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+The Project Gutenberg EBook of Os sonetos completos de Anthero de Quental, by
+Antero Quental
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Os sonetos completos de Anthero de Quental
+
+Author: Antero Quental
+
+Contributor: Oliveira Martins
+
+Release Date: December 20, 2006 [EBook #20142]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ANTHERO DE QUENTAL ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano, Ricardo Diogo and Tiago Tejo,
+and edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional
+Digital--http://bnd.bn.pt).
+
+
+
+
+
+
+SONETOS
+
+
+
+
+OS SONETOS COMPLETOS
+
+DE
+
+Anthero de Quental
+
+publicados por
+
+J. P. Oliveira Martins
+
+PORTO
+
+LIVRARIA PORTUENSE
+
+DE
+
+_LOPES & C.^a--EDITORES_
+
+119, Rua do Almada, 123*
+
+1886
+
+
+
+
+PORTO
+
+TYPOGRAPHIA OCCIDENTAL
+
+Rua da Fabrica, 66
+
+
+
+
+Escrevendo estas breves paginas á frente dos _Sonetos_ de Anthero de
+Quental tenho a satisfação intima de cumprir o dever de tornar conhecida
+do publico a figura talvez mais caracteristica do mundo litterario
+portuguez, e decerto aquella sobre que a lenda mais tem trabalhado.
+Estou certo, absolutamente certo, de que este livro, embora sem écco no
+espirito vulgar que faz reputações e dá popularidade, ha-de encontrar um
+acolhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar emquanto
+houver corações afflictos, e emquanto se fallar a linguagem portugueza.
+
+Procurarei, no que vou dizer, guardar para mim aquillo que ao publico
+não interessa: a viva amisade, a estreita communhão de sentimentos, o
+affecto quasi fraterno que ha perto de vinte annos nos une, ao poeta e
+ao seu critico de hoje, fazendo da vida de ambos como que uma unica
+alma, misturando invariavelmente as nossas breves alegrias, muitas vezes
+as nossas lagrimas, sempre as nossas dores e os nossos enthusiasmos ou o
+nosso desalento.
+
+Discutindo em permanencia, discordando frequentemente, ralhando a miudo,
+zangando-nos ás vezes e abraçando-nos sempre: assim tem decorrido para
+nós perto de vinte annos. Mas o leitor é que nada tem que vêr com esses
+casos particulares, nem com o abraço que trocámos no dia em que primeiro
+nos conhecemos e que só terminará n'aquelle em que um de nós, ou ambos
+nós, formos descançar para sempre sob meia duzia de pás de terra fria.
+
+
+I
+
+
+Eu não conheço phisionomia mais difficil de desenhar, porque nunca vi
+natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse possivel desdobrar um
+homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Anthero de Quental dava
+_alma_ para uma familia inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada
+expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a intelligencia mais critica,
+o instincto mais pratico, a sagacidade mais lucida, que eu conheço. É um
+poeta que sente, mas é um raciocinio que pensa. Pensa o que sente; sente
+o que pensa.
+
+Inventa, e critíca. Depois, por um movimento reflexo da intelligencia,
+dá corpo ao que criticou, e raciocina o que imaginou.--O seu
+temperamento apresenta um contraste correlativo: é meigo como uma
+creança, sensitivo como uma mulher nervosa, mas intermittentemente é
+duro e violento.
+
+É fraco, portanto? Não. A vontade, em obediencia á qual, e com esforço,
+se faz colerico, fal-o tambem forte--d'esta força persistente,
+raciocinada e na apparencia placida, como a superficie do mar em dias de
+bonança. O Oceano, porém, é interiormente agitado pelo _gulf stream_
+quente e invisível: tambem ás vezes a placidez extrema da sua face
+encobre ondas de afflicção que sobem até aos olhos e rebentam em
+lagrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.
+
+É d'estas crises que nasceram os seus versos, porque Anthero de Quental
+não _faz_ versos á maneira dos litteratos: nascem-lhe, brotam-lhe da
+alma como solluços e agonias. Mas, apezar d'isso, é requintado e
+exigente como um artista: as suas lagrimas hão de ter o contôrno de
+perolas, os seus gemidos hão de ser musicaes. As faculdades artisticas
+geradoras da estatuaria e da symphonia são as que vibram na sua alma
+esthetica. A noção das fórmas, das linhas e dos sons, possue-a n'um gráo
+eminente: não já assim a da côr nem a da _composição_. Aos quadros chama
+_paineis_ com desdem, e por isso mesmo tem horror á descripção e ao
+pittoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjectivo. A sua
+poesia é esculptural e hieratica, e por isso phantastica. É
+exclusivamente psychologica e dantesca: não pode pintar, nem descrever:
+acha isso inferior e quasi indigno.
+
+Os seus versos são sentidos, são _vividos_ como nenhuns; mas o sentir e
+o viver d'este homem é de uma natureza especial que tem por fronteiras
+phisicas as paredes do seu craneo, mas que não tem fronteiras no mundo
+real, porque a sua imaginação paira librada nas azas de uma razão
+especulativa para a qual não ha limites.
+
+O poeta é por isso um mystico, e o critico um philosopho. O mysticismo e
+a metaphisica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o
+temperamento e a intelligencia, combatem-se, ás vezes dilacerando-se.
+Eis ahi a explicação d'esta poesia que é o retrato vivo do homem. O
+genio, esse _quid_ divinatorio, que não é honra para nenhuma creatura
+possuir, porque só nos dá merecimento aquillo que ganhámos á força de
+intelligencia e de vontade; o genio, que é uma faculdade tão accidental
+como a côr dos cabellos, ou o desenho das feições; o genio, que pode
+andar ligado a uma intelligencia mediocre, mas que o não anda no caso de
+Anthero de Quental--é o predicado particular e a chave do enygma d'este
+homem. O genio presuppõe a intuição de uma verdade visceral ou
+fundamental da natureza. Essa intuição, essa aspiração absorvente, é
+para o nosso poeta a synthese da verdade racional ou positiva e do
+sentimento mystico: uma poesia que exprima o raciocinio, ou antes uma
+philosophia onde caibam todas as suas visões. O proprio do genio é
+querer realisar o irrealisavel; é ser chimerico, no sentido critico da
+palavra, quando por chimera entendemos uma verdade essencial que não
+pode todavia reduzir-se a formulas comprehensiveis, ou uma cousa cuja
+realidade se sente, sem se poder ver.
+
+Dos aspectos quasi inexgotavelmente variaveis d'esta singular
+phisionomia de homem, d'esta mistura excepcional de pensamentos e de
+temperamentos n'um mesmo individuo, resulta porém um typo de sinceridade
+e de rectidão mais singular ainda, porque mais facilmente podia resultar
+d'ella um grande cynico. É sobretudo um stoico, sem deixar de ter
+bastante de sceptico; é um mystico, mas com uma forte dose de ironia e
+humorismo; e um mysanthropo, quando não é o homem do trato mais affavel,
+da convivencia mais alegre; é um pessimista, que todavia acha em geral
+tudo optimo. Intellectualmente é a phisionomia mais dubia, complexa e
+contradictoria por vezes; moralmente é o caracter mais inteiro e melhor
+que existe. A sua intelligencia encontra-se permanentemente no estado de
+alguem que, querendo ir para um sitio, resiste por não querer ao mesmo
+tempo, sem todavia ter rasões bastantes para querer nem tambem para não
+querer. O nucleo da sua personalidade, se a encaramos pelo lado
+praticamente humano, está na energia do seu querer moral, e não na
+lucidez do seu pensamento; embora tenha a pretenção de julgar que a sua
+vontade obedece sempre á sua razão. É verdade que dentro de si tem
+permanentemente um espelho facetado que representa e critíca as
+modalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, vê ou inventa faces
+de mais ás cousas, e tambem por vezes o cristal embacia. O que nunca
+esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É um homem fundamentalmente
+bom.
+
+A complexidade do seu espirito dá-lhe uma variedade de aptidões
+singular. Conversador como poucos, facil, espontaneo, original e
+suggestivo, ironico, humorista, espirituoso, descendo até á propria
+_charge_, não ha ninguem como elle para soltar o carro da sua phantasia
+critica na ladeira de uma these, e, explorando-a em todos os sentidos,
+architectar uma theoria. Os seus opusculos em prosa (da melhor prosa
+portugueza d'este tempo) têm em geral este caracter. São logicos, são
+bem deduzidos--sem serem sufficientemente pensados. São fructos da
+imaginação; são conversas escriptas, d'essas conversas que durante horas
+seduzem os que o ouvem--porque é um _charmeur_.
+
+Elle proprio se embriaga, não com as suas palavras, mas sim com aquella
+theoria passageira que inventou _ad hoc_, e, quando alguem lhe objecta
+um pequeno senão, todavia essencial ao seu edificio logico, resiste,
+defende-se, irrita-se ás vezes, mas por fim é elle proprio que, com um
+dito, desfaz toda a construcção. Seria um orador, um jornalista de
+primeira ordem, se não tomasse apenas a sério a sua missão de poeta, ou
+antes de philosopho.
+
+Depois de tudo isto dirão pessoas pouco dadas ao estudo do animal homem
+que Anthero de Quental é um assombro. Longe d'isso. A sua força e a
+prodigalidade com que a natureza dotou o seu espirito; mas essa força é
+uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem; e por outro lado o
+raciocinio critico peia-lhe os vôos luminosos da phantasia. Vê de mais
+para poder ser activo, ou não tem a energia correspondente á sua visão.
+Se a tivesse, seria verdadeiramente um assombro. A imaginação e a razão,
+irreductiveis nos cerebros humanos com as circumvoluções limitadas que
+contêm, são egualmente poderosas no seu cerebro para que qualquer
+d'ellas domine. Luctam em permanencia, procurando entender-se,
+combinar-se, penetrar-se, e, no desejo chimerico da synthese,
+desequilibram o homem, atrophiando-lhe a energia activa. Ainda assim,
+felizes d'aquelles cuja inercia désse um livro comparavel a este!
+
+Mas é que as suas paginas foram escriptas com sangue e lagrimas! E doe
+ver a vida do mais bello espirito consumir-se em agonias de uma alma em
+lucta comsigo mesmo! O commum da gente, ao ler as paginas d'este volume,
+dirá então: Quantas catastrophes, que desgraças, este homem soffreu! que
+singular hostilidade do mundo para com uma creatura humana!--E todavia o
+mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma desgraça o acabrunhou;
+a sua vida tem corrido serena, placida, e até para o geral da gente em
+condições de felicidade.
+
+É que o geral da gente não sabe que as tempestades da imaginação são as
+mais duras de passar! Não ha dores tão agudas como as dores imaginarias.
+Não ha problemas mais difficeis do que os problemas do pensamento, nem
+crises mais dolorosas do que as crises do sentimento. As agonias
+dilacerantes da morte com as ancias do stertor, os horrores mais
+inverosimeis dos crimes monstruosos, as afflicções mais pungentes da
+saudade, as tristezas mais dolorosas da solidão, as luctas do dever com
+a paixão, os gritos do homem arruinado, os ais da orphandade faminta...
+tudo, tudo, quanto no mundo pode haver de doloroso, desde a miseria até
+á prostituição, desde o andrajo até ao velludo arrastado pela
+immundicie, desde o cardo que dilacera os pés até ao punhal que rasga o
+coração: tudo isso é menos, do que a agonia de um poeta vendo passar
+diante de si, em turbilhão medonho, as lugubres miserias do mundo. Todas
+as afflicções têm o seu quê de imaginativas, e por isso ha apenas uma
+especie de homens que não sentem: são os cynicos, esses que perderam os
+nervos da moralidade, os anesthesiados do sentimento.
+
+Quando se é poeta como Anthero de Quental, a imaginação exacerbada vibra
+como as harpas que os gregos expunham ás virações da brisa nos ramos das
+arvores. Nenhum dedo lhes feria as cordas, e todavia tocavam! Nenhuma
+d'essas desgraças do mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavia
+essa harpa geme e chora, solluça e grita, porque pelas suas cordas passa
+o vento agreste das idéas, passa o écco ullulante do egoismo dos homens,
+afflictivo como os uivos de uma alcateia de lobos famintos.
+
+
+II
+
+
+Esta collecção de Sonetos é, portanto, ao mesmo tempo biographica e
+cyclica. Conta-nos as tempestades de um espirito; mas essas tempestades
+não são os quaesquer episodios particulares de uma vida de homem: são a
+refracção das agonias moraes do nosso tempo, vividas, porem, na
+imaginação de um poeta.
+
+O primeiro periodo, de 1860-2, contém em embryão todos os successivos,
+da mesma fórma que as flores incluem em si a substancia dos fructos.
+Denuncía uma alma sensivel, mas patenteia já a preoccupação metaphisica
+na sua phase rudimentar de duvida theologica, e apresenta uns assomos de
+tristeza que são como os farrapos de nuvens quando velam
+intermittentemente o sol, deixando antever a tempestade para o dia
+seguinte. Estes primeiros sonetos são o balbuciar de uma creança.
+Romantica? De modo nenhum. Este poeta não se filia em escholas, não
+obedece a correntes litterarias: a sua poesia é exclusivamente pessoal.
+Succedia, porem, que n'esse tempo já os nossos bardos classicamente
+romanticos tinham passado da moda; e a Coimbra chegavam por via de Paris
+os éccos do espirito novo, expresso nas obras de Michelet, de Quinet, de
+Vera-Hegel, etc.
+
+Tudo isso fermentava no cerebro de Anthero de Quental, mas a sua
+personalidade não se deixava absorver pelo optimismo que, depois dos
+romanticos, se espalhou na Europa, lyricamente ingenuo no Occidente
+afrancezado, systematicamente philosophico na Allemanha hegeliana.
+Schopenhauer, ninguem o lia. Não era moda. Pois foi essa corrente,
+dominante hoje, aquella em que o nosso poeta, espontaneamente, por um
+movimento do seu temperamento, se achou levado. Aos dezoito ou vinte
+annos, ignorante ainda, mas inquieto e perscrutador, o poeta que
+desdenha sinceramente da fama e da gloria, vê no eterno feminino de que
+nos falla Goethe a synthese da existencia. Os seus amores já são
+phantasticos: só tem realidade no ceu.
+
+Alli, ó lyrio dos celestes valles,
+Tendo seu fim, terão o seu começo,
+Para não mais findar, nossos amores.
+
+E se ainda o dia, a luz, o sol _esposo amado_, têm o condão de o encher
+de enthusiasmo, é mister desconfiar de um homem mais caprichoso do que
+todas as mulheres, porque
+
+Pedindo á forma, em vão, a idea pura
+Tropeço, em sombras, na materia dura
+E encontro a imperfeição de quanto existe.
+
+Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a terra degredo,
+o ceu destino» diz n'um ponto; e n'outro:
+
+Minha alma, ó Deus, a outros ceus aspira:
+Se um momento a prendeu mortal belleza
+É pela eterna patria que suspira...
+
+Não acreditemos tambem demasiadamente n'isto, porque Deus não passa
+ainda de uma interrogação:
+
+Pura essencia das lagrimas que choro
+E sonho dos meus sonhos! Se és verdade,
+Descobre-te, visão, no ceu ao menos!
+
+As luctas infantís d'este primeiro periodo para saber se Deus é ou não é
+verdade, bastam, em si mesmo e no proprio modo por que estão expressas,
+para nos mostrar que o poeta não saiu ainda das espheras da
+representação elementar dos seres, para a esphera comprehensiva das
+abstracções racionaes. Os sonetos d'esta primeira serie desenrolam-se no
+terreno da phantasmagoria transcendente. O traço mais seguro de todos e
+o mais significativo está n'este verso:
+
+Que sempre o mal peior é ter nascido.
+
+A segunda serie tem a data de 1862-6. Psychologicamente é a menos
+original, artisticamente é a mais brilhante. O _Sonho oriental_, o
+_Idyllio_, o _Palacio da Ventura_, são obras primas, até de colorido.
+Talvez por isso mesmo que o estado de espirito do poeta o não obrigava a
+tirar tanto de si, e porque n'esta epocha viveu mais á lei da natureza;
+talvez por isso mesmo a sentiu e pintou melhor nas suas côres, nas suas
+imagens.
+
+A nebulose do primeiro periodo começava a resolver-se n'uma tragedia
+mental, que umas vezes tem os sonhos dos que mastigam haschich, outras
+vezes furias de desespero, ironias como punhaes e gritos lancinantes:
+
+Se nada ha que me aqueça esta frieza,
+Se estou cheio de fel e de tristeza,
+É de crer que só eu seja o culpado.
+
+Meu pobre amigo, como foi amarga esta epocha! Outros soffreram tambem,
+outros penaram eguaes dores, sem conseguirem porem estrangular os
+monstros que defendem os áditos do templo da Sabedoria. Heine e
+Espronceda, Nerval e Baudelaire viveram vidas inteiras n'esse estado de
+ironia e de sarcasmo, de desespero e de raiva, de orgia e de abatimento,
+de furia e de atonia, que para ti representam quatro annos apenas!
