - - - III - - -Este notavel successo trouxe á memoria dos do logar o bom rapasinho que -Luiz sempre fôra; como era geitoso no ajudar á missa, como, com -desinteresse sympathico, se prestava a servir toda a gente. Não podia -deixar de ser feliz, quem logo no começo da vida se mostrara tão -diligente e bondoso. Deus, que é justo, ajuda de preferencia aquelles -que o merecem, os que desde o principio se mostram attentos e -respeitosos pelas coisas da religião. Entendiam-no assim e mostravam -como exemplo d'isto a fortuna que acompanhara Luiz para poder alegrar a -existencia de seus paes, garantindo-lhes um magnifico bem-estar, e -proporcionando-lhes o goso de possuirem as terras que sempre haviam -trabalhado. - -A proposito recordavam o bello dia de maio em que elle partira. Muitos -faziam o apparato de mencionarem meudas circumstancias, que agora -representavam como se as tivessem deante dos olhos. Repetiam palavras, -apontavam pessoas, e reproduziam detalhes. Que formoso sol o d'esse -tempo! como elle aquecia o corpo e alegrava o espirito! O padre Clemente -Carvalhosa, já então curava a freguezia e, por assim dizer, era o -parocho, pois que o verdadeiro estava frequentemente em Braga, junto do -senhor arcebispo de quem era amigo, e havia annos que por ali não -apparecia. Como Luiz não tivesse vocação para o estado ecclesiastico, -fôra o Carvalhosa quem influira para o mandarem para o Brazil, ver -mundo, fazer-se homem, ganhar a riqueza com que voltasse a engrandecer a -sua familia e a sua terra. Se o bom velho fosse egoista, forcejaria por -conserval-o para o ajudar á missa, tratar das coisas da egreja e -auxiliar o mestre escola. Mais tarde poderia mesmo conseguir-se que -ficasse substituindo José Fortunato, o que era alguma coisa de -representativo. Porém, reconhecendo que aquella intelligencia -naturalmente viva se acanharia na estreiteza d'uma aldeia, o bom cura é -que promoveu, entre a melhor gente da freguezia, uma colheita de -donativos para vestirem o Luiz do Miguel e pagarem-lhe a passagem para -esse Brazil, terra prodigiosa, onde o oiro rebenta das arvores com a -bondade dos fructos que alimentam o homem. Sentia no fundo do seu -generoso coração, que era uma boa obra a que emprehendia. Quem sabia se -não estava trabalhando para o esplendor das festas da sua egreja, para -reformar e accrescentar materialmente a riqueza do templo, attenta a -vocação que Luiz mostrava para as coisas santas? Não seria amesquinhar -as bellas promessas de caracter de rapaz tão bom, tão docil, tão -intelligente, o prendel-o entre aquellas montanhas de limitado -horisonte? - -—Mas, senhor,—entendia a mãe—olhe que elle para conservar dinheiro não -lhe serve. Quanto ganhar, quanto dá! - -—Cala-te, mulher,—contestou Miguel—deixa ir o rapaz que no mundo é que -elles se armam gente. Tenho-lhe amor, pois é meu filho, mas o senhor -cura é que diz bem. - -Aquelle que assim falara com desapego, é a quem mais custou o -desprender-se de Luiz, no assignalado dia da partida, n'esse bello maio -em que o sol aquecia o corpo e alegrava o espirito d'um modo differente -do actual. Luiz com o seu caracter submisso ia de vontade; mas não tinha -n'essa occasião, propriamente idéa de ambição ou opulencia, nenhum -proposito de no futuro deslumbrar os simples da sua aldeia. Commovido e -sem fala, as lagrimas rebentavam-lhe dos olhos, como pingos de seiva -d'uma arvore quando chora. Se seu pae se não podia desagarrar d'elle, -tambem elle se não podia desagarrar de seu pae, nem de sua mãe, nem dos -rapazes que ficavam. No fundo da sua retina estampara-se indelevelmente -e para sempre, toda aquella paizagem da sua alma—a modesta egreja, com o -campanario exterior d'um só sino; o musgo das paredes dos caminhos -estreitos; a largura dos campos onde rebentava a herva; a sobranceria -dos montes altos, artilhados de penedias temerosas! Sentira que a alma, -n'esse dia de sol encantador, se lhe dividira em duas partes: uma ali -ficava pendurada dos galhos das arvores que se enfolhavam, dentro da -pobrissima casa onde nascera, e nas encostas a escutar o gemer das -fontes e dos regos d'agua; a outra, a mais dura e resistente levava-a -comsigo. O cura Clemente Carvalhosa, ainda no vigor da vida e saude, -abençoara-o no limitte da freguezia, até onde o acompanhara, e n'esse -momento, Luiz, supplicante e com as mãos erguidas pediu-lhe: - -—Quando a Russa tiver a cria, senhor, peço-lhe que a deixe crescer e que -a não venda, que eu mando dinheiro para a pagar. - -A Russa era a egua do cura. O rapasito tinha-lhe grande affecto, -adquirido no habito de a levar a beber, e de a acompanhar quando o -sacerdote ia para algum officio, no que substituira o creado Simão. - -Na villa é que se apartou de sua mãe e de seu pae, pois d'ali em deante -seguia na companhia d'outros emigrantes que levavam identico destino. Na -volta, a excellente Luiza, veio considerando se aquella dôr que soffrera -no apartamento incluiria a redempção da sua pobresa. Valeria a pena -tental-a, para quem desde o nascimento fôra destinada á vida do trabalho -e das privações? Quando ella o dera á luz, bem como aos outros que lhe -tinham morrido de bexigas, já fôra na perspectiva de os prender á terra -negra, cavando-a com a enxada, para d'ella tirarem o pão duro de que se -alimentariam. Isto era a vida assente na pobreza e conformidade: o que -Luiz ia buscar longe, o que seria? Com os olhos razos d'agua, a pobre -mulher, só percebia o esbatido d'um mar ennevoado e sem fim, a negrura -d'um mysterio lugubre que formava esse porvir incerto... - - - IV - - -Nos primeiros tempos d'ausencia, receberam frequentes cartas repassadas -de affecto e saudade, ás vezes com signaes de lagrimas que ennodoavam o -papel a ponto de se tornarem inintelligiveis algumas palavras. Porém, -passados tres annos, a correspondencia cessou quasi de repente e -espalhou-se o boato de que Luiz morrera, sendo depois isto desmentido -por outros dizeres, egualmente sem base. N'estas alternativas, de luto e -contentamento, passaram-se os dias longos e as noites infinitas, -limitando-se os dois paes a reverem-se no seu passado, modesto e feliz, -acreditando Miguel na eterna formosura de Luiza e esta no garbo e -valentia perpetua de Miguel. Até que um dia chegou esse bom mensageiro, -que lhes trouxe os meios para reformarem a moradia e comprarem as -terras, e com este facto lhes voltou a esperança, sempre risonha e -carinhosa, de que seu filho havia de chegar em breve. Além das palavras -de bom agouro, que o desconhecido deante d'elles pronunciara, receberam, -logo após, carta de Luiz, em que lhes falava com ternura do possivel -regresso e insistia especialmente na velhice tranquilla e abastada que -procurava garantir-lhes. Porém, depois d'este promettedor acontecimento, -que lhes deu annos de prazer emquanto reedificaram a casa, -levantando-lhe um andar, emquanto plantaram videiras e enfeitaram a -quinta, com arvores novas e um bello muro em volta; Luiz nunca mais -escreveu, estabelecendo-se completo silencio, similhante ao primeiro que -parecera de morte definitiva. Fartou-se o padre Clemente Carvalhosa de -lhe escrever sentidas cartas, falando de tudo quanto podia haver de mais -amoravel e terno no coração: a velhice dos paes, que não poderiam -aguentar-se por muitos annos; a commodidade da habitação, que elles -tinham arranjado ostentosamente para o receberem; a belleza e -transformação dos campos em que elle labutara e brincara quando creança. -Até lembrava a recommendação, que Luiz fizera no dia da partida, para -não vender a cria da Russa: a esse proposito notificava-lhe que, tanto -esse animal como a mãe, haviam morrido de velhos, em grande -tranquillidade e ventura; mas que na mesma côrte da residencia havia -outra egua descendente da segunda, que era a estampa viva das saudosas -extinctas. Nenhuma d'estas amoraveis e longas dissertações teve -resposta, o coração de Luiz tinha-se de certo ressequido, pois já não -vivia para tão commoventes memorias. Receberia elle as cartas? Não lhe -seriam entregues por ter mudado de terra?!... É no que assentavam, -afastando sempre a hypothese da morte, como castigo cruel e immerecido. -Mas ao fim d'um crescido periodo de annos, sem noticias de nenhuma -especie, experimentados por muitos e successivos desenganos, -atormentados pelos pensamentos negros que traz a velhice, Miguel disse, -um dia, em voz sumida, para não assustar a companheira: - -—Talvez elle morresse... talvez.... - -Quem sabe?! Ha diversas maneiras de morrer. O corpo póde andar, no -mundo, aos solavancos e encontrões, e ter desapparecido a vida com a -alegria da alma. N'este domingo de março soalheiro, os dois velhos -estavam á porta de sua casa, serenos e meditativos, mas conformados; foi -o bom cura que lhes veiu incautamente turvar o coração, recordando-lhes -o filho morto, ou eternamente desapparecido, o que para elles valia o -mesmo. E quando ambos retomavam a tranquillidade em que estavam antes da -chegada do sacerdote, ficando mudos, com os pés extendidos ao sol e a -cabeça resguardada para que o calor os não adoecesse, sentiram passos no -caminho que bordeja a quinta e viram que um estrangeiro se encaminhava -para elles. Quem seria? Era um homem andrajoso, qualquer viajante pobre -em caminhada para longe. O seu aspecto de miseria commovia... Trazia as -botas cambadas, a camisa suja, as calças roidas; n'um saquito enfiado -n'um pau, levava ás costas, toda a sua riqueza. Que ar esmorecido e -doente! que longa barba mal tratada! como vinha dorido dos pés! Ao -approximar-se da cancella, que dava ingresso no quinteiro, parou -saudando com o chapeu esburacado. Miguel, com vista mais fraca do que -Luiza, perguntou a esta: - -—O que é? - -O recemchegado é que respondeu em voz de cançado: - -—Um pobre viandante que pede uma sede de agua. Dão-m'a senhores? - -A velha disse com expressão de carinho: - -—Entre, faz favor?... Quanta agua quizer!... - -Não mostrou medo, nem repellencia, nem suspeitas d'aquelle homem roto, -que podia ser um ladrão assassino. Foi ella mesma que veiu levantar a -caravelha da cancella, para que elle entrasse, pois que o via sem forças -para tão pouco... Conhecia-se que estava enfraquecido pela fome e pela -longa jornada. Quem seria este misero de aspecto tão soffredor? Algum -d'esses infelizes que vivem afastados durante muitos annos de todas as -affeições e carinhos, e voltam ao seu lar depois de longa e dolorosa -penitencia. O recem-vindo sentou-se n'uma tosca pedra que estava perto -de Miguel, pousando ao lado o pobre saquito, que era a sua riqueza. O -penoso suspiro que do peito lhe sahiu ao descançar, condensava, de -certo, uma vida aspera de soffrimento e exprimia talvez o desejo d'um -periodo de socego, ainda que fosse na sepultura. Quando Luiza veiu de -dentro de casa, com a malga, branca de jaspe, cheia d'agua limpida e -fresca, elle tomou-a nas duas mãos, emborcou-a com satisfação, tendo no -fim de beber um respirar de saciedade. Os seus olhos amortecidos pela -desgraça, tiveram brilho carinhoso e contente ao restituir a malga. -Agradeceu este favor com um sentimento que lhe veiu do fundo d'alma: - -—Deus-lh'o pague!—disse. - -Conservou-se silencioso durante muito tempo, a cabeça curvada para o -peito, como um vagabundo que na alma procurasse o seu destino. Os dois -velhos contemplavam-no compadecidos: nos seus corações amoraveis e bons -apparecera um sentimento de infinda piedade. Não tinham elles tambem um -filho, que assim andava perdido no mundo, vagueando por longes terras? O -bem que elles, a este desconhecido, podessem fazer, outrem, no ponto -distante onde estivesse Luiz, o retribuiria, soccorrendo-o se elle -necessitasse. Com o instincto dos que são captivos do infortunio alheio, -advinhavam que junto d'elles estava um infeliz precocemente avelhentado. -Não procuravam, com perguntas desnecessarias, perturbar-lhe a paz que -elle parecia ter encontrado sentando-se n'aquella pedra, a olhar -meditativamente o chão do quinteiro. Adivinhavam-lhe, pelo aspecto, -soffrimento que na sua vida obscura e modesta, elles nunca tinham -sentido. Por esse mundo fóra, as desgraças engrossam, ás vezes, tão -rapidamente, como o ribeiro que passa no fundo da aldeia, quando recebe -as torrentes pluviaes, vindas a roncar pelas encostas e pelos caminhos. -Que significaria o silencio dolorido d'este desgraçado, que nos restos -do seu vestuario deixava perceber signaes de que no mundo tinha sido -alguma coisa mais do que aquillo que ora apparentava?!... - -O viandante levantou lentamente a cabeça. Primeiro fixou a vista -agradecida, amoravel e sem reservas nos que lhe tinham morto a sêde. -Apesar da estranheza d'aquelle semblante, não causou aos dois velhos -impressão, de que fosse o de algum doido que andasse desgarrado pelos -caminhos da aldeia. O seu olhar era absorto, mas tranquillo e bondoso. -Ainda que estranho ali, não lhes causava receio, nem pavor. Ao -contrario: do imo da sua sensibilidade subia-lhes, a favor do misero, um -formoso grito de benevolencia e compaixão. Aquella testa sulcada pela -desventura, o rosto macerado pela desgraça, dizia alguma coisa de -pacifico e sublime, como a luz sahindo de entre nuvens caliginosas no -meio de rude tempestade. Os dois septuagenarios reconheciam que a -apparição de tal infortunio estava tomando sympathico logar na sua -pacifica existencia... «Este desconhecido —pensavam—ainda que em -qualquer tempo de sua vida, tenha sido mau e perverso, agora só parece -ser desventurado!» Isto originara-lhes no seio a mesma piedade que -sentiriam se áquella casa se viesse recolher um lobo ferido, ou mesmo, -se um abutre lhes cahisse exanime junto da capoeira de que fôra o -flagello. Esses animaes, tantas vezes escorraçados com alaridos de -colera, teriam elles animo de os acabar, quando os reconhecessem -indefezos e supplicantes nas vascas da morte?! Não: o findar da vida -merece sempre compaixão; a desgraça redime de todas as culpas perante os -corações bons e sensiveis. - - - V - - -Mas este pobresinho não era perigoso e não poderia nunca ter sido -perverso: tamanha era a uncção maguada e soffredora que exprimia o seu -rosto retalhado pelas rugas, o seu olhar extincto pela longa miseria! -Havia n'elle tanta meiguice e affecto que só lhes provocava misericordia -e caridade. Se o pedisse não lhe recusariam agasalho em sua casa. Que -valia um logar junto da lareira, uma manta para cobrir os lassos membros -sobre um pouco de colmo, uma tigella de caldo para aconchegar e -fortalecer o estomago? De mais tinham elles, sem pessoa a quem o -legassem. Uma obra de misericordia, offerecida por intenção d'aquelle -que lhes dera o bem-estar de que gosavam, era acto meritorio que lhes -consolaria o espirito e teria certo apreço perante Deus. Uma voz -interior affirmava-lhes que ali estava um infeliz digno de piedade: e -sem muito saberem porque, ia-lhes dispertando sympathia o sorriso lento -que na sua expressão se abria, á maneira que contemplava os dois velhos, -que examinava a casa toda caiada de fresco, a latada que cobria o -quinteiro, e o saudavel aspecto dos campos da propriedade em redor. A -horta, ali mesmo ao lado, estava opulenta de couves e grellos; as -borbulhas das videiras principiavam a engrossar; a temperatura era -tepida e carinhosa; o misero parecia respirar, n'este ar, felicidade -nova e paradisiaca. Similhava um cego, desde muito privado do goso da -vista, que readquirindo-a de surpreza, entrasse gradualmente n'um -periodo de enthusiasmo lento; ou então, o homem que recolhido, por -longos annos, em lugubre masmorra, fosse restituido á liberdade e á luz -durante um somno, achando-se incredulo pela ventura reconquistada. - -Este silencio demorado, e o demorado exame que o estranho estava fazendo -de tudo quanto em volta se via, principiava a enredar em pensamentos -vagos Luiza e Miguel. Primeiro passeara em volta com os olhos do corpo; -mas depois, uma alegria crescente, lhe fôra desabrochando no rosto -escalavrado, a custo, como rebenta a bonina em terreno duro. Os velhos, -apesar de suggestionados por aquelle todo de bondade e infortunio, houve -um instante em que na mente lhes passaram receios, julgando-se agora na -presença d'um louco. Pois que podia significar esta mudez, quasi -familiar, da parte de quem ali era estranho e entrara sob pretexto de -pedir uma sêde d'agua? Não se atreviam a interrogal-o, pois grande é a -timidez da decrepitude. Annos antes já tudo estaria aclarado: pois que -Miguel sempre fôra homem de grande desembaraço e não teria papas na -lingua para perguntar quem era e o que queria do mais. Agora, porem, a -edade e o corpo paralytico influiam no acanhamento do animo. Os -septuagenarios entreolharam-se, volvendo ambos, depois, a vista para o -peregrino ao qual Luiza disse: - -—Parece gostar muito d'este sitio... - -—Oh! muito!—exclamou. Tudo isto lhes pertence? - -Circumdou de novo o olhar pelo eido e pelos campos, extendendo-o até ao -pinhal que se erguia n'uma ligeira collina. - -—Em quanto Deus quizer—respondeu Miguel. E vocemecê d'onde é? para onde -vae? - -O desconhecido teve no rosto uma expressão de infinita paz e -tranquilidade, que não deu idéa clara do seu pensar e destino. Sorria -ligeiramente, com a incomparavel doçura d'uma creança a sonhar. Olhou os -dois como se olham amigos e, Miguel, animado por esta expressão -confortativa, ponderou: - -—Sim; porque vocemecê ha de ter por força uma terra... - -—Tenho, tenho uma terra... - -E ficou attento para o chão inculto do quinteiro, como se sentisse -difficuldade em designar o ponto do globo, onde essa terra se talhava. - -Recahiu no silencio carinhoso que até ali conservara, mas com rosto tão -aberto em bondade que, de todo, deixou de causar receios. Examinou a -limpeza da casa em que os velhos moravam, e pensou na conformidade de -existencia que dentro d'ella se passaria. Reinava, decerto, n'aquelles -entes, a feliz paz da consciencia; desconheciam as perturbações agitadas -da vida das cidades. Não pensavam em alardes, nem tinham ambições: -talvez durante todos os seus annos, nem uma só noite tivessem abandonado -aquella ditosa morada. Quem sabe o que o estrangeiro estaria calculando -na sua mente, que pensamentos de felicidade o estariam a encantar!?... -Talvez, depois de vida desventurosa, viesse encontrar n'aquelle quadro -simples o primeiro refrigerio para as suas dores, a primeira idéa clara -do que é a ventura. Os pacificos septuagenarios, pareciam comprehender, -que o seu viver ditoso estava reconfortando a alma do misero que tinham -na sua presença. Além de não ser rasoavel negarem-lhe um tal balsamo, -encantava-os que assim fosse. Por isso, orgulhosos da sua modestia, -deixavam que o homem andrajoso tudo apreciasse, sorridente e sem inveja. -A casa juncto da qual se encontravam tinha aspecto de nova, as janellas -com vidraças viam sobre a latada do quinteiro, o alpendre, debaixo da -varanda deitava para o lado do caminho, uma escada exterior mostrava -ingresso ao andar de cima—accrescente feito para a chegada de Luiz, se a -Deus prouvera, guial-o um dia para ali. Como fossem inimigos de -grandezas, apesar da casa assim reformada, nunca abandonaram a parte -terrea conservando ahi a sua moradia. A cosinha, á porta da qual -estavam, era a mesma em que viveram com os filhos; ao lado havia o -quarto soalhado em que dormiam agora, como sempre. As transformações -n'este pavimento consistiam em que o que d'antes fôra côrte de gado -servia agora para adega, salgadeira e casa de recolher a lenha no -inverno. Ao fundo d'um telheiro, armado cá fóra, é que guardavam as duas -juntas de nedios bois, os mais bellos do logar. O chiqueiro do porco e a -capoeira das gallinhas ficavam encostados ao muro, rente com a casa. -Tudo designava certo bem estar, conforto, e até opulencia, dentro da -modestia de camponezes. - -Para onde iria o infeliz, que tinham deante dos olhos não o sabiam, -visto que elle o não quizera dizer; mas o que sentiam, com a intuição -das almas simples, pouco habituadas a luctas, é que sendo a sua figura, -quando o viram entrar a cancella, a d'um infeliz retorcido pela miseria, -agora, ao fim de pouco tempo, e depois de reconfortado na contemplação -de todas aquellas coisas bem arranjadas, parecia mais alliviado do -soffrimento que lhe alquebrava o corpo e a alma. Era outro, tinha-lhe -feito bem o repouso sobre a tosca pedra, refrigerara-o a malga de agua -limpida, consolara-o o aspecto feliz dos velhos que estavam ao sol, -esperando, n'este santo domingo, a hora do jantar parcimonioso, apesar -de na panella haver carne e salpicão que elles ambos comeriam regalados, -agradecendo a Deus tamanho beneficio na velhice. Ao quinteiro chegava o -suave odor do caldo gordo e fumegante, e não tardaria que Luiza se -levantasse para ir á adega buscar o excellente vinho, para o beber de -parceria com o seu homem e pela mesma infusa. Como elles seriam felizes, -se n'esse bello e glorioso dia podessem compartilhar com o seu Luiz, que -uma voz intima lhes dizia ainda viver, este bom jantar! Se tal -felicidade lhes fosse dado poderem gozar morreriam contentes, não -duvidando de que iriam direitinhos para o céu! - - - VI - - -O descanço sobre a pedra tosca; o sabor da agua com que o tinham -alliviado da sede do caminho; o banho de luz e tranquilidade em que todo -o seu ser se mergulhara durante longos minutos; e principalmente a -ventura que adivinhava na existencia sempre egual d'aquelles casados de -tantos annos, haviam transformado em pouco tempo o aspecto do infeliz. -Sorvia deleitado o ar que aqui se respirava, sorriam-lhe os olhos na -contemplação d'esta paizagem carinhosa e melancolica, desfaziam-se-lhe -as rugas da face ao renascer-lhe na alma a alegria que, por certo, -n'elle se finara havia muito. Como Miguel o visse mais tractavel e -familiar no aspecto, ponderou: - -—Vocemecê estava tão moido, que decerto vem de muitissimo longe. - -—Oh! de muitissimo longe!...—repetiu o forasteiro com accento de grande -amargura. - -—Talvez d'essa Lisboa!...—entendeu o paralytico. - -—Muito mais para lá!... - -E fez um gesto largo, d'uma amplidão infinita, acompanhando-o com um -olhar que fôra até aos confins do mundo. - -—Do Brazil?—indagou Luiza com ancia e soffreguidão no rosto inquieto. - -Um simples aceno affirmativo de cabeça, deu resposta á pergunta. E logo -os rostos dos dois septuagenarios se alegraram, como se em crepusculo -matinal vissem surgir d'entre as penedias o sol nascente. Ao mesmo tempo -tiveram a mesma lembrança. «Quem sabe se este desconhecido nos poderá -dar noticias do nosso Luiz?!...»—pensaram. Porém, antes de o inquirirem, -sustiveram-se n'este pensamento triste: «Como se pode voltar do paiz do -oiro, da opulencia e da ventura, assim pobre, mal trajado e n'um aspecto -tão miseravel e desvalido!» E Luiza, compadecida, considerou com as -lagrimas a rebentarem-lhe: - -—Então é que não foi feliz, por lá... Nem todos o podem ser... - -—Nem todos... nem todos...—disse o estrangeiro, apparecendo-lhe no rosto -um fulgor de alegria velada por amargura. - -—E conheceria por lá o nosso filho?...—perguntou a velha. - -—O seu filho! Tem um filho no Brazil?—indagou, o mal trajado, n'uma voz -que se esforçava por ser corajosa e serena. - -—Temos—esclareceu Miguel inclinando-se para o interlocutor. Chama-se -Luiz da Silva; mas lá puzeram-lhe o nome de Luiz da Tóca, por ser o nome -d'este logar em que nasceu. Foi e nunca mais voltou—concluiu o velho, -por sua vez, com os olhos rasos d'agua. - -Um rubor de incendio subiu á face do desconhecido, que com fingido -esforço, como de quem se recorda disse: - -—Luiz da Tóca... Luiz da Tóca... Lembro-me muito bem; vivi muito com -elle, e somos amigos. - -No primeiro momento, os velhos quasi se julgaram ludibriados com esta -resposta: tão grande era a inverosimilhança do que escutavam! Pois não -haviam dado resultado as instantes e repetidas diligencias do cura -Carvalhosa, para descobrir o paradeiro de Luiz, e o acaso trazia-lhes ao -pé da porta uma testemunha, que em tudo os podia esclarecer! Porém, a -crença de seus corações n'uma Suprema Vontade, providencial e divina, -era forte, e não duvidaram de que Deus e os santos com quem se tinham -apegado, pudessem mais do que o virtuoso sacerdote. O accento de -sinceridade com que aquellas palavras foram ditas, a expressão de -bondade e espontanea satisfação do rosto do homem que tinham deante -d'elles, excluiam a possibilidade de qualquer ignobil mentira. O velho -Miguel, apesar de meio paralytico, logo se abordoou ao seu pau, para -erguer o corpo doente, com a energia dos antigos tempos; mas a commoção -tornava-lhe insufficiente o esforço. Mesmo sentado ainda poude dizer: - -—Pois, o senhor, é que já não sae d'esta casa. Se conhece o Luiz, se é -seu amigo, fica aqui comnosco para nos ajudar a saber d'elle e a -encontral-o. - -Luiza, apesar de a lingua se lhe recusar a exprimir tudo quanto lhe ia -na alma, attonita como estava, perguntou em voz tremula: - -—E em que terra encontrou vocemecê o nosso filho? Sabe onde estará -agora? - -O estranho não respondeu logo. A sua phisionomia denunciava excepcional -perturbação de contentamento, que os velhos não podiam apreciar por -causa da nevoa de lagrimas que tinham nos olhos. Approximando-se, porem, -dos dois, que uniu no mesmo abraço, disse soluçante: - -—Seu filho está aqui, meus queridos paes!... - -E passada que foi a primeira onda de alegria accrescentou: - -—Mas venho muito pobre! Só possuo estes farrapos que me cobrem. Se -soubessem quanto tenho soffrido! - -—Pobre!—bradou Miguel com a sua antiga energia, sahindo-lhe a voz do -peito, como o ronco d'um trovão do interior d'uma nuvem. Então de quem é -tudo quanto aqui temos? Não fostes tu que o ganhastes, homem!? - -E n'um gesto do seu braço revigorado pelo acontecimento, mostrava a -riqueza que havia: a casa afidalgada, a horta abundante, os campos -relvados que se extendiam para além, as videiras em promessas de -rebentação, e o bello muro que circumdava a quinta todo caiado de novo. - -Luiza, voltando os olhos ao céu, pronunciou com as lagrimas a -correrem-lhe em fio: - -—Nossa Senhora do Amparo ouviu as minhas rezas. Já podemos morrer em -paz. - - - - - CRESCE O MAR!... - - - (a Antonio Candido). - - -Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono! Azul amortecido no ceu e -a briza leve como o pensamento a perpassar na superficie da areia e a -arripiar-se nas penedias que debruam a praia. Baixamar socegado! -Balançam-se nos ares as brancas azas das gaivotas, que vão para o norte; -e as velas dos barcos dos pescadores parecem ao longe outras gaivotas a -emergir das aguas. Está deserto o areal; principia a nascer o marulho do -vago infinito, que vem rolando á superficie como voz cariciosa e meiga. -Avoluma-se de momento para momento, uiva, no começo como um leão -pequeno, principia a dar côr ao silencio, que desce com a tarde lá do -infinito céu. O magestoso sol fulgura, inclinando o facho de luz sobre -as aguas; a poeira d'oiro que o cerca, forma-lhe a fofa cama, onde -repousará durante a noite. - -Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono, que, gerando sensações -amoraveis em toda a natureza, attrahiu duas tenras creanças á admiração -do mar argentado, e do mysterio formado de tranquillidade e luz, que no -ar pairava. Eram dois irmãos, filhos de uma viuva, cujo marido o mar -escondera para não mais lh'o restituir, e que morava em frente das -ondas, na esperança de ainda ouvir a voz que a enamorara. O rapasito -teria sete annos, e a pequena talvez cinco... não mais de certo. -Enlevados na serena paz do universo, os leves corações palpitando de -satisfação intima, viviam juntos nas sublimes regiões do absoluto, os -innocentes, olhos pregados no reverbero prateado das aguas, os ouvidos -attentos ao marulho cantante que os chamava como se fôra a voz de seu -pae. Não era a primeira vez que na praia se encontravam escutando -aquella voz suave, d'um rythmo dominante pela dolencia; e até já em -muitas occasiões, a carinhosa mãe os prevenira contra as incontestaveis -maldades, que as ondas encerram. Porem todo esse pavor artificial se -tinha apagado na convivencia do mar, essas ondas que de longe vinham -crescendo em ameaças, desfaziam-se impotentes contra as penedias -dentadas da praia e a espuma branca e leve, como uma illusão, vinha-lhes -lamber a elles, humildemente, os pequeninos pés enterrados na areia. - -N'essa tarde calma e deleitosa, emquanto a mãe se demorava na sua labuta -de camponeza, Tone e a Zefa, contemplavam o mar, o pavoroso mar que lhes -prendera o pae, e reconheciam n'aquella tranquillidade bondosa um amigo -que lhes sorria para os namorar. Mostrava-se carinhoso e terno, as aguas -claras deixavam vêr no fundo branco as mais bellas das suas joias: -seixos semelhantes a ovos de pomba; pequeninas conchas vazias e cavas, -como petalas de rosas; algas multicores e rendilhadas; molluscos boiando -agarrados ao musgo das penedias uns, outros presos á pedra formando com -ella um só corpo inabalavel e insensivel. O anteparo dos rochedos -negros, que elles costumavam respeitar nos dias de nevoeiro como -phantasmas que se erguessem do abysmo, e que nas noites tempestuosas ali -permaneciam afrontando impavidamente o perigo, n'este dia e n'esta tarde -calma e deleitosa, eram serenos e fortes arrimos que os defenderiam -contra as ciladas das ondas. As repetidas provas que tinham da sua -estabilidade e solidez afoutavam-nos a consideral-os como protectores -devotados. Pois não era instavel a luz que desapparecia, o céu que -desmaiava, as aguas que se remechiam, a movediça areia que cedia ao peso -dos seus pequeninos pés? Era. Só a rocha, a rocha escura e aspera, lhes -merecia confiança; só ella reconheciam como bastante forte para resistir -ao mar e á furia das tempestades. Para aquellas consciencias nascentes e -timidas as pedras feias eram arrimo unico e protecção contra os receios -escondidos nas palavras de sua mãe, que sempre procurara inimisal-os -contra o mar. - -No areal extenso, branco como uma longa teia de linho, Tone levava Zefa -pela mão. Principiava o sol a avermelhar no horisonte. Mais uma vez os -seus inexperientes olhos soffreram o singular deslumbramento de vêrem no -meio da gloriosa chama, os anjos do paraiso com toda a sua bella -legenda; era para lá d'aquella entrada em fogo que existia o céu, o -logar escolhido para o Maravilhoso e Innarravel. Assim o indicou Tone -com a magnificencia do seu saber: - -—Olha Zefa: é o céu onde estão os anjos de Nosso Senhor. - -A pequenita ficou mais uma vez presa na contemplação da patria -celestial. O seu olhar azul prolongou-se para o infinito, n'uma visão -sublime de candura. O seu imaginar via todas as maravilhas na -athmosphera subtil e impalpavel, no doirado da luz, na angelical -brancura de figuras meigas como a sua alma innocente. - -—Como é lindo!—exclamou Zefa. - -Foram caminhando, pela branca areia, as mãos reciprocamente apertadas, -sentindo n'este contacto amoravel realidade de existencia e protecção -mutua. Dirigiram-se a um rochedo que se lhes offerecia em suave e branda -subida e d'onde podiam intemeratamente gozar tudo que os maravilhava. - -No mais alto d'essa pedra escura, roida pelas ondas, a grata aragem -agitava as leves camisinhas de pobre linho com que cobriam a sua nudez. -Como o dia estivera calido, sentiam agradavelmente a benefica sensação -de frescura passar-lhe nos cabellos, a amaciar-lhes a pelle. Do alto da -enorme penedia, que lhes era pedestal, lançavam olhos ao largo e -aspiravam o cheiro acre e forte que vinha das aguas que sussurravam. -Impavidos e cheios de toda aquella grandeza que se lhes impunha, -reconheciam-se enlevados nas maravilhas, que os sentidos percebiam nas -ondas e no céu. E Tone disse com effusão: - -—Olha o mar Zefa! É ali que está o pae! - -Apontou vagamente para esse infinito d'Além, que o olhar azul da -pequenita abraçou n'uma sombra de tristeza e saudade. Havia na sua -expressão de limpidez seraphica, alguma coisa de dôr ou meiga ternura, -que se espalhou pelo ar fóra escurecendo-o. Era ali que estava o pae! E -o que seria _ali_?!... - -O sol semelhava fogo voraz que incendiasse o céu. Parecia um instante de -perigo, tremendo para o universo, esse em que a immensa chamma irradiava -do horisonte. Só o grande poder de Deus, com um gesto formidavel e -omnipotente, poderia extinguir o brazido ameaçador! Se assim não fosse, -o que poderia acontecer á terra, ao mar e ás estrellas se essa cólera de -lume se estendesse a toda a amplidão infinita? Seria uma grande desgraça -reduzir a Nada tudo quanto era bello e grande e os maravilhava -enchendo-lhes a alma de grandiosas aspirações. A briza agitava-lhes as -camisinhas de grosso linho, os cabellos incultos fluctuavam e as duas -creancinhas viveram um momento em grande terror! - -Porem a intervenção providencial manifestou-se: o que era incendio -foi-se apagando, a luz tornara-se d'um deslumbrante alaranjado primeiro, -depois d'um roxo terno que franjava o azul. Uma nuvem que ao longe -estava suspensa sorria-lhes do alto com o seu roseo carinho. Parecia um -resto de tunica d'anjo, que andasse perdida no ar. - -Tamanho encanto sentiam as duas creanças, que nem davam pelo marulho das -ondas, que já se agitavam perto. E quando os seus bellos olhos sobre as -aguas desceram, entertiveram-se a contemplar o redomoinho variado que -ellas faziam, subindo lentamente até ao sopé do rochedo, para depois se -retirarem com humildade. Havia n'isto carinho e não cólera; a espuma, -tão bella e tão branca, vinha tremendo sobre o dorso da vaga até se -desfazer; as algas vermelhas, verdes e azuladas fluctuavam dormentes -como n'um berço; os lindos seixos que formavam mosaico no fundo -encrespavam-se, como se fossem de cera molle. Muito unidos, encontrando -no corpo um do outro mutuo apoio, observavam interessados aquelle -crescer do mar, posto que muitas vezes tivessem visto um tal phenomeno -que sempre os encantava. A onda é constantemente nova: nunca tem a mesma -força em dois momentos successivos, nem o seu enrolar é de forma egual, -em duas d'estas irmãs gemeas nascidas par a par; o facto de se fazer e -refazer perpetuamente dá a sensação d'um inicio de vida que surge. Por -isso Tone e Zefa, mudos e risonhos, vendo uma vaga avolumar-se sobre -outra vaga, consideravam quanto havia de carinhoso e amigo n'estes -beijos da espuma á penedia onde estavam. O marulho grosso que vinha lá -de longe inchando sempre, até rebentar na praia, entorpecia-os -deliciosamente, deixando-lhes nos ouvidos uma ressonancia plangente. Era -musica suave e rara, cuja melancolia se casava de modo admiravel com -esse gradual escurecimento do céu, da terra e do mar, que os envolvia -como n'um mysterio. - -A tenue sombra que vinha do horisonte em redor, diluida em tenue -orvalho, cercava-os d'uma atmosphera de goso triste que lhes desmaiava a -expressão por sentirem muito. - -Crescia o mar, a luz do sol apagava-se, já o pestanejar das estrellas no -céu apparecia. Perto, mui perto, conheciam o bater das ondas na base do -rochedo e o galgar das aguas pelo areal acima. Aquellas pequeninas almas -voavam na amplidão, como serenas e doiradas nuvens, que levassem todas -as celestiaes chimeras que haviam sonhado. O que os seus olhos ainda -viam, e o que os seus ouvidos percebiam eram coisas que lhes embalavam o -entendimento levando-o para mundos sidereos e encantadores. Esse gemer -da sombra que escurecia o mar immenso, o rebrilhar da abobada celeste na -grande festa da noite outomnal, faziam-lhes caricias no cerebro, sem -lhes causar pavor. Esquecidas as existencias terrenas, só viviam na -amplidão infinita, as pobres almas ingenuas!... - -Os seus corpos sem peso, vagueavam suspensos no mundo ethereo; a -imaginação alargava-se-lhes como o fumo do incenso ao evolar-se dos -thuribulos sagrados na festa paschal. Iam intemeratamente por essa -amplidão do mar, fortalecidos pelas idéas de mysterio com que a noite -estrellada seduz as mentes infantis. - -A sombra espessa cahira pesada e egual sobre a rugosa superficie das -aguas, dissolvendo os rochedos da praia, esfumando, em tenue esbatido, o -terreno onde estava a casa de moradia. Encantava-os a phosphorescencia -das ondas, enfeitiçava-os o lacrimar argenteo do ceu, sentiam os -corações subir em extasis... De todas as realidades só a brancura da -areia percebiam estendida como um lençol e o ruido do mar que regougava -a seus pés. Os ouvidos, porém, já de muito habituados a este som tantas -vezes ameaçador, quantas muitas carinhoso e meigo, não presentiram que -elle lhes rugia de todos os lados. Estavam cercados pelas aguas em -revolta e só d'isto tiveram a primeira suspeita, quando pelo rochedo -subiu uma onda, cuja espuma em flocos lhes voou para os cabellos -incultos que fluctuavam ao sabor da brisa. A pequenina Zefa soffreu um -rebate de susto, e agarrando-se mais fortemente a seu pequeno irmão, -gemeu receiosa: - -—Tenho medo!... - -Tone despertou do sonho de poeta em que vivera! Como tivesse mais dois -annos, sentiu o peso das suas responsabilidades. Era escuro e o bramido -erguia-se energico e temeroso. Lembrou se então de descer da rocha e -fugir ao perigo; mas, circumvagando o olhar inquieto, logo reconheceu o -bloqueio que o mar lhes estabelecera. Titubeante, mas querendo fingir -coragem, disse: - -—Não tens medo Zefa. A gente vae-se já embora... - -Que especie de soccorro esperaria Tone, sabendo que todos os dias -aquelles rochedos da praia se escondiam nas aguas, amedrontados pela -furia do protentoso mar?! Talvez o não soubesse dizer; porém o coração -esperançado, sempre ouvira que, para lá da abobada celeste, existia o -omnipotente Deus que valia aos desgraçados nas horas dos grandes -infortunios. Um acto simples do seu querer, manifestado sobre o mundo -n'um gesto formidavel, seria logo obedecido pelos mares e pelos montes, -pelas estrellas e pelo sol! Era só apegarem-se com elle, levantarem o -pensamento até junto do seu throno celestial, todo oiro e luz, e ali -supplicarem cheios de vehemencia e fé! - -Precisavam fazer um grande esforço, pois tinham de ir para além de tudo -quanto se via no espaço infinito. E logo que o Pae-do-céu os ouvisse, -aquelle mar enfurecido se tornaria bonançoso, a sua voz horrenda seria -apenas um cantico, as aguas recuariam mansas até os confins do mundo, e -elles veriam desenrollar-se diante dos seus pequeninos pés uma estrada -singella e vulgar, que os conduziria ao seu casal. E o coração -amargurado e inquieto de Tone, tumefeito de consoladora esperança, voou -pelos espaços, em quanto cahia supplice sobre a rocha erguendo as mãos e -aconselhando: - -—Resa muito, ao Senhor, Zefa! - -A pequenita ajoelhou como elle ajoelhara; pôz as mãosinhas, fitou nas -estrellas os olhos cheios de lagrimas. Não sabia ainda resar, mas os -seus labios delgadinhos imitavam n'um anceio as palavras fervorosas que -seu irmão dizia alto: «Padre nosso, que estaes no ceu...» - -O mar não se apiedava. Os seus bramidos eram violentos e colericos. De -onda a onda as aguas subiam mais. A todos os momentos os corpos lhes -eram salpicados de espuma e as pobres camisinhas de linho grosso já -estavam encharcadas. Zefa, d'um primeiro lamento timido e perigoso, foi -subindo a um pranto sentido. Chorava copiosamente em gritos, mas a -vontade energica de Tone ainda procurava sustental-a contra esta -fraqueza. Sem uma lagrima, sem uma ruga de pavor no rosto e com voz -clara animou-a: - -—Cala Zefa, não chores. O pae está ali—(apontou o vasto oceano)—e vem -buscar a gente para irmos todos para a nossa mãe. - -Acreditaria Tone, n'este providencial soccorro?! A furia do mar -augmentava de instante a instante, as vagas ameaçavam-no de mais perto, -elle continuava com a irmãsinha estreitada contra o seu corpo valoroso. -Ambos esperavam, com os cabellos empastados e as camisas colladas á -pelle, que da infinita bondade do céu viesse o soccorro que os -restituisse aos braços de sua mãe. Do mysterio insondavel da noite é que -viria a voz salvadora, ou fosse na vontade protentosa de Deus abrandando -a inclemencia do mar, ou na força amorosa de seu pae cuja sombra tantas -vezes conheceram a vaguear sobre os rochedos e sobre as aguas!... - -E sua mãe? aquella boa alma consoladora que os aconchegava ao seio nas -crises das doenças?! Zefa entregava-se á protecção de Tone; este, de -animo varonil, alguma coisa via surgir ou do ceu omnipotente, ou do mar -mysterioso, ou da terra sempre querida. - -Da terra querida chegou-lhes realmente o primeiro som d'uma voz -fortalecedora e meiga, quando estavam no maior desespero. -«Tone!»...«Zefa!»...—dizia um grito sahido do medonho seio da noite. -Havia n'esse grito mais desespero e mais lagrimas do que furia no -bramido do mar, e gottas d'agua nos seus abysmos insondaveis. Era a voz -da Mãe que procurava seus filhos na praia e que no meio d'angustias os -pedia á immensa escuridão. Aquelle som carinhoso e desesperado chegou -aos ouvidos dos apavorados innocentes, quando os seus pequeninos pés já -se mergulhavam na agua, que recuando mais uma vez pareceria arrependida -da propria crueldade. - -«Mãe!... Mãe!»...—clamaram tranzidos de medo, com o ultimo vislumbre de -esperança posto na voz imprecativa e meiga, que atravessara o medonho -falar das ondas. Ouvil-os-hia a desventurada? Parece que sim, por certo -guiada pelo coração, pois que n'um fugaz momento de calmaria clamou com -mais força ainda: - -—Onde estaes filhos!... - -Elles responderam em desfalecido choro, mas vehementes com a energia do -desespero: - -—Aqui mãe!... - -Sem duvida aquelles olhos d'amor adivinharam o lugar; e o perigo, que -era eminente. Para os filhos se dirigiu, como uma loba, como uma leôa, -energica, impetuosa, inconsiderada, guiando-se apenas pelo instincto que -vinha do fundo das suas entranhas. Do rochedo onde os filhos estavam -estreitados n'um supremo abraço, separava-a o mar que se balouçava -dolentemente, crescendo a cada nova onda, ameaçando-a com dentes e -garras sanhozas de tigre. Na limpidez do céu estrellado via os dois -pequeninos corpos muito unidos, fortalecendo-se cada um na fraqueza do -outro. - -A mãe, impellida pela energia da sua amoravel loucura, entrou -resolutamente na agua animando as creanças com a palavra clara, -encorajando-as com o denodado exemplo. - -—Esperae, esperae! Não vos atireis por ora, filhos! - -Suppunha ter ainda tempo de se approximar do rochedo e recebel-os nos -braços para com elles fugir para o humilde tegurio. A frialdade da agua -não lhe diminuia o calor do sangue em fervura, o impeto das ondas não -lhe quebrava a força dos musculos, o terror do abysmo não a cançava. - -Ia avançando com prudencia, já immerso o corpo até aos hombros, os -braços levantados para animar os filhos, com a sua approximação. Fazia -todos os esforços de valor moral, para que elles acreditassem na -efficacia d'aquelle auxilio. As criancinhas, silenciosas, com o terror -vago nos olhos, percebiam o lento chegar d'aquella mulher fragil, -sublimada por uma coragem indomita. Mas a valentia do mar augmentava de -instante para instante. Quando a mãe sentiu que se ia afundar, atirou-se -n'um arranco sublime contra as encapelladas ondas. Os filhos, por -instincto, logo a imitaram para serem recolhidos n'aquelles braços de -caricias. Estreitaram-se fortemente, uniram-se n'um supremo esforço; -porem, a furia impiedosa do mar separou-os logo. Os corpos fluctuaram -até que uma vaga soberba e altaneira os cobriu, envolvendo-os n'um -sudario de espuma, levando-os para o negro abysmo, onde iam encontrar a -sombra querida do pae que por lá vagueava. - - - - - O GAMARRÃO - - -Dia de finados, dia lugubre, dia triste!... Pelas oito horas da noute, -dos lados de Serpins, sentiu-se grande reboliço. Muita gente a correr. -Francisca, a criada do morgado, pedindo soccorro n'uma voz esganiçada. -Seriam ladrões? pegaria algum fogo? armar-se-hia qualquer desordem? -Ninguem o sabia. Para lá se dirigiam em tropel homens armados de -roçadoiras, espingardas velhas e varapaus—todos n'uma attitude -combatente, falando alto! O sacristão direito á torre para tocar a -rebate, mulheres e creanças alarmando a villa correndo e gritando, os -prudentes a fecharem as janellas para se não metterem em barulhos, nem -servirem de testemunhas... era o que se via. - -Averiguou-se, por fim, que o morgado Gamarrão se encontrara -repentinamente mal com uma colica, resultado de uma copiosa ceia de -castanhas com geropiga. Homem sanguineo, rebolava-se pelo chão da -cosinha como uma pipa, dava urros que nem um touro, os olhos -esbogalhados rebentavam-lhe das orbitas. Dous valentes creados sopesaram -o moribundo como um sacco de trigo e atiraram-n'o sobre a cama. O -cirurgião Mendonça, seu velho inimigo, veio quando elle já nem respirava -e dirigindo-lhe a ponteira da bengala, desprezou-o: - -—Resem-lhe por alma, se é que a tinha. Está prompto, não torna a dizer -asneiras. - -O mulherio, em volta da Francisca, acompanhava-a na sua grande dôr, -chorando com ella, consolando-a com delicadeza. Não se comprehendia o -sentimento da rapariga por este mastodonte avaro e gordo, o mais -embirrento homem das redondezas; porém ella, recusando consolações, -explicou: - -—Não que era muito meu amigo. Tinha-me promettido umas arrecadas para o -Natal. Ai! meu rico amo! - -Porém todos estavam certos que o morgado lh'as não daria. Era uma alma -de presunto, como dizia o Mendonça, não tinha amor a vivente. Durante um -longo periodo, talvez de trinta annos, ninguem soube que o Gamarrão -escrevesse ou recebesse uma carta. Orphãos, viuvas e necessitados que á -sua riqueza fossem buscar amparo, em vez de beneficio, tinham como certo -o abraço selvagem d'este urso indomavel. - -O seu unico herdeiro vinha a ser um sobrinho residente em Trancoso. O -administrador do concelho, o Menezes, promptificou-se a escrever ao -collega de lá, participando-lhe o occorrido. Não se fez esperar a -resposta telegraphica, dizendo que em breve chegaria a Serpins o dr. -João Gama, sobrinho do morgado. - -Gente credula em demasia! Sem nenhuma especie de informações, logo se -deitaram a imaginar este homem differente do fallecido. Que seria -risonho e condescendente, esmoler e affavel. - -Prepararam-se para o receber, affectuosamente nos braços, logo que elle -chegasse e resolveram consideral-o como o bemvindo. - -A tarde em que elle appareceu era lamacenta e chuvosa; as pessoas, as -arvores e o ar mostravam-se fuscos e encebados. Quando viram o dr. Gama, -julgaram assistir á ressurreição do tio—anafado, soberbão e de tal -volume que lhe custou a sahir da diligencia. O cocheiro commentou: - -—Devia pagar dous lugares. Já em Braga foi a mesma chalaça, para o -metter dentro. - -Porém, elle, ao encontrar-se fóra d'aquella velha arca de Noé, sentiu a -ampla sensação da liberdade conquistada e mostrou-se sorridente, -benevolo e acariciador. A primeira impressão foi boa e não desmanchou o -que tinham presumido. - -O administrador, ao voltar de Serpins, affirmou na botica: - -—Temos homem. Talvez se faça alguma cousa. - -Ao que o Mendonça retorquiu, chupando o cigarro: - -—Elles são parentes, meu amigo!... - -Increparam-n'o pela duvida. - -—Então você não admitte... - -—Admitto tudo... mas não me cheira. - -Que deixassem a cousa por sua conta, pediu o Menezes, premeditando um -golpe de grande politico. A questão era de geito. Todos comem palha, o -caso é saber-lh'a dar. Má impressão não lhe fizera, e uma carta que -recebera do collega de Trancoso, avivara-lhe as esperanças. E logo no -dia seguinte de manhã apresentou-se em casa do _novo conterraneo_, -palavras estas que pronunciou de modo a imprimir-lhes a ideia de -naturalisação official, de uma especie de carta de cidadão, passada ali -mesmo por elle. - -De tudo se fallou. O Menezes gostava de ostentar importancia—que tinha -relações, que recebia muitas cartas, que em Lisboa falava com ministros. -Sendo ferrenho regenerador, affirmava que o Lopo, o Barjona e o proprio -Fontes o tratavam affavelmente e o recebiam em cavaqueiras intimas. -Fazia gestos largos, conquistando, dirigindo, aconselhando. - -—Seu tio—disse depois de conveniente preparação—era muito estimado entre -nós. Esmoler, chão no tracto, bondoso, o que se chama um coração aberto. -A sua piedade e religião eram proverbiaes. - -O dr. Gama limpou duas lagrimas que lhe humedeceram as palpebras. -Conservou-se silencioso por momentos e em tom compungido respondeu: - -—Agradeço-lhe as suas palavras, que sei verdadeiras. Conheci esse -coração magnanimo, esse homem antigo, esse tio admiravel! Era tal como -diz, um santo, um bom. - -—Julguei que nunca vira seu tio...—balbuciou timidamente. - -—Durante estes ultimos vinte annos carteamo-nos sobejamente. Os nossos -corações uniram-se em bellas paginas, como só elle as sabia escrever. - -—Não o apreciei debaixo d'esse ponto de vista, mas sim na convivencia. -Era um homem altamente religioso e não d'esses modernos que chasqueiam -dos bons principios. Uma festa, aqui popularissima, á Senhora do Regaço, -e que elle todos os annos fazia á sua custa, com pompa e luzimento, -dera-lhe entre a nossa gente verdadeira nomeada de bom catholico. N'este -ponto julgo adivinhar que v. s.ª não quebrará a tradicção... - -O dr. Gama concentrou-se. Tomou aspecto reflexivo, enguliu em sêcco duas -vezes. - -—Se meu religioso tio—respondeu—a cuja memoria tanto devo, costumava -fazer a festa da Senhora do Regaço, com pompa e luzimento, não serei eu -que venha interromper essa piedosa pratica. Preciso, porém, consultar os -seus livros e papeis secretos, para conhecer os precisos termos em que -elle procedia, e da mesmissima fórma eu proceder tambem. - -—Deixaria elle apontamento a tal respeito?— —observou o duvidoso -Menezes—Isso não offenderia a sua modestia?... - -—Não, de certo não. Conheço a fundo a alma de meu tio, pela nossa -activissima correspondencia. Esses documentos e livros devem existir; -estou certo que existem. - -Causou estranheza tal revelação. Teve, porém, o valor de alegrar e -alimpar a embirrenta e sordida memoria do avaro Gamarrão. Quantas -virtudes n'este mundo se mascaram de vicio, para não as offender a luz -crúa da publicidade!—consideravam philosophicamente alguns homens -meditativos d'aquella terra. - -Affluiu muita gente a visitar o novo morgado de Serpins. - -De aldeias proximas vieram, por caminhos pedregosos, varios -ecclesiasticos e proprietarios montados nas suas eguas lanzudas. - -Falaram n'elle para deputado do circulo e d'ahi cada um tirava -esperanças de engrandecimento pessoal. O provedor da Misericordia, -animado pelo bom acolhimento que tivera o Menezes, procurou estar só com -o homem, para lhe recommendar á generosidade o hospital, cuja vigilancia -a seu cargo tinha. - -—Seu caridoso tio, meu velho amigo, era o melhor protector da Santa -Casa. Nas festas do anno e no anniversario da morte da senhora morgada, -tinhamos sempre presentes de roupas, gallinhas e dinheiro. Sem um tal -auxilio não poderiamos viver, e ouso pensar que o seu continuador, o seu -herdeiro, não nos faltará igualmente com a sua protecção. - -—Se meu caridoso tio—retorquiu solemne—cuja memoria tanto respeito, -auxiliava o hospital d'esta terra com roupas, gallinhas e dinheiro, não -serei eu que lhe desmereça a santa memoria, deixando de o fazer. -Preciso, porém, de consultar os seus livros e papeis secretos, para -conhecer os precisos termos em que essas dadivas eram feitas, para as -continuar. - -—E haverá, porventura, esses documentos? - -—Decerto! Oh! quasi que o posso jurar! Eu conhecia-lhe profundamente os -habitos. - -Depois d'isto os cavalheiros mais grados reuniram-se na idéa grandiosa -de solemnes exequias por alma do morgado de Serpins. O presidente da -camara, homem circumspecto e idoso, foi encarregado de levar este -projecto ao regozijo funebre do dr. Gama, que se mostrou sensivel a taes -provas de affecto, confessando: - -—É bem certo que a virtude sempre terá o condigno premio, digam o que -disserem scepticos e maldizentes! - -O presidente ponderou: - -—Muito esperavamos d'este querido conterraneo. Ainda ha bem pouco tinha -promettido auxiliar-me n'uma empreza difficil. Ha aqui uma rua que é a -grande arteria da nossa circulação. Estreita n'um ponto, para se alargar -é necessario demolir um pequeno predio, que pertencia ao senhor seu tio -e presentemente a v. s.ª pertence. Promettera me elle que essa -expropriação seria gratuita e a camara da minha presidencia, para -perpetuar tão valioso feito, tinha resolvido dar á arteria em questão, -que será no futuro uma especie de avenida, o nome do doador. A -Providencia mandou outra coisa e agora é o nome de v. s.