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-The Project Gutenberg eBook of Pelos suburbios e visinhanças de
-Lisboa, by Gabriel Pereira
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
-www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you
-will have to check the laws of the country where you are located before
-using this eBook.
-
-Title: Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa
-
-Author: Gabriel Pereira
-
-Release Date: May 18, 2022 [eBook #68121]
-
-Language: Portuguese
-
-Produced by: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the
- Online Distributed Proofreading Team at
- https://www.pgdp.net
-
-*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PELOS SUBURBIOS E
-VISINHANÇAS DE LISBOA ***
-
-
-
-
-
- GABRIEL PEREIRA
-
- PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS DE LISBOA
-
- [Illustration]
-
- LISBOA
-
- LIVRARIA CLASSICA EDITORA
-
- DE A. M. TEIXEIRA & C.ᵗᵃ
-
- 20, PRAÇA DOS RESTAURADORES, 20
-
- 1910
-
-
- _Porto--Imp. Portugueza--Rua Formosa, 112_
-
-
-
-
-S. Domingos de Bemfica
-
- (1905)
-
-
-Na falda norte da serra de Monsanto está o logar de S. Domingos de
-Bemfica; um antigo mosteiro em parte abandonado, rodeado de quintas
-fidalgas com seus palacios, jardins, cascatas e alamedas de secular
-arvoredo; e uma pinha de pequeninos predios antigos a entestar com o
-maninho da serra.
-
-O nome de Monsanto feriu-me a attenção e procurei se por aquelles
-sitios haveria vestigios de templo ou edificio de remota antiguidade,
-tão raros no aro da capital. No meu segundo passeio deparei um grande
-marmore lavrado, provavelmente parte superior de uma ara romana,
-encostado á parede da quinta do sr. marquez de Fronteira.
-
-Ha duvidas todavia sobre a proveniencia da pedra; julga-se não ter sido
-encontrada alli, sim na Ribeira velha, no antigo palacio Fronteira, por
-occasião de certas obras; e removida para Bemfica ha uns 40 annos.
-
-O achado incitou-me a continuar na indagação, e num pittoresco retiro
-agora mal tratado da cerca monastica fui encontrar uma estatua que
-parece de arte romana; é na fonte do satyro, que fr. Luis de Sousa
-descreve na chronica do seu convento.
-
-O celebre dominicano já conheceu a estatua e a fonte na disposição
-actual; lá estão ainda as cinco ardosias, duas quadradas e tres
-ellipticas, com o lettreiro latino, que elle tambem menciona.
-
-Póde affirmar-se que o logar está qual estava então, apenas descurado.
-Ora os estragos que a estatua apresenta não teem explicação facil na
-posição actual. O satyro nada tem da rudeza gothica, nem das imitações
-classicas da renascença. O rosto apesar de muito gasto ainda tem
-singular expressão de alegria; segurava nas mãos uma taça ou urna que
-depois mutilaram para collocar uma torneira. Na cabeça e nas coxas
-grandes madeixas ondeadas; os musculos bem estudados nos hombros e
-braços. Parece uma estatua romana.
-
-Junto da fonte estão avulsas algumas pedras lavradas, dois fechos de
-abobada com a esphera de D. Manuel e a cruz de Christo, parte de um
-friso e dois pelouros medianos.
-
-É um encanto aquelle sitio de S. Domingos; o terreiro com seu antigo
-arvoredo dispõe bem o visitante da egreja, uma pobre egreja que é um
-ninho de recordações portuguezas.
-
-Entrando, á esquerda, o sarcophago de «Vasco Martins da Albergaria,
-cavalleiro fidalgo da casa do sr. infante D. Henrique e seu camareiro
-mór, filho de Affonso Lopes da Albergaria, o qual passou da vida deste
-mundo das feridas que houve na tomada e no descerco de Ceuta aos...
-dias do mez de dezembro da era de Jesus Christo, de 1436 annos».
-
-É um pequeno sarcophago de tampa alta; o letreiro na facha anterior da
-tampa e da arca. No meio o brazão com a cruz de Aviz sanguinha, aberta
-e floreteada, com oito escudetes azues das quinas reaes. Aos lados do
-escudo uma fita em relevo onde se lê a divisa _porêm vede bem_.
-
-Á direita o tumulo de João das Regras, encimado pela estatua onde
-evidentemente o esculptor quiz reproduzir o aspecto do famoso
-jurisconsulto. Tem barrete e habito de lettrado; a gola larga segura
-por tres botões. Na mão direita sobre o peito segura um livro. Os
-cabellos um tanto ondeados cahindo sobre a fronte. Á esquerda da figura
-a espada com o cinturão enrolado. A espada está tratada com minucia, o
-punho lavrado em linhas, o extremo com sua flor; é uma espada direita,
-larga, curta. O cinto é lavrado tambem de flores, tendo bem definidas a
-fivella e a ponteira.
-
-Aquella estatua é um documento precioso de indumentaria.
-
-O tumulo tem inscripção, escudos; assenta sobre quatro leões de
-marmore. Não é este o unico varão illustre cujo nome se encontra no
-mosteiro; fr. Vicente (1401), outro amigo do mestre de Aviz, e Diogo
-Gonçalves Belliago (1410) teem alli as suas inscripções sepulcraes,
-assim como fr. Arnáo (1502).
-
-Na capella de S. Gonçalo de Amarante ha algumas estatuas em marmore de
-Carrara, de valor artistico.
-
-O sacrario é de madeira entalhada, de grande elegancia, principalmente
-no corpo superior.
-
-Bons azulejos vestem as paredes, assignados por Antonio de Oliveira
-Bernardes.
-
-No cruzeiro jazem muitas pessoas distinctas, principalmente da casa
-Fronteira e Alorna; o ultimo que alli foi repousar o célebre D. Carlos
-de Mascarenhas, fallecido em maio de 1861.
-
-Na escura passagem do cruzeiro para a sacristia uma campa singelissima
-com um nome que illumina os espiritos, fr. Luis de Sousa.
-
-E no claustro proximo, muito tranquillo e fresco, convidando a serena
-meditação, a capella e o jazigo de D. João de Castro.
-
-É um grupo incomparavel de recordações portuguezas.
-
- * * * * *
-
-Isto escrevi eu na _Revista Archeologica_ de Borges de Figueiredo (vol.
-3.ᵒ, de 1889, pag. 99). Querido amigo! Infeliz espirito, tão maltratado
-na lucta da vida!
-
-Era archeologo, latinista e epigraphista de alto merecimento. Corpo
-enfermiço, franzino, tez pallida, mortiço o olhar, fraca a vista;
-bella intelligencia cultivada, com solida erudição e fina critica. Os
-seus ultimos tempos foram de doença e desgosto. Por tres vezes, se bem
-me recordo, visitámos juntos o sitio de S. Domingos de Bemfica; elle
-levava sempre a filha, nos seus passeios; uma menina delicada, debil
-no aspecto, cheia de meiguice. Eram inseparaveis, ella queria estar
-sempre junto, bem junto do pae. O meu pobre amigo falleceu na manhan de
-15 d’outubro de 1890; tinha feito na vespera 37 annos. Foi professor
-na Escola Rodrigues Sampaio, por algum tempo ensinou num collegio
-particular; durante annos foi laborioso bibliothecario da Sociedade
-de Geographia. Escreveu livros muito apreciaveis; _Coimbra antiga e
-moderna, O Mosteiro de Odivellas, a Geographia dos Lusiadas_; em todos
-os seus trabalhos se revéla bem o espirito de investigação, e a sã
-critica historica. Parecia impossivel aquella actividade em tão fraco
-organismo. Na _Revista Archeologica_ deixou entre varios trabalhos
-bons, um de alta importancia sobre as inscripções em verso leonino em
-Portugal. A filha morreu um mez depois do pae; não soffreu aquella
-ausencia, finou-se a pobre creança debil, asphyxiada de morte pela
-saudade amarga.
-
- * * * * *
-
-Quantas mudanças na egreja de S. Domingos de Bemfica fez depois o bem
-intencionado architecto Nepomuceno! A urna do Albergaria foi para o
-ante-côro sombrio, para cima de duas misulas ou cachorros, á maneira
-de deposito de agua para não visto lavabo. O tumulo de João das Regras
-foi para o meio do côro, onde está bem para ser visto. A estatua
-jacente do insigne doutor soffreu concerto, a mão direita aperta um
-livro sobre o peito; a esquerda tinha desapparecido. Segundo a chronica
-cahia sobre o coração, como se elle estivesse orando. Nepomuceno mandou
-fazer a mão que faltava, erguida, segurando um papel enrolado. E parece
-agora que o inclito doutor está indeciso entre o livro e o rolo de
-papel.
-
- * * * * *
-
-Ha pouco tempo, já depois da obra a que se procedeu, visitei a egreja
-tomando notas mais minuciosas.
-
- * * * * *
-
-No cruzeiro da egreja ha inscripções sepulcraes de interesse historico.
-Na parede entre o arco da capella mór e a porta da sacristia estão dois
-letreiros; o superior menciona Fr. Vicente, da ordem dos prégadores,
-fundador, fallecido em 1401; foi prégador de D. João 1.ᵒ e autor de
-muitos livros.
-
-Sob este está==Fr. Diogo Gonçalves Belliagua, frade da mesma ordem,
-primeiro povoador do mosteiro, isto é, o primeiro que residiu aqui,
-fallecido em 31 de agosto de 1410.
-
-Estes letreiros são relativamente modernos; na Chronica se podem ver as
-inscripções primitivas.
-
-Á direita da capella mór, na parede, está a==Sepultura de fr. Arnáo,
-da mesma ordem, fallecido em 2 de maio de 1502.
-
-Proxima a lapide de==D. Carlos de Mascarenhas, segundo filho dos 6.ᵒˢ
-marquezes de Fronteira. N. em 1 d’abril de 1803. F. em 3 de maio de
-1861.
-
-A seguir==D. Maria Constança da Camara, marqueza de Fronteira e de
-Alorna. N. em 14 de julho de 1801. F. em 11 de setembro de 1860.
-
-No chão está a campa da==Marqueza de Fronteira D. Helena Josefa de
-Lencastre. F. em 14 de março de 1763.
-
-Perto==O sargento maior Manuel Carrião de Castanheda, cavalleiro
-da ordem de Christo, f. em 22 de dezembro de 1676, e sua mulher D.
-Sebastiana Dias Fialha.
-
-==S. de Diogo Antunes. 1662.
-
-==S. de Maria Coelha.
-
-==D. G.ᵒ Velozo d’Araujo, cavalleiro fidalgo da Casa delrei N. S. e de
-sua molher Joanna de Bulhão, f. a 3 de março de 1603.
-
-==S.ᵃ de João Velho Lobo... Travassos... Algumas destas campas estão
-incompletas, ou gastas.
-
-Na capella do Senhor Jesus, esquerda do cruzeiro, está uma pedra com
-brazão; diz-nos que o instituidor foi Antonio de Freitas da Silva,
-fidalgo, etc., com sua mulher D. Jeronima Paes d’Azevedo, em 1677.
-
-No corpo da egreja, segunda capella á esquerda==Capella de Enrique
-Mendes de la Penha, fidalgo de solar conhecido, e a comprou sua filha
-D. Lionor Enriques, viuva de Luis Pereira de Carvalho, em 1663.==Tem
-brazão.
-
-Olhando para a capella mór, a porta á nossa esquerda abre para uma
-passagem que serve o côro e a sacristia, o ante-côro. Ahi, no chão,
-proximo dos degraos que levam ao côro, está uma campa singela.
-
- _Aqui jaz
- frei Luiz de Souza.
- nasceu em 1553
- morreu em 1632_
-
-a seguir, na mesma campa:
-
- Mandou collocar
- esta lapida
- o padre Joaquim
- Pinto de
- Campos
- natural de
- Pernambuco
- (Brazil)
- aos 4 de junho de
- 1878.
-
-Na mesma sombria casa de passagem, ou ante-côro, na parede, sobre duas
-misulas, vê-se uma urna brazonada. Estava antes da ultima obra, á
-esquerda da porta d’entrada; agora alta como está, e na casa quasi sem
-luz, é difficil lêr o letreiro.
-
-Desdobrando as abreviaturas, diz: Aqui jaz Vasco Martins da Albregaria
-cavalleiro fidalgo da casa do sr. infante dom Anrique e seu camareiro
-moor filho de A.ᵒ Lopes da Albregaria o qual passou da vida deste mundo
-das feridas que houve na tomada e no descerco de Cepta aos... dias do
-mez de dezembro da era de J. C. de 1436 annos.
-
-Além do escudo dos Albergarias, conforme o que vem no Thesouro da
-Nobreza, tem escudos com sua divisa que me parece ler _Porém vêde bem_.
-
-A meio do côro está o tumulo de João das Regras; o letreiro occupa o
-friso da caixa.
-
-==Aqi: jaz: joan: daregas: cavaleiro: doutor: em: leis: privado:
-delrei: dom: joan: fundador: deste: moesteiro: finou: III: dias: de:
-maio: era: M: IIIIᶜ: XL: II: ans:==É um lettreiro, em gothico, bem
-lavrado; as palavras todas divididas por dois pontos.
-
- * * * * *
-
-Na parede exterior da casa que ora serve á irmandade da S.ᵃ do Rosario
-está cravada uma pedra com a inscripção:
-
- Esta sanchristia man
- darão fazer os irmãos
- de Nossa Sra do Rozario
- a sua custa p.ᵃ a fabrica
- da sua irm.ᵈᵉ em maio de 1680.
-
-Na sacristia uma grande campa sem lettras, com o brazão da casa de
-Bellas, isto é, quatro flores de liz nos angulos de uma cruz.
-
-O Thesouro da Nobreza descreve assim o brazão dos Correias de
-Bellas==em campo vermelho uma cruz de oiro firmada no escudo entre
-quatro flores de liz do mesmo metal.
-
-No côro ha duas grandes campas sem brazões nem letreiros; diz a
-Chronica que está alli o carneiro ou deposito funéreo dos Botelhos.
-
-No cruzeiro, á direita, ao canto, ha uma porta encimada por um brazão;
-abre para a capellinha onde está a imagem do Senhor Jesus dos Passos.
-Mas o pequeno e rico edificio é dedicado a S. Gonçalo de Amarante. Uma
-inscripção latina declara que em 1685 o bispo fr. Manuel Pereira mandou
-fazer a capella. É de muito e apurado trabalho, em lindos marmores.
-Estatuetas de finissimo Carrara povoam os nichos. Preside S. Gonçalo de
-Amarante tendo aos lados a S.ᵃ do Rosario, S. José, S.ᵃ Appollonia, S.
-Thereza, S. João de Deus, S. Felippe, S. Domingos e S. Thomaz d’Aquino.
-
-As columnas salomonicas aos lados de S. Gonçalo são de pedra fina da
-Arrabida de um trabalho apuradissimo.
-
-Parecem-me de origem italiana estas lindas estatuetas em marmore de
-Carrara, delicadamente esculpidas, com a maneira usada na época.
-
-
-O satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica
-
-A estatua do satyro conserva-se na situação em que fr. Luis de Sousa a
-conheceu.
-
-Entrando no claustro d’aquelle extraordinario convento de S. Domingos
-de Bemfica, toma-se a porta, ao canto, que diz para a fonte e horta.
-Desce-se uma breve escada, entra-se n’um pequeno recinto, com assentos
-de pedra; ao fundo a fonte rasteira; lá está o satyro e uns pedaços de
-marmore com um verso latino. O muro que separa a horta do recinto da
-fonte é mais recente.
-
-Felizmente eu tirei o desenho do satyro ha tempos; modernamente houve
-obras no edificio, e um alvanéo mais gracioso divertiu-se a lançar cal
-sobre a pobre estatua.
-
-Eu estou convencido que este satyro é romano. Fr. Luis de Sousa já o
-conheceu assim, n’aquella posição; ora em tal posição a estatua não
-podia estragar-se da maneira que se vê; a superficie está desigual;
-ha pontos em que se conserva o primitivo estado, na parte superior
-do peito, nas madeixas das coxas; em outros sitios a superficie está
-gasta, frusta, ou por longo attrito ou por inhumação prolongada.
-As mãos foram arruinadas por causa da adaptação de torneiras, obra
-provavel dos frades; porque primitivamente a agua não sahia de taça ou
-urna que o satyro tivesse nas mãos; sahia do outro sitio; a estatua é
-pagan e bem pagan.
-
-Apesar de frusta ainda a physionomia é notavel, e é bem propria a
-phrase de fr. Luis de Sousa, _simplicidade montanheza_; ha estatuas de
-Pan com aquella attitude e expressão.
-
-Trabalho da renascença não me parece, nem estaria assim estragado
-em tempo do celebre chronista; gothico, romanico, impossivel; nunca
-trabalharam assim em taes tempos. Porque a estatua tem expressão, ha
-observação anatomica nos musculos, nos hombros, as claviculas bem
-marcadas, as madeixas elegantes.
-
-É por isso que me convenço que a estatua é romana.
-
-Ha mais antiguidades romanas alli pelos sitios, e o nome Monsanto chama
-logo a attenção.
-
-Naturalmente os dominicanos encontraram, por acaso, a estatua e
-aproveitaram-n’a para a sua fonte; e assim a salvaram.
-
-Que interessante e mimosa a descripção que fr. Luis de Sousa escreveu
-da fonte do satyro! Vem na Historia de S. Domingos (2.ᵃ parte, livro
-2.ᵒ, cap. 1.ᵒ--Do principio e fundação do real convento de Bemfica).
-Diz assim:
-
- * * * * *
-
-==Passado o claustro, quem busca a horta do convento, dá poucos passos
-em uma praça empedrada, que ficando na parte mais alta, e como a meia
-ladeira da cerca, descobre grande parte do vale.
-
-Aqui sahem os religiosos a gosar o fresco da tarde em o verão, e o
-soalheiro de inverno, depois que deixam o refeitorio. Porque além da
-vista desabafada, e larga para fóra, tem na mesma praça de uma parte
-uma graciosa fonte, e da outra um espaçoso tanque, que cada cousa per
-si alegra e deleita os olhos.
-
-A fonte se faz em um arco, que formado de brutescos varios e vistosos,
-arremeda uma gruta natural. Dentro parece assentado um grande e bem
-proporcionado satyro, imitando com propriedade os que finge a poesia.
-Em toda sua figura mostra em rosto risonho e alegre uma simplicidade
-montanheza, com que está convidando a beber de uma concha natural, que
-tem apertada com o braço e mão esquerda, da qual sae um formoso torno
-de agua: e juntamente com a direita acode como arrependido a cobril-a;
-e faz geito de a querer retirar, dando com uma e negando com outra.
-
-A agua é quanto póde ser excellente, e de uma qualidade propria das que
-nascem nas serras, fria e desnevada na maior força do sol do estio;
-temperada no inverno, como um banho.
-
-Acompanham a gruta de um e outro lado em igual distancia dois grossos e
-altos pilastrões, que sendo feitos de boa cantaria para estribo de uma
-abobada a que se arrimam, foi a natureza cobril-os de uma hera muito
-espessa e viçosa, que subindo por elles até a mór altura, assim esconde
-e senhoreia a pedraria, que faz parecer foram fundados, mais para honra
-da fonte, que segurança do edificio: assim ajuda a natureza a arte, e
-o accidental ao bem cuidado.
-
-E porque entre gente que professa letras é bem que nem nos satyros se
-ache rudeza, faz lembrança este nosso a quem folga de o ver, com um
-verso latino entalhado em pedaços de marmore negro, que correm a vida e
-os annos sem parar, nem tornar atraz, ao modo d’aquelle licor, que lhe
-sae das mãos. Advertencia de sabio não de rustico: que agoas e annos se
-se não aproveitam com bons empregos, perdidos são, e pouco de estimar.
-Cae a agoa, por não pejar a praça, em um pequeno tanque, deixando-o
-cheio some-se n’elle, e vae por baixo da terra, fazer outra fonte na
-boca de um leão.
-
-É de ver aquelle rosto fero coberto de guedelhas crespas, e medonhas,
-que ameaçam sangue e morte, feito ministro de mansas agoas. Verdadeiro
-poder e symbolo da religião que amansa leões e faz Satyros doutos==.
-
-Publiquei este artigo no _Boletim da Real Associação dos Architectos
-Civis e Archeologos Portuguezes_ (T. VII. 1894. pag. 7), acompanhado de
-gravura. Então era facil visitar a fonte do satyro: agora está vedada
-ao publico, não sei porquê. Naquella parte do edificio installou-se
-uma succursal do collegio de Campolide, com aulas de theologia, ao que
-ouvi dizer. Não deixavam entrar no claustro. Ha tempos saíram dalli
-os padres; mas o edificio continúa fechado; não se sabe onde pára a
-chave. Não se póde visitar a fonte tão finamente descripta por fr.
-Luis de Sousa, nem a capella dos Castros, cuja entrada é tambem pelo
-claustro.
-
-É de fr. Luis de Sousa a descripção da
-
-
-Capella dos Castros
-
-==He a obra da Capella dorica, a proporção dupla, com quarenta palmos
-de largo, mais de setenta de comprimento. He de huma só nave de
-pedraria brunida, o lageamento de pedras de cores, tambem brunidas:
-funda-se a mais architetura della em hum proporcionado pedestal,
-que em torno a circunda interiormente. Tem seis arcos com pilares
-interpostos sobre bases: capiteis, e simalhas tambem em torno, com
-seis luzes obradas com respeito á architectura. A porta principal tem
-no claustro do Convento, e sobre ella pende hum escudo relevado das
-armas do Fundador. O tecto, despois de coroado com a simalha, he tambem
-de pedraria, apainelada com artezães, e molduras: os dous primeiros
-arcos de seis, que a compoem, ficam nos Presbiterios; no da parte do
-Evangelho está huma porta, que dá serventia pera a Tribuna, e aposentos
-do Fundador: no outro da parte da Epistola, outra pera o serviço da
-Sachristia, os outros quatro occupão quatro sumptuosas sepulturas, de
-pedras de cores lustradas, que sobre as costas sustentão elefantes de
-pedras negras.
-
-No primeiro arco, que fica junto ao do Presbiterio da parte do
-Evangelho, está a sepultura de Dom João de Castro, com o seguinte
-Epitaphio.
-
- * * * * *
-
-D. Ioannes de Castro XX. Pro Religione in vtraque Mauritania stipendijs
-factis, nauata strenue opera Thunetano bello fœlicibus armis penetrato;
-debellatis inter Euphratem, et Indum nationibus: Gendrosico Reye,
-Persis, Turcis vno prœlio fusis; seruato Dio, imo Reipublicæ reddito,
-dormit in magnum diem, non sibi, sed Deo triumphator: publicis
-lachrimis compositus, publico sumptu prœ paupertate funeratus: obijt
-Octauo Id. Iunij. Anno 1548. Aetatis 48.
-
- * * * * *
-
-Estão em o seguinte arco, junto a este os ossos de D. Leonor Coutinho,
-sua mulher.
-
-Da parte da Epistola, em o arco que responde ao da sepultura de Dom
-João de Castro, está a de Dom Alvaro seu filho, com o Epitaphio
-seguinte.
-
- * * * * *
-
-D. Aluarus de Castro. Magni Ioannis primogenitus, cui pené ab infantia
-discriminum factus pugnaram prœcursor, triumphorum Consors, œmulus
-fortitudinis, hœres virtutum, non opum: Regum prostrator, et restitutor
-in Sinai veatice eques fœliciter inauguratus: a Rege Sebastiano Summis
-Regni auctus honoribus; bis Romæ, semel Castellæ, Galliæ, Sabaudiæ,
-legatione perfunctus, obijt 4. Kalend. Septemb. Anno. 1575. Aetatis suæ
-50.
-
- * * * * *
-
-Logo no outro arco junto a este está Dona Anna de Atayde, mulher do
-mesmo D. Alvaro.
-
-No vão desta Capella se fez um Carneiro com seis arcos de pedraria, em
-hum dos quais ha Altar pera se dizer Missa, e os mais tem repartimentos
-pera os ossos, e corpos dos defunctos.
-
-Sóbe-se do pavimento d’esta Capella por seis degráos entre dous
-presbiterios, nos quais estão as sepulturas do Fundador, e sua Irmam: a
-primeira da parte do Evangelho com o Epitaphio que se segue.
-
- * * * * *
-
-D. Franciscus á Castro, Episcopus olim Aegitanensis, hujusce
-Sanctuarij, ac interioris Cœnobij fundator, hunc sibi, dum viueret,
-tumulum posuit, in quo et requiescet post mortem.
-
- * * * * *
-
-A segunda, com este, da parte da Epistola.
-
- * * * * *
-
-D. Violante de Castro Cometissa relicta vidua Domini Alfonsi de
-Noronha, Comitis Odomirensis hic quiescit, obijt XIV, Kalendis Iulij,
-anno Domini DC. XXXXVI. Sorori optimæ, seu verius matri, Frater
-amantissimus dedit, posuit.
-
- * * * * *
-
-Sobre estes degráos está o Altar de jaspes brunidos, apartado do
-retabolo, em forma que fica emparando a entrada do Choro, que detraz
-do mesmo Altar tem os Irmãos da casa de Noviços; e a que se entra por
-entre dous pedestaes de jaspes brunidos de treze palmos de alto, nove
-de largura, onze de grossura. No fronstispicio delles se veem duas
-tarjas embutidas de jaspes brancos, cercadas de suas faxas de outros
-pretos, na que fica da parte do Evangelho está escripta a instituição
-da Capella na forma seguinte.
-
- * * * * *
-
-Ad maiorem ineffabilis Eucharistiæ venerationem, peculiarem Deiparæ
-Virginis de Rosario honorem; indiuiduam Patriarchæ Dominici, Martyrum
-Nazarij, Celsi, Victoris, ac Innocentij confessoris memoriam, ædem hanc
-in penetralibus Sacratiorem Erexit, Condidit, Dicauit D. Franciscus á
-Castro Episcopus olim Aegitanensis, Regis, ad status consilia adsidens,
-rerum fidei moderator supremus. Anno Domini M.DC.XLVIII.
-
- * * * * *
-
-Na outra tarja, que fica da parte da Epistola, se contém as obrigações
-dos suffragios, que por si deixou o Fundador, diz assim:
-
- * * * * *
-
-Instituit ad altare triplex iuge sacrificium annuas pro defunctis
-vigilias, iuniorum cœnobitarum adsciuit excubias, habitacula
-coœdificauit: sibi religiose ante Dominum sepultura prouisa; maioribus
-suis posuit monumenta, magis pie, quam magnifice, quorum posteris
-subtus aram Condictorium fecit, legauit in hæc opera pietatis sexcentos
-annuos aureos.
-
- * * * * *
-
-Sobre estes pedestais se levantão de cada parte tres columnas de
-folhagem até o meio, que proseguem em estriado, as dos cantos mais
-recolhidas, as outras duas mais sahidas pera fóra, e corpulentas, entre
-ellas se abrem nichos de alto abaixo, que recolhem varias reliquias
-de Sanctos engastadas em custodias de preço. Estas seis colunas, que
-todas são de lavores, vão receber a simalha do Altar, sobre a qual
-se presenta á vista um quadro da Cea do Senhor, de singular pintura
-acompanhado de duas colunas de macenaria galantemente lavradas, que vão
-receber hum remate do mesmo quadro, unido já com a abobada da Capella.
-Aos lados destas colunas ficão dous quartões ornados com duas pyramides
-exteriores.
-
-Por entre as tres colunas de huma, e outra parte, que estão sobre
-os pedestais, se fecha hum arco quasi da mesma altura das colunas,
-que fica fazendo lugar ao Sacrario (em que sempre está o Sanctissimo
-Sacramento alumiado com duas alampadas de prata). Do pavimento que
-fica debaixo deste arco se levantão oito colunas em estylo oitavado,
-que recebem huma charola alterosa com seu zimborio, que se remata com
-hum Pelicano polla banda de fóra. Debaixo desta charola se levanta
-hum throno em forma quadrada com quatro colunas pequenas, que fazem
-os cantos, com que se forma a primeira peça, na qual se abrem dous
-nichos, hum pera a parte do Choro, outro pera a Capella; o do Choro
-tem uma Imagem de nosso Padre S. Domingos, o que fica pera a Capella
-occupa outra de nossa Senhora de singular estimação por antiguidade, e
-feitio; he um meio corpo de alabastro, com o braço esquerdo abraça o
-minino que se sustenta em pé sobre uma almofada, e na mão direita tem
-hum livro, tudo da mesma pedra. Dá a estas imagens inestimavel valor a
-antiguidade, que em outras nações, com mais primor, e felicidade, que
-na nossa, avalia semelhantes obras; porque segundo a certeza que disto
-ha, e o Bispo tinha, estiverão estas imagens occultas, e sepultadas no
-muro da Cidade de Tunes, desde o tempo, que os mouros a tomarão aos
-Christãos, até que o Emperador Carlos Quinto lha ganhou, que então
-se descobriram, não sem mysteriosa circumstancia, porque batendo a
-artilharia o muro, e arruinando parte d’elle, cahiram as imagens sem
-padecer lesão alguma. O Infante Dom Luiz, que n’esta empresa se achou
-com o soccorro de Portugal, grandiosamente abreviado naquelle celebre
-galeão de 366 peças, e ajudou a ganhar a victoria, por despojo d’ella
-escolheo só estas imagens, que despois deu a Dom João de Castro, Avô do
-Bispo fundador.==
-
- (_Historia de S. Domingos particular do reino e conquistas de
- Portugal, por fr. Luis de Cacegas, reformada por fr. Luis de Sousa,
- filho do convento de Bemfica. Ampliada por fr. Antonio da Encarnação._
- Lisboa, 1866; 2.ᵃ parte do 3.ᵒ vol., pag. 198).
-
-Quantas recordações nobilissimas nesta capella! Agora a elegante
-construcção está ameaçando ruina. Parece-me todavia facil acudir-lhe.
-A frontaria desligou-se um pouco do corpo do edificio, entra agua de
-chuva pela fenda produzida pelo desvio. Alguns annos de desleixo e a
-ruina será enorme, o concerto dispendioso. Dizem-me que esta capella
-está na posse de um particular, ha tempos ausente de Portugal. E não
-sei se ainda ha culto ahi; essa parte do edificio está habitada por uma
-congregação feminina, estrangeira; nada dizem, respondem sempre que não
-sabem da chave.
-
-
-Fr. Vicente de Lisboa
-
-D. João 1.ᵒ cedeu a Casa real de Bemfica a fr. Vicente de Lisboa para
-estabelecimento do instituto dominicano, em 1399.
-
-Este fr. Vicente era provincial da sua ordem em Castella e Portugal,
-inquisidor geral de Hespanha, confessor e prégador de D. João 1.ᵒ
-Foi com certeza um vulto importante. Barbosa Machado, na Bibliotheca
-Lusitana falla delle, firmando-se no epitaphio que primitivamente
-marcava o logar de repouso das suas reliquias.
-
-Ahi se _lia per illum_ (fr. Vicente) _in hac civitate_ (Lisboa) _et
-in diversis hujus regni partibus, destructa fuerunt opera diaboli et
-haereses erroresque, atque idolatriae._ _Edidit etiam varios libros
-excellentis doctrinae._
-
-Barbosa Machado diz que não conseguiu vêr nenhum de taes livros. Mas
-sabe pelo epitaphio que elle combateu as crendices populares, as
-superstições viciosas, as praticas pagans observadas ainda no seu tempo
-pela gente rude. É tarefa antiga esta de combater tradições, bruxarias,
-costumeiras, que hoje fazem as delicias dos folqueloristas. Ainda não
-vi tambem livro que se possa attribuir a fr. Vicente de Lisboa; mas
-não se perde a esperança. É bem possivel que nalguma antiga collecção
-de sermões se contenham os do prégador de D. João 1.ᵒ Na livraria do
-infante D. Fernando havia um volume assim designado==_Item, hum livro
-de pregações de frey Vicente per lingoagem_. (T. Braga, _Historia da
-Universidade de Coimbra_, 1.ᵒ pag. 229).
-
-Muitas obras que se julgavam perdidas teem surgido nos ultimos annos.
-Os tratados de alveitaria e citraria (este incompleto) de mestre
-Giraldo existem na Bibliotheca Nacional, assim como uma copia antiga
-do _Livro de Montaria de D. João 1.ᵒ_ O tratado da phisionomia, _Opus
-de physiognomia_, de mestre Rolando, está na Bibliotheca da Ajuda.
-Nos Documentos historicos da cidade de Evora dei noticia e grandes
-extractos dos tratados medicos, da idade media, existentes na livraria
-d’aquella cidade.
-
-O sr. Leite de Vasconcellos, o nosso grande investigador, foi descobrir
-em Vienna, uma versão portugueza das fabulas de Esopo, que já publicou
-na Revista Lusitana.
-
-Por isto não perco a esperança de ver ainda um dia alguma obra de fr.
-Vicente de Lisboa.
-
-
-Fr. Bartholomeu dos Martyres
-
-Uma parte do convento que olha para norte está bastante arruinada;
-eram ahi os dormitorios do noviciado; as janellas das humildes cellas
-deitam para a cerca; a vista dilata-se por aquelles campos e collinas
-verdejantes de Bemfica, jardins, frescos hortejos, copados arvoredos.
-Uma d’essas pequeninas janellas é a do quarto que por muitos annos foi
-habitado por um homem dos raros, dos mais raros, que tem havido em
-Portugal, fr. Bartholomeu dos Martyres.
-
-Foi aqui professor muitos annos.
-
-Primeiramente esteve, ensinando já, no convento da Batalha.
-
-Passou ao convento de Evora porque o infante D. Luiz, desejando fazer
-grande lettrado seu filho o sr. D. Antonio, depois prior do Crato,
-infeliz rei e exilado, instou e conseguiu que fr. Bartholomeu fosse ler
-theologia nos dominicanos de Evora; ahi conheceu fr. Luiz de Granada,
-outro raro. Permaneceu em Evora alguns annos; obrigaram-no então a
-vir ser prior de S. Domingos de Bemfica, que era o grande noviciado
-de Portugal. Vivia muito pobremente, sem a minima ostentação; amigo
-do Convento e mais amigo da cella; dormindo pouco, comendo pouco.
-Enthusiasta professor estava sempre prompto a ensinar; lia aos noviços
-disciplinas superiores, mas se via necessidade fazia cursos d’artes
-elementares, aos rapazes; fazia praticas numa capella da egreja. Era um
-eloquente, como fr. Luiz de Granada; e ás vezes arrastado pelo calor
-da palavra, enthusiasmava-se, e enthusiasmava o auditorio; uma vez
-terminou a pratica chorando elle e todos os ouvintes.
-
-Gostava de passear na cerca, e estava muitas vezes á janella da sua
-pobre cella; os noviços ouviam-no cantarolar a meia voz, tomando o ar,
-encostado ao peitoril da janella que dá para o campo.
-
-As visitas contrariavam-no um pouco, o cardeal D. Henrique, o infante
-D. Luiz frequentavam o convento; um dia instaram com elle para que
-acceitasse a mitra de Braga. Do tranquillo cantinho de S. Domingos de
-Bemfica para o paço archi-episcopal de Braga!
-
-Largar o convento, as aulas, a cêrca, a sua cella tão boa para o
-estudo! Não queria, não queria! Foi a rainha D. Catharina que o mandou;
-elle então obedeceu. Foi sempre um altruista, espirito cheio de
-abnegação. Preparou-se para a partida, teve de deixar por algum tempo
-Bemfica; mas antes de partir definitivamente para Braga foi passar um
-dia a S. Domingos, ao querido sitio de Bemfica, foi despedir-se da
-egreja, das aulas, da sua tranquilla cella, das arcadas silenciosas do
-claustro, da fonte da horta, das arvores, das flores.
-
-E foi para Braga, para aquellas extranhas missões das montanhas
-minhotas, e para as solemnes discussões do concilio de Trento.
-
-Era por indole um professor, gostava de ensinar. Tanto que se viu
-livre da mitra primacial elle ahi vae para o seu retiro de Vianna do
-Lima, ensinar rapazes; nos seus passeios pelos campos o bom velhinho,
-ás vezes, assentado a repousar, doutrinava os humildes pastores. Que
-esta raça portugueza em tempos antigos produziu mestres em sciencias
-e lettras que illuminaram universidades em Hespanha, Italia e França.
-Merece ainda attenção este homem no ponto de vista da hygiene em geral;
-pelo seu regime de vida, habitos e predilecções. Usava fazer grandes
-passeios a pé, era sóbrio, de bom humor. Lendo hygienistas modernos,
-Gautier (Armand--_L’alimentation et les regimes chez l’homme sain et
-chez les malades_) por exemplo, encontram-se conselhos para a vida dos
-intellectuaes, que lembram logo o methodo de vida de fr. Bartholomeu
-dos Martyres.
-
-
-D. Isabel Maria
-
-A infanta D. Isabel Maria residiu bastantes annos na sua casa de S.
-Domingos de Bemfica. Velhinha, adoentada nos ultimos tempos, cheia
-de recordações, por alli passeava morosamente sob as magnolias e os
-cedros. A quinta está contigua á cerca do convento.
-
-O palacio parece que foi construido em tempo de um certo Devisme
-negociante e capitalista, grande amigo do marquez de Pombal, que tambem
-se importava de politica, tendo altas relações no estrangeiro, ahi
-pelo meio do seculo XVIII. As estatuas de marmore que ornam o jardim
-são d’essa época, mas o desenho, a disposição foi alterada. No palacio
-houve mudanças e ainda nos ultimos annos foi ampliado; está installado
-alli o bem afamado collegio de Jesus, Maria, José; grande numero das
-senhoras da fina sociedade actual passou por esse estabelecimento de
-educação.
-
-Depois de Devisme pertenceu a bella propriedade á casa dos marquezes
-de Abrantes, illustre familia. Por morte do ultimo marquez, em 1847,
-foi comprada pela infanta D. Isabel Maria filha de D. João VI, e de D.
-Carlota Joaquina. Nasceu a infanta em 4 de julho de 1801, e falleceu a
-22 de abril de 1876, pelas 3 horas da tarde.
-
-Interessante figura; vida que em grande parte decorreu entre agitações
-politicas e palacianas; presidente da junta de regencia, em 6 de
-março de 1826, ficando de parte a rainha D. Carlota, por occasião da
-enfermidade de D. João VI, e por morte d’este, regente em nome de D.
-Pedro IV, até ao celebre dia 22 de fevereiro de 1828, em que depoz o
-governo nas mãos de D. Miguel. Foram um horror esses tempos de paixões
-violentas, de conspirações politicas, que não paravam no vestibulo
-do paço, e até de lá partiam, pois conspiradora foi sempre a mal
-aventurada D. Carlota Joaquina.
-
-Devia ser curioso este sitio de S. Domingos de Bemfica nessa longa
-crise politica dos primeiros decennios do século passado, porque
-os Fronteiras, os Mascarenhas, entraram na tentativa de 1805, e
-continuaram até á ultima no liberalismo; os da casa d’Abrantes e os
-dominicanos inclinavam-se ao absolutismo.
-
-Mas a infanta que no Paço viu as discordias insensatas entre pae e mãe,
-e na politica encontrou o tumulto entre exaltadas individualidades,
-entre partidos raivosos, conseguiu equilibrar-se desempenhando com
-superioridade o melindroso cargo de regente.
-
-Crescendo a idade retirou-se, cada vez mais; por fim metteu-se no seu
-ninho de S. Domingos, nas sombras abrigadas e aromaticas das suas
-magnolias.
-
-
-Palacio e jardim Fronteira
-
-Entre as mais notaveis vivendas destes sitios de Bemfica sobresae
-o palacio Fronteira com os seus lindos jardins e fresco hortejo,
-singulares obras d’arte e historicas recordações.
-
-Dizem que o primeiro marquez de Fronteira, D. João Mascarenhas, mandou
-fazer na sua propriedade um pavilhão de caça para receber a visita
-del-rei D. Pedro II, e esse foi o núcleo do palacio: isto pelos annos
-de 1670 a 1681. Antes certamente havia outras construcções porque a
-elegante capella é de 1584. O terremoto de 1755 arruinou o palacio
-de Lisboa; foi a familia Fronteira residir para Bemfica, e então
-ampliaram o tal pavilhão formando-se o palacio actual. O grande jardim,
-a monumental galeria e cascata, devem ser do fim do século XVII, com
-grande influencia do estylo italiano.
-
-Os azulejos da magnifica sala do pavilhão referem-se á batalha do
-Ameixial. É pena não se conhecer bem a formação d’esta vivenda porque
-se póde affirmar notavelmente conservada, exemplo rarissimo em Portugal.
-
-O jardim é um enlevo, no genero antigo, com as suas estatuas, fontes
-artisticas, grande peça d’agua, grutas, escadarias, varandas de
-balaustrada, elegantes pavilhões.
-
-Muito regular, taboleiros geometricos e symetricos, com ruas e
-travessas, e pequenas praças, sendo maior a central onde se ergue
-artistica fonte de taça alta, ostentando em pinaculo os escudos dos
-Mascarenhas.
-
-A poente a fachada do palacio, a sul a galeria dos reis; norte e
-nascente moldura ou parede de arvoredos, com vista para o campo;
-compridos assentos azulejados.
-
-Ha estatuas no jardim, na parede do tanque, dentro do tanque, na
-varanda da galeria, em nichos, nos vertices dos pavilhões!
-
-Entre matizes de flores e aromas riem faunos, dançam nymphas, os deuses
-teem sorrisos benevolentes.
-
-Brilha ao sol o paganismo.
-
-Na gruta maior que abre para o tanque está o Parnaso, um monte com o
-Pégaso alado e galopante, e em roda, a variadas alturas, Apollo e as
-Musas, estatuetas em fino marmore.
-
-Na parede da galeria quadros de azulejo com figuras de cavalleiros,
-doze na frente, dois nos lados, os cavallos a galope, parecendo que vão
-entrar em renhido torneio.
-
-Á esquerda, olhando para a galeria, ha muitos retratos, em azulejo,
-dos Mascarenhas, condes de Obidos, Torre, Santa Cruz, marquezes de
-Fronteira; á direita, fronteando os retratos, estão representados os
-brazões.
-
-Na galeria em nichos forrados de azulejos hespanhoes, de reflexo
-metallico, uns acobreados, alguns de tom azul, bustos dos reis de
-Portugal, entrando o conde D. Henrique, e o infante D. Fernando o
-santo. Os ultimos bustos d’esta galeria, os de Affonso VI e Pedro II,
-são os de melhor trabalho. Uma porta communica para o jardim alto ou
-moderno; segue a segunda galeria dos reis, D. João V, D. José, D. Maria
-I e D. João VI. Sobre a porta entre as galerias um busto do imperador
-Tiberio, talvez copia de busto authentico.
-
-Estatuas mythologicas, faunos prasenteiros, gentis nymphas dançantes,
-ornam plinthos no jardim, e as balaustradas. Azulejos estranhos,
-hespanhoes e hollandezes, fazem rodapés, representando scenas
-familiares, caçadas, episodios agricolas.
-
-Embrechados finos de buzios e conchas, fragmentos de louças orientaes,
-vidros pretos, cristaes de rocha, bocados de escorias, em complicados
-desenhos, forram paredes das cascatas. N’uma grande parede do jardim
-molduras e ornatos em faiança, folhagens, flores e fructos no genero
-chamado dos Della Robia.
-
-Neptuno e o seu cortejo, em grande quadro de azulejo; outro em relevo
-de alvenaria infelizmente em grande estrago, cumprimentam um rio, o
-Tejo, provavelmente.
-
-Num quadro de azulejo o ratão do artista representou Jupiter, e pintou
-ao lado o nome assim: _Ghvptre_.
-
-No jardim moderno, entre fetos magnificos e grande collecção de
-camelias, ha uma fonte central, de taça, com a estatua de Venus. O pé
-da taça é um grupo de golphinhos lavrado num lindo bocado de marmore
-com laivos avermelhados.
-
-Dizem que a esta Venus se refére Tolentino na satyra intitulada _A
-funcção_.
-
- Musa basta de rimar
- ...................
- ...................
- ... sincera velha
- Pondo contra a luz a mão
- E crendo que nesta rua
- Está São Sebastião
- De Venus á estatua nua
- Faz mesura e oração.
-
-É bem interessante a historia dos jardins; conhecem-se exemplos do
-Egypto, da Assyria; celebres entre os romanos os de Plinio e de
-Sallustio, ornamentados de terraços, fontes, estatuas.
-
-Cultivavam rosas, lyrios, violetas, malvas, algumas arvores e arbustos
-cortados e aparados em feitios caprichosos, como o louro e o buxo;
-estimavam muito o esguio cypreste, e a vinha como planta decorativa.
-
-E neste ponto tinham muita razão porque a parreira faz lindo ornato,
-com mudança de tons, gracilidade de curvas, além do encanto do cacho,
-quer se applique a edificios ou se enrosque em arvores.
-
-Mas os jardins conservaram-se regulares e symetricos durante seculos.
-
-O jardim irregular, de imprevistos, o jardim-paisagem é mais moderno.
-
-Ha muitos livros sobre jardins e construcções architectonicas
-especiaes, fontes, repuxos e grandes jogos d’agua, cascatas, terraços,
-caramanchões e pavilhões. Merece ver-se o livro de Alicia Amherst,
-intitulado: _A history of gardening_ (London, 1896), e _L’art des
-jardins_ por Jorge Riat, que faz parte da Bibliothèque d’Enseignement
-des Beaux-Arts; qualquer d’estes livros indica sufficiente
-bibliographia.
-
-Em Portugal ha bonitos jardins modernos e ainda alguns antigos
-conservando os seus engenhosos desenhos; a invasão moderna de plantas
-exoticas prejudica bastante o jardim antigo, araucarias e chamerops
-não harmonisam bem nas combinações geometricas e symetricas, não podem
-substituir as cevadilhas, as balaustras, de pequeno porte, de brilhante
-folhagem e vistosa florescencia. Uma alta araucaria pyramidal destoa
-nos bordados jardins de Caxias e Queluz. Arvores variadas, exoticas
-ou naturaes, empregavam-se em fazer parede ou moldura de jardins, em
-alamedas de horta ou laranjal.
-
-No Diccionario dos Architectos, vasto trabalho do sr. Sousa Viterbo,
-por vezes apparecem architectos encarregados de obras em jardins, o
-que não admira porque todos os jardins antigos tinham obras d’arte
-importantes, terraços, escadarias, balaustradas, cascatas enormes e
-complicadas, com jogos d’agua, pavilhões, etc. (Dicc. dos Architectos,
-vol. 1.ᵒ, pag. 62 e 395; 2.ᵒ, pag. 350 e 379).
-
-Póde dizer-se que o jardim antigo é principalmente architectonico, e
-que o moderno é filho da pintura.
-
-Na Bibliotheca Nacional de Lisboa, a respeito de jardins ha livros
-antigos notaveis, especiaes; e tambem em obras que não tratam de
-cultura ou architectura dos jardins por incidente se topam vistas e
-desenhos interessantes.
-
-Um certo in-folio grande, impresso em Roma, adornado com boas gravuras,
-e o titulo _Villa Pamphilia ejusque palatium cum suis prospectibus,
-statuae, fontes, vivaria, theatro, areolae, plantarum viarumque
-ordines_ apresenta-nos grande numero de estatuas proprias para jardim
-e minuciosos desenhos dos terreiros ajardinados, que parecem imitar
-salvas de prata repoussée; sem uma arvore saliente; arbustos talhados,
-não muito altos, ornam os extremos. Era o jardim italiano, classico.
-
-Numa obra de numismatica _I Cesari in metallo raccolti nel_ MUSEU
-FARNESE, por Pietro Piovene (Parma, 1727), ha lindas gravuras com
-muitos aspectos e detalhes dos jardins da Villa Madama, e do Palazzo
-di Caprarola (no tomo 1.ᵒ), mostrando bem a magnificencia, a nobreza
-d’essas bellas vivendas italianas.
-
-Um allemão, _Hirschfeld_, escreveu uma vasta obra, de que ha versão
-franceza, em 4 volumes, _Theorie de l’art des jardins_ (Leipzig,
-1779-1783).
-
-É trabalho notavel: trata dos jardins em varios pontos de vista,
-da sua historia e da historia das plantas, do aproveitamento das
-arvores segundo o seu effeito ou aspecto, das combinações, dos planos
-differentes. No 4.ᵒ volume vi a noticia de Guilherme Kent o criador da
-arte dos jardins em Inglaterra; era pintor e architecto. Descreve os
-trabalhos de Le Notre, grande jardineiro francez. N’isto de jardins
-ha escólas, muito bem definidas. Foi economica, principalmente, a
-razão porque a escóla de Kent venceu a de Le Notre; o jardim á antiga
-era de grande custeio; para se conservar bem era preciso trabalhar
-constantemente. Só admittia flores finas, raras; na Hollanda o
-enthusiasmo pela tulipa, a tulipomania, attingiu excessos. Kent
-introduzindo arvores e arbustos fez grande economia. Ha o jardim
-agradavel, o risonho, o majestoso, o romanesco; o jardim fidalgo, o
-burguez, o campestre, o publico, o academico, o monastico, finalmente o
-funebre.
-
-O tal allemão chega mesmo a projectar jardim para de manhã, do meio
-dia, e da tarde; jardins para effeitos crepusculares. A cultura e a
-disposição do jardim variam com os climas, e com a abundancia das aguas.
-
-É impossivel imitar nos paizes frios os jardins de Hespanha ou de
-Italia; querer implantar nos paizes do sul os arrelvados inglezes é
-arrojado. A relva nada custa em Inglaterra, e em Portugal a murta, o
-lirio, o cravo e a rosa não precisam cuidados.
-
-A leitura do Hirschfeld, me parece, é ainda hoje util a quem deseje
-tratar de jardins publicos ou particulares.
-
-Porque ha uma esthetica de jardins, e tambem merece attenção a questão
-economica. Em Portugal, por exemplo, não se usa da laranjeira ou da
-vinha em jardins; e estão os jardins cheios de palmeiras monotonas.
-Vê-se gastar muito dinheiro para ter bocadinhos de arrelvado, que o sol
-de verão cresta numa hora.
-
-Vêmos formar talhões com uma só essencia, o que parece esthetica de
-hortelão, quando as alamedas ou avenidas são muito mais pittorescas e
-vistosas variando a qualidade das arvores.
-
-O jardim publico de Evora tem effeitos bonitos; foi planeado e plantado
-pelo scenographo Cinatti, que calculou os aspectos que arbustos e
-arvores dariam quando desenvolvidos. Infelizmente depois não seguiram,
-completamente, as indicações do artista; todavia ainda é manifesto o
-fino criterio que presidiu á disposição do arvoredo.
-
-_Il reale giardino di Boboli nella sua pianta e nelle sue statue_ com o
-_Alticchiero_ (Padua, 1787) é livro pouco vulgar.
-
-Muitas estampas finamente gravadas mostram os planos, os aspectos, e
-principalmente as estatuas.
-
-O jardim Boboli, em Florença, tinha amphitheatro, casino, palacetes,
-jardim botanico, o pequeno jardim de Madama, o dos ananazes, o da ilha,
-o da fortaleza, e a grande pesqueira de Neptuno. No jardim de Oeiras
-havia tambem pesqueira; até ahi pescou á canna a rainha D. Maria I, na
-famosa visita que lá fez, no tempo do segundo marquez de Pombal.
-
-Neste jardim Fronteira as tropas miguelistas em 1833 entraram sanhosas,
-todavia parece que o estrago não foi consideravel. Diz-se tambem que se
-tratou aqui da formação da Arcadia Lusitana, que os tres poetas Antonio
-Diniz da Cruz e Silva, Theotonio Gomes de Carvalho, e Manoel Nicolau
-Esteves Negrão por estes caramachões de rosas e jasmins discutiram
-as bases da famosa academia litteraria. O snr. Theophilo Braga (pag.
-180 de _A Arcadia Lusitana_) conta que os tres poetas se reuniam em
-Bemfica; mas ha tradição de que era na quinta dos Fronteiras que elles
-frequentavam, e de que mesmo um d’elles perto morava.
-
-José Maria da Costa e Silva, no seu poema _O Passeio_, diz que em
-Portugal se chamavam jardins de D. João de Castro, aos irregulares, por
-ter sido o famoso heroe o primeiro que os plantou na Europa:
-
- Vêde Castro, o terror dos reis do Oriente
- .....................................
- E o primeiro mostrar d’Europa ás gentes
- Dos chinezes jardins a variedade.
-
-Em outra parte escreve:
-
- Dos chinezes jardins chistoso typo!
-
-
-A marqueza d’Alorna
-
-Um nome de grande dama portuguesa se liga á residencia Fronteira; aqui
-viveu por algum tempo _Alcipe_, nome arcadico de D. Leonor de Almeida
-Portugal Lorena e Lencastre, condessa de Oyenhausen e marqueza de
-Alorna (n. 1750--m. 1839).
-
-Mas por poucos annos. Ella esteve, menina e moça, reclusa no mosteiro
-de Chellas, viveu em Vienna, em Paris, em Londres, por esse mundo fóra,
-sempre superior dama portuguesa, de altaneira mente; depois em Portugal
-ora na sua quinta de Almeirim, ora na de Almada; por muitos annos na
-hospitaleira e fidalga casa a Santa Izabel.
-
-Pousou em Bemfica, é verdade, em annos de aspera lucta pelo nome de
-sua casa; e, verdade é tambem, lá vi, na galeria envidraçada que olha
-para o jardim, memorias, retratos, lembranças familiares, d’essa
-extraordinaria senhora.
-
-Que existencia tão rodeada de surprezas tragicas, cheia de duradouras
-inquietações, a d’esta nobilissima dama portuguesa, que soube responder
-á sorte rude com santas idéas, corajosos trabalhos, e composições de
-serena poesia. Parece que n’esses poucos annos que passou na vivenda
-de Bemfica foi que ella conheceu um moço de aspecto um tanto agreste,
-de firme vontade, espirito altivo, intelligencia clara, que se chamou
-Alexandre Herculano; muitos annos volvidos, a marqueza teve vida longa,
-viu ella com ineffavel prazer, o moço estudioso e attento desenvolvido
-no collossal escriptor.
-
-É adoravel o que Herculano escreveu a respeito da marqueza, poucos
-annos depois da morte d’ella.
-
-Vou apresentar alguns extractos d’esse notavel artigo publicado no
-_Panorama_, de 1844.
-
-==Por grande que deva ser a gratidão que se associa ás recordações
-d’aquelles que nos geraram, por funda que vá a saudade inseparavel da
-memoria paterna, no coração do bom filho, ha um affecto não menos puro,
-e não menos indestructivel, para o homem cujo espirito allumiado pela
-cultura intellectual tem a consciencia de que o seu logar e os seus
-destinos no mundo são mais elevados e nobres que os d’esses tantos
-que nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois
-morrerem sem deixarem vestigio. Este affecto é uma especie de amor
-filial para com aquelles que nos revelaram os thesouros da sciencia,
-que nos regeneraram pelo baptismo das lettras; que nos disseram:
-«caminha!» e nos apontaram para a senda do estudo e da illustração,
-caminho tão povoado de espinhos como de flores, e em cujo primeiro
-marco milliario muitos se teem assentado, não para repousarem e
-seguirem ávante, mas para retrocederem desalentados, quando sósinhos
-não sentem mão amiga apertar a sua e conduzi-los apoz si. Tirae á
-paternidade os exemplos de um proceder honesto, as inspirações da
-dignidade humana, a severidade para com os erros dos filhos, os
-cuidados da sua educação, e dizei-nos o que fica? Fica um certo
-instincto, ficam os laços do habito, e para impedir que tão frageis
-prisões se partam, fica o preceito de cima que nos ordena acatemos e
-amemos os que nos geraram, ainda que a elles não nos prenda senão a
-dadiva da existencia, esse tão contestavel beneficio. Pelo contrario
-aquelles que foram nossos mestres, que nos attrahiram com a persuasão
-e com o proprio exemplo para o bom e para o bello, que nos abriram as
-portas da vida interior, que nos iniciaram nos contentamentos supremos
-que ella encerra, para esses não é preciso que a lei de agradecimento e
-de amor esteja escripta por Deus; a rasão e a consciencia estamparam-na
-no coração: cada gôso intellectual do poeta, do erudito, do sabio lha
-recorda, e quando elles se comparam com o vulgo das intelligencias
-reconhecem plenamente a justiça do sentimento de gratidão que os domina.
-
- * * * * *
-
-Áquella mulher extraordinaria a quem só faltou outra patria que não
-fosse esta pobre e esquecida terra de Portugal, para ser uma das mais
-brilhantes provas contra as vans pertenções de superioridade excessiva
-do nosso sexo, é que eu devi incitamentos e protecção litteraria,
-quando ainda no verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada
-das lettras.
-
-Apraz-me confessa-lo aqui, como outros muitos o fariam se a occasião
-se lhes offerecesse; porque o menor vislumbre d’engenho, a menor
-tentativa d’arte ou de sciencia achavam n’ella tal favor, que ainda
-os mais apoucados e timidos se alentavam; e d’isso eu proprio sou bem
-claro argumento. A critica da senhora marqueza d’Alorna não affectava
-já mais o tom pedagogico e quasi insolente de certos litteratos que
-ás vezes nem sequer entendem o que condemnam, e que tomam a brancura
-das proprias cans por titulo de sciencia, de gosto, e de tudo. A sua
-critica era modesta, e tinha não sei o que de natural e affectuoso que
-se recebia com tão bom animo como os louvores, de que não se mostrava
-escaça quando merecidos.
-
-Uma virtude, rara nos homens de lettras, mais rara talvez entre as
-mulheres que se teem distinguido pelo seu talento e saber, é a de não
-alardearem escusadamente erudição, e essa virtude tinha-a a senhora
-marqueza em grau eminente. A sua conversação variada e instructiva era
-ao mesmo tempo facil e amena.
-
-E todavia dos seus contemporaneos quem conheceu tão bem, não dizemos
-a litteratura grega e romana, em que igualava os melhores, mas a
-moderna de quasi todas as nações da Europa, no que nenhum dos nossos
-portugueses porventura a igualou?
-
- * * * * *
-
-Ahi verá como em todas as phases da sua larga e não pouco tempestuosa
-carreira ella soube dar perenne testemunho do seu nobre caracter
-de independencia e generosidade; verá que em quanto na terra natal
-primeiro a tyrannia, e depois a ignorancia e a inveja a perseguiam,
-ella ia encontrar entre estranhos a justa estimação de principes, e de
-illustres personagens da republica das lettras. Ahi verá como nascida
-no seculo do materialismo, vivendo largos annos no fóco das idéas
-anti-religiosas, acostumada a ouvir todos as dias repetir essas idéas
-por homens de incontestavel talento, ella soube conservar pura a crença
-da sua infancia, e expirar no seio do christianismo. Ahi finalmente
-verá como as ausencias, por vezes involuntarias, da sua terra natal,
-não poderam fazer-lhe esquecer o amor que devemos a esta, ainda no meio
-das injustiças e violencias de todo o genero. ==(_Panorama_, pag. 403 e
-404 do vol. de 1844, artigo assignado por A. Herculano).
-
-
-A capella do palacio
-
-Em 11 de fevereiro de 1903 se rezaram missas de corpo presente pela
-alma do marquez de Fronteira na pequena capella do palacio.
-
-É um templosinho elegante com seu portico de columnas em estylo da
-renascença classica. Sobre a porta tem o letreiro:
-
- _Dicatum charitati coeli
- januae M.D.LXXX.IIII_
-
-É certo que o estylo diz perfeitamente com a data 1584. É possivel que
-tenha havido transformação grande de outra capella anterior, porque é
-tradição que S. Francisco Xavier antes de partir para a India, alli
-celebrou a sua ultima missa em Portugal, e o santo apostolo das Indias
-deixou Lisboa em 1541.
-
-
-Sepultura de João d’Aregas--O escudo d’armas
-
-==É a sepultura uma grande caixa de marmore assentada sobre quatro
-leões, lavrada em torno de escudos de armas, quarteados em aspa, e nos
-campos alto e baixo em cada um sua cruz floreada da feição das da Ordem
-de Aviz; e nos campos de cada lado uma serpe com azas ameaçando para
-fóra; na lagea que a cobre está o defunto entalhado de relevo, vestido
-em roupas largas e barrete posto, insignias de letrado; mas acompanhado
-tambem das de cavalleiro, que são seu estoque á ilharga; as mãos juntas
-sobre o peito como quem faz oração.==(_Historia de S. Domingos_, pag.
-176).
-
-Como se disse já, a mão direita da estatua segura um livro, e segurava,
-sobre o peito; a esquerda que inclinava sobre o coração e se partira e
-extraviára, está agora substituida por outra nova, erguida, segurando
-um rolo de papel.
-
-No Thesouro da Nobreza descreve-se assim o brazão:
-
-==Escudo franxado nos campos alto e baixo em vermelho uma cruz aberta
-e floreteada, nos quarteis dos lados em campo d’oiro uma serpente
-vermelha batalhante. Timbre as duas serpentes do escudo.==
-
-Sobre esta familia de Aregas, ou das Regras, encontro uma longa memoria
-de José Freire de Montarroyo Mascarenhas, no 5.° vol. dos Titulos
-genealogicos (B. N. L. Sec. Mss. Cod. 1034, pag. 289 e segg.)
-
-
-Nomes de artistas
-
-Percorrendo a «Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, e
-escultores, architectos e gravadores portuguezes... por Cyrillo Volkmar
-Machado (Lisboa, 1823)» encontro o seguinte:
-
---_André Gonçalves_, o pintor da Vida de José do Egypto na sacristia
-da Madre de Deus, fez os quadros no côro de S. Domingos de Bemfica.
-Este artista falleceu em 15 de junho de 1762--. Os quadros no espaldar
-do côro representam a vida de N. Senhora; acham-se regularmente
-conservados. Entre os quadros ha figuras de anjos, em variadas
-posições, do mesmo pincel. Não são notaveis; parecem feitos sobre
-estampas vulgares; monotonos no colorido; todavia o effeito do
-conjuncto é agradavel.
-
---_José da Costa Negreiros_ (m. 1759) pintou a casa do Capitulo--. A
-casa que serve á Irmandade da S.ᵃ do Rosario tem pinturas que podem ser
-deste artista.
-
---_Ignacio de Oliveira Bernardes_ (n. 1695--m. 1781), esteve em Roma;
-foi pintor, architecto, decorador; foi este o architecto da casa e
-quinta de Gerardo Devisme (actualmente o collegio).--Pertencia a uma
-familia de artistas que trabalhou immenso em varios generos. Por
-muitas partes se encontram ainda producções destes homens. Os azulejos
-da egreja, como já disse, estão assignados por Antonio de Oliveira
-Bernardes.
-
---_Jeronimo Correia_, esculptor em madeira, fez em Bemfica os ornatos
-das capellas.--Se foi este que executou o sacrario, elegante obra
-d’arte, era sem duvida um optimo artista.
-
---As duas grandes imagens da capella mór, S. Domingos e S. Pedro
-Martyr, são obra do melhor esculptor que viveu em Hespanha, por
-1651.--Acho esta noticia assim indeterminada em varias partes; creio
-que se referem ao esculptor português _Manuel Pereira_ (m. 1667).
-
-Francisco d’Assis Rodrigues no seu diccionario diz que Manuel Pereira,
-o primeiro esculptor português, foi o autor das imagens de Christo, S.
-Jacintho, e S. Pedro, em S. Domingos de Bemfica.
-
- * * * * *
-
-_D. frei Fernando de Tavora_ (m. 1577), religioso de S. Domingos,
-discipulo de fr. Bartholomeu dos Martyres, estimava muito a arte da
-pintura, e nella excedeu os melhores pintores do seu tempo; alguns dos
-seus paineis se conservam ainda em S. Domingos de Bemfica (_Santarem
-edificada_, de Piedade e Vasconcellos, 2.ᵃ parte, pag. 464).
-
- * * * * *
-
-Na egreja vejo os bellos azulejos; o lindo trabalho, majestoso e
-bem equilibrado, do altar mór, o cadeirado e as pinturas do côro,
-alguns quadros nas capellas, e as imagens. Entre estas sobresaem as
-figuras do Crucificado, a da S.ᵃ do Rosario, as grandes estatuas de
-S. Domingos e S. Pedro Martyr. É possivel que sejam de Manuel Pereira
-(V. o meu artigo na _Arte Portugueza_, Lisboa, 1895, pag. 57). Careço
-de elementos de comparação; não encontro assignatura, monogramma ou
-documento. Em todo o caso o boato algo vale; e não tem duvida que as
-esculpturas são boas.
-
-No domingo de Paschoa, 3 de abril de 1904, celebrou-se missa no altar
-mór, a primeira depois das morosas obras de concerto e reparo que
-durante annos impediram os exercicios do culto.
-
-
-
-
-O lindo sitio de Carnide
-
-(1898)
-
-Março de 1898.
-
-Por tristissimo incidente na minha vida tendo de passar uma temporada
-em Carnide, onde a amabilidade de uma familia excellente nos quiz
-espairecer da fatalidade brutal que nos feriu, eu, seguindo a velha
-tendencia do meu animo, comecei de indagar historias, e dar passeios
-pelas azinhagas solitarias; os largos passeios pelos campos que são a
-melhor fórma de isolamento doloroso.
-
-Muito naturalmente, para esclarecimento, consultei alguns livros; o
-primeiro que abri causou-me admiração; foi o _Diccionario Popular_
-publicado sob a direcção de Pinheiro Chagas.
-
---É sitio procurado no verão por alguns habitantes da cidade, que ali
-vão convidados pela sua amenidade. Gosa o logar egualmente de reputação
-de bons ares e abundancia de aguas, bem como alegre posição. Manda
-a verdade que se diga que o logar é detestavel, formado por algumas
-duzias de casas insalubres, dispostas em arruamentos sujissimos, para
-os quaes se fazem todos os despejos, e não tem passeios, nem jardins,
-nem quintas, nem arvoredos, nem bons pontos de vista. As aguas são
-extremamente escassas e os ares, por muito bons que podessem ser,
-resentem-se das más qualidades do sitio. Ainda assim o logar grangeou
-fama immerecida, e varias familias de Lisboa o procuram para terem dois
-mezes de campo! São gostos!--
-
-Ora a verdade é que o sitio de Carnide me impressionou agradavelmente
-com as suas largas vistas, brilhantes, matizadas de verdes, as suas
-graciosas quintas, as suas azinhagas quietas entre vallados de
-madresilvas, caniços, heras, roseiras, pilriteiros e congossas nas
-juvenis florescencias do começo de primavera.
-
-E abri outro livro.
-
-Foi a _Corografia Portugueza_ do bom padre Antonio Carvalho da Costa
-(Lisboa, 1712), que no seu tomo 3.ᵒ trata de Carnide, mui brevemente.
-
-Menciona a egreja parochial de S. Lourenço. Diz que o seu cura era
-apresentado pelos priores do convento de Nossa Senhora da Luz e que o
-logar tem oitenta visinhos com nobreza, duas ermidas, e muitas quintas
-com uma fresca alameda: e relaciona os conventos.
-
-A alameda fresca é sem duvida a do largo da Luz.
-
-Recorri logo ao Pinho Leal, no seu _Portugal antigo e moderno_, enorme
-trabalho com algum joio, é verdade, mas onde o corajoso colleccionador
-archivou muita noticia de valia.
-
---Carnide, freguezia no districto de Lisboa, concelho de Belem (hoje é
-freguezia de Lisboa), a seis kilometros a NNO. de Lisboa.
-
-Tem 260 fogos.
-
-Em 1757 tinha 250 fogos.
-
-É freguezia muito antiga, pois já existia em 1394.
-
-A maior parte é situada em fertil e saudavel campina, com lindas
-vistas. Orago, S. Lourenço.
-
-O cura era da apresentação do prior da Luz, da Ordem de Christo, depois
-passou a ser vigario collado perpetuo, com 80$000 réis de renda.
-
-A egreja de Nossa Senhora da Luz foi fundada por 1540, pela infanta D.
-Maria, filha d’el-rei D. Manuel e de sua terceira mulher D. Leonor. A
-fundadora está sepultada na capella-mór.
-
-O terremoto de 1755 damnificou muito esta egreja; existe apenas (agora
-em bom estado, depois da obra recente que ali se fez) a capella-mór e o
-cruzeiro.
-
-Continúo a seguir o Pinho Leal.
-
-Convento de freiras carmelitas descalças de Santa Thereza: é antigo,
-foi reedificado pela infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, por
-1680.
-
-Frades carmelitas descalços, de S. João da Cruz, fundado pela princeza
-Michaela Margarida, filha de Rodolpho II, imperador de Allemanha, por
-1642, que n’elle está sepultada (nem o imperador se chamava Rodolpho; e
-a pobre princeza está sepultada no convento de Santa Thereza, como logo
-contaremos). A infanta D. Maria, filha de D. João IV, viveu aqui (no
-convento de Santa Thereza) de 1649 até 1693. Foi mestra da infanta D.
-Luiza, filha bastarda de el-rei D. Pedro II.
-
-Esta D. Luiza foi reconhecida por D. João V, que a casou com D. Luiz
-Alvares Pereira de Mello, duque de Cadaval; por morte d’este casou
-com D. Jayme, seu cunhado, que ficou sendo duque de Cadaval, porque o
-primogenito morreu sem geração.
-
-A infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, veiu para aqui de
-tenra idade. Reedificou a egreja e o mosteiro, ampliando muito o
-edificio. Viveu recolhida sem professar. O reconhecimento como filha
-do rei foi feito solemnemente na presença da familia real e da côrte,
-no mosteiro. Esta senhora era muito estimada; as rainhas D. Luiza de
-Gusmão, mulher de D. João IV, D. Maria Francisca Isabel de Saboya e
-D. Maria Sophia de Neubourg a visitavam muito. O irmão, D. Pedro II,
-encarregou-a da educação da filha, D. Luiza, que depois foi duqueza de
-Cadaval.
-
- * * * * *
-
-A procissão dos Passos de Carnide faz-se na 5.ᵃ dominga de quaresma
-(este anno, 1898, foi em 27 de março).
-
-A conhecida feira da Luz, com arraial e festa, é nos dias 7 e 8 de
-setembro.
-
-O cirio do Cabo visitou Carnide pela primeira vez em 1437.
-
-Carnide está na 7.ᵃ ordem do giro. Em 1795 houve festa ruidosa porque
-tomaram parte no cirio o principe D. João (depois D. João VI) e sua
-mulher D. Carlota Joaquina.
-
-A Senhora do Cabo tem capella propria na egreja da Luz, na capella-mór,
-á esquerda; ainda ahi existe um formoso frontal, com o brazão da
-infanta D. Maria.
-
-Vamos ouvir o Padre Luiz Cardoso, no seu _Diccionario Chorographico,_
-que infelizmente ficou incompleto. Este escreve em 1751:
-
---Na egreja de S. Lourenço ha cinco altares, o maior, o de N. S.ᵃ do
-Rosario, o de Christo crucificado, o de S. Miguel, e o de Jesus Maria
-José. Havia então tres irmandades: a do Senhor, a de N. S.ᵃ do Rosario,
-e a das Almas.
-
-Tem (tinha) a freguezia mais as ermidas do Espirito Santo, a de S.
-Sebastião e a de N. S.ᵃ da Assumpção na quinta de José Falcão de
-Gamboa, hoje o casal do Falcão.
-
-A fonte de N. S.ᵃ da Luz, antigamente da Machada, divide-se em duas, a
-fonte de dentro e a de fóra.
-
-A de dentro está sob o altar-mór, a agua no sabor é grossa e salobra
-mas mui sádia, e principalmente contra a pedra tem especial virtude,
-e não consta que filho algum da terra padecesse semelhante achaque ou
-outra qualquer pessoa que d’ella usasse.--
-
- * * * * *
-
-O _Santuario Mariano_ de fr. Agostinho de Santa Maria é repositorio
-de muitas informações, porque este extraordinario devoto de Nossa
-Senhora a proposito das imagens que descreve, dá noticias das egrejas e
-localidades onde se veneram.
-
-No tomo I, pag. 98, escreve da imagem de Nossa Senhora da Luz em
-Carnide: e conta de como antes de 1463 foi captivo em Africa Pedro
-Martins, natural de Carnide; este homem teve sonhos milagrosos, fez
-promessas, e conseguindo livrar-se do captiveiro mourisco voltou á sua
-patria, onde já existia a fonte do Machado, e edificou a ermida. A
-fundação foi solemne, porque a ella assistiu D. Affonso V. É provavel
-que este Pedro Martins fosse algum antigo companheiro d’armas d’el-rei
-D. Affonso V, que a historia denominou o Africano, por causa das suas
-arrojadas emprezas e valentes brigas no Algarve d’além-mar. Pedro
-Martins collocou na ermida, em agradecimento, os grilhões do captiveiro.
-
-A infanta D. Maria, filha de D. Manuel, fez a nova egreja em 1575.
-
-A pag. 411 do mesmo tomo o padre Cardoso refere-se á imagem de Nossa
-Senhora da Conceição, do côro do convento da Conceição no sitio de
-Carnide (depois em Arroyos), sem dar noticia importante.
-
-Fr. José de Jesus Maria, na _Chronica de Carmelitas descalços da
-Provincia de Portugal,_ tomo III, pag. 147, acha o logar de Carnide
-situado em campo alegre e de ares puros, e cercado de muitas e curiosas
-quintas que servem igualmente para o lucro e ao recreio.
-
-Compõe-se o logar de 264 visinhos (elle escreve em 1753).
-
-Falla do convento da Conceição que na sua quinta fundou Nuno Barreto
-Fuzeiro.
-
-Do convento de Santa Thereza, nobilissimo seminario de infantas e
-senhoras... onde tantas vezes chegou a pobreza, a ponto de ás vezes não
-terem de comer.
-
-Mas as freiras tinham grande repugnancia em pedir; esperavam até á
-ultima; nada havendo, nem a esperança, tocavam uma sineta, a sineta da
-fome, pedindo soccorro. O mesmo succedia com as freiras do Calvario
-em Evora; tinham tambem o toque da fome. Quando nada havia, nem se
-esperava, iam para o côro, entoavam as suas rezas ao som do triste
-signal. Por vezes, no convento de Carnide, houve coincidencias que
-pareceram milagres. Uma vez ia a pobre soror, meio desfallecida,
-começar o signal da fome, quando bateram estrondosamente á portaria.
-Era um presente de atum assado que mandava a duqueza de Aveiro.
-
-Outra vez appareceram uns navegantes, salvos de grande tormenta no
-mar, com uma esmola de 20$000 réis.
-
-Em 1646 se dispôz a madre priora Michaela Margarida de Sant’Anna a
-lançar a primeira pedra do convento novo. Foi o duque de Aveiro quem
-lançou a pedra e d’isto se lavrou a inscripção==O duque de Aveiro, D.
-Raymundo de Lancastre botou a primeira pedra deste convento a 2 de
-junho de 1646.==
-
-Nova obra começou em 15 de outubro de 1662, commemorada em outra lapide
-(hoje no cunhal da frontaria da egreja):==Maria Joannis Lusitaniae
-Regis Filia hoc opus struxit anno Domini 1662.==
-
-A dedicação do templo de Santa Thereza foi em 15 de outubro de 1668.
-
-A capella-mór é de Santa Thereza.
-
-A do Evangelho é de S. João da Cruz.
-
-A da Epistola é da Senhora da Conceição.
-
-Defronte da grade do côro de baixo está a capella do Senhor dos Passos,
-com procissão na 5.ᵃ dominga de quaresma.
-
-No côro alto ha muitas reliquias (é um grande relicario entalhado e
-dourado, que se vê da capella-mór).
-
-A infanta D. Maria, filha de D. João IV, mandou fazer os retabulos.
-
- * * * * *
-
-Podemos affirmar, pois, que a egreja de Carnide era já parochial no
-seculo XIV. Que no seculo XVI era logar de certa importancia, pois a
-insigne infanta D. Maria, filha de D. Manuel, aqui veiu fundar egreja
-e hospital. Depois os differentes conventos e obras particulares; as
-grandes quintas com magnificas moradias, etc.
-
-Em 1712 tinha 80 visinhos com nobreza, o que é extraordinario; verdade
-é que não sabemos bem onde chegaria então a freguezia de Carnide; que
-no termo de Carnide se encontram bastantes casas, que podemos chamar
-pequenas, com seus brazões em porticos e cunhaes, é verdade.
-
-Em 1753 tinha 264 fogos.
-
-Em 1757 » 250 »
-
-Em 1875 » 260 »
-
-Provavelmente a freguezia cedeu alguns fogos para a formação de outra
-qualquer, ou então houve largo estacionamento.
-
-Actualmente (abril 1898) Carnide pertence ao 3.ᵒ bairro de Lisboa.
-
-Fogos, 337.
-
-Habitantes, 1:737.
-
-Sendo: varões, 1:018; femeas, 719.
-
-Solteiros, 710 varões e 404 femeas.
-
-Casados, 277 varões e 255 femeas.
-
-Viuvos, 31 varões e 57 femeas.
-
-Analphabetos, 432 varões e 353 femeas.
-
-Sabem ler, 6 varões e 18 femeas.
-
-Sabem ler e escrever, 580 varões e 345 femeas.
-
-É preciso lembrar que na freguezia de Carnide está o collegio militar,
-o que produz as grandes divergencias nos numeros dos solteiros, dos
-instruidos, etc.
-
- * * * * *
-
-O sitio é agradavel, de amoravel paizagem, brilhante mesmo nos dias
-bons; como o terreno é variavel na sua constituição, basaltos,
-calcareos, argilas, as culturas diversas, e de tons que vão do claro
-do rebento novo da vinha ao verde intenso do trigo, produzem um matiz
-onde o olhar repousa sem achar monotonia. Pelas quintas ha arvoredos
-sombrios, ou compridas latadas e hortejos cuidados, vinhas, searas,
-geiras de fava ou batata. Trabalha-se, cultiva-se com intensidade, e
-não sobram os braços porque os salarios dos trabalhadores ruraes são
-maiores que em outras partes.
-
-A par da quinta antiga com seu palacio e capella ha o _chalet_ moderno,
-com as suas varias traducções, vivenda, tugurio e não sei que mais. Bom
-exemplo de casa antiga é o casal do Falcão, com a sua varanda alta, e
-as suas dependencias; casa mais moderna, do começo do seculo XVIII,
-talvez, é a da quinta de Santa Martha, ou dos Azulejos, assim chamada
-por ter forradas de azulejos as paredes que deitam para o jardim, e as
-escadas, que são exteriores, a varanda, a nora, a parede do tanque,
-e as paredes dos alegretes altos, tudo em assumptos variados, em
-grandes quadros, em medalhões, com damas nobres, e archeiros, e deuses
-mythologicos, e quadrinhos que fazem lembrar o Nicolau Tolentino.
-
-Ao lado da propriedade grande e custosa ha a pequena que o saloio rega
-com o suor do seu rosto, e com a agua que tira do poço ou do regato com
-a _cegonha_ ou picota, a grande alavanca que já figura nas esculpturas
-do Egypto a levantar a agua do Nilo sagrado.
-
-De Carnide-Luz ha estradas para o Campo Grande, Telheiras, Paço do
-Lumiar, Sete Rios, Bemfica, Odivellas ou da Beja, mais ou menos
-assombradas, sempre agradaveis, por vezes com grandes vistas. A estrada
-militar corta grande parte da freguezia, offerecendo sempre largo
-horizonte.
-
-Eu tenho caminhado por estes sitios e acho adoraveis certas estradinhas
-discretas, humildes carreteiras bordadas de vallados agora floridos, de
-madresilvas e congossas, assombradas por oliveiras, olaias, cerejeiras;
-de vez em quando uma palmeira rompe entre as larangeiras, um cypreste
-ergue a sua pyramide verde escura.
-
- * * * * *
-
-Proximo da quinta dos Azulejos está o convento de Santa Thereza de
-Jesus. Eu ouço repetidas vezes a sineta com um som fraco, lamentoso,
-chamando á missa ou marcando as horas coraes.
-
-Os sinos de S. Lourenço são vibrantes, mui sonoros; aos domingos
-tocam musicas festivas que ficam bem na grande e virente paizagem,
-annunciando o dia de repouso a essa gente que tanto trabalha. Gosto de
-os ouvir nas Ave-Marias da manhã quando o sol nascente rutila na grande
-vidraça da egreja do cemiterio dos Arneiros.
-
-A egreja de Santa Thereza é bonita, de linhas sobrias, com uma só nave.
-
-O convento divide-se agora por duas communidades diversas. Uma parte
-pertence ás freiras portuguezas, senhoras mui virtuosas, e com
-excellente tradição por estes sitios. Outra parte ás freiras francezas,
-irmãs de S. José de Cluny. Estas são mais numerosas e teem pupilas e
-postulantes. Tem escola, e enviam pessoal para as missões africanas. As
-portuguezas resam no côro de baixo, as francezas no côro de cima.
-
-Todo o tecto da egreja, nave, cruzeiro, capella-mór e côro alto é de
-pintura antiga, de 1662 provavelmente, com as suas flores e fructos,
-mascaras e garças, molduras quebradas e grinaldas, grandes espiraes de
-folhagens, e figuras inteiras de virtudes. É muito lindo.
-
-Grandes paineis de azulejos com passos da vida de Santa Thereza forram
-a egreja até certa altura; télas pintadas a oleo, em grandes molduras
-de talha dourada, illuminam a parte mais alta das paredes.
-
-Entre estas reparo na grande téla que representa o passamento de Santa
-Thereza notavel na composição, no desenho e no colorido. É boa obra
-d’arte e documento notavel na indumentaria e mobiliario. O quadro da
-capella-mór é muito lindo tambem: composição importante, com muitas
-figuras, e bem colorido.
-
-A obra de talha da capella-mór, relativamente moderna, é muito elegante
-com o seu bello portico de columnas encimado pelas grandes figuras da
-Fé e da Esperança.
-
-Os altares lateraes são revestidos de azulejos polycromos, com as armas
-de Portugal entre ramarias e animaes, e moldura fingindo embrechado de
-marmore amarello sobre fundo negro. Estes azulejos devem ser tambem do
-seculo XVII.
-
-O pulpito e sua escada de páu brazil em torcidos e tremidos, com
-applicações de metal amarello, é notavel, e merece attenção tambem a
-especial pintura que cerca a janella, que está sobre a porta lateral da
-egreja, da parte de dentro.
-
-A infanta D. Maria, filha de D. João IV, está no côro de baixo; sob a
-grade d’este côro repousa uma princeza germanica.
-
-Reproduzo a inscripção desdobrando os breves:==Aqui debaixo d’esta
-grade jaz a veneravel madre Michaella Margarida de Sancta Anna filha
-do imperador Mathias, fundadora que foi d’este convento: resplandeceu
-em virtudes, faleceu em 28 de setembro de 1663 de idade de 82 annos
-havendo entrado na religião de 4 para 5 annos.==Esta inscripção está
-gravada em tres linhas, com bastantes lettras inclusas.
-
-Ha n’esta egreja uma devoção especial a «Santa Agape V. M. cujos
-despojos mortaes foram achados em Roma no cemiterio de Prescilla, sito
-na estrada Salaria Nova, e pelo santo padre Gregorio XVI concedidos
-á egreja de Santa Thereza de Carnide a 25 de abril de 1843... sendo
-expostos á veneração dos fieis em 14 d’outubro de 1846.»
-
-No exterior, templo e convento são de extrema singeleza. Sobre a porta
-principal a estatueta de Santa Thereza, e sobre a portaria a de S. José.
-
-No cunhal da esquerda da frontaria, lá está a inscripção:
-
- M.ᴬ F.ᴬ IOANNIS IIII LVSI
- TANIAE REGIS HOC OP
- VS STRVXIT, ANNO
- DNI. M.DCLXII.
-
-Este convento conheceu dias de tormenta; quantas angustias passaram
-atraz d’essas grades; nas grandes crises do tempo pombalino, dos
-francezes, das guerras civis, muitas damas, algumas das mais nobres
-familias de Portugal, aqui vieram asylar-se.
-
-Aqui esteve a duqueza de Ficalho a quem um capellão esperto dava
-noticias dos filhos, todos no exercito do imperador, no meio de
-motejos e allusões que contava em voz alta ás pessoas que estavam no
-locutorio, em quanto a duqueza escutava em ancias na casa proxima.
-
- * * * * *
-
-N’este convento de Santa Thereza de Carnide viveu uma religiosa
-celebrada no seu tempo pelas suas virtudes, lettras, prendas, e bom
-humor. Era insigne no cravo, escreveu prosas e versos, e desenhava
-muito bem. A sua biographia encontra-se n’um volume com o titulo==Vida
-e obras da serva de Deus e madre soror Marianna Josepha Joaquina de
-Jesus, religiosa carmelita descalça do convento de Santa Thereza do
-logar de Carnide.==(Lisboa, 1783). É obra publicada sem nome de auctor,
-mas sabe-se que o foi D. José Maria de Mello, filho de Francisco de
-Mello, monteiro-mór do reino, oratoriano, bispo do Algarve, etc. Era
-sobrinho da insigne religiosa; e esta era filha do conde de Tarouca, o
-conhecido diplomata João Gomes da Silva.
-
-As obras da madre Marianna são escriptos piedosos, em prosa e verso,
-em boa e fluente linguagem. As prosas são exercicios espirituaes,
-instrucções para as noviças, actos das virtudes, etc. E as poesias que
-se leem sem enfado porque tem certa animação são todas conventuaes,
-celebrando, festividades; sonetos, decimas, nas festas da prelada;
-sortes de exercicio de virtudes para se tirarem no dia da exaltação
-da cruz; sortes da paixão para se tirarem no domingo de Ramos. Ha um
-romance.==A uma noviça attribulada.== E varios desafios poeticos no
-tempo do advento, exaltação e quaresma.
-
- * * * * *
-
-A egreja parochial de S. Lourenço de Carnide está agora bem reparada; é
-antiga como mostra a sua orientação e disposição. Todavia pouco resta,
-á vista, dos seus primeiros tempos. Na frontaria á direita ha uma pedra
-que é precioso monumento. Diz assim:==Era de 1380, 14 de maio o bispo
-Dom João mandou edificar esta egreja por Pero Sanches chantre de Lisboa
-á honra de S. Lourenço e deu-a a João Dor, seu capellão 24 dias do dito
-mez e passou o dito bispo 24 de julho da dita era ao qual Deus perdôe.
-Amen. Isto declara o que diz a pedra antiga correspondente.==
-
-A qual pedra não se vê hoje.
-
-Á esquerda da frontaria está em pedra lavrada, um brazão raro; tem na
-parte superior uma barra com vincos obliquos, sob isto uma estrella,
-uma perna com meia e sapato, que pousa sobre uma nuvem.
-
-Na igreja ha um quadro bom, o _lavapedes,_ mal restaurado infelizmente;
-algumas campas, duas pias de agua benta que são dois capiteis do seculo
-XIV escavados, e na sacristia um arcaz de boa madeira, bom trabalho,
-com metaes bem lavrados.
-
-O terreno em redor da igreja era antigamente o cemiterio e ainda ahi
-está uma urna com inscripção que será bom registar:==Josephus Joannes
-de Pinna de Soveral e Barbuda speciosus forma oritur ut moriatur 23 die
-decembris anno 1710 et plenus gratia per merita domini nostri Jesus
-Christi moritur ut vivat 1.ᵒ die mayi anno 1742,==o lettreiro está na
-face da urna em moldura, tendo na facha superior==Deo laus honor et
-gloria, amen,==e na inferior==Spes et voluntas in Deo.==
-
-Visinha da igreja de S. Lourenço está uma fonte com bello aspecto mas
-sem agua. Tem seu terreiro bem empedrado defendido por frades de pedra,
-tanque, e um corpo central encimado por uma estatua, uma figura de
-mulher que me intriga um tanto. Esta figura está mutilada, sem braços,
-e pegaram-lhe ao lado uma pedra com seu lettreiro:==Encanamento de
-ferro pela vereação de 1858.==Mais em baixo o dizer:==Camara Municipal
-de Belem, 1857.==Apesar dos lettreiros e dos canos de ferro a fonte
-está enxuta.
-
-No passeio de cima chamado antigamente do Espirito Santo, agora o _alto
-do poço_, está uma fonte, isto é, um poço com bomba, e uma urna de
-pedra bem tosca com a indicação:==C. M. B. 1859.==Dizem os de Carnide
-que a agua da fonte de baixo era excellente. Parece que n’este caso
-como em tantos outros a companhia apanhou as aguas boas, misturou-as
-com as ruins, e fornece a mistura aos consumidores, que em certas
-localidades ficaram prejudicados.
-
-Agora a respeito da estatua; é uma figura de mulher, com tunica de
-pregas miudas, e amplo manto cingido. Parece-me uma estatua romana,
-pelo trabalho, disposição, rosto e cabello. Provavelmente foi
-aproveitada alli como o satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica.
-
-Carnide tem illuminação a gaz, agua da Companhia, estação
-telegrapho-postal, posto de bombeiros, posto de policia civil, a sua
-philarmonica com aprendizes de cornetim, a pharmacia com seu gamão,
-um theatro particular, um club e duas escolas municipaes primarias
-officiaes de ensino gratuito, uma para meninas e outra para meninos que
-me parecem regularmente frequentadas.
-
-As irmãs de S. José tem escola de meninas.
-
-O que anima muito o sitio é o collegio militar, que está muito bem
-installado no sólido edificio que ainda conserva na sua frente o brazão
-da fundadora, a inclita infanta D. Maria, filha de el-rei D. Manuel.
-
-Na procissão dos Passos faziam a guarda de honra os alumnos do Collegio
-Militar com as suas carabinas no braço, marchando muito garbosamente,
-entre o povo e as familias d’elles que os acompanhavam, cobrindo-os
-com os seus melhores olhares. Sentia-se um certo perfume de familia,
-patria, dever, brio, mocidade, um ramilhete de cousas boas, ao vêr
-passar, musica na frente, aquelles bellos rapazes, entre a multidão
-sympathica.
-
-A igreja de Nossa Senhora da Luz é bem conhecida; eu mesmo já
-escrevi algures da formosa téla onde se vê retratada a infanta D.
-Maria (ha outro retrato no quadro da capella do collegio militar),
-do extraordinario altar-mór com os seus finos baixos relevos, da
-capella-mór que é um monumento da arte nacional, excepcionalmente bem
-conservado. No exterior está a fonte, a velha estatua da Virgem e uma
-longa inscripção repartida em duas lapides de marmore avermelhado, que
-diz o seguinte:
-
-==No anno de 1463 reinando em Portugal D. Affonso V os visinhos de
-Carnide com devoção das revelações que Pedro Martins, natural deste
-logar, teve em seu captiveiro, donde sahiu milagrosamente, lhe ajudaram
-a fazer uma capella a nossa Senhora da Luz sobre esta fonte. O lugar
-como determinado pela divina providencia para este effeito se via
-dantes claro e resplandecente com visão e lumes do Céo, como depois
-se viu resplandecer com grandes e innumeraveis milagres na terra. E
-seguindo em tudo a ordem e revelação que a Virgem purissima inspirou
-a Pedro Martins, lhe puzeram o nome que tem da Luz, em cuja memoria
-e louvor a infanta D. Maria filha delrei D. Manuel o primeiro deste
-nome, rei de Portugal, e da Christianissima rainha D. Leonor infanta de
-Castella, mandou reedificar e levantar o templo de novo nesta ordenança
-e grandeza, no anno de 1575.==
-
- * * * * *
-
-Domingo de Ramos, 3 abril 1898.
-
-Pela manhã cedo dei um pequeno passeio até á Casa da Pontinha, proxima
-da estrada militar. É casa antiga, com algumas alterações modernas; na
-parede que deita para a estrada, a pouca altura, está um marmore com
-lettreiro:
-
- Louvado seja
- o santissimo
- sacramento.
- --
- Se quereis
- saber quem
- he o serafi
- co Frc.ᵒ está
- junto a IHS
- Cristo que
- 16 assim o te 37
- mos por
- fee
-
-Superior á lapide está um quadro de azulejo; a Senhora da Conceição, em
-azul sobre o branco, de bom desenho, em moldura de azulejos policromos.
-
-Proximo da Casa da Pontinha, na estrada que vem para Carnide, está uma
-casa quadrada, na ponta da horta do casal do Falcão, n’um angulo de
-muro, que conserva um friso ornamentado, uma grega singela em relevo de
-cal, um _esgrafitto_, datado «1622».
-
-Depois ouvi a sineta das freiras, que sôa como uma voz debil, triste,
-e entrei na linda igreja. O capellão lia no seu missal a grande
-narrativa do triumpho em Jerusalem, que foi terminar na paixão, na cruz
-do Calvario, verdadeiro symbolo da vida humana, que a dias de puras
-alegrias e risonhas esperanças faz succeder horas de desespero e uma
-eternidade de angustias.
-
-O capellão lançou a sua benção sobre os ramos, folhas de palmeira
-sem ornato algum, e deu-os pela grade do côro de baixo ás religiosas
-portuguezas. Entraram processionalmente as irmãs de S. José de Cluny,
-com as suas tunicas azues e mantos pretos; toucas brancas moldurando os
-rostos; atravessaram o cruzeiro e ajoelharam no degrau da capella-mór.
-Ahi receberam as palmas, os ramos do grande triumpho. Não havia
-musicas, nem canto; um grande silencio apenas. E retiraram na mesma
-ordem, e no mesmo silencio para a sua clausura.
-
-Quantas estarão de marcha para as missões africanas!
-
- * * * * *
-
-Quinta-feira santa, 7 d’abril 1898.
-
-Hoje o passeio foi longo, quiz verificar o que havia a respeito de
-certas antiguidades na ribeira de Carenque.
-
-Ha tempos, nem me recordo porque circumstancia, folheei um opusculo
-intitulado==_Representações dirigidas a S. M. a Rainha e ao corpo
-legislativo pela Camara Municipal de Lisboa sobre o abastecimento
-d’aguas na Capital_==(Lisboa, 1853). Ora estas representações são
-acompanhadas de pequenas memorias de J. M. O. Pimentel e do engenheiro
-Pézerat, duas summidades do seu tempo. A de Pézerat começa a pag.
-53:==Memoria sobre as conservas d’agua da Quintam até ao Salto Grande.==
-
-Tratava-se de estabelecer tanques nos valles superiores (da ribeira
-de Carenque), ou conserva para a repreza de todas as aguas de sobejo
-fornecidas no inverno pelos differentes nascentes d’este systema de
-aqueducto (o das Aguas Livres). E diz Pézerat:==Descobri o valle da
-Quintam, com condições muito favoraveis porquanto já tinha servido em
-tempos remotos de conserva ou bacia para uma immensa repreza, cuja
-existencia está provada pelos restos do antigo paredão ou marachão com
-11 metros de largura, e 9 de altura, e que os habitantes attribuiam á
-epocha do dominio romano, e como tal o denominam, porém mui facilmente
-reconheci pertencer á epocha mourisca.==
-
-Na planta que vem com a memoria marcam-se o casal da Fonte Santa, o
-resto do marachão, as linhas do aqueducto de D. João V, as mães d’agua,
-velha e nova, a escavação de um aqueducto abandonado, o valle de
-Fornos, o casal da Quintam e as ruinas do Castello velho.
-
-Eu desejava ver estas antigualhas.
-
-Parti de Carnide á Porcalhota, ao sitio da Amadora, passei por um
-grande arco sob a linha ferrea, e entrei na estrada de Carenque, que
-vae seguindo a corrente. Um valle muito comprido, accidentado, com
-dois logares, Carenque de baixo, Carenque de cima, alguns grupos de
-casebres, azenhas, pequenas hortas, e dominando tudo a formidavel obra
-do aqueducto das Aguas Livres, sempre bem feita, de silharia sempre bem
-faciada, formidavel monumento.
-
-A principio ia desanimando, ninguem me sabia dizer das velharias
-mouriscas ou romanas, nem da Quintam, e cheguei assim ao casal do
-Ernesto.
-
-Ahi depois de expôr a minha questão a um grupo que nada sabia,
-surgiu-me um sujeito côxo conhecedor do caso, da obra dos mouros (não
-me fallou de romanos) e da Quintam. Este côxo providencial chama-se
-João Silvestre, e foi pastor na sua mocidade. Pastores sabem muito,
-andam pelos montes e charnecas, por atalhos e a corta-matto; são sempre
-bons informadores.
-
-Com o Silvestre passei as terras do casal do Ernesto; em breve estava
-na ponte entre as mães d’agua; a chamada _nova_ (D. João V) é uma linda
-construcção oitavada, de elegantes fórmas singelas, classicas, parece
-uma obra grega. Pouco acima avistava-se outra obra inconfundivel, o
-marachão, enorme, firme, apezar das cheias, dos seculos e dos homens.
-
-Porque já para a obra do aqueducto de D. João V tiveram de o romper a
-poente, e mais recentemente a nascente para a passagem de uma estrada;
-todavia o que existe é pouco menos do que viu Pézerat.
-
-Nas dimensões que elle apresenta, na da largura do paredão, houve
-engano me parece. Contando com os encostos ou gigantes, na base,
-chega-se a 11 metros, mas a parede em si tem 7 metros, o que é bem
-respeitavel. É feito de camadas de pedregulho e argamassa, revestido
-de pedras grandes irregulares e mal faciadas, em fiadas; por isto
-me parece obra dos arabes; os romanos em obra de tal importancia
-empregavam os seus bellos apparelhos. O paredão tem 9 metros de altura
-na face do sul. Completo teria 40 a 50 metros de comprimento, e 5 ou
-6 de altura sobre o terreno a montante; ora a montante segue-se uma
-varzea consideravel que fechada formaria uma grande albufeira. Mais
-acima, a 2 kilometros, fica a Quintam, um casal muito velho; ao lado
-restos da muralha com ameias, e um grande portal.
-
-É de notar que junto de Odivellas, sahindo da povoação a entrar no
-atalho que vem ao moinho da Luz, na estrada militar, está um muro
-ameiado, com seu portico em ogiva, resto tambem de uma construcção
-fortificada. Castellos não seriam, mas habitações fortificadas talvez.
-
-E disse-me o Silvestre,--mas por aqui ainda ha melhor, se tem tempo
-e vontade eu lhe vou mostrar a eira dos mouros.--Trepámos por atalho
-até uma chapada, proxima e inferior á crista do cerro que é formado
-de calcareo secundario muito fragmentado. E achei-me em face de um
-problema.
-
-É uma chapada ligeiramente inclinada de poente para nascente. N’este
-declive traçaram um octogono regular, menos a face do nascente que está
-de nivel com o terreno natural. Este octogono está cercado por um muro
-duplo, isto é, por dois muros parallelos que entre si conservam um
-intervallo de meio metro; estes muros conservam a mesma altura em cinco
-lados do octogono, decrescem nos dois a nascente até chegar ao nivel do
-solo. Os muros teem 0,5 de espessura; nos cinco lados a poente, norte
-e sul, quasi um metro de altura na face interior, porque na exterior,
-a poente estão com o terreno, que é mais alto ahi. São de alvenaria
-bem solida. No espaço assim limitado arranjaram um centro plano e das
-paredes para esse centro ha declives regulares, artificiaes. Todo
-este espaço interior está, não calçado de pedra, mas forrado de uma
-forte camada de alvenaria, que assenta, como se vê n’um ponto que está
-escavado (por algum caçador, ou mais provavelmente por algum sonhador
-de thesouros; porque, notou o antigo pastor, dizem que ha muita somma
-de dinheiro e outras cousas enterradas por estes sitios), em grande
-camada de pedregulhos.
-
---Dizem que era aqui que os mouros se vinham divertir,--informou o
-Silvestre. Um theatro, uma palestra, uma praça de touros? quasi que
-parece; mas para que a dupla parede com a sua sanja ou caneiro? E os
-declives, e a solidissima alvenaria que forra o fundo? Para um fim
-industrial, ou assento de grande arribana, tambem não vejo; se fosse
-questão de aguas, tanques de lavagem, então não fariam aquella obra na
-altura, porque o rio corre muito abaixo. O espaço é consideravel; tem
-proximamente 35 metros de diametro maximo, e os lados, muito regulares,
-tem 15 metros cada um na face interna. Ha outras eiras de mouros, disse
-Silvestre, mas sem o duplo muro, n’uns outeiros mais distantes.
-
- * * * * *
-
-10 de abril de 1898.
-
-Hoje pela manhã fui vêr uma obra d’arte na quinta da Marqueza.
-A meio do jardim quadrado agora exhuberante de bellas rosas, de
-macissos de flôres, está um tanque de fino marmore, grande, formado
-de enormes blocos lavrados, com seus chanfros e curvas, decorado de
-quatro mascaras collossaes; sobre a borda do tanque quatro golphinhos
-decorativos de cauda erguida, infelizmente quebradas as extremidades,
-que lançam jorros d’agua para o tanque. No centro um grande grupo, um
-tritão vigoroso, uma formosa sereia e um genio marinho, em posições
-movimentadas, dando um todo agradavel de qualquer lado que se observe.
-É uma peça de esculptura notavel em marmore de Italia.
-
-Depois segui para o casal do Falcão, que não tinha ainda examinado
-internamente. É um grande predio apalaçado, com suas dependencias;
-palacio e centro de exploração agricola. Da casa de residencia está
-metade em pé, outra que olhava ao norte, e que tinha como a do nascente
-a sua alta varanda coberta, com finas pilastras, foi derrubada ha muito
-tempo. Tem dois pavimentos; no terreo estão cosinhas e arrecadações; no
-superior, o andar nobre, salas e alcovas. As salas eram ladrilhadas,
-com altos rodapés de azulejo, e tectos de madeira em caixilhos ou
-almofadas.
-
-Tem capella. Sobre a porta da pequena mas elegante egrejinha está o
-lettreiro:==Dedicada a Nosa Snra da Asumsão ano de 1705 (?).==
-
-Parece-me 1705, mas os dois ultimos algarismos estão muito gastos. O
-altar-mór tem seu retabulo em marmores lavrados, com seus nichos, em
-trabalho que tem movimento. Nas paredes ha azulejos bem conservados, e
-em frente da pequena tribuna um lettreiro diz que alli está enterrado
-João Coelho que instituiu a quinta em morgado em 1647. Esta casa com
-suas dependencias, lagares, arribanas, abegoarias, é um bello exemplar
-de construcção portugueza no seculo XVII.
-
-Entre almoço e jantar fui vêr o casal e o moinho do Castello, para lá
-de Alfornellos ou talvez melhor, Alfornel.
-
-Estes nomes de Fornos, Fornellos e Alfornellos indicam a existencia de
-antigos fornos, os d’estes sitios provavelmente só destinados a coser
-calcareo e grossa ceramica; não encontrei ainda escorias de metaes.
-
-O moinho do Castello desappareceu, está lá como testemunha a grande
-pedra do frechal. A altura é formada por calcareo jurassico, cujas
-cristas parallelas afloram sobre o solo. Não vi grandes movimentos de
-terra ou pedra que indiquem trincheiras bem definidas. Nem fragmentos
-de ceramica, escorias, ou outra qualquer cousa que indique trabalho
-humano. É possivel todavia que alli tenha havido alguma fortificação
-prehistorica; á vista e não muito distante está outro monte a que um
-pastor tambem chamou do Castello.
-
-A proposito de movimentos de pedra e terra direi que nos arredores
-de Lisboa o archeologo precisa estar sempre lembrado de que dois
-formidaveis trabalhos se proseguem ha muitos seculos por estes sitios;
-a exploração das pedreiras, e a pesquiza e captagem das aguas.
-
-O trabalho das pedreiras em varias epochas, depois dos terremotos
-da capital, foi collossal. A formação de aqueductos para Lisboa,
-especialmente o prodigioso trabalho da rede do Aqueducto das Aguas
-Livres que acompanha e alimenta o cano geral deu origem tambem a grande
-deslocação de material.
-
-Seguindo do casal do Castello para Falagueiras segui eu um ramo do
-aqueducto, e um caneiro para regularisar a sahida das aguas do valle,
-tudo bem feito, com solidas fiadas de silhares, suas caixas d’agua,
-algumas das quaes me pareceram muito anteriores ás suas visinhas do
-tempo de D. João V. Exactamente, antes de chegar á queda da ribeira
-onde está uma grande caixa d’agua, vi muitos movimentos de terra,
-comoros artificiaes, que n’outra região tomaria por mamunhas ou mamoas
-tumulares.
-
- * * * * *
-
-O rev. padre Pereira, actual prior de S. Lourenço de Carnide, tem
-colligido muitas noticias para a historia d’este logar.
-
-Para o estudo da topographia de Carnide e seus arredores serve muito
-bem a carta n.ᵒ 7, publicada pelo Corpo d’Estado Maior.
-
-A historia da egreja de Nossa Senhora da Luz, e do edificio onde
-actualmente se acha installado o Collegio Militar, encontra-se na
-_Vida da infanta D. Maria, filha de D. Manuel_, por fr. Miguel Pacheco
-(Lisboa, 1675); em _O Occidente,_ vol. de 1890, pag. 219; e no _Archivo
-Pittoresco,_ vol. de 1863, pag. 299.
-
-O casal do Falcão mereceu estudo especial ao sr. Julio de Castilho,
-2.ᵒ visconde de Castilho, gentil espirito que esmalta de poesia a mais
-variada erudição. O sr. visconde publicou no _Instituto_ de Coimbra,
-vols. de 1889-90, uma serie de artigos historiando os dramaticos amores
-do pintor Francisco Vieira de Mattos, o Vieira Lusitano, com a firme
-e leal senhora, D. Ignez Helena de Lima e Mello, que apoz dolorosos
-episodios foi esposa do grande artista.
-
-Esses amores puros, honestos, bem portuguezes, que douram de deliciosa
-poesia os restos, agora tristes, da fidalga vivenda, de ha muito
-chamada o casal do Falcão, foram contados pelo proprio Vieira n’um
-livro: «O insigne pintor e leal esposo Vieira Lusitano, historia
-verdadeira que elle escreve em cantos lyricos (Lisboa, 1780)»; livro
-interessante porque além do poema amoroso, apresenta grande numero de
-quadros de costumes, scenas palacianas, festas populares, e noticias
-artisticas.
-
-
-
-
-Noticias de Carnide
-
-(1900)
-
-_Domingo, 12 de junho de 1898._--No fim da tarde trovoada forte, e
-chuva grossa; d’estes chuveiros que no campo fazem bulha batendo nas
-folhagens do arvoredo; um rufar grave que se ouve a centos de metros.
-Em Carnide não cahiu granizo; nas Laranjeiras bastante, mais forte na
-Palhavã; no Matadouro a saraiva foi tão valente que partiu vidraças; e
-em Sacavem e Cabo Ruivo ficaram algumas propriedades arrazadas.
-
-Não ha memoria por estes sitios de tempestade tão violenta.