+
+Mas é que não havia em nenhum d'esses homens a semente de abstracção que
+se descobre no _Palacio da Ventura_:
+
+Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
+Mas dentro encontro só, cheio de dor,
+Silencio e escuridão--e nada mais!
+
+Os romanticos, mais ou menos satanistas ou satanisados, ficavam-se por
+aqui. Achando apenas silencio e escuridão onde tinham sonhado venturas,
+ou davam em bebedos como Espronceda, ou suicidavam-se como Nerval, ou
+faziam-se cynicos, á maneira de Baudelaire, cultivando com amor as
+_Flores do Mal_.
+
+De 1864 a 74, n'esses dez annos em que a tempestade caminha, vê-se a
+onda negra da desolação espraiar-se; vê-se o «silencio e a escuridão»
+que antes surgiam como surprezas medonhas, ganharem um logar apropriado,
+embora eminente, no regimen das cousas; vê-se o espirito do philosopho
+reagir sobre o temperamento do poeta, e tornar-se systema o que até ahi
+era furia. Bom prenuncio.
+
+N'esta epocha Anthero de Quental é nihilista como philosopho, anarchista
+como politico: é tudo o que fôr negativo, é tudo o que fôr excessivo; e
+é-o de um modo tão terminante, tão dogmatico e tão affirmativo, que por
+isso mesmo hesitamos em crer na consciencia com que o é. Da sinceridade
+não é licito duvidar, mas contra a segurança depõe a propria violencia.
+A nevrose contemporanea, que produzira n'elle a terceira epocha, dá de
+si ainda a quarta; mas se poude galgar a saltos por entre a floresta
+incendiada que devorou e consumiu os satanicos, não poderá tambem sair
+da steppe lugubre onde apodrecem os pessimistas, embriagados na negação
+universal, sem se lembrarem de que são contradictorios no proprio facto
+de prégarem o que quer que seja?
+
+Ora a isto responde esta propria serie, porque, ao lado dos sonetos
+crepuscularmente desolados, levantam-se como auroras os sonetos stoicos.
+Para curar o poeta da vertigem satanica serviu-lhe a methaphisica
+pessimista; para o curar mais tarde d'essa metaphisica, servir-lhe-ha a
+reacção do sentimento moral sobre a razão especulativa. Quando pede
+_Mais luz_, quando chama ao sol «O claro sol amigo dos heroes», quando
+define a _Idea_ acabando por estes versos diamantinos:
+
+A Idea, o Summo bem, o Verbo, a Essencia
+Só se revela aos homens e às nações
+No ceu incorruptivel da Consciencia!
+
+sentimo-nos bem distantes das phantasmagorias do principio e das
+loucuras da viagem, que todavia o poeta não terminou ainda.
+
+Luctando furioso contra a desillusão, caindo esmagado pelo
+anniquilamento, Anthero de Quental _ensimismou-se_ (para usar de uma
+feliz expressão hespanhola) metteu-se dentro de si, a sós comsigo,
+apellou para as energias do seu instincto de homem, e foi isso o que lhe
+inspirou o bello _Hymno á Razão_.
+
+Porem na lucta entre o temperamento de stoico e a imaginação
+metaphisica, o seu espirito attribulado não conseguiu manter o
+equilibrio, porque as suas exigencias de critico e philosopho
+(alimentadas agora por leituras variadissimas e profundas) contrariavam
+ou contradiziam as suas vizões de poeta. Á maneira que a intelligencia
+se lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que a experiencia o educava
+com mais de um caso doloroso ou apenas triste--apurava-se-lhe a
+imaginação até ao ponto de ver claramente o que para o commum dos
+espiritos são apenas concepções do entendimento abstracto. A sua poesia
+despe-se então de accessorios: não ha quasi uma imagem; ha apenas
+linhas, mas essas linhas de estatuas incorporeas tem uma nitidez
+dantesca.
+
+O seu pessimismo torna-se systematico: é uma philosophia inteira, a que
+corresponde, como expressão sentimental, a ironia transcendente. Na
+_Disputa em Familia_, Deus responde aos atheus:
+
+Muito antes de nascerem vossos paes
+D'um barro vil, ridiculas creanças,
+Sabia eu tudo isso... e muito mais!
+
+No _Inconsciente_, este heroe metaphisico, diz assim:
+
+Chamam-me Deus ha mais de dez mil annos...
+Mas eu por mim não sei como me chamo.
+
+Na _Divina Comedia_ os homens queixam-se aos deuses do que soffrem,
+invectivando-os pelos terem creado.
+
+Mas os deuses com voz ainda mais triste
+Dizem:--Homens! porque é que nos creastes?
+
+Como se vê, houve um progresso. No periodo anterior a negação era
+violenta e terminante; agora tem como expressão a ironia que é uma das
+formas conhecidas do saber, e uma das linguagens da verdade. Eis ahi o
+que a reacção moral conseguiu, acompanhada pelo esclarecimento da razão,
+da intelligencia e do conhecimento. O antigo poeta satanico,
+transformado em um nihilista, vemol-o agora na pelle de um pessimista
+systematico, sorrindo já bondosamente, com a ironia n'esses proprios
+labios que, primeiro cobertos de espuma, depois nos appareciam brancos
+de agonias.
+
+Não tinha eu razão para chamar cyclica a esta collecção de sonetos? Não
+tem sido este o movimento das idéas, a evolução do pensamento creador na
+segunda metade do nosso seculo?
+
+Quando escreveu o primeiro soneto da quarta serie (1880-4)
+
+Já socega, depois de tanta lucta,
+Já me descança em paz o coração...
+
+Anthero de Quental resolveu destruir todas as suas poesias _lugubres_.
+Sentia remorsos por alguma vez ter estado n'uma disposição de animo que
+agora considerava com horror. Entendia que esses versos tetricos não
+podiam consolar ninguem, e fariam mal a muita gente. Destruiu-os, pois,
+com aquella violencia propria de um caracter intermittentemente meigo e
+frenetico como o de uma mulher. D'esse naufragio onde se perderam
+verdadeiras obras-primas, salvei eu as poesias que vão no fim d'este
+ensaio; e salvei-as porque as possuia entre os originaes remettidos em
+cartas, e mais de uma vez como texto de noticias do estado do seu
+espirito, ou cartas rimadas.
+
+Que especie de paz era porem essa em que o seu coração descançava? Era o
+_Nirvâna_:
+
+E quando o pensamento, assim absorto,
+Emerge a custo d'esse mundo morto
+E torna a olhar as cousas naturaes,
+
+Á bella luz da vida, ampla, infinita
+Só vê com tedio em tudo quanto fita
+A illusão e o vasio universaes.
+
+O Nirvâna é o ceu do buddhismo, a religião mais philosophica e menos
+phantasmagorica inventada pelos homens. É por este motivo que o
+buddhismo attrae hoje em dia todos os espiritos a um tempo racionalistas
+e mysticos, d'esta epocha em tudo similhante á alexandrina, menos no
+volume do saber positivo que já se não compadece com muitas das theorias
+sobre que os néoplatonicos especulavam. A theoria da Substancia levou-os
+a elles a uma concepção do Ser que produziu o mytho do Verbo christão,
+encarnado popularmente em Jesus-Christo. Ora hoje tudo isso vale apenas
+como documento historico, e, por paradoxal que isto pareça, o Não-Ser é,
+segundo a metaphisica contemporanea, a essencia de tudo o que existe. O
+Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, são modalidades,
+aspectos fugitivos, que só se tornam verdades racionaes quando nos
+apparecem despidas de todos os accidentes. E como é pelos accidentes
+apenas que nós, distinguindo-as, as conhecemos, a realidade
+verdadeiramente e em si é Nada.
+
+Religiosamente, Nada é egual a Nirvâna; e o buddhismo é a única religião
+que attingiu esta conclusão, summaria do pensamento scientifico moderno.
+O Nirvâna é esse estado em que os seres, despindo-se de todas as suas
+modalidades e accidentes, de todas as condições de realidade, condições
+que os limitam distinguindo-os entre si, adquirem a não-realidade (o
+não-contingente) e com ella a existencia absoluta e a absoluta
+liberdade. Essa liberdade é o typo e a essencia da vida espiritual; e o
+Nirvâna, puro Não-Ser para a intelligencia, é, para o sentimento moral,
+o symbolo e o vehiculo de toda a perfeição e virtude: radicalmente
+negativo na esphera da razão, é, na esphera do sentimento, absolutamente
+affirmativo. O pessimismo torna-se d'esta fórma um optimismo gigantesco;
+toda a inercia é condemnada, e o systema das cousas, agitando-se,
+movendo-se na direcção do anniquilamento final, move-se e agita-se no
+sentido de uma liberdade evolutivamente progressiva até attingir a
+plenitude. O Universo é uma grande vida que tem, no termo, o termo de
+todas as vidas--a morte, idealisada agora e tornada luminosa e
+appetecivel por essa idealisação.
+
+Leiam-se os dois sonetos _Redempção_, talvez os mais bellos de todo o
+livro, e comprehender-se-ha melhor o que fica dito. Leia-se o _Elogio da
+morte_
+
+Dormirei no teu seio inalteravel,
+Na communhão da paz universal,
+Morte libertadora e inviolavel!
+
+e ver-se-ha quanto estamos longe do desespero tragico de outros annos. A
+tempestade acalmou.
+
+Na esphera do invisivel, da intangivel,
+Sobre desertos, vacuo, soledade,
+Vôa e paira o espirito impassivel
+
+presidindo á evolução dos seres (V. o soneto _Evolução_) desde a rocha
+até ao homem, evolução que seria absolutamente inexpressiva se não
+tivesse um destino, um fim, um ideal. A theoria do progresso indefinido
+é, com effeito, racionalmente absurda. Esse destino, para os
+neo-buddhistas, é o Nada transcendente; esse ideal é a Liberdade. A
+existencia está pois consagrada racionalmente: falta consagral-a
+sentimentalmente. Falta ainda ao systema um medianeiro: é o Amor.
+
+Porém o coração feito valente
+Na escola da tortura repetida,
+E no uso do penar tornado crente,
+
+Respondeu: D'esta altura vejo o Amor!
+Viver não foi em vão, se é isto a vida,
+Nem foi de mais o desengano e a dor.
+
+O Universo está pois construido e sanctificado na mente do poeta e na
+razão do philosopho. Dir-se-ha portanto que a chimera de que a principio
+fallámos ficou desvendada, o problema resolvido, conciliada a visão com
+a razão, e que nos não resta mais do que fazermo-nos todos buddhistas?
+Supprema illusão! Creia-o embora o poeta: eu, como critico, observando
+que o pensamento humano, desde que existe e trabalha, progride sempre,
+com effeito, mas progride em tres estradas parallelas que, por serem
+parallelas, nunca podem encontrar-se, atrevo-me a affirmar a
+irreductibilidade do mysticismo, racional ou imaginativamente concebido,
+e do naturalismo, ponderada ou orgiacamente realisado. Atrevo-me a dizer
+que estes dois feitios ou temperamentos são constitucionaes do espirito
+humano, e que da coexistencia necessaria d'elles resulta um terceiro--o
+sceptico, o critico, o que provêm da comparação de ambos, e por isso não
+tem côr, nem é affirmativo; dando-se melhor com a natureza do que com a
+phantasmagoria, preferindo a harmonia mais ou menos equilibrada, ou mais
+ou menos claudicante do hellenismo, á orgia desenfreada dos orientaes;
+considerando a existencia como um compromisso, o dever como uma condição
+da vida, mas tambem a fraqueza como uma condição dos homens. Estes tres
+temperamentos são correspondentes a typos eternos e irreductiveis da
+consciencia humana; e, se o buddhismo é a melhor religião para um
+mystico do seculo XIX, saturado de sciencia e derreado de cogitações, o
+christianismo, como directo herdeiro do hellenismo, hade eternamente
+satisfazer melhor os scepticos e os naturalistas, cujo numero é e foi
+sempre infinitamente maior, entre os europeos.
+
+«Um hellenismo coroado por um buddhismo» eis a formula com que mais de
+uma vez Anthero de Quental me tem exprimido o seu pensamento--a sua
+chimera! Chimera, digo, por que a corôa não nos póde assentar na cabeça,
+sob pena de a crivar de espinhos e de a deixar escorrendo sangue. Fundar
+o principio da acção na inercia systematica, a realidade no não-ser, a
+vida no anniquilamento, só é praticamente acceitavel para o commum de
+homens quando acreditem na metempsycose, dogma tão infantilmente mythico
+do buddhismo como v. g. o inferno do christianismo. Ao christianismo,
+porém, tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação semita deu para a sua
+formação, fica ainda o hellenismo, isto é, um idealismo mais ou menos
+pantheista e uma theoria moral--cousas que eu não affirmo que resistam a
+uma analyse rigorosamente logica, por isso mesmo que todo o nosso
+conhecimento racional das cousas assenta apenas sobre axiomas do senso
+commum--ao passo que, em se tirando a metempsycose ao buddhismo, o
+buddhismo reduz-se a uma nevoa de abstracções.
+
+Pobre humanidade, se se visse condemnada á coroação buddhista! Nós
+europeos, incapazes de nos sujeitarmos ao regime da contemplação inerte,
+soffreriamos as agonias, experimentariamos as afflicções do poeta que,
+tendo no peito um coração activo, tem na cabeça uma imaginação mystica,
+e, para obedecer ao pensamento, tortura o coração, sem poder tambem
+esmagal-o sob o mando da intelligencia.
+
+D'este cruel estado vêm os documentos que attestam a transformação
+soffrida pela ironia dos periodos anteriores. Que nome se hade dar ao
+sentimento que inspira os sonetos _Á Virgem Santissima_ e o _Na mão de
+Deus_ que fecha o volume? Eu por mim chamarei humorismo transcendente a
+essa liga intima da piedade e da ironia, e declaro que nunca vi cousa
+parecida posta em verso. Em prosa, ha mais de um periodo de Renan
+inspirado por um espirito similhante, embora menos agudo.
+
+Ó visão, visão triste e piedosa!
+Fita-me assim calada, assim chorosa,
+E deixa-me sonhar a vida inteira!
+
+A visão é a Virgem Santissima, e a poesia é tão sincera, tão verdadeira,
+tão cheia de piedade e uncção, que eu sei de mais de um livro de resas
+onde andam copias escriptas.
+
+Dorme o teu somno, coração liberto,
+Dorme na mão de Deus eternamente!
+
+Um monge christão escreveria isto. E Anthero de Quental nem é christão,
+nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinario da palavra
+crer.
+
+Blasphemar era bom n'outros tempos; para a ironia tambem a idade passou;
+finalmente para o _exercicio litterario_ nunca se inclinou a penna que o
+poeta molhou sempre no seu sangue. Como explicar, pois, o phenomeno?
+
+Por acaso subiu já o leitor ao cume de um monte sufficientemente alto
+para que toda a paysagem lhe apparecesse á vista, fundida a ponto de não
+distinguir uma arvore de um cazal, nem um rio de um valle sem curso de
+agua? Pois succede assim nas campinas da historia do pensamento humano,
+quando as olhamos das cumiadas luminosas da critica. Vêem-se as cousas
+na sua essencia, não importam os accidentes. O fetiche que o selvagem
+adora, a imagem perante a qual se prostra o commum dos crentes, o
+architecto universal dos pensadores livres, e finalmente esse _quid_
+innominado a que a philosophia moderna chamou Inconsciente--tudo isso é
+egualmente Deus: sómente é Deus percebido pela imaginação infantil, Deus
+percebido pela intelligencia vulgar, Deus percebido pelo saber
+incipiente, e Deus finalmente incomprehendido, mas sentido, pela
+sabedoria. E todas essas modalidades de uma mesma impressão, recebida e
+representada de fórma diversa, consoante a natureza e o estado de
+educação dos homens, são egualmente verdadeiras, egualmente santas e
+egualmente humoristicas, para aquelle que tem coração para sentir as
+cousas por dentro, e olhos para as ver de fora--objectivamente, como os
+allemães dizem, e nós diremos criticamente.
+
+Eis ahi a suprema liberdade do espirito, o Nirvâna apenas intellectual,
+a que eu prefiro chamar impassibilidade subjectiva: um estado que
+permitte comprehender todas as cousas, analysando-as e classificando-as,
+sem todavia nos transmittir essa especie de frialdade de coração,
+propria dos naturalistas quando estudam uma rocha, uma planta ou um
+animal. O philosopho, impassivel ao analysar e classificar os phenomenos
+do espirito humano, ha-de misturar ao sorriso que provocam todas as
+vaidades e illusões, o amor que merecem todos os sentimentos ingenuos e
+fundamentalmente bons; hade alliar á comprehensão da nullidade
+extrinseca das cousas, a comprehensão da sua excellencia intrinseca;
+exigindo que o homem seja activo, porque a actividade é boa por ser
+indispensavel á saude do espirito, embora os objectos da actividade
+sejam as mais das vezes irritos e nullos, quando considerados em si
+proprios e isoladamente.