ª que está na -nossa ideia... - -—Isso não! o nome d'elle é que será perpetuado! Se meu generoso tio, a -cuja memoria tanto devo, havia decidido concorrer para essa obra pela -fórma que me diz, não serei eu que deixe de completar o seu pensamento. -Preciso, porém, lêr os seus livros e papeis secretos, para conhecer os -precisos termos em que esse tio patriota desejava fazer a cedencia. Todo -o meu empenho é cumprir á risca a sua vontade... para mim sagrada e para -todos saudosa! - -—Modo de pensar e proceder verdadeiramente fidalgo! Receio, porém, que o -senhor morgado não tenha deixado escripto... que... - -—Tudo escrevia. Durante mais de vinte annos eu conhecio-o no intimo. Era -um verdadeiro litterato, para a familia. Eu tenho quasi a certeza, ia-o -mesmo jurar sobre umas Horas, se necessario fosse, que meu chorado tio -deixou alguma cousa a esse respeito... Escrevia tudo, mesmo tudo, não -imagina! Ando em busca das suas memorias e vontades e hei de -encontral-as. Já mesmo alguma coisa encontrei—o rol das suas rendas em -divida. Escrevia tudo, creia... - - * * * * * - -O dr. Gama agradecera individualmente as homenagens prestadas ao nome do -seu antecessor. Exequias magnificas; concorrencia de todo o clero do -concelho; missa a tres padres; no côro rabecas, clarinetes e flauta; um -sermão do afamado padre Carapeta, exalçando por ahi além as virtudes do -fallecido!... - -Um poeta de veia funebre escreveu uma elegia que foi impressa e -divulgada. Um tabellião e o escrevente da fazenda organisaram -correspondencias para os jornaes do Porto, avultando os factos. N'uma -terra pequena não se podia fazer mais e o juiz de direito, homem -entendido, affirmou que nas grandes se não faria melhor. - -Todo o mundo julgava o dr. Gama contente e sazonado. Foi, porém, -justamente depois d'esta solemne demonstração que elle começou a -mostrar-se sibyllino e rijo. Não dava occasião a largas conversas, e as -que não podia evitar, guiava-as para um campo generico, pronunciando -sonoramente as palavras do alto do seu magnifico busto. Uma vez que -manhosamente o levaram, n'uma especie de visita, ao predio a demolir -para o alargamento da rua, elle deixou-se conduzir, achou magnifica a -idéa, mas evitou fazer qualquer promessa compromettedora. - -Quereria este Gama faltar áquillo em que já concordara? Não podia ser... -julgavam-n'o incapaz... era talvez feitio... No emtanto tornava-se -urgente uma aclaração e para a obterem concertaram-se o Menezes, o -Provedor e o Presidente, fazendo-se acompanhar do Mendonça, que era -desembaraçado e não tinha papas na lingua. Vestiram se apparatosamente -de sobrecasaca, chapéu alto, luva... tudo como o caso requeria. Entraram -n'aquella sala humida e fria da casa de Serpins. As janellas davam sobre -um laranjal, cujo verde escuro entenebrecia o ambiente. O tecto -abahulava-se n'uma intenção de amplitude, concentrando a claridade. As -cadeiras dormitavam aos lados, quasi em abandono! - -Palraram sobre todas as cousas—lavoura, demandas, politica, -melhoramentos... e n'um a proposito bem aproveitado, o presidente pôz -timidamente a questão: - -—V. s.ª bem sabe... Temos os nossos orçamentos a mandar para cima... -Quereriamos alguma cousa de certo. As suas promessas... - -—Promessas, promessas... Eu por mim ainda não tive tempo de pensar a -sério nos objectos das nossas ponderações... - -—Mas os nossos compromissos... a festa da Senhora do Regaço á -porta...—insufflou o Menezes. - -O provedor accrescentou: - -—Os doentes necessitados não pódem esperar. V. s.ª comprehende... - -—Comprehendo, porém são cousas difficeis. Immenso que fazer! Uma casa -grande e muito embrulhada na administração. Caseiros, rendas, generos, -gados, o diabo! Ainda não pude... realmente ainda não pude... - -O Mendonça, que era azedo, esperto e embirrava com o morto, aproveitou o -momento para desbravar o terreno e ao mesmo tempo lançar grossa mancha -em todos os Gamarrões, pois fôra sempre seu parecer que este sobrinho -equivalia á besta do tio. N'um tom que, á primeira vista, se poderia -julgar inconveniente disse: - -—Meu caro senhor, cartas na mesa. Estes cavalheiros tiveram de v. s.ª -solemnes promettimentos. Fundados n'elles fizeram declarações lá fóra e -com todo o direito vêem exigir que v. s.ª cumpra a sua palavra. Ora eis -ahi está o que é, sem mais refolhos. - -—A memoria de seu tio tudo merece—insinuou o presidente, para avelludar -a dura arremetida do Mendonça. - -O sobrinho do Gamarrão atirando solemnemente com o busto para diante, -ergueu a cabeça, e de palpebras meio cerradas, affirmou: - -—Se meu nobre tio, cuja memoria eu venero e acato no mais alto grau, -costumasse fazer todas essas dadivas, que os senhores dizem, de tal -teria deixado apontamento ou lembrança que ainda não encontrei. Porém -que encontrasse ou que encontre, eu desde este momento solemne declaro -que acho abominavel, (abominavel é o termo!) este procedimento de -quererem influir no tribunal da minha consciencia! É cousa que se faça, -o perturbar uma consciencia, seja ella de quem fôr, de um rei ou de um -mendigo?! A um homem delicado e quasi timido, como eu, impôr-lhe um tal -onus e n'esses termos! Não se poderá taxar de indelicadeza, de violencia -e até de coacção!? Eu recuso e recuso terminantemente. - -Foi terrivel o assombro! - -Os quatro olharam-se sem comprehender! Depois das exequias, do sermão, -da poesia, das correspondencias, sahir-se com esta! O Mendonça, azedo e -ironico, atirando com a ponta do cigarro para o sophá, retorquiu em voz -levantada: - -—Lérias, cantigas!... O que você não quer é dar nada, eis ahi está. Por -força havia de ser um avarento como o jumento de seu tio. Pela cara se -lhe tiram as obras. É um Gamarrão segundo. - -E retirando-se após os outros, que já se dirigiam para a porta, -accrescentou: - -—Um alarve d'estes só se ensinava com meia duzia de lambadas. É o que -elle merecia. Grandissimo pulha! - -O dr. Gama ficou estarrecido e apopletico. Que procedimento inaudito! -Que formidavel canalha! Correu á varanda trasbordando de impetuosa raiva -e vendo-os ainda no quinteiro gritou lhes: - -—Comedores! Nem vintem! Ouviram seus comedores!? - -O Mendonça voltou-se e n'um gesto de punhos cerrados aggrediu-o: - -—N'essas ventas, n'essa cara de cabaça é que devia ser! Grandissima -cavalgadura! - -E todas as bellas esperanças e promessas foram poeira levada pelo vento -d'esta discordia, derivada d'uma velhacaria dupla. - - - - - O CALVARIO DO AMOR - - - I - - -Seriam duas horas d'uma fria noite de março, quando a cavalgada sahia o -largo portal do Corcovado, em direitura á egreja da freguezia, que -ficava a uma boa hora de distancia. - -A noiva, joven e formosa, com vestido de seda clara semeado de florinhas -azues, montava soberba mula, ajaezada á hespanhola e coberta de valioso -teliz de veludo encarnado com brilhos d'oiro, peça antiga na casa de D. -Bento d'Osma, o ditoso noivo, que aos sessenta annos ia receber como -esposa a encantadora Maria. Pelo caminho aspero e pedregoso, ladeado de -pinheiraes sombrios, de penedias soberbas, de campos ferteis, de -precipicios fundos onde grasnavam aguas tumultuosas, sentia-se a -animação da extensa cavalgada. As lumieiras, que os creados sustentavam -altas, erguendo os braços para aclararem maior area do caminho, -produziam sombras phantasticas que se espalmavam nos muros e deitavam -nos campos, dando a este quadro de vida commum, aspecto tão singular que -ao longe pareceria festa de demonios em delirio. As aves silvestres e os -animaes bravios que tal presenceassem, acordados do seu repouso, assim o -deviam pensar, pois fugiam uns voando, outros correndo e sumindo-se -todos no denso negrume da noite. Ia na frente a noiva, delgada e airosa, -dentro do seu vestido claro, os cabellos negros e fartos ornados de -flores naturaes, as mais bellas flores dos jardins d'Osma, onde as havia -raras e viçosas todo o anno. Ao lado de Maria, D. Bento, ainda vigoroso, -montava magnifico cavallo baio adrede comprado para este acto solemne. E -logo a seguir o pae da airosa menina, o José Pereira do Corcovado, da -conhecida casa do Corcovado e seus quatro filhos, Manuel, Thomaz, -Vicente e José, rapazes valentes e destemidos, pimpões de varrer tudo em -romarias e feiras, quando se junctassem os quatro. Cercava-os o maior -numero das lumieiras, para acautelarem a noiva contra qualquer estorvo -do caminho turtuoso e difficil, e assim assegurarem tambem aos que -vinham atraz, transito livre. Estes eram pessoas de differentes edades e -feitios; senhoras velhas de vestidos serios de seda preta e meninas -novas todas de claro, desde a cor de rosa virginal até ao verde-prado -que é esperança. Os homens antigos estadeavam as suas casacas de gollas -altas e bofes nos peitilhos das camisas; os rapazes d'agora vestuario -delambido e collarinhos pegados á pelle do pescoço. Havia alguns padres -na extensa cavalgada, de sobrecasaca grave, bota eclesiastica de borla -no joelho, ou bute simples nos mais pobres que não tinham para -abastanças, volta no pescoço, e deitando a sua sentença latina do alto -das suas eguas de farta cauda e largo ventre prolifero. Os da -rectaguarda mofavam do velho D. Bento, pela desproporção na edade com -Maria, e alludindo á violenta e conhecida paixão, que por ella tinha, o -João da Cunha, da casa da Maceira, disse um conceituosamente: - -—Póde muito bem ser um segundo tomo do velho D. Thomaz que se casou com -a D. Paulina, morgada da Cerdosa[2]. - -—Que lhe preste—accrescentou Frei Ignacio pitadeando-se. - - * * * * * - -Era realmente coisa sabida que João da Cunha amava perdidamente Maria; e -tão perdidamente a amava e tão de receiar era uma vingança dos rapazes -da Maceira (que tambem eram quatro e não inferiores em valentia aos do -Corcovado), que os irmãos da noiva iam adeante a guardal-a e promptos -para tudo. Arrebatando-a ao amado preferido, levavam-na juncto do altar -para a entregarem ao morgado d'Osma, senhor de Osma e de muitas -propriedades de Minho e Douro. João só podia alardear boa linhagem e -muito amor, quanto a haveres a casa era pequena e filhos muitos. Quando -n'isto falaram ao velho do Corcovado desatou n'um berreiro de espantar -lobos: «que amor sem riqueza era bonito, mas julgava-o destempero; que -se lhe queria a filha viesse pedil-a trazendo titulos de propriedade -para a merecer. Elle por sua parte, tinha boa casa; mas herdeiros -cinco». - -—Portanto, que tire d'ahi o sentido—rematou para o enviado. - -O da Maceira que era ousado e temerario approximou-se um dia do velho e -perguntou-lhe de cabeça alta: - -—Como quer o senhor José Pereira que eu arranje assim de repente -dinheiro? - -—Isso é comtigo e não commigo. - -—E com quanto se contenta?—disse sarcastico. - -—Com muito; dinheiro quanto mais melhor—respondeu o velho no mesmo tom. - -—E quanto tempo me dá para arranjar isso com que lhe possa comprar -Maria? - -—Ella não é negra. Não te me faças birbante que se os meus rapazes -ouvem... - -—Bem me importo com ameaças! Peço um anno, para ir ao Brazil entender-me -com meu tio Antonio, que lá tenho. Acceita? - -—Vae ao Brazil, vae onde quizeres, eu já falei. - -E voltou-lhe as costas sem mais ceremonias. - -O rapaz sahiu o portal do Corcovado com uma batalha no cerebro. A sua -idéa n'aquelle instante, foi roubar violentamente Maria, fugir com ella -para sitio alpestre e ignorado, e lá viverem vida selvatica d'amor, -sustentando-se de leite e fructos da terra. Chamava-o, a grandes vozes, -o coração, para essa existencia poetica, altiva e nomada, querida da -imaginação de todos os independentes, como apropriada á vida feliz. -Alimentarem-se de caça, do mel das abelhas, de medronhos e hervas; -beberem o leite, a limpida agua das fontes por escudellas de madeiras ou -de cortiça; vaguearem no silencio magestoso das mattas escuras, pouco -conhecidas dos homens; suspirarem juncto das estrellas na amplidão das -serras altas, absorverem a largos pulmões o ar fresco e aromatico das -brizas que vem dos codeçaes floridos e das urzes sempre verdes... era o -que lhes deleitaria a sensibilidade, irmanando-os com os pastores, com -os anjos e com os poetas. Nos primeiros colloquios d'amor, que tivera -com Maria, quando ainda eram creanças e simples, já detalhavam a vida -dos ermos, baseando-a no aspecto ditoso e feliz dos pegureiros, que na -primavera subiam ás montanhas com os seus rebanhos, e no que sabiam de -contos de fadas e moiras encantadas. Era essa existencia que lhes -convinha: uma cabana e dormir entre a lã das ovelhas, imaginar ao som -gemente dos regatos e deleitar os olhos no azul infinito que não tem -fim—um viver só pelo goso de existir e nada mais. - -Então ninguem sabia ainda que elles se amavam, a flor doente de -sensibilidade que lhes estava rebentando no coração era apenas -presentida pelas ingenuas creanças. A modo que iam crescendo tomava esse -sentimento vago uma fórma mais definida e concreta, os olhos do corpo, -ensinados pela experiencia, iam corrigindo as incertas aspirações da -alma contemplativa e um dia disse João a Maria: «Quando nos casaremos -nós?»; ficando absortos n'um spasmo de mente a voarem pelos espaços -sidereos. - -Casar! palavra magica e dolente em que tudo se comprehende e pouco se -diz. Seria só a união dos corpos? Seria a harmonia dos corações? Seria a -orchestração das palavras melodicas que sentiam nos ouvidos, quando de -noite pensavam um no outro? Que seria?!... O contacto das suas pelles, -quando se abraçavam e beijavam nos brinquedos infantis, dispertava-lhes, -por vezes, fulgurações no cerebro, chispas nos nervos, deleites -celestiaes. Casar seria a absorpção de dois entes n'um ente novo e mais -complexo; mas o casar ideal, a completação ambiccionada era fugir, não -ver homens, nem casas, nem mares turbulentos, e só conhecer serras -tranquillas, arvoredos mysteriosos, e animaes amigos. Poderiam realisar -estas sublimes aspirações?... - -Foram crescendo os corpos; adelgaçava-se a nuvem em que divinamente -viviam occultos; era mais palpavel a realidade, João e Maria para -casarem precisavam merecer-se. Por isso elle foi principiar os estudos, -com idéa de seguir uma carreira, que lhe desse no mundo uma situação. -Maria ficou na aldeia, entre as mesmas arvores, contemplando os mesmos -penhascos e o mesmo céu, e, quando não teve comsigo João, cruciante foi -a sua dôr. Porém logo nas primeiras férias todas as saudades se diluiram -e a alegria d'esse primeiro encontro e dos seguintes compensara-os da -magua da primeira separação. - -O velho da casa do Corcovado, mais experiente e sagaz do que os filhos, -foi quem primeiro deu pelo caso. Não lhe convinha: determinou acabar -aquillo d'uma vez. Formou uma assembléa com os seus rapazes: fechando-se -n'um quarto com elles, expoz o caso e pediu-lhes alvitre no modo de -proceder. - -—Isso dá-se cabo d'elle, é o melhor—disse Thomaz, o de genio mais -violento. - -E o Vicente secundou-o: - -—Sahe-se-lhe ao caminho longe d'aqui, quando vier a férias; -arruma-se-lhe um estalo na cabeça e enterra-se bem fundo n'um campo, -onde ninguem o encontrará. - -—Não é preciso tanto—disse o velho concentrado e tenaz. O D. Bento -d'Osma gosta da pequena; porque já m'o disse. Maria fez desoito; -arranjam-se os papeis em segredo, chama-se aqui sem ella o esperar, -fala-se-lhe tezo, e casam-se sem dar tempo a que o marmanjo consulte os -irmãos. - -—Que nós não tememos—disse o Manuel, o mais velho, applaudido pelos mais -novos. - -Maria por um acaso feliz estava no quarto contiguo e como falassem alto -ouviu a conversa. Foi grande a sua perturbação, mas simulou o contrario -para a defesa. Descobriu meio de tudo communicar ao mais velho da -Maceira, o Gonsalo, para o tornar conhecido do irmão, asseverando-lhe -que, por sua parte, estava prompta para quanto João entendesse -necessario fazer-se com o fim de defenderem o seu amor. Foi n'essa -occasião, que o namorado desejando levar as coisas a bem anunciou ao -velho José Pereira, primeiro por um enviado, depois directamente, os -projectos em que estava de conquistar no mundo posição que lhe desse -direito á mão de Maria, terminando pela affirmativa de ir ao Brazil. Tal -viagem, porém, nunca pensou em realisal-a e a promessa era apenas um -estratagema de ganhar tempo, para concertar um plano de fugir com a sua -amada. - -[2] Amores, amores... - - - II - -Simulou-se na Maceira o caso da partida de João para a companhia do tio -que tinha no Brazil, tudo com o apparato do estylo: enxoval, despedidas, -choros, a sahida do rapaz acompanhado de seus irmãos, e até um -telegramma do Porto, que participava o embarque. Fez-se a representação -com a maior verosimilhança. O namorado desappareceu da aldeia e -falava-se d'elle com saudade e sympathia. Os do Corcovado, acreditando -só metade do que viam, principiaram logo a dispor as coisas para o -enlace de Maria com D. Bento. - -O Manoel, que era o de mais tino, sahiu uma noite a cavallo levando -comsigo dois creados só até ao limite da aldeia: ia tractar com o -morgado d'Osma de coisas de escriptura e dote; informal-o do que havia e -do que seu pae com todos elles tinha accordado. Assentes as bases do -contracto com o noivo, que não offereceu difficuldades, pois toda a sua -ambição era obter a mocidade de Maria para caldear com a sua velhice, -logo se despacharam os dois mais novos, Vicente e José, para irem a -Braga tractar secretamente dos papeis do casamento. No entretanto, -dentro do Corcovado não se dormia descançado: havia armas promptas, e -esculcas de noite no velho casarão. Conheciam bem os da Maceira: -sabiam-nos ousados, valentes e até loucos d'audacia. Ainda que João -houvesse partido (do que não tinham absoluta certeza), ficavam os outros -que eram capazes de armarem uma batalha campal, para garantirem ao irmão -ausente, uma desaffronta e uma vingança estrondosa. Dispunham os seus -meios de resistencia para se defenderem, ainda que preferiam que tudo se -passasse com normalidade e socego. Esconderam, pois, entre si e D. Bento -o plano urdido, simularam vida tranquilla e ordinaria, simularam mesmo a -crença no descuido dos da Maceira, na partida de João, e já em Braga -corria velozmente o processo ecclesiastico com todas as licenças -necessarias para em vinte e quatro horas, logo que taes licenças -chegassem, se realisarem as nupcias. - -Em Braga era tambem onde estava João da Cunha, á espera de aviso dos -irmãos, para regressar á aldeia na opportunidade conveniente, e aqui foi -avisado por um amigo, de que os papeis andavam em segredo, nas mãos do -senhor Arcebispo. Logo comprehendeu tudo e na manhã seguinte, depois de -andar duas noites a cavallo, chegou á Maceira, onde entrou tanto a -occultas, que só os irmãos e o pae d'isto tiveram conhecimento, pois -elle tomara a precaução de despedir o arreeiro com a cavalgadura fora do -logar, que atravessou a pé, não seguindo veredas nem caminhos, mas -atravessando campos e saltando muros. O que logo ficou assente entre -todos foi que Maria não casaria com D. Bento d'Osma, ainda que fosse -necessario matarem e morrerem. - -A pobre menina, vigiada e guardada, como se sentia, não pôde, durante -esses dias crueis, mandar nenhum enviado ao Corcovado. Vivia em grande -amargura e afflicção por suspeitar coisas tenebrosas do que em volta -d'ella se tramava. O seu amor e a exaltação do seu espirito eram -tamanhos, que pensou em suicidar-se, antes que ceder a quaesquer -conselhos ou pressão de pae e irmãos, para preferir outro homem a João. -Porém era alma juvenil e crente, não podia comprehender que a -Providencia divina, e Maria Santissima, de quem sempre fôra tão devota, -podessem concordar em tal iniquidade. Ora não querendo Deus e não o -consentindo a Virgem, nada podiam os homens—pensava ella. - -Os papeis chegaram de Braga ao mesmo tempo que vestidos e enfeites para -o dia solemne das bodas, que podiam realisar-se d'um para o outro -momento. D'isto foi avisado D. Bento d'Osma, por uma carta, emquanto -Maria era chamada á presença de seu pae e irmãos, que sisudos e graves -como juizes a sentencear, lhe disseram a resolução em que tinham -assente. O pae rematou o longo arrazoado dizendo: - -—De modo que tu vaes ser senhora d'uma das maiores casas da provincia e -mulher d'um dos maiores fidalgos conhecidos. - -—Mas se eu não gosto d'elle, que é um velho e antes quero João da Cunha, -apezar de pobre!... - -—Tolices dos desoito annos—commentou sarcasticamente o velho. Com esse -não te dava eu consentimento, nem com um bacamarte cheio de zagalotes -assente no meu peito. - -—Pois com outro não caso—disse resoluta e sem lagrimas. - -—Isso veremos—disse Manoel, o mais velho dos irmãos. Ainda que tenhamos -de te levar para a egreja atada de pés e mãos, has de ir. - -—Não será preciso...—acrescentou o Thomaz, pronunciando as palavras com -ironia feroz. Irá muito bem a cavallo e nós veremos. - -—Carrascos!—pronunciou Maria, cahindo redondamente no chão, rigida como -um cadaver. - - * * * * * - -A este tempo os da Maceira já estavam conhecedores do resolvido -matrimonio de Maria com D. Bento d'Osma. Essa informação trouxera-a de -Braga o proprio namorado. Mostravam-se, porém, naturaes no trato e -despreoccupados do que se passava; mas entre si assentaram o raptar -Maria antes do casamento, no proprio acto nupcial, ou até dos braços de -D. Bento, se não pudesse ser d'outro modo. Quem os conhecesse bem, sabia -que tentariam o supremo golpe, atravez de difficuldades, que outros -pudessem julgar invenciveis. Entregar Maria intacta ao irmão era o -supremo desejo de Gonçalo, Antonio e Thomé. Porém, vencer, á valentona, -todos os obstaculos que os do Corcovado teriam accumulado em volta da -desejada rapariga, para que não fosse tocada por mãos impuras, é que não -poderiam... Necessario era, pois, servirem se do engenho, primeiro que -da força; e tiveram artes de fazer chegar ás mãos da fraca creatura, as -palavras animadoras d'uma carta que João lhe escreveu, em que explicava -o proposito em que estava. Esse papel foi levado á casa do Corcovado por -um pedinte de classica barba longa, curvado e de voz lamentosa quando -pedia. Abeirou-se da porta da cosinha, e como fosse desconhecido e -significasse vir de longe (talvez de romagem a S. Thiago de Compostella, -pois trazia conchas cosidas nos andrajos) as creadas interessaram-se por -elle e attenderam-n'o. Vinha esfomeado e friorento; pedia o caldo da -esmola e o agasalho do palheiro; como soubesse contar historias e ler a -signa, entreteve os creados e ficou por ali coisa de tres dias. Os -proprios irmãos de Maria gostaram do pobre e escutaram-lhe os casos; o -velho José Pereira, ouvindo-lhe dizer que fôra soldado no tempo dos -francezes, que acompanhara o general inglez pela Hespanha dentro, -conversou com elle e mandou dar-lhe uma tigella de vinho. Maria, a quem -o misero, lendo nas linhas da mão aberta predestinou alegre e risonho -futuro, sorriu-lhe no meio das suas amarguras. Foi n'este acto que o -pedinte lhe introduziu na manga do vestido a carta de João da Cunha, o -que tanto alvoroçou a pobre menina, que só por um milagre de energia não -cahiu com um desmaio. Assim ficou ella instruida do plano concertado -pelo seu namorado. - - - III - -Ia a cavalgada pelo tortuoso caminho que do Corcovado segue para a -egreja, onde a festa nupcial de Maria com D. Bento d'Osma se ia -realisar. Apesar das lumieiras (que só adeante, junto da noiva, faziam -grande illuminação) aquelle acompanhamento de tão longa enfiada de gente -de cavallo, atravez da noite escura, semelhava uma forte corrente de -ferro de muitos e grossos elos, obrigada a repetidas curvas n'um -subterraneo; ou, então, qualquer monstro de cobra-crotal curveteando em -numerosos accidentes de terreno, para escapar a um perigo que receasse, -ou attingir a presa que lhe fugisse. Os que cercavam a noiva tinham -entre si poucas falas, como se fôra avançada de numerosas forças que -temessem qualquer cilada. Intrigava-os o aspecto sereno e a alma -resignada de Maria, que sabiam coagida para aquelle acto. Jactanciosos, -como eram os do Corcovado, passou-lhes pela mente que o animo da irmã se -tivesse submettido á dura necessidade, logo que reconhecera o inane de -qualquer resistencia. Essa mudança no espirito da namorada poderia ter -desenganado os da Maceira, não sendo até impossivel que realmente João -estivesse já além dos mares. Maria apenas mostrara furtivas lagrimas ao -paramentar-se para a festa com o seu ultimo vestido de virgem, e antes -de sahir de casa esteve no oratorio resando ferverosamente a Nossa -Senhora dos Desamparados, de quem era devota. Conservara-se bastante -tempo estranha, absorvida, quasi extatica, com os olhos sofregos na -imagem querida, talvez pedindo-lhe fortaleza ou confessando-lhe os -ultimos peccados de pensamento. Tudo parecia natural e simples e -indicava que estivesse resignada. Porem, seus irmãos, por um resto de -precaução, aperceberam-se para o caminho até á egreja, pois era longo, -máu e iam de noite; ainda que este estado d'alma lhes parecesse logico, -pois sabiam o espirito de piedade religiosa, com que sua santa mãe -fallecida, a tinha educado. Em tão supremo lance da vida d'uma rapariga -de desoito annos, era natural profunda commoção, pelo quanto -apresentaria de desconhecido e nevoento o novo dia que se lhe ia abrir -na existencia. O seu silencio era o fructo de todos os sentimentos -desencontrados, que lhe moravam no peito, o fructo da curta e variada -historia da sua vida, com um amor precoce e violento, que vira -desfolhado no cumprimento do sagrado dever da obediencia ao pae, severo -mas bom. Assim o presumiam todos; por isso a desconfiança não era -absoluta e os meios de defesa eram incompletos. - -Scintillavam as estrellas no firmamento, n'essa immensa aboboda negra -como o veludo, em que grandes e bellos diamantes estivessem collados -desde infinitos tempos, e tremelusissem por um movimento ondulatorio do -proprio céu. Fendiam as lumieiras, com alegres chammas, a sombra -compacta da noite. O estrepito da cavalgada, perturbava o silencio, tal -um caminhar de tropas. As sombras iam a grandes passos parecendo -espectros. A amplitude da treva absorvente tornava mesquinha a -existencia do homem. Os que se dirigiam na tortuosa estrada sentiam-se -oprimidos no peito, mas a vista alegrou-se-lhes quando, vencida uma -corcunda de caminho, descobriram a egreja rural, lá no fundo, com as -vidraças a jorrarem luz, como se fôra noite faustosa de romaria. Quadro -ao mesmo tempo phantastico e jubiloso, este apparecimento subito do -modesto templo, assim illuminado, surgindo do infinito ventre da -escuridade infinita. Era como um facho espetado n'uma grande caldeira de -breu. Em todos os corações houve sobresalto de gozo, até mesmo no de -Maria. D. Bento d'Osma descobrira o sacrario da sua felicidade; o velho -do Corcovado o remate das suas aspirações de grandeza; seus filhos, -julgaram afastados os receios de mau encontro dos da Maceira, que mesmo -que fossem vencidos lhe aguariam o prazer da festa. E Maria o que -descobrira para sorrir?...—Alguma esperança?... era aquelle luzeiro, -alegria na tristeza das suas amarguras?... - -De todos os corações se levantara um peso; amplificara-se o sentir e o -desejo de cada um; etherisara-se-lhes a imaginação em hymnos triumphaes. -Os formosos olhos de Maria sorriram á profunda escuridade, talvez por á -sua mente ter chegado em recordação, qualquer promessa do seu amado. -Desciam para o valle onde brilhava a egreja, lentamente, no meio do fogo -das lumieiras. Ao chegarem á borda do adro, o leve corpo da noiva, para -ser tirado de cima da mula, ricamente ajaesada á hespanhola com teliz de -veludo encarnado lampejando oiros, cahiu nos braços de Manoel, seu irmão -mais velho. Repicaram faustosamente os sinos n'este instante, -annunciando o momentoso acontecimento, ás estrellas que luziam, aos -montes silenciosos, aos animaes bravios escondidos nas suas tocas. As -aves occultas na espessura das mattas e no interior dos silvedos, quando -ao romper da manhã viessem gorgear as suas impressões, decerto -relatariam o acontecimento singular que lhes fizera abrir os olhos para -a egreja illuminada, e os ouvidos para o jocundo repicar dos sinos. Que -necessidade de perturbar a escuridão infinita e solemne, o silencio -augusto e magestoso com signaes de festa humana?—perguntariam ao -recomeçarem os seus amores, ebrios de rosea alvorada. - -Pela porta do templo, amplamente aberta, entraram os convidados. No -interior, grande perfusão de lumes em todos os altares, para se celebrar -a sumptuosa festa. Sorriam os santos, o rosto da Virgem era expressivo e -carinhoso, os anjos, os seraphins e cherubins, que nas columnas do altar -mór se suspendiam entre nuvens, brincavam alegremente. - -A luz espancara a tetrica escuridade; o cheiro do incenso e da cera do -qual as paredes estavam impregnadas espiritualisara-se com o calor das -velas. Os numerosos convidados sentiam-se satisfeitos e communicativos, -tinham abundancia de palavras para encher a conversação. A modesta -egreja rural, mais uma vez era perturbada na sua tranquillidade: assim -cheia de movimento e sussurro de festa, deixava de escutar a musica do -ribeiro, agora crescido d'aguas, e de ligar o seu viver obscuro ao das -arvores amigas que lhe cresciam em volta, enfolhando-se todos os annos -na primavera para a festejar... - -Maria subiu o corpo do templo, até ao altar mór, ao lado de seu pae, um -velho robusto, de barba em volta da cara sadia, altos collarinhos em -camisa de bofes, a casaca das suas bodas (quarenta annos antes) -tapando-lhe a nuca com a alta golla. Ao passar em frente da imagem de -Nossa Senhora, da qual era solicita devota, ajoelhou orando com fervor, -o que fez com que muitos assistentes entrassem em piedoso recolhimento -espiritual, imitando-a na mystica submissão. Pediria coragem para o -difficil transe?... confessar-se-hia humilde peccadora por ter tido idéa -de resistencia á vontade de seu pae?!... No alto da egreja, onde de novo -se curvou reverente para fazer as suas supplicas ao Altissimo, -cercavam-na as senhoras mais gradas da visinhança, amigas e parentas, as -de Refuinho, da Torre Velha, do Ramisco... que todas como ella resavam -com recolhimento e fervor. Davam assim tempo a que o padre Pitança se -revestisse na sacristia acompanhado d'outros padres. O cura Clemente -Carvalhosa, já velho, alquebrado e doente, não podia vir a estas festas -de noite, por causa do seu rheumatismo: substituia-o o corpolento -Pitança. Quando este reappareceu juncto do arco cruzeiro, coberto com a -longa capa d'asperges, a batina occulta sob a alva de celebrante, a -estola cahindo-lhe serenamente sobre o amplo peito de caçador e occulta -pelo solemne pluvial, o grande vulto do sacerdote assim paramentado, -tinha a magestade do d'um bispo da edade-média, guerreiro, soberbo e -forte. Um absoluto silencio se estabeleceu rapidamente, em respeito ao -acto momentoso que se ia celebrar. D. Bento d'Osma, radiante dentro -d'uma farda de fidalgo em que se não encontrava muito á vontade, sorria -d'um modo incaracteristico, trabalhado interiormente por grande confusão -de idéas e sentimentos. Maria estava pallida, mas o seu rosto mostrava -serenidade e o seu olhar firmeza. Quando os nubentes davam o primeiro -passo para o celebrante, no meio do silencio de tanta gente, attenta e -commovida, no meio da gloria de luzes que transformavam o ambito da -modesta egreja n'um templo de apotheose... é que um avejão, phantasma ou -demonio, ou muitos demonios juntos se lembraram de lançar pela egreja -fóra os seus gritos lamentosos, terriveis, amedrontadores, e tão -lamentosos, terriveis e amedrontadores, que rebentaram simultaneamente -no tecto e nas campas, por traz do altar mór e no côro! Não eram vozes -com semelhança de humanas, era um como fremito horrendo que se sentisse -ao mesmo tempo no céu e no cimo da terra, que surgisse da profundeza dos -abysmos infernaes e tivesse a mesma natureza e raiva das imprecações dos -condemnados. Todos ficaram transidos de mêdo, e se sentiram faltos do -sentimento da realidade: deante dos olhos desvairados dos assistentes, -assim colhidos de surpreza, e n'este primeiro momento, parecera-lhes que -os mortos haviam rompido o lagedo das sepulturas ao clangor da trombeta -final, ou que eram os santos que desciam espavoridos dos altares para -recolherem ao logar seguro da celeste morada. Viam o tecto do templo -vergar sob o peso da vontade divina, que procuraria assim castigar algum -grande peccado, ou impedir tremenda iniquidade. A confusão de todos os -cerebros foi completa quando no pulpito, no côro, e no recanto da pia -baptismal appareceram tres grandes fogueiras com fumo de polvora e -reboar de estoiros, como n'um incendio de magica. Da primeira -perturbação logo se passou ao terror fundado na evidencia de um fogo no -sanctuario. As vozes em grita, supplicantes e desvairadas, junctavam-se -ás das aventesmas e ao rebate dos sinos. A maioria procurou fugir pela -porta principal que estava aberta de par em par; os mais serenos, os que -poderiam formular raciocinio no meio d'esta grande confusão foram -levados na onda. Os rapazes do Corcovado, paraliticos na vontade, -tiveram um vislumbre da possibilidade d'um acto de vingança dos da -Maceira, mas não se poderam concertar para a defeza. Muitas senhoras -fugiram para a sacristia, e no meio d'ellas foi Maria. A sacristia -estava ás escuras e a porta para o adro viam-n'a aberta... Por ali -entrara um vulto humano que rapidamente tomou nos braços a noiva, -decerto para a salvar do pavoroso castigo que a todos ameaçava. O seu -corpo gentil, dentro do vestido de casamento, a cabeça enfeitada de -flores, os olhos bellos que tantas lagrimas amargas tinham chorado, o -peito ancioso que em silencio suspirara sentidas endeixas d'amor... tudo -levou esse salvador providencial e ambos se sumiram no negrume d'essa -noite fria de Março. Festejavam-na do céu as estrellas, acompanhava-a o -murmurio das fontes, cantava-lhe aos ouvidos a ligeira brisa, e a -escuridade amiga e silenciosa encobria estes amores deleitosos. João da -Cunha, celere como um gamo, saltou primeiro o muro do adro levando -comsigo a penna leve do corpo da sua amada, atravessou veloz um campo, -saltou outro muro e no caminho d'além, atirou Maria para sobre uma egua -valente, montando depois n'um cavallo fiel. E como se isto fôra um vôo -de lendas scandinavas, lá foram os dois vencendo encostas, galgando -ribeiros, entranhando-se de cada vez mais no seio protector e cumplice -da noite calada e escura. Escutavam de vez em quando para ver se outro -tropel de cavallos os seguiria; mas João confiava sereno na promessa de -seus irmãos, que lhe haviam offerecido as vidas para o livrar de -perseguidores. - - - IV - -A perturbação de todos os que assistiam á ceremonia matrimonial foi -maior do que podiam esperar os inventores do estratagema. Alarmados pelo -subitaneo alarido de vozes de duendes, almas-penadas, diabos ou o que -quer que era, em furia e delirio; accrescentado o primeiro barulho com o -reboliço que se sentira no telhado da egreja, que parecia derruir-se; -levado ao auge o desconcerto com o rapido apparecimento da chama azulada -do incendio, com o cheiro da polvora e estrondo de bombas, acompanhados -do toque desesperado de sinos a rebate... produziu-se em todos os -cerebros um movimento de terror e assombro facil de comprehender. O povo -casual e os creados das lumieiras, que tinham deixado as cavalgaduras no -caminho para assistirem á festa, foram os primeiros a fugir e -encontraram-se desvairados no adro, cegos no meio da escuridade pelo -brilho que nos olhos traziam da farta illuminação das tochas. A sua -grita e clamor acabou de apavorar os proprios animaes, que, n'um tropel -desvairado, correram pelos caminhos e atravez dos campos, como fugidos -d'uma casa em chamas. Os convidados, apesar de numerosos, não eram -bastantes para acudir ás supplicas das senhoras, presas d'um -extraordinario medo e algumas desmaiadas. Os minutos que durou a -intensidade do perigo, pareceram annos de castigo e tormentos, a todos -que se encontraram no meio do horrivel drama. Os homens mais resolutos, -serenos, e affeitos a perigos julgaram que este era o seu ultimo -instante de vida terrena e já sob os proprios pés sentiam -abrirem-se-lhes escancaradas as verdadeiras gargantas do inferno. Ás -vozes rogativas das senhoras, acudiram alguns: o padre Pitança, caçador -e temerario, encontrou-se entre ellas de capa d'asperges, falando alto, -dizendo palavras incoherentes, mas que davam sentimento de realidade; os -do Corcovado correram em busca de Maria... D. Bento d'Osma, esse cahira -de joelhos no sitio em que estava na capella mór—tinha as mãos erguidas, -os olhos espantados, no semblante o esgar dos epilepticos, e murmurava -palavras de prece batendo os dentes. Estava inerte, não procurava evitar -a condemnação que o abatera, não pensava em resistir á divina vontade, -que o punia sem misericordia. - -Porém os do Corcovado procurando sua irmã gritavam por ella na egreja, -no adro, na sacristia... por toda a parte. Não a encontrando vieram á -fala para cerzirem as suas idéas, e facil lhes foi concordarem no que -poderia ter sido aquella emboscada. Sentiram-se realmente apavorados e -grotescos. - -—Nada! é lá possivel!—ainda teimou o mais velho—procuremol-a melhor, que -estará por ahi cahida sem sentidos... - -Procuraram com vellas e tochas acesas, que arrancaram dos proprios -altares, e de momento a momento a suspeita d'uma cilada dos da Maceira -tomava maior vulto e lhes enchia o espirito d'uma colera crescente. A -elles se juntaram o velho pae e o D. Bento d'Osma, que os creados haviam -arrancado á sua paralisia, e todos chamavam por Maria e pronunciavam o -seu doce nome, com ancia e carinho, atirando-o para o ventre mysterioso -d'aquella negra e hostil noite de Março. Nem acordada, nem desmaiada, -nem viva, nem morta a encontravam, por mais que empregassem vozes -supplices ou de desespero. Agruparam-se com os parentes e o noivo de -Maria, os convidados e os proprios creados. Assim todos reunidos, de -tochas na mão, em volta da modesta egreja rural semelhavam multidão -imprecativa de povo e não gente na ancia d'um interesse terreno. A noiva -não respondera, nem ás primeiras vozes carinhosas do pae e do noivo, nem -ás palavras já cheias de ira de seus irmãos. Na egreja, na sachristia, -no adro não a descobriam... logo, Maria, ou voava para celesteaes -alturas com as suas azas de pomba virgem, ou fugira nos braços do seu -amado, o João da Cunha da Maceira. - -—Com dez mil demonios, que sou capaz de trincar o coração a esse -malvado, como Pedro, o Crú, fez aos carrascos de sua mulher—rugiu o -velho do Corcovado, com a face incendiada em desespero. - -—Rapazes!—berrou D. Bento d'Osma á multidão dos seus creados—mil -cruzados novos aquelle que os pilhar. - -E os irmãos de Maria, concertados em identico pensamento de vindicta e -com a imagem sarcastica e victoriosa dos da Maceira deante dos olhos, -clamaram: - -—Os nossos cavallos depressa que não os deixaremos descançar, nem nas -profundezas do inferno! - -Não era muito facil encontrar os cavallos, pois quasi todos tinham -fugido espavoridos. Como se poderia ir ter com elles atravez da vaga -escuridão da noite, por caminhos e veredas incertas? Correram os -creados, que os conheciam e a cujo chamamento e vozes os animaes estavam -habituados. Partiram do adro, cada um com a sua lumieira erguida como um -tropheu, chamando e assobiando, em direcções diversas. Que coisa esta de -homens com vozes bradantes, armados de fogachos furando a espessa treva, -a saltarem muros, e a correr pelos campos, estradas e atalhos! Seria ás -arvores hirtas e silenciosas, ás estrellas sorridentes e alegres, aos -espaços mudos e infinitos que elles supplicavam? Lá iam com assobios e -palavras semeando a negrura torva. Ao fim d'algum tempo alguns voltaram -com os animaes que buscavam e lhes haviam obedecido, reconhecendo-lhes o -imperio a que estavam sujeitos. Já se tinha passado talvez mais de uma -hora, quando os parceaes de D. Bento e os rapazes do Corcovado poderam -montar os seus fieis cavallos, para irem no alcance dos -fugitivos—duração infinita para os apaixonados corações se distancearem -no goso d'uma felicidade tão rudemente conquistada. - -Mas para que lado correriam os perseguidores, se os terrenos eram tão -vastos, as montanhas tão silvestres e asperas? Como nortear a marcha em -noite escura de breu, por veredas multiplas e perigosas? Reuniram -conselho para deliberar. - -—Para a Maceira?—lembraram os rapazes do Corcovado. - -—Não seriam tão asnos que em tal ratoeira cahissem—observou o prudente -José Pereira. - -—Para o Cerdal, pois são amigos de Cesario.—opinou uma voz. - -—Meu primo não me faria o aggravo de lá os receber—inteirou D. Bento -d'Osma. - -—Sigam para os montes—ordenou o padre José Pitança, de estola sobre o -amplo peito, mas já sem pluvial, que largara para se desembaraçar em -qualquer lucta de braço a braço, se necessidade houvesse de a sustentar. - -—E se elle a fosse depositar respeitosamente e intacta no Ramisco, para -depois seguir o processo judicial!?—aventou com a sua voz meliflua o -desembargador João Xavier. - -Esta lembrança esdruxula, deixou perplexos e irritadas todas as vontades -e corações que desejavam uma acção violenta e immediata de assignalada -desforra. O sangue dos do Corcovado borbulhava em fremente cachoeira e -Thomaz, que era dos quatro o de animo mais ardente e vingativo, disse: - -—Qual asneira! Vamos lá para cima que até me parece que já os estou -sentindo correr adeante. - -E esporeou energicamente o seu cavallo, que lhe respondeu com um salto, -vencendo á desfillada a ladeira, onde as ferraduras feriam lume nas -lages. Manoel o mais velho ainda teve tempo para ordenar, gritando: - -—Cada um pelo seu caminho e por edades. Eu á direita. - -Abalaram encosta acima, acicatando com violencia os animaes. Alguns dos -amigos e convidados de D. Bento d'Osma seguiram-nos animados d'um -generoso espirito de desforra. No pavor da noite, este galope de -combate, amplificou-se primeiro, foi esmorecendo gradualmente, restando -por fim nos ouvidos dos que tinham ficado, uma ressonancia como de sons -repercutidos no fundo d'um poço. O padre José Pitança, de alva e estola, -no meio do adro, estendeu com vigor os braços, increpando no vago com os -punhos apontados ao céu: - -—Grandissimo patife! Que o esborrachava... - -—Uma costa d'Africa é que precisa—ameaçou o velho José Pereira. - -—Uma costa d'Africa!—rugiu D. Bento d'Osma. Uma forca! mil forcas é que -merecia. - -Porem quasi todos entenderam que deviam ir para o Corcovado, onde estava -a mesa preparada para o começo do festim da boda. Ali aguardariam os -acontecimentos. Muitos porfiavam em acreditar que os fugitivos seriam -alcançados. Porem a maioria das senhoras, cujos nervos tinham sido -desorientados com a commoção causada por tão estranho, quanto -inesperado, successo, preferiram as suas proprias casas, onde melhor se -aquietariam com rezas e com descanço ao seu conchego habitual. - - - V - -Noite escura e triste; noite, cheia de negruras no céu e no coração! -Pouco depois de João da Cunha e Maria partirem a gallope para o seu -louco destino, entraram com elles pavorosos receios, tremendo um por -causa do outro. Durante muito tempo os acompanhou o alarme de vozes em -grita, que se produzira na egreja e no adro, e que se fôra estendendo -pela aldeia, tal onda de revolta popular. Como fossem subindo a céu -amplo sobre o valle, onde a agitação se alastrava, ouviram, até muito -longe, esse rumor sinistro, perseguidor e amaldiçoante; mas depois que -venceram o primeiro cabeço de monte, era antes um sussurro de mar a -bater em rochas escarpadas, isso que lhes chegava aos ouvidos. Mais -além, só conheciam a impressão arquejante que lhes ficara vibrando no -cerebro perturbado. De vez em quando sonhavam tropel de cavallos que -lhes viessem no encalce e paravam attonitos com o ouvido á escuta; -conhecido o erro continuavam animados pela doce esperança de viverem no -seu amor absoluto, reciproco e vehemente. Maria, apesar de animosa e a -tudo resolvida, não deixava de temer a vindicta de seus irmãos, e no -escuro da noite mysteriosa murmurou como n'uma prece: «Deus nos proteja! -Se nos apanham está tudo acabado!» Ao que o intrepido amante oppoz, com -voz decisiva: «Nada receies. O meu corpo será mais difficil de -trespassar, que um duro penedo!» Continuavam a rasgar a treva densa, por -caminhos perigosos e pouco calcados de gente. João conhecia todos -aquelles montes como os campos da sua aldeia; palmilhara-os, durante -annos, acompanhado do seu perdigueiro, em todos os carreiros e veredas. -Cego que elle se houvera tornado, determinaria a posição dos ribeiros e -rochedos e as nodoas das bouças. Por tanto, para se dirigir na selva -escura d'esta noite espessa, bastava-lhe o sorrir das estrellas do céu e -a ditosa ventura de ter a seu lado aquella a quem amava. Eram favoraveis -as circumstancias para não serem encontrados e para chegarem ao ponto -ditoso, onde descançariam longe da furia e perversidade humana. Trazia -esse quadro na menina dos olhos; era uma casinha alpestre, armada entre -fragoas. Porém, como estivesse ainda muito distante e os montes fossem -largos, só quando se annunciasse a luz solar poderia definitivamente -nortear-se, para chegar em direitura, ao paraiso onde podiam florir os -seus amores. Por agora só pensava em distanciar-se de onde estavam os -seus temiveis inimigos; queria apenas retirar-se do perigo, livrar a sua -felicidade da furia dos irmãos de Maria, que seria cruenta se se viessem -a encontrar, n'essa noite, face a face. Armara-se para chegar a todos os -extremos d'um combate sanguinoso: preso no arção trazeiro levava duas -clavinas carregadas com zagalotes, nos coldres duas magnificas pistolas -de cavallaria com balas, no bolso interior um acerado punhal de lamina -triangular. Preparara-se para uma rude empresa de morte e amor, venderia -muito cara a vida e a fortuna de viver. Mas distancear a hypothese -horrenda e desgraçada d'um encontro funesto com qualquer dos que o -perseguiriam, era o seu anhelo, o seu unico desejo. Por isso procurava -com ancia ganhar distancias, mettia por atalhos perigosos, evitava -quanto podia a proximidade de casas e povoados, onde se podesse dar -indicio da sua passagem. Nem sempre o pudéra conseguir e n'um logar que -atravessaram, o ruido dos cavallos devia ter sido percebido por um grupo -de mulheres, que enfornavam a broa da semana. Cresceram os pavores e -receios que enegreciam a imaginação de Maria; porém João aquietou-a -dizendo-lhe que, aquelle caminho era forçado para muitos logares -distantes, uns dos outros. Continuaram silenciosos e cheios d'esperança -na negrura cumplice da noite, porém o sussurro dos ribeiros que iam -grossos d'aguas, o acordar repentino d'algum animal bravio que fugisse -por entre carrascos e tojos, a propria voz do vento que passava nos -codeçaes e bouças se transformavam na mente de Maria em signaes de gente -amotinada que os perseguia, em prenuncios de embuscadas que seus crueis -irmãos tivessem armado contra o seu unico, verdadeiro e sentido amor. A -aldeia ficava-lhes de cada vez mais distante, lá em baixo, em fundo -valle. Demonstrava-o o passo mais lento das cavalgaduras que era já de -fadiga. Tambem agora tinham de caminhar com maior prudencia, pois João -confessava-se no limite dos montes seus conhecidos e familiares. Podiam -esbarrar com algum ribeiro que os obrigasse a retroceder, por isso -procurava sempre os pontos mais altos, onde essa contraria probabilidade -diminuia. Ás montanhas succediam outras montanhas, sempre n'um -levantamento gigante que parecia ter limite no céu, onde talvez fossem -cravar seus dentes de penedias asperas. Só as estrellas os acompanhavam -com riso carinhoso e só estas é que davam a luz tenue, que lhes deixava -distinguir os asperos carreiros, brancos sobre a terra negra. O ar -tambem era mais leve e mais cortante, a modo que a sombra da noite se ia -adelgaçando. Ao nascente, para onde levavam voltados os rostos, já viam -com antecedencia a promettedora chegada do sol, essa alegria sumptuosa -do mundo!... Eram menos inquietas e vibrateis as pestanas argenteas dos -astros, que se sentiam cançados da continuada vigilancia durante a longa -noite. Visto não terem podido combater victoriosamente a treva densa, -deixavam essa encantadora tarefa ao seu glorioso avô, que traria a -brilhante poeira de oiro fino, para enfeitar as cristas das montanhas, -enchendo de luz a profundeza dos valles e os recessos das penedias. -Maria anciosa por encontrar o limite no seu caminhar perguntou: - -—Estamos ainda muito longe? - -—Andaremos, com dia, talvez uma hora. - -—E a gente que nos encontrar?... - -—Só pastores e ovelhas poderemos encontrar. - -—Santo Deus! Esses pastores não nos denunciarão? - -—Os teus irmãos não nos fazem, decerto, para este lado, e daremos -informações erradas a quem falarmos. - -—Em todo o caso fujamos sempre...—rematou inquieta. - -Seguiam, já n'uma penumbra fofa, o carreiro aberto, ao longo da espinha -d'um monte amplo, pelos pés senhoris das ovelhas e cabras que ali -passavam diariamente. Um bufo, que levantou o seu vôo pesado, de entre -um massiço de penedos, gerou subito alarme no peito de Maria, denunciado -n'um grito de susto, que o seu amado acalmou com a explicação prompta do -facto. A luz do sol, ainda distante, provocava este e ainda outros -signaes de renascimento da vida terrestre. Já a massa espessa das -montanhas se definia em formas comprehensiveis á vista: agigantavam-se -os penedos com aspecto de homens associados em conversa; as arvores, -dispersas nos terrenos aridos, recortavam-se no céu que se ia -acinzentando; as aguas da chuva que se tinham accumulado em covas -naturaes, eram espelhentas. Com taes prenuncios de dia entrava nos -corações amantes, a fé e a esperança na felicidade do amor. Tão de breu -fôra essa noite, que só agora sentiam a posse completa das proprias -individualidades, até então amalgamadas com a espessura da treva. - -A proxima chegada do sol aclarando o firmamento, que parecia de vidro -fosco, apagava gradualmente todos os luzeiros pendurados pelo ar. -Formara-se um nimbo lacteo sobre o horisonte. Pipillavam as timidas -calhandras erguendo-se do seu leito, entre carquejas, com as pennas -irriçadas pelo frio, o que lhes avultava o tamanho. Das bouças já sahiam -gaios, grasnando como patos selvagens; levantavam-se melros cortando o -crepusculo com o seu vôo rectilineo e silvo agudo; surgiam pêgas a -palrar como velhas dementes. Era a gloria da luz e da vida que renascia -e animava a solemne mudez das montanhas crespas. Um ligeiro sorrir dos -labios de Maria denunciou que o coração se lhe descomprimia, que a sua -alma ingenua e pura, aceitava de boamente os perigos do dia, em troca da -escuridade protectora da noite. Não assim João da Cunha, receioso dos -males que podiam agora nascer. Se os do Corcovado houvessem acertado na -perseguição, se os visse apparecer na volta d'um monte ou do meio d'um -matagal, seria tamanha a desgraça, que só a morte a podia definir. -Correria o seu sangue e o sangue dos de Maria. Todo o que se vertesse -havia de ser em desproveito da sua ventura, que não mais poderia brotar. -Mas com um movimento energico de cabeça afastou para longe ideias -tetricas; de novo no amplo e corajoso peito entrou a esperança risonha e -cariciosa. As montanhas eram largas, os caminhos muitos e intrincados, -só um grande infortunio o levaria ao encontro dos seus algozes. -Consumidos os dias de gozo, doces como o mel, que viessem as -perseguições e os flagellos crueis, pois o encontrariam resoluto e -altivo, como era natural do seu animo levantado e temerario. - -Subiam, subiam ainda na encosta d'um monte, que tinha outros mais altos -para os lados do céu. Os já andados escorriam lá para o fundo, em -successão de valles, n'um dos quaes assentava a risonha aldeia d'onde -haviam partido. Ao vencerem um alto cabeço deram de frente com o olho -redondo do sol, que os fitava impavido e dominador. - -—Ainda é muito longe?