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If you are not located in the United States, you -will have to check the laws of the country where you are located before -using this eBook. - -Title: Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa - -Author: Gabriel Pereira - -Release Date: May 18, 2022 [eBook #68121] - -Language: Portuguese - -Produced by: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the - Online Distributed Proofreading Team at - https://www.pgdp.net - -*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PELOS SUBURBIOS E -VISINHANÇAS DE LISBOA *** - - - - - - GABRIEL PEREIRA - - PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS DE LISBOA - - [Illustration] - - LISBOA - - LIVRARIA CLASSICA EDITORA - - DE A. M. TEIXEIRA & C.ᵗᵃ - - 20, PRAÇA DOS RESTAURADORES, 20 - - 1910 - - - _Porto--Imp. Portugueza--Rua Formosa, 112_ - - - - -S. Domingos de Bemfica - - (1905) - - -Na falda norte da serra de Monsanto está o logar de S. Domingos de -Bemfica; um antigo mosteiro em parte abandonado, rodeado de quintas -fidalgas com seus palacios, jardins, cascatas e alamedas de secular -arvoredo; e uma pinha de pequeninos predios antigos a entestar com o -maninho da serra. - -O nome de Monsanto feriu-me a attenção e procurei se por aquelles -sitios haveria vestigios de templo ou edificio de remota antiguidade, -tão raros no aro da capital. No meu segundo passeio deparei um grande -marmore lavrado, provavelmente parte superior de uma ara romana, -encostado á parede da quinta do sr. marquez de Fronteira. - -Ha duvidas todavia sobre a proveniencia da pedra; julga-se não ter sido -encontrada alli, sim na Ribeira velha, no antigo palacio Fronteira, por -occasião de certas obras; e removida para Bemfica ha uns 40 annos. - -O achado incitou-me a continuar na indagação, e num pittoresco retiro -agora mal tratado da cerca monastica fui encontrar uma estatua que -parece de arte romana; é na fonte do satyro, que fr. Luis de Sousa -descreve na chronica do seu convento. - -O celebre dominicano já conheceu a estatua e a fonte na disposição -actual; lá estão ainda as cinco ardosias, duas quadradas e tres -ellipticas, com o lettreiro latino, que elle tambem menciona. - -Póde affirmar-se que o logar está qual estava então, apenas descurado. -Ora os estragos que a estatua apresenta não teem explicação facil na -posição actual. O satyro nada tem da rudeza gothica, nem das imitações -classicas da renascença. O rosto apesar de muito gasto ainda tem -singular expressão de alegria; segurava nas mãos uma taça ou urna que -depois mutilaram para collocar uma torneira. Na cabeça e nas coxas -grandes madeixas ondeadas; os musculos bem estudados nos hombros e -braços. Parece uma estatua romana. - -Junto da fonte estão avulsas algumas pedras lavradas, dois fechos de -abobada com a esphera de D. Manuel e a cruz de Christo, parte de um -friso e dois pelouros medianos. - -É um encanto aquelle sitio de S. Domingos; o terreiro com seu antigo -arvoredo dispõe bem o visitante da egreja, uma pobre egreja que é um -ninho de recordações portuguezas. - -Entrando, á esquerda, o sarcophago de «Vasco Martins da Albergaria, -cavalleiro fidalgo da casa do sr. infante D. Henrique e seu camareiro -mór, filho de Affonso Lopes da Albergaria, o qual passou da vida deste -mundo das feridas que houve na tomada e no descerco de Ceuta aos... -dias do mez de dezembro da era de Jesus Christo, de 1436 annos». - -É um pequeno sarcophago de tampa alta; o letreiro na facha anterior da -tampa e da arca. No meio o brazão com a cruz de Aviz sanguinha, aberta -e floreteada, com oito escudetes azues das quinas reaes. Aos lados do -escudo uma fita em relevo onde se lê a divisa _porêm vede bem_. - -Á direita o tumulo de João das Regras, encimado pela estatua onde -evidentemente o esculptor quiz reproduzir o aspecto do famoso -jurisconsulto. Tem barrete e habito de lettrado; a gola larga segura -por tres botões. Na mão direita sobre o peito segura um livro. Os -cabellos um tanto ondeados cahindo sobre a fronte. Á esquerda da figura -a espada com o cinturão enrolado. A espada está tratada com minucia, o -punho lavrado em linhas, o extremo com sua flor; é uma espada direita, -larga, curta. O cinto é lavrado tambem de flores, tendo bem definidas a -fivella e a ponteira. - -Aquella estatua é um documento precioso de indumentaria. - -O tumulo tem inscripção, escudos; assenta sobre quatro leões de -marmore. Não é este o unico varão illustre cujo nome se encontra no -mosteiro; fr. Vicente (1401), outro amigo do mestre de Aviz, e Diogo -Gonçalves Belliago (1410) teem alli as suas inscripções sepulcraes, -assim como fr. Arnáo (1502). - -Na capella de S. Gonçalo de Amarante ha algumas estatuas em marmore de -Carrara, de valor artistico. - -O sacrario é de madeira entalhada, de grande elegancia, principalmente -no corpo superior. - -Bons azulejos vestem as paredes, assignados por Antonio de Oliveira -Bernardes. - -No cruzeiro jazem muitas pessoas distinctas, principalmente da casa -Fronteira e Alorna; o ultimo que alli foi repousar o célebre D. Carlos -de Mascarenhas, fallecido em maio de 1861. - -Na escura passagem do cruzeiro para a sacristia uma campa singelissima -com um nome que illumina os espiritos, fr. Luis de Sousa. - -E no claustro proximo, muito tranquillo e fresco, convidando a serena -meditação, a capella e o jazigo de D. João de Castro. - -É um grupo incomparavel de recordações portuguezas. - - * * * * * - -Isto escrevi eu na _Revista Archeologica_ de Borges de Figueiredo (vol. -3.ᵒ, de 1889, pag. 99). Querido amigo! Infeliz espirito, tão maltratado -na lucta da vida! - -Era archeologo, latinista e epigraphista de alto merecimento. Corpo -enfermiço, franzino, tez pallida, mortiço o olhar, fraca a vista; -bella intelligencia cultivada, com solida erudição e fina critica. Os -seus ultimos tempos foram de doença e desgosto. Por tres vezes, se bem -me recordo, visitámos juntos o sitio de S. Domingos de Bemfica; elle -levava sempre a filha, nos seus passeios; uma menina delicada, debil -no aspecto, cheia de meiguice. Eram inseparaveis, ella queria estar -sempre junto, bem junto do pae. O meu pobre amigo falleceu na manhan de -15 d’outubro de 1890; tinha feito na vespera 37 annos. Foi professor -na Escola Rodrigues Sampaio, por algum tempo ensinou num collegio -particular; durante annos foi laborioso bibliothecario da Sociedade -de Geographia. Escreveu livros muito apreciaveis; _Coimbra antiga e -moderna, O Mosteiro de Odivellas, a Geographia dos Lusiadas_; em todos -os seus trabalhos se revéla bem o espirito de investigação, e a sã -critica historica. Parecia impossivel aquella actividade em tão fraco -organismo. Na _Revista Archeologica_ deixou entre varios trabalhos -bons, um de alta importancia sobre as inscripções em verso leonino em -Portugal. A filha morreu um mez depois do pae; não soffreu aquella -ausencia, finou-se a pobre creança debil, asphyxiada de morte pela -saudade amarga. - - * * * * * - -Quantas mudanças na egreja de S. Domingos de Bemfica fez depois o bem -intencionado architecto Nepomuceno! A urna do Albergaria foi para o -ante-côro sombrio, para cima de duas misulas ou cachorros, á maneira -de deposito de agua para não visto lavabo. O tumulo de João das Regras -foi para o meio do côro, onde está bem para ser visto. A estatua -jacente do insigne doutor soffreu concerto, a mão direita aperta um -livro sobre o peito; a esquerda tinha desapparecido. Segundo a chronica -cahia sobre o coração, como se elle estivesse orando. Nepomuceno mandou -fazer a mão que faltava, erguida, segurando um papel enrolado. E parece -agora que o inclito doutor está indeciso entre o livro e o rolo de -papel. - - * * * * * - -Ha pouco tempo, já depois da obra a que se procedeu, visitei a egreja -tomando notas mais minuciosas. - - * * * * * - -No cruzeiro da egreja ha inscripções sepulcraes de interesse historico. -Na parede entre o arco da capella mór e a porta da sacristia estão dois -letreiros; o superior menciona Fr. Vicente, da ordem dos prégadores, -fundador, fallecido em 1401; foi prégador de D. João 1.ᵒ e autor de -muitos livros. - -Sob este está==Fr. Diogo Gonçalves Belliagua, frade da mesma ordem, -primeiro povoador do mosteiro, isto é, o primeiro que residiu aqui, -fallecido em 31 de agosto de 1410. - -Estes letreiros são relativamente modernos; na Chronica se podem ver as -inscripções primitivas. - -Á direita da capella mór, na parede, está a==Sepultura de fr. Arnáo, -da mesma ordem, fallecido em 2 de maio de 1502. - -Proxima a lapide de==D. Carlos de Mascarenhas, segundo filho dos 6.ᵒˢ -marquezes de Fronteira. N. em 1 d’abril de 1803. F. em 3 de maio de -1861. - -A seguir==D. Maria Constança da Camara, marqueza de Fronteira e de -Alorna. N. em 14 de julho de 1801. F. em 11 de setembro de 1860. - -No chão está a campa da==Marqueza de Fronteira D. Helena Josefa de -Lencastre. F. em 14 de março de 1763. - -Perto==O sargento maior Manuel Carrião de Castanheda, cavalleiro -da ordem de Christo, f. em 22 de dezembro de 1676, e sua mulher D. -Sebastiana Dias Fialha. - -==S. de Diogo Antunes. 1662. - -==S. de Maria Coelha. - -==D. G.ᵒ Velozo d’Araujo, cavalleiro fidalgo da Casa delrei N. S. e de -sua molher Joanna de Bulhão, f. a 3 de março de 1603. - -==S.ᵃ de João Velho Lobo... Travassos... Algumas destas campas estão -incompletas, ou gastas. - -Na capella do Senhor Jesus, esquerda do cruzeiro, está uma pedra com -brazão; diz-nos que o instituidor foi Antonio de Freitas da Silva, -fidalgo, etc., com sua mulher D. Jeronima Paes d’Azevedo, em 1677. - -No corpo da egreja, segunda capella á esquerda==Capella de Enrique -Mendes de la Penha, fidalgo de solar conhecido, e a comprou sua filha -D. Lionor Enriques, viuva de Luis Pereira de Carvalho, em 1663.==Tem -brazão. - -Olhando para a capella mór, a porta á nossa esquerda abre para uma -passagem que serve o côro e a sacristia, o ante-côro. Ahi, no chão, -proximo dos degraos que levam ao côro, está uma campa singela. - - _Aqui jaz - frei Luiz de Souza. - nasceu em 1553 - morreu em 1632_ - -a seguir, na mesma campa: - - Mandou collocar - esta lapida - o padre Joaquim - Pinto de - Campos - natural de - Pernambuco - (Brazil) - aos 4 de junho de - 1878. - -Na mesma sombria casa de passagem, ou ante-côro, na parede, sobre duas -misulas, vê-se uma urna brazonada. Estava antes da ultima obra, á -esquerda da porta d’entrada; agora alta como está, e na casa quasi sem -luz, é difficil lêr o letreiro. - -Desdobrando as abreviaturas, diz: Aqui jaz Vasco Martins da Albregaria -cavalleiro fidalgo da casa do sr. infante dom Anrique e seu camareiro -moor filho de A.ᵒ Lopes da Albregaria o qual passou da vida deste mundo -das feridas que houve na tomada e no descerco de Cepta aos... dias do -mez de dezembro da era de J. C. de 1436 annos. - -Além do escudo dos Albergarias, conforme o que vem no Thesouro da -Nobreza, tem escudos com sua divisa que me parece ler _Porém vêde bem_. - -A meio do côro está o tumulo de João das Regras; o letreiro occupa o -friso da caixa. - -==Aqi: jaz: joan: daregas: cavaleiro: doutor: em: leis: privado: -delrei: dom: joan: fundador: deste: moesteiro: finou: III: dias: de: -maio: era: M: IIIIᶜ: XL: II: ans:==É um lettreiro, em gothico, bem -lavrado; as palavras todas divididas por dois pontos. - - * * * * * - -Na parede exterior da casa que ora serve á irmandade da S.ᵃ do Rosario -está cravada uma pedra com a inscripção: - - Esta sanchristia man - darão fazer os irmãos - de Nossa Sra do Rozario - a sua custa p.ᵃ a fabrica - da sua irm.ᵈᵉ em maio de 1680. - -Na sacristia uma grande campa sem lettras, com o brazão da casa de -Bellas, isto é, quatro flores de liz nos angulos de uma cruz. - -O Thesouro da Nobreza descreve assim o brazão dos Correias de -Bellas==em campo vermelho uma cruz de oiro firmada no escudo entre -quatro flores de liz do mesmo metal. - -No côro ha duas grandes campas sem brazões nem letreiros; diz a -Chronica que está alli o carneiro ou deposito funéreo dos Botelhos. - -No cruzeiro, á direita, ao canto, ha uma porta encimada por um brazão; -abre para a capellinha onde está a imagem do Senhor Jesus dos Passos. -Mas o pequeno e rico edificio é dedicado a S. Gonçalo de Amarante. Uma -inscripção latina declara que em 1685 o bispo fr. Manuel Pereira mandou -fazer a capella. É de muito e apurado trabalho, em lindos marmores. -Estatuetas de finissimo Carrara povoam os nichos. Preside S. Gonçalo de -Amarante tendo aos lados a S.ᵃ do Rosario, S. José, S.ᵃ Appollonia, S. -Thereza, S. João de Deus, S. Felippe, S. Domingos e S. Thomaz d’Aquino. - -As columnas salomonicas aos lados de S. Gonçalo são de pedra fina da -Arrabida de um trabalho apuradissimo. - -Parecem-me de origem italiana estas lindas estatuetas em marmore de -Carrara, delicadamente esculpidas, com a maneira usada na época. - - -O satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica - -A estatua do satyro conserva-se na situação em que fr. Luis de Sousa a -conheceu. - -Entrando no claustro d’aquelle extraordinario convento de S. Domingos -de Bemfica, toma-se a porta, ao canto, que diz para a fonte e horta. -Desce-se uma breve escada, entra-se n’um pequeno recinto, com assentos -de pedra; ao fundo a fonte rasteira; lá está o satyro e uns pedaços de -marmore com um verso latino. O muro que separa a horta do recinto da -fonte é mais recente. - -Felizmente eu tirei o desenho do satyro ha tempos; modernamente houve -obras no edificio, e um alvanéo mais gracioso divertiu-se a lançar cal -sobre a pobre estatua. - -Eu estou convencido que este satyro é romano. Fr. Luis de Sousa já o -conheceu assim, n’aquella posição; ora em tal posição a estatua não -podia estragar-se da maneira que se vê; a superficie está desigual; -ha pontos em que se conserva o primitivo estado, na parte superior -do peito, nas madeixas das coxas; em outros sitios a superficie está -gasta, frusta, ou por longo attrito ou por inhumação prolongada. -As mãos foram arruinadas por causa da adaptação de torneiras, obra -provavel dos frades; porque primitivamente a agua não sahia de taça ou -urna que o satyro tivesse nas mãos; sahia do outro sitio; a estatua é -pagan e bem pagan. - -Apesar de frusta ainda a physionomia é notavel, e é bem propria a -phrase de fr. Luis de Sousa, _simplicidade montanheza_; ha estatuas de -Pan com aquella attitude e expressão. - -Trabalho da renascença não me parece, nem estaria assim estragado -em tempo do celebre chronista; gothico, romanico, impossivel; nunca -trabalharam assim em taes tempos. Porque a estatua tem expressão, ha -observação anatomica nos musculos, nos hombros, as claviculas bem -marcadas, as madeixas elegantes. - -É por isso que me convenço que a estatua é romana. - -Ha mais antiguidades romanas alli pelos sitios, e o nome Monsanto chama -logo a attenção. - -Naturalmente os dominicanos encontraram, por acaso, a estatua e -aproveitaram-n’a para a sua fonte; e assim a salvaram. - -Que interessante e mimosa a descripção que fr. Luis de Sousa escreveu -da fonte do satyro! Vem na Historia de S. Domingos (2.ᵃ parte, livro -2.ᵒ, cap. 1.ᵒ--Do principio e fundação do real convento de Bemfica). -Diz assim: - - * * * * * - -==Passado o claustro, quem busca a horta do convento, dá poucos passos -em uma praça empedrada, que ficando na parte mais alta, e como a meia -ladeira da cerca, descobre grande parte do vale. - -Aqui sahem os religiosos a gosar o fresco da tarde em o verão, e o -soalheiro de inverno, depois que deixam o refeitorio. Porque além da -vista desabafada, e larga para fóra, tem na mesma praça de uma parte -uma graciosa fonte, e da outra um espaçoso tanque, que cada cousa per -si alegra e deleita os olhos. - -A fonte se faz em um arco, que formado de brutescos varios e vistosos, -arremeda uma gruta natural. Dentro parece assentado um grande e bem -proporcionado satyro, imitando com propriedade os que finge a poesia. -Em toda sua figura mostra em rosto risonho e alegre uma simplicidade -montanheza, com que está convidando a beber de uma concha natural, que -tem apertada com o braço e mão esquerda, da qual sae um formoso torno -de agua: e juntamente com a direita acode como arrependido a cobril-a; -e faz geito de a querer retirar, dando com uma e negando com outra. - -A agua é quanto póde ser excellente, e de uma qualidade propria das que -nascem nas serras, fria e desnevada na maior força do sol do estio; -temperada no inverno, como um banho. - -Acompanham a gruta de um e outro lado em igual distancia dois grossos e -altos pilastrões, que sendo feitos de boa cantaria para estribo de uma -abobada a que se arrimam, foi a natureza cobril-os de uma hera muito -espessa e viçosa, que subindo por elles até a mór altura, assim esconde -e senhoreia a pedraria, que faz parecer foram fundados, mais para honra -da fonte, que segurança do edificio: assim ajuda a natureza a arte, e -o accidental ao bem cuidado. - -E porque entre gente que professa letras é bem que nem nos satyros se -ache rudeza, faz lembrança este nosso a quem folga de o ver, com um -verso latino entalhado em pedaços de marmore negro, que correm a vida e -os annos sem parar, nem tornar atraz, ao modo d’aquelle licor, que lhe -sae das mãos. Advertencia de sabio não de rustico: que agoas e annos se -se não aproveitam com bons empregos, perdidos são, e pouco de estimar. -Cae a agoa, por não pejar a praça, em um pequeno tanque, deixando-o -cheio some-se n’elle, e vae por baixo da terra, fazer outra fonte na -boca de um leão. - -É de ver aquelle rosto fero coberto de guedelhas crespas, e medonhas, -que ameaçam sangue e morte, feito ministro de mansas agoas. Verdadeiro -poder e symbolo da religião que amansa leões e faz Satyros doutos==. - -Publiquei este artigo no _Boletim da Real Associação dos Architectos -Civis e Archeologos Portuguezes_ (T. VII. 1894. pag. 7), acompanhado de -gravura. Então era facil visitar a fonte do satyro: agora está vedada -ao publico, não sei porquê. Naquella parte do edificio installou-se -uma succursal do collegio de Campolide, com aulas de theologia, ao que -ouvi dizer. Não deixavam entrar no claustro. Ha tempos saíram dalli -os padres; mas o edificio continúa fechado; não se sabe onde pára a -chave. Não se póde visitar a fonte tão finamente descripta por fr. -Luis de Sousa, nem a capella dos Castros, cuja entrada é tambem pelo -claustro. - -É de fr. Luis de Sousa a descripção da - - -Capella dos Castros - -==He a obra da Capella dorica, a proporção dupla, com quarenta palmos -de largo, mais de setenta de comprimento. He de huma só nave de -pedraria brunida, o lageamento de pedras de cores, tambem brunidas: -funda-se a mais architetura della em hum proporcionado pedestal, -que em torno a circunda interiormente. Tem seis arcos com pilares -interpostos sobre bases: capiteis, e simalhas tambem em torno, com -seis luzes obradas com respeito á architectura. A porta principal tem -no claustro do Convento, e sobre ella pende hum escudo relevado das -armas do Fundador. O tecto, despois de coroado com a simalha, he tambem -de pedraria, apainelada com artezães, e molduras: os dous primeiros -arcos de seis, que a compoem, ficam nos Presbiterios; no da parte do -Evangelho está huma porta, que dá serventia pera a Tribuna, e aposentos -do Fundador: no outro da parte da Epistola, outra pera o serviço da -Sachristia, os outros quatro occupão quatro sumptuosas sepulturas, de -pedras de cores lustradas, que sobre as costas sustentão elefantes de -pedras negras. - -No primeiro arco, que fica junto ao do Presbiterio da parte do -Evangelho, está a sepultura de Dom João de Castro, com o seguinte -Epitaphio. - - * * * * * - -D. Ioannes de Castro XX. Pro Religione in vtraque Mauritania stipendijs -factis, nauata strenue opera Thunetano bello fœlicibus armis penetrato; -debellatis inter Euphratem, et Indum nationibus: Gendrosico Reye, -Persis, Turcis vno prœlio fusis; seruato Dio, imo Reipublicæ reddito, -dormit in magnum diem, non sibi, sed Deo triumphator: publicis -lachrimis compositus, publico sumptu prœ paupertate funeratus: obijt -Octauo Id. Iunij. Anno 1548. Aetatis 48. - - * * * * * - -Estão em o seguinte arco, junto a este os ossos de D. Leonor Coutinho, -sua mulher. - -Da parte da Epistola, em o arco que responde ao da sepultura de Dom -João de Castro, está a de Dom Alvaro seu filho, com o Epitaphio -seguinte. - - * * * * * - -D. Aluarus de Castro. Magni Ioannis primogenitus, cui pené ab infantia -discriminum factus pugnaram prœcursor, triumphorum Consors, œmulus -fortitudinis, hœres virtutum, non opum: Regum prostrator, et restitutor -in Sinai veatice eques fœliciter inauguratus: a Rege Sebastiano Summis -Regni auctus honoribus; bis Romæ, semel Castellæ, Galliæ, Sabaudiæ, -legatione perfunctus, obijt 4. Kalend. Septemb. Anno. 1575. Aetatis suæ -50. - - * * * * * - -Logo no outro arco junto a este está Dona Anna de Atayde, mulher do -mesmo D. Alvaro. - -No vão desta Capella se fez um Carneiro com seis arcos de pedraria, em -hum dos quais ha Altar pera se dizer Missa, e os mais tem repartimentos -pera os ossos, e corpos dos defunctos. - -Sóbe-se do pavimento d’esta Capella por seis degráos entre dous -presbiterios, nos quais estão as sepulturas do Fundador, e sua Irmam: a -primeira da parte do Evangelho com o Epitaphio que se segue. - - * * * * * - -D. Franciscus á Castro, Episcopus olim Aegitanensis, hujusce -Sanctuarij, ac interioris Cœnobij fundator, hunc sibi, dum viueret, -tumulum posuit, in quo et requiescet post mortem. - - * * * * * - -A segunda, com este, da parte da Epistola. - - * * * * * - -D. Violante de Castro Cometissa relicta vidua Domini Alfonsi de -Noronha, Comitis Odomirensis hic quiescit, obijt XIV, Kalendis Iulij, -anno Domini DC. XXXXVI. Sorori optimæ, seu verius matri, Frater -amantissimus dedit, posuit. - - * * * * * - -Sobre estes degráos está o Altar de jaspes brunidos, apartado do -retabolo, em forma que fica emparando a entrada do Choro, que detraz -do mesmo Altar tem os Irmãos da casa de Noviços; e a que se entra por -entre dous pedestaes de jaspes brunidos de treze palmos de alto, nove -de largura, onze de grossura. No fronstispicio delles se veem duas -tarjas embutidas de jaspes brancos, cercadas de suas faxas de outros -pretos, na que fica da parte do Evangelho está escripta a instituição -da Capella na forma seguinte. - - * * * * * - -Ad maiorem ineffabilis Eucharistiæ venerationem, peculiarem Deiparæ -Virginis de Rosario honorem; indiuiduam Patriarchæ Dominici, Martyrum -Nazarij, Celsi, Victoris, ac Innocentij confessoris memoriam, ædem hanc -in penetralibus Sacratiorem Erexit, Condidit, Dicauit D. Franciscus á -Castro Episcopus olim Aegitanensis, Regis, ad status consilia adsidens, -rerum fidei moderator supremus. Anno Domini M.DC.XLVIII. - - * * * * * - -Na outra tarja, que fica da parte da Epistola, se contém as obrigações -dos suffragios, que por si deixou o Fundador, diz assim: - - * * * * * - -Instituit ad altare triplex iuge sacrificium annuas pro defunctis -vigilias, iuniorum cœnobitarum adsciuit excubias, habitacula -coœdificauit: sibi religiose ante Dominum sepultura prouisa; maioribus -suis posuit monumenta, magis pie, quam magnifice, quorum posteris -subtus aram Condictorium fecit, legauit in hæc opera pietatis sexcentos -annuos aureos. - - * * * * * - -Sobre estes pedestais se levantão de cada parte tres columnas de -folhagem até o meio, que proseguem em estriado, as dos cantos mais -recolhidas, as outras duas mais sahidas pera fóra, e corpulentas, entre -ellas se abrem nichos de alto abaixo, que recolhem varias reliquias -de Sanctos engastadas em custodias de preço. Estas seis colunas, que -todas são de lavores, vão receber a simalha do Altar, sobre a qual -se presenta á vista um quadro da Cea do Senhor, de singular pintura -acompanhado de duas colunas de macenaria galantemente lavradas, que vão -receber hum remate do mesmo quadro, unido já com a abobada da Capella. -Aos lados destas colunas ficão dous quartões ornados com duas pyramides -exteriores. - -Por entre as tres colunas de huma, e outra parte, que estão sobre -os pedestais, se fecha hum arco quasi da mesma altura das colunas, -que fica fazendo lugar ao Sacrario (em que sempre está o Sanctissimo -Sacramento alumiado com duas alampadas de prata). Do pavimento que -fica debaixo deste arco se levantão oito colunas em estylo oitavado, -que recebem huma charola alterosa com seu zimborio, que se remata com -hum Pelicano polla banda de fóra. Debaixo desta charola se levanta -hum throno em forma quadrada com quatro colunas pequenas, que fazem -os cantos, com que se forma a primeira peça, na qual se abrem dous -nichos, hum pera a parte do Choro, outro pera a Capella; o do Choro -tem uma Imagem de nosso Padre S. Domingos, o que fica pera a Capella -occupa outra de nossa Senhora de singular estimação por antiguidade, e -feitio; he um meio corpo de alabastro, com o braço esquerdo abraça o -minino que se sustenta em pé sobre uma almofada, e na mão direita tem -hum livro, tudo da mesma pedra. Dá a estas imagens inestimavel valor a -antiguidade, que em outras nações, com mais primor, e felicidade, que -na nossa, avalia semelhantes obras; porque segundo a certeza que disto -ha, e o Bispo tinha, estiverão estas imagens occultas, e sepultadas no -muro da Cidade de Tunes, desde o tempo, que os mouros a tomarão aos -Christãos, até que o Emperador Carlos Quinto lha ganhou, que então -se descobriram, não sem mysteriosa circumstancia, porque batendo a -artilharia o muro, e arruinando parte d’elle, cahiram as imagens sem -padecer lesão alguma. O Infante Dom Luiz, que n’esta empresa se achou -com o soccorro de Portugal, grandiosamente abreviado naquelle celebre -galeão de 366 peças, e ajudou a ganhar a victoria, por despojo d’ella -escolheo só estas imagens, que despois deu a Dom João de Castro, Avô do -Bispo fundador.== - - (_Historia de S. Domingos particular do reino e conquistas de - Portugal, por fr. Luis de Cacegas, reformada por fr. Luis de Sousa, - filho do convento de Bemfica. Ampliada por fr. Antonio da Encarnação._ - Lisboa, 1866; 2.ᵃ parte do 3.ᵒ vol., pag. 198). - -Quantas recordações nobilissimas nesta capella! Agora a elegante -construcção está ameaçando ruina. Parece-me todavia facil acudir-lhe. -A frontaria desligou-se um pouco do corpo do edificio, entra agua de -chuva pela fenda produzida pelo desvio. Alguns annos de desleixo e a -ruina será enorme, o concerto dispendioso. Dizem-me que esta capella -está na posse de um particular, ha tempos ausente de Portugal. E não -sei se ainda ha culto ahi; essa parte do edificio está habitada por uma -congregação feminina, estrangeira; nada dizem, respondem sempre que não -sabem da chave. - - -Fr. Vicente de Lisboa - -D. João 1.ᵒ cedeu a Casa real de Bemfica a fr. Vicente de Lisboa para -estabelecimento do instituto dominicano, em 1399. - -Este fr. Vicente era provincial da sua ordem em Castella e Portugal, -inquisidor geral de Hespanha, confessor e prégador de D. João 1.ᵒ -Foi com certeza um vulto importante. Barbosa Machado, na Bibliotheca -Lusitana falla delle, firmando-se no epitaphio que primitivamente -marcava o logar de repouso das suas reliquias. - -Ahi se _lia per illum_ (fr. Vicente) _in hac civitate_ (Lisboa) _et -in diversis hujus regni partibus, destructa fuerunt opera diaboli et -haereses erroresque, atque idolatriae._ _Edidit etiam varios libros -excellentis doctrinae._ - -Barbosa Machado diz que não conseguiu vêr nenhum de taes livros. Mas -sabe pelo epitaphio que elle combateu as crendices populares, as -superstições viciosas, as praticas pagans observadas ainda no seu tempo -pela gente rude. É tarefa antiga esta de combater tradições, bruxarias, -costumeiras, que hoje fazem as delicias dos folqueloristas. Ainda não -vi tambem livro que se possa attribuir a fr. Vicente de Lisboa; mas -não se perde a esperança. É bem possivel que nalguma antiga collecção -de sermões se contenham os do prégador de D. João 1.ᵒ Na livraria do -infante D. Fernando havia um volume assim designado==_Item, hum livro -de pregações de frey Vicente per lingoagem_. (T. Braga, _Historia da -Universidade de Coimbra_, 1.ᵒ pag. 229). - -Muitas obras que se julgavam perdidas teem surgido nos ultimos annos. -Os tratados de alveitaria e citraria (este incompleto) de mestre -Giraldo existem na Bibliotheca Nacional, assim como uma copia antiga -do _Livro de Montaria de D. João 1.ᵒ_ O tratado da phisionomia, _Opus -de physiognomia_, de mestre Rolando, está na Bibliotheca da Ajuda. -Nos Documentos historicos da cidade de Evora dei noticia e grandes -extractos dos tratados medicos, da idade media, existentes na livraria -d’aquella cidade. - -O sr. Leite de Vasconcellos, o nosso grande investigador, foi descobrir -em Vienna, uma versão portugueza das fabulas de Esopo, que já publicou -na Revista Lusitana. - -Por isto não perco a esperança de ver ainda um dia alguma obra de fr. -Vicente de Lisboa. - - -Fr. Bartholomeu dos Martyres - -Uma parte do convento que olha para norte está bastante arruinada; -eram ahi os dormitorios do noviciado; as janellas das humildes cellas -deitam para a cerca; a vista dilata-se por aquelles campos e collinas -verdejantes de Bemfica, jardins, frescos hortejos, copados arvoredos. -Uma d’essas pequeninas janellas é a do quarto que por muitos annos foi -habitado por um homem dos raros, dos mais raros, que tem havido em -Portugal, fr. Bartholomeu dos Martyres. - -Foi aqui professor muitos annos. - -Primeiramente esteve, ensinando já, no convento da Batalha. - -Passou ao convento de Evora porque o infante D. Luiz, desejando fazer -grande lettrado seu filho o sr. D. Antonio, depois prior do Crato, -infeliz rei e exilado, instou e conseguiu que fr. Bartholomeu fosse ler -theologia nos dominicanos de Evora; ahi conheceu fr. Luiz de Granada, -outro raro. Permaneceu em Evora alguns annos; obrigaram-no então a -vir ser prior de S. Domingos de Bemfica, que era o grande noviciado -de Portugal. Vivia muito pobremente, sem a minima ostentação; amigo -do Convento e mais amigo da cella; dormindo pouco, comendo pouco. -Enthusiasta professor estava sempre prompto a ensinar; lia aos noviços -disciplinas superiores, mas se via necessidade fazia cursos d’artes -elementares, aos rapazes; fazia praticas numa capella da egreja. Era um -eloquente, como fr. Luiz de Granada; e ás vezes arrastado pelo calor -da palavra, enthusiasmava-se, e enthusiasmava o auditorio; uma vez -terminou a pratica chorando elle e todos os ouvintes. - -Gostava de passear na cerca, e estava muitas vezes á janella da sua -pobre cella; os noviços ouviam-no cantarolar a meia voz, tomando o ar, -encostado ao peitoril da janella que dá para o campo. - -As visitas contrariavam-no um pouco, o cardeal D. Henrique, o infante -D. Luiz frequentavam o convento; um dia instaram com elle para que -acceitasse a mitra de Braga. Do tranquillo cantinho de S. Domingos de -Bemfica para o paço archi-episcopal de Braga! - -Largar o convento, as aulas, a cêrca, a sua cella tão boa para o -estudo! Não queria, não queria! Foi a rainha D. Catharina que o mandou; -elle então obedeceu. Foi sempre um altruista, espirito cheio de -abnegação. Preparou-se para a partida, teve de deixar por algum tempo -Bemfica; mas antes de partir definitivamente para Braga foi passar um -dia a S. Domingos, ao querido sitio de Bemfica, foi despedir-se da -egreja, das aulas, da sua tranquilla cella, das arcadas silenciosas do -claustro, da fonte da horta, das arvores, das flores. - -E foi para Braga, para aquellas extranhas missões das montanhas -minhotas, e para as solemnes discussões do concilio de Trento. - -Era por indole um professor, gostava de ensinar. Tanto que se viu -livre da mitra primacial elle ahi vae para o seu retiro de Vianna do -Lima, ensinar rapazes; nos seus passeios pelos campos o bom velhinho, -ás vezes, assentado a repousar, doutrinava os humildes pastores. Que -esta raça portugueza em tempos antigos produziu mestres em sciencias -e lettras que illuminaram universidades em Hespanha, Italia e França. -Merece ainda attenção este homem no ponto de vista da hygiene em geral; -pelo seu regime de vida, habitos e predilecções. Usava fazer grandes -passeios a pé, era sóbrio, de bom humor. Lendo hygienistas modernos, -Gautier (Armand--_L’alimentation et les regimes chez l’homme sain et -chez les malades_) por exemplo, encontram-se conselhos para a vida dos -intellectuaes, que lembram logo o methodo de vida de fr. Bartholomeu -dos Martyres. - - -D. Isabel Maria - -A infanta D. Isabel Maria residiu bastantes annos na sua casa de S. -Domingos de Bemfica. Velhinha, adoentada nos ultimos tempos, cheia -de recordações, por alli passeava morosamente sob as magnolias e os -cedros. A quinta está contigua á cerca do convento. - -O palacio parece que foi construido em tempo de um certo Devisme -negociante e capitalista, grande amigo do marquez de Pombal, que tambem -se importava de politica, tendo altas relações no estrangeiro, ahi -pelo meio do seculo XVIII. As estatuas de marmore que ornam o jardim -são d’essa época, mas o desenho, a disposição foi alterada. No palacio -houve mudanças e ainda nos ultimos annos foi ampliado; está installado -alli o bem afamado collegio de Jesus, Maria, José; grande numero das -senhoras da fina sociedade actual passou por esse estabelecimento de -educação. - -Depois de Devisme pertenceu a bella propriedade á casa dos marquezes -de Abrantes, illustre familia. Por morte do ultimo marquez, em 1847, -foi comprada pela infanta D. Isabel Maria filha de D. João VI, e de D. -Carlota Joaquina. Nasceu a infanta em 4 de julho de 1801, e falleceu a -22 de abril de 1876, pelas 3 horas da tarde. - -Interessante figura; vida que em grande parte decorreu entre agitações -politicas e palacianas; presidente da junta de regencia, em 6 de -março de 1826, ficando de parte a rainha D. Carlota, por occasião da -enfermidade de D. João VI, e por morte d’este, regente em nome de D. -Pedro IV, até ao celebre dia 22 de fevereiro de 1828, em que depoz o -governo nas mãos de D. Miguel. Foram um horror esses tempos de paixões -violentas, de conspirações politicas, que não paravam no vestibulo -do paço, e até de lá partiam, pois conspiradora foi sempre a mal -aventurada D. Carlota Joaquina. - -Devia ser curioso este sitio de S. Domingos de Bemfica nessa longa -crise politica dos primeiros decennios do século passado, porque -os Fronteiras, os Mascarenhas, entraram na tentativa de 1805, e -continuaram até á ultima no liberalismo; os da casa d’Abrantes e os -dominicanos inclinavam-se ao absolutismo. - -Mas a infanta que no Paço viu as discordias insensatas entre pae e mãe, -e na politica encontrou o tumulto entre exaltadas individualidades, -entre partidos raivosos, conseguiu equilibrar-se desempenhando com -superioridade o melindroso cargo de regente. - -Crescendo a idade retirou-se, cada vez mais; por fim metteu-se no seu -ninho de S. Domingos, nas sombras abrigadas e aromaticas das suas -magnolias. - - -Palacio e jardim Fronteira - -Entre as mais notaveis vivendas destes sitios de Bemfica sobresae -o palacio Fronteira com os seus lindos jardins e fresco hortejo, -singulares obras d’arte e historicas recordações. - -Dizem que o primeiro marquez de Fronteira, D. João Mascarenhas, mandou -fazer na sua propriedade um pavilhão de caça para receber a visita -del-rei D. Pedro II, e esse foi o núcleo do palacio: isto pelos annos -de 1670 a 1681. Antes certamente havia outras construcções porque a -elegante capella é de 1584. O terremoto de 1755 arruinou o palacio -de Lisboa; foi a familia Fronteira residir para Bemfica, e então -ampliaram o tal pavilhão formando-se o palacio actual. O grande jardim, -a monumental galeria e cascata, devem ser do fim do século XVII, com -grande influencia do estylo italiano. - -Os azulejos da magnifica sala do pavilhão referem-se á batalha do -Ameixial. É pena não se conhecer bem a formação d’esta vivenda porque -se póde affirmar notavelmente conservada, exemplo rarissimo em Portugal. - -O jardim é um enlevo, no genero antigo, com as suas estatuas, fontes -artisticas, grande peça d’agua, grutas, escadarias, varandas de -balaustrada, elegantes pavilhões. - -Muito regular, taboleiros geometricos e symetricos, com ruas e -travessas, e pequenas praças, sendo maior a central onde se ergue -artistica fonte de taça alta, ostentando em pinaculo os escudos dos -Mascarenhas. - -A poente a fachada do palacio, a sul a galeria dos reis; norte e -nascente moldura ou parede de arvoredos, com vista para o campo; -compridos assentos azulejados. - -Ha estatuas no jardim, na parede do tanque, dentro do tanque, na -varanda da galeria, em nichos, nos vertices dos pavilhões! - -Entre matizes de flores e aromas riem faunos, dançam nymphas, os deuses -teem sorrisos benevolentes. - -Brilha ao sol o paganismo. - -Na gruta maior que abre para o tanque está o Parnaso, um monte com o -Pégaso alado e galopante, e em roda, a variadas alturas, Apollo e as -Musas, estatuetas em fino marmore. - -Na parede da galeria quadros de azulejo com figuras de cavalleiros, -doze na frente, dois nos lados, os cavallos a galope, parecendo que vão -entrar em renhido torneio. - -Á esquerda, olhando para a galeria, ha muitos retratos, em azulejo, -dos Mascarenhas, condes de Obidos, Torre, Santa Cruz, marquezes de -Fronteira; á direita, fronteando os retratos, estão representados os -brazões. - -Na galeria em nichos forrados de azulejos hespanhoes, de reflexo -metallico, uns acobreados, alguns de tom azul, bustos dos reis de -Portugal, entrando o conde D. Henrique, e o infante D. Fernando o -santo. Os ultimos bustos d’esta galeria, os de Affonso VI e Pedro II, -são os de melhor trabalho. Uma porta communica para o jardim alto ou -moderno; segue a segunda galeria dos reis, D. João V, D. José, D. Maria -I e D. João VI. Sobre a porta entre as galerias um busto do imperador -Tiberio, talvez copia de busto authentico. - -Estatuas mythologicas, faunos prasenteiros, gentis nymphas dançantes, -ornam plinthos no jardim, e as balaustradas. Azulejos estranhos, -hespanhoes e hollandezes, fazem rodapés, representando scenas -familiares, caçadas, episodios agricolas. - -Embrechados finos de buzios e conchas, fragmentos de louças orientaes, -vidros pretos, cristaes de rocha, bocados de escorias, em complicados -desenhos, forram paredes das cascatas. N’uma grande parede do jardim -molduras e ornatos em faiança, folhagens, flores e fructos no genero -chamado dos Della Robia. - -Neptuno e o seu cortejo, em grande quadro de azulejo; outro em relevo -de alvenaria infelizmente em grande estrago, cumprimentam um rio, o -Tejo, provavelmente. - -Num quadro de azulejo o ratão do artista representou Jupiter, e pintou -ao lado o nome assim: _Ghvptre_. - -No jardim moderno, entre fetos magnificos e grande collecção de -camelias, ha uma fonte central, de taça, com a estatua de Venus. O pé -da taça é um grupo de golphinhos lavrado num lindo bocado de marmore -com laivos avermelhados. - -Dizem que a esta Venus se refére Tolentino na satyra intitulada _A -funcção_. - - Musa basta de rimar - ................... - ................... - ... sincera velha - Pondo contra a luz a mão - E crendo que nesta rua - Está São Sebastião - De Venus á estatua nua - Faz mesura e oração. - -É bem interessante a historia dos jardins; conhecem-se exemplos do -Egypto, da Assyria; celebres entre os romanos os de Plinio e de -Sallustio, ornamentados de terraços, fontes, estatuas. - -Cultivavam rosas, lyrios, violetas, malvas, algumas arvores e arbustos -cortados e aparados em feitios caprichosos, como o louro e o buxo; -estimavam muito o esguio cypreste, e a vinha como planta decorativa. - -E neste ponto tinham muita razão porque a parreira faz lindo ornato, -com mudança de tons, gracilidade de curvas, além do encanto do cacho, -quer se applique a edificios ou se enrosque em arvores. - -Mas os jardins conservaram-se regulares e symetricos durante seculos. - -O jardim irregular, de imprevistos, o jardim-paisagem é mais moderno. - -Ha muitos livros sobre jardins e construcções architectonicas -especiaes, fontes, repuxos e grandes jogos d’agua, cascatas, terraços, -caramanchões e pavilhões. Merece ver-se o livro de Alicia Amherst, -intitulado: _A history of gardening_ (London, 1896), e _L’art des -jardins_ por Jorge Riat, que faz parte da Bibliothèque d’Enseignement -des Beaux-Arts; qualquer d’estes livros indica sufficiente -bibliographia. - -Em Portugal ha bonitos jardins modernos e ainda alguns antigos -conservando os seus engenhosos desenhos; a invasão moderna de plantas -exoticas prejudica bastante o jardim antigo, araucarias e chamerops -não harmonisam bem nas combinações geometricas e symetricas, não podem -substituir as cevadilhas, as balaustras, de pequeno porte, de brilhante -folhagem e vistosa florescencia. Uma alta araucaria pyramidal destoa -nos bordados jardins de Caxias e Queluz. Arvores variadas, exoticas -ou naturaes, empregavam-se em fazer parede ou moldura de jardins, em -alamedas de horta ou laranjal. - -No Diccionario dos Architectos, vasto trabalho do sr. Sousa Viterbo, -por vezes apparecem architectos encarregados de obras em jardins, o -que não admira porque todos os jardins antigos tinham obras d’arte -importantes, terraços, escadarias, balaustradas, cascatas enormes e -complicadas, com jogos d’agua, pavilhões, etc. (Dicc. dos Architectos, -vol. 1.ᵒ, pag. 62 e 395; 2.ᵒ, pag. 350 e 379). - -Póde dizer-se que o jardim antigo é principalmente architectonico, e -que o moderno é filho da pintura. - -Na Bibliotheca Nacional de Lisboa, a respeito de jardins ha livros -antigos notaveis, especiaes; e tambem em obras que não tratam de -cultura ou architectura dos jardins por incidente se topam vistas e -desenhos interessantes. - -Um certo in-folio grande, impresso em Roma, adornado com boas gravuras, -e o titulo _Villa Pamphilia ejusque palatium cum suis prospectibus, -statuae, fontes, vivaria, theatro, areolae, plantarum viarumque -ordines_ apresenta-nos grande numero de estatuas proprias para jardim -e minuciosos desenhos dos terreiros ajardinados, que parecem imitar -salvas de prata repoussée; sem uma arvore saliente; arbustos talhados, -não muito altos, ornam os extremos. Era o jardim italiano, classico. - -Numa obra de numismatica _I Cesari in metallo raccolti nel_ MUSEU -FARNESE, por Pietro Piovene (Parma, 1727), ha lindas gravuras com -muitos aspectos e detalhes dos jardins da Villa Madama, e do Palazzo -di Caprarola (no tomo 1.ᵒ), mostrando bem a magnificencia, a nobreza -d’essas bellas vivendas italianas. - -Um allemão, _Hirschfeld_, escreveu uma vasta obra, de que ha versão -franceza, em 4 volumes, _Theorie de l’art des jardins_ (Leipzig, -1779-1783). - -É trabalho notavel: trata dos jardins em varios pontos de vista, -da sua historia e da historia das plantas, do aproveitamento das -arvores segundo o seu effeito ou aspecto, das combinações, dos planos -differentes. No 4.ᵒ volume vi a noticia de Guilherme Kent o criador da -arte dos jardins em Inglaterra; era pintor e architecto. Descreve os -trabalhos de Le Notre, grande jardineiro francez. N’isto de jardins -ha escólas, muito bem definidas. Foi economica, principalmente, a -razão porque a escóla de Kent venceu a de Le Notre; o jardim á antiga -era de grande custeio; para se conservar bem era preciso trabalhar -constantemente. Só admittia flores finas, raras; na Hollanda o -enthusiasmo pela tulipa, a tulipomania, attingiu excessos. Kent -introduzindo arvores e arbustos fez grande economia. Ha o jardim -agradavel, o risonho, o majestoso, o romanesco; o jardim fidalgo, o -burguez, o campestre, o publico, o academico, o monastico, finalmente o -funebre. - -O tal allemão chega mesmo a projectar jardim para de manhã, do meio -dia, e da tarde; jardins para effeitos crepusculares. A cultura e a -disposição do jardim variam com os climas, e com a abundancia das aguas. - -É impossivel imitar nos paizes frios os jardins de Hespanha ou de -Italia; querer implantar nos paizes do sul os arrelvados inglezes é -arrojado. A relva nada custa em Inglaterra, e em Portugal a murta, o -lirio, o cravo e a rosa não precisam cuidados. - -A leitura do Hirschfeld, me parece, é ainda hoje util a quem deseje -tratar de jardins publicos ou particulares. - -Porque ha uma esthetica de jardins, e tambem merece attenção a questão -economica. Em Portugal, por exemplo, não se usa da laranjeira ou da -vinha em jardins; e estão os jardins cheios de palmeiras monotonas. -Vê-se gastar muito dinheiro para ter bocadinhos de arrelvado, que o sol -de verão cresta numa hora. - -Vêmos formar talhões com uma só essencia, o que parece esthetica de -hortelão, quando as alamedas ou avenidas são muito mais pittorescas e -vistosas variando a qualidade das arvores. - -O jardim publico de Evora tem effeitos bonitos; foi planeado e plantado -pelo scenographo Cinatti, que calculou os aspectos que arbustos e -arvores dariam quando desenvolvidos. Infelizmente depois não seguiram, -completamente, as indicações do artista; todavia ainda é manifesto o -fino criterio que presidiu á disposição do arvoredo. - -_Il reale giardino di Boboli nella sua pianta e nelle sue statue_ com o -_Alticchiero_ (Padua, 1787) é livro pouco vulgar. - -Muitas estampas finamente gravadas mostram os planos, os aspectos, e -principalmente as estatuas. - -O jardim Boboli, em Florença, tinha amphitheatro, casino, palacetes, -jardim botanico, o pequeno jardim de Madama, o dos ananazes, o da ilha, -o da fortaleza, e a grande pesqueira de Neptuno. No jardim de Oeiras -havia tambem pesqueira; até ahi pescou á canna a rainha D. Maria I, na -famosa visita que lá fez, no tempo do segundo marquez de Pombal. - -Neste jardim Fronteira as tropas miguelistas em 1833 entraram sanhosas, -todavia parece que o estrago não foi consideravel. Diz-se tambem que se -tratou aqui da formação da Arcadia Lusitana, que os tres poetas Antonio -Diniz da Cruz e Silva, Theotonio Gomes de Carvalho, e Manoel Nicolau -Esteves Negrão por estes caramachões de rosas e jasmins discutiram -as bases da famosa academia litteraria. O snr. Theophilo Braga (pag. -180 de _A Arcadia Lusitana_) conta que os tres poetas se reuniam em -Bemfica; mas ha tradição de que era na quinta dos Fronteiras que elles -frequentavam, e de que mesmo um d’elles perto morava. - -José Maria da Costa e Silva, no seu poema _O Passeio_, diz que em -Portugal se chamavam jardins de D. João de Castro, aos irregulares, por -ter sido o famoso heroe o primeiro que os plantou na Europa: - - Vêde Castro, o terror dos reis do Oriente - ..................................... - E o primeiro mostrar d’Europa ás gentes - Dos chinezes jardins a variedade. - -Em outra parte escreve: - - Dos chinezes jardins chistoso typo! - - -A marqueza d’Alorna - -Um nome de grande dama portuguesa se liga á residencia Fronteira; aqui -viveu por algum tempo _Alcipe_, nome arcadico de D. Leonor de Almeida -Portugal Lorena e Lencastre, condessa de Oyenhausen e marqueza de -Alorna (n. 1750--m. 1839). - -Mas por poucos annos. Ella esteve, menina e moça, reclusa no mosteiro -de Chellas, viveu em Vienna, em Paris, em Londres, por esse mundo fóra, -sempre superior dama portuguesa, de altaneira mente; depois em Portugal -ora na sua quinta de Almeirim, ora na de Almada; por muitos annos na -hospitaleira e fidalga casa a Santa Izabel. - -Pousou em Bemfica, é verdade, em annos de aspera lucta pelo nome de -sua casa; e, verdade é tambem, lá vi, na galeria envidraçada que olha -para o jardim, memorias, retratos, lembranças familiares, d’essa -extraordinaria senhora. - -Que existencia tão rodeada de surprezas tragicas, cheia de duradouras -inquietações, a d’esta nobilissima dama portuguesa, que soube responder -á sorte rude com santas idéas, corajosos trabalhos, e composições de -serena poesia. Parece que n’esses poucos annos que passou na vivenda -de Bemfica foi que ella conheceu um moço de aspecto um tanto agreste, -de firme vontade, espirito altivo, intelligencia clara, que se chamou -Alexandre Herculano; muitos annos volvidos, a marqueza teve vida longa, -viu ella com ineffavel prazer, o moço estudioso e attento desenvolvido -no collossal escriptor. - -É adoravel o que Herculano escreveu a respeito da marqueza, poucos -annos depois da morte d’ella. - -Vou apresentar alguns extractos d’esse notavel artigo publicado no -_Panorama_, de 1844. - -==Por grande que deva ser a gratidão que se associa ás recordações -d’aquelles que nos geraram, por funda que vá a saudade inseparavel da -memoria paterna, no coração do bom filho, ha um affecto não menos puro, -e não menos indestructivel, para o homem cujo espirito allumiado pela -cultura intellectual tem a consciencia de que o seu logar e os seus -destinos no mundo são mais elevados e nobres que os d’esses tantos -que nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois -morrerem sem deixarem vestigio. Este affecto é uma especie de amor -filial para com aquelles que nos revelaram os thesouros da sciencia, -que nos regeneraram pelo baptismo das lettras; que nos disseram: -«caminha!» e nos apontaram para a senda do estudo e da illustração, -caminho tão povoado de espinhos como de flores, e em cujo primeiro -marco milliario muitos se teem assentado, não para repousarem e -seguirem ávante, mas para retrocederem desalentados, quando sósinhos -não sentem mão amiga apertar a sua e conduzi-los apoz si. Tirae á -paternidade os exemplos de um proceder honesto, as inspirações da -dignidade humana, a severidade para com os erros dos filhos, os -cuidados da sua educação, e dizei-nos o que fica? Fica um certo -instincto, ficam os laços do habito, e para impedir que tão frageis -prisões se partam, fica o preceito de cima que nos ordena acatemos e -amemos os que nos geraram, ainda que a elles não nos prenda senão a -dadiva da existencia, esse tão contestavel beneficio. Pelo contrario -aquelles que foram nossos mestres, que nos attrahiram com a persuasão -e com o proprio exemplo para o bom e para o bello, que nos abriram as -portas da vida interior, que nos iniciaram nos contentamentos supremos -que ella encerra, para esses não é preciso que a lei de agradecimento e -de amor esteja escripta por Deus; a rasão e a consciencia estamparam-na -no coração: cada gôso intellectual do poeta, do erudito, do sabio lha -recorda, e quando elles se comparam com o vulgo das intelligencias -reconhecem plenamente a justiça do sentimento de gratidão que os domina. - - * * * * * - -Áquella mulher extraordinaria a quem só faltou outra patria que não -fosse esta pobre e esquecida terra de Portugal, para ser uma das mais -brilhantes provas contra as vans pertenções de superioridade excessiva -do nosso sexo, é que eu devi incitamentos e protecção litteraria, -quando ainda no verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada -das lettras. - -Apraz-me confessa-lo aqui, como outros muitos o fariam se a occasião -se lhes offerecesse; porque o menor vislumbre d’engenho, a menor -tentativa d’arte ou de sciencia achavam n’ella tal favor, que ainda -os mais apoucados e timidos se alentavam; e d’isso eu proprio sou bem -claro argumento. A critica da senhora marqueza d’Alorna não affectava -já mais o tom pedagogico e quasi insolente de certos litteratos que -ás vezes nem sequer entendem o que condemnam, e que tomam a brancura -das proprias cans por titulo de sciencia, de gosto, e de tudo. A sua -critica era modesta, e tinha não sei o que de natural e affectuoso que -se recebia com tão bom animo como os louvores, de que não se mostrava -escaça quando merecidos. - -Uma virtude, rara nos homens de lettras, mais rara talvez entre as -mulheres que se teem distinguido pelo seu talento e saber, é a de não -alardearem escusadamente erudição, e essa virtude tinha-a a senhora -marqueza em grau eminente. A sua conversação variada e instructiva era -ao mesmo tempo facil e amena. - -E todavia dos seus contemporaneos quem conheceu tão bem, não dizemos -a litteratura grega e romana, em que igualava os melhores, mas a -moderna de quasi todas as nações da Europa, no que nenhum dos nossos -portugueses porventura a igualou? - - * * * * * - -Ahi verá como em todas as phases da sua larga e não pouco tempestuosa -carreira ella soube dar perenne testemunho do seu nobre caracter -de independencia e generosidade; verá que em quanto na terra natal -primeiro a tyrannia, e depois a ignorancia e a inveja a perseguiam, -ella ia encontrar entre estranhos a justa estimação de principes, e de -illustres personagens da republica das lettras. Ahi verá como nascida -no seculo do materialismo, vivendo largos annos no fóco das idéas -anti-religiosas, acostumada a ouvir todos as dias repetir essas idéas -por homens de incontestavel talento, ella soube conservar pura a crença -da sua infancia, e expirar no seio do christianismo. Ahi finalmente -verá como as ausencias, por vezes involuntarias, da sua terra natal, -não poderam fazer-lhe esquecer o amor que devemos a esta, ainda no meio -das injustiças e violencias de todo o genero. ==(_Panorama_, pag. 403 e -404 do vol. de 1844, artigo assignado por A. Herculano). - - -A capella do palacio - -Em 11 de fevereiro de 1903 se rezaram missas de corpo presente pela -alma do marquez de Fronteira na pequena capella do palacio. - -É um templosinho elegante com seu portico de columnas em estylo da -renascença classica. Sobre a porta tem o letreiro: - - _Dicatum charitati coeli - januae M.D.LXXX.IIII_ - -É certo que o estylo diz perfeitamente com a data 1584. É possivel que -tenha havido transformação grande de outra capella anterior, porque é -tradição que S. Francisco Xavier antes de partir para a India, alli -celebrou a sua ultima missa em Portugal, e o santo apostolo das Indias -deixou Lisboa em 1541. - - -Sepultura de João d’Aregas--O escudo d’armas - -==É a sepultura uma grande caixa de marmore assentada sobre quatro -leões, lavrada em torno de escudos de armas, quarteados em aspa, e nos -campos alto e baixo em cada um sua cruz floreada da feição das da Ordem -de Aviz; e nos campos de cada lado uma serpe com azas ameaçando para -fóra; na lagea que a cobre está o defunto entalhado de relevo, vestido -em roupas largas e barrete posto, insignias de letrado; mas acompanhado -tambem das de cavalleiro, que são seu estoque á ilharga; as mãos juntas -sobre o peito como quem faz oração.==(_Historia de S. Domingos_, pag. -176). - -Como se disse já, a mão direita da estatua segura um livro, e segurava, -sobre o peito; a esquerda que inclinava sobre o coração e se partira e -extraviára, está agora substituida por outra nova, erguida, segurando -um rolo de papel. - -No Thesouro da Nobreza descreve-se assim o brazão: - -==Escudo franxado nos campos alto e baixo em vermelho uma cruz aberta -e floreteada, nos quarteis dos lados em campo d’oiro uma serpente -vermelha batalhante. Timbre as duas serpentes do escudo.== - -Sobre esta familia de Aregas, ou das Regras, encontro uma longa memoria -de José Freire de Montarroyo Mascarenhas, no 5.° vol. dos Titulos -genealogicos (B. N. L. Sec. Mss. Cod. 1034, pag. 289 e segg.) - - -Nomes de artistas - -Percorrendo a «Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, e -escultores, architectos e gravadores portuguezes... por Cyrillo Volkmar -Machado (Lisboa, 1823)» encontro o seguinte: - ---_André Gonçalves_, o pintor da Vida de José do Egypto na sacristia -da Madre de Deus, fez os quadros no côro de S. Domingos de Bemfica. -Este artista falleceu em 15 de junho de 1762--. Os quadros no espaldar -do côro representam a vida de N. Senhora; acham-se regularmente -conservados. Entre os quadros ha figuras de anjos, em variadas -posições, do mesmo pincel. Não são notaveis; parecem feitos sobre -estampas vulgares; monotonos no colorido; todavia o effeito do -conjuncto é agradavel. - ---_José da Costa Negreiros_ (m. 1759) pintou a casa do Capitulo--. A -casa que serve á Irmandade da S.ᵃ do Rosario tem pinturas que podem ser -deste artista. - ---_Ignacio de Oliveira Bernardes_ (n. 1695--m. 1781), esteve em Roma; -foi pintor, architecto, decorador; foi este o architecto da casa e -quinta de Gerardo Devisme (actualmente o collegio).--Pertencia a uma -familia de artistas que trabalhou immenso em varios generos. Por -muitas partes se encontram ainda producções destes homens. Os azulejos -da egreja, como já disse, estão assignados por Antonio de Oliveira -Bernardes. - ---_Jeronimo Correia_, esculptor em madeira, fez em Bemfica os ornatos -das capellas.--Se foi este que executou o sacrario, elegante obra -d’arte, era sem duvida um optimo artista. - ---As duas grandes imagens da capella mór, S. Domingos e S. Pedro -Martyr, são obra do melhor esculptor que viveu em Hespanha, por -1651.--Acho esta noticia assim indeterminada em varias partes; creio -que se referem ao esculptor português _Manuel Pereira_ (m. 1667). - -Francisco d’Assis Rodrigues no seu diccionario diz que Manuel Pereira, -o primeiro esculptor português, foi o autor das imagens de Christo, S. -Jacintho, e S. Pedro, em S. Domingos de Bemfica. - - * * * * * - -_D. frei Fernando de Tavora_ (m. 1577), religioso de S. Domingos, -discipulo de fr. Bartholomeu dos Martyres, estimava muito a arte da -pintura, e nella excedeu os melhores pintores do seu tempo; alguns dos -seus paineis se conservam ainda em S. Domingos de Bemfica (_Santarem -edificada_, de Piedade e Vasconcellos, 2.ᵃ parte, pag. 464). - - * * * * * - -Na egreja vejo os bellos azulejos; o lindo trabalho, majestoso e -bem equilibrado, do altar mór, o cadeirado e as pinturas do côro, -alguns quadros nas capellas, e as imagens. Entre estas sobresaem as -figuras do Crucificado, a da S.ᵃ do Rosario, as grandes estatuas de -S. Domingos e S. Pedro Martyr. É possivel que sejam de Manuel Pereira -(V. o meu artigo na _Arte Portugueza_, Lisboa, 1895, pag. 57). Careço -de elementos de comparação; não encontro assignatura, monogramma ou -documento. Em todo o caso o boato algo vale; e não tem duvida que as -esculpturas são boas. - -No domingo de Paschoa, 3 de abril de 1904, celebrou-se missa no altar -mór, a primeira depois das morosas obras de concerto e reparo que -durante annos impediram os exercicios do culto. - - - - -O lindo sitio de Carnide - -(1898) - -Março de 1898. - -Por tristissimo incidente na minha vida tendo de passar uma temporada -em Carnide, onde a amabilidade de uma familia excellente nos quiz -espairecer da fatalidade brutal que nos feriu, eu, seguindo a velha -tendencia do meu animo, comecei de indagar historias, e dar passeios -pelas azinhagas solitarias; os largos passeios pelos campos que são a -melhor fórma de isolamento doloroso. - -Muito naturalmente, para esclarecimento, consultei alguns livros; o -primeiro que abri causou-me admiração; foi o _Diccionario Popular_ -publicado sob a direcção de Pinheiro Chagas. - ---É sitio procurado no verão por alguns habitantes da cidade, que ali -vão convidados pela sua amenidade. Gosa o logar egualmente de reputação -de bons ares e abundancia de aguas, bem como alegre posição. Manda -a verdade que se diga que o logar é detestavel, formado por algumas -duzias de casas insalubres, dispostas em arruamentos sujissimos, para -os quaes se fazem todos os despejos, e não tem passeios, nem jardins, -nem quintas, nem arvoredos, nem bons pontos de vista. As aguas são -extremamente escassas e os ares, por muito bons que podessem ser, -resentem-se das más qualidades do sitio. Ainda assim o logar grangeou -fama immerecida, e varias familias de Lisboa o procuram para terem dois -mezes de campo! São gostos!-- - -Ora a verdade é que o sitio de Carnide me impressionou agradavelmente -com as suas largas vistas, brilhantes, matizadas de verdes, as suas -graciosas quintas, as suas azinhagas quietas entre vallados de -madresilvas, caniços, heras, roseiras, pilriteiros e congossas nas -juvenis florescencias do começo de primavera. - -E abri outro livro. - -Foi a _Corografia Portugueza_ do bom padre Antonio Carvalho da Costa -(Lisboa, 1712), que no seu tomo 3.ᵒ trata de Carnide, mui brevemente. - -Menciona a egreja parochial de S. Lourenço. Diz que o seu cura era -apresentado pelos priores do convento de Nossa Senhora da Luz e que o -logar tem oitenta visinhos com nobreza, duas ermidas, e muitas quintas -com uma fresca alameda: e relaciona os conventos. - -A alameda fresca é sem duvida a do largo da Luz. - -Recorri logo ao Pinho Leal, no seu _Portugal antigo e moderno_, enorme -trabalho com algum joio, é verdade, mas onde o corajoso colleccionador -archivou muita noticia de valia. - ---Carnide, freguezia no districto de Lisboa, concelho de Belem (hoje é -freguezia de Lisboa), a seis kilometros a NNO. de Lisboa. - -Tem 260 fogos. - -Em 1757 tinha 250 fogos. - -É freguezia muito antiga, pois já existia em 1394. - -A maior parte é situada em fertil e saudavel campina, com lindas -vistas. Orago, S. Lourenço. - -O cura era da apresentação do prior da Luz, da Ordem de Christo, depois -passou a ser vigario collado perpetuo, com 80$000 réis de renda. - -A egreja de Nossa Senhora da Luz foi fundada por 1540, pela infanta D. -Maria, filha d’el-rei D. Manuel e de sua terceira mulher D. Leonor. A -fundadora está sepultada na capella-mór. - -O terremoto de 1755 damnificou muito esta egreja; existe apenas (agora -em bom estado, depois da obra recente que ali se fez) a capella-mór e o -cruzeiro. - -Continúo a seguir o Pinho Leal. - -Convento de freiras carmelitas descalças de Santa Thereza: é antigo, -foi reedificado pela infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, por -1680. - -Frades carmelitas descalços, de S. João da Cruz, fundado pela princeza -Michaela Margarida, filha de Rodolpho II, imperador de Allemanha, por -1642, que n’elle está sepultada (nem o imperador se chamava Rodolpho; e -a pobre princeza está sepultada no convento de Santa Thereza, como logo -contaremos). A infanta D. Maria, filha de D. João IV, viveu aqui (no -convento de Santa Thereza) de 1649 até 1693. Foi mestra da infanta D. -Luiza, filha bastarda de el-rei D. Pedro II. - -Esta D. Luiza foi reconhecida por D. João V, que a casou com D. Luiz -Alvares Pereira de Mello, duque de Cadaval; por morte d’este casou -com D. Jayme, seu cunhado, que ficou sendo duque de Cadaval, porque o -primogenito morreu sem geração. - -A infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, veiu para aqui de -tenra idade. Reedificou a egreja e o mosteiro, ampliando muito o -edificio. Viveu recolhida sem professar. O reconhecimento como filha -do rei foi feito solemnemente na presença da familia real e da côrte, -no mosteiro. Esta senhora era muito estimada; as rainhas D. Luiza de -Gusmão, mulher de D. João IV, D. Maria Francisca Isabel de Saboya e -D. Maria Sophia de Neubourg a visitavam muito. O irmão, D. Pedro II, -encarregou-a da educação da filha, D. Luiza, que depois foi duqueza de -Cadaval. - - * * * * * - -A procissão dos Passos de Carnide faz-se na 5.ᵃ dominga de quaresma -(este anno, 1898, foi em 27 de março). - -A conhecida feira da Luz, com arraial e festa, é nos dias 7 e 8 de -setembro. - -O cirio do Cabo visitou Carnide pela primeira vez em 1437. - -Carnide está na 7.ᵃ ordem do giro. Em 1795 houve festa ruidosa porque -tomaram parte no cirio o principe D. João (depois D. João VI) e sua -mulher D. Carlota Joaquina. - -A Senhora do Cabo tem capella propria na egreja da Luz, na capella-mór, -á esquerda; ainda ahi existe um formoso frontal, com o brazão da -infanta D. Maria. - -Vamos ouvir o Padre Luiz Cardoso, no seu _Diccionario Chorographico,_ -que infelizmente ficou incompleto. Este escreve em 1751: - ---Na egreja de S. Lourenço ha cinco altares, o maior, o de N. S.ᵃ do -Rosario, o de Christo crucificado, o de S. Miguel, e o de Jesus Maria -José. Havia então tres irmandades: a do Senhor, a de N. S.ᵃ do Rosario, -e a das Almas. - -Tem (tinha) a freguezia mais as ermidas do Espirito Santo, a de S. -Sebastião e a de N. S.ᵃ da Assumpção na quinta de José Falcão de -Gamboa, hoje o casal do Falcão. - -A fonte de N. S.ᵃ da Luz, antigamente da Machada, divide-se em duas, a -fonte de dentro e a de fóra. - -A de dentro está sob o altar-mór, a agua no sabor é grossa e salobra -mas mui sádia, e principalmente contra a pedra tem especial virtude, -e não consta que filho algum da terra padecesse semelhante achaque ou -outra qualquer pessoa que d’ella usasse.-- - - * * * * * - -O _Santuario Mariano_ de fr. Agostinho de Santa Maria é repositorio -de muitas informações, porque este extraordinario devoto de Nossa -Senhora a proposito das imagens que descreve, dá noticias das egrejas e -localidades onde se veneram. - -No tomo I, pag. 98, escreve da imagem de Nossa Senhora da Luz em -Carnide: e conta de como antes de 1463 foi captivo em Africa Pedro -Martins, natural de Carnide; este homem teve sonhos milagrosos, fez -promessas, e conseguindo livrar-se do captiveiro mourisco voltou á sua -patria, onde já existia a fonte do Machado, e edificou a ermida. A -fundação foi solemne, porque a ella assistiu D. Affonso V. É provavel -que este Pedro Martins fosse algum antigo companheiro d’armas d’el-rei -D. Affonso V, que a historia denominou o Africano, por causa das suas -arrojadas emprezas e valentes brigas no Algarve d’além-mar. Pedro -Martins collocou na ermida, em agradecimento, os grilhões do captiveiro. - -A infanta D. Maria, filha de D. Manuel, fez a nova egreja em 1575. - -A pag. 411 do mesmo tomo o padre Cardoso refere-se á imagem de Nossa -Senhora da Conceição, do côro do convento da Conceição no sitio de -Carnide (depois em Arroyos), sem dar noticia importante. - -Fr. José de Jesus Maria, na _Chronica de Carmelitas descalços da -Provincia de Portugal,_ tomo III, pag. 147, acha o logar de Carnide -situado em campo alegre e de ares puros, e cercado de muitas e curiosas -quintas que servem igualmente para o lucro e ao recreio. - -Compõe-se o logar de 264 visinhos (elle escreve em 1753). - -Falla do convento da Conceição que na sua quinta fundou Nuno Barreto -Fuzeiro. - -Do convento de Santa Thereza, nobilissimo seminario de infantas e -senhoras... onde tantas vezes chegou a pobreza, a ponto de ás vezes não -terem de comer. - -Mas as freiras tinham grande repugnancia em pedir; esperavam até á -ultima; nada havendo, nem a esperança, tocavam uma sineta, a sineta da -fome, pedindo soccorro. O mesmo succedia com as freiras do Calvario -em Evora; tinham tambem o toque da fome. Quando nada havia, nem se -esperava, iam para o côro, entoavam as suas rezas ao som do triste -signal. Por vezes, no convento de Carnide, houve coincidencias que -pareceram milagres. Uma vez ia a pobre soror, meio desfallecida, -começar o signal da fome, quando bateram estrondosamente á portaria. -Era um presente de atum assado que mandava a duqueza de Aveiro. - -Outra vez appareceram uns navegantes, salvos de grande tormenta no -mar, com uma esmola de 20$000 réis. - -Em 1646 se dispôz a madre priora Michaela Margarida de Sant’Anna a -lançar a primeira pedra do convento novo. Foi o duque de Aveiro quem -lançou a pedra e d’isto se lavrou a inscripção==O duque de Aveiro, D. -Raymundo de Lancastre botou a primeira pedra deste convento a 2 de -junho de 1646.== - -Nova obra começou em 15 de outubro de 1662, commemorada em outra lapide -(hoje no cunhal da frontaria da egreja):==Maria Joannis Lusitaniae -Regis Filia hoc opus struxit anno Domini 1662.== - -A dedicação do templo de Santa Thereza foi em 15 de outubro de 1668. - -A capella-mór é de Santa Thereza. - -A do Evangelho é de S. João da Cruz. - -A da Epistola é da Senhora da Conceição. - -Defronte da grade do côro de baixo está a capella do Senhor dos Passos, -com procissão na 5.ᵃ dominga de quaresma. - -No côro alto ha muitas reliquias (é um grande relicario entalhado e -dourado, que se vê da capella-mór). - -A infanta D. Maria, filha de D. João IV, mandou fazer os retabulos. - - * * * * * - -Podemos affirmar, pois, que a egreja de Carnide era já parochial no -seculo XIV. Que no seculo XVI era logar de certa importancia, pois a -insigne infanta D. Maria, filha de D. Manuel, aqui veiu fundar egreja -e hospital. Depois os differentes conventos e obras particulares; as -grandes quintas com magnificas moradias, etc. - -Em 1712 tinha 80 visinhos com nobreza, o que é extraordinario; verdade -é que não sabemos bem onde chegaria então a freguezia de Carnide; que -no termo de Carnide se encontram bastantes casas, que podemos chamar -pequenas, com seus brazões em porticos e cunhaes, é verdade. - -Em 1753 tinha 264 fogos. - -Em 1757 » 250 » - -Em 1875 » 260 » - -Provavelmente a freguezia cedeu alguns fogos para a formação de outra -qualquer, ou então houve largo estacionamento. - -Actualmente (abril 1898) Carnide pertence ao 3.ᵒ bairro de Lisboa. - -Fogos, 337. - -Habitantes, 1:737. - -Sendo: varões, 1:018; femeas, 719. - -Solteiros, 710 varões e 404 femeas. - -Casados, 277 varões e 255 femeas. - -Viuvos, 31 varões e 57 femeas. - -Analphabetos, 432 varões e 353 femeas. - -Sabem ler, 6 varões e 18 femeas. - -Sabem ler e escrever, 580 varões e 345 femeas. - -É preciso lembrar que na freguezia de Carnide está o collegio militar, -o que produz as grandes divergencias nos numeros dos solteiros, dos -instruidos, etc. - - * * * * * - -O sitio é agradavel, de amoravel paizagem, brilhante mesmo nos dias -bons; como o terreno é variavel na sua constituição, basaltos, -calcareos, argilas, as culturas diversas, e de tons que vão do claro -do rebento novo da vinha ao verde intenso do trigo, produzem um matiz -onde o olhar repousa sem achar monotonia. Pelas quintas ha arvoredos -sombrios, ou compridas latadas e hortejos cuidados, vinhas, searas, -geiras de fava ou batata. Trabalha-se, cultiva-se com intensidade, e -não sobram os braços porque os salarios dos trabalhadores ruraes são -maiores que em outras partes. - -A par da quinta antiga com seu palacio e capella ha o _chalet_ moderno, -com as suas varias traducções, vivenda, tugurio e não sei que mais. Bom -exemplo de casa antiga é o casal do Falcão, com a sua varanda alta, e -as suas dependencias; casa mais moderna, do começo do seculo XVIII, -talvez, é a da quinta de Santa Martha, ou dos Azulejos, assim chamada -por ter forradas de azulejos as paredes que deitam para o jardim, e as -escadas, que são exteriores, a varanda, a nora, a parede do tanque, -e as paredes dos alegretes altos, tudo em assumptos variados, em -grandes quadros, em medalhões, com damas nobres, e archeiros, e deuses -mythologicos, e quadrinhos que fazem lembrar o Nicolau Tolentino. - -Ao lado da propriedade grande e custosa ha a pequena que o saloio rega -com o suor do seu rosto, e com a agua que tira do poço ou do regato com -a _cegonha_ ou picota, a grande alavanca que já figura nas esculpturas -do Egypto a levantar a agua do Nilo sagrado. - -De Carnide-Luz ha estradas para o Campo Grande, Telheiras, Paço do -Lumiar, Sete Rios, Bemfica, Odivellas ou da Beja, mais ou menos -assombradas, sempre agradaveis, por vezes com grandes vistas. A estrada -militar corta grande parte da freguezia, offerecendo sempre largo -horizonte. - -Eu tenho caminhado por estes sitios e acho adoraveis certas estradinhas -discretas, humildes carreteiras bordadas de vallados agora floridos, de -madresilvas e congossas, assombradas por oliveiras, olaias, cerejeiras; -de vez em quando uma palmeira rompe entre as larangeiras, um cypreste -ergue a sua pyramide verde escura. - - * * * * * - -Proximo da quinta dos Azulejos está o convento de Santa Thereza de -Jesus. Eu ouço repetidas vezes a sineta com um som fraco, lamentoso, -chamando á missa ou marcando as horas coraes. - -Os sinos de S. Lourenço são vibrantes, mui sonoros; aos domingos -tocam musicas festivas que ficam bem na grande e virente paizagem, -annunciando o dia de repouso a essa gente que tanto trabalha. Gosto de -os ouvir nas Ave-Marias da manhã quando o sol nascente rutila na grande -vidraça da egreja do cemiterio dos Arneiros. - -A egreja de Santa Thereza é bonita, de linhas sobrias, com uma só nave. - -O convento divide-se agora por duas communidades diversas. Uma parte -pertence ás freiras portuguezas, senhoras mui virtuosas, e com -excellente tradição por estes sitios. Outra parte ás freiras francezas, -irmãs de S. José de Cluny. Estas são mais numerosas e teem pupilas e -postulantes. Tem escola, e enviam pessoal para as missões africanas. As -portuguezas resam no côro de baixo, as francezas no côro de cima. - -Todo o tecto da egreja, nave, cruzeiro, capella-mór e côro alto é de -pintura antiga, de 1662 provavelmente, com as suas flores e fructos, -mascaras e garças, molduras quebradas e grinaldas, grandes espiraes de -folhagens, e figuras inteiras de virtudes. É muito lindo. - -Grandes paineis de azulejos com passos da vida de Santa Thereza forram -a egreja até certa altura; télas pintadas a oleo, em grandes molduras -de talha dourada, illuminam a parte mais alta das paredes. - -Entre estas reparo na grande téla que representa o passamento de Santa -Thereza notavel na composição, no desenho e no colorido. É boa obra -d’arte e documento notavel na indumentaria e mobiliario. O quadro da -capella-mór é muito lindo tambem: composição importante, com muitas -figuras, e bem colorido. - -A obra de talha da capella-mór, relativamente moderna, é muito elegante -com o seu bello portico de columnas encimado pelas grandes figuras da -Fé e da Esperança. - -Os altares lateraes são revestidos de azulejos polycromos, com as armas -de Portugal entre ramarias e animaes, e moldura fingindo embrechado de -marmore amarello sobre fundo negro. Estes azulejos devem ser tambem do -seculo XVII. - -O pulpito e sua escada de páu brazil em torcidos e tremidos, com -applicações de metal amarello, é notavel, e merece attenção tambem a -especial pintura que cerca a janella, que está sobre a porta lateral da -egreja, da parte de dentro. - -A infanta D. Maria, filha de D. João IV, está no côro de baixo; sob a -grade d’este côro repousa uma princeza germanica. - -Reproduzo a inscripção desdobrando os breves:==Aqui debaixo d’esta -grade jaz a veneravel madre Michaella Margarida de Sancta Anna filha -do imperador Mathias, fundadora que foi d’este convento: resplandeceu -em virtudes, faleceu em 28 de setembro de 1663 de idade de 82 annos -havendo entrado na religião de 4 para 5 annos.==Esta inscripção está -gravada em tres linhas, com bastantes lettras inclusas. - -Ha n’esta egreja uma devoção especial a «Santa Agape V. M. cujos -despojos mortaes foram achados em Roma no cemiterio de Prescilla, sito -na estrada Salaria Nova, e pelo santo padre Gregorio XVI concedidos -á egreja de Santa Thereza de Carnide a 25 de abril de 1843... sendo -expostos á veneração dos fieis em 14 d’outubro de 1846.» - -No exterior, templo e convento são de extrema singeleza. Sobre a porta -principal a estatueta de Santa Thereza, e sobre a portaria a de S. José. - -No cunhal da esquerda da frontaria, lá está a inscripção: - - M.ᴬ F.ᴬ IOANNIS IIII LVSI - TANIAE REGIS HOC OP - VS STRVXIT, ANNO - DNI. M.DCLXII. - -Este convento conheceu dias de tormenta; quantas angustias passaram -atraz d’essas grades; nas grandes crises do tempo pombalino, dos -francezes, das guerras civis, muitas damas, algumas das mais nobres -familias de Portugal, aqui vieram asylar-se. - -Aqui esteve a duqueza de Ficalho a quem um capellão esperto dava -noticias dos filhos, todos no exercito do imperador, no meio de -motejos e allusões que contava em voz alta ás pessoas que estavam no -locutorio, em quanto a duqueza escutava em ancias na casa proxima. - - * * * * * - -N’este convento de Santa Thereza de Carnide viveu uma religiosa -celebrada no seu tempo pelas suas virtudes, lettras, prendas, e bom -humor. Era insigne no cravo, escreveu prosas e versos, e desenhava -muito bem. A sua biographia encontra-se n’um volume com o titulo==Vida -e obras da serva de Deus e madre soror Marianna Josepha Joaquina de -Jesus, religiosa carmelita descalça do convento de Santa Thereza do -logar de Carnide.==(Lisboa, 1783). É obra publicada sem nome de auctor, -mas sabe-se que o foi D. José Maria de Mello, filho de Francisco de -Mello, monteiro-mór do reino, oratoriano, bispo do Algarve, etc. Era -sobrinho da insigne religiosa; e esta era filha do conde de Tarouca, o -conhecido diplomata João Gomes da Silva. - -As obras da madre Marianna são escriptos piedosos, em prosa e verso, -em boa e fluente linguagem. As prosas são exercicios espirituaes, -instrucções para as noviças, actos das virtudes, etc. E as poesias que -se leem sem enfado porque tem certa animação são todas conventuaes, -celebrando, festividades; sonetos, decimas, nas festas da prelada; -sortes de exercicio de virtudes para se tirarem no dia da exaltação -da cruz; sortes da paixão para se tirarem no domingo de Ramos. Ha um -romance.==A uma noviça attribulada.== E varios desafios poeticos no -tempo do advento, exaltação e quaresma. - - * * * * * - -A egreja parochial de S. Lourenço de Carnide está agora bem reparada; é -antiga como mostra a sua orientação e disposição. Todavia pouco resta, -á vista, dos seus primeiros tempos. Na frontaria á direita ha uma pedra -que é precioso monumento. Diz assim:==Era de 1380, 14 de maio o bispo -Dom João mandou edificar esta egreja por Pero Sanches chantre de Lisboa -á honra de S. Lourenço e deu-a a João Dor, seu capellão 24 dias do dito -mez e passou o dito bispo 24 de julho da dita era ao qual Deus perdôe. -Amen. Isto declara o que diz a pedra antiga correspondente.== - -A qual pedra não se vê hoje. - -Á esquerda da frontaria está em pedra lavrada, um brazão raro; tem na -parte superior uma barra com vincos obliquos, sob isto uma estrella, -uma perna com meia e sapato, que pousa sobre uma nuvem. - -Na igreja ha um quadro bom, o _lavapedes,_ mal restaurado infelizmente; -algumas campas, duas pias de agua benta que são dois capiteis do seculo -XIV escavados, e na sacristia um arcaz de boa madeira, bom trabalho, -com metaes bem lavrados. - -O terreno em redor da igreja era antigamente o cemiterio e ainda ahi -está uma urna com inscripção que será bom registar:==Josephus Joannes -de Pinna de Soveral e Barbuda speciosus forma oritur ut moriatur 23 die -decembris anno 1710 et plenus gratia per merita domini nostri Jesus -Christi moritur ut vivat 1.ᵒ die mayi anno 1742,==o lettreiro está na -face da urna em moldura, tendo na facha superior==Deo laus honor et -gloria, amen,==e na inferior==Spes et voluntas in Deo.== - -Visinha da igreja de S. Lourenço está uma fonte com bello aspecto mas -sem agua. Tem seu terreiro bem empedrado defendido por frades de pedra, -tanque, e um corpo central encimado por uma estatua, uma figura de -mulher que me intriga um tanto. Esta figura está mutilada, sem braços, -e pegaram-lhe ao lado uma pedra com seu lettreiro:==Encanamento de -ferro pela vereação de 1858.==Mais em baixo o dizer:==Camara Municipal -de Belem, 1857.==Apesar dos lettreiros e dos canos de ferro a fonte -está enxuta. - -No passeio de cima chamado antigamente do Espirito Santo, agora o _alto -do poço_, está uma fonte, isto é, um poço com bomba, e uma urna de -pedra bem tosca com a indicação:==C. M. B. 1859.==Dizem os de Carnide -que a agua da fonte de baixo era excellente. Parece que n’este caso -como em tantos outros a companhia apanhou as aguas boas, misturou-as -com as ruins, e fornece a mistura aos consumidores, que em certas -localidades ficaram prejudicados. - -Agora a respeito da estatua; é uma figura de mulher, com tunica de -pregas miudas, e amplo manto cingido. Parece-me uma estatua romana, -pelo trabalho, disposição, rosto e cabello. Provavelmente foi -aproveitada alli como o satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica. - -Carnide tem illuminação a gaz, agua da Companhia, estação -telegrapho-postal, posto de bombeiros, posto de policia civil, a sua -philarmonica com aprendizes de cornetim, a pharmacia com seu gamão, -um theatro particular, um club e duas escolas municipaes primarias -officiaes de ensino gratuito, uma para meninas e outra para meninos que -me parecem regularmente frequentadas. - -As irmãs de S. José tem escola de meninas. - -O que anima muito o sitio é o collegio militar, que está muito bem -installado no sólido edificio que ainda conserva na sua frente o brazão -da fundadora, a inclita infanta D. Maria, filha de el-rei D. Manuel. - -Na procissão dos Passos faziam a guarda de honra os alumnos do Collegio -Militar com as suas carabinas no braço, marchando muito garbosamente, -entre o povo e as familias d’elles que os acompanhavam, cobrindo-os -com os seus melhores olhares. Sentia-se um certo perfume de familia, -patria, dever, brio, mocidade, um ramilhete de cousas boas, ao vêr -passar, musica na frente, aquelles bellos rapazes, entre a multidão -sympathica. - -A igreja de Nossa Senhora da Luz é bem conhecida; eu mesmo já -escrevi algures da formosa téla onde se vê retratada a infanta D. -Maria (ha outro retrato no quadro da capella do collegio militar), -do extraordinario altar-mór com os seus finos baixos relevos, da -capella-mór que é um monumento da arte nacional, excepcionalmente bem -conservado. No exterior está a fonte, a velha estatua da Virgem e uma -longa inscripção repartida em duas lapides de marmore avermelhado, que -diz o seguinte: - -==No anno de 1463 reinando em Portugal D. Affonso V os visinhos de -Carnide com devoção das revelações que Pedro Martins, natural deste -logar, teve em seu captiveiro, donde sahiu milagrosamente, lhe ajudaram -a fazer uma capella a nossa Senhora da Luz sobre esta fonte. O lugar -como determinado pela divina providencia para este effeito se via -dantes claro e resplandecente com visão e lumes do Céo, como depois -se viu resplandecer com grandes e innumeraveis milagres na terra. E -seguindo em tudo a ordem e revelação que a Virgem purissima inspirou -a Pedro Martins, lhe puzeram o nome que tem da Luz, em cuja memoria -e louvor a infanta D. Maria filha delrei D. Manuel o primeiro deste -nome, rei de Portugal, e da Christianissima rainha D. Leonor infanta de -Castella, mandou reedificar e levantar o templo de novo nesta ordenança -e grandeza, no anno de 1575.== - - * * * * * - -Domingo de Ramos, 3 abril 1898. - -Pela manhã cedo dei um pequeno passeio até á Casa da Pontinha, proxima -da estrada militar. É casa antiga, com algumas alterações modernas; na -parede que deita para a estrada, a pouca altura, está um marmore com -lettreiro: - - Louvado seja - o santissimo - sacramento. - -- - Se quereis - saber quem - he o serafi - co Frc.ᵒ está - junto a IHS - Cristo que - 16 assim o te 37 - mos por - fee - -Superior á lapide está um quadro de azulejo; a Senhora da Conceição, em -azul sobre o branco, de bom desenho, em moldura de azulejos policromos. - -Proximo da Casa da Pontinha, na estrada que vem para Carnide, está uma -casa quadrada, na ponta da horta do casal do Falcão, n’um angulo de -muro, que conserva um friso ornamentado, uma grega singela em relevo de -cal, um _esgrafitto_, datado «1622». - -Depois ouvi a sineta das freiras, que sôa como uma voz debil, triste, -e entrei na linda igreja. O capellão lia no seu missal a grande -narrativa do triumpho em Jerusalem, que foi terminar na paixão, na cruz -do Calvario, verdadeiro symbolo da vida humana, que a dias de puras -alegrias e risonhas esperanças faz succeder horas de desespero e uma -eternidade de angustias. - -O capellão lançou a sua benção sobre os ramos, folhas de palmeira -sem ornato algum, e deu-os pela grade do côro de baixo ás religiosas -portuguezas. Entraram processionalmente as irmãs de S. José de Cluny, -com as suas tunicas azues e mantos pretos; toucas brancas moldurando os -rostos; atravessaram o cruzeiro e ajoelharam no degrau da capella-mór. -Ahi receberam as palmas, os ramos do grande triumpho. Não havia -musicas, nem canto; um grande silencio apenas. E retiraram na mesma -ordem, e no mesmo silencio para a sua clausura. - -Quantas estarão de marcha para as missões africanas! - - * * * * * - -Quinta-feira santa, 7 d’abril 1898. - -Hoje o passeio foi longo, quiz verificar o que havia a respeito de -certas antiguidades na ribeira de Carenque. - -Ha tempos, nem me recordo porque circumstancia, folheei um opusculo -intitulado==_Representações dirigidas a S. M. a Rainha e ao corpo -legislativo pela Camara Municipal de Lisboa sobre o abastecimento -d’aguas na Capital_==(Lisboa, 1853). Ora estas representações são -acompanhadas de pequenas memorias de J. M. O. Pimentel e do engenheiro -Pézerat, duas summidades do seu tempo. A de Pézerat começa a pag. -53:==Memoria sobre as conservas d’agua da Quintam até ao Salto Grande.== - -Tratava-se de estabelecer tanques nos valles superiores (da ribeira -de Carenque), ou conserva para a repreza de todas as aguas de sobejo -fornecidas no inverno pelos differentes nascentes d’este systema de -aqueducto (o das Aguas Livres). E diz Pézerat:==Descobri o valle da -Quintam, com condições muito favoraveis porquanto já tinha servido em -tempos remotos de conserva ou bacia para uma immensa repreza, cuja -existencia está provada pelos restos do antigo paredão ou marachão com -11 metros de largura, e 9 de altura, e que os habitantes attribuiam á -epocha do dominio romano, e como tal o denominam, porém mui facilmente -reconheci pertencer á epocha mourisca.== - -Na planta que vem com a memoria marcam-se o casal da Fonte Santa, o -resto do marachão, as linhas do aqueducto de D. João V, as mães d’agua, -velha e nova, a escavação de um aqueducto abandonado, o valle de -Fornos, o casal da Quintam e as ruinas do Castello velho. - -Eu desejava ver estas antigualhas. - -Parti de Carnide á Porcalhota, ao sitio da Amadora, passei por um -grande arco sob a linha ferrea, e entrei na estrada de Carenque, que -vae seguindo a corrente. Um valle muito comprido, accidentado, com -dois logares, Carenque de baixo, Carenque de cima, alguns grupos de -casebres, azenhas, pequenas hortas, e dominando tudo a formidavel obra -do aqueducto das Aguas Livres, sempre bem feita, de silharia sempre bem -faciada, formidavel monumento. - -A principio ia desanimando, ninguem me sabia dizer das velharias -mouriscas ou romanas, nem da Quintam, e cheguei assim ao casal do -Ernesto. - -Ahi depois de expôr a minha questão a um grupo que nada sabia, -surgiu-me um sujeito côxo conhecedor do caso, da obra dos mouros (não -me fallou de romanos) e da Quintam. Este côxo providencial chama-se -João Silvestre, e foi pastor na sua mocidade. Pastores sabem muito, -andam pelos montes e charnecas, por atalhos e a corta-matto; são sempre -bons informadores. - -Com o Silvestre passei as terras do casal do Ernesto; em breve estava -na ponte entre as mães d’agua; a chamada _nova_ (D. João V) é uma linda -construcção oitavada, de elegantes fórmas singelas, classicas, parece -uma obra grega. Pouco acima avistava-se outra obra inconfundivel, o -marachão, enorme, firme, apezar das cheias, dos seculos e dos homens. - -Porque já para a obra do aqueducto de D. João V tiveram de o romper a -poente, e mais recentemente a nascente para a passagem de uma estrada; -todavia o que existe é pouco menos do que viu Pézerat. - -Nas dimensões que elle apresenta, na da largura do paredão, houve -engano me parece. Contando com os encostos ou gigantes, na base, -chega-se a 11 metros, mas a parede em si tem 7 metros, o que é bem -respeitavel. É feito de camadas de pedregulho e argamassa, revestido -de pedras grandes irregulares e mal faciadas, em fiadas; por isto -me parece obra dos arabes; os romanos em obra de tal importancia -empregavam os seus bellos apparelhos. O paredão tem 9 metros de altura -na face do sul. Completo teria 40 a 50 metros de comprimento, e 5 ou -6 de altura sobre o terreno a montante; ora a montante segue-se uma -varzea consideravel que fechada formaria uma grande albufeira. Mais -acima, a 2 kilometros, fica a Quintam, um casal muito velho; ao lado -restos da muralha com ameias, e um grande portal. - -É de notar que junto de Odivellas, sahindo da povoação a entrar no -atalho que vem ao moinho da Luz, na estrada militar, está um muro -ameiado, com seu portico em ogiva, resto tambem de uma construcção -fortificada. Castellos não seriam, mas habitações fortificadas talvez. - -E disse-me o Silvestre,--mas por aqui ainda ha melhor, se tem tempo -e vontade eu lhe vou mostrar a eira dos mouros.--Trepámos por atalho -até uma chapada, proxima e inferior á crista do cerro que é formado -de calcareo secundario muito fragmentado. E achei-me em face de um -problema. - -É uma chapada ligeiramente inclinada de poente para nascente. N’este -declive traçaram um octogono regular, menos a face do nascente que está -de nivel com o terreno natural. Este octogono está cercado por um muro -duplo, isto é, por dois muros parallelos que entre si conservam um -intervallo de meio metro; estes muros conservam a mesma altura em cinco -lados do octogono, decrescem nos dois a nascente até chegar ao nivel do -solo. Os muros teem 0,5 de espessura; nos cinco lados a poente, norte -e sul, quasi um metro de altura na face interior, porque na exterior, -a poente estão com o terreno, que é mais alto ahi. São de alvenaria -bem solida. No espaço assim limitado arranjaram um centro plano e das -paredes para esse centro ha declives regulares, artificiaes. Todo -este espaço interior está, não calçado de pedra, mas forrado de uma -forte camada de alvenaria, que assenta, como se vê n’um ponto que está -escavado (por algum caçador, ou mais provavelmente por algum sonhador -de thesouros; porque, notou o antigo pastor, dizem que ha muita somma -de dinheiro e outras cousas enterradas por estes sitios), em grande -camada de pedregulhos. - ---Dizem que era aqui que os mouros se vinham divertir,--informou o -Silvestre. Um theatro, uma palestra, uma praça de touros? quasi que -parece; mas para que a dupla parede com a sua sanja ou caneiro? E os -declives, e a solidissima alvenaria que forra o fundo? Para um fim -industrial, ou assento de grande arribana, tambem não vejo; se fosse -questão de aguas, tanques de lavagem, então não fariam aquella obra na -altura, porque o rio corre muito abaixo. O espaço é consideravel; tem -proximamente 35 metros de diametro maximo, e os lados, muito regulares, -tem 15 metros cada um na face interna. Ha outras eiras de mouros, disse -Silvestre, mas sem o duplo muro, n’uns outeiros mais distantes. - - * * * * * - -10 de abril de 1898. - -Hoje pela manhã fui vêr uma obra d’arte na quinta da Marqueza. -A meio do jardim quadrado agora exhuberante de bellas rosas, de -macissos de flôres, está um tanque de fino marmore, grande, formado -de enormes blocos lavrados, com seus chanfros e curvas, decorado de -quatro mascaras collossaes; sobre a borda do tanque quatro golphinhos -decorativos de cauda erguida, infelizmente quebradas as extremidades, -que lançam jorros d’agua para o tanque. No centro um grande grupo, um -tritão vigoroso, uma formosa sereia e um genio marinho, em posições -movimentadas, dando um todo agradavel de qualquer lado que se observe. -É uma peça de esculptura notavel em marmore de Italia. - -Depois segui para o casal do Falcão, que não tinha ainda examinado -internamente. É um grande predio apalaçado, com suas dependencias; -palacio e centro de exploração agricola. Da casa de residencia está -metade em pé, outra que olhava ao norte, e que tinha como a do nascente -a sua alta varanda coberta, com finas pilastras, foi derrubada ha muito -tempo. Tem dois pavimentos; no terreo estão cosinhas e arrecadações; no -superior, o andar nobre, salas e alcovas. As salas eram ladrilhadas, -com altos rodapés de azulejo, e tectos de madeira em caixilhos ou -almofadas. - -Tem capella. Sobre a porta da pequena mas elegante egrejinha está o -lettreiro:==Dedicada a Nosa Snra da Asumsão ano de 1705 (?).== - -Parece-me 1705, mas os dois ultimos algarismos estão muito gastos. O -altar-mór tem seu retabulo em marmores lavrados, com seus nichos, em -trabalho que tem movimento. Nas paredes ha azulejos bem conservados, e -em frente da pequena tribuna um lettreiro diz que alli está enterrado -João Coelho que instituiu a quinta em morgado em 1647. Esta casa com -suas dependencias, lagares, arribanas, abegoarias, é um bello exemplar -de construcção portugueza no seculo XVII. - -Entre almoço e jantar fui vêr o casal e o moinho do Castello, para lá -de Alfornellos ou talvez melhor, Alfornel. - -Estes nomes de Fornos, Fornellos e Alfornellos indicam a existencia de -antigos fornos, os d’estes sitios provavelmente só destinados a coser -calcareo e grossa ceramica; não encontrei ainda escorias de metaes. - -O moinho do Castello desappareceu, está lá como testemunha a grande -pedra do frechal. A altura é formada por calcareo jurassico, cujas -cristas parallelas afloram sobre o solo. Não vi grandes movimentos de -terra ou pedra que indiquem trincheiras bem definidas. Nem fragmentos -de ceramica, escorias, ou outra qualquer cousa que indique trabalho -humano. É possivel todavia que alli tenha havido alguma fortificação -prehistorica; á vista e não muito distante está outro monte a que um -pastor tambem chamou do Castello. - -A proposito de movimentos de pedra e terra direi que nos arredores -de Lisboa o archeologo precisa estar sempre lembrado de que dois -formidaveis trabalhos se proseguem ha muitos seculos por estes sitios; -a exploração das pedreiras, e a pesquiza e captagem das aguas. - -O trabalho das pedreiras em varias epochas, depois dos terremotos -da capital, foi collossal. A formação de aqueductos para Lisboa, -especialmente o prodigioso trabalho da rede do Aqueducto das Aguas -Livres que acompanha e alimenta o cano geral deu origem tambem a grande -deslocação de material. - -Seguindo do casal do Castello para Falagueiras segui eu um ramo do -aqueducto, e um caneiro para regularisar a sahida das aguas do valle, -tudo bem feito, com solidas fiadas de silhares, suas caixas d’agua, -algumas das quaes me pareceram muito anteriores ás suas visinhas do -tempo de D. João V. Exactamente, antes de chegar á queda da ribeira -onde está uma grande caixa d’agua, vi muitos movimentos de terra, -comoros artificiaes, que n’outra região tomaria por mamunhas ou mamoas -tumulares. - - * * * * * - -O rev. padre Pereira, actual prior de S. Lourenço de Carnide, tem -colligido muitas noticias para a historia d’este logar. - -Para o estudo da topographia de Carnide e seus arredores serve muito -bem a carta n.ᵒ 7, publicada pelo Corpo d’Estado Maior. - -A historia da egreja de Nossa Senhora da Luz, e do edificio onde -actualmente se acha installado o Collegio Militar, encontra-se na -_Vida da infanta D. Maria, filha de D. Manuel_, por fr. Miguel Pacheco -(Lisboa, 1675); em _O Occidente,_ vol. de 1890, pag. 219; e no _Archivo -Pittoresco,_ vol. de 1863, pag. 299. - -O casal do Falcão mereceu estudo especial ao sr. Julio de Castilho, -2.ᵒ visconde de Castilho, gentil espirito que esmalta de poesia a mais -variada erudição. O sr. visconde publicou no _Instituto_ de Coimbra, -vols. de 1889-90, uma serie de artigos historiando os dramaticos amores -do pintor Francisco Vieira de Mattos, o Vieira Lusitano, com a firme -e leal senhora, D. Ignez Helena de Lima e Mello, que apoz dolorosos -episodios foi esposa do grande artista. - -Esses amores puros, honestos, bem portuguezes, que douram de deliciosa -poesia os restos, agora tristes, da fidalga vivenda, de ha muito -chamada o casal do Falcão, foram contados pelo proprio Vieira n’um -livro: «O insigne pintor e leal esposo Vieira Lusitano, historia -verdadeira que elle escreve em cantos lyricos (Lisboa, 1780)»; livro -interessante porque além do poema amoroso, apresenta grande numero de -quadros de costumes, scenas palacianas, festas populares, e noticias -artisticas. - - - - -Noticias de Carnide - -(1900) - -_Domingo, 12 de junho de 1898._--No fim da tarde trovoada forte, e -chuva grossa; d’estes chuveiros que no campo fazem bulha batendo nas -folhagens do arvoredo; um rufar grave que se ouve a centos de metros. -Em Carnide não cahiu granizo; nas Laranjeiras bastante, mais forte na -Palhavã; no Matadouro a saraiva foi tão valente que partiu vidraças; e -em Sacavem e Cabo Ruivo ficaram algumas propriedades arrazadas. - -Não ha memoria por estes sitios de tempestade tão violenta. - -_Vespera de Santo Antonio._--Á noite fizeram-se sortes; quatro -papelinhos, nome de senhora, nome de homem, sitio, e o que estavam -fazendo. Permittem-se cousas... que fazem rir. Queimam-se alcachofras, -ha a historia da moeda de cinco réis, os foguinhos de vistas, valverdes -e bichas de rabiar. Uns rapazotes da visinhança estiveram n’um pateo, -durante duas horas talvez, atirando bombas. A philarmonica tocou o seu -reportorio no coreto armado no Alto do Poço. Junto do coreto raparigas -e alguns rapazes dançavam e cantavam. Cantigas _triviaes geraes_; não -ouvi nenhum cantar especial de Santo Antonio, nem na letra nem na -musica. O mesmo succedeu pelo S. João; não encontrei nada particular -nas celebrações populares. Brinca-se, riem, dançam, conversam sem -mostrar feição local. Creio que ouvi mesmo a valsa dos _Quadros -dissolventes_. Nada que recorde as cantigas do Alemtejo nem as da -Beira, as fogueiras do valle do Mondego, que teem cunho especial, typos -admiraveis, musicas que tão bem enquadram umas nas vastas campinas -alemtejanas, outras na paisagem mimosa, nos frescos valles da Beira. -É digno de reparo que estas cantigas populares de uma região não se -vulgarisem fóra d’ella. - -Teem suas espheras. Ao mesmo tempo ha cantigas de origem não popular -que se generalisam rapidamente. A fogueira de Coimbra, arranjada no -_Burro do sr. Alcaide_, a _Noite serena lindo luar_, tambem de Coimbra, -que não são de origem popular, espalharam-se por todo o paiz. A valsa -dos _Quadros dissolventes_ foi uma explosão; os garotos assobiavam-n’a -nos bairros de Lisboa, ouvia-se em pianos nas mansardas da baixa, aos -operarios de Sacavem, e a vendedores torrejanos, isto dentro de um mez. - -Duram mezes, ás vezes annos, certas cantigas; esvaem-se pouco a pouco, -ou desapparecem de chofre como a _Rosa tyranna_. São modas que passam, -como as reformas administrativas e as leis eleitoraes. Assim passou a -epidemia do _chocalhinho_, o caso da _salva brava_, o _pão de Kuhne_. -Não se recordam do _Estás lá ou és de gêsso_, do _Lindos olhos tem o -môcho_, do _Debaixo do sophá_, do _Vae-te embora Antonio?