+
+E eis ahi as razões porque eu não sou buddhista... nem Anthero de
+Quental o é, embora julgue sel-o. A evolução dolorosa que terminou com o
+seu ultimo soneto, esta longa e tempestuosa viagem atravez do mar
+tenebroso da phantasia metaphisica, parece ter concluido. A edade,
+talvez, acima de tudo, trouxe ao espirito do poeta uma paz illuminada de
+bondade e sabedoria, e como a sua alma é san e a sua intelligencia firme
+e sempre activa, é mais que provavel que o declinar da vida de Anthero
+de Quental enriqueça o peculio por signal bem pobre da philosophia
+portuguesa com algum trabalho tão digno de se conservar na memoria dos
+tempos, como estes _Sonetos_ que são as amargas flores de uma mocidade.
+Esse trabalho, porem, não será um cathecismo buddhista, não pode ser
+nenhuma revelação milagrosa do _verdadeiro_ systema, porque a sabedoria
+nos diz que toda a pretenção de Verdade é illusoria, pois sendo nós, a
+nossa intelligencia, os nossos pensamentos, simples e fugitivas
+contingencias, é loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto.
+Cada qual sente-o a seu modo, segundo o seu temperamento; e sabio é
+aquelle que se limita a registrar as relações das cousas.
+
+
+III
+
+
+Quem deante d'estes versos não sentir elevar-se-lhe o espirito, como
+n'uma oração, áquella especie de Deus que é compativel com o seu
+temperamento ou com o estado de educação do seu pensamento, é por que
+tem dentro do peito, no logar do coração, um seixo polido e frio. Quem,
+no meio do lidar da vida, roçando os braços pelas arestas cortantes que
+a erriçam de angulos, pousar o olhar da alma sobre um d'estes sonetos e
+não sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de agua
+limpida, é porque tem a alma feita apenas de egoismo. Quem, emergindo
+dos montões de papelada que as imprensas vomitam diariamente, deitar os
+olhos sobre estas paginas, e não sentir o deslumbramento que os
+diamantes produzem, é porque a sua vista se embaciou com o exame dos
+livros grosseiros em todo o sentido, e a sua lingua perdeu o habito de
+fallar portuguez.
+
+Um dos nossos mais queridos amigos, um dos que conhecem de perto Anthero
+de Quental--e sómente o conhece quem com elle viveu largo tempo na
+intimidade--interroga-me geralmente d'este modo: «E _santo_ Anthero,
+como vae?»
+
+Dil-o com a convicção quente dos artistas, mas eu, que o não sou, tenho
+a pôr embargos, porque a santidade não é planta adequada ao clima do
+nosso tempo. Exige uma porção de sentimento ingenuo que já não ha nos
+ares que respiramos.
+
+A vida contemplativa, porem, a vida asceta inclusivamente: essa virtude
+austera para comsigo, tolerante para com tudo e para com todos; esse
+observar constante de si proprio e o dispensar de um sorriso sempre bom,
+embora indifferente com frequencia, aos que alguma vez o rodeiam; a
+caridade, o amor, a abnegação, as tentações, as crises, as lagrimas, as
+afflicções, as duvidas cruciantes e as dores angustiosas: tudo o que,
+reunido, forma uma alma mystica--tudo isso móra na alma d'este poeta
+arrebatada pela visão inextinguivel do Bem.
+
+Só no meu coração, que sondo e meço,
+Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
+Em segredo protesta e affirma o Bem.
+
+E para nada faltar a este mystico, anachronicamente perdido no meio do
+borborinho de um seculo activo até á demencia, tem tambem uma fé
+ardente--uma fé buddhista. Somente o seu Deus, Deus sem vontade, sem
+intelligencia e sem consciencia, é, para nós outros, a quem são vedados
+os mysterios da metaphisica buddhista, igual a cousa nenhuma.
+
+Este homem, fundamentalmente bom, se tivesse vivido no seculo VI ou no
+seculo XIII, seria um dos companheiros de S. Bento ou de S. Francisco de
+Assis. No seculo XIX é um excentrico, mas d'esse feitio de
+excentricidade que é indispensavel, porque a todos os tempos foram
+indispensaveis os herejes, a que hoje se chama dissidentes.
+
+_Oliveira Martins_.
+
+
+
+
+OS CAPTIVOS
+
+
+Encostados ás grades da prisão,
+Olham o céo os pallidos captivos.
+Já com raios obliquos, fugitivos,
+Despede o sol um ultimo clarão.
+
+Entre sombras, no longe, vagamente,
+Morrem as vozes na extensão saudosa.
+Cae do espaço, pesada, silenciosa,
+A tristeza das cousas, lentamente.
+
+E os captivos suspiram. Bandos de aves
+Passam velozes, passam apressados,
+Como absortos em intimos cuidados,
+Como absortos em pensamentos graves.
+
+E dizem os captivos: Na amplidão
+Jamais se extingue a eterna claridade...
+A ave tem o vôo e a liberdade...
+O homem tem os muros da prisão!
+
+Aonde ides? qual é vossa jornada?
+Á luz? á aurora? á immensidade? aonde?
+--Porém o bando passa e mal responde:
+Á noite, á escuridão, ao abysmo, ao nada!--
+
+E os captivos suspiram. Surge o vento,
+Surge e perpassa esquivo e inquieto,
+Como quem traz algum pezar secreto,
+Como quem soffre e cala algum tormento.
+
+E dizem os captivos: Que tristezas,
+Que segredos antigos, que desditas,
+Caminheiro de estradas infinitas,
+Te levam a gemer pelas devezas?
+
+Tu que procuras? que visão sagrada
+Te acena da soidão onde se esconde?
+--Porém o vento passa e só responde:
+A noite, a escuridão, o abysmo, o nada!--
+
+E os captivos suspiram novamente.
+Como antigos pezares mal extinctos,
+Como vagos desejos indistinctos,
+Surgem do escuro os astros, lentamente.
+
+E fitam-se, em silencio indecifravel,
+Contemplam-se de longe, mysteriosos,
+Como quem tem segredos dolorosos,
+Como quem ama e vive inconsolavel...
+
+E dizem os captivos: Que problemas
+Eternos, primitivos vos attrahem?
+Que luz fitaes no centro d'onde saem
+A flux, em jorro, as intuições supremas?
+
+Por que esperaes? n'essa amplidão sagrada
+Que soluções esplendidas se escondem?
+--Porém os astros tristes só respondem:
+A noite, a escuridão, o abysmo, o nada!--
+
+Assim a noite passa. Rumorosos
+Susurram os pinhaes meditativos,
+Encostados ás grades, os captivos
+Olham o céo e choram silenciosos.
+
+
+
+
+OS VENCIDOS
+
+
+Tres cavalleiros seguem lentamente
+Por uma estrada erma e pedregosa.
+Geme o vento na selva rumorosa,
+Cae a noite do céo, pesadamente.
+
+Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
+Têm os corceis poentos e abatidos,
+Em desalinho trazem os vestidos,
+Das feridas lhe cae o sangue, em gotas.
+
+A derrota, traiçoeira e pavorosa,
+As fontes lhes curvou, com mão potente.
+No horisonte escuro do poente
+Destaca-se uma mancha sanguinosa.
+
+E o primeiro dos tres, erguendo os braços,
+Diz n'um soluço: «Amei e fui amado!
+Levou-me uma visão, arrebatado,
+Como em carro de luz, pelos espaços!
+
+Com largo vôo, penetrei na esphera
+Onde vivem as almas que se adoram,
+Livre, contente e bom, como os que moram
+Entre os astros, na eterna primavera.
+
+Porque irrompe no azul do puro amor
+O sopro do desejo pestilente?
+Ai do que um dia recebeu de frente
+O seu halito rude e queimador!
+
+A flor rubra e olorosa da paixão
+Abre languida ao raio matutino,
+Mas seu profundo calix purpurino
+Só reçuma veneno e podridão.
+
+Irmãos, amei--amei e fui amado...
+Por isso vago incerto e fugitivo,
+E corre lentamente um sangue esquivo
+Em gotas, de meu peito alanceado.»
+
+Responde-lhe o segundo cavalleiro,
+Com sorriso de tragica amargura:
+«Amei os homens e sonhei ventura,
+Pela justiça heroica, ao mundo inteiro.
+
+Pelo direito, ergui a voz ardente
+No meio das revoltas homicidas:
+Caminhando entre raças opprimidas,
+Fil-as surgir, como um clarim fremente.
+
+Quando ha de vir o dia da justiça?
+Quando ha de vir o dia do resgate?
+Trahio-me o gladio em meio do combate
+E semeei na areia movediça!
+
+As nações, com sorriso bestial,
+Abrem, sem ler, o livro do futuro.
+O povo dorme em paz no seu monturo,
+Como em leito de purpura real.
+
+Irmãos, amei os homens e contente
+Por elles combati, com mente justa...
+Por isso morro á mingoa e a areia adusta
+Bebe agora meu sangue, ingloriamente.»
+
+Diz então o terceiro cavalleiro:
+«Amei a Deus e em Deus puz alma e tudo.
+Fiz do seu nome fortaleza e escudo
+No combate do mundo traiçoeiro
+
+Invoquei-a nas horas affrontosas
+Em que o mal e o peccado dão assalto.
+Procurei-o, com ancia e sobresalto,
+Sondando mil sciencias duvidosas.
+
+Que vento de ruina bate os muros
+Do templo eterno, o templo sacrosanto?
+Rolam, desabam, com fragor e espanto,
+Os astros pelo céo, frios e escuros!
+
+Vacila o sol e os santos desesperam...
+Tedio reçuma a luz dos dias vãos...
+Ai dos que juntam com fervor as mãos!
+Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!
+
+Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...
+Por isso vago sem conforto e incerto,
+Arrastando entre as urzes do deserto
+Um corpo exangue e uma alma moribunda.»
+
+E os tres, unindo a voz n'um ai supremo,
+E deixando pender as mãos cançadas
+Sobre as armas inuteis e quebradas,
+N'um gesto inerte de abandono extremo,
+
+Sumiram-se na sombra duvidosa
+Da montanha calada e formidavel,
+Sumiram-se na selva impenetravel
+E no palor da noite silenciosa.
+
+
+
+
+ENTRE SOMBRAS
+
+
+Vem ás vezes sentar-se ao pé de mim
+--A noite desce, desfolhando as rosas--
+Vem ter commigo, ás horas duvidosas,
+Uma visão, com azas de setim...
+
+Pousa de leve a delicada mão
+--Rescende amena a noite socegada--
+Pousa a mão compassiva e perfumada
+Sobre o meu dolorido coração...
+
+E diz-me essa visão compadecida
+--Ha suspiros no espaço vaporoso--
+Diz-me: Porque é que choras silencioso?
+Porque é tão erma e triste a tua vida?
+
+Vem commigo! Embalado nos meus braços
+--Na noite funda ha um silencio santo--
+N'um sonho feito só de luz e encanto
+Transporás a dormir esses espaços...
+
+Porque eu habito a região distante
+--A noite exhala uma doçura infinda--
+Onde ainda se crê e se ama ainda,
+Onde uma aurora igual brilha constante...
+
+Habito ali, e tu virás commigo
+--Palpita a noite n'um clarão que offusca--
+Porque eu venho de longe, em tua busca,
+Trazer-te paz e alivio, pobre amigo...
+
+Assim me fala essa visão nocturna
+--No vago espaço ha vozes dolorosas--
+São as suas palavras carinhosas
+Agua correndo em crystalina urna...
+
+Mas eu escuto-a immovel, somnolento
+--A noite verte um desconsolo immenso--
+Sinto nos membros como um chumbo denso,
+E mudo e tenebroso o pensamento...
+
+Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto
+--A noite é erma como campa enorme--
+Fito-a com olhos turvos de quem dorme
+E respondo: Bem sabes que estou morto!
+
+
+
+
+HYMNO DA MANHÃ
+
+
+Tu, casta e alegre luz da madrugada,
+Sobe, cresce no céo, pura e vibrante,
+E enche de força o coração triumphante
+Dos que ainda esperam, luz immaculada!
+
+Mas a mim pões-me tu tristeza immensa
+No desolado coração. Mais quero
+A noite negra, irmã do desespero,
+A noite solitaria, immovel, densa,
+
+O vacuo mudo, onde astro não palpita,
+Nem ave canta, nem susurra o vento,
+E adormece o proprio pensamento,
+Do que a luz matinal... a luz bemdita!
+
+Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
+Imagem do repouso inalteravel
+E do esquecimento inviolavel,
+Que anceia o mundo, farto de soffrer...
+
+Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
+O nada universal o pensamento,
+E despreza o viver e o seu tormento.
+E olvida, como quem está já morto...
+
+E, interrogando intrepido o Destino,
+Como reu o renega e o condemna,
+E virando-se, fita em paz serena
+O vacuo augusto, placido e divino...
+
+Porque a noite é a imagem da Verdade,
+Que está além das cousas transitorias.
+Das paixões e das formas illusorias,
+Onde sómente ha dor e falsidade...
+
+Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
+De que és symbolo tu? do eterno engano,
+Que envolve o mundo e o coração humano
+Em rede de mil malhas, mysteriosa!
+
+Symbolo, sim, da universal traição,
+D'uma promessa sempre renovada
+E sempre e eternamente perjurada,
+Tu, mãe da Vida e mãe da Illusão...
+
+Outros estendam para ti as mãos,
+Supplicantes, com fé, com esperança...
+Ponham outros seu bem, sua confiança
+Nas promessas e a luz dos dias vãos...
+
+Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
+E que tortura ainda não provada
+Hoje me ensinará esta alvorada?
+E digo: Porque nasce mais um dia?
+
+Antes tu nunca fosses, luz formosa!
+Antes nunca existisses! e o Universo
+Ficasse inerte e eternamente immerso
+Do possivel na nevoa duvidosa!
+
+O que trazes ao mundo em cada aurora?
+O sentimento só, só a consciencia,
+D'uma eterna, incuravel impotencia,
+Do insaciavel desejo, que o devora!
+
+De que são feitos os mais bellos dias?
+De combates, de queixas, de terrores!
+De que são feitos? de illusões, de dores,
+De miserias, de maguas, de agonias!
+
+O sol, inexoravel semeador,
+Sem jamais se cançar, percorre o espaço,
+E em borbotões lhe jorram do regaço
+As sementes innumeras da Dor!
+
+Oh! como cresce, sob a luz ardente,
+A seara maldita! como treme
+Sob os ventos da vida e como geme
+N'um susurro monotono e plangente!
+
+E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
+Em ondas de cruel fecundidade,
+Com a força e a subtil tenacidade
+Invencivel das plantas venenosas!
+
+De podridões antigas se alimenta,
+Da antiga podridão do chão fatal...
+Uma fragrancia morbida, mortal
+Lhe reçuma da seiva peçonhenta...
+
+E é esse aroma languido e profundo,
+Feito de seducções vagas, magneticas,
+De ardor carnal e de attracções poeticas,
+É esse aroma que envenena o mundo!
+
+Como um clarim soando pelos montes,
+A aurora acorda, placida e inflexivel,
+As miserias da terra: e a hoste horrivel,
+Enchendo de clamor e horisontes.
+
+Torva, cega, colerica, faminta,
+Surge mais uma vez e arma-se á pressa
+Para o bruto combate, que não cessa,
+Onde é vencida sempre e nunca extincta!
+
+Quantos erguem n'esta hora, com esforço,
+Para a luz matinal as armas novas,
+Pedindo a lucta e as formidaveis provas,
+Alegres e crueis e sem remorso,
+
+Que esta tarde ha-de ver, no duro chão
+Cahidos e sangrentos, vomitando
+Contra o céo, com o sangue miserando,
+Uma extrema e importante imprecação!
+
+Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,
+Ha-de a noite encontrar, sós e encostados
+A algum marco, chorando aniquilados
+As lagrimas caladas dos vencidos!
+
+E porque? para que? para que os chamas,
+Serena luz, ó luz inexoravel,
+Á vida incerta e á lucta inexpiavel,
+Com as falsas visões, com que os inflamas?
+
+Para serem o brinco d'um só dia
+Na mão indifferente do Destino...
+Clarão de fogo-fatuo repentino,
+Cruzando entre o nascer e a agonia...
+
+Para serem, no páramo enfadonho,
+Á luz de astros malignos e enganosos,
+Como um bando de espectros lastimosos,
+Como sombras correndo atraz d'um sonho...
+
+Oh! não! luz gloriosa e triumphante!
+Sacode embora o encanto e as seducções,
+Sobre mim, do teu manto de illusões:
+A meus olhos, és triste e vacillante...
+
+A meus olhos, és baça e luctuosa
+E amarga ao coração, ó luz do dia,
+Como tocha esquecida que allumia
+Vagamente uma crypta monstruosa...
+
+Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
+Me envolves, me penetras, com amor...
+Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
+E não te posso amar--não quero amar-te!
+
+Symbolo da Mentira universal,
+Da apparencia das cousas fugitivas,
+Que esconde, nas moventes perspectivas,
+Sob o eterno sorriso o eterno Mal,
+
+Symbolo da Illusão, que do infinito
+Fez surgir o Universo, já marcado
+Para a dor, para o mal, para o peccado,
+Symbolo da existencia, sê maldito!