—perguntou Maria. - -—Mais uma legua para andar. - -Desciam na vertente d'além: n'esse alvorecer encontraram a primeira -pastagem de boa relva, mosqueada de malmequeres, goivos e junquilhos -nascidos no sopé d'uma penedia d'onde brotava agua, e o primeiro rebanho -guardado por um pequeno pastor. Era um rapaz franzino e sujo: ao ver -aquella formosa senhora, vestida de claro e com flores na cabeça como -qualquer santa, acompanhada por tão garboso cavalleiro, logo se levantou -da lage onde estava sentado, conservando-se com o grosso barrete na mão, -até que elles chegassem. - -—Bom dia rapaz—saudou João da Cunha. - -—Bô dia—respondeu em voz rouquenha. Agora não ha romaria: eh! voncês -p'ra onde vão? - -—Levar uma promessa á Senhora Apparecida—respondeu João. - -—Tão linda como a Senhora Apparecida é essa senhora. É sua? - -—É minha, é Joaquim. Chamas-te Joaquim? - -—Não senhor, sou Zé. - -—Pois toma lá este dinheiro e dá-o á tua mãe para te mercar uma camisa. -Se por aqui vierem uns senhores a cavallo diz-lhes que não viste passar -ninguem. - -—Se voncê quer, digo. Hei de rezar por vós, que não ides bem p'ra -Senhora Apparecida, mas p'ro Senhor Bô-Home. - -—É que vamos primeiro ao Senhor Bom-Homem e depois á Senhora -Apparecida—explicou. - -—Antão, havendes de tornar para traz. - -—Pois tornamos. - -—Isso é falar. Deus os acompanhe. - -Ficaram receiosos d'este encontro, como já o vinham das mulheres que -enfornavam o pão. O convivio humano era-lhes n'este momento antipathico. -Da intelligencia alheia, só perigos lhes poderiam advir. Maria levava o -rosto palido e fatigado; desejava chegar breve ao ponto da terra, onde -pudesse repousar e esconder-se. O seu amado comprehendeu-lhe este -secreto pensamento tão legitimo e natural. Chegados a um sitio d'onde se -lhes desdobrava aos olhos um largo ondeado de montanhas, João apontou a -brancura d'uma ermida, que se destacava sobre a mancha negra d'uma matta -e disse: - -—Acolá, vês? - -—É uma capella! - -—Para além da capella está a casa. - -—Quanto tempo? - -—Pouco tempo. - -Metteram por uma esplanada coberta de penedias em cujas anfractuosidades -podiam esconder a sua marcha. A luz do sol já enchia os montes e até os -valles cobertos pelo nevoeiro matinal. O ar rescendia a aromas, que se -levantavam da terra, das flores e hervas alpestres. Passavam no céu, -azul palido, aves de grande corpulencia, abutres e aguias, que pousavam -nos pincaros mais levantados. Os negros corvos crocitavam perto, subindo -do chão para os penhascos. Apparecia aqui um coelho que rebolava pela -terra arenosa; rompia adeante um par de perdizes, já acasaladas no -começo d'amores; erguia-se uma lebre, veloz na carreira, corveteando de -orelha guicha. Maria, certa do limite da sua jornada, mostrava rosto -mais desanuveado; todo o seu desejo e ambição era, n'este momento, -esconder-se como timida corsa no denso matagal, que fazia mysteriosa -negrura, juncto da alva capella que João lhe apontara. Não tardou muito -que aportassem ao carinhoso abrigo. Bem mereciam este repouso, depois de -tão longas horas atormentadas pelo esforço corporeo e pelas preocupações -do espirito. As horas, muitas ou poucas, que ali permanecessem, -ignorados e tranquillos, enchel-os-hiam de amor ardente, para -entorpecerem a sensibilidade, emquanto não vinha o desenlace da arrojada -aventura. - -—Ninguem nos supporá aqui, meu amor—suspirou João ao saltar do seu -cavallo. - -—E de quem é esta casa?—perguntou Maria ao cahir-lhe nos braços, para -descer da egua. - -—D'um amigo de longe, que só vem aqui, de anno a anno, fazer as suas -caçadas. - -Depois de recolher as cavalgaduras, entraram na modesta cabana, coberta -de colmo. Logo fecharam a porta sobre os seus corpos cançados. João ao -apertar Maria nos braços nervosos exclamou desvairado. - -—Até que emfim! Podem agora vir todos os tormentos da terra!... - - - VI - - -Dia venturoso, primeiro dia d'amor, em casa modesta e simples, cercados -do silencio dos ermos, bafejados pela brisa balsamica e leve, aquecidos -pela chama copiosa do bello sol de primavera. Da terra humilde dos -montes nasciam flores, abrindo no vasto azul o sorriso, que de noite -cubiçara o brilho das estrellas. As aves simples, que a floresta enchiam -de seus encantos, ignoravam a apotheose que estavam fazendo d'aquella -felicidade. Tudo que havia de rescendente nas duas almas, ditosas e -bellas como os lyrios brancos, subia em anhelos para as celestiaes -alturas, enchendo os espaços infinitos de sua fragancia. - -O dedicado amigo de João da Cunha, que lhe cedera este sagrado abrigo, -havia-lh'o provisionado de modo que não fosse necessario, logo de -entrada, qualquer contacto com gente do povoado. Por isso n'este -primeiro dia, nem as janellas descerraram, vivendo os dois na escuridade -que mais os unia no seu amor immenso. Os serranos, que por acaso -passavam, não presumiriam viv'alma dentro d'aquella casa simples, -construida entre penhascos approveitados como tractos de paredes. As -duas unicas janellas eram aberturas naturais das fragas: por ali -entravam outr'ora as aves de presa, que nos reconcavos faziam seus -ninhos. As duas portas collocadas no afastamento mais largo dos penedos -aglomerados, davam entrada uma para a cosinha, outra para a casa de -jantar e dormitorio. As cavalgaduras arrumavam-se n'uma loja aberta na -espessura da terra no ponto inferior do fraguedo. O telhado de colmo era -preso, para resistir ás ventanias invernaes, com pedras e paus -atravessados. As aberturas desnecessarias tinham sido tapadas -grosseiramente com pedra avulsa, sem o esmero de rebouco de argamassa -exterior. Esta rustica morada assentava a mais de meia encosta, por cima -da afamada matta do Medronhal. As duas janellas abriam para o declive -dos montes e via-se, em corrida extensão, a severa e funda garganta, por -onde sussurravam as grandes aguas, que vinham de longe, formando o -ribeiro da Marnoca, celebre pelas suas trutas. O inverno tinha sido -aspero e copioso, o desgelo das neves altas, ainda em principio, -engrossava a corrente que n'um fragor de trovão se despenhava de rochedo -em rochedo, por entre togeiras virgens, onde não pousaria o pé rustico -do pegureiro, se para ali se lhe extraviasse a rez. Havia até sitios -perigosos, aos quaes é duvidoso que pudesse chegar, lobo esfomeado em -procura de presa. Eram brenhas selvaticas e dantescas onde, só no -torrido estio, entrava o sol para calcinar as pedras. O contemplal-a -apenas, enchia a alma de pavores e mysterio. Os dois amados, na -escuridade da sua cabana e cercados do silencio do ermo, que este aspero -ruido tornava mais completo, sentiam-se tão fóra do mundo e dos homens, -que os seus corações já palpitavam unisonos e sem receio. Era sua -aspiração e desejo, viverem, assim infinitamente, n'esta paz tranquilla -de sepultura, formando um ser de dois seres, com um unico sentir e uma -só vontade—louca aspiração de juvenil egoismo, de que só pode dar razão -a immensa felicidade que fruiam. Eram como essas aves que outr'ora ali -tinham formado seus ninhos toscos, na ignorancia de tudo que não fossem -montes e estrellas. Independencia absoluta da vida esquecida dos que se -persuadem que no amplo universo, nada mais existe do que o amor. -Veio-lhes a fadiga e o somno, que mais dilatada lhes tornou a ventura, -continuando-a pelo sonho em céus deslumbrantes. Quando acordaram já o -sol declinava no horisonte, arrastando a resplendente juba loira pelo -cume das montanhas. Abriram então uma das janellas para se despedirem do -astro que, fulgurando, deixava o mundo e levava comsigo a alegria da -terra. - -N'uma d'essas toscas aberturas a poente, appareceram amarellecidos pela -ultima luz d'esse venturoso dia, as duas cabeças unidas, os dois corpos -enlaçados. Demorando-se na contemplação do formoso espectaculo, Maria, -tinha ainda o seu vestido de noiva e na cabeça as flores com que lh'a -haviam enfeitado. O crepusculo cobriu-a lentamente com o seu veu de gaze -fino, como a uma creança que dormisse, sombreando-lhe o rosto com tintas -de melancolia. - -E para orchestrar este quadro de simplicidade antiga e paradisiaca, -subia do fundo da garganta escura da floresta o som magnifico e potente -das aguas, como um hymno religioso, que se amplificasse solemne nas -abobadas d'uma cathedral. Fechava-se assim este primeiro dia enebriante -e ditoso: viera a noite alargar o vasio de todas as existencias, afofar -com sombras os meandros da vida universal. - -Accenderam lume, para se aquecerem. - -Em frente um do outro, sentados em toscos escabellos de carvalho annoso, -estavam em silencio, enredando os seus pensamentos. Presas as suas -linguas nas circumstancias d'esta existencia anomala e feliz, -communicavam-se por meio de sorrisos e beijos. Maria, porém, rompeu o -encanto da sua mudez, considerando: - -—Até quando durará isto?! - -—Hade durar sempre—affirmou João. - -—Talvez bem pouco dure... - -—Teu pae perdoa-nos... - -—Nunca nos perdoará—disse repassada d'angustia. Não o conheces. - -—Seremos do mesmo modo felizes. - -—Porém como!?... - -João fez um gesto amplo e vago de quem acredita no céu clemente e -mysterioso, dentro do qual se conservam em amalgama todas as soluções -felizes da existencia humana. Apesar d'isto, continuaram tristes e -absorvidos na sua tristeza, deante do lume alegre e crepitante, com -chamas que se levantavam e diluiam como as esperanças. É assim toda a -ventura: ergue-se com impeto, flameja triumphal, desaparece como a -chama, como ella deixando a treva e o frio. Porém estes amores apenas -começados estariam, por certo, bem distantes do seu fim: no querido -ermo, protegidos pela treva densa, principiava a primeira noite fecunda -e bella. Fecunda e bella foi, mas tinha de acabar como o dia. E acabou: -já no ambiente se sentia o acordar de existencias chamadas pelo -reapparecimento do sol, o qual, os ditosos amantes, tambem de novo -vieram saudar. - -Abriram a porta que dava para nascente, e abraçados como duas estatuas -em grupo, appareceram risonhos deante do sol:—Maria com o seu vestido de -noiva machucado, as flores da cabeça emmurchecidas; João o rosto mais -severo e palido do que ao findar o precedente dia. - -Rompeu o grande astro por entre penedias: primeiro como uma gema d'ovo, -amarella e redonda; depois com a irradiação d'uma enorme fornalha que -estivesse no infinito. A todos a luz patentearia a realidade da Terra: a -Maria e a João mostrava-lhes a extensão aspera e vaga da montanha, um -chão arenoso e safaro, cheio de granitos e pobres plantas, sempre -açoitadas de ventanias e chuvas, crestadas pelas neves duradoras, roidas -do dente damninho das cabras. Contemplavam essa aridez impressionante e -forte das serranias, que educa as vontades para a victoria e para o -sacrificio, que prepara o cerebro para extremos de abnegação até á -morte. Sentiam essa grave austeridade contrastando com a terna ventura -dos seus corações, jovens e amantes, com o sentir mais delicado das suas -organisações creadas na tranquilidade e maciesa das veigas floridas, de -culturas abundantes que agudam a sensibilidade. O bello sol reunia-lhes -os dois corpos n'um feixe de luz, atando-os com os seus raios d'oiro; o -seu magnificente beijo matinal sellava a incomparavel ventura d'este -amor incomparavel. Tão descuidados e seguros se encontravam em momento -tão ditoso, que João não teve duvida em propor á sua amada o sahirem á -procura d'um rebanho, que lhes désse leite para o almoço. - -Foram enlaçados, como dois ramos nascidos do mesmo tronco. Rostos -alegres e corações abertos á aventura iam pelo monte além, descendo para -sitios onde presumiam pastos. Amplificavam-se-lhes os pulmões para -n'elles entrar o ar fresco; dilatavam-se as narinas excitadas pelos -aromas da brisa silvestre. Andaram bastante para encontrar o primeiro -rebanho: quando voltavam, ao ninho d'amor, com a caneca a transbordar de -grosso leite, é que ouviram latidos d'uma matilha, que de longe vinha -batendo a serra para o Medronhal. Continuava a subir aparatosamente o -sol, no céu tranquillo e mudo, desdobrando pelas corcovas das montanhas, -pelo apertado das gargantas, e pelos ferteis valles o seu lençol de luz. -Os cães ladravam ainda longe, porém a revoada dos seus ganidos, -misturados a tiros de espingarda e a gritos de batedores, subia pela -encosta acima, como o fumo d'uma nevoa, que o vento sul levantasse. O -rosto de Maria alterou-se, parou com o ouvido á escuta e perguntou: - -—Que será? - -—Alguma batida ao bicho bravo. O fogo é lá p'ra baixo—explicou João. - -—Vamos depressa para casa!...—pediu receiosa. - -—Pois vamos—concordou abraçando-a pela cintura, para andarem mais -depressa. - -Caminhavam diligentes e celeres, não reparando que se lhes vertia o -leite da infusa. Dominava-os apenas a idéa de não serem vistos de -viv'alma, de se esconderem na modesta choupana, com portas e janellas -fechadas, n'uma escuridade completa. Porém, os seus passos deseguaes e -nervosos foram sustidos n'um momento, pela apparição d'uma sombra... -d'um phantasma... d'um homem a cavallo, que apparecendo ao norte se -dirigia como elles, para o lado da ermida branca. - -—Olha gente!—exclamou Maria. Se nos vê, santo Deus!... - -Esconderam-se por traz d'um macisso do urzal virgem, que pegava com o -Medronhal. D'ali queriam observar o destino do cavalleiro. O silencio de -João, as linhas do seu rosto contrahido e pallido, o peito tão quieto -que nem respirava, denunciavam a negrura do seu coração. Comprehendeu o -perigo: ainda que aquelle homem fosse um estranho, que os não -conhecesse, havia de causar-lhe surpresa o encontral-os n'aquellas rudes -paragens, sósinhos, tão jovens, tão namorados e tão dignos um do outro. -Levaria a noticia do singular encontro e estariam logo descobertos. Pelo -menos seriam obrigados a mudar d'abrigo e a esgotar depressa o primeiro -calix da sua ventura. - -—Talvez passe para deante—ciciou-lhe, quasi ao ouvido, o namorado de -Maria. - -Mas o cavalleiro, caminhando devagar e cautelloso, como avançada na -observação de campo inimigo, estava ainda bastante longe para só se -distinguir o seu vulto com o chapeu desabado, a espingarda atravessada -nos joelhos, o grosso tronco, firme sobre a sella. - -—Peor é—considerou João—se ha por aqui alguma porta de espera; porque -então fica. - -—O que é uma porta de espera?—perguntou anciosa Maria. - -—O ponto onde pode romper a caça—esclareceu. - -Do lado esquerdo surgiu outro cavalleiro com o egual aspecto de -descanço, da mesma forma vestido e armado, convergindo tambem para o -sitio da ermida. Viam-no mais perto, sem que pudessem ainda definir -particularidades. Porém, quando chegou a um altinho, onde o recorte do -seu corpo e da cavalgadura se fez com maior precisão e nitidez, Maria -deu um grito, que pela intensidade da dôr que exprimia, seria capaz de -acordar lastimas nos reconcavos d'aquellas montanhas. - -—É meu irmão Thomaz! - -A João da Cunha cahiu-lhe da mão o tarro de leite, que se verteu pela -terra. Affirmando-se com acuidade de vista, levou a mão ao punhal que -tinha no bolso rugindo: - -—Pois matto-o. - -Em casa é que tinha as armas, com que poderia fazer frente aos seus -inimigos; mas a casa estava distante, e tinham de subir um pedaço de -encosta aspera. Chegariam a tempo se corressem; porém, as pernas de -Maria, recusavam-se a andar. Era mortal a pallidez do seu bello rosto, -tremula de commoção a sua voz melodica, pavorosa a angustia da sua alma; -o seu corpo sem energia, deixava-se desfallecer sobre o chão. João da -Cunha, o valente rapaz, principiou a tremer como um vidoeiro, açoitado -por ventos furiosos. Maria agarrando-se fortemente ao seu corpo -supplicava-lhe: - -—Esconde-me, esconde-me. Que me não vejam! - -Subia, magestoso e grave do fundo da matta, o sussurro do ribeiro da -Marnoca, cujas grandes aguas se despenhavam, avolumando-se-lhes o som, -com as ressonancias da montanha. Essa voz rouca e solemne attrahia os -dois corações amantes, que só poderiam encontrar refugio nas covas -fundas, onde a corrente uivava e onde o javali se escondia. N'essa -tetrica escuridade de noite haveria por ventura, abrigo e defesa contra -a furia e colera dos irmãos de Maria? - -—Vamos, vamos para baixo e se lá ainda nos encontrarem, jura-me que me -has de mattar com esse punhal, antes que elles me toquem!—clamava a -amada, enleando-se ao tronco do seu amado. - - - VII - -Conservava-se silencioso João da Cunha, porem tinha o semblante -terrivelmente tetrico. Já se ouviam mais perto os tiros de espingarda e -os gritos d'alarme dos batedores, e com este novo perigo mais se -estreitavam os corpos dos dois namorados. Obedecendo ao chamamento da -voz em supplica e reconhecendo a inutilidade de quaesquer esforços para -se deffender, João deixava-se arrastar por Maria para o fundo abysmo da -garganta escura da montanha, onde se despenhavam as aguas em -precipicios. No ultimo relance em que viu, por entre o urzal virgem que -os occultava, os dois cavalleiros, reconheceu serem Thomaz e Vicente, os -dois mais temiveis dos do Corcovado. Aproximava-se portanto, o fim do -seu tragico amor. Com a robustez do seu corpo agil, ia amparando o corpo -delicioso de Maria, que já se entregava sem animo. A cada paragem -indispensavel para refazer forças ella solicitava de João, com -verdadeiras lagrimas, que a deixasse esconder-se mais na escuridade. Já -tinha os pés e os braços ensanguentados de roçarem nos silvedos e nas -arestas vivas do granito; o vestido rasgado pelos espinhos dos abrolhos -e das tojeiras! João, apesar de toda a solicitude, não conseguia afastar -com as suas mãos piedosas todos esses duros obstaculos. Tambem elle -tinha a carne dilacerada e dos olhos vermelhos e vehementes sahiam-lhe -expressões alternadas de colera e de pavor. Mas iam descendo sempre, -amparando-se para não rebolarem pelo ingreme declive, do fundo do qual -vinha o bravio ronco das aguas, que se precipitavam de penedo em penedo, -por entre nuvens de espuma branca. O espirito de Maria sentia consolação -em embrenhar-se n'esta sombra de noite, cada vez mais espessa; mas o -barulho dos batedores e dos cães chegava-lhe de muito perto. E quando se -encontrou á borda do ribeiro gemebundo, com a pelle rasgada em feridas, -o vestido de noiva em farrapos, os cabellos desgrenhados e sem flores, -disse com expressão de alivio e desafogo: - -—Podemos morrer. Aqui não nos verão! - -O seu amado estava silencioso e rigido no meio da desventura, que por -todos os lados o cercava. Em breve ali chegaria a sofrega matilha, que -podia denunciar a estada d'elles n'aquelle mattagal aspero, escondidos -no reconcavo d'um penedo, abraçados n'um ultimo alento d'amor. João que -já uma vez batera aquellas brenhas, em alegre e bulhenta companhia, -via-se agora como o timido veado, occulto por medronheiros, altas -giestas e urzes seculares, com o fim de se furtar á impertinencia de -miseros rafeiros!... Do peito sahiam-lhe impetos de coragem, tinha -subitaneos repellões de musculos que o animavam a mostrar-se aos seus -inimigos, tal como era, indomito e sem temôr. Poderia subir n'um -arranco, qual outro cabrito montez, aquellas rochas escarpadas; poderia -haver ás mãos as clavinas e as pistolas: depois em campo claro, peito a -peito, combater com denodo, matando e morrendo. O seu coração ousado era -uma cachoeira de sangue n'estes momentos; exaltava-se-lhe a mente n'uma -febre de lucta. Erguendo-se, alto como um gigante, exclamou com os -braços para o céu: - -—Sem ao menos ter aqui as minhas armas com que te possa defender!... - -Maria dedusindo d'estas palavras do seu amado, que elle tivesse o -pensamento de se ir aperceber para a lucta supplicou: - -—Não me deixes só! Ninguem nos imaginará n'esta cova. - -—Depois de darem busca á casa e encontrarem cavallos e mais coisas que -nos pertencem, como não adivinharão?... - -—Falta-lhes ainda descobrir-nos. - -—Bastam os cães para nos denunciarem, como se fossemos bicho medroso... - -Humilhou-se, abatendo de novo o seu corpo sobre a terra humosa. Havia -gemer de raiva n'aquelle peito ancioso. Com aspecto torvo e fronte -livida, olhava com vista negra para a espessura da matta, onde o vivo -sol da manhã, apenas gerava uma penumbra. Zumbiam abelhas colhendo o -alimento do rosmaninho, da flôr do tojo e dos sargaços; os innocentes -piscos de peito vermelho volitavam de galho em galho; passara uma cobra -entre o folhedo, que tapetava o chão. A espessura do medronhal já se -enfeitava com rebentos novos; a vida universal, independente e -descuidosa, crescia, remoçava-se á vista d'aquelles corações -desfallecidos e sem esperança. - -A grita dos batedores avultava em intensidade. A matilha em busca accesa -estava perto, subia e descia as penedias, entrava nas covas e na negrura -dos mattos. Os dois amantes, ouviam perto os latidos; sentiam o ganir e -o choro proprio da canzoada na ancia da procura. João da Cunha, -paralytico na sua vontade e remettido á impotencia do seu aspero -desespero, não falava: fechou os olhos para não ver, tapou os ouvidos -para não ouvir. Maria, com a sua alma candida cheia ainda de fé e -esperança, estava de joelhos, as mãos erguidas, orando fervorosa e -supplicante, o pallido rosto innundado de lagrimas. Deu um grito e -interrompeu a prece, ao ver por entre a espessura da velha urze que -tapava a bocca do antro onde se tinham escondido, o negro focinho d'um -valente cão do Crasto, que rosnava. João ergueu-se de repente, apurando -todos os seus sentidos, e ficou ameaçador com o punhal na mão. O animal -recuou, subindo para um penedo d'onde principiou a ladrar e a arremetter -com ferocidade. Era um animal medeano, mas de cabeça poderosa: tinha o -focinho agudo, a bocca rasgada como a dos lobos, as orelhas cortadas, em -volta do pescoço uma colleira de pregos. O corpo zebrado de negro, em -fundo pardacento, lembrava a pelle da hyena. O pello do dorso, mais -cerdoso, estava erriçado pela colera; os olhos sanguineos, em circulo -negro, olhavam com ferocidade; os dentes brancos, fortes, eguaes, -arreganhavam-se deixando ver a lingua comprida, como uma chamma. Ladrava -com desespero, resfolgando-lhe as narinas, pois via João da Cunha, com o -punhal na mão, em attitude aggressiva. Outros cães da matilha vieram -junctar as suas vozes ás do denunciante; os batedores, suppondo peça de -caça renitente, algum javalli encurralado entre penedos, animavam com -gritos os animaes, em quanto se iam approximando. - -O lance era de extremos perigos. João da Cunha, palido como a morte, -estreitava ao seu valente corpo, o leve corpo de Maria, cujos irmãos, ao -suspeitarem do valor do signal dado pelos cães se tinham já reunido -juncto da ermida para conferenciarem. - -—São elles—disse Thomaz, o de coração mais duro. Examinei aquella casa, -tem coisas que lhes pertencem. Ha um cavallo da Maceira. - -—Não nos fugirão agora—disse rancorosamente Vicente. - -N'estas palavras havia alegria e impiedade. Concertaram o seu plano, que -consistia em descerem, ao mesmo tempo, de quatro pontos differentes, -convergindo para o sitio onde o ladrido se accentuava mais vivo e feroz. -Porfiavam por chegar primeiro que os batedores, para só por si -liquidarem este pleito. Tinham calma no aspecto, mas levavam no coração, -muito mais goso e ferocidade, do que teriam para desalojar a mais -temivel das féras. - -Tamanha era a perseguição que os mastins lhes faziam que João e Maria -tiveram de sahir do seu esconderijo, para ficarem em terreno aberto, -onde se pudessem defender. Os cães do Corcovado, ouvindo a voz carinhosa -da sua ama, tinham-se afastado da contenda; mas os restantes, -especialmente o que primeiro os descobrira, mostravam-se de cada vez -mais inimigos. Houve um instante em que o assedio se tornou tão violento -que João da Cunha pronunciou alto: - -—Maus raios! Eu sem lhes poder chegar!... - -N'este apertado lance é que Maria descobriu, n'uma clareira, cercada de -urzes e medronheiros, passar seu irmão mais velho, o Manuel, com a -espingarda ao hombro, dirigindo-se para o sitio onde os cães ladravam. - -—Estamos descobertos!—disse apontando. - -—Inferno!—bramou João da Cunha. Não ter comigo as clavinas! - -Este apparecimento levou Maria para as visões da loucura. Pelo ramalhar -das arvores, em cujos braços as espingardas se prendiam, pelo ondear dos -mattos, percebia-se claramente que tambem os outros do Corcovado para o -mesmo ponto convergiam. - -Maria pensou em encontrar sitio, ainda mais inaccessivel, lá para o -fundo do precipicio. João desvairado, acompanhava-a, amparando-a, para a -não deixar cahir. Nenhum d'elles sabia para onde era levado pelo -destino, pela força interior que os impellia, mas ambos comprehendiam -que mais para baixo era mais cavernoso o marulho da corrente, mais denso -o arvoredo. Havia ahi uma queda de muitos metros, onde a agua levantava -alegres nuvens de espuma, e depois se expraiava em larguesa de bahia -tranquilla. Sem conhecerem o risco, para ahi se dirigiram, attrahidos -pela escuridade e para se livrarem da perseguição crescente da matilha. -Entraram n'uma passagem estreita, onde o ribeiro corria precipitado. O -negrume do logar e o fragor da corrente cegava-os e ensurdecia-os. -Chegaram á fraga d'onde a catadupa se precipita no fundo barathro. Ahi -apareceram abraçados um ao outro, tão meigos e sorridentes, como no -primeiro momento d'amor, e n'esse supremo instante é que uma voz de -vingança se lhes levantou fronteira, ameaçando-os: - -—Nem mais um passo, que os varo!... - -Era o Thomaz, que os apontava com a arma aperrada. - -Maria deu um grito de pavor desprendendo-se dos braços do seu amado. -Tapou os olhos para não ver e correndo pela lage fóra, precipitou-se na -cachoeira fremente. João com os dentes cerrados de desespero, os olhos -em chammas de loucura, ainda tentou agarral-a; porém acompanhou-a na -queda, sem poder tocar-lhe no vestido de noiva. - - * * * * * - -O cadaver de João da Cunha, foi encontrado, depois, entre as penedias, -com o craneo esmigalhado. Já os corvos crocitavam em volta da sua misera -podridão. O de Maria, colhido amorosamente pela massa das aguas ao cahir -appareceu boiando no remanso limpido, como o de Ophelia, retido por um -innocente ramo d'urze. Foi d'esta humilde planta, que o seu corpo gentil -recebeu o ultimo beijo de carinho. - - - FIM - - - - - INDICE - - Santa Margarida 1 - - Pastoral 63 - - Fogo do Céu 95 - - Voltou 113 - - Cresce o Mar 155 - - O Gamarrão 171 - - O Calvario do Amor 187 - -*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A NOSSA GENTE *** - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the -United States without permission and without paying copyright -royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part -of this license, apply to copying and distributing Project -Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm -concept and trademark. 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Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. - -START: FULL LICENSE - -THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK - -To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase "Project -Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg-tm License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. - -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project -Gutenberg-tm electronic works - -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. 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Hart was the originator of the Project -Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of -volunteer support. - -Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. - -Most people start at our website which has the main PG search -facility: www.gutenberg.org - -This website includes information about Project Gutenberg-tm, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/old/67561-0.zip b/old/67561-0.zip Binary files differdeleted file mode 100644 index 7a2a021..0000000 --- a/old/67561-0.zip +++ /dev/null diff --git a/old/67561-h.zip b/old/67561-h.zip Binary files differdeleted file mode 100644 index 45dbb38..0000000 --- a/old/67561-h.zip +++ /dev/null diff --git a/old/67561-h/67561-h.htm b/old/67561-h/67561-h.htm deleted file mode 100644 index 99c0992..0000000 --- a/old/67561-h/67561-h.htm +++ /dev/null @@ -1,5749 +0,0 @@ -<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" - "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> -<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml" xml:lang="pt" lang="pt"> - <head> - <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html;charset=utf-8" /> - <meta http-equiv="Content-Style-Type" content="text/css" /> - <title> - A nossa Gente, by Teixeira de Quieroz—A Project Gutenberg eBook - </title> - <link rel="coverpage" href="images/cover.jpg" /> - <style type="text/css"> - -body { - margin-left: 10%; - margin-right: 10%; -} - - h1,h2,h3,h4,h5,h6 { - text-align: center; /* all headings centered */ - clear: both; -} - -p { - margin-top: .51em; - text-align: justify; - margin-bottom: .49em; - text-indent: 1em; -} - -.p2 {margin-top: 2em;} -.p0 {text-indent: 0em;} - -.big {font-size: 1.2em;} -.xxbig {font-size: 2em;} - -hr { - width: 33%; - margin-top: 2em; - margin-bottom: 2em; - margin-left: 33.5%; - margin-right: 33.5%; - clear: both; -} - -hr.tb {width: 45%; margin-left: 27.5%; margin-right: 27.5%;} -hr.chap {width: 65%; margin-left: 17.5%; margin-right: 17.5%;} -@media print { hr.chap {display: none; visibility: hidden;} } - -hr.r5 {width: 5%; margin-top: 1em; margin-bottom: 1em; margin-left: 47.5%; margin-right: 47.5%;} -hr.r65 {width: 65%; margin-top: 3em; margin-bottom: 3em; margin-left: 17.5%; margin-right: 17.5%;} - -div.chapter {page-break-before: always;} - -table { - margin-left: auto; - margin-right: auto; -} -table.autotable { border-collapse: collapse; width: 75%; font-size: 1.1em;} -table.autotable td, -table.autotable th { padding: 4px; } -.page {width: 4em;} -.x-ebookmaker table {width: 95%;} - -.tdr {text-align: right;} - -.pagenum { /* uncomment the next line for invisible page numbers */ - /* visibility: hidden; */ - position: absolute; - left: 92%; - font-size: smaller; - text-align: right; - font-style: normal; - font-weight: normal; - font-variant: normal; -} /* page numbers */ - - -.center {text-align: center;} - - - -/* Images */ - -img { - max-width: 100%; - height: auto; -} -img.w10 {width: 10%;} -.x-ebookmaker .w10 {width: 15%;} - - -.figcenter { - margin: auto; - text-align: center; - page-break-inside: avoid; - max-width: 100%; -} - - -/* Footnotes */ - -.footnote {margin-left: 10%; margin-right: 10%; font-size: 0.9em;} - - -.fnanchor { - vertical-align: super; - font-size: .8em; - text-decoration: - none; -} - -/* Poetry */ -.poetry {text-align: left; margin-left: 10%; margin-right: 5%;} -/* uncomment the next line for centered poetry in browsers */ -/* .poetry {display: inline-block;} */ -/* large inline blocks don't split well on paged devices */ -@media print { .poetry {display: block;} } -.x-ebookmaker .poetry {display: block;} - - </style> - </head> -<body> -<div lang='en' xml:lang='en'> -<p style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of <span lang='pt' xml:lang='pt'>A nossa Gente</span>, by Francisco Teixeira de Queiroz</p> -<div style='display:block; margin:1em 0'> -This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and -most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions -whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms -of the Project Gutenberg License included with this eBook or online -at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. 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(ultimos exemplares) -</td> -<td class="tdr"> -500 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -II —Amor Divino—1 vol. (ultimos exemplares) -</td> -<td class="tdr"> -500 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -III —Antonio Fogueira—1 vol. -</td> -<td class="tdr"> -500 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -IV —Novos contos—1 vol. -</td> -<td class="tdr"> -600 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -V —Amores, amores...—1 vol. -</td> -<td class="tdr"> -600 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -VI —A nossa gente—1 vol. -</td> -<td class="tdr"> -500 -</td></tr> -</table> - -<hr class="r5" /> -<p class="center p0">COMEDIA BURGUEZA<br /> -(ROMANCES)</p> -<table class="autotable"> -<tr> -<td> -I —Os noivos—2 vol. (nova edição com o retrato do auctor) -</td> -<td class="tdr"> -1000 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -II —Sallustio Nogueira (exgotado) 1 grosso vol. -</td> -<td class="tdr"> -1000 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -III —D. Agostinho—1 vol. -</td> -<td class="tdr"> -600 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -IV —Morte de D. Agostinho—1 vol. -</td> -<td class="tdr"> -600 -</td> -</tr> -<tr> -<td> -V— O famoso Galrão—1 vol. -</td> -<td class="tdr"> -600 -</td> -</tr> -</table> - -<hr class="r5" /> - -<table class="autotable"> -<tr> -<td>Arvoredos—(Contos escolhidos, edição diamante, com estampas) -</td> -<td class="tdr"> -800</td> -</tr> -</table> - -<hr class="r5" /> - -<table class="autotable"> -<tr> -<td> -As minhas opiniões—(Estudos psychologicos e sociaes) 1 vol. -</td> -<td class="tdr">600</td> -</tr> -</table> - -<hr class="r5" /> - -<table class="autotable"> -<tr> -<td> -O Grande Homem—(Comedia, exgotada). -</td> -</tr> -</table> - -<hr class="r5" /> - -<p class="center p0">EM PREPARAÇÃO<br /> -(ROMANCE)<br /> -<strong>A Caridade em Lisboa</strong><br /> -(<i>Comedia burgueza</i>)</p> - - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p class="center p0 big"><i>COMEDIA DO CAMPO</i></p> - -<p class="center p0">(SCENAS DO MINHO)</p> - -<hr class="r5" /> - - -<p class="center p0 xxbig">A nossa Gente</p> - - -<p class="center p0 p2">POR</p> -<p class="center p0 big">TEIXEIRA DE QUEIROZ<br /> -(<i>Bento Moreno</i>)</p> - -<p class="center p0 p2"><span class="figcenter" id="img001"> - <img src="images/001.jpg" class="w10" alt="Imagem da editora" /> -</span></p> - - -<p class="center p0"><span class="big">LISBOA</span><br /> -PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA<br /> -(<i>Livraria-editora</i>)<br /> -50, 52—Rua Augusta—52, 54<br /> -1900</p> - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p class="poetry p0 p2" xml:lang="fr" lang="fr"> -La plupart des drames sont dans les idées<br /> -que nous nous formons des choses. Les événements<br /> -qui nous paraissent dramatiques ne<br /> -sont que les sujets que notre âme convertit en<br /> -tragédie ou en comédie, au gré de notre caractère.</p> - -<p class="poetry">H. DE BALZAC.—<i>Modeste Mignon.</i></p> - -<hr class="r65" /> -<p class="center p0">LISBOA<br /> -Typographia da Parceria Antonio Maria Pereira<br /> -<i>11—Apostolos—11</i><br /> -1899</p> - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_249">[Pg 249]</span></p> -<h2>INDICE</h2> -<table class="autotable"> -<tr> -<td> -Santa Margarida -</td> -<td class="tdr page"> -<a href="#Page_1">1</a> -</td> -</tr> -<tr> -<td>Pastoral -</td> -<td class="tdr page"> -<a href="#Page_63">63</a> -</td> -</tr> -<tr> -<td> -Fogo do Céu -</td> -<td class="tdr page"> -<a href="#Page_95">95</a> -</td> -</tr> -<tr> -<td> -Voltou -</td> -<td class="tdr page"> -<a href="#Page_113">113</a> -</td> -</tr> -<tr> -<td> -Cresce o Mar -</td> -<td class="tdr page"> -<a href="#Page_155">155</a> -</td> -</tr> -<tr> -<td> -O Gamarrão -</td> -<td class="tdr page"> -<a href="#Page_171">171</a> -</td> -</tr> -<tr> -<td> -O Calvario do Amor -</td> -<td class="tdr page"> -<a href="#Page_187">187</a> -</td> -</tr> -</table> -</div> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum" id="Page_1">[Pg 1]</span></p><h2>SANTA MARGARIDA</h2> - - -<h3>PRIMEIRA PARTE</h3> - - -<h4>I</h4> - - -<p>Era adoravel no berço pela sua tranquillidade feliz: esse primeiro anno -de existencia passou-o a mammar e a dormir, deixando de mammar para -dormir, e interrompendo o dormir só para mammar. Nos curtos intervallos -d'estas occupações sérias mostrava pouca vivacidade de caracter: para -tudo e para todos olhava com tal incomprehensão, que se julgou que fosse -doente, ou de somenos intelligencia. Pouco mais do que a planta que -vegéta apegada á terra, e que só estima a terra que a nutre; pois o -unico apego ou affeição manifestado n'este primeiro periodo de vida, foi -pela ama, a Antonia, mulher do caseiro, e desdenhava os afagos da mãe -verdadeira, preferindo-lhe os d'aquella que a sustentava <span class="pagenum" id="Page_4">[Pg 4]</span>de leite. A boa -creatura ufanava-se com isto e no intimo julgava-se com melhor parte na -maternidade de Margarida do que a propria D. Claudina, que a déra á luz. -Este ciume levou-a a dizer ao seu homem, que mais queria aquella menina -do que ao seu Zé, cuja creação entregara a uma irmã, para tomar conta da -filha dos patrões, como estava assente e ajustado que fosse, mesmo antes -dos dois partos. E justificava-se:</p> - -<p>—Pois se ella é tão minha amiga, que não póde estar um só instantinho -sem mim!... Meu rico anjo!... Se accorda e me não vê, logo chora que é -grande matação. Lá o meu rapaz era muito mais bravo e até ruim. Dava-me -cada dentada!... Havia noites, que eu não pregava olho por causa d'elle.</p> - -<p>Assim correu o primeiro anno; mas quando se entrou no seguinte e pela -volta dos quatorze mezes, começaram para a misera Antonia noites -difficeis e tormentosas com o rompimento das presas. Tudo que até ahi -fôra doçura de caracter, se transformou em rabugem insupportavel. -Quantas dôres não soffreria a pobre creança para chorar continuadamente, -de dia e de noite, que nem se comprehendia como tivesse folego para -tanto!... A ama aguentava com heroicidade e lagrimas as mordeduras no -peito, que chegavam a fazer-lhe sangue. Os medicos prohibiram o desmamme -n'esta grave crise, que foi tão violenta e alarmante, como qualquer -perigosa molestia. Esperava-se que isto <span class="pagenum" id="Page_5">[Pg 5]</span>passasse; decerto havia de -passar e passou, depois de ter durado tres longos mezes, com a creança -entre a vida e a morte. Não lhe faltaram com nenhuma coisa que podesse -minorar aquelle soffrimento horrivel: além dos medicos que vinham ambos -todos os dias, foram requeridos os mais afamados e milagrosos santos da -visinhança; e consultadas as feiticeiras mais sérias, que predisseram -com grande tino e sagacidade, sobre cueiros e camisinhas da innocente -Margarida. Mas n'esse periodo atroz dos tres mezes tudo parecera -infructifero: as convulsões eram aterradoras, a febre continuada, o -emagrecimento implacavel! As honras da victoria, por fim, couberam a -santa Margarida, padroeira da capella da casa, cujo valimento -imploraram, adiantando-lhe uma illuminação de velas de cera em oito dias -e oito noites contadas hora a hora. As primeiras reconhecidas melhoras -declararam-se exactamente no fim d'este espaço de tempo, e por tal -motivo houve depois missa cantada em acção de graças e sermão, em que o -padre José Pitança disse coisas maravilhosas ácerca do incontestavel -milagre.</p> - - -<hr class="tb" /> - -<p>Passara o perigo e com elle todas as afflicções n'aquella casa. A -creança melhorou, entrando n'uma phase de saude regular. Voltaram-lhe as -<span class="pagenum" id="Page_6">[Pg 6]</span>bellas côres do rosto. Acordou d'esta especie de lethargia com -vivacidade irrequieta nos olhos e signaes de esperteza em todo o -semblante, o que até ahi se lhe não tinha notado. Os paes viviam mais -contentes do que nunca, pois que a filha lhes fôra restituida -accrescentada em espirito e saude. Antonia é que não seria completamente -da mesma opinião, visto que a sua querida menina já não era tão meiga e -docil de caracter. Estava uma insupportavel traquina: tinha muito genio, -um frenesi permanente lhe dominava a vida infantil, custava muito a -aturar. Os nervos ainda se lhe exacerbaram e o querer tornou-se mais -irascivel, quando aos sete annos veio uma segunda crise de doença. -Aquelle pequenino rosto, uma oval delicada que podia conter-se na exigua -mão d'uma fada; aquella bocca pequenina e vermelha como um botão de -rosa; os dois olhos negros como duas amoras... tudo se transformara a -ponto de parecer um rosto feio, com dentes transitoriamente deseguaes e -em posição cahotica, beiços grossos da inflammação, e olhares violentos -e maus. A misera Antonia passou n'este periodo amarguras desconhecidas: -eram mordedellas, beliscões e pancadas com que a mimoseava esta sua -filha de leite. Não socegava, nem de dia nem de noite. O seu dormir -d'agora, era tão vario e turbulento, que mesmo durante o somno seguia a -encarniçada batalha da vida, com gargalhadas, choros, gritos, gestos e -palavras de violencia, como se estivesse acordada. A paciente ama <span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span>andava -constantemente a pé com um frio de lobo, para a cobrir; pois -considerava, que, se a pequena lhe apanhasse algum resfriamento, ella -mais do que ninguem pagaria o mal com vigilias e canceiras. Durante -essas longas horas de silencio, á luz tremula da lamparina que havia no -quarto commum, escutando o vento que uivava nas carvalheiras da matta e -a chuva que grazinava no telhado e nas vidraças, é que a humilde serva -tinha os seus desabafos deante da imagem da Virgem, que estava no -oratorio:</p> - -<p>—Mesmo uma cabrita!... Não é do meu leite... não! Isto... trocaram-m'a -por outra. Se esta Nossa Senhora a levasse para a sua companhia...</p> - -<p>Mas vinham-lhe logo idéas de arrependimento, por causa de taes -arrenegos. Creara-a ao seu peito e lembrava-se com amor das consolações, -que Margarida lhe dera no primeiro anno de amammentação, quando era -meiga como um cachorro recem-nascido, formosa como um anho de lã branca. -Não se lhe desvanecera ainda da pelle a sensação deliciosa d'aquelle -contacto setinoso; no mamillo sentia ainda o sugar angelico que lhe -inebriara de caricias todo o corpo e até, por vezes, a tinha adormecido -com deleites (como dizem que produz a cobra manhosa, que magnetisa a -teta ubere de que se sustenta ás furtadelas). Então Margarida era uma -bolinha de carne, que dava gosto mostrar a toda a gente, e com quem -appetecia dormir quando ella se mettia pelo corpo da ama dentro, feita -<span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span>n'um novello, os joelhinhos proximo do queixo, as mãosinhas agarradas na -mamma com medo que lhe fugisse. Taes coisas nunca esquecem, deixam, na -memoria de todo o corpo, impressão de suavidade e doçura tal, que -impossivel é olvidal-as, mesmo quando surjam novos factos de natureza -varia a contradizel-as. Foi por causa da primeira crise de dentição, que -Margarida mammou muito para além do anno; e ainda para maior mal, -Antonia continuara-lhe este vicio bem mais tempo do que se suppunha. Já -o peito estava sêcco; a menina, que dormia com ella, não pegava no somno -sem que tivesse a chucha na bocca e fazia-o com tanto geito e goso que a -ama lhe dizia:</p> - -<p>—Sua lambona! No dia em que se casar ainda ha de pedir d'isto... Caso é -que parece correr-lhe...</p> - -<p>E corria e ella deixava correr, pois que n'esse sugar improficuo e -vicioso, a boa mulher, além de não querer contrariar Margarida, -encontrava a lembrança de tantas meiguices passadas, que até lhe vinham -lagrimas de contentamento. Se ao despegar a creança a bocca, por cahir -em somno, ella reconhecia no bico do peito algumas gottas tiradas do seu -sangue, vinham-lhe assomos de ternura, em que perdoava todas as -rabinices do dia. Foram n'este viver defezo até aos cinco annos da -pequenita, pois Antonia só assim encontrava meio de lhe dominar as -crises de genio violento. Quando a via com o diabo no corpo, fechava-se -<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span>com ella no quarto ás escuras e lá perpetravam o seu crime. Mal pensava -a ama, que com tal proceder, concorria para tornar aquelles nervos (já -de sua natureza vibrantes e sempre álerta para explodirem como centelhas -electricas) exigentes e melindrosos, logo no começo da vida! Pois assim -se formou aquelle cerebro excentrico e phantasioso: ora illuminado de -alacridade estrondosa e communicativa, ora obscurecido por tristeza -bronca e inconvivente; hoje da suavidade doentia da rola amorosa, ámanhã -da rudeza do milhafre accommettendo com as garras e o bico. Quando presa -de melancolia, procurava escuras sombras nos arvoredos da matta contigua -á habitação, secrestando-se assim do convivio de todos; n'outras -occasiões, com a mente jubilosa praticava innumeras temeridades—subindo -a arvores e a telhados, provocando os viçosos bezerros que pasciam no -prado, soltando os sanhudos cães de guarda para accommetterem pacificos -transeuntes e os pedintes que vinham ao portal. Porém alegrias ou -tristezas eram-lhe de pouca dura: simples fulgurações de nervos, que -logo se apagavam após ephemero clarão. Appareciam frequentes e -ligavam-se taes estados de sentir contrarios, mostrando, no emtanto, -accentuado pendor para tudo que fosse bulha. Traziam tambem essas -rebeldias de nervos caracter de contagiosas ou suggestivas para as -outras creanças, que a imitavam e seguiam com enthusiasmo e obcecação, -collaborando com ella em <span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span>obras destruidoras contra animaes, flores ou -mobilia. Esta pequena imperatriz da maldade impunha auctoritariamente a -imitação do seu procedimento tyrannico e contundente. Os paes eram -ricos, queriam-lhe muito e consentiam-lhe tudo; por isso encontrava -sempre como victimas para esgotar a turbulencia da sua alma um velho -creado paciente e tonto, um cão gottoso e indefeso que dormia juncto da -lareira, um pobre jumento aposentado, que soltavam para comer nos -vallados. Porém a passividade soffredora, que taes entidades lhe -offereciam, mais lhe fazia referver o sangue; não se ressentirem das -suas provocações tomava-o como de pouca consideração pelo seu poder; o -soffrimento alheio causava-lhe regosijos de que dava mostras com animo -contente e satisfeito. Quem podia, evitava-lhe o contacto; mas os -creados e dependentes faziam-lhe vontades e muitas festas deante dos -paes; diziam-lhe palavras de carinho e agradaveis; louvavam-lhe a -docilidade de genio e animo dadivoso; porém, não poucas vezes, Margarida -lhes commentou os dizeres com esta que tal rabinice:</p> - -<p>—Tu dizes isso para a mamã te ouvir...</p> - -<p>E D. Claudina sempre a corrigia assim:</p> - -<p>—Bem sei que és ruim como as cobras; mas és minha filha...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span></p> - - -<h4>II</h4> - - -<p>Os doze annos de Margarida, coincidindo com o domingo de Paschoela, em -que se celebrava o orago da capella da casa, foram festejados com -demasiada pompa. Quem primeiro lembrou o ajustado d'essas duas datas foi -Antonia, e D. Claudina assignalou a importancia do facto, por serem os -doze annos a edade que marca a transicção da inconsciencia infantil, -para a responsabilidade de quem já repara na sombra. Talvez ambas -tivessem o pensamento reservado de pedir a collaboração da santa, com o -fim de conseguirem qualquer mudança favoravel no caracter irrascivel da -creança!... Tem-se visto milagres d'estes e maiores; nunca se deve -desesperar da possibilidade da intervenção do poder divino <span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span>nos destinos -humanos. Posta a questão de assim conseguirem para a alma de Margarida -uma correlação de belleza com a do seu rosto, que era, em certos -instantes, d'uma belleza seraphica, não se pouparam os paes a larguesas. -Formaram plano grandioso: haveria missa a tres padres, com Gloria e -Credo cantados por côro escolhido; haveria sermão de circumstancia -pregado por qualquer padre de nomeada, que viesse de Braga, onde os ha -bons; haveria fogo preso e musica de vespera; romaria e procissão com -anjinhos no dia. Isto pelo que toca ao divino: no que diz respeito ao -profano, grande jantar com numerosos convivas, uma especie de baile no -domingo á noite, que se realisaria na grande sala de ordinario destinada -a estendal e armazem das fructas, batatas e feijão, que se guardavam -para todo o anno.</p> - -<p>Quanto mais se martellava n'isto, mais se estendia e melhorava a -primitiva idéa. João da Costa assentou em que, para celebrar -condignamente a juncção da festa da padroeira da sua capella com os doze -annos de sua filha, devia attrahir muito povo de perto e de longe e por -tanto encommendou ao Zé Osti, o mais afamado fogueteiro do Alto Minho -(onde se conhecem dos primeiros) um fogo preso chibante! Sabia elle -muito bem que sendo conhecido este promenor, não ficariam em casa senão -os muribundos; porque até os cegos e paralyticos haviam de concorrer.</p> - -<p>Não se enganara: era de vêr como dos campos <span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span>em lavrada, se levantavam -alaridos de alegria no dia em que atravessaram as aldeias visinhas o -proprio filho do Zé Osti, capitaneando uma duzia de mulheres, que á -cabeça transportavam as diversas figuras e o abundante fogo do ar. -Tambem João da Costa se não esqueceu de mandal-os esperar pela musica -que tinha contractada, e que á frente vinha annunciando o caso com o -estrondo dos seus metaes, tocando grandiosa marcha. A galhardia dos -trombones, figles e cornetins, lardeados pelos alegres clarinetes e -flautas soprados com alma e coração, e tudo esfuziado por um soberbo -requinta que fôra musico do tres de Vianna, formavam um tal conjuncto -alegre e ostentoso, adeante dos bombos e pratos, que era de deixar bois, -charrua e arado, para vir ao caminho gozar, admirar e applaudir! Tudo -merecia a imaginação copiosa e deslumbradora do afamado fogueteiro! As -formosas moçoilas que abandonavam, por momentos, as sacholas e vinham -acompanhadas dos namorados ver as ricas peças, bem o demonstravam -exclamando:</p> - -<p>«Olha a chieira d'aquella macaca de chapeu de flôres! Veremos se terá a -mesma, quando lhe rebentarem as bombas por baixo da saia de balão.»</p> - -<p>«Olha o barbeiro a amolar as navalhas! No sabbado á noite é que as hade -amolar depressa!...»</p> - -<p>«Olha o janota de chapeu alto, que grande charuto leva na bocca! Aquillo -é que hade esguichar fogo, quando lh'o accenderem.»</p> - -<p>«E o painel de Santa Margarida cheio de lagrimas <span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span>de côres á roda! É obra -apilarada! Não vêdes gentes, como se parece com a morgadinha?!...»</p> - -<p>Do fogo do ar é que se presumiam coisas de espavento, pelo que se vira -na passada romaria da Agonia. Então deitaram-se foguetes com cabeças -maiores do que as de gente, e houve por momentos receio de que pudessem -estremecer e toldar os vinhos que ainda estavam envasilhados, ou aluir -qualquer penedo mal seguro! Todos tinham tamanho respeito aos monstros, -que o Zé Osti, não encontrando nas localidades homem bastante corajoso -para lhes chegar a murraca, nas occasiões se fazia acompanhar por um -especial, que tinha o craneo por forma duro e resistente, que não -haveria receio de que lhe rebentasse o sangue pelos ouvidos, ou se lhe -voltasse a mioleira, se por acaso um dos foguetes não subisse e lhe -estalasse aos pés.</p> - -<p>Era um sugeito atarracado e musculoso, que para exercer o mister tinha -de arroxar o craneo com tres lenços em volta. No intuito de prevenir -desgraças esses foguetes gigantes, deitavam-se sempre longe do ponto da -romaria, e para agora haviam escolhido o conjuncto especial de penedos -chamados o Castello, com o fim de que o estrondo não encommodasse.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span></p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Á chegada da musica e do fogo, a creadagem de João da Costa, logo -appareceu no largo da entrada a distribuir copos de vinho, por toda -aquella gente que vinha suada. Foi um despejar como nunca se vira: «e -vivam os senhores fidalgos, por muitos annos e bons», «e viva a senhora -morgadinha que ha de arranjar um namorado de truz!». Em quanto houve -mollete nos cestos foi estacinhar e beber; achando-se já fartos, -recomeçou a musica com tanta furia, que até parecia que se estava no dia -da festa. O fogueteiro para mostrar a sua fazenda descarregou-a ali -mesmo no quinteiro, pondo as figuras em correntesa, para que todos as -vissem e admirassem. Havia realmente progresso e modernice quer nas -attitudes, quer no vestuario, pois tudo era mais humano e natural. Os -corpos com outros geitos e menos rigidos; nas roupas, os papeis -semelhavam fazendas—de seda pareciam as saias e os corpetes, de casemira -as calças e casacas. Até era pena que tão bellas coisas fossem -destinadas a rasgões violentos de bombas e a arderem no meio da -alacridade do povo! Tudo tinha, porém, o fim de augmentar a -magnificencia da festa em honra de Santa Margarida e dos formosos doze -annos da sua afilhada. João da Costa desceu com alguns amigos a apreciar -de perto tanta maravilha e perfeição <span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span>e com um gesto orgulhoso de cabeça, -indicando um monte especial de foguetes perguntou:</p> - -<p>—São os taes?</p> - -<p>—Sim, senhor—respondeu o Osti.</p> - -<p>—Parecem cabeças de toiro! Subirão?</p> - -<p>—Como perdises que encastellem, verá! Iriam ao ceu se fosse preciso.</p> - -<p>Eram as faladas maravilhas, timbre e gloria do famoso artista. Os -creados da casa, com as canecas vasias na mão pasmavam deante d'ellas, -considerando absortos, que alma damnada teriam dentro, para com o -estrondo ao rebentar, metterem medo a quem estivesse mesmo a grande -distancia.