_ - -As musicas de Offenbach foram muito populares, mas para estas -concorreram certamente os theatros de feiras. No Alemtejo cantigas de -mondadeiras, de vindimeiras, e as de S. João, que se cantam tambem -pelo Santo Antonio e pelo S. Pedro, pertencem a fundo antigo popular. -Só ha tempos ouvi em Carnide uma trova que me fez lembrar o Alemtejo, -a cantilena muito comprida, melancholica, de um homem que lavrava com -a sua junta de bois; conversámos, perguntei-lhe de onde era; de Villa -Franca. É que o Ribatejo já tem muito de alemtejano. - - * * * * * - -_Dia de Santo Antonio, de 1898._--Fez-se a eira no casal do Falcão; -ante a grande frontaria do nascente, limpou-se da erva o amplo -terreiro. Com a chuva da trovoada da tarde de hontem, e da noite, o -terreno estava encharcado; depois de limpo entrou um rebanho de ovelhas -para calcar, com o seu moroso voltear. - -Foi no dia de Santo Antonio, 13 de junho de 1898, que obtive licença -para vêr algumas salas do convento. Acompanhou-nos o reverendo -capellão padre Louro, protector carinhoso das velhinhas recolhidas, -tão modestas e tão religiosas. - -A superiora chama-se D. Maria Guilhermina de S. José. As suas -companheiras são Maria de Jesus, Maria Philomena, Maria Augusta, -Josephina, Olympia, Maria do Carmo e Isabel. Vivem em perfeita -communidade estas santas senhoras, na virtude, na oração e nos humildes -trabalhos, como se Santa Thereza em pessoa ali estivesse fazendo -cumprir a sua regra. - -No claustro a arcada muito clara e limpa, a cantaria lavada e as -paredes caiadas, tudo muito nitido, e cheio de reflexos de sol. No -meio da quadra o jardim, ainda o jardim antigo, o tanque central, e os -alegretes altos azulejados. E ainda as lindas flôres antigas, as rosas -e os cravos, o novelleiro, a baunilha, o jasmineiro, a alfazema e a -manjerona, a malva de cheiro, e a lucialima de fina folhagem. - -A capella do Senhor dos Perdões está bem conservada na sua elegante -architectura. Na quadra, junto do jardim, ha duas capellas; o lado de -dentro das portas d’estas capellas é pintado a oleo, com folhagens em -volutas e espiraes, bom exemplar de pintura decorativa do seculo XVII. - -N’um altar do claustro vi azulejos iguaes aos dos altares do cruzeiro -da egreja, e da capella do Senhor dos Passos; bellos exemplares do -seculo XVII. - -No tanque da cêrca está um quadro em azulejo representando a -_Samaritana_. - -As senhoras recolhidas comem no seu refeitorio, uma casa grande mui -limpa, as paredes ornadas de pequenos quadros de devoção. - -Sobre a toalha branca sem uma nodoa os pratos e canecas de faiança -ordinaria, com sua marca; provavelmente louça especial feita para o -mosteiro em tempos antigos. - -Creio que os conventos de Lisboa tinham todos louça especial com -marcas proprias, insignia ou divisa, ou inicial; e ainda mesmo algumas -confrarias possuiram tambem as suas louças com monogrammas ou emblemas -particulares. - - * * * * * - -_O presépe._--A casa da recreação é uma sala grande muito illuminada -por janellas rasgadas em duas paredes, com lindas vistas para os -accidentados arredores de Carnide. - -N’outra parede fica a porta de entrada e uma capella onde estão muitas -imagens; na quarta parede fica o presépe. - -As portas do presépe merecem attenção; teem o lado interior com -ornamentos dourados sobre fundo preto, imitando charão antigo, pintura -feita por uma freira, segundo a tradicção conventual. - -As figuras do presépe são de barro cosido, colorido e tambem dourado, -finas esculpturas em grupos e scenas bem combinadas. N’estes grandes -presépes conservou-se a tradicção dos primeiros mestres flamengos -que n’um só quadro accumulavam muitas scenas, a _paixão_ toda, por -exemplo, como succede n’essa maravilhosa pintura de um mestre -desconhecido do começo do seculo XV, joia de alto preço, que se -conserva no côro de cima da egreja da Madre de Deus (Xabregas). A -scena principal é a do presépe, o Menino Jesus sobre as palhinhas -entre a Virgem e S. José. Proximo o grupo vistoso, opulento, dos -reis Magos. Ali a noticia, a grande nova aos pastores, além a fuga -para o Egypto. Entre estes grandes grupos, outras scenas, as da vida -popular tão interessante n’estes presépes antigos que sabiam combinar -engenhosamente a vida humana com o sublime ensinamento religioso; -de modo que hoje estes presépes além de todos os valores antigos da -significação religiosa, e de merecimento artistico, teem para nós a -importancia de documentos da vida popular; quantas vezes mesmo se -encontram aqui notas, figurinos, por exemplo, que em nenhuma outra -parte se topam. - -N’este de Carnide entre os grupos ao divino das scenas da infancia do -Menino ha alguns episodios profanos extraordinariamente executados: -um grupo de populares sapateia a um lado com toda a bizarria; n’uma -especie de gruta, a fugir da luz, dois homens jogam absorvidos; -perto passa um cégo tocando sanfona; e camponezes alegres, com ovos, -gallinhas, perdizes, coelhos... - -Superior a tudo isto, em posição muito bem calculada para a -perspectiva, um grande grupo de anjos cantando e tocando orgão, -violas, e violão, e superior ainda a este grupo brilhante um anjo -gentilissimo com a fita onde se lê _gloria in excelsis_, entre frescos -e risonhos rostos alados de cherubins. N’essas figuras de impeccavel -esculptura ha mais porém, ha em algumas grande expressão e movimento; -o espanto dos pastores, a magestade bondosa dos reis, o enlevo musical -do cégo, a furia nervosa dos jogadores, o enthusiasmo dos populares -no seu fandango rijo, são d’um encanto irresistivel, qualquer d’esses -grupos é de per si uma obra d’arte. Como isto chegou até nós, Santo -Deus, atravessando estes tempos de progresso, de luzes, de leilões! -bemditas as santas senhoras, tão singelas e honestas, que teem sabido -conservar essa preciosidade. Cuidado com os amadores! com os poderosos, -espirituosos e curiosos; é preciso conservar esse lindo presépe. - -Na mesma casa da recreação ha outro presépe, pequenino, interessante, -com o Menino dormente. E na capella ha uma adoravel imagem do Menino, -em pé, de especial devoção antiga no convento, que tem o nome de _o -menino da compaixão_. E é bem singular que a escultura do rosto dá a -impressão de doce condolencia. Mas vejam como está bem afinada esta -casa de recreação para as senhoras religiosas; a linda sala cheia de -luz, os retratos das sublimidades da Ordem, dos modelos de virtudes -e abnegação, o artistico presépe, vibrante de suggestões, a imagem -consoladora do Menino, e pelas janellas largos trechos claros de -paizagem variada, a paizagem campestre clemente e serena. - - * * * * * - -No convento de Santa Thereza de Carnide vi alguns retratos valiosos, -não pela arte mas como documentos historicos, especialmente aquelles -que teem em seus letreiros dados biographicos dos retratados. - -Por exemplo, o retrato de==_D. Fr. Luiz de Santa Thereza, carmelita -descalço, lente de theologia, bispo de Pernambuco em 1738, falleceu a -17 de novembro de 1757, jaz na capella mor do convento de S. João da -Cruz de Carnide._== - -Pela extinção dos conventos de frades recolheram algumas pinturas e -imagens nos das freiras e assim se salvaram naquelle cataclismo. - -Outros: _Retrato da infanta D. Maria filha de D. João IV_. - -_Retrato da Madre Micaella Margarida de Santa Anna._ - -_Retrato de... bispo de Penafiel confessor da princeza._ - -_Retrato de D. Fr. João da Cruz, carmelita, lente de filosofia e -theologia, prior do collegio de Braga, e Santa Cruz do Bussaco, bispo -do Rio de Janeiro em 1739 transferido para o bispado de Miranda em -1750. Falleceu a 20 de outubro de 1756._ - -_La hermana Leonor Rodrigues_ (d’Evora). - -_S. Cassiano._--No côro de baixo ha um pequeno quadro com retrato a -oleo, pintura antiga, que me tornou attento; representa um santo bispo -com uma cartilha na mão; é S. Cassiano, que era mestre de meninos e -todo dedicado á educação da infancia, que morreu martyrisado pelos -discipulos. Exemplo raro sem duvida! No meu tempo, e desde quando viria -o systema! era o mestre que martyrisava os rapazes com palmatoadas, -varadas e sopapos, castigos deprimentes das pobres alminhas das -creanças; e ás vezes os paes assomavam á porta da escola, e animavam -de lá: «não m’o poupe, sr. mestre, não m’o poupe; ensine-me bem o -rapazelho!» - -Que differença tem havido nos ultimos tempos, em materia de educação, -nos pontos de vista, nos processos, e meios intelligentes; mas é -preciso educar as almas, para que sejam boas, fortes, livres e -religiosas na grande accepção do termo. - - * * * * * - -_Pinturas._--Os quadros da capella-mór das freiras de Carnide são de -Ignacio d’Oliveira Bernardes, segundo affirma C. Volkmar Machado, na -sua _Collecção de Memorias_ (pag. 94). Oliveira Bernardes (1695-1781), -era tambem architecto, e n’esta qualidade trabalhou no palacio de -Queluz, e na casa e quinta de Gerardo Devisme (a S. Domingos de -Bemfica, onde actualmente está o collegio de meninas). - -A grande tela magistral do _Transito de Santa Thereza_, é do pincel de -José da Costa Negreiros, que foi discipulo do celebre André Gonçalves. -Negreiros falleceu em 1759, com 45 annos. Esta familia Negreiros -produziu varios artistas. - -Percorrendo agora a _Collecção de Memorias_ de Cyrillo Volkmar Machado, -tomei algumas notas a respeito de quadros pintados que se podem ver em -egrejas dos arredores de Lisboa. - -_Jeronymo de Barros Ferreira_ nasceu em 1750, em Guimarães, morreu em -Lisboa em 1803; pintou o tecto da capella de Santa Brigida na egreja -parochial de S. João Baptista do Lumiar. - -_Vanegas_, castelhano, imitador do Parmezão; o painel do retabulo na -capella-mór de N. S.ᵃ da Luz é d’este pintor (V. Machado, pag. 60). - -_Diogo Teixeira_, pintor do tempo de D. Sebastião. Na Luz, ao pé dos -quadros de Vanegas estão pinturas d’este Teixeira (pag. 68). - -_André Gonçalves_ (pag. 88). Este pintor que trabalhou immenso, -falleceu em 1736; são d’elle alguns quadros da capella de Queluz, os -quadros da vida de S. João Baptista, no Lumiar, e os do côro de S. -Domingos de Bemfica. Lendo estas _Memorias_ de Volkmar Machado, fica-se -com impressão dolorosa; como se trabalhou em Portugal no seculo passado -e ainda no primeiro quartel d’este seculo! em pintura, architectura, -esculptura, ourivesaria, em tecidos, em fundições. A enorme e -violentissima crise das invasões francezas, não parou essa torrente de -trabalho artistico; era o rei que encommendava estatuas e quadros, -era Mafra e Ajuda que foram formidaveis escolas, e as casas fidalgas -que mandavam fazer retratos, capellas, decorações dos seus palacios -e jardins, eram os frades a querer azulejos e telas, e entalhados, e -embrexados, eram os prelados, os cabidos, e até a humilde irmandade -que ao menos queria ter o seu _compromisso_ ou estatuto em bonita -encadernação de velludo ou marroquim, com seus ornatos a ouro, e cantos -e fecharia de prata. - -Era uma corrente, uma orientação bem diversa da actual. - - * * * * * - -_15 de junho, manhã, cedinho._--Da janella do meu quarto vejo no casal -os homens de trabalho juntando mólhos em fascaes. Junto da terra do -Lopes estão carregando fêno; muito está emmólhado na terra, não se -póde emmédar porque está humido da chuva. Já se ceifa trigo; na terra -do Castello anda um grande grupo de trabalhadores; para o lado de -Falagueiras tambem. O trigo do Alto da Tonta está prompto a ceifar, -está lindo, de um louro claro; á passagem do vento faz brandas ondas -douradas. O da terra do Lopes tem um verde intenso. Agora distinguem-se -bem os trigos de inverno e os da primavera, uns muito louros, outros em -verde carregado. - - * * * * * - -_Domingo, 19 de junho._--Festa das ervas para remedios em Alfornel, -hoje em decadencia completa; vae mudando tudo. Antigamente era muito -concorrida, vinha muita gente de Lisboa, que se espalhava pela serra -procurando plantas medicinaes. Agora é rara a pessoa que conheça bem as -ervas e saiba aproveital-as: e os ervanarios teem dado em droga. - ---Nas boticas ha tanto remedio... - ---Eu lhe digo, o boticario, eu ainda aqui conheci botica e boticario, -comprava ervas para remedios, agora o pharmaceutico nem nada. Está tudo -mudado! - -O que não mudou foi a vegetação da serra, onde se encontra uma -variedade singular de plantas. - -Segundo o celebre Sande Elago, as plantas medicinaes dividem-se em -classes correspondentes aos sete planetas: saturninas, joviaes, -marciaes, solares, venereas, mercuriaes e lunares. - -A versão portugueza de Elago (_Compendio de Alveitaria_ tirado de -varios auctores, composto na lingua hespanhola por Fernando de Sande -Elago. Lisboa, Impressão Regia, 1832, in-4.ᵒ) merece attenção por, -entre outras cousas, trazer uma grande relação de plantas com os seus -nomes em vulgar. - -Tambem na obra classica de Felix do Avellar Brotero, a _Flora -Lusitanica_ (Parte 2.ᵃ--Lisboa, 1804), a pag. 522, vem um indice de -nomes vulgares das plantas. - -_Montalegre, 19 e 20 de junho._--Concurso de machinas agricolas na -quinta de Montalegre, bella propriedade do snr. Carlos Anjos. Foi -muito concorrido, appareceram muitas charruas de varios systemas que -trabalharam puxadas a juntas de bois. A machina e o adubo serão a -salvação da agricultura; é preciso aperfeiçoar e augmentar o trabalho, -é necessario reforçar a terra, tornal-a propria para produzir bem. -A meu vêr a machina e o adubo teem ainda outra vantagem, põem o -machinista, o chimico, o agronomo em contacto com o agricultor; levam -a sciencia ao campo; afinam mais facilmente com a experiencia, que o -veterinario, que difficilmente se tem aproximado do lavrador. - -_Na obra Exposição da alfaia agricola na Real Tapada da Ajuda, em 1898_ -(Lisboa, Imp. Nacional. Publ. comm. do 4.ᵒ centenario do descobrimento -do caminho maritimo da India) ha uma parte referente ao concurso de -charruas na quinta de Montalegre, á Luz, com photographias de charruas, -grades, semeadores, ceifeiras, enfardadoras, escolhedor, tararas, etc. - - * * * * * - -_29 de junho, S. Pedro._--Fui a Lisboa no carro de Carnide. Este carro -nos ultimos tempos tem seguido varios caminhos de Carnide á rua da -Assumpção, por causa dos trabalhos das Avenidas, e do ascensor Rocio-S. -Sebastião da Pedreira. Hoje é o ultimo dia do caminho pelo campo de -Sant’Anna; Carnide, largo da Luz, estradas da Luz e Larangeiras, -Sete Rios, Palhavã, S. Sebastião da Pedreira, Matadouro, Instituto -Agricola, Cruz do Taboado, Campo de Sant’Anna, R. Arantes Pedroso, R. -da Inveja, Principe Real, Mouraria, Praça da Figueira, Rocio e Travessa -da Assumpção. Agora passa o itinerario á Estephania, porque as obras da -Avenida que vai ao Matadouro estão muito adiantadas e cortam o caminho. -Ha tempo que estão a desmanchar uma parte do aqueducto que vai de S. -Sebastião da Pedreira ao Matadouro. Que bella construcção antiga, de -magnificos silhares bem faciados, e de alvenaria firme, solidissima, -com enormes pedregulhos; aproveitam agora este material nas novas -construcções da Avenida, mas teem de trabalhar devéras para o arrancar. - -Estas variantes do caminho seguido pelo carro de Carnide menciono eu -para marcar o desenvolvimento dos novos bairros da capital. - - * * * * * - -_Fogueiras de S. Marçal._--29 de junho: dia de S. Pedro. Á noite muitas -fogueiras pelos campos. Estas são dedicadas a celebrar S. Marçal, -advogado contra os fogos. - - * * * * * - -_3 de julho, domingo._--Pelas 9 horas da noite, eclipse parcial da lua -que durou, muito nitido, até depois das 10 horas. - -_Domingo, 17 de julho._--Festa a Nossa Senhora do Monte do Carmo, no -convento de Santa Thereza, com os padres inglezinhos; foi ás 10 horas -da manhã. Cantou a missa o rev.ᵒ P. Louro, capellão das freiras, e -professor do Collegio Militar. - -O côro dos inglezinhos era acompanhado a orgão. Executaram muito bem o -seu solemne cantochão. - - * * * * * - -Na chan da quinta ha um recanto isolado, silencioso; junto do alto muro -velho da cêrca das freiras está um poço d’onde se tira agua por uma -picota; dois robustos cyprestes, figueiras de negros troncos tortuosos -espalham fechadas sombras; além do recanto a terra do trigo, a vinha, -as oliveiras; parece uma paizagem grega; o olhar de Homero não a -estranharia. - -Estive hoje a ler ali um trecho de Ruy de Pina (o silencio do logar e -a sombra do arvoredo ainda m’o tornaram mais frisante) que me falla de -Carnide. - -Trata-se do amargo desastre de Tanger, de como ficou preso dos mouros o -infante santo, pobre D. Fernando, filho de D. João I. - ---E o infante D. Pedro, como sentiu o coração d’el-rei em algum mais -socego, lhe pediu licença para trigosamente, e o melhor que pudesse, de -Lisboa socorrer a seus irmãos, e a el-rei aprouve, e se veio logo apóz -elle á aldêa de _Carnide_ junto com Santa Maria da Luz, porque a cidade -estava perigosa de pestilencia. Mas porque ordenou que o socorro fosse -com muita gente e grande poder, em se aviando para isso as cousas -necessarias, chegaram em tanto a Lisboa dos que vinham de Tanger, -muitos navios que certificaram o caso como finalmente passara, de que -el-rei foi logo avisado, e certamente foi mui aspero de ouvir, que o -infante seu irmão ficava em poder de mouros; mas por saber que a mais -da sua gente era em salvo, deu por isso muitas graças a Deus, e como -rei virtuoso, humano e agradecido, deteve-se naquella aldêa, para vêr -e agasalhar os que vinham do cerco, dos quaes muitos, ao tempo que iam -fazer-lhe reverencia, em disformes semelhanças e tristes vestidos, que -para isso de industria vestiam, e com palavras á desaventura conformes, -se lhe mostravam, e delles fingiam ser muito mais damnificados do que -na verdade o foram, com fundamento de carregarem mais na obrigação -para o feito de seus requerimentos, que alguns logo faziam e outros -esperavam fazer, de que el-rei recebia publica dôr e tristeza. - -Mas a estes foi mui contrario o nobre e valente cavalleiro Alvaro Vaz -d’Almada, capitão-mór do Mar que como quer que no cêrco de Tanger de -sua fazenda perdesse muita, e da honra por merecimentos d’armas não -ganhasse pouca como chegou a Lisboa, antes de ir fallar a el-rei, logo -de finos pannos e alegres côres se vestiu, a si e a todos os seus, e -com sua barba feita e o rosto cheio de alegria, chegou a Carnide, onde -o rei andava passeiando fóra das casas, e com elle o infante D. Pedro, -e depois de lhe beijar as mãos e lhe dizer palavras de grande conforto, -el-rei o recebeu mui graciosamente, e louvou muito sua ida naquella -maneira, que não sómente lhe apontou cousas e razões, para não dever -por aquelle caso ter nojo nem tristeza, mas ainda que por elle devia -ser mui alegre e contente, estimando em nada o captiveiro do Infante -seu irmão, que era um homem só e mortal, em que havia muitos remedios, -em respeito da grande fama que naquelle feito em seu nome se ganhára -aconselhando-lhe mais o repique e alvoroço dos sinos, para honra e -prazer dos vivos, que o dobrar d’elles, que ouvia, por tristeza e pelas -almas dos mortos; pelo que el-rei começou a mostrar que aquelle era o -primeiro descanço que seu coração recebia... - - (Cap. 36 da _Chronica de D. Duarte_, de Ruy de Pina.--_Ineditos da - Acad._ Tomo 1.ᵒ, pag. 172 e 173). - -Onde seria o paço de D. Duarte?... não sei. Na rua do Machado ha -ainda cunhaes de grossa silharia velha, restos seguros de mui antiga -construcção. Por aquelles quintaes ainda se encontram vestigios -antigos, não são sufficientes porém para se affirmar a existencia ali -de solar ou castello. O velho paço de Carnide desappareceu. Ficou a -narrativa de Ruy de Pina. Resalta ahi a figura de Alvaro Vaz d’Almada, -n’uma luz e n’um ensinamento incomparavel. Coragem, para encarar -perigos e reparar desastres; um homem não se prostra perante a dôr, -soffre; o coração abafa de soluços, mas lucta-se sempre, engole-se a -amargura, soffre-se a ferida, suga-se a esponja de fel, mas o espirito -não se perturba, o animo esforça-se por não perder a sua energia. - -Deixar ao lado os esmorecidos, ao longe, bem longe, os vis -especuladores, e trabalhemos, sem fraquejar, ainda que as lagrimas -salgadas nos queimem as faces, e a angustia nos aperte o coração; -o espirito justo vence; Deus manda que se trabalhe, e que não nos -deixemos vencer pela tristeza. - -Antigamente no dia 17 de julho havia mercado de trigo em Mafra; era -importante, servia para se saber do trigo existente, se havia mingua ou -fartura, ver as qualidades, e tratar de preços. Reunia-se muita gente, -importantes _quadrilhas_ de carros de bois, dos lavradores, e muitas -récuas de machos dos padeiros de Lisboa. - -_Agua de Santo Alberto._--Domingo, 7 de agosto de 1898. Logo que -cheguei, bebi agua de Santo Alberto, que mandaram as freirinhas, em sua -bilhinha de barro vermelho, com um ramo de murta florida preso na aza. -É boa contra as febres. Na rua, raparigas apregoavam fogaças. - -Esta agua de Santo Alberto tem fama muito antiga.--Em 7 de agosto, -na capella dos Terceiros do Carmo se benze a agua com uma reliquia de -Santo Alberto (_Summario de varia historia,_ de Ribeiro Guimarães. IV. -pag. 240). - -Fr. Estevão de Santo Angelo, fez um romance heroico dedicado á -virtude d’esta agua, no seu Jardim Carmelitano. Agora ha muitas aguas -virtuosas, mas os reclamos não chegam a epopeias. - -_Carnide, 15 de agosto de 1898._--Ás 6 horas da manhã, estouros de -morteiros, estalos altos de foguetes, e rompeu sonorosa musicata. É a -festa do anniversario da _Sociedade Philarmonica 15 d’agosto de 1880_. -Os bellos rapazes preparados por ensaios repetidos apresentaram-se em -publico com o seu melhor reportorio. - -15 d’agosto, o dia de Nossa Senhora, tão celebrado na minha terra, e -em todas as que teem vida agricola. É o dia em que os lavradores de -cereaes, sabem com certeza o que passou pela eira, e se vencem fóros e -rendas de trigo, centeio e cevada. - -Houve missa nas freiras ás 8¹⁄₂ da manhã. Estava em exposição o _Senhor -Formozo_, muito fallado na chronica convental. É o _Ecce homo_, mãos -atadas, o manto d’irrisão lançado para as costas; a imagem do Divino -Justo, quando foi insultado pela gente ignara, pela sociedade culta e -inculta de Jerusalem. Porque então, como hoje o cultismo não implica -espirito de Justiça; não vemos nós nações das mais cultas, que se dizem -christãs, arvorando a força sobre o direito? - -Pobre _Senhor Formozo!_ Se me não engano era uma regular pintura -hespanhola, maneira energica, aspecto tragico, por isso talvez -impressionava tanto as pobres antigas freiras. Era o rosto austero, -o corpo já com livores de cadaver e gottejando sangue; a expressão -do grande soffrimento sobrepujada todavia pelo incondicional perdão. -Assustava as nervosas santas mulheres, e chamaram um grande pintor -então afamado, para emendar a tela; vê-se bem que foi muito alterado no -rosto; o pintor sabia do mundo, e fez um Christo precioso, de boquinha -affectada, de expressão inoffensiva, incapaz de qualquer suggestão -incommoda a espiritos assustadiços. - -_28 de agosto de 1898. Bolinhos de Santa Quiteria._--Hoje trouxeram-me -bolinhos de Santa Quiteria, muito bons para evitar a hydrophobia em -pessoas, cães e vaccas. - -São uns pequenos cubos de massa de trigo, passada no forno. - -Depois vieram homens vestidos de opas pedir esmola para a Irmandade de -Santa Quiteria, do Senhor Roubado, perto de Odivellas. - -_1899. Dia de Anno Bom._--Assistiram á missa alguns alumnos do Collegio -Militar, que não foram a ferias. Teem as familias muito longe... no -ultramar. Depois da missa o capellão rev. Padre Louro, apresentou -a imagem do Menino Jesus, em pé; as pessoas presentes foram beijar -a imagem. Durante a missa o orgão executou musica solemne, e na -apresentação do Menino tocou um motete alegre, com imitações de musica -pastoril, de sanfona e gaita de folles. Pairava em todos um sorriso -bom; só eu pensava n’um menino, n’um adoravel menino... luz que se -apagou. - - * * * * * - -Estive hoje a lêr um livro que me deu noticias da egreja da Luz, d’este -logar de Carnide: _Historia do insigne apparecimento de Nossa Senhora -da Luz e suas obras maravilhosas_: Composta pelo Padre Fr. Roque do -Soveral, religioso da Ordem de Christo. Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1610. - -É um volume in. 4.ᵒ de 213 pag. - -O rosto do volume, gravado por Antonio Pinto, é muito interessante. -A meio está o medalhão com a imagem de Nossa Senhora com o Menino no -collo; e aos lados estão gravados feixes de muletas, navios pendurados, -pelouros, e umas cousas que representam talvez mortalhas ou samarras de -que se falla nos muitos milagres da veneravel imagem. - -Tem muitas noticias este volume a respeito de pessoas e casos em -diversas epochas, significantes para o estudo social e local. - -Por exemplo, a pag. 52 v. a proposito da antiga romagem á Senhora da -Luz, diz que este sitio de Carnide era dantes mui deserto, e depois -de começarem as romagens os caminhos se tornaram mais seguros:--sendo -dantes, segundo o que sabemos por tradição antiga tão espessos bosques, -que para o logar de Carnide não havia mais caminho que um atalho, que -se tomava no caminho de Bemfica para o tal logar, e nos mesmos bosques -se recolhiam salteadores, da maneira que em Portugal na charneca de -Monteargil, etc.: e cita varios bosques notaveis na Europa por serem -asylo de ladrões: assim, antigamente eram tão temidas as brenhas e -mattos de Carnide, que ninguem caminhava para elle sem muita junta de -receios. - -Feita a egreja e estabelecidas as romagens o sitio e os caminhos se -tornaram mui frequentados; encontrava-se gente de todas as qualidades -e nações, o hespanhol, o bretão, e o flamengo; os de pé, de cavallo e -de coche, cantando e dançando, tocando violas e adufes:==disse por isso -mui bem o outro, que os que vinham de Nossa Senhora da Luz, parecia -virem de colher as lampas de S. João, que ou seja com canas verdes nas -mãos, ou com capellas nas cabeças, sempre tornam para suas casas, como -se vieram das hortas de colher cheirosas ervas. - -Tanto assim que havia cinco mulheres==que só vivem e se sustentam de -venderem candeias de offerecer, achando-se para isto de continuo em a -egreja da Senhora. E diz depois (pag. 54 v.) das mais celebres romagens -do seu tempo, em Portugal, a começar pela Senhora do Monte. O cap. II, -(pag. 76 v.) é intitulado:==_Particularidades da fonte de Nossa Senhora -de Luz_==, e tem muitas paginas consagradas á virtude dessa agua. E até -o certificado de um medico (pag. 77 v.); mas eu não me posso demorar, e -peço ao leitor curioso que veja o livro. Eu tenho que resumir. A pag. -190 conta==de algumas náos que a Senhora da Luz livrou da tormenta em -que se viram perdidas, e logo abre o cap. XII:==_Como Nossa Senhora da -Luz é avogada dos mariantes._ - -É inutil dizer que todas essas paginas teem interessante lição e -importancia historica.==Escreve ácerca da náo _Luz_, em 1497, e a este -respeito se cita o templo de Nossa Senhora da Luz, em Goa, fundado -sem duvida em lembrança da Luz, de Lisboa. E affirma que era costume -os mariantes dessa longa viagem da India virem antes de embarcar em -romagem á Luz de Carnide, depois de lá chegados á Luz de Goa. Que esta -romagem da Luz está ligada ás primeiras navegações não offerece duvida. -Conta (cap. XIII) o caso horrivel da náo _Chagas_ (1560); e em memoria -deste milagre,==hoje 7 de junho de 1570 vieram a esta casa da Luz com -procissão todos os marinheiros da mesma náo.==E vem a historia da urca -_Fortuna_, e da caravella de Pero Marques, a da náo hespanhola _S.ᵗᵃ -Ana_, a da náo _Betancor_, e a do _Salvador_; e a de uma escotilha em -que se salvou Pero Gonçalves, estando tres dias sobre ella no alto mar! - -Na egreja havia quadros de milagres, imagens de cera, muletas de -aleijados, grilhões de captivos, mortalhas de salvos na agonia, velas -de naufragos escapos ao vendaval, pedaços de amarras de náos, pares -de algemas, pelouros de artilheria grossa, (pag. 104 v.) e náos, -pequeninas náos; «do côro ficam pendendo sobre a egreja quatro náos, -que em fórma pequena contrafazem bem toda a fabrica das que navegam; e -ha pouco tempo (note-se isto) que estavam oito que se tiraram assim por -pôrem outras que vinham de novo, e não tinham lugar, como por se darem -a algumas pessoas que as pediram». - -E antes mais cousas havia:==na ermida antiga de todas estas cousas -havia mór numero, de que tiraram algumas menos gastadas do tempo, para -as mudarem aonde agora dizemos estão (pag. 204 v.)==As _samarras_, -segundo a tradição, eram de uns homens que, na volta da India, -naufragaram na costa da Cafraria, e andaram muito tempo perdidos pelo -matto, fugindo das féras e dos pretos, até que, invocada a Senhora da -Luz, lhes appareceram uns cafres misericordiosos que lhes deram suas -proprias vestimentas. - -Havia tambem cobras, isto é, pelles de cobras, uma de 4 varas de -comprimento, provenientes do Brazil; mortas por milagres quando -intentavam matar as pobres victimas nos seus anneis roliços, e com -seus venenos fulminantes. Era uma collecção suggestiva essa, hoje -sumida de todo perante esta moderna correcção idiota que tudo invade e -vae dominando, matando arte e poesia e fé. - -_Carnide. Domingo, 15 de janeiro de 1899._--Começou hoje a funcionar o -ascensor Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Fui a Carnide no carro da rua -da Asumpção. Carro cheio; pessoas que iam ao collegio militar visitar -os filhos. Nestes domingos de visita ha sempre no carro conversas -interessantes; dos filhos que vão bem, d’outros que perderam o anno; e -corre-se uma larga escala de affectos, de caracteres, e de saudades. -Viuvas que vão vêr os seus filhos, amigos que vão vêr os filhos dos -que estão no ultramar para lhes dar noticias, tutores que visitam -pobres orphãos. Todos levam uma lembrança, um embrulho atadinho, para -os rapazes. Com as senhoras vão ás vezes meninas, mui palreiras, -enthusiasmadas com a visita aos pequenos militares. Que estes carros -de Carnide favorecem o cavaco, com os seus pulos e solavancos; vae -uma pessoa muito correcta, zás solavanco, e vem uma senhora nervosa -cair-nos nos joelhos; um cavalheiro solemne e mui serio, pula o carro, -e elle apanha na cara com um chapeu de plumas, ou um papeluço de bolos. -Quer a gente mover-se, não póde, está presa, as taboinhas dos assentos -do carro apertam abas de casacos e dobras de vestidos; não faltam os -preguinhos atrevidos que rasgam tecidos e ás vezes a pelle; ha sempre -episodios; depois logo ao entrar na estrada das Larangeiras, o ar é -mais fino, e fresco, com perfumes campesinos; a estrada da Luz tem -vista de campos, de varzeas e arvoredo. Alegram-se os olhos de vêr a -paizagem e os pulmões gozam ar mais puro. - -Mas hoje, 15 de janeiro, o aspecto é outro, o vento é desabrido, de -rajadas, ha nevoeiro denso, humido, que mal deixa vêr as arvores -proximas, num esbatido leve. Na Luz alguns carros, e varios grupos; -ha corridas pedestres e de bicycletas, e prepara-se uma partida de -foot-ball. - -Fomos até ao casal do Falcão, e ainda mais adiante a Alfornel vêr o -faval nascente. Os trigos nasceram bem mas estão amuados. - -A paisagem é extraordinaria hoje, porque a nevoa tem intermitencias; -é um nevoeiro muito humido, irregular, de densidade diversa, e como a -camada de nevoa que está passando não tem grande espessura, de vez em -quando rompe-se e apparece logo o ceu velho, e um jorro de sol. - -Como isto agora tem o aspecto triste, no nevoeiro frio e humido, -rasgado pelo vento convulso que vae passando; o casal tão velho, ruina -tragica, as figueiras, as vinhas sem folhas, como tiritando no frio de -janeiro. - -Jantar de familia, casa cheia; como a sopinha quente sabe bem -neste frio de janeiro, em dia de nevoa cerrada; depois algumas -especialidades, os nabos guisados, a carne de porco assada, com a -loura agua pé; o pudim delicioso; as raivinhas e os esquecidos do Bom -Successo. Ao café, com o competente cognac caseiro, entraram os srs. -Duartes, de Mafra, que trouxeram elementos novos á cavaqueira. Contaram -que el-rei mandára deitar javardos na tapada de Mafra; já entraram oito -de Castello Branco, e um que nasceu no parque das Necessidades. Na -Tapada, a comida é pouca; em tempos antigos houve porcos bravos ali, -mas acabaram com elles porque nada lhes escapava. - -De subito entrou uma mascarada animada, os meninos e meninas T., -uma série muito gentil, vibrantes de riso; houve piano, valsas, -improvisou-se um concerto: a sr.ᵃ D. G. cantou superiormente alguns -trechos. - ---Já 9 e um quarto! toca a ir para o carro. - -Eu fiquei; da janella do meu gabinete a vista era admiravel; estava o -ceu muito estrellado, havia algum luar, o ar muito frio e sereno; a -nevoa abaixára, e estava agora quieta e branca sobre as varzeas, os -campos do valle; muito salientes, a massa negra do casal do Falcão, e -a collina triste coroada de cyprestes do cemiterio dos Arneiros; um -grande silencio frio; como uma palpebra semicerrada de agonisante, -a esvaír-se de luz e de vida, a lua em minguante, muito obliqua, -branqueando a toalha de nevoa quieta sobre as terras mais baixas, as -varzeas humidas. - -_Carnide, domingo 28 de janeiro de 1899._--Vi hoje lindas flôres do -logar de Telheiras; com a inverneira que tem corrido, frios, geadas, -tempestades, notei as flôres; é que o logar de Telheiras é mais ameno -e abrigado, a este de Carnide mais alto e exposto ás grandes correntes -do ar. O antigo oratorio, convento e egreja de Nossa Senhora da Porta -do Ceu, em Telheiras, está hoje abandonado. É n’esta egreja que está -a sepultura do principe de Candia, o pobre rei do Ceylão, fundador do -edificio, que veiu morrer tão longe das suas florestas de canella. - -O oratorio de Nossa Senhora da Porta do Ceu, de Telheiras, foi fundado -pelo principe D. João de Candia. Este infeliz principe nasceu em -Ceylão, por 1578, e teve de abandonar o seu throno de marfim e perolas, -entre luctas politicas e religiosas; era criança ainda. Levaram-o para -a ilha de Manar, depois a Gôa, e ao collegio dos Reis Magos de Bardez; -veiu parar a S. Francisco de Lisboa, mais tarde a S. Francisco da -Ponte, em Coimbra, e gastou o resto da vida a requerer e representar -entre Lisboa e Madrid, porque então dominavam os Filippes. O que isto -seria, Santo Deus! n’aquelles tempos, quando hoje basta uma burocracia -para abafar e esterilisar todas as vontades, o que seria no tempo da -dominação hespanhola com tantos officios e dezembargos em Lisboa e -Madrid. - -A historia d’este homem é interessante; pobre soberano de Candia, -Cota, Ceytavaca e Cettecorlas, que veiu descançar aqui em Telheiras, -cingindo o cordão franciscano. - -Dizem que hoje não é assim; os soberanos desthronados vão direitinhos -ás folias de Paris, e as alfayas e tapeçarias apparecem no Druot, -escapando aos ministros de que falla o chronista Soledade. - -Infeliz principe singalez, chamaram-lhe D. João d’Austria, e principe -de Candia, e foi um martyr toda a vida; teimaram em ensinar-lhe latim e -theologia, andou em bolandas pelos conventos intrigado e explorado, e -nem mesmo cumpriram a sua ultima vontade. Morreu em 1 de abril de 1642, -a sua morte foi um lauto regabofe para muita gente... «pelas mãos dos -ministros, como ficaram todas as tapeçarias, peças de prata, e outras -muitas alfayas preciosas, que elle tinha consignado á egreja d’este seu -convento, as quaes levaram d’elle com violencia os ditos ministros, -e sem obstarem os requerimentos dos religiosos, tudo repartiram e -consumiram entre si.» - -Isto escreve fr. Fernando da Soledade, na sua _Chronica serafica_, 5.ᵒ -vol. n.ᵒ 893, pag. 611. - -Elle diz ainda mais coisas que eu não estou para transcrever; foi uma -patifaria, como tantas outras que se teem feito modernamente. - - * * * * * - -_Paço do Lumiar, 2 de fevereiro de 1899._--Dia de Nossa Senhora da -Purificação, as Candeias, como se diz vulgarmente. - -Fui vêr a festa religiosa e a feira, na egreja parochial de S. João -Baptista do Lumiar, e no bello adro que a cérca. - -A festa é a Santa Brigida. - -Na egreja esteve exposta a reliquia da Santa, uma parte do craneo, em -uma urna de prata dourada, muito bem trabalhada, elegantissima: uma das -urnas mais gentis que tenho visto em estylo D. João V. - -Dizem que veiu esta urna do mosteiro de Odivellas. - -Na feira havia gado suino alemtejano, vaccas leiteiras com bezerros, -vidros, louças, queijadas e bolos. - -Ha uma especialidade n’estas feiras saloias; as leitoas assadas, -abertas a meio e espalmadas, seccas e rijas, de uma côr apetitosa, -expostas á venda em canastras ou caixotes com ramos de louro. - -O saloio com a canastra de leitoas emparelhava bem com a collareja, -assentadinha, chapeu de chuva aberto, com a cesta de queijadas de -Cintra. - -Dois ou tres homens vendiam bordões, chibatas, varas e varapaus armados. - -Na feira de S. João, em Evora, apparecem tambem saloios, uns vendendo -varapaus, e outros a que chamam saloios da Nazareth com taboleiros -de pederneiras para isca. Agora com as guerras á isca feitas pelos -phosphoros, não sei se vão desapparecer de todo estes representantes -ultimos da edade do _silex lascado_. - -Passeavam lavradores invocando ou agradecendo a protecção da Santa, em -volta da egreja, com juntas de bois, algumas muito enfeitadas de fitas -de côres vivas, com entrançados e bordados. - -Dentro da egreja, á direita da entrada, dois homens recebiam esmolas, -em trigo na sua arca especial, ou em dinheiro, e vendiam _registos_, -milagres de cêra, bois e peitos, e muito pavio de cêra amarella ás -braçadas. O pavio amarello é bom para livrar o gado de doenças, olhados -e desastres; enrola-se dando volta aos dois chifres do boi, e ahi se -deixa ficar até se estragar. - -Sobre o altar de Santa Brigida foram collocar alguns boisinhos de cêra. - -Depois da festa houve communhão na capella da Santa, tocando o orgão, -e em seguida o padre deu a reliquia a beijar; e foi muito beijada, por -mais de cem pessoas, com muita devoção. - -Esta Santa Brigida, protectora do gado bovino, da-me que pensar. -Brigitta, Brigida, Brigides, Birgida, Birgita, Britta, etc., virgem, -natural da Escocia, abbadessa de Kildare na Irlanda, morreu em 523, no -1.ᵒ de fevereiro, segundo affirmam. - -As lendas d’esta Santa ligam-se com a famosa de S. Brandão (Brendanus, -Bredan) abbade de Chainfort, na Irlanda, que morreu em 578 (16 de maio -ou 5 de junho). - -A reliquia, a cabeça da Santa, segundo diz a inscripção no exterior da -capella, foi trazida por tres cavalleiros hibernios, ou irlandezes. - -O que eu vi na urna pareceu-me effectivamente um fragmento de craneo, o -occipital, talvez; não se vê bem por causa dos ornatos. - -Que esta devoção por Santa Brigida vem pelo menos do seculo XIII, com -certeza, e continúa ainda intensa; ha pouco ainda uma devota offereceu -uma cabeça de prata. - -Este sitio do Lumiar e Paço do Lumiar merece um estudo especial; foi -aqui o paço do famoso infante Affonso Sanches; ha estreitas relações -entre esta egreja e o sitio e mosteiro de Odivellas, antigos santuarios -que estão no principal caminho de Lisboa para o interior, o caminho de -Alvallade, onde se encontraram os exercitos na sanhosa guerra civil de -D. Diniz. - -A inscripção dos cavalleiros hibernios está no exterior da capella de -Santa Brigida, da egreja de S. João Baptista do Lumiar, lado norte. É -copia da antiga que de ha muito se sumiu. É a seguinte: - - Aqvi nestas tres sepvltvras iazẽ enterados os tres caval.ʳᵒ ibernios - q. trouxerã a cabeça da bẽ avẽtvrada S. Brizida virgẽ natvral da - Ibernia cuia reliqvia está nesta capella p.ᵃ memoria do qval hos - oficiais da mesa da bẽaventvrada S. mão darão fazer este ẽ ian.ʳᵒ de - 1283. - - * * * * * - -_Quinta feira da Ascensão, 11 de maio de 1899._--A chuva miudinha de -hontem não regou bem as terras, mas abateu a poeira das estradas, e -lavou as folhagens que estão viçosissimas, com o brilho setinoso, -exuberante de primavera. - -Chegando á rua do Norte admirei-me de vêr a calçada coalhada de folhas -de rosa. Houve uma grande festa na egreja das Freirinhas, e tive pena -de não ter assistido. Foi a primeira communhão a alguns alumnos do -Collegio Militar; pela primeira vez, ao que me disseram, se lembraram -de fazer este acto com certa solemnidade. Nem tudo póde lembrar. N’um -estabelecimento de educação, internato militar, ha tanto que fazer, -tamanhas responsabilidades! O ensino dos compendios, a alimentação, -a disciplina, as formaturas, os toques de cornetas, não deixam tempo -para pensar n’estas questões da alma. Este anno, emfim, houve ensejo de -celebrar solemnemente a entrada dos jovens militares n’este primeiro -gráo de consciencia responsavel com hymnos religiosos, musicas e -bençãos, e mãos finas de senhoras lhes atapetaram o caminho com folhas -de rosa. - -Estes já tiveram na vida um dia florido, esperem outros ainda melhores, -os que se seguem aos trabalhos vencidos, ás bellas acções de honra e -abnegação. - -Celebraram a linda festividade na egreja das freiras, ornamentada pelo -dr. Sant’Anna; de todos os pontos vieram taboleiros de flôres. - -Este anno os campos estão menos verdes do que no anno passado, os -trigaes são menos fortes, menos densos; principalmente nos terrenos -altos as seáras não encobrem o chão; _terreja_ muito; mas as oliveiras -e as vinhas apresentam-se cheias de promessas. - -Quando eu ia por entre as latadas da quinta, opulentas de folhagem, -na paisagem quieta de searas e olivedos, lá do sul, de além do sevéro -macisso de Monsanto, veiu o estrondo das salvas de grossa artilheria. -Estão no Tejo duas formidaveis esquadras, ingleza e allemã, grandes -navios de aço, maravilhas de construcção naval, collossos de força, -suprema expressão da energia dos arsenaes. Como o ruido d’esses -poderosos canhões desafina na paisagem de primavera florida! sobre -esses campos e logarejos respirando a serena vida da natureza. - -É o dia da _espiga_, como o povo chama aqui, nos arredores de Lisboa, -á quinta-feira da Ascensão; até os carros de trabalho vão enfeitados -com ramos de oliveira, espigas de trigo, rubras papoulas, brancos -malmequeres; tambem enfeitam de espigas e flôres as cabeçadas dos -animaes; e passam ranchos animados, palreiros e galhofantes, as -raparigas com grandes ramos nas mãos, os rapazes com raminhos atados -nos varapaus. - -É a festa agricola que vae por esses seculos atravez raças e religiões, -provavelmente até ao dia em que o espirito do homem pela primeira vez -admirou e agradeceu com ternura a planta florida, a suprema graça e o -divino aroma da corolla, promessa do saboroso fructo. - -Na minha terra além das _maias_ do primeiro dia do mez e da festa da -Ascensão, o povo da cidade e dos campos celebra tambem o dia 3 de -maio, o da invenção da Santa Cruz, e ornamenta de flôres as cruzes dos -logares publicos, as das vias sacras, as que marcam nos campos, nas -estradas, os logares onde cairam os assassinados; a cruz de azulejo do -sitio do fusilamento dos frades patriotas na catastrophe de 1808, no -tempo dos francezes, a cruz na base do aqueducto junto do antigo fosso -da muralha, onde se realisou o ultimo fusilamento militar. - -Estes campos de Carnide são menos tragicos; hoje porém as salvas das -esquadras, algumas vezes repetidas, que parece fazem estremecer o -robusto massiço de Monsanto, dão uma preoccupação morbida ao espirito; -para que tal apparato de força, para que a reunião das duas mais -poderosas esquadras de Inglaterra e Allemanha, será apenas para mostrar -ao mundo a sua boa harmonia, no grande porto do paiz pequeno e neutral? -O que é com certeza é a pomposa, a estrondosa manifestação de força, -convicção deprimente, expressão ultima da civilisação n’este findar -de seculo de tão maravilhosas descobertas, que termina affirmando -o direito do mais forte, em que tanto se luctou pelas liberdades, -acabando no militarismo ruinoso, e tanto pela melhoria social, pela -equação de direitos, em quanto se erguem implacaveis, cada vez mais -ameaçadores, os monopolios da finança, industria e commercio. - -Passam os ranchos alegres, de vez em quando roda na estrada um trem com -mulheres e creanças, flôres e gargalhadas, na linda tarde de primavera. -Outro rancho ahi vem agora, lento e sereno pelo trigal verde; é um -grupo de religiosas de S. José de Cluny, que veiu ao campo florido -respirar no ar tepido e aromatico. - -Vestem os seus habitos severos, trazem nas mãos ramos de flôres do -campo; andam vagarosas como cançadas ou enfraquecidas; são novas, -sorriem, sorrisos de doentes em rostos palidos: interessante grupo! são -convalescentes sem duvida; vieram dos hospitaes e escolas do ultramar -dominadas pelas febres, procurar restabelecer a saude n’este lindo -sitio de Carnide. - -O que Mousinho de Albuquerque no seu livro _Moçambique_ escreve -a respeito d’estas religiosas é encantador. Elle falla dos -extraordinarios serviços por ellas prestados nos hospitaes de Lourenço -Marques, de Inhambane, e Moçambique, nas escolas, _por uma fórma acima -de todo o elogio_; e em Gaza, e no Chibuto.==O carinho e dedicação com -que tratavam os doentes e feridos, procurando não só proporcionar-lhes -todas as commodidades que as circumstancias permittiam, mas não se -esquecendo um só momento de lhes confortar o animo, de lhes levantar -o moral, sómente póde avalial-o quem o testemunhou.==Ou eu não sei o -que é caridade, ou o que as Irmãs de S. José de Cluny estão fazendo -na provincia de Moçambique é a sua manifestação mais elevada e -commovedora==. - -Em Carnide sabe-se que esses serviços ultramarinos são uma verdadeira -batalha. Das que lá morrem não consta, as lévas de doentes que voltam -essas todos as vêem. Algumas voltam anemicas, ás vezes tuberculosas; -chegam, descansam, melhoram, e lá partem outra vez para os hospitaes e -escolas. - - * * * * * - -_Domingo, 14 de maio de 1899._--Scena inesperada; um touro da manada do -conselheiro Alvares Pereira, n’uma corrida em Algés, partiu uma perna, -e foi recolhido n’um pateo do casal do Falcão. É bicho de estimação, -de muito genio e boa estampa. Foi amarrado sobre um carro e tratado -com todos os cuidados, algodão borico, arnica, talas, ligaduras, nada -faltou. - -O aspecto do touro no carro era extraordinario; os olhos negros e -vermelhos com uma expressão de furia mais que de dôr; suava em grossas -bagas; mordeu-se nos beiços até levantar a pelle. Alli, atadinho no -carro, sim, que a gente podia vêr um touro de pertinho. De repente deu -um puchão, e assoprou; isso é que foi panico, não sei se cahiu alguem, -ouvi dizer que sim. O resto do caso foi visto de cima do muro. E lá foi -o carro pela estrada fóra, á noitinha, caminho da leziria, com o seu -cortejo de campinos nas suas ligeiras facas. - - * * * * * - -_Nomes dos animaes._--Á sombra da parreira vestida de bellos cachos; -entre os alegretes azulejados, azul em fundo branco, em pequenos -quadros de galanteria, episodios comicos, italianices e chinezices, -á moda do seculo XVIII; proximo da nóra onde barulha a agua ao som -emolliente e rhytmico do engenho, cavaqueia-se em cousas diversas; -appareceu o sr. F. V. que tem lavoura e gados no Alemtejo; e logo se -fallou de searas, pastagens, touros, casos de pastores... - ---E sabe os nomes dos bois? - ---Ora, essa! dos bois, dos cavallos, dos touros... - -E eu fui tomando nota dos nomes dos animaes. - - -NOMES DE TOUROS.--Artilheiro--Azeitono--Barqueiro--Batoque--Bugino ---Caçador--Caixeiro--Caldeiro--Camarinho--Capirote--Caraça--Carvoeiro ---Corvacho--Espingardo--Estandarte--Estorninho--Estrello--Foguete ---Forcado--Gaiato--Gaveto--Lanceiro--Luviano--Murtinho--Rabalvo ---Rasteiro--Teimoso--Verdugo. - -NOMES DE CABRESTOS.--Calçado--Caminhante--Caminheiro--Ligeiro--Pardal. - -NOMES DE BOIS DE TRABALHO.--Alfayate--Bigode--Bonito--Castanho--Esperto ---Formoso--Galante--Galhardo--Joeiro--Lagarto--Mourisco--Trigueiro. - -Dois bois de trabalho, de egual marca, fazem uma junta; aqui por -estes sitios os bois da junta teem nomes certos; se um é _castanho_ o -outro é _mourisco_; o _formoso_ com o _galante_; o _galhardo_ com o -_ramalhete_, e o _damasco_ com _diamante_. - -NOMES DE -VACCAS.--Andorinha--Bonecra--Bonita--Borracha--Branca--Briosa--Carriça ---Catita--Caterina--Coimbra--Corvina--Doirada--Estrella--Gadanha--Janota ---Padeira--Pomba--Rita. - -NOMES DE CAVALLOS.--Carocho--Catrapim--Palmeiro--Pardal--Pirata--Tareco. - -NOMES DE -CABRAS.--Alvadia--Carocha--Cartaxa--Condeça--Marmella--Rasteira. - -NOMES DE CÃES E CADELLAS.--Tejo--Nilo--Maltez--Leão--Navio--Norte ---Beirollas--Ladina--Esperta--Belleza--Brincatudo--Digoélla -(diga-o ella). - -Agora em Carnide ha nomes de cães e gatos, de origem culta, Macbeth, -Castor; a par da Tartaruga a Giroflée; ao lado do Rabicho e do Janota -os gatos Zixacha, Gungunhana, e o Godide, de nomes gloriosos. - -_Noticias várias._--O padre Anastacio resou a missa de corpo presente -por alma do principe de La Rochejacquelin (Luiz), morto na furiosa -carga de cavallaria nas terras do marquez de Louriçal, á Palhavan -(agora dos condes da Azambuja). A missa foi celebrada na egreja de -Carnide. O padre Anastacio morreu em idade muito avançada em 1896. - -Carnide tem o seu papel importante nas crises da primeira metade do -seculo XIX. Na Luz esteve um deposito de cavallaria organisado no tempo -de Junot; aqui esteve o brilhante official que foi depois o glorioso -marquez de Sá da Bandeira. - - * * * * * - -No palacio da quinta do Street, agora residencia da sr.ᵃ condessa -de Carnide (o conde de Carnide era Street Arriaga e Cunha) esteve -o quartel general de Bourmont, commandante em chefe das forças -miguelistas que atacaram Lisboa. - - * * * * * - -Esta quinta dos condes de Carnide foi em tempo muito nomeada pelas -experiencias agricolas, adubações, drenagens, empregos de machinismos, -que o primeiro conde, homem instruido e grande enthusiasta da -agricultura, aqui realisou. Os ultimos proprietarios não teem seguido a -tradição. - - * * * * * - -A celebre cascata da quinta dos condes de Mossamedes, complicada -fabrica de embrechados e nichos, foi destruida ultimamente. - - * * * * * - -Tambem a infanta D. Maria habitou em Carnide; assim o declara fr. -Miguel Pacheco, na Vida de la serenissima infanta Dona Maria (Lisboa, -1675):==Vivió la senora infanta algun tiempo cerca del convento de la -Luz, distante una legua de Lisboa, en un lugar que llaman Carnide (pag. -109-121)==. - -A feira da Luz ainda hoje tem nome, mas em tempos antigos foi muito -afamada; a gente de Lisboa abandonava a capital, empenhava tudo para -ir á feira, havia brigas para obter seges, ou mesmo burrinhos. Tomavam -ponche, ou limonadas, e compravam fitas, anneis, figas e corações. Isto -li eu na Nova e pequena peça critica e moral; _os Carrinhos da feira da -Luz_: composta por Joseph Daniel Rodrigues da Costa (Lisboa, 1784). - - * * * * * - -Na casa proxima á sacristia da egreja de N. Senhora da Luz, no -pavimento, está uma campa com letreiro: - - S.ᵃ DE DOM FREI PEDRO - SANCHES, RELIGIOSO D’ESTA - ORDEM E BISPO D’ANGOLA - FALECEO A 30 DE - NOVEMBRO DE 1671 - -Quando se fez o cemiterio de Bemfica, chamado dos Arneiros, -transportaram para lá algumas campas do antigo cemiterio de Carnide, -que era em volta da egreja de S. Lourenço. Lá está a campa da marqueza -Ravara com seu letreiro: - - AQUI JAZ D. AN - NA MARIA GUI - DO MARQUEZA - RAVARA FALE - CEO AOS 24 DE - JANEIRO DE - 1752 - -Nas _Memorias de Garrett_ diz-se que a quinta do Pinheiro fica em -Carnide. A quinta do Pinheiro que foi de Duarte Sá está entre Palhavã e -Larangeiras. Ahi se representou pela primeira vez o drama _Frei Luiz de -Sousa_, a obra immortal de Garrett. Hoje installaram um hospicio n’essa -bella vivenda. - - * * * * * - -O palacete e quinta do Sarmento onde residiu o visconde de Juromenha -ficam proximos da parochial de S. Lourenço de Carnide na estrada que -vae do Alto do Poço para Bemfica, a azinhaga do Poço do Chão. - -O visconde de Juromenha falleceu muito velhinho. Foi n’esta casa do -Sarmento que elle escreveu a sua obra classica, monumental, sobre os -_Luziadas_. Esta propriedade pertence hoje por herança á sua antiga -governanta. - - * * * * * - -Um folheto que julgo raro é a «Memoria sobre a união perpétua da -paroquial igreja de Carnide ao priorado do convento de Nossa Senhora da -Luz». É um opusculo de 7 pag. in-4.ᵒ, que me parece escripto por 1810. - - * * * * * - -_O pinto preto_.--Veiu uma mulher, da estrada do Paço do Lumiar, a -comprar um pintaínho preto. - ---Para que é o pinto preto? - ---É para um doente que tem uma fraqueza, e não ha nada que lh’a tire. -Dizem agora que só com o pinto preto... E a mulher instou que lh’o -vendessem, ou emprestassem, depois traria outro. - ---Não se vende, nem se empresta. Vá a outra porta. Vá á botica comprar -remedios. - ---Mas então, é para caldos? - ---Não senhor! isto é uma crendice d’esta pobre gente. Abrem-no com uma -faca pelo meio e applicam-no palpitante sobre o peito ou estomago se é -fraqueza; se fôr por alguma dôr, sobre a região onde lhes dóe. É uma -das taes tolices que não sáe dos cascos d’esta gente. Para estas cousas -não sou capaz de vender o pobre animal. - -Em livros de medicina mui velhos apparece o singular curativo; e -recordo-me de ter lido que um medico de Lisboa, no seculo XVI, -receitava ainda a ave aberta viva para a peste bubonica. - - * * * * * - -_Jogo do pião_.--Vi um grupo de rapazes jogando o pião. Nas cabeças -dos piões os rapazes tinham mettido tachas de ferro de haste curta e -cabeça larga de modo que os piões ficam com a cabeça protegida contra o -ferrão do inimigo, é invenção nova para mim. E a isto chamam os rapazes -pôr sêllo no pião, e é obrigatoria a sellagem; se apanham algum sem a -cabeça couraçada, dizem logo: - - Pião que não tem sêllo - Vae a casa do camêllo, - -e atiram com elle para o telhado mais proximo. - - * * * * * - -_Carnide, 1 de janeiro de 1900._--Caso novo, missa do gallo á entrada -do anno. Disseram-me que por ordem do Santo Padre se transferiu a missa -do Natal, por esta e a vez seguinte, para celebração do novo seculo, -visto que surgiram duvidas (a meu vêr singulares) ácerca de qual é o -primeiro anno do seculo XX, se é 1900 ou 1901. - -Não consta que se começasse a datar do anno _zero_, do seculo _zero_; -mas assim vae o mundo. Começou pois o anno santo pela missa do gallo. - -Antes da missa do gallo passiei no Alto do Poço, a noite estava muito -serena e agradavel, e casualmente assisti a uma scena dramatica, a -chegada de um expedicionario africanista, inesperada pela familia, que -móra num predio daquelle sitio. O pobre soldado, minado pela febre, -embarcára mui doente em Lourenço Marques; não poude avisar a familia, -chegára a Lisboa já melhor, foi á inspecção ao hospital da Estrella, e -logo lhe deram licença para passar alguns mezes em casa, ares patrios; -e elle assim que apanhou a guia foi direitinho a Carnide. Como elle ia -nervoso, febril, vêr os seus queridos nunca esquecidos, exalçados pela -ausencia larga em regiões e climas remotos. - -Na familia, durante a ausencia do moço soldado, houve mortes de -pessoas queridas, que não lhe participaram para o não contristar, pobre -rapaz. - -Chega o soldado em sobresalto febril e logo reparou nos vestidos de -luto; veiu gente conhecida da visinhança e romperam em parabens e -lamentos, numa confusão de lagrimas. - -No theatrinho de Carnide representou-se nessa noite, espectaculo feito -por alguns curiosos da localidade, e terminado o ultimo acto um grupo -animado, cantarolando, veiu da quinta do Sarmento, passando pela casa -do pobre expedicionario. Eram conhecidos e amigos d’elle. - -Missa do gallo! annunciava a sineta do convento, n’uma vibração fina -cortando a noite. - -Na egreja, cheia de devotos em muito silencio, como n’um mysterio, -ergueu-se a voz do capellão. - -Houve exposição do Santissimo, e communhão, na grade ás religiosas -portuguezas, e na capella do Senhor dos Passos ás irmans de Missão. -E exposição do Menino, com o seu alegre motete executado no orgão -velhinho, por uma velhinha no seu habito de Santa Thereza. - -Que singular espiritualidade acho neste cantar das velhinhas -religiosas, tremulo, enfraquecido, esmorecendo como a toada de um sino -que se esvae no ar. E contraste ainda nestas duas instituições aqui a -par, a antiga, a que se apaga, a da vida contemplativa, ascetica, a da -clausura austera, orante áparte da humanidade, e a nova da actividade -christan, luctadora dos hospitaes, trabalhadora das escolas, militante -em regiões longinquas, arrostando os paizes das febres e dos selvagens. - -Missa do gallo em noite de anno novo, foi caso inedito para mim. O meu -pobre espirito estava abalado pelos contrastes que presenceára, e ao -mesmo tempo lembrava-me da antiga missa do galo, na minha freguezia de -Santo Antão, seguida da canja no meu lar, tudo n’uma aureola de familia -e de pureza santa! - - * * * * * - -_D. Sebastião enamorado._--No jornal _A Arte_, de 1879 (pag. 158), se -transcreve um antigo manuscripto que trata da--«Origem da desgraçada -jornada de Africa que executou el-rei D. Sebastião para ruina total -d’este reino». - -É singular escripto e parece ter um fundo verdadeiro. - -O sr. A. Pimentel tambem se lhe refere no seu bello livro _Atravez do -Passado_ (pag. 119). - -Alguem, talvez com o fim de deprimir a familia do duque de Aveiro, no -tempo pombalino, lhe juntou ou alterou umas linhas que no meu espirito -não originam duvidas sobre os factos do seculo XVI ali relatados. O que -ha escripto sobre D. Sebastião tem origens muito alheias á intenção -historica simples; assim como o pobre infeliz rei viveu rodeado de -intrigas palacianas, assim a sua memoria serviu ainda para enredadas -phantasias, e manias politicas. - -Que em roda do rapaz houve lucta de influencias a proposito do -casamento d’Estado, provam-no muitos papeis velhos; que um amor natural -perturbasse o coração do joven rei não custa a crer; que um duque, -proximo do throno, favorecesse a inclinação do rei para sua filha, é -bem possivel; que D. Catharina, e os politicos, vissem com inquieto -olhar esses amores, é provavel tambem. Ora é esta a essencia do papel -a que me refiro, e que vou mencionar aqui por se fallar n’elle de uma -quinta de Carnide. - - * * * * * - ---O duque de Aveiro, D. Jorge de Lencastre, teve uma filha unica -chamada D. Juliana, a quem creou no Paço a rainha D. Catharina, sendo -Regente d’este reino. Era dama formosa, bem feita, e muito esperta; ao -menos, quando não tivesse estas qualidades, agradou-se d’ella El-Rei -D. Sebastião, sendo mancebo, e veiu a declarar-se mais depois do anno -de 1568 em que tomou o governo. Similhantes inclinações, que não podem -ser occultas muito tempo, principalmente entre pessoas taes, chegaram -á noticia da Rainha, e do duque de Aveiro; porém com differentes -sentimentos, porque a Rainha receiava a consequencia d’estes amores, -de que era objecto uma bisneta de el-rei D. João o 2.ᵒ, e o genio -apaixonado de seu neto, que teria então 20 annos, e D. Juliana, -16, com pouca differença; e o duque com uma vaidade disfarçada, e -fingindo-se ignorante, do que todos sabiam, aspirava a altas ideias, -lembrando-se de que era neto de um rei, da sua grande representação e -casa, e tudo isto o persuadia de que algum dia sua filha a contariam no -catalogo das Rainhas de Portugal--. - -Fallaram os politicos, os cortezãos, os invejosos, a Rainha fallou ao -Cardeal infante D. Henrique e começaram a querer fazer casamento a D. -Juliana, dando ao duque de Aveiro mais honras e mercês. E foi subindo a -intriga, e D. Sebastião o bello rapaz sempre contrariado, a querer mal -a D. Henrique seu tio, e a faltar ao respeito a D. Catharina sua avó. - -Faltava-lhe a mãe; talvez a origem da desgraça esteja n’isto. - -O rei desconfiava de todos, a camarilha enjoava-o; evitava-a quanto -podia, ia caçar; andar pelos montes onde o ar é sempre puro. Os seus -amigos e companheiros eram D. Alvaro de Castro, Christovão de Tavora e -o duque de Aveiro. - -A uma caçada em Cintra foi muita gente da côrte; o duque levou sua -filha; a Rainha D. Catharina encarregou uma dama de observar os passos -de D. Sebastião. E esta dama foi descobrir no alto da serra, apartados -dos caçadores, o rei, e o duque de Aveiro com sua filha D. Juliana! - -Outros ajuntamentos houve a seguir, affirmando-se que el-rei promovia -essas festas agitadas e com muita gente para se encontrar com D. -Juliana. - ---Ultimamente houve um ajuntamento que muito dissaboreou a Rainha, -e o Cardeal infante, e foi uma mascarada de noute, em uma _quinta -no districto de Carnide_, na qual se acharam grandes senhores e o -duque de Aveiro com sua filha vestida á turqueza, e muitas outras -damas lusidamente ataviadas; e do que ali se passou teve a Rainha -circumstanciadas informações; mas não se disse com certeza quem as -dera, supposto que se presumiu ser o prior do Crato, D. Antonio, filho -do infante D. Luiz--. - -A Rainha D. Catharina, o tio Cardeal censuraram el-rei; e elle começou -a fallar de ir á Africa. - -Nem em Cintra, nem em Carnide o deixavam á vontade. - -Só Africa, para casos d’estes. - -A primeira ida á Africa foi effectivamente uma surpreza para a côrte. -D. Sebastião foi caçar nos arredores de Ceuta e Tanger e parece que -encontrou lá uma filha do Xarife que se parecia com D. Juliana. - -De cá choviam os avisos da Rainha-avó, do tio Cardeal, dos bispos; -custou a vir. - -Parece que D. Juliana, a ladina turqueza de Carnide, foi offuscada pela -filha do Xarife; encanto de moura! - -Na segunda jornada o duque de Aveiro, apesar de ter perdidas as -esperanças no casamento da filha, acompanhou D. Sebastião; e morreu -com o seu rei e amigo. - -No seu testamento, feito antes de partir, recommendava que D. Juliana -casasse com D. Jorge de Lencastre; este morreu tambem na batalha. - -D. Juliana, nova, herdeira riquissima, teve varias propostas de -casamento com os maiores de Hespanha, que não acceitou; esperaria o -rei? só dez annos depois de Alcacer casou com D. Alvaro de Lencastre, -que foi o 3.ᵒ duque de Aveiro. - -Agora, onde a _quinta do districto de Carnide_? Gostaria de saber, -gostaria, mas é certo que não encontro vestigios a que possa attribuir -grande antiguidade, nem mesmo tradição local. As grandes casas de -Carnide e seu termo são do seculo XVII e do XVIII; e estas na maioria -ainda modificadas e transformadas modernamente. - - * * * * * - -_A familia Carnide._--Em antigo codice genealogico encontro este -appellido, de origem local. Um homem natural de Carnide adquiriu bens, -fez serviços e alcançou a nobreza. Diz o codice: «é Carnide logar de -80 visinhos, com boas e rendosas fazendas, e entre os visinhos alguns -que se tratam nobremente, e viveram em tempos antigos com abundancia e -nobreza.» - -O primeiro mencionado é Pedro Gonçalves de Carnide, do tempo de Affonso -V. Seu filho Pedro de Carnide morou em Cintra. - -Balthazar de Carnide foi moço da camara de D. Manuel. A familia -Carnide apparece em seguida alliada a Gamboas e Ayalas. - -Jeronymo de Carnide, moço da camara, esteve em Roma com o embaixador D. -Alvaro de Castro: foi provedor de saude no periodo terrivel das pestes -e contagios; basta dizer que foi guarda-mór de saude do Reino em tempo -de D. Sebastião. Era natural de Cintra; viveu 120 annos (1503-1623), -alcançando os reinados de D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, D. -Henrique e os Filippes I e II. Um seu filho, Balthazar de Carnide, -viveu 100 annos. - -Os Carnides mencionados nas genealogias são quasi todos de Cintra; é -certo que ainda hoje apparece este appellido em familias de Cintra e de -Torres Vedras. - - * * * * * - -_Propriedade territorial na idade média._--Ha documentos relativos a -propriedade territorial em Carnide, nos fins do seculo XII, e primeiro -quartel do XIII. É bem raro encontrar uma série tão variada de taes -documentos. Não nos é todavia possivel marcar com precisão, com -exactidão, o local da propriedade, ou quinta de que se trata. - -Porque as propriedades variam muito, dividem-se, aggregam-se; as -extremas fluctuam; os nomes alteram-se. - -Os documentos de Urraca Machado, _dóna_ de Chellas, isto é, freira -do mosteiro de Chellas, foram publicados pelo erudito sr. Pedro de -Azevedo, no _Archivo Historico Portuguez_, vol. III, pag. 5 e seg. - -Quem era esta senhora? era _dona Orraca Martins_, filha de Martim -Machado, professa do Mosteiro de Chellas, que andava _fóra da Ordem_, -quer dizer, ausente por muito tempo do seu convento. Tinha bens e -parentes proximos em Carnide, e o seu compromisso com a Ordem. Ora -constou que ella vendia e desbaratava esses bens, em damno do mosteiro, -este protestou, e por isto a série de documentos muito especiaes e -valiosos. O protesto é de 1299, tempo de D. Diniz; foi lavrado no -concelho da cidade de Lisboa, perante o alcaide e alvazis. - -No terceiro documento, de 1308, falla-se da quinta de Carnide, em que -a freira tinha uma parte. No quarto documento, de 1309, se diz que as -rendas de Carnide foram arrematadas a Salomão Negro, judeu. A familia -judaica _Negro_ apparece em documentos do seculo XIII ao XV. - -David Negro era o famoso thesoureiro de Leonor Telles, quando -proprietario em Camarate e na Outra Banda. A outra parte da quinta -pertencia a Martim Martins Machado, irmão da freira. O documento é -interessante; trata do arrendamento, almoeda, e negocios, em que houve -_malfeitoria_; o instrumento ou contracto que o judeu apresentou -não afinava com a _nota_ tabellioa, havia _mentira e burla_. Este -instrumento, declara o tabellião, foi escripto em papel porque não -havia _porgamyo decoyro_. Acontecia isto por vezes; em cousas -officiaes usava-se o pergaminho; quando este faltava, lançavam mão do -papel. E certo é que papel e tinta chegaram até nós; bom papel e boa -tinta; não sei quantos annos durarão certos papeis e tintas usados -actualmente. - -O documento n.ᵒ 7 é uma carta regia, ou sentença de D. Diniz, passada -em 1311, sobre a partição dos bens da freira e de João Machado, tambem -seu irmão. A monja de Chellas tinha terras em Carnide, nos sitios da -Panasqueira e na Feiteira. - -_Panasqueira_ é na parte norte da moderna quinta de Montalegre, formada -pelo fallecido Carlos Anjos, entre as estradas de Telheiras, Luz e da -Fonte. - -Não é facil marcar os sitios das propriedades; diz-se _sob a fonte_, -na _varzea_, na _corredoura_, designando as fazendas pelos nomes dos -donos, pessoas bem conhecidas em 1311. Mas já havia no sitio _vinha -velha_, moinho e almoinha ou horta, courellas e ferrageaes, adega com -material vinario, tinas, toneis e cubas, já se falla das _covas_ de -Carnide. Trata-se me parece de covas de guardar pão ou cereaes, silos; -em 1908, modificando-se a calçada no _Alto do Poço_, appareceram -duas grandes covas, abertas no solo, de dois metros de fundo por um -e meio de diametro, quasi totalmente entulhadas. As paredes estavam -nitidas, bem conservadas. As pessoas da localidade ignoravam o -destino d’aquellas grandes cavidades, o que succede, me parece, por -todo o paiz. E todavia no seculo XVI ainda se utilisavam os silos ou -matamorras, e no centro de Espanha ainda hoje estão em uso. Em Lisboa, -na grande obra municipal de ha poucos annos, ao Arco do Marquez do -Alegrete, tambem appareceram silos, ao longo da muralha fernandina. - -O documento n.ᵒ 10 é de 1312; refere-se a certa divida de João Machado -a Isaac, filho de Judas Negro, outro judeu da familia Negro; e a uma -courella do _Cano_, pertencente a Urraca Machado. O n.ᵒ 12, de 1313, -falla-nos da courella da _Coelheira_, da qual traz as confrontações -pelo _sol levante, aguião, poente_ e _avrego_. _Aguião_ quer dizer -_aquilão_ ou norte, e _avrego_ vem de africo, ou vento de Africa, isto -é, sul. N’este documento figura Domingas Eanes, prioreza de Chellas, e -Ousenda Domingues, sub-prioreza. Já menciona a _aldeia de Carnide_ com -seu _rocío_. - -Em 1321, com licença do mosteiro de Chellas, a freira Urraca Machado -entregava por aforamento os seus bens de Carnide a um Rodrigo Eanes, -por duzentos maravedis de Portugal, pagos ás metades do anno por -Paschoa e Santa Iria, mais doze almudes de vinho. Não é bem um -aforamento, é um arrendamento a longo prazo, em vidas, pois só termina -depois da morte do rendeiro, de sua mulher e filho. O contracto tem -penas severas e condições bem determinadas, como a de o rendeiro -fazer á sua propria custa almoinha ou hortejo, e plantação de vinha, -concertos de casas, adegas e lagares, e de sua louça. - -Em 1325 já a dóna Urraca era fallecida; mas havia freiras de Chellas -na sua casa de Carnide; por causa de certa questão de posse foram ahi -notarios que viram duas freiras em _uma camara sob a torre_. N’esse -tempo era Clara Gonçalves prioreza de Chellas; é notavel que n’este -mesmo documento se lhe chama abbadessa. N’esta época a questão chegou á -maior intensidade, houve violencia, e Martim Machado foi excommungado. - -Em 1390 foi a quinta de Carnide emprazada em tres vidas a Martim Annes; -confrontava com as herdades de fuão e fuão, e do mosteiro de Santa -Clara de Lisboa... - -Era uma _quintam_ de herdades de vinhas e de pão que o dito mosteiro ha -na aldeia de Carnide, termo da dita cidade (Lisboa). - -A par dos elementos relativos á _quintam_, apparecem outros em razão -das confrontações, das testemunhas, etc. - -Assim n’um documento de 1313 se falla de uns quartos de courellas de -vinhas que o mosteiro havia em Carnide no herdamento do Louro; de uma -testemunha se diz: fuão morador ao Louro, no casal da _Ordim_. - -Em 1352: quinta no logo que chamam _Alperiate_... casal e herdades de -pão sitas em _Queylus_... uma vinha que chamam a _Coelheira, a par de -Carnide_. Alperiate, ou Alpriate, é o nome de uma localidade perto da -Povoa de Santa Iria. - -Em 1356: courella do _Pereiro_, alem de Carnide que parte com vinha de -_Santaloy_. - -Deve ser Santo Eloy, no caminho da Pontinha para A da Beja. - -Em 1366: vinha no _Cano_, logo, ou logar, de Carnide. - -Em 1397: em Carnide... em logo que chamam a _Soeira_. - -Em 1438: fulano morador na _Payãa_. Agora diz-se _Payam_. - -De 1443 temos um documento interessante: trata de uns _Tintaes_ de -vinha, um acerca do outeiro... confrontando com caminho da _Granja_, -outro com azinhaga que foi da _fonte do Machado_; são nomes que ainda -vivem. - -Em 1466... vinha do morgado de _Mem de Brito_. - -Em 1481... vinha que parte com a ermida de Santa Maria da Luz, em -Carnide. - -Um documento de 1484 menciona as courellas que pagavam o quarto á -quinta de Carnide, duas entestavam com a Luz e caminho que vae para o -_Lomear_. Outra com estrada que vae de Carnide para Lisboa. Menciona-se -um fulano morador na _Ribeira de Agoa Livre_; é um sitio da ribeira ou -do valle de Carenque. Uma courella no cabo do _Rego_, outra na estrada -de Lisboa e na do Lumiar. - -A pag. 32 da publicação do sr. P. d’Azevedo (_Archivo Historico -Portuguez_, vol. III), vem o _titulo dos canos_: F. morador na de _Dona -Maria_ (é a aldeia que fica a norte de A da Beja) tinha uma courella de -vinho e azeite que entesta no ribeiro do Bom Nome (a quinta do Bom Nome -é agora a do Sarmento), e com o _Resyo do logar_. O rocio de Carnide -era a poente da egreja de S. Lourenço, a parochial, que é do seculo -XIII. - -F. morador nas Fontellas, na ribeira de Loures tinha uma courella que -entesta com o rio do _Bom Nome_ e com o _resyo de Carnide_. F. tinha -metade de um quarto de courella. Vê-se que a propriedade estava muito -dividida. - -A _albergaria_ de Carnide trazia tambem um meio quarto de courella. -Passou depois a pequena fazenda para o _hospital_ de Carnide. - -Outra courella entesta no rio do Bom Nome e com o adro de S. Lourenço; -deve ser a fazenda onde está agora uma vaccaria. - -F. do _Calhariz_ possue uma terra que vem á estrada _na do Correia_... -caminho de Bemfica. F. tem uns quinhões na almoinha do Machado defronte -da porta travessa de Nossa Senhora da Luz. _Correia_ é o nome da quinta -do sr. conselheiro Pequito. Um quinhão do lagar do Espongeiro... parte -do aguião ao longo da estrada _na do Correia_, e do vendaval (sul) -entesta com o caminho de Bemfica e da travessia (poente)... - -No _Esparageiro_; será variante de Espongeiro? Esparageiro virá de -espargo? - -Agora apparece-nos um nome estranho, quinhões dos _Feytaes layrasos_, e -tambem _Feytaes castelhanos_. Nada conheço agora que se lhe avisinhe. -Todos estes nomes estão no titulo dos _Canos_: este era pois o nome de -uma região, entre a estrada do Poço do Chão e a estrada que vae de S. -Lourenço para a Porcalhota, agora, recentemente, Amadora, passando pela -actual quinta da Correia. É possivel que este nome de Canos tenha a sua -origem em antigos pequenos aqueductos. - -Finalmente apparece-nos um documento com autos de medição de certas -propriedades; é de 1554. A vinha da Coelheira que parte com caminho -da Granja, tinha de largura 28 varas e de comprido 246 varas, era um -tira de terra: outra vinha tinha de largura 51 varas e de comprido 280 -varas, era uma fazenda com pouco mais de hectare e meio. - -Esta collecção de documentos é importante para o estudo da marcha -do processo civil; especialmente o grupo que pertence ao primeiro -quartel do seculo XIV. Brigam no comprido pleito particulares, freiras, -o convento; chegam á excommunhão. Ha instrumentos de protesto, de -testemunho, de intimação, procuração, cartas regias, sentenças, recibos -e obrigações, aforamento, arrendamento a longo praso, e suas condições, -carta de excommunhão, posse, emprazamentos em tres vidas; todos estes -variados instrumentos entram no seculo XIV, a maior parte no seu -primeiro quartel (1299 a 1325). - -As conclusões a que chegamos são: no termo de Carnide a propriedade -estava muito dividida; havia proprietarios de meia courella, de quarto, -de meio quarto de courella. - -A cultura era variada, vinhas, olivaes, terras de seara ou de pão; -almoinhas ou hortas. Falla-se numa vinha _velha_. - -Não vejo nos nomes de proprietarios ou rendeiros nomes mouriscos; -muitos teem dito que os saloios são de origem mourisca, nestes -documentos não apparecem nomes desse elemento; apparecem individuos -da familia Negro, judaica, proprietarios ou gente de negocio. Nestes -documentos falla-se em muitos predios porque tratando da quinta de -Carnide, cabeça dos predios rusticos de Urraca Martins Machado, e das -suas dependencias ou terras annexas, ao mesmo tempo se mencionam varias -com que confrontam. Não vejo mencionar cercas, tapadas, muros. Como -noutras partes accumularam propriedades, arredondaram e muraram. Aqui a -construcção dos conventos com suas cercas importantes alterou immenso a -topographia dos predios. - -Os conventos da Luz, de Santa Thereza, dos Carmelitas, o Hospicio das -freiras de Christo, alastraram no fim do seculo XVI e no XVII os seus -vastos edificios e amplas cercas de altos muros. - -Todavia as estradas indicadas existem ainda hoje, a azinhaga da Fonte, -o caminho de S. Lourenço para Bemfica, que é a estrada do Poço do -Chão, que passa pela Granja, a estrada de A do Correia, estradas da -Luz para o Lumiar, e da Luz para Lisboa. Em frente da porta travessa -da egreja da Luz lá está ainda uma almoinha com suas latadas e -canteiros; a quinta do Bom Nome, é agora chamada do Sarmento. A do -Correia é a quinta da Correia, os logares ou aldeias de A da Beja, Dona -Maria, Calhariz, Payam, Santo Eloy existem. O valle de Odivellas tão -interessante conserva-se dividido em pequenas propriedades, de intensa -cultura onde o saloio moureja. - -Fóra d’esse valle a pequena propriedade quasi desappareceu; a tendencia -é para accumular. Depois dos conventos, ou contemporaneamente, formaram -as quintas depois chamadas do Oliveira, da Condessa, do Mossamedes, do -casal do Falcão. Modernamente formou-se a grande quinta de Montalegre -que fundiu cinco propriedades grandes; o collegio militar tambem -alargou as suas terras. Só entre o logar de Carnide e o Paço do Lumiar -se encontram os grandes vallados antigos, as propriedades sem muros. - - - - -A villa da Ericeira - -(1903-1905) - - -Os caminhos mais seguidos para ir á Ericeira são os que partem de Mafra -e de Cintra; este o mais frequentado. - -A estação do caminho de ferro de Cintra está pittorescamente -aconchegada na base do alteroso monte granitico, rochedos pardos entre -manchas de vegetação verde escura, coroado pelas torres e quadrellas -mouriscas terminadas na fina grega de ameias. Da estação partem os -carros para a villa, para Collares e Ericeira. - -Começa logo a descida, passa-se uma ponte; termina de subito a invasão -das construcções modernas, e definem-se as modestas casas saloias da -moda velha. - - * * * * * - -_Lourel_, a primeira aldeia; era já povoado o sitio em tempo da -dominação romana; antes de gódos e de mouros, vejam lá! - -Mais cinco minutos de carro e apparece, espreitando entre agrestes -collinas, a torre de Ribafria; uma residencia nobre medieval, -conservando a sua linha primitiva, a torre com seu brazão, palacete, -grande lago e alta cerca, naquelle fundo valle aproveitado -provavelmente pela abundancia de agua nativa. - -São bem raras estas residencias ruraes em Portugal, todavia restam -algumas que contam a sua formação pela juxtaposição dos seus cunhaes. - -A residencia de Bellas, por exemplo, que é muito interessante, onde eu -julgo vêr restos ainda da alta idade media. - -As arvores que bordam a estrada estão inclinadas uniformemente para -suéste marcando bem a corrente dos ventos dominantes. - - * * * * * - -_Villa Verde_, um grupo de casas com seus quintaes, muros de pedra -solta, figueiras e parreiras. - -A vista alarga-se pelos vastos campos, accidentados; ao longe collinas -arredondadas com manchas escuras de pinhal. A serra de Cintra mostra -agora a sua crista atormentada, as massas escuras de arvoredo, -destoante de tudo o que a cérca; e avista-se Mafra, a enorme joia, -principalmente vistosa se o sol da tarde illumina a soberba frontaria, -que olha para occidente. - - * * * * * - -_Terrugem_, povoado alegre, amplo terreiro, egreja antiga com sua -alpendrada, e seu gentil campanario do seculo XVIII; pouco adiante uma -velhissima ermidinha, com portal em ogiva. - -Estamos em pleno paiz saloio, onde apenas algumas pequenas explorações -de pedreiras juntam fracos elementos á vida agricola. Ha poucas -habitações dispersas, e nenhum povoado importante. Esta freguezia de S. -João Degolado da Terrugem compõe-se de mais de vinte povos ou logares, -que teem na média 10 fogos. Os mais povoados são Terrugem, Villa Verde, -Alcolomba, Lameiras, Almurquim, Fajão, Cabrella, Carnessada, Goudigana, -Armez. Grupos de 4, 6, 8 casaes são os logares de Toja, Da do Bispo, -Alpolentim, Urmeiro, Fervença, Moleirinhos, Sequeiro, Murganhal, -Alparrel, Funchal, Silva. Um ribeiro, o Fervença, corta as terras da -freguezia. - -Entre as designações locativas algumas merecem reparo pois mostram -influencias de antigas linguagens. - -E por todo o paiz saloio a população se encontra assim em pequenos -grupos, sendo muito menor a parte que vive em casaes ou quintas -isoladas. - - * * * * * - -_Odrinhas_; pára a carrinha de bancos para descanço dos animaes, e -breve allivio dos passageiros. - -Se o saltitante vehiculo vier completo, e entre os passageiros -houver gorduchos, é caso grave; porque a diligencia foi feita para -trinca-espinhas. A paragem é uma consolação, para alargar um pouco os -musculos. - -A um kilometro da pobre locanda, estação _central_! onde pára a -carrinha, fica o meu adorado S. Miguel de Odrinhas, a velha egreja, -com as suas veneraveis antiguidades, o primitivo alpendre, o cemiterio -medieval, e as suas lendas bem interessantes. - -Mais dez minutos e passamos perto de um cómoro cheio de enormes -pedregulhos, ovoides uns, globulares outros; ali os muros das pequenas -propriedades parecem feitos de pelouros, de grandes balas de pedra. É -_Alvarinhos_, uma formação granitica, bem frisante entre os terrenos da -grande chapada. - -Segue-se um plaino pouco accidentado; casas saloias de construcção -quasi cubica, escada exterior para o sobrado, e telhado de quatro -aguas; grandes lages formam as divisorias; uma casa tem a sua porta -abrigada por um alpendre formado por tres lages, duas a prumo e uma -coberteira; cruzes de cal branca em muitas paredes, ás vezes muitas -cruzes numa só parede; algumas casas mais modernas e janotas com os -cunhaes pintados a azul e vermelho. - -Estamos em terras da freguezia de S. João das Lampas, mais importante -que a Terrugem: tem 32 povos ou logares; mas a media de fogos por logar -é egual á da Terrugem. - -Os povos mais importantes são: S. João das Lampas, Bolelos, -Montearroio, Odrinhas, Alvarinhos, Amoreiras, Almagreira, Areias, -Alfaqueques, Mouxeira, Arreganha, Seixal, Assafôra, Cortezia, -Cantrivana, Arneiro, Togeira, Magute, Bolembre, Fontenellas, Gouvêa, -Perningem, Codiceira. - -Os ribeiros de Magute, Samarra e Barril, que vão á foz de S. Julião, -cortam parte da freguezia em valles fundos, formando nos convalles -pequenas veigas ferteis. - -A oriente, Mafra, o soberbo zimborio, as altas torres dos sinos, -os formidaveis torreões dos extremos; e a sul a serra de Cintra, -decorativa por excellencia, mais azul quanto mais longe, com tons de -amethysta, frequentemente variada com ligeiras neblinas. - -Pouco mais e descobre-se a veiga da ribeira de Chileiros, os sulcos -fortes dos seus pequenos afluentes, entre collinas de declives rapidos. - -Para o poente a grande face tranquilla do Atlantico. - -Uma e outra vinhasita entre muros de pedra solta; retalhos de tojaes -cortados; vaccas leiteiras guardadas por creanças; grupos de pinheiros -mansos de verde lustroso, poucas arvores de fructo; sobre os telhados -filas de aboboras; em fins de setembro os campos estão animados, -trabalha-se nas eiras na debulha do milho, e na estrada passam os -carros com as uvas para as adegas. - -Fica ao longe a casaria branca, baixa, de S. João das Lampas, alveja a -Assafôra, e outros pequenos povos; passa um fresco pinhal, e começa a -descida que leva á Carvoeira, uma aldeia na encosta; em baixo o valle -agora mais amplo da ribeira de Chileiros, forrado de vinhedos novos. - -Ha uma ponte nova, bem lançada; e a carrinha sobe vagarosamente a -longa ladeira; vê-se a Foz, a barra de areia branca, a agua do rio -mui socegada entre as escarpas altas e escuras; ouve-se o rumor da -arrebentação, das grandes ondas de claro verde transparente, de franjas -alvissimas que o vento pulverisa, desenrolando-se espumantes sobre a -barra de areia branca, ou saltando, espadanando nas escuras rochas das -ribas. - -O vasto oceano impõe-se agora, de fim vago se ha neblina; se o tempo é -claro sempre a mesma linha de horizonte, nitida, limite implacavel e -monotono. - -Termina a ladeira, salvam-se umas curvas de macadam, e apparece-nos a -distancia a branca villa da Ericeira, como um bando de gaivotas pousado -na riba da beira-mar. - -As _arribas_ são escarpas de 30, 40 metros de altura, pittorescas em -muitos pontos pelo estranho colorido, pela fórma de fragmentação; -parecem ruinas de edificios gigantes. - -Escuros penedos á beira-mar quebram as vagas que se empinam em -cristaes, se desfazem em brancas espumas ferventes, numa lucta -rithmica. Das arribas a encosta faz uma plataforma, e logo sobe -rapidamente o terreno para oriente, o lado de Mafra. - -Nesse largo socalco assenta a villa da Ericeira, a branca villa toda -caiada, porque os habitantes até branqueam os telhados de muitas casas, -e as ermidas das _arribas_, S. Julião, S. Antonio e S. Sebastião -parecem talhadas em sal marinho. - -Nenhuma vegetação agora rompe a nitidez do verde mar, do escuro das -furnas, da cal branca faiscando ao sol; só umas delgadas, flexiveis -araucarias conseguem erguer-se sobre a linha da casaria; outras arvores -ao passar a crista dos muros desfolham-se e quebram-se pela ventania -maritima; nos pequenos quintaes abrigados ha roseiras finas, jasmins -viçosos e latadas de dourado moscatel. - -Tambem tenho ido á Ericeira, passando por Mafra. Na estação do -caminho de ferro apparece um carro de bancos, especie de americano -de montanha, que nos leva á povoação, vencendo uma comprida ladeira. -Proximo á estação, sobre uma collina, avista-se uma aldeia de aspecto -interessante; as casas cubicas, com suas barracas ou quinchosos -aos lados, coroam o monte, semelhando uma fortificação de torres e -quadrellas. A estrada vae subindo pela meia encosta de um grande -massiço; os largos declives dos montes povoados de culturas, vinhedos; -nos sovacos mais humidos grupos de vaccas leiteiras. - -Para cortar caminho, indo de trem, atravessa-se um canto de tapada, uma -rua de platanos, e logo o assombro do monumento. - -Ha ali primores de extraordinario merecimento. Que magestade imponente -nas linhas geraes, que afinação, que equilibrio entre os corpos que -compõem o grande conjuncto, que acabada execução! e na egreja que -relevos de delicado lavor! e que bello horisonte! - -N’este paiz accidentado quasi todos os monumentos teem moldura de -grandiosa paizagem; não succede o mesmo em França, Inglaterra, -Allemanha onde a vista pára em arvoredos proximos ou encontra planuras -monotonas. Mafra tem moldura larga e rica, basta a decorativa Cintra, -joia azul, o mar, e aquella vastidão de terras accidentadas, com seus -povos e casaes, quintas, vinhedos e manchas avelludadas de pinhal. - -Os sinos, um dos primeiros carrilhões do mundo, enchem de vibração -religiosa aquelles campos; ouvem-se muito ao longe; uma vez passando -em Odrinhas ouvi uma toada longa, mui grave, que me impressionou; -era a sonoridade dos sinos de Mafra que chega a muitos kilometros de -distancia. Outra vez ouvi no carrilhão a valsa do _Fausto_! que typo -de sineiro, quando hoje ha musicas escriptas expressamente para estes -grandes instrumentos de musica! - -Mafra tem outra notabilidade, a velha egreja de Santo André, antiga -freguezia. Cautella com os amadores, pois a vi muito abandonada. - -Tem altares de azulejos mosarabes, e frontaes de couro lavrado, -colorido e dourado; e duas arcas tumulares medievaes, de interesse -historico e artistico. O exterior da capella mór e a torre sineira são -da primitiva, e em volta está o velho cemiterio, tão pouco respeitado! - -Com pequeno esforço se poderia conservar melhor essa interessante -egreja de Santo André! - -Muito curioso o pequeno mercado, os figos moscateis, as lindas uvas, as -bellas maçãs, os aromaticos melões, as saloias com os seus cabazes de -ovos. Mas que ovos saborosos! nos almoços que nas minhas passagens por -Mafra consumi no Moreira ou no Duarte ou no Ricardo, eu repeti os ovos -fritos na manteiga saloia. - -A carrinha da Ericeira pára á porta do correio, que fica ao lado da -escadaria monumental da egreja. - -E partimos para o lado do mar. - -Pela estrada carros com rama de pinho, rapazes com vaccas leiteiras, e -grupos de crianças pedindo cincoreizinhos em cantilena nasalada. - -_Sobreira_, logarejo com caixa de correio, e uma loja centro -commercial, onde se vende tudo á gente do sitio, e vinho á gente que -passa; o cocheiro aceita sempre o seu copito. Fabrica-se por aqui -ceramica popular, louça de barro, vidrada ou não, com sua ornamentação -especial. E não só na Sobreira, mas em outros povos proximos ha -oleiros, até á Lapa da serra, pequeno logar já visinho da Ericeira. - -Agora atravessamos trechos de pinhal; paisagem formidavel; na luz forte -o grande mar, a serra de Cintra, amethista lavrada, os vastos campos -accidentados, palhetados de logares e casaes brancos, as verdes manchas -de pinhal, e Mafra, o imponente edificio avermelhado, saliente entre a -pequena casaria branqueada da villa. - -E quanto mais nos avisinhamos da Ericeira mais viçosos são os pinhaes; -tudo pinhal novo, porque as velhas arvores foram derrubadas nos ultimos -annos. O mar quanto mais proximo mais scintillante. - -E nada da Ericeira; para esse lado, a quem vem de Mafra nem uma casa, -nem uma torre de egreja mostra a villa; porque ella está no grande -socalco da ribamar; quasi ao terminar a ladeira surge a casaria branca -alastrada, projectando-se sobre o oceano. - -Ora vamos ouvir o padre Antonio Carvalho da Costa, bom author que eu -sempre recommendo, na sua mui excellente «Corografia portugueza, e -descripçam topografica do famoso reyno de Portugal», impressa em 1712: -escreve o prestimoso clerigo e mathematico lisbonense, a pag. 42 do -tomo terceiro: - - -Da Villa da Eyriceyra - -Uma legua ao noroeste de Mafra (será escusado lembrar que havia então -leguas pequenas, e leguas da Póvoa), tres ao sudoeste da villa de -Torres Vedras, e sete ao Sul de Peniche, tem seu assento a villa -da Eyriceyra, a quem banham pela parte do occidente as salgadas e -ceruleas aguas do cubiçoso Oceano, que a faz abundante de bom pescado e -excellente marisco, especialmente eyriços, donde a villa tomou o nome, -o que approvam suas armas, que são um eyriço em campo branco. - -Elrei D. Diniz lhe deu foral (o primeiro foral é mais antigo), que -confirmou depois elrei D. Manuel, fazendo doação della ao infante -D. Luiz seu filho, de quem a herdou o sr. D. Antonio, seu filho -illegitimo, ao qual (sendo expulsado da successão do reino por el Rei -D. Fillippe o de Castella, e vencido na ponte de Alcantara pelo duque -de Alba, que com poderoso exercito entrou neste reino) lhe confiscaram -todas suas rendas, e entre ellas a villa da Eyriceyra, a qual deu em -satisfação de divida a Luiz Alvares de Azevedo de juro, e herdade -para elle, e seus descendentes, com que ficou excluida da Corôa, como -bens patrimoniaes; e pertencendo ella a uma sua filha, religiosa de -S. Bernardo no mosteiro de Odivellas, a vendeu a abbadessa por 8:000 -cruzados a D. Diogo de Menezes com todas suas rendas e direitos reaes, -e a quinta parte do morgado da villa de Mafra, e a vintena do peixe, -que se paga aos senhores da dita villa, que é em todas as partes em que -fóra della pescam seus naturaes, mui exercitados neste officio. - -Tem 250 visinhos com uma egreja parochial da invocação de S. Pedro, -curado, que apresenta o conego da Sé de Lisboa, o qual tambem apresenta -a vigairaria de Mafra: tem mais Casa da Misericordia, e estas ermidas, -o Espirito Santo, Nossa senhora da Boa Viagem, S. Sebastião, e S. -Martha, e ha nesta villa tres fontes perennes. - -Assistem ao seu governo civil um ouvidor posto pelos condes (que nesta -terra tem os oitavos do pão e vinho), dois vereadores, um procurador do -conselho, um escrivão da Camara annual, que o é tambem da almotaçaria, -outro escrivão dos orfãos, que o é tambem dos direitos reaes e do -judicial e notas. Tem uma companhia da Ordenança, e um forte com cinco -peças de artilharia, que sustentam os moradores, e os condes consultam -o governador. É hoje senhor e conde desta villa D. Francisco Xavier de -Menezes, cuja illustre varonia é a seguinte:==e segue uma noticia da -genealogia d’essa bella familia dos condes da Ericeira, D. Diogo de -Menezes, 1.ᵒ, D. Fernando de Menezes, 2.ᵒ, D. Luiz de Menezes, 3.ᵒ, -D. Francisco Xavier de Menezes, 4.ᵒ, série brilhante na fidalguia -portugueza. - -Foi este ultimo que animou Carvalho da Costa a escrever a sua -chorographia que tantos serviços presta ainda agora. - -A respeito da villa de Mafra conta-nos Carvalho da Costa: o seu termo -é abundante de pão, gado, e caça: tem uma egreja parochial dedicada a -S. Izidoro, curado, que apresentam os moradores (note-se isto, eram -os moradores que apresentavam o cura), os quaes passam de cento e -sessenta divididos por estes lugares, Azambujal, Quintal Gonçalvinhos, -Grocinhos, Lombo da Villa, Almada, Ribeira, Murteira, Pinheiro, -Murgeira, Cachossa, Roxeira, Amoreira, Póvoa, Valle de Carreira, -Caeiros, Fonte Santa, Relva, Sobreiro, Fonte Boa dos Nabos, Figueiredo, -Picanceira, Penagache, Lagôa, Montegudel, Ribamar de cima e de baixo, -com muitos casaes. Tem mais este termo o forte de _Milreu_, e o de -Santa Susana com duas peças d’artilharia. - -A corographia de Carvalho da Costa imprimiu-se em 1712; estava-se longe -da importancia posterior de Mafra, realçada pelo seu colossal monumento. - -O que me chama a attenção na descripção de Mafra, feita por tal -authoridade em 1712 (isto é em 1709, porque 1712 é a data da impressão) -é que nesse tempo, em que se conservavam ainda vigorosas as antigas -instituições, no termo da villa de Mafra a freguezia mais importante -era a de Santo Isidoro; e que o seu parocho curado era apresentado -pelos moradores. Isto mostra que esta freguezia ou parochia era uma -entidade muito sobre si: e abrangia um territorio vasto e importante, -como o é ainda agora. - -Em 1844 temos outra noticia a respeito da Ericeira no famoso Panorama -(Serie 2.ᵃ Vol. 3.ᵒ pag. 335). - -É um artigo de Henriques Nogueira. Acompanha-o uma gravura ingenua -mas curiosa; mostra os rochedos, a alta escarpa, a ladeira que vem ao -pequenino porto, as paredes do forte, agora em parte desmoronado, e ao -longe a ermida de S. Sebastião. - -==Em documentos antigos é conhecida por Oyriceira e Eyriceyra, e d’aqui -vem serem as armas do concelho um ouriço. - -==Os mais antigos assentos da separação da parochia de Mafra são de -1406. D. João V prestou grande auxilio á reedificação de S. Pedro. - -==O estabelecimento mais importante que esta villa possue é a casa -da Misericordia a qual foi fundada onde havia uma ermida do Espirito -Santo, por Francisco Lopes Franco, em 1678. Este doou-lhe um padrão -de juro de 480$000 réis, e os pescadores obrigam-se a pagar-lhe -annualmente todo o ganho d’uma rede de pesca, cujo onus solveram pela -quantia de 6$400 réis que ainda hoje pagam cada um dos dez barcos de -pesca. O rendimento actual (1844) em juros e fóros é de 1:679$700 -réis. Despende com encargos pios e despezas do culto 725$300 réis e -com o hospital 479$300 réis. O excedente da receita é empregado em -esmolas e vestuario aos pobres. Os habitantes empregam-se pela maior -parte nas pescarias ao longo do nosso littoral, na costa de Marrocos, -e tambem já fizeram tres expedições ao Banco de Terra Nova n’estes -ultimos annos (como isto passou!). O numero de embarcações de todos -os lotes, incluindo as do commercio de cabotagem é de 98, empregando -670 individuos. A população orça por 2:769 almas com 750 fogos; no -principio d’este seculo tinha apenas 600.==(lembro ainda que isto se -escrevia em 1844). - -==O forte está sobranceiro á calçada que dá para a praia, e hoje -acha-se desguarnecido. Segundo se deprehende de uma inscripção sobre a -porta foi edificado por D. Pedro 2.ᵒ - -==No chafariz chamado a Fonte do Cabo existe uma pedra embutida na -parede com um emblema e legenda em caracteres gothicos em relevo, que -parece significar: «Feita na era de mil e quatrocentos e cincoenta e -sete annos.» - -==Ainda existem restos do palacio do senhorio d’esta villa, o conde da -Ericeira: pela parte superior de algumas janellas veem-se pedras com um -leão esculpido. Estas paredes a que o povo chama o Paço, são dignas de -veneração por terem servido de residencia, e quem sabe se de academia, -ao nosso douto escriptor D. Francisco de Menezes. - -==A meia legua ao nascente d’esta villa está aberta uma mina de -barro branco no sitio chamado a Avesseira, que já tem sido explorada -por conta das fabricas de louça das Janellas Verdes e Vista Alegre -(Actualmente os finissimos barros dos arredores da Ericeira, que -eu saiba, são explorados muito rudimentarmente pelos louceiros da -Sobreira, Lapa da Serra, etc., que fabricam a louça chamada de Mafra). - -==Tambem por este mesmo sitio é situado o chamado _Pinhal dos frades_, -por ter pertencido ao convento de Mafra. - -==É uma importante propriedade nacional assim pelo numero como pela -bondade e prestimo das arvores, que excedem em diametro e altura as de -todos os outros pinhaes circumvisinhos.