-
-_Vespera de Santo Antonio._--Á noite fizeram-se sortes; quatro
-papelinhos, nome de senhora, nome de homem, sitio, e o que estavam
-fazendo. Permittem-se cousas... que fazem rir. Queimam-se alcachofras,
-ha a historia da moeda de cinco réis, os foguinhos de vistas, valverdes
-e bichas de rabiar. Uns rapazotes da visinhança estiveram n’um pateo,
-durante duas horas talvez, atirando bombas. A philarmonica tocou o seu
-reportorio no coreto armado no Alto do Poço. Junto do coreto raparigas
-e alguns rapazes dançavam e cantavam. Cantigas _triviaes geraes_; não
-ouvi nenhum cantar especial de Santo Antonio, nem na letra nem na
-musica. O mesmo succedeu pelo S. João; não encontrei nada particular
-nas celebrações populares. Brinca-se, riem, dançam, conversam sem
-mostrar feição local. Creio que ouvi mesmo a valsa dos _Quadros
-dissolventes_. Nada que recorde as cantigas do Alemtejo nem as da
-Beira, as fogueiras do valle do Mondego, que teem cunho especial, typos
-admiraveis, musicas que tão bem enquadram umas nas vastas campinas
-alemtejanas, outras na paisagem mimosa, nos frescos valles da Beira.
-É digno de reparo que estas cantigas populares de uma região não se
-vulgarisem fóra d’ella.
-
-Teem suas espheras. Ao mesmo tempo ha cantigas de origem não popular
-que se generalisam rapidamente. A fogueira de Coimbra, arranjada no
-_Burro do sr. Alcaide_, a _Noite serena lindo luar_, tambem de Coimbra,
-que não são de origem popular, espalharam-se por todo o paiz. A valsa
-dos _Quadros dissolventes_ foi uma explosão; os garotos assobiavam-n’a
-nos bairros de Lisboa, ouvia-se em pianos nas mansardas da baixa, aos
-operarios de Sacavem, e a vendedores torrejanos, isto dentro de um mez.
-
-Duram mezes, ás vezes annos, certas cantigas; esvaem-se pouco a pouco,
-ou desapparecem de chofre como a _Rosa tyranna_. São modas que passam,
-como as reformas administrativas e as leis eleitoraes. Assim passou a
-epidemia do _chocalhinho_, o caso da _salva brava_, o _pão de Kuhne_.
-Não se recordam do _Estás lá ou és de gêsso_, do _Lindos olhos tem o
-môcho_, do _Debaixo do sophá_, do _Vae-te embora Antonio?_
-
-As musicas de Offenbach foram muito populares, mas para estas
-concorreram certamente os theatros de feiras. No Alemtejo cantigas de
-mondadeiras, de vindimeiras, e as de S. João, que se cantam tambem
-pelo Santo Antonio e pelo S. Pedro, pertencem a fundo antigo popular.
-Só ha tempos ouvi em Carnide uma trova que me fez lembrar o Alemtejo,
-a cantilena muito comprida, melancholica, de um homem que lavrava com
-a sua junta de bois; conversámos, perguntei-lhe de onde era; de Villa
-Franca. É que o Ribatejo já tem muito de alemtejano.
-
- * * * * *
-
-_Dia de Santo Antonio, de 1898._--Fez-se a eira no casal do Falcão;
-ante a grande frontaria do nascente, limpou-se da erva o amplo
-terreiro. Com a chuva da trovoada da tarde de hontem, e da noite, o
-terreno estava encharcado; depois de limpo entrou um rebanho de ovelhas
-para calcar, com o seu moroso voltear.
-
-Foi no dia de Santo Antonio, 13 de junho de 1898, que obtive licença
-para vêr algumas salas do convento. Acompanhou-nos o reverendo
-capellão padre Louro, protector carinhoso das velhinhas recolhidas,
-tão modestas e tão religiosas.
-
-A superiora chama-se D. Maria Guilhermina de S. José. As suas
-companheiras são Maria de Jesus, Maria Philomena, Maria Augusta,
-Josephina, Olympia, Maria do Carmo e Isabel. Vivem em perfeita
-communidade estas santas senhoras, na virtude, na oração e nos humildes
-trabalhos, como se Santa Thereza em pessoa ali estivesse fazendo
-cumprir a sua regra.
-
-No claustro a arcada muito clara e limpa, a cantaria lavada e as
-paredes caiadas, tudo muito nitido, e cheio de reflexos de sol. No
-meio da quadra o jardim, ainda o jardim antigo, o tanque central, e os
-alegretes altos azulejados. E ainda as lindas flôres antigas, as rosas
-e os cravos, o novelleiro, a baunilha, o jasmineiro, a alfazema e a
-manjerona, a malva de cheiro, e a lucialima de fina folhagem.
-
-A capella do Senhor dos Perdões está bem conservada na sua elegante
-architectura. Na quadra, junto do jardim, ha duas capellas; o lado de
-dentro das portas d’estas capellas é pintado a oleo, com folhagens em
-volutas e espiraes, bom exemplar de pintura decorativa do seculo XVII.
-
-N’um altar do claustro vi azulejos iguaes aos dos altares do cruzeiro
-da egreja, e da capella do Senhor dos Passos; bellos exemplares do
-seculo XVII.
-
-No tanque da cêrca está um quadro em azulejo representando a
-_Samaritana_.
-
-As senhoras recolhidas comem no seu refeitorio, uma casa grande mui
-limpa, as paredes ornadas de pequenos quadros de devoção.
-
-Sobre a toalha branca sem uma nodoa os pratos e canecas de faiança
-ordinaria, com sua marca; provavelmente louça especial feita para o
-mosteiro em tempos antigos.
-
-Creio que os conventos de Lisboa tinham todos louça especial com
-marcas proprias, insignia ou divisa, ou inicial; e ainda mesmo algumas
-confrarias possuiram tambem as suas louças com monogrammas ou emblemas
-particulares.
-
- * * * * *
-
-_O presépe._--A casa da recreação é uma sala grande muito illuminada
-por janellas rasgadas em duas paredes, com lindas vistas para os
-accidentados arredores de Carnide.
-
-N’outra parede fica a porta de entrada e uma capella onde estão muitas
-imagens; na quarta parede fica o presépe.
-
-As portas do presépe merecem attenção; teem o lado interior com
-ornamentos dourados sobre fundo preto, imitando charão antigo, pintura
-feita por uma freira, segundo a tradicção conventual.
-
-As figuras do presépe são de barro cosido, colorido e tambem dourado,
-finas esculpturas em grupos e scenas bem combinadas. N’estes grandes
-presépes conservou-se a tradicção dos primeiros mestres flamengos
-que n’um só quadro accumulavam muitas scenas, a _paixão_ toda, por
-exemplo, como succede n’essa maravilhosa pintura de um mestre
-desconhecido do começo do seculo XV, joia de alto preço, que se
-conserva no côro de cima da egreja da Madre de Deus (Xabregas). A
-scena principal é a do presépe, o Menino Jesus sobre as palhinhas
-entre a Virgem e S. José. Proximo o grupo vistoso, opulento, dos
-reis Magos. Ali a noticia, a grande nova aos pastores, além a fuga
-para o Egypto. Entre estes grandes grupos, outras scenas, as da vida
-popular tão interessante n’estes presépes antigos que sabiam combinar
-engenhosamente a vida humana com o sublime ensinamento religioso;
-de modo que hoje estes presépes além de todos os valores antigos da
-significação religiosa, e de merecimento artistico, teem para nós a
-importancia de documentos da vida popular; quantas vezes mesmo se
-encontram aqui notas, figurinos, por exemplo, que em nenhuma outra
-parte se topam.
-
-N’este de Carnide entre os grupos ao divino das scenas da infancia do
-Menino ha alguns episodios profanos extraordinariamente executados:
-um grupo de populares sapateia a um lado com toda a bizarria; n’uma
-especie de gruta, a fugir da luz, dois homens jogam absorvidos;
-perto passa um cégo tocando sanfona; e camponezes alegres, com ovos,
-gallinhas, perdizes, coelhos...
-
-Superior a tudo isto, em posição muito bem calculada para a
-perspectiva, um grande grupo de anjos cantando e tocando orgão,
-violas, e violão, e superior ainda a este grupo brilhante um anjo
-gentilissimo com a fita onde se lê _gloria in excelsis_, entre frescos
-e risonhos rostos alados de cherubins. N’essas figuras de impeccavel
-esculptura ha mais porém, ha em algumas grande expressão e movimento;
-o espanto dos pastores, a magestade bondosa dos reis, o enlevo musical
-do cégo, a furia nervosa dos jogadores, o enthusiasmo dos populares
-no seu fandango rijo, são d’um encanto irresistivel, qualquer d’esses
-grupos é de per si uma obra d’arte. Como isto chegou até nós, Santo
-Deus, atravessando estes tempos de progresso, de luzes, de leilões!
-bemditas as santas senhoras, tão singelas e honestas, que teem sabido
-conservar essa preciosidade. Cuidado com os amadores! com os poderosos,
-espirituosos e curiosos; é preciso conservar esse lindo presépe.
-
-Na mesma casa da recreação ha outro presépe, pequenino, interessante,
-com o Menino dormente. E na capella ha uma adoravel imagem do Menino,
-em pé, de especial devoção antiga no convento, que tem o nome de _o
-menino da compaixão_. E é bem singular que a escultura do rosto dá a
-impressão de doce condolencia. Mas vejam como está bem afinada esta
-casa de recreação para as senhoras religiosas; a linda sala cheia de
-luz, os retratos das sublimidades da Ordem, dos modelos de virtudes
-e abnegação, o artistico presépe, vibrante de suggestões, a imagem
-consoladora do Menino, e pelas janellas largos trechos claros de
-paizagem variada, a paizagem campestre clemente e serena.
-
- * * * * *
-
-No convento de Santa Thereza de Carnide vi alguns retratos valiosos,
-não pela arte mas como documentos historicos, especialmente aquelles
-que teem em seus letreiros dados biographicos dos retratados.
-
-Por exemplo, o retrato de==_D. Fr. Luiz de Santa Thereza, carmelita
-descalço, lente de theologia, bispo de Pernambuco em 1738, falleceu a
-17 de novembro de 1757, jaz na capella mor do convento de S. João da
-Cruz de Carnide._==
-
-Pela extinção dos conventos de frades recolheram algumas pinturas e
-imagens nos das freiras e assim se salvaram naquelle cataclismo.
-
-Outros: _Retrato da infanta D. Maria filha de D. João IV_.
-
-_Retrato da Madre Micaella Margarida de Santa Anna._
-
-_Retrato de... bispo de Penafiel confessor da princeza._
-
-_Retrato de D. Fr. João da Cruz, carmelita, lente de filosofia e
-theologia, prior do collegio de Braga, e Santa Cruz do Bussaco, bispo
-do Rio de Janeiro em 1739 transferido para o bispado de Miranda em
-1750. Falleceu a 20 de outubro de 1756._
-
-_La hermana Leonor Rodrigues_ (d’Evora).
-
-_S. Cassiano._--No côro de baixo ha um pequeno quadro com retrato a
-oleo, pintura antiga, que me tornou attento; representa um santo bispo
-com uma cartilha na mão; é S. Cassiano, que era mestre de meninos e
-todo dedicado á educação da infancia, que morreu martyrisado pelos
-discipulos. Exemplo raro sem duvida! No meu tempo, e desde quando viria
-o systema! era o mestre que martyrisava os rapazes com palmatoadas,
-varadas e sopapos, castigos deprimentes das pobres alminhas das
-creanças; e ás vezes os paes assomavam á porta da escola, e animavam
-de lá: «não m’o poupe, sr. mestre, não m’o poupe; ensine-me bem o
-rapazelho!»
-
-Que differença tem havido nos ultimos tempos, em materia de educação,
-nos pontos de vista, nos processos, e meios intelligentes; mas é
-preciso educar as almas, para que sejam boas, fortes, livres e
-religiosas na grande accepção do termo.
-
- * * * * *
-
-_Pinturas._--Os quadros da capella-mór das freiras de Carnide são de
-Ignacio d’Oliveira Bernardes, segundo affirma C. Volkmar Machado, na
-sua _Collecção de Memorias_ (pag. 94). Oliveira Bernardes (1695-1781),
-era tambem architecto, e n’esta qualidade trabalhou no palacio de
-Queluz, e na casa e quinta de Gerardo Devisme (a S. Domingos de
-Bemfica, onde actualmente está o collegio de meninas).
-
-A grande tela magistral do _Transito de Santa Thereza_, é do pincel de
-José da Costa Negreiros, que foi discipulo do celebre André Gonçalves.
-Negreiros falleceu em 1759, com 45 annos. Esta familia Negreiros
-produziu varios artistas.
-
-Percorrendo agora a _Collecção de Memorias_ de Cyrillo Volkmar Machado,
-tomei algumas notas a respeito de quadros pintados que se podem ver em
-egrejas dos arredores de Lisboa.
-
-_Jeronymo de Barros Ferreira_ nasceu em 1750, em Guimarães, morreu em
-Lisboa em 1803; pintou o tecto da capella de Santa Brigida na egreja
-parochial de S. João Baptista do Lumiar.
-
-_Vanegas_, castelhano, imitador do Parmezão; o painel do retabulo na
-capella-mór de N. S.ᵃ da Luz é d’este pintor (V. Machado, pag. 60).
-
-_Diogo Teixeira_, pintor do tempo de D. Sebastião. Na Luz, ao pé dos
-quadros de Vanegas estão pinturas d’este Teixeira (pag. 68).
-
-_André Gonçalves_ (pag. 88). Este pintor que trabalhou immenso,
-falleceu em 1736; são d’elle alguns quadros da capella de Queluz, os
-quadros da vida de S. João Baptista, no Lumiar, e os do côro de S.
-Domingos de Bemfica. Lendo estas _Memorias_ de Volkmar Machado, fica-se
-com impressão dolorosa; como se trabalhou em Portugal no seculo passado
-e ainda no primeiro quartel d’este seculo! em pintura, architectura,
-esculptura, ourivesaria, em tecidos, em fundições. A enorme e
-violentissima crise das invasões francezas, não parou essa torrente de
-trabalho artistico; era o rei que encommendava estatuas e quadros,
-era Mafra e Ajuda que foram formidaveis escolas, e as casas fidalgas
-que mandavam fazer retratos, capellas, decorações dos seus palacios
-e jardins, eram os frades a querer azulejos e telas, e entalhados, e
-embrexados, eram os prelados, os cabidos, e até a humilde irmandade
-que ao menos queria ter o seu _compromisso_ ou estatuto em bonita
-encadernação de velludo ou marroquim, com seus ornatos a ouro, e cantos
-e fecharia de prata.
-
-Era uma corrente, uma orientação bem diversa da actual.
-
- * * * * *
-
-_15 de junho, manhã, cedinho._--Da janella do meu quarto vejo no casal
-os homens de trabalho juntando mólhos em fascaes. Junto da terra do
-Lopes estão carregando fêno; muito está emmólhado na terra, não se
-póde emmédar porque está humido da chuva. Já se ceifa trigo; na terra
-do Castello anda um grande grupo de trabalhadores; para o lado de
-Falagueiras tambem. O trigo do Alto da Tonta está prompto a ceifar,
-está lindo, de um louro claro; á passagem do vento faz brandas ondas
-douradas. O da terra do Lopes tem um verde intenso. Agora distinguem-se
-bem os trigos de inverno e os da primavera, uns muito louros, outros em
-verde carregado.
-
- * * * * *
-
-_Domingo, 19 de junho._--Festa das ervas para remedios em Alfornel,
-hoje em decadencia completa; vae mudando tudo. Antigamente era muito
-concorrida, vinha muita gente de Lisboa, que se espalhava pela serra
-procurando plantas medicinaes. Agora é rara a pessoa que conheça bem as
-ervas e saiba aproveital-as: e os ervanarios teem dado em droga.
-
---Nas boticas ha tanto remedio...
-
---Eu lhe digo, o boticario, eu ainda aqui conheci botica e boticario,
-comprava ervas para remedios, agora o pharmaceutico nem nada. Está tudo
-mudado!
-
-O que não mudou foi a vegetação da serra, onde se encontra uma
-variedade singular de plantas.
-
-Segundo o celebre Sande Elago, as plantas medicinaes dividem-se em
-classes correspondentes aos sete planetas: saturninas, joviaes,
-marciaes, solares, venereas, mercuriaes e lunares.
-
-A versão portugueza de Elago (_Compendio de Alveitaria_ tirado de
-varios auctores, composto na lingua hespanhola por Fernando de Sande
-Elago. Lisboa, Impressão Regia, 1832, in-4.ᵒ) merece attenção por,
-entre outras cousas, trazer uma grande relação de plantas com os seus
-nomes em vulgar.
-
-Tambem na obra classica de Felix do Avellar Brotero, a _Flora
-Lusitanica_ (Parte 2.ᵃ--Lisboa, 1804), a pag. 522, vem um indice de
-nomes vulgares das plantas.
-
-_Montalegre, 19 e 20 de junho._--Concurso de machinas agricolas na
-quinta de Montalegre, bella propriedade do snr. Carlos Anjos. Foi
-muito concorrido, appareceram muitas charruas de varios systemas que
-trabalharam puxadas a juntas de bois. A machina e o adubo serão a
-salvação da agricultura; é preciso aperfeiçoar e augmentar o trabalho,
-é necessario reforçar a terra, tornal-a propria para produzir bem.
-A meu vêr a machina e o adubo teem ainda outra vantagem, põem o
-machinista, o chimico, o agronomo em contacto com o agricultor; levam
-a sciencia ao campo; afinam mais facilmente com a experiencia, que o
-veterinario, que difficilmente se tem aproximado do lavrador.
-
-_Na obra Exposição da alfaia agricola na Real Tapada da Ajuda, em 1898_
-(Lisboa, Imp. Nacional. Publ. comm. do 4.ᵒ centenario do descobrimento
-do caminho maritimo da India) ha uma parte referente ao concurso de
-charruas na quinta de Montalegre, á Luz, com photographias de charruas,
-grades, semeadores, ceifeiras, enfardadoras, escolhedor, tararas, etc.
-
- * * * * *
-
-_29 de junho, S. Pedro._--Fui a Lisboa no carro de Carnide. Este carro
-nos ultimos tempos tem seguido varios caminhos de Carnide á rua da
-Assumpção, por causa dos trabalhos das Avenidas, e do ascensor Rocio-S.
-Sebastião da Pedreira. Hoje é o ultimo dia do caminho pelo campo de
-Sant’Anna; Carnide, largo da Luz, estradas da Luz e Larangeiras,
-Sete Rios, Palhavã, S. Sebastião da Pedreira, Matadouro, Instituto
-Agricola, Cruz do Taboado, Campo de Sant’Anna, R. Arantes Pedroso, R.
-da Inveja, Principe Real, Mouraria, Praça da Figueira, Rocio e Travessa
-da Assumpção. Agora passa o itinerario á Estephania, porque as obras da
-Avenida que vai ao Matadouro estão muito adiantadas e cortam o caminho.
-Ha tempo que estão a desmanchar uma parte do aqueducto que vai de S.
-Sebastião da Pedreira ao Matadouro. Que bella construcção antiga, de
-magnificos silhares bem faciados, e de alvenaria firme, solidissima,
-com enormes pedregulhos; aproveitam agora este material nas novas
-construcções da Avenida, mas teem de trabalhar devéras para o arrancar.
-
-Estas variantes do caminho seguido pelo carro de Carnide menciono eu
-para marcar o desenvolvimento dos novos bairros da capital.
-
- * * * * *
-
-_Fogueiras de S. Marçal._--29 de junho: dia de S. Pedro. Á noite muitas
-fogueiras pelos campos. Estas são dedicadas a celebrar S. Marçal,
-advogado contra os fogos.
-
- * * * * *
-
-_3 de julho, domingo._--Pelas 9 horas da noite, eclipse parcial da lua
-que durou, muito nitido, até depois das 10 horas.
-
-_Domingo, 17 de julho._--Festa a Nossa Senhora do Monte do Carmo, no
-convento de Santa Thereza, com os padres inglezinhos; foi ás 10 horas
-da manhã. Cantou a missa o rev.ᵒ P. Louro, capellão das freiras, e
-professor do Collegio Militar.
-
-O côro dos inglezinhos era acompanhado a orgão. Executaram muito bem o
-seu solemne cantochão.
-
- * * * * *
-
-Na chan da quinta ha um recanto isolado, silencioso; junto do alto muro
-velho da cêrca das freiras está um poço d’onde se tira agua por uma
-picota; dois robustos cyprestes, figueiras de negros troncos tortuosos
-espalham fechadas sombras; além do recanto a terra do trigo, a vinha,
-as oliveiras; parece uma paizagem grega; o olhar de Homero não a
-estranharia.
-
-Estive hoje a ler ali um trecho de Ruy de Pina (o silencio do logar e
-a sombra do arvoredo ainda m’o tornaram mais frisante) que me falla de
-Carnide.
-
-Trata-se do amargo desastre de Tanger, de como ficou preso dos mouros o
-infante santo, pobre D. Fernando, filho de D. João I.
-
---E o infante D. Pedro, como sentiu o coração d’el-rei em algum mais
-socego, lhe pediu licença para trigosamente, e o melhor que pudesse, de
-Lisboa socorrer a seus irmãos, e a el-rei aprouve, e se veio logo apóz
-elle á aldêa de _Carnide_ junto com Santa Maria da Luz, porque a cidade
-estava perigosa de pestilencia. Mas porque ordenou que o socorro fosse
-com muita gente e grande poder, em se aviando para isso as cousas
-necessarias, chegaram em tanto a Lisboa dos que vinham de Tanger,
-muitos navios que certificaram o caso como finalmente passara, de que
-el-rei foi logo avisado, e certamente foi mui aspero de ouvir, que o
-infante seu irmão ficava em poder de mouros; mas por saber que a mais
-da sua gente era em salvo, deu por isso muitas graças a Deus, e como
-rei virtuoso, humano e agradecido, deteve-se naquella aldêa, para vêr
-e agasalhar os que vinham do cerco, dos quaes muitos, ao tempo que iam
-fazer-lhe reverencia, em disformes semelhanças e tristes vestidos, que
-para isso de industria vestiam, e com palavras á desaventura conformes,
-se lhe mostravam, e delles fingiam ser muito mais damnificados do que
-na verdade o foram, com fundamento de carregarem mais na obrigação
-para o feito de seus requerimentos, que alguns logo faziam e outros
-esperavam fazer, de que el-rei recebia publica dôr e tristeza.
-
-Mas a estes foi mui contrario o nobre e valente cavalleiro Alvaro Vaz
-d’Almada, capitão-mór do Mar que como quer que no cêrco de Tanger de
-sua fazenda perdesse muita, e da honra por merecimentos d’armas não
-ganhasse pouca como chegou a Lisboa, antes de ir fallar a el-rei, logo
-de finos pannos e alegres côres se vestiu, a si e a todos os seus, e
-com sua barba feita e o rosto cheio de alegria, chegou a Carnide, onde
-o rei andava passeiando fóra das casas, e com elle o infante D. Pedro,
-e depois de lhe beijar as mãos e lhe dizer palavras de grande conforto,
-el-rei o recebeu mui graciosamente, e louvou muito sua ida naquella
-maneira, que não sómente lhe apontou cousas e razões, para não dever
-por aquelle caso ter nojo nem tristeza, mas ainda que por elle devia
-ser mui alegre e contente, estimando em nada o captiveiro do Infante
-seu irmão, que era um homem só e mortal, em que havia muitos remedios,
-em respeito da grande fama que naquelle feito em seu nome se ganhára
-aconselhando-lhe mais o repique e alvoroço dos sinos, para honra e
-prazer dos vivos, que o dobrar d’elles, que ouvia, por tristeza e pelas
-almas dos mortos; pelo que el-rei começou a mostrar que aquelle era o
-primeiro descanço que seu coração recebia...
-
- (Cap. 36 da _Chronica de D. Duarte_, de Ruy de Pina.--_Ineditos da
- Acad._ Tomo 1.ᵒ, pag. 172 e 173).
-
-Onde seria o paço de D. Duarte?... não sei. Na rua do Machado ha
-ainda cunhaes de grossa silharia velha, restos seguros de mui antiga
-construcção. Por aquelles quintaes ainda se encontram vestigios
-antigos, não são sufficientes porém para se affirmar a existencia ali
-de solar ou castello. O velho paço de Carnide desappareceu. Ficou a
-narrativa de Ruy de Pina. Resalta ahi a figura de Alvaro Vaz d’Almada,
-n’uma luz e n’um ensinamento incomparavel. Coragem, para encarar
-perigos e reparar desastres; um homem não se prostra perante a dôr,
-soffre; o coração abafa de soluços, mas lucta-se sempre, engole-se a
-amargura, soffre-se a ferida, suga-se a esponja de fel, mas o espirito
-não se perturba, o animo esforça-se por não perder a sua energia.
-
-Deixar ao lado os esmorecidos, ao longe, bem longe, os vis
-especuladores, e trabalhemos, sem fraquejar, ainda que as lagrimas
-salgadas nos queimem as faces, e a angustia nos aperte o coração;
-o espirito justo vence; Deus manda que se trabalhe, e que não nos
-deixemos vencer pela tristeza.
-
-Antigamente no dia 17 de julho havia mercado de trigo em Mafra; era
-importante, servia para se saber do trigo existente, se havia mingua ou
-fartura, ver as qualidades, e tratar de preços. Reunia-se muita gente,
-importantes _quadrilhas_ de carros de bois, dos lavradores, e muitas
-récuas de machos dos padeiros de Lisboa.
-
-_Agua de Santo Alberto._--Domingo, 7 de agosto de 1898. Logo que
-cheguei, bebi agua de Santo Alberto, que mandaram as freirinhas, em sua
-bilhinha de barro vermelho, com um ramo de murta florida preso na aza.
-É boa contra as febres. Na rua, raparigas apregoavam fogaças.
-
-Esta agua de Santo Alberto tem fama muito antiga.--Em 7 de agosto,
-na capella dos Terceiros do Carmo se benze a agua com uma reliquia de
-Santo Alberto (_Summario de varia historia,_ de Ribeiro Guimarães. IV.
-pag. 240).
-
-Fr. Estevão de Santo Angelo, fez um romance heroico dedicado á
-virtude d’esta agua, no seu Jardim Carmelitano. Agora ha muitas aguas
-virtuosas, mas os reclamos não chegam a epopeias.
-
-_Carnide, 15 de agosto de 1898._--Ás 6 horas da manhã, estouros de
-morteiros, estalos altos de foguetes, e rompeu sonorosa musicata. É a
-festa do anniversario da _Sociedade Philarmonica 15 d’agosto de 1880_.
-Os bellos rapazes preparados por ensaios repetidos apresentaram-se em
-publico com o seu melhor reportorio.
-
-15 d’agosto, o dia de Nossa Senhora, tão celebrado na minha terra, e
-em todas as que teem vida agricola. É o dia em que os lavradores de
-cereaes, sabem com certeza o que passou pela eira, e se vencem fóros e
-rendas de trigo, centeio e cevada.
-
-Houve missa nas freiras ás 8¹⁄₂ da manhã. Estava em exposição o _Senhor
-Formozo_, muito fallado na chronica convental. É o _Ecce homo_, mãos
-atadas, o manto d’irrisão lançado para as costas; a imagem do Divino
-Justo, quando foi insultado pela gente ignara, pela sociedade culta e
-inculta de Jerusalem. Porque então, como hoje o cultismo não implica
-espirito de Justiça; não vemos nós nações das mais cultas, que se dizem
-christãs, arvorando a força sobre o direito?
-
-Pobre _Senhor Formozo!_ Se me não engano era uma regular pintura
-hespanhola, maneira energica, aspecto tragico, por isso talvez
-impressionava tanto as pobres antigas freiras. Era o rosto austero,
-o corpo já com livores de cadaver e gottejando sangue; a expressão
-do grande soffrimento sobrepujada todavia pelo incondicional perdão.
-Assustava as nervosas santas mulheres, e chamaram um grande pintor
-então afamado, para emendar a tela; vê-se bem que foi muito alterado no
-rosto; o pintor sabia do mundo, e fez um Christo precioso, de boquinha
-affectada, de expressão inoffensiva, incapaz de qualquer suggestão
-incommoda a espiritos assustadiços.
-
-_28 de agosto de 1898. Bolinhos de Santa Quiteria._--Hoje trouxeram-me
-bolinhos de Santa Quiteria, muito bons para evitar a hydrophobia em
-pessoas, cães e vaccas.
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-São uns pequenos cubos de massa de trigo, passada no forno.
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-Depois vieram homens vestidos de opas pedir esmola para a Irmandade de
-Santa Quiteria, do Senhor Roubado, perto de Odivellas.
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-_1899. Dia de Anno Bom._--Assistiram á missa alguns alumnos do Collegio
-Militar, que não foram a ferias. Teem as familias muito longe... no
-ultramar. Depois da missa o capellão rev. Padre Louro, apresentou
-a imagem do Menino Jesus, em pé; as pessoas presentes foram beijar
-a imagem. Durante a missa o orgão executou musica solemne, e na
-apresentação do Menino tocou um motete alegre, com imitações de musica
-pastoril, de sanfona e gaita de folles. Pairava em todos um sorriso
-bom; só eu pensava n’um menino, n’um adoravel menino... luz que se
-apagou.
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- * * * * *
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-Estive hoje a lêr um livro que me deu noticias da egreja da Luz, d’este
-logar de Carnide: _Historia do insigne apparecimento de Nossa Senhora
-da Luz e suas obras maravilhosas_: Composta pelo Padre Fr. Roque do
-Soveral, religioso da Ordem de Christo. Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1610.
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-É um volume in. 4.ᵒ de 213 pag.
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-O rosto do volume, gravado por Antonio Pinto, é muito interessante.
-A meio está o medalhão com a imagem de Nossa Senhora com o Menino no
-collo; e aos lados estão gravados feixes de muletas, navios pendurados,
-pelouros, e umas cousas que representam talvez mortalhas ou samarras de
-que se falla nos muitos milagres da veneravel imagem.
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-Tem muitas noticias este volume a respeito de pessoas e casos em
-diversas epochas, significantes para o estudo social e local.
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-Por exemplo, a pag. 52 v. a proposito da antiga romagem á Senhora da
-Luz, diz que este sitio de Carnide era dantes mui deserto, e depois
-de começarem as romagens os caminhos se tornaram mais seguros:--sendo
-dantes, segundo o que sabemos por tradição antiga tão espessos bosques,
-que para o logar de Carnide não havia mais caminho que um atalho, que
-se tomava no caminho de Bemfica para o tal logar, e nos mesmos bosques
-se recolhiam salteadores, da maneira que em Portugal na charneca de
-Monteargil, etc.: e cita varios bosques notaveis na Europa por serem
-asylo de ladrões: assim, antigamente eram tão temidas as brenhas e
-mattos de Carnide, que ninguem caminhava para elle sem muita junta de
-receios.
-
-Feita a egreja e estabelecidas as romagens o sitio e os caminhos se
-tornaram mui frequentados; encontrava-se gente de todas as qualidades
-e nações, o hespanhol, o bretão, e o flamengo; os de pé, de cavallo e
-de coche, cantando e dançando, tocando violas e adufes:==disse por isso
-mui bem o outro, que os que vinham de Nossa Senhora da Luz, parecia
-virem de colher as lampas de S. João, que ou seja com canas verdes nas
-mãos, ou com capellas nas cabeças, sempre tornam para suas casas, como
-se vieram das hortas de colher cheirosas ervas.
-
-Tanto assim que havia cinco mulheres==que só vivem e se sustentam de
-venderem candeias de offerecer, achando-se para isto de continuo em a
-egreja da Senhora. E diz depois (pag. 54 v.) das mais celebres romagens
-do seu tempo, em Portugal, a começar pela Senhora do Monte. O cap. II,
-(pag. 76 v.) é intitulado:==_Particularidades da fonte de Nossa Senhora
-de Luz_==, e tem muitas paginas consagradas á virtude dessa agua. E até
-o certificado de um medico (pag. 77 v.); mas eu não me posso demorar, e
-peço ao leitor curioso que veja o livro. Eu tenho que resumir. A pag.
-190 conta==de algumas náos que a Senhora da Luz livrou da tormenta em
-que se viram perdidas, e logo abre o cap. XII:==_Como Nossa Senhora da
-Luz é avogada dos mariantes._
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-É inutil dizer que todas essas paginas teem interessante lição e
-importancia historica.==Escreve ácerca da náo _Luz_, em 1497, e a este
-respeito se cita o templo de Nossa Senhora da Luz, em Goa, fundado
-sem duvida em lembrança da Luz, de Lisboa. E affirma que era costume
-os mariantes dessa longa viagem da India virem antes de embarcar em
-romagem á Luz de Carnide, depois de lá chegados á Luz de Goa. Que esta
-romagem da Luz está ligada ás primeiras navegações não offerece duvida.
-Conta (cap. XIII) o caso horrivel da náo _Chagas_ (1560); e em memoria
-deste milagre,==hoje 7 de junho de 1570 vieram a esta casa da Luz com
-procissão todos os marinheiros da mesma náo.==E vem a historia da urca
-_Fortuna_, e da caravella de Pero Marques, a da náo hespanhola _S.ᵗᵃ
-Ana_, a da náo _Betancor_, e a do _Salvador_; e a de uma escotilha em
-que se salvou Pero Gonçalves, estando tres dias sobre ella no alto mar!
-
-Na egreja havia quadros de milagres, imagens de cera, muletas de
-aleijados, grilhões de captivos, mortalhas de salvos na agonia, velas
-de naufragos escapos ao vendaval, pedaços de amarras de náos, pares
-de algemas, pelouros de artilheria grossa, (pag. 104 v.) e náos,
-pequeninas náos; «do côro ficam pendendo sobre a egreja quatro náos,
-que em fórma pequena contrafazem bem toda a fabrica das que navegam; e
-ha pouco tempo (note-se isto) que estavam oito que se tiraram assim por
-pôrem outras que vinham de novo, e não tinham lugar, como por se darem
-a algumas pessoas que as pediram».
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-E antes mais cousas havia:==na ermida antiga de todas estas cousas
-havia mór numero, de que tiraram algumas menos gastadas do tempo, para
-as mudarem aonde agora dizemos estão (pag. 204 v.)==As _samarras_,
-segundo a tradição, eram de uns homens que, na volta da India,
-naufragaram na costa da Cafraria, e andaram muito tempo perdidos pelo
-matto, fugindo das féras e dos pretos, até que, invocada a Senhora da
-Luz, lhes appareceram uns cafres misericordiosos que lhes deram suas
-proprias vestimentas.
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-Havia tambem cobras, isto é, pelles de cobras, uma de 4 varas de
-comprimento, provenientes do Brazil; mortas por milagres quando
-intentavam matar as pobres victimas nos seus anneis roliços, e com
-seus venenos fulminantes. Era uma collecção suggestiva essa, hoje
-sumida de todo perante esta moderna correcção idiota que tudo invade e
-vae dominando, matando arte e poesia e fé.
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-_Carnide. Domingo, 15 de janeiro de 1899._--Começou hoje a funcionar o
-ascensor Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Fui a Carnide no carro da rua
-da Asumpção. Carro cheio; pessoas que iam ao collegio militar visitar
-os filhos. Nestes domingos de visita ha sempre no carro conversas
-interessantes; dos filhos que vão bem, d’outros que perderam o anno; e
-corre-se uma larga escala de affectos, de caracteres, e de saudades.
-Viuvas que vão vêr os seus filhos, amigos que vão vêr os filhos dos
-que estão no ultramar para lhes dar noticias, tutores que visitam
-pobres orphãos. Todos levam uma lembrança, um embrulho atadinho, para
-os rapazes. Com as senhoras vão ás vezes meninas, mui palreiras,
-enthusiasmadas com a visita aos pequenos militares. Que estes carros
-de Carnide favorecem o cavaco, com os seus pulos e solavancos; vae
-uma pessoa muito correcta, zás solavanco, e vem uma senhora nervosa
-cair-nos nos joelhos; um cavalheiro solemne e mui serio, pula o carro,
-e elle apanha na cara com um chapeu de plumas, ou um papeluço de bolos.
-Quer a gente mover-se, não póde, está presa, as taboinhas dos assentos
-do carro apertam abas de casacos e dobras de vestidos; não faltam os
-preguinhos atrevidos que rasgam tecidos e ás vezes a pelle; ha sempre
-episodios; depois logo ao entrar na estrada das Larangeiras, o ar é
-mais fino, e fresco, com perfumes campesinos; a estrada da Luz tem
-vista de campos, de varzeas e arvoredo. Alegram-se os olhos de vêr a
-paizagem e os pulmões gozam ar mais puro.
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-Mas hoje, 15 de janeiro, o aspecto é outro, o vento é desabrido, de
-rajadas, ha nevoeiro denso, humido, que mal deixa vêr as arvores
-proximas, num esbatido leve. Na Luz alguns carros, e varios grupos;
-ha corridas pedestres e de bicycletas, e prepara-se uma partida de
-foot-ball.
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-Fomos até ao casal do Falcão, e ainda mais adiante a Alfornel vêr o
-faval nascente. Os trigos nasceram bem mas estão amuados.
-
-A paisagem é extraordinaria hoje, porque a nevoa tem intermitencias;
-é um nevoeiro muito humido, irregular, de densidade diversa, e como a
-camada de nevoa que está passando não tem grande espessura, de vez em
-quando rompe-se e apparece logo o ceu velho, e um jorro de sol.
-
-Como isto agora tem o aspecto triste, no nevoeiro frio e humido,
-rasgado pelo vento convulso que vae passando; o casal tão velho, ruina
-tragica, as figueiras, as vinhas sem folhas, como tiritando no frio de
-janeiro.
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-Jantar de familia, casa cheia; como a sopinha quente sabe bem
-neste frio de janeiro, em dia de nevoa cerrada; depois algumas
-especialidades, os nabos guisados, a carne de porco assada, com a
-loura agua pé; o pudim delicioso; as raivinhas e os esquecidos do Bom
-Successo. Ao café, com o competente cognac caseiro, entraram os srs.
-Duartes, de Mafra, que trouxeram elementos novos á cavaqueira. Contaram
-que el-rei mandára deitar javardos na tapada de Mafra; já entraram oito
-de Castello Branco, e um que nasceu no parque das Necessidades. Na
-Tapada, a comida é pouca; em tempos antigos houve porcos bravos ali,
-mas acabaram com elles porque nada lhes escapava.
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-De subito entrou uma mascarada animada, os meninos e meninas T.,
-uma série muito gentil, vibrantes de riso; houve piano, valsas,
-improvisou-se um concerto: a sr.ᵃ D. G. cantou superiormente alguns
-trechos.
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---Já 9 e um quarto! toca a ir para o carro.
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-Eu fiquei; da janella do meu gabinete a vista era admiravel; estava o
-ceu muito estrellado, havia algum luar, o ar muito frio e sereno; a
-nevoa abaixára, e estava agora quieta e branca sobre as varzeas, os
-campos do valle; muito salientes, a massa negra do casal do Falcão, e
-a collina triste coroada de cyprestes do cemiterio dos Arneiros; um
-grande silencio frio; como uma palpebra semicerrada de agonisante,
-a esvaír-se de luz e de vida, a lua em minguante, muito obliqua,
-branqueando a toalha de nevoa quieta sobre as terras mais baixas, as
-varzeas humidas.
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-_Carnide, domingo 28 de janeiro de 1899._--Vi hoje lindas flôres do
-logar de Telheiras; com a inverneira que tem corrido, frios, geadas,
-tempestades, notei as flôres; é que o logar de Telheiras é mais ameno
-e abrigado, a este de Carnide mais alto e exposto ás grandes correntes
-do ar. O antigo oratorio, convento e egreja de Nossa Senhora da Porta
-do Ceu, em Telheiras, está hoje abandonado. É n’esta egreja que está
-a sepultura do principe de Candia, o pobre rei do Ceylão, fundador do
-edificio, que veiu morrer tão longe das suas florestas de canella.
-
-O oratorio de Nossa Senhora da Porta do Ceu, de Telheiras, foi fundado
-pelo principe D. João de Candia. Este infeliz principe nasceu em
-Ceylão, por 1578, e teve de abandonar o seu throno de marfim e perolas,
-entre luctas politicas e religiosas; era criança ainda. Levaram-o para
-a ilha de Manar, depois a Gôa, e ao collegio dos Reis Magos de Bardez;
-veiu parar a S. Francisco de Lisboa, mais tarde a S. Francisco da
-Ponte, em Coimbra, e gastou o resto da vida a requerer e representar
-entre Lisboa e Madrid, porque então dominavam os Filippes. O que isto
-seria, Santo Deus! n’aquelles tempos, quando hoje basta uma burocracia
-para abafar e esterilisar todas as vontades, o que seria no tempo da
-dominação hespanhola com tantos officios e dezembargos em Lisboa e
-Madrid.
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-A historia d’este homem é interessante; pobre soberano de Candia,
-Cota, Ceytavaca e Cettecorlas, que veiu descançar aqui em Telheiras,
-cingindo o cordão franciscano.
-
-Dizem que hoje não é assim; os soberanos desthronados vão direitinhos
-ás folias de Paris, e as alfayas e tapeçarias apparecem no Druot,
-escapando aos ministros de que falla o chronista Soledade.
-
-Infeliz principe singalez, chamaram-lhe D. João d’Austria, e principe
-de Candia, e foi um martyr toda a vida; teimaram em ensinar-lhe latim e
-theologia, andou em bolandas pelos conventos intrigado e explorado, e
-nem mesmo cumpriram a sua ultima vontade. Morreu em 1 de abril de 1642,
-a sua morte foi um lauto regabofe para muita gente... «pelas mãos dos
-ministros, como ficaram todas as tapeçarias, peças de prata, e outras
-muitas alfayas preciosas, que elle tinha consignado á egreja d’este seu
-convento, as quaes levaram d’elle com violencia os ditos ministros,
-e sem obstarem os requerimentos dos religiosos, tudo repartiram e
-consumiram entre si.»
-
-Isto escreve fr. Fernando da Soledade, na sua _Chronica serafica_, 5.ᵒ
-vol. n.ᵒ 893, pag. 611.
-
-Elle diz ainda mais coisas que eu não estou para transcrever; foi uma
-patifaria, como tantas outras que se teem feito modernamente.
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- * * * * *
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-_Paço do Lumiar, 2 de fevereiro de 1899._--Dia de Nossa Senhora da
-Purificação, as Candeias, como se diz vulgarmente.
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-Fui vêr a festa religiosa e a feira, na egreja parochial de S. João
-Baptista do Lumiar, e no bello adro que a cérca.
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-A festa é a Santa Brigida.
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-Na egreja esteve exposta a reliquia da Santa, uma parte do craneo, em
-uma urna de prata dourada, muito bem trabalhada, elegantissima: uma das
-urnas mais gentis que tenho visto em estylo D. João V.
-
-Dizem que veiu esta urna do mosteiro de Odivellas.
-
-Na feira havia gado suino alemtejano, vaccas leiteiras com bezerros,
-vidros, louças, queijadas e bolos.
-
-Ha uma especialidade n’estas feiras saloias; as leitoas assadas,
-abertas a meio e espalmadas, seccas e rijas, de uma côr apetitosa,
-expostas á venda em canastras ou caixotes com ramos de louro.
-
-O saloio com a canastra de leitoas emparelhava bem com a collareja,
-assentadinha, chapeu de chuva aberto, com a cesta de queijadas de
-Cintra.
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-Dois ou tres homens vendiam bordões, chibatas, varas e varapaus armados.
-
-Na feira de S. João, em Evora, apparecem tambem saloios, uns vendendo
-varapaus, e outros a que chamam saloios da Nazareth com taboleiros
-de pederneiras para isca. Agora com as guerras á isca feitas pelos
-phosphoros, não sei se vão desapparecer de todo estes representantes
-ultimos da edade do _silex lascado_.
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-Passeavam lavradores invocando ou agradecendo a protecção da Santa, em
-volta da egreja, com juntas de bois, algumas muito enfeitadas de fitas
-de côres vivas, com entrançados e bordados.
-
-Dentro da egreja, á direita da entrada, dois homens recebiam esmolas,
-em trigo na sua arca especial, ou em dinheiro, e vendiam _registos_,
-milagres de cêra, bois e peitos, e muito pavio de cêra amarella ás
-braçadas. O pavio amarello é bom para livrar o gado de doenças, olhados
-e desastres; enrola-se dando volta aos dois chifres do boi, e ahi se
-deixa ficar até se estragar.
-
-Sobre o altar de Santa Brigida foram collocar alguns boisinhos de cêra.
-
-Depois da festa houve communhão na capella da Santa, tocando o orgão,
-e em seguida o padre deu a reliquia a beijar; e foi muito beijada, por
-mais de cem pessoas, com muita devoção.
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-Esta Santa Brigida, protectora do gado bovino, da-me que pensar.
-Brigitta, Brigida, Brigides, Birgida, Birgita, Britta, etc., virgem,
-natural da Escocia, abbadessa de Kildare na Irlanda, morreu em 523, no
-1.ᵒ de fevereiro, segundo affirmam.
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-As lendas d’esta Santa ligam-se com a famosa de S. Brandão (Brendanus,
-Bredan) abbade de Chainfort, na Irlanda, que morreu em 578 (16 de maio
-ou 5 de junho).
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-A reliquia, a cabeça da Santa, segundo diz a inscripção no exterior da
-capella, foi trazida por tres cavalleiros hibernios, ou irlandezes.
-
-O que eu vi na urna pareceu-me effectivamente um fragmento de craneo, o
-occipital, talvez; não se vê bem por causa dos ornatos.
-
-Que esta devoção por Santa Brigida vem pelo menos do seculo XIII, com
-certeza, e continúa ainda intensa; ha pouco ainda uma devota offereceu
-uma cabeça de prata.
-
-Este sitio do Lumiar e Paço do Lumiar merece um estudo especial; foi
-aqui o paço do famoso infante Affonso Sanches; ha estreitas relações
-entre esta egreja e o sitio e mosteiro de Odivellas, antigos santuarios
-que estão no principal caminho de Lisboa para o interior, o caminho de
-Alvallade, onde se encontraram os exercitos na sanhosa guerra civil de
-D. Diniz.
-
-A inscripção dos cavalleiros hibernios está no exterior da capella de
-Santa Brigida, da egreja de S. João Baptista do Lumiar, lado norte. É
-copia da antiga que de ha muito se sumiu. É a seguinte:
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- Aqvi nestas tres sepvltvras iazẽ enterados os tres caval.ʳᵒ ibernios
- q. trouxerã a cabeça da bẽ avẽtvrada S. Brizida virgẽ natvral da
- Ibernia cuia reliqvia está nesta capella p.ᵃ memoria do qval hos
- oficiais da mesa da bẽaventvrada S. mão darão fazer este ẽ ian.ʳᵒ de
- 1283.
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- * * * * *
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-_Quinta feira da Ascensão, 11 de maio de 1899._--A chuva miudinha de
-hontem não regou bem as terras, mas abateu a poeira das estradas, e
-lavou as folhagens que estão viçosissimas, com o brilho setinoso,
-exuberante de primavera.
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-Chegando á rua do Norte admirei-me de vêr a calçada coalhada de folhas
-de rosa. Houve uma grande festa na egreja das Freirinhas, e tive pena
-de não ter assistido. Foi a primeira communhão a alguns alumnos do
-Collegio Militar; pela primeira vez, ao que me disseram, se lembraram
-de fazer este acto com certa solemnidade. Nem tudo póde lembrar. N’um
-estabelecimento de educação, internato militar, ha tanto que fazer,
-tamanhas responsabilidades! O ensino dos compendios, a alimentação,
-a disciplina, as formaturas, os toques de cornetas, não deixam tempo
-para pensar n’estas questões da alma. Este anno, emfim, houve ensejo de
-celebrar solemnemente a entrada dos jovens militares n’este primeiro
-gráo de consciencia responsavel com hymnos religiosos, musicas e
-bençãos, e mãos finas de senhoras lhes atapetaram o caminho com folhas
-de rosa.
-
-Estes já tiveram na vida um dia florido, esperem outros ainda melhores,
-os que se seguem aos trabalhos vencidos, ás bellas acções de honra e
-abnegação.
-
-Celebraram a linda festividade na egreja das freiras, ornamentada pelo
-dr. Sant’Anna; de todos os pontos vieram taboleiros de flôres.
-
-Este anno os campos estão menos verdes do que no anno passado, os
-trigaes são menos fortes, menos densos; principalmente nos terrenos
-altos as seáras não encobrem o chão; _terreja_ muito; mas as oliveiras
-e as vinhas apresentam-se cheias de promessas.
-
-Quando eu ia por entre as latadas da quinta, opulentas de folhagem,
-na paisagem quieta de searas e olivedos, lá do sul, de além do sevéro
-macisso de Monsanto, veiu o estrondo das salvas de grossa artilheria.
-Estão no Tejo duas formidaveis esquadras, ingleza e allemã, grandes
-navios de aço, maravilhas de construcção naval, collossos de força,
-suprema expressão da energia dos arsenaes. Como o ruido d’esses
-poderosos canhões desafina na paisagem de primavera florida! sobre
-esses campos e logarejos respirando a serena vida da natureza.
-
-É o dia da _espiga_, como o povo chama aqui, nos arredores de Lisboa,
-á quinta-feira da Ascensão; até os carros de trabalho vão enfeitados
-com ramos de oliveira, espigas de trigo, rubras papoulas, brancos
-malmequeres; tambem enfeitam de espigas e flôres as cabeçadas dos
-animaes; e passam ranchos animados, palreiros e galhofantes, as
-raparigas com grandes ramos nas mãos, os rapazes com raminhos atados
-nos varapaus.
-
-É a festa agricola que vae por esses seculos atravez raças e religiões,
-provavelmente até ao dia em que o espirito do homem pela primeira vez
-admirou e agradeceu com ternura a planta florida, a suprema graça e o
-divino aroma da corolla, promessa do saboroso fructo.
-
-Na minha terra além das _maias_ do primeiro dia do mez e da festa da
-Ascensão, o povo da cidade e dos campos celebra tambem o dia 3 de
-maio, o da invenção da Santa Cruz, e ornamenta de flôres as cruzes dos
-logares publicos, as das vias sacras, as que marcam nos campos, nas
-estradas, os logares onde cairam os assassinados; a cruz de azulejo do
-sitio do fusilamento dos frades patriotas na catastrophe de 1808, no
-tempo dos francezes, a cruz na base do aqueducto junto do antigo fosso
-da muralha, onde se realisou o ultimo fusilamento militar.
-
-Estes campos de Carnide são menos tragicos; hoje porém as salvas das
-esquadras, algumas vezes repetidas, que parece fazem estremecer o
-robusto massiço de Monsanto, dão uma preoccupação morbida ao espirito;
-para que tal apparato de força, para que a reunião das duas mais
-poderosas esquadras de Inglaterra e Allemanha, será apenas para mostrar
-ao mundo a sua boa harmonia, no grande porto do paiz pequeno e neutral?
-O que é com certeza é a pomposa, a estrondosa manifestação de força,
-convicção deprimente, expressão ultima da civilisação n’este findar
-de seculo de tão maravilhosas descobertas, que termina affirmando
-o direito do mais forte, em que tanto se luctou pelas liberdades,
-acabando no militarismo ruinoso, e tanto pela melhoria social, pela
-equação de direitos, em quanto se erguem implacaveis, cada vez mais
-ameaçadores, os monopolios da finança, industria e commercio.
-
-Passam os ranchos alegres, de vez em quando roda na estrada um trem com
-mulheres e creanças, flôres e gargalhadas, na linda tarde de primavera.
-Outro rancho ahi vem agora, lento e sereno pelo trigal verde; é um
-grupo de religiosas de S. José de Cluny, que veiu ao campo florido
-respirar no ar tepido e aromatico.
-
-Vestem os seus habitos severos, trazem nas mãos ramos de flôres do
-campo; andam vagarosas como cançadas ou enfraquecidas; são novas,
-sorriem, sorrisos de doentes em rostos palidos: interessante grupo! são
-convalescentes sem duvida; vieram dos hospitaes e escolas do ultramar
-dominadas pelas febres, procurar restabelecer a saude n’este lindo
-sitio de Carnide.
-
-O que Mousinho de Albuquerque no seu livro _Moçambique_ escreve
-a respeito d’estas religiosas é encantador. Elle falla dos
-extraordinarios serviços por ellas prestados nos hospitaes de Lourenço
-Marques, de Inhambane, e Moçambique, nas escolas, _por uma fórma acima
-de todo o elogio_; e em Gaza, e no Chibuto.==O carinho e dedicação com
-que tratavam os doentes e feridos, procurando não só proporcionar-lhes
-todas as commodidades que as circumstancias permittiam, mas não se
-esquecendo um só momento de lhes confortar o animo, de lhes levantar
-o moral, sómente póde avalial-o quem o testemunhou.==Ou eu não sei o
-que é caridade, ou o que as Irmãs de S. José de Cluny estão fazendo
-na provincia de Moçambique é a sua manifestação mais elevada e
-commovedora==.
-
-Em Carnide sabe-se que esses serviços ultramarinos são uma verdadeira
-batalha. Das que lá morrem não consta, as lévas de doentes que voltam
-essas todos as vêem. Algumas voltam anemicas, ás vezes tuberculosas;
-chegam, descansam, melhoram, e lá partem outra vez para os hospitaes e
-escolas.
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- * * * * *
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-_Domingo, 14 de maio de 1899._--Scena inesperada; um touro da manada do
-conselheiro Alvares Pereira, n’uma corrida em Algés, partiu uma perna,
-e foi recolhido n’um pateo do casal do Falcão. É bicho de estimação,
-de muito genio e boa estampa. Foi amarrado sobre um carro e tratado
-com todos os cuidados, algodão borico, arnica, talas, ligaduras, nada
-faltou.
-
-O aspecto do touro no carro era extraordinario; os olhos negros e
-vermelhos com uma expressão de furia mais que de dôr; suava em grossas
-bagas; mordeu-se nos beiços até levantar a pelle. Alli, atadinho no
-carro, sim, que a gente podia vêr um touro de pertinho. De repente deu
-um puchão, e assoprou; isso é que foi panico, não sei se cahiu alguem,
-ouvi dizer que sim. O resto do caso foi visto de cima do muro. E lá foi
-o carro pela estrada fóra, á noitinha, caminho da leziria, com o seu
-cortejo de campinos nas suas ligeiras facas.
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- * * * * *
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-_Nomes dos animaes._--Á sombra da parreira vestida de bellos cachos;
-entre os alegretes azulejados, azul em fundo branco, em pequenos
-quadros de galanteria, episodios comicos, italianices e chinezices,
-á moda do seculo XVIII; proximo da nóra onde barulha a agua ao som
-emolliente e rhytmico do engenho, cavaqueia-se em cousas diversas;
-appareceu o sr. F. V. que tem lavoura e gados no Alemtejo; e logo se
-fallou de searas, pastagens, touros, casos de pastores...
-
---E sabe os nomes dos bois?
-
---Ora, essa! dos bois, dos cavallos, dos touros...
-
-E eu fui tomando nota dos nomes dos animaes.
-
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-NOMES DE TOUROS.--Artilheiro--Azeitono--Barqueiro--Batoque--Bugino
---Caçador--Caixeiro--Caldeiro--Camarinho--Capirote--Caraça--Carvoeiro
---Corvacho--Espingardo--Estandarte--Estorninho--Estrello--Foguete
---Forcado--Gaiato--Gaveto--Lanceiro--Luviano--Murtinho--Rabalvo
---Rasteiro--Teimoso--Verdugo.
-
-NOMES DE CABRESTOS.--Calçado--Caminhante--Caminheiro--Ligeiro--Pardal.
-
-NOMES DE BOIS DE TRABALHO.--Alfayate--Bigode--Bonito--Castanho--Esperto
---Formoso--Galante--Galhardo--Joeiro--Lagarto--Mourisco--Trigueiro.
-
-Dois bois de trabalho, de egual marca, fazem uma junta; aqui por
-estes sitios os bois da junta teem nomes certos; se um é _castanho_ o
-outro é _mourisco_; o _formoso_ com o _galante_; o _galhardo_ com o
-_ramalhete_, e o _damasco_ com _diamante_.
-
-NOMES DE
-VACCAS.--Andorinha--Bonecra--Bonita--Borracha--Branca--Briosa--Carriça
---Catita--Caterina--Coimbra--Corvina--Doirada--Estrella--Gadanha--Janota
---Padeira--Pomba--Rita.
-
-NOMES DE CAVALLOS.--Carocho--Catrapim--Palmeiro--Pardal--Pirata--Tareco.
-
-NOMES DE
-CABRAS.--Alvadia--Carocha--Cartaxa--Condeça--Marmella--Rasteira.
-
-NOMES DE CÃES E CADELLAS.--Tejo--Nilo--Maltez--Leão--Navio--Norte
---Beirollas--Ladina--Esperta--Belleza--Brincatudo--Digoélla
-(diga-o ella).
-
-Agora em Carnide ha nomes de cães e gatos, de origem culta, Macbeth,
-Castor; a par da Tartaruga a Giroflée; ao lado do Rabicho e do Janota
-os gatos Zixacha, Gungunhana, e o Godide, de nomes gloriosos.
-
-_Noticias várias._--O padre Anastacio resou a missa de corpo presente
-por alma do principe de La Rochejacquelin (Luiz), morto na furiosa
-carga de cavallaria nas terras do marquez de Louriçal, á Palhavan
-(agora dos condes da Azambuja). A missa foi celebrada na egreja de
-Carnide. O padre Anastacio morreu em idade muito avançada em 1896.
-
-Carnide tem o seu papel importante nas crises da primeira metade do
-seculo XIX. Na Luz esteve um deposito de cavallaria organisado no tempo
-de Junot; aqui esteve o brilhante official que foi depois o glorioso
-marquez de Sá da Bandeira.
-
- * * * * *
-
-No palacio da quinta do Street, agora residencia da sr.ᵃ condessa
-de Carnide (o conde de Carnide era Street Arriaga e Cunha) esteve
-o quartel general de Bourmont, commandante em chefe das forças
-miguelistas que atacaram Lisboa.
-
- * * * * *
-
-Esta quinta dos condes de Carnide foi em tempo muito nomeada pelas
-experiencias agricolas, adubações, drenagens, empregos de machinismos,
-que o primeiro conde, homem instruido e grande enthusiasta da
-agricultura, aqui realisou. Os ultimos proprietarios não teem seguido a
-tradição.
-
- * * * * *
-
-A celebre cascata da quinta dos condes de Mossamedes, complicada
-fabrica de embrechados e nichos, foi destruida ultimamente.
-
- * * * * *
-
-Tambem a infanta D. Maria habitou em Carnide; assim o declara fr.
-Miguel Pacheco, na Vida de la serenissima infanta Dona Maria (Lisboa,
-1675):==Vivió la senora infanta algun tiempo cerca del convento de la
-Luz, distante una legua de Lisboa, en un lugar que llaman Carnide (pag.
-109-121)==.
-
-A feira da Luz ainda hoje tem nome, mas em tempos antigos foi muito
-afamada; a gente de Lisboa abandonava a capital, empenhava tudo para
-ir á feira, havia brigas para obter seges, ou mesmo burrinhos. Tomavam
-ponche, ou limonadas, e compravam fitas, anneis, figas e corações. Isto
-li eu na Nova e pequena peça critica e moral; _os Carrinhos da feira da
-Luz_: composta por Joseph Daniel Rodrigues da Costa (Lisboa, 1784).
-
- * * * * *
-
-Na casa proxima á sacristia da egreja de N. Senhora da Luz, no
-pavimento, está uma campa com letreiro:
-
- S.ᵃ DE DOM FREI PEDRO
- SANCHES, RELIGIOSO D’ESTA
- ORDEM E BISPO D’ANGOLA
- FALECEO A 30 DE
- NOVEMBRO DE 1671
-
-Quando se fez o cemiterio de Bemfica, chamado dos Arneiros,
-transportaram para lá algumas campas do antigo cemiterio de Carnide,
-que era em volta da egreja de S. Lourenço. Lá está a campa da marqueza
-Ravara com seu letreiro:
-
- AQUI JAZ D. AN
- NA MARIA GUI
- DO MARQUEZA
- RAVARA FALE
- CEO AOS 24 DE
- JANEIRO DE
- 1752
-
-Nas _Memorias de Garrett_ diz-se que a quinta do Pinheiro fica em
-Carnide. A quinta do Pinheiro que foi de Duarte Sá está entre Palhavã e
-Larangeiras. Ahi se representou pela primeira vez o drama _Frei Luiz de
-Sousa_, a obra immortal de Garrett. Hoje installaram um hospicio n’essa
-bella vivenda.
-
- * * * * *
-
-O palacete e quinta do Sarmento onde residiu o visconde de Juromenha
-ficam proximos da parochial de S. Lourenço de Carnide na estrada que
-vae do Alto do Poço para Bemfica, a azinhaga do Poço do Chão.
-
-O visconde de Juromenha falleceu muito velhinho. Foi n’esta casa do
-Sarmento que elle escreveu a sua obra classica, monumental, sobre os
-_Luziadas_. Esta propriedade pertence hoje por herança á sua antiga
-governanta.
-
- * * * * *
-
-Um folheto que julgo raro é a «Memoria sobre a união perpétua da
-paroquial igreja de Carnide ao priorado do convento de Nossa Senhora da
-Luz». É um opusculo de 7 pag. in-4.ᵒ, que me parece escripto por 1810.
-
- * * * * *
-
-_O pinto preto_.--Veiu uma mulher, da estrada do Paço do Lumiar, a
-comprar um pintaínho preto.
-
---Para que é o pinto preto?
-
---É para um doente que tem uma fraqueza, e não ha nada que lh’a tire.
-Dizem agora que só com o pinto preto... E a mulher instou que lh’o
-vendessem, ou emprestassem, depois traria outro.
-
---Não se vende, nem se empresta. Vá a outra porta. Vá á botica comprar
-remedios.
-
---Mas então, é para caldos?
-
---Não senhor! isto é uma crendice d’esta pobre gente. Abrem-no com uma
-faca pelo meio e applicam-no palpitante sobre o peito ou estomago se é
-fraqueza; se fôr por alguma dôr, sobre a região onde lhes dóe. É uma
-das taes tolices que não sáe dos cascos d’esta gente. Para estas cousas
-não sou capaz de vender o pobre animal.
-
-Em livros de medicina mui velhos apparece o singular curativo; e
-recordo-me de ter lido que um medico de Lisboa, no seculo XVI,
-receitava ainda a ave aberta viva para a peste bubonica.
-
- * * * * *
-
-_Jogo do pião_.--Vi um grupo de rapazes jogando o pião. Nas cabeças
-dos piões os rapazes tinham mettido tachas de ferro de haste curta e
-cabeça larga de modo que os piões ficam com a cabeça protegida contra o
-ferrão do inimigo, é invenção nova para mim. E a isto chamam os rapazes
-pôr sêllo no pião, e é obrigatoria a sellagem; se apanham algum sem a
-cabeça couraçada, dizem logo:
-
- Pião que não tem sêllo
- Vae a casa do camêllo,
-
-e atiram com elle para o telhado mais proximo.
-
- * * * * *
-
-_Carnide, 1 de janeiro de 1900._--Caso novo, missa do gallo á entrada
-do anno. Disseram-me que por ordem do Santo Padre se transferiu a missa
-do Natal, por esta e a vez seguinte, para celebração do novo seculo,
-visto que surgiram duvidas (a meu vêr singulares) ácerca de qual é o
-primeiro anno do seculo XX, se é 1900 ou 1901.
-
-Não consta que se começasse a datar do anno _zero_, do seculo _zero_;
-mas assim vae o mundo. Começou pois o anno santo pela missa do gallo.
-
-Antes da missa do gallo passiei no Alto do Poço, a noite estava muito
-serena e agradavel, e casualmente assisti a uma scena dramatica, a
-chegada de um expedicionario africanista, inesperada pela familia, que
-móra num predio daquelle sitio. O pobre soldado, minado pela febre,
-embarcára mui doente em Lourenço Marques; não poude avisar a familia,
-chegára a Lisboa já melhor, foi á inspecção ao hospital da Estrella, e
-logo lhe deram licença para passar alguns mezes em casa, ares patrios;
-e elle assim que apanhou a guia foi direitinho a Carnide. Como elle ia
-nervoso, febril, vêr os seus queridos nunca esquecidos, exalçados pela
-ausencia larga em regiões e climas remotos.
-
-Na familia, durante a ausencia do moço soldado, houve mortes de
-pessoas queridas, que não lhe participaram para o não contristar, pobre
-rapaz.
-
-Chega o soldado em sobresalto febril e logo reparou nos vestidos de
-luto; veiu gente conhecida da visinhança e romperam em parabens e
-lamentos, numa confusão de lagrimas.
-
-No theatrinho de Carnide representou-se nessa noite, espectaculo feito
-por alguns curiosos da localidade, e terminado o ultimo acto um grupo
-animado, cantarolando, veiu da quinta do Sarmento, passando pela casa
-do pobre expedicionario. Eram conhecidos e amigos d’elle.
-
-Missa do gallo! annunciava a sineta do convento, n’uma vibração fina
-cortando a noite.
-
-Na egreja, cheia de devotos em muito silencio, como n’um mysterio,
-ergueu-se a voz do capellão.
-
-Houve exposição do Santissimo, e communhão, na grade ás religiosas
-portuguezas, e na capella do Senhor dos Passos ás irmans de Missão.
-E exposição do Menino, com o seu alegre motete executado no orgão
-velhinho, por uma velhinha no seu habito de Santa Thereza.
-
-Que singular espiritualidade acho neste cantar das velhinhas
-religiosas, tremulo, enfraquecido, esmorecendo como a toada de um sino
-que se esvae no ar. E contraste ainda nestas duas instituições aqui a
-par, a antiga, a que se apaga, a da vida contemplativa, ascetica, a da
-clausura austera, orante áparte da humanidade, e a nova da actividade
-christan, luctadora dos hospitaes, trabalhadora das escolas, militante
-em regiões longinquas, arrostando os paizes das febres e dos selvagens.
-
-Missa do gallo em noite de anno novo, foi caso inedito para mim. O meu
-pobre espirito estava abalado pelos contrastes que presenceára, e ao
-mesmo tempo lembrava-me da antiga missa do galo, na minha freguezia de
-Santo Antão, seguida da canja no meu lar, tudo n’uma aureola de familia
-e de pureza santa!
-
- * * * * *
-
-_D. Sebastião enamorado._--No jornal _A Arte_, de 1879 (pag. 158), se
-transcreve um antigo manuscripto que trata da--«Origem da desgraçada
-jornada de Africa que executou el-rei D. Sebastião para ruina total
-d’este reino».
-
-É singular escripto e parece ter um fundo verdadeiro.
-
-O sr. A. Pimentel tambem se lhe refere no seu bello livro _Atravez do
-Passado_ (pag. 119).
-
-Alguem, talvez com o fim de deprimir a familia do duque de Aveiro, no
-tempo pombalino, lhe juntou ou alterou umas linhas que no meu espirito
-não originam duvidas sobre os factos do seculo XVI ali relatados. O que
-ha escripto sobre D. Sebastião tem origens muito alheias á intenção
-historica simples; assim como o pobre infeliz rei viveu rodeado de
-intrigas palacianas, assim a sua memoria serviu ainda para enredadas
-phantasias, e manias politicas.
-
-Que em roda do rapaz houve lucta de influencias a proposito do
-casamento d’Estado, provam-no muitos papeis velhos; que um amor natural
-perturbasse o coração do joven rei não custa a crer; que um duque,
-proximo do throno, favorecesse a inclinação do rei para sua filha, é
-bem possivel; que D. Catharina, e os politicos, vissem com inquieto
-olhar esses amores, é provavel tambem. Ora é esta a essencia do papel
-a que me refiro, e que vou mencionar aqui por se fallar n’elle de uma
-quinta de Carnide.
-
- * * * * *
-
---O duque de Aveiro, D. Jorge de Lencastre, teve uma filha unica
-chamada D. Juliana, a quem creou no Paço a rainha D. Catharina, sendo
-Regente d’este reino. Era dama formosa, bem feita, e muito esperta; ao
-menos, quando não tivesse estas qualidades, agradou-se d’ella El-Rei
-D. Sebastião, sendo mancebo, e veiu a declarar-se mais depois do anno
-de 1568 em que tomou o governo. Similhantes inclinações, que não podem
-ser occultas muito tempo, principalmente entre pessoas taes, chegaram
-á noticia da Rainha, e do duque de Aveiro; porém com differentes
-sentimentos, porque a Rainha receiava a consequencia d’estes amores,
-de que era objecto uma bisneta de el-rei D. João o 2.ᵒ, e o genio
-apaixonado de seu neto, que teria então 20 annos, e D. Juliana,
-16, com pouca differença; e o duque com uma vaidade disfarçada, e
-fingindo-se ignorante, do que todos sabiam, aspirava a altas ideias,
-lembrando-se de que era neto de um rei, da sua grande representação e
-casa, e tudo isto o persuadia de que algum dia sua filha a contariam no
-catalogo das Rainhas de Portugal--.
-
-Fallaram os politicos, os cortezãos, os invejosos, a Rainha fallou ao
-Cardeal infante D. Henrique e começaram a querer fazer casamento a D.
-Juliana, dando ao duque de Aveiro mais honras e mercês. E foi subindo a
-intriga, e D. Sebastião o bello rapaz sempre contrariado, a querer mal
-a D. Henrique seu tio, e a faltar ao respeito a D. Catharina sua avó.
-
-Faltava-lhe a mãe; talvez a origem da desgraça esteja n’isto.
-
-O rei desconfiava de todos, a camarilha enjoava-o; evitava-a quanto
-podia, ia caçar; andar pelos montes onde o ar é sempre puro. Os seus
-amigos e companheiros eram D. Alvaro de Castro, Christovão de Tavora e
-o duque de Aveiro.
-
-A uma caçada em Cintra foi muita gente da côrte; o duque levou sua
-filha; a Rainha D. Catharina encarregou uma dama de observar os passos
-de D. Sebastião. E esta dama foi descobrir no alto da serra, apartados
-dos caçadores, o rei, e o duque de Aveiro com sua filha D. Juliana!
-
-Outros ajuntamentos houve a seguir, affirmando-se que el-rei promovia
-essas festas agitadas e com muita gente para se encontrar com D.
-Juliana.
-
---Ultimamente houve um ajuntamento que muito dissaboreou a Rainha,
-e o Cardeal infante, e foi uma mascarada de noute, em uma _quinta
-no districto de Carnide_, na qual se acharam grandes senhores e o
-duque de Aveiro com sua filha vestida á turqueza, e muitas outras
-damas lusidamente ataviadas; e do que ali se passou teve a Rainha
-circumstanciadas informações; mas não se disse com certeza quem as
-dera, supposto que se presumiu ser o prior do Crato, D. Antonio, filho
-do infante D. Luiz--.
-
-A Rainha D. Catharina, o tio Cardeal censuraram el-rei; e elle começou
-a fallar de ir á Africa.
-
-Nem em Cintra, nem em Carnide o deixavam á vontade.
-
-Só Africa, para casos d’estes.
-
-A primeira ida á Africa foi effectivamente uma surpreza para a côrte.
-D. Sebastião foi caçar nos arredores de Ceuta e Tanger e parece que
-encontrou lá uma filha do Xarife que se parecia com D. Juliana.
-
-De cá choviam os avisos da Rainha-avó, do tio Cardeal, dos bispos;
-custou a vir.
-
-Parece que D. Juliana, a ladina turqueza de Carnide, foi offuscada pela
-filha do Xarife; encanto de moura!
-
-Na segunda jornada o duque de Aveiro, apesar de ter perdidas as
-esperanças no casamento da filha, acompanhou D. Sebastião; e morreu
-com o seu rei e amigo.
-
-No seu testamento, feito antes de partir, recommendava que D. Juliana
-casasse com D. Jorge de Lencastre; este morreu tambem na batalha.
-
-D. Juliana, nova, herdeira riquissima, teve varias propostas de
-casamento com os maiores de Hespanha, que não acceitou; esperaria o
-rei? só dez annos depois de Alcacer casou com D. Alvaro de Lencastre,
-que foi o 3.ᵒ duque de Aveiro.
-
-Agora, onde a _quinta do districto de Carnide_? Gostaria de saber,
-gostaria, mas é certo que não encontro vestigios a que possa attribuir
-grande antiguidade, nem mesmo tradição local. As grandes casas de
-Carnide e seu termo são do seculo XVII e do XVIII; e estas na maioria
-ainda modificadas e transformadas modernamente.
-
- * * * * *
-
-_A familia Carnide._--Em antigo codice genealogico encontro este
-appellido, de origem local. Um homem natural de Carnide adquiriu bens,
-fez serviços e alcançou a nobreza. Diz o codice: «é Carnide logar de
-80 visinhos, com boas e rendosas fazendas, e entre os visinhos alguns
-que se tratam nobremente, e viveram em tempos antigos com abundancia e
-nobreza.»
-
-O primeiro mencionado é Pedro Gonçalves de Carnide, do tempo de Affonso
-V. Seu filho Pedro de Carnide morou em Cintra.
-
-Balthazar de Carnide foi moço da camara de D. Manuel. A familia
-Carnide apparece em seguida alliada a Gamboas e Ayalas.
-
-Jeronymo de Carnide, moço da camara, esteve em Roma com o embaixador D.
-Alvaro de Castro: foi provedor de saude no periodo terrivel das pestes
-e contagios; basta dizer que foi guarda-mór de saude do Reino em tempo
-de D. Sebastião. Era natural de Cintra; viveu 120 annos (1503-1623),
-alcançando os reinados de D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, D.
-Henrique e os Filippes I e II. Um seu filho, Balthazar de Carnide,
-viveu 100 annos.
-
-Os Carnides mencionados nas genealogias são quasi todos de Cintra; é
-certo que ainda hoje apparece este appellido em familias de Cintra e de
-Torres Vedras.
-
- * * * * *
-
-_Propriedade territorial na idade média._--Ha documentos relativos a
-propriedade territorial em Carnide, nos fins do seculo XII, e primeiro
-quartel do XIII. É bem raro encontrar uma série tão variada de taes
-documentos. Não nos é todavia possivel marcar com precisão, com
-exactidão, o local da propriedade, ou quinta de que se trata.
-
-Porque as propriedades variam muito, dividem-se, aggregam-se; as
-extremas fluctuam; os nomes alteram-se.
-
-Os documentos de Urraca Machado, _dóna_ de Chellas, isto é, freira
-do mosteiro de Chellas, foram publicados pelo erudito sr. Pedro de
-Azevedo, no _Archivo Historico Portuguez_, vol. III, pag. 5 e seg.
-
-Quem era esta senhora? era _dona Orraca Martins_, filha de Martim
-Machado, professa do Mosteiro de Chellas, que andava _fóra da Ordem_,
-quer dizer, ausente por muito tempo do seu convento. Tinha bens e
-parentes proximos em Carnide, e o seu compromisso com a Ordem. Ora
-constou que ella vendia e desbaratava esses bens, em damno do mosteiro,
-este protestou, e por isto a série de documentos muito especiaes e
-valiosos. O protesto é de 1299, tempo de D. Diniz; foi lavrado no
-concelho da cidade de Lisboa, perante o alcaide e alvazis.
-
-No terceiro documento, de 1308, falla-se da quinta de Carnide, em que
-a freira tinha uma parte. No quarto documento, de 1309, se diz que as
-rendas de Carnide foram arrematadas a Salomão Negro, judeu. A familia
-judaica _Negro_ apparece em documentos do seculo XIII ao XV.
-
-David Negro era o famoso thesoureiro de Leonor Telles, quando
-proprietario em Camarate e na Outra Banda. A outra parte da quinta
-pertencia a Martim Martins Machado, irmão da freira. O documento é
-interessante; trata do arrendamento, almoeda, e negocios, em que houve
-_malfeitoria_; o instrumento ou contracto que o judeu apresentou
-não afinava com a _nota_ tabellioa, havia _mentira e burla_. Este
-instrumento, declara o tabellião, foi escripto em papel porque não
-havia _porgamyo decoyro_. Acontecia isto por vezes; em cousas
-officiaes usava-se o pergaminho; quando este faltava, lançavam mão do
-papel. E certo é que papel e tinta chegaram até nós; bom papel e boa
-tinta; não sei quantos annos durarão certos papeis e tintas usados
-actualmente.
-
-O documento n.ᵒ 7 é uma carta regia, ou sentença de D. Diniz, passada
-em 1311, sobre a partição dos bens da freira e de João Machado, tambem
-seu irmão. A monja de Chellas tinha terras em Carnide, nos sitios da
-Panasqueira e na Feiteira.
-
-_Panasqueira_ é na parte norte da moderna quinta de Montalegre, formada
-pelo fallecido Carlos Anjos, entre as estradas de Telheiras, Luz e da
-Fonte.
-
-Não é facil marcar os sitios das propriedades; diz-se _sob a fonte_,
-na _varzea_, na _corredoura_, designando as fazendas pelos nomes dos
-donos, pessoas bem conhecidas em 1311. Mas já havia no sitio _vinha
-velha_, moinho e almoinha ou horta, courellas e ferrageaes, adega com
-material vinario, tinas, toneis e cubas, já se falla das _covas_ de
-Carnide. Trata-se me parece de covas de guardar pão ou cereaes, silos;
-em 1908, modificando-se a calçada no _Alto do Poço_, appareceram
-duas grandes covas, abertas no solo, de dois metros de fundo por um
-e meio de diametro, quasi totalmente entulhadas. As paredes estavam
-nitidas, bem conservadas. As pessoas da localidade ignoravam o
-destino d’aquellas grandes cavidades, o que succede, me parece, por
-todo o paiz. E todavia no seculo XVI ainda se utilisavam os silos ou
-matamorras, e no centro de Espanha ainda hoje estão em uso. Em Lisboa,
-na grande obra municipal de ha poucos annos, ao Arco do Marquez do
-Alegrete, tambem appareceram silos, ao longo da muralha fernandina.
-
-O documento n.ᵒ 10 é de 1312; refere-se a certa divida de João Machado
-a Isaac, filho de Judas Negro, outro judeu da familia Negro; e a uma
-courella do _Cano_, pertencente a Urraca Machado. O n.ᵒ 12, de 1313,
-falla-nos da courella da _Coelheira_, da qual traz as confrontações
-pelo _sol levante, aguião, poente_ e _avrego_. _Aguião_ quer dizer
-_aquilão_ ou norte, e _avrego_ vem de africo, ou vento de Africa, isto
-é, sul. N’este documento figura Domingas Eanes, prioreza de Chellas, e
-Ousenda Domingues, sub-prioreza. Já menciona a _aldeia de Carnide_ com
-seu _rocío_.
-
-Em 1321, com licença do mosteiro de Chellas, a freira Urraca Machado
-entregava por aforamento os seus bens de Carnide a um Rodrigo Eanes,
-por duzentos maravedis de Portugal, pagos ás metades do anno por
-Paschoa e Santa Iria, mais doze almudes de vinho. Não é bem um
-aforamento, é um arrendamento a longo prazo, em vidas, pois só termina
-depois da morte do rendeiro, de sua mulher e filho. O contracto tem
-penas severas e condições bem determinadas, como a de o rendeiro
-fazer á sua propria custa almoinha ou hortejo, e plantação de vinha,
-concertos de casas, adegas e lagares, e de sua louça.
-
-Em 1325 já a dóna Urraca era fallecida; mas havia freiras de Chellas
-na sua casa de Carnide; por causa de certa questão de posse foram ahi
-notarios que viram duas freiras em _uma camara sob a torre_. N’esse
-tempo era Clara Gonçalves prioreza de Chellas; é notavel que n’este
-mesmo documento se lhe chama abbadessa. N’esta época a questão chegou á
-maior intensidade, houve violencia, e Martim Machado foi excommungado.
-
-Em 1390 foi a quinta de Carnide emprazada em tres vidas a Martim Annes;
-confrontava com as herdades de fuão e fuão, e do mosteiro de Santa
-Clara de Lisboa...
-
-Era uma _quintam_ de herdades de vinhas e de pão que o dito mosteiro ha
-na aldeia de Carnide, termo da dita cidade (Lisboa).
-
-A par dos elementos relativos á _quintam_, apparecem outros em razão
-das confrontações, das testemunhas, etc.
-
-Assim n’um documento de 1313 se falla de uns quartos de courellas de
-vinhas que o mosteiro havia em Carnide no herdamento do Louro; de uma
-testemunha se diz: fuão morador ao Louro, no casal da _Ordim_.
-
-Em 1352: quinta no logo que chamam _Alperiate_... casal e herdades de
-pão sitas em _Queylus_... uma vinha que chamam a _Coelheira, a par de
-Carnide_. Alperiate, ou Alpriate, é o nome de uma localidade perto da
-Povoa de Santa Iria.
-
-Em 1356: courella do _Pereiro_, alem de Carnide que parte com vinha de
-_Santaloy_.
-
-Deve ser Santo Eloy, no caminho da Pontinha para A da Beja.
-
-Em 1366: vinha no _Cano_, logo, ou logar, de Carnide.
-
-Em 1397: em Carnide... em logo que chamam a _Soeira_.
-
-Em 1438: fulano morador na _Payãa_. Agora diz-se _Payam_.
-
-De 1443 temos um documento interessante: trata de uns _Tintaes_ de
-vinha, um acerca do outeiro... confrontando com caminho da _Granja_,
-outro com azinhaga que foi da _fonte do Machado_; são nomes que ainda
-vivem.
-
-Em 1466... vinha do morgado de _Mem de Brito_.
-
-Em 1481... vinha que parte com a ermida de Santa Maria da Luz, em
-Carnide.
-
-Um documento de 1484 menciona as courellas que pagavam o quarto á
-quinta de Carnide, duas entestavam com a Luz e caminho que vae para o
-_Lomear_. Outra com estrada que vae de Carnide para Lisboa. Menciona-se
-um fulano morador na _Ribeira de Agoa Livre_; é um sitio da ribeira ou
-do valle de Carenque. Uma courella no cabo do _Rego_, outra na estrada
-de Lisboa e na do Lumiar.
-
-A pag. 32 da publicação do sr. P. d’Azevedo (_Archivo Historico
-Portuguez_, vol. III), vem o _titulo dos canos_: F. morador na de _Dona
-Maria_ (é a aldeia que fica a norte de A da Beja) tinha uma courella de
-vinho e azeite que entesta no ribeiro do Bom Nome (a quinta do Bom Nome
-é agora a do Sarmento), e com o _Resyo do logar_. O rocio de Carnide
-era a poente da egreja de S. Lourenço, a parochial, que é do seculo
-XIII.
-
-F. morador nas Fontellas, na ribeira de Loures tinha uma courella que
-entesta com o rio do _Bom Nome_ e com o _resyo de Carnide_. F. tinha
-metade de um quarto de courella. Vê-se que a propriedade estava muito
-dividida.
-
-A _albergaria_ de Carnide trazia tambem um meio quarto de courella.
-Passou depois a pequena fazenda para o _hospital_ de Carnide.
-
-Outra courella entesta no rio do Bom Nome e com o adro de S. Lourenço;
-deve ser a fazenda onde está agora uma vaccaria.
-
-F. do _Calhariz_ possue uma terra que vem á estrada _na do Correia_...
-caminho de Bemfica. F. tem uns quinhões na almoinha do Machado defronte
-da porta travessa de Nossa Senhora da Luz. _Correia_ é o nome da quinta
-do sr. conselheiro Pequito. Um quinhão do lagar do Espongeiro... parte
-do aguião ao longo da estrada _na do Correia_, e do vendaval (sul)
-entesta com o caminho de Bemfica e da travessia (poente)...
-
-No _Esparageiro_; será variante de Espongeiro? Esparageiro virá de
-espargo?
-
-Agora apparece-nos um nome estranho, quinhões dos _Feytaes layrasos_, e
-tambem _Feytaes castelhanos_. Nada conheço agora que se lhe avisinhe.
-Todos estes nomes estão no titulo dos _Canos_: este era pois o nome de
-uma região, entre a estrada do Poço do Chão e a estrada que vae de S.
-Lourenço para a Porcalhota, agora, recentemente, Amadora, passando pela
-actual quinta da Correia. É possivel que este nome de Canos tenha a sua
-origem em antigos pequenos aqueductos.
-
-Finalmente apparece-nos um documento com autos de medição de certas
-propriedades; é de 1554. A vinha da Coelheira que parte com caminho
-da Granja, tinha de largura 28 varas e de comprido 246 varas, era um
-tira de terra: outra vinha tinha de largura 51 varas e de comprido 280
-varas, era uma fazenda com pouco mais de hectare e meio.
-
-Esta collecção de documentos é importante para o estudo da marcha
-do processo civil; especialmente o grupo que pertence ao primeiro
-quartel do seculo XIV. Brigam no comprido pleito particulares, freiras,
-o convento; chegam á excommunhão. Ha instrumentos de protesto, de
-testemunho, de intimação, procuração, cartas regias, sentenças, recibos
-e obrigações, aforamento, arrendamento a longo praso, e suas condições,
-carta de excommunhão, posse, emprazamentos em tres vidas; todos estes
-variados instrumentos entram no seculo XIV, a maior parte no seu
-primeiro quartel (1299 a 1325).
-
-As conclusões a que chegamos são: no termo de Carnide a propriedade
-estava muito dividida; havia proprietarios de meia courella, de quarto,
-de meio quarto de courella.
-
-A cultura era variada, vinhas, olivaes, terras de seara ou de pão;
-almoinhas ou hortas. Falla-se numa vinha _velha_.
-
-Não vejo nos nomes de proprietarios ou rendeiros nomes mouriscos;
-muitos teem dito que os saloios são de origem mourisca, nestes
-documentos não apparecem nomes desse elemento; apparecem individuos
-da familia Negro, judaica, proprietarios ou gente de negocio. Nestes
-documentos falla-se em muitos predios porque tratando da quinta de
-Carnide, cabeça dos predios rusticos de Urraca Martins Machado, e das
-suas dependencias ou terras annexas, ao mesmo tempo se mencionam varias
-com que confrontam. Não vejo mencionar cercas, tapadas, muros. Como
-noutras partes accumularam propriedades, arredondaram e muraram. Aqui a
-construcção dos conventos com suas cercas importantes alterou immenso a
-topographia dos predios.
-
-Os conventos da Luz, de Santa Thereza, dos Carmelitas, o Hospicio das
-freiras de Christo, alastraram no fim do seculo XVI e no XVII os seus
-vastos edificios e amplas cercas de altos muros.
-
-Todavia as estradas indicadas existem ainda hoje, a azinhaga da Fonte,
-o caminho de S. Lourenço para Bemfica, que é a estrada do Poço do
-Chão, que passa pela Granja, a estrada de A do Correia, estradas da
-Luz para o Lumiar, e da Luz para Lisboa. Em frente da porta travessa
-da egreja da Luz lá está ainda uma almoinha com suas latadas e
-canteiros; a quinta do Bom Nome, é agora chamada do Sarmento. A do
-Correia é a quinta da Correia, os logares ou aldeias de A da Beja, Dona
-Maria, Calhariz, Payam, Santo Eloy existem. O valle de Odivellas tão
-interessante conserva-se dividido em pequenas propriedades, de intensa
-cultura onde o saloio moureja.
-
-Fóra d’esse valle a pequena propriedade quasi desappareceu; a tendencia
-é para accumular. Depois dos conventos, ou contemporaneamente, formaram
-as quintas depois chamadas do Oliveira, da Condessa, do Mossamedes, do
-casal do Falcão. Modernamente formou-se a grande quinta de Montalegre
-que fundiu cinco propriedades grandes; o collegio militar tambem
-alargou as suas terras. Só entre o logar de Carnide e o Paço do Lumiar
-se encontram os grandes vallados antigos, as propriedades sem muros.
-
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-A villa da Ericeira
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-(1903-1905)
-
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-Os caminhos mais seguidos para ir á Ericeira são os que partem de Mafra
-e de Cintra; este o mais frequentado.
-
-A estação do caminho de ferro de Cintra está pittorescamente
-aconchegada na base do alteroso monte granitico, rochedos pardos entre
-manchas de vegetação verde escura, coroado pelas torres e quadrellas
-mouriscas terminadas na fina grega de ameias. Da estação partem os
-carros para a villa, para Collares e Ericeira.
-
-Começa logo a descida, passa-se uma ponte; termina de subito a invasão
-das construcções modernas, e definem-se as modestas casas saloias da
-moda velha.
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- * * * * *
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-_Lourel_, a primeira aldeia; era já povoado o sitio em tempo da
-dominação romana; antes de gódos e de mouros, vejam lá!
-
-Mais cinco minutos de carro e apparece, espreitando entre agrestes
-collinas, a torre de Ribafria; uma residencia nobre medieval,
-conservando a sua linha primitiva, a torre com seu brazão, palacete,
-grande lago e alta cerca, naquelle fundo valle aproveitado
-provavelmente pela abundancia de agua nativa.
-
-São bem raras estas residencias ruraes em Portugal, todavia restam
-algumas que contam a sua formação pela juxtaposição dos seus cunhaes.
-
-A residencia de Bellas, por exemplo, que é muito interessante, onde eu
-julgo vêr restos ainda da alta idade media.
-
-As arvores que bordam a estrada estão inclinadas uniformemente para
-suéste marcando bem a corrente dos ventos dominantes.
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- * * * * *
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-_Villa Verde_, um grupo de casas com seus quintaes, muros de pedra
-solta, figueiras e parreiras.
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-A vista alarga-se pelos vastos campos, accidentados; ao longe collinas
-arredondadas com manchas escuras de pinhal. A serra de Cintra mostra
-agora a sua crista atormentada, as massas escuras de arvoredo,
-destoante de tudo o que a cérca; e avista-se Mafra, a enorme joia,
-principalmente vistosa se o sol da tarde illumina a soberba frontaria,
-que olha para occidente.
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- * * * * *
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-_Terrugem_, povoado alegre, amplo terreiro, egreja antiga com sua
-alpendrada, e seu gentil campanario do seculo XVIII; pouco adiante uma
-velhissima ermidinha, com portal em ogiva.
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-Estamos em pleno paiz saloio, onde apenas algumas pequenas explorações
-de pedreiras juntam fracos elementos á vida agricola. Ha poucas
-habitações dispersas, e nenhum povoado importante. Esta freguezia de S.
-João Degolado da Terrugem compõe-se de mais de vinte povos ou logares,
-que teem na média 10 fogos. Os mais povoados são Terrugem, Villa Verde,
-Alcolomba, Lameiras, Almurquim, Fajão, Cabrella, Carnessada, Goudigana,
-Armez. Grupos de 4, 6, 8 casaes são os logares de Toja, Da do Bispo,
-Alpolentim, Urmeiro, Fervença, Moleirinhos, Sequeiro, Murganhal,
-Alparrel, Funchal, Silva. Um ribeiro, o Fervença, corta as terras da
-freguezia.
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-Entre as designações locativas algumas merecem reparo pois mostram
-influencias de antigas linguagens.
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-E por todo o paiz saloio a população se encontra assim em pequenos
-grupos, sendo muito menor a parte que vive em casaes ou quintas
-isoladas.
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- * * * * *
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-_Odrinhas_; pára a carrinha de bancos para descanço dos animaes, e
-breve allivio dos passageiros.
-
-Se o saltitante vehiculo vier completo, e entre os passageiros
-houver gorduchos, é caso grave; porque a diligencia foi feita para
-trinca-espinhas. A paragem é uma consolação, para alargar um pouco os
-musculos.
-
-A um kilometro da pobre locanda, estação _central_! onde pára a
-carrinha, fica o meu adorado S. Miguel de Odrinhas, a velha egreja,
-com as suas veneraveis antiguidades, o primitivo alpendre, o cemiterio
-medieval, e as suas lendas bem interessantes.
-
-Mais dez minutos e passamos perto de um cómoro cheio de enormes
-pedregulhos, ovoides uns, globulares outros; ali os muros das pequenas
-propriedades parecem feitos de pelouros, de grandes balas de pedra. É
-_Alvarinhos_, uma formação granitica, bem frisante entre os terrenos da
-grande chapada.
-
-Segue-se um plaino pouco accidentado; casas saloias de construcção
-quasi cubica, escada exterior para o sobrado, e telhado de quatro
-aguas; grandes lages formam as divisorias; uma casa tem a sua porta
-abrigada por um alpendre formado por tres lages, duas a prumo e uma
-coberteira; cruzes de cal branca em muitas paredes, ás vezes muitas
-cruzes numa só parede; algumas casas mais modernas e janotas com os
-cunhaes pintados a azul e vermelho.
-
-Estamos em terras da freguezia de S. João das Lampas, mais importante
-que a Terrugem: tem 32 povos ou logares; mas a media de fogos por logar
-é egual á da Terrugem.
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-Os povos mais importantes são: S. João das Lampas, Bolelos,
-Montearroio, Odrinhas, Alvarinhos, Amoreiras, Almagreira, Areias,
-Alfaqueques, Mouxeira, Arreganha, Seixal, Assafôra, Cortezia,
-Cantrivana, Arneiro, Togeira, Magute, Bolembre, Fontenellas, Gouvêa,
-Perningem, Codiceira.
-
-Os ribeiros de Magute, Samarra e Barril, que vão á foz de S. Julião,
-cortam parte da freguezia em valles fundos, formando nos convalles
-pequenas veigas ferteis.
-
-A oriente, Mafra, o soberbo zimborio, as altas torres dos sinos,
-os formidaveis torreões dos extremos; e a sul a serra de Cintra,
-decorativa por excellencia, mais azul quanto mais longe, com tons de
-amethysta, frequentemente variada com ligeiras neblinas.
-
-Pouco mais e descobre-se a veiga da ribeira de Chileiros, os sulcos
-fortes dos seus pequenos afluentes, entre collinas de declives rapidos.
-
-Para o poente a grande face tranquilla do Atlantico.
-
-Uma e outra vinhasita entre muros de pedra solta; retalhos de tojaes
-cortados; vaccas leiteiras guardadas por creanças; grupos de pinheiros
-mansos de verde lustroso, poucas arvores de fructo; sobre os telhados
-filas de aboboras; em fins de setembro os campos estão animados,
-trabalha-se nas eiras na debulha do milho, e na estrada passam os
-carros com as uvas para as adegas.
-
-Fica ao longe a casaria branca, baixa, de S. João das Lampas, alveja a
-Assafôra, e outros pequenos povos; passa um fresco pinhal, e começa a
-descida que leva á Carvoeira, uma aldeia na encosta; em baixo o valle
-agora mais amplo da ribeira de Chileiros, forrado de vinhedos novos.
-
-Ha uma ponte nova, bem lançada; e a carrinha sobe vagarosamente a
-longa ladeira; vê-se a Foz, a barra de areia branca, a agua do rio
-mui socegada entre as escarpas altas e escuras; ouve-se o rumor da
-arrebentação, das grandes ondas de claro verde transparente, de franjas
-alvissimas que o vento pulverisa, desenrolando-se espumantes sobre a
-barra de areia branca, ou saltando, espadanando nas escuras rochas das
-ribas.
-
-O vasto oceano impõe-se agora, de fim vago se ha neblina; se o tempo é
-claro sempre a mesma linha de horizonte, nitida, limite implacavel e
-monotono.
-
-Termina a ladeira, salvam-se umas curvas de macadam, e apparece-nos a
-distancia a branca villa da Ericeira, como um bando de gaivotas pousado
-na riba da beira-mar.
-
-As _arribas_ são escarpas de 30, 40 metros de altura, pittorescas em
-muitos pontos pelo estranho colorido, pela fórma de fragmentação;
-parecem ruinas de edificios gigantes.
-
-Escuros penedos á beira-mar quebram as vagas que se empinam em
-cristaes, se desfazem em brancas espumas ferventes, numa lucta
-rithmica. Das arribas a encosta faz uma plataforma, e logo sobe
-rapidamente o terreno para oriente, o lado de Mafra.
-
-Nesse largo socalco assenta a villa da Ericeira, a branca villa toda
-caiada, porque os habitantes até branqueam os telhados de muitas casas,
-e as ermidas das _arribas_, S. Julião, S. Antonio e S. Sebastião
-parecem talhadas em sal marinho.
-
-Nenhuma vegetação agora rompe a nitidez do verde mar, do escuro das
-furnas, da cal branca faiscando ao sol; só umas delgadas, flexiveis
-araucarias conseguem erguer-se sobre a linha da casaria; outras arvores
-ao passar a crista dos muros desfolham-se e quebram-se pela ventania
-maritima; nos pequenos quintaes abrigados ha roseiras finas, jasmins
-viçosos e latadas de dourado moscatel.
-
-Tambem tenho ido á Ericeira, passando por Mafra. Na estação do
-caminho de ferro apparece um carro de bancos, especie de americano
-de montanha, que nos leva á povoação, vencendo uma comprida ladeira.
-Proximo á estação, sobre uma collina, avista-se uma aldeia de aspecto
-interessante; as casas cubicas, com suas barracas ou quinchosos
-aos lados, coroam o monte, semelhando uma fortificação de torres e
-quadrellas. A estrada vae subindo pela meia encosta de um grande
-massiço; os largos declives dos montes povoados de culturas, vinhedos;
-nos sovacos mais humidos grupos de vaccas leiteiras.
-
-Para cortar caminho, indo de trem, atravessa-se um canto de tapada, uma
-rua de platanos, e logo o assombro do monumento.
-
-Ha ali primores de extraordinario merecimento. Que magestade imponente
-nas linhas geraes, que afinação, que equilibrio entre os corpos que
-compõem o grande conjuncto, que acabada execução! e na egreja que
-relevos de delicado lavor! e que bello horisonte!
-
-N’este paiz accidentado quasi todos os monumentos teem moldura de
-grandiosa paizagem; não succede o mesmo em França, Inglaterra,
-Allemanha onde a vista pára em arvoredos proximos ou encontra planuras
-monotonas. Mafra tem moldura larga e rica, basta a decorativa Cintra,
-joia azul, o mar, e aquella vastidão de terras accidentadas, com seus
-povos e casaes, quintas, vinhedos e manchas avelludadas de pinhal.
-
-Os sinos, um dos primeiros carrilhões do mundo, enchem de vibração
-religiosa aquelles campos; ouvem-se muito ao longe; uma vez passando
-em Odrinhas ouvi uma toada longa, mui grave, que me impressionou;
-era a sonoridade dos sinos de Mafra que chega a muitos kilometros de
-distancia. Outra vez ouvi no carrilhão a valsa do _Fausto_! que typo
-de sineiro, quando hoje ha musicas escriptas expressamente para estes
-grandes instrumentos de musica!
-
-Mafra tem outra notabilidade, a velha egreja de Santo André, antiga
-freguezia. Cautella com os amadores, pois a vi muito abandonada.
-
-Tem altares de azulejos mosarabes, e frontaes de couro lavrado,
-colorido e dourado; e duas arcas tumulares medievaes, de interesse
-historico e artistico. O exterior da capella mór e a torre sineira são
-da primitiva, e em volta está o velho cemiterio, tão pouco respeitado!
-
-Com pequeno esforço se poderia conservar melhor essa interessante
-egreja de Santo André!
-
-Muito curioso o pequeno mercado, os figos moscateis, as lindas uvas, as
-bellas maçãs, os aromaticos melões, as saloias com os seus cabazes de
-ovos. Mas que ovos saborosos! nos almoços que nas minhas passagens por
-Mafra consumi no Moreira ou no Duarte ou no Ricardo, eu repeti os ovos
-fritos na manteiga saloia.
-
-A carrinha da Ericeira pára á porta do correio, que fica ao lado da
-escadaria monumental da egreja.
-
-E partimos para o lado do mar.
-
-Pela estrada carros com rama de pinho, rapazes com vaccas leiteiras, e
-grupos de crianças pedindo cincoreizinhos em cantilena nasalada.
-
-_Sobreira_, logarejo com caixa de correio, e uma loja centro
-commercial, onde se vende tudo á gente do sitio, e vinho á gente que
-passa; o cocheiro aceita sempre o seu copito. Fabrica-se por aqui
-ceramica popular, louça de barro, vidrada ou não, com sua ornamentação
-especial. E não só na Sobreira, mas em outros povos proximos ha
-oleiros, até á Lapa da serra, pequeno logar já visinho da Ericeira.
-
-Agora atravessamos trechos de pinhal; paisagem formidavel; na luz forte
-o grande mar, a serra de Cintra, amethista lavrada, os vastos campos
-accidentados, palhetados de logares e casaes brancos, as verdes manchas
-de pinhal, e Mafra, o imponente edificio avermelhado, saliente entre a
-pequena casaria branqueada da villa.
-
-E quanto mais nos avisinhamos da Ericeira mais viçosos são os pinhaes;
-tudo pinhal novo, porque as velhas arvores foram derrubadas nos ultimos
-annos. O mar quanto mais proximo mais scintillante.
-
-E nada da Ericeira; para esse lado, a quem vem de Mafra nem uma casa,
-nem uma torre de egreja mostra a villa; porque ella está no grande
-socalco da ribamar; quasi ao terminar a ladeira surge a casaria branca
-alastrada, projectando-se sobre o oceano.
-
-Ora vamos ouvir o padre Antonio Carvalho da Costa, bom author que eu
-sempre recommendo, na sua mui excellente «Corografia portugueza, e
-descripçam topografica do famoso reyno de Portugal», impressa em 1712:
-escreve o prestimoso clerigo e mathematico lisbonense, a pag. 42 do
-tomo terceiro:
-
-
-Da Villa da Eyriceyra
-
-Uma legua ao noroeste de Mafra (será escusado lembrar que havia então
-leguas pequenas, e leguas da Póvoa), tres ao sudoeste da villa de
-Torres Vedras, e sete ao Sul de Peniche, tem seu assento a villa
-da Eyriceyra, a quem banham pela parte do occidente as salgadas e
-ceruleas aguas do cubiçoso Oceano, que a faz abundante de bom pescado e
-excellente marisco, especialmente eyriços, donde a villa tomou o nome,
-o que approvam suas armas, que são um eyriço em campo branco.
-
-Elrei D. Diniz lhe deu foral (o primeiro foral é mais antigo), que
-confirmou depois elrei D. Manuel, fazendo doação della ao infante
-D. Luiz seu filho, de quem a herdou o sr. D. Antonio, seu filho
-illegitimo, ao qual (sendo expulsado da successão do reino por el Rei
-D. Fillippe o de Castella, e vencido na ponte de Alcantara pelo duque
-de Alba, que com poderoso exercito entrou neste reino) lhe confiscaram
-todas suas rendas, e entre ellas a villa da Eyriceyra, a qual deu em
-satisfação de divida a Luiz Alvares de Azevedo de juro, e herdade
-para elle, e seus descendentes, com que ficou excluida da Corôa, como
-bens patrimoniaes; e pertencendo ella a uma sua filha, religiosa de
-S. Bernardo no mosteiro de Odivellas, a vendeu a abbadessa por 8:000
-cruzados a D. Diogo de Menezes com todas suas rendas e direitos reaes,
-e a quinta parte do morgado da villa de Mafra, e a vintena do peixe,
-que se paga aos senhores da dita villa, que é em todas as partes em que
-fóra della pescam seus naturaes, mui exercitados neste officio.
-
-Tem 250 visinhos com uma egreja parochial da invocação de S. Pedro,
-curado, que apresenta o conego da Sé de Lisboa, o qual tambem apresenta
-a vigairaria de Mafra: tem mais Casa da Misericordia, e estas ermidas,
-o Espirito Santo, Nossa senhora da Boa Viagem, S. Sebastião, e S.
-Martha, e ha nesta villa tres fontes perennes.
-
-Assistem ao seu governo civil um ouvidor posto pelos condes (que nesta
-terra tem os oitavos do pão e vinho), dois vereadores, um procurador do
-conselho, um escrivão da Camara annual, que o é tambem da almotaçaria,
-outro escrivão dos orfãos, que o é tambem dos direitos reaes e do
-judicial e notas. Tem uma companhia da Ordenança, e um forte com cinco
-peças de artilharia, que sustentam os moradores, e os condes consultam
-o governador. É hoje senhor e conde desta villa D. Francisco Xavier de
-Menezes, cuja illustre varonia é a seguinte:==e segue uma noticia da
-genealogia d’essa bella familia dos condes da Ericeira, D. Diogo de
-Menezes, 1.ᵒ, D. Fernando de Menezes, 2.ᵒ, D. Luiz de Menezes, 3.ᵒ,
-D. Francisco Xavier de Menezes, 4.ᵒ, série brilhante na fidalguia
-portugueza.
-
-Foi este ultimo que animou Carvalho da Costa a escrever a sua
-chorographia que tantos serviços presta ainda agora.
-
-A respeito da villa de Mafra conta-nos Carvalho da Costa: o seu termo
-é abundante de pão, gado, e caça: tem uma egreja parochial dedicada a
-S. Izidoro, curado, que apresentam os moradores (note-se isto, eram
-os moradores que apresentavam o cura), os quaes passam de cento e
-sessenta divididos por estes lugares, Azambujal, Quintal Gonçalvinhos,
-Grocinhos, Lombo da Villa, Almada, Ribeira, Murteira, Pinheiro,
-Murgeira, Cachossa, Roxeira, Amoreira, Póvoa, Valle de Carreira,
-Caeiros, Fonte Santa, Relva, Sobreiro, Fonte Boa dos Nabos, Figueiredo,
-Picanceira, Penagache, Lagôa, Montegudel, Ribamar de cima e de baixo,
-com muitos casaes. Tem mais este termo o forte de _Milreu_, e o de
-Santa Susana com duas peças d’artilharia.
-
-A corographia de Carvalho da Costa imprimiu-se em 1712; estava-se longe
-da importancia posterior de Mafra, realçada pelo seu colossal monumento.
-
-O que me chama a attenção na descripção de Mafra, feita por tal
-authoridade em 1712 (isto é em 1709, porque 1712 é a data da impressão)
-é que nesse tempo, em que se conservavam ainda vigorosas as antigas
-instituições, no termo da villa de Mafra a freguezia mais importante
-era a de Santo Isidoro; e que o seu parocho curado era apresentado
-pelos moradores. Isto mostra que esta freguezia ou parochia era uma
-entidade muito sobre si: e abrangia um territorio vasto e importante,
-como o é ainda agora.
-
-Em 1844 temos outra noticia a respeito da Ericeira no famoso Panorama
-(Serie 2.ᵃ Vol. 3.ᵒ pag. 335).
-
-É um artigo de Henriques Nogueira. Acompanha-o uma gravura ingenua
-mas curiosa; mostra os rochedos, a alta escarpa, a ladeira que vem ao
-pequenino porto, as paredes do forte, agora em parte desmoronado, e ao
-longe a ermida de S. Sebastião.
-
-==Em documentos antigos é conhecida por Oyriceira e Eyriceyra, e d’aqui
-vem serem as armas do concelho um ouriço.
-
-==Os mais antigos assentos da separação da parochia de Mafra são de
-1406. D. João V prestou grande auxilio á reedificação de S. Pedro.