+
+
+
+
+A FADA NEGRA
+
+
+Uma velha de olhar mudo e frio,
+De olhos sem cor, de labios glaciaes,
+Tomou-me nos seus braços sepuleraes.
+Tomou-me sobre o seio ermo e vasio.
+
+E beijou-me em silencio, longamente,
+Longamente me unio á face fria...
+Oh! como a minha alma se estorcia
+Sob os seus beijos, dolorosamente!
+
+Onde os labios pousou, a carne logo
+Myrrou-se e encaneceu-se-me o cabello,
+Meus ossos confrangeram-se. O gelo
+Do seu bafo seccava mais que o fogo.
+
+Com seu olhar sem cor, que me fitava,
+A Fada negra me qualhou o sangue.
+Dentro em meu coração inerte e exangue
+Um silencio de morte se engolfava.
+
+E volvendo em redor olhos absortos,
+O mundo pareceu-me uma visão,
+Um grande mar de nevoa, de illusão,
+E a luz do sol como um luar de mortos...
+
+Como o espectro d'um mundo já defuncto,
+Um farrapo de mundo, nevoento,
+Ruina aerea que sacode o vento,
+Sem cor, sem consistencia, sem conjuncto...
+
+E quanto adora quem adora o mundo,
+Brilho e ventura, esperar, sorrir,
+Eu vi tudo oscilar, pender, cahir,
+Inerte e já da cor d'um moribundo.
+
+Dentro em meu coração, n'esse momento,
+Fez-se um buraco enorme--e n'esse abysmo
+Senti ruir não sei que cataclismo,
+Como um universal desabamento...
+
+Razão! velha de olhar agudo e cru
+E de halito mortal mais do que a peste!
+Pelo beijo de gelo que me deste,
+Fada negra, bemdita sejas tu!
+
+Bemdita sejas tu pela agonia
+E o lucto funeral d'aquella hora
+Em que eu vi baquear quanto se adora,
+Vi de que noite é feita a luz do dia!
+
+Pelo pranto e as torturas bemfazejas
+Do desengano... pela paz austera
+D'um morto coração, que nada espera,
+Nem deseja tambem... bemdita sejas!
+
+
+
+
+*1860--1862*
+
+
+
+
+IGNOTO DEO
+
+
+Que belleza mortal se te assemelha,
+Ó sonhada visão d'esta alma ardente,
+Que reflectes em mim teu brilho ingente,
+Lá como sobre o mar o sol se espelha?
+
+O mundo é grande--e esta ancia me aconselha
+A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
+Pelo mundo procuro um Deus clemente,
+Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...
+
+Não é mortal o que eu em ti adoro.
+Que és tu aqui? olhar de piedade,
+Gota de mel em taça de venenos...
+
+Pura essencia das lagrimas que chóro
+E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
+Descobre-te, visão, ao céo ao menos!
+
+
+
+
+LAMENTO
+
+
+Um diluvio de luz cae da montanha:
+Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
+Onde ha por toda a terra um só cuidado
+Que não dissipe a luz que o mundo banha?
+
+Flor a custo medrada em erma penha,
+Revolto mar ou golfo congelado,
+Aonde ha ser de Deus tão olvidado
+Para quem paz e alivio o céo não tenha?
+
+Deus é Pae! Pae de toda a creatura:
+E a todo o ser o seu amor assiste:
+De seus filhos o mal sempre é lembrado...
+
+Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
+N'esta hora santa... e eu só posso ser triste...
+Serei filho, mas filho abandonado!
+
+
+
+
+A M.C.
+
+
+Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
+O que fada o poeta e o soldado
+Volveu a ti o olhar, de amor velado,
+E disse-te: «vae, filha, sê formosa!»
+
+E tu, descendo na onda harmoniosa,
+Pousaste n'este solo angustiado,
+Estrella envolta n'um clarão sagrado,
+Do teu limpido olhar na luz radiosa...
+
+Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
+Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
+Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.
+
+E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
+Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
+Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!
+
+
+
+
+A Santos Valente
+
+
+Estreita é do prazer na vida a taça:
+Largo, como o oceano é largo e fundo,
+E como elle em venturas infecundo,
+O cális amargoso da desgraça.
+
+E comtudo nossa alma, quando passa
+incerta peregrina, pelo mundo,
+Prazer só pede à vida, amor fecundo,
+É com essa esperança que se abraça.
+
+É lei de Deus este aspirar immenso...
+E comtudo a illusão impoz à vida.
+E manda buscar luz e dá-nos treva!
+
+Ah! se Deus accendeu um foco intenso
+De amor e dor em nós, na ardente lida,
+Porque a miragem cria... ou porque a leva?
+
+
+
+
+Tormanto do Ideal
+
+
+Conheci a Belleza que não morre
+E fiquei triste. Como quem da serra
+Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
+E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,
+
+Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
+Assim eu vi o mundo e o que elle encerra
+Perder a côr, bem como a nuvem que erra
+Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.
+
+Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
+Tropéço, em sombras, na materia dura.
+E encontro a imperfeição de quanto existe.
+
+Recebi o baptismo dos poetas,
+E assentado entre as fórmas incompletas
+Para sempre fiquei pallido e triste.
+
+
+
+
+ASPIRAÇÃO
+
+
+Meus dias vão correndo vagarosos
+Sem prazer e sem dôr, e até parece
+Que o foco interior já desfallece
+E vacilla com raios duvidosos.
+
+É bella a vida e os annos são formosos,
+E nunca ao peito amante o amor fallece...
+Mas, se a belleza aqui nos apparece,
+Logo outra lembra de mais puros gosos.
+
+Minh'alma, ó Deus! a outros céos aspira:
+Se um momento a prendeu mortal belleza,
+É pela eterna patria que suspira...
+
+Porém do presentir dá-me a certeza.
+Dá-ma! e sereno, embora a dôr me fira,
+Eu sempre bemdirei esta tristeza!
+
+
+
+
+A FLORIDO TELLES
+
+
+Se comparo poder ou ouro ou fama,
+Venturas que em si têm occulto o damno,
+Com aquele outro affecto soberano,
+Que amor se diz e é luz de pura chama,
+
+Vejo que são bem como arteira dama,
+Que sob honesto riso esconde o engano,
+E o que as segue, como homem leviano
+Que por um vão prazer deixa quem ama.
+
+Nasce do orgulho aquelle esteril goso
+E a gloria d'elle é cousa fraudulenta,
+Como quem na vaidade tem a palma:
+
+Tem na paixão seu brilho mais formoso
+E das paixões tambem some-o a tormenta...
+Mas a gloria do amor... essa vem d'alma!
+
+
+
+
+PSALMO
+
+
+Esperemos em Deus! Elle ha tomado
+Em suas mãos a massa inerte e fria
+Da materia impotente e, n'um só dia,
+Luz, movimento, acção, tudo lhe ha dado.
+
+Elle, ao mais pobre de alma, ha tributado
+Desvelo e amor: elle conduz á via
+Segura quem lhe foge e se extravia,
+Quem pela noite andava desgarrado.
+
+E a mim, que aspiro a elle, a mim, que o amo,
+Que anceio por mais vida e maior brilho.
+Ha-de negar-me o termo d'este anceio?
+
+Buscou quem o não quiz; e a mim, que o chamo,
+Ha-de fugir-me, como a ingrato filho?
+Ó Deus, meu pae e abrigo! espero!... eu creio!
+
+
+
+
+A M.C.
+
+
+No céo, se existe um céo para quem chora.
+Céo, para as magoas de quem soffre tanto...
+Se é lá do amor o foco, puro e santo,
+Chama que brilha, mas que não devora...
+
+No céo, se uma alma n'esse espaço mora.
+Que a prece escuta e encharga o nosso pranto...
+Se ha Pae, que estenda sobre nós o manto
+Do amor piedoso... que eu não sinto agora...
+
+No céo, ó virgem! findarão meus males:
+Hei-de lá renascer, eu que pareço
+Aqui ter só nascido para dôres.
+
+Ali, ó lyrio dos celestes valles!
+Tendo seu fim, terão o seu começo.
+Para não mais findar, nossos amores.
+
+
+
+
+A João de Deus
+
+
+Se é lei, que rege o escuro pensamento,
+Ser vã toda a pesquisa da verdade,
+Em vez da luz achar a escuridade,
+Ser uma queda nova cada invento;
+
+É lei tambem, embora cru tormento,
+Buscar, sempre buscar a claridade,
+E só ter como certa realidade
+O que nos mostra claro o entendimento.
+
+O que ha-de a alma escolher, em tanto engano?
+Se uma hora crê de fé, logo duvida:
+Se procura, só acha... o desatino!
+
+Só Deus póde acudir em tanto damno:
+Esperemos a luz d'uma outra vida,
+Seja a terra degredo, o céo destino.
+
+
+
+
+A Alberto Telles
+
+
+Só!--Ao ermita sósinho na montanha
+Visita-o Deus e dá-lhe confiança:
+No mar, o nauta, que o tufão balança,
+Espera um sopro amigo que o céo tenha...
+
+Só!--Mas quem se assentou em riba estranha,
+Longe dos seus, lá tem inda a lembrança:
+E Deus deixa-lhe ao menos a esperança
+Ao que á noite soluça em erma penha...
+
+Só!--Não o é quem na dor, quem nos cançaços,
+Tem um laço que o prenda a este fadario.
+Uma crença, um desejo... e inda um cuidado...
+
+Mas cruzar, com desdem, inertes braços,
+Mas passar, entre turbas, solitario,
+Isto é ser só, é ser abandonado!
+
+
+
+
+A J. Felix dos Santos
+
+
+Sempre o futuro, sempre! e o presente
+Nunca! Que seja esta hora em que se existe
+De incerteza e de dor sempre a mais triste,
+E só farte o desejo um bem ausente!
+
+Ai! que importa o futuro, se inclemente
+Essa hora, em que a esperança nos consiste,
+Chega... é presente... e só á dor assiste?...
+Assim, qual é a esperança que não mente?
+
+Desventura ou delirio?... O que procuro,
+Se me foge, é miragem enganosa,
+Se me espera, peor, espectro impuro...
+
+Assim a vida passa vagarosa:
+O presente, a aspirar sempre ao futuro:
+O futuro, uma sombra mentirosa.
+
+
+
+
+A M. C.
+
+
+Porque descrês, mulher, do amor, da vida?
+Porque esse Hermon transformas em Calvario?
+Porque deixas que, aos poucos, do sudario
+Te aperte o seio a dobra humedecida?
+
+Que visão te fugio, que assim perdida
+Buscas em vão n'este ermo solitario?
+Que signo obscuro de cruel fadario
+Te faz trazer a fronte ao chão pendida?
+
+Nenhum! intacto o bem em ti assiste:
+Deus, em penhor, te deu a formosura;
+Bençãos te manda o céo em cada hora.
+
+E descrês do viver?... E eu, pobre e triste,
+Que só no teu olhar leio a ventura,
+Se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?
+
+
+
+
+A Alberto Sampaio
+
+
+Não me fales de gloria: é outro o altar
+Onde queimo piedoso o meu incenso,
+E animado de fogo mais intenso,
+De fé mais viva, vou sacrificar.
+
+A gloria! pois que ha n'ella que adorar?
+Fumo, que sobre o abysmo anda suspenso...
+Que vislumbre nos dá do amor immenso?
+Esse amor que ventura faz gosar?
+
+Ha outro mais perfeito, unico eterno,
+Farol sobre ondas tormentosas firme,
+De immoto brilho, poderoso e terno...
+
+Só esse hei-de buscar, e confundir-me
+Na essencia do amor puro, sempiterno...
+Quero só n'esse fogo consumir-me!
+
+
+
+
+A Germano Meyrelles
+
+
+Só males são reaes, só dor existe;
+Prazeres só os gera a phantasia;
+Em nada, um imaginar, o bem consiste,
+Anda o mal em cada hora e instante e dia.
+
+Se buscamos o que é, o que devia
+Por natureza ser não nos assiste;
+Se fiamos n'um bem, que a mente cria,
+Que outro remedio ha ahi senão ser triste?
+
+Oh! quem tanto pudera, que passasse
+A vida em sonhos só, e nada vira...
+Mas, no que se não vê, labor perdido!
+
+Quem fôra tão ditoso que olvidasse...
+Mas nem seu mal com elle então dormira,
+Que sempre o mal peor é ter nascido!
+
+
+
+
+A M. C.
+
+
+Não busco n'esta vida gloria ou fama:
+Das turbas que me importa o vão ruído?
+Hoje, deus... e amanhã, já esquecido
+Como esquece o clarão de extincta chama!
+
+Foco incerto, que a luz já mal derrama,
+Tal é essa ventura: eccho perdido,
+Quanto mais se chamou, mais escondido
+Ficou inerte e mudo á voz que o chama.
+
+D'essa coroa é cada flor um engano,
+É miragem em nuvem illusoria,
+É mote vão de fabuloso arcano.
+
+Mas coroa-me tu: na fronte ingloria
+Cinge-me tu o louro soberano...
+Verás, verás então se amo essa gloria!
+
+
+
+
+AD AMICOS
+
+
+Em vão luctamos. Como nevoa baça,
+A incerteza das cousas nos envolve.
+Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
+Nas suas proprias redes se embaraça.
+
+O pensamento, que mil planos traça,
+É vapor que se esvae e se dissolve;
+E a vontade ambiciosa, que resolve,
+Como onda entre rochedos se espedaça.
+
+Filhos do Amor, nossa alma é como um hymno
+Á luz, á liberdade, ao bem fecundo,
+Prece e clamor d'um presentir divino;
+
+Mas n'um deserto só, arido e fundo,
+Ecchoam nossas vozes, que o Destino
+Paira mudo e impassivel sobre o mundo.
+
+
+
+
+A um crucifixo
+
+
+Ha mil annos, bom Christo, ergueste os magros braços
+E clamaste da cruz: ha Deus! e olhaste, ó crente,
+O horizonte futuro e viste, em tua mente,
+Um alvor ideal banhar esses espaços!
+
+Porque morreu sem eccho o eccho de teus passos,
+E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
+Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
+Arrojáras de nova á campa os membros lassos...
+
+Agora, como então, na mesma terra erma,
+A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
+Sob o mesmo ermo céo, frio como um sudario...
+
+E agora, como então, viras o mundo exangue,
+E ouviras perguntar--de que servio o sangue
+Com que regaste, ó Christo, as urzes do Calvario?--
+
+
+
+
+Desesperança
+
+
+Vae-te na aza negra da desgraça,
+Pensamento de amor, sombra d'uma hora,
+Que abracei com delirio, vae-te, embora,
+Como nuvem que o vento impelle... e passa.
+
+Que arrojemos de nós quem mais se abraça,
+Com mais ancia, á nossa alma! e quem devora
+D'essa alma o sangue, com que vigora,
+Como amigo commungue á mesma taça!
+
+Que seja sonho apenas a esperança,
+Emquanto a dor eternamente assiste.
+E só engano nunca a desventura!
+
+Se era silencio soffrer fôra vingança!..
+Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
+Talvez sem esperança haja ventura!
+
+
+
+
+BEATRICE
+
+
+Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando,
+Se foi a nuvem d'ouro ideal que eu vira erguida:
+Depois que vi descer, baixar no céo da vida
+Cada estrella e fiquei nas trevas laborando:
+
+Depois que sobre o peito os braços apertando
+Achei o vacuo só, e tive a luz sumida
+Sem ver já onde olhar, e em todo vi perdida
+A flor do meu jardim, que eu mais andei regando:
+
+Retirei os meus pés da senda dos abrolhos,
+Virei-me a outro céo, nem ergo já meus olhos
+Senão á estrella ideal, que a luz d'amor contém...
+
+Não temas pois--Oh vem! o céo é puro, e calma
+E silenciosa a terra, e doce o mar, e a alma...
+A alma! não vês tu? mulher, mulher! oh vem!
+
+
+
+
+1862--1866
+
+
+
+
+AMOR VIVO
+
+
+Amar! mas d'um amor que tenha vida...
+Não sejam sempre timidos harpejos,
+Não sejam só delirios e desejos
+D'uma douda cabeça escandecida...
+
+Amor que vive e brilhe! luz fundida
+Que penetre o meu ser--e não só beijos
+Dados no ar--delirios e desejos--
+Mas amor... dos amores que têm vida...
+
+Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
+Não virá dissipal-o nos meus braços
+Como nevoa da vaga phantasia...
+
+Nem murchará do sol á chama erguida...
+Pois que podem os astros dos espaços
+Contra debeis amores... se têm vida?
+
+
+
+
+VISITA
+
+
+Adornou o meu quarto a flor do cardo,
+Perfumei-o de almiscar recendente;
+Vesti-me com a purpura fulgente,
+Ensaiando meus cantos, como um bardo;
+
+Ungi as mãos e a face com o nardo
+Crescido nos jardins do Oriente,
+A receber com pompa, dignamente,
+Mysteriosa visita a quem aguardo.
+
+Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
+Era essa que assim a mim descia,
+Do meu casebre á humida pousada?...