==Agora o _Pinhal dos frades_ -não tem um só pinheiro fradesco; tudo foi reduzido a lenha; é todo -novo o pinhal; e que bom seria alarga-lo porque daria aos arredores da -Ericeira um encanto a mais, principalmente agora que tanto se louva o -_ar do pinhal_. Esses novos pinhaes que eu percorri seguindo a estrada -de Mafra, e no lindo caminho para a quinta dos Chãos e Santo Isidóro, -são viçosos, e recebem em primeira mão a viração pura do mar; dá prazer -respirar no ar do pinhal! - -Achei muito curiosa esta noticia da Ericeira, em 1844! Ora vejam como -isto muda; o _forte_ está em grande parte destruido, a _escarpa_ tem -falhado em muitas partes, desappareceram as _navegações longinquas_, -diminuiu a _pescaria_ em muito, e o _pinhal dos frades_ perdeu as -arvores venerandas. - - -O rei da Ericeira - -Vou transcrever do _Portugal cuidadoso e lastimado_ do padre José -Pereira Bayão (paginas 732-734), a narrativa do caso estranho do rei -da Ericeira; um dos varios episodios da nevrose, naturalissima, que -assaltou o povo portuguez nos primeiros annos da dominação hespanhola. -Este, a meu ver, é dos que melhor representa o estado ancioso e -tumultuario das almas; ha n’elle o mysticismo, o vago anceio, o -estonteamento no começo, inconsciente, ingenuo; depois a exploração -d’esses sentimentos pelo espirito patriotico, e pela influencia do -meio, que leva a incidentes comicos, á desordem, á loucura sinistra, -ao crime; logo, naturalmente, á intervenção da politica dominante, á -força, até ao final do morticinio em massa, e do supplicio tremendo. - -==Succedeu isto no anno de 1584, no mez de julho, e podendo servir de -exemplo (refere-se ao caso do rei de Penamacor) para emenda de outros -taes atrevimentos, foi ao contrario; pois logo no anno seguinte se -viu outro ainda mais estravagante pelos mesmos termos, fingindo-se -ser el-rei D. Sebastião, um moço chamado Matheus Alvares, natural da -ilha Terceira, filho de um pedreiro, o qual saindo-se do noviciado dos -frades arrabidos do mosteiro de S. Miguel junto á villa de Obidos, -se fez tambem hermitão em uma ermida de S. Julião, junto á villa da -Ericeira. Aqui fazia uma vida ao parecer mui penitente, e se introduziu -a ser rei antes que ninguem o imaginasse; disciplinava-se fortemente -onde pudesse ser ouvido, e dizia com triste lamentação: _Portugal, -Portugal, que é feito de ti, que eu te puz no estado em que estás, oh! -triste de ti Sebastião, que toda a penitencia é pouca em respeito -de tuas culpas_. Começaram alguns a crer, que elle era el-rei; e -entre elles um lavrador rico chamado Pedro Affonso; juntaram-se até -oitocentos homens, de que se fez general, accrescentando ao seu nome -o apellido de Menezes; poz o fingido Rei Casa Real, e fortificou-se, -casando-se com uma filha do dito Pedro Affonso, moça bem parecida, -coroando-a como Rainha, com uma corôa de prata de uma imagem de Nossa -Senhora, fazendo marquez de Torres Vedras a seu pae, e conde de -Monsanto, Senhor de Cascaes, e alcaide mór de Lisboa. - -E assim fazia outras mercês, passando provisões e alvarás com -solemnidade de sellos reaes, occultando-se sempre, e mostrando-se a mui -poucos por grande favor, aos quaes contava algumas particularidades da -batalha, para os ter mais seguros n’esta presumpção, e mandando recado -a D. Diogo de Sousa, general da armada, que lhe fosse fallar; tanto que -soube, que elle perguntára ao mensageiro pelo signal, que lhe déra, -receando-se que se descobrisse o engano, ou por outra alguma razão, que -não consta, lhe tornou a mandar dizer, que não fosse; e comtudo indo -lá, lhe não quiz fallar, dizendo, que o fazia assim porque não ia só. - -Escreveu depois ao cardeal Alberto, que lhe desoccupasse o seu paço, e -se fosse embora para Castella: porque já era tempo de que abrissem os -olhos tantos enganados. - -Foi preso o embaixador; e soltando-o logo cobrou mais forças a -opinião de ser elle el-rei, por onde, o que assim se fingia se foi -ensoberbecendo, e fazendo alguns graves castigos em todos aquelles, -que o não queriam reconhecer, e lhe negavam a obediencia, sendo -executor o marquez, seu sogro, que era homem cruelissimo, e deshumano; -e agora muito mais com a vangloria dos titulos que lhe foram dados, e -considerar-se sogro de el-rei. - -Vendo o Cardeal Governador que se devia atalhar tão grande desordem -antes que passasse a mais, deu ordem ao corregedor de Torres -Vedras para que os fosse prender, e querendo-o executar foi morto -arrebatadamente com os seus officiaes por aquella gente, que os seguia: -e sendo isto reprehendido por Gaspar Pereira, ouvidor d’aquella -comarca, o mataram tambem; e a um filho, e a um sobrinho; saqueando-lhe -a casa como em guerra justa; passando já n’este tempo de mil a gente -asoldada que o seguia: vindo todos a comprar polvora e bala á cidade, -diziam publicamente, que era para acompanhar a el-rei D. Sebastião. - -Pelo que, e porque não crescesse mais o damno, e insolencia, foi -necessario acudir com mais forte remedio. Deu-se ordem ao corregedor da -côrte, e se mandáram ajuntar todos os ministros da justiça com os seus -officiaes, e com quatrocentos soldados castelhanos bem armados, foram -fazer a diligencia; e chegando perto do couto do novo rei, ficaram -os soldados embuscados em um valle, indo a justiça adiante, e sendo -descoberta pela guarda, arremeteram a elles como lobos. - -Fugiu a justiça com muita pressa até os irem metter na embuscada, -donde saindo com furia lhe deram uma carga de tiros com que mataram e -feriram a muitos dos fautores do rei, fazendo fugir aos outros pelos -montes e valles; foi preso o rei, e alguns do seu conselho, e trazido -a Lisboa fez confissão, de que não era el-rei, nem pretendia sel-o, e -que só intentava dar sobre Lisboa com as armas dos seus seguidores, na -madrugada do dia de S. João, e vencida ella, como esperava, pertendia -dizer ao reino que já o havia posto em liberdade para que fizessem rei. -Foi enforcado em 14 de junho do dito anno, cortando-lhe primeiro a mão -direita no Pelourinho, onde ficou pendurada, por passar provisões e -alvarás falsos, fingindo-se el-rei D. Sebastião; a cabeça esteve um mez -pregada na forca, e os quartos foram postos pelas portas da cidade; e -no dia seguinte enforcaram e esquartejaram os outros, que foram presos -com elle, um que fazia o officio de védor, que seria de quarenta annos, -e outro que era pagem privado, que seria de edade de vinte annos. - -Na Ericeira foram enforcados vinte homens que eram deste bando, muitos -foram lançados a galés; e Pedro Affonso, marquez e conde general, e -secretario do triste rei, fugiu no dia da prisão dos mais; mas pouco -depois foi preso, fazendo-lhe em Lisboa o mesmo, que tinha feito ao -seu soberano, e os pobres moradores d’aquelle contorno despovoaram a -terra com medo, por terem seguido a voz do rei enganoso. Foram tambem -presos e castigados muitos, que enganados o favoreciam de Lisboa, e -lhe mandavam dinheiro, e peças de valor, como foram Antonio Simões, -escrivão dos armazens, e Gregorio de Barros, ourives d’el-rei, pagando -miseravelmente o zelo, com que cuidavam servir ao seu rei. - -Parece que foi o intento de mandar chamar D. Diogo de Sousa, saber -delle se era certo, como se dizia, que el-rei veiu na armada, porque -sendo assim, e sabendo delle onde estava, e se estava prompto para -entrar a governar, ajustariam ambos a fórma de occupar Lisboa e -desoccupal-a dos castelhanos com aquella sua gente, e entregal-a -ao dito rei, com o que ficava restituido ao seu reino, e aquelles -servidores seriam bem gratificados por elle e agradecidos de todo -o reino. Isto se colhe da sua confissão, e outra cousa se não deve -imaginar, pelos descaminhos ou impossibilidades, a que se expunha por -todas as vias; o que qualquer mediano entendimento conheceria mui bem.== - - -Antiguidades romanas e medievaes - -Na Ericeira e seus arredores não vi antiguidades romanas; nem um -signal, nenhuma pedra empregada em muro velho que denunciasse lavor de -alta antiguidade; o trabalho agricola tem sido grande, o mar sabe Deus -quantas escarpas tem demolido, elle que todos os dias está destruindo -e abatendo os rochedos da costa. Mas n’um aro de raio de seis a dez -kilometros surgem vestigios notaveis. As inscripções lapidares romanas -são conhecidas; a região a norte de Cintra e Collares é rica de taes -letreiros. Antiguidades pre-romanas são sabidas tambem. Não podemos -esquecer o collar da Penha Verde, a grande joia prehistorica (que hoje -está ennobrecendo, ao que me dizem, um muzeu inglez), o famoso dolmen -de André Nunes ou Adrenunes, monumentos que provam a existencia por -estes sitios de antiquissima civilisação pre-romana. Estacio da Veiga -estudou as antiguidades d’estes sitios; no _Corpus_ estão transcriptas -em grande numero as inscripções romanas. Na _Cintra pinturesca_ (pag. -192), se diz: «encontram-se com frequencia urnas e lapides sepulcraes -em varios sitios especialmente em S. Miguel de Odrinhas, Morelino, -Montelavar, etc.» - -D’essas veneraveis pedras sepulcraes muitas desappareceram, ainda porém -existem algumas importantes. Para as ver dei uns passeios a Odrinhas e -á quinta dos Chãos. - -Odrinhas fica a meio caminho entre Cintra e Ericeira. Ha ahi uma venda -onde costumam parar os carros para descanço; abre-se em frente d’essa -venda um caminho de aldeia que leva á egreja, S. Miguel de Odrinhas, -a menos de um kilometro. É filial da parochia de S. João das Lampas. -A porta principal diz a poente, uma alpendrada segue na frente e no -lado sul; atrás da capella mór um espaço que serviu largos annos de -cemiterio; muitas pedras de cabeceira nos seus logares, tendo nos -circulos superiores esculpidas cruzes de varias fórmas, sinos saimões, -e estrellas de seis pontas. Encostado á egreja um ediculo do seculo -XIV. Junto da pequena porta lateral uma casa, talvez de antigo ermitão, -a que chamam a casa dos ratos, que serve para metter medo a rapazes -máos; sob o alpendre a grande mesa de pedra para as offertas. Ao norte -da egreja, uma construcção circular, isolada, em ruina, mostrando ainda -a nascença da abobada, feita de pedra miuda, vestigios de porta, e um -vão na parede, que parece, seria destinado a ter um armario. - ---É casa de mouros, disse alguem. - ---Era onde guardavam os ossos tirados das covas do cemiterio, o -ossuario, disse outro. - ---Dizem que está ahi um thesouro escondido, disse uma mulher. - -Parece-me que a causa principal da ruina é esta crença, com a esperança -de achar o metal precioso têm nocturnos exploradores arruinado o -singular edificio. E eu achei no montão de pedregulhos, e fiz destacar, -em marmore lavrado, nada menos que a pedra superior de uma ara romana -com seus ornatos, volutas e folhagens, de bom estylo, com a grande -cavidade destinada ao fogo. No terreno proximo, nos velhos muros de -pedra solta, vi tijolos pequenos, fragmentos de grossas telhas, e -ainda mais cabeceiras de sepulturas com suas cruzes e saimões. É unico -o que ali está, n’aquelle modesto recinto onde se conservam vestigios -antigos, de epocas entre si muito afastadas. - -Sob o alpendre, solta, a grande pedra com lettreiro romano onde se -mencionam individuos da tribu Galeria, e entre elles o de Elio Séneca. -Dentro da egreja, á direita da porta principal, a enorme lapide, fixa, -de Plocio Capito. Dizem que era de homem santo, e raspam-na para com -o pó curar enfermidades. Pelo visto temos aqui um exemplo nitido de -cultos continuados no mesmo local desde a antiguidade romana até agora. -Mas ha lendas, velhas tradições aqui. Disse-me um homem que esta egreja -era tão importante em tempos antigos que a gente de Santo Isidóro, -Paço d’Ilhas e Quinta dos Chãos vinha enterrar os seus mortos n’este -cemiterio, fazendo a longa caminhada de quatro leguas. E logo outro -companheiro, um tanto a medo, me perguntou se eu julgava possivel que -uma mulher fosse capaz de trazer ás costas aquella grande pedra, a do -Séneca, desde Santo Isidóro, com o cadaver do filho. É lenda mui velha -que eu vim encontrar agora nesta ultima terra da Europa. - -Santo Isidóro é egreja parochial que fica a uma legua além da -Ericeira; fica-lhe a pouca distancia a quinta dos Chãos, que desperta -a curiosidade pelo seu isolamento, a sua represa d’aguas, os pequenos -aqueductos, pateo, jardim, casa de residencia e officinas, um bello -exemplo de habitação rural, modificada pelo tempo e variedade de -usos, mas no todo lembrando uma antiga villa rustica. Ahi, n’uma -varanda sobre um arco, servindo de meza, vi a bella lapide sepulcral -dos Terencianos; e no jardim ha uma pia que me pareceu uma urna ou -sarcophago romano, coberto em parte de cal. Segundo uma tradição -a ribeira de Paço d’Ilhas que corre no profundo valle proximo era -antigamente navegavel, e um velho paredão arruinado seria o resto do -caes. - - -A costa - -Da ponta da Lamparoeira corre a costa de norte a sul, por mais de 8 -milhas, quasi toda de rocha escarpada até á foz da ribeira do Porto. A -1,5 milhas a N. da dita foz fica a Ericeira. A sul da villa uma pequena -enseada com boa praia, a norte outra praia; ambas separadas pela grande -massa de rochedos do portinho onde entram os barcos de pesca. Este -porto é desabrigado dos ventos NNE a SSO por O. - -Ha duas luzes de enfiamento, branca e vermelha, a 37,ᵐ7 de altitude. - -O monumento de Mafra com suas elevadas torres e zimborio, a 270 metros -sobre o nivel do mar, serve de reconhecimento e marca para este porto, -avistando-se a 30,5 milhas. - -Da foz da ribeira do Porto a costa a S 25° O, até ao cabo da Roca, a -10,3 milhas, quasi toda escarpada e elevada, apenas rota na praia das -Maçãs na foz da ribeira de Collares, e na praia Grande a S d’esta. No -Focinho da Roca o rochedo levanta-se a mais de 125 metros; sobre essa -escarpa está o pharol da Roca, a 137 metros acima do nivel do mar. A -meia milha ao mar do cabo está a pedra d’Arca: ha outros recifes que -tornam perigosa a approximação. - -A serra de Cintra eleva-se sobranceira ao Cabo, correndo para o -interior na direcção de ENE. A sua maior altitude é no seu estremo E no -castello da Pena, que tem 529 metros de cota. - -O convento da Peninha, no extremo SO, está a 488 metros, e deve -avistar-se a 42 milhas. A serra de Cintra é ponto excellente para -reconhecimento da costa. Os pescadores da Ericeira dão nomes ás -saliencias principaes da serra, e pelo enfiamento e aspecto marcam -approximadamente a sua posição no mar. - -A pesca na Ericeira chegou a grande decadencia, parece querer -levantar-se agora. Antigamente, ha 50 annos, não só a pescaria tinha -ali grande importancia, mas a Ericeira era um viveiro de homens do mar; -chegou a ser celebre pelos seus maritimos pedidos para os melhores -navios da nossa marinha mercante. Eu conheço a Ericeira ha quatro annos -apenas, em rapidas visitas na época dos banhos. Ha quatro annos havia -uma armação, em frente do porto, e os botes de pesca, as focinheiras, -pouco iam ao mar. Não havia pescada, muitos dias só havia sardinha e -carapau apanhado na armação. Agora ha duas armações, e todos os dias -vão barcos ao alto, que por vezes trazem muito peixe. A exploração da -lagosta tambem augmentou. - -Os pescadores das armações são quasi todos estranhos á Ericeira; e -tem vida áparte dos naturaes da villa. É no _norte_, quer dizer no -bairro do norte da villa, em casas abarracadas, caiadas, algumas com o -chão forrado de plantas aromaticas, que habitam os pescadores. Casas -pobres, aceiadas, com estampas de navios e santinhos nas paredes. A -grande embarcação de pesca, antiga, era a _rasca_, que eu vi pintada em -quadros de milagres, na egreja de Santa Martha. - -Era um barco seguro e veleiro, de borda alta, pôpa redonda e prôa -arrufada; convez corrido de vante á ré, cinginda em volta do costado -por um espesso cinto com forte pregaria, apparelhando com quatro vélas -latinas triangulares, traquete, véla grande, véla de prôa, e catita; -com tripulação numerosa para a manobra. - -O mastro de traquete pendia para vante, o de ré era vertical, da prôa -lançava um páo para amurar a véla de prôa, á ré encostado á amurada um -pequeno mastro para a verga da catita, que caçava no laes de um páo -deitado pela popa servindo de retranca: singrava veloz, chegando-se -muito ao vento, e aguentando-se bem nas borrascas. - -A focinheira é typo unicamente usado na Ericeira, para a pesca -costeira, e que vae tambem ao largo. Tem um mastro á prôa que apparelha -com um latino; a prôa e a pôpa da pequena embarcação teem fórma -especial, e no fundo chato e arqueado tem umas reguas ou reforços -longitudinaes. É differente da chata de Cascaes ainda que se lhe -avisinha. - -Tenho visto na Ericeira sardinha, fataça, carapau, faneca, goraz, -pargo, capatão, pescada, peixe espada, peixe gallo, cação, moreia, -arraia, polvo e lagosta. - -Uma vez entrou na armação um cardume de grandes pargos e capatões; e eu -vi na pequena praia a fila de oitenta grandes peixes vermelhos de que -os menores tinham 7 ou 8 kilos. - -Este anno foi fisgado de uma focinheira um grande peixe agulha que -pesou nove arrobas. - -Havia muitos annos que não apparecia um peixe agulha na Ericeira, e é -trivial em Setubal. - -Quem visitar reparando os mercados de peixe na Ericeira, Cascaes, -Setubal nota singulares differenças; nesse bocado de oceano que se -avista do Cabo da Roca, ha regiões definidas, onde apparecem ou não -determinadas especies de peixe. - -O generoso mar dá ainda outro producto que elle traz do seu seio e vem -depôr, arrumar, na areia da praia; chamam-lhe sargaço e moliço ou -golfo; são as algas, os corriões, bodelha, verdelho e sebas, que o -agricultor utilisa para adubo. - -Em todas as praias aqui d’esta costa, Baleal, Peniche de cima e de -baixo, Portinho da areia, Consolação, Seixal, Atalaya, Ribamar, Porto -novo, Santa Cruz e Assenta andam os sargaceiros apanhando os vegetaes -arrojados á areia, escolhem um pouco, carregam, formam medas, que -entram em fermentação e se transformam em excellente adubo. - -Em outros pontos do paiz a rapeira é uma furia louca que prejudica a -creação do peixe, mas aqui não se dá esse caso, os sargaceiros não -chegam para arrecadar a massa enorme de algas que o mar lhes offerece. - - * * * * * - -_Banheiros._--Praia do sul: Antonio Garamanha, Braulio da Silva, -Francisco Piloto, Francisco Jorge Alturas e Servando da Silva. - -Praia do norte: Agostinho Alves Camacho, José Alves Camacho, José Coco -e José d’Almeida Rato. - -As praias são muito frequentadas nos mezes de agosto, setembro e -outubro. Ha duas series de banhistas: a mais tardia é a que vem depois -da vindima. - -Bons typos estes banheiros, nadadores de primeira ordem, valentes sem -precipitação. - -Na praia do norte o mar bate um pouco mais; na do sul a força da vaga -é em parte quebrada por uma restinga que surge a pouca distancia, 80 a -100 metros da praia de areia. - -Na praia do norte em manhã de vaga um tanto rija vi espectaculo raro; -os banhistas não tomaram banho, e os banheiros resolveram ir brincar -nas vagas; brincadeira um tanto forte. - -Eram tritões mythologicos, peixes não, porque estes não caem em taes -experiencias; por vezes sumiam-se no concavo da vaga proxima a desabar, -logo appareciam, o corpo meio fóra da agua, na cabelleira cristallina, -logo destacavam na branca espumarada fervente. - -É arriscado, ha movimentos enrolantes na vaga d’arrebentação, e ai do -que se deixar enrolar pela onda. - - * * * * * - -No termo da Ericeira, na encosta voltada ao mar, ha grande numero de -pequenas propriedades, e muitos muros de pedra solta. Fazem esses muros -para arrumar a pedra e tambem para defeza contra a rajada do mar, e não -bastam; fazem ainda sebes de urzes, de ramos de pinho, de caniço; e -nesses canteiros vi cepas boas, com bellos cachos. - -A phylloxera estragou os vinhedos, mas nos ultimos annos teem -replantado; nas chans da ribeira de Chileiros ha vinhas de importancia. -Para os lados da Fonte dos Nabos, Santo Isidoro, Paço d’Ilhas vi -culturas mimosas. Na Ericeira só as flexiveis hastes das araucarias -resistem á furia do vendaval. Ás vezes quando no temporal as grandes -vagas estouram nas arribas passam flocos de espuma por cima da povoação. - - * * * * * - -_Nomes de barcos._--S. Joaquim, vulgo o Bailharito, Feliz Raul, Boa -Viagem, Flor da Ericeira, Pombinho, etc. - - * * * * * - -_Pombos-bravos._--São raros nesta costa; numa época vi dois casaes que -pousavam nas altas rochas, sob a villa. Pouco adiante de S. Sebastião -tenho-os visto tambem, poucos. São pardos-escuros, esguios, muito -desconfiados; creio que é na costa algarvia, Sagres, S. Vicente, que -apparecem mais; na costa da Arrabida são raros. - - * * * * * - -_Pharoes._--Berlenga. Começou em 1840. Alcance 30 milhas. - -Cabo Carvoeiro. Data de 1790. Alcance 9 milhas. - -Ericeira. Luzes de direcção, anterior branca, posterior vermelha. -Começaram em 1864. Avistam-se a 5 milhas. - -Cabo da Roca. Data de 1772. Alcance 30 milhas. - - * * * * * - -_Soccorros a naufragos._--Dizem que existe um posto montado, com -espingarda Delvine para lançamento do cabo de vae-vem. - -De barco salva-vidas nunca ouvi fallar, nem de qualquer melhoramento -do acanhado portinho entre bravias rochas, muito pittorescas e -perigosissimas. - -Numa das ribas vi uma caixa verde com letreiro branco, assim: - - - SECORROS - - A - - NAUFRAGUS - -Deve ser orthographia official. (Este anno, 1905, vi o letreiro já -emendado). - - * * * * * - -_O facho do peixe._--Se o barco que vem do alto, ou da armação, traz -peixe, arvóra á prôa o _facho_, que é uma japona ou oleado de marujo; -logo que das arribas avistam o reclamo descem homens e mulheres com as -gigas e burrinhos para transporte da mercadoria. - - * * * * * - -_Aroeira._--É com o suco da aroeira que tingem as redes. A planta verde -é moida num lagar, por galgas movidas a braço. Na Ericeira vi um -lagar, que não trabalhava. É em Ribamar que hoje moem mais. Em Santo -Isidoro encontrei eu umas saloias com seus burrinhos carregados de -aroeira, que iam para Ribamar. - -E vi tambem ramos de aroeira ornamentando carros carregados de tojo; o -verde viçoso da aroeira alegrando o tom escuro do tojo secco. - - * * * * * - -_Phosphorescencia._--Na costa da Ericeira o mar apparece algumas vezes -phosphorescente; acho isto notavel; porque no littoral portuguez -em muitos sitios nunca se dá este phenomeno, na costa do Algarve é -rarissimo. - -A gente do mar chama-lhe _ardencia_. Nas noites de 24 e 25 de agosto de -1900 o espectaculo foi admiravel. As grandes ondas luminosas, de brilho -e intensidade differentes, produziam effeito phantastico. Durou muitas -horas o esplendido aspecto do mar, especialmente na arrebentação. - -Em setembro de 1902 tambem houve _ardencia_, mas fraca e durando apenas -umas tres horas. No livro de A. F. Simões: _Cartas da beira-mar_, -descreve-se um caso de _ardentia_ ou _ardencia_ observado por elle na -Figueira da Foz no mez de setembro de 1864. - - * * * * * - -_Cartas nauticas._--Conversando uma vez a respeito de antigas cartas -nauticas, indicaram-me uma senhora que possuia algumas, de parentes -que tinham navegado em largas viagens. Eu pedi o favor de as vêr. - -Um dia, na sua casa de jantar, escolhida por ser mais facil na grande -meza desdobrar as cartas maiores, a senhora D. Maria disse á serviçal -que fosse lá acima, ao quarto do Oratorio, buscar as pastas e os rolos, -forrados de linhagem. - -A creada voltou ajoujada porque era pesado o fardo da papelada. Eram as -cartas que tinham servido ao avô, ao pae, aos tios e aos irmãos na vida -maritima, porque durante gerações, n’aquella familia, fôra tradicional -a vida do mar; ora de pilotos, ora de capitães de navio, muitos dos -parentes daquella senhora fizeram longas viagens. As cartas usadas, -amarelladas, conservavam o cheiro a breu; tinham as rotas marcadas -a lapis, em linhas onduladas ou em zig-zagues, com pequenas cruzes -e datas, nas mudanças dos rumos ou marcando singraduras; viagens da -Ericeira para Larache ou Casa Branca na costa marroquina, á Terra Nova, -á Irlanda, ou de Lisboa para o Brazil, Açores, Madeira, por essa costa -d’Africa fóra, ou entre o Funchal e Demerára. - -Ha coisas d’estas, ás vezes; começa-se por simples curiosidade, -entre phrases banaes e logares communs, e de subito surge o drama. -Se eu visse aquellas cartas n’uma loja nada sentiria, mas lentamente -mostradas pela santa mulher! Eu ia dizendo o que via e lia, e ella -ia lembrando. A carta passou a ser um documento vivo. E quanto mais -recordava mais subia a commoção, avivavam-se saudades, as lembranças de -anciedades passadas, as longas espéras de noticias. Certa cruz marcava -um grande golpe de mar, outra o sitio em que faltou agua de beber, e a -comida; esta agora um incendio a bordo. - -De uma vez não houve noticias do parente nem do navio por mais de seis -mezes. - -Eu dobrava ou enrolava lentamente a carta, e passava-se a outra. Agora -era a que servira a bordo do palhabote onde o irmão ia por piloto na -sua primeira viagem, e surgiam outras recordações. - -Desdobrava-se nova carta, era a de um segundo tio, capitão do navio -tal, que andou trinta annos no mar, soffrendo vendavaes e calmarias, e -terminou em naufragio em longinqua paragem. - -E assim estivemos a ver cartas, algumas horas, e a lembrar anciedades -passadas; saudades, receios, que é o manjar de quem tem parentes -queridos no mar. Depois a serviçal foi levar, com muita cautella, como -cousas sagradas, a pasta e os grandes rolos para o quarto de cima, ao -pé do Oratorio. - - * * * * * - -_Os primeiros christãos._--As duas inscripções romanas que ainda hoje -felizmente se conservam em S. Miguel de Odrinhas teem servido de base -a dissertações de auctores considerados sobre o apparecimento do -christianismo n’esta região a norte de Lisboa. Principalmente a do -Seneca. - -O nosso D. Rodrigo da Cunha na _Historia ecclesiastica da egreja de -Lisboa_, disserta sobre a pregação de S. Pedro de Rates pela beira mar -até Cintra, e dá muita attenção ás duas inscripções romanas. - -A razão de julgar que taes inscripções commemoram pessoas christans -é porque lhes falta o D. M. S. (consagrado aos deuses manes), inicio -vulgar dos lettreiros pagãos. - -Base ou principal ponto de partida a respeito da existencia de -christãos logo no 1.ᵒ seculo, neste extremo da peninsula, é a chronica -de Flavio Dextro, que diz: _Lucius Seneca Centurio verus christianus -Sintriae occumbit_. (_Ann. Chr._ 50). - -Numa edição de 1619, vê-se _Senticae_, emendado para _Sintriae_ na -edição de Leão (Lugduni, 1627 pag. 103). - -Ora esta chronica de ha muito está mal afamada, mas percorrendo-a quasi -me convenço de que merece alguma attenção; parece-me um texto antigo -muito alterado e interpolado. - -Ambrosio de Morales, continuador de Floriam de Ocampo, na _Coronica -general de Hespana_ (Alcalá de Henares, 1575, 2.ᵒ vol. pag. 245 e -segg.) consagra um capitulo a esta questão:==_El tiempo del Emperador -Neron con todo lo de Seneca_ (Lib IX. C. 9) e reproduz a inscripção -grande de Odrinhas. Não acho base alguma para affirmar a existencia -de christãos logo no primeiro seculo no occidente da peninsula; porque -é certo que os lettreiros sepulcraes de individuos christãos começam -muito mais tarde; lendas, tradições devotas, sim; mas é difficil tambem -marcar datas á creação de lendas piedosas. - - * * * * * - -_Bolos._--As confeiteiras fazem cavacas, pão de ló, esquecidos, -suspiros, biscoitos e marmelada. Tambem fazem queijadas, inferiores -ás de Cintra. A região da queijada é outra, vae de Cintra a Bemfica, -conservando o mesmo typo. Tambem ha queijadas no Alemtejo, excellentes, -mas de esthetica mui diversa. O dominio do pão de ló é ao longo da -costa maritima ao norte do Tejo, e o da cavaca quasi na mesma região, -variando de fórma e densidade, de villa para villa; quasi se póde dizer -cada terra com sua cavaca. - -_S. Antonio._--É uma pequena ermida, toda caiada, que está sobre a -muralha da arriba do porto. - -Está ahi na parede do occidente voltada ao mar uma cruz formada por -azulejos, e tambem em azulejos as imagens de Nossa Senhora da Boa -Viagem e a de Santo Antonio, e data 1789. - -No nicho ardia d’antes uma grande lanterna, guia dos pescadores, e -ainda lá está a sineta que toca quando ha nevoeiro na costa. - -_Egreja de S. Pedro_.--Foi restaurada em tempo de D. João v. As -pinturas do tecto teem o caracter d’essa época. O cruzeiro ante a porta -principal está datado de 1782. O prior Manuel Maria Ferreira fez obras -na egreja, e o arcaz da sacristia em 1660. - -Creio que a obra d’arte mais antiga que existe nesta egreja é a pequena -estatua de S. Pedro, em marmore, com o seu livro e grande chave, que -está sobre a porta lateral. Proximo a esta porta está o seguinte -letreiro: - - * * * * * - ---Aqui jazem José Pereira da Cruz e sua mulher Eulalia da Costa e a -filha d’estes Maria Rosa e seu marido o professor Antonio Luiz Delgado -e alguns filhos d’estes, entre elles o padre Octaviano Augusto Pereira -Delgado primeiro e principal promotor do acrescentamento e reforma -d’esta egreja o qual pede por esmola se compadeçam das almas dos que -aqui jazem, 1872.-- - - Segundo o recenseamento official tem esta freguezia 737 fogos, com - 2:519 habitantes. - -_Santa Casa da Misericordia._--Foi fundada a irmandade d’esta -Misericordia em 1678. - -O Compromisso actual foi approvado por alvará de 4 de outubro de 1886. - -O antigo compromisso era de 7 de julho de 1697. - -Capital 34:650$000 em inscripções. - -Capital 4:500$000 em acções do Banco de Portugal e da companhia das -Lezirias. - -Na média entram no hospital uns 70 doentes, annualmente. - -Ha pouco teve um legado importante, do sr. Fialho, cavalheiro -respeitabilissimo da localidade. - - * * * * * - -_S. Julião._--É uma ermida toda branca, com seu alpendre, erguida na -escarpa maritima, a uns tres kilometros a sul da Ericeira. Celebra-se -ahi uma festa annual, em setembro, com arraial, a que concorre muita -gente dos povos mais visinhos. Proximo do pequeno templo ha casas para -os romeiros, para um posto da guarda fiscal, e para venda das offertas. - -A disposição da ermida e seus annexos leva-nos a tempos mui antigos. A -influencia do convento de Mafra tambem ali chegou, e algumas reparações -teem o cunho do seculo XVIII. - -A porta da ermida tem a data 1768. - -Proximo de S. Julião ha uma fonte milagrosa. Tem duas bicas, que deitam -aguas de nascentes diversas, de modo que teem sabôres varios. E seus -azulejos com as imagens de _S. Julião e Santa Basilissa_, e a data 1788. - -Teem virtude estas aguas para doenças de olhos, e outras, para todas -creio eu, mas é preciso beber, ou lavar-se com as duas aguas. São -complementares. - -Por occasião da festa foram muitas pessoas beber das duas aguas, -outras lavar os olhos nas duas pias, outras com bilhas; mas a virtude -principal das duas aguas combinadas é contra as sezões. - -No arraial de S. Julião vendiam-se poucos comestiveis: bolos de S. -Julião, fartes, queijadas, melões e peras, pevides, favas torradas. - -Os fartes ou bolos de S. Julião são feitos de massa de trigo com -assucar, me pareceu, e alguma canella. São bolos locaes que segundo me -affirmaram só se fabricam por occasião da festa. - -Vi ahi algumas portas com fechadura especial composta de uma haste -grossa, com sua travinca, e que se abre por meio de um páosinho de -feitio vario. - -Na Ericeira tambem encontrei essa fechadura que eu não conhecia. Um -popular explicou-me:==isto é fecho com cavilhas e chaveta. - -_As pedras de mysterio em S. Julião._--São umas lapides bem trabalhadas -com os nomes de S. Julião, S. Basilisa, e Ave Stella matutina, e outras -phrases piedosas, dispostas caprichosamente. - -Assim _Juliam, Basilissa e matutina_, em caracteres capitaes muitas -vezes repetidos enchem quadrados tendo no centro as iniciaes J. B. e M. -e achando-se a palavra lendo para qualquer lado, até aos vertices da -figura. - -Proximo da ermida ha um logar, o fojo, grande fenda natural da escarpa, -onde se deu um milagre; ahi numa lapide lavraram um monogramma -que deve significar _Mater Christi_. E no angulo do alpendre, -superiormente, um cubo de marmore com meridiana muito curiosa. - -Algum frade engenhoso fez aquelles quebra-cabeças, para maravilha dos -romeiros. A esta ermida se liga a historia do rei da Ericeira. - - * * * * * - -_A bruxa da Arruda._--A celebre bruxa costuma visitar a Ericeira por -fins de setembro. É muito respeitada; dizem que é rica, a pobres não -leva nada; apresenta-se com muitos oiros. Tem uma filha que já entende -de molestias. Em geral leva 300 réis pela consulta. Receita quasi -sempre esfregas de aguardente e papas de pão de milho ralado. Mas isto -varia em quantidade, tempo, calôr, e no sitio do corpo. Ouvi tambem -chamar-lhe a mulher do Casal das Neves, no termo da Arruda dos Vinhos. - -Nem precisa ver o doente, levam-lhe roupa do uso do enfermo, uma camisa -ou camisola, e ella pelo cheiro conhece a molestia e logo receita. -Costuma pousar numa casa do _norte_ da villa, e a sua chegada consta -logo entre a pobre gente que a venéra e teme. - -==Já teve questões com padres e medicos, já foi aos tribunaes, me disse -alguem, e ficou sempre victoriosa!== - - * * * * * - -_O brazão da Ericeira._--Tenho visto representado no brazão da Ericeira -um ouriço cacheiro, e outras vezes um ouriço do mar, inteiro, com -sua armadura de espinhos, visto de lado, o que me parece mais logico. -Na Fonte do Cabo sobre a inscripção está uma pedra esculpida que deve -ser a representação mais antiga das armas da villa, e, se me não -engano, quizeram ali representar a boca do ouriço maritimo, donde -divergem séries de linhas formando cruz, e um lavor ponteado que allude -aos espinhos, admittindo o engano ou convenção das quatro fachas -divergentes que deveriam ser cinco se o canteiro fosse mais cauteloso. - - * * * * * - -_O primeiro foral da Ericeira._--Do primeiro foral da Ericeira -guarda-se o autographo na Torre do Tombo; está publicado na integra -no Port. Mon. Hist. na parte respectiva a foraes, pag. 620. E por -esta razão não o transcrevo aqui. É da era 1267 que corresponde ao -anno 1229. Foi concedido por D. Fernando mestre da ordem d’Aviz: _Ego -frater F. magister Avis una cum omni meo conventu do atque concedo -populatoribus de Eyrizeira..._ Note-se que a pronuncia local de hoje é -Eiriceira embora toda a gente escreva Ericeira. - -Como todos os foraes das povoações da costa maritima este se refere a -barcos, a maritimos e pescadores, á pescaria, e aos impostos especiaes -do pescado: por exemplo aos pescadores do alto mar, e á _baleacion_, -ou pesca da baleia, então commum a todo o mar português. Faz menção -especial de congros, toninhas e golfinhos; e dos apparelhos de -pesca, _bigeiro, udra et rete de costana_; do pescado fresco, recente -e secco. No porto entravam mercadorias: _de tota merchandia que per -mare ad portum venerit et voluerint vendere dent quarentena_. Havia -revendedores de peixe: _de coloneiro qui comparar piscatum pro a -revender det I denarium_. - -O mesmo imposto para o _bofon_, ou bufarinheiro. - -Á vista do foral a condição dos pescadores não tem variado do seculo -XIII para cá. Os mesmos perigos, egual miseria, e a mesma incuria, a -mesma falta de protecção. - - * * * * * - -Sentindo a brisa fortemente salgada, alargando o olhar pela magestosa -amplidão do oceano, vem o desejo de saber alguma cousa do que se passa -ahi, no meio aquatico, onde pullula a vida. O dr. Augusto Filippe -Simões fez um livro bem interessante de vulgarisação scientifica com -algumas observações pessoaes, as _Cartas da beira-mar_ (Coimbra, 1867). - -Simões era um sabio e um litterato erudito, escrevendo com muita -consciencia. Em linguagem facil, corrente mas cuidada, descreve-nos o -oceano, os seus problemas, a salsugem, os movimentos, as marés; e a -vida que se agita n’essas aguas, a zoologia e a botanica marinhas. - -Um livro que recommendo para a temporada da Ericeira é o _Estado actual -das pescas em Portugal_, pelo distincto official da armada, sr. A. A. -Baldaque da Silva (Lisboa, 1892). Tem estampas coloridas representando -peixes, crustaceos, molluscos, muitas gravuras de barcos e apparelhos -de pesca; não olvidando a focinhada ou focinheira ericeirense, e a -antiga rasca que passou á historia; descreve tambem a costa maritima, -tão variada em aspectos e circumstancias. - -Recentemente vi um livro bem interessante, de sciencia moderna; é -_L’Océan. Ses lois et ses problèmes_, por J. Thoulet (Paris, Hachette, -1904). - -Thoulet é um oceanographo que estuda o mar e sabe expôr com clareza -as muitas questões da sciencia do mar, a oceanographia, tão moderna e -já tão vasta. A chimica do mar, a formação de sedimentos de origens -varias, a temperatura e a pressão nos abysmos, a formação da vaga e a -razão das marés, as correntes, a vida nas grandes profundidades quietas -e sem luz, apparecem-nos tratadas em largos capitulos de leitura que -prende a attenção, sem fatigar o espirito. - -No 4.ᵒ volume das _Maravilhas da natureza, segundo o plano de Brehm_, -obra celebre, revista e ampliada na parte relativa a Portugal pelo sr. -dr. Balthasar Osorio, sabio lente da Escola Polytechnica de Lisboa, -trata-se de peixes, em leitura facil e agradavel. - -Como tambem desperta a attenção o aspecto raro das arribas, das suas -curvaturas, fendas, aberturas, cavernas, onde apparecem rochas brancas, -vermelhas, negras, esverdeadas, cinzentas, umas cheias de fosseis, -outras sem vestigio de vida animal ou vegetal, eu lembro a leitura -no vol. 2.ᵒ de _La face de la terre_ por Ed. Suess (trad. de E. de -Margerie. Paris, 1900), do capitulo intitulado: _Os contornos do Oceano -Atlantico_. - - -Pelourinho - -O concelho da Ericeira foi extincto em 1855, e reunido a Mafra. Tinha o -seu pelourinho. - -Certas pessoas praticas entenderam que não havendo concelho não era -preciso o monumento municipal, e que os degráos de pedra eram bem bons; -e aproveitaram os degráos lá para o que bem quizeram, e a columna -partida, o capitel e o ornato superior foram enterrados. Isto foi -por 1863. Agora (outubro de 1905), o dr. Eduardo Burnay, enthusiasta -da branca villa, indagou o sitio onde ficaria o resto do pelourinho, -mandou excavar, achou as pedras, e vae mandar reerguer a decorativa -columna. - -Pela photographia que me mostrou creio que o symbolo municipal da -Ericeira pertence ao genero do de Collares, ainda completo e aprumado, -e do de Cintra ha muito desfeito, mas de que ha desenho cuidadoso. -Sobre este caso do pelourinho de Cintra publicou recentemente o sr. -Mena Junior uma _Noticia historica_, interessante, com estampas -notaveis, e uma planta do Paço da villa, no _Boletim da Real Associação -dos Archeologos Portugueses_. - -A columna do pelourinho da Ericeira tinha annel, a meio, como se vê no -de Collares, e na estampa do de Cintra; o capitel e ornato superior são -do mesmo desenho. Taes pelourinhos são do começo do seculo XVI, reinado -de D. Manuel, e correspondem á grande reforma foraleira d’este monarcha. - - * * * * * - -A respeito da villa da Ericeira varios escriptos teem apparecido -publicados, artigos de jornaes, ou revistas, ou capitulos de -recordações. - -O sr. Eduardo da Rocha Dias no tomo 1.ᵒ e Addenda do seu valioso -trabalho _Noticias archeologicas_, ao tratar da Ericeira, apresenta a -bibliographia da interessante villa. - - * * * * * - -Grande serviço tem prestado á villa da Ericeira o sr. dr. Eduardo -Burnay alcançando os meios precisos para a construcção da muralha -de supporte na arriba do porto. Se esta obra tardasse haveria -desmoronamento prejudicial á villa, á concha do porto, e á praia -apertada onde labutam os pescadores. Actualmente ha tres armações de -sardinha, empregando uns duzentos homens, e todo o trabalho se faz na -breve praia onde ás vezes as companhas se embaraçam. Não está ainda -terminada a obra, pouco falta ao que parece; o que está feito é já -muito util. - -Muito melhorado tem sido ultimamente o caminho para a praia do sul, e, -ao que ouvimos affirmar, vae tratar-se da rampa da praia do norte, que -é muito linda tambem. Seria bom melhorar o caminho para Ribamar, que -não offerece difficuldades, facilitando assim um bello passeio, util -para os povos do sitio, e estabelecendo communicação facil e agradavel -com a região dos pinhaes. A primeira parte da estrada de Mafra é de -forte declive, uma ladeira de tres kilometros, incommoda para passeio. -Assim como seria para desejar o arranjo do caminho para a Lapa da -Serra, sitio pittoresco, accidentado, com arvoredo viçoso. - -Na Lapa da Serra tem-se desenvolvido nos ultimos annos a industria -ceramica: fabrica-se louça vidrada com seus lavôres especiaes, ás vezes -de phantastica ornamentação. - -Pinhaes, mais pinheiros, é que eu gostaria de vêr na moldura agreste da -interessante villa. - - * * * * * - -O sr. Adolpho Loureiro, inspector geral de obras publicas, publicou -recentemente o volume segundo da sua excellente e muito util obra: _Os -portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes_. - -A pag. 303 começa a parte relativa ao porto da Ericeira, representado -minuciosamente na estampa sexta do respectivo atlas. - -Segundo se vê do consciente trabalho do sr. Loureiro é para desejar:==a -construcção de obras de drenagem dos terrenos, consolidação das ribas, -conclusão das rampas tornando-as aptas para varar os barcos de pesca, e -desobstrucção do porto, removendo-se as pedras soltas que se acham na -area d’elle a menos de 1ᵐ,5 a 2ᵐ abaixo da baixa-mar, e, finalmente, -estudar-se a possibilidade da construcção de um pequeno molhe para -abrigo das embarcações de pesca, no caso de poder aproveitar-se -qualquer restinga ou pedras que possam servir-lhe de apoio==. - -Parece facil a construcção de um pequeno molhe acostavel, que seria de -grande vantagem para aquelles pobres pescadores. - - - - -De Bemfica á quinta do Correio-Mór - -(1905) - - -Sabe bem de vez em quando uma excursão fóra das estradas mui trilhadas, -longe de caminhos de ferro e de electricos. Pelo meio dia cheguei a -Bemfica, á cocheira do largo da Cruz da Era. Cocheira pacata, bom -serviço e preço modico; arranjou-se um carrinho; e seguimos pela -estrada do Poço do Chão, muito socegada, entre muros de quintas, sebes -de caniços, e filas de oliveiras. Passa a quinta da Granja, a da -Condessa de Carnide, a do Sarmento ou Bom Nome; deixa-se á esquerda -a estrada da Correia; agora o antigo chafariz e o moderno lavadouro, -ambos sem agua. Á nossa esquerda fica a egreja parochial de S. Lourenço -de Carnide, muito caiada, veneravel pela sua idade; estamos no Alto do -Poço, de linda vista campestre. Estes sitios de Carnide e Luz são dos -melhores dos arrabaldes da capital, mas infelizmente os senhores da -governança não lhes teem dado attenção. Muitas vezes nem agua teem os -pacificos e modestos moradores. A hygiene, a limpeza publica é quasi -nulla. Facilidade de communicações não existe. Emfim carencia completa -de melhoramentos municipaes. Bons ares e contentem-se. Eis agora a -egreja da Luz, isto é, a monumental capella-mór e cruzeiro, porque o -corpo da egreja arruinou-se pelo terremoto de 1755. - -Mas o que resta pela sua architectura e decoração, principalmente pelas -pinturas, é uma joia, essa fundação da inclita infanta D. Maria. Á -nossa direita o grande edificio do Collegio Militar. Estamos no amplo -largo da Luz, com suas alamedas que mereciam mais attenção e cuidado; -a nascente o grande palacio e quinta de Oliveira, vistosa construcção, -e entramos na estrada do Paço do Lumiar. Ha um lanço entre muros e -vallados, logo a estrada alarga: boas vivendas antigas e modernas. - -Um modesto terreiro; a meio a egreja ou antes ermida de S. Sebastião -com o seu portal manuelino. Na visinhança boas casas á antiga, a da -quinta do Paço por exemplo. Segue a muito nomeada quinta do sr. duque -de Palmella, principesca vivenda com seus jardins em socalcos, fontes -e lagos, arvoredos antigos, raros exemplares botanicos, e grande -residencia. Fica-nos á direita a egreja parochial de S. João Baptista -do Lumiar, de fundação muito remota. Passa a rua do Prior, a calçada de -Carriche e estamos no campo. Estrada larga, aqui em bom estado, ali em -máo, já uma cova, agora um pedregulho, como todas as estradas do paiz, -onde todos querem estradas e ninguem trata de as conservar. Que eu -tenho grande esperança nos automoveis; os excursionistas de automovel -tanto hão de soffrer e gastar que levantarão celeuma provocando -reparações indispensaveis. - -Em alguns pontos a estrada está bem arborisada. Estamos na Povoa -de Santo Adrião: reparei em certo nicho e poço que vi á direita, e -numa pedra lavrada; logo fiz tenção de parar á volta para exame mais -demorado. Dilata-se a varzea de Friellas, bom torrão fecundo. O saloio -é bom agricultor, eximio no hortejo. Aqui, além de trigo e milho, -ha grande cultura de batata e ainda mais da hygienica cebola. Pelos -telhados amarellecem enfileiradas as corpulentas aboboras machadas. -Avisto algumas casas boas, antigas, agora em ruina. - -Evidentemente por estes sitios em tempos idos residiram pessoas -abastadas; agora quem tem meios vae para a cidade para gosar e não -trabalhar, nem vigiar. Estamos em Loures, eis a egreja matriz, grande -templo, de fundação mui velha e reconstrucção moderna; contiguo o -antigo cemiterio num abandono vergonhoso, servindo para estendal de -roupas. Mais um pouco de estrada e topa-se á esquerda uma avenida bem -tratada, recatada, com suas filas de oliveiras; entramos na quinta do -Correio-Mór. Ainda uns minutos e chega-se a um portico monumental, -elegante e bem construido, encimado pelo brasão dos _Mattas_, e -entramos em bello páteo, frente e alas do palacio formando os tres -lados. - -O palacio está em fundo valle apertado entre altos montes vestidos -de arvoredos e vinhas até meia encosta; a região inferior povoada de -laranjaes, agora um pouco doentes, e de hortejo viçoso. Provavelmente -edificaram o palacio naquelle covão por causa das aguas; e de facto -ha agua corrente em muitos pontos da grande residencia. Um vestibulo -amplissimo; começa a escadaria larga, suave, magistralmente construida; -no primeiro patamar uma fonte artistica, grande taça de um só bloco de -marmore, estatuas, e um lindo medalhão com busto, talvez do _Matta_ -fundador do palacio. Está bem conservado o edificio; repararam ainda ha -poucos annos os telhados; não chove agora nas salas; mas antes houve -abandono e perderam-se ou estragaram-se alguns trabalhos preciosos. - -No Correio-Mór a construcção é boa a valer, a architectura é elegante; -mas ha ainda a notar nos grandes salões, nas salas e gabinetes, a -variedade e o gosto da ornamentação. - -Empregaram-se ali artistas de primeira ordem no seu tempo. Houve -todavia alguns concertos e enxertos de máo gosto e inferior qualidade. -As salas da musica, da dança, a dos apostolos, a capella, o grande -salão de jantar, teem azulejos, estuques, pinturas, e obras de talha -de merecimento. A cosinha é monumental, com as suas chaminés, pias -de lavagem, grandes mesas de marmore, e azulejos decorativos muito -especiaes. O conjuncto é uma raridade. No jardim tambem ha obras de -arte, e o enorme tanque da horta, com sua guarnição de azulejos, merece -ser visto. - -Este palacio tem um historia. Luiz Gomes da Matta, homem de fartos -haveres, foi nobilitado por Filippe II que lhe deu brazão:==em campo de -ouro tres mattas verdes em roquette sobre penhascos verdes; timbre uma -das mattas.== - -Este Matta comprou tambem o fôro de fidalgo e o officio de correio-mór, -e arvorou a quinta da Matta em solar. Chamaram-lhe depois a quinta da -Matta do Correio-Mór. Hoje toda a gente d’aquelles sitios lhe chama o -_Correio-Mór_. A quinta e palacio pertenceram á Casa Penafiel até ha -poucos annos, e actualmente ao sr. Canha, negociante de Lisboa. Merece -a pena um passeio a essa antiga residencia. - - -Azulejos - -O alto rodapé da sala de jantar é de azulejos, azul em fundo branco, -em grandes e pequenas composições conforme os espaços; é trabalho, -e grande, feito propositalmente para ali, para aquelles vãos de -parede, bem composto e executado. Uma serie de quadros representa, -parallelamente, as phases da vida humana e a historia de um navio. -Aqui se vê a criança de mama, ao colo da mãe, e o berço, as graciosas -pequenas roupas; logo as scenas da primeira infancia, as ingenuas -brincadeiras. Neste quadro rapazotes bem postos aprendem os exercicios -da caça, noutro representa-se-nos uma aula, os meninos attentos á -lição do mestre. Vae seguindo a construcção do navio, ali o fabrico do -cavername, depois o assentar do forro, o trabalho do calafate; logo o -erguer dos mastros. E toca a viajar sobre as aguas do mar, para a India -ou para o Brazil; lá está o navio com o velame ao vento, prestes a -sahir do porto. - -Temos agora um casamento, e no quadro seguinte uma profissão em casa -religiosa. Era o caminho necessario em familias antigas, de bens -vinculados; o excesso de filhos trasbordava para as armas, ou para o -claustro; meninas sem dote raras casavam, iam para freiras, e em certos -conventos passava-se muito bem a vida. Em varios quadros scenas da vida -caseira; o concerto musical; a dança animada; os prazeres campestres de -boa sociedade. - -Um naufragio agora, o navio torturado, pannos rotos, mastros partidos -no vendaval furioso. Muitas outras scenas, bem desenhadas e compostas, -com sufficiente minucia em trajos e utensilios, mesmo em attitudes, se -nos deparam na interessante serie de azulejos. - -Noutra sala os azulejos, em rodapé, representam as quatro estações. -Na sala chamada dos Apostolos ha caçadas de montaria, do veado, do -javali, do leão. Esta sala tem um esplendido tecto de madeira, em -variados caixotões, formando grandes molduras com obra de entalhado, -pintado e dourado, frisos de flores, e os lisos pintados a oleo -representando scenas mythologicas. - -Na capella os azulejos representam scenas de devoção; eremitas e frades -oram e meditam; num d’esses quadros surge um anão risonho. No jardim vi -tambem uma estatua de anão, bem executada. - -Na cosinha, tambem ha azulejos a notar na cosinha, aparecem as peças -culinarias, coelhos, perdizes, presuntos, chouriços, hortaliças. A -cosinha do Correio-Mór é magnifico exemplar completo, com as suas -grandes chaminés, grandes mesas de marmore, e agua corrente em -abundancia. - -Em rodapés de ante-salas, em alegretes de jardins, encontram-se -frequentemente as scenas da comedia italiana, as serenatas, os jogos, -casos de amores e ciumes, brigas de espadachins, cortezias de tafues, -as varias combinações de Pulcinello, Arlechino e Scaramuccia, de -Fracasso e Tagliacantoni, com Lucrecia, Colombina e a Signora Lavinia; -não faltam os capitães Ceremonia e Cocodrillo, nem os casos comicos de -medicos e barbeiros. - -Domina sempre n’esta alegre ornamentação o typo italiano, o que não se -estranha attendendo aos muitos artistas de Italia que vieram a Portugal -no seculo XVIII, e á tendencia dos artistas portugueses a irem a Roma -procurar a perfeição artistica. Mas ha excepções; uma bem saliente -na quinta dos marquezes de Fronteira em S. Domingos de Bemfica; ha -ahi azulejos hespanhoes e hollandezes de merecimento e excellente -conservação. - - - - -O Matta, Correio-Mór - - -Foi Luiz Gomes da Matta o instituidor do vinculo ou morgado da quinta -da Matta, não me parece todavia que elle fizesse o grande palacio. Seu -filho e successor Antonio Gomes da Matta fez grande testamento que por -quaesquer questões foi impresso:==Testamento que fez Antonio Gomes -da Matta, correyo mór que foi deste Reyno de Portugal. Lisboa, off. -Craesbeeckiana, 1652, in-4.ᵒ, 136 pag.== - -A pag. 62 do testamento, mencionando varias propriedades, diz -simplesmente==quinta da Matta com suas terras e azenha e mais pertenças -propriedade que Luiz Gomes da Matta, meu pae, deixou vinculada.== - -E nada mais; não falla do palacio, das obras d’arte, etc.; quando é -minucioso relativamente a outras cousas menores. - -É testamento interessante; o testador era homem piedoso, devoto, muito -rico. - -Possuia grandes predios em Lisboa, quintas na Luz, em Loures, em -Almada, grandes herdades no Alemtejo, no termo de Elvas. Grande -capitalista, emprestava dinheiro sobre penhores. - -A sua casa de morada em Lisboa estava posta com fausto; menciona os -pannos de raz, e brocateis que forravam as paredes das salas; tinha -joias de grande valor, e enorme quantidade de pratas. - -Fazia festas religiosas; dava cera, azeite, dinheiro para muitas -imagens; no testamento contempla dezenas de corporações religiosas, de -parentes, de creados, e de empregados do correio, amigos e compadres. -Mas não falla de grande residencia na Matta. Por esta razão, e pelo -edificio que vejo agora, creio que o palacio actual foi erguido em -tempo de D. João V, soffrendo algumas modificações em época mais -recente. - -Mas temos em Volkmar Machado um dado importante; ao tratar do conhecido -pintor José da Costa Negreiros, conta que foi discipulo do famoso André -Gonçalves==cujo estylo seguia com mais sisudeza mas com menos agrado==, -e que fez alguns tectos em Loures, na quinta do Correio-Mór. - -Negreiros morreu em 1759. - -É possivel que as pinturas da sala dos Apostolos sejam, em parte, de -Negreiros; outras serão de seus discipulos Bruno José do Valle, ou -Simão Baptista; mas as decorações de outras salas, e especialmente os -grandes trabalhos a estuque, devem ser da segunda metade, adiantada, do -seculo XVIII, pois que a furia da decoração a estuque foi posterior ao -terremoto de 1755. - - - - -O officio de Correio-Mór - - -Parece que antes de 1520 não havia em Portugal serviço de correio -organisado regularmente. - -Mandavam-se proprios, e dispunham-se postas quando assim era preciso. -Nos caminhos de maior transito, em intervallos de 3 a 4 leguas, as -estalagens tinham cavallos para muda, que alugavam. - -Em 1520 el-rei D. Manuel criou o officio de correio-mór; foi Luiz -Homem, ao que dizem, o primeiro a exercer o cargo. - -Em tempo de D. João III appareceu a primeira lei ou regimento postal. - -O segundo correio-mór chamava-se Luiz Affonso; seu genro Francisco -Coelho, foi o terceiro. - -O cargo conservou-se na familia até 1606 em que falleceu Manuel Gouvêa, -o quarto no cargo. - -Então Filippe II mandou vender o officio; que foi comprado por 70:000 -cruzados, por Luiz Gomes da Matta, em 19 de julho de 1606. - -O correio-mór tinha a seu serviço estafetes, mestres e creados -de posta, e varios assistentes. O serviço do correio foi sempre -augmentando, sem alteração fundamental do regime até 1852, embora este -ramo pertencesse ao Estado desde 1797. Neste anno, em alvará de 16 de -março, D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi encarregado de tratar com o -Correio-Mór a cedencia do officio. - -Manuel José da Maternidade Matta de Sousa Coutinho, o ultimo -correio-mór, recebeu em indemnisação pela cedencia do officio o titulo -de conde em tres vidas, a renda annual de 40:000 cruzados, pensões -vitalicias a diversas pessoas, cuja somma andava por 400:000 cruzados, -e um ou dois postos no exercito. - -Foi este o primeiro conde de Penafiel. - -O segundo conde e primeiro marquez de Penafiel foi Antonio José da -Serra Gomes pelo seu casamento, em 1861, com a segunda condessa desse -titulo. - -Pelas quantias indicadas se vê o augmento de importancia do correio -entre 1606 e 1797, ainda que nessa época pequeno progresso tivera a -viação publica. - - - - -Estuques - - -O uso do estuque é muito antigo; ha exemplos no velho Egypto, na -remota Assyria; os romanos o empregaram vulgarmente; em Pompeia ha -tectos, frisos, cornijas de gesso. Bysantinos e arabes usaram do -estuque, principalmente os arabes de Hespanha; os estuques pintados -da Alhambra são admirados no engenho da decoração geometrica, no -effeito da combinação de tons. Durante largo tempo esqueceu o estuque, -para reviver no meiado do seculo XVI. Mas então renasceu e logo se -desenvolveu em processo e applicação; fizeram-se frescos sobre estuque -de gesso, modificaram-se as pastas, formaram-se grandes composições em -alto relevo. - -Em Portugal ha noticia de estuques no seculo XVII, de pouca importancia. - -Poucos annos antes do grande terremoto de 1755 appareceu em Lisboa um -artista italiano de grandes aptidões, João Grossi, que iniciou grandes -trabalhos neste genero. Outro estucador, primeiramente simples ajudante -de Grossi, Gommassa, se tornou notavel. - -O marquez de Pombal empregou-os nas suas propriedades. O terremoto -tornou necessarios trabalhos rapidos e os estucadores prosperaram; e -vieram mais estucadores italianos, Chantoforo, Agostinho de Quadri, que -introduziram novos processos. Nas Janellas Verdes, no palacio pombalino -da rua Formosa, na egreja dos Paulistas, etc., ha trabalhos d’estes -italianos. - -O marquez de Pombal chegou mesmo a fundar uma escola de estucadores, de -que foi mestre o Grossi (1766). - -Trabalhou-se immenso em estuque, bem e mal, com arte ou sem ella; João -Paulo da Silva trabalhou no palacio na quinta das Laranjeiras (por -1798), assim como Felix Salla, outro italiano discipulo do celebre -milanez Albertoli, que fez reviver a grande ornamentação dos gregos e -do imperador Augusto. - -É certo que por este tempo estucadores portuguezes foram trabalhar a -Hespanha, tanto se tinha aqui progredido neste ramo. - -Por 1805 entrou em Lisboa um estucador suisso de grande habilidade, -Vicente Tacquet que trabalhou com Francisco Espaventa e outros. - -Vieram os desastres da guerra, e alguns dos melhores artistas -refugiaram-se no norte do paiz, no Porto, e em Vianna do Castello, -Caminha, Affife que nos tempos modernos, nos ultimos 40 annos, tem -produzido bons artistas estucadores. - -De Rodrigues Pitta são os tectos do palacio do marquez de Vianna (1846) -ao Rato, hoje propriedade do sr. Marquez da Praia. - -Em 1855 e 1856 ornamentou o salão de baile do palacio da Junqueira -(actual palacio Burnay) e dois salões do palacio Costa Lobo, no campo -de Sant’Anna. - -Deixou trabalhos de grande folego nos palacios de José Maria Eugenio -d’Almeida, a S. Sebastião da Pedreira, Gandarinha que tem magnificas -escaiolas na galeria, e no do Marquez de Penafiel. - -A esplendida sala do conselho de Ministros, no Ministerio do Reino, tem -o tecto muito trabalhado, não de grande effeito. - -Cinatti introduziu em Lisboa um artista, seu parente, Joanni, notavel -imitador de marmores, e bom artista em estuque _lucido_. - -Nos ultimos vinte annos a mania pelo estuque, especialmente pelas -imitações de marmores, tem sido, a meu vêr, exaggerada. - -E, o que é grave, na maioria esses trabalhos são mal dirigidos e -executados. Tem sido um desastre. - -Ha estuques carregados de relevos que em tres ou quatro annos estão -fendidos e estragados. - -Imitações de marmores, quasi tão caras como os modelos, estaladas em -poucos mezes. Mas a mania pelos estuques não é só na capital; ao norte -do paiz ainda foi, e é, mais intensa. - -No Porto ha estuques antigos, dos melhores, no palacio dos Carrancas, e -modernos na Bolsa. - -No Minho citam-se como notaveis os do palacio da Brejoeira, obra dos -Alves, de Fafe, por 1850. - -Em Evora temos os mais recentes no theatro Garcia de Resende, fino -trabalho do Meira. - -Será rara a egreja da Provincia, onde tenha havido reparos nos ultimos -annos, que não possua amostras de estuque moderno, de facil execução e -de mau effeito passado o lustro dos primeiros mezes. - -Nas salas do Correio-Mór ha tectos estucados a baixo relevo muito -distinctos e paredes ornamentadas a esgrafito de algum effeito. - -Volkmar Machado deixou-nos algumas noticias sobre estucadores, que -Liberato Telles utilisou no seu trabalho publicado no _Boletim da -Associação dos Conductores de Obras Publicas_. Vol. IV. 1900. - - - - -Egreja de S. Lourenço de Carnide - - -O logar de Carnide, que faz parte agora da capital, é muito antigo; -existia já povoado e cultivado no meiado do seculo XIII. - -O mosteiro de S. Vicente possuia aqui uma vinha e uma herdade, como se -lê nas inquirições do reinado de D. Affonso III. Por esse documento, -importante para a historia de Lisboa e seus termos, se vê que em -tão remota época já nestes logares de Carnide, Charneca, Queluz, -Falagueira, Odivellas, Palma e Telheiras havia culturas, vinhas e -povoados que contribuiam para o rei, para as ordens militares, e para -os grandes mosteiros. - -Em 1342, o bispo de Lisboa, D. João, mandou edificar a egreja á honra -de S. Lourenço, por Pedro Sanches, chantre da sua sé, e a deu a seu -capellão João Dor. Era já egreja parochial no seculo XIV. - -Em meio de amplo terreiro, murado, orlado de oliveiras, com larga vista -de campos e collinas ergue-se a egreja com o seu campanario, em linhas -de singela construcção. A orientação e disposição da egreja é antiga, -todavia pouco se vê do seu estado primitivo. - -Está bem reparada, de ha poucos annos. - -É um templo alegre, com as suas obras de talha dourada, as paredes -forradas com azulejos, de azul sobre branco, em grandes quadros, -allusivos á vida de S. Lourenço. - -Tem cinco altares, o maior, o da Senhora do Rosario, do Crucificado, de -S. Miguel, e o de Jesus-Maria-José. - -No altar-mór ha um quadro bom, o _lavapedes_, mal restaurado, -infelizmente; algumas campas com lettreiros no chão da capella-mór; -duas pias d’agua benta que são dois capiteis do seculo XIV, escavados; -na sacristia um arcaz de boa madeira, com metaes bem cinzelados. - -O terreiro ao redor da egreja era d’antes o cemiterio; campas e ossadas -foram removidas para o cemiterio dos Arneiros (Bemfica). Ficou apenas -uma grande pedra, com inscripção latina, que era o tumulo de José João -de Pinna de Soveral e Barbuda, fallecido em 1710. - -Para o novo cemiterio de Bemfica foi removida a campa de D. Anna Maria -Guido, marqueza de Ravara, fallecida em 1752. - -No alto de um cunhal, do lado do sul, está uma pedra com lettreiro em -caracteres gothicos (seculo XV, talvez) que diz:--Esta sepultura he de -Luis d’Abreu e de todos seus herdeiros. - -Na capella-mór ha bastantes campas. - ---Esta sepultura é de Joam da Costa de Mendonça e de quem nela se -quizer enterrar. - ---Sepultura de Francisco Jorze e de sua molher e de seus herdeiros... de -1569. - ---Sepultura de George Pires e de sua molher e herdeiros. 1616. - ---Sepultura de Jozeph da Costa e de sua mulher Catharina da Costa a -coal faleceo a 28 doutubro de 1712 e pera todos os seus herdeiros. - ---Sepultura de Guilherme Street Arriaga Brum da Silveira e Cunha e -familia. 28 de outubro de 1826. P. N. A. M. - ---Esta sepultura mandou fazer João Correa pera se enterrar nella e seus -herdeiros. - ---Sepultura de Antonio de Almeida e seus herdeiros faleceu a 14 de mayo -de 1601 anos. - ---Sepultura de Luiz Ramalho Pre... e de sua mulher Francisca de Almada -Tiba e de seus herdeiros faleceu a X d. de junho de 1637. - ---Sepultura de Bastião criado de S. M. e de seu herdeiro. Faleceo a 5 -doutubro de 1796. - ---Sepultura do P.ᵉ H.ᵐᵒ Machado cura que foi nesta igreja muitos annos -e de seu herdeiro. - ---Sepultura perpetua de Simão Moreira e sua molher Domingas Francisca e -de seus herdeiros a qual lhe mandou pôr seu filho o P.ᵒ Luiz Moreira. -1678. - ---Sepultura de Lianor Jorze molher que foi de Luiz Glz d’Oliveira -provedor dos contos do reino faleceo a 21 doutubro de 1567, e de seus -herdeiros. - -Transcrevi estes lettreiros porque são ineditos. - -Na frontaria da egreja está uma inscripção referente á fundação; e uma -pedra com escudo d’armas que não sei explicar; não me parece portuguez, -nem hespanhol esse curioso brazão em que se vê uma perna com bota, por -baixo de uma estrella. - -É bem interessante a modesta egreja, agora parochia da capital. - - -Luz - -Da egreja de Nossa Senhora da Luz resta-nos o cruzeiro, e a -capella-mór; o corpo da egreja abateu por occasião do terremoto de -1755. É da fundação da infanta D. Maria, senhora opulenta e de alta -cultura d’espirito. Nesta egreja ha obras d’arte notaveis em esculptura -de madeira e pedra, em architectura, e em pintura. A capella-mór tem 12 -x 8 metros; o cruzeiro 21 x 10. - -A capella-mór é ampla, alta, coberta de abobada revestida, assim como -as paredes, de marmores diversos formando quadrellas; é o conhecido -estylo classico dominante no findar do seculo XVI. Nichos com estatuas -animam as grandes paredes. Na parede que olha ao sul estão rasgadas -janellas que dão bastante claridade. - -O altar-mór está elevado, sobre o pavimento da capella; quatro degraus -se sobem para lá chegar. - -Além do altar-mór abre-se um grande arco que abriga o sacrario, soberba -obra d’arte muito elegante, em madeira entalhada e dourada; atraz fica -o vasto côro, agora sacristia, no mesmo nivel da egreja. Proximo do -grande altar, no chão, ha uma abertura circular que diz para a fonte de -agua milagrosa. - -A meio da capella-mór o singelo tumulo da fundadora. - -Na capella-mór ha duas capellas lateraes; outras duas no cruzeiro. - -Empregaram na construcção marmores branco e vermelho, servindo-se da -pedra d’Arrabida na ornamentação; nos frisos e molduras sobresahem -quadrados, losangos, ellipses feitos n’essa pedra, bem trabalhada e -polida. A pedra vermelha fórma o fundo, a branca a parte saliente e -ornamental. - -Nos grandes nichos da capella-mór estão dezesete estatuas em marmore: -Nossa Senhora com o Menino de Jesus, S. Thomé, S. André, S. João, S. -Lucas, S. Matheus, S. Marcos, S. Simão, S. Mathias; estas á direita, -olhando para o altar-mór; á esquerda, S. Filippe, S. Thiago Maior, S. -Pedro, S. Judas Thadeu, S. Thiago Menor e S. Bartholomeu. As estatuas -da Virgem e dos Evangelistas são maiores. - -Estas estatuas são em marmore branco d’Estremoz, lindo marmore; o -trabalho é muito pegado, os artistas não se atreveram a desligar, a -destacar braços ou mãos. - -No exterior do edificio, lado sul, ha outra estatua de Nossa Senhora -com o Menino e, ainda uma terceira na frontaria do Collegio Militar; -todas da mesma época e do mesmo estylo acanhado. São todavia de bom -trabalho, e representam excellentemente o estado da estatuaria em -Portugal naquelle tempo. - -No altar-mór admiramos alguns baixos relevos em fino jaspe, em seis -pequenas pilastras; são figuras symbolicas da Fé, Justiça, Fortaleza, -etc. - -Sobre a figura da Fortaleza ha um medalhão com Hercules, o leão e o -centauro finamente executado. - -Uma das figuras é a Astronomia, outra a Medicina. Nas pilastras que -formam as esquinas do altar, as faces lateraes mostram fructas e -flores, escudos e peças d’armadura. Estes bellos baixos relevos são -de pura renascença, d’um estylo muito anterior ao frio classicismo da -capella-mór. - -Alguns dos symbolos destoam da ideia christã, parecem deslocados na -ornamentação d’um altar-mór. É possivel que sejam peças destinadas -a outra obra d’arte, que foram aqui aproveitadas. Nas duas capellas -lateraes do cruzeiro de Santa Maria de Belem (Jeronymos) ha uns -lindos baixos relevos nos altares, pouco vistos, que passam mesmo -despercebidos porque teem luz escassa, que, me parece, se relacionam -com estes da Luz na qualidade da pedra, e no estylo do trabalho. E no -portico do poente, nos Jeronymos, superiormente, ha duas pilastras que -dizem com estas da Luz[1]. - -[1] Devemos lembrar que Jeronymo de Ruão, architecto da Luz, tambem o -foi da capella-mór dos Jeronymos - -Na alta parede da frente da capella-mór ha oito quadros em disposição -symetrica; o maior occupa o centro, é Nossa Senhora da Luz com o -Menino, que apparecem ao pobre Pedro Martins; o milagre que deu origem -á fundação da ermida primitiva. - -Este quadro está assignado: _Franciscus Venegas, Regius pictor -faciebat_. - -Sobre este quadro está outro painel de moldura circular, que representa -a Coroação da Virgem; está tambem assignado: _F. Venegas. f._ Como -estes dois quadros estão bastante altos as assignaturas não se -descobrem á primeira vista, mas é facil a leitura com um binoculo -regular. - -Á esquerda da Coroação está a Adoração dos Reis, á direita a -Apresentação no Templo, em molduras ellipticas; não lhes descubro -assignatura. Aos lados do grande quadro do milagre de Pedro Martins, -está a Visitação á esquerda, e á direita a Adoração dos pastores; não -lhes vejo assignatura; por baixo á esquerda Nossa Senhora e S. Joaquim, -á direita a Annunciação, este assignado: _F. Venegas f._ - -Os paineis não assignados podem ser do mesmo artista _Venegas_; são -pinturas em madeira, bem desenhadas e pintadas, em boa conservação. Á -primeira vista estas pinturas destoam, divergem entre si; a meu vêr -porque o pintor, que era excellente executante, não tratou de inventar, -contentando-se em copiar, ou quasi, os bons quadros que conhecia. - -Assim este quadro recorda Raphael, outro o Sarto, aquelle o Parmesão; -na Coroação da Virgem, singelo grupo em fundo dourado, parece vêr-se -a reproducção de quadro muito antigo de um _primitivo_; na grande -composição central lembra logo a Transfiguração de Raphael; na -Annunciação, que tem grande vigor de colorido, e luz intensa de grande -effeito, recorda o Mazuoli. Isto é, este Venegas, excellente pintor, -está completamente dominado pela escola italiana. - -Na capella da esquerda está o quadro da Circumcisão. O fundo é -formado por apparatoso edificio do renascimento. A figura da Virgem é -admiravel; á esquerda, a Caridade, mulher com duas creanças, de bom -effeito; á direita, no fundo escuro, a Humildade. No primeiro plano -vê-se um tapete persa e um cãosinho felpudo, de luxo, pintado com muito -cuidado. - -Na capella á direita a Sacra Familia, Anjos coroando: fundos claros, -edificio do renascimento em ruina. Detalhes minuciosos. - -O trabalho d’esculptura em madeira dourada que reveste a grande parede -da capella-mór faz bom effeito; é desegual, talvez em parte material -aproveitado para encher o vão. Mas o sacrario é uma peça de grande -elegancia; renascença classica de cuidadosa execução. - -Na capella esquerda do cruzeiro está um quadro notabilissimo. S. Bento -dá a regra aos seus monges. No primeiro plano á esquerda el-rei D. -Manuel, á direita a infanta D. Maria. Um fidalgo e diversos monges -formam grupo atraz da figura do rei, uma dama e muitas freiras estão -depois da infanta. Todas as figuras estendem o braço direito, a palma -da mão para cima como signal de acceitação da regra. O pintor para -evitar monotonia variou muito as posições dos dedos; foi um verdadeiro -esforço, um trabalho habilidoso e paciente o desenho de tantas mãos; -a mão fina e lisa das damas novas, a nodosa e enrugada das velhas, -a robusta e a gorducha dos fortes monges. D. Manuel tem o collar de -Christo. A infanta veste com fausto; vestido de tissu lavrado, apertado -na frente com laços de fitas com agulhetas; joias com pedras preciosas, -gorgeira de fina renda, gola muito alta, collar com fita pendente de -ouro e pedras. O lindo rosto juvenil da dama de côrte, vestida mais -modestamente, pintado n’um tom menos brilhante, succede muito bem á -magestosa grande dama, e prepara para o aspecto ascetico do grupo -de freiras. Tanto estas como os frades teem phisionomias estudadas; -são retratos. Por isto este painel tem o duplo valor de obra d’arte, -e de documento historico, dando-nos ainda preciosos elementos de -indumentaria. Ha outros retratos da infanta; e o busto de prata que se -conserva em Santa Engracia (antiga egreja dos Barbadinhos) harmonisa -com este em aspecto e vestuario. - -As grades da capella-mór e das outras capellas são em pau santo com -torcidos. - -No cruzeiro á direita fica outro altar. É a capella do Senhor dos -Afflictos; é a imagem de Jesus Crucificado, esculptura em madeira de -boa execução, corpo robusto com anatomia estudada. Sob a imagem, n’um -friso, ha duas taboas pintadas que merecem attenção. Em uma Santo -Antonio e S. João Baptista; na outra as santas Agueda e Luzia, com -os seus emblemas. São pinturas talvez do começo do seculo XVI alli -applicadas. - -No cruzeiro, á direita, uma porta singela dá para uma pequenina -capella, agora sem culto; construcção do começo do seculo XVII. Tem -rodapé de azulejos, altar e chão de boa pedra. Está aqui um tumulo com -escudo de armas sem lettreiro; outro com brazão e a seguinte legenda: - ---Aqui está sepultado o religiosiss.ᵒ varão da ordem de Chr.ᵒ D. F. -Martinho de Ulhoa bispo que foi de S. Thomé, Congo e Angola juntamente -que mandou fazer esta capella em a qual se lhe diz missa quotidiana -falleceo a 8 d’agosto de 1606.-- - -Guarda-se na sacristia (antigo côro) um grande retabulo que servia -de tapar o vão do arco da capella-mór. Representa o milagre de Nossa -Senhora a Pedro Martins. É fraca pintura. Está assignado e datado: -_Anno de 1714. Henrique Ferreira fez_. - -Sobre o altar da sacristia está a imagem de Nossa Senhora dos Remedios. - -É esculpida em madeira, e por nesta ter dado o caruncho a vestiram de -seda para occultar as lesões. Merece toda a attenção. É pintada e -dourada; luxuoso vestido rodado de mangas perdidas, fita de joias em -relevo com imitação de pedras finas. No vestido o artista imitou rico -tissu floreado. - -O vestuario d’esta imagem recorda o do retrato da infanta. Deve ser -esculptura do fim do seculo XVI. - -Da mesma época deve ser um grande frontal com o brazão da infanta -bordado no centro e aos lados; tem fachas de velludo vermelho com -bordado alto a ouro e prata, sendo os vãos ou entrefachas de seda -branca. - - * * * * * - -Junto do altar-mór a abertura do poço ou fonte da agua milagrosa, um -simples bocal raso com tampa de madeira. - -A fonte é bem curiosa. A entrada deita para um quintal contiguo. -Descemos a escada e na parede vemos alguns azulejos antigos, mouriscos, -de fino esmalte e relevos. Um portico em estylo manuelino dá para o -espaço onde nasce a agua; uma abobada forrada de azulejos brancos com -estrellas azues; outros revestem os rodapés e paredes, em pequenos -quadros formados de quatro azulejos, de diversos typos, alguns raros. O -portico tem columnas torcidas e no intercolumnio uma facha com romans. - - -Os pintores da Luz - -Filippe I (II de Hespanha) n’uma carta de 14 de março de 1583 chama a -Francisco Venegas, _meu pintor_. - - (Sousa Viterbo, _Noticia de alguns pintores_, - Lisboa, 1903, pag. 153). - -D. Sebastião, em alvará de 6 de maio de 1577, diz: _Diogo Teixeira hum -dos melhores pintores de imaginarya dolio que ha nestes reynos_. - - (Ibidem, pag. 142). - -Na collecção de desenhos expostos no Museu das Janellas Verdes, os n.ᵒˢ -307 e 308 parecem-me representar as duas figuras que estão em baixo -relevo no altar-mór da Luz. - -O desenho n.ᵒ 346 (Museu das Janellas Verdes) é de Venegas; uma rubrica -indica que é o projecto de um quadro para S. Vicente de Fóra, e que se -executou uma réplica, menor, para S. Domingos de Setubal. - -A collecção de desenhos do Museu das Janellas Verdes é muito -importante, e vista com attenção dá elementos unicos para a historia -da arte em Portugal. Ha mais collecções de desenhos em Portugal em -estabelecimentos publicos, e na posse de particulares, que insta tornar -conhecidas. - -Creio que o n.ᵒ 268 é o esquisso do quadro da capella lateral, a -Circumcisão; architectura á romana; o sacerdote no faldistorio, etc., -nem falta o cãosinho felpudo. - - * * * * * - -Jeronymo de Ruão foi architecto da infanta D. Maria; entre outras obras -fez a capella da Luz e a capella-mór dos Jeronymos. - -Nos dois capitulos _O lindo sitio de Carnide_ e _Noticias de Carnide_ -dei outras noticias e publiquei lettreiros d’esta egreja da Luz, que -julgo escusado repetir agora. - -Para a historia da inclita infanta D. Maria é fundamental a--_Vida de -la serenissima infanta dona Maria_, por fr. Miguel Pacheco (Lisboa, -1675).--Modernamente appareceu á luz um trabalho a respeito da infanta -e de suas damas pela Sr.ᵃ D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos. -Escusado dizer, é bem conhecida a alta intelligencia e a intensa -investigação da auctora, que é escripto fóra da bitola vulgar. Nelle se -dá noticia dos differentes retratos da infanta D. Maria. - -Transcrevo a curta biographia que vem nos _Elogios de varões e donas_ -por ser menos conhecida agora, pois esta obra tornou-se pouco vulgar. - - -Biographia da infanta D. Maria - -A Infanta D. Maria tão illustre pelo dote da formosura, como pelo -engenho, erudição, graça, e todo o genero de heroicas virtudes, que a -constituiram uma das mais recommendaveis princezas do seu seculo, foi -filha d’El-Rei D. Manoel, e da Rainha D. Leonor de Austria sua 3.ᵃ -mulher. Seu nascimento foi na cidade de Lisboa, em sabbado 8 de junho -de 1521 nos paços da Ribeira; e a 17 do mesmo mez foi baptizada pelo -Arcebispo de Lisboa, D. Martinho Vaz da Costa, escolhendo El-Rei seu -pai para padrinho em nome de Carlos III, Duque de Saboia, o Barão de -S. Germano, Senhor de Balaison, enviado então por Embaixador a este -Reino para solicitar o cazamento da Infanta D. Brites com o dito Duque; -e madrinhas a mesma Infanta D. Brites e D. Isabel suas meias irmãs. -Com a morte d’El-Rei seu pai no mesmo anno de 1521, e por se auzentar -para Castella a Rainha sua mãi deixando-a ainda no berço, foi entregue -para ser educada em idade competente á direcção da Rainha D. Catharina -sua tia, tanto que chegou a este Reino, de cuja escola saiu eminente. -Como era dotada de estranha viveza, memoria, e grande juizo aprendeu -com facilidade as linguas especialmente a Grega, e a Latina que soube -com perfeição, e escreveu com tanta propriedade como se lhe fôra -natural e materna. Teve por mestres a insigne Dama Toledana Luiza Segéa -exquizitamente douta em muitas linguas, e raro prodigio de sciencia, -que mereceu ser celebrada dos maiores letrados d’aquella idade; e a Fr. -João Soares de Urró da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, depois -Bispo de Coimbra, que tambem o foi dos Principes D. Filippe, e D. João -seus sobrinhos. - -Ao contar dezaseis annos El-Rei D. João III seu irmão lhe deu caza -propria, e separada do paço Real, composta das principaes pessoas do -Reino: a qual com riquissimo dote, que seu pai lhe deixou, foi de -tão grande renda e estado, que para ser igual á das maiores Rainhas -da Europa não lhe faltou mais, que haver o nome de uma d’ellas. Foi -Senhora de Vizeu, e de Torres Vedras de juro, e teve por El-Rei D. -João III seu irmão muitas mercês, e privilegios, e consta por alguns -Documentos que se guardam no Real Archivo, como são: uma carta em data -de 26 de janeiro de 1545, em que se lhe concedem de padrão de juro -e herdade cinco contos de réis, em virtude do contracto feito com o -mesmo Rei D. João III que se acha inserto; e duas cartas expedidas á -mesma Senhora Infante de privilegios, e jurisdição de suas terras, e -sobre as fintas, e provimentos dos officios d’ellas em data de 2 de -novembro do mesmo anno: o primeiro no Livro da Chancellaria do dito -Rei a fol. 25, e os segundos no Livro 43 fol. 9, vers. e 14 verso. -Creou n’este paço particular uma verdadeira Universidade de mulheres -illustres em todo o genero de Sciencias e Artes, de que foi especial -protectora; pois não só se encontrava quem se désse á lição dos Livros, -e tocasse déstramente differentes instrumentos, mas quem com o pincel, -e com a agulha procurasse nos primores da Pintura, e lavôr virtuosa -emulação e seguisse os outros louvaveis exercicios: aos quaes ajuntava -com tal reverencia, e edificação a pratica dos actos de piedade em -todo o genero de virtudes, pela direcção de Fr. Francisco Foreiro, -lustre da Ordem Dominicana, que parecia menos Paço Real, que Mosteiro -reformado, que podia ser a Religiosas espelho, e doutrina de bem -viver. Pela fama de tão Reaes qualidades foi pretendida para Espoza -dos maiores Principes da Europa, como foram: o Delfim de França, filho -de Francisco I; o Duque de Orleans, irmão do mesmo Delfim, a quem o -Imperador Carlos V promettera a investidura do Ducado de Milão, ou do -Condado de Flandres; e não se effeituando nenhum d’estes cazamentos, -por morrerem ante tempo ambos estes Principes, El-Rei D. Fernando -de Ungria, Rei dos Romanos, e depois Imperador enviou Embaixador a -Portugal pedindo-a por mulher de Maximiliano seu filho; e ultimamente -Filippe II de Hespanha, logo que enviuvou da Rainha D. Maria de -Inglaterra. Permaneceu todavia até á morte no estado de Donzella, que -havia consagrado a Deos com generoza rezolução, preferindo mais o amor -da quietação de seu espirito, que a cobiça de reinar. No anno de 1558, -sendo ja fallecido El-Rei D. João III, por comprazer aos dezejos da -Rainha D. Leonor sua mãi que procurava anciozamente vê-la, se foi por -Elvas a Badajoz com luzido acompanhamento; e demorando-se ahi com ella -por espaço de vinte dias, e com a Rainha D. Maria de Ungria e Bohemia -sua tia, que a receberam com muitas festas de prazer, se tornou para o -Reino. Determinada a não sair de Portugal, e a não admittir propostas -de despozorios continuou em religiozos exercicios praticando obras de -muito louvor, como foram: a edificação do Convento magnifico de N. -Senhora da Luz da Ordem de Christo, que dotou riquissimamente, com a -grande obra do Hospital que lhe ficava fronteiro; o Mosteiro de Santa -Helena do Calvario em Evora; o Convento de N. Senhora dos Anjos (mais -conhecido hoje pelo convento do Barro), de Capuchos Arrabidos, junto -da Villa de Torres Vedras, na qual teve ella seu palacio; e o Mosteiro -de S. Bento na Villa de Santarem; e deixou em seu Testamento, com que -se edificasse Mosteiro para as Commendadeiras de S. Bento de Aviz, que -se fez em Lisboa com a invocação, como ella ordenára, de N. Senhora -da Encarnação. Fundou mais a Igreja Parochial de Santa Engracia de -Lisboa, alem de outras muitas obras de piedade em outras Igrejas, como -no Convento da Graça da Ordem de Santo Agostinho, em que assistia -muitas vezes com sua prezença e esmollas, quando vivia no Palacio -do Castello, a Imagem da Senhora, cujo corpo mandou cobrir de prata -primorosamente lavrada, e lhe mandou fazer Capella; e no Real Mosteiro -de S. Bento, que então se fabricava, mandou fazer a Imagem grande -deste Santo, que se vê no altar mór, e adornar sua Capella, e a de -outros altares; e por via do Embaixador de Portugal na Côrte de Roma -obteve uma Reliquia do mesmo Santo, que he uma parte da que estava no -Mosteiro de S. Paulo daquella Cidade, para enobrecer este Mosteiro, e o -de Santarem. Foi a Senhora D. Maria, como universal herdeira da Rainha -D. Leonor sua mãi, Senhora Soberana de juro do Senescallado de Agenois -em Gascunha, e dos opulentos Dominios de Verdum, e Rieux na Provincia -de Languedoc; e alem de muitas baixellas de ouro, prata, joias de -grande valor, de cem mil escudos que lhe pagavam os Reis de França, e -Castella. Sua morte foi no anno de 1577 a 10 de outubro em idade de 56 -annos, nos seus paços da Cidade de Lisboa extramuros junto do Mosteiro -de Santos, deixando de si unico exemplo a todas as altas Princezas de -virtude e honestidade. Tinha disposto de sua ultima vontade, como se -podia esperar de sua muita sciencia, e Christandade, por Testamento de -17 de Julho do mesmo anno de 1577, e Condicillo de 31 de Agosto que -fez approvar a 8 de Setembro, o que mais convinha a sua consciencia, -determinando muitas obras de piedade por todo o Reino com grandes -soccorros para pobres, viuvas, donzellas, orfãos, enfermos, e cativos -com tamanha profusão que não houve quazi genero de pessoa, que não -experimentasse a caridade, e mizericordia desta Princeza, sem faltar em -nada á familia de seus criados, e a todos a quem por qualquer via era -devedora de serviços passados, que a todos satisfez larguissimamente: -e emquanto a seu enterro foi a primeira clauzula, que se acabasse sua -vida, primeiro que estivesse concluida a Capella de N. Senhora da -Luz no Convento dos Padres de Christo, que ella havia destinado, e -mandára edificar para seu jazigo, a depozitassem, emquanto se acabava, -no Mosteiro da Madre de Deos de Lisboa. Seu corpo foi depozitado no -Capitulo do dito Mosteiro da Madre de Deos, junto da Rainha D. Leonor, -mulher do Senhor Rei D. João II, e celebraram-se-lhe exequias com -grande pompa, como convinha á grandeza de sua pessoa, com assistencia -d’El-Rei D. Sebastião oito mezes antes de partir para Africa, do -Cardial D. Henrique, e de todos os grandes do Reino. Sendo passados -quazi vinte annos, por determinação de Filippe I foi trasladada para a -sobredita Capella de N. Senhora da Luz a 30 de Junho de 1597. Jaz em o -pavimento da Capella mór, em sepultura pouco levantada no meio della, -e sem nenhuma letra, ou diviza, symbolizando-se por este signal de -humildade a muita que esta Princeza guardou em seu coração por toda a -vida. No meio do Cruzeiro ao lado do Evangelho se lê em pouca altura -na parede uma Inscripção, gravada de letras pretas romanas em uma pedra -de marmore branco de tres palmos de alto, e cinco de largo, a qual diz -assim: - - * * * * * - ---A Capella moor deste Mosteiro de N. Senhora da Luz e este Cruzeiro -são da sepultura da Serenissima Infanta Dona Maria que Deos tem filha -d’El-Rei Dom Manoel, e da Rainha Dona Lianor sua mulher na qual Capella -e Cruzeiro se não dará sepultura a pessoa alguma de qualquer calidade -que seja nem em tempo algum se fara nhum Deposito nem nhum litereiro -por assi estar asentado por Sua Magestade e por contrato solene e -celebrado que se fez co o Padre Prior e Padres desta Casa confirmado -pelo Padre Dom Prior e mais Padres do seu Convento de Tomar cujo -trelado esta na Torre do Tombo e nesta Caza de Nossa Senhora. Faleceo a -dez Doutubro de 1577.-- - -Esta biographia vem na obra--_Retratos e elogios dos varões e donas, -que illustraram a nação portugueza._ (Lisboa, 1817). - - -S. Sebastião do Paço do Lumiar - -A ermida de S. Sebastião está isolada em alegre terreiro, moldurado de -bons predios, alguns antigos, no logar do Paço do Lumiar. - -Este logar é continuação do Lumiar propriamente dito, para o lado da -Luz e Bemfica. - -Partindo do amplo largo da Luz segue-se uma estrada entre boas quintas -á Horta Nova; já proximo do Paço ha boas construcções modernas á beira -do caminho. - -A ermida é muito simples; chama principalmente a attenção a porta em -estilo manuelino, elegante e bem conservada. - -O exterior da pequenina egreja mostra que a primitiva obra do começo do -seculo XVI, soffreu grandes concertos depois. Na cruz de azulejos que -está no lado norte lê-se _Anno 1628_; a mesma data se mostra no azulejo -que fórra o interior; houve pois grande obra alli n’esse tempo. As -volutas d’alvenaria e os pinaculos lateraes do frontispicio levam-nos -a crer que mais tarde, no meado do seculo XVIII, talvez depois do -terremoto de 1755, houve novo e importante concerto. - -Temos aqui azulejos datados d’uma época interessante, do periodo -philippino, 1628. São de desenho geometrico na maioria, emquadrando -porém bons trabalhos em figura. - -O corpo do templo é dividido da capella por um arco e na face d’este -arco estão as imagens em azulejo de S. Francisco, S. Pedro, S. Antonio -e S. Paulo; sobre a porta lateral está um famoso S. Christovão -empunhando respeitavel bordão, com o Menino sobre o hombro. O artista -empregava varias tintas, amarello, roxo, além dos tons vulgares. Nas -paredes da capella ha pequenos quadros tambem em azulejo, azul sobre -branco, representando phases da vida de S. Sebastião, muito mais -modernos que os do corpo do templo. - -É nos azulejos do arco divisorio, infra, que está em grandes algarismos -a data 1628, quasi encoberta pelos estrados de madeira. - -No alizar d’este arco, ha flores pintadas com mimo; assim como no -pequeno côro se vêem caixotões com pinturas. - -O ladrilho é antigo e bom; com azulejos brancos entre os tijolos -vermelhos. As portas são de excellente madeira, em almofadas de boa -execução. - -O tecto da ermida soffreu alguma ruina, talvez pelo terremoto, mas -conserva ainda boas pinturas antigas, entre estuques mais modernos. - -Tem alguns lettreiros em sepulturas, uns bem legiveis, outros gastos -pela passagem dos devotos, o que mostra que em tempos foi esta ermida -frequentada; agora poucas vezes ha alli missas. - -Transcreverei algumas inscripções. - ---Aqui jaz sepultado o padre Joaquim Jorge faleceo a 9 de novembro de -1783. - ---S.ᵃ do P.ᵉ Antonio Pinheiro capelão que foi d’esta hirmida o qual -faleceu na era de 1705. - ---S.ᵃ do capitão Estevão Soares de Alvergaria cavaleiro da ordem de -Christo faleceu a 11 de dezembro de 1644 e de sua molher Anna de Masedo -da Maia e de sua mãi Madalena da Maia.... - -Tem seu escudo gravado; a cruz fioreteada, com orla de escudos, elmo e -paquifes. - -Outra campa é do--P.ᵉ Antonio Mamede bemfeitor desta irmida, que morreu -em 1 de abril de 1791. - -Em outra muito gasta pareceu-me vêr o nome Rodrigo Diniz Moreira. - -Sobre a torre dos sinos ergue-se no eirado um campanario onde está o -sino das horas; porque tem seu relogio a pequena ermida, com mostrador -voltado para norte. - -Ha na frontaria quatro argolas de ferro que serviam para segurar um -grande toldo na occasião das festas. - -Quando fiz o esboceto do frontispicio estive a conversar com um velhote -que antigamente tratava do relogio, e armava o toldo, que era quasi -sempre uma vela de navio emprestada pelo arsenal de marinha. - -Embora humilde e acanhado tem o pequeno templo uma certa importancia -por ser anterior ao grande terremoto de 1755, e por nos conservar além -do gracioso portal manuelino, pinturas e azulejos do seculo XVII, em -bom estado de conservação. - - -Lumiar. Quinta do Sr. Duque de Palmella - -Esta egreja de S. João Baptista do Lumiar é freguezia muito antiga. - -A disposição do templo mostra a sua remota fundação, grandiosa, em tres -naves; mas as reconstrucções e concertos deram-lhe um aspecto moderno. - -Consta que foi esta egreja fundada em 1267. Eram padroeiras as freiras -de Odivellas, por doação de D. Thereza Martins, viuva de D. Affonso -Sanches, filho bastardo d’el-rei D. Diniz. - -Não pára aqui a historia. D. Affonso III possuia aqui uma casa de campo -com sua quinta; esta propriedade pertenceu depois a D. Diniz. - -Em terreno da quinta foi edificada a egreja. A posse passou ao bastardo -de D. Diniz, o infante D. Affonso Sanches, e então se chamou á casa de -campo o Paço de Affonso Sanches. - -Este entrou nas luctas d’aquella época atormentada, os bens foram-lhe -confiscados, e D. Affonso IV, o irmão, chamou-lhe o Paço do Lumiar. -Mais tarde a propriedade deixou de pertencer á corôa, mas conservou -sempre o nome de Paço do Lumiar; por alli se ergueram casas, fez-se -povoação, e ao fim d’ella uma ermida dedicada a S. Sebastião. - -O marquez de Angeja, D. Francisco de Noronha, em fins do seculo _XVIII_ -edificou o actual palacio, hoje pertencente á Casa Palmella. - -O duque de Palmella, D. Pedro, homem de espirito cultissimo e fino -gosto, gostava immenso da sua quinta, augmentou-a com a que pertencera -á casa dos marquezes de Olhão, depois ao conde da Povoa, e algumas de -menor importancia, e assim formou a grandiosa quinta actual, com o -seu palacio, e grande pavilhão, jardins, estufas, avenidas de grandes -arvoredos, obras de arte de merecimento. - -Sendo de forte declive o terreno da quinta tiveram de fazer grandes -socalcos, sustentados por fortissimas muralhas o que dá effeitos -raros, perspectivas inesperadas a edificios e arvoredos. Ha ahi bellos -exemplares vegetaes, a Araucaria excelsa é a primeira plantada em -Portugal, o dragoeiro, ainda que um pouco mutilado é bello exemplar, -a Araucaria brasileira compara-se á celebre do jardim botanico de -Coimbra; cedros, platanos, e ulmeiros seculares alastram fechadas -sombras. Nesta quinta se deram luzidas festas no tempo do 1.ᵒ duque, e -aqui se guarda, bem ordenada e conservada, a grande e preciosa livraria -Palmella. - -Mas dos tempos de Affonso Sanches, de Diniz? Nada, nem vestigio; nem -uma pedra toscamente lavrada, ou singelo lettreiro, nada recorda esses -tempos antigos. - - -Terremotos - -Esta formosa cidade de Lisboa tem sido victima dos terremotos; -impossivel calcular o trabalho perdido, a extensão e a intensidade de -tanta ruina. - -Em certos pontos da cidade a camada de entulhos, caliças, fragmentos de -tijolos, é de 3 a 4 metros; pela abertura de cabôcos, e installação de -canalisações, e muito se tem escavado nos ultimos annos por todos os -arruamentos, descobrem-se na baixa, no Rocio, por exemplo, trechos de -canos antigos abandonados e sobrepostos, ainda a profundidade maior. - -De tremores muito antigos, e dos da alta idade média ha tradições. - -O de 24 d’agosto de 1356 destruiu parte da Sé, e causou enorme -devastação na cidade. - -Em janeiro de 1531 houve terremotos a seguir, sendo maior e mais -destruidor o de 26 d’esse mez. - -O de 28 de janeiro de 1551 derribou muitos predios. - -Em 27 de julho de 1597 uma parte do monte de Santa Catharina escorregou -para o rio, ficando aquelle alteroso monte dividido em dois, Chagas e -Santa Catharina; tres arruamentos desappareceram por completo. - -Em 1755 a cidade estava maior, mais povoada; o terremoto de 1 de -novembro fez muitas victimas, grande parte da cidade ficou arrasada, e -o incendio causou incalculavel prejuizo. - -Mencionam-se terremotos em 1598, 1699, 1724, fortes mas sem causar -grande damno; os abalos de 1761, 1796, 1807; o de 11 de novembro -de 1858 muito sensivel, em Setubal foi destruidor, matando gente e -derribando casas. - -O sr. Paulo Choffat tem trabalhos publicados sobre os ultimos abalos de -terra sentidos na capital. - -É certo que Lisboa está n’uma zona perigosa; devemos reparar n’isto. -Nada de concentrar tudo em Lisboa, guardem-se algumas cousas em sitios -mais garantidos. - -E todavia ha aqui consideraveis construcções que atravessaram no -seu logar e prumo essas medonhas convulsões; por exemplo uma parte -consideravel das muralhas do Castello, Santa Luzia e a sua muralha, as -capellas orientaes do Carmo, os arcos do Borratem, a casa dos Bicos, a -frontaria da Conceição Velha; bastantes edificios anteriores ao abalo -de 1755 estão de pé; alguns palacios aguentaram as suas linhas, e o -labyrintho das viellas de Alfama conserva a planta medieval. - -Mas basta olhar as paredes mais antigas do Carmo e da Sé para perceber -pedras de anteriores construcções, fragmentos de lettreiros e lavores, -empregados na enxilharia ordinaria. Na vetusta parede norte da Sé ha -pedras mettidas no muro que mostram lavor bysantino. No Carmo bocados -de campas com lettreiros em gothico, em diversos pontos do edificio, -estão empregados como pedra vulgar de construcção. É raro encontrar nos -arrabaldes de Lisboa pedras de antigo lavor, da idade média, do ogival, -mesmo da primeira renascença no seu logar; Odivellas é uma excepção, -assim como o casal da Quintan com o seu muro de ameias. É preciso ir -a Cintra, a Torres Vedras, a Santarem para vêr algo antigo de certa -importancia. - -Na ultima folha de pergaminho do codice n.ᵒ 61 da collecção alcobacense -da Bibliotheca Nacional de Lisboa um monge deixou noticia do grande -abalo de 24 de agosto da era de Cesar 1394 (1356); fez grandes estragos -prostrando castellos e torres em muitos pontos do paiz; em Alcobaça a -egreja soffreu muito, no mosteiro houve ruinas, e cahiram muralhas do -castello. Foi ao pôr do sol. - -Outro monge na mesma pagina escreveu a memoria do terremoto de janeiro -de 1531; por mais de 15 dias sentiram tremer a terra; mas no dia 26, -antes do nascer do sol, foi o grande tremor; conta que em Lisboa houve -grande estrago; no mosteiro houve muita ruina, não escapando a parte -superior do claustro. - - * * * * * - -O abalo de terra de 1755 foi violentissimo, mas escriptores e artistas -ainda lhe augmentam as culpas. Este terremoto e a invasão dos francezes -são motivos fundamentaes para explicar o desapparecimento de muita -cousa, uma rica mina para encobrir o desleixo, a estupidez, a mania de -estragar que é muito da raça portugueza. - -No tomo 3.