-
-==O estabelecimento mais importante que esta villa possue é a casa
-da Misericordia a qual foi fundada onde havia uma ermida do Espirito
-Santo, por Francisco Lopes Franco, em 1678. Este doou-lhe um padrão
-de juro de 480$000 réis, e os pescadores obrigam-se a pagar-lhe
-annualmente todo o ganho d’uma rede de pesca, cujo onus solveram pela
-quantia de 6$400 réis que ainda hoje pagam cada um dos dez barcos de
-pesca. O rendimento actual (1844) em juros e fóros é de 1:679$700
-réis. Despende com encargos pios e despezas do culto 725$300 réis e
-com o hospital 479$300 réis. O excedente da receita é empregado em
-esmolas e vestuario aos pobres. Os habitantes empregam-se pela maior
-parte nas pescarias ao longo do nosso littoral, na costa de Marrocos,
-e tambem já fizeram tres expedições ao Banco de Terra Nova n’estes
-ultimos annos (como isto passou!). O numero de embarcações de todos
-os lotes, incluindo as do commercio de cabotagem é de 98, empregando
-670 individuos. A população orça por 2:769 almas com 750 fogos; no
-principio d’este seculo tinha apenas 600.==(lembro ainda que isto se
-escrevia em 1844).
-
-==O forte está sobranceiro á calçada que dá para a praia, e hoje
-acha-se desguarnecido. Segundo se deprehende de uma inscripção sobre a
-porta foi edificado por D. Pedro 2.ᵒ
-
-==No chafariz chamado a Fonte do Cabo existe uma pedra embutida na
-parede com um emblema e legenda em caracteres gothicos em relevo, que
-parece significar: «Feita na era de mil e quatrocentos e cincoenta e
-sete annos.»
-
-==Ainda existem restos do palacio do senhorio d’esta villa, o conde da
-Ericeira: pela parte superior de algumas janellas veem-se pedras com um
-leão esculpido. Estas paredes a que o povo chama o Paço, são dignas de
-veneração por terem servido de residencia, e quem sabe se de academia,
-ao nosso douto escriptor D. Francisco de Menezes.
-
-==A meia legua ao nascente d’esta villa está aberta uma mina de
-barro branco no sitio chamado a Avesseira, que já tem sido explorada
-por conta das fabricas de louça das Janellas Verdes e Vista Alegre
-(Actualmente os finissimos barros dos arredores da Ericeira, que
-eu saiba, são explorados muito rudimentarmente pelos louceiros da
-Sobreira, Lapa da Serra, etc., que fabricam a louça chamada de Mafra).
-
-==Tambem por este mesmo sitio é situado o chamado _Pinhal dos frades_,
-por ter pertencido ao convento de Mafra.
-
-==É uma importante propriedade nacional assim pelo numero como pela
-bondade e prestimo das arvores, que excedem em diametro e altura as de
-todos os outros pinhaes circumvisinhos.==Agora o _Pinhal dos frades_
-não tem um só pinheiro fradesco; tudo foi reduzido a lenha; é todo
-novo o pinhal; e que bom seria alarga-lo porque daria aos arredores da
-Ericeira um encanto a mais, principalmente agora que tanto se louva o
-_ar do pinhal_. Esses novos pinhaes que eu percorri seguindo a estrada
-de Mafra, e no lindo caminho para a quinta dos Chãos e Santo Isidóro,
-são viçosos, e recebem em primeira mão a viração pura do mar; dá prazer
-respirar no ar do pinhal!
-
-Achei muito curiosa esta noticia da Ericeira, em 1844! Ora vejam como
-isto muda; o _forte_ está em grande parte destruido, a _escarpa_ tem
-falhado em muitas partes, desappareceram as _navegações longinquas_,
-diminuiu a _pescaria_ em muito, e o _pinhal dos frades_ perdeu as
-arvores venerandas.
-
-
-O rei da Ericeira
-
-Vou transcrever do _Portugal cuidadoso e lastimado_ do padre José
-Pereira Bayão (paginas 732-734), a narrativa do caso estranho do rei
-da Ericeira; um dos varios episodios da nevrose, naturalissima, que
-assaltou o povo portuguez nos primeiros annos da dominação hespanhola.
-Este, a meu ver, é dos que melhor representa o estado ancioso e
-tumultuario das almas; ha n’elle o mysticismo, o vago anceio, o
-estonteamento no começo, inconsciente, ingenuo; depois a exploração
-d’esses sentimentos pelo espirito patriotico, e pela influencia do
-meio, que leva a incidentes comicos, á desordem, á loucura sinistra,
-ao crime; logo, naturalmente, á intervenção da politica dominante, á
-força, até ao final do morticinio em massa, e do supplicio tremendo.
-
-==Succedeu isto no anno de 1584, no mez de julho, e podendo servir de
-exemplo (refere-se ao caso do rei de Penamacor) para emenda de outros
-taes atrevimentos, foi ao contrario; pois logo no anno seguinte se
-viu outro ainda mais estravagante pelos mesmos termos, fingindo-se
-ser el-rei D. Sebastião, um moço chamado Matheus Alvares, natural da
-ilha Terceira, filho de um pedreiro, o qual saindo-se do noviciado dos
-frades arrabidos do mosteiro de S. Miguel junto á villa de Obidos,
-se fez tambem hermitão em uma ermida de S. Julião, junto á villa da
-Ericeira. Aqui fazia uma vida ao parecer mui penitente, e se introduziu
-a ser rei antes que ninguem o imaginasse; disciplinava-se fortemente
-onde pudesse ser ouvido, e dizia com triste lamentação: _Portugal,
-Portugal, que é feito de ti, que eu te puz no estado em que estás, oh!
-triste de ti Sebastião, que toda a penitencia é pouca em respeito
-de tuas culpas_. Começaram alguns a crer, que elle era el-rei; e
-entre elles um lavrador rico chamado Pedro Affonso; juntaram-se até
-oitocentos homens, de que se fez general, accrescentando ao seu nome
-o apellido de Menezes; poz o fingido Rei Casa Real, e fortificou-se,
-casando-se com uma filha do dito Pedro Affonso, moça bem parecida,
-coroando-a como Rainha, com uma corôa de prata de uma imagem de Nossa
-Senhora, fazendo marquez de Torres Vedras a seu pae, e conde de
-Monsanto, Senhor de Cascaes, e alcaide mór de Lisboa.
-
-E assim fazia outras mercês, passando provisões e alvarás com
-solemnidade de sellos reaes, occultando-se sempre, e mostrando-se a mui
-poucos por grande favor, aos quaes contava algumas particularidades da
-batalha, para os ter mais seguros n’esta presumpção, e mandando recado
-a D. Diogo de Sousa, general da armada, que lhe fosse fallar; tanto que
-soube, que elle perguntára ao mensageiro pelo signal, que lhe déra,
-receando-se que se descobrisse o engano, ou por outra alguma razão, que
-não consta, lhe tornou a mandar dizer, que não fosse; e comtudo indo
-lá, lhe não quiz fallar, dizendo, que o fazia assim porque não ia só.
-
-Escreveu depois ao cardeal Alberto, que lhe desoccupasse o seu paço, e
-se fosse embora para Castella: porque já era tempo de que abrissem os
-olhos tantos enganados.
-
-Foi preso o embaixador; e soltando-o logo cobrou mais forças a
-opinião de ser elle el-rei, por onde, o que assim se fingia se foi
-ensoberbecendo, e fazendo alguns graves castigos em todos aquelles,
-que o não queriam reconhecer, e lhe negavam a obediencia, sendo
-executor o marquez, seu sogro, que era homem cruelissimo, e deshumano;
-e agora muito mais com a vangloria dos titulos que lhe foram dados, e
-considerar-se sogro de el-rei.
-
-Vendo o Cardeal Governador que se devia atalhar tão grande desordem
-antes que passasse a mais, deu ordem ao corregedor de Torres
-Vedras para que os fosse prender, e querendo-o executar foi morto
-arrebatadamente com os seus officiaes por aquella gente, que os seguia:
-e sendo isto reprehendido por Gaspar Pereira, ouvidor d’aquella
-comarca, o mataram tambem; e a um filho, e a um sobrinho; saqueando-lhe
-a casa como em guerra justa; passando já n’este tempo de mil a gente
-asoldada que o seguia: vindo todos a comprar polvora e bala á cidade,
-diziam publicamente, que era para acompanhar a el-rei D. Sebastião.
-
-Pelo que, e porque não crescesse mais o damno, e insolencia, foi
-necessario acudir com mais forte remedio. Deu-se ordem ao corregedor da
-côrte, e se mandáram ajuntar todos os ministros da justiça com os seus
-officiaes, e com quatrocentos soldados castelhanos bem armados, foram
-fazer a diligencia; e chegando perto do couto do novo rei, ficaram
-os soldados embuscados em um valle, indo a justiça adiante, e sendo
-descoberta pela guarda, arremeteram a elles como lobos.
-
-Fugiu a justiça com muita pressa até os irem metter na embuscada,
-donde saindo com furia lhe deram uma carga de tiros com que mataram e
-feriram a muitos dos fautores do rei, fazendo fugir aos outros pelos
-montes e valles; foi preso o rei, e alguns do seu conselho, e trazido
-a Lisboa fez confissão, de que não era el-rei, nem pretendia sel-o, e
-que só intentava dar sobre Lisboa com as armas dos seus seguidores, na
-madrugada do dia de S. João, e vencida ella, como esperava, pertendia
-dizer ao reino que já o havia posto em liberdade para que fizessem rei.
-Foi enforcado em 14 de junho do dito anno, cortando-lhe primeiro a mão
-direita no Pelourinho, onde ficou pendurada, por passar provisões e
-alvarás falsos, fingindo-se el-rei D. Sebastião; a cabeça esteve um mez
-pregada na forca, e os quartos foram postos pelas portas da cidade; e
-no dia seguinte enforcaram e esquartejaram os outros, que foram presos
-com elle, um que fazia o officio de védor, que seria de quarenta annos,
-e outro que era pagem privado, que seria de edade de vinte annos.
-
-Na Ericeira foram enforcados vinte homens que eram deste bando, muitos
-foram lançados a galés; e Pedro Affonso, marquez e conde general, e
-secretario do triste rei, fugiu no dia da prisão dos mais; mas pouco
-depois foi preso, fazendo-lhe em Lisboa o mesmo, que tinha feito ao
-seu soberano, e os pobres moradores d’aquelle contorno despovoaram a
-terra com medo, por terem seguido a voz do rei enganoso. Foram tambem
-presos e castigados muitos, que enganados o favoreciam de Lisboa, e
-lhe mandavam dinheiro, e peças de valor, como foram Antonio Simões,
-escrivão dos armazens, e Gregorio de Barros, ourives d’el-rei, pagando
-miseravelmente o zelo, com que cuidavam servir ao seu rei.
-
-Parece que foi o intento de mandar chamar D. Diogo de Sousa, saber
-delle se era certo, como se dizia, que el-rei veiu na armada, porque
-sendo assim, e sabendo delle onde estava, e se estava prompto para
-entrar a governar, ajustariam ambos a fórma de occupar Lisboa e
-desoccupal-a dos castelhanos com aquella sua gente, e entregal-a
-ao dito rei, com o que ficava restituido ao seu reino, e aquelles
-servidores seriam bem gratificados por elle e agradecidos de todo
-o reino. Isto se colhe da sua confissão, e outra cousa se não deve
-imaginar, pelos descaminhos ou impossibilidades, a que se expunha por
-todas as vias; o que qualquer mediano entendimento conheceria mui bem.==
-
-
-Antiguidades romanas e medievaes
-
-Na Ericeira e seus arredores não vi antiguidades romanas; nem um
-signal, nenhuma pedra empregada em muro velho que denunciasse lavor de
-alta antiguidade; o trabalho agricola tem sido grande, o mar sabe Deus
-quantas escarpas tem demolido, elle que todos os dias está destruindo
-e abatendo os rochedos da costa. Mas n’um aro de raio de seis a dez
-kilometros surgem vestigios notaveis. As inscripções lapidares romanas
-são conhecidas; a região a norte de Cintra e Collares é rica de taes
-letreiros. Antiguidades pre-romanas são sabidas tambem. Não podemos
-esquecer o collar da Penha Verde, a grande joia prehistorica (que hoje
-está ennobrecendo, ao que me dizem, um muzeu inglez), o famoso dolmen
-de André Nunes ou Adrenunes, monumentos que provam a existencia por
-estes sitios de antiquissima civilisação pre-romana. Estacio da Veiga
-estudou as antiguidades d’estes sitios; no _Corpus_ estão transcriptas
-em grande numero as inscripções romanas. Na _Cintra pinturesca_ (pag.
-192), se diz: «encontram-se com frequencia urnas e lapides sepulcraes
-em varios sitios especialmente em S. Miguel de Odrinhas, Morelino,
-Montelavar, etc.»
-
-D’essas veneraveis pedras sepulcraes muitas desappareceram, ainda porém
-existem algumas importantes. Para as ver dei uns passeios a Odrinhas e
-á quinta dos Chãos.
-
-Odrinhas fica a meio caminho entre Cintra e Ericeira. Ha ahi uma venda
-onde costumam parar os carros para descanço; abre-se em frente d’essa
-venda um caminho de aldeia que leva á egreja, S. Miguel de Odrinhas,
-a menos de um kilometro. É filial da parochia de S. João das Lampas.
-A porta principal diz a poente, uma alpendrada segue na frente e no
-lado sul; atrás da capella mór um espaço que serviu largos annos de
-cemiterio; muitas pedras de cabeceira nos seus logares, tendo nos
-circulos superiores esculpidas cruzes de varias fórmas, sinos saimões,
-e estrellas de seis pontas. Encostado á egreja um ediculo do seculo
-XIV. Junto da pequena porta lateral uma casa, talvez de antigo ermitão,
-a que chamam a casa dos ratos, que serve para metter medo a rapazes
-máos; sob o alpendre a grande mesa de pedra para as offertas. Ao norte
-da egreja, uma construcção circular, isolada, em ruina, mostrando ainda
-a nascença da abobada, feita de pedra miuda, vestigios de porta, e um
-vão na parede, que parece, seria destinado a ter um armario.
-
---É casa de mouros, disse alguem.
-
---Era onde guardavam os ossos tirados das covas do cemiterio, o
-ossuario, disse outro.
-
---Dizem que está ahi um thesouro escondido, disse uma mulher.
-
-Parece-me que a causa principal da ruina é esta crença, com a esperança
-de achar o metal precioso têm nocturnos exploradores arruinado o
-singular edificio. E eu achei no montão de pedregulhos, e fiz destacar,
-em marmore lavrado, nada menos que a pedra superior de uma ara romana
-com seus ornatos, volutas e folhagens, de bom estylo, com a grande
-cavidade destinada ao fogo. No terreno proximo, nos velhos muros de
-pedra solta, vi tijolos pequenos, fragmentos de grossas telhas, e
-ainda mais cabeceiras de sepulturas com suas cruzes e saimões. É unico
-o que ali está, n’aquelle modesto recinto onde se conservam vestigios
-antigos, de epocas entre si muito afastadas.
-
-Sob o alpendre, solta, a grande pedra com lettreiro romano onde se
-mencionam individuos da tribu Galeria, e entre elles o de Elio Séneca.
-Dentro da egreja, á direita da porta principal, a enorme lapide, fixa,
-de Plocio Capito. Dizem que era de homem santo, e raspam-na para com
-o pó curar enfermidades. Pelo visto temos aqui um exemplo nitido de
-cultos continuados no mesmo local desde a antiguidade romana até agora.
-Mas ha lendas, velhas tradições aqui. Disse-me um homem que esta egreja
-era tão importante em tempos antigos que a gente de Santo Isidóro,
-Paço d’Ilhas e Quinta dos Chãos vinha enterrar os seus mortos n’este
-cemiterio, fazendo a longa caminhada de quatro leguas. E logo outro
-companheiro, um tanto a medo, me perguntou se eu julgava possivel que
-uma mulher fosse capaz de trazer ás costas aquella grande pedra, a do
-Séneca, desde Santo Isidóro, com o cadaver do filho. É lenda mui velha
-que eu vim encontrar agora nesta ultima terra da Europa.
-
-Santo Isidóro é egreja parochial que fica a uma legua além da
-Ericeira; fica-lhe a pouca distancia a quinta dos Chãos, que desperta
-a curiosidade pelo seu isolamento, a sua represa d’aguas, os pequenos
-aqueductos, pateo, jardim, casa de residencia e officinas, um bello
-exemplo de habitação rural, modificada pelo tempo e variedade de
-usos, mas no todo lembrando uma antiga villa rustica. Ahi, n’uma
-varanda sobre um arco, servindo de meza, vi a bella lapide sepulcral
-dos Terencianos; e no jardim ha uma pia que me pareceu uma urna ou
-sarcophago romano, coberto em parte de cal. Segundo uma tradição
-a ribeira de Paço d’Ilhas que corre no profundo valle proximo era
-antigamente navegavel, e um velho paredão arruinado seria o resto do
-caes.
-
-
-A costa
-
-Da ponta da Lamparoeira corre a costa de norte a sul, por mais de 8
-milhas, quasi toda de rocha escarpada até á foz da ribeira do Porto. A
-1,5 milhas a N. da dita foz fica a Ericeira. A sul da villa uma pequena
-enseada com boa praia, a norte outra praia; ambas separadas pela grande
-massa de rochedos do portinho onde entram os barcos de pesca. Este
-porto é desabrigado dos ventos NNE a SSO por O.
-
-Ha duas luzes de enfiamento, branca e vermelha, a 37,ᵐ7 de altitude.
-
-O monumento de Mafra com suas elevadas torres e zimborio, a 270 metros
-sobre o nivel do mar, serve de reconhecimento e marca para este porto,
-avistando-se a 30,5 milhas.
-
-Da foz da ribeira do Porto a costa a S 25° O, até ao cabo da Roca, a
-10,3 milhas, quasi toda escarpada e elevada, apenas rota na praia das
-Maçãs na foz da ribeira de Collares, e na praia Grande a S d’esta. No
-Focinho da Roca o rochedo levanta-se a mais de 125 metros; sobre essa
-escarpa está o pharol da Roca, a 137 metros acima do nivel do mar. A
-meia milha ao mar do cabo está a pedra d’Arca: ha outros recifes que
-tornam perigosa a approximação.
-
-A serra de Cintra eleva-se sobranceira ao Cabo, correndo para o
-interior na direcção de ENE. A sua maior altitude é no seu estremo E no
-castello da Pena, que tem 529 metros de cota.
-
-O convento da Peninha, no extremo SO, está a 488 metros, e deve
-avistar-se a 42 milhas. A serra de Cintra é ponto excellente para
-reconhecimento da costa. Os pescadores da Ericeira dão nomes ás
-saliencias principaes da serra, e pelo enfiamento e aspecto marcam
-approximadamente a sua posição no mar.
-
-A pesca na Ericeira chegou a grande decadencia, parece querer
-levantar-se agora. Antigamente, ha 50 annos, não só a pescaria tinha
-ali grande importancia, mas a Ericeira era um viveiro de homens do mar;
-chegou a ser celebre pelos seus maritimos pedidos para os melhores
-navios da nossa marinha mercante. Eu conheço a Ericeira ha quatro annos
-apenas, em rapidas visitas na época dos banhos. Ha quatro annos havia
-uma armação, em frente do porto, e os botes de pesca, as focinheiras,
-pouco iam ao mar. Não havia pescada, muitos dias só havia sardinha e
-carapau apanhado na armação. Agora ha duas armações, e todos os dias
-vão barcos ao alto, que por vezes trazem muito peixe. A exploração da
-lagosta tambem augmentou.
-
-Os pescadores das armações são quasi todos estranhos á Ericeira; e
-tem vida áparte dos naturaes da villa. É no _norte_, quer dizer no
-bairro do norte da villa, em casas abarracadas, caiadas, algumas com o
-chão forrado de plantas aromaticas, que habitam os pescadores. Casas
-pobres, aceiadas, com estampas de navios e santinhos nas paredes. A
-grande embarcação de pesca, antiga, era a _rasca_, que eu vi pintada em
-quadros de milagres, na egreja de Santa Martha.
-
-Era um barco seguro e veleiro, de borda alta, pôpa redonda e prôa
-arrufada; convez corrido de vante á ré, cinginda em volta do costado
-por um espesso cinto com forte pregaria, apparelhando com quatro vélas
-latinas triangulares, traquete, véla grande, véla de prôa, e catita;
-com tripulação numerosa para a manobra.
-
-O mastro de traquete pendia para vante, o de ré era vertical, da prôa
-lançava um páo para amurar a véla de prôa, á ré encostado á amurada um
-pequeno mastro para a verga da catita, que caçava no laes de um páo
-deitado pela popa servindo de retranca: singrava veloz, chegando-se
-muito ao vento, e aguentando-se bem nas borrascas.
-
-A focinheira é typo unicamente usado na Ericeira, para a pesca
-costeira, e que vae tambem ao largo. Tem um mastro á prôa que apparelha
-com um latino; a prôa e a pôpa da pequena embarcação teem fórma
-especial, e no fundo chato e arqueado tem umas reguas ou reforços
-longitudinaes. É differente da chata de Cascaes ainda que se lhe
-avisinha.
-
-Tenho visto na Ericeira sardinha, fataça, carapau, faneca, goraz,
-pargo, capatão, pescada, peixe espada, peixe gallo, cação, moreia,
-arraia, polvo e lagosta.
-
-Uma vez entrou na armação um cardume de grandes pargos e capatões; e eu
-vi na pequena praia a fila de oitenta grandes peixes vermelhos de que
-os menores tinham 7 ou 8 kilos.
-
-Este anno foi fisgado de uma focinheira um grande peixe agulha que
-pesou nove arrobas.
-
-Havia muitos annos que não apparecia um peixe agulha na Ericeira, e é
-trivial em Setubal.
-
-Quem visitar reparando os mercados de peixe na Ericeira, Cascaes,
-Setubal nota singulares differenças; nesse bocado de oceano que se
-avista do Cabo da Roca, ha regiões definidas, onde apparecem ou não
-determinadas especies de peixe.
-
-O generoso mar dá ainda outro producto que elle traz do seu seio e vem
-depôr, arrumar, na areia da praia; chamam-lhe sargaço e moliço ou
-golfo; são as algas, os corriões, bodelha, verdelho e sebas, que o
-agricultor utilisa para adubo.
-
-Em todas as praias aqui d’esta costa, Baleal, Peniche de cima e de
-baixo, Portinho da areia, Consolação, Seixal, Atalaya, Ribamar, Porto
-novo, Santa Cruz e Assenta andam os sargaceiros apanhando os vegetaes
-arrojados á areia, escolhem um pouco, carregam, formam medas, que
-entram em fermentação e se transformam em excellente adubo.
-
-Em outros pontos do paiz a rapeira é uma furia louca que prejudica a
-creação do peixe, mas aqui não se dá esse caso, os sargaceiros não
-chegam para arrecadar a massa enorme de algas que o mar lhes offerece.
-
- * * * * *
-
-_Banheiros._--Praia do sul: Antonio Garamanha, Braulio da Silva,
-Francisco Piloto, Francisco Jorge Alturas e Servando da Silva.
-
-Praia do norte: Agostinho Alves Camacho, José Alves Camacho, José Coco
-e José d’Almeida Rato.
-
-As praias são muito frequentadas nos mezes de agosto, setembro e
-outubro. Ha duas series de banhistas: a mais tardia é a que vem depois
-da vindima.
-
-Bons typos estes banheiros, nadadores de primeira ordem, valentes sem
-precipitação.
-
-Na praia do norte o mar bate um pouco mais; na do sul a força da vaga
-é em parte quebrada por uma restinga que surge a pouca distancia, 80 a
-100 metros da praia de areia.
-
-Na praia do norte em manhã de vaga um tanto rija vi espectaculo raro;
-os banhistas não tomaram banho, e os banheiros resolveram ir brincar
-nas vagas; brincadeira um tanto forte.
-
-Eram tritões mythologicos, peixes não, porque estes não caem em taes
-experiencias; por vezes sumiam-se no concavo da vaga proxima a desabar,
-logo appareciam, o corpo meio fóra da agua, na cabelleira cristallina,
-logo destacavam na branca espumarada fervente.
-
-É arriscado, ha movimentos enrolantes na vaga d’arrebentação, e ai do
-que se deixar enrolar pela onda.
-
- * * * * *
-
-No termo da Ericeira, na encosta voltada ao mar, ha grande numero de
-pequenas propriedades, e muitos muros de pedra solta. Fazem esses muros
-para arrumar a pedra e tambem para defeza contra a rajada do mar, e não
-bastam; fazem ainda sebes de urzes, de ramos de pinho, de caniço; e
-nesses canteiros vi cepas boas, com bellos cachos.
-
-A phylloxera estragou os vinhedos, mas nos ultimos annos teem
-replantado; nas chans da ribeira de Chileiros ha vinhas de importancia.
-Para os lados da Fonte dos Nabos, Santo Isidoro, Paço d’Ilhas vi
-culturas mimosas. Na Ericeira só as flexiveis hastes das araucarias
-resistem á furia do vendaval. Ás vezes quando no temporal as grandes
-vagas estouram nas arribas passam flocos de espuma por cima da povoação.
-
- * * * * *
-
-_Nomes de barcos._--S. Joaquim, vulgo o Bailharito, Feliz Raul, Boa
-Viagem, Flor da Ericeira, Pombinho, etc.
-
- * * * * *
-
-_Pombos-bravos._--São raros nesta costa; numa época vi dois casaes que
-pousavam nas altas rochas, sob a villa. Pouco adiante de S. Sebastião
-tenho-os visto tambem, poucos. São pardos-escuros, esguios, muito
-desconfiados; creio que é na costa algarvia, Sagres, S. Vicente, que
-apparecem mais; na costa da Arrabida são raros.
-
- * * * * *
-
-_Pharoes._--Berlenga. Começou em 1840. Alcance 30 milhas.
-
-Cabo Carvoeiro. Data de 1790. Alcance 9 milhas.
-
-Ericeira. Luzes de direcção, anterior branca, posterior vermelha.
-Começaram em 1864. Avistam-se a 5 milhas.
-
-Cabo da Roca. Data de 1772. Alcance 30 milhas.
-
- * * * * *
-
-_Soccorros a naufragos._--Dizem que existe um posto montado, com
-espingarda Delvine para lançamento do cabo de vae-vem.
-
-De barco salva-vidas nunca ouvi fallar, nem de qualquer melhoramento
-do acanhado portinho entre bravias rochas, muito pittorescas e
-perigosissimas.
-
-Numa das ribas vi uma caixa verde com letreiro branco, assim:
-
-
- SECORROS
-
- A
-
- NAUFRAGUS
-
-Deve ser orthographia official. (Este anno, 1905, vi o letreiro já
-emendado).
-
- * * * * *
-
-_O facho do peixe._--Se o barco que vem do alto, ou da armação, traz
-peixe, arvóra á prôa o _facho_, que é uma japona ou oleado de marujo;
-logo que das arribas avistam o reclamo descem homens e mulheres com as
-gigas e burrinhos para transporte da mercadoria.
-
- * * * * *
-
-_Aroeira._--É com o suco da aroeira que tingem as redes. A planta verde
-é moida num lagar, por galgas movidas a braço. Na Ericeira vi um
-lagar, que não trabalhava. É em Ribamar que hoje moem mais. Em Santo
-Isidoro encontrei eu umas saloias com seus burrinhos carregados de
-aroeira, que iam para Ribamar.
-
-E vi tambem ramos de aroeira ornamentando carros carregados de tojo; o
-verde viçoso da aroeira alegrando o tom escuro do tojo secco.
-
- * * * * *
-
-_Phosphorescencia._--Na costa da Ericeira o mar apparece algumas vezes
-phosphorescente; acho isto notavel; porque no littoral portuguez
-em muitos sitios nunca se dá este phenomeno, na costa do Algarve é
-rarissimo.
-
-A gente do mar chama-lhe _ardencia_. Nas noites de 24 e 25 de agosto de
-1900 o espectaculo foi admiravel. As grandes ondas luminosas, de brilho
-e intensidade differentes, produziam effeito phantastico. Durou muitas
-horas o esplendido aspecto do mar, especialmente na arrebentação.
-
-Em setembro de 1902 tambem houve _ardencia_, mas fraca e durando apenas
-umas tres horas. No livro de A. F. Simões: _Cartas da beira-mar_,
-descreve-se um caso de _ardentia_ ou _ardencia_ observado por elle na
-Figueira da Foz no mez de setembro de 1864.
-
- * * * * *
-
-_Cartas nauticas._--Conversando uma vez a respeito de antigas cartas
-nauticas, indicaram-me uma senhora que possuia algumas, de parentes
-que tinham navegado em largas viagens. Eu pedi o favor de as vêr.
-
-Um dia, na sua casa de jantar, escolhida por ser mais facil na grande
-meza desdobrar as cartas maiores, a senhora D. Maria disse á serviçal
-que fosse lá acima, ao quarto do Oratorio, buscar as pastas e os rolos,
-forrados de linhagem.
-
-A creada voltou ajoujada porque era pesado o fardo da papelada. Eram as
-cartas que tinham servido ao avô, ao pae, aos tios e aos irmãos na vida
-maritima, porque durante gerações, n’aquella familia, fôra tradicional
-a vida do mar; ora de pilotos, ora de capitães de navio, muitos dos
-parentes daquella senhora fizeram longas viagens. As cartas usadas,
-amarelladas, conservavam o cheiro a breu; tinham as rotas marcadas
-a lapis, em linhas onduladas ou em zig-zagues, com pequenas cruzes
-e datas, nas mudanças dos rumos ou marcando singraduras; viagens da
-Ericeira para Larache ou Casa Branca na costa marroquina, á Terra Nova,
-á Irlanda, ou de Lisboa para o Brazil, Açores, Madeira, por essa costa
-d’Africa fóra, ou entre o Funchal e Demerára.
-
-Ha coisas d’estas, ás vezes; começa-se por simples curiosidade,
-entre phrases banaes e logares communs, e de subito surge o drama.
-Se eu visse aquellas cartas n’uma loja nada sentiria, mas lentamente
-mostradas pela santa mulher! Eu ia dizendo o que via e lia, e ella
-ia lembrando. A carta passou a ser um documento vivo. E quanto mais
-recordava mais subia a commoção, avivavam-se saudades, as lembranças de
-anciedades passadas, as longas espéras de noticias. Certa cruz marcava
-um grande golpe de mar, outra o sitio em que faltou agua de beber, e a
-comida; esta agora um incendio a bordo.
-
-De uma vez não houve noticias do parente nem do navio por mais de seis
-mezes.
-
-Eu dobrava ou enrolava lentamente a carta, e passava-se a outra. Agora
-era a que servira a bordo do palhabote onde o irmão ia por piloto na
-sua primeira viagem, e surgiam outras recordações.
-
-Desdobrava-se nova carta, era a de um segundo tio, capitão do navio
-tal, que andou trinta annos no mar, soffrendo vendavaes e calmarias, e
-terminou em naufragio em longinqua paragem.
-
-E assim estivemos a ver cartas, algumas horas, e a lembrar anciedades
-passadas; saudades, receios, que é o manjar de quem tem parentes
-queridos no mar. Depois a serviçal foi levar, com muita cautella, como
-cousas sagradas, a pasta e os grandes rolos para o quarto de cima, ao
-pé do Oratorio.
-
- * * * * *
-
-_Os primeiros christãos._--As duas inscripções romanas que ainda hoje
-felizmente se conservam em S. Miguel de Odrinhas teem servido de base
-a dissertações de auctores considerados sobre o apparecimento do
-christianismo n’esta região a norte de Lisboa. Principalmente a do
-Seneca.
-
-O nosso D. Rodrigo da Cunha na _Historia ecclesiastica da egreja de
-Lisboa_, disserta sobre a pregação de S. Pedro de Rates pela beira mar
-até Cintra, e dá muita attenção ás duas inscripções romanas.
-
-A razão de julgar que taes inscripções commemoram pessoas christans
-é porque lhes falta o D. M. S. (consagrado aos deuses manes), inicio
-vulgar dos lettreiros pagãos.
-
-Base ou principal ponto de partida a respeito da existencia de
-christãos logo no 1.ᵒ seculo, neste extremo da peninsula, é a chronica
-de Flavio Dextro, que diz: _Lucius Seneca Centurio verus christianus
-Sintriae occumbit_. (_Ann. Chr._ 50).
-
-Numa edição de 1619, vê-se _Senticae_, emendado para _Sintriae_ na
-edição de Leão (Lugduni, 1627 pag. 103).
-
-Ora esta chronica de ha muito está mal afamada, mas percorrendo-a quasi
-me convenço de que merece alguma attenção; parece-me um texto antigo
-muito alterado e interpolado.
-
-Ambrosio de Morales, continuador de Floriam de Ocampo, na _Coronica
-general de Hespana_ (Alcalá de Henares, 1575, 2.ᵒ vol. pag. 245 e
-segg.) consagra um capitulo a esta questão:==_El tiempo del Emperador
-Neron con todo lo de Seneca_ (Lib IX. C. 9) e reproduz a inscripção
-grande de Odrinhas. Não acho base alguma para affirmar a existencia
-de christãos logo no primeiro seculo no occidente da peninsula; porque
-é certo que os lettreiros sepulcraes de individuos christãos começam
-muito mais tarde; lendas, tradições devotas, sim; mas é difficil tambem
-marcar datas á creação de lendas piedosas.
-
- * * * * *
-
-_Bolos._--As confeiteiras fazem cavacas, pão de ló, esquecidos,
-suspiros, biscoitos e marmelada. Tambem fazem queijadas, inferiores
-ás de Cintra. A região da queijada é outra, vae de Cintra a Bemfica,
-conservando o mesmo typo. Tambem ha queijadas no Alemtejo, excellentes,
-mas de esthetica mui diversa. O dominio do pão de ló é ao longo da
-costa maritima ao norte do Tejo, e o da cavaca quasi na mesma região,
-variando de fórma e densidade, de villa para villa; quasi se póde dizer
-cada terra com sua cavaca.
-
-_S. Antonio._--É uma pequena ermida, toda caiada, que está sobre a
-muralha da arriba do porto.
-
-Está ahi na parede do occidente voltada ao mar uma cruz formada por
-azulejos, e tambem em azulejos as imagens de Nossa Senhora da Boa
-Viagem e a de Santo Antonio, e data 1789.
-
-No nicho ardia d’antes uma grande lanterna, guia dos pescadores, e
-ainda lá está a sineta que toca quando ha nevoeiro na costa.
-
-_Egreja de S. Pedro_.--Foi restaurada em tempo de D. João v. As
-pinturas do tecto teem o caracter d’essa época. O cruzeiro ante a porta
-principal está datado de 1782. O prior Manuel Maria Ferreira fez obras
-na egreja, e o arcaz da sacristia em 1660.
-
-Creio que a obra d’arte mais antiga que existe nesta egreja é a pequena
-estatua de S. Pedro, em marmore, com o seu livro e grande chave, que
-está sobre a porta lateral. Proximo a esta porta está o seguinte
-letreiro:
-
- * * * * *
-
---Aqui jazem José Pereira da Cruz e sua mulher Eulalia da Costa e a
-filha d’estes Maria Rosa e seu marido o professor Antonio Luiz Delgado
-e alguns filhos d’estes, entre elles o padre Octaviano Augusto Pereira
-Delgado primeiro e principal promotor do acrescentamento e reforma
-d’esta egreja o qual pede por esmola se compadeçam das almas dos que
-aqui jazem, 1872.--
-
- Segundo o recenseamento official tem esta freguezia 737 fogos, com
- 2:519 habitantes.
-
-_Santa Casa da Misericordia._--Foi fundada a irmandade d’esta
-Misericordia em 1678.
-
-O Compromisso actual foi approvado por alvará de 4 de outubro de 1886.
-
-O antigo compromisso era de 7 de julho de 1697.
-
-Capital 34:650$000 em inscripções.
-
-Capital 4:500$000 em acções do Banco de Portugal e da companhia das
-Lezirias.
-
-Na média entram no hospital uns 70 doentes, annualmente.
-
-Ha pouco teve um legado importante, do sr. Fialho, cavalheiro
-respeitabilissimo da localidade.
-
- * * * * *
-
-_S. Julião._--É uma ermida toda branca, com seu alpendre, erguida na
-escarpa maritima, a uns tres kilometros a sul da Ericeira. Celebra-se
-ahi uma festa annual, em setembro, com arraial, a que concorre muita
-gente dos povos mais visinhos. Proximo do pequeno templo ha casas para
-os romeiros, para um posto da guarda fiscal, e para venda das offertas.
-
-A disposição da ermida e seus annexos leva-nos a tempos mui antigos. A
-influencia do convento de Mafra tambem ali chegou, e algumas reparações
-teem o cunho do seculo XVIII.
-
-A porta da ermida tem a data 1768.
-
-Proximo de S. Julião ha uma fonte milagrosa. Tem duas bicas, que deitam
-aguas de nascentes diversas, de modo que teem sabôres varios. E seus
-azulejos com as imagens de _S. Julião e Santa Basilissa_, e a data 1788.
-
-Teem virtude estas aguas para doenças de olhos, e outras, para todas
-creio eu, mas é preciso beber, ou lavar-se com as duas aguas. São
-complementares.
-
-Por occasião da festa foram muitas pessoas beber das duas aguas,
-outras lavar os olhos nas duas pias, outras com bilhas; mas a virtude
-principal das duas aguas combinadas é contra as sezões.
-
-No arraial de S. Julião vendiam-se poucos comestiveis: bolos de S.
-Julião, fartes, queijadas, melões e peras, pevides, favas torradas.
-
-Os fartes ou bolos de S. Julião são feitos de massa de trigo com
-assucar, me pareceu, e alguma canella. São bolos locaes que segundo me
-affirmaram só se fabricam por occasião da festa.
-
-Vi ahi algumas portas com fechadura especial composta de uma haste
-grossa, com sua travinca, e que se abre por meio de um páosinho de
-feitio vario.
-
-Na Ericeira tambem encontrei essa fechadura que eu não conhecia. Um
-popular explicou-me:==isto é fecho com cavilhas e chaveta.
-
-_As pedras de mysterio em S. Julião._--São umas lapides bem trabalhadas
-com os nomes de S. Julião, S. Basilisa, e Ave Stella matutina, e outras
-phrases piedosas, dispostas caprichosamente.
-
-Assim _Juliam, Basilissa e matutina_, em caracteres capitaes muitas
-vezes repetidos enchem quadrados tendo no centro as iniciaes J. B. e M.
-e achando-se a palavra lendo para qualquer lado, até aos vertices da
-figura.
-
-Proximo da ermida ha um logar, o fojo, grande fenda natural da escarpa,
-onde se deu um milagre; ahi numa lapide lavraram um monogramma
-que deve significar _Mater Christi_. E no angulo do alpendre,
-superiormente, um cubo de marmore com meridiana muito curiosa.
-
-Algum frade engenhoso fez aquelles quebra-cabeças, para maravilha dos
-romeiros. A esta ermida se liga a historia do rei da Ericeira.
-
- * * * * *
-
-_A bruxa da Arruda._--A celebre bruxa costuma visitar a Ericeira por
-fins de setembro. É muito respeitada; dizem que é rica, a pobres não
-leva nada; apresenta-se com muitos oiros. Tem uma filha que já entende
-de molestias. Em geral leva 300 réis pela consulta. Receita quasi
-sempre esfregas de aguardente e papas de pão de milho ralado. Mas isto
-varia em quantidade, tempo, calôr, e no sitio do corpo. Ouvi tambem
-chamar-lhe a mulher do Casal das Neves, no termo da Arruda dos Vinhos.
-
-Nem precisa ver o doente, levam-lhe roupa do uso do enfermo, uma camisa
-ou camisola, e ella pelo cheiro conhece a molestia e logo receita.
-Costuma pousar numa casa do _norte_ da villa, e a sua chegada consta
-logo entre a pobre gente que a venéra e teme.
-
-==Já teve questões com padres e medicos, já foi aos tribunaes, me disse
-alguem, e ficou sempre victoriosa!==
-
- * * * * *
-
-_O brazão da Ericeira._--Tenho visto representado no brazão da Ericeira
-um ouriço cacheiro, e outras vezes um ouriço do mar, inteiro, com
-sua armadura de espinhos, visto de lado, o que me parece mais logico.
-Na Fonte do Cabo sobre a inscripção está uma pedra esculpida que deve
-ser a representação mais antiga das armas da villa, e, se me não
-engano, quizeram ali representar a boca do ouriço maritimo, donde
-divergem séries de linhas formando cruz, e um lavor ponteado que allude
-aos espinhos, admittindo o engano ou convenção das quatro fachas
-divergentes que deveriam ser cinco se o canteiro fosse mais cauteloso.
-
- * * * * *
-
-_O primeiro foral da Ericeira._--Do primeiro foral da Ericeira
-guarda-se o autographo na Torre do Tombo; está publicado na integra
-no Port. Mon. Hist. na parte respectiva a foraes, pag. 620. E por
-esta razão não o transcrevo aqui. É da era 1267 que corresponde ao
-anno 1229. Foi concedido por D. Fernando mestre da ordem d’Aviz: _Ego
-frater F. magister Avis una cum omni meo conventu do atque concedo
-populatoribus de Eyrizeira..._ Note-se que a pronuncia local de hoje é
-Eiriceira embora toda a gente escreva Ericeira.
-
-Como todos os foraes das povoações da costa maritima este se refere a
-barcos, a maritimos e pescadores, á pescaria, e aos impostos especiaes
-do pescado: por exemplo aos pescadores do alto mar, e á _baleacion_,
-ou pesca da baleia, então commum a todo o mar português. Faz menção
-especial de congros, toninhas e golfinhos; e dos apparelhos de
-pesca, _bigeiro, udra et rete de costana_; do pescado fresco, recente
-e secco. No porto entravam mercadorias: _de tota merchandia que per
-mare ad portum venerit et voluerint vendere dent quarentena_. Havia
-revendedores de peixe: _de coloneiro qui comparar piscatum pro a
-revender det I denarium_.
-
-O mesmo imposto para o _bofon_, ou bufarinheiro.
-
-Á vista do foral a condição dos pescadores não tem variado do seculo
-XIII para cá. Os mesmos perigos, egual miseria, e a mesma incuria, a
-mesma falta de protecção.
-
- * * * * *
-
-Sentindo a brisa fortemente salgada, alargando o olhar pela magestosa
-amplidão do oceano, vem o desejo de saber alguma cousa do que se passa
-ahi, no meio aquatico, onde pullula a vida. O dr. Augusto Filippe
-Simões fez um livro bem interessante de vulgarisação scientifica com
-algumas observações pessoaes, as _Cartas da beira-mar_ (Coimbra, 1867).
-
-Simões era um sabio e um litterato erudito, escrevendo com muita
-consciencia. Em linguagem facil, corrente mas cuidada, descreve-nos o
-oceano, os seus problemas, a salsugem, os movimentos, as marés; e a
-vida que se agita n’essas aguas, a zoologia e a botanica marinhas.
-
-Um livro que recommendo para a temporada da Ericeira é o _Estado actual
-das pescas em Portugal_, pelo distincto official da armada, sr. A. A.
-Baldaque da Silva (Lisboa, 1892). Tem estampas coloridas representando
-peixes, crustaceos, molluscos, muitas gravuras de barcos e apparelhos
-de pesca; não olvidando a focinhada ou focinheira ericeirense, e a
-antiga rasca que passou á historia; descreve tambem a costa maritima,
-tão variada em aspectos e circumstancias.
-
-Recentemente vi um livro bem interessante, de sciencia moderna; é
-_L’Océan. Ses lois et ses problèmes_, por J. Thoulet (Paris, Hachette,
-1904).
-
-Thoulet é um oceanographo que estuda o mar e sabe expôr com clareza
-as muitas questões da sciencia do mar, a oceanographia, tão moderna e
-já tão vasta. A chimica do mar, a formação de sedimentos de origens
-varias, a temperatura e a pressão nos abysmos, a formação da vaga e a
-razão das marés, as correntes, a vida nas grandes profundidades quietas
-e sem luz, apparecem-nos tratadas em largos capitulos de leitura que
-prende a attenção, sem fatigar o espirito.
-
-No 4.ᵒ volume das _Maravilhas da natureza, segundo o plano de Brehm_,
-obra celebre, revista e ampliada na parte relativa a Portugal pelo sr.
-dr. Balthasar Osorio, sabio lente da Escola Polytechnica de Lisboa,
-trata-se de peixes, em leitura facil e agradavel.
-
-Como tambem desperta a attenção o aspecto raro das arribas, das suas
-curvaturas, fendas, aberturas, cavernas, onde apparecem rochas brancas,
-vermelhas, negras, esverdeadas, cinzentas, umas cheias de fosseis,
-outras sem vestigio de vida animal ou vegetal, eu lembro a leitura
-no vol. 2.ᵒ de _La face de la terre_ por Ed. Suess (trad. de E. de
-Margerie. Paris, 1900), do capitulo intitulado: _Os contornos do Oceano
-Atlantico_.
-
-
-Pelourinho
-
-O concelho da Ericeira foi extincto em 1855, e reunido a Mafra. Tinha o
-seu pelourinho.
-
-Certas pessoas praticas entenderam que não havendo concelho não era
-preciso o monumento municipal, e que os degráos de pedra eram bem bons;
-e aproveitaram os degráos lá para o que bem quizeram, e a columna
-partida, o capitel e o ornato superior foram enterrados. Isto foi
-por 1863. Agora (outubro de 1905), o dr. Eduardo Burnay, enthusiasta
-da branca villa, indagou o sitio onde ficaria o resto do pelourinho,
-mandou excavar, achou as pedras, e vae mandar reerguer a decorativa
-columna.
-
-Pela photographia que me mostrou creio que o symbolo municipal da
-Ericeira pertence ao genero do de Collares, ainda completo e aprumado,
-e do de Cintra ha muito desfeito, mas de que ha desenho cuidadoso.
-Sobre este caso do pelourinho de Cintra publicou recentemente o sr.
-Mena Junior uma _Noticia historica_, interessante, com estampas
-notaveis, e uma planta do Paço da villa, no _Boletim da Real Associação
-dos Archeologos Portugueses_.
-
-A columna do pelourinho da Ericeira tinha annel, a meio, como se vê no
-de Collares, e na estampa do de Cintra; o capitel e ornato superior são
-do mesmo desenho. Taes pelourinhos são do começo do seculo XVI, reinado
-de D. Manuel, e correspondem á grande reforma foraleira d’este monarcha.
-
- * * * * *
-
-A respeito da villa da Ericeira varios escriptos teem apparecido
-publicados, artigos de jornaes, ou revistas, ou capitulos de
-recordações.
-
-O sr. Eduardo da Rocha Dias no tomo 1.ᵒ e Addenda do seu valioso
-trabalho _Noticias archeologicas_, ao tratar da Ericeira, apresenta a
-bibliographia da interessante villa.
-
- * * * * *
-
-Grande serviço tem prestado á villa da Ericeira o sr. dr. Eduardo
-Burnay alcançando os meios precisos para a construcção da muralha
-de supporte na arriba do porto. Se esta obra tardasse haveria
-desmoronamento prejudicial á villa, á concha do porto, e á praia
-apertada onde labutam os pescadores. Actualmente ha tres armações de
-sardinha, empregando uns duzentos homens, e todo o trabalho se faz na
-breve praia onde ás vezes as companhas se embaraçam. Não está ainda
-terminada a obra, pouco falta ao que parece; o que está feito é já
-muito util.
-
-Muito melhorado tem sido ultimamente o caminho para a praia do sul, e,
-ao que ouvimos affirmar, vae tratar-se da rampa da praia do norte, que
-é muito linda tambem. Seria bom melhorar o caminho para Ribamar, que
-não offerece difficuldades, facilitando assim um bello passeio, util
-para os povos do sitio, e estabelecendo communicação facil e agradavel
-com a região dos pinhaes. A primeira parte da estrada de Mafra é de
-forte declive, uma ladeira de tres kilometros, incommoda para passeio.
-Assim como seria para desejar o arranjo do caminho para a Lapa da
-Serra, sitio pittoresco, accidentado, com arvoredo viçoso.
-
-Na Lapa da Serra tem-se desenvolvido nos ultimos annos a industria
-ceramica: fabrica-se louça vidrada com seus lavôres especiaes, ás vezes
-de phantastica ornamentação.
-
-Pinhaes, mais pinheiros, é que eu gostaria de vêr na moldura agreste da
-interessante villa.
-
- * * * * *
-
-O sr. Adolpho Loureiro, inspector geral de obras publicas, publicou
-recentemente o volume segundo da sua excellente e muito util obra: _Os
-portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes_.
-
-A pag. 303 começa a parte relativa ao porto da Ericeira, representado
-minuciosamente na estampa sexta do respectivo atlas.
-
-Segundo se vê do consciente trabalho do sr. Loureiro é para desejar:==a
-construcção de obras de drenagem dos terrenos, consolidação das ribas,
-conclusão das rampas tornando-as aptas para varar os barcos de pesca, e
-desobstrucção do porto, removendo-se as pedras soltas que se acham na
-area d’elle a menos de 1ᵐ,5 a 2ᵐ abaixo da baixa-mar, e, finalmente,
-estudar-se a possibilidade da construcção de um pequeno molhe para
-abrigo das embarcações de pesca, no caso de poder aproveitar-se
-qualquer restinga ou pedras que possam servir-lhe de apoio==.
-
-Parece facil a construcção de um pequeno molhe acostavel, que seria de
-grande vantagem para aquelles pobres pescadores.
-
-
-
-
-De Bemfica á quinta do Correio-Mór
-
-(1905)
-
-
-Sabe bem de vez em quando uma excursão fóra das estradas mui trilhadas,
-longe de caminhos de ferro e de electricos. Pelo meio dia cheguei a
-Bemfica, á cocheira do largo da Cruz da Era. Cocheira pacata, bom
-serviço e preço modico; arranjou-se um carrinho; e seguimos pela
-estrada do Poço do Chão, muito socegada, entre muros de quintas, sebes
-de caniços, e filas de oliveiras. Passa a quinta da Granja, a da
-Condessa de Carnide, a do Sarmento ou Bom Nome; deixa-se á esquerda
-a estrada da Correia; agora o antigo chafariz e o moderno lavadouro,
-ambos sem agua. Á nossa esquerda fica a egreja parochial de S. Lourenço
-de Carnide, muito caiada, veneravel pela sua idade; estamos no Alto do
-Poço, de linda vista campestre. Estes sitios de Carnide e Luz são dos
-melhores dos arrabaldes da capital, mas infelizmente os senhores da
-governança não lhes teem dado attenção. Muitas vezes nem agua teem os
-pacificos e modestos moradores. A hygiene, a limpeza publica é quasi
-nulla. Facilidade de communicações não existe. Emfim carencia completa
-de melhoramentos municipaes. Bons ares e contentem-se. Eis agora a
-egreja da Luz, isto é, a monumental capella-mór e cruzeiro, porque o
-corpo da egreja arruinou-se pelo terremoto de 1755.
-
-Mas o que resta pela sua architectura e decoração, principalmente pelas
-pinturas, é uma joia, essa fundação da inclita infanta D. Maria. Á
-nossa direita o grande edificio do Collegio Militar. Estamos no amplo
-largo da Luz, com suas alamedas que mereciam mais attenção e cuidado;
-a nascente o grande palacio e quinta de Oliveira, vistosa construcção,
-e entramos na estrada do Paço do Lumiar. Ha um lanço entre muros e
-vallados, logo a estrada alarga: boas vivendas antigas e modernas.
-
-Um modesto terreiro; a meio a egreja ou antes ermida de S. Sebastião
-com o seu portal manuelino. Na visinhança boas casas á antiga, a da
-quinta do Paço por exemplo. Segue a muito nomeada quinta do sr. duque
-de Palmella, principesca vivenda com seus jardins em socalcos, fontes
-e lagos, arvoredos antigos, raros exemplares botanicos, e grande
-residencia. Fica-nos á direita a egreja parochial de S. João Baptista
-do Lumiar, de fundação muito remota. Passa a rua do Prior, a calçada de
-Carriche e estamos no campo. Estrada larga, aqui em bom estado, ali em
-máo, já uma cova, agora um pedregulho, como todas as estradas do paiz,
-onde todos querem estradas e ninguem trata de as conservar. Que eu
-tenho grande esperança nos automoveis; os excursionistas de automovel
-tanto hão de soffrer e gastar que levantarão celeuma provocando
-reparações indispensaveis.
-
-Em alguns pontos a estrada está bem arborisada. Estamos na Povoa
-de Santo Adrião: reparei em certo nicho e poço que vi á direita, e
-numa pedra lavrada; logo fiz tenção de parar á volta para exame mais
-demorado. Dilata-se a varzea de Friellas, bom torrão fecundo. O saloio
-é bom agricultor, eximio no hortejo. Aqui, além de trigo e milho,
-ha grande cultura de batata e ainda mais da hygienica cebola. Pelos
-telhados amarellecem enfileiradas as corpulentas aboboras machadas.
-Avisto algumas casas boas, antigas, agora em ruina.
-
-Evidentemente por estes sitios em tempos idos residiram pessoas
-abastadas; agora quem tem meios vae para a cidade para gosar e não
-trabalhar, nem vigiar. Estamos em Loures, eis a egreja matriz, grande
-templo, de fundação mui velha e reconstrucção moderna; contiguo o
-antigo cemiterio num abandono vergonhoso, servindo para estendal de
-roupas. Mais um pouco de estrada e topa-se á esquerda uma avenida bem
-tratada, recatada, com suas filas de oliveiras; entramos na quinta do
-Correio-Mór. Ainda uns minutos e chega-se a um portico monumental,
-elegante e bem construido, encimado pelo brasão dos _Mattas_, e
-entramos em bello páteo, frente e alas do palacio formando os tres
-lados.
-
-O palacio está em fundo valle apertado entre altos montes vestidos
-de arvoredos e vinhas até meia encosta; a região inferior povoada de
-laranjaes, agora um pouco doentes, e de hortejo viçoso. Provavelmente
-edificaram o palacio naquelle covão por causa das aguas; e de facto
-ha agua corrente em muitos pontos da grande residencia. Um vestibulo
-amplissimo; começa a escadaria larga, suave, magistralmente construida;
-no primeiro patamar uma fonte artistica, grande taça de um só bloco de
-marmore, estatuas, e um lindo medalhão com busto, talvez do _Matta_
-fundador do palacio. Está bem conservado o edificio; repararam ainda ha
-poucos annos os telhados; não chove agora nas salas; mas antes houve
-abandono e perderam-se ou estragaram-se alguns trabalhos preciosos.
-
-No Correio-Mór a construcção é boa a valer, a architectura é elegante;
-mas ha ainda a notar nos grandes salões, nas salas e gabinetes, a
-variedade e o gosto da ornamentação.
-
-Empregaram-se ali artistas de primeira ordem no seu tempo. Houve
-todavia alguns concertos e enxertos de máo gosto e inferior qualidade.
-As salas da musica, da dança, a dos apostolos, a capella, o grande
-salão de jantar, teem azulejos, estuques, pinturas, e obras de talha
-de merecimento. A cosinha é monumental, com as suas chaminés, pias
-de lavagem, grandes mesas de marmore, e azulejos decorativos muito
-especiaes. O conjuncto é uma raridade. No jardim tambem ha obras de
-arte, e o enorme tanque da horta, com sua guarnição de azulejos, merece
-ser visto.
-
-Este palacio tem um historia. Luiz Gomes da Matta, homem de fartos
-haveres, foi nobilitado por Filippe II que lhe deu brazão:==em campo de
-ouro tres mattas verdes em roquette sobre penhascos verdes; timbre uma
-das mattas.==
-
-Este Matta comprou tambem o fôro de fidalgo e o officio de correio-mór,
-e arvorou a quinta da Matta em solar. Chamaram-lhe depois a quinta da
-Matta do Correio-Mór. Hoje toda a gente d’aquelles sitios lhe chama o
-_Correio-Mór_. A quinta e palacio pertenceram á Casa Penafiel até ha
-poucos annos, e actualmente ao sr. Canha, negociante de Lisboa. Merece
-a pena um passeio a essa antiga residencia.
-
-
-Azulejos
-
-O alto rodapé da sala de jantar é de azulejos, azul em fundo branco,
-em grandes e pequenas composições conforme os espaços; é trabalho,
-e grande, feito propositalmente para ali, para aquelles vãos de
-parede, bem composto e executado. Uma serie de quadros representa,
-parallelamente, as phases da vida humana e a historia de um navio.
-Aqui se vê a criança de mama, ao colo da mãe, e o berço, as graciosas
-pequenas roupas; logo as scenas da primeira infancia, as ingenuas
-brincadeiras. Neste quadro rapazotes bem postos aprendem os exercicios
-da caça, noutro representa-se-nos uma aula, os meninos attentos á
-lição do mestre. Vae seguindo a construcção do navio, ali o fabrico do
-cavername, depois o assentar do forro, o trabalho do calafate; logo o
-erguer dos mastros. E toca a viajar sobre as aguas do mar, para a India
-ou para o Brazil; lá está o navio com o velame ao vento, prestes a
-sahir do porto.
-
-Temos agora um casamento, e no quadro seguinte uma profissão em casa
-religiosa. Era o caminho necessario em familias antigas, de bens
-vinculados; o excesso de filhos trasbordava para as armas, ou para o
-claustro; meninas sem dote raras casavam, iam para freiras, e em certos
-conventos passava-se muito bem a vida. Em varios quadros scenas da vida
-caseira; o concerto musical; a dança animada; os prazeres campestres de
-boa sociedade.
-
-Um naufragio agora, o navio torturado, pannos rotos, mastros partidos
-no vendaval furioso. Muitas outras scenas, bem desenhadas e compostas,
-com sufficiente minucia em trajos e utensilios, mesmo em attitudes, se
-nos deparam na interessante serie de azulejos.
-
-Noutra sala os azulejos, em rodapé, representam as quatro estações.
-Na sala chamada dos Apostolos ha caçadas de montaria, do veado, do
-javali, do leão. Esta sala tem um esplendido tecto de madeira, em
-variados caixotões, formando grandes molduras com obra de entalhado,
-pintado e dourado, frisos de flores, e os lisos pintados a oleo
-representando scenas mythologicas.
-
-Na capella os azulejos representam scenas de devoção; eremitas e frades
-oram e meditam; num d’esses quadros surge um anão risonho. No jardim vi
-tambem uma estatua de anão, bem executada.
-
-Na cosinha, tambem ha azulejos a notar na cosinha, aparecem as peças
-culinarias, coelhos, perdizes, presuntos, chouriços, hortaliças. A
-cosinha do Correio-Mór é magnifico exemplar completo, com as suas
-grandes chaminés, grandes mesas de marmore, e agua corrente em
-abundancia.
-
-Em rodapés de ante-salas, em alegretes de jardins, encontram-se
-frequentemente as scenas da comedia italiana, as serenatas, os jogos,
-casos de amores e ciumes, brigas de espadachins, cortezias de tafues,
-as varias combinações de Pulcinello, Arlechino e Scaramuccia, de
-Fracasso e Tagliacantoni, com Lucrecia, Colombina e a Signora Lavinia;
-não faltam os capitães Ceremonia e Cocodrillo, nem os casos comicos de
-medicos e barbeiros.
-
-Domina sempre n’esta alegre ornamentação o typo italiano, o que não se
-estranha attendendo aos muitos artistas de Italia que vieram a Portugal
-no seculo XVIII, e á tendencia dos artistas portugueses a irem a Roma
-procurar a perfeição artistica. Mas ha excepções; uma bem saliente
-na quinta dos marquezes de Fronteira em S. Domingos de Bemfica; ha
-ahi azulejos hespanhoes e hollandezes de merecimento e excellente
-conservação.
-
-
-
-
-O Matta, Correio-Mór
-
-
-Foi Luiz Gomes da Matta o instituidor do vinculo ou morgado da quinta
-da Matta, não me parece todavia que elle fizesse o grande palacio. Seu
-filho e successor Antonio Gomes da Matta fez grande testamento que por
-quaesquer questões foi impresso:==Testamento que fez Antonio Gomes
-da Matta, correyo mór que foi deste Reyno de Portugal. Lisboa, off.
-Craesbeeckiana, 1652, in-4.ᵒ, 136 pag.==
-
-A pag. 62 do testamento, mencionando varias propriedades, diz
-simplesmente==quinta da Matta com suas terras e azenha e mais pertenças
-propriedade que Luiz Gomes da Matta, meu pae, deixou vinculada.==
-
-E nada mais; não falla do palacio, das obras d’arte, etc.; quando é
-minucioso relativamente a outras cousas menores.
-
-É testamento interessante; o testador era homem piedoso, devoto, muito
-rico.
-
-Possuia grandes predios em Lisboa, quintas na Luz, em Loures, em
-Almada, grandes herdades no Alemtejo, no termo de Elvas. Grande
-capitalista, emprestava dinheiro sobre penhores.
-
-A sua casa de morada em Lisboa estava posta com fausto; menciona os
-pannos de raz, e brocateis que forravam as paredes das salas; tinha
-joias de grande valor, e enorme quantidade de pratas.
-
-Fazia festas religiosas; dava cera, azeite, dinheiro para muitas
-imagens; no testamento contempla dezenas de corporações religiosas, de
-parentes, de creados, e de empregados do correio, amigos e compadres.
-Mas não falla de grande residencia na Matta. Por esta razão, e pelo
-edificio que vejo agora, creio que o palacio actual foi erguido em
-tempo de D. João V, soffrendo algumas modificações em época mais
-recente.
-
-Mas temos em Volkmar Machado um dado importante; ao tratar do conhecido
-pintor José da Costa Negreiros, conta que foi discipulo do famoso André
-Gonçalves==cujo estylo seguia com mais sisudeza mas com menos agrado==,
-e que fez alguns tectos em Loures, na quinta do Correio-Mór.
-
-Negreiros morreu em 1759.
-
-É possivel que as pinturas da sala dos Apostolos sejam, em parte, de
-Negreiros; outras serão de seus discipulos Bruno José do Valle, ou
-Simão Baptista; mas as decorações de outras salas, e especialmente os
-grandes trabalhos a estuque, devem ser da segunda metade, adiantada, do
-seculo XVIII, pois que a furia da decoração a estuque foi posterior ao
-terremoto de 1755.
-
-
-
-
-O officio de Correio-Mór
-
-
-Parece que antes de 1520 não havia em Portugal serviço de correio
-organisado regularmente.
-
-Mandavam-se proprios, e dispunham-se postas quando assim era preciso.
-Nos caminhos de maior transito, em intervallos de 3 a 4 leguas, as
-estalagens tinham cavallos para muda, que alugavam.
-
-Em 1520 el-rei D. Manuel criou o officio de correio-mór; foi Luiz
-Homem, ao que dizem, o primeiro a exercer o cargo.
-
-Em tempo de D. João III appareceu a primeira lei ou regimento postal.
-
-O segundo correio-mór chamava-se Luiz Affonso; seu genro Francisco
-Coelho, foi o terceiro.
-
-O cargo conservou-se na familia até 1606 em que falleceu Manuel Gouvêa,
-o quarto no cargo.
-
-Então Filippe II mandou vender o officio; que foi comprado por 70:000
-cruzados, por Luiz Gomes da Matta, em 19 de julho de 1606.
-
-O correio-mór tinha a seu serviço estafetes, mestres e creados
-de posta, e varios assistentes. O serviço do correio foi sempre
-augmentando, sem alteração fundamental do regime até 1852, embora este
-ramo pertencesse ao Estado desde 1797. Neste anno, em alvará de 16 de
-março, D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi encarregado de tratar com o
-Correio-Mór a cedencia do officio.
-
-Manuel José da Maternidade Matta de Sousa Coutinho, o ultimo
-correio-mór, recebeu em indemnisação pela cedencia do officio o titulo
-de conde em tres vidas, a renda annual de 40:000 cruzados, pensões
-vitalicias a diversas pessoas, cuja somma andava por 400:000 cruzados,
-e um ou dois postos no exercito.
-
-Foi este o primeiro conde de Penafiel.
-
-O segundo conde e primeiro marquez de Penafiel foi Antonio José da
-Serra Gomes pelo seu casamento, em 1861, com a segunda condessa desse
-titulo.
-
-Pelas quantias indicadas se vê o augmento de importancia do correio
-entre 1606 e 1797, ainda que nessa época pequeno progresso tivera a
-viação publica.
-
-
-
-
-Estuques
-
-
-O uso do estuque é muito antigo; ha exemplos no velho Egypto, na
-remota Assyria; os romanos o empregaram vulgarmente; em Pompeia ha
-tectos, frisos, cornijas de gesso. Bysantinos e arabes usaram do
-estuque, principalmente os arabes de Hespanha; os estuques pintados
-da Alhambra são admirados no engenho da decoração geometrica, no
-effeito da combinação de tons. Durante largo tempo esqueceu o estuque,
-para reviver no meiado do seculo XVI. Mas então renasceu e logo se
-desenvolveu em processo e applicação; fizeram-se frescos sobre estuque
-de gesso, modificaram-se as pastas, formaram-se grandes composições em
-alto relevo.
-
-Em Portugal ha noticia de estuques no seculo XVII, de pouca importancia.
-
-Poucos annos antes do grande terremoto de 1755 appareceu em Lisboa um
-artista italiano de grandes aptidões, João Grossi, que iniciou grandes
-trabalhos neste genero. Outro estucador, primeiramente simples ajudante
-de Grossi, Gommassa, se tornou notavel.
-
-O marquez de Pombal empregou-os nas suas propriedades. O terremoto
-tornou necessarios trabalhos rapidos e os estucadores prosperaram; e
-vieram mais estucadores italianos, Chantoforo, Agostinho de Quadri, que
-introduziram novos processos. Nas Janellas Verdes, no palacio pombalino
-da rua Formosa, na egreja dos Paulistas, etc., ha trabalhos d’estes
-italianos.
-
-O marquez de Pombal chegou mesmo a fundar uma escola de estucadores, de
-que foi mestre o Grossi (1766).
-
-Trabalhou-se immenso em estuque, bem e mal, com arte ou sem ella; João
-Paulo da Silva trabalhou no palacio na quinta das Laranjeiras (por
-1798), assim como Felix Salla, outro italiano discipulo do celebre
-milanez Albertoli, que fez reviver a grande ornamentação dos gregos e
-do imperador Augusto.
-
-É certo que por este tempo estucadores portuguezes foram trabalhar a
-Hespanha, tanto se tinha aqui progredido neste ramo.
-
-Por 1805 entrou em Lisboa um estucador suisso de grande habilidade,
-Vicente Tacquet que trabalhou com Francisco Espaventa e outros.
-
-Vieram os desastres da guerra, e alguns dos melhores artistas
-refugiaram-se no norte do paiz, no Porto, e em Vianna do Castello,
-Caminha, Affife que nos tempos modernos, nos ultimos 40 annos, tem
-produzido bons artistas estucadores.
-
-De Rodrigues Pitta são os tectos do palacio do marquez de Vianna (1846)
-ao Rato, hoje propriedade do sr. Marquez da Praia.
-
-Em 1855 e 1856 ornamentou o salão de baile do palacio da Junqueira
-(actual palacio Burnay) e dois salões do palacio Costa Lobo, no campo
-de Sant’Anna.
-
-Deixou trabalhos de grande folego nos palacios de José Maria Eugenio
-d’Almeida, a S. Sebastião da Pedreira, Gandarinha que tem magnificas
-escaiolas na galeria, e no do Marquez de Penafiel.
-
-A esplendida sala do conselho de Ministros, no Ministerio do Reino, tem
-o tecto muito trabalhado, não de grande effeito.
-
-Cinatti introduziu em Lisboa um artista, seu parente, Joanni, notavel
-imitador de marmores, e bom artista em estuque _lucido_.
-
-Nos ultimos vinte annos a mania pelo estuque, especialmente pelas
-imitações de marmores, tem sido, a meu vêr, exaggerada.
-
-E, o que é grave, na maioria esses trabalhos são mal dirigidos e
-executados. Tem sido um desastre.
-
-Ha estuques carregados de relevos que em tres ou quatro annos estão
-fendidos e estragados.
-
-Imitações de marmores, quasi tão caras como os modelos, estaladas em
-poucos mezes. Mas a mania pelos estuques não é só na capital; ao norte
-do paiz ainda foi, e é, mais intensa.
-
-No Porto ha estuques antigos, dos melhores, no palacio dos Carrancas, e
-modernos na Bolsa.
-
-No Minho citam-se como notaveis os do palacio da Brejoeira, obra dos
-Alves, de Fafe, por 1850.
-
-Em Evora temos os mais recentes no theatro Garcia de Resende, fino
-trabalho do Meira.
-
-Será rara a egreja da Provincia, onde tenha havido reparos nos ultimos
-annos, que não possua amostras de estuque moderno, de facil execução e
-de mau effeito passado o lustro dos primeiros mezes.
-
-Nas salas do Correio-Mór ha tectos estucados a baixo relevo muito
-distinctos e paredes ornamentadas a esgrafito de algum effeito.
-
-Volkmar Machado deixou-nos algumas noticias sobre estucadores, que
-Liberato Telles utilisou no seu trabalho publicado no _Boletim da
-Associação dos Conductores de Obras Publicas_. Vol. IV. 1900.
-
-
-
-
-Egreja de S. Lourenço de Carnide
-
-
-O logar de Carnide, que faz parte agora da capital, é muito antigo;
-existia já povoado e cultivado no meiado do seculo XIII.
-
-O mosteiro de S. Vicente possuia aqui uma vinha e uma herdade, como se
-lê nas inquirições do reinado de D. Affonso III. Por esse documento,
-importante para a historia de Lisboa e seus termos, se vê que em
-tão remota época já nestes logares de Carnide, Charneca, Queluz,
-Falagueira, Odivellas, Palma e Telheiras havia culturas, vinhas e
-povoados que contribuiam para o rei, para as ordens militares, e para
-os grandes mosteiros.
-
-Em 1342, o bispo de Lisboa, D. João, mandou edificar a egreja á honra
-de S. Lourenço, por Pedro Sanches, chantre da sua sé, e a deu a seu
-capellão João Dor. Era já egreja parochial no seculo XIV.
-
-Em meio de amplo terreiro, murado, orlado de oliveiras, com larga vista
-de campos e collinas ergue-se a egreja com o seu campanario, em linhas
-de singela construcção. A orientação e disposição da egreja é antiga,
-todavia pouco se vê do seu estado primitivo.
-
-Está bem reparada, de ha poucos annos.
-
-É um templo alegre, com as suas obras de talha dourada, as paredes
-forradas com azulejos, de azul sobre branco, em grandes quadros,
-allusivos á vida de S. Lourenço.
-
-Tem cinco altares, o maior, o da Senhora do Rosario, do Crucificado, de
-S. Miguel, e o de Jesus-Maria-José.
-
-No altar-mór ha um quadro bom, o _lavapedes_, mal restaurado,
-infelizmente; algumas campas com lettreiros no chão da capella-mór;
-duas pias d’agua benta que são dois capiteis do seculo XIV, escavados;
-na sacristia um arcaz de boa madeira, com metaes bem cinzelados.
-
-O terreiro ao redor da egreja era d’antes o cemiterio; campas e ossadas
-foram removidas para o cemiterio dos Arneiros (Bemfica). Ficou apenas
-uma grande pedra, com inscripção latina, que era o tumulo de José João
-de Pinna de Soveral e Barbuda, fallecido em 1710.
-
-Para o novo cemiterio de Bemfica foi removida a campa de D. Anna Maria
-Guido, marqueza de Ravara, fallecida em 1752.
-
-No alto de um cunhal, do lado do sul, está uma pedra com lettreiro em
-caracteres gothicos (seculo XV, talvez) que diz:--Esta sepultura he de
-Luis d’Abreu e de todos seus herdeiros.
-
-Na capella-mór ha bastantes campas.
-
---Esta sepultura é de Joam da Costa de Mendonça e de quem nela se
-quizer enterrar.
-
---Sepultura de Francisco Jorze e de sua molher e de seus herdeiros... de
-1569.
-
---Sepultura de George Pires e de sua molher e herdeiros. 1616.
-
---Sepultura de Jozeph da Costa e de sua mulher Catharina da Costa a
-coal faleceo a 28 doutubro de 1712 e pera todos os seus herdeiros.
-
---Sepultura de Guilherme Street Arriaga Brum da Silveira e Cunha e
-familia. 28 de outubro de 1826. P. N. A. M.
-
---Esta sepultura mandou fazer João Correa pera se enterrar nella e seus
-herdeiros.
-
---Sepultura de Antonio de Almeida e seus herdeiros faleceu a 14 de mayo
-de 1601 anos.
-
---Sepultura de Luiz Ramalho Pre... e de sua mulher Francisca de Almada
-Tiba e de seus herdeiros faleceu a X d. de junho de 1637.
-
---Sepultura de Bastião criado de S. M. e de seu herdeiro. Faleceo a 5
-doutubro de 1796.
-
---Sepultura do P.ᵉ H.ᵐᵒ Machado cura que foi nesta igreja muitos annos
-e de seu herdeiro.
-
---Sepultura perpetua de Simão Moreira e sua molher Domingas Francisca e
-de seus herdeiros a qual lhe mandou pôr seu filho o P.ᵒ Luiz Moreira.
-1678.
-
---Sepultura de Lianor Jorze molher que foi de Luiz Glz d’Oliveira
-provedor dos contos do reino faleceo a 21 doutubro de 1567, e de seus
-herdeiros.
-
-Transcrevi estes lettreiros porque são ineditos.
-
-Na frontaria da egreja está uma inscripção referente á fundação; e uma
-pedra com escudo d’armas que não sei explicar; não me parece portuguez,
-nem hespanhol esse curioso brazão em que se vê uma perna com bota, por
-baixo de uma estrella.
-
-É bem interessante a modesta egreja, agora parochia da capital.
-
-
-Luz
-
-Da egreja de Nossa Senhora da Luz resta-nos o cruzeiro, e a
-capella-mór; o corpo da egreja abateu por occasião do terremoto de
-1755. É da fundação da infanta D. Maria, senhora opulenta e de alta
-cultura d’espirito. Nesta egreja ha obras d’arte notaveis em esculptura
-de madeira e pedra, em architectura, e em pintura. A capella-mór tem 12
-x 8 metros; o cruzeiro 21 x 10.
-
-A capella-mór é ampla, alta, coberta de abobada revestida, assim como
-as paredes, de marmores diversos formando quadrellas; é o conhecido
-estylo classico dominante no findar do seculo XVI. Nichos com estatuas
-animam as grandes paredes. Na parede que olha ao sul estão rasgadas
-janellas que dão bastante claridade.
-
-O altar-mór está elevado, sobre o pavimento da capella; quatro degraus
-se sobem para lá chegar.
-
-Além do altar-mór abre-se um grande arco que abriga o sacrario, soberba
-obra d’arte muito elegante, em madeira entalhada e dourada; atraz fica
-o vasto côro, agora sacristia, no mesmo nivel da egreja. Proximo do
-grande altar, no chão, ha uma abertura circular que diz para a fonte de
-agua milagrosa.
-
-A meio da capella-mór o singelo tumulo da fundadora.
-
-Na capella-mór ha duas capellas lateraes; outras duas no cruzeiro.
-
-Empregaram na construcção marmores branco e vermelho, servindo-se da
-pedra d’Arrabida na ornamentação; nos frisos e molduras sobresahem
-quadrados, losangos, ellipses feitos n’essa pedra, bem trabalhada e
-polida. A pedra vermelha fórma o fundo, a branca a parte saliente e
-ornamental.
-
-Nos grandes nichos da capella-mór estão dezesete estatuas em marmore:
-Nossa Senhora com o Menino de Jesus, S. Thomé, S. André, S. João, S.
-Lucas, S. Matheus, S. Marcos, S. Simão, S. Mathias; estas á direita,
-olhando para o altar-mór; á esquerda, S. Filippe, S. Thiago Maior, S.
-Pedro, S. Judas Thadeu, S. Thiago Menor e S. Bartholomeu. As estatuas
-da Virgem e dos Evangelistas são maiores.
-
-Estas estatuas são em marmore branco d’Estremoz, lindo marmore; o
-trabalho é muito pegado, os artistas não se atreveram a desligar, a
-destacar braços ou mãos.
-
-No exterior do edificio, lado sul, ha outra estatua de Nossa Senhora
-com o Menino e, ainda uma terceira na frontaria do Collegio Militar;
-todas da mesma época e do mesmo estylo acanhado. São todavia de bom
-trabalho, e representam excellentemente o estado da estatuaria em
-Portugal naquelle tempo.
-
-No altar-mór admiramos alguns baixos relevos em fino jaspe, em seis
-pequenas pilastras; são figuras symbolicas da Fé, Justiça, Fortaleza,
-etc.
-
-Sobre a figura da Fortaleza ha um medalhão com Hercules, o leão e o
-centauro finamente executado.
-
-Uma das figuras é a Astronomia, outra a Medicina. Nas pilastras que
-formam as esquinas do altar, as faces lateraes mostram fructas e
-flores, escudos e peças d’armadura. Estes bellos baixos relevos são
-de pura renascença, d’um estylo muito anterior ao frio classicismo da
-capella-mór.
-
-Alguns dos symbolos destoam da ideia christã, parecem deslocados na
-ornamentação d’um altar-mór. É possivel que sejam peças destinadas
-a outra obra d’arte, que foram aqui aproveitadas. Nas duas capellas
-lateraes do cruzeiro de Santa Maria de Belem (Jeronymos) ha uns
-lindos baixos relevos nos altares, pouco vistos, que passam mesmo
-despercebidos porque teem luz escassa, que, me parece, se relacionam
-com estes da Luz na qualidade da pedra, e no estylo do trabalho. E no
-portico do poente, nos Jeronymos, superiormente, ha duas pilastras que
-dizem com estas da Luz[1].
-
-[1] Devemos lembrar que Jeronymo de Ruão, architecto da Luz, tambem o
-foi da capella-mór dos Jeronymos
-
-Na alta parede da frente da capella-mór ha oito quadros em disposição
-symetrica; o maior occupa o centro, é Nossa Senhora da Luz com o
-Menino, que apparecem ao pobre Pedro Martins; o milagre que deu origem
-á fundação da ermida primitiva.
-
-Este quadro está assignado: _Franciscus Venegas, Regius pictor
-faciebat_.
-
-Sobre este quadro está outro painel de moldura circular, que representa
-a Coroação da Virgem; está tambem assignado: _F. Venegas. f._ Como
-estes dois quadros estão bastante altos as assignaturas não se
-descobrem á primeira vista, mas é facil a leitura com um binoculo
-regular.
-
-Á esquerda da Coroação está a Adoração dos Reis, á direita a
-Apresentação no Templo, em molduras ellipticas; não lhes descubro
-assignatura. Aos lados do grande quadro do milagre de Pedro Martins,
-está a Visitação á esquerda, e á direita a Adoração dos pastores; não
-lhes vejo assignatura; por baixo á esquerda Nossa Senhora e S. Joaquim,
-á direita a Annunciação, este assignado: _F. Venegas f._
-
-Os paineis não assignados podem ser do mesmo artista _Venegas_; são
-pinturas em madeira, bem desenhadas e pintadas, em boa conservação. Á
-primeira vista estas pinturas destoam, divergem entre si; a meu vêr
-porque o pintor, que era excellente executante, não tratou de inventar,
-contentando-se em copiar, ou quasi, os bons quadros que conhecia.
-
-Assim este quadro recorda Raphael, outro o Sarto, aquelle o Parmesão;
-na Coroação da Virgem, singelo grupo em fundo dourado, parece vêr-se
-a reproducção de quadro muito antigo de um _primitivo_; na grande
-composição central lembra logo a Transfiguração de Raphael; na
-Annunciação, que tem grande vigor de colorido, e luz intensa de grande
-effeito, recorda o Mazuoli. Isto é, este Venegas, excellente pintor,
-está completamente dominado pela escola italiana.
-
-Na capella da esquerda está o quadro da Circumcisão. O fundo é
-formado por apparatoso edificio do renascimento. A figura da Virgem é
-admiravel; á esquerda, a Caridade, mulher com duas creanças, de bom
-effeito; á direita, no fundo escuro, a Humildade. No primeiro plano
-vê-se um tapete persa e um cãosinho felpudo, de luxo, pintado com muito
-cuidado.
-
-Na capella á direita a Sacra Familia, Anjos coroando: fundos claros,
-edificio do renascimento em ruina. Detalhes minuciosos.
-
-O trabalho d’esculptura em madeira dourada que reveste a grande parede
-da capella-mór faz bom effeito; é desegual, talvez em parte material
-aproveitado para encher o vão. Mas o sacrario é uma peça de grande
-elegancia; renascença classica de cuidadosa execução.
-
-Na capella esquerda do cruzeiro está um quadro notabilissimo. S. Bento
-dá a regra aos seus monges. No primeiro plano á esquerda el-rei D.
-Manuel, á direita a infanta D. Maria. Um fidalgo e diversos monges
-formam grupo atraz da figura do rei, uma dama e muitas freiras estão
-depois da infanta. Todas as figuras estendem o braço direito, a palma
-da mão para cima como signal de acceitação da regra. O pintor para
-evitar monotonia variou muito as posições dos dedos; foi um verdadeiro
-esforço, um trabalho habilidoso e paciente o desenho de tantas mãos;
-a mão fina e lisa das damas novas, a nodosa e enrugada das velhas,
-a robusta e a gorducha dos fortes monges. D. Manuel tem o collar de
-Christo. A infanta veste com fausto; vestido de tissu lavrado, apertado
-na frente com laços de fitas com agulhetas; joias com pedras preciosas,
-gorgeira de fina renda, gola muito alta, collar com fita pendente de
-ouro e pedras. O lindo rosto juvenil da dama de côrte, vestida mais
-modestamente, pintado n’um tom menos brilhante, succede muito bem á
-magestosa grande dama, e prepara para o aspecto ascetico do grupo
-de freiras. Tanto estas como os frades teem phisionomias estudadas;
-são retratos. Por isto este painel tem o duplo valor de obra d’arte,
-e de documento historico, dando-nos ainda preciosos elementos de
-indumentaria. Ha outros retratos da infanta; e o busto de prata que se
-conserva em Santa Engracia (antiga egreja dos Barbadinhos) harmonisa
-com este em aspecto e vestuario.
-
-As grades da capella-mór e das outras capellas são em pau santo com
-torcidos.
-
-No cruzeiro á direita fica outro altar. É a capella do Senhor dos
-Afflictos; é a imagem de Jesus Crucificado, esculptura em madeira de
-boa execução, corpo robusto com anatomia estudada. Sob a imagem, n’um
-friso, ha duas taboas pintadas que merecem attenção. Em uma Santo
-Antonio e S. João Baptista; na outra as santas Agueda e Luzia, com
-os seus emblemas. São pinturas talvez do começo do seculo XVI alli
-applicadas.
-
-No cruzeiro, á direita, uma porta singela dá para uma pequenina
-capella, agora sem culto; construcção do começo do seculo XVII. Tem
-rodapé de azulejos, altar e chão de boa pedra. Está aqui um tumulo com
-escudo de armas sem lettreiro; outro com brazão e a seguinte legenda:
-
---Aqui está sepultado o religiosiss.ᵒ varão da ordem de Chr.ᵒ D. F.
-Martinho de Ulhoa bispo que foi de S. Thomé, Congo e Angola juntamente
-que mandou fazer esta capella em a qual se lhe diz missa quotidiana
-falleceo a 8 d’agosto de 1606.--
-
-Guarda-se na sacristia (antigo côro) um grande retabulo que servia
-de tapar o vão do arco da capella-mór. Representa o milagre de Nossa
-Senhora a Pedro Martins. É fraca pintura. Está assignado e datado:
-_Anno de 1714. Henrique Ferreira fez_.
-
-Sobre o altar da sacristia está a imagem de Nossa Senhora dos Remedios.
-
-É esculpida em madeira, e por nesta ter dado o caruncho a vestiram de
-seda para occultar as lesões. Merece toda a attenção. É pintada e
-dourada; luxuoso vestido rodado de mangas perdidas, fita de joias em
-relevo com imitação de pedras finas. No vestido o artista imitou rico
-tissu floreado.
-
-O vestuario d’esta imagem recorda o do retrato da infanta. Deve ser
-esculptura do fim do seculo XVI.
-
-Da mesma época deve ser um grande frontal com o brazão da infanta
-bordado no centro e aos lados; tem fachas de velludo vermelho com
-bordado alto a ouro e prata, sendo os vãos ou entrefachas de seda
-branca.
-
- * * * * *
-
-Junto do altar-mór a abertura do poço ou fonte da agua milagrosa, um
-simples bocal raso com tampa de madeira.
-
-A fonte é bem curiosa. A entrada deita para um quintal contiguo.
-Descemos a escada e na parede vemos alguns azulejos antigos, mouriscos,
-de fino esmalte e relevos. Um portico em estylo manuelino dá para o
-espaço onde nasce a agua; uma abobada forrada de azulejos brancos com
-estrellas azues; outros revestem os rodapés e paredes, em pequenos
-quadros formados de quatro azulejos, de diversos typos, alguns raros. O
-portico tem columnas torcidas e no intercolumnio uma facha com romans.
-
-
-Os pintores da Luz
-
-Filippe I (II de Hespanha) n’uma carta de 14 de março de 1583 chama a
-Francisco Venegas, _meu pintor_.
-
- (Sousa Viterbo, _Noticia de alguns pintores_,
- Lisboa, 1903, pag. 153).
-
-D. Sebastião, em alvará de 6 de maio de 1577, diz: _Diogo Teixeira hum
-dos melhores pintores de imaginarya dolio que ha nestes reynos_.
-
- (Ibidem, pag. 142).
-
-Na collecção de desenhos expostos no Museu das Janellas Verdes, os n.ᵒˢ
-307 e 308 parecem-me representar as duas figuras que estão em baixo
-relevo no altar-mór da Luz.
-
-O desenho n.ᵒ 346 (Museu das Janellas Verdes) é de Venegas; uma rubrica
-indica que é o projecto de um quadro para S. Vicente de Fóra, e que se
-executou uma réplica, menor, para S. Domingos de Setubal.
-
-A collecção de desenhos do Museu das Janellas Verdes é muito
-importante, e vista com attenção dá elementos unicos para a historia
-da arte em Portugal. Ha mais collecções de desenhos em Portugal em
-estabelecimentos publicos, e na posse de particulares, que insta tornar
-conhecidas.
-
-Creio que o n.ᵒ 268 é o esquisso do quadro da capella lateral, a
-Circumcisão; architectura á romana; o sacerdote no faldistorio, etc.,
-nem falta o cãosinho felpudo.
-
- * * * * *
-
-Jeronymo de Ruão foi architecto da infanta D. Maria; entre outras obras
-fez a capella da Luz e a capella-mór dos Jeronymos.
-
-Nos dois capitulos _O lindo sitio de Carnide_ e _Noticias de Carnide_
-dei outras noticias e publiquei lettreiros d’esta egreja da Luz, que
-julgo escusado repetir agora.
-
-Para a historia da inclita infanta D. Maria é fundamental a--_Vida de
-la serenissima infanta dona Maria_, por fr. Miguel Pacheco (Lisboa,
-1675).--Modernamente appareceu á luz um trabalho a respeito da infanta
-e de suas damas pela Sr.ᵃ D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos.
-Escusado dizer, é bem conhecida a alta intelligencia e a intensa
-investigação da auctora, que é escripto fóra da bitola vulgar. Nelle se
-dá noticia dos differentes retratos da infanta D. Maria.
-
-Transcrevo a curta biographia que vem nos _Elogios de varões e donas_
-por ser menos conhecida agora, pois esta obra tornou-se pouco vulgar.
-
-
-Biographia da infanta D. Maria
-
-A Infanta D. Maria tão illustre pelo dote da formosura, como pelo
-engenho, erudição, graça, e todo o genero de heroicas virtudes, que a
-constituiram uma das mais recommendaveis princezas do seu seculo, foi
-filha d’El-Rei D. Manoel, e da Rainha D. Leonor de Austria sua 3.ᵃ
-mulher. Seu nascimento foi na cidade de Lisboa, em sabbado 8 de junho
-de 1521 nos paços da Ribeira; e a 17 do mesmo mez foi baptizada pelo
-Arcebispo de Lisboa, D. Martinho Vaz da Costa, escolhendo El-Rei seu
-pai para padrinho em nome de Carlos III, Duque de Saboia, o Barão de
-S. Germano, Senhor de Balaison, enviado então por Embaixador a este
-Reino para solicitar o cazamento da Infanta D. Brites com o dito Duque;
-e madrinhas a mesma Infanta D. Brites e D. Isabel suas meias irmãs.
-Com a morte d’El-Rei seu pai no mesmo anno de 1521, e por se auzentar
-para Castella a Rainha sua mãi deixando-a ainda no berço, foi entregue
-para ser educada em idade competente á direcção da Rainha D. Catharina
-sua tia, tanto que chegou a este Reino, de cuja escola saiu eminente.
-Como era dotada de estranha viveza, memoria, e grande juizo aprendeu
-com facilidade as linguas especialmente a Grega, e a Latina que soube
-com perfeição, e escreveu com tanta propriedade como se lhe fôra
-natural e materna. Teve por mestres a insigne Dama Toledana Luiza Segéa
-exquizitamente douta em muitas linguas, e raro prodigio de sciencia,
-que mereceu ser celebrada dos maiores letrados d’aquella idade; e a Fr.
-João Soares de Urró da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, depois
-Bispo de Coimbra, que tambem o foi dos Principes D. Filippe, e D. João
-seus sobrinhos.
-
-Ao contar dezaseis annos El-Rei D. João III seu irmão lhe deu caza
-propria, e separada do paço Real, composta das principaes pessoas do
-Reino: a qual com riquissimo dote, que seu pai lhe deixou, foi de
-tão grande renda e estado, que para ser igual á das maiores Rainhas
-da Europa não lhe faltou mais, que haver o nome de uma d’ellas. Foi
-Senhora de Vizeu, e de Torres Vedras de juro, e teve por El-Rei D.
-João III seu irmão muitas mercês, e privilegios, e consta por alguns
-Documentos que se guardam no Real Archivo, como são: uma carta em data
-de 26 de janeiro de 1545, em que se lhe concedem de padrão de juro
-e herdade cinco contos de réis, em virtude do contracto feito com o
-mesmo Rei D. João III que se acha inserto; e duas cartas expedidas á
-mesma Senhora Infante de privilegios, e jurisdição de suas terras, e
-sobre as fintas, e provimentos dos officios d’ellas em data de 2 de
-novembro do mesmo anno: o primeiro no Livro da Chancellaria do dito
-Rei a fol. 25, e os segundos no Livro 43 fol. 9, vers. e 14 verso.
-Creou n’este paço particular uma verdadeira Universidade de mulheres
-illustres em todo o genero de Sciencias e Artes, de que foi especial
-protectora; pois não só se encontrava quem se désse á lição dos Livros,
-e tocasse déstramente differentes instrumentos, mas quem com o pincel,
-e com a agulha procurasse nos primores da Pintura, e lavôr virtuosa
-emulação e seguisse os outros louvaveis exercicios: aos quaes ajuntava
-com tal reverencia, e edificação a pratica dos actos de piedade em
-todo o genero de virtudes, pela direcção de Fr. Francisco Foreiro,
-lustre da Ordem Dominicana, que parecia menos Paço Real, que Mosteiro
-reformado, que podia ser a Religiosas espelho, e doutrina de bem
-viver. Pela fama de tão Reaes qualidades foi pretendida para Espoza
-dos maiores Principes da Europa, como foram: o Delfim de França, filho
-de Francisco I; o Duque de Orleans, irmão do mesmo Delfim, a quem o
-Imperador Carlos V promettera a investidura do Ducado de Milão, ou do
-Condado de Flandres; e não se effeituando nenhum d’estes cazamentos,
-por morrerem ante tempo ambos estes Principes, El-Rei D. Fernando
-de Ungria, Rei dos Romanos, e depois Imperador enviou Embaixador a
-Portugal pedindo-a por mulher de Maximiliano seu filho; e ultimamente
-Filippe II de Hespanha, logo que enviuvou da Rainha D. Maria de
-Inglaterra. Permaneceu todavia até á morte no estado de Donzella, que
-havia consagrado a Deos com generoza rezolução, preferindo mais o amor
-da quietação de seu espirito, que a cobiça de reinar. No anno de 1558,
-sendo ja fallecido El-Rei D. João III, por comprazer aos dezejos da
-Rainha D. Leonor sua mãi que procurava anciozamente vê-la, se foi por
-Elvas a Badajoz com luzido acompanhamento; e demorando-se ahi com ella
-por espaço de vinte dias, e com a Rainha D. Maria de Ungria e Bohemia
-sua tia, que a receberam com muitas festas de prazer, se tornou para o
-Reino. Determinada a não sair de Portugal, e a não admittir propostas
-de despozorios continuou em religiozos exercicios praticando obras de
-muito louvor, como foram: a edificação do Convento magnifico de N.
-Senhora da Luz da Ordem de Christo, que dotou riquissimamente, com a
-grande obra do Hospital que lhe ficava fronteiro; o Mosteiro de Santa
-Helena do Calvario em Evora; o Convento de N. Senhora dos Anjos (mais
-conhecido hoje pelo convento do Barro), de Capuchos Arrabidos, junto
-da Villa de Torres Vedras, na qual teve ella seu palacio; e o Mosteiro
-de S. Bento na Villa de Santarem; e deixou em seu Testamento, com que
-se edificasse Mosteiro para as Commendadeiras de S. Bento de Aviz, que
-se fez em Lisboa com a invocação, como ella ordenára, de N. Senhora
-da Encarnação. Fundou mais a Igreja Parochial de Santa Engracia de
-Lisboa, alem de outras muitas obras de piedade em outras Igrejas, como
-no Convento da Graça da Ordem de Santo Agostinho, em que assistia
-muitas vezes com sua prezença e esmollas, quando vivia no Palacio
-do Castello, a Imagem da Senhora, cujo corpo mandou cobrir de prata
-primorosamente lavrada, e lhe mandou fazer Capella; e no Real Mosteiro
-de S. Bento, que então se fabricava, mandou fazer a Imagem grande
-deste Santo, que se vê no altar mór, e adornar sua Capella, e a de
-outros altares; e por via do Embaixador de Portugal na Côrte de Roma
-obteve uma Reliquia do mesmo Santo, que he uma parte da que estava no
-Mosteiro de S. Paulo daquella Cidade, para enobrecer este Mosteiro, e o
-de Santarem. Foi a Senhora D. Maria, como universal herdeira da Rainha
-D. Leonor sua mãi, Senhora Soberana de juro do Senescallado de Agenois
-em Gascunha, e dos opulentos Dominios de Verdum, e Rieux na Provincia
-de Languedoc; e alem de muitas baixellas de ouro, prata, joias de
-grande valor, de cem mil escudos que lhe pagavam os Reis de França, e
-Castella. Sua morte foi no anno de 1577 a 10 de outubro em idade de 56
-annos, nos seus paços da Cidade de Lisboa extramuros junto do Mosteiro
-de Santos, deixando de si unico exemplo a todas as altas Princezas de
-virtude e honestidade. Tinha disposto de sua ultima vontade, como se
-podia esperar de sua muita sciencia, e Christandade, por Testamento de
-17 de Julho do mesmo anno de 1577, e Condicillo de 31 de Agosto que
-fez approvar a 8 de Setembro, o que mais convinha a sua consciencia,
-determinando muitas obras de piedade por todo o Reino com grandes
-soccorros para pobres, viuvas, donzellas, orfãos, enfermos, e cativos
-com tamanha profusão que não houve quazi genero de pessoa, que não
-experimentasse a caridade, e mizericordia desta Princeza, sem faltar em
-nada á familia de seus criados, e a todos a quem por qualquer via era
-devedora de serviços passados, que a todos satisfez larguissimamente:
-e emquanto a seu enterro foi a primeira clauzula, que se acabasse sua
-vida, primeiro que estivesse concluida a Capella de N. Senhora da
-Luz no Convento dos Padres de Christo, que ella havia destinado, e
-mandára edificar para seu jazigo, a depozitassem, emquanto se acabava,
-no Mosteiro da Madre de Deos de Lisboa. Seu corpo foi depozitado no
-Capitulo do dito Mosteiro da Madre de Deos, junto da Rainha D. Leonor,
-mulher do Senhor Rei D. João II, e celebraram-se-lhe exequias com
-grande pompa, como convinha á grandeza de sua pessoa, com assistencia
-d’El-Rei D. Sebastião oito mezes antes de partir para Africa, do
-Cardial D. Henrique, e de todos os grandes do Reino. Sendo passados
-quazi vinte annos, por determinação de Filippe I foi trasladada para a
-sobredita Capella de N. Senhora da Luz a 30 de Junho de 1597. Jaz em o
-pavimento da Capella mór, em sepultura pouco levantada no meio della,
-e sem nenhuma letra, ou diviza, symbolizando-se por este signal de
-humildade a muita que esta Princeza guardou em seu coração por toda a
-vida. No meio do Cruzeiro ao lado do Evangelho se lê em pouca altura
-na parede uma Inscripção, gravada de letras pretas romanas em uma pedra
-de marmore branco de tres palmos de alto, e cinco de largo, a qual diz
-assim:
-
- * * * * *
-
---A Capella moor deste Mosteiro de N. Senhora da Luz e este Cruzeiro
-são da sepultura da Serenissima Infanta Dona Maria que Deos tem filha
-d’El-Rei Dom Manoel, e da Rainha Dona Lianor sua mulher na qual Capella
-e Cruzeiro se não dará sepultura a pessoa alguma de qualquer calidade
-que seja nem em tempo algum se fara nhum Deposito nem nhum litereiro
-por assi estar asentado por Sua Magestade e por contrato solene e
-celebrado que se fez co o Padre Prior e Padres desta Casa confirmado
-pelo Padre Dom Prior e mais Padres do seu Convento de Tomar cujo
-trelado esta na Torre do Tombo e nesta Caza de Nossa Senhora. Faleceo a
-dez Doutubro de 1577.--
-
-Esta biographia vem na obra--_Retratos e elogios dos varões e donas,
-que illustraram a nação portugueza._ (Lisboa, 1817).
-
-
-S. Sebastião do Paço do Lumiar
-
-A ermida de S. Sebastião está isolada em alegre terreiro, moldurado de
-bons predios, alguns antigos, no logar do Paço do Lumiar.
-
-Este logar é continuação do Lumiar propriamente dito, para o lado da
-Luz e Bemfica.
-
-Partindo do amplo largo da Luz segue-se uma estrada entre boas quintas
-á Horta Nova; já proximo do Paço ha boas construcções modernas á beira
-do caminho.
-
-A ermida é muito simples; chama principalmente a attenção a porta em
-estilo manuelino, elegante e bem conservada.
-
-O exterior da pequenina egreja mostra que a primitiva obra do começo do
-seculo XVI, soffreu grandes concertos depois. Na cruz de azulejos que
-está no lado norte lê-se _Anno 1628_; a mesma data se mostra no azulejo
-que fórra o interior; houve pois grande obra alli n’esse tempo. As
-volutas d’alvenaria e os pinaculos lateraes do frontispicio levam-nos
-a crer que mais tarde, no meado do seculo XVIII, talvez depois do
-terremoto de 1755, houve novo e importante concerto.
-
-Temos aqui azulejos datados d’uma época interessante, do periodo
-philippino, 1628. São de desenho geometrico na maioria, emquadrando
-porém bons trabalhos em figura.
-
-O corpo do templo é dividido da capella por um arco e na face d’este
-arco estão as imagens em azulejo de S. Francisco, S. Pedro, S. Antonio
-e S. Paulo; sobre a porta lateral está um famoso S. Christovão
-empunhando respeitavel bordão, com o Menino sobre o hombro. O artista
-empregava varias tintas, amarello, roxo, além dos tons vulgares. Nas
-paredes da capella ha pequenos quadros tambem em azulejo, azul sobre
-branco, representando phases da vida de S. Sebastião, muito mais
-modernos que os do corpo do templo.
-
-É nos azulejos do arco divisorio, infra, que está em grandes algarismos
-a data 1628, quasi encoberta pelos estrados de madeira.
-
-No alizar d’este arco, ha flores pintadas com mimo; assim como no
-pequeno côro se vêem caixotões com pinturas.
-
-O ladrilho é antigo e bom; com azulejos brancos entre os tijolos
-vermelhos. As portas são de excellente madeira, em almofadas de boa
-execução.
-
-O tecto da ermida soffreu alguma ruina, talvez pelo terremoto, mas
-conserva ainda boas pinturas antigas, entre estuques mais modernos.
-
-Tem alguns lettreiros em sepulturas, uns bem legiveis, outros gastos
-pela passagem dos devotos, o que mostra que em tempos foi esta ermida
-frequentada; agora poucas vezes ha alli missas.
-
-Transcreverei algumas inscripções.
-
---Aqui jaz sepultado o padre Joaquim Jorge faleceo a 9 de novembro de
-1783.
-
---S.ᵃ do P.ᵉ Antonio Pinheiro capelão que foi d’esta hirmida o qual
-faleceu na era de 1705.
-
---S.ᵃ do capitão Estevão Soares de Alvergaria cavaleiro da ordem de
-Christo faleceu a 11 de dezembro de 1644 e de sua molher Anna de Masedo
-da Maia e de sua mãi Madalena da Maia....
-
-Tem seu escudo gravado; a cruz fioreteada, com orla de escudos, elmo e
-paquifes.
-
-Outra campa é do--P.ᵉ Antonio Mamede bemfeitor desta irmida, que morreu
-em 1 de abril de 1791.
-
-Em outra muito gasta pareceu-me vêr o nome Rodrigo Diniz Moreira.
-
-Sobre a torre dos sinos ergue-se no eirado um campanario onde está o
-sino das horas; porque tem seu relogio a pequena ermida, com mostrador
-voltado para norte.
-
-Ha na frontaria quatro argolas de ferro que serviam para segurar um
-grande toldo na occasião das festas.
-
-Quando fiz o esboceto do frontispicio estive a conversar com um velhote
-que antigamente tratava do relogio, e armava o toldo, que era quasi
-sempre uma vela de navio emprestada pelo arsenal de marinha.
-
-Embora humilde e acanhado tem o pequeno templo uma certa importancia
-por ser anterior ao grande terremoto de 1755, e por nos conservar além
-do gracioso portal manuelino, pinturas e azulejos do seculo XVII, em
-bom estado de conservação.
-
-
-Lumiar. Quinta do Sr. Duque de Palmella
-
-Esta egreja de S. João Baptista do Lumiar é freguezia muito antiga.
-
-A disposição do templo mostra a sua remota fundação, grandiosa, em tres
-naves; mas as reconstrucções e concertos deram-lhe um aspecto moderno.
-
-Consta que foi esta egreja fundada em 1267. Eram padroeiras as freiras
-de Odivellas, por doação de D. Thereza Martins, viuva de D. Affonso
-Sanches, filho bastardo d’el-rei D. Diniz.
-
-Não pára aqui a historia. D. Affonso III possuia aqui uma casa de campo
-com sua quinta; esta propriedade pertenceu depois a D. Diniz.
-
-Em terreno da quinta foi edificada a egreja. A posse passou ao bastardo
-de D. Diniz, o infante D. Affonso Sanches, e então se chamou á casa de
-campo o Paço de Affonso Sanches.
-
-Este entrou nas luctas d’aquella época atormentada, os bens foram-lhe
-confiscados, e D. Affonso IV, o irmão, chamou-lhe o Paço do Lumiar.
-Mais tarde a propriedade deixou de pertencer á corôa, mas conservou
-sempre o nome de Paço do Lumiar; por alli se ergueram casas, fez-se
-povoação, e ao fim d’ella uma ermida dedicada a S. Sebastião.
-
-O marquez de Angeja, D. Francisco de Noronha, em fins do seculo _XVIII_
-edificou o actual palacio, hoje pertencente á Casa Palmella.
-
-O duque de Palmella, D. Pedro, homem de espirito cultissimo e fino
-gosto, gostava immenso da sua quinta, augmentou-a com a que pertencera
-á casa dos marquezes de Olhão, depois ao conde da Povoa, e algumas de
-menor importancia, e assim formou a grandiosa quinta actual, com o
-seu palacio, e grande pavilhão, jardins, estufas, avenidas de grandes
-arvoredos, obras de arte de merecimento.
-
-Sendo de forte declive o terreno da quinta tiveram de fazer grandes
-socalcos, sustentados por fortissimas muralhas o que dá effeitos
-raros, perspectivas inesperadas a edificios e arvoredos. Ha ahi bellos
-exemplares vegetaes, a Araucaria excelsa é a primeira plantada em
-Portugal, o dragoeiro, ainda que um pouco mutilado é bello exemplar,
-a Araucaria brasileira compara-se á celebre do jardim botanico de
-Coimbra; cedros, platanos, e ulmeiros seculares alastram fechadas
-sombras. Nesta quinta se deram luzidas festas no tempo do 1.ᵒ duque, e
-aqui se guarda, bem ordenada e conservada, a grande e preciosa livraria
-Palmella.
-
-Mas dos tempos de Affonso Sanches, de Diniz? Nada, nem vestigio; nem
-uma pedra toscamente lavrada, ou singelo lettreiro, nada recorda esses
-tempos antigos.
-
-
-Terremotos
-
-Esta formosa cidade de Lisboa tem sido victima dos terremotos;
-impossivel calcular o trabalho perdido, a extensão e a intensidade de
-tanta ruina.
-
-Em certos pontos da cidade a camada de entulhos, caliças, fragmentos de
-tijolos, é de 3 a 4 metros; pela abertura de cabôcos, e installação de
-canalisações, e muito se tem escavado nos ultimos annos por todos os
-arruamentos, descobrem-se na baixa, no Rocio, por exemplo, trechos de
-canos antigos abandonados e sobrepostos, ainda a profundidade maior.
-
-De tremores muito antigos, e dos da alta idade média ha tradições.
-
-O de 24 d’agosto de 1356 destruiu parte da Sé, e causou enorme
-devastação na cidade.
-
-Em janeiro de 1531 houve terremotos a seguir, sendo maior e mais
-destruidor o de 26 d’esse mez.
-
-O de 28 de janeiro de 1551 derribou muitos predios.
-
-Em 27 de julho de 1597 uma parte do monte de Santa Catharina escorregou
-para o rio, ficando aquelle alteroso monte dividido em dois, Chagas e
-Santa Catharina; tres arruamentos desappareceram por completo.
-
-Em 1755 a cidade estava maior, mais povoada; o terremoto de 1 de
-novembro fez muitas victimas, grande parte da cidade ficou arrasada, e
-o incendio causou incalculavel prejuizo.
-
-Mencionam-se terremotos em 1598, 1699, 1724, fortes mas sem causar
-grande damno; os abalos de 1761, 1796, 1807; o de 11 de novembro
-de 1858 muito sensivel, em Setubal foi destruidor, matando gente e
-derribando casas.