+
+Nem princezas, nem fadas. Era, flor,
+Era a tua lembrança que batia
+Ás portas de ouro e luz do meu amor!
+
+
+
+
+PEQUENINA
+
+
+Eu bem sei que te chamam _pequenina_
+E tenue como o véo solto na dança,
+Que és no juizo apenas a _criança_,
+Pouco mais, nos vestidos, que a _menina_...
+
+Que és o regato de agua mansa e fina,
+A folhinha do til que se balança,
+O peito que em correndo logo cança,
+A fronte que ao soffrer logo se inclina...
+
+Mas, filha, lá nos montes onde andei,
+Tanto me enchi de angustia e de receio
+Ouvindo do infinito os fundos ecchos,
+
+Que não quero imperar nem já ser rei
+Senão tendo meus reinos em teu seio
+E subditos, criança, em teus bonecos!
+
+
+
+
+A SULAMISA
+
+ Ego dormio, et cor meum vigilat. CANTICO DOS CANTICOS.
+
+
+Quem anda lá por fóra, pela vinha
+Na sombra do luar meio cacoberto,
+Sutil nos passos e espreitando incerto,
+Com brando respirar de criancinha?
+
+Um sonho me accordou... não sei que tinha...
+Pareceu-me sentil-o aqui tão perto...
+Seja alta noite, seja n'um deserto,
+Quem ama até em sonhos adivinha...
+
+Môças da minha terra, ao meu amado
+Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
+Mas que póde ir contente e descançado,
+
+Pois se tão cedo adormeci, conforme
+É meu costume, olhae, dormia embora,
+Porque o meu coração é que não dorme...
+
+
+
+
+Sonho oriental
+
+
+Sonho-me ás vezes rei, n'alguma ilha,
+Muito longe, nos mares do Oriente,
+Onde a noite é balsamica e fulgente
+E a lua cheia sobre as aguas brilha...
+
+O aroma da magnolia e da baunilha
+Paira no ar diaphano e dormente...
+Lambe a orla dos bosques, vagamente,
+O mar com finas ondas de escumilha...
+
+E emquanto eu na varanda de marfim
+Me encosto, absorto n'um scismar sem fim,
+Tu, meu amor, divagas ao luar,
+
+Do profundo jardim pelas clareiras,
+Ou descanças debaixo das palmeiras,
+Tendo aos pés um leão familiar.
+
+
+
+
+Quinze annos
+
+
+Eu amo a vasta sombra das montanhas,
+Que estendem sobre os largos continentes
+Os seus braços de rocha negra, ingentes,
+Bem como braços colossaes aranhas.
+
+D'ali o nosso olhar vê tão estranhas
+Cousas, por esse céo! e tão ardentes
+Visões, lá n'esse mar de ondas trementes!
+E ás estrellas, d'ali, vê-as tamanhas!
+
+Amo a grandeza mysteriosa e vasta...
+A grande idea, como a flor e o viço
+Da arvore colossal que nos domina...
+
+Mas tu, criança, sê tu boa... e basta:
+Sabe amar e sorrir... é pouco isso?
+Mas a ti só te quero pequenina!
+
+
+
+
+IDYLLIO
+
+
+Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
+Colher nos valles lyrios e boninas,
+E galgamos d'um folego as colinas
+Dos rocios da noite inda orvalhadas;
+
+Ou, vendo o mar, das ermas cumiadas,
+Contemplamos as nuvens vespertinas,
+Que parecem phantasticas ruinas
+Ao longe, no horisonte, amontoadas:
+
+Quantas vezes, de subito, emmudeces!
+Não sei que luz no teu olhar fluctua;
+Sinto tremer-te a mão, e empallideces...
+
+O vento e o mar murmuram orações,
+E a poesia das cousas se insinua
+Lenta e amorosa em nossos corações.
+
+
+
+
+NOCTURNO
+
+
+Espirito que passas, quando o vento
+Adormece no mar e surge a lua,
+Filho esquivo da noite que fluctua,
+Tu só entendes bem o meu tormento...
+
+Como um canto longinquo--triste e lento--
+Que voga e sutilmente se insinua,
+Sobre o meu coração, que tumultua,
+Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...
+
+A ti confio o sonho em que me leva
+Um instincto de luz, rompendo a treva,
+Buscando, entre visões, o eterno Bem.
+
+E tu entendes o meu mal sem nome,
+A febre de Ideal, que me consome,
+Tu só, Genio da Noite, e mais ninguem!
+
+
+
+
+SONHO
+
+
+Sonhei--nem sempre o sonho é cousa vã--
+Que um vento me levava arrebatado,
+Atravez d'esse espaço constellado
+Onde uma aurora eterna ri louçã...
+
+As estrellas, que guardam a manhã,
+Ao verem-me passar triste e calado,
+Olhavam-me e dixiam com cuidado:
+Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?
+
+Mas eu baixava os olhos, receoso
+Que trahissem as grandes magoas minhas,
+E passava furtivo e silencioso,
+
+Nem ousava contar-lhes, ás estrellas,
+Contar ás tuas puras irmansinhas
+Quanto és falsa, meu bem, e indigna d'ellas!
+
+
+
+
+AMARITUDO
+
+
+Só por ti, astro ainda e sempre occulto,
+Sombra do Amor e sonho da Verdade,
+Divago eu pelo mundo e em anciedade
+Meu proprio coração em mim sepulto.
+
+De templo em templo, em vão, levo o meu culto,
+Levo as flores d'uma intima piedade.
+Vejo os votos da minha mocidade
+Receberem sómente escarneo e insulto.
+
+Á beira do caminho me assentei...
+Escutarei passar o agreste vento,
+Exclamando: assim passe quando amei!--
+
+Oh minh'alma, que creste na virtude!
+O que será velhice e desalento,
+Se isto se chama aurora e juventude?
+
+
+
+
+ABNEGAÇÃO
+
+
+Chovam lyrios e rosas no teu collo!
+Chovam hymnos de gloria na tua alma!
+Hymnos de gloria e adoração e calma,
+Meu amor, minha pomba e meu consolo!
+
+Dê-te estrellas o céo, flores o solo,
+Cantos e aroma o ar e sombra a palmar.
+E quando surge a lua e o mar se acalma,
+Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!
+
+E nem sequer te lembres de que eu chóro...
+Esquece até, esquece, que te adoro...
+E ao passares por mim, sem que me olhes,
+
+Possam das minhas lagrimas crueis
+Nascer sob os teus pés flores fieis,
+Que pises distrahida ou rindo esfolhes!
+
+
+
+
+APPARIÇÃO
+
+
+Um dia, meu amor (e talvez cedo,
+Que já sinto estalar-me o coração!)
+Recordarás com dor e compaixão
+As ternas juras que te fiz a medo...
+
+Então, da casta alcova no segredo,
+Da lamparina ao tremulo clarão,
+Ante ti surgirei, espectro vão,
+Larva fugida ao sepulcral degredo...
+
+E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
+E afflictos ais, estenderás os braços
+Tentando segurar-te aos meus vestidos...
+
+--«Ouve! espera!»--Mas eu, sem te escutar,
+Fugirei, como um sonho, aos teus abraços
+E como fumo sumir-me-hei no ar!
+
+
+
+
+ACCORDANDO
+
+
+Em sonho, ás vezes, se o sonhar quebranta
+Este meu vão soffrer; esta agonia,
+Como sobe cantando a cotovia,
+Para o céo a minh'alma sobe e canta.
+
+Canta a luz, a alvorada, a estrella santa,
+Que ao mundo traz piedosa mais um dia...
+Canta o enlevo das cousas, a alegria
+Que as penetra de amor e as alevanta...
+
+Mas, de repente, um vento humido e frio
+Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
+Me accorda.--A noite é negra e muda: a dor
+
+Cá vela, como d'antes, ao meu lado...
+Os meus cantos de luz, anjo adorado,
+São sonho só, e sonho o meu amor!
+
+
+
+
+MÃE...
+
+
+Mãe--que adormente este viver dorido,
+E me vele esta noite de tal frio,
+E com as mãos piedosas ate o fio
+Do meu pobre existir, meio partido...
+
+Que me leve comsigo, adormecido,
+Ao passar pelo sitio mais sombrio...
+Me banhe e lave a alma lá no rio
+Da clara luz do seu olhar querido...
+
+Eu dava o meu orgulho de homem--dava
+Minha esteril sciencia, sem receio,
+E em debil criancinha me tornava.
+
+Descuidada, feliz, docil tambem,
+Se eu podesse dormir sobre o teu seio,
+Se tu fosses, querida, a minha mãe!
+
+
+
+
+Na capella
+
+
+Na capella, perdida entre a folhagem,
+O Christo, lá no fundo, agonisava...
+Oh! como intimamente se casava
+Com minha dor a dor d'aquella imagem!
+
+Filhos ambos do amor, igual miragem
+Nos roçou pela fronte, que escaldava...
+Igual traição, que o affecto mascarava,
+Nos deu supplicio ás mãos da villanagem...
+
+E agora, ali, em quanto da floresta
+A sombra se infiltrava lenta e mesta,
+Vencidos ambos, martyres do Fado,
+
+Fitavamo-nos mudos--dor igual!--
+Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual
+Mais pallido, mais triste e mais cançado...
+
+
+
+
+Velut Umbra
+
+
+Fumo e scismo. Os castellos do horizonte
+Erguem-se, á tarde, e crescem, de mil cores,
+E ora espalham no céo vivos ardores,
+Ora fumam, vulcões de estranho monte...
+
+Depois, que formas vagas vêm defronte,
+Que parecem sonhar loucos amores?
+Almas que vão, por entre luz e horrores,
+Passando a barca d'esse aereo Acheronte...
+
+Apago o meu charuto quando apagas
+Teu facho, oh sol... ficamos todos sós...
+É n'esta solidão que me consumo!
+
+Oh nuvens do Occidente, oh cousas vagas,
+Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,
+Belleza e altura se me vão em fumo!
+
+
+
+
+MEA CULPA
+
+
+Não duvido que o mundo no seu eixo
+Gire suspenso e volva em harmonia;
+Que o homem suba e vá da noite ao dia,
+E o homem vá subindo insecto o seixo.
+
+Não chamo a Deus tyranno, nem me queixo,
+Nem chamo ao céo da vida noite fria;
+Não chamo á existencia hora sombria;
+Acaso, á ordem; nem á lei desleixo.
+
+A Natureza é minha mãe ainda...
+É minha mãe... Ah, se eu á face linda
+Não sei sorrir: se estou desesperado;
+
+Se nada ha que me aqueça esta frieza;
+Se estou cheio de fel e de tristeza...
+É de crer que só eu seja o culpado!
+
+
+
+
+O Palacio da Ventura
+
+
+Sonho que sou um cavalleiro andante.
+Por desertos, por sóes, por noite escura,
+Paladino do amor, busco anhelante
+O palacio encantado da Ventura!
+
+Mas já desmaio, exhausto e vacillante.
+Quebrada a espada já, roda a armadura...
+E eis que subito o avisto, fulgurante
+Na sua pompa e aerea formosura!
+
+Com grandes golpes bato á porta e brado:
+Eu sou o Vagabundo, o Desherdado...
+Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!
+
+Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
+Mas dentro encontro só, cheio de dor,
+Silencio e escuridão--e nada mais!
+
+
+
+
+JURA
+
+
+Pelas rugas da fronte que medita...
+Pelo olhar que interroga--e não vê nada...
+Pela miseria e pela mão gelada
+Que apaga a estrella que nossa alma fita...
+
+Pelo estertor da chama que crepita
+No ultimo arranco d'uma luz minguada...
+Pelo grito feroz da abandonada
+Que um momento de amante fez maldita...
+
+Por quanto ha de fatal, que quanto ha mixto
+De sombra e de pavor sob uma lousa...
+Oh pomba meiga, pomba de esperança!
+
+Eu t'o juro, menina, tenho visto
+Cousas terriveis--mas jamais vi cousa
+Mais feroz do que um riso de criança!
+
+
+
+
+IDEAL
+
+
+Aquella, que eu adoro, não é feita
+De lyrios nem de rosas purpurinas,
+Não tem as formas languidas, divinas
+Da antiga Venus de cintura estreita...
+
+Não é a Circe, cuja mão suspeita
+Compõe filtros mortaes entre ruinas,
+Nem a Amazona, que se agarra ás crinas
+D'um corcel e combate satisfeita...
+
+A mim mesmo pergunto, e não atino
+Com o nome que dê a essa visão,
+Que ora amostra ora esconde o meu destino...
+
+É como uma miragem, que entrevejo,
+Ideal, que nasceu na solidão,
+Nuvem, sonho impalpavel do Desejo...
+
+
+
+
+Emquanto outros combatem
+
+
+Empunhasse eu a espada dos valentes!
+Impellisse-me a acção, embriagado,
+Por esses campos onde a Morte e o Fado
+Dão a lei aos reis tremulos e ás gentes!
+
+Respirariam meus pulmões contentes
+O ar de fogo do circo ensanguentado...
+Ou cahira radioso, amortalhado
+Na fulva luz dos gladios reluzentes!
+
+Já não veria dissipar-se a aurora
+De meus inuteis annos, sem uma hora
+Viver mais que de sonhos e anciedade!
+
+Já não veria em minhas mãos piedosas
+Desfolhar-se, uma a uma, as tristes rosas
+D'esta pallida e esteril mocidade!
+
+
+
+
+DESPONDENCY
+
+
+Deixal-a ir, a ave, a quem roubaram
+Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
+Que a leve o ar sem fim da soledade
+Onde as azas partidas a levaram...
+
+Deixal-a ir, a vela, que arrojaram
+Os tufões pelo mar, na escuridade,
+Quando a noite surgio da immensidade,
+Quando os ventos do Sul levantaram...
+
+Deixal-a ir, a alma lastimosa,
+Que perdeu fé e paz e confiança,
+Á morte queda, á morte silenciosa...
+
+Deixal-a ir, a nota desprendida
+D'um canto extremo... e a ultima esperança...
+E a vida... e o amor... deixal-a ir, a vida!
+
+
+
+
+Das Unnennbare
+
+
+Oh chimera, que passas embalada
+Na onda de meus sonhos dolorosos,
+E roças co'os vestidos vaporosos
+A minha fronte pallida e cançada!
+
+Leva-te o ar da noite socegada...
+Pergunto em vão, com olhos anciosos,
+Que nome é que te dão os venturosos
+No teu paiz, mysteriosa fada!
+
+Mas que destino o meu! e que luz baça
+A d'esta aurora, igual á do sol posto,
+Quando só nuvem livida esvoaça!
+
+Que nem a noite uma illusão consinta!
+Que só de longe e em sonhos te presinta...
+E nem em sonhos possa ver-te o rosto!
+
+
+
+
+Metempsychose
+
+
+Ausentes filhas do prazer: dizei-me!
+Vossos sonhos quaes são, depois da orgia?
+Acaso nunca a imagem fugidia
+Do que fostes, em vós se agita e freme?
+
+N'outra vida e outra esphera, aonde geme
+Outro vento, e se accende um outro dia,
+Que corpo tinheis? que materia fria
+Vossa alma incendiou, com fogo estreme?
+
+Vós fostes nas florestas bravas feras,
+Arrastando, leôas ou pantheras,
+De dentadas de amor um corpo exangue...
+
+Mordei pois esta carne palpitante,
+Feras feitas de gaze fluctuante...
+Lobas! leôas! sim, bebei meu sangue!
+
+
+
+
+UMA AMIGA
+
+
+Aquelles, que eu amei, não sei que vento
+Os dispersou no mundo, que os não vejo...
+Estendo os braços e nas trevas beijo
+Visões que á noite evoca o sentimento...
+
+Outros me causam mais cruel tormento
+Que a saudade dos mortos... que eu invejo...
+Passam por mim, mas como que têm pejo
+Da minha soledade e abatimento!
+
+D'aquella primavera venturosa
+Não resta uma flor só, uma só rosa...
+Tudo o vento varreu, queimou o gelo!
+
+Tu só foste fiel--tu, como d'antes,
+Inda volves teus olhos radiantes...
+Para ver o meu mal... e escarnecel-o!
+
+
+
+
+A uma mulher
+
+
+Para tristezas, para dor nasceste.
+Podia a sorte por-te o berço estreito
+N'algum palacio e ao pé de regio leito,
+Em vez d'este areal onde cresceste:
+
+Podia abrir-te as flores--com que veste
+As ricas e as felizes--n'esse peito:
+Fazer-te... o que a Fortuna ha sempre feito...
+Terias sempre a sorte que tiveste!
+
+Tinhas de ser assim... Teus olhos fitos,
+Que não são d'este mundo e onde eu leio
+Uns mysterios tão tristes e infinitos,
+
+Tua voz rara e esse ar vago e esquecido,
+Tudo me diz a mim, e assim o creio,
+Que para isto só tinhas nascido!
+
+
+
+
+Voz do Outomno
+
+
+Ouve tu, meu cançado coração,
+O que te diz a voz da Natureza:
+--«Mais te valera, nú e sem defeza,
+Ter nascido em asperrima soidão,
+
+Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
+Frio e cruel da mais cruel
+deveza, Do que emballar-te a Fada da Belleza,
+Como emballou, no berço da Illusão!