</p> - -<p>Como fosse dia de sexta feira a musica retirou-se depois do beberete, -para voltar na noite seguinte, que era a do arraial. Antes havia a -ultimar os trabalhos de ornamentação da capella e escolher bem o sitio -do fogo preso, para que fosse gosado por toda a gente. Porém com o fim -de não haver descontinuidade no enthusiasmo pela apregoada festa, -chegaram n'este dia pela volta das onze da manhã os tres zabumbas, as -seis caixas e a respectiva gaita de folles, que João da Costa -encommendara, e entraram na freguezia d'um modo ovante, tocando com -verdadeira imponencia, para despertar a alegria nos corações. -Atravessando o povoado em passo lento, solemne e compassado enchiam os -ares com o estrondo magnifico dos seus instrumentos, e logo se dirigiram -á casa de habitação dos festeiros para os saudar. Então ali é que foi o -bom <span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span>e o bonito, depois de despejarem mais de um cantaro de vinho sobre -uma boa duzia de postas de bacalhau e brôa!... Como ficassem alegres e -satisfeitos, quizeram mostrar melhor a sua gratidão e artes; por isso se -proposeram a exhibir todos os segredos dos seus instrumentos. Bombos a -um lado, caixas ao outro e gaita no centro, começou o grande apparato! -Os zabumbas formavam um fundo de quadro de paisagem colossal e -montanhosa; os seis tambores pareciam alegres comadres a chasquear e a -ralhar; o da gaita de folles pavoneava-se desvanecido com ella nos -braços, encostada ao hombro como um tropheu!... Veio a familia e vieram -os convidados á janella; o rapazio gaudiáva dando cabriolas. N'um certo -momento dois dos caixas, que andavam sempre em rixa, separaram-se dos -companheiros para repenicarem com todo o primor, dobrando o rufo com -elegancia e mestria. Era um florear de baquetas em tom cadenciado e -tremulo sobre a pelle distendida das fallecidas cabras. Mostravam -prestesa, pulso rijo e flexibilidade de musculos. Havia em tudo aquillo -enthusiasmo e coração de valentes, o que se tirava da energia facial com -que se combatiam, procurando reciprocamente cançar-se. No mais vivo da -sequestra, um dos de zabumba, que tambem presumia de sua fama, saltou -para o meio do terreiro e principiou muitas variações, saltando e -pulando com mil requebros. Era homem agil e physionomia viva de olhos -bugalhudos. Com a <span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span>baqueta da mão direita feria o instrumento em todas as -posições imaginaveis: por cima da cabeça, com elle horisontal á ilharga, -suspenso nas costas, deitando-se no chão com elle sobre o ventre! Os -companheiros seguiam-lhe a destresa de athlecta, com sorriso sceptico e -molle, tirando dos seus bombos sons mais baços.</p> - -<p>O gaiteiro vendo applaudidos por todos os assistentes aquellas -galhardias, não lhe consentiu o animo ficar em obscuridade. Era homem -baixo e grosso, physionomia ossea, mas esperta. Filho d'outro de -Compostella, herdara de seu pae o instrumento e a prenda de o tocar com -distincção. Afastando-se dos zabumbas e caixas triviaes, principiou a -rabear entre os tres que já se exhibiam com apparato e luxo de ademanes. -Quiz tambem chamar sobre si a attenção dos festeiros. Com o ventre do -instrumento impando, requebrava-se em passo cadenciado e dolente de -dança gallega: tirava; ora sons plangentes e maguados como gemidos -tristes; ora um psalmear monotono e roufenho, que ondulava no ar como o -vôo pesado d'um ganço; ora guinchos agudos como estylêtes ou espinhos -que entrassem nos ouvidos. Saracoteava-se com o instrumento ao collo, -mechendo os dedos n'uma especie de canudo de flauta e soprando-lhe no -ventre por um bico de cegonha.</p> - -<p>Os bombos a falar grosso, as caixas a rufar certo, o gaiteiro a tocar -variado, tudo n'uma paisagem primaveril de folhas tenras, um bom e -carinhoso <span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span>sol de primavera a aquecer, era deveras divertido e -excentrico! Uma atmosphera empregnada dos aromas de mil plantas, tornava -esta sexta feira de Paschoela risonha e feliz, o que bem se reconhecia -dos semblantes de toda essa gente, pois tinha alma para o sentir.</p> - - -<p><span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span></p><h4>III</h4> - -<p>Por todas as disposições se reconhecia que este excepcional domingo e -estes doze annos de Margarida viriam a marcar data na historia da -familia. Os convidados, amigos e parentes de João da Costa, que já -muitos tinham chegado para assistir ao arraial, mostravam-se -interessados por verem tanta gente assim atarefada e remexida: eram -todos os creados da casa, os armadores da capella com Zé Maximo á -frente, que tambem mandava nas illuminações, o fogueteiro com os seus -ajudantes a abrirem covas para o fogo preso, os dos zabumbas, os das -caixas e o gaiteiro... todos a alarmarem a freguezia e redondezas. Uma -balburdia, uma abundancia, uma grandeza sem par!... O amor, louco e -incondiccional, <span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span>d'aquelles paes por sua filha, explicava o turbulento -apparato; mas, de todas as pessoas ali reunidas, uma parecia menos -gostosa do que se passava e era a festejada creança. Agitava-se é certo, -andava no meio d'aquellas coisas, com outras meninas e rapazes da sua -egualha; porém reconheciam-n'a possuida d'uma das suas crises de -tristeza e inconvivencia, como quando fugia para a matta, a esconder-se -na espessura dos arvoredos, para evitar o contacto de gente, que lhe -melindrasse a sensibilidade. A mãe, que a perscrutava, momento a -momento, percebera, pelo arrepanhado das linhas faciaes, pelo seu olhar -frenetico, que Margarida soffria uma sezão de impaciencia; no seio -decerto lhe crescia um desejo inconstante, e logo que poude tel-a entre -os braços perguntou-lhe:</p> - -<p>—Que tens tu, minha filha, que andas tão esquisita?! Falta-te alguma -coisa?</p> - -<p>—Não sei... Falta!...</p> - -<p>—O que?...</p> - -<p>—Não sei... Falta...—repetiu desprendendo-se, para se ir misturar aos -que admiravam o fogo disposto no quinteiro. As creanças faziam os seus -commentarios, comparando estas com outras figuras que tinham visto arder -em romarias, e dirigiam as suas observações a Margarida em tom -bajulador, que ella acceitava com sobranceria de dona. João da Costa, -homem prevenido, vendo-as assim zaranzar, e temendo qualquer semsaboria, -disse ao filho do Zé Osti:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span></p> - -<p>—Olha lá. Não seria melhor recolher tudo na adega?! Póde estragar-se -qualquer coisa, entendes?...</p> - -<p>—Mais que isso, póde haver trapalhada. Um lume prompto, a ponta d'um -cigarro dentro d'aquelle cesto (indicou-o com o dedo), levava tudo pelos -ares, emquanto o diabo esfrega um olho...</p> - -<p>Abriu-se a ampla porta, que tinha fechadura valente. Ali ninguem -entraria sem consentimento e o morgado accrescentou para o fogueteiro:</p> - -<p>—Tu que és responsavel ficas com a chave. Ninguem mais tem que cheirar -n'estas coisas.</p> - -<p>O filho de José Osti, com o seu pessoal, é que collocou dentro dos dois -lagares o fogo, arrumando-o pela sua importancia. A um lado o que era -figurame, bem separadas as peças, para se não destruirem os enfeites que -seriam o encanto da vista; ao outro o fogo do ar, as taes abantesmas com -bombas do tamanho de cabeças de toiro. O cesto mysterioso e suspeito, já -assignalado como coisa de circumstancia e perigo, foi collocado a um -canto com a seguinte recommendação do Osti, dita em tom de grande preço:</p> - -<p>—São os trincafios, a namite, as lagrimas, a polvora fina e outras -coisas... Isso póde incendiar-se e será uma de mil demonios!...</p> - -<p>As creanças, na presença de quem a recommendação fôra feita, ficaram -maravilhadas, medrosas e attentas. Que coisas terriveis e bellas não -estariam debaixo d'aquella toalha de branco linho, cobertura <span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span>do modesto -cesto!... Os grandes olhos de Margarida haviam-se illuminado de fulgor -cupido e excepcional, logo ao primeiro aviso no quinteiro; agora -fixaram-se com uma absorpção intensa no logar onde haviam pousado o -objecto defezo. Com um impulso que lhe guiava a vontade, a sua pequena -mão dirigiu-se á toalha branca, para a levantar, mas o fogueteiro -susteve-a, dizendo:</p> - -<p>—Ó menina! Ahi não se bole! Não ouviu?!...</p> - -<p>João da Costa incutiu-lhe maior curiosidade e pavor:</p> - -<p>—Ó filha! Nem te approximes sequer!...</p> - -<p>—O que aconteceria se eu bolisse?—perguntou com os olhos meigos e -risonhos fitos no Osti.</p> - -<p>—Podia-se incendiar tudo, n'um instante, como um relampago—explicou.</p> - -<p>—Então havia de ser bonito...</p> - -<p>—Isso como um ceu aberto!—encareceu o artista.</p> - -<p>Todos sahiram. O grande portão, por onde podia entrar um carro com uma -dorna, fechou-se com estrondo magestatico. João da Costa depois de, por -sua propria mão ter dado volta á chave, entregou-a ao fogueteiro:</p> - -<p>—Toma-a, que és o responsavel.</p> - -<p>O rosto de Margarida soffreu nova transfiguração: não era de alegria, -nem de tristeza o sentimento que exprimia, mas de reserva e idéa fixa -que lhe obcecasse o cerebro. Fugiu para o seu quarto, abandonando os -companheiros de brinquedos e ali <span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span>se quedou com a vista absorta na cal -branca da parede... Sorria deliciosamente a uma visão angelica, ou -carregava o sobr'olho n'uma expressão voluntariosa. Sentada na borda da -cama, o queixo levantado na pequenina mão, seguia miragem ou chimera, -que lhe encantava a mente, levando-lh'a a voar pelos infinitos espaços. -Como se houvesse tomado qualquer resolução, desceu de onde estava, bateu -imperiosamente com o pé no chão e pronunciou:</p> - -<p>—Pois hei de ir lá vêr o que é!...</p> - -<p>Sabia perfeitamente como poderia entrar na adega, mesmo que a porta -estivesse fechada. Quantas vezes, no jogo das escondidas com outras -creanças, ali se sumira sem que ninguem a podesse encontrar! -Ensinara-lhe o caminho uma cadella, que lá dentro tivera a sua ninhada, -e que a occultas a ia amammentar, entrando por um postigo da face -poente, que conservavam sempre aberto para arejo dos toneis. Trepando -pela parede, como muitas vezes praticara, entraria no antro do mysterio, -e sosinha (como era seu desejo) podia admirar o que fôra prohibido a -toda a gente. Deviam ser maravilhas nunca vistas, deslumbramentos nunca -apreciados!... Que intenso prazer lhe não dava, infringir ordens -terminantes de seu pae e do fogueteiro! Um doce e longo effluvio lhe -percorria todos os nervos; antegostava com delicia incomparavel o -instante de poder tocar de leve os encantos que lhe fizeram conceber! -Descobriria o segredo d'esses <span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span>deslumbramentos, que recamavam o negro -manto das noites d'arraial, com estrellas de côres! Saberia o que eram -em germen as lagrimas, antes de escorrerem em escadeas de luz e de -maravilharem a imaginação! E era-lhe devido este goso pela posição -especial que occupava em tal festa. Não era ella a senhora, a festeira, -a pessoa que deveria mandar sem estorvos em tudo? Estremecia de -contentamento, ao delinear na mente o furtivo accesso pelo postigo -grande, por onde entrava a cadella, quando ia amammentar os filhos.</p> - -<p>Realmente, ao lusco-fusco d'esse dia, no periodo em que as sombras -principiavam a cahir solemnemente das montanhas com todo o seu poder de -mysterio, Margarida sahiu de casa com a alma aguilhoada para aclarar o -enigma. Munira-se d'um coto de vela de cêra que tirou do oratorio, d'uma -caixa de lumes-promptos, e foi sem ser presentida. Logo que se encontrou -dentro da adega, diluido o seu corpo na treva, accendeu a luz para -retomar a propria individualidade. Á vista do pequeno cesto coberto de -toalha lavada e branca (qual pacifico e substancial merendeiro) o -entendimento entorpeceu-se-lhe com a força da curiosidade. Seria -possivel estarem ali escondidos os maravilhosos lumes, que, abertos no -escuro da noite, offuscavam o scintilar das estrellas?! Fontes de luz, -variadas no brilho e nas côres; descenso de adornos do firmamento, que -duram instantes; maravilhas de pequenos meteoros, que, ondulando no -espaço como <span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span>espiritos angelicos, buscam repouso glorioso; rebentos da -treva como flores luminosas de cristal; adereços de pedras preciosas -jorrando do interior do céu... era o que ella presumia sob a modesta -toalha branca... Quantas vezes os olhos do seu corpo não haviam cegado -com os deslumbramentos d'essas lampadas sagradas suspensas sobre a -Terra! As radiantes lagrimas, quando brancas, parecem chuva de -claridades ou pranto celeste brotando como rozeiral de diamantes e -morrendo, depois, suavemente como beijos; quando de côres semelham -rosarios de rubis, de topazios, de esmeraldas, que transformam a treva -em interior illuminado de palacio encantado, habitação de fadas. Tudo -isto, sabia-o Margarida porque lh'o tinham revelado na prohibição feita, -e estava ali inerte sob a toalha branca. Não devia ver e averiguar o que -fosse? Correria risco quem o tentasse... mas para aquelle espirito -irrequieto e temerario, o perigo era um incitamento. Com a pequenina mão -direita, tremula de commocção que não de susto, levantou a ponta da -toalha alumiando-se com a vela acesa... O que viram os seus olhos -cubiçosos e egoistas?!... Nada, ou pouco mais: embrulhos em papeis; -alguns pequenos frascos com liquidos e tigelas com agua de onde se -mergulhavam coisas; meadas de torcidas de algodão impregnadas de -polvora, com envolucro de papel, a que chamam trincafios. Seria d'isto -que sahiam esses lampadarios aereos, que deslumbravam os olhos de tanta -gente?! Mal se podia acreditar, <span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span>pois toda a apparencia era de objectos -vulgares, inertes e sem flammancia. Cheia de confiança em si e minada do -desejo de averiguação, principiou com os seus delicados dedos a remexer -todas aquellas miudesas, emprestando-lhes alguma vida, para d'ahi sahir -a acalmação da febre que lhe exacerbava a mente. Talvez que, ao seu -contacto, das substancias mortas nascessem vivas faiscas, inicio de -prodigios! Talvez!... Quem poderia dizer o contrario? Aquelle algodão -embebido em polvora e envolto em papel, muitas vezes ella o vira -encendiar-se, se lhe applicavam a morraca... Se agora lhe achegasse a -luz, talvez ardesse um boccadinho e fosse este um começo de -fascinações... Nos olhos vivos e sequiosos apparecia o signal de que tal -desejo lhe crescia no cerebro, como lavareda dominadora. Com mão timida -ainda, mas guiada por força que não podia contrariar, foi ajuntando a -chamma da vela com o ponto negro do trincafio... Apparece o primeiro -brilho e logo Margarida retira promptamente a pequenina mão, para que -não continue a arder... Mas esse ponto luminoso foi logo maior e grande, -propagou-se por todo o cesto, como um vaga-lume rabioso... Alarga-se -n'uma luz azul e viva de relampago, seguem-se estoiros e logo pavoroso e -infernal ruido, que tendo começado dentro do cesto, se propagou com a -velocidade a todo o espaço da ampla adega. Que scena phantastica, -maravilhosa, deslumbrante e cahotica, esta de um horrido estrepito no -meio de lavaredas, que <span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span>vomitavam raios, esfusiando de todos os lados!... -Quem podera ver a graciosa figura de Margarida, n'esta confusão -terrivel, consideral-a-hia apparição angelica, cheia de gloria e poder -divino, dominando a confusão dos mundos, com a serenidade risonha d'um -seraphim. Estava de pé na separação dos lagares, os braços levantados em -prece sublime, olhos brilhantes e cheios de enthusiasmo, como os dos -martyres que a Deus glorificavam sobre fogueiras! Que se passaria no seu -craneo n'este instante unico!... Talvez sentisse a alma arrebatada em -fogo! talvez se julgasse levada aos infinitos paramos em ondas de luz! -talvez que esse estranho grito que da sua debil garganta sahiu, fosse a -primeira nota d'um canto de gloria!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span></p> - - -<h4>IV</h4> - -<p>O pavor produsido pelo estrondo de bombas e morteiros a rebentarem -dentro da adega grandemente illuminada, foi cruel e estupefaciente! -Reconheceu-se o que tinha succedido; mas o que se não comprehendera -logo, era como o caso se poderia ter passado, visto a chave andar no -bolso do fogueteiro. Só espiritos malignos seriam capazes de ali ter -penetrado; pois só elles podiam conceber a execução de tamanha -catastrophe! Como as aguas das montanhas, quando collidem para um valle, -correu toda a gente para o perigo. N'um momento foi aberto o largo -portão, que semelhava a bocca de enorme forno, com o seu ventre em -chammas! O creado mais resoluto atirou-se ao meio do incendio, subiu -celere <span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span>ao lagar e, de pé na borda, disse em voz tremenda:</p> - -<p>—Jesus!... A menina a arder!...</p> - -<p>O seu arrojo, que fôra temeridade, tornou-se loucura: sem attender a -risco, abre caminho por entre linguas de lume e estrondo de bombas, e -tomando o debil corpo da creança, como quem abraça um feixe de -lavaredas, sae com ella para o exterior, por entre gente apavorada. Logo -acudiram com mantas e cobertores, conseguindo apagar as chammas dos -vestidos de Margarida e do homem que a salvara. Porém a desgraçada -creança, sem accordo, parecia morta! Levaram-n'a para casa no meio das -afflicções de todos, especialmente dos desditosos paes e logo a despiram -com rapidez para se apreciar a extensão do mal. O debil e formoso corpo -estava intacto, menos nas partes desprotegidas pelo vestuario. A face -então!? Essa pequenina meniatura de face, que dois beijos poderiam -cobrir, agora vermelha, empolada e disforme perdera a brancura nativa e -a graciosidade de linhas, que a faziam comparar ao rosto das santas! -Todos os delicados relevos de feições tinham desapparecido nivellados em -massa confusa e pastosa, sem expressão humana. No que se transformava -belleza tão delicada, d'uma correcção tão perfeita e harmonica!... -Crestados os cabellos longos e finos, e os bem desenhados supracilios, e -as formosas pestanas, que sombreavam as pupillas; avolumado pelas -empolas o delgado e airoso pescoço... <span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span>desapparecera toda a graça da viva -cabeça de Margarida. Isso que fôra encantador, prendendo a vista da -pessoa menos attenta, era massa informe e sem espiritualidade. Onde -estava o riso gracioso de seus labios tantas vezes cheios de brisas de -carinho, quantas de nuvens caliginosas de desejos?! Onde a expressão -turbulenta e dominante das narinas, exprimindo apetites rebeldes, mas -innocentes?! E as orelhas pequeninas, da transparencia da porcellana com -veios escuros nas curvas complicadas, onde estavam?! E o breve mento, -tão breve e gracioso como o da Venus de Millo?!... Tudo se desfizera e -se confundira!... Essa interessante physionomia que era jubilo, que era -rebeldia de sangue em fervura, que era signal de alvedrios intensos -gerados no limpo coração e logo subidos aos labios e aos olhos... Os -olhos!... É verdade, os olhos de pupillas inquietas, os olhos de iris -escura, mas indefinida com laivos de ceu e de mar profundos, que tinham -lampejos á noite, mysterio ao entardecer, alegria na alvorada, carinho á -luz brilhantissima do dia... que era feito d'elles?! Jaziam sepultados -sob a grossura das palpebras inflamadas. Teriam vista ao menos?... -Ninguem o sabia. A mãe de Margarida, sem accordo, como morta sobre a -cama; o pae, homem forte e vigoroso, diluia-se em pranto junto da filha -adorada. Os dois medicos que tinham corrido ao toque d'essa grande -desventura, davam consolações vagas, esperanças infundadas. O lindo -rosto de Margarida <span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span>poderia voltar ao que fôra, a ser outra vez pequenino -e engraçado...—diziam. Ainda n'elle se havia de gosar a vista da mesma -espiritual belleza, que enchera de ventura o coração dos paes infelizes. -Tinham-se visto curas completas mais extraordinarias do que esta, -verdadeiros milagres no entender do povo. Os casos feios é que melhor -assignalam as victorias da sciencia. Não era já circumstancia favoravel, -que a vida tivesse sido poupada em perigo tão violento? O gentil corpo -da creança estava quasi intacto na pureza das suas linhas, na elegancia -do seu porte, na brancura da sua pelle, quando o natural teria sido -ficar reduzido a um negro carvão. Só o rosto fora principalmente -prejudicado... Certo é que no rosto reside toda a formosura. O de -Margarida era tudo que havia de mais immaterial: a bocca pequenina e -vermelha, tinha a graça; os olhos meigos e turbulentos, a inquietação -infantil; na sombra das pestanas e no desenho dos supracilios, estava o -inigma do pensamento; na pelle rosea, a mocidade; no arrojo do nariz a -constante revolta; na curva serena do mento a tenacidade... Se isto -viesse a faltar, ou se se transmudasse a rara combinação, que valeria o -conjuncto, ainda que fôra dez vezes mais perfeito do que o da estatua -grega?!... Porem como a esperança é o riso da natureza humana, e o -natural e o proprio dos que soffrem dores fundas, já os angustiados paes -principiavam a escutar com bastante conformidade as palavras de quem os -consolava. <span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span>Os medicos, primeiro que tudo, pediram liberdade juncto da -pequena enferma, para largamente applicarem os meios que a profissão -lhes aconselhava. Certificaram desde o começo que Margarida não -morreria, e tocados de piedade por aquelle incomparavel infortunio, -ousaram affirmar que haviam de restituir á creança, a saude e a belleza. -A longa falta de conhecimento em que após o accidente se conservara -algum tempo Margarida, attribuiam-n'o a estado epileptico, despertado -pelo assombro de scena tão extraordinaria, como teria sido a de se ver -repentinamente cercada de chammas e de estoiros infernaes. Devia ter -sido horrendo para uma creança de doze annos, que dentro de si só devia -ter fontes de sonhos aureos e aspirações celestes.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span></p> - - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<h3>SEGUNDA PARTE</h3> - - -<h4>I</h4> - -<p>Passaram-se dias e passaram-se mezes. O soffrer longo e tormentoso -seguia lento. A physionomia de Margarida era toda uma postula. Porém de -informe nos primeiros tempos, foi adquirindo longes de vida e expressão -com os inicios cicatriciaes. Margarida queixava-se pouco; parecia que os -nervos se lhe tivessem insensibilisado, ou que na catastrophe houvesse -adquirido coragem heroica para supportar a dôr. Até os medicos se -admiravam de tanta paciencia nos curativos, pois lhe applicavam topicos -que a deviam mortificar. Notava-se-lhe fundamental mudança no caracter: -antes sempre inquieta e irascivel, agora conformada e paciente.</p> - -<p>O padecer raro e profundo, poderá transformar <span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span>a sensibilidade e o -pensamento? amollecel-os se eram duros, endurecel-os se eram ternos? Em -Margarida parecia realmente ter-se operado essa metamorphose grave: na -vida feliz e descuidosa de infancia mostrara-se sempre e sempre -insatisfeita, nunca se lhe encontrando fim ao querer e ao desejo; -chegada a desventura e martyrio excepcionaes, dormitava-lhe o espirito -em calma angelica, como se gosasse de paz e doçura celestiaes. Alguns -queixumes ainda se lhe ouviram de começo (murmureos de ave doente), em -que recorria aos nomes de seus paes e da ama que a creara, como -lenitivos e sacrarios de amor santo; porém, depois, entrou n'um periodo -de resignação e calma e os seus doze annos mostravam o juizo e a -conformidade das velhas experiencias. Em vez de confessar atroz -soffrimento, dizia palavras de consolação e esperança aos que muito lhe -queriam e eram ellas de tanto conceito e elevadas que nem pareciam da -sua juventude. Entrara, pois, n'aquelle corpo alma nova com o -infortunio: a tonalidade da voz mudara para submissa e melancolica, as -idéas appareciam como florinhas correndo leves em veio d'agua limpida. -Já não era a Margarida que sem motivo gritava, que sem razão chorava -lagrimas, que martyrisava com goso os animaes e as pessoas, que se -deliciava inventando collisões para atormentar os com quem vivia. -Accommodado o seu magro corpo no leito de doentinha, todos lhe apeteciam -o convivio pelo exemplo que dava de um <span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span>existir sereno e venturoso no -meio de penas. Quando a enorme chaga, que lhe abrangia todo o rosto, -principiou a mostrar tendencias para cura, um phenomeno singular se -verificou—o ressurgimento da expressão humana, que ia apparecendo -lentamente como uma aurora. E o facto excepcional e maravilhoso dava-se, -quando tudo ainda era informe e cahotico n'aquelle rosto: nem a pelle -rosea e setinosa o purpureava, nem a bocca de gazella sorria, nem a -graciosa linha do nariz o equilibrava, nem a perfeita oval o fechava, -nem os formosos olhos... (não falemos agora dos antigos olhos de -Margarida). O que se ia vendo era a cicatrisação, que no seu progresso -confuso já mostrava larga costura com manchas lisas, enrugamentos -complexos, tecidos arrepanhados formando sombras. Assim estava a testa, -a face, o nariz, o mento, as mimosas orelhas, o airoso pescoço... Porém -de tudo isso que era sem fórma e sem graça, resaltava tal suavidade de -expressão, qualquer coisa de ethereo e sublime, de suprahumano e -bondoso, que só pelo transluzir d'uma alma candida e pura n'um rosto, se -póde comprehender. E ainda lhe faltava a belleza dos seus olhos, vivos -feixes de luz sempre em ardencia, e não tinha a pupilla nervosa e sempre -movediça na iris, tão variamente colorida; porque esses olhos, absolutos -senhores n'aquelle semblante expressivo, eram agora apenas dois globos -leitosos, rolando senilmente dentro das orbitas, por traz das palpebras -<span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span>densas. Os medicos, para não desilludirem os atormentados paes e a ama -Antonia, que lhe queria tanto como se fôra mãe completa, ainda agora os -consolavam com mentirosas esperanças. As bellidas, simples pannos -brancos lançados deante da vista, poderiam desapparecer com o -tempo—diziam. Quando elles não podessem ultimar a cura, outros medicos -havia especialistas de taes molestias, que operavam maravilhas, que -pareciam milagres. D. Claudina escutava-os, porém muito mais se fiava do -alto poder divino, do que de homens grosseiros e barbaros, que se -limitariam a rasgar com ferros os olhos de sua filha! Por isso -comprehendendo como indispensavel a intervenção superior do ceu (a unica -forte e valiosa) continuou com mais fervor as promessas de romarias, de -festas, de offerendas a todos os afamados medianeiros celestes, que se -nomeavam perto e longe do logar onde viviam. Informações que aos ouvidos -lhes chegassem de curas de pequena ou grande monta por este meio -obtidas, serviam logo a D. Claudina e a Antonia de pretexto para -proporem mais resas e penitencias, jejuns e novenas, oblatas ao divino e -á Virgem sua mãe, que cumpririam verificado o beneficio. Isto não -obstava á assidua frequencia da capella da casa, onde se demoravam em -oração fervorosa ao orago, Santa Margarida, e a todos os santos da -celestial côrte. E tamanha e tanta era a fé, que em cada manhã lhes -renascia no peito a doce esperança e logo que <span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span>sentiam a doentinha -acordada do seu longo repouso, vinha a interessada mãe perguntar-lhe:</p> - -<p>—Sentes-te melhor, filha?</p> - -<p>—Sinto, minha mãe.</p> - -<p>—E já me vês?</p> - -<p>—Vejo.</p> - -<p>—Com a tua vista?</p> - -<p>—Com a minha alma e... e tambem um pouquinho com a minha vista—rematava -sorrindo.</p> - -<p>Era consolador ouvir-lhe isto, quando o sol raiava no ceu! Que affecto e -que amor taes palavras continham! Porém amargava-lhes no final o -desengano, ainda que suavisado pela ternura da voz. A dolorosa realidade -permanecia. Era triste ver Margarida, com os dois olhos baços e leitosos -como duas enormes perolas a moverem-se lentamente na busca de claridade -e sem deixarem passar a vista, que estava por tras da nevoa! -Compensava-os (bem insufficientemente) o reconhecerem que na larga -cicatriz da ascosa chaga, havia uma vida nova e uma luz nova de vida -superior. Quando a doentinha falava era de ver que as suas palavras -semelhavam lampejos de luar n'um abysmo de trevas. Habito ou -idealisação, certo era que esse rosto, sem feitio de rosto, tinha alguma -coisa de raro e sublimemente espiritual. D'esta fórma suave, lenta e -dôce, subtil como se fôra um sopro vital, em todos ia entrando a -convicção de que a mente de Margarida, após a cegueira se sublimara, -illuminando-se de divinos clarões, que a predestinavam para <span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span>altissimos -fins. Denunciava-o os seus conceitos serem de sentimento e bondade -infinitas, e isto maravilhava pela precocidade. N'aquella voz -percebia-se musica de suavidade angelica, cheia de ternuras e modolações -aprasiveis. Encantava estar junto d'ella, escutal-a, conhecer como ella -recebia a inspiração divina, que vinha como pomba esvoaçar-lhe sobre a -cabeça. Não balbuciava uma queixa, nem uma saudade do mundo de que se -conhecia separada para sempre. Ao contrario: confessava-se mais feliz e -ditosa n'esta densa noite, do que o era na luz do tempo em que -irrequieta, nervosa, exigente rebentava em lagrimas de cólera, á menor -contrariedade. Agora nunca chorava!... Não saberão os cegos chorar? As -lagrimas são a belleza dos olhos, quando como diamantes deslisam pelas -faces dos que morrem d'amor; porém, as lagrimas tambem são signaes -d'infortunio, se, como pingos quentes de chumbo escaldam a pelle de -infelizes atormentados. Margarida não tinha nem edade para amar, nem -experiencia para os grandes infortunios; por isso não precisava de -lagrimas. Aquella mente, lago sereno em calma ventura, não tinha a -encrespal-a ventos que só entram por ambiciosas e prescrutadoras -pupillas.</p> - -<p>Dulcificavam-se, pois, para a convivencia dos seus achegados e amigos -que a adoravam, aquella alma, o caracter, o temperamento. Lamentavel que -taes olhos tivessem perdido o seu raro poder de fascinação; doloroso que -a physionomia de Margarida, <span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span>outr'ora tão harmonica das combinações que -dão a formosura, se houvesse transformado em cicatriz... Existia, porém, -pessoa que, por um lento labor, já conformada com o actual estado, a -preferia como era e não a desejava como fôra. Quem? Antonia, a querida -ama, para a qual esta fealdade era formosura, e que julgava a sua menina -muito mais venturosa depois de feia. Coisa estranha e de maravilhar, que -um rosto assim desfigurado, com manchas brancas n'um ponto, violaceas -n'outro, liso e espelhento aqui, enrugado e baço acolá—um todo -arrepanhado de linhas divergentes e crusadas—tivesse tamanha influencia -e poderio sobre as almas; que esses olhos brancos, com um ponto -cinzento, apenas, no sitio da pupilla, vissem coisas do ceu, que nenhuns -outros olhos descobriam!... A sincera Antonia, que mais que ninguem -permanecia junto de Margarida, soffrera mais que os outros do potencial -ascendente. Ouvia-lhe as confidencias do pequenino coração, seguia com a -mente todas as maravilhas que ella descrevia do interior da patria -celestial, onde domina a magestade do Grande Deus, no meio do explendor -e das harmonias dos anjos, archanjos e seraphins. Não podendo conter no -rude peito a emmoção causada por tantas bellezas, dizia-as e -commentava-as com pasmo deante de amigos e confidentes, exclamando com -toda a sua alma nos labios: «Não vedes n'isto—ó gentes!—uma santa que -ainda vos hade fazer milagres?»</p> - -<p>Era realmente o que todos viam, com verdadeiro <span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span>jubilo e devocção. Já na -mente collectiva, o alto problema da santidade de Margarida se resolvia -e fixava. Correu d'isso o clamor e a fama, com a velocidade dos ventos -que varrem nuvens do céu e não tardou que se referissem resultados -beneficos de supplicas que Antonia lhe levara. Ainda sua mãe procurava -no valimento celestial de patronos afamados meio de lhe restituir a -vista, e já Margarida era grande protectora de infortunios alheios, -juncto do Altissimo. Antonia que appresentava em segredo os pedidos de -suas comadres, recebia os agradecimentos e tambem se engrandecia aos -olhos do povo, com o seu nome envolvido em assumptos de tanta maravilha. -Não tardou que aos ouvidos de D. Claudina e de João da Costa chegassem -os côros dos favorecidos, já com novos pedidos e rogos instantes. Não -poderam obstar, tambem, a que pessoas gradas se viessem ajoelhar juncto -do leito da creança, fazendo-se directamente ouvir nas suas queixas e -tocando-a nos magros dedos com o melindre com que se devem tocar as -coisas divinas. Esses que de novo chegavam, ao verem-lhe transtornada a -formosura, não recebiam desagradavel impressão, não achavam aquillo -hediondez, antes para elles se confirmava a opinião de que Deus -escolhera Margarida, para entrar no seu côro celestial de Virgens, e que -para a separar do mundo sensual e peccador, se servira d'um meio que -para muitos pareceria infortunio, mas que fôra na realidade Grande -Ventura. Assim se consolavam os corações dos amargurados <span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span>paes, que -n'estas palavras encontravam compensador lenitivo.</p> - -<p>Haviam-se passado dois annos sobre o inolvidavel dia da catastrophe. A -casa de João Costa estava sempre cercada de gente devota, que vinha -abrigar-se sob a influencia benefica de sua filha; á capella concorriam -offerendas que depositavam aos pés da padroeira, com a ceguinha irmanada -no nome e no celestial prestigio. Até esta epocha raras pessoas haviam -sido admittidas á presença da piedosa creança; porém augmentando os -pedidos vehementes e não podendo ser contida a onda que se avolumava, -necessario se tornou adoptar o expediente de Margarida assistir, -domingos e dias santos, á missa da casa, onde os interessados podiam -concorrer a contemplal-a e impetrar directamente o seu valioso auxilio, -perante os altos julgamentos divinos. Para melhor ser vista collocaram a -cadeira em que a assentavam juncto do altar, do lado do evangelho, -voltada para o officiante.</p> - -<p>Assim todas as pessoas, recolhidas na sua fé, lhe podiam dirigir -silenciosas preces, levantal-as fervorosas durante o santo sacrificio. -Para a não fatigarem, pois a sua fraquesa era ainda grande, só áquelles -que para isso tinham poderosos motivos, se consentia que no final da -missa lhe beijassem o longo rosario e as santas reliquias que trazia ao -pescoço. A esses dizia ella palavras consoladoras de promessa; e -maravilhava aquella memoria, que a cegueira tinha tornado mais firme e -vidente, pois aos <span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span>antigos conhecidos mencionava circumstancias da vida e -os nomes dos filhos, especialisando cada coisa nas suas referencias. -Aquella voz encantava, era carinhosa e suavissima como as dos coros -sagrados, que se ouvem em sonhos. Melodia que vinha do alto, as palavras -que proferia eram recolhidas com avidez, uncção e respeito. A todos -promettia incluir nas suas orações ao Senhor, e com tal voto lhes lavava -o coração dos sentimentos maus e peccaminosos, que por desventura n'elle -tivessem medrado.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span></p> - - -<h4>II</h4> - - -<p>Os paes de Margarida já pareciam conformados e até orgulhosos de sua -filha. Seguiam o movimento geral das opiniões, admittiam-lhe a santidade -e o poder sobrenatural, que sobre ella tivesse vindo como emanação de -Deus, n'esse dia para sempre memorado da catastrophe. A Providencia -impõe os seus designios aos homens pelos modos mais contraditorios: com -uma penna d'ave mata, com um raio póde ressuscitar. Havia conformidade -na crença geral: a cegueira de Margarida era irremediavel por ser de -origem e vontade divinas. O não terem sido escutadas as supplicas -endereçadas por intermedio dos mais famosos santos conhecidos, era prova -e signal de que deviam submetter-se ao querer <span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span>do Altissimo. E por -ultimo—opinavam os confessores—o dom de santidade em vida, não vale mais -do que a maior realeza da terra, ou do que todas as realezas da terra -junctas?</p> - -<p>Concordavam e acreditavam-n'o os submissos paes, sentindo-se até -enternecidos por haverem dado o ser a Margarida, ainda que se -reconheciam differentes d'aquella carne, que depois que recebera o -divino sopro, era de razão que tivesse mudado de natureza. Notavam -tambem que Margarida vivia de cada vez mais encantada com os doirados -quadros da sua imaginação, que lhe antecipavam a Bemaventurança, á -morte. Tudo que dizia na sua voz dulcissima, encanto de todos os -ouvidos, era risonho e alegre: via-se que d'uma grande desgraça, sahira -a suprema ventura, a sublime pacificação da alma. Que encantadores -esmeros de sentimento Margarida tinha para seus paes! E elles, os -ditosos, escutavam-na, como se percebessem falas de anjos, ou sons de -harpas divinas a desferirem hymnos no espaço! Tudo correu santamente em -dois annos de vida gloriosa, que junctos aos dois primeiros de vida -atormentada, formavam os quatro annos de reclusão, tanto de Margarida -como de seus paes e de Antonia, que até os preceitos obrigatorios da -religião satisfaziam na capella da casa. D'isto resultou que uma funda -anemia, acompanhada de dôres craneanas e insomnias perturbadoras, se -apoderou d'aquelle pobre e implume corpo. Os medicos impozeram <span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span>então a -necessidade de passeios ao ar livre, que a creança respirasse brisa -balsamica de montanhas e pinheiraes. Era egualmente indispensavel a luz -directa do sol para se não estiolar e morrer a mimosa e tenra planta. A -ella mais do que a todos custou esta ordem dos medicos, pois todos e -ella se tinham habituado a este existir sereno de vida santa, em -convivencia de imaginação com o Ceu, de que Margarida dizia coisas de -encantar. Antonia, tambem habituada á clausura da sua menina, vivendo -sempre na contemplação do ente raro, que era o maior louvor do seu leite -abençoado por Deus, arremetteu em palavras contra o mandado dos -facultativos. Temia dissipar-lhe o encanto divino, entregando-a á -convivencia de todos que lhe quizessem falar nos caminhos por onde -passasse. Comprehendia que assim já não a podia conservar tão intima, -nem tanto para si. Era o egoismo humano a rebentar no mimoso jardim de -sentimentos tão elevados...—a rude Antonia apavorava-se com a idéa de -que aquelle affecto, que ella creara com uma sugeição e uma dedicação de -tantos annos, podesse diminuir. Mas tanto ella como D. Claudina e João -da Costa, porque amavam incondicionalmente Margarida, era justo que se -opposessem ao parecer dos medicos e assim consentissem que se esgotasse -esse precioso e delgado fio de existencia, que em tamanho preço tinham? -Não, até o proprio egoismo, coisa diversa aconselhava, pois a separação -que a morte <span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span>carnal viria definir, ser-lhes-hia milhões de vezes mais -custosa do que o era a cegueira, quando a julgavam uma fatalidade. -Acceitaram assim, o facto, tomando-o como todos os demais conselhos -attinentes á existencia de Margarida, pois os julgavam de inspiração -divina, por tenderem a não enfraquecer o tenue vigor d'aquelle fragil e -delicado corpo.</p> - - -<hr class="tb" /> - -<p>Estava-se na primavera: nos valados rebentavam as flores, os gommos -enfeitavam já as arvores despidas e tristes. Tempo alegre e soalheiro, -atmosphera odorifera e excitante. Iam pelos caminhos pedregosos da -aldeia, á procura de pontos altos, onde corresse viração. Margarida -desaprendera de andar, trocava os pés como quando d'um anno principiara -a correr na sala, queixava-se de que as pernas lhe não podessem com o -corpo. O vestuario, apesar de reduzido ao minimo de agasalho, era-lhe -d'um peso incomportavel. Fatigava-se e pedia frequentes repousos nas -bordas da estrada, em muros baixos e sobre as pedras avulsas que -encontrassem. Seus paes, ou Antonia, levavam-na pelo braço como uma -convalescente, sentindo-lhe o contacto do corpo, leve como uma penna. E -assim parecia pessoa vulgar que viesse trazer saudações á luz, -amando-lhe o explendor; que viesse <span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span>visitar a paisagem que tencionava -gosar longamente. Cada dia seguiam destino differente; mas sempre para o -alto d'onde se descobrisse o fertil e carinhoso valle. Após os primeiros -passeios, sentindo-se mais vigorosa, pois tinha menos dôres e somnos -mais tranquillos, Margarida, n'um resurgimento de memoria, é que -mencionava os sitios que preferia visitar. Parecia este o caso trivial -d'um ausente de muitos annos, que tornasse a viver nas paisagens -queridas da infancia e procurasse confrontal-as com as sensações -d'outr'ora... Passava-se n'aquelle cerebro um trabalho lento de -rememoração, uma reviviscencia psychica. Nos pontos elevados, onde a -respiração é mais livre, larga e substancial, todo o corpo se lhe -aerificava, conhecia-se ligeira como qualquer ave voando. -Amplificava-se-lhe o peito; excitada pela fragancia da brisa fresca e -alpestre, vinham-lhe assomos de enthusiasmo, extasis de commoção perante -o renascimento das plantas, a côr afagadora da verdura, que não podia -apreciar com os olhos. «Como estão bonitos os campos!—exclamava. Para -ali o Ramisco, para acolá a Cerdosa, em frente Refuinho! Como estão -bellos estes campos já semeados, as arvores em flor, os bois a pastar -nas hervas!»</p> - -<p>Parecia que tinham vista aquellas pupillas opacas, mas illuminante, como -dois brancos seixos no fundo de limpida corrente. Se ellas estavam sem -movimento, presas ao sol, o rosto de Margarida adquiria a inspiração do -dos santos nos extasis <span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span>contemplativos da magestade divina. Esses globos -de leite coalhado, no meio das serziduras das feridas, eram duas -candidas cecens em terreno arenoso. O riso, meigo e attractivo, mais -bello do que o das rosas ao abrirem, illuminava-lhe os sentimentos. As -falas murmurantes, como agua correndo em regatos, passavam nos ouvidos e -eram gorgeios de ave: «Oh! que bom cheiro o das serras e dos campos, -como é suave o aroma das flores, minha mãe!» «Não sentes os passaros a -cantarem nos arvoredos, querida Antonia?!» «Quando iremos nós ao -Ramisco, meu pae?! Ainda voltará, o tio Frei Jeronymo, á sua casa de -Preste?»<span class="fnanchor" id="fna1"><a href="#fn1">[1]</a></span></p> - -<p>Falando assim quedava-se silenciosa, rosto erguido ao ceu, a expressão -vaga de cegueira suspensa sobre os campos da veiga, que se alastrava no -sopé da montanha. Este goso espiritual que se adivinhava dentro d'ella -ao contemplar o mundo material com a vista da memoria, enchia de prazer -os carinhosos paes, que tinham n'esta filha um thesouro celestial, um -tabernaculo de coisas puras e santas. Tão habituados já andavam a -consideral-a um ser superior á misera contingencia humana, a ver-lhe na -vida da alma uma vida transparente e etherea, que o doloroso -acontecimento que a cegara, de desventura se havia transformado em obra -de graça, pela santidade que lhe trouxera. Acreditavam <span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span>piamente n'esse -divino dom que sublimara aquelle corpo enfesadinho e anémico, que -espiritualisara, com belleza nova, aquelle rosto transtornado pelas -manchas de cicatriz, que dera áquelles olhos a visão de coisas sublimes. -Enobrecia-os esta ligação carnal com quem já em vida pertencia ao Ceu. -Por isso cercavam Margarida de esmeros e delicadesas devidas ás -entidades superiores á rudesa commum; pois que essa parte material do -ser que nutriam, tocavam e aconchegavam era apenas condicção transitoria -de passagem no mundo d'uma alma immaterial, já moradora dos paramos sem -fim, em convivencia de Bemaventurados. Aquellas imaginações recreavam-se -em acompanhar Margarida a esses mundos d'Além, onde presumiam que ella -ia nos periodos de somno. Se ao acordar pronunciava palavras vagas de -sentido obscuro, n'isso encontravam o final das palestras que tivera com -os anjos, seus irmãos. E como vereficassem que o seu falar era mais -elevado e inaccessivel, quando rodeada de muitas e muitas flores, -traziam-lhe diariamente molhos das mais raras embellesando-lhe assim o -quarto, como se fôra uma egreja. Era apenas uma antecipação das -homenagens que de futuro lhes seriam rendidas, pelos numerosos crentes -que se acolheriam á sua protecção. Para todos era de saber conhecido, -que os santos apreciam muito os subtis aromas das plantas, que são -essencias evolando-se ao ceu e excitam a imaginação, para comprehender -melhor o sublime e o celestial. E nem os conselhos <span class="pagenum" id="Page_54">[Pg 54]</span>dos medicos tinham -auctoridade para impedir que Margarida vivesse constantemente respirando -os delicados venenos, que lhe proporcionavam noites deliciosas de -encanto em que a mente, ebria de goso, se lhe alargava em quadros -deslumbrantes. Accentuavam-se-lhe, por isso, as turbulencias do coração -e o depauperamento organico; porém o seu querer era terminante e -exigente, para que a não separassem das suas queridas flores. -Comprehendia bem que eram ellas que a ajudavam a levantar a alma em -preces fervorosas, e que lhe incendiavam a mente em extasis divinos.</p> - -<p>Áquelles olhos que não viam, patenteava-se a celestial morada n'uma luz -luarenga sempre egual. Mais que isto, os seus ouvidos escutavam n'esses -instantes singulares, córos angelicos, em que a toada longa e plangente -era como um balsamo, em que a alegria tomava fórma serena e augusta. E -todos comprehendiam este viver de alma superior, esta sublimação dos -sentidos para definir coisas ethereas, a descoberta do mundo dos -encantos feita por uma creança em quem laborava a vontade de Deus. Esse -dom subtil para comprehender era decerto a parte mais bella de tão -gloriosa cegueira e para lh'o conservarem havia sempre abundancia de -flores em volta do pequeno leito de Margarida. De longe e de perto -chegavam offerendas copiosas—collocavam-nas em vasos, como nos altares, -em açafates como aos pés da Virgem, no oratorio, em cima da commoda e -juncavam-lhe com <span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span>flores a propria coberta, que se lhe ajustava ao corpo -doentinho. Assim podia ella sentil-as, com os magros dedos apreciar a -maciesa das petalas, aspirar-lhes com mais avidez os energicos perfumes. -E que riso de expressão tão estranha, illuminava aquelle semblante -disforme, quando com o seu fino tacto, Margarida adivinhava as flores -que ali tinha e as combinava em ramos e capellas, que pessoas de olhos -sãos não saberiam entrançar com semelhante engenho! Se punha na sua -propria cabeça essas corôas que fazia, todos notavam, quanto se parecia -com as santas adoradas nas egrejas! Se dizia palavras de sentido -transcendente, todos julgavam escutar sons que sahiam de mysteriosas -nuvens. E ainda que fossem coisas que não comprehendessem, tal era a -suavidade encantadora d'aquella voz incomparavel, tal o encanto musical -da sua pronuncia maviosa, que os ouvidos profanos se sentiam -magnetisados e as imaginações dos que escutavam iam voando, voando -sempre, seguindo-a entre estrellas, n'uma região infinita e doirada pela -vista fulgurante dos seres perfeitos e bellos que a habitavam. Aqui era -o paiz encantado da visão e do mysterio, n'elle habitam entes -immaculados e perfeitos! Vivia-se d'este modo na habitação terrena, -fluctuando nas azas da maravilha, creada hora a hora. Uma continua -apotheose d'um sonho, que só a crença na vida eterna podia gerar!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span></p> - -<p class="footnote" id="fn1"><a href="#fna1">[1]</a> <i>Amores, amores...</i></p> - - -<h4>III</h4> - - -<p>Porém o estado melindroso da saude de Margarida aggravava-se de cada vez -mais. Os facultativos que a vigiavam com a sua experiencia, assignalavam -os progredimentos da molestia, cuja historia conheciam. Nunca -funccionara bem aquelle pequenino coração: nos primeiros annos de vida -fôra excitado pelos estovamentos dos brinquedos infantis e pela -insaciabilidade da creança mimosa, que dava azas á imaginação inquieta; -no terrivel dia da catastrophe quasi se quedara preste, talvez que no -proposito de nunca mais funccionar, mas recomeçou o seu labor; no longo -periodo de soffrimento, que se seguiu, teve alternativas de resignação e -desesperos, desalentos e esperanças vivas!... <span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span>Os carinhos maternos e a -dedicação nunca desmentida de Antonia apasiguaram-no e fizeram abrir na -mente de Margarida os alvores d'uma aurora. O tempo trouxe o desengano, -a certeza e o habito da cegueira, e o pequenino coração adquiriu -definitivamente conformidade para o infortunio, n'uma submissão aos -ditames de Deus, propria dos eleitos tocados da divina graça. Abrira-se -para elle uma existencia nova, adornada de bellezas e de encantos: eram -explendores do ceu, não comparaveis aos terrenos, que são mesquinhos e -transitorios. Tudo á mente vinha do coração, d'esse coração combalido, -improprio para a vida commum, e no qual a morte se aninhara como em casa -propria. Mas no rosto cicatricial em que os olhos baços se moviam como -duas bolas de jaspe, despontava a luz que illuminaria a Margarida o -caminho de Bemaventurança e ella desejava e não temia o final dos seus -dias contingntes. No som da voz melodiosa, como será a dos anjos, e no -sentido das palavras que pronunciava, já se reconhecia essa levantada -aspiração, esse sentimento do divino, que linguas vulgares traduzem por -santidade. Caminhava esta pobre existencia corporea abordoada a um -coração doente e não podia prolongar muito a sua jornada. Margarida -acamou de vez e no aconchego do quarto concentrou-se na paixão dominante -das flores, d'esses aromas que lhe povoavam a mente de sublimes visões e -lhe faziam antegostar o ceu. Despertara-se-lhe, primeiro, este amor, nos -passeios <span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span>aconselhados pelos medicos para se robustecer, agudara-se -depois, na existencia da sua mente recolhida em convivio de anjos. As -flores são bellas e assim como em vida lhe adornavam a paisagem da -morte, depois lhe enfeitariam a sepultura. Morte e sepultura, idéas -risonhas, que assignalariam o seu voar definitivo á patria celestial. -Não as chamava, estas escuras imagens, para não ulcerar os corações de -seus paes e de Antonia, a quem o momento da separação custaria, ainda -que a vissem erguer-se sobre nuvens á gloria de Deus. Porém os seus -ouvidos apurados já sentiam os passos magestosos da Morte, que vinha -n'uma comprida estrada enfeitada de todas as galas, juncada de palmas -victoriosas, acompanhada de musicas alegres. Festa superior á da entrada -da primavera, nos campos e nos montes cobertos de boninas, com o ar -empregnado de balsamos humados da terra, a omnipotencia da luz descendo -do sol para tudo engrandecer! O coração doente consolava-se com os -aspectos d'esta vida sonhada, alagava-se n'uma paz doce, larga e -consoladora, que era um vislumbre da que se gosaria na presença de -Deus!...</p> - -<p>Por isso ao presumir proximo o seu ultimo dia, sentindo por adivinhação -que a alma se ia desprender do corpo em que reinara, que a materia -resignava a força que a enobrecera, é que pedia mais flores, muitas -flôres para embebedar com aromas a imaginação. Tinha a cama de virgem -sempre coberta de rosas, de açucenas e de todas as flores <span class="pagenum" id="Page_60">[Pg 60]</span>campestres de -belleza tão captiva e simples, de perfume tão casto e enebriante. Quando -adormecesse no ultimo somno terreno, queria que fosse entre fragancias e -côres, para nas azas d'essas coisas intangiveis subir ás alturas, onde -habitam os anjos. Foi assim que veio para Margarida a feia morte, -risonha amiga, como um carinhoso dom. N'esse dia assignalado -cercavam-lhe o leito todos os queridos affectos que no mundo tivera. O -bom cura Carvalhosa, de estola branca e oiro sobre a alva sobrepelliz, -dizia-lhe em voz de uncção, palavras solemnes de esperança e ventura. O -rosto sereno e quasi risonho do sacerdote espalhava no quarto, que era -um sanctuario, coragem e tranquillidade, em todos os espiritos. Os paes -de Margarida e Antonia ajoelhados aos pés da cama, voltados para a -Virgem glorificada entre flores e luzes, no oratorio, tinham as faces -innundadas de lagrimas silenciosas e votivas. Outras pessoas intimas, -amigos e parentes, seguiam este ditoso despedir d'alma ao despegar-se do -mundo. A illuminação astral do rosto da moribunda, com os olhos gelados -a procurarem claridade n'uma risonha ancia de sublime, a todos animava. -Parecia-lhes este morrer, antes uma transfiguração da vida: não era o -afastamento para sempre, pois acreditavam que esse espirito, que de -muito pertencia ao ceu, continuaria a velar pelos que muito amara, para -os proteger contra as miserias terrenas. Margarida entre elles, -escutaria as suas supplicas, fortalecel-os-hia nos desalentos e <span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span>como -branca pomba espiritual, havia de pairar sobre o tecto que lhe abrigara -o nascimento e a morte. Aqui se lhe dispertara a alma para as coisas -sublimes, para as visões eternas; ao cahir gradual do corpo todos lhe -viram corresponder uma crescente sublimação do espirito; as suas -palavras que se adelgaçavam na fortaleza, eram de cada vez mais -cristalinas no som e tinham de cada vez maior sublimidade no sentido. É -que já as pronunciava do limiar da Bemaventurança, cujas portas se lhe -abriam de par em par. Tudo concorrera de longe, para que as lagrimas -choradas em volta d'este pequenino leito de moribunda, coberto de flores -rescendentes, fossem lagrimas mais de goso, do que de amargura, de -conformidade e não de desespero.