-
-O sr. Paulo Choffat tem trabalhos publicados sobre os ultimos abalos de
-terra sentidos na capital.
-
-É certo que Lisboa está n’uma zona perigosa; devemos reparar n’isto.
-Nada de concentrar tudo em Lisboa, guardem-se algumas cousas em sitios
-mais garantidos.
-
-E todavia ha aqui consideraveis construcções que atravessaram no
-seu logar e prumo essas medonhas convulsões; por exemplo uma parte
-consideravel das muralhas do Castello, Santa Luzia e a sua muralha, as
-capellas orientaes do Carmo, os arcos do Borratem, a casa dos Bicos, a
-frontaria da Conceição Velha; bastantes edificios anteriores ao abalo
-de 1755 estão de pé; alguns palacios aguentaram as suas linhas, e o
-labyrintho das viellas de Alfama conserva a planta medieval.
-
-Mas basta olhar as paredes mais antigas do Carmo e da Sé para perceber
-pedras de anteriores construcções, fragmentos de lettreiros e lavores,
-empregados na enxilharia ordinaria. Na vetusta parede norte da Sé ha
-pedras mettidas no muro que mostram lavor bysantino. No Carmo bocados
-de campas com lettreiros em gothico, em diversos pontos do edificio,
-estão empregados como pedra vulgar de construcção. É raro encontrar nos
-arrabaldes de Lisboa pedras de antigo lavor, da idade média, do ogival,
-mesmo da primeira renascença no seu logar; Odivellas é uma excepção,
-assim como o casal da Quintan com o seu muro de ameias. É preciso ir
-a Cintra, a Torres Vedras, a Santarem para vêr algo antigo de certa
-importancia.
-
-Na ultima folha de pergaminho do codice n.ᵒ 61 da collecção alcobacense
-da Bibliotheca Nacional de Lisboa um monge deixou noticia do grande
-abalo de 24 de agosto da era de Cesar 1394 (1356); fez grandes estragos
-prostrando castellos e torres em muitos pontos do paiz; em Alcobaça a
-egreja soffreu muito, no mosteiro houve ruinas, e cahiram muralhas do
-castello. Foi ao pôr do sol.
-
-Outro monge na mesma pagina escreveu a memoria do terremoto de janeiro
-de 1531; por mais de 15 dias sentiram tremer a terra; mas no dia 26,
-antes do nascer do sol, foi o grande tremor; conta que em Lisboa houve
-grande estrago; no mosteiro houve muita ruina, não escapando a parte
-superior do claustro.
-
- * * * * *
-
-O abalo de terra de 1755 foi violentissimo, mas escriptores e artistas
-ainda lhe augmentam as culpas. Este terremoto e a invasão dos francezes
-são motivos fundamentaes para explicar o desapparecimento de muita
-cousa, uma rica mina para encobrir o desleixo, a estupidez, a mania de
-estragar que é muito da raça portugueza.
-
-No tomo 3.ᵒ da==_Collecçam Universal de todas as obras que tem sahido
-ao publico sobre os effeitos que cauzou o terramoto nos reinos de
-Portugal e Castella no primeiro de novembro de 1755_ (Bibl. Nac. de
-Lisboa, Gabinete de livros reservados), ha alguns opusculos de polemica
-sobre a grandeza da tremenda catastrophe: ==_Carta em que hum amigo dá
-noticia a outro do lamentavel successo de Lisboa_==Está assignada por
-José de Oliveira Trovão e Sousa (1755).
-
-==_Resposta á carta de José de Oliveira Trovam e Sousa em que se dá
-noticia do lamentavel sucesso de Lisboa._ É de 1756; assignada por
-Antonio dos Remedios.
-
-==_Verdade vindicada ou resposta a huma carta escrita de Coimbra._ Por
-José Acursio de Tavares (Lisboa, 1756). De taes escriptos conclue-se
-que o terremoto destruiu bem a terça parte de Lisboa e que o incendio
-que se lhe seguiu foi terrivelmente devastador; mas fóra da area de
-grande intensidade do abalo, e além do espaço que o fogo alcançou,
-muitos predios, bastantes palacios, grandes arruamentos ficaram salvos;
-agora é bem raro encontrar uma frontaria, uma janella, uma grade de
-varanda anterior ao terremoto. No final do seculo XVIII e no seculo
-XIX a transformação foi completa; basta a vulgarisação da vidraça e
-o desapparecimento da rotula para modificar o aspecto da cidade. Em
-povoações onde o terremoto não foi tão destruidor, apenas se sentiu,
-a transformação foi analoga. É que na verdade o portuguez é bem
-fraco conservador. Aqui pelos arrabaldes de Lisboa direi mesmo que é
-destruidor. Por isto eu dou toda a attenção ao que me parece antigo, me
-demoro com o anterior ao seculo XVIII, e quasi pasmo quando me surge um
-fragmento do seculo XVI.
-
-Folheando qualquer _Illustração_ estrangeira se vê o carinho, o amor
-com que em paizes muito mais atormentados que o nosso se guardam
-antigos edificios, casas particulares de aspecto artistico, objectos de
-uso vulgar consagrados pela idade, qualquer cousa que seja documento
-do antigo viver. Os terremotos são damninhos, mas a indifferença, o
-desleixo, a ignorancia são grandes causas de destruição.
-
- * * * * *
-
-Este caminho entre varzeas ferteis, arvoredos mansos, collinas de
-grandes curvas com terras de semeadura e verdes pinhaes, por onde
-vamos encontrando gente do campo, scenas da vida popular, é a via
-tragica na historia de Portugal, brados de victoria e rumores de
-desespero, marchas de tropas em dias de lucta, por aqui passaram entre
-estas paisagens que só lembram agora frescas aguarellas; patuleias e
-cartistas; miguelistas e pedristas, columnas de Junot e de Wellington;
-castelhanos que vieram cercar Lisboa, portuguezes voltando de
-Aljubarrota; e provavelmente cavalleiros de Affonso Henriques, e dos
-mouros, dos godos e dos romanos; porque é esta a estrada que leva a
-Lisboa, a antiga e nobre cidade, o grande porto maritimo.
-
-Na ida para o Correio-Mór, perto da Povoa de Santo Adrião, reparei em
-certa pedra lavrada de aspecto raro; na volta parei e fui vê-la; é
-
-
-_Uma ara romana._
-
-Ha um poço coberto, encravado no muro, a poucos metros da estrada;
-sobre um pequeno arco um nicho com a imagem de S. Pedro; perto um
-poial, alto, e no chão uma pedra lavrada, com funda cavidade. É um
-parallelepipedo de oito decimetros de comprido, por tres de altura,
-proximamente, de pedra vidraço; um cordão de forte relevo divide os
-lados em duas fachas; na superior um lavor geometrico, curvas em grega
-torneando saliencias circulares; na facha inferior quatro rosas entre
-curvas symetricas. Creio que é uma ara romana. Salvou-se junto da fonte
-d’agua com virtude, guardada pela tradição. Por aquelles sitios teem
-apparecido antiguidades romanas, ainda que são muito menos numerosas
-as inscripções que nos arredores de Cintra. Como esta pedra lavrada
-atravessou intacta tantos seculos, n’este paiz de estragados!
-
- * * * * *
-
---Versos novos?!
-
---Umas liras! diga já, frei Simão!
-
-Estavam no jardim, na meia laranja da cascata, á sombra do platano
-alteroso. Linda manhã de junho. Era o dia anniversario da senhora
-morgada; visitas de Lisboa animavam o palacio. A missa tinha sido
-ás 7, e o almoço terminára ás 9. Alguns dos senhores partiram para a
-tapada, outros para o picadeiro vêr os dois cavallos novos que o conde
-trouxera de Sevilha.
-
-O apparecimento de frei Simão, frade jeronymo, que viera de Belem em
-ruidosa e balouçante caleça, foi saudado com alvoroço; o frade tinha
-sempre a contar anecdotas facetas, algumas muito repetidas mas que
-elle contava com certa graça, e noticias da gente palaciana, sempre
-saboreadas com delicia.
-
-Frei Simão avançou devagar, até perto da morgada, muito serio, fez uma
-cortezia reverendissima, e recitou o soneto de parabens pelo feliz
-anniversario; era composição nova; vinha escripto em primorosa lettra
-num papel, com sua inicial floreada, enrolado e atado com fita de seda
-branca.
-
-Depois deixando o tom ceremonioso, pondo-se muito risonho, annunciou os
-versos novos, umas _sonóras_, não umas _liras_...
-
---Diga, diga.
-
---É a segunda vez que as leio...
-
---E nós a julgarmos que tinhamos a primicia...
-
---A primeira vez só uma pessoa, alta pessoa, as ouviu. Por isto posso
-dizer a primicia.
-
---Quem seria a alta pessoa?
-
---Eu digo, senhora morgada; foi el-rei que Deus Guarde.
-
---Bravo! foi ao Paço? teve audiencia?
-
---Foi na rua, antes na estrada. El-rei viu-me passando pela estrada de
-Pedrouços; mandou parar o coche. E bradou-me:
-
---Então, oh! Santa Catharina, fizeste a resenha?
-
---Sim, meu senhor, e está em verso; ia levá-la a Vossa Real Magestade.
-
---Não precisas ir mais longe; dize lá.
-
-Acheguei-me á porta do coche e li os versos. Eu já me sentia acanhado
-porque a lira é comprida, e o coche ali parado na estrada. Mas el-rei
-D. João V gosta de versos jocosos; não imaginam como elle ria.
-
---E como soube elle que Vossa Reverencia fizera a lira?
-
---Ora, foi assim. Em Belem, no nosso mosteiro, pela festa de S.
-Jeronymo, costuma haver lauto jantar, com convidados; ao jantar da
-casa, jantar de festa, juntam-se muitos presentes; enche-se o grande
-refeitorio; o d’este anno foi estrondoso. El-rei soube e encontrando-me
-ha dias em palacio, disse-me para lhe fazer a noticia dos pratos; e eu
-puz a lista em verso; fiz a lira!
-
---Diga, diga.
-
---Eu começo; frei Simão de Santa Catharina collocou-se em frente das
-damas; limpou lentamente a fronte, a bocca e o nariz com o lenço
-cheiroso a agua de rosas.
-
- _Monarcha Soberano
- Pois Vossa Magestade assim me ordena
- O jantar deshumano
- Irá cantando a Musa pouco amena
- E em ser só se verá que foi diverso
- No refeitorio em prosa e aqui em verso._
-
-A lira vae descrevendo o grande refeitorio, o adorno das janellas
-com estatuas, festões, grinaldas de flores naturaes, os aparadores
-carregados de pratas, o chão atapetado de flores.
-
-
-_Estava o refeitorio num brinco._
-
-Em cada logar da vasta meza havia os _appetites_, as pequenas iguarias,
-com seus adornos.
-
- _Cobria o cuvilhete
- um papel retalhado, com acerto
- que inda que pequenete
- como grande queria estar coberto.
- Na marmelada vinha, guaposito
- guarnecido de flores um palito.
- Em cada assento havia
- garfo, faca, colher e guardanapo
- dois pães, com bizarria
- melancia excellente, melão guapo
- figos, uvas, limões, pecegos, peras
- sem graça, o cesto enchiam, mui devéras.
- A ilharga da salceira
- um bom tassenho de presunto havia
- tão magro e tão lazeira
- que a mim me pareceu ser porcaria
- tambem tinha azeitonas e alguem disse
- que foram d’Elvas._
-
-Estes eram os appetites que adornavam os logares dos commensaes. Agora
-os pratos.
-
- _Foi o primeiro prato uma tijella
- cheia em demazia
- de caldo de gallinha com canella
- que da gallinha trouxe a propriedade
- porque o caldo tinha ovo na verdade.
- Foi o segundo prato
- uma bem feita sopa á portuguesa
- que dava de barato
- O filis e o primor que ha na franceza._
-
- * * * * *
-
- _Por algum grão delito
- foram muitos perús esquartejados
- uns vêm com sambenito
- outros vinham sómente afogueados._
-
- * * * * *
-
- _Outro prato de assado
- que era lombo de vacca mui tenrinho.
- Comia afadigado
- outro leigo mui gordo meu visinho
- rollos e pombos ensopados._
-
-Seguiram-se as frigideiras com linguas e miolos. Os coristas que
-serviam á meza eram muitos e andavam lestos. Appareceram as _empanadas
-inglezas_; tinham:
-
- _Ade, perdiz, gallinha, frangalhada
- E disto vinha a olha enchouriçada.
- Apoz isto algumas doze tortas._
-
- * * * * *
-
- _Cinco ou seis pratos de ovos
- De pão de ló por dentro recheados
- Outros mal entrouxados
- Outros ovos tambem com corôa regia
- De almojavanas conto
- A duas mui grandes por cabeça
- Em assucar em ponto._
-
-Depois d’isto _empada de vitella_ e _arroz doce_.
-
- _Sinceramente disse aqui a verdade
- Falta o perdão de Vossa Magestade._
-
-Vem agora a nota no amarellado papel que estou seguindo:
-
---_Indo levar o papel a Pedrouços se encontrou el-rei que mandou parar
-o coche e parado ouviu ler todo o papel com muito agrado._
-
-Mas frei Simão de Santa Catharina esqueceu-se de uma cousa, e o padre
-geral quando viu o papel reparou logo, e zangou-se; obrigou o frade a
-fabricar mais versos e a levar o supplemento a el-rei.
-
- _O caso é que na salceira
- me esqueceu de meio a meio,
- com o presunto e azeitonas
- pôr um pedaço de queijo._
-
- * * * * *
-
- _Pois vá, faça outros, e ponha
- (me disse o Geral severo)
- que não quero que diga el-rei
- que não dei queijo framengo._
-
- _Saiba Vossa Magestade
- que tambem queijo tivemos
- noviços e sacerdotes
- coristas e frades leigos._
-
-A _lira_ de frei Simão Antonio de Santa Catharina foi muito gabada e
-applaudida.
-
---É uma delicia!
-
---Um verdadeiro appetite, faz vontade de comer.
-
---Diga outra vez, e muitas damas insistiam no pedido. Mas a condessa
-observou:
-
---Tenham caridade, isso é incommodo para Sua Reverencia. Ainda se não
-lembraram de mandar vir um refresco.
-
-Veiu logo um creado com bandeja de prata com bolos e marmellada de
-Odivellas; outro creado com licor de tangerina e canella, e um copo de
-limonada. Voltaram os senhores, fez-se grande roda, e entre risos e
-_ós_ admirativos repetiu-se a leitura dos versos.
-
---Percebe-se logo que frei Simão é um academico.
-
---E de varias academias.
-
---Da Anonyma sei eu, por ser lá meu confrade.
-
---E da Portugueza.
-
---E da Escholastica.
-
---É verdade, frei Simão, deve saber, ora se sabe, houve eleição renhida
-em Odivellas; muita gente, e da mais alta se interessou na eleição da
-nova abbadessa.
-
-O frade contou o que sabia dos bilhetes, dos pedidos, das ordens, das
-promessas ás freiras eleitoras; foi uma bulha que durou mezes.
-
---E não fez versos ao caso?
-
---Isso merecia liras e sonóras.
-
---É verdade que fiz, não nego e a prova é esta; aqui está a sonóra; e
-do largo bolso tirou um papel.
-
---Leia! leia!
-
---Vou começar.
-
- Os enredos, as bulhas, as trapaças
- Os enganos, os medos, os temores
- Os ardis, as astucias, as negaças
- Os agrados, os risos, os amores;
- As trombas, os focinhos, as caraças
- As furias, os raivassos, e os rancores
- Que houve em certa eleição com forte espanto
- Darão materia a nunca ouvido canto.
-
-E segue a sonóra n’este tom, narrando os episodios da eleição da
-abbadessa, no então revoltoso convento de Odivellas, ninho de
-endiabradas freiras. Este frei Simão tem muitas peças poeticas algumas
-muito aproveitaveis para o conhecimento de minucias e particularidades
-da época.
-
- * * * * *
-
-Dias depois de um passeio a Loures e á quinta do Correio-Mór,
-appareceu-me um cavalheiro d’aquelles sitios, com quem eu cavaqueara,
-e apresentou-me uma porção de papeis velhos, manuscriptos, que me
-disse ter encontrado havia annos n’um gavetão da copa monumental do
-palacio. Percorri os papeis; pouco achei de curioso ou interessante.
-Entre elles vinham poesias do seculo XVIII, alguns sonetos de
-anniversarios, dirigidos a pessoas da familia Matta; e uma descripção
-de lauto banquete no mosteiro dos Jeronymos de Belem, que me pareceu
-bom documento da época, e singular peça poetica. Por isto a transcrevo
-em parte. Nos papeis não encontrei nome do auctor. Depois achei n’um
-cancioneiro a mesma poesia attribuida a frei Simão Antonio de Santa
-Catharina, e até com a mesma nota pittoresca de ter sido lida a el-rei
-D. João V, na estrada de Pedrouços.
-
-
-
-
-Torres Vedras
-
-Notas d’arte e archeologia
-
-(1906)
-
-Paineis antigos em Torres Vedras
-
-
-Em rapida visita que fiz, ha pouco, a Torres Vedras, chamaram-me a
-attenção os quadros em madeira, antiga pintura, que vi em differentes
-egrejas.
-
-Torres Vedras foi villa das rainhas, alli viveram familias nobres,
-houve paços reaes e casas religiosas importantes.
-
-Já no seculo XIII as egrejas de Santa Maria do Castello, de S. Pedro,
-de S. Miguel e de S. Thiago existiam, como se vê das inquirições de
-Affonso III. Isto mostra que a villa era importante já na edade média,
-e explica um tanto a existencia de um numero relativamente consideravel
-de pinturas antigas. Só mencionarei as que me despertaram mais a
-attenção.
-
-Ha alli pinturas de varios pinceis e épocas, umas anteriores á
-renascença, algumas do inicio d’essa época, outras do meiado do seculo
-XVI.
-
-Na egreja de Nossa Senhora do Amial vi quatro quadros grandes,
-representando S. Paulo, S. Pedro, S. Lourenço e S. Sebastião.
-
-Na sacristia de S. Pedro estão tres quadros em madeira; um d’elles, a
-Annunciação, muito lindo e em bom estado.
-
-Na egreja, sobre o arco do cruzeiro, está um painel grande,
-representando S. Pedro, retocado modernamente.
-
-Na egreja da Graça, na segunda capella á direita, seis quadros
-pequenos, um tanto sujos mas não arruinados; muito interessantes.
-
-Ha um pouco de renascença nas construcções, voltas redondas nas
-arcadas, apenas.
-
-Figuras principaes sem ornatos, mas as secundarias vestidas á época,
-grandes e plebeus, damas da côrte, mulheres humildes, com os seus
-trajos proprios, muito minuciosa e galantemente indicados.
-
-Representam: o Presepe, Adoração dos Reis, Annunciação, a Virgem e
-Santa Isabel, S. José e Nossa Senhora, o Transito de Nossa Senhora.
-
-Os rostos, muito finamente tocados, parecem retratos, nos vestuarios
-não ha phantasias, o pintor reproduziu o que tinha á vista; mesmo
-o agrupamento, a composição dos quadros, agrada. Tem um lindo tom;
-limpando um pouco, com o lenço humedecido, um cantinho de uma d’estas
-pinturas appareceu logo o tom de esmalte que, infelizmente, tantos
-outros perderam.
-
-Esses seis quadrinhos são bem notaveis.
-
-Na capella-mór da egreja do Varatojo vi quatro grandes paineis, bem
-conservados: Annunciação, Jesus resuscitado, Adoração dos Reis e
-Adoração dos pastores. Devem ser parte de uma série. Não lhes vejo
-relação com as séries do Museu de Bellas-Artes.
-
-Na ante-sacristia, o Presepe, quadro pequeno; na sacristia, um Milagre
-de Santo Antonio e a Descida do Espirito Santo, paineis de grandes
-dimensões e em bom estado.
-
-Em Santa Maria do Castello ha pinturas antigas em madeira, no corpo da
-egreja e na sacristia; estes ultimos são quadros menores, representando
-os episodios classicos da paixão; soffreram retoques pouco felizes; o
-que nelles mais padeceu foi o colorido.
-
-O desenho das figuras; o aspecto, merece nota; tem um tom archaico;
-lembraram-me muito umas pinturas que existem no Museu das Janellas
-Verdes, em que os bigodes apparecem meio-rapados e as barbas com um
-córte especial.
-
-Todos estes paineis, que vi em Torres Vedras, me parecem de origem
-portugueza, com ligeiras, attenuadas reminiscencias de influencia
-flamenga, e com pequena parte, ou nenhuma, do renascimento; por isto os
-achei importantes para a historia da pintura portugueza.
-
-
-O Tumulo dos Perestrellos
-
-A egreja parochial de S. Pedro de Torres Vedras tem a sua porta
-principal voltada a poente, como todos os templos antigos, medievos, da
-interessante villa. Essa porta é muito ornamentada em estylo manuelino;
-sobre o arco assenta um escudo bipartido com armas do rei e da rainha.
-Em dois arcos do cruzeiro ha tambem ornamentação no mesmo gosto, mais
-singela. A egreja tem tres naves, a central é coberta de madeira
-apainelada, com as molduras pintadas e douradas. As naves lateraes
-conservam ainda trechos de antigas abobadas com artezões. Parte das
-paredes está vestida de azulejos brancos e verdes, em uso nos seculos
-XVI e XVII. Ha em varios pontos da egreja e capellas outros typos de
-azulejo de épocas mais modernas.
-
-Alguns quadros pintados em madeira, antiga escola portugueza, outros
-em tela, na egreja, na sacristia e na annexa casa dos clerigos pobres;
-algumas esculpturas religiosas, especialmente a estatueta de S. Pedro
-d’Alcantara, merecem attenção.
-
-No cruzeiro, á direita, está um elegante ediculo com uma urna sepulcral.
-
-É no mesmo estylo da porta principal. O ediculo é em pedra da
-localidade, que é rija, resiste bem ao tempo, e toma, no passar dos
-seculos, uma côr amarella torrada, agradavel á vista. A urna é em
-jaspe, em fino trabalho.
-
-Sobre bases facetadas erguem-se columnas que sustentam arcos
-concentricos; ha uma facha muito lavrada, de folhas e flores, com um
-pequeno busto em baixo relevo, imitando medalha, que parece um retrato;
-mostra a cabeça coberta com um capacete um tanto raro. Busto egual se
-vê na porta da egreja.
-
-No ediculo as columnas e arco exterior representam troncos arboreos
-cingidos por fitas.
-
-A urna pousa sobre leões de inferior trabalho. Na face anterior tem o
-lettreiro e aos lados o brazão, repetido, dos Perestrellos.
-
-N’esta urna estão os ossos de João Lopes Perestrello e de sua mulher
-Filippa Lourenço. Este homem foi fidalgo da côrte de D. João II. Foi
-para a India, capitão de uma nau, na armada de Vasco da Grama, em 1502.
-É um dos vultos d’essa notavel familia que tantos homens produziu que
-bem serviram o paiz em Ormuz, em Malaca. Um filho d’elle, Raphael
-Perestrello, andou na descoberta da costa da China, e esteve nas
-Moluccas. Outro filho jaz na mesma egreja de S. Pedro; sob uma campa
-enorme, de mais de dois metros de comprimento, com um lettreiro em
-gothico:--Aqui acerqua de seus quyrydos pais he mai Antonyo Perestrelo
-seu filho escolheo casa para sempre.--
-
-É bom typo de familia d’aquella época; as grandes aventuras, as
-viagens ultramarinas; uns ficaram nos mares ou nas guerras, outros
-voltaram ricos, fizeram morgados, e arranjaram na egreja da sua terra
-uma capella para eterno descanço.
-
-
-Capiteis romanicos
-
-Na egreja de Santa Maria do Castello, em Torres Vedras, vi dois
-capiteis romanicos na porta principal, que olha para o poente. O
-templo tem soffrido reconstrucções, todavia as linhas principaes são
-as primitivas. Os portaes, de volta redonda, estão nos seus logares de
-origem. Aquella silva que orna a parte superior dos capiteis, formando
-um friso, repete-se aos lados da porta que diz para sul. Os capiteis
-são de calcareo muito rijo, trabalho ingenuo, relevo fundo; pouco teem
-soffrido do tempo. São decorativos e symbolicos; o esculptor quiz
-representar motivos do Cantico dos canticos; é o lyrio dos valles,
-a pomba do rochedo, a maçã entre a folhagem agreste; as comparações
-amaveis feitas á Sulamite, que a egreja christã adoptou. Obra d’arte,
-da alta edade média, é isto o que resta n’esse templo, alvejante entre
-oliveiras, aninhado entre as muralhas vetustas, cubélos e quadrelas
-negras do castello.
-
-Faz-se alli festa religiosa em 15 d’agosto, porque parece que foi
-n’este dia que D. Affonso Henriques tomou a villa aos mouros, em 1148.
-Ainda no começo do seculo XIX, na noite do dia 14, vespera da festa,
-faziam grandes fogueiras no adro e por entre as ameias.
-
-Perdeu-se a usança pittoresca, ante esta onda de semsaboria que vae
-estragando tudo.
-
-Os priores d’esta egreja eram capellães d’el-rei; varias rainhas foram
-padroeiras e lhe fizeram donativos.
-
-D. Beatriz, mãe de D. Diniz, residiu em seu paço, que ficava proximo. É
-difficil hoje achar vestigios de paços reaes, ou de quaesquer edificios
-muito antigos em Torres Vedras. Ahi residiram por largas temporadas
-reis e rainhas, por duas vezes se reuniram côrtes, no seculo XV, e
-quasi nada d’essa época se encontra na villa. Tem soffrido muito com
-os terremotos; a parte baixa está visivelmente muito soterrada; isto
-explica em parte o desapparecimento de antiguidades na historica e
-interessante villa.
-
-
-Ermida e forte de S. Vicente
-
-A ermida de S. Vicente fica a norte de Torres Vedras; cousa de tres
-kilometros do centro da villa ao alto da collina. Chega-se á varzea
-arborisada do Amial, passa-se o rio Sizandro, a ermida de Nossa Senhora
-do Amial, e do adro d’esta ermida parte uma vereda que vae trepando
-pela vertente, e dando volta, de modo que offerece vistas variadas da
-villa, que tem bonito aspecto, do seu vetusto castello, conjuncto de
-paredões, muralhas e cubellos ennegrecidos pelo tempo, e da multidão
-de collinas, quasi todas vestidas de vinhedos viçosos, salpicadas
-de casaes. O cume de S. Vicente está bastante superior ao castello,
-e ás collinas proximas, dominando largo terreno. Depois do corpo de
-S. Vicente entrar na sé de Lisboa houve milagres varios, e um dos
-devotos favorecidos foi um homem de Torres Vedras que lhe edificou uma
-ermidinha em agradecimento. É certo que no começo do seculo XIII já
-alli estava uma ermida; tão certo como não estar lá, á vista, um unico
-lavor ou lettreiro, nem do seculo XVII. Mas ha documentos; e bocados de
-pergaminho bem guardados duram mais que alvenarias expostas a pilhagens
-e bombardeamentos.
-
-Na ermida venerava-se uma imagem de S. Vicente, agora na pequena egreja
-do Amial, e ha tradição de grandes festas que o povo torreense ahi
-celebrava. Arruinou-se, reconstruiu-se, e voltou o abandono; agora
-dormem alli pastores e cabras; se lá estão ainda algumas cantarias é
-pela difficuldade do transporte.
-
-Termina a vereda n’uma passagem empedrada sobre um fosso, vê-se ainda
-bem o relevo da trincheira entre arbustos e silvados, depois a ermida
-toda em ruina e esburacada; a capella redonda tem uma pequena cupula
-de ar mourisco; junto da ermida havia casebres, casa do ermitão e
-albergue de romeiros; telhados cahidos, montões de entulho; silvados
-e carrasqueiros bravios; depois da ermida um planalto talvez de 60
-metros de diametro, ahi dois moinhos de vento antigos, em ruina; em
-volta quatro grandes espaldares erguidos, de 2 metros de altura, por
-10 de comprimento; na borda do planalto as baterias, os reductos; as
-canhoneiras ainda com o pavimento lageado, os perfis em alvenaria
-solida; reconstitue-se ainda perfeitamente a celebre fortificação.
-
-Todos teem ouvido fallar das famosas linhas de Torres Vedras que
-defenderam Lisboa contra a invasão franceza do commando de Massena. A
-primeira linha fortificada dividia-se em tres districtos: 1.ᵒ Torres
-Vedras, 2.ᵒ Sobral de Monte Agraço, 3.ᵒ Alhandra.
-
-Dois pontos estavam especialmente fortes, eram os _fortes grandes_, S.
-Vicente, e o da Serra do Arneiro.
-
-O de S. Vicente tinha 39 canhoneiras, e estava artilhado com 23 peças
-de calibre 6, 9 e 12, e mais 3 obuzes. Podia abrigar 4:000 homens. Além
-dos reductos vejo uns vallados afastados para norte que me parecem
-pequenas trincheiras para abrigo de atiradores. O ponto era, e é ainda,
-importantissimo porque descobre os caminhos em grande extensão.
-
-Outros fortes menores se agrupavam a este, formando um conjuncto
-respeitavel; nas grandes collinas de Olheiros, Outeiro da Forca, Sarges
-(outros dizem Ságes) e Ordasqueira havia reductos; formavam um campo
-fortificado.
-
-Em dezembro de 1846 encontraram-se em Torres Vedras, tropas do Bomfim
-com as de Saldanha, houve combate sanguinolento, com episodios
-terriveis, no dia 22; Saldanha tomou o forte de S. Vicente: Bomfim
-encurralou-se no castello, e começou a atirar para lá com a sua peça e
-o seu obuz; e esburacou a ermida. Na varzea do Amial houve encontro de
-cavallaria, e a de Saldanha, muito superior em numero, acutilou ahi,
-mesmo no adro da ermida, a da Junta do Porto.
-
-Ahi n’esse adro do Amial, estão enterrados setenta e tantos cadaveres
-dos fallecidos em combate, na lucta brava da cavallaria, e no ataque de
-S. Vicente.
-
-Depois da batalha, a ermida ficou em ruina, a villa soffreu immenso, e
-ninguem pensou mais em concertar o templosinho.
-
-Trouxeram a imagem de S. Vicente, que escapou á batalha e ao
-bombardeamento para a ermida do Amial. E lá está, muito tristinha e
-abandonada, n’aquelle interessante templosinho, ao pé de outra imagem
-historica, a da Senhora de Rocamador. Merecia a pena dar alguma
-attenção ao Amial, e tornar mais facil a vereda para S. Vicente; é um
-dos melhores passeios nos arredores de Torres Vedras, a vista é linda,
-e é um d’estes sitios raros onde se allia a bellezas naturaes o encanto
-de recordações da historia patria.
-
-
-Imagens de Santos
-
-Pouca attenção se tem prestado entre nós ás imagens religiosas;
-refiro-me a dois pontos de vista, artistico e archeologico. No Museu
-das Bellas-Artes e no Carmo poucos exemplares ha. É preciso examinar as
-egrejas, para descobrir um ou outro trabalho interessante.
-
-É enorme a quantidade de imagens de santos ainda existentes, atravez
-diversas causas de destruição; tem havido modas tambem na estatuaria
-religiosa; as imagens do renascimento fizeram pôr de parte as mais
-antigas que pareciam rudes; as luxuosas estatuetas á hespanhola, de
-roupagens agitadas todas bordadas a ouro, foram vencidas pelas á
-italiana, mais artisticas e expressivas.
-
-Imagens gothicas de gesto solemne, hirtas, de vago olhar, esculpidas
-em pedra, vieram até nossos dias; em quasi todas as sés ha imagens de
-Nossa Senhora, do seculo XII. A da Sé de Evora com o seu collar e fita
-pendente que parece formada de moedas romanas, as cercaduras bordadas
-do vestuario, os sapatos de bico, tem ares de uma rainha medieval.
-
-No claustro da mesma sé ha estatuas de santos, e o apostolado no
-portico, dos seculos XIII a XV.
-
-Do renascimento, com anatomia estudada, posição ao natural, temos um
-exemplar esplendido no celebre S. Jeronymo, que está no cruzeiro de
-Santa Maria de Belem.
-
-Seguem-se as estatuetas em madeira com lavores a ouro sobre fundo
-preto, ou vermelho, o estofado, genero que foi muito empregado em
-Portugal.
-
-Dos italianos, largas roupagens, cabeças de expressão, attitudes
-artisticas, _póses_ estudadas, ha modelos mui significativos na antiga
-egreja dos Barbadinhos onde actualmente está a parochial de Santa
-Engracia. No seculo XVIII a estatuaria religiosa segue a corrente da
-época; no seculo XIX, a meio, começa a esculptura franceza a dominar
-com as suas fórmas gentis; vem a imagem fina, bem gravada, suavemente
-colorida; vem a elegante estatua da Salette, depois Lourdes, a fina
-dama, de cabeça pequena, fórma esguia, expressão de sonho. Nos templos
-agora por toda a parte domina a estatueta de gesso, e a oleographia
-franceza; o lindo santo risonho e muito penteado, a gentil santinha
-branca, a pretenciosa oleographia na sua moldura de baguette dourada.
-O Senhor dos Passos, de tez livida, negros cabellos, olhar severo,
-passaria de moda, se não estivesse firme em antiga tradição.
-
-Na iconographia religiosa ha, atravez as idades, séries determinadas,
-e assim se póde vêr como os artistas de varias épocas executaram as
-figuras de Jesus Menino, ou imaginaram os rostos de anjos e seraphins.
-
-Quando ha pouco se agitou a questão do santo sudario de Turim viu-se
-bem onde póde chegar o interesse d’estes estudos; n’este caso á origem
-da pintura, e dos seus processos.
-
-Certas imagens, por exemplo, Senhor dos Passos, Senhor Morto, são,
-na grande maioria, da mesma época; outras são de todas as épocas,
-a Virgem, o Crucificado, Jesus Menino. Póde reunir-se uma série de
-imagens da Virgem do seculo XII para cá. E assim do rosto e cabeça
-do divino Nazareno. É interessante vêr como os artistas, atravez os
-tempos, trataram de interpretar o aspecto do sublime mestre.
-
-Ha pouco, n’uma estação de banhos dos Cucus, tive occasião de passeiar
-por Torres Vedras, e andei pelas egrejas a vêr esculpturas e pinturas,
-inscripções, velharias.
-
-A imagem da Senhora do Sobreiro, no Varatojo, é antiga; segundo a
-tradição é do seculo XII; póde ser, e todavia não me parece tão antiga
-como a da Sé de Evora, ou a de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães (a
-primitiva imagem).
-
-Na egreja de S. Pedro vi a imagem de S. Pedro d’Alcantara; rosto,
-garganta e mãos bem esculpidas, expressão de fervor na oração,
-arrebatamento; roupagem larga, em grandes pregas; no todo uma estatua
-elegante, que prende a attenção; talvez de artista italiano.
-
-Na egreja da Graça reparei mais nas estatuas de Santa Monica e Santo
-Agostinho, que estão em nichos no grande retabulo de obra de talha, do
-seculo XVII, interessante exemplo de transição do estylo classico para
-o rococó usado na época de D. João V.
-
-N’essas estatuas de Santa Monica e Santo Agostinho o estofado, ouro
-sobre branco e vermelho, é accentuado por fino relevo, que dá ás vestes
-aspecto opulento; a esculptura é muito correcta.
-
-A estatua de S. Gonçalo de Lagos, na sua capella, é elegante: o
-santeiro fez-lhe a cabeça um tanto pequena, e a cintura delicada; a
-roupagem está bem lançada.
-
-Na Misericordia dei mais attenção ao Senhor Morto, porque me parece o
-mais antigo que conheço; não se repare na encarnação; é uma estatua
-rigida, hirta, feita com certa rudeza mas com attenção. Parece-me
-anterior ao seculo XVI.
-
-Em Santa Maria do Castello vi esculpturas boas: um Jesus Menino bem
-notavel e antigo.
-
-E mais antigas ainda me parecem algumas imagens que vi na ermida da
-Senhora do Amial, a Senhora do Ó, o S. Vicente, e especialmente a
-Senhora de Rocamador talvez do seculo XIII.
-
-Será bom reparar n’estas obras d’arte, mórmente agora por causa da
-invasão franceza de estatuetas e oleographias baratas.
-
-
-Uma cadeira do seculo XV
-
-A pouca distancia, uns tres kilometros, a poente de Torres Vedras
-fica o convento do Varatojo; é um bonito passeio a pé, atravessando
-a varzea, e subindo lentamente a vereda, descobrindo successivamente
-aquella região de serras e cabeços, em grande parte vestida de
-vinhedos, agora n’este mez d’agosto, mui viçosos.
-
-Em trem, o caminho é mais longo, por causa de grande rodeio, seguindo
-pelo campo do Amial, onde ha uma ermida muito antiga e interessante,
-cortando depois os campos do Paul, e subindo a encosta por estrada
-um tanto ingrata; a estrada nova cheia de covas e poeira, a antiga
-coalhada de calhaus.
-
-No convento vi a porta ogival da egreja, tendo aos lados as armas de
-Portugal, e o _rodizio_ emblema adoptado por Affonso V; o claustro,
-bem conservado; os portaes da casa chamada dos retratos que são do
-tempo de D. Manuel; a torre dos sinos de ventanas ogivaes, assim como o
-portal de um pateo interior; vi pinturas em madeira, um frontal de seda
-bordada de origem italiana, me pareceu, e, n’uma pequena dependencia da
-sacristia, entre variados objectos, uma cadeira extraordinaria!
-
-É tradição antiga ter esta cadeira servido a D. Affonso V, quando
-visitava aquella casa. Como me disseram que ninguem a desenhara eu
-tirei um rapido esboço. Póde ser de Affonso V, e até anterior; é em
-carvalho, e está menos mal conservada; algum caruncho, mas mostra-se
-ainda nitido o relevo decorativo; lembra logo o estylo da Batalha. É
-uma cadeira do seculo XV, uma joia do mobiliario portuguez. No _Havard_
-[2] vem o desenho de um exemplar quasi egual; cadeira de armario ou
-cofre, de braços, espaldar direito, ornamentação ogival, exactamente
-como no esplendido movel do Varatojo. Lá se tem conservado a veneravel
-reliquia e está lá muito bem, ligada pela tradição historica, mas seria
-bom fazer uma reproducção para o Museu das Bellas-Artes, onde abundam
-os exemplares de mobiliario portuguez, formando séries importantes; mas
-falta aquella cadeira--avó, unica, segundo creio, em Portugal.
-
-[2] _Dictionnaire de l’ameublement et de la décoration._
-
-
-Brazões da Villa
-
-Vi em Torres tres brazões antigos:
-
-O da Fonte Nova tem a data 1529.
-
-O que está na escada da Camara Municipal tem a data 1518.
-
-O do chafariz dos Canos é muito mais velho, singelo e hieratico, sem
-ousadias decorativas; creio que é do seculo XIV.
-
-O da Fonte Nova apresenta duas torres ligadas por um panno de muralha
-com sua porta: torres de tres andares, com ameias, frestas para jogar
-virotes e béstas, terminando em cobertura pyramidal, com sua bandeira
-quadrada e uma estrella sobre a bandeira; entre as torres um escudo
-real, sem corôa nem castellos, só as cinco quinas com os seus besantes.
-Infra a data 1529 entre duas siglas, talvez F e R.
-
-O que está na Camara mostra duas torres de cobertura conica, ligadas
-pela muralha sem porta; tem barbacan, ameias, sobre as torres bandeiras
-farpadas, sobre estas, estrellas.
-
-Sob a barbacan um festão florido, infra um lettreiro:
-
- Esta casa e quintal
- he do concelho
- 1518
-
-Entre as torres o escudo das quinas.
-
-O do chafariz dos Canos tem tres torres eguaes, separadas entre si, uma
-a meio do escudo mais acima, duas aos lados d’esta, mais abaixo. Cada
-torre sua janella de volta redonda, e quatro ameias; a ameia formada
-por um dado ou cubo, sobre este uma pyramide de base quadrada excedendo
-muito a face do cubo.
-
-Na fonte está outro escudo com o brazão real, as quinas collocadas á
-antiga, as lateraes com as pontas para dentro.
-
-Este escudo da fonte dos Canos parece-me ser o brazão antigo da villa,
-o primeiro, o das _turres veteres_. Depois conjugaram este com o escudo
-real, tirando a torre média e mais alta para dar logar ás quinas, ao
-que parece no tempo de D. Manuel, o reformador do velho foral, pois que
-o brazão que está na escada da Camara tem a data 1518.
-
-
-Archivos
-
-Camara, Misericordia, Egreja de Santa Maria
-
-Quando estive na interessante villa de Torres Vedras lembrei-me de
-visitar archivos, que é onde se encontram reunidos mais documentos
-authenticos da vida local.
-
-Para alguma cousa ha de servir isto de ler lettras antigas, a
-paleographia; porque vêr archivos e cartorios sem os entender é inutil.
-
-Manuel Agostinho Madeira Torres na--_Descripção historica e economica
-da villa e termo de Torres Vedras_--, falla de antigos documentos, e
-na 2.ᵃ edição da sua obra os editores deixaram muitas notas em que se
-referem a velhos pergaminhos e papeis dos cartorios da villa.
-
-A vida antiga, as phases sociaes, as instituições, a evolução
-historica, tudo apparece nos archivos a quem tiver paciencia de
-manusear com attenção codices e avulsos arrumados, quantas vezes
-esquecidos, desprezados, tristes, poeirentos, nos seus armarios.
-
-Agora que tanto se falla de sociologia esses archivos teem ainda
-maior importancia; antes os estudiosos procuravam especialmente os
-grandes acontecimentos e as vidas dos grandes vultos, attende-se
-presentemente tambem á evolução das instituições, ao viver dos povos,
-ás manifestações moraes das classes menos brilhantes. Divaguei,
-pois, algumas horas pelos archivos de Torres Vedras, e vou escrever,
-condensando muito, do que vi.
-
-Comecei pelo archivo da Camara Municipal, que está installado em
-armarios, n’uma casa ampla com muita luz.
-
-Vi lá uma peça de primeira ordem, o Foral da villa, dado por D. Manuel.
-
-O primeiro foral foi concedido por D. Affonso III em 1250, e
-conserva-se na Torre do Tombo.
-
-Do foral de D. Manuel está o original em Torres, e bem conservado,
-lindamente escripto em pergaminho.
-
-Percorri tambem alguns livros de actas da camara, bella série que
-começa em tempo d’el-rei D. Sebastião. Estes codices são importantes,
-porque não se contentaram em lavrar actas, mas incluiram o registo de
-documentos de maior significação. Ora o municipio e comarca de Torres
-foram de grande importancia em tempos volvidos, com a especialidade
-proveniente da preponderancia da Casa das Rainhas. Assim encontrei alli
-noticias de Santarem, Alemquer, etc., que não esperava achar; assim,
-por exemplo, foi o corregedor de Torres que em 1640 teve o encargo
-de regular a segurança e a administração em Cascaes, Alemquer, etc.,
-terminado o dominio hespanhol.
-
-Do tempo dos Filippes estão registados muitos documentos sem duvida
-valiosos.
-
-Como se vê, o archivo municipal de Torres contém dados de valor para a
-historia do municipio e para a politica geral do paiz.
-
-E mais, é claro, os que importam á vida municipal, os
-economico-administrativos, os que se referem a obras publicas, viação,
-preços de generos, etc.
-
-Visitei tambem o archivo da Santa Casa da Misericordia.
-
-Se entro sempre com respeito n’um archivo municipal, que é onde está o
-documento do homem, rico ou pobre, nobre ou plebeu, entro com veneração
-e amor n’um cartorio de Casa de Misericordia: alli está a vida do
-pobre, do enfermo, do engeitado, do encarcerado; alli está a meu vêr
-a instituição mais gloriosa que tem o povo portuguez. A beneficencia
-moderna nas suas multiplas manifestações não attinge a perfeição d’esse
-maravilhoso instituto que corresponde perfeitamente ás necessidades
-sociaes.
-
-O livro mais antigo que vi data de 1608. Vi livros de tombos, accordos,
-receita e despeza, compromissos, e de enterros. Ha um Tombo grande,
-que é um formidavel infolio, do tempo de D. João V. Tem medições de
-propriedades urbanas e ruraes que o tornam precioso. N’este volume está
-a descripção minuciosa da egreja e Casa da Misericordia, feita em 1730.
-No termo de Torres havia hospitaes e albergarias na idade média, no
-Amial, Carvoeira, Turcifal, S. Gião, Ribaldeira, Azueira, S. Mamede e
-Dois Portos.
-
-É extraordinario o que se fez em Portugal no ramo de beneficencia
-publica, nos primeiros seculos da monarchia. Creio que foi no seculo
-XVI, principalmente, que se realisou a concentração nas Misericordias
-de todas essas pequenas instituições, albergarias, gafarias, etc. De
-todas vi noticias no archivo da Misericordia.
-
-Finalmente fui vêr, na amavel companhia do Prior, o archivo de Santa
-Maria do Castello. Esta notavel egreja, antiga capella real, conserva
-ainda o seu archivo! é caso raro em Portugal. Porque os archivos
-parochiaes, quasi todos, foram concentrados pelos prelados, e jazem
-ignorados nos Seminarios, alguns sem a minima organisação. Este lá
-está nas suas arcas velhinhas, conservado e limpinho, amado pelo digno
-parocho. Vi lá pergaminhos do seculo XIV, do bom rei D. Diniz, de 1307
-um d’elles, e muitos dos seculos XV e XVI. É bem singular um archivo
-parochial com os seus velhos livros, amarellecidos pelo tempo, dos que
-nascem, dos que se casam, dos que morrem; dos que passaram n’este mundo
-de esperanças, de alegrias, de soffrimentos.
-
-
-No Varatojo
-
-Na sala do capitulo vi dois lettreiros:
-
- Aqui descansão
- as cinzas do Ven.ˡ
- P. F. Antonio das
- Chagas. Miss. Apost.
- e instituidor deste
- Semin.ᵒ faleceu a
- 20 de outubro de 1682.
-
- * * * * *
-
- Fr. Joaq.ᵐ do Espirito Santo
- restaurador deste
- Seminario
- Fal. em Santarem
- 3 d’agosto 1878
-
-Na quadra, perto da porta que deita para a matta:
-
- Aqui jáz Felipa do
- Reguo molher de Nuno
- de Sampaio... 1530
-
-Reparei na egreja nas seguintes pinturas:
-
- Na capella-mór:
-
- Annunciação
- Adoração dos reis
- Adoração dos pastores
- _Noli me tangere._
-
- Na sacristia:
-
- Milagre de Santo Antonio. O burro ajoelhado ante a sagrada particula
- Pentecostes.
-
- Na ante-sacristia:
-
- presepe, pequeno quadro em madeira, de trabalho fino, um tanto
- estragado.
-
-
-
-
-A quadra, arcada e varanda coberta, o travejamento assente sobre
-columnellos, está bem conservada.
-
-Para esta quadra ou pequeno claustro diz uma casa a que chamam dos
-retratos, que me parece ter sido uma aula ou casa do capitulo.
-
-O portal desta casa é em manuelino, de trabalho apurado e em boa pedra;
-é uma peça nitida. Nesta casa está uma pintura em madeira, o Calvario.
-
-A moldura do quadro é de pedra lavrada, tambem em manuelino; pareceu-me
-uma antiga porta ou janela aproveitada para alli.
-
-Estes trabalhos teem intima relação com os portaes de S. Pedro, de S.
-Thiago, ediculo dos Perestrellos, etc. Vê-se que em Torres Vedras houve
-na primeira metade do seculo XVI artistas trabalhando com methodo e
-gosto.
-
- * * * * *
-
-A porta principal da egreja do Varatojo é ogival, singela, aos lados
-tem brazões com as armas de Portugal e o rodisio de D. Affonso V.
-
-As ventanas da torre são ogivaes.
-
-E vi n’uma córte contigua um portal antigo tambem de ogiva.
-
-Por isto se vê bem que este antigo edificio soffreu reconstrucções.
-
-A quadra deve ser da primitiva, apezar de não apresentar ogivas; o
-travejamento é singular; no todo singelo ha uma pureza, uma sobriedade
-que nos incute ideias de paz e recolhimento; como na matta, de vetusto
-arvoredo, frescas fontes murmurejantes, e clementes horizontes.
-
-Bello sitio para dulcificar maguas e socegar corações attribulados. Por
-aqui passeou a sua grande dôr e cruel desesperança um rei, D. João II,
-depois do desastre de Santarem.
-
-
-Uma inscripção moderna
-
-Na egreja de S. Pedro, proximo ao pulpito, repousa Luiz da Silva
-Mousinho d’Albuquerque, sob campa rasa, com o lettreiro:
-
- AQVI IAZ
- LVIZ DA SIL
- VA MOVSI
- NHO DE AL
- BVQUERQ
- QVE FALES
- CEO NESTA
- VILLA DE TOR
- RES VEDRAS
- AOS XXVII DE
- DEZEMBRO
- DE MDCCCXLVI
-
- * * * * *
-
- REQ. I. PAC.
-
-É singular como em Torres e em pleno seculo XIX se lavrou tal
-inscripção; mesmo o caracter da lettra é archaico; parece que o
-entendido que fez o modelo para o lavor do canteiro poz esmero em
-imitar o antigo, e muito antigo.
-
-Porque n’esta mesma egreja se encontram lettreiros dois seculos mais
-velhos sem tantos archaismos.
-
-
-Sinos
-
-Vi os de S. Pedro.
-
-Um tem na fimbria _Sanctus Deus_ e o nome Miguel Delmaco.
-
-Outro: _apprehende arma et scutum_.
-
-Miguel Delmaco, 1673.
-
- * * * * *
-
-Sineta: tem a data 1802.
-
-
-Quinta das Lapas
-
-A quinta está na branda encosta da serra da Achada. Esta serra e as
-outras d’estes sitios são grandes collinas mais ou menos declivosas, de
-100 a 150 metros d’altura sobre os valles que as separam. Ás vezes as
-faldas das collinas alastram-se, desdobram-se em suaves encostas; em
-pontos alargam-se os valles em varzeas ferteis. O monte coroado pelas
-ruinas dramaticas do castello de Torres Vedras está rodeado de varzeas
-amplas. Nos banhos dos Cucos a chan, onde estão os hoteis, o casino,
-o jardim, o edificio das thermas, está cercada de montes de forte
-declive, semelhando uma cratéra, quasi completa, rota apenas por breve
-chanfro por onde passa o rio e a estrada que leva a Torres, e uma fraca
-depressão, mais a sul, que vae ter ao caminho de ferro, na visinhança
-dos pequenos tuneis. O terreno de quasi todas estas chans é de alluvião
-moderna, feita pelo Sizandro. O solo em que assenta a parte baixa da
-villa está hoje metro e meio mais alto que no seculo XVI, o que se
-manifesta em antigas construcções muito soterradas.
-
-As varzes são ferteis e bem cultivadas; nas vertentes agriculta-se
-tambem, as vinhas ostentam-se viçosas; pinhaes forram grandes trechos
-das collinas, apresentando arvores bem desenvolvidas.
-
-E bom seria que mais semeassem ou plantassem; um pinhal é util e
-agradavel, dá sombra e aroma hygienico; serve a lenha, a rama, a pinha;
-a moderna medicina com muita razão recommenda o ar do pinhal, e, tem-se
-visto nos ultimos annos, o córte de pinhaes para combustivel, para
-construcção, para supportes de galerias mineiras, dá bom dinheiro.
-
-Até parece que dá saude o aspecto de um pinheirinho verde, de fresco
-avelludado, de perfume resinoso. Por isto pinheiro cortado, pinheiro
-semeado, e quantos mais pinhaes melhor, por esses montes onde o sol, o
-solo e a aragem se encarregam de o alimentar; se elle cresce que é um
-encanto até nos areaes da beira-mar onde a rajada do oceano chega a ser
-um açoute; porque o bom pinho formoso e hygienico não exige cuidados
-de cultura.
-
-Por entre pinhaes mesclados de algumas vinhas e outras culturas segue
-a estrada de Torres para as Lapas; a principio do caminho rompe o
-bucolismo da paisagem a massa alvacenta da villa, e o seu outeiro
-escuro encimado pelas velhas muralhas do castello, os altos muros
-negros da sua alcaçova ou palacio, em tragica derrocada. Faz impressão
-aquella ruina; suggere tempos idos, historias mui velhas.
-
- * * * * *
-
- Torres mais antiga, já condado,
- Por turdulos se crê ser erigida,
- Por dote das rainhas, é morgado,
- E de muitas já foi favorecida,
- O Beato Gonçalo lá enterrado
- Por milagres a faz ser mais luzida,
- Assim como João a decorou
- Nas côrtes que já nella celebrou.
-
-Como diz o bom e patriota Silveira no _Côro das Musas_.
-
-Passa uma curva da estrada, e deixa-se de avistar casaria nova e
-muralhas velhas; segue o caminho na verde paisagem campesina.
-
-A estrada é boa, pouco frequentada, com aspectos variados, dominando o
-verde pinhal. De subito uma casaria branca de aldeia, uma egreja, e
-na encosta o palacio, bem ao sol, com as suas dependencias, os seus
-jardins, pomares, vinhas e matta de arvoredo alto.
-
-Vê-se uma capella de boa construcção e logo uma entrada monumental, de
-ampla arcada; entra-se no terreiro; a um e outro lado edificações que
-são dependencias do palacio, na frente a fidalga residencia com larga
-escadaria e desafogada varanda. Todavia dá logo a impressão de edificio
-incompleto.
-
-Á monumental entrada, á elegante escada não corresponde o edificio
-nobre que parece acanhado e por acabar. Houve alteração no plano,
-com certeza. A fachada que deita para o jardim é mais harmonica; a
-mansarda, os frisos azulejados dão-lhe graça.
-
-O palacio, dizem, foi erguido pelo primeiro marquez de Alegrete,
-Manuel Telles da Silva, conde de Villar Maior. Foi feito marquez
-por D. Pedro II em 1687 (v. _Diario de Noticias,_ de 17 de junho de
-1902). Provavelmente foi começado, houve demorada construcção, soffreu
-alterações; a mansarda será do meio do seculo XVIII; é possivel que a
-escadaria seja da época de D. João V. Para admirar seria que nesses
-tempos um Telles da Silva, em poucos annos, observando um só plano,
-conseguisse erguer um palacio, chamados, como eram, os principaes
-da illustre familia, para altos cargos no reino, no ultramar e no
-estrangeiro.
-
-Existe na matta uma capella, incompleta, dedicada a Santo André Avelino
-pelo conde de Tarouca, Fernando Telles da Silva, em 1778. E ha, noutro
-ponto da matta, uma ermida rustica, com seu alpendre, um pouco mais
-antiga.
-
-No jardim alegretes e assentos são azulejados, representando scenas de
-caçadas.
-
-As salas teem tectos de madeira e rodapé alto de azulejos, como as do
-palacio do Correio-Mór, perto de Loures, e as do casal do Falcão, perto
-de Carnide, agora felizmente restaurado, segundo ouvi dizer, sob a
-direcção do conhecido e estimado architecto sr. Raul Lino.
-
-Nos jardins vi magnificas hortenses e na matta ulmeiros, pinheiros
-mansos, seculares medronheiros, sobreiros veneraveis. O meu amavel guia
-disse-me os nomes de algumas arvores, conservados na tradição familiar;
-o mais antigo é o sobreiro dos quatro irmãos, assim chamado porque a
-pouca distancia do solo o tronco se divide em quatro pernadas reaes,
-cada uma d’ellas como uma grande arvore.
-
-Ha uma fonte de agua ferrea na matta, e outra numa alameda de ulmeiros,
-com um grupo em marmore, veado filado por um rafeiro; no outro extremo
-d’essa alameda deliciosa fica o jogo da bola.
-
-Essas salas de grande pé direito, de chão ladrilhado, de lambris de
-azulejo, e tectos de madeira, conservando o ar antigo, não estão
-vasias ou despidas. Estas, felizmente, teem muito que vêr e respeitar.
-
-Vi moveis antigos, cadeiras d’espaldar com os brazões de familia,
-grandes leitos de pau preto, com torcidos e lavores.
-
-Os donos da casa fizeram abrir armarios e eu vi desfilar pratas antigas
-marcadas; ceramicas e crystaes, porcellanas de Sèvres, de Saxe, da
-India e Japão, de verdade e alto valor. Vi um copo de crystal lapidado
-com uma vista de Santarem, pintada no crystal, bem interessante: e
-um dragão de prata, perfumador enorme, trabalho pouco visto, que me
-disseram ser feito em Moçambique.
-
-Nas paredes retratos de pessoas de familia, e que familia! esta dos
-Telles da Silva! É vêr ahi nas genealogias as séries de paginas com
-descendencias e arvores de costado mais frondosas que o sobreiro dos
-quatro irmãos. Até o venerando D. Manuel Caetano de Sousa escreveu uma
-obra em dois volumes (Bibliotheca Nacional de Lisboa. Manuscriptos,
-fundo antigo, C-3-16 e 17. N.ᵒˢ 1048-49), a respeito d’esta familia
-com o seguinte titulo bem curioso.--_Corôa genealogica, historica e
-panegirica da Excellentissima Casa de Tarouca formada do purissimo ouro
-dos Silvas, illustrada com a esplendidissima pedraria dos Menezes,
-adornada com as augustissimas flores da Magestade, fechada com
-elevados semi diademas da Heroicidade, terminada na altissima esphera
-da Soberania, consagrada com a sempre venerada cruz da Santidade,
-dedicada ao ex.ᵐᵒ sr. D. Estevão de Menezes filho primogenito dos
-ex.ᵐᵒˢ srs. condes de Tarouca João Gomes da Silva e D. Joanna Rosa de
-Menezes--._
-
-Pertence effectivamente a esta familia o celebre Beato Amadeu que tão
-grande fama conquistou na Italia.
-
-Que singular encanto o de ouvir a dona da casa explicando alguns
-retratos de familia! Que consolação, neste paiz de gente estragada,
-encontrar um ninho conservado! Que rara impressão no conjuncto,
-milagroso entre nós, de tantas recordações e tradições, vivas, na
-mente, na linha, nas feições, na voz da herdeira lidima!
-
-A um marquez de Penalva dizia o Tolentino:
-
- Hontem soube o que podia
- Estilo suave e brando
- E quanto podeis fallando
- Eu o vi na Academia
- Nas almas fogo acendia
- Vossa discreta oração,
- Sobre a minha pretenção
- Vos peço que assim oreis,
- E que ao principe falleis
- Como fallaes á nação.
-
-Pois ainda está representado na familia o estylo suave e a discreta
-oração, louvados pelo poeta.
-
-Poetas houve tambem nesta familia; poetas e eruditos, homens de
-guerra e de diplomacia; na Bibliotheca Lusitana estão inscriptos os
-notaveis nas lettras e sciencias. Por estas salas, jardins e bosques
-passearam academicos, não faltam sitios para tranquilla meditação. E
-no bello terreiro desafogado com certeza se trabalhou na nobre arte da
-cavallaria; talvez se corressem touros e jogassem cannas; houve tambem
-na familia cavalleiros notaveis, mestres reconhecidos na equitação,
-tratadistas na especialidade.
-
-Porque se chama quinta das Lapas? Ha por aqui algumas lapas, grutas,
-cavernas? Parece que houve lapas a que se attribuiam lendas de
-mouros. Perto de casa ha uma vinha, um grupo de pinheiros mansos, uma
-elevação de terreno de poucos metros de altura; ahi umas cavidades
-consideraveis. Parece que em tempos alguem fez excavações; acharam
-cacos, louças partidas. Tudo se extraviou.
-
-Seria uma mamunha? Um d’aquelles tumulos prehistoricos, em que as
-sepulturas eram cobertas por um monticulo artificial? Não sei, o que
-hoje se vê pouco significa.
-
-Numa construcção ou pavilhão de fresco perto do jardim fui encontrar
-no embrechado que reveste as paredes interiores alguns exemplares de
-contas vitreas coloridas de fabrico egual ao das contas de Chellas, da
-capella (desapparecida) das Albertas, e da cascata da Quinta do Meio.
-Aqui tambem estas singulares contas são acompanhadas de cylindros,
-discos, etc., de vidro escuro. Continúa para mim a ser um problema a
-proveniencia de taes objectos.
-
-
-O caminho dos Cucos
-
-Pela avenida ampla, arborisada, chega-se á estação do caminho de
-ferro, que nos fica á direita; está á vista o castello ennegrecido
-e escalavrado, no seu morro severo destacando entre as collinas; o
-caminho passa sob a via ferrea; passa a ponte do Rei, sobre o Sizandro;
-vamos entre vinhas e arvoredos; agora a arcada do aqueducto; á direita
-uma ermida antiga com umas construcções, ao lado um portão com seus
-enfeites; era a albergaria de S. Gião, ou Julião. Lá se conservam
-inscripções que nos dizem que os sapateiros da villa no anno de 1359
-(era 1397), construiram o modesto albergue, cuja instituição se
-incorporou na Misericordia em 1586. Os confrades de S. Gião ahi ouviam
-missa aos domingos. Um respeitador de antiguidades renovou a inscripção
-em 1849.
-
-Pouco adiante, á esquerda da estrada, indo para os Cucos, existe uma
-quinta de construcção vistosa, a quinta das Fontainhas, com seu terraço
-e jardim, onde se lê um lettreiro, na parede occidental da casa, que
-diz:
-
- Sua Alteza Real
- O sern.ᵐᵒ principe o sr. D. João
- e a seren.ᵐᵃ princ.ᵃ
- a sr. D. Carlota Joaquin
- e o sr. infante D. Pedro Carlos
- jantaram n’esta quinta
- no dia 16 d’outubro
- de 1797.
-
-Este infante D. Pedro Carlos tinha então dez annos. D. Marianna
-Victoria, filha de D. Maria I, casou com D. Gabriel, infante de
-Hespanha. Deste casamento nasceu o infante de Hespanha D. Pedro
-Carlos de Bragança e Bourbon, que foi almirante em Portugal. Nasceu
-em Aranjuez em 18 de julho de 1787, e falleceu no Rio de Janeiro a 26
-de maio de 1813. Este infante casou, no Rio, em 1810, com D. Maria
-Thereza, princeza da Beira.
-
-Os banhos dos Cucos são conhecidos de ha muito; a virtude singular
-d’esta agua já em épocas remotas attrahia enfermos.
-
-Ainda existem as casinholas onde se abrigavam os miseros banhistas.
-
-Hoje as installações hydrotherapicas das thermas dos Cucos são boas,
-feitas com largueza, direi mesmo com generosidade. O edificio das
-thermas, a casa dos machinismos, o amplo casino, os dois grandes
-chalets, e outras construcções, rodeiam um grande rocio ajardinado e
-arborisado. A grande obra começou em novembro de 1890; em julho de
-1892 já as thermas funccionavam, provisoriamente; em 15 de maio de
-1893 realisou-se a inauguração. Todavia não está cumprido o programma
-inicial, faltam chalets, e recreios para os banhistas, ou para as
-pessoas de familia que acompanham os enfermos. O principal está feito,
-e isto deve-se á coragem do opulento proprietario sr. José Gonçalves
-Dias Neiva. Á coragem e á generosidade, porque me affirmaram que embora
-a frequencia seja grande já, todavia nem 2% rende o capital alli
-empregado.
-
-Como o estabelecimento thermal fica a dois kilometros de Torres Vedras,
-muitos banhistas ficam nos hoteis da villa, que são regulares, e em
-algumas casas particulares.
-
-A villa lucra com isto dezenas de contos annualmente, todavia nem o
-municipio nem os habitantes se esforçam por tornar a villa aprazivel
-aos seus hospedes; nem commodidade, nem distracções; nada que realce
-a natural belleza d’aquelles sitios. Bem lindos são os arredores da
-villa, convidando a pequenos passeios campestres, mas raras as estradas
-que prestem, as de macadam cheias de poeira, as primitivas de barrancos
-e pedregulhos. Uma das questões locaes é o abastecimento de aguas
-potaveis; esta porém não importa muito aos banhistas, que quasi todos
-consomem a agua dos Cucos. Eu não bebo d’outra; faz bem e é agradavel,
-com o seu ligeiro sabôr salgado. Liga-se optimamente com o vinho. É uma
-excellente agua de mesa que os sãos, não só os enfermos, tomam com
-agrado. Melhoram o appetite e facilitam a digestão.
-
-Esta agua, que tem o maravilhoso lithio, é _muito pura_ segundo a
-analyse microbiologica, feita em 1904, pelo illustre chimico Carlos
-Lepiérre.
-
-Os pobresinhos teem tratamento gratuito nos Cucos; a poucos utilisa
-esse beneficio porque nos Cucos não encontram albergue ou hospital.
-Para isto me parece deveria olhar a Camara Municipal e a Misericordia
-de Torres Vedras; proximo dos Cucos um albergue gratuito para pobres
-seria um grande bem. E ainda outro de preço muito moderado, uma
-hospedaria simples, a simplicidade não exclue o asseio e hygiene,
-de alimentação singela e mobilia barata, onde os menos remediados
-encontrem agasalho.
-
-Parece facil, isto. Naquelle chanfro do terreno que liga a grande
-varzea dos Cucos ao sitio dos pequenos tunneis do Caminho de ferro
-seria facil construir modestos albergues, pequenas moradas de
-construcção economica.
-
-É generoso o coração do sr. Neiva, consideraveis os seus bens de
-fortuna, e effectivo o seu altruismo, mas em emprezas destas é bom
-interessar differentes entidades, para que se uma esmorecer, outras
-continuem a obra, a util obra começada.
-
-Encontrou o sr. Neiva um ajudante dedicado no dr. Justino Xavier da
-Silva Freire, director medico das thermas. É um clinico sensato,
-naturalmente lhano, muito accessivel, attencioso aos muitos enfermos.
-Que longas narrativas das massadoras enfermidades elle escuta com
-delicada paciencia, conseguindo extrahir das confusas exposições a
-historia da doença, o fio do caso, os antecedentes do enfermo. Os seus
-relatorios annuaes das thermas são muito instructivos e tão nitidamente
-escriptos que qualquer cliente os comprehende, aproveitando com a
-leitura.
-
-As aguas dos Cucos são chloretadas, sodicas, bicarbonatadas,
-sulfatadas, lithinicas, etc. Encontram os chimicos nellas o brometo de
-sodio, o chloreto de sodio, os bicarbonatos de calcio, de estroncio, e
-de manganez, o chloreto de magnesio. Pois esta complexidade toda produz
-uma agua limpida, muito potavel, agradavel ao paladar. Mas o que lhe dá
-virtude primacial é o chloreto de lithia que em 1:000 grammas entra por
-0,0212.
-
-É isto que torna esta agua preciosa para gottosos e rheumaticos. Faz
-bem aos intestinos, e combate a obesidade.
-
-
-Casa dos Clerigos pobres
-
-Junto á egreja de S. Pedro está a casa da irmandade dos Clerigos pobres.
-
-Tem nas paredes quadros em azulejo que estranhei um pouco pela
-composição artistica. São copias de gravuras; o ingenuo pintor até
-copiou as assignaturas da chapa
-
- _Author Claud. Coell. delin.
- Fran. Houat. sculp._
-
-que significa Claudio Coelho desenhou e Francisco Houat gravou. No
-tecto d’esta casa estão pintados em tela os quatro evangelistas.
-Acham-se mencionados nas _Memorias de Volkmar Machado_ (pag. 318); são
-de Bernardo Antonio de Oliveira Goes. O pae d’este, Manuel Antonio de
-Goes, era pintor de figura e pintou muitos azulejos. Vi outras telas
-que me pareceram do mesmo pincel na egreja da Graça.
-
-
-O Asylo da Conquinha
-
-Fica este asylo a breve distancia de Torres, uns vinte minutos de
-agradavel passeio a pé. Segue-se a estrada da Varzea, entra-se no amplo
-valle, vestido de culturas, arvoredos fructiferos, bellos vinhedos;
-ao lado da estrada fica um edificio moderno de aspecto alegre e
-confortavel, convidativo, é o asylo de S. José; como o sitio se chama
-a Conquinha, é vulgarmente conhecido por este nome. Santa instituição!
-Foi este asylo fundado e dotado pela benemerita D. Maria da Conceição
-Barreto Bastos, fallecida em 21 de maio de 1901. Velhinhos
-impossibilitados de trabalhar encontram aqui agasalho e sustento,
-abrigo tranquillo nos seus ultimos annos de vida.
-
-A casa é cercada por ampla quinta bem cultivada com seus jardins
-floridos, e bellas arvores de fructa. Tudo muito asseiado e
-confortavel; mais me agradou ainda o ar satisfeito dos asylados,
-felizes naquelle ninho de caridade. A fundadora instituiu tambem uma
-escola, na villa, para meninas, com ensino gratuito; a sua memoria deve
-ser abençoada; o seu nome gravado no marmore dos benemeritos, e no
-coração de todos os que veneram estes bons exemplos do incondicional
-altruismo christão. Quando alli estive, visita casual, era gerente ou
-director do asylo, o sr. conego prior Antonio Francisco da Silva, cujo
-nome ouvi cercado pelos asylados da Conquinha com palavras de respeito
-e gratidão.
-
-
-Ruços, além!
-
-Preparava-se a jornada de Ceuta.
-
-Havia cabeças enthusiastas, e cabeças duvidosas; timidos e prudentes
-ao lado dos muito ousados. El-rei D. João I estava em Cintra com os
-infantes; mandou convocar os do Conselho para Torres Vedras; eram
-o conde de Barcellos, o condestavel D. Nuno, os mestres das ordens
-de Christo, de Santiago e d’Aviz, o prior do Hospital, Gonçalo Vaz
-Coutinho, Martim Affonso de Mello, João Gomes da Silva, muitos outros
-senhores e fidalgos.
-
-Nesses dias Torres Vedras acolheu muitos cavalleiros de espora dourada,
-os grandes senhores territoriaes e militares do paiz.==El Rey partio
-de Cintra, e foy folgando por aquella comarca de Lisboa caminho de
-Torres Vedras (isto conta o Azurara, na _Chronica de D. João I_, parte
-3.ᵃ, cap. 24) e antes disto chegando El-Rei a _Carnide_, o infante Dom
-Enrique que muito desejava por seu corpo fazer alguma cousa aventejada,
-chegou a seu padre e disse: _Senhor, primeiro que por estes feitos
-mais vades adiante, porque com a graça de Deos vem já por tal via, que
-viram a boa fim, eu vos peço por mercê que me outorgueis duas cousas. A
-primeira que eu seja hum dos primeiros, que filhe terra quando a Deos
-prazendo chegarmos davante da cidade de Ceita; e a segunda que quando
-a vossa escada real fôr posta sobre os muros da cidade, que eu seja
-aquelle que vá primeiro por ella, que outro algum._
-
-Isto disse em Carnide o infante D. Henrique a el-rei D. João; estranho
-requerimento para a morte na vanguarda extrema, bem natural ao forte
-coração do rapaz. Chegou el-rei a Torres Vedras, e logo teve uma falla
-com o condestavel.
-
-Este approvou o plano e prometteu ao rei a sua influencia favoravel...
-
-Tratou-se logo do corregimento da casa para o conselho _a qual era hua
-sala dianteira, que está em aquelles paços de Torres Vedras, onde está
-a capella_.
-
-Numa quinta-feira o rei e seus filhos ouviram missa do Espirito Santo,
-naturalmente na egreja de Santa Maria, que era capella real.
-
-Celebrou-se o conselho; foi elrei que publicou o fim da reunião; depois
-fallou o condestavel approvando a jornada, e o infante D. Duarte no
-mesmo sentido. Mas havia gente duvidosa, novos que temiam o risco, e
-criticavam o arrojado plano. Então surgiu um dito que fez época.
-
-João Gomes da Silva, que era homem _forte e ardido, cujas palavras
-sempre traziam jogo e sabor_, levanta-se no meio dos indecisos e
-exclama dirigindo-se a elrei==_Quanto eu, Senhor, não sei al que diga
-senão, ruços, alem_, apontando para o sul, na direcção do Algarve
-d’alem mar, e isto dizia porque elrei e os mais dos que alli estavam
-tinham já as cabeças cheias de cans. Elrei e os mais riram-se, e assim
-folgando fizeram fim de suas falas==. Terminaram o conselho a rir-se,
-os valentes e audazes; iam para Ceuta, para a conquista africana, o
-inicio glorioso dos descobrimentos, para esse triumpho e sacrificio
-incomparavel da nacionalidade portugueza. Pois esse grito _ruços,
-alem_, ouviu-se nos paços reaes de Torres Vedras. (Azurara, parte 3.ᵃ
-da _Chronica de D. João I_, cap. 26).
-
-
-Passeio a Santa Cruz de Ribamar
-
-No dia 27 de setembro de 1905, depois do banho e do almoço, em commodo
-trem, fui a Santa Cruz.
-
-A estrada vae ao campo do Amial, pelo sopé do monte de S. Vicente, que
-nos fica á direita; depois pela esquerda a falda do Varatojo. A estrada
-segue na grande varzea, comprida e ampla, importante, onde o Sizandro
-abre o seu leito.
-
-Vinhas magnificas, cepas fortissimas carregadas de esplendida uva. A
-estrada incómmoda pela muita poeira. Fiz uma paragem na quinta dos
-Chãos, á direita do caminho. Pouco dista da estrada, bem accessivel
-ao trem. A velha ermida serve de armazem; só me chamou a attenção uma
-pedra com lettreiro, do seculo XV, solta, na pequena sacristia; não
-tirei apontamento porque imaginei que a tinha visto publicada nas
-_Memorias de Torres Vedras_. Verifiquei depois que não está! seria
-bom, e creio que facil, recolher a pedra na Camara Municipal, onde
-se guardam já algumas pedras significativas na historia de Torres
-Vedras. Alguns homens cavavam; eu vi a descoberto um grosso paredão de
-alvenaria em argamassa mui antigo.
-
-No terreno d’esta propriedade teem apparecido por vezes vestigios
-romanos; provavelmente existiu alli alguma _villa rustica_.
-
-Seguindo o passeio. Passamos por boas propriedades, e alguns grupos de
-casaes.
-
-Os campos estão animados, as estradas concorridas; é uma festa agora; a
-grande festa das vindimas. Tudo sorri com os bellos racimos do divino
-Baccho, doce e aromatico.
-
-Calcula-se em 80:000 pipas a producção do vinho no termo de Torres
-Vedras; mas este anno ha crise de fartura, os preços estão muito
-baixos; queima-se por isto muito vinho para fazer aguardente, que se
-vende de 80 a 85 mil réis a pipa de 534ˡ,24, posta em Villa Nova de
-Gaya.
-
-Todos estes terrenos são de alluvião moderna, mas passadas tres quartas
-partes do caminho começa a apparecer a areia maritima. Cultiva-se
-milho, feijão frade, grão de bico.
-
-Passamos junto de alguns moinhos em grande businada, as cordas cheias
-de louça, dezenas de vasos de barro; os moleiros d’estes sitios são
-grandes amadores d’esta musica.
-
-Passamos por alguns pinhaes, e chegamos a Santa Cruz, logar formado por
-algumas casas antigas, e bastantes modernas.
-
-É a praia balnear de Torres Vedras. Pessoas abastadas da villa e de
-logares proximos aqui mandaram construir vivendas, nas arribas de ar
-lavado pela brisa do Atlantico. A praia é bonita; uma fita de areia
-branca, de brando declive, abrigada pelas escarpas não muito altas,
-de aspecto severo, formadas pelas rochas de colorido variado. Um
-grande rochedo alteroso destaca na praia. Foi accessivel em tempo,
-porque ainda se observa a certa altura um lanço de escada talhado na
-rocha; mas as vagas esboroam a base. Talvez servisse de atalaia para
-descobrir corsarios mouriscos, ou marcha do peixe, da baleia, por
-exemplo, frequente por este mar em tempos idos. Pelos piratas mouros
-ou corsarios argelinos foi a costa visitada, parece que com certa
-frequencia, ao que dizem velhas chronicas. Do alto da arriba o mar
-apresenta o aspecto de amplo golpho; a norte prolonga-se, entrando
-muito pelo oceano, a peninsula de Peniche, e em frente avistam-se
-nitidamente os rochedos das Berlengas e Farilhões. Notei aqui um facto
-talvez interessante; avista-se um largo trecho da costa, escarpas
-de 40, 30 e 20 metros de altura; em certo ponto a escarpa é mais
-baixa, chega talvez a quinze metros; por ahi sobem as areias que vão
-alastrar-se terra dentro; vê-se a duna encostada á rocha nos outros
-pontos que não vence; pára ante o obstaculo; alli vence, entra pelo
-chanfro.
-
-E poderá ainda marcar-se a historia da invasão porque na chronica do
-Purificação ao tratar de Ribamar e do convento de Pena Firme se mostra
-que ainda no seculo XVII o terreno não estava vestido pelo manto de
-areia em tamanha extensão.
-
-Logo de entrada encontrei, bem agradavel surpreza, o sr. Rodrigues
-da Silva, cavalheiro que eu já conhecia de Torres Vedras; é sabedor
-da historia da villa e termo, amador de antiguidades, e muito amavel
-companheiro; com elle fui vêr o monumento funerario mandado fazer
-por Valerio e Julia, que se conserva no logar marcado nas _Memorias
-da Villa de Torres Vedras_ (pag. 20 da 2.ᵃ ed.), e no _Corpus_. A
-distancia de poucos metros vê-se uma sepultura, algumas lages cravadas
-no solo, marcando perfeitamente o vão sufficiente para um corpo humano.
-Parece que em tempos se viam alli vestigios de outras sepulturas; a que
-existe agora está á beira da escarpa; mais alguns annos e o embate das
-vagas a fará desapparecer.
-
-Na ermida de Santa Cruz, ou de Santa Helena, vi uma imagem d’esta santa
-que me pareceu anterior, pela rudeza e ingenuidade da esculptura, ao
-seculo XVI.
-
-
-Na missa e no mercado
-
-No domingo, 14 d’agosto de 1904, assisti á missa na egreja de S. Pedro.
-Muita gente, com bastante respeito. Á sahida fiz de janota parado á
-porta da egreja para vêr o desfilar dos devotos. Primeiro os homens
-dos campos, das vinhas, com seus varapaus; mulheres do campo de chale,
-lenços mal postos na cabeça, á larga. Seguiram as mulheres da villa;
-caras agradaveis poucas, expressões duras não estupidas nem alvares;
-na grande maioria cabellos castanho-escuro; cabellos pretos mais
-raros; algumas cabelleiras ruivas, e algumas pelles sardentas.
-
-Cabellos corredios, na maioria, poucos em madeixas.
-
-Alguns olhos azues, pelles avermelhadas.
-
-Homens de construcção regular, as mulheres de thorax estreito, pouco
-seio, mal geitosas.
-
-Durante a missa os homens não largam os varapaus; quando ajoelham vê-se
-grande numero, porque se encostam, e não deitam no chão o inseparavel.
-
-Usam o simples marmelleiro ou zambujeiro, raros os paus ferrados.
-
-As mulheres usam poucos ornatos, e pouco ouro.
-
-No terreiro proximo da egreja faz-se o mercado. Vendiam melões,
-melancias, uvas lindas, brunhos varios, maçãs grandes, variedade de
-peras, aboboras, tomates, pouca hortaliça.
-
-No mercado de peixe, atraz da egreja, sardinha e sarda, fresca e
-salgada, cação, gorazes; o peixe vem de Nazareth e de Peniche.
-
-Mulheres do campo aviavam os seus cabazes; levavam pão, meio cento de
-sardinhas, meia duzia de sardas.
-
-A um cantinho do mercado estavam algumas mulheres com polvo, mexilhão,
-caranguejos grandes. Não faltava a mulher dos tremoços e da pevide de
-abobora. Dois homens vendiam planta de couve. Vi ainda vendedores de
-enxadas, e de calçado forte, sapatos de dura.
-
-Os homens na maioria usam botas altas.
-
-Todo o povo d’estes sitios é calçado, só por excepção vi gente
-descalça. Isto de pé descalço é uma inferioridade, que talvez acabasse
-com um pequeno impulso.
-
-Dizem-me que a gente hespanhola está toda calçada já, tem conseguido
-o sapato e a alpargata de preço baixo. Talvez que as commissões
-parochiaes de beneficencia podessem resolver o problema. Eu acho o pé
-descalço uma cousa deprimente, que entristece.
-
-Na pequena praça do Municipio (em 1904) faz-se o mercado da batata;
-mal se transitava tanta era a saccaria; vende-se a batata arrobada;
-pareceu-me de boa qualidade. Em 1905 este mercado fazia-se no largo de
-S. Thiago.
-
-Pelas lojas nas ruas proximas grande freguezia, de gente dos arredores
-que ao domingo vem mercar á villa.
-
-Ha movimento commercial em Torres, lojas com muitos contos de réis em
-existencia. A villa é pequena mas os arredores são muito povoados.
-
-Vi industria de ferragens e mobilia especial, com algum geito.
-
-Pelo aspecto geral é gente que trabalha, sobria, um tanto rude.
-
-É escusado dizer que o fomento official é nullo, depois da pobre escola
-primaria nada mais; algumas creanças vão de Torres ao Varatojo! para
-aprender alguma cousa; uma caminhada de uma hora.
-
-Aqui em Torres seriam uteis uma aula de desenho, outra de agricultura,
-e uma terceira de arithmetica e geometria com ensino especial de
-contabilidade; porque esta villa é centro de uma região agricola
-importante, tem commercio grande e pequeno, e industrias que se devem
-desenvolver.
-
-
-A feira franca
-
-(21 DE AGOSTO DE 1904)
-
-Na grande varzea em parte arborisada faz-se esta feira muito concorrida
-pela gente d’aquelles sitios; a região de Torres Vedras é bastante
-povoada; aldeias e logarejos, boas quintas, casaes, matizam os campos
-accidentados, as collinas entremeadas de valles e varzeas ferteis.
-
-Este rocio onde se faz a feira tem ao lado a casaria da villa, ao norte
-o monte onde se ergue o castello, entre olivedo e paredões negros
-alveja a egreja de Santa Maria, muito caiada; mais longe e mais alto o
-monte de S. Vicente; a poente do rocio a serra do Varatojo, vestida de
-vinhedos. Na parte arborisada enfileiram-se barracas e tendas, no rocio
-nú é a feira de gados e a corredoura.
-
-As barracas de ourivesaria agrupam-se com as dos utensilios de arame,
-cobre, ferro estanhado, latoaria. As dos vidros estão perto do grande
-estendal de louças branca e vermelha.
-
-A louça ordinaria, popular, provém das differentes olarias do termo de
-Mafra, a branca vem de Alcobaça.
-
-A notar um especialista de buzinas de moinhos de vento, aquellas
-vasilhas de barro, que assobiam e zumbem quando o vento apressa o
-movimento das quatro velas triangulares.
-
-Vende-se calçado grosso, bastante correaria, não faltando as sogas
-ornadas, bordadas a pita colorida.
-
-Pequenas quinquilherias, modestas roletas variadas formam uma rua,
-leiloeiros de varias qualidades chamam a gritos a attenção do povinho,
-perto das barracas de tiro ao alvo.
-
-Num espaço grande estão as madeiras; o que mais dá na vista é o
-material vinario; é natural, estamos numa grande região vinhateira.
-
-Cubas, toneis, balseiros, barris, celhas, tinas em abundancia; de
-castanho, as mais; algumas de pinho da terra, genero barato. Carros
-para bois, e tambem de pequenas dimensões e de construcção mais leve
-para burricos. Ha especialistas em arcos, e negociantes de varedo,
-assim como de crivos e peneiras.
-
-Menos importante a feira do gado; bastantes porcas com leitões, poucas
-juntas de bois, pouco e inferior o gado cavallar e asinino.
-
-Pareceu-me em geral mal tratado o gado, tanto na feira como no que
-observei fóra.
-
-É mais a pancada que a alimentação regular.
-
-Já se vê não faltavam as barracas de comer e beber, com os seus fritos
-alourados, e constante freguezia.
-
-Comia-se bem, bebia-se melhor; homens e mulheres espatifavam acerejadas
-gallinhas, consumiam patos com arroz cheirando que era uma delicia, e
-sorviam as talhadas dos sumarentos e aromaticos melões, atirando as
-cascas aos porcos e leitões grunhindo pela gulodice.
-
-A impressão geral é de atrazo, de educação nulla ou rudimentar; de
-trabalho mau com inferior alfaia, todavia gosto de vêr o povo rural
-nestas feiras; é naturalmente são; um tanto brutal nos costumes, se
-ninguem trata d’elle! mas de bom fundo.
-
-Estamos longe d’aquelles camponios insolentes, turbulentos, cupidos,
-eivados d’alcoolismo, devastados por seitas ferozes, que preoccupam em
-Allemanha, na Italia, na França a gente que pensa e vê alguma cousa.
-
-
-
-
-INDICE
-
-
- S. Domingos de Bemfica, 8
-
- O lindo sitio de Carnide, 55
-
- Noticias de Carnide, 87
-
- A villa da Ericeira,149
-
- De Bemfica á quinta do Correio-Mór, 199
-
- Torres Vedras, 255
-
-*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS
-DE LISBOA ***
-
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-
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- Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa, by Gabriel Pereira—A Project Gutenberg eBook
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-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<p style='text-align:center; font-size:1.2em; font-weight:bold'>The Project Gutenberg eBook of <span lang='pt' xml:lang='pt'>Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa</span>, by Gabriel Pereira</p>
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
-most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms
-of the Project Gutenberg License included with this eBook or online
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-are not located in the United States, you will have to check the laws of the
-country where you are located before using this eBook.
-</div>
-</div>
-
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:1em; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Title: <span lang='pt' xml:lang='pt'>Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa</span></p>
-<p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em'>Author: Gabriel Pereira</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Release Date: May 18, 2022 [eBook #68121]</p>
-<p style='display:block; text-indent:0; margin:1em 0'>Language: Portuguese</p>
- <p style='display:block; margin-top:1em; margin-bottom:0; margin-left:2em; text-indent:-2em; text-align:left'>Produced by: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net</p>
-<div style='margin-top:2em; margin-bottom:4em'>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS DE LISBOA</span> ***</div>
-
-
-<p class="center bb"> GABRIEL PEREIRA</p>
-
-<h1>PELOS SUBURBIOS<br />
-<span class="vsmall">
-E</span><br />
-VISINHANÇAS DE LISBOA</h1>
-
-
-<p class="center p2"><span class="figcenter" id="img001">
- <img src="images/001.jpg" class="w10" alt="Editora" />
-</span></p>
-
-<p class="center p2"> LISBOA</p>
-
-<p class="center small"> LIVRARIA CLASSICA EDITORA</p>
-
-<p class="center"> DE A. M. TEIXEIRA &amp; C.ᵗᵃ</p>
-
-<p class="center small"> 20, PRAÇA DOS RESTAURADORES, 20</p>
-<hr class="r5" />
-<p class="center"> 1910
-</p>
-
-<p class="center bt p4"> <i>Porto—Imp. Portugueza—Rua Formosa, 112</i>
-</p>
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_7">[Pg 7]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="S_Domingos_de_Bemfica">S. Domingos de Bemfica</h2>
-</div>
-<hr class="r5" />
-<p class="center"> (1905)</p>
-
-<p>Na falda norte da serra de Monsanto está o logar de S. Domingos de
-Bemfica; um antigo mosteiro em parte abandonado, rodeado de quintas
-fidalgas com seus palacios, jardins, cascatas e alamedas de secular
-arvoredo; e uma pinha de pequeninos predios antigos a entestar com o
-maninho da serra.</p>
-
-<p>O nome de Monsanto feriu-me a attenção e procurei se por aquelles
-sitios haveria vestigios de templo ou edificio de remota antiguidade,
-tão raros no aro da capital. No meu segundo passeio deparei um grande
-marmore lavrado, provavelmente parte superior de uma ara romana,
-encostado á parede da quinta do sr. marquez de Fronteira.</p>
-
-<p>Ha duvidas todavia sobre a proveniencia da pedra; julga-se não ter sido
-encontrada alli, sim na Ribeira velha, no antigo palacio Fronteira, por
-occasião de certas obras; e removida para Bemfica ha uns 40 annos.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_8">[Pg 8]</span></p>
-
-<p>O achado incitou-me a continuar na indagação, e num pittoresco retiro
-agora mal tratado da cerca monastica fui encontrar uma estatua que
-parece de arte romana; é na fonte do satyro, que fr. Luis de Sousa
-descreve na chronica do seu convento.</p>
-
-<p>O celebre dominicano já conheceu a estatua e a fonte na disposição
-actual; lá estão ainda as cinco ardosias, duas quadradas e tres
-ellipticas, com o lettreiro latino, que elle tambem menciona.</p>
-
-<p>Póde affirmar-se que o logar está qual estava então, apenas descurado.
-Ora os estragos que a estatua apresenta não teem explicação facil na
-posição actual. O satyro nada tem da rudeza gothica, nem das imitações
-classicas da renascença. O rosto apesar de muito gasto ainda tem
-singular expressão de alegria; segurava nas mãos uma taça ou urna que
-depois mutilaram para collocar uma torneira. Na cabeça e nas coxas
-grandes madeixas ondeadas; os musculos bem estudados nos hombros e
-braços. Parece uma estatua romana.</p>
-
-<p>Junto da fonte estão avulsas algumas pedras lavradas, dois fechos de
-abobada com a esphera de D. Manuel e a cruz de Christo, parte de um
-friso e dois pelouros medianos.</p>
-
-<p>É um encanto aquelle sitio de S. Domingos; o terreiro com seu antigo
-arvoredo dispõe bem o visitante da egreja, uma pobre egreja que é um
-ninho de recordações portuguezas.</p>
-
-<p>Entrando, á esquerda, o sarcophago de «Vasco Martins da Albergaria,
-cavalleiro fidalgo da casa<span class="pagenum" id="Page_9">[Pg 9]</span> do sr. infante D. Henrique e seu camareiro
-mór, filho de Affonso Lopes da Albergaria, o qual passou da vida deste
-mundo das feridas que houve na tomada e no descerco de Ceuta aos...
-dias do mez de dezembro da era de Jesus Christo, de 1436 annos».</p>
-
-<p>É um pequeno sarcophago de tampa alta; o letreiro na facha anterior da
-tampa e da arca. No meio o brazão com a cruz de Aviz sanguinha, aberta
-e floreteada, com oito escudetes azues das quinas reaes. Aos lados do
-escudo uma fita em relevo onde se lê a divisa <em>porêm vede bem</em>.</p>
-
-<p>Á direita o tumulo de João das Regras, encimado pela estatua onde
-evidentemente o esculptor quiz reproduzir o aspecto do famoso
-jurisconsulto. Tem barrete e habito de lettrado; a gola larga segura
-por tres botões. Na mão direita sobre o peito segura um livro. Os
-cabellos um tanto ondeados cahindo sobre a fronte. Á esquerda da figura
-a espada com o cinturão enrolado. A espada está tratada com minucia, o
-punho lavrado em linhas, o extremo com sua flor; é uma espada direita,
-larga, curta. O cinto é lavrado tambem de flores, tendo bem definidas a
-fivella e a ponteira.</p>
-
-<p>Aquella estatua é um documento precioso de indumentaria.</p>
-
-<p>O tumulo tem inscripção, escudos; assenta sobre quatro leões de
-marmore. Não é este o unico varão illustre cujo nome se encontra no
-mosteiro; fr. Vicente (1401), outro amigo do mestre de<span class="pagenum" id="Page_10">[Pg 10]</span> Aviz, e Diogo
-Gonçalves Belliago (1410) teem alli as suas inscripções sepulcraes,
-assim como fr. Arnáo (1502).</p>
-
-<p>Na capella de S. Gonçalo de Amarante ha algumas estatuas em marmore de
-Carrara, de valor artistico.</p>
-
-<p>O sacrario é de madeira entalhada, de grande elegancia, principalmente
-no corpo superior.</p>
-
-<p>Bons azulejos vestem as paredes, assignados por Antonio de Oliveira
-Bernardes.</p>
-
-<p>No cruzeiro jazem muitas pessoas distinctas, principalmente da casa
-Fronteira e Alorna; o ultimo que alli foi repousar o célebre D. Carlos
-de Mascarenhas, fallecido em maio de 1861.</p>
-
-<p>Na escura passagem do cruzeiro para a sacristia uma campa singelissima
-com um nome que illumina os espiritos, fr. Luis de Sousa.</p>
-
-<p>E no claustro proximo, muito tranquillo e fresco, convidando a serena
-meditação, a capella e o jazigo de D. João de Castro.</p>
-
-<p>É um grupo incomparavel de recordações portuguezas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Isto escrevi eu na <i>Revista Archeologica</i> de Borges de Figueiredo
-(vol. 3.ᵒ, de 1889, pag. 99). Querido amigo! Infeliz espirito, tão
-maltratado na lucta da vida!</p>
-
-<p>Era archeologo, latinista e epigraphista de alto merecimento. Corpo
-enfermiço, franzino, tez pallida, mortiço o olhar, fraca a vista;
-bella intelligencia<span class="pagenum" id="Page_11">[Pg 11]</span> cultivada, com solida erudição e fina critica. Os
-seus ultimos tempos foram de doença e desgosto. Por tres vezes, se bem
-me recordo, visitámos juntos o sitio de S. Domingos de Bemfica; elle
-levava sempre a filha, nos seus passeios; uma menina delicada, debil
-no aspecto, cheia de meiguice. Eram inseparaveis, ella queria estar
-sempre junto, bem junto do pae. O meu pobre amigo falleceu na manhan de
-15 d’outubro de 1890; tinha feito na vespera 37 annos. Foi professor
-na Escola Rodrigues Sampaio, por algum tempo ensinou num collegio
-particular; durante annos foi laborioso bibliothecario da Sociedade
-de Geographia. Escreveu livros muito apreciaveis; <em>Coimbra antiga e
-moderna, O Mosteiro de Odivellas, a Geographia dos Lusiadas</em>; em
-todos os seus trabalhos se revéla bem o espirito de investigação, e
-a sã critica historica. Parecia impossivel aquella actividade em tão
-fraco organismo. Na <i>Revista Archeologica</i> deixou entre varios
-trabalhos bons, um de alta importancia sobre as inscripções em verso
-leonino em Portugal. A filha morreu um mez depois do pae; não soffreu
-aquella ausencia, finou-se a pobre creança debil, asphyxiada de morte
-pela saudade amarga.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Quantas mudanças na egreja de S. Domingos de Bemfica fez depois o bem
-intencionado architecto Nepomuceno! A urna do Albergaria foi para o
-ante-côro sombrio, para cima de duas misulas ou<span class="pagenum" id="Page_12">[Pg 12]</span> cachorros, á maneira
-de deposito de agua para não visto lavabo. O tumulo de João das Regras
-foi para o meio do côro, onde está bem para ser visto. A estatua
-jacente do insigne doutor soffreu concerto, a mão direita aperta um
-livro sobre o peito; a esquerda tinha desapparecido. Segundo a chronica
-cahia sobre o coração, como se elle estivesse orando. Nepomuceno mandou
-fazer a mão que faltava, erguida, segurando um papel enrolado. E parece
-agora que o inclito doutor está indeciso entre o livro e o rolo de
-papel.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ha pouco tempo, já depois da obra a que se procedeu, visitei a egreja
-tomando notas mais minuciosas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>No cruzeiro da egreja ha inscripções sepulcraes de interesse historico.
-Na parede entre o arco da capella mór e a porta da sacristia estão dois
-letreiros; o superior menciona Fr. Vicente, da ordem dos prégadores,
-fundador, fallecido em 1401; foi prégador de D. João 1.ᵒ e autor de
-muitos livros.</p>
-
-<p>Sob este está==Fr. Diogo Gonçalves Belliagua, frade da mesma ordem,
-primeiro povoador do mosteiro, isto é, o primeiro que residiu aqui,
-fallecido em 31 de agosto de 1410.</p>
-
-<p>Estes letreiros são relativamente modernos; na Chronica se podem ver as
-inscripções primitivas.</p>
-
-<p>Á direita da capella mór, na parede, está a==Sepultura<span class="pagenum" id="Page_13">[Pg 13]</span> de fr. Arnáo,
-da mesma ordem, fallecido em 2 de maio de 1502.</p>
-
-<p>Proxima a lapide de==D. Carlos de Mascarenhas, segundo filho dos 6.ᵒˢ
-marquezes de Fronteira. N. em 1 d’abril de 1803. F. em 3 de maio de
-1861.</p>
-
-<p>A seguir==D. Maria Constança da Camara, marqueza de Fronteira e de
-Alorna. N. em 14 de julho de 1801. F. em 11 de setembro de 1860.</p>
-
-<p>No chão está a campa da==Marqueza de Fronteira D. Helena Josefa de
-Lencastre. F. em 14 de março de 1763.</p>
-
-<p>Perto==O sargento maior Manuel Carrião de Castanheda, cavalleiro
-da ordem de Christo, f. em 22 de dezembro de 1676, e sua mulher D.
-Sebastiana Dias Fialha.</p>
-
-<p>==S. de Diogo Antunes. 1662.</p>
-
-<p>==S. de Maria Coelha.</p>
-
-<p>==D. G.ᵒ Velozo d’Araujo, cavalleiro fidalgo da Casa delrei N. S. e de
-sua molher Joanna de Bulhão, f. a 3 de março de 1603.</p>
-
-<p>==S.ᵃ de João Velho Lobo... Travassos... Algumas destas campas estão
-incompletas, ou gastas.</p>
-
-<p>Na capella do Senhor Jesus, esquerda do cruzeiro, está uma pedra com
-brazão; diz-nos que o instituidor foi Antonio de Freitas da Silva,
-fidalgo, etc., com sua mulher D. Jeronima Paes d’Azevedo, em 1677.</p>
-
-<p>No corpo da egreja, segunda capella á esquerda==Capella de Enrique
-Mendes de la Penha, fidalgo<span class="pagenum" id="Page_14">[Pg 14]</span> de solar conhecido, e a comprou sua filha
-D. Lionor Enriques, viuva de Luis Pereira de Carvalho, em 1663.==Tem
-brazão.</p>
-
-<p>Olhando para a capella mór, a porta á nossa esquerda abre para uma
-passagem que serve o côro e a sacristia, o ante-côro. Ahi, no chão,
-proximo dos degraos que levam ao côro, está uma campa singela.</p>
-
-<p class="center">
-<i>Aqui jaz</i><br />
-<i>frei Luiz de Souza.</i><br />
-<i>nasceu em 1553</i><br />
-<i>morreu em 1632</i><br />
-</p>
-
-<p>a seguir, na mesma campa:</p>
-
-<p class="center">
-Mandou collocar<br />
-esta lapida<br />
-o padre Joaquim<br />
-Pinto de<br />
-Campos<br />
-natural de<br />
-Pernambuco<br />
-(Brazil)<br />
-aos 4 de junho de<br />
-1878.<br />
-</p>
-
-<p>Na mesma sombria casa de passagem, ou ante-côro, na parede, sobre duas
-misulas, vê-se uma urna brazonada. Estava antes da ultima obra, á<span class="pagenum" id="Page_15">[Pg 15]</span>
-esquerda da porta d’entrada; agora alta como está, e na casa quasi sem
-luz, é difficil lêr o letreiro.</p>
-
-<p>Desdobrando as abreviaturas, diz: Aqui jaz Vasco Martins da Albregaria
-cavalleiro fidalgo da casa do sr. infante dom Anrique e seu camareiro
-moor filho de A.ᵒ Lopes da Albregaria o qual passou da vida deste mundo
-das feridas que houve na tomada e no descerco de Cepta aos... dias do
-mez de dezembro da era de J. C. de 1436 annos.</p>
-
-<p>Além do escudo dos Albergarias, conforme o que vem no Thesouro da
-Nobreza, tem escudos com sua divisa que me parece ler <i>Porém vêde
-bem</i>.</p>
-
-<p>A meio do côro está o tumulo de João das Regras; o letreiro occupa o
-friso da caixa.</p>
-
-<p>==Aqi: jaz: joan: daregas: cavaleiro: doutor: em: leis: privado:
-delrei: dom: joan: fundador: deste: moesteiro: finou: III: dias: de:
-maio: era: M: IIIIᶜ: XL: II: ans:==É um lettreiro, em gothico, bem
-lavrado; as palavras todas divididas por dois pontos.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Na parede exterior da casa que ora serve á irmandade da S.ᵃ do Rosario
-está cravada uma pedra com a inscripção:</p>
-
-<p class="center">
-Esta sanchristia man<br />
-darão fazer os irmãos<br />
-de Nossa Sra do Rozario<br />
-a sua custa p.ᵃ a fabrica<br />
-da sua irm.ᵈᵉ em maio de 1680.<br />
-</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_16">[Pg 16]</span></p>
-
-<p>Na sacristia uma grande campa sem lettras, com o brazão da casa de
-Bellas, isto é, quatro flores de liz nos angulos de uma cruz.</p>
-
-<p>O Thesouro da Nobreza descreve assim o brazão dos Correias de
-Bellas==em campo vermelho uma cruz de oiro firmada no escudo entre
-quatro flores de liz do mesmo metal.</p>
-
-<p>No côro ha duas grandes campas sem brazões nem letreiros; diz a
-Chronica que está alli o carneiro ou deposito funéreo dos Botelhos.</p>
-
-<p>No cruzeiro, á direita, ao canto, ha uma porta encimada por um brazão;
-abre para a capellinha onde está a imagem do Senhor Jesus dos Passos.
-Mas o pequeno e rico edificio é dedicado a S. Gonçalo de Amarante. Uma
-inscripção latina declara que em 1685 o bispo fr. Manuel Pereira mandou
-fazer a capella. É de muito e apurado trabalho, em lindos marmores.
-Estatuetas de finissimo Carrara povoam os nichos. Preside S. Gonçalo de
-Amarante tendo aos lados a S.ᵃ do Rosario, S. José, S.ᵃ Appollonia, S.
-Thereza, S. João de Deus, S. Felippe, S. Domingos e S. Thomaz d’Aquino.</p>
-
-<p>As columnas salomonicas aos lados de S. Gonçalo são de pedra fina da
-Arrabida de um trabalho apuradissimo.</p>
-
-<p>Parecem-me de origem italiana estas lindas estatuetas em marmore de
-Carrara, delicadamente esculpidas, com a maneira usada na época.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_17">[Pg 17]</span></p>
-
-
-<h3>O satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica</h3>
-
-<p>A estatua do satyro conserva-se na situação em que fr. Luis de Sousa a
-conheceu.</p>
-
-<p>Entrando no claustro d’aquelle extraordinario convento de S. Domingos
-de Bemfica, toma-se a porta, ao canto, que diz para a fonte e horta.
-Desce-se uma breve escada, entra-se n’um pequeno recinto, com assentos
-de pedra; ao fundo a fonte rasteira; lá está o satyro e uns pedaços de
-marmore com um verso latino. O muro que separa a horta do recinto da
-fonte é mais recente.</p>
-
-<p>Felizmente eu tirei o desenho do satyro ha tempos; modernamente houve
-obras no edificio, e um alvanéo mais gracioso divertiu-se a lançar cal
-sobre a pobre estatua.</p>
-
-<p>Eu estou convencido que este satyro é romano. Fr. Luis de Sousa já o
-conheceu assim, n’aquella posição; ora em tal posição a estatua não
-podia estragar-se da maneira que se vê; a superficie está desigual;
-ha pontos em que se conserva o primitivo estado, na parte superior
-do peito, nas madeixas das coxas; em outros sitios a superficie está
-gasta, frusta, ou por longo attrito ou por inhumação prolongada.
-As mãos foram arruinadas por causa da adaptação de torneiras, obra
-provavel dos frades; porque primitivamente a agua não sahia de taça ou
-urna que o satyro tivesse nas mãos; sahia do outro sitio; a estatua é
-pagan e bem pagan.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_18">[Pg 18]</span></p>
-
-<p>Apesar de frusta ainda a physionomia é notavel, e é bem propria a
-phrase de fr. Luis de Sousa, <em>simplicidade montanheza</em>; ha
-estatuas de Pan com aquella attitude e expressão.</p>
-
-<p>Trabalho da renascença não me parece, nem estaria assim estragado
-em tempo do celebre chronista; gothico, romanico, impossivel; nunca
-trabalharam assim em taes tempos. Porque a estatua tem expressão, ha
-observação anatomica nos musculos, nos hombros, as claviculas bem
-marcadas, as madeixas elegantes.</p>
-
-<p>É por isso que me convenço que a estatua é romana.</p>
-
-<p>Ha mais antiguidades romanas alli pelos sitios, e o nome Monsanto chama
-logo a attenção.</p>
-
-<p>Naturalmente os dominicanos encontraram, por acaso, a estatua e
-aproveitaram-n’a para a sua fonte; e assim a salvaram.</p>
-
-<p>Que interessante e mimosa a descripção que fr. Luis de Sousa escreveu
-da fonte do satyro! Vem na Historia de S. Domingos (2.ᵃ parte, livro
-2.ᵒ, cap. 1.ᵒ—Do principio e fundação do real convento de Bemfica).
-Diz assim:</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>==Passado o claustro, quem busca a horta do convento, dá poucos passos
-em uma praça empedrada, que ficando na parte mais alta, e como a meia
-ladeira da cerca, descobre grande parte do vale.</p>
-
-<p>Aqui sahem os religiosos a gosar o fresco da<span class="pagenum" id="Page_19">[Pg 19]</span> tarde em o verão, e o
-soalheiro de inverno, depois que deixam o refeitorio. Porque além da
-vista desabafada, e larga para fóra, tem na mesma praça de uma parte
-uma graciosa fonte, e da outra um espaçoso tanque, que cada cousa per
-si alegra e deleita os olhos.</p>
-
-<p>A fonte se faz em um arco, que formado de brutescos varios e vistosos,
-arremeda uma gruta natural. Dentro parece assentado um grande e bem
-proporcionado satyro, imitando com propriedade os que finge a poesia.
-Em toda sua figura mostra em rosto risonho e alegre uma simplicidade
-montanheza, com que está convidando a beber de uma concha natural, que
-tem apertada com o braço e mão esquerda, da qual sae um formoso torno
-de agua: e juntamente com a direita acode como arrependido a cobril-a;
-e faz geito de a querer retirar, dando com uma e negando com outra.</p>
-
-<p>A agua é quanto póde ser excellente, e de uma qualidade propria das que
-nascem nas serras, fria e desnevada na maior força do sol do estio;
-temperada no inverno, como um banho.</p>
-
-<p>Acompanham a gruta de um e outro lado em igual distancia dois grossos e
-altos pilastrões, que sendo feitos de boa cantaria para estribo de uma
-abobada a que se arrimam, foi a natureza cobril-os de uma hera muito
-espessa e viçosa, que subindo por elles até a mór altura, assim esconde
-e senhoreia a pedraria, que faz parecer foram fundados, mais para honra
-da fonte, que segurança do edificio:<span class="pagenum" id="Page_20">[Pg 20]</span> assim ajuda a natureza a arte, e
-o accidental ao bem cuidado.</p>
-
-<p>E porque entre gente que professa letras é bem que nem nos satyros se
-ache rudeza, faz lembrança este nosso a quem folga de o ver, com um
-verso latino entalhado em pedaços de marmore negro, que correm a vida e
-os annos sem parar, nem tornar atraz, ao modo d’aquelle licor, que lhe
-sae das mãos. Advertencia de sabio não de rustico: que agoas e annos se
-se não aproveitam com bons empregos, perdidos são, e pouco de estimar.