ᵒ da==_Collecçam Universal de todas as obras que tem sahido -ao publico sobre os effeitos que cauzou o terramoto nos reinos de -Portugal e Castella no primeiro de novembro de 1755_ (Bibl. Nac. de -Lisboa, Gabinete de livros reservados), ha alguns opusculos de polemica -sobre a grandeza da tremenda catastrophe: ==_Carta em que hum amigo dá -noticia a outro do lamentavel successo de Lisboa_==Está assignada por -José de Oliveira Trovão e Sousa (1755). - -==_Resposta á carta de José de Oliveira Trovam e Sousa em que se dá -noticia do lamentavel sucesso de Lisboa._ É de 1756; assignada por -Antonio dos Remedios. - -==_Verdade vindicada ou resposta a huma carta escrita de Coimbra._ Por -José Acursio de Tavares (Lisboa, 1756). De taes escriptos conclue-se -que o terremoto destruiu bem a terça parte de Lisboa e que o incendio -que se lhe seguiu foi terrivelmente devastador; mas fóra da area de -grande intensidade do abalo, e além do espaço que o fogo alcançou, -muitos predios, bastantes palacios, grandes arruamentos ficaram salvos; -agora é bem raro encontrar uma frontaria, uma janella, uma grade de -varanda anterior ao terremoto. No final do seculo XVIII e no seculo -XIX a transformação foi completa; basta a vulgarisação da vidraça e -o desapparecimento da rotula para modificar o aspecto da cidade. Em -povoações onde o terremoto não foi tão destruidor, apenas se sentiu, -a transformação foi analoga. É que na verdade o portuguez é bem -fraco conservador. Aqui pelos arrabaldes de Lisboa direi mesmo que é -destruidor. Por isto eu dou toda a attenção ao que me parece antigo, me -demoro com o anterior ao seculo XVIII, e quasi pasmo quando me surge um -fragmento do seculo XVI. - -Folheando qualquer _Illustração_ estrangeira se vê o carinho, o amor -com que em paizes muito mais atormentados que o nosso se guardam -antigos edificios, casas particulares de aspecto artistico, objectos de -uso vulgar consagrados pela idade, qualquer cousa que seja documento -do antigo viver. Os terremotos são damninhos, mas a indifferença, o -desleixo, a ignorancia são grandes causas de destruição. - - * * * * * - -Este caminho entre varzeas ferteis, arvoredos mansos, collinas de -grandes curvas com terras de semeadura e verdes pinhaes, por onde -vamos encontrando gente do campo, scenas da vida popular, é a via -tragica na historia de Portugal, brados de victoria e rumores de -desespero, marchas de tropas em dias de lucta, por aqui passaram entre -estas paisagens que só lembram agora frescas aguarellas; patuleias e -cartistas; miguelistas e pedristas, columnas de Junot e de Wellington; -castelhanos que vieram cercar Lisboa, portuguezes voltando de -Aljubarrota; e provavelmente cavalleiros de Affonso Henriques, e dos -mouros, dos godos e dos romanos; porque é esta a estrada que leva a -Lisboa, a antiga e nobre cidade, o grande porto maritimo. - -Na ida para o Correio-Mór, perto da Povoa de Santo Adrião, reparei em -certa pedra lavrada de aspecto raro; na volta parei e fui vê-la; é - - -_Uma ara romana._ - -Ha um poço coberto, encravado no muro, a poucos metros da estrada; -sobre um pequeno arco um nicho com a imagem de S. Pedro; perto um -poial, alto, e no chão uma pedra lavrada, com funda cavidade. É um -parallelepipedo de oito decimetros de comprido, por tres de altura, -proximamente, de pedra vidraço; um cordão de forte relevo divide os -lados em duas fachas; na superior um lavor geometrico, curvas em grega -torneando saliencias circulares; na facha inferior quatro rosas entre -curvas symetricas. Creio que é uma ara romana. Salvou-se junto da fonte -d’agua com virtude, guardada pela tradição. Por aquelles sitios teem -apparecido antiguidades romanas, ainda que são muito menos numerosas -as inscripções que nos arredores de Cintra. Como esta pedra lavrada -atravessou intacta tantos seculos, n’este paiz de estragados! - - * * * * * - ---Versos novos?! - ---Umas liras! diga já, frei Simão! - -Estavam no jardim, na meia laranja da cascata, á sombra do platano -alteroso. Linda manhã de junho. Era o dia anniversario da senhora -morgada; visitas de Lisboa animavam o palacio. A missa tinha sido -ás 7, e o almoço terminára ás 9. Alguns dos senhores partiram para a -tapada, outros para o picadeiro vêr os dois cavallos novos que o conde -trouxera de Sevilha. - -O apparecimento de frei Simão, frade jeronymo, que viera de Belem em -ruidosa e balouçante caleça, foi saudado com alvoroço; o frade tinha -sempre a contar anecdotas facetas, algumas muito repetidas mas que -elle contava com certa graça, e noticias da gente palaciana, sempre -saboreadas com delicia. - -Frei Simão avançou devagar, até perto da morgada, muito serio, fez uma -cortezia reverendissima, e recitou o soneto de parabens pelo feliz -anniversario; era composição nova; vinha escripto em primorosa lettra -num papel, com sua inicial floreada, enrolado e atado com fita de seda -branca. - -Depois deixando o tom ceremonioso, pondo-se muito risonho, annunciou os -versos novos, umas _sonóras_, não umas _liras_... - ---Diga, diga. - ---É a segunda vez que as leio... - ---E nós a julgarmos que tinhamos a primicia... - ---A primeira vez só uma pessoa, alta pessoa, as ouviu. Por isto posso -dizer a primicia. - ---Quem seria a alta pessoa? - ---Eu digo, senhora morgada; foi el-rei que Deus Guarde. - ---Bravo! foi ao Paço? teve audiencia? - ---Foi na rua, antes na estrada. El-rei viu-me passando pela estrada de -Pedrouços; mandou parar o coche. E bradou-me: - ---Então, oh! Santa Catharina, fizeste a resenha? - ---Sim, meu senhor, e está em verso; ia levá-la a Vossa Real Magestade. - ---Não precisas ir mais longe; dize lá. - -Acheguei-me á porta do coche e li os versos. Eu já me sentia acanhado -porque a lira é comprida, e o coche ali parado na estrada. Mas el-rei -D. João V gosta de versos jocosos; não imaginam como elle ria. - ---E como soube elle que Vossa Reverencia fizera a lira? - ---Ora, foi assim. Em Belem, no nosso mosteiro, pela festa de S. -Jeronymo, costuma haver lauto jantar, com convidados; ao jantar da -casa, jantar de festa, juntam-se muitos presentes; enche-se o grande -refeitorio; o d’este anno foi estrondoso. El-rei soube e encontrando-me -ha dias em palacio, disse-me para lhe fazer a noticia dos pratos; e eu -puz a lista em verso; fiz a lira! - ---Diga, diga. - ---Eu começo; frei Simão de Santa Catharina collocou-se em frente das -damas; limpou lentamente a fronte, a bocca e o nariz com o lenço -cheiroso a agua de rosas. - - _Monarcha Soberano - Pois Vossa Magestade assim me ordena - O jantar deshumano - Irá cantando a Musa pouco amena - E em ser só se verá que foi diverso - No refeitorio em prosa e aqui em verso._ - -A lira vae descrevendo o grande refeitorio, o adorno das janellas -com estatuas, festões, grinaldas de flores naturaes, os aparadores -carregados de pratas, o chão atapetado de flores. - - -_Estava o refeitorio num brinco._ - -Em cada logar da vasta meza havia os _appetites_, as pequenas iguarias, -com seus adornos. - - _Cobria o cuvilhete - um papel retalhado, com acerto - que inda que pequenete - como grande queria estar coberto. - Na marmelada vinha, guaposito - guarnecido de flores um palito. - Em cada assento havia - garfo, faca, colher e guardanapo - dois pães, com bizarria - melancia excellente, melão guapo - figos, uvas, limões, pecegos, peras - sem graça, o cesto enchiam, mui devéras. - A ilharga da salceira - um bom tassenho de presunto havia - tão magro e tão lazeira - que a mim me pareceu ser porcaria - tambem tinha azeitonas e alguem disse - que foram d’Elvas._ - -Estes eram os appetites que adornavam os logares dos commensaes. Agora -os pratos. - - _Foi o primeiro prato uma tijella - cheia em demazia - de caldo de gallinha com canella - que da gallinha trouxe a propriedade - porque o caldo tinha ovo na verdade. - Foi o segundo prato - uma bem feita sopa á portuguesa - que dava de barato - O filis e o primor que ha na franceza._ - - * * * * * - - _Por algum grão delito - foram muitos perús esquartejados - uns vêm com sambenito - outros vinham sómente afogueados._ - - * * * * * - - _Outro prato de assado - que era lombo de vacca mui tenrinho. - Comia afadigado - outro leigo mui gordo meu visinho - rollos e pombos ensopados._ - -Seguiram-se as frigideiras com linguas e miolos. Os coristas que -serviam á meza eram muitos e andavam lestos. Appareceram as _empanadas -inglezas_; tinham: - - _Ade, perdiz, gallinha, frangalhada - E disto vinha a olha enchouriçada. - Apoz isto algumas doze tortas._ - - * * * * * - - _Cinco ou seis pratos de ovos - De pão de ló por dentro recheados - Outros mal entrouxados - Outros ovos tambem com corôa regia - De almojavanas conto - A duas mui grandes por cabeça - Em assucar em ponto._ - -Depois d’isto _empada de vitella_ e _arroz doce_. - - _Sinceramente disse aqui a verdade - Falta o perdão de Vossa Magestade._ - -Vem agora a nota no amarellado papel que estou seguindo: - ---_Indo levar o papel a Pedrouços se encontrou el-rei que mandou parar -o coche e parado ouviu ler todo o papel com muito agrado._ - -Mas frei Simão de Santa Catharina esqueceu-se de uma cousa, e o padre -geral quando viu o papel reparou logo, e zangou-se; obrigou o frade a -fabricar mais versos e a levar o supplemento a el-rei. - - _O caso é que na salceira - me esqueceu de meio a meio, - com o presunto e azeitonas - pôr um pedaço de queijo._ - - * * * * * - - _Pois vá, faça outros, e ponha - (me disse o Geral severo) - que não quero que diga el-rei - que não dei queijo framengo._ - - _Saiba Vossa Magestade - que tambem queijo tivemos - noviços e sacerdotes - coristas e frades leigos._ - -A _lira_ de frei Simão Antonio de Santa Catharina foi muito gabada e -applaudida. - ---É uma delicia! - ---Um verdadeiro appetite, faz vontade de comer. - ---Diga outra vez, e muitas damas insistiam no pedido. Mas a condessa -observou: - ---Tenham caridade, isso é incommodo para Sua Reverencia. Ainda se não -lembraram de mandar vir um refresco. - -Veiu logo um creado com bandeja de prata com bolos e marmellada de -Odivellas; outro creado com licor de tangerina e canella, e um copo de -limonada. Voltaram os senhores, fez-se grande roda, e entre risos e -_ós_ admirativos repetiu-se a leitura dos versos. - ---Percebe-se logo que frei Simão é um academico. - ---E de varias academias. - ---Da Anonyma sei eu, por ser lá meu confrade. - ---E da Portugueza. - ---E da Escholastica. - ---É verdade, frei Simão, deve saber, ora se sabe, houve eleição renhida -em Odivellas; muita gente, e da mais alta se interessou na eleição da -nova abbadessa. - -O frade contou o que sabia dos bilhetes, dos pedidos, das ordens, das -promessas ás freiras eleitoras; foi uma bulha que durou mezes. - ---E não fez versos ao caso? - ---Isso merecia liras e sonóras. - ---É verdade que fiz, não nego e a prova é esta; aqui está a sonóra; e -do largo bolso tirou um papel. - ---Leia! leia! - ---Vou começar. - - Os enredos, as bulhas, as trapaças - Os enganos, os medos, os temores - Os ardis, as astucias, as negaças - Os agrados, os risos, os amores; - As trombas, os focinhos, as caraças - As furias, os raivassos, e os rancores - Que houve em certa eleição com forte espanto - Darão materia a nunca ouvido canto. - -E segue a sonóra n’este tom, narrando os episodios da eleição da -abbadessa, no então revoltoso convento de Odivellas, ninho de -endiabradas freiras. Este frei Simão tem muitas peças poeticas algumas -muito aproveitaveis para o conhecimento de minucias e particularidades -da época. - - * * * * * - -Dias depois de um passeio a Loures e á quinta do Correio-Mór, -appareceu-me um cavalheiro d’aquelles sitios, com quem eu cavaqueara, -e apresentou-me uma porção de papeis velhos, manuscriptos, que me -disse ter encontrado havia annos n’um gavetão da copa monumental do -palacio. Percorri os papeis; pouco achei de curioso ou interessante. -Entre elles vinham poesias do seculo XVIII, alguns sonetos de -anniversarios, dirigidos a pessoas da familia Matta; e uma descripção -de lauto banquete no mosteiro dos Jeronymos de Belem, que me pareceu -bom documento da época, e singular peça poetica. Por isto a transcrevo -em parte. Nos papeis não encontrei nome do auctor. Depois achei n’um -cancioneiro a mesma poesia attribuida a frei Simão Antonio de Santa -Catharina, e até com a mesma nota pittoresca de ter sido lida a el-rei -D. João V, na estrada de Pedrouços. - - - - -Torres Vedras - -Notas d’arte e archeologia - -(1906) - -Paineis antigos em Torres Vedras - - -Em rapida visita que fiz, ha pouco, a Torres Vedras, chamaram-me a -attenção os quadros em madeira, antiga pintura, que vi em differentes -egrejas. - -Torres Vedras foi villa das rainhas, alli viveram familias nobres, -houve paços reaes e casas religiosas importantes. - -Já no seculo XIII as egrejas de Santa Maria do Castello, de S. Pedro, -de S. Miguel e de S. Thiago existiam, como se vê das inquirições de -Affonso III. Isto mostra que a villa era importante já na edade média, -e explica um tanto a existencia de um numero relativamente consideravel -de pinturas antigas. Só mencionarei as que me despertaram mais a -attenção. - -Ha alli pinturas de varios pinceis e épocas, umas anteriores á -renascença, algumas do inicio d’essa época, outras do meiado do seculo -XVI. - -Na egreja de Nossa Senhora do Amial vi quatro quadros grandes, -representando S. Paulo, S. Pedro, S. Lourenço e S. Sebastião. - -Na sacristia de S. Pedro estão tres quadros em madeira; um d’elles, a -Annunciação, muito lindo e em bom estado. - -Na egreja, sobre o arco do cruzeiro, está um painel grande, -representando S. Pedro, retocado modernamente. - -Na egreja da Graça, na segunda capella á direita, seis quadros -pequenos, um tanto sujos mas não arruinados; muito interessantes. - -Ha um pouco de renascença nas construcções, voltas redondas nas -arcadas, apenas. - -Figuras principaes sem ornatos, mas as secundarias vestidas á época, -grandes e plebeus, damas da côrte, mulheres humildes, com os seus -trajos proprios, muito minuciosa e galantemente indicados. - -Representam: o Presepe, Adoração dos Reis, Annunciação, a Virgem e -Santa Isabel, S. José e Nossa Senhora, o Transito de Nossa Senhora. - -Os rostos, muito finamente tocados, parecem retratos, nos vestuarios -não ha phantasias, o pintor reproduziu o que tinha á vista; mesmo -o agrupamento, a composição dos quadros, agrada. Tem um lindo tom; -limpando um pouco, com o lenço humedecido, um cantinho de uma d’estas -pinturas appareceu logo o tom de esmalte que, infelizmente, tantos -outros perderam. - -Esses seis quadrinhos são bem notaveis. - -Na capella-mór da egreja do Varatojo vi quatro grandes paineis, bem -conservados: Annunciação, Jesus resuscitado, Adoração dos Reis e -Adoração dos pastores. Devem ser parte de uma série. Não lhes vejo -relação com as séries do Museu de Bellas-Artes. - -Na ante-sacristia, o Presepe, quadro pequeno; na sacristia, um Milagre -de Santo Antonio e a Descida do Espirito Santo, paineis de grandes -dimensões e em bom estado. - -Em Santa Maria do Castello ha pinturas antigas em madeira, no corpo da -egreja e na sacristia; estes ultimos são quadros menores, representando -os episodios classicos da paixão; soffreram retoques pouco felizes; o -que nelles mais padeceu foi o colorido. - -O desenho das figuras; o aspecto, merece nota; tem um tom archaico; -lembraram-me muito umas pinturas que existem no Museu das Janellas -Verdes, em que os bigodes apparecem meio-rapados e as barbas com um -córte especial. - -Todos estes paineis, que vi em Torres Vedras, me parecem de origem -portugueza, com ligeiras, attenuadas reminiscencias de influencia -flamenga, e com pequena parte, ou nenhuma, do renascimento; por isto os -achei importantes para a historia da pintura portugueza. - - -O Tumulo dos Perestrellos - -A egreja parochial de S. Pedro de Torres Vedras tem a sua porta -principal voltada a poente, como todos os templos antigos, medievos, da -interessante villa. Essa porta é muito ornamentada em estylo manuelino; -sobre o arco assenta um escudo bipartido com armas do rei e da rainha. -Em dois arcos do cruzeiro ha tambem ornamentação no mesmo gosto, mais -singela. A egreja tem tres naves, a central é coberta de madeira -apainelada, com as molduras pintadas e douradas. As naves lateraes -conservam ainda trechos de antigas abobadas com artezões. Parte das -paredes está vestida de azulejos brancos e verdes, em uso nos seculos -XVI e XVII. Ha em varios pontos da egreja e capellas outros typos de -azulejo de épocas mais modernas. - -Alguns quadros pintados em madeira, antiga escola portugueza, outros -em tela, na egreja, na sacristia e na annexa casa dos clerigos pobres; -algumas esculpturas religiosas, especialmente a estatueta de S. Pedro -d’Alcantara, merecem attenção. - -No cruzeiro, á direita, está um elegante ediculo com uma urna sepulcral. - -É no mesmo estylo da porta principal. O ediculo é em pedra da -localidade, que é rija, resiste bem ao tempo, e toma, no passar dos -seculos, uma côr amarella torrada, agradavel á vista. A urna é em -jaspe, em fino trabalho. - -Sobre bases facetadas erguem-se columnas que sustentam arcos -concentricos; ha uma facha muito lavrada, de folhas e flores, com um -pequeno busto em baixo relevo, imitando medalha, que parece um retrato; -mostra a cabeça coberta com um capacete um tanto raro. Busto egual se -vê na porta da egreja. - -No ediculo as columnas e arco exterior representam troncos arboreos -cingidos por fitas. - -A urna pousa sobre leões de inferior trabalho. Na face anterior tem o -lettreiro e aos lados o brazão, repetido, dos Perestrellos. - -N’esta urna estão os ossos de João Lopes Perestrello e de sua mulher -Filippa Lourenço. Este homem foi fidalgo da côrte de D. João II. Foi -para a India, capitão de uma nau, na armada de Vasco da Grama, em 1502. -É um dos vultos d’essa notavel familia que tantos homens produziu que -bem serviram o paiz em Ormuz, em Malaca. Um filho d’elle, Raphael -Perestrello, andou na descoberta da costa da China, e esteve nas -Moluccas. Outro filho jaz na mesma egreja de S. Pedro; sob uma campa -enorme, de mais de dois metros de comprimento, com um lettreiro em -gothico:--Aqui acerqua de seus quyrydos pais he mai Antonyo Perestrelo -seu filho escolheo casa para sempre.-- - -É bom typo de familia d’aquella época; as grandes aventuras, as -viagens ultramarinas; uns ficaram nos mares ou nas guerras, outros -voltaram ricos, fizeram morgados, e arranjaram na egreja da sua terra -uma capella para eterno descanço. - - -Capiteis romanicos - -Na egreja de Santa Maria do Castello, em Torres Vedras, vi dois -capiteis romanicos na porta principal, que olha para o poente. O -templo tem soffrido reconstrucções, todavia as linhas principaes são -as primitivas. Os portaes, de volta redonda, estão nos seus logares de -origem. Aquella silva que orna a parte superior dos capiteis, formando -um friso, repete-se aos lados da porta que diz para sul. Os capiteis -são de calcareo muito rijo, trabalho ingenuo, relevo fundo; pouco teem -soffrido do tempo. São decorativos e symbolicos; o esculptor quiz -representar motivos do Cantico dos canticos; é o lyrio dos valles, -a pomba do rochedo, a maçã entre a folhagem agreste; as comparações -amaveis feitas á Sulamite, que a egreja christã adoptou. Obra d’arte, -da alta edade média, é isto o que resta n’esse templo, alvejante entre -oliveiras, aninhado entre as muralhas vetustas, cubélos e quadrelas -negras do castello. - -Faz-se alli festa religiosa em 15 d’agosto, porque parece que foi -n’este dia que D. Affonso Henriques tomou a villa aos mouros, em 1148. -Ainda no começo do seculo XIX, na noite do dia 14, vespera da festa, -faziam grandes fogueiras no adro e por entre as ameias. - -Perdeu-se a usança pittoresca, ante esta onda de semsaboria que vae -estragando tudo. - -Os priores d’esta egreja eram capellães d’el-rei; varias rainhas foram -padroeiras e lhe fizeram donativos. - -D. Beatriz, mãe de D. Diniz, residiu em seu paço, que ficava proximo. É -difficil hoje achar vestigios de paços reaes, ou de quaesquer edificios -muito antigos em Torres Vedras. Ahi residiram por largas temporadas -reis e rainhas, por duas vezes se reuniram côrtes, no seculo XV, e -quasi nada d’essa época se encontra na villa. Tem soffrido muito com -os terremotos; a parte baixa está visivelmente muito soterrada; isto -explica em parte o desapparecimento de antiguidades na historica e -interessante villa. - - -Ermida e forte de S. Vicente - -A ermida de S. Vicente fica a norte de Torres Vedras; cousa de tres -kilometros do centro da villa ao alto da collina. Chega-se á varzea -arborisada do Amial, passa-se o rio Sizandro, a ermida de Nossa Senhora -do Amial, e do adro d’esta ermida parte uma vereda que vae trepando -pela vertente, e dando volta, de modo que offerece vistas variadas da -villa, que tem bonito aspecto, do seu vetusto castello, conjuncto de -paredões, muralhas e cubellos ennegrecidos pelo tempo, e da multidão -de collinas, quasi todas vestidas de vinhedos viçosos, salpicadas -de casaes. O cume de S. Vicente está bastante superior ao castello, -e ás collinas proximas, dominando largo terreno. Depois do corpo de -S. Vicente entrar na sé de Lisboa houve milagres varios, e um dos -devotos favorecidos foi um homem de Torres Vedras que lhe edificou uma -ermidinha em agradecimento. É certo que no começo do seculo XIII já -alli estava uma ermida; tão certo como não estar lá, á vista, um unico -lavor ou lettreiro, nem do seculo XVII. Mas ha documentos; e bocados de -pergaminho bem guardados duram mais que alvenarias expostas a pilhagens -e bombardeamentos. - -Na ermida venerava-se uma imagem de S. Vicente, agora na pequena egreja -do Amial, e ha tradição de grandes festas que o povo torreense ahi -celebrava. Arruinou-se, reconstruiu-se, e voltou o abandono; agora -dormem alli pastores e cabras; se lá estão ainda algumas cantarias é -pela difficuldade do transporte. - -Termina a vereda n’uma passagem empedrada sobre um fosso, vê-se ainda -bem o relevo da trincheira entre arbustos e silvados, depois a ermida -toda em ruina e esburacada; a capella redonda tem uma pequena cupula -de ar mourisco; junto da ermida havia casebres, casa do ermitão e -albergue de romeiros; telhados cahidos, montões de entulho; silvados -e carrasqueiros bravios; depois da ermida um planalto talvez de 60 -metros de diametro, ahi dois moinhos de vento antigos, em ruina; em -volta quatro grandes espaldares erguidos, de 2 metros de altura, por -10 de comprimento; na borda do planalto as baterias, os reductos; as -canhoneiras ainda com o pavimento lageado, os perfis em alvenaria -solida; reconstitue-se ainda perfeitamente a celebre fortificação. - -Todos teem ouvido fallar das famosas linhas de Torres Vedras que -defenderam Lisboa contra a invasão franceza do commando de Massena. A -primeira linha fortificada dividia-se em tres districtos: 1.ᵒ Torres -Vedras, 2.ᵒ Sobral de Monte Agraço, 3.ᵒ Alhandra. - -Dois pontos estavam especialmente fortes, eram os _fortes grandes_, S. -Vicente, e o da Serra do Arneiro. - -O de S. Vicente tinha 39 canhoneiras, e estava artilhado com 23 peças -de calibre 6, 9 e 12, e mais 3 obuzes. Podia abrigar 4:000 homens. Além -dos reductos vejo uns vallados afastados para norte que me parecem -pequenas trincheiras para abrigo de atiradores. O ponto era, e é ainda, -importantissimo porque descobre os caminhos em grande extensão. - -Outros fortes menores se agrupavam a este, formando um conjuncto -respeitavel; nas grandes collinas de Olheiros, Outeiro da Forca, Sarges -(outros dizem Ságes) e Ordasqueira havia reductos; formavam um campo -fortificado. - -Em dezembro de 1846 encontraram-se em Torres Vedras, tropas do Bomfim -com as de Saldanha, houve combate sanguinolento, com episodios -terriveis, no dia 22; Saldanha tomou o forte de S. Vicente: Bomfim -encurralou-se no castello, e começou a atirar para lá com a sua peça e -o seu obuz; e esburacou a ermida. Na varzea do Amial houve encontro de -cavallaria, e a de Saldanha, muito superior em numero, acutilou ahi, -mesmo no adro da ermida, a da Junta do Porto. - -Ahi n’esse adro do Amial, estão enterrados setenta e tantos cadaveres -dos fallecidos em combate, na lucta brava da cavallaria, e no ataque de -S. Vicente. - -Depois da batalha, a ermida ficou em ruina, a villa soffreu immenso, e -ninguem pensou mais em concertar o templosinho. - -Trouxeram a imagem de S. Vicente, que escapou á batalha e ao -bombardeamento para a ermida do Amial. E lá está, muito tristinha e -abandonada, n’aquelle interessante templosinho, ao pé de outra imagem -historica, a da Senhora de Rocamador. Merecia a pena dar alguma -attenção ao Amial, e tornar mais facil a vereda para S. Vicente; é um -dos melhores passeios nos arredores de Torres Vedras, a vista é linda, -e é um d’estes sitios raros onde se allia a bellezas naturaes o encanto -de recordações da historia patria. - - -Imagens de Santos - -Pouca attenção se tem prestado entre nós ás imagens religiosas; -refiro-me a dois pontos de vista, artistico e archeologico. No Museu -das Bellas-Artes e no Carmo poucos exemplares ha. É preciso examinar as -egrejas, para descobrir um ou outro trabalho interessante. - -É enorme a quantidade de imagens de santos ainda existentes, atravez -diversas causas de destruição; tem havido modas tambem na estatuaria -religiosa; as imagens do renascimento fizeram pôr de parte as mais -antigas que pareciam rudes; as luxuosas estatuetas á hespanhola, de -roupagens agitadas todas bordadas a ouro, foram vencidas pelas á -italiana, mais artisticas e expressivas. - -Imagens gothicas de gesto solemne, hirtas, de vago olhar, esculpidas -em pedra, vieram até nossos dias; em quasi todas as sés ha imagens de -Nossa Senhora, do seculo XII. A da Sé de Evora com o seu collar e fita -pendente que parece formada de moedas romanas, as cercaduras bordadas -do vestuario, os sapatos de bico, tem ares de uma rainha medieval. - -No claustro da mesma sé ha estatuas de santos, e o apostolado no -portico, dos seculos XIII a XV. - -Do renascimento, com anatomia estudada, posição ao natural, temos um -exemplar esplendido no celebre S. Jeronymo, que está no cruzeiro de -Santa Maria de Belem. - -Seguem-se as estatuetas em madeira com lavores a ouro sobre fundo -preto, ou vermelho, o estofado, genero que foi muito empregado em -Portugal. - -Dos italianos, largas roupagens, cabeças de expressão, attitudes -artisticas, _póses_ estudadas, ha modelos mui significativos na antiga -egreja dos Barbadinhos onde actualmente está a parochial de Santa -Engracia. No seculo XVIII a estatuaria religiosa segue a corrente da -época; no seculo XIX, a meio, começa a esculptura franceza a dominar -com as suas fórmas gentis; vem a imagem fina, bem gravada, suavemente -colorida; vem a elegante estatua da Salette, depois Lourdes, a fina -dama, de cabeça pequena, fórma esguia, expressão de sonho. Nos templos -agora por toda a parte domina a estatueta de gesso, e a oleographia -franceza; o lindo santo risonho e muito penteado, a gentil santinha -branca, a pretenciosa oleographia na sua moldura de baguette dourada. -O Senhor dos Passos, de tez livida, negros cabellos, olhar severo, -passaria de moda, se não estivesse firme em antiga tradição. - -Na iconographia religiosa ha, atravez as idades, séries determinadas, -e assim se póde vêr como os artistas de varias épocas executaram as -figuras de Jesus Menino, ou imaginaram os rostos de anjos e seraphins. - -Quando ha pouco se agitou a questão do santo sudario de Turim viu-se -bem onde póde chegar o interesse d’estes estudos; n’este caso á origem -da pintura, e dos seus processos. - -Certas imagens, por exemplo, Senhor dos Passos, Senhor Morto, são, -na grande maioria, da mesma época; outras são de todas as épocas, -a Virgem, o Crucificado, Jesus Menino. Póde reunir-se uma série de -imagens da Virgem do seculo XII para cá. E assim do rosto e cabeça -do divino Nazareno. É interessante vêr como os artistas, atravez os -tempos, trataram de interpretar o aspecto do sublime mestre. - -Ha pouco, n’uma estação de banhos dos Cucus, tive occasião de passeiar -por Torres Vedras, e andei pelas egrejas a vêr esculpturas e pinturas, -inscripções, velharias. - -A imagem da Senhora do Sobreiro, no Varatojo, é antiga; segundo a -tradição é do seculo XII; póde ser, e todavia não me parece tão antiga -como a da Sé de Evora, ou a de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães (a -primitiva imagem). - -Na egreja de S. Pedro vi a imagem de S. Pedro d’Alcantara; rosto, -garganta e mãos bem esculpidas, expressão de fervor na oração, -arrebatamento; roupagem larga, em grandes pregas; no todo uma estatua -elegante, que prende a attenção; talvez de artista italiano. - -Na egreja da Graça reparei mais nas estatuas de Santa Monica e Santo -Agostinho, que estão em nichos no grande retabulo de obra de talha, do -seculo XVII, interessante exemplo de transição do estylo classico para -o rococó usado na época de D. João V. - -N’essas estatuas de Santa Monica e Santo Agostinho o estofado, ouro -sobre branco e vermelho, é accentuado por fino relevo, que dá ás vestes -aspecto opulento; a esculptura é muito correcta. - -A estatua de S. Gonçalo de Lagos, na sua capella, é elegante: o -santeiro fez-lhe a cabeça um tanto pequena, e a cintura delicada; a -roupagem está bem lançada. - -Na Misericordia dei mais attenção ao Senhor Morto, porque me parece o -mais antigo que conheço; não se repare na encarnação; é uma estatua -rigida, hirta, feita com certa rudeza mas com attenção. Parece-me -anterior ao seculo XVI. - -Em Santa Maria do Castello vi esculpturas boas: um Jesus Menino bem -notavel e antigo. - -E mais antigas ainda me parecem algumas imagens que vi na ermida da -Senhora do Amial, a Senhora do Ó, o S. Vicente, e especialmente a -Senhora de Rocamador talvez do seculo XIII. - -Será bom reparar n’estas obras d’arte, mórmente agora por causa da -invasão franceza de estatuetas e oleographias baratas. - - -Uma cadeira do seculo XV - -A pouca distancia, uns tres kilometros, a poente de Torres Vedras -fica o convento do Varatojo; é um bonito passeio a pé, atravessando -a varzea, e subindo lentamente a vereda, descobrindo successivamente -aquella região de serras e cabeços, em grande parte vestida de -vinhedos, agora n’este mez d’agosto, mui viçosos. - -Em trem, o caminho é mais longo, por causa de grande rodeio, seguindo -pelo campo do Amial, onde ha uma ermida muito antiga e interessante, -cortando depois os campos do Paul, e subindo a encosta por estrada -um tanto ingrata; a estrada nova cheia de covas e poeira, a antiga -coalhada de calhaus. - -No convento vi a porta ogival da egreja, tendo aos lados as armas de -Portugal, e o _rodizio_ emblema adoptado por Affonso V; o claustro, -bem conservado; os portaes da casa chamada dos retratos que são do -tempo de D. Manuel; a torre dos sinos de ventanas ogivaes, assim como o -portal de um pateo interior; vi pinturas em madeira, um frontal de seda -bordada de origem italiana, me pareceu, e, n’uma pequena dependencia da -sacristia, entre variados objectos, uma cadeira extraordinaria! - -É tradição antiga ter esta cadeira servido a D. Affonso V, quando -visitava aquella casa. Como me disseram que ninguem a desenhara eu -tirei um rapido esboço. Póde ser de Affonso V, e até anterior; é em -carvalho, e está menos mal conservada; algum caruncho, mas mostra-se -ainda nitido o relevo decorativo; lembra logo o estylo da Batalha. É -uma cadeira do seculo XV, uma joia do mobiliario portuguez. No _Havard_ -[2] vem o desenho de um exemplar quasi egual; cadeira de armario ou -cofre, de braços, espaldar direito, ornamentação ogival, exactamente -como no esplendido movel do Varatojo. Lá se tem conservado a veneravel -reliquia e está lá muito bem, ligada pela tradição historica, mas seria -bom fazer uma reproducção para o Museu das Bellas-Artes, onde abundam -os exemplares de mobiliario portuguez, formando séries importantes; mas -falta aquella cadeira--avó, unica, segundo creio, em Portugal. - -[2] _Dictionnaire de l’ameublement et de la décoration._ - - -Brazões da Villa - -Vi em Torres tres brazões antigos: - -O da Fonte Nova tem a data 1529. - -O que está na escada da Camara Municipal tem a data 1518. - -O do chafariz dos Canos é muito mais velho, singelo e hieratico, sem -ousadias decorativas; creio que é do seculo XIV. - -O da Fonte Nova apresenta duas torres ligadas por um panno de muralha -com sua porta: torres de tres andares, com ameias, frestas para jogar -virotes e béstas, terminando em cobertura pyramidal, com sua bandeira -quadrada e uma estrella sobre a bandeira; entre as torres um escudo -real, sem corôa nem castellos, só as cinco quinas com os seus besantes. -Infra a data 1529 entre duas siglas, talvez F e R. - -O que está na Camara mostra duas torres de cobertura conica, ligadas -pela muralha sem porta; tem barbacan, ameias, sobre as torres bandeiras -farpadas, sobre estas, estrellas. - -Sob a barbacan um festão florido, infra um lettreiro: - - Esta casa e quintal - he do concelho - 1518 - -Entre as torres o escudo das quinas. - -O do chafariz dos Canos tem tres torres eguaes, separadas entre si, uma -a meio do escudo mais acima, duas aos lados d’esta, mais abaixo. Cada -torre sua janella de volta redonda, e quatro ameias; a ameia formada -por um dado ou cubo, sobre este uma pyramide de base quadrada excedendo -muito a face do cubo. - -Na fonte está outro escudo com o brazão real, as quinas collocadas á -antiga, as lateraes com as pontas para dentro. - -Este escudo da fonte dos Canos parece-me ser o brazão antigo da villa, -o primeiro, o das _turres veteres_. Depois conjugaram este com o escudo -real, tirando a torre média e mais alta para dar logar ás quinas, ao -que parece no tempo de D. Manuel, o reformador do velho foral, pois que -o brazão que está na escada da Camara tem a data 1518. - - -Archivos - -Camara, Misericordia, Egreja de Santa Maria - -Quando estive na interessante villa de Torres Vedras lembrei-me de -visitar archivos, que é onde se encontram reunidos mais documentos -authenticos da vida local. - -Para alguma cousa ha de servir isto de ler lettras antigas, a -paleographia; porque vêr archivos e cartorios sem os entender é inutil. - -Manuel Agostinho Madeira Torres na--_Descripção historica e economica -da villa e termo de Torres Vedras_--, falla de antigos documentos, e -na 2.ᵃ edição da sua obra os editores deixaram muitas notas em que se -referem a velhos pergaminhos e papeis dos cartorios da villa. - -A vida antiga, as phases sociaes, as instituições, a evolução -historica, tudo apparece nos archivos a quem tiver paciencia de -manusear com attenção codices e avulsos arrumados, quantas vezes -esquecidos, desprezados, tristes, poeirentos, nos seus armarios. - -Agora que tanto se falla de sociologia esses archivos teem ainda -maior importancia; antes os estudiosos procuravam especialmente os -grandes acontecimentos e as vidas dos grandes vultos, attende-se -presentemente tambem á evolução das instituições, ao viver dos povos, -ás manifestações moraes das classes menos brilhantes. Divaguei, -pois, algumas horas pelos archivos de Torres Vedras, e vou escrever, -condensando muito, do que vi. - -Comecei pelo archivo da Camara Municipal, que está installado em -armarios, n’uma casa ampla com muita luz. - -Vi lá uma peça de primeira ordem, o Foral da villa, dado por D. Manuel. - -O primeiro foral foi concedido por D. Affonso III em 1250, e -conserva-se na Torre do Tombo. - -Do foral de D. Manuel está o original em Torres, e bem conservado, -lindamente escripto em pergaminho. - -Percorri tambem alguns livros de actas da camara, bella série que -começa em tempo d’el-rei D. Sebastião. Estes codices são importantes, -porque não se contentaram em lavrar actas, mas incluiram o registo de -documentos de maior significação. Ora o municipio e comarca de Torres -foram de grande importancia em tempos volvidos, com a especialidade -proveniente da preponderancia da Casa das Rainhas. Assim encontrei alli -noticias de Santarem, Alemquer, etc., que não esperava achar; assim, -por exemplo, foi o corregedor de Torres que em 1640 teve o encargo -de regular a segurança e a administração em Cascaes, Alemquer, etc., -terminado o dominio hespanhol. - -Do tempo dos Filippes estão registados muitos documentos sem duvida -valiosos. - -Como se vê, o archivo municipal de Torres contém dados de valor para a -historia do municipio e para a politica geral do paiz. - -E mais, é claro, os que importam á vida municipal, os -economico-administrativos, os que se referem a obras publicas, viação, -preços de generos, etc. - -Visitei tambem o archivo da Santa Casa da Misericordia. - -Se entro sempre com respeito n’um archivo municipal, que é onde está o -documento do homem, rico ou pobre, nobre ou plebeu, entro com veneração -e amor n’um cartorio de Casa de Misericordia: alli está a vida do -pobre, do enfermo, do engeitado, do encarcerado; alli está a meu vêr -a instituição mais gloriosa que tem o povo portuguez. A beneficencia -moderna nas suas multiplas manifestações não attinge a perfeição d’esse -maravilhoso instituto que corresponde perfeitamente ás necessidades -sociaes. - -O livro mais antigo que vi data de 1608. Vi livros de tombos, accordos, -receita e despeza, compromissos, e de enterros. Ha um Tombo grande, -que é um formidavel infolio, do tempo de D. João V. Tem medições de -propriedades urbanas e ruraes que o tornam precioso. N’este volume está -a descripção minuciosa da egreja e Casa da Misericordia, feita em 1730. -No termo de Torres havia hospitaes e albergarias na idade média, no -Amial, Carvoeira, Turcifal, S. Gião, Ribaldeira, Azueira, S. Mamede e -Dois Portos. - -É extraordinario o que se fez em Portugal no ramo de beneficencia -publica, nos primeiros seculos da monarchia. Creio que foi no seculo -XVI, principalmente, que se realisou a concentração nas Misericordias -de todas essas pequenas instituições, albergarias, gafarias, etc. De -todas vi noticias no archivo da Misericordia. - -Finalmente fui vêr, na amavel companhia do Prior, o archivo de Santa -Maria do Castello. Esta notavel egreja, antiga capella real, conserva -ainda o seu archivo! é caso raro em Portugal. Porque os archivos -parochiaes, quasi todos, foram concentrados pelos prelados, e jazem -ignorados nos Seminarios, alguns sem a minima organisação. Este lá -está nas suas arcas velhinhas, conservado e limpinho, amado pelo digno -parocho. Vi lá pergaminhos do seculo XIV, do bom rei D. Diniz, de 1307 -um d’elles, e muitos dos seculos XV e XVI. É bem singular um archivo -parochial com os seus velhos livros, amarellecidos pelo tempo, dos que -nascem, dos que se casam, dos que morrem; dos que passaram n’este mundo -de esperanças, de alegrias, de soffrimentos. - - -No Varatojo - -Na sala do capitulo vi dois lettreiros: - - Aqui descansão - as cinzas do Ven.ˡ - P. F. Antonio das - Chagas. Miss. Apost. - e instituidor deste - Semin.ᵒ faleceu a - 20 de outubro de 1682. - - * * * * * - - Fr. Joaq.ᵐ do Espirito Santo - restaurador deste - Seminario - Fal. em Santarem - 3 d’agosto 1878 - -Na quadra, perto da porta que deita para a matta: - - Aqui jáz Felipa do - Reguo molher de Nuno - de Sampaio... 1530 - -Reparei na egreja nas seguintes pinturas: - - Na capella-mór: - - Annunciação - Adoração dos reis - Adoração dos pastores - _Noli me tangere._ - - Na sacristia: - - Milagre de Santo Antonio. O burro ajoelhado ante a sagrada particula - Pentecostes. - - Na ante-sacristia: - - presepe, pequeno quadro em madeira, de trabalho fino, um tanto - estragado. - - - - -A quadra, arcada e varanda coberta, o travejamento assente sobre -columnellos, está bem conservada. - -Para esta quadra ou pequeno claustro diz uma casa a que chamam dos -retratos, que me parece ter sido uma aula ou casa do capitulo. - -O portal desta casa é em manuelino, de trabalho apurado e em boa pedra; -é uma peça nitida. Nesta casa está uma pintura em madeira, o Calvario. - -A moldura do quadro é de pedra lavrada, tambem em manuelino; pareceu-me -uma antiga porta ou janela aproveitada para alli. - -Estes trabalhos teem intima relação com os portaes de S. Pedro, de S. -Thiago, ediculo dos Perestrellos, etc. Vê-se que em Torres Vedras houve -na primeira metade do seculo XVI artistas trabalhando com methodo e -gosto. - - * * * * * - -A porta principal da egreja do Varatojo é ogival, singela, aos lados -tem brazões com as armas de Portugal e o rodisio de D. Affonso V. - -As ventanas da torre são ogivaes. - -E vi n’uma córte contigua um portal antigo tambem de ogiva. - -Por isto se vê bem que este antigo edificio soffreu reconstrucções. - -A quadra deve ser da primitiva, apezar de não apresentar ogivas; o -travejamento é singular; no todo singelo ha uma pureza, uma sobriedade -que nos incute ideias de paz e recolhimento; como na matta, de vetusto -arvoredo, frescas fontes murmurejantes, e clementes horizontes. - -Bello sitio para dulcificar maguas e socegar corações attribulados. Por -aqui passeou a sua grande dôr e cruel desesperança um rei, D. João II, -depois do desastre de Santarem. - - -Uma inscripção moderna - -Na egreja de S. Pedro, proximo ao pulpito, repousa Luiz da Silva -Mousinho d’Albuquerque, sob campa rasa, com o lettreiro: - - AQVI IAZ - LVIZ DA SIL - VA MOVSI - NHO DE AL - BVQUERQ - QVE FALES - CEO NESTA - VILLA DE TOR - RES VEDRAS - AOS XXVII DE - DEZEMBRO - DE MDCCCXLVI - - * * * * * - - REQ. I. PAC. - -É singular como em Torres e em pleno seculo XIX se lavrou tal -inscripção; mesmo o caracter da lettra é archaico; parece que o -entendido que fez o modelo para o lavor do canteiro poz esmero em -imitar o antigo, e muito antigo. - -Porque n’esta mesma egreja se encontram lettreiros dois seculos mais -velhos sem tantos archaismos. - - -Sinos - -Vi os de S. Pedro. - -Um tem na fimbria _Sanctus Deus_ e o nome Miguel Delmaco. - -Outro: _apprehende arma et scutum_. - -Miguel Delmaco, 1673. - - * * * * * - -Sineta: tem a data 1802. - - -Quinta das Lapas - -A quinta está na branda encosta da serra da Achada. Esta serra e as -outras d’estes sitios são grandes collinas mais ou menos declivosas, de -100 a 150 metros d’altura sobre os valles que as separam. Ás vezes as -faldas das collinas alastram-se, desdobram-se em suaves encostas; em -pontos alargam-se os valles em varzeas ferteis. O monte coroado pelas -ruinas dramaticas do castello de Torres Vedras está rodeado de varzeas -amplas. Nos banhos dos Cucos a chan, onde estão os hoteis, o casino, -o jardim, o edificio das thermas, está cercada de montes de forte -declive, semelhando uma cratéra, quasi completa, rota apenas por breve -chanfro por onde passa o rio e a estrada que leva a Torres, e uma fraca -depressão, mais a sul, que vae ter ao caminho de ferro, na visinhança -dos pequenos tuneis. O terreno de quasi todas estas chans é de alluvião -moderna, feita pelo Sizandro. O solo em que assenta a parte baixa da -villa está hoje metro e meio mais alto que no seculo XVI, o que se -manifesta em antigas construcções muito soterradas. - -As varzes são ferteis e bem cultivadas; nas vertentes agriculta-se -tambem, as vinhas ostentam-se viçosas; pinhaes forram grandes trechos -das collinas, apresentando arvores bem desenvolvidas. - -E bom seria que mais semeassem ou plantassem; um pinhal é util e -agradavel, dá sombra e aroma hygienico; serve a lenha, a rama, a pinha; -a moderna medicina com muita razão recommenda o ar do pinhal, e, tem-se -visto nos ultimos annos, o córte de pinhaes para combustivel, para -construcção, para supportes de galerias mineiras, dá bom dinheiro. - -Até parece que dá saude o aspecto de um pinheirinho verde, de fresco -avelludado, de perfume resinoso. Por isto pinheiro cortado, pinheiro -semeado, e quantos mais pinhaes melhor, por esses montes onde o sol, o -solo e a aragem se encarregam de o alimentar; se elle cresce que é um -encanto até nos areaes da beira-mar onde a rajada do oceano chega a ser -um açoute; porque o bom pinho formoso e hygienico não exige cuidados -de cultura. - -Por entre pinhaes mesclados de algumas vinhas e outras culturas segue -a estrada de Torres para as Lapas; a principio do caminho rompe o -bucolismo da paisagem a massa alvacenta da villa, e o seu outeiro -escuro encimado pelas velhas muralhas do castello, os altos muros -negros da sua alcaçova ou palacio, em tragica derrocada. Faz impressão -aquella ruina; suggere tempos idos, historias mui velhas. - - * * * * * - - Torres mais antiga, já condado, - Por turdulos se crê ser erigida, - Por dote das rainhas, é morgado, - E de muitas já foi favorecida, - O Beato Gonçalo lá enterrado - Por milagres a faz ser mais luzida, - Assim como João a decorou - Nas côrtes que já nella celebrou. - -Como diz o bom e patriota Silveira no _Côro das Musas_. - -Passa uma curva da estrada, e deixa-se de avistar casaria nova e -muralhas velhas; segue o caminho na verde paisagem campesina. - -A estrada é boa, pouco frequentada, com aspectos variados, dominando o -verde pinhal. De subito uma casaria branca de aldeia, uma egreja, e -na encosta o palacio, bem ao sol, com as suas dependencias, os seus -jardins, pomares, vinhas e matta de arvoredo alto. - -Vê-se uma capella de boa construcção e logo uma entrada monumental, de -ampla arcada; entra-se no terreiro; a um e outro lado edificações que -são dependencias do palacio, na frente a fidalga residencia com larga -escadaria e desafogada varanda. Todavia dá logo a impressão de edificio -incompleto. - -Á monumental entrada, á elegante escada não corresponde o edificio -nobre que parece acanhado e por acabar. Houve alteração no plano, -com certeza. A fachada que deita para o jardim é mais harmonica; a -mansarda, os frisos azulejados dão-lhe graça. - -O palacio, dizem, foi erguido pelo primeiro marquez de Alegrete, -Manuel Telles da Silva, conde de Villar Maior. Foi feito marquez -por D. Pedro II em 1687 (v. _Diario de Noticias,_ de 17 de junho de -1902). Provavelmente foi começado, houve demorada construcção, soffreu -alterações; a mansarda será do meio do seculo XVIII; é possivel que a -escadaria seja da época de D. João V. Para admirar seria que nesses -tempos um Telles da Silva, em poucos annos, observando um só plano, -conseguisse erguer um palacio, chamados, como eram, os principaes -da illustre familia, para altos cargos no reino, no ultramar e no -estrangeiro. - -Existe na matta uma capella, incompleta, dedicada a Santo André Avelino -pelo conde de Tarouca, Fernando Telles da Silva, em 1778. E ha, noutro -ponto da matta, uma ermida rustica, com seu alpendre, um pouco mais -antiga. - -No jardim alegretes e assentos são azulejados, representando scenas de -caçadas. - -As salas teem tectos de madeira e rodapé alto de azulejos, como as do -palacio do Correio-Mór, perto de Loures, e as do casal do Falcão, perto -de Carnide, agora felizmente restaurado, segundo ouvi dizer, sob a -direcção do conhecido e estimado architecto sr. Raul Lino. - -Nos jardins vi magnificas hortenses e na matta ulmeiros, pinheiros -mansos, seculares medronheiros, sobreiros veneraveis. O meu amavel guia -disse-me os nomes de algumas arvores, conservados na tradição familiar; -o mais antigo é o sobreiro dos quatro irmãos, assim chamado porque a -pouca distancia do solo o tronco se divide em quatro pernadas reaes, -cada uma d’ellas como uma grande arvore. - -Ha uma fonte de agua ferrea na matta, e outra numa alameda de ulmeiros, -com um grupo em marmore, veado filado por um rafeiro; no outro extremo -d’essa alameda deliciosa fica o jogo da bola. - -Essas salas de grande pé direito, de chão ladrilhado, de lambris de -azulejo, e tectos de madeira, conservando o ar antigo, não estão -vasias ou despidas. Estas, felizmente, teem muito que vêr e respeitar. - -Vi moveis antigos, cadeiras d’espaldar com os brazões de familia, -grandes leitos de pau preto, com torcidos e lavores. - -Os donos da casa fizeram abrir armarios e eu vi desfilar pratas antigas -marcadas; ceramicas e crystaes, porcellanas de Sèvres, de Saxe, da -India e Japão, de verdade e alto valor. Vi um copo de crystal lapidado -com uma vista de Santarem, pintada no crystal, bem interessante: e -um dragão de prata, perfumador enorme, trabalho pouco visto, que me -disseram ser feito em Moçambique. - -Nas paredes retratos de pessoas de familia, e que familia! esta dos -Telles da Silva! É vêr ahi nas genealogias as séries de paginas com -descendencias e arvores de costado mais frondosas que o sobreiro dos -quatro irmãos. Até o venerando D. Manuel Caetano de Sousa escreveu uma -obra em dois volumes (Bibliotheca Nacional de Lisboa. Manuscriptos, -fundo antigo, C-3-16 e 17. N.ᵒˢ 1048-49), a respeito d’esta familia -com o seguinte titulo bem curioso.--_Corôa genealogica, historica e -panegirica da Excellentissima Casa de Tarouca formada do purissimo ouro -dos Silvas, illustrada com a esplendidissima pedraria dos Menezes, -adornada com as augustissimas flores da Magestade, fechada com -elevados semi diademas da Heroicidade, terminada na altissima esphera -da Soberania, consagrada com a sempre venerada cruz da Santidade, -dedicada ao ex.ᵐᵒ sr. D. Estevão de Menezes filho primogenito dos -ex.ᵐᵒˢ srs. condes de Tarouca João Gomes da Silva e D. Joanna Rosa de -Menezes--._ - -Pertence effectivamente a esta familia o celebre Beato Amadeu que tão -grande fama conquistou na Italia. - -Que singular encanto o de ouvir a dona da casa explicando alguns -retratos de familia! Que consolação, neste paiz de gente estragada, -encontrar um ninho conservado! Que rara impressão no conjuncto, -milagroso entre nós, de tantas recordações e tradições, vivas, na -mente, na linha, nas feições, na voz da herdeira lidima! - -A um marquez de Penalva dizia o Tolentino: - - Hontem soube o que podia - Estilo suave e brando - E quanto podeis fallando - Eu o vi na Academia - Nas almas fogo acendia - Vossa discreta oração, - Sobre a minha pretenção - Vos peço que assim oreis, - E que ao principe falleis - Como fallaes á nação. - -Pois ainda está representado na familia o estylo suave e a discreta -oração, louvados pelo poeta. - -Poetas houve tambem nesta familia; poetas e eruditos, homens de -guerra e de diplomacia; na Bibliotheca Lusitana estão inscriptos os -notaveis nas lettras e sciencias. Por estas salas, jardins e bosques -passearam academicos, não faltam sitios para tranquilla meditação. E -no bello terreiro desafogado com certeza se trabalhou na nobre arte da -cavallaria; talvez se corressem touros e jogassem cannas; houve tambem -na familia cavalleiros notaveis, mestres reconhecidos na equitação, -tratadistas na especialidade. - -Porque se chama quinta das Lapas? Ha por aqui algumas lapas, grutas, -cavernas? Parece que houve lapas a que se attribuiam lendas de -mouros. Perto de casa ha uma vinha, um grupo de pinheiros mansos, uma -elevação de terreno de poucos metros de altura; ahi umas cavidades -consideraveis. Parece que em tempos alguem fez excavações; acharam -cacos, louças partidas. Tudo se extraviou. - -Seria uma mamunha? Um d’aquelles tumulos prehistoricos, em que as -sepulturas eram cobertas por um monticulo artificial? Não sei, o que -hoje se vê pouco significa. - -Numa construcção ou pavilhão de fresco perto do jardim fui encontrar -no embrechado que reveste as paredes interiores alguns exemplares de -contas vitreas coloridas de fabrico egual ao das contas de Chellas, da -capella (desapparecida) das Albertas, e da cascata da Quinta do Meio. -Aqui tambem estas singulares contas são acompanhadas de cylindros, -discos, etc., de vidro escuro. Continúa para mim a ser um problema a -proveniencia de taes objectos. - - -O caminho dos Cucos - -Pela avenida ampla, arborisada, chega-se á estação do caminho de -ferro, que nos fica á direita; está á vista o castello ennegrecido -e escalavrado, no seu morro severo destacando entre as collinas; o -caminho passa sob a via ferrea; passa a ponte do Rei, sobre o Sizandro; -vamos entre vinhas e arvoredos; agora a arcada do aqueducto; á direita -uma ermida antiga com umas construcções, ao lado um portão com seus -enfeites; era a albergaria de S. Gião, ou Julião. Lá se conservam -inscripções que nos dizem que os sapateiros da villa no anno de 1359 -(era 1397), construiram o modesto albergue, cuja instituição se -incorporou na Misericordia em 1586. Os confrades de S. Gião ahi ouviam -missa aos domingos. Um respeitador de antiguidades renovou a inscripção -em 1849. - -Pouco adiante, á esquerda da estrada, indo para os Cucos, existe uma -quinta de construcção vistosa, a quinta das Fontainhas, com seu terraço -e jardim, onde se lê um lettreiro, na parede occidental da casa, que -diz: - - Sua Alteza Real - O sern.ᵐᵒ principe o sr. D. João - e a seren.ᵐᵃ princ.ᵃ - a sr. D. Carlota Joaquin - e o sr. infante D. Pedro Carlos - jantaram n’esta quinta - no dia 16 d’outubro - de 1797. - -Este infante D. Pedro Carlos tinha então dez annos. D. Marianna -Victoria, filha de D. Maria I, casou com D. Gabriel, infante de -Hespanha. Deste casamento nasceu o infante de Hespanha D. Pedro -Carlos de Bragança e Bourbon, que foi almirante em Portugal. Nasceu -em Aranjuez em 18 de julho de 1787, e falleceu no Rio de Janeiro a 26 -de maio de 1813. Este infante casou, no Rio, em 1810, com D. Maria -Thereza, princeza da Beira. - -Os banhos dos Cucos são conhecidos de ha muito; a virtude singular -d’esta agua já em épocas remotas attrahia enfermos. - -Ainda existem as casinholas onde se abrigavam os miseros banhistas. - -Hoje as installações hydrotherapicas das thermas dos Cucos são boas, -feitas com largueza, direi mesmo com generosidade. O edificio das -thermas, a casa dos machinismos, o amplo casino, os dois grandes -chalets, e outras construcções, rodeiam um grande rocio ajardinado e -arborisado. A grande obra começou em novembro de 1890; em julho de -1892 já as thermas funccionavam, provisoriamente; em 15 de maio de -1893 realisou-se a inauguração. Todavia não está cumprido o programma -inicial, faltam chalets, e recreios para os banhistas, ou para as -pessoas de familia que acompanham os enfermos. O principal está feito, -e isto deve-se á coragem do opulento proprietario sr. José Gonçalves -Dias Neiva. Á coragem e á generosidade, porque me affirmaram que embora -a frequencia seja grande já, todavia nem 2% rende o capital alli -empregado. - -Como o estabelecimento thermal fica a dois kilometros de Torres Vedras, -muitos banhistas ficam nos hoteis da villa, que são regulares, e em -algumas casas particulares. - -A villa lucra com isto dezenas de contos annualmente, todavia nem o -municipio nem os habitantes se esforçam por tornar a villa aprazivel -aos seus hospedes; nem commodidade, nem distracções; nada que realce -a natural belleza d’aquelles sitios. Bem lindos são os arredores da -villa, convidando a pequenos passeios campestres, mas raras as estradas -que prestem, as de macadam cheias de poeira, as primitivas de barrancos -e pedregulhos. Uma das questões locaes é o abastecimento de aguas -potaveis; esta porém não importa muito aos banhistas, que quasi todos -consomem a agua dos Cucos. Eu não bebo d’outra; faz bem e é agradavel, -com o seu ligeiro sabôr salgado. Liga-se optimamente com o vinho. É uma -excellente agua de mesa que os sãos, não só os enfermos, tomam com -agrado. Melhoram o appetite e facilitam a digestão. - -Esta agua, que tem o maravilhoso lithio, é _muito pura_ segundo a -analyse microbiologica, feita em 1904, pelo illustre chimico Carlos -Lepiérre. - -Os pobresinhos teem tratamento gratuito nos Cucos; a poucos utilisa -esse beneficio porque nos Cucos não encontram albergue ou hospital. -Para isto me parece deveria olhar a Camara Municipal e a Misericordia -de Torres Vedras; proximo dos Cucos um albergue gratuito para pobres -seria um grande bem. E ainda outro de preço muito moderado, uma -hospedaria simples, a simplicidade não exclue o asseio e hygiene, -de alimentação singela e mobilia barata, onde os menos remediados -encontrem agasalho. - -Parece facil, isto. Naquelle chanfro do terreno que liga a grande -varzea dos Cucos ao sitio dos pequenos tunneis do Caminho de ferro -seria facil construir modestos albergues, pequenas moradas de -construcção economica. - -É generoso o coração do sr. Neiva, consideraveis os seus bens de -fortuna, e effectivo o seu altruismo, mas em emprezas destas é bom -interessar differentes entidades, para que se uma esmorecer, outras -continuem a obra, a util obra começada. - -Encontrou o sr. Neiva um ajudante dedicado no dr. Justino Xavier da -Silva Freire, director medico das thermas. É um clinico sensato, -naturalmente lhano, muito accessivel, attencioso aos muitos enfermos. -Que longas narrativas das massadoras enfermidades elle escuta com -delicada paciencia, conseguindo extrahir das confusas exposições a -historia da doença, o fio do caso, os antecedentes do enfermo. Os seus -relatorios annuaes das thermas são muito instructivos e tão nitidamente -escriptos que qualquer cliente os comprehende, aproveitando com a -leitura. - -As aguas dos Cucos são chloretadas, sodicas, bicarbonatadas, -sulfatadas, lithinicas, etc. Encontram os chimicos nellas o brometo de -sodio, o chloreto de sodio, os bicarbonatos de calcio, de estroncio, e -de manganez, o chloreto de magnesio. Pois esta complexidade toda produz -uma agua limpida, muito potavel, agradavel ao paladar. Mas o que lhe dá -virtude primacial é o chloreto de lithia que em 1:000 grammas entra por -0,0212. - -É isto que torna esta agua preciosa para gottosos e rheumaticos. Faz -bem aos intestinos, e combate a obesidade. - - -Casa dos Clerigos pobres - -Junto á egreja de S. Pedro está a casa da irmandade dos Clerigos pobres. - -Tem nas paredes quadros em azulejo que estranhei um pouco pela -composição artistica. São copias de gravuras; o ingenuo pintor até -copiou as assignaturas da chapa - - _Author Claud. Coell. delin. - Fran. Houat. sculp._ - -que significa Claudio Coelho desenhou e Francisco Houat gravou. No -tecto d’esta casa estão pintados em tela os quatro evangelistas. -Acham-se mencionados nas _Memorias de Volkmar Machado_ (pag. 318); são -de Bernardo Antonio de Oliveira Goes. O pae d’este, Manuel Antonio de -Goes, era pintor de figura e pintou muitos azulejos. Vi outras telas -que me pareceram do mesmo pincel na egreja da Graça. - - -O Asylo da Conquinha - -Fica este asylo a breve distancia de Torres, uns vinte minutos de -agradavel passeio a pé. Segue-se a estrada da Varzea, entra-se no amplo -valle, vestido de culturas, arvoredos fructiferos, bellos vinhedos; -ao lado da estrada fica um edificio moderno de aspecto alegre e -confortavel, convidativo, é o asylo de S. José; como o sitio se chama -a Conquinha, é vulgarmente conhecido por este nome. Santa instituição! -Foi este asylo fundado e dotado pela benemerita D. Maria da Conceição -Barreto Bastos, fallecida em 21 de maio de 1901. Velhinhos -impossibilitados de trabalhar encontram aqui agasalho e sustento, -abrigo tranquillo nos seus ultimos annos de vida. - -A casa é cercada por ampla quinta bem cultivada com seus jardins -floridos, e bellas arvores de fructa. Tudo muito asseiado e -confortavel; mais me agradou ainda o ar satisfeito dos asylados, -felizes naquelle ninho de caridade. A fundadora instituiu tambem uma -escola, na villa, para meninas, com ensino gratuito; a sua memoria deve -ser abençoada; o seu nome gravado no marmore dos benemeritos, e no -coração de todos os que veneram estes bons exemplos do incondicional -altruismo christão. Quando alli estive, visita casual, era gerente ou -director do asylo, o sr. conego prior Antonio Francisco da Silva, cujo -nome ouvi cercado pelos asylados da Conquinha com palavras de respeito -e gratidão. - - -Ruços, além! - -Preparava-se a jornada de Ceuta. - -Havia cabeças enthusiastas, e cabeças duvidosas; timidos e prudentes -ao lado dos muito ousados. El-rei D. João I estava em Cintra com os -infantes; mandou convocar os do Conselho para Torres Vedras; eram -o conde de Barcellos, o condestavel D. Nuno, os mestres das ordens -de Christo, de Santiago e d’Aviz, o prior do Hospital, Gonçalo Vaz -Coutinho, Martim Affonso de Mello, João Gomes da Silva, muitos outros -senhores e fidalgos. - -Nesses dias Torres Vedras acolheu muitos cavalleiros de espora dourada, -os grandes senhores territoriaes e militares do paiz.==El Rey partio -de Cintra, e foy folgando por aquella comarca de Lisboa caminho de -Torres Vedras (isto conta o Azurara, na _Chronica de D. João I_, parte -3.ᵃ, cap. 24) e antes disto chegando El-Rei a _Carnide_, o infante Dom -Enrique que muito desejava por seu corpo fazer alguma cousa aventejada, -chegou a seu padre e disse: _Senhor, primeiro que por estes feitos -mais vades adiante, porque com a graça de Deos vem já por tal via, que -viram a boa fim, eu vos peço por mercê que me outorgueis duas cousas. A -primeira que eu seja hum dos primeiros, que filhe terra quando a Deos -prazendo chegarmos davante da cidade de Ceita; e a segunda que quando -a vossa escada real fôr posta sobre os muros da cidade, que eu seja -aquelle que vá primeiro por ella, que outro algum._ - -Isto disse em Carnide o infante D. Henrique a el-rei D. João; estranho -requerimento para a morte na vanguarda extrema, bem natural ao forte -coração do rapaz. Chegou el-rei a Torres Vedras, e logo teve uma falla -com o condestavel. - -Este approvou o plano e prometteu ao rei a sua influencia favoravel... - -Tratou-se logo do corregimento da casa para o conselho _a qual era hua -sala dianteira, que está em aquelles paços de Torres Vedras, onde está -a capella_. - -Numa quinta-feira o rei e seus filhos ouviram missa do Espirito Santo, -naturalmente na egreja de Santa Maria, que era capella real. - -Celebrou-se o conselho; foi elrei que publicou o fim da reunião; depois -fallou o condestavel approvando a jornada, e o infante D. Duarte no -mesmo sentido. Mas havia gente duvidosa, novos que temiam o risco, e -criticavam o arrojado plano. Então surgiu um dito que fez época. - -João Gomes da Silva, que era homem _forte e ardido, cujas palavras -sempre traziam jogo e sabor_, levanta-se no meio dos indecisos e -exclama dirigindo-se a elrei==_Quanto eu, Senhor, não sei al que diga -senão, ruços, alem_, apontando para o sul, na direcção do Algarve -d’alem mar, e isto dizia porque elrei e os mais dos que alli estavam -tinham já as cabeças cheias de cans. Elrei e os mais riram-se, e assim -folgando fizeram fim de suas falas==. Terminaram o conselho a rir-se, -os valentes e audazes; iam para Ceuta, para a conquista africana, o -inicio glorioso dos descobrimentos, para esse triumpho e sacrificio -incomparavel da nacionalidade portugueza. Pois esse grito _ruços, -alem_, ouviu-se nos paços reaes de Torres Vedras. (Azurara, parte 3.ᵃ -da _Chronica de D. João I_, cap. 26). - - -Passeio a Santa Cruz de Ribamar - -No dia 27 de setembro de 1905, depois do banho e do almoço, em commodo -trem, fui a Santa Cruz. - -A estrada vae ao campo do Amial, pelo sopé do monte de S. Vicente, que -nos fica á direita; depois pela esquerda a falda do Varatojo. A estrada -segue na grande varzea, comprida e ampla, importante, onde o Sizandro -abre o seu leito. - -Vinhas magnificas, cepas fortissimas carregadas de esplendida uva. A -estrada incómmoda pela muita poeira. Fiz uma paragem na quinta dos -Chãos, á direita do caminho. Pouco dista da estrada, bem accessivel -ao trem. A velha ermida serve de armazem; só me chamou a attenção uma -pedra com lettreiro, do seculo XV, solta, na pequena sacristia; não -tirei apontamento porque imaginei que a tinha visto publicada nas -_Memorias de Torres Vedras_. Verifiquei depois que não está! seria -bom, e creio que facil, recolher a pedra na Camara Municipal, onde -se guardam já algumas pedras significativas na historia de Torres -Vedras. Alguns homens cavavam; eu vi a descoberto um grosso paredão de -alvenaria em argamassa mui antigo. - -No terreno d’esta propriedade teem apparecido por vezes vestigios -romanos; provavelmente existiu alli alguma _villa rustica_. - -Seguindo o passeio. Passamos por boas propriedades, e alguns grupos de -casaes. - -Os campos estão animados, as estradas concorridas; é uma festa agora; a -grande festa das vindimas. Tudo sorri com os bellos racimos do divino -Baccho, doce e aromatico. - -Calcula-se em 80:000 pipas a producção do vinho no termo de Torres -Vedras; mas este anno ha crise de fartura, os preços estão muito -baixos; queima-se por isto muito vinho para fazer aguardente, que se -vende de 80 a 85 mil réis a pipa de 534ˡ,24, posta em Villa Nova de -Gaya. - -Todos estes terrenos são de alluvião moderna, mas passadas tres quartas -partes do caminho começa a apparecer a areia maritima. Cultiva-se -milho, feijão frade, grão de bico. - -Passamos junto de alguns moinhos em grande businada, as cordas cheias -de louça, dezenas de vasos de barro; os moleiros d’estes sitios são -grandes amadores d’esta musica. - -Passamos por alguns pinhaes, e chegamos a Santa Cruz, logar formado por -algumas casas antigas, e bastantes modernas. - -É a praia balnear de Torres Vedras. Pessoas abastadas da villa e de -logares proximos aqui mandaram construir vivendas, nas arribas de ar -lavado pela brisa do Atlantico. A praia é bonita; uma fita de areia -branca, de brando declive, abrigada pelas escarpas não muito altas, -de aspecto severo, formadas pelas rochas de colorido variado. Um -grande rochedo alteroso destaca na praia. Foi accessivel em tempo, -porque ainda se observa a certa altura um lanço de escada talhado na -rocha; mas as vagas esboroam a base. Talvez servisse de atalaia para -descobrir corsarios mouriscos, ou marcha do peixe, da baleia, por -exemplo, frequente por este mar em tempos idos. Pelos piratas mouros -ou corsarios argelinos foi a costa visitada, parece que com certa -frequencia, ao que dizem velhas chronicas. Do alto da arriba o mar -apresenta o aspecto de amplo golpho; a norte prolonga-se, entrando -muito pelo oceano, a peninsula de Peniche, e em frente avistam-se -nitidamente os rochedos das Berlengas e Farilhões. Notei aqui um facto -talvez interessante; avista-se um largo trecho da costa, escarpas -de 40, 30 e 20 metros de altura; em certo ponto a escarpa é mais -baixa, chega talvez a quinze metros; por ahi sobem as areias que vão -alastrar-se terra dentro; vê-se a duna encostada á rocha nos outros -pontos que não vence; pára ante o obstaculo; alli vence, entra pelo -chanfro. - -E poderá ainda marcar-se a historia da invasão porque na chronica do -Purificação ao tratar de Ribamar e do convento de Pena Firme se mostra -que ainda no seculo XVII o terreno não estava vestido pelo manto de -areia em tamanha extensão. - -Logo de entrada encontrei, bem agradavel surpreza, o sr. Rodrigues -da Silva, cavalheiro que eu já conhecia de Torres Vedras; é sabedor -da historia da villa e termo, amador de antiguidades, e muito amavel -companheiro; com elle fui vêr o monumento funerario mandado fazer -por Valerio e Julia, que se conserva no logar marcado nas _Memorias -da Villa de Torres Vedras_ (pag. 20 da 2.ᵃ ed.), e no _Corpus_. A -distancia de poucos metros vê-se uma sepultura, algumas lages cravadas -no solo, marcando perfeitamente o vão sufficiente para um corpo humano. -Parece que em tempos se viam alli vestigios de outras sepulturas; a que -existe agora está á beira da escarpa; mais alguns annos e o embate das -vagas a fará desapparecer. - -Na ermida de Santa Cruz, ou de Santa Helena, vi uma imagem d’esta santa -que me pareceu anterior, pela rudeza e ingenuidade da esculptura, ao -seculo XVI. - - -Na missa e no mercado - -No domingo, 14 d’agosto de 1904, assisti á missa na egreja de S. Pedro. -Muita gente, com bastante respeito. Á sahida fiz de janota parado á -porta da egreja para vêr o desfilar dos devotos. Primeiro os homens -dos campos, das vinhas, com seus varapaus; mulheres do campo de chale, -lenços mal postos na cabeça, á larga. Seguiram as mulheres da villa; -caras agradaveis poucas, expressões duras não estupidas nem alvares; -na grande maioria cabellos castanho-escuro; cabellos pretos mais -raros; algumas cabelleiras ruivas, e algumas pelles sardentas. - -Cabellos corredios, na maioria, poucos em madeixas. - -Alguns olhos azues, pelles avermelhadas. - -Homens de construcção regular, as mulheres de thorax estreito, pouco -seio, mal geitosas. - -Durante a missa os homens não largam os varapaus; quando ajoelham vê-se -grande numero, porque se encostam, e não deitam no chão o inseparavel. - -Usam o simples marmelleiro ou zambujeiro, raros os paus ferrados. - -As mulheres usam poucos ornatos, e pouco ouro. - -No terreiro proximo da egreja faz-se o mercado. Vendiam melões, -melancias, uvas lindas, brunhos varios, maçãs grandes, variedade de -peras, aboboras, tomates, pouca hortaliça. - -No mercado de peixe, atraz da egreja, sardinha e sarda, fresca e -salgada, cação, gorazes; o peixe vem de Nazareth e de Peniche. - -Mulheres do campo aviavam os seus cabazes; levavam pão, meio cento de -sardinhas, meia duzia de sardas. - -A um cantinho do mercado estavam algumas mulheres com polvo, mexilhão, -caranguejos grandes. Não faltava a mulher dos tremoços e da pevide de -abobora. Dois homens vendiam planta de couve. Vi ainda vendedores de -enxadas, e de calçado forte, sapatos de dura. - -Os homens na maioria usam botas altas. - -Todo o povo d’estes sitios é calçado, só por excepção vi gente -descalça. Isto de pé descalço é uma inferioridade, que talvez acabasse -com um pequeno impulso. - -Dizem-me que a gente hespanhola está toda calçada já, tem conseguido -o sapato e a alpargata de preço baixo. Talvez que as commissões -parochiaes de beneficencia podessem resolver o problema. Eu acho o pé -descalço uma cousa deprimente, que entristece. - -Na pequena praça do Municipio (em 1904) faz-se o mercado da batata; -mal se transitava tanta era a saccaria; vende-se a batata arrobada; -pareceu-me de boa qualidade. Em 1905 este mercado fazia-se no largo de -S. Thiago. - -Pelas lojas nas ruas proximas grande freguezia, de gente dos arredores -que ao domingo vem mercar á villa. - -Ha movimento commercial em Torres, lojas com muitos contos de réis em -existencia. A villa é pequena mas os arredores são muito povoados. - -Vi industria de ferragens e mobilia especial, com algum geito. - -Pelo aspecto geral é gente que trabalha, sobria, um tanto rude. - -É escusado dizer que o fomento official é nullo, depois da pobre escola -primaria nada mais; algumas creanças vão de Torres ao Varatojo! para -aprender alguma cousa; uma caminhada de uma hora. - -Aqui em Torres seriam uteis uma aula de desenho, outra de agricultura, -e uma terceira de arithmetica e geometria com ensino especial de -contabilidade; porque esta villa é centro de uma região agricola -importante, tem commercio grande e pequeno, e industrias que se devem -desenvolver. - - -A feira franca - -(21 DE AGOSTO DE 1904) - -Na grande varzea em parte arborisada faz-se esta feira muito concorrida -pela gente d’aquelles sitios; a região de Torres Vedras é bastante -povoada; aldeias e logarejos, boas quintas, casaes, matizam os campos -accidentados, as collinas entremeadas de valles e varzeas ferteis. - -Este rocio onde se faz a feira tem ao lado a casaria da villa, ao norte -o monte onde se ergue o castello, entre olivedo e paredões negros -alveja a egreja de Santa Maria, muito caiada; mais longe e mais alto o -monte de S. Vicente; a poente do rocio a serra do Varatojo, vestida de -vinhedos. Na parte arborisada enfileiram-se barracas e tendas, no rocio -nú é a feira de gados e a corredoura. - -As barracas de ourivesaria agrupam-se com as dos utensilios de arame, -cobre, ferro estanhado, latoaria. As dos vidros estão perto do grande -estendal de louças branca e vermelha. - -A louça ordinaria, popular, provém das differentes olarias do termo de -Mafra, a branca vem de Alcobaça. - -A notar um especialista de buzinas de moinhos de vento, aquellas -vasilhas de barro, que assobiam e zumbem quando o vento apressa o -movimento das quatro velas triangulares. - -Vende-se calçado grosso, bastante correaria, não faltando as sogas -ornadas, bordadas a pita colorida. - -Pequenas quinquilherias, modestas roletas variadas formam uma rua, -leiloeiros de varias qualidades chamam a gritos a attenção do povinho, -perto das barracas de tiro ao alvo. - -Num espaço grande estão as madeiras; o que mais dá na vista é o -material vinario; é natural, estamos numa grande região vinhateira. - -Cubas, toneis, balseiros, barris, celhas, tinas em abundancia; de -castanho, as mais; algumas de pinho da terra, genero barato. Carros -para bois, e tambem de pequenas dimensões e de construcção mais leve -para burricos. Ha especialistas em arcos, e negociantes de varedo, -assim como de crivos e peneiras. - -Menos importante a feira do gado; bastantes porcas com leitões, poucas -juntas de bois, pouco e inferior o gado cavallar e asinino. - -Pareceu-me em geral mal tratado o gado, tanto na feira como no que -observei fóra. - -É mais a pancada que a alimentação regular. - -Já se vê não faltavam as barracas de comer e beber, com os seus fritos -alourados, e constante freguezia. - -Comia-se bem, bebia-se melhor; homens e mulheres espatifavam acerejadas -gallinhas, consumiam patos com arroz cheirando que era uma delicia, e -sorviam as talhadas dos sumarentos e aromaticos melões, atirando as -cascas aos porcos e leitões grunhindo pela gulodice. - -A impressão geral é de atrazo, de educação nulla ou rudimentar; de -trabalho mau com inferior alfaia, todavia gosto de vêr o povo rural -nestas feiras; é naturalmente são; um tanto brutal nos costumes, se -ninguem trata d’elle! mas de bom fundo. - -Estamos longe d’aquelles camponios insolentes, turbulentos, cupidos, -eivados d’alcoolismo, devastados por seitas ferozes, que preoccupam em -Allemanha, na Italia, na França a gente que pensa e vê alguma cousa. - - - - -INDICE - - - S. Domingos de Bemfica, 8 - - O lindo sitio de Carnide, 55 - - Noticias de Carnide, 87 - - A villa da Ericeira,149 - - De Bemfica á quinta do Correio-Mór, 199 - - Torres Vedras, 255 - -*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS -DE LISBOA *** - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the -United States without permission and without paying copyright -royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part -of this license, apply to copying and distributing Project -Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm -concept and trademark. 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Hart was the originator of the Project -Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be -freely shared with anyone. For forty years, he produced and -distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of -volunteer support. - -Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed -editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in -the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. - -Most people start at our website which has the main PG search -facility: www.gutenberg.org - -This website includes information about Project Gutenberg-tm, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/old/68121-0.zip b/old/68121-0.zip Binary files differdeleted file mode 100644 index 77db5e8..0000000 --- a/old/68121-0.zip +++ /dev/null diff --git a/old/68121-h.zip b/old/68121-h.zip Binary files differdeleted file mode 100644 index 454f424..0000000 --- a/old/68121-h.zip +++ /dev/null diff --git a/old/68121-h/68121-h.htm b/old/68121-h/68121-h.htm deleted file mode 100644 index 3a67957..0000000 --- a/old/68121-h/68121-h.htm +++ /dev/null @@ -1,8498 +0,0 @@ -<!DOCTYPE html> -<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml" xml:lang="pt" lang="pt"> -<head> - <meta charset="UTF-8" /> - <title> - Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa, by Gabriel Pereira—A Project Gutenberg eBook - </title> - <link rel="icon" href="images/cover.jpg" type="image/x-cover" /> - <style> /* <![CDATA[ */ - -body { - margin-left: 10%; - margin-right: 10%; -} - - h1,h2,h3,h4,h5,h6 { - text-align: center; /* all headings centered */ - clear: both; -} - -p { - margin-top: .51em; - text-align: justify; - margin-bottom: .49em; - text-indent: 1em; -} - -.p2 {margin-top: 2em;} -.p4 {margin-top: 4em;} -.p0 {text-indent: 0em;} - -hr { - width: 33%; - margin-top: 2em; - margin-bottom: 2em; - margin-left: 33.5%; - margin-right: 33.5%; - clear: both; -} - -hr.tb {width: 45%; margin-left: 27.5%; margin-right: 27.5%;} -hr.chap {width: 65%; margin-left: 17.5%; margin-right: 17.5%;} -@media print { hr.chap {display: none; visibility: hidden;} } - -hr.r5 {width: 5%; margin-top: 1em; margin-bottom: 1em; margin-left: 47.5%; margin-right: 47.5%;} - -div.chapter {page-break-before: always;} -h2.nobreak {page-break-before: avoid;} - -table { - margin-left: auto; - margin-right: auto; -} -table.autotable { border-collapse: collapse; width: 60%;} -table.autotable td, -table.autotable th { padding: 4px; } -.x-ebookmaker table {width: 95%; font-size: 0.9em;} - -.tdr {text-align: right;} - -.pagenum { /* uncomment the next line for invisible page numbers */ - /* visibility: hidden; */ - position: absolute; - left: 92%; - font-size: smaller; - text-align: right; - font-style: normal; - font-weight: normal; - font-variant: normal; -} /* page numbers */ - - -.blockquot { - margin-left: 5%; - margin-right: 5%; -} - -.bb {border-bottom: 2px solid; margin-left: 25%; width: 50%;} - -.bt {border-top: 2px solid; margin-left: 25%; width: 50%;} - -.center {text-align: center; text-indent: 0em;} - -.right {text-align: right; text-indent: 0em;} - -.smcap {font-variant: small-caps;} - -.allsmcap {font-variant: small-caps; text-transform: lowercase;} - -/* Images */ - -img { - max-width: 100%; - height: auto; -} -img.w10 {width: 10%;} -.x-ebookmaker table {width: 15%;} - -.figcenter { - margin: auto; - text-align: center; - page-break-inside: avoid; - max-width: 100%; -} - -/* Footnotes */ - -.footnote {margin-left: 10%; margin-right: 10%; font-size: 0.9em; margin-top: 1.5em;} - -.footnote .label {position: absolute; right: 84%; text-align: right;} - -.fnanchor { - vertical-align: super; - font-size: .8em; - text-decoration: - none; -} - -/* Poetry */ -.poetry {text-align: left; margin-left: 5%; margin-right: 5%;} -/* uncomment the next line for centered poetry in browsers */ -/* .poetry {display: inline-block;} */ -/* large inline blocks don’t split well on paged devices */ -@media print { .poetry {display: block;} } -.x-ebookmaker .poetry {display: block;} - -.vsmall {font-size: 0.6em;} -.small {font-size: 0.8em;} - - /* ]]> */ </style> -</head> -<body> -<div lang='en' xml:lang='en'> -<p style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of <span lang='pt' xml:lang='pt'>Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa</span>, by Gabriel Pereira</p> -<div style='display:block; margin:1em 0'> -This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and -most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions -whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms -of the Project Gutenberg License included with this eBook or online -at <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. If you -are not located in the United States, you will have to check the laws of the -country where you are located before using this eBook. -</div> -</div> - -<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:1em; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Title: <span lang='pt' xml:lang='pt'>Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa</span></p> -<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Author: Gabriel Pereira</p> -<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Release Date: May 18, 2022 [eBook #68121]</p> -<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Language: Portuguese</p> - <p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em; text-align:left'>Produced by: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net</p> -<div style='margin-top:2em; margin-bottom:4em'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS DE LISBOA</span> ***</div> - - -<p class="center bb"> GABRIEL PEREIRA</p> - -<h1>PELOS SUBURBIOS<br /> -<span class="vsmall"> -E</span><br /> -VISINHANÇAS DE LISBOA</h1> - - -<p class="center p2"><span class="figcenter" id="img001"> - <img src="images/001.jpg" class="w10" alt="Editora" /> -</span></p> - -<p class="center p2"> LISBOA</p> - -<p class="center small"> LIVRARIA CLASSICA EDITORA</p> - -<p class="center"> DE A. M. TEIXEIRA & C.ᵗᵃ</p> - -<p class="center small"> 20, PRAÇA DOS RESTAURADORES, 20</p> -<hr class="r5" /> -<p class="center"> 1910 -</p> - -<p class="center bt p4"> <i>Porto—Imp. Portugueza—Rua Formosa, 112</i> -</p> - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="S_Domingos_de_Bemfica">S. Domingos de Bemfica</h2> -</div> -<hr class="r5" /> -<p class="center"> (1905)</p> - -<p>Na falda norte da serra de Monsanto está o logar de S. Domingos de -Bemfica; um antigo mosteiro em parte abandonado, rodeado de quintas -fidalgas com seus palacios, jardins, cascatas e alamedas de secular -arvoredo; e uma pinha de pequeninos predios antigos a entestar com o -maninho da serra.</p> - -<p>O nome de Monsanto feriu-me a attenção e procurei se por aquelles -sitios haveria vestigios de templo ou edificio de remota antiguidade, -tão raros no aro da capital. No meu segundo passeio deparei um grande -marmore lavrado, provavelmente parte superior de uma ara romana, -encostado á parede da quinta do sr. marquez de Fronteira.</p> - -<p>Ha duvidas todavia sobre a proveniencia da pedra; julga-se não ter sido -encontrada alli, sim na Ribeira velha, no antigo palacio Fronteira, por -occasião de certas obras; e removida para Bemfica ha uns 40 annos.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span></p> - -<p>O achado incitou-me a continuar na indagação, e num pittoresco retiro -agora mal tratado da cerca monastica fui encontrar uma estatua que -parece de arte romana; é na fonte do satyro, que fr. Luis de Sousa -descreve na chronica do seu convento.</p> - -<p>O celebre dominicano já conheceu a estatua e a fonte na disposição -actual; lá estão ainda as cinco ardosias, duas quadradas e tres -ellipticas, com o lettreiro latino, que elle tambem menciona.</p> - -<p>Póde affirmar-se que o logar está qual estava então, apenas descurado. -Ora os estragos que a estatua apresenta não teem explicação facil na -posição actual. O satyro nada tem da rudeza gothica, nem das imitações -classicas da renascença. O rosto apesar de muito gasto ainda tem -singular expressão de alegria; segurava nas mãos uma taça ou urna que -depois mutilaram para collocar uma torneira. Na cabeça e nas coxas -grandes madeixas ondeadas; os musculos bem estudados nos hombros e -braços. Parece uma estatua romana.</p> - -<p>Junto da fonte estão avulsas algumas pedras lavradas, dois fechos de -abobada com a esphera de D. Manuel e a cruz de Christo, parte de um -friso e dois pelouros medianos.</p> - -<p>É um encanto aquelle sitio de S. Domingos; o terreiro com seu antigo -arvoredo dispõe bem o visitante da egreja, uma pobre egreja que é um -ninho de recordações portuguezas.</p> - -<p>Entrando, á esquerda, o sarcophago de «Vasco Martins da Albergaria, -cavalleiro fidalgo da casa<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span> do sr. infante D. Henrique e seu camareiro -mór, filho de Affonso Lopes da Albergaria, o qual passou da vida deste -mundo das feridas que houve na tomada e no descerco de Ceuta aos... -dias do mez de dezembro da era de Jesus Christo, de 1436 annos».</p> - -<p>É um pequeno sarcophago de tampa alta; o letreiro na facha anterior da -tampa e da arca. No meio o brazão com a cruz de Aviz sanguinha, aberta -e floreteada, com oito escudetes azues das quinas reaes. Aos lados do -escudo uma fita em relevo onde se lê a divisa <em>porêm vede bem</em>.</p> - -<p>Á direita o tumulo de João das Regras, encimado pela estatua onde -evidentemente o esculptor quiz reproduzir o aspecto do famoso -jurisconsulto. Tem barrete e habito de lettrado; a gola larga segura -por tres botões. Na mão direita sobre o peito segura um livro. Os -cabellos um tanto ondeados cahindo sobre a fronte. Á esquerda da figura -a espada com o cinturão enrolado. A espada está tratada com minucia, o -punho lavrado em linhas, o extremo com sua flor; é uma espada direita, -larga, curta. O cinto é lavrado tambem de flores, tendo bem definidas a -fivella e a ponteira.</p> - -<p>Aquella estatua é um documento precioso de indumentaria.</p> - -<p>O tumulo tem inscripção, escudos; assenta sobre quatro leões de -marmore. Não é este o unico varão illustre cujo nome se encontra no -mosteiro; fr. Vicente (1401), outro amigo do mestre de<span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span> Aviz, e Diogo -Gonçalves Belliago (1410) teem alli as suas inscripções sepulcraes, -assim como fr. Arnáo (1502).</p> - -<p>Na capella de S. Gonçalo de Amarante ha algumas estatuas em marmore de -Carrara, de valor artistico.</p> - -<p>O sacrario é de madeira entalhada, de grande elegancia, principalmente -no corpo superior.</p> - -<p>Bons azulejos vestem as paredes, assignados por Antonio de Oliveira -Bernardes.</p> - -<p>No cruzeiro jazem muitas pessoas distinctas, principalmente da casa -Fronteira e Alorna; o ultimo que alli foi repousar o célebre D. Carlos -de Mascarenhas, fallecido em maio de 1861.</p> - -<p>Na escura passagem do cruzeiro para a sacristia uma campa singelissima -com um nome que illumina os espiritos, fr. Luis de Sousa.</p> - -<p>E no claustro proximo, muito tranquillo e fresco, convidando a serena -meditação, a capella e o jazigo de D. João de Castro.</p> - -<p>É um grupo incomparavel de recordações portuguezas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Isto escrevi eu na <i>Revista Archeologica</i> de Borges de Figueiredo -(vol. 3.ᵒ, de 1889, pag. 99). Querido amigo! Infeliz espirito, tão -maltratado na lucta da vida!</p> - -<p>Era archeologo, latinista e epigraphista de alto merecimento. Corpo -enfermiço, franzino, tez pallida, mortiço o olhar, fraca a vista; -bella intelligencia<span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span> cultivada, com solida erudição e fina critica. Os -seus ultimos tempos foram de doença e desgosto. Por tres vezes, se bem -me recordo, visitámos juntos o sitio de S. Domingos de Bemfica; elle -levava sempre a filha, nos seus passeios; uma menina delicada, debil -no aspecto, cheia de meiguice. Eram inseparaveis, ella queria estar -sempre junto, bem junto do pae. O meu pobre amigo falleceu na manhan de -15 d’outubro de 1890; tinha feito na vespera 37 annos. Foi professor -na Escola Rodrigues Sampaio, por algum tempo ensinou num collegio -particular; durante annos foi laborioso bibliothecario da Sociedade -de Geographia. Escreveu livros muito apreciaveis; <em>Coimbra antiga e -moderna, O Mosteiro de Odivellas, a Geographia dos Lusiadas</em>; em -todos os seus trabalhos se revéla bem o espirito de investigação, e -a sã critica historica. Parecia impossivel aquella actividade em tão -fraco organismo. Na <i>Revista Archeologica</i> deixou entre varios -trabalhos bons, um de alta importancia sobre as inscripções em verso -leonino em Portugal. A filha morreu um mez depois do pae; não soffreu -aquella ausencia, finou-se a pobre creança debil, asphyxiada de morte -pela saudade amarga.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Quantas mudanças na egreja de S. Domingos de Bemfica fez depois o bem -intencionado architecto Nepomuceno! A urna do Albergaria foi para o -ante-côro sombrio, para cima de duas misulas ou<span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span> cachorros, á maneira -de deposito de agua para não visto lavabo. O tumulo de João das Regras -foi para o meio do côro, onde está bem para ser visto. A estatua -jacente do insigne doutor soffreu concerto, a mão direita aperta um -livro sobre o peito; a esquerda tinha desapparecido. Segundo a chronica -cahia sobre o coração, como se elle estivesse orando. Nepomuceno mandou -fazer a mão que faltava, erguida, segurando um papel enrolado. E parece -agora que o inclito doutor está indeciso entre o livro e o rolo de -papel.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Ha pouco tempo, já depois da obra a que se procedeu, visitei a egreja -tomando notas mais minuciosas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>No cruzeiro da egreja ha inscripções sepulcraes de interesse historico. -Na parede entre o arco da capella mór e a porta da sacristia estão dois -letreiros; o superior menciona Fr. Vicente, da ordem dos prégadores, -fundador, fallecido em 1401; foi prégador de D. João 1.ᵒ e autor de -muitos livros.</p> - -<p>Sob este está==Fr. Diogo Gonçalves Belliagua, frade da mesma ordem, -primeiro povoador do mosteiro, isto é, o primeiro que residiu aqui, -fallecido em 31 de agosto de 1410.</p> - -<p>Estes letreiros são relativamente modernos; na Chronica se podem ver as -inscripções primitivas.</p> - -<p>Á direita da capella mór, na parede, está a==Sepultura<span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span> de fr. Arnáo, -da mesma ordem, fallecido em 2 de maio de 1502.</p> - -<p>Proxima a lapide de==D. Carlos de Mascarenhas, segundo filho dos 6.ᵒˢ -marquezes de Fronteira. N. em 1 d’abril de 1803. F. em 3 de maio de -1861.</p> - -<p>A seguir==D. Maria Constança da Camara, marqueza de Fronteira e de -Alorna. N. em 14 de julho de 1801. F. em 11 de setembro de 1860.</p> - -<p>No chão está a campa da==Marqueza de Fronteira D. Helena Josefa de -Lencastre. F. em 14 de março de 1763.</p> - -<p>Perto==O sargento maior Manuel Carrião de Castanheda, cavalleiro -da ordem de Christo, f. em 22 de dezembro de 1676, e sua mulher D. -Sebastiana Dias Fialha.</p> - -<p>==S. de Diogo Antunes. 1662.</p> - -<p>==S. de Maria Coelha.</p> - -<p>==D. G.ᵒ Velozo d’Araujo, cavalleiro fidalgo da Casa delrei N. S. e de -sua molher Joanna de Bulhão, f. a 3 de março de 1603.</p> - -<p>==S.ᵃ de João Velho Lobo... Travassos... Algumas destas campas estão -incompletas, ou gastas.</p> - -<p>Na capella do Senhor Jesus, esquerda do cruzeiro, está uma pedra com -brazão; diz-nos que o instituidor foi Antonio de Freitas da Silva, -fidalgo, etc., com sua mulher D. Jeronima Paes d’Azevedo, em 1677.</p> - -<p>No corpo da egreja, segunda capella á esquerda==Capella de Enrique -Mendes de la Penha, fidalgo<span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span> de solar conhecido, e a comprou sua filha -D. Lionor Enriques, viuva de Luis Pereira de Carvalho, em 1663.==Tem -brazão.</p> - -<p>Olhando para a capella mór, a porta á nossa esquerda abre para uma -passagem que serve o côro e a sacristia, o ante-côro. Ahi, no chão, -proximo dos degraos que levam ao côro, está uma campa singela.</p> - -<p class="center"> -<i>Aqui jaz</i><br /> -<i>frei Luiz de Souza.</i><br /> -<i>nasceu em 1553</i><br /> -<i>morreu em 1632</i><br /> -</p> - -<p>a seguir, na mesma campa:</p> - -<p class="center"> -Mandou collocar<br /> -esta lapida<br /> -o padre Joaquim<br /> -Pinto de<br /> -Campos<br /> -natural de<br /> -Pernambuco<br /> -(Brazil)<br /> -aos 4 de junho de<br /> -1878.<br /> -</p> - -<p>Na mesma sombria casa de passagem, ou ante-côro, na parede, sobre duas -misulas, vê-se uma urna brazonada. Estava antes da ultima obra, á<span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span> -esquerda da porta d’entrada; agora alta como está, e na casa quasi sem -luz, é difficil lêr o letreiro.</p> - -<p>Desdobrando as abreviaturas, diz: Aqui jaz Vasco Martins da Albregaria -cavalleiro fidalgo da casa do sr. infante dom Anrique e seu camareiro -moor filho de A.ᵒ Lopes da Albregaria o qual passou da vida deste mundo -das feridas que houve na tomada e no descerco de Cepta aos... dias do -mez de dezembro da era de J. C. de 1436 annos.</p> - -<p>Além do escudo dos Albergarias, conforme o que vem no Thesouro da -Nobreza, tem escudos com sua divisa que me parece ler <i>Porém vêde -bem</i>.</p> - -<p>A meio do côro está o tumulo de João das Regras; o letreiro occupa o -friso da caixa.</p> - -<p>==Aqi: jaz: joan: daregas: cavaleiro: doutor: em: leis: privado: -delrei: dom: joan: fundador: deste: moesteiro: finou: III: dias: de: -maio: era: M: IIIIᶜ: XL: II: ans:==É um lettreiro, em gothico, bem -lavrado; as palavras todas divididas por dois pontos.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Na parede exterior da casa que ora serve á irmandade da S.ᵃ do Rosario -está cravada uma pedra com a inscripção:</p> - -<p class="center"> -Esta sanchristia man<br /> -darão fazer os irmãos<br /> -de Nossa Sra do Rozario<br /> -a sua custa p.ᵃ a fabrica<br /> -da sua irm.ᵈᵉ em maio de 1680.<br /> -</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span></p> - -<p>Na sacristia uma grande campa sem lettras, com o brazão da casa de -Bellas, isto é, quatro flores de liz nos angulos de uma cruz.</p> - -<p>O Thesouro da Nobreza descreve assim o brazão dos Correias de -Bellas==em campo vermelho uma cruz de oiro firmada no escudo entre -quatro flores de liz do mesmo metal.</p> - -<p>No côro ha duas grandes campas sem brazões nem letreiros; diz a -Chronica que está alli o carneiro ou deposito funéreo dos Botelhos.</p> - -<p>No cruzeiro, á direita, ao canto, ha uma porta encimada por um brazão; -abre para a capellinha onde está a imagem do Senhor Jesus dos Passos. -Mas o pequeno e rico edificio é dedicado a S. Gonçalo de Amarante. Uma -inscripção latina declara que em 1685 o bispo fr. Manuel Pereira mandou -fazer a capella. É de muito e apurado trabalho, em lindos marmores. -Estatuetas de finissimo Carrara povoam os nichos. Preside S. Gonçalo de -Amarante tendo aos lados a S.ᵃ do Rosario, S. José, S.ᵃ Appollonia, S. -Thereza, S. João de Deus, S. Felippe, S. Domingos e S. Thomaz d’Aquino.</p> - -<p>As columnas salomonicas aos lados de S. Gonçalo são de pedra fina da -Arrabida de um trabalho apuradissimo.</p> - -<p>Parecem-me de origem italiana estas lindas estatuetas em marmore de -Carrara, delicadamente esculpidas, com a maneira usada na época.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span></p> - - -<h3>O satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica</h3> - -<p>A estatua do satyro conserva-se na situação em que fr. Luis de Sousa a -conheceu.</p> - -<p>Entrando no claustro d’aquelle extraordinario convento de S. Domingos -de Bemfica, toma-se a porta, ao canto, que diz para a fonte e horta. -Desce-se uma breve escada, entra-se n’um pequeno recinto, com assentos -de pedra; ao fundo a fonte rasteira; lá está o satyro e uns pedaços de -marmore com um verso latino. O muro que separa a horta do recinto da -fonte é mais recente.</p> - -<p>Felizmente eu tirei o desenho do satyro ha tempos; modernamente houve -obras no edificio, e um alvanéo mais gracioso divertiu-se a lançar cal -sobre a pobre estatua.</p> - -<p>Eu estou convencido que este satyro é romano. Fr. Luis de Sousa já o -conheceu assim, n’aquella posição; ora em tal posição a estatua não -podia estragar-se da maneira que se vê; a superficie está desigual; -ha pontos em que se conserva o primitivo estado, na parte superior -do peito, nas madeixas das coxas; em outros sitios a superficie está -gasta, frusta, ou por longo attrito ou por inhumação prolongada. -As mãos foram arruinadas por causa da adaptação de torneiras, obra -provavel dos frades; porque primitivamente a agua não sahia de taça ou -urna que o satyro tivesse nas mãos; sahia do outro sitio; a estatua é -pagan e bem pagan.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span></p> - -<p>Apesar de frusta ainda a physionomia é notavel, e é bem propria a -phrase de fr. Luis de Sousa, <em>simplicidade montanheza</em>; ha -estatuas de Pan com aquella attitude e expressão.</p> - -<p>Trabalho da renascença não me parece, nem estaria assim estragado -em tempo do celebre chronista; gothico, romanico, impossivel; nunca -trabalharam assim em taes tempos. Porque a estatua tem expressão, ha -observação anatomica nos musculos, nos hombros, as claviculas bem -marcadas, as madeixas elegantes.</p> - -<p>É por isso que me convenço que a estatua é romana.</p> - -<p>Ha mais antiguidades romanas alli pelos sitios, e o nome Monsanto chama -logo a attenção.</p> - -<p>Naturalmente os dominicanos encontraram, por acaso, a estatua e -aproveitaram-n’a para a sua fonte; e assim a salvaram.</p> - -<p>Que interessante e mimosa a descripção que fr. Luis de Sousa escreveu -da fonte do satyro! Vem na Historia de S. Domingos (2.ᵃ parte, livro -2.ᵒ, cap. 1.ᵒ—Do principio e fundação do real convento de Bemfica). -Diz assim:</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>==Passado o claustro, quem busca a horta do convento, dá poucos passos -em uma praça empedrada, que ficando na parte mais alta, e como a meia -ladeira da cerca, descobre grande parte do vale.</p> - -<p>Aqui sahem os religiosos a gosar o fresco da<span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span> tarde em o verão, e o -soalheiro de inverno, depois que deixam o refeitorio. Porque além da -vista desabafada, e larga para fóra, tem na mesma praça de uma parte -uma graciosa fonte, e da outra um espaçoso tanque, que cada cousa per -si alegra e deleita os olhos.</p> - -<p>A fonte se faz em um arco, que formado de brutescos varios e vistosos, -arremeda uma gruta natural. Dentro parece assentado um grande e bem -proporcionado satyro, imitando com propriedade os que finge a poesia. -Em toda sua figura mostra em rosto risonho e alegre uma simplicidade -montanheza, com que está convidando a beber de uma concha natural, que -tem apertada com o braço e mão esquerda, da qual sae um formoso torno -de agua: e juntamente com a direita acode como arrependido a cobril-a; -e faz geito de a querer retirar, dando com uma e negando com outra.</p> - -<p>A agua é quanto póde ser excellente, e de uma qualidade propria das que -nascem nas serras, fria e desnevada na maior força do sol do estio; -temperada no inverno, como um banho.</p> - -<p>Acompanham a gruta de um e outro lado em igual distancia dois grossos e -altos pilastrões, que sendo feitos de boa cantaria para estribo de uma -abobada a que se arrimam, foi a natureza cobril-os de uma hera muito -espessa e viçosa, que subindo por elles até a mór altura, assim esconde -e senhoreia a pedraria, que faz parecer foram fundados, mais para honra -da fonte, que segurança do edificio:<span class="pagenum" id="Page_20">[Pg 20]</span> assim ajuda a natureza a arte, e -o accidental ao bem cuidado.</p> - -<p>E porque entre gente que professa letras é bem que nem nos satyros se -ache rudeza, faz lembrança este nosso a quem folga de o ver, com um -verso latino entalhado em pedaços de marmore negro, que correm a vida e -os annos sem parar, nem tornar atraz, ao modo d’aquelle licor, que lhe -sae das mãos. Advertencia de sabio não de rustico: que agoas e annos se -se não aproveitam com bons empregos, perdidos são, e pouco de estimar. -Cae a agoa, por não pejar a praça, em um pequeno tanque, deixando-o -cheio some-se n’elle, e vae por baixo da terra, fazer outra fonte na -boca de um leão.</p> - -<p>É de ver aquelle rosto fero coberto de guedelhas crespas, e medonhas, -que ameaçam sangue e morte, feito ministro de mansas agoas. Verdadeiro -poder e symbolo da religião que amansa leões e faz Satyros doutos==.</p> - -<p>Publiquei este artigo no <i>Boletim da Real Associação dos Architectos -Civis e Archeologos Portuguezes</i> (T. <span class="allsmcap">VII</span>. 1894. pag. 7), -acompanhado de gravura. Então era facil visitar a fonte do satyro: -agora está vedada ao publico, não sei porquê. Naquella parte do -edificio installou-se uma succursal do collegio de Campolide, com aulas -de theologia, ao que ouvi dizer. Não deixavam entrar no claustro. Ha -tempos saíram dalli os padres; mas o edificio continúa fechado; não -se sabe onde<span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span> pára a chave. Não se póde visitar a fonte tão finamente -descripta por fr. Luis de Sousa, nem a capella dos Castros, cuja -entrada é tambem pelo claustro.