</p> - -<hr class="tb" /><br /> - -<p>Rompia a tranquilla luz da alvorada d'um dia d'Abril, que promettia ser -alegre e soalheiro. Estava-se na mesma semana de Paschoela na qual, -annos antes, começara o glorioso martyrio de Margarida. Havia cá fóra as -pompas da natureza, a reviviscencia da terra subia ao azul em hymnos de -aromas e cores. A doentinha chamara para juncto de si seus paes, -Antonia, e os parentes mais chegados, as de Refuinho e as do Ramisco. -Com uma voz que era um cicio de resa, de todos se despediu <span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span>com palavras -confortativas, de tanta elevação e carinho e santidade, que bem se -comprehendia que não fosse um espirito da Terra, que n'ella vivesse. Com -os dedos magros de santa deixava a cada um a lembrança d'uma flor, -beijava, amorosa e humilde, as mãos de seus paes e do cura, -sorrindo-lhes com os olhos cegos.—E rematando a vida disse:</p> - -<p>—Pedirei ao Senhor, por todos. Perdoem a quem os fez soffrer!...</p> - -<p>Rebentaram torrentes de lagrimas e córos de soluços, quando viram que -não mais pudera falar, e que reclinara de vez a resignada cabeça no -largo travesseiro... Começara um longo e infinito somno: o rosto d'uma -serenidade angelica parecia formoso e expressivo como nunca fôra! Ainda -respirava o balsamo das plantas odoriferas, os brancos dedos ainda -procuravam o setim das petalas de rosas e cecens; mas aquella -imaginação, aquella alma diluia-se na amplidão infinita, subindo ao -espaço como um subtil perfume. Margarida repousava na paz eterna do seu -Deus! Terminara o ultimo anhelo do coração.</p> - -<p>—Está morta—disse com sentimento grave o medico pousando-lhe a mão na -testa.</p> - -<p>—Está viva—pronunciou como em sonho, o padre Carvalhosa...</p> - -<p>Lisboa, Abril de 1899.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span></p> - - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<h2>PASTORAL</h2> - - -<h3>I</h3> - - -<p>As cabras e as ovelhas, iam a meia encosta, todas n'um carreiro, como -formigas. Tinha sido longa a noite d'abstinencia no curral e pelo -caminho, ás furtadellas, aboccavam as hervagens avulsas, ruminando-as -sofregamente. O Rabicho, sempre adiante, como explorador. Vivo e -esperto, n'um relance conheceu a impaciencia da Tonia, por não andar -mais depressa. «Lá p'ra riba, cão!»—gritára-lhe a pastora, e logo elle -subiu a um penedo, deixando passar todo o rebanho, que depois impelliu -para a frente, com duas boas torquezadas de seus dentes. Os animaes -correram á porfia, vencendo-se uns aos outros. A rapariga ficou -distanciada, a fiar a sua lã, cuja tarefa, para <span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span>um dia, levava na abada -junta com o presigo. E para não auctorisar novas investidas do rafeiro -berregou-lhe de novo: «Tó, dianho! tens muito dente!...»</p> - -<p>N'esse dia, encaminhava-se ella para o Guidon. Perto de lá, na bouça de -João-Paz, deixára escondida a tigela das sopas de leite. No caminho -encontraria o Chico, pastor seu amado, e ambos juntos e unidos iriam -espreguiçar-se por baixo das fragas ou no interior dos frescos giestaes. -O Guidon, quando o maio é soalheiro e formoso, tem as melhores pastagens -dos arredores. O tojo, nos sitios onde se fez queimada, borbulha, tenro -e verde, como herva nos lameiros. Os gomos d'urze parecem microscopicos -pampanos. O rosmaninho, o trevo, o rico e nutriente feno desabrocham em -aromas e enfeitam a serra. Leite filho d'estas plantas silvestres, -delicadas e cheirosas, é o mais gostoso e substancial. Por isso, ao -pasto das terras baixas e frias, que não sobeja da boiada, n'esta épocha -de lavradas, é preferido o dos pincaros, alegres e soberbos. Coisas da -bruta experiencia, que os seculos teem garantido.</p> - -<p>Chegado o rabanho ao sitio onde na vespera o lobo roubára um timido -cordeiro, a ovelha-mãe, na expressão de saudade, balou dolorosamente. Ao -longe respondeu-lhe a voz tremula d'outra ovelha, como se fôra um echo. -A pastora logo correu ao alto para alcançar mais com a vista. Imaginára -estar p'r'áli aquelle a quem se votara. Ia ser um <span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span>dia festival, ao -encontrarem-se na suprema mudez da serra, protegidos do calor á sombra -dos piornos, contemplando-se n'um vago absoluto. Em taes momentos -accelera-se a imaginação; os ouvidos inattentos ensurdecem; a mente -fica-se n'um pasmo; o mundo figura-se um lago tranquillo e morto; o azul -do céo, onde se perde a vista, é d'um ferrete insondavel; o coração bate -forte e rapido, como um bom potro, galopando solto na campina!...</p> - -<p>Porém, o que veria a Tonia de suspeito e desagradavel?! A expressão do -seu rosto suave e louco, carregou-se de sombras; o gesto foi de -arremesso e contrariedade; os olhos faiscaram de subita colera!...</p> - -<p>Ah!... Em vez do Chico, appareceu-lhe o outro, o Russo, um grande e -forte, de cabellos vermelhos e physionomia diabolica. Coruscava-lhe a -vista inquieta, pequeninas sardas picavam-lhe a pelle, a cabeça era uma -tormenta de fogo!</p> - -<p>Quão differente o seu namorado, rapaz franzino, d'aspecto juvenil, rosto -comprido á Nazareno, cabellos negros e mal cuidados, formando sobre a -fronte um tufo revolto d'anneis. D'aquelle todo sahia a expressão que a -enlevava; da expressão desdenhosa ou indifferente a superioridade com -que a submettera; das palavras simples, a musica dos seus ouvidos e da -sua alma inteira. Como era bello e encantador de costas sobre os -penedos, a contemplar o céo n'um sonho de poeta! Como era amoroso <span class="pagenum" id="Page_68">[Pg 68]</span>e -vago, quando tocava na flauta, coisas que não aprendera com viv'alma!</p> - -<p>O Russo decerto lhe queria com mais gana, com mais aquella, bem lá do -fundo. Ao enxergal-a, desabrochando com a aurora no alto do monte, como -subita e incomparavel flôr, todo se alvoroçou. Nos olhos e em todo o -rosto mostrou um pasmo tonto, um riso sem valor, como aconteceria ao -cego, cuja retina morta sentisse inesperadamente a gloriosa illuminação -do sol. Correu para a abraçar no primeiro impulso; mas logo estacou -contemplou-a a distancia. Ella, no alto onde se quedara, de roca á -cinta, o lenço claro apanhando-lhe os cabellos, o recorte da sua figura -desenhando-se no ar, era a pastora das lendas, calma e prophetica. O -Russo percebendo o animo hostil com que a Tonia o recebia, -accendeu-se-lhe n'alma a raiva e o ciume:</p> - -<p>—Querias ir só com o outro? Não, que não!...</p> - -<p>—Bem se me dá...—retorquiu desdenhosa. Tempo perdido, meu rico!</p> - -<p>—Que lh'achas tu? Um lesma, um gomitado. Cá, sou um home. Elle...</p> - -<p>A Tonia espertou-se:</p> - -<p>—Mal comparado! Tu és um diabo, um porco bravo. Estafermo! Elle é lindo -como um anjo do céo!</p> - -<p>A furia do Russo cresceu:</p> - -<p>—Sou capaz de o esborrachar na unha, como um piolho, demonios me nunca -levem!</p> - -<p>Tinha lagrimas de raiva, ao pronunciar a jura. <span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span>Era paixão antiga e -abrazadora. Desde os quinze annos, ainda aquelle corpo de rapariga era -como um castanheiro novo, já elle a via constantemente na transparencia -dos luares outonaes. As moles graniticas, penduradas eternamente dos -pincaros, e resequidas pelo sol d'um infindavel agosto, não teriam mais -firmeza, nem mais calor do que elle. O ciume era no seu corpo um moer -lento e occulto, tal o fogo que mina a urze escondida na terra para a -transformar em carvão. Condemnado por aquella repulsa constante, -sentia-se desprezivel e desejava morte, em que soffresse muito. Comtudo -não podia despegar a propria vida d'aquelle sonho malaventurado. Em -presença da Tonia, a natureza ruiva e colerica aloirava-se-lhe n'uns -cambiantes meigos e suaves. O mais tenro anho das suas ovelhas, não -tinha para quem o aleitava tanto carinho e agradecimento, como elle -mostrava áquella rapariga, n'uma submissão de coisa bruta. Comtanto que -o amasse, se a sua vontade d'ella fôra vêl-o apodrecer no fundo d'uma -córga, para ser alimento das aguias e corvos, ir-se-hia lá deitar -voluntariamente e nunca mais comeria! A preferencia pelo outro é que o -humilhava na sua consciencia de homem forte e magnifico. Quedava-se a -scismar de noite no que teria de superior, esse engelhado, tão magro e -pequeno como uma lavandisca. O corpo não, que o seu era grande como uma -torre e devia inspirar sentimento de força. A paixão que lhe refervia lá -dentro, longe de ser mollanqueirona, <span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span>mostrava-se vehemente e feroz, tal -a das lobas a defenderem os filhos. Aquella rapariga airosa, divina -imagem de qualquer santa, voz musical como a dos passaros, tranquillo -olhar como o da lua, aniquilava-o com a sua nervosa malquerença. Até -ahi, nada a pudera abrandar: nem lagrimas soluçadas de bruços sobre os -penedos; nem supplicas mais ferventes do que orações; nem juras e -promessas inabalaveis como o céo. Diante das vontades e caprichos da -pastora, era humilde e cego. Quantas vezes lhe ficára com a rez, para a -deixar correr monte, talvez á procura do outro?! Quantas vezes lh'a fôra -buscar ao curral e lh'a apascentara durante dias, para que ella fosse ás -romarias, com os ranchos que passavam?! Até sacrificava o seu rebanho, -pois dirigia o da Tonia para as melhores pastagens. Se tinha leite novo, -logo lh'o offerecia como um presente; se encontrava tortulhos -assava-lh'os e ella comia-os: para que não bebesse agua dos ribeiros, -onde ha porcarias e animaes mortos, ia-lh'a buscar longe, trazendo-a na -sua tigela, escrupulosamente lavada, como para uma rainha. Quando a -Tonia acceitava de boa cara estes serviços, já o Russo se entendia muito -bem pago. As recusas ou o mau modo, é que eram fundos golpes no seu -torvo coração.</p> - -<p>Vivia uma vida negra e de sobresaltos continuos. Passavam-lhe incendios -diante dos olhos e a sua imaginação ficava a trabalhar em desassocego. A -fatidica <em>Pedra-suspensa</em> (essa antiga ameaça!) parecia-lhe, <span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span>ás vezes, -que se ia desprender lá do alto, rolar pelos montes e destruir o mundo -inteiro! Oh! visão amedrontadora de todas as existencias!... Só para a -afastar, quantas vezes elle consentira o Chico deitado ao lado da Tonia! -A moça fiava a lã da tarefa, cantava ou escutava-o enlevada. O -magricellas, o ninguem, de papo para o ar, não tratava da rez. E o -desprezado é que fazia o serviço de todos, guiando caridosamente as -cabras e as ovelhas para a sombra das ramadas nos grandes calores, e á -bebida antes de as recolher. Viviam assim pelos montes, perdidos entre -tojaes e piornos, dormindo no verão debaixo das lapas e dos azevinhos. -Havendo satisfação reciproca, tambem gostava de ouvir o tocador de -flauta, que sabia muitas modas tiradas da sua cabeça. Era feliz nos -momentos em que morava longe o ciume, isso a que não sabendo dar o nome, -lhe queimava o peito, como tição ardente. Esquecia o desamor da Tonia -n'essas horas gastas em somno tranquillo. A vida era visão suspensa dos -ramos dos carvalhos, ou fluctuava brandamente como as folhas outonaes ao -sabor d'um murmuro vento. Não havia quisilias, só desejo de felicidade, -socego e gozo, em ventura calypsiaca. Raramente, porém, se passavam dias -assim completos de ventura!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span></p> - - -<h3>II</h3> - -<p>Já tinham caminhado meia hora, n'um silencio inconvivente, quando -chegaram ao ponto d'onde se descobria a Pedra-suspensa. Era o objecto da -lenda mais famosa e conhecida nas povoações em redor. Visto de certo -lado, aquelle granito, não se lhe encontrava o ponto de repouso, na lage -subjacente; parecia um destaque de nuvem, no céo azul. Contavam, sempre -em voz de medo, que logo no principio dos seculos, um mau genio e feio -gigante, ali a depositara, como eterna ameaça a peccadores; porque a sua -queda assignalaria o começo do fim do mundo. A instabilidade da -Pedra-suspensa, tão reconhecida era, que ninguem duvidava de que uma -creança de cinco annos a pudesse derrubar. Grande milagre, <span class="pagenum" id="Page_74">[Pg 74]</span>não a terem o -vento e os trovões arremessado pelos espaços fóra!... O respeito que -esse granito infundia, era o de um idolo vingador, ameaçando, dia e -noite, as aldeias e o mundo!... Todos os dez annos se formava grande -procissão de penitencia, com gente que partia de sitios mui distantes e -ali se reunia afim de implorar misericordia. Recebida da tradição essa -pratica, executavam-n'a com fervor d'alma religiosa e temente. Os homens -ciliciavam as carnes, as mulheres erguiam clamores, as creanças berravam -de amedrontadas, os bacamartes de bocca de sino troavam pelos caminhos e -por entre os penedos... tudo para distanciar o pavoroso castigo!...</p> - -<p>Depois das preces, ficariam acalmadas as justas cóleras divinas? Ninguem -o assegurava. A intangivel crença em que a famosa pedra cahiria, para -assignalar enormes desgraças, conservava-se viva e forte. Poucos tinham -animo para a encarar tranquillos e serenos. Ninguem ousava -approximar-se-lhe, muito menos tocar-lhe, com medo da responsabilidade -n'um cataclysmo. Seria provocar inconsideradamente as cóleras do céo. -Uma penha que bastaria o roçar d'uma corça para a fazer cahir! Pairava -assim no ar, suspensa como uma aguia, por determinação da vontade -divina. A não ser isto já as bategas da chuva, o impulso dos vendavaes, -o degelo das neves a teriam arrastado. Pois não era um verdadeiro -milagre a sua estabilidade?!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span></p> - -<p>A idéa de a escorar, diminuindo-se as probabilidades da catastrophe, -fôra sempre repellida. Significaria desconfiança no alto poder que ali a -conservava. Melhor é deixar o destino trabalhar por si. Está lá em cima -quem tudo regula. O que tem de ser faz muita força... Pensavam d'este -modo em palavras; mas no fundo, n'esse intimo sentir que até parece -esconder-se á Providencia, se elles pudessem calçar a pedra para não -cahir!... Contra as imprudencias brutas dos gados já se tinham -prevenido, as gentes supersticiosas, sebando-a em volta com ramos e -tojos. Porém as aguias, que vinham de longe, no seu vôo arqueado e -solemne ali poisar? E os lobos famintos, que preferiam aquelle sitio -para comer as suas prêsas? Só milagre e grande milagre é que a sustinha -n'aquella direitura. Acreditavam-n'o camponezes e serranos, todos os que -se desbarretavam e persignavam murmurando qualquer reza, mal a viam. Foi -assim que procederam a Tonia e o Russo. Ambos quedos, ella com o fuso -parado, elle com o barrete na mão, ciciaram orações. Mas o pastor, logo -depois ameaçou a rapariga apontando:</p> - -<p>—Vêl-a? Ha de cahir. O mundo acaba-se e tu não serás p'ra mim, nem p'r'ó -outro.</p> - -<p>—A Senhora da Peneda não ha de deixar—disse confiada.</p> - -<p>—Sou eu que a empurro. Verás.</p> - -<p>—Cala-te, hereje, que t'abro a cabeça.</p> - -<p>Irada, com os olhos em chamma, arremetteu-lhe <span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span>com um pedregulho. Havia -ancia de raiva dentro do seu peito soberbo. O Russo não lhe pôde -supportar a vista de cólera e desprezo; curvou a fronte, os olhos -marejaram-se-lhe. O seu destino era peor que o dos condemnados do -Inferno.</p> - -<p>—Perdôa, não olhes assim! Tu é que me fazes dizer todos estes peccados.</p> - -<p>—Tenho culpa de não teres temor de Deus? Estás na caldeira de -Pedro-Botelho, vestido e calçado! E é bem feito!—accrescentou vingativa.</p> - -<p>O cabreiro queria humildar-se até ao rasteiro das cobras e lagartos, só -para lhe merecer uma sombra de perdão. Affligia-o mortalmente a idéa de -que mais uma vez desagradara á Tonia. Como, logo adiante a rapariga -vendo umas cabras se principiou a affirmar, para descobrir o Chico, foi -elle que, no intento de se reconciliar com a pastora apontou:</p> - -<p>—Está acolá, em cima do penedo...</p> - -<p>—Assobia-lhe para vir p'r'áqui.</p> - -<p>—Bem nos vê, se quizer...</p> - -<p>Mas obedeceu, assobiou com os dedos na bocca. O outro não se importava, -apenas mexeu a cabeça conservando-se na mesma posição.</p> - -<p>—Vae lá, que vamos p'r'ó Guidon,—disse-lhe a moça.</p> - -<p>Foi, humildemente, como um perdigueiro. Sentiu gozo em ser mandado; mas -de raiva torcia nas mãos a grossa carapuça. Distante, a occultas para -esconder a sua fraqueza, limpou duas lagrimas ao <span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span>canhão da vestia. O -outro não queria ir para o Guidon, estava ali muito bem. O Russo -pediu-lhe que obedecesse, para a Tonia se não zangar mais.</p> - -<p>—Ora... se 'stou regalado!—respondeu o pastor. Vai tu mais ella.</p> - -<p>—Vem, moço—exorou o cabreiro. Olha que ella hoje, sempre te está! Anda, -levo-te a rez.</p> - -<p>Consentiu o Chico em deixar ir o rebanho; mas elle ficou. A Tonia não se -teve. Foi pressurosa tiral-o d'aquelle adormecimento. Com ligeiro -sorriso de meiguice, pediu ao Russo:</p> - -<p>—Ó aquelle. Junta-me tamem as minhas, que eu vou trazel-o.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span></p> - - -<h3>III</h3> - - -<p>E lá foi, doida, feliz, correndo de fraga em fraga. O Russo assobiou ao -Rabicho, reuniu todo o gado e partiu... Chorava lagrimas como punhos, e -voltava-se para vêr de relance a Tonia, que chamava o Chico, com acenos -e gritos. Bem se importava o preguiçoso com aquelle louco amor da -rapariga!...</p> - -<p>—Eh! moço! vem-te d'ahi p'r'ó Guidon.</p> - -<p>Elle respondeu-lhe:</p> - -<p>—Eh! que 'stou' qui mui bem.</p> - -<p>Tirou do seio a flauta e sentando-se no penedo, principiou a tocar. O -sol illuminava-o de frente, prateando-lhe os cabellos negros. O destaque -da sua figura magra e enfezada sobre o escuro penedo, fazia-se como o -d'uma miniatura em fundo esmaltado. A Tonia chamou-o:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span></p> - -<p>—Já lá vão as tuas cabras, maluco.</p> - -<p>Não se importava, encolheu os hombros. A musica absorvia-o -completamente, era o seu destino. A pastora, dominada por esse respeito -instinctivo e sagrado, que se deve ás coisas elevadas, parou a -distancia, para o não interromper. O Russo, que já ia longe, tambem -subiu a uma rocha com o fim de ouvir melhor. Escutava triste e -absorvido. O seu grande corpo, esbatendo-se no verde escuro do monte, -ainda ensombrado n'aquella parte, percebia-se mal, como as figuras dos -baixo-relevos, e tinha a mesma immobilidade captiva. Era moda triste a -que o rapaz tocava. Finda ella, a Tonia approximou-se quasi respeitosa. -Para subir ao penedo onde estava o tocador e arrancal-o d'ali, teve -difficuldades. A pedra era lisa e as tacholas dos sócos estavam gastas. -Mas agarrou-se a um ramo de carvalho, inclinou-se para diante... Os -magnificos e potentes quadris arquearam-se n'uma curva de mulher -completa e fecunda, creada nos caminhos pedregosos. O Chico, vendo-a no -empenho de subir, largou a flauta, tomou-a pelos braços roliços, -attrahiu-a para o seu corpo e por momentos ambos ficaram unidos!... O -Russo presenceava de longe tudo isto. Sahiu-lhe do peito um rugido de -cólera e ciume que fez estremecer as montanhas. Os seus olhos, vermelhos -de desespero, viram uma successão de calamidades sem fim, como as -descrevem os missionarios para o dia de juizo. A Pedra-suspensa -oscillara, já cahia pelos fortes <span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span>declives d'um mundo em ruinas. -Ennegrecera subitamente o céo azul, reuniram-se n'um instante nuvens -prenhes de tempestades, os trovões abriram medonhas gargantas no céo de -fogo, as pupillas dos raios rutilavam, as trombetas apocalypticas -enchiam de pavor os reconcavos da terra, onde se escondiam -desgraçados!... Tudo se ia acabar para todos!... O seu corpo miseravel, -junto ao de outros reprobos, rolava pelos abysmos. A grita dos homens -era pavorosa, formando um unisono infernal.</p> - -<p>Isto o que viu e ouviu n'um instante aquella imaginação turbulenta. Mas -o Chico e a Tonia já tinham descido do penedo. Elles lá vinham a -caminhar, amorosamente unidos, ella apoiando-se-lhe no hombro. Riam e -folgavam, como um casal de pintasilgos em março, resumindo em si todas -as venturas pelos homens sonhadas. Ella offereceu-lhe do seu presigo uma -racha de bacalhau, que o rapaz acceitou para offerecer ao outro, que era -muito pobre, não tendo mesmo, ás vezes, a brôa sufficiente. Logo que se -juntaram deu-lh'a.</p> - -<p>—Toma—disse.</p> - -<p>—Não tenho fome—rejeitou.</p> - -<p>—É a Tonia que t'a dá.</p> - -<p>Arrancou-lh'a da mão. Estracinhou-a raivosamente com os dentes, como -faria á carne d'aquelles corpos felizes, se os pudesse trincar. -Excandecido seguiu com os rebanhos, separado dos dois. O semblante -sombrio e transtornado, impressionaria <span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span>quem lh'o encarasse. Os olhos -gazeos expelliam chispas metallicas e tinham escurecido de cólera. Os -beiços tremiam-lhe como signal da sua loucura. A pastora no momento em -que se juntaram escarneceu-o:</p> - -<p>—Que feia carranca... Santo Nome!...</p> - -<p>O cabreiro voltou-se rapidamente para a aniquilar, com todo o poder da -sua força herculea. Porém ao vêr aquelle rosto sereno e risonho, só -disse:</p> - -<p>—Hoje ha de ser falado!...</p> - -<p>N'um relance pensou na famosa Pedra, symbolo de desventuras. Sahia-lhe -do semblante uma expressão feroz: no craneo aninhou-se-lhe a idéa d'um -aniquilamento geral de todas as felicidades terrenas.</p> - -<p>Mas a rapariga é que não estava de geito para o aturar. Conhecia-lhe a -maluqueira de bode raivoso e ciumento. Tinha meio de o curar, sem pau -nem pedra: era deixal-o ir só. Um porco bravo assim, um bruto cujo -aspecto causava medo, não servia para viver entre christãos. Fosse lá -p'r'ós lobos, que eram seus iguaes.</p> - -<p>Quão differente o outro, o seu querido! Timido e meigo como o cabrito -d'um mez, assobiava e cantava modas mais bonitas que as dos melros e -rouxinoes das mattas. Viver a vida com elle pelos montes, era o mesmo -que passar os dias n'um céo. Ensinava tantas coisas, que não -aprendera!... As cantigas da sua invenção produziam sempre tristeza -<span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span>branda e carinhosa. Descobria nas estrellas sitios de felicidade e -apontava-os, convidando-a a voarem para lá. Podiam-se comparar os -dois?... O Russo era escambroeiro aspero que rasgava as carnes; o Chico, -ramo de giesta, bello, cheiroso, e flexivel. Por isso ella despediu o -rude cabreiro, retorquindo-lhe á ameaça:</p> - -<p>—Elle é isso?! Pois vae-te sósinho com Deus. Nós levamos hoje o gado -p'r'á Ralada.</p> - -<p>Chamaram o Rabicho e trataram de separar as suas cabras e ovelhas. O -Russo, sob o castigo tremendo, mostrava-se submisso em todo o seu corpo. -Pedia perdão, não dissera nada mau!... Se alguma palavra feia, se alguma -ameaça ou jura a sua bocca cuspira, estava arrependido. Fossem com elle -que tomaria conta dos rebanhos todo o dia. A comida para ali era a -melhor dos sitios. Encontrava-se tojo tenro, como bicas de manteiga. A -herva, apenas nascida, era a unica do appetite do gado. Havia agua -corrente para os animaes e até uma fonte para a gente... Aquelle grande -corpo, espadaúdo e alto, fazia-se pequeno com a humildade. Uma criança -mostraria mais imponencia. As lagrimas cahiam-lhe em cachos e todo elle -era uma supplica, de curvado e abatido.</p> - -<p>A Tonia foi cruel e inflexivel. Abandonou-o, desprezou-o como um trapo. -Disse que os não acompanhasse para a Ralada, que isso os obrigaria a -mudar. Fez-se imperiosa. O seu corpo d'ave, esbelto e franzino, teve -coleamentos de panthera. O <span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span>rosto de santa transformou-se pela cólera. A -chamma do olhar e os cabellos mal juntos davam-lhe o aspecto d'uma leôa. -O cabreiro tremia de medo, a cabeça sobre o peito, os braços pendentes. -Separaram-se. Os dois lá foram, acintosamente abraçados. O Russo, -desmoronada toda a sua existencia, dirigiu-se em passo tropego, adiante -do gado, para o destino da sua má sorte!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span></p> - -<h3>IV</h3> - -<p>Chorou longamente o seu infortunio, p'r'áli, a cara junto á terra. Do -fundo mysterioso vinham-lhe palavras infernaes, que o aconselhavam a ser -feroz e deshumano. Ergueu-se tendo o coração empedernido. Os seus olhos -enxutos, viram nitidamente ao longe a Tonia e o Chico enlaçados, -patenteando ás aves o seu amor. Era uma visão graciosa que sahia de -entre as lavaredas da colina em fogo! Á sombra da fraga, sobre a qual -estava a Pedra-suspensa, os loucos tinham-se ido deitar. Elle tocava -flauta, ella contemplava-o, com o fio da roca parado. Justiceira a mão, -que para lá os guiou!—pensou na sua rude mente o Russo.</p> - -<p>Desencadearam-se-lhe diante da phantasia sanguinea <span class="pagenum" id="Page_86">[Pg 86]</span>todas as tempestades -dos seculos sem fim. Só a grande Dôr poderia burilar n'aquelle rude -cerebro taes florescencias tenebrosas. O seu corpo levantou-se n'um -desespero formidavel. Um violento fremito rugia no interior da montanha, -chegando até ás nuvens. Era a voz torva do seu peito, a soluçar pelos -reconcavos da Terra e do Céo!</p> - -<p>Ia tombar a Pedra-suspensa—resolveu.</p> - -<p>Os seus cabellos ruivos, atravessados pelo sol, faiscavam. Idéas de -impiedade e vingança, como lh'as ensinára a religião e o ciume, -fixaram-se-lhe na fronte d'um modo definitivo. A ventura e a bondade não -cabiam na sua alma desgraçada, pois em volta tudo era escuridão e -rancor. Nem a saudade da serra que estava a florir, nem a convivencia -amoravel do gado, nem o abandono da mãe cega e pobrissima o detiveram. -Não via os <em>outros</em> abraçados n'um gozo sem limites? Palpitando d'amor á -face do sol, pensavam acaso nas ovelhas? Que viesse o lobo e elles não -seriam capazes de o perceber!... Aquelle embevecimento reciproco, era um -peccado mortal, e nem o temor do inferno os separava! O aniquilamento, a -morte rapida era o que mereciam! Clamava do céo vingança, uma tal falta -de vergonha.</p> - -<p>Por isso ia elle empurrar a Pedra-suspensa!</p> - -<p>Doido, perdido, correu como um cabrão, de penedo em penedo. N'aquelle -peito arquejante escondiam-se sentimentos de tigre. Era um demonio -bruto; porém o instincto e o desespero tornaram-n'o <span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span>sagaz. Para ser mais -ligeiro e imperceptivel, abandonou os tamancos no caminho. Uma força de -vendaval levava-o pelo ar. Podiam merecer-lhe piedade a desgraça do -mundo e a eterna condemnação de todos os homens?! Algum vivente lhe -mostrara sympathia, ou pensara em lhe prodigalisar carinhos?! O seu odio -absoluto não distinguia a justiça da perversidade.</p> - -<p>Já em cima dos penhascos, ao lado do rude instrumento de vingança, olhou -em volta. Um leve impulso de sua vontade bastaria para se produzir o -formidavel castigo. Conheceu a verdade da lenda:—simples sopro de gente -moveria aquelle penedo tamanho como elle! Um resto d'esperança, porém, -obrigou-o a reflectir. Deitou-se de bruços, arrastou-se para diante... A -cabelleira fulva e farta como uma juba, excedendo o rebordo da lage, -appareceu no espaço. Desvairaram-se-lhe subitamente os olhos:—viu com -todas as minudencias irrefutaveis, aquelle terno idyllio, que resumia -toda a sua desventura. O Chico tinha a cabeça no regaço da pastora. Ella -dava-lhe de beber agua fresca pela sua tigela de barro vermelho. Era o -quadro da Samaritana, dessedentando o tranquillo Nazareno, junto do poço -biblico, na velha Palestina. O rosto pallido do rapaz, emmoldurado em -cabellos pretos, tinha a sonhadora expressão de Jesus. Embebidos um no -outro, prolongavam a existencia, na intensidade do sentir!...</p> - -<p>Porém elle tambem era homem, tinha direito á <span class="pagenum" id="Page_88">[Pg 88]</span>felicidade como todo o sêr -vivente. Se a Tonia lhe não havia de pertencer, melhor era acabar com a -propria vida, que lhe não prestava! Havia de elle aniquillar-se, e os -outros haviam de ficar n'aquellas serras queridas? Não lh'o acceitava a -mente perturbada!</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Os miseros estavam mesmo por baixo da Pedra-suspensa! A vingança -n'aquelle cerebro, tomou fórma exacta o real, sem poeira de lendas. -Podia esmagal-os, como dois sapos nojentos!... D'esta maneira, acabariam -n'um instante duas vidas incompativeis com a sua felicidade. A morte -para todos tres era uma solução de suprema justiça. A fé supersticiosa -das montanhas tinha-o abandonado; o pobre ficara só, recolhido na sua -dôr infinita!</p> - -<p>Mesmo de bruços, principiou a recuar. O seu olho calculador e vingativo -vira, que impellido o penedo, os dois morreriam, estreitamente unidos, -sem tempo para um ai! Havia de ser fulminante esse acabamento como o -causado por um raio de cólera divina! Poz-se em pé, sobre a lapa, a -parallelo do instrumento fatidico. Veiu de novo a visão sanguinea! O -panorama em frente appareceu-lhe envolvido em linguas de chammas! Era o -primeiro signal do tremendo castigo, ha seculos esperado! Um impulso de -cyclone dominava-lhe a vontade. Decerto era Deus que assim o mandava -castigar dois peccadores.</p> - -<p>Com a força nervosa e a serenidade d'um illuminado, <span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span>applicou ao granito -o largo e potente dorso. Demorou-se ainda alguns instantes!... Seria -indecisão?... Era o gozo de ouvir estranhas vozes de coragem e applauso, -bramindo-lhe dentro do craneo! Em volta, já começava claramente o -desmoronamento do universo! E o impavido cabreiro, soltando um ronco -selvagem—medonho grito de féra!—tombou a Pedra-maldita!</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span></p> - - -<h3>V</h3> - - -<p>Não se descollaram do ultimo beijo os dois ternos amantes. A altura era -enorme. No espaço produziu-se um som abafado e largo, que foi de -quebrada em quebrada, pulsando até ao coração da Terra! O Russo -conservou-se em cima da lage, firme, contemplativo, como o Stylita. -Parecia tomado d'assombro! Os seus olhos de louco, viram pedaços de -carne e o sangue atirados para o céo! Aquillo teria sido malvadez?!... -Arrependeu-se de subito, ou quiz envolver-se no aniquilamento geral?!... -Não poderia sobreviver a tamanho crime, ou eram os demonios que o -reclamavam, como sua prêsa?!...</p> - -<p>Approximou-se resoluto da borda da fraga! Em baixo o mundo cambaleante e -confuso, era um grande <span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span>incendio, surgindo de trevas absolutas. -Diabolicas figuras cruzavam os abysmos, á procura de victimas e -sinistros. Gritos infernaes sahiam das boccas escancaradas dos pincaros, -como jactos de lava! Olhos vermelhos de demonios fixavam-no ironicos e -cubiçosos! Abriu os braços n'um gesto de supplica e perdão, atirou-se ao -espaço como um abutre de amplas azas e o seu grande vulto, rolando pelo -ar, parecia vir da eternidade, na primitiva condemnação! Sobre a mole -granitica impellida pelo seu desespero, esmagaram-se-lhe as carnes e os -ossos! O sangue espirrou, tingindo de vermelho a relva circumdante. Era -tudo quanto restava, d'uma paixão desesperada e selvagem!...</p> - - -<hr class="tb" /> - -<p>A manhã de primavera, tranquilla e sumptuosa de luz, alegrava montes e -campinas. Enfeitavam as encostas, o codeço e o tojo, rebentados d'entre -as penhas, cuja negrura avivavam d'amarello. As myriades de flôres dos -urzaes, formavam tufos d'aljofares e d'amethystas nas aridas córgas. O -feto novo era como uma extensão de relva, pelo verde claro. O modesto -trevo e o alegre malmequer, salpicavam a terra. Gottas d'orvalho como -lagrimas, rebrilhavam penduradas das flôres da giesta. As mattas -silenciosas iam acordando com o gorgeio dos passaros. Nos fundos abysmos -das montanhas, formavam lagos os pardacentos nevoeiros. Passado o -primeiro momento de susto, os rebanhos continuaram <span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span>a retouçar nas -hervas, diante da gloria do sol deslumbrante. As aguias pairavam -magestosas, ao longe, sobre os mais altos cumes. Toda a natureza -palpitava e se engrandecia, sob a acção impulsiva do calor. Nas serras, -nas brandas, nos ribeiros, nos cabeços, nos valles... uma tranquillidade -pathetica de vida natural. Sobre os telhados das aldeias levantavam-se -os fumos domesticos, brandamente, como fumos de incenso sobre os -altares. Em volta a muda altivez da soberba e impassivel montanha!...</p> - -<p>Só uma voz lamentosa se ouvia na socegada amplidão: era a do rafeiro, o -amoravel Rabicho, que em redor da Pedra, chorava a pobre Tonia.</p> - -<p>E chorava a cortar a alma, como se fôra um christão, ganindo, uivando, -aos saltos em volta dos cadaveres!... Amoravel rafeiro, pobre Tonia, -desgraçados amantes!... Ah!...</p> - -<p>Lisboa—Novembro de 1888.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span></p> - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - - -<p><span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span></p> - -<h2>FOGO DO CÉU</h2> - -<p class="center p0">(<i>a Sousa Martins.</i>)</p> - - -<h3>I</h3> - - -<p>A meia encosta da montanha subia a estrada de macadam, qual longa facha -branca collada em fundo escuro. Tarde nevoenta, atmosphera pesada e -electrica! As pessoas nervosas sentiam-se impacientes, com desejos -fulgurantes e insaciaveis de imaginações inquietas. A necessidade de -movimento, a agitação do corpo tornava-se imperiosa. Cada um procurava o -esgoto rapido da sensibilidade que o affligia, o aniquilamento do -proprio ser, com o fim de se encontrar no remanso bonançoso de uma vida -serena e repousada, como as aguas de uma lagoa. Mary logo de manhã se -levantara mal disposta, a carne em sobresaltos, uma intensa vontade de -chorar. Pediu <span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span>de tarde a seu pae que a acompanhasse n'um largo passeio a -cavallo, galopando para longe, á descoberta de novas sensações, em -horisontes infinitos, onde a vista se perdesse.</p> - -<p>O velho cedeu apesar da ameaça de chuva. Mary precisava do rosto -açoitado pelo ar fresco, sentir o arripio do vento nos cabellos, escutar -o ribombo da trovoada desenvolvendo-se a distancia.</p> - -<p>Lá iam os dous, pela estrada de macadam, a par como namorados: elle com -a sua barba branca collada ao peito, Mary olho febril, o rosto em -desafogo, o véu azul fluctuando como flammula. Os cavallos ás upas, -garbosos, correndo ao desafio: <em>Joe</em>, o de D. Francisco, calmo e -magestoso; <em>Luck</em>, o de Mary, franzino, mais audaz, resfolegando -impaciente.</p> - -<p>—Mary. Quando vier a chuva?!...—disse o receioso velho.</p> - -<p>Que importava! Não lhes tinha succedido isso d'outras vezes? Era um -episodio, uma diversão da monotonia ordinaria da vetusta casa, entre -carvalheiras, com o som plangente do orgão espraiando-se sobre os campos -desertos. Os nervos imperiosos exigiam-lhe commoções, fortes balanços de -galope, sacudidellas nos musculos entorpecidos, uma boa molhadela -emfim...</p> - -<p>Continuavam intrepidamente para o cimo da montanha, distanciando-se do -povoado. O horisonte de cada vez mais largo, a paisagem variando em -cambiantes de luz; na ribeira os terrenos, ermos <span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span>de cearas, ás arvores -tristonhas e outomnaes, os fumos domesticos erguendo-se lentamente no -ar, como louvor religioso.</p> - -<p>Era no mez de novembro: as folhas sêccas accumulavam-se nos recantos dos -caminhos—despresadas depois de ephemera vida, e de terem com o seu viço -de rebentos novos alegrado a encosta. Á maneira que os cavalleiros -subiam para o alto, as montanhas desenrolavam-se-lhes n'um aspecto mais -uniforme e esbatido, pela distancia de muitas leguas, como se fôra -ondulado de mar subitamente solidificado n'um instante mais calmo. Os -bosquesinhos de carvalhos, nascidos das aguas a rebentar nas quebradas, -eram nodoas attestando a sensibilidade da vida, a circulação da seiva -n'aquella aridez arrogante de terrenos ingratos, cobertos de tojo e de -alcantiladas penedias. Os campanarios destacavam-se pela brancura da -cal, tristes e solitarios, os sinos mudos. De cada vez se encastellavam -mais nuvens no horisonte, tomando aspecto torvo de ameaça. O ribombo do -trovão ennovelava por cima das cristas dos grandes outeiros. Havia no ar -um sentimento de anciedade, uma como paralysação de vida, um spasmo em -toda a natureza! Respirava-se mal, a accumulação electrica opprimia o -peito:</p> - -<p>—Mary; seria melhor voltar!...</p> - -<p>—Só até lá cima, meu pae!...</p> - -<p>Os cavallos excitados pela corrida, de cada vez consumiam maiores -distancias. Luck, delgado e nervoso, parecia o hippogriffo lendario, -voando <span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span>por sobre geleiras, levando a vaporosa fada n'um sonho -scandinavo. Sentia a febre da mão que sustinha a redea; ao seu dorso -arqueado communicavam-se as correntes nervosas do gracil corpo de Mary. -Joe, o do fidalgo, apesar de mais pausado era valente, e acompanhava-o -garboso.</p> - -<p>Caminhavam subindo sempre, no parecer ao desafio com as nuvens grossas e -plumbeas, gravidas de trovões e raios, que passavam no espaço, n'uma -jornada apocalyptica.</p> - -<p>Para onde iriam essas nuvens de tempestade? Onde pararia Mary, loira, o -rosto animado, impetuosa, franzina, a imaginação ardente a pedir largas -paisagens, o coração oppresso a desejar atmosphera mais leve, que os -pulmões respirassem desafogadamente?!...</p> - -<p>Chegaram ao vertice da estrada. Para a esquerda havia montanhas sombrias -e estereis; porém era completa a solidão e o desamparo!</p> - -<p>Descobriam aldeias e casas, a muita distancia, n'um ajuntamento de -defeza contra os perigos dos ermos. Haviam caminhado em largo galope -além de uma hora, distanciando-se sempre do povoado. A antiga morada -d'onde tinham partido, só pelo tino acertariam onde ficava! Mary -quedára-se a olhar com ousadia, para o céu e para a terra, o corpo mais -livre, o querer amplo, a imaginação em maior tranquilidade. Esta -uniforme paisagem de serranias que se pegavam umas nas outras, com um -tom azulado e vesperal era de immensa pacificação. <span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span>Porém as nuvens -caliginosas condensavam-se já perto, o regougar do trovão aproximava-se -a olhos vistos, a propria natureza parecia preoccupada, emquanto Mary -sorria deliciosamente ao céu plumbeo, ás montanhas ondeantes, ao valle -cheio de arvores amarellentas, que levantavam para o ar braços em -supplica.</p> - -<p>Dous pequenos pastores, de certo irmãos, desciam apressados dos -pincaros, trazendo o seu rebanho. Receiavam chuva grossa e trovoada, -eram muito pequenos e supersticiosos, vinham com ancia de se recolherem -á protecção de Santa Barbara bemdita, e de lhe resarem junto da lareira, -onde arderia o canhoto do natal, amuleto contra as iras do céu. Irmão e -irmã, teriam dez a doze annos, rotos e pobrissimos, aspecto triste e -desconfiado. Os cabellos em desalinho, descalços, as pernas arroixadas -do vento cortante dos montes! Desciam espavoridos, correndo pela encosta -abaixo, acompanhados do cão e do rebanho, tudo juncto em grande -confusão. A sua pobre choupana coberta de colmo estava no sopé da -montanha. Conheciam o tempo, não havia que esperar, a trovoada -aproximava-se, não tinham valor para a aguentar sósinhos lá em cima. -Mary, com os olhos pregados n'elles, vendo-os a rebolar aos saltos pelo -monte, encarecia, na sua boa alma, a conformidade, que adivinhava -n'aquella vida humilde:</p> - -<p>—Meu pae, aquelles pastores, aqui sósinhos!...</p> - -<p>Já saltara do cavallo, esperava-os para lhes fallar, <span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span>interrogal-os -ácerca da sua pobreza que devia ser incommensuravel, dar-lhes alguma -cousa para o agasalho do corpo.</p> - -<p>Cahiam ruidosamente as primeiras gottas de chuva. Grossas como landes -varejadas de carvalheiras por ventania aspera, espapavam-se no pó da -estrada. Havia forte ruido no ar; ao parecer, mão herculea impellia de -grande distancia punhados de areia: era o bater secco do granizo sobre -os terrenos, sobre as penedias e nas folhas amarellentas dos raros -carvalhos. A turbação atmospherica augmentara subitamente, escurecera -tudo em redor. Os trovões roncavam perto, semelhando o unissono cavo e -amedrontador de milhares de carroças rodando juntas.</p> - -<p>—Onde nos havemos de recolher, Mary?—disse D. Francisco.</p> - -<p>Em qualquer parte. Sob aquelle frondoso castanheiro, que ali perto -nascera isolado n'um tenue veio de agua que resumbrava na base de um -penedo. Os cavallos tinham na pelle tremuras de susto; levavam-nos pela -redea para o designado abrigo. Os miseros pastores chegavam n'esse -momento á estrada, inquietos, receiosos de que as ovelhas se lhes -trasmalhassem e como a chuva engrossasse rapida e subitamente, -recolheram-se com o gado n'uma grande cova, de proposito aberta no -flanco do monte, para estes casos, ali frequentes. Mary e seu pae, -protegidos pelo velho castanheiro olhavam silenciosos e contristados -para aquelles <span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span>rotinhos e humildes, em monte com as ovelhas, cheios de -inquietação com medo que o trovão apavorasse os animaes. E do interior -da cova consideravam cheios de admiração aquelles senhores de aspecto -tão rico e maravilhoso, mais bello do que o dos santos da igreja.</p> - -<p>As bategas de agua cresciam em força, o ribombo troava com arrogancia -por cima dos pincaros eminentes. O fidalgo observava o ar com serenidade -receiosa, a solemne barba branca de patriarcha biblico cobrindo-lhe o -largo peito. O vento soprava com violencia, os movimentos ondulatorios -da atmosphera formavam vagas, como n'um mar aereo. Tinham desapparecido -as povoações, os campanarios, os cimos das montanhas por traz da -densidade da chuva. Restringira-se-lhes a muito pouco a área visual, -tudo estava coalhado n'uma densa nevoa, o aspecto das cousas era -indefinido e vago.</p> - -<p>—Durará muito?—disse Mary apprehensiva.</p> - -<p>Estava a vêr que sim.</p> - -<p>Fizera mal em não ter cedido ao aviso de seu pae. N'aquella vasta -solidão principiava a sentir-se n'um desamparo tenebroso. Ennegrecia-lhe -o espirito com a apparencia lugubre das penedias suprajacentes. D. -Francisco vendo-a pallida e contrariada, apparentava agora conformidade -e riso, para a fortalecer. Tinha medo de algum desanimo, de qualquer -crise de nervos. Era esta a querida filha da sua alma, o seu unico -enlevo, a alegria, <span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span>o conforto no despovoado da viuvez e da velhice. Mary -sentia na alma a amargura de ter contrariado a previdencia do bom velho, -de quem era a luz dos olhos. O aspecto do céu de cada vez mais orgulhoso -e ameaçador.</p> - -<p>Os sons medonhos reforçados nas quebradas dos montes, rolavam como -grandes e implacaveis penedias, que viessem lá do alto para tudo -aniquilar. Já os trovões concorriam de todos os lados, arrogantes e -magestosos, rebentando perto em estalidos breves e seccos, como milhões -de taboas a baterem umas contra as outras. Laminas de fogo de coriscos -rasgavam o ventre das nuvens e esta luz luarenga cobria a paisagem de um -tom funereo. Havia no ar uma escuridão de caverna sem que a noite já -começasse a abraçar o mundo no seu amplexo triste. A natureza em combate -tinha olhar terrificante. Nem o conjunto de toda a artilheria do mundo, -cem vezes augmentada, vomitando ao mesmo tempo granadas e materias -inflamaveis pela bocca redonda dos seus canhões, daria ideia d'esta -formidavel batalha, ferida nos paramos sombrios do ar.</p> - -<p>—Meu pae!... tenho medo!...—confessou a corajosa Mary.</p> - -<p>As ovelhas conservaram-se junto dos pastores mettidos na sua cova, como -timidas creanças perto de sua mãe. Os pequenos de joelhos, as mãos -erguidas, em lagrimas de receio pediam misericordia em altos gritos -dirigidos a Deus clemente. <span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span>Desejava D. Francisco animal-os, -soccorrel-os, trazendo-os para juncto de si; porém não lh'o consentiam -as catadupas de agua, que já vinham pelas gargantas dos montes sahir ali -perto, em formidaveis ribeiros. Elle ainda conservava Joe pela redea; -porém Mary já havia abandonado Luck, que de olho allucinado, e tremendo -em todo o corpo, resfolegava com estrondo pelas narinas largas. O pavor -crescia, o formidavel estalido do trovão rebentava quasi sobre o -castanheiro, innumeros relampagos fuzilavam ao mesmo tempo pondo-lhes o -espirito em confusão.</p> - -<p>—Tenho muito medo, meu pae!—confessou Mary, tremula e agitada.</p> - -<p>Como poderiam sahir d'ali? Impossivel!—ponderou o coração amargurado do -velho. Esperava que a furia da tempestade diminuisse, que o horror do -trovão abrandasse, que o fogo dos relampagos lhes não tirasse a vista, -que a chuva fosse menos copiosa... A pobre Mary já o não ouvia, pallida -e assustada, sentiam-se-lhe ranger os dentes, a ella que sempre fôra a -ousadia, o denodo, o vigor moral de seu pae.</p> - -<p>Os dous corações batiam n'um ambiente de terrores, os ares incendiados -por chammas infernaes, os ouvidos surdos por causa dos pavorosos sons -que desciam do céu, ou resurgiam das corcovas da montanha. De toda a -parte o mundo parecia ameaçado por castigos e invectivas de morte. No -bojo largo e mysterioso das nuvens parecia esconder-se, <span class="pagenum" id="Page_106">[Pg 106]</span>ainda -silenciosa, a suprema voz da infinita maldição! Vencendo espaços com o -desespero dos demonios escorraçados do céu na noite biblica, essas -nuvens pareciam que accarretavam do começo dos tempos a punição de -crimes accumulados por seculos de perversidade!...</p> - -<p>Os aterrados pastores continuavam de joelhos, as mãos supplicantes, -pedindo misericordia em agudos gritos. A convulsão do franzino e esbelto -corpo de Mary communicava-se ao tronco do castanheiro frondoso e para -ella todo o mundo se sentia abalado e tremente. D. Francisco -abandonou-a, por um momento, emquanto procurava colher as redeas de -Luck, que se ia separando encolhido e agitado.</p> - -<p>A confusão de todas as cousas attingira n'este instante imponencia -d'assombrar! Um forte e vibrante estampido, acompanhado de illuminação -subita de raio, rebentou sobre a arvore protectora. Luck então fugiu -espavorido; Joe repuchou fortemente o braço do fidalgo, que se sentiu -cahir, as pernas sem vigor. Instinctivamente, D. Francisco, lança os -olhos para o castanheiro, e vê no rosto funereo de Mary extinguir-se a -vista, o tronco flexivel como um vime inclinar-se, todo o corpo, qual -estatua de alabastro, cahir sobre a terra n'uma compostura -sepulchral!!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span></p> - - -<h3>II</h3> - - -<p>Fora fulminada? estava morta?!... O rosto de seu pae era de um pavor -dantesco!... Luck despenhara-se pelo monte, em saltos infernaes! Joe, -menos nervoso, tremia humilde junto de seu dono.</p> - -<p>O desditoso velho atirou-se com desespero sobre o corpo livido de Mary, -que vira pender como uma açucena, impellida por vento maldito. -Encontrava-a sem energia corporea, o aspecto de completa ausencia de -sensibilidade, os olhos meio cerrados. Queria aquecel-a com os seus -carinhos, dar-lhe o movimento do proprio sangue! Estreitava-a nos -braços, agitava-lhe o corpo, sacudia-a para lhe dar vida. De apavorado -emmudecera, não tinha lagrimas <span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span>para exprimir tamanha dôr; mas por fim a -sua voz rugiu formidavel como a do leão, como a do mar, como a da -tempestade:</p> - -<p>—Mary!... Mary!... Accorda, Mary!...</p> - -<p>As creanças tinham corrido n'um instincto de soccorro. Augmentavam a dôr -do quadro com o chôro desesperado, que acresciam ao do inconsolavel pae, -que chamava sua filha em altos brados dirigidos ao céu crudelissimo.</p> - -<p>D. Francisco erguera-se, com o corpo de Mary intimamente unido ao seu. -Que loucura esta! Pensar em reanimal-a communicando-lhe o seu calor, -dar-lhe sensibilidade com o vigor do affecto, fazel-a soffrer com a -grande e immensa dôr que o suffocava! O corpo estava exanime; -pendiam-lhe os braços, cahia-lhe a cabeça, as pernas sem energia, o -tronco vergando-se como um junco. O ribombo do trovão continuava atroz: -os relampagos successivos illuminavam as serras lugubres, as altas -penedias de uma grandeza cyclopica, as humildes aldeias e campanarios, -as veigas de uma passividade mortal.</p> - -<p>—Chamae gente!... Chamae gente!...—gritava D. Francisco aos pastores, -que d'elle se tinham acercado n'um intento piedoso.</p> - -<p>As creanças identificadas com aquelle soffrer incomparavel, gritavam -inutilmente! Quem as ouviria? O logar ficava longe, a sua casa distante, -a magestosa garganta da tempestade engulia-lhes a voz.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span></p> - -<p>Talvez o velho cabreiro esperasse a primeira aberta para lhes vir em -auxilio!... Unica e misera esperança!...</p> - -<p>Os enxurros desciam ovantes em catadupas pelas gargantas dos montes: os -caminhos eram ribeiros, nas fundas corgas sussurravam as aguas como -grandes rios, a ira do céu parecia crescer a todos os momentos.</p> - -<p>—Chamae gente!... Chamae gente!...—repetia o fidalgo com o corpo de Mary -estreitamente abraçado, exprimindo no semblante a maior dôr que no mundo -possa existir.</p> - -<p>Clamavam as creanças com maior desespero e força; porem as suas vozes -perdiam-se no infinito espaço. Um instante houve em que esses gritos -foram triumphaes, como se um soccorro afortunado viesse espavorir a -desgraça.</p> - -<p>—Pae!... Pae!...—exclamaram com alvoroço.</p> - -<p>Era o robusto montanhez que despresando perigos, subia em corrida a -encosta, para proteger os filhos, e livrar o rebanho das correntes -impetuosas.</p> - -<p>Ao deparar com a scena horrivel que os pequenos lhe apontavam, como -produzida pelo fogo sinistro do raio, a sua mudez e espanto eram -formidaveis. Obedeceu como automato aos monossylabos de D. Francisco, -ageitando-lhe o cavallo para elle montar.</p> - -<p>E emquanto montava, as suas rudes mãos e os <span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span>braços negros de rachador, -sustentaram por instantes o franzino e gracioso corpo de Mary, para o -entregar ao velho, que o recebeu com sofreguidão e ainda com -esperança!...</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>D. Francisco voltou n'um galope desesperado, a filha amantissima -achegada ao seio caloroso. A sua ideia era alcançar em minutos o portal -da querida habitação, mandar uma legião de criados á procura de -soccorros que lhe restituissem Mary. Joe parecia identificado com a -grandiosa tragedia que se passava na alma de seu dono! Era uma corrida -de phantasma, atravez dos espaços do primitivo cahos! Um homem robusto, -ainda que velho, cabello e barba sujeitos ao vento, despresando chuva, -trovões e relampagos, galopando furiosamente com o corpo de uma donzella -estreitado nos braços, era o que viam passar attonitos os raros -viandantes. Paravam tranzidos de espanto, ninguem se oppunha a esta -marcha do desespero, e só exclamações se ouviam:</p> - -<p>—É o fidalgo!... É o fidalgo!...</p> - -<p>Joe sentindo a força da alma lugubre que o guiava, vencia caminhos, -voltava com lucidez, <span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span>transpunha ribeiros aos saltos. O inconsolavel pae, -ainda na crença de que d'aquelle deliquio Mary poderia acordar, -animava-lhe com monossylabos energicos a vertiginosa carreira, na -direcção da antiga morada de seus maiores. Ali chegou finalmente com o -espolio querido. Portal largamente aberto, porque de longe os criados já -tinham notado a infernal corrida. O corpo exanime de Mary foi estendido -sobre a sua cama de donzella, e logo veio o medico que a olhou com -aspecto dolorido de desanimo!...</p> - -<p>Ali estava como n'um leito de morta: a face pallida; os braços molles; o -corpo exhausto, acceitando passivamente todos os impulsos. Não -respirava, não lhe batia o coração, não lhe foi encontrado o pulso. Era -desgraça irreparavel, todas as tentativas seriam infructiferas! Para que -haviam de enfermeiras conspurcar aquelle corpo gracil, se Mary estava -morta, definitivamente morta?! Um raio do céu fulminára a formosa -donzella, flexivel como um vidoeiro novo, candida como o lyrio, risonha -como um cravo! O medico que a vira nascer, e lhe queria como a propria -filha, agarrou-se a D. Francisco, chorando, chorando, sem poder falar!</p> - -<p>É que Mary já não existia, o pavoroso raio consumira no seu fogo aquella -rosea existencia! Nunca mais aquelle coração palpitaria de amor, nunca -mais os seus dedos sublimes acordariam sons de musica religiosa no orgão -antigo, nunca <span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span>mais aquella voz clara como um veio d'agua pura, se -levantaria em preces fervorosas.