-Cae a agoa, por não pejar a praça, em um pequeno tanque, deixando-o
-cheio some-se n’elle, e vae por baixo da terra, fazer outra fonte na
-boca de um leão.</p>
-
-<p>É de ver aquelle rosto fero coberto de guedelhas crespas, e medonhas,
-que ameaçam sangue e morte, feito ministro de mansas agoas. Verdadeiro
-poder e symbolo da religião que amansa leões e faz Satyros doutos==.</p>
-
-<p>Publiquei este artigo no <i>Boletim da Real Associação dos Architectos
-Civis e Archeologos Portuguezes</i> (T. <span class="allsmcap">VII</span>. 1894. pag. 7),
-acompanhado de gravura. Então era facil visitar a fonte do satyro:
-agora está vedada ao publico, não sei porquê. Naquella parte do
-edificio installou-se uma succursal do collegio de Campolide, com aulas
-de theologia, ao que ouvi dizer. Não deixavam entrar no claustro. Ha
-tempos saíram dalli os padres; mas o edificio continúa fechado; não
-se sabe onde<span class="pagenum" id="Page_21">[Pg 21]</span> pára a chave. Não se póde visitar a fonte tão finamente
-descripta por fr. Luis de Sousa, nem a capella dos Castros, cuja
-entrada é tambem pelo claustro.</p>
-
-<p>É de fr. Luis de Sousa a descripção da</p>
-
-
-<h3>Capella dos Castros</h3>
-
-<p>==He a obra da Capella dorica, a proporção dupla, com quarenta palmos
-de largo, mais de setenta de comprimento. He de huma só nave de
-pedraria brunida, o lageamento de pedras de cores, tambem brunidas:
-funda-se a mais architetura della em hum proporcionado pedestal,
-que em torno a circunda interiormente. Tem seis arcos com pilares
-interpostos sobre bases: capiteis, e simalhas tambem em torno, com
-seis luzes obradas com respeito á architectura. A porta principal tem
-no claustro do Convento, e sobre ella pende hum escudo relevado das
-armas do Fundador. O tecto, despois de coroado com a simalha, he tambem
-de pedraria, apainelada com artezães, e molduras: os dous primeiros
-arcos de seis, que a compoem, ficam nos Presbiterios; no da parte do
-Evangelho está huma porta, que dá serventia pera a Tribuna, e aposentos
-do Fundador: no outro da parte da Epistola, outra pera o serviço da
-Sachristia, os outros quatro occupão quatro sumptuosas sepulturas, de
-pedras de cores lustradas,<span class="pagenum" id="Page_22">[Pg 22]</span> que sobre as costas sustentão elefantes de
-pedras negras.</p>
-
-<p>No primeiro arco, que fica junto ao do Presbiterio da parte do
-Evangelho, está a sepultura de Dom João de Castro, com o seguinte
-Epitaphio.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>D. Ioannes de Castro XX. Pro Religione in vtraque Mauritania stipendijs
-factis, nauata strenue opera Thunetano bello fœlicibus armis penetrato;
-debellatis inter Euphratem, et Indum nationibus: Gendrosico Reye,
-Persis, Turcis vno prœlio fusis; seruato Dio, imo Reipublicæ reddito,
-dormit in magnum diem, non sibi, sed Deo triumphator: publicis
-lachrimis compositus, publico sumptu prœ paupertate funeratus: obijt
-Octauo Id. Iunij. Anno 1548. Aetatis 48.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Estão em o seguinte arco, junto a este os ossos de D. Leonor Coutinho,
-sua mulher.</p>
-
-<p>Da parte da Epistola, em o arco que responde ao da sepultura de Dom
-João de Castro, está a de Dom Alvaro seu filho, com o Epitaphio
-seguinte.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>D. Aluarus de Castro. Magni Ioannis primogenitus, cui pené ab infantia
-discriminum factus pugnaram prœcursor, triumphorum Consors, œmulus
-fortitudinis, hœres virtutum, non opum: Regum prostrator, et restitutor
-in Sinai veatice eques fœliciter inauguratus: a Rege Sebastiano Summis
-Regni auctus honoribus; bis Romæ,<span class="pagenum" id="Page_23">[Pg 23]</span> semel Castellæ, Galliæ, Sabaudiæ,
-legatione perfunctus, obijt 4. Kalend. Septemb. Anno. 1575. Aetatis suæ
-50.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Logo no outro arco junto a este está Dona Anna de Atayde, mulher do
-mesmo D. Alvaro.</p>
-
-<p>No vão desta Capella se fez um Carneiro com seis arcos de pedraria, em
-hum dos quais ha Altar pera se dizer Missa, e os mais tem repartimentos
-pera os ossos, e corpos dos defunctos.</p>
-
-<p>Sóbe-se do pavimento d’esta Capella por seis degráos entre dous
-presbiterios, nos quais estão as sepulturas do Fundador, e sua Irmam: a
-primeira da parte do Evangelho com o Epitaphio que se segue.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>D. Franciscus á Castro, Episcopus olim Aegitanensis, hujusce
-Sanctuarij, ac interioris Cœnobij fundator, hunc sibi, dum viueret,
-tumulum posuit, in quo et requiescet post mortem.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A segunda, com este, da parte da Epistola.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>D. Violante de Castro Cometissa relicta vidua Domini Alfonsi de
-Noronha, Comitis Odomirensis hic quiescit, obijt XIV, Kalendis Iulij,
-anno Domini DC. XXXXVI. Sorori optimæ, seu verius matri, Frater
-amantissimus dedit, posuit.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Sobre estes degráos está o Altar de jaspes<span class="pagenum" id="Page_24">[Pg 24]</span> brunidos, apartado do
-retabolo, em forma que fica emparando a entrada do Choro, que detraz
-do mesmo Altar tem os Irmãos da casa de Noviços; e a que se entra por
-entre dous pedestaes de jaspes brunidos de treze palmos de alto, nove
-de largura, onze de grossura. No fronstispicio delles se veem duas
-tarjas embutidas de jaspes brancos, cercadas de suas faxas de outros
-pretos, na que fica da parte do Evangelho está escripta a instituição
-da Capella na forma seguinte.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ad maiorem ineffabilis Eucharistiæ venerationem, peculiarem Deiparæ
-Virginis de Rosario honorem; indiuiduam Patriarchæ Dominici, Martyrum
-Nazarij, Celsi, Victoris, ac Innocentij confessoris memoriam, ædem hanc
-in penetralibus Sacratiorem Erexit, Condidit, Dicauit D. Franciscus á
-Castro Episcopus olim Aegitanensis, Regis, ad status consilia adsidens,
-rerum fidei moderator supremus. Anno Domini M.DC.XLVIII.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Na outra tarja, que fica da parte da Epistola, se contém as obrigações
-dos suffragios, que por si deixou o Fundador, diz assim:</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Instituit ad altare triplex iuge sacrificium annuas pro defunctis
-vigilias, iuniorum cœnobitarum adsciuit excubias, habitacula
-coœdificauit: sibi religiose ante Dominum sepultura prouisa; maioribus
-suis posuit monumenta, magis pie,<span class="pagenum" id="Page_25">[Pg 25]</span> quam magnifice, quorum posteris
-subtus aram Condictorium fecit, legauit in hæc opera pietatis sexcentos
-annuos aureos.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Sobre estes pedestais se levantão de cada parte tres columnas de
-folhagem até o meio, que proseguem em estriado, as dos cantos mais
-recolhidas, as outras duas mais sahidas pera fóra, e corpulentas, entre
-ellas se abrem nichos de alto abaixo, que recolhem varias reliquias
-de Sanctos engastadas em custodias de preço. Estas seis colunas, que
-todas são de lavores, vão receber a simalha do Altar, sobre a qual
-se presenta á vista um quadro da Cea do Senhor, de singular pintura
-acompanhado de duas colunas de macenaria galantemente lavradas, que vão
-receber hum remate do mesmo quadro, unido já com a abobada da Capella.
-Aos lados destas colunas ficão dous quartões ornados com duas pyramides
-exteriores.</p>
-
-<p>Por entre as tres colunas de huma, e outra parte, que estão sobre
-os pedestais, se fecha hum arco quasi da mesma altura das colunas,
-que fica fazendo lugar ao Sacrario (em que sempre está o Sanctissimo
-Sacramento alumiado com duas alampadas de prata). Do pavimento que
-fica debaixo deste arco se levantão oito colunas em estylo oitavado,
-que recebem huma charola alterosa com seu zimborio, que se remata com
-hum Pelicano polla banda de fóra. Debaixo desta charola se levanta
-hum throno em forma quadrada com quatro colunas<span class="pagenum" id="Page_26">[Pg 26]</span> pequenas, que fazem
-os cantos, com que se forma a primeira peça, na qual se abrem dous
-nichos, hum pera a parte do Choro, outro pera a Capella; o do Choro
-tem uma Imagem de nosso Padre S. Domingos, o que fica pera a Capella
-occupa outra de nossa Senhora de singular estimação por antiguidade, e
-feitio; he um meio corpo de alabastro, com o braço esquerdo abraça o
-minino que se sustenta em pé sobre uma almofada, e na mão direita tem
-hum livro, tudo da mesma pedra. Dá a estas imagens inestimavel valor a
-antiguidade, que em outras nações, com mais primor, e felicidade, que
-na nossa, avalia semelhantes obras; porque segundo a certeza que disto
-ha, e o Bispo tinha, estiverão estas imagens occultas, e sepultadas no
-muro da Cidade de Tunes, desde o tempo, que os mouros a tomarão aos
-Christãos, até que o Emperador Carlos Quinto lha ganhou, que então
-se descobriram, não sem mysteriosa circumstancia, porque batendo a
-artilharia o muro, e arruinando parte d’elle, cahiram as imagens sem
-padecer lesão alguma. O Infante Dom Luiz, que n’esta empresa se achou
-com o soccorro de Portugal, grandiosamente abreviado naquelle celebre
-galeão de 366 peças, e ajudou a ganhar a victoria, por despojo d’ella
-escolheo só estas imagens, que despois deu a Dom João de Castro, Avô do
-Bispo fundador.==</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_27">[Pg 27]</span></p><div class="blockquot">
-
-<p>(<i>Historia de S. Domingos particular do reino e conquistas
-de Portugal, por fr. Luis de Cacegas, reformada por fr. Luis de
-Sousa, filho do convento de Bemfica. Ampliada por fr. Antonio da
-Encarnação.</i> Lisboa, 1866; 2.ᵃ parte do 3.ᵒ vol., pag. 198).</p>
-</div>
-
-<p>Quantas recordações nobilissimas nesta capella! Agora a elegante
-construcção está ameaçando ruina. Parece-me todavia facil acudir-lhe.
-A frontaria desligou-se um pouco do corpo do edificio, entra agua de
-chuva pela fenda produzida pelo desvio. Alguns annos de desleixo e a
-ruina será enorme, o concerto dispendioso. Dizem-me que esta capella
-está na posse de um particular, ha tempos ausente de Portugal. E não
-sei se ainda ha culto ahi; essa parte do edificio está habitada por uma
-congregação feminina, estrangeira; nada dizem, respondem sempre que não
-sabem da chave.</p>
-
-
-<h3>Fr. Vicente de Lisboa</h3>
-
-<p>D. João 1.ᵒ cedeu a Casa real de Bemfica a fr. Vicente de Lisboa para
-estabelecimento do instituto dominicano, em 1399.</p>
-
-<p>Este fr. Vicente era provincial da sua ordem em Castella e Portugal,
-inquisidor geral de Hespanha, confessor e prégador de D. João 1.ᵒ
-Foi com certeza um vulto importante. Barbosa Machado, na Bibliotheca
-Lusitana falla delle, firmando-se no epitaphio que primitivamente
-marcava o logar de repouso das suas reliquias.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_28">[Pg 28]</span></p>
-
-<p>Ahi se <em>lia per illum</em> (fr. Vicente) <i lang="la" xml:lang="la">in hac civitate</i>
-(Lisboa) <i lang="la" xml:lang="la">et in diversis hujus regni partibus, destructa fuerunt
-opera diaboli et haereses erroresque, atque idolatriae.</i> <i lang="la" xml:lang="la">Edidit
-etiam varios libros excellentis doctrinae.</i></p>
-
-<p>Barbosa Machado diz que não conseguiu vêr nenhum de taes livros. Mas
-sabe pelo epitaphio que elle combateu as crendices populares, as
-superstições viciosas, as praticas pagans observadas ainda no seu tempo
-pela gente rude. É tarefa antiga esta de combater tradições, bruxarias,
-costumeiras, que hoje fazem as delicias dos folqueloristas. Ainda não
-vi tambem livro que se possa attribuir a fr. Vicente de Lisboa; mas
-não se perde a esperança. É bem possivel que nalguma antiga collecção
-de sermões se contenham os do prégador de D. João 1.ᵒ Na livraria do
-infante D. Fernando havia um volume assim designado==<i lang="la" xml:lang="la">Item, hum livro
-de pregações de frey Vicente per lingoagem</i>. (T. Braga, <i>Historia
-da Universidade de Coimbra</i>, 1.ᵒ pag. 229).</p>
-
-<p>Muitas obras que se julgavam perdidas teem surgido nos ultimos annos.
-Os tratados de alveitaria e citraria (este incompleto) de mestre
-Giraldo existem na Bibliotheca Nacional, assim como uma copia antiga
-do <i>Livro de Montaria de D. João 1.ᵒ</i> O tratado da phisionomia,
-<i>Opus de physiognomia</i>, de mestre Rolando, está na Bibliotheca
-da Ajuda. Nos Documentos historicos da cidade de Evora dei noticia e
-grandes extractos dos tratados medicos,<span class="pagenum" id="Page_29">[Pg 29]</span> da idade media, existentes na
-livraria d’aquella cidade.</p>
-
-<p>O sr. Leite de Vasconcellos, o nosso grande investigador, foi descobrir
-em Vienna, uma versão portugueza das fabulas de Esopo, que já publicou
-na Revista Lusitana.</p>
-
-<p>Por isto não perco a esperança de ver ainda um dia alguma obra de fr.
-Vicente de Lisboa.</p>
-
-
-<h3>Fr. Bartholomeu dos Martyres</h3>
-
-<p>Uma parte do convento que olha para norte está bastante arruinada;
-eram ahi os dormitorios do noviciado; as janellas das humildes cellas
-deitam para a cerca; a vista dilata-se por aquelles campos e collinas
-verdejantes de Bemfica, jardins, frescos hortejos, copados arvoredos.
-Uma d’essas pequeninas janellas é a do quarto que por muitos annos foi
-habitado por um homem dos raros, dos mais raros, que tem havido em
-Portugal, fr. Bartholomeu dos Martyres.</p>
-
-<p>Foi aqui professor muitos annos.</p>
-
-<p>Primeiramente esteve, ensinando já, no convento da Batalha.</p>
-
-<p>Passou ao convento de Evora porque o infante D. Luiz, desejando fazer
-grande lettrado seu filho o sr. D. Antonio, depois prior do Crato,
-infeliz rei e exilado, instou e conseguiu que fr. Bartholomeu fosse ler
-theologia nos dominicanos de<span class="pagenum" id="Page_30">[Pg 30]</span> Evora; ahi conheceu fr. Luiz de Granada,
-outro raro. Permaneceu em Evora alguns annos; obrigaram-no então a
-vir ser prior de S. Domingos de Bemfica, que era o grande noviciado
-de Portugal. Vivia muito pobremente, sem a minima ostentação; amigo
-do Convento e mais amigo da cella; dormindo pouco, comendo pouco.
-Enthusiasta professor estava sempre prompto a ensinar; lia aos noviços
-disciplinas superiores, mas se via necessidade fazia cursos d’artes
-elementares, aos rapazes; fazia praticas numa capella da egreja. Era um
-eloquente, como fr. Luiz de Granada; e ás vezes arrastado pelo calor
-da palavra, enthusiasmava-se, e enthusiasmava o auditorio; uma vez
-terminou a pratica chorando elle e todos os ouvintes.</p>
-
-<p>Gostava de passear na cerca, e estava muitas vezes á janella da sua
-pobre cella; os noviços ouviam-no cantarolar a meia voz, tomando o ar,
-encostado ao peitoril da janella que dá para o campo.</p>
-
-<p>As visitas contrariavam-no um pouco, o cardeal D. Henrique, o infante
-D. Luiz frequentavam o convento; um dia instaram com elle para que
-acceitasse a mitra de Braga. Do tranquillo cantinho de S. Domingos de
-Bemfica para o paço archi-episcopal de Braga!</p>
-
-<p>Largar o convento, as aulas, a cêrca, a sua cella tão boa para o
-estudo! Não queria, não queria! Foi a rainha D. Catharina que o mandou;
-elle então obedeceu. Foi sempre um altruista, espirito<span class="pagenum" id="Page_31">[Pg 31]</span> cheio de
-abnegação. Preparou-se para a partida, teve de deixar por algum tempo
-Bemfica; mas antes de partir definitivamente para Braga foi passar um
-dia a S. Domingos, ao querido sitio de Bemfica, foi despedir-se da
-egreja, das aulas, da sua tranquilla cella, das arcadas silenciosas do
-claustro, da fonte da horta, das arvores, das flores.</p>
-
-<p>E foi para Braga, para aquellas extranhas missões das montanhas
-minhotas, e para as solemnes discussões do concilio de Trento.</p>
-
-<p>Era por indole um professor, gostava de ensinar. Tanto que se viu
-livre da mitra primacial elle ahi vae para o seu retiro de Vianna do
-Lima, ensinar rapazes; nos seus passeios pelos campos o bom velhinho,
-ás vezes, assentado a repousar, doutrinava os humildes pastores. Que
-esta raça portugueza em tempos antigos produziu mestres em sciencias
-e lettras que illuminaram universidades em Hespanha, Italia e França.
-Merece ainda attenção este homem no ponto de vista da hygiene em geral;
-pelo seu regime de vida, habitos e predilecções. Usava fazer grandes
-passeios a pé, era sóbrio, de bom humor. Lendo hygienistas modernos,
-Gautier (Armand—<i lang="fr" xml:lang="fr">L’alimentation et les regimes chez l’homme sain
-et chez les malades</i>) por exemplo, encontram-se conselhos para a
-vida dos intellectuaes, que lembram logo o methodo de vida de fr.
-Bartholomeu dos Martyres.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_32">[Pg 32]</span></p>
-
-
-<h3>D. Isabel Maria</h3>
-
-<p>A infanta D. Isabel Maria residiu bastantes annos na sua casa de S.
-Domingos de Bemfica. Velhinha, adoentada nos ultimos tempos, cheia
-de recordações, por alli passeava morosamente sob as magnolias e os
-cedros. A quinta está contigua á cerca do convento.</p>
-
-<p>O palacio parece que foi construido em tempo de um certo Devisme
-negociante e capitalista, grande amigo do marquez de Pombal, que tambem
-se importava de politica, tendo altas relações no estrangeiro, ahi
-pelo meio do seculo XVIII. As estatuas de marmore que ornam o jardim
-são d’essa época, mas o desenho, a disposição foi alterada. No palacio
-houve mudanças e ainda nos ultimos annos foi ampliado; está installado
-alli o bem afamado collegio de Jesus, Maria, José; grande numero das
-senhoras da fina sociedade actual passou por esse estabelecimento de
-educação.</p>
-
-<p>Depois de Devisme pertenceu a bella propriedade á casa dos marquezes
-de Abrantes, illustre familia. Por morte do ultimo marquez, em 1847,
-foi comprada pela infanta D. Isabel Maria filha de D. João VI, e de D.
-Carlota Joaquina. Nasceu a infanta em 4 de julho de 1801, e falleceu a
-22 de abril de 1876, pelas 3 horas da tarde.</p>
-
-<p>Interessante figura; vida que em grande parte decorreu entre agitações
-politicas e palacianas; presidente da junta de regencia, em 6 de
-março<span class="pagenum" id="Page_33">[Pg 33]</span> de 1826, ficando de parte a rainha D. Carlota, por occasião da
-enfermidade de D. João VI, e por morte d’este, regente em nome de D.
-Pedro IV, até ao celebre dia 22 de fevereiro de 1828, em que depoz o
-governo nas mãos de D. Miguel. Foram um horror esses tempos de paixões
-violentas, de conspirações politicas, que não paravam no vestibulo
-do paço, e até de lá partiam, pois conspiradora foi sempre a mal
-aventurada D. Carlota Joaquina.</p>
-
-<p>Devia ser curioso este sitio de S. Domingos de Bemfica nessa longa
-crise politica dos primeiros decennios do século passado, porque
-os Fronteiras, os Mascarenhas, entraram na tentativa de 1805, e
-continuaram até á ultima no liberalismo; os da casa d’Abrantes e os
-dominicanos inclinavam-se ao absolutismo.</p>
-
-<p>Mas a infanta que no Paço viu as discordias insensatas entre pae e mãe,
-e na politica encontrou o tumulto entre exaltadas individualidades,
-entre partidos raivosos, conseguiu equilibrar-se desempenhando com
-superioridade o melindroso cargo de regente.</p>
-
-<p>Crescendo a idade retirou-se, cada vez mais; por fim metteu-se no seu
-ninho de S. Domingos, nas sombras abrigadas e aromaticas das suas
-magnolias.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_34">[Pg 34]</span></p>
-
-
-<h3>Palacio e jardim Fronteira</h3>
-
-<p>Entre as mais notaveis vivendas destes sitios de Bemfica sobresae
-o palacio Fronteira com os seus lindos jardins e fresco hortejo,
-singulares obras d’arte e historicas recordações.</p>
-
-<p>Dizem que o primeiro marquez de Fronteira, D. João Mascarenhas, mandou
-fazer na sua propriedade um pavilhão de caça para receber a visita
-del-rei D. Pedro II, e esse foi o núcleo do palacio: isto pelos annos
-de 1670 a 1681. Antes certamente havia outras construcções porque a
-elegante capella é de 1584. O terremoto de 1755 arruinou o palacio
-de Lisboa; foi a familia Fronteira residir para Bemfica, e então
-ampliaram o tal pavilhão formando-se o palacio actual. O grande jardim,
-a monumental galeria e cascata, devem ser do fim do século XVII, com
-grande influencia do estylo italiano.</p>
-
-<p>Os azulejos da magnifica sala do pavilhão referem-se á batalha do
-Ameixial. É pena não se conhecer bem a formação d’esta vivenda porque
-se póde affirmar notavelmente conservada, exemplo rarissimo em Portugal.</p>
-
-<p>O jardim é um enlevo, no genero antigo, com as suas estatuas, fontes
-artisticas, grande peça d’agua, grutas, escadarias, varandas de
-balaustrada, elegantes pavilhões.</p>
-
-<p>Muito regular, taboleiros geometricos e symetricos, com ruas e
-travessas, e pequenas praças,<span class="pagenum" id="Page_35">[Pg 35]</span> sendo maior a central onde se ergue
-artistica fonte de taça alta, ostentando em pinaculo os escudos dos
-Mascarenhas.</p>
-
-<p>A poente a fachada do palacio, a sul a galeria dos reis; norte e
-nascente moldura ou parede de arvoredos, com vista para o campo;
-compridos assentos azulejados.</p>
-
-<p>Ha estatuas no jardim, na parede do tanque, dentro do tanque, na
-varanda da galeria, em nichos, nos vertices dos pavilhões!</p>
-
-<p>Entre matizes de flores e aromas riem faunos, dançam nymphas, os deuses
-teem sorrisos benevolentes.</p>
-
-<p>Brilha ao sol o paganismo.</p>
-
-<p>Na gruta maior que abre para o tanque está o Parnaso, um monte com o
-Pégaso alado e galopante, e em roda, a variadas alturas, Apollo e as
-Musas, estatuetas em fino marmore.</p>
-
-<p>Na parede da galeria quadros de azulejo com figuras de cavalleiros,
-doze na frente, dois nos lados, os cavallos a galope, parecendo que vão
-entrar em renhido torneio.</p>
-
-<p>Á esquerda, olhando para a galeria, ha muitos retratos, em azulejo,
-dos Mascarenhas, condes de Obidos, Torre, Santa Cruz, marquezes de
-Fronteira; á direita, fronteando os retratos, estão representados os
-brazões.</p>
-
-<p>Na galeria em nichos forrados de azulejos hespanhoes, de reflexo
-metallico, uns acobreados, alguns de tom azul, bustos dos reis de
-Portugal,<span class="pagenum" id="Page_36">[Pg 36]</span> entrando o conde D. Henrique, e o infante D. Fernando o
-santo. Os ultimos bustos d’esta galeria, os de Affonso VI e Pedro II,
-são os de melhor trabalho. Uma porta communica para o jardim alto ou
-moderno; segue a segunda galeria dos reis, D. João V, D. José, D. Maria
-I e D. João VI. Sobre a porta entre as galerias um busto do imperador
-Tiberio, talvez copia de busto authentico.</p>
-
-<p>Estatuas mythologicas, faunos prasenteiros, gentis nymphas dançantes,
-ornam plinthos no jardim, e as balaustradas. Azulejos estranhos,
-hespanhoes e hollandezes, fazem rodapés, representando scenas
-familiares, caçadas, episodios agricolas.</p>
-
-<p>Embrechados finos de buzios e conchas, fragmentos de louças orientaes,
-vidros pretos, cristaes de rocha, bocados de escorias, em complicados
-desenhos, forram paredes das cascatas. N’uma grande parede do jardim
-molduras e ornatos em faiança, folhagens, flores e fructos no genero
-chamado dos Della Robia.</p>
-
-<p>Neptuno e o seu cortejo, em grande quadro de azulejo; outro em relevo
-de alvenaria infelizmente em grande estrago, cumprimentam um rio, o
-Tejo, provavelmente.</p>
-
-<p>Num quadro de azulejo o ratão do artista representou Jupiter, e pintou
-ao lado o nome assim: <i>Ghvptre</i>.</p>
-
-<p>No jardim moderno, entre fetos magnificos e grande collecção de
-camelias, ha uma fonte central,<span class="pagenum" id="Page_37">[Pg 37]</span> de taça, com a estatua de Venus. O pé
-da taça é um grupo de golphinhos lavrado num lindo bocado de marmore
-com laivos avermelhados.</p>
-
-<p>Dizem que a esta Venus se refére Tolentino na satyra intitulada <i>A
-funcção</i>.</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">Musa basta de rimar</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">...................</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">...................</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">... sincera velha</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Pondo contra a luz a mão</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">E crendo que nesta rua</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Está São Sebastião</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">De Venus á estatua nua</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Faz mesura e oração.</span><br />
-</p>
-
-<p>É bem interessante a historia dos jardins; conhecem-se exemplos do
-Egypto, da Assyria; celebres entre os romanos os de Plinio e de
-Sallustio, ornamentados de terraços, fontes, estatuas.</p>
-
-<p>Cultivavam rosas, lyrios, violetas, malvas, algumas arvores e arbustos
-cortados e aparados em feitios caprichosos, como o louro e o buxo;
-estimavam muito o esguio cypreste, e a vinha como planta decorativa.</p>
-
-<p>E neste ponto tinham muita razão porque a parreira faz lindo ornato,
-com mudança de tons, gracilidade de curvas, além do encanto do cacho,
-quer se applique a edificios ou se enrosque em arvores.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_38">[Pg 38]</span></p>
-
-<p>Mas os jardins conservaram-se regulares e symetricos durante seculos.</p>
-
-<p>O jardim irregular, de imprevistos, o jardim-paisagem é mais moderno.</p>
-
-<p>Ha muitos livros sobre jardins e construcções architectonicas
-especiaes, fontes, repuxos e grandes jogos d’agua, cascatas, terraços,
-caramanchões e pavilhões. Merece ver-se o livro de Alicia Amherst,
-intitulado: <i lang="en" xml:lang="en">A history of gardening</i> (London, 1896), e <i lang="fr" xml:lang="fr">L’art
-des jardins</i> por Jorge Riat, que faz parte da Bibliothèque
-d’Enseignement des Beaux-Arts; qualquer d’estes livros indica
-sufficiente bibliographia.</p>
-
-<p>Em Portugal ha bonitos jardins modernos e ainda alguns antigos
-conservando os seus engenhosos desenhos; a invasão moderna de plantas
-exoticas prejudica bastante o jardim antigo, araucarias e chamerops
-não harmonisam bem nas combinações geometricas e symetricas, não podem
-substituir as cevadilhas, as balaustras, de pequeno porte, de brilhante
-folhagem e vistosa florescencia. Uma alta araucaria pyramidal destoa
-nos bordados jardins de Caxias e Queluz. Arvores variadas, exoticas
-ou naturaes, empregavam-se em fazer parede ou moldura de jardins, em
-alamedas de horta ou laranjal.</p>
-
-<p>No Diccionario dos Architectos, vasto trabalho do sr. Sousa Viterbo,
-por vezes apparecem architectos encarregados de obras em jardins, o
-que não admira porque todos os jardins antigos tinham<span class="pagenum" id="Page_39">[Pg 39]</span> obras d’arte
-importantes, terraços, escadarias, balaustradas, cascatas enormes e
-complicadas, com jogos d’agua, pavilhões, etc. (Dicc. dos Architectos,
-vol. 1.ᵒ, pag. 62 e 395; 2.ᵒ, pag. 350 e 379).</p>
-
-<p>Póde dizer-se que o jardim antigo é principalmente architectonico, e
-que o moderno é filho da pintura.</p>
-
-<p>Na Bibliotheca Nacional de Lisboa, a respeito de jardins ha livros
-antigos notaveis, especiaes; e tambem em obras que não tratam de
-cultura ou architectura dos jardins por incidente se topam vistas e
-desenhos interessantes.</p>
-
-<p>Um certo in-folio grande, impresso em Roma, adornado com boas gravuras,
-e o titulo <i lang="la" xml:lang="la">Villa Pamphilia ejusque palatium cum suis prospectibus,
-statuae, fontes, vivaria, theatro, areolae, plantarum viarumque
-ordines</i> apresenta-nos grande numero de estatuas proprias para
-jardim e minuciosos desenhos dos terreiros ajardinados, que parecem
-imitar salvas de prata repoussée; sem uma arvore saliente; arbustos
-talhados, não muito altos, ornam os extremos. Era o jardim italiano,
-classico.</p>
-
-<p>Numa obra de numismatica <i lang="la" xml:lang="la">I Cesari in metallo raccolti nel</i>
-<span class="smcap">Museu Farnese</span>, por Pietro Piovene (Parma, 1727), ha lindas
-gravuras com muitos aspectos e detalhes dos jardins da Villa Madama, e
-do Palazzo di Caprarola (no tomo 1.ᵒ), mostrando bem a magnificencia, a
-nobreza d’essas bellas vivendas italianas.</p>
-
-<p>Um allemão, <i>Hirschfeld</i>, escreveu uma vasta<span class="pagenum" id="Page_40">[Pg 40]</span> obra, de que ha
-versão franceza, em 4 volumes, <i lang="fr" xml:lang="fr">Theorie de l’art des jardins</i>
-(Leipzig, 1779-1783).</p>
-
-<p>É trabalho notavel: trata dos jardins em varios pontos de vista,
-da sua historia e da historia das plantas, do aproveitamento das
-arvores segundo o seu effeito ou aspecto, das combinações, dos planos
-differentes. No 4.ᵒ volume vi a noticia de Guilherme Kent o criador da
-arte dos jardins em Inglaterra; era pintor e architecto. Descreve os
-trabalhos de Le Notre, grande jardineiro francez. N’isto de jardins
-ha escólas, muito bem definidas. Foi economica, principalmente, a
-razão porque a escóla de Kent venceu a de Le Notre; o jardim á antiga
-era de grande custeio; para se conservar bem era preciso trabalhar
-constantemente. Só admittia flores finas, raras; na Hollanda o
-enthusiasmo pela tulipa, a tulipomania, attingiu excessos. Kent
-introduzindo arvores e arbustos fez grande economia. Ha o jardim
-agradavel, o risonho, o majestoso, o romanesco; o jardim fidalgo, o
-burguez, o campestre, o publico, o academico, o monastico, finalmente o
-funebre.</p>
-
-<p>O tal allemão chega mesmo a projectar jardim para de manhã, do meio
-dia, e da tarde; jardins para effeitos crepusculares. A cultura e a
-disposição do jardim variam com os climas, e com a abundancia das aguas.</p>
-
-<p>É impossivel imitar nos paizes frios os jardins de Hespanha ou de
-Italia; querer implantar nos paizes do sul os arrelvados inglezes é
-arrojado.<span class="pagenum" id="Page_41">[Pg 41]</span> A relva nada custa em Inglaterra, e em Portugal a murta, o
-lirio, o cravo e a rosa não precisam cuidados.</p>
-
-<p>A leitura do Hirschfeld, me parece, é ainda hoje util a quem deseje
-tratar de jardins publicos ou particulares.</p>
-
-<p>Porque ha uma esthetica de jardins, e tambem merece attenção a questão
-economica. Em Portugal, por exemplo, não se usa da laranjeira ou da
-vinha em jardins; e estão os jardins cheios de palmeiras monotonas.
-Vê-se gastar muito dinheiro para ter bocadinhos de arrelvado, que o sol
-de verão cresta numa hora.</p>
-
-<p>Vêmos formar talhões com uma só essencia, o que parece esthetica de
-hortelão, quando as alamedas ou avenidas são muito mais pittorescas e
-vistosas variando a qualidade das arvores.</p>
-
-<p>O jardim publico de Evora tem effeitos bonitos; foi planeado e plantado
-pelo scenographo Cinatti, que calculou os aspectos que arbustos e
-arvores dariam quando desenvolvidos. Infelizmente depois não seguiram,
-completamente, as indicações do artista; todavia ainda é manifesto o
-fino criterio que presidiu á disposição do arvoredo.</p>
-
-<p><i lang="it" xml:lang="it">Il reale giardino di Boboli nella sua pianta e nelle sue statue</i>
-com o <i>Alticchiero</i> (Padua, 1787) é livro pouco vulgar.</p>
-
-<p>Muitas estampas finamente gravadas mostram os planos, os aspectos, e
-principalmente as estatuas.</p>
-
-<p>O jardim Boboli, em Florença, tinha amphitheatro,<span class="pagenum" id="Page_42">[Pg 42]</span> casino, palacetes,
-jardim botanico, o pequeno jardim de Madama, o dos ananazes, o da
-ilha, o da fortaleza, e a grande pesqueira de Neptuno. No jardim de
-Oeiras havia tambem pesqueira; até ahi pescou á canna a rainha D. Maria
-<span class="allsmcap">I</span>, na famosa visita que lá fez, no tempo do segundo marquez de
-Pombal.</p>
-
-<p>Neste jardim Fronteira as tropas miguelistas em 1833 entraram sanhosas,
-todavia parece que o estrago não foi consideravel. Diz-se tambem que se
-tratou aqui da formação da Arcadia Lusitana, que os tres poetas Antonio
-Diniz da Cruz e Silva, Theotonio Gomes de Carvalho, e Manoel Nicolau
-Esteves Negrão por estes caramachões de rosas e jasmins discutiram as
-bases da famosa academia litteraria. O snr. Theophilo Braga (pag. 180
-de <i>A Arcadia Lusitana</i>) conta que os tres poetas se reuniam em
-Bemfica; mas ha tradição de que era na quinta dos Fronteiras que elles
-frequentavam, e de que mesmo um d’elles perto morava.</p>
-
-<p>José Maria da Costa e Silva, no seu poema <i>O Passeio</i>, diz que em
-Portugal se chamavam jardins de D. João de Castro, aos irregulares, por
-ter sido o famoso heroe o primeiro que os plantou na Europa:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">Vêde Castro, o terror dos reis do Oriente</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">.....................................</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">E o primeiro mostrar d’Europa ás gentes</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Dos chinezes jardins a variedade.</span><br />
-</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_43">[Pg 43]</span></p>
-
-<p>Em outra parte escreve:</p>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>Dos chinezes jardins chistoso typo!</p>
-</div>
-
-
-<h3>A marqueza d’Alorna</h3>
-
-<p>Um nome de grande dama portuguesa se liga á residencia Fronteira; aqui
-viveu por algum tempo <i>Alcipe</i>, nome arcadico de D. Leonor de
-Almeida Portugal Lorena e Lencastre, condessa de Oyenhausen e marqueza
-de Alorna (n. 1750—m. 1839).</p>
-
-<p>Mas por poucos annos. Ella esteve, menina e moça, reclusa no mosteiro
-de Chellas, viveu em Vienna, em Paris, em Londres, por esse mundo fóra,
-sempre superior dama portuguesa, de altaneira mente; depois em Portugal
-ora na sua quinta de Almeirim, ora na de Almada; por muitos annos na
-hospitaleira e fidalga casa a Santa Izabel.</p>
-
-<p>Pousou em Bemfica, é verdade, em annos de aspera lucta pelo nome de
-sua casa; e, verdade é tambem, lá vi, na galeria envidraçada que olha
-para o jardim, memorias, retratos, lembranças familiares, d’essa
-extraordinaria senhora.</p>
-
-<p>Que existencia tão rodeada de surprezas tragicas, cheia de duradouras
-inquietações, a d’esta nobilissima dama portuguesa, que soube responder
-á sorte rude com santas idéas, corajosos trabalhos, e composições de
-serena poesia. Parece que n’esses<span class="pagenum" id="Page_44">[Pg 44]</span> poucos annos que passou na vivenda
-de Bemfica foi que ella conheceu um moço de aspecto um tanto agreste,
-de firme vontade, espirito altivo, intelligencia clara, que se chamou
-Alexandre Herculano; muitos annos volvidos, a marqueza teve vida longa,
-viu ella com ineffavel prazer, o moço estudioso e attento desenvolvido
-no collossal escriptor.</p>
-
-<p>É adoravel o que Herculano escreveu a respeito da marqueza, poucos
-annos depois da morte d’ella.</p>
-
-<p>Vou apresentar alguns extractos d’esse notavel artigo publicado no
-<i>Panorama</i>, de 1844.</p>
-
-<p>==Por grande que deva ser a gratidão que se associa ás recordações
-d’aquelles que nos geraram, por funda que vá a saudade inseparavel da
-memoria paterna, no coração do bom filho, ha um affecto não menos puro,
-e não menos indestructivel, para o homem cujo espirito allumiado pela
-cultura intellectual tem a consciencia de que o seu logar e os seus
-destinos no mundo são mais elevados e nobres que os d’esses tantos
-que nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois
-morrerem sem deixarem vestigio. Este affecto é uma especie de amor
-filial para com aquelles que nos revelaram os thesouros da sciencia,
-que nos regeneraram pelo baptismo das lettras; que nos disseram:
-«caminha!» e nos apontaram para a senda do estudo e da illustração,
-caminho<span class="pagenum" id="Page_45">[Pg 45]</span> tão povoado de espinhos como de flores, e em cujo primeiro
-marco milliario muitos se teem assentado, não para repousarem e
-seguirem ávante, mas para retrocederem desalentados, quando sósinhos
-não sentem mão amiga apertar a sua e conduzi-los apoz si. Tirae á
-paternidade os exemplos de um proceder honesto, as inspirações da
-dignidade humana, a severidade para com os erros dos filhos, os
-cuidados da sua educação, e dizei-nos o que fica? Fica um certo
-instincto, ficam os laços do habito, e para impedir que tão frageis
-prisões se partam, fica o preceito de cima que nos ordena acatemos e
-amemos os que nos geraram, ainda que a elles não nos prenda senão a
-dadiva da existencia, esse tão contestavel beneficio. Pelo contrario
-aquelles que foram nossos mestres, que nos attrahiram com a persuasão
-e com o proprio exemplo para o bom e para o bello, que nos abriram as
-portas da vida interior, que nos iniciaram nos contentamentos supremos
-que ella encerra, para esses não é preciso que a lei de agradecimento e
-de amor esteja escripta por Deus; a rasão e a consciencia estamparam-na
-no coração: cada gôso intellectual do poeta, do erudito, do sabio lha
-recorda, e quando elles se comparam com o vulgo das intelligencias
-reconhecem plenamente a justiça do sentimento de gratidão que os domina.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Áquella mulher extraordinaria a quem só faltou outra patria que não
-fosse esta pobre e esquecida<span class="pagenum" id="Page_46">[Pg 46]</span> terra de Portugal, para ser uma das mais
-brilhantes provas contra as vans pertenções de superioridade excessiva
-do nosso sexo, é que eu devi incitamentos e protecção litteraria,
-quando ainda no verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada
-das lettras.</p>
-
-<p>Apraz-me confessa-lo aqui, como outros muitos o fariam se a occasião
-se lhes offerecesse; porque o menor vislumbre d’engenho, a menor
-tentativa d’arte ou de sciencia achavam n’ella tal favor, que ainda
-os mais apoucados e timidos se alentavam; e d’isso eu proprio sou bem
-claro argumento. A critica da senhora marqueza d’Alorna não affectava
-já mais o tom pedagogico e quasi insolente de certos litteratos que
-ás vezes nem sequer entendem o que condemnam, e que tomam a brancura
-das proprias cans por titulo de sciencia, de gosto, e de tudo. A sua
-critica era modesta, e tinha não sei o que de natural e affectuoso que
-se recebia com tão bom animo como os louvores, de que não se mostrava
-escaça quando merecidos.</p>
-
-<p>Uma virtude, rara nos homens de lettras, mais rara talvez entre as
-mulheres que se teem distinguido pelo seu talento e saber, é a de não
-alardearem escusadamente erudição, e essa virtude tinha-a a senhora
-marqueza em grau eminente. A sua conversação variada e instructiva era
-ao mesmo tempo facil e amena.</p>
-
-<p>E todavia dos seus contemporaneos quem conheceu tão bem, não dizemos
-a litteratura grega e<span class="pagenum" id="Page_47">[Pg 47]</span> romana, em que igualava os melhores, mas a
-moderna de quasi todas as nações da Europa, no que nenhum dos nossos
-portugueses porventura a igualou?</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Ahi verá como em todas as phases da sua larga e não pouco tempestuosa
-carreira ella soube dar perenne testemunho do seu nobre caracter
-de independencia e generosidade; verá que em quanto na terra natal
-primeiro a tyrannia, e depois a ignorancia e a inveja a perseguiam,
-ella ia encontrar entre estranhos a justa estimação de principes, e de
-illustres personagens da republica das lettras. Ahi verá como nascida
-no seculo do materialismo, vivendo largos annos no fóco das idéas
-anti-religiosas, acostumada a ouvir todos as dias repetir essas idéas
-por homens de incontestavel talento, ella soube conservar pura a crença
-da sua infancia, e expirar no seio do christianismo. Ahi finalmente
-verá como as ausencias, por vezes involuntarias, da sua terra natal,
-não poderam fazer-lhe esquecer o amor que devemos a esta, ainda no meio
-das injustiças e violencias de todo o genero. ==(<i>Panorama</i>, pag.
-403 e 404 do vol. de 1844, artigo assignado por A. Herculano).</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_48">[Pg 48]</span></p>
-
-
-<h3>A capella do palacio</h3>
-
-<p>Em 11 de fevereiro de 1903 se rezaram missas de corpo presente pela
-alma do marquez de Fronteira na pequena capella do palacio.</p>
-
-<p>É um templosinho elegante com seu portico de columnas em estylo da
-renascença classica. Sobre a porta tem o letreiro:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;"><i lang="la" xml:lang="la">Dicatum charitati coeli</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i lang="la" xml:lang="la">januae M.D.LXXX.IIII</i></span><br />
-</p>
-
-<p>É certo que o estylo diz perfeitamente com a data 1584. É possivel que
-tenha havido transformação grande de outra capella anterior, porque é
-tradição que S. Francisco Xavier antes de partir para a India, alli
-celebrou a sua ultima missa em Portugal, e o santo apostolo das Indias
-deixou Lisboa em 1541.</p>
-
-
-<h3>Sepultura de João d’Aregas—O escudo d’armas</h3>
-
-<p>==É a sepultura uma grande caixa de marmore assentada sobre quatro
-leões, lavrada em torno de escudos de armas, quarteados em aspa, e nos
-campos alto e baixo em cada um sua cruz floreada da feição das da Ordem
-de Aviz; e nos campos de cada lado uma serpe com azas ameaçando para
-fóra; na lagea que a cobre está o defunto entalhado<span class="pagenum" id="Page_49">[Pg 49]</span> de relevo, vestido
-em roupas largas e barrete posto, insignias de letrado; mas acompanhado
-tambem das de cavalleiro, que são seu estoque á ilharga; as mãos juntas
-sobre o peito como quem faz oração.==(<i>Historia de S. Domingos</i>,
-pag. 176).</p>
-
-<p>Como se disse já, a mão direita da estatua segura um livro, e segurava,
-sobre o peito; a esquerda que inclinava sobre o coração e se partira e
-extraviára, está agora substituida por outra nova, erguida, segurando
-um rolo de papel.</p>
-
-<p>No Thesouro da Nobreza descreve-se assim o brazão:</p>
-
-<p>==Escudo franxado nos campos alto e baixo em vermelho uma cruz aberta
-e floreteada, nos quarteis dos lados em campo d’oiro uma serpente
-vermelha batalhante. Timbre as duas serpentes do escudo.==</p>
-
-<p>Sobre esta familia de Aregas, ou das Regras, encontro uma longa memoria
-de José Freire de Montarroyo Mascarenhas, no 5.° vol. dos Titulos
-genealogicos (B. N. L. Sec. Mss. Cod. 1034, pag. 289 e segg.)</p>
-
-
-<h3>Nomes de artistas</h3>
-
-<p>Percorrendo a «Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, e
-escultores, architectos e gravadores portuguezes... por Cyrillo Volkmar
-Machado (Lisboa, 1823)» encontro o seguinte:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_50">[Pg 50]</span></p>
-
-<p>—<i>André Gonçalves</i>, o pintor da Vida de José do Egypto na
-sacristia da Madre de Deus, fez os quadros no côro de S. Domingos de
-Bemfica. Este artista falleceu em 15 de junho de 1762—. Os quadros
-no espaldar do côro representam a vida de N. Senhora; acham-se
-regularmente conservados. Entre os quadros ha figuras de anjos, em
-variadas posições, do mesmo pincel. Não são notaveis; parecem feitos
-sobre estampas vulgares; monotonos no colorido; todavia o effeito do
-conjuncto é agradavel.</p>
-
-<p>—<i>José da Costa Negreiros</i> (m. 1759) pintou a casa do Capitulo—.
-A casa que serve á Irmandade da S.ᵃ do Rosario tem pinturas que podem
-ser deste artista.</p>
-
-<p>—<i>Ignacio de Oliveira Bernardes</i> (n. 1695—m. 1781), esteve em
-Roma; foi pintor, architecto, decorador; foi este o architecto da casa
-e quinta de Gerardo Devisme (actualmente o collegio).—Pertencia a
-uma familia de artistas que trabalhou immenso em varios generos. Por
-muitas partes se encontram ainda producções destes homens. Os azulejos
-da egreja, como já disse, estão assignados por Antonio de Oliveira
-Bernardes.</p>
-
-<p>—<i>Jeronimo Correia</i>, esculptor em madeira, fez em Bemfica os
-ornatos das capellas.—Se foi este que executou o sacrario, elegante
-obra d’arte, era sem duvida um optimo artista.</p>
-
-<p>—As duas grandes imagens da capella mór, S. Domingos e S. Pedro
-Martyr, são obra do<span class="pagenum" id="Page_51">[Pg 51]</span> melhor esculptor que viveu em Hespanha, por
-1651.—Acho esta noticia assim indeterminada em varias partes; creio
-que se referem ao esculptor português <i>Manuel Pereira</i> (m. 1667).</p>
-
-<p>Francisco d’Assis Rodrigues no seu diccionario diz que Manuel Pereira,
-o primeiro esculptor português, foi o autor das imagens de Christo, S.
-Jacintho, e S. Pedro, em S. Domingos de Bemfica.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>D. frei Fernando de Tavora</i> (m. 1577), religioso de S. Domingos,
-discipulo de fr. Bartholomeu dos Martyres, estimava muito a arte da
-pintura, e nella excedeu os melhores pintores do seu tempo; alguns dos
-seus paineis se conservam ainda em S. Domingos de Bemfica (<i>Santarem
-edificada</i>, de Piedade e Vasconcellos, 2.ᵃ parte, pag. 464).</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Na egreja vejo os bellos azulejos; o lindo trabalho, majestoso e bem
-equilibrado, do altar mór, o cadeirado e as pinturas do côro, alguns
-quadros nas capellas, e as imagens. Entre estas sobresaem as figuras do
-Crucificado, a da S.ᵃ do Rosario, as grandes estatuas de S. Domingos
-e S. Pedro Martyr. É possivel que sejam de Manuel Pereira (V. o meu
-artigo na <i>Arte Portugueza</i>, Lisboa, 1895, pag. 57). Careço de
-elementos de comparação; não encontro assignatura, monogramma ou
-documento. Em todo o caso o boato algo vale; e não tem duvida que as
-esculpturas são boas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_52">[Pg 52]</span></p>
-
-<p>No domingo de Paschoa, 3 de abril de 1904, celebrou-se missa no altar
-mór, a primeira depois das morosas obras de concerto e reparo que
-durante annos impediram os exercicios do culto.</p>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_53">[Pg 53]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="O_lindo_sitio_de_Carnide">O lindo sitio de Carnide</h2>
-</div>
-<hr class="r5" />
-<p class="center">(1898)</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_55">[Pg 55]</span></p>
-
-<p>Março de 1898.</p>
-
-<p>Por tristissimo incidente na minha vida tendo de passar uma temporada
-em Carnide, onde a amabilidade de uma familia excellente nos quiz
-espairecer da fatalidade brutal que nos feriu, eu, seguindo a velha
-tendencia do meu animo, comecei de indagar historias, e dar passeios
-pelas azinhagas solitarias; os largos passeios pelos campos que são a
-melhor fórma de isolamento doloroso.</p>
-
-<p>Muito naturalmente, para esclarecimento, consultei alguns livros; o
-primeiro que abri causou-me admiração; foi o <i>Diccionario Popular</i>
-publicado sob a direcção de Pinheiro Chagas.</p>
-
-<p>—É sitio procurado no verão por alguns habitantes da cidade, que ali
-vão convidados pela sua amenidade. Gosa o logar egualmente de reputação
-de bons ares e abundancia de aguas, bem como alegre posição. Manda
-a verdade que se diga que o logar é detestavel, formado por algumas
-duzias<span class="pagenum" id="Page_56">[Pg 56]</span> de casas insalubres, dispostas em arruamentos sujissimos, para
-os quaes se fazem todos os despejos, e não tem passeios, nem jardins,
-nem quintas, nem arvoredos, nem bons pontos de vista. As aguas são
-extremamente escassas e os ares, por muito bons que podessem ser,
-resentem-se das más qualidades do sitio. Ainda assim o logar grangeou
-fama immerecida, e varias familias de Lisboa o procuram para terem dois
-mezes de campo! São gostos!—</p>
-
-<p>Ora a verdade é que o sitio de Carnide me impressionou agradavelmente
-com as suas largas vistas, brilhantes, matizadas de verdes, as suas
-graciosas quintas, as suas azinhagas quietas entre vallados de
-madresilvas, caniços, heras, roseiras, pilriteiros e congossas nas
-juvenis florescencias do começo de primavera.</p>
-
-<p>E abri outro livro.</p>
-
-<p>Foi a <i>Corografia Portugueza</i> do bom padre Antonio Carvalho
-da Costa (Lisboa, 1712), que no seu tomo 3.ᵒ trata de Carnide, mui
-brevemente.</p>
-
-<p>Menciona a egreja parochial de S. Lourenço. Diz que o seu cura era
-apresentado pelos priores do convento de Nossa Senhora da Luz e que o
-logar tem oitenta visinhos com nobreza, duas ermidas, e muitas quintas
-com uma fresca alameda: e relaciona os conventos.</p>
-
-<p>A alameda fresca é sem duvida a do largo da Luz.</p>
-
-<p>Recorri logo ao Pinho Leal, no seu <i>Portugal<span class="pagenum" id="Page_57">[Pg 57]</span> antigo e moderno</i>,
-enorme trabalho com algum joio, é verdade, mas onde o corajoso
-colleccionador archivou muita noticia de valia.</p>
-
-<p>—Carnide, freguezia no districto de Lisboa, concelho de Belem (hoje é
-freguezia de Lisboa), a seis kilometros a NNO. de Lisboa.</p>
-
-<p>Tem 260 fogos.</p>
-
-<p>Em 1757 tinha 250 fogos.</p>
-
-<p>É freguezia muito antiga, pois já existia em 1394.</p>
-
-<p>A maior parte é situada em fertil e saudavel campina, com lindas
-vistas. Orago, S. Lourenço.</p>
-
-<p>O cura era da apresentação do prior da Luz, da Ordem de Christo, depois
-passou a ser vigario collado perpetuo, com 80$000 réis de renda.</p>
-
-<p>A egreja de Nossa Senhora da Luz foi fundada por 1540, pela infanta D.
-Maria, filha d’el-rei D. Manuel e de sua terceira mulher D. Leonor. A
-fundadora está sepultada na capella-mór.</p>
-
-<p>O terremoto de 1755 damnificou muito esta egreja; existe apenas (agora
-em bom estado, depois da obra recente que ali se fez) a capella-mór e o
-cruzeiro.</p>
-
-<p>Continúo a seguir o Pinho Leal.</p>
-
-<p>Convento de freiras carmelitas descalças de Santa Thereza: é antigo,
-foi reedificado pela infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, por
-1680.</p>
-
-<p>Frades carmelitas descalços, de S. João da Cruz, fundado pela princeza
-Michaela Margarida, filha<span class="pagenum" id="Page_58">[Pg 58]</span> de Rodolpho II, imperador de Allemanha, por
-1642, que n’elle está sepultada (nem o imperador se chamava Rodolpho; e
-a pobre princeza está sepultada no convento de Santa Thereza, como logo
-contaremos). A infanta D. Maria, filha de D. João IV, viveu aqui (no
-convento de Santa Thereza) de 1649 até 1693. Foi mestra da infanta D.
-Luiza, filha bastarda de el-rei D. Pedro II.</p>
-
-<p>Esta D. Luiza foi reconhecida por D. João V, que a casou com D. Luiz
-Alvares Pereira de Mello, duque de Cadaval; por morte d’este casou
-com D. Jayme, seu cunhado, que ficou sendo duque de Cadaval, porque o
-primogenito morreu sem geração.</p>
-
-<p>A infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, veiu para aqui de
-tenra idade. Reedificou a egreja e o mosteiro, ampliando muito o
-edificio. Viveu recolhida sem professar. O reconhecimento como filha
-do rei foi feito solemnemente na presença da familia real e da côrte,
-no mosteiro. Esta senhora era muito estimada; as rainhas D. Luiza de
-Gusmão, mulher de D. João IV, D. Maria Francisca Isabel de Saboya e
-D. Maria Sophia de Neubourg a visitavam muito. O irmão, D. Pedro II,
-encarregou-a da educação da filha, D. Luiza, que depois foi duqueza de
-Cadaval.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A procissão dos Passos de Carnide faz-se na 5.ᵃ dominga de quaresma
-(este anno, 1898, foi em 27 de março).</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_59">[Pg 59]</span></p>
-
-<p>A conhecida feira da Luz, com arraial e festa, é nos dias 7 e 8 de
-setembro.</p>
-
-<p>O cirio do Cabo visitou Carnide pela primeira vez em 1437.</p>
-
-<p>Carnide está na 7.ᵃ ordem do giro. Em 1795 houve festa ruidosa porque
-tomaram parte no cirio o principe D. João (depois D. João VI) e sua
-mulher D. Carlota Joaquina.</p>
-
-<p>A Senhora do Cabo tem capella propria na egreja da Luz, na capella-mór,
-á esquerda; ainda ahi existe um formoso frontal, com o brazão da
-infanta D. Maria.</p>
-
-<p>Vamos ouvir o Padre Luiz Cardoso, no seu <i>Diccionario
-Chorographico,</i> que infelizmente ficou incompleto. Este escreve em
-1751:</p>
-
-<p>—Na egreja de S. Lourenço ha cinco altares, o maior, o de N. S.ᵃ do
-Rosario, o de Christo crucificado, o de S. Miguel, e o de Jesus Maria
-José. Havia então tres irmandades: a do Senhor, a de N. S.ᵃ do Rosario,
-e a das Almas.</p>
-
-<p>Tem (tinha) a freguezia mais as ermidas do Espirito Santo, a de S.
-Sebastião e a de N. S.ᵃ da Assumpção na quinta de José Falcão de
-Gamboa, hoje o casal do Falcão.</p>
-
-<p>A fonte de N. S.ᵃ da Luz, antigamente da Machada, divide-se em duas, a
-fonte de dentro e a de fóra.</p>
-
-<p>A de dentro está sob o altar-mór, a agua no sabor é grossa e salobra
-mas mui sádia, e principalmente contra a pedra tem especial virtude,
-e<span class="pagenum" id="Page_60">[Pg 60]</span> não consta que filho algum da terra padecesse semelhante achaque ou
-outra qualquer pessoa que d’ella usasse.—</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O <i>Santuario Mariano</i> de fr. Agostinho de Santa Maria é
-repositorio de muitas informações, porque este extraordinario devoto
-de Nossa Senhora a proposito das imagens que descreve, dá noticias das
-egrejas e localidades onde se veneram.</p>
-
-<p>No tomo I, pag. 98, escreve da imagem de Nossa Senhora da Luz em
-Carnide: e conta de como antes de 1463 foi captivo em Africa Pedro
-Martins, natural de Carnide; este homem teve sonhos milagrosos, fez
-promessas, e conseguindo livrar-se do captiveiro mourisco voltou á sua
-patria, onde já existia a fonte do Machado, e edificou a ermida. A
-fundação foi solemne, porque a ella assistiu D. Affonso V. É provavel
-que este Pedro Martins fosse algum antigo companheiro d’armas d’el-rei
-D. Affonso V, que a historia denominou o Africano, por causa das suas
-arrojadas emprezas e valentes brigas no Algarve d’além-mar. Pedro
-Martins collocou na ermida, em agradecimento, os grilhões do captiveiro.</p>
-
-<p>A infanta D. Maria, filha de D. Manuel, fez a nova egreja em 1575.</p>
-
-<p>A pag. 411 do mesmo tomo o padre Cardoso refere-se á imagem de Nossa
-Senhora da Conceição, do côro do convento da Conceição no sitio de<span class="pagenum" id="Page_61">[Pg 61]</span>
-Carnide (depois em Arroyos), sem dar noticia importante.</p>
-
-<p>Fr. José de Jesus Maria, na <i>Chronica de Carmelitas descalços da
-Provincia de Portugal,</i> tomo III, pag. 147, acha o logar de Carnide
-situado em campo alegre e de ares puros, e cercado de muitas e curiosas
-quintas que servem igualmente para o lucro e ao recreio.</p>
-
-<p>Compõe-se o logar de 264 visinhos (elle escreve em 1753).</p>
-
-<p>Falla do convento da Conceição que na sua quinta fundou Nuno Barreto
-Fuzeiro.</p>
-
-<p>Do convento de Santa Thereza, nobilissimo seminario de infantas e
-senhoras... onde tantas vezes chegou a pobreza, a ponto de ás vezes não
-terem de comer.</p>
-
-<p>Mas as freiras tinham grande repugnancia em pedir; esperavam até á
-ultima; nada havendo, nem a esperança, tocavam uma sineta, a sineta da
-fome, pedindo soccorro. O mesmo succedia com as freiras do Calvario
-em Evora; tinham tambem o toque da fome. Quando nada havia, nem se
-esperava, iam para o côro, entoavam as suas rezas ao som do triste
-signal. Por vezes, no convento de Carnide, houve coincidencias que
-pareceram milagres. Uma vez ia a pobre soror, meio desfallecida,
-começar o signal da fome, quando bateram estrondosamente á portaria.
-Era um presente de atum assado que mandava a duqueza de Aveiro.</p>
-
-<p>Outra vez appareceram uns navegantes, salvos<span class="pagenum" id="Page_62">[Pg 62]</span> de grande tormenta no
-mar, com uma esmola de 20$000 réis.</p>
-
-<p>Em 1646 se dispôz a madre priora Michaela Margarida de Sant’Anna a
-lançar a primeira pedra do convento novo. Foi o duque de Aveiro quem
-lançou a pedra e d’isto se lavrou a inscripção==O duque de Aveiro, D.
-Raymundo de Lancastre botou a primeira pedra deste convento a 2 de
-junho de 1646.==</p>
-
-<p>Nova obra começou em 15 de outubro de 1662, commemorada em outra lapide
-(hoje no cunhal da frontaria da egreja):==Maria Joannis Lusitaniae
-Regis Filia hoc opus struxit anno Domini 1662.==</p>
-
-<p>A dedicação do templo de Santa Thereza foi em 15 de outubro de 1668.</p>
-
-<p>A capella-mór é de Santa Thereza.</p>
-
-<p>A do Evangelho é de S. João da Cruz.</p>
-
-<p>A da Epistola é da Senhora da Conceição.</p>
-
-<p>Defronte da grade do côro de baixo está a capella do Senhor dos Passos,
-com procissão na 5.ᵃ dominga de quaresma.</p>
-
-<p>No côro alto ha muitas reliquias (é um grande relicario entalhado e
-dourado, que se vê da capella-mór).</p>
-
-<p>A infanta D. Maria, filha de D. João IV, mandou fazer os retabulos.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_63">[Pg 63]</span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Podemos affirmar, pois, que a egreja de Carnide era já parochial no
-seculo XIV. Que no seculo XVI era logar de certa importancia, pois a
-insigne infanta D. Maria, filha de D. Manuel, aqui veiu fundar egreja
-e hospital. Depois os differentes conventos e obras particulares; as
-grandes quintas com magnificas moradias, etc.</p>
-
-<p>Em 1712 tinha 80 visinhos com nobreza, o que é extraordinario; verdade
-é que não sabemos bem onde chegaria então a freguezia de Carnide; que
-no termo de Carnide se encontram bastantes casas, que podemos chamar
-pequenas, com seus brazões em porticos e cunhaes, é verdade.</p>
-
-<p>Em 1753 tinha 264 fogos.</p>
-
-<p>Em 1757&#160;&#160;&#160;&#160;»&#160;&#160;&#160;&#160;250&#160;&#160;&#160;&#160;»&#160;&#160;&#160;</p>
-
-<p>Em 1875&#160;&#160;&#160;&#160;»&#160;&#160;&#160;&#160;260&#160;&#160;&#160;&#160;»&#160;&#160;&#160;</p>
-
-<p>Provavelmente a freguezia cedeu alguns fogos para a formação de outra
-qualquer, ou então houve largo estacionamento.</p>
-
-<p>Actualmente (abril 1898) Carnide pertence ao 3.ᵒ bairro de Lisboa.</p>
-
-<p>Fogos, 337.</p>
-
-<p>Habitantes, 1:737.</p>
-
-<p>Sendo: varões, 1:018; femeas, 719.</p>
-
-<p>Solteiros, 710 varões e 404 femeas.</p>
-
-<p>Casados, 277 varões e 255 femeas.</p>
-
-<p>Viuvos, 31 varões e 57 femeas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_64">[Pg 64]</span></p>
-
-<p>Analphabetos, 432 varões e 353 femeas.</p>
-
-<p>Sabem ler, 6 varões e 18 femeas.</p>
-
-<p>Sabem ler e escrever, 580 varões e 345 femeas.</p>
-
-<p>É preciso lembrar que na freguezia de Carnide está o collegio militar,
-o que produz as grandes divergencias nos numeros dos solteiros, dos
-instruidos, etc.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O sitio é agradavel, de amoravel paizagem, brilhante mesmo nos dias
-bons; como o terreno é variavel na sua constituição, basaltos,
-calcareos, argilas, as culturas diversas, e de tons que vão do claro
-do rebento novo da vinha ao verde intenso do trigo, produzem um matiz
-onde o olhar repousa sem achar monotonia. Pelas quintas ha arvoredos
-sombrios, ou compridas latadas e hortejos cuidados, vinhas, searas,
-geiras de fava ou batata. Trabalha-se, cultiva-se com intensidade, e
-não sobram os braços porque os salarios dos trabalhadores ruraes são
-maiores que em outras partes.</p>
-
-<p>A par da quinta antiga com seu palacio e capella ha o <i lang="fr" xml:lang="fr">chalet</i>
-moderno, com as suas varias traducções, vivenda, tugurio e não sei
-que mais. Bom exemplo de casa antiga é o casal do Falcão, com a sua
-varanda alta, e as suas dependencias; casa mais moderna, do começo do
-seculo XVIII, talvez, é a da quinta de Santa Martha, ou dos Azulejos,
-assim chamada por ter forradas de azulejos as paredes que deitam para
-o jardim, e as escadas, que são exteriores, a varanda, a nora, a<span class="pagenum" id="Page_65">[Pg 65]</span>
-parede do tanque, e as paredes dos alegretes altos, tudo em assumptos
-variados, em grandes quadros, em medalhões, com damas nobres, e
-archeiros, e deuses mythologicos, e quadrinhos que fazem lembrar o
-Nicolau Tolentino.</p>
-
-<p>Ao lado da propriedade grande e custosa ha a pequena que o saloio rega
-com o suor do seu rosto, e com a agua que tira do poço ou do regato
-com a <i>cegonha</i> ou picota, a grande alavanca que já figura nas
-esculpturas do Egypto a levantar a agua do Nilo sagrado.</p>
-
-<p>De Carnide-Luz ha estradas para o Campo Grande, Telheiras, Paço do
-Lumiar, Sete Rios, Bemfica, Odivellas ou da Beja, mais ou menos
-assombradas, sempre agradaveis, por vezes com grandes vistas. A estrada
-militar corta grande parte da freguezia, offerecendo sempre largo
-horizonte.</p>
-
-<p>Eu tenho caminhado por estes sitios e acho adoraveis certas estradinhas
-discretas, humildes carreteiras bordadas de vallados agora floridos, de
-madresilvas e congossas, assombradas por oliveiras, olaias, cerejeiras;
-de vez em quando uma palmeira rompe entre as larangeiras, um cypreste
-ergue a sua pyramide verde escura.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Proximo da quinta dos Azulejos está o convento de Santa Thereza de
-Jesus. Eu ouço repetidas vezes a sineta com um som fraco, lamentoso,
-chamando á missa ou marcando as horas coraes.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_66">[Pg 66]</span></p>
-
-<p>Os sinos de S. Lourenço são vibrantes, mui sonoros; aos domingos
-tocam musicas festivas que ficam bem na grande e virente paizagem,
-annunciando o dia de repouso a essa gente que tanto trabalha. Gosto de
-os ouvir nas Ave-Marias da manhã quando o sol nascente rutila na grande
-vidraça da egreja do cemiterio dos Arneiros.</p>
-
-<p>A egreja de Santa Thereza é bonita, de linhas sobrias, com uma só nave.</p>
-
-<p>O convento divide-se agora por duas communidades diversas. Uma parte
-pertence ás freiras portuguezas, senhoras mui virtuosas, e com
-excellente tradição por estes sitios. Outra parte ás freiras francezas,
-irmãs de S. José de Cluny. Estas são mais numerosas e teem pupilas e
-postulantes. Tem escola, e enviam pessoal para as missões africanas. As
-portuguezas resam no côro de baixo, as francezas no côro de cima.</p>
-
-<p>Todo o tecto da egreja, nave, cruzeiro, capella-mór e côro alto é de
-pintura antiga, de 1662 provavelmente, com as suas flores e fructos,
-mascaras e garças, molduras quebradas e grinaldas, grandes espiraes de
-folhagens, e figuras inteiras de virtudes. É muito lindo.</p>
-
-<p>Grandes paineis de azulejos com passos da vida de Santa Thereza forram
-a egreja até certa altura; télas pintadas a oleo, em grandes molduras
-de talha dourada, illuminam a parte mais alta das paredes.</p>
-
-<p>Entre estas reparo na grande téla que representa<span class="pagenum" id="Page_67">[Pg 67]</span> o passamento de Santa
-Thereza notavel na composição, no desenho e no colorido. É boa obra
-d’arte e documento notavel na indumentaria e mobiliario. O quadro da
-capella-mór é muito lindo tambem: composição importante, com muitas
-figuras, e bem colorido.</p>
-
-<p>A obra de talha da capella-mór, relativamente moderna, é muito elegante
-com o seu bello portico de columnas encimado pelas grandes figuras da
-Fé e da Esperança.</p>
-
-<p>Os altares lateraes são revestidos de azulejos polycromos, com as armas
-de Portugal entre ramarias e animaes, e moldura fingindo embrechado de
-marmore amarello sobre fundo negro. Estes azulejos devem ser tambem do
-seculo XVII.</p>
-
-<p>O pulpito e sua escada de páu brazil em torcidos e tremidos, com
-applicações de metal amarello, é notavel, e merece attenção tambem a
-especial pintura que cerca a janella, que está sobre a porta lateral da
-egreja, da parte de dentro.</p>
-
-<p>A infanta D. Maria, filha de D. João IV, está no côro de baixo; sob a
-grade d’este côro repousa uma princeza germanica.</p>
-
-<p>Reproduzo a inscripção desdobrando os breves:==Aqui debaixo d’esta
-grade jaz a veneravel madre Michaella Margarida de Sancta Anna filha
-do imperador Mathias, fundadora que foi d’este convento: resplandeceu
-em virtudes, faleceu em 28 de setembro de 1663 de idade de 82 annos
-havendo entrado na religião de 4 para 5 annos.==Esta inscripção<span class="pagenum" id="Page_68">[Pg 68]</span> está
-gravada em tres linhas, com bastantes lettras inclusas.</p>
-
-<p>Ha n’esta egreja uma devoção especial a «Santa Agape V. M. cujos
-despojos mortaes foram achados em Roma no cemiterio de Prescilla, sito
-na estrada Salaria Nova, e pelo santo padre Gregorio XVI concedidos
-á egreja de Santa Thereza de Carnide a 25 de abril de 1843... sendo
-expostos á veneração dos fieis em 14 d’outubro de 1846.»</p>
-
-<p>No exterior, templo e convento são de extrema singeleza. Sobre a porta
-principal a estatueta de Santa Thereza, e sobre a portaria a de S. José.</p>
-
-<p>No cunhal da esquerda da frontaria, lá está a inscripção:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">M.ᴬ F.ᴬ IOANNIS IIII LVSI</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">TANIAE REGIS HOC OP</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">VS STRVXIT, ANNO</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">DNI. M.DCLXII.</span><br />
-</p>
-
-<p>Este convento conheceu dias de tormenta; quantas angustias passaram
-atraz d’essas grades; nas grandes crises do tempo pombalino, dos
-francezes, das guerras civis, muitas damas, algumas das mais nobres
-familias de Portugal, aqui vieram asylar-se.</p>
-
-<p>Aqui esteve a duqueza de Ficalho a quem um capellão esperto dava
-noticias dos filhos, todos no exercito do imperador, no meio de
-motejos e allusões que contava em voz alta ás pessoas que estavam<span class="pagenum" id="Page_69">[Pg 69]</span> no
-locutorio, em quanto a duqueza escutava em ancias na casa proxima.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>N’este convento de Santa Thereza de Carnide viveu uma religiosa
-celebrada no seu tempo pelas suas virtudes, lettras, prendas, e bom
-humor. Era insigne no cravo, escreveu prosas e versos, e desenhava
-muito bem. A sua biographia encontra-se n’um volume com o titulo==Vida
-e obras da serva de Deus e madre soror Marianna Josepha Joaquina de
-Jesus, religiosa carmelita descalça do convento de Santa Thereza do
-logar de Carnide.==(Lisboa, 1783). É obra publicada sem nome de auctor,
-mas sabe-se que o foi D. José Maria de Mello, filho de Francisco de
-Mello, monteiro-mór do reino, oratoriano, bispo do Algarve, etc. Era
-sobrinho da insigne religiosa; e esta era filha do conde de Tarouca, o
-conhecido diplomata João Gomes da Silva.</p>
-
-<p>As obras da madre Marianna são escriptos piedosos, em prosa e verso,
-em boa e fluente linguagem. As prosas são exercicios espirituaes,
-instrucções para as noviças, actos das virtudes, etc. E as poesias que
-se leem sem enfado porque tem certa animação são todas conventuaes,
-celebrando, festividades; sonetos, decimas, nas festas da prelada;
-sortes de exercicio de virtudes para se tirarem no dia da exaltação
-da cruz; sortes da paixão para se tirarem no domingo de Ramos. Ha um
-romance.==A uma noviça attribulada.==<span class="pagenum" id="Page_70">[Pg 70]</span> E varios desafios poeticos no
-tempo do advento, exaltação e quaresma.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A egreja parochial de S. Lourenço de Carnide está agora bem reparada; é
-antiga como mostra a sua orientação e disposição. Todavia pouco resta,
-á vista, dos seus primeiros tempos. Na frontaria á direita ha uma pedra
-que é precioso monumento. Diz assim:==Era de 1380, 14 de maio o bispo
-Dom João mandou edificar esta egreja por Pero Sanches chantre de Lisboa
-á honra de S. Lourenço e deu-a a João Dor, seu capellão 24 dias do dito
-mez e passou o dito bispo 24 de julho da dita era ao qual Deus perdôe.
-Amen. Isto declara o que diz a pedra antiga correspondente.==</p>
-
-<p>A qual pedra não se vê hoje.</p>
-
-<p>Á esquerda da frontaria está em pedra lavrada, um brazão raro; tem na
-parte superior uma barra com vincos obliquos, sob isto uma estrella,
-uma perna com meia e sapato, que pousa sobre uma nuvem.</p>
-
-<p>Na igreja ha um quadro bom, o <em>lavapedes,</em> mal restaurado
-infelizmente; algumas campas, duas pias de agua benta que são dois
-capiteis do seculo <span class="smcap">xiv</span> escavados, e na sacristia um arcaz de
-boa madeira, bom trabalho, com metaes bem lavrados.</p>
-
-<p>O terreno em redor da igreja era antigamente o cemiterio e ainda ahi
-está uma urna com inscripção que será bom registar:==Josephus Joannes<span class="pagenum" id="Page_71">[Pg 71]</span>
-de Pinna de Soveral e Barbuda speciosus forma oritur ut moriatur 23 die
-decembris anno 1710 et plenus gratia per merita domini nostri Jesus
-Christi moritur ut vivat 1.ᵒ die mayi anno 1742,==o lettreiro está na
-face da urna em moldura, tendo na facha superior==Deo laus honor et
-gloria, amen,==e na inferior==Spes et voluntas in Deo.==</p>
-
-<p>Visinha da igreja de S. Lourenço está uma fonte com bello aspecto mas
-sem agua. Tem seu terreiro bem empedrado defendido por frades de pedra,
-tanque, e um corpo central encimado por uma estatua, uma figura de
-mulher que me intriga um tanto. Esta figura está mutilada, sem braços,
-e pegaram-lhe ao lado uma pedra com seu lettreiro:==Encanamento de
-ferro pela vereação de 1858.==Mais em baixo o dizer:==Camara Municipal
-de Belem, 1857.==Apesar dos lettreiros e dos canos de ferro a fonte
-está enxuta.</p>
-
-<p>No passeio de cima chamado antigamente do Espirito Santo, agora o
-<em>alto do poço</em>, está uma fonte, isto é, um poço com bomba, e uma
-urna de pedra bem tosca com a indicação:==C. M. B. 1859.==Dizem os
-de Carnide que a agua da fonte de baixo era excellente. Parece que
-n’este caso como em tantos outros a companhia apanhou as aguas boas,
-misturou-as com as ruins, e fornece a mistura aos consumidores, que em
-certas localidades ficaram prejudicados.</p>
-
-<p>Agora a respeito da estatua; é uma figura de<span class="pagenum" id="Page_72">[Pg 72]</span> mulher, com tunica de
-pregas miudas, e amplo manto cingido. Parece-me uma estatua romana,
-pelo trabalho, disposição, rosto e cabello. Provavelmente foi
-aproveitada alli como o satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica.</p>
-
-<p>Carnide tem illuminação a gaz, agua da Companhia, estação
-telegrapho-postal, posto de bombeiros, posto de policia civil, a sua
-philarmonica com aprendizes de cornetim, a pharmacia com seu gamão,
-um theatro particular, um club e duas escolas municipaes primarias
-officiaes de ensino gratuito, uma para meninas e outra para meninos que
-me parecem regularmente frequentadas.</p>
-
-<p>As irmãs de S. José tem escola de meninas.</p>
-
-<p>O que anima muito o sitio é o collegio militar, que está muito bem
-installado no sólido edificio que ainda conserva na sua frente o brazão
-da fundadora, a inclita infanta D. Maria, filha de el-rei D. Manuel.</p>
-
-<p>Na procissão dos Passos faziam a guarda de honra os alumnos do Collegio
-Militar com as suas carabinas no braço, marchando muito garbosamente,
-entre o povo e as familias d’elles que os acompanhavam, cobrindo-os
-com os seus melhores olhares. Sentia-se um certo perfume de familia,
-patria, dever, brio, mocidade, um ramilhete de cousas boas, ao vêr
-passar, musica na frente, aquelles bellos rapazes, entre a multidão
-sympathica.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_73">[Pg 73]</span></p>
-
-<p>A igreja de Nossa Senhora da Luz é bem conhecida; eu mesmo já
-escrevi algures da formosa téla onde se vê retratada a infanta D.
-Maria (ha outro retrato no quadro da capella do collegio militar),
-do extraordinario altar-mór com os seus finos baixos relevos, da
-capella-mór que é um monumento da arte nacional, excepcionalmente bem
-conservado. No exterior está a fonte, a velha estatua da Virgem e uma
-longa inscripção repartida em duas lapides de marmore avermelhado, que
-diz o seguinte:</p>
-
-<p>==No anno de 1463 reinando em Portugal D. Affonso <span class="allsmcap">V</span>
-os visinhos de Carnide com devoção das revelações que Pedro
-Martins, natural deste logar, teve em seu captiveiro, donde sahiu
-milagrosamente, lhe ajudaram a fazer uma capella a nossa Senhora da Luz
-sobre esta fonte. O lugar como determinado pela divina providencia para
-este effeito se via dantes claro e resplandecente com visão e lumes
-do Céo, como depois se viu resplandecer com grandes e innumeraveis
-milagres na terra. E seguindo em tudo a ordem e revelação que a Virgem
-purissima inspirou a Pedro Martins, lhe puzeram o nome que tem da Luz,
-em cuja memoria e louvor a infanta D. Maria filha delrei D. Manuel o
-primeiro deste nome, rei de Portugal, e da Christianissima rainha D.
-Leonor infanta de Castella, mandou reedificar e levantar o templo de
-novo nesta ordenança e grandeza, no anno de 1575.==</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_74">[Pg 74]</span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Domingo de Ramos, 3 abril 1898.</p>
-
-<p>Pela manhã cedo dei um pequeno passeio até á Casa da Pontinha, proxima
-da estrada militar. É casa antiga, com algumas alterações modernas; na
-parede que deita para a estrada, a pouca altura, está um marmore com
-lettreiro:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">Louvado seja</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">o santissimo</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">sacramento.</span><br />
-<span style="margin-left: 3em;">—</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Se quereis</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">saber quem</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">he o serafi</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">co Frc.ᵒ está</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">junto a IHS</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Cristo que</span><br />
-16 assim o te 37<br />
-<span style="margin-left: 1.5em;">mos por</span><br />
-<span style="margin-left: 2em;">fee</span><br />
-</p>
-
-<p>Superior á lapide está um quadro de azulejo; a Senhora da Conceição, em
-azul sobre o branco, de bom desenho, em moldura de azulejos policromos.</p>
-
-<p>Proximo da Casa da Pontinha, na estrada que vem para Carnide, está uma
-casa quadrada, na ponta da horta do casal do Falcão, n’um angulo<span class="pagenum" id="Page_75">[Pg 75]</span> de
-muro, que conserva um friso ornamentado, uma grega singela em relevo de
-cal, um <i lang="it" xml:lang="it">esgrafitto</i>, datado «1622».</p>
-
-<p>Depois ouvi a sineta das freiras, que sôa como uma voz debil, triste,
-e entrei na linda igreja. O capellão lia no seu missal a grande
-narrativa do triumpho em Jerusalem, que foi terminar na paixão, na cruz
-do Calvario, verdadeiro symbolo da vida humana, que a dias de puras
-alegrias e risonhas esperanças faz succeder horas de desespero e uma
-eternidade de angustias.</p>
-
-<p>O capellão lançou a sua benção sobre os ramos, folhas de palmeira
-sem ornato algum, e deu-os pela grade do côro de baixo ás religiosas
-portuguezas. Entraram processionalmente as irmãs de S. José de Cluny,
-com as suas tunicas azues e mantos pretos; toucas brancas moldurando os
-rostos; atravessaram o cruzeiro e ajoelharam no degrau da capella-mór.
-Ahi receberam as palmas, os ramos do grande triumpho. Não havia
-musicas, nem canto; um grande silencio apenas. E retiraram na mesma
-ordem, e no mesmo silencio para a sua clausura.</p>
-
-<p>Quantas estarão de marcha para as missões africanas!</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Quinta-feira santa, 7 d’abril 1898.</p>
-
-<p>Hoje o passeio foi longo, quiz verificar o que havia a respeito de
-certas antiguidades na ribeira de Carenque.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_76">[Pg 76]</span></p>
-
-<p>Ha tempos, nem me recordo porque circumstancia, folheei um opusculo
-intitulado==<i>Representações dirigidas a S. M. a Rainha e ao corpo
-legislativo pela Camara Municipal de Lisboa sobre o abastecimento
-d’aguas na Capital</i>==(Lisboa, 1853). Ora estas representações são
-acompanhadas de pequenas memorias de J. M. O. Pimentel e do engenheiro
-Pézerat, duas summidades do seu tempo. A de Pézerat começa a pag.
-53:==Memoria sobre as conservas d’agua da Quintam até ao Salto Grande.==</p>
-
-<p>Tratava-se de estabelecer tanques nos valles superiores (da ribeira
-de Carenque), ou conserva para a repreza de todas as aguas de sobejo
-fornecidas no inverno pelos differentes nascentes d’este systema de
-aqueducto (o das Aguas Livres). E diz Pézerat:==Descobri o valle da
-Quintam, com condições muito favoraveis porquanto já tinha servido em
-tempos remotos de conserva ou bacia para uma immensa repreza, cuja
-existencia está provada pelos restos do antigo paredão ou marachão com
-11 metros de largura, e 9 de altura, e que os habitantes attribuiam á
-epocha do dominio romano, e como tal o denominam, porém mui facilmente
-reconheci pertencer á epocha mourisca.==</p>
-
-<p>Na planta que vem com a memoria marcam-se o casal da Fonte Santa, o
-resto do marachão, as linhas do aqueducto de D. João <span class="allsmcap">V</span>, as
-mães d’agua, velha e nova, a escavação de um aqueducto abandonado,<span class="pagenum" id="Page_77">[Pg 77]</span> o
-valle de Fornos, o casal da Quintam e as ruinas do Castello velho.</p>
-
-<p>Eu desejava ver estas antigualhas.</p>
-
-<p>Parti de Carnide á Porcalhota, ao sitio da Amadora, passei por um
-grande arco sob a linha ferrea, e entrei na estrada de Carenque, que
-vae seguindo a corrente. Um valle muito comprido, accidentado, com
-dois logares, Carenque de baixo, Carenque de cima, alguns grupos de
-casebres, azenhas, pequenas hortas, e dominando tudo a formidavel obra
-do aqueducto das Aguas Livres, sempre bem feita, de silharia sempre bem
-faciada, formidavel monumento.</p>
-
-<p>A principio ia desanimando, ninguem me sabia dizer das velharias
-mouriscas ou romanas, nem da Quintam, e cheguei assim ao casal do
-Ernesto.</p>
-
-<p>Ahi depois de expôr a minha questão a um grupo que nada sabia,
-surgiu-me um sujeito côxo conhecedor do caso, da obra dos mouros (não
-me fallou de romanos) e da Quintam. Este côxo providencial chama-se
-João Silvestre, e foi pastor na sua mocidade. Pastores sabem muito,
-andam pelos montes e charnecas, por atalhos e a corta-matto; são sempre
-bons informadores.</p>
-
-<p>Com o Silvestre passei as terras do casal do Ernesto; em breve
-estava na ponte entre as mães d’agua; a chamada <em>nova</em> (D. João
-V) é uma linda construcção oitavada, de elegantes fórmas singelas,
-classicas, parece uma obra grega. Pouco acima avistava-se outra obra
-inconfundivel, o marachão,<span class="pagenum" id="Page_78">[Pg 78]</span> enorme, firme, apezar das cheias, dos
-seculos e dos homens.</p>
-
-<p>Porque já para a obra do aqueducto de D. João V tiveram de o romper a
-poente, e mais recentemente a nascente para a passagem de uma estrada;
-todavia o que existe é pouco menos do que viu Pézerat.</p>
-
-<p>Nas dimensões que elle apresenta, na da largura do paredão, houve
-engano me parece. Contando com os encostos ou gigantes, na base,
-chega-se a 11 metros, mas a parede em si tem 7 metros, o que é bem
-respeitavel. É feito de camadas de pedregulho e argamassa, revestido
-de pedras grandes irregulares e mal faciadas, em fiadas; por isto
-me parece obra dos arabes; os romanos em obra de tal importancia
-empregavam os seus bellos apparelhos. O paredão tem 9 metros de altura
-na face do sul. Completo teria 40 a 50 metros de comprimento, e 5 ou
-6 de altura sobre o terreno a montante; ora a montante segue-se uma
-varzea consideravel que fechada formaria uma grande albufeira. Mais
-acima, a 2 kilometros, fica a Quintam, um casal muito velho; ao lado
-restos da muralha com ameias, e um grande portal.</p>
-
-<p>É de notar que junto de Odivellas, sahindo da povoação a entrar no
-atalho que vem ao moinho da Luz, na estrada militar, está um muro
-ameiado, com seu portico em ogiva, resto tambem de uma construcção
-fortificada. Castellos não seriam, mas habitações fortificadas talvez.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_79">[Pg 79]</span></p>
-
-<p>E disse-me o Silvestre,—mas por aqui ainda ha melhor, se tem tempo
-e vontade eu lhe vou mostrar a eira dos mouros.—Trepámos por atalho
-até uma chapada, proxima e inferior á crista do cerro que é formado
-de calcareo secundario muito fragmentado. E achei-me em face de um
-problema.</p>
-
-<p>É uma chapada ligeiramente inclinada de poente para nascente. N’este
-declive traçaram um octogono regular, menos a face do nascente que está
-de nivel com o terreno natural. Este octogono está cercado por um muro
-duplo, isto é, por dois muros parallelos que entre si conservam um
-intervallo de meio metro; estes muros conservam a mesma altura em cinco
-lados do octogono, decrescem nos dois a nascente até chegar ao nivel do
-solo. Os muros teem 0,5 de espessura; nos cinco lados a poente, norte
-e sul, quasi um metro de altura na face interior, porque na exterior,
-a poente estão com o terreno, que é mais alto ahi. São de alvenaria
-bem solida. No espaço assim limitado arranjaram um centro plano e das
-paredes para esse centro ha declives regulares, artificiaes. Todo
-este espaço interior está, não calçado de pedra, mas forrado de uma
-forte camada de alvenaria, que assenta, como se vê n’um ponto que está
-escavado (por algum caçador, ou mais provavelmente por algum sonhador
-de thesouros; porque, notou o antigo pastor, dizem que ha muita somma
-de dinheiro e outras cousas enterradas por estes sitios), em grande
-camada de pedregulhos.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_80">[Pg 80]</span></p>
-
-<p>—Dizem que era aqui que os mouros se vinham divertir,—informou o
-Silvestre. Um theatro, uma palestra, uma praça de touros? quasi que
-parece; mas para que a dupla parede com a sua sanja ou caneiro? E os
-declives, e a solidissima alvenaria que forra o fundo? Para um fim
-industrial, ou assento de grande arribana, tambem não vejo; se fosse
-questão de aguas, tanques de lavagem, então não fariam aquella obra na
-altura, porque o rio corre muito abaixo. O espaço é consideravel; tem
-proximamente 35 metros de diametro maximo, e os lados, muito regulares,
-tem 15 metros cada um na face interna. Ha outras eiras de mouros, disse
-Silvestre, mas sem o duplo muro, n’uns outeiros mais distantes.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>10 de abril de 1898.</p>
-
-<p>Hoje pela manhã fui vêr uma obra d’arte na quinta da Marqueza.
-A meio do jardim quadrado agora exhuberante de bellas rosas, de
-macissos de flôres, está um tanque de fino marmore, grande, formado
-de enormes blocos lavrados, com seus chanfros e curvas, decorado de
-quatro mascaras collossaes; sobre a borda do tanque quatro golphinhos
-decorativos de cauda erguida, infelizmente quebradas as extremidades,
-que lançam jorros d’agua para o tanque. No centro um grande grupo, um
-tritão vigoroso, uma formosa sereia e um genio marinho, em posições
-movimentadas, dando um todo agradavel de qualquer lado que se<span class="pagenum" id="Page_81">[Pg 81]</span> observe.
-É uma peça de esculptura notavel em marmore de Italia.</p>
-
-<p>Depois segui para o casal do Falcão, que não tinha ainda examinado
-internamente. É um grande predio apalaçado, com suas dependencias;
-palacio e centro de exploração agricola. Da casa de residencia está
-metade em pé, outra que olhava ao norte, e que tinha como a do nascente
-a sua alta varanda coberta, com finas pilastras, foi derrubada ha muito
-tempo. Tem dois pavimentos; no terreo estão cosinhas e arrecadações; no
-superior, o andar nobre, salas e alcovas. As salas eram ladrilhadas,
-com altos rodapés de azulejo, e tectos de madeira em caixilhos ou
-almofadas.</p>
-
-<p>Tem capella. Sobre a porta da pequena mas elegante egrejinha está o
-lettreiro:==Dedicada a Nosa Snra da Asumsão ano de 1705 (?).==</p>
-
-<p>Parece-me 1705, mas os dois ultimos algarismos estão muito gastos. O
-altar-mór tem seu retabulo em marmores lavrados, com seus nichos, em
-trabalho que tem movimento. Nas paredes ha azulejos bem conservados, e
-em frente da pequena tribuna um lettreiro diz que alli está enterrado
-João Coelho que instituiu a quinta em morgado em 1647. Esta casa com
-suas dependencias, lagares, arribanas, abegoarias, é um bello exemplar
-de construcção portugueza no seculo <span class="allsmcap">XVII</span>.</p>
-
-<p>Entre almoço e jantar fui vêr o casal e o moinho do Castello, para lá
-de Alfornellos ou talvez melhor, Alfornel.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_82">[Pg 82]</span></p>
-
-<p>Estes nomes de Fornos, Fornellos e Alfornellos indicam a existencia de
-antigos fornos, os d’estes sitios provavelmente só destinados a coser
-calcareo e grossa ceramica; não encontrei ainda escorias de metaes.</p>
-
-<p>O moinho do Castello desappareceu, está lá como testemunha a grande
-pedra do frechal. A altura é formada por calcareo jurassico, cujas
-cristas parallelas afloram sobre o solo. Não vi grandes movimentos de
-terra ou pedra que indiquem trincheiras bem definidas. Nem fragmentos
-de ceramica, escorias, ou outra qualquer cousa que indique trabalho
-humano. É possivel todavia que alli tenha havido alguma fortificação
-prehistorica; á vista e não muito distante está outro monte a que um
-pastor tambem chamou do Castello.</p>
-
-<p>A proposito de movimentos de pedra e terra direi que nos arredores
-de Lisboa o archeologo precisa estar sempre lembrado de que dois
-formidaveis trabalhos se proseguem ha muitos seculos por estes sitios;
-a exploração das pedreiras, e a pesquiza e captagem das aguas.</p>
-
-<p>O trabalho das pedreiras em varias epochas, depois dos terremotos
-da capital, foi collossal. A formação de aqueductos para Lisboa,
-especialmente o prodigioso trabalho da rede do Aqueducto das Aguas
-Livres que acompanha e alimenta o cano geral deu origem tambem a grande
-deslocação de material.</p>
-
-<p>Seguindo do casal do Castello para Falagueiras<span class="pagenum" id="Page_83">[Pg 83]</span> segui eu um ramo do
-aqueducto, e um caneiro para regularisar a sahida das aguas do valle,
-tudo bem feito, com solidas fiadas de silhares, suas caixas d’agua,
-algumas das quaes me pareceram muito anteriores ás suas visinhas do
-tempo de D. João V. Exactamente, antes de chegar á queda da ribeira
-onde está uma grande caixa d’agua, vi muitos movimentos de terra,
-comoros artificiaes, que n’outra região tomaria por mamunhas ou mamoas
-tumulares.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O rev. padre Pereira, actual prior de S. Lourenço de Carnide, tem
-colligido muitas noticias para a historia d’este logar.</p>
-
-<p>Para o estudo da topographia de Carnide e seus arredores serve muito
-bem a carta n.ᵒ 7, publicada pelo Corpo d’Estado Maior.</p>
-
-<p>A historia da egreja de Nossa Senhora da Luz, e do edificio onde
-actualmente se acha installado o Collegio Militar, encontra-se na
-<i>Vida da infanta D. Maria, filha de D. Manuel</i>, por fr. Miguel
-Pacheco (Lisboa, 1675); em <i>O Occidente,</i> vol. de 1890, pag. 219;
-e no <i>Archivo Pittoresco,</i> vol. de 1863, pag. 299.</p>
-
-<p>O casal do Falcão mereceu estudo especial ao sr. Julio de Castilho,
-2.ᵒ visconde de Castilho, gentil espirito que esmalta de poesia a
-mais variada erudição. O sr. visconde publicou no <i>Instituto</i><span class="pagenum" id="Page_84">[Pg 84]</span>
-de Coimbra, vols. de 1889-90, uma serie de artigos historiando os
-dramaticos amores do pintor Francisco Vieira de Mattos, o Vieira
-Lusitano, com a firme e leal senhora, D. Ignez Helena de Lima e Mello,
-que apoz dolorosos episodios foi esposa do grande artista.</p>
-
-<p>Esses amores puros, honestos, bem portuguezes, que douram de deliciosa
-poesia os restos, agora tristes, da fidalga vivenda, de ha muito
-chamada o casal do Falcão, foram contados pelo proprio Vieira n’um
-livro: «O insigne pintor e leal esposo Vieira Lusitano, historia
-verdadeira que elle escreve em cantos lyricos (Lisboa, 1780)»; livro
-interessante porque além do poema amoroso, apresenta grande numero de
-quadros de costumes, scenas palacianas, festas populares, e noticias
-artisticas.</p>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_85">[Pg 85]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="Noticias_de_Carnide">Noticias de Carnide</h2>
-</div>
-<hr class="r5" />
-<p class="center">(1900)</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_87">[Pg 87]</span></p>
-
-
-
-<p><i>Domingo, 12 de junho de 1898.</i>—No fim da tarde trovoada forte,
-e chuva grossa; d’estes chuveiros que no campo fazem bulha batendo nas
-folhagens do arvoredo; um rufar grave que se ouve a centos de metros.
-Em Carnide não cahiu granizo; nas Laranjeiras bastante, mais forte na
-Palhavã; no Matadouro a saraiva foi tão valente que partiu vidraças; e
-em Sacavem e Cabo Ruivo ficaram algumas propriedades arrazadas.</p>
-
-<p>Não ha memoria por estes sitios de tempestade tão violenta.</p>
-
-<p><i>Vespera de Santo Antonio.</i>—Á noite fizeram-se sortes; quatro
-papelinhos, nome de senhora, nome de homem, sitio, e o que estavam
-fazendo. Permittem-se cousas... que fazem rir. Queimam-se alcachofras,
-ha a historia da moeda de cinco réis, os foguinhos de vistas, valverdes
-e bichas de rabiar. Uns rapazotes da visinhança estiveram n’um pateo,
-durante duas horas talvez,<span class="pagenum" id="Page_88">[Pg 88]</span> atirando bombas. A philarmonica tocou o seu
-reportorio no coreto armado no Alto do Poço. Junto do coreto raparigas
-e alguns rapazes dançavam e cantavam. Cantigas <i>triviaes geraes</i>;
-não ouvi nenhum cantar especial de Santo Antonio, nem na letra nem na
-musica. O mesmo succedeu pelo S. João; não encontrei nada particular
-nas celebrações populares. Brinca-se, riem, dançam, conversam sem
-mostrar feição local. Creio que ouvi mesmo a valsa dos <i>Quadros
-dissolventes</i>. Nada que recorde as cantigas do Alemtejo nem as da
-Beira, as fogueiras do valle do Mondego, que teem cunho especial, typos
-admiraveis, musicas que tão bem enquadram umas nas vastas campinas
-alemtejanas, outras na paisagem mimosa, nos frescos valles da Beira.
-É digno de reparo que estas cantigas populares de uma região não se
-vulgarisem fóra d’ella.</p>
-
-<p>Teem suas espheras. Ao mesmo tempo ha cantigas de origem não popular
-que se generalisam rapidamente. A fogueira de Coimbra, arranjada no
-<i>Burro do sr. Alcaide</i>, a <i>Noite serena lindo luar</i>, tambem
-de Coimbra, que não são de origem popular, espalharam-se por todo
-o paiz. A valsa dos <i>Quadros dissolventes</i> foi uma explosão;
-os garotos assobiavam-n’a nos bairros de Lisboa, ouvia-se em pianos
-nas mansardas da baixa, aos operarios de Sacavem, e a vendedores
-torrejanos, isto dentro de um mez.</p>
-
-<p>Duram mezes, ás vezes annos, certas cantigas; esvaem-se pouco a pouco,
-ou desapparecem de<span class="pagenum" id="Page_89">[Pg 89]</span> chofre como a <i lang="la" xml:lang="la">Rosa tyranna</i>. São modas
-que passam, como as reformas administrativas e as leis eleitoraes.
-Assim passou a epidemia do <i>chocalhinho</i>, o caso da <i>salva
-brava</i>, o <i>pão de Kuhne</i>. Não se recordam do <i>Estás lá ou
-és de gêsso</i>, do <i>Lindos olhos tem o môcho</i>, do <i>Debaixo do
-sophá</i>, do <i>Vae-te embora Antonio?</i></p>
-
-<p>As musicas de Offenbach foram muito populares, mas para estas
-concorreram certamente os theatros de feiras. No Alemtejo cantigas de
-mondadeiras, de vindimeiras, e as de S. João, que se cantam tambem
-pelo Santo Antonio e pelo S. Pedro, pertencem a fundo antigo popular.
-Só ha tempos ouvi em Carnide uma trova que me fez lembrar o Alemtejo,
-a cantilena muito comprida, melancholica, de um homem que lavrava com
-a sua junta de bois; conversámos, perguntei-lhe de onde era; de Villa
-Franca. É que o Ribatejo já tem muito de alemtejano.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Dia de Santo Antonio, de 1898.</i>—Fez-se a eira no casal do
-Falcão; ante a grande frontaria do nascente, limpou-se da erva o amplo
-terreiro. Com a chuva da trovoada da tarde de hontem, e da noite, o
-terreno estava encharcado; depois de limpo entrou um rebanho de ovelhas
-para calcar, com o seu moroso voltear.</p>
-
-<p>Foi no dia de Santo Antonio, 13 de junho de 1898, que obtive licença
-para vêr algumas salas do convento. Acompanhou-nos o reverendo
-capellão<span class="pagenum" id="Page_90">[Pg 90]</span> padre Louro, protector carinhoso das velhinhas recolhidas,
-tão modestas e tão religiosas.</p>
-
-<p>A superiora chama-se D. Maria Guilhermina de S. José. As suas
-companheiras são Maria de Jesus, Maria Philomena, Maria Augusta,
-Josephina, Olympia, Maria do Carmo e Isabel. Vivem em perfeita
-communidade estas santas senhoras, na virtude, na oração e nos humildes
-trabalhos, como se Santa Thereza em pessoa ali estivesse fazendo
-cumprir a sua regra.</p>
-
-<p>No claustro a arcada muito clara e limpa, a cantaria lavada e as
-paredes caiadas, tudo muito nitido, e cheio de reflexos de sol. No
-meio da quadra o jardim, ainda o jardim antigo, o tanque central, e os
-alegretes altos azulejados. E ainda as lindas flôres antigas, as rosas
-e os cravos, o novelleiro, a baunilha, o jasmineiro, a alfazema e a
-manjerona, a malva de cheiro, e a lucialima de fina folhagem.</p>
-
-<p>A capella do Senhor dos Perdões está bem conservada na sua elegante
-architectura. Na quadra, junto do jardim, ha duas capellas; o lado de
-dentro das portas d’estas capellas é pintado a oleo, com folhagens em
-volutas e espiraes, bom exemplar de pintura decorativa do seculo XVII.</p>
-
-<p>N’um altar do claustro vi azulejos iguaes aos dos altares do cruzeiro
-da egreja, e da capella do Senhor dos Passos; bellos exemplares do
-seculo XVII.</p>
-
-<p>No tanque da cêrca está um quadro em azulejo representando a
-<i>Samaritana</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_91">[Pg 91]</span></p>
-
-<p>As senhoras recolhidas comem no seu refeitorio, uma casa grande mui
-limpa, as paredes ornadas de pequenos quadros de devoção.</p>
-
-<p>Sobre a toalha branca sem uma nodoa os pratos e canecas de faiança
-ordinaria, com sua marca; provavelmente louça especial feita para o
-mosteiro em tempos antigos.</p>
-
-<p>Creio que os conventos de Lisboa tinham todos louça especial com
-marcas proprias, insignia ou divisa, ou inicial; e ainda mesmo algumas
-confrarias possuiram tambem as suas louças com monogrammas ou emblemas
-particulares.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>O presépe.</i>—A casa da recreação é uma sala grande muito
-illuminada por janellas rasgadas em duas paredes, com lindas vistas
-para os accidentados arredores de Carnide.</p>
-
-<p>N’outra parede fica a porta de entrada e uma capella onde estão muitas
-imagens; na quarta parede fica o presépe.</p>
-
-<p>As portas do presépe merecem attenção; teem o lado interior com
-ornamentos dourados sobre fundo preto, imitando charão antigo, pintura
-feita por uma freira, segundo a tradicção conventual.</p>
-
-<p>As figuras do presépe são de barro cosido, colorido e tambem dourado,
-finas esculpturas em grupos e scenas bem combinadas. N’estes grandes
-presépes conservou-se a tradicção dos primeiros mestres flamengos
-que n’um só quadro accumulavam muitas scenas, a <em>paixão</em> toda,
-por exemplo,<span class="pagenum" id="Page_92">[Pg 92]</span> como succede n’essa maravilhosa pintura de um mestre
-desconhecido do começo do seculo XV, joia de alto preço, que se
-conserva no côro de cima da egreja da Madre de Deus (Xabregas). A
-scena principal é a do presépe, o Menino Jesus sobre as palhinhas
-entre a Virgem e S. José. Proximo o grupo vistoso, opulento, dos
-reis Magos. Ali a noticia, a grande nova aos pastores, além a fuga
-para o Egypto. Entre estes grandes grupos, outras scenas, as da vida
-popular tão interessante n’estes presépes antigos que sabiam combinar
-engenhosamente a vida humana com o sublime ensinamento religioso;
-de modo que hoje estes presépes além de todos os valores antigos da
-significação religiosa, e de merecimento artistico, teem para nós a
-importancia de documentos da vida popular; quantas vezes mesmo se
-encontram aqui notas, figurinos, por exemplo, que em nenhuma outra
-parte se topam.</p>
-
-<p>N’este de Carnide entre os grupos ao divino das scenas da infancia do
-Menino ha alguns episodios profanos extraordinariamente executados:
-um grupo de populares sapateia a um lado com toda a bizarria; n’uma
-especie de gruta, a fugir da luz, dois homens jogam absorvidos;
-perto passa um cégo tocando sanfona; e camponezes alegres, com ovos,
-gallinhas, perdizes, coelhos...</p>
-
-<p>Superior a tudo isto, em posição muito bem calculada para a
-perspectiva, um grande grupo de anjos cantando e tocando orgão, violas,
-e violão,<span class="pagenum" id="Page_93">[Pg 93]</span> e superior ainda a este grupo brilhante um anjo gentilissimo
-com a fita onde se lê <i lang="la" xml:lang="la">gloria in excelsis</i>, entre frescos e
-risonhos rostos alados de cherubins. N’essas figuras de impeccavel
-esculptura ha mais porém, ha em algumas grande expressão e movimento;
-o espanto dos pastores, a magestade bondosa dos reis, o enlevo musical
-do cégo, a furia nervosa dos jogadores, o enthusiasmo dos populares
-no seu fandango rijo, são d’um encanto irresistivel, qualquer d’esses
-grupos é de per si uma obra d’arte. Como isto chegou até nós, Santo
-Deus, atravessando estes tempos de progresso, de luzes, de leilões!