+
+Mais valera á tua alma visionaria
+Silenciosa e triste ter passado
+Por entre o mundo hostil e a turba varia,
+
+(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
+Com odio e raiva e dor... que ter sonhado
+Os sonhos ideaes que tu sonhaste!»--
+
+
+
+
+Sepultura romantica
+
+
+Ali, onde o mar quebra, n'um cachão
+Rugidor e monotono, e os ventos
+Erguem pelo areal os seus lamentos,
+Ali se ha-de enterrar meu coração.
+
+Queimem-no os sóes da adusta solidão
+Na fornalha do estio, em dias lentos;
+Depois, no inverno, os sopros violentos
+Lhe revolvam em torno o arido chão...
+
+Até que se desfaça e, já tornado
+Em impalpavel pó, seja levado
+Nos turbilhões que o vento levantar...
+
+Com suas luctas, seu cançado anceio,
+Seu louco amor, dissolva-se no seio
+D'esse infecundo, d'esse amargo mar!
+
+
+
+
+1864--1874
+
+
+
+
+A IDEA
+
+
+I
+
+
+Pois que os deuses antigos e os antigos
+Divinos sonhos por esse ar se somem,
+E á luz do altar da fé, em Templo ou Dolmen,
+A apagaram os ventos inimigos;
+
+Pois que o Sinai se ennubla e os seus pacigos,
+Seccos á mingua de agua, se consomem,
+E os prophetas d'outrora todos dormem
+Esquecidos, em terra sem abrigos;
+
+Pois que o céo se fechou e já não desce
+Na escada de Jacob (na de Jesus!)
+Um só anjo, que acceite a nossa prece;
+
+É que o lyrio da Fé já não renasce:
+Deus tapou com a mão a sua luz
+E ante os homens velou a sua face!
+
+
+II
+
+
+Pallido Christo, oh conductor divino!
+A custo agora a tua mão tão doce
+Incerta nos conduz, como se fosse
+Teu grande coração perdendo o tino...
+
+A palavra sagrada do Destino
+Na bocca dos oraculos seccou-se:
+A luz da sarça ardente dissipou-se
+Ante os olhos do vago peregrino!
+
+Ante os olhos dos homens--porque o mundo
+Desprendido rolou das mãos de Deus,
+Como uma cruz das mãos d'um moribundo!
+
+Porque já se não lê seu nome escrito
+Entre os astros... e os astros, como atheus,
+Já não querem mais lei que o infinito!
+
+
+III
+
+
+Força é pois ir buscar outro caminho!
+Lançar o arco de outra nova ponte
+Por onde a alma passe--e um alto monte
+Aonde se abre á luz o nosso ninho.
+
+Se nos negam aqui o pão e o vinho,
+Avante! é largo, immenso esse horizonte...
+Não, não se fecha o mundo! e além, defronte,
+E em toda a parte ha luz, vida e carinho!
+
+Avante! os mortos ficarão sepultos...
+Mas os vivos que sigam, sacudindo
+Como o pó da estrada os velhos cultos!
+
+Doce e brando era o seio de Jesus...
+Que importa? havemos de passar, seguindo,
+Se além do seio d'elle houver mais luz!
+
+
+IV
+
+
+Conquista pois sósinho o teu futuro,
+Já que os celestes guias te hão deixado,
+Sobre uma terra ignota abandonado,
+Homem--proscrito rei--mendigo escuro!
+
+Se não tens que esperar do céo (tão puro,
+Mas tão cruel!) e o coração magoado
+Sentes já de illusões desenganado,
+Das illusões do antigo amor perjuro:
+
+Ergue-te, então, na magestade estoica
+D'uma vontade solitaria e altiva,
+N'um esforço supremo de alma heroica!
+
+Faze um templo dos muros da cadeia,
+Prendendo a immensidade eterna e viva
+No circulo de luz da tua Idea!
+
+
+V
+
+
+Mas a Idea quem é? quem foi que a vio,
+Jámais, a essa encoberta peregrina?
+Quem lhe beijou a sua mão divina?
+Com seu olhar de amor quem se vestio?
+
+Pallida imagem, que a agua de algum rio,
+Reflectindo, levou... incerta e fina
+Luz, que mal bruxulêa pequenina...
+Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumio...
+
+Estendei, estendei-lhe os vossos braços,
+Magros da febre d'um sonhar profundo,
+Vós todos que a seguis n'esses espaços!
+
+E emtanto, oh alma triste, alma chorosa,
+Tu não tens outra amante em todo o mundo
+Mais que essa fria virgem desdenhosa!
+
+
+VI
+
+
+Outra amante não ha! não ha na vida
+Sombra a cobrir melhor nossa cabeça,
+Nem balsamo mais doce, que adormeça
+Em nós a antiga, a secular ferida!
+
+Quer fuja esquiva, ou se offereça erguida,
+Como quem sabe amar e amar confessa,
+Quer nas nuvens se esconda ou appareça,
+Será sempre ella a esposa promettida!
+
+Nossos desejos para ti, oh fria,
+Se erguem, bem como os braços do proscrito
+Para as bandas da patria, noite e dia.
+
+Podes fugir... nossa alma, delirante,
+Seguir-te-ha a travez do infinito,
+Até voltar comtigo, triumphante!
+
+
+VII
+
+
+Oh! o noivado barbaro! o noivado
+Sublime! aonde os céos, os céos ingentes,
+Serão leito de amor, tendo pendentes
+Os astros por docel e cortinado!
+
+As bodas do Desejo, embriagado
+De ventura, a final! visões ferventes
+De quem nos braços vae de ideaes ardentes
+Por espaços sem termo arrebatado!
+
+Lá, por onde se perde a phantasia
+No sonho da belleza: lá, aonde
+A noite tem mais luz que o nosso dia;
+
+Lá, no seio da eterna claridade,
+Aonde Deus á humana voz responde;
+É que te havemos abraçar, Verdade!
+
+
+VIII
+
+
+Lá! Mas aonde é _lá_?--Espera,
+Coração indomado! o céo, que anceia
+A alma fiel, o céo, o céo da Idea.
+Em vão o buscas n'essa immensa esphera!
+
+O espaço é mudo: a immensidade austera
+De balde noite e dia incendeia...
+Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
+A rosa ideal da eterna primavera!
+
+O Paraiso e o templo da Verdade,
+Oh mundos, astros, sóes, constellações!
+Nenhum de vós o tem na immensidade...
+
+A Idea, o summo Bem, o Verbo, a Essencia,
+Só se revela aos homens e ás nações
+No céo incorruptivel da Consciencia!
+
+
+
+
+A um crucifixo
+
+ Lendo, passados 12 annos, o soneto da parte 1.^a que tem o mesmo
+ titulo
+
+
+Não se perdeu teu sangue generoso,
+Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
+Plebeu antigo, que amarrado ao poste
+Morreste como vil e faccioso.
+
+D'esse sangue maldito e ignominioso
+Surgio armada uma invencivel hoste...
+Paz aos homens e guerra aos deuses!--poz-te
+Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...
+
+Do pobre que protesta foste a imagem:
+Um povo em ti começa, um homem novo:
+De ti data essa tragica linhagem.
+
+Por isso nós, a Plebe, ao pensar n'isto,
+Lembraremos, herdeiros d'esse povo,
+Que entre nossos avós se conta Christo.
+
+
+
+
+DIALOGO
+
+
+A cruz dizia á terra onde assentava,
+Ao valle obscuro, ao monte aspero e mudo:
+--Que és tu, abysmo e jaula, aonde tudo
+Vive na dor e em lucta cega e brava?
+
+Sempre em trabalho, condemnada escrava.
+Que fazes tu de grande e bom, comtudo?
+Resignada, és só lodo informe e rudo;
+Revoltosa, és só fogo e horrida lava...
+
+Mas a mim não ha alta e livre serra
+Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
+Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!
+
+Sou o espirito, a luz!.. tu és tristeza,
+Oh lodo escuro e vil!--Porêm a terra
+Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!
+
+
+
+
+MAIS LUZ!
+
+(A Guilherme de Azevedo)
+
+
+Amem a noite os magros crapulosos,
+E os que sonham com virgens impossiveis,
+E os que inclinam, mudos e impassiveis,
+Á borda dos abysmos silenciosos...
+
+Tu, lua, com teus raios vaporosos,
+Cobre-os, tapa-os e torna-os insensiveis,
+Tanto aos vicios crueis e inextinguiveis,
+Como aos longos cuidados dolorosos!
+
+Eu amarei a santa madrugada,
+E o meio-dia, em vida refervendo,
+E a tarde rumorosa e repousada.
+
+Viva e trabalhe em plena luz: depois,
+Seja-me dado ainda ver, morrendo,
+O claro sol, amigo dos heroes!
+
+
+
+
+These e Antithese
+
+
+I
+
+
+Já não sei o que vale a nova idea,
+Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
+Torva no aspecto, á luz da barricada,
+Como bacchante após lubrica ceia...
+
+Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
+Respira fumo e fogo embriagada:
+A deusa de alma vasta e socegada
+Eil-a presa das furias de Medea!
+
+Um seculo irritado e truculento
+Chama á epilepsia pensamento,
+Verbo ao estampido de pelouro e obuz...
+
+Mas a idea é n'um mundo inalteravel,
+N'um crystallino céo, que vive estavel...
+Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
+
+
+II
+
+
+N'um céo intemerato e crystallino
+Póde habitar talvez um Deus distante,
+Vendo passar em sonho cambiante
+O Ser, como espectaculo divino.
+
+Mas o homem, na terra onde o destino
+O lançou, vive e agita-se incessante:
+Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
+Cá da terra blasphema ou ergue um hymno...
+
+A idea encarna em peitos que palpitam:
+O seu pulsar são chamas que crepitam,
+Paixões ardentes como vivos soes!
+
+Combatei pois na terra arida e bruta,
+Té que a revolva o remoinhar da lucta,
+Té que a fecunde o sangue dos heroes!
+
+
+
+
+Justitia Mater
+
+
+Nas florestas solemnes ha o culto
+Da eterna, intima força primitiva:
+Na serra, o grito audaz da alma captiva,
+Do coração, em seu combate inulto:
+
+No espaço constellado passa o vulto
+Do innominado Alguem, que os soes aviva:
+No mar ouve-se a voz grave e afflictiva
+D'um deus que lucta, poderoso e inculto.
+
+Mas nas negras cidades, onde sôlta
+Se ergue, de sangue medida, a revolta,
+Como incendio que um vento bravo atiça,
+
+Ha mais alta missão, mais alta gloria:
+O combater, á grande luz da historia,
+Os combates eternos da Justiça!
+
+
+
+
+Palavras d'um certo Morto
+
+
+Ha mil annos, e mais, que aqui estou morto,
+Posto sobre um rochedo, á chuva e ao vento:
+Não ha como eu espectro macilento,
+Nem mais disforme que eu nenhum aborto...
+
+Só o espirito vive: vela absorto
+N'um fixo, inexoravel pensamento:
+«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
+É isto só... do resto não me importo...
+
+Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia,
+Um dia só--no outro, a Idolatria
+Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me.
+
+Como se eu fosse _alguem_! como se a Vida
+Podesse ser _alguem_!--logo em seguida
+Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!
+
+
+
+
+A UM POETA
+
+ _Surge et ambula_!
+
+
+Tu, que dormes, espirito sereno,
+Posto á sombra dos cedros seculares,
+Como um levita á sombra dos altares,
+Longe da lucta e do fragor terreno,
+
+Accorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
+Afugentou as larvas tumulares...
+Para surgir do seio d'esses mares,
+Um mundo novo espera só um aceno...
+
+Escuta! é a grande voz das multidões!
+São teus irmãos, que se erguem! são canções...
+Mas de guerra... e são vozes de rebate!
+
+Ergue-te pois, soldado do Futuro,
+E dos raios de luz sonho puro,
+Sonhador, faze espada de combate!
+
+
+
+
+Hymno á Razão
+
+
+Razão, irmã do Amor e da Justiça,
+Mais uma vez escuta a minha prece.
+É a voz d'um coração que te appetece,
+D'uma alma livre, só a ti submissa.
+
+Por ti é que a poeira movediça
+De astros e soes e mundos permanece;
+E é por ti que a virtude prevalece,
+E a flor do heroismo medra e viça.
+
+Por ti, na arena tragica, as nações
+Buscam a liberdade, entre clarões:
+E os que olham o futuro e scismam, mudos,
+
+Por ti, podem soffrer e não se abatem,
+Mãe de filhos robustos, que combatem
+Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
+
+
+
+
+1874--1880
+
+
+
+
+HOMO
+
+
+Nenhum de vós ao certo me conhece,
+Astros do espaço, ramos do arvoredo,
+Nenhum adivinhou o meu segredo,
+Nenhum interpretou a minha prece...
+
+Ninguem sabe quem sou... e mais, parece
+Que ha dez mil annos já, neste degredo,
+Me vê passar o mar, vê-me o rochedo
+E me contempla a aurora que alvorece...
+
+Sou um parto da Terra monstruoso;
+Do humus primitivo e tenebroso
+Geração casual, sem pae nem mãe...
+
+Mixto infeliz de trevas e de brilho,
+Sou talvez Satanaz;--talvez um filho
+Bastardo de Jehovah;--talvez ninguem!
+
+
+
+
+Disputa em familia
+
+ Dixit insipiens in corde suo: non est Deus.
+
+
+I
+
+
+Sae das nuvens, levanta a fronte e escuta
+O que dizem teus filhos rebellados,
+Velho Jehovah de longa barba hirsuta,
+Solitario em teus Céos acastellados:
+
+«--Cessou o imperio emfim da força bruta!
+Não soffreremos mais, emancipados,
+O tyranno, de mão tenaz e astuta,
+Que mil annos nos trouxe arrebanhados!
+
+Emquanto tu dormias impassivel,
+Topámos no caminho a liberdade
+Que nos sorrio com gesto indefinivel...
+
+Já provámos os fructos da verdade...
+Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrivel.
+Não passas d'uma van banalidade!--»
+
+
+II
+
+
+Mas o velho tyranno solitario,
+De coração austero e endurecido,
+Que um dia, de enjoado ou distrahido,
+Deixou matar seu filho no Calvario,
+
+Sorrio com rir extranho, ouvindo o vario
+Tumultuoso côro e alarido
+Do povo insipiente, que, atrevido,
+Erguia a voz em grita ao seu sacrario:
+
+«--Vanitas vanitatum! (disse). É certo
+Que o homem vão medita mil mudanças,
+Sem achar mais do que erro e desacerto.
+
+Muito antes de nascerem vossos paes
+D'um barro vil, ridiculas crianças,
+Sabia em tudo isso... e muito mais!--»
+
+
+
+
+Mors liberatrix
+
+(A Bulhão Pato)
+
+
+Na tua mão, sombrio cavalleiro,
+Cavalleiro vestido de armas pretas,
+Brilha uma espada feita de cometas,
+Que rasga a escuridão como um luzeiro.
+
+Caminhas no teu curso aventureiro,
+Todo involto na noite que projectas...
+Só o gladio de luz com fulvas betas
+Emerge do sinistro nevoeiro.
+
+--«Se esta espada que empunho é coruscante,
+(Responde o negro cavalleiro-andante)
+É porque esta é a espada da Verdade.
+
+Firo, mas salvo... Prostro e desbarato,
+Mas consólo... Subverto, mas resgato...
+E, sendo a Morte, sou a Liberdade.»
+
+
+
+
+O Inconsciente
+
+
+O Espectro familiar que anda commigo,
+Sem que podesse ainda ver-lhe o rosto,
+Que umas vezes encaro com desgosto
+E outras muitas ancioso espreito e sigo.
+
+É um espectro mudo, grave, antigo,
+Que parece a conversas mal disposto...
+Ante esse vulto, ascetico e composto
+Mil vezes abro a bocca... e nada digo.
+
+Só uma vez ousei interrogal-o:
+Quem és (lhe perguntei com grande abalo)
+Phantasma a quem odeio e a quem amo?
+
+Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,
+Chamam-me Deus, ha mais de dez mil annos...
+Mas eu por mim não sei como me chamo...
+
+
+
+
+MORS-AMOR
+
+(A Luiz de Magalhães)
+
+
+Esse negro corcel, cujas passadas
+Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
+E, passando a galope, me apparece
+Da noite nas phantasticas estradas.
+
+D'onde vem elle? Que regiões sagradas
+E terriveis cruzou, que assim parece
+Tenebroso e sublime, e lhe estremece
+Não sei que horror nas crinas agitadas?
+
+Um cavalleiro de expressão potente,
+Formidavel, mas placido, no porte,
+Vestido de armadura reluzente,
+
+Cavalga a fera extranha sem temor.
+E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»
+Responde o cavalleiro: «Eu sou o Amor!»
+
+
+
+
+ESTOICISMO
+
+(A Manoel Duarte de Almeida)
+
+
+Tu que não crês, nem amas, nem esperas,
+Espirito de eterna negação,
+Teu halito gelou-me o coração
+E destroçou-me da alma as primaveras...