</p> - -<p>É de fr. Luis de Sousa a descripção da</p> - - -<h3>Capella dos Castros</h3> - -<p>==He a obra da Capella dorica, a proporção dupla, com quarenta palmos -de largo, mais de setenta de comprimento. He de huma só nave de -pedraria brunida, o lageamento de pedras de cores, tambem brunidas: -funda-se a mais architetura della em hum proporcionado pedestal, -que em torno a circunda interiormente. Tem seis arcos com pilares -interpostos sobre bases: capiteis, e simalhas tambem em torno, com -seis luzes obradas com respeito á architectura. A porta principal tem -no claustro do Convento, e sobre ella pende hum escudo relevado das -armas do Fundador. O tecto, despois de coroado com a simalha, he tambem -de pedraria, apainelada com artezães, e molduras: os dous primeiros -arcos de seis, que a compoem, ficam nos Presbiterios; no da parte do -Evangelho está huma porta, que dá serventia pera a Tribuna, e aposentos -do Fundador: no outro da parte da Epistola, outra pera o serviço da -Sachristia, os outros quatro occupão quatro sumptuosas sepulturas, de -pedras de cores lustradas,<span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span> que sobre as costas sustentão elefantes de -pedras negras.</p> - -<p>No primeiro arco, que fica junto ao do Presbiterio da parte do -Evangelho, está a sepultura de Dom João de Castro, com o seguinte -Epitaphio.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>D. Ioannes de Castro XX. Pro Religione in vtraque Mauritania stipendijs -factis, nauata strenue opera Thunetano bello fœlicibus armis penetrato; -debellatis inter Euphratem, et Indum nationibus: Gendrosico Reye, -Persis, Turcis vno prœlio fusis; seruato Dio, imo Reipublicæ reddito, -dormit in magnum diem, non sibi, sed Deo triumphator: publicis -lachrimis compositus, publico sumptu prœ paupertate funeratus: obijt -Octauo Id. Iunij. Anno 1548. Aetatis 48.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Estão em o seguinte arco, junto a este os ossos de D. Leonor Coutinho, -sua mulher.</p> - -<p>Da parte da Epistola, em o arco que responde ao da sepultura de Dom -João de Castro, está a de Dom Alvaro seu filho, com o Epitaphio -seguinte.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>D. Aluarus de Castro. Magni Ioannis primogenitus, cui pené ab infantia -discriminum factus pugnaram prœcursor, triumphorum Consors, œmulus -fortitudinis, hœres virtutum, non opum: Regum prostrator, et restitutor -in Sinai veatice eques fœliciter inauguratus: a Rege Sebastiano Summis -Regni auctus honoribus; bis Romæ,<span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span> semel Castellæ, Galliæ, Sabaudiæ, -legatione perfunctus, obijt 4. Kalend. Septemb. Anno. 1575. Aetatis suæ -50.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Logo no outro arco junto a este está Dona Anna de Atayde, mulher do -mesmo D. Alvaro.</p> - -<p>No vão desta Capella se fez um Carneiro com seis arcos de pedraria, em -hum dos quais ha Altar pera se dizer Missa, e os mais tem repartimentos -pera os ossos, e corpos dos defunctos.</p> - -<p>Sóbe-se do pavimento d’esta Capella por seis degráos entre dous -presbiterios, nos quais estão as sepulturas do Fundador, e sua Irmam: a -primeira da parte do Evangelho com o Epitaphio que se segue.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>D. Franciscus á Castro, Episcopus olim Aegitanensis, hujusce -Sanctuarij, ac interioris Cœnobij fundator, hunc sibi, dum viueret, -tumulum posuit, in quo et requiescet post mortem.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>A segunda, com este, da parte da Epistola.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>D. Violante de Castro Cometissa relicta vidua Domini Alfonsi de -Noronha, Comitis Odomirensis hic quiescit, obijt XIV, Kalendis Iulij, -anno Domini DC. XXXXVI. Sorori optimæ, seu verius matri, Frater -amantissimus dedit, posuit.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Sobre estes degráos está o Altar de jaspes<span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span> brunidos, apartado do -retabolo, em forma que fica emparando a entrada do Choro, que detraz -do mesmo Altar tem os Irmãos da casa de Noviços; e a que se entra por -entre dous pedestaes de jaspes brunidos de treze palmos de alto, nove -de largura, onze de grossura. No fronstispicio delles se veem duas -tarjas embutidas de jaspes brancos, cercadas de suas faxas de outros -pretos, na que fica da parte do Evangelho está escripta a instituição -da Capella na forma seguinte.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Ad maiorem ineffabilis Eucharistiæ venerationem, peculiarem Deiparæ -Virginis de Rosario honorem; indiuiduam Patriarchæ Dominici, Martyrum -Nazarij, Celsi, Victoris, ac Innocentij confessoris memoriam, ædem hanc -in penetralibus Sacratiorem Erexit, Condidit, Dicauit D. Franciscus á -Castro Episcopus olim Aegitanensis, Regis, ad status consilia adsidens, -rerum fidei moderator supremus. Anno Domini M.DC.XLVIII.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Na outra tarja, que fica da parte da Epistola, se contém as obrigações -dos suffragios, que por si deixou o Fundador, diz assim:</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Instituit ad altare triplex iuge sacrificium annuas pro defunctis -vigilias, iuniorum cœnobitarum adsciuit excubias, habitacula -coœdificauit: sibi religiose ante Dominum sepultura prouisa; maioribus -suis posuit monumenta, magis pie,<span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span> quam magnifice, quorum posteris -subtus aram Condictorium fecit, legauit in hæc opera pietatis sexcentos -annuos aureos.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Sobre estes pedestais se levantão de cada parte tres columnas de -folhagem até o meio, que proseguem em estriado, as dos cantos mais -recolhidas, as outras duas mais sahidas pera fóra, e corpulentas, entre -ellas se abrem nichos de alto abaixo, que recolhem varias reliquias -de Sanctos engastadas em custodias de preço. Estas seis colunas, que -todas são de lavores, vão receber a simalha do Altar, sobre a qual -se presenta á vista um quadro da Cea do Senhor, de singular pintura -acompanhado de duas colunas de macenaria galantemente lavradas, que vão -receber hum remate do mesmo quadro, unido já com a abobada da Capella. -Aos lados destas colunas ficão dous quartões ornados com duas pyramides -exteriores.</p> - -<p>Por entre as tres colunas de huma, e outra parte, que estão sobre -os pedestais, se fecha hum arco quasi da mesma altura das colunas, -que fica fazendo lugar ao Sacrario (em que sempre está o Sanctissimo -Sacramento alumiado com duas alampadas de prata). Do pavimento que -fica debaixo deste arco se levantão oito colunas em estylo oitavado, -que recebem huma charola alterosa com seu zimborio, que se remata com -hum Pelicano polla banda de fóra. Debaixo desta charola se levanta -hum throno em forma quadrada com quatro colunas<span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span> pequenas, que fazem -os cantos, com que se forma a primeira peça, na qual se abrem dous -nichos, hum pera a parte do Choro, outro pera a Capella; o do Choro -tem uma Imagem de nosso Padre S. Domingos, o que fica pera a Capella -occupa outra de nossa Senhora de singular estimação por antiguidade, e -feitio; he um meio corpo de alabastro, com o braço esquerdo abraça o -minino que se sustenta em pé sobre uma almofada, e na mão direita tem -hum livro, tudo da mesma pedra. Dá a estas imagens inestimavel valor a -antiguidade, que em outras nações, com mais primor, e felicidade, que -na nossa, avalia semelhantes obras; porque segundo a certeza que disto -ha, e o Bispo tinha, estiverão estas imagens occultas, e sepultadas no -muro da Cidade de Tunes, desde o tempo, que os mouros a tomarão aos -Christãos, até que o Emperador Carlos Quinto lha ganhou, que então -se descobriram, não sem mysteriosa circumstancia, porque batendo a -artilharia o muro, e arruinando parte d’elle, cahiram as imagens sem -padecer lesão alguma. O Infante Dom Luiz, que n’esta empresa se achou -com o soccorro de Portugal, grandiosamente abreviado naquelle celebre -galeão de 366 peças, e ajudou a ganhar a victoria, por despojo d’ella -escolheo só estas imagens, que despois deu a Dom João de Castro, Avô do -Bispo fundador.==</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span></p><div class="blockquot"> - -<p>(<i>Historia de S. Domingos particular do reino e conquistas -de Portugal, por fr. Luis de Cacegas, reformada por fr. Luis de -Sousa, filho do convento de Bemfica. Ampliada por fr. Antonio da -Encarnação.</i> Lisboa, 1866; 2.ᵃ parte do 3.ᵒ vol., pag. 198).</p> -</div> - -<p>Quantas recordações nobilissimas nesta capella! Agora a elegante -construcção está ameaçando ruina. Parece-me todavia facil acudir-lhe. -A frontaria desligou-se um pouco do corpo do edificio, entra agua de -chuva pela fenda produzida pelo desvio. Alguns annos de desleixo e a -ruina será enorme, o concerto dispendioso. Dizem-me que esta capella -está na posse de um particular, ha tempos ausente de Portugal. E não -sei se ainda ha culto ahi; essa parte do edificio está habitada por uma -congregação feminina, estrangeira; nada dizem, respondem sempre que não -sabem da chave.</p> - - -<h3>Fr. Vicente de Lisboa</h3> - -<p>D. João 1.ᵒ cedeu a Casa real de Bemfica a fr. Vicente de Lisboa para -estabelecimento do instituto dominicano, em 1399.</p> - -<p>Este fr. Vicente era provincial da sua ordem em Castella e Portugal, -inquisidor geral de Hespanha, confessor e prégador de D. João 1.ᵒ -Foi com certeza um vulto importante. Barbosa Machado, na Bibliotheca -Lusitana falla delle, firmando-se no epitaphio que primitivamente -marcava o logar de repouso das suas reliquias.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span></p> - -<p>Ahi se <em>lia per illum</em> (fr. Vicente) <i lang="la" xml:lang="la">in hac civitate</i> -(Lisboa) <i lang="la" xml:lang="la">et in diversis hujus regni partibus, destructa fuerunt -opera diaboli et haereses erroresque, atque idolatriae.</i> <i lang="la" xml:lang="la">Edidit -etiam varios libros excellentis doctrinae.</i></p> - -<p>Barbosa Machado diz que não conseguiu vêr nenhum de taes livros. Mas -sabe pelo epitaphio que elle combateu as crendices populares, as -superstições viciosas, as praticas pagans observadas ainda no seu tempo -pela gente rude. É tarefa antiga esta de combater tradições, bruxarias, -costumeiras, que hoje fazem as delicias dos folqueloristas. Ainda não -vi tambem livro que se possa attribuir a fr. Vicente de Lisboa; mas -não se perde a esperança. É bem possivel que nalguma antiga collecção -de sermões se contenham os do prégador de D. João 1.ᵒ Na livraria do -infante D. Fernando havia um volume assim designado==<i lang="la" xml:lang="la">Item, hum livro -de pregações de frey Vicente per lingoagem</i>. (T. Braga, <i>Historia -da Universidade de Coimbra</i>, 1.ᵒ pag. 229).</p> - -<p>Muitas obras que se julgavam perdidas teem surgido nos ultimos annos. -Os tratados de alveitaria e citraria (este incompleto) de mestre -Giraldo existem na Bibliotheca Nacional, assim como uma copia antiga -do <i>Livro de Montaria de D. João 1.ᵒ</i> O tratado da phisionomia, -<i>Opus de physiognomia</i>, de mestre Rolando, está na Bibliotheca -da Ajuda. Nos Documentos historicos da cidade de Evora dei noticia e -grandes extractos dos tratados medicos,<span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span> da idade media, existentes na -livraria d’aquella cidade.</p> - -<p>O sr. Leite de Vasconcellos, o nosso grande investigador, foi descobrir -em Vienna, uma versão portugueza das fabulas de Esopo, que já publicou -na Revista Lusitana.</p> - -<p>Por isto não perco a esperança de ver ainda um dia alguma obra de fr. -Vicente de Lisboa.</p> - - -<h3>Fr. Bartholomeu dos Martyres</h3> - -<p>Uma parte do convento que olha para norte está bastante arruinada; -eram ahi os dormitorios do noviciado; as janellas das humildes cellas -deitam para a cerca; a vista dilata-se por aquelles campos e collinas -verdejantes de Bemfica, jardins, frescos hortejos, copados arvoredos. -Uma d’essas pequeninas janellas é a do quarto que por muitos annos foi -habitado por um homem dos raros, dos mais raros, que tem havido em -Portugal, fr. Bartholomeu dos Martyres.</p> - -<p>Foi aqui professor muitos annos.</p> - -<p>Primeiramente esteve, ensinando já, no convento da Batalha.</p> - -<p>Passou ao convento de Evora porque o infante D. Luiz, desejando fazer -grande lettrado seu filho o sr. D. Antonio, depois prior do Crato, -infeliz rei e exilado, instou e conseguiu que fr. Bartholomeu fosse ler -theologia nos dominicanos de<span class="pagenum" id="Page_30">[Pg 30]</span> Evora; ahi conheceu fr. Luiz de Granada, -outro raro. Permaneceu em Evora alguns annos; obrigaram-no então a -vir ser prior de S. Domingos de Bemfica, que era o grande noviciado -de Portugal. Vivia muito pobremente, sem a minima ostentação; amigo -do Convento e mais amigo da cella; dormindo pouco, comendo pouco. -Enthusiasta professor estava sempre prompto a ensinar; lia aos noviços -disciplinas superiores, mas se via necessidade fazia cursos d’artes -elementares, aos rapazes; fazia praticas numa capella da egreja. Era um -eloquente, como fr. Luiz de Granada; e ás vezes arrastado pelo calor -da palavra, enthusiasmava-se, e enthusiasmava o auditorio; uma vez -terminou a pratica chorando elle e todos os ouvintes.</p> - -<p>Gostava de passear na cerca, e estava muitas vezes á janella da sua -pobre cella; os noviços ouviam-no cantarolar a meia voz, tomando o ar, -encostado ao peitoril da janella que dá para o campo.</p> - -<p>As visitas contrariavam-no um pouco, o cardeal D. Henrique, o infante -D. Luiz frequentavam o convento; um dia instaram com elle para que -acceitasse a mitra de Braga. Do tranquillo cantinho de S. Domingos de -Bemfica para o paço archi-episcopal de Braga!</p> - -<p>Largar o convento, as aulas, a cêrca, a sua cella tão boa para o -estudo! Não queria, não queria! Foi a rainha D. Catharina que o mandou; -elle então obedeceu. Foi sempre um altruista, espirito<span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span> cheio de -abnegação. Preparou-se para a partida, teve de deixar por algum tempo -Bemfica; mas antes de partir definitivamente para Braga foi passar um -dia a S. Domingos, ao querido sitio de Bemfica, foi despedir-se da -egreja, das aulas, da sua tranquilla cella, das arcadas silenciosas do -claustro, da fonte da horta, das arvores, das flores.</p> - -<p>E foi para Braga, para aquellas extranhas missões das montanhas -minhotas, e para as solemnes discussões do concilio de Trento.</p> - -<p>Era por indole um professor, gostava de ensinar. Tanto que se viu -livre da mitra primacial elle ahi vae para o seu retiro de Vianna do -Lima, ensinar rapazes; nos seus passeios pelos campos o bom velhinho, -ás vezes, assentado a repousar, doutrinava os humildes pastores. Que -esta raça portugueza em tempos antigos produziu mestres em sciencias -e lettras que illuminaram universidades em Hespanha, Italia e França. -Merece ainda attenção este homem no ponto de vista da hygiene em geral; -pelo seu regime de vida, habitos e predilecções. Usava fazer grandes -passeios a pé, era sóbrio, de bom humor. Lendo hygienistas modernos, -Gautier (Armand—<i lang="fr" xml:lang="fr">L’alimentation et les regimes chez l’homme sain -et chez les malades</i>) por exemplo, encontram-se conselhos para a -vida dos intellectuaes, que lembram logo o methodo de vida de fr. -Bartholomeu dos Martyres.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span></p> - - -<h3>D. Isabel Maria</h3> - -<p>A infanta D. Isabel Maria residiu bastantes annos na sua casa de S. -Domingos de Bemfica. Velhinha, adoentada nos ultimos tempos, cheia -de recordações, por alli passeava morosamente sob as magnolias e os -cedros. A quinta está contigua á cerca do convento.</p> - -<p>O palacio parece que foi construido em tempo de um certo Devisme -negociante e capitalista, grande amigo do marquez de Pombal, que tambem -se importava de politica, tendo altas relações no estrangeiro, ahi -pelo meio do seculo XVIII. As estatuas de marmore que ornam o jardim -são d’essa época, mas o desenho, a disposição foi alterada. No palacio -houve mudanças e ainda nos ultimos annos foi ampliado; está installado -alli o bem afamado collegio de Jesus, Maria, José; grande numero das -senhoras da fina sociedade actual passou por esse estabelecimento de -educação.</p> - -<p>Depois de Devisme pertenceu a bella propriedade á casa dos marquezes -de Abrantes, illustre familia. Por morte do ultimo marquez, em 1847, -foi comprada pela infanta D. Isabel Maria filha de D. João VI, e de D. -Carlota Joaquina. Nasceu a infanta em 4 de julho de 1801, e falleceu a -22 de abril de 1876, pelas 3 horas da tarde.</p> - -<p>Interessante figura; vida que em grande parte decorreu entre agitações -politicas e palacianas; presidente da junta de regencia, em 6 de -março<span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span> de 1826, ficando de parte a rainha D. Carlota, por occasião da -enfermidade de D. João VI, e por morte d’este, regente em nome de D. -Pedro IV, até ao celebre dia 22 de fevereiro de 1828, em que depoz o -governo nas mãos de D. Miguel. Foram um horror esses tempos de paixões -violentas, de conspirações politicas, que não paravam no vestibulo -do paço, e até de lá partiam, pois conspiradora foi sempre a mal -aventurada D. Carlota Joaquina.</p> - -<p>Devia ser curioso este sitio de S. Domingos de Bemfica nessa longa -crise politica dos primeiros decennios do século passado, porque -os Fronteiras, os Mascarenhas, entraram na tentativa de 1805, e -continuaram até á ultima no liberalismo; os da casa d’Abrantes e os -dominicanos inclinavam-se ao absolutismo.</p> - -<p>Mas a infanta que no Paço viu as discordias insensatas entre pae e mãe, -e na politica encontrou o tumulto entre exaltadas individualidades, -entre partidos raivosos, conseguiu equilibrar-se desempenhando com -superioridade o melindroso cargo de regente.</p> - -<p>Crescendo a idade retirou-se, cada vez mais; por fim metteu-se no seu -ninho de S. Domingos, nas sombras abrigadas e aromaticas das suas -magnolias.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span></p> - - -<h3>Palacio e jardim Fronteira</h3> - -<p>Entre as mais notaveis vivendas destes sitios de Bemfica sobresae -o palacio Fronteira com os seus lindos jardins e fresco hortejo, -singulares obras d’arte e historicas recordações.</p> - -<p>Dizem que o primeiro marquez de Fronteira, D. João Mascarenhas, mandou -fazer na sua propriedade um pavilhão de caça para receber a visita -del-rei D. Pedro II, e esse foi o núcleo do palacio: isto pelos annos -de 1670 a 1681. Antes certamente havia outras construcções porque a -elegante capella é de 1584. O terremoto de 1755 arruinou o palacio -de Lisboa; foi a familia Fronteira residir para Bemfica, e então -ampliaram o tal pavilhão formando-se o palacio actual. O grande jardim, -a monumental galeria e cascata, devem ser do fim do século XVII, com -grande influencia do estylo italiano.</p> - -<p>Os azulejos da magnifica sala do pavilhão referem-se á batalha do -Ameixial. É pena não se conhecer bem a formação d’esta vivenda porque -se póde affirmar notavelmente conservada, exemplo rarissimo em Portugal.</p> - -<p>O jardim é um enlevo, no genero antigo, com as suas estatuas, fontes -artisticas, grande peça d’agua, grutas, escadarias, varandas de -balaustrada, elegantes pavilhões.</p> - -<p>Muito regular, taboleiros geometricos e symetricos, com ruas e -travessas, e pequenas praças,<span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span> sendo maior a central onde se ergue -artistica fonte de taça alta, ostentando em pinaculo os escudos dos -Mascarenhas.</p> - -<p>A poente a fachada do palacio, a sul a galeria dos reis; norte e -nascente moldura ou parede de arvoredos, com vista para o campo; -compridos assentos azulejados.</p> - -<p>Ha estatuas no jardim, na parede do tanque, dentro do tanque, na -varanda da galeria, em nichos, nos vertices dos pavilhões!</p> - -<p>Entre matizes de flores e aromas riem faunos, dançam nymphas, os deuses -teem sorrisos benevolentes.</p> - -<p>Brilha ao sol o paganismo.</p> - -<p>Na gruta maior que abre para o tanque está o Parnaso, um monte com o -Pégaso alado e galopante, e em roda, a variadas alturas, Apollo e as -Musas, estatuetas em fino marmore.</p> - -<p>Na parede da galeria quadros de azulejo com figuras de cavalleiros, -doze na frente, dois nos lados, os cavallos a galope, parecendo que vão -entrar em renhido torneio.</p> - -<p>Á esquerda, olhando para a galeria, ha muitos retratos, em azulejo, -dos Mascarenhas, condes de Obidos, Torre, Santa Cruz, marquezes de -Fronteira; á direita, fronteando os retratos, estão representados os -brazões.</p> - -<p>Na galeria em nichos forrados de azulejos hespanhoes, de reflexo -metallico, uns acobreados, alguns de tom azul, bustos dos reis de -Portugal,<span class="pagenum" id="Page_36">[Pg 36]</span> entrando o conde D. Henrique, e o infante D. Fernando o -santo. Os ultimos bustos d’esta galeria, os de Affonso VI e Pedro II, -são os de melhor trabalho. Uma porta communica para o jardim alto ou -moderno; segue a segunda galeria dos reis, D. João V, D. José, D. Maria -I e D. João VI. Sobre a porta entre as galerias um busto do imperador -Tiberio, talvez copia de busto authentico.</p> - -<p>Estatuas mythologicas, faunos prasenteiros, gentis nymphas dançantes, -ornam plinthos no jardim, e as balaustradas. Azulejos estranhos, -hespanhoes e hollandezes, fazem rodapés, representando scenas -familiares, caçadas, episodios agricolas.</p> - -<p>Embrechados finos de buzios e conchas, fragmentos de louças orientaes, -vidros pretos, cristaes de rocha, bocados de escorias, em complicados -desenhos, forram paredes das cascatas. N’uma grande parede do jardim -molduras e ornatos em faiança, folhagens, flores e fructos no genero -chamado dos Della Robia.</p> - -<p>Neptuno e o seu cortejo, em grande quadro de azulejo; outro em relevo -de alvenaria infelizmente em grande estrago, cumprimentam um rio, o -Tejo, provavelmente.</p> - -<p>Num quadro de azulejo o ratão do artista representou Jupiter, e pintou -ao lado o nome assim: <i>Ghvptre</i>.</p> - -<p>No jardim moderno, entre fetos magnificos e grande collecção de -camelias, ha uma fonte central,<span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span> de taça, com a estatua de Venus. O pé -da taça é um grupo de golphinhos lavrado num lindo bocado de marmore -com laivos avermelhados.</p> - -<p>Dizem que a esta Venus se refére Tolentino na satyra intitulada <i>A -funcção</i>.</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">Musa basta de rimar</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">...................</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">...................</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">... sincera velha</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Pondo contra a luz a mão</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">E crendo que nesta rua</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Está São Sebastião</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">De Venus á estatua nua</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Faz mesura e oração.</span><br /> -</p> - -<p>É bem interessante a historia dos jardins; conhecem-se exemplos do -Egypto, da Assyria; celebres entre os romanos os de Plinio e de -Sallustio, ornamentados de terraços, fontes, estatuas.</p> - -<p>Cultivavam rosas, lyrios, violetas, malvas, algumas arvores e arbustos -cortados e aparados em feitios caprichosos, como o louro e o buxo; -estimavam muito o esguio cypreste, e a vinha como planta decorativa.</p> - -<p>E neste ponto tinham muita razão porque a parreira faz lindo ornato, -com mudança de tons, gracilidade de curvas, além do encanto do cacho, -quer se applique a edificios ou se enrosque em arvores.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span></p> - -<p>Mas os jardins conservaram-se regulares e symetricos durante seculos.</p> - -<p>O jardim irregular, de imprevistos, o jardim-paisagem é mais moderno.</p> - -<p>Ha muitos livros sobre jardins e construcções architectonicas -especiaes, fontes, repuxos e grandes jogos d’agua, cascatas, terraços, -caramanchões e pavilhões. Merece ver-se o livro de Alicia Amherst, -intitulado: <i lang="en" xml:lang="en">A history of gardening</i> (London, 1896), e <i lang="fr" xml:lang="fr">L’art -des jardins</i> por Jorge Riat, que faz parte da Bibliothèque -d’Enseignement des Beaux-Arts; qualquer d’estes livros indica -sufficiente bibliographia.</p> - -<p>Em Portugal ha bonitos jardins modernos e ainda alguns antigos -conservando os seus engenhosos desenhos; a invasão moderna de plantas -exoticas prejudica bastante o jardim antigo, araucarias e chamerops -não harmonisam bem nas combinações geometricas e symetricas, não podem -substituir as cevadilhas, as balaustras, de pequeno porte, de brilhante -folhagem e vistosa florescencia. Uma alta araucaria pyramidal destoa -nos bordados jardins de Caxias e Queluz. Arvores variadas, exoticas -ou naturaes, empregavam-se em fazer parede ou moldura de jardins, em -alamedas de horta ou laranjal.</p> - -<p>No Diccionario dos Architectos, vasto trabalho do sr. Sousa Viterbo, -por vezes apparecem architectos encarregados de obras em jardins, o -que não admira porque todos os jardins antigos tinham<span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span> obras d’arte -importantes, terraços, escadarias, balaustradas, cascatas enormes e -complicadas, com jogos d’agua, pavilhões, etc. (Dicc. dos Architectos, -vol. 1.ᵒ, pag. 62 e 395; 2.ᵒ, pag. 350 e 379).</p> - -<p>Póde dizer-se que o jardim antigo é principalmente architectonico, e -que o moderno é filho da pintura.</p> - -<p>Na Bibliotheca Nacional de Lisboa, a respeito de jardins ha livros -antigos notaveis, especiaes; e tambem em obras que não tratam de -cultura ou architectura dos jardins por incidente se topam vistas e -desenhos interessantes.</p> - -<p>Um certo in-folio grande, impresso em Roma, adornado com boas gravuras, -e o titulo <i lang="la" xml:lang="la">Villa Pamphilia ejusque palatium cum suis prospectibus, -statuae, fontes, vivaria, theatro, areolae, plantarum viarumque -ordines</i> apresenta-nos grande numero de estatuas proprias para -jardim e minuciosos desenhos dos terreiros ajardinados, que parecem -imitar salvas de prata repoussée; sem uma arvore saliente; arbustos -talhados, não muito altos, ornam os extremos. Era o jardim italiano, -classico.</p> - -<p>Numa obra de numismatica <i lang="la" xml:lang="la">I Cesari in metallo raccolti nel</i> -<span class="smcap">Museu Farnese</span>, por Pietro Piovene (Parma, 1727), ha lindas -gravuras com muitos aspectos e detalhes dos jardins da Villa Madama, e -do Palazzo di Caprarola (no tomo 1.ᵒ), mostrando bem a magnificencia, a -nobreza d’essas bellas vivendas italianas.</p> - -<p>Um allemão, <i>Hirschfeld</i>, escreveu uma vasta<span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span> obra, de que ha -versão franceza, em 4 volumes, <i lang="fr" xml:lang="fr">Theorie de l’art des jardins</i> -(Leipzig, 1779-1783).</p> - -<p>É trabalho notavel: trata dos jardins em varios pontos de vista, -da sua historia e da historia das plantas, do aproveitamento das -arvores segundo o seu effeito ou aspecto, das combinações, dos planos -differentes. No 4.ᵒ volume vi a noticia de Guilherme Kent o criador da -arte dos jardins em Inglaterra; era pintor e architecto. Descreve os -trabalhos de Le Notre, grande jardineiro francez. N’isto de jardins -ha escólas, muito bem definidas. Foi economica, principalmente, a -razão porque a escóla de Kent venceu a de Le Notre; o jardim á antiga -era de grande custeio; para se conservar bem era preciso trabalhar -constantemente. Só admittia flores finas, raras; na Hollanda o -enthusiasmo pela tulipa, a tulipomania, attingiu excessos. Kent -introduzindo arvores e arbustos fez grande economia. Ha o jardim -agradavel, o risonho, o majestoso, o romanesco; o jardim fidalgo, o -burguez, o campestre, o publico, o academico, o monastico, finalmente o -funebre.</p> - -<p>O tal allemão chega mesmo a projectar jardim para de manhã, do meio -dia, e da tarde; jardins para effeitos crepusculares. A cultura e a -disposição do jardim variam com os climas, e com a abundancia das aguas.</p> - -<p>É impossivel imitar nos paizes frios os jardins de Hespanha ou de -Italia; querer implantar nos paizes do sul os arrelvados inglezes é -arrojado.<span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span> A relva nada custa em Inglaterra, e em Portugal a murta, o -lirio, o cravo e a rosa não precisam cuidados.</p> - -<p>A leitura do Hirschfeld, me parece, é ainda hoje util a quem deseje -tratar de jardins publicos ou particulares.</p> - -<p>Porque ha uma esthetica de jardins, e tambem merece attenção a questão -economica. Em Portugal, por exemplo, não se usa da laranjeira ou da -vinha em jardins; e estão os jardins cheios de palmeiras monotonas. -Vê-se gastar muito dinheiro para ter bocadinhos de arrelvado, que o sol -de verão cresta numa hora.</p> - -<p>Vêmos formar talhões com uma só essencia, o que parece esthetica de -hortelão, quando as alamedas ou avenidas são muito mais pittorescas e -vistosas variando a qualidade das arvores.</p> - -<p>O jardim publico de Evora tem effeitos bonitos; foi planeado e plantado -pelo scenographo Cinatti, que calculou os aspectos que arbustos e -arvores dariam quando desenvolvidos. Infelizmente depois não seguiram, -completamente, as indicações do artista; todavia ainda é manifesto o -fino criterio que presidiu á disposição do arvoredo.</p> - -<p><i lang="it" xml:lang="it">Il reale giardino di Boboli nella sua pianta e nelle sue statue</i> -com o <i>Alticchiero</i> (Padua, 1787) é livro pouco vulgar.</p> - -<p>Muitas estampas finamente gravadas mostram os planos, os aspectos, e -principalmente as estatuas.</p> - -<p>O jardim Boboli, em Florença, tinha amphitheatro,<span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span> casino, palacetes, -jardim botanico, o pequeno jardim de Madama, o dos ananazes, o da -ilha, o da fortaleza, e a grande pesqueira de Neptuno. No jardim de -Oeiras havia tambem pesqueira; até ahi pescou á canna a rainha D. Maria -<span class="allsmcap">I</span>, na famosa visita que lá fez, no tempo do segundo marquez de -Pombal.</p> - -<p>Neste jardim Fronteira as tropas miguelistas em 1833 entraram sanhosas, -todavia parece que o estrago não foi consideravel. Diz-se tambem que se -tratou aqui da formação da Arcadia Lusitana, que os tres poetas Antonio -Diniz da Cruz e Silva, Theotonio Gomes de Carvalho, e Manoel Nicolau -Esteves Negrão por estes caramachões de rosas e jasmins discutiram as -bases da famosa academia litteraria. O snr. Theophilo Braga (pag. 180 -de <i>A Arcadia Lusitana</i>) conta que os tres poetas se reuniam em -Bemfica; mas ha tradição de que era na quinta dos Fronteiras que elles -frequentavam, e de que mesmo um d’elles perto morava.</p> - -<p>José Maria da Costa e Silva, no seu poema <i>O Passeio</i>, diz que em -Portugal se chamavam jardins de D. João de Castro, aos irregulares, por -ter sido o famoso heroe o primeiro que os plantou na Europa:</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">Vêde Castro, o terror dos reis do Oriente</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">.....................................</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">E o primeiro mostrar d’Europa ás gentes</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Dos chinezes jardins a variedade.</span><br /> -</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span></p> - -<p>Em outra parte escreve:</p> - -<div class="blockquot"> - -<p>Dos chinezes jardins chistoso typo!</p> -</div> - - -<h3>A marqueza d’Alorna</h3> - -<p>Um nome de grande dama portuguesa se liga á residencia Fronteira; aqui -viveu por algum tempo <i>Alcipe</i>, nome arcadico de D. Leonor de -Almeida Portugal Lorena e Lencastre, condessa de Oyenhausen e marqueza -de Alorna (n. 1750—m. 1839).</p> - -<p>Mas por poucos annos. Ella esteve, menina e moça, reclusa no mosteiro -de Chellas, viveu em Vienna, em Paris, em Londres, por esse mundo fóra, -sempre superior dama portuguesa, de altaneira mente; depois em Portugal -ora na sua quinta de Almeirim, ora na de Almada; por muitos annos na -hospitaleira e fidalga casa a Santa Izabel.</p> - -<p>Pousou em Bemfica, é verdade, em annos de aspera lucta pelo nome de -sua casa; e, verdade é tambem, lá vi, na galeria envidraçada que olha -para o jardim, memorias, retratos, lembranças familiares, d’essa -extraordinaria senhora.</p> - -<p>Que existencia tão rodeada de surprezas tragicas, cheia de duradouras -inquietações, a d’esta nobilissima dama portuguesa, que soube responder -á sorte rude com santas idéas, corajosos trabalhos, e composições de -serena poesia. Parece que n’esses<span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span> poucos annos que passou na vivenda -de Bemfica foi que ella conheceu um moço de aspecto um tanto agreste, -de firme vontade, espirito altivo, intelligencia clara, que se chamou -Alexandre Herculano; muitos annos volvidos, a marqueza teve vida longa, -viu ella com ineffavel prazer, o moço estudioso e attento desenvolvido -no collossal escriptor.</p> - -<p>É adoravel o que Herculano escreveu a respeito da marqueza, poucos -annos depois da morte d’ella.</p> - -<p>Vou apresentar alguns extractos d’esse notavel artigo publicado no -<i>Panorama</i>, de 1844.</p> - -<p>==Por grande que deva ser a gratidão que se associa ás recordações -d’aquelles que nos geraram, por funda que vá a saudade inseparavel da -memoria paterna, no coração do bom filho, ha um affecto não menos puro, -e não menos indestructivel, para o homem cujo espirito allumiado pela -cultura intellectual tem a consciencia de que o seu logar e os seus -destinos no mundo são mais elevados e nobres que os d’esses tantos -que nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois -morrerem sem deixarem vestigio. Este affecto é uma especie de amor -filial para com aquelles que nos revelaram os thesouros da sciencia, -que nos regeneraram pelo baptismo das lettras; que nos disseram: -«caminha!» e nos apontaram para a senda do estudo e da illustração, -caminho<span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span> tão povoado de espinhos como de flores, e em cujo primeiro -marco milliario muitos se teem assentado, não para repousarem e -seguirem ávante, mas para retrocederem desalentados, quando sósinhos -não sentem mão amiga apertar a sua e conduzi-los apoz si. Tirae á -paternidade os exemplos de um proceder honesto, as inspirações da -dignidade humana, a severidade para com os erros dos filhos, os -cuidados da sua educação, e dizei-nos o que fica? Fica um certo -instincto, ficam os laços do habito, e para impedir que tão frageis -prisões se partam, fica o preceito de cima que nos ordena acatemos e -amemos os que nos geraram, ainda que a elles não nos prenda senão a -dadiva da existencia, esse tão contestavel beneficio. Pelo contrario -aquelles que foram nossos mestres, que nos attrahiram com a persuasão -e com o proprio exemplo para o bom e para o bello, que nos abriram as -portas da vida interior, que nos iniciaram nos contentamentos supremos -que ella encerra, para esses não é preciso que a lei de agradecimento e -de amor esteja escripta por Deus; a rasão e a consciencia estamparam-na -no coração: cada gôso intellectual do poeta, do erudito, do sabio lha -recorda, e quando elles se comparam com o vulgo das intelligencias -reconhecem plenamente a justiça do sentimento de gratidão que os domina.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Áquella mulher extraordinaria a quem só faltou outra patria que não -fosse esta pobre e esquecida<span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span> terra de Portugal, para ser uma das mais -brilhantes provas contra as vans pertenções de superioridade excessiva -do nosso sexo, é que eu devi incitamentos e protecção litteraria, -quando ainda no verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada -das lettras.</p> - -<p>Apraz-me confessa-lo aqui, como outros muitos o fariam se a occasião -se lhes offerecesse; porque o menor vislumbre d’engenho, a menor -tentativa d’arte ou de sciencia achavam n’ella tal favor, que ainda -os mais apoucados e timidos se alentavam; e d’isso eu proprio sou bem -claro argumento. A critica da senhora marqueza d’Alorna não affectava -já mais o tom pedagogico e quasi insolente de certos litteratos que -ás vezes nem sequer entendem o que condemnam, e que tomam a brancura -das proprias cans por titulo de sciencia, de gosto, e de tudo. A sua -critica era modesta, e tinha não sei o que de natural e affectuoso que -se recebia com tão bom animo como os louvores, de que não se mostrava -escaça quando merecidos.</p> - -<p>Uma virtude, rara nos homens de lettras, mais rara talvez entre as -mulheres que se teem distinguido pelo seu talento e saber, é a de não -alardearem escusadamente erudição, e essa virtude tinha-a a senhora -marqueza em grau eminente. A sua conversação variada e instructiva era -ao mesmo tempo facil e amena.</p> - -<p>E todavia dos seus contemporaneos quem conheceu tão bem, não dizemos -a litteratura grega e<span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span> romana, em que igualava os melhores, mas a -moderna de quasi todas as nações da Europa, no que nenhum dos nossos -portugueses porventura a igualou?</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Ahi verá como em todas as phases da sua larga e não pouco tempestuosa -carreira ella soube dar perenne testemunho do seu nobre caracter -de independencia e generosidade; verá que em quanto na terra natal -primeiro a tyrannia, e depois a ignorancia e a inveja a perseguiam, -ella ia encontrar entre estranhos a justa estimação de principes, e de -illustres personagens da republica das lettras. Ahi verá como nascida -no seculo do materialismo, vivendo largos annos no fóco das idéas -anti-religiosas, acostumada a ouvir todos as dias repetir essas idéas -por homens de incontestavel talento, ella soube conservar pura a crença -da sua infancia, e expirar no seio do christianismo. Ahi finalmente -verá como as ausencias, por vezes involuntarias, da sua terra natal, -não poderam fazer-lhe esquecer o amor que devemos a esta, ainda no meio -das injustiças e violencias de todo o genero. ==(<i>Panorama</i>, pag. -403 e 404 do vol. de 1844, artigo assignado por A. Herculano).</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span></p> - - -<h3>A capella do palacio</h3> - -<p>Em 11 de fevereiro de 1903 se rezaram missas de corpo presente pela -alma do marquez de Fronteira na pequena capella do palacio.</p> - -<p>É um templosinho elegante com seu portico de columnas em estylo da -renascença classica. Sobre a porta tem o letreiro:</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;"><i lang="la" xml:lang="la">Dicatum charitati coeli</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i lang="la" xml:lang="la">januae M.D.LXXX.IIII</i></span><br /> -</p> - -<p>É certo que o estylo diz perfeitamente com a data 1584. É possivel que -tenha havido transformação grande de outra capella anterior, porque é -tradição que S. Francisco Xavier antes de partir para a India, alli -celebrou a sua ultima missa em Portugal, e o santo apostolo das Indias -deixou Lisboa em 1541.</p> - - -<h3>Sepultura de João d’Aregas—O escudo d’armas</h3> - -<p>==É a sepultura uma grande caixa de marmore assentada sobre quatro -leões, lavrada em torno de escudos de armas, quarteados em aspa, e nos -campos alto e baixo em cada um sua cruz floreada da feição das da Ordem -de Aviz; e nos campos de cada lado uma serpe com azas ameaçando para -fóra; na lagea que a cobre está o defunto entalhado<span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span> de relevo, vestido -em roupas largas e barrete posto, insignias de letrado; mas acompanhado -tambem das de cavalleiro, que são seu estoque á ilharga; as mãos juntas -sobre o peito como quem faz oração.==(<i>Historia de S. Domingos</i>, -pag. 176).</p> - -<p>Como se disse já, a mão direita da estatua segura um livro, e segurava, -sobre o peito; a esquerda que inclinava sobre o coração e se partira e -extraviára, está agora substituida por outra nova, erguida, segurando -um rolo de papel.</p> - -<p>No Thesouro da Nobreza descreve-se assim o brazão:</p> - -<p>==Escudo franxado nos campos alto e baixo em vermelho uma cruz aberta -e floreteada, nos quarteis dos lados em campo d’oiro uma serpente -vermelha batalhante. Timbre as duas serpentes do escudo.==</p> - -<p>Sobre esta familia de Aregas, ou das Regras, encontro uma longa memoria -de José Freire de Montarroyo Mascarenhas, no 5.° vol. dos Titulos -genealogicos (B. N. L. Sec. Mss. Cod. 1034, pag. 289 e segg.)</p> - - -<h3>Nomes de artistas</h3> - -<p>Percorrendo a «Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, e -escultores, architectos e gravadores portuguezes... por Cyrillo Volkmar -Machado (Lisboa, 1823)» encontro o seguinte:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span></p> - -<p>—<i>André Gonçalves</i>, o pintor da Vida de José do Egypto na -sacristia da Madre de Deus, fez os quadros no côro de S. Domingos de -Bemfica. Este artista falleceu em 15 de junho de 1762—. Os quadros -no espaldar do côro representam a vida de N. Senhora; acham-se -regularmente conservados. Entre os quadros ha figuras de anjos, em -variadas posições, do mesmo pincel. Não são notaveis; parecem feitos -sobre estampas vulgares; monotonos no colorido; todavia o effeito do -conjuncto é agradavel.</p> - -<p>—<i>José da Costa Negreiros</i> (m. 1759) pintou a casa do Capitulo—. -A casa que serve á Irmandade da S.ᵃ do Rosario tem pinturas que podem -ser deste artista.</p> - -<p>—<i>Ignacio de Oliveira Bernardes</i> (n. 1695—m. 1781), esteve em -Roma; foi pintor, architecto, decorador; foi este o architecto da casa -e quinta de Gerardo Devisme (actualmente o collegio).—Pertencia a -uma familia de artistas que trabalhou immenso em varios generos. Por -muitas partes se encontram ainda producções destes homens. Os azulejos -da egreja, como já disse, estão assignados por Antonio de Oliveira -Bernardes.</p> - -<p>—<i>Jeronimo Correia</i>, esculptor em madeira, fez em Bemfica os -ornatos das capellas.—Se foi este que executou o sacrario, elegante -obra d’arte, era sem duvida um optimo artista.</p> - -<p>—As duas grandes imagens da capella mór, S. Domingos e S. Pedro -Martyr, são obra do<span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span> melhor esculptor que viveu em Hespanha, por -1651.—Acho esta noticia assim indeterminada em varias partes; creio -que se referem ao esculptor português <i>Manuel Pereira</i> (m. 1667).</p> - -<p>Francisco d’Assis Rodrigues no seu diccionario diz que Manuel Pereira, -o primeiro esculptor português, foi o autor das imagens de Christo, S. -Jacintho, e S. Pedro, em S. Domingos de Bemfica.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>D. frei Fernando de Tavora</i> (m. 1577), religioso de S. Domingos, -discipulo de fr. Bartholomeu dos Martyres, estimava muito a arte da -pintura, e nella excedeu os melhores pintores do seu tempo; alguns dos -seus paineis se conservam ainda em S. Domingos de Bemfica (<i>Santarem -edificada</i>, de Piedade e Vasconcellos, 2.ᵃ parte, pag. 464).</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Na egreja vejo os bellos azulejos; o lindo trabalho, majestoso e bem -equilibrado, do altar mór, o cadeirado e as pinturas do côro, alguns -quadros nas capellas, e as imagens. Entre estas sobresaem as figuras do -Crucificado, a da S.ᵃ do Rosario, as grandes estatuas de S. Domingos -e S. Pedro Martyr. É possivel que sejam de Manuel Pereira (V. o meu -artigo na <i>Arte Portugueza</i>, Lisboa, 1895, pag. 57). Careço de -elementos de comparação; não encontro assignatura, monogramma ou -documento. Em todo o caso o boato algo vale; e não tem duvida que as -esculpturas são boas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span></p> - -<p>No domingo de Paschoa, 3 de abril de 1904, celebrou-se missa no altar -mór, a primeira depois das morosas obras de concerto e reparo que -durante annos impediram os exercicios do culto.</p> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="O_lindo_sitio_de_Carnide">O lindo sitio de Carnide</h2> -</div> -<hr class="r5" /> -<p class="center">(1898)</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span></p> - -<p>Março de 1898.</p> - -<p>Por tristissimo incidente na minha vida tendo de passar uma temporada -em Carnide, onde a amabilidade de uma familia excellente nos quiz -espairecer da fatalidade brutal que nos feriu, eu, seguindo a velha -tendencia do meu animo, comecei de indagar historias, e dar passeios -pelas azinhagas solitarias; os largos passeios pelos campos que são a -melhor fórma de isolamento doloroso.</p> - -<p>Muito naturalmente, para esclarecimento, consultei alguns livros; o -primeiro que abri causou-me admiração; foi o <i>Diccionario Popular</i> -publicado sob a direcção de Pinheiro Chagas.</p> - -<p>—É sitio procurado no verão por alguns habitantes da cidade, que ali -vão convidados pela sua amenidade. Gosa o logar egualmente de reputação -de bons ares e abundancia de aguas, bem como alegre posição. Manda -a verdade que se diga que o logar é detestavel, formado por algumas -duzias<span class="pagenum" id="Page_56">[Pg 56]</span> de casas insalubres, dispostas em arruamentos sujissimos, para -os quaes se fazem todos os despejos, e não tem passeios, nem jardins, -nem quintas, nem arvoredos, nem bons pontos de vista. As aguas são -extremamente escassas e os ares, por muito bons que podessem ser, -resentem-se das más qualidades do sitio. Ainda assim o logar grangeou -fama immerecida, e varias familias de Lisboa o procuram para terem dois -mezes de campo! São gostos!—</p> - -<p>Ora a verdade é que o sitio de Carnide me impressionou agradavelmente -com as suas largas vistas, brilhantes, matizadas de verdes, as suas -graciosas quintas, as suas azinhagas quietas entre vallados de -madresilvas, caniços, heras, roseiras, pilriteiros e congossas nas -juvenis florescencias do começo de primavera.</p> - -<p>E abri outro livro.</p> - -<p>Foi a <i>Corografia Portugueza</i> do bom padre Antonio Carvalho -da Costa (Lisboa, 1712), que no seu tomo 3.ᵒ trata de Carnide, mui -brevemente.</p> - -<p>Menciona a egreja parochial de S. Lourenço. Diz que o seu cura era -apresentado pelos priores do convento de Nossa Senhora da Luz e que o -logar tem oitenta visinhos com nobreza, duas ermidas, e muitas quintas -com uma fresca alameda: e relaciona os conventos.</p> - -<p>A alameda fresca é sem duvida a do largo da Luz.</p> - -<p>Recorri logo ao Pinho Leal, no seu <i>Portugal<span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span> antigo e moderno</i>, -enorme trabalho com algum joio, é verdade, mas onde o corajoso -colleccionador archivou muita noticia de valia.</p> - -<p>—Carnide, freguezia no districto de Lisboa, concelho de Belem (hoje é -freguezia de Lisboa), a seis kilometros a NNO. de Lisboa.</p> - -<p>Tem 260 fogos.</p> - -<p>Em 1757 tinha 250 fogos.</p> - -<p>É freguezia muito antiga, pois já existia em 1394.</p> - -<p>A maior parte é situada em fertil e saudavel campina, com lindas -vistas. Orago, S. Lourenço.</p> - -<p>O cura era da apresentação do prior da Luz, da Ordem de Christo, depois -passou a ser vigario collado perpetuo, com 80$000 réis de renda.</p> - -<p>A egreja de Nossa Senhora da Luz foi fundada por 1540, pela infanta D. -Maria, filha d’el-rei D. Manuel e de sua terceira mulher D. Leonor. A -fundadora está sepultada na capella-mór.</p> - -<p>O terremoto de 1755 damnificou muito esta egreja; existe apenas (agora -em bom estado, depois da obra recente que ali se fez) a capella-mór e o -cruzeiro.</p> - -<p>Continúo a seguir o Pinho Leal.</p> - -<p>Convento de freiras carmelitas descalças de Santa Thereza: é antigo, -foi reedificado pela infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, por -1680.</p> - -<p>Frades carmelitas descalços, de S. João da Cruz, fundado pela princeza -Michaela Margarida, filha<span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span> de Rodolpho II, imperador de Allemanha, por -1642, que n’elle está sepultada (nem o imperador se chamava Rodolpho; e -a pobre princeza está sepultada no convento de Santa Thereza, como logo -contaremos). A infanta D. Maria, filha de D. João IV, viveu aqui (no -convento de Santa Thereza) de 1649 até 1693. Foi mestra da infanta D. -Luiza, filha bastarda de el-rei D. Pedro II.</p> - -<p>Esta D. Luiza foi reconhecida por D. João V, que a casou com D. Luiz -Alvares Pereira de Mello, duque de Cadaval; por morte d’este casou -com D. Jayme, seu cunhado, que ficou sendo duque de Cadaval, porque o -primogenito morreu sem geração.</p> - -<p>A infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, veiu para aqui de -tenra idade. Reedificou a egreja e o mosteiro, ampliando muito o -edificio. Viveu recolhida sem professar. O reconhecimento como filha -do rei foi feito solemnemente na presença da familia real e da côrte, -no mosteiro. Esta senhora era muito estimada; as rainhas D. Luiza de -Gusmão, mulher de D. João IV, D. Maria Francisca Isabel de Saboya e -D. Maria Sophia de Neubourg a visitavam muito. O irmão, D. Pedro II, -encarregou-a da educação da filha, D. Luiza, que depois foi duqueza de -Cadaval.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>A procissão dos Passos de Carnide faz-se na 5.ᵃ dominga de quaresma -(este anno, 1898, foi em 27 de março).</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span></p> - -<p>A conhecida feira da Luz, com arraial e festa, é nos dias 7 e 8 de -setembro.</p> - -<p>O cirio do Cabo visitou Carnide pela primeira vez em 1437.</p> - -<p>Carnide está na 7.ᵃ ordem do giro. Em 1795 houve festa ruidosa porque -tomaram parte no cirio o principe D. João (depois D. João VI) e sua -mulher D. Carlota Joaquina.</p> - -<p>A Senhora do Cabo tem capella propria na egreja da Luz, na capella-mór, -á esquerda; ainda ahi existe um formoso frontal, com o brazão da -infanta D. Maria.</p> - -<p>Vamos ouvir o Padre Luiz Cardoso, no seu <i>Diccionario -Chorographico,</i> que infelizmente ficou incompleto. Este escreve em -1751:</p> - -<p>—Na egreja de S. Lourenço ha cinco altares, o maior, o de N. S.ᵃ do -Rosario, o de Christo crucificado, o de S. Miguel, e o de Jesus Maria -José. Havia então tres irmandades: a do Senhor, a de N. S.ᵃ do Rosario, -e a das Almas.</p> - -<p>Tem (tinha) a freguezia mais as ermidas do Espirito Santo, a de S. -Sebastião e a de N. S.ᵃ da Assumpção na quinta de José Falcão de -Gamboa, hoje o casal do Falcão.</p> - -<p>A fonte de N. S.ᵃ da Luz, antigamente da Machada, divide-se em duas, a -fonte de dentro e a de fóra.</p> - -<p>A de dentro está sob o altar-mór, a agua no sabor é grossa e salobra -mas mui sádia, e principalmente contra a pedra tem especial virtude, -e<span class="pagenum" id="Page_60">[Pg 60]</span> não consta que filho algum da terra padecesse semelhante achaque ou -outra qualquer pessoa que d’ella usasse.—</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>O <i>Santuario Mariano</i> de fr. Agostinho de Santa Maria é -repositorio de muitas informações, porque este extraordinario devoto -de Nossa Senhora a proposito das imagens que descreve, dá noticias das -egrejas e localidades onde se veneram.</p> - -<p>No tomo I, pag. 98, escreve da imagem de Nossa Senhora da Luz em -Carnide: e conta de como antes de 1463 foi captivo em Africa Pedro -Martins, natural de Carnide; este homem teve sonhos milagrosos, fez -promessas, e conseguindo livrar-se do captiveiro mourisco voltou á sua -patria, onde já existia a fonte do Machado, e edificou a ermida. A -fundação foi solemne, porque a ella assistiu D. Affonso V. É provavel -que este Pedro Martins fosse algum antigo companheiro d’armas d’el-rei -D. Affonso V, que a historia denominou o Africano, por causa das suas -arrojadas emprezas e valentes brigas no Algarve d’além-mar. Pedro -Martins collocou na ermida, em agradecimento, os grilhões do captiveiro.</p> - -<p>A infanta D. Maria, filha de D. Manuel, fez a nova egreja em 1575.</p> - -<p>A pag. 411 do mesmo tomo o padre Cardoso refere-se á imagem de Nossa -Senhora da Conceição, do côro do convento da Conceição no sitio de<span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span> -Carnide (depois em Arroyos), sem dar noticia importante.</p> - -<p>Fr. José de Jesus Maria, na <i>Chronica de Carmelitas descalços da -Provincia de Portugal,</i> tomo III, pag. 147, acha o logar de Carnide -situado em campo alegre e de ares puros, e cercado de muitas e curiosas -quintas que servem igualmente para o lucro e ao recreio.</p> - -<p>Compõe-se o logar de 264 visinhos (elle escreve em 1753).</p> - -<p>Falla do convento da Conceição que na sua quinta fundou Nuno Barreto -Fuzeiro.</p> - -<p>Do convento de Santa Thereza, nobilissimo seminario de infantas e -senhoras... onde tantas vezes chegou a pobreza, a ponto de ás vezes não -terem de comer.</p> - -<p>Mas as freiras tinham grande repugnancia em pedir; esperavam até á -ultima; nada havendo, nem a esperança, tocavam uma sineta, a sineta da -fome, pedindo soccorro. O mesmo succedia com as freiras do Calvario -em Evora; tinham tambem o toque da fome. Quando nada havia, nem se -esperava, iam para o côro, entoavam as suas rezas ao som do triste -signal. Por vezes, no convento de Carnide, houve coincidencias que -pareceram milagres. Uma vez ia a pobre soror, meio desfallecida, -começar o signal da fome, quando bateram estrondosamente á portaria. -Era um presente de atum assado que mandava a duqueza de Aveiro.</p> - -<p>Outra vez appareceram uns navegantes, salvos<span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span> de grande tormenta no -mar, com uma esmola de 20$000 réis.</p> - -<p>Em 1646 se dispôz a madre priora Michaela Margarida de Sant’Anna a -lançar a primeira pedra do convento novo. Foi o duque de Aveiro quem -lançou a pedra e d’isto se lavrou a inscripção==O duque de Aveiro, D. -Raymundo de Lancastre botou a primeira pedra deste convento a 2 de -junho de 1646.==</p> - -<p>Nova obra começou em 15 de outubro de 1662, commemorada em outra lapide -(hoje no cunhal da frontaria da egreja):==Maria Joannis Lusitaniae -Regis Filia hoc opus struxit anno Domini 1662.==</p> - -<p>A dedicação do templo de Santa Thereza foi em 15 de outubro de 1668.</p> - -<p>A capella-mór é de Santa Thereza.</p> - -<p>A do Evangelho é de S. João da Cruz.</p> - -<p>A da Epistola é da Senhora da Conceição.</p> - -<p>Defronte da grade do côro de baixo está a capella do Senhor dos Passos, -com procissão na 5.ᵃ dominga de quaresma.</p> - -<p>No côro alto ha muitas reliquias (é um grande relicario entalhado e -dourado, que se vê da capella-mór).</p> - -<p>A infanta D. Maria, filha de D. João IV, mandou fazer os retabulos.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span></p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Podemos affirmar, pois, que a egreja de Carnide era já parochial no -seculo XIV. Que no seculo XVI era logar de certa importancia, pois a -insigne infanta D. Maria, filha de D. Manuel, aqui veiu fundar egreja -e hospital. Depois os differentes conventos e obras particulares; as -grandes quintas com magnificas moradias, etc.</p> - -<p>Em 1712 tinha 80 visinhos com nobreza, o que é extraordinario; verdade -é que não sabemos bem onde chegaria então a freguezia de Carnide; que -no termo de Carnide se encontram bastantes casas, que podemos chamar -pequenas, com seus brazões em porticos e cunhaes, é verdade.</p> - -<p>Em 1753 tinha 264 fogos.</p> - -<p>Em 1757    »    250    »   </p> - -<p>Em 1875    »    260    »   </p> - -<p>Provavelmente a freguezia cedeu alguns fogos para a formação de outra -qualquer, ou então houve largo estacionamento.</p> - -<p>Actualmente (abril 1898) Carnide pertence ao 3.ᵒ bairro de Lisboa.</p> - -<p>Fogos, 337.</p> - -<p>Habitantes, 1:737.</p> - -<p>Sendo: varões, 1:018; femeas, 719.</p> - -<p>Solteiros, 710 varões e 404 femeas.</p> - -<p>Casados, 277 varões e 255 femeas.</p> - -<p>Viuvos, 31 varões e 57 femeas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_64">[Pg 64]</span></p> - -<p>Analphabetos, 432 varões e 353 femeas.</p> - -<p>Sabem ler, 6 varões e 18 femeas.</p> - -<p>Sabem ler e escrever, 580 varões e 345 femeas.</p> - -<p>É preciso lembrar que na freguezia de Carnide está o collegio militar, -o que produz as grandes divergencias nos numeros dos solteiros, dos -instruidos, etc.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>O sitio é agradavel, de amoravel paizagem, brilhante mesmo nos dias -bons; como o terreno é variavel na sua constituição, basaltos, -calcareos, argilas, as culturas diversas, e de tons que vão do claro -do rebento novo da vinha ao verde intenso do trigo, produzem um matiz -onde o olhar repousa sem achar monotonia. Pelas quintas ha arvoredos -sombrios, ou compridas latadas e hortejos cuidados, vinhas, searas, -geiras de fava ou batata. Trabalha-se, cultiva-se com intensidade, e -não sobram os braços porque os salarios dos trabalhadores ruraes são -maiores que em outras partes.</p> - -<p>A par da quinta antiga com seu palacio e capella ha o <i lang="fr" xml:lang="fr">chalet</i> -moderno, com as suas varias traducções, vivenda, tugurio e não sei -que mais. Bom exemplo de casa antiga é o casal do Falcão, com a sua -varanda alta, e as suas dependencias; casa mais moderna, do começo do -seculo XVIII, talvez, é a da quinta de Santa Martha, ou dos Azulejos, -assim chamada por ter forradas de azulejos as paredes que deitam para -o jardim, e as escadas, que são exteriores, a varanda, a nora, a<span class="pagenum" id="Page_65">[Pg 65]</span> -parede do tanque, e as paredes dos alegretes altos, tudo em assumptos -variados, em grandes quadros, em medalhões, com damas nobres, e -archeiros, e deuses mythologicos, e quadrinhos que fazem lembrar o -Nicolau Tolentino.</p> - -<p>Ao lado da propriedade grande e custosa ha a pequena que o saloio rega -com o suor do seu rosto, e com a agua que tira do poço ou do regato -com a <i>cegonha</i> ou picota, a grande alavanca que já figura nas -esculpturas do Egypto a levantar a agua do Nilo sagrado.</p> - -<p>De Carnide-Luz ha estradas para o Campo Grande, Telheiras, Paço do -Lumiar, Sete Rios, Bemfica, Odivellas ou da Beja, mais ou menos -assombradas, sempre agradaveis, por vezes com grandes vistas. A estrada -militar corta grande parte da freguezia, offerecendo sempre largo -horizonte.</p> - -<p>Eu tenho caminhado por estes sitios e acho adoraveis certas estradinhas -discretas, humildes carreteiras bordadas de vallados agora floridos, de -madresilvas e congossas, assombradas por oliveiras, olaias, cerejeiras; -de vez em quando uma palmeira rompe entre as larangeiras, um cypreste -ergue a sua pyramide verde escura.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Proximo da quinta dos Azulejos está o convento de Santa Thereza de -Jesus. Eu ouço repetidas vezes a sineta com um som fraco, lamentoso, -chamando á missa ou marcando as horas coraes.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span></p> - -<p>Os sinos de S. Lourenço são vibrantes, mui sonoros; aos domingos -tocam musicas festivas que ficam bem na grande e virente paizagem, -annunciando o dia de repouso a essa gente que tanto trabalha. Gosto de -os ouvir nas Ave-Marias da manhã quando o sol nascente rutila na grande -vidraça da egreja do cemiterio dos Arneiros.</p> - -<p>A egreja de Santa Thereza é bonita, de linhas sobrias, com uma só nave.</p> - -<p>O convento divide-se agora por duas communidades diversas. Uma parte -pertence ás freiras portuguezas, senhoras mui virtuosas, e com -excellente tradição por estes sitios. Outra parte ás freiras francezas, -irmãs de S. José de Cluny. Estas são mais numerosas e teem pupilas e -postulantes. Tem escola, e enviam pessoal para as missões africanas. As -portuguezas resam no côro de baixo, as francezas no côro de cima.</p> - -<p>Todo o tecto da egreja, nave, cruzeiro, capella-mór e côro alto é de -pintura antiga, de 1662 provavelmente, com as suas flores e fructos, -mascaras e garças, molduras quebradas e grinaldas, grandes espiraes de -folhagens, e figuras inteiras de virtudes. É muito lindo.</p> - -<p>Grandes paineis de azulejos com passos da vida de Santa Thereza forram -a egreja até certa altura; télas pintadas a oleo, em grandes molduras -de talha dourada, illuminam a parte mais alta das paredes.</p> - -<p>Entre estas reparo na grande téla que representa<span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span> o passamento de Santa -Thereza notavel na composição, no desenho e no colorido. É boa obra -d’arte e documento notavel na indumentaria e mobiliario. O quadro da -capella-mór é muito lindo tambem: composição importante, com muitas -figuras, e bem colorido.</p> - -<p>A obra de talha da capella-mór, relativamente moderna, é muito elegante -com o seu bello portico de columnas encimado pelas grandes figuras da -Fé e da Esperança.</p> - -<p>Os altares lateraes são revestidos de azulejos polycromos, com as armas -de Portugal entre ramarias e animaes, e moldura fingindo embrechado de -marmore amarello sobre fundo negro. Estes azulejos devem ser tambem do -seculo XVII.</p> - -<p>O pulpito e sua escada de páu brazil em torcidos e tremidos, com -applicações de metal amarello, é notavel, e merece attenção tambem a -especial pintura que cerca a janella, que está sobre a porta lateral da -egreja, da parte de dentro.</p> - -<p>A infanta D. Maria, filha de D. João IV, está no côro de baixo; sob a -grade d’este côro repousa uma princeza germanica.</p> - -<p>Reproduzo a inscripção desdobrando os breves:==Aqui debaixo d’esta -grade jaz a veneravel madre Michaella Margarida de Sancta Anna filha -do imperador Mathias, fundadora que foi d’este convento: resplandeceu -em virtudes, faleceu em 28 de setembro de 1663 de idade de 82 annos -havendo entrado na religião de 4 para 5 annos.==Esta inscripção<span class="pagenum" id="Page_68">[Pg 68]</span> está -gravada em tres linhas, com bastantes lettras inclusas.</p> - -<p>Ha n’esta egreja uma devoção especial a «Santa Agape V. M. cujos -despojos mortaes foram achados em Roma no cemiterio de Prescilla, sito -na estrada Salaria Nova, e pelo santo padre Gregorio XVI concedidos -á egreja de Santa Thereza de Carnide a 25 de abril de 1843... sendo -expostos á veneração dos fieis em 14 d’outubro de 1846.»</p> - -<p>No exterior, templo e convento são de extrema singeleza. Sobre a porta -principal a estatueta de Santa Thereza, e sobre a portaria a de S. José.</p> - -<p>No cunhal da esquerda da frontaria, lá está a inscripção:</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">M.ᴬ F.ᴬ IOANNIS IIII LVSI</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">TANIAE REGIS HOC OP</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">VS STRVXIT, ANNO</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">DNI. M.DCLXII.</span><br /> -</p> - -<p>Este convento conheceu dias de tormenta; quantas angustias passaram -atraz d’essas grades; nas grandes crises do tempo pombalino, dos -francezes, das guerras civis, muitas damas, algumas das mais nobres -familias de Portugal, aqui vieram asylar-se.</p> - -<p>Aqui esteve a duqueza de Ficalho a quem um capellão esperto dava -noticias dos filhos, todos no exercito do imperador, no meio de -motejos e allusões que contava em voz alta ás pessoas que estavam<span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span> no -locutorio, em quanto a duqueza escutava em ancias na casa proxima.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>N’este convento de Santa Thereza de Carnide viveu uma religiosa -celebrada no seu tempo pelas suas virtudes, lettras, prendas, e bom -humor. Era insigne no cravo, escreveu prosas e versos, e desenhava -muito bem. A sua biographia encontra-se n’um volume com o titulo==Vida -e obras da serva de Deus e madre soror Marianna Josepha Joaquina de -Jesus, religiosa carmelita descalça do convento de Santa Thereza do -logar de Carnide.==(Lisboa, 1783). É obra publicada sem nome de auctor, -mas sabe-se que o foi D. José Maria de Mello, filho de Francisco de -Mello, monteiro-mór do reino, oratoriano, bispo do Algarve, etc. Era -sobrinho da insigne religiosa; e esta era filha do conde de Tarouca, o -conhecido diplomata João Gomes da Silva.</p> - -<p>As obras da madre Marianna são escriptos piedosos, em prosa e verso, -em boa e fluente linguagem. As prosas são exercicios espirituaes, -instrucções para as noviças, actos das virtudes, etc. E as poesias que -se leem sem enfado porque tem certa animação são todas conventuaes, -celebrando, festividades; sonetos, decimas, nas festas da prelada; -sortes de exercicio de virtudes para se tirarem no dia da exaltação -da cruz; sortes da paixão para se tirarem no domingo de Ramos. Ha um -romance.==A uma noviça attribulada.==<span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span> E varios desafios poeticos no -tempo do advento, exaltação e quaresma.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>A egreja parochial de S. Lourenço de Carnide está agora bem reparada; é -antiga como mostra a sua orientação e disposição. Todavia pouco resta, -á vista, dos seus primeiros tempos. Na frontaria á direita ha uma pedra -que é precioso monumento. Diz assim:==Era de 1380, 14 de maio o bispo -Dom João mandou edificar esta egreja por Pero Sanches chantre de Lisboa -á honra de S. Lourenço e deu-a a João Dor, seu capellão 24 dias do dito -mez e passou o dito bispo 24 de julho da dita era ao qual Deus perdôe. -Amen. Isto declara o que diz a pedra antiga correspondente.==</p> - -<p>A qual pedra não se vê hoje.</p> - -<p>Á esquerda da frontaria está em pedra lavrada, um brazão raro; tem na -parte superior uma barra com vincos obliquos, sob isto uma estrella, -uma perna com meia e sapato, que pousa sobre uma nuvem.</p> - -<p>Na igreja ha um quadro bom, o <em>lavapedes,</em> mal restaurado -infelizmente; algumas campas, duas pias de agua benta que são dois -capiteis do seculo <span class="smcap">xiv</span> escavados, e na sacristia um arcaz de -boa madeira, bom trabalho, com metaes bem lavrados.</p> - -<p>O terreno em redor da igreja era antigamente o cemiterio e ainda ahi -está uma urna com inscripção que será bom registar:==Josephus Joannes<span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span> -de Pinna de Soveral e Barbuda speciosus forma oritur ut moriatur 23 die -decembris anno 1710 et plenus gratia per merita domini nostri Jesus -Christi moritur ut vivat 1.ᵒ die mayi anno 1742,==o lettreiro está na -face da urna em moldura, tendo na facha superior==Deo laus honor et -gloria, amen,==e na inferior==Spes et voluntas in Deo.==</p> - -<p>Visinha da igreja de S. Lourenço está uma fonte com bello aspecto mas -sem agua. Tem seu terreiro bem empedrado defendido por frades de pedra, -tanque, e um corpo central encimado por uma estatua, uma figura de -mulher que me intriga um tanto. Esta figura está mutilada, sem braços, -e pegaram-lhe ao lado uma pedra com seu lettreiro:==Encanamento de -ferro pela vereação de 1858.==Mais em baixo o dizer:==Camara Municipal -de Belem, 1857.==Apesar dos lettreiros e dos canos de ferro a fonte -está enxuta.</p> - -<p>No passeio de cima chamado antigamente do Espirito Santo, agora o -<em>alto do poço</em>, está uma fonte, isto é, um poço com bomba, e uma -urna de pedra bem tosca com a indicação:==C. M. B. 1859.==Dizem os -de Carnide que a agua da fonte de baixo era excellente. Parece que -n’este caso como em tantos outros a companhia apanhou as aguas boas, -misturou-as com as ruins, e fornece a mistura aos consumidores, que em -certas localidades ficaram prejudicados.</p> - -<p>Agora a respeito da estatua; é uma figura de<span class="pagenum" id="Page_72">[Pg 72]</span> mulher, com tunica de -pregas miudas, e amplo manto cingido. Parece-me uma estatua romana, -pelo trabalho, disposição, rosto e cabello. Provavelmente foi -aproveitada alli como o satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica.</p> - -<p>Carnide tem illuminação a gaz, agua da Companhia, estação -telegrapho-postal, posto de bombeiros, posto de policia civil, a sua -philarmonica com aprendizes de cornetim, a pharmacia com seu gamão, -um theatro particular, um club e duas escolas municipaes primarias -officiaes de ensino gratuito, uma para meninas e outra para meninos que -me parecem regularmente frequentadas.</p> - -<p>As irmãs de S. José tem escola de meninas.</p> - -<p>O que anima muito o sitio é o collegio militar, que está muito bem -installado no sólido edificio que ainda conserva na sua frente o brazão -da fundadora, a inclita infanta D. Maria, filha de el-rei D. Manuel.</p> - -<p>Na procissão dos Passos faziam a guarda de honra os alumnos do Collegio -Militar com as suas carabinas no braço, marchando muito garbosamente, -entre o povo e as familias d’elles que os acompanhavam, cobrindo-os -com os seus melhores olhares. Sentia-se um certo perfume de familia, -patria, dever, brio, mocidade, um ramilhete de cousas boas, ao vêr -passar, musica na frente, aquelles bellos rapazes, entre a multidão -sympathica.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span></p> - -<p>A igreja de Nossa Senhora da Luz é bem conhecida; eu mesmo já -escrevi algures da formosa téla onde se vê retratada a infanta D. -Maria (ha outro retrato no quadro da capella do collegio militar), -do extraordinario altar-mór com os seus finos baixos relevos, da -capella-mór que é um monumento da arte nacional, excepcionalmente bem -conservado. No exterior está a fonte, a velha estatua da Virgem e uma -longa inscripção repartida em duas lapides de marmore avermelhado, que -diz o seguinte:</p> - -<p>==No anno de 1463 reinando em Portugal D. Affonso <span class="allsmcap">V</span> -os visinhos de Carnide com devoção das revelações que Pedro -Martins, natural deste logar, teve em seu captiveiro, donde sahiu -milagrosamente, lhe ajudaram a fazer uma capella a nossa Senhora da Luz -sobre esta fonte. O lugar como determinado pela divina providencia para -este effeito se via dantes claro e resplandecente com visão e lumes -do Céo, como depois se viu resplandecer com grandes e innumeraveis -milagres na terra. E seguindo em tudo a ordem e revelação que a Virgem -purissima inspirou a Pedro Martins, lhe puzeram o nome que tem da Luz, -em cuja memoria e louvor a infanta D. Maria filha delrei D. Manuel o -primeiro deste nome, rei de Portugal, e da Christianissima rainha D. -Leonor infanta de Castella, mandou reedificar e levantar o templo de -novo nesta ordenança e grandeza, no anno de 1575.==</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_74">[Pg 74]</span></p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Domingo de Ramos, 3 abril 1898.</p> - -<p>Pela manhã cedo dei um pequeno passeio até á Casa da Pontinha, proxima -da estrada militar. É casa antiga, com algumas alterações modernas; na -parede que deita para a estrada, a pouca altura, está um marmore com -lettreiro:</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">Louvado seja</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">o santissimo</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">sacramento.</span><br /> -<span style="margin-left: 3em;">—</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Se quereis</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">saber quem</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">he o serafi</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">co Frc.ᵒ está</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">junto a IHS</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Cristo que</span><br /> -16 assim o te 37<br /> -<span style="margin-left: 1.5em;">mos por</span><br /> -<span style="margin-left: 2em;">fee</span><br /> -</p> - -<p>Superior á lapide está um quadro de azulejo; a Senhora da Conceição, em -azul sobre o branco, de bom desenho, em moldura de azulejos policromos.</p> - -<p>Proximo da Casa da Pontinha, na estrada que vem para Carnide, está uma -casa quadrada, na ponta da horta do casal do Falcão, n’um angulo<span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span> de -muro, que conserva um friso ornamentado, uma grega singela em relevo de -cal, um <i lang="it" xml:lang="it">esgrafitto</i>, datado «1622».</p> - -<p>Depois ouvi a sineta das freiras, que sôa como uma voz debil, triste, -e entrei na linda igreja. O capellão lia no seu missal a grande -narrativa do triumpho em Jerusalem, que foi terminar na paixão, na cruz -do Calvario, verdadeiro symbolo da vida humana, que a dias de puras -alegrias e risonhas esperanças faz succeder horas de desespero e uma -eternidade de angustias.</p> - -<p>O capellão lançou a sua benção sobre os ramos, folhas de palmeira -sem ornato algum, e deu-os pela grade do côro de baixo ás religiosas -portuguezas. Entraram processionalmente as irmãs de S. José de Cluny, -com as suas tunicas azues e mantos pretos; toucas brancas moldurando os -rostos; atravessaram o cruzeiro e ajoelharam no degrau da capella-mór. -Ahi receberam as palmas, os ramos do grande triumpho. Não havia -musicas, nem canto; um grande silencio apenas. E retiraram na mesma -ordem, e no mesmo silencio para a sua clausura.</p> - -<p>Quantas estarão de marcha para as missões africanas!</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Quinta-feira santa, 7 d’abril 1898.</p> - -<p>Hoje o passeio foi longo, quiz verificar o que havia a respeito de -certas antiguidades na ribeira de Carenque.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span></p> - -<p>Ha tempos, nem me recordo porque circumstancia, folheei um opusculo -intitulado==<i>Representações dirigidas a S. M. a Rainha e ao corpo -legislativo pela Camara Municipal de Lisboa sobre o abastecimento -d’aguas na Capital</i>==(Lisboa, 1853). Ora estas representações são -acompanhadas de pequenas memorias de J. M. O. Pimentel e do engenheiro -Pézerat, duas summidades do seu tempo. A de Pézerat começa a pag. -53:==Memoria sobre as conservas d’agua da Quintam até ao Salto Grande.==</p> - -<p>Tratava-se de estabelecer tanques nos valles superiores (da ribeira -de Carenque), ou conserva para a repreza de todas as aguas de sobejo -fornecidas no inverno pelos differentes nascentes d’este systema de -aqueducto (o das Aguas Livres). E diz Pézerat:==Descobri o valle da -Quintam, com condições muito favoraveis porquanto já tinha servido em -tempos remotos de conserva ou bacia para uma immensa repreza, cuja -existencia está provada pelos restos do antigo paredão ou marachão com -11 metros de largura, e 9 de altura, e que os habitantes attribuiam á -epocha do dominio romano, e como tal o denominam, porém mui facilmente -reconheci pertencer á epocha mourisca.==</p> - -<p>Na planta que vem com a memoria marcam-se o casal da Fonte Santa, o -resto do marachão, as linhas do aqueducto de D. João <span class="allsmcap">V</span>, as -mães d’agua, velha e nova, a escavação de um aqueducto abandonado,<span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span> o -valle de Fornos, o casal da Quintam e as ruinas do Castello velho.</p> - -<p>Eu desejava ver estas antigualhas.</p> - -<p>Parti de Carnide á Porcalhota, ao sitio da Amadora, passei por um -grande arco sob a linha ferrea, e entrei na estrada de Carenque, que -vae seguindo a corrente. Um valle muito comprido, accidentado, com -dois logares, Carenque de baixo, Carenque de cima, alguns grupos de -casebres, azenhas, pequenas hortas, e dominando tudo a formidavel obra -do aqueducto das Aguas Livres, sempre bem feita, de silharia sempre bem -faciada, formidavel monumento.</p> - -<p>A principio ia desanimando, ninguem me sabia dizer das velharias -mouriscas ou romanas, nem da Quintam, e cheguei assim ao casal do -Ernesto.</p> - -<p>Ahi depois de expôr a minha questão a um grupo que nada sabia, -surgiu-me um sujeito côxo conhecedor do caso, da obra dos mouros (não -me fallou de romanos) e da Quintam. Este côxo providencial chama-se -João Silvestre, e foi pastor na sua mocidade. Pastores sabem muito, -andam pelos montes e charnecas, por atalhos e a corta-matto; são sempre -bons informadores.</p> - -<p>Com o Silvestre passei as terras do casal do Ernesto; em breve -estava na ponte entre as mães d’agua; a chamada <em>nova</em> (D. João -V) é uma linda construcção oitavada, de elegantes fórmas singelas, -classicas, parece uma obra grega. Pouco acima avistava-se outra obra -inconfundivel, o marachão,<span class="pagenum" id="Page_78">[Pg 78]</span> enorme, firme, apezar das cheias, dos -seculos e dos homens.</p> - -<p>Porque já para a obra do aqueducto de D. João V tiveram de o romper a -poente, e mais recentemente a nascente para a passagem de uma estrada; -todavia o que existe é pouco menos do que viu Pézerat.</p> - -<p>Nas dimensões que elle apresenta, na da largura do paredão, houve -engano me parece. Contando com os encostos ou gigantes, na base, -chega-se a 11 metros, mas a parede em si tem 7 metros, o que é bem -respeitavel. É feito de camadas de pedregulho e argamassa, revestido -de pedras grandes irregulares e mal faciadas, em fiadas; por isto -me parece obra dos arabes; os romanos em obra de tal importancia -empregavam os seus bellos apparelhos. O paredão tem 9 metros de altura -na face do sul. Completo teria 40 a 50 metros de comprimento, e 5 ou -6 de altura sobre o terreno a montante; ora a montante segue-se uma -varzea consideravel que fechada formaria uma grande albufeira. Mais -acima, a 2 kilometros, fica a Quintam, um casal muito velho; ao lado -restos da muralha com ameias, e um grande portal.</p> - -<p>É de notar que junto de Odivellas, sahindo da povoação a entrar no -atalho que vem ao moinho da Luz, na estrada militar, está um muro -ameiado, com seu portico em ogiva, resto tambem de uma construcção -fortificada. Castellos não seriam, mas habitações fortificadas talvez.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span></p> - -<p>E disse-me o Silvestre,—mas por aqui ainda ha melhor, se tem tempo -e vontade eu lhe vou mostrar a eira dos mouros.—Trepámos por atalho -até uma chapada, proxima e inferior á crista do cerro que é formado -de calcareo secundario muito fragmentado. E achei-me em face de um -problema.</p> - -<p>É uma chapada ligeiramente inclinada de poente para nascente. N’este -declive traçaram um octogono regular, menos a face do nascente que está -de nivel com o terreno natural. Este octogono está cercado por um muro -duplo, isto é, por dois muros parallelos que entre si conservam um -intervallo de meio metro; estes muros conservam a mesma altura em cinco -lados do octogono, decrescem nos dois a nascente até chegar ao nivel do -solo. Os muros teem 0,5 de espessura; nos cinco lados a poente, norte -e sul, quasi um metro de altura na face interior, porque na exterior, -a poente estão com o terreno, que é mais alto ahi. São de alvenaria -bem solida. No espaço assim limitado arranjaram um centro plano e das -paredes para esse centro ha declives regulares, artificiaes. Todo -este espaço interior está, não calçado de pedra, mas forrado de uma -forte camada de alvenaria, que assenta, como se vê n’um ponto que está -escavado (por algum caçador, ou mais provavelmente por algum sonhador -de thesouros; porque, notou o antigo pastor, dizem que ha muita somma -de dinheiro e outras cousas enterradas por estes sitios), em grande -camada de pedregulhos.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span></p> - -<p>—Dizem que era aqui que os mouros se vinham divertir,—informou o -Silvestre. Um theatro, uma palestra, uma praça de touros? quasi que -parece; mas para que a dupla parede com a sua sanja ou caneiro? E os -declives, e a solidissima alvenaria que forra o fundo? Para um fim -industrial, ou assento de grande arribana, tambem não vejo; se fosse -questão de aguas, tanques de lavagem, então não fariam aquella obra na -altura, porque o rio corre muito abaixo. O espaço é consideravel; tem -proximamente 35 metros de diametro maximo, e os lados, muito regulares, -tem 15 metros cada um na face interna. Ha outras eiras de mouros, disse -Silvestre, mas sem o duplo muro, n’uns outeiros mais distantes.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>10 de abril de 1898.</p> - -<p>Hoje pela manhã fui vêr uma obra d’arte na quinta da Marqueza. -A meio do jardim quadrado agora exhuberante de bellas rosas, de -macissos de flôres, está um tanque de fino marmore, grande, formado -de enormes blocos lavrados, com seus chanfros e curvas, decorado de -quatro mascaras collossaes; sobre a borda do tanque quatro golphinhos -decorativos de cauda erguida, infelizmente quebradas as extremidades, -que lançam jorros d’agua para o tanque. No centro um grande grupo, um -tritão vigoroso, uma formosa sereia e um genio marinho, em posições -movimentadas, dando um todo agradavel de qualquer lado que se<span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span> observe. -É uma peça de esculptura notavel em marmore de Italia.</p> - -<p>Depois segui para o casal do Falcão, que não tinha ainda examinado -internamente. É um grande predio apalaçado, com suas dependencias; -palacio e centro de exploração agricola. Da casa de residencia está -metade em pé, outra que olhava ao norte, e que tinha como a do nascente -a sua alta varanda coberta, com finas pilastras, foi derrubada ha muito -tempo. Tem dois pavimentos; no terreo estão cosinhas e arrecadações; no -superior, o andar nobre, salas e alcovas. As salas eram ladrilhadas, -com altos rodapés de azulejo, e tectos de madeira em caixilhos ou -almofadas.</p> - -<p>Tem capella. Sobre a porta da pequena mas elegante egrejinha está o -lettreiro:==Dedicada a Nosa Snra da Asumsão ano de 1705 (?).==</p> - -<p>Parece-me 1705, mas os dois ultimos algarismos estão muito gastos. O -altar-mór tem seu retabulo em marmores lavrados, com seus nichos, em -trabalho que tem movimento. Nas paredes ha azulejos bem conservados, e -em frente da pequena tribuna um lettreiro diz que alli está enterrado -João Coelho que instituiu a quinta em morgado em 1647. Esta casa com -suas dependencias, lagares, arribanas, abegoarias, é um bello exemplar -de construcção portugueza no seculo <span class="allsmcap">XVII</span>.</p> - -<p>Entre almoço e jantar fui vêr o casal e o moinho do Castello, para lá -de Alfornellos ou talvez melhor, Alfornel.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span></p> - -<p>Estes nomes de Fornos, Fornellos e Alfornellos indicam a existencia de -antigos fornos, os d’estes sitios provavelmente só destinados a coser -calcareo e grossa ceramica; não encontrei ainda escorias de metaes.</p> - -<p>O moinho do Castello desappareceu, está lá como testemunha a grande -pedra do frechal. A altura é formada por calcareo jurassico, cujas -cristas parallelas afloram sobre o solo. Não vi grandes movimentos de -terra ou pedra que indiquem trincheiras bem definidas. Nem fragmentos -de ceramica, escorias, ou outra qualquer cousa que indique trabalho -humano. É possivel todavia que alli tenha havido alguma fortificação -prehistorica; á vista e não muito distante está outro monte a que um -pastor tambem chamou do Castello.</p> - -<p>A proposito de movimentos de pedra e terra direi que nos arredores -de Lisboa o archeologo precisa estar sempre lembrado de que dois -formidaveis trabalhos se proseguem ha muitos seculos por estes sitios; -a exploração das pedreiras, e a pesquiza e captagem das aguas.</p> - -<p>O trabalho das pedreiras em varias epochas, depois dos terremotos -da capital, foi collossal. A formação de aqueductos para Lisboa, -especialmente o prodigioso trabalho da rede do Aqueducto das Aguas -Livres que acompanha e alimenta o cano geral deu origem tambem a grande -deslocação de material.</p> - -<p>Seguindo do casal do Castello para Falagueiras<span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span> segui eu um ramo do -aqueducto, e um caneiro para regularisar a sahida das aguas do valle, -tudo bem feito, com solidas fiadas de silhares, suas caixas d’agua, -algumas das quaes me pareceram muito anteriores ás suas visinhas do -tempo de D. João V. Exactamente, antes de chegar á queda da ribeira -onde está uma grande caixa d’agua, vi muitos movimentos de terra, -comoros artificiaes, que n’outra região tomaria por mamunhas ou mamoas -tumulares.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>O rev. padre Pereira, actual prior de S. Lourenço de Carnide, tem -colligido muitas noticias para a historia d’este logar.</p> - -<p>Para o estudo da topographia de Carnide e seus arredores serve muito -bem a carta n.ᵒ 7, publicada pelo Corpo d’Estado Maior.</p> - -<p>A historia da egreja de Nossa Senhora da Luz, e do edificio onde -actualmente se acha installado o Collegio Militar, encontra-se na -<i>Vida da infanta D. Maria, filha de D. Manuel</i>, por fr. Miguel -Pacheco (Lisboa, 1675); em <i>O Occidente,</i> vol. de 1890, pag. 219; -e no <i>Archivo Pittoresco,</i> vol. de 1863, pag. 299.</p> - -<p>O casal do Falcão mereceu estudo especial ao sr. Julio de Castilho, -2.ᵒ visconde de Castilho, gentil espirito que esmalta de poesia a -mais variada erudição. O sr. visconde publicou no <i>Instituto</i><span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span> -de Coimbra, vols. de 1889-90, uma serie de artigos historiando os -dramaticos amores do pintor Francisco Vieira de Mattos, o Vieira -Lusitano, com a firme e leal senhora, D. Ignez Helena de Lima e Mello, -que apoz dolorosos episodios foi esposa do grande artista.</p> - -<p>Esses amores puros, honestos, bem portuguezes, que douram de deliciosa -poesia os restos, agora tristes, da fidalga vivenda, de ha muito -chamada o casal do Falcão, foram contados pelo proprio Vieira n’um -livro: «O insigne pintor e leal esposo Vieira Lusitano, historia -verdadeira que elle escreve em cantos lyricos (Lisboa, 1780)»; livro -interessante porque além do poema amoroso, apresenta grande numero de -quadros de costumes, scenas palacianas, festas populares, e noticias -artisticas.</p> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="Noticias_de_Carnide">Noticias de Carnide</h2> -</div> -<hr class="r5" /> -<p class="center">(1900)</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span></p> - - - -<p><i>Domingo, 12 de junho de 1898.</i>—No fim da tarde trovoada forte, -e chuva grossa; d’estes chuveiros que no campo fazem bulha batendo nas -folhagens do arvoredo; um rufar grave que se ouve a centos de metros. -Em Carnide não cahiu granizo; nas Laranjeiras bastante, mais forte na -Palhavã; no Matadouro a saraiva foi tão valente que partiu vidraças; e -em Sacavem e Cabo Ruivo ficaram algumas propriedades arrazadas.</p> - -<p>Não ha memoria por estes sitios de tempestade tão violenta.</p> - -<p><i>Vespera de Santo Antonio.</i>—Á noite fizeram-se sortes; quatro -papelinhos, nome de senhora, nome de homem, sitio, e o que estavam -fazendo. Permittem-se cousas... que fazem rir. Queimam-se alcachofras, -ha a historia da moeda de cinco réis, os foguinhos de vistas, valverdes -e bichas de rabiar. Uns rapazotes da visinhança estiveram n’um pateo, -durante duas horas talvez,<span class="pagenum" id="Page_88">[Pg 88]</span> atirando bombas. A philarmonica tocou o seu -reportorio no coreto armado no Alto do Poço. Junto do coreto raparigas -e alguns rapazes dançavam e cantavam. Cantigas <i>triviaes geraes</i>; -não ouvi nenhum cantar especial de Santo Antonio, nem na letra nem na -musica. O mesmo succedeu pelo S. João; não encontrei nada particular -nas celebrações populares. Brinca-se, riem, dançam, conversam sem -mostrar feição local. Creio que ouvi mesmo a valsa dos <i>Quadros -dissolventes</i>. Nada que recorde as cantigas do Alemtejo nem as da -Beira, as fogueiras do valle do Mondego, que teem cunho especial, typos -admiraveis, musicas que tão bem enquadram umas nas vastas campinas -alemtejanas, outras na paisagem mimosa, nos frescos valles da Beira. -É digno de reparo que estas cantigas populares de uma região não se -vulgarisem fóra d’ella.</p> - -<p>Teem suas espheras. Ao mesmo tempo ha cantigas de origem não popular -que se generalisam rapidamente. A fogueira de Coimbra, arranjada no -<i>Burro do sr. Alcaide</i>, a <i>Noite serena lindo luar</i>, tambem -de Coimbra, que não são de origem popular, espalharam-se por todo -o paiz. A valsa dos <i>Quadros dissolventes</i> foi uma explosão; -os garotos assobiavam-n’a nos bairros de Lisboa, ouvia-se em pianos -nas mansardas da baixa, aos operarios de Sacavem, e a vendedores -torrejanos, isto dentro de um mez.</p> - -<p>Duram mezes, ás vezes annos, certas cantigas; esvaem-se pouco a pouco, -ou desapparecem de<span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span> chofre como a <i lang="la" xml:lang="la">Rosa tyranna</i>. São modas -que passam, como as reformas administrativas e as leis eleitoraes. -Assim passou a epidemia do <i>chocalhinho</i>, o caso da <i>salva -brava</i>, o <i>pão de Kuhne</i>. Não se recordam do <i>Estás lá ou -és de gêsso</i>, do <i>Lindos olhos tem o môcho</i>, do <i>Debaixo do -sophá</i>, do <i>Vae-te embora Antonio?</i></p> - -<p>As musicas de Offenbach foram muito populares, mas para estas -concorreram certamente os theatros de feiras. No Alemtejo cantigas de -mondadeiras, de vindimeiras, e as de S. João, que se cantam tambem -pelo Santo Antonio e pelo S. Pedro, pertencem a fundo antigo popular. -Só ha tempos ouvi em Carnide uma trova que me fez lembrar o Alemtejo, -a cantilena muito comprida, melancholica, de um homem que lavrava com -a sua junta de bois; conversámos, perguntei-lhe de onde era; de Villa -Franca. É que o Ribatejo já tem muito de alemtejano.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Dia de Santo Antonio, de 1898.</i>—Fez-se a eira no casal do -Falcão; ante a grande frontaria do nascente, limpou-se da erva o amplo -terreiro. Com a chuva da trovoada da tarde de hontem, e da noite, o -terreno estava encharcado; depois de limpo entrou um rebanho de ovelhas -para calcar, com o seu moroso voltear.</p> - -<p>Foi no dia de Santo Antonio, 13 de junho de 1898, que obtive licença -para vêr algumas salas do convento. Acompanhou-nos o reverendo -capellão<span class="pagenum" id="Page_90">[Pg 90]</span> padre Louro, protector carinhoso das velhinhas recolhidas, -tão modestas e tão religiosas.</p> - -<p>A superiora chama-se D. Maria Guilhermina de S. José. As suas -companheiras são Maria de Jesus, Maria Philomena, Maria Augusta, -Josephina, Olympia, Maria do Carmo e Isabel. Vivem em perfeita -communidade estas santas senhoras, na virtude, na oração e nos humildes -trabalhos, como se Santa Thereza em pessoa ali estivesse fazendo -cumprir a sua regra.</p> - -<p>No claustro a arcada muito clara e limpa, a cantaria lavada e as -paredes caiadas, tudo muito nitido, e cheio de reflexos de sol. No -meio da quadra o jardim, ainda o jardim antigo, o tanque central, e os -alegretes altos azulejados. E ainda as lindas flôres antigas, as rosas -e os cravos, o novelleiro, a baunilha, o jasmineiro, a alfazema e a -manjerona, a malva de cheiro, e a lucialima de fina folhagem.</p> - -<p>A capella do Senhor dos Perdões está bem conservada na sua elegante -architectura. Na quadra, junto do jardim, ha duas capellas; o lado de -dentro das portas d’estas capellas é pintado a oleo, com folhagens em -volutas e espiraes, bom exemplar de pintura decorativa do seculo XVII.</p> - -<p>N’um altar do claustro vi azulejos iguaes aos dos altares do cruzeiro -da egreja, e da capella do Senhor dos Passos; bellos exemplares do -seculo XVII.</p> - -<p>No tanque da cêrca está um quadro em azulejo representando a -<i>Samaritana</i>.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span></p> - -<p>As senhoras recolhidas comem no seu refeitorio, uma casa grande mui -limpa, as paredes ornadas de pequenos quadros de devoção.</p> - -<p>Sobre a toalha branca sem uma nodoa os pratos e canecas de faiança -ordinaria, com sua marca; provavelmente louça especial feita para o -mosteiro em tempos antigos.</p> - -<p>Creio que os conventos de Lisboa tinham todos louça especial com -marcas proprias, insignia ou divisa, ou inicial; e ainda mesmo algumas -confrarias possuiram tambem as suas louças com monogrammas ou emblemas -particulares.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>O presépe.</i>—A casa da recreação é uma sala grande muito -illuminada por janellas rasgadas em duas paredes, com lindas vistas -para os accidentados arredores de Carnide.</p> - -<p>N’outra parede fica a porta de entrada e uma capella onde estão muitas -imagens; na quarta parede fica o presépe.</p> - -<p>As portas do presépe merecem attenção; teem o lado interior com -ornamentos dourados sobre fundo preto, imitando charão antigo, pintura -feita por uma freira, segundo a tradicção conventual.</p> - -<p>As figuras do presépe são de barro cosido, colorido e tambem dourado, -finas esculpturas em grupos e scenas bem combinadas. N’estes grandes -presépes conservou-se a tradicção dos primeiros mestres flamengos -que n’um só quadro accumulavam muitas scenas, a <em>paixão</em> toda, -por exemplo,<span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span> como succede n’essa maravilhosa pintura de um mestre -desconhecido do começo do seculo XV, joia de alto preço, que se -conserva no côro de cima da egreja da Madre de Deus (Xabregas). A -scena principal é a do presépe, o Menino Jesus sobre as palhinhas -entre a Virgem e S. José. Proximo o grupo vistoso, opulento, dos -reis Magos. Ali a noticia, a grande nova aos pastores, além a fuga -para o Egypto. Entre estes grandes grupos, outras scenas, as da vida -popular tão interessante n’estes presépes antigos que sabiam combinar -engenhosamente a vida humana com o sublime ensinamento religioso; -de modo que hoje estes presépes além de todos os valores antigos da -significação religiosa, e de merecimento artistico, teem para nós a -importancia de documentos da vida popular; quantas vezes mesmo se -encontram aqui notas, figurinos, por exemplo, que em nenhuma outra -parte se topam.</p> - -<p>N’este de Carnide entre os grupos ao divino das scenas da infancia do -Menino ha alguns episodios profanos extraordinariamente executados: -um grupo de populares sapateia a um lado com toda a bizarria; n’uma -especie de gruta, a fugir da luz, dois homens jogam absorvidos; -perto passa um cégo tocando sanfona; e camponezes alegres, com ovos, -gallinhas, perdizes, coelhos...</p> - -<p>Superior a tudo isto, em posição muito bem calculada para a -perspectiva, um grande grupo de anjos cantando e tocando orgão, violas, -e violão,<span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span> e superior ainda a este grupo brilhante um anjo gentilissimo -com a fita onde se lê <i lang="la" xml:lang="la">gloria in excelsis</i>, entre frescos e -risonhos rostos alados de cherubins. N’essas figuras de impeccavel -esculptura ha mais porém, ha em algumas grande expressão e movimento; -o espanto dos pastores, a magestade bondosa dos reis, o enlevo musical -do cégo, a furia nervosa dos jogadores, o enthusiasmo dos populares -no seu fandango rijo, são d’um encanto irresistivel, qualquer d’esses -grupos é de per si uma obra d’arte. Como isto chegou até nós, Santo -Deus, atravessando estes tempos de progresso, de luzes, de leilões! -bemditas as santas senhoras, tão singelas e honestas, que teem sabido -conservar essa preciosidade. Cuidado com os amadores! com os poderosos, -espirituosos e curiosos; é preciso conservar esse lindo presépe.</p> - -<p>Na mesma casa da recreação ha outro presépe, pequenino, interessante, -com o Menino dormente. E na capella ha uma adoravel imagem do Menino, -em pé, de especial devoção antiga no convento, que tem o nome de <em>o -menino da compaixão</em>. E é bem singular que a escultura do rosto dá -a impressão de doce condolencia. Mas vejam como está bem afinada esta -casa de recreação para as senhoras religiosas; a linda sala cheia de -luz, os retratos das sublimidades da Ordem, dos modelos de virtudes -e abnegação, o artistico presépe, vibrante de suggestões, a imagem -consoladora do Menino, e pelas janellas largos trechos claros de -paizagem<span class="pagenum" id="Page_94">[Pg 94]</span> variada, a paizagem campestre clemente e serena.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>No convento de Santa Thereza de Carnide vi alguns retratos valiosos, -não pela arte mas como documentos historicos, especialmente aquelles -que teem em seus letreiros dados biographicos dos retratados.</p> - -<p>Por exemplo, o retrato de==<i>D. Fr. Luiz de Santa Thereza, carmelita -descalço, lente de theologia, bispo de Pernambuco em 1738, falleceu a -17 de novembro de 1757, jaz na capella mor do convento de S. João da -Cruz de Carnide.</i>==</p> - -<p>Pela extinção dos conventos de frades recolheram algumas pinturas e -imagens nos das freiras e assim se salvaram naquelle cataclismo.</p> - -<p>Outros: <i>Retrato da infanta D. Maria filha de D. João IV</i>.</p> - -<p><i>Retrato da Madre Micaella Margarida de Santa Anna.</i></p> - -<p><i>Retrato de... bispo de Penafiel confessor da princeza.</i></p> - -<p><i>Retrato de D. Fr. João da Cruz, carmelita, lente de filosofia e -theologia, prior do collegio de Braga, e Santa Cruz do Bussaco, bispo -do Rio de Janeiro em 1739 transferido para o bispado de Miranda em -1750. Falleceu a 20 de outubro de 1756.</i></p> - -<p><i>La hermana Leonor Rodrigues</i> (d’Evora).</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span></p> - -<p><i>S. Cassiano.