-bemditas as santas senhoras, tão singelas e honestas, que teem sabido
-conservar essa preciosidade. Cuidado com os amadores! com os poderosos,
-espirituosos e curiosos; é preciso conservar esse lindo presépe.</p>
-
-<p>Na mesma casa da recreação ha outro presépe, pequenino, interessante,
-com o Menino dormente. E na capella ha uma adoravel imagem do Menino,
-em pé, de especial devoção antiga no convento, que tem o nome de <em>o
-menino da compaixão</em>. E é bem singular que a escultura do rosto dá
-a impressão de doce condolencia. Mas vejam como está bem afinada esta
-casa de recreação para as senhoras religiosas; a linda sala cheia de
-luz, os retratos das sublimidades da Ordem, dos modelos de virtudes
-e abnegação, o artistico presépe, vibrante de suggestões, a imagem
-consoladora do Menino, e pelas janellas largos trechos claros de
-paizagem<span class="pagenum" id="Page_94">[Pg 94]</span> variada, a paizagem campestre clemente e serena.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>No convento de Santa Thereza de Carnide vi alguns retratos valiosos,
-não pela arte mas como documentos historicos, especialmente aquelles
-que teem em seus letreiros dados biographicos dos retratados.</p>
-
-<p>Por exemplo, o retrato de==<i>D. Fr. Luiz de Santa Thereza, carmelita
-descalço, lente de theologia, bispo de Pernambuco em 1738, falleceu a
-17 de novembro de 1757, jaz na capella mor do convento de S. João da
-Cruz de Carnide.</i>==</p>
-
-<p>Pela extinção dos conventos de frades recolheram algumas pinturas e
-imagens nos das freiras e assim se salvaram naquelle cataclismo.</p>
-
-<p>Outros: <i>Retrato da infanta D. Maria filha de D. João IV</i>.</p>
-
-<p><i>Retrato da Madre Micaella Margarida de Santa Anna.</i></p>
-
-<p><i>Retrato de... bispo de Penafiel confessor da princeza.</i></p>
-
-<p><i>Retrato de D. Fr. João da Cruz, carmelita, lente de filosofia e
-theologia, prior do collegio de Braga, e Santa Cruz do Bussaco, bispo
-do Rio de Janeiro em 1739 transferido para o bispado de Miranda em
-1750. Falleceu a 20 de outubro de 1756.</i></p>
-
-<p><i>La hermana Leonor Rodrigues</i> (d’Evora).</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_95">[Pg 95]</span></p>
-
-<p><i>S. Cassiano.</i>—No côro de baixo ha um pequeno quadro com retrato
-a oleo, pintura antiga, que me tornou attento; representa um santo
-bispo com uma cartilha na mão; é S. Cassiano, que era mestre de meninos
-e todo dedicado á educação da infancia, que morreu martyrisado pelos
-discipulos. Exemplo raro sem duvida! No meu tempo, e desde quando viria
-o systema! era o mestre que martyrisava os rapazes com palmatoadas,
-varadas e sopapos, castigos deprimentes das pobres alminhas das
-creanças; e ás vezes os paes assomavam á porta da escola, e animavam
-de lá: «não m’o poupe, sr. mestre, não m’o poupe; ensine-me bem o
-rapazelho!»</p>
-
-<p>Que differença tem havido nos ultimos tempos, em materia de educação,
-nos pontos de vista, nos processos, e meios intelligentes; mas é
-preciso educar as almas, para que sejam boas, fortes, livres e
-religiosas na grande accepção do termo.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Pinturas.</i>—Os quadros da capella-mór das freiras de Carnide são
-de Ignacio d’Oliveira Bernardes, segundo affirma C. Volkmar Machado,
-na sua <i>Collecção de Memorias</i> (pag. 94). Oliveira Bernardes
-(1695-1781), era tambem architecto, e n’esta qualidade trabalhou no
-palacio de Queluz, e na casa e quinta de Gerardo Devisme (a S. Domingos
-de Bemfica, onde actualmente está o collegio de meninas).</p>
-
-<p>A grande tela magistral do <i>Transito de Santa<span class="pagenum" id="Page_96">[Pg 96]</span> Thereza</i>, é do
-pincel de José da Costa Negreiros, que foi discipulo do celebre André
-Gonçalves. Negreiros falleceu em 1759, com 45 annos. Esta familia
-Negreiros produziu varios artistas.</p>
-
-<p>Percorrendo agora a <i>Collecção de Memorias</i> de Cyrillo Volkmar
-Machado, tomei algumas notas a respeito de quadros pintados que se
-podem ver em egrejas dos arredores de Lisboa.</p>
-
-<p><i>Jeronymo de Barros Ferreira</i> nasceu em 1750, em Guimarães, morreu
-em Lisboa em 1803; pintou o tecto da capella de Santa Brigida na egreja
-parochial de S. João Baptista do Lumiar.</p>
-
-<p><i>Vanegas</i>, castelhano, imitador do Parmezão; o painel do retabulo
-na capella-mór de N. S.ᵃ da Luz é d’este pintor (V. Machado, pag. 60).</p>
-
-<p><i>Diogo Teixeira</i>, pintor do tempo de D. Sebastião. Na Luz, ao pé
-dos quadros de Vanegas estão pinturas d’este Teixeira (pag. 68).</p>
-
-<p><i>André Gonçalves</i> (pag. 88). Este pintor que trabalhou immenso,
-falleceu em 1736; são d’elle alguns quadros da capella de Queluz, os
-quadros da vida de S. João Baptista, no Lumiar, e os do côro de S.
-Domingos de Bemfica. Lendo estas <i>Memorias</i> de Volkmar Machado,
-fica-se com impressão dolorosa; como se trabalhou em Portugal no
-seculo passado e ainda no primeiro quartel d’este seculo! em pintura,
-architectura, esculptura, ourivesaria, em tecidos, em fundições. A
-enorme e violentissima crise das invasões francezas, não parou essa
-torrente de trabalho artistico; era o<span class="pagenum" id="Page_97">[Pg 97]</span> rei que encommendava estatuas
-e quadros, era Mafra e Ajuda que foram formidaveis escolas, e as
-casas fidalgas que mandavam fazer retratos, capellas, decorações dos
-seus palacios e jardins, eram os frades a querer azulejos e telas, e
-entalhados, e embrexados, eram os prelados, os cabidos, e até a humilde
-irmandade que ao menos queria ter o seu <em>compromisso</em> ou estatuto
-em bonita encadernação de velludo ou marroquim, com seus ornatos a
-ouro, e cantos e fecharia de prata.</p>
-
-<p>Era uma corrente, uma orientação bem diversa da actual.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>15 de junho, manhã, cedinho.</i>—Da janella do meu quarto vejo
-no casal os homens de trabalho juntando mólhos em fascaes. Junto da
-terra do Lopes estão carregando fêno; muito está emmólhado na terra,
-não se póde emmédar porque está humido da chuva. Já se ceifa trigo; na
-terra do Castello anda um grande grupo de trabalhadores; para o lado
-de Falagueiras tambem. O trigo do Alto da Tonta está prompto a ceifar,
-está lindo, de um louro claro; á passagem do vento faz brandas ondas
-douradas. O da terra do Lopes tem um verde intenso. Agora distinguem-se
-bem os trigos de inverno e os da primavera, uns muito louros, outros em
-verde carregado.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Domingo, 19 de junho.</i>—Festa das ervas para remedios em
-Alfornel, hoje em decadencia completa;<span class="pagenum" id="Page_98">[Pg 98]</span> vae mudando tudo. Antigamente
-era muito concorrida, vinha muita gente de Lisboa, que se espalhava
-pela serra procurando plantas medicinaes. Agora é rara a pessoa que
-conheça bem as ervas e saiba aproveital-as: e os ervanarios teem dado
-em droga.</p>
-
-<p>—Nas boticas ha tanto remedio...</p>
-
-<p>—Eu lhe digo, o boticario, eu ainda aqui conheci botica e boticario,
-comprava ervas para remedios, agora o pharmaceutico nem nada. Está tudo
-mudado!</p>
-
-<p>O que não mudou foi a vegetação da serra, onde se encontra uma
-variedade singular de plantas.</p>
-
-<p>Segundo o celebre Sande Elago, as plantas medicinaes dividem-se em
-classes correspondentes aos sete planetas: saturninas, joviaes,
-marciaes, solares, venereas, mercuriaes e lunares.</p>
-
-<p>A versão portugueza de Elago (<i>Compendio de Alveitaria</i> tirado de
-varios auctores, composto na lingua hespanhola por Fernando de Sande
-Elago. Lisboa, Impressão Regia, 1832, in-4.ᵒ) merece attenção por,
-entre outras cousas, trazer uma grande relação de plantas com os seus
-nomes em vulgar.</p>
-
-<p>Tambem na obra classica de Felix do Avellar Brotero, a <i>Flora
-Lusitanica</i> (Parte 2.ᵃ—Lisboa, 1804), a pag. 522, vem um indice de
-nomes vulgares das plantas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_99">[Pg 99]</span></p>
-
-<p><i>Montalegre, 19 e 20 de junho.</i>—Concurso de machinas agricolas
-na quinta de Montalegre, bella propriedade do snr. Carlos Anjos. Foi
-muito concorrido, appareceram muitas charruas de varios systemas que
-trabalharam puxadas a juntas de bois. A machina e o adubo serão a
-salvação da agricultura; é preciso aperfeiçoar e augmentar o trabalho,
-é necessario reforçar a terra, tornal-a propria para produzir bem.
-A meu vêr a machina e o adubo teem ainda outra vantagem, põem o
-machinista, o chimico, o agronomo em contacto com o agricultor; levam
-a sciencia ao campo; afinam mais facilmente com a experiencia, que o
-veterinario, que difficilmente se tem aproximado do lavrador.</p>
-
-<p><i>Na obra Exposição da alfaia agricola na Real Tapada da Ajuda, em
-1898</i> (Lisboa, Imp. Nacional. Publ. comm. do 4.ᵒ centenario do
-descobrimento do caminho maritimo da India) ha uma parte referente ao
-concurso de charruas na quinta de Montalegre, á Luz, com photographias
-de charruas, grades, semeadores, ceifeiras, enfardadoras, escolhedor,
-tararas, etc.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>29 de junho, S. Pedro.</i>—Fui a Lisboa no carro de Carnide. Este
-carro nos ultimos tempos tem seguido varios caminhos de Carnide á rua
-da Assumpção, por causa dos trabalhos das Avenidas, e do ascensor
-Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Hoje é o ultimo dia do caminho
-pelo campo de Sant’Anna;<span class="pagenum" id="Page_100">[Pg 100]</span> Carnide, largo da Luz, estradas da Luz e
-Larangeiras, Sete Rios, Palhavã, S. Sebastião da Pedreira, Matadouro,
-Instituto Agricola, Cruz do Taboado, Campo de Sant’Anna, R. Arantes
-Pedroso, R. da Inveja, Principe Real, Mouraria, Praça da Figueira,
-Rocio e Travessa da Assumpção. Agora passa o itinerario á Estephania,
-porque as obras da Avenida que vai ao Matadouro estão muito adiantadas
-e cortam o caminho. Ha tempo que estão a desmanchar uma parte do
-aqueducto que vai de S. Sebastião da Pedreira ao Matadouro. Que bella
-construcção antiga, de magnificos silhares bem faciados, e de alvenaria
-firme, solidissima, com enormes pedregulhos; aproveitam agora este
-material nas novas construcções da Avenida, mas teem de trabalhar
-devéras para o arrancar.</p>
-
-<p>Estas variantes do caminho seguido pelo carro de Carnide menciono eu
-para marcar o desenvolvimento dos novos bairros da capital.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Fogueiras de S. Marçal.</i>—29 de junho: dia de S. Pedro. Á noite
-muitas fogueiras pelos campos. Estas são dedicadas a celebrar S.
-Marçal, advogado contra os fogos.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>3 de julho, domingo.</i>—Pelas 9 horas da noite, eclipse parcial da
-lua que durou, muito nitido, até depois das 10 horas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_101">[Pg 101]</span></p>
-
-<p><i>Domingo, 17 de julho.</i>—Festa a Nossa Senhora do Monte do Carmo,
-no convento de Santa Thereza, com os padres inglezinhos; foi ás 10
-horas da manhã. Cantou a missa o rev.ᵒ P. Louro, capellão das freiras,
-e professor do Collegio Militar.</p>
-
-<p>O côro dos inglezinhos era acompanhado a orgão. Executaram muito bem o
-seu solemne cantochão.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Na chan da quinta ha um recanto isolado, silencioso; junto do alto muro
-velho da cêrca das freiras está um poço d’onde se tira agua por uma
-picota; dois robustos cyprestes, figueiras de negros troncos tortuosos
-espalham fechadas sombras; além do recanto a terra do trigo, a vinha,
-as oliveiras; parece uma paizagem grega; o olhar de Homero não a
-estranharia.</p>
-
-<p>Estive hoje a ler ali um trecho de Ruy de Pina (o silencio do logar e
-a sombra do arvoredo ainda m’o tornaram mais frisante) que me falla de
-Carnide.</p>
-
-<p>Trata-se do amargo desastre de Tanger, de como ficou preso dos mouros o
-infante santo, pobre D. Fernando, filho de D. João I.</p>
-
-<p>—E o infante D. Pedro, como sentiu o coração d’el-rei em algum mais
-socego, lhe pediu licença para trigosamente, e o melhor que pudesse, de
-Lisboa socorrer a seus irmãos, e a el-rei aprouve, e se veio logo apóz
-elle á aldêa de <i>Carnide</i> junto com Santa Maria da Luz, porque
-a cidade estava<span class="pagenum" id="Page_102">[Pg 102]</span> perigosa de pestilencia. Mas porque ordenou que o
-socorro fosse com muita gente e grande poder, em se aviando para isso
-as cousas necessarias, chegaram em tanto a Lisboa dos que vinham de
-Tanger, muitos navios que certificaram o caso como finalmente passara,
-de que el-rei foi logo avisado, e certamente foi mui aspero de ouvir,
-que o infante seu irmão ficava em poder de mouros; mas por saber que a
-mais da sua gente era em salvo, deu por isso muitas graças a Deus, e
-como rei virtuoso, humano e agradecido, deteve-se naquella aldêa, para
-vêr e agasalhar os que vinham do cerco, dos quaes muitos, ao tempo que
-iam fazer-lhe reverencia, em disformes semelhanças e tristes vestidos,
-que para isso de industria vestiam, e com palavras á desaventura
-conformes, se lhe mostravam, e delles fingiam ser muito mais
-damnificados do que na verdade o foram, com fundamento de carregarem
-mais na obrigação para o feito de seus requerimentos, que alguns logo
-faziam e outros esperavam fazer, de que el-rei recebia publica dôr e
-tristeza.</p>
-
-<p>Mas a estes foi mui contrario o nobre e valente cavalleiro Alvaro Vaz
-d’Almada, capitão-mór do Mar que como quer que no cêrco de Tanger de
-sua fazenda perdesse muita, e da honra por merecimentos d’armas não
-ganhasse pouca como chegou a Lisboa, antes de ir fallar a el-rei, logo
-de finos pannos e alegres côres se vestiu, a si e a todos os seus, e
-com sua barba feita e o rosto cheio de alegria,<span class="pagenum" id="Page_103">[Pg 103]</span> chegou a Carnide, onde
-o rei andava passeiando fóra das casas, e com elle o infante D. Pedro,
-e depois de lhe beijar as mãos e lhe dizer palavras de grande conforto,
-el-rei o recebeu mui graciosamente, e louvou muito sua ida naquella
-maneira, que não sómente lhe apontou cousas e razões, para não dever
-por aquelle caso ter nojo nem tristeza, mas ainda que por elle devia
-ser mui alegre e contente, estimando em nada o captiveiro do Infante
-seu irmão, que era um homem só e mortal, em que havia muitos remedios,
-em respeito da grande fama que naquelle feito em seu nome se ganhára
-aconselhando-lhe mais o repique e alvoroço dos sinos, para honra e
-prazer dos vivos, que o dobrar d’elles, que ouvia, por tristeza e pelas
-almas dos mortos; pelo que el-rei começou a mostrar que aquelle era o
-primeiro descanço que seu coração recebia...</p>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>(Cap. 36 da <i>Chronica de D. Duarte</i>, de Ruy de Pina.—<i>Ineditos
-da Acad.</i> Tomo 1.ᵒ, pag. 172 e 173).</p>
-</div>
-
-<p>Onde seria o paço de D. Duarte?... não sei. Na rua do Machado ha
-ainda cunhaes de grossa silharia velha, restos seguros de mui antiga
-construcção. Por aquelles quintaes ainda se encontram vestigios
-antigos, não são sufficientes porém para se affirmar a existencia ali
-de solar ou castello. O velho paço de Carnide desappareceu. Ficou a
-narrativa de Ruy de Pina. Resalta ahi a figura<span class="pagenum" id="Page_104">[Pg 104]</span> de Alvaro Vaz d’Almada,
-n’uma luz e n’um ensinamento incomparavel. Coragem, para encarar
-perigos e reparar desastres; um homem não se prostra perante a dôr,
-soffre; o coração abafa de soluços, mas lucta-se sempre, engole-se a
-amargura, soffre-se a ferida, suga-se a esponja de fel, mas o espirito
-não se perturba, o animo esforça-se por não perder a sua energia.</p>
-
-<p>Deixar ao lado os esmorecidos, ao longe, bem longe, os vis
-especuladores, e trabalhemos, sem fraquejar, ainda que as lagrimas
-salgadas nos queimem as faces, e a angustia nos aperte o coração;
-o espirito justo vence; Deus manda que se trabalhe, e que não nos
-deixemos vencer pela tristeza.</p>
-
-<p>Antigamente no dia 17 de julho havia mercado de trigo em Mafra; era
-importante, servia para se saber do trigo existente, se havia mingua ou
-fartura, ver as qualidades, e tratar de preços. Reunia-se muita gente,
-importantes <em>quadrilhas</em> de carros de bois, dos lavradores, e
-muitas récuas de machos dos padeiros de Lisboa.</p>
-
-<p><i>Agua de Santo Alberto.</i>—Domingo, 7 de agosto de 1898. Logo que
-cheguei, bebi agua de Santo Alberto, que mandaram as freirinhas, em sua
-bilhinha de barro vermelho, com um ramo de murta florida preso na aza.
-É boa contra as febres. Na rua, raparigas apregoavam fogaças.</p>
-
-<p>Esta agua de Santo Alberto tem fama muito<span class="pagenum" id="Page_105">[Pg 105]</span> antiga.—Em 7 de agosto,
-na capella dos Terceiros do Carmo se benze a agua com uma reliquia de
-Santo Alberto (<i>Summario de varia historia,</i> de Ribeiro Guimarães.
-IV. pag. 240).</p>
-
-<p>Fr. Estevão de Santo Angelo, fez um romance heroico dedicado á
-virtude d’esta agua, no seu Jardim Carmelitano. Agora ha muitas aguas
-virtuosas, mas os reclamos não chegam a epopeias.</p>
-
-<p><i>Carnide, 15 de agosto de 1898.</i>—Ás 6 horas da manhã, estouros
-de morteiros, estalos altos de foguetes, e rompeu sonorosa musicata.
-É a festa do anniversario da <i>Sociedade Philarmonica 15 d’agosto
-de 1880</i>. Os bellos rapazes preparados por ensaios repetidos
-apresentaram-se em publico com o seu melhor reportorio.</p>
-
-<p>15 d’agosto, o dia de Nossa Senhora, tão celebrado na minha terra, e
-em todas as que teem vida agricola. É o dia em que os lavradores de
-cereaes, sabem com certeza o que passou pela eira, e se vencem fóros e
-rendas de trigo, centeio e cevada.</p>
-
-<p>Houve missa nas freiras ás 8¹⁄₂ da manhã. Estava em exposição o
-<i>Senhor Formozo</i>, muito fallado na chronica convental. É o <i lang="la" xml:lang="la">Ecce
-homo</i>, mãos atadas, o manto d’irrisão lançado para as costas; a
-imagem do Divino Justo, quando foi insultado pela gente ignara, pela
-sociedade culta e inculta de Jerusalem. Porque então, como hoje o
-cultismo<span class="pagenum" id="Page_106">[Pg 106]</span> não implica espirito de Justiça; não vemos nós nações das
-mais cultas, que se dizem christãs, arvorando a força sobre o direito?</p>
-
-<p>Pobre <i>Senhor Formozo!</i> Se me não engano era uma regular pintura
-hespanhola, maneira energica, aspecto tragico, por isso talvez
-impressionava tanto as pobres antigas freiras. Era o rosto austero,
-o corpo já com livores de cadaver e gottejando sangue; a expressão
-do grande soffrimento sobrepujada todavia pelo incondicional perdão.
-Assustava as nervosas santas mulheres, e chamaram um grande pintor
-então afamado, para emendar a tela; vê-se bem que foi muito alterado no
-rosto; o pintor sabia do mundo, e fez um Christo precioso, de boquinha
-affectada, de expressão inoffensiva, incapaz de qualquer suggestão
-incommoda a espiritos assustadiços.</p>
-
-<p><i>28 de agosto de 1898. Bolinhos de Santa Quiteria.</i>—Hoje
-trouxeram-me bolinhos de Santa Quiteria, muito bons para evitar a
-hydrophobia em pessoas, cães e vaccas.</p>
-
-<p>São uns pequenos cubos de massa de trigo, passada no forno.</p>
-
-<p>Depois vieram homens vestidos de opas pedir esmola para a Irmandade de
-Santa Quiteria, do Senhor Roubado, perto de Odivellas.</p>
-
-<p><i>1899. Dia de Anno Bom.</i>—Assistiram á missa alguns alumnos do
-Collegio Militar, que não foram<span class="pagenum" id="Page_107">[Pg 107]</span> a ferias. Teem as familias muito
-longe... no ultramar. Depois da missa o capellão rev. Padre Louro,
-apresentou a imagem do Menino Jesus, em pé; as pessoas presentes foram
-beijar a imagem. Durante a missa o orgão executou musica solemne, e na
-apresentação do Menino tocou um motete alegre, com imitações de musica
-pastoril, de sanfona e gaita de folles. Pairava em todos um sorriso
-bom; só eu pensava n’um menino, n’um adoravel menino... luz que se
-apagou.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Estive hoje a lêr um livro que me deu noticias da egreja da Luz, d’este
-logar de Carnide: <i>Historia do insigne apparecimento de Nossa Senhora
-da Luz e suas obras maravilhosas</i>: Composta pelo Padre Fr. Roque do
-Soveral, religioso da Ordem de Christo. Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1610.</p>
-
-<p>É um volume in. 4.ᵒ de 213 pag.</p>
-
-<p>O rosto do volume, gravado por Antonio Pinto, é muito interessante.
-A meio está o medalhão com a imagem de Nossa Senhora com o Menino no
-collo; e aos lados estão gravados feixes de muletas, navios pendurados,
-pelouros, e umas cousas que representam talvez mortalhas ou samarras de
-que se falla nos muitos milagres da veneravel imagem.</p>
-
-<p>Tem muitas noticias este volume a respeito de pessoas e casos em
-diversas epochas, significantes para o estudo social e local.</p>
-
-<p>Por exemplo, a pag. 52 v. a proposito da antiga<span class="pagenum" id="Page_108">[Pg 108]</span> romagem á Senhora da
-Luz, diz que este sitio de Carnide era dantes mui deserto, e depois
-de começarem as romagens os caminhos se tornaram mais seguros:—sendo
-dantes, segundo o que sabemos por tradição antiga tão espessos bosques,
-que para o logar de Carnide não havia mais caminho que um atalho, que
-se tomava no caminho de Bemfica para o tal logar, e nos mesmos bosques
-se recolhiam salteadores, da maneira que em Portugal na charneca de
-Monteargil, etc.: e cita varios bosques notaveis na Europa por serem
-asylo de ladrões: assim, antigamente eram tão temidas as brenhas e
-mattos de Carnide, que ninguem caminhava para elle sem muita junta de
-receios.</p>
-
-<p>Feita a egreja e estabelecidas as romagens o sitio e os caminhos se
-tornaram mui frequentados; encontrava-se gente de todas as qualidades
-e nações, o hespanhol, o bretão, e o flamengo; os de pé, de cavallo e
-de coche, cantando e dançando, tocando violas e adufes:==disse por isso
-mui bem o outro, que os que vinham de Nossa Senhora da Luz, parecia
-virem de colher as lampas de S. João, que ou seja com canas verdes nas
-mãos, ou com capellas nas cabeças, sempre tornam para suas casas, como
-se vieram das hortas de colher cheirosas ervas.</p>
-
-<p>Tanto assim que havia cinco mulheres==que só vivem e se sustentam de
-venderem candeias de offerecer, achando-se para isto de continuo em a<span class="pagenum" id="Page_109">[Pg 109]</span>
-egreja da Senhora. E diz depois (pag. 54 v.) das mais celebres romagens
-do seu tempo, em Portugal, a começar pela Senhora do Monte. O cap.
-II, (pag. 76 v.) é intitulado:==<i>Particularidades da fonte de Nossa
-Senhora de Luz</i>==, e tem muitas paginas consagradas á virtude dessa
-agua. E até o certificado de um medico (pag. 77 v.); mas eu não me
-posso demorar, e peço ao leitor curioso que veja o livro. Eu tenho que
-resumir. A pag. 190 conta==de algumas náos que a Senhora da Luz livrou
-da tormenta em que se viram perdidas, e logo abre o cap. XII:==<i>Como
-Nossa Senhora da Luz é avogada dos mariantes.</i></p>
-
-<p>É inutil dizer que todas essas paginas teem interessante lição e
-importancia historica.==Escreve ácerca da náo <i>Luz</i>, em 1497, e a
-este respeito se cita o templo de Nossa Senhora da Luz, em Goa, fundado
-sem duvida em lembrança da Luz, de Lisboa. E affirma que era costume
-os mariantes dessa longa viagem da India virem antes de embarcar em
-romagem á Luz de Carnide, depois de lá chegados á Luz de Goa. Que
-esta romagem da Luz está ligada ás primeiras navegações não offerece
-duvida. Conta (cap. XIII) o caso horrivel da náo <i>Chagas</i> (1560);
-e em memoria deste milagre,==hoje 7 de junho de 1570 vieram a esta
-casa da Luz com procissão todos os marinheiros da mesma náo.==E vem
-a historia da urca <i>Fortuna</i>, e da caravella de Pero Marques, a
-da náo hespanhola <i>S.ᵗᵃ Ana</i>, a da náo <i>Betancor</i>, e a do
-<i>Salvador</i>; e a<span class="pagenum" id="Page_110">[Pg 110]</span> de uma escotilha em que se salvou Pero Gonçalves,
-estando tres dias sobre ella no alto mar!</p>
-
-<p>Na egreja havia quadros de milagres, imagens de cera, muletas de
-aleijados, grilhões de captivos, mortalhas de salvos na agonia, velas
-de naufragos escapos ao vendaval, pedaços de amarras de náos, pares
-de algemas, pelouros de artilheria grossa, (pag. 104 v.) e náos,
-pequeninas náos; «do côro ficam pendendo sobre a egreja quatro náos,
-que em fórma pequena contrafazem bem toda a fabrica das que navegam; e
-ha pouco tempo (note-se isto) que estavam oito que se tiraram assim por
-pôrem outras que vinham de novo, e não tinham lugar, como por se darem
-a algumas pessoas que as pediram».</p>
-
-<p>E antes mais cousas havia:==na ermida antiga de todas estas cousas
-havia mór numero, de que tiraram algumas menos gastadas do tempo, para
-as mudarem aonde agora dizemos estão (pag. 204 v.)==As <em>samarras</em>,
-segundo a tradição, eram de uns homens que, na volta da India,
-naufragaram na costa da Cafraria, e andaram muito tempo perdidos pelo
-matto, fugindo das féras e dos pretos, até que, invocada a Senhora da
-Luz, lhes appareceram uns cafres misericordiosos que lhes deram suas
-proprias vestimentas.</p>
-
-<p>Havia tambem cobras, isto é, pelles de cobras, uma de 4 varas de
-comprimento, provenientes do Brazil; mortas por milagres quando
-intentavam matar as pobres victimas nos seus anneis roliços,<span class="pagenum" id="Page_111">[Pg 111]</span> e com
-seus venenos fulminantes. Era uma collecção suggestiva essa, hoje
-sumida de todo perante esta moderna correcção idiota que tudo invade e
-vae dominando, matando arte e poesia e fé.</p>
-
-<p><i>Carnide. Domingo, 15 de janeiro de 1899.</i>—Começou hoje a
-funcionar o ascensor Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Fui a Carnide no
-carro da rua da Asumpção. Carro cheio; pessoas que iam ao collegio
-militar visitar os filhos. Nestes domingos de visita ha sempre no carro
-conversas interessantes; dos filhos que vão bem, d’outros que perderam
-o anno; e corre-se uma larga escala de affectos, de caracteres, e
-de saudades. Viuvas que vão vêr os seus filhos, amigos que vão vêr
-os filhos dos que estão no ultramar para lhes dar noticias, tutores
-que visitam pobres orphãos. Todos levam uma lembrança, um embrulho
-atadinho, para os rapazes. Com as senhoras vão ás vezes meninas,
-mui palreiras, enthusiasmadas com a visita aos pequenos militares.
-Que estes carros de Carnide favorecem o cavaco, com os seus pulos e
-solavancos; vae uma pessoa muito correcta, zás solavanco, e vem uma
-senhora nervosa cair-nos nos joelhos; um cavalheiro solemne e mui
-serio, pula o carro, e elle apanha na cara com um chapeu de plumas, ou
-um papeluço de bolos. Quer a gente mover-se, não póde, está presa, as
-taboinhas dos assentos do carro apertam abas de casacos e dobras de
-vestidos; não faltam os preguinhos atrevidos que rasgam<span class="pagenum" id="Page_112">[Pg 112]</span> tecidos e ás
-vezes a pelle; ha sempre episodios; depois logo ao entrar na estrada
-das Larangeiras, o ar é mais fino, e fresco, com perfumes campesinos; a
-estrada da Luz tem vista de campos, de varzeas e arvoredo. Alegram-se
-os olhos de vêr a paizagem e os pulmões gozam ar mais puro.</p>
-
-<p>Mas hoje, 15 de janeiro, o aspecto é outro, o vento é desabrido, de
-rajadas, ha nevoeiro denso, humido, que mal deixa vêr as arvores
-proximas, num esbatido leve. Na Luz alguns carros, e varios grupos;
-ha corridas pedestres e de bicycletas, e prepara-se uma partida de
-foot-ball.</p>
-
-<p>Fomos até ao casal do Falcão, e ainda mais adiante a Alfornel vêr o
-faval nascente. Os trigos nasceram bem mas estão amuados.</p>
-
-<p>A paisagem é extraordinaria hoje, porque a nevoa tem intermitencias;
-é um nevoeiro muito humido, irregular, de densidade diversa, e como a
-camada de nevoa que está passando não tem grande espessura, de vez em
-quando rompe-se e apparece logo o ceu velho, e um jorro de sol.</p>
-
-<p>Como isto agora tem o aspecto triste, no nevoeiro frio e humido,
-rasgado pelo vento convulso que vae passando; o casal tão velho, ruina
-tragica, as figueiras, as vinhas sem folhas, como tiritando no frio de
-janeiro.</p>
-
-<p>Jantar de familia, casa cheia; como a sopinha quente sabe bem
-neste frio de janeiro, em dia de<span class="pagenum" id="Page_113">[Pg 113]</span> nevoa cerrada; depois algumas
-especialidades, os nabos guisados, a carne de porco assada, com a
-loura agua pé; o pudim delicioso; as raivinhas e os esquecidos do Bom
-Successo. Ao café, com o competente cognac caseiro, entraram os srs.
-Duartes, de Mafra, que trouxeram elementos novos á cavaqueira. Contaram
-que el-rei mandára deitar javardos na tapada de Mafra; já entraram oito
-de Castello Branco, e um que nasceu no parque das Necessidades. Na
-Tapada, a comida é pouca; em tempos antigos houve porcos bravos ali,
-mas acabaram com elles porque nada lhes escapava.</p>
-
-<p>De subito entrou uma mascarada animada, os meninos e meninas T.,
-uma série muito gentil, vibrantes de riso; houve piano, valsas,
-improvisou-se um concerto: a sr.ᵃ D. G. cantou superiormente alguns
-trechos.</p>
-
-<p>—Já 9 e um quarto! toca a ir para o carro.</p>
-
-<p>Eu fiquei; da janella do meu gabinete a vista era admiravel; estava o
-ceu muito estrellado, havia algum luar, o ar muito frio e sereno; a
-nevoa abaixára, e estava agora quieta e branca sobre as varzeas, os
-campos do valle; muito salientes, a massa negra do casal do Falcão, e
-a collina triste coroada de cyprestes do cemiterio dos Arneiros; um
-grande silencio frio; como uma palpebra semicerrada de agonisante,
-a esvaír-se de luz e de vida, a lua em minguante, muito obliqua,
-branqueando a toalha de nevoa quieta sobre as terras mais baixas, as
-varzeas humidas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_114">[Pg 114]</span></p>
-
-<p><i>Carnide, domingo 28 de janeiro de 1899.</i>—Vi hoje lindas flôres
-do logar de Telheiras; com a inverneira que tem corrido, frios, geadas,
-tempestades, notei as flôres; é que o logar de Telheiras é mais ameno
-e abrigado, a este de Carnide mais alto e exposto ás grandes correntes
-do ar. O antigo oratorio, convento e egreja de Nossa Senhora da Porta
-do Ceu, em Telheiras, está hoje abandonado. É n’esta egreja que está
-a sepultura do principe de Candia, o pobre rei do Ceylão, fundador do
-edificio, que veiu morrer tão longe das suas florestas de canella.</p>
-
-<p>O oratorio de Nossa Senhora da Porta do Ceu, de Telheiras, foi fundado
-pelo principe D. João de Candia. Este infeliz principe nasceu em
-Ceylão, por 1578, e teve de abandonar o seu throno de marfim e perolas,
-entre luctas politicas e religiosas; era criança ainda. Levaram-o para
-a ilha de Manar, depois a Gôa, e ao collegio dos Reis Magos de Bardez;
-veiu parar a S. Francisco de Lisboa, mais tarde a S. Francisco da
-Ponte, em Coimbra, e gastou o resto da vida a requerer e representar
-entre Lisboa e Madrid, porque então dominavam os Filippes. O que isto
-seria, Santo Deus! n’aquelles tempos, quando hoje basta uma burocracia
-para abafar e esterilisar todas as vontades, o que seria no tempo da
-dominação hespanhola com tantos officios e dezembargos em Lisboa e
-Madrid.</p>
-
-<p>A historia d’este homem é interessante; pobre<span class="pagenum" id="Page_115">[Pg 115]</span> soberano de Candia,
-Cota, Ceytavaca e Cettecorlas, que veiu descançar aqui em Telheiras,
-cingindo o cordão franciscano.</p>
-
-<p>Dizem que hoje não é assim; os soberanos desthronados vão direitinhos
-ás folias de Paris, e as alfayas e tapeçarias apparecem no Druot,
-escapando aos ministros de que falla o chronista Soledade.</p>
-
-<p>Infeliz principe singalez, chamaram-lhe D. João d’Austria, e principe
-de Candia, e foi um martyr toda a vida; teimaram em ensinar-lhe latim e
-theologia, andou em bolandas pelos conventos intrigado e explorado, e
-nem mesmo cumpriram a sua ultima vontade. Morreu em 1 de abril de 1642,
-a sua morte foi um lauto regabofe para muita gente... «pelas mãos dos
-ministros, como ficaram todas as tapeçarias, peças de prata, e outras
-muitas alfayas preciosas, que elle tinha consignado á egreja d’este seu
-convento, as quaes levaram d’elle com violencia os ditos ministros,
-e sem obstarem os requerimentos dos religiosos, tudo repartiram e
-consumiram entre si.»</p>
-
-<p>Isto escreve fr. Fernando da Soledade, na sua <i>Chronica serafica</i>,
-5.ᵒ vol. n.ᵒ 893, pag. 611.</p>
-
-<p>Elle diz ainda mais coisas que eu não estou para transcrever; foi uma
-patifaria, como tantas outras que se teem feito modernamente.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Paço do Lumiar, 2 de fevereiro de 1899.</i>—Dia de Nossa Senhora da
-Purificação, as Candeias, como se diz vulgarmente.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_116">[Pg 116]</span></p>
-
-<p>Fui vêr a festa religiosa e a feira, na egreja parochial de S. João
-Baptista do Lumiar, e no bello adro que a cérca.</p>
-
-<p>A festa é a Santa Brigida.</p>
-
-<p>Na egreja esteve exposta a reliquia da Santa, uma parte do craneo, em
-uma urna de prata dourada, muito bem trabalhada, elegantissima: uma das
-urnas mais gentis que tenho visto em estylo D. João V.</p>
-
-<p>Dizem que veiu esta urna do mosteiro de Odivellas.</p>
-
-<p>Na feira havia gado suino alemtejano, vaccas leiteiras com bezerros,
-vidros, louças, queijadas e bolos.</p>
-
-<p>Ha uma especialidade n’estas feiras saloias; as leitoas assadas,
-abertas a meio e espalmadas, seccas e rijas, de uma côr apetitosa,
-expostas á venda em canastras ou caixotes com ramos de louro.</p>
-
-<p>O saloio com a canastra de leitoas emparelhava bem com a collareja,
-assentadinha, chapeu de chuva aberto, com a cesta de queijadas de
-Cintra.</p>
-
-<p>Dois ou tres homens vendiam bordões, chibatas, varas e varapaus armados.</p>
-
-<p>Na feira de S. João, em Evora, apparecem tambem saloios, uns vendendo
-varapaus, e outros a que chamam saloios da Nazareth com taboleiros
-de pederneiras para isca. Agora com as guerras á isca feitas pelos
-phosphoros, não sei se vão desapparecer de todo estes representantes
-ultimos da edade do <i lang="la" xml:lang="la">silex lascado</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_117">[Pg 117]</span></p>
-
-<p>Passeavam lavradores invocando ou agradecendo a protecção da Santa, em
-volta da egreja, com juntas de bois, algumas muito enfeitadas de fitas
-de côres vivas, com entrançados e bordados.</p>
-
-<p>Dentro da egreja, á direita da entrada, dois homens recebiam
-esmolas, em trigo na sua arca especial, ou em dinheiro, e vendiam
-<em>registos</em>, milagres de cêra, bois e peitos, e muito pavio de cêra
-amarella ás braçadas. O pavio amarello é bom para livrar o gado de
-doenças, olhados e desastres; enrola-se dando volta aos dois chifres do
-boi, e ahi se deixa ficar até se estragar.</p>
-
-<p>Sobre o altar de Santa Brigida foram collocar alguns boisinhos de cêra.</p>
-
-<p>Depois da festa houve communhão na capella da Santa, tocando o orgão,
-e em seguida o padre deu a reliquia a beijar; e foi muito beijada, por
-mais de cem pessoas, com muita devoção.</p>
-
-<p>Esta Santa Brigida, protectora do gado bovino, da-me que pensar.
-Brigitta, Brigida, Brigides, Birgida, Birgita, Britta, etc., virgem,
-natural da Escocia, abbadessa de Kildare na Irlanda, morreu em 523, no
-1.ᵒ de fevereiro, segundo affirmam.</p>
-
-<p>As lendas d’esta Santa ligam-se com a famosa de S. Brandão (Brendanus,
-Bredan) abbade de Chainfort, na Irlanda, que morreu em 578 (16 de maio
-ou 5 de junho).</p>
-
-<p>A reliquia, a cabeça da Santa, segundo diz a<span class="pagenum" id="Page_118">[Pg 118]</span> inscripção no exterior da
-capella, foi trazida por tres cavalleiros hibernios, ou irlandezes.</p>
-
-<p>O que eu vi na urna pareceu-me effectivamente um fragmento de craneo, o
-occipital, talvez; não se vê bem por causa dos ornatos.</p>
-
-<p>Que esta devoção por Santa Brigida vem pelo menos do seculo
-<span class="allsmcap">XIII</span>, com certeza, e continúa ainda intensa; ha pouco ainda
-uma devota offereceu uma cabeça de prata.</p>
-
-<p>Este sitio do Lumiar e Paço do Lumiar merece um estudo especial; foi
-aqui o paço do famoso infante Affonso Sanches; ha estreitas relações
-entre esta egreja e o sitio e mosteiro de Odivellas, antigos santuarios
-que estão no principal caminho de Lisboa para o interior, o caminho de
-Alvallade, onde se encontraram os exercitos na sanhosa guerra civil de
-D. Diniz.</p>
-
-<p>A inscripção dos cavalleiros hibernios está no exterior da capella de
-Santa Brigida, da egreja de S. João Baptista do Lumiar, lado norte. É
-copia da antiga que de ha muito se sumiu. É a seguinte:</p>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>Aqvi nestas tres sepvltvras iazẽ enterados os tres caval.ʳᵒ ibernios
-q. trouxerã a cabeça da bẽ avẽtvrada S. Brizida virgẽ natvral da
-Ibernia cuia reliqvia está nesta capella p.ᵃ memoria do qval hos
-oficiais da mesa da bẽaventvrada S. mão darão fazer este ẽ ian.ʳᵒ de
-1283.</p>
-</div>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_119">[Pg 119]</span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Quinta feira da Ascensão, 11 de maio de 1899.</i>—A chuva miudinha
-de hontem não regou bem as terras, mas abateu a poeira das estradas,
-e lavou as folhagens que estão viçosissimas, com o brilho setinoso,
-exuberante de primavera.</p>
-
-<p>Chegando á rua do Norte admirei-me de vêr a calçada coalhada de folhas
-de rosa. Houve uma grande festa na egreja das Freirinhas, e tive pena
-de não ter assistido. Foi a primeira communhão a alguns alumnos do
-Collegio Militar; pela primeira vez, ao que me disseram, se lembraram
-de fazer este acto com certa solemnidade. Nem tudo póde lembrar. N’um
-estabelecimento de educação, internato militar, ha tanto que fazer,
-tamanhas responsabilidades! O ensino dos compendios, a alimentação,
-a disciplina, as formaturas, os toques de cornetas, não deixam tempo
-para pensar n’estas questões da alma. Este anno, emfim, houve ensejo de
-celebrar solemnemente a entrada dos jovens militares n’este primeiro
-gráo de consciencia responsavel com hymnos religiosos, musicas e
-bençãos, e mãos finas de senhoras lhes atapetaram o caminho com folhas
-de rosa.</p>
-
-<p>Estes já tiveram na vida um dia florido, esperem outros ainda melhores,
-os que se seguem aos trabalhos vencidos, ás bellas acções de honra e
-abnegação.</p>
-
-<p>Celebraram a linda festividade na egreja das freiras, ornamentada pelo
-dr. Sant’Anna; de todos os pontos vieram taboleiros de flôres.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_120">[Pg 120]</span></p>
-
-<p>Este anno os campos estão menos verdes do que no anno passado, os
-trigaes são menos fortes, menos densos; principalmente nos terrenos
-altos as seáras não encobrem o chão; <em>terreja</em> muito; mas as
-oliveiras e as vinhas apresentam-se cheias de promessas.</p>
-
-<p>Quando eu ia por entre as latadas da quinta, opulentas de folhagem,
-na paisagem quieta de searas e olivedos, lá do sul, de além do sevéro
-macisso de Monsanto, veiu o estrondo das salvas de grossa artilheria.
-Estão no Tejo duas formidaveis esquadras, ingleza e allemã, grandes
-navios de aço, maravilhas de construcção naval, collossos de força,
-suprema expressão da energia dos arsenaes. Como o ruido d’esses
-poderosos canhões desafina na paisagem de primavera florida! sobre
-esses campos e logarejos respirando a serena vida da natureza.</p>
-
-<p>É o dia da <em>espiga</em>, como o povo chama aqui, nos arredores de
-Lisboa, á quinta-feira da Ascensão; até os carros de trabalho vão
-enfeitados com ramos de oliveira, espigas de trigo, rubras papoulas,
-brancos malmequeres; tambem enfeitam de espigas e flôres as cabeçadas
-dos animaes; e passam ranchos animados, palreiros e galhofantes, as
-raparigas com grandes ramos nas mãos, os rapazes com raminhos atados
-nos varapaus.</p>
-
-<p>É a festa agricola que vae por esses seculos atravez raças e religiões,
-provavelmente até ao dia em que o espirito do homem pela primeira vez<span class="pagenum" id="Page_121">[Pg 121]</span>
-admirou e agradeceu com ternura a planta florida, a suprema graça e o
-divino aroma da corolla, promessa do saboroso fructo.</p>
-
-<p>Na minha terra além das <em>maias</em> do primeiro dia do mez e da festa
-da Ascensão, o povo da cidade e dos campos celebra tambem o dia 3 de
-maio, o da invenção da Santa Cruz, e ornamenta de flôres as cruzes dos
-logares publicos, as das vias sacras, as que marcam nos campos, nas
-estradas, os logares onde cairam os assassinados; a cruz de azulejo do
-sitio do fusilamento dos frades patriotas na catastrophe de 1808, no
-tempo dos francezes, a cruz na base do aqueducto junto do antigo fosso
-da muralha, onde se realisou o ultimo fusilamento militar.</p>
-
-<p>Estes campos de Carnide são menos tragicos; hoje porém as salvas das
-esquadras, algumas vezes repetidas, que parece fazem estremecer o
-robusto massiço de Monsanto, dão uma preoccupação morbida ao espirito;
-para que tal apparato de força, para que a reunião das duas mais
-poderosas esquadras de Inglaterra e Allemanha, será apenas para mostrar
-ao mundo a sua boa harmonia, no grande porto do paiz pequeno e neutral?
-O que é com certeza é a pomposa, a estrondosa manifestação de força,
-convicção deprimente, expressão ultima da civilisação n’este findar
-de seculo de tão maravilhosas descobertas, que termina affirmando
-o direito do mais forte, em que tanto se luctou pelas liberdades,
-acabando no militarismo<span class="pagenum" id="Page_122">[Pg 122]</span> ruinoso, e tanto pela melhoria social, pela
-equação de direitos, em quanto se erguem implacaveis, cada vez mais
-ameaçadores, os monopolios da finança, industria e commercio.</p>
-
-<p>Passam os ranchos alegres, de vez em quando roda na estrada um trem com
-mulheres e creanças, flôres e gargalhadas, na linda tarde de primavera.
-Outro rancho ahi vem agora, lento e sereno pelo trigal verde; é um
-grupo de religiosas de S. José de Cluny, que veiu ao campo florido
-respirar no ar tepido e aromatico.</p>
-
-<p>Vestem os seus habitos severos, trazem nas mãos ramos de flôres do
-campo; andam vagarosas como cançadas ou enfraquecidas; são novas,
-sorriem, sorrisos de doentes em rostos palidos: interessante grupo! são
-convalescentes sem duvida; vieram dos hospitaes e escolas do ultramar
-dominadas pelas febres, procurar restabelecer a saude n’este lindo
-sitio de Carnide.</p>
-
-<p>O que Mousinho de Albuquerque no seu livro <i>Moçambique</i>
-escreve a respeito d’estas religiosas é encantador. Elle falla dos
-extraordinarios serviços por ellas prestados nos hospitaes de Lourenço
-Marques, de Inhambane, e Moçambique, nas escolas, <em>por uma fórma
-acima de todo o elogio</em>; e em Gaza, e no Chibuto.==O carinho e
-dedicação com que tratavam os doentes e feridos, procurando não
-só proporcionar-lhes todas as commodidades que as circumstancias
-permittiam, mas não se esquecendo um só momento de lhes confortar
-o animo,<span class="pagenum" id="Page_123">[Pg 123]</span> de lhes levantar o moral, sómente póde avalial-o quem o
-testemunhou.==Ou eu não sei o que é caridade, ou o que as Irmãs de
-S. José de Cluny estão fazendo na provincia de Moçambique é a sua
-manifestação mais elevada e commovedora==.</p>
-
-<p>Em Carnide sabe-se que esses serviços ultramarinos são uma verdadeira
-batalha. Das que lá morrem não consta, as lévas de doentes que voltam
-essas todos as vêem. Algumas voltam anemicas, ás vezes tuberculosas;
-chegam, descansam, melhoram, e lá partem outra vez para os hospitaes e
-escolas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Domingo, 14 de maio de 1899.</i>—Scena inesperada; um touro da
-manada do conselheiro Alvares Pereira, n’uma corrida em Algés, partiu
-uma perna, e foi recolhido n’um pateo do casal do Falcão. É bicho
-de estimação, de muito genio e boa estampa. Foi amarrado sobre um
-carro e tratado com todos os cuidados, algodão borico, arnica, talas,
-ligaduras, nada faltou.</p>
-
-<p>O aspecto do touro no carro era extraordinario; os olhos negros e
-vermelhos com uma expressão de furia mais que de dôr; suava em grossas
-bagas; mordeu-se nos beiços até levantar a pelle. Alli, atadinho no
-carro, sim, que a gente podia vêr um touro de pertinho. De repente deu
-um puchão, e assoprou; isso é que foi panico, não sei se cahiu alguem,
-ouvi dizer que sim. O resto do caso foi visto de cima do muro. E lá foi
-o carro<span class="pagenum" id="Page_124">[Pg 124]</span> pela estrada fóra, á noitinha, caminho da leziria, com o seu
-cortejo de campinos nas suas ligeiras facas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Nomes dos animaes.</i>—Á sombra da parreira vestida de bellos
-cachos; entre os alegretes azulejados, azul em fundo branco, em
-pequenos quadros de galanteria, episodios comicos, italianices e
-chinezices, á moda do seculo <span class="allsmcap">XVIII</span>; proximo da nóra onde
-barulha a agua ao som emolliente e rhytmico do engenho, cavaqueia-se
-em cousas diversas; appareceu o sr. F. V. que tem lavoura e gados no
-Alemtejo; e logo se fallou de searas, pastagens, touros, casos de
-pastores...</p>
-
-<p>—E sabe os nomes dos bois?</p>
-
-<p>—Ora, essa! dos bois, dos cavallos, dos touros...</p>
-
-<p>E eu fui tomando nota dos nomes dos animaes.</p>
-
-
-<p><span class="smcap">Nomes de
-touros.</span>—Artilheiro—Azeitono—Barqueiro—Batoque—Bugino—Caçador—Caixeiro—Caldeiro—Camarinho—Capirote—Caraça—Carvoeiro—Corvacho—Espingardo—Estandarte—Estorninho—Estrello—Foguete—Forcado—Gaiato—Gaveto—Lanceiro—Luviano—Murtinho—Rabalvo—Rasteiro—Teimoso—Verdugo.</p>
-
-<p><span class="smcap">Nomes de
-cabrestos.</span>—Calçado—Caminhante—Caminheiro—Ligeiro—Pardal.</p>
-
-<p><span class="smcap">Nomes de bois de
-trabalho.</span>—Alfayate—Bigode—Bonito—Castanho—Esperto—Formoso—Galante—Galhardo—Joeiro—Lagarto—Mourisco—Trigueiro.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_125">[Pg 125]</span></p>
-
-<p>Dois bois de trabalho, de egual marca, fazem uma junta; aqui por estes
-sitios os bois da junta teem nomes certos; se um é <em>castanho</em>
-o outro é <em>mourisco</em>; o <em>formoso</em> com o <em>galante</em>;
-o <em>galhardo</em> com o <em>ramalhete</em>, e o <em>damasco</em> com
-<em>diamante</em>.</p>
-
-<p><span class="smcap">Nomes de
-vaccas.</span>—Andorinha—Bonecra—Bonita—Borracha—Branca—Briosa—Carriça—Catita—Caterina—Coimbra—Corvina—Doirada—Estrella—Gadanha—Janota—Padeira—Pomba—Rita.</p>
-
-<p><span class="smcap">Nomes de
-cavallos.</span>—Carocho—Catrapim—Palmeiro—Pardal—Pirata—Tareco.</p>
-
-<p><span class="smcap">Nomes de
-cabras.</span>—Alvadia—Carocha—Cartaxa—Condeça—Marmella—Rasteira.</p>
-
-<p><span class="smcap">Nomes de cães e
-cadellas.</span>—Tejo—Nilo—Maltez—Leão—Navio—Norte—Beirollas—Ladina—Esperta—Belleza—Brincatudo—Digoélla
-(diga-o ella).</p>
-
-<p>Agora em Carnide ha nomes de cães e gatos, de origem culta, Macbeth,
-Castor; a par da Tartaruga a Giroflée; ao lado do Rabicho e do Janota
-os gatos Zixacha, Gungunhana, e o Godide, de nomes gloriosos.</p>
-
-<p><i>Noticias várias.</i>—O padre Anastacio resou a missa de corpo
-presente por alma do principe de La Rochejacquelin (Luiz), morto na
-furiosa carga de cavallaria nas terras do marquez de Louriçal, á
-Palhavan (agora dos condes da Azambuja). A missa foi celebrada na
-egreja de Carnide. O padre Anastacio morreu em idade muito avançada em
-1896.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_126">[Pg 126]</span></p>
-
-<p>Carnide tem o seu papel importante nas crises da primeira metade do
-seculo <span class="allsmcap">XIX</span>. Na Luz esteve um deposito de cavallaria organisado
-no tempo de Junot; aqui esteve o brilhante official que foi depois o
-glorioso marquez de Sá da Bandeira.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>No palacio da quinta do Street, agora residencia da sr.ᵃ condessa
-de Carnide (o conde de Carnide era Street Arriaga e Cunha) esteve
-o quartel general de Bourmont, commandante em chefe das forças
-miguelistas que atacaram Lisboa.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Esta quinta dos condes de Carnide foi em tempo muito nomeada pelas
-experiencias agricolas, adubações, drenagens, empregos de machinismos,
-que o primeiro conde, homem instruido e grande enthusiasta da
-agricultura, aqui realisou. Os ultimos proprietarios não teem seguido a
-tradição.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A celebre cascata da quinta dos condes de Mossamedes, complicada
-fabrica de embrechados e nichos, foi destruida ultimamente.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Tambem a infanta D. Maria habitou em Carnide; assim o declara fr.
-Miguel Pacheco, na Vida de la serenissima infanta Dona Maria (Lisboa,
-1675):==Vivió la senora infanta algun tiempo cerca del convento de la
-Luz, distante una legua de Lisboa, en un lugar que llaman Carnide (pag.
-109-121)==.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_127">[Pg 127]</span></p>
-
-<p>A feira da Luz ainda hoje tem nome, mas em tempos antigos foi muito
-afamada; a gente de Lisboa abandonava a capital, empenhava tudo para
-ir á feira, havia brigas para obter seges, ou mesmo burrinhos. Tomavam
-ponche, ou limonadas, e compravam fitas, anneis, figas e corações. Isto
-li eu na Nova e pequena peça critica e moral; <i>os Carrinhos da feira
-da Luz</i>: composta por Joseph Daniel Rodrigues da Costa (Lisboa,
-1784).</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Na casa proxima á sacristia da egreja de N. Senhora da Luz, no
-pavimento, está uma campa com letreiro:</p>
-
-<p class="center">
-S.ᵃ DE DOM FREI PEDRO<br />
-SANCHES, RELIGIOSO D’ESTA<br />
-ORDEM E BISPO D’ANGOLA<br />
-FALECEO A 30 DE<br />
-NOVEMBRO DE 1671<br />
-</p>
-
-<p>Quando se fez o cemiterio de Bemfica, chamado dos Arneiros,
-transportaram para lá algumas campas do antigo cemiterio de Carnide,
-que era em volta da egreja de S. Lourenço. Lá está a campa da marqueza
-Ravara com seu letreiro:</p>
-
-<p class="center">
-AQUI JAZ D. AN<br />
-NA MARIA GUI<br />
-DO MARQUEZA<br />
-RAVARA FALE<br />
-CEO AOS 24 DE<br />
-JANEIRO DE<br />
-1752<br />
-</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_128">[Pg 128]</span></p>
-
-<p>Nas <i>Memorias de Garrett</i> diz-se que a quinta do Pinheiro fica em
-Carnide. A quinta do Pinheiro que foi de Duarte Sá está entre Palhavã e
-Larangeiras. Ahi se representou pela primeira vez o drama <i>Frei Luiz
-de Sousa</i>, a obra immortal de Garrett. Hoje installaram um hospicio
-n’essa bella vivenda.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O palacete e quinta do Sarmento onde residiu o visconde de Juromenha
-ficam proximos da parochial de S. Lourenço de Carnide na estrada que
-vae do Alto do Poço para Bemfica, a azinhaga do Poço do Chão.</p>
-
-<p>O visconde de Juromenha falleceu muito velhinho. Foi n’esta casa do
-Sarmento que elle escreveu a sua obra classica, monumental, sobre os
-<i>Luziadas</i>. Esta propriedade pertence hoje por herança á sua
-antiga governanta.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Um folheto que julgo raro é a «Memoria sobre a união perpétua da
-paroquial igreja de Carnide ao priorado do convento de Nossa Senhora da
-Luz». É um opusculo de 7 pag. in-4.ᵒ, que me parece escripto por 1810.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>O pinto preto</i>.—Veiu uma mulher, da estrada do Paço do Lumiar, a
-comprar um pintaínho preto.</p>
-
-<p>—Para que é o pinto preto?</p>
-
-<p>—É para um doente que tem uma fraqueza, e<span class="pagenum" id="Page_129">[Pg 129]</span> não ha nada que lh’a tire.
-Dizem agora que só com o pinto preto... E a mulher instou que lh’o
-vendessem, ou emprestassem, depois traria outro.</p>
-
-<p>—Não se vende, nem se empresta. Vá a outra porta. Vá á botica comprar
-remedios.</p>
-
-<p>—Mas então, é para caldos?</p>
-
-<p>—Não senhor! isto é uma crendice d’esta pobre gente. Abrem-no com uma
-faca pelo meio e applicam-no palpitante sobre o peito ou estomago se é
-fraqueza; se fôr por alguma dôr, sobre a região onde lhes dóe. É uma
-das taes tolices que não sáe dos cascos d’esta gente. Para estas cousas
-não sou capaz de vender o pobre animal.</p>
-
-<p>Em livros de medicina mui velhos apparece o singular curativo; e
-recordo-me de ter lido que um medico de Lisboa, no seculo <span class="allsmcap">XVI</span>,
-receitava ainda a ave aberta viva para a peste bubonica.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Jogo do pião</i>.—Vi um grupo de rapazes jogando o pião. Nas
-cabeças dos piões os rapazes tinham mettido tachas de ferro de haste
-curta e cabeça larga de modo que os piões ficam com a cabeça protegida
-contra o ferrão do inimigo, é invenção nova para mim. E a isto chamam
-os rapazes pôr sêllo no pião, e é obrigatoria a sellagem; se apanham
-algum sem a cabeça couraçada, dizem logo:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_130">[Pg 130]</span></p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">Pião que não tem sêllo</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Vae a casa do camêllo,</span><br />
-</p>
-
-<p class="p0">e atiram com elle para o telhado mais proximo.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Carnide, 1 de janeiro de 1900.</i>—Caso novo, missa do gallo á
-entrada do anno. Disseram-me que por ordem do Santo Padre se transferiu
-a missa do Natal, por esta e a vez seguinte, para celebração do novo
-seculo, visto que surgiram duvidas (a meu vêr singulares) ácerca de
-qual é o primeiro anno do seculo <span class="allsmcap">XX</span>, se é 1900 ou 1901.</p>
-
-<p>Não consta que se começasse a datar do anno <em>zero</em>, do seculo
-<em>zero</em>; mas assim vae o mundo. Começou pois o anno santo pela
-missa do gallo.</p>
-
-<p>Antes da missa do gallo passiei no Alto do Poço, a noite estava muito
-serena e agradavel, e casualmente assisti a uma scena dramatica, a
-chegada de um expedicionario africanista, inesperada pela familia, que
-móra num predio daquelle sitio. O pobre soldado, minado pela febre,
-embarcára mui doente em Lourenço Marques; não poude avisar a familia,
-chegára a Lisboa já melhor, foi á inspecção ao hospital da Estrella, e
-logo lhe deram licença para passar alguns mezes em casa, ares patrios;
-e elle assim que apanhou a guia foi direitinho a Carnide. Como elle ia
-nervoso, febril, vêr os seus queridos nunca esquecidos, exalçados pela
-ausencia larga em regiões e climas remotos.</p>
-
-<p>Na familia, durante a ausencia do moço soldado,<span class="pagenum" id="Page_131">[Pg 131]</span> houve mortes de
-pessoas queridas, que não lhe participaram para o não contristar, pobre
-rapaz.</p>
-
-<p>Chega o soldado em sobresalto febril e logo reparou nos vestidos de
-luto; veiu gente conhecida da visinhança e romperam em parabens e
-lamentos, numa confusão de lagrimas.</p>
-
-<p>No theatrinho de Carnide representou-se nessa noite, espectaculo feito
-por alguns curiosos da localidade, e terminado o ultimo acto um grupo
-animado, cantarolando, veiu da quinta do Sarmento, passando pela casa
-do pobre expedicionario. Eram conhecidos e amigos d’elle.</p>
-
-<p>Missa do gallo! annunciava a sineta do convento, n’uma vibração fina
-cortando a noite.</p>
-
-<p>Na egreja, cheia de devotos em muito silencio, como n’um mysterio,
-ergueu-se a voz do capellão.</p>
-
-<p>Houve exposição do Santissimo, e communhão, na grade ás religiosas
-portuguezas, e na capella do Senhor dos Passos ás irmans de Missão.
-E exposição do Menino, com o seu alegre motete executado no orgão
-velhinho, por uma velhinha no seu habito de Santa Thereza.</p>
-
-<p>Que singular espiritualidade acho neste cantar das velhinhas
-religiosas, tremulo, enfraquecido, esmorecendo como a toada de um sino
-que se esvae no ar. E contraste ainda nestas duas instituições aqui a
-par, a antiga, a que se apaga, a da vida contemplativa, ascetica, a da
-clausura austera,<span class="pagenum" id="Page_132">[Pg 132]</span> orante áparte da humanidade, e a nova da actividade
-christan, luctadora dos hospitaes, trabalhadora das escolas, militante
-em regiões longinquas, arrostando os paizes das febres e dos selvagens.</p>
-
-<p>Missa do gallo em noite de anno novo, foi caso inedito para mim. O meu
-pobre espirito estava abalado pelos contrastes que presenceára, e ao
-mesmo tempo lembrava-me da antiga missa do galo, na minha freguezia de
-Santo Antão, seguida da canja no meu lar, tudo n’uma aureola de familia
-e de pureza santa!</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>D. Sebastião enamorado.</i>—No jornal <i>A Arte</i>, de 1879 (pag.
-158), se transcreve um antigo manuscripto que trata da—«Origem da
-desgraçada jornada de Africa que executou el-rei D. Sebastião para
-ruina total d’este reino».</p>
-
-<p>É singular escripto e parece ter um fundo verdadeiro.</p>
-
-<p>O sr. A. Pimentel tambem se lhe refere no seu bello livro <i>Atravez do
-Passado</i> (pag. 119).</p>
-
-<p>Alguem, talvez com o fim de deprimir a familia do duque de Aveiro,
-no tempo pombalino, lhe juntou ou alterou umas linhas que no meu
-espirito não originam duvidas sobre os factos do seculo <span class="allsmcap">XVI</span>
-ali relatados. O que ha escripto sobre D. Sebastião tem origens muito
-alheias á intenção historica simples; assim como o pobre infeliz rei
-viveu rodeado de intrigas palacianas, assim a sua<span class="pagenum" id="Page_133">[Pg 133]</span> memoria serviu ainda
-para enredadas phantasias, e manias politicas.</p>
-
-<p>Que em roda do rapaz houve lucta de influencias a proposito do
-casamento d’Estado, provam-no muitos papeis velhos; que um amor natural
-perturbasse o coração do joven rei não custa a crer; que um duque,
-proximo do throno, favorecesse a inclinação do rei para sua filha, é
-bem possivel; que D. Catharina, e os politicos, vissem com inquieto
-olhar esses amores, é provavel tambem. Ora é esta a essencia do papel
-a que me refiro, e que vou mencionar aqui por se fallar n’elle de uma
-quinta de Carnide.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>—O duque de Aveiro, D. Jorge de Lencastre, teve uma filha unica
-chamada D. Juliana, a quem creou no Paço a rainha D. Catharina, sendo
-Regente d’este reino. Era dama formosa, bem feita, e muito esperta; ao
-menos, quando não tivesse estas qualidades, agradou-se d’ella El-Rei
-D. Sebastião, sendo mancebo, e veiu a declarar-se mais depois do anno
-de 1568 em que tomou o governo. Similhantes inclinações, que não podem
-ser occultas muito tempo, principalmente entre pessoas taes, chegaram
-á noticia da Rainha, e do duque de Aveiro; porém com differentes
-sentimentos, porque a Rainha receiava a consequencia d’estes amores,
-de que era objecto uma bisneta de el-rei D. João o 2.ᵒ, e o genio
-apaixonado de seu neto, que teria então 20 annos, e D. Juliana,
-16, com<span class="pagenum" id="Page_134">[Pg 134]</span> pouca differença; e o duque com uma vaidade disfarçada, e
-fingindo-se ignorante, do que todos sabiam, aspirava a altas ideias,
-lembrando-se de que era neto de um rei, da sua grande representação e
-casa, e tudo isto o persuadia de que algum dia sua filha a contariam no
-catalogo das Rainhas de Portugal—.</p>
-
-<p>Fallaram os politicos, os cortezãos, os invejosos, a Rainha fallou ao
-Cardeal infante D. Henrique e começaram a querer fazer casamento a D.
-Juliana, dando ao duque de Aveiro mais honras e mercês. E foi subindo a
-intriga, e D. Sebastião o bello rapaz sempre contrariado, a querer mal
-a D. Henrique seu tio, e a faltar ao respeito a D. Catharina sua avó.</p>
-
-<p>Faltava-lhe a mãe; talvez a origem da desgraça esteja n’isto.</p>
-
-<p>O rei desconfiava de todos, a camarilha enjoava-o; evitava-a quanto
-podia, ia caçar; andar pelos montes onde o ar é sempre puro. Os seus
-amigos e companheiros eram D. Alvaro de Castro, Christovão de Tavora e
-o duque de Aveiro.</p>
-
-<p>A uma caçada em Cintra foi muita gente da côrte; o duque levou sua
-filha; a Rainha D. Catharina encarregou uma dama de observar os passos
-de D. Sebastião. E esta dama foi descobrir no alto da serra, apartados
-dos caçadores, o rei, e o duque de Aveiro com sua filha D. Juliana!</p>
-
-<p>Outros ajuntamentos houve a seguir, affirmando-se que el-rei promovia
-essas festas agitadas e<span class="pagenum" id="Page_135">[Pg 135]</span> com muita gente para se encontrar com D.
-Juliana.</p>
-
-<p>—Ultimamente houve um ajuntamento que muito dissaboreou a Rainha,
-e o Cardeal infante, e foi uma mascarada de noute, em uma <em>quinta
-no districto de Carnide</em>, na qual se acharam grandes senhores e
-o duque de Aveiro com sua filha vestida á turqueza, e muitas outras
-damas lusidamente ataviadas; e do que ali se passou teve a Rainha
-circumstanciadas informações; mas não se disse com certeza quem as
-dera, supposto que se presumiu ser o prior do Crato, D. Antonio, filho
-do infante D. Luiz—.</p>
-
-<p>A Rainha D. Catharina, o tio Cardeal censuraram el-rei; e elle começou
-a fallar de ir á Africa.</p>
-
-<p>Nem em Cintra, nem em Carnide o deixavam á vontade.</p>
-
-<p>Só Africa, para casos d’estes.</p>
-
-<p>A primeira ida á Africa foi effectivamente uma surpreza para a côrte.
-D. Sebastião foi caçar nos arredores de Ceuta e Tanger e parece que
-encontrou lá uma filha do Xarife que se parecia com D. Juliana.</p>
-
-<p>De cá choviam os avisos da Rainha-avó, do tio Cardeal, dos bispos;
-custou a vir.</p>
-
-<p>Parece que D. Juliana, a ladina turqueza de Carnide, foi offuscada pela
-filha do Xarife; encanto de moura!</p>
-
-<p>Na segunda jornada o duque de Aveiro, apesar de ter perdidas as
-esperanças no casamento da filha,<span class="pagenum" id="Page_136">[Pg 136]</span> acompanhou D. Sebastião; e morreu
-com o seu rei e amigo.</p>
-
-<p>No seu testamento, feito antes de partir, recommendava que D. Juliana
-casasse com D. Jorge de Lencastre; este morreu tambem na batalha.</p>
-
-<p>D. Juliana, nova, herdeira riquissima, teve varias propostas de
-casamento com os maiores de Hespanha, que não acceitou; esperaria o
-rei? só dez annos depois de Alcacer casou com D. Alvaro de Lencastre,
-que foi o 3.ᵒ duque de Aveiro.</p>
-
-<p>Agora, onde a <em>quinta do districto de Carnide</em>? Gostaria de saber,
-gostaria, mas é certo que não encontro vestigios a que possa attribuir
-grande antiguidade, nem mesmo tradição local. As grandes casas de
-Carnide e seu termo são do seculo <span class="allsmcap">XVII</span> e do XVIII; e estas na
-maioria ainda modificadas e transformadas modernamente.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>A familia Carnide.</i>—Em antigo codice genealogico encontro este
-appellido, de origem local. Um homem natural de Carnide adquiriu bens,
-fez serviços e alcançou a nobreza. Diz o codice: «é Carnide logar de
-80 visinhos, com boas e rendosas fazendas, e entre os visinhos alguns
-que se tratam nobremente, e viveram em tempos antigos com abundancia e
-nobreza.»</p>
-
-<p>O primeiro mencionado é Pedro Gonçalves de Carnide, do tempo de Affonso
-V. Seu filho Pedro de Carnide morou em Cintra.</p>
-
-<p>Balthazar de Carnide foi moço da camara de<span class="pagenum" id="Page_137">[Pg 137]</span> D. Manuel. A familia
-Carnide apparece em seguida alliada a Gamboas e Ayalas.</p>
-
-<p>Jeronymo de Carnide, moço da camara, esteve em Roma com o embaixador D.
-Alvaro de Castro: foi provedor de saude no periodo terrivel das pestes
-e contagios; basta dizer que foi guarda-mór de saude do Reino em tempo
-de D. Sebastião. Era natural de Cintra; viveu 120 annos (1503-1623),
-alcançando os reinados de D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, D.
-Henrique e os Filippes I e II. Um seu filho, Balthazar de Carnide,
-viveu 100 annos.</p>
-
-<p>Os Carnides mencionados nas genealogias são quasi todos de Cintra; é
-certo que ainda hoje apparece este appellido em familias de Cintra e de
-Torres Vedras.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Propriedade territorial na idade média.</i>—Ha documentos relativos
-a propriedade territorial em Carnide, nos fins do seculo XII, e
-primeiro quartel do <span class="allsmcap">XIII</span>. É bem raro encontrar uma série tão
-variada de taes documentos. Não nos é todavia possivel marcar com
-precisão, com exactidão, o local da propriedade, ou quinta de que se
-trata.</p>
-
-<p>Porque as propriedades variam muito, dividem-se, aggregam-se; as
-extremas fluctuam; os nomes alteram-se.</p>
-
-<p>Os documentos de Urraca Machado, <em>dóna</em> de Chellas, isto é, freira
-do mosteiro de Chellas, foram publicados pelo erudito sr. Pedro de
-Azevedo,<span class="pagenum" id="Page_138">[Pg 138]</span> no <i>Archivo Historico Portuguez</i>, vol. III, pag. 5 e seg.</p>
-
-<p>Quem era esta senhora? era <i>dona Orraca Martins</i>, filha de
-Martim Machado, professa do Mosteiro de Chellas, que andava <em>fóra
-da Ordem</em>, quer dizer, ausente por muito tempo do seu convento.
-Tinha bens e parentes proximos em Carnide, e o seu compromisso com a
-Ordem. Ora constou que ella vendia e desbaratava esses bens, em damno
-do mosteiro, este protestou, e por isto a série de documentos muito
-especiaes e valiosos. O protesto é de 1299, tempo de D. Diniz; foi
-lavrado no concelho da cidade de Lisboa, perante o alcaide e alvazis.</p>
-
-<p>No terceiro documento, de 1308, falla-se da quinta de Carnide, em que
-a freira tinha uma parte. No quarto documento, de 1309, se diz que as
-rendas de Carnide foram arrematadas a Salomão Negro, judeu. A familia
-judaica <i>Negro</i> apparece em documentos do seculo XIII ao XV.</p>
-
-<p>David Negro era o famoso thesoureiro de Leonor Telles, quando
-proprietario em Camarate e na Outra Banda. A outra parte da quinta
-pertencia a Martim Martins Machado, irmão da freira. O documento é
-interessante; trata do arrendamento, almoeda, e negocios, em que houve
-<em>malfeitoria</em>; o instrumento ou contracto que o judeu apresentou
-não afinava com a <em>nota</em> tabellioa, havia <em>mentira e burla</em>.
-Este instrumento, declara o tabellião, foi escripto em papel porque não
-havia <em>porgamyo decoyro</em>.<span class="pagenum" id="Page_139">[Pg 139]</span> Acontecia isto por vezes; em cousas
-officiaes usava-se o pergaminho; quando este faltava, lançavam mão do
-papel. E certo é que papel e tinta chegaram até nós; bom papel e boa
-tinta; não sei quantos annos durarão certos papeis e tintas usados
-actualmente.</p>
-
-<p>O documento n.ᵒ 7 é uma carta regia, ou sentença de D. Diniz, passada
-em 1311, sobre a partição dos bens da freira e de João Machado, tambem
-seu irmão. A monja de Chellas tinha terras em Carnide, nos sitios da
-Panasqueira e na Feiteira.</p>
-
-<p><i>Panasqueira</i> é na parte norte da moderna quinta de Montalegre,
-formada pelo fallecido Carlos Anjos, entre as estradas de Telheiras,
-Luz e da Fonte.</p>
-
-<p>Não é facil marcar os sitios das propriedades; diz-se <em>sob a
-fonte</em>, na <em>varzea</em>, na <em>corredoura</em>, designando as
-fazendas pelos nomes dos donos, pessoas bem conhecidas em 1311. Mas
-já havia no sitio <em>vinha velha</em>, moinho e almoinha ou horta,
-courellas e ferrageaes, adega com material vinario, tinas, toneis e
-cubas, já se falla das <em>covas</em> de Carnide. Trata-se me parece
-de covas de guardar pão ou cereaes, silos; em 1908, modificando-se a
-calçada no <i>Alto do Poço</i>, appareceram duas grandes covas, abertas
-no solo, de dois metros de fundo por um e meio de diametro, quasi
-totalmente entulhadas. As paredes estavam nitidas, bem conservadas.
-As pessoas da localidade ignoravam<span class="pagenum" id="Page_140">[Pg 140]</span> o destino d’aquellas grandes
-cavidades, o que succede, me parece, por todo o paiz. E todavia no
-seculo XVI ainda se utilisavam os silos ou matamorras, e no centro de
-Espanha ainda hoje estão em uso. Em Lisboa, na grande obra municipal
-de ha poucos annos, ao Arco do Marquez do Alegrete, tambem appareceram
-silos, ao longo da muralha fernandina.</p>
-
-<p>O documento n.ᵒ 10 é de 1312; refere-se a certa divida de João Machado
-a Isaac, filho de Judas Negro, outro judeu da familia Negro; e a uma
-courella do <i>Cano</i>, pertencente a Urraca Machado. O n.ᵒ 12, de
-1313, falla-nos da courella da <i>Coelheira</i>, da qual traz as
-confrontações pelo <em>sol levante, aguião, poente</em> e <em>avrego</em>.
-<em>Aguião</em> quer dizer <em>aquilão</em> ou norte, e <em>avrego</em> vem
-de africo, ou vento de Africa, isto é, sul. N’este documento figura
-Domingas Eanes, prioreza de Chellas, e Ousenda Domingues, sub-prioreza.
-Já menciona a <i>aldeia de Carnide</i> com seu <em>rocío</em>.</p>
-
-<p>Em 1321, com licença do mosteiro de Chellas, a freira Urraca Machado
-entregava por aforamento os seus bens de Carnide a um Rodrigo Eanes,
-por duzentos maravedis de Portugal, pagos ás metades do anno por
-Paschoa e Santa Iria, mais doze almudes de vinho. Não é bem um
-aforamento, é um arrendamento a longo prazo, em vidas, pois só termina
-depois da morte do rendeiro, de sua mulher e filho. O contracto tem
-penas severas e condições bem determinadas, como<span class="pagenum" id="Page_141">[Pg 141]</span> a de o rendeiro
-fazer á sua propria custa almoinha ou hortejo, e plantação de vinha,
-concertos de casas, adegas e lagares, e de sua louça.</p>
-
-<p>Em 1325 já a dóna Urraca era fallecida; mas havia freiras de Chellas
-na sua casa de Carnide; por causa de certa questão de posse foram ahi
-notarios que viram duas freiras em <em>uma camara sob a torre</em>.
-N’esse tempo era Clara Gonçalves prioreza de Chellas; é notavel que
-n’este mesmo documento se lhe chama abbadessa. N’esta época a questão
-chegou á maior intensidade, houve violencia, e Martim Machado foi
-excommungado.</p>
-
-<p>Em 1390 foi a quinta de Carnide emprazada em tres vidas a Martim Annes;
-confrontava com as herdades de fuão e fuão, e do mosteiro de Santa
-Clara de Lisboa...</p>
-
-<p>Era uma <em>quintam</em> de herdades de vinhas e de pão que o dito
-mosteiro ha na aldeia de Carnide, termo da dita cidade (Lisboa).</p>
-
-<p>A par dos elementos relativos á <em>quintam</em>, apparecem outros em
-razão das confrontações, das testemunhas, etc.</p>
-
-<p>Assim n’um documento de 1313 se falla de uns quartos de courellas de
-vinhas que o mosteiro havia em Carnide no herdamento do Louro; de uma
-testemunha se diz: fuão morador ao Louro, no casal da <i>Ordim</i>.</p>
-
-<p>Em 1352: quinta no logo que chamam <i>Alperiate</i>... casal e herdades
-de pão sitas em <i>Queylus</i>... uma vinha que chamam a <i>Coelheira,
-a par<span class="pagenum" id="Page_142">[Pg 142]</span> de Carnide</i>. Alperiate, ou Alpriate, é o nome de uma
-localidade perto da Povoa de Santa Iria.</p>
-
-<p>Em 1356: courella do <i>Pereiro</i>, alem de Carnide que parte com
-vinha de <i>Santaloy</i>.</p>
-
-<p>Deve ser Santo Eloy, no caminho da Pontinha para A da Beja.</p>
-
-<p>Em 1366: vinha no <i>Cano</i>, logo, ou logar, de Carnide.</p>
-
-<p>Em 1397: em Carnide... em logo que chamam a <i>Soeira</i>.</p>
-
-<p>Em 1438: fulano morador na <i>Payãa</i>. Agora diz-se <i>Payam</i>.</p>
-
-<p>De 1443 temos um documento interessante: trata de uns <i>Tintaes</i>
-de vinha, um acerca do outeiro... confrontando com caminho da
-<i>Granja</i>, outro com azinhaga que foi da <i>fonte do Machado</i>;
-são nomes que ainda vivem.</p>
-
-<p>Em 1466... vinha do morgado de <i>Mem de Brito</i>.</p>
-
-<p>Em 1481... vinha que parte com a ermida de Santa Maria da Luz, em
-Carnide.</p>
-
-<p>Um documento de 1484 menciona as courellas que pagavam o quarto á
-quinta de Carnide, duas entestavam com a Luz e caminho que vae para
-o <i>Lomear</i>. Outra com estrada que vae de Carnide para Lisboa.
-Menciona-se um fulano morador na <i>Ribeira de Agoa Livre</i>; é um
-sitio da ribeira ou do valle de Carenque. Uma courella no cabo do
-<i>Rego</i>, outra na estrada de Lisboa e na do Lumiar.</p>
-
-<p>A pag. 32 da publicação do sr. P. d’Azevedo<span class="pagenum" id="Page_143">[Pg 143]</span> (<i>Archivo Historico
-Portuguez</i>, vol. III), vem o <em>titulo dos canos</em>: F. morador
-na de <i>Dona Maria</i> (é a aldeia que fica a norte de A da Beja)
-tinha uma courella de vinho e azeite que entesta no ribeiro do Bom
-Nome (a quinta do Bom Nome é agora a do Sarmento), e com o <i>Resyo do
-logar</i>. O rocio de Carnide era a poente da egreja de S. Lourenço, a
-parochial, que é do seculo XIII.</p>
-
-<p>F. morador nas Fontellas, na ribeira de Loures tinha uma courella que
-entesta com o rio do <i>Bom Nome</i> e com o <i>resyo de Carnide</i>.
-F. tinha metade de um quarto de courella. Vê-se que a propriedade
-estava muito dividida.</p>
-
-<p>A <em>albergaria</em> de Carnide trazia tambem um meio quarto de
-courella. Passou depois a pequena fazenda para o <em>hospital</em> de
-Carnide.</p>
-
-<p>Outra courella entesta no rio do Bom Nome e com o adro de S. Lourenço;
-deve ser a fazenda onde está agora uma vaccaria.</p>
-
-<p>F. do <i>Calhariz</i> possue uma terra que vem á estrada <i>na do
-Correia</i>... caminho de Bemfica. F. tem uns quinhões na almoinha
-do Machado defronte da porta travessa de Nossa Senhora da Luz.
-<i>Correia</i> é o nome da quinta do sr. conselheiro Pequito. Um
-quinhão do lagar do Espongeiro... parte do aguião ao longo da estrada
-<i>na do Correia</i>, e do vendaval (sul) entesta com o caminho de
-Bemfica e da travessia (poente)...</p>
-
-<p>No <i>Esparageiro</i>; será variante de Espongeiro? Esparageiro virá de
-espargo?</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_144">[Pg 144]</span></p>
-
-<p>Agora apparece-nos um nome estranho, quinhões dos <i>Feytaes
-layrasos</i>, e tambem <i>Feytaes castelhanos</i>. Nada conheço
-agora que se lhe avisinhe. Todos estes nomes estão no titulo dos
-<i>Canos</i>: este era pois o nome de uma região, entre a estrada do
-Poço do Chão e a estrada que vae de S. Lourenço para a Porcalhota,
-agora, recentemente, Amadora, passando pela actual quinta da Correia. É
-possivel que este nome de Canos tenha a sua origem em antigos pequenos
-aqueductos.</p>
-
-<p>Finalmente apparece-nos um documento com autos de medição de certas
-propriedades; é de 1554. A vinha da Coelheira que parte com caminho
-da Granja, tinha de largura 28 varas e de comprido 246 varas, era um
-tira de terra: outra vinha tinha de largura 51 varas e de comprido 280
-varas, era uma fazenda com pouco mais de hectare e meio.</p>
-
-<p>Esta collecção de documentos é importante para o estudo da marcha
-do processo civil; especialmente o grupo que pertence ao primeiro
-quartel do seculo XIV. Brigam no comprido pleito particulares, freiras,
-o convento; chegam á excommunhão. Ha instrumentos de protesto, de
-testemunho, de intimação, procuração, cartas regias, sentenças, recibos
-e obrigações, aforamento, arrendamento a longo praso, e suas condições,
-carta de excommunhão, posse, emprazamentos em tres vidas; todos estes
-variados instrumentos entram no seculo XIV, a maior parte no seu
-primeiro quartel (1299 a 1325).</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_145">[Pg 145]</span></p>
-
-<p>As conclusões a que chegamos são: no termo de Carnide a propriedade
-estava muito dividida; havia proprietarios de meia courella, de quarto,
-de meio quarto de courella.</p>
-
-<p>A cultura era variada, vinhas, olivaes, terras de seara ou de pão;
-almoinhas ou hortas. Falla-se numa vinha <em>velha</em>.</p>
-
-<p>Não vejo nos nomes de proprietarios ou rendeiros nomes mouriscos;
-muitos teem dito que os saloios são de origem mourisca, nestes
-documentos não apparecem nomes desse elemento; apparecem individuos
-da familia Negro, judaica, proprietarios ou gente de negocio. Nestes
-documentos falla-se em muitos predios porque tratando da quinta de
-Carnide, cabeça dos predios rusticos de Urraca Martins Machado, e das
-suas dependencias ou terras annexas, ao mesmo tempo se mencionam varias
-com que confrontam. Não vejo mencionar cercas, tapadas, muros. Como
-noutras partes accumularam propriedades, arredondaram e muraram. Aqui a
-construcção dos conventos com suas cercas importantes alterou immenso a
-topographia dos predios.</p>
-
-<p>Os conventos da Luz, de Santa Thereza, dos Carmelitas, o Hospicio das
-freiras de Christo, alastraram no fim do seculo XVI e no XVII os seus
-vastos edificios e amplas cercas de altos muros.</p>
-
-<p>Todavia as estradas indicadas existem ainda hoje, a azinhaga da Fonte,
-o caminho de S. Lourenço para Bemfica, que é a estrada do Poço do<span class="pagenum" id="Page_146">[Pg 146]</span>
-Chão, que passa pela Granja, a estrada de A do Correia, estradas da
-Luz para o Lumiar, e da Luz para Lisboa. Em frente da porta travessa
-da egreja da Luz lá está ainda uma almoinha com suas latadas e
-canteiros; a quinta do Bom Nome, é agora chamada do Sarmento. A do
-Correia é a quinta da Correia, os logares ou aldeias de A da Beja, Dona
-Maria, Calhariz, Payam, Santo Eloy existem. O valle de Odivellas tão
-interessante conserva-se dividido em pequenas propriedades, de intensa
-cultura onde o saloio moureja.</p>
-
-<p>Fóra d’esse valle a pequena propriedade quasi desappareceu; a tendencia
-é para accumular. Depois dos conventos, ou contemporaneamente, formaram
-as quintas depois chamadas do Oliveira, da Condessa, do Mossamedes, do
-casal do Falcão. Modernamente formou-se a grande quinta de Montalegre
-que fundiu cinco propriedades grandes; o collegio militar tambem
-alargou as suas terras. Só entre o logar de Carnide e o Paço do Lumiar
-se encontram os grandes vallados antigos, as propriedades sem muros.</p>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_147">[Pg 147]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="A_villa_da_Ericeira">A villa da Ericeira</h2>
-</div>
-<hr class="r5" />
-<p class="center">(1903-1905)</p>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_149">[Pg 149]</span></p>
-
-
-
-<p>Os caminhos mais seguidos para ir á Ericeira são os que partem de Mafra
-e de Cintra; este o mais frequentado.</p>
-
-<p>A estação do caminho de ferro de Cintra está pittorescamente
-aconchegada na base do alteroso monte granitico, rochedos pardos entre
-manchas de vegetação verde escura, coroado pelas torres e quadrellas
-mouriscas terminadas na fina grega de ameias. Da estação partem os
-carros para a villa, para Collares e Ericeira.</p>
-
-<p>Começa logo a descida, passa-se uma ponte; termina de subito a invasão
-das construcções modernas, e definem-se as modestas casas saloias da
-moda velha.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Lourel</i>, a primeira aldeia; era já povoado o sitio em tempo da
-dominação romana; antes de gódos e de mouros, vejam lá!</p>
-
-<p>Mais cinco minutos de carro e apparece, espreitando entre agrestes
-collinas, a torre de Ribafria;<span class="pagenum" id="Page_150">[Pg 150]</span> uma residencia nobre medieval,
-conservando a sua linha primitiva, a torre com seu brazão, palacete,
-grande lago e alta cerca, naquelle fundo valle aproveitado
-provavelmente pela abundancia de agua nativa.</p>
-
-<p>São bem raras estas residencias ruraes em Portugal, todavia restam
-algumas que contam a sua formação pela juxtaposição dos seus cunhaes.</p>
-
-<p>A residencia de Bellas, por exemplo, que é muito interessante, onde eu
-julgo vêr restos ainda da alta idade media.</p>
-
-<p>As arvores que bordam a estrada estão inclinadas uniformemente para
-suéste marcando bem a corrente dos ventos dominantes.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Villa Verde</i>, um grupo de casas com seus quintaes, muros de pedra
-solta, figueiras e parreiras.</p>
-
-<p>A vista alarga-se pelos vastos campos, accidentados; ao longe collinas
-arredondadas com manchas escuras de pinhal. A serra de Cintra mostra
-agora a sua crista atormentada, as massas escuras de arvoredo,
-destoante de tudo o que a cérca; e avista-se Mafra, a enorme joia,
-principalmente vistosa se o sol da tarde illumina a soberba frontaria,
-que olha para occidente.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Terrugem</i>, povoado alegre, amplo terreiro, egreja antiga com sua
-alpendrada, e seu gentil campanario do seculo XVIII; pouco adiante uma
-velhissima ermidinha, com portal em ogiva.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_151">[Pg 151]</span></p>
-
-<p>Estamos em pleno paiz saloio, onde apenas algumas pequenas explorações
-de pedreiras juntam fracos elementos á vida agricola. Ha poucas
-habitações dispersas, e nenhum povoado importante. Esta freguezia de S.
-João Degolado da Terrugem compõe-se de mais de vinte povos ou logares,
-que teem na média 10 fogos. Os mais povoados são Terrugem, Villa Verde,
-Alcolomba, Lameiras, Almurquim, Fajão, Cabrella, Carnessada, Goudigana,
-Armez. Grupos de 4, 6, 8 casaes são os logares de Toja, Da do Bispo,
-Alpolentim, Urmeiro, Fervença, Moleirinhos, Sequeiro, Murganhal,
-Alparrel, Funchal, Silva. Um ribeiro, o Fervença, corta as terras da
-freguezia.</p>
-
-<p>Entre as designações locativas algumas merecem reparo pois mostram
-influencias de antigas linguagens.</p>
-
-<p>E por todo o paiz saloio a população se encontra assim em pequenos
-grupos, sendo muito menor a parte que vive em casaes ou quintas
-isoladas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Odrinhas</i>; pára a carrinha de bancos para descanço dos animaes, e
-breve allivio dos passageiros.</p>
-
-<p>Se o saltitante vehiculo vier completo, e entre os passageiros
-houver gorduchos, é caso grave; porque a diligencia foi feita para
-trinca-espinhas. A paragem é uma consolação, para alargar um pouco os
-musculos.</p>
-
-<p>A um kilometro da pobre locanda, estação <em>central</em>!<span class="pagenum" id="Page_152">[Pg 152]</span> onde pára a
-carrinha, fica o meu adorado S. Miguel de Odrinhas, a velha egreja,
-com as suas veneraveis antiguidades, o primitivo alpendre, o cemiterio
-medieval, e as suas lendas bem interessantes.</p>
-
-<p>Mais dez minutos e passamos perto de um cómoro cheio de enormes
-pedregulhos, ovoides uns, globulares outros; ali os muros das pequenas
-propriedades parecem feitos de pelouros, de grandes balas de pedra.
-É <i>Alvarinhos</i>, uma formação granitica, bem frisante entre os
-terrenos da grande chapada.</p>
-
-<p>Segue-se um plaino pouco accidentado; casas saloias de construcção
-quasi cubica, escada exterior para o sobrado, e telhado de quatro
-aguas; grandes lages formam as divisorias; uma casa tem a sua porta
-abrigada por um alpendre formado por tres lages, duas a prumo e uma
-coberteira; cruzes de cal branca em muitas paredes, ás vezes muitas
-cruzes numa só parede; algumas casas mais modernas e janotas com os
-cunhaes pintados a azul e vermelho.</p>
-
-<p>Estamos em terras da freguezia de S. João das Lampas, mais importante
-que a Terrugem: tem 32 povos ou logares; mas a media de fogos por logar
-é egual á da Terrugem.</p>
-
-<p>Os povos mais importantes são: S. João das Lampas, Bolelos,
-Montearroio, Odrinhas, Alvarinhos, Amoreiras, Almagreira, Areias,
-Alfaqueques, Mouxeira, Arreganha, Seixal, Assafôra, Cortezia,<span class="pagenum" id="Page_153">[Pg 153]</span>
-Cantrivana, Arneiro, Togeira, Magute, Bolembre, Fontenellas, Gouvêa,
-Perningem, Codiceira.</p>
-
-<p>Os ribeiros de Magute, Samarra e Barril, que vão á foz de S. Julião,
-cortam parte da freguezia em valles fundos, formando nos convalles
-pequenas veigas ferteis.</p>
-
-<p>A oriente, Mafra, o soberbo zimborio, as altas torres dos sinos,
-os formidaveis torreões dos extremos; e a sul a serra de Cintra,
-decorativa por excellencia, mais azul quanto mais longe, com tons de
-amethysta, frequentemente variada com ligeiras neblinas.</p>
-
-<p>Pouco mais e descobre-se a veiga da ribeira de Chileiros, os sulcos
-fortes dos seus pequenos afluentes, entre collinas de declives rapidos.</p>
-
-<p>Para o poente a grande face tranquilla do Atlantico.</p>
-
-<p>Uma e outra vinhasita entre muros de pedra solta; retalhos de tojaes
-cortados; vaccas leiteiras guardadas por creanças; grupos de pinheiros
-mansos de verde lustroso, poucas arvores de fructo; sobre os telhados
-filas de aboboras; em fins de setembro os campos estão animados,
-trabalha-se nas eiras na debulha do milho, e na estrada passam os
-carros com as uvas para as adegas.</p>
-
-<p>Fica ao longe a casaria branca, baixa, de S. João das Lampas, alveja a
-Assafôra, e outros pequenos povos; passa um fresco pinhal, e começa a
-descida que leva á Carvoeira, uma aldeia na encosta; em<span class="pagenum" id="Page_154">[Pg 154]</span> baixo o valle
-agora mais amplo da ribeira de Chileiros, forrado de vinhedos novos.</p>
-
-<p>Ha uma ponte nova, bem lançada; e a carrinha sobe vagarosamente a
-longa ladeira; vê-se a Foz, a barra de areia branca, a agua do rio
-mui socegada entre as escarpas altas e escuras; ouve-se o rumor da
-arrebentação, das grandes ondas de claro verde transparente, de franjas
-alvissimas que o vento pulverisa, desenrolando-se espumantes sobre a
-barra de areia branca, ou saltando, espadanando nas escuras rochas das
-ribas.</p>
-
-<p>O vasto oceano impõe-se agora, de fim vago se ha neblina; se o tempo é
-claro sempre a mesma linha de horizonte, nitida, limite implacavel e
-monotono.</p>
-
-<p>Termina a ladeira, salvam-se umas curvas de macadam, e apparece-nos a
-distancia a branca villa da Ericeira, como um bando de gaivotas pousado
-na riba da beira-mar.</p>
-
-<p>As <em>arribas</em> são escarpas de 30, 40 metros de altura, pittorescas
-em muitos pontos pelo estranho colorido, pela fórma de fragmentação;
-parecem ruinas de edificios gigantes.</p>
-
-<p>Escuros penedos á beira-mar quebram as vagas que se empinam em
-cristaes, se desfazem em brancas espumas ferventes, numa lucta
-rithmica. Das arribas a encosta faz uma plataforma, e logo sobe
-rapidamente o terreno para oriente, o lado de Mafra.</p>
-
-<p>Nesse largo socalco assenta a villa da Ericeira,<span class="pagenum" id="Page_155">[Pg 155]</span> a branca villa toda
-caiada, porque os habitantes até branqueam os telhados de muitas casas,
-e as ermidas das <em>arribas</em>, S. Julião, S. Antonio e S. Sebastião
-parecem talhadas em sal marinho.</p>
-
-<p>Nenhuma vegetação agora rompe a nitidez do verde mar, do escuro das
-furnas, da cal branca faiscando ao sol; só umas delgadas, flexiveis
-araucarias conseguem erguer-se sobre a linha da casaria; outras arvores
-ao passar a crista dos muros desfolham-se e quebram-se pela ventania
-maritima; nos pequenos quintaes abrigados ha roseiras finas, jasmins
-viçosos e latadas de dourado moscatel.</p>
-
-<p>Tambem tenho ido á Ericeira, passando por Mafra. Na estação do
-caminho de ferro apparece um carro de bancos, especie de americano
-de montanha, que nos leva á povoação, vencendo uma comprida ladeira.
-Proximo á estação, sobre uma collina, avista-se uma aldeia de aspecto
-interessante; as casas cubicas, com suas barracas ou quinchosos
-aos lados, coroam o monte, semelhando uma fortificação de torres e
-quadrellas. A estrada vae subindo pela meia encosta de um grande
-massiço; os largos declives dos montes povoados de culturas, vinhedos;
-nos sovacos mais humidos grupos de vaccas leiteiras.</p>
-
-<p>Para cortar caminho, indo de trem, atravessa-se um canto de tapada, uma
-rua de platanos, e logo o assombro do monumento.</p>
-
-<p>Ha ali primores de extraordinario merecimento.<span class="pagenum" id="Page_156">[Pg 156]</span> Que magestade imponente
-nas linhas geraes, que afinação, que equilibrio entre os corpos que
-compõem o grande conjuncto, que acabada execução! e na egreja que
-relevos de delicado lavor! e que bello horisonte!</p>
-
-<p>N’este paiz accidentado quasi todos os monumentos teem moldura de
-grandiosa paizagem; não succede o mesmo em França, Inglaterra,
-Allemanha onde a vista pára em arvoredos proximos ou encontra planuras
-monotonas. Mafra tem moldura larga e rica, basta a decorativa Cintra,
-joia azul, o mar, e aquella vastidão de terras accidentadas, com seus
-povos e casaes, quintas, vinhedos e manchas avelludadas de pinhal.</p>
-
-<p>Os sinos, um dos primeiros carrilhões do mundo, enchem de vibração
-religiosa aquelles campos; ouvem-se muito ao longe; uma vez passando
-em Odrinhas ouvi uma toada longa, mui grave, que me impressionou;
-era a sonoridade dos sinos de Mafra que chega a muitos kilometros de
-distancia. Outra vez ouvi no carrilhão a valsa do <i>Fausto</i>! que
-typo de sineiro, quando hoje ha musicas escriptas expressamente para
-estes grandes instrumentos de musica!</p>
-
-<p>Mafra tem outra notabilidade, a velha egreja de Santo André, antiga
-freguezia. Cautella com os amadores, pois a vi muito abandonada.</p>
-
-<p>Tem altares de azulejos mosarabes, e frontaes de couro lavrado,
-colorido e dourado; e duas arcas tumulares medievaes, de interesse
-historico e artistico.<span class="pagenum" id="Page_157">[Pg 157]</span> O exterior da capella mór e a torre sineira são
-da primitiva, e em volta está o velho cemiterio, tão pouco respeitado!</p>
-
-<p>Com pequeno esforço se poderia conservar melhor essa interessante
-egreja de Santo André!</p>
-
-<p>Muito curioso o pequeno mercado, os figos moscateis, as lindas uvas, as
-bellas maçãs, os aromaticos melões, as saloias com os seus cabazes de
-ovos. Mas que ovos saborosos! nos almoços que nas minhas passagens por
-Mafra consumi no Moreira ou no Duarte ou no Ricardo, eu repeti os ovos
-fritos na manteiga saloia.</p>
-
-<p>A carrinha da Ericeira pára á porta do correio, que fica ao lado da
-escadaria monumental da egreja.</p>
-
-<p>E partimos para o lado do mar.</p>
-
-<p>Pela estrada carros com rama de pinho, rapazes com vaccas leiteiras, e
-grupos de crianças pedindo cincoreizinhos em cantilena nasalada.</p>
-
-<p><i>Sobreira</i>, logarejo com caixa de correio, e uma loja centro
-commercial, onde se vende tudo á gente do sitio, e vinho á gente que
-passa; o cocheiro aceita sempre o seu copito. Fabrica-se por aqui
-ceramica popular, louça de barro, vidrada ou não, com sua ornamentação
-especial. E não só na Sobreira, mas em outros povos proximos ha
-oleiros, até á Lapa da serra, pequeno logar já visinho da Ericeira.</p>
-
-<p>Agora atravessamos trechos de pinhal; paisagem formidavel; na luz forte
-o grande mar, a<span class="pagenum" id="Page_158">[Pg 158]</span> serra de Cintra, amethista lavrada, os vastos campos
-accidentados, palhetados de logares e casaes brancos, as verdes manchas
-de pinhal, e Mafra, o imponente edificio avermelhado, saliente entre a
-pequena casaria branqueada da villa.</p>
-
-<p>E quanto mais nos avisinhamos da Ericeira mais viçosos são os pinhaes;
-tudo pinhal novo, porque as velhas arvores foram derrubadas nos ultimos
-annos. O mar quanto mais proximo mais scintillante.</p>
-
-<p>E nada da Ericeira; para esse lado, a quem vem de Mafra nem uma casa,
-nem uma torre de egreja mostra a villa; porque ella está no grande
-socalco da ribamar; quasi ao terminar a ladeira surge a casaria branca
-alastrada, projectando-se sobre o oceano.</p>
-
-<p>Ora vamos ouvir o padre Antonio Carvalho da Costa, bom author que eu
-sempre recommendo, na sua mui excellente «Corografia portugueza, e
-descripçam topografica do famoso reyno de Portugal», impressa em 1712:
-escreve o prestimoso clerigo e mathematico lisbonense, a pag. 42 do
-tomo terceiro:</p>
-
-
-<h3>Da Villa da Eyriceyra</h3>
-
-<p>Uma legua ao noroeste de Mafra (será escusado lembrar que havia então
-leguas pequenas, e leguas da Póvoa), tres ao sudoeste da villa de
-Torres Vedras,<span class="pagenum" id="Page_159">[Pg 159]</span> e sete ao Sul de Peniche, tem seu assento a villa
-da Eyriceyra, a quem banham pela parte do occidente as salgadas e
-ceruleas aguas do cubiçoso Oceano, que a faz abundante de bom pescado e
-excellente marisco, especialmente eyriços, donde a villa tomou o nome,
-o que approvam suas armas, que são um eyriço em campo branco.</p>
-
-<p>Elrei D. Diniz lhe deu foral (o primeiro foral é mais antigo), que
-confirmou depois elrei D. Manuel, fazendo doação della ao infante
-D. Luiz seu filho, de quem a herdou o sr. D. Antonio, seu filho
-illegitimo, ao qual (sendo expulsado da successão do reino por el Rei
-D. Fillippe o de Castella, e vencido na ponte de Alcantara pelo duque
-de Alba, que com poderoso exercito entrou neste reino) lhe confiscaram
-todas suas rendas, e entre ellas a villa da Eyriceyra, a qual deu em
-satisfação de divida a Luiz Alvares de Azevedo de juro, e herdade
-para elle, e seus descendentes, com que ficou excluida da Corôa, como
-bens patrimoniaes; e pertencendo ella a uma sua filha, religiosa de
-S. Bernardo no mosteiro de Odivellas, a vendeu a abbadessa por 8:000
-cruzados a D. Diogo de Menezes com todas suas rendas e direitos reaes,
-e a quinta parte do morgado da villa de Mafra, e a vintena do peixe,
-que se paga aos senhores da dita villa, que é em todas as partes em que
-fóra della pescam seus naturaes, mui exercitados neste officio.</p>
-
-<p>Tem 250 visinhos com uma egreja parochial<span class="pagenum" id="Page_160">[Pg 160]</span> da invocação de S. Pedro,
-curado, que apresenta o conego da Sé de Lisboa, o qual tambem apresenta
-a vigairaria de Mafra: tem mais Casa da Misericordia, e estas ermidas,
-o Espirito Santo, Nossa senhora da Boa Viagem, S. Sebastião, e S.
-Martha, e ha nesta villa tres fontes perennes.</p>
-
-<p>Assistem ao seu governo civil um ouvidor posto pelos condes (que nesta
-terra tem os oitavos do pão e vinho), dois vereadores, um procurador do
-conselho, um escrivão da Camara annual, que o é tambem da almotaçaria,
-outro escrivão dos orfãos, que o é tambem dos direitos reaes e do
-judicial e notas. Tem uma companhia da Ordenança, e um forte com cinco
-peças de artilharia, que sustentam os moradores, e os condes consultam
-o governador. É hoje senhor e conde desta villa D. Francisco Xavier de
-Menezes, cuja illustre varonia é a seguinte:==e segue uma noticia da
-genealogia d’essa bella familia dos condes da Ericeira, D. Diogo de
-Menezes, 1.ᵒ, D. Fernando de Menezes, 2.ᵒ, D. Luiz de Menezes, 3.ᵒ,
-D. Francisco Xavier de Menezes, 4.ᵒ, série brilhante na fidalguia
-portugueza.</p>
-
-<p>Foi este ultimo que animou Carvalho da Costa a escrever a sua
-chorographia que tantos serviços presta ainda agora.</p>
-
-<p>A respeito da villa de Mafra conta-nos Carvalho da Costa: o seu termo
-é abundante de pão, gado, e caça: tem uma egreja parochial dedicada a
-S. Izidoro, curado, que apresentam os moradores<span class="pagenum" id="Page_161">[Pg 161]</span> (note-se isto, eram
-os moradores que apresentavam o cura), os quaes passam de cento e
-sessenta divididos por estes lugares, Azambujal, Quintal Gonçalvinhos,
-Grocinhos, Lombo da Villa, Almada, Ribeira, Murteira, Pinheiro,
-Murgeira, Cachossa, Roxeira, Amoreira, Póvoa, Valle de Carreira,
-Caeiros, Fonte Santa, Relva, Sobreiro, Fonte Boa dos Nabos, Figueiredo,
-Picanceira, Penagache, Lagôa, Montegudel, Ribamar de cima e de baixo,
-com muitos casaes. Tem mais este termo o forte de <i>Milreu</i>, e o de
-Santa Susana com duas peças d’artilharia.</p>
-
-<p>A corographia de Carvalho da Costa imprimiu-se em 1712; estava-se longe
-da importancia posterior de Mafra, realçada pelo seu colossal monumento.</p>
-
-<p>O que me chama a attenção na descripção de Mafra, feita por tal
-authoridade em 1712 (isto é em 1709, porque 1712 é a data da impressão)
-é que nesse tempo, em que se conservavam ainda vigorosas as antigas
-instituições, no termo da villa de Mafra a freguezia mais importante
-era a de Santo Isidoro; e que o seu parocho curado era apresentado
-pelos moradores. Isto mostra que esta freguezia ou parochia era uma
-entidade muito sobre si: e abrangia um territorio vasto e importante,
-como o é ainda agora.</p>
-
-<p>Em 1844 temos outra noticia a respeito da Ericeira no famoso Panorama
-(Serie 2.ᵃ Vol. 3.ᵒ pag. 335).</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_162">[Pg 162]</span></p>
-
-<p>É um artigo de Henriques Nogueira. Acompanha-o uma gravura ingenua
-mas curiosa; mostra os rochedos, a alta escarpa, a ladeira que vem ao
-pequenino porto, as paredes do forte, agora em parte desmoronado, e ao
-longe a ermida de S. Sebastião.</p>
-
-<p>==Em documentos antigos é conhecida por Oyriceira e Eyriceyra, e d’aqui
-vem serem as armas do concelho um ouriço.</p>
-
-<p>==Os mais antigos assentos da separação da parochia de Mafra são de
-1406. D. João V prestou grande auxilio á reedificação de S. Pedro.</p>
-
-<p>==O estabelecimento mais importante que esta villa possue é a casa
-da Misericordia a qual foi fundada onde havia uma ermida do Espirito
-Santo, por Francisco Lopes Franco, em 1678. Este doou-lhe um padrão
-de juro de 480$000 réis, e os pescadores obrigam-se a pagar-lhe
-annualmente todo o ganho d’uma rede de pesca, cujo onus solveram pela
-quantia de 6$400 réis que ainda hoje pagam cada um dos dez barcos de
-pesca. O rendimento actual (1844) em juros e fóros é de 1:679$700
-réis. Despende com encargos pios e despezas do culto 725$300 réis e
-com o hospital 479$300 réis. O excedente da receita é empregado em
-esmolas e vestuario aos pobres. Os habitantes empregam-se pela maior
-parte nas pescarias ao longo do nosso littoral, na costa de Marrocos,
-e tambem já fizeram tres expedições ao Banco de Terra Nova n’estes
-ultimos annos (como isto passou!). O numero<span class="pagenum" id="Page_163">[Pg 163]</span> de embarcações de todos
-os lotes, incluindo as do commercio de cabotagem é de 98, empregando
-670 individuos. A população orça por 2:769 almas com 750 fogos; no
-principio d’este seculo tinha apenas 600.==(lembro ainda que isto se
-escrevia em 1844).</p>
-
-<p>==O forte está sobranceiro á calçada que dá para a praia, e hoje
-acha-se desguarnecido. Segundo se deprehende de uma inscripção sobre a
-porta foi edificado por D. Pedro 2.ᵒ</p>
-
-<p>==No chafariz chamado a Fonte do Cabo existe uma pedra embutida na
-parede com um emblema e legenda em caracteres gothicos em relevo, que
-parece significar: «Feita na era de mil e quatrocentos e cincoenta e
-sete annos.»</p>
-
-<p>==Ainda existem restos do palacio do senhorio d’esta villa, o conde da
-Ericeira: pela parte superior de algumas janellas veem-se pedras com um
-leão esculpido. Estas paredes a que o povo chama o Paço, são dignas de
-veneração por terem servido de residencia, e quem sabe se de academia,
-ao nosso douto escriptor D. Francisco de Menezes.</p>
-
-<p>==A meia legua ao nascente d’esta villa está aberta uma mina de
-barro branco no sitio chamado a Avesseira, que já tem sido explorada
-por conta das fabricas de louça das Janellas Verdes e Vista Alegre
-(Actualmente os finissimos barros dos arredores da Ericeira, que
-eu saiba, são explorados muito rudimentarmente pelos louceiros da
-Sobreira, Lapa da Serra, etc., que fabricam a louça chamada de Mafra).</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_164">[Pg 164]</span></p>
-
-<p>==Tambem por este mesmo sitio é situado o chamado <i>Pinhal dos
-frades</i>, por ter pertencido ao convento de Mafra.</p>
-
-<p>==É uma importante propriedade nacional assim pelo numero como pela
-bondade e prestimo das arvores, que excedem em diametro e altura as
-de todos os outros pinhaes circumvisinhos.==Agora o <i>Pinhal dos
-frades</i> não tem um só pinheiro fradesco; tudo foi reduzido a lenha;
-é todo novo o pinhal; e que bom seria alarga-lo porque daria aos
-arredores da Ericeira um encanto a mais, principalmente agora que tanto
-se louva o <em>ar do pinhal</em>. Esses novos pinhaes que eu percorri
-seguindo a estrada de Mafra, e no lindo caminho para a quinta dos Chãos
-e Santo Isidóro, são viçosos, e recebem em primeira mão a viração pura
-do mar; dá prazer respirar no ar do pinhal!</p>
-
-<p>Achei muito curiosa esta noticia da Ericeira, em 1844! Ora vejam
-como isto muda; o <em>forte</em> está em grande parte destruido, a
-<em>escarpa</em> tem falhado em muitas partes, desappareceram as
-<em>navegações longinquas</em>, diminuiu a <em>pescaria</em> em muito, e o
-<em>pinhal dos frades</em> perdeu as arvores venerandas.</p>
-
-
-<h3>O rei da Ericeira</h3>
-
-<p>Vou transcrever do <i>Portugal cuidadoso e lastimado</i> do padre José
-Pereira Bayão (paginas 732-734), a narrativa do caso estranho do rei
-da Ericeira; um dos varios episodios da nevrose, naturalissima,<span class="pagenum" id="Page_165">[Pg 165]</span> que
-assaltou o povo portuguez nos primeiros annos da dominação hespanhola.