</p> - -<p>D. Francisco não lhe tornaria a ouvir dizer: «Meu pae! meu pae!» Mary -estava morta, definitivamente morta, fulminara-a a colera das nuvens!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span></p> - - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<h2>VOLTOU...</h2> - - -<h3>I</h3> - - -<p>Bons velhinhos os que moram n'aquella casa! N'este domingo sereno de -março, lá se veem sentados á porta, com o sorriso dos modestos e felizes -a florir-lhes no rosto; tem as cabeças protegidas contra o mal da -soalheira e os pés, fóra dos tamancos, para os aquecerem. A veiga, onde -pastam bois, é tranquilla; a subida da encosta, onde rebentam urzes e -codeçaes, está vistosa. Aquelles bons companheiros, casados ha cerca de -cincoenta annos, tem um para o outro o mesmo olhar confortativo e -amoroso do tempo de moços. Miguel conserva impressa na retina a imagem -de quando Luiza era nova: não lhe percebera o nascer das rugas; nem o -desmaiar da pelle; <span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span>nem a queda dos dentes, que no riso ainda lhe -appareciam como uma fiada branca e egual de rosario de pinhões. Os -cabellos (talvez pela vista enfraquecida) eram as mesmas longas tranças, -negras e colleantes, como lampreias no fundo de rio arenoso. O corpo de -sua mulher mantivera para elle, sempre, a mesma puresa de -linhas—consolidara-se na graça e gentilesa da juventude, não o tinham -abandonado os elementos de frescura e mocidade.</p> - -<p>De egual modo, Luiza, via seu marido. Quem estava ali, a seu lado, com -os joelhos ao sol e o lenço de Alcobaça na cabeça, era o mesmo rapaz -valente, trabalhador e sadio, ligeiro como um lobo, que a namorara -quando ella tinha vinte annos. Nem as molhadellas lhe tinham engrossado -as articulações com o rheumatismo, nem as barbas e cabellos eram da -brancura de linho sedoso, mas acastanhados e lustrosos como outr'ora. -Não tivera a edade poder para lhe diminuir a vista: logo que o -emperramento das pernas passasse, vel-o-hiam como o primeiro malho nas -eiras, a primeira enxada no morder da terra, a melhor roçadoura para -derrubar silvedos. Ella que o amparava da cama até a lareira e da -lareira até ao sol, vivia na fé de que o seu Miguel tornaria a ser o -mais celere e desembaraçado homem de todas as redondesas para atracar um -touro que fugisse em descampado, para vencer, d'um pulo, o ribeiro da -freguezia, para pôr em debandada uma feira de troquilhas bulhentos. Não -o vira ella ludibriar magotes de <span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span>adversarios, ora afastando-os para -longe com um talho de varrer, ora safando-se-lhes com um salto, para -fóra da muralha da gente com que o cercavam? Assim mesmo, meio -entrevado, ainda se não poderiam chegar a elle, nem tres, nem quatro -pimpões, se Miguel tivesse nas unhas o seu pau de carvalho e estivesse -bem encostado a uma parede para só poderem atacal-o de frente. -Experimentassem, querendo, e ver-se-hia se ella não dizia a verdade.</p> - - -<hr class="tb" /> -<p>Á porta da casa estavam ambos silenciosos, n'esse secreto e intimo goso -d'uma perpetua conformidade moral, imaginando-se na força do sentir e -sem recearem a morte que podia separal-os, levando um e deixando o outro -a vaguear no mundo, n'uma existencia de lamentos e saudades. Não -pensavam n'este horror, visto que no céu havia um Deus, justo e bom, que -não permittiria tal iniquidade. D'aquella somnolencia feliz, -despertou-os o padre Clemente Carvalhosa, que ora vinha pelo estreito -caminho rente á casa de Miguel.</p> - -<p>—É o senhor cura—disse Luiza, falando como se só comsigo falasse.</p> - -<p>—Ah! hoje demorou-se mais. É que os rapazes não sabiam a doutrina. -Calaceiros!...—pronunciou o velho, sem levantar os olhos dos joelhos.</p> - -<p>O sacerdote adeantava-se com o seu habitual ar <span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span>benevolente. A batina -ecclesiastica dava-lhe solemnidade ao parecer, e só o passo energico era -signal de que não vinha em boa disposição de espirito. Luiza, logo que o -viu á voz, levantou-se para o saudar; Miguel que tinha, ao lado o pau a -que se amparava, ia a fazer o primeiro esforço para se erguer, quando o -cura, já com a mão na cancella para entrar, disse alto:</p> - -<p>—Eh! lá! Para doentes não ha ceremonias!...</p> - -<p>—Muito bom dia, senhor. Hoje mais tardinho. Os rapazes não a sabiam, -está de vêr...</p> - -<p>—É verdade—informou o Carvalhosa com voz irritada. Talvez peior que no -domingo passado e estamos no fim da quaresma.</p> - -<p>—Uma palmatoria senhor! Olhe que isso não vae sem lhes doer.</p> - -<p>—E é que o faço!—asseverou com energia o ecclesiastico. Se me obrigarem -a sahir de mim, irá o diabo n'aquella sachristia.</p> - -<p>—Vossa Senhoria não é capaz d'isso...—opinou ironicamente Luiza.</p> - -<p>—Não sou capaz!? Estás enganadissima! É que vocês nunca me viram pelo -lado do forro. Se me volto do avêsso, vae ahi o dia de juizo.</p> - -<p>Miguel offerecendo-lhe o bordão de paralytico aconselhou:</p> - -<p>—Com este é que elles se ensinavam. Já lá andam taludos, dos que não vão -a palmatoria.</p> - -<p>—É o que elles mereciam, é—applaudiu Luiza.</p> - -<p>—Isso tambem não, mulher!—entendeu o cura. <span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span>Um pau molesta de mais, pode -fazer sangue ou quebrar algum osso. É bastante uma palmatoria puchada -com valentia, como eu o sei fazer. Mando logo chamar o Corcunda para -lh'a encommendar. Deixa que se elles virem, pendurada na sachristia, a -santa Luzia de cinco olhos, não tornam a apparecer sem trazerem o recado -na ponta da lingua.</p> - -<p>—Vossa Senhoria—commentou o Miguel—para essas coisas de bater... O -senhor abbade, quando por ahi vinha, sabia-os tosar melhor, se os -garotaços faltavam á obrigação...</p> - -<p>O Carvalhosa retomou a sua energia:</p> - -<p>—Estás parvo, homem! A questão é fazerem-me chegar a mostarda ao nariz. -Mas vamos ao que serve—disse mudando de tom.—Do vosso Luiz, não tem -havido noticia nenhuma... nenhuma?...</p> - -<p>—Nenhuma... nenhuma...—responderam os dois n'um unisono triste.</p> - -<p>—E tendes perguntado?</p> - -<p>—Se temos!—disse Miguel. Sempre que sei de alguem que chega do Brazil, -se as dores das juntas me dão licença, lá vou ter com essa pessoa... Mas -até agora nada, nada!...</p> - -<p>Luiza commentou chorosa:</p> - -<p>—São terras onde ha animaes que comem gente!... Quem sabe se alguma -serpente me deu cabo d'elle...</p> - -<p>—É celebre!—entendeu o cura. Eu tambem tenho feito esforços para saber -noticias, mas tudo em vão!... É celebre! Pois ainda ha dez annos <span class="pagenum" id="Page_120">[Pg 120]</span>vos -mandou o dinheiro com que arranjastes esta casa e comprastes os bens por -ahi abaixo e não torna a dar accordo de si! É celebre! muito celebre! -Quem será o ladrão que disfruta, a esta hora, o que elle tanto lhe -custaria a ganhar! Sim, porque elle fortuna havia de ter ganho!</p> - -<p>—Isso é o que menos importa—interferiu Luiza. Aqui ha que farte para -elle e para nós. O que queriamos era vel-o vivo e são.</p> - -<p>—Pois apega-te com Nossa Senhora da Boa Viagem, que ella t'o trará. Eu -vou-me até casa que são horas de minha irmã ter o caldo na tigella. -Adeus e devoção, Luiza.</p> - -<p>—Ah! isso tenho eu, senhor! Promessas e resas olhe que as faço todos os -dias.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span></p> - - -<h3>II</h3> - - -<p>Havia muitas pessoas na freguezia que se lembravam da partida do filho -do Miguel. Era um rapasinho carinhoso, serviçal e bem comportado. -Delgado de corpo, tez morena, sorriso sempre conformado, fazia gosto -vel-o ajudar á missa; porque procedia com grande promptidão e esmero. No -caracter era a mãe, sempre boa e humilde; no desembaraço o pae, sempre -agil e resolvido. De quatorze annos não havia, por ali, outro para -mandar á villa n'uma pressa de chamar o medico ou buscar um remedio. -Quer fosse de dia ou de noite, quer os caminhos estivessem cheios de -neve ou de lama, o Luiz nunca se escusava, nunca procurou uma desculpa. -Nem o medo <span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span>do lobo, nem o das trovoadas o impedia de ser prestimoso. -Miguel todo se ufanava com este brio do rapaz, e com a atmosphera de -sympathia de que o via cercado. E quanto a estudo? Isso dizia o mestre -que nenhum lhe levava a melhor nos desafios á taboada, e na doutrina. -Até era uma pena não ser possivel ordenal-o em Braga, para um dia vir -ali dizer uma missa nova, e verem-no do pulpito lançar a voz da -religião. Porém, o Luiz, ainda que o podesse conseguir com esmolas, lá -para essa vida de padre não o chamava a inclinação e toda a sua idéa era -embarcar, para tirar seus paes da pobreza em que viviam e da labuta -constante em que se amofinavam. Apesar do Brazil ser a commum ambição da -gente d'aquella provincia, isto não tinha prognostico favoravel das -pessoas que lhe conheciam o genio perdulario, o gosto que fazia, já em -creança, em dar tudo que possuisse. Um pedaço de pão e presigo com que -lhe pagassem qualquer serviço prestado, logo o repartia com os rapazes -da sua egualha, ou com algum pobre que encontrasse, ou mesmo com -qualquer cão esfomeado que estivesse a olhar para elle quando comia. E -não era porque em casa lhe sobrasse, pois Miguel, n'esse tempo, tinha -mais tres filhos vivos e era elle só a trabalhar, moirejando nas terras -que são ingratas para compensar o esforço rude do homem, que só tem a -sua enxada para as servir. Estava na indole de Luiz dar tudo, repartir -com quem quer que fosse. O coração não lhe soffria o possuir coisa de -que <span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span>os outros não compartilhassem. Os unicos motivos de zanga de sua mãe -para com elle, vinham de conhecer que lhe roubava pão para os pobres que -passavam, quando ella não tinha bastante para si.</p> - -<p>—Tu és tolo, rapaz!—reprehendia-o. Vês que esta fornada me não chega até -á outra, e tiras-me a brôa da masseira! Olha que ainda podes andar como -esses mandriões de pedintes, que só tem por seu mal, não se quererem -achegar ao trabalho.</p> - -<p>Luiz ficava triste, por, a santa creatura que era sua mãe, não -comprehender o intimo goso que elle sentia em fazer bem. Amargurava-o -esta idéa, pois não admittia maior consolação do que a de dar, mesmo aos -que não tivessem necessidade. O rosto de agradecimento que os -beneficiados faziam ao receber, era o premio unico a que aspirava. Mas -havia mais alguma coisa n'este animo dadivoso: era o pouco geito de -possuir em proprio, o que quer que fosse. Angustiava-o a preoccupação de -guardar. Viver sempre na abstracção, na inconsciencia do que valem as -coisas materiaes, era a caracteristica do seu coração. O prestar -serviços sem idéa de interesse ou recompensa completava-lhe a indole -bondosa. Sua mãe estava sempre a prégar-lhe:</p> - -<p>—Nunca hasde juntar coisa que se veja. Como é que tu queres ir para o -negocio com esse genio?</p> - -<p>E porque assim o entendiam todos na freguezia <span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span>e os proprios paes, é que -muito os maravilhou o receberem, na pobre casita onde os dois velhos -moravam e viviam sós, a visita d'um amigo de Luiz, que lhes trazia uma -ordem para receberem no Porto uma grande somma de dinheiro—uma somma, -para elles tamanha, que os lançava repentinamente na opulencia. Porém, -Luiza, ao apparecimento d'esse senhor todo aceiado, já homem grisalho e -enegrecido na pelle da face pelas soalheiras dos sertões brazilicos, não -se importou nada com a riqueza que elle annunciava e tomando-o como o -precursor de seu filho, logo inquiriu:</p> - -<p>—E o senhor conhece-o, o meu Luiz? Está um homem assim alto como é o -pae? E quando é que o temos a consoar com a gente?</p> - -<p>A todas as perguntas o mensageiro respondeu de maneira a arrancar-lhe -lagrimas de contentamento. Miguel que, chamado, viera offegante da -labuta dos campos, perguntou, primeiro que tudo, em voz meia -reprehensiva, mas cheia de coração:</p> - -<p>—E elle não tem idéa de vêr a gente antes que nos levem para a cova? A -riqueza estimamol-a muito; mas antes queremos a companhia.</p> - -<p>O amigo de Luiz enterneceu-se com esta insistencia e consolou os paes -fazendo-lhes graciosamente promessas para que não estava auctorisado. O -dinheiro enviado era o melhor signal de que o filho os visitaria em -breve—disse. Trazia tambem recommendação de lhes lembrar que -transformassem <span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span>a casa de moradia para o receberem condignamente, e de -que empregassem o restante na compra de algumas terras, que lhes -garantissem uma mediania repousada e sem cuidados.</p> - -<p>—Isso—confessou Miguel—até vem a calhar, porque andam em bocca de venda -estes bens aqui em redor.</p> - -<p>Para designar a grandeza das terras estendeu pela encosta que descia -brandamente até ao ribeiro, um olhar commovido, acompanhado d'um gesto -de opulencia. Fôra esta a ambição de toda a sua vida. Muitas vezes, só -com Luiza, quando junto da lareira comiam o magro caldo da ceia, elle -reprimia o prazer que o filho lhes daria se enviasse dinheiro para -comprarem aquelles campos, que toda a vida haviam cultivado como -caseiros. Era o seu suor d'elles accumulado sobre a terra, que os fazia -fructificar e lh'os tornava queridos, como uma parte viva e nobre da -propria existencia. Possuir a bella quinta que em volta do seu pequeno -eido se estendia, abrir a agua das poças com a arrogancia de -proprietario, levantar as videiras com a certeza de que eram seus -aquelles braços flexiveis, e ao enterrar a enxada na terra negra e -humosa sentir a convicção de que remexia no que ninguem lhe podia -disputar, de que preparava o solo para resultados que não partilharia -com outrem, era o maior goso que a boa fortuna podia trazer a Miguel. E -tamanha commoção os dois manifestaram, na sua mudez, deante do hospede, -<span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span>quando designaram com o olhar essas terras, que o recemchegado -perguntou:</p> - -<p>—São estes os bens que vocemecês trazem de casa?</p> - -<p>—Sim, senhor, aquelles mesmos em que Luiz trabalhou comnosco, indo á -soga dos bois, quando lavravamos. Elle falou-lhe n'isto?</p> - -<p>A um signal affirmativo, os consortes, choraram copiosamente. Até -parecia mal ver um homem sadio e forte, como era então Miguel, limpar os -olhos á grosseira estopa das mangas da sua camisa e soluçar com a cara -escondida. Porém aquelle contentamento era mais forte do que elle; em -coração humano não presumia outro egual. Para se desculpar, perante o -amigo de Luiz, ia dizendo por entre lagrimas:</p> - -<p>—O senhor não pode comprehender o que isto é. Se soubesse o que me vae -cá por dentro... Estou capaz de estoirar de alegria.</p> - -<p>O feliz mensageiro sentia-se transitoriamente envolvido na mesma -atmosphera de felicidade que respiravam os dois casados. Ligando-os a si -n'um só abraço disse:</p> - -<p>—O que desejo é que por muitos e largos annos gosem o que tanto amam, e -que isto seja na companhia de seu filho, que estou certo se não demorará -muito.</p> - -<p>Depois combinou com elles a maneira de receberem o dinheiro que estava -no Porto, á ordem de Miguel. Para lhes facilitar a empresa já tinha -tractado <span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span>da transferencia da quantia para a villa proxima, onde da mão -de negociante honrado podiam recebel-a toda d'uma vez, ou parcelada, -conforme melhor conviesse. N'esse mesmo dia, Miguel acompanhou o amigo -de seu filho para pessoalmente ajustarem com o tal negociante o -recebimento em questão.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span></p> - - -<h3>III</h3> - - -<p>Este notavel successo trouxe á memoria dos do logar o bom rapasinho que -Luiz sempre fôra; como era geitoso no ajudar á missa, como, com -desinteresse sympathico, se prestava a servir toda a gente. Não podia -deixar de ser feliz, quem logo no começo da vida se mostrara tão -diligente e bondoso. Deus, que é justo, ajuda de preferencia aquelles -que o merecem, os que desde o principio se mostram attentos e -respeitosos pelas coisas da religião. Entendiam-no assim e mostravam -como exemplo d'isto a fortuna que acompanhara Luiz para poder alegrar a -existencia de seus paes, garantindo-lhes um magnifico bem-estar, e -proporcionando-lhes o goso de possuirem as terras que sempre haviam -trabalhado.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span></p> - -<p>A proposito recordavam o bello dia de maio em que elle partira. Muitos -faziam o apparato de mencionarem meudas circumstancias, que agora -representavam como se as tivessem deante dos olhos. Repetiam palavras, -apontavam pessoas, e reproduziam detalhes. Que formoso sol o d'esse -tempo! como elle aquecia o corpo e alegrava o espirito! O padre Clemente -Carvalhosa, já então curava a freguezia e, por assim dizer, era o -parocho, pois que o verdadeiro estava frequentemente em Braga, junto do -senhor arcebispo de quem era amigo, e havia annos que por ali não -apparecia. Como Luiz não tivesse vocação para o estado ecclesiastico, -fôra o Carvalhosa quem influira para o mandarem para o Brazil, ver -mundo, fazer-se homem, ganhar a riqueza com que voltasse a engrandecer a -sua familia e a sua terra. Se o bom velho fosse egoista, forcejaria por -conserval-o para o ajudar á missa, tratar das coisas da egreja e -auxiliar o mestre escola. Mais tarde poderia mesmo conseguir-se que -ficasse substituindo José Fortunato, o que era alguma coisa de -representativo. Porém, reconhecendo que aquella intelligencia -naturalmente viva se acanharia na estreiteza d'uma aldeia, o bom cura é -que promoveu, entre a melhor gente da freguezia, uma colheita de -donativos para vestirem o Luiz do Miguel e pagarem-lhe a passagem para -esse Brazil, terra prodigiosa, onde o oiro rebenta das arvores com a -bondade dos fructos que alimentam o homem. Sentia no <span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span>fundo do seu -generoso coração, que era uma boa obra a que emprehendia. Quem sabia se -não estava trabalhando para o esplendor das festas da sua egreja, para -reformar e accrescentar materialmente a riqueza do templo, attenta a -vocação que Luiz mostrava para as coisas santas? Não seria amesquinhar -as bellas promessas de caracter de rapaz tão bom, tão docil, tão -intelligente, o prendel-o entre aquellas montanhas de limitado -horisonte?</p> - -<p>—Mas, senhor,—entendia a mãe—olhe que elle para conservar dinheiro não -lhe serve. Quanto ganhar, quanto dá!</p> - -<p>—Cala-te, mulher,—contestou Miguel—deixa ir o rapaz que no mundo é que -elles se armam gente. Tenho-lhe amor, pois é meu filho, mas o senhor -cura é que diz bem.</p> - -<p>Aquelle que assim falara com desapego, é a quem mais custou o -desprender-se de Luiz, no assignalado dia da partida, n'esse bello maio -em que o sol aquecia o corpo e alegrava o espirito d'um modo differente -do actual. Luiz com o seu caracter submisso ia de vontade; mas não tinha -n'essa occasião, propriamente idéa de ambição ou opulencia, nenhum -proposito de no futuro deslumbrar os simples da sua aldeia. Commovido e -sem fala, as lagrimas rebentavam-lhe dos olhos, como pingos de seiva -d'uma arvore quando chora. Se seu pae se não podia desagarrar d'elle, -tambem elle se não podia desagarrar de seu pae, nem de sua mãe, <span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span>nem dos -rapazes que ficavam. No fundo da sua retina estampara-se indelevelmente -e para sempre, toda aquella paizagem da sua alma—a modesta egreja, com o -campanario exterior d'um só sino; o musgo das paredes dos caminhos -estreitos; a largura dos campos onde rebentava a herva; a sobranceria -dos montes altos, artilhados de penedias temerosas! Sentira que a alma, -n'esse dia de sol encantador, se lhe dividira em duas partes: uma ali -ficava pendurada dos galhos das arvores que se enfolhavam, dentro da -pobrissima casa onde nascera, e nas encostas a escutar o gemer das -fontes e dos regos d'agua; a outra, a mais dura e resistente levava-a -comsigo. O cura Clemente Carvalhosa, ainda no vigor da vida e saude, -abençoara-o no limitte da freguezia, até onde o acompanhara, e n'esse -momento, Luiz, supplicante e com as mãos erguidas pediu-lhe:</p> - -<p>—Quando a Russa tiver a cria, senhor, peço-lhe que a deixe crescer e que -a não venda, que eu mando dinheiro para a pagar.</p> - -<p>A Russa era a egua do cura. O rapasito tinha-lhe grande affecto, -adquirido no habito de a levar a beber, e de a acompanhar quando o -sacerdote ia para algum officio, no que substituira o creado Simão.</p> - -<p>Na villa é que se apartou de sua mãe e de seu pae, pois d'ali em deante -seguia na companhia d'outros emigrantes que levavam identico destino. Na -volta, a excellente Luiza, veio considerando <span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span>se aquella dôr que soffrera -no apartamento incluiria a redempção da sua pobresa. Valeria a pena -tental-a, para quem desde o nascimento fôra destinada á vida do trabalho -e das privações? Quando ella o dera á luz, bem como aos outros que lhe -tinham morrido de bexigas, já fôra na perspectiva de os prender á terra -negra, cavando-a com a enxada, para d'ella tirarem o pão duro de que se -alimentariam. Isto era a vida assente na pobreza e conformidade: o que -Luiz ia buscar longe, o que seria? Com os olhos razos d'agua, a pobre -mulher, só percebia o esbatido d'um mar ennevoado e sem fim, a negrura -d'um mysterio lugubre que formava esse porvir incerto...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span></p> - - -<h3>IV</h3> - - -<p>Nos primeiros tempos d'ausencia, receberam frequentes cartas repassadas -de affecto e saudade, ás vezes com signaes de lagrimas que ennodoavam o -papel a ponto de se tornarem inintelligiveis algumas palavras. Porém, -passados tres annos, a correspondencia cessou quasi de repente e -espalhou-se o boato de que Luiz morrera, sendo depois isto desmentido -por outros dizeres, egualmente sem base. N'estas alternativas, de luto e -contentamento, passaram-se os dias longos e as noites infinitas, -limitando-se os dois paes a reverem-se no seu passado, modesto e feliz, -acreditando Miguel na eterna formosura de Luiza e esta no garbo e -valentia perpetua de Miguel. Até que um dia chegou esse bom mensageiro, -que lhes trouxe os meios para reformarem <span class="pagenum" id="Page_136">[Pg 136]</span>a moradia e comprarem as -terras, e com este facto lhes voltou a esperança, sempre risonha e -carinhosa, de que seu filho havia de chegar em breve. Além das palavras -de bom agouro, que o desconhecido deante d'elles pronunciara, receberam, -logo após, carta de Luiz, em que lhes falava com ternura do possivel -regresso e insistia especialmente na velhice tranquilla e abastada que -procurava garantir-lhes. Porém, depois d'este promettedor acontecimento, -que lhes deu annos de prazer emquanto reedificaram a casa, -levantando-lhe um andar, emquanto plantaram videiras e enfeitaram a -quinta, com arvores novas e um bello muro em volta; Luiz nunca mais -escreveu, estabelecendo-se completo silencio, similhante ao primeiro que -parecera de morte definitiva. Fartou-se o padre Clemente Carvalhosa de -lhe escrever sentidas cartas, falando de tudo quanto podia haver de mais -amoravel e terno no coração: a velhice dos paes, que não poderiam -aguentar-se por muitos annos; a commodidade da habitação, que elles -tinham arranjado ostentosamente para o receberem; a belleza e -transformação dos campos em que elle labutara e brincara quando creança. -Até lembrava a recommendação, que Luiz fizera no dia da partida, para -não vender a cria da Russa: a esse proposito notificava-lhe que, tanto -esse animal como a mãe, haviam morrido de velhos, em grande -tranquillidade e ventura; mas que na mesma côrte da residencia havia -outra egua descendente da segunda, <span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span>que era a estampa viva das saudosas -extinctas. Nenhuma d'estas amoraveis e longas dissertações teve -resposta, o coração de Luiz tinha-se de certo ressequido, pois já não -vivia para tão commoventes memorias. Receberia elle as cartas? Não lhe -seriam entregues por ter mudado de terra?!... É no que assentavam, -afastando sempre a hypothese da morte, como castigo cruel e immerecido. -Mas ao fim d'um crescido periodo de annos, sem noticias de nenhuma -especie, experimentados por muitos e successivos desenganos, -atormentados pelos pensamentos negros que traz a velhice, Miguel disse, -um dia, em voz sumida, para não assustar a companheira:</p> - -<p>—Talvez elle morresse... talvez....</p> - -<p>Quem sabe?! Ha diversas maneiras de morrer. O corpo póde andar, no -mundo, aos solavancos e encontrões, e ter desapparecido a vida com a -alegria da alma. N'este domingo de março soalheiro, os dois velhos -estavam á porta de sua casa, serenos e meditativos, mas conformados; foi -o bom cura que lhes veiu incautamente turvar o coração, recordando-lhes -o filho morto, ou eternamente desapparecido, o que para elles valia o -mesmo. E quando ambos retomavam a tranquillidade em que estavam antes da -chegada do sacerdote, ficando mudos, com os pés extendidos ao sol e a -cabeça resguardada para que o calor os não adoecesse, sentiram passos no -caminho que bordeja a quinta e viram que um estrangeiro se encaminhava -<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span>para elles. Quem seria? Era um homem andrajoso, qualquer viajante pobre -em caminhada para longe. O seu aspecto de miseria commovia... Trazia as -botas cambadas, a camisa suja, as calças roidas; n'um saquito enfiado -n'um pau, levava ás costas, toda a sua riqueza. Que ar esmorecido e -doente! que longa barba mal tratada! como vinha dorido dos pés! Ao -approximar-se da cancella, que dava ingresso no quinteiro, parou -saudando com o chapeu esburacado. Miguel, com vista mais fraca do que -Luiza, perguntou a esta:</p> - -<p>—O que é?</p> - -<p>O recemchegado é que respondeu em voz de cançado:</p> - -<p>—Um pobre viandante que pede uma sede de agua. Dão-m'a senhores?</p> - -<p>A velha disse com expressão de carinho:</p> - -<p>—Entre, faz favor?... Quanta agua quizer!...</p> - -<p>Não mostrou medo, nem repellencia, nem suspeitas d'aquelle homem roto, -que podia ser um ladrão assassino. Foi ella mesma que veiu levantar a -caravelha da cancella, para que elle entrasse, pois que o via sem forças -para tão pouco... Conhecia-se que estava enfraquecido pela fome e pela -longa jornada. Quem seria este misero de aspecto tão soffredor? Algum -d'esses infelizes que vivem afastados durante muitos annos de todas as -affeições e carinhos, e voltam ao seu lar depois de longa e dolorosa -penitencia. O recem-vindo sentou-se n'uma tosca pedra que estava perto -de Miguel, <span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span>pousando ao lado o pobre saquito, que era a sua riqueza. O -penoso suspiro que do peito lhe sahiu ao descançar, condensava, de -certo, uma vida aspera de soffrimento e exprimia talvez o desejo d'um -periodo de socego, ainda que fosse na sepultura. Quando Luiza veiu de -dentro de casa, com a malga, branca de jaspe, cheia d'agua limpida e -fresca, elle tomou-a nas duas mãos, emborcou-a com satisfação, tendo no -fim de beber um respirar de saciedade. Os seus olhos amortecidos pela -desgraça, tiveram brilho carinhoso e contente ao restituir a malga. -Agradeceu este favor com um sentimento que lhe veiu do fundo d'alma:</p> - -<p>—Deus-lh'o pague!—disse.</p> - -<p>Conservou-se silencioso durante muito tempo, a cabeça curvada para o -peito, como um vagabundo que na alma procurasse o seu destino. Os dois -velhos contemplavam-no compadecidos: nos seus corações amoraveis e bons -apparecera um sentimento de infinda piedade. Não tinham elles tambem um -filho, que assim andava perdido no mundo, vagueando por longes terras? O -bem que elles, a este desconhecido, podessem fazer, outrem, no ponto -distante onde estivesse Luiz, o retribuiria, soccorrendo-o se elle -necessitasse. Com o instincto dos que são captivos do infortunio alheio, -advinhavam que junto d'elles estava um infeliz precocemente avelhentado. -Não procuravam, com perguntas desnecessarias, perturbar-lhe a paz que -elle parecia ter encontrado sentando-se n'aquella <span class="pagenum" id="Page_140">[Pg 140]</span>pedra, a olhar -meditativamente o chão do quinteiro. Adivinhavam-lhe, pelo aspecto, -soffrimento que na sua vida obscura e modesta, elles nunca tinham -sentido. Por esse mundo fóra, as desgraças engrossam, ás vezes, tão -rapidamente, como o ribeiro que passa no fundo da aldeia, quando recebe -as torrentes pluviaes, vindas a roncar pelas encostas e pelos caminhos. -Que significaria o silencio dolorido d'este desgraçado, que nos restos -do seu vestuario deixava perceber signaes de que no mundo tinha sido -alguma coisa mais do que aquillo que ora apparentava?!...</p> - -<p>O viandante levantou lentamente a cabeça. Primeiro fixou a vista -agradecida, amoravel e sem reservas nos que lhe tinham morto a sêde. -Apesar da estranheza d'aquelle semblante, não causou aos dois velhos -impressão, de que fosse o de algum doido que andasse desgarrado pelos -caminhos da aldeia. O seu olhar era absorto, mas tranquillo e bondoso. -Ainda que estranho ali, não lhes causava receio, nem pavor. Ao -contrario: do imo da sua sensibilidade subia-lhes, a favor do misero, um -formoso grito de benevolencia e compaixão. Aquella testa sulcada pela -desventura, o rosto macerado pela desgraça, dizia alguma coisa de -pacifico e sublime, como a luz sahindo de entre nuvens caliginosas no -meio de rude tempestade. Os dois septuagenarios reconheciam que a -apparição de tal infortunio estava tomando sympathico logar na sua -pacifica existencia... «Este desconhecido <span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span>—pensavam—ainda que em -qualquer tempo de sua vida, tenha sido mau e perverso, agora só parece -ser desventurado!» Isto originara-lhes no seio a mesma piedade que -sentiriam se áquella casa se viesse recolher um lobo ferido, ou mesmo, -se um abutre lhes cahisse exanime junto da capoeira de que fôra o -flagello. Esses animaes, tantas vezes escorraçados com alaridos de -colera, teriam elles animo de os acabar, quando os reconhecessem -indefezos e supplicantes nas vascas da morte?! Não: o findar da vida -merece sempre compaixão; a desgraça redime de todas as culpas perante os -corações bons e sensiveis.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span></p> - - -<h3>V</h3> - - -<p>Mas este pobresinho não era perigoso e não poderia nunca ter sido -perverso: tamanha era a uncção maguada e soffredora que exprimia o seu -rosto retalhado pelas rugas, o seu olhar extincto pela longa miseria! -Havia n'elle tanta meiguice e affecto que só lhes provocava misericordia -e caridade. Se o pedisse não lhe recusariam agasalho em sua casa. Que -valia um logar junto da lareira, uma manta para cobrir os lassos membros -sobre um pouco de colmo, uma tigella de caldo para aconchegar e -fortalecer o estomago? De mais tinham elles, sem pessoa a quem o -legassem. Uma obra de misericordia, offerecida por intenção d'aquelle -que lhes dera o bem-estar de que gosavam, era acto <span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span>meritorio que lhes -consolaria o espirito e teria certo apreço perante Deus. Uma voz -interior affirmava-lhes que ali estava um infeliz digno de piedade: e -sem muito saberem porque, ia-lhes dispertando sympathia o sorriso lento -que na sua expressão se abria, á maneira que contemplava os dois velhos, -que examinava a casa toda caiada de fresco, a latada que cobria o -quinteiro, e o saudavel aspecto dos campos da propriedade em redor. A -horta, ali mesmo ao lado, estava opulenta de couves e grellos; as -borbulhas das videiras principiavam a engrossar; a temperatura era -tepida e carinhosa; o misero parecia respirar, n'este ar, felicidade -nova e paradisiaca. Similhava um cego, desde muito privado do goso da -vista, que readquirindo-a de surpreza, entrasse gradualmente n'um -periodo de enthusiasmo lento; ou então, o homem que recolhido, por -longos annos, em lugubre masmorra, fosse restituido á liberdade e á luz -durante um somno, achando-se incredulo pela ventura reconquistada.</p> - -<p>Este silencio demorado, e o demorado exame que o estranho estava fazendo -de tudo quanto em volta se via, principiava a enredar em pensamentos -vagos Luiza e Miguel. Primeiro passeara em volta com os olhos do corpo; -mas depois, uma alegria crescente, lhe fôra desabrochando no rosto -escalavrado, a custo, como rebenta a bonina em terreno duro. Os velhos, -apesar de suggestionados por aquelle todo de bondade e infortunio, houve -<span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span>um instante em que na mente lhes passaram receios, julgando-se agora na -presença d'um louco. Pois que podia significar esta mudez, quasi -familiar, da parte de quem ali era estranho e entrara sob pretexto de -pedir uma sêde d'agua? Não se atreviam a interrogal-o, pois grande é a -timidez da decrepitude. Annos antes já tudo estaria aclarado: pois que -Miguel sempre fôra homem de grande desembaraço e não teria papas na -lingua para perguntar quem era e o que queria do mais. Agora, porem, a -edade e o corpo paralytico influiam no acanhamento do animo. Os -septuagenarios entreolharam-se, volvendo ambos, depois, a vista para o -peregrino ao qual Luiza disse:</p> - -<p>—Parece gostar muito d'este sitio...</p> - -<p>—Oh! muito!—exclamou. Tudo isto lhes pertence?</p> - -<p>Circumdou de novo o olhar pelo eido e pelos campos, extendendo-o até ao -pinhal que se erguia n'uma ligeira collina.</p> - -<p>—Em quanto Deus quizer—respondeu Miguel. E vocemecê d'onde é? para onde -vae?</p> - -<p>O desconhecido teve no rosto uma expressão de infinita paz e -tranquilidade, que não deu idéa clara do seu pensar e destino. Sorria -ligeiramente, com a incomparavel doçura d'uma creança a sonhar. Olhou os -dois como se olham amigos e, Miguel, animado por esta expressão -confortativa, ponderou:</p> - -<p>—Sim; porque vocemecê ha de ter por força uma terra...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span></p> - -<p>—Tenho, tenho uma terra...</p> - -<p>E ficou attento para o chão inculto do quinteiro, como se sentisse -difficuldade em designar o ponto do globo, onde essa terra se talhava.</p> - -<p>Recahiu no silencio carinhoso que até ali conservara, mas com rosto tão -aberto em bondade que, de todo, deixou de causar receios. Examinou a -limpeza da casa em que os velhos moravam, e pensou na conformidade de -existencia que dentro d'ella se passaria. Reinava, decerto, n'aquelles -entes, a feliz paz da consciencia; desconheciam as perturbações agitadas -da vida das cidades. Não pensavam em alardes, nem tinham ambições: -talvez durante todos os seus annos, nem uma só noite tivessem abandonado -aquella ditosa morada. Quem sabe o que o estrangeiro estaria calculando -na sua mente, que pensamentos de felicidade o estariam a encantar!?... -Talvez, depois de vida desventurosa, viesse encontrar n'aquelle quadro -simples o primeiro refrigerio para as suas dores, a primeira idéa clara -do que é a ventura. Os pacificos septuagenarios, pareciam comprehender, -que o seu viver ditoso estava reconfortando a alma do misero que tinham -na sua presença. Além de não ser rasoavel negarem-lhe um tal balsamo, -encantava-os que assim fosse. Por isso, orgulhosos da sua modestia, -deixavam que o homem andrajoso tudo apreciasse, sorridente e sem inveja. -A casa juncto da qual se encontravam tinha aspecto de nova, as janellas -com vidraças viam sobre a latada do quinteiro, o alpendre, <span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span>debaixo da -varanda deitava para o lado do caminho, uma escada exterior mostrava -ingresso ao andar de cima—accrescente feito para a chegada de Luiz, se a -Deus prouvera, guial-o um dia para ali. Como fossem inimigos de -grandezas, apesar da casa assim reformada, nunca abandonaram a parte -terrea conservando ahi a sua moradia. A cosinha, á porta da qual -estavam, era a mesma em que viveram com os filhos; ao lado havia o -quarto soalhado em que dormiam agora, como sempre. As transformações -n'este pavimento consistiam em que o que d'antes fôra côrte de gado -servia agora para adega, salgadeira e casa de recolher a lenha no -inverno. Ao fundo d'um telheiro, armado cá fóra, é que guardavam as duas -juntas de nedios bois, os mais bellos do logar. O chiqueiro do porco e a -capoeira das gallinhas ficavam encostados ao muro, rente com a casa. -Tudo designava certo bem estar, conforto, e até opulencia, dentro da -modestia de camponezes.</p> - -<p>Para onde iria o infeliz, que tinham deante dos olhos não o sabiam, -visto que elle o não quizera dizer; mas o que sentiam, com a intuição -das almas simples, pouco habituadas a luctas, é que sendo a sua figura, -quando o viram entrar a cancella, a d'um infeliz retorcido pela miseria, -agora, ao fim de pouco tempo, e depois de reconfortado na contemplação -de todas aquellas coisas bem arranjadas, parecia mais alliviado do -soffrimento que lhe alquebrava o corpo e a alma. Era outro, tinha-lhe -<span class="pagenum" id="Page_148">[Pg 148]</span>feito bem o repouso sobre a tosca pedra, refrigerara-o a malga de agua -limpida, consolara-o o aspecto feliz dos velhos que estavam ao sol, -esperando, n'este santo domingo, a hora do jantar parcimonioso, apesar -de na panella haver carne e salpicão que elles ambos comeriam regalados, -agradecendo a Deus tamanho beneficio na velhice. Ao quinteiro chegava o -suave odor do caldo gordo e fumegante, e não tardaria que Luiza se -levantasse para ir á adega buscar o excellente vinho, para o beber de -parceria com o seu homem e pela mesma infusa. Como elles seriam felizes, -se n'esse bello e glorioso dia podessem compartilhar com o seu Luiz, que -uma voz intima lhes dizia ainda viver, este bom jantar! Se tal -felicidade lhes fosse dado poderem gozar morreriam contentes, não -duvidando de que iriam direitinhos para o céu!</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span></p> - - -<h3>VI</h3> - - -<p>O descanço sobre a pedra tosca; o sabor da agua com que o tinham -alliviado da sede do caminho; o banho de luz e tranquilidade em que todo -o seu ser se mergulhara durante longos minutos; e principalmente a -ventura que adivinhava na existencia sempre egual d'aquelles casados de -tantos annos, haviam transformado em pouco tempo o aspecto do infeliz. -Sorvia deleitado o ar que aqui se respirava, sorriam-lhe os olhos na -contemplação d'esta paizagem carinhosa e melancolica, desfaziam-se-lhe -as rugas da face ao renascer-lhe na alma a alegria que, por certo, -n'elle se finara havia muito. Como Miguel o visse mais tractavel e -familiar no aspecto, ponderou:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_150">[Pg 150]</span></p> - -<p>—Vocemecê estava tão moido, que decerto vem de muitissimo longe.</p> - -<p>—Oh! de muitissimo longe!...—repetiu o forasteiro com accento de grande -amargura.</p> - -<p>—Talvez d'essa Lisboa!...—entendeu o paralytico.</p> - -<p>—Muito mais para lá!...</p> - -<p>E fez um gesto largo, d'uma amplidão infinita, acompanhando-o com um -olhar que fôra até aos confins do mundo.</p> - -<p>—Do Brazil?—indagou Luiza com ancia e soffreguidão no rosto inquieto.</p> - -<p>Um simples aceno affirmativo de cabeça, deu resposta á pergunta. E logo -os rostos dos dois septuagenarios se alegraram, como se em crepusculo -matinal vissem surgir d'entre as penedias o sol nascente. Ao mesmo tempo -tiveram a mesma lembrança. «Quem sabe se este desconhecido nos poderá -dar noticias do nosso Luiz?!...»—pensaram. Porém, antes de o inquirirem, -sustiveram-se n'este pensamento triste: «Como se pode voltar do paiz do -oiro, da opulencia e da ventura, assim pobre, mal trajado e n'um aspecto -tão miseravel e desvalido!» E Luiza, compadecida, considerou com as -lagrimas a rebentarem-lhe:</p> - -<p>—Então é que não foi feliz, por lá... Nem todos o podem ser...</p> - -<p>—Nem todos... nem todos...—disse o estrangeiro, apparecendo-lhe no rosto -um fulgor de alegria velada por amargura.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span></p> - -<p>—E conheceria por lá o nosso filho?...—perguntou a velha.</p> - -<p>—O seu filho! Tem um filho no Brazil?—indagou, o mal trajado, n'uma voz -que se esforçava por ser corajosa e serena.</p> - -<p>—Temos—esclareceu Miguel inclinando-se para o interlocutor. Chama-se -Luiz da Silva; mas lá puzeram-lhe o nome de Luiz da Tóca, por ser o nome -d'este logar em que nasceu. Foi e nunca mais voltou—concluiu o velho, -por sua vez, com os olhos rasos d'agua.</p> - -<p>Um rubor de incendio subiu á face do desconhecido, que com fingido -esforço, como de quem se recorda disse:</p> - -<p>—Luiz da Tóca... Luiz da Tóca... Lembro-me muito bem; vivi muito com -elle, e somos amigos.</p> - -<p>No primeiro momento, os velhos quasi se julgaram ludibriados com esta -resposta: tão grande era a inverosimilhança do que escutavam! Pois não -haviam dado resultado as instantes e repetidas diligencias do cura -Carvalhosa, para descobrir o paradeiro de Luiz, e o acaso trazia-lhes ao -pé da porta uma testemunha, que em tudo os podia esclarecer! Porém, a -crença de seus corações n'uma Suprema Vontade, providencial e divina, -era forte, e não duvidaram de que Deus e os santos com quem se tinham -apegado, pudessem mais do que o virtuoso sacerdote. O accento de -sinceridade com que aquellas palavras foram <span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span>ditas, a expressão de -bondade e espontanea satisfação do rosto do homem que tinham deante -d'elles, excluiam a possibilidade de qualquer ignobil mentira. O velho -Miguel, apesar de meio paralytico, logo se abordoou ao seu pau, para -erguer o corpo doente, com a energia dos antigos tempos; mas a commoção -tornava-lhe insufficiente o esforço. Mesmo sentado ainda poude dizer:</p> - -<p>—Pois, o senhor, é que já não sae d'esta casa. Se conhece o Luiz, se é -seu amigo, fica aqui comnosco para nos ajudar a saber d'elle e a -encontral-o.</p> - -<p>Luiza, apesar de a lingua se lhe recusar a exprimir tudo quanto lhe ia -na alma, attonita como estava, perguntou em voz tremula:</p> - -<p>—E em que terra encontrou vocemecê o nosso filho? Sabe onde estará -agora?</p> - -<p>O estranho não respondeu logo. A sua phisionomia denunciava excepcional -perturbação de contentamento, que os velhos não podiam apreciar por -causa da nevoa de lagrimas que tinham nos olhos. Approximando-se, porem, -dos dois, que uniu no mesmo abraço, disse soluçante:</p> - -<p>—Seu filho está aqui, meus queridos paes!...</p> - -<p>E passada que foi a primeira onda de alegria accrescentou:</p> - -<p>—Mas venho muito pobre! Só possuo estes farrapos que me cobrem. Se -soubessem quanto tenho soffrido!</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span></p> - -<p>—Pobre!—bradou Miguel com a sua antiga energia, sahindo-lhe a voz do -peito, como o ronco d'um trovão do interior d'uma nuvem. Então de quem é -tudo quanto aqui temos? Não fostes tu que o ganhastes, homem!?</p> - -<p>E n'um gesto do seu braço revigorado pelo acontecimento, mostrava a -riqueza que havia: a casa afidalgada, a horta abundante, os campos -relvados que se extendiam para além, as videiras em promessas de -rebentação, e o bello muro que circumdava a quinta todo caiado de novo.</p> - -<p>Luiza, voltando os olhos ao céu, pronunciou com as lagrimas a -correrem-lhe em fio:</p> - -<p>—Nossa Senhora do Amparo ouviu as minhas rezas. Já podemos morrer em -paz.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span></p> - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - - -<p><span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span></p> -<h2>CRESCE O MAR!...</h2> - - -<p class="center p0">(a Antonio Candido).</p> - - -<p>Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono! Azul amortecido no ceu e -a briza leve como o pensamento a perpassar na superficie da areia e a -arripiar-se nas penedias que debruam a praia. Baixamar socegado! -Balançam-se nos ares as brancas azas das gaivotas, que vão para o norte; -e as velas dos barcos dos pescadores parecem ao longe outras gaivotas a -emergir das aguas. Está deserto o areal; principia a nascer o marulho do -vago infinito, que vem rolando á superficie como voz cariciosa e meiga. -Avoluma-se de momento para momento, uiva, no começo como um leão -pequeno, principia a dar côr ao silencio, que desce com a tarde lá do -infinito <span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span>céu. O magestoso sol fulgura, inclinando o facho de luz sobre -as aguas; a poeira d'oiro que o cerca, forma-lhe a fofa cama, onde -repousará durante a noite.</p> - -<p>Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono, que, gerando sensações -amoraveis em toda a natureza, attrahiu duas tenras creanças á admiração -do mar argentado, e do mysterio formado de tranquillidade e luz, que no -ar pairava. Eram dois irmãos, filhos de uma viuva, cujo marido o mar -escondera para não mais lh'o restituir, e que morava em frente das -ondas, na esperança de ainda ouvir a voz que a enamorara. O rapasito -teria sete annos, e a pequena talvez cinco... não mais de certo. -Enlevados na serena paz do universo, os leves corações palpitando de -satisfação intima, viviam juntos nas sublimes regiões do absoluto, os -innocentes, olhos pregados no reverbero prateado das aguas, os ouvidos -attentos ao marulho cantante que os chamava como se fôra a voz de seu -pae. Não era a primeira vez que na praia se encontravam escutando -aquella voz suave, d'um rythmo dominante pela dolencia; e até já em -muitas occasiões, a carinhosa mãe os prevenira contra as incontestaveis -maldades, que as ondas encerram. Porem todo esse pavor artificial se -tinha apagado na convivencia do mar, essas ondas que de longe vinham -crescendo em ameaças, desfaziam-se impotentes contra as penedias -dentadas da praia e a espuma branca e leve, como uma illusão, vinha-lhes -<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span>lamber a elles, humildemente, os pequeninos pés enterrados na areia.</p> - -<p>N'essa tarde calma e deleitosa, emquanto a mãe se demorava na sua labuta -de camponeza, Tone e a Zefa, contemplavam o mar, o pavoroso mar que lhes -prendera o pae, e reconheciam n'aquella tranquillidade bondosa um amigo -que lhes sorria para os namorar. Mostrava-se carinhoso e terno, as aguas -claras deixavam vêr no fundo branco as mais bellas das suas joias: -seixos semelhantes a ovos de pomba; pequeninas conchas vazias e cavas, -como petalas de rosas; algas multicores e rendilhadas; molluscos boiando -agarrados ao musgo das penedias uns, outros presos á pedra formando com -ella um só corpo inabalavel e insensivel. O anteparo dos rochedos -negros, que elles costumavam respeitar nos dias de nevoeiro como -phantasmas que se erguessem do abysmo, e que nas noites tempestuosas ali -permaneciam afrontando impavidamente o perigo, n'este dia e n'esta tarde -calma e deleitosa, eram serenos e fortes arrimos que os defenderiam -contra as ciladas das ondas. As repetidas provas que tinham da sua -estabilidade e solidez afoutavam-nos a consideral-os como protectores -devotados. Pois não era instavel a luz que desapparecia, o céu que -desmaiava, as aguas que se remechiam, a movediça areia que cedia ao peso -dos seus pequeninos pés? Era. Só a rocha, a rocha escura e aspera, lhes -merecia confiança; só ella reconheciam como bastante forte para resistir -<span class="pagenum" id="Page_160">[Pg 160]</span>ao mar e á furia das tempestades. Para aquellas consciencias nascentes e -timidas as pedras feias eram arrimo unico e protecção contra os receios -escondidos nas palavras de sua mãe, que sempre procurara inimisal-os -contra o mar.</p> - -<p>No areal extenso, branco como uma longa teia de linho, Tone levava Zefa -pela mão. Principiava o sol a avermelhar no horisonte. Mais uma vez os -seus inexperientes olhos soffreram o singular deslumbramento de vêrem no -meio da gloriosa chama, os anjos do paraiso com toda a sua bella -legenda; era para lá d'aquella entrada em fogo que existia o céu, o -logar escolhido para o Maravilhoso e Innarravel. Assim o indicou Tone -com a magnificencia do seu saber:</p> - -<p>—Olha Zefa: é o céu onde estão os anjos de Nosso Senhor.</p> - -<p>A pequenita ficou mais uma vez presa na contemplação da patria -celestial. O seu olhar azul prolongou-se para o infinito, n'uma visão -sublime de candura. O seu imaginar via todas as maravilhas na -athmosphera subtil e impalpavel, no doirado da luz, na angelical -brancura de figuras meigas como a sua alma innocente.</p> - -<p>—Como é lindo!—exclamou Zefa.</p> - -<p>Foram caminhando, pela branca areia, as mãos reciprocamente apertadas, -sentindo n'este contacto amoravel realidade de existencia e protecção -mutua. Dirigiram-se a um rochedo que se lhes offerecia em suave e branda -subida e d'onde podiam <span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span>intemeratamente gozar tudo que os maravilhava.</p> - -<p>No mais alto d'essa pedra escura, roida pelas ondas, a grata aragem -agitava as leves camisinhas de pobre linho com que cobriam a sua nudez. -Como o dia estivera calido, sentiam agradavelmente a benefica sensação -de frescura passar-lhe nos cabellos, a amaciar-lhes a pelle. Do alto da -enorme penedia, que lhes era pedestal, lançavam olhos ao largo e -aspiravam o cheiro acre e forte que vinha das aguas que sussurravam. -Impavidos e cheios de toda aquella grandeza que se lhes impunha, -reconheciam-se enlevados nas maravilhas, que os sentidos percebiam nas -ondas e no céu. E Tone disse com effusão:</p> - -<p>—Olha o mar Zefa! É ali que está o pae!</p> - -<p>Apontou vagamente para esse infinito d'Além, que o olhar azul da -pequenita abraçou n'uma sombra de tristeza e saudade. Havia na sua -expressão de limpidez seraphica, alguma coisa de dôr ou meiga ternura, -que se espalhou pelo ar fóra escurecendo-o. Era ali que estava o pae! E -o que seria <em>ali</em>?!...</p> - -<p>O sol semelhava fogo voraz que incendiasse o céu. Parecia um instante de -perigo, tremendo para o universo, esse em que a immensa chamma irradiava -do horisonte. Só o grande poder de Deus, com um gesto formidavel e -omnipotente, poderia extinguir o brazido ameaçador! Se assim não fosse, -o que poderia acontecer á terra, ao mar e ás estrellas se essa cólera de -lume se estendesse a toda a amplidão infinita? Seria uma grande desgraça -reduzir a <span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span>Nada tudo quanto era bello e grande e os maravilhava -enchendo-lhes a alma de grandiosas aspirações. A briza agitava-lhes as -camisinhas de grosso linho, os cabellos incultos fluctuavam e as duas -creancinhas viveram um momento em grande terror!</p> - -<p>Porem a intervenção providencial manifestou-se: o que era incendio -foi-se apagando, a luz tornara-se d'um deslumbrante alaranjado primeiro, -depois d'um roxo terno que franjava o azul. Uma nuvem que ao longe -estava suspensa sorria-lhes do alto com o seu roseo carinho. Parecia um -resto de tunica d'anjo, que andasse perdida no ar.</p> - -<p>Tamanho encanto sentiam as duas creanças, que nem davam pelo marulho das -ondas, que já se agitavam perto. E quando os seus bellos olhos sobre as -aguas desceram, entertiveram-se a contemplar o redomoinho variado que -ellas faziam, subindo lentamente até ao sopé do rochedo, para depois se -retirarem com humildade. Havia n'isto carinho e não cólera; a espuma, -tão bella e tão branca, vinha tremendo sobre o dorso da vaga até se -desfazer; as algas vermelhas, verdes e azuladas fluctuavam dormentes -como n'um berço; os lindos seixos que formavam mosaico no fundo -encrespavam-se, como se fossem de cera molle. Muito unidos, encontrando -no corpo um do outro mutuo apoio, observavam interessados aquelle -crescer do mar, posto que muitas vezes tivessem visto um tal phenomeno -que sempre os encantava. A onda é constantemente nova: <span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span>nunca tem a mesma -força em dois momentos successivos, nem o seu enrolar é de forma egual, -em duas d'estas irmãs gemeas nascidas par a par; o facto de se fazer e -refazer perpetuamente dá a sensação d'um inicio de vida que surge. Por -isso Tone e Zefa, mudos e risonhos, vendo uma vaga avolumar-se sobre -outra vaga, consideravam quanto havia de carinhoso e amigo n'estes -beijos da espuma á penedia onde estavam. O marulho grosso que vinha lá -de longe inchando sempre, até rebentar na praia, entorpecia-os -deliciosamente, deixando-lhes nos ouvidos uma ressonancia plangente. Era -musica suave e rara, cuja melancolia se casava de modo admiravel com -esse gradual escurecimento do céu, da terra e do mar, que os envolvia -como n'um mysterio.</p> - -<p>A tenue sombra que vinha do horisonte em redor, diluida em tenue -orvalho, cercava-os d'uma atmosphera de goso triste que lhes desmaiava a -expressão por sentirem muito.