</i>—No côro de baixo ha um pequeno quadro com retrato -a oleo, pintura antiga, que me tornou attento; representa um santo -bispo com uma cartilha na mão; é S. Cassiano, que era mestre de meninos -e todo dedicado á educação da infancia, que morreu martyrisado pelos -discipulos. Exemplo raro sem duvida! No meu tempo, e desde quando viria -o systema! era o mestre que martyrisava os rapazes com palmatoadas, -varadas e sopapos, castigos deprimentes das pobres alminhas das -creanças; e ás vezes os paes assomavam á porta da escola, e animavam -de lá: «não m’o poupe, sr. mestre, não m’o poupe; ensine-me bem o -rapazelho!»</p> - -<p>Que differença tem havido nos ultimos tempos, em materia de educação, -nos pontos de vista, nos processos, e meios intelligentes; mas é -preciso educar as almas, para que sejam boas, fortes, livres e -religiosas na grande accepção do termo.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Pinturas.</i>—Os quadros da capella-mór das freiras de Carnide são -de Ignacio d’Oliveira Bernardes, segundo affirma C. Volkmar Machado, -na sua <i>Collecção de Memorias</i> (pag. 94). Oliveira Bernardes -(1695-1781), era tambem architecto, e n’esta qualidade trabalhou no -palacio de Queluz, e na casa e quinta de Gerardo Devisme (a S. Domingos -de Bemfica, onde actualmente está o collegio de meninas).</p> - -<p>A grande tela magistral do <i>Transito de Santa<span class="pagenum" id="Page_96">[Pg 96]</span> Thereza</i>, é do -pincel de José da Costa Negreiros, que foi discipulo do celebre André -Gonçalves. Negreiros falleceu em 1759, com 45 annos. Esta familia -Negreiros produziu varios artistas.</p> - -<p>Percorrendo agora a <i>Collecção de Memorias</i> de Cyrillo Volkmar -Machado, tomei algumas notas a respeito de quadros pintados que se -podem ver em egrejas dos arredores de Lisboa.</p> - -<p><i>Jeronymo de Barros Ferreira</i> nasceu em 1750, em Guimarães, morreu -em Lisboa em 1803; pintou o tecto da capella de Santa Brigida na egreja -parochial de S. João Baptista do Lumiar.</p> - -<p><i>Vanegas</i>, castelhano, imitador do Parmezão; o painel do retabulo -na capella-mór de N. S.ᵃ da Luz é d’este pintor (V. Machado, pag. 60).</p> - -<p><i>Diogo Teixeira</i>, pintor do tempo de D. Sebastião. Na Luz, ao pé -dos quadros de Vanegas estão pinturas d’este Teixeira (pag. 68).</p> - -<p><i>André Gonçalves</i> (pag. 88). Este pintor que trabalhou immenso, -falleceu em 1736; são d’elle alguns quadros da capella de Queluz, os -quadros da vida de S. João Baptista, no Lumiar, e os do côro de S. -Domingos de Bemfica. Lendo estas <i>Memorias</i> de Volkmar Machado, -fica-se com impressão dolorosa; como se trabalhou em Portugal no -seculo passado e ainda no primeiro quartel d’este seculo! em pintura, -architectura, esculptura, ourivesaria, em tecidos, em fundições. A -enorme e violentissima crise das invasões francezas, não parou essa -torrente de trabalho artistico; era o<span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span> rei que encommendava estatuas -e quadros, era Mafra e Ajuda que foram formidaveis escolas, e as -casas fidalgas que mandavam fazer retratos, capellas, decorações dos -seus palacios e jardins, eram os frades a querer azulejos e telas, e -entalhados, e embrexados, eram os prelados, os cabidos, e até a humilde -irmandade que ao menos queria ter o seu <em>compromisso</em> ou estatuto -em bonita encadernação de velludo ou marroquim, com seus ornatos a -ouro, e cantos e fecharia de prata.</p> - -<p>Era uma corrente, uma orientação bem diversa da actual.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>15 de junho, manhã, cedinho.</i>—Da janella do meu quarto vejo -no casal os homens de trabalho juntando mólhos em fascaes. Junto da -terra do Lopes estão carregando fêno; muito está emmólhado na terra, -não se póde emmédar porque está humido da chuva. Já se ceifa trigo; na -terra do Castello anda um grande grupo de trabalhadores; para o lado -de Falagueiras tambem. O trigo do Alto da Tonta está prompto a ceifar, -está lindo, de um louro claro; á passagem do vento faz brandas ondas -douradas. O da terra do Lopes tem um verde intenso. Agora distinguem-se -bem os trigos de inverno e os da primavera, uns muito louros, outros em -verde carregado.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Domingo, 19 de junho.</i>—Festa das ervas para remedios em -Alfornel, hoje em decadencia completa;<span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span> vae mudando tudo. Antigamente -era muito concorrida, vinha muita gente de Lisboa, que se espalhava -pela serra procurando plantas medicinaes. Agora é rara a pessoa que -conheça bem as ervas e saiba aproveital-as: e os ervanarios teem dado -em droga.</p> - -<p>—Nas boticas ha tanto remedio...</p> - -<p>—Eu lhe digo, o boticario, eu ainda aqui conheci botica e boticario, -comprava ervas para remedios, agora o pharmaceutico nem nada. Está tudo -mudado!</p> - -<p>O que não mudou foi a vegetação da serra, onde se encontra uma -variedade singular de plantas.</p> - -<p>Segundo o celebre Sande Elago, as plantas medicinaes dividem-se em -classes correspondentes aos sete planetas: saturninas, joviaes, -marciaes, solares, venereas, mercuriaes e lunares.</p> - -<p>A versão portugueza de Elago (<i>Compendio de Alveitaria</i> tirado de -varios auctores, composto na lingua hespanhola por Fernando de Sande -Elago. Lisboa, Impressão Regia, 1832, in-4.ᵒ) merece attenção por, -entre outras cousas, trazer uma grande relação de plantas com os seus -nomes em vulgar.</p> - -<p>Tambem na obra classica de Felix do Avellar Brotero, a <i>Flora -Lusitanica</i> (Parte 2.ᵃ—Lisboa, 1804), a pag. 522, vem um indice de -nomes vulgares das plantas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span></p> - -<p><i>Montalegre, 19 e 20 de junho.</i>—Concurso de machinas agricolas -na quinta de Montalegre, bella propriedade do snr. Carlos Anjos. Foi -muito concorrido, appareceram muitas charruas de varios systemas que -trabalharam puxadas a juntas de bois. A machina e o adubo serão a -salvação da agricultura; é preciso aperfeiçoar e augmentar o trabalho, -é necessario reforçar a terra, tornal-a propria para produzir bem. -A meu vêr a machina e o adubo teem ainda outra vantagem, põem o -machinista, o chimico, o agronomo em contacto com o agricultor; levam -a sciencia ao campo; afinam mais facilmente com a experiencia, que o -veterinario, que difficilmente se tem aproximado do lavrador.</p> - -<p><i>Na obra Exposição da alfaia agricola na Real Tapada da Ajuda, em -1898</i> (Lisboa, Imp. Nacional. Publ. comm. do 4.ᵒ centenario do -descobrimento do caminho maritimo da India) ha uma parte referente ao -concurso de charruas na quinta de Montalegre, á Luz, com photographias -de charruas, grades, semeadores, ceifeiras, enfardadoras, escolhedor, -tararas, etc.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>29 de junho, S. Pedro.</i>—Fui a Lisboa no carro de Carnide. Este -carro nos ultimos tempos tem seguido varios caminhos de Carnide á rua -da Assumpção, por causa dos trabalhos das Avenidas, e do ascensor -Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Hoje é o ultimo dia do caminho -pelo campo de Sant’Anna;<span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span> Carnide, largo da Luz, estradas da Luz e -Larangeiras, Sete Rios, Palhavã, S. Sebastião da Pedreira, Matadouro, -Instituto Agricola, Cruz do Taboado, Campo de Sant’Anna, R. Arantes -Pedroso, R. da Inveja, Principe Real, Mouraria, Praça da Figueira, -Rocio e Travessa da Assumpção. Agora passa o itinerario á Estephania, -porque as obras da Avenida que vai ao Matadouro estão muito adiantadas -e cortam o caminho. Ha tempo que estão a desmanchar uma parte do -aqueducto que vai de S. Sebastião da Pedreira ao Matadouro. Que bella -construcção antiga, de magnificos silhares bem faciados, e de alvenaria -firme, solidissima, com enormes pedregulhos; aproveitam agora este -material nas novas construcções da Avenida, mas teem de trabalhar -devéras para o arrancar.</p> - -<p>Estas variantes do caminho seguido pelo carro de Carnide menciono eu -para marcar o desenvolvimento dos novos bairros da capital.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Fogueiras de S. Marçal.</i>—29 de junho: dia de S. Pedro. Á noite -muitas fogueiras pelos campos. Estas são dedicadas a celebrar S. -Marçal, advogado contra os fogos.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>3 de julho, domingo.</i>—Pelas 9 horas da noite, eclipse parcial da -lua que durou, muito nitido, até depois das 10 horas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span></p> - -<p><i>Domingo, 17 de julho.</i>—Festa a Nossa Senhora do Monte do Carmo, -no convento de Santa Thereza, com os padres inglezinhos; foi ás 10 -horas da manhã. Cantou a missa o rev.ᵒ P. Louro, capellão das freiras, -e professor do Collegio Militar.</p> - -<p>O côro dos inglezinhos era acompanhado a orgão. Executaram muito bem o -seu solemne cantochão.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Na chan da quinta ha um recanto isolado, silencioso; junto do alto muro -velho da cêrca das freiras está um poço d’onde se tira agua por uma -picota; dois robustos cyprestes, figueiras de negros troncos tortuosos -espalham fechadas sombras; além do recanto a terra do trigo, a vinha, -as oliveiras; parece uma paizagem grega; o olhar de Homero não a -estranharia.</p> - -<p>Estive hoje a ler ali um trecho de Ruy de Pina (o silencio do logar e -a sombra do arvoredo ainda m’o tornaram mais frisante) que me falla de -Carnide.</p> - -<p>Trata-se do amargo desastre de Tanger, de como ficou preso dos mouros o -infante santo, pobre D. Fernando, filho de D. João I.</p> - -<p>—E o infante D. Pedro, como sentiu o coração d’el-rei em algum mais -socego, lhe pediu licença para trigosamente, e o melhor que pudesse, de -Lisboa socorrer a seus irmãos, e a el-rei aprouve, e se veio logo apóz -elle á aldêa de <i>Carnide</i> junto com Santa Maria da Luz, porque -a cidade estava<span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span> perigosa de pestilencia. Mas porque ordenou que o -socorro fosse com muita gente e grande poder, em se aviando para isso -as cousas necessarias, chegaram em tanto a Lisboa dos que vinham de -Tanger, muitos navios que certificaram o caso como finalmente passara, -de que el-rei foi logo avisado, e certamente foi mui aspero de ouvir, -que o infante seu irmão ficava em poder de mouros; mas por saber que a -mais da sua gente era em salvo, deu por isso muitas graças a Deus, e -como rei virtuoso, humano e agradecido, deteve-se naquella aldêa, para -vêr e agasalhar os que vinham do cerco, dos quaes muitos, ao tempo que -iam fazer-lhe reverencia, em disformes semelhanças e tristes vestidos, -que para isso de industria vestiam, e com palavras á desaventura -conformes, se lhe mostravam, e delles fingiam ser muito mais -damnificados do que na verdade o foram, com fundamento de carregarem -mais na obrigação para o feito de seus requerimentos, que alguns logo -faziam e outros esperavam fazer, de que el-rei recebia publica dôr e -tristeza.</p> - -<p>Mas a estes foi mui contrario o nobre e valente cavalleiro Alvaro Vaz -d’Almada, capitão-mór do Mar que como quer que no cêrco de Tanger de -sua fazenda perdesse muita, e da honra por merecimentos d’armas não -ganhasse pouca como chegou a Lisboa, antes de ir fallar a el-rei, logo -de finos pannos e alegres côres se vestiu, a si e a todos os seus, e -com sua barba feita e o rosto cheio de alegria,<span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span> chegou a Carnide, onde -o rei andava passeiando fóra das casas, e com elle o infante D. Pedro, -e depois de lhe beijar as mãos e lhe dizer palavras de grande conforto, -el-rei o recebeu mui graciosamente, e louvou muito sua ida naquella -maneira, que não sómente lhe apontou cousas e razões, para não dever -por aquelle caso ter nojo nem tristeza, mas ainda que por elle devia -ser mui alegre e contente, estimando em nada o captiveiro do Infante -seu irmão, que era um homem só e mortal, em que havia muitos remedios, -em respeito da grande fama que naquelle feito em seu nome se ganhára -aconselhando-lhe mais o repique e alvoroço dos sinos, para honra e -prazer dos vivos, que o dobrar d’elles, que ouvia, por tristeza e pelas -almas dos mortos; pelo que el-rei começou a mostrar que aquelle era o -primeiro descanço que seu coração recebia...</p> - -<div class="blockquot"> - -<p>(Cap. 36 da <i>Chronica de D. Duarte</i>, de Ruy de Pina.—<i>Ineditos -da Acad.</i> Tomo 1.ᵒ, pag. 172 e 173).</p> -</div> - -<p>Onde seria o paço de D. Duarte?... não sei. Na rua do Machado ha -ainda cunhaes de grossa silharia velha, restos seguros de mui antiga -construcção. Por aquelles quintaes ainda se encontram vestigios -antigos, não são sufficientes porém para se affirmar a existencia ali -de solar ou castello. O velho paço de Carnide desappareceu. Ficou a -narrativa de Ruy de Pina. Resalta ahi a figura<span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span> de Alvaro Vaz d’Almada, -n’uma luz e n’um ensinamento incomparavel. Coragem, para encarar -perigos e reparar desastres; um homem não se prostra perante a dôr, -soffre; o coração abafa de soluços, mas lucta-se sempre, engole-se a -amargura, soffre-se a ferida, suga-se a esponja de fel, mas o espirito -não se perturba, o animo esforça-se por não perder a sua energia.</p> - -<p>Deixar ao lado os esmorecidos, ao longe, bem longe, os vis -especuladores, e trabalhemos, sem fraquejar, ainda que as lagrimas -salgadas nos queimem as faces, e a angustia nos aperte o coração; -o espirito justo vence; Deus manda que se trabalhe, e que não nos -deixemos vencer pela tristeza.</p> - -<p>Antigamente no dia 17 de julho havia mercado de trigo em Mafra; era -importante, servia para se saber do trigo existente, se havia mingua ou -fartura, ver as qualidades, e tratar de preços. Reunia-se muita gente, -importantes <em>quadrilhas</em> de carros de bois, dos lavradores, e -muitas récuas de machos dos padeiros de Lisboa.</p> - -<p><i>Agua de Santo Alberto.</i>—Domingo, 7 de agosto de 1898. Logo que -cheguei, bebi agua de Santo Alberto, que mandaram as freirinhas, em sua -bilhinha de barro vermelho, com um ramo de murta florida preso na aza. -É boa contra as febres. Na rua, raparigas apregoavam fogaças.</p> - -<p>Esta agua de Santo Alberto tem fama muito<span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span> antiga.—Em 7 de agosto, -na capella dos Terceiros do Carmo se benze a agua com uma reliquia de -Santo Alberto (<i>Summario de varia historia,</i> de Ribeiro Guimarães. -IV. pag. 240).</p> - -<p>Fr. Estevão de Santo Angelo, fez um romance heroico dedicado á -virtude d’esta agua, no seu Jardim Carmelitano. Agora ha muitas aguas -virtuosas, mas os reclamos não chegam a epopeias.</p> - -<p><i>Carnide, 15 de agosto de 1898.</i>—Ás 6 horas da manhã, estouros -de morteiros, estalos altos de foguetes, e rompeu sonorosa musicata. -É a festa do anniversario da <i>Sociedade Philarmonica 15 d’agosto -de 1880</i>. Os bellos rapazes preparados por ensaios repetidos -apresentaram-se em publico com o seu melhor reportorio.</p> - -<p>15 d’agosto, o dia de Nossa Senhora, tão celebrado na minha terra, e -em todas as que teem vida agricola. É o dia em que os lavradores de -cereaes, sabem com certeza o que passou pela eira, e se vencem fóros e -rendas de trigo, centeio e cevada.</p> - -<p>Houve missa nas freiras ás 8¹⁄₂ da manhã. Estava em exposição o -<i>Senhor Formozo</i>, muito fallado na chronica convental. É o <i lang="la" xml:lang="la">Ecce -homo</i>, mãos atadas, o manto d’irrisão lançado para as costas; a -imagem do Divino Justo, quando foi insultado pela gente ignara, pela -sociedade culta e inculta de Jerusalem. Porque então, como hoje o -cultismo<span class="pagenum" id="Page_106">[Pg 106]</span> não implica espirito de Justiça; não vemos nós nações das -mais cultas, que se dizem christãs, arvorando a força sobre o direito?</p> - -<p>Pobre <i>Senhor Formozo!</i> Se me não engano era uma regular pintura -hespanhola, maneira energica, aspecto tragico, por isso talvez -impressionava tanto as pobres antigas freiras. Era o rosto austero, -o corpo já com livores de cadaver e gottejando sangue; a expressão -do grande soffrimento sobrepujada todavia pelo incondicional perdão. -Assustava as nervosas santas mulheres, e chamaram um grande pintor -então afamado, para emendar a tela; vê-se bem que foi muito alterado no -rosto; o pintor sabia do mundo, e fez um Christo precioso, de boquinha -affectada, de expressão inoffensiva, incapaz de qualquer suggestão -incommoda a espiritos assustadiços.</p> - -<p><i>28 de agosto de 1898. Bolinhos de Santa Quiteria.</i>—Hoje -trouxeram-me bolinhos de Santa Quiteria, muito bons para evitar a -hydrophobia em pessoas, cães e vaccas.</p> - -<p>São uns pequenos cubos de massa de trigo, passada no forno.</p> - -<p>Depois vieram homens vestidos de opas pedir esmola para a Irmandade de -Santa Quiteria, do Senhor Roubado, perto de Odivellas.</p> - -<p><i>1899. Dia de Anno Bom.</i>—Assistiram á missa alguns alumnos do -Collegio Militar, que não foram<span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span> a ferias. Teem as familias muito -longe... no ultramar. Depois da missa o capellão rev. Padre Louro, -apresentou a imagem do Menino Jesus, em pé; as pessoas presentes foram -beijar a imagem. Durante a missa o orgão executou musica solemne, e na -apresentação do Menino tocou um motete alegre, com imitações de musica -pastoril, de sanfona e gaita de folles. Pairava em todos um sorriso -bom; só eu pensava n’um menino, n’um adoravel menino... luz que se -apagou.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Estive hoje a lêr um livro que me deu noticias da egreja da Luz, d’este -logar de Carnide: <i>Historia do insigne apparecimento de Nossa Senhora -da Luz e suas obras maravilhosas</i>: Composta pelo Padre Fr. Roque do -Soveral, religioso da Ordem de Christo. Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1610.</p> - -<p>É um volume in. 4.ᵒ de 213 pag.</p> - -<p>O rosto do volume, gravado por Antonio Pinto, é muito interessante. -A meio está o medalhão com a imagem de Nossa Senhora com o Menino no -collo; e aos lados estão gravados feixes de muletas, navios pendurados, -pelouros, e umas cousas que representam talvez mortalhas ou samarras de -que se falla nos muitos milagres da veneravel imagem.</p> - -<p>Tem muitas noticias este volume a respeito de pessoas e casos em -diversas epochas, significantes para o estudo social e local.</p> - -<p>Por exemplo, a pag. 52 v. a proposito da antiga<span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span> romagem á Senhora da -Luz, diz que este sitio de Carnide era dantes mui deserto, e depois -de começarem as romagens os caminhos se tornaram mais seguros:—sendo -dantes, segundo o que sabemos por tradição antiga tão espessos bosques, -que para o logar de Carnide não havia mais caminho que um atalho, que -se tomava no caminho de Bemfica para o tal logar, e nos mesmos bosques -se recolhiam salteadores, da maneira que em Portugal na charneca de -Monteargil, etc.: e cita varios bosques notaveis na Europa por serem -asylo de ladrões: assim, antigamente eram tão temidas as brenhas e -mattos de Carnide, que ninguem caminhava para elle sem muita junta de -receios.</p> - -<p>Feita a egreja e estabelecidas as romagens o sitio e os caminhos se -tornaram mui frequentados; encontrava-se gente de todas as qualidades -e nações, o hespanhol, o bretão, e o flamengo; os de pé, de cavallo e -de coche, cantando e dançando, tocando violas e adufes:==disse por isso -mui bem o outro, que os que vinham de Nossa Senhora da Luz, parecia -virem de colher as lampas de S. João, que ou seja com canas verdes nas -mãos, ou com capellas nas cabeças, sempre tornam para suas casas, como -se vieram das hortas de colher cheirosas ervas.</p> - -<p>Tanto assim que havia cinco mulheres==que só vivem e se sustentam de -venderem candeias de offerecer, achando-se para isto de continuo em a<span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span> -egreja da Senhora. E diz depois (pag. 54 v.) das mais celebres romagens -do seu tempo, em Portugal, a começar pela Senhora do Monte. O cap. -II, (pag. 76 v.) é intitulado:==<i>Particularidades da fonte de Nossa -Senhora de Luz</i>==, e tem muitas paginas consagradas á virtude dessa -agua. E até o certificado de um medico (pag. 77 v.); mas eu não me -posso demorar, e peço ao leitor curioso que veja o livro. Eu tenho que -resumir. A pag. 190 conta==de algumas náos que a Senhora da Luz livrou -da tormenta em que se viram perdidas, e logo abre o cap. XII:==<i>Como -Nossa Senhora da Luz é avogada dos mariantes.</i></p> - -<p>É inutil dizer que todas essas paginas teem interessante lição e -importancia historica.==Escreve ácerca da náo <i>Luz</i>, em 1497, e a -este respeito se cita o templo de Nossa Senhora da Luz, em Goa, fundado -sem duvida em lembrança da Luz, de Lisboa. E affirma que era costume -os mariantes dessa longa viagem da India virem antes de embarcar em -romagem á Luz de Carnide, depois de lá chegados á Luz de Goa. Que -esta romagem da Luz está ligada ás primeiras navegações não offerece -duvida. Conta (cap. XIII) o caso horrivel da náo <i>Chagas</i> (1560); -e em memoria deste milagre,==hoje 7 de junho de 1570 vieram a esta -casa da Luz com procissão todos os marinheiros da mesma náo.==E vem -a historia da urca <i>Fortuna</i>, e da caravella de Pero Marques, a -da náo hespanhola <i>S.ᵗᵃ Ana</i>, a da náo <i>Betancor</i>, e a do -<i>Salvador</i>; e a<span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span> de uma escotilha em que se salvou Pero Gonçalves, -estando tres dias sobre ella no alto mar!</p> - -<p>Na egreja havia quadros de milagres, imagens de cera, muletas de -aleijados, grilhões de captivos, mortalhas de salvos na agonia, velas -de naufragos escapos ao vendaval, pedaços de amarras de náos, pares -de algemas, pelouros de artilheria grossa, (pag. 104 v.) e náos, -pequeninas náos; «do côro ficam pendendo sobre a egreja quatro náos, -que em fórma pequena contrafazem bem toda a fabrica das que navegam; e -ha pouco tempo (note-se isto) que estavam oito que se tiraram assim por -pôrem outras que vinham de novo, e não tinham lugar, como por se darem -a algumas pessoas que as pediram».</p> - -<p>E antes mais cousas havia:==na ermida antiga de todas estas cousas -havia mór numero, de que tiraram algumas menos gastadas do tempo, para -as mudarem aonde agora dizemos estão (pag. 204 v.)==As <em>samarras</em>, -segundo a tradição, eram de uns homens que, na volta da India, -naufragaram na costa da Cafraria, e andaram muito tempo perdidos pelo -matto, fugindo das féras e dos pretos, até que, invocada a Senhora da -Luz, lhes appareceram uns cafres misericordiosos que lhes deram suas -proprias vestimentas.</p> - -<p>Havia tambem cobras, isto é, pelles de cobras, uma de 4 varas de -comprimento, provenientes do Brazil; mortas por milagres quando -intentavam matar as pobres victimas nos seus anneis roliços,<span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span> e com -seus venenos fulminantes. Era uma collecção suggestiva essa, hoje -sumida de todo perante esta moderna correcção idiota que tudo invade e -vae dominando, matando arte e poesia e fé.</p> - -<p><i>Carnide. Domingo, 15 de janeiro de 1899.</i>—Começou hoje a -funcionar o ascensor Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Fui a Carnide no -carro da rua da Asumpção. Carro cheio; pessoas que iam ao collegio -militar visitar os filhos. Nestes domingos de visita ha sempre no carro -conversas interessantes; dos filhos que vão bem, d’outros que perderam -o anno; e corre-se uma larga escala de affectos, de caracteres, e -de saudades. Viuvas que vão vêr os seus filhos, amigos que vão vêr -os filhos dos que estão no ultramar para lhes dar noticias, tutores -que visitam pobres orphãos. Todos levam uma lembrança, um embrulho -atadinho, para os rapazes. Com as senhoras vão ás vezes meninas, -mui palreiras, enthusiasmadas com a visita aos pequenos militares. -Que estes carros de Carnide favorecem o cavaco, com os seus pulos e -solavancos; vae uma pessoa muito correcta, zás solavanco, e vem uma -senhora nervosa cair-nos nos joelhos; um cavalheiro solemne e mui -serio, pula o carro, e elle apanha na cara com um chapeu de plumas, ou -um papeluço de bolos. Quer a gente mover-se, não póde, está presa, as -taboinhas dos assentos do carro apertam abas de casacos e dobras de -vestidos; não faltam os preguinhos atrevidos que rasgam<span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span> tecidos e ás -vezes a pelle; ha sempre episodios; depois logo ao entrar na estrada -das Larangeiras, o ar é mais fino, e fresco, com perfumes campesinos; a -estrada da Luz tem vista de campos, de varzeas e arvoredo. Alegram-se -os olhos de vêr a paizagem e os pulmões gozam ar mais puro.</p> - -<p>Mas hoje, 15 de janeiro, o aspecto é outro, o vento é desabrido, de -rajadas, ha nevoeiro denso, humido, que mal deixa vêr as arvores -proximas, num esbatido leve. Na Luz alguns carros, e varios grupos; -ha corridas pedestres e de bicycletas, e prepara-se uma partida de -foot-ball.</p> - -<p>Fomos até ao casal do Falcão, e ainda mais adiante a Alfornel vêr o -faval nascente. Os trigos nasceram bem mas estão amuados.</p> - -<p>A paisagem é extraordinaria hoje, porque a nevoa tem intermitencias; -é um nevoeiro muito humido, irregular, de densidade diversa, e como a -camada de nevoa que está passando não tem grande espessura, de vez em -quando rompe-se e apparece logo o ceu velho, e um jorro de sol.</p> - -<p>Como isto agora tem o aspecto triste, no nevoeiro frio e humido, -rasgado pelo vento convulso que vae passando; o casal tão velho, ruina -tragica, as figueiras, as vinhas sem folhas, como tiritando no frio de -janeiro.</p> - -<p>Jantar de familia, casa cheia; como a sopinha quente sabe bem -neste frio de janeiro, em dia de<span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span> nevoa cerrada; depois algumas -especialidades, os nabos guisados, a carne de porco assada, com a -loura agua pé; o pudim delicioso; as raivinhas e os esquecidos do Bom -Successo. Ao café, com o competente cognac caseiro, entraram os srs. -Duartes, de Mafra, que trouxeram elementos novos á cavaqueira. Contaram -que el-rei mandára deitar javardos na tapada de Mafra; já entraram oito -de Castello Branco, e um que nasceu no parque das Necessidades. Na -Tapada, a comida é pouca; em tempos antigos houve porcos bravos ali, -mas acabaram com elles porque nada lhes escapava.</p> - -<p>De subito entrou uma mascarada animada, os meninos e meninas T., -uma série muito gentil, vibrantes de riso; houve piano, valsas, -improvisou-se um concerto: a sr.ᵃ D. G. cantou superiormente alguns -trechos.</p> - -<p>—Já 9 e um quarto! toca a ir para o carro.</p> - -<p>Eu fiquei; da janella do meu gabinete a vista era admiravel; estava o -ceu muito estrellado, havia algum luar, o ar muito frio e sereno; a -nevoa abaixára, e estava agora quieta e branca sobre as varzeas, os -campos do valle; muito salientes, a massa negra do casal do Falcão, e -a collina triste coroada de cyprestes do cemiterio dos Arneiros; um -grande silencio frio; como uma palpebra semicerrada de agonisante, -a esvaír-se de luz e de vida, a lua em minguante, muito obliqua, -branqueando a toalha de nevoa quieta sobre as terras mais baixas, as -varzeas humidas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_114">[Pg 114]</span></p> - -<p><i>Carnide, domingo 28 de janeiro de 1899.</i>—Vi hoje lindas flôres -do logar de Telheiras; com a inverneira que tem corrido, frios, geadas, -tempestades, notei as flôres; é que o logar de Telheiras é mais ameno -e abrigado, a este de Carnide mais alto e exposto ás grandes correntes -do ar. O antigo oratorio, convento e egreja de Nossa Senhora da Porta -do Ceu, em Telheiras, está hoje abandonado. É n’esta egreja que está -a sepultura do principe de Candia, o pobre rei do Ceylão, fundador do -edificio, que veiu morrer tão longe das suas florestas de canella.</p> - -<p>O oratorio de Nossa Senhora da Porta do Ceu, de Telheiras, foi fundado -pelo principe D. João de Candia. Este infeliz principe nasceu em -Ceylão, por 1578, e teve de abandonar o seu throno de marfim e perolas, -entre luctas politicas e religiosas; era criança ainda. Levaram-o para -a ilha de Manar, depois a Gôa, e ao collegio dos Reis Magos de Bardez; -veiu parar a S. Francisco de Lisboa, mais tarde a S. Francisco da -Ponte, em Coimbra, e gastou o resto da vida a requerer e representar -entre Lisboa e Madrid, porque então dominavam os Filippes. O que isto -seria, Santo Deus! n’aquelles tempos, quando hoje basta uma burocracia -para abafar e esterilisar todas as vontades, o que seria no tempo da -dominação hespanhola com tantos officios e dezembargos em Lisboa e -Madrid.</p> - -<p>A historia d’este homem é interessante; pobre<span class="pagenum" id="Page_115">[Pg 115]</span> soberano de Candia, -Cota, Ceytavaca e Cettecorlas, que veiu descançar aqui em Telheiras, -cingindo o cordão franciscano.</p> - -<p>Dizem que hoje não é assim; os soberanos desthronados vão direitinhos -ás folias de Paris, e as alfayas e tapeçarias apparecem no Druot, -escapando aos ministros de que falla o chronista Soledade.</p> - -<p>Infeliz principe singalez, chamaram-lhe D. João d’Austria, e principe -de Candia, e foi um martyr toda a vida; teimaram em ensinar-lhe latim e -theologia, andou em bolandas pelos conventos intrigado e explorado, e -nem mesmo cumpriram a sua ultima vontade. Morreu em 1 de abril de 1642, -a sua morte foi um lauto regabofe para muita gente... «pelas mãos dos -ministros, como ficaram todas as tapeçarias, peças de prata, e outras -muitas alfayas preciosas, que elle tinha consignado á egreja d’este seu -convento, as quaes levaram d’elle com violencia os ditos ministros, -e sem obstarem os requerimentos dos religiosos, tudo repartiram e -consumiram entre si.»</p> - -<p>Isto escreve fr. Fernando da Soledade, na sua <i>Chronica serafica</i>, -5.ᵒ vol. n.ᵒ 893, pag. 611.</p> - -<p>Elle diz ainda mais coisas que eu não estou para transcrever; foi uma -patifaria, como tantas outras que se teem feito modernamente.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Paço do Lumiar, 2 de fevereiro de 1899.</i>—Dia de Nossa Senhora da -Purificação, as Candeias, como se diz vulgarmente.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span></p> - -<p>Fui vêr a festa religiosa e a feira, na egreja parochial de S. João -Baptista do Lumiar, e no bello adro que a cérca.</p> - -<p>A festa é a Santa Brigida.</p> - -<p>Na egreja esteve exposta a reliquia da Santa, uma parte do craneo, em -uma urna de prata dourada, muito bem trabalhada, elegantissima: uma das -urnas mais gentis que tenho visto em estylo D. João V.</p> - -<p>Dizem que veiu esta urna do mosteiro de Odivellas.</p> - -<p>Na feira havia gado suino alemtejano, vaccas leiteiras com bezerros, -vidros, louças, queijadas e bolos.</p> - -<p>Ha uma especialidade n’estas feiras saloias; as leitoas assadas, -abertas a meio e espalmadas, seccas e rijas, de uma côr apetitosa, -expostas á venda em canastras ou caixotes com ramos de louro.</p> - -<p>O saloio com a canastra de leitoas emparelhava bem com a collareja, -assentadinha, chapeu de chuva aberto, com a cesta de queijadas de -Cintra.</p> - -<p>Dois ou tres homens vendiam bordões, chibatas, varas e varapaus armados.</p> - -<p>Na feira de S. João, em Evora, apparecem tambem saloios, uns vendendo -varapaus, e outros a que chamam saloios da Nazareth com taboleiros -de pederneiras para isca. Agora com as guerras á isca feitas pelos -phosphoros, não sei se vão desapparecer de todo estes representantes -ultimos da edade do <i lang="la" xml:lang="la">silex lascado</i>.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span></p> - -<p>Passeavam lavradores invocando ou agradecendo a protecção da Santa, em -volta da egreja, com juntas de bois, algumas muito enfeitadas de fitas -de côres vivas, com entrançados e bordados.</p> - -<p>Dentro da egreja, á direita da entrada, dois homens recebiam -esmolas, em trigo na sua arca especial, ou em dinheiro, e vendiam -<em>registos</em>, milagres de cêra, bois e peitos, e muito pavio de cêra -amarella ás braçadas. O pavio amarello é bom para livrar o gado de -doenças, olhados e desastres; enrola-se dando volta aos dois chifres do -boi, e ahi se deixa ficar até se estragar.</p> - -<p>Sobre o altar de Santa Brigida foram collocar alguns boisinhos de cêra.</p> - -<p>Depois da festa houve communhão na capella da Santa, tocando o orgão, -e em seguida o padre deu a reliquia a beijar; e foi muito beijada, por -mais de cem pessoas, com muita devoção.</p> - -<p>Esta Santa Brigida, protectora do gado bovino, da-me que pensar. -Brigitta, Brigida, Brigides, Birgida, Birgita, Britta, etc., virgem, -natural da Escocia, abbadessa de Kildare na Irlanda, morreu em 523, no -1.ᵒ de fevereiro, segundo affirmam.</p> - -<p>As lendas d’esta Santa ligam-se com a famosa de S. Brandão (Brendanus, -Bredan) abbade de Chainfort, na Irlanda, que morreu em 578 (16 de maio -ou 5 de junho).</p> - -<p>A reliquia, a cabeça da Santa, segundo diz a<span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span> inscripção no exterior da -capella, foi trazida por tres cavalleiros hibernios, ou irlandezes.</p> - -<p>O que eu vi na urna pareceu-me effectivamente um fragmento de craneo, o -occipital, talvez; não se vê bem por causa dos ornatos.</p> - -<p>Que esta devoção por Santa Brigida vem pelo menos do seculo -<span class="allsmcap">XIII</span>, com certeza, e continúa ainda intensa; ha pouco ainda -uma devota offereceu uma cabeça de prata.</p> - -<p>Este sitio do Lumiar e Paço do Lumiar merece um estudo especial; foi -aqui o paço do famoso infante Affonso Sanches; ha estreitas relações -entre esta egreja e o sitio e mosteiro de Odivellas, antigos santuarios -que estão no principal caminho de Lisboa para o interior, o caminho de -Alvallade, onde se encontraram os exercitos na sanhosa guerra civil de -D. Diniz.</p> - -<p>A inscripção dos cavalleiros hibernios está no exterior da capella de -Santa Brigida, da egreja de S. João Baptista do Lumiar, lado norte. É -copia da antiga que de ha muito se sumiu. É a seguinte:</p> - -<div class="blockquot"> - -<p>Aqvi nestas tres sepvltvras iazẽ enterados os tres caval.ʳᵒ ibernios -q. trouxerã a cabeça da bẽ avẽtvrada S. Brizida virgẽ natvral da -Ibernia cuia reliqvia está nesta capella p.ᵃ memoria do qval hos -oficiais da mesa da bẽaventvrada S. mão darão fazer este ẽ ian.ʳᵒ de -1283.</p> -</div> - -<p><span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span></p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Quinta feira da Ascensão, 11 de maio de 1899.</i>—A chuva miudinha -de hontem não regou bem as terras, mas abateu a poeira das estradas, -e lavou as folhagens que estão viçosissimas, com o brilho setinoso, -exuberante de primavera.</p> - -<p>Chegando á rua do Norte admirei-me de vêr a calçada coalhada de folhas -de rosa. Houve uma grande festa na egreja das Freirinhas, e tive pena -de não ter assistido. Foi a primeira communhão a alguns alumnos do -Collegio Militar; pela primeira vez, ao que me disseram, se lembraram -de fazer este acto com certa solemnidade. Nem tudo póde lembrar. N’um -estabelecimento de educação, internato militar, ha tanto que fazer, -tamanhas responsabilidades! O ensino dos compendios, a alimentação, -a disciplina, as formaturas, os toques de cornetas, não deixam tempo -para pensar n’estas questões da alma. Este anno, emfim, houve ensejo de -celebrar solemnemente a entrada dos jovens militares n’este primeiro -gráo de consciencia responsavel com hymnos religiosos, musicas e -bençãos, e mãos finas de senhoras lhes atapetaram o caminho com folhas -de rosa.</p> - -<p>Estes já tiveram na vida um dia florido, esperem outros ainda melhores, -os que se seguem aos trabalhos vencidos, ás bellas acções de honra e -abnegação.</p> - -<p>Celebraram a linda festividade na egreja das freiras, ornamentada pelo -dr. Sant’Anna; de todos os pontos vieram taboleiros de flôres.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_120">[Pg 120]</span></p> - -<p>Este anno os campos estão menos verdes do que no anno passado, os -trigaes são menos fortes, menos densos; principalmente nos terrenos -altos as seáras não encobrem o chão; <em>terreja</em> muito; mas as -oliveiras e as vinhas apresentam-se cheias de promessas.</p> - -<p>Quando eu ia por entre as latadas da quinta, opulentas de folhagem, -na paisagem quieta de searas e olivedos, lá do sul, de além do sevéro -macisso de Monsanto, veiu o estrondo das salvas de grossa artilheria. -Estão no Tejo duas formidaveis esquadras, ingleza e allemã, grandes -navios de aço, maravilhas de construcção naval, collossos de força, -suprema expressão da energia dos arsenaes. Como o ruido d’esses -poderosos canhões desafina na paisagem de primavera florida! sobre -esses campos e logarejos respirando a serena vida da natureza.</p> - -<p>É o dia da <em>espiga</em>, como o povo chama aqui, nos arredores de -Lisboa, á quinta-feira da Ascensão; até os carros de trabalho vão -enfeitados com ramos de oliveira, espigas de trigo, rubras papoulas, -brancos malmequeres; tambem enfeitam de espigas e flôres as cabeçadas -dos animaes; e passam ranchos animados, palreiros e galhofantes, as -raparigas com grandes ramos nas mãos, os rapazes com raminhos atados -nos varapaus.</p> - -<p>É a festa agricola que vae por esses seculos atravez raças e religiões, -provavelmente até ao dia em que o espirito do homem pela primeira vez<span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span> -admirou e agradeceu com ternura a planta florida, a suprema graça e o -divino aroma da corolla, promessa do saboroso fructo.</p> - -<p>Na minha terra além das <em>maias</em> do primeiro dia do mez e da festa -da Ascensão, o povo da cidade e dos campos celebra tambem o dia 3 de -maio, o da invenção da Santa Cruz, e ornamenta de flôres as cruzes dos -logares publicos, as das vias sacras, as que marcam nos campos, nas -estradas, os logares onde cairam os assassinados; a cruz de azulejo do -sitio do fusilamento dos frades patriotas na catastrophe de 1808, no -tempo dos francezes, a cruz na base do aqueducto junto do antigo fosso -da muralha, onde se realisou o ultimo fusilamento militar.</p> - -<p>Estes campos de Carnide são menos tragicos; hoje porém as salvas das -esquadras, algumas vezes repetidas, que parece fazem estremecer o -robusto massiço de Monsanto, dão uma preoccupação morbida ao espirito; -para que tal apparato de força, para que a reunião das duas mais -poderosas esquadras de Inglaterra e Allemanha, será apenas para mostrar -ao mundo a sua boa harmonia, no grande porto do paiz pequeno e neutral? -O que é com certeza é a pomposa, a estrondosa manifestação de força, -convicção deprimente, expressão ultima da civilisação n’este findar -de seculo de tão maravilhosas descobertas, que termina affirmando -o direito do mais forte, em que tanto se luctou pelas liberdades, -acabando no militarismo<span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span> ruinoso, e tanto pela melhoria social, pela -equação de direitos, em quanto se erguem implacaveis, cada vez mais -ameaçadores, os monopolios da finança, industria e commercio.</p> - -<p>Passam os ranchos alegres, de vez em quando roda na estrada um trem com -mulheres e creanças, flôres e gargalhadas, na linda tarde de primavera. -Outro rancho ahi vem agora, lento e sereno pelo trigal verde; é um -grupo de religiosas de S. José de Cluny, que veiu ao campo florido -respirar no ar tepido e aromatico.</p> - -<p>Vestem os seus habitos severos, trazem nas mãos ramos de flôres do -campo; andam vagarosas como cançadas ou enfraquecidas; são novas, -sorriem, sorrisos de doentes em rostos palidos: interessante grupo! são -convalescentes sem duvida; vieram dos hospitaes e escolas do ultramar -dominadas pelas febres, procurar restabelecer a saude n’este lindo -sitio de Carnide.</p> - -<p>O que Mousinho de Albuquerque no seu livro <i>Moçambique</i> -escreve a respeito d’estas religiosas é encantador. Elle falla dos -extraordinarios serviços por ellas prestados nos hospitaes de Lourenço -Marques, de Inhambane, e Moçambique, nas escolas, <em>por uma fórma -acima de todo o elogio</em>; e em Gaza, e no Chibuto.==O carinho e -dedicação com que tratavam os doentes e feridos, procurando não -só proporcionar-lhes todas as commodidades que as circumstancias -permittiam, mas não se esquecendo um só momento de lhes confortar -o animo,<span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span> de lhes levantar o moral, sómente póde avalial-o quem o -testemunhou.==Ou eu não sei o que é caridade, ou o que as Irmãs de -S. José de Cluny estão fazendo na provincia de Moçambique é a sua -manifestação mais elevada e commovedora==.</p> - -<p>Em Carnide sabe-se que esses serviços ultramarinos são uma verdadeira -batalha. Das que lá morrem não consta, as lévas de doentes que voltam -essas todos as vêem. Algumas voltam anemicas, ás vezes tuberculosas; -chegam, descansam, melhoram, e lá partem outra vez para os hospitaes e -escolas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Domingo, 14 de maio de 1899.</i>—Scena inesperada; um touro da -manada do conselheiro Alvares Pereira, n’uma corrida em Algés, partiu -uma perna, e foi recolhido n’um pateo do casal do Falcão. É bicho -de estimação, de muito genio e boa estampa. Foi amarrado sobre um -carro e tratado com todos os cuidados, algodão borico, arnica, talas, -ligaduras, nada faltou.</p> - -<p>O aspecto do touro no carro era extraordinario; os olhos negros e -vermelhos com uma expressão de furia mais que de dôr; suava em grossas -bagas; mordeu-se nos beiços até levantar a pelle. Alli, atadinho no -carro, sim, que a gente podia vêr um touro de pertinho. De repente deu -um puchão, e assoprou; isso é que foi panico, não sei se cahiu alguem, -ouvi dizer que sim. O resto do caso foi visto de cima do muro. E lá foi -o carro<span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span> pela estrada fóra, á noitinha, caminho da leziria, com o seu -cortejo de campinos nas suas ligeiras facas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Nomes dos animaes.</i>—Á sombra da parreira vestida de bellos -cachos; entre os alegretes azulejados, azul em fundo branco, em -pequenos quadros de galanteria, episodios comicos, italianices e -chinezices, á moda do seculo <span class="allsmcap">XVIII</span>; proximo da nóra onde -barulha a agua ao som emolliente e rhytmico do engenho, cavaqueia-se -em cousas diversas; appareceu o sr. F. V. que tem lavoura e gados no -Alemtejo; e logo se fallou de searas, pastagens, touros, casos de -pastores...</p> - -<p>—E sabe os nomes dos bois?</p> - -<p>—Ora, essa! dos bois, dos cavallos, dos touros...</p> - -<p>E eu fui tomando nota dos nomes dos animaes.</p> - - -<p><span class="smcap">Nomes de -touros.</span>—Artilheiro—Azeitono—Barqueiro—Batoque—Bugino—Caçador—Caixeiro—Caldeiro—Camarinho—Capirote—Caraça—Carvoeiro—Corvacho—Espingardo—Estandarte—Estorninho—Estrello—Foguete—Forcado—Gaiato—Gaveto—Lanceiro—Luviano—Murtinho—Rabalvo—Rasteiro—Teimoso—Verdugo.</p> - -<p><span class="smcap">Nomes de -cabrestos.</span>—Calçado—Caminhante—Caminheiro—Ligeiro—Pardal.</p> - -<p><span class="smcap">Nomes de bois de -trabalho.</span>—Alfayate—Bigode—Bonito—Castanho—Esperto—Formoso—Galante—Galhardo—Joeiro—Lagarto—Mourisco—Trigueiro.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span></p> - -<p>Dois bois de trabalho, de egual marca, fazem uma junta; aqui por estes -sitios os bois da junta teem nomes certos; se um é <em>castanho</em> -o outro é <em>mourisco</em>; o <em>formoso</em> com o <em>galante</em>; -o <em>galhardo</em> com o <em>ramalhete</em>, e o <em>damasco</em> com -<em>diamante</em>.</p> - -<p><span class="smcap">Nomes de -vaccas.</span>—Andorinha—Bonecra—Bonita—Borracha—Branca—Briosa—Carriça—Catita—Caterina—Coimbra—Corvina—Doirada—Estrella—Gadanha—Janota—Padeira—Pomba—Rita.</p> - -<p><span class="smcap">Nomes de -cavallos.</span>—Carocho—Catrapim—Palmeiro—Pardal—Pirata—Tareco.</p> - -<p><span class="smcap">Nomes de -cabras.</span>—Alvadia—Carocha—Cartaxa—Condeça—Marmella—Rasteira.</p> - -<p><span class="smcap">Nomes de cães e -cadellas.</span>—Tejo—Nilo—Maltez—Leão—Navio—Norte—Beirollas—Ladina—Esperta—Belleza—Brincatudo—Digoélla -(diga-o ella).</p> - -<p>Agora em Carnide ha nomes de cães e gatos, de origem culta, Macbeth, -Castor; a par da Tartaruga a Giroflée; ao lado do Rabicho e do Janota -os gatos Zixacha, Gungunhana, e o Godide, de nomes gloriosos.</p> - -<p><i>Noticias várias.</i>—O padre Anastacio resou a missa de corpo -presente por alma do principe de La Rochejacquelin (Luiz), morto na -furiosa carga de cavallaria nas terras do marquez de Louriçal, á -Palhavan (agora dos condes da Azambuja). A missa foi celebrada na -egreja de Carnide. O padre Anastacio morreu em idade muito avançada em -1896.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span></p> - -<p>Carnide tem o seu papel importante nas crises da primeira metade do -seculo <span class="allsmcap">XIX</span>. Na Luz esteve um deposito de cavallaria organisado -no tempo de Junot; aqui esteve o brilhante official que foi depois o -glorioso marquez de Sá da Bandeira.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>No palacio da quinta do Street, agora residencia da sr.ᵃ condessa -de Carnide (o conde de Carnide era Street Arriaga e Cunha) esteve -o quartel general de Bourmont, commandante em chefe das forças -miguelistas que atacaram Lisboa.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Esta quinta dos condes de Carnide foi em tempo muito nomeada pelas -experiencias agricolas, adubações, drenagens, empregos de machinismos, -que o primeiro conde, homem instruido e grande enthusiasta da -agricultura, aqui realisou. Os ultimos proprietarios não teem seguido a -tradição.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>A celebre cascata da quinta dos condes de Mossamedes, complicada -fabrica de embrechados e nichos, foi destruida ultimamente.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Tambem a infanta D. Maria habitou em Carnide; assim o declara fr. -Miguel Pacheco, na Vida de la serenissima infanta Dona Maria (Lisboa, -1675):==Vivió la senora infanta algun tiempo cerca del convento de la -Luz, distante una legua de Lisboa, en un lugar que llaman Carnide (pag. -109-121)==.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span></p> - -<p>A feira da Luz ainda hoje tem nome, mas em tempos antigos foi muito -afamada; a gente de Lisboa abandonava a capital, empenhava tudo para -ir á feira, havia brigas para obter seges, ou mesmo burrinhos. Tomavam -ponche, ou limonadas, e compravam fitas, anneis, figas e corações. Isto -li eu na Nova e pequena peça critica e moral; <i>os Carrinhos da feira -da Luz</i>: composta por Joseph Daniel Rodrigues da Costa (Lisboa, -1784).</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Na casa proxima á sacristia da egreja de N. Senhora da Luz, no -pavimento, está uma campa com letreiro:</p> - -<p class="center"> -S.ᵃ DE DOM FREI PEDRO<br /> -SANCHES, RELIGIOSO D’ESTA<br /> -ORDEM E BISPO D’ANGOLA<br /> -FALECEO A 30 DE<br /> -NOVEMBRO DE 1671<br /> -</p> - -<p>Quando se fez o cemiterio de Bemfica, chamado dos Arneiros, -transportaram para lá algumas campas do antigo cemiterio de Carnide, -que era em volta da egreja de S. Lourenço. Lá está a campa da marqueza -Ravara com seu letreiro:</p> - -<p class="center"> -AQUI JAZ D. AN<br /> -NA MARIA GUI<br /> -DO MARQUEZA<br /> -RAVARA FALE<br /> -CEO AOS 24 DE<br /> -JANEIRO DE<br /> -1752<br /> -</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_128">[Pg 128]</span></p> - -<p>Nas <i>Memorias de Garrett</i> diz-se que a quinta do Pinheiro fica em -Carnide. A quinta do Pinheiro que foi de Duarte Sá está entre Palhavã e -Larangeiras. Ahi se representou pela primeira vez o drama <i>Frei Luiz -de Sousa</i>, a obra immortal de Garrett. Hoje installaram um hospicio -n’essa bella vivenda.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>O palacete e quinta do Sarmento onde residiu o visconde de Juromenha -ficam proximos da parochial de S. Lourenço de Carnide na estrada que -vae do Alto do Poço para Bemfica, a azinhaga do Poço do Chão.</p> - -<p>O visconde de Juromenha falleceu muito velhinho. Foi n’esta casa do -Sarmento que elle escreveu a sua obra classica, monumental, sobre os -<i>Luziadas</i>. Esta propriedade pertence hoje por herança á sua -antiga governanta.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Um folheto que julgo raro é a «Memoria sobre a união perpétua da -paroquial igreja de Carnide ao priorado do convento de Nossa Senhora da -Luz». É um opusculo de 7 pag. in-4.ᵒ, que me parece escripto por 1810.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>O pinto preto</i>.—Veiu uma mulher, da estrada do Paço do Lumiar, a -comprar um pintaínho preto.</p> - -<p>—Para que é o pinto preto?</p> - -<p>—É para um doente que tem uma fraqueza, e<span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span> não ha nada que lh’a tire. -Dizem agora que só com o pinto preto... E a mulher instou que lh’o -vendessem, ou emprestassem, depois traria outro.</p> - -<p>—Não se vende, nem se empresta. Vá a outra porta. Vá á botica comprar -remedios.</p> - -<p>—Mas então, é para caldos?</p> - -<p>—Não senhor! isto é uma crendice d’esta pobre gente. Abrem-no com uma -faca pelo meio e applicam-no palpitante sobre o peito ou estomago se é -fraqueza; se fôr por alguma dôr, sobre a região onde lhes dóe. É uma -das taes tolices que não sáe dos cascos d’esta gente. Para estas cousas -não sou capaz de vender o pobre animal.</p> - -<p>Em livros de medicina mui velhos apparece o singular curativo; e -recordo-me de ter lido que um medico de Lisboa, no seculo <span class="allsmcap">XVI</span>, -receitava ainda a ave aberta viva para a peste bubonica.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Jogo do pião</i>.—Vi um grupo de rapazes jogando o pião. Nas -cabeças dos piões os rapazes tinham mettido tachas de ferro de haste -curta e cabeça larga de modo que os piões ficam com a cabeça protegida -contra o ferrão do inimigo, é invenção nova para mim. E a isto chamam -os rapazes pôr sêllo no pião, e é obrigatoria a sellagem; se apanham -algum sem a cabeça couraçada, dizem logo:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span></p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">Pião que não tem sêllo</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Vae a casa do camêllo,</span><br /> -</p> - -<p class="p0">e atiram com elle para o telhado mais proximo.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Carnide, 1 de janeiro de 1900.</i>—Caso novo, missa do gallo á -entrada do anno. Disseram-me que por ordem do Santo Padre se transferiu -a missa do Natal, por esta e a vez seguinte, para celebração do novo -seculo, visto que surgiram duvidas (a meu vêr singulares) ácerca de -qual é o primeiro anno do seculo <span class="allsmcap">XX</span>, se é 1900 ou 1901.</p> - -<p>Não consta que se começasse a datar do anno <em>zero</em>, do seculo -<em>zero</em>; mas assim vae o mundo. Começou pois o anno santo pela -missa do gallo.</p> - -<p>Antes da missa do gallo passiei no Alto do Poço, a noite estava muito -serena e agradavel, e casualmente assisti a uma scena dramatica, a -chegada de um expedicionario africanista, inesperada pela familia, que -móra num predio daquelle sitio. O pobre soldado, minado pela febre, -embarcára mui doente em Lourenço Marques; não poude avisar a familia, -chegára a Lisboa já melhor, foi á inspecção ao hospital da Estrella, e -logo lhe deram licença para passar alguns mezes em casa, ares patrios; -e elle assim que apanhou a guia foi direitinho a Carnide. Como elle ia -nervoso, febril, vêr os seus queridos nunca esquecidos, exalçados pela -ausencia larga em regiões e climas remotos.</p> - -<p>Na familia, durante a ausencia do moço soldado,<span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span> houve mortes de -pessoas queridas, que não lhe participaram para o não contristar, pobre -rapaz.</p> - -<p>Chega o soldado em sobresalto febril e logo reparou nos vestidos de -luto; veiu gente conhecida da visinhança e romperam em parabens e -lamentos, numa confusão de lagrimas.</p> - -<p>No theatrinho de Carnide representou-se nessa noite, espectaculo feito -por alguns curiosos da localidade, e terminado o ultimo acto um grupo -animado, cantarolando, veiu da quinta do Sarmento, passando pela casa -do pobre expedicionario. Eram conhecidos e amigos d’elle.</p> - -<p>Missa do gallo! annunciava a sineta do convento, n’uma vibração fina -cortando a noite.</p> - -<p>Na egreja, cheia de devotos em muito silencio, como n’um mysterio, -ergueu-se a voz do capellão.</p> - -<p>Houve exposição do Santissimo, e communhão, na grade ás religiosas -portuguezas, e na capella do Senhor dos Passos ás irmans de Missão. -E exposição do Menino, com o seu alegre motete executado no orgão -velhinho, por uma velhinha no seu habito de Santa Thereza.</p> - -<p>Que singular espiritualidade acho neste cantar das velhinhas -religiosas, tremulo, enfraquecido, esmorecendo como a toada de um sino -que se esvae no ar. E contraste ainda nestas duas instituições aqui a -par, a antiga, a que se apaga, a da vida contemplativa, ascetica, a da -clausura austera,<span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span> orante áparte da humanidade, e a nova da actividade -christan, luctadora dos hospitaes, trabalhadora das escolas, militante -em regiões longinquas, arrostando os paizes das febres e dos selvagens.</p> - -<p>Missa do gallo em noite de anno novo, foi caso inedito para mim. O meu -pobre espirito estava abalado pelos contrastes que presenceára, e ao -mesmo tempo lembrava-me da antiga missa do galo, na minha freguezia de -Santo Antão, seguida da canja no meu lar, tudo n’uma aureola de familia -e de pureza santa!</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>D. Sebastião enamorado.</i>—No jornal <i>A Arte</i>, de 1879 (pag. -158), se transcreve um antigo manuscripto que trata da—«Origem da -desgraçada jornada de Africa que executou el-rei D. Sebastião para -ruina total d’este reino».</p> - -<p>É singular escripto e parece ter um fundo verdadeiro.</p> - -<p>O sr. A. Pimentel tambem se lhe refere no seu bello livro <i>Atravez do -Passado</i> (pag. 119).</p> - -<p>Alguem, talvez com o fim de deprimir a familia do duque de Aveiro, -no tempo pombalino, lhe juntou ou alterou umas linhas que no meu -espirito não originam duvidas sobre os factos do seculo <span class="allsmcap">XVI</span> -ali relatados. O que ha escripto sobre D. Sebastião tem origens muito -alheias á intenção historica simples; assim como o pobre infeliz rei -viveu rodeado de intrigas palacianas, assim a sua<span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span> memoria serviu ainda -para enredadas phantasias, e manias politicas.</p> - -<p>Que em roda do rapaz houve lucta de influencias a proposito do -casamento d’Estado, provam-no muitos papeis velhos; que um amor natural -perturbasse o coração do joven rei não custa a crer; que um duque, -proximo do throno, favorecesse a inclinação do rei para sua filha, é -bem possivel; que D. Catharina, e os politicos, vissem com inquieto -olhar esses amores, é provavel tambem. Ora é esta a essencia do papel -a que me refiro, e que vou mencionar aqui por se fallar n’elle de uma -quinta de Carnide.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>—O duque de Aveiro, D. Jorge de Lencastre, teve uma filha unica -chamada D. Juliana, a quem creou no Paço a rainha D. Catharina, sendo -Regente d’este reino. Era dama formosa, bem feita, e muito esperta; ao -menos, quando não tivesse estas qualidades, agradou-se d’ella El-Rei -D. Sebastião, sendo mancebo, e veiu a declarar-se mais depois do anno -de 1568 em que tomou o governo. Similhantes inclinações, que não podem -ser occultas muito tempo, principalmente entre pessoas taes, chegaram -á noticia da Rainha, e do duque de Aveiro; porém com differentes -sentimentos, porque a Rainha receiava a consequencia d’estes amores, -de que era objecto uma bisneta de el-rei D. João o 2.ᵒ, e o genio -apaixonado de seu neto, que teria então 20 annos, e D. Juliana, -16, com<span class="pagenum" id="Page_134">[Pg 134]</span> pouca differença; e o duque com uma vaidade disfarçada, e -fingindo-se ignorante, do que todos sabiam, aspirava a altas ideias, -lembrando-se de que era neto de um rei, da sua grande representação e -casa, e tudo isto o persuadia de que algum dia sua filha a contariam no -catalogo das Rainhas de Portugal—.</p> - -<p>Fallaram os politicos, os cortezãos, os invejosos, a Rainha fallou ao -Cardeal infante D. Henrique e começaram a querer fazer casamento a D. -Juliana, dando ao duque de Aveiro mais honras e mercês. E foi subindo a -intriga, e D. Sebastião o bello rapaz sempre contrariado, a querer mal -a D. Henrique seu tio, e a faltar ao respeito a D. Catharina sua avó.</p> - -<p>Faltava-lhe a mãe; talvez a origem da desgraça esteja n’isto.</p> - -<p>O rei desconfiava de todos, a camarilha enjoava-o; evitava-a quanto -podia, ia caçar; andar pelos montes onde o ar é sempre puro. Os seus -amigos e companheiros eram D. Alvaro de Castro, Christovão de Tavora e -o duque de Aveiro.</p> - -<p>A uma caçada em Cintra foi muita gente da côrte; o duque levou sua -filha; a Rainha D. Catharina encarregou uma dama de observar os passos -de D. Sebastião. E esta dama foi descobrir no alto da serra, apartados -dos caçadores, o rei, e o duque de Aveiro com sua filha D. Juliana!</p> - -<p>Outros ajuntamentos houve a seguir, affirmando-se que el-rei promovia -essas festas agitadas e<span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span> com muita gente para se encontrar com D. -Juliana.</p> - -<p>—Ultimamente houve um ajuntamento que muito dissaboreou a Rainha, -e o Cardeal infante, e foi uma mascarada de noute, em uma <em>quinta -no districto de Carnide</em>, na qual se acharam grandes senhores e -o duque de Aveiro com sua filha vestida á turqueza, e muitas outras -damas lusidamente ataviadas; e do que ali se passou teve a Rainha -circumstanciadas informações; mas não se disse com certeza quem as -dera, supposto que se presumiu ser o prior do Crato, D. Antonio, filho -do infante D. Luiz—.</p> - -<p>A Rainha D. Catharina, o tio Cardeal censuraram el-rei; e elle começou -a fallar de ir á Africa.</p> - -<p>Nem em Cintra, nem em Carnide o deixavam á vontade.</p> - -<p>Só Africa, para casos d’estes.</p> - -<p>A primeira ida á Africa foi effectivamente uma surpreza para a côrte. -D. Sebastião foi caçar nos arredores de Ceuta e Tanger e parece que -encontrou lá uma filha do Xarife que se parecia com D. Juliana.</p> - -<p>De cá choviam os avisos da Rainha-avó, do tio Cardeal, dos bispos; -custou a vir.</p> - -<p>Parece que D. Juliana, a ladina turqueza de Carnide, foi offuscada pela -filha do Xarife; encanto de moura!</p> - -<p>Na segunda jornada o duque de Aveiro, apesar de ter perdidas as -esperanças no casamento da filha,<span class="pagenum" id="Page_136">[Pg 136]</span> acompanhou D. Sebastião; e morreu -com o seu rei e amigo.</p> - -<p>No seu testamento, feito antes de partir, recommendava que D. Juliana -casasse com D. Jorge de Lencastre; este morreu tambem na batalha.</p> - -<p>D. Juliana, nova, herdeira riquissima, teve varias propostas de -casamento com os maiores de Hespanha, que não acceitou; esperaria o -rei? só dez annos depois de Alcacer casou com D. Alvaro de Lencastre, -que foi o 3.ᵒ duque de Aveiro.</p> - -<p>Agora, onde a <em>quinta do districto de Carnide</em>? Gostaria de saber, -gostaria, mas é certo que não encontro vestigios a que possa attribuir -grande antiguidade, nem mesmo tradição local. As grandes casas de -Carnide e seu termo são do seculo <span class="allsmcap">XVII</span> e do XVIII; e estas na -maioria ainda modificadas e transformadas modernamente.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>A familia Carnide.</i>—Em antigo codice genealogico encontro este -appellido, de origem local. Um homem natural de Carnide adquiriu bens, -fez serviços e alcançou a nobreza. Diz o codice: «é Carnide logar de -80 visinhos, com boas e rendosas fazendas, e entre os visinhos alguns -que se tratam nobremente, e viveram em tempos antigos com abundancia e -nobreza.»</p> - -<p>O primeiro mencionado é Pedro Gonçalves de Carnide, do tempo de Affonso -V. Seu filho Pedro de Carnide morou em Cintra.</p> - -<p>Balthazar de Carnide foi moço da camara de<span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span> D. Manuel. A familia -Carnide apparece em seguida alliada a Gamboas e Ayalas.</p> - -<p>Jeronymo de Carnide, moço da camara, esteve em Roma com o embaixador D. -Alvaro de Castro: foi provedor de saude no periodo terrivel das pestes -e contagios; basta dizer que foi guarda-mór de saude do Reino em tempo -de D. Sebastião. Era natural de Cintra; viveu 120 annos (1503-1623), -alcançando os reinados de D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, D. -Henrique e os Filippes I e II. Um seu filho, Balthazar de Carnide, -viveu 100 annos.</p> - -<p>Os Carnides mencionados nas genealogias são quasi todos de Cintra; é -certo que ainda hoje apparece este appellido em familias de Cintra e de -Torres Vedras.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Propriedade territorial na idade média.</i>—Ha documentos relativos -a propriedade territorial em Carnide, nos fins do seculo XII, e -primeiro quartel do <span class="allsmcap">XIII</span>. É bem raro encontrar uma série tão -variada de taes documentos. Não nos é todavia possivel marcar com -precisão, com exactidão, o local da propriedade, ou quinta de que se -trata.</p> - -<p>Porque as propriedades variam muito, dividem-se, aggregam-se; as -extremas fluctuam; os nomes alteram-se.</p> - -<p>Os documentos de Urraca Machado, <em>dóna</em> de Chellas, isto é, freira -do mosteiro de Chellas, foram publicados pelo erudito sr. Pedro de -Azevedo,<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span> no <i>Archivo Historico Portuguez</i>, vol. III, pag. 5 e seg.</p> - -<p>Quem era esta senhora? era <i>dona Orraca Martins</i>, filha de -Martim Machado, professa do Mosteiro de Chellas, que andava <em>fóra -da Ordem</em>, quer dizer, ausente por muito tempo do seu convento. -Tinha bens e parentes proximos em Carnide, e o seu compromisso com a -Ordem. Ora constou que ella vendia e desbaratava esses bens, em damno -do mosteiro, este protestou, e por isto a série de documentos muito -especiaes e valiosos. O protesto é de 1299, tempo de D. Diniz; foi -lavrado no concelho da cidade de Lisboa, perante o alcaide e alvazis.</p> - -<p>No terceiro documento, de 1308, falla-se da quinta de Carnide, em que -a freira tinha uma parte. No quarto documento, de 1309, se diz que as -rendas de Carnide foram arrematadas a Salomão Negro, judeu. A familia -judaica <i>Negro</i> apparece em documentos do seculo XIII ao XV.</p> - -<p>David Negro era o famoso thesoureiro de Leonor Telles, quando -proprietario em Camarate e na Outra Banda. A outra parte da quinta -pertencia a Martim Martins Machado, irmão da freira. O documento é -interessante; trata do arrendamento, almoeda, e negocios, em que houve -<em>malfeitoria</em>; o instrumento ou contracto que o judeu apresentou -não afinava com a <em>nota</em> tabellioa, havia <em>mentira e burla</em>. -Este instrumento, declara o tabellião, foi escripto em papel porque não -havia <em>porgamyo decoyro</em>.<span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span> Acontecia isto por vezes; em cousas -officiaes usava-se o pergaminho; quando este faltava, lançavam mão do -papel. E certo é que papel e tinta chegaram até nós; bom papel e boa -tinta; não sei quantos annos durarão certos papeis e tintas usados -actualmente.</p> - -<p>O documento n.ᵒ 7 é uma carta regia, ou sentença de D. Diniz, passada -em 1311, sobre a partição dos bens da freira e de João Machado, tambem -seu irmão. A monja de Chellas tinha terras em Carnide, nos sitios da -Panasqueira e na Feiteira.</p> - -<p><i>Panasqueira</i> é na parte norte da moderna quinta de Montalegre, -formada pelo fallecido Carlos Anjos, entre as estradas de Telheiras, -Luz e da Fonte.</p> - -<p>Não é facil marcar os sitios das propriedades; diz-se <em>sob a -fonte</em>, na <em>varzea</em>, na <em>corredoura</em>, designando as -fazendas pelos nomes dos donos, pessoas bem conhecidas em 1311. Mas -já havia no sitio <em>vinha velha</em>, moinho e almoinha ou horta, -courellas e ferrageaes, adega com material vinario, tinas, toneis e -cubas, já se falla das <em>covas</em> de Carnide. Trata-se me parece -de covas de guardar pão ou cereaes, silos; em 1908, modificando-se a -calçada no <i>Alto do Poço</i>, appareceram duas grandes covas, abertas -no solo, de dois metros de fundo por um e meio de diametro, quasi -totalmente entulhadas. As paredes estavam nitidas, bem conservadas. -As pessoas da localidade ignoravam<span class="pagenum" id="Page_140">[Pg 140]</span> o destino d’aquellas grandes -cavidades, o que succede, me parece, por todo o paiz. E todavia no -seculo XVI ainda se utilisavam os silos ou matamorras, e no centro de -Espanha ainda hoje estão em uso. Em Lisboa, na grande obra municipal -de ha poucos annos, ao Arco do Marquez do Alegrete, tambem appareceram -silos, ao longo da muralha fernandina.</p> - -<p>O documento n.ᵒ 10 é de 1312; refere-se a certa divida de João Machado -a Isaac, filho de Judas Negro, outro judeu da familia Negro; e a uma -courella do <i>Cano</i>, pertencente a Urraca Machado. O n.ᵒ 12, de -1313, falla-nos da courella da <i>Coelheira</i>, da qual traz as -confrontações pelo <em>sol levante, aguião, poente</em> e <em>avrego</em>. -<em>Aguião</em> quer dizer <em>aquilão</em> ou norte, e <em>avrego</em> vem -de africo, ou vento de Africa, isto é, sul. N’este documento figura -Domingas Eanes, prioreza de Chellas, e Ousenda Domingues, sub-prioreza. -Já menciona a <i>aldeia de Carnide</i> com seu <em>rocío</em>.</p> - -<p>Em 1321, com licença do mosteiro de Chellas, a freira Urraca Machado -entregava por aforamento os seus bens de Carnide a um Rodrigo Eanes, -por duzentos maravedis de Portugal, pagos ás metades do anno por -Paschoa e Santa Iria, mais doze almudes de vinho. Não é bem um -aforamento, é um arrendamento a longo prazo, em vidas, pois só termina -depois da morte do rendeiro, de sua mulher e filho. O contracto tem -penas severas e condições bem determinadas, como<span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span> a de o rendeiro -fazer á sua propria custa almoinha ou hortejo, e plantação de vinha, -concertos de casas, adegas e lagares, e de sua louça.</p> - -<p>Em 1325 já a dóna Urraca era fallecida; mas havia freiras de Chellas -na sua casa de Carnide; por causa de certa questão de posse foram ahi -notarios que viram duas freiras em <em>uma camara sob a torre</em>. -N’esse tempo era Clara Gonçalves prioreza de Chellas; é notavel que -n’este mesmo documento se lhe chama abbadessa. N’esta época a questão -chegou á maior intensidade, houve violencia, e Martim Machado foi -excommungado.</p> - -<p>Em 1390 foi a quinta de Carnide emprazada em tres vidas a Martim Annes; -confrontava com as herdades de fuão e fuão, e do mosteiro de Santa -Clara de Lisboa...</p> - -<p>Era uma <em>quintam</em> de herdades de vinhas e de pão que o dito -mosteiro ha na aldeia de Carnide, termo da dita cidade (Lisboa).</p> - -<p>A par dos elementos relativos á <em>quintam</em>, apparecem outros em -razão das confrontações, das testemunhas, etc.</p> - -<p>Assim n’um documento de 1313 se falla de uns quartos de courellas de -vinhas que o mosteiro havia em Carnide no herdamento do Louro; de uma -testemunha se diz: fuão morador ao Louro, no casal da <i>Ordim</i>.</p> - -<p>Em 1352: quinta no logo que chamam <i>Alperiate</i>... casal e herdades -de pão sitas em <i>Queylus</i>... uma vinha que chamam a <i>Coelheira, -a par<span class="pagenum" id="Page_142">[Pg 142]</span> de Carnide</i>. Alperiate, ou Alpriate, é o nome de uma -localidade perto da Povoa de Santa Iria.</p> - -<p>Em 1356: courella do <i>Pereiro</i>, alem de Carnide que parte com -vinha de <i>Santaloy</i>.</p> - -<p>Deve ser Santo Eloy, no caminho da Pontinha para A da Beja.</p> - -<p>Em 1366: vinha no <i>Cano</i>, logo, ou logar, de Carnide.</p> - -<p>Em 1397: em Carnide... em logo que chamam a <i>Soeira</i>.</p> - -<p>Em 1438: fulano morador na <i>Payãa</i>. Agora diz-se <i>Payam</i>.</p> - -<p>De 1443 temos um documento interessante: trata de uns <i>Tintaes</i> -de vinha, um acerca do outeiro... confrontando com caminho da -<i>Granja</i>, outro com azinhaga que foi da <i>fonte do Machado</i>; -são nomes que ainda vivem.</p> - -<p>Em 1466... vinha do morgado de <i>Mem de Brito</i>.</p> - -<p>Em 1481... vinha que parte com a ermida de Santa Maria da Luz, em -Carnide.</p> - -<p>Um documento de 1484 menciona as courellas que pagavam o quarto á -quinta de Carnide, duas entestavam com a Luz e caminho que vae para -o <i>Lomear</i>. Outra com estrada que vae de Carnide para Lisboa. -Menciona-se um fulano morador na <i>Ribeira de Agoa Livre</i>; é um -sitio da ribeira ou do valle de Carenque. Uma courella no cabo do -<i>Rego</i>, outra na estrada de Lisboa e na do Lumiar.</p> - -<p>A pag. 32 da publicação do sr. P. d’Azevedo<span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span> (<i>Archivo Historico -Portuguez</i>, vol. III), vem o <em>titulo dos canos</em>: F. morador -na de <i>Dona Maria</i> (é a aldeia que fica a norte de A da Beja) -tinha uma courella de vinho e azeite que entesta no ribeiro do Bom -Nome (a quinta do Bom Nome é agora a do Sarmento), e com o <i>Resyo do -logar</i>. O rocio de Carnide era a poente da egreja de S. Lourenço, a -parochial, que é do seculo XIII.</p> - -<p>F. morador nas Fontellas, na ribeira de Loures tinha uma courella que -entesta com o rio do <i>Bom Nome</i> e com o <i>resyo de Carnide</i>. -F. tinha metade de um quarto de courella. Vê-se que a propriedade -estava muito dividida.</p> - -<p>A <em>albergaria</em> de Carnide trazia tambem um meio quarto de -courella. Passou depois a pequena fazenda para o <em>hospital</em> de -Carnide.</p> - -<p>Outra courella entesta no rio do Bom Nome e com o adro de S. Lourenço; -deve ser a fazenda onde está agora uma vaccaria.</p> - -<p>F. do <i>Calhariz</i> possue uma terra que vem á estrada <i>na do -Correia</i>... caminho de Bemfica. F. tem uns quinhões na almoinha -do Machado defronte da porta travessa de Nossa Senhora da Luz. -<i>Correia</i> é o nome da quinta do sr. conselheiro Pequito. Um -quinhão do lagar do Espongeiro... parte do aguião ao longo da estrada -<i>na do Correia</i>, e do vendaval (sul) entesta com o caminho de -Bemfica e da travessia (poente)...</p> - -<p>No <i>Esparageiro</i>; será variante de Espongeiro? Esparageiro virá de -espargo?</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span></p> - -<p>Agora apparece-nos um nome estranho, quinhões dos <i>Feytaes -layrasos</i>, e tambem <i>Feytaes castelhanos</i>. Nada conheço -agora que se lhe avisinhe. Todos estes nomes estão no titulo dos -<i>Canos</i>: este era pois o nome de uma região, entre a estrada do -Poço do Chão e a estrada que vae de S. Lourenço para a Porcalhota, -agora, recentemente, Amadora, passando pela actual quinta da Correia. É -possivel que este nome de Canos tenha a sua origem em antigos pequenos -aqueductos.</p> - -<p>Finalmente apparece-nos um documento com autos de medição de certas -propriedades; é de 1554. A vinha da Coelheira que parte com caminho -da Granja, tinha de largura 28 varas e de comprido 246 varas, era um -tira de terra: outra vinha tinha de largura 51 varas e de comprido 280 -varas, era uma fazenda com pouco mais de hectare e meio.</p> - -<p>Esta collecção de documentos é importante para o estudo da marcha -do processo civil; especialmente o grupo que pertence ao primeiro -quartel do seculo XIV. Brigam no comprido pleito particulares, freiras, -o convento; chegam á excommunhão. Ha instrumentos de protesto, de -testemunho, de intimação, procuração, cartas regias, sentenças, recibos -e obrigações, aforamento, arrendamento a longo praso, e suas condições, -carta de excommunhão, posse, emprazamentos em tres vidas; todos estes -variados instrumentos entram no seculo XIV, a maior parte no seu -primeiro quartel (1299 a 1325).</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span></p> - -<p>As conclusões a que chegamos são: no termo de Carnide a propriedade -estava muito dividida; havia proprietarios de meia courella, de quarto, -de meio quarto de courella.</p> - -<p>A cultura era variada, vinhas, olivaes, terras de seara ou de pão; -almoinhas ou hortas. Falla-se numa vinha <em>velha</em>.</p> - -<p>Não vejo nos nomes de proprietarios ou rendeiros nomes mouriscos; -muitos teem dito que os saloios são de origem mourisca, nestes -documentos não apparecem nomes desse elemento; apparecem individuos -da familia Negro, judaica, proprietarios ou gente de negocio. Nestes -documentos falla-se em muitos predios porque tratando da quinta de -Carnide, cabeça dos predios rusticos de Urraca Martins Machado, e das -suas dependencias ou terras annexas, ao mesmo tempo se mencionam varias -com que confrontam. Não vejo mencionar cercas, tapadas, muros. Como -noutras partes accumularam propriedades, arredondaram e muraram. Aqui a -construcção dos conventos com suas cercas importantes alterou immenso a -topographia dos predios.</p> - -<p>Os conventos da Luz, de Santa Thereza, dos Carmelitas, o Hospicio das -freiras de Christo, alastraram no fim do seculo XVI e no XVII os seus -vastos edificios e amplas cercas de altos muros.</p> - -<p>Todavia as estradas indicadas existem ainda hoje, a azinhaga da Fonte, -o caminho de S. Lourenço para Bemfica, que é a estrada do Poço do<span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span> -Chão, que passa pela Granja, a estrada de A do Correia, estradas da -Luz para o Lumiar, e da Luz para Lisboa. Em frente da porta travessa -da egreja da Luz lá está ainda uma almoinha com suas latadas e -canteiros; a quinta do Bom Nome, é agora chamada do Sarmento. A do -Correia é a quinta da Correia, os logares ou aldeias de A da Beja, Dona -Maria, Calhariz, Payam, Santo Eloy existem. O valle de Odivellas tão -interessante conserva-se dividido em pequenas propriedades, de intensa -cultura onde o saloio moureja.</p> - -<p>Fóra d’esse valle a pequena propriedade quasi desappareceu; a tendencia -é para accumular. Depois dos conventos, ou contemporaneamente, formaram -as quintas depois chamadas do Oliveira, da Condessa, do Mossamedes, do -casal do Falcão. Modernamente formou-se a grande quinta de Montalegre -que fundiu cinco propriedades grandes; o collegio militar tambem -alargou as suas terras. Só entre o logar de Carnide e o Paço do Lumiar -se encontram os grandes vallados antigos, as propriedades sem muros.</p> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="A_villa_da_Ericeira">A villa da Ericeira</h2> -</div> -<hr class="r5" /> -<p class="center">(1903-1905)</p> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span></p> - - - -<p>Os caminhos mais seguidos para ir á Ericeira são os que partem de Mafra -e de Cintra; este o mais frequentado.</p> - -<p>A estação do caminho de ferro de Cintra está pittorescamente -aconchegada na base do alteroso monte granitico, rochedos pardos entre -manchas de vegetação verde escura, coroado pelas torres e quadrellas -mouriscas terminadas na fina grega de ameias. Da estação partem os -carros para a villa, para Collares e Ericeira.</p> - -<p>Começa logo a descida, passa-se uma ponte; termina de subito a invasão -das construcções modernas, e definem-se as modestas casas saloias da -moda velha.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Lourel</i>, a primeira aldeia; era já povoado o sitio em tempo da -dominação romana; antes de gódos e de mouros, vejam lá!</p> - -<p>Mais cinco minutos de carro e apparece, espreitando entre agrestes -collinas, a torre de Ribafria;<span class="pagenum" id="Page_150">[Pg 150]</span> uma residencia nobre medieval, -conservando a sua linha primitiva, a torre com seu brazão, palacete, -grande lago e alta cerca, naquelle fundo valle aproveitado -provavelmente pela abundancia de agua nativa.</p> - -<p>São bem raras estas residencias ruraes em Portugal, todavia restam -algumas que contam a sua formação pela juxtaposição dos seus cunhaes.</p> - -<p>A residencia de Bellas, por exemplo, que é muito interessante, onde eu -julgo vêr restos ainda da alta idade media.</p> - -<p>As arvores que bordam a estrada estão inclinadas uniformemente para -suéste marcando bem a corrente dos ventos dominantes.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Villa Verde</i>, um grupo de casas com seus quintaes, muros de pedra -solta, figueiras e parreiras.</p> - -<p>A vista alarga-se pelos vastos campos, accidentados; ao longe collinas -arredondadas com manchas escuras de pinhal. A serra de Cintra mostra -agora a sua crista atormentada, as massas escuras de arvoredo, -destoante de tudo o que a cérca; e avista-se Mafra, a enorme joia, -principalmente vistosa se o sol da tarde illumina a soberba frontaria, -que olha para occidente.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Terrugem</i>, povoado alegre, amplo terreiro, egreja antiga com sua -alpendrada, e seu gentil campanario do seculo XVIII; pouco adiante uma -velhissima ermidinha, com portal em ogiva.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span></p> - -<p>Estamos em pleno paiz saloio, onde apenas algumas pequenas explorações -de pedreiras juntam fracos elementos á vida agricola. Ha poucas -habitações dispersas, e nenhum povoado importante. Esta freguezia de S. -João Degolado da Terrugem compõe-se de mais de vinte povos ou logares, -que teem na média 10 fogos. Os mais povoados são Terrugem, Villa Verde, -Alcolomba, Lameiras, Almurquim, Fajão, Cabrella, Carnessada, Goudigana, -Armez. Grupos de 4, 6, 8 casaes são os logares de Toja, Da do Bispo, -Alpolentim, Urmeiro, Fervença, Moleirinhos, Sequeiro, Murganhal, -Alparrel, Funchal, Silva. Um ribeiro, o Fervença, corta as terras da -freguezia.</p> - -<p>Entre as designações locativas algumas merecem reparo pois mostram -influencias de antigas linguagens.</p> - -<p>E por todo o paiz saloio a população se encontra assim em pequenos -grupos, sendo muito menor a parte que vive em casaes ou quintas -isoladas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Odrinhas</i>; pára a carrinha de bancos para descanço dos animaes, e -breve allivio dos passageiros.</p> - -<p>Se o saltitante vehiculo vier completo, e entre os passageiros -houver gorduchos, é caso grave; porque a diligencia foi feita para -trinca-espinhas. A paragem é uma consolação, para alargar um pouco os -musculos.</p> - -<p>A um kilometro da pobre locanda, estação <em>central</em>!<span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span> onde pára a -carrinha, fica o meu adorado S. Miguel de Odrinhas, a velha egreja, -com as suas veneraveis antiguidades, o primitivo alpendre, o cemiterio -medieval, e as suas lendas bem interessantes.</p> - -<p>Mais dez minutos e passamos perto de um cómoro cheio de enormes -pedregulhos, ovoides uns, globulares outros; ali os muros das pequenas -propriedades parecem feitos de pelouros, de grandes balas de pedra. -É <i>Alvarinhos</i>, uma formação granitica, bem frisante entre os -terrenos da grande chapada.</p> - -<p>Segue-se um plaino pouco accidentado; casas saloias de construcção -quasi cubica, escada exterior para o sobrado, e telhado de quatro -aguas; grandes lages formam as divisorias; uma casa tem a sua porta -abrigada por um alpendre formado por tres lages, duas a prumo e uma -coberteira; cruzes de cal branca em muitas paredes, ás vezes muitas -cruzes numa só parede; algumas casas mais modernas e janotas com os -cunhaes pintados a azul e vermelho.</p> - -<p>Estamos em terras da freguezia de S. João das Lampas, mais importante -que a Terrugem: tem 32 povos ou logares; mas a media de fogos por logar -é egual á da Terrugem.</p> - -<p>Os povos mais importantes são: S. João das Lampas, Bolelos, -Montearroio, Odrinhas, Alvarinhos, Amoreiras, Almagreira, Areias, -Alfaqueques, Mouxeira, Arreganha, Seixal, Assafôra, Cortezia,<span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span> -Cantrivana, Arneiro, Togeira, Magute, Bolembre, Fontenellas, Gouvêa, -Perningem, Codiceira.</p> - -<p>Os ribeiros de Magute, Samarra e Barril, que vão á foz de S. Julião, -cortam parte da freguezia em valles fundos, formando nos convalles -pequenas veigas ferteis.</p> - -<p>A oriente, Mafra, o soberbo zimborio, as altas torres dos sinos, -os formidaveis torreões dos extremos; e a sul a serra de Cintra, -decorativa por excellencia, mais azul quanto mais longe, com tons de -amethysta, frequentemente variada com ligeiras neblinas.</p> - -<p>Pouco mais e descobre-se a veiga da ribeira de Chileiros, os sulcos -fortes dos seus pequenos afluentes, entre collinas de declives rapidos.</p> - -<p>Para o poente a grande face tranquilla do Atlantico.</p> - -<p>Uma e outra vinhasita entre muros de pedra solta; retalhos de tojaes -cortados; vaccas leiteiras guardadas por creanças; grupos de pinheiros -mansos de verde lustroso, poucas arvores de fructo; sobre os telhados -filas de aboboras; em fins de setembro os campos estão animados, -trabalha-se nas eiras na debulha do milho, e na estrada passam os -carros com as uvas para as adegas.</p> - -<p>Fica ao longe a casaria branca, baixa, de S. João das Lampas, alveja a -Assafôra, e outros pequenos povos; passa um fresco pinhal, e começa a -descida que leva á Carvoeira, uma aldeia na encosta; em<span class="pagenum" id="Page_154">[Pg 154]</span> baixo o valle -agora mais amplo da ribeira de Chileiros, forrado de vinhedos novos.</p> - -<p>Ha uma ponte nova, bem lançada; e a carrinha sobe vagarosamente a -longa ladeira; vê-se a Foz, a barra de areia branca, a agua do rio -mui socegada entre as escarpas altas e escuras; ouve-se o rumor da -arrebentação, das grandes ondas de claro verde transparente, de franjas -alvissimas que o vento pulverisa, desenrolando-se espumantes sobre a -barra de areia branca, ou saltando, espadanando nas escuras rochas das -ribas.</p> - -<p>O vasto oceano impõe-se agora, de fim vago se ha neblina; se o tempo é -claro sempre a mesma linha de horizonte, nitida, limite implacavel e -monotono.</p> - -<p>Termina a ladeira, salvam-se umas curvas de macadam, e apparece-nos a -distancia a branca villa da Ericeira, como um bando de gaivotas pousado -na riba da beira-mar.</p> - -<p>As <em>arribas</em> são escarpas de 30, 40 metros de altura, pittorescas -em muitos pontos pelo estranho colorido, pela fórma de fragmentação; -parecem ruinas de edificios gigantes.</p> - -<p>Escuros penedos á beira-mar quebram as vagas que se empinam em -cristaes, se desfazem em brancas espumas ferventes, numa lucta -rithmica. Das arribas a encosta faz uma plataforma, e logo sobe -rapidamente o terreno para oriente, o lado de Mafra.</p> - -<p>Nesse largo socalco assenta a villa da Ericeira,<span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span> a branca villa toda -caiada, porque os habitantes até branqueam os telhados de muitas casas, -e as ermidas das <em>arribas</em>, S. Julião, S. Antonio e S. Sebastião -parecem talhadas em sal marinho.</p> - -<p>Nenhuma vegetação agora rompe a nitidez do verde mar, do escuro das -furnas, da cal branca faiscando ao sol; só umas delgadas, flexiveis -araucarias conseguem erguer-se sobre a linha da casaria; outras arvores -ao passar a crista dos muros desfolham-se e quebram-se pela ventania -maritima; nos pequenos quintaes abrigados ha roseiras finas, jasmins -viçosos e latadas de dourado moscatel.</p> - -<p>Tambem tenho ido á Ericeira, passando por Mafra. Na estação do -caminho de ferro apparece um carro de bancos, especie de americano -de montanha, que nos leva á povoação, vencendo uma comprida ladeira. -Proximo á estação, sobre uma collina, avista-se uma aldeia de aspecto -interessante; as casas cubicas, com suas barracas ou quinchosos -aos lados, coroam o monte, semelhando uma fortificação de torres e -quadrellas. A estrada vae subindo pela meia encosta de um grande -massiço; os largos declives dos montes povoados de culturas, vinhedos; -nos sovacos mais humidos grupos de vaccas leiteiras.</p> - -<p>Para cortar caminho, indo de trem, atravessa-se um canto de tapada, uma -rua de platanos, e logo o assombro do monumento.</p> - -<p>Ha ali primores de extraordinario merecimento.<span class="pagenum" id="Page_156">[Pg 156]</span> Que magestade imponente -nas linhas geraes, que afinação, que equilibrio entre os corpos que -compõem o grande conjuncto, que acabada execução! e na egreja que -relevos de delicado lavor! e que bello horisonte!</p> - -<p>N’este paiz accidentado quasi todos os monumentos teem moldura de -grandiosa paizagem; não succede o mesmo em França, Inglaterra, -Allemanha onde a vista pára em arvoredos proximos ou encontra planuras -monotonas. Mafra tem moldura larga e rica, basta a decorativa Cintra, -joia azul, o mar, e aquella vastidão de terras accidentadas, com seus -povos e casaes, quintas, vinhedos e manchas avelludadas de pinhal.</p> - -<p>Os sinos, um dos primeiros carrilhões do mundo, enchem de vibração -religiosa aquelles campos; ouvem-se muito ao longe; uma vez passando -em Odrinhas ouvi uma toada longa, mui grave, que me impressionou; -era a sonoridade dos sinos de Mafra que chega a muitos kilometros de -distancia. Outra vez ouvi no carrilhão a valsa do <i>Fausto</i>! que -typo de sineiro, quando hoje ha musicas escriptas expressamente para -estes grandes instrumentos de musica!</p> - -<p>Mafra tem outra notabilidade, a velha egreja de Santo André, antiga -freguezia. Cautella com os amadores, pois a vi muito abandonada.</p> - -<p>Tem altares de azulejos mosarabes, e frontaes de couro lavrado, -colorido e dourado; e duas arcas tumulares medievaes, de interesse -historico e artistico.<span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span> O exterior da capella mór e a torre sineira são -da primitiva, e em volta está o velho cemiterio, tão pouco respeitado!</p> - -<p>Com pequeno esforço se poderia conservar melhor essa interessante -egreja de Santo André!</p> - -<p>Muito curioso o pequeno mercado, os figos moscateis, as lindas uvas, as -bellas maçãs, os aromaticos melões, as saloias com os seus cabazes de -ovos. Mas que ovos saborosos! nos almoços que nas minhas passagens por -Mafra consumi no Moreira ou no Duarte ou no Ricardo, eu repeti os ovos -fritos na manteiga saloia.</p> - -<p>A carrinha da Ericeira pára á porta do correio, que fica ao lado da -escadaria monumental da egreja.</p> - -<p>E partimos para o lado do mar.</p> - -<p>Pela estrada carros com rama de pinho, rapazes com vaccas leiteiras, e -grupos de crianças pedindo cincoreizinhos em cantilena nasalada.</p> - -<p><i>Sobreira</i>, logarejo com caixa de correio, e uma loja centro -commercial, onde se vende tudo á gente do sitio, e vinho á gente que -passa; o cocheiro aceita sempre o seu copito. Fabrica-se por aqui -ceramica popular, louça de barro, vidrada ou não, com sua ornamentação -especial. E não só na Sobreira, mas em outros povos proximos ha -oleiros, até á Lapa da serra, pequeno logar já visinho da Ericeira.</p> - -<p>Agora atravessamos trechos de pinhal; paisagem formidavel; na luz forte -o grande mar, a<span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span> serra de Cintra, amethista lavrada, os vastos campos -accidentados, palhetados de logares e casaes brancos, as verdes manchas -de pinhal, e Mafra, o imponente edificio avermelhado, saliente entre a -pequena casaria branqueada da villa.</p> - -<p>E quanto mais nos avisinhamos da Ericeira mais viçosos são os pinhaes; -tudo pinhal novo, porque as velhas arvores foram derrubadas nos ultimos -annos. O mar quanto mais proximo mais scintillante.</p> - -<p>E nada da Ericeira; para esse lado, a quem vem de Mafra nem uma casa, -nem uma torre de egreja mostra a villa; porque ella está no grande -socalco da ribamar; quasi ao terminar a ladeira surge a casaria branca -alastrada, projectando-se sobre o oceano.</p> - -<p>Ora vamos ouvir o padre Antonio Carvalho da Costa, bom author que eu -sempre recommendo, na sua mui excellente «Corografia portugueza, e -descripçam topografica do famoso reyno de Portugal», impressa em 1712: -escreve o prestimoso clerigo e mathematico lisbonense, a pag. 42 do -tomo terceiro:</p> - - -<h3>Da Villa da Eyriceyra</h3> - -<p>Uma legua ao noroeste de Mafra (será escusado lembrar que havia então -leguas pequenas, e leguas da Póvoa), tres ao sudoeste da villa de -Torres Vedras,<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span> e sete ao Sul de Peniche, tem seu assento a villa -da Eyriceyra, a quem banham pela parte do occidente as salgadas e -ceruleas aguas do cubiçoso Oceano, que a faz abundante de bom pescado e -excellente marisco, especialmente eyriços, donde a villa tomou o nome, -o que approvam suas armas, que são um eyriço em campo branco.</p> - -<p>Elrei D. Diniz lhe deu foral (o primeiro foral é mais antigo), que -confirmou depois elrei D. Manuel, fazendo doação della ao infante -D. Luiz seu filho, de quem a herdou o sr. D. Antonio, seu filho -illegitimo, ao qual (sendo expulsado da successão do reino por el Rei -D. Fillippe o de Castella, e vencido na ponte de Alcantara pelo duque -de Alba, que com poderoso exercito entrou neste reino) lhe confiscaram -todas suas rendas, e entre ellas a villa da Eyriceyra, a qual deu em -satisfação de divida a Luiz Alvares de Azevedo de juro, e herdade -para elle, e seus descendentes, com que ficou excluida da Corôa, como -bens patrimoniaes; e pertencendo ella a uma sua filha, religiosa de -S. Bernardo no mosteiro de Odivellas, a vendeu a abbadessa por 8:000 -cruzados a D. Diogo de Menezes com todas suas rendas e direitos reaes, -e a quinta parte do morgado da villa de Mafra, e a vintena do peixe, -que se paga aos senhores da dita villa, que é em todas as partes em que -fóra della pescam seus naturaes, mui exercitados neste officio.</p> - -<p>Tem 250 visinhos com uma egreja parochial<span class="pagenum" id="Page_160">[Pg 160]</span> da invocação de S. Pedro, -curado, que apresenta o conego da Sé de Lisboa, o qual tambem apresenta -a vigairaria de Mafra: tem mais Casa da Misericordia, e estas ermidas, -o Espirito Santo, Nossa senhora da Boa Viagem, S. Sebastião, e S. -Martha, e ha nesta villa tres fontes perennes.</p> - -<p>Assistem ao seu governo civil um ouvidor posto pelos condes (que nesta -terra tem os oitavos do pão e vinho), dois vereadores, um procurador do -conselho, um escrivão da Camara annual, que o é tambem da almotaçaria, -outro escrivão dos orfãos, que o é tambem dos direitos reaes e do -judicial e notas. Tem uma companhia da Ordenança, e um forte com cinco -peças de artilharia, que sustentam os moradores, e os condes consultam -o governador. É hoje senhor e conde desta villa D. Francisco Xavier de -Menezes, cuja illustre varonia é a seguinte:==e segue uma noticia da -genealogia d’essa bella familia dos condes da Ericeira, D. Diogo de -Menezes, 1.ᵒ, D. Fernando de Menezes, 2.ᵒ, D. Luiz de Menezes, 3.ᵒ, -D. Francisco Xavier de Menezes, 4.ᵒ, série brilhante na fidalguia -portugueza.</p> - -<p>Foi este ultimo que animou Carvalho da Costa a escrever a sua -chorographia que tantos serviços presta ainda agora.</p> - -<p>A respeito da villa de Mafra conta-nos Carvalho da Costa: o seu termo -é abundante de pão, gado, e caça: tem uma egreja parochial dedicada a -S. Izidoro, curado, que apresentam os moradores<span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span> (note-se isto, eram -os moradores que apresentavam o cura), os quaes passam de cento e -sessenta divididos por estes lugares, Azambujal, Quintal Gonçalvinhos, -Grocinhos, Lombo da Villa, Almada, Ribeira, Murteira, Pinheiro, -Murgeira, Cachossa, Roxeira, Amoreira, Póvoa, Valle de Carreira, -Caeiros, Fonte Santa, Relva, Sobreiro, Fonte Boa dos Nabos, Figueiredo, -Picanceira, Penagache, Lagôa, Montegudel, Ribamar de cima e de baixo, -com muitos casaes. Tem mais este termo o forte de <i>Milreu</i>, e o de -Santa Susana com duas peças d’artilharia.</p> - -<p>A corographia de Carvalho da Costa imprimiu-se em 1712; estava-se longe -da importancia posterior de Mafra, realçada pelo seu colossal monumento.</p> - -<p>O que me chama a attenção na descripção de Mafra, feita por tal -authoridade em 1712 (isto é em 1709, porque 1712 é a data da impressão) -é que nesse tempo, em que se conservavam ainda vigorosas as antigas -instituições, no termo da villa de Mafra a freguezia mais importante -era a de Santo Isidoro; e que o seu parocho curado era apresentado -pelos moradores. Isto mostra que esta freguezia ou parochia era uma -entidade muito sobre si: e abrangia um territorio vasto e importante, -como o é ainda agora.</p> - -<p>Em 1844 temos outra noticia a respeito da Ericeira no famoso Panorama -(Serie 2.ᵃ Vol. 3.ᵒ pag. 335).</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span></p> - -<p>É um artigo de Henriques Nogueira. Acompanha-o uma gravura ingenua -mas curiosa; mostra os rochedos, a alta escarpa, a ladeira que vem ao -pequenino porto, as paredes do forte, agora em parte desmoronado, e ao -longe a ermida de S. Sebastião.</p> - -<p>==Em documentos antigos é conhecida por Oyriceira e Eyriceyra, e d’aqui -vem serem as armas do concelho um ouriço.</p> - -<p>==Os mais antigos assentos da separação da parochia de Mafra são de -1406. D. João V prestou grande auxilio á reedificação de S. Pedro.</p> - -<p>==O estabelecimento mais importante que esta villa possue é a casa -da Misericordia a qual foi fundada onde havia uma ermida do Espirito -Santo, por Francisco Lopes Franco, em 1678. Este doou-lhe um padrão -de juro de 480$000 réis, e os pescadores obrigam-se a pagar-lhe -annualmente todo o ganho d’uma rede de pesca, cujo onus solveram pela -quantia de 6$400 réis que ainda hoje pagam cada um dos dez barcos de -pesca. O rendimento actual (1844) em juros e fóros é de 1:679$700 -réis. Despende com encargos pios e despezas do culto 725$300 réis e -com o hospital 479$300 réis. O excedente da receita é empregado em -esmolas e vestuario aos pobres. Os habitantes empregam-se pela maior -parte nas pescarias ao longo do nosso littoral, na costa de Marrocos, -e tambem já fizeram tres expedições ao Banco de Terra Nova n’estes -ultimos annos (como isto passou!). O numero<span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span> de embarcações de todos -os lotes, incluindo as do commercio de cabotagem é de 98, empregando -670 individuos. A população orça por 2:769 almas com 750 fogos; no -principio d’este seculo tinha apenas 600.==(lembro ainda que isto se -escrevia em 1844).</p> - -<p>==O forte está sobranceiro á calçada que dá para a praia, e hoje -acha-se desguarnecido. Segundo se deprehende de uma inscripção sobre a -porta foi edificado por D. Pedro 2.ᵒ</p> - -<p>==No chafariz chamado a Fonte do Cabo existe uma pedra embutida na -parede com um emblema e legenda em caracteres gothicos em relevo, que -parece significar: «Feita na era de mil e quatrocentos e cincoenta e -sete annos.»</p> - -<p>==Ainda existem restos do palacio do senhorio d’esta villa, o conde da -Ericeira: pela parte superior de algumas janellas veem-se pedras com um -leão esculpido. Estas paredes a que o povo chama o Paço, são dignas de -veneração por terem servido de residencia, e quem sabe se de academia, -ao nosso douto escriptor D. Francisco de Menezes.</p> - -<p>==A meia legua ao nascente d’esta villa está aberta uma mina de -barro branco no sitio chamado a Avesseira, que já tem sido explorada -por conta das fabricas de louça das Janellas Verdes e Vista Alegre -(Actualmente os finissimos barros dos arredores da Ericeira, que -eu saiba, são explorados muito rudimentarmente pelos louceiros da -Sobreira, Lapa da Serra, etc., que fabricam a louça chamada de Mafra).</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span></p> - -<p>==Tambem por este mesmo sitio é situado o chamado <i>Pinhal dos -frades</i>, por ter pertencido ao convento de Mafra.</p> - -<p>==É uma importante propriedade nacional assim pelo numero como pela -bondade e prestimo das arvores, que excedem em diametro e altura as -de todos os outros pinhaes circumvisinhos.==Agora o <i>Pinhal dos -frades</i> não tem um só pinheiro fradesco; tudo foi reduzido a lenha; -é todo novo o pinhal; e que bom seria alarga-lo porque daria aos -arredores da Ericeira um encanto a mais, principalmente agora que tanto -se louva o <em>ar do pinhal</em>. Esses novos pinhaes que eu percorri -seguindo a estrada de Mafra, e no lindo caminho para a quinta dos Chãos -e Santo Isidóro, são viçosos, e recebem em primeira mão a viração pura -do mar; dá prazer respirar no ar do pinhal!</p> - -<p>Achei muito curiosa esta noticia da Ericeira, em 1844! Ora vejam -como isto muda; o <em>forte</em> está em grande parte destruido, a -<em>escarpa</em> tem falhado em muitas partes, desappareceram as -<em>navegações longinquas</em>, diminuiu a <em>pescaria</em> em muito, e o -<em>pinhal dos frades</em> perdeu as arvores venerandas.