-Este, a meu ver, é dos que melhor representa o estado ancioso e
-tumultuario das almas; ha n’elle o mysticismo, o vago anceio, o
-estonteamento no começo, inconsciente, ingenuo; depois a exploração
-d’esses sentimentos pelo espirito patriotico, e pela influencia do
-meio, que leva a incidentes comicos, á desordem, á loucura sinistra,
-ao crime; logo, naturalmente, á intervenção da politica dominante, á
-força, até ao final do morticinio em massa, e do supplicio tremendo.</p>
-
-<p>==Succedeu isto no anno de 1584, no mez de julho, e podendo servir de
-exemplo (refere-se ao caso do rei de Penamacor) para emenda de outros
-taes atrevimentos, foi ao contrario; pois logo no anno seguinte se
-viu outro ainda mais estravagante pelos mesmos termos, fingindo-se
-ser el-rei D. Sebastião, um moço chamado Matheus Alvares, natural da
-ilha Terceira, filho de um pedreiro, o qual saindo-se do noviciado dos
-frades arrabidos do mosteiro de S. Miguel junto á villa de Obidos,
-se fez tambem hermitão em uma ermida de S. Julião, junto á villa da
-Ericeira. Aqui fazia uma vida ao parecer mui penitente, e se introduziu
-a ser rei antes que ninguem o imaginasse; disciplinava-se fortemente
-onde pudesse ser ouvido, e dizia com triste lamentação: <em>Portugal,
-Portugal, que é feito de ti, que eu te puz no estado em que estás, oh!
-triste de ti Sebastião, que toda a<span class="pagenum" id="Page_166">[Pg 166]</span> penitencia é pouca em respeito
-de tuas culpas</em>. Começaram alguns a crer, que elle era el-rei; e
-entre elles um lavrador rico chamado Pedro Affonso; juntaram-se até
-oitocentos homens, de que se fez general, accrescentando ao seu nome
-o apellido de Menezes; poz o fingido Rei Casa Real, e fortificou-se,
-casando-se com uma filha do dito Pedro Affonso, moça bem parecida,
-coroando-a como Rainha, com uma corôa de prata de uma imagem de Nossa
-Senhora, fazendo marquez de Torres Vedras a seu pae, e conde de
-Monsanto, Senhor de Cascaes, e alcaide mór de Lisboa.</p>
-
-<p>E assim fazia outras mercês, passando provisões e alvarás com
-solemnidade de sellos reaes, occultando-se sempre, e mostrando-se a mui
-poucos por grande favor, aos quaes contava algumas particularidades da
-batalha, para os ter mais seguros n’esta presumpção, e mandando recado
-a D. Diogo de Sousa, general da armada, que lhe fosse fallar; tanto que
-soube, que elle perguntára ao mensageiro pelo signal, que lhe déra,
-receando-se que se descobrisse o engano, ou por outra alguma razão, que
-não consta, lhe tornou a mandar dizer, que não fosse; e comtudo indo
-lá, lhe não quiz fallar, dizendo, que o fazia assim porque não ia só.</p>
-
-<p>Escreveu depois ao cardeal Alberto, que lhe desoccupasse o seu paço, e
-se fosse embora para Castella: porque já era tempo de que abrissem os
-olhos tantos enganados.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_167">[Pg 167]</span></p>
-
-<p>Foi preso o embaixador; e soltando-o logo cobrou mais forças a
-opinião de ser elle el-rei, por onde, o que assim se fingia se foi
-ensoberbecendo, e fazendo alguns graves castigos em todos aquelles,
-que o não queriam reconhecer, e lhe negavam a obediencia, sendo
-executor o marquez, seu sogro, que era homem cruelissimo, e deshumano;
-e agora muito mais com a vangloria dos titulos que lhe foram dados, e
-considerar-se sogro de el-rei.</p>
-
-<p>Vendo o Cardeal Governador que se devia atalhar tão grande desordem
-antes que passasse a mais, deu ordem ao corregedor de Torres
-Vedras para que os fosse prender, e querendo-o executar foi morto
-arrebatadamente com os seus officiaes por aquella gente, que os seguia:
-e sendo isto reprehendido por Gaspar Pereira, ouvidor d’aquella
-comarca, o mataram tambem; e a um filho, e a um sobrinho; saqueando-lhe
-a casa como em guerra justa; passando já n’este tempo de mil a gente
-asoldada que o seguia: vindo todos a comprar polvora e bala á cidade,
-diziam publicamente, que era para acompanhar a el-rei D. Sebastião.</p>
-
-<p>Pelo que, e porque não crescesse mais o damno, e insolencia, foi
-necessario acudir com mais forte remedio. Deu-se ordem ao corregedor da
-côrte, e se mandáram ajuntar todos os ministros da justiça com os seus
-officiaes, e com quatrocentos soldados castelhanos bem armados, foram
-fazer a diligencia; e chegando perto do couto do novo rei, ficaram
-os soldados embuscados em um valle, indo a<span class="pagenum" id="Page_168">[Pg 168]</span> justiça adiante, e sendo
-descoberta pela guarda, arremeteram a elles como lobos.</p>
-
-<p>Fugiu a justiça com muita pressa até os irem metter na embuscada,
-donde saindo com furia lhe deram uma carga de tiros com que mataram e
-feriram a muitos dos fautores do rei, fazendo fugir aos outros pelos
-montes e valles; foi preso o rei, e alguns do seu conselho, e trazido
-a Lisboa fez confissão, de que não era el-rei, nem pretendia sel-o, e
-que só intentava dar sobre Lisboa com as armas dos seus seguidores, na
-madrugada do dia de S. João, e vencida ella, como esperava, pertendia
-dizer ao reino que já o havia posto em liberdade para que fizessem rei.
-Foi enforcado em 14 de junho do dito anno, cortando-lhe primeiro a mão
-direita no Pelourinho, onde ficou pendurada, por passar provisões e
-alvarás falsos, fingindo-se el-rei D. Sebastião; a cabeça esteve um mez
-pregada na forca, e os quartos foram postos pelas portas da cidade; e
-no dia seguinte enforcaram e esquartejaram os outros, que foram presos
-com elle, um que fazia o officio de védor, que seria de quarenta annos,
-e outro que era pagem privado, que seria de edade de vinte annos.</p>
-
-<p>Na Ericeira foram enforcados vinte homens que eram deste bando, muitos
-foram lançados a galés; e Pedro Affonso, marquez e conde general, e
-secretario do triste rei, fugiu no dia da prisão dos mais; mas pouco
-depois foi preso, fazendo-lhe em Lisboa o mesmo, que tinha feito ao
-seu soberano,<span class="pagenum" id="Page_169">[Pg 169]</span> e os pobres moradores d’aquelle contorno despovoaram a
-terra com medo, por terem seguido a voz do rei enganoso. Foram tambem
-presos e castigados muitos, que enganados o favoreciam de Lisboa, e
-lhe mandavam dinheiro, e peças de valor, como foram Antonio Simões,
-escrivão dos armazens, e Gregorio de Barros, ourives d’el-rei, pagando
-miseravelmente o zelo, com que cuidavam servir ao seu rei.</p>
-
-<p>Parece que foi o intento de mandar chamar D. Diogo de Sousa, saber
-delle se era certo, como se dizia, que el-rei veiu na armada, porque
-sendo assim, e sabendo delle onde estava, e se estava prompto para
-entrar a governar, ajustariam ambos a fórma de occupar Lisboa e
-desoccupal-a dos castelhanos com aquella sua gente, e entregal-a
-ao dito rei, com o que ficava restituido ao seu reino, e aquelles
-servidores seriam bem gratificados por elle e agradecidos de todo
-o reino. Isto se colhe da sua confissão, e outra cousa se não deve
-imaginar, pelos descaminhos ou impossibilidades, a que se expunha por
-todas as vias; o que qualquer mediano entendimento conheceria mui bem.==</p>
-
-
-<h3>Antiguidades romanas e medievaes</h3>
-
-<p>Na Ericeira e seus arredores não vi antiguidades romanas; nem um
-signal, nenhuma pedra empregada em muro velho que denunciasse lavor de
-alta antiguidade; o trabalho agricola tem sido<span class="pagenum" id="Page_170">[Pg 170]</span> grande, o mar sabe Deus
-quantas escarpas tem demolido, elle que todos os dias está destruindo
-e abatendo os rochedos da costa. Mas n’um aro de raio de seis a dez
-kilometros surgem vestigios notaveis. As inscripções lapidares romanas
-são conhecidas; a região a norte de Cintra e Collares é rica de taes
-letreiros. Antiguidades pre-romanas são sabidas tambem. Não podemos
-esquecer o collar da Penha Verde, a grande joia prehistorica (que
-hoje está ennobrecendo, ao que me dizem, um muzeu inglez), o famoso
-dolmen de André Nunes ou Adrenunes, monumentos que provam a existencia
-por estes sitios de antiquissima civilisação pre-romana. Estacio da
-Veiga estudou as antiguidades d’estes sitios; no <i>Corpus</i> estão
-transcriptas em grande numero as inscripções romanas. Na <i>Cintra
-pinturesca</i> (pag. 192), se diz: «encontram-se com frequencia urnas
-e lapides sepulcraes em varios sitios especialmente em S. Miguel de
-Odrinhas, Morelino, Montelavar, etc.»</p>
-
-<p>D’essas veneraveis pedras sepulcraes muitas desappareceram, ainda porém
-existem algumas importantes. Para as ver dei uns passeios a Odrinhas e
-á quinta dos Chãos.</p>
-
-<p>Odrinhas fica a meio caminho entre Cintra e Ericeira. Ha ahi uma venda
-onde costumam parar os carros para descanço; abre-se em frente d’essa
-venda um caminho de aldeia que leva á egreja, S. Miguel de Odrinhas,
-a menos de um kilometro. É filial da parochia de S. João das Lampas.
-A<span class="pagenum" id="Page_171">[Pg 171]</span> porta principal diz a poente, uma alpendrada segue na frente e no
-lado sul; atrás da capella mór um espaço que serviu largos annos de
-cemiterio; muitas pedras de cabeceira nos seus logares, tendo nos
-circulos superiores esculpidas cruzes de varias fórmas, sinos saimões,
-e estrellas de seis pontas. Encostado á egreja um ediculo do seculo
-XIV. Junto da pequena porta lateral uma casa, talvez de antigo ermitão,
-a que chamam a casa dos ratos, que serve para metter medo a rapazes
-máos; sob o alpendre a grande mesa de pedra para as offertas. Ao norte
-da egreja, uma construcção circular, isolada, em ruina, mostrando ainda
-a nascença da abobada, feita de pedra miuda, vestigios de porta, e um
-vão na parede, que parece, seria destinado a ter um armario.</p>
-
-<p>—É casa de mouros, disse alguem.</p>
-
-<p>—Era onde guardavam os ossos tirados das covas do cemiterio, o
-ossuario, disse outro.</p>
-
-<p>—Dizem que está ahi um thesouro escondido, disse uma mulher.</p>
-
-<p>Parece-me que a causa principal da ruina é esta crença, com a esperança
-de achar o metal precioso têm nocturnos exploradores arruinado o
-singular edificio. E eu achei no montão de pedregulhos, e fiz destacar,
-em marmore lavrado, nada menos que a pedra superior de uma ara romana
-com seus ornatos, volutas e folhagens, de bom estylo, com a grande
-cavidade destinada ao fogo. No terreno proximo, nos velhos muros de
-pedra<span class="pagenum" id="Page_172">[Pg 172]</span> solta, vi tijolos pequenos, fragmentos de grossas telhas, e
-ainda mais cabeceiras de sepulturas com suas cruzes e saimões. É unico
-o que ali está, n’aquelle modesto recinto onde se conservam vestigios
-antigos, de epocas entre si muito afastadas.</p>
-
-<p>Sob o alpendre, solta, a grande pedra com lettreiro romano onde se
-mencionam individuos da tribu Galeria, e entre elles o de Elio Séneca.
-Dentro da egreja, á direita da porta principal, a enorme lapide, fixa,
-de Plocio Capito. Dizem que era de homem santo, e raspam-na para com
-o pó curar enfermidades. Pelo visto temos aqui um exemplo nitido de
-cultos continuados no mesmo local desde a antiguidade romana até agora.
-Mas ha lendas, velhas tradições aqui. Disse-me um homem que esta egreja
-era tão importante em tempos antigos que a gente de Santo Isidóro,
-Paço d’Ilhas e Quinta dos Chãos vinha enterrar os seus mortos n’este
-cemiterio, fazendo a longa caminhada de quatro leguas. E logo outro
-companheiro, um tanto a medo, me perguntou se eu julgava possivel que
-uma mulher fosse capaz de trazer ás costas aquella grande pedra, a do
-Séneca, desde Santo Isidóro, com o cadaver do filho. É lenda mui velha
-que eu vim encontrar agora nesta ultima terra da Europa.</p>
-
-<p>Santo Isidóro é egreja parochial que fica a uma legua além da
-Ericeira; fica-lhe a pouca distancia a quinta dos Chãos, que desperta
-a curiosidade pelo seu isolamento, a sua represa d’aguas,<span class="pagenum" id="Page_173">[Pg 173]</span> os pequenos
-aqueductos, pateo, jardim, casa de residencia e officinas, um bello
-exemplo de habitação rural, modificada pelo tempo e variedade de
-usos, mas no todo lembrando uma antiga villa rustica. Ahi, n’uma
-varanda sobre um arco, servindo de meza, vi a bella lapide sepulcral
-dos Terencianos; e no jardim ha uma pia que me pareceu uma urna ou
-sarcophago romano, coberto em parte de cal. Segundo uma tradição
-a ribeira de Paço d’Ilhas que corre no profundo valle proximo era
-antigamente navegavel, e um velho paredão arruinado seria o resto do
-caes.</p>
-
-
-<h3>A costa</h3>
-
-<p>Da ponta da Lamparoeira corre a costa de norte a sul, por mais de 8
-milhas, quasi toda de rocha escarpada até á foz da ribeira do Porto. A
-1,5 milhas a N. da dita foz fica a Ericeira. A sul da villa uma pequena
-enseada com boa praia, a norte outra praia; ambas separadas pela grande
-massa de rochedos do portinho onde entram os barcos de pesca. Este
-porto é desabrigado dos ventos NNE a SSO por O.</p>
-
-<p>Ha duas luzes de enfiamento, branca e vermelha, a 37,ᵐ7 de altitude.</p>
-
-<p>O monumento de Mafra com suas elevadas torres e zimborio, a 270 metros
-sobre o nivel do mar, serve de reconhecimento e marca para este porto,
-avistando-se a 30,5 milhas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_174">[Pg 174]</span></p>
-
-<p>Da foz da ribeira do Porto a costa a S 25° O, até ao cabo da Roca, a
-10,3 milhas, quasi toda escarpada e elevada, apenas rota na praia das
-Maçãs na foz da ribeira de Collares, e na praia Grande a S d’esta. No
-Focinho da Roca o rochedo levanta-se a mais de 125 metros; sobre essa
-escarpa está o pharol da Roca, a 137 metros acima do nivel do mar. A
-meia milha ao mar do cabo está a pedra d’Arca: ha outros recifes que
-tornam perigosa a approximação.</p>
-
-<p>A serra de Cintra eleva-se sobranceira ao Cabo, correndo para o
-interior na direcção de ENE. A sua maior altitude é no seu estremo E no
-castello da Pena, que tem 529 metros de cota.</p>
-
-<p>O convento da Peninha, no extremo SO, está a 488 metros, e deve
-avistar-se a 42 milhas. A serra de Cintra é ponto excellente para
-reconhecimento da costa. Os pescadores da Ericeira dão nomes ás
-saliencias principaes da serra, e pelo enfiamento e aspecto marcam
-approximadamente a sua posição no mar.</p>
-
-<p>A pesca na Ericeira chegou a grande decadencia, parece querer
-levantar-se agora. Antigamente, ha 50 annos, não só a pescaria tinha
-ali grande importancia, mas a Ericeira era um viveiro de homens do mar;
-chegou a ser celebre pelos seus maritimos pedidos para os melhores
-navios da nossa marinha mercante. Eu conheço a Ericeira ha quatro annos
-apenas, em rapidas visitas na<span class="pagenum" id="Page_175">[Pg 175]</span> época dos banhos. Ha quatro annos havia
-uma armação, em frente do porto, e os botes de pesca, as focinheiras,
-pouco iam ao mar. Não havia pescada, muitos dias só havia sardinha e
-carapau apanhado na armação. Agora ha duas armações, e todos os dias
-vão barcos ao alto, que por vezes trazem muito peixe. A exploração da
-lagosta tambem augmentou.</p>
-
-<p>Os pescadores das armações são quasi todos estranhos á Ericeira; e
-tem vida áparte dos naturaes da villa. É no <em>norte</em>, quer dizer
-no bairro do norte da villa, em casas abarracadas, caiadas, algumas
-com o chão forrado de plantas aromaticas, que habitam os pescadores.
-Casas pobres, aceiadas, com estampas de navios e santinhos nas paredes.
-A grande embarcação de pesca, antiga, era a <em>rasca</em>, que eu vi
-pintada em quadros de milagres, na egreja de Santa Martha.</p>
-
-<p>Era um barco seguro e veleiro, de borda alta, pôpa redonda e prôa
-arrufada; convez corrido de vante á ré, cinginda em volta do costado
-por um espesso cinto com forte pregaria, apparelhando com quatro vélas
-latinas triangulares, traquete, véla grande, véla de prôa, e catita;
-com tripulação numerosa para a manobra.</p>
-
-<p>O mastro de traquete pendia para vante, o de ré era vertical, da prôa
-lançava um páo para amurar a véla de prôa, á ré encostado á amurada um
-pequeno mastro para a verga da catita, que caçava no laes de um páo
-deitado pela popa servindo de<span class="pagenum" id="Page_176">[Pg 176]</span> retranca: singrava veloz, chegando-se
-muito ao vento, e aguentando-se bem nas borrascas.</p>
-
-<p>A focinheira é typo unicamente usado na Ericeira, para a pesca
-costeira, e que vae tambem ao largo. Tem um mastro á prôa que apparelha
-com um latino; a prôa e a pôpa da pequena embarcação teem fórma
-especial, e no fundo chato e arqueado tem umas reguas ou reforços
-longitudinaes. É differente da chata de Cascaes ainda que se lhe
-avisinha.</p>
-
-<p>Tenho visto na Ericeira sardinha, fataça, carapau, faneca, goraz,
-pargo, capatão, pescada, peixe espada, peixe gallo, cação, moreia,
-arraia, polvo e lagosta.</p>
-
-<p>Uma vez entrou na armação um cardume de grandes pargos e capatões; e eu
-vi na pequena praia a fila de oitenta grandes peixes vermelhos de que
-os menores tinham 7 ou 8 kilos.</p>
-
-<p>Este anno foi fisgado de uma focinheira um grande peixe agulha que
-pesou nove arrobas.</p>
-
-<p>Havia muitos annos que não apparecia um peixe agulha na Ericeira, e é
-trivial em Setubal.</p>
-
-<p>Quem visitar reparando os mercados de peixe na Ericeira, Cascaes,
-Setubal nota singulares differenças; nesse bocado de oceano que se
-avista do Cabo da Roca, ha regiões definidas, onde apparecem ou não
-determinadas especies de peixe.</p>
-
-<p>O generoso mar dá ainda outro producto que elle traz do seu seio e vem
-depôr, arrumar, na areia da praia; chamam-lhe sargaço e moliço ou<span class="pagenum" id="Page_177">[Pg 177]</span>
-golfo; são as algas, os corriões, bodelha, verdelho e sebas, que o
-agricultor utilisa para adubo.</p>
-
-<p>Em todas as praias aqui d’esta costa, Baleal, Peniche de cima e de
-baixo, Portinho da areia, Consolação, Seixal, Atalaya, Ribamar, Porto
-novo, Santa Cruz e Assenta andam os sargaceiros apanhando os vegetaes
-arrojados á areia, escolhem um pouco, carregam, formam medas, que
-entram em fermentação e se transformam em excellente adubo.</p>
-
-<p>Em outros pontos do paiz a rapeira é uma furia louca que prejudica a
-creação do peixe, mas aqui não se dá esse caso, os sargaceiros não
-chegam para arrecadar a massa enorme de algas que o mar lhes offerece.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Banheiros.</i>—Praia do sul: Antonio Garamanha, Braulio da Silva,
-Francisco Piloto, Francisco Jorge Alturas e Servando da Silva.</p>
-
-<p>Praia do norte: Agostinho Alves Camacho, José Alves Camacho, José Coco
-e José d’Almeida Rato.</p>
-
-<p>As praias são muito frequentadas nos mezes de agosto, setembro e
-outubro. Ha duas series de banhistas: a mais tardia é a que vem depois
-da vindima.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_178">[Pg 178]</span></p>
-
-<p>Bons typos estes banheiros, nadadores de primeira ordem, valentes sem
-precipitação.</p>
-
-<p>Na praia do norte o mar bate um pouco mais; na do sul a força da vaga
-é em parte quebrada por uma restinga que surge a pouca distancia, 80 a
-100 metros da praia de areia.</p>
-
-<p>Na praia do norte em manhã de vaga um tanto rija vi espectaculo raro;
-os banhistas não tomaram banho, e os banheiros resolveram ir brincar
-nas vagas; brincadeira um tanto forte.</p>
-
-<p>Eram tritões mythologicos, peixes não, porque estes não caem em taes
-experiencias; por vezes sumiam-se no concavo da vaga proxima a desabar,
-logo appareciam, o corpo meio fóra da agua, na cabelleira cristallina,
-logo destacavam na branca espumarada fervente.</p>
-
-<p>É arriscado, ha movimentos enrolantes na vaga d’arrebentação, e ai do
-que se deixar enrolar pela onda.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>No termo da Ericeira, na encosta voltada ao mar, ha grande numero de
-pequenas propriedades, e muitos muros de pedra solta. Fazem esses muros
-para arrumar a pedra e tambem para defeza contra a rajada do mar, e não
-bastam; fazem ainda sebes de urzes, de ramos de pinho, de caniço;<span class="pagenum" id="Page_179">[Pg 179]</span> e
-nesses canteiros vi cepas boas, com bellos cachos.</p>
-
-<p>A phylloxera estragou os vinhedos, mas nos ultimos annos teem
-replantado; nas chans da ribeira de Chileiros ha vinhas de importancia.
-Para os lados da Fonte dos Nabos, Santo Isidoro, Paço d’Ilhas vi
-culturas mimosas. Na Ericeira só as flexiveis hastes das araucarias
-resistem á furia do vendaval. Ás vezes quando no temporal as grandes
-vagas estouram nas arribas passam flocos de espuma por cima da povoação.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Nomes de barcos.</i>—S. Joaquim, vulgo o Bailharito, Feliz Raul,
-Boa Viagem, Flor da Ericeira, Pombinho, etc.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Pombos-bravos.</i>—São raros nesta costa; numa época vi dois
-casaes que pousavam nas altas rochas, sob a villa. Pouco adiante de S.
-Sebastião tenho-os visto tambem, poucos. São pardos-escuros, esguios,
-muito desconfiados; creio que é na costa algarvia, Sagres, S. Vicente,
-que apparecem mais; na costa da Arrabida são raros.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Pharoes.</i>—Berlenga. Começou em 1840. Alcance 30 milhas.</p>
-
-<p>Cabo Carvoeiro. Data de 1790. Alcance 9 milhas.</p>
-
-<p>Ericeira. Luzes de direcção, anterior branca, posterior vermelha.
-Começaram em 1864. Avistam-se a 5 milhas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_180">[Pg 180]</span></p>
-
-<p>Cabo da Roca. Data de 1772. Alcance 30 milhas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Soccorros a naufragos.</i>—Dizem que existe um posto montado, com
-espingarda Delvine para lançamento do cabo de vae-vem.</p>
-
-<p>De barco salva-vidas nunca ouvi fallar, nem de qualquer melhoramento
-do acanhado portinho entre bravias rochas, muito pittorescas e
-perigosissimas.</p>
-
-<p>Numa das ribas vi uma caixa verde com letreiro branco, assim:</p>
-
-
-
-<p class="center"><span class="smcap">Secorros</span></p>
-
-<p class="center"><span class="smcap">a</span></p>
-
-<p class="center"><span class="smcap">naufragus</span></p>
-</div>
-
-<p>Deve ser orthographia official. (Este anno, 1905, vi o letreiro já
-emendado).</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>O facho do peixe.</i>—Se o barco que vem do alto, ou da armação,
-traz peixe, arvóra á prôa o <em>facho</em>, que é uma japona ou oleado de
-marujo; logo que das arribas avistam o reclamo descem homens e mulheres
-com as gigas e burrinhos para transporte da mercadoria.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Aroeira.</i>—É com o suco da aroeira que tingem as redes. A planta
-verde é moida num lagar, por galgas movidas a braço. Na Ericeira vi um<span class="pagenum" id="Page_181">[Pg 181]</span>
-lagar, que não trabalhava. É em Ribamar que hoje moem mais. Em Santo
-Isidoro encontrei eu umas saloias com seus burrinhos carregados de
-aroeira, que iam para Ribamar.</p>
-
-<p>E vi tambem ramos de aroeira ornamentando carros carregados de tojo; o
-verde viçoso da aroeira alegrando o tom escuro do tojo secco.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Phosphorescencia.</i>—Na costa da Ericeira o mar apparece algumas
-vezes phosphorescente; acho isto notavel; porque no littoral portuguez
-em muitos sitios nunca se dá este phenomeno, na costa do Algarve é
-rarissimo.</p>
-
-<p>A gente do mar chama-lhe <em>ardencia</em>. Nas noites de 24 e 25 de
-agosto de 1900 o espectaculo foi admiravel. As grandes ondas luminosas,
-de brilho e intensidade differentes, produziam effeito phantastico.
-Durou muitas horas o esplendido aspecto do mar, especialmente na
-arrebentação.</p>
-
-<p>Em setembro de 1902 tambem houve <em>ardencia</em>, mas fraca e
-durando apenas umas tres horas. No livro de A. F. Simões: <i>Cartas
-da beira-mar</i>, descreve-se um caso de <em>ardentia</em> ou
-<em>ardencia</em> observado por elle na Figueira da Foz no mez de
-setembro de 1864.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Cartas nauticas.</i>—Conversando uma vez a respeito de antigas
-cartas nauticas, indicaram-me uma senhora que possuia algumas, de
-parentes<span class="pagenum" id="Page_182">[Pg 182]</span> que tinham navegado em largas viagens. Eu pedi o favor de as
-vêr.</p>
-
-<p>Um dia, na sua casa de jantar, escolhida por ser mais facil na grande
-meza desdobrar as cartas maiores, a senhora D. Maria disse á serviçal
-que fosse lá acima, ao quarto do Oratorio, buscar as pastas e os rolos,
-forrados de linhagem.</p>
-
-<p>A creada voltou ajoujada porque era pesado o fardo da papelada. Eram as
-cartas que tinham servido ao avô, ao pae, aos tios e aos irmãos na vida
-maritima, porque durante gerações, n’aquella familia, fôra tradicional
-a vida do mar; ora de pilotos, ora de capitães de navio, muitos dos
-parentes daquella senhora fizeram longas viagens. As cartas usadas,
-amarelladas, conservavam o cheiro a breu; tinham as rotas marcadas
-a lapis, em linhas onduladas ou em zig-zagues, com pequenas cruzes
-e datas, nas mudanças dos rumos ou marcando singraduras; viagens da
-Ericeira para Larache ou Casa Branca na costa marroquina, á Terra Nova,
-á Irlanda, ou de Lisboa para o Brazil, Açores, Madeira, por essa costa
-d’Africa fóra, ou entre o Funchal e Demerára.</p>
-
-<p>Ha coisas d’estas, ás vezes; começa-se por simples curiosidade,
-entre phrases banaes e logares communs, e de subito surge o drama.
-Se eu visse aquellas cartas n’uma loja nada sentiria, mas lentamente
-mostradas pela santa mulher! Eu ia dizendo o que via e lia, e ella
-ia lembrando. A carta passou a ser um documento vivo. E quanto mais<span class="pagenum" id="Page_183">[Pg 183]</span>
-recordava mais subia a commoção, avivavam-se saudades, as lembranças de
-anciedades passadas, as longas espéras de noticias. Certa cruz marcava
-um grande golpe de mar, outra o sitio em que faltou agua de beber, e a
-comida; esta agora um incendio a bordo.</p>
-
-<p>De uma vez não houve noticias do parente nem do navio por mais de seis
-mezes.</p>
-
-<p>Eu dobrava ou enrolava lentamente a carta, e passava-se a outra. Agora
-era a que servira a bordo do palhabote onde o irmão ia por piloto na
-sua primeira viagem, e surgiam outras recordações.</p>
-
-<p>Desdobrava-se nova carta, era a de um segundo tio, capitão do navio
-tal, que andou trinta annos no mar, soffrendo vendavaes e calmarias, e
-terminou em naufragio em longinqua paragem.</p>
-
-<p>E assim estivemos a ver cartas, algumas horas, e a lembrar anciedades
-passadas; saudades, receios, que é o manjar de quem tem parentes
-queridos no mar. Depois a serviçal foi levar, com muita cautella, como
-cousas sagradas, a pasta e os grandes rolos para o quarto de cima, ao
-pé do Oratorio.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Os primeiros christãos.</i>—As duas inscripções romanas que ainda
-hoje felizmente se conservam em S. Miguel de Odrinhas teem servido de
-base a dissertações de auctores considerados sobre o apparecimento<span class="pagenum" id="Page_184">[Pg 184]</span>
-do christianismo n’esta região a norte de Lisboa. Principalmente a do
-Seneca.</p>
-
-<p>O nosso D. Rodrigo da Cunha na <i>Historia ecclesiastica da egreja de
-Lisboa</i>, disserta sobre a pregação de S. Pedro de Rates pela beira
-mar até Cintra, e dá muita attenção ás duas inscripções romanas.</p>
-
-<p>A razão de julgar que taes inscripções commemoram pessoas christans
-é porque lhes falta o D. M. S. (consagrado aos deuses manes), inicio
-vulgar dos lettreiros pagãos.</p>
-
-<p>Base ou principal ponto de partida a respeito da existencia de
-christãos logo no 1.ᵒ seculo, neste extremo da peninsula, é a chronica
-de Flavio Dextro, que diz: <i lang="la" xml:lang="la">Lucius Seneca Centurio verus christianus
-Sintriae occumbit</i>. (<i>Ann. Chr.</i> 50).</p>
-
-<p>Numa edição de 1619, vê-se <i lang="la" xml:lang="la">Senticae</i>, emendado para
-<i lang="la" xml:lang="la">Sintriae</i> na edição de Leão (Lugduni, 1627 pag. 103).</p>
-
-<p>Ora esta chronica de ha muito está mal afamada, mas percorrendo-a quasi
-me convenço de que merece alguma attenção; parece-me um texto antigo
-muito alterado e interpolado.</p>
-
-<p>Ambrosio de Morales, continuador de Floriam de Ocampo, na <i>Coronica
-general de Hespana</i> (Alcalá de Henares, 1575, 2.ᵒ vol. pag. 245 e
-segg.) consagra um capitulo a esta questão:==<i lang="es" xml:lang="es">El tiempo del Emperador
-Neron con todo lo de Seneca</i> (Lib <span class="allsmcap">IX.</span> C. 9) e reproduz
-a inscripção grande de Odrinhas. Não acho base alguma para affirmar
-a existencia<span class="pagenum" id="Page_185">[Pg 185]</span> de christãos logo no primeiro seculo no occidente da
-peninsula; porque é certo que os lettreiros sepulcraes de individuos
-christãos começam muito mais tarde; lendas, tradições devotas, sim; mas
-é difficil tambem marcar datas á creação de lendas piedosas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>Bolos.</i>—As confeiteiras fazem cavacas, pão de ló, esquecidos,
-suspiros, biscoitos e marmelada. Tambem fazem queijadas, inferiores
-ás de Cintra. A região da queijada é outra, vae de Cintra a Bemfica,
-conservando o mesmo typo. Tambem ha queijadas no Alemtejo, excellentes,
-mas de esthetica mui diversa. O dominio do pão de ló é ao longo da
-costa maritima ao norte do Tejo, e o da cavaca quasi na mesma região,
-variando de fórma e densidade, de villa para villa; quasi se póde dizer
-cada terra com sua cavaca.</p>
-
-<p><i>S. Antonio.</i>—É uma pequena ermida, toda caiada, que está sobre a
-muralha da arriba do porto.</p>
-
-<p>Está ahi na parede do occidente voltada ao mar uma cruz formada por
-azulejos, e tambem em azulejos as imagens de Nossa Senhora da Boa
-Viagem e a de Santo Antonio, e data 1789.</p>
-
-<p>No nicho ardia d’antes uma grande lanterna, guia dos pescadores, e
-ainda lá está a sineta que toca quando ha nevoeiro na costa.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_186">[Pg 186]</span></p>
-
-<p><i>Egreja de S. Pedro</i>.—Foi restaurada em tempo de D. João v. As
-pinturas do tecto teem o caracter d’essa época. O cruzeiro ante a porta
-principal está datado de 1782. O prior Manuel Maria Ferreira fez obras
-na egreja, e o arcaz da sacristia em 1660.</p>
-
-<p>Creio que a obra d’arte mais antiga que existe nesta egreja é a pequena
-estatua de S. Pedro, em marmore, com o seu livro e grande chave, que
-está sobre a porta lateral. Proximo a esta porta está o seguinte
-letreiro:</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>—Aqui jazem José Pereira da Cruz e sua mulher Eulalia da Costa e a
-filha d’estes Maria Rosa e seu marido o professor Antonio Luiz Delgado
-e alguns filhos d’estes, entre elles o padre Octaviano Augusto Pereira
-Delgado primeiro e principal promotor do acrescentamento e reforma
-d’esta egreja o qual pede por esmola se compadeçam das almas dos que
-aqui jazem, 1872.—</p>
-
-<div class="blockquot">
-
-<p>Segundo o recenseamento official tem esta freguezia 737 fogos, com
-2:519 habitantes.</p>
-</div>
-
-<p><i>Santa Casa da Misericordia.</i>—Foi fundada a irmandade d’esta
-Misericordia em 1678.</p>
-
-<p>O Compromisso actual foi approvado por alvará de 4 de outubro de 1886.</p>
-
-<p>O antigo compromisso era de 7 de julho de 1697.</p>
-
-<p>Capital 34:650$000 em inscripções.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_187">[Pg 187]</span></p>
-
-<p>Capital 4:500$000 em acções do Banco de Portugal e da companhia das
-Lezirias.</p>
-
-<p>Na média entram no hospital uns 70 doentes, annualmente.</p>
-
-<p>Ha pouco teve um legado importante, do sr. Fialho, cavalheiro
-respeitabilissimo da localidade.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>S. Julião.</i>—É uma ermida toda branca, com seu alpendre,
-erguida na escarpa maritima, a uns tres kilometros a sul da Ericeira.
-Celebra-se ahi uma festa annual, em setembro, com arraial, a que
-concorre muita gente dos povos mais visinhos. Proximo do pequeno templo
-ha casas para os romeiros, para um posto da guarda fiscal, e para venda
-das offertas.</p>
-
-<p>A disposição da ermida e seus annexos leva-nos a tempos mui antigos. A
-influencia do convento de Mafra tambem ali chegou, e algumas reparações
-teem o cunho do seculo XVIII.</p>
-
-<p>A porta da ermida tem a data 1768.</p>
-
-<p>Proximo de S. Julião ha uma fonte milagrosa. Tem duas bicas, que deitam
-aguas de nascentes diversas, de modo que teem sabôres varios. E seus
-azulejos com as imagens de <i>S. Julião e Santa Basilissa</i>, e a data
-1788.</p>
-
-<p>Teem virtude estas aguas para doenças de olhos, e outras, para todas
-creio eu, mas é preciso beber, ou lavar-se com as duas aguas. São
-complementares.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_188">[Pg 188]</span></p>
-
-<p>Por occasião da festa foram muitas pessoas beber das duas aguas,
-outras lavar os olhos nas duas pias, outras com bilhas; mas a virtude
-principal das duas aguas combinadas é contra as sezões.</p>
-
-<p>No arraial de S. Julião vendiam-se poucos comestiveis: bolos de S.
-Julião, fartes, queijadas, melões e peras, pevides, favas torradas.</p>
-
-<p>Os fartes ou bolos de S. Julião são feitos de massa de trigo com
-assucar, me pareceu, e alguma canella. São bolos locaes que segundo me
-affirmaram só se fabricam por occasião da festa.</p>
-
-<p>Vi ahi algumas portas com fechadura especial composta de uma haste
-grossa, com sua travinca, e que se abre por meio de um páosinho de
-feitio vario.</p>
-
-<p>Na Ericeira tambem encontrei essa fechadura que eu não conhecia. Um
-popular explicou-me:==isto é fecho com cavilhas e chaveta.</p>
-
-<p><i>As pedras de mysterio em S. Julião.</i>—São umas lapides bem
-trabalhadas com os nomes de S. Julião, S. Basilisa, e Ave Stella
-matutina, e outras phrases piedosas, dispostas caprichosamente.</p>
-
-<p>Assim <i>Juliam, Basilissa e matutina</i>, em caracteres capitaes
-muitas vezes repetidos enchem quadrados tendo no centro as iniciaes
-J. B. e M. e achando-se a palavra lendo para qualquer lado, até aos
-vertices da figura.</p>
-
-<p>Proximo da ermida ha um logar, o fojo, grande fenda natural da escarpa,
-onde se deu um milagre; ahi numa lapide lavraram um monogramma<span class="pagenum" id="Page_189">[Pg 189]</span>
-que deve significar <i>Mater Christi</i>. E no angulo do alpendre,
-superiormente, um cubo de marmore com meridiana muito curiosa.</p>
-
-<p>Algum frade engenhoso fez aquelles quebra-cabeças, para maravilha dos
-romeiros. A esta ermida se liga a historia do rei da Ericeira.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>A bruxa da Arruda.</i>—A celebre bruxa costuma visitar a Ericeira
-por fins de setembro. É muito respeitada; dizem que é rica, a pobres
-não leva nada; apresenta-se com muitos oiros. Tem uma filha que já
-entende de molestias. Em geral leva 300 réis pela consulta. Receita
-quasi sempre esfregas de aguardente e papas de pão de milho ralado.
-Mas isto varia em quantidade, tempo, calôr, e no sitio do corpo. Ouvi
-tambem chamar-lhe a mulher do Casal das Neves, no termo da Arruda dos
-Vinhos.</p>
-
-<p>Nem precisa ver o doente, levam-lhe roupa do uso do enfermo, uma camisa
-ou camisola, e ella pelo cheiro conhece a molestia e logo receita.
-Costuma pousar numa casa do <em>norte</em> da villa, e a sua chegada
-consta logo entre a pobre gente que a venéra e teme.</p>
-
-<p>==Já teve questões com padres e medicos, já foi aos tribunaes, me disse
-alguem, e ficou sempre victoriosa!==</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>O brazão da Ericeira.</i>—Tenho visto representado no brazão da
-Ericeira um ouriço cacheiro, e<span class="pagenum" id="Page_190">[Pg 190]</span> outras vezes um ouriço do mar, inteiro,
-com sua armadura de espinhos, visto de lado, o que me parece mais
-logico. Na Fonte do Cabo sobre a inscripção está uma pedra esculpida
-que deve ser a representação mais antiga das armas da villa, e, se
-me não engano, quizeram ali representar a boca do ouriço maritimo,
-donde divergem séries de linhas formando cruz, e um lavor ponteado que
-allude aos espinhos, admittindo o engano ou convenção das quatro fachas
-divergentes que deveriam ser cinco se o canteiro fosse mais cauteloso.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p><i>O primeiro foral da Ericeira.</i>—Do primeiro foral da Ericeira
-guarda-se o autographo na Torre do Tombo; está publicado na integra no
-Port. Mon. Hist. na parte respectiva a foraes, pag. 620. E por esta
-razão não o transcrevo aqui. É da era 1267 que corresponde ao anno
-1229. Foi concedido por D. Fernando mestre da ordem d’Aviz: <i lang="la" xml:lang="la">Ego
-frater F. magister Avis una cum omni meo conventu do atque concedo
-populatoribus de Eyrizeira...</i> Note-se que a pronuncia local de hoje
-é Eiriceira embora toda a gente escreva Ericeira.</p>
-
-<p>Como todos os foraes das povoações da costa maritima este se refere
-a barcos, a maritimos e pescadores, á pescaria, e aos impostos
-especiaes do pescado: por exemplo aos pescadores do alto mar, e á
-<em>baleacion</em>, ou pesca da baleia, então commum a todo o mar
-português. Faz menção especial de<span class="pagenum" id="Page_191">[Pg 191]</span> congros, toninhas e golfinhos; e
-dos apparelhos de pesca, <i lang="la" xml:lang="la">bigeiro, udra et rete de costana</i>; do
-pescado fresco, recente e secco. No porto entravam mercadorias: <i lang="la" xml:lang="la">de
-tota merchandia que per mare ad portum venerit et voluerint vendere
-dent quarentena</i>. Havia revendedores de peixe: <i lang="la" xml:lang="la">de coloneiro qui
-comparar piscatum pro a revender det I denarium</i>.</p>
-
-<p>O mesmo imposto para o <em>bofon</em>, ou bufarinheiro.</p>
-
-<p>Á vista do foral a condição dos pescadores não tem variado do seculo
-XIII para cá. Os mesmos perigos, egual miseria, e a mesma incuria, a
-mesma falta de protecção.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Sentindo a brisa fortemente salgada, alargando o olhar pela magestosa
-amplidão do oceano, vem o desejo de saber alguma cousa do que se passa
-ahi, no meio aquatico, onde pullula a vida. O dr. Augusto Filippe
-Simões fez um livro bem interessante de vulgarisação scientifica com
-algumas observações pessoaes, as <i>Cartas da beira-mar</i> (Coimbra,
-1867).</p>
-
-<p>Simões era um sabio e um litterato erudito, escrevendo com muita
-consciencia. Em linguagem facil, corrente mas cuidada, descreve-nos o
-oceano,<span class="pagenum" id="Page_192">[Pg 192]</span> os seus problemas, a salsugem, os movimentos, as marés; e a
-vida que se agita n’essas aguas, a zoologia e a botanica marinhas.</p>
-
-<p>Um livro que recommendo para a temporada da Ericeira é o <i>Estado
-actual das pescas em Portugal</i>, pelo distincto official da armada,
-sr. A. A. Baldaque da Silva (Lisboa, 1892). Tem estampas coloridas
-representando peixes, crustaceos, molluscos, muitas gravuras de
-barcos e apparelhos de pesca; não olvidando a focinhada ou focinheira
-ericeirense, e a antiga rasca que passou á historia; descreve tambem a
-costa maritima, tão variada em aspectos e circumstancias.</p>
-
-<p>Recentemente vi um livro bem interessante, de sciencia moderna; é
-<i lang="fr" xml:lang="fr">L’Océan. Ses lois et ses problèmes</i>, por J. Thoulet (Paris,
-Hachette, 1904).</p>
-
-<p>Thoulet é um oceanographo que estuda o mar e sabe expôr com clareza
-as muitas questões da sciencia do mar, a oceanographia, tão moderna e
-já tão vasta. A chimica do mar, a formação de sedimentos de origens
-varias, a temperatura e a pressão nos abysmos, a formação da vaga e a
-razão das marés, as correntes, a vida nas grandes profundidades quietas
-e sem luz, apparecem-nos tratadas em largos capitulos de leitura que
-prende a attenção, sem fatigar o espirito.</p>
-
-<p>No 4.ᵒ volume das <i>Maravilhas da natureza, segundo o plano de
-Brehm</i>, obra celebre, revista e ampliada na parte relativa a
-Portugal pelo sr. dr. Balthasar Osorio, sabio lente da Escola
-Polytechnica<span class="pagenum" id="Page_193">[Pg 193]</span> de Lisboa, trata-se de peixes, em leitura facil e
-agradavel.</p>
-
-<p>Como tambem desperta a attenção o aspecto raro das arribas, das suas
-curvaturas, fendas, aberturas, cavernas, onde apparecem rochas brancas,
-vermelhas, negras, esverdeadas, cinzentas, umas cheias de fosseis,
-outras sem vestigio de vida animal ou vegetal, eu lembro a leitura no
-vol. 2.ᵒ de <i lang="fr" xml:lang="fr">La face de la terre</i> por Ed. Suess (trad. de E. de
-Margerie. Paris, 1900), do capitulo intitulado: <i>Os contornos do
-Oceano Atlantico</i>.</p>
-
-
-<h3>Pelourinho</h3>
-
-<p>O concelho da Ericeira foi extincto em 1855, e reunido a Mafra. Tinha o
-seu pelourinho.</p>
-
-<p>Certas pessoas praticas entenderam que não havendo concelho não era
-preciso o monumento municipal, e que os degráos de pedra eram bem bons;
-e aproveitaram os degráos lá para o que bem quizeram, e a columna
-partida, o capitel e o ornato superior foram enterrados. Isto foi
-por 1863. Agora (outubro de 1905), o dr. Eduardo Burnay, enthusiasta
-da branca villa, indagou o sitio onde ficaria o resto do pelourinho,
-mandou excavar, achou as pedras, e vae mandar reerguer a decorativa
-columna.</p>
-
-<p>Pela photographia que me mostrou creio que o symbolo municipal da
-Ericeira pertence ao genero<span class="pagenum" id="Page_194">[Pg 194]</span> do de Collares, ainda completo e aprumado,
-e do de Cintra ha muito desfeito, mas de que ha desenho cuidadoso.
-Sobre este caso do pelourinho de Cintra publicou recentemente o sr.
-Mena Junior uma <i>Noticia historica</i>, interessante, com estampas
-notaveis, e uma planta do Paço da villa, no <i>Boletim da Real
-Associação dos Archeologos Portugueses</i>.</p>
-
-<p>A columna do pelourinho da Ericeira tinha annel, a meio, como se vê no
-de Collares, e na estampa do de Cintra; o capitel e ornato superior são
-do mesmo desenho. Taes pelourinhos são do começo do seculo XVI, reinado
-de D. Manuel, e correspondem á grande reforma foraleira d’este monarcha.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A respeito da villa da Ericeira varios escriptos teem apparecido
-publicados, artigos de jornaes, ou revistas, ou capitulos de
-recordações.</p>
-
-<p>O sr. Eduardo da Rocha Dias no tomo 1.ᵒ e Addenda do seu valioso
-trabalho <i>Noticias archeologicas</i>, ao tratar da Ericeira,
-apresenta a bibliographia da interessante villa.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Grande serviço tem prestado á villa da Ericeira o sr. dr. Eduardo
-Burnay alcançando os meios<span class="pagenum" id="Page_195">[Pg 195]</span> precisos para a construcção da muralha
-de supporte na arriba do porto. Se esta obra tardasse haveria
-desmoronamento prejudicial á villa, á concha do porto, e á praia
-apertada onde labutam os pescadores. Actualmente ha tres armações de
-sardinha, empregando uns duzentos homens, e todo o trabalho se faz na
-breve praia onde ás vezes as companhas se embaraçam. Não está ainda
-terminada a obra, pouco falta ao que parece; o que está feito é já
-muito util.</p>
-
-<p>Muito melhorado tem sido ultimamente o caminho para a praia do sul, e,
-ao que ouvimos affirmar, vae tratar-se da rampa da praia do norte, que
-é muito linda tambem. Seria bom melhorar o caminho para Ribamar, que
-não offerece difficuldades, facilitando assim um bello passeio, util
-para os povos do sitio, e estabelecendo communicação facil e agradavel
-com a região dos pinhaes. A primeira parte da estrada de Mafra é de
-forte declive, uma ladeira de tres kilometros, incommoda para passeio.
-Assim como seria para desejar o arranjo do caminho para a Lapa da
-Serra, sitio pittoresco, accidentado, com arvoredo viçoso.</p>
-
-<p>Na Lapa da Serra tem-se desenvolvido nos ultimos annos a industria
-ceramica: fabrica-se louça vidrada com seus lavôres especiaes, ás vezes
-de phantastica ornamentação.</p>
-
-<p>Pinhaes, mais pinheiros, é que eu gostaria de vêr na moldura agreste da
-interessante villa.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_196">[Pg 196]</span></p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O sr. Adolpho Loureiro, inspector geral de obras publicas, publicou
-recentemente o volume segundo da sua excellente e muito util obra:
-<i>Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes</i>.</p>
-
-<p>A pag. 303 começa a parte relativa ao porto da Ericeira, representado
-minuciosamente na estampa sexta do respectivo atlas.</p>
-
-<p>Segundo se vê do consciente trabalho do sr. Loureiro é para desejar:==a
-construcção de obras de drenagem dos terrenos, consolidação das ribas,
-conclusão das rampas tornando-as aptas para varar os barcos de pesca, e
-desobstrucção do porto, removendo-se as pedras soltas que se acham na
-area d’elle a menos de 1ᵐ,5 a 2ᵐ abaixo da baixa-mar, e, finalmente,
-estudar-se a possibilidade da construcção de um pequeno molhe para
-abrigo das embarcações de pesca, no caso de poder aproveitar-se
-qualquer restinga ou pedras que possam servir-lhe de apoio==.</p>
-
-<p>Parece facil a construcção de um pequeno molhe acostavel, que seria de
-grande vantagem para aquelles pobres pescadores.</p>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<p><span class="pagenum" id="Page_197">[Pg 197]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="De_Bemfica_a_quinta_do_Correio-Mor">De Bemfica á quinta do Correio-Mór</h2>
-</div>
-<hr class="r5" />
-<p class="center"><span class="smcap">(1905)</span></p>
-<p><span class="pagenum" id="Page_199">[Pg 199]</span></p>
-
-
-
-<p>Sabe bem de vez em quando uma excursão fóra das estradas mui trilhadas,
-longe de caminhos de ferro e de electricos. Pelo meio dia cheguei a
-Bemfica, á cocheira do largo da Cruz da Era. Cocheira pacata, bom
-serviço e preço modico; arranjou-se um carrinho; e seguimos pela
-estrada do Poço do Chão, muito socegada, entre muros de quintas, sebes
-de caniços, e filas de oliveiras. Passa a quinta da Granja, a da
-Condessa de Carnide, a do Sarmento ou Bom Nome; deixa-se á esquerda
-a estrada da Correia; agora o antigo chafariz e o moderno lavadouro,
-ambos sem agua. Á nossa esquerda fica a egreja parochial de S. Lourenço
-de Carnide, muito caiada, veneravel pela sua idade; estamos no Alto do
-Poço, de linda vista campestre. Estes sitios de Carnide e Luz são dos
-melhores dos arrabaldes da capital, mas infelizmente os senhores da
-governança não lhes teem dado attenção. Muitas vezes nem agua teem os
-pacificos e modestos moradores. A hygiene, a limpeza publica<span class="pagenum" id="Page_200">[Pg 200]</span> é quasi
-nulla. Facilidade de communicações não existe. Emfim carencia completa
-de melhoramentos municipaes. Bons ares e contentem-se. Eis agora a
-egreja da Luz, isto é, a monumental capella-mór e cruzeiro, porque o
-corpo da egreja arruinou-se pelo terremoto de 1755.</p>
-
-<p>Mas o que resta pela sua architectura e decoração, principalmente pelas
-pinturas, é uma joia, essa fundação da inclita infanta D. Maria. Á
-nossa direita o grande edificio do Collegio Militar. Estamos no amplo
-largo da Luz, com suas alamedas que mereciam mais attenção e cuidado;
-a nascente o grande palacio e quinta de Oliveira, vistosa construcção,
-e entramos na estrada do Paço do Lumiar. Ha um lanço entre muros e
-vallados, logo a estrada alarga: boas vivendas antigas e modernas.</p>
-
-<p>Um modesto terreiro; a meio a egreja ou antes ermida de S. Sebastião
-com o seu portal manuelino. Na visinhança boas casas á antiga, a da
-quinta do Paço por exemplo. Segue a muito nomeada quinta do sr. duque
-de Palmella, principesca vivenda com seus jardins em socalcos, fontes
-e lagos, arvoredos antigos, raros exemplares botanicos, e grande
-residencia. Fica-nos á direita a egreja parochial de S. João Baptista
-do Lumiar, de fundação muito remota. Passa a rua do Prior, a calçada de
-Carriche e estamos no campo. Estrada larga, aqui em bom estado, ali em
-máo, já uma cova, agora um pedregulho, como todas as estradas<span class="pagenum" id="Page_201">[Pg 201]</span> do paiz,
-onde todos querem estradas e ninguem trata de as conservar. Que eu
-tenho grande esperança nos automoveis; os excursionistas de automovel
-tanto hão de soffrer e gastar que levantarão celeuma provocando
-reparações indispensaveis.</p>
-
-<p>Em alguns pontos a estrada está bem arborisada. Estamos na Povoa
-de Santo Adrião: reparei em certo nicho e poço que vi á direita, e
-numa pedra lavrada; logo fiz tenção de parar á volta para exame mais
-demorado. Dilata-se a varzea de Friellas, bom torrão fecundo. O saloio
-é bom agricultor, eximio no hortejo. Aqui, além de trigo e milho,
-ha grande cultura de batata e ainda mais da hygienica cebola. Pelos
-telhados amarellecem enfileiradas as corpulentas aboboras machadas.
-Avisto algumas casas boas, antigas, agora em ruina.</p>
-
-<p>Evidentemente por estes sitios em tempos idos residiram pessoas
-abastadas; agora quem tem meios vae para a cidade para gosar e não
-trabalhar, nem vigiar. Estamos em Loures, eis a egreja matriz, grande
-templo, de fundação mui velha e reconstrucção moderna; contiguo o
-antigo cemiterio num abandono vergonhoso, servindo para estendal de
-roupas. Mais um pouco de estrada e topa-se á esquerda uma avenida bem
-tratada, recatada, com suas filas de oliveiras; entramos na quinta do
-Correio-Mór. Ainda uns minutos e chega-se a um portico monumental,
-elegante e bem construido, encimado pelo brasão dos <i>Mattas</i>, e
-entramos<span class="pagenum" id="Page_202">[Pg 202]</span> em bello páteo, frente e alas do palacio formando os tres
-lados.</p>
-
-<p>O palacio está em fundo valle apertado entre altos montes vestidos
-de arvoredos e vinhas até meia encosta; a região inferior povoada de
-laranjaes, agora um pouco doentes, e de hortejo viçoso. Provavelmente
-edificaram o palacio naquelle covão por causa das aguas; e de facto
-ha agua corrente em muitos pontos da grande residencia. Um vestibulo
-amplissimo; começa a escadaria larga, suave, magistralmente construida;
-no primeiro patamar uma fonte artistica, grande taça de um só bloco
-de marmore, estatuas, e um lindo medalhão com busto, talvez do
-<i>Matta</i> fundador do palacio. Está bem conservado o edificio;
-repararam ainda ha poucos annos os telhados; não chove agora nas
-salas; mas antes houve abandono e perderam-se ou estragaram-se alguns
-trabalhos preciosos.</p>
-
-<p>No Correio-Mór a construcção é boa a valer, a architectura é elegante;
-mas ha ainda a notar nos grandes salões, nas salas e gabinetes, a
-variedade e o gosto da ornamentação.</p>
-
-<p>Empregaram-se ali artistas de primeira ordem no seu tempo. Houve
-todavia alguns concertos e enxertos de máo gosto e inferior qualidade.
-As salas da musica, da dança, a dos apostolos, a capella, o grande
-salão de jantar, teem azulejos, estuques, pinturas, e obras de talha
-de merecimento. A cosinha é monumental, com as suas chaminés,<span class="pagenum" id="Page_203">[Pg 203]</span> pias
-de lavagem, grandes mesas de marmore, e azulejos decorativos muito
-especiaes. O conjuncto é uma raridade. No jardim tambem ha obras de
-arte, e o enorme tanque da horta, com sua guarnição de azulejos, merece
-ser visto.</p>
-
-<p>Este palacio tem um historia. Luiz Gomes da Matta, homem de fartos
-haveres, foi nobilitado por Filippe <span class="smcap">ii</span> que lhe deu brazão:==em
-campo de ouro tres mattas verdes em roquette sobre penhascos verdes;
-timbre uma das mattas.==</p>
-
-<p>Este Matta comprou tambem o fôro de fidalgo e o officio de correio-mór,
-e arvorou a quinta da Matta em solar. Chamaram-lhe depois a quinta da
-Matta do Correio-Mór. Hoje toda a gente d’aquelles sitios lhe chama
-o <i>Correio-Mór</i>. A quinta e palacio pertenceram á Casa Penafiel
-até ha poucos annos, e actualmente ao sr. Canha, negociante de Lisboa.
-Merece a pena um passeio a essa antiga residencia.</p>
-
-
-<h3>Azulejos</h3>
-
-<p>O alto rodapé da sala de jantar é de azulejos, azul em fundo branco,
-em grandes e pequenas composições conforme os espaços; é trabalho,
-e grande, feito propositalmente para ali, para aquelles vãos de
-parede, bem composto e executado. Uma serie de quadros representa,
-parallelamente, as phases da vida humana e a historia de um navio.
-Aqui se vê a criança de mama, ao colo da<span class="pagenum" id="Page_204">[Pg 204]</span> mãe, e o berço, as graciosas
-pequenas roupas; logo as scenas da primeira infancia, as ingenuas
-brincadeiras. Neste quadro rapazotes bem postos aprendem os exercicios
-da caça, noutro representa-se-nos uma aula, os meninos attentos á
-lição do mestre. Vae seguindo a construcção do navio, ali o fabrico do
-cavername, depois o assentar do forro, o trabalho do calafate; logo o
-erguer dos mastros. E toca a viajar sobre as aguas do mar, para a India
-ou para o Brazil; lá está o navio com o velame ao vento, prestes a
-sahir do porto.</p>
-
-<p>Temos agora um casamento, e no quadro seguinte uma profissão em casa
-religiosa. Era o caminho necessario em familias antigas, de bens
-vinculados; o excesso de filhos trasbordava para as armas, ou para o
-claustro; meninas sem dote raras casavam, iam para freiras, e em certos
-conventos passava-se muito bem a vida. Em varios quadros scenas da vida
-caseira; o concerto musical; a dança animada; os prazeres campestres de
-boa sociedade.</p>
-
-<p>Um naufragio agora, o navio torturado, pannos rotos, mastros partidos
-no vendaval furioso. Muitas outras scenas, bem desenhadas e compostas,
-com sufficiente minucia em trajos e utensilios, mesmo em attitudes, se
-nos deparam na interessante serie de azulejos.</p>
-
-<p>Noutra sala os azulejos, em rodapé, representam as quatro estações.
-Na sala chamada dos Apostolos ha caçadas de montaria, do veado, do<span class="pagenum" id="Page_205">[Pg 205]</span>
-javali, do leão. Esta sala tem um esplendido tecto de madeira, em
-variados caixotões, formando grandes molduras com obra de entalhado,
-pintado e dourado, frisos de flores, e os lisos pintados a oleo
-representando scenas mythologicas.</p>
-
-<p>Na capella os azulejos representam scenas de devoção; eremitas e frades
-oram e meditam; num d’esses quadros surge um anão risonho. No jardim vi
-tambem uma estatua de anão, bem executada.</p>
-
-<p>Na cosinha, tambem ha azulejos a notar na cosinha, aparecem as peças
-culinarias, coelhos, perdizes, presuntos, chouriços, hortaliças. A
-cosinha do Correio-Mór é magnifico exemplar completo, com as suas
-grandes chaminés, grandes mesas de marmore, e agua corrente em
-abundancia.</p>
-
-<p>Em rodapés de ante-salas, em alegretes de jardins, encontram-se
-frequentemente as scenas da comedia italiana, as serenatas, os jogos,
-casos de amores e ciumes, brigas de espadachins, cortezias de tafues,
-as varias combinações de Pulcinello, Arlechino e Scaramuccia, de
-Fracasso e Tagliacantoni, com Lucrecia, Colombina e a Signora Lavinia;
-não faltam os capitães Ceremonia e Cocodrillo, nem os casos comicos de
-medicos e barbeiros.</p>
-
-<p>Domina sempre n’esta alegre ornamentação o typo italiano, o que não se
-estranha attendendo aos muitos artistas de Italia que vieram a Portugal
-no seculo XVIII, e á tendencia dos artistas portugueses a irem a Roma
-procurar a perfeição artistica.<span class="pagenum" id="Page_206">[Pg 206]</span> Mas ha excepções; uma bem saliente
-na quinta dos marquezes de Fronteira em S. Domingos de Bemfica; ha
-ahi azulejos hespanhoes e hollandezes de merecimento e excellente
-conservação.</p>
-
-
-<h3 class="nobreak" id="O_Matta_Correio-Mor">O Matta, Correio-Mór</h3>
-
-
-<p>Foi Luiz Gomes da Matta o instituidor do vinculo ou morgado da quinta
-da Matta, não me parece todavia que elle fizesse o grande palacio. Seu
-filho e successor Antonio Gomes da Matta fez grande testamento que por
-quaesquer questões foi impresso:==Testamento que fez Antonio Gomes
-da Matta, correyo mór que foi deste Reyno de Portugal. Lisboa, off.
-Craesbeeckiana, 1652, in-4.ᵒ, 136 pag.==</p>
-
-<p>A pag. 62 do testamento, mencionando varias propriedades, diz
-simplesmente==quinta da Matta com suas terras e azenha e mais pertenças
-propriedade que Luiz Gomes da Matta, meu pae, deixou vinculada.==</p>
-
-<p>E nada mais; não falla do palacio, das obras d’arte, etc.; quando é
-minucioso relativamente a outras cousas menores.</p>
-
-<p>É testamento interessante; o testador era homem piedoso, devoto, muito
-rico.</p>
-
-<p>Possuia grandes predios em Lisboa, quintas na Luz, em Loures, em
-Almada, grandes herdades no Alemtejo, no termo de Elvas. Grande
-capitalista, emprestava dinheiro sobre penhores.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_207">[Pg 207]</span></p>
-
-<p>A sua casa de morada em Lisboa estava posta com fausto; menciona os
-pannos de raz, e brocateis que forravam as paredes das salas; tinha
-joias de grande valor, e enorme quantidade de pratas.</p>
-
-<p>Fazia festas religiosas; dava cera, azeite, dinheiro para muitas
-imagens; no testamento contempla dezenas de corporações religiosas, de
-parentes, de creados, e de empregados do correio, amigos e compadres.
-Mas não falla de grande residencia na Matta. Por esta razão, e pelo
-edificio que vejo agora, creio que o palacio actual foi erguido em
-tempo de D. João V, soffrendo algumas modificações em época mais
-recente.</p>
-
-<p>Mas temos em Volkmar Machado um dado importante; ao tratar do conhecido
-pintor José da Costa Negreiros, conta que foi discipulo do famoso André
-Gonçalves==cujo estylo seguia com mais sisudeza mas com menos agrado==,
-e que fez alguns tectos em Loures, na quinta do Correio-Mór.</p>
-
-<p>Negreiros morreu em 1759.</p>
-
-<p>É possivel que as pinturas da sala dos Apostolos sejam, em parte, de
-Negreiros; outras serão de seus discipulos Bruno José do Valle, ou
-Simão Baptista; mas as decorações de outras salas, e especialmente os
-grandes trabalhos a estuque, devem ser da segunda metade, adiantada, do
-seculo XVIII, pois que a furia da decoração a estuque foi posterior ao
-terremoto de 1755.</p>
-<p><span class="pagenum" id="Page_208">[Pg 208]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="O_officio_de_Correio-Mor">O officio de Correio-Mór</h3>
-
-
-<p>Parece que antes de 1520 não havia em Portugal serviço de correio
-organisado regularmente.</p>
-
-<p>Mandavam-se proprios, e dispunham-se postas quando assim era preciso.
-Nos caminhos de maior transito, em intervallos de 3 a 4 leguas, as
-estalagens tinham cavallos para muda, que alugavam.</p>
-
-<p>Em 1520 el-rei D. Manuel criou o officio de correio-mór; foi Luiz
-Homem, ao que dizem, o primeiro a exercer o cargo.</p>
-
-<p>Em tempo de D. João III appareceu a primeira lei ou regimento postal.</p>
-
-<p>O segundo correio-mór chamava-se Luiz Affonso; seu genro Francisco
-Coelho, foi o terceiro.</p>
-
-<p>O cargo conservou-se na familia até 1606 em que falleceu Manuel Gouvêa,
-o quarto no cargo.</p>
-
-<p>Então Filippe II mandou vender o officio; que foi comprado por 70:000
-cruzados, por Luiz Gomes da Matta, em 19 de julho de 1606.</p>
-
-<p>O correio-mór tinha a seu serviço estafetes, mestres e creados
-de posta, e varios assistentes. O serviço do correio foi sempre
-augmentando, sem alteração fundamental do regime até 1852, embora este
-ramo pertencesse ao Estado desde 1797. Neste anno, em alvará de 16 de
-março, D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi encarregado de tratar com o
-Correio-Mór a cedencia do officio.</p>
-
-<p>Manuel José da Maternidade Matta de Sousa<span class="pagenum" id="Page_209">[Pg 209]</span> Coutinho, o ultimo
-correio-mór, recebeu em indemnisação pela cedencia do officio o titulo
-de conde em tres vidas, a renda annual de 40:000 cruzados, pensões
-vitalicias a diversas pessoas, cuja somma andava por 400:000 cruzados,
-e um ou dois postos no exercito.</p>
-
-<p>Foi este o primeiro conde de Penafiel.</p>
-
-<p>O segundo conde e primeiro marquez de Penafiel foi Antonio José da
-Serra Gomes pelo seu casamento, em 1861, com a segunda condessa desse
-titulo.</p>
-
-<p>Pelas quantias indicadas se vê o augmento de importancia do correio
-entre 1606 e 1797, ainda que nessa época pequeno progresso tivera a
-viação publica.</p>
-
-
-<h3 class="nobreak" id="Estuques">Estuques</h3>
-
-
-<p>O uso do estuque é muito antigo; ha exemplos no velho Egypto, na
-remota Assyria; os romanos o empregaram vulgarmente; em Pompeia ha
-tectos, frisos, cornijas de gesso. Bysantinos e arabes usaram do
-estuque, principalmente os arabes de Hespanha; os estuques pintados
-da Alhambra são admirados no engenho da decoração geometrica, no
-effeito da combinação de tons. Durante largo tempo esqueceu o estuque,
-para reviver no meiado do seculo XVI. Mas então renasceu e logo se
-desenvolveu em processo e applicação; fizeram-se frescos<span class="pagenum" id="Page_210">[Pg 210]</span> sobre estuque
-de gesso, modificaram-se as pastas, formaram-se grandes composições em
-alto relevo.</p>
-
-<p>Em Portugal ha noticia de estuques no seculo XVII, de pouca importancia.</p>
-
-<p>Poucos annos antes do grande terremoto de 1755 appareceu em Lisboa um
-artista italiano de grandes aptidões, João Grossi, que iniciou grandes
-trabalhos neste genero. Outro estucador, primeiramente simples ajudante
-de Grossi, Gommassa, se tornou notavel.</p>
-
-<p>O marquez de Pombal empregou-os nas suas propriedades. O terremoto
-tornou necessarios trabalhos rapidos e os estucadores prosperaram; e
-vieram mais estucadores italianos, Chantoforo, Agostinho de Quadri, que
-introduziram novos processos. Nas Janellas Verdes, no palacio pombalino
-da rua Formosa, na egreja dos Paulistas, etc., ha trabalhos d’estes
-italianos.</p>
-
-<p>O marquez de Pombal chegou mesmo a fundar uma escola de estucadores, de
-que foi mestre o Grossi (1766).</p>
-
-<p>Trabalhou-se immenso em estuque, bem e mal, com arte ou sem ella; João
-Paulo da Silva trabalhou no palacio na quinta das Laranjeiras (por
-1798), assim como Felix Salla, outro italiano discipulo do celebre
-milanez Albertoli, que fez reviver a grande ornamentação dos gregos e
-do imperador Augusto.</p>
-
-<p>É certo que por este tempo estucadores portuguezes<span class="pagenum" id="Page_211">[Pg 211]</span> foram trabalhar a
-Hespanha, tanto se tinha aqui progredido neste ramo.</p>
-
-<p>Por 1805 entrou em Lisboa um estucador suisso de grande habilidade,
-Vicente Tacquet que trabalhou com Francisco Espaventa e outros.</p>
-
-<p>Vieram os desastres da guerra, e alguns dos melhores artistas
-refugiaram-se no norte do paiz, no Porto, e em Vianna do Castello,
-Caminha, Affife que nos tempos modernos, nos ultimos 40 annos, tem
-produzido bons artistas estucadores.</p>
-
-<p>De Rodrigues Pitta são os tectos do palacio do marquez de Vianna (1846)
-ao Rato, hoje propriedade do sr. Marquez da Praia.</p>
-
-<p>Em 1855 e 1856 ornamentou o salão de baile do palacio da Junqueira
-(actual palacio Burnay) e dois salões do palacio Costa Lobo, no campo
-de Sant’Anna.</p>
-
-<p>Deixou trabalhos de grande folego nos palacios de José Maria Eugenio
-d’Almeida, a S. Sebastião da Pedreira, Gandarinha que tem magnificas
-escaiolas na galeria, e no do Marquez de Penafiel.</p>
-
-<p>A esplendida sala do conselho de Ministros, no Ministerio do Reino, tem
-o tecto muito trabalhado, não de grande effeito.</p>
-
-<p>Cinatti introduziu em Lisboa um artista, seu parente, Joanni, notavel
-imitador de marmores, e bom artista em estuque <em>lucido</em>.</p>
-
-<p>Nos ultimos vinte annos a mania pelo estuque, especialmente pelas
-imitações de marmores, tem sido, a meu vêr, exaggerada.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_212">[Pg 212]</span></p>
-
-<p>E, o que é grave, na maioria esses trabalhos são mal dirigidos e
-executados. Tem sido um desastre.</p>
-
-<p>Ha estuques carregados de relevos que em tres ou quatro annos estão
-fendidos e estragados.</p>
-
-<p>Imitações de marmores, quasi tão caras como os modelos, estaladas em
-poucos mezes. Mas a mania pelos estuques não é só na capital; ao norte
-do paiz ainda foi, e é, mais intensa.</p>
-
-<p>No Porto ha estuques antigos, dos melhores, no palacio dos Carrancas, e
-modernos na Bolsa.</p>
-
-<p>No Minho citam-se como notaveis os do palacio da Brejoeira, obra dos
-Alves, de Fafe, por 1850.</p>
-
-<p>Em Evora temos os mais recentes no theatro Garcia de Resende, fino
-trabalho do Meira.</p>
-
-<p>Será rara a egreja da Provincia, onde tenha havido reparos nos ultimos
-annos, que não possua amostras de estuque moderno, de facil execução e
-de mau effeito passado o lustro dos primeiros mezes.</p>
-
-<p>Nas salas do Correio-Mór ha tectos estucados a baixo relevo muito
-distinctos e paredes ornamentadas a esgrafito de algum effeito.</p>
-
-<p>Volkmar Machado deixou-nos algumas noticias sobre estucadores, que
-Liberato Telles utilisou no seu trabalho publicado no <i>Boletim da
-Associação dos Conductores de Obras Publicas</i>. Vol. IV. 1900.</p>
-<p><span class="pagenum" id="Page_213">[Pg 213]</span></p>
-
-<h3 class="nobreak" id="Egreja_de_S_Lourenco_de_Carnide">Egreja de S. Lourenço de Carnide</h3>
-
-
-<p>O logar de Carnide, que faz parte agora da capital, é muito antigo;
-existia já povoado e cultivado no meiado do seculo XIII.</p>
-
-<p>O mosteiro de S. Vicente possuia aqui uma vinha e uma herdade, como se
-lê nas inquirições do reinado de D. Affonso III. Por esse documento,
-importante para a historia de Lisboa e seus termos, se vê que em
-tão remota época já nestes logares de Carnide, Charneca, Queluz,
-Falagueira, Odivellas, Palma e Telheiras havia culturas, vinhas e
-povoados que contribuiam para o rei, para as ordens militares, e para
-os grandes mosteiros.</p>
-
-<p>Em 1342, o bispo de Lisboa, D. João, mandou edificar a egreja á honra
-de S. Lourenço, por Pedro Sanches, chantre da sua sé, e a deu a seu
-capellão João Dor. Era já egreja parochial no seculo XIV.</p>
-
-<p>Em meio de amplo terreiro, murado, orlado de oliveiras, com larga vista
-de campos e collinas ergue-se a egreja com o seu campanario, em linhas
-de singela construcção. A orientação e disposição da egreja é antiga,
-todavia pouco se vê do seu estado primitivo.</p>
-
-<p>Está bem reparada, de ha poucos annos.</p>
-
-<p>É um templo alegre, com as suas obras de talha dourada, as paredes
-forradas com azulejos, de azul sobre branco, em grandes quadros,
-allusivos á vida de S. Lourenço.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_214">[Pg 214]</span></p>
-
-<p>Tem cinco altares, o maior, o da Senhora do Rosario, do Crucificado, de
-S. Miguel, e o de Jesus-Maria-José.</p>
-
-<p>No altar-mór ha um quadro bom, o <em>lavapedes</em>, mal restaurado,
-infelizmente; algumas campas com lettreiros no chão da capella-mór;
-duas pias d’agua benta que são dois capiteis do seculo XIV, escavados;
-na sacristia um arcaz de boa madeira, com metaes bem cinzelados.</p>
-
-<p>O terreiro ao redor da egreja era d’antes o cemiterio; campas e ossadas
-foram removidas para o cemiterio dos Arneiros (Bemfica). Ficou apenas
-uma grande pedra, com inscripção latina, que era o tumulo de José João
-de Pinna de Soveral e Barbuda, fallecido em 1710.</p>
-
-<p>Para o novo cemiterio de Bemfica foi removida a campa de D. Anna Maria
-Guido, marqueza de Ravara, fallecida em 1752.</p>
-
-<p>No alto de um cunhal, do lado do sul, está uma pedra com lettreiro em
-caracteres gothicos (seculo XV, talvez) que diz:—Esta sepultura he de
-Luis d’Abreu e de todos seus herdeiros.</p>
-
-<p>Na capella-mór ha bastantes campas.</p>
-
-<p>—Esta sepultura é de Joam da Costa de Mendonça e de quem nela se
-quizer enterrar.</p>
-
-<p>—Sepultura de Francisco Jorze e de sua molher e de seus herdeiros... de
-1569.</p>
-
-<p>—Sepultura de George Pires e de sua molher e herdeiros. 1616.</p>
-
-<p>—Sepultura de Jozeph da Costa e de sua mulher<span class="pagenum" id="Page_215">[Pg 215]</span> Catharina da Costa a
-coal faleceo a 28 doutubro de 1712 e pera todos os seus herdeiros.</p>
-
-<p>—Sepultura de Guilherme Street Arriaga Brum da Silveira e Cunha e
-familia. 28 de outubro de 1826. P. N. A. M.</p>
-
-<p>—Esta sepultura mandou fazer João Correa pera se enterrar nella e seus
-herdeiros.</p>
-
-<p>—Sepultura de Antonio de Almeida e seus herdeiros faleceu a 14 de mayo
-de 1601 anos.</p>
-
-<p>—Sepultura de Luiz Ramalho Pre... e de sua mulher Francisca de Almada
-Tiba e de seus herdeiros faleceu a X d. de junho de 1637.</p>
-
-<p>—Sepultura de Bastião criado de S. M. e de seu herdeiro. Faleceo a 5
-doutubro de 1796.</p>
-
-<p>—Sepultura do P.ᵉ H.ᵐᵒ Machado cura que foi nesta igreja muitos annos
-e de seu herdeiro.</p>
-
-<p>—Sepultura perpetua de Simão Moreira e sua molher Domingas Francisca e
-de seus herdeiros a qual lhe mandou pôr seu filho o P.ᵒ Luiz Moreira.
-1678.</p>
-
-<p>—Sepultura de Lianor Jorze molher que foi de Luiz Glz d’Oliveira
-provedor dos contos do reino faleceo a 21 doutubro de 1567, e de seus
-herdeiros.</p>
-
-<p>Transcrevi estes lettreiros porque são ineditos.</p>
-
-<p>Na frontaria da egreja está uma inscripção referente á fundação; e uma
-pedra com escudo d’armas que não sei explicar; não me parece portuguez,
-nem hespanhol esse curioso brazão em que se vê uma perna com bota, por
-baixo de uma estrella.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_216">[Pg 216]</span></p>
-
-<p>É bem interessante a modesta egreja, agora parochia da capital.</p>
-
-
-<h3>Luz</h3>
-
-<p>Da egreja de Nossa Senhora da Luz resta-nos o cruzeiro, e a
-capella-mór; o corpo da egreja abateu por occasião do terremoto de
-1755. É da fundação da infanta D. Maria, senhora opulenta e de alta
-cultura d’espirito. Nesta egreja ha obras d’arte notaveis em esculptura
-de madeira e pedra, em architectura, e em pintura. A capella-mór tem 12
-x 8 metros; o cruzeiro 21 x 10.</p>
-
-<p>A capella-mór é ampla, alta, coberta de abobada revestida, assim como
-as paredes, de marmores diversos formando quadrellas; é o conhecido
-estylo classico dominante no findar do seculo XVI. Nichos com estatuas
-animam as grandes paredes. Na parede que olha ao sul estão rasgadas
-janellas que dão bastante claridade.</p>
-
-<p>O altar-mór está elevado, sobre o pavimento da capella; quatro degraus
-se sobem para lá chegar.</p>
-
-<p>Além do altar-mór abre-se um grande arco que abriga o sacrario, soberba
-obra d’arte muito elegante, em madeira entalhada e dourada; atraz fica
-o vasto côro, agora sacristia, no mesmo nivel da egreja. Proximo do
-grande altar, no chão, ha uma abertura circular que diz para a fonte de
-agua milagrosa.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_217">[Pg 217]</span></p>
-
-<p>A meio da capella-mór o singelo tumulo da fundadora.</p>
-
-<p>Na capella-mór ha duas capellas lateraes; outras duas no cruzeiro.</p>
-
-<p>Empregaram na construcção marmores branco e vermelho, servindo-se da
-pedra d’Arrabida na ornamentação; nos frisos e molduras sobresahem
-quadrados, losangos, ellipses feitos n’essa pedra, bem trabalhada e
-polida. A pedra vermelha fórma o fundo, a branca a parte saliente e
-ornamental.</p>
-
-<p>Nos grandes nichos da capella-mór estão dezesete estatuas em marmore:
-Nossa Senhora com o Menino de Jesus, S. Thomé, S. André, S. João, S.
-Lucas, S. Matheus, S. Marcos, S. Simão, S. Mathias; estas á direita,
-olhando para o altar-mór; á esquerda, S. Filippe, S. Thiago Maior, S.
-Pedro, S. Judas Thadeu, S. Thiago Menor e S. Bartholomeu. As estatuas
-da Virgem e dos Evangelistas são maiores.</p>
-
-<p>Estas estatuas são em marmore branco d’Estremoz, lindo marmore; o
-trabalho é muito pegado, os artistas não se atreveram a desligar, a
-destacar braços ou mãos.</p>
-
-<p>No exterior do edificio, lado sul, ha outra estatua de Nossa Senhora
-com o Menino e, ainda uma terceira na frontaria do Collegio Militar;
-todas da mesma época e do mesmo estylo acanhado. São todavia de bom
-trabalho, e representam excellentemente o estado da estatuaria em
-Portugal naquelle tempo.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_218">[Pg 218]</span></p>
-
-<p>No altar-mór admiramos alguns baixos relevos em fino jaspe, em seis
-pequenas pilastras; são figuras symbolicas da Fé, Justiça, Fortaleza,
-etc.</p>
-
-<p>Sobre a figura da Fortaleza ha um medalhão com Hercules, o leão e o
-centauro finamente executado.</p>
-
-<p>Uma das figuras é a Astronomia, outra a Medicina. Nas pilastras que
-formam as esquinas do altar, as faces lateraes mostram fructas e
-flores, escudos e peças d’armadura. Estes bellos baixos relevos são
-de pura renascença, d’um estylo muito anterior ao frio classicismo da
-capella-mór.</p>
-
-<p>Alguns dos symbolos destoam da ideia christã, parecem deslocados na
-ornamentação d’um altar-mór. É possivel que sejam peças destinadas
-a outra obra d’arte, que foram aqui aproveitadas. Nas duas capellas
-lateraes do cruzeiro de Santa Maria de Belem (Jeronymos) ha uns
-lindos baixos relevos nos altares, pouco vistos, que passam mesmo
-despercebidos porque teem luz escassa, que, me parece, se relacionam
-com estes da Luz na qualidade da pedra, e no estylo do trabalho. E no
-portico do poente, nos Jeronymos, superiormente, ha duas pilastras que
-dizem com estas da Luz<a id="FNanchor_1" href="#Footnote_1" class="fnanchor">[1]</a>.</p>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_1" href="#FNanchor_1" class="label">[1]</a> Devemos lembrar que Jeronymo de Ruão, architecto da Luz,
-tambem o foi da capella-mór dos Jeronymos</p>
-
-</div>
-
-<p>Na alta parede da frente da capella-mór ha oito quadros em disposição
-symetrica; o maior<span class="pagenum" id="Page_219">[Pg 219]</span> occupa o centro, é Nossa Senhora da Luz com o
-Menino, que apparecem ao pobre Pedro Martins; o milagre que deu origem
-á fundação da ermida primitiva.</p>
-
-<p>Este quadro está assignado: <i lang="la" xml:lang="la">Franciscus Venegas, Regius pictor
-faciebat</i>.</p>
-
-<p>Sobre este quadro está outro painel de moldura circular, que representa
-a Coroação da Virgem; está tambem assignado: <i>F. Venegas. f.</i>
-Como estes dois quadros estão bastante altos as assignaturas não se
-descobrem á primeira vista, mas é facil a leitura com um binoculo
-regular.</p>
-
-<p>Á esquerda da Coroação está a Adoração dos Reis, á direita a
-Apresentação no Templo, em molduras ellipticas; não lhes descubro
-assignatura. Aos lados do grande quadro do milagre de Pedro Martins,
-está a Visitação á esquerda, e á direita a Adoração dos pastores; não
-lhes vejo assignatura; por baixo á esquerda Nossa Senhora e S. Joaquim,
-á direita a Annunciação, este assignado: <i>F. Venegas f.</i></p>
-
-<p>Os paineis não assignados podem ser do mesmo artista <i>Venegas</i>;
-são pinturas em madeira, bem desenhadas e pintadas, em boa conservação.
-Á primeira vista estas pinturas destoam, divergem entre si; a meu vêr
-porque o pintor, que era excellente executante, não tratou de inventar,
-contentando-se em copiar, ou quasi, os bons quadros que conhecia.</p>
-
-<p>Assim este quadro recorda Raphael, outro o<span class="pagenum" id="Page_220">[Pg 220]</span> Sarto, aquelle o Parmesão;
-na Coroação da Virgem, singelo grupo em fundo dourado, parece vêr-se
-a reproducção de quadro muito antigo de um <em>primitivo</em>; na
-grande composição central lembra logo a Transfiguração de Raphael; na
-Annunciação, que tem grande vigor de colorido, e luz intensa de grande
-effeito, recorda o Mazuoli. Isto é, este Venegas, excellente pintor,
-está completamente dominado pela escola italiana.</p>
-
-<p>Na capella da esquerda está o quadro da Circumcisão. O fundo é
-formado por apparatoso edificio do renascimento. A figura da Virgem é
-admiravel; á esquerda, a Caridade, mulher com duas creanças, de bom
-effeito; á direita, no fundo escuro, a Humildade. No primeiro plano
-vê-se um tapete persa e um cãosinho felpudo, de luxo, pintado com muito
-cuidado.</p>
-
-<p>Na capella á direita a Sacra Familia, Anjos coroando: fundos claros,
-edificio do renascimento em ruina. Detalhes minuciosos.</p>
-
-<p>O trabalho d’esculptura em madeira dourada que reveste a grande parede
-da capella-mór faz bom effeito; é desegual, talvez em parte material
-aproveitado para encher o vão. Mas o sacrario é uma peça de grande
-elegancia; renascença classica de cuidadosa execução.</p>
-
-<p>Na capella esquerda do cruzeiro está um quadro notabilissimo. S. Bento
-dá a regra aos seus monges. No primeiro plano á esquerda el-rei D.
-Manuel, á direita a infanta D. Maria. Um fidalgo<span class="pagenum" id="Page_221">[Pg 221]</span> e diversos monges
-formam grupo atraz da figura do rei, uma dama e muitas freiras estão
-depois da infanta. Todas as figuras estendem o braço direito, a palma
-da mão para cima como signal de acceitação da regra. O pintor para
-evitar monotonia variou muito as posições dos dedos; foi um verdadeiro
-esforço, um trabalho habilidoso e paciente o desenho de tantas mãos;
-a mão fina e lisa das damas novas, a nodosa e enrugada das velhas,
-a robusta e a gorducha dos fortes monges. D. Manuel tem o collar de
-Christo. A infanta veste com fausto; vestido de tissu lavrado, apertado
-na frente com laços de fitas com agulhetas; joias com pedras preciosas,
-gorgeira de fina renda, gola muito alta, collar com fita pendente de
-ouro e pedras. O lindo rosto juvenil da dama de côrte, vestida mais
-modestamente, pintado n’um tom menos brilhante, succede muito bem á
-magestosa grande dama, e prepara para o aspecto ascetico do grupo
-de freiras. Tanto estas como os frades teem phisionomias estudadas;
-são retratos. Por isto este painel tem o duplo valor de obra d’arte,
-e de documento historico, dando-nos ainda preciosos elementos de
-indumentaria. Ha outros retratos da infanta; e o busto de prata que se
-conserva em Santa Engracia (antiga egreja dos Barbadinhos) harmonisa
-com este em aspecto e vestuario.</p>
-
-<p>As grades da capella-mór e das outras capellas são em pau santo com
-torcidos.</p>
-
-<p>No cruzeiro á direita fica outro altar. É a capella<span class="pagenum" id="Page_222">[Pg 222]</span> do Senhor dos
-Afflictos; é a imagem de Jesus Crucificado, esculptura em madeira de
-boa execução, corpo robusto com anatomia estudada. Sob a imagem, n’um
-friso, ha duas taboas pintadas que merecem attenção. Em uma Santo
-Antonio e S. João Baptista; na outra as santas Agueda e Luzia, com
-os seus emblemas. São pinturas talvez do começo do seculo XVI alli
-applicadas.</p>
-
-<p>No cruzeiro, á direita, uma porta singela dá para uma pequenina
-capella, agora sem culto; construcção do começo do seculo XVII. Tem
-rodapé de azulejos, altar e chão de boa pedra. Está aqui um tumulo com
-escudo de armas sem lettreiro; outro com brazão e a seguinte legenda:</p>
-
-<p>—Aqui está sepultado o religiosiss.ᵒ varão da ordem de Chr.ᵒ D. F.
-Martinho de Ulhoa bispo que foi de S. Thomé, Congo e Angola juntamente
-que mandou fazer esta capella em a qual se lhe diz missa quotidiana
-falleceo a 8 d’agosto de 1606.—</p>
-
-<p>Guarda-se na sacristia (antigo côro) um grande retabulo que servia
-de tapar o vão do arco da capella-mór. Representa o milagre de Nossa
-Senhora a Pedro Martins. É fraca pintura. Está assignado e datado:
-<i>Anno de 1714. Henrique Ferreira fez</i>.</p>
-
-<p>Sobre o altar da sacristia está a imagem de Nossa Senhora dos Remedios.</p>
-
-<p>É esculpida em madeira, e por nesta ter dado o caruncho a vestiram de
-seda para occultar as<span class="pagenum" id="Page_223">[Pg 223]</span> lesões. Merece toda a attenção. É pintada e
-dourada; luxuoso vestido rodado de mangas perdidas, fita de joias em
-relevo com imitação de pedras finas. No vestido o artista imitou rico
-tissu floreado.</p>
-
-<p>O vestuario d’esta imagem recorda o do retrato da infanta. Deve ser
-esculptura do fim do seculo XVI.</p>
-
-<p>Da mesma época deve ser um grande frontal com o brazão da infanta
-bordado no centro e aos lados; tem fachas de velludo vermelho com
-bordado alto a ouro e prata, sendo os vãos ou entrefachas de seda
-branca.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Junto do altar-mór a abertura do poço ou fonte da agua milagrosa, um
-simples bocal raso com tampa de madeira.</p>
-
-<p>A fonte é bem curiosa. A entrada deita para um quintal contiguo.
-Descemos a escada e na parede vemos alguns azulejos antigos, mouriscos,
-de fino esmalte e relevos. Um portico em estylo manuelino dá para o
-espaço onde nasce a agua; uma abobada forrada de azulejos brancos com
-estrellas azues; outros revestem os rodapés e paredes, em pequenos
-quadros formados de quatro azulejos, de diversos typos, alguns raros. O
-portico tem columnas torcidas e no intercolumnio uma facha com romans.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_224">[Pg 224]</span></p>
-
-
-<h3>Os pintores da Luz</h3>
-
-<p>Filippe I (II de Hespanha) n’uma carta de 14 de março de 1583 chama a
-Francisco Venegas, <em>meu pintor</em>.</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">(Sousa Viterbo, <i>Noticia de alguns pintores</i>, Lisboa, 1903, pag. 153).</span><br />
-</p>
-
-<p>D. Sebastião, em alvará de 6 de maio de 1577, diz: <em>Diogo Teixeira
-hum dos melhores pintores de imaginarya dolio que ha nestes reynos</em>.</p>
-
-<p class="right">
-(Ibidem, pag. 142).<br />
-</p>
-
-<p>Na collecção de desenhos expostos no Museu das Janellas Verdes, os n.ᵒˢ
-307 e 308 parecem-me representar as duas figuras que estão em baixo
-relevo no altar-mór da Luz.</p>
-
-<p>O desenho n.ᵒ 346 (Museu das Janellas Verdes) é de Venegas; uma rubrica
-indica que é o projecto de um quadro para S. Vicente de Fóra, e que se
-executou uma réplica, menor, para S. Domingos de Setubal.</p>
-
-<p>A collecção de desenhos do Museu das Janellas Verdes é muito
-importante, e vista com attenção dá elementos unicos para a historia
-da arte em Portugal. Ha mais collecções de desenhos em Portugal em
-estabelecimentos publicos, e na posse de particulares, que insta tornar
-conhecidas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_225">[Pg 225]</span></p>
-
-<p>Creio que o n.ᵒ 268 é o esquisso do quadro da capella lateral, a
-Circumcisão; architectura á romana; o sacerdote no faldistorio, etc.,
-nem falta o cãosinho felpudo.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Jeronymo de Ruão foi architecto da infanta D. Maria; entre outras obras
-fez a capella da Luz e a capella-mór dos Jeronymos.</p>
-
-<p>Nos dois capitulos <i>O lindo sitio de Carnide</i> e <i>Noticias de
-Carnide</i> dei outras noticias e publiquei lettreiros d’esta egreja da
-Luz, que julgo escusado repetir agora.</p>
-
-<p>Para a historia da inclita infanta D. Maria é fundamental a—<i>Vida de
-la serenissima infanta dona Maria</i>, por fr. Miguel Pacheco (Lisboa,
-1675).—Modernamente appareceu á luz um trabalho a respeito da infanta
-e de suas damas pela Sr.ᵃ D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos.
-Escusado dizer, é bem conhecida a alta intelligencia e a intensa
-investigação da auctora, que é escripto fóra da bitola vulgar. Nelle se
-dá noticia dos differentes retratos da infanta D. Maria.</p>
-
-<p>Transcrevo a curta biographia que vem nos <i>Elogios de varões e
-donas</i> por ser menos conhecida agora, pois esta obra tornou-se pouco
-vulgar.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_226">[Pg 226]</span></p>
-
-
-<h3>Biographia da infanta D. Maria</h3>
-
-<p>A Infanta D. Maria tão illustre pelo dote da formosura, como pelo
-engenho, erudição, graça, e todo o genero de heroicas virtudes, que a
-constituiram uma das mais recommendaveis princezas do seu seculo, foi
-filha d’El-Rei D. Manoel, e da Rainha D. Leonor de Austria sua 3.ᵃ
-mulher. Seu nascimento foi na cidade de Lisboa, em sabbado 8 de junho
-de 1521 nos paços da Ribeira; e a 17 do mesmo mez foi baptizada pelo
-Arcebispo de Lisboa, D. Martinho Vaz da Costa, escolhendo El-Rei seu
-pai para padrinho em nome de Carlos III, Duque de Saboia, o Barão de
-S. Germano, Senhor de Balaison, enviado então por Embaixador a este
-Reino para solicitar o cazamento da Infanta D. Brites com o dito Duque;
-e madrinhas a mesma Infanta D. Brites e D. Isabel suas meias irmãs.
-Com a morte d’El-Rei seu pai no mesmo anno de 1521, e por se auzentar
-para Castella a Rainha sua mãi deixando-a ainda no berço, foi entregue
-para ser educada em idade competente á direcção da Rainha D. Catharina
-sua tia, tanto que chegou a este Reino, de cuja escola saiu eminente.
-Como era dotada de estranha viveza, memoria, e grande juizo aprendeu
-com facilidade as linguas especialmente a Grega, e a Latina que soube
-com perfeição, e escreveu com tanta propriedade como se lhe fôra
-natural e materna. Teve por mestres a insigne Dama Toledana Luiza Segéa
-exquizitamente<span class="pagenum" id="Page_227">[Pg 227]</span> douta em muitas linguas, e raro prodigio de sciencia,
-que mereceu ser celebrada dos maiores letrados d’aquella idade; e a Fr.
-João Soares de Urró da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, depois
-Bispo de Coimbra, que tambem o foi dos Principes D. Filippe, e D. João
-seus sobrinhos.</p>
-
-<p>Ao contar dezaseis annos El-Rei D. João III seu irmão lhe deu caza
-propria, e separada do paço Real, composta das principaes pessoas do
-Reino: a qual com riquissimo dote, que seu pai lhe deixou, foi de
-tão grande renda e estado, que para ser igual á das maiores Rainhas
-da Europa não lhe faltou mais, que haver o nome de uma d’ellas. Foi
-Senhora de Vizeu, e de Torres Vedras de juro, e teve por El-Rei D.
-João III seu irmão muitas mercês, e privilegios, e consta por alguns
-Documentos que se guardam no Real Archivo, como são: uma carta em data
-de 26 de janeiro de 1545, em que se lhe concedem de padrão de juro
-e herdade cinco contos de réis, em virtude do contracto feito com o
-mesmo Rei D. João III que se acha inserto; e duas cartas expedidas á
-mesma Senhora Infante de privilegios, e jurisdição de suas terras, e
-sobre as fintas, e provimentos dos officios d’ellas em data de 2 de
-novembro do mesmo anno: o primeiro no Livro da Chancellaria do dito
-Rei a fol. 25, e os segundos no Livro 43 fol. 9, vers. e 14 verso.
-Creou n’este paço particular uma verdadeira Universidade de mulheres<span class="pagenum" id="Page_228">[Pg 228]</span>
-illustres em todo o genero de Sciencias e Artes, de que foi especial
-protectora; pois não só se encontrava quem se désse á lição dos Livros,
-e tocasse déstramente differentes instrumentos, mas quem com o pincel,
-e com a agulha procurasse nos primores da Pintura, e lavôr virtuosa
-emulação e seguisse os outros louvaveis exercicios: aos quaes ajuntava
-com tal reverencia, e edificação a pratica dos actos de piedade em
-todo o genero de virtudes, pela direcção de Fr. Francisco Foreiro,
-lustre da Ordem Dominicana, que parecia menos Paço Real, que Mosteiro
-reformado, que podia ser a Religiosas espelho, e doutrina de bem
-viver. Pela fama de tão Reaes qualidades foi pretendida para Espoza
-dos maiores Principes da Europa, como foram: o Delfim de França, filho
-de Francisco <span class="allsmcap">I</span>; o Duque de Orleans, irmão do mesmo Delfim, a
-quem o Imperador Carlos <span class="allsmcap">V</span> promettera a investidura do Ducado
-de Milão, ou do Condado de Flandres; e não se effeituando nenhum
-d’estes cazamentos, por morrerem ante tempo ambos estes Principes,
-El-Rei D. Fernando de Ungria, Rei dos Romanos, e depois Imperador
-enviou Embaixador a Portugal pedindo-a por mulher de Maximiliano
-seu filho; e ultimamente Filippe <span class="allsmcap">II</span> de Hespanha, logo que
-enviuvou da Rainha D. Maria de Inglaterra. Permaneceu todavia até á
-morte no estado de Donzella, que havia consagrado a Deos com generoza
-rezolução, preferindo mais o amor da quietação de seu espirito, que
-a cobiça de reinar.<span class="pagenum" id="Page_229">[Pg 229]</span> No anno de 1558, sendo ja fallecido El-Rei D.
-João III, por comprazer aos dezejos da Rainha D. Leonor sua mãi que
-procurava anciozamente vê-la, se foi por Elvas a Badajoz com luzido
-acompanhamento; e demorando-se ahi com ella por espaço de vinte dias,
-e com a Rainha D. Maria de Ungria e Bohemia sua tia, que a receberam
-com muitas festas de prazer, se tornou para o Reino. Determinada a não
-sair de Portugal, e a não admittir propostas de despozorios continuou
-em religiozos exercicios praticando obras de muito louvor, como foram:
-a edificação do Convento magnifico de N. Senhora da Luz da Ordem de
-Christo, que dotou riquissimamente, com a grande obra do Hospital que
-lhe ficava fronteiro; o Mosteiro de Santa Helena do Calvario em Evora;
-o Convento de N. Senhora dos Anjos (mais conhecido hoje pelo convento
-do Barro), de Capuchos Arrabidos, junto da Villa de Torres Vedras,
-na qual teve ella seu palacio; e o Mosteiro de S. Bento na Villa de
-Santarem; e deixou em seu Testamento, com que se edificasse Mosteiro
-para as Commendadeiras de S. Bento de Aviz, que se fez em Lisboa com
-a invocação, como ella ordenára, de N. Senhora da Encarnação. Fundou
-mais a Igreja Parochial de Santa Engracia de Lisboa, alem de outras
-muitas obras de piedade em outras Igrejas, como no Convento da Graça
-da Ordem de Santo Agostinho, em que assistia muitas vezes com sua
-prezença e esmollas, quando vivia no Palacio<span class="pagenum" id="Page_230">[Pg 230]</span> do Castello, a Imagem
-da Senhora, cujo corpo mandou cobrir de prata primorosamente lavrada,
-e lhe mandou fazer Capella; e no Real Mosteiro de S. Bento, que então
-se fabricava, mandou fazer a Imagem grande deste Santo, que se vê no
-altar mór, e adornar sua Capella, e a de outros altares; e por via
-do Embaixador de Portugal na Côrte de Roma obteve uma Reliquia do
-mesmo Santo, que he uma parte da que estava no Mosteiro de S. Paulo
-daquella Cidade, para enobrecer este Mosteiro, e o de Santarem. Foi a
-Senhora D. Maria, como universal herdeira da Rainha D. Leonor sua mãi,
-Senhora Soberana de juro do Senescallado de Agenois em Gascunha, e dos
-opulentos Dominios de Verdum, e Rieux na Provincia de Languedoc; e alem
-de muitas baixellas de ouro, prata, joias de grande valor, de cem mil
-escudos que lhe pagavam os Reis de França, e Castella. Sua morte foi no
-anno de 1577 a 10 de outubro em idade de 56 annos, nos seus paços da
-Cidade de Lisboa extramuros junto do Mosteiro de Santos, deixando de
-si unico exemplo a todas as altas Princezas de virtude e honestidade.
-Tinha disposto de sua ultima vontade, como se podia esperar de sua
-muita sciencia, e Christandade, por Testamento de 17 de Julho do mesmo
-anno de 1577, e Condicillo de 31 de Agosto que fez approvar a 8 de
-Setembro, o que mais convinha a sua consciencia, determinando muitas
-obras de piedade por todo o Reino com grandes soccorros para<span class="pagenum" id="Page_231">[Pg 231]</span> pobres,
-viuvas, donzellas, orfãos, enfermos, e cativos com tamanha profusão que
-não houve quazi genero de pessoa, que não experimentasse a caridade,
-e mizericordia desta Princeza, sem faltar em nada á familia de seus
-criados, e a todos a quem por qualquer via era devedora de serviços
-passados, que a todos satisfez larguissimamente: e emquanto a seu
-enterro foi a primeira clauzula, que se acabasse sua vida, primeiro
-que estivesse concluida a Capella de N. Senhora da Luz no Convento
-dos Padres de Christo, que ella havia destinado, e mandára edificar
-para seu jazigo, a depozitassem, emquanto se acabava, no Mosteiro
-da Madre de Deos de Lisboa. Seu corpo foi depozitado no Capitulo do
-dito Mosteiro da Madre de Deos, junto da Rainha D. Leonor, mulher do
-Senhor Rei D. João II, e celebraram-se-lhe exequias com grande pompa,
-como convinha á grandeza de sua pessoa, com assistencia d’El-Rei
-D. Sebastião oito mezes antes de partir para Africa, do Cardial D.
-Henrique, e de todos os grandes do Reino. Sendo passados quazi vinte
-annos, por determinação de Filippe I foi trasladada para a sobredita
-Capella de N. Senhora da Luz a 30 de Junho de 1597. Jaz em o pavimento
-da Capella mór, em sepultura pouco levantada no meio della, e sem
-nenhuma letra, ou diviza, symbolizando-se por este signal de humildade
-a muita que esta Princeza guardou em seu coração por toda a vida.