+
+Atravessando regiões austeras,
+Cheias de noite e cava escuridão,
+Como n'um sonho mau, só oiço um não,
+Que eternamente ecchoa entre as espheras...
+
+--Porque suspiras, porque te lamentas,
+Cobarde coração? Debalde intentas
+Oppor á Sorte a queixa do egoismo...
+
+Deixa aos timidos, deixa aos sonhadores
+A esperança van, seus vãos fulgores...
+Sabe tu encarar sereno o abysmo!
+
+
+
+
+ANIMA MEA
+
+
+Estava a Morte alli, em pé, diante,
+Sim, diante de mim, como serpente
+Que dormisse na estrada e de repente
+Se erguesse sob os pés do caminhante.
+
+Era de ver a funebre bacchante!
+Que torvo olhar! que gesto de demente!
+E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
+Loba faminta, pelo mundo errante?»
+
+--Não temas, respondeu (e uma ironia
+Sinistramente estranha, atroz e calma,
+Lhe torceu cruelmente a bocca fria).
+
+Eu não busco o teu corpo... Era um tropheu
+Glorioso de mais... Busco a tua alma--
+Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!»
+
+
+
+
+Divina comedia
+
+(Ao Dr. José Falcão)
+
+
+Erguendo os braços para o céo distante
+E apostrophando os deuses invisiveis,
+Os homens clamam:--«Deuses impassiveis,
+A quem serve o destino triumphante,
+
+Porque é que nos criastes?! Incessante
+Corre o tempo e só gera, inestinguiveis,
+Dor, peccado, illusão, luctas horriveis,
+N'um turbilhão cruel e delirante...
+
+Pois não era melhor na paz clemente
+Do nada e do que ainda não existe,
+Ter ficado a dormir eternamente?
+
+Porque é que para a dor nos evocastes?»
+Mas os deuses, com voz inda mais triste,
+Dizem:--«Homens! porque é que nos criastes?»
+
+
+
+
+Espiritualismo
+
+
+I
+
+
+Como um vento de morte e de ruina,
+A Duvida soprou sobre o Universo.
+Fez-se noite de subito, immerso
+O mundo em densa e algida neblina.
+
+Nem astro já reluz, nem ave trina,
+Nem flor sorri no seu aereo berço.
+Um veneno sutil, vago, disperso,
+Empeçonhou a criação divina.
+
+E, no meio da noite monstruosa,
+Do silencio glacial, que paira e estende
+O seu sudario, d'onde a morte pende,
+
+Só uma flor humilde, mysteriosa,
+Como um vago protesto da existencia,
+Desabroxa no fundo da Consciencia.
+
+
+II
+
+
+Dorme entre os gelos, flor immaculada!
+Lucta, pedindo um ultimo clarão
+Aos soes que ruem pela immensidão,
+Arrastando uma aureola apagada...
+
+Em vão! Do abysmo a bocca escancarada
+Chama por ti na gélida amplidão...
+Sobe do poço eterno, em turbilhão,
+A treva primitiva conglobada...
+
+Tu morrerás tambem. Um ai supremo,
+Na noite universal que envolve o mundo,
+Ha-de ecchoar, e teu perfume extremo
+
+No vacuo eterno se esvahirá disperso,
+Como o alento final d'um moribundo,
+Como o ultimo suspiro do Universo.
+
+
+
+
+O CONVERTIDO
+
+(A Gonçalves Crespo)
+
+
+Entre os filhos d'um seculo maldito
+Tomei tambem o logar na impia meza,
+Onde, sob o folgar, geme a tristeza
+D'uma ancia impotente de infinito.
+
+Como os outros, cuspi no altar avito
+Um rir feito de fel e de impureza...
+Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza,
+Deu-me rebate o coração contrito!
+
+Erma, cheia de tedio e de quebranto,
+Rompendo os diques ao represo pranto,
+Virou-se para Deus minha alma triste!
+
+Amortalhei na fé o pensamento,
+E achei a paz na inercia e esquecimento...
+Só me falta saber se Deus existe!
+
+
+
+
+ESPECTROS
+
+
+Espectros que velaes, emquanto a custo
+Adormeço um momento, e que inclinados
+Sobre os meus somnos curtos e cançados
+Me encheis as noites de agonia e susto!...
+
+De que me vale a mim ser puro e justo,
+E entre combates sempre renovados
+Disputar dia a dia á mão dos Fados
+Uma parcella do saber augusto,
+
+Se a minh'alma ha-de ver, sobre si fitos,
+Sempre esses olhos tragicos, malditos!
+Se até dormindo, com angustia immensa,
+
+Bem os sinto verter sobre o meu leito,
+Uma a uma verter sobre o meu peito
+As lagrimas geladas da descrença!
+
+
+
+
+Á Virgem Santissima
+
+_Cheia de Graça, Mãe de Misericordia_
+
+
+N'um sonho todo feito de incerteza,
+De nocturna e indizivel anciedade,
+É que eu vi teu olhar de piedade
+E (mais que piedade) de tristeza...
+
+Não era o vulgar brilho da belleza,
+Nem o ardor banal da mocidade...
+Era outra luz, era outra suavidade,
+Que até nem sei se as ha na natureza...
+
+Um mystico soffrer... uma ventura
+Feita só do perdão, só da ternura
+E da paz da nossa hora derradeira...
+
+Ó visão, visão triste e piedosa!
+Fita-me assim calada, assim chorosa...
+E deixa-me sonhar a vida inteira!
+
+
+
+
+NOX
+
+(A Fernando Leal)
+
+
+Noite, vão para ti meus pensamentos,
+Quando olho e vejo, á luz cruel do dia,
+Tanto esteril luctar, tanta agonia,
+E inuteis tantos asperos tormentos...
+
+Tu, ao menos, abafas os lamentos,
+Que se exhalam da tragica enxovia...
+O eterno Mal, que ruge e desvaria,
+Em ti descança e esquece, alguns momentos...
+
+Oh! antes tu tambem adormecesses
+Por uma vez, e eterna, inalteravel,
+Cahindo sobre o mundo, te esquecesses,
+
+E elle, o mundo, sem mais luctar nem ver,
+Dormisse no teu seio inviolavel,
+Noite sem termo, noite do Não-ser!
+
+
+
+
+EM VIAGEM
+
+
+Pelo caminho estreito, aonde a custo
+Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
+Mas só bruta aridez de aspero monte
+E os soes e a febre do areal adusto,
+
+Pelo caminho estreito entrei sem susto
+E sem susto encarei, vendo-os defronte,
+Phantasmas que surgiam do horizonte
+A accommetter meu coração robusto...
+
+Quem sois vós, peregrinos singulares?
+Dor, Tedio, Desenganos e Pesares...
+Atraz d'elles a Morte espreita ainda...
+
+Conheço-vos. Meus guias derradeiros
+Sereis vós. Silenciosos companheiros,
+Bemvindos, pois, e tu, Morte, bemvinda!
+
+
+
+
+Quia aeternus
+
+(A Joaquim de Araujo)
+
+
+Não morreste, por mais que o brade á gente
+Uma orgulhosa e van philosophia...
+Não se sacode assim tão facilmente
+O jugo da divina tyrannia!
+
+Clamam em vão, e esse triumpho ingente
+Com que a Razão--coitada!--se inebria,
+É nova forma, apenas, mais pungente,
+Da tua eterna, tragica ironia.
+
+Não, não morreste, espectro! o Pensamento
+Como d'antes te encara, e és o tormento
+De quantos sobre os livros desfallecem.
+
+E os que folgam na orgia impia e devassa
+Ai! quantas vezes ao erguer a taça,
+Param, e estremecendo, empallidecem!
+
+
+
+
+No turbilhão
+
+(A Jayme Batalha Reis)
+
+
+No meu sonho desfilam as visões,
+Espectros dos meus proprios pensamentos,
+Como um bando levado pelos ventos,
+Arrebatado em vastos turbilhões...
+
+N'uma espiral, de estranhas contorsões,
+E d'onde sáem gritos e lamentos,
+Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
+Distingo-lhes, a espaços, as feições...
+
+--Phantasmas de mim mesmo e da minha alma,
+Que me fitaes com formidavel calma,
+Levados na onda turva do escarceo,
+
+Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
+Quem sois, visões miserrimas e atrozes?
+Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...
+
+
+
+
+IGNOTUS
+
+(A Salomão Sáragga)
+
+
+Onde te escondes? Eis que em vão clamamos,
+Suspirando e erguendo as mãos em vão!
+Já a voz enrouquece e o coração
+Está cançado--e já desesperamos...
+
+Por céo, por mar e terras procuramos
+O Espirito que enche a solidão,
+E só a propria voz na immensidão
+Fatigada nos volve... e não te achamos!
+
+Céos e terra, clamai, aonde? aonde?--
+Mas o Espirito antigo só responde,
+Em tom de grande tedio e de pezar:
+
+--Não vos queixeis, ó filhos da anciedade,
+Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
+Tambem me busco a mim... sem me encontrar!
+
+
+
+
+NO CIRCO
+
+(A João de Deus)
+
+
+Muito longe d'aqui, nem eu sei quando,
+Nem onde era esse mundo, em que eu vivia...
+Mas tão longe... que até dizer podia
+Que emquanto lá andei, andei sonhando...
+
+Porque era tudo ali aereo e brando,
+E lucida a existencia amanhecia...
+E eu... leve como a luz... até que um dia
+Um vento me tomou, e vim rolando...
+
+Cahi e achei-me, de repente, involto
+Em lucta bestial, na arena fera,
+Onde um bruto furor bramia solto.
+
+Senti um monstro em mim nascer n'essa hora,
+E achei-me de improviso feito fera...
+--É assim que rujo entre leões agora!
+
+
+
+
+NIRVÂNA
+
+(A Guerra Junqueiro)
+
+
+Para além do Universo luminoso,
+Cheio de fórmas, de rumor, de lida,
+De forças, de desejos e de vida,
+Abre-se como um vacuo tenebroso.
+
+A onda d'esse mar tumultuoso
+Vem ali expirar, esmaecida...
+N'uma immobilidade indefinida
+Termina ali o ser, inerte, ocioso...
+
+E quando o pensamento, assim absorto,
+Emerge a custo d'esse mundo morto
+E torna a olhar as cousas naturaes,
+
+Á bella luz da vida, ampla, infinita,
+Só vê com tedio, em tudo quanto fita,
+A illusão e o vasio universaes.
+
+
+
+
+CONSULTA
+
+(A Alberto Sampaio)
+
+
+Chamei em volta do meu frio leito
+As memorias melhores de outra edade,
+Fórmas vagas, que ás noites, com piedade,
+Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito...
+
+E disse-lhes:--No mundo immenso e estreito
+Valia a pena, acaso, em anciedade
+Ter nascido? dizei-mo com verdade,
+Pobres memorias que eu ao seio estreito...
+
+Mas ellas perturbaram-se--coitadas!
+E empallideceram, contristadas,
+Ainda a mais feliz, a mais serena...
+
+E cada uma d'ellas, lentamente,
+Com um sorriso morbido, pungente,
+Me respondeu:--Não, não valia a pena!
+
+
+
+
+Divina comedia
+
+(Ao Dr. José Falcão)
+
+Erguendo os braços para o céo distante
+E apostrophando os deuses invisiveis,
+Os homens clamam:--«Deuses impassiveis,
+A quem serve o destino triumphante,
+
+Porque é que nos criastes?! Incessante
+Corre o tempo e só gera, inestinguiveis,
+Dor, peccado, illusão, luctas horriveis,
+N'um turbilhão cruel e delirante...
+
+Pois não era melhor na paz clemente
+Do nada e do que ainda não existe,
+Ter ficado a dormir eternamente?
+
+Porque é que para a dor nos evocastes?»
+Mas os deuses, com voz inda mais triste,
+Dizem:--«Homens! porque é que nos criastes?»
+
+
+
+
+VISÃO
+
+(A J. M. Eça de Queiroz)
+
+
+Eu vi o Amor--mas nos seus olhos baços
+Nada sorria já: só fixo e lento
+Morava agora ali um pensamento
+De dor sem tregoa e de intimos cançaços.
+
+Pairava, como espectro, nos espaços,
+Todo envolto n'um nimbo pardacento...
+Na attitude convulsa do tormento,
+Torcia e retorcia os magros braços...
+
+E arrancava das aras destroçadas
+A uma e uma as pennas maculadas,
+Soltando a espaços um soluço fundo,
+
+Soluço de odio e raiva impenitentes...
+E do phantasma as lagrimas ardentes
+Cahiam lentamente sobre o mundo!
+
+
+
+
+1880--1884
+
+
+
+
+Transcendentalismo
+
+(A J. P. Oliveira Martins)
+
+
+Já socega, depois de tanta lucta,
+Já me descança em paz o coração.
+Cahi na conta, emfim, de quanto é vão
+O bem que ao Mundo e á Sorte se disputa.
+
+Penetrando, com fronte não enxuta,
+No sacrario do templo da Illusão,
+Só encontrei, com dor e confusão,
+Trevas e pó, uma materia bruta...
+
+Não é no vasto mundo--por immenso
+Que elle pareça á nossa mocidade--
+Que a alma sacia o seu desejo intenso...
+
+Na esphera do invisivel, do intangivel,
+Sobre desertos, vacuo, soledade,
+Vôa e paira o espirito impassivel!
+
+
+
+
+EVOLUÇÃO
+
+(A Santos Valente)
+
+
+Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
+Tronco ou ramo na incognita floresta...
+Onda, espumei, quebrando-me na aresta
+Do granito, antiquissimo inimigo...
+
+Rugi, fera talvez, buscando abrigo
+Na caverna que ensombra urze e giesta;
+Ou, monstro primitivo, ergui a testa
+No limoso paúl, glauco pacigo...
+
+Hoje sou homem--e na sombra enorme
+Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
+Que desce, em espiraes, na immensidade...
+
+Interrogo o infinito e ás vezes chóro...
+Mas, estendendo as mãos no vacuo, adoro
+E aspiro unicamente á liberdade.
+
+
+
+
+Elogio da Morte
+
+ Morrer é ser iniciado.
+
+ Anthologia Grega.
+
+
+I
+
+
+Altas horas da noite, o Inconsciente
+Sacode-me com força, e accórdo em susto.
+Como se o esmagassem de repente,
+Assim me pára o coração robusto.
+
+Não que de larvas me povôe a mente
+Esse vacuo nocturno, mudo e augusto,
+Ou forceje a razão por que afugente
+Algum remorso, com que encara a custo...
+
+Nem phantasmas nocturnos visionarios,
+Nem desfilar de espectros mortuarios,
+Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte...
+
+Nada! o fundo dum poço, humido e morno,
+Um muro de silencio e treva em torno,
+E ao longe os passos sepulcraes da Morte.
+
+
+II
+
+
+Na floresta dos sonhos, dia a dia,
+Se interna meu dorido pensamento.
+Nas regiões do vago esquecimento
+Me conduz, passo a passo, a phantasia.
+
+Atravesso, no escuro, a nevoa fria
+D'um mundo estranho, que povôa o vento,
+E meu queixoso e incerto sentimento
+Só das visões da noite se confia.
+
+Que mysticos desejos me enlouquecem?
+Do Nirvâna os abysmos apparecem,
+A meus olhos, na muda immensidade!
+
+N'esta viagem pelo ermo espaço,
+Só busco o teu encontro e o teu abraço,
+Morte! irman do Amor e da Verdade!
+
+
+III
+
+
+Eu não sei quem tu és--mas não procuro
+(Tal é minha confiança) devassal-o.
+Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
+Entre as fórmas da noite, com quem falo.
+
+Atravez do silencio frio e obscuro
+Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
+No cairel dos abysmos do Futuro
+Me inclino á tua voz, para sondal-o.
+
+Por ti me engolfo no nocturno mundo
+Das visões da região innominada,
+A ver se fixo o teu olhar profundo...
+
+Fixal-o, comprehendel-o, basta uma hora,
+Funerea Beatriz de mão gelada...
+Mas unica Beatriz consoladora!
+
+
+IV
+
+
+Longo tempo ignorei (mas que cegueira
+Me trazia este espirito ennublado!)
+Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
+Noite e dia, impassivel companheira...
+
+Muitas vezes, é certo, na canceira,
+No tedio extremo d'um viver maguado,
+Para ti levantei o olhar turbado,
+Invocando-te, amiga derradeira...
+
+Mas não te amava então nem conhecia:
+Meu pensamento inerte nada lia
+Sobre essa muda fronte, austera e calma.
+
+Luz intima, afinal, alumiou-me...
+Filha do mesmo pae, já sei teu nome,
+Morte, irman coeterna da minha alma!
+
+
+V
+
+
+Que nome te darei, austera imagem,
+Que avisto já n'um angulo da estrada,
+Quando me desmaiava a alma prostrada
+Do cançaço e do tedio da viagem?
+
+Em teus olhos vê a turba uma voragem,
+Cobre o rosto e recúa apavorada...
+Mas eu confio em ti, sombra velada,
+E cuido perceber tua linguagem...