</p> - - -<h3>O rei da Ericeira</h3> - -<p>Vou transcrever do <i>Portugal cuidadoso e lastimado</i> do padre José -Pereira Bayão (paginas 732-734), a narrativa do caso estranho do rei -da Ericeira; um dos varios episodios da nevrose, naturalissima,<span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span> que -assaltou o povo portuguez nos primeiros annos da dominação hespanhola. -Este, a meu ver, é dos que melhor representa o estado ancioso e -tumultuario das almas; ha n’elle o mysticismo, o vago anceio, o -estonteamento no começo, inconsciente, ingenuo; depois a exploração -d’esses sentimentos pelo espirito patriotico, e pela influencia do -meio, que leva a incidentes comicos, á desordem, á loucura sinistra, -ao crime; logo, naturalmente, á intervenção da politica dominante, á -força, até ao final do morticinio em massa, e do supplicio tremendo.</p> - -<p>==Succedeu isto no anno de 1584, no mez de julho, e podendo servir de -exemplo (refere-se ao caso do rei de Penamacor) para emenda de outros -taes atrevimentos, foi ao contrario; pois logo no anno seguinte se -viu outro ainda mais estravagante pelos mesmos termos, fingindo-se -ser el-rei D. Sebastião, um moço chamado Matheus Alvares, natural da -ilha Terceira, filho de um pedreiro, o qual saindo-se do noviciado dos -frades arrabidos do mosteiro de S. Miguel junto á villa de Obidos, -se fez tambem hermitão em uma ermida de S. Julião, junto á villa da -Ericeira. Aqui fazia uma vida ao parecer mui penitente, e se introduziu -a ser rei antes que ninguem o imaginasse; disciplinava-se fortemente -onde pudesse ser ouvido, e dizia com triste lamentação: <em>Portugal, -Portugal, que é feito de ti, que eu te puz no estado em que estás, oh! -triste de ti Sebastião, que toda a<span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span> penitencia é pouca em respeito -de tuas culpas</em>. Começaram alguns a crer, que elle era el-rei; e -entre elles um lavrador rico chamado Pedro Affonso; juntaram-se até -oitocentos homens, de que se fez general, accrescentando ao seu nome -o apellido de Menezes; poz o fingido Rei Casa Real, e fortificou-se, -casando-se com uma filha do dito Pedro Affonso, moça bem parecida, -coroando-a como Rainha, com uma corôa de prata de uma imagem de Nossa -Senhora, fazendo marquez de Torres Vedras a seu pae, e conde de -Monsanto, Senhor de Cascaes, e alcaide mór de Lisboa.</p> - -<p>E assim fazia outras mercês, passando provisões e alvarás com -solemnidade de sellos reaes, occultando-se sempre, e mostrando-se a mui -poucos por grande favor, aos quaes contava algumas particularidades da -batalha, para os ter mais seguros n’esta presumpção, e mandando recado -a D. Diogo de Sousa, general da armada, que lhe fosse fallar; tanto que -soube, que elle perguntára ao mensageiro pelo signal, que lhe déra, -receando-se que se descobrisse o engano, ou por outra alguma razão, que -não consta, lhe tornou a mandar dizer, que não fosse; e comtudo indo -lá, lhe não quiz fallar, dizendo, que o fazia assim porque não ia só.</p> - -<p>Escreveu depois ao cardeal Alberto, que lhe desoccupasse o seu paço, e -se fosse embora para Castella: porque já era tempo de que abrissem os -olhos tantos enganados.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span></p> - -<p>Foi preso o embaixador; e soltando-o logo cobrou mais forças a -opinião de ser elle el-rei, por onde, o que assim se fingia se foi -ensoberbecendo, e fazendo alguns graves castigos em todos aquelles, -que o não queriam reconhecer, e lhe negavam a obediencia, sendo -executor o marquez, seu sogro, que era homem cruelissimo, e deshumano; -e agora muito mais com a vangloria dos titulos que lhe foram dados, e -considerar-se sogro de el-rei.</p> - -<p>Vendo o Cardeal Governador que se devia atalhar tão grande desordem -antes que passasse a mais, deu ordem ao corregedor de Torres -Vedras para que os fosse prender, e querendo-o executar foi morto -arrebatadamente com os seus officiaes por aquella gente, que os seguia: -e sendo isto reprehendido por Gaspar Pereira, ouvidor d’aquella -comarca, o mataram tambem; e a um filho, e a um sobrinho; saqueando-lhe -a casa como em guerra justa; passando já n’este tempo de mil a gente -asoldada que o seguia: vindo todos a comprar polvora e bala á cidade, -diziam publicamente, que era para acompanhar a el-rei D. Sebastião.</p> - -<p>Pelo que, e porque não crescesse mais o damno, e insolencia, foi -necessario acudir com mais forte remedio. Deu-se ordem ao corregedor da -côrte, e se mandáram ajuntar todos os ministros da justiça com os seus -officiaes, e com quatrocentos soldados castelhanos bem armados, foram -fazer a diligencia; e chegando perto do couto do novo rei, ficaram -os soldados embuscados em um valle, indo a<span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span> justiça adiante, e sendo -descoberta pela guarda, arremeteram a elles como lobos.</p> - -<p>Fugiu a justiça com muita pressa até os irem metter na embuscada, -donde saindo com furia lhe deram uma carga de tiros com que mataram e -feriram a muitos dos fautores do rei, fazendo fugir aos outros pelos -montes e valles; foi preso o rei, e alguns do seu conselho, e trazido -a Lisboa fez confissão, de que não era el-rei, nem pretendia sel-o, e -que só intentava dar sobre Lisboa com as armas dos seus seguidores, na -madrugada do dia de S. João, e vencida ella, como esperava, pertendia -dizer ao reino que já o havia posto em liberdade para que fizessem rei. -Foi enforcado em 14 de junho do dito anno, cortando-lhe primeiro a mão -direita no Pelourinho, onde ficou pendurada, por passar provisões e -alvarás falsos, fingindo-se el-rei D. Sebastião; a cabeça esteve um mez -pregada na forca, e os quartos foram postos pelas portas da cidade; e -no dia seguinte enforcaram e esquartejaram os outros, que foram presos -com elle, um que fazia o officio de védor, que seria de quarenta annos, -e outro que era pagem privado, que seria de edade de vinte annos.</p> - -<p>Na Ericeira foram enforcados vinte homens que eram deste bando, muitos -foram lançados a galés; e Pedro Affonso, marquez e conde general, e -secretario do triste rei, fugiu no dia da prisão dos mais; mas pouco -depois foi preso, fazendo-lhe em Lisboa o mesmo, que tinha feito ao -seu soberano,<span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span> e os pobres moradores d’aquelle contorno despovoaram a -terra com medo, por terem seguido a voz do rei enganoso. Foram tambem -presos e castigados muitos, que enganados o favoreciam de Lisboa, e -lhe mandavam dinheiro, e peças de valor, como foram Antonio Simões, -escrivão dos armazens, e Gregorio de Barros, ourives d’el-rei, pagando -miseravelmente o zelo, com que cuidavam servir ao seu rei.</p> - -<p>Parece que foi o intento de mandar chamar D. Diogo de Sousa, saber -delle se era certo, como se dizia, que el-rei veiu na armada, porque -sendo assim, e sabendo delle onde estava, e se estava prompto para -entrar a governar, ajustariam ambos a fórma de occupar Lisboa e -desoccupal-a dos castelhanos com aquella sua gente, e entregal-a -ao dito rei, com o que ficava restituido ao seu reino, e aquelles -servidores seriam bem gratificados por elle e agradecidos de todo -o reino. Isto se colhe da sua confissão, e outra cousa se não deve -imaginar, pelos descaminhos ou impossibilidades, a que se expunha por -todas as vias; o que qualquer mediano entendimento conheceria mui bem.==</p> - - -<h3>Antiguidades romanas e medievaes</h3> - -<p>Na Ericeira e seus arredores não vi antiguidades romanas; nem um -signal, nenhuma pedra empregada em muro velho que denunciasse lavor de -alta antiguidade; o trabalho agricola tem sido<span class="pagenum" id="Page_170">[Pg 170]</span> grande, o mar sabe Deus -quantas escarpas tem demolido, elle que todos os dias está destruindo -e abatendo os rochedos da costa. Mas n’um aro de raio de seis a dez -kilometros surgem vestigios notaveis. As inscripções lapidares romanas -são conhecidas; a região a norte de Cintra e Collares é rica de taes -letreiros. Antiguidades pre-romanas são sabidas tambem. Não podemos -esquecer o collar da Penha Verde, a grande joia prehistorica (que -hoje está ennobrecendo, ao que me dizem, um muzeu inglez), o famoso -dolmen de André Nunes ou Adrenunes, monumentos que provam a existencia -por estes sitios de antiquissima civilisação pre-romana. Estacio da -Veiga estudou as antiguidades d’estes sitios; no <i>Corpus</i> estão -transcriptas em grande numero as inscripções romanas. Na <i>Cintra -pinturesca</i> (pag. 192), se diz: «encontram-se com frequencia urnas -e lapides sepulcraes em varios sitios especialmente em S. Miguel de -Odrinhas, Morelino, Montelavar, etc.»</p> - -<p>D’essas veneraveis pedras sepulcraes muitas desappareceram, ainda porém -existem algumas importantes. Para as ver dei uns passeios a Odrinhas e -á quinta dos Chãos.</p> - -<p>Odrinhas fica a meio caminho entre Cintra e Ericeira. Ha ahi uma venda -onde costumam parar os carros para descanço; abre-se em frente d’essa -venda um caminho de aldeia que leva á egreja, S. Miguel de Odrinhas, -a menos de um kilometro. É filial da parochia de S. João das Lampas. -A<span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span> porta principal diz a poente, uma alpendrada segue na frente e no -lado sul; atrás da capella mór um espaço que serviu largos annos de -cemiterio; muitas pedras de cabeceira nos seus logares, tendo nos -circulos superiores esculpidas cruzes de varias fórmas, sinos saimões, -e estrellas de seis pontas. Encostado á egreja um ediculo do seculo -XIV. Junto da pequena porta lateral uma casa, talvez de antigo ermitão, -a que chamam a casa dos ratos, que serve para metter medo a rapazes -máos; sob o alpendre a grande mesa de pedra para as offertas. Ao norte -da egreja, uma construcção circular, isolada, em ruina, mostrando ainda -a nascença da abobada, feita de pedra miuda, vestigios de porta, e um -vão na parede, que parece, seria destinado a ter um armario.</p> - -<p>—É casa de mouros, disse alguem.</p> - -<p>—Era onde guardavam os ossos tirados das covas do cemiterio, o -ossuario, disse outro.</p> - -<p>—Dizem que está ahi um thesouro escondido, disse uma mulher.</p> - -<p>Parece-me que a causa principal da ruina é esta crença, com a esperança -de achar o metal precioso têm nocturnos exploradores arruinado o -singular edificio. E eu achei no montão de pedregulhos, e fiz destacar, -em marmore lavrado, nada menos que a pedra superior de uma ara romana -com seus ornatos, volutas e folhagens, de bom estylo, com a grande -cavidade destinada ao fogo. No terreno proximo, nos velhos muros de -pedra<span class="pagenum" id="Page_172">[Pg 172]</span> solta, vi tijolos pequenos, fragmentos de grossas telhas, e -ainda mais cabeceiras de sepulturas com suas cruzes e saimões. É unico -o que ali está, n’aquelle modesto recinto onde se conservam vestigios -antigos, de epocas entre si muito afastadas.</p> - -<p>Sob o alpendre, solta, a grande pedra com lettreiro romano onde se -mencionam individuos da tribu Galeria, e entre elles o de Elio Séneca. -Dentro da egreja, á direita da porta principal, a enorme lapide, fixa, -de Plocio Capito. Dizem que era de homem santo, e raspam-na para com -o pó curar enfermidades. Pelo visto temos aqui um exemplo nitido de -cultos continuados no mesmo local desde a antiguidade romana até agora. -Mas ha lendas, velhas tradições aqui. Disse-me um homem que esta egreja -era tão importante em tempos antigos que a gente de Santo Isidóro, -Paço d’Ilhas e Quinta dos Chãos vinha enterrar os seus mortos n’este -cemiterio, fazendo a longa caminhada de quatro leguas. E logo outro -companheiro, um tanto a medo, me perguntou se eu julgava possivel que -uma mulher fosse capaz de trazer ás costas aquella grande pedra, a do -Séneca, desde Santo Isidóro, com o cadaver do filho. É lenda mui velha -que eu vim encontrar agora nesta ultima terra da Europa.</p> - -<p>Santo Isidóro é egreja parochial que fica a uma legua além da -Ericeira; fica-lhe a pouca distancia a quinta dos Chãos, que desperta -a curiosidade pelo seu isolamento, a sua represa d’aguas,<span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span> os pequenos -aqueductos, pateo, jardim, casa de residencia e officinas, um bello -exemplo de habitação rural, modificada pelo tempo e variedade de -usos, mas no todo lembrando uma antiga villa rustica. Ahi, n’uma -varanda sobre um arco, servindo de meza, vi a bella lapide sepulcral -dos Terencianos; e no jardim ha uma pia que me pareceu uma urna ou -sarcophago romano, coberto em parte de cal. Segundo uma tradição -a ribeira de Paço d’Ilhas que corre no profundo valle proximo era -antigamente navegavel, e um velho paredão arruinado seria o resto do -caes.</p> - - -<h3>A costa</h3> - -<p>Da ponta da Lamparoeira corre a costa de norte a sul, por mais de 8 -milhas, quasi toda de rocha escarpada até á foz da ribeira do Porto. A -1,5 milhas a N. da dita foz fica a Ericeira. A sul da villa uma pequena -enseada com boa praia, a norte outra praia; ambas separadas pela grande -massa de rochedos do portinho onde entram os barcos de pesca. Este -porto é desabrigado dos ventos NNE a SSO por O.</p> - -<p>Ha duas luzes de enfiamento, branca e vermelha, a 37,ᵐ7 de altitude.</p> - -<p>O monumento de Mafra com suas elevadas torres e zimborio, a 270 metros -sobre o nivel do mar, serve de reconhecimento e marca para este porto, -avistando-se a 30,5 milhas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span></p> - -<p>Da foz da ribeira do Porto a costa a S 25° O, até ao cabo da Roca, a -10,3 milhas, quasi toda escarpada e elevada, apenas rota na praia das -Maçãs na foz da ribeira de Collares, e na praia Grande a S d’esta. No -Focinho da Roca o rochedo levanta-se a mais de 125 metros; sobre essa -escarpa está o pharol da Roca, a 137 metros acima do nivel do mar. A -meia milha ao mar do cabo está a pedra d’Arca: ha outros recifes que -tornam perigosa a approximação.</p> - -<p>A serra de Cintra eleva-se sobranceira ao Cabo, correndo para o -interior na direcção de ENE. A sua maior altitude é no seu estremo E no -castello da Pena, que tem 529 metros de cota.</p> - -<p>O convento da Peninha, no extremo SO, está a 488 metros, e deve -avistar-se a 42 milhas. A serra de Cintra é ponto excellente para -reconhecimento da costa. Os pescadores da Ericeira dão nomes ás -saliencias principaes da serra, e pelo enfiamento e aspecto marcam -approximadamente a sua posição no mar.</p> - -<p>A pesca na Ericeira chegou a grande decadencia, parece querer -levantar-se agora. Antigamente, ha 50 annos, não só a pescaria tinha -ali grande importancia, mas a Ericeira era um viveiro de homens do mar; -chegou a ser celebre pelos seus maritimos pedidos para os melhores -navios da nossa marinha mercante. Eu conheço a Ericeira ha quatro annos -apenas, em rapidas visitas na<span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span> época dos banhos. Ha quatro annos havia -uma armação, em frente do porto, e os botes de pesca, as focinheiras, -pouco iam ao mar. Não havia pescada, muitos dias só havia sardinha e -carapau apanhado na armação. Agora ha duas armações, e todos os dias -vão barcos ao alto, que por vezes trazem muito peixe. A exploração da -lagosta tambem augmentou.</p> - -<p>Os pescadores das armações são quasi todos estranhos á Ericeira; e -tem vida áparte dos naturaes da villa. É no <em>norte</em>, quer dizer -no bairro do norte da villa, em casas abarracadas, caiadas, algumas -com o chão forrado de plantas aromaticas, que habitam os pescadores. -Casas pobres, aceiadas, com estampas de navios e santinhos nas paredes. -A grande embarcação de pesca, antiga, era a <em>rasca</em>, que eu vi -pintada em quadros de milagres, na egreja de Santa Martha.</p> - -<p>Era um barco seguro e veleiro, de borda alta, pôpa redonda e prôa -arrufada; convez corrido de vante á ré, cinginda em volta do costado -por um espesso cinto com forte pregaria, apparelhando com quatro vélas -latinas triangulares, traquete, véla grande, véla de prôa, e catita; -com tripulação numerosa para a manobra.</p> - -<p>O mastro de traquete pendia para vante, o de ré era vertical, da prôa -lançava um páo para amurar a véla de prôa, á ré encostado á amurada um -pequeno mastro para a verga da catita, que caçava no laes de um páo -deitado pela popa servindo de<span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span> retranca: singrava veloz, chegando-se -muito ao vento, e aguentando-se bem nas borrascas.</p> - -<p>A focinheira é typo unicamente usado na Ericeira, para a pesca -costeira, e que vae tambem ao largo. Tem um mastro á prôa que apparelha -com um latino; a prôa e a pôpa da pequena embarcação teem fórma -especial, e no fundo chato e arqueado tem umas reguas ou reforços -longitudinaes. É differente da chata de Cascaes ainda que se lhe -avisinha.</p> - -<p>Tenho visto na Ericeira sardinha, fataça, carapau, faneca, goraz, -pargo, capatão, pescada, peixe espada, peixe gallo, cação, moreia, -arraia, polvo e lagosta.</p> - -<p>Uma vez entrou na armação um cardume de grandes pargos e capatões; e eu -vi na pequena praia a fila de oitenta grandes peixes vermelhos de que -os menores tinham 7 ou 8 kilos.</p> - -<p>Este anno foi fisgado de uma focinheira um grande peixe agulha que -pesou nove arrobas.</p> - -<p>Havia muitos annos que não apparecia um peixe agulha na Ericeira, e é -trivial em Setubal.</p> - -<p>Quem visitar reparando os mercados de peixe na Ericeira, Cascaes, -Setubal nota singulares differenças; nesse bocado de oceano que se -avista do Cabo da Roca, ha regiões definidas, onde apparecem ou não -determinadas especies de peixe.</p> - -<p>O generoso mar dá ainda outro producto que elle traz do seu seio e vem -depôr, arrumar, na areia da praia; chamam-lhe sargaço e moliço ou<span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span> -golfo; são as algas, os corriões, bodelha, verdelho e sebas, que o -agricultor utilisa para adubo.</p> - -<p>Em todas as praias aqui d’esta costa, Baleal, Peniche de cima e de -baixo, Portinho da areia, Consolação, Seixal, Atalaya, Ribamar, Porto -novo, Santa Cruz e Assenta andam os sargaceiros apanhando os vegetaes -arrojados á areia, escolhem um pouco, carregam, formam medas, que -entram em fermentação e se transformam em excellente adubo.</p> - -<p>Em outros pontos do paiz a rapeira é uma furia louca que prejudica a -creação do peixe, mas aqui não se dá esse caso, os sargaceiros não -chegam para arrecadar a massa enorme de algas que o mar lhes offerece.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Banheiros.</i>—Praia do sul: Antonio Garamanha, Braulio da Silva, -Francisco Piloto, Francisco Jorge Alturas e Servando da Silva.</p> - -<p>Praia do norte: Agostinho Alves Camacho, José Alves Camacho, José Coco -e José d’Almeida Rato.</p> - -<p>As praias são muito frequentadas nos mezes de agosto, setembro e -outubro. Ha duas series de banhistas: a mais tardia é a que vem depois -da vindima.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span></p> - -<p>Bons typos estes banheiros, nadadores de primeira ordem, valentes sem -precipitação.</p> - -<p>Na praia do norte o mar bate um pouco mais; na do sul a força da vaga -é em parte quebrada por uma restinga que surge a pouca distancia, 80 a -100 metros da praia de areia.</p> - -<p>Na praia do norte em manhã de vaga um tanto rija vi espectaculo raro; -os banhistas não tomaram banho, e os banheiros resolveram ir brincar -nas vagas; brincadeira um tanto forte.</p> - -<p>Eram tritões mythologicos, peixes não, porque estes não caem em taes -experiencias; por vezes sumiam-se no concavo da vaga proxima a desabar, -logo appareciam, o corpo meio fóra da agua, na cabelleira cristallina, -logo destacavam na branca espumarada fervente.</p> - -<p>É arriscado, ha movimentos enrolantes na vaga d’arrebentação, e ai do -que se deixar enrolar pela onda.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>No termo da Ericeira, na encosta voltada ao mar, ha grande numero de -pequenas propriedades, e muitos muros de pedra solta. Fazem esses muros -para arrumar a pedra e tambem para defeza contra a rajada do mar, e não -bastam; fazem ainda sebes de urzes, de ramos de pinho, de caniço;<span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span> e -nesses canteiros vi cepas boas, com bellos cachos.</p> - -<p>A phylloxera estragou os vinhedos, mas nos ultimos annos teem -replantado; nas chans da ribeira de Chileiros ha vinhas de importancia. -Para os lados da Fonte dos Nabos, Santo Isidoro, Paço d’Ilhas vi -culturas mimosas. Na Ericeira só as flexiveis hastes das araucarias -resistem á furia do vendaval. Ás vezes quando no temporal as grandes -vagas estouram nas arribas passam flocos de espuma por cima da povoação.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Nomes de barcos.</i>—S. Joaquim, vulgo o Bailharito, Feliz Raul, -Boa Viagem, Flor da Ericeira, Pombinho, etc.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Pombos-bravos.</i>—São raros nesta costa; numa época vi dois -casaes que pousavam nas altas rochas, sob a villa. Pouco adiante de S. -Sebastião tenho-os visto tambem, poucos. São pardos-escuros, esguios, -muito desconfiados; creio que é na costa algarvia, Sagres, S. Vicente, -que apparecem mais; na costa da Arrabida são raros.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Pharoes.</i>—Berlenga. Começou em 1840. Alcance 30 milhas.</p> - -<p>Cabo Carvoeiro. Data de 1790. Alcance 9 milhas.</p> - -<p>Ericeira. Luzes de direcção, anterior branca, posterior vermelha. -Começaram em 1864. Avistam-se a 5 milhas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span></p> - -<p>Cabo da Roca. Data de 1772. Alcance 30 milhas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Soccorros a naufragos.</i>—Dizem que existe um posto montado, com -espingarda Delvine para lançamento do cabo de vae-vem.</p> - -<p>De barco salva-vidas nunca ouvi fallar, nem de qualquer melhoramento -do acanhado portinho entre bravias rochas, muito pittorescas e -perigosissimas.</p> - -<p>Numa das ribas vi uma caixa verde com letreiro branco, assim:</p> - - - -<p class="center"><span class="smcap">Secorros</span></p> - -<p class="center"><span class="smcap">a</span></p> - -<p class="center"><span class="smcap">naufragus</span></p> -</div> - -<p>Deve ser orthographia official. (Este anno, 1905, vi o letreiro já -emendado).</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>O facho do peixe.</i>—Se o barco que vem do alto, ou da armação, -traz peixe, arvóra á prôa o <em>facho</em>, que é uma japona ou oleado de -marujo; logo que das arribas avistam o reclamo descem homens e mulheres -com as gigas e burrinhos para transporte da mercadoria.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Aroeira.</i>—É com o suco da aroeira que tingem as redes. A planta -verde é moida num lagar, por galgas movidas a braço. Na Ericeira vi um<span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span> -lagar, que não trabalhava. É em Ribamar que hoje moem mais. Em Santo -Isidoro encontrei eu umas saloias com seus burrinhos carregados de -aroeira, que iam para Ribamar.</p> - -<p>E vi tambem ramos de aroeira ornamentando carros carregados de tojo; o -verde viçoso da aroeira alegrando o tom escuro do tojo secco.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Phosphorescencia.</i>—Na costa da Ericeira o mar apparece algumas -vezes phosphorescente; acho isto notavel; porque no littoral portuguez -em muitos sitios nunca se dá este phenomeno, na costa do Algarve é -rarissimo.</p> - -<p>A gente do mar chama-lhe <em>ardencia</em>. Nas noites de 24 e 25 de -agosto de 1900 o espectaculo foi admiravel. As grandes ondas luminosas, -de brilho e intensidade differentes, produziam effeito phantastico. -Durou muitas horas o esplendido aspecto do mar, especialmente na -arrebentação.</p> - -<p>Em setembro de 1902 tambem houve <em>ardencia</em>, mas fraca e -durando apenas umas tres horas. No livro de A. F. Simões: <i>Cartas -da beira-mar</i>, descreve-se um caso de <em>ardentia</em> ou -<em>ardencia</em> observado por elle na Figueira da Foz no mez de -setembro de 1864.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Cartas nauticas.</i>—Conversando uma vez a respeito de antigas -cartas nauticas, indicaram-me uma senhora que possuia algumas, de -parentes<span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span> que tinham navegado em largas viagens. Eu pedi o favor de as -vêr.</p> - -<p>Um dia, na sua casa de jantar, escolhida por ser mais facil na grande -meza desdobrar as cartas maiores, a senhora D. Maria disse á serviçal -que fosse lá acima, ao quarto do Oratorio, buscar as pastas e os rolos, -forrados de linhagem.</p> - -<p>A creada voltou ajoujada porque era pesado o fardo da papelada. Eram as -cartas que tinham servido ao avô, ao pae, aos tios e aos irmãos na vida -maritima, porque durante gerações, n’aquella familia, fôra tradicional -a vida do mar; ora de pilotos, ora de capitães de navio, muitos dos -parentes daquella senhora fizeram longas viagens. As cartas usadas, -amarelladas, conservavam o cheiro a breu; tinham as rotas marcadas -a lapis, em linhas onduladas ou em zig-zagues, com pequenas cruzes -e datas, nas mudanças dos rumos ou marcando singraduras; viagens da -Ericeira para Larache ou Casa Branca na costa marroquina, á Terra Nova, -á Irlanda, ou de Lisboa para o Brazil, Açores, Madeira, por essa costa -d’Africa fóra, ou entre o Funchal e Demerára.</p> - -<p>Ha coisas d’estas, ás vezes; começa-se por simples curiosidade, -entre phrases banaes e logares communs, e de subito surge o drama. -Se eu visse aquellas cartas n’uma loja nada sentiria, mas lentamente -mostradas pela santa mulher! Eu ia dizendo o que via e lia, e ella -ia lembrando. A carta passou a ser um documento vivo. E quanto mais<span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span> -recordava mais subia a commoção, avivavam-se saudades, as lembranças de -anciedades passadas, as longas espéras de noticias. Certa cruz marcava -um grande golpe de mar, outra o sitio em que faltou agua de beber, e a -comida; esta agora um incendio a bordo.</p> - -<p>De uma vez não houve noticias do parente nem do navio por mais de seis -mezes.</p> - -<p>Eu dobrava ou enrolava lentamente a carta, e passava-se a outra. Agora -era a que servira a bordo do palhabote onde o irmão ia por piloto na -sua primeira viagem, e surgiam outras recordações.</p> - -<p>Desdobrava-se nova carta, era a de um segundo tio, capitão do navio -tal, que andou trinta annos no mar, soffrendo vendavaes e calmarias, e -terminou em naufragio em longinqua paragem.</p> - -<p>E assim estivemos a ver cartas, algumas horas, e a lembrar anciedades -passadas; saudades, receios, que é o manjar de quem tem parentes -queridos no mar. Depois a serviçal foi levar, com muita cautella, como -cousas sagradas, a pasta e os grandes rolos para o quarto de cima, ao -pé do Oratorio.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Os primeiros christãos.</i>—As duas inscripções romanas que ainda -hoje felizmente se conservam em S. Miguel de Odrinhas teem servido de -base a dissertações de auctores considerados sobre o apparecimento<span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span> -do christianismo n’esta região a norte de Lisboa. Principalmente a do -Seneca.</p> - -<p>O nosso D. Rodrigo da Cunha na <i>Historia ecclesiastica da egreja de -Lisboa</i>, disserta sobre a pregação de S. Pedro de Rates pela beira -mar até Cintra, e dá muita attenção ás duas inscripções romanas.</p> - -<p>A razão de julgar que taes inscripções commemoram pessoas christans -é porque lhes falta o D. M. S. (consagrado aos deuses manes), inicio -vulgar dos lettreiros pagãos.</p> - -<p>Base ou principal ponto de partida a respeito da existencia de -christãos logo no 1.ᵒ seculo, neste extremo da peninsula, é a chronica -de Flavio Dextro, que diz: <i lang="la" xml:lang="la">Lucius Seneca Centurio verus christianus -Sintriae occumbit</i>. (<i>Ann. Chr.</i> 50).</p> - -<p>Numa edição de 1619, vê-se <i lang="la" xml:lang="la">Senticae</i>, emendado para -<i lang="la" xml:lang="la">Sintriae</i> na edição de Leão (Lugduni, 1627 pag. 103).</p> - -<p>Ora esta chronica de ha muito está mal afamada, mas percorrendo-a quasi -me convenço de que merece alguma attenção; parece-me um texto antigo -muito alterado e interpolado.</p> - -<p>Ambrosio de Morales, continuador de Floriam de Ocampo, na <i>Coronica -general de Hespana</i> (Alcalá de Henares, 1575, 2.ᵒ vol. pag. 245 e -segg.) consagra um capitulo a esta questão:==<i lang="es" xml:lang="es">El tiempo del Emperador -Neron con todo lo de Seneca</i> (Lib <span class="allsmcap">IX.</span> C. 9) e reproduz -a inscripção grande de Odrinhas. Não acho base alguma para affirmar -a existencia<span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span> de christãos logo no primeiro seculo no occidente da -peninsula; porque é certo que os lettreiros sepulcraes de individuos -christãos começam muito mais tarde; lendas, tradições devotas, sim; mas -é difficil tambem marcar datas á creação de lendas piedosas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>Bolos.</i>—As confeiteiras fazem cavacas, pão de ló, esquecidos, -suspiros, biscoitos e marmelada. Tambem fazem queijadas, inferiores -ás de Cintra. A região da queijada é outra, vae de Cintra a Bemfica, -conservando o mesmo typo. Tambem ha queijadas no Alemtejo, excellentes, -mas de esthetica mui diversa. O dominio do pão de ló é ao longo da -costa maritima ao norte do Tejo, e o da cavaca quasi na mesma região, -variando de fórma e densidade, de villa para villa; quasi se póde dizer -cada terra com sua cavaca.</p> - -<p><i>S. Antonio.</i>—É uma pequena ermida, toda caiada, que está sobre a -muralha da arriba do porto.</p> - -<p>Está ahi na parede do occidente voltada ao mar uma cruz formada por -azulejos, e tambem em azulejos as imagens de Nossa Senhora da Boa -Viagem e a de Santo Antonio, e data 1789.</p> - -<p>No nicho ardia d’antes uma grande lanterna, guia dos pescadores, e -ainda lá está a sineta que toca quando ha nevoeiro na costa.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_186">[Pg 186]</span></p> - -<p><i>Egreja de S. Pedro</i>.—Foi restaurada em tempo de D. João v. As -pinturas do tecto teem o caracter d’essa época. O cruzeiro ante a porta -principal está datado de 1782. O prior Manuel Maria Ferreira fez obras -na egreja, e o arcaz da sacristia em 1660.</p> - -<p>Creio que a obra d’arte mais antiga que existe nesta egreja é a pequena -estatua de S. Pedro, em marmore, com o seu livro e grande chave, que -está sobre a porta lateral. Proximo a esta porta está o seguinte -letreiro:</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>—Aqui jazem José Pereira da Cruz e sua mulher Eulalia da Costa e a -filha d’estes Maria Rosa e seu marido o professor Antonio Luiz Delgado -e alguns filhos d’estes, entre elles o padre Octaviano Augusto Pereira -Delgado primeiro e principal promotor do acrescentamento e reforma -d’esta egreja o qual pede por esmola se compadeçam das almas dos que -aqui jazem, 1872.—</p> - -<div class="blockquot"> - -<p>Segundo o recenseamento official tem esta freguezia 737 fogos, com -2:519 habitantes.</p> -</div> - -<p><i>Santa Casa da Misericordia.</i>—Foi fundada a irmandade d’esta -Misericordia em 1678.</p> - -<p>O Compromisso actual foi approvado por alvará de 4 de outubro de 1886.</p> - -<p>O antigo compromisso era de 7 de julho de 1697.</p> - -<p>Capital 34:650$000 em inscripções.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span></p> - -<p>Capital 4:500$000 em acções do Banco de Portugal e da companhia das -Lezirias.</p> - -<p>Na média entram no hospital uns 70 doentes, annualmente.</p> - -<p>Ha pouco teve um legado importante, do sr. Fialho, cavalheiro -respeitabilissimo da localidade.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>S. Julião.</i>—É uma ermida toda branca, com seu alpendre, -erguida na escarpa maritima, a uns tres kilometros a sul da Ericeira. -Celebra-se ahi uma festa annual, em setembro, com arraial, a que -concorre muita gente dos povos mais visinhos. Proximo do pequeno templo -ha casas para os romeiros, para um posto da guarda fiscal, e para venda -das offertas.</p> - -<p>A disposição da ermida e seus annexos leva-nos a tempos mui antigos. A -influencia do convento de Mafra tambem ali chegou, e algumas reparações -teem o cunho do seculo XVIII.</p> - -<p>A porta da ermida tem a data 1768.</p> - -<p>Proximo de S. Julião ha uma fonte milagrosa. Tem duas bicas, que deitam -aguas de nascentes diversas, de modo que teem sabôres varios. E seus -azulejos com as imagens de <i>S. Julião e Santa Basilissa</i>, e a data -1788.</p> - -<p>Teem virtude estas aguas para doenças de olhos, e outras, para todas -creio eu, mas é preciso beber, ou lavar-se com as duas aguas. São -complementares.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_188">[Pg 188]</span></p> - -<p>Por occasião da festa foram muitas pessoas beber das duas aguas, -outras lavar os olhos nas duas pias, outras com bilhas; mas a virtude -principal das duas aguas combinadas é contra as sezões.</p> - -<p>No arraial de S. Julião vendiam-se poucos comestiveis: bolos de S. -Julião, fartes, queijadas, melões e peras, pevides, favas torradas.</p> - -<p>Os fartes ou bolos de S. Julião são feitos de massa de trigo com -assucar, me pareceu, e alguma canella. São bolos locaes que segundo me -affirmaram só se fabricam por occasião da festa.</p> - -<p>Vi ahi algumas portas com fechadura especial composta de uma haste -grossa, com sua travinca, e que se abre por meio de um páosinho de -feitio vario.</p> - -<p>Na Ericeira tambem encontrei essa fechadura que eu não conhecia. Um -popular explicou-me:==isto é fecho com cavilhas e chaveta.</p> - -<p><i>As pedras de mysterio em S. Julião.</i>—São umas lapides bem -trabalhadas com os nomes de S. Julião, S. Basilisa, e Ave Stella -matutina, e outras phrases piedosas, dispostas caprichosamente.</p> - -<p>Assim <i>Juliam, Basilissa e matutina</i>, em caracteres capitaes -muitas vezes repetidos enchem quadrados tendo no centro as iniciaes -J. B. e M. e achando-se a palavra lendo para qualquer lado, até aos -vertices da figura.</p> - -<p>Proximo da ermida ha um logar, o fojo, grande fenda natural da escarpa, -onde se deu um milagre; ahi numa lapide lavraram um monogramma<span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span> -que deve significar <i>Mater Christi</i>. E no angulo do alpendre, -superiormente, um cubo de marmore com meridiana muito curiosa.</p> - -<p>Algum frade engenhoso fez aquelles quebra-cabeças, para maravilha dos -romeiros. A esta ermida se liga a historia do rei da Ericeira.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>A bruxa da Arruda.</i>—A celebre bruxa costuma visitar a Ericeira -por fins de setembro. É muito respeitada; dizem que é rica, a pobres -não leva nada; apresenta-se com muitos oiros. Tem uma filha que já -entende de molestias. Em geral leva 300 réis pela consulta. Receita -quasi sempre esfregas de aguardente e papas de pão de milho ralado. -Mas isto varia em quantidade, tempo, calôr, e no sitio do corpo. Ouvi -tambem chamar-lhe a mulher do Casal das Neves, no termo da Arruda dos -Vinhos.</p> - -<p>Nem precisa ver o doente, levam-lhe roupa do uso do enfermo, uma camisa -ou camisola, e ella pelo cheiro conhece a molestia e logo receita. -Costuma pousar numa casa do <em>norte</em> da villa, e a sua chegada -consta logo entre a pobre gente que a venéra e teme.</p> - -<p>==Já teve questões com padres e medicos, já foi aos tribunaes, me disse -alguem, e ficou sempre victoriosa!==</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>O brazão da Ericeira.</i>—Tenho visto representado no brazão da -Ericeira um ouriço cacheiro, e<span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span> outras vezes um ouriço do mar, inteiro, -com sua armadura de espinhos, visto de lado, o que me parece mais -logico. Na Fonte do Cabo sobre a inscripção está uma pedra esculpida -que deve ser a representação mais antiga das armas da villa, e, se -me não engano, quizeram ali representar a boca do ouriço maritimo, -donde divergem séries de linhas formando cruz, e um lavor ponteado que -allude aos espinhos, admittindo o engano ou convenção das quatro fachas -divergentes que deveriam ser cinco se o canteiro fosse mais cauteloso.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p><i>O primeiro foral da Ericeira.</i>—Do primeiro foral da Ericeira -guarda-se o autographo na Torre do Tombo; está publicado na integra no -Port. Mon. Hist. na parte respectiva a foraes, pag. 620. E por esta -razão não o transcrevo aqui. É da era 1267 que corresponde ao anno -1229. Foi concedido por D. Fernando mestre da ordem d’Aviz: <i lang="la" xml:lang="la">Ego -frater F. magister Avis una cum omni meo conventu do atque concedo -populatoribus de Eyrizeira...</i> Note-se que a pronuncia local de hoje -é Eiriceira embora toda a gente escreva Ericeira.</p> - -<p>Como todos os foraes das povoações da costa maritima este se refere -a barcos, a maritimos e pescadores, á pescaria, e aos impostos -especiaes do pescado: por exemplo aos pescadores do alto mar, e á -<em>baleacion</em>, ou pesca da baleia, então commum a todo o mar -português. Faz menção especial de<span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span> congros, toninhas e golfinhos; e -dos apparelhos de pesca, <i lang="la" xml:lang="la">bigeiro, udra et rete de costana</i>; do -pescado fresco, recente e secco. No porto entravam mercadorias: <i lang="la" xml:lang="la">de -tota merchandia que per mare ad portum venerit et voluerint vendere -dent quarentena</i>. Havia revendedores de peixe: <i lang="la" xml:lang="la">de coloneiro qui -comparar piscatum pro a revender det I denarium</i>.</p> - -<p>O mesmo imposto para o <em>bofon</em>, ou bufarinheiro.</p> - -<p>Á vista do foral a condição dos pescadores não tem variado do seculo -XIII para cá. Os mesmos perigos, egual miseria, e a mesma incuria, a -mesma falta de protecção.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Sentindo a brisa fortemente salgada, alargando o olhar pela magestosa -amplidão do oceano, vem o desejo de saber alguma cousa do que se passa -ahi, no meio aquatico, onde pullula a vida. O dr. Augusto Filippe -Simões fez um livro bem interessante de vulgarisação scientifica com -algumas observações pessoaes, as <i>Cartas da beira-mar</i> (Coimbra, -1867).</p> - -<p>Simões era um sabio e um litterato erudito, escrevendo com muita -consciencia. Em linguagem facil, corrente mas cuidada, descreve-nos o -oceano,<span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span> os seus problemas, a salsugem, os movimentos, as marés; e a -vida que se agita n’essas aguas, a zoologia e a botanica marinhas.</p> - -<p>Um livro que recommendo para a temporada da Ericeira é o <i>Estado -actual das pescas em Portugal</i>, pelo distincto official da armada, -sr. A. A. Baldaque da Silva (Lisboa, 1892). Tem estampas coloridas -representando peixes, crustaceos, molluscos, muitas gravuras de -barcos e apparelhos de pesca; não olvidando a focinhada ou focinheira -ericeirense, e a antiga rasca que passou á historia; descreve tambem a -costa maritima, tão variada em aspectos e circumstancias.</p> - -<p>Recentemente vi um livro bem interessante, de sciencia moderna; é -<i lang="fr" xml:lang="fr">L’Océan. Ses lois et ses problèmes</i>, por J. Thoulet (Paris, -Hachette, 1904).</p> - -<p>Thoulet é um oceanographo que estuda o mar e sabe expôr com clareza -as muitas questões da sciencia do mar, a oceanographia, tão moderna e -já tão vasta. A chimica do mar, a formação de sedimentos de origens -varias, a temperatura e a pressão nos abysmos, a formação da vaga e a -razão das marés, as correntes, a vida nas grandes profundidades quietas -e sem luz, apparecem-nos tratadas em largos capitulos de leitura que -prende a attenção, sem fatigar o espirito.</p> - -<p>No 4.ᵒ volume das <i>Maravilhas da natureza, segundo o plano de -Brehm</i>, obra celebre, revista e ampliada na parte relativa a -Portugal pelo sr. dr. Balthasar Osorio, sabio lente da Escola -Polytechnica<span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span> de Lisboa, trata-se de peixes, em leitura facil e -agradavel.</p> - -<p>Como tambem desperta a attenção o aspecto raro das arribas, das suas -curvaturas, fendas, aberturas, cavernas, onde apparecem rochas brancas, -vermelhas, negras, esverdeadas, cinzentas, umas cheias de fosseis, -outras sem vestigio de vida animal ou vegetal, eu lembro a leitura no -vol. 2.ᵒ de <i lang="fr" xml:lang="fr">La face de la terre</i> por Ed. Suess (trad. de E. de -Margerie. Paris, 1900), do capitulo intitulado: <i>Os contornos do -Oceano Atlantico</i>.</p> - - -<h3>Pelourinho</h3> - -<p>O concelho da Ericeira foi extincto em 1855, e reunido a Mafra. Tinha o -seu pelourinho.</p> - -<p>Certas pessoas praticas entenderam que não havendo concelho não era -preciso o monumento municipal, e que os degráos de pedra eram bem bons; -e aproveitaram os degráos lá para o que bem quizeram, e a columna -partida, o capitel e o ornato superior foram enterrados. Isto foi -por 1863. Agora (outubro de 1905), o dr. Eduardo Burnay, enthusiasta -da branca villa, indagou o sitio onde ficaria o resto do pelourinho, -mandou excavar, achou as pedras, e vae mandar reerguer a decorativa -columna.</p> - -<p>Pela photographia que me mostrou creio que o symbolo municipal da -Ericeira pertence ao genero<span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span> do de Collares, ainda completo e aprumado, -e do de Cintra ha muito desfeito, mas de que ha desenho cuidadoso. -Sobre este caso do pelourinho de Cintra publicou recentemente o sr. -Mena Junior uma <i>Noticia historica</i>, interessante, com estampas -notaveis, e uma planta do Paço da villa, no <i>Boletim da Real -Associação dos Archeologos Portugueses</i>.</p> - -<p>A columna do pelourinho da Ericeira tinha annel, a meio, como se vê no -de Collares, e na estampa do de Cintra; o capitel e ornato superior são -do mesmo desenho. Taes pelourinhos são do começo do seculo XVI, reinado -de D. Manuel, e correspondem á grande reforma foraleira d’este monarcha.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>A respeito da villa da Ericeira varios escriptos teem apparecido -publicados, artigos de jornaes, ou revistas, ou capitulos de -recordações.</p> - -<p>O sr. Eduardo da Rocha Dias no tomo 1.ᵒ e Addenda do seu valioso -trabalho <i>Noticias archeologicas</i>, ao tratar da Ericeira, -apresenta a bibliographia da interessante villa.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Grande serviço tem prestado á villa da Ericeira o sr. dr. Eduardo -Burnay alcançando os meios<span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span> precisos para a construcção da muralha -de supporte na arriba do porto. Se esta obra tardasse haveria -desmoronamento prejudicial á villa, á concha do porto, e á praia -apertada onde labutam os pescadores. Actualmente ha tres armações de -sardinha, empregando uns duzentos homens, e todo o trabalho se faz na -breve praia onde ás vezes as companhas se embaraçam. Não está ainda -terminada a obra, pouco falta ao que parece; o que está feito é já -muito util.</p> - -<p>Muito melhorado tem sido ultimamente o caminho para a praia do sul, e, -ao que ouvimos affirmar, vae tratar-se da rampa da praia do norte, que -é muito linda tambem. Seria bom melhorar o caminho para Ribamar, que -não offerece difficuldades, facilitando assim um bello passeio, util -para os povos do sitio, e estabelecendo communicação facil e agradavel -com a região dos pinhaes. A primeira parte da estrada de Mafra é de -forte declive, uma ladeira de tres kilometros, incommoda para passeio. -Assim como seria para desejar o arranjo do caminho para a Lapa da -Serra, sitio pittoresco, accidentado, com arvoredo viçoso.</p> - -<p>Na Lapa da Serra tem-se desenvolvido nos ultimos annos a industria -ceramica: fabrica-se louça vidrada com seus lavôres especiaes, ás vezes -de phantastica ornamentação.</p> - -<p>Pinhaes, mais pinheiros, é que eu gostaria de vêr na moldura agreste da -interessante villa.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span></p> - -<hr class="tb" /> - -<p>O sr. Adolpho Loureiro, inspector geral de obras publicas, publicou -recentemente o volume segundo da sua excellente e muito util obra: -<i>Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes</i>.</p> - -<p>A pag. 303 começa a parte relativa ao porto da Ericeira, representado -minuciosamente na estampa sexta do respectivo atlas.</p> - -<p>Segundo se vê do consciente trabalho do sr. Loureiro é para desejar:==a -construcção de obras de drenagem dos terrenos, consolidação das ribas, -conclusão das rampas tornando-as aptas para varar os barcos de pesca, e -desobstrucção do porto, removendo-se as pedras soltas que se acham na -area d’elle a menos de 1ᵐ,5 a 2ᵐ abaixo da baixa-mar, e, finalmente, -estudar-se a possibilidade da construcção de um pequeno molhe para -abrigo das embarcações de pesca, no caso de poder aproveitar-se -qualquer restinga ou pedras que possam servir-lhe de apoio==.</p> - -<p>Parece facil a construcção de um pequeno molhe acostavel, que seria de -grande vantagem para aquelles pobres pescadores.</p> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<p><span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="De_Bemfica_a_quinta_do_Correio-Mor">De Bemfica á quinta do Correio-Mór</h2> -</div> -<hr class="r5" /> -<p class="center"><span class="smcap">(1905)</span></p> -<p><span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span></p> - - - -<p>Sabe bem de vez em quando uma excursão fóra das estradas mui trilhadas, -longe de caminhos de ferro e de electricos. Pelo meio dia cheguei a -Bemfica, á cocheira do largo da Cruz da Era. Cocheira pacata, bom -serviço e preço modico; arranjou-se um carrinho; e seguimos pela -estrada do Poço do Chão, muito socegada, entre muros de quintas, sebes -de caniços, e filas de oliveiras. Passa a quinta da Granja, a da -Condessa de Carnide, a do Sarmento ou Bom Nome; deixa-se á esquerda -a estrada da Correia; agora o antigo chafariz e o moderno lavadouro, -ambos sem agua. Á nossa esquerda fica a egreja parochial de S. Lourenço -de Carnide, muito caiada, veneravel pela sua idade; estamos no Alto do -Poço, de linda vista campestre. Estes sitios de Carnide e Luz são dos -melhores dos arrabaldes da capital, mas infelizmente os senhores da -governança não lhes teem dado attenção. Muitas vezes nem agua teem os -pacificos e modestos moradores. A hygiene, a limpeza publica<span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span> é quasi -nulla. Facilidade de communicações não existe. Emfim carencia completa -de melhoramentos municipaes. Bons ares e contentem-se. Eis agora a -egreja da Luz, isto é, a monumental capella-mór e cruzeiro, porque o -corpo da egreja arruinou-se pelo terremoto de 1755.</p> - -<p>Mas o que resta pela sua architectura e decoração, principalmente pelas -pinturas, é uma joia, essa fundação da inclita infanta D. Maria. Á -nossa direita o grande edificio do Collegio Militar. Estamos no amplo -largo da Luz, com suas alamedas que mereciam mais attenção e cuidado; -a nascente o grande palacio e quinta de Oliveira, vistosa construcção, -e entramos na estrada do Paço do Lumiar. Ha um lanço entre muros e -vallados, logo a estrada alarga: boas vivendas antigas e modernas.</p> - -<p>Um modesto terreiro; a meio a egreja ou antes ermida de S. Sebastião -com o seu portal manuelino. Na visinhança boas casas á antiga, a da -quinta do Paço por exemplo. Segue a muito nomeada quinta do sr. duque -de Palmella, principesca vivenda com seus jardins em socalcos, fontes -e lagos, arvoredos antigos, raros exemplares botanicos, e grande -residencia. Fica-nos á direita a egreja parochial de S. João Baptista -do Lumiar, de fundação muito remota. Passa a rua do Prior, a calçada de -Carriche e estamos no campo. Estrada larga, aqui em bom estado, ali em -máo, já uma cova, agora um pedregulho, como todas as estradas<span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span> do paiz, -onde todos querem estradas e ninguem trata de as conservar. Que eu -tenho grande esperança nos automoveis; os excursionistas de automovel -tanto hão de soffrer e gastar que levantarão celeuma provocando -reparações indispensaveis.</p> - -<p>Em alguns pontos a estrada está bem arborisada. Estamos na Povoa -de Santo Adrião: reparei em certo nicho e poço que vi á direita, e -numa pedra lavrada; logo fiz tenção de parar á volta para exame mais -demorado. Dilata-se a varzea de Friellas, bom torrão fecundo. O saloio -é bom agricultor, eximio no hortejo. Aqui, além de trigo e milho, -ha grande cultura de batata e ainda mais da hygienica cebola. Pelos -telhados amarellecem enfileiradas as corpulentas aboboras machadas. -Avisto algumas casas boas, antigas, agora em ruina.</p> - -<p>Evidentemente por estes sitios em tempos idos residiram pessoas -abastadas; agora quem tem meios vae para a cidade para gosar e não -trabalhar, nem vigiar. Estamos em Loures, eis a egreja matriz, grande -templo, de fundação mui velha e reconstrucção moderna; contiguo o -antigo cemiterio num abandono vergonhoso, servindo para estendal de -roupas. Mais um pouco de estrada e topa-se á esquerda uma avenida bem -tratada, recatada, com suas filas de oliveiras; entramos na quinta do -Correio-Mór. Ainda uns minutos e chega-se a um portico monumental, -elegante e bem construido, encimado pelo brasão dos <i>Mattas</i>, e -entramos<span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span> em bello páteo, frente e alas do palacio formando os tres -lados.</p> - -<p>O palacio está em fundo valle apertado entre altos montes vestidos -de arvoredos e vinhas até meia encosta; a região inferior povoada de -laranjaes, agora um pouco doentes, e de hortejo viçoso. Provavelmente -edificaram o palacio naquelle covão por causa das aguas; e de facto -ha agua corrente em muitos pontos da grande residencia. Um vestibulo -amplissimo; começa a escadaria larga, suave, magistralmente construida; -no primeiro patamar uma fonte artistica, grande taça de um só bloco -de marmore, estatuas, e um lindo medalhão com busto, talvez do -<i>Matta</i> fundador do palacio. Está bem conservado o edificio; -repararam ainda ha poucos annos os telhados; não chove agora nas -salas; mas antes houve abandono e perderam-se ou estragaram-se alguns -trabalhos preciosos.</p> - -<p>No Correio-Mór a construcção é boa a valer, a architectura é elegante; -mas ha ainda a notar nos grandes salões, nas salas e gabinetes, a -variedade e o gosto da ornamentação.</p> - -<p>Empregaram-se ali artistas de primeira ordem no seu tempo. Houve -todavia alguns concertos e enxertos de máo gosto e inferior qualidade. -As salas da musica, da dança, a dos apostolos, a capella, o grande -salão de jantar, teem azulejos, estuques, pinturas, e obras de talha -de merecimento. A cosinha é monumental, com as suas chaminés,<span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span> pias -de lavagem, grandes mesas de marmore, e azulejos decorativos muito -especiaes. O conjuncto é uma raridade. No jardim tambem ha obras de -arte, e o enorme tanque da horta, com sua guarnição de azulejos, merece -ser visto.</p> - -<p>Este palacio tem um historia. Luiz Gomes da Matta, homem de fartos -haveres, foi nobilitado por Filippe <span class="smcap">ii</span> que lhe deu brazão:==em -campo de ouro tres mattas verdes em roquette sobre penhascos verdes; -timbre uma das mattas.==</p> - -<p>Este Matta comprou tambem o fôro de fidalgo e o officio de correio-mór, -e arvorou a quinta da Matta em solar. Chamaram-lhe depois a quinta da -Matta do Correio-Mór. Hoje toda a gente d’aquelles sitios lhe chama -o <i>Correio-Mór</i>. A quinta e palacio pertenceram á Casa Penafiel -até ha poucos annos, e actualmente ao sr. Canha, negociante de Lisboa. -Merece a pena um passeio a essa antiga residencia.</p> - - -<h3>Azulejos</h3> - -<p>O alto rodapé da sala de jantar é de azulejos, azul em fundo branco, -em grandes e pequenas composições conforme os espaços; é trabalho, -e grande, feito propositalmente para ali, para aquelles vãos de -parede, bem composto e executado. Uma serie de quadros representa, -parallelamente, as phases da vida humana e a historia de um navio. -Aqui se vê a criança de mama, ao colo da<span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span> mãe, e o berço, as graciosas -pequenas roupas; logo as scenas da primeira infancia, as ingenuas -brincadeiras. Neste quadro rapazotes bem postos aprendem os exercicios -da caça, noutro representa-se-nos uma aula, os meninos attentos á -lição do mestre. Vae seguindo a construcção do navio, ali o fabrico do -cavername, depois o assentar do forro, o trabalho do calafate; logo o -erguer dos mastros. E toca a viajar sobre as aguas do mar, para a India -ou para o Brazil; lá está o navio com o velame ao vento, prestes a -sahir do porto.</p> - -<p>Temos agora um casamento, e no quadro seguinte uma profissão em casa -religiosa. Era o caminho necessario em familias antigas, de bens -vinculados; o excesso de filhos trasbordava para as armas, ou para o -claustro; meninas sem dote raras casavam, iam para freiras, e em certos -conventos passava-se muito bem a vida. Em varios quadros scenas da vida -caseira; o concerto musical; a dança animada; os prazeres campestres de -boa sociedade.</p> - -<p>Um naufragio agora, o navio torturado, pannos rotos, mastros partidos -no vendaval furioso. Muitas outras scenas, bem desenhadas e compostas, -com sufficiente minucia em trajos e utensilios, mesmo em attitudes, se -nos deparam na interessante serie de azulejos.</p> - -<p>Noutra sala os azulejos, em rodapé, representam as quatro estações. -Na sala chamada dos Apostolos ha caçadas de montaria, do veado, do<span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span> -javali, do leão. Esta sala tem um esplendido tecto de madeira, em -variados caixotões, formando grandes molduras com obra de entalhado, -pintado e dourado, frisos de flores, e os lisos pintados a oleo -representando scenas mythologicas.</p> - -<p>Na capella os azulejos representam scenas de devoção; eremitas e frades -oram e meditam; num d’esses quadros surge um anão risonho. No jardim vi -tambem uma estatua de anão, bem executada.</p> - -<p>Na cosinha, tambem ha azulejos a notar na cosinha, aparecem as peças -culinarias, coelhos, perdizes, presuntos, chouriços, hortaliças. A -cosinha do Correio-Mór é magnifico exemplar completo, com as suas -grandes chaminés, grandes mesas de marmore, e agua corrente em -abundancia.</p> - -<p>Em rodapés de ante-salas, em alegretes de jardins, encontram-se -frequentemente as scenas da comedia italiana, as serenatas, os jogos, -casos de amores e ciumes, brigas de espadachins, cortezias de tafues, -as varias combinações de Pulcinello, Arlechino e Scaramuccia, de -Fracasso e Tagliacantoni, com Lucrecia, Colombina e a Signora Lavinia; -não faltam os capitães Ceremonia e Cocodrillo, nem os casos comicos de -medicos e barbeiros.</p> - -<p>Domina sempre n’esta alegre ornamentação o typo italiano, o que não se -estranha attendendo aos muitos artistas de Italia que vieram a Portugal -no seculo XVIII, e á tendencia dos artistas portugueses a irem a Roma -procurar a perfeição artistica.<span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span> Mas ha excepções; uma bem saliente -na quinta dos marquezes de Fronteira em S. Domingos de Bemfica; ha -ahi azulejos hespanhoes e hollandezes de merecimento e excellente -conservação.</p> - - -<h3 class="nobreak" id="O_Matta_Correio-Mor">O Matta, Correio-Mór</h3> - - -<p>Foi Luiz Gomes da Matta o instituidor do vinculo ou morgado da quinta -da Matta, não me parece todavia que elle fizesse o grande palacio. Seu -filho e successor Antonio Gomes da Matta fez grande testamento que por -quaesquer questões foi impresso:==Testamento que fez Antonio Gomes -da Matta, correyo mór que foi deste Reyno de Portugal. Lisboa, off. -Craesbeeckiana, 1652, in-4.ᵒ, 136 pag.==</p> - -<p>A pag. 62 do testamento, mencionando varias propriedades, diz -simplesmente==quinta da Matta com suas terras e azenha e mais pertenças -propriedade que Luiz Gomes da Matta, meu pae, deixou vinculada.==</p> - -<p>E nada mais; não falla do palacio, das obras d’arte, etc.; quando é -minucioso relativamente a outras cousas menores.</p> - -<p>É testamento interessante; o testador era homem piedoso, devoto, muito -rico.</p> - -<p>Possuia grandes predios em Lisboa, quintas na Luz, em Loures, em -Almada, grandes herdades no Alemtejo, no termo de Elvas. Grande -capitalista, emprestava dinheiro sobre penhores.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span></p> - -<p>A sua casa de morada em Lisboa estava posta com fausto; menciona os -pannos de raz, e brocateis que forravam as paredes das salas; tinha -joias de grande valor, e enorme quantidade de pratas.</p> - -<p>Fazia festas religiosas; dava cera, azeite, dinheiro para muitas -imagens; no testamento contempla dezenas de corporações religiosas, de -parentes, de creados, e de empregados do correio, amigos e compadres. -Mas não falla de grande residencia na Matta. Por esta razão, e pelo -edificio que vejo agora, creio que o palacio actual foi erguido em -tempo de D. João V, soffrendo algumas modificações em época mais -recente.</p> - -<p>Mas temos em Volkmar Machado um dado importante; ao tratar do conhecido -pintor José da Costa Negreiros, conta que foi discipulo do famoso André -Gonçalves==cujo estylo seguia com mais sisudeza mas com menos agrado==, -e que fez alguns tectos em Loures, na quinta do Correio-Mór.</p> - -<p>Negreiros morreu em 1759.</p> - -<p>É possivel que as pinturas da sala dos Apostolos sejam, em parte, de -Negreiros; outras serão de seus discipulos Bruno José do Valle, ou -Simão Baptista; mas as decorações de outras salas, e especialmente os -grandes trabalhos a estuque, devem ser da segunda metade, adiantada, do -seculo XVIII, pois que a furia da decoração a estuque foi posterior ao -terremoto de 1755.</p> -<p><span class="pagenum" id="Page_208">[Pg 208]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="O_officio_de_Correio-Mor">O officio de Correio-Mór</h3> - - -<p>Parece que antes de 1520 não havia em Portugal serviço de correio -organisado regularmente.</p> - -<p>Mandavam-se proprios, e dispunham-se postas quando assim era preciso. -Nos caminhos de maior transito, em intervallos de 3 a 4 leguas, as -estalagens tinham cavallos para muda, que alugavam.</p> - -<p>Em 1520 el-rei D. Manuel criou o officio de correio-mór; foi Luiz -Homem, ao que dizem, o primeiro a exercer o cargo.</p> - -<p>Em tempo de D. João III appareceu a primeira lei ou regimento postal.</p> - -<p>O segundo correio-mór chamava-se Luiz Affonso; seu genro Francisco -Coelho, foi o terceiro.</p> - -<p>O cargo conservou-se na familia até 1606 em que falleceu Manuel Gouvêa, -o quarto no cargo.</p> - -<p>Então Filippe II mandou vender o officio; que foi comprado por 70:000 -cruzados, por Luiz Gomes da Matta, em 19 de julho de 1606.</p> - -<p>O correio-mór tinha a seu serviço estafetes, mestres e creados -de posta, e varios assistentes. O serviço do correio foi sempre -augmentando, sem alteração fundamental do regime até 1852, embora este -ramo pertencesse ao Estado desde 1797. Neste anno, em alvará de 16 de -março, D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi encarregado de tratar com o -Correio-Mór a cedencia do officio.</p> - -<p>Manuel José da Maternidade Matta de Sousa<span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span> Coutinho, o ultimo -correio-mór, recebeu em indemnisação pela cedencia do officio o titulo -de conde em tres vidas, a renda annual de 40:000 cruzados, pensões -vitalicias a diversas pessoas, cuja somma andava por 400:000 cruzados, -e um ou dois postos no exercito.</p> - -<p>Foi este o primeiro conde de Penafiel.</p> - -<p>O segundo conde e primeiro marquez de Penafiel foi Antonio José da -Serra Gomes pelo seu casamento, em 1861, com a segunda condessa desse -titulo.</p> - -<p>Pelas quantias indicadas se vê o augmento de importancia do correio -entre 1606 e 1797, ainda que nessa época pequeno progresso tivera a -viação publica.</p> - - -<h3 class="nobreak" id="Estuques">Estuques</h3> - - -<p>O uso do estuque é muito antigo; ha exemplos no velho Egypto, na -remota Assyria; os romanos o empregaram vulgarmente; em Pompeia ha -tectos, frisos, cornijas de gesso. Bysantinos e arabes usaram do -estuque, principalmente os arabes de Hespanha; os estuques pintados -da Alhambra são admirados no engenho da decoração geometrica, no -effeito da combinação de tons. Durante largo tempo esqueceu o estuque, -para reviver no meiado do seculo XVI. Mas então renasceu e logo se -desenvolveu em processo e applicação; fizeram-se frescos<span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span> sobre estuque -de gesso, modificaram-se as pastas, formaram-se grandes composições em -alto relevo.</p> - -<p>Em Portugal ha noticia de estuques no seculo XVII, de pouca importancia.</p> - -<p>Poucos annos antes do grande terremoto de 1755 appareceu em Lisboa um -artista italiano de grandes aptidões, João Grossi, que iniciou grandes -trabalhos neste genero. Outro estucador, primeiramente simples ajudante -de Grossi, Gommassa, se tornou notavel.</p> - -<p>O marquez de Pombal empregou-os nas suas propriedades. O terremoto -tornou necessarios trabalhos rapidos e os estucadores prosperaram; e -vieram mais estucadores italianos, Chantoforo, Agostinho de Quadri, que -introduziram novos processos. Nas Janellas Verdes, no palacio pombalino -da rua Formosa, na egreja dos Paulistas, etc., ha trabalhos d’estes -italianos.</p> - -<p>O marquez de Pombal chegou mesmo a fundar uma escola de estucadores, de -que foi mestre o Grossi (1766).</p> - -<p>Trabalhou-se immenso em estuque, bem e mal, com arte ou sem ella; João -Paulo da Silva trabalhou no palacio na quinta das Laranjeiras (por -1798), assim como Felix Salla, outro italiano discipulo do celebre -milanez Albertoli, que fez reviver a grande ornamentação dos gregos e -do imperador Augusto.</p> - -<p>É certo que por este tempo estucadores portuguezes<span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span> foram trabalhar a -Hespanha, tanto se tinha aqui progredido neste ramo.</p> - -<p>Por 1805 entrou em Lisboa um estucador suisso de grande habilidade, -Vicente Tacquet que trabalhou com Francisco Espaventa e outros.</p> - -<p>Vieram os desastres da guerra, e alguns dos melhores artistas -refugiaram-se no norte do paiz, no Porto, e em Vianna do Castello, -Caminha, Affife que nos tempos modernos, nos ultimos 40 annos, tem -produzido bons artistas estucadores.</p> - -<p>De Rodrigues Pitta são os tectos do palacio do marquez de Vianna (1846) -ao Rato, hoje propriedade do sr. Marquez da Praia.</p> - -<p>Em 1855 e 1856 ornamentou o salão de baile do palacio da Junqueira -(actual palacio Burnay) e dois salões do palacio Costa Lobo, no campo -de Sant’Anna.</p> - -<p>Deixou trabalhos de grande folego nos palacios de José Maria Eugenio -d’Almeida, a S. Sebastião da Pedreira, Gandarinha que tem magnificas -escaiolas na galeria, e no do Marquez de Penafiel.</p> - -<p>A esplendida sala do conselho de Ministros, no Ministerio do Reino, tem -o tecto muito trabalhado, não de grande effeito.</p> - -<p>Cinatti introduziu em Lisboa um artista, seu parente, Joanni, notavel -imitador de marmores, e bom artista em estuque <em>lucido</em>.</p> - -<p>Nos ultimos vinte annos a mania pelo estuque, especialmente pelas -imitações de marmores, tem sido, a meu vêr, exaggerada.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_212">[Pg 212]</span></p> - -<p>E, o que é grave, na maioria esses trabalhos são mal dirigidos e -executados. Tem sido um desastre.</p> - -<p>Ha estuques carregados de relevos que em tres ou quatro annos estão -fendidos e estragados.</p> - -<p>Imitações de marmores, quasi tão caras como os modelos, estaladas em -poucos mezes. Mas a mania pelos estuques não é só na capital; ao norte -do paiz ainda foi, e é, mais intensa.</p> - -<p>No Porto ha estuques antigos, dos melhores, no palacio dos Carrancas, e -modernos na Bolsa.</p> - -<p>No Minho citam-se como notaveis os do palacio da Brejoeira, obra dos -Alves, de Fafe, por 1850.</p> - -<p>Em Evora temos os mais recentes no theatro Garcia de Resende, fino -trabalho do Meira.</p> - -<p>Será rara a egreja da Provincia, onde tenha havido reparos nos ultimos -annos, que não possua amostras de estuque moderno, de facil execução e -de mau effeito passado o lustro dos primeiros mezes.</p> - -<p>Nas salas do Correio-Mór ha tectos estucados a baixo relevo muito -distinctos e paredes ornamentadas a esgrafito de algum effeito.</p> - -<p>Volkmar Machado deixou-nos algumas noticias sobre estucadores, que -Liberato Telles utilisou no seu trabalho publicado no <i>Boletim da -Associação dos Conductores de Obras Publicas</i>. Vol. IV. 1900.</p> -<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p> - -<h3 class="nobreak" id="Egreja_de_S_Lourenco_de_Carnide">Egreja de S. Lourenço de Carnide</h3> - - -<p>O logar de Carnide, que faz parte agora da capital, é muito antigo; -existia já povoado e cultivado no meiado do seculo XIII.</p> - -<p>O mosteiro de S. Vicente possuia aqui uma vinha e uma herdade, como se -lê nas inquirições do reinado de D. Affonso III. Por esse documento, -importante para a historia de Lisboa e seus termos, se vê que em -tão remota época já nestes logares de Carnide, Charneca, Queluz, -Falagueira, Odivellas, Palma e Telheiras havia culturas, vinhas e -povoados que contribuiam para o rei, para as ordens militares, e para -os grandes mosteiros.</p> - -<p>Em 1342, o bispo de Lisboa, D. João, mandou edificar a egreja á honra -de S. Lourenço, por Pedro Sanches, chantre da sua sé, e a deu a seu -capellão João Dor. Era já egreja parochial no seculo XIV.</p> - -<p>Em meio de amplo terreiro, murado, orlado de oliveiras, com larga vista -de campos e collinas ergue-se a egreja com o seu campanario, em linhas -de singela construcção. A orientação e disposição da egreja é antiga, -todavia pouco se vê do seu estado primitivo.</p> - -<p>Está bem reparada, de ha poucos annos.</p> - -<p>É um templo alegre, com as suas obras de talha dourada, as paredes -forradas com azulejos, de azul sobre branco, em grandes quadros, -allusivos á vida de S. Lourenço.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span></p> - -<p>Tem cinco altares, o maior, o da Senhora do Rosario, do Crucificado, de -S. Miguel, e o de Jesus-Maria-José.</p> - -<p>No altar-mór ha um quadro bom, o <em>lavapedes</em>, mal restaurado, -infelizmente; algumas campas com lettreiros no chão da capella-mór; -duas pias d’agua benta que são dois capiteis do seculo XIV, escavados; -na sacristia um arcaz de boa madeira, com metaes bem cinzelados.</p> - -<p>O terreiro ao redor da egreja era d’antes o cemiterio; campas e ossadas -foram removidas para o cemiterio dos Arneiros (Bemfica). Ficou apenas -uma grande pedra, com inscripção latina, que era o tumulo de José João -de Pinna de Soveral e Barbuda, fallecido em 1710.</p> - -<p>Para o novo cemiterio de Bemfica foi removida a campa de D. Anna Maria -Guido, marqueza de Ravara, fallecida em 1752.</p> - -<p>No alto de um cunhal, do lado do sul, está uma pedra com lettreiro em -caracteres gothicos (seculo XV, talvez) que diz:—Esta sepultura he de -Luis d’Abreu e de todos seus herdeiros.</p> - -<p>Na capella-mór ha bastantes campas.</p> - -<p>—Esta sepultura é de Joam da Costa de Mendonça e de quem nela se -quizer enterrar.</p> - -<p>—Sepultura de Francisco Jorze e de sua molher e de seus herdeiros... de -1569.</p> - -<p>—Sepultura de George Pires e de sua molher e herdeiros. 1616.</p> - -<p>—Sepultura de Jozeph da Costa e de sua mulher<span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span> Catharina da Costa a -coal faleceo a 28 doutubro de 1712 e pera todos os seus herdeiros.</p> - -<p>—Sepultura de Guilherme Street Arriaga Brum da Silveira e Cunha e -familia. 28 de outubro de 1826. P. N. A. M.</p> - -<p>—Esta sepultura mandou fazer João Correa pera se enterrar nella e seus -herdeiros.</p> - -<p>—Sepultura de Antonio de Almeida e seus herdeiros faleceu a 14 de mayo -de 1601 anos.</p> - -<p>—Sepultura de Luiz Ramalho Pre... e de sua mulher Francisca de Almada -Tiba e de seus herdeiros faleceu a X d. de junho de 1637.</p> - -<p>—Sepultura de Bastião criado de S. M. e de seu herdeiro. Faleceo a 5 -doutubro de 1796.</p> - -<p>—Sepultura do P.ᵉ H.ᵐᵒ Machado cura que foi nesta igreja muitos annos -e de seu herdeiro.</p> - -<p>—Sepultura perpetua de Simão Moreira e sua molher Domingas Francisca e -de seus herdeiros a qual lhe mandou pôr seu filho o P.ᵒ Luiz Moreira. -1678.</p> - -<p>—Sepultura de Lianor Jorze molher que foi de Luiz Glz d’Oliveira -provedor dos contos do reino faleceo a 21 doutubro de 1567, e de seus -herdeiros.</p> - -<p>Transcrevi estes lettreiros porque são ineditos.</p> - -<p>Na frontaria da egreja está uma inscripção referente á fundação; e uma -pedra com escudo d’armas que não sei explicar; não me parece portuguez, -nem hespanhol esse curioso brazão em que se vê uma perna com bota, por -baixo de uma estrella.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_216">[Pg 216]</span></p> - -<p>É bem interessante a modesta egreja, agora parochia da capital.</p> - - -<h3>Luz</h3> - -<p>Da egreja de Nossa Senhora da Luz resta-nos o cruzeiro, e a -capella-mór; o corpo da egreja abateu por occasião do terremoto de -1755. É da fundação da infanta D. Maria, senhora opulenta e de alta -cultura d’espirito. Nesta egreja ha obras d’arte notaveis em esculptura -de madeira e pedra, em architectura, e em pintura. A capella-mór tem 12 -x 8 metros; o cruzeiro 21 x 10.</p> - -<p>A capella-mór é ampla, alta, coberta de abobada revestida, assim como -as paredes, de marmores diversos formando quadrellas; é o conhecido -estylo classico dominante no findar do seculo XVI. Nichos com estatuas -animam as grandes paredes. Na parede que olha ao sul estão rasgadas -janellas que dão bastante claridade.</p> - -<p>O altar-mór está elevado, sobre o pavimento da capella; quatro degraus -se sobem para lá chegar.</p> - -<p>Além do altar-mór abre-se um grande arco que abriga o sacrario, soberba -obra d’arte muito elegante, em madeira entalhada e dourada; atraz fica -o vasto côro, agora sacristia, no mesmo nivel da egreja. Proximo do -grande altar, no chão, ha uma abertura circular que diz para a fonte de -agua milagrosa.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_217">[Pg 217]</span></p> - -<p>A meio da capella-mór o singelo tumulo da fundadora.</p> - -<p>Na capella-mór ha duas capellas lateraes; outras duas no cruzeiro.</p> - -<p>Empregaram na construcção marmores branco e vermelho, servindo-se da -pedra d’Arrabida na ornamentação; nos frisos e molduras sobresahem -quadrados, losangos, ellipses feitos n’essa pedra, bem trabalhada e -polida. A pedra vermelha fórma o fundo, a branca a parte saliente e -ornamental.</p> - -<p>Nos grandes nichos da capella-mór estão dezesete estatuas em marmore: -Nossa Senhora com o Menino de Jesus, S. Thomé, S. André, S. João, S. -Lucas, S. Matheus, S. Marcos, S. Simão, S. Mathias; estas á direita, -olhando para o altar-mór; á esquerda, S. Filippe, S. Thiago Maior, S. -Pedro, S. Judas Thadeu, S. Thiago Menor e S. Bartholomeu. As estatuas -da Virgem e dos Evangelistas são maiores.</p> - -<p>Estas estatuas são em marmore branco d’Estremoz, lindo marmore; o -trabalho é muito pegado, os artistas não se atreveram a desligar, a -destacar braços ou mãos.</p> - -<p>No exterior do edificio, lado sul, ha outra estatua de Nossa Senhora -com o Menino e, ainda uma terceira na frontaria do Collegio Militar; -todas da mesma época e do mesmo estylo acanhado. São todavia de bom -trabalho, e representam excellentemente o estado da estatuaria em -Portugal naquelle tempo.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_218">[Pg 218]</span></p> - -<p>No altar-mór admiramos alguns baixos relevos em fino jaspe, em seis -pequenas pilastras; são figuras symbolicas da Fé, Justiça, Fortaleza, -etc.</p> - -<p>Sobre a figura da Fortaleza ha um medalhão com Hercules, o leão e o -centauro finamente executado.</p> - -<p>Uma das figuras é a Astronomia, outra a Medicina. Nas pilastras que -formam as esquinas do altar, as faces lateraes mostram fructas e -flores, escudos e peças d’armadura. Estes bellos baixos relevos são -de pura renascença, d’um estylo muito anterior ao frio classicismo da -capella-mór.</p> - -<p>Alguns dos symbolos destoam da ideia christã, parecem deslocados na -ornamentação d’um altar-mór. É possivel que sejam peças destinadas -a outra obra d’arte, que foram aqui aproveitadas. Nas duas capellas -lateraes do cruzeiro de Santa Maria de Belem (Jeronymos) ha uns -lindos baixos relevos nos altares, pouco vistos, que passam mesmo -despercebidos porque teem luz escassa, que, me parece, se relacionam -com estes da Luz na qualidade da pedra, e no estylo do trabalho. E no -portico do poente, nos Jeronymos, superiormente, ha duas pilastras que -dizem com estas da Luz<a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a>.</p> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a> Devemos lembrar que Jeronymo de Ruão, architecto da Luz, -tambem o foi da capella-mór dos Jeronymos</p> - -</div> - -<p>Na alta parede da frente da capella-mór ha oito quadros em disposição -symetrica; o maior<span class="pagenum" id="Page_219">[Pg 219]</span> occupa o centro, é Nossa Senhora da Luz com o -Menino, que apparecem ao pobre Pedro Martins; o milagre que deu origem -á fundação da ermida primitiva.</p> - -<p>Este quadro está assignado: <i lang="la" xml:lang="la">Franciscus Venegas, Regius pictor -faciebat</i>.</p> - -<p>Sobre este quadro está outro painel de moldura circular, que representa -a Coroação da Virgem; está tambem assignado: <i>F. Venegas. f.</i> -Como estes dois quadros estão bastante altos as assignaturas não se -descobrem á primeira vista, mas é facil a leitura com um binoculo -regular.</p> - -<p>Á esquerda da Coroação está a Adoração dos Reis, á direita a -Apresentação no Templo, em molduras ellipticas; não lhes descubro -assignatura. Aos lados do grande quadro do milagre de Pedro Martins, -está a Visitação á esquerda, e á direita a Adoração dos pastores; não -lhes vejo assignatura; por baixo á esquerda Nossa Senhora e S. Joaquim, -á direita a Annunciação, este assignado: <i>F. Venegas f.</i></p> - -<p>Os paineis não assignados podem ser do mesmo artista <i>Venegas</i>; -são pinturas em madeira, bem desenhadas e pintadas, em boa conservação. -Á primeira vista estas pinturas destoam, divergem entre si; a meu vêr -porque o pintor, que era excellente executante, não tratou de inventar, -contentando-se em copiar, ou quasi, os bons quadros que conhecia.</p> - -<p>Assim este quadro recorda Raphael, outro o<span class="pagenum" id="Page_220">[Pg 220]</span> Sarto, aquelle o Parmesão; -na Coroação da Virgem, singelo grupo em fundo dourado, parece vêr-se -a reproducção de quadro muito antigo de um <em>primitivo</em>; na -grande composição central lembra logo a Transfiguração de Raphael; na -Annunciação, que tem grande vigor de colorido, e luz intensa de grande -effeito, recorda o Mazuoli. Isto é, este Venegas, excellente pintor, -está completamente dominado pela escola italiana.</p> - -<p>Na capella da esquerda está o quadro da Circumcisão. O fundo é -formado por apparatoso edificio do renascimento. A figura da Virgem é -admiravel; á esquerda, a Caridade, mulher com duas creanças, de bom -effeito; á direita, no fundo escuro, a Humildade. No primeiro plano -vê-se um tapete persa e um cãosinho felpudo, de luxo, pintado com muito -cuidado.</p> - -<p>Na capella á direita a Sacra Familia, Anjos coroando: fundos claros, -edificio do renascimento em ruina. Detalhes minuciosos.</p> - -<p>O trabalho d’esculptura em madeira dourada que reveste a grande parede -da capella-mór faz bom effeito; é desegual, talvez em parte material -aproveitado para encher o vão. Mas o sacrario é uma peça de grande -elegancia; renascença classica de cuidadosa execução.</p> - -<p>Na capella esquerda do cruzeiro está um quadro notabilissimo. S. Bento -dá a regra aos seus monges. No primeiro plano á esquerda el-rei D. -Manuel, á direita a infanta D. Maria. Um fidalgo<span class="pagenum" id="Page_221">[Pg 221]</span> e diversos monges -formam grupo atraz da figura do rei, uma dama e muitas freiras estão -depois da infanta. Todas as figuras estendem o braço direito, a palma -da mão para cima como signal de acceitação da regra. O pintor para -evitar monotonia variou muito as posições dos dedos; foi um verdadeiro -esforço, um trabalho habilidoso e paciente o desenho de tantas mãos; -a mão fina e lisa das damas novas, a nodosa e enrugada das velhas, -a robusta e a gorducha dos fortes monges. D. Manuel tem o collar de -Christo. A infanta veste com fausto; vestido de tissu lavrado, apertado -na frente com laços de fitas com agulhetas; joias com pedras preciosas, -gorgeira de fina renda, gola muito alta, collar com fita pendente de -ouro e pedras. O lindo rosto juvenil da dama de côrte, vestida mais -modestamente, pintado n’um tom menos brilhante, succede muito bem á -magestosa grande dama, e prepara para o aspecto ascetico do grupo -de freiras. Tanto estas como os frades teem phisionomias estudadas; -são retratos. Por isto este painel tem o duplo valor de obra d’arte, -e de documento historico, dando-nos ainda preciosos elementos de -indumentaria. Ha outros retratos da infanta; e o busto de prata que se -conserva em Santa Engracia (antiga egreja dos Barbadinhos) harmonisa -com este em aspecto e vestuario.</p> - -<p>As grades da capella-mór e das outras capellas são em pau santo com -torcidos.</p> - -<p>No cruzeiro á direita fica outro altar. É a capella<span class="pagenum" id="Page_222">[Pg 222]</span> do Senhor dos -Afflictos; é a imagem de Jesus Crucificado, esculptura em madeira de -boa execução, corpo robusto com anatomia estudada. Sob a imagem, n’um -friso, ha duas taboas pintadas que merecem attenção. Em uma Santo -Antonio e S. João Baptista; na outra as santas Agueda e Luzia, com -os seus emblemas. São pinturas talvez do começo do seculo XVI alli -applicadas.</p> - -<p>No cruzeiro, á direita, uma porta singela dá para uma pequenina -capella, agora sem culto; construcção do começo do seculo XVII. Tem -rodapé de azulejos, altar e chão de boa pedra. Está aqui um tumulo com -escudo de armas sem lettreiro; outro com brazão e a seguinte legenda:</p> - -<p>—Aqui está sepultado o religiosiss.ᵒ varão da ordem de Chr.ᵒ D. F. -Martinho de Ulhoa bispo que foi de S. Thomé, Congo e Angola juntamente -que mandou fazer esta capella em a qual se lhe diz missa quotidiana -falleceo a 8 d’agosto de 1606.—</p> - -<p>Guarda-se na sacristia (antigo côro) um grande retabulo que servia -de tapar o vão do arco da capella-mór. Representa o milagre de Nossa -Senhora a Pedro Martins. É fraca pintura. Está assignado e datado: -<i>Anno de 1714. Henrique Ferreira fez</i>.</p> - -<p>Sobre o altar da sacristia está a imagem de Nossa Senhora dos Remedios.</p> - -<p>É esculpida em madeira, e por nesta ter dado o caruncho a vestiram de -seda para occultar as<span class="pagenum" id="Page_223">[Pg 223]</span> lesões. Merece toda a attenção. É pintada e -dourada; luxuoso vestido rodado de mangas perdidas, fita de joias em -relevo com imitação de pedras finas. No vestido o artista imitou rico -tissu floreado.</p> - -<p>O vestuario d’esta imagem recorda o do retrato da infanta. Deve ser -esculptura do fim do seculo XVI.</p> - -<p>Da mesma época deve ser um grande frontal com o brazão da infanta -bordado no centro e aos lados; tem fachas de velludo vermelho com -bordado alto a ouro e prata, sendo os vãos ou entrefachas de seda -branca.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Junto do altar-mór a abertura do poço ou fonte da agua milagrosa, um -simples bocal raso com tampa de madeira.</p> - -<p>A fonte é bem curiosa. A entrada deita para um quintal contiguo. -Descemos a escada e na parede vemos alguns azulejos antigos, mouriscos, -de fino esmalte e relevos. Um portico em estylo manuelino dá para o -espaço onde nasce a agua; uma abobada forrada de azulejos brancos com -estrellas azues; outros revestem os rodapés e paredes, em pequenos -quadros formados de quatro azulejos, de diversos typos, alguns raros. O -portico tem columnas torcidas e no intercolumnio uma facha com romans.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_224">[Pg 224]</span></p> - - -<h3>Os pintores da Luz</h3> - -<p>Filippe I (II de Hespanha) n’uma carta de 14 de março de 1583 chama a -Francisco Venegas, <em>meu pintor</em>.</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">(Sousa Viterbo, <i>Noticia de alguns pintores</i>, Lisboa, 1903, pag. 153).</span><br /> -</p> - -<p>D. Sebastião, em alvará de 6 de maio de 1577, diz: <em>Diogo Teixeira -hum dos melhores pintores de imaginarya dolio que ha nestes reynos</em>.</p> - -<p class="right"> -(Ibidem, pag. 142).<br /> -</p> - -<p>Na collecção de desenhos expostos no Museu das Janellas Verdes, os n.ᵒˢ -307 e 308 parecem-me representar as duas figuras que estão em baixo -relevo no altar-mór da Luz.</p> - -<p>O desenho n.ᵒ 346 (Museu das Janellas Verdes) é de Venegas; uma rubrica -indica que é o projecto de um quadro para S. Vicente de Fóra, e que se -executou uma réplica, menor, para S. Domingos de Setubal.</p> - -<p>A collecção de desenhos do Museu das Janellas Verdes é muito -importante, e vista com attenção dá elementos unicos para a historia -da arte em Portugal. Ha mais collecções de desenhos em Portugal em -estabelecimentos publicos, e na posse de particulares, que insta tornar -conhecidas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_225">[Pg 225]</span></p> - -<p>Creio que o n.ᵒ 268 é o esquisso do quadro da capella lateral, a -Circumcisão; architectura á romana; o sacerdote no faldistorio, etc., -nem falta o cãosinho felpudo.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Jeronymo de Ruão foi architecto da infanta D. Maria; entre outras obras -fez a capella da Luz e a capella-mór dos Jeronymos.</p> - -<p>Nos dois capitulos <i>O lindo sitio de Carnide</i> e <i>Noticias de -Carnide</i> dei outras noticias e publiquei lettreiros d’esta egreja da -Luz, que julgo escusado repetir agora.</p> - -<p>Para a historia da inclita infanta D. Maria é fundamental a—<i>Vida de -la serenissima infanta dona Maria</i>, por fr. Miguel Pacheco (Lisboa, -1675).—Modernamente appareceu á luz um trabalho a respeito da infanta -e de suas damas pela Sr.ᵃ D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos. -Escusado dizer, é bem conhecida a alta intelligencia e a intensa -investigação da auctora, que é escripto fóra da bitola vulgar. Nelle se -dá noticia dos differentes retratos da infanta D. Maria.</p> - -<p>Transcrevo a curta biographia que vem nos <i>Elogios de varões e -donas</i> por ser menos conhecida agora, pois esta obra tornou-se pouco -vulgar.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_226">[Pg 226]</span></p> - - -<h3>Biographia da infanta D. Maria</h3> - -<p>A Infanta D. Maria tão illustre pelo dote da formosura, como pelo -engenho, erudição, graça, e todo o genero de heroicas virtudes, que a -constituiram uma das mais recommendaveis princezas do seu seculo, foi -filha d’El-Rei D. Manoel, e da Rainha D. Leonor de Austria sua 3.ᵃ -mulher. Seu nascimento foi na cidade de Lisboa, em sabbado 8 de junho -de 1521 nos paços da Ribeira; e a 17 do mesmo mez foi baptizada pelo -Arcebispo de Lisboa, D. Martinho Vaz da Costa, escolhendo El-Rei seu -pai para padrinho em nome de Carlos III, Duque de Saboia, o Barão de -S. Germano, Senhor de Balaison, enviado então por Embaixador a este -Reino para solicitar o cazamento da Infanta D. Brites com o dito Duque; -e madrinhas a mesma Infanta D. Brites e D. Isabel suas meias irmãs. -Com a morte d’El-Rei seu pai no mesmo anno de 1521, e por se auzentar -para Castella a Rainha sua mãi deixando-a ainda no berço, foi entregue -para ser educada em idade competente á direcção da Rainha D. Catharina -sua tia, tanto que chegou a este Reino, de cuja escola saiu eminente. -Como era dotada de estranha viveza, memoria, e grande juizo aprendeu -com facilidade as linguas especialmente a Grega, e a Latina que soube -com perfeição, e escreveu com tanta propriedade como se lhe fôra -natural e materna. Teve por mestres a insigne Dama Toledana Luiza Segéa -exquizitamente<span class="pagenum" id="Page_227">[Pg 227]</span> douta em muitas linguas, e raro prodigio de sciencia, -que mereceu ser celebrada dos maiores letrados d’aquella idade; e a Fr. -João Soares de Urró da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, depois -Bispo de Coimbra, que tambem o foi dos Principes D. Filippe, e D. João -seus sobrinhos.</p> - -<p>Ao contar dezaseis annos El-Rei D. João III seu irmão lhe deu caza -propria, e separada do paço Real, composta das principaes pessoas do -Reino: a qual com riquissimo dote, que seu pai lhe deixou, foi de -tão grande renda e estado, que para ser igual á das maiores Rainhas -da Europa não lhe faltou mais, que haver o nome de uma d’ellas. Foi -Senhora de Vizeu, e de Torres Vedras de juro, e teve por El-Rei D. -João III seu irmão muitas mercês, e privilegios, e consta por alguns -Documentos que se guardam no Real Archivo, como são: uma carta em data -de 26 de janeiro de 1545, em que se lhe concedem de padrão de juro -e herdade cinco contos de réis, em virtude do contracto feito com o -mesmo Rei D. João III que se acha inserto; e duas cartas expedidas á -mesma Senhora Infante de privilegios, e jurisdição de suas terras, e -sobre as fintas, e provimentos dos officios d’ellas em data de 2 de -novembro do mesmo anno: o primeiro no Livro da Chancellaria do dito -Rei a fol. 25, e os segundos no Livro 43 fol. 9, vers. e 14 verso. -Creou n’este paço particular uma verdadeira Universidade de mulheres<span class="pagenum" id="Page_228">[Pg 228]</span> -illustres em todo o genero de Sciencias e Artes, de que foi especial -protectora; pois não só se encontrava quem se désse á lição dos Livros, -e tocasse déstramente differentes instrumentos, mas quem com o pincel, -e com a agulha procurasse nos primores da Pintura, e lavôr virtuosa -emulação e seguisse os outros louvaveis exercicios: aos quaes ajuntava -com tal reverencia, e edificação a pratica dos actos de piedade em -todo o genero de virtudes, pela direcção de Fr. Francisco Foreiro, -lustre da Ordem Dominicana, que parecia menos Paço Real, que Mosteiro -reformado, que podia ser a Religiosas espelho, e doutrina de bem -viver. Pela fama de tão Reaes qualidades foi pretendida para Espoza -dos maiores Principes da Europa, como foram: o Delfim de França, filho -de Francisco <span class="allsmcap">I</span>; o Duque de Orleans, irmão do mesmo Delfim, a -quem o Imperador Carlos <span class="allsmcap">V</span> promettera a investidura do Ducado -de Milão, ou do Condado de Flandres; e não se effeituando nenhum -d’estes cazamentos, por morrerem ante tempo ambos estes Principes, -El-Rei D. Fernando de Ungria, Rei dos Romanos, e depois Imperador -enviou Embaixador a Portugal pedindo-a por mulher de Maximiliano -seu filho; e ultimamente Filippe <span class="allsmcap">II</span> de Hespanha, logo que -enviuvou da Rainha D. Maria de Inglaterra. Permaneceu todavia até á -morte no estado de Donzella, que havia consagrado a Deos com generoza -rezolução, preferindo mais o amor da quietação de seu espirito, que -a cobiça de reinar.<span class="pagenum" id="Page_229">[Pg 229]</span> No anno de 1558, sendo ja fallecido El-Rei D. -João III, por comprazer aos dezejos da Rainha D. Leonor sua mãi que -procurava anciozamente vê-la, se foi por Elvas a Badajoz com luzido -acompanhamento; e demorando-se ahi com ella por espaço de vinte dias, -e com a Rainha D. Maria de Ungria e Bohemia sua tia, que a receberam -com muitas festas de prazer, se tornou para o Reino. Determinada a não -sair de Portugal, e a não admittir propostas de despozorios continuou -em religiozos exercicios praticando obras de muito louvor, como foram: -a edificação do Convento magnifico de N. Senhora da Luz da Ordem de -Christo, que dotou riquissimamente, com a grande obra do Hospital que -lhe ficava fronteiro; o Mosteiro de Santa Helena do Calvario em Evora; -o Convento de N. Senhora dos Anjos (mais conhecido hoje pelo convento -do Barro), de Capuchos Arrabidos, junto da Villa de Torres Vedras, -na qual teve ella seu palacio; e o Mosteiro de S. Bento na Villa de -Santarem; e deixou em seu Testamento, com que se edificasse Mosteiro -para as Commendadeiras de S. Bento de Aviz, que se fez em Lisboa com -a invocação, como ella ordenára, de N. Senhora da Encarnação. Fundou -mais a Igreja Parochial de Santa Engracia de Lisboa, alem de outras -muitas obras de piedade em outras Igrejas, como no Convento da Graça -da Ordem de Santo Agostinho, em que assistia muitas vezes com sua -prezença e esmollas, quando vivia no Palacio<span class="pagenum" id="Page_230">[Pg 230]</span> do Castello, a Imagem -da Senhora, cujo corpo mandou cobrir de prata primorosamente lavrada, -e lhe mandou fazer Capella; e no Real Mosteiro de S. Bento, que então -se fabricava, mandou fazer a Imagem grande deste Santo, que se vê no -altar mór, e adornar sua Capella, e a de outros altares; e por via -do Embaixador de Portugal na Côrte de Roma obteve uma Reliquia do -mesmo Santo, que he uma parte da que estava no Mosteiro de S. Paulo -daquella Cidade, para enobrecer este Mosteiro, e o de Santarem. Foi a -Senhora D. Maria, como universal herdeira da Rainha D. Leonor sua mãi, -Senhora Soberana de juro do Senescallado de Agenois em Gascunha, e dos -opulentos Dominios de Verdum, e Rieux na Provincia de Languedoc; e alem -de muitas baixellas de ouro, prata, joias de grande valor, de cem mil -escudos que lhe pagavam os Reis de França, e Castella. Sua morte foi no -anno de 1577 a 10 de outubro em idade de 56 annos, nos seus paços da -Cidade de Lisboa extramuros junto do Mosteiro de Santos, deixando de -si unico exemplo a todas as altas Princezas de virtude e honestidade. -Tinha disposto de sua ultima vontade, como se podia esperar de sua -muita sciencia, e Christandade, por Testamento de 17 de Julho do mesmo -anno de 1577, e Condicillo de 31 de Agosto que fez approvar a 8 de -Setembro, o que mais convinha a sua consciencia, determinando muitas -obras de piedade por todo o Reino com grandes soccorros para<span class="pagenum" id="Page_231">[Pg 231]</span> pobres, -viuvas, donzellas, orfãos, enfermos, e cativos com tamanha profusão que -não houve quazi genero de pessoa, que não experimentasse a caridade, -e mizericordia desta Princeza, sem faltar em nada á familia de seus -criados, e a todos a quem por qualquer via era devedora de serviços -passados, que a todos satisfez larguissimamente: e emquanto a seu -enterro foi a primeira clauzula, que se acabasse sua vida, primeiro -que estivesse concluida a Capella de N. Senhora da Luz no Convento -dos Padres de Christo, que ella havia destinado, e mandára edificar -para seu jazigo, a depozitassem, emquanto se acabava, no Mosteiro -da Madre de Deos de Lisboa. Seu corpo foi depozitado no Capitulo do -dito Mosteiro da Madre de Deos, junto da Rainha D. Leonor, mulher do -Senhor Rei D. João II, e celebraram-se-lhe exequias com grande pompa, -como convinha á grandeza de sua pessoa, com assistencia d’El-Rei -D. Sebastião oito mezes antes de partir para Africa, do Cardial D. -Henrique, e de todos os grandes do Reino. Sendo passados quazi vinte -annos, por determinação de Filippe I foi trasladada para a sobredita -Capella de N. Senhora da Luz a 30 de Junho de 1597. Jaz em o pavimento -da Capella mór, em sepultura pouco levantada no meio della, e sem -nenhuma letra, ou diviza, symbolizando-se por este signal de humildade -a muita que esta Princeza guardou em seu coração por toda a vida. -No meio do Cruzeiro ao lado do Evangelho se lê em pouca<span class="pagenum" id="Page_232">[Pg 232]</span> altura na -parede uma Inscripção, gravada de letras pretas romanas em uma pedra -de marmore branco de tres palmos de alto, e cinco de largo, a qual diz -assim:</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>—A Capella moor deste Mosteiro de N. Senhora da Luz e este Cruzeiro -são da sepultura da Serenissima Infanta Dona Maria que Deos tem filha -d’El-Rei Dom Manoel, e da Rainha Dona Lianor sua mulher na qual Capella -e Cruzeiro se não dará sepultura a pessoa alguma de qualquer calidade -que seja nem em tempo algum se fara nhum Deposito nem nhum litereiro -por assi estar asentado por Sua Magestade e por contrato solene e -celebrado que se fez co o Padre Prior e Padres desta Casa confirmado -pelo Padre Dom Prior e mais Padres do seu Convento de Tomar cujo -trelado esta na Torre do Tombo e nesta Caza de Nossa Senhora. Faleceo a -dez Doutubro de 1577.—</p> - -<p>Esta biographia vem na obra—<i>Retratos e elogios dos varões e donas, -que illustraram a nação portugueza.</i> (Lisboa, 1817).</p> - - -<h3>S. Sebastião do Paço do Lumiar</h3> - -<p>A ermida de S. Sebastião está isolada em alegre terreiro, moldurado de -bons predios, alguns antigos, no logar do Paço do Lumiar.</p> - -<p>Este logar é continuação do Lumiar propriamente dito, para o lado da -Luz e Bemfica.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_233">[Pg 233]</span></p> - -<p>Partindo do amplo largo da Luz segue-se uma estrada entre boas quintas -á Horta Nova; já proximo do Paço ha boas construcções modernas á beira -do caminho.</p> - -<p>A ermida é muito simples; chama principalmente a attenção a porta em -estilo manuelino, elegante e bem conservada.</p> - -<p>O exterior da pequenina egreja mostra que a primitiva obra do começo -do seculo XVI, soffreu grandes concertos depois. Na cruz de azulejos -que está no lado norte lê-se <i>Anno 1628</i>; a mesma data se mostra -no azulejo que fórra o interior; houve pois grande obra alli n’esse -tempo. As volutas d’alvenaria e os pinaculos lateraes do frontispicio -levam-nos a crer que mais tarde, no meado do seculo XVIII, talvez -depois do terremoto de 1755, houve novo e importante concerto.</p> - -<p>Temos aqui azulejos datados d’uma época interessante, do periodo -philippino, 1628. São de desenho geometrico na maioria, emquadrando -porém bons trabalhos em figura.</p> - -<p>O corpo do templo é dividido da capella por um arco e na face d’este -arco estão as imagens em azulejo de S. Francisco, S. Pedro, S. Antonio -e S. Paulo; sobre a porta lateral está um famoso S. Christovão -empunhando respeitavel bordão, com o Menino sobre o hombro. O artista -empregava varias tintas, amarello, roxo, além dos tons vulgares. Nas -paredes da capella ha pequenos quadros tambem em azulejo, azul sobre -branco, representando<span class="pagenum" id="Page_234">[Pg 234]</span> phases da vida de S. Sebastião, muito mais -modernos que os do corpo do templo.</p> - -<p>É nos azulejos do arco divisorio, infra, que está em grandes algarismos -a data 1628, quasi encoberta pelos estrados de madeira.</p> - -<p>No alizar d’este arco, ha flores pintadas com mimo; assim como no -pequeno côro se vêem caixotões com pinturas.</p> - -<p>O ladrilho é antigo e bom; com azulejos brancos entre os tijolos -vermelhos. As portas são de excellente madeira, em almofadas de boa -execução.</p> - -<p>O tecto da ermida soffreu alguma ruina, talvez pelo terremoto, mas -conserva ainda boas pinturas antigas, entre estuques mais modernos.</p> - -<p>Tem alguns lettreiros em sepulturas, uns bem legiveis, outros gastos -pela passagem dos devotos, o que mostra que em tempos foi esta ermida -frequentada; agora poucas vezes ha alli missas.</p> - -<p>Transcreverei algumas inscripções.</p> - -<p>—Aqui jaz sepultado o padre Joaquim Jorge faleceo a 9 de novembro de -1783.</p> - -<p>—S.ᵃ do P.ᵉ Antonio Pinheiro capelão que foi d’esta hirmida o qual -faleceu na era de 1705.</p> - -<p>—S.ᵃ do capitão Estevão Soares de Alvergaria cavaleiro da ordem de -Christo faleceu a 11 de dezembro de 1644 e de sua molher Anna de Masedo -da Maia e de sua mãi Madalena da Maia....</p> - -<p>Tem seu escudo gravado; a cruz fioreteada, com orla de escudos, elmo e -paquifes.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_235">[Pg 235]</span></p> - -<p>Outra campa é do—P.ᵉ Antonio Mamede bemfeitor desta irmida, que morreu -em 1 de abril de 1791.</p> - -<p>Em outra muito gasta pareceu-me vêr o nome Rodrigo Diniz Moreira.</p> - -<p>Sobre a torre dos sinos ergue-se no eirado um campanario onde está o -sino das horas; porque tem seu relogio a pequena ermida, com mostrador -voltado para norte.</p> - -<p>Ha na frontaria quatro argolas de ferro que serviam para segurar um -grande toldo na occasião das festas.</p> - -<p>Quando fiz o esboceto do frontispicio estive a conversar com um velhote -que antigamente tratava do relogio, e armava o toldo, que era quasi -sempre uma vela de navio emprestada pelo arsenal de marinha.</p> - -<p>Embora humilde e acanhado tem o pequeno templo uma certa importancia -por ser anterior ao grande terremoto de 1755, e por nos conservar além -do gracioso portal manuelino, pinturas e azulejos do seculo XVII, em -bom estado de conservação.</p> - - -<h3>Lumiar. Quinta do Sr. Duque de Palmella</h3> - -<p>Esta egreja de S. João Baptista do Lumiar é freguezia muito antiga.</p> - -<p>A disposição do templo mostra a sua remota fundação, grandiosa, em tres -naves; mas as reconstrucções<span class="pagenum" id="Page_236">[Pg 236]</span> e concertos deram-lhe um aspecto moderno.</p> - -<p>Consta que foi esta egreja fundada em 1267. Eram padroeiras as freiras -de Odivellas, por doação de D. Thereza Martins, viuva de D. Affonso -Sanches, filho bastardo d’el-rei D. Diniz.