</p> - -<p>Crescia o mar, a luz do sol apagava-se, já o pestanejar das estrellas no -céu apparecia. Perto, mui perto, conheciam o bater das ondas na base do -rochedo e o galgar das aguas pelo areal acima. Aquellas pequeninas almas -voavam na amplidão, como serenas e doiradas nuvens, que levassem todas -as celestiaes chimeras que haviam sonhado. O que os seus olhos ainda -viam, e o que os seus ouvidos percebiam eram coisas que lhes embalavam o -entendimento levando-o para mundos sidereos e <span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span>encantadores. Esse gemer -da sombra que escurecia o mar immenso, o rebrilhar da abobada celeste na -grande festa da noite outomnal, faziam-lhes caricias no cerebro, sem -lhes causar pavor. Esquecidas as existencias terrenas, só viviam na -amplidão infinita, as pobres almas ingenuas!...</p> - -<p>Os seus corpos sem peso, vagueavam suspensos no mundo ethereo; a -imaginação alargava-se-lhes como o fumo do incenso ao evolar-se dos -thuribulos sagrados na festa paschal. Iam intemeratamente por essa -amplidão do mar, fortalecidos pelas idéas de mysterio com que a noite -estrellada seduz as mentes infantis.</p> - -<p>A sombra espessa cahira pesada e egual sobre a rugosa superficie das -aguas, dissolvendo os rochedos da praia, esfumando, em tenue esbatido, o -terreno onde estava a casa de moradia. Encantava-os a phosphorescencia -das ondas, enfeitiçava-os o lacrimar argenteo do ceu, sentiam os -corações subir em extasis... De todas as realidades só a brancura da -areia percebiam estendida como um lençol e o ruido do mar que regougava -a seus pés. Os ouvidos, porém, já de muito habituados a este som tantas -vezes ameaçador, quantas muitas carinhoso e meigo, não presentiram que -elle lhes rugia de todos os lados. Estavam cercados pelas aguas em -revolta e só d'isto tiveram a primeira suspeita, quando pelo rochedo -subiu uma onda, cuja espuma em flocos lhes voou para os cabellos -incultos que fluctuavam ao sabor da brisa. A pequenina Zefa soffreu <span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span>um -rebate de susto, e agarrando-se mais fortemente a seu pequeno irmão, -gemeu receiosa:</p> - -<p>—Tenho medo!...</p> - -<p>Tone despertou do sonho de poeta em que vivera! Como tivesse mais dois -annos, sentiu o peso das suas responsabilidades. Era escuro e o bramido -erguia-se energico e temeroso. Lembrou se então de descer da rocha e -fugir ao perigo; mas, circumvagando o olhar inquieto, logo reconheceu o -bloqueio que o mar lhes estabelecera. Titubeante, mas querendo fingir -coragem, disse:</p> - -<p>—Não tens medo Zefa. A gente vae-se já embora...</p> - -<p>Que especie de soccorro esperaria Tone, sabendo que todos os dias -aquelles rochedos da praia se escondiam nas aguas, amedrontados pela -furia do protentoso mar?! Talvez o não soubesse dizer; porém o coração -esperançado, sempre ouvira que, para lá da abobada celeste, existia o -omnipotente Deus que valia aos desgraçados nas horas dos grandes -infortunios. Um acto simples do seu querer, manifestado sobre o mundo -n'um gesto formidavel, seria logo obedecido pelos mares e pelos montes, -pelas estrellas e pelo sol! Era só apegarem-se com elle, levantarem o -pensamento até junto do seu throno celestial, todo oiro e luz, e ali -supplicarem cheios de vehemencia e fé!</p> - -<p>Precisavam fazer um grande esforço, pois tinham de ir para além de tudo -quanto se via no espaço infinito. E logo que o Pae-do-céu os ouvisse, -aquelle mar enfurecido se tornaria bonançoso, a sua voz <span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span>horrenda seria -apenas um cantico, as aguas recuariam mansas até os confins do mundo, e -elles veriam desenrollar-se diante dos seus pequeninos pés uma estrada -singella e vulgar, que os conduziria ao seu casal. E o coração -amargurado e inquieto de Tone, tumefeito de consoladora esperança, voou -pelos espaços, em quanto cahia supplice sobre a rocha erguendo as mãos e -aconselhando:</p> - -<p>—Resa muito, ao Senhor, Zefa!</p> - -<p>A pequenita ajoelhou como elle ajoelhara; pôz as mãosinhas, fitou nas -estrellas os olhos cheios de lagrimas. Não sabia ainda resar, mas os -seus labios delgadinhos imitavam n'um anceio as palavras fervorosas que -seu irmão dizia alto: «Padre nosso, que estaes no ceu...»</p> - -<p>O mar não se apiedava. Os seus bramidos eram violentos e colericos. De -onda a onda as aguas subiam mais. A todos os momentos os corpos lhes -eram salpicados de espuma e as pobres camisinhas de linho grosso já -estavam encharcadas. Zefa, d'um primeiro lamento timido e perigoso, foi -subindo a um pranto sentido. Chorava copiosamente em gritos, mas a -vontade energica de Tone ainda procurava sustental-a contra esta -fraqueza. Sem uma lagrima, sem uma ruga de pavor no rosto e com voz -clara animou-a:</p> - -<p>—Cala Zefa, não chores. O pae está ali—(apontou o vasto oceano)—e vem -buscar a gente para irmos todos para a nossa mãe.</p> - -<p>Acreditaria Tone, n'este providencial soccorro?! <span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span>A furia do mar -augmentava de instante a instante, as vagas ameaçavam-no de mais perto, -elle continuava com a irmãsinha estreitada contra o seu corpo valoroso. -Ambos esperavam, com os cabellos empastados e as camisas colladas á -pelle, que da infinita bondade do céu viesse o soccorro que os -restituisse aos braços de sua mãe. Do mysterio insondavel da noite é que -viria a voz salvadora, ou fosse na vontade protentosa de Deus abrandando -a inclemencia do mar, ou na força amorosa de seu pae cuja sombra tantas -vezes conheceram a vaguear sobre os rochedos e sobre as aguas!...</p> - -<p>E sua mãe? aquella boa alma consoladora que os aconchegava ao seio nas -crises das doenças?! Zefa entregava-se á protecção de Tone; este, de -animo varonil, alguma coisa via surgir ou do ceu omnipotente, ou do mar -mysterioso, ou da terra sempre querida.</p> - -<p>Da terra querida chegou-lhes realmente o primeiro som d'uma voz -fortalecedora e meiga, quando estavam no maior desespero. -«Tone!»...«Zefa!»...—dizia um grito sahido do medonho seio da noite. -Havia n'esse grito mais desespero e mais lagrimas do que furia no -bramido do mar, e gottas d'agua nos seus abysmos insondaveis. Era a voz -da Mãe que procurava seus filhos na praia e que no meio d'angustias os -pedia á immensa escuridão. Aquelle som carinhoso e desesperado chegou -aos ouvidos dos apavorados innocentes, quando os seus pequeninos pés já -se mergulhavam na agua, <span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span>que recuando mais uma vez pareceria arrependida -da propria crueldade.</p> - -<p>«Mãe!... Mãe!»...—clamaram tranzidos de medo, com o ultimo vislumbre de -esperança posto na voz imprecativa e meiga, que atravessara o medonho -falar das ondas. Ouvil-os-hia a desventurada? Parece que sim, por certo -guiada pelo coração, pois que n'um fugaz momento de calmaria clamou com -mais força ainda:</p> - -<p>—Onde estaes filhos!...</p> - -<p>Elles responderam em desfalecido choro, mas vehementes com a energia do -desespero:</p> - -<p>—Aqui mãe!...</p> - -<p>Sem duvida aquelles olhos d'amor adivinharam o lugar; e o perigo, que -era eminente. Para os filhos se dirigiu, como uma loba, como uma leôa, -energica, impetuosa, inconsiderada, guiando-se apenas pelo instincto que -vinha do fundo das suas entranhas. Do rochedo onde os filhos estavam -estreitados n'um supremo abraço, separava-a o mar que se balouçava -dolentemente, crescendo a cada nova onda, ameaçando-a com dentes e -garras sanhozas de tigre. Na limpidez do céu estrellado via os dois -pequeninos corpos muito unidos, fortalecendo-se cada um na fraqueza do -outro.</p> - -<p>A mãe, impellida pela energia da sua amoravel loucura, entrou -resolutamente na agua animando as creanças com a palavra clara, -encorajando-as com o denodado exemplo.</p> - -<p>—Esperae, esperae! Não vos atireis por ora, filhos!</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span></p> - -<p>Suppunha ter ainda tempo de se approximar do rochedo e recebel-os nos -braços para com elles fugir para o humilde tegurio. A frialdade da agua -não lhe diminuia o calor do sangue em fervura, o impeto das ondas não -lhe quebrava a força dos musculos, o terror do abysmo não a cançava.</p> - -<p>Ia avançando com prudencia, já immerso o corpo até aos hombros, os -braços levantados para animar os filhos, com a sua approximação. Fazia -todos os esforços de valor moral, para que elles acreditassem na -efficacia d'aquelle auxilio. As criancinhas, silenciosas, com o terror -vago nos olhos, percebiam o lento chegar d'aquella mulher fragil, -sublimada por uma coragem indomita. Mas a valentia do mar augmentava de -instante para instante. Quando a mãe sentiu que se ia afundar, atirou-se -n'um arranco sublime contra as encapelladas ondas. Os filhos, por -instincto, logo a imitaram para serem recolhidos n'aquelles braços de -caricias. Estreitaram-se fortemente, uniram-se n'um supremo esforço; -porem, a furia impiedosa do mar separou-os logo. Os corpos fluctuaram -até que uma vaga soberba e altaneira os cobriu, envolvendo-os n'um -sudario de espuma, levando-os para o negro abysmo, onde iam encontrar a -sombra querida do pae que por lá vagueava.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span></p> - - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span></p><h2>O GAMARRÃO</h2> - - -<p>Dia de finados, dia lugubre, dia triste!... Pelas oito horas da noute, -dos lados de Serpins, sentiu-se grande reboliço. Muita gente a correr. -Francisca, a criada do morgado, pedindo soccorro n'uma voz esganiçada. -Seriam ladrões? pegaria algum fogo? armar-se-hia qualquer desordem? -Ninguem o sabia. Para lá se dirigiam em tropel homens armados de -roçadoiras, espingardas velhas e varapaus—todos n'uma attitude -combatente, falando alto! O sacristão direito á torre para tocar a -rebate, mulheres e creanças alarmando a villa correndo e gritando, os -prudentes a fecharem as janellas para se não metterem em barulhos, nem -servirem de testemunhas... era o que se via.</p> - -<p>Averiguou-se, por fim, que o morgado Gamarrão se encontrara -repentinamente mal com uma <span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span>colica, resultado de uma copiosa ceia de -castanhas com geropiga. Homem sanguineo, rebolava-se pelo chão da -cosinha como uma pipa, dava urros que nem um touro, os olhos -esbogalhados rebentavam-lhe das orbitas. Dous valentes creados sopesaram -o moribundo como um sacco de trigo e atiraram-n'o sobre a cama. O -cirurgião Mendonça, seu velho inimigo, veio quando elle já nem respirava -e dirigindo-lhe a ponteira da bengala, desprezou-o:</p> - -<p>—Resem-lhe por alma, se é que a tinha. Está prompto, não torna a dizer -asneiras.</p> - -<p>O mulherio, em volta da Francisca, acompanhava-a na sua grande dôr, -chorando com ella, consolando-a com delicadeza. Não se comprehendia o -sentimento da rapariga por este mastodonte avaro e gordo, o mais -embirrento homem das redondezas; porém ella, recusando consolações, -explicou:</p> - -<p>—Não que era muito meu amigo. Tinha-me promettido umas arrecadas para o -Natal. Ai! meu rico amo!</p> - -<p>Porém todos estavam certos que o morgado lh'as não daria. Era uma alma -de presunto, como dizia o Mendonça, não tinha amor a vivente. Durante um -longo periodo, talvez de trinta annos, ninguem soube que o Gamarrão -escrevesse ou recebesse uma carta. Orphãos, viuvas e necessitados que á -sua riqueza fossem buscar amparo, em vez de beneficio, tinham como certo -o abraço selvagem d'este urso indomavel.</p> - -<p>O seu unico herdeiro vinha a ser um sobrinho <span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span>residente em Trancoso. O -administrador do concelho, o Menezes, promptificou-se a escrever ao -collega de lá, participando-lhe o occorrido. Não se fez esperar a -resposta telegraphica, dizendo que em breve chegaria a Serpins o dr. -João Gama, sobrinho do morgado.</p> - -<p>Gente credula em demasia! Sem nenhuma especie de informações, logo se -deitaram a imaginar este homem differente do fallecido. Que seria -risonho e condescendente, esmoler e affavel.</p> - -<p>Prepararam-se para o receber, affectuosamente nos braços, logo que elle -chegasse e resolveram consideral-o como o bemvindo.</p> - -<p>A tarde em que elle appareceu era lamacenta e chuvosa; as pessoas, as -arvores e o ar mostravam-se fuscos e encebados. Quando viram o dr. Gama, -julgaram assistir á ressurreição do tio—anafado, soberbão e de tal -volume que lhe custou a sahir da diligencia. O cocheiro commentou:</p> - -<p>—Devia pagar dous lugares. Já em Braga foi a mesma chalaça, para o -metter dentro.</p> - -<p>Porém, elle, ao encontrar-se fóra d'aquella velha arca de Noé, sentiu a -ampla sensação da liberdade conquistada e mostrou-se sorridente, -benevolo e acariciador. A primeira impressão foi boa e não desmanchou o -que tinham presumido.</p> - -<p>O administrador, ao voltar de Serpins, affirmou na botica:</p> - -<p>—Temos homem. Talvez se faça alguma cousa.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span></p> - -<p>Ao que o Mendonça retorquiu, chupando o cigarro:</p> - -<p>—Elles são parentes, meu amigo!...</p> - -<p>Increparam-n'o pela duvida.</p> - -<p>—Então você não admitte...</p> - -<p>—Admitto tudo... mas não me cheira.</p> - -<p>Que deixassem a cousa por sua conta, pediu o Menezes, premeditando um -golpe de grande politico. A questão era de geito. Todos comem palha, o -caso é saber-lh'a dar. Má impressão não lhe fizera, e uma carta que -recebera do collega de Trancoso, avivara-lhe as esperanças. E logo no -dia seguinte de manhã apresentou-se em casa do <em>novo conterraneo</em>, -palavras estas que pronunciou de modo a imprimir-lhes a ideia de -naturalisação official, de uma especie de carta de cidadão, passada ali -mesmo por elle.</p> - -<p>De tudo se fallou. O Menezes gostava de ostentar importancia—que tinha -relações, que recebia muitas cartas, que em Lisboa falava com ministros. -Sendo ferrenho regenerador, affirmava que o Lopo, o Barjona e o proprio -Fontes o tratavam affavelmente e o recebiam em cavaqueiras intimas. -Fazia gestos largos, conquistando, dirigindo, aconselhando.</p> - -<p>—Seu tio—disse depois de conveniente preparação—era muito estimado entre -nós. Esmoler, chão no tracto, bondoso, o que se chama um coração aberto. -A sua piedade e religião eram proverbiaes.</p> - -<p>O dr. Gama limpou duas lagrimas que lhe humedeceram as palpebras. -Conservou-se silencioso <span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span>por momentos e em tom compungido respondeu:</p> - -<p>—Agradeço-lhe as suas palavras, que sei verdadeiras. Conheci esse -coração magnanimo, esse homem antigo, esse tio admiravel! Era tal como -diz, um santo, um bom.</p> - -<p>—Julguei que nunca vira seu tio...—balbuciou timidamente.</p> - -<p>—Durante estes ultimos vinte annos carteamo-nos sobejamente. Os nossos -corações uniram-se em bellas paginas, como só elle as sabia escrever.</p> - -<p>—Não o apreciei debaixo d'esse ponto de vista, mas sim na convivencia. -Era um homem altamente religioso e não d'esses modernos que chasqueiam -dos bons principios. Uma festa, aqui popularissima, á Senhora do Regaço, -e que elle todos os annos fazia á sua custa, com pompa e luzimento, -dera-lhe entre a nossa gente verdadeira nomeada de bom catholico. N'este -ponto julgo adivinhar que v. s.ª não quebrará a tradicção...</p> - -<p>O dr. Gama concentrou-se. Tomou aspecto reflexivo, enguliu em sêcco duas -vezes.</p> - -<p>—Se meu religioso tio—respondeu—a cuja memoria tanto devo, costumava -fazer a festa da Senhora do Regaço, com pompa e luzimento, não serei eu -que venha interromper essa piedosa pratica. Preciso, porém, consultar os -seus livros e papeis secretos, para conhecer os precisos termos em que -elle procedia, e da mesmissima fórma eu proceder tambem.</p> - -<p>—Deixaria elle apontamento a tal respeito?— <span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span>—observou o duvidoso -Menezes—Isso não offenderia a sua modestia?...</p> - -<p>—Não, de certo não. Conheço a fundo a alma de meu tio, pela nossa -activissima correspondencia. Esses documentos e livros devem existir; -estou certo que existem.</p> - -<p>Causou estranheza tal revelação. Teve, porém, o valor de alegrar e -alimpar a embirrenta e sordida memoria do avaro Gamarrão. Quantas -virtudes n'este mundo se mascaram de vicio, para não as offender a luz -crúa da publicidade!—consideravam philosophicamente alguns homens -meditativos d'aquella terra.</p> - -<p>Affluiu muita gente a visitar o novo morgado de Serpins.</p> - -<p>De aldeias proximas vieram, por caminhos pedregosos, varios -ecclesiasticos e proprietarios montados nas suas eguas lanzudas.</p> - -<p>Falaram n'elle para deputado do circulo e d'ahi cada um tirava -esperanças de engrandecimento pessoal. O provedor da Misericordia, -animado pelo bom acolhimento que tivera o Menezes, procurou estar só com -o homem, para lhe recommendar á generosidade o hospital, cuja vigilancia -a seu cargo tinha.</p> - -<p>—Seu caridoso tio, meu velho amigo, era o melhor protector da Santa -Casa. Nas festas do anno e no anniversario da morte da senhora morgada, -tinhamos sempre presentes de roupas, gallinhas e dinheiro. Sem um tal -auxilio não poderiamos <span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span>viver, e ouso pensar que o seu continuador, o seu -herdeiro, não nos faltará igualmente com a sua protecção.</p> - -<p>—Se meu caridoso tio—retorquiu solemne—cuja memoria tanto respeito, -auxiliava o hospital d'esta terra com roupas, gallinhas e dinheiro, não -serei eu que lhe desmereça a santa memoria, deixando de o fazer. -Preciso, porém, de consultar os seus livros e papeis secretos, para -conhecer os precisos termos em que essas dadivas eram feitas, para as -continuar.</p> - -<p>—E haverá, porventura, esses documentos?</p> - -<p>—Decerto! Oh! quasi que o posso jurar! Eu conhecia-lhe profundamente os -habitos.</p> - -<p>Depois d'isto os cavalheiros mais grados reuniram-se na idéa grandiosa -de solemnes exequias por alma do morgado de Serpins. O presidente da -camara, homem circumspecto e idoso, foi encarregado de levar este -projecto ao regozijo funebre do dr. Gama, que se mostrou sensivel a taes -provas de affecto, confessando:</p> - -<p>—É bem certo que a virtude sempre terá o condigno premio, digam o que -disserem scepticos e maldizentes!</p> - -<p>O presidente ponderou:</p> - -<p>—Muito esperavamos d'este querido conterraneo. Ainda ha bem pouco tinha -promettido auxiliar-me n'uma empreza difficil. Ha aqui uma rua que é a -grande arteria da nossa circulação. Estreita n'um ponto, para se alargar -é necessario <span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span>demolir um pequeno predio, que pertencia ao senhor seu tio -e presentemente a v. s.ª pertence. Promettera me elle que essa -expropriação seria gratuita e a camara da minha presidencia, para -perpetuar tão valioso feito, tinha resolvido dar á arteria em questão, -que será no futuro uma especie de avenida, o nome do doador. A -Providencia mandou outra coisa e agora é o nome de v. s.ª que está na -nossa ideia...</p> - -<p>—Isso não! o nome d'elle é que será perpetuado! Se meu generoso tio, a -cuja memoria tanto devo, havia decidido concorrer para essa obra pela -fórma que me diz, não serei eu que deixe de completar o seu pensamento. -Preciso, porém, lêr os seus livros e papeis secretos, para conhecer os -precisos termos em que esse tio patriota desejava fazer a cedencia. Todo -o meu empenho é cumprir á risca a sua vontade... para mim sagrada e para -todos saudosa!</p> - -<p>—Modo de pensar e proceder verdadeiramente fidalgo! Receio, porém, que o -senhor morgado não tenha deixado escripto... que...</p> - -<p>—Tudo escrevia. Durante mais de vinte annos eu conhecio-o no intimo. Era -um verdadeiro litterato, para a familia. Eu tenho quasi a certeza, ia-o -mesmo jurar sobre umas Horas, se necessario fosse, que meu chorado tio -deixou alguma cousa a esse respeito... Escrevia tudo, mesmo tudo, não -imagina! Ando em busca das suas memorias e vontades e hei de -encontral-as. Já mesmo alguma coisa <span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span>encontrei—o rol das suas rendas em -divida. Escrevia tudo, creia...</p> - - -<hr class="tb" /> - -<p>O dr. Gama agradecera individualmente as homenagens prestadas ao nome do -seu antecessor. Exequias magnificas; concorrencia de todo o clero do -concelho; missa a tres padres; no côro rabecas, clarinetes e flauta; um -sermão do afamado padre Carapeta, exalçando por ahi além as virtudes do -fallecido!...</p> - -<p>Um poeta de veia funebre escreveu uma elegia que foi impressa e -divulgada. Um tabellião e o escrevente da fazenda organisaram -correspondencias para os jornaes do Porto, avultando os factos. N'uma -terra pequena não se podia fazer mais e o juiz de direito, homem -entendido, affirmou que nas grandes se não faria melhor.</p> - -<p>Todo o mundo julgava o dr. Gama contente e sazonado. Foi, porém, -justamente depois d'esta solemne demonstração que elle começou a -mostrar-se sibyllino e rijo. Não dava occasião a largas conversas, e as -que não podia evitar, guiava-as para um campo generico, pronunciando -sonoramente as palavras do alto do seu magnifico busto. Uma vez que -manhosamente o levaram, n'uma especie de visita, ao predio a demolir -para o alargamento da rua, elle deixou-se conduzir, achou <span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span>magnifica a -idéa, mas evitou fazer qualquer promessa compromettedora.</p> - -<p>Quereria este Gama faltar áquillo em que já concordara? Não podia ser... -julgavam-n'o incapaz... era talvez feitio... No emtanto tornava-se -urgente uma aclaração e para a obterem concertaram-se o Menezes, o -Provedor e o Presidente, fazendo-se acompanhar do Mendonça, que era -desembaraçado e não tinha papas na lingua. Vestiram se apparatosamente -de sobrecasaca, chapéu alto, luva... tudo como o caso requeria. Entraram -n'aquella sala humida e fria da casa de Serpins. As janellas davam sobre -um laranjal, cujo verde escuro entenebrecia o ambiente. O tecto -abahulava-se n'uma intenção de amplitude, concentrando a claridade. As -cadeiras dormitavam aos lados, quasi em abandono!</p> - -<p>Palraram sobre todas as cousas—lavoura, demandas, politica, -melhoramentos... e n'um a proposito bem aproveitado, o presidente pôz -timidamente a questão:</p> - -<p>—V. s.ª bem sabe... Temos os nossos orçamentos a mandar para cima... -Quereriamos alguma cousa de certo. As suas promessas...</p> - -<p>—Promessas, promessas... Eu por mim ainda não tive tempo de pensar a -sério nos objectos das nossas ponderações...</p> - -<p>—Mas os nossos compromissos... a festa da Senhora do Regaço á -porta...—insufflou o Menezes.</p> - -<p>O provedor accrescentou:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span></p> - -<p>—Os doentes necessitados não pódem esperar. V. s.ª comprehende...</p> - -<p>—Comprehendo, porém são cousas difficeis. Immenso que fazer! Uma casa -grande e muito embrulhada na administração. Caseiros, rendas, generos, -gados, o diabo! Ainda não pude... realmente ainda não pude...</p> - -<p>O Mendonça, que era azedo, esperto e embirrava com o morto, aproveitou o -momento para desbravar o terreno e ao mesmo tempo lançar grossa mancha -em todos os Gamarrões, pois fôra sempre seu parecer que este sobrinho -equivalia á besta do tio. N'um tom que, á primeira vista, se poderia -julgar inconveniente disse:</p> - -<p>—Meu caro senhor, cartas na mesa. Estes cavalheiros tiveram de v. s.ª -solemnes promettimentos. Fundados n'elles fizeram declarações lá fóra e -com todo o direito vêem exigir que v. s.ª cumpra a sua palavra. Ora eis -ahi está o que é, sem mais refolhos.</p> - -<p>—A memoria de seu tio tudo merece—insinuou o presidente, para avelludar -a dura arremetida do Mendonça.</p> - -<p>O sobrinho do Gamarrão atirando solemnemente com o busto para diante, -ergueu a cabeça, e de palpebras meio cerradas, affirmou:</p> - -<p>—Se meu nobre tio, cuja memoria eu venero e acato no mais alto grau, -costumasse fazer todas essas dadivas, que os senhores dizem, de tal -teria deixado apontamento ou lembrança que ainda não <span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span>encontrei. Porém -que encontrasse ou que encontre, eu desde este momento solemne declaro -que acho abominavel, (abominavel é o termo!) este procedimento de -quererem influir no tribunal da minha consciencia! É cousa que se faça, -o perturbar uma consciencia, seja ella de quem fôr, de um rei ou de um -mendigo?! A um homem delicado e quasi timido, como eu, impôr-lhe um tal -onus e n'esses termos! Não se poderá taxar de indelicadeza, de violencia -e até de coacção!? Eu recuso e recuso terminantemente.</p> - -<p>Foi terrivel o assombro!</p> - -<p>Os quatro olharam-se sem comprehender! Depois das exequias, do sermão, -da poesia, das correspondencias, sahir-se com esta! O Mendonça, azedo e -ironico, atirando com a ponta do cigarro para o sophá, retorquiu em voz -levantada:</p> - -<p>—Lérias, cantigas!... O que você não quer é dar nada, eis ahi está. Por -força havia de ser um avarento como o jumento de seu tio. Pela cara se -lhe tiram as obras. É um Gamarrão segundo.</p> - -<p>E retirando-se após os outros, que já se dirigiam para a porta, -accrescentou:</p> - -<p>—Um alarve d'estes só se ensinava com meia duzia de lambadas. É o que -elle merecia. Grandissimo pulha!</p> - -<p>O dr. Gama ficou estarrecido e apopletico. Que procedimento inaudito! -Que formidavel canalha! Correu á varanda trasbordando de impetuosa raiva -e vendo-os ainda no quinteiro gritou lhes:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span></p> - -<p>—Comedores! Nem vintem! Ouviram seus comedores!?</p> - -<p>O Mendonça voltou-se e n'um gesto de punhos cerrados aggrediu-o:</p> - -<p>—N'essas ventas, n'essa cara de cabaça é que devia ser! Grandissima -cavalgadura!</p> - -<p>E todas as bellas esperanças e promessas foram poeira levada pelo vento -d'esta discordia, derivada d'uma velhacaria dupla.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span></p> - -</div> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - - -<p><span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span></p><h2>O CALVARIO DO AMOR</h2> - - -<h3>I</h3> - - -<p>Seriam duas horas d'uma fria noite de março, quando a cavalgada sahia o -largo portal do Corcovado, em direitura á egreja da freguezia, que -ficava a uma boa hora de distancia.</p> - -<p>A noiva, joven e formosa, com vestido de seda clara semeado de florinhas -azues, montava soberba mula, ajaezada á hespanhola e coberta de valioso -teliz de veludo encarnado com brilhos d'oiro, peça antiga na casa de D. -Bento d'Osma, o ditoso noivo, que aos sessenta annos ia receber como -esposa a encantadora Maria. Pelo caminho aspero e pedregoso, ladeado de -pinheiraes sombrios, de penedias soberbas, de campos ferteis, de -precipicios fundos onde grasnavam aguas tumultuosas, sentia-se <span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span>a -animação da extensa cavalgada. As lumieiras, que os creados sustentavam -altas, erguendo os braços para aclararem maior area do caminho, -produziam sombras phantasticas que se espalmavam nos muros e deitavam -nos campos, dando a este quadro de vida commum, aspecto tão singular que -ao longe pareceria festa de demonios em delirio. As aves silvestres e os -animaes bravios que tal presenceassem, acordados do seu repouso, assim o -deviam pensar, pois fugiam uns voando, outros correndo e sumindo-se -todos no denso negrume da noite. Ia na frente a noiva, delgada e airosa, -dentro do seu vestido claro, os cabellos negros e fartos ornados de -flores naturaes, as mais bellas flores dos jardins d'Osma, onde as havia -raras e viçosas todo o anno. Ao lado de Maria, D. Bento, ainda vigoroso, -montava magnifico cavallo baio adrede comprado para este acto solemne. E -logo a seguir o pae da airosa menina, o José Pereira do Corcovado, da -conhecida casa do Corcovado e seus quatro filhos, Manuel, Thomaz, -Vicente e José, rapazes valentes e destemidos, pimpões de varrer tudo em -romarias e feiras, quando se junctassem os quatro. Cercava-os o maior -numero das lumieiras, para acautelarem a noiva contra qualquer estorvo -do caminho turtuoso e difficil, e assim assegurarem tambem aos que -vinham atraz, transito livre. Estes eram pessoas de differentes edades e -feitios; senhoras velhas de vestidos serios de seda preta e meninas -novas todas de claro, desde a cor <span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span>de rosa virginal até ao verde-prado -que é esperança. Os homens antigos estadeavam as suas casacas de gollas -altas e bofes nos peitilhos das camisas; os rapazes d'agora vestuario -delambido e collarinhos pegados á pelle do pescoço. Havia alguns padres -na extensa cavalgada, de sobrecasaca grave, bota eclesiastica de borla -no joelho, ou bute simples nos mais pobres que não tinham para -abastanças, volta no pescoço, e deitando a sua sentença latina do alto -das suas eguas de farta cauda e largo ventre prolifero. Os da -rectaguarda mofavam do velho D. Bento, pela desproporção na edade com -Maria, e alludindo á violenta e conhecida paixão, que por ella tinha, o -João da Cunha, da casa da Maceira, disse um conceituosamente:</p> - -<p>—Póde muito bem ser um segundo tomo do velho D. Thomaz que se casou com -a D. Paulina, morgada da Cerdosa<span class="fnanchor" id="fna2"><a href="#fn2">[2]</a></span>.</p> - -<p>—Que lhe preste—accrescentou Frei Ignacio pitadeando-se.</p> - - -<hr class="tb" /> - -<p>Era realmente coisa sabida que João da Cunha amava perdidamente Maria; e -tão perdidamente a amava e tão de receiar era uma vingança dos rapazes -da Maceira (que tambem eram quatro e <span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span>não inferiores em valentia aos do -Corcovado), que os irmãos da noiva iam adeante a guardal-a e promptos -para tudo. Arrebatando-a ao amado preferido, levavam-na juncto do altar -para a entregarem ao morgado d'Osma, senhor de Osma e de muitas -propriedades de Minho e Douro. João só podia alardear boa linhagem e -muito amor, quanto a haveres a casa era pequena e filhos muitos. Quando -n'isto falaram ao velho do Corcovado desatou n'um berreiro de espantar -lobos: «que amor sem riqueza era bonito, mas julgava-o destempero; que -se lhe queria a filha viesse pedil-a trazendo titulos de propriedade -para a merecer. Elle por sua parte, tinha boa casa; mas herdeiros -cinco».</p> - -<p>—Portanto, que tire d'ahi o sentido—rematou para o enviado.</p> - -<p>O da Maceira que era ousado e temerario approximou-se um dia do velho e -perguntou-lhe de cabeça alta:</p> - -<p>—Como quer o senhor José Pereira que eu arranje assim de repente -dinheiro?</p> - -<p>—Isso é comtigo e não commigo.</p> - -<p>—E com quanto se contenta?—disse sarcastico.</p> - -<p>—Com muito; dinheiro quanto mais melhor—respondeu o velho no mesmo tom.</p> - -<p>—E quanto tempo me dá para arranjar isso com que lhe possa comprar -Maria?</p> - -<p>—Ella não é negra. Não te me faças birbante que se os meus rapazes -ouvem...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span></p> - -<p>—Bem me importo com ameaças! Peço um anno, para ir ao Brazil entender-me -com meu tio Antonio, que lá tenho. Acceita?</p> - -<p>—Vae ao Brazil, vae onde quizeres, eu já falei.</p> - -<p>E voltou-lhe as costas sem mais ceremonias.</p> - -<p>O rapaz sahiu o portal do Corcovado com uma batalha no cerebro. A sua -idéa n'aquelle instante, foi roubar violentamente Maria, fugir com ella -para sitio alpestre e ignorado, e lá viverem vida selvatica d'amor, -sustentando-se de leite e fructos da terra. Chamava-o, a grandes vozes, -o coração, para essa existencia poetica, altiva e nomada, querida da -imaginação de todos os independentes, como apropriada á vida feliz. -Alimentarem-se de caça, do mel das abelhas, de medronhos e hervas; -beberem o leite, a limpida agua das fontes por escudellas de madeiras ou -de cortiça; vaguearem no silencio magestoso das mattas escuras, pouco -conhecidas dos homens; suspirarem juncto das estrellas na amplidão das -serras altas, absorverem a largos pulmões o ar fresco e aromatico das -brizas que vem dos codeçaes floridos e das urzes sempre verdes... era o -que lhes deleitaria a sensibilidade, irmanando-os com os pastores, com -os anjos e com os poetas. Nos primeiros colloquios d'amor, que tivera -com Maria, quando ainda eram creanças e simples, já detalhavam a vida -dos ermos, baseando-a no aspecto ditoso e feliz dos pegureiros, <span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span>que na -primavera subiam ás montanhas com os seus rebanhos, e no que sabiam de -contos de fadas e moiras encantadas. Era essa existencia que lhes -convinha: uma cabana e dormir entre a lã das ovelhas, imaginar ao som -gemente dos regatos e deleitar os olhos no azul infinito que não tem -fim—um viver só pelo goso de existir e nada mais.</p> - -<p>Então ninguem sabia ainda que elles se amavam, a flor doente de -sensibilidade que lhes estava rebentando no coração era apenas -presentida pelas ingenuas creanças. A modo que iam crescendo tomava esse -sentimento vago uma fórma mais definida e concreta, os olhos do corpo, -ensinados pela experiencia, iam corrigindo as incertas aspirações da -alma contemplativa e um dia disse João a Maria: «Quando nos casaremos -nós?»; ficando absortos n'um spasmo de mente a voarem pelos espaços -sidereos.</p> - -<p>Casar! palavra magica e dolente em que tudo se comprehende e pouco se -diz. Seria só a união dos corpos? Seria a harmonia dos corações? Seria a -orchestração das palavras melodicas que sentiam nos ouvidos, quando de -noite pensavam um no outro? Que seria?!... O contacto das suas pelles, -quando se abraçavam e beijavam nos brinquedos infantis, dispertava-lhes, -por vezes, fulgurações no cerebro, chispas nos nervos, deleites -celestiaes. Casar seria a absorpção de dois entes n'um ente novo e mais -complexo; mas o <span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span>casar ideal, a completação ambiccionada era fugir, não -ver homens, nem casas, nem mares turbulentos, e só conhecer serras -tranquillas, arvoredos mysteriosos, e animaes amigos. Poderiam realisar -estas sublimes aspirações?...</p> - -<p>Foram crescendo os corpos; adelgaçava-se a nuvem em que divinamente -viviam occultos; era mais palpavel a realidade, João e Maria para -casarem precisavam merecer-se. Por isso elle foi principiar os estudos, -com idéa de seguir uma carreira, que lhe desse no mundo uma situação. -Maria ficou na aldeia, entre as mesmas arvores, contemplando os mesmos -penhascos e o mesmo céu, e, quando não teve comsigo João, cruciante foi -a sua dôr. Porém logo nas primeiras férias todas as saudades se diluiram -e a alegria d'esse primeiro encontro e dos seguintes compensara-os da -magua da primeira separação.</p> - -<p>O velho da casa do Corcovado, mais experiente e sagaz do que os filhos, -foi quem primeiro deu pelo caso. Não lhe convinha: determinou acabar -aquillo d'uma vez. Formou uma assembléa com os seus rapazes: fechando-se -n'um quarto com elles, expoz o caso e pediu-lhes alvitre no modo de -proceder.</p> - -<p>—Isso dá-se cabo d'elle, é o melhor—disse Thomaz, o de genio mais -violento.</p> - -<p>E o Vicente secundou-o:</p> - -<p>—Sahe-se-lhe ao caminho longe d'aqui, quando vier a férias; -arruma-se-lhe um estalo na cabeça <span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span>e enterra-se bem fundo n'um campo, -onde ninguem o encontrará.</p> - -<p>—Não é preciso tanto—disse o velho concentrado e tenaz. O D. Bento -d'Osma gosta da pequena; porque já m'o disse. Maria fez desoito; -arranjam-se os papeis em segredo, chama-se aqui sem ella o esperar, -fala-se-lhe tezo, e casam-se sem dar tempo a que o marmanjo consulte os -irmãos.</p> - -<p>—Que nós não tememos—disse o Manuel, o mais velho, applaudido pelos mais -novos.</p> - -<p>Maria por um acaso feliz estava no quarto contiguo e como falassem alto -ouviu a conversa. Foi grande a sua perturbação, mas simulou o contrario -para a defesa. Descobriu meio de tudo communicar ao mais velho da -Maceira, o Gonsalo, para o tornar conhecido do irmão, asseverando-lhe -que, por sua parte, estava prompta para quanto João entendesse -necessario fazer-se com o fim de defenderem o seu amor. Foi n'essa -occasião, que o namorado desejando levar as coisas a bem anunciou ao -velho José Pereira, primeiro por um enviado, depois directamente, os -projectos em que estava de conquistar no mundo posição que lhe desse -direito á mão de Maria, terminando pela affirmativa de ir ao Brazil. Tal -viagem, porém, nunca pensou em realisal-a e a promessa era apenas um -estratagema de ganhar tempo, para concertar um plano de fugir com a sua -amada.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span></p> - -<p class="footnote" id="fn2"><a href="#fna2">[2]</a> Amores, amores...</p> - - -<h3>II</h3> - -<p>Simulou-se na Maceira o caso da partida de João para a companhia do tio -que tinha no Brazil, tudo com o apparato do estylo: enxoval, despedidas, -choros, a sahida do rapaz acompanhado de seus irmãos, e até um -telegramma do Porto, que participava o embarque. Fez-se a representação -com a maior verosimilhança. O namorado desappareceu da aldeia e -falava-se d'elle com saudade e sympathia. Os do Corcovado, acreditando -só metade do que viam, principiaram logo a dispor as coisas para o -enlace de Maria com D. Bento.</p> - -<p>O Manoel, que era o de mais tino, sahiu uma noite a cavallo levando -comsigo dois creados só até ao limite da aldeia: ia tractar com o -morgado <span class="pagenum" id="Page_198">[Pg 198]</span>d'Osma de coisas de escriptura e dote; informal-o do que havia e -do que seu pae com todos elles tinha accordado. Assentes as bases do -contracto com o noivo, que não offereceu difficuldades, pois toda a sua -ambição era obter a mocidade de Maria para caldear com a sua velhice, -logo se despacharam os dois mais novos, Vicente e José, para irem a -Braga tractar secretamente dos papeis do casamento. No entretanto, -dentro do Corcovado não se dormia descançado: havia armas promptas, e -esculcas de noite no velho casarão. Conheciam bem os da Maceira: -sabiam-nos ousados, valentes e até loucos d'audacia. Ainda que João -houvesse partido (do que não tinham absoluta certeza), ficavam os outros -que eram capazes de armarem uma batalha campal, para garantirem ao irmão -ausente, uma desaffronta e uma vingança estrondosa. Dispunham os seus -meios de resistencia para se defenderem, ainda que preferiam que tudo se -passasse com normalidade e socego. Esconderam, pois, entre si e D. Bento -o plano urdido, simularam vida tranquilla e ordinaria, simularam mesmo a -crença no descuido dos da Maceira, na partida de João, e já em Braga -corria velozmente o processo ecclesiastico com todas as licenças -necessarias para em vinte e quatro horas, logo que taes licenças -chegassem, se realisarem as nupcias.</p> - -<p>Em Braga era tambem onde estava João da Cunha, á espera de aviso dos -irmãos, para regressar á aldeia na opportunidade conveniente, e aqui foi -<span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span>avisado por um amigo, de que os papeis andavam em segredo, nas mãos do -senhor Arcebispo. Logo comprehendeu tudo e na manhã seguinte, depois de -andar duas noites a cavallo, chegou á Maceira, onde entrou tanto a -occultas, que só os irmãos e o pae d'isto tiveram conhecimento, pois -elle tomara a precaução de despedir o arreeiro com a cavalgadura fora do -logar, que atravessou a pé, não seguindo veredas nem caminhos, mas -atravessando campos e saltando muros. O que logo ficou assente entre -todos foi que Maria não casaria com D. Bento d'Osma, ainda que fosse -necessario matarem e morrerem.</p> - -<p>A pobre menina, vigiada e guardada, como se sentia, não pôde, durante -esses dias crueis, mandar nenhum enviado ao Corcovado. Vivia em grande -amargura e afflicção por suspeitar coisas tenebrosas do que em volta -d'ella se tramava. O seu amor e a exaltação do seu espirito eram -tamanhos, que pensou em suicidar-se, antes que ceder a quaesquer -conselhos ou pressão de pae e irmãos, para preferir outro homem a João. -Porém era alma juvenil e crente, não podia comprehender que a -Providencia divina, e Maria Santissima, de quem sempre fôra tão devota, -podessem concordar em tal iniquidade. Ora não querendo Deus e não o -consentindo a Virgem, nada podiam os homens—pensava ella.</p> - -<p>Os papeis chegaram de Braga ao mesmo tempo que vestidos e enfeites para -o dia solemne das <span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span>bodas, que podiam realisar-se d'um para o outro -momento. D'isto foi avisado D. Bento d'Osma, por uma carta, emquanto -Maria era chamada á presença de seu pae e irmãos, que sisudos e graves -como juizes a sentencear, lhe disseram a resolução em que tinham -assente. O pae rematou o longo arrazoado dizendo:</p> - -<p>—De modo que tu vaes ser senhora d'uma das maiores casas da provincia e -mulher d'um dos maiores fidalgos conhecidos.</p> - -<p>—Mas se eu não gosto d'elle, que é um velho e antes quero João da Cunha, -apezar de pobre!...</p> - -<p>—Tolices dos desoito annos—commentou sarcasticamente o velho. Com esse -não te dava eu consentimento, nem com um bacamarte cheio de zagalotes -assente no meu peito.</p> - -<p>—Pois com outro não caso—disse resoluta e sem lagrimas.</p> - -<p>—Isso veremos—disse Manoel, o mais velho dos irmãos. Ainda que tenhamos -de te levar para a egreja atada de pés e mãos, has de ir.</p> - -<p>—Não será preciso...—acrescentou o Thomaz, pronunciando as palavras com -ironia feroz. Irá muito bem a cavallo e nós veremos.</p> - -<p>—Carrascos!—pronunciou Maria, cahindo redondamente no chão, rigida como -um cadaver.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span></p> - - -<hr class="tb" /> - -<p>A este tempo os da Maceira já estavam conhecedores do resolvido -matrimonio de Maria com D. Bento d'Osma. Essa informação trouxera-a de -Braga o proprio namorado. Mostravam-se, porém, naturaes no trato e -despreoccupados do que se passava; mas entre si assentaram o raptar -Maria antes do casamento, no proprio acto nupcial, ou até dos braços de -D. Bento, se não pudesse ser d'outro modo. Quem os conhecesse bem, sabia -que tentariam o supremo golpe, atravez de difficuldades, que outros -pudessem julgar invenciveis. Entregar Maria intacta ao irmão era o -supremo desejo de Gonçalo, Antonio e Thomé. Porém, vencer, á valentona, -todos os obstaculos que os do Corcovado teriam accumulado em volta da -desejada rapariga, para que não fosse tocada por mãos impuras, é que não -poderiam... Necessario era, pois, servirem se do engenho, primeiro que -da força; e tiveram artes de fazer chegar ás mãos da fraca creatura, as -palavras animadoras d'uma carta que João lhe escreveu, em que explicava -o proposito em que estava. Esse papel foi levado á casa do Corcovado por -um pedinte de classica barba longa, curvado e de voz lamentosa quando -pedia. Abeirou-se da porta da cosinha, e como fosse desconhecido e -significasse vir de longe (talvez de romagem a S. Thiago de Compostella, -pois trazia <span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span>conchas cosidas nos andrajos) as creadas interessaram-se por -elle e attenderam-n'o. Vinha esfomeado e friorento; pedia o caldo da -esmola e o agasalho do palheiro; como soubesse contar historias e ler a -signa, entreteve os creados e ficou por ali coisa de tres dias. Os -proprios irmãos de Maria gostaram do pobre e escutaram-lhe os casos; o -velho José Pereira, ouvindo-lhe dizer que fôra soldado no tempo dos -francezes, que acompanhara o general inglez pela Hespanha dentro, -conversou com elle e mandou dar-lhe uma tigella de vinho. Maria, a quem -o misero, lendo nas linhas da mão aberta predestinou alegre e risonho -futuro, sorriu-lhe no meio das suas amarguras. Foi n'este acto que o -pedinte lhe introduziu na manga do vestido a carta de João da Cunha, o -que tanto alvoroçou a pobre menina, que só por um milagre de energia não -cahiu com um desmaio. Assim ficou ella instruida do plano concertado -pelo seu namorado.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span></p> - - -<h3>III</h3> - -<p>Ia a cavalgada pelo tortuoso caminho que do Corcovado segue para a -egreja, onde a festa nupcial de Maria com D. Bento d'Osma se ia -realisar. Apesar das lumieiras (que só adeante, junto da noiva, faziam -grande illuminação) aquelle acompanhamento de tão longa enfiada de gente -de cavallo, atravez da noite escura, semelhava uma forte corrente de -ferro de muitos e grossos elos, obrigada a repetidas curvas n'um -subterraneo; ou, então, qualquer monstro de cobra-crotal curveteando em -numerosos accidentes de terreno, para escapar a um perigo que receasse, -ou attingir a presa que lhe fugisse. Os que cercavam a noiva tinham -entre si poucas falas, como se fôra avançada de numerosas forças que -<span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span>temessem qualquer cilada. Intrigava-os o aspecto sereno e a alma -resignada de Maria, que sabiam coagida para aquelle acto. Jactanciosos, -como eram os do Corcovado, passou-lhes pela mente que o animo da irmã se -tivesse submettido á dura necessidade, logo que reconhecera o inane de -qualquer resistencia. Essa mudança no espirito da namorada poderia ter -desenganado os da Maceira, não sendo até impossivel que realmente João -estivesse já além dos mares. Maria apenas mostrara furtivas lagrimas ao -paramentar-se para a festa com o seu ultimo vestido de virgem, e antes -de sahir de casa esteve no oratorio resando ferverosamente a Nossa -Senhora dos Desamparados, de quem era devota. Conservara-se bastante -tempo estranha, absorvida, quasi extatica, com os olhos sofregos na -imagem querida, talvez pedindo-lhe fortaleza ou confessando-lhe os -ultimos peccados de pensamento. Tudo parecia natural e simples e -indicava que estivesse resignada. Porem, seus irmãos, por um resto de -precaução, aperceberam-se para o caminho até á egreja, pois era longo, -máu e iam de noite; ainda que este estado d'alma lhes parecesse logico, -pois sabiam o espirito de piedade religiosa, com que sua santa mãe -fallecida, a tinha educado. Em tão supremo lance da vida d'uma rapariga -de desoito annos, era natural profunda commoção, pelo quanto -apresentaria de desconhecido e nevoento o novo dia que se lhe ia abrir -na existencia. O seu silencio era o fructo de <span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span>todos os sentimentos -desencontrados, que lhe moravam no peito, o fructo da curta e variada -historia da sua vida, com um amor precoce e violento, que vira -desfolhado no cumprimento do sagrado dever da obediencia ao pae, severo -mas bom. Assim o presumiam todos; por isso a desconfiança não era -absoluta e os meios de defesa eram incompletos.</p> - -<p>Scintillavam as estrellas no firmamento, n'essa immensa aboboda negra -como o veludo, em que grandes e bellos diamantes estivessem collados -desde infinitos tempos, e tremelusissem por um movimento ondulatorio do -proprio céu. Fendiam as lumieiras, com alegres chammas, a sombra -compacta da noite. O estrepito da cavalgada, perturbava o silencio, tal -um caminhar de tropas. As sombras iam a grandes passos parecendo -espectros. A amplitude da treva absorvente tornava mesquinha a -existencia do homem. Os que se dirigiam na tortuosa estrada sentiam-se -oprimidos no peito, mas a vista alegrou-se-lhes quando, vencida uma -corcunda de caminho, descobriram a egreja rural, lá no fundo, com as -vidraças a jorrarem luz, como se fôra noite faustosa de romaria. Quadro -ao mesmo tempo phantastico e jubiloso, este apparecimento subito do -modesto templo, assim illuminado, surgindo do infinito ventre da -escuridade infinita. Era como um facho espetado n'uma grande caldeira de -breu. Em todos os corações houve sobresalto de gozo, até mesmo no de -Maria. D. Bento <span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span>d'Osma descobrira o sacrario da sua felicidade; o velho -do Corcovado o remate das suas aspirações de grandeza; seus filhos, -julgaram afastados os receios de mau encontro dos da Maceira, que mesmo -que fossem vencidos lhe aguariam o prazer da festa. E Maria o que -descobrira para sorrir?...—Alguma esperança?... era aquelle luzeiro, -alegria na tristeza das suas amarguras?...</p> - -<p>De todos os corações se levantara um peso; amplificara-se o sentir e o -desejo de cada um; etherisara-se-lhes a imaginação em hymnos triumphaes. -Os formosos olhos de Maria sorriram á profunda escuridade, talvez por á -sua mente ter chegado em recordação, qualquer promessa do seu amado. -Desciam para o valle onde brilhava a egreja, lentamente, no meio do fogo -das lumieiras. Ao chegarem á borda do adro, o leve corpo da noiva, para -ser tirado de cima da mula, ricamente ajaesada á hespanhola com teliz de -veludo encarnado lampejando oiros, cahiu nos braços de Manoel, seu irmão -mais velho. Repicaram faustosamente os sinos n'este instante, -annunciando o momentoso acontecimento, ás estrellas que luziam, aos -montes silenciosos, aos animaes bravios escondidos nas suas tocas. As -aves occultas na espessura das mattas e no interior dos silvedos, quando -ao romper da manhã viessem gorgear as suas impressões, decerto -relatariam o acontecimento singular que lhes fizera abrir os olhos para -a egreja illuminada, e os ouvidos para o jocundo repicar dos sinos. Que -necessidade <span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span>de perturbar a escuridão infinita e solemne, o silencio -augusto e magestoso com signaes de festa humana?—perguntariam ao -recomeçarem os seus amores, ebrios de rosea alvorada.</p> - -<p>Pela porta do templo, amplamente aberta, entraram os convidados. No -interior, grande perfusão de lumes em todos os altares, para se celebrar -a sumptuosa festa. Sorriam os santos, o rosto da Virgem era expressivo e -carinhoso, os anjos, os seraphins e cherubins, que nas columnas do altar -mór se suspendiam entre nuvens, brincavam alegremente.</p> - -<p>A luz espancara a tetrica escuridade; o cheiro do incenso e da cera do -qual as paredes estavam impregnadas espiritualisara-se com o calor das -velas. Os numerosos convidados sentiam-se satisfeitos e communicativos, -tinham abundancia de palavras para encher a conversação. A modesta -egreja rural, mais uma vez era perturbada na sua tranquillidade: assim -cheia de movimento e sussurro de festa, deixava de escutar a musica do -ribeiro, agora crescido d'aguas, e de ligar o seu viver obscuro ao das -arvores amigas que lhe cresciam em volta, enfolhando-se todos os annos -na primavera para a festejar...