+
+Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
+Filha da noite, os lemmas do Ideal,
+Nos teus olhos profundos sempre fitos...
+
+Dormirei no teu seio inalteravel,
+Na communhão da paz universal,
+Morte libertadora e inviolavel!
+
+
+VI
+
+
+Só quem teme o Não-ser é que se assusta
+Com teu vasto silencio mortuario,
+Noite sem fim, espaço solitario,
+Noite da Morte, tenebrosa e augusta...
+
+Eu não: minh'alma humilde mas robusta
+Entra crente em teu atrio funerario:
+Para os mais és um vacuo cinerario,
+A mim sorri-me a tua face adusta.
+
+A mim seduz-me a paz santa e ineffavel
+E o silencio sem par do Inalteravel,
+Que envolve o eterno amor no eterno luto.
+
+Talvez seja peccado procurar-te,
+Mas não sonhar comtigo e adorar-te,
+Não-ser, que és o Ser unico absoluto.
+
+
+
+
+Contemplação
+
+(A Francisco Machado de Faria e Maia)
+
+
+Sonho de olhos abertos, caminhando
+Não entre as formas já e as apparencias,
+Mas vendo a face immovel das essencias,
+Entre ideas e espiritos pairando...
+
+Que é o mundo ante mim? fumo ondeando,
+Visões sem ser, fragmentos de existencias...
+Uma nevoa de enganos e impotencias
+Sobre vacuo insondavel rastejando...
+
+E d'entre a nevoa e a sombra universaes
+Só me chega um murmurio, feito de ais...
+É a queixa, o profundissimo gemido
+
+Das cousas, que procuram cegamente
+Na sua noite e dolorosamente
+Outra luz, outro fim só presentido...
+
+
+
+
+Lacrimae rerum
+
+(A Tommaso Cannizzaro)
+
+
+Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
+Quantas vezes tenho eu interrogado
+Teu verbo, teu oraculo sagrado,
+Confidente e interprete da Sorte!
+
+Aonde vão teus soes, como cohorte
+De almas inquietas, que conduz o Fado?
+E o homem porque vaga desolado
+E em vão busca a certeza que o conforte?
+
+Mas, na pompa de immenso funeral,
+Muda, a noite, sinistra e triumphal,
+Passa volvendo as horas vagarosas...
+
+É tudo, em torno de mim, duvida e luto:
+E, perdido n'um sonho immenso, escuto
+O suspiro das cousas tenebrosas...
+
+
+
+
+REDEMPÇÃO
+
+(Á Ex.^{ma} Snr.^a D. Celeste C. B. R.)
+
+
+I
+
+
+Vozes do mar, das arvores, do vento!
+Quando ás vezes, n'um sonho doloroso,
+Me embala o vosso canto poderoso,
+Eu julgo igual ao meu vosso tormento...
+
+Verbo crepuscular e intimo alento
+Das cousas mudas; psalmo mysterioso;
+Não serás tu, queixume vaporoso,
+O suspiro do mundo e o seu lamento?
+
+Um espirito habita a immensidade:
+Uma ancia cruel de liberdade
+Agita e abala as formas fugitivas.
+
+E eu comprehendo a vossa lingua estranha,
+Vozes do mar, da selva, da montanha...
+Almas irmans da minha, almas captivas!
+
+
+II
+
+
+Não choreis, ventos, arvores e mares,
+Côro antigo de vozes rumorosas,
+Das vozes primitivas, dolorosas
+Como um pranto de larvas tumulares...
+
+Da sombra das visões crepusculares
+Rompendo, um dia, surgireis radiosas
+D'esse sonho e essas ancias affrontosas,
+Que exprimem vossas queixas singulares...
+
+Almas no limbo ainda da existencia,
+Accordareis um dia na Consciencia,
+E pairando, já puro pensamento,
+
+Vereis as Formas, filhas da Illusão,
+Cahir desfeitas, como um sonho vão...
+E acabará por fim vosso tormento.
+
+
+
+
+Voz interior
+
+(A João de Deus)
+
+
+Embebido n'um sonho doloroso,
+Que atravessam phantasticos clarões,
+Tropeçando n'um povo de visões,
+Se agita meu pensar tumultuoso...
+
+Com um bramir de mar tempestuoso
+Que até aos céos arroja os seus cachões,
+Atravez d'uma luz de exhalações,
+Rodeia-me o Universo monstruoso...
+
+Um ai sem termo, um tragico gemido
+Echoa sem cessar ao meu ouvido,
+Com horrivel, monotono vaivem...
+
+Só no meu coração, que sondo e meço,
+Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
+Em segredo protesta e affirma o Bem!
+
+
+
+
+LUCTA
+
+ Fluxo e refluxo eterno...
+
+ João de Deus.
+
+
+Dorme a noite encostada nas colinas.
+Como um sonho de paz e esquecimento
+Desponta a lua. Adormeceu o vento,
+Adormeceram valles e campinas...
+
+Mas a mim, cheia de attracções divinas,
+Dá-me a noite rebate ao pensamento.
+Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
+Os Destinos e as Almas peregrinas!
+
+Insondavel problema!... Apavorado
+Recúa o pensamento!... E já prostrado
+E estupido á força de fadiga,
+
+Fito inconsciente as sombras visionarias,
+Emquanto pelas praias solitarias
+Echoa, ó mar, a tua voz antiga.
+
+
+
+
+LOGOS
+
+(Ao snr. D. Nicolau Salmeron)
+
+
+Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
+E, o que é mais, dentro de mim--que me rodeias
+Com um nimbo de affectos e de ideas,
+Que são o meu principio, meio e fim...
+
+Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
+Me arrebatas comtigo e me passeias
+Em regiões innominadas, cheias
+De encanto e de pavor... de não e sim...
+
+És um reflexo apenas da minha alma,
+E em vez de te encarar com fronte calma,
+Sobresalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...
+
+Falo-te, calas... calo, e vens attento...
+És um pae, um irmão, e é um tormento
+Ter-te a meu lado... és um tyranno, e adoro-te!
+
+
+
+
+Com os mortos
+
+
+Os que amei, onde estão? idos, dispersos,
+Arrastados no gyro dos tufões,
+Levados, como em sonho, entre visões,
+Na fuga, no ruir dos universos...
+
+E eu mesmo, com os pés tambem immersos
+Na corrente e á mercê dos turbilhões,
+Só vejo espuma livida, em cachões,
+E entre ella, aqui e ali, vultos submersos...
+
+Mas se paro um momento, se consigo
+Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
+De novo, esses que amei: vivem commigo.
+
+Vejo-os, ouço-os e ouvem-me tambem,
+Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
+Na communhão ideal do eterno Bem.
+
+
+
+
+Oceano Nox
+
+(A A. de Azevedo Castello Branco)
+
+
+Junto do mar, que erguia gravemente
+A tragica voz rouca, em quanto o vento
+Passava como o vôo d'um pensamento
+Que busca e hesita, inquieto e intermittente,
+
+Junto do mar sentei-me tristemente,
+Olhando o céo pesado e nevoento,
+E interroguei, scismando, esse lamento
+Que sahia das cousas, vagamente...
+
+Que inquieto desejo vos tortura,
+Seres elementares, força obscura?
+Em volta de que idea gravitaes?--
+
+Mas na immensa extensão, onde se esconde
+O Inconsciente immortal, só me responde
+Um bramido, um queixume, e nada mais...
+
+
+
+
+Communhão
+
+(Ao snr. João Lobo de Moura)
+
+
+Reprimirei meu pranto!... Considera
+Quantos, minh'alma, antes de nós vagaram,
+Quantos as mãos incertas levantaram
+Sob este mesmo céo de luz austera!...
+
+--Luz morta! amarga a propria primavera!--
+Mas seus pacientes corações luctaram,
+Crentes só por instincto, e se apoiaram
+Na obscura e heroica fé, que os retempera...
+
+E sou eu mais do que elles? igual fado
+Me prende á lei de ignotas multidões.--
+Seguirei meu caminho confiado,
+
+Entre esses vultos mudos, mas amigos,
+Na humilde fé de obscuras gerações,
+Na communhão dos nossos paes antigos.
+
+
+
+
+Solemnia Verba
+
+
+Disse ao meu coração: Olha por quantos
+Caminhos vãos andámos! Considera
+Agora, d'esta altura fria e austera,
+Os ermos que regaram nossos prantos...
+
+Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
+E noite, onde foi luz de primavera!
+Olha a teus pés o mundo e desespera
+Semeador de sombras e quebrantos!--
+
+Porém o coração, feito valente
+Na escola da tortura repetida,
+E no uso do penar tornado crente,
+
+Respondeu: D'esta altura vejo o Amor!
+Viver não foi em vão, se é isto a vida,
+Nem foi de mais o desengano e a dor.
+
+
+
+
+O que diz a Morte
+
+
+Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
+Deixai-os vir a mim, os que padecem;
+E os que cheios de magua e tedio encaram
+As proprias obras vans, de que escarnecem...
+
+Em mim, os Soffrimentos que não saram,
+Paixão, Duvida e Mal, se desvanecem.
+As torrentes da Dor, que nunca param,
+Como n'um mar, em mim desapparecem.--
+
+Assim a Morte diz. Verbo velado,
+Silencioso interprete sagrado
+Das cousas invisiveis, muda e fria,
+
+É, na sua mudez, mais retumbante
+Que o clamoroso mar; mais rutilante,
+Na sua noite, do que a luz do dia.
+
+
+
+
+Na mão de Deus
+
+(Á Ex.^{ma} Snr.^a Victoria de O. M.)
+
+
+Na mão de Deus, na sua mão direita,
+Descançou a final meu coração.
+Do palacio encantado da Illusão
+Desci a passo e passo a escada estreita.
+
+Como as flores mortaes, com que se enfeita
+A ignorancia infantil, despojo vão,
+Depuz do Ideal e da Paixão
+A forma transitoria e imperfeita.
+
+Como criança, em lobrega jornada,
+Que a mãe leva ao collo agasalhada
+E atravessa, sorrindo vagamente,
+
+Selvas, mares, areias do deserto...
+Dorme o teu somno, coração liberto,
+Dorme na não de Deus eternamente!
+
+
+
+
+INDICE
+
+
+A cruz dizia á terra, onde assentava [pag. 64]
+Adornou o meu quarto a flor do cardo [pag. 26]
+Ali, onde o mar quebra, n'um cachão [pag. 52]
+Altas horas da noite, o Inconsciente [pag. 103]
+Amar! mas d'um amor que tenha vida [pag. 25]
+Amem a noite os magros crapulosos [pag. 65]
+Aquella, que eu adoro, não é feita [pag. 44]
+Aquelles, que eu amei, não sei que vento [pag. 49]
+Ardentes filhas do prazer, dizei-me [pag. 48]
+Chamei em volta do meu frio leito [pag. 96]
+Chovam lyrios e rosas no teu collo [pag. 35]
+Como um vento de morte e de ruina [pag. 84]
+Conheci a belleza que não morre [pag. 7]
+Conquista pois sósinho o teu futuro [pag. 58]
+Deixae-os vir a mim, os que lidaram [pag. 120]
+Deixal-a ir, a ave, a quem roubaram [pag. 46]
+Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando [pag. 22]
+Disse ao meu coração: Olha por quantos [pag. 119]
+Dorme a noite encostada nas colinas [pag. 114]
+Dorme entre os gelos, flor immaculada [pag. 85]
+Embebido n'um sonho doloroso [pag. 113]
+Empunhasse eu a espada dos valentes! [pag. 45]
+Em sonho, ás vezes, se o sonhar quebranta [pag. 37]
+Em vão luctamos! Como nevoa baça [pag. 19]
+Entre os filhos d'um seculo maldito [pag. 86]
+Erguendo os braços para o céo distante [pag. 83]
+Espectros que velaes, em quanto a custo [pag. 87]
+Esperemos em Deus! Elle ha tornado [pag. 10]
+Espirito que passas, quando o vento [pag. 32]
+Esse negro corcel, cujas passadas [pag. 80]
+Estava a morte ali, em pé, deante [pag. 82]
+Estreita é do prazer na vida a taça [pag. 6]
+Eu amo a vasta sombra das montanhas [pag. 30]
+Eu bem sei que te chamam pequenina [pag. 27]
+Eu não sei quem tu és mas não procuro [pag. 103]
+Eu vi o Amor--mas nos seus olhos baços [pag. 97]
+Força é pois ir buscar outro caminho! [pag. 57]
+Fui rocha, em tempos, e fui, no mundo antigo [pag. 102]
+Fumo e scismo. Os castellos do horizonte [pag. 40]
+Ha mil annos, bom Christo, ergueste os magros braços [pag. 20]
+Ha mil annos, e mais, que aqui estou morto [pag. 69]
+Já não sei o que vale a nova idea [pag. 66]
+Já socega, depois de tanta lucta [pag. 101]
+Junto do mar, que erguia gravemente [pag. 117]
+Lá! mas aonde é _lá_? aonde? Espera [pag. 62]
+Longo tempo ignorei--mas que cegueira [pag. 106]
+Mãe, que adormente este viver dorido [pag. 38]
+Mas a Idea quem é? quem foi que a vio [pag. 59]
+Mas o velho tyranno solitario [pag. 77]
+Meus dias vão correndo vagarosos [pag. 8]
+Muito longe d'aqui, nem eu sei quando [pag. 94]
+Na capella, perdida entre a folhagem [pag. 34]
+Na floresta dos sonhos, dia a dia [pag. 104]
+Na mão de Deus, na sua mão direita [pag. 121]
+Na tua mão, sombrio cavalleiro [pag. 78]
+Nas florestas solemnes ha o culto [pag. 68]
+Não busco n'esta vida gloria ou fama [pag. 18]
+Não duvido que o mundo no seu eixo [pag. 41]
+Não choreis, ventos, arvores e mares [pag. 112]
+Não morreste, por mais que o brade á gente [pag. 91]
+Não se perdeu teu sangue generoso [pag. 63]
+Não me fales de gloria: é outro o altar [pag. 16]
+No céo, se existe um céo para quem chora [pag. 11]
+Nenhum de vós ao certo me conhece [pag. 75]
+Noite, irmã da Razão e irmã da Morte [pag. 110]
+Noite, vão para ti meus pensamento [pag. 89]
+No meu sonho desfilam as visões [pag. 92]
+N'um céo intemerato e crystalino [pag. 67]
+N'um sonho todo feito de incerteza [pag. 88]
+O espectro familiar, que anda commigo [pag. 79]
+Oh chimera, que passas embalada [pag. 47]
+Oh! o noivado barbaro! o noivado [pag. 61]
+Onde te escondes? eis que em vão clamamos [pag. 93]
+Os que amei, onde estão? idos, dispersos [pag. 116]
+Outra amante não ha! não ha na vida [pag. 60]
+Ouve tu, meu cançado coração [pag. 31]
+Pallido Christo, oh conductor divino! [pag. 56]
+Para além do Universo luminoso [pag. 93]
+Para tristezas, para dar nasceste [pag. 50]
+Pelas rugas da fronte que medita [pag. 43]
+Pelo caminho estreito, aonde a custo [pag. 90]
+Pois que os deuses antigos e os antigos [pag. 55]
+Porque descrês, mulher, do amor, da vida? [pag. 15]
+Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa [pag. 5]
+Quando nós vamos ambos, de mãos dadas [pag. 31]
+Que belleza mortal se te assemelha [pag. 3]
+Que nome te darei, austera imagem [pag. 107]
+Quem anda lá por fora, pela vinha [pag. 28]
+Razão, irmã do Amor e da Justiça [pag. 71]
+Reprimirei meu pranto!... Considera [pag. 118]
+Sáe das nuvens, levanta a fronte e escuta [pag. 76]
+Se comparo poder, ou ouro, ou fama [pag. 9]
+Se é lei, que rege o escuro pensamento [pag. 12]
+Sempre o futuro, sempre! e o presente [pag. 14]
+Só! Ao ermita sósinho na montanha [pag. 13]
+Só males são reaes, só dor existe [pag. 17]
+Só quem teme o Não-Ser é que se assusta [pag. 108]
+Só por ti, astro ainda e sempre occulto [pag. 34]
+Sonho-me ás vezes rei, n'alguma ilha [pag. 29]
+Sonhei--nem sempre o sonho é cousa vã [pag. 33]
+Sonho de olhos abertos, caminhando [pag. 109]
+Sonho que sou um cavalleiro andante [pag. 42]
+Tu, que eu não vejo e estás ao pé de mim [pag. 115]
+Tu, que dormes, espirito sereno [pag. 70]
+Tu, que não crês, nem amas, nem esperas [pag. 81]
+Um dia, meu amor, e talvez cedo [pag. 36]
+Um diluvio de luz cáe da montanha [pag. 4]
+Vae-te na aza negra da desgraça [pag. 21]
+Vozes do mar, das arvores, do vento [pag. 111]
+
+
+
+
+Porto Typographia Occidental. Fabrica 66
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Os sonetos completos de Anthero de
+Quental, by Antero Quental
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ANTHERO DE QUENTAL ***
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+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
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+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
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+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
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