</p> - -<p>Não pára aqui a historia. D. Affonso <span class="allsmcap">III</span> possuia aqui uma casa -de campo com sua quinta; esta propriedade pertenceu depois a D. Diniz.</p> - -<p>Em terreno da quinta foi edificada a egreja. A posse passou ao bastardo -de D. Diniz, o infante D. Affonso Sanches, e então se chamou á casa de -campo o Paço de Affonso Sanches.</p> - -<p>Este entrou nas luctas d’aquella época atormentada, os bens foram-lhe -confiscados, e D. Affonso <span class="allsmcap">IV</span>, o irmão, chamou-lhe o Paço do -Lumiar. Mais tarde a propriedade deixou de pertencer á corôa, mas -conservou sempre o nome de Paço do Lumiar; por alli se ergueram casas, -fez-se povoação, e ao fim d’ella uma ermida dedicada a S. Sebastião.</p> - -<p>O marquez de Angeja, D. Francisco de Noronha, em fins do seculo -<i>XVIII</i> edificou o actual palacio, hoje pertencente á Casa -Palmella.</p> - -<p>O duque de Palmella, D. Pedro, homem de espirito cultissimo e fino -gosto, gostava immenso da sua quinta, augmentou-a com a que pertencera -á casa dos marquezes de Olhão, depois ao conde da Povoa, e algumas de -menor importancia, e assim formou a grandiosa quinta actual, com o<span class="pagenum" id="Page_237">[Pg 237]</span> -seu palacio, e grande pavilhão, jardins, estufas, avenidas de grandes -arvoredos, obras de arte de merecimento.</p> - -<p>Sendo de forte declive o terreno da quinta tiveram de fazer grandes -socalcos, sustentados por fortissimas muralhas o que dá effeitos -raros, perspectivas inesperadas a edificios e arvoredos. Ha ahi bellos -exemplares vegetaes, a Araucaria excelsa é a primeira plantada em -Portugal, o dragoeiro, ainda que um pouco mutilado é bello exemplar, -a Araucaria brasileira compara-se á celebre do jardim botanico de -Coimbra; cedros, platanos, e ulmeiros seculares alastram fechadas -sombras. Nesta quinta se deram luzidas festas no tempo do 1.ᵒ duque, e -aqui se guarda, bem ordenada e conservada, a grande e preciosa livraria -Palmella.</p> - -<p>Mas dos tempos de Affonso Sanches, de Diniz? Nada, nem vestigio; nem -uma pedra toscamente lavrada, ou singelo lettreiro, nada recorda esses -tempos antigos.</p> - - -<h3>Terremotos</h3> - -<p>Esta formosa cidade de Lisboa tem sido victima dos terremotos; -impossivel calcular o trabalho perdido, a extensão e a intensidade de -tanta ruina.</p> - -<p>Em certos pontos da cidade a camada de entulhos, caliças, fragmentos de -tijolos, é de 3 a 4 metros; pela abertura de cabôcos, e installação de<span class="pagenum" id="Page_238">[Pg 238]</span> -canalisações, e muito se tem escavado nos ultimos annos por todos os -arruamentos, descobrem-se na baixa, no Rocio, por exemplo, trechos de -canos antigos abandonados e sobrepostos, ainda a profundidade maior.</p> - -<p>De tremores muito antigos, e dos da alta idade média ha tradições.</p> - -<p>O de 24 d’agosto de 1356 destruiu parte da Sé, e causou enorme -devastação na cidade.</p> - -<p>Em janeiro de 1531 houve terremotos a seguir, sendo maior e mais -destruidor o de 26 d’esse mez.</p> - -<p>O de 28 de janeiro de 1551 derribou muitos predios.</p> - -<p>Em 27 de julho de 1597 uma parte do monte de Santa Catharina escorregou -para o rio, ficando aquelle alteroso monte dividido em dois, Chagas e -Santa Catharina; tres arruamentos desappareceram por completo.</p> - -<p>Em 1755 a cidade estava maior, mais povoada; o terremoto de 1 de -novembro fez muitas victimas, grande parte da cidade ficou arrasada, e -o incendio causou incalculavel prejuizo.</p> - -<p>Mencionam-se terremotos em 1598, 1699, 1724, fortes mas sem causar -grande damno; os abalos de 1761, 1796, 1807; o de 11 de novembro -de 1858 muito sensivel, em Setubal foi destruidor, matando gente e -derribando casas.</p> - -<p>O sr. Paulo Choffat tem trabalhos publicados sobre os ultimos abalos de -terra sentidos na capital.</p> - -<p>É certo que Lisboa está n’uma zona perigosa;<span class="pagenum" id="Page_239">[Pg 239]</span> devemos reparar n’isto. -Nada de concentrar tudo em Lisboa, guardem-se algumas cousas em sitios -mais garantidos.</p> - -<p>E todavia ha aqui consideraveis construcções que atravessaram no -seu logar e prumo essas medonhas convulsões; por exemplo uma parte -consideravel das muralhas do Castello, Santa Luzia e a sua muralha, as -capellas orientaes do Carmo, os arcos do Borratem, a casa dos Bicos, a -frontaria da Conceição Velha; bastantes edificios anteriores ao abalo -de 1755 estão de pé; alguns palacios aguentaram as suas linhas, e o -labyrintho das viellas de Alfama conserva a planta medieval.</p> - -<p>Mas basta olhar as paredes mais antigas do Carmo e da Sé para perceber -pedras de anteriores construcções, fragmentos de lettreiros e lavores, -empregados na enxilharia ordinaria. Na vetusta parede norte da Sé ha -pedras mettidas no muro que mostram lavor bysantino. No Carmo bocados -de campas com lettreiros em gothico, em diversos pontos do edificio, -estão empregados como pedra vulgar de construcção. É raro encontrar nos -arrabaldes de Lisboa pedras de antigo lavor, da idade média, do ogival, -mesmo da primeira renascença no seu logar; Odivellas é uma excepção, -assim como o casal da Quintan com o seu muro de ameias. É preciso ir -a Cintra, a Torres Vedras, a Santarem para vêr algo antigo de certa -importancia.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_240">[Pg 240]</span></p> - -<p>Na ultima folha de pergaminho do codice n.ᵒ 61 da collecção alcobacense -da Bibliotheca Nacional de Lisboa um monge deixou noticia do grande -abalo de 24 de agosto da era de Cesar 1394 (1356); fez grandes estragos -prostrando castellos e torres em muitos pontos do paiz; em Alcobaça a -egreja soffreu muito, no mosteiro houve ruinas, e cahiram muralhas do -castello. Foi ao pôr do sol.</p> - -<p>Outro monge na mesma pagina escreveu a memoria do terremoto de janeiro -de 1531; por mais de 15 dias sentiram tremer a terra; mas no dia 26, -antes do nascer do sol, foi o grande tremor; conta que em Lisboa houve -grande estrago; no mosteiro houve muita ruina, não escapando a parte -superior do claustro.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>O abalo de terra de 1755 foi violentissimo, mas escriptores e artistas -ainda lhe augmentam as culpas. Este terremoto e a invasão dos francezes -são motivos fundamentaes para explicar o desapparecimento de muita -cousa, uma rica mina para encobrir o desleixo, a estupidez, a mania de -estragar que é muito da raça portugueza.</p> - -<p>No tomo 3.ᵒ da==<i>Collecçam Universal de todas as obras que tem sahido -ao publico sobre os effeitos que cauzou o terramoto nos reinos de -Portugal e Castella no primeiro de novembro de 1755</i> (Bibl. Nac. de -Lisboa, Gabinete de livros reservados), ha alguns opusculos de polemica -sobre<span class="pagenum" id="Page_241">[Pg 241]</span> a grandeza da tremenda catastrophe: ==<i>Carta em que hum amigo -dá noticia a outro do lamentavel successo de Lisboa</i>==Está assignada -por José de Oliveira Trovão e Sousa (1755).</p> - -<p>==<i>Resposta á carta de José de Oliveira Trovam e Sousa em que se dá -noticia do lamentavel sucesso de Lisboa.</i> É de 1756; assignada por -Antonio dos Remedios.</p> - -<p>==<i>Verdade vindicada ou resposta a huma carta escrita de Coimbra.</i> -Por José Acursio de Tavares (Lisboa, 1756). De taes escriptos -conclue-se que o terremoto destruiu bem a terça parte de Lisboa e que -o incendio que se lhe seguiu foi terrivelmente devastador; mas fóra -da area de grande intensidade do abalo, e além do espaço que o fogo -alcançou, muitos predios, bastantes palacios, grandes arruamentos -ficaram salvos; agora é bem raro encontrar uma frontaria, uma janella, -uma grade de varanda anterior ao terremoto. No final do seculo XVIII -e no seculo XIX a transformação foi completa; basta a vulgarisação da -vidraça e o desapparecimento da rotula para modificar o aspecto da -cidade. Em povoações onde o terremoto não foi tão destruidor, apenas se -sentiu, a transformação foi analoga. É que na verdade o portuguez é bem -fraco conservador. Aqui pelos arrabaldes de Lisboa direi mesmo que é -destruidor. Por isto eu dou toda a attenção ao que me parece antigo, me -demoro com o anterior ao seculo XVIII, e quasi pasmo quando me surge um -fragmento do seculo XVI.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_242">[Pg 242]</span></p> - -<p>Folheando qualquer <i>Illustração</i> estrangeira se vê o carinho, o -amor com que em paizes muito mais atormentados que o nosso se guardam -antigos edificios, casas particulares de aspecto artistico, objectos de -uso vulgar consagrados pela idade, qualquer cousa que seja documento -do antigo viver. Os terremotos são damninhos, mas a indifferença, o -desleixo, a ignorancia são grandes causas de destruição.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Este caminho entre varzeas ferteis, arvoredos mansos, collinas de -grandes curvas com terras de semeadura e verdes pinhaes, por onde -vamos encontrando gente do campo, scenas da vida popular, é a via -tragica na historia de Portugal, brados de victoria e rumores de -desespero, marchas de tropas em dias de lucta, por aqui passaram entre -estas paisagens que só lembram agora frescas aguarellas; patuleias e -cartistas; miguelistas e pedristas, columnas de Junot e de Wellington; -castelhanos que vieram cercar Lisboa, portuguezes voltando de -Aljubarrota; e provavelmente cavalleiros de Affonso Henriques, e dos -mouros, dos godos e dos romanos; porque é esta a estrada que leva a -Lisboa, a antiga e nobre cidade, o grande porto maritimo.</p> - -<p>Na ida para o Correio-Mór, perto da Povoa de Santo Adrião, reparei em -certa pedra lavrada de aspecto raro; na volta parei e fui vê-la; é</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_243">[Pg 243]</span></p> - - -<h3><i>Uma ara romana.</i></h3> - -<p>Ha um poço coberto, encravado no muro, a poucos metros da estrada; -sobre um pequeno arco um nicho com a imagem de S. Pedro; perto um -poial, alto, e no chão uma pedra lavrada, com funda cavidade. É um -parallelepipedo de oito decimetros de comprido, por tres de altura, -proximamente, de pedra vidraço; um cordão de forte relevo divide os -lados em duas fachas; na superior um lavor geometrico, curvas em grega -torneando saliencias circulares; na facha inferior quatro rosas entre -curvas symetricas. Creio que é uma ara romana. Salvou-se junto da fonte -d’agua com virtude, guardada pela tradição. Por aquelles sitios teem -apparecido antiguidades romanas, ainda que são muito menos numerosas -as inscripções que nos arredores de Cintra. Como esta pedra lavrada -atravessou intacta tantos seculos, n’este paiz de estragados!</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>—Versos novos?!</p> - -<p>—Umas liras! diga já, frei Simão!</p> - -<p>Estavam no jardim, na meia laranja da cascata, á sombra do platano -alteroso. Linda manhã de junho. Era o dia anniversario da senhora -morgada;<span class="pagenum" id="Page_244">[Pg 244]</span> visitas de Lisboa animavam o palacio. A missa tinha sido -ás 7, e o almoço terminára ás 9. Alguns dos senhores partiram para a -tapada, outros para o picadeiro vêr os dois cavallos novos que o conde -trouxera de Sevilha.</p> - -<p>O apparecimento de frei Simão, frade jeronymo, que viera de Belem em -ruidosa e balouçante caleça, foi saudado com alvoroço; o frade tinha -sempre a contar anecdotas facetas, algumas muito repetidas mas que -elle contava com certa graça, e noticias da gente palaciana, sempre -saboreadas com delicia.</p> - -<p>Frei Simão avançou devagar, até perto da morgada, muito serio, fez uma -cortezia reverendissima, e recitou o soneto de parabens pelo feliz -anniversario; era composição nova; vinha escripto em primorosa lettra -num papel, com sua inicial floreada, enrolado e atado com fita de seda -branca.</p> - -<p>Depois deixando o tom ceremonioso, pondo-se muito risonho, annunciou os -versos novos, umas <i>sonóras</i>, não umas <i>liras</i>...</p> - -<p>—Diga, diga.</p> - -<p>—É a segunda vez que as leio...</p> - -<p>—E nós a julgarmos que tinhamos a primicia...</p> - -<p>—A primeira vez só uma pessoa, alta pessoa, as ouviu. Por isto posso -dizer a primicia.</p> - -<p>—Quem seria a alta pessoa?</p> - -<p>—Eu digo, senhora morgada; foi el-rei que Deus Guarde.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_245">[Pg 245]</span></p> - -<p>—Bravo! foi ao Paço? teve audiencia?</p> - -<p>—Foi na rua, antes na estrada. El-rei viu-me passando pela estrada de -Pedrouços; mandou parar o coche. E bradou-me:</p> - -<p>—Então, oh! Santa Catharina, fizeste a resenha?</p> - -<p>—Sim, meu senhor, e está em verso; ia levá-la a Vossa Real Magestade.</p> - -<p>—Não precisas ir mais longe; dize lá.</p> - -<p>Acheguei-me á porta do coche e li os versos. Eu já me sentia acanhado -porque a lira é comprida, e o coche ali parado na estrada. Mas el-rei -D. João V gosta de versos jocosos; não imaginam como elle ria.</p> - -<p>—E como soube elle que Vossa Reverencia fizera a lira?</p> - -<p>—Ora, foi assim. Em Belem, no nosso mosteiro, pela festa de S. -Jeronymo, costuma haver lauto jantar, com convidados; ao jantar da -casa, jantar de festa, juntam-se muitos presentes; enche-se o grande -refeitorio; o d’este anno foi estrondoso. El-rei soube e encontrando-me -ha dias em palacio, disse-me para lhe fazer a noticia dos pratos; e eu -puz a lista em verso; fiz a lira!</p> - -<p>—Diga, diga.</p> - -<p>—Eu começo; frei Simão de Santa Catharina collocou-se em frente das -damas; limpou lentamente a fronte, a bocca e o nariz com o lenço -cheiroso a agua de rosas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_246">[Pg 246]</span></p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Monarcha Soberano</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Pois Vossa Magestade assim me ordena</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>O jantar deshumano</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Irá cantando a Musa pouco amena</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>E em ser só se verá que foi diverso</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>No refeitorio em prosa e aqui em verso.</i></span><br /> -</p> - -<p>A lira vae descrevendo o grande refeitorio, o adorno das janellas -com estatuas, festões, grinaldas de flores naturaes, os aparadores -carregados de pratas, o chão atapetado de flores.</p> - - -<p><i>Estava o refeitorio num brinco.</i></p> - -<p>Em cada logar da vasta meza havia os <em>appetites</em>, as pequenas -iguarias, com seus adornos.</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Cobria o cuvilhete</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>um papel retalhado, com acerto</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>que inda que pequenete</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>como grande queria estar coberto.</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Na marmelada vinha, guaposito</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>guarnecido de flores um palito.</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Em cada assento havia</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>garfo, faca, colher e guardanapo</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>dois pães, com bizarria</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>melancia excellente, melão guapo</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>figos, uvas, limões, pecegos, peras</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>sem graça, o cesto enchiam, mui devéras.</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>A ilharga da salceira</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>um bom tassenho de presunto havia</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>tão magro e tão lazeira</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>que a mim me pareceu ser porcaria</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>tambem tinha azeitonas e alguem disse</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>que foram d’Elvas.</i></span><br /> -</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_247">[Pg 247]</span></p> - -<p>Estes eram os appetites que adornavam os logares dos commensaes. Agora -os pratos.</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Foi o primeiro prato uma tijella</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>cheia em demazia</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>de caldo de gallinha com canella</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>que da gallinha trouxe a propriedade</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>porque o caldo tinha ovo na verdade.</i></span><br /> -<span style="margin-left: 3.5em;"><i>Foi o segundo prato</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>uma bem feita sopa á portuguesa</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>que dava de barato</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>O filis e o primor que ha na franceza.</i></span> -</p> - -<hr class="tb" /> -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Por algum grão delito</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>foram muitos perús esquartejados</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>uns vêm com sambenito</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>outros vinham sómente afogueados.</i></span><br /> -</p> - -<hr class="tb" /> -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Outro prato de assado</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>que era lombo de vacca mui tenrinho.</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Comia afadigado</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>outro leigo mui gordo meu visinho</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>rollos e pombos ensopados.</i></span><br /> -</p> - -<p>Seguiram-se as frigideiras com linguas e miolos. Os coristas -que serviam á meza eram muitos e andavam lestos. Appareceram as -<i>empanadas inglezas</i>; tinham:</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Ade, perdiz, gallinha, frangalhada</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>E disto vinha a olha enchouriçada.</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Apoz isto algumas doze tortas.</i></span><br /> -<br /></p> -<p><span class="pagenum" id="Page_248">[Pg 248]</span></p> - -<hr class="tb" /> -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Cinco ou seis pratos de ovos</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>De pão de ló por dentro recheados</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Outros mal entrouxados</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Outros ovos tambem com corôa regia</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>De almojavanas conto</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>A duas mui grandes por cabeça</i></span><br /> -<span style="margin-left: 4em;"><i>Em assucar em ponto.</i></span><br /> -</p> - -<p>Depois d’isto <i>empada de vitella</i> e <i>arroz doce</i>.</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Sinceramente disse aqui a verdade</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Falta o perdão de Vossa Magestade.</i></span><br /> -</p> - -<p>Vem agora a nota no amarellado papel que estou seguindo:</p> - -<p>—<i>Indo levar o papel a Pedrouços se encontrou el-rei que mandou -parar o coche e parado ouviu ler todo o papel com muito agrado.</i></p> - -<p>Mas frei Simão de Santa Catharina esqueceu-se de uma cousa, e o padre -geral quando viu o papel reparou logo, e zangou-se; obrigou o frade a -fabricar mais versos e a levar o supplemento a el-rei.</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;"><i>O caso é que na salceira</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>me esqueceu de meio a meio,</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>com o presunto e azeitonas</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>pôr um pedaço de queijo.</i></span><br /> -</p> - -<hr class="tb" /> -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Pois vá, faça outros, e ponha</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>(me disse o Geral severo)</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>que não quero que diga el-rei</i></span><br /> -<span class="pagenum" id="Page_249">[Pg 249]</span><span style="margin-left: 1em;"><i>que não dei queijo framengo.</i></span><br /> -<br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>Saiba Vossa Magestade</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>que tambem queijo tivemos</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>noviços e sacerdotes</i></span><br /> -<span style="margin-left: 1em;"><i>coristas e frades leigos.</i></span><br /> -</p> - -<p>A <i>lira</i> de frei Simão Antonio de Santa Catharina foi muito gabada -e applaudida.</p> - -<p>—É uma delicia!</p> - -<p>—Um verdadeiro appetite, faz vontade de comer.</p> - -<p>—Diga outra vez, e muitas damas insistiam no pedido. Mas a condessa -observou:</p> - -<p>—Tenham caridade, isso é incommodo para Sua Reverencia. Ainda se não -lembraram de mandar vir um refresco.</p> - -<p>Veiu logo um creado com bandeja de prata com bolos e marmellada de -Odivellas; outro creado com licor de tangerina e canella, e um copo de -limonada. Voltaram os senhores, fez-se grande roda, e entre risos e -<em>ós</em> admirativos repetiu-se a leitura dos versos.</p> - -<p>—Percebe-se logo que frei Simão é um academico.</p> - -<p>—E de varias academias.</p> - -<p>—Da Anonyma sei eu, por ser lá meu confrade.</p> - -<p>—E da Portugueza.</p> - -<p>—E da Escholastica.</p> - -<p>—É verdade, frei Simão, deve saber, ora se sabe, houve eleição renhida -em Odivellas; muita<span class="pagenum" id="Page_250">[Pg 250]</span> gente, e da mais alta se interessou na eleição da -nova abbadessa.</p> - -<p>O frade contou o que sabia dos bilhetes, dos pedidos, das ordens, das -promessas ás freiras eleitoras; foi uma bulha que durou mezes.</p> - -<p>—E não fez versos ao caso?</p> - -<p>—Isso merecia liras e sonóras.</p> - -<p>—É verdade que fiz, não nego e a prova é esta; aqui está a sonóra; e -do largo bolso tirou um papel.</p> - -<p>—Leia! leia!</p> - -<p>—Vou começar.</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">Os enredos, as bulhas, as trapaças</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Os enganos, os medos, os temores</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Os ardis, as astucias, as negaças</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Os agrados, os risos, os amores;</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">As trombas, os focinhos, as caraças</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">As furias, os raivassos, e os rancores</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Que houve em certa eleição com forte espanto</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Darão materia a nunca ouvido canto.</span><br /> -</p> - -<p>E segue a sonóra n’este tom, narrando os episodios da eleição da -abbadessa, no então revoltoso convento de Odivellas, ninho de -endiabradas freiras. Este frei Simão tem muitas peças poeticas algumas -muito aproveitaveis para o conhecimento de minucias e particularidades -da época.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>Dias depois de um passeio a Loures e á quinta do Correio-Mór, -appareceu-me um cavalheiro<span class="pagenum" id="Page_251">[Pg 251]</span> d’aquelles sitios, com quem eu cavaqueara, -e apresentou-me uma porção de papeis velhos, manuscriptos, que me -disse ter encontrado havia annos n’um gavetão da copa monumental do -palacio. Percorri os papeis; pouco achei de curioso ou interessante. -Entre elles vinham poesias do seculo XVIII, alguns sonetos de -anniversarios, dirigidos a pessoas da familia Matta; e uma descripção -de lauto banquete no mosteiro dos Jeronymos de Belem, que me pareceu -bom documento da época, e singular peça poetica. Por isto a transcrevo -em parte. Nos papeis não encontrei nome do auctor. Depois achei n’um -cancioneiro a mesma poesia attribuida a frei Simão Antonio de Santa -Catharina, e até com a mesma nota pittoresca de ter sido lida a el-rei -D. João V, na estrada de Pedrouços.</p> -<p><span class="pagenum" id="Page_253">[Pg 253]</span></p> -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum" id="Page_255">[Pg 255]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="Torres_Vedras">Torres Vedras</h2> -</div> -<hr class="r5" /> -<p class="center">Notas d’arte e archeologia</p> -<p class="center">(1906)</p> -<h3>Paineis antigos em Torres Vedras</h3> - - -<p>Em rapida visita que fiz, ha pouco, a Torres Vedras, chamaram-me a -attenção os quadros em madeira, antiga pintura, que vi em differentes -egrejas.</p> - -<p>Torres Vedras foi villa das rainhas, alli viveram familias nobres, -houve paços reaes e casas religiosas importantes.</p> - -<p>Já no seculo XIII as egrejas de Santa Maria do Castello, de S. Pedro, -de S. Miguel e de S. Thiago existiam, como se vê das inquirições de -Affonso III. Isto mostra que a villa era importante já na edade média, -e explica um tanto a existencia de um numero relativamente consideravel -de pinturas antigas. Só mencionarei as que me despertaram mais a -attenção.</p> - -<p>Ha alli pinturas de varios pinceis e épocas,<span class="pagenum" id="Page_256">[Pg 256]</span> umas anteriores á -renascença, algumas do inicio d’essa época, outras do meiado do seculo -XVI.</p> - -<p>Na egreja de Nossa Senhora do Amial vi quatro quadros grandes, -representando S. Paulo, S. Pedro, S. Lourenço e S. Sebastião.</p> - -<p>Na sacristia de S. Pedro estão tres quadros em madeira; um d’elles, a -Annunciação, muito lindo e em bom estado.</p> - -<p>Na egreja, sobre o arco do cruzeiro, está um painel grande, -representando S. Pedro, retocado modernamente.</p> - -<p>Na egreja da Graça, na segunda capella á direita, seis quadros -pequenos, um tanto sujos mas não arruinados; muito interessantes.</p> - -<p>Ha um pouco de renascença nas construcções, voltas redondas nas -arcadas, apenas.</p> - -<p>Figuras principaes sem ornatos, mas as secundarias vestidas á época, -grandes e plebeus, damas da côrte, mulheres humildes, com os seus -trajos proprios, muito minuciosa e galantemente indicados.</p> - -<p>Representam: o Presepe, Adoração dos Reis, Annunciação, a Virgem e -Santa Isabel, S. José e Nossa Senhora, o Transito de Nossa Senhora.</p> - -<p>Os rostos, muito finamente tocados, parecem retratos, nos vestuarios -não ha phantasias, o pintor reproduziu o que tinha á vista; mesmo -o agrupamento, a composição dos quadros, agrada. Tem um lindo tom; -limpando um pouco, com o lenço humedecido, um cantinho de uma d’estas<span class="pagenum" id="Page_257">[Pg 257]</span> -pinturas appareceu logo o tom de esmalte que, infelizmente, tantos -outros perderam.</p> - -<p>Esses seis quadrinhos são bem notaveis.</p> - -<p>Na capella-mór da egreja do Varatojo vi quatro grandes paineis, bem -conservados: Annunciação, Jesus resuscitado, Adoração dos Reis e -Adoração dos pastores. Devem ser parte de uma série. Não lhes vejo -relação com as séries do Museu de Bellas-Artes.</p> - -<p>Na ante-sacristia, o Presepe, quadro pequeno; na sacristia, um Milagre -de Santo Antonio e a Descida do Espirito Santo, paineis de grandes -dimensões e em bom estado.</p> - -<p>Em Santa Maria do Castello ha pinturas antigas em madeira, no corpo da -egreja e na sacristia; estes ultimos são quadros menores, representando -os episodios classicos da paixão; soffreram retoques pouco felizes; o -que nelles mais padeceu foi o colorido.</p> - -<p>O desenho das figuras; o aspecto, merece nota; tem um tom archaico; -lembraram-me muito umas pinturas que existem no Museu das Janellas -Verdes, em que os bigodes apparecem meio-rapados e as barbas com um -córte especial.</p> - -<p>Todos estes paineis, que vi em Torres Vedras, me parecem de origem -portugueza, com ligeiras, attenuadas reminiscencias de influencia -flamenga, e com pequena parte, ou nenhuma, do renascimento; por isto os -achei importantes para a historia da pintura portugueza.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_258">[Pg 258]</span></p> - - -<h3>O Tumulo dos Perestrellos</h3> - -<p>A egreja parochial de S. Pedro de Torres Vedras tem a sua porta -principal voltada a poente, como todos os templos antigos, medievos, da -interessante villa. Essa porta é muito ornamentada em estylo manuelino; -sobre o arco assenta um escudo bipartido com armas do rei e da rainha. -Em dois arcos do cruzeiro ha tambem ornamentação no mesmo gosto, mais -singela. A egreja tem tres naves, a central é coberta de madeira -apainelada, com as molduras pintadas e douradas. As naves lateraes -conservam ainda trechos de antigas abobadas com artezões. Parte das -paredes está vestida de azulejos brancos e verdes, em uso nos seculos -XVI e XVII. Ha em varios pontos da egreja e capellas outros typos de -azulejo de épocas mais modernas.</p> - -<p>Alguns quadros pintados em madeira, antiga escola portugueza, outros -em tela, na egreja, na sacristia e na annexa casa dos clerigos pobres; -algumas esculpturas religiosas, especialmente a estatueta de S. Pedro -d’Alcantara, merecem attenção.</p> - -<p>No cruzeiro, á direita, está um elegante ediculo com uma urna sepulcral.</p> - -<p>É no mesmo estylo da porta principal. O ediculo é em pedra da -localidade, que é rija, resiste bem ao tempo, e toma, no passar dos -seculos, uma<span class="pagenum" id="Page_259">[Pg 259]</span> côr amarella torrada, agradavel á vista. A urna é em -jaspe, em fino trabalho.</p> - -<p>Sobre bases facetadas erguem-se columnas que sustentam arcos -concentricos; ha uma facha muito lavrada, de folhas e flores, com um -pequeno busto em baixo relevo, imitando medalha, que parece um retrato; -mostra a cabeça coberta com um capacete um tanto raro. Busto egual se -vê na porta da egreja.</p> - -<p>No ediculo as columnas e arco exterior representam troncos arboreos -cingidos por fitas.</p> - -<p>A urna pousa sobre leões de inferior trabalho. Na face anterior tem o -lettreiro e aos lados o brazão, repetido, dos Perestrellos.</p> - -<p>N’esta urna estão os ossos de João Lopes Perestrello e de sua mulher -Filippa Lourenço. Este homem foi fidalgo da côrte de D. João II. Foi -para a India, capitão de uma nau, na armada de Vasco da Grama, em 1502. -É um dos vultos d’essa notavel familia que tantos homens produziu que -bem serviram o paiz em Ormuz, em Malaca. Um filho d’elle, Raphael -Perestrello, andou na descoberta da costa da China, e esteve nas -Moluccas. Outro filho jaz na mesma egreja de S. Pedro; sob uma campa -enorme, de mais de dois metros de comprimento, com um lettreiro em -gothico:—Aqui acerqua de seus quyrydos pais he mai Antonyo Perestrelo -seu filho escolheo casa para sempre.—</p> - -<p>É bom typo de familia d’aquella época; as<span class="pagenum" id="Page_260">[Pg 260]</span> grandes aventuras, as -viagens ultramarinas; uns ficaram nos mares ou nas guerras, outros -voltaram ricos, fizeram morgados, e arranjaram na egreja da sua terra -uma capella para eterno descanço.</p> - - -<h3>Capiteis romanicos</h3> - -<p>Na egreja de Santa Maria do Castello, em Torres Vedras, vi dois -capiteis romanicos na porta principal, que olha para o poente. O -templo tem soffrido reconstrucções, todavia as linhas principaes são -as primitivas. Os portaes, de volta redonda, estão nos seus logares de -origem. Aquella silva que orna a parte superior dos capiteis, formando -um friso, repete-se aos lados da porta que diz para sul. Os capiteis -são de calcareo muito rijo, trabalho ingenuo, relevo fundo; pouco teem -soffrido do tempo. São decorativos e symbolicos; o esculptor quiz -representar motivos do Cantico dos canticos; é o lyrio dos valles, -a pomba do rochedo, a maçã entre a folhagem agreste; as comparações -amaveis feitas á Sulamite, que a egreja christã adoptou. Obra d’arte, -da alta edade média, é isto o que resta n’esse templo, alvejante entre -oliveiras, aninhado entre as muralhas vetustas, cubélos e quadrelas -negras do castello.</p> - -<p>Faz-se alli festa religiosa em 15 d’agosto, porque parece que foi -n’este dia que D. Affonso Henriques tomou a villa aos mouros, em 1148. -Ainda<span class="pagenum" id="Page_261">[Pg 261]</span> no começo do seculo XIX, na noite do dia 14, vespera da festa, -faziam grandes fogueiras no adro e por entre as ameias.</p> - -<p>Perdeu-se a usança pittoresca, ante esta onda de semsaboria que vae -estragando tudo.</p> - -<p>Os priores d’esta egreja eram capellães d’el-rei; varias rainhas foram -padroeiras e lhe fizeram donativos.</p> - -<p>D. Beatriz, mãe de D. Diniz, residiu em seu paço, que ficava proximo. É -difficil hoje achar vestigios de paços reaes, ou de quaesquer edificios -muito antigos em Torres Vedras. Ahi residiram por largas temporadas -reis e rainhas, por duas vezes se reuniram côrtes, no seculo XV, e -quasi nada d’essa época se encontra na villa. Tem soffrido muito com -os terremotos; a parte baixa está visivelmente muito soterrada; isto -explica em parte o desapparecimento de antiguidades na historica e -interessante villa.</p> - - -<h3>Ermida e forte de S. Vicente</h3> - -<p>A ermida de S. Vicente fica a norte de Torres Vedras; cousa de tres -kilometros do centro da villa ao alto da collina. Chega-se á varzea -arborisada do Amial, passa-se o rio Sizandro, a ermida de Nossa Senhora -do Amial, e do adro d’esta ermida parte uma vereda que vae trepando -pela vertente, e dando volta, de modo que offerece vistas variadas<span class="pagenum" id="Page_262">[Pg 262]</span> da -villa, que tem bonito aspecto, do seu vetusto castello, conjuncto de -paredões, muralhas e cubellos ennegrecidos pelo tempo, e da multidão -de collinas, quasi todas vestidas de vinhedos viçosos, salpicadas -de casaes. O cume de S. Vicente está bastante superior ao castello, -e ás collinas proximas, dominando largo terreno. Depois do corpo de -S. Vicente entrar na sé de Lisboa houve milagres varios, e um dos -devotos favorecidos foi um homem de Torres Vedras que lhe edificou uma -ermidinha em agradecimento. É certo que no começo do seculo XIII já -alli estava uma ermida; tão certo como não estar lá, á vista, um unico -lavor ou lettreiro, nem do seculo XVII. Mas ha documentos; e bocados de -pergaminho bem guardados duram mais que alvenarias expostas a pilhagens -e bombardeamentos.</p> - -<p>Na ermida venerava-se uma imagem de S. Vicente, agora na pequena egreja -do Amial, e ha tradição de grandes festas que o povo torreense ahi -celebrava. Arruinou-se, reconstruiu-se, e voltou o abandono; agora -dormem alli pastores e cabras; se lá estão ainda algumas cantarias é -pela difficuldade do transporte.</p> - -<p>Termina a vereda n’uma passagem empedrada sobre um fosso, vê-se ainda -bem o relevo da trincheira entre arbustos e silvados, depois a ermida -toda em ruina e esburacada; a capella redonda tem uma pequena cupula -de ar mourisco; junto da ermida havia casebres, casa do ermitão e -albergue<span class="pagenum" id="Page_263">[Pg 263]</span> de romeiros; telhados cahidos, montões de entulho; silvados -e carrasqueiros bravios; depois da ermida um planalto talvez de 60 -metros de diametro, ahi dois moinhos de vento antigos, em ruina; em -volta quatro grandes espaldares erguidos, de 2 metros de altura, por -10 de comprimento; na borda do planalto as baterias, os reductos; as -canhoneiras ainda com o pavimento lageado, os perfis em alvenaria -solida; reconstitue-se ainda perfeitamente a celebre fortificação.</p> - -<p>Todos teem ouvido fallar das famosas linhas de Torres Vedras que -defenderam Lisboa contra a invasão franceza do commando de Massena. A -primeira linha fortificada dividia-se em tres districtos: 1.ᵒ Torres -Vedras, 2.ᵒ Sobral de Monte Agraço, 3.ᵒ Alhandra.</p> - -<p>Dois pontos estavam especialmente fortes, eram os <em>fortes -grandes</em>, S. Vicente, e o da Serra do Arneiro.</p> - -<p>O de S. Vicente tinha 39 canhoneiras, e estava artilhado com 23 peças -de calibre 6, 9 e 12, e mais 3 obuzes. Podia abrigar 4:000 homens. Além -dos reductos vejo uns vallados afastados para norte que me parecem -pequenas trincheiras para abrigo de atiradores. O ponto era, e é ainda, -importantissimo porque descobre os caminhos em grande extensão.</p> - -<p>Outros fortes menores se agrupavam a este, formando um conjuncto -respeitavel; nas grandes collinas de Olheiros, Outeiro da Forca, Sarges -(outros<span class="pagenum" id="Page_264">[Pg 264]</span> dizem Ságes) e Ordasqueira havia reductos; formavam um campo -fortificado.</p> - -<p>Em dezembro de 1846 encontraram-se em Torres Vedras, tropas do Bomfim -com as de Saldanha, houve combate sanguinolento, com episodios -terriveis, no dia 22; Saldanha tomou o forte de S. Vicente: Bomfim -encurralou-se no castello, e começou a atirar para lá com a sua peça e -o seu obuz; e esburacou a ermida. Na varzea do Amial houve encontro de -cavallaria, e a de Saldanha, muito superior em numero, acutilou ahi, -mesmo no adro da ermida, a da Junta do Porto.</p> - -<p>Ahi n’esse adro do Amial, estão enterrados setenta e tantos cadaveres -dos fallecidos em combate, na lucta brava da cavallaria, e no ataque de -S. Vicente.</p> - -<p>Depois da batalha, a ermida ficou em ruina, a villa soffreu immenso, e -ninguem pensou mais em concertar o templosinho.</p> - -<p>Trouxeram a imagem de S. Vicente, que escapou á batalha e ao -bombardeamento para a ermida do Amial. E lá está, muito tristinha e -abandonada, n’aquelle interessante templosinho, ao pé de outra imagem -historica, a da Senhora de Rocamador. Merecia a pena dar alguma -attenção ao Amial, e tornar mais facil a vereda para S. Vicente; é um -dos melhores passeios nos arredores de Torres Vedras, a vista é linda, -e é um d’estes sitios raros onde se allia a bellezas naturaes o encanto -de recordações da historia patria.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_265">[Pg 265]</span></p> - - -<h3>Imagens de Santos</h3> - -<p>Pouca attenção se tem prestado entre nós ás imagens religiosas; -refiro-me a dois pontos de vista, artistico e archeologico. No Museu -das Bellas-Artes e no Carmo poucos exemplares ha. É preciso examinar as -egrejas, para descobrir um ou outro trabalho interessante.</p> - -<p>É enorme a quantidade de imagens de santos ainda existentes, atravez -diversas causas de destruição; tem havido modas tambem na estatuaria -religiosa; as imagens do renascimento fizeram pôr de parte as mais -antigas que pareciam rudes; as luxuosas estatuetas á hespanhola, de -roupagens agitadas todas bordadas a ouro, foram vencidas pelas á -italiana, mais artisticas e expressivas.</p> - -<p>Imagens gothicas de gesto solemne, hirtas, de vago olhar, esculpidas -em pedra, vieram até nossos dias; em quasi todas as sés ha imagens de -Nossa Senhora, do seculo XII. A da Sé de Evora com o seu collar e fita -pendente que parece formada de moedas romanas, as cercaduras bordadas -do vestuario, os sapatos de bico, tem ares de uma rainha medieval.</p> - -<p>No claustro da mesma sé ha estatuas de santos, e o apostolado no -portico, dos seculos XIII a XV.</p> - -<p>Do renascimento, com anatomia estudada, posição ao natural, temos um -exemplar esplendido<span class="pagenum" id="Page_266">[Pg 266]</span> no celebre S. Jeronymo, que está no cruzeiro de -Santa Maria de Belem.</p> - -<p>Seguem-se as estatuetas em madeira com lavores a ouro sobre fundo -preto, ou vermelho, o estofado, genero que foi muito empregado em -Portugal.</p> - -<p>Dos italianos, largas roupagens, cabeças de expressão, attitudes -artisticas, <em>póses</em> estudadas, ha modelos mui significativos na -antiga egreja dos Barbadinhos onde actualmente está a parochial de -Santa Engracia. No seculo <span class="smcap">xviii</span> a estatuaria religiosa segue a -corrente da época; no seculo <span class="smcap">xix</span>, a meio, começa a esculptura -franceza a dominar com as suas fórmas gentis; vem a imagem fina, bem -gravada, suavemente colorida; vem a elegante estatua da Salette, depois -Lourdes, a fina dama, de cabeça pequena, fórma esguia, expressão de -sonho. Nos templos agora por toda a parte domina a estatueta de gesso, -e a oleographia franceza; o lindo santo risonho e muito penteado, a -gentil santinha branca, a pretenciosa oleographia na sua moldura de -baguette dourada. O Senhor dos Passos, de tez livida, negros cabellos, -olhar severo, passaria de moda, se não estivesse firme em antiga -tradição.</p> - -<p>Na iconographia religiosa ha, atravez as idades, séries determinadas, -e assim se póde vêr como os artistas de varias épocas executaram as -figuras de Jesus Menino, ou imaginaram os rostos de anjos e seraphins.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_267">[Pg 267]</span></p> - -<p>Quando ha pouco se agitou a questão do santo sudario de Turim viu-se -bem onde póde chegar o interesse d’estes estudos; n’este caso á origem -da pintura, e dos seus processos.</p> - -<p>Certas imagens, por exemplo, Senhor dos Passos, Senhor Morto, são, -na grande maioria, da mesma época; outras são de todas as épocas, -a Virgem, o Crucificado, Jesus Menino. Póde reunir-se uma série de -imagens da Virgem do seculo XII para cá. E assim do rosto e cabeça -do divino Nazareno. É interessante vêr como os artistas, atravez os -tempos, trataram de interpretar o aspecto do sublime mestre.</p> - -<p>Ha pouco, n’uma estação de banhos dos Cucus, tive occasião de passeiar -por Torres Vedras, e andei pelas egrejas a vêr esculpturas e pinturas, -inscripções, velharias.</p> - -<p>A imagem da Senhora do Sobreiro, no Varatojo, é antiga; segundo a -tradição é do seculo XII; póde ser, e todavia não me parece tão antiga -como a da Sé de Evora, ou a de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães (a -primitiva imagem).</p> - -<p>Na egreja de S. Pedro vi a imagem de S. Pedro d’Alcantara; rosto, -garganta e mãos bem esculpidas, expressão de fervor na oração, -arrebatamento; roupagem larga, em grandes pregas; no todo uma estatua -elegante, que prende a attenção; talvez de artista italiano.</p> - -<p>Na egreja da Graça reparei mais nas estatuas de Santa Monica e Santo -Agostinho, que estão em<span class="pagenum" id="Page_268">[Pg 268]</span> nichos no grande retabulo de obra de talha, do -seculo XVII, interessante exemplo de transição do estylo classico para -o rococó usado na época de D. João V.</p> - -<p>N’essas estatuas de Santa Monica e Santo Agostinho o estofado, ouro -sobre branco e vermelho, é accentuado por fino relevo, que dá ás vestes -aspecto opulento; a esculptura é muito correcta.</p> - -<p>A estatua de S. Gonçalo de Lagos, na sua capella, é elegante: o -santeiro fez-lhe a cabeça um tanto pequena, e a cintura delicada; a -roupagem está bem lançada.</p> - -<p>Na Misericordia dei mais attenção ao Senhor Morto, porque me parece o -mais antigo que conheço; não se repare na encarnação; é uma estatua -rigida, hirta, feita com certa rudeza mas com attenção. Parece-me -anterior ao seculo XVI.</p> - -<p>Em Santa Maria do Castello vi esculpturas boas: um Jesus Menino bem -notavel e antigo.</p> - -<p>E mais antigas ainda me parecem algumas imagens que vi na ermida da -Senhora do Amial, a Senhora do Ó, o S. Vicente, e especialmente a -Senhora de Rocamador talvez do seculo XIII.</p> - -<p>Será bom reparar n’estas obras d’arte, mórmente agora por causa da -invasão franceza de estatuetas e oleographias baratas.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_269">[Pg 269]</span></p> - - -<h3>Uma cadeira do seculo XV</h3> - -<p>A pouca distancia, uns tres kilometros, a poente de Torres Vedras -fica o convento do Varatojo; é um bonito passeio a pé, atravessando -a varzea, e subindo lentamente a vereda, descobrindo successivamente -aquella região de serras e cabeços, em grande parte vestida de -vinhedos, agora n’este mez d’agosto, mui viçosos.</p> - -<p>Em trem, o caminho é mais longo, por causa de grande rodeio, seguindo -pelo campo do Amial, onde ha uma ermida muito antiga e interessante, -cortando depois os campos do Paul, e subindo a encosta por estrada -um tanto ingrata; a estrada nova cheia de covas e poeira, a antiga -coalhada de calhaus.</p> - -<p>No convento vi a porta ogival da egreja, tendo aos lados as armas de -Portugal, e o <em>rodizio</em> emblema adoptado por Affonso <span class="allsmcap">v</span>; -o claustro, bem conservado; os portaes da casa chamada dos retratos -que são do tempo de D. Manuel; a torre dos sinos de ventanas ogivaes, -assim como o portal de um pateo interior; vi pinturas em madeira, -um frontal de seda bordada de origem italiana, me pareceu, e, n’uma -pequena dependencia da sacristia, entre variados objectos, uma cadeira -extraordinaria!</p> - -<p>É tradição antiga ter esta cadeira servido a D. Affonso V, quando -visitava aquella casa. Como<span class="pagenum" id="Page_270">[Pg 270]</span> me disseram que ninguem a desenhara eu -tirei um rapido esboço. Póde ser de Affonso V, e até anterior; é em -carvalho, e está menos mal conservada; algum caruncho, mas mostra-se -ainda nitido o relevo decorativo; lembra logo o estylo da Batalha. -É uma cadeira do seculo XV, uma joia do mobiliario portuguez. No -<i>Havard</i> <a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a> vem o desenho de um exemplar quasi egual; cadeira -de armario ou cofre, de braços, espaldar direito, ornamentação -ogival, exactamente como no esplendido movel do Varatojo. Lá se tem -conservado a veneravel reliquia e está lá muito bem, ligada pela -tradição historica, mas seria bom fazer uma reproducção para o Museu -das Bellas-Artes, onde abundam os exemplares de mobiliario portuguez, -formando séries importantes; mas falta aquella cadeira—avó, unica, -segundo creio, em Portugal.</p> - -<div class="footnote"> - -<p><a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Dictionnaire de l’ameublement et de la décoration.</i></p> - -</div> - - -<h3>Brazões da Villa</h3> - -<p>Vi em Torres tres brazões antigos:</p> - -<p>O da Fonte Nova tem a data 1529.</p> - -<p>O que está na escada da Camara Municipal tem a data 1518.</p> - -<p>O do chafariz dos Canos é muito mais velho,<span class="pagenum" id="Page_271">[Pg 271]</span> singelo e hieratico, sem -ousadias decorativas; creio que é do seculo XIV.</p> - -<p>O da Fonte Nova apresenta duas torres ligadas por um panno de muralha -com sua porta: torres de tres andares, com ameias, frestas para jogar -virotes e béstas, terminando em cobertura pyramidal, com sua bandeira -quadrada e uma estrella sobre a bandeira; entre as torres um escudo -real, sem corôa nem castellos, só as cinco quinas com os seus besantes. -Infra a data 1529 entre duas siglas, talvez F e R.</p> - -<p>O que está na Camara mostra duas torres de cobertura conica, ligadas -pela muralha sem porta; tem barbacan, ameias, sobre as torres bandeiras -farpadas, sobre estas, estrellas.</p> - -<p>Sob a barbacan um festão florido, infra um lettreiro:</p> - -<p class="center"> -Esta casa e quintal<br /> -he do concelho<br /> -1518<br /> -</p> - -<p>Entre as torres o escudo das quinas.</p> - -<p>O do chafariz dos Canos tem tres torres eguaes, separadas entre si, uma -a meio do escudo mais acima, duas aos lados d’esta, mais abaixo. Cada -torre sua janella de volta redonda, e quatro ameias; a ameia formada -por um dado ou cubo, sobre este uma pyramide de base quadrada excedendo -muito a face do cubo.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_272">[Pg 272]</span></p> - -<p>Na fonte está outro escudo com o brazão real, as quinas collocadas á -antiga, as lateraes com as pontas para dentro.</p> - -<p>Este escudo da fonte dos Canos parece-me ser o brazão antigo da villa, -o primeiro, o das <i lang="la" xml:lang="la">turres veteres</i>. Depois conjugaram este com -o escudo real, tirando a torre média e mais alta para dar logar ás -quinas, ao que parece no tempo de D. Manuel, o reformador do velho -foral, pois que o brazão que está na escada da Camara tem a data 1518.</p> - - -<h3>Archivos</h3> - -<h4>Camara, Misericordia, Egreja de Santa Maria</h4> - -<p>Quando estive na interessante villa de Torres Vedras lembrei-me de -visitar archivos, que é onde se encontram reunidos mais documentos -authenticos da vida local.</p> - -<p>Para alguma cousa ha de servir isto de ler lettras antigas, a -paleographia; porque vêr archivos e cartorios sem os entender é inutil.</p> - -<p>Manuel Agostinho Madeira Torres na—<i>Descripção historica e economica -da villa e termo de Torres Vedras</i>—, falla de antigos documentos, e -na 2.ᵃ edição da sua obra os editores deixaram muitas notas em que se -referem a velhos pergaminhos e papeis dos cartorios da villa.</p> - -<p>A vida antiga, as phases sociaes, as instituições,<span class="pagenum" id="Page_273">[Pg 273]</span> a evolução -historica, tudo apparece nos archivos a quem tiver paciencia de -manusear com attenção codices e avulsos arrumados, quantas vezes -esquecidos, desprezados, tristes, poeirentos, nos seus armarios.</p> - -<p>Agora que tanto se falla de sociologia esses archivos teem ainda -maior importancia; antes os estudiosos procuravam especialmente os -grandes acontecimentos e as vidas dos grandes vultos, attende-se -presentemente tambem á evolução das instituições, ao viver dos povos, -ás manifestações moraes das classes menos brilhantes. Divaguei, -pois, algumas horas pelos archivos de Torres Vedras, e vou escrever, -condensando muito, do que vi.</p> - -<p>Comecei pelo archivo da Camara Municipal, que está installado em -armarios, n’uma casa ampla com muita luz.</p> - -<p>Vi lá uma peça de primeira ordem, o Foral da villa, dado por D. Manuel.</p> - -<p>O primeiro foral foi concedido por D. Affonso <span class="smcap">iii</span> em 1250, e -conserva-se na Torre do Tombo.</p> - -<p>Do foral de D. Manuel está o original em Torres, e bem conservado, -lindamente escripto em pergaminho.</p> - -<p>Percorri tambem alguns livros de actas da camara, bella série que -começa em tempo d’el-rei D. Sebastião. Estes codices são importantes, -porque não se contentaram em lavrar actas, mas incluiram o registo de -documentos de maior significação. Ora o municipio e comarca de Torres -foram<span class="pagenum" id="Page_274">[Pg 274]</span> de grande importancia em tempos volvidos, com a especialidade -proveniente da preponderancia da Casa das Rainhas. Assim encontrei alli -noticias de Santarem, Alemquer, etc., que não esperava achar; assim, -por exemplo, foi o corregedor de Torres que em 1640 teve o encargo -de regular a segurança e a administração em Cascaes, Alemquer, etc., -terminado o dominio hespanhol.</p> - -<p>Do tempo dos Filippes estão registados muitos documentos sem duvida -valiosos.</p> - -<p>Como se vê, o archivo municipal de Torres contém dados de valor para a -historia do municipio e para a politica geral do paiz.</p> - -<p>E mais, é claro, os que importam á vida municipal, os -economico-administrativos, os que se referem a obras publicas, viação, -preços de generos, etc.</p> - -<p>Visitei tambem o archivo da Santa Casa da Misericordia.</p> - -<p>Se entro sempre com respeito n’um archivo municipal, que é onde está o -documento do homem, rico ou pobre, nobre ou plebeu, entro com veneração -e amor n’um cartorio de Casa de Misericordia: alli está a vida do -pobre, do enfermo, do engeitado, do encarcerado; alli está a meu vêr -a instituição mais gloriosa que tem o povo portuguez. A beneficencia -moderna nas suas multiplas manifestações não attinge a perfeição d’esse -maravilhoso instituto que corresponde perfeitamente ás necessidades -sociaes.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_275">[Pg 275]</span></p> - -<p>O livro mais antigo que vi data de 1608. Vi livros de tombos, accordos, -receita e despeza, compromissos, e de enterros. Ha um Tombo grande, -que é um formidavel infolio, do tempo de D. João V. Tem medições de -propriedades urbanas e ruraes que o tornam precioso. N’este volume está -a descripção minuciosa da egreja e Casa da Misericordia, feita em 1730. -No termo de Torres havia hospitaes e albergarias na idade média, no -Amial, Carvoeira, Turcifal, S. Gião, Ribaldeira, Azueira, S. Mamede e -Dois Portos.</p> - -<p>É extraordinario o que se fez em Portugal no ramo de beneficencia -publica, nos primeiros seculos da monarchia. Creio que foi no seculo -XVI, principalmente, que se realisou a concentração nas Misericordias -de todas essas pequenas instituições, albergarias, gafarias, etc. De -todas vi noticias no archivo da Misericordia.</p> - -<p>Finalmente fui vêr, na amavel companhia do Prior, o archivo de Santa -Maria do Castello. Esta notavel egreja, antiga capella real, conserva -ainda o seu archivo! é caso raro em Portugal. Porque os archivos -parochiaes, quasi todos, foram concentrados pelos prelados, e jazem -ignorados nos Seminarios, alguns sem a minima organisação. Este lá -está nas suas arcas velhinhas, conservado e limpinho, amado pelo digno -parocho. Vi lá pergaminhos do seculo XIV, do bom rei D. Diniz, de 1307 -um d’elles, e muitos dos seculos XV e XVI. É bem singular um archivo -parochial com os seus velhos<span class="pagenum" id="Page_276">[Pg 276]</span> livros, amarellecidos pelo tempo, dos que -nascem, dos que se casam, dos que morrem; dos que passaram n’este mundo -de esperanças, de alegrias, de soffrimentos.</p> - - -<h3>No Varatojo</h3> - -<p>Na sala do capitulo vi dois lettreiros:</p> - -<p class="center"> -Aqui descansão<br /> -as cinzas do Ven.ˡ<br /> -P. F. Antonio das<br /> -Chagas. Miss. Apost.<br /> -e instituidor deste<br /> -Semin.ᵒ faleceu a<br /> -20 de outubro de 1682.<br /> -</p> - -<hr class="tb" /> - -<p class="center"> -Fr. Joaq.ᵐ do Espirito Santo<br /> -restaurador deste<br /> -Seminario<br /> -Fal. em Santarem<br /> -3 d’agosto 1878<br /> -</p> - -<p>Na quadra, perto da porta que deita para a matta:</p> - -<p class="center"> -Aqui jáz Felipa do<br /> -Reguo molher de Nuno<br /> -de Sampaio... 1530<br /> -</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_277">[Pg 277]</span></p> - -<p>Reparei na egreja nas seguintes pinturas:</p> - - -<p>Na capella-mór:</p> - -<p class="poetry p0"> -Annunciação<br /> -Adoração dos reis<br /> -Adoração dos pastores<br /> -<i lang="la" xml:lang="la">Noli me tangere.</i><br /> -</p> - -<p>Na sacristia:</p> - -<p class="poetry p0"> -Milagre de Santo Antonio. O burro ajoelhado ante a sagrada particula<br /> -Pentecostes.<br /> -</p> - -<p>Na ante-sacristia:</p> - -<p class="poetry p0"> -presepe, pequeno quadro em madeira, de trabalho fino, um tanto estragado.<br /> -</p> - - - -<p>A quadra, arcada e varanda coberta, o travejamento assente sobre -columnellos, está bem conservada.</p> - -<p>Para esta quadra ou pequeno claustro diz uma casa a que chamam dos -retratos, que me parece ter sido uma aula ou casa do capitulo.</p> - -<p>O portal desta casa é em manuelino, de trabalho apurado e em boa pedra; -é uma peça nitida. Nesta casa está uma pintura em madeira, o Calvario.</p> - -<p>A moldura do quadro é de pedra lavrada, tambem em manuelino; pareceu-me -uma antiga porta ou janela aproveitada para alli.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_278">[Pg 278]</span></p> - -<p>Estes trabalhos teem intima relação com os portaes de S. Pedro, de S. -Thiago, ediculo dos Perestrellos, etc. Vê-se que em Torres Vedras houve -na primeira metade do seculo XVI artistas trabalhando com methodo e -gosto.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p>A porta principal da egreja do Varatojo é ogival, singela, aos lados -tem brazões com as armas de Portugal e o rodisio de D. Affonso V.</p> - -<p>As ventanas da torre são ogivaes.</p> - -<p>E vi n’uma córte contigua um portal antigo tambem de ogiva.</p> - -<p>Por isto se vê bem que este antigo edificio soffreu reconstrucções.</p> - -<p>A quadra deve ser da primitiva, apezar de não apresentar ogivas; o -travejamento é singular; no todo singelo ha uma pureza, uma sobriedade -que nos incute ideias de paz e recolhimento; como na matta, de vetusto -arvoredo, frescas fontes murmurejantes, e clementes horizontes.</p> - -<p>Bello sitio para dulcificar maguas e socegar corações attribulados. Por -aqui passeou a sua grande dôr e cruel desesperança um rei, D. João II, -depois do desastre de Santarem.</p> - - -<h3>Uma inscripção moderna</h3> - -<p>Na egreja de S. Pedro, proximo ao pulpito, repousa Luiz da Silva -Mousinho d’Albuquerque, sob campa rasa, com o lettreiro:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_279">[Pg 279]</span></p> - -<p class="center"> -AQVI IAZ<br /> -LVIZ DA SIL<br /> -VA MOVSI<br /> -NHO DE AL<br /> -BVQUERQ<br /> -QVE FALES<br /> -CEO NESTA<br /> -VILLA DE TOR<br /> -RES VEDRAS<br /> -AOS XXVII DE<br /> -DEZEMBRO<br /> -DE MDCCCXLVI</p> - -<hr class="r5" /><p class="center"> -REQ. I. PAC.<br /> -</p> -<hr class="r5" /> -<p>É singular como em Torres e em pleno seculo XIX se lavrou tal -inscripção; mesmo o caracter da lettra é archaico; parece que o -entendido que fez o modelo para o lavor do canteiro poz esmero em -imitar o antigo, e muito antigo.</p> - -<p>Porque n’esta mesma egreja se encontram lettreiros dois seculos mais -velhos sem tantos archaismos.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_280">[Pg 280]</span></p> - - -<h3>Sinos</h3> - -<p>Vi os de S. Pedro.</p> - -<p>Um tem na fimbria <i lang="la" xml:lang="la">Sanctus Deus</i> e o nome Miguel Delmaco.</p> - -<p>Outro: <i lang="la" xml:lang="la">apprehende arma et scutum</i>.</p> - -<p>Miguel Delmaco, 1673.</p> - -<hr class="r5" /> - -<p>Sineta: tem a data 1802.</p> - - -<h3>Quinta das Lapas</h3> - -<p>A quinta está na branda encosta da serra da Achada. Esta serra e as -outras d’estes sitios são grandes collinas mais ou menos declivosas, de -100 a 150 metros d’altura sobre os valles que as separam. Ás vezes as -faldas das collinas alastram-se, desdobram-se em suaves encostas; em -pontos alargam-se os valles em varzeas ferteis. O monte coroado pelas -ruinas dramaticas do castello de Torres Vedras está rodeado de varzeas -amplas. Nos banhos dos Cucos a chan, onde estão os hoteis, o casino, -o jardim, o edificio das thermas, está cercada de montes de forte -declive, semelhando uma cratéra, quasi completa, rota apenas por breve<span class="pagenum" id="Page_281">[Pg 281]</span> -chanfro por onde passa o rio e a estrada que leva a Torres, e uma fraca -depressão, mais a sul, que vae ter ao caminho de ferro, na visinhança -dos pequenos tuneis. O terreno de quasi todas estas chans é de alluvião -moderna, feita pelo Sizandro. O solo em que assenta a parte baixa da -villa está hoje metro e meio mais alto que no seculo XVI, o que se -manifesta em antigas construcções muito soterradas.</p> - -<p>As varzes são ferteis e bem cultivadas; nas vertentes agriculta-se -tambem, as vinhas ostentam-se viçosas; pinhaes forram grandes trechos -das collinas, apresentando arvores bem desenvolvidas.</p> - -<p>E bom seria que mais semeassem ou plantassem; um pinhal é util e -agradavel, dá sombra e aroma hygienico; serve a lenha, a rama, a pinha; -a moderna medicina com muita razão recommenda o ar do pinhal, e, tem-se -visto nos ultimos annos, o córte de pinhaes para combustivel, para -construcção, para supportes de galerias mineiras, dá bom dinheiro.</p> - -<p>Até parece que dá saude o aspecto de um pinheirinho verde, de fresco -avelludado, de perfume resinoso. Por isto pinheiro cortado, pinheiro -semeado, e quantos mais pinhaes melhor, por esses montes onde o sol, o -solo e a aragem se encarregam de o alimentar; se elle cresce que é um -encanto até nos areaes da beira-mar onde a rajada do oceano chega a ser -um açoute; porque o bom<span class="pagenum" id="Page_282">[Pg 282]</span> pinho formoso e hygienico não exige cuidados -de cultura.</p> - -<p>Por entre pinhaes mesclados de algumas vinhas e outras culturas segue -a estrada de Torres para as Lapas; a principio do caminho rompe o -bucolismo da paisagem a massa alvacenta da villa, e o seu outeiro -escuro encimado pelas velhas muralhas do castello, os altos muros -negros da sua alcaçova ou palacio, em tragica derrocada. Faz impressão -aquella ruina; suggere tempos idos, historias mui velhas.</p> - -<hr class="tb" /> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">Torres mais antiga, já condado,</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Por turdulos se crê ser erigida,</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Por dote das rainhas, é morgado,</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">E de muitas já foi favorecida,</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">O Beato Gonçalo lá enterrado</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Por milagres a faz ser mais luzida,</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Assim como João a decorou</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Nas côrtes que já nella celebrou.</span><br /> -</p> - -<p>Como diz o bom e patriota Silveira no <i>Côro das Musas</i>.</p> - -<p>Passa uma curva da estrada, e deixa-se de avistar casaria nova e -muralhas velhas; segue o caminho na verde paisagem campesina.</p> - -<p>A estrada é boa, pouco frequentada, com aspectos variados, dominando o -verde pinhal. De subito uma casaria branca de aldeia, uma egreja, e<span class="pagenum" id="Page_283">[Pg 283]</span> -na encosta o palacio, bem ao sol, com as suas dependencias, os seus -jardins, pomares, vinhas e matta de arvoredo alto.</p> - -<p>Vê-se uma capella de boa construcção e logo uma entrada monumental, de -ampla arcada; entra-se no terreiro; a um e outro lado edificações que -são dependencias do palacio, na frente a fidalga residencia com larga -escadaria e desafogada varanda. Todavia dá logo a impressão de edificio -incompleto.</p> - -<p>Á monumental entrada, á elegante escada não corresponde o edificio -nobre que parece acanhado e por acabar. Houve alteração no plano, -com certeza. A fachada que deita para o jardim é mais harmonica; a -mansarda, os frisos azulejados dão-lhe graça.</p> - -<p>O palacio, dizem, foi erguido pelo primeiro marquez de Alegrete, -Manuel Telles da Silva, conde de Villar Maior. Foi feito marquez por -D. Pedro II em 1687 (v. <i>Diario de Noticias,</i> de 17 de junho de -1902). Provavelmente foi começado, houve demorada construcção, soffreu -alterações; a mansarda será do meio do seculo XVIII; é possivel que a -escadaria seja da época de D. João V. Para admirar seria que nesses -tempos um Telles da Silva, em poucos annos, observando um só plano, -conseguisse erguer um palacio, chamados, como eram, os principaes -da illustre familia, para altos cargos no reino, no ultramar e no -estrangeiro.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_284">[Pg 284]</span></p> - -<p>Existe na matta uma capella, incompleta, dedicada a Santo André Avelino -pelo conde de Tarouca, Fernando Telles da Silva, em 1778. E ha, noutro -ponto da matta, uma ermida rustica, com seu alpendre, um pouco mais -antiga.</p> - -<p>No jardim alegretes e assentos são azulejados, representando scenas de -caçadas.</p> - -<p>As salas teem tectos de madeira e rodapé alto de azulejos, como as do -palacio do Correio-Mór, perto de Loures, e as do casal do Falcão, perto -de Carnide, agora felizmente restaurado, segundo ouvi dizer, sob a -direcção do conhecido e estimado architecto sr. Raul Lino.</p> - -<p>Nos jardins vi magnificas hortenses e na matta ulmeiros, pinheiros -mansos, seculares medronheiros, sobreiros veneraveis. O meu amavel guia -disse-me os nomes de algumas arvores, conservados na tradição familiar; -o mais antigo é o sobreiro dos quatro irmãos, assim chamado porque a -pouca distancia do solo o tronco se divide em quatro pernadas reaes, -cada uma d’ellas como uma grande arvore.</p> - -<p>Ha uma fonte de agua ferrea na matta, e outra numa alameda de ulmeiros, -com um grupo em marmore, veado filado por um rafeiro; no outro extremo -d’essa alameda deliciosa fica o jogo da bola.</p> - -<p>Essas salas de grande pé direito, de chão ladrilhado, de lambris de -azulejo, e tectos de madeira, conservando o ar antigo, não estão -vasias<span class="pagenum" id="Page_285">[Pg 285]</span> ou despidas. Estas, felizmente, teem muito que vêr e respeitar.</p> - -<p>Vi moveis antigos, cadeiras d’espaldar com os brazões de familia, -grandes leitos de pau preto, com torcidos e lavores.</p> - -<p>Os donos da casa fizeram abrir armarios e eu vi desfilar pratas antigas -marcadas; ceramicas e crystaes, porcellanas de Sèvres, de Saxe, da -India e Japão, de verdade e alto valor. Vi um copo de crystal lapidado -com uma vista de Santarem, pintada no crystal, bem interessante: e -um dragão de prata, perfumador enorme, trabalho pouco visto, que me -disseram ser feito em Moçambique.</p> - -<p>Nas paredes retratos de pessoas de familia, e que familia! esta dos -Telles da Silva! É vêr ahi nas genealogias as séries de paginas com -descendencias e arvores de costado mais frondosas que o sobreiro dos -quatro irmãos. Até o venerando D. Manuel Caetano de Sousa escreveu uma -obra em dois volumes (Bibliotheca Nacional de Lisboa. Manuscriptos, -fundo antigo, C-3-16 e 17. N.ᵒˢ 1048-49), a respeito d’esta familia -com o seguinte titulo bem curioso.—<i>Corôa genealogica, historica -e panegirica da Excellentissima Casa de Tarouca formada do purissimo -ouro dos Silvas, illustrada com a esplendidissima pedraria dos Menezes, -adornada com as augustissimas flores da Magestade, fechada com -elevados semi diademas da Heroicidade, terminada na altissima esphera -da Soberania, consagrada com a sempre venerada cruz<span class="pagenum" id="Page_286">[Pg 286]</span> da Santidade, -dedicada ao ex.ᵐᵒ sr. D. Estevão de Menezes filho primogenito dos -ex.ᵐᵒˢ srs. condes de Tarouca João Gomes da Silva e D. Joanna Rosa de -Menezes—.</i></p> - -<p>Pertence effectivamente a esta familia o celebre Beato Amadeu que tão -grande fama conquistou na Italia.</p> - -<p>Que singular encanto o de ouvir a dona da casa explicando alguns -retratos de familia! Que consolação, neste paiz de gente estragada, -encontrar um ninho conservado! Que rara impressão no conjuncto, -milagroso entre nós, de tantas recordações e tradições, vivas, na -mente, na linha, nas feições, na voz da herdeira lidima!</p> - -<p>A um marquez de Penalva dizia o Tolentino:</p> - -<p class="poetry p0"> -<span style="margin-left: 1em;">Hontem soube o que podia</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Estilo suave e brando</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">E quanto podeis fallando</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Eu o vi na Academia</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Nas almas fogo acendia</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Vossa discreta oração,</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Sobre a minha pretenção</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Vos peço que assim oreis,</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">E que ao principe falleis</span><br /> -<span style="margin-left: 1em;">Como fallaes á nação.</span><br /> -</p> - -<p>Pois ainda está representado na familia o estylo suave e a discreta -oração, louvados pelo poeta.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_287">[Pg 287]</span></p> - -<p>Poetas houve tambem nesta familia; poetas e eruditos, homens de -guerra e de diplomacia; na Bibliotheca Lusitana estão inscriptos os -notaveis nas lettras e sciencias. Por estas salas, jardins e bosques -passearam academicos, não faltam sitios para tranquilla meditação. E -no bello terreiro desafogado com certeza se trabalhou na nobre arte da -cavallaria; talvez se corressem touros e jogassem cannas; houve tambem -na familia cavalleiros notaveis, mestres reconhecidos na equitação, -tratadistas na especialidade.</p> - -<p>Porque se chama quinta das Lapas? Ha por aqui algumas lapas, grutas, -cavernas? Parece que houve lapas a que se attribuiam lendas de -mouros. Perto de casa ha uma vinha, um grupo de pinheiros mansos, uma -elevação de terreno de poucos metros de altura; ahi umas cavidades -consideraveis. Parece que em tempos alguem fez excavações; acharam -cacos, louças partidas. Tudo se extraviou.</p> - -<p>Seria uma mamunha? Um d’aquelles tumulos prehistoricos, em que as -sepulturas eram cobertas por um monticulo artificial? Não sei, o que -hoje se vê pouco significa.</p> - -<p>Numa construcção ou pavilhão de fresco perto do jardim fui encontrar -no embrechado que reveste as paredes interiores alguns exemplares de -contas vitreas coloridas de fabrico egual ao das contas de Chellas, da -capella (desapparecida) das Albertas, e da cascata da Quinta do Meio. -Aqui<span class="pagenum" id="Page_288">[Pg 288]</span> tambem estas singulares contas são acompanhadas de cylindros, -discos, etc., de vidro escuro. Continúa para mim a ser um problema a -proveniencia de taes objectos.</p> - - -<h3>O caminho dos Cucos</h3> - -<p>Pela avenida ampla, arborisada, chega-se á estação do caminho de -ferro, que nos fica á direita; está á vista o castello ennegrecido -e escalavrado, no seu morro severo destacando entre as collinas; o -caminho passa sob a via ferrea; passa a ponte do Rei, sobre o Sizandro; -vamos entre vinhas e arvoredos; agora a arcada do aqueducto; á direita -uma ermida antiga com umas construcções, ao lado um portão com seus -enfeites; era a albergaria de S. Gião, ou Julião. Lá se conservam -inscripções que nos dizem que os sapateiros da villa no anno de 1359 -(era 1397), construiram o modesto albergue, cuja instituição se -incorporou na Misericordia em 1586. Os confrades de S. Gião ahi ouviam -missa aos domingos. Um respeitador de antiguidades renovou a inscripção -em 1849.</p> - -<p>Pouco adiante, á esquerda da estrada, indo para os Cucos, existe uma -quinta de construcção vistosa, a quinta das Fontainhas, com seu terraço -e jardim, onde se lê um lettreiro, na parede occidental da casa, que -diz:</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_289">[Pg 289]</span></p> - -<p class="center"> -Sua Alteza Real<br /> -O sern.ᵐᵒ principe o sr. D. João<br /> -e a seren.ᵐᵃ princ.ᵃ<br /> -a sr. D. Carlota Joaquin<br /> -e o sr. infante D. Pedro Carlos<br /> -jantaram n’esta quinta<br /> -no dia 16 d’outubro<br /> -de 1797.<br /> -</p> - -<p>Este infante D. Pedro Carlos tinha então dez annos. D. Marianna -Victoria, filha de D. Maria I, casou com D. Gabriel, infante de -Hespanha. Deste casamento nasceu o infante de Hespanha D. Pedro -Carlos de Bragança e Bourbon, que foi almirante em Portugal. Nasceu -em Aranjuez em 18 de julho de 1787, e falleceu no Rio de Janeiro a 26 -de maio de 1813. Este infante casou, no Rio, em 1810, com D. Maria -Thereza, princeza da Beira.</p> - -<p>Os banhos dos Cucos são conhecidos de ha muito; a virtude singular -d’esta agua já em épocas remotas attrahia enfermos.</p> - -<p>Ainda existem as casinholas onde se abrigavam os miseros banhistas.</p> - -<p>Hoje as installações hydrotherapicas das thermas dos Cucos são boas, -feitas com largueza, direi mesmo com generosidade. O edificio das -thermas, a casa dos machinismos, o amplo casino, os dois grandes -chalets, e outras construcções, rodeiam um grande rocio ajardinado e -arborisado. A grande obra começou em novembro de 1890; em julho<span class="pagenum" id="Page_290">[Pg 290]</span> de -1892 já as thermas funccionavam, provisoriamente; em 15 de maio de -1893 realisou-se a inauguração. Todavia não está cumprido o programma -inicial, faltam chalets, e recreios para os banhistas, ou para as -pessoas de familia que acompanham os enfermos. O principal está feito, -e isto deve-se á coragem do opulento proprietario sr. José Gonçalves -Dias Neiva. Á coragem e á generosidade, porque me affirmaram que embora -a frequencia seja grande já, todavia nem 2% rende o capital alli -empregado.</p> - -<p>Como o estabelecimento thermal fica a dois kilometros de Torres Vedras, -muitos banhistas ficam nos hoteis da villa, que são regulares, e em -algumas casas particulares.</p> - -<p>A villa lucra com isto dezenas de contos annualmente, todavia nem o -municipio nem os habitantes se esforçam por tornar a villa aprazivel -aos seus hospedes; nem commodidade, nem distracções; nada que realce -a natural belleza d’aquelles sitios. Bem lindos são os arredores da -villa, convidando a pequenos passeios campestres, mas raras as estradas -que prestem, as de macadam cheias de poeira, as primitivas de barrancos -e pedregulhos. Uma das questões locaes é o abastecimento de aguas -potaveis; esta porém não importa muito aos banhistas, que quasi todos -consomem a agua dos Cucos. Eu não bebo d’outra; faz bem e é agradavel, -com o seu ligeiro sabôr salgado. Liga-se optimamente com o vinho. É uma -excellente<span class="pagenum" id="Page_291">[Pg 291]</span> agua de mesa que os sãos, não só os enfermos, tomam com -agrado. Melhoram o appetite e facilitam a digestão.</p> - -<p>Esta agua, que tem o maravilhoso lithio, é <em>muito pura</em> segundo -a analyse microbiologica, feita em 1904, pelo illustre chimico Carlos -Lepiérre.</p> - -<p>Os pobresinhos teem tratamento gratuito nos Cucos; a poucos utilisa -esse beneficio porque nos Cucos não encontram albergue ou hospital. -Para isto me parece deveria olhar a Camara Municipal e a Misericordia -de Torres Vedras; proximo dos Cucos um albergue gratuito para pobres -seria um grande bem. E ainda outro de preço muito moderado, uma -hospedaria simples, a simplicidade não exclue o asseio e hygiene, -de alimentação singela e mobilia barata, onde os menos remediados -encontrem agasalho.</p> - -<p>Parece facil, isto. Naquelle chanfro do terreno que liga a grande -varzea dos Cucos ao sitio dos pequenos tunneis do Caminho de ferro -seria facil construir modestos albergues, pequenas moradas de -construcção economica.</p> - -<p>É generoso o coração do sr. Neiva, consideraveis os seus bens de -fortuna, e effectivo o seu altruismo, mas em emprezas destas é bom -interessar differentes entidades, para que se uma esmorecer, outras -continuem a obra, a util obra começada.</p> - -<p>Encontrou o sr. Neiva um ajudante dedicado no dr. Justino Xavier da -Silva Freire, director<span class="pagenum" id="Page_292">[Pg 292]</span> medico das thermas. É um clinico sensato, -naturalmente lhano, muito accessivel, attencioso aos muitos enfermos. -Que longas narrativas das massadoras enfermidades elle escuta com -delicada paciencia, conseguindo extrahir das confusas exposições a -historia da doença, o fio do caso, os antecedentes do enfermo. Os seus -relatorios annuaes das thermas são muito instructivos e tão nitidamente -escriptos que qualquer cliente os comprehende, aproveitando com a -leitura.</p> - -<p>As aguas dos Cucos são chloretadas, sodicas, bicarbonatadas, -sulfatadas, lithinicas, etc. Encontram os chimicos nellas o brometo de -sodio, o chloreto de sodio, os bicarbonatos de calcio, de estroncio, e -de manganez, o chloreto de magnesio. Pois esta complexidade toda produz -uma agua limpida, muito potavel, agradavel ao paladar. Mas o que lhe dá -virtude primacial é o chloreto de lithia que em 1:000 grammas entra por -0,0212.</p> - -<p>É isto que torna esta agua preciosa para gottosos e rheumaticos. Faz -bem aos intestinos, e combate a obesidade.</p> - - -<h3>Casa dos Clerigos pobres</h3> - -<p>Junto á egreja de S. Pedro está a casa da irmandade dos Clerigos pobres.</p> - -<p>Tem nas paredes quadros em azulejo que estranhei um pouco pela -composição artistica. São<span class="pagenum" id="Page_293">[Pg 293]</span> copias de gravuras; o ingenuo pintor até -copiou as assignaturas da chapa</p> - -<p class="center"> -<i>Author Claud. Coell. delin.</i><br /> -<i>Fran. Houat. sculp.</i><br /> -</p> - -<p>que significa Claudio Coelho desenhou e Francisco Houat gravou. No -tecto d’esta casa estão pintados em tela os quatro evangelistas. -Acham-se mencionados nas <i>Memorias de Volkmar Machado</i> (pag. 318); -são de Bernardo Antonio de Oliveira Goes. O pae d’este, Manuel Antonio -de Goes, era pintor de figura e pintou muitos azulejos. Vi outras telas -que me pareceram do mesmo pincel na egreja da Graça.</p> - - -<h3>O Asylo da Conquinha</h3> - -<p>Fica este asylo a breve distancia de Torres, uns vinte minutos de -agradavel passeio a pé. Segue-se a estrada da Varzea, entra-se no amplo -valle, vestido de culturas, arvoredos fructiferos, bellos vinhedos; -ao lado da estrada fica um edificio moderno de aspecto alegre e -confortavel, convidativo, é o asylo de S. José; como o sitio se chama -a Conquinha, é vulgarmente conhecido por este nome. Santa instituição! -Foi este asylo fundado e dotado pela benemerita D. Maria da Conceição -Barreto Bastos, fallecida em 21 de maio de<span class="pagenum" id="Page_294">[Pg 294]</span> 1901. Velhinhos -impossibilitados de trabalhar encontram aqui agasalho e sustento, -abrigo tranquillo nos seus ultimos annos de vida.</p> - -<p>A casa é cercada por ampla quinta bem cultivada com seus jardins -floridos, e bellas arvores de fructa. Tudo muito asseiado e -confortavel; mais me agradou ainda o ar satisfeito dos asylados, -felizes naquelle ninho de caridade. A fundadora instituiu tambem uma -escola, na villa, para meninas, com ensino gratuito; a sua memoria deve -ser abençoada; o seu nome gravado no marmore dos benemeritos, e no -coração de todos os que veneram estes bons exemplos do incondicional -altruismo christão. Quando alli estive, visita casual, era gerente ou -director do asylo, o sr. conego prior Antonio Francisco da Silva, cujo -nome ouvi cercado pelos asylados da Conquinha com palavras de respeito -e gratidão.</p> - - -<h3>Ruços, além!</h3> - -<p>Preparava-se a jornada de Ceuta.</p> - -<p>Havia cabeças enthusiastas, e cabeças duvidosas; timidos e prudentes -ao lado dos muito ousados. El-rei D. João I estava em Cintra com os -infantes; mandou convocar os do Conselho para Torres Vedras; eram -o conde de Barcellos, o condestavel D. Nuno, os mestres das ordens -de Christo, de Santiago e d’Aviz, o prior do Hospital,<span class="pagenum" id="Page_295">[Pg 295]</span> Gonçalo Vaz -Coutinho, Martim Affonso de Mello, João Gomes da Silva, muitos outros -senhores e fidalgos.</p> - -<p>Nesses dias Torres Vedras acolheu muitos cavalleiros de espora dourada, -os grandes senhores territoriaes e militares do paiz.==El Rey partio -de Cintra, e foy folgando por aquella comarca de Lisboa caminho de -Torres Vedras (isto conta o Azurara, na <i>Chronica de D. João I</i>, -parte 3.ᵃ, cap. 24) e antes disto chegando El-Rei a <i>Carnide</i>, o -infante Dom Enrique que muito desejava por seu corpo fazer alguma cousa -aventejada, chegou a seu padre e disse: <i>Senhor, primeiro que por -estes feitos mais vades adiante, porque com a graça de Deos vem já por -tal via, que viram a boa fim, eu vos peço por mercê que me outorgueis -duas cousas. A primeira que eu seja hum dos primeiros, que filhe -terra quando a Deos prazendo chegarmos davante da cidade de Ceita; -e a segunda que quando a vossa escada real fôr posta sobre os muros -da cidade, que eu seja aquelle que vá primeiro por ella, que outro -algum.</i></p> - -<p>Isto disse em Carnide o infante D. Henrique a el-rei D. João; estranho -requerimento para a morte na vanguarda extrema, bem natural ao forte -coração do rapaz. Chegou el-rei a Torres Vedras, e logo teve uma falla -com o condestavel.</p> - -<p>Este approvou o plano e prometteu ao rei a sua influencia favoravel...</p> - -<p>Tratou-se logo do corregimento da casa para o<span class="pagenum" id="Page_296">[Pg 296]</span> conselho <em>a qual era -hua sala dianteira, que está em aquelles paços de Torres Vedras, onde -está a capella</em>.</p> - -<p>Numa quinta-feira o rei e seus filhos ouviram missa do Espirito Santo, -naturalmente na egreja de Santa Maria, que era capella real.</p> - -<p>Celebrou-se o conselho; foi elrei que publicou o fim da reunião; depois -fallou o condestavel approvando a jornada, e o infante D. Duarte no -mesmo sentido. Mas havia gente duvidosa, novos que temiam o risco, e -criticavam o arrojado plano. Então surgiu um dito que fez época.</p> - -<p>João Gomes da Silva, que era homem <em>forte e ardido, cujas palavras -sempre traziam jogo e sabor</em>, levanta-se no meio dos indecisos e -exclama dirigindo-se a elrei==<i>Quanto eu, Senhor, não sei al que diga -senão, ruços, alem</i>, apontando para o sul, na direcção do Algarve -d’alem mar, e isto dizia porque elrei e os mais dos que alli estavam -tinham já as cabeças cheias de cans. Elrei e os mais riram-se, e assim -folgando fizeram fim de suas falas==. Terminaram o conselho a rir-se, -os valentes e audazes; iam para Ceuta, para a conquista africana, o -inicio glorioso dos descobrimentos, para esse triumpho e sacrificio -incomparavel da nacionalidade portugueza. Pois esse grito <em>ruços, -alem</em>, ouviu-se nos paços reaes de Torres Vedras. (Azurara, parte -3.ᵃ da <i>Chronica de D. João I</i>, cap. 26).</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_297">[Pg 297]</span></p> - - -<h3>Passeio a Santa Cruz de Ribamar</h3> - -<p>No dia 27 de setembro de 1905, depois do banho e do almoço, em commodo -trem, fui a Santa Cruz.</p> - -<p>A estrada vae ao campo do Amial, pelo sopé do monte de S. Vicente, que -nos fica á direita; depois pela esquerda a falda do Varatojo. A estrada -segue na grande varzea, comprida e ampla, importante, onde o Sizandro -abre o seu leito.</p> - -<p>Vinhas magnificas, cepas fortissimas carregadas de esplendida uva. A -estrada incómmoda pela muita poeira. Fiz uma paragem na quinta dos -Chãos, á direita do caminho. Pouco dista da estrada, bem accessivel -ao trem. A velha ermida serve de armazem; só me chamou a attenção uma -pedra com lettreiro, do seculo XV, solta, na pequena sacristia; não -tirei apontamento porque imaginei que a tinha visto publicada nas -<i>Memorias de Torres Vedras</i>. Verifiquei depois que não está! -seria bom, e creio que facil, recolher a pedra na Camara Municipal, -onde se guardam já algumas pedras significativas na historia de Torres -Vedras. Alguns homens cavavam; eu vi a descoberto um grosso paredão de -alvenaria em argamassa mui antigo.</p> - -<p>No terreno d’esta propriedade teem apparecido por vezes vestigios -romanos; provavelmente existiu alli alguma <i lang="la" xml:lang="la">villa rustica</i>.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_298">[Pg 298]</span></p> - -<p>Seguindo o passeio. Passamos por boas propriedades, e alguns grupos de -casaes.</p> - -<p>Os campos estão animados, as estradas concorridas; é uma festa agora; a -grande festa das vindimas. Tudo sorri com os bellos racimos do divino -Baccho, doce e aromatico.</p> - -<p>Calcula-se em 80:000 pipas a producção do vinho no termo de Torres -Vedras; mas este anno ha crise de fartura, os preços estão muito -baixos; queima-se por isto muito vinho para fazer aguardente, que se -vende de 80 a 85 mil réis a pipa de 534ˡ,24, posta em Villa Nova de -Gaya.</p> - -<p>Todos estes terrenos são de alluvião moderna, mas passadas tres quartas -partes do caminho começa a apparecer a areia maritima. Cultiva-se -milho, feijão frade, grão de bico.</p> - -<p>Passamos junto de alguns moinhos em grande businada, as cordas cheias -de louça, dezenas de vasos de barro; os moleiros d’estes sitios são -grandes amadores d’esta musica.</p> - -<p>Passamos por alguns pinhaes, e chegamos a Santa Cruz, logar formado por -algumas casas antigas, e bastantes modernas.</p> - -<p>É a praia balnear de Torres Vedras. Pessoas abastadas da villa e de -logares proximos aqui mandaram construir vivendas, nas arribas de ar -lavado pela brisa do Atlantico. A praia é bonita; uma fita de areia -branca, de brando declive, abrigada pelas escarpas não muito altas, -de aspecto severo, formadas pelas rochas de colorido variado.<span class="pagenum" id="Page_299">[Pg 299]</span> Um -grande rochedo alteroso destaca na praia. Foi accessivel em tempo, -porque ainda se observa a certa altura um lanço de escada talhado na -rocha; mas as vagas esboroam a base. Talvez servisse de atalaia para -descobrir corsarios mouriscos, ou marcha do peixe, da baleia, por -exemplo, frequente por este mar em tempos idos. Pelos piratas mouros -ou corsarios argelinos foi a costa visitada, parece que com certa -frequencia, ao que dizem velhas chronicas. Do alto da arriba o mar -apresenta o aspecto de amplo golpho; a norte prolonga-se, entrando -muito pelo oceano, a peninsula de Peniche, e em frente avistam-se -nitidamente os rochedos das Berlengas e Farilhões. Notei aqui um facto -talvez interessante; avista-se um largo trecho da costa, escarpas -de 40, 30 e 20 metros de altura; em certo ponto a escarpa é mais -baixa, chega talvez a quinze metros; por ahi sobem as areias que vão -alastrar-se terra dentro; vê-se a duna encostada á rocha nos outros -pontos que não vence; pára ante o obstaculo; alli vence, entra pelo -chanfro.</p> - -<p>E poderá ainda marcar-se a historia da invasão porque na chronica do -Purificação ao tratar de Ribamar e do convento de Pena Firme se mostra -que ainda no seculo XVII o terreno não estava vestido pelo manto de -areia em tamanha extensão.</p> - -<p>Logo de entrada encontrei, bem agradavel surpreza, o sr. Rodrigues -da Silva, cavalheiro que<span class="pagenum" id="Page_300">[Pg 300]</span> eu já conhecia de Torres Vedras; é sabedor -da historia da villa e termo, amador de antiguidades, e muito amavel -companheiro; com elle fui vêr o monumento funerario mandado fazer por -Valerio e Julia, que se conserva no logar marcado nas <i>Memorias da -Villa de Torres Vedras</i> (pag. 20 da 2.ᵃ ed.), e no <i>Corpus</i>. A -distancia de poucos metros vê-se uma sepultura, algumas lages cravadas -no solo, marcando perfeitamente o vão sufficiente para um corpo humano. -Parece que em tempos se viam alli vestigios de outras sepulturas; a que -existe agora está á beira da escarpa; mais alguns annos e o embate das -vagas a fará desapparecer.</p> - -<p>Na ermida de Santa Cruz, ou de Santa Helena, vi uma imagem d’esta santa -que me pareceu anterior, pela rudeza e ingenuidade da esculptura, ao -seculo XVI.</p> - - -<h3>Na missa e no mercado</h3> - -<p>No domingo, 14 d’agosto de 1904, assisti á missa na egreja de S. Pedro. -Muita gente, com bastante respeito. Á sahida fiz de janota parado á -porta da egreja para vêr o desfilar dos devotos. Primeiro os homens -dos campos, das vinhas, com seus varapaus; mulheres do campo de chale, -lenços mal postos na cabeça, á larga. Seguiram as mulheres da villa; -caras agradaveis poucas, expressões duras não estupidas nem alvares; -na<span class="pagenum" id="Page_301">[Pg 301]</span> grande maioria cabellos castanho-escuro; cabellos pretos mais -raros; algumas cabelleiras ruivas, e algumas pelles sardentas.</p> - -<p>Cabellos corredios, na maioria, poucos em madeixas.</p> - -<p>Alguns olhos azues, pelles avermelhadas.</p> - -<p>Homens de construcção regular, as mulheres de thorax estreito, pouco -seio, mal geitosas.</p> - -<p>Durante a missa os homens não largam os varapaus; quando ajoelham vê-se -grande numero, porque se encostam, e não deitam no chão o inseparavel.</p> - -<p>Usam o simples marmelleiro ou zambujeiro, raros os paus ferrados.</p> - -<p>As mulheres usam poucos ornatos, e pouco ouro.</p> - -<p>No terreiro proximo da egreja faz-se o mercado. Vendiam melões, -melancias, uvas lindas, brunhos varios, maçãs grandes, variedade de -peras, aboboras, tomates, pouca hortaliça.</p> - -<p>No mercado de peixe, atraz da egreja, sardinha e sarda, fresca e -salgada, cação, gorazes; o peixe vem de Nazareth e de Peniche.</p> - -<p>Mulheres do campo aviavam os seus cabazes; levavam pão, meio cento de -sardinhas, meia duzia de sardas.</p> - -<p>A um cantinho do mercado estavam algumas mulheres com polvo, mexilhão, -caranguejos grandes. Não faltava a mulher dos tremoços e da pevide de -abobora. Dois homens vendiam planta de<span class="pagenum" id="Page_302">[Pg 302]</span> couve. Vi ainda vendedores de -enxadas, e de calçado forte, sapatos de dura.</p> - -<p>Os homens na maioria usam botas altas.</p> - -<p>Todo o povo d’estes sitios é calçado, só por excepção vi gente -descalça. Isto de pé descalço é uma inferioridade, que talvez acabasse -com um pequeno impulso.</p> - -<p>Dizem-me que a gente hespanhola está toda calçada já, tem conseguido -o sapato e a alpargata de preço baixo. Talvez que as commissões -parochiaes de beneficencia podessem resolver o problema. Eu acho o pé -descalço uma cousa deprimente, que entristece.</p> - -<p>Na pequena praça do Municipio (em 1904) faz-se o mercado da batata; -mal se transitava tanta era a saccaria; vende-se a batata arrobada; -pareceu-me de boa qualidade. Em 1905 este mercado fazia-se no largo de -S. Thiago.</p> - -<p>Pelas lojas nas ruas proximas grande freguezia, de gente dos arredores -que ao domingo vem mercar á villa.</p> - -<p>Ha movimento commercial em Torres, lojas com muitos contos de réis em -existencia. A villa é pequena mas os arredores são muito povoados.</p> - -<p>Vi industria de ferragens e mobilia especial, com algum geito.</p> - -<p>Pelo aspecto geral é gente que trabalha, sobria, um tanto rude.</p> - -<p>É escusado dizer que o fomento official é nullo, depois da pobre escola -primaria nada mais;<span class="pagenum" id="Page_303">[Pg 303]</span> algumas creanças vão de Torres ao Varatojo! para -aprender alguma cousa; uma caminhada de uma hora.</p> - -<p>Aqui em Torres seriam uteis uma aula de desenho, outra de agricultura, -e uma terceira de arithmetica e geometria com ensino especial de -contabilidade; porque esta villa é centro de uma região agricola -importante, tem commercio grande e pequeno, e industrias que se devem -desenvolver.</p> - - -<h3>A feira franca</h3> - -<p class="center">(21 DE AGOSTO DE 1904)</p> - -<p>Na grande varzea em parte arborisada faz-se esta feira muito concorrida -pela gente d’aquelles sitios; a região de Torres Vedras é bastante -povoada; aldeias e logarejos, boas quintas, casaes, matizam os campos -accidentados, as collinas entremeadas de valles e varzeas ferteis.</p> - -<p>Este rocio onde se faz a feira tem ao lado a casaria da villa, ao norte -o monte onde se ergue o castello, entre olivedo e paredões negros -alveja a egreja de Santa Maria, muito caiada; mais longe e mais alto o -monte de S. Vicente; a poente do rocio a serra do Varatojo, vestida de -vinhedos. Na parte arborisada enfileiram-se barracas e tendas, no rocio -nú é a feira de gados e a corredoura.</p> - -<p>As barracas de ourivesaria agrupam-se com as<span class="pagenum" id="Page_304">[Pg 304]</span> dos utensilios de arame, -cobre, ferro estanhado, latoaria. As dos vidros estão perto do grande -estendal de louças branca e vermelha.</p> - -<p>A louça ordinaria, popular, provém das differentes olarias do termo de -Mafra, a branca vem de Alcobaça.</p> - -<p>A notar um especialista de buzinas de moinhos de vento, aquellas -vasilhas de barro, que assobiam e zumbem quando o vento apressa o -movimento das quatro velas triangulares.</p> - -<p>Vende-se calçado grosso, bastante correaria, não faltando as sogas -ornadas, bordadas a pita colorida.</p> - -<p>Pequenas quinquilherias, modestas roletas variadas formam uma rua, -leiloeiros de varias qualidades chamam a gritos a attenção do povinho, -perto das barracas de tiro ao alvo.</p> - -<p>Num espaço grande estão as madeiras; o que mais dá na vista é o -material vinario; é natural, estamos numa grande região vinhateira.</p> - -<p>Cubas, toneis, balseiros, barris, celhas, tinas em abundancia; de -castanho, as mais; algumas de pinho da terra, genero barato. Carros -para bois, e tambem de pequenas dimensões e de construcção mais leve -para burricos. Ha especialistas em arcos, e negociantes de varedo, -assim como de crivos e peneiras.</p> - -<p>Menos importante a feira do gado; bastantes porcas com leitões, poucas -juntas de bois, pouco e inferior o gado cavallar e asinino.</p> - -<p><span class="pagenum" id="Page_305">[Pg 305]</span></p> - -<p>Pareceu-me em geral mal tratado o gado, tanto na feira como no que -observei fóra.</p> - -<p>É mais a pancada que a alimentação regular.</p> - -<p>Já se vê não faltavam as barracas de comer e beber, com os seus fritos -alourados, e constante freguezia.</p> - -<p>Comia-se bem, bebia-se melhor; homens e mulheres espatifavam acerejadas -gallinhas, consumiam patos com arroz cheirando que era uma delicia, e -sorviam as talhadas dos sumarentos e aromaticos melões, atirando as -cascas aos porcos e leitões grunhindo pela gulodice.</p> - -<p>A impressão geral é de atrazo, de educação nulla ou rudimentar; de -trabalho mau com inferior alfaia, todavia gosto de vêr o povo rural -nestas feiras; é naturalmente são; um tanto brutal nos costumes, se -ninguem trata d’elle! mas de bom fundo.</p> - -<p>Estamos longe d’aquelles camponios insolentes, turbulentos, cupidos, -eivados d’alcoolismo, devastados por seitas ferozes, que preoccupam em -Allemanha, na Italia, na França a gente que pensa e vê alguma cousa.</p> - - -<hr class="chap x-ebookmaker-drop" /> - -<div class="chapter"> -<h2 class="nobreak" id="INDICE">INDICE</h2> -</div> - -<hr class="r5" /> -<table class="autotable"> -<tr><td>S. Domingos de Bemfica,</td><td class="tdr"><a href="#Page_7">8</a></td></tr> - -<tr><td>O lindo sitio de Carnide,</td><td class="tdr"><a href="#Page_53">55</a></td></tr> - -<tr><td>Noticias de Carnide,</td><td class="tdr"><a href="#Page_85">87</a></td></tr> - -<tr><td>A villa da Ericeira,</td><td class="tdr"><a href="#Page_147">149</a></td></tr> - -<tr><td>De Bemfica á quinta do Correio-Mór,</td><td class="tdr"><a href="#Page_197">199</a></td></tr> - -<tr><td>Torres Vedras,</td><td class="tdr"><a href="#Page_255">255</a></td></tr> -</table> - -<div lang='en' xml:lang='en'> -<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS DE LISBOA</span> ***</div> -<div style='text-align:left'> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Updated editions will replace the previous one—the old editions will -be renamed. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. 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Redistribution is subject to the trademark -license, especially commercial redistribution. -</div> - -<div style='margin-top:1em; font-size:1.1em; text-align:center'>START: FULL LICENSE</div> -<div style='text-align:center;font-size:0.9em'>THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE</div> -<div style='text-align:center;font-size:0.9em'>PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase “Project -Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg™ License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. -</div> - -<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'> -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all -the terms of this agreement, you must cease using and return or -destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your -possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a -Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound -by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person -or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. 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Information about the Mission of Project Gutenberg™ -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of -electronic works in formats readable by the widest variety of -computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It -exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations -from people in all walks of life. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Volunteers and financial support to provide volunteers with the -assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s -goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will -remain freely available for generations to come. In 2001, the Project -Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure -and permanent future for Project Gutenberg™ and future -generations. 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Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread -public support and donations to carry out its mission of -increasing the number of public domain and licensed works that can be -freely distributed in machine-readable form accessible by the widest -array of equipment including outdated equipment. Many small donations -($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt -status with the IRS. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -The Foundation is committed to complying with the laws regulating -charities and charitable donations in all 50 states of the United -States. Compliance requirements are not uniform and it takes a -considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up -with these requirements. 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Thus, we do not -necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper -edition. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -Most people start at our website which has the main PG search -facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>. -</div> - -<div style='display:block; margin:1em 0'> -This website includes information about Project Gutenberg™, -including how to make donations to the Project Gutenberg Literary -Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to -subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. -</div> - -</div> -</div> -</body> -</html> diff --git a/old/68121-h/images/001.jpg b/old/68121-h/images/001.jpg Binary files differdeleted file mode 100644 index 4c3900e..0000000 --- a/old/68121-h/images/001.jpg +++ /dev/null diff --git a/old/68121-h/images/cover.jpg b/old/68121-h/images/cover.jpg Binary files differdeleted file mode 100644 index 673bceb..0000000 --- a/old/68121-h/images/cover.jpg +++ /dev/null |