-No meio do Cruzeiro ao lado do Evangelho se lê em pouca<span class="pagenum" id="Page_232">[Pg 232]</span> altura na
-parede uma Inscripção, gravada de letras pretas romanas em uma pedra
-de marmore branco de tres palmos de alto, e cinco de largo, a qual diz
-assim:</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>—A Capella moor deste Mosteiro de N. Senhora da Luz e este Cruzeiro
-são da sepultura da Serenissima Infanta Dona Maria que Deos tem filha
-d’El-Rei Dom Manoel, e da Rainha Dona Lianor sua mulher na qual Capella
-e Cruzeiro se não dará sepultura a pessoa alguma de qualquer calidade
-que seja nem em tempo algum se fara nhum Deposito nem nhum litereiro
-por assi estar asentado por Sua Magestade e por contrato solene e
-celebrado que se fez co o Padre Prior e Padres desta Casa confirmado
-pelo Padre Dom Prior e mais Padres do seu Convento de Tomar cujo
-trelado esta na Torre do Tombo e nesta Caza de Nossa Senhora. Faleceo a
-dez Doutubro de 1577.—</p>
-
-<p>Esta biographia vem na obra—<i>Retratos e elogios dos varões e donas,
-que illustraram a nação portugueza.</i> (Lisboa, 1817).</p>
-
-
-<h3>S. Sebastião do Paço do Lumiar</h3>
-
-<p>A ermida de S. Sebastião está isolada em alegre terreiro, moldurado de
-bons predios, alguns antigos, no logar do Paço do Lumiar.</p>
-
-<p>Este logar é continuação do Lumiar propriamente dito, para o lado da
-Luz e Bemfica.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_233">[Pg 233]</span></p>
-
-<p>Partindo do amplo largo da Luz segue-se uma estrada entre boas quintas
-á Horta Nova; já proximo do Paço ha boas construcções modernas á beira
-do caminho.</p>
-
-<p>A ermida é muito simples; chama principalmente a attenção a porta em
-estilo manuelino, elegante e bem conservada.</p>
-
-<p>O exterior da pequenina egreja mostra que a primitiva obra do começo
-do seculo XVI, soffreu grandes concertos depois. Na cruz de azulejos
-que está no lado norte lê-se <i>Anno 1628</i>; a mesma data se mostra
-no azulejo que fórra o interior; houve pois grande obra alli n’esse
-tempo. As volutas d’alvenaria e os pinaculos lateraes do frontispicio
-levam-nos a crer que mais tarde, no meado do seculo XVIII, talvez
-depois do terremoto de 1755, houve novo e importante concerto.</p>
-
-<p>Temos aqui azulejos datados d’uma época interessante, do periodo
-philippino, 1628. São de desenho geometrico na maioria, emquadrando
-porém bons trabalhos em figura.</p>
-
-<p>O corpo do templo é dividido da capella por um arco e na face d’este
-arco estão as imagens em azulejo de S. Francisco, S. Pedro, S. Antonio
-e S. Paulo; sobre a porta lateral está um famoso S. Christovão
-empunhando respeitavel bordão, com o Menino sobre o hombro. O artista
-empregava varias tintas, amarello, roxo, além dos tons vulgares. Nas
-paredes da capella ha pequenos quadros tambem em azulejo, azul sobre
-branco, representando<span class="pagenum" id="Page_234">[Pg 234]</span> phases da vida de S. Sebastião, muito mais
-modernos que os do corpo do templo.</p>
-
-<p>É nos azulejos do arco divisorio, infra, que está em grandes algarismos
-a data 1628, quasi encoberta pelos estrados de madeira.</p>
-
-<p>No alizar d’este arco, ha flores pintadas com mimo; assim como no
-pequeno côro se vêem caixotões com pinturas.</p>
-
-<p>O ladrilho é antigo e bom; com azulejos brancos entre os tijolos
-vermelhos. As portas são de excellente madeira, em almofadas de boa
-execução.</p>
-
-<p>O tecto da ermida soffreu alguma ruina, talvez pelo terremoto, mas
-conserva ainda boas pinturas antigas, entre estuques mais modernos.</p>
-
-<p>Tem alguns lettreiros em sepulturas, uns bem legiveis, outros gastos
-pela passagem dos devotos, o que mostra que em tempos foi esta ermida
-frequentada; agora poucas vezes ha alli missas.</p>
-
-<p>Transcreverei algumas inscripções.</p>
-
-<p>—Aqui jaz sepultado o padre Joaquim Jorge faleceo a 9 de novembro de
-1783.</p>
-
-<p>—S.ᵃ do P.ᵉ Antonio Pinheiro capelão que foi d’esta hirmida o qual
-faleceu na era de 1705.</p>
-
-<p>—S.ᵃ do capitão Estevão Soares de Alvergaria cavaleiro da ordem de
-Christo faleceu a 11 de dezembro de 1644 e de sua molher Anna de Masedo
-da Maia e de sua mãi Madalena da Maia....</p>
-
-<p>Tem seu escudo gravado; a cruz fioreteada, com orla de escudos, elmo e
-paquifes.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_235">[Pg 235]</span></p>
-
-<p>Outra campa é do—P.ᵉ Antonio Mamede bemfeitor desta irmida, que morreu
-em 1 de abril de 1791.</p>
-
-<p>Em outra muito gasta pareceu-me vêr o nome Rodrigo Diniz Moreira.</p>
-
-<p>Sobre a torre dos sinos ergue-se no eirado um campanario onde está o
-sino das horas; porque tem seu relogio a pequena ermida, com mostrador
-voltado para norte.</p>
-
-<p>Ha na frontaria quatro argolas de ferro que serviam para segurar um
-grande toldo na occasião das festas.</p>
-
-<p>Quando fiz o esboceto do frontispicio estive a conversar com um velhote
-que antigamente tratava do relogio, e armava o toldo, que era quasi
-sempre uma vela de navio emprestada pelo arsenal de marinha.</p>
-
-<p>Embora humilde e acanhado tem o pequeno templo uma certa importancia
-por ser anterior ao grande terremoto de 1755, e por nos conservar além
-do gracioso portal manuelino, pinturas e azulejos do seculo XVII, em
-bom estado de conservação.</p>
-
-
-<h3>Lumiar. Quinta do Sr. Duque de Palmella</h3>
-
-<p>Esta egreja de S. João Baptista do Lumiar é freguezia muito antiga.</p>
-
-<p>A disposição do templo mostra a sua remota fundação, grandiosa, em tres
-naves; mas as reconstrucções<span class="pagenum" id="Page_236">[Pg 236]</span> e concertos deram-lhe um aspecto moderno.</p>
-
-<p>Consta que foi esta egreja fundada em 1267. Eram padroeiras as freiras
-de Odivellas, por doação de D. Thereza Martins, viuva de D. Affonso
-Sanches, filho bastardo d’el-rei D. Diniz.</p>
-
-<p>Não pára aqui a historia. D. Affonso <span class="allsmcap">III</span> possuia aqui uma casa
-de campo com sua quinta; esta propriedade pertenceu depois a D. Diniz.</p>
-
-<p>Em terreno da quinta foi edificada a egreja. A posse passou ao bastardo
-de D. Diniz, o infante D. Affonso Sanches, e então se chamou á casa de
-campo o Paço de Affonso Sanches.</p>
-
-<p>Este entrou nas luctas d’aquella época atormentada, os bens foram-lhe
-confiscados, e D. Affonso <span class="allsmcap">IV</span>, o irmão, chamou-lhe o Paço do
-Lumiar. Mais tarde a propriedade deixou de pertencer á corôa, mas
-conservou sempre o nome de Paço do Lumiar; por alli se ergueram casas,
-fez-se povoação, e ao fim d’ella uma ermida dedicada a S. Sebastião.</p>
-
-<p>O marquez de Angeja, D. Francisco de Noronha, em fins do seculo
-<i>XVIII</i> edificou o actual palacio, hoje pertencente á Casa
-Palmella.</p>
-
-<p>O duque de Palmella, D. Pedro, homem de espirito cultissimo e fino
-gosto, gostava immenso da sua quinta, augmentou-a com a que pertencera
-á casa dos marquezes de Olhão, depois ao conde da Povoa, e algumas de
-menor importancia, e assim formou a grandiosa quinta actual, com o<span class="pagenum" id="Page_237">[Pg 237]</span>
-seu palacio, e grande pavilhão, jardins, estufas, avenidas de grandes
-arvoredos, obras de arte de merecimento.</p>
-
-<p>Sendo de forte declive o terreno da quinta tiveram de fazer grandes
-socalcos, sustentados por fortissimas muralhas o que dá effeitos
-raros, perspectivas inesperadas a edificios e arvoredos. Ha ahi bellos
-exemplares vegetaes, a Araucaria excelsa é a primeira plantada em
-Portugal, o dragoeiro, ainda que um pouco mutilado é bello exemplar,
-a Araucaria brasileira compara-se á celebre do jardim botanico de
-Coimbra; cedros, platanos, e ulmeiros seculares alastram fechadas
-sombras. Nesta quinta se deram luzidas festas no tempo do 1.ᵒ duque, e
-aqui se guarda, bem ordenada e conservada, a grande e preciosa livraria
-Palmella.</p>
-
-<p>Mas dos tempos de Affonso Sanches, de Diniz? Nada, nem vestigio; nem
-uma pedra toscamente lavrada, ou singelo lettreiro, nada recorda esses
-tempos antigos.</p>
-
-
-<h3>Terremotos</h3>
-
-<p>Esta formosa cidade de Lisboa tem sido victima dos terremotos;
-impossivel calcular o trabalho perdido, a extensão e a intensidade de
-tanta ruina.</p>
-
-<p>Em certos pontos da cidade a camada de entulhos, caliças, fragmentos de
-tijolos, é de 3 a 4 metros; pela abertura de cabôcos, e installação de<span class="pagenum" id="Page_238">[Pg 238]</span>
-canalisações, e muito se tem escavado nos ultimos annos por todos os
-arruamentos, descobrem-se na baixa, no Rocio, por exemplo, trechos de
-canos antigos abandonados e sobrepostos, ainda a profundidade maior.</p>
-
-<p>De tremores muito antigos, e dos da alta idade média ha tradições.</p>
-
-<p>O de 24 d’agosto de 1356 destruiu parte da Sé, e causou enorme
-devastação na cidade.</p>
-
-<p>Em janeiro de 1531 houve terremotos a seguir, sendo maior e mais
-destruidor o de 26 d’esse mez.</p>
-
-<p>O de 28 de janeiro de 1551 derribou muitos predios.</p>
-
-<p>Em 27 de julho de 1597 uma parte do monte de Santa Catharina escorregou
-para o rio, ficando aquelle alteroso monte dividido em dois, Chagas e
-Santa Catharina; tres arruamentos desappareceram por completo.</p>
-
-<p>Em 1755 a cidade estava maior, mais povoada; o terremoto de 1 de
-novembro fez muitas victimas, grande parte da cidade ficou arrasada, e
-o incendio causou incalculavel prejuizo.</p>
-
-<p>Mencionam-se terremotos em 1598, 1699, 1724, fortes mas sem causar
-grande damno; os abalos de 1761, 1796, 1807; o de 11 de novembro
-de 1858 muito sensivel, em Setubal foi destruidor, matando gente e
-derribando casas.</p>
-
-<p>O sr. Paulo Choffat tem trabalhos publicados sobre os ultimos abalos de
-terra sentidos na capital.</p>
-
-<p>É certo que Lisboa está n’uma zona perigosa;<span class="pagenum" id="Page_239">[Pg 239]</span> devemos reparar n’isto.
-Nada de concentrar tudo em Lisboa, guardem-se algumas cousas em sitios
-mais garantidos.</p>
-
-<p>E todavia ha aqui consideraveis construcções que atravessaram no
-seu logar e prumo essas medonhas convulsões; por exemplo uma parte
-consideravel das muralhas do Castello, Santa Luzia e a sua muralha, as
-capellas orientaes do Carmo, os arcos do Borratem, a casa dos Bicos, a
-frontaria da Conceição Velha; bastantes edificios anteriores ao abalo
-de 1755 estão de pé; alguns palacios aguentaram as suas linhas, e o
-labyrintho das viellas de Alfama conserva a planta medieval.</p>
-
-<p>Mas basta olhar as paredes mais antigas do Carmo e da Sé para perceber
-pedras de anteriores construcções, fragmentos de lettreiros e lavores,
-empregados na enxilharia ordinaria. Na vetusta parede norte da Sé ha
-pedras mettidas no muro que mostram lavor bysantino. No Carmo bocados
-de campas com lettreiros em gothico, em diversos pontos do edificio,
-estão empregados como pedra vulgar de construcção. É raro encontrar nos
-arrabaldes de Lisboa pedras de antigo lavor, da idade média, do ogival,
-mesmo da primeira renascença no seu logar; Odivellas é uma excepção,
-assim como o casal da Quintan com o seu muro de ameias. É preciso ir
-a Cintra, a Torres Vedras, a Santarem para vêr algo antigo de certa
-importancia.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_240">[Pg 240]</span></p>
-
-<p>Na ultima folha de pergaminho do codice n.ᵒ 61 da collecção alcobacense
-da Bibliotheca Nacional de Lisboa um monge deixou noticia do grande
-abalo de 24 de agosto da era de Cesar 1394 (1356); fez grandes estragos
-prostrando castellos e torres em muitos pontos do paiz; em Alcobaça a
-egreja soffreu muito, no mosteiro houve ruinas, e cahiram muralhas do
-castello. Foi ao pôr do sol.</p>
-
-<p>Outro monge na mesma pagina escreveu a memoria do terremoto de janeiro
-de 1531; por mais de 15 dias sentiram tremer a terra; mas no dia 26,
-antes do nascer do sol, foi o grande tremor; conta que em Lisboa houve
-grande estrago; no mosteiro houve muita ruina, não escapando a parte
-superior do claustro.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>O abalo de terra de 1755 foi violentissimo, mas escriptores e artistas
-ainda lhe augmentam as culpas. Este terremoto e a invasão dos francezes
-são motivos fundamentaes para explicar o desapparecimento de muita
-cousa, uma rica mina para encobrir o desleixo, a estupidez, a mania de
-estragar que é muito da raça portugueza.</p>
-
-<p>No tomo 3.ᵒ da==<i>Collecçam Universal de todas as obras que tem sahido
-ao publico sobre os effeitos que cauzou o terramoto nos reinos de
-Portugal e Castella no primeiro de novembro de 1755</i> (Bibl. Nac. de
-Lisboa, Gabinete de livros reservados), ha alguns opusculos de polemica
-sobre<span class="pagenum" id="Page_241">[Pg 241]</span> a grandeza da tremenda catastrophe: ==<i>Carta em que hum amigo
-dá noticia a outro do lamentavel successo de Lisboa</i>==Está assignada
-por José de Oliveira Trovão e Sousa (1755).</p>
-
-<p>==<i>Resposta á carta de José de Oliveira Trovam e Sousa em que se dá
-noticia do lamentavel sucesso de Lisboa.</i> É de 1756; assignada por
-Antonio dos Remedios.</p>
-
-<p>==<i>Verdade vindicada ou resposta a huma carta escrita de Coimbra.</i>
-Por José Acursio de Tavares (Lisboa, 1756). De taes escriptos
-conclue-se que o terremoto destruiu bem a terça parte de Lisboa e que
-o incendio que se lhe seguiu foi terrivelmente devastador; mas fóra
-da area de grande intensidade do abalo, e além do espaço que o fogo
-alcançou, muitos predios, bastantes palacios, grandes arruamentos
-ficaram salvos; agora é bem raro encontrar uma frontaria, uma janella,
-uma grade de varanda anterior ao terremoto. No final do seculo XVIII
-e no seculo XIX a transformação foi completa; basta a vulgarisação da
-vidraça e o desapparecimento da rotula para modificar o aspecto da
-cidade. Em povoações onde o terremoto não foi tão destruidor, apenas se
-sentiu, a transformação foi analoga. É que na verdade o portuguez é bem
-fraco conservador. Aqui pelos arrabaldes de Lisboa direi mesmo que é
-destruidor. Por isto eu dou toda a attenção ao que me parece antigo, me
-demoro com o anterior ao seculo XVIII, e quasi pasmo quando me surge um
-fragmento do seculo XVI.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_242">[Pg 242]</span></p>
-
-<p>Folheando qualquer <i>Illustração</i> estrangeira se vê o carinho, o
-amor com que em paizes muito mais atormentados que o nosso se guardam
-antigos edificios, casas particulares de aspecto artistico, objectos de
-uso vulgar consagrados pela idade, qualquer cousa que seja documento
-do antigo viver. Os terremotos são damninhos, mas a indifferença, o
-desleixo, a ignorancia são grandes causas de destruição.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Este caminho entre varzeas ferteis, arvoredos mansos, collinas de
-grandes curvas com terras de semeadura e verdes pinhaes, por onde
-vamos encontrando gente do campo, scenas da vida popular, é a via
-tragica na historia de Portugal, brados de victoria e rumores de
-desespero, marchas de tropas em dias de lucta, por aqui passaram entre
-estas paisagens que só lembram agora frescas aguarellas; patuleias e
-cartistas; miguelistas e pedristas, columnas de Junot e de Wellington;
-castelhanos que vieram cercar Lisboa, portuguezes voltando de
-Aljubarrota; e provavelmente cavalleiros de Affonso Henriques, e dos
-mouros, dos godos e dos romanos; porque é esta a estrada que leva a
-Lisboa, a antiga e nobre cidade, o grande porto maritimo.</p>
-
-<p>Na ida para o Correio-Mór, perto da Povoa de Santo Adrião, reparei em
-certa pedra lavrada de aspecto raro; na volta parei e fui vê-la; é</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_243">[Pg 243]</span></p>
-
-
-<h3><i>Uma ara romana.</i></h3>
-
-<p>Ha um poço coberto, encravado no muro, a poucos metros da estrada;
-sobre um pequeno arco um nicho com a imagem de S. Pedro; perto um
-poial, alto, e no chão uma pedra lavrada, com funda cavidade. É um
-parallelepipedo de oito decimetros de comprido, por tres de altura,
-proximamente, de pedra vidraço; um cordão de forte relevo divide os
-lados em duas fachas; na superior um lavor geometrico, curvas em grega
-torneando saliencias circulares; na facha inferior quatro rosas entre
-curvas symetricas. Creio que é uma ara romana. Salvou-se junto da fonte
-d’agua com virtude, guardada pela tradição. Por aquelles sitios teem
-apparecido antiguidades romanas, ainda que são muito menos numerosas
-as inscripções que nos arredores de Cintra. Como esta pedra lavrada
-atravessou intacta tantos seculos, n’este paiz de estragados!</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>—Versos novos?!</p>
-
-<p>—Umas liras! diga já, frei Simão!</p>
-
-<p>Estavam no jardim, na meia laranja da cascata, á sombra do platano
-alteroso. Linda manhã de junho. Era o dia anniversario da senhora
-morgada;<span class="pagenum" id="Page_244">[Pg 244]</span> visitas de Lisboa animavam o palacio. A missa tinha sido
-ás 7, e o almoço terminára ás 9. Alguns dos senhores partiram para a
-tapada, outros para o picadeiro vêr os dois cavallos novos que o conde
-trouxera de Sevilha.</p>
-
-<p>O apparecimento de frei Simão, frade jeronymo, que viera de Belem em
-ruidosa e balouçante caleça, foi saudado com alvoroço; o frade tinha
-sempre a contar anecdotas facetas, algumas muito repetidas mas que
-elle contava com certa graça, e noticias da gente palaciana, sempre
-saboreadas com delicia.</p>
-
-<p>Frei Simão avançou devagar, até perto da morgada, muito serio, fez uma
-cortezia reverendissima, e recitou o soneto de parabens pelo feliz
-anniversario; era composição nova; vinha escripto em primorosa lettra
-num papel, com sua inicial floreada, enrolado e atado com fita de seda
-branca.</p>
-
-<p>Depois deixando o tom ceremonioso, pondo-se muito risonho, annunciou os
-versos novos, umas <i>sonóras</i>, não umas <i>liras</i>...</p>
-
-<p>—Diga, diga.</p>
-
-<p>—É a segunda vez que as leio...</p>
-
-<p>—E nós a julgarmos que tinhamos a primicia...</p>
-
-<p>—A primeira vez só uma pessoa, alta pessoa, as ouviu. Por isto posso
-dizer a primicia.</p>
-
-<p>—Quem seria a alta pessoa?</p>
-
-<p>—Eu digo, senhora morgada; foi el-rei que Deus Guarde.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_245">[Pg 245]</span></p>
-
-<p>—Bravo! foi ao Paço? teve audiencia?</p>
-
-<p>—Foi na rua, antes na estrada. El-rei viu-me passando pela estrada de
-Pedrouços; mandou parar o coche. E bradou-me:</p>
-
-<p>—Então, oh! Santa Catharina, fizeste a resenha?</p>
-
-<p>—Sim, meu senhor, e está em verso; ia levá-la a Vossa Real Magestade.</p>
-
-<p>—Não precisas ir mais longe; dize lá.</p>
-
-<p>Acheguei-me á porta do coche e li os versos. Eu já me sentia acanhado
-porque a lira é comprida, e o coche ali parado na estrada. Mas el-rei
-D. João V gosta de versos jocosos; não imaginam como elle ria.</p>
-
-<p>—E como soube elle que Vossa Reverencia fizera a lira?</p>
-
-<p>—Ora, foi assim. Em Belem, no nosso mosteiro, pela festa de S.
-Jeronymo, costuma haver lauto jantar, com convidados; ao jantar da
-casa, jantar de festa, juntam-se muitos presentes; enche-se o grande
-refeitorio; o d’este anno foi estrondoso. El-rei soube e encontrando-me
-ha dias em palacio, disse-me para lhe fazer a noticia dos pratos; e eu
-puz a lista em verso; fiz a lira!</p>
-
-<p>—Diga, diga.</p>
-
-<p>—Eu começo; frei Simão de Santa Catharina collocou-se em frente das
-damas; limpou lentamente a fronte, a bocca e o nariz com o lenço
-cheiroso a agua de rosas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_246">[Pg 246]</span></p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Monarcha Soberano</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Pois Vossa Magestade assim me ordena</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>O jantar deshumano</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Irá cantando a Musa pouco amena</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>E em ser só se verá que foi diverso</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>No refeitorio em prosa e aqui em verso.</i></span><br />
-</p>
-
-<p>A lira vae descrevendo o grande refeitorio, o adorno das janellas
-com estatuas, festões, grinaldas de flores naturaes, os aparadores
-carregados de pratas, o chão atapetado de flores.</p>
-
-
-<p><i>Estava o refeitorio num brinco.</i></p>
-
-<p>Em cada logar da vasta meza havia os <em>appetites</em>, as pequenas
-iguarias, com seus adornos.</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Cobria o cuvilhete</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>um papel retalhado, com acerto</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>que inda que pequenete</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>como grande queria estar coberto.</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Na marmelada vinha, guaposito</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>guarnecido de flores um palito.</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Em cada assento havia</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>garfo, faca, colher e guardanapo</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>dois pães, com bizarria</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>melancia excellente, melão guapo</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>figos, uvas, limões, pecegos, peras</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>sem graça, o cesto enchiam, mui devéras.</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>A ilharga da salceira</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>um bom tassenho de presunto havia</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>tão magro e tão lazeira</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>que a mim me pareceu ser porcaria</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>tambem tinha azeitonas e alguem disse</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>que foram d’Elvas.</i></span><br />
-</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_247">[Pg 247]</span></p>
-
-<p>Estes eram os appetites que adornavam os logares dos commensaes. Agora
-os pratos.</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Foi o primeiro prato uma tijella</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>cheia em demazia</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>de caldo de gallinha com canella</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>que da gallinha trouxe a propriedade</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>porque o caldo tinha ovo na verdade.</i></span><br />
-<span style="margin-left: 3.5em;"><i>Foi o segundo prato</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>uma bem feita sopa á portuguesa</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>que dava de barato</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>O filis e o primor que ha na franceza.</i></span>
-</p>
-
-<hr class="tb" />
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Por algum grão delito</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>foram muitos perús esquartejados</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>uns vêm com sambenito</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>outros vinham sómente afogueados.</i></span><br />
-</p>
-
-<hr class="tb" />
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Outro prato de assado</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>que era lombo de vacca mui tenrinho.</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Comia afadigado</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>outro leigo mui gordo meu visinho</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>rollos e pombos ensopados.</i></span><br />
-</p>
-
-<p>Seguiram-se as frigideiras com linguas e miolos. Os coristas
-que serviam á meza eram muitos e andavam lestos. Appareceram as
-<i>empanadas inglezas</i>; tinham:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Ade, perdiz, gallinha, frangalhada</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>E disto vinha a olha enchouriçada.</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Apoz isto algumas doze tortas.</i></span><br />
-<br /></p>
-<p><span class="pagenum" id="Page_248">[Pg 248]</span></p>
-
-<hr class="tb" />
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Cinco ou seis pratos de ovos</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>De pão de ló por dentro recheados</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Outros mal entrouxados</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Outros ovos tambem com corôa regia</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>De almojavanas conto</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>A duas mui grandes por cabeça</i></span><br />
-<span style="margin-left: 4em;"><i>Em assucar em ponto.</i></span><br />
-</p>
-
-<p>Depois d’isto <i>empada de vitella</i> e <i>arroz doce</i>.</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Sinceramente disse aqui a verdade</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Falta o perdão de Vossa Magestade.</i></span><br />
-</p>
-
-<p>Vem agora a nota no amarellado papel que estou seguindo:</p>
-
-<p>—<i>Indo levar o papel a Pedrouços se encontrou el-rei que mandou
-parar o coche e parado ouviu ler todo o papel com muito agrado.</i></p>
-
-<p>Mas frei Simão de Santa Catharina esqueceu-se de uma cousa, e o padre
-geral quando viu o papel reparou logo, e zangou-se; obrigou o frade a
-fabricar mais versos e a levar o supplemento a el-rei.</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;"><i>O caso é que na salceira</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>me esqueceu de meio a meio,</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>com o presunto e azeitonas</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>pôr um pedaço de queijo.</i></span><br />
-</p>
-
-<hr class="tb" />
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Pois vá, faça outros, e ponha</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>(me disse o Geral severo)</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>que não quero que diga el-rei</i></span><br />
-<span class="pagenum" id="Page_249">[Pg 249]</span><span style="margin-left: 1em;"><i>que não dei queijo framengo.</i></span><br />
-<br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>Saiba Vossa Magestade</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>que tambem queijo tivemos</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>noviços e sacerdotes</i></span><br />
-<span style="margin-left: 1em;"><i>coristas e frades leigos.</i></span><br />
-</p>
-
-<p>A <i>lira</i> de frei Simão Antonio de Santa Catharina foi muito gabada
-e applaudida.</p>
-
-<p>—É uma delicia!</p>
-
-<p>—Um verdadeiro appetite, faz vontade de comer.</p>
-
-<p>—Diga outra vez, e muitas damas insistiam no pedido. Mas a condessa
-observou:</p>
-
-<p>—Tenham caridade, isso é incommodo para Sua Reverencia. Ainda se não
-lembraram de mandar vir um refresco.</p>
-
-<p>Veiu logo um creado com bandeja de prata com bolos e marmellada de
-Odivellas; outro creado com licor de tangerina e canella, e um copo de
-limonada. Voltaram os senhores, fez-se grande roda, e entre risos e
-<em>ós</em> admirativos repetiu-se a leitura dos versos.</p>
-
-<p>—Percebe-se logo que frei Simão é um academico.</p>
-
-<p>—E de varias academias.</p>
-
-<p>—Da Anonyma sei eu, por ser lá meu confrade.</p>
-
-<p>—E da Portugueza.</p>
-
-<p>—E da Escholastica.</p>
-
-<p>—É verdade, frei Simão, deve saber, ora se sabe, houve eleição renhida
-em Odivellas; muita<span class="pagenum" id="Page_250">[Pg 250]</span> gente, e da mais alta se interessou na eleição da
-nova abbadessa.</p>
-
-<p>O frade contou o que sabia dos bilhetes, dos pedidos, das ordens, das
-promessas ás freiras eleitoras; foi uma bulha que durou mezes.</p>
-
-<p>—E não fez versos ao caso?</p>
-
-<p>—Isso merecia liras e sonóras.</p>
-
-<p>—É verdade que fiz, não nego e a prova é esta; aqui está a sonóra; e
-do largo bolso tirou um papel.</p>
-
-<p>—Leia! leia!</p>
-
-<p>—Vou começar.</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">Os enredos, as bulhas, as trapaças</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Os enganos, os medos, os temores</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Os ardis, as astucias, as negaças</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Os agrados, os risos, os amores;</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">As trombas, os focinhos, as caraças</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">As furias, os raivassos, e os rancores</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Que houve em certa eleição com forte espanto</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Darão materia a nunca ouvido canto.</span><br />
-</p>
-
-<p>E segue a sonóra n’este tom, narrando os episodios da eleição da
-abbadessa, no então revoltoso convento de Odivellas, ninho de
-endiabradas freiras. Este frei Simão tem muitas peças poeticas algumas
-muito aproveitaveis para o conhecimento de minucias e particularidades
-da época.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>Dias depois de um passeio a Loures e á quinta do Correio-Mór,
-appareceu-me um cavalheiro<span class="pagenum" id="Page_251">[Pg 251]</span> d’aquelles sitios, com quem eu cavaqueara,
-e apresentou-me uma porção de papeis velhos, manuscriptos, que me
-disse ter encontrado havia annos n’um gavetão da copa monumental do
-palacio. Percorri os papeis; pouco achei de curioso ou interessante.
-Entre elles vinham poesias do seculo XVIII, alguns sonetos de
-anniversarios, dirigidos a pessoas da familia Matta; e uma descripção
-de lauto banquete no mosteiro dos Jeronymos de Belem, que me pareceu
-bom documento da época, e singular peça poetica. Por isto a transcrevo
-em parte. Nos papeis não encontrei nome do auctor. Depois achei n’um
-cancioneiro a mesma poesia attribuida a frei Simão Antonio de Santa
-Catharina, e até com a mesma nota pittoresca de ter sido lida a el-rei
-D. João V, na estrada de Pedrouços.</p>
-<p><span class="pagenum" id="Page_253">[Pg 253]</span></p>
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_255">[Pg 255]</span></p>
-
-<h2 class="nobreak" id="Torres_Vedras">Torres Vedras</h2>
-</div>
-<hr class="r5" />
-<p class="center">Notas d’arte e archeologia</p>
-<p class="center">(1906)</p>
-<h3>Paineis antigos em Torres Vedras</h3>
-
-
-<p>Em rapida visita que fiz, ha pouco, a Torres Vedras, chamaram-me a
-attenção os quadros em madeira, antiga pintura, que vi em differentes
-egrejas.</p>
-
-<p>Torres Vedras foi villa das rainhas, alli viveram familias nobres,
-houve paços reaes e casas religiosas importantes.</p>
-
-<p>Já no seculo XIII as egrejas de Santa Maria do Castello, de S. Pedro,
-de S. Miguel e de S. Thiago existiam, como se vê das inquirições de
-Affonso III. Isto mostra que a villa era importante já na edade média,
-e explica um tanto a existencia de um numero relativamente consideravel
-de pinturas antigas. Só mencionarei as que me despertaram mais a
-attenção.</p>
-
-<p>Ha alli pinturas de varios pinceis e épocas,<span class="pagenum" id="Page_256">[Pg 256]</span> umas anteriores á
-renascença, algumas do inicio d’essa época, outras do meiado do seculo
-XVI.</p>
-
-<p>Na egreja de Nossa Senhora do Amial vi quatro quadros grandes,
-representando S. Paulo, S. Pedro, S. Lourenço e S. Sebastião.</p>
-
-<p>Na sacristia de S. Pedro estão tres quadros em madeira; um d’elles, a
-Annunciação, muito lindo e em bom estado.</p>
-
-<p>Na egreja, sobre o arco do cruzeiro, está um painel grande,
-representando S. Pedro, retocado modernamente.</p>
-
-<p>Na egreja da Graça, na segunda capella á direita, seis quadros
-pequenos, um tanto sujos mas não arruinados; muito interessantes.</p>
-
-<p>Ha um pouco de renascença nas construcções, voltas redondas nas
-arcadas, apenas.</p>
-
-<p>Figuras principaes sem ornatos, mas as secundarias vestidas á época,
-grandes e plebeus, damas da côrte, mulheres humildes, com os seus
-trajos proprios, muito minuciosa e galantemente indicados.</p>
-
-<p>Representam: o Presepe, Adoração dos Reis, Annunciação, a Virgem e
-Santa Isabel, S. José e Nossa Senhora, o Transito de Nossa Senhora.</p>
-
-<p>Os rostos, muito finamente tocados, parecem retratos, nos vestuarios
-não ha phantasias, o pintor reproduziu o que tinha á vista; mesmo
-o agrupamento, a composição dos quadros, agrada. Tem um lindo tom;
-limpando um pouco, com o lenço humedecido, um cantinho de uma d’estas<span class="pagenum" id="Page_257">[Pg 257]</span>
-pinturas appareceu logo o tom de esmalte que, infelizmente, tantos
-outros perderam.</p>
-
-<p>Esses seis quadrinhos são bem notaveis.</p>
-
-<p>Na capella-mór da egreja do Varatojo vi quatro grandes paineis, bem
-conservados: Annunciação, Jesus resuscitado, Adoração dos Reis e
-Adoração dos pastores. Devem ser parte de uma série. Não lhes vejo
-relação com as séries do Museu de Bellas-Artes.</p>
-
-<p>Na ante-sacristia, o Presepe, quadro pequeno; na sacristia, um Milagre
-de Santo Antonio e a Descida do Espirito Santo, paineis de grandes
-dimensões e em bom estado.</p>
-
-<p>Em Santa Maria do Castello ha pinturas antigas em madeira, no corpo da
-egreja e na sacristia; estes ultimos são quadros menores, representando
-os episodios classicos da paixão; soffreram retoques pouco felizes; o
-que nelles mais padeceu foi o colorido.</p>
-
-<p>O desenho das figuras; o aspecto, merece nota; tem um tom archaico;
-lembraram-me muito umas pinturas que existem no Museu das Janellas
-Verdes, em que os bigodes apparecem meio-rapados e as barbas com um
-córte especial.</p>
-
-<p>Todos estes paineis, que vi em Torres Vedras, me parecem de origem
-portugueza, com ligeiras, attenuadas reminiscencias de influencia
-flamenga, e com pequena parte, ou nenhuma, do renascimento; por isto os
-achei importantes para a historia da pintura portugueza.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_258">[Pg 258]</span></p>
-
-
-<h3>O Tumulo dos Perestrellos</h3>
-
-<p>A egreja parochial de S. Pedro de Torres Vedras tem a sua porta
-principal voltada a poente, como todos os templos antigos, medievos, da
-interessante villa. Essa porta é muito ornamentada em estylo manuelino;
-sobre o arco assenta um escudo bipartido com armas do rei e da rainha.
-Em dois arcos do cruzeiro ha tambem ornamentação no mesmo gosto, mais
-singela. A egreja tem tres naves, a central é coberta de madeira
-apainelada, com as molduras pintadas e douradas. As naves lateraes
-conservam ainda trechos de antigas abobadas com artezões. Parte das
-paredes está vestida de azulejos brancos e verdes, em uso nos seculos
-XVI e XVII. Ha em varios pontos da egreja e capellas outros typos de
-azulejo de épocas mais modernas.</p>
-
-<p>Alguns quadros pintados em madeira, antiga escola portugueza, outros
-em tela, na egreja, na sacristia e na annexa casa dos clerigos pobres;
-algumas esculpturas religiosas, especialmente a estatueta de S. Pedro
-d’Alcantara, merecem attenção.</p>
-
-<p>No cruzeiro, á direita, está um elegante ediculo com uma urna sepulcral.</p>
-
-<p>É no mesmo estylo da porta principal. O ediculo é em pedra da
-localidade, que é rija, resiste bem ao tempo, e toma, no passar dos
-seculos, uma<span class="pagenum" id="Page_259">[Pg 259]</span> côr amarella torrada, agradavel á vista. A urna é em
-jaspe, em fino trabalho.</p>
-
-<p>Sobre bases facetadas erguem-se columnas que sustentam arcos
-concentricos; ha uma facha muito lavrada, de folhas e flores, com um
-pequeno busto em baixo relevo, imitando medalha, que parece um retrato;
-mostra a cabeça coberta com um capacete um tanto raro. Busto egual se
-vê na porta da egreja.</p>
-
-<p>No ediculo as columnas e arco exterior representam troncos arboreos
-cingidos por fitas.</p>
-
-<p>A urna pousa sobre leões de inferior trabalho. Na face anterior tem o
-lettreiro e aos lados o brazão, repetido, dos Perestrellos.</p>
-
-<p>N’esta urna estão os ossos de João Lopes Perestrello e de sua mulher
-Filippa Lourenço. Este homem foi fidalgo da côrte de D. João II. Foi
-para a India, capitão de uma nau, na armada de Vasco da Grama, em 1502.
-É um dos vultos d’essa notavel familia que tantos homens produziu que
-bem serviram o paiz em Ormuz, em Malaca. Um filho d’elle, Raphael
-Perestrello, andou na descoberta da costa da China, e esteve nas
-Moluccas. Outro filho jaz na mesma egreja de S. Pedro; sob uma campa
-enorme, de mais de dois metros de comprimento, com um lettreiro em
-gothico:—Aqui acerqua de seus quyrydos pais he mai Antonyo Perestrelo
-seu filho escolheo casa para sempre.—</p>
-
-<p>É bom typo de familia d’aquella época; as<span class="pagenum" id="Page_260">[Pg 260]</span> grandes aventuras, as
-viagens ultramarinas; uns ficaram nos mares ou nas guerras, outros
-voltaram ricos, fizeram morgados, e arranjaram na egreja da sua terra
-uma capella para eterno descanço.</p>
-
-
-<h3>Capiteis romanicos</h3>
-
-<p>Na egreja de Santa Maria do Castello, em Torres Vedras, vi dois
-capiteis romanicos na porta principal, que olha para o poente. O
-templo tem soffrido reconstrucções, todavia as linhas principaes são
-as primitivas. Os portaes, de volta redonda, estão nos seus logares de
-origem. Aquella silva que orna a parte superior dos capiteis, formando
-um friso, repete-se aos lados da porta que diz para sul. Os capiteis
-são de calcareo muito rijo, trabalho ingenuo, relevo fundo; pouco teem
-soffrido do tempo. São decorativos e symbolicos; o esculptor quiz
-representar motivos do Cantico dos canticos; é o lyrio dos valles,
-a pomba do rochedo, a maçã entre a folhagem agreste; as comparações
-amaveis feitas á Sulamite, que a egreja christã adoptou. Obra d’arte,
-da alta edade média, é isto o que resta n’esse templo, alvejante entre
-oliveiras, aninhado entre as muralhas vetustas, cubélos e quadrelas
-negras do castello.</p>
-
-<p>Faz-se alli festa religiosa em 15 d’agosto, porque parece que foi
-n’este dia que D. Affonso Henriques tomou a villa aos mouros, em 1148.
-Ainda<span class="pagenum" id="Page_261">[Pg 261]</span> no começo do seculo XIX, na noite do dia 14, vespera da festa,
-faziam grandes fogueiras no adro e por entre as ameias.</p>
-
-<p>Perdeu-se a usança pittoresca, ante esta onda de semsaboria que vae
-estragando tudo.</p>
-
-<p>Os priores d’esta egreja eram capellães d’el-rei; varias rainhas foram
-padroeiras e lhe fizeram donativos.</p>
-
-<p>D. Beatriz, mãe de D. Diniz, residiu em seu paço, que ficava proximo. É
-difficil hoje achar vestigios de paços reaes, ou de quaesquer edificios
-muito antigos em Torres Vedras. Ahi residiram por largas temporadas
-reis e rainhas, por duas vezes se reuniram côrtes, no seculo XV, e
-quasi nada d’essa época se encontra na villa. Tem soffrido muito com
-os terremotos; a parte baixa está visivelmente muito soterrada; isto
-explica em parte o desapparecimento de antiguidades na historica e
-interessante villa.</p>
-
-
-<h3>Ermida e forte de S. Vicente</h3>
-
-<p>A ermida de S. Vicente fica a norte de Torres Vedras; cousa de tres
-kilometros do centro da villa ao alto da collina. Chega-se á varzea
-arborisada do Amial, passa-se o rio Sizandro, a ermida de Nossa Senhora
-do Amial, e do adro d’esta ermida parte uma vereda que vae trepando
-pela vertente, e dando volta, de modo que offerece vistas variadas<span class="pagenum" id="Page_262">[Pg 262]</span> da
-villa, que tem bonito aspecto, do seu vetusto castello, conjuncto de
-paredões, muralhas e cubellos ennegrecidos pelo tempo, e da multidão
-de collinas, quasi todas vestidas de vinhedos viçosos, salpicadas
-de casaes. O cume de S. Vicente está bastante superior ao castello,
-e ás collinas proximas, dominando largo terreno. Depois do corpo de
-S. Vicente entrar na sé de Lisboa houve milagres varios, e um dos
-devotos favorecidos foi um homem de Torres Vedras que lhe edificou uma
-ermidinha em agradecimento. É certo que no começo do seculo XIII já
-alli estava uma ermida; tão certo como não estar lá, á vista, um unico
-lavor ou lettreiro, nem do seculo XVII. Mas ha documentos; e bocados de
-pergaminho bem guardados duram mais que alvenarias expostas a pilhagens
-e bombardeamentos.</p>
-
-<p>Na ermida venerava-se uma imagem de S. Vicente, agora na pequena egreja
-do Amial, e ha tradição de grandes festas que o povo torreense ahi
-celebrava. Arruinou-se, reconstruiu-se, e voltou o abandono; agora
-dormem alli pastores e cabras; se lá estão ainda algumas cantarias é
-pela difficuldade do transporte.</p>
-
-<p>Termina a vereda n’uma passagem empedrada sobre um fosso, vê-se ainda
-bem o relevo da trincheira entre arbustos e silvados, depois a ermida
-toda em ruina e esburacada; a capella redonda tem uma pequena cupula
-de ar mourisco; junto da ermida havia casebres, casa do ermitão e
-albergue<span class="pagenum" id="Page_263">[Pg 263]</span> de romeiros; telhados cahidos, montões de entulho; silvados
-e carrasqueiros bravios; depois da ermida um planalto talvez de 60
-metros de diametro, ahi dois moinhos de vento antigos, em ruina; em
-volta quatro grandes espaldares erguidos, de 2 metros de altura, por
-10 de comprimento; na borda do planalto as baterias, os reductos; as
-canhoneiras ainda com o pavimento lageado, os perfis em alvenaria
-solida; reconstitue-se ainda perfeitamente a celebre fortificação.</p>
-
-<p>Todos teem ouvido fallar das famosas linhas de Torres Vedras que
-defenderam Lisboa contra a invasão franceza do commando de Massena. A
-primeira linha fortificada dividia-se em tres districtos: 1.ᵒ Torres
-Vedras, 2.ᵒ Sobral de Monte Agraço, 3.ᵒ Alhandra.</p>
-
-<p>Dois pontos estavam especialmente fortes, eram os <em>fortes
-grandes</em>, S. Vicente, e o da Serra do Arneiro.</p>
-
-<p>O de S. Vicente tinha 39 canhoneiras, e estava artilhado com 23 peças
-de calibre 6, 9 e 12, e mais 3 obuzes. Podia abrigar 4:000 homens. Além
-dos reductos vejo uns vallados afastados para norte que me parecem
-pequenas trincheiras para abrigo de atiradores. O ponto era, e é ainda,
-importantissimo porque descobre os caminhos em grande extensão.</p>
-
-<p>Outros fortes menores se agrupavam a este, formando um conjuncto
-respeitavel; nas grandes collinas de Olheiros, Outeiro da Forca, Sarges
-(outros<span class="pagenum" id="Page_264">[Pg 264]</span> dizem Ságes) e Ordasqueira havia reductos; formavam um campo
-fortificado.</p>
-
-<p>Em dezembro de 1846 encontraram-se em Torres Vedras, tropas do Bomfim
-com as de Saldanha, houve combate sanguinolento, com episodios
-terriveis, no dia 22; Saldanha tomou o forte de S. Vicente: Bomfim
-encurralou-se no castello, e começou a atirar para lá com a sua peça e
-o seu obuz; e esburacou a ermida. Na varzea do Amial houve encontro de
-cavallaria, e a de Saldanha, muito superior em numero, acutilou ahi,
-mesmo no adro da ermida, a da Junta do Porto.</p>
-
-<p>Ahi n’esse adro do Amial, estão enterrados setenta e tantos cadaveres
-dos fallecidos em combate, na lucta brava da cavallaria, e no ataque de
-S. Vicente.</p>
-
-<p>Depois da batalha, a ermida ficou em ruina, a villa soffreu immenso, e
-ninguem pensou mais em concertar o templosinho.</p>
-
-<p>Trouxeram a imagem de S. Vicente, que escapou á batalha e ao
-bombardeamento para a ermida do Amial. E lá está, muito tristinha e
-abandonada, n’aquelle interessante templosinho, ao pé de outra imagem
-historica, a da Senhora de Rocamador. Merecia a pena dar alguma
-attenção ao Amial, e tornar mais facil a vereda para S. Vicente; é um
-dos melhores passeios nos arredores de Torres Vedras, a vista é linda,
-e é um d’estes sitios raros onde se allia a bellezas naturaes o encanto
-de recordações da historia patria.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_265">[Pg 265]</span></p>
-
-
-<h3>Imagens de Santos</h3>
-
-<p>Pouca attenção se tem prestado entre nós ás imagens religiosas;
-refiro-me a dois pontos de vista, artistico e archeologico. No Museu
-das Bellas-Artes e no Carmo poucos exemplares ha. É preciso examinar as
-egrejas, para descobrir um ou outro trabalho interessante.</p>
-
-<p>É enorme a quantidade de imagens de santos ainda existentes, atravez
-diversas causas de destruição; tem havido modas tambem na estatuaria
-religiosa; as imagens do renascimento fizeram pôr de parte as mais
-antigas que pareciam rudes; as luxuosas estatuetas á hespanhola, de
-roupagens agitadas todas bordadas a ouro, foram vencidas pelas á
-italiana, mais artisticas e expressivas.</p>
-
-<p>Imagens gothicas de gesto solemne, hirtas, de vago olhar, esculpidas
-em pedra, vieram até nossos dias; em quasi todas as sés ha imagens de
-Nossa Senhora, do seculo XII. A da Sé de Evora com o seu collar e fita
-pendente que parece formada de moedas romanas, as cercaduras bordadas
-do vestuario, os sapatos de bico, tem ares de uma rainha medieval.</p>
-
-<p>No claustro da mesma sé ha estatuas de santos, e o apostolado no
-portico, dos seculos XIII a XV.</p>
-
-<p>Do renascimento, com anatomia estudada, posição ao natural, temos um
-exemplar esplendido<span class="pagenum" id="Page_266">[Pg 266]</span> no celebre S. Jeronymo, que está no cruzeiro de
-Santa Maria de Belem.</p>
-
-<p>Seguem-se as estatuetas em madeira com lavores a ouro sobre fundo
-preto, ou vermelho, o estofado, genero que foi muito empregado em
-Portugal.</p>
-
-<p>Dos italianos, largas roupagens, cabeças de expressão, attitudes
-artisticas, <em>póses</em> estudadas, ha modelos mui significativos na
-antiga egreja dos Barbadinhos onde actualmente está a parochial de
-Santa Engracia. No seculo <span class="smcap">xviii</span> a estatuaria religiosa segue a
-corrente da época; no seculo <span class="smcap">xix</span>, a meio, começa a esculptura
-franceza a dominar com as suas fórmas gentis; vem a imagem fina, bem
-gravada, suavemente colorida; vem a elegante estatua da Salette, depois
-Lourdes, a fina dama, de cabeça pequena, fórma esguia, expressão de
-sonho. Nos templos agora por toda a parte domina a estatueta de gesso,
-e a oleographia franceza; o lindo santo risonho e muito penteado, a
-gentil santinha branca, a pretenciosa oleographia na sua moldura de
-baguette dourada. O Senhor dos Passos, de tez livida, negros cabellos,
-olhar severo, passaria de moda, se não estivesse firme em antiga
-tradição.</p>
-
-<p>Na iconographia religiosa ha, atravez as idades, séries determinadas,
-e assim se póde vêr como os artistas de varias épocas executaram as
-figuras de Jesus Menino, ou imaginaram os rostos de anjos e seraphins.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_267">[Pg 267]</span></p>
-
-<p>Quando ha pouco se agitou a questão do santo sudario de Turim viu-se
-bem onde póde chegar o interesse d’estes estudos; n’este caso á origem
-da pintura, e dos seus processos.</p>
-
-<p>Certas imagens, por exemplo, Senhor dos Passos, Senhor Morto, são,
-na grande maioria, da mesma época; outras são de todas as épocas,
-a Virgem, o Crucificado, Jesus Menino. Póde reunir-se uma série de
-imagens da Virgem do seculo XII para cá. E assim do rosto e cabeça
-do divino Nazareno. É interessante vêr como os artistas, atravez os
-tempos, trataram de interpretar o aspecto do sublime mestre.</p>
-
-<p>Ha pouco, n’uma estação de banhos dos Cucus, tive occasião de passeiar
-por Torres Vedras, e andei pelas egrejas a vêr esculpturas e pinturas,
-inscripções, velharias.</p>
-
-<p>A imagem da Senhora do Sobreiro, no Varatojo, é antiga; segundo a
-tradição é do seculo XII; póde ser, e todavia não me parece tão antiga
-como a da Sé de Evora, ou a de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães (a
-primitiva imagem).</p>
-
-<p>Na egreja de S. Pedro vi a imagem de S. Pedro d’Alcantara; rosto,
-garganta e mãos bem esculpidas, expressão de fervor na oração,
-arrebatamento; roupagem larga, em grandes pregas; no todo uma estatua
-elegante, que prende a attenção; talvez de artista italiano.</p>
-
-<p>Na egreja da Graça reparei mais nas estatuas de Santa Monica e Santo
-Agostinho, que estão em<span class="pagenum" id="Page_268">[Pg 268]</span> nichos no grande retabulo de obra de talha, do
-seculo XVII, interessante exemplo de transição do estylo classico para
-o rococó usado na época de D. João V.</p>
-
-<p>N’essas estatuas de Santa Monica e Santo Agostinho o estofado, ouro
-sobre branco e vermelho, é accentuado por fino relevo, que dá ás vestes
-aspecto opulento; a esculptura é muito correcta.</p>
-
-<p>A estatua de S. Gonçalo de Lagos, na sua capella, é elegante: o
-santeiro fez-lhe a cabeça um tanto pequena, e a cintura delicada; a
-roupagem está bem lançada.</p>
-
-<p>Na Misericordia dei mais attenção ao Senhor Morto, porque me parece o
-mais antigo que conheço; não se repare na encarnação; é uma estatua
-rigida, hirta, feita com certa rudeza mas com attenção. Parece-me
-anterior ao seculo XVI.</p>
-
-<p>Em Santa Maria do Castello vi esculpturas boas: um Jesus Menino bem
-notavel e antigo.</p>
-
-<p>E mais antigas ainda me parecem algumas imagens que vi na ermida da
-Senhora do Amial, a Senhora do Ó, o S. Vicente, e especialmente a
-Senhora de Rocamador talvez do seculo XIII.</p>
-
-<p>Será bom reparar n’estas obras d’arte, mórmente agora por causa da
-invasão franceza de estatuetas e oleographias baratas.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_269">[Pg 269]</span></p>
-
-
-<h3>Uma cadeira do seculo XV</h3>
-
-<p>A pouca distancia, uns tres kilometros, a poente de Torres Vedras
-fica o convento do Varatojo; é um bonito passeio a pé, atravessando
-a varzea, e subindo lentamente a vereda, descobrindo successivamente
-aquella região de serras e cabeços, em grande parte vestida de
-vinhedos, agora n’este mez d’agosto, mui viçosos.</p>
-
-<p>Em trem, o caminho é mais longo, por causa de grande rodeio, seguindo
-pelo campo do Amial, onde ha uma ermida muito antiga e interessante,
-cortando depois os campos do Paul, e subindo a encosta por estrada
-um tanto ingrata; a estrada nova cheia de covas e poeira, a antiga
-coalhada de calhaus.</p>
-
-<p>No convento vi a porta ogival da egreja, tendo aos lados as armas de
-Portugal, e o <em>rodizio</em> emblema adoptado por Affonso <span class="allsmcap">v</span>;
-o claustro, bem conservado; os portaes da casa chamada dos retratos
-que são do tempo de D. Manuel; a torre dos sinos de ventanas ogivaes,
-assim como o portal de um pateo interior; vi pinturas em madeira,
-um frontal de seda bordada de origem italiana, me pareceu, e, n’uma
-pequena dependencia da sacristia, entre variados objectos, uma cadeira
-extraordinaria!</p>
-
-<p>É tradição antiga ter esta cadeira servido a D. Affonso V, quando
-visitava aquella casa. Como<span class="pagenum" id="Page_270">[Pg 270]</span> me disseram que ninguem a desenhara eu
-tirei um rapido esboço. Póde ser de Affonso V, e até anterior; é em
-carvalho, e está menos mal conservada; algum caruncho, mas mostra-se
-ainda nitido o relevo decorativo; lembra logo o estylo da Batalha.
-É uma cadeira do seculo XV, uma joia do mobiliario portuguez. No
-<i>Havard</i> <a id="FNanchor_2" href="#Footnote_2" class="fnanchor">[2]</a> vem o desenho de um exemplar quasi egual; cadeira
-de armario ou cofre, de braços, espaldar direito, ornamentação
-ogival, exactamente como no esplendido movel do Varatojo. Lá se tem
-conservado a veneravel reliquia e está lá muito bem, ligada pela
-tradição historica, mas seria bom fazer uma reproducção para o Museu
-das Bellas-Artes, onde abundam os exemplares de mobiliario portuguez,
-formando séries importantes; mas falta aquella cadeira—avó, unica,
-segundo creio, em Portugal.</p>
-
-<div class="footnote">
-
-<p><a id="Footnote_2" href="#FNanchor_2" class="label">[2]</a> <i xml:lang="fr" lang="fr">Dictionnaire de l’ameublement et de la décoration.</i></p>
-
-</div>
-
-
-<h3>Brazões da Villa</h3>
-
-<p>Vi em Torres tres brazões antigos:</p>
-
-<p>O da Fonte Nova tem a data 1529.</p>
-
-<p>O que está na escada da Camara Municipal tem a data 1518.</p>
-
-<p>O do chafariz dos Canos é muito mais velho,<span class="pagenum" id="Page_271">[Pg 271]</span> singelo e hieratico, sem
-ousadias decorativas; creio que é do seculo XIV.</p>
-
-<p>O da Fonte Nova apresenta duas torres ligadas por um panno de muralha
-com sua porta: torres de tres andares, com ameias, frestas para jogar
-virotes e béstas, terminando em cobertura pyramidal, com sua bandeira
-quadrada e uma estrella sobre a bandeira; entre as torres um escudo
-real, sem corôa nem castellos, só as cinco quinas com os seus besantes.
-Infra a data 1529 entre duas siglas, talvez F e R.</p>
-
-<p>O que está na Camara mostra duas torres de cobertura conica, ligadas
-pela muralha sem porta; tem barbacan, ameias, sobre as torres bandeiras
-farpadas, sobre estas, estrellas.</p>
-
-<p>Sob a barbacan um festão florido, infra um lettreiro:</p>
-
-<p class="center">
-Esta casa e quintal<br />
-he do concelho<br />
-1518<br />
-</p>
-
-<p>Entre as torres o escudo das quinas.</p>
-
-<p>O do chafariz dos Canos tem tres torres eguaes, separadas entre si, uma
-a meio do escudo mais acima, duas aos lados d’esta, mais abaixo. Cada
-torre sua janella de volta redonda, e quatro ameias; a ameia formada
-por um dado ou cubo, sobre este uma pyramide de base quadrada excedendo
-muito a face do cubo.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_272">[Pg 272]</span></p>
-
-<p>Na fonte está outro escudo com o brazão real, as quinas collocadas á
-antiga, as lateraes com as pontas para dentro.</p>
-
-<p>Este escudo da fonte dos Canos parece-me ser o brazão antigo da villa,
-o primeiro, o das <i lang="la" xml:lang="la">turres veteres</i>. Depois conjugaram este com
-o escudo real, tirando a torre média e mais alta para dar logar ás
-quinas, ao que parece no tempo de D. Manuel, o reformador do velho
-foral, pois que o brazão que está na escada da Camara tem a data 1518.</p>
-
-
-<h3>Archivos</h3>
-
-<h4>Camara, Misericordia, Egreja de Santa Maria</h4>
-
-<p>Quando estive na interessante villa de Torres Vedras lembrei-me de
-visitar archivos, que é onde se encontram reunidos mais documentos
-authenticos da vida local.</p>
-
-<p>Para alguma cousa ha de servir isto de ler lettras antigas, a
-paleographia; porque vêr archivos e cartorios sem os entender é inutil.</p>
-
-<p>Manuel Agostinho Madeira Torres na—<i>Descripção historica e economica
-da villa e termo de Torres Vedras</i>—, falla de antigos documentos, e
-na 2.ᵃ edição da sua obra os editores deixaram muitas notas em que se
-referem a velhos pergaminhos e papeis dos cartorios da villa.</p>
-
-<p>A vida antiga, as phases sociaes, as instituições,<span class="pagenum" id="Page_273">[Pg 273]</span> a evolução
-historica, tudo apparece nos archivos a quem tiver paciencia de
-manusear com attenção codices e avulsos arrumados, quantas vezes
-esquecidos, desprezados, tristes, poeirentos, nos seus armarios.</p>
-
-<p>Agora que tanto se falla de sociologia esses archivos teem ainda
-maior importancia; antes os estudiosos procuravam especialmente os
-grandes acontecimentos e as vidas dos grandes vultos, attende-se
-presentemente tambem á evolução das instituições, ao viver dos povos,
-ás manifestações moraes das classes menos brilhantes. Divaguei,
-pois, algumas horas pelos archivos de Torres Vedras, e vou escrever,
-condensando muito, do que vi.</p>
-
-<p>Comecei pelo archivo da Camara Municipal, que está installado em
-armarios, n’uma casa ampla com muita luz.</p>
-
-<p>Vi lá uma peça de primeira ordem, o Foral da villa, dado por D. Manuel.</p>
-
-<p>O primeiro foral foi concedido por D. Affonso <span class="smcap">iii</span> em 1250, e
-conserva-se na Torre do Tombo.</p>
-
-<p>Do foral de D. Manuel está o original em Torres, e bem conservado,
-lindamente escripto em pergaminho.</p>
-
-<p>Percorri tambem alguns livros de actas da camara, bella série que
-começa em tempo d’el-rei D. Sebastião. Estes codices são importantes,
-porque não se contentaram em lavrar actas, mas incluiram o registo de
-documentos de maior significação. Ora o municipio e comarca de Torres
-foram<span class="pagenum" id="Page_274">[Pg 274]</span> de grande importancia em tempos volvidos, com a especialidade
-proveniente da preponderancia da Casa das Rainhas. Assim encontrei alli
-noticias de Santarem, Alemquer, etc., que não esperava achar; assim,
-por exemplo, foi o corregedor de Torres que em 1640 teve o encargo
-de regular a segurança e a administração em Cascaes, Alemquer, etc.,
-terminado o dominio hespanhol.</p>
-
-<p>Do tempo dos Filippes estão registados muitos documentos sem duvida
-valiosos.</p>
-
-<p>Como se vê, o archivo municipal de Torres contém dados de valor para a
-historia do municipio e para a politica geral do paiz.</p>
-
-<p>E mais, é claro, os que importam á vida municipal, os
-economico-administrativos, os que se referem a obras publicas, viação,
-preços de generos, etc.</p>
-
-<p>Visitei tambem o archivo da Santa Casa da Misericordia.</p>
-
-<p>Se entro sempre com respeito n’um archivo municipal, que é onde está o
-documento do homem, rico ou pobre, nobre ou plebeu, entro com veneração
-e amor n’um cartorio de Casa de Misericordia: alli está a vida do
-pobre, do enfermo, do engeitado, do encarcerado; alli está a meu vêr
-a instituição mais gloriosa que tem o povo portuguez. A beneficencia
-moderna nas suas multiplas manifestações não attinge a perfeição d’esse
-maravilhoso instituto que corresponde perfeitamente ás necessidades
-sociaes.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_275">[Pg 275]</span></p>
-
-<p>O livro mais antigo que vi data de 1608. Vi livros de tombos, accordos,
-receita e despeza, compromissos, e de enterros. Ha um Tombo grande,
-que é um formidavel infolio, do tempo de D. João V. Tem medições de
-propriedades urbanas e ruraes que o tornam precioso. N’este volume está
-a descripção minuciosa da egreja e Casa da Misericordia, feita em 1730.
-No termo de Torres havia hospitaes e albergarias na idade média, no
-Amial, Carvoeira, Turcifal, S. Gião, Ribaldeira, Azueira, S. Mamede e
-Dois Portos.</p>
-
-<p>É extraordinario o que se fez em Portugal no ramo de beneficencia
-publica, nos primeiros seculos da monarchia. Creio que foi no seculo
-XVI, principalmente, que se realisou a concentração nas Misericordias
-de todas essas pequenas instituições, albergarias, gafarias, etc. De
-todas vi noticias no archivo da Misericordia.</p>
-
-<p>Finalmente fui vêr, na amavel companhia do Prior, o archivo de Santa
-Maria do Castello. Esta notavel egreja, antiga capella real, conserva
-ainda o seu archivo! é caso raro em Portugal. Porque os archivos
-parochiaes, quasi todos, foram concentrados pelos prelados, e jazem
-ignorados nos Seminarios, alguns sem a minima organisação. Este lá
-está nas suas arcas velhinhas, conservado e limpinho, amado pelo digno
-parocho. Vi lá pergaminhos do seculo XIV, do bom rei D. Diniz, de 1307
-um d’elles, e muitos dos seculos XV e XVI. É bem singular um archivo
-parochial com os seus velhos<span class="pagenum" id="Page_276">[Pg 276]</span> livros, amarellecidos pelo tempo, dos que
-nascem, dos que se casam, dos que morrem; dos que passaram n’este mundo
-de esperanças, de alegrias, de soffrimentos.</p>
-
-
-<h3>No Varatojo</h3>
-
-<p>Na sala do capitulo vi dois lettreiros:</p>
-
-<p class="center">
-Aqui descansão<br />
-as cinzas do Ven.ˡ<br />
-P. F. Antonio das<br />
-Chagas. Miss. Apost.<br />
-e instituidor deste<br />
-Semin.ᵒ faleceu a<br />
-20 de outubro de 1682.<br />
-</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p class="center">
-Fr. Joaq.ᵐ do Espirito Santo<br />
-restaurador deste<br />
-Seminario<br />
-Fal. em Santarem<br />
-3 d’agosto 1878<br />
-</p>
-
-<p>Na quadra, perto da porta que deita para a matta:</p>
-
-<p class="center">
-Aqui jáz Felipa do<br />
-Reguo molher de Nuno<br />
-de Sampaio... 1530<br />
-</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_277">[Pg 277]</span></p>
-
-<p>Reparei na egreja nas seguintes pinturas:</p>
-
-
-<p>Na capella-mór:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-Annunciação<br />
-Adoração dos reis<br />
-Adoração dos pastores<br />
-<i lang="la" xml:lang="la">Noli me tangere.</i><br />
-</p>
-
-<p>Na sacristia:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-Milagre de Santo Antonio. O burro ajoelhado ante a sagrada particula<br />
-Pentecostes.<br />
-</p>
-
-<p>Na ante-sacristia:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-presepe, pequeno quadro em madeira, de trabalho fino, um tanto estragado.<br />
-</p>
-
-
-
-<p>A quadra, arcada e varanda coberta, o travejamento assente sobre
-columnellos, está bem conservada.</p>
-
-<p>Para esta quadra ou pequeno claustro diz uma casa a que chamam dos
-retratos, que me parece ter sido uma aula ou casa do capitulo.</p>
-
-<p>O portal desta casa é em manuelino, de trabalho apurado e em boa pedra;
-é uma peça nitida. Nesta casa está uma pintura em madeira, o Calvario.</p>
-
-<p>A moldura do quadro é de pedra lavrada, tambem em manuelino; pareceu-me
-uma antiga porta ou janela aproveitada para alli.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_278">[Pg 278]</span></p>
-
-<p>Estes trabalhos teem intima relação com os portaes de S. Pedro, de S.
-Thiago, ediculo dos Perestrellos, etc. Vê-se que em Torres Vedras houve
-na primeira metade do seculo XVI artistas trabalhando com methodo e
-gosto.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p>A porta principal da egreja do Varatojo é ogival, singela, aos lados
-tem brazões com as armas de Portugal e o rodisio de D. Affonso V.</p>
-
-<p>As ventanas da torre são ogivaes.</p>
-
-<p>E vi n’uma córte contigua um portal antigo tambem de ogiva.</p>
-
-<p>Por isto se vê bem que este antigo edificio soffreu reconstrucções.</p>
-
-<p>A quadra deve ser da primitiva, apezar de não apresentar ogivas; o
-travejamento é singular; no todo singelo ha uma pureza, uma sobriedade
-que nos incute ideias de paz e recolhimento; como na matta, de vetusto
-arvoredo, frescas fontes murmurejantes, e clementes horizontes.</p>
-
-<p>Bello sitio para dulcificar maguas e socegar corações attribulados. Por
-aqui passeou a sua grande dôr e cruel desesperança um rei, D. João II,
-depois do desastre de Santarem.</p>
-
-
-<h3>Uma inscripção moderna</h3>
-
-<p>Na egreja de S. Pedro, proximo ao pulpito, repousa Luiz da Silva
-Mousinho d’Albuquerque, sob campa rasa, com o lettreiro:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_279">[Pg 279]</span></p>
-
-<p class="center">
-AQVI IAZ<br />
-LVIZ DA SIL<br />
-VA MOVSI<br />
-NHO DE AL<br />
-BVQUERQ<br />
-QVE FALES<br />
-CEO NESTA<br />
-VILLA DE TOR<br />
-RES VEDRAS<br />
-AOS XXVII DE<br />
-DEZEMBRO<br />
-DE MDCCCXLVI</p>
-
-<hr class="r5" /><p class="center">
-REQ. I. PAC.<br />
-</p>
-<hr class="r5" />
-<p>É singular como em Torres e em pleno seculo XIX se lavrou tal
-inscripção; mesmo o caracter da lettra é archaico; parece que o
-entendido que fez o modelo para o lavor do canteiro poz esmero em
-imitar o antigo, e muito antigo.</p>
-
-<p>Porque n’esta mesma egreja se encontram lettreiros dois seculos mais
-velhos sem tantos archaismos.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_280">[Pg 280]</span></p>
-
-
-<h3>Sinos</h3>
-
-<p>Vi os de S. Pedro.</p>
-
-<p>Um tem na fimbria <i lang="la" xml:lang="la">Sanctus Deus</i> e o nome Miguel Delmaco.</p>
-
-<p>Outro: <i lang="la" xml:lang="la">apprehende arma et scutum</i>.</p>
-
-<p>Miguel Delmaco, 1673.</p>
-
-<hr class="r5" />
-
-<p>Sineta: tem a data 1802.</p>
-
-
-<h3>Quinta das Lapas</h3>
-
-<p>A quinta está na branda encosta da serra da Achada. Esta serra e as
-outras d’estes sitios são grandes collinas mais ou menos declivosas, de
-100 a 150 metros d’altura sobre os valles que as separam. Ás vezes as
-faldas das collinas alastram-se, desdobram-se em suaves encostas; em
-pontos alargam-se os valles em varzeas ferteis. O monte coroado pelas
-ruinas dramaticas do castello de Torres Vedras está rodeado de varzeas
-amplas. Nos banhos dos Cucos a chan, onde estão os hoteis, o casino,
-o jardim, o edificio das thermas, está cercada de montes de forte
-declive, semelhando uma cratéra, quasi completa, rota apenas por breve<span class="pagenum" id="Page_281">[Pg 281]</span>
-chanfro por onde passa o rio e a estrada que leva a Torres, e uma fraca
-depressão, mais a sul, que vae ter ao caminho de ferro, na visinhança
-dos pequenos tuneis. O terreno de quasi todas estas chans é de alluvião
-moderna, feita pelo Sizandro. O solo em que assenta a parte baixa da
-villa está hoje metro e meio mais alto que no seculo XVI, o que se
-manifesta em antigas construcções muito soterradas.</p>
-
-<p>As varzes são ferteis e bem cultivadas; nas vertentes agriculta-se
-tambem, as vinhas ostentam-se viçosas; pinhaes forram grandes trechos
-das collinas, apresentando arvores bem desenvolvidas.</p>
-
-<p>E bom seria que mais semeassem ou plantassem; um pinhal é util e
-agradavel, dá sombra e aroma hygienico; serve a lenha, a rama, a pinha;
-a moderna medicina com muita razão recommenda o ar do pinhal, e, tem-se
-visto nos ultimos annos, o córte de pinhaes para combustivel, para
-construcção, para supportes de galerias mineiras, dá bom dinheiro.</p>
-
-<p>Até parece que dá saude o aspecto de um pinheirinho verde, de fresco
-avelludado, de perfume resinoso. Por isto pinheiro cortado, pinheiro
-semeado, e quantos mais pinhaes melhor, por esses montes onde o sol, o
-solo e a aragem se encarregam de o alimentar; se elle cresce que é um
-encanto até nos areaes da beira-mar onde a rajada do oceano chega a ser
-um açoute; porque o bom<span class="pagenum" id="Page_282">[Pg 282]</span> pinho formoso e hygienico não exige cuidados
-de cultura.</p>
-
-<p>Por entre pinhaes mesclados de algumas vinhas e outras culturas segue
-a estrada de Torres para as Lapas; a principio do caminho rompe o
-bucolismo da paisagem a massa alvacenta da villa, e o seu outeiro
-escuro encimado pelas velhas muralhas do castello, os altos muros
-negros da sua alcaçova ou palacio, em tragica derrocada. Faz impressão
-aquella ruina; suggere tempos idos, historias mui velhas.</p>
-
-<hr class="tb" />
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">Torres mais antiga, já condado,</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Por turdulos se crê ser erigida,</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Por dote das rainhas, é morgado,</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">E de muitas já foi favorecida,</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">O Beato Gonçalo lá enterrado</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Por milagres a faz ser mais luzida,</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Assim como João a decorou</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Nas côrtes que já nella celebrou.</span><br />
-</p>
-
-<p>Como diz o bom e patriota Silveira no <i>Côro das Musas</i>.</p>
-
-<p>Passa uma curva da estrada, e deixa-se de avistar casaria nova e
-muralhas velhas; segue o caminho na verde paisagem campesina.</p>
-
-<p>A estrada é boa, pouco frequentada, com aspectos variados, dominando o
-verde pinhal. De subito uma casaria branca de aldeia, uma egreja, e<span class="pagenum" id="Page_283">[Pg 283]</span>
-na encosta o palacio, bem ao sol, com as suas dependencias, os seus
-jardins, pomares, vinhas e matta de arvoredo alto.</p>
-
-<p>Vê-se uma capella de boa construcção e logo uma entrada monumental, de
-ampla arcada; entra-se no terreiro; a um e outro lado edificações que
-são dependencias do palacio, na frente a fidalga residencia com larga
-escadaria e desafogada varanda. Todavia dá logo a impressão de edificio
-incompleto.</p>
-
-<p>Á monumental entrada, á elegante escada não corresponde o edificio
-nobre que parece acanhado e por acabar. Houve alteração no plano,
-com certeza. A fachada que deita para o jardim é mais harmonica; a
-mansarda, os frisos azulejados dão-lhe graça.</p>
-
-<p>O palacio, dizem, foi erguido pelo primeiro marquez de Alegrete,
-Manuel Telles da Silva, conde de Villar Maior. Foi feito marquez por
-D. Pedro II em 1687 (v. <i>Diario de Noticias,</i> de 17 de junho de
-1902). Provavelmente foi começado, houve demorada construcção, soffreu
-alterações; a mansarda será do meio do seculo XVIII; é possivel que a
-escadaria seja da época de D. João V. Para admirar seria que nesses
-tempos um Telles da Silva, em poucos annos, observando um só plano,
-conseguisse erguer um palacio, chamados, como eram, os principaes
-da illustre familia, para altos cargos no reino, no ultramar e no
-estrangeiro.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_284">[Pg 284]</span></p>
-
-<p>Existe na matta uma capella, incompleta, dedicada a Santo André Avelino
-pelo conde de Tarouca, Fernando Telles da Silva, em 1778. E ha, noutro
-ponto da matta, uma ermida rustica, com seu alpendre, um pouco mais
-antiga.</p>
-
-<p>No jardim alegretes e assentos são azulejados, representando scenas de
-caçadas.</p>
-
-<p>As salas teem tectos de madeira e rodapé alto de azulejos, como as do
-palacio do Correio-Mór, perto de Loures, e as do casal do Falcão, perto
-de Carnide, agora felizmente restaurado, segundo ouvi dizer, sob a
-direcção do conhecido e estimado architecto sr. Raul Lino.</p>
-
-<p>Nos jardins vi magnificas hortenses e na matta ulmeiros, pinheiros
-mansos, seculares medronheiros, sobreiros veneraveis. O meu amavel guia
-disse-me os nomes de algumas arvores, conservados na tradição familiar;
-o mais antigo é o sobreiro dos quatro irmãos, assim chamado porque a
-pouca distancia do solo o tronco se divide em quatro pernadas reaes,
-cada uma d’ellas como uma grande arvore.</p>
-
-<p>Ha uma fonte de agua ferrea na matta, e outra numa alameda de ulmeiros,
-com um grupo em marmore, veado filado por um rafeiro; no outro extremo
-d’essa alameda deliciosa fica o jogo da bola.</p>
-
-<p>Essas salas de grande pé direito, de chão ladrilhado, de lambris de
-azulejo, e tectos de madeira, conservando o ar antigo, não estão
-vasias<span class="pagenum" id="Page_285">[Pg 285]</span> ou despidas. Estas, felizmente, teem muito que vêr e respeitar.</p>
-
-<p>Vi moveis antigos, cadeiras d’espaldar com os brazões de familia,
-grandes leitos de pau preto, com torcidos e lavores.</p>
-
-<p>Os donos da casa fizeram abrir armarios e eu vi desfilar pratas antigas
-marcadas; ceramicas e crystaes, porcellanas de Sèvres, de Saxe, da
-India e Japão, de verdade e alto valor. Vi um copo de crystal lapidado
-com uma vista de Santarem, pintada no crystal, bem interessante: e
-um dragão de prata, perfumador enorme, trabalho pouco visto, que me
-disseram ser feito em Moçambique.</p>
-
-<p>Nas paredes retratos de pessoas de familia, e que familia! esta dos
-Telles da Silva! É vêr ahi nas genealogias as séries de paginas com
-descendencias e arvores de costado mais frondosas que o sobreiro dos
-quatro irmãos. Até o venerando D. Manuel Caetano de Sousa escreveu uma
-obra em dois volumes (Bibliotheca Nacional de Lisboa. Manuscriptos,
-fundo antigo, C-3-16 e 17. N.ᵒˢ 1048-49), a respeito d’esta familia
-com o seguinte titulo bem curioso.—<i>Corôa genealogica, historica
-e panegirica da Excellentissima Casa de Tarouca formada do purissimo
-ouro dos Silvas, illustrada com a esplendidissima pedraria dos Menezes,
-adornada com as augustissimas flores da Magestade, fechada com
-elevados semi diademas da Heroicidade, terminada na altissima esphera
-da Soberania, consagrada com a sempre venerada cruz<span class="pagenum" id="Page_286">[Pg 286]</span> da Santidade,
-dedicada ao ex.ᵐᵒ sr. D. Estevão de Menezes filho primogenito dos
-ex.ᵐᵒˢ srs. condes de Tarouca João Gomes da Silva e D. Joanna Rosa de
-Menezes—.</i></p>
-
-<p>Pertence effectivamente a esta familia o celebre Beato Amadeu que tão
-grande fama conquistou na Italia.</p>
-
-<p>Que singular encanto o de ouvir a dona da casa explicando alguns
-retratos de familia! Que consolação, neste paiz de gente estragada,
-encontrar um ninho conservado! Que rara impressão no conjuncto,
-milagroso entre nós, de tantas recordações e tradições, vivas, na
-mente, na linha, nas feições, na voz da herdeira lidima!</p>
-
-<p>A um marquez de Penalva dizia o Tolentino:</p>
-
-<p class="poetry p0">
-<span style="margin-left: 1em;">Hontem soube o que podia</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Estilo suave e brando</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">E quanto podeis fallando</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Eu o vi na Academia</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Nas almas fogo acendia</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Vossa discreta oração,</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Sobre a minha pretenção</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Vos peço que assim oreis,</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">E que ao principe falleis</span><br />
-<span style="margin-left: 1em;">Como fallaes á nação.</span><br />
-</p>
-
-<p>Pois ainda está representado na familia o estylo suave e a discreta
-oração, louvados pelo poeta.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_287">[Pg 287]</span></p>
-
-<p>Poetas houve tambem nesta familia; poetas e eruditos, homens de
-guerra e de diplomacia; na Bibliotheca Lusitana estão inscriptos os
-notaveis nas lettras e sciencias. Por estas salas, jardins e bosques
-passearam academicos, não faltam sitios para tranquilla meditação. E
-no bello terreiro desafogado com certeza se trabalhou na nobre arte da
-cavallaria; talvez se corressem touros e jogassem cannas; houve tambem
-na familia cavalleiros notaveis, mestres reconhecidos na equitação,
-tratadistas na especialidade.</p>
-
-<p>Porque se chama quinta das Lapas? Ha por aqui algumas lapas, grutas,
-cavernas? Parece que houve lapas a que se attribuiam lendas de
-mouros. Perto de casa ha uma vinha, um grupo de pinheiros mansos, uma
-elevação de terreno de poucos metros de altura; ahi umas cavidades
-consideraveis. Parece que em tempos alguem fez excavações; acharam
-cacos, louças partidas. Tudo se extraviou.</p>
-
-<p>Seria uma mamunha? Um d’aquelles tumulos prehistoricos, em que as
-sepulturas eram cobertas por um monticulo artificial? Não sei, o que
-hoje se vê pouco significa.</p>
-
-<p>Numa construcção ou pavilhão de fresco perto do jardim fui encontrar
-no embrechado que reveste as paredes interiores alguns exemplares de
-contas vitreas coloridas de fabrico egual ao das contas de Chellas, da
-capella (desapparecida) das Albertas, e da cascata da Quinta do Meio.
-Aqui<span class="pagenum" id="Page_288">[Pg 288]</span> tambem estas singulares contas são acompanhadas de cylindros,
-discos, etc., de vidro escuro. Continúa para mim a ser um problema a
-proveniencia de taes objectos.</p>
-
-
-<h3>O caminho dos Cucos</h3>
-
-<p>Pela avenida ampla, arborisada, chega-se á estação do caminho de
-ferro, que nos fica á direita; está á vista o castello ennegrecido
-e escalavrado, no seu morro severo destacando entre as collinas; o
-caminho passa sob a via ferrea; passa a ponte do Rei, sobre o Sizandro;
-vamos entre vinhas e arvoredos; agora a arcada do aqueducto; á direita
-uma ermida antiga com umas construcções, ao lado um portão com seus
-enfeites; era a albergaria de S. Gião, ou Julião. Lá se conservam
-inscripções que nos dizem que os sapateiros da villa no anno de 1359
-(era 1397), construiram o modesto albergue, cuja instituição se
-incorporou na Misericordia em 1586. Os confrades de S. Gião ahi ouviam
-missa aos domingos. Um respeitador de antiguidades renovou a inscripção
-em 1849.</p>
-
-<p>Pouco adiante, á esquerda da estrada, indo para os Cucos, existe uma
-quinta de construcção vistosa, a quinta das Fontainhas, com seu terraço
-e jardim, onde se lê um lettreiro, na parede occidental da casa, que
-diz:</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_289">[Pg 289]</span></p>
-
-<p class="center">
-Sua Alteza Real<br />
-O sern.ᵐᵒ principe o sr. D. João<br />
-e a seren.ᵐᵃ princ.ᵃ<br />
-a sr. D. Carlota Joaquin<br />
-e o sr. infante D. Pedro Carlos<br />
-jantaram n’esta quinta<br />
-no dia 16 d’outubro<br />
-de 1797.<br />
-</p>
-
-<p>Este infante D. Pedro Carlos tinha então dez annos. D. Marianna
-Victoria, filha de D. Maria I, casou com D. Gabriel, infante de
-Hespanha. Deste casamento nasceu o infante de Hespanha D. Pedro
-Carlos de Bragança e Bourbon, que foi almirante em Portugal. Nasceu
-em Aranjuez em 18 de julho de 1787, e falleceu no Rio de Janeiro a 26
-de maio de 1813. Este infante casou, no Rio, em 1810, com D. Maria
-Thereza, princeza da Beira.</p>
-
-<p>Os banhos dos Cucos são conhecidos de ha muito; a virtude singular
-d’esta agua já em épocas remotas attrahia enfermos.</p>
-
-<p>Ainda existem as casinholas onde se abrigavam os miseros banhistas.</p>
-
-<p>Hoje as installações hydrotherapicas das thermas dos Cucos são boas,
-feitas com largueza, direi mesmo com generosidade. O edificio das
-thermas, a casa dos machinismos, o amplo casino, os dois grandes
-chalets, e outras construcções, rodeiam um grande rocio ajardinado e
-arborisado. A grande obra começou em novembro de 1890; em julho<span class="pagenum" id="Page_290">[Pg 290]</span> de
-1892 já as thermas funccionavam, provisoriamente; em 15 de maio de
-1893 realisou-se a inauguração. Todavia não está cumprido o programma
-inicial, faltam chalets, e recreios para os banhistas, ou para as
-pessoas de familia que acompanham os enfermos. O principal está feito,
-e isto deve-se á coragem do opulento proprietario sr. José Gonçalves
-Dias Neiva. Á coragem e á generosidade, porque me affirmaram que embora
-a frequencia seja grande já, todavia nem 2% rende o capital alli
-empregado.</p>
-
-<p>Como o estabelecimento thermal fica a dois kilometros de Torres Vedras,
-muitos banhistas ficam nos hoteis da villa, que são regulares, e em
-algumas casas particulares.</p>
-
-<p>A villa lucra com isto dezenas de contos annualmente, todavia nem o
-municipio nem os habitantes se esforçam por tornar a villa aprazivel
-aos seus hospedes; nem commodidade, nem distracções; nada que realce
-a natural belleza d’aquelles sitios. Bem lindos são os arredores da
-villa, convidando a pequenos passeios campestres, mas raras as estradas
-que prestem, as de macadam cheias de poeira, as primitivas de barrancos
-e pedregulhos. Uma das questões locaes é o abastecimento de aguas
-potaveis; esta porém não importa muito aos banhistas, que quasi todos
-consomem a agua dos Cucos. Eu não bebo d’outra; faz bem e é agradavel,
-com o seu ligeiro sabôr salgado. Liga-se optimamente com o vinho. É uma
-excellente<span class="pagenum" id="Page_291">[Pg 291]</span> agua de mesa que os sãos, não só os enfermos, tomam com
-agrado. Melhoram o appetite e facilitam a digestão.</p>
-
-<p>Esta agua, que tem o maravilhoso lithio, é <em>muito pura</em> segundo
-a analyse microbiologica, feita em 1904, pelo illustre chimico Carlos
-Lepiérre.</p>
-
-<p>Os pobresinhos teem tratamento gratuito nos Cucos; a poucos utilisa
-esse beneficio porque nos Cucos não encontram albergue ou hospital.
-Para isto me parece deveria olhar a Camara Municipal e a Misericordia
-de Torres Vedras; proximo dos Cucos um albergue gratuito para pobres
-seria um grande bem. E ainda outro de preço muito moderado, uma
-hospedaria simples, a simplicidade não exclue o asseio e hygiene,
-de alimentação singela e mobilia barata, onde os menos remediados
-encontrem agasalho.</p>
-
-<p>Parece facil, isto. Naquelle chanfro do terreno que liga a grande
-varzea dos Cucos ao sitio dos pequenos tunneis do Caminho de ferro
-seria facil construir modestos albergues, pequenas moradas de
-construcção economica.</p>
-
-<p>É generoso o coração do sr. Neiva, consideraveis os seus bens de
-fortuna, e effectivo o seu altruismo, mas em emprezas destas é bom
-interessar differentes entidades, para que se uma esmorecer, outras
-continuem a obra, a util obra começada.</p>
-
-<p>Encontrou o sr. Neiva um ajudante dedicado no dr. Justino Xavier da
-Silva Freire, director<span class="pagenum" id="Page_292">[Pg 292]</span> medico das thermas. É um clinico sensato,
-naturalmente lhano, muito accessivel, attencioso aos muitos enfermos.
-Que longas narrativas das massadoras enfermidades elle escuta com
-delicada paciencia, conseguindo extrahir das confusas exposições a
-historia da doença, o fio do caso, os antecedentes do enfermo. Os seus
-relatorios annuaes das thermas são muito instructivos e tão nitidamente
-escriptos que qualquer cliente os comprehende, aproveitando com a
-leitura.</p>
-
-<p>As aguas dos Cucos são chloretadas, sodicas, bicarbonatadas,
-sulfatadas, lithinicas, etc. Encontram os chimicos nellas o brometo de
-sodio, o chloreto de sodio, os bicarbonatos de calcio, de estroncio, e
-de manganez, o chloreto de magnesio. Pois esta complexidade toda produz
-uma agua limpida, muito potavel, agradavel ao paladar. Mas o que lhe dá
-virtude primacial é o chloreto de lithia que em 1:000 grammas entra por
-0,0212.</p>
-
-<p>É isto que torna esta agua preciosa para gottosos e rheumaticos. Faz
-bem aos intestinos, e combate a obesidade.</p>
-
-
-<h3>Casa dos Clerigos pobres</h3>
-
-<p>Junto á egreja de S. Pedro está a casa da irmandade dos Clerigos pobres.</p>
-
-<p>Tem nas paredes quadros em azulejo que estranhei um pouco pela
-composição artistica. São<span class="pagenum" id="Page_293">[Pg 293]</span> copias de gravuras; o ingenuo pintor até
-copiou as assignaturas da chapa</p>
-
-<p class="center">
-<i>Author Claud. Coell. delin.</i><br />
-<i>Fran. Houat. sculp.</i><br />
-</p>
-
-<p>que significa Claudio Coelho desenhou e Francisco Houat gravou. No
-tecto d’esta casa estão pintados em tela os quatro evangelistas.
-Acham-se mencionados nas <i>Memorias de Volkmar Machado</i> (pag. 318);
-são de Bernardo Antonio de Oliveira Goes. O pae d’este, Manuel Antonio
-de Goes, era pintor de figura e pintou muitos azulejos. Vi outras telas
-que me pareceram do mesmo pincel na egreja da Graça.</p>
-
-
-<h3>O Asylo da Conquinha</h3>
-
-<p>Fica este asylo a breve distancia de Torres, uns vinte minutos de
-agradavel passeio a pé. Segue-se a estrada da Varzea, entra-se no amplo
-valle, vestido de culturas, arvoredos fructiferos, bellos vinhedos;
-ao lado da estrada fica um edificio moderno de aspecto alegre e
-confortavel, convidativo, é o asylo de S. José; como o sitio se chama
-a Conquinha, é vulgarmente conhecido por este nome. Santa instituição!
-Foi este asylo fundado e dotado pela benemerita D. Maria da Conceição
-Barreto Bastos, fallecida em 21 de maio de<span class="pagenum" id="Page_294">[Pg 294]</span> 1901. Velhinhos
-impossibilitados de trabalhar encontram aqui agasalho e sustento,
-abrigo tranquillo nos seus ultimos annos de vida.</p>
-
-<p>A casa é cercada por ampla quinta bem cultivada com seus jardins
-floridos, e bellas arvores de fructa. Tudo muito asseiado e
-confortavel; mais me agradou ainda o ar satisfeito dos asylados,
-felizes naquelle ninho de caridade. A fundadora instituiu tambem uma
-escola, na villa, para meninas, com ensino gratuito; a sua memoria deve
-ser abençoada; o seu nome gravado no marmore dos benemeritos, e no
-coração de todos os que veneram estes bons exemplos do incondicional
-altruismo christão. Quando alli estive, visita casual, era gerente ou
-director do asylo, o sr. conego prior Antonio Francisco da Silva, cujo
-nome ouvi cercado pelos asylados da Conquinha com palavras de respeito
-e gratidão.</p>
-
-
-<h3>Ruços, além!</h3>
-
-<p>Preparava-se a jornada de Ceuta.</p>
-
-<p>Havia cabeças enthusiastas, e cabeças duvidosas; timidos e prudentes
-ao lado dos muito ousados. El-rei D. João I estava em Cintra com os
-infantes; mandou convocar os do Conselho para Torres Vedras; eram
-o conde de Barcellos, o condestavel D. Nuno, os mestres das ordens
-de Christo, de Santiago e d’Aviz, o prior do Hospital,<span class="pagenum" id="Page_295">[Pg 295]</span> Gonçalo Vaz
-Coutinho, Martim Affonso de Mello, João Gomes da Silva, muitos outros
-senhores e fidalgos.</p>
-
-<p>Nesses dias Torres Vedras acolheu muitos cavalleiros de espora dourada,
-os grandes senhores territoriaes e militares do paiz.==El Rey partio
-de Cintra, e foy folgando por aquella comarca de Lisboa caminho de
-Torres Vedras (isto conta o Azurara, na <i>Chronica de D. João I</i>,
-parte 3.ᵃ, cap. 24) e antes disto chegando El-Rei a <i>Carnide</i>, o
-infante Dom Enrique que muito desejava por seu corpo fazer alguma cousa
-aventejada, chegou a seu padre e disse: <i>Senhor, primeiro que por
-estes feitos mais vades adiante, porque com a graça de Deos vem já por
-tal via, que viram a boa fim, eu vos peço por mercê que me outorgueis
-duas cousas. A primeira que eu seja hum dos primeiros, que filhe
-terra quando a Deos prazendo chegarmos davante da cidade de Ceita;
-e a segunda que quando a vossa escada real fôr posta sobre os muros
-da cidade, que eu seja aquelle que vá primeiro por ella, que outro
-algum.</i></p>
-
-<p>Isto disse em Carnide o infante D. Henrique a el-rei D. João; estranho
-requerimento para a morte na vanguarda extrema, bem natural ao forte
-coração do rapaz. Chegou el-rei a Torres Vedras, e logo teve uma falla
-com o condestavel.</p>
-
-<p>Este approvou o plano e prometteu ao rei a sua influencia favoravel...</p>
-
-<p>Tratou-se logo do corregimento da casa para o<span class="pagenum" id="Page_296">[Pg 296]</span> conselho <em>a qual era
-hua sala dianteira, que está em aquelles paços de Torres Vedras, onde
-está a capella</em>.</p>
-
-<p>Numa quinta-feira o rei e seus filhos ouviram missa do Espirito Santo,
-naturalmente na egreja de Santa Maria, que era capella real.</p>
-
-<p>Celebrou-se o conselho; foi elrei que publicou o fim da reunião; depois
-fallou o condestavel approvando a jornada, e o infante D. Duarte no
-mesmo sentido. Mas havia gente duvidosa, novos que temiam o risco, e
-criticavam o arrojado plano. Então surgiu um dito que fez época.</p>
-
-<p>João Gomes da Silva, que era homem <em>forte e ardido, cujas palavras
-sempre traziam jogo e sabor</em>, levanta-se no meio dos indecisos e
-exclama dirigindo-se a elrei==<i>Quanto eu, Senhor, não sei al que diga
-senão, ruços, alem</i>, apontando para o sul, na direcção do Algarve
-d’alem mar, e isto dizia porque elrei e os mais dos que alli estavam
-tinham já as cabeças cheias de cans. Elrei e os mais riram-se, e assim
-folgando fizeram fim de suas falas==. Terminaram o conselho a rir-se,
-os valentes e audazes; iam para Ceuta, para a conquista africana, o
-inicio glorioso dos descobrimentos, para esse triumpho e sacrificio
-incomparavel da nacionalidade portugueza. Pois esse grito <em>ruços,
-alem</em>, ouviu-se nos paços reaes de Torres Vedras. (Azurara, parte
-3.ᵃ da <i>Chronica de D. João I</i>, cap. 26).</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_297">[Pg 297]</span></p>
-
-
-<h3>Passeio a Santa Cruz de Ribamar</h3>
-
-<p>No dia 27 de setembro de 1905, depois do banho e do almoço, em commodo
-trem, fui a Santa Cruz.</p>
-
-<p>A estrada vae ao campo do Amial, pelo sopé do monte de S. Vicente, que
-nos fica á direita; depois pela esquerda a falda do Varatojo. A estrada
-segue na grande varzea, comprida e ampla, importante, onde o Sizandro
-abre o seu leito.</p>
-
-<p>Vinhas magnificas, cepas fortissimas carregadas de esplendida uva. A
-estrada incómmoda pela muita poeira. Fiz uma paragem na quinta dos
-Chãos, á direita do caminho. Pouco dista da estrada, bem accessivel
-ao trem. A velha ermida serve de armazem; só me chamou a attenção uma
-pedra com lettreiro, do seculo XV, solta, na pequena sacristia; não
-tirei apontamento porque imaginei que a tinha visto publicada nas
-<i>Memorias de Torres Vedras</i>. Verifiquei depois que não está!
-seria bom, e creio que facil, recolher a pedra na Camara Municipal,
-onde se guardam já algumas pedras significativas na historia de Torres
-Vedras. Alguns homens cavavam; eu vi a descoberto um grosso paredão de
-alvenaria em argamassa mui antigo.</p>
-
-<p>No terreno d’esta propriedade teem apparecido por vezes vestigios
-romanos; provavelmente existiu alli alguma <i lang="la" xml:lang="la">villa rustica</i>.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_298">[Pg 298]</span></p>
-
-<p>Seguindo o passeio. Passamos por boas propriedades, e alguns grupos de
-casaes.</p>
-
-<p>Os campos estão animados, as estradas concorridas; é uma festa agora; a
-grande festa das vindimas. Tudo sorri com os bellos racimos do divino
-Baccho, doce e aromatico.</p>
-
-<p>Calcula-se em 80:000 pipas a producção do vinho no termo de Torres
-Vedras; mas este anno ha crise de fartura, os preços estão muito
-baixos; queima-se por isto muito vinho para fazer aguardente, que se
-vende de 80 a 85 mil réis a pipa de 534ˡ,24, posta em Villa Nova de
-Gaya.</p>
-
-<p>Todos estes terrenos são de alluvião moderna, mas passadas tres quartas
-partes do caminho começa a apparecer a areia maritima. Cultiva-se
-milho, feijão frade, grão de bico.</p>
-
-<p>Passamos junto de alguns moinhos em grande businada, as cordas cheias
-de louça, dezenas de vasos de barro; os moleiros d’estes sitios são
-grandes amadores d’esta musica.</p>
-
-<p>Passamos por alguns pinhaes, e chegamos a Santa Cruz, logar formado por
-algumas casas antigas, e bastantes modernas.</p>
-
-<p>É a praia balnear de Torres Vedras. Pessoas abastadas da villa e de
-logares proximos aqui mandaram construir vivendas, nas arribas de ar
-lavado pela brisa do Atlantico. A praia é bonita; uma fita de areia
-branca, de brando declive, abrigada pelas escarpas não muito altas,
-de aspecto severo, formadas pelas rochas de colorido variado.<span class="pagenum" id="Page_299">[Pg 299]</span> Um
-grande rochedo alteroso destaca na praia. Foi accessivel em tempo,
-porque ainda se observa a certa altura um lanço de escada talhado na
-rocha; mas as vagas esboroam a base. Talvez servisse de atalaia para
-descobrir corsarios mouriscos, ou marcha do peixe, da baleia, por
-exemplo, frequente por este mar em tempos idos. Pelos piratas mouros
-ou corsarios argelinos foi a costa visitada, parece que com certa
-frequencia, ao que dizem velhas chronicas. Do alto da arriba o mar
-apresenta o aspecto de amplo golpho; a norte prolonga-se, entrando
-muito pelo oceano, a peninsula de Peniche, e em frente avistam-se
-nitidamente os rochedos das Berlengas e Farilhões. Notei aqui um facto
-talvez interessante; avista-se um largo trecho da costa, escarpas
-de 40, 30 e 20 metros de altura; em certo ponto a escarpa é mais
-baixa, chega talvez a quinze metros; por ahi sobem as areias que vão
-alastrar-se terra dentro; vê-se a duna encostada á rocha nos outros
-pontos que não vence; pára ante o obstaculo; alli vence, entra pelo
-chanfro.</p>
-
-<p>E poderá ainda marcar-se a historia da invasão porque na chronica do
-Purificação ao tratar de Ribamar e do convento de Pena Firme se mostra
-que ainda no seculo XVII o terreno não estava vestido pelo manto de
-areia em tamanha extensão.</p>
-
-<p>Logo de entrada encontrei, bem agradavel surpreza, o sr. Rodrigues
-da Silva, cavalheiro que<span class="pagenum" id="Page_300">[Pg 300]</span> eu já conhecia de Torres Vedras; é sabedor
-da historia da villa e termo, amador de antiguidades, e muito amavel
-companheiro; com elle fui vêr o monumento funerario mandado fazer por
-Valerio e Julia, que se conserva no logar marcado nas <i>Memorias da
-Villa de Torres Vedras</i> (pag. 20 da 2.ᵃ ed.), e no <i>Corpus</i>. A
-distancia de poucos metros vê-se uma sepultura, algumas lages cravadas
-no solo, marcando perfeitamente o vão sufficiente para um corpo humano.
-Parece que em tempos se viam alli vestigios de outras sepulturas; a que
-existe agora está á beira da escarpa; mais alguns annos e o embate das
-vagas a fará desapparecer.</p>
-
-<p>Na ermida de Santa Cruz, ou de Santa Helena, vi uma imagem d’esta santa
-que me pareceu anterior, pela rudeza e ingenuidade da esculptura, ao
-seculo XVI.</p>
-
-
-<h3>Na missa e no mercado</h3>
-
-<p>No domingo, 14 d’agosto de 1904, assisti á missa na egreja de S. Pedro.
-Muita gente, com bastante respeito. Á sahida fiz de janota parado á
-porta da egreja para vêr o desfilar dos devotos. Primeiro os homens
-dos campos, das vinhas, com seus varapaus; mulheres do campo de chale,
-lenços mal postos na cabeça, á larga. Seguiram as mulheres da villa;
-caras agradaveis poucas, expressões duras não estupidas nem alvares;
-na<span class="pagenum" id="Page_301">[Pg 301]</span> grande maioria cabellos castanho-escuro; cabellos pretos mais
-raros; algumas cabelleiras ruivas, e algumas pelles sardentas.</p>
-
-<p>Cabellos corredios, na maioria, poucos em madeixas.</p>
-
-<p>Alguns olhos azues, pelles avermelhadas.</p>
-
-<p>Homens de construcção regular, as mulheres de thorax estreito, pouco
-seio, mal geitosas.</p>
-
-<p>Durante a missa os homens não largam os varapaus; quando ajoelham vê-se
-grande numero, porque se encostam, e não deitam no chão o inseparavel.</p>
-
-<p>Usam o simples marmelleiro ou zambujeiro, raros os paus ferrados.</p>
-
-<p>As mulheres usam poucos ornatos, e pouco ouro.</p>
-
-<p>No terreiro proximo da egreja faz-se o mercado. Vendiam melões,
-melancias, uvas lindas, brunhos varios, maçãs grandes, variedade de
-peras, aboboras, tomates, pouca hortaliça.</p>
-
-<p>No mercado de peixe, atraz da egreja, sardinha e sarda, fresca e
-salgada, cação, gorazes; o peixe vem de Nazareth e de Peniche.</p>
-
-<p>Mulheres do campo aviavam os seus cabazes; levavam pão, meio cento de
-sardinhas, meia duzia de sardas.</p>
-
-<p>A um cantinho do mercado estavam algumas mulheres com polvo, mexilhão,
-caranguejos grandes. Não faltava a mulher dos tremoços e da pevide de
-abobora. Dois homens vendiam planta de<span class="pagenum" id="Page_302">[Pg 302]</span> couve. Vi ainda vendedores de
-enxadas, e de calçado forte, sapatos de dura.</p>
-
-<p>Os homens na maioria usam botas altas.</p>
-
-<p>Todo o povo d’estes sitios é calçado, só por excepção vi gente
-descalça. Isto de pé descalço é uma inferioridade, que talvez acabasse
-com um pequeno impulso.</p>
-
-<p>Dizem-me que a gente hespanhola está toda calçada já, tem conseguido
-o sapato e a alpargata de preço baixo. Talvez que as commissões
-parochiaes de beneficencia podessem resolver o problema. Eu acho o pé
-descalço uma cousa deprimente, que entristece.</p>
-
-<p>Na pequena praça do Municipio (em 1904) faz-se o mercado da batata;
-mal se transitava tanta era a saccaria; vende-se a batata arrobada;
-pareceu-me de boa qualidade. Em 1905 este mercado fazia-se no largo de
-S. Thiago.</p>
-
-<p>Pelas lojas nas ruas proximas grande freguezia, de gente dos arredores
-que ao domingo vem mercar á villa.</p>
-
-<p>Ha movimento commercial em Torres, lojas com muitos contos de réis em
-existencia. A villa é pequena mas os arredores são muito povoados.</p>
-
-<p>Vi industria de ferragens e mobilia especial, com algum geito.</p>
-
-<p>Pelo aspecto geral é gente que trabalha, sobria, um tanto rude.</p>
-
-<p>É escusado dizer que o fomento official é nullo, depois da pobre escola
-primaria nada mais;<span class="pagenum" id="Page_303">[Pg 303]</span> algumas creanças vão de Torres ao Varatojo! para
-aprender alguma cousa; uma caminhada de uma hora.</p>
-
-<p>Aqui em Torres seriam uteis uma aula de desenho, outra de agricultura,
-e uma terceira de arithmetica e geometria com ensino especial de
-contabilidade; porque esta villa é centro de uma região agricola
-importante, tem commercio grande e pequeno, e industrias que se devem
-desenvolver.</p>
-
-
-<h3>A feira franca</h3>
-
-<p class="center">(21 DE AGOSTO DE 1904)</p>
-
-<p>Na grande varzea em parte arborisada faz-se esta feira muito concorrida
-pela gente d’aquelles sitios; a região de Torres Vedras é bastante
-povoada; aldeias e logarejos, boas quintas, casaes, matizam os campos
-accidentados, as collinas entremeadas de valles e varzeas ferteis.</p>
-
-<p>Este rocio onde se faz a feira tem ao lado a casaria da villa, ao norte
-o monte onde se ergue o castello, entre olivedo e paredões negros
-alveja a egreja de Santa Maria, muito caiada; mais longe e mais alto o
-monte de S. Vicente; a poente do rocio a serra do Varatojo, vestida de
-vinhedos. Na parte arborisada enfileiram-se barracas e tendas, no rocio
-nú é a feira de gados e a corredoura.</p>
-
-<p>As barracas de ourivesaria agrupam-se com as<span class="pagenum" id="Page_304">[Pg 304]</span> dos utensilios de arame,
-cobre, ferro estanhado, latoaria. As dos vidros estão perto do grande
-estendal de louças branca e vermelha.</p>
-
-<p>A louça ordinaria, popular, provém das differentes olarias do termo de
-Mafra, a branca vem de Alcobaça.</p>
-
-<p>A notar um especialista de buzinas de moinhos de vento, aquellas
-vasilhas de barro, que assobiam e zumbem quando o vento apressa o
-movimento das quatro velas triangulares.</p>
-
-<p>Vende-se calçado grosso, bastante correaria, não faltando as sogas
-ornadas, bordadas a pita colorida.</p>
-
-<p>Pequenas quinquilherias, modestas roletas variadas formam uma rua,
-leiloeiros de varias qualidades chamam a gritos a attenção do povinho,
-perto das barracas de tiro ao alvo.</p>
-
-<p>Num espaço grande estão as madeiras; o que mais dá na vista é o
-material vinario; é natural, estamos numa grande região vinhateira.</p>
-
-<p>Cubas, toneis, balseiros, barris, celhas, tinas em abundancia; de
-castanho, as mais; algumas de pinho da terra, genero barato. Carros
-para bois, e tambem de pequenas dimensões e de construcção mais leve
-para burricos. Ha especialistas em arcos, e negociantes de varedo,
-assim como de crivos e peneiras.</p>
-
-<p>Menos importante a feira do gado; bastantes porcas com leitões, poucas
-juntas de bois, pouco e inferior o gado cavallar e asinino.</p>
-
-<p><span class="pagenum" id="Page_305">[Pg 305]</span></p>
-
-<p>Pareceu-me em geral mal tratado o gado, tanto na feira como no que
-observei fóra.</p>
-
-<p>É mais a pancada que a alimentação regular.</p>
-
-<p>Já se vê não faltavam as barracas de comer e beber, com os seus fritos
-alourados, e constante freguezia.</p>
-
-<p>Comia-se bem, bebia-se melhor; homens e mulheres espatifavam acerejadas
-gallinhas, consumiam patos com arroz cheirando que era uma delicia, e
-sorviam as talhadas dos sumarentos e aromaticos melões, atirando as
-cascas aos porcos e leitões grunhindo pela gulodice.</p>
-
-<p>A impressão geral é de atrazo, de educação nulla ou rudimentar; de
-trabalho mau com inferior alfaia, todavia gosto de vêr o povo rural
-nestas feiras; é naturalmente são; um tanto brutal nos costumes, se
-ninguem trata d’elle! mas de bom fundo.</p>
-
-<p>Estamos longe d’aquelles camponios insolentes, turbulentos, cupidos,
-eivados d’alcoolismo, devastados por seitas ferozes, que preoccupam em
-Allemanha, na Italia, na França a gente que pensa e vê alguma cousa.</p>
-
-
-<hr class="chap x-ebookmaker-drop" />
-
-<div class="chapter">
-<h2 class="nobreak" id="INDICE">INDICE</h2>
-</div>
-
-<hr class="r5" />
-<table class="autotable">
-<tr><td>S. Domingos de Bemfica,</td><td class="tdr"><a href="#Page_7">8</a></td></tr>
-
-<tr><td>O lindo sitio de Carnide,</td><td class="tdr"><a href="#Page_53">55</a></td></tr>
-
-<tr><td>Noticias de Carnide,</td><td class="tdr"><a href="#Page_85">87</a></td></tr>
-
-<tr><td>A villa da Ericeira,</td><td class="tdr"><a href="#Page_147">149</a></td></tr>
-
-<tr><td>De Bemfica á quinta do Correio-Mór,</td><td class="tdr"><a href="#Page_197">199</a></td></tr>
-
-<tr><td>Torres Vedras,</td><td class="tdr"><a href="#Page_255">255</a></td></tr>
-</table>
-
-<div lang='en' xml:lang='en'>
-<div style='display:block; margin-top:4em'>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK <span lang='pt' xml:lang='pt'>PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS DE LISBOA</span> ***</div>
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-
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-Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg&#8482;
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-generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
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-Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
-501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
-state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
-Revenue Service. The Foundation&#8217;s EIN or federal tax identification
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-Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
-U.S. federal laws and your state&#8217;s laws.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation&#8217;s business office is located at 809 North 1500 West,
-Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
-to date contact information can be found at the Foundation&#8217;s website
-and official page at www.gutenberg.org/contact
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; depends upon and cannot survive without widespread
-public support and donations to carry out its mission of
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-freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
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-($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
-status with the IRS.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-The Foundation is committed to complying with the laws regulating
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-States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
-considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
-with these requirements. We do not solicit donations in locations
-where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
-DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state
-visit <a href="https://www.gutenberg.org/donate/">www.gutenberg.org/donate</a>.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-While we cannot and do not solicit contributions from states where we
-have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
-against accepting unsolicited donations from donors in such states who
-approach us with offers to donate.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
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-any statements concerning tax treatment of donations received from
-outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
-methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
-ways including checks, online payments and credit card donations. To
-donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
-</div>
-
-<div style='display:block; font-size:1.1em; margin:1em 0; font-weight:bold'>
-Section 5. General Information About Project Gutenberg&#8482; electronic works
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
-Gutenberg&#8482; concept of a library of electronic works that could be
-freely shared with anyone. For forty years, he produced and
-distributed Project Gutenberg&#8482; eBooks with only a loose network of
-volunteer support.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Project Gutenberg&#8482; eBooks are often created from several printed
-editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
-the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
-necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
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-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-Most people start at our website which has the main PG search
-facility: <a href="https://www.gutenberg.org">www.gutenberg.org</a>.
-</div>
-
-<div style='display:block; margin:1em 0'>
-This website includes information about Project Gutenberg&#8482;,
-including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
-Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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-</div>
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