</p> - -<p>Maria subiu o corpo do templo, até ao altar mór, ao lado de seu pae, um -velho robusto, de barba em volta da cara sadia, altos collarinhos em -camisa de bofes, a casaca das suas bodas (quarenta annos antes) -tapando-lhe a nuca com a alta golla. Ao passar <span class="pagenum" id="Page_208">[Pg 208]</span>em frente da imagem de -Nossa Senhora, da qual era solicita devota, ajoelhou orando com fervor, -o que fez com que muitos assistentes entrassem em piedoso recolhimento -espiritual, imitando-a na mystica submissão. Pediria coragem para o -difficil transe?... confessar-se-hia humilde peccadora por ter tido idéa -de resistencia á vontade de seu pae?!... No alto da egreja, onde de novo -se curvou reverente para fazer as suas supplicas ao Altissimo, -cercavam-na as senhoras mais gradas da visinhança, amigas e parentas, as -de Refuinho, da Torre Velha, do Ramisco... que todas como ella resavam -com recolhimento e fervor. Davam assim tempo a que o padre Pitança se -revestisse na sacristia acompanhado d'outros padres. O cura Clemente -Carvalhosa, já velho, alquebrado e doente, não podia vir a estas festas -de noite, por causa do seu rheumatismo: substituia-o o corpolento -Pitança. Quando este reappareceu juncto do arco cruzeiro, coberto com a -longa capa d'asperges, a batina occulta sob a alva de celebrante, a -estola cahindo-lhe serenamente sobre o amplo peito de caçador e occulta -pelo solemne pluvial, o grande vulto do sacerdote assim paramentado, -tinha a magestade do d'um bispo da edade-média, guerreiro, soberbo e -forte. Um absoluto silencio se estabeleceu rapidamente, em respeito ao -acto momentoso que se ia celebrar. D. Bento d'Osma, radiante dentro -d'uma farda de fidalgo em que se não encontrava muito á vontade, sorria -d'um modo incaracteristico, trabalhado interiormente <span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span>por grande confusão -de idéas e sentimentos. Maria estava pallida, mas o seu rosto mostrava -serenidade e o seu olhar firmeza. Quando os nubentes davam o primeiro -passo para o celebrante, no meio do silencio de tanta gente, attenta e -commovida, no meio da gloria de luzes que transformavam o ambito da -modesta egreja n'um templo de apotheose... é que um avejão, phantasma ou -demonio, ou muitos demonios juntos se lembraram de lançar pela egreja -fóra os seus gritos lamentosos, terriveis, amedrontadores, e tão -lamentosos, terriveis e amedrontadores, que rebentaram simultaneamente -no tecto e nas campas, por traz do altar mór e no côro! Não eram vozes -com semelhança de humanas, era um como fremito horrendo que se sentisse -ao mesmo tempo no céu e no cimo da terra, que surgisse da profundeza dos -abysmos infernaes e tivesse a mesma natureza e raiva das imprecações dos -condemnados. Todos ficaram transidos de mêdo, e se sentiram faltos do -sentimento da realidade: deante dos olhos desvairados dos assistentes, -assim colhidos de surpreza, e n'este primeiro momento, parecera-lhes que -os mortos haviam rompido o lagedo das sepulturas ao clangor da trombeta -final, ou que eram os santos que desciam espavoridos dos altares para -recolherem ao logar seguro da celeste morada. Viam o tecto do templo -vergar sob o peso da vontade divina, que procuraria assim castigar algum -grande peccado, ou impedir tremenda iniquidade. A confusão de todos os -cerebros <span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span>foi completa quando no pulpito, no côro, e no recanto da pia -baptismal appareceram tres grandes fogueiras com fumo de polvora e -reboar de estoiros, como n'um incendio de magica. Da primeira -perturbação logo se passou ao terror fundado na evidencia de um fogo no -sanctuario. As vozes em grita, supplicantes e desvairadas, junctavam-se -ás das aventesmas e ao rebate dos sinos. A maioria procurou fugir pela -porta principal que estava aberta de par em par; os mais serenos, os que -poderiam formular raciocinio no meio d'esta grande confusão foram -levados na onda. Os rapazes do Corcovado, paraliticos na vontade, -tiveram um vislumbre da possibilidade d'um acto de vingança dos da -Maceira, mas não se poderam concertar para a defeza. Muitas senhoras -fugiram para a sacristia, e no meio d'ellas foi Maria. A sacristia -estava ás escuras e a porta para o adro viam-n'a aberta... Por ali -entrara um vulto humano que rapidamente tomou nos braços a noiva, -decerto para a salvar do pavoroso castigo que a todos ameaçava. O seu -corpo gentil, dentro do vestido de casamento, a cabeça enfeitada de -flores, os olhos bellos que tantas lagrimas amargas tinham chorado, o -peito ancioso que em silencio suspirara sentidas endeixas d'amor... tudo -levou esse salvador providencial e ambos se sumiram no negrume d'essa -noite fria de Março. Festejavam-na do céu as estrellas, acompanhava-a o -murmurio das fontes, cantava-lhe aos ouvidos a ligeira brisa, e a -escuridade <span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span>amiga e silenciosa encobria estes amores deleitosos. João da -Cunha, celere como um gamo, saltou primeiro o muro do adro levando -comsigo a penna leve do corpo da sua amada, atravessou veloz um campo, -saltou outro muro e no caminho d'além, atirou Maria para sobre uma egua -valente, montando depois n'um cavallo fiel. E como se isto fôra um vôo -de lendas scandinavas, lá foram os dois vencendo encostas, galgando -ribeiros, entranhando-se de cada vez mais no seio protector e cumplice -da noite calada e escura. Escutavam de vez em quando para ver se outro -tropel de cavallos os seguiria; mas João confiava sereno na promessa de -seus irmãos, que lhe haviam offerecido as vidas para o livrar de -perseguidores.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p> - - -<h3>IV</h3> - -<p>A perturbação de todos os que assistiam á ceremonia matrimonial foi -maior do que podiam esperar os inventores do estratagema. Alarmados pelo -subitaneo alarido de vozes de duendes, almas-penadas, diabos ou o que -quer que era, em furia e delirio; accrescentado o primeiro barulho com o -reboliço que se sentira no telhado da egreja, que parecia derruir-se; -levado ao auge o desconcerto com o rapido apparecimento da chama azulada -do incendio, com o cheiro da polvora e estrondo de bombas, acompanhados -do toque desesperado de sinos a rebate... produziu-se em todos os -cerebros um movimento de terror e assombro facil de comprehender. O povo -casual e os creados das lumieiras, que tinham deixado as cavalgaduras no -caminho para assistirem á festa, foram <span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span>os primeiros a fugir e -encontraram-se desvairados no adro, cegos no meio da escuridade pelo -brilho que nos olhos traziam da farta illuminação das tochas. A sua -grita e clamor acabou de apavorar os proprios animaes, que, n'um tropel -desvairado, correram pelos caminhos e atravez dos campos, como fugidos -d'uma casa em chamas. Os convidados, apesar de numerosos, não eram -bastantes para acudir ás supplicas das senhoras, presas d'um -extraordinario medo e algumas desmaiadas. Os minutos que durou a -intensidade do perigo, pareceram annos de castigo e tormentos, a todos -que se encontraram no meio do horrivel drama. Os homens mais resolutos, -serenos, e affeitos a perigos julgaram que este era o seu ultimo -instante de vida terrena e já sob os proprios pés sentiam -abrirem-se-lhes escancaradas as verdadeiras gargantas do inferno. Ás -vozes rogativas das senhoras, acudiram alguns: o padre Pitança, caçador -e temerario, encontrou-se entre ellas de capa d'asperges, falando alto, -dizendo palavras incoherentes, mas que davam sentimento de realidade; os -do Corcovado correram em busca de Maria... D. Bento d'Osma, esse cahira -de joelhos no sitio em que estava na capella mór—tinha as mãos erguidas, -os olhos espantados, no semblante o esgar dos epilepticos, e murmurava -palavras de prece batendo os dentes. Estava inerte, não procurava evitar -a condemnação que o abatera, não pensava em resistir á divina vontade, -que o punia sem misericordia.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span></p> - -<p>Porém os do Corcovado procurando sua irmã gritavam por ella na egreja, -no adro, na sacristia... por toda a parte. Não a encontrando vieram á -fala para cerzirem as suas idéas, e facil lhes foi concordarem no que -poderia ter sido aquella emboscada. Sentiram-se realmente apavorados e -grotescos.</p> - -<p>—Nada! é lá possivel!—ainda teimou o mais velho—procuremol-a melhor, que -estará por ahi cahida sem sentidos...</p> - -<p>Procuraram com vellas e tochas acesas, que arrancaram dos proprios -altares, e de momento a momento a suspeita d'uma cilada dos da Maceira -tomava maior vulto e lhes enchia o espirito d'uma colera crescente. A -elles se juntaram o velho pae e o D. Bento d'Osma, que os creados haviam -arrancado á sua paralisia, e todos chamavam por Maria e pronunciavam o -seu doce nome, com ancia e carinho, atirando-o para o ventre mysterioso -d'aquella negra e hostil noite de Março. Nem acordada, nem desmaiada, -nem viva, nem morta a encontravam, por mais que empregassem vozes -supplices ou de desespero. Agruparam-se com os parentes e o noivo de -Maria, os convidados e os proprios creados. Assim todos reunidos, de -tochas na mão, em volta da modesta egreja rural semelhavam multidão -imprecativa de povo e não gente na ancia d'um interesse terreno. A noiva -não respondera, nem ás primeiras vozes carinhosas do pae e do noivo, nem -ás palavras já cheias de ira de seus irmãos. Na egreja, na sachristia, -no adro não a descobriam... <span class="pagenum" id="Page_216">[Pg 216]</span>logo, Maria, ou voava para celesteaes -alturas com as suas azas de pomba virgem, ou fugira nos braços do seu -amado, o João da Cunha da Maceira.</p> - -<p>—Com dez mil demonios, que sou capaz de trincar o coração a esse -malvado, como Pedro, o Crú, fez aos carrascos de sua mulher—rugiu o -velho do Corcovado, com a face incendiada em desespero.</p> - -<p>—Rapazes!—berrou D. Bento d'Osma á multidão dos seus creados—mil -cruzados novos aquelle que os pilhar.</p> - -<p>E os irmãos de Maria, concertados em identico pensamento de vindicta e -com a imagem sarcastica e victoriosa dos da Maceira deante dos olhos, -clamaram:</p> - -<p>—Os nossos cavallos depressa que não os deixaremos descançar, nem nas -profundezas do inferno!</p> - -<p>Não era muito facil encontrar os cavallos, pois quasi todos tinham -fugido espavoridos. Como se poderia ir ter com elles atravez da vaga -escuridão da noite, por caminhos e veredas incertas? Correram os -creados, que os conheciam e a cujo chamamento e vozes os animaes estavam -habituados. Partiram do adro, cada um com a sua lumieira erguida como um -tropheu, chamando e assobiando, em direcções diversas. Que coisa esta de -homens com vozes bradantes, armados de fogachos furando a espessa treva, -a saltarem muros, e a correr pelos <span class="pagenum" id="Page_217">[Pg 217]</span>campos, estradas e atalhos! Seria ás -arvores hirtas e silenciosas, ás estrellas sorridentes e alegres, aos -espaços mudos e infinitos que elles supplicavam? Lá iam com assobios e -palavras semeando a negrura torva. Ao fim d'algum tempo alguns voltaram -com os animaes que buscavam e lhes haviam obedecido, reconhecendo-lhes o -imperio a que estavam sujeitos. Já se tinha passado talvez mais de uma -hora, quando os parceaes de D. Bento e os rapazes do Corcovado poderam -montar os seus fieis cavallos, para irem no alcance dos -fugitivos—duração infinita para os apaixonados corações se distancearem -no goso d'uma felicidade tão rudemente conquistada.</p> - -<p>Mas para que lado correriam os perseguidores, se os terrenos eram tão -vastos, as montanhas tão silvestres e asperas? Como nortear a marcha em -noite escura de breu, por veredas multiplas e perigosas? Reuniram -conselho para deliberar.</p> - -<p>—Para a Maceira?—lembraram os rapazes do Corcovado.</p> - -<p>—Não seriam tão asnos que em tal ratoeira cahissem—observou o prudente -José Pereira.</p> - -<p>—Para o Cerdal, pois são amigos de Cesario.—opinou uma voz.</p> - -<p>—Meu primo não me faria o aggravo de lá os receber—inteirou D. Bento -d'Osma.</p> - -<p>—Sigam para os montes—ordenou o padre José Pitança, de estola sobre o -amplo peito, mas já sem pluvial, que largara para se desembaraçar <span class="pagenum" id="Page_218">[Pg 218]</span>em -qualquer lucta de braço a braço, se necessidade houvesse de a sustentar.</p> - -<p>—E se elle a fosse depositar respeitosamente e intacta no Ramisco, para -depois seguir o processo judicial!?—aventou com a sua voz meliflua o -desembargador João Xavier.</p> - -<p>Esta lembrança esdruxula, deixou perplexos e irritadas todas as vontades -e corações que desejavam uma acção violenta e immediata de assignalada -desforra. O sangue dos do Corcovado borbulhava em fremente cachoeira e -Thomaz, que era dos quatro o de animo mais ardente e vingativo, disse:</p> - -<p>—Qual asneira! Vamos lá para cima que até me parece que já os estou -sentindo correr adeante.</p> - -<p>E esporeou energicamente o seu cavallo, que lhe respondeu com um salto, -vencendo á desfillada a ladeira, onde as ferraduras feriam lume nas -lages. Manoel o mais velho ainda teve tempo para ordenar, gritando:</p> - -<p>—Cada um pelo seu caminho e por edades. Eu á direita.</p> - -<p>Abalaram encosta acima, acicatando com violencia os animaes. Alguns dos -amigos e convidados de D. Bento d'Osma seguiram-nos animados d'um -generoso espirito de desforra. No pavor da noite, este galope de -combate, amplificou-se primeiro, foi esmorecendo gradualmente, restando -por fim nos ouvidos dos que tinham ficado, uma ressonancia como de sons -repercutidos no fundo <span class="pagenum" id="Page_219">[Pg 219]</span>d'um poço. O padre José Pitança, de alva e estola, -no meio do adro, estendeu com vigor os braços, increpando no vago com os -punhos apontados ao céu:</p> - -<p>—Grandissimo patife! Que o esborrachava...</p> - -<p>—Uma costa d'Africa é que precisa—ameaçou o velho José Pereira.</p> - -<p>—Uma costa d'Africa!—rugiu D. Bento d'Osma. Uma forca! mil forcas é que -merecia.</p> - -<p>Porem quasi todos entenderam que deviam ir para o Corcovado, onde estava -a mesa preparada para o começo do festim da boda. Ali aguardariam os -acontecimentos. Muitos porfiavam em acreditar que os fugitivos seriam -alcançados. Porem a maioria das senhoras, cujos nervos tinham sido -desorientados com a commoção causada por tão estranho, quanto -inesperado, successo, preferiram as suas proprias casas, onde melhor se -aquietariam com rezas e com descanço ao seu conchego habitual.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_221">[Pg 221]</span></p> - - -<h3>V</h3> - -<p>Noite escura e triste; noite, cheia de negruras no céu e no coração! -Pouco depois de João da Cunha e Maria partirem a gallope para o seu -louco destino, entraram com elles pavorosos receios, tremendo um por -causa do outro. Durante muito tempo os acompanhou o alarme de vozes em -grita, que se produzira na egreja e no adro, e que se fôra estendendo -pela aldeia, tal onda de revolta popular. Como fossem subindo a céu -amplo sobre o valle, onde a agitação se alastrava, ouviram, até muito -longe, esse rumor sinistro, perseguidor e amaldiçoante; mas depois que -venceram o primeiro cabeço de monte, era antes um sussurro de mar a -bater em rochas escarpadas, isso que lhes chegava <span class="pagenum" id="Page_222">[Pg 222]</span>aos ouvidos. Mais -além, só conheciam a impressão arquejante que lhes ficara vibrando no -cerebro perturbado. De vez em quando sonhavam tropel de cavallos que -lhes viessem no encalce e paravam attonitos com o ouvido á escuta; -conhecido o erro continuavam animados pela doce esperança de viverem no -seu amor absoluto, reciproco e vehemente. Maria, apesar de animosa e a -tudo resolvida, não deixava de temer a vindicta de seus irmãos, e no -escuro da noite mysteriosa murmurou como n'uma prece: «Deus nos proteja! -Se nos apanham está tudo acabado!» Ao que o intrepido amante oppoz, com -voz decisiva: «Nada receies. O meu corpo será mais difficil de -trespassar, que um duro penedo!» Continuavam a rasgar a treva densa, por -caminhos perigosos e pouco calcados de gente. João conhecia todos -aquelles montes como os campos da sua aldeia; palmilhara-os, durante -annos, acompanhado do seu perdigueiro, em todos os carreiros e veredas. -Cego que elle se houvera tornado, determinaria a posição dos ribeiros e -rochedos e as nodoas das bouças. Por tanto, para se dirigir na selva -escura d'esta noite espessa, bastava-lhe o sorrir das estrellas do céu e -a ditosa ventura de ter a seu lado aquella a quem amava. Eram favoraveis -as circumstancias para não serem encontrados e para chegarem ao ponto -ditoso, onde descançariam longe da furia e perversidade humana. Trazia -esse quadro na menina dos olhos; era uma casinha alpestre, armada entre -fragoas. <span class="pagenum" id="Page_223">[Pg 223]</span>Porém, como estivesse ainda muito distante e os montes fossem -largos, só quando se annunciasse a luz solar poderia definitivamente -nortear-se, para chegar em direitura, ao paraiso onde podiam florir os -seus amores. Por agora só pensava em distanciar-se de onde estavam os -seus temiveis inimigos; queria apenas retirar-se do perigo, livrar a sua -felicidade da furia dos irmãos de Maria, que seria cruenta se se viessem -a encontrar, n'essa noite, face a face. Armara-se para chegar a todos os -extremos d'um combate sanguinoso: preso no arção trazeiro levava duas -clavinas carregadas com zagalotes, nos coldres duas magnificas pistolas -de cavallaria com balas, no bolso interior um acerado punhal de lamina -triangular. Preparara-se para uma rude empresa de morte e amor, venderia -muito cara a vida e a fortuna de viver. Mas distancear a hypothese -horrenda e desgraçada d'um encontro funesto com qualquer dos que o -perseguiriam, era o seu anhelo, o seu unico desejo. Por isso procurava -com ancia ganhar distancias, mettia por atalhos perigosos, evitava -quanto podia a proximidade de casas e povoados, onde se podesse dar -indicio da sua passagem. Nem sempre o pudéra conseguir e n'um logar que -atravessaram, o ruido dos cavallos devia ter sido percebido por um grupo -de mulheres, que enfornavam a broa da semana. Cresceram os pavores e -receios que enegreciam a imaginação de Maria; porém João aquietou-a -dizendo-lhe que, aquelle caminho era forçado para muitos <span class="pagenum" id="Page_224">[Pg 224]</span>logares -distantes, uns dos outros. Continuaram silenciosos e cheios d'esperança -na negrura cumplice da noite, porém o sussurro dos ribeiros que iam -grossos d'aguas, o acordar repentino d'algum animal bravio que fugisse -por entre carrascos e tojos, a propria voz do vento que passava nos -codeçaes e bouças se transformavam na mente de Maria em signaes de gente -amotinada que os perseguia, em prenuncios de embuscadas que seus crueis -irmãos tivessem armado contra o seu unico, verdadeiro e sentido amor. A -aldeia ficava-lhes de cada vez mais distante, lá em baixo, em fundo -valle. Demonstrava-o o passo mais lento das cavalgaduras que era já de -fadiga. Tambem agora tinham de caminhar com maior prudencia, pois João -confessava-se no limite dos montes seus conhecidos e familiares. Podiam -esbarrar com algum ribeiro que os obrigasse a retroceder, por isso -procurava sempre os pontos mais altos, onde essa contraria probabilidade -diminuia. Ás montanhas succediam outras montanhas, sempre n'um -levantamento gigante que parecia ter limite no céu, onde talvez fossem -cravar seus dentes de penedias asperas. Só as estrellas os acompanhavam -com riso carinhoso e só estas é que davam a luz tenue, que lhes deixava -distinguir os asperos carreiros, brancos sobre a terra negra. O ar -tambem era mais leve e mais cortante, a modo que a sombra da noite se ia -adelgaçando. Ao nascente, para onde levavam voltados os rostos, já viam -com antecedencia a promettedora chegada <span class="pagenum" id="Page_225">[Pg 225]</span>do sol, essa alegria sumptuosa -do mundo!... Eram menos inquietas e vibrateis as pestanas argenteas dos -astros, que se sentiam cançados da continuada vigilancia durante a longa -noite. Visto não terem podido combater victoriosamente a treva densa, -deixavam essa encantadora tarefa ao seu glorioso avô, que traria a -brilhante poeira de oiro fino, para enfeitar as cristas das montanhas, -enchendo de luz a profundeza dos valles e os recessos das penedias. -Maria anciosa por encontrar o limite no seu caminhar perguntou:</p> - -<p>—Estamos ainda muito longe?</p> - -<p>—Andaremos, com dia, talvez uma hora.</p> - -<p>—E a gente que nos encontrar?...</p> - -<p>—Só pastores e ovelhas poderemos encontrar.</p> - -<p>—Santo Deus! Esses pastores não nos denunciarão?</p> - -<p>—Os teus irmãos não nos fazem, decerto, para este lado, e daremos -informações erradas a quem falarmos.</p> - -<p>—Em todo o caso fujamos sempre...—rematou inquieta.</p> - -<p>Seguiam, já n'uma penumbra fofa, o carreiro aberto, ao longo da espinha -d'um monte amplo, pelos pés senhoris das ovelhas e cabras que ali -passavam diariamente. Um bufo, que levantou o seu vôo pesado, de entre -um massiço de penedos, gerou subito alarme no peito de Maria, denunciado -n'um grito de susto, que o seu amado acalmou com a explicação prompta do -facto. A <span class="pagenum" id="Page_226">[Pg 226]</span>luz do sol, ainda distante, provocava este e ainda outros -signaes de renascimento da vida terrestre. Já a massa espessa das -montanhas se definia em formas comprehensiveis á vista: agigantavam-se -os penedos com aspecto de homens associados em conversa; as arvores, -dispersas nos terrenos aridos, recortavam-se no céu que se ia -acinzentando; as aguas da chuva que se tinham accumulado em covas -naturaes, eram espelhentas. Com taes prenuncios de dia entrava nos -corações amantes, a fé e a esperança na felicidade do amor. Tão de breu -fôra essa noite, que só agora sentiam a posse completa das proprias -individualidades, até então amalgamadas com a espessura da treva.</p> - -<p>A proxima chegada do sol aclarando o firmamento, que parecia de vidro -fosco, apagava gradualmente todos os luzeiros pendurados pelo ar. -Formara-se um nimbo lacteo sobre o horisonte. Pipillavam as timidas -calhandras erguendo-se do seu leito, entre carquejas, com as pennas -irriçadas pelo frio, o que lhes avultava o tamanho. Das bouças já sahiam -gaios, grasnando como patos selvagens; levantavam-se melros cortando o -crepusculo com o seu vôo rectilineo e silvo agudo; surgiam pêgas a -palrar como velhas dementes. Era a gloria da luz e da vida que renascia -e animava a solemne mudez das montanhas crespas. Um ligeiro sorrir dos -labios de Maria denunciou que o coração se lhe descomprimia, que a sua -alma ingenua e pura, aceitava <span class="pagenum" id="Page_227">[Pg 227]</span>de boamente os perigos do dia, em troca da -escuridade protectora da noite. Não assim João da Cunha, receioso dos -males que podiam agora nascer. Se os do Corcovado houvessem acertado na -perseguição, se os visse apparecer na volta d'um monte ou do meio d'um -matagal, seria tamanha a desgraça, que só a morte a podia definir. -Correria o seu sangue e o sangue dos de Maria. Todo o que se vertesse -havia de ser em desproveito da sua ventura, que não mais poderia brotar. -Mas com um movimento energico de cabeça afastou para longe ideias -tetricas; de novo no amplo e corajoso peito entrou a esperança risonha e -cariciosa. As montanhas eram largas, os caminhos muitos e intrincados, -só um grande infortunio o levaria ao encontro dos seus algozes. -Consumidos os dias de gozo, doces como o mel, que viessem as -perseguições e os flagellos crueis, pois o encontrariam resoluto e -altivo, como era natural do seu animo levantado e temerario.</p> - -<p>Subiam, subiam ainda na encosta d'um monte, que tinha outros mais altos -para os lados do céu. Os já andados escorriam lá para o fundo, em -successão de valles, n'um dos quaes assentava a risonha aldeia d'onde -haviam partido. Ao vencerem um alto cabeço deram de frente com o olho -redondo do sol, que os fitava impavido e dominador.</p> - -<p>—Ainda é muito longe?—perguntou Maria.</p> - -<p>—Mais uma legua para andar.</p> - -<p>Desciam na vertente d'além: n'esse alvorecer <span class="pagenum" id="Page_228">[Pg 228]</span>encontraram a primeira -pastagem de boa relva, mosqueada de malmequeres, goivos e junquilhos -nascidos no sopé d'uma penedia d'onde brotava agua, e o primeiro rebanho -guardado por um pequeno pastor. Era um rapaz franzino e sujo: ao ver -aquella formosa senhora, vestida de claro e com flores na cabeça como -qualquer santa, acompanhada por tão garboso cavalleiro, logo se levantou -da lage onde estava sentado, conservando-se com o grosso barrete na mão, -até que elles chegassem.</p> - -<p>—Bom dia rapaz—saudou João da Cunha.</p> - -<p>—Bô dia—respondeu em voz rouquenha. Agora não ha romaria: eh! voncês -p'ra onde vão?</p> - -<p>—Levar uma promessa á Senhora Apparecida—respondeu João.</p> - -<p>—Tão linda como a Senhora Apparecida é essa senhora. É sua?</p> - -<p>—É minha, é Joaquim. Chamas-te Joaquim?</p> - -<p>—Não senhor, sou Zé.</p> - -<p>—Pois toma lá este dinheiro e dá-o á tua mãe para te mercar uma camisa. -Se por aqui vierem uns senhores a cavallo diz-lhes que não viste passar -ninguem.</p> - -<p>—Se voncê quer, digo. Hei de rezar por vós, que não ides bem p'ra -Senhora Apparecida, mas p'ro Senhor Bô-Home.</p> - -<p>—É que vamos primeiro ao Senhor Bom-Homem e depois á Senhora -Apparecida—explicou.</p> - -<p>—Antão, havendes de tornar para traz.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_229">[Pg 229]</span></p> - -<p>—Pois tornamos.</p> - -<p>—Isso é falar. Deus os acompanhe.</p> - -<p>Ficaram receiosos d'este encontro, como já o vinham das mulheres que -enfornavam o pão. O convivio humano era-lhes n'este momento antipathico. -Da intelligencia alheia, só perigos lhes poderiam advir. Maria levava o -rosto palido e fatigado; desejava chegar breve ao ponto da terra, onde -pudesse repousar e esconder-se. O seu amado comprehendeu-lhe este -secreto pensamento tão legitimo e natural. Chegados a um sitio d'onde se -lhes desdobrava aos olhos um largo ondeado de montanhas, João apontou a -brancura d'uma ermida, que se destacava sobre a mancha negra d'uma matta -e disse:</p> - -<p>—Acolá, vês?</p> - -<p>—É uma capella!</p> - -<p>—Para além da capella está a casa.</p> - -<p>—Quanto tempo?</p> - -<p>—Pouco tempo.</p> - -<p>Metteram por uma esplanada coberta de penedias em cujas anfractuosidades -podiam esconder a sua marcha. A luz do sol já enchia os montes e até os -valles cobertos pelo nevoeiro matinal. O ar rescendia a aromas, que se -levantavam da terra, das flores e hervas alpestres. Passavam no céu, -azul palido, aves de grande corpulencia, abutres e aguias, que pousavam -nos pincaros mais levantados. Os negros corvos crocitavam perto, subindo -do chão para os penhascos. Apparecia aqui um <span class="pagenum" id="Page_230">[Pg 230]</span>coelho que rebolava pela -terra arenosa; rompia adeante um par de perdizes, já acasaladas no -começo d'amores; erguia-se uma lebre, veloz na carreira, corveteando de -orelha guicha. Maria, certa do limite da sua jornada, mostrava rosto -mais desanuveado; todo o seu desejo e ambição era, n'este momento, -esconder-se como timida corsa no denso matagal, que fazia mysteriosa -negrura, juncto da alva capella que João lhe apontara. Não tardou muito -que aportassem ao carinhoso abrigo. Bem mereciam este repouso, depois de -tão longas horas atormentadas pelo esforço corporeo e pelas preocupações -do espirito. As horas, muitas ou poucas, que ali permanecessem, -ignorados e tranquillos, enchel-os-hiam de amor ardente, para -entorpecerem a sensibilidade, emquanto não vinha o desenlace da arrojada -aventura.</p> - -<p>—Ninguem nos supporá aqui, meu amor—suspirou João ao saltar do seu -cavallo.</p> - -<p>—E de quem é esta casa?—perguntou Maria ao cahir-lhe nos braços, para -descer da egua.</p> - -<p>—D'um amigo de longe, que só vem aqui, de anno a anno, fazer as suas -caçadas.</p> - -<p>Depois de recolher as cavalgaduras, entraram na modesta cabana, coberta -de colmo. Logo fecharam a porta sobre os seus corpos cançados. João ao -apertar Maria nos braços nervosos exclamou desvairado.</p> - -<p>—Até que emfim! Podem agora vir todos os tormentos da terra!...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_231">[Pg 231]</span></p> - - -<h3>VI</h3> - - -<p>Dia venturoso, primeiro dia d'amor, em casa modesta e simples, cercados -do silencio dos ermos, bafejados pela brisa balsamica e leve, aquecidos -pela chama copiosa do bello sol de primavera. Da terra humilde dos -montes nasciam flores, abrindo no vasto azul o sorriso, que de noite -cubiçara o brilho das estrellas. As aves simples, que a floresta enchiam -de seus encantos, ignoravam a apotheose que estavam fazendo d'aquella -felicidade. Tudo que havia de rescendente nas duas almas, ditosas e -bellas como os lyrios brancos, subia em anhelos para as celestiaes -alturas, enchendo os espaços infinitos de sua fragancia.</p> - -<p>O dedicado amigo de João da Cunha, que lhe cedera este sagrado abrigo, -havia-lh'o provisionado <span class="pagenum" id="Page_232">[Pg 232]</span>de modo que não fosse necessario, logo de -entrada, qualquer contacto com gente do povoado. Por isso n'este -primeiro dia, nem as janellas descerraram, vivendo os dois na escuridade -que mais os unia no seu amor immenso. Os serranos, que por acaso -passavam, não presumiriam viv'alma dentro d'aquella casa simples, -construida entre penhascos approveitados como tractos de paredes. As -duas unicas janellas eram aberturas naturais das fragas: por ali -entravam outr'ora as aves de presa, que nos reconcavos faziam seus -ninhos. As duas portas collocadas no afastamento mais largo dos penedos -aglomerados, davam entrada uma para a cosinha, outra para a casa de -jantar e dormitorio. As cavalgaduras arrumavam-se n'uma loja aberta na -espessura da terra no ponto inferior do fraguedo. O telhado de colmo era -preso, para resistir ás ventanias invernaes, com pedras e paus -atravessados. As aberturas desnecessarias tinham sido tapadas -grosseiramente com pedra avulsa, sem o esmero de rebouco de argamassa -exterior. Esta rustica morada assentava a mais de meia encosta, por cima -da afamada matta do Medronhal. As duas janellas abriam para o declive -dos montes e via-se, em corrida extensão, a severa e funda garganta, por -onde sussurravam as grandes aguas, que vinham de longe, formando o -ribeiro da Marnoca, celebre pelas suas trutas. O inverno tinha sido -aspero e copioso, o desgelo das neves altas, ainda em principio, -engrossava a corrente que n'um <span class="pagenum" id="Page_233">[Pg 233]</span>fragor de trovão se despenhava de rochedo -em rochedo, por entre togeiras virgens, onde não pousaria o pé rustico -do pegureiro, se para ali se lhe extraviasse a rez. Havia até sitios -perigosos, aos quaes é duvidoso que pudesse chegar, lobo esfomeado em -procura de presa. Eram brenhas selvaticas e dantescas onde, só no -torrido estio, entrava o sol para calcinar as pedras. O contemplal-a -apenas, enchia a alma de pavores e mysterio. Os dois amados, na -escuridade da sua cabana e cercados do silencio do ermo, que este aspero -ruido tornava mais completo, sentiam-se tão fóra do mundo e dos homens, -que os seus corações já palpitavam unisonos e sem receio. Era sua -aspiração e desejo, viverem, assim infinitamente, n'esta paz tranquilla -de sepultura, formando um ser de dois seres, com um unico sentir e uma -só vontade—louca aspiração de juvenil egoismo, de que só pode dar razão -a immensa felicidade que fruiam. Eram como essas aves que outr'ora ali -tinham formado seus ninhos toscos, na ignorancia de tudo que não fossem -montes e estrellas. Independencia absoluta da vida esquecida dos que se -persuadem que no amplo universo, nada mais existe do que o amor. -Veio-lhes a fadiga e o somno, que mais dilatada lhes tornou a ventura, -continuando-a pelo sonho em céus deslumbrantes. Quando acordaram já o -sol declinava no horisonte, arrastando a resplendente juba loira pelo -cume das montanhas. Abriram então uma das janellas para se despedirem do -astro que, fulgurando, deixava <span class="pagenum" id="Page_234">[Pg 234]</span>o mundo e levava comsigo a alegria da -terra.</p> - -<p>N'uma d'essas toscas aberturas a poente, appareceram amarellecidos pela -ultima luz d'esse venturoso dia, as duas cabeças unidas, os dois corpos -enlaçados. Demorando-se na contemplação do formoso espectaculo, Maria, -tinha ainda o seu vestido de noiva e na cabeça as flores com que lh'a -haviam enfeitado. O crepusculo cobriu-a lentamente com o seu veu de gaze -fino, como a uma creança que dormisse, sombreando-lhe o rosto com tintas -de melancolia.</p> - -<p>E para orchestrar este quadro de simplicidade antiga e paradisiaca, -subia do fundo da garganta escura da floresta o som magnifico e potente -das aguas, como um hymno religioso, que se amplificasse solemne nas -abobadas d'uma cathedral. Fechava-se assim este primeiro dia enebriante -e ditoso: viera a noite alargar o vasio de todas as existencias, afofar -com sombras os meandros da vida universal.</p> - -<p>Accenderam lume, para se aquecerem.</p> - -<p>Em frente um do outro, sentados em toscos escabellos de carvalho annoso, -estavam em silencio, enredando os seus pensamentos. Presas as suas -linguas nas circumstancias d'esta existencia anomala e feliz, -communicavam-se por meio de sorrisos e beijos. Maria, porém, rompeu o -encanto da sua mudez, considerando:</p> - -<p>—Até quando durará isto?!</p> - -<p>—Hade durar sempre—affirmou João.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_235">[Pg 235]</span></p> - -<p>—Talvez bem pouco dure...</p> - -<p>—Teu pae perdoa-nos...</p> - -<p>—Nunca nos perdoará—disse repassada d'angustia. Não o conheces.</p> - -<p>—Seremos do mesmo modo felizes.</p> - -<p>—Porém como!?...</p> - -<p>João fez um gesto amplo e vago de quem acredita no céu clemente e -mysterioso, dentro do qual se conservam em amalgama todas as soluções -felizes da existencia humana. Apesar d'isto, continuaram tristes e -absorvidos na sua tristeza, deante do lume alegre e crepitante, com -chamas que se levantavam e diluiam como as esperanças. É assim toda a -ventura: ergue-se com impeto, flameja triumphal, desaparece como a -chama, como ella deixando a treva e o frio. Porém estes amores apenas -começados estariam, por certo, bem distantes do seu fim: no querido -ermo, protegidos pela treva densa, principiava a primeira noite fecunda -e bella. Fecunda e bella foi, mas tinha de acabar como o dia. E acabou: -já no ambiente se sentia o acordar de existencias chamadas pelo -reapparecimento do sol, o qual, os ditosos amantes, tambem de novo -vieram saudar.</p> - -<p>Abriram a porta que dava para nascente, e abraçados como duas estatuas -em grupo, appareceram risonhos deante do sol:—Maria com o seu vestido de -noiva machucado, as flores da cabeça emmurchecidas; João o rosto mais -severo e palido do que ao findar o precedente dia.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_236">[Pg 236]</span></p> - -<p>Rompeu o grande astro por entre penedias: primeiro como uma gema d'ovo, -amarella e redonda; depois com a irradiação d'uma enorme fornalha que -estivesse no infinito. A todos a luz patentearia a realidade da Terra: a -Maria e a João mostrava-lhes a extensão aspera e vaga da montanha, um -chão arenoso e safaro, cheio de granitos e pobres plantas, sempre -açoitadas de ventanias e chuvas, crestadas pelas neves duradoras, roidas -do dente damninho das cabras. Contemplavam essa aridez impressionante e -forte das serranias, que educa as vontades para a victoria e para o -sacrificio, que prepara o cerebro para extremos de abnegação até á -morte. Sentiam essa grave austeridade contrastando com a terna ventura -dos seus corações, jovens e amantes, com o sentir mais delicado das suas -organisações creadas na tranquilidade e maciesa das veigas floridas, de -culturas abundantes que agudam a sensibilidade. O bello sol reunia-lhes -os dois corpos n'um feixe de luz, atando-os com os seus raios d'oiro; o -seu magnificente beijo matinal sellava a incomparavel ventura d'este -amor incomparavel. Tão descuidados e seguros se encontravam em momento -tão ditoso, que João não teve duvida em propor á sua amada o sahirem á -procura d'um rebanho, que lhes désse leite para o almoço.</p> - -<p>Foram enlaçados, como dois ramos nascidos do mesmo tronco. Rostos -alegres e corações abertos á aventura iam pelo monte além, descendo <span class="pagenum" id="Page_237">[Pg 237]</span>para -sitios onde presumiam pastos. Amplificavam-se-lhes os pulmões para -n'elles entrar o ar fresco; dilatavam-se as narinas excitadas pelos -aromas da brisa silvestre. Andaram bastante para encontrar o primeiro -rebanho: quando voltavam, ao ninho d'amor, com a caneca a transbordar de -grosso leite, é que ouviram latidos d'uma matilha, que de longe vinha -batendo a serra para o Medronhal. Continuava a subir aparatosamente o -sol, no céu tranquillo e mudo, desdobrando pelas corcovas das montanhas, -pelo apertado das gargantas, e pelos ferteis valles o seu lençol de luz. -Os cães ladravam ainda longe, porém a revoada dos seus ganidos, -misturados a tiros de espingarda e a gritos de batedores, subia pela -encosta acima, como o fumo d'uma nevoa, que o vento sul levantasse. O -rosto de Maria alterou-se, parou com o ouvido á escuta e perguntou:</p> - -<p>—Que será?</p> - -<p>—Alguma batida ao bicho bravo. O fogo é lá p'ra baixo—explicou João.</p> - -<p>—Vamos depressa para casa!...—pediu receiosa.</p> - -<p>—Pois vamos—concordou abraçando-a pela cintura, para andarem mais -depressa.</p> - -<p>Caminhavam diligentes e celeres, não reparando que se lhes vertia o -leite da infusa. Dominava-os apenas a idéa de não serem vistos de -viv'alma, de se esconderem na modesta choupana, com portas e janellas -fechadas, n'uma escuridade completa. Porém, os seus passos deseguaes e -nervosos foram <span class="pagenum" id="Page_238">[Pg 238]</span>sustidos n'um momento, pela apparição d'uma sombra... -d'um phantasma... d'um homem a cavallo, que apparecendo ao norte se -dirigia como elles, para o lado da ermida branca.</p> - -<p>—Olha gente!—exclamou Maria. Se nos vê, santo Deus!...</p> - -<p>Esconderam-se por traz d'um macisso do urzal virgem, que pegava com o -Medronhal. D'ali queriam observar o destino do cavalleiro. O silencio de -João, as linhas do seu rosto contrahido e pallido, o peito tão quieto -que nem respirava, denunciavam a negrura do seu coração. Comprehendeu o -perigo: ainda que aquelle homem fosse um estranho, que os não -conhecesse, havia de causar-lhe surpresa o encontral-os n'aquellas rudes -paragens, sósinhos, tão jovens, tão namorados e tão dignos um do outro. -Levaria a noticia do singular encontro e estariam logo descobertos. Pelo -menos seriam obrigados a mudar d'abrigo e a esgotar depressa o primeiro -calix da sua ventura.</p> - -<p>—Talvez passe para deante—ciciou-lhe, quasi ao ouvido, o namorado de -Maria.</p> - -<p>Mas o cavalleiro, caminhando devagar e cautelloso, como avançada na -observação de campo inimigo, estava ainda bastante longe para só se -distinguir o seu vulto com o chapeu desabado, a espingarda atravessada -nos joelhos, o grosso tronco, firme sobre a sella.</p> - -<p>—Peor é—considerou João—se ha por aqui alguma porta de espera; porque -então fica.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_239">[Pg 239]</span></p> - -<p>—O que é uma porta de espera?—perguntou anciosa Maria.</p> - -<p>—O ponto onde pode romper a caça—esclareceu.</p> - -<p>Do lado esquerdo surgiu outro cavalleiro com o egual aspecto de -descanço, da mesma forma vestido e armado, convergindo tambem para o -sitio da ermida. Viam-no mais perto, sem que pudessem ainda definir -particularidades. Porém, quando chegou a um altinho, onde o recorte do -seu corpo e da cavalgadura se fez com maior precisão e nitidez, Maria -deu um grito, que pela intensidade da dôr que exprimia, seria capaz de -acordar lastimas nos reconcavos d'aquellas montanhas.</p> - -<p>—É meu irmão Thomaz!</p> - -<p>A João da Cunha cahiu-lhe da mão o tarro de leite, que se verteu pela -terra. Affirmando-se com acuidade de vista, levou a mão ao punhal que -tinha no bolso rugindo:</p> - -<p>—Pois matto-o.</p> - -<p>Em casa é que tinha as armas, com que poderia fazer frente aos seus -inimigos; mas a casa estava distante, e tinham de subir um pedaço de -encosta aspera. Chegariam a tempo se corressem; porém, as pernas de -Maria, recusavam-se a andar. Era mortal a pallidez do seu bello rosto, -tremula de commoção a sua voz melodica, pavorosa a angustia da sua alma; -o seu corpo sem energia, deixava-se desfallecer sobre o chão. João da -Cunha, o valente rapaz, principiou a tremer como um vidoeiro, <span class="pagenum" id="Page_240">[Pg 240]</span>açoitado -por ventos furiosos. Maria agarrando-se fortemente ao seu corpo -supplicava-lhe:</p> - -<p>—Esconde-me, esconde-me. Que me não vejam!</p> - -<p>Subia, magestoso e grave do fundo da matta, o sussurro do ribeiro da -Marnoca, cujas grandes aguas se despenhavam, avolumando-se-lhes o som, -com as ressonancias da montanha. Essa voz rouca e solemne attrahia os -dois corações amantes, que só poderiam encontrar refugio nas covas -fundas, onde a corrente uivava e onde o javali se escondia. N'essa -tetrica escuridade de noite haveria por ventura, abrigo e defesa contra -a furia e colera dos irmãos de Maria?</p> - -<p>—Vamos, vamos para baixo e se lá ainda nos encontrarem, jura-me que me -has de mattar com esse punhal, antes que elles me toquem!—clamava a -amada, enleando-se ao tronco do seu amado.</p> - - -<p><span class="pagenum" id="Page_241">[Pg 241]</span></p> -<h3>VII</h3> - -<p>Conservava-se silencioso João da Cunha, porem tinha o semblante -terrivelmente tetrico. Já se ouviam mais perto os tiros de espingarda e -os gritos d'alarme dos batedores, e com este novo perigo mais se -estreitavam os corpos dos dois namorados. Obedecendo ao chamamento da -voz em supplica e reconhecendo a inutilidade de quaesquer esforços para -se deffender, João deixava-se arrastar por Maria para o fundo abysmo da -garganta escura da montanha, onde se despenhavam as aguas em -precipicios. No ultimo relance em que viu, por entre o urzal virgem que -os occultava, os dois cavalleiros, reconheceu serem Thomaz e Vicente, os -dois mais temiveis dos do Corcovado. Aproximava-se portanto, <span class="pagenum" id="Page_242">[Pg 242]</span>o fim do -seu tragico amor. Com a robustez do seu corpo agil, ia amparando o corpo -delicioso de Maria, que já se entregava sem animo. A cada paragem -indispensavel para refazer forças ella solicitava de João, com -verdadeiras lagrimas, que a deixasse esconder-se mais na escuridade. Já -tinha os pés e os braços ensanguentados de roçarem nos silvedos e nas -arestas vivas do granito; o vestido rasgado pelos espinhos dos abrolhos -e das tojeiras! João, apesar de toda a solicitude, não conseguia afastar -com as suas mãos piedosas todos esses duros obstaculos. Tambem elle -tinha a carne dilacerada e dos olhos vermelhos e vehementes sahiam-lhe -expressões alternadas de colera e de pavor. Mas iam descendo sempre, -amparando-se para não rebolarem pelo ingreme declive, do fundo do qual -vinha o bravio ronco das aguas, que se precipitavam de penedo em penedo, -por entre nuvens de espuma branca. O espirito de Maria sentia consolação -em embrenhar-se n'esta sombra de noite, cada vez mais espessa; mas o -barulho dos batedores e dos cães chegava-lhe de muito perto. E quando se -encontrou á borda do ribeiro gemebundo, com a pelle rasgada em feridas, -o vestido de noiva em farrapos, os cabellos desgrenhados e sem flores, -disse com expressão de alivio e desafogo:</p> - -<p>—Podemos morrer. Aqui não nos verão!</p> - -<p>O seu amado estava silencioso e rigido no meio da desventura, que por -todos os lados o cercava. Em breve ali chegaria a sofrega matilha, que -<span class="pagenum" id="Page_243">[Pg 243]</span>podia denunciar a estada d'elles n'aquelle mattagal aspero, escondidos -no reconcavo d'um penedo, abraçados n'um ultimo alento d'amor. João que -já uma vez batera aquellas brenhas, em alegre e bulhenta companhia, -via-se agora como o timido veado, occulto por medronheiros, altas -giestas e urzes seculares, com o fim de se furtar á impertinencia de -miseros rafeiros!... Do peito sahiam-lhe impetos de coragem, tinha -subitaneos repellões de musculos que o animavam a mostrar-se aos seus -inimigos, tal como era, indomito e sem temôr. Poderia subir n'um -arranco, qual outro cabrito montez, aquellas rochas escarpadas; poderia -haver ás mãos as clavinas e as pistolas: depois em campo claro, peito a -peito, combater com denodo, matando e morrendo. O seu coração ousado era -uma cachoeira de sangue n'estes momentos; exaltava-se-lhe a mente n'uma -febre de lucta. Erguendo-se, alto como um gigante, exclamou com os -braços para o céu:</p> - -<p>—Sem ao menos ter aqui as minhas armas com que te possa defender!...</p> - -<p>Maria dedusindo d'estas palavras do seu amado, que elle tivesse o -pensamento de se ir aperceber para a lucta supplicou:</p> - -<p>—Não me deixes só! Ninguem nos imaginará n'esta cova.</p> - -<p>—Depois de darem busca á casa e encontrarem cavallos e mais coisas que -nos pertencem, como não adivinharão?...</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_244">[Pg 244]</span></p> - -<p>—Falta-lhes ainda descobrir-nos.</p> - -<p>—Bastam os cães para nos denunciarem, como se fossemos bicho medroso...</p> - -<p>Humilhou-se, abatendo de novo o seu corpo sobre a terra humosa. Havia -gemer de raiva n'aquelle peito ancioso. Com aspecto torvo e fronte -livida, olhava com vista negra para a espessura da matta, onde o vivo -sol da manhã, apenas gerava uma penumbra. Zumbiam abelhas colhendo o -alimento do rosmaninho, da flôr do tojo e dos sargaços; os innocentes -piscos de peito vermelho volitavam de galho em galho; passara uma cobra -entre o folhedo, que tapetava o chão. A espessura do medronhal já se -enfeitava com rebentos novos; a vida universal, independente e -descuidosa, crescia, remoçava-se á vista d'aquelles corações -desfallecidos e sem esperança.</p> - -<p>A grita dos batedores avultava em intensidade. A matilha em busca accesa -estava perto, subia e descia as penedias, entrava nas covas e na negrura -dos mattos. Os dois amantes, ouviam perto os latidos; sentiam o ganir e -o choro proprio da canzoada na ancia da procura. João da Cunha, -paralytico na sua vontade e remettido á impotencia do seu aspero -desespero, não falava: fechou os olhos para não ver, tapou os ouvidos -para não ouvir. Maria, com a sua alma candida cheia ainda de fé e -esperança, estava de joelhos, as mãos erguidas, orando fervorosa e -supplicante, o pallido rosto innundado de lagrimas. Deu um grito e -interrompeu <span class="pagenum" id="Page_245">[Pg 245]</span>a prece, ao ver por entre a espessura da velha urze que -tapava a bocca do antro onde se tinham escondido, o negro focinho d'um -valente cão do Crasto, que rosnava. João ergueu-se de repente, apurando -todos os seus sentidos, e ficou ameaçador com o punhal na mão. O animal -recuou, subindo para um penedo d'onde principiou a ladrar e a arremetter -com ferocidade. Era um animal medeano, mas de cabeça poderosa: tinha o -focinho agudo, a bocca rasgada como a dos lobos, as orelhas cortadas, em -volta do pescoço uma colleira de pregos. O corpo zebrado de negro, em -fundo pardacento, lembrava a pelle da hyena. O pello do dorso, mais -cerdoso, estava erriçado pela colera; os olhos sanguineos, em circulo -negro, olhavam com ferocidade; os dentes brancos, fortes, eguaes, -arreganhavam-se deixando ver a lingua comprida, como uma chamma. Ladrava -com desespero, resfolgando-lhe as narinas, pois via João da Cunha, com o -punhal na mão, em attitude aggressiva. Outros cães da matilha vieram -junctar as suas vozes ás do denunciante; os batedores, suppondo peça de -caça renitente, algum javalli encurralado entre penedos, animavam com -gritos os animaes, em quanto se iam approximando.</p> - -<p>O lance era de extremos perigos. João da Cunha, palido como a morte, -estreitava ao seu valente corpo, o leve corpo de Maria, cujos irmãos, ao -suspeitarem do valor do signal dado pelos cães <span class="pagenum" id="Page_246">[Pg 246]</span>se tinham já reunido -juncto da ermida para conferenciarem.</p> - -<p>—São elles—disse Thomaz, o de coração mais duro. Examinei aquella casa, -tem coisas que lhes pertencem. Ha um cavallo da Maceira.</p> - -<p>—Não nos fugirão agora—disse rancorosamente Vicente.</p> - -<p>N'estas palavras havia alegria e impiedade. Concertaram o seu plano, que -consistia em descerem, ao mesmo tempo, de quatro pontos differentes, -convergindo para o sitio onde o ladrido se accentuava mais vivo e feroz. -Porfiavam por chegar primeiro que os batedores, para só por si -liquidarem este pleito. Tinham calma no aspecto, mas levavam no coração, -muito mais goso e ferocidade, do que teriam para desalojar a mais -temivel das féras.</p> - -<p>Tamanha era a perseguição que os mastins lhes faziam que João e Maria -tiveram de sahir do seu esconderijo, para ficarem em terreno aberto, -onde se pudessem defender. Os cães do Corcovado, ouvindo a voz carinhosa -da sua ama, tinham-se afastado da contenda; mas os restantes, -especialmente o que primeiro os descobrira, mostravam-se de cada vez -mais inimigos. Houve um instante em que o assedio se tornou tão violento -que João da Cunha pronunciou alto:</p> - -<p>—Maus raios! Eu sem lhes poder chegar!...</p> - -<p>N'este apertado lance é que Maria descobriu, n'uma clareira, cercada de -urzes e medronheiros, passar seu irmão mais velho, o Manuel, com a -espingarda <span class="pagenum" id="Page_247">[Pg 247]</span>ao hombro, dirigindo-se para o sitio onde os cães ladravam.</p> - -<p>—Estamos descobertos!—disse apontando.</p> - -<p>—Inferno!—bramou João da Cunha. Não ter comigo as clavinas!</p> - -<p>Este apparecimento levou Maria para as visões da loucura. Pelo ramalhar -das arvores, em cujos braços as espingardas se prendiam, pelo ondear dos -mattos, percebia-se claramente que tambem os outros do Corcovado para o -mesmo ponto convergiam.</p> - -<p>Maria pensou em encontrar sitio, ainda mais inaccessivel, lá para o -fundo do precipicio. João desvairado, acompanhava-a, amparando-a, para a -não deixar cahir. Nenhum d'elles sabia para onde era levado pelo -destino, pela força interior que os impellia, mas ambos comprehendiam -que mais para baixo era mais cavernoso o marulho da corrente, mais denso -o arvoredo. Havia ahi uma queda de muitos metros, onde a agua levantava -alegres nuvens de espuma, e depois se expraiava em larguesa de bahia -tranquilla. Sem conhecerem o risco, para ahi se dirigiram, attrahidos -pela escuridade e para se livrarem da perseguição crescente da matilha. -Entraram n'uma passagem estreita, onde o ribeiro corria precipitado. O -negrume do logar e o fragor da corrente cegava-os e ensurdecia-os. -Chegaram á fraga d'onde a catadupa se precipita no fundo barathro. Ahi -apareceram abraçados um ao outro, tão meigos e sorridentes, como no -primeiro momento <span class="pagenum" id="Page_248">[Pg 248]</span>d'amor, e n'esse supremo instante é que uma voz de -vingança se lhes levantou fronteira, ameaçando-os:</p> - -<p>—Nem mais um passo, que os varo!...</p> - -<p>Era o Thomaz, que os apontava com a arma aperrada.</p> - -<p>Maria deu um grito de pavor desprendendo-se dos braços do seu amado. -Tapou os olhos para não ver e correndo pela lage fóra, precipitou-se na -cachoeira fremente. João com os dentes cerrados de desespero, os olhos -em chammas de loucura, ainda tentou agarral-a; porém acompanhou-a na -queda, sem poder tocar-lhe no vestido de noiva.</p> - - -<hr class="tb" /> - -<p>O cadaver de João da Cunha, foi encontrado, depois, entre as penedias, -com o craneo esmigalhado. Já os corvos crocitavam em volta da sua misera -podridão. O de Maria, colhido amorosamente pela massa das aguas ao cahir -appareceu boiando no remanso limpido, como o de Ophelia, retido por um -innocente ramo d'urze. Foi d'esta humilde planta, que o seu corpo gentil -recebeu o ultimo beijo de carinho.</p> - - -<p class="center p0 p2 big">FIM</p> - - - - -</div> - - -<div lang='en' xml:lang='en'> -<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>A NOSSA GENTE</span> ***</div> -<div style='text-align:left'> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Updated editions will replace the previous one—the old editions will -be renamed. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. 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Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. -</div> - -<div style='margin:0.83em 0; font-size:1.1em; text-align:center'>START: FULL LICENSE<br /> -<span style='font-size:smaller'>THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE<br /> -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK</span> -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase “Project -Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg™ License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person -or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be -used on or associated in any way with an electronic work by people who -agree to be bound by the terms of this agreement. 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Information about the Mission of Project Gutenberg™ -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s -goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg™ and future -generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see -Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit -501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the -state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal -Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification -number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by -U.S. federal laws and your state’s laws. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, -Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up -to date contact information can be found at the Foundation’s website -and official page at www.gutenberg.org/contact -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread -public support and donations to carry out its mission of -increasing the number of public domain and licensed works that can be -freely distributed in machine-readable form accessible by the widest -array of equipment including outdated equipment. Many small donations -($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt -status with the IRS. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Foundation is committed to complying with the laws regulating -charities and charitable donations in all 50 states of the United -States. Compliance requirements are not uniform and it takes a -considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up -with these requirements. 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Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Most people start at our website which has the main PG search -facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -This website includes information about Project Gutenberg™, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. -</div> - -</div> -</div> -</body> -</html> diff --git a/old/67561-h/images/001.jpg b/old/67561-h/images/001.jpg Binary files differdeleted file mode 100644 index 002c0ba..0000000 --- a/old/67561-h/images/001.jpg +++ /dev/null diff --git a/old/67561-h/images/cover.jpg b/old/67561-h/images/cover.jpg Binary files differdeleted file mode 100644 index 102ec8d..0000000 --- a/old/67561-h/images/cover